Biblio VT
Series & Trilogias Literarias
O decorrer do ano é assinalado por Sorcha e pelos irmãos como os oito festivais do calendário druídico: por vezes, os dias santos cristãos aparecem nas mesmas datas, provavelmente por razões práticas, por exemplo Lugnasad (Lammas) e Imbolc (Candlemas). Há quatro festivais principais, chamados, por vezes, festivais do fogo, tal como os solstício e equinócios:
Túath uma comunidade tribal na primitiva Irlanda católica, governada por um rei, ou lorde. Sevenwaters é excepção, já que Lorde Colum tem poucos parentes masculinos, à parte os seus filhos, governando, portanto, sem o apoio de um grande grupo familiar consanguíneo. Há apenas uma grande fortaleza na sua túath. É mais vulgar uma túath possuir vários anéis fortificados controlados pelos parentes do rei ou pelos nobres, que pagam por esse privilégio com gado e com serviço militar, ou sodal.
Brilhem — (Inglês, brehon) aquele que julga
CAPÍTULO UM
Três crianças estão estendidas sobre as rochas à beira da água. Uma rapariguinha de cabelo escuro. Dois rapazes, ligeiramente mais velhos. Esta imagem permanece gravada para sempre na minha memória, como uma frágil criatura preservada em âmbar. Eu própria e os meus irmãos. Lembro-me de como a água ondulava à medida que eu corria os meus dedos ao longo da sua superfície brilhante.
— Não te inclines tanto, Sorcha — disse Padriac. — Podes cair.
Era um ano mais velho do que eu e servia-se dessa pequena diferença para exercer uma certa autoridade sobre mim. O que era compreensível, suponho. No fim de contas, éramos seis irmãos, cinco dos quais mais velhos do que ele.
Ignorei-o, tentando alcançar as misteriosas profundidades.
— Ela pode cair, não pode, Finbar?
Um longo silêncio. Como este se prolongasse, olhámos ambos para Finbar, que estava deitado de costas, estendido sobre a rocha tépida. Não estava a dormir; os seus olhos reflectiam o cinzento-pálido do céu outonal. O seu cabelo estava espalhado sobre a rocha num emaranhado negro selvagem. Havia um buraco na manga da sua jaqueta.
— Os cisnes vêm aí — disse Finbar por fim. Sentou-se lentamente e apoiou o queixo nos joelhos dobrados. — Vão chegar esta noite.
Por trás dele, uma brisa fez mover os ramos de carvalhos e ulmeiros, freixos e amieiros e espalhou em todas as direcções as folhas douradas, cor de bronze e castanhas. O lago estava rodeado por montes cheios de árvores, abrigado como num grande cálice.
— Como é que sabes? — perguntou Padriac. — Como é que podes ter a certeza? Pode ser amanhã ou no dia seguinte. Ou podem ir para outro lugar qualquer. Tens a mania de que sabes sempre tudo.
Não me lembro de Finbar responder, mas mais tarde, nesse dia, quando a noite se aproximou, levou-me de novo até à margem do lago. Naquela meia luz, sobre a água, vimos os cisnes a regressarem a casa. Os últimos raios de sol apanharam um movimento branco no céu que escurecia. Em seguida já eles estavam suficientemente perto para podermos ver o seu voo em formação ordenada, descendo através do ar frio à medida que a luz desaparecia. O barulho das asas, a vibração do ar. O último deslizar sobre a água e o brilho prateado desta, abrindo-se para os receber. Ao amararem, o som parecia o meu nome, uma vez e outra: Sorcha, Sorcha. A minha mão apertou a de Finbar; ficámos ali imóveis até ser escuro e só depois o meu irmão me levou para casa.
Se se tem a sorte de crescer como eu, fica-se com muitas coisas boas para recordar. E algumas não tão boas. Uma Primavera, olhando para as minúsculas rãs verdes que apareciam com os primeiros calores, os meus irmãos e eu mergulhávamos na corrente, fazendo tanto barulho que assustávamos qualquer criatura. Três dos meus seis irmãos estavam comigo, Conor a assobiar uma velha canção; Cormack, o seu gémeo, arrastando-se de costas e ficando com o pescoço cheio de lodo. Ambos rolando na margem, lutando e rindo. E Finbar. Finbar estava mais acima, quieto, numa poça provocada pelas rochas. Não virava pedras à procura de rãs; silenciosamente, encantava-as.
Eu tinha na mão um ramo de flores silvestres, violetas, rainhas-dos-prados e daquelas a que nós chamamos campainhas. Perto da margem estava uma nova, com flores em forma de estrela, de um delicado verde-pálido e folhas como penas cinzentas. Desci e estendi o braço para a apanhar.
— Sorcha! Não lhe toques! — estalou Finbar.
Assustada, olhei para cima. Finbar nunca me dava ordens. Se fosse Liam, que era o mais velho, ou Diarmid, que vinha a seguir, não me espantaria. Finbar apressou-se na minha direcção, abandonando as rãs. Mas porque é que eu lhe havia de prestar atenção? Ele pouco mais velho era do que eu e era apenas uma flor.
— Sorcha, não... — Enquanto os meus pequenos dedos colhiam um daqueles caules de aparência suave.
A dor na minha mão foi como se estivesse a arder uma agonia que me fez contrair o rosto e gritar enquanto tropeçava ao longo da vereda, as flores caídas no chão, calcadas sob os pés. Finbar travou-me bruscamente, as mãos nos meus ombros, parando-me a fuga desordenada.
— Morugem — disse ele olhando para a minha mão, que inchava e enrubescia rapidamente. Por esta altura os meus gritos tinham atraído os dois gémeos, que se aproximaram a correr. Cormack segurou-me, visto que era forte, enquanto eu berrava e me debatia com dores. Conor rasgou um bocado da sua suja camisa. Finbar encontrara um par de aguçados galhos e começou a retirar delicadamente, um por um, os minúsculos espinhos que a planta morugem tinha embebido na minha suave carne. Lembro-me da pressão das mãos de Cormack nos meus braços enquanto eu lutava por ar entre soluços e ainda consigo ouvir Conor a falar, a falar, numa voz calma, enquanto os longos e hábeis dedos de Finbar continuavam com a tarefa.
— ...e o nome dela era Deirdre, Dama da Floresta, mas nunca ninguém a via, excepto à noite, se se fosse ao longo dos caminhos sob os vidoeiros, quando se podia vislumbrar a sua silhueta alta vestida com uma capa azul, o longo cabelo, selvagem e escuro, flutuando sobre os ombros e a pequena coroa de estrelas...
Quando tudo acabou, ligaram-me a mão com uma ligadura feita da camisa de Conor, com algumas pétalas de malmequer esmagadas e pela manhã já estava melhor. Nem uma palavra foi dita aos meus irmãos mais velhos quando voltaram para casa, de como eu fora tola.
A partir dessa ocasião fiquei a saber o que era a morugem e comecei a ensinar a mim própria sobre outras plantas que podiam magoar ou curar. Uma criança que cresce meio selvagem na floresta aprende os segredos que nela existem apenas por bom senso. Cogumelos venenosos. Líquen, musgo e picancilho. Folhas, flores, raízes e casca de árvores. Ao longo da floresta enorme, grandes carvalhos, fortes freixos e gentis vidoeiros, escondiam uma miríade de coisas em crescimento. Aprendi a encontrá-las, quando apanhá-las, como usá-las em pomadas, unguentos ou infusões. Mas não fiquei satisfeita. Falei com as velhas das cabanas até elas se cansarem de mim, estudei os manuscritos que pude encontrar e tentei coisas por mim própria. Havia sempre mais coisas a aprender; e havia sempre trabalho a fazer.
Quando é que tudo começou? Quando o meu pai encontrou a minha mãe, perdeu o coração e escolheu desposá-la por amor? Ou foi quando eu nasci? Devia ter sido o sétimo filho de um sétimo filho, mas a deusa pregou uma partida e saí rapariga. Após me ter dado à luz, a minha mãe morreu.
Não se pode dizer que o meu pai se tenha entregado à dor. Era forte demais para isso, mas, quando a perdeu, alguma da luz que existia dentro dele apagou-se. Era só concelhos e jogos de poder, negociações por trás de portas fechadas. Era tudo o que ele via e com que se preocupava. Assim, os meus irmãos cresceram meio selvagens na floresta em volta da fortaleza de Sevenwaters (Termo sem tradução que engloba as fadas, os gnomos, os duendes, etc.). Talvez eu não fosse o sétimo filho das velhas histórias, aquele que tinha poderes mágicos e a sorte das Criaturas Encantadas mas segui os meus irmãos e eles amaram-me e criaram-me como só o poderia fazer um bando de rapazes.
A nossa casa tinha o nome dos sete riachos que desciam dos montes até ao grande lago cercado de árvores. Era um lugar remoto, calmo, estranho, bem guardado por homens silenciosos que deslizavam pelos bosques vestidos de cinzento e que mantinham as armas bem afiadas. O meu pai não arriscava. O meu pai era Lorde Colum de Sevenwaters e a sua túath era a mais segura e mais secreta deste lado de Tara. Todos o respeitavam. Muitos temiam-no. Fora da floresta ninguém estava, realmente, seguro. Salteadores contra salteadores, reis contra reis. E havia os assaltantes do outro lado do mar. Casas cristãs de ensino e contemplação eram pilhadas, os pacíficos habitantes mortos ou postos em fuga. Por vezes, em desespero, os santos irmãos pegavam, eles próprios, em armas. A antiga fé entrou para a clandestinidade. Os Nórdicos reclamaram as nossas costas, estabeleceram em Dublin um porto para os seus navios, permanecendo ali no Inverno e, assim, nenhuma época do ano era segura. Até eu tinha visto a obra deles, porque havia umas ruínas em Killevy, onde assaltantes tinham matado as santas irmãs e destruído o seu santuário. Só lá fui uma vez. Havia uma sombra sobre aquele local. Andando pelo meio daquelas pedras em desordem podia-se ainda ouvir o eco dos seus gritos.
Mas o meu pai era diferente. A autoridade de Lorde Colum era absoluta. Dentro do anel constituído pelos montes, cobertas pela velha floresta, as suas fronteiras eram seguras, atendendo aos tempos conturbados em que vivíamos. Para aqueles que não a respeitavam, ou que não a compreendiam, a floresta era impenetrável. Um homem, ou um bando de homens, que não soubesse que direcção tomar, perder-se-ia irremediavelmente, presa das brumas repentinas, dos ramais, das pistas enganadoras e de outras coisas antigas que um viquingue, ou um bretão, não poderia aspirar a compreender. A floresta protegia-nos. As nossas terras estavam livres de saqueadores, quer fossem assaltantes do outro lado do mar ou vizinhos que quisessem aumentar alguns acres de pastagens, ou cabeças de gado, aos seus domínios. Temiam Sevenwaters e evitavam-nos.
Mas o meu pai tinha pouco tempo para falar dos Nórdicos ou dos Pictos, visto que tínhamos a nossa própria guerra. E essa era com os Bretões. Em particular com uma família de Bretões, conhecida como os Northwoods. Esta contenda era muito antiga. Eu não me preocupava muito com ela. No fim de contas era uma rapariga e, de qualquer maneira, tinha coisas mais importantes para fazer com o meu tempo. Além disso nunca vira um bretão, ou um nórdico, ou um picto. Eram menos reais para mim do que os dragões ou gigantes de uma velha lenda.
O meu pai estava fora a maior parte do tempo, construindo alianças com vizinhos, inspeccionando os postos avançados e as torres de vigilância e recrutando homens. Eu preferia essas ocasiões, quando podíamos passar o tempo como quiséssemos, explorando a floresta, escalando os altos carvalhos, liderando expedições no lago, ficando ao relento toda a noite. Aprendi onde encontrar amoras, avelãs e maçãs silvestres. Aprendi a fazer uma fogueira mesmo com lenha húmida e a cozinhar abóboras-menina, ou cebolas, nas brasas. Conseguia fazer um abrigo com fetos e tripular uma jangada numa corrida.
Adorava permanecer ao ar livre e sentir o vento no rosto. No entanto, continuava a ensinar a mim própria a arte de curar, porque o meu coração dizia-me que seria esse o meu verdadeiro ofício. Todos nós sabíamos ler, se bem que Conor fosse, de longe, o mais hábil e havia velhos manuscritos e rolos de pergaminho amontoados num andar superior da fortaleza de pedra que era a nossa casa. Eu devorava-os, na minha sede de conhecimento, achando tudo aquilo normal, já que era o único mundo que conhecia. Não sabia que outras raparigas de 12 anos aprendiam a bordar e a entrançar os cabelos umas das outras com intrincadas grinaldas, a dançar e a cantar. Não percebia que poucas sabiam ler e que os livros e pergaminhos que enchiam o nosso pacífico quarto do andar de cima eram um tesouro inestimável num tempo de destruição e pilhagem. Aninhada entre as suas árvores guardiãs, escondida do mundo por forças mais velhas do que o tempo, a nossa casa era, de facto, um lugar à parte.
Quando o meu pai estava presente, as coisas eram diferentes. Não que ele se interessasse muito por nós; as suas visitas eram curtas, misturadas com concelhos e encontros. Mas observava os rapazes a praticarem com as espadas e outro material de guerra, ou a atirarem com os machados enquanto galopavam ou volteavam no dorso dos cavalos. Nunca se sabia em que pensava o meu pai, porque os seus olhos nunca mudavam de expressão. Era um homem de constituição forte, de aparência austera e tudo nele indicava disciplina. Vestia com simplicidade; no entanto, havia algo nele que nos dizia, instantaneamente, que era um chefe. Usava o cabelo castanho fortemente atado atrás. Fosse onde fosse, do átrio ao pátio, dos aposentos de dormir aos estábulos, dois grandes cães-lobo seguiam-no silenciosamente. Essa era, suponho, a sua única satisfação. Mas mesmo essa tinha a sua finalidade.
Sempre que vinha a casa passava pelo cerimonial de nos falar a todos e certificar-se dos nossos progressos, como se fôssemos uma espécie de seara pronta para a colheita. Nós odiávamos esta parada ritual de identidade familiar, se bem que fosse mais fácil para os rapazes assim que atingiram a idade da virilidade e o meu pai começou a vê-los como coisas úteis para ele. Éramos chamados ao grande átrio depois de sermos rapidamente limpos pelo servo que tinha, no momento, a ingrata tarefa de nos vigiar. O meu pai sentava-se na sua grande cadeira de carvalho, os seus homens em volta a uma respeitável distância, os cães a seus pés, descontraídos mas vigilantes.
Chamava os rapazes um a um, saudando-os gentilmente quanto baste, começando por Liam e indo, gradualmente, até ao último. Perguntava-lhes, brevemente, como iam os seus progressos e actividades desde a última vez. Isto demorava um bocado; no fim de contas, eles eram seis e mais eu. Não conhecendo qualquer outra forma de educação paternal, eu aceitava tudo aquilo com naturalidade. Se os meus irmãos se lembravam de um tempo em que as coisas eram diferentes, não falavam dele.
Os rapazes cresceram rapidamente. Quando Liam chegou aos 12 anos, começou a passar por um intensivo treino nas artes da guerra e passando cada vez menos tempo connosco no nosso alegre e indisciplinado mundo. Não muito tempo depois, a especial habilidade de Diarmid com a lança valeu-lhe um lugar ao lado do irmão e em breve ambos cavalgavam com o bando de guerreiros do meu pai. Cormack mal podia esperar pelo dia em que teria idade suficiente para se juntar àquelas perseguições; o treino que todos os rapazes receberam de mestre-de-armas do nosso pai nunca era o suficiente para lhe satisfazer a sede de excelência. Padriac, que era o mais novo dos rapazes, tinha um talento especial para os animais e um dom para consertar coisas. Também ele aprendeu a montar a cavalo e a manejar uma espada, mas era mais frequente vê-lo a ajudar uma cria a nascer ou a cuidar de um touro premiado ferido por um rival.
Os restantes de nós éramos diferentes. Conor era gémeo de Cormack, mas não podia ter um temperamento mais diferente. Conor sempre gostara de aprender e quando era muito novo iniciou uma combinação com um eremita cristão que vivia numa caverna da encosta sobre a margem sul do lago. O meu irmão levava peixe fresco e ervas do jardim ao padre Bríen, juntamente com um pão ou dois surripiados das cozinhas e, em troca, este ensinava-o a ler. Lembro-me claramente desses tempos. Lá estava Conor, sentado num banco ao lado do eremita, em profundo debate sobre um determinado ponto da língua ou da filosofia e a um canto lá estavam Finbar e eu, de pernas cruzadas no chão de terra batida, quietos como ratos do campo. Os três absorvíamos conhecimento como pequenas esponjas, acreditando, no nosso isolamento, que aquilo era absolutamente natural. Aprendemos, por exemplo, a língua dos Bretões, uma áspera e apertada maneira de falar, sem qualquer música. À medida que aprendíamos a língua dos nossos inimigos, era-nos contada a sua história.
Tinham sido, em tempos, um povo parecido com o nosso, temível, orgulhoso, rico em canções e histórias, mas a sua terra era aberta e vulnerável e havia sido invadida vezes sem conta, até que o seu sangue se misturou com o de Romanos e Saxòes e quando por fim veio uma certa paz, a velha raça daquela terra desaparecera e no seu lugar, no outro lado do mar, ficou um novo povo. O santo padre contou-nos isso tudo.
Toda a gente sabia de uma história sobre os Bretões. Reconhecíveis pelos cabelos claros, estatura alta e ausência de qualquer decência, fosse ela qual fosse, haviam começado a guerra tomando algo tão intocável, tão profundamente sagrado para o nosso povo, que o seu roubo fora como se nos tivessem arrancado o coração. Era essa a causa da nossa guerra. Little Island, Greater Island e Needle. Lugares de grande mistério.
Lugares de imenso segredo; o coração da velha fé. Nenhum bretão devia ter posto o pé nas Ilhas. Nada estaria bem enquanto não os expulsássemos. Toda a gente dizia isso.
Era claro que Conor não estava destinado a ser um guerreiro. O meu pai, rico em filhos, aceitava-o de má vontade. Talvez pensasse que um erudito na família pudesse ter alguma utilidade. Havia sempre registos e contas a fazer, mapas para serem desenhados e o escriba estava a ficar velho. Conor portanto, encontrou o seu lugar na família e instalou-se satisfeito. Os seus dias eram cheios, mas tinha sempre tempo para Finbar e para mim e os três tornámo-nos bastante chegados, ligados pela nossa sede de conhecimento e por uma profunda, calada, compreensão.
Quanto a Padriac, podia virar-se para onde quisesse, mas o seu grande amor era examinar coisas e descobrir como funcionavam; fazia perguntas até pôr as pessoas malucas. Padriac era o único que conseguia quebrar a guarda do pai; por vezes, podia ver-se o fantasma de um sorriso nas feições severas de Colum quando olhava para o filho mais novo. Para mim, não sorria. Ou para Finbar. Finbar dizia que era porque nós lhe lembrávamos a nossa mãe, que morrera. Fôramos nós que herdáramos os seus cabelos encaracolados, selvagens. Eu tinha os olhos verdes dela e Finbar o dom da quietude. Além disso, apenas pelo facto de ter nascido, eu tinha-a matado. Não admira que o pai tivesse dificuldade em olhar para mim. Mas quando falava com Finbar, os olhos dele eram como o Inverno. Houve uma ocasião em particular. Foi pouco antes de ela chegar e as nossas vidas mudaram para sempre. Finbar tinha 15 anos; ainda não era um homem, mas já não era uma criança.
O pai tinha mandado chamar-nos e reunimo-nos todos na grande sala. Finbar ficou ao lado da cadeira de Lorde Colum, as costas direitas como uma lança, à espera da inquisição ritual. Liam e Diarmid eram agora homens e, por isso, poupados à tortura. Mas estavam presentes, sabendo que isso nos acalmava.
— Finbar. Falei com os teus instrutores.
Silêncio. Os grandes olhos cinzentos de Finbar pareciam olhar a direito, através do pai.
— Disseram-me que as tuas habilidades se têm desenvolvido bem. Isso agrada-me.
Apesar destas palavras de felicitações, o olhar do pai era frio, o tom distante. Liam olhou de relance para Diarmid e este respondeu-lhe com uma careta, como se dissesse agora é que é.
— A tua atitude, no entanto, deixa muito a desejar. Disseram-me que conseguiste estes resultados sem uma grande aplicação de esforço ou interesse e, em particular, que te ausentas com frequência do teu treino, sem razão.
Outra pausa. Naquele momento, teria sido boa ideia dizer alguma coisa, só para evitar problemas; «sim, pai» teria sido suficiente. A suprema quietude de Finbar era, só por si, um insulto.
— Qual é a tua explicação, rapaz? E não quero nenhum dos teus olhares insolentes, quero uma resposta.
O pai inclinou-se para a frente, o seu rosto perto do de Finbar e a expressão no seu rosto fez-me tremer e aproximar de Conor. Era um olhar que aterrorizaria um homem adulto.
— Estás em idade de te juntares aos teus irmãos ao meu lado, pelo menos enquanto eu estiver aqui; e dentro de pouco tempo, no campo de batalha. Mas não há lugar para insolências mudas numa campanha. Um homem tem que aprender a obedecer sem perguntas. Bem, fala! Que respondes a esse comportamento?
Mas Finbar não ia responder. Se não tenho nada para dizer, não falo. Eu sabia que as palavras lhe estavam na mente. Agarrei a mão de Conor. Já tínhamos visto a ira do pai antes. Seria loucura atraí-la.
— Pai. — Liam deu um passo em frente diplomaticamente. — Talvez...
— Chega! — ordenou o pai. — O teu irmão não te pediu que falasses por ele. Ele tem língua e mente próprias, deixa-o usá-las.
Finbar parecia perfeitamente calmo. Aparentemente, parecia bastante calmo. Só eu, que partilhava cada exalação dele, que conhecia cada momento de dor ou alegria como se fosse meu, que sentia a tensão que lhe ia na alma, é que compreendia a coragem que lhe era necessária para falar.
— Eu dou-te uma resposta — disse ele. O seu tom era calmo. — Aprender a dominar um cavalo e a usar a espada, ou o arco, é uma coisa digna. Eu usaria essas habilidades para me defender, ou à minha irmã, ou para ajudar os meus irmãos em caso de perigo. Mas deves poupar-me às tuas campanhas. Não tomarei parte nelas.
O meu pai estava incrédulo demasiado espantado para estar zangado, mas os seus olhos ficaram frios como o gelo. Fosse o que fosse que estava à espera, não esperava uma confrontação daquelas. Liam abriu a boca para falar de novo, mas o pai silenciou-o com um olhar selvagem.
— Conta-nos mais — convidou ele polidamente, como um predador encorajando a sua presa para uma doce armadilha. — Estás minimamente consciente das ameaças às nossas terras, à nossa vida aqui? Todas essas coisas te foram ensinadas; viste os meus homens voltarem cheios de sangue das batalhas, viste a devastação que os Bretões fazem em vidas e terra. Os teus próprios irmãos pensam que é uma honra lutar ao lado do pai para que os restantes possam viver em paz e prosperidade. Arriscam as vidas para reconquistar as nossas preciosas Ilhas, roubadas ao nosso povo por esta ralé, há muitos anos. Tens tão pouca fé no juízo deles? Onde é que aprendeste esse disparate doentio? Campanhas?
— Limito-me a ver — disse Finbar simplesmente. — Enquanto tu persegues, estação após estação, esse inimigo por terra e por mar, os teus aldeões adoecem, morrem e não têm senhor para quem se virarem a pedir ajuda. Os que têm falta de escrúpulos exploram os fracos. As searas são maltratadas, as manadas e os rebanhos negligenciados. A floresta guarda-nos. Ainda bem, porque, se não, terias perdido a tua casa e o teu povo para os Finnghaill, há muito.
O pai deu um longo suspiro. Os seus homens deram um passo atrás.
— Por favor, continua — disse ele numa voz que parecia a da morte. — És perito no que respeita aos Nórdicos, estou a ver.
— Talvez — disse Liam.
— Silêncio! — desta vez foi um rugido, parando Liam quase antes de a palavra lhe sair da boca. — Este assunto é entre o teu irmão e eu. Atira tudo cá para fora, rapaz! Que outros aspectos da minha administração encontras em falta, na tua grande sabedoria? Não te poupes, já que és tão sincero!
— Não chega?
Detectei, por fim, um toque de insegurança na voz de Finbar. No fim de contas, não passava de um rapaz.
— Tu persegues um inimigo distante antes de pores a tua casa em ordem. Falas dos Bretões como se fossem monstros. Não são homens como nós?
— Dificilmente poderás dignificar tal gente com o título de homens — disse o nosso pai, espicaçado pela resposta directa, por fim. — Vêm com pensamentos diabólicos e maneiras bárbaras para nos tirar o que é, por direito, nosso. Gostarias de ver a tua irmã sujeita à selvajaria deles? A tua casa invadida pela imundície deles? Os teus argumentos mostram a tua ignorância dos factos e uma grande lacuna na tua educação. Que rica filosofia a tua, quando se enfrenta de espada na mão um inimigo pronto a atacar. Acorda, rapaz. Lá fora, o mundo é real e os Bretões estão lá com as mãos cheias do sangue da nossa família. É meu dever, e também teu, procurar vingança e reclamar aquilo que nos pertence.
O olhar fixo de Finbar nunca deixara o rosto do pai.
— Não ignoro isso — disse ele, ainda calmo. — Tanto os Pictos, como os Viquingues, têm perturbado as nossas costas. Deixaram a sua marca nos nossos espíritos, mas não nos destruíram. Reconheço isso. Mas os Bretões também sofreram a perda de terras e vidas com esses ataques. Não sabemos bem quais são os seus propósitos ao atacarem as nossas Ilhas, em manterem esta guerra. Talvez fizéssemos melhor se nos uníssemos com eles contra os nossos inimigos comuns. Mas não: a tua estratégia, tal como a deles, é matar e estropiar sem procurar qualquer resposta.
— Com o tempo, perderás os teus filhos, assim como perdeste os teus irmãos, numa perseguição cega a um objectivo mal definido. Para vencer esta guerra, deves falar com o teu adversário. Aprender a compreendê-lo. Se lhe fechas a porta, ele será sempre mais astucioso do que tu. Restará a morte, o sofrimento e muita tristeza no futuro, se seguires esse caminho. Muitos irão contigo, mas tu não estarás no meio deles.
As palavras dele eram estranhas; o tom arrepiou-me. Sabia que dizia a verdade.
— Recuso-me a ouvir mais! — trovejou o pai, pondo-se de pé. — Falas como um louco de assuntos que não podes compreender. Estremeço só de pensar que um filho meu possa estar tão mal informado e ser tão presunçoso. Liam!
— Sim, pai?
— Quero este teu irmão armado para cavalgar connosco na próxima vez que viajarmos para norte. Trata disso. Ele manifesta desejo de compreender o inimigo. Talvez o faça quando testemunhar o primeiro derramamento de sangue.
— Sim, pai. — A expressão e o tom de Liam eram neutrais. O seu olhar para Finbar, no entanto, era complacente. Assegurou-se, simplesmente, de que o pai não estava a olhar.
— E agora, onde está a minha filha?
Avançando com relutância, passei por Finbar e rocei a minha mão na dele. Os seus olhos chispavam ódio, num rosto sem qualquer cor. Fiquei diante do pai, dividida entre sentimentos que mal compreendia. Não era suposto um pai amar os seus filhos? Não percebia ele a coragem que fora necessária a Finbar para falar daquela maneira? Fimbar via as coisas de maneira diferente de nós. O pai devia saber, já que as pessoas diziam que a nossa mãe possuía o mesmo dom. Se ele se tivesse dado ao cuidado, teria sabido. Finbar conseguia ver mais além e dar conselhos que depois eram ignorados perigosamente. Era uma habilidade rara, perigosa e opressiva. Alguns chamavam-lhe Visão.
— Aproxima-te, Sorcha.
Eu estava zangada com o pai. No entanto, queria que ele me aceitasse. Queria os seus elogios. Apesar de tudo, não podia evitar o profundo desejo que sentia. Os meus irmãos amavam-me. Porque não me amava o pai? Era no que pensava quando olhei para cima. Para ele, eu devia ser uma figurinha bem patética, magricela e desleixada, os caracóis a caírem-me sobre os olhos num total desalinho.
— Onde estão os teus sapatos, criança? — perguntou o pai, cansado. Estava a ficar inquieto.
— Não preciso de sapatos, pai — disse eu sem pensar. — Os meus pés são fortes, veja! — E levantei um pé pequeno, sujo, para que ele visse.
— Não preciso que uma criatura morra para que eu ande calçada. — Este argumento tinha sido usado com os meus irmãos, até que eles se cansaram e me deixaram andar descalça, já que era o que eu queria.
— Qual é o servo que está encarregado desta criança? — disparou o pai, irritado. — Ela já não tem idade para andar para aí como a... a filha de um remendão. Que idade tens, Sorcha? Nove, dez anos?
Como era possível ele não saber? Não coincidira o meu nascimento com a perda daquela que ele mais amava neste mundo? Porque a minha mãe morrera num dia de pleno Inverno, quando eu ainda não tinha um dia de vida, e o povo dissera que fora uma sorte que Fat Janis, a nossa cozinheira, tivesse um bebé e leite suficiente para ambos, ou eu também teria morrido. Talvez fosse a razão de sucesso do pai, fechar a memória àquela vida anterior, deixar de contar as noites sozinho, os dias vazios, desde que ela morrera.
— Faço 13 no solstício de Inverno, pai — disse eu, esticando-me toda. Talvez, se ele me achasse suficientemente crescida, começasse a falar comigo como deve ser, da mesma maneira como falava com Liam e Diarmid. Ou olhasse para mim com aquele meio sorriso que por vezes lançava a Padriac, que era o mais próximo de mim em idade. Por um instante, os escuros, profundos olhos dele encontraram os meus e eu olhei para ele com um olhar verde arregalado que, mal eu sabia, era a imagem do da minha mãe.
— Já chega — disse ele abruptamente e o tom era de despedida. — Tirem estas crianças daqui, temos trabalho para fazer.
Virando-nos as costas, ficou rapidamente absorvido por um grande mapa que desdobravam sobre a mesa de carvalho. Apenas Liam e Diarmid podiam ficar; já eram homens e privavam com as estratégias do meu pai. Para nós, acabara. Afastei-me da luz.
Porque me lembro tão bem disto? Talvez o desgosto do pai, ao ver no que nos estávamos a transformar, o tivesse feito fazer a escolha que fez e assim provocar uma série de acontecimentos mais terríveis de que algum de nós podia imaginar. Na verdade, ele usou o nosso bem-estar como uma desculpa para a trazer para Sevenwaters. Se isso não tinha qualquer lógica, não interessava, ele deve ter sabido, bem lá no fundo, que Finbar e eu éramos feitos de matéria sólida, totalmente formados mental e espiritualmente, se não praticamente adultos e que, esperar que nos dobrássemos a outra vontade seria como tentar alterar o curso das marés, ou esperar que a floresta deixasse de crescer. Mas ele era influenciado por forças que não compreendia. A minha mãe tê-las-ia reconhecido. Mais tarde, pensava com frequência na minha mãe e como ela sabia tanto sobre o nosso futuro. A Visão nem sempre mostra o que uma pessoa quer ver, mas eu penso que ela deve ter sabido, ao despedir-se de nós, quão estranho e torto seria o caminho percorrido pelos pés dos seus filhos.
Assim que o pai nos despediu da sala, Finbar desapareceu, como uma sombra, pelas escadas de pedra acima, a caminho da torre. Quando me voltei para o seguir, Liam piscou-me o olho. Podia ser um guerreiro inexperiente, mas era meu irmão. E recebi um sorriso de Diarmid, mas ele limpou-o do rosto, assim como qualquer expressão, excepto respeito, quando se voltou na direcção do pai.
Padriac já devia ter saído; tinha uma coruja ferida nos estábulos e estava a tratar dela. Era espantoso, dizia ele, como aquela tarefa lhe tinha ensinado os princípios do voo. Conor trabalhava com o escriba do meu pai, ajudando-o nalguns cálculos; não o veríamos muito durante algum tempo. Cormack estaria fora, praticando com a espada, ou aprendendo com os oficiais. Eu estava sozinha quando subi os degraus de pedra, nos meus pés descalços, na direcção do quarto da torre. Dali podia-se subir até mais acima, até uma área do telhado de ardósia, com um parapeito baixo em volta, provavelmente insuficiente para amparar uma boa queda, mas que nunca nos impediu de subir por ali. Era um local de histórias, de segredos; para estarmos sós, juntos, em silêncio.
Ele estava, como eu esperava, sentado no mais precário declive do telhado, joelhos encolhidos, os braços em volta deles, a expressão ilegível, enquanto olhava sobre as pastagens cercadas, celeiros, vacarias e cabanas, para o cinzento-fumado, verde-aveludado e azul-enevoado da floresta. Não muito longe, as águas do lago cintilavam como prata. A brisa era fria, subindo-me pelas saias acima enquanto eu subia pela ardósia e me sentava ao pé dele. Finbar estava completamente imóvel. Não precisava de olhar para ele para lhe adivinhar a disposição, porque eu estava tão sintonizada com a mente deste irmão como o arco com a corda.
Ficámos ali, quietos, durante longo tempo, enquanto o vento brincava com os nossos cabelos e um bando de gaivotas nos passava por cima, chamando-se umas às outras. Vozes vinham até nós de quando em quando, assim como metal a bater contra metal: homens do pai em combate no pátio e Cormack estava entre eles. O pai devia estar satisfeito com ele.
Lentamente, Finbar voltou de longe. Os seus dedos longos moveram-se para afastar um fio de cabelo.
— Que sabes tu, Sorcha, sobre as terras para lá do mar? — perguntou ele calmamente.
— Não muito — disse eu, baralhada. — Liam diz que os mapas não mostram tudo; há lugares que até ele conhece mal. O pai diz que os Bretões são temíveis.
— Ele teme o que não pode compreender — disse Finbar. — E o padre Brien e os que são como ele? Vieram de leste, pelo mar, mostrando grande coragem ao fazê-lo. Em devido tempo foram aceites aqui e deram-nos muito. O pai não procura conhecer o adversário ou tentar saber o que ele quer. Apenas vê a ameaça, o insulto e passa a vida inteira a persegui-los, matando e estropiando sem fazer perguntas. E para quê? Pensei naquilo por um bocado.
— Mas tu também não os conheces — arrisquei eu com uma certa lógica. — E não é só o pai a pensar que eles são perigosos. Liam disse que se as campanhas não tivessem sido levadas até ao norte, e até às costas do mar oriental, seríamos invadidos um dia e perderíamos tudo o que temos hoje. Talvez não apenas as Ilhas, mas também Sevenwaters. Os velhos costumes desapareceriam para sempre. É o que ele diz.
— De certo modo, é verdade — disse Finbar, surpreendendo-me. — Mas há sempre dois lados em todas as questões. Começa sempre com uma pequena coisa, uma observação fortuita, um gesto ligeiro. E cresce a partir daí. Ambos os lados podem ser injustos. Ambos podem ser cruéis.
— Como é que sabes?
Finbar não respondeu. A mente dele estava-me vedada; não havia aquela comunhão de pensamentos, a silenciosa troca de imagens que passava de um para o outro frequentemente, mais fácil do que a fala. Pensei durante um bocado, mas não encontrei nada que dizer. Finbar mastigou a ponta dos cabelos longos que usava atados na nuca. Os caracóis escuros, tal como os meus, tinham vontade própria.
— Penso que a nossa mãe nos deixou algo — disse ele por fim. — Deixou uma pequena parte dela própria a cada um de nós. Com Liam e Diarmid acontece o mesmo. Isso impede-os de crescerem e ficarem como ele.
Eu sabia o que ele queria dizer sem perceber por completo as suas palavras.
— Liam é um chefe — continuou Finbar —, como o pai, mas não exactamente. Liam é equilibrado. Sabe como avaliar um problema. Os homens seriam capazes de morrer por ele. Talvez um dia o venham a fazer. Diarmid é diferente. As pessoas seriam capazes de o seguir até ao fim do mundo só pelo gozo.
Pensei naquilo; imaginei Liam a defender-me contra o pai e Diarmid a ensinar-me como apanhar rãs e a deixá-las fugir.
— Cormack é um guerreiro — arrisquei. — Mas generoso. E bom. No fim de contas, havia o caso do cão. Um dos cães-lobo cruzara-se com um rafeiro e parira cachorros também cruzados; o pai quis afogá-los a todos, mas Cormack conseguiu salvar uma cadela, uma coisinha magricela e malhada, à qual deu o nome de Linn. A sua bondade foi recompensada pela profunda e inquestionável devoção de que só um cão é capaz.
— E depois temos o Padriac.
Finbar deitou-se de costas nas ardósias do telhado e fechou os olhos.
— Padriac vai longe — disse ele. Há de ir mais longe do que qualquer um de nós.
— Conor é diferente — observei eu, mas não fui capaz de pôr essa diferença em palavras. Havia algo de esquivo naquela diferença.
— Conor é um sábio — disse Finbar. — Nós todos gostamos de histórias, mas ele adora-as. A mãe tinha algumas maravilhosas, adivinhas e conceitos estranhos de que se ria, de maneira que nunca sabíamos se falava a sério ou a brincar. Conor recebeu dela esse amor por fantasias. Conor é... é ele.
— Como é que te lembras de tudo isso? — perguntei eu, sem saber bem se ele não estaria a inventar aquilo tudo para meu benefício. — Só tinhas três anos quando ela morreu. Um bebé.
— Lembro-me — disse Finbar e virou a cabeça para o outro lado. Eu queria que ele continuasse porque estava fascinada por falarmos da minha mãe, que nunca tinha conhecido. Mas ele caíra de novo no silêncio. Estava a ficar tarde; as sombras das grandes árvores alongavam-se sobre a relva, lá em baixo.
O silêncio prolongou-se, de modo que pensei que ele tinha adormecido. Mexi os dedos dos pés; estava a ficar frio. Talvez eu precisasse de sapatos.
— E a ti, Finbar? — Mas não precisava de perguntar. Ele era diferente de todos nós. — O que é que ela te deu?
Ele virou-se para mim e sorriu, a curva da sua boca transformando-lhe o rosto por completo.
— Fé em mim próprio — disse ele simplesmente — Para fazer o que está certo, sem hesitar, custe o que custar.
— Hoje custou muito — disse eu, pensando nos olhos frios do pai e no efeito que haviam tido em Finbar.
E com o tempo custará muito mais. Não saberia dizer se aquele pensamento veio da minha cabeça ou da do meu irmão. Provocou-me um arrepio na espinha.
Depois, ele disse em voz alta:
— Quero que não te esqueças, Sorcha. Lembra-te que estarei sempre ao pé de ti, aconteça o que acontecer. É importante. Agora, vamos, está na hora de irmos para baixo.
Quando recordo os anos do nosso crescimento, a coisa mais importante é a árvore, íamos lá com frequência, os sete, em direcção a sul através da floresta, sobre a margem do lago. Quando eu era bebé, Liam, ou Diarmid, carregavam-me aos ombros; assim que comecei a andar, dois dos meus irmãos seguravam-me pelas mãos e arrastavam-me, por vezes balançando-me entre eles com um, dois, três, enquanto os outros corriam à frente na direcção do lago. Quando nos aproximávamos, calávamo-nos. A margem onde o vidoeiro crescia era um local profundamente mágico e as nossas vozes abafavam-se enquanto nos juntávamos na relva em volta dele.
Todos nós aceitávamos que este mundo é uma porta para o outro, para o reino dos espíritos, dos sonhos e das Criaturas Encantadas, sem qualquer dúvida. O lugar onde crescíamos estava tão cheio dessa magia que ela fazia parte do nosso dia-a-dia para não dizer que encontrávamos um cada vez que íamos apanhar bagas, ou tirar água do poço e que todos nós conhecíamos alguém que sabia de um amigo de um amigo que se perdera na floresta e desaparecera para sempre; ou se aventurara dentro de um anel de cogumelos, tendo desaparecido por um certo tempo, voltando depois subtilmente mudado. Podiam acontecer coisas estranhas nesses lugares. Podia-se desaparecer durante 50 anos e voltar ainda como rapariga; ou apenas por um instante, pelas contas mortais, e voltar velha e encarquilhada. Estas histórias fascinavam-nos, mas não faziam com que tivéssemos cuidado. Se nos fosse acontecer, acontecia, quer quiséssemos, quer não.
O vidoeiro, no entanto, era diferente. Era ele que tinha o espírito dela, da nossa mãe, tendo sido plantado pelos rapazes no dia da morte dela, a seu pedido. Assim que lhes disse o que deviam fazer, Liam e Diarmid, de seis e cinco anos, pegaram nas pás, dirigiram-se ao local descrito por ela, escavaram a turfa macia e plantaram a semente ali, na plana margem relvada, sobre o lago. Com as pequenas e sujas mãos, os mais novos ajudaram a nivelar o solo e a carregarem água. Mais tarde, quando lhes era permitido levarem-me com eles, íamos todos juntos. Foi a primeira vez para mim e depois dessa, duas vezes por ano, no solstício do Verão e no solstício do Inverno, reuníamo-nos ali.
Os herbívoros podiam tê-la comido, ou ter sido arrancada pelos ventos frios de Outono, mas era uma árvore encantada; e no espaço de alguns anos começou a crescer, graciosa na sua austera nudez invernal e na sua prateada e sussurrante beleza estival. Consigo ver agora o local, claramente no meu espírito, nós os sete, sentados de pernas cruzadas sobre a turfa, em volta do vidoeiro, sem nos tocarmos, mas ligados, como se as nossas mãos estivessem enclavinhadas umas nas outras. Éramos mais velhos, então, mas ainda crianças. Eu teria cinco, talvez, Finbar oito. Liam esperara até sermos suficientemente crescidos para compreendermos, antes de nos contar a história.
... havia algo de assustador no quarto. O cheiro era diferente, estranho. A nossa nova irmã tinha sido levada, havia sangue e pessoas com rostos receosos que iam e vinham. O rosto da mãe estava muito pálido, enquanto ela permanecia deitada com o cabelo preto espalhado pela almofada. Mas deu-nos a semente e disse-nos, a Diarmid e a mim «Quero que peguem nesta semente e a plantem ao pé do lago. No momento da minha morte ela começará a crescer com uma nova vida. E então, meus filhos, estarei sempre ali convosco e quando estiverdes naquele lugar, sabereis que fazeis parte da grande magia que nos liga a todos. A nossa força vem dessa magia, da terra e do céu, do fogo e da água. Voai alto, nadai profundamente, dai à terra o que ela vos dá...»
Ela estava cada vez mais cansada, perdia sangue, mas teve um sorriso para nós os dois e nós tentámos sorrir também através das lágrimas, mal compreendendo o que ela nos dissera, mas sabendo que era importante.
— Diarmid — disse ela — olha pelos teus irmãos. Partilha o teu riso com eles. — A voz dela ficou cada vez mais fraca. — Liam, meu filho. Receio que vá ser muito duro para ti durante um certo tempo. Serás o chefe deles e o seu guia e és tão novo para carregar tal fardo.
— Eu consigo fazê-lo — disse eu, retendo as lágrimas. As pessoas moviam-se pelo quarto, um físico murmurando para si próprio e abanando a cabeça, mulheres levando as roupas ensanguentadas e trazendo outras novas e depois alguém tentou fazer-nos sair. Mas a mãe disse não, ainda não, e fê-los sair a todos, por um bocado. Então juntou-nos em volta da cama para nos dizer adeus. O pai estava lá fora. Já nessa altura ele guardava a dor para si próprio.
Então, ela falou suavemente a cada um de nós, a voz cada vez mais calma. Os gémeos estavam cada um de cada lado dela, deitados, cada um a imagem do outro, os olhos cinzentos como o céu de Inverno, os cabelos castanhos e brilhantes como uma castanha madura.
— Conor, meu coração — disse ela. — Lembras-te dos versos acerca do veado e da águia? — Conor acenou que sim, as pequenas feições muito sérias. — Diz-mos, então — murmurou ela.
— Os meus pés pisarão suavemente, como um veado na floresta — disse Conor, as sobrancelhas franzidas devido à concentração. — A minha mente será tão clara como a água do poço sagrado. O meu coração será forte como um grande carvalho. O meu espírito abrir-se-á como as asas de uma águia e voará para longe. Este é o caminho da verdade.
— Muito bem — disse ela. — Não te esqueças e ensina-os à tua irmã quando ela for mais velha. Achas que consegues fazê-lo?
Outro solene aceno com a cabeça.
— Não é justo! — explodiu Cormack, lágrimas de cólera inundando-lhe o rosto. Colocou os braços em volta do pescoço dela e apertou-a com força. — Não podes morrer! Não quero que morras!
Ela afagou-lhe o cabelo e acalmou-o com palavras gentis. Conor moveu-se para pegar na mão do irmão gémeo e Cormack sossegou. Em seguida, Diarmid pegou em Padriac, de maneira que o braço da mãe pudesse rodeá-los a ambos por um momento. Finbar, de pé ao lado da almofada dela, estava tão quieto que quase poderia ter passado despercebido, observando em silêncio enquanto ela deixava ir os filhos, um a um. Virou-se para ele, o último dos rapazes e não disse nada, mas fez-lhe sinal para que lhe tirasse a pedra esculpida que trazia ao pescoço e a pusesse no seu. Ele pouco mais era do que um bebé o cordão desceu-lhe até à cintura. Fechou a mão em torno do amuleto. Com ele, ela não necessitava de palavras.
— A minha filha — murmurou ela por fim. — Onde está a minha Sorcha?
Eu saí para perguntar, Fat Janis entrou e depositou a recém-nascida nos braços da mãe, agora já tão fraca que mal conseguia segurar na pequena trouxa de lã. Finbar aproximou-se, as pequenas mãos ajudando a mãe a segurar na frágil carga.
— A minha filha será forte — disse a mãe. — A magia, nela, é poderosa, assim como em todos vós. Sede verdadeiros para vós próprios e para cada um de vós, meus filhos. — Deixou-se cair para trás, por fim, os olhos fechados e nós saímos silenciosamente, não testemunhando o momento da morte. Pusemos a semente no solo, a árvore tomou forma e começou a crescer. Ela foi-se, mas a árvore vive e através dela a mãe dá-nos a sua força, que é a força de todas as coisas vivas
***
O meu pai tinha tantos aliados como inimigos. A parte norte do país era uma manta de retalhos de túaths como a dele, algumas maiores, a maior parte bastante mais pequena, cada uma pertença do seu lorde, numas tréguas precárias com alguns vizinhos. Muito a Sul, em Tara, morava o Rei supremo e a sua consorte, mas no isolamento de Sevenwaters não éramos tocados pela sua autoridade, nem ele, parecia preocupado, pelas nossas rixas locais. As alianças eram feitas à mesa do concelho, reforçadas por casamentos, frequentemente quebradas devido a disputas sobre gado ou fronteiras. Havia muitas pilhagens e guerras, mas não contra os nossos vizinhos, que respeitavam muito o meu pai. Havia, sim, um vago acordo entre eles que os unia contra os Bretões, Pictos e Nórdicos, visto que todos eles nos ameaçavam as costas com as suas línguas estranhas e modos bárbaros. Mas especialmente contra os Bretões, que haviam feito o impensável e escaparam sem castigo.
Apercebia-me de que, por vezes, havia prisioneiros, mas estes eram hermeticamente fechados e guardados severamente e nenhum dos meus irmãos falava deles. Nem sequer Finbar. O que era estranho, porque, geralmente, ele mantinha a mente aberta para mim e os meus pensamentos nunca se fechavam para ele. conhecia os seus medos e alegrias; sentia, com ele, os espaços iluminados pelo sol e as profundezas escuras e místicas da nossa floresta, o bater do coração da deusa nas veredas raiadas de luz e na frescura da Primavera. Mas havia uma parte que ele me escondia. Talvez, já então, ele me quisesse proteger. Assim, os prisioneiros eram um mistério para mim. A nossa casa era um local de altas figuras vestidas de armaduras, bruscas trocas, chegadas e partidas precipitadas. Mesmo quando o meu pai estava ausente, o que acontecia durante a maior parte do ano, deixava uma forte guarnição com um mestre-de-armas, Donal, que controlava tudo com mão-de-ferro.
Essa era uma parte da casa; a outra, a mais doméstica, era secundária. Os servos que tínhamos faziam as suas tarefas com suficiente eficiência e o povo da aldeia fazia a sua parte, porque havia sempre paredes de pedra para reparar e telhados para arranjar, havia o moinho e a vacaria. As manadas tinham que ser levadas para as terras altas no Verão, para tirar vantagem das pastagens, os pastores de porcos tinham que levar as suas intratáveis varas para os bosques e as mulheres tinham que fiar e tecer. O nosso camareiro adoeceu com uma sezão e morreu; e depois disso Conor tomou conta da bolsa, e das contas, enquanto o pai estava fora. Subtilmente, começou a assumir a autoridade da casa; mesmo aos 16 anos, tinha uma sobriedade perspicaz que desmentia a idade e que parecia inspirar confiança, mesmo entre os rudes soldados. Tornou-se claro, para todos, que Conor não era um mero escriba. Na ausência do pai, começaram a ocorrer mudanças sem qualquer obstrução; provisões antecipadas de turfa seca para os aldeões, prevendo o Inverno, um quarto tranquilo só para mim, com uma mulher para me ajudar e levar poções aos doentes. Quando os duendes apanharam o marido de Maclge Smallfoot e ele se afogou numa longa queda das rochas para o lago (é por isso que a queda se chama Smallfoot), foi Conor que arranjou maneira de Madge vir trabalhar para nós, amassando farinha e depenando galinhas na cozinha. Eram coisas pequenas, mas já era um começo.
Finbar não foi na campanha de Outono desse ano. Apesar das ordens do pai, foram Liam, Diarmid e, para sua alegria, o jovem Cormack, que partiram abruptamente numa brilhante e fresca manhã. A chamada às armas foi inesperada e madrugadora. Extraordinariamente, tínhamos hóspedes: o nosso mais próximo vizinho, Seamus Redbeard de Glencarnagh e vários membros da sua casa. Seamus era um dos de confiança, o melhor aliado do meu pai. Mas mesmo ele não entrou na floresta sem uma escolta de homens do meu pai, que se encontrou com ele na fronteira e o acompanhou até à segurança de Sevenwaters.
Seamus trouxera a sua filha, que tinha 15 anos e que tinha uma juba da mesma cor surpreendente da do pai. As suas madeixas de cabelo podiam ser ardentes, mas Eilis era uma rapariga sossegada, rechonchuda e de bochechas coradas; de facto, achei-a bastante maçadora, comparada com os meus irmãos. Os nossos hóspedes já estavam connosco há dez dias, mais ou menos, e como Eilis nunca queria subir às árvores, ou nadar no lago, ou até ajudar-me a fazer cerveja, ou compotas, depressa me cansei da companhia dela e deixei-a sozinha. Estava espantada como os rapazes se interessavam tanto por ela, visto que a sua conversação, quando dizia alguma coisa, não tinha qualquer interesse, era superficial. E isso deveria tirar-lhes o interesse. No entanto, Liam, Diarmid e Cormack podiam ser vistos a escoltá-la pacientemente em volta do castelo e no jardim, curvando-se, com aparente fascinação, tentando apanhar qualquer palavra que ela dissesse, pegando-lhe na mão para a ajudar a descer degraus que eu teria transposto com dois saltos.
Era estranho e mais estranho ficou se bem que o mais estranho fosse o tempo que demorei a entender o que estava a acontecer. Após os primeiros dias, Eilis submeteu-se a Liam e não o largou mais. Ele, que a mim me parecia sempre o mais ocupado, tinha sempre tempo para ela. Detectei algo de novo no rosto dele, agora já com os traços rudes de um homem adulto. Era um aviso para que os seus irmãos se afastassem; e eles obedeceram. Eilis ia passear para os bosques com Liam, quando não ia comigo. Com um ar muito inocente, quando à mesa, pressentia quando os olhos escuros de Liam se fixavam nela de outro lado do salão barulhento; levantava os olhos timidamente, olhava para ele por um instante e corava atraentemente, antes de as longas pestanas cobrirem de novo os olhos azuis. Mas eu continuei ignorante até à noite em que o meu pai deu um murro na mesa, pedindo silêncio.
— Meus amigos! Meus bons vizinhos!
O silêncio estabeleceu-se entre os hóspedes reunidos; taças a caminho da boca fizeram uma pausa e eu pressenti uma certa expectativa, como se toda a gente soubesse o que o pai ia dizer, excepto eu.
— É bom, nestes tempos conturbados, divertirmo-nos, beber, rir e partilhar os feitos das nossas pastagens. Em breve, na lua cheia, vamos aventurar-nos de novo, desta vez para, talvez, fazermos com que as nossas costas fiquem salvas de uma vez por todas.
Uns tantos assobios e gritos de aclamação aqui e ali, mas toda a gente esperava algo mais.
— Entretanto, sois bem-vindos ao meu salão. Há muito tempo que não dávamos aqui uma festa.
Ficou carrancudo por um momento. Seamus Redbeard inclinou-se para a frente, o rosto corado.
— És um óptimo anfitrião, Colum e que ninguém se atreva a dizer o contrário — pronunciou ele, a fala sofrendo um pouco com a qualidade da nossa cerveja. Eilis estava corada e olhava para baixo, para o prato. Pelo canto do olho vi Cormack a alimentar a sua cadela, Linn, que se tinha infiltrado para debaixo da mesa, com bocados de carne. Ele segurava entre os dedos, casualmente, um bocado de carne de vaca, ou de galinha e um instante mais tarde o grande focinho peludo aparecia e desaparecia, enquanto Cormack descansava a mão vazia na beira da mesa, fixando o olhar cuidadosamente num ponto qualquer e mostrando um pouco as covinhas do rosto.
— E assim exorto-vos, bebei ao feliz casal! Que esta união seja longa e frutuosa e que seja um sinal de amizade e paz entre vizinhos.
Eu tinha perdido qualquer coisa; Liam estava em pé, pálido mas incapaz de manter o sorriso ausente do rosto habitualmente severo e no momento seguinte pegava na mão de Eilis e eu finalmente vi a maneira como eles se olhavam e soube porque era.
— Casado? Liam? — disse eu para ninguém em particular. — Com ela? — Mas todos se riam, aplaudiam e até o meu pai parecia quase feliz. Vi o velho eremita, o padre Brien, a falar calmamente com Liam e Eilis no meio da multidão. Apertando a dor contra mim própria, saí do salão, para longe das tochas, das velas e do barulho, para a quietude do quarto que era só meu. Mas não para trabalhar; sentei-me no grande parapeito da janela com um simples toco de vela como companhia e fiquei a olhar para a escuridão da horta. Havia no céu uma lasca de lua e umas estrelas no escuro; lentamente, as formas familiares da horta começaram a revelar-se, se bem que eu as conhecesse tão bem que era capaz de as distinguir na escuridão: o suave azul-esverdeado do absinto, que repelia os insectos; as pontas amarelas da exuberante tanásia, a alfazema cinzenta delicada com os seus espinhos brilhantes roxos e azuis, as ásperas paredes de pedra cobertas de suave musgo, onde florescia uma velha trepadeira. Havia muitas mais; por trás de mim, em prateleiras, os seus óleos e essências brilhavam em frascos, potes ou cadinhos de barro, para curas ou paliativos; as suas flores e folhas secas suspensas sobre a minha cabeça, em molhos ordenados. Um odor curativo delicado pairava no ar calmo. Respirei fundo várias vezes. Estava muito frio; a velha capa que eu deixara num gancho atrás da porta ajudou-me, mas o frio chegava-me aos ossos. O melhor do Verão tinha acabado.
Devo ter ficado ali sentada durante muito tempo, já que me sentia gelada, mesmo no meio do conforto das minhas coisas. Era o fim de qualquer coisa e eu não queria que essa coisa acabasse. Mas não havia nada a fazer. Era impossível não chorar. As lágrimas deslizaram-me silenciosamente pelo rosto e não fiz qualquer esforço para as limpar. Após um certo tempo, soaram passos nas lajes, no lado de fora e alguém bateu levemente à porta. Era evidente que tinha de ser um deles. Éramos tão chegados, os sete, que nenhuma ferida infantil passava despercebida, nenhuma ofensa, real ou imaginária, ficava por saldar, nenhuma dor era sofrida sem conforto.
— Sorcha, posso entrar?
Pensei que seria Conor; mas era o meu segundo irmão, Diarmid, que se curvou sob o lintel e entrou, dispondo o seu longo esqueleto num banco perto da minha janela. A chama vacilante da vela mostrou-me o seu rosto em contrastes de sombra e luz; magro, de nariz direito, uma versão mais nova de Liam, excepto a boca mais cheia, sempre pronta a rasgar-se num sorriso cruel. Mas, de momento, estava sério.
— Devias voltar — disse ele, num tom que me fez sentir que se estava nas tintas para as delicadezas. — A tua ausência foi notada.
Engoli em seco e esfreguei as faces com uma ponta da velha capa. Sentia-me mais zangada do que magoada.
— Porque é que as coisas têm que mudar? — perguntei eu de mau humor. — Porque é que não podemos continuar como estávamos? Liam era feliz antes, ele não precisa dela.
Felizmente, Diarmid não se riu de mim. Estendeu as pernas ao longo do soalho, aparentemente absorvido em profundos pensamentos.
— Liam, agora, é um homem — disse ele após um certo tempo. — Os homens casam-se, Sorcha. Vai ter responsabilidades, uma esposa pode partilhá-las com ele.
— Ele tem-nos a nós — disse eu, furiosa. Então, Diarmid sorriu, mostrando uma série de covinhas que rivalizavam com as de Cormack em encanto. Fizeram-me pensar porque não o escolhera Eilis, em vez do sério Liam.
— Ouve o que eu te digo, Sorcha. Seja o que for que sejamos, ou façamos, nós os sete nunca nos separaremos. Seremos sempre um todo. Mas estamos a crescer; e as pessoas crescidas casam-se, mudam-se e deixam outras pessoas entrarem nas suas vidas. Até tu farás isso um dia.
— Eu? — Fiquei aterrorizada.
— Tens obrigação de saber isso. — Ele aproximou-se de mim, pegou-me na mão e eu reparei que a dele era grande e áspera, a mão de um homem. Ele estava com 17 anos. — O pai já está a planear o teu casamento, dentro de alguns anos e tu terás que te ir embora daqui e viver com a família do teu marido. Nem todos ficaremos aqui.
— Ir embora? Eu nunca me hei-de ir embora de Sevenwaters! Esta é a minha casa! Prefiro morrer a ir-me embora daqui!
Os meus olhos ficaram, de novo, rasos de água. Sabia que estava a ser tola; não era tão ignorante que não soubesse o que eram casamentos e alianças e o que as pessoas esperavam desses dois acontecimentos. Simplesmente, a súbita notícia dos esponsais de Liam chocara-me; o meu mundo estava a mudar e eu não estava preparada para isso.
— As coisas mudam, Sorcha — disse Diarmid sombriamente. — E nem sempre como nós queremos. Nem todos nós desejávamos que Eilis fosse para Liam; mas aconteceu e temos que o aceitar.
— De qualquer maneira, porque é que ele quer casar com ela? — perguntei infantilmente. — Ela é tão chata!
— Liam é um homem — disse Diarmid asperamente, pondo de lado, obviamente, as suas próprias penas. — E ela é uma mulher. O casamento deles foi arranjado há um certo tempo atrás. Têm sorte por se quererem um ao outro, apesar de nunca se terem visto antes. Ela será uma boa esposa para ele.
— Eu nunca hei-de ter um marido arranjado — disse eu veementemente. — Nunca. Como é que se pode passar uma vida inteira com alguém que se odeia, ou com quem não se pode falar? Prefiro não me casar.
— E ser uma velha sábia entre as tuas bebidas e poções? — sorriu, irónico, o meu irmão. — Bem, és suficientemente feia para isso. De facto, parece-me que já vejo as rugas a aparecerem, avozinha!
Dei-lhe uma palmada no braço, mas também sorri. Ele deu-me um abraço rápido, suficientemente forte para me impedir de chorar de novo.
— Vamos — disse ele. — Lava a cara, penteia-te e vamos outra vez para a festa. Liam vai ficar preocupado se ficas fora a noite toda. Ele precisa da tua aprovação. Portanto, é melhor fazeres boa cara!
Não dancei durante os esponsais, mas andei por ali entre as pessoas, beijei as faces rosadas de Eilis e disse a Liam que estava feliz por ele. Os meus olhos vermelhos devem ter traído os meus verdadeiros sentimentos, mas no meio do fumo, da luz das tochas e de uma certa quantidade de cerveja a que não estava habituado, Liam não pareceu reparar. Os outros, observavam-me; Diarmid, amável, trazendo-me um pouco de hidromel, assegurando-se de que eu não ficava só durante muito tempo; Connor pouco severo, como se compreendesse demasiado bem os meus pensamentos egoístas. Padriac e Cormack tiravam o melhor partido possível desta rara visita de tantas mulheres, dançando com as mais bonitas damas-de-companhia de Eilis; a julgar pelos risinhos e pestanejares, a juventude dos meus irmãos não era impedimento à sua popularidade. Finbar estava num debate profundo com um velho guerreiro grisalho, um dos da casa de Redbeard.
O meu pai estava descontraído; há muito tempo que não o via assim. Abrir a sua casa a convidados fora uma provação, mas necessária, no interesse de uma aliança estratégica com o seu vizinho. O pai tinha notado o meu regresso e quando me tornei útil, conversando com a mais velha das damas-de-companhia de Eilis, até me fez um sinal de contentamento com a cabeça. Era claro, pensei amargamente, que uma filha como Eilis era exactamente o que ele queria, dócil, suave, uma coisa fofa sem vontade própria. Bem, eu podia fazer de conta esta noite, por amor a Liam, mas era bom que ele não pensasse que ia continuar assim.
A noite continuou; o hidromel e a cerveja continuaram a correr, os pratos de comida iam e vinham. Tudo do melhor: porco assado, pão de trigo, frutos com especiarias e queijo de ovelha aveludado. E também a música e a dança os músicos tinham vindo da casa de Seamus e compensavam com vigor o que lhes faltava em subtileza. O que tocava bodhran tinha braços de ferreiro e o da gaita-de-foles gostava muito de hidromel. Tal era o barulho dos pés a baterem no chão, assobios e aplausos, que só alguns minutos antes da agitação na porta grande, provocada pelo choque de metal contra metal e gritos, chegou aos ouvidos dos nossos hóspedes. Lentamente, o som da pândega foi morrendo e a multidão abriu-se para receber um pequeno bando dos homens do meu pai, ainda vestidos de armaduras e com as espadas nuas. Aproximaram-se da cadeira dele, arrastando, entre eles, um cativo, cujo rosto não pude ver, mas cujo cabelo, seguro por um enorme punho, apanhou os raios de luz dos archotes, brilhando como ondas de ouro.
— Lorde Colum! — rugiu o comandante. — Lamento perturbar as tuas festividades.
— De facto — respondeu o meu pai no seu tom mais gelado. — O teu assunto deve ser muito urgente, para tal intrusão. Que pretendes? Tenho hóspedes.
Estava descontente com a interrupção; mas, ao mesmo tempo, levou a mão à bainha da espada. Lorde Colum conhecia bem os seus homens; não arriscariam a sua ira por uma coisa insignificante. Havia nele uma vigilância permanente, o que sugeria um profissional. A seu lado, Seamus Redbeard estava afundado na sua cadeira, sorrindo beatificamente para nada em particular. Devia ter bebido generosamente, mas o seu anfitrião estava sóbrio.
— Um prisioneiro, meu senhor, como vês. Encontrámo-lo na orla norte do lago, sozinho; mas deve haver mais por perto. Não me parece um mercenário, Lorde Colum.
Houve um movimento violento e a voz do soldado foi cortada pelos safanões do prisioneiro, tentando libertar-se dos braços que o prendiam. As pessoas aproximaram-se para poderem ver melhor, mas a única coisa que vi através dos corpos foi o brilhante cabelo dourado, o grande punho do homem que o segurava pelo cabelo e o modo como o prisioneiro se comportava, como se fosse ele a única pessoa, no mundo, que importasse.
Deslizei por baixo de uns tantos braços, puxei para trás um grupo de raparigas que murmuravam umas com as outras e subi para o grande banco de pedra que rodeava o grande salão. A seguir um outro passo precário para a borda de um pilar e fiquei com uma visão desimpedida sobre as cabeças da multidão. A primeira coisa que vi foi Finbar, num local idêntico ao meu, no outro lado. O seu olhar passou por mim e prendeu-se no prisioneiro.
O rosto deste estava bastante ferido; o nariz sangrara e os brilhantes caracóis, após uma inspecção mais pormenorizada, caíam-lhe sobre a testa, cheios de suor e sangue. Por trás deles, os olhos brilhavam como brasas enquanto os fixava no meu pai. Era jovem, estava ferido e destilava ódio. Era o primeiro bretão que eu jamais vira.
— Quem és tu e o que te traz aqui? — perguntou o meu pai. — Fala, porque o silêncio não será bom para ti, prometo-te. Para os da tua espécie, só desejamos a morte, porque sabemos bem quais são as vossas intenções. Quem te mandou aqui?
O jovem endireitou-se, agitando-se furiosamente contra as cordas que lhe atavam as mãos atrás das costas. Cuspiu violentamente e com perfeita pontaria nos pés do pai. Instantaneamente, um dos captores apertou ainda mais as cordas, torcendo-lhe os braços com força, enquanto o outro lhe assentava um murro na cara, deixando-lhe uma marca vermelha na boca e na face. O ressentimento e a fúria irradiavam dos olhos do jovem, mas cerrou a boca e manteve-se silencioso. O pai pôs-se de pé.
— Esta exibição não é própria para senhoras e não deve ter lugar neste salão de festa — disse ele. — Talvez seja tempo de todos se retirarem. — Percorreu o salão com um olhar de despedida, arranjando maneira, naquele breve instante, de agradecer e desejar boa viagem aos seus hóspedes. — Homens, mantende-vos prontos para partirmos rapidamente. Parece que o nosso empreendimento não pode esperar até à lua cheia. Entretanto, vamos ver o que é que este visitante indesejável tem para nos dizer; que os meus capitães venham até mim e que todos os outros se retirem. Meus convidados, lamento que isto acabe com a nossa festa.
Toda a casa, num instante, se tornou num acampamento. Apareceram servos; frascos, copos e tabuleiros desapareceram. Eilis e as suas damas-de- companhia desapareceram rapidamente na direcção dos seus aposentos, seguidas pouco depois por Seamus e em breve restavam apenas o pai e uma mão-cheia dos seus homens de confiança. Algures no meio daquilo tudo o prisioneiro era arrastado para fora do salão, ainda silencioso, o rosto vermelho de raiva. Se algumas instruções foram dadas aos seus guardas, não me apercebi delas.
E no salão obscurecido, Finbar e eu, cada um no seu lado do salão, escondidos pelas sombras, como tão bem o sabíamos fazer. Não podia explicar porque ficara, mas o padrão que daria forma aos nossos destinos já se estava a formar, sem eu o saber.
... já aqui, tão perto; isto quer dizer que eles sabem o suficiente das nossas posições para poderem ameaçar...
... erradicá-los, mas rapidamente, antes que as informações...
— É imperativo que ele fale. — Era a voz do pai, autoritária. — Dizei-lhes isso. E tem que ser esta noite, porque a rapidez é essencial. Partimos de madrugada. Dizei aos vossos homens que durmam enquanto podem e depois tende tudo pronto. — Virou-se para um dos homens mais velhos. — Tu supervisionarás o interrogatório. E cuida de que ele seja mantido vivo. Um prisioneiro destes pode ser valioso como refém depois de ter prestado contas. Não há dúvida de que não é um soldado vulgar. Pode, até, ser da família de Northwoods. Diz-lhes que vão com cuidado.
O homem acenou com a cabeça e saiu do salão, enquanto os outros regressaram aos planos de ataque. Senti uma certa pena de Liam, ainda agora ficara noivo e já ia partir em campanha. Talvez a vida fosse assim para um homem, mas não era justo.
— Sorcha! — Um sussurro por trás de mim fez-me gritar, assustada, e revelar o meu esconderijo. Finbar puxou-me pela manga, arrastando-me, silenciosamente, lá para fora, para o pátio.
— Não me assustes assim! — sibilei eu. Os dedos dele nos meus lábios silenciaram-me rapidamente e só quando chegámos à esquina e ele viu, cuidadosamente, que ninguém estava por perto, é que falou.
— Preciso que me ajudes — sussurrou ele. — Não te queria pedi-lo, mas não posso fazer isto sozinho.
— Fazer o quê? — O meu interesse despertou imediatamente, se bem que não fizesse a mínima ideia do que ele estava a falar.
— Não podemos fazer muito agora — disse ele — mas talvez consigamos libertá-lo de manhã, se me deres o que eu preciso.
— O quê? — perguntei eu. — O que queres dizer?
— Veneno — disse Finbar. Conduzia-me rapidamente através das arcadas, para os jardins. Ambos tínhamos a habilidade de nos movermos rápida e silenciosamente em qualquer tipo de terreno. Resultado de crescermos meio selvagens. De facto, tínhamos uma grande variedade de capacidades invulgares.
Assim que chegámos ao meu quarto e as portas exterior e interior foram fechadas, fiz Finbar sentar-se e explicar-se. Ele não queria; o seu rosto tinha aquela expressão de teimosia que punha por vezes, quando a verdade era dolorosa, ou nociva, mas que tinha de ser dita. Uma das coisas que nunca tínhamos aprendido era a capacidade de mentir.
— Vais ter que te explicar — disse eu. — Não podes dizer apenas veneno e calares-te a seguir. De qualquer maneira, eu posso dizer-te em que estás a pensar. Já tenho 12 anos e meio, Finbar; tenho idade suficiente para poderes ter confiança em mim.
— Eu confio em ti, Sorcha. Não é isso. É que, se me ajudares, arriscas-te e além disso, é... — Começou a torcer as pontas dos cabelos com os dedos, de novo. Calara-se, mas eu estava sintonizada com os pensamentos dele e, por um momento, ele esquecera-se de os esconder. Na escuridão do quarto silencioso apanhei um aterrador vislumbre de um braseiro incandescente, mutilações, carne queimada e ouvi os gritos de um homem. Recuei bruscamente, tremendo. Os nossos olhos encontraram-se no horror da visão comum.
— Que espécie de veneno? — perguntei insegura, as minhas mãos desajeitadamente procurando uma mecha para acender uma vela.
— Não é para matar. Uma gota suficientemente forte para pôr um homem a dormir até de manhã. O suficiente para quatro homens; e que não saiba mal, de maneira a que possa ser deitado numa caneca de cerveja e não se note. Eu preciso dele antes de o Sol se levantar, Sorcha. Eles tomam o pequeno-almoço cedo e a guarda muda antes do meio da manhã. É pouco tempo. Sabes como fazer tal poção?
No escuro, acenei que sim com relutância. Não precisávamos de nos ver um ao outro, bastava que as nossas mentes estivessem em contacto, para nos compreendermos.
— Vais ter que me dizer — disse eu lentamente. — Diz-me porque é isto. É ele, não é? Aquele prisioneiro?
A vela cintilou e eu cobri-a com a mão. Era muito tarde, já passava da meia-noite, mas lá fora ouviam-se sons de actividade, cavalos a serem ajaezados, armas afiadas, provisões carregadas; já se preparavam para partir de madrugada.
— Tu viste-o — disse Finbar com uma intensidade calma. — É apenas um rapaz.
— Era mais velho do que tu — não resisti a alvitrar. — Pelo menos 16 anos, pareceu-me.
— Com idade suficiente para morrer por uma causa — disse o meu irmão e eu senti como ele estava retesado, como a sua determinação para fazer o que estava certo o guiava. Se Finbar pudesse mudar o mundo com o esforço da sua vontade, fá-lo-ia.
— O que é que tu queres que eu faça? Que ponha aquele bretão a dormir?
À luz velada da vela procurava nas prateleiras; o pacote que eu queria estava bem escondido.
— Ele manteve a boca fechada. E vai continuar assim, se o julguei bem. Isso vai-lhe custar muito. Bretão ou não, merece uma possibilidade de liberdade — disse Finbar sobriamente. — A tua poção pode-lhe comprar isso. Não lhe podemos evitar a dor; é demasiado tarde para isso.
— Que dor? — Talvez eu soubesse a resposta à minha própria pergunta, mas a minha mente recusava-se a juntar as pistas que me haviam sido dadas, recusava-se a aceitar o inaceitável.
— A poção é para os guardas. — Finbar falou relutantemente. Manifestamente, queria que eu soubesse o menos possível. — Prepara-a; eu faço o resto.
As minhas mãos encontraram o pacote quase automaticamente: a erva-moira, usada moderadamente e bem misturada com certas ervas, produziria um sono ligeiro com poucos efeitos secundários. O truque era fazer a dose exacta; um pouco mais e a vítima poderia nunca mais acordar. Fiquei quieta, as bagas secas sobre a laje de pedra à minha frente.
— O que é? — perguntou Finbar. — Porque é que estás a hesitar? Sorcha, eu preciso de saber se fazes isso, ou não. E tenho que ir. Há outros assuntos a tratar.
Ele já estava em pé, morto por se ir embora, a mente trabalhando já na página seguinte da sua estratégia.
— O que é que eles lhe vão fazer, Finbar? De certeza que não, de certeza que não é o que vi há bocado, naquela visão que me pôs doente.
— Ouviste o pai. Ele disse, mantenham-no vivo. Deixa, que eu preocupo- me com isso, Sorcha. Faz a poção. Por favor.
— Mas como é que o pai...
— É fácil — disse Finbar. — Vem com o treino; a faculdade de ver o inimigo como algo que não um homem verdadeiro. É de uma raça inferior, definida pelas crenças, aprende-se a fazer com ele o que se quer e a dobrá-lo segundo os propósitos. — Ele sentiu o meu horror. — Não te preocupes, Sorcha — disse ele. — Nós podemos salvar este, tu e eu. Faz o que eu te peço e deixa o resto comigo.
— O que é que tu vais fazer? E se o pai descobre?
— Perguntas a mais! Não nos resta muito tempo. Podes fazer o que te pedi?
Virei-me para olhar para ele, os braços em volta do peito. Na verdade, eu estava toda a tremer e não era de frio.
— Eu sei que não mentes, Fimbar. Não tenho escolha senão acreditar no que me disseste. Mas eu nunca envenenei ninguém. Sou uma curandeira.
Olhei-lhe para o rosto silencioso, para a boca larga e móvel, para os olhos cinzentos-claros que pareciam sempre virados para um futuro de poucas incertezas.
— Acontece — disse ele calmamente. — Faz parte da guerra. Por vezes, falam. Por vezes, ficam calados. Frequentemente, morrem. Só ocasionalmente escapam.
— É melhor ires fazer o que tens a fazer — disse eu, numa voz que parecia a de outra pessoa. As minhas mãos procuraram uma faca afiada e comecei automaticamente a partir e a cortar os ingredientes da minha poção do sono. Meimendro. Touca-de-bruxa. O pequeno fungo azul a que alguns chamam os ovos-do-diabo. Erva-moira em pequena quantidade. — Vai-te embora, Finbar.
— Obrigado — disse ele com um relâmpago daquele sorriso, aquele generoso sorriso, que lhe iluminou o rosto todo. — Nós fazemos uma boa equipa. Uma equipa à prova de tudo. Como é que podemos falhar?
Abraçou-me por um momento, o suficiente para lhe sentir a tensão do corpo, o rápido bater do coração. Depois desapareceu, deslizando pelas sombras como um gato.
Foi uma longa noite. Consciente de que o menor erro podia fazer de mim uma assassina, mantive-me alerta e antes da alvorada a poção do sono estava pronta, rolhada com segurança num pequeno frasco de pedra, convenientemente pequeno para se poder esconder na palma da mão e o quarto estava imaculadamente limpo, os traços da minha actividade desaparecidos. Finbar veio ter comigo quando o tinir dos arreios e o som de apressados pés calçados aumentou lá fora.
— Acho que também devias fazer esta parte — sussurrou ele. — Eles mal darão por ti. — Lembrei-me, vagamente, de que era suposto ele juntar-se à campanha, desta vez. Não o decretara o pai? Mas então já eu estava demasiado ocupada para pensar, deslizando silenciosamente na direcção das cozinhas sob as instruções sussurradas pelo meu irmão, movendo-me por trás de e entre servos e homens de armas que deitavam a mão a um último bocado de comida, preparavam sacos com provisões, enchiam frascos com vinho e água.
— Fat Janis — dissera Finbar —, vai para onde Fat Janis tem o pote de ferro dela sobre o fogão. Se eles trabalharam de noite, ela levar-lhes-á, logo de manhã, cerveja quente. Fabrico especial dela. Eles dizem que tem alguns efeitos secundários interessantes. É ela que a leva pessoalmente; e talvez ganhe algum favor em troca.
— Que espécie de favor? — perguntei-lhe eu.
— Não interessa — disse Finbar. — Assegura-te apenas de que ela não te vê.
Havia duas coisas em que eu era boa. Uma era as poções e venenos e a outra era ficar calada e invisível quando me convinha. Não seria difícil acrescentar a poção à cerveja quente; Janis virou as costas por um instante, rindo-se de uma piada do homem de armas mais alto enquanto ele metia na boca um último bocado de salsicha e se encaminhava para a porta, afivelando o cinto da espada enquanto caminhava. Eu já tinha acabado e desaparecido antes de ela se voltar de novo. Nunca me chegou a ver. Fácil, pensei, enquanto deslizava na direcção da porta. Devia haver ali 15 pessoas, mas nenhuma me viu. Já estava quase lá fora quando algo me fez olhar para trás. Do outro lado da cozinha, olhando directamente para mim, estava o meu irmão Conor. Estava de pé, no canto mais longínquo, meio na sombra, um rol qualquer numa mão e uma pena na outra. O seu ajudante, de costas voltadas, empacotava provisões num saco de sela. Fiquei gelada com o choque: de onde ele estava, o meu irmão devia ter visto tudo. Como é que eu não o tinha visto? Paralisada entre o instinto de procurar um esconderijo e o chamamento inevitável, hesitei na soleira. Mas Conor baixou o olhar para a sua escrita e continuou com o rol, como se eu fosse invisível. Eu estava demasiado aliviada para me preocupar com uma possível explicação e fugi como um coelho assustado, com os nervos em franja. Finbar não estava à vista. Dirigi-me para o buraco mais seguro de que me lembrava, o velho estábulo, onde o meu irmão mais novo, Padriac, guardava a sua colecção de objectos e animais. Ali, encontrei um canto quente entre a palha e a velha burra, que se afastou, resmungando, quando a empurrei para arranjar lugar. Cheia de fome e frio, confusa e exausta, adormeci.
CAPÍTULO DOIS
A nossa história não pode ser contada sem nos referirmos ao padre Brien. Eu disse que ele era um eremita e que trocava um pouco de instrução por um pão ou uma mão-cheia de maçãs. Era verdade; mas o padre Brien tinha muito mais que se lhe dissesse. Dizia-se que ele fora, em tempos, um homem de armas e que tinha algumas cabeças de viquingues na sua conta; dizia-se que tinha vindo do outro lado do mar, da América, para pôr a sua habilidade com a pena e a tinta ao serviço da casa cristã de orações de Kells; mas viveu sozinho durante muito tempo e era velho, com 50 anos, pelo menos, pequeno, magro, de cabelo grisalho e no rosto tinha a calma aceitação daqueles cujo espírito permaneceu vivo ao longo de uma vida de provações.
Uma viagem até à morada do padre Brien era, por si só, uma aventura. Vivia na encosta sul do lago e levávamos muito tempo a chegar lá, porque fazia parte do gozo. Havia o local em que atravessávamos a corrente pendurados numa corda, balançando livremente entre os grandes carvalhos. Cormack caiu lá, uma vez; felizmente era Verão. Havia a parte em que tínhamos de trepar uma rocha em forma de chaminé, o que provocava ferimentos em joelhos e cotovelos, para não falar nos buracos na roupa. Havia jogos complicados de esconde-esconde. De facto, podia-se chegar lá em metade do tempo, através de um carreiro para carroças, mas preferíamos o nosso meio. Por vezes, o padre Brien não estava, a lareira estava apagada e o chão varrido e limpo. Segundo Finbar, que, não sei como, sabia estas coisas, o santo padre trepava até ao alto do Pico Ogma, um exercício difícil para um homem de idade, e ficava lá, imóvel como uma pedra, olhando para leste, para o mar e para lá, para as terras dos Bretões; ou para as Ilhas. Não se conseguia vê-las dali; mas se se perguntar a qualquer homem, ou mulher, onde elas estão, os dedos apontam, com absoluta confiança, para leste e um pouco para sul. Era como se tivessem um mapa desenhado no espírito e que nem o tempo, ou a distância, pudessem apagar.
Quando o eremita estava em casa, ficava feliz por poder conversar connosco no seu modo calmo, medido e trocar instrução por necessidades da vida. Sabia muitas línguas diferentes; o seu conhecimento de plantas era perfeito e sabia tratar de ossos partidos com perícia. Dele recebi muitos dos conhecimentos do meu ofício, mas a minha obsessão pelas propriedades curativas das plantas levou-me mais além e, nesse aspecto, ultrapassei-o.
Havia ocasiões em que nos ajudávamos um ao outro na ajuda aos doentes; ele tinha a força para voltar a pôr no lugar um osso deslocado, ou ligar um membro partido; eu tinha a habilidade de fabricar poções ou preparar a loção indicada para cada caso. Entre os dois ajudámos muita gente e as pessoas habituaram-se a ver-me, desde criança, perscrutar-lhes os olhos, ou as gargantas e prescrever-lhes panaceias. Os meus remédios resultavam e era disso que as pessoas gostavam.
Havia alguns que eram difíceis de ajudar. Quando as Criaturas Encantadas tomavam conta de alguém, não havia muita esperança. Houve uma vez uma rapariga que perdeu o namorado para a rainha que vivia debaixo do monte. Iam para a floresta namorar, à noite e entraram num anel de cogumelos venenosos enquanto os seus pensamentos estavam noutro lugar. A rainha apanhou-o, mas não a ela. Tudo o que a rapariga viu foi a pluma vermelha da capa dele a desaparecer numa fenda nas rochas e ouviu grandes risos em voz alta. Quando a rapariga veio ter connosco estava meio louca e nem as orações do padre Brien, nem as minhas poções para dormir, lhe deram muita paz. Ele fez o melhor que pôde, tratando daquele feitiço de amor com o mesmo cuidado com que tratava os cortes e queimaduras dos agricultores e ferreiros. As suas mãos eram fortes, a voz gentil, os modos extremamente práticos. Ouvia muito e dizia pouco.
Não tentava impor-nos a sua religião, se bem que tivesse muitas oportunidades. Compreendia que a nossa casa seguia as velhas tradições, apesar de nós as observarmos menos desde a morte da nossa mãe. De vez em quando ouvia-o a discutir com Conor as diferenças das duas fés e o que as aproximava, porque partilhava com o meu irmão a paixão pelo debate. Por vezes, perguntava-me se os pontos de vista tolerantes do padre Brien teriam sido a causa da sua partida da casa de orações de Kells, porque dizia-se que noutras partes de Erin a difusão da fé cristã tinha sido acelerada com a ajuda da espada e do fogo e que agora as velhas crenças eram pouco menos do que memória. Na verdade, o padre Brien nunca tentou converter-nos, mas gostava de dizer algumas orações antes da partida de uma campanha, porque, fosse o que fosse que pensasse dos propósitos do meu pai, não fazia mal nenhum abençoar os homens antes de partirem.
O barulho de metal contra metal acordou-me. Pus-me de pé meio atordoada, tirando palha do cabelo. A burra tinha o focinho enfiado na gamela do farelo.
— Perdeste tudo — observou Padriac, ocupado a colocar, com a forquilha, palha fresca dentro do estábulo. — Finbar está metido em sarilhos outra vez. Ninguém o conseguiu encontrar esta manhã. O pai estava muito zangado. Levou o Cormack, em vez dele. Havias de ver a cara dele. Do Cormack, não do pai. Eu seja cego se algum dia vi um sorriso assim. De qualquer maneira, lá foram, depois de o velhote ter dito os padre-nossos e os améns. Agora, já podemos voltar ao normal. Até à próxima vez. Não gostava de estar na pele do Finbar quando o pai o apanhar.
Pôs a forquilha de lado e foi inspeccionar a coruja, presa num poleiro, num canto escuro do celeiro. A asa do animal estava quase curada e ele esperava libertá-la dentro de pouco tempo. Admirei-lhe a persistência e a paciência, apesar de desviar os olhos dos ratos vivos que ele tinha prontos para a refeição da ave.
Finbar tinha desaparecido. Mas isso não era invulgar nele, desaparecer na floresta, ou no lago, e ninguém comentava essas ausências. Não fazia a mínima ideia para onde tinha ido e não abordei o assunto, com medo de atrair a atenção para mim própria, ou para ele, sobre as nossas actividades nocturnas. Também estava preocupada com o meu veneno e foi com algum alívio que vi os quatro guardas emergirem, às primeiras horas da tarde, para se sentarem no pátio, coçando as cabeças, bocejando sonoramente e sentindo pena de si próprios. À hora do jantar já corria a notícia de que o prisioneiro tinha escapado, entre a partida de Colum e o render da guarda e havia muitas e variadas teorias sobre como tinha acontecido uma coisa daquelas. Foi enviado um homem no encalço de Lorde Colum para lhe dar a má-notícia.
— O bretão não vai longe — disse Donal, azedo. — Não no estado em que ele estava. Nem nesta floresta. Quase não vale a pena ir à procura dele.
No segundo dia Eilis e o seu séquito voltaram para casa, com os seus seis guardas e mais dois nossos, como escolta. O tempo estava a virar; rajadas de vento frio chicoteavam as saias das damas e as capas dos homens de armas e nuvens corriam em frente do Sol. Conor, como filho mais velho e portanto, dono da casa, desejou a Eilis uma boa viagem e convidou-a a regressar quando as coisas acalmassem. Eilis agradeceu-lhe a hospitalidade, sem bem que, por mim, não tivesse sido grande coisa. Imaginei quanto tempo teria ela que esperar até ver Liam de novo e se se preocuparia muito com isso. Depois esqueci-a, porque Finbar apareceu para o jantar na noite seguinte, como se nunca se tivesse ausentado. Padriac, absorvido nas suas actividades, mal tinha reparado na ausência do irmão; Conor não fez qualquer comentário. Olhei para Finbar do outro lado da mesa, mas os pensamentos dele escondiam-se de mim e tinha os olhos fitos no prato. As mãos partiam pão, levantavam uma taça, firmes e controladas. Esperei, inquieta, até que a refeição terminasse e Conor se levantasse, fazendo sinal de que podíamos sair da mesa. Segui Finbar até lá fora, deslizando atrás dele como uma segunda sombra e confrontei-o no longo passeio sob os salgueiros.
— Que aconteceu? Onde estiveste?
— Onde é que pensas que estive?
— Num lugar qualquer, para onde levaste aquele rapaz, é isso que eu penso. Mas onde?
Ele ficou calado por um bocado, provavelmente pensando nas consequências de se abrir comigo.
— Num lugar seguro. É melhor para ti se não souberes.
— O que é que queres dizer com isso?
— Pensa, Sorcha. Até tu te arriscaste. Se o pai, ou Liam, descobrissem o que nós fizemos, ficariam... bem, zangados seria pouco.
— Tudo o que fizemos foi salvar alguém de ser ferido — disse eu, sabendo que era muito mais do que isso.
— Eles veriam isso como uma traição. Apunhalar a própria família pelas costas. Libertar um espião. Para eles é preto no branco, Sorcha.
— De que lado estás tu, afinal?
— Aqui não há lados. É mais como tu saberes de onde vens. Os Bretões não vêm aqui para tomar posse da nossa terra, aprender os nossos segredos, destruir o nosso modo de vida? Ajudá-los é ir contra a família, a irmandade e tudo o que é sagrado. É assim que a maior parte das pessoas vê as coisas. Talvez nós devêssemos, também, vê-las assim.
Após um longo momento, eu disse:
— Mas a vida é sagrada, não é?
Finbar riu-se entredentes.
— Devias ter sido uma fada, Sorcha. Descobres sempre argumentos para os quais não tenho resposta.
Levantei as sobrancelhas para ele. Eu, de pés descalços e cabelo desgrenhado, uma juíza? Eu já tinha dificuldade, por vezes, em diferenciar o bem do mal.
Ficámos ambos silenciosos. Finbar encostou-se a uma árvore, descansando a cabeça no áspero tronco, os olhos fechados. A sua figura escura misturava-se com as sombras, como se fizesse parte delas.
— Portanto, por que o fizeste? — perguntei passado um bocado. Ele levou algum tempo a responder. Estava a ficar frio e a humidade pairava no ar. Estremeci.
— Toma — disse Finbar, abrindo os olhos e colocando a sua velha jaqueta sobre os meus ombros. Ainda usava a mesma camisa daquela noite. Já tinham passado três dias?
— É como se tudo fizesse parte de um padrão — disse ele. — Como se eu não tivesse escolha, como se tudo tivesse sido desenhado para mim, numa espécie de mapa da minha vida. Eu penso que a mãe viu o nosso futuro, talvez não com exactidão, mas tinha uma ideia daquilo que seríamos, ou para onde íamos. — Tocou no amuleto que trazia sempre pendurado ao pescoço. — No entanto, é uma questão de escolha, tão simples como isso. Não seria mais fácil para mim ser um dos rapazes, merecer o amor do pai com a minha espada e o arco (eu sou capaz), tomar o meu lugar ao pé dele e defender a nossa terra e a nossa honra? Seria bom ser reconhecido, ter amigos e algum orgulho. Mas, em vez disso, escolhi este caminho. Ou este caminho foi escolhido para mim.
— E o rapaz, onde está? Conseguiu fugir?
Como já disse, Finbar e eu tínhamos duas maneiras de comunicar. Uma era com palavras, como toda a gente. A outra era unicamente nossa; era uma habilidade silenciosa, a transferência de uma imagem, ou pensamento, ou sentimento, de uma mente para a outra. Era isso que ele estava a fazer agora, mostrando-me a carroça do padre Brien, carregada com fardos e caixas, rolando lentamente ao longo do carreiro cheio de sulcos na direcção da caverna do eremita. Senti dores a cada solavanco da carreta, se bem que o padre Brien mantivesse o velho cavalo numa rota o mais nivelada possível. Uma das rodas ficou presa; o jovem ajudante do bom padre desceu para ajudar a libertá-la. Havia uma espécie de Primavera nos passos daquele jovem que o revelavam como meu irmão, mesmo se o capuz lhe cobria o rosto, porque Finbar andava sempre daquele modo, com grandes passos e com os pés para fora. Depois uma imagem dos dois, no exterior da caverna, tirando um fardo da carroça com cuidados especiais. Um vislumbre de ouro no meio de trapos manchados. Foi tudo; a Visão terminou.
— Ele não estava em condições de ir mais além — disse Finbar sem graça. — Mas está em boas mãos. É só o que precisas de saber... não — quando eu ia interrompê-lo — não te vou envolver mais. Já pus muita gente em risco. Acabou, pelo menos para ti.
E foi tudo, de facto, o que consegui tirar-lhe naquela noite. Estava a ficar adepto, de modo alarmante, de me fechar a mente e nem por meio de rogos, ou tentativas de leitura em momentos de distracção, consegui saber mais. No entanto, a sua previsão provou ser completamente errada.
Seguiu-se um tempo calmo. Com o pai e os rapazes mais velhos fora, caímos na nossa velha rotina, se bem que a guarda tivesse aumentado em volta da fortaleza e arredores. Conor controlava os assuntos da casa com uma competência calma, arbitrando quando dois aldeões se queixaram de um bando perdido de gansos, inspeccionando o fabrico de cerveja outonal e o fabrico do pão, a selecção de crias e o salgar da carne para o Inverno. Para Finbar, Padriac e para mim, foram bons tempos. Donal ainda punha os rapazes a exercitarem-se com a espada e o arco e eles ainda passavam tempo com Conor, seguindo-o nas mais diversas actividades. Geralmente, eu infiltrava-me nessas lições, pensando que um pouco de erudição não me faria mal nenhum e que podia aprender algo interessante. Todos nós sabíamos ler e escrever. Sabíamos as runas e fazer contas, desenhar um mapa e tínhamos um repertório óptimo de histórias, antigas e novas. Além do mais, sabíamos cantar, tocar o assobio e alguns de nós a pequena harpa. Tivemos, em tempos, um bardo, que passou o Inverno connosco; foi há um certo tempo, mas ele ensinou-nos os rudimentos e tínhamos um instrumento que fora da mãe, uma óptima harpa pequena, com pequenas esculturas de aves. Padriac, com o seu génio para descobrir coisas e consertá-las, substituiu as cavilhas quebradas, encordoou-a de novo e nós tocámo-la no quarto de cima, onde o pai não nos podia ouvir. Sem sequer perguntarmos, sabíamos que tal recordação não seria bem-vinda.
A coruja de Padriac melhorou e estava morta por partir. Padriac esperou até a asa estar completamente curada e um dia, ao escurecer, levou-a para a floresta, para a soltar. Vi um esgar de puro prazer no rosto do meu irmão quando a deixou levantar voo da luva que tinha calçada pela última vez e a viu abrir aquelas grandes asas branco-acinzentadas e subir em espiral para cima, para cima, para a copa das árvores. Não lhe disse que lhe tinha visto lágrimas nos olhos.
Finbar andava muito quieto. Senti que tinha planos, mas não os partilhava comigo. Em vez disso, nos intervalos das aulas de arco, equitação, cópia e contas, desaparecia para longos passeios, ou encontrávamo-lo sentado sob a sua árvore preferida, ou lá em cima no telhado, mergulhado em pensamentos profundos. Eu deixava-o sozinho; quando ele quisesse falar, eu estaria presente. Tratei de me ocupar com o recolher de bagas e folhas, a destilação, cozimento, secagem, moagem e armazenamento, preparando-me para as doenças de Inverno.
Já falei da fortaleza em que a minha família vivia, uma rígida torre de pedra, edificada na floresta profunda, as paredes perfuradas, aqui e ali, por frinchas que faziam as vezes de janelas. O pátio, a muralha, a horta, pouco faziam para adoçar o perfil severo. Mas Sevenwaters era mais do que isso. Sem os campos murados, os celeiros com telhados de colmo para guardar o gado e os rebanhos durante o Inverno, as hortas com filas de cenouras, pastinagas e feijões, o moinho e as ruínas de cereais, nunca teríamos podido sobreviver em tal isolamento, Assim, enquanto deitávamos abaixo o menor número possível de árvores e sempre com o maior respeito, a floresta ia ficando mais esparsa por trás da fortaleza, para norte, para dar lugar à agricultura e algumas aldeias. Não havia necessidade de valas, ou muralhas, para manter afastados os assaltantes. Não havia necessidade de túneis ou câmaras secretas, se bem que utilizássemos as cavernas para armazenarmos a manteiga e o queijo para o Inverno, quando as vacas não davam leite. Aqui e ali, em vários pontos da vastidão da floresta, existiam várias aldeias, todas dentro do perímetro da túath do meu pai. Todas pagavam tributo e recebiam protecção. As pessoas dessas aldeias pertenciam a Sevenwaters. Os seus pais e avós já lá moravam antes delas. Podiam aventurar-se, por vezes, para lá dos limites, até um mercado, ou acompanhando as campanhas do meu pai, quando os serviços de um bom ferreiro, ou ferrador, eram necessários. Podia acontecer, porque eram povo da floresta e conheciam os caminhos. Mas nunca nenhum estranho entrou sem uma escolta e sempre com os olhos vendados. Os que eram suficientemente tolos para o tentar, desapareciam simplesmente. A floresta protegia os seus, melhor do que qualquer fortaleza.
As pessoas da nossa aldeia, as que trabalhavam nos campos de Lorde Colum e lhe tratavam dos animais, tinham as suas moradas na orla do terreno aberto, onde corria um ribeiro que fazia funcionar a roda do moinho. Todos os dias eu percorria o caminho até essas cabanas para tratar dos doentes. A cadela-lobo, Linn, era minha companheira habitual, porque, com a partida de Cormack, devotara-se a mim, sempre no meu encalço para onde quer que eu fosse. À menor ameaça, uma voz enraivecida, um porco atravessando o caminho em busca de bolotas, colocava-se entre mim e o perigo, rosnando ferozmente. O Outono avançava rapidamente e o tempo tornara-se gelado. A chuva caía pelos telhados de colmo abaixo, transformando os caminhos num lamaçal. Conor tinha reparado algumas das cabanas mais velhas, estruturas precárias de ramos e barro e o Velho Tom, que vivia numa delas com a sua tribo de filhos e netos, saíra para me apertar a mão com gratidão quando passara pela morada dele.
— O teu irmão é um verdadeiro santo — dissera ele meio a soluçar — e tu também, minha filha. Um dos sábios, tal como o pai dele podia ter sido, o jovem Conor. Nem uma gota cai lá dentro e a turfa está toda lá dentro, cortada e seca, para os tempos difíceis.
— O que é que queres dizer? — perguntei, intrigada. — Sábios? Que sábios?
Mas ele já tinha voltado para dentro, morto, sem dúvida, por aquecer os velhos ossos ao calor da turfa que ardia numa pequena lareira e cujo fumo saía, encaracolando, pela chaminé.
Visitei uma mulher que dera à luz com muita dificuldade, recentemente, duas filhas gémeas. Prestei assistência à mulher durante a longa noite do parto e mantinha-a debaixo de olho, certificando-me de que tomava os chás de ervas que lhe tinha prescrito para lhe fechar o útero e fazer vir o leite. Escolhi mal a hora da partida, porque as nuvens abriram-se quando estava a meio caminho de casa, ensopando-me até aos ossos e fazendo com que os meus pés pisassem, positivamente, lama líquida. Lutei para continuar; o barulho surdo da chuva fez com que não ouvisse as rodas de uma carroça a aproximarem-se e subitamente o padre Brien estava ao pé de mim com um velho saco sobre a cabeça e os ombros. O cavalo permanecia imperturbável à chuva, as orelhas para trás.
— Sobe — gritou o padre sobre o ruído da tempestade e estendeu uma mão para me ajudar a sentar-me ao seu lado.
— Obrigada — disse eu. Não servia de nada falar com aquele barulho, por isso fiquei sentada em silêncio e aconcheguei melhor a capa sobre mim. O trilho passava por um pequeno bosque de velhos pinheiros, cujos ramos mais baixos tinham sido cortados. Uma vez chegados àquele semiabrigo, o padre Brien parou o cavalo mesmo por baixo; a capota de agulhas filtrava o pior da chuva e o barulho abrandou para um monótono e distante tamborilar.
— Preciso da tua ajuda, Sorcha — disse o padre Brien, afrouxando as rédeas e permitindo que o cavalo baixasse a cabeça para procurar algo que comer.
Olhei para ele, surpreendida.
— Veio até aqui à minha procura?
— De facto eu devo voltar para casa hoje. Não me aventuraria com um tempo destes sem uma boa razão. Tenho um paciente que não consigo curar; Deus sabe que tenho tentado e que fiz alguns progressos. Mas ele agora precisa de algo que eu não lhe posso dar.
— Quer que eu o ajude? Para fazer uma infusão, uma cozedura?
O padre Brien suspirou olhando para baixo, para as mãos.
— Quem me dera que fosse assim tão simples — disse ele. — Já tentei infusões e poções, algumas com bons resultados. Utilizei muitos elementos que tu me ensinaste e alguns meus. Rezei, falei e aconselhei. Não posso fazer mais nada, ele está a fugir-me.
Não precisava de lhe perguntar quem era o paciente.
— Eu ajudo, claro. Mas não sei se serei de grande utilidade. Os meus conhecimentos são mais sobre medicamentos. Parece que é preciso algo mais?
Não lhe ia perguntar directamente qual era o problema do rapaz; isso era pisar terreno perigoso. Não fazia ideia de quanto ele sabia sobre o assunto, ou o que era suposto eu dizer-lhe.
— Verás por ti própria — disse ele, pegando nas rédeas. — Em qualquer caso, é preciso voltar já para trás, assim que tiveres as tuas coisas. Dei-lhe uma poção para dormir e isso vai mantê-lo calmo durante a maior parte do dia, mas temos que estar lá quando ele acordar, porque não sei o que lhe pode acontecer.
— Não sei se o Conor me deixa ir — disse eu.
— Por que é que não lhe perguntamos agora? — perguntou o padre Brien.
Encontrámos Conor sozinho, a escrever. Não se falou de Bretões, nem de prisioneiros evadidos; o padre Brien explicou, simplesmente, que precisava de me consultar acerca de um doente e Conor mostrou uma notável falta de curiosidade quanto aos pormenores. Parecia que estava à espera do pedido e concordou, na condição de que fosse apenas por alguns dias e que eu regressaria assim que ele mandasse Finbar buscar-me. Deixei os dois a conversar e fui fazer uma pequena trouxa, pensando, enquanto procurava nas prateleiras do quarto, com o que iria lidar: queimaduras, feridas, febre, choque? O padre Brien não fora muito específico. Empacotei algumas roupas e outras pequenas coisas, o suficiente para alguns dias. Deixei a minha capa a fumegar perto do fogo da cozinha. Peguei noutra maior que pertencia a um dos rapazes. Infelizmente, era forçada a admitir que o começo do Outono exigia que eu calçasse sapatos e meti os pés dentro de um par de botas que eram demasiado grandes para eles. Dava jeito ser a mais nova e a mais pequena.
— Lembra-te, apenas alguns dias — disse Conor, enquanto eu me encaminhava para a carroça. — Mando o Finbar buscar-te. E cuidado com os caminhos; depois do último monte é muito perigoso.
O padre Brien já estava sentado e apesar da brevidade da paragem, havia um cesto com provisões da nossa cozinha, entalado por trás dele, com pão, queijo e vegetais. Acenou ao meu irmão gravemente. Conor içou-me, com pouca gentileza e começámos imediatamente a rolar, antes que eu pudesse dizer uma palavra, sequer.
Lentamente, a chuva abrandou para chuvisco. Rolámos sob salgueiros de ramos nus, entre os primeiros afloramentos rochosos, próximos das águas tristemente cinzentas do lago, onde não se via qualquer ave.
— Sabes quem é este rapaz, suponho? — perguntou o padre Brien com indiferença, sem tirar os olhos do caminho.
— Sei o que ele é — corrigi cautelosamente. — Não quem. Tenho uma ideia sobre o que lhe aconteceu. O que não sei é o que é suposto eu fazer-lhe. Seria melhor dizer-me antes de lá chegarmos, no caso de eu ser de alguma utilidade.
Ele olhou para mim de lado, aparentemente divertido.
— É justo — disse ele. — O rapaz foi ferido. Seriamente ferido. Provavelmente, teria morrido se o teu irmão não o tivesse tirado de lá.
— Com uma pequena ajuda minha — disse eu, um pouco zangada por a minha parte no salvamento já estar esquecida.
— É verdade, ouvi falar nisso — disse o sábio padre. — Arriscaste-te um pouco, não arriscaste?
— Eu sei fazer as minhas dosagens.
— É verdade, melhor do que a maioria de nós, Sorcha. Mas como eu disse, este paciente foi medicado, untado e teve muitas orações. Ele foi... Tinha muitos ferimentos e por eles fiz o melhor que pude. Se bem que nunca mais venha a ser o que era, o corpo dele está a sarar relativamente bem. A mente, é outra coisa.
— Quer dizer... que ele enlouqueceu devido ao que lhe fizeram? Como aquele homem que trabalhava no moinho, Fergal, creio que era esse o nome... ficou muito estranho depois de os duendes terem tomado conta dele da noite para o dia. É isso que quer dizer? — Lembrei-me do moleiro, a boca torcida, tremendo, encolhido ao canto da lareira, coberto de porcaria.
O padre Brien suspirou.
— Louco... não, não exactamente. Este é de outra fibra, diferente dos Fergals deste mundo. É jovem, mas é um guerreiro; está na sua natureza lutar. Resistiu aos seus atormentadores ao longo daquela noite e não tenho dúvidas de que nem uma palavra lhe saiu dos lábios. Tem estado muito doente. Teve uma febre tremenda e algumas das feridas teriam morto um homem mais fraco imediatamente. Lutou bravamente contra a morte e, durante um certo tempo, pensei que tivesse ganho. Mas a batalha seguinte é a mais difícil; a batalha contra ele próprio. No fim de contas, pouco mais é do que um rapaz e até o mais forte dos homens sofre quando os da sua própria espécie se viram contra ele de maneira tão diabólica. O miúdo não admite que está ferido e assustado; em vez disso, vira a angústia para dentro e atormenta-se.
Tentei perceber tudo aquilo
— Quer dizer que ele quer morrer?
— Não me parece que ele saiba o que quer. Ele precisa é de paz de espírito, um período de tempo sem ódio, para juntar, de novo, o corpo e o espírito. Pensei em enviá-lo para os irmãos, no oeste; mas está muito fraco para viajar e ainda não pode ser confiado a outras mãos.
O silêncio instalou-se durante algum tempo, à excepção do ruído surdo das patas do cavalo e o suspiro do vento por entre as rochas. Estávamos a aproximar-nos. O trilho estreitou e tornou-se mais abrupto, as árvores aproximaram-se mais. Ali, no alto, havia grandes carvalhos, os ramos mais altos despidos de folhas, mas cobertos de musgo dourado e a floresta profunda era escura, de tantas árvores antigas. O velho cavalo sabia o caminho e seguia tranquilamente.
— Padre, se não conseguiu curar este rapaz, tenho a certeza de que também eu não consigo. Como os meus irmãos passam a vida a dizer-me, sou apenas uma criança. Talvez possa curar um peito asmático, ou um caso de urticária, mas isto... nem sei por onde começar.
A carroça teve um sobressalto ao saltar sobre uma pedra e a mão do padre Brien moveu-se rapidamente para me segurar.
— No entanto — disse ele no seu modo cuidadoso — se tu não puderes, ninguém pode. Conor tinha a certeza de que eras a única a poder ajudar-me. Acredito que saberás o que fazer quando o vires. Também acredito que ele não terá medo de ti, como tem de mim. E o medo é uma grande barreira contra a cura.
— Conor tinha a certeza? — perguntei eu, alarmada. — Conor sabia do rapaz? Mas...
— Não precisas de te preocupar com Conor — disse o padre Brien. — Ele não trairá o teu segredo.
Deu a volta por trás de um grande rochedo e fez parar o cavalo abruptamente. Desceu e estendeu os braços para me ajudar a descer.
— Enquanto estivermos aqui, espero que possamos falar de muitas coisas. Mas, em primeiro lugar, cuidemos deste rapaz. E tu podes decidir, por ti própria, o que podes e o que não podes fazer.
O ar dentro da caverna era pesado devido ao cheiro de ervas curativas. O meu nariz disse-me que o padre queimara uma mistura para manter o rapaz na paz de um sono profundo, calaminta para proteger e dar coragem, tomilho para manter os terrores nocturnos afastados. E também, mas mais difícil de detectar, os esporos de uma planta a que chamávamos pata-de-lobo, e eu imaginei como tinha ele conhecimento daquela planta, cujo uso era extremamente perigoso. Uma pessoa não podia ficar sob a sua influência durante demasiado tempo. Quem dorme deve acordar e confrontar-se com os seus medos, senão arrisca-se a perder-se, para sempre, nos lugares ocultos da mente.
A primeira parte da caverna era fria e seca, com aberturas no alto das paredes rochosas. Era o lugar de cura do padre Brien. Havia muitas prateleiras cheias de ervas secas e especiarias, tigelas, frascos e montes de roupa dobrada e arrumada. Um par de enormes pranchas de carvalho, suportadas por grandes pedras, servia de mesa de trabalho. Para lá daquele espaço ordenado havia uma pequena câmara e era ali que, numa enxerga de palha, estava estendida a carga do eremita, enrolada num cobertor e enroscada sobre si própria como protecção. O próprio padre Brien comia e dormia naquele pequeno quarto de pedra, pouco maior do que uma cela, aninhado sob sorveiras-bravas, não longe da entrada da caverna. Tinha o ar de quem dormia mal há muito tempo; os seus olhos estavam cheios de olheiras.
— As queimaduras estão a sarar bem — disse o padre Brien suavemente. — Teve algumas lesões internas; com essas, fiz o que pude. Com o tempo, sararão. A febre foi muito alta, mas consegui fazê-la descer com uma esponja e infusões de carvalho branco. Quando estava muito alta, falou muito e revelou-me muito da sua personalidade, talvez mais do que tivesse desejado. Mas agora sabe onde está e mantém a boca fechada a maior parte do tempo, mesmo quando falo com ele na sua própria língua. Não aceita as minhas orações nem os meus conselhos. E tive, por duas vezes, de o impedir de chegar a um instrumento qualquer para se destruir a si próprio, ou a mim. Ainda está muito fraco, mas não tanto que não possa provocar danos, se tiver oportunidade. — Sufocou um grande bocejo. — Talvez queiras descansar até ele acordar; depois, veremos.
Escrutinei o rosto sereno do eremita, agora pálido do cansaço.
— Ainda vai demorar até que acorde — disse eu, olhando para a figura enroscada como que num casulo. — Deixe-me ficar aqui sentada ao pé dele e vá dormir um pouco.
— Não devias ficar sozinha com ele — disse ele. — Ele é imprevisível e, se bem que precise da tua ajuda, tenho ordens precisas para não pôr em risco a tua pessoa, Sorcha.
— Disparate — repliquei, sentando-me no banco de três pernas no canto da câmara. — Está ali a sua pequena campainha; e eu tenho uma voz bem sonora. Além disso, não tenho eu seis irmãos para meter na ordem? Vá-se embora; pelo menos uma soneca, ou não será de grande utilidade para ninguém.
O padre Brien sorriu lugubremente, porque, na verdade, estava quase a cair de exaustão.
— Muito bem — disse ele — mas chama-me imediatamente, assim que ele acordar. Os teus irmãos foram muito directos.
Ele disse que eu saberia o que fazer quando visse o rapaz. Bem, ali estava ele e não era uma grande visão, enroscado como um cão castigado, dormindo o sono dos mortos, o sono de alguém torturado para além da resistência humana. As pálpebras eram pesadas e não restava qualquer sinal de Primavera nos caracóis dourados. Tentei imaginá-lo a acordar; talvez ficasse a olhar para mim com olhos de idiota, ou com os de uma criatura selvagem encurralada; mas só me vieram à mente as velhas histórias e a imagem do herói, Culham o Aventureiro, caminhando através dos bosques, silencioso como um veado. Encostei a cabeça à parede de rocha e revivi a sua história sossegadamente, para mim própria. Era uma história contada com frequência, uma daquelas que têm tendência para aumentar e mudar à medida que são relatadas. Culhan teve muitas aventuras; sofreu muitas privações para conseguir a sua dama e reconquistar a sua honra. Levei algum tempo para as reviver a todas em voz alta enquanto o rapaz continuava a dormir.
Cheguei à parte em que Culhan tem que atravessar a ponte cheia de lanças em riste para alcançar a ilha mágica onde a sua amada está prisioneira. Enquanto ele tiver fé nas suas capacidades, os seus pés poderão pisar, sem medo, a ponte. Mas, se a mínima semente de dúvida se apoderar do seu coração, as lanças retalhar-lhe-ão os pés.
E Culhan deu um passo, depois outro. Os seus olhos eram como um fogo azul e fixou-os na margem distante. À sua frente, a ponte erguia-se como um obstáculo brilhante e os raios do Sol, incidindo nas pontas das lanças, ofuscavam-no.
Estava a ficar sonolenta com os fumos que vinham da pequena braseira do padre Brien; naquele compartimento fechado, a pequena porção de ervas soporíferas quase tinha acabado e o ar estava a ficar limpo.
«Da alta janela, a dama Edan via os passos dos seus pés nus, enquanto se moviam com segurança e graça sobre a ponte. Então, o Sol obscureceu, ao mesmo tempo que uma grande ave de rapina desceu sobre o herói.»
Não estava tão absorvida na minha história que não perdesse o mínimo movimento da enxerga a meus pés. Os olhos do rapaz estavam firmemente fechados, mas ele estava acordado. Continuei, só então consciente da língua em que tinha estado a falar.
«Guinchando de raiva, a Feiticeira, em forma de ave, atacou Culhan uma vez e outra com as garras de ferro, o bico cruel e com uma determinação venenosa. Por um instante, o herói hesitou e três gotas de sangue brilhante brotaram-lhe do pé para as águas em turbilhão do lago. Instantaneamente, transformaram-se em três peixes vermelhos, que se precipitaram na direcção dos canaviais. A ave deu um grande grito de triunfo. Mas Culhan respirou fundo e sem nunca olhar para baixo, continuou a caminhar ao longo da ponte; e a grande ave, guinchando de desespero, mergulhou na água. O que aconteceu à Feiticeira ninguém sabe; mas naquele lago, diz-se, vive um grande peixe, de aparência louca e força excepcional. E Culhan atravessou a ponte de lanças, levando de volta a dama Edan. Mas o seu pé direito ficou sempre com a cicatriz, profunda, do seu momento de dúvida. E nos seus filhos, e filhos dos seus filhos, pode ser encontrada essa marca.»
A história acabara, até à próxima narrativa. Levantei-me para ir buscar o cântaro da água que estava em cima da mesa e vi-o a olhar para mim com os olhos semicerrados, profundamente azuis e hostis. Ainda existia neles uma sombra da fúria desafiadora que mostrara no salão do meu pai, mas a pele estava pálida e os olhos, cavados. Não gostava nada do aspecto dele.
— Bebe — disse eu na língua dele, ajoelhando-me ao pé da enxerga e segurando na tigela que tinha enchido de água. Desta vez, era apenas água; ele teria que viver com as consequências, porque eu conhecia os sinais de quem estivera demasiado tempo sob a influência da droga de certas ervas e tinha que lhe reduzir os efeitos da dosagem. Ele olhou para mim, silencioso.
— Bebe — repeti. — Estiveste a dormir durante muito tempo; o teu corpo precisa disto. É só água.
Bebi um gole para o descansar. Devia estar sequioso, sem dúvida, após uma grande parte do dia a dormir e com a braseira acesa; mas o seu único movimento foi afastar-se um pouco de mim, nunca tirando os olhos do meu rosto. Levei-lhe a tigela aos lábios, a minha mão roçando-lhe o braço. Reagiu violentamente, apertando o cobertor contra si e encostando-se, com força, à parede, para o mais longe possível de mim. Eu podia cheirar-lhe o medo e sentir a fina vibração que lhe percorria todas as partes do corpo. Era como o estremecimento de um cavalo puro-sangue maltratado.
A minha mão manteve-se firme; não entornei uma gota, se bem que o meu coração estivesse aos saltos. Coloquei a tigela ao lado da enxerga e voltei para o meu lugar.
— Muito bem, bebe-a quando te sentires pronto — disse eu, sentando-me e dobrando os braços no regaço. — Já ouviste a história do cálice de Isha? É uma história estranha, porque quando Bryn o encontrou, depois de ter derrotado o gigante de três cabeças e ter entrado no castelo de fogo, ao mesmo tempo que estendia o braço para pegar nele, ofuscado pelas esmeraldas e ornamentos de prata, o cálice falou-lhe. Aquele que tiver um coração puro, pode beber de mim, disse ele, numa voz baixa, mas terrível. E Bryn teve medo de pegar nele, mas a voz calou-se, ele pegou no cálice e meteu-o debaixo da capa.
Observei-o cuidadosamente enquanto falava; continuava encolhido, meio sentado contra a parede, apertando o cobertor.
— Só mais tarde, quando Bryn chegou a um pequeno rio, é que se lembrou do cálice e pegou nele para beber. Mas estranhamente, quando o tirou de sob a capa, já estava cheio de água límpida. Sentou-se no chão, confuso e, antes que o pudesse impedir, o seu cavalo inclinou o pescoço e bebeu do cálice. Ainda mais estranho, quanto mais o animal bebia, mais cheio até às bordas ficava o cálice de Isha. A água não parecia ter efeitos nefastos no cavalo; no entanto, Bryn não bebeu, mergulhando antes as mãos no rio e matando a sede daquela maneira. Porque, pensou ele, um animal irracional pode ser puro de coração que não nota a diferença, mas este cálice está encantado e deve estar destinado ao maior homem do mundo e eu não passo de um pobre viajante. Como posso eu ter valor suficiente para beber de tal vaso mágico?
O rapaz moveu uma mão; os seus dedos fizeram uma fraca simulação do sinal utilizado para afastar o demónio. Eu já o tinha visto algumas vezes quando à passagem de viajantes, mas nunca dirigido à minha pessoa.
— Eu não sou nenhuma feiticeira — disse eu. — Sou uma curandeira; e estou aqui para te ajudar a ficares melhor. Pode ser que te custe a acreditar, mas é verdade. Eu não minto. Não há razão para teres medo de mim, ou do padre Brien. Não te queremos fazer mal.
O rapaz tossiu e tentou humedecer os lábios com a língua ressequida.
— Brincadeiras — conseguiu ele dizer e a amargura daquelas palavras indistintas era chocante. — Ao gato e ao rato. Porque é que não acabam comigo?
Tinha que fazer um grande esforço para as palavras poderem sair. Porém, o facto de ele falar já era qualquer coisa.
— Demora assim tanto tempo a perceber que não falo? Acabem comigo, malditos.
Isto pareceu exauri-lo e deixou-se cair na enxerga olhando para o vazio, o cobertor ainda apertado em volta do corpo. Escolhi as palavras cuidadosamente.
— Os homens é que brincam — disse eu — foram os homens que te fizeram isso. Mas eu não te estou a pedir que me contes qualquer segredo, ou seja o que for, só quero que fiques bom. Isto não é o cálice de Isha; bebe e só terás aquilo de que o teu corpo precisa. De qualquer maneira, foi um dos meus irmãos que te salvou e eu ajudei-o. Por que é que te havia de fazer mal depois disso?
Ele virou ligeiramente a cabeça e o seu olhar era de rejeição.
— Um dos teus irmãos — disse ele. — Quantos irmãos tens?
— Seis.
— Seis — repetiu ele com desdém. — Seis assassinos. Seis demónios do inferno. Mas, como é que tu podes compreender? És uma rapariga.
O tom de voz trazia veneno e medo. Fiquei admirada como o padre Brien conseguira chegar até ali; talvez as ervas tivessem conseguido fazer com que o rapaz se tornasse cooperante e dócil, para que o que precisávamos de fazer pudesse ser feito sem disputas.
— O meu irmão arriscou-se muito para te ajudar — disse eu — e eu também. Mas tu foste torturado em minha casa, pela minha gente. O meu irmão também faz o que está certo. Nunca trai um segredo. Eu posso parecer-te uma criança, mas sei o que faço, foi por isso que me foram buscar. Não sei o que tencionam fazer contigo, mas com certeza serás ajudado a alcançar um lugar de refúgio e regressar, depois, a casa.
Ele deu uma áspera risada, que mais pareceu o latido de um cão.
— Casa! — retorquiu ele amargamente. — Não me parece. — Tinha abrandado a força com que segurava o cobertor e torceu os dedos. — Não há lugar para mim, lá, ou em qualquer lugar. Por que é que tu havias de te ralar comigo? Volta para as tuas bonecas e para os teus bordados. Mandarem-te aqui foi uma loucura. Pensas que me custa muito matar-te? Agarro-te na cabeça, torço-te o pescoço... podia fazê-lo. Em que é que estava a pensar, esse teu irmão? — Flectiu os dedos.
— Óptimo — disse eu aprovadoramente, tentando manter a voz calma. — Pelo menos, já começaste a pensar, mas olha à tua volta. Talvez o meu irmão estivesse enganado e o padre Brien também; esperarem que um guerreiro como tu seja capaz de pagar uma dívida. Talvez eles pensassem que há um código de honra entre o teu povo, tal como entre o nosso.
— Honra? Ah! — Ele olhou directamente para mim e eu pensei que o rosto dele podia ser belo para um bretão, não fossem as marcas de dor e exaustão. O nariz era comprido e direito, as faces bem cinzeladas e fortes. — Tu não sabes nada, rapariga. Diz ao teu irmão que te leve até uma aldeia depois de ele e os homens dele terem acabado com ela. Ele que te mostre o que restou. Pergunta-lhe se ele alguma vez espetou uma espada numa mulher grávida, como se fosse um porco. Recorda-lhe o hábito do teu povo de cortar os membros das suas vítimas enquanto elas pedem, a gritar, que as matem depressa. — A voz dele subiu de tom. — Pede-lhe que te fale no uso criativo que dão ao ferro em brasa. Depois, já me podes vir falar de código de honra.
Parou, começou a tossir e eu aproximei-me dele sem pensar, levando-lhe a tigela aos lábios. Entre o paroxismo da tosse, a necessidade de respirar e o tremor da minha mão, a maior parte da água caiu sobre a enxerga, mas conseguiu engolir alguns goles. Finalmente a respiração acalmou, continuou a tossir penosamente e olhou para mim sobre a borda da tigela, vendo-me pela primeira vez.
— Maldita sejas — disse ele calmamente, tirando-me a tigela das mãos e bebendo o resto da água. — Malditos sejais todos vós.
O padre Brien aproveitou aquele momento para aparecer, olhou para mim demoradamente e mandou-me sair. Sentada sob as sorveiras-bravas e escutando os pequenos sons dos pássaros e insectos na sua labuta diária, chorei pelo meu pai, pelos meus irmãos e por mim própria.
O padre Brien ficou lá dentro durante bastante tempo. Por fim, as minhas lágrimas cederam e passaram a uns leves soluços, assoei-me, tentei passar para além da dor provocada pelo que o rapaz dissera e concentrei-me na tarefa que ali me trouxera. Mas era difícil; tinha que argumentar comigo própria.
Finbar é bom. Conheço-o tão bem como me conheço a mim própria.
Por que é que, então, não me disse nada? Porquê esperar, até o mal estar feito, para a operação de salvamento? E os outros? Não fizeram nada.
Liam é meu irmão. O nosso guia e protector. A nossa mãe deu-lhe essa tarefa. Ele não pode fazer coisas malvadas.
Liam é um assassino como o pai dele. Assim como o sorridente Diarmid. Oferece-nos um rosto radiante, mas, na verdade, procura ser como todos os outros.
E Conor? Ele não vai para a guerra. Ele é justo. Ele é um pensador.
Ele também podia falar e não o fez.
Mas ele ajudou-nos. Pelo menos, penso que ajudou; ele sabia do rapaz e não me impediu.
Conor é um grande manhoso.
Cormack ainda não sabe nada de guerra; para ele é uma brincadeira e um desporto, um desafio. Não perdoaria a tortura.
Ele aprende depressa. Tem sede de sangue.
E Padriac? Está inocente em tudo isto, absorvido pelos seus animais, experiências!
É verdade. Mas durante quanto tempo? E tu, Sorcha? Tu já não és inocente.
E assim guerreei comigo própria, sem conseguir ignorar aquela outra voz. Era uma agonia acreditar: seria possível que aqueles irmãos que me tinham tratado dos joelhos feridos e levado, com razoável paciência, para tantas aventuras infantis, fossem os selvagens cruéis e sem escrúpulos que o rapaz descrevera? E se assim era, qual era a nossa posição, a de Finbar e a minha? Eu não era tão ingénua, mesmo aos 12 anos, que acreditasse que apenas um dos lados daquele conflito era capaz de torturar e provocar dor. Teríamos salvo um inimigo inocente? Não se poderia confiar em ninguém?
O padre Brien demorou-se. Fiquei onde estava enquanto o conflito na minha alma ia abrandando e a minha mente era tomada por uma tranquilidade que emanava das velhas árvores e do solo que as alimentava. Era um sentimento familiar, porque havia muitos locais, na grande floresta, onde se podia beber a sua energia, encarnar o seu velho coração. Quando estamos perturbados, podemos encontrar a solução para os nossos problemas em tais locais. Eu conhecia-os e Finbar também; dos outros não tenho a certeza, porque muitas vezes, quando nos sentávamos ambos entre dois ramos de um grande carvalho, ou nas rochas observando a água, os outros corriam, ou trepavam, ou nadavam no lago. Mesmo assim, eu estava a aprender o quão pouco conhecia os meus próprios irmãos.
A chuva parara por completo e no abrigo da pequena mata o ar estava húmido e fresco. As aves saíram dos seus esconderijos; as suas canções flutuaram por cima de nós, passando e voltando a passar, lá no alto. Em tais momentos calmos ouvia, muitas vezes, vozes a falarem-me e tomava-as por espíritos da floresta, pelas almas das próprias árvores. Por vezes, sentia que era a voz da minha mãe que falava. Mas naquele dia as árvores estavam calmas e a minha mente estava num lugar distante quando um ligeiro movimento no outro lado da clareira me assustou e me tirou do transe em que estava.
Não tinha a mínima dúvida de que a mulher que estava ali, à minha frente, não era deste mundo; era excepcionalmente alta e magra, o rosto leitoso, o cabelo escuro até aos joelhos e a capa da cor de azul-profundo do céu ocidental, entre o entardecer e a noite. Levantei-me lentamente.
— Sorcha — disse ela, e a sua voz era como uma música terrível. — Tens uma longa jornada à tua frente. Não há tempo para choros.
Parecia-me crucialmente importante fazer as perguntas certas, enquanto tinha oportunidade. O medo paralisou-me a língua, mas forcei as palavras a sair.
— Os meus irmãos são demoníacos, como este rapaz diz? Somos todos amaldiçoados?
Ela riu-se, um som suave, mas com uma força para lá de qualquer coisa humana.
— Nenhum homem é verdadeiramente demoníaco — disse ela. — descobrirás isso por ti própria. E a maior parte deles mente, pelo menos muitas das vezes, ou dizem as meias verdades que lhes convêm. Não o esqueças, Sorcha, a Curandeira.
— Falaste numa longa jornada. Que devo fazer primeiro?
— Uma jornada mais longa do que podes imaginar. Já estás no caminho que te foi preparado e o rapaz, Simon, é um dos marcos. Esta noite, apanha musgo dourado. Podes usar essa erva para lhe acalmares a mente.
— E que mais?
— Encontrarás o caminho, filha da floresta. Através de desgosto e da dor, através de muitas privações, através da traição e da perda, os teus pés percorrerão o caminho certo.
Começou a desvanecer-se perante os meus olhos, a capa azul-escura misturando-se com a escuridão da folhagem por trás dela.
— Espera — comecei a correr através da clareira.
— Sorcha? — Era a voz do padre Brien, chamando-me da caverna. E a mulher desapareceu instantaneamente, como se nada tivesse ali estado senão as sombras da tarde agitando-se sob a brisa. O padre Brien emergiu da entrada da caverna, secando as mãos a um pano.
— Estou a ver que temos um visitante — disse ele suavemente. Olhei para ele vivamente e depois para as sombras. Surgindo cautelosamente na clareira, como se não estivesse segura de ser bem-vinda, apareceu Linn, a cadela. Tinha-me seguido até ali. Falei-lhe gentilmente e ela correu para mim em frenesim, como resposta, o corpo todo agitando-se, abanando a cauda num reconhecimento atrasado e numa necessidade urgente de afecto.
— Vem para dentro — disse o padre Brien. — Traz a cadela, ela não deve fazer mal nenhum. Precisamos de falar acerca deste rapaz e rapidamente. Os efeitos da minha poção já desapareceram e eu hesito em dar-lhe mais. E se não o convencermos a cooperar, não lhe conseguirei tratar as feridas. — Virou-se para entrar. — Já recuperaste? — acrescentou ele gentilmente. — Ele sabe quais são as palavras que deve pronunciar para provocar mais dano. Deve ser a única arma que lhe resta.
— Eu estou bem — disse eu, com a Visão ainda na minha cabeça. Baixei uma mão para tocar na cadela e a língua dela nos meus dedos assegurou-me que o mundo real ainda estava presente, assim como o outro. — Estou óptima.
O rapaz estava sentado na enxerga, enroscado, de costas para nós. Devido às suas palavras provocadoras e olhares furiosos, os ombros dele lembravam-me um pequeno animal demasiado castigado, que se retira para dentro de si próprio, desorientado, devido a um mundo malvado.
— As feridas dele precisam de ser limpas e ligadas — disse o padre Brien na nossa língua. — Desembaracei-me bem enquanto ele estava meio a dormir, apesar do medo. Mas agora...
— Ele precisa de sair deste ambiente das ervas — disse eu — se queremos ter alguma hipótese de o mandar para casa com a mente sã. Devíamos limpar o ar por completo e levá-lo lá para fora, para o calor do dia, se conseguirmos. Ele pode andar?
Um breve olhar passou pelo rosto plácido do padre Brien; um olhar frio, misturado de desgosto e piedade.
— Não me atrevi a movê-lo, salvo para lhe tratar as feridas — disse cautelosamente. — Ainda tem muitas dores e tirar-lhe os soporíferos assim, de repente, vai-lhe custar muito. Sem eles vai-lhe ser difícil dormir, porque tem medo dos sonhos.
Com a Visão ainda viva nos meus olhos, pressenti o que devia fazer, se bem que, valha a verdade, a Dama me tivesse dado bem poucas instruções práticas. Mas algo dentro de mim me indicava o caminho.
— Amanhã — disse eu. — Amanhã tem que ir para o Sol e para o céu aberto. A partir de agora, só uma erva, só musgo dourado e cortado à noite. Eu faço isso mais tarde. Agora, que tal se lhe ligássemos as feridas?
Dirigi-me para a enxerga. Linn seguiu-me, caminhando confiantemente até ao rapaz com as suas grandes patas. Sabia que ele não era Cormack; mas era parecido. Avançou e pousou o nariz na mão dele.
— Calma, Linn — disse eu na língua que o rapaz conhecia. Após o primeiro gesto instintivo de recuo, ele deixou os dedos relaxarem-se e a cadela lambeu-os entusiasticamente. O rapaz olhou-a com os olhos semicerrados, sem dizer nada.
O padre Brien preparou uma tigela com água morna, na qual misturara camomila e raiz de malva; e panos suaves. Devia ter havido uma tentativa para começar o tratamento enquanto eu estava lá fora, porque a ligadura estava em desordem e havia mais água entornada. O eremita moveu-se na direcção da enxerga.
— Eu disse não. — O rapaz foi peremptório.
— Deves saber — replicou o padre Brien, nada perturbado — como soldado que és, o que acontece se essas feridas não forem tratadas; atraem humores maléficos, ficam loucas e as febres tomam conta de ti, fazendo com que tenhas aparições, ardas e morras. Gostavas de ter um fim assim?
O tom era suave, enquanto lavava as mãos com cuidado e as secava no pano.
— Ela que faça isso. — O rapaz atirou um olhar na minha direcção, sem mexer a cabeça. — Ela que veja o que o povo dela me fez e que se penitencie por isso. Eu disse a verdade. O meu corpo é testemunha.
— Não me parece — disse o padre Brien rapidamente e pela primeira vez havia uma leve irritação na sua voz. — Sorcha é uma criança; essas feridas não são para os olhos de uma rapariga e devias ter vergonha de fazer tal sugestão. É trabalho de homem e sou eu que o vou fazer.
— Toca-me outra vez e eu mato-os aos dois. — O rapaz era sincero; e talvez tivesse força suficiente para tentar. — A rapariga que o faça, ou então prefiro apodrecer. É a minha última palavra.
— Duvido que conseguisses fazer o que dizes, embora não te falte vontade para isso — disse eu. — Mas eu trato-te das feridas com uma condição.
— Condição? — estalou o bretão. — Que condição?
— Eu faço tudo o que for necessário — disse-lhe eu firmemente. — Mas apenas se tu cooperares. Deves ouvir quando falo contigo e fazer o que eu mandar, porque tenho o poder de te curar.
Ele riu-se. Não era um som agradável.
— És uma bruxinha arrogante, não és? Não sei se não seria melhor deixares-me apodrecer e entregue à febre. No fim, o resultado deve ser o mesmo. O que é que pensas, velho?
— Não gosto nada disto e os teus irmãos também não deveriam gostar, Sorcha. Devias deixar esse trabalho para mim.
— Então, porque me trouxe aqui? — perguntei simplesmente. E como não tinha resposta, ficou calado.
— Fora — disse o rapaz, conhecendo a vitória quando a via e o padre Brien saiu, relutante, submetendo-se ao inevitável.
— Eu estou mesmo aqui à porta, Sorcha — disse ele na nossa língua, da qual o rapaz parecia não perceber patavina. — E desta vez não demores muito tempo a chamar-me. O que vais ver vai-te angustiar e não vou estar aqui para te ajudar. Trata-o como se estivesses a tratar um animal doente e não tentes arcar com as culpas, criança.
— Eu fico bem — disse eu, sentindo que o espírito da Dama da Floresta ainda estava comigo e pronto para fazer o que tinha de ser feito.
Não me vou demorar no que se seguiu. Despir-se diante de mim e submeter-se ao meu tratamento foi-lhe penoso, tanto física como mentalmente. Testemunhar as suas feridas e constatar a natureza vil da imaginação do homem foi uma experiência que me queimou o coração, do mesmo modo que os instrumentos de tortura lhe tinham queimado o corpo. Nunca mais seria o mesmo, nem conheceria a alegria estouvada da virilidade que eu vira nos meus irmãos ao lutarem juntos, ou a namorarem raparigas. Era inacreditável que outro homem lhe tivesse feito aquilo. Enquanto trabalhava, contei-lhe o resto da história do cálice de Isha, porque isso afastava-nos as mentes daquela tarefa terrível; e Linn sentou-se, ansiosamente, ao lado da enxerga, lambendo delicadamente o punho fechado do bretão. O rapaz ainda tentava recuar ao meu toque, mas tendo concordado com o combinado, foi estóico à dor, tendo gritado apenas uma vez.
Por fim a história acabou, assim como a minha tarefa. Com o corpo ensopado em suor e o rosto lavado em lágrimas, deitei o paciente o mais confortavelmente possível e estendi-lhe por cima do corpo ligado de fresco um cobertor lavado. Durante os pequenos momentos que me foram necessários para ir buscar o cântaro, a cadela subiu para a enxerga e estendeu-se ao lado dele, a cauda abanando gentilmente. A sua expressão disse-me que esperava que eu não me importasse.
— Bom trabalho, Simon — disse eu, segurando numa tigela com água para que ele bebesse e, desta vez, ele bebeu: estava demasiado exausto para protestar, apesar do medo. — Talvez consigas dormir, agora. Um de nós estará aqui, se precisares. Linn — estalei os dedos. —, para baixo!
— Não... — A voz dele era uma sombra de som. — Deixa-a. — A mão dele pousou no pêlo hisurto, cinzento, da cadela.
Virei-me, pensando em ir chamar o padre Brien. Estava demasiado cansada para sentir fome, mas o meu trabalho desse dia ainda não tinha terminado.
— Não.
Olhei para ele.
— Quieta.
— Eu não sou um cão para obedecer às tuas ordens — disse eu. — Preciso de comer e tu também devias.
— A história — disse ele debilmente, surpreendendo-me. — Acaba a história. O Bryn chegou a beber do cálice, ou duvidou de si próprio para sempre?
Sentei-me de novo, lentamente.
— Bebeu — disse eu, procurando, no meu íntimo, força para continuar. — Mas só muito, muito mais tarde, porque após todas as suas aventuras e as doenças que afectaram muitos outros que tentaram utilizar o cálice de Isha, ele colocou-o numa prateleira nas traseiras da sua cabana e esqueceu-o. Ali ficou o cálice com as suas esmeraldas e rubis, entre as velhas canecas e louça de estanho e nem uma única alma reparou nela. Porque Bryn ficou na sua cabana, ao lado da floresta encantada com o seu labirinto de espinhos e ali envelheceu; e guardou a única entrada, não deixando ninguém passar, homem ou animal. Houve muitas raparigas que o teriam desposado, se ele quisesse, mas ele recusou-as a todas polidamente. “Sou apenas um humilde homem” dizia ele, “não presto para vós, damas educadas. Além disso, o meu coração pertence a alguém.”
Ao longo dos anos teve imensas oportunidades para sair dali, para a guerra, com soldados, ou para fazer fortuna, com viajantes, mas nada disso fez. “Esta é a minha vigília”, dizia-lhes ele, “e aqui fico. Morrerei no meu posto.” E quando acabaram os 30 anos e Bryn era muito, muito velho, com longas barbas até aos pés, a maldição foi levantada e a parede de espinhos dissolvida; e de lá saiu uma dama muito, muito velha, com um vestido branco todo esfarrapado e o rosto enrugado como uma ameixa seca. Mas Bryn reconheceu nela, instantaneamente, a sua amada e caiu de joelhos diante dela, dando graças pela sua libertação. “Tenho sede”, disse a velha dama numa voz de cana rachada (mas para Bryn era o mais maravilhoso som que ouvira na sua vida). “Arranja-me de beber, soldado, por favor”. E como só havia na sua humilde casa um cálice digno de uma dama daquela posição, o velho foi buscar o cálice de Isha às prateleiras poeirentas da cozinha e, espantado, viu que estava cheio até às bordas de água límpida e fresca. Com as mãos a tremer, ofereceu-o à dama.
“Deves beber primeiro” disse ela e ele não teve força para ir contra a vontade da dama. Bebeu um gole, ela bebeu um gole e as pedras preciosas do cálice brilharam como estrelas. Quando Bryn olhou para cima, lá estava a amada do seu coração, tão nova e bela como no dia em que a perdera. E quando olhou para o cálice de Isha, o reflexo mostrou-lhe uns caracóis negros e um deslumbrante sorriso.
“Mas, mas, eu pensei...” mal conseguia pronunciar uma palavra, porque o seu coração batia como um grande tambor. A sua amada sorriu e pegou-lhe na mão. “Devias ter bebido dele há muito tempo”, disse ela, “porque nenhum homem, que não fosse puro, teria esperado 30 anos pela sua amada!” Ela pousou o cálice sobre uma pedra ao lado do caminho, entraram juntos na pequena cabana e ali viveram juntos o resto das suas vidas. E o cálice de Isha? Descansa entre os fetos e as margaridas, esperando que um outro viajante o encontre.
O rapaz estava quase a dormir, o rosto próximo do repouso como eu ainda não tinha visto, mas ainda cauteloso. Falou num sussurro.
— Se não és uma bruxa — disse ele — como é que sabes o meu nome?
— Disse-me uma das Criaturas Encantadas. — A verdade era essa, mas eu não esperava que ele acreditasse. Pensei rapidamente. Como já disse antes, mentir era uma habilidade que eu não possuía, era tão hábil nisso como o meu irmão Finbar.
— Responder-te-ei a isso quando te vir em pé e lá fora — foi o melhor que consegui arranjar. — Agora, deves descansar enquanto eu vejo se o padre Brien tem alguma comida para nós. A cadela também deve estar esfomeada.
Mas quando tentei chamar Linn para me seguir, ela meteu o focinho peludo entre as patas e olhou simplesmente para mim com aqueles olhos líquidos, de cão. A mão de Simon descansava-lhe no lombo, os dedos movendo-se contra o pêlo áspero. E assim os deixei, aos dois, por um bocado.
Seguiu-se o tempo mais estranho da minha vida, pelo menos até à data, porque o que se seguiu não foi apenas estranho, mas fora da compreensão mortal. Na primeira noite fiz o que a Dama me ordenara, ir até aos grandes carvalhos e trepá-los até ao alto, onde havia uma delicada rede de musgo dourado, suspensa como uma constelação de estrelas entre os maciços ramos dos gigantes da floresta. Utilizei uma pequena foice para cortar a quantidade de que necessitava. O padre Brien estava preocupado com a hipótese de eu poder cair ou cortar-me. Mas eu expliquei-lhe como aquela erva era sagrada para os da antiga fé. Na verdade, é tão mística e poderosa que o seu verdadeiro nome é secreto, não deve ser dito em voz alta nem escrito. Chamávamos-lhe musgo dourado, ou visco, ou outro nome qualquer em vez do seu verdadeiro nome. É uma erva estranha, fora das leis da natureza, porque não cresce virada para a luz como as outras plantas, mas para onde lhe apetece, para cima, para baixo, para leste, para oeste, para onde a fantasia a leva. Nem cresce no solo, apenas nos ramos mais altos dos carvalhos, das madeiras, dos pinheiros ou dos choupos, enroscando-se em volta dos ramos, descansando nas suas copas. Não quer saber das estações, pois pode ter ao mesmo tempo bagas verdes, flores e folhas verdes. A sua colheita tem regras severas e eu segui-as o melhor possível, porque parecia que tinha tido autorização.
O musgo dourado podia ser usado de muitas maneiras e eu servi-me da maior parte delas na minha tentativa para ajudar o bretão. Entrançado em círculo e pendurado sobre a enxerga, era eficaz no afastamento dos terrores nocturnos. Fiz uma infusão e todos a bebemos, mas frugalmente.
Esperava que a minha cura livrasse, pelo menos parcialmente, o corpo de Simon da influência das ervas que tinham sido essenciais até agora; e ele precisava deste remédio, o mais poderoso de todos. Quando o colhi, numa noite de lua em quarto crescente, vi uma coruja a voar por cima de mim, descendo e subindo no céu nocturno, frio e silencioso. Talvez fosse aquela que eu conhecia, agora de novo parte do mundo da escuridão Os poucos dias que Conor me tinha dado vieram e foram, assim como Finbar. Montava um robusto pónei das montanhas, cuja garupa nos podia levar a ambos, com facilidade, para casa. O padre Brien estava na sua cabana, fazendo um belo trabalho com pena e tintas, enquanto Simon e eu estávamos sentados (ou melhor, deitados) na relva, um pouco mais longe, pelo monte abaixo. Movê-lo pela primeira vez tinha sido um pesadelo. Cada passo era, para ele, uma agonia, mas recusou-se a ser carregado por um velho e uma fedelha magricela que falava de mais, como ele disse. Andou, portanto, mordendo os lábios, em silêncio, e eu senti no meu próprio corpo a dor que o atormentava, enquanto lhe segurava o braço e caminhava a seu lado.
— Espero que saibas o que estás a fazer, Sorcha — disse o padre Brien. Parecia ansioso, mas deixava o tratamento nas minhas mãos. Do outro lado de Simon a cadela caminhava firme, refreando a sua boa-disposição habitual, encostando-se ligeiramente para o ajudar a manter-se direito. A mão dele segurava-lhe a coleira.
— Sei — disse eu e o padre Brien ficou descansado.
Assim, no dia em que Finbar chegou lá estávamos nós os três, Simon, eu e a cadela, mas esta tinha deixado a nossa companhia para farejar as árvores, a cauda abanando de um lado para o outro ao apanhar o cheiro de um coelho. Por essa altura já nós tínhamos conversado bastante, ou antes, eu falava e Simon ouvia, já que não tinha outra escolha. Eu não lhe perguntava nada e, assim, ele nada respondia; e eu limitei-me às velhas lendas, fragmentos de canções e ocasionalmente falava acerca da minha floresta e de algumas coisas estranhas que ali se passavam. Ele conseguia ser rude e até cruel, e era ambas as coisas quando lhe convinha. Ouvi muita coisa sobre a natureza do meu povo e o que tinha feito, ao longo dos anos ao povo dele; e era imaginativo nos insultos que me fazia e ao padre Brien. Mas com esses podia eu bem; as histórias da guerra é que me custavam, o que fazia com que, provavelmente, eu falasse a maior parte do tempo. Pelo menos mantinha-o calado. A sua disposição mudava constantemente, passando da tolerância exaustiva para a fúria e para o terror quase instantaneamente e cuidar dele esgotou-me as energias, mais do que qualquer outro paciente que eu tenha tratado. Mudava-lhe as ligaduras duas vezes por dia, porque ele não deixava o padre Brien aproximar-se. Nunca me habituei àquela tarefa.
Por essa altura começou a desenvolver-se uma espécie de aceitação mútua. Se bem que fizesse chacota da improbabilidade das minhas lendas, sei que gostava delas. O ar fresco e os passeios, por mais que lhe custassem, tinham-lhe trazido novas cores ao rosto e os olhos azuis já tinham alguma vida. Escovei-lhe o cabelo; queixou-se mais do puxar dos nós e das madeixas emaranhadas do que das dores cruéis das feridas. Tomei isso como um bom sinal; porque tudo era preferível ao desespero com que ele esperava o fim dos dias e ao terror com que acordava de noite.
E então chegou Finbar. Deixou o pónei a alguma distância e caminhou o resto a pé. Por hábito, movia-se silenciosamente, de maneira que o seu aparecimento na orla do bosque foi repentino. Simon levantou-se num ápice, a rápida admissão de ar, áspera, o único sinal do que lhe custara o movimento e eu senti o meu cabelo a ser apanhado por trás e um objecto de metal no meu pescoço.
— Dá mais um passo e corto-lhe o pescoço — disse ele e Finbar parou imediatamente, pálido como a cera. Não se ouvia qualquer som, salvo o distante pipilar de uma ave chamando um rival; e a respiração apressada de Simon por trás de mim. Finbar estendeu os braços lentamente, mostrando-os descontraídos e vazios; acocorou-se, depois, as costas direitas como uma jovem árvore, o olhar vigilante. As sardas sobressaíam na palidez do rosto e a boca era apenas uma linha fina. Eu conseguia ouvir o padre Brien a falar sozinho na cabana. A pressão da faca afrouxou, ligeiramente, na minha garganta.
— Este é o teu irmão?
— Um deles — disse eu, a minha voz uma espécie de guincho. Simon abrandou um pouco a prisão. — Finbar salvou-te. Foi ele que te trouxe para aqui.
— Porquê? — A voz era sem timbre.
— Acredito na liberdade — disse Finbar com uma firmeza admirável. — Tento emendar o mal quando posso. Não foste o primeiro. Já ajudei outros antes. No entanto, o que aconteceu depois, desconheço. Importas-te de libertar a minha irmã?
— Porque é que hei-de acreditar em ti? Quem é que, no seu perfeito juízo, enviaria a sua irmã para os braços do inimigo, sozinha, com excepção de um clérigo tremeliques? Quem é que trairia a própria família? Que espécie de homem faz isso? Talvez tenhas ali nas árvores um bando de guerreiros preparados para me levarem e acabarem o que começaram.
A voz de Simon era controlada, mas eu sentia-lhe a tensão no corpo e sabia a agonia por que passava ao suster-me em pé. Não o conseguiria por muito mais tempo. Falei directamente para Finbar, sem palavras, de mente para mente.
— Deixa isto comigo. Confia em mim.
Finbar pestanejou para mim, baixando a guarda por um momento. Li-lhe nos pensamentos uma ira e uma confusão que nunca lhe tinha visto antes.
— Não é em ti que não confio, é nele,
Nunca me sujeitei muito às características mais fracas de uma mulher; de facto, apesar do meu tamanho pequeno e aparente delicadeza, sou uma pessoa forte e capaz de aguentar muito. Nunca me julguei capaz de tal decepção e arriscava-me muito quanto à provável reacção de Simon. Mas, na ocasião, foi a única coisa que me veio à mente. Soltei um ligeiro gemido, dobrei os joelhos e Simon largou a faca, tentando apanhar-me antes que eu atingisse o chão. Mantive os olhos firmemente fechados, ouvindo Finbar a fazer ruídos de preocupação, Simon a apanhar a faca e a avisar o meu irmão para que se mantivesse afastado. E depois a voz do padre Brien alertado pelo barulho, estava rapidamente ao meu lado, limpando-me o rosto com um pano que cheirava a alfazema. Abrindo os olhos cuidadosamente, vi uma expressão retorcida no rosto do bom padre. Ele não se deixara enganar.
Virei a cabeça para o lado. Finbar estava sentado exactamente como antes, de pernas cruzadas, completamente direito, impávido. Virei a cabeça para o outro lado. Simon estava muito perto, encostado a uma grande pedra, a faca mal segura na mão. Senti que me tinha estado a observar, mas agora os olhos estavam virados na direcção das árvores. Não gostei do aspecto dele. O rosto estava pálido e transpirava, coisa que eu pensava já ter desaparecido.
Aparentemente, parecia que os quatro não sabíamos o que fazer, ou para onde ir a seguir. O problema foi resolvido inesperadamente pela cadela-lobo, Linn, que se tinha cansado da caça ao coelho e corria na nossa direcção, da floresta, espantada por ver tantos amigos de repente. Atirou-se primeiro a Finbar, plantando-lhe as patas nos ombros e lambendo-lhe o rosto vigorosamente. A seguir virou-se para mim, descuidada do meu aparentemente delicado estado de saúde, plantando-me as pesadas patas no estômago, ao passar. Circulou à volta de Simon, trémula de antecipação, mas ainda cuidadosamente, para não o magoar.
— Bem, crianças — disse o padre Brien, com sentido prático — vou buscar uma taça de hidromel, porque me parece que todos necessitamos dele. Depois, falamos. Tentai não vos magoar uns aos outros por uns momentos, peço-vos.
Levantou-se e Simon deixou-o ir. No entanto, eu ainda não podia fazer o mesmo, porque assim que fiz tenção de me levantar senti-lhe a mão no meu braço e ainda havia determinação na pressão. Havia uma certa reserva de força nele que eu não imaginava.
Ficámos ali pouco à-vontade até o padre Brien regressar, transportando um jarro e umas taças e só então Finbar começou a falar na nossa língua.
— Não! — disse eu rapidamente, cortando-lhe a fala. — Fala de maneira a que Simon possa compreender-te. Já chega de segredos. Podemos ser inimigos, mas sejamos civilizados.
— Achas que sim? — perguntou Finbar de sobrancelhas levantadas. — Aqui o bretão não se mostrou nada civilizado.
— Ora bem — disse o padre Brien, dando a cada um de nós uma taça — simulemos uma trégua, pelo menos, e tentemos resolver isto. Acredito que Finbar veio aqui em paz, jovem; veio buscar a irmã para a escoltar para casa.
— Como vês, estou desarmado — disse Finbar abrindo os braços. Uma mecha de cabelos caiu-lhe para os olhos, mas não fez menção de a afastar. Era para mim que ele agora estava a olhar. — Vim buscar Sorcha, só isso. Pensei em te perguntar como estavas, para saber se tinha valido a pena salvar-te; mas não me preocupo mais com isso.
— Ele não pretende magoar-me. Não percebes?
Finbar levantou as sobrancelhas para mim, incrédulo. Simon estava silencioso, a sua taça a seu lado, na relva, intacta. Senti-lhe a mão a arder na minha pele, através do tecido fino do meu vestido. A cadela farejava o hidromel.
— Algumas notícias do teu pai, Finbar? — perguntou o padre Brien casualmente.
— Ainda não. Penso que ainda vai demorar um bocado. O seu paciente estará em segurança enquanto ele não voltar. Gostaria de poder dizer o mesmo da minha irmã. Para quem foi chamada aqui para curar, parece que não tem sido muito bem tratada. Parece-me que devia ter vindo mais cedo.
A voz de Simon era cruel.
— De que é que estavas à espera? De uma festa de boas-vindas? Gratidão bajuladora? Dá-me uma razão para estar grato pelo meu regresso à vida.
Silêncio.
— Meu filho — disse o padre Brien — o futuro parece-te negro, agora, e não podemos saber onde te levará. Mas há uma luz em cada caminho. Com o tempo, encontrá-la-ás.
— Poupa-me a tua fé de trazer por casa — disse Simon, fatigado. — desprezo-a e a ti também.
— Não estás em posição de lha atirares à cara — disse Finbar suavemente. — Ele preocupa-se contigo e com os teus, precisamente por causa dessa fé. Sem ela, seria um assassino como os da minha família. Ou, talvez, como os da tua.
— Na verdade, fui, em tempos, um homem desses. Conheço o poder de uma causa e como ela pode cegar-nos face à realidade. Finbar sabe isso muito bem. Talvez a tua missão na vida seja aprendê-la.
O padre Brien estava pensativo.
— Quero lá saber das tuas missões! Não sirvo para nada. Assim que ela acabar de tratar de mim, caio para o lado, a cheirar mal. Terias feito melhor se não tivesses interferido, se me tivesses deixado onde estava. O fim teria sido mais rápido.
Simon ainda controlava a voz, mas um estremecimento convulsivo percorreu-lhe o corpo. Abri a boca para falar, mas Finbar antecipou-se.
— Eu vou levar a minha irmã para casa — disse ele. — Pensei que te podia ajudar e ela também. Mas não posso permitir que seja magoada ou ameaçada. Fizemos o que pudemos e parece que já não precisas dos nossos serviços.
Simon riu-se ironicamente.
— Calma aí, irmãozão — disse ele. — Ainda tenho a minha faca e ainda valho alguma coisa. A pequena feiticeira fica comigo. Mandaste-a aqui para me curar; portanto, ela que me cure. Ela acredita no impossível. Eu, não.
— Esqueces-te que ela é apenas uma criança — disse o padre Brien.
— Criança? Ah! — Simon deu uma risada triste. — Por fora, talvez. Mas não se parece com nenhuma criança que eu tenha conhecido. Qual é a criança que conhece as propriedades das ervas e mil histórias, cada uma mais estranha do que a outra e como... — A voz dele vacilou. Finbar olhou para o padre Brien, que retribuiu o olhar reflectidamente. O meu braço começava a doer-me no local onde Simon tinha os dedos fincados.
— Não vos compete a vós decidir — disse eu, tão firme quanto pude. Olhei para cada um deles à vez; para Finbar, com o seu rosto pálido e olhos cinzentos e para o suave e penetrante olhar do padre Brien. O punho de Simon no meu braço dava-me a conhecer a sua dor e desespero. — Eu tenho um trabalho a desempenhar aqui e ainda não acabou. Todos vós, juntos, acabais de desfazer a maior parte do meu trabalho desta tarde. Finbar, tu deves voltar para casa e deixar-me aqui para que eu faça o que tenho a fazer. Acredita que fico segura. Eu chamo-te quando estiver pronta.
Ele precisa de mim, Finbar.
Não te deixo aqui.
Tentava manter-me afastada dos seus pensamentos, mas não conseguia esconder a culpa e a confusão. O que me preocupava. Não era Finbar o irmão que estava sempre certo, que sabia sempre o que fazer?
Deves deixar-me. A escolha é minha.
E assim acabou por fazer. Felizmente, o padre Brien acreditava no que eu estava a fazer, porque foi ele que convenceu o meu irmão a ir para a cabana e a deixar-me sozinha com o meu paciente por um bocado.
Simon deixou-os ir, silencioso. Só depois de eles estarem afastados e a porta da cabana fechada com um ruído surdo é que o punho fechado sobre o meu braço se abriu e procurou um apoio e o bretão deixou sair um longo e estremecido suspiro. Os dois, a cadela e eu, levámo-lo para a caverna, deitámo-lo e eu quebrei todas as minhas regras, administrando-lhe uma poção que lhe provocaria um sono razoável. Depois sentei-me ao pé dele, falando disto e daquilo, vendo-o a retrair-se com a dor e a lutar para se manter silencioso. Após um certo tempo, os efeitos da erva apoderaram-se dele e as feições começaram a descontrair-se e os olhos a enevoarem-se. O meu braço doía-me e fui de mansinho às prateleiras do padre Brien em busca de um unguento, talvez raiz de malva-silvestre, ou flor-de-sabugueiro. Encontrei o que procurava numa tigela pouco profunda com tampa e regressei para o meu banco para untar as minhas equimoses. Tinha um anel vermelho em volta do meu antebraço. Consegui algum alívio massajando-o com o unguento.
Algo me fez olhar para cima ao colocar de novo a tampa na tigela. Simon ainda estava acordado, as pesadas pálpebras deixando ainda ver um pouco dos assustadores olhos azuis.
— Ficas com marcas por uma coisa de nada — disse ele indistintamente. — Não queria magoar-te. — Então, as pálpebras caíram e ele adormeceu. A cadela aproximou-se e aninhou-se ao pé dele na estreita enxerga.
Houve então um pequeno intervalo para explicações e decisões. Fui para a cabana e ficámos lá, mas com a porta aberta porque, como disse aos outros, Linn avisar-me-ia se Simon acordasse. O padre Brien insistiu em que Finbar e eu comêssemos e bebêssemos, se bem que nenhum de nós tivesse estômago para tal.
Levou algum tempo a persuadir Finbar a ir para casa. Continuava a acreditar que eu estava em perigo e jurou que Conor nunca concordaria que eu ficasse. Usei o seu velho argumento contra ele próprio: não se devia presumir que um bretão era demoníaco só por causa do cabelo dourado, ou da estatura, ou da estranha maneira de falar. Era um ser humano com forças e fraquezas, tal como nós. Não o dissera Finbar muitas vezes, até ao nosso pai?
— Mas ele ameaçou matar-te — disse Finbar, exasperado comigo. — Encostou-te a faca à garganta. Isso não quer dizer nada?
— Ele está doente — disse eu. — Tem medo. E eu estou aqui para o ajudar. Além disso, disseram-me... — interrompi-me.
O olhar de Finbar aguçou-se.
— Disseram-te o quê?
Não podia mentir.
— Disseram-me que era algo que eu devia fazer. Apenas o primeiro passo de um caminho longo e difícil. Eu sei que tenho de o fazer.
— Quem te disse isso, Sorcha? — perguntou o padre Brien gentilmente. Estavam ambos a olhar para mim intensamente. Escolhi as palavras cuidadosamente.
— Lembras-te da velha lenda de Conor, aquela sobre Deirdre, a Dama da Floresta? Creio que era ela.
O padre Brien aspirou ruidosamente.
— Tu viste-a?
— Creio que sim — disse eu, surpreendida. Fosse qual fosse a reacção que esperava dele, não era aquela. — Ela disse-me que este era o meu caminho e eu devo percorrê-lo. Lamento, Finbar.
— Este bretão — disse Finbar lentamente. — Não é o primeiro que eu encontro, ou com quem falo. Os outros, no entanto, eram homens de idade, mais calejados e, ao mesmo tempo, mais simples. Ficaram suficientemente contentes por serem libertos e foram-se embora. Este brinca connosco e saboreia a nossa confusão. Se na verdade recebeste essas instruções, não tens escolha senão obedeceres; no entanto, não consigo acreditar que este rapaz não te quer mal. Não me sinto bem por te deixar aqui e creio que Conor concordaria comigo. — Mexeu numa mecha de cabelo com os dedos. As cores tinham-lhe voltado ao rosto, mas a boca continuava ameaçadora.
Olhei para ele
— Porque é que Conor havia de decidir? — perguntei. — É ele que está encarregue de nós, por agora, mas só tem 16 anos.
— Conor é mais velho do que a idade que tem — disse o padre Brien no seu modo calculado. — Nisso, parece-se com vós os dois. Também ele tem um caminho preparado para ele. Talvez o tenhais aceitado como ele é; calmo, de confiança, bom e justo, ávido de conhecimento. Mas conhecei-lo menos do que pensais.
— Ele parece conhecer uma data de coisas estranhas — disse eu. — Coisas que nos surpreendem.
— Como o alfabeto Ogham — disse Finbar calmamente. — Os sinais, onde os encontrar e como interpretá-los. Aquilo que conhecemos disso devemo-lo a Conor.
— Mas onde é que ele o aprendeu? — perguntei. — Num livro não foi, tenho a certeza.
— Conor é perito numa data de assuntos — disse o padre Brien, olhando através da sua pequena janela. O Sol de fim de tarde apanhou-lhe os poucos cabelos cinzentos que lhe guarneciam o couro cabeludo, transformando-os numa auréola flamejante. — Alguns aprendeu-os comigo. Tal como vós. Outros, aprendeu-os com os manuscritos amontoados na poeira da biblioteca do vosso pai; como tu, Sorcha, com as tuas curas e as tuas ervas. À medida que envelhecerdes, vereis que, tal como estes, Conor tem outros conhecimentos, outras qualidades mais subtis; possui capacidades antigas que pertencem à vossa linhagem, mas que hoje estão esquecidas. Vedes o povo da aldeia, como o venera. É verdade que, na ausência do vosso pai, Conor é um excelente administrador e as pessoas reconhecem-no, agradecendo-lhe. Mas esse reconhecimento vai mais longe.
Lembrei-me, então, de algo.
— O velho da aldeia, o velho Tom, que costumava consertar os telhados de colmo, disse qualquer coisa... ele disse que Conor era um dos sábios, como o pai, ou como o pai devia ter sido. Não o compreendi.
— A família de Sevenwaters é muito antiga, uma das mais antigas desta terra — disse o padre Brien. — Neste lago e nesta floresta acontecem coisas estranhas, o inesperado é uma coisa vulgar. A minha chegada, e a minha fé, podem ter mudado as coisas à superfície, mas lá no fundo, aqui e ali, a magia continua a existir, tão forte como quando as Criaturas Encantadas vieram do ocidente. Os fios das diversas crenças andam lado-a-lado; de vez em quando emaranham-se e formam uma grossa corda. Tu viste isso por ti própria, Sorcha; e tu, Finbar, sentes o seu poder, compelindo-te à acção.
— E Conor? — perguntou Finbar.
— O teu irmão herdou um pesado legado — disse o padre Brien. — E esse legado escolhe quem quer; assim, não caiu sobre o mais velho, ou sobre o segundo, mas sobre aquele mais capaz de o carregar. O vosso pai tinha a força necessária, mas deixou que ela lhe passasse à frente. Conor será o chefe da antiga fé para este povo e sê-lo-á calma e discretamente, de maneira que as antigas tradições possam ainda prosperar e guiar, escondidas, profundamente, na floresta.
— Quer dizer que Conor é... quer dizer que ele é um druida? Como é que ele podia ter aprendido isso nos livros? — perguntei, confusa. Conhecia assim tão mal o meu irmão?
O padre Brien riu-se suavemente.
— Não podia — disse ele de modo estranho. — Esse conhecimento não vem nos livros; os sinais na árvore, que ele te mostrou, são a única forma de escrita. Ele aprendeu, e aprende, com outros da mesma espécie. Não se mostram, ainda, porque tiveram que lutar muito para não desaparecerem. O número está a diminuir. O teu irmão tem ainda, pela frente, um longo caminho a percorrer; ainda mal começou a jornada. 19 anos, é esse o espaço de tempo necessário para aprender tal sabedoria. E não é preciso dizer que não deveis falar disto por aí.
— Por vezes, ficava admirado — disse Finbar. — Percorríamos as aldeias e sabíamos, ouvíamos, em quem o povo confiava e porquê. Isso explica porque nos deixa ele seguir o nosso próprio caminho.
— O que é que queria dizer — disse eu, ainda profundamente embrenhada em pensamentos — acerca de o nosso pai ser o tal e ter desistido? — Pois não conseguia imaginar o pai, com a sua expressão fechada, estanque, e a sua obsessão pela guerra, como condutor de uma qualquer mensagem espiritual. Não podia ser.
— Precisas de compreender — disse o padre Brien gentilmente — que o vosso pai nem sempre foi assim. Quando era jovem, era uma criatura completamente diferente, generoso e alegre, um homem que cantava e dançava, contava histórias como os melhores, assim como os batia a todos a montar, a atirar ao arco e a combater com a espada ou de punhos nus. Ele era, diziam, favorecido pelos céus, com todas as bênçãos.
— Então, o que é que o mudou? — perguntou Finbar friamente.
— Quando o pai dele morreu, Lorde Colum tornou-se senhor de Sevenwaters. Ainda não tinha sido chamado para ser outra coisa, porque havia ainda um muito mais velho e sábio que guardava as antigas tradições vivas, por estas bandas. O vosso pai conheceu a vossa mãe; e, como muitas vezes na vossa família, amou-a instantaneamente e apaixonadamente, de tal maneira que a vida sem ela era como a morte, para ele. Foram abençoadamente felizes durante oito anos; e então, ela morreu
A sua face tinha mudado; observei a luz a brincar com as suas feições calmas e pensei que tinha detectado uma profunda pena nelas, enterrada há muito.
— Conheceu-a? — perguntei.
O padre Brien virou-se para mim, os olhos mostrando uma leve tristeza. Talvez eu tivesse imaginado o que vi.
— Oh, sim — disse ele. — Tinha-me sido dado a escolher. A minha perícia com a pena era estimada na casa de Kells, mas as minhas ideias provocavam... inquietação. Conforma-te, disseram-me, ou vai viver sozinho. Eu tinha conhecido o vosso pai antes de tomar as santas ordens, há muito tempo, quando era um homem de armas. Quando deixei a casa do capítulo ele ofereceu-me um lugar aqui, um acto de alguma generosidade, considerando as diferenças entre nós. Conheci a tua mãe. Vi a alegria entre ambos e como a morte dela retirou, ao teu pai, toda a luz.
— Ele tinha-nos a nós — disse Finbar amargamente. — Outro homem qualquer teria pensado que era razão suficiente para viver, e viver bem.
— Creio que estás a ser demasiado duro — disse o padre Brien, mas falou bondosamente. — Ainda não conheces a espécie de amor que ataca como um relâmpago; agarra-se-te ao coração, tão irrevogavelmente como a morte; torna-se a estrela pela qual te orientas o resto da tua vida. Não desejo esse amor a ninguém, homem ou mulher, porque pode tornar a vida um paraíso, ou destruí-la. Mas está na natureza da vossa família viver o amor assim. Quando a tua mãe morreu, foi necessária a Colum uma grande força para resistir a semelhante dor. Ele sobreviveu mas pagou um preço muito alto. Ficou com muito pouco para vós, ou para qualquer outra pessoa.
— Ele tinha escolha, não tinha? — perguntou Fimbar lentamente. — Podia ter-se virado noutra direcção após a morte dela, escolhido outro caminho, tornar-se no chefe que, segundo diz, Conor será.
— Podia, porque o Ancião estava perto do fim dos seus dias e os sábios foram ter com Colum, à procura de um homem da sua linhagem para se lhes juntar. Devem tê-lo desejado muito, para fazerem tal abordagem. Melhor seria terem começado a ensinar uma criança, ou terem escolhido um jovem. No entanto, pediram-lhe a ele. Mas Colum estava profundamente desesperado. Não fora o seu dever para com a sua túath, e para com os seus filhos e talvez tivesse acabado com a própria vida. Desse modo, recusou.
— E foi então que a escolha recaiu sobre Conor?
— Nessa ocasião, não. Conor era ainda uma criança; eles esperaram primeiro e viram-vos crescer, aos sete. Observaram Conor enquanto ele aprendia a ler e a escrever, a exercitar os versos e as lendas, a ensinar-vos a sabedoria das árvores e como olharem uns pelos outros. Com o tempo, tornou-se evidente que ele era aquele e disseram-lho.
Ficámos ali sentados, absorvendo toda aquela história, enquanto os raios de sol baixavam através da janela e o ar se tornava mais frio com a chegada da noite. Não vinha qualquer som da caverna. Esperava que o sono de Simon fosse cheio de sonhos.
— Agora já sabeis — disse o padre Brien — porque o vosso pai é assim. Segurar as suas terras e reconquistar de volta as Ilhas perdidas há tanto tempo tornaram-se no único propósito da sua vida. Com essa única ideia na cabeça, mantém os lobos da memória ao largo. Quando eles se aproximam, vai de novo para a guerra e silencia-lhes os uivos com sangue. Esse caminho pesa-lhe. No entanto, tornou as suas terras, e as dos seus vizinhos, seguras, ganhando o respeito por todo o norte desta terra com as suas campanhas. Não reconquistou ainda as Ilhas; planeia fazê-lo, talvez, quando todos os seus filhos forem crescidos.
— Terá de o fazer sem mim — disse Finbar. — Sei muito bem que as Ilhas são misteriosas, para além de qualquer compreensão, um lugar de espíritos e eu gostaria de visitar as Grutas da Verdade. Mas não mataria para ter esse privilégio. Isso é uma fé louca.
— Como já disse, uma causa pode cegar um homem face à realidade — disse o padre Brien. — Os homens lutam, nessas ilhas, desde os dias do trisavô de Colum, desde que o primeiro bretão pôs lá os pés, desconhecendo que pisavam o coração místico das antigas tradições do vosso povo. Assim nasceu a guerra, seguindo-se grandes perdas de vidas e fortunas. Senão, por que haveria Lorde Colum, sétimo filho do seu pai, de ser o herdeiro? Os seus irmãos morreram todos, lutando pela causa. E o pai deixou-os ir, um a um.
— E agora ele prepara-se para percorrer o mesmo caminho — acrescentou Fimbar sinistramente.
— Talvez — replicou Brien. — Mas os teus irmãos não partilham da mesma obsessão de Lorde Colum e, aliás, existe Conor, e vós dois. Pode ser que, finalmente, esse padrão seja quebrado.
Eu continuava a pensar. Após um bocado, arrisquei:
— Está a dizer que Conor me deixará ficar para tentar ajudar Simon? Que ele compreende o que a Dama me disse, que tudo isto faz parte de um grande desígnio preparado para nós?
O padre Brien sorriu.
— Se há alguém capaz de sair de um caminho prescrito, és tu, criança. Mas tens razão acerca de Conor. Ele sabia muito bem porque vinhas para aqui. É a medida da sua força, da sua estatura, ser capaz de harmonizar o conhecimento com a administração dos bens do teu pai.
Franzi as sobrancelhas.
— Diz isso como se Conor, um dia, passasse a ser o chefe da família — disse eu. — E Liam? Ele foi sempre o nosso chefe, desde que a nossa mãe lhe disse para o ser; e ele é o mais velho.
— Há chefes e chefes. Não subestimes nenhum dos teus irmãos, Sorcha — disse o padre Brien. — Agora comei, ambos, porque amanhã o trabalho continua.
Mas nós não tínhamos apetite e mal tocáramos no pão e no queijo quando Finbar disse adeus e, com alguma relutância, virou a cabeça do pónei na direcção de casa. A sua despedida não me foi feita em voz alta.
Continuo a não confiar no teu bretão. Transmite-lhe um aviso da minha parte. Diz-lhe que se te põe outra vez um dedo em cima não terá de se preocupar apenas comigo, mas com seis. Não te esqueças de lho dizer.
Recusei-me a levar aquilo a sério. Finbar a fazer ameaças violentas? Não me parecia.
Não lhe direi nada disso. Pareces os teus irmãos mais velhos. Agora vai e deixa-me com a minha tarefa. E não te preocupes comigo, Finbar. Eu fico bem.
— Hum! — disse ele em voz alta, de maneira fraterna. — Onde é que eu já ouvi isso? Talvez antes de tu teres trepado a sebe para fazeres festas ao touro premiado; ou talvez daquela vez em que tinhas a certeza de que eras capaz de saltar o ribeiro, como Padriac, apesar das tuas pernas curtas! Lembras-te do que aconteceu nessa altura?
— Desaparece! — repliquei, dando uma palmada na garupa do pónei. Na caverna, a cadela começou a ladrar. Eram horas de voltar ao trabalho.
CAPÍTULO TRÊS
Algumas coisas não têm conserto. Outras têm, mas o trabalho deve ser feito lentamente, peça a peça, um passo de cada vez, o que exige muita paciência.
Era assim com Simon. A visita de Finbar fora um passo à retaguarda e eu tinha que reparar os danos antes de continuar com o processo de cura. Simon fizera uma combinação comigo e parecia ser um homem de palavra. Assim, se bem que estivesse frequentemente num estado de espírito negativo, com pouca vontade de sobreviver no seu corpo mutilado, cerrava os dentes e seguia sempre as minhas ordens. Passaram seis ou sete dias e nós seguíamos em frente com uma lentidão dolorosa. O período nocturno era o pior. Como Simon não tolerava a ajuda do padre Brien, era eu que o atendia em todas as necessidades, se bem que o bom padre me ajudasse subtilmente, fazendo com que estivessem sempre à mão panos e pomadas, roupa branca lavada e providenciando comida e bebida, como por magia, sempre que eu tinha tempo para a partilhar. Porém, sentia-me cansada, com umas dores no corpo como nunca tinha sentido antes. Utilizava o musgo dourado tão frugalmente quanto podia. Com a sua ajuda, Simon dormia durante algum tempo antes de começarem os pesadelos e eu aprendi a adormecer no momento em que ele o fazia, porque era nessas ocasiões que eu tinha algum descanso.
Essas noites tinham um padrão. Simon gritava e eu acordava de repente para o encontrar sentado, as mãos no rosto, tremendo e arfando. Nunca me dizia o que via, mas eu imaginava. Eu acendia uma vela e passava-lhe um pano pelo corpo para lhe limpar o suor, enquanto a cadela se retirava para o pé da porta, ganindo de ansiedade. Percorria as minhas histórias e canções nessas ocasiões tenebrosas e a minha garganta ficava seca e dorida de tanto falar. Simon escutava algumas, enquanto outras passavam por ele como folhas levadas pelo vento. Quando o medo atingia o auge, deixava-me envolvê-lo com os braços e eu cantava-lhe cânticos de embalar, acariciando-lhe o cabelo como se fosse uma criança assustada. Eventualmente acabava por adormecer e a exaustão tomava conta de mim, sentada à beira da enxerga, acabando por adormecer ali, a minha mão na dele. Tais períodos eram breves. Ele era capaz de acordar quatro, cinco vezes numa noite; a tentação para lhe dar uma dose forte de qualquer coisa que nos permitisse a ambos ter uma noite descansada era forte, mas eu sabia que o trajecto para a sua recuperação se baseava na purificação do corpo e em conseguir viver com o medo. Porque as recordações estariam sempre com ele, de uma forma ou de outra.
Simon não deixava que o padre Brien se aproximasse. Tinha que ser eu a fazer tudo, acordar num instante, tratar e confortar, manter as feridas limpas e ligadas, estar ali para qualquer necessidade dele. O que era duro, mas fora o nosso acordo. Porém, à noite, o padre Brien nunca nos deixava sós. Sentava-se na parte exterior da caverna, uma vela ao lado, à espera que a bênção do sono aparecesse. A sua presença silenciosa era reconfortante, porque eu tinha nos demónios nocturnos um formidável desafio.
Havia ocasiões em que eu odiava Simon, apesar de não ser capaz de dizer porquê. Suponho que era porque, depois daquilo, a minha vida nunca mais seria a mesma. Além disso, eu tinha apenas 13 anos e pensava com frequência em como seria bom estar em casa, cavalgando um pónei com Padriac ou plantando bolbos de açafrão para florescerem na Primavera. Tinha saudades de trabalhar no meu pequeno jardim, tão calmo e ordenado, cheio de aromas frescos e saudáveis e ver as coisas a crescer.
Depois de oito ou nove noites daquelas, o padre Brien e eu parecíamos fantasmas, pálidos e esgotados. Então, houve um dia que amanheceu cheio de sol, o ar um pouco mais quente e eu fiz Simon levantar-se e ir lá para fora, para mais longe do que o habitual, de maneira que ficámos acima da linha das árvores, podendo ter um vislumbre das águas do lago aninhadas nas sombras verde-acinzentadas da floresta.
— A nossa casa é lá em baixo — disse-lhe eu perto da margem do lago —, mas está escondida pelas árvores. Deste lado, a floresta vai mesmo até à borda de água. No nosso lado há rochas dentro de água e podemos deitar-nos em cima delas e observar os peixes. E há carreiros por dentro da floresta, todos diferentes.
— Deve ser fácil perderem-se.
— Não — disse eu. — Mas acontece, quando as pessoas não sabem o caminho.
Pensei naquilo pela primeira vez. Como é que nós sabíamos sempre o caminho?
Simon encostou-se ao tronco de um freixo sem folhas, fechando os olhos.
— Tenho uma história para te contar — disse ele surpreendendo-me. — Não tenho a tua habilidade para a contar tão bem, mas é suficientemente simples.
— Está bem — disse eu cuidadosamente, sem saber o que esperar.
— Havia dois irmãos — disse Simon, e a sua voz era monótona e inexpressiva. — Eram muito parecidos fisicamente, na força e na inteligência; mas o primeiro era mais velho alguns anos. É engraçado como a diferença de alguns anos pode fazer diferença. O pai deles morreu; e por causa dessa diferença de anos o mais velho herdou tudo. E o outro? Ficou apenas com uma pequena parcela de terreno que ninguém queria. O mais velho era amado por todos; em poucos anos conseguiu insinuar-se nos corações de todos e ganhar a sua lealdade, mas tudo sem um único olhar na direcção do irmão. E este? Se bem que fosse tão bom, forte e talentoso como o irmão, ninguém parecia reparar nele.
“O mais velho era um líder e os seus homens olhavam para ele e respeitavam-no. Era um homem incapaz de errar e inspirava total lealdade onde quer que fosse, sem esforço. O mais novo? Fazia o que podia; mas nunca era suficientemente bom. — Simon calou-se, como se não quisesse continuar.
— E depois, o que aconteceu? — perguntei.
Simon distendeu a boca naquilo que poderia parecer um sorriso, não fora a frieza dos seus olhos azuis.
— O mais novo teve uma oportunidade para provar que também tinha valor. Fazer algo que todos, mesmo o seu irmão, não poderiam deixar de reconhecer. Depois, pensou ele, serei como ele, tão bom como ele, talvez, até, melhor. Aproveitou a oportunidade e falhou.
— E depois?
— Não sei, bruxinha. Esta história parece que não tem um fim. Como é que tu a acabarias?
Baixou-se lentamente até ao solo, com muito cuidado.
Afastei-me para lhe dar espaço sobre um ramo caído. Linn estava no seu elemento, farejando em volta as folhas outonais, andando de um lado para o outro, voltando para o pé de nós de vez em quando, para se certificar de que ainda ali estávamos e desaparecendo de novo atrás de um outro odor qualquer.
Escolhi as palavras com cuidado.
— Parece uma história de crianças, se bem que nessas os irmãos sejam, geralmente, três e não apenas dois. Creio que o irmão mais novo teria ido por esse mundo afora em busca de fortuna e teria deixado o irmão mais velho para trás. No caminho encontraria três pessoas, ou criaturas... são sempre três.
— Tens resposta para tudo — disse Simon friamente. — Conta-me o resto.
— Bem, podias acabar a história de várias maneiras diferentes — disse eu, animando a perspectiva. — Digamos que o irmão mais novo encontra uma velha. Ele tem fome e só tem um pão de aveia, mas dá-lho. Ela agradece-lhe e ele continua o seu caminho. Talvez a seguir ele encontre um coelho preso numa armadilha e o liberte.
— É mais provável que o esfole e o coma — disse Simon. — Especialmente depois do pão de aveia.
— Mas este coelho olha para ele com uns olhos verdes muito bonitos — disse eu. — Ele tem que o libertar. Por fim, encontra um gigante. Este desafia-o para uma luta de paus. O jovem concorda, sentindo que não tem nada a perder. Lutam durante algum tempo e ele dá alguns bons golpes antes de o gigante o derrubar. Quando vem a si, o gigante agradece-lhe polidamente por uma luta tão leal; de todos os viajantes que passaram por ali, ele foi o primeiro que se atreveu a parar e a fornecer ao gigante um pouco de diversão. Em seguida, o gigante parte com ele como guarda-costas.
— Conveniente — disse Simon. — E depois?
— Aparece um castelo e uma dama — disse eu, apanhando uma mão-cheia de folhas e bagas caídas e, de modo ausente, comecei a entrelaçá-las. — Ele tinha-a visto de longe, talvez cavalgando muito bem-vestida, quando ele e o seu amigo gigante passavam pela estrada e no instante em que a vê apaixona-se e quere-a para si. Mas há um problema. Para a conquistar tem que cumprir uma tarefa.
— Ou talvez três.
Eu acenei com a cabeça.
— É o mais comum. E é aqui que as suas boas acções praticadas antes o vão ajudar. Talvez tenha que limpar um grande estábulo antes do nascer do Sol e a velha apareça e faça tudo num instante com um golpe de magia. A seguir, talvez tenha que descobrir um determinado objecto, uma bola dourada, num certo lugar escuro, no fundo de um túnel subterrâneo. O coelho podia fazer isso. A última seria uma prova de força e é aí que entra o gigante. Assim, o nosso herói conquista a dama e vive feliz com ela para sempre.
— E o irmão dele?
— Esse? Bem, quando o irmão mais novo termina todas as suas aventuras e conquista o coração da dama já esqueceu o irmão mais velho e os ciúmes que tinha dele. Tem a sua própria vida.
— Não gosto desse fim — disse Simon. — Tenta outro.
Pensei durante um bocado.
— E que tal se ele fosse para a guerra e quando voltasse encontrasse o irmão morto e todas as terras passassem para ele?
Simon riu-se e eu não gostei da aspereza da risada.
— Como é que tu achas que ele se sentiria?
— Confuso, creio. Consegue o desejo do seu coração, que é tomar o lugar do irmão. Mas nunca mais se esquece dos anos que perdeu invejando o irmão, em vez de tentar conhecê-lo melhor.
— O irmão dele não estava interessado — disse Simon friamente e eu pensei que quase acertara no alvo. Concentrei-me na grinalda que estava a fazer. Folhas avermelhadas, castanho-escuras, amarelo-douradas. Algumas já estavam demasiado frágeis, os últimos traços do Verão já tinham desaparecido do esqueleto dos seus corpos. As bagas vermelhas, como sangue. Ele observava-me.
— Sorcha — disse ele após um certo tempo e era a primeira vez que dizia o meu nome, em vez de “bruxa”, ou “rapariga”, ou outra coisa pior. — Como é que tu acreditas nessas histórias? Gigantes, fadas, monstros. Isso são fantasias de criança.
— Algumas podem ser verdadeiras, outras não — disse eu, entrelaçando uma grande folha pontiaguda por baixo, através, e em volta dela própria. — É assim tão importante?
Ele levantou-se e eu ouvi a mudança na respiração, quando ele engoliu um gemido de dor; silêncio significava controlo.
— Nada na vida é como as tuas histórias — disse ele. — Aqui, vives no teu pequeno mundo; não fazes ideia do que existe fora daqui. Desejaria... — calou-se.
— Desejarias o quê? — perguntei quando ele não continuou.
— Quase desejaria que nunca o chegasses a descobrir — disse ele de costas voltadas para mim.
— Não achas que já comecei? — Levantei-me com a pequena grinalda na mão. — Vi o que te fizeram. Tenho ouvido os teus pedidos de socorro. E tu próprio já me contaste tantas histórias de crueldade que sou forçada a acreditar nelas. Nunca pensaste em me poupares a isso.
— Tu manténs esse mundo afastado com as tuas histórias.
— Não por completo — disse eu, enquanto começávamos lentamente o caminho de volta. — Nem para ti, nem para mim. As histórias apenas o tornam um pouco mais fácil, é tudo. Mas tu vais ter que falar nesse mundo eventualmente, se te queres curar e voltar para casa.
O padre Brien tinha-lhe dado um forte pau de freixo e ele usava-o para o ajudar a andar; ainda o fazia hesitantemente, dolorosamente, mas já se mexia sem a minha ajuda. Naquele local, o caminho estava coberto de folhas caídas e a rede provocada pelos ramos das árvores deixava passar uma luz fria que as tocava, dourando-as e prateando-as. Linn permanecia estática enquanto escavava e farejava aqui e ali. Um pássaro cantou; um outro respondeu-lhe.
— Conseguirei alguma vez dormir de novo? — perguntou ele de repente, apanhando-me de surpresa. Eu tinha a resposta guardada; eu tinha visto aqueles que haviam sido apanhados pelas Criaturas Encantadas, como a sua loucura nunca os deixara por completo, de noite ou de dia, como o turbilhão das recordações nunca os deixavam em paz.
— É capaz de demorar ainda bastante tempo — disse eu, gentilmente. — Fizeste alguns progressos; mas não te vou mentir. O que fizeram ao teu corpo não se cura com facilidade. Mas tu podes ajudar-te a ti próprio, se escolheres o caminho certo.
O corpo de Simon estava a sarar. Ele era jovem, forte, resistente e estava a ganhar a luta contra aquela noite terrível e os ferimentos que se seguiram. Após um certo tempo, começou a andar sem a ajuda do pau e trocou as primeiras palavras com o padre Brien quase sem dar por isso. Eu festejava cada pequena vitória com alegria. Uma palavra amável, uma tentativa para fazer algo novo, um sorriso espontâneo, tudo era um presente sem preço. O processo de cura tomou forma, tornou-se mais rápido e eu comecei a acreditar que talvez conseguíssemos enviá-lo de volta para o seu povo.
No entanto, era claro que ele ainda não podia passar sem os nossos cuidados. O Outono estava no fim e as noites eram cada vez mais longas e frias. E Simon ainda não podia sacudir os demónios que tinham tomado conta dele durante os tempos de escuridão. Os seus atormentadores visitavam-no vezes sem conta, atormentando-o, e ele lutava contra eles, ou fugia-lhes, ou entregava-se à sua mercê. Uma noite fiquei com um olho negro, quando ele se levantou, meio a dormir e tentou fugir. O padre Brien e eu conseguimos impedi-lo, mas eu apanhei com a força toda do braço dele no meu rosto. Na manhã seguinte, não queria acreditar que tinha feito aquilo. Uma outra vez apanhou-me desprevenida, acordando antes de mim, subitamente e aterrorizado, mas, pela primeira vez, silencioso; e tinha na mão a faca, com a qual se virou contra ele próprio, antes de eu me aperceber. Nunca saberei como me movi com tanta rapidez, mas segurei-lhe o pulso, mantive-me pendurada nele enquanto gritava pelo padre Brien e os dois juntos tentámos acalmá-lo, enquanto ele chorava, delirava e nos pedia que o matássemos. Devagarinho, devagarinho, falei-lhe e cantei-lhe até que se acalmou e quase dormiu, mas só quase. Parara de falar, mas os seus olhos eram bem explícitos e a sua mensagem era bem clara. Sabia muito bem o que o futuro lhe reservava e pedia-me que lhe acabasse com aquela dor. Que direito tinha eu de lho recusar?
Contara-lhe muitas histórias. Mas não lhe podia dizer porque acreditava que devia viver, sarar e continuar. Se ele se ria das lendas de Culhan e dos antigos heróis, das sagas do povo do ocidente, se achava as histórias dos duendes e do povo das árvores estranhas, se bem que eu própria os tivesse visto com os meus próprios olhos, como podia eu esperar que ele acreditasse que o destino de ambos estava ligado, de acordo com o que me dissera a Dama da Floresta? Ele nunca acreditaria que eu a tinha visto, na clareira, com a sua capa e as jóias brilhando-lhe no cabelo. Simon era de um povo completamente diferente, prático, terra-a-terra, que só acreditava naquilo que via com os próprios olhos. Porém, se alguma vez encontrei alguém que precisava que a magia e o mistério das velhas tradições lhe entrassem no espírito, esse alguém era ele. Usei essa magia para o curar, quer ele o soubesse, quer não, mas sem fé nele próprio não poderia ir mais longe. Só quando conseguíssemos convencê-lo de que havia uma razão para viver é que o poderíamos deixar ir, mesmo se o corpo estivesse curado, porque não passaria da primeira noite sem nós.
Tentei falar-lhe nisso, mas ele mandava-me calar quando eu me aproximava da casa dele, da família, ou do que quer que fosse que o fazia viver. Creio que ao princípio ele se sentia estreitamente ligado à sua condição de soldado, o que o manteve silencioso sob a tortura e que era devida à guerra entre os nossos dois povos. Eu era o inimigo; não devia saber nada dele que me pudesse dar qualquer vantagem, ou pôr os seus em risco. No entanto, aquelas noites de tormento, que nós percorremos juntos, quer o quiséssemos, quer não, mudaram-nos a ambos. Para o fim, ele reconhecia-me, de algum modo, como parte do seu mundo, sabendo, ao mesmo tempo, que eu não estava, nem num lado, nem no outro, da sua longa luta. Com as minhas ervas e histórias eu era, para Simon, um ser estrangeiro, mas lentamente ele começou a confiar um pouco em mim, a despeito dele próprio.
O padre Brien fazia planos o melhor que podia. O tempo passava e as noites de terror persistiam. O tempo húmido chegara e eu não podia manter os passeios de Simon; ele andava inquieto, confinado à caverna, mesmo durante o dia e descarregava as frustrações em mim, discutindo tudo. Porque é que havia de comer e beber quando eu dizia, de que é que servia? E, frequentemente, porque é que eu não ia para casa, brincar com as bonecas, em vez de fazer experiências com ele? Porque é que eu havia de lhe remendar as roupas se ele nunca haveria de fazer outra coisa senão estar deitado e atormentado por uma rapariga maluca e um velho louco religioso? Estava a pôr-nos, aos dois, loucos, mas, pelo menos, o padre Brien podia dar-se ao luxo de se retirar para a cabana, para escrever ou meditar. Eu tinha feito uma promessa a Simon e estava presa a ele.
Estava a tentar coser, com os olhos concentrados no meu trabalho, enquanto Simon andava à minha volta.
— Afinal, o que é que estás a fazer? — perguntou ele, olhando de perto para a túnica que eu tinha nas mãos. — O que é isso?
Mostrei-lha.
— Mal darás por ela — disse eu. — Mas ajudará a proteger-te. A sorveira-brava é das plantas mais sagradas que há; uma cruz, feita dos raminhos desta planta, é cosida em todas as roupas dos meus irmãos quando vão para a guerra. O fio vermelho, com o qual eu tinha cosido a minúscula cruz de sorveira-brava, sobressaía como uma gota de sangue contra a lã creme do debrum. Cortei o fio com os dentes, dobrei a túnica e era como outra peça de roupa qualquer.
— Eu não vou para a guerra — disse Simon. — Já não tenho capacidade. E se calhar nunca tive — acrescentou ele em voz baixa, virando-me as costas.
Voltei a colocar, cuidadosamente, as agulhas e o fio na caixa.
— O que é que queres dizer? — perguntei.
— Eu... nada — disse ele, sentando-se na beira da enxerga e olhando para o chão. Fiquei sentada, quieta. Após um momento, ele olhou para cima e o seu rosto estava branco.
— O problema — disse ele com dificuldade — o problema é não saber. Não saber se... fui suficientemente forte.
— Suficientemente forte para quê? — Mas eu adivinhava.
— O problema é que... não me consigo lembrar. Não me consigo lembrar de tudo. — Tremia à medida que recordava, não os terríveis pesadelos, durante o sono, mas em plena luz do dia. — Nem tudo. Tenho quase a certeza que aguentei. Durante muito tempo, sei-o, porque eles estavam furiosos, estavam tão furiosos...
— Está tudo bem, Simon — disse eu, chegando-me para o pé dele rapidamente, ajoelhando-me e segurando-lhe ambas as mãos. — Podes dizer-me.
Apertou-me as mãos dolorosamente, como se eu fosse um salva-vidas.
— Mas no fim, quando eles... quando eles... — fechou os olhos, o rosto contorcido devido à dor recordada. — Depois eu... eu não sei se... Devo ter... — parecia incapaz de completar o raciocínio, como se a procura das palavras certas estivesse para além da sua resistência.
— Achas que lhes podes ter dito algo que não devias, algo secreto?
Acenou com a cabeça miseravelmente.
— Eu disse-te que ele falhou. Traiu a confiança que puseram nele, entregou os seus homens ao inimigo. Como é que podia voltar, depois disso? — Retirou as mãos das minhas. — Quem é que lhe teria amizade após um tal acto? Mais valia ter morrido.
— Não tens a certeza — disse eu cuidadosamente. — Eu acredito em ti... ele...
— O irmão dele — disse Simon. — Lembras-te da história? O irmão dele espera que os seus homens regressem, mas eles não regressam. Ele espera um pouco mais e manda um batedor à procura deles. O caminho é longo, através da água. Ele encontra o local onde tinham acampado. Mas estão todos mortos; membros decepados, olhos sem vida abertos para os corvos se alimentarem deles. Traídos por um dos deles. Depois disso o irmão amaldiçoou-o, nunca mais devia voltar para aqueles por quem tinha falhado. Mas para o irmão mais novo aquilo não era novidade. Nunca fora amado; devia saber que a sua vida nunca mudaria. O seu irmão é o herói de todas as histórias; mas ele está destinado ao insucesso.
— Disparate! — repliquei, e estava tão zangada com ele que o agarrei pelos ombros e lhe dei um bom abanão. — O final da história é teu, de mais ninguém. Podes fazê-lo como quiseres. Há tantos caminhos para o teu herói como ramos numa grande árvore. São maravilhosos, terríveis, simples ou retorcidos. Tocam, quebram, confundem-se e tu podes segui-los da maneira que quiseres. Olha para mim, Simon.
Ele piscou os olhos uma, duas vezes; à luz da vela, os seus olhos eram do azul suave da madrugada. E frios de auto-repugnância.
— Eu acredito em ti — disse eu baixinho. — Tu és um verdadeiro e corajoso homem; e eu sei, cá dentro, que calaste os teus segredos naquela noite. Confio mais em ti do que tu próprio. Podias-me ter magoado várias vezes, assim como ao padre Brien, mas não o fizeste. Há um futuro para ti. Não me atires à cara o meu dom de curar, Simon. Conseguimos chegar aqui; vamos continuar.
Ficou ali sentado, em silêncio, durante muito tempo; tanto, que tive tempo para limpar o lugar, ir buscar água e tratar dos panos e unguentos para as suas feridas. Finalmente, falou.
— Tu fazes com que seja difícil dizer não.
— Tu fizeste uma promessa — disse eu. — Lembras-te? Não podes dizer que não.
— Quanto tempo ainda é que eu vou andar às tuas ordens? — perguntou ele meio a brincar. — Anos?
— Bem — disse eu — desde que sou pequenina que tenho mantido os meus irmãos mais velhos na linha. Vais ter que te habituar. Até que estejas bom, pelo menos.
E retomámos, de novo, a cruel tarefa de lavar, untar e ligar.
À medida que escurecia lá fora, contei-lhe a história de uma rainha guerreira que tinha sempre muitos homens à sua volta, como moscas, mas que ela não guardava durante muito tempo; e Simon, que a ouvira muitas vezes antes, comentou secamente as partes mais indecentes da acção. Por fim o trabalho ficou feito, os panos utilizados retirados e o padre Brien apareceu com sopa e vinho de sabugueiro. Estabeleceu-se uma espécie de paz entre os três, nessa noite, enquanto nos sentávamos à lareira com as nossas refeições frugais; e mais tarde Simon adormeceu como uma criança, o rosto apoiado numa mão.
— Vou ter que vos deixar amanhã, durante o dia — disse o padre Brien. — Preciso de ir à aldeia a oeste, porque vai lá estar um dos meus irmãos à espera de uns papéis meus; e precisamos de provisões. Não te vou perguntar se te desenvencilhas sem mim, porque é o que tens feito até agora. Mas vou fazer os possíveis por estar aqui ao anoitecer. Não te deixo aqui sozinha de noite.
— Ele está a ir bem — disse eu. — Mais uma lua, ou duas e ele é capaz de estar pronto para se ir embora... mas para onde?
— Também vou tratar disso, amanhã — disse o padre Brien. — Os irmãos do oeste ficarão com ele, acho eu. Pode ficar lá durante algum tempo e, quanto estiver bom, conduzi-lo-ão, em segurança, a casa dele, seja ela onde for.
— Como?
— Arranja-se maneira. Mas tu tens razão; ele não pode sair daqui enquanto for um risco para si próprio. Além disso, não pode montar; quando chegar a ocasião de que falaste, talvez possa ser transportado numa carroça. Amanhã à noite saberei mais qualquer coisa.
Fiel à sua palavra, às primeiras horas do dia seguinte já ele ia a caminho, aproveitando uma aberta na chuva persistente. Simon e eu tínhamos dormido melhor, já que ele acordara apenas duas vezes e havia um pouco mais de cor nas suas faces. Ficámos a ver a carroça a afastar-se aos solavancos, sob as árvores.
A manhã estava sossegada. Caía uma chuva fina, intermitente, alternando com a luz do Sol, fraca e baixa, como se o dia não se decidisse, se ser mau, ou bom. Apertei o cabelo na nuca e atirei-me ao trabalho, preparando unguentos de alfazema seca. Fiz medidas de óleo e cera de abelha; Simon observava-me. Mais tarde, partilhámos algumas maçãs verdes e uns pães de aveia bastante duros. As nossas provisões estavam mesmo a precisar de reabastecimento. Imaginei onde poderia encontrar farinha suficiente para poder fazer alguns pães.
Linn ouviu antes de nós. As orelhas espetaram-se-lhe e rosnou. Olhei para ela; não havia qualquer som vindo do exterior. Então, um instante depois, a mensagem silenciosa relampejou na minha mente com uma claridade urgente.
Esconde-o, Sorcha. Já, rapidamente.
Não havia tempo para perguntas. Agarrei em Simon por um braço.
— Vem aí alguém — disse eu. — Vai para a cabana, rápido. Entra e tranca a porta.
— Mas...
— Não discutas. Faz o que te digo. E mantém-te escondido! Vai, Simon!
Ele ficou a olhar para mim por um instante; o meu rosto devia estar branco, porque a mensagem de Finbar tinha o selo da extrema urgência. Linn ladrou uma, duas vezes e correu para o exterior e pelo caminho abaixo, a cauda ondulando como uma bandeira.
— Depressa!
Quase arrastei o relutante Simon através da clareira em direcção à cabana, para onde o empurrei. E agora já o conseguíamos ouvir os dois, o rufar dos cascos, mais do que um homem a aproximar-se pelo caminho acima.
— Mantém-te escondido. Aqui ficas seguro até eles se irem embora.
— Mas e...
— Fecha a porta Depressa!
Esperando que ele tivesse o bom senso de me obedecer, deixei-o e corri de volta para a caverna, os meus pés pisando as duas diferentes pegadas na lama.
Entrei de rompante, o coração aos pulos e mesmo a tempo, porque as vozes já estavam próximas, misturadas com o rufar dos cascos e os latidos e apareceram três homens na clareira: primeiro Finbar, o rosto tenso de ansiedade e dois soldados vestidos de armadura, com as espadas embainhadas o meu irmão Liam, alto e magro; e Cormack, parecendo ambos incrivelmente crescidos.
A cadela estava fora de si e quando Cormack desceu do cavalo os seus latidos atingiram o cúmulo do êxtase. Saltava, plantando-lhe as patas no peito e lambia-lhe o rosto com pequenos sons de alegria. Cormack sorria, coçando-a por trás das orelhas. Mas os rostos dos outros não traziam qualquer sinal de bom humor.
Os olhos de Finbar faziam perguntas à medida que se aproximava da entrada da caverna onde eu o esperava de pé. Onde está ele? Mas não havia tempo de responder.
— Entrem — disse eu hospitaleiramente. — O padre Brien foi à aldeia; a cabana está fechada. Estou surpreendida por vos ver. O pai já regressou?
Sentia-me satisfeita com o discurso, infelizmente as minhas mãos tremiam com os nervos e meti-as nas algibeiras do meu avental.
— Temos novidades, Sorcha — disse Liam, inclinando-se para entrar e tirando a capa molhada ao mesmo tempo. Sobre a armadura ainda trazia a sua túnica de batalha, com o símbolo de Sevenwaters no peito. Dois colares de metal torcido interligados; o mundo exterior e o interior. Este mundo e o Outro Mundo. Porque o lago e a floresta estavam inexplicavelmente entrelaçados. — Tens que voltar para casa connosco imediatamente — continuou ele. — Estão a acontecer mudanças e o pai requer a tua presença. Não ficou nada satisfeito ao saber que estavas aqui há tanto tempo, sejam quais forem as tuas qualidades herbáceas.
— O pai? — perguntei cepticamente. — Admira-me muito que ele mostre algum interesse pelo meu paradeiro. Não tem coisa melhor em que se ocupar?
Cormack estava a falar com a cadela, acalmando-a e levando-a para dentro. O corpo dela tremia e dava pequenos latidos de excitação, como se não se pudesse conter.
— Ele não põe objecções a que passes aqui um certo tempo a aprender com o padre Brien — disse Finbar mordazmente — ou a trocar conhecimentos com ele. Talvez ele esteja a pensar no teu casamento, é um ofício útil para uma mulher. Mas... calou-se e eu notei uma nota de profundo mal-estar na sua voz.
— Mas o quê? — Havia qualquer coisa que nenhum deles me queria dizer.
Liam pegou numa vela de cera de abelha de cima da mesa, rolando-a entre dois dedos. Cormack sentou-se na beira da enxerga e a cadela saltou para o pé dele, farejando a roupa. Observei-a, tinha os olhos na entrada, expectante. Haveria ali alguma coisa que nos pudesse denunciar, um par de botas, uma ligadura ensanguentada? Tinha havido tão-pouco tempo. Olhei para Finbar; algo mais o preocupava, para além do risco de que Simon pudesse ser encontrado.
— O pai regressou — disse Liam pesadamente — e com uma noiva. Vem do norte e ele quer casar-se dentro de dias. Foi uma coisa rápida e inesperada. Quer que todos os filhos estejam lá para a festa do casamento.
— Uma noiva? — Depois do que o padre Brien nos dissera, aquilo parecia-me absolutamente impossível.
— É verdade — disse Cormack. — Quem diria! Ainda por cima é nova, bela e encantadora. Recomeço de vida para o velhote. Devias ver o Diarmid. Segue-a durante todo o dia com olhares de cachorro.
Liam franziu as sobrancelhas.
— Não é assim tão simples — disse ele. — Não sabemos praticamente nada sobre esta mulher, Lady Oonagh é o nome dela, salvo que ele a conheceu quando estávamos aquartelados nas terras de Lorde Eamonn de Marshes e ela era hóspede da casa. Dos seus ele disse muito pouco, creio, ou ele preferiu não o partilhar connosco.
— Não acredito que ele se vai casar outra vez — disse eu, aliviada por eles não terem vindo por causa de Simon e chocada, incrédula. — Ele é tão... Tão...
— Inacessível? — perguntou Finbar. — Para ela, não. Ela é... Diferente; tão resplandecente e perigosa como algumas serpentes exóticas. Saberás, quando a vires, porque tomou ele esta decisão.
— Conor não gosta dela — disse Cormack. Liam levantou-se.
— Temos que regressar, Sorcha — disse ele. — Lamento que o padre Brien não esteja em casa, porque esperava falar com ele em privado sobre este assunto. Sem dúvida que o pai há-de mandar chamá-lo para oficiar a cerimónia. Entretanto, a nossa casa está um pandemónio e tu és precisa. Vai buscar as tuas coisas; podes ir montada comigo.
Ir embora naquele momento? Já? Deixar Simon sozinho, sem sequer lhe dizer adeus, sem lhe dizer o que estava a acontecer? Enviei uma mensagem desesperada a Finbar.
Não me posso ir embora agora, assim, ele ainda não está pronto, pelo menos deixa-me...
— Vai andando, Liam — disse Finbar. — Eu vou ajudar a Sorcha a empacotar as coisas dela e depois levo-a comigo.
— Tens a certeza? — Liam estava com pressa de partir e já vestia a capa. — Não te demores muito, então. Temos muito que fazer. Vamos, Cormack, essa tua cadela maluca também deve estar morta por ir para casa.
Mas não estava. Os dois subiram para as selas e, ao princípio, ela andou em volta do cavalo de Cormack, toda entusiasmada. Mas quando eles começaram a descer a ladeira ela parou, surpreendida, fez uma pausa e voltou para trás, na nossa direcção. Olhou em volta, farejando, hesitando. A chuva começou a cair com força.
— Linn Anda! — Cormack chamava-a, o cavalo parado mesmo à entrada da floresta. — Anda!
Ela virou-se e começou a andar timidamente na direcção dele; parou e olhou novamente para trás.
— Vai, Linn — disse eu, lutando contra as lágrimas por ela, por mim, por Simon. — Vai para casa!
Cormack assobiou e desta vez ela foi ter com ele, mas a ansiedade desaparecera das passadas dela. E desapareceram para lá das árvores.
— Despacha-te — disse Finbar. — Onde estão as tuas coisas? Enquanto eu as empacoto tu falas com ele e depois vamo-nos embora. Não lhe perguntei quando poderia voltar; havia um terrível carácter definitivo naquilo tudo. Silenciosamente, indiquei-lhe a minha trouxa, a capa e os meus potes e vasos; em seguida encaminhei-me, sob a chuva, para a porta da cabana; mas ela estava trancada de interior. Fiel à sua palavra, Simon tinha feito como eu lhe ordenara.
— Simon! — gritei sobre o rugido da chuva a cair. — Sou eu, deixa-me entrar.
Devia haver suficiente urgência na minha voz para lhe abalar a desconfiança, porque a tranca foi retirada e a porta abriu-se rapidamente. Tinha a faca na mão, mas não fez qualquer movimento para me tocar, recuando antes para o canto mais longínquo da cabana, enquanto eu entrava à pressa e fechava a porta com força atrás de mim.
Não havia maneira de dizer aquilo amavelmente.
— Tenho que ir agora, já. Desculpa, não queria que fosse assim. Mas os meus irmãos estão à espera.
Ele olhou para mim sem expressão.
— Eu sei que ainda é muito cedo, mas não tenho escolha. O padre Brien regressa esta noite e olhará por ti tão bem como eu — falava depressa demais, a minha aflição era óbvia. Simon pousou a faca em cima da mesa. A voz dele era a sombra de um som.
— Tu prometeste — disse ele. Não consegui olhar para ele.
— Não tenho escolha — disse eu de novo e desta vez as lágrimas começaram-me a correr pelas faces abaixo e eu limpei-as furiosamente. Aquilo não estava nada a ajudar-nos a ambos. Além disso, conseguia ver muito bem as longas noites futuras dele e não me atrevi a olhar para o vazio que regressava aos olhos dele.
Houve um silêncio, ele não se mexeu e um momento depois ouvi Finbar a chamar-me, lá fora.
— Sorcha! Estás pronta?
A mão de Simon pegou na faca de novo e, rápida como um raio, saltei e agarrei-lhe o pulso.
— Não posso manter a minha promessa — disse eu toda trémula — mas exijo que mantenhas a tua. Aguenta-te durante o dia de hoje; depois, deixa que o padre Brien te ajude. Acaba a história como eu te disse. Deves-me isso, se não mais. Confio em ti, Simon. Não me deixes ficar mal.
Larguei-lhe o pulso e ele levantou a faca, aproximando-a de tal modo do meu rosto que fui forçada a olhar para cima. Os olhos azuis dele fixaram os meus e havia um desvario neles que me disse que o pesadelo estava mesmo ali, à frente dele. O seu rosto estava branco como a cal.
— Não me deixes — sussurrou ele, como uma criança com medo do escuro.
— Não pode ser.
Foi a coisa que mais me custou dizer em toda a minha vida.
— Sorcha! — chamou de novo Finbar.
Houve um rápido movimento da lâmina e Simon segurou num longo caracol dos meus cabelos com os dedos. Com a outra mão entregou-me a faca com o cabo virado para mim.
— Toma — disse ele. E virou-me as costas, à espera. E eu abri a porta e saí para a chuva.
***
Lady Oonagh. Ainda não a tinha visto e já sentia a sua presença. Senti-a no silêncio de Finbar enquanto cavalgávamos para casa sob um céu trovejante. Soube-o por causa do vento frio que chicoteava os ramos das árvores, numa rendição humilhante à nossa passagem, pela turbulência agitada das águas do lago, pelo grito de uma gaivota, atormentada no seu voo pelas agulhas da chuva gelada. Senti-o na opressão do meu coração, a cada passo do cavalo. Ela estava ali e a sua mão sobre todos nós. Sabia que o perigo tinha chegado. Mas esse conhecimento não me preparou.
Finbar depositou-me no pátio e seguiu para os estábulos para tratar do cavalo, porque os rapazes tinham que fazer sempre essa tarefa. Era bom estar em casa, por fim. Desejei escapar-me de mansinho para os meus aposentos, ou para a cozinha um pouco de água quente, uma lareira e roupas secas era o que mais queria naquele momento, além de algum tempo para mim própria. Mas a porta abriu-se de rompante e lá estava eu no grande salão, a minha capa escorrendo água para o chão e as minhas botas deixando um rasto de lama e, se bem que o meu pai estivesse presente, apenas consegui vê-la, a noiva, Lady Oonagh.
Era esbelta. Cormack tinha razão. O seu cabelo era uma cortina de fogo escuro e a pele branca como o leite. Mas eram os olhos que faziam a diferença. Quando ela olhava para o meu pai, toda doçuras, eram inocentes e amorosos. Mas se se olhasse para as profundezas daquelas amoras, como eu fiz, vacilar-se-ia com o que se via nelas. A sua mensagem para mim era clara: Estou aqui, agora. Não há lugar para ti.
A sua voz tilintava como campainhas.
— É a tua filha, Colum? Oh, tão querida! E como é que te chamas, meu amor?
Olhei para ela, muda, enquanto o vapor começava a sair das minhas roupas.
— Sorcha, não estás em condições de aparecer aqui! — disse o pai concisamente e, de facto, tinha razão. — Envergonhas-me, aparecer diante da tua mãe nesse estado desalinhado. Sai, arranja-te e depois regressa. Deixas-me ficar mal.
Olhei para ele. Mãe?
Lady Oonagh quebrou o silêncio incómodo com uma estrondosa risada.
— Disparate, Colum, estás a ser muito severo com a criança. Estás a ver, embaraçaste-a! Vem cá, minha querida, vamos tirar-te essa capa toda molhada, precisas de te aquecer perto do fogo. Por onde andaste? Colum, não consigo acreditar que a deixes andar por aí sozinha desta maneira... podia apanhar uma constipação mortal. Assim está melhor, queridinha... mas, ai estás a tremer. Mais tarde falaremos, só tu e eu... Trouxe algumas coisas muito bonitas e vai ser uma delícia escolher uma coisa linda para tu usares na festa do casamento. Verde, creio. Temo que o teu guarda-roupa tenha sido tristemente negligenciado.
Percorreu, com um olhar calculista, o meu vestido tecido em casa, a túnica gasta, cheia de nódoas: tintura de bagas de sabugueiro, óleo de rosmaninho. E sangue.
Abri a boca para falar, mas as palavras recusaram-se a sair e em vez disso senti uma grande fadiga. A minha boca abriu-se num grande bocejo e as pernas transformaram-se em geleia.
— Sorcha! — repreendeu-me o pai. — Isto é demais! Não podes...
Mas ela adiantou-se-lhe de novo, toda solícita.
— Minha pobre menina, por onde é que andaste? — O braço dela em volta dos meus ombros parecia uma grilheta de gelo. — Vamos, precisas de repousar... Temos muito tempo para conversar. O teu irmão pode levar-te ao teu quarto, porque mal te tens em pé... Diarmid, querido?
E foi só então que me apercebi que o meu segundo irmão tinha estado ali o tempo todo, nas sombras, por trás da cadeira de lady Oonagh. Ele avançou, ansioso por ser prestável, mostrando as covinhas do rosto enquanto lhe lançava um olhar de esguelha e pegou-me pelo braço para me escoltar dali para fora. Ela olhou de lado para ele, por entre as pestanas.
Diarmid pairou o tempo todo a caminho do meu quarto. Como ela era maravilhosa, quão vibrante e jovem, quão fantástico era uma criatura tão bela ter acedido a casar com o pai que, afinal, estava a envelhecer e já não devia ser tão viril.
— Talvez a riqueza e o poder tenham alguma coisa a ver com isso. — Arrisquei para interromper o fluxo de palavras do meu irmão.
— Ora, ora, Sorcha — ralhou-me Diarmid enquanto subíamos os largos degraus de pedra. — Estarei eu a detectar um pouquinho de ciúmes aqui? Tu não ficaste muito feliz com os esponsais de Liam, lembro-me muito bem. Talvez prefiras ser a única dama da casa, é isso?
Virei-me para ele, zangada.
— Conheces-me assim tão mal? Pelo menos Eilis é... inofensiva. Esta mulher é perigosa; não sei porque está ela aqui, mas destruirá a nossa família, se a deixarmos. Tu foste seduzido por ela, tal como o pai. Não a estás a ver a ela... estás a ver uma espécie de... ideal, um fantasma.
Diarmid riu-se de mim.
— E o que é que tu sabes? És apenas uma criança, irmãzinha. E, além disso, mal a conheces. É uma mulher maravilhosa, irmãzinha. Talvez agora, que ela aqui está, possas aprender a crescer como uma dama.
Olhei para ele, profundamente ferida pelas suas palavras. O nosso padrão de vida já estava a começar a quebrar-se. Provocámo-nos um ao outro vezes sem fim, brincámos e discutimos como todos os irmãos e irmãs. Mas nunca fomos cruéis um para o outro. O facto de ele não perceber ainda era pior. E não podia falar com ele, pois já não me ouvia. Chegámos ao meu quarto e Diarmid foi-se logo embora, ansioso por estar ao pé da sua nova deusa.
Dispensei a serva que estava ali, hesitante e despi-me sozinha. A lareira tinha sido acesa e eu sentei-me, com um cobertor sobre os ombros, a olhar para as chamas. Apesar de exausta, o sono demorou a vir, porque a minha mente estava cheia de imagens e pensamentos. Talvez eu estivesse a ser tola, talvez ela fosse apenas uma mulher gentil bem intencionada, que se apaixonara pelos encantos do nosso pai. Mas havia algo de errado. Pensei no que Cormack dissera. Conor não gosta dela. Eu vira a mensagem nos olhos de Lady Oonagh, nas suas palavras meladas. Havia algo de inquietante na admiração aduladora de Diarmid e na prontidão do meu pai em se deixar dominar pela sua dama. E o modo como os servos andavam inquietos, nervosos, como se tivessem medo de dar um passo em falso.
E Simon? Ainda era dia; teria que esperar, sozinho, pelo regresso do padre Brien. Sem um contador de histórias que lhe preenchesse o dia silencioso, que lhe esborratasse as visões. Sem um amigo para brincar, nem sequer a cadela fiel, inquestionável companhia nos períodos mais negros. Imaginei-o a olhar, enquanto o Sol se movia por cima da sua cabeça e descia por trás das árvores, à espera do som das rodas da carroça. Pelo menos, não estaria só depois de a noite cair.
Finalmente, deitei-me e adormeci. O fogo ardeu até se transformar em cinzas, mas a vela continuou a tremeluzir e quando mais tarde acordei de repente, o quarto estava cheio de sombras. Por alguns momentos vi-me de novo na caverna e saltei, os olhos abertos, pronta para me confrontar com o pesadelo. Mas desta vez não houve gritos; as paredes de pedra estavam pesadamente silenciosas e o unicórnio e o mocho na minha tapeçaria moviam-se ligeiramente ao sabor da corrente de ar. Deitei-me de novo, mas Simon estava-me nos pensamentos, talvez lutando com os seus demónios e eu contei-lhe uma história, silenciosamente deitada na minha cama, até que adormeci de novo.
Só muitas noites depois quebraria este padrão: o acordar repentino, o coração aos pulos, a lenta consciencialização de onde me encontrava e o sentimento de culpa por o ter abandonado. Nunca dormia mais do que um breve período sem acordar e durante o dia o cansaço juntava-se à confusão e à angústia. Porque Liam tivera razão. As coisas estavam a mudar, quer quiséssemos, quer não.
O que eu menos gostava era da mudança em Diarmid, que caíra sob o feitiço de Lady Oonagh. Para ele, ela não tinha defeitos e mantinha-se na sua sombra o dia todo, ou, pelo menos, enquanto ela o deixava. Era impossível manter com ele uma conversa sensata.
— Era como se — disse eu a Finbar —, tivesse sido apanhado pelos duendes.
— Não — disse Finbar — não é isso; mas é quase. Isto é mais como o encantamento que se apodera de um homem quando vê uma bela mulher, a deseja, mas que nunca pode ter sem que ela o queira. Esta mulher é capaz de manter assim um homem durante muito tempo, até que o rosto dele perca a juventude e os passos a elasticidade.
— Já ouvi histórias assim — disse eu. — Elas cospem-nos como um bocado de casca de maçã, assim que eles perdem o sabor.
Cormack e Padriac evitavam problemas, mantendo-se longe dela. Quando eram chamados, um tinha ido montar, ou praticar tiro ao arco, o outro tinha ido para o celeiro, ou algures para os campos. Finbar não se desculpava com as suas ausências. Simplesmente, não estava ali. Lady Oonagh tinha tendência para nos chamar quando muito bem lhe apetecia e, se bem que as suas maneiras fossem sempre infalivelmente cordiais e doces, as desobediências eram sublinhadas com sobrancelhas carregadas. O pai impusera esta regra, como aliás parecia acatar todas as suas ordens. No entanto, com ele, ela comportava-se com mais cuidado do que com o desafortunado e sorridente Diarmid. Fosse o que fosse, Lorde Colum não era um homem fraco e, afinal, ainda não estavam casados.
Faltavam poucos dias para o casamento. Seamus Redbeard e a sua filha também vinham; reparei, por acaso, nas mudanças que Liam fez para colocar Eilis e a sua dama-de-companhia o mais longe possível dos aposentos de Lady Oonagh. Em vez de parecer feliz por ir ver de novo, dentro de pouco tempo, a sua prometida, o meu irmão mais velho andava carrancudo e silencioso. Fez várias tentativas para falar em particular com o pai, mas Oonagh, com o seu riso tilintante, separava-os e o pai declarou, rudemente, que qualquer coisa que ele lhe quisesse dizer, que o fizesse diante da sua dama, porque não havia segredos entre eles.
Eu queria falar com Conor, mas ele andava ocupado. Muitos dos preparativos do casamento passavam por ele e não tinha tempo, ocupado como andava com a supervisão da cozinha, o arejamento das toalhas, os arranjos de última hora dos estábulos e do pátio. Apanhei-o por momentos, na segunda noite, entre o jantar e o deitar, num canto escuro da grande escadaria. Era um local bom, sem muito eco e, contra o costume, não havia ninguém em volta. Olhei para o meu irmão de novo, imaginando-o vestido de druida, todo de branco, o cabelo castanho brilhante entrançado e atado com uma fita colorida, à moda dos sábios. Tinha um olhar sereno, distante, completamente diferente do do seu irmão gémeo, Cormack, que era um homem de acção e que vivia para o presente.
— Vou mandar chamar o padre Brien, Sorcha — disse ele gravemente. — Achas que ele virá?
Acenei com a cabeça que sim.
— Se for só por um dia, para a cerimónia do casamento, ele vem. Quem é que vais mandar?
Ele olhou para mim, lendo a pergunta muda nos meus olhos.
— Suponho que terei que mandar Finbar, se o conseguir encontrar. Tu não podes ir, Sorcha. Ela vigia-te de perto. Tens de ter muito cuidado.
— Então, também o sentes?
Senti-me gelada ao olhar para o rosto pálido do meu irmão.
Ele estava calmo como sempre, mas o seu mal-estar era palpável. Disse que sim com a cabeça.
— Ela vigia cuidadosamente aqueles de nós que são uma ameaça maior. Diarmid e Cormack não contam para ela, pobres inocentes e não vê qualquer ameaça em Padriac, novo como é. Mas tu, Finbar e eu... Temos força suficiente, talvez, para lhe resistir, se permanecermos juntos. Isso deixa-a desconfortável.
— E Liam?
Conor suspirou.
— Ela tentou seduzi-lo também, não tenhas dúvidas. Ela descobriu logo que ele era de outra cepa. Liam combate-a à sua própria maneira. Se ele conseguisse falar com o pai, talvez conseguisse avisá-lo para que se acautelasse. Mas também tem o seu ponto fraco. Não gosto do rumo que as coisas estão a tomar, Sorcha. Gostaria que tivesses tido oportunidade para te manteres afastada disto tudo.
— Também eu — disse eu, pensando no trabalho que tinha abandonado. — Pelo menos, o padre Brien estava a chegar e dar-me-ia notícias.
— Sorcha.
Olhei de novo para Conor. Ele devia estar em luta consigo próprio não muito certo do que me devia dizer, para não me assustar.
— O que é?
— Deves ter muito cuidado — disse ele lentamente. — Eles vão-se casar, não tenho qualquer dúvida. Quer consigamos falar com o pai antes do dia da cerimónia, quer não, o resultado não será diferente. Que poderíamos dizer? Lady Oonagh não dá um passo em falso; os nossos medos baseiam-se em fantasias, dir-nos-ia ele, receosos da mudança, ou por ignorância. Assim que ela se insinua, deixamos de a poder ver como é na realidade. Ela reveste-se de uma aura de fascínio; os fracos e vulneráveis não têm qualquer hipótese de lhe resistir.
— E depois de se casarem?
Os lábios de Conor transformaram-se numa linha.
— Talvez, nessa altura, consigamos ver alguma da verdade. Acredita-me, se te pudesse tirar daqui para fora antes do casamento, fá-lo-ia. Mas o pai ainda é o senhor da casa e tal pedido, antes do dia da cerimónia, pareceria estranho. Tanto eu, como Liam, tomaremos conta de ti o melhor que pudermos; mas tem cuidado. Quanto a Finbar...
— Quem é ela, Conor? Que mulher é ela?
Devido aos novos conhecimentos que tinha sobre o meu irmão, achava que ele era a única pessoa que me podia responder àquela pergunta.
— Não sei. Nem sequer tenho a certeza das razões porque faz isto. Não tens outra hipótese senão esperar, por mais que te custe. Deve haver um padrão nisto tudo, tão vasto, tão complexo, que só o tempo esclarecerá. Mas é demasiado tarde para evitar o casamento. Agora, toca a andar, pequena coruja... estás a precisar de um bom sono. Como é que ele estava?
Eu sabia de quem ele estava a falar, apesar da súbita mudança de conversa.
— Estava a ir bem, até que fui forçada a vir-me embora. Achas que até isso faz parte do plano dela?
— Ela não podia ter conhecimento do caso. É melhor não acrescentares isso às tuas preocupações. Dá-me ideia de que lhe foste bastante útil; talvez agora ele se possa curar a si próprio, com a ajuda do padre Brien. E há outros que o podem ajudar, guiando-o até à sua salvação. Talvez seja altura de o deixar e te dedicares a ti mesma. Vai, vai-te deitar.
No dia seguinte houve um pouco de sol, filtrando-se ligeiramente entre as sempre presentes nuvens e eu recomecei o meu trabalho no meu jardim, determinada a recuperar o tempo perdido. Atei o cabelo com uma fita, vesti um velho avental de serapilheira e armei-me com uma faca e uma foice. A alfazema demasiado crescida e o absinto espalhado levaram um bom corte; as ervas daninhas foram arrancadas e os carreiros limpos. A medida que ia trabalhando, a minha mente começou, lentamente, a sair da confusão de medos e preocupações que a atormentavam e a tarefa que tinha em mãos tornou-se a única coisa importante.
Por fim, o jardim ficou mais ou menos limpo e eu fui buscar os bolbos que pusera a secar na última estação, para repintar. Narcisos amarelos do cesto maior; açafrão, íris e lírios de cinco espécies diferentes. E outros que cresceriam tão bem nos sítios mais recônditos da floresta como nos meus vasos abrigados: orelha-de-porco, campainhas e delgados e pálidos bolbos de balsamina. Se atirarmos uma mão-cheia das suas folhas para uma fogueira à noite, dormiremos de um sono só.
Padriac tinha-me feito um pequeno utensílio de vidoeiro para fazer os buracos. Enquanto me movia pelo jardim, cavando, plantando cada bolbo no seu lugar com cuidado, alisando o rico solo, aconchegando-os para o Inverno, recordei as palavras que Conor dissera no dia em que Padriac se oferecera para me fazer aquele pau. “Não cortes a madeira viva”, dissera ele. “Procura um ramo que o vento, ou um raio, possam ter arrancado da árvore, ou um vidoeiro que tenha caído durante uma grande tempestade. Corta a madeira que precisares desse modo. Se precisares de cortar madeira nova, assegura-te de que pedes autorização. As dádivas da floresta não devem ser tomadas sem a devida licença”. Todos nós conhecíamos aquela lição. Umas palavras rápidas e se eram dirigidas à própria árvore, ou a algum espírito que nela habitava, não tinha muita importância. E, por vezes, deixávamos um pequeno presente, nada de muito valor, mas sempre de algum significado para quem dava; uma pedra favorita, uma pena especial, uma conta de vidro brilhante. A floresta era sempre generosa nos seus favores para com nós os sete e nunca o esquecíamos.
Agora já fazia sentido ser o Conor a dar-nos aquelas lições.
Já tinha quase terminado; ajoelhei-me para plantar o último açafrão entre as pedras cheias de musgo, o que o protegeria, mais tarde, das brisas geladas da Primavera. O açafrão cresce rapidamente. A porta da ervanária abriu-se com um gemido.
— Minha senhora? — Era uma criada muito jovem, nervosa e pouco à vontade. — Por favor, Lady Oanagh chama-a. Imediatamente, disse ela. — Balbuciou uma desculpa e desapareceu.
Até ali fora quase feliz. Agora, enquanto permanecia ali de joelhos, as mãos cobertas de terra e o cabelo caindo-me pelo rosto, o coração gelou-se-me de novo, mesmo ali, no centro do meu pacífico mundo. Não podia ignorá-la, nem sequer ali.
Voltei para trás, pelo meio dos alfobres de alfazema. Tinham florido bem, naquele ano e as espigas remanescentes ainda respiravam memórias do Verão enquanto eu as afagava com a mão. Lá dentro lavei as mãos, mas as unhas continuaram negras. Voltei a atar o cabelo o melhor que pude e pendurei o avental num prego. Bem, teria que servir. Não me ia dar ao trabalho de me arranjar para agradar a Lady Oonagh.
Tinham-lhe sido cedidos os melhores aposentos, cujas estreitas janelas davam para o lago e recebiam o sol da tarde. Ela estava à minha espera, em pé, com ar inocente, ao lado da cama, coberta de rolos de tecido, rendas e fitas. O cabelo ruivo brilhava, atenuando a beleza daqueles ornamentos, retendo a luz nos anéis escuros. Estava só.
— Sorcha, minha querida! Porque demoraste tanto?
Era uma reprimenda, se bem que gentil. Avancei cautelosamente pelo chão empedrado.
— Estava a trabalhar no meu jardim, minha senhora — disse eu. — Não estava à espera de ser chamada.
— Hum — disse ela e o seu olhar viajou pela minha pessoa, da cabeça desgrenhada aos pés cheios de lama. — E já tens quase 13 anos. É o que acontece quando se cresce numa casa cheia de rapazes, suponho. Mas vamos mudar tudo isso, minha querida. Quão desapontada ficaria a tua mãe ao ver-te assim tão selvagem, no começo da tua condição de mulher. Ainda bem que ela não está aqui para ver como a tua educação foi negligenciada.
Senti-me profundamente ofendida.
— Ela não ficaria desapontada! — disse eu, zangada. — A nossa mãe amava-nos, confiava em nós. Disse aos meus irmãos para tomarem conta de mim e eles assim fizeram. Talvez eu não seja para si uma senhora, mas...
Ela interrompeu-me com uma cascata de riso e com um braço em volta dos meus ombros. Fiquei tensa ante aquele toque.
— Oh, minha querida — ronronou ela — és tão nova. Claro, defendes os teus irmãos; e eu creio que eles fizeram o melhor que puderam Mas são apenas rapazes, no fim de contas, e não há nada como o toque de uma mulher, não concordas? E nunca é demasiado tarde para começar. Temos à nossa frente um ano ou dois, antes de pensarmos em esponsais para ti; é tempo suficiente. O teu pai quer um bom casamento para ti, Sorcha. Precisamos de polir as tuas maneiras e aparência, antes disso.
Afastei-me dela.
— Por que haveria eu de ser polida e melhorada como um objecto para venda? Talvez nem me queira casar! Além disso, tenho muitas qualidades, sei ler e escrever, tocar flauta e harpa. Por que haveria eu de mudar para agradar a um homem qualquer? Se ele não gosta de mim como sou, então que arranje outra rapariga para esposa.
Ela riu-se de novo, mas já não de maneira tão agradável e o seu olhar era mais penetrante.
— Não tens medo de dizer o que pensas, não é verdade? Uma característica que partilhas com alguns dos teus irmãos, segundo me parece. Bem, falaremos disto mais tarde. Espero que aprendas a confiar em mim, Sorcha.
Fiquei silenciosa.
Oonagh dirigiu-se para a cama, onde uma profusão de tecidos estava espalhada. Levantou o canto de um pano verde transparente.
— Pensei neste para o casamento. Há uma excelente costureira na aldeia, segundo me disseram, que to fará num dia. Chega aqui, minha querida.
Senti-me impotente para recusar. Colocou-me em frente de um espelho que eu nunca tinha visto antes. A sua superfície plana estava rodeada por criaturas entrelaçadas. Os seus olhos, jóias vermelhas, fixavam-me enquanto eu olhava para o meu reflexo. Pequena, magricela, pálida. Um conjunto desleixado de caracóis negros, atados atrás de qualquer maneira. Nariz perfeito, boca larga, olhos verdes desafiadores. A minha versão do rosto familiar não tinha a serenidade de Conor ou a intensidade pálida de Finbar. Era mais suave do que o de Liam e mais delicado de ossos do que o de Padriac. As covinhas que davam tanto encanto aos sorrisos de Cormack e Diarmid estavam ausentes das minhas delicadas faces. No entanto, via os rostos dos meus irmãos quando olhava para o meu.
Lady Oonagh pegou numa escova de osso e enquanto eu permanecia ali de pé desfez o rude nó que me afastava os cabelos do rosto e começou a pentear-me aquela confusão. Fechei os punhos e permaneci quieta. Houve algo no movimento continuado da escova e no modo como os olhos dela me olhavam através do bronze polido do espelho que me provocou um arrepio. Uma voz minúscula, quente, falava-me, de dentro de mim; concentrei-me nas palavras. Encontrarás o teu caminho, filha da floresta. Os teus pés encontrarão o caminho certo.
— Tens um cabelo bonito — disse ela. A escova movia-se ritmicamente. —, descuidado, mas bonito. Devias deixar-me cortar-to. Um pouquinho mais curto... ficaria melhor sob um véu. Oh! O que aconteceu aqui?
Os dedos predadores dela afloraram a minha sobrancelha, onde a faca de Simon provocara uma pequena ferida.
— Eu... — Procurava uma desculpa quando os meus olhos encontraram os dela no espelho. O rosto dela era frio, tão frio, que não pareciam humanos. A escova caiu no chão; os seus dedos continuaram a mexer-me no cabelo e era como se ela conseguisse ver dentro de mim, pudesse ler-me os pensamentos, soubesse exactamente o que eu tinha andado a fazer. Afastei-me dela.
Aquilo durou apenas um momento. Ela sorriu e os olhos mudaram de novo. Mas eu tinha visto e ela também. Reconhecemos que éramos inimigas. Não sabia quem ela era, ou o que queria, mas o meu coração vacilou. No entanto, tive a impressão de que ficou de pé atrás com a força que viu em mim.
— Eu mostro-te como é que te vamos pentear para o casamento — disse ela como se nada se tivesse passado. — Entrançado dos lados e puxado para cima, atrás...
— Não — disse eu, afastando-me e puxando-lhe os cabelos das mãos. — Isto é, não obrigado. Eu penteio-o, ou a Eilis. E hei de encontrar algo para vestir.
Olhei de relance para a porta.
— Eu agora sou a tua mãe, Sorcha — disse Oonagh, friamente. — O teu pai espera que me obedeças. A tua educação, a partir de agora, está a meu cargo e tu vais aprender a fazer as coisas como eu digo. Portanto, vais usar o vestido verde. A mulher vem cá amanhã para te tirar as medidas. Entretanto, tenta manter-te limpa. Há aqui servos suficientes para arrancar cenouras e mexer no estrume... De futuro, o teu tempo será melhor aproveitado.
Fugi. Mas sabia que não podia escapar à vontade dela. Usaria o vestido verde no casamento, quer quisesse, quer não e estaria ao lado dos meus irmãos a assistir ao casamento de Lorde Colum com uma... o que era ela? Uma bruxa? Uma feiticeira como aquelas das velhas lendas, bonita mas malvada? Ela tinha um certo poder, isso era certo, mas não era um Deles. A Dama da Floresta, que eu acreditava ter visto com uma capa azul, inspirava mais temor... mas era benigna, se bem que terrível. Achava que Oonagh era de outra espécie, menos poderosa, mas mais perigosa.
***
Fiquei em frente do espelho no meu vestido verde enquanto ela me entrançava fitas no cabelo e me atormentava acerca dos meus irmãos. De novo as estranhas criaturas fixaram em mim aqueles olhos cor de rubi e respondi contra a minha vontade.
— Seis irmãos — murmurou ela. — Que sorte que tu tens, crescer numa casa cheia de homens maravilhosos! Não admira que sejas diferente de outras raparigas da tua idade. Da pequena Eilis, por exemplo. Uma rapariga encantadora. Bela cabeleira. Vai ter muitos filhos e em breve perderá toda a frescura. — Afastou a pobre Eilis com um estalido dos dedos enquanto dava um nó na fita verde e apertava com força. — O teu irmão podia ter arranjado melhor. Muito melhor. É um rapaz muito sério, não é? Tão intenso.
— Ele gosta dela! — proferi precipitadamente em defesa de Liam, sem pensar. Talvez me tenha ressentido do amor dele para com Eilis, mas não ia ficar ali, sem fazer nada, ouvindo aquela mulher criticar a escolha do meu irmão. — Há alguma coisa melhor do que casar por amor?
Esta saída foi saudada com cascatas de riso; até a severa criada sorriu ante a minha ingenuidade.
— Claro que não! — disse Oonagh docemente, colocando-me sobre o cabelo encaracolado e entrançado um pequeno véu. A imagem no espelho estava irreconhecível, uma rapariga distante, pálida, de olhos sombrios, o elegante vestido contrastando com a expressão assombrada. — Assim parece muito melhor, Sorcha. Vês como te suaviza a linha do queixo? Ainda hei de ter orgulho em ti, minha querida. Diz-me, parece que os gémeos são habituais na família, apesar de nunca ter visto uns de carácter tão diferente como os jovens Cormack e Conor. Como duas ervilhas, fisicamente, claro. Vocês são todos parecidos, com esses rostos longos e olhos grandes. Cormack é um rapaz encantador e o teu pai disse-me que ele se está a fazer um guerreiro prometedor. O gémeo dele é muito... reservado. Quase como um velho, em muitas coisas.
Não fiz qualquer comentário. A criada, de lábios finos, enrolava fitas. Por trás de mim, a costureira da aldeia continuava a trabalhar na bainha da saia. Era um vestido bonito; outra rapariga qualquer usá-lo-ia com orgulho.
— Creio que Conor não gosta de mim — disse Oonagh. — Parece mergulhar nas tarefas de administração da casa com uma determinação pouco usual num jovem da idade dele. Achas que tem ciúmes por o gémeo dele ser tão brilhante? Este quer mesmo ser guerreiro e brilhar aos olhos do pai?
Olhei para ela. Viu muito e, no entanto, tão pouco.
— Conor? Dificilmente. Ele segue um caminho escolhido por ele.
— E que caminho é esse, Sorcha? Um jovem viril deseja mesmo ser um escriba, um administrador da casa do pai? Um intendente glorioso? Que rapaz não preferiria antes montar e lutar, viver a vida plenamente?
Os olhos dela encontraram os meus no espelho; e as criaturas de bronze ganharam força através daquele olhar, fixando o sinistro e intenso brilho em mim. Fui incapaz de ficar em silêncio.
— Existe uma vida interior — sussurrei. — O que ves é apenas a parte superficial de Conor, uma parte ínfima. Nunca conhecereis Conor se olhardes apenas para o que ele faz. Tendes de descobrir o que ele é.
Houve um pequeno silêncio, apenas quebrado pelo roçagar do vestido de Oonagh enquanto ela se aproximava de mim.
— Interessante. Tu és uma rapariga estranha, Sorcha. Por vezes pareces uma criança, para logo a seguir te saíres com algo que faz lembrar uma velha.
— Posso... posso ir-me embora, agora? Isto já está? — Subitamente, senti-me infeliz. Que mais me faria ela dizer? Por que não conseguia eu controlar a minha língua na presença dela? As suas últimas palavras tinham-me lembrado Simon e eu não podia permitir-lhe que entrasse nos meus pensamentos acerca dele, porque, se descobrisse a verdade, não hesitaria em dizer ao pai e então não seria apenas Simon, mas também Finbar, eu e Conor, que ficaríamos em perigo.
Parecia que a prova tinha acabado. A costureira começou a tirar os alfinetes, um a um. Eram muitos.
— Tenho visto muito pouco o teu irmão mais novo — disse Oonagh, sorrindo. Tinha-se sentado na beira da cama, balançando um pé suavemente. parecia ter 16 anos naquele vestido branco, com o cabelo a cair-lhe pelos ombros. Até que se olhava para os olhos dela. — Sempre longe, a fazer qualquer coisa, o Padriac. Quase se poderia pensar que me anda a evitar. O que é que o mantêm tão ocupado desde manhã até à hora do jantar?
Aquilo parecia seguro.
— Ele gosta de animais e de consertar coisas — disse eu. A costureira despiu-me o corpete. Estava frio naquele quarto, apesar do fogo. — Guarda-os no velho celeiro. Se há um pássaro qualquer com uma asa quebrada, ou um cão ferido, Padriac cura-os. E sabe fazer quase tudo.
— Hum! — disse ela. Portanto, mais um que não será guerreiro. O tom dela era frio.
— Os meus irmãos são todos adeptos da espada e do arco — disse eu à defesa. — Talvez não escolham todos o caminho do pai, mas não lhes faltam as habilidades da guerra.
— Mesmo Finbar?
Os olhos das criaturas brilharam. Olhei para elas e, reunindo toda a minha vontade, mantive a boca firmemente fechada. Ela voltou a colocar-se atrás de mim, subitamente, com a escova de cabelo na mão. Esperou enquanto a criada, severamente, desfazia a rede de fitas verdes que me subjugava o cabelo.
— Tu tens relutância em falar. Como é que eu posso ser uma boa mãe para aqueles rapazes se não os conheço? — Suspirou expressivamente, com o rosto triste. — Receio que Colum tenha favorecido alguns dos seus filhos em detrimento de outros. Detecto uma atmosfera gelada no que diz respeito ao jovem Finbar. O que é que ele fez para merecer tal censura? Será apenas relutância em participar nas perseguições da guerra? Ou nunca perdoou à mãe por ter morrido, deixando-o sozinho?
— Isso não é justo! — Levantei-me e girei para a fixar, arrancando o meu cabelo às mãos da criada. Esqueci a dor. — A mãe não quis morrer! É claro que ele tem saudades dela, todos nós temos, ninguém pode preencher o vazio que ela deixou. Mas não estamos sós, nunca estivemos, temo-nos uns aos outros. Não conseguis perceber isso? Somos amigos, família, parte uns dos outros, como folhas do mesmo ramo, gotas de água da mesma corrente. Corre entre nós um único fluxo de vida. Falar de ciúmes é estupidez.
— Senta-te, querida. — A voz de Oonagh era calma; não reagiu à minha explosão. — Defendes os teus irmãos, é natural, já que não tiveste outra companhia durante estes anos todos. Que termos de comparação tens tu neste teu mundo tão pequeno? Não é surpreendente, portanto, que não vejas as suas limitações.
Finalmente, consegui escapar, mas não havia maneira de esquecer as palavras dela e perguntei a mim mesma de novo que queria ela de mim, de nós. Senti um forte desejo de ter todos os meus irmãos ao pé de mim, para os tocar e falar com eles, para lhes sentir a força e identidade reconfortante. Assim, procurei-os; mas Cormack estava ocupado num treino de luta com paus, mostrando os dentes, ferozmente, desafiando Donal a descobrir uma maneira de o atacar, girando a arma e jogando com os pés. E Padriac estava ocupado com uma maquineta qualquer que estava a construir. Um corvo mantinha-se empoleirado perto dela, virando a cabeça para um lado, ou para o outro, à medida que os dedos dele cumpriam a delicada tarefa.
— O que é isso? — perguntei ao meu irmão mais novo, olhando para o intrincado esqueleto de ripas de madeira e linho esticado.
— Não é uma asa nem uma vela — resmungou Padriac, à medida que os seus dedos ágeis apertavam mais uma união. — Com isto, um pequeno barco pode viajar mais depressa sobre a água; mesmo com o menor dos ventos. Vês como os painéis viram quando eu puxo este fio?
Na verdade, era engenhoso; e disse-lho. Dei uma palmada no velho burro e espreitei para os estábulos, onde uma ninhada de gatos malhados estava aninhada num canto quente, cheio de palha.
O corvo seguiu-me, coxeando ainda um pouco da ferida (atacado por outros pássaros, pensou Padriac, mas estava a curar depressa). Evitou os gatos.
Havia uma longa alameda, entre salgueiros e rodeada por plantas de floração tardia, cujo nome de infância era olhos de anjo, devido às suas flores azuis redondas, que pareciam reproduzir as cores do céu na Primavera. Estavam vivas, com tantas flores, mas o céu, hoje, estava cor de chumbo; não haveria anjos a sorrir naquele casamento. Lá em baixo, no lago, Liam passeava com Eilis. Mantinha a sua capa sobre os ombros dela com a ajuda do braço, com cuidado, porque podia alguém estar a ver e a sua cabeça inclinava-se enquanto lhe falava solenemente. Eilis tinha o rosto virado para cima, para ele e olhava-o como se pretendesse fechar-se ao resto do mundo. Por um momento senti um mau presságio, uma sombra sobre ambos, que trouxe até mim um frio de morte. Depois, eles desapareceram para lá das árvores e eu continuei na direcção da casa.
Havia muita actividade na cozinha, com carroças a irem e virem, barris de cerveja e bocados de carne a serem carregados aos ombros e armazenados. Aromas de cozinha e de assados espalhavam-se pelo ar frio e os cavalos escarvavam e resfolgavam. Linn recebeu-me à porta, metendo o focinho molhado dentro da minha mão, mas não entrou. Só então reparei, entre as carroças paradas na calçada, num veículo familiar, manifestamente de trabalho, em cujos varais um velho cavalo esperava pacientemente a sua vez de ser desatrelado e levado para um estábulo quente, para descansar. E aquilo era estranho. Por que estaria ali, agora, o padre Brien, uma noite antes do casamento? Tinha a certeza de que ele viria de manhã e regressaria antes do anoitecer, porque, como poderia ele deixar Simon sozinho depois de escurecer?
Entrei, mas nenhum dos meus irmãos estava ali e Fat Janis correu comigo de novo, dizendo que já lhe bastavam os cozinhados esquisitos e os homens sempre a entrarem e a servirem-se, para ainda por cima lhe andar uma fedelha debaixo dos pés. Ao mesmo tempo que me empurrava pela porta fora, meteu-me um bolo de mel quente na mão, com uma piscadela de olhos.
Encontrei-os onde tinha começado, no meu jardim de ervas. Provavelmente, era o local mais privado que havia, com os muros altos de pedra e a única porta que dava para a ervanária; menos o telhado, claro, mas só Finbar e eu é que íamos até lá. O padre Brien estava sentado no banco de pedra cheio de musgo e Conor estava estendido ao lado dele, falando seriamente, enquanto Finbar se sentava na relva, de pernas cruzadas.
Quando fiz ranger a porta da ervanária, ao abri-la, calaram-se e os três viraram as cabeças em uníssono, para olharem para mim. Foi como se tivessem estado à minha espera e havia, nitidamente, algo errado.
— O que é? perguntei o que é que se passa?
Os meus dois irmãos olharam para o padre Brien, este suspirou e levantou-se, segurando-me nas mãos quando eu corri para ele.
— Não vais ficar satisfeita com as notícias, Sorcha — disse ele gravemente. — Gostaria que fossem melhores.
— O que é? — perguntei, evitando pensar.
— O teu paciente foi-se embora — disse o padre Brien, sem cerimónia. — No dia em que saí, fiz de maneira a regressar com o pôr do Sol, como tínhamos planeado. Quando cheguei, o local estava às escuras. A princípio receei o pior; mas pude ver que as vossas coisas já não estavam lá e não havia, pelo menos aparentemente, danos. Além disso, parecia que o cão também já lá não estava, nem havia sinais de que tivesse sido ferido. Sabia que Linn não deixaria que tu fosses levada sem que fosse derramado sangue. Era claro que as marcas deixadas pelos cavalos no solo pertenciam aos teus irmãos.
— Mas Simon... eu deixei-o em segurança... Disse que esperaria por si...
— Não havia sinal dele, filha — disse o padre Brien gentilmente. — As roupas dele tinha desaparecido, assim como a muleta; no entanto, parece que não levou comida nem água, nem uma capa para agasalho e deixou ficar as botas. Não faço a mínima ideia de quais são as intenções dele.
— Ele não se importava se vivia ou morria. Mas ele tinha-me prometido.
— Nem sequer o procurou? Por que não nos mandou buscar? Eu tenho tido visões de Simon sozinho na floresta, de noite, rodeado pelos seus demónios pessoais, enfraquecendo lentamente de frio e de dores. Talvez ele já esteja deitado e silencioso debaixo dos grandes carvalhos, com o musgo a cair-lhe sobre o corpo sem vida.
— Calma, filha. É claro que procurei; mas ele é um guerreiro e, se bem que ferido, sabe como desaparecer quando quer. E como é que eu havia de te mandar buscar, ou aos teus irmãos? Pensei que, provavelmente, tinha sido feito prisioneiro de novo e trazido para aqui por quem te tinha ido buscar. Soube por Finbar que isso quase aconteceu.
— De facto — disse Finbar. — Talvez ele, quando viu com que facilidade podia ser apanhado de novo, tenha escolhido ir-se embora, Sorcha. Há uma raça de homens que prefere morrer a viver cativa. E ele era teimoso que se farta.
— Mas ele prometeu — disse eu infantilmente, tentando reter as lágrimas. — Como é que ele, depois de chegar tão longe, deita tudo fora?
Não conseguia esquecer que também eu tinha quebrado a minha promessa. Agora, já sabia o que isso significava.
Conor pôs-me uma mão reconfortante em volta dos ombros.
— O que é que ele te prometeu exactamente, minha corujinha?
Tive um soluço.
— Que viveria, se pudesse.
— Não sabes se ele quebrou ou não essa promessa — disse Conor. — Provavelmente, nunca saberás. Por mais que te custe, tens de atirar isso para trás das costas, porque não há maneira nenhuma de poderes, agora, ajudar o bretão. Consola-te, sabendo que fizeste tudo o que podias por ele e pensa no dia de amanhã, porque todos nós temos outros testes e provações à nossa frente.
— O teu irmão diz a verdade — disse o padre Brien. — Não temos escolha, senão ir em frente. Há um casamento para celebrar; não me dá grande prazer fazê-lo, mas o teu pai convidou-me e eu não pude recusar. Achais que ele consente em falar a sós comigo?
— Pode tentar — disse Conor. — A última coisa que ele quer, neste momento, é um bom conselho, mas, vindo da sua parte, pode ser que seja menos desagradável. Tanto eu, como Liam, tentámos falar com ele à parte, mas não conseguimos.
— De que vale? — perguntou Finbar. — Ele está enfeitiçado. Até pode tentar alterar as marés de oeste, ou parar as estrelas no firmamento, porque com ele não consegue nada. Lady Oonagh tem-no dominado, de corpo e alma. Nunca pensei vê-lo tão fraco; e no entanto, estranhamente, não estou surpreendido. Durante perto de 13 anos purgou-se de qualquer sentimento humano, fechou-se a qualquer calor espiritual. Não admira, portanto, que tenha sido uma presa tão fácil para ela.
O tom dele era amargo.
— Estás a julgá-lo com demasiada rudeza — disse o padre Brien, perscrutando o rosto do meu irmão. — A decisão dele não é sensata, certamente, mas fê-la com boas intenções. Porque vê, com certeza, na sua nova noiva, um guia e um mentor para os seus filhos mais novos, alguém que os mantenha com as rédeas curtas e que lhes traga à vida um pouco de calor. Ele está diante das suas limitações como pai. Se não consegue chegar até vós, talvez pense que ela consegue.
Finbar riu-se.
— Está-se mesmo a ver que ainda não conhece Lady Oonagh, padre.
— Ouvi falar dela pelo Conor e pelo teu irmão mais velho, que me recebeu quando cheguei. Sei muito bem o que enfrentais, acredita-me, e rezo por todos vós. É uma tragédia, na verdade, que o vosso pai esteja cego face ao carácter dela. Procuro apenas evitar que a julgueis precipitadamente. De novo.
— Vai falar, então, com ele, pelo menos?
— Vou tentar. — O padre Brien levantou-se lentamente. — Talvez o encontremos sozinho. Conor, acompanhas-me? Oh, a propósito — enfiou a mão numa grande algibeira da batina, tirando algo de lá. — O teu amigo não desapareceu por completo sem deixar uma lembrança, Sorcha. Deixou isto onde eu pudesse encontrá-lo. Deduzi que era para ti. O seu significado não me parece muito claro.
Colocou o pequeno objecto na minha mão e os dois foram-se embora calmamente. Finbar ficou a olhar em silêncio para mim enquanto eu o virava e revirava, tentando ler a mensagem. O pequeno pedaço de vidoeiro pertencia, pensei, à reserva especial do padre Brien, mantida seca para o fabrico do pão sagrado e outras coisas de natureza mais secreta. Tinha sido polido e moldado até caber, confortavelmente, numa mão pequena como a minha. Não tinha sido, de certeza, trabalho de uma tarde; era preciso e intrincado, mostrando um grau de perícia que me surpreendeu. Não conseguia perceber o seu significado. Havia um círculo e, no centro, uma pequena árvore. Pelo formato, pensei que era um carvalho. Na base do tronco tinha duas linhas onduladas, um rio, talvez? Sem palavras, passei-o a Finbar, que o estudou em silêncio.
— Por que é que um bretão deixa uma mensagem destas? — perguntou ele, finalmente. — Procura pôr-te em perigo, no caso de ser encontrado? Qual terá sido o propósito dele? Não tenho dúvidas de que aqui está revelada a sua identidade, de uma maneira qualquer desconhecida para nós. Devias destruí-lo.
Arranquei-lhe a pequena lembrança das mãos.
— Isso é que eu não faço.
Finbar olhou para mim suavemente.
— Não sejas sentimental, Sorcha. Estamos em guerra, lembra-te. E tu e eu quebrámos as regras, muito simplesmente. Talvez tenhamos salvo a vida deste rapaz e talvez não. Mas não esperes que ele to agradeça. Os soldados não deixam pistas atrás de si, a não ser que queiram ser encontrados. A não ser que se trate de uma emboscada.
— Eu guardo-o — disse eu. — Escondo-o. E sei muito bem o perigo que corro.
— Não estou muito certo disso, Sorcha — disse o meu irmão. — Lady Oonagh está só à espera de encontrar um ponto fraco. Depois, como um lobo na noite, atacará para matar. Não és muito boa no que toca a esconder os teus sentimentos, ou a esconder a verdade. Ela não terá piedade de ti; e o pai, assim que ela lhe disser, cai em cima de nós os dois. E pensa no que acontecerá a Conor, se o papel dele nesta história for conhecido. Já estou arrependido por te ter falado nisto tudo. Teria sido melhor se só me tivesses ajudado naquela noite, mais nada.
Esta reprimenda fraternal nem merecia qualquer comentário. Além disso, os meus pensamentos estavam virados para outras coisas.
— Ele não consegue sobreviver, pois não? — perguntei eu bruscamente.
— Sabes quais são as hipóteses dele, melhor de que eu — disse Finbar, franzindo as sobrancelhas. — Um homem em forma, nestas condições, com recursos para poder fazer uma fogueira e caçar, pode conseguir atravessar o país, mantendo-se escondido. Basta saber para onde vai.
— Que desperdício! — Não conseguia expressar o que sentia, mas Finbar leu os meus pensamentos claramente. Ele conseguia sempre passar para além de qualquer escudo que eu tentasse levantar.
— Esquece, Sorcha — disse ele. — O padre Brien tem razão, nenhum de nós pode fazer nada. Ele foi-se embora, é tudo. De qualquer maneira, as hipóteses de ele se salvar nunca foram grandes.
— Então, por quê fazê-lo? Por quê correr tantos riscos?
— Não preferias morrer livre? — perguntou ele.
Passei algum tempo sozinha na ervanária, quase só a pensar, o leve trabalho de Simon recordando-me, permanentemente, as más-notícias; estava bem escondido num pequeno saco que eu usava à cintura, se bem que necessitasse de um lugar mais seguro, brevemente. Fiz uma pomada de sabugueiro e varri o chão. Mais tarde saí, decidindo que, no final de contas, tinha fome. O bolo de mel de Fat Janis não tinha durado muito. O jantar não me atraía muito, porque neste dia importante era suposto aparecer a família toda. Talvez acontecesse um milagre e o padre Brien conseguisse convencer o meu pai a anular o casamento. Talvez.
No lado de fora da porta estava Linn, enroscada num canto da passagem ventosa. Quase não a vi por estar na sombra, mas os meus ouvidos captaram o fraco latido dela.
— O que é, Linn! O que é que se passa? — Olhei mais de perto e reparei, espantada, no grande corte gotejante que lhe atravessava o focinho, desde um dos olhos até ao canto da boca. Os dentes viam-se através do sangrento golpe no lábio.
Chamei-a; a cadela tremia e hesitou ante o meu toque amigável, mas continuei a falar calmamente, fazendo-lhe festas e conseguindo levá-la até aos velhos estábulos, onde Padriac me recebeu com os protestos de indignação que eu esperava. Resmungando contra certas pessoas e porque eram admitidas junto dos animais e do que lhes faríamos quando descobríssemos quem eram, o meu irmão mais novo limpou e suturou a ferida, enquanto eu segurava a pobre Linn e lhe falava de prados verdes e ossos. Padriac era muito eficiente, mas, mesmo assim, demorou muito tempo. Depois de acabar, a cadela deu um grande suspiro, bebeu meia tigela de água e deitou-se na palha, ao lado do burro.
Já estava escuro e eu lembrei a Padriac que era melhor lavarmo-nos para o jantar; Lady Oonagh não gostava nada de esperar. Quando nos virámos para nos irmos embora, vimos Cormack, na sombra, o rosto branco como a cal.
— Há quanto tempo estás aí? — perguntei, surpreendida.
— Ela já está boa — disse Padriac e havia um estranho tom na voz dele. — Por que é que não fazes uma festa à tua cadela, para que ela veja que estás aqui para a ver? Por que é que não fazes isso, irmão?
Houve um silêncio estranho e depois:
— Não posso — disse Cormack com voz tensa. Olhei de um para o outro.
— O que é que se passa? — perguntei, confusa.
— Pergunta-lhe — disse Padriac, furioso. — Pergunta-lhe por que não entra e faz uma festa à cadela dele. A culpa está-lhe escrita na cara, vê-se. Desculpem-me se não fico para conversar.
E foi-se embora, roçando pelo irmão mais velho como se ele não estivesse ali.
— É verdade? — perguntei, horrorizada e incrédula. — Foste tu que fizeste isto?
Padriac estava enganado, de certeza. Fora Cormack que salvara aquela cadela de se afogar, fora Cormack que a criara desde cachorrinha, Cormack, cujos passos ela seguia com devoção de escrava. Os meus irmãos podiam mostrar pouca misericórdia para com os inimigos deles no campo de batalha, mas nunca magoariam, de propósito, uma criatura a seu cargo.
Fiquei a olhar em silêncio para Cormack enquanto ele se dirigia para a Stalls e ficava a olhar para a cadela ferida. Pôs os braços em volta de si mesmo, como se tivesse frio e quando me aproximei pude ver que as faces dele estavam molhadas.
— É verdade, foste tu — murmurei. — Cormack, como foste capaz? Ela é uma boa cadela, fiel e tem bom feitio. Que te deu para a ferires assim?
Ele não olhou para mim.
— Não sei — disse ele finalmente, a voz fraca devido às lágrimas. — Estava no pátio, a praticar, ela aproximou-se por trás e eu... não sei o que me deu, deixei ir o pau. Foi como se tivesse sido outro qualquer a fazê-lo.
Abri a boca para falar, mas depois achei melhor não o fazer.
— Foi como se ela nem estivesse ali, Sorcha. Foi... foi de repente, eu estava furioso e acertei-lhe.
— Fala com ela — disse eu. — Ela perdoa-te, vê.
Ao ouvir a voz dele, Linn tinha levantado a cabeça ferida da palha e a longa cauda abanava levemente. O burro resmungou no sono.
— Não posso — disse Cormack tristemente. — Como é que eu sei que não lhe volto a fazer o mesmo? Não fui feito para ter companhia, animal ou humana.
— Fizeste uma coisa cruel — disse eu lentamente. — Mas não a podes desfazer. Tens sorte em ter um irmão capaz de remediar o mal. Mas ela precisa do teu amor, também, para melhorar. Um cão não é capaz de te julgar. Ela gosta de ti, por mais que faças.
Linn gemeu.
— Vai lá — disse eu. — Faz-lhe uma festa, fala com ela. Ela, depois, adormece facilmente.
— Mas e se...
— Não o voltas a fazer — disse eu de modo severo. — Confia em ti, Cormack.
Ele ajoelhou, finalmente e deslocou a mão, hesitantemente, sobre o pescoço da cadela, nunca deixando de olhar para aquela ferida pavorosa, desfiguradora. Linn virou a cabeça com alguma dificuldade e lambeu-lhe a mão. Foi assim que os deixei.
***
Desloco-me, com relutância, para uma parte da nossa história que é difícil de contar; se bem que não a mais difícil. Jantámos e Cormack não estava presente, nem Finbar. O pai fez um comentário sobre isso e foi recompensado com um muro de silêncio por parte dos restantes filhos. O padre Brien estava tranquilamente sentado perto da cabeceira. Comeu frugalmente e despediu-se cedo. Eilis deitava olhares nervosos na direcção de Lady Oonagh, como um animal assustado. Liam segurava-lhe na mão sob a mesa, mas o seu rosto parecia de pedra. Ninguém precisava de me dizer que a conversa do padre Brien com o pai não mudara nada.
Depois, mais tarde, a maioria das pessoas dormia. Como única rapariga, tinha o luxo único de um quarto só para mim e era ali que todos os meus irmãos se reuniam. Estávamos todos presentes salvo Diarmid. Os olhos de Cormack estavam vermelhos e não se sentou ao lado do irmão mais novo. Finbar apareceu do nada, como uma sombra. Acendemos sete velas brancas, queimámos bagas de zimbro e sentámo-nos em silêncio durante algum tempo, pensando na nossa mãe e tentando partilhar a força que tínhamos. Não tivéramos hipótese de visitar o vidoeiro juntos e, assim, comungámos com ela o melhor que pudemos. O fogo estava em brasas e as velas espalhavam uma luz regular sobre rostos solenes e mãos unidas.
Em tais ocasiões, falávamos se nos vinham as palavras, mas contentávamo-nos em passar a força de uns para os outros através do toque e dos nossos pensamentos partilhados. Nem todos éramos capazes de comunicar através da mente, como eu e Finbar. Era uma capacidade reservada a poucos e como a conseguimos é um mistério. No entanto, conseguíamos sintonizar-nos uns com os outros e podíamos sentir, sem palavras, a dor, a alegria e o medo, como irmãos. Naquela noite sentimos a ausência de Diarmid como a perda de um ramo, porque estávamos unidos na compreensão de um destino que pendia sobre nós e o nosso trabalho conjunto de protecção era incompleto sem ele. Ninguém duvidava do paradeiro dele.
Liam mexeu-se ligeiramente e a chama de uma vela agitou-se, fazendo dançar sombras nas paredes altas.
— Obtemos a nossa força dos grandes carvalhos da floresta — disse ele calmamente. — Assim como eles tiram o alimento do solo e das chuvas que o alimentam, assim nós encontramos a coragem no exemplo das coisas vivas que nos rodeiam. Elas resistem às tempestades, crescem e renovam-se. Tal como um bosque de jovens carvalhos, somos fortes.
Conor, que estava sentado à sua esquerda, continuou.
— A luz destas velas não passa do reflexo de uma luz maior. Esta brilha desde as ilhas para lá do mar ocidental. Cintila no orvalho e no lago, nas estrelas do céu nocturno e em todos os reflexos do mundo espiritual. Esta luz está sempre nos nossos corações, guiando o nosso caminho. E se algum de nós perder essa luz, logo outro irmão, ou irmã, o guiará, porque nós os sete somos um.
A seguir era a vez de Cormack, mas ele ficou em silêncio tanto tempo que eu pensei que ele decidira não falar. Por fim, proferiu abruptamente:
— Hoje fiz uma coisa má. Tão má, que eu não deveria estar aqui, agora. Diz-lhes, Sorcha. Diz-lhes, Padriac. Já começou a vergonha, o assalto. Creio que não poderei fazer isto de novo; não o mereço.
Liam, Conor e Finbar olharam para ele. Padriac abriu a boca, mas eu falei primeiro.
— Ele feriu a cadela — disse. — Feriu-a muito e sem razão. Ela há de recuperar graças à competência de Padriac. Mas ele culpa-se a si próprio; erradamente, creio.
— Erradamente, como? — irrompeu Padriac. — Foi ele que o fez, disse-o ele.
— O que ele disse foi que aconteceu como se mais alguém estivesse ali a fazê-lo — disse eu. — E se estava lá realmente alguém a fazê-lo...
— Queres dizer...
— Eu já o senti — continuei miseravelmente. — Ao olhar para o espelho. Não sei como, mas ela fê-lo, enquanto me escovava o cabelo, com a mente, com a voz. Tentou arrancar-me a vontade, fazer-me dizer e fazer coisas que eu não queria. E foi muito forte. Não a consegui manter fora da minha mente.
— Ela estava lá — disse Cormack lentamente, incrédulo. — Nas escadas, no pátio onde treinamos. Estava com o pai, a olhar para mim. Ela estava lá. Terá ela... não, de certeza que não.
— Mas por quê? — perguntou Padriac, zangado. — Por que quereria ela fazer tal coisa? Não há razão para tal, não passa de uma brincadeira insignificante. Ela vai casar com ele, não tem já o que queria? E Linn é um animal inocente. Ela é capaz de lhe provocar sofrimento sem razão?
A mente de Conor seguia outra pista.
— Que tentou ela arrancar-te, Sorcha? Que queria ela saber?
— Apenas... coisas. Acerca de mim, de todos... fez perguntas acerca de todos. Pequenas coisas. Mas eu senti-me mal, não como se ela nos quisesse conhecer, mas... Senti um arrepio. Não sei. Como se fosse capaz de guardar a informação para a usar mais tarde. Contra nós.
Conor virou-se para o irmão gémeo.
— Tu adoras aquela cadela — disse ele, fixando o olhar em Cormack. — Ela faz parte de ti. Ela deve-te a vida. Não a feririas de propósito.
— Mas feri. Não interessa se houve algo que me levou a fazê-lo, se me colocou o pensamento na cabeça, foi a minha mão que desferiu o golpe.
— O que está feito está feito — disse Conor. — Não o podes mudar. Mas podes melhorá-lo e tu sabes como. Sê a cadela, sente-lhe a dor, sente-lhe o sentimento de traição. Sente-lhe também a simplicidade, o perdão, o amor e a confiança em ti. Ambos podem curar-se mutuamente.
Deixou cair a minha mão e segurou na de Cormack, levando-o para o círculo. Após um momento Padriac moveu-se também, segurou na outra mão do irmão e ficámos de novo sentados, tranquilamente.
— Pedimos orientação — disse Finbar. — Levamos as nossas luzes e, por vezes, o caminho fica iluminado. Mas muitas vezes elas estão indistintas e não podemos confiar nelas. Espíritos da floresta, espíritos da água, fantasmas do ar, seres das profundezas e lugares secretos, ajudai-nos neste nosso tempo de necessidade. Porque à nossa frente estão as trevas e a confusão.
As palavras dele provocaram-me um arrepio. Teria visto algo no nosso futuro?
— Ouvi, uma vez, uma história — disse eu — acerca de um herói que teve um desastre após longas jornadas e proezas formidáveis, quando encontrou uma criatura monstruosa com mandíbulas de ferro e a força de três gigantes. Ao herói foi-lhe arrancado membro após membro; e quando o monstro acabou com ele, as partes que restavam foram espalhadas por todos os lados. Assim, uma tíbia caiu numa caverna profunda onde a água pingava constantemente pelas paredes; o cabelo foi levado pelo vento de leste até que ficou emaranhado numa aveleira num canto longínquo da terra. O crânio foi usado como tigela durante algum tempo, depois abandonado num rio, que o levou a todas as costas do mar ocidental. Um cão selvagem levou-lhe os pequenos ossos dos dedos para alimentar as crias. E após um certo tempo parecia que nada restara dele. Os anos passaram e uns pequenos cogumelos cresceram no sítio em que estava o osso da perna e as folhas da aveleira cresceram em volta do cabelo brilhante dele. Na orla do mar, o crânio, cheio de terra, viu nascer e florescer sementes de feto-real; e entre os ossos dos dedos, que as crias tinham deixado brancos e limpos, cresceram espigas de açafrão. E dizem que, se um viajante alguma vez colher um feto-real, arrancar a casca da aveleira e os cogumelos secretos e os misturar com o açafrão da floresta onde os últimos ossos do herói ficaram, surgirá um feitiço poderoso. O herói renascerá, não como era antes da sua destruição, mas muito mais poderoso, física e espiritualmente; porque estará cheio com a força da terra, do mar e do ar. Penso em nós os sete como parte de um só corpo. Poderemos ser separados e poderá parecer que não há amanhã para nós. Poderemos seguir caminhos diferentes, poderemos cair, partirmos um braço e curarmo-nos. Mas no fim, tão certo como o Sol e a Lua fazerem as suas viagens em arco pelos céus, a força de um será a força de sete. Não vos esqueçais do que a nossa mãe nos disse no leito de morte. Devemos tocar a terra, devemos olhar para o céu e sentir o vento. Tal como gotas de água da mesma corrente, devemos encontrar-nos, partir e encontrar-nos de novo. Pertencemos à água do lago e ao coração vivo da floresta.
A chama das velas estava, agora, mais baixa e nós caímos no silêncio. Era uma época do ano em que os espíritos estavam muito próximos, porque faltavam apenas duas luas para o solstício do Inverno e eu quase conseguia ouvir pequenas vozes nas sombras, à nossa volta. Padriac não voltara a falar, mas pousou a mão, por momentos, no ombro de Cormack e este acenou com a cabeça. E Conor disse ao seu irmão gémeo, muito calmamente:
— Eu volto contigo para o celeiro, por um bocado.
— Obrigado — disse Cormack.
Finbar ficou para trás quando todos os outros saíram. Ficou sentado a olhar para o fogo. A disposição geral era sombria. Apesar das nossas grandes palavras, estávamos a olhar para um abismo.
— Em que é que estás a pensar, Finbar?
— Numa coisa que não posso partilhar.
Aproximei-me do fogo, metendo as mãos nas algibeiras, em busca de calor. A superfície suave do objecto de Simon encaixava-se perfeitamente na palma da minha mão.
— Diz-me Diz-me o que vês.
Tentei olhar-lhe para a mente, mas havia uma barreira, um muro escuro, em volta dos pensamentos dele.
— Não posso partilhar isto. Não te quero assustar.
Apanhei uma imagem de mim própria, quando pequenina, correndo descalça através da floresta sob a luz do Sol pintalgada.
— Tens medo?
Um sentimento de frio intenso. Água. O sussurro do ar a passar pelo corpo, a sensação estranha de cair, voar, cair. Isso, ele revelou-me. Depois, fechou-se abruptamente.
Não posso partilhar isto contigo.
— Não te podes fechar ao mundo — disse eu em voz alta, já exausta devido à tentativa para lhe entrar na mente. — Como é que nos podemos ajudar se temos segredos?
— Partilhar o meu último segredo não te ajudou muito — disse ele, sem graça. — Ou o bretão. Pergunto-me agora se os meus esforços para desfazer o que o meu pai fez valeram a pena. Tu ficaste ferida e o rapaz... o destino dele ficou um pouco melhor devido à minha interferência. Talvez eu devesse deixar de me intrometer. Talvez devesse aceitar que na nossa espécie somos todos assassinos, no fundo. Se Lady Oonagh nos quer como joguetes, qual é a diferença?
Deu uma risada torcida.
— Tu não acreditas nisso, Finbar! — Sentia-me chocada; poderia ele ter mudado tão rapidamente? — Olha-me nos olhos e diz isso de novo.
Segurei-lhe firmemente o rosto com as duas mãos. E quando lhe vi a expressão, os olhos estavam mais límpidos e viam mais longe do que nunca.
— Está tudo bem, Sorcha — disse ele gentilmente. — Tenho pensado muito, só isso. Não mudei assim tanto. Mas a minha mente diz-me que um grande mal vai cair sobre nós; e penso se a nossa força será suficiente para o aguentar. Gostaria que estivesses a salvo num outro lugar qualquer, não aqui, no meio de tudo. E preciso de ter confiança nos meus irmãos; tenho que ser capaz de confiar neles, em todos eles.
— Podes confiar neles — disse eu. — Ouviste o que eles disseram. Temos todos o mesmo espírito e sempre teremos. Sempre que um estiver em dificuldades, haverá seis para o ajudar.
— O forte deles é a tortura e a morte. Como podem eles ter o mesmo espírito que tu, ou Conor, ou eu próprio?
— Não posso responder a isso. Simplesmente... simplesmente, se acreditas nas histórias, está na natureza do nosso povo ir para a guerra e matar, assim como cantar, brincar e contar histórias. Talvez sejam duas metades do mesmo todo. Eu sei que nós, os sete, somos uma família e que só nos temos a nós próprios. Tem que ser suficiente.
Mas tinha faltado um irmão; e quando abri a porta para Finbar sair, vimo-lo em baixo, no vasto vestíbulo, escapando-se sorrateiramente de um quarto que não era o dele. Ela mantinha-se do lado de dentro da porta para lhe dizer adeus, vimos-lhe o braço branco esticar-se e os dedos moverem-se suavemente pela face dele e Diarmid afastou-se, descalço, o rosto confuso e cego, como qualquer rapaz enfeitiçado por uma fada. Finbar olhou para mim e eu olhei para ele; mas não pronunciámos qualquer palavra.
***
E eles casaram, ela no seu longo vestido de um profundo castanho- avermelhado e o meu pai olhando para ela como se não houvesse outra alma no mundo senão eles os dois, enquanto em volta a família, os convidados, os homens da guarnição, os criados e os camponeses murmuravam e trocavam olhares. Eu estava para ali no meu vestido verde, com o cabelo entrançado com fitas e ao meu lado estavam os meus seis irmãos, em linha. Não me pareceu, de todo, uma cerimónia como devia ser. Nas histórias, tais coisas aconteciam ao ar livre, sob um carvalho maciço e havia peças de teatro, lutas a fingir e adivinhas e os druidas saíam da floresta para celebrar o ritual dos pulsos ligados. Não havia anciãos no casamento do meu pai, nem qualquer concessão aos velhos costumes. Talvez Lady Oonagh viesse de uma família cristã, mas não havia maneira de o saber, porque ninguém do clã dela estava presente. O Padre Brien disse as palavras tranquilamente, como era seu costume, mas pareceu-me que o rosto dele estava fechado e o tom de voz remoto. Assim que as formalidades terminaram, carregou a sua carroça e partiu. Seguiu-se um banquete de mesa cheia com a respectiva cerveja. E no dia seguinte, as coisas começaram a acontecer.
Eilis adoeceu por qualquer coisa que comeu, pensou-se, mas ficou muito tempo de cama e eu fui chamada para a tratar. O rosto tinha perdido aquele aspecto roliço e rosado e havia sangue nos fluidos. Mandei um rapaz em busca do padre Brien, mas ele não veio e eu segurei-lhe na cabeça, falei com ela, fi-la andar de um lado para o outro do quarto e quando estava quase moribunda fiz-lhe um preparado, sentando-me depois a seu lado na cama, até que caiu num sono irrequieto. Liam andava de um lado para o outro lá fora, assim como o pai de Eilis, murmurando baixinho.
Fiquei com ela toda a noite e fiz o que tinha a fazer. No dia seguinte ela estava fraca, mas parecia um pouco melhor. Precisava de descanso e cuidados intensos. Fora algo que comera, de certeza. Reconheci os sintomas de envenenamento por acónito e sabia que não fora acidente. A quantidade devia ter sido calculada com precisão, porque uma pessoa apenas podia sobreviver com uma dose extremamente pequena daquela substância letal. A intenção fora magoar, não matar. Não podia dizer como a raiz daquela erva entrara no banquete de casamento e especificamente no prato de determinada pessoa. E não podia acusar a minha nova madrasta, se bem que os olhos dela estivessem pousados em mim quando Seamus Redbeard fez as suas despedidas apressadas. Aprontou-se uma padiola coberta e ele levou a filha para casa, para Glencarnagh. Liam fez-me intensas perguntas, com uma raiva branca no rosto que eu nunca tinha visto antes; mas eu disse-lhe para ter cuidado, conhecendo Lady Oonagh melhor do que ele. Ela sabia o suficiente das minhas qualidades para perceber que a origem da misteriosa doença de Eilis não ficaria por detectar durante muito tempo. Uma acusação era o que ela esperava, visto que nada melhor do que uma clivagem entre pai e filho! Além disso, disse eu a Liam, Eilis iria ficar boa. Era uma rapariga forte e eu detectara o veneno cedo. Era melhor ela regressar a casa por uns tempos, pelo menos.
Diarmid arranjou um olho negro e Cormack um golpe feio na face. Talvez uma determinada informação não tivesse ficado secreta, no fim de contas. Nesta questão não interferiria, mas vi Diarmid a observá-la, a observá-la, ficando cada dia um pouco mais magro e mais pálido, como um homem que tivesse provado a fruta mágica apenas uma vez e estivesse a ser consumido pelo próprio desejo. O rosto do meu pai tinha uma sombra parecida, se bem que continuasse os seus negócios mais ou menos como de costume. Oonagh sentava-se à mesa com o seu sorriso sereno e olhos dominantes. As pessoas apressavam-se, nervosas, para lhe obedecerem. Para onde quer que nos virássemos, parecia que ela lá estava, olhando. Os homens de armas mantinham-se à distância.
Então os animais de Padriac começaram a adoecer e a morrer. Primeiro foi o velho burro, encontrado já frio e hirto uma manhã, no estábulo. Ficámos tristes; mas ele já tinha vivido o seu tempo, mais ou menos e aceitámos a sua perda com um olhar saudoso para o canto vazio. A seguir, a gata desapareceu, deixando para trás o ninho e as crias. Padriac tentou alimentá-las e eu ajudei, mas, uma a uma, definharam, enfraqueceram e as suas pequenas vidas desapareceram. Chorei quando a última me morreu nas mãos, os seus olhos, antes brilhantes, enfraquecendo, gradualmente, até ficarem cinzentos transparentes. Dois dias mais tarde, encontrei Padriac a esmurrar a parede do celeiro, os nós dos dedos sangrentos e os olhos marejados de lágrimas. E a seus pés o corvo, cuja perna ferida estava quase curada e cuja plumagem ficara de novo brilhante e saudável; mas agora jazia imóvel, a cabeça torcida para trás de modo estranho e os olhos, sem vida, fixos na imensidão do céu invernoso. O velho celeiro estava vazio. A dor e a cólera sem palavras de Padriac revolveram-me as entranhas. Sentia-se consumido pela fúria e não o podíamos consolar. Para mim, o pior estava para vir. Tinha obrigação de estar preparada, mas não estava.
CAPÍTULO QUATRO
Lady Oonagh tinha-me dito que as minhas viagens à aldeia deviam cessar; era inadmissível, dizia ela, que a filha de Lorde Colum andasse pela vizinhança como a filha de um qualquer remendão, com os pés cheios de lama e misturada com toda a espécie de canalha. Eu tinha que pôr todo aquele disparate de parte e começar a aprender a ser uma senhora. A música isso já era apropriado. Passei uma manhã a tocar flauta para ela e, com relutância, harpa, porque ela ordenara que o nosso pequeno instrumento fosse colocado no vestíbulo. Felizmente o meu pai, nesse dia, andava ocupado algures. Rapidamente se lhe tornou claro que eu pouco mais precisava de aprender. A costura, então. Pediu para ver os meus trabalhos e fui obrigada a confessar que não tinha nenhum. Oh, eu sabia coser e fazer a bainha de um vestido ou de uma túnica. Mas naquela casa de homens nunca fora preciso um trabalho requintado. Oonagh mostrou-me um véu da mais fina cambraia, salpicado com uma quantidade infinita de pequenos pássaros e flores. Na verdade, era belo; disposto sobre o seu brilhante cabelo, dava-lhe o ar de uma rainha. Ensinar-me-ia as técnicas de que eu necessitava para fazer um trabalho semelhante. Exigiria muito tempo e aplicação, por isso, fim às visitas aos doentes com um cesto de loções e poções. Outra qualquer que o fizesse.
— Mais ninguém tem as minhas capacidades — disse eu sem pensar. Era a verdade pura. Os olhos de Oonagh estreitaram-se e as belas e arqueadas sobrancelhas estreitaram-se de aborrecimento.
— Que pena — disse ela. — Então, essa gente terá de fazer o que fazia antes de tu apareceres, minha querida. Quero que estejas aqui com as tuas agulhas e linhas amanhã, logo a seguir ao pequeno-almoço. Temos muito tempo perdido a recuperar.
Durou apenas alguns dias. Os meus dedos, tão ágeis com ligaduras, misturas e medidas, eram desastrados e grosseiros com a agulha e a seda.
Sob o seu olhar escrutinador quebrei a linha, deixei cair a agulha e manchei o tecido delicado com o sangue do meu dedo picado. Ansiei por um dos meus irmãos para que me interrompesse e socorresse, mas nenhum deles o fez. Faziam-se planos para outra jornada para lá das nossas fronteiras e eles consultavam mapas, exercitavam os cavalos ou poliam e afiavam, interminavelmente, as armas.
Até o meu pai andava preocupado na presença de Lady Oonagh e ela não gostava nada. Algo o perturbava. Mas eu continuei a manejar a agulha, com ela sempre a observar-me. Por vezes, fazia perguntas e por vezes sentava-se em silêncio, o que era pior, porque conseguia sentir-lhe a mente a tentar penetrar na minha, como se soubesse os meus pensamentos mais profundos. Tentei escudar-me, da mesma maneira que Finbar aprendera a escudar a mente dele da minha. Mas ela era muito forte e se não conseguia ler-me os pensamentos, era muito esperta com as palavras, sabendo como estender-me armadilhas.
— O teu pai tem andado muito ocupado nestes últimos dias — disse ela de modo agradável uma manhã, olhando para mim enquanto eu cosia, laboriosamente, um longo caule com cambiantes de verde. — Parece que vai partir outra vez em campanha. Esperava que ele ficasse mais tempo em casa, mas os homens tornam-se irrequietos. — Deu uma pequena gargalhada, encolhendo os ombros estreitos dentro do vestido de veludo azul. — As esposas habituam-se a isso, eventualmente, suponho.
Odiava os esforços que ela fazia para ser tagarela, mais do que a hostilidade.
— É o trabalho deles — disse eu, franzindo as sobrancelhas para a minha agulha.
— No entanto, a última campanha foi na última estação — disse Oonagh, olhando pela estreita janela que dava para o pátio, onde Liam e Diarmid passavam e voltavam a passar a cavalo, praticando a descida e a subida para a sela em andamento, sempre com a espada na mão, um truque que eles usavam, ocasionalmente, em combate corpo-a-corpo, a acreditar no que eles me diziam. Provocava um efeito surpreendente no inimigo, diziam. — O que será que os chamará de novo tão cedo? Mais intrusos nas nossas fronteiras, talvez?
— Não sei — disse eu, desfazendo uma série de pontos.
— Ou talvez andem à procura de prisioneiros evadidos — disse ela suavemente. — O meu senhor disse-me que tenciona despedir o mestre-de-armas, porque parece que houve alguma negligência de deveres, aqui. Que estranho. Põem tanta energia naquilo que fazem. No entanto, os prisioneiros evadem-se misteriosamente de noite. Pergunto-me como pôde acontecer semelhante erro.
Fiquei subitamente gelada até aos ossos. Ela sabia. Permaneci em silêncio enquanto ela voltava para o pé de mim, sorrindo.
— Pobre Sorcha, estou a aborrecer-te, minha pobre criança. Que interesse tem tudo isto para uma rapariga, no fim de contas? Rixas sangrentas e reféns desaparecidos. Na verdade, tens tido uma infância estranha, nesta casa. Ainda bem que eu estou agora aqui para cuidar da tua educação. Mostra-me lá o que já fizeste. Oh, querida, isto está tudo torcido. Receio que tenhas que desfazer tudo outra vez.
Finalmente fiquei livre e fui à procura de Finbar; porque, de certeza, o pai não tencionava ver-se livre de Donal, que fazia parte da guarnição desde que eu me lembrava, que supervisionara todo o treino dos meus irmãos desde pequeninos, cujas feições severas e robusta constituição faziam parte da nossa família, tanto como as próprias muralhas. Mas não consegui encontrar Finbar; em vez disso, fui surpreendida por uma rapariga da aldeia, vinda em busca de socorro para a avó, cuja febre não havia maneira de descer. Como é que lhe podia dizer que estava proibida de ajudar? Aquela gente contava comigo. Fui buscar o meu saco, atirei para cima dos ombros uma velha capa, calcei as minhas rudes botas e segui a rapariga.
Assim que me viram na aldeia, outros aldeões vieram ter comigo em busca de ajuda. Após cuidar da mulher com febre, fui a casa do velho Tom, para o tranquilizar acerca de um furúnculo que lhe aparecera num local estranho. Tratei-o e ele acumulou-me de agradecimentos, louvando também o meu irmão Conor, que dera trabalho nos estábulos aos seus netos, tirando-os, disse Tom, de roda das saias da filha e ensinando-lhes, ao mesmo tempo, uma coisa útil. Depois, fui chamada para ir tratar um minúsculo e doente bebé. Deixei à ansiosa e jovem mãe algumas ervas para fazer um chá que lhe fortaleceria o leite e prometi trazer legumes frescos da minha horta.
Quando acabei já a tarde ia a meio e voltei para casa tão depressa quanto pude. Já passara muito tempo desde o pequeno-almoço e já quase sentia no seco e frio ar do Inverno o sabor dos bolos de aveia de Janis. Uma névoa começava a descer sobre os bosques de espinheiro-alvar enquanto eu subia a calçada na direcção da horta. Ia mergulhada nos meus pensamentos e quase tropecei no pai e em Donal quando virei uma esquina. Estavam absorvidos numa conversação e não me viram. Estaquei e voltei para trás da esquina, porque a calma intensidade da voz de Donal disse-me que aquela troca de palavras era extremamente privada.
— ...não é minha intenção contestar a vossa decisão, meu senhor. Mas, pelo menos, ouvi-me, antes de eu me ir embora.
A voz de Donal estava sob o mesmo tenso controlo que exercia para com as suas montadas, a sua espada e os seus homens de armas.
— O que é que tens para me dizer? — disse o pai, friamente. — A minha decisão está tomada. Que mais há?
Tinham parado mesmo à minha frente e eu não me podia mexer sem ser detectada. O pai tinha as costas voltadas para mim. Donal mantinha-se erecto como sempre, mas os profundos sulcos em volta da boca e do nariz traíam as suas emoções.
— Eu aceito total responsabilidade pelo que aconteceu. Não há desculpa para tamanho erro. Os meus homens foram exemplarmente punidos e eu recebi o vosso castigo. O passado não pode ser desfeito. Mas este grau de punição é injustificado, meu senhor Colum.
— Um prisioneiro escapou. Não foi o primeiro. Um prisioneiro importante, desta vez. Como posso eu deixar passar isso em claro? Saí daqui com o homem preso, não apenas bem guardado, mas inconsciente, que mal podia andar, quanto mais fugir. No dia seguinte, recebo uma mensagem a dizer que o cativo tinha desaparecido. Os teus homens estavam drogados. Deve ter havido ajuda do interior. Como resultado da tua negligência, a nossa posição ficou enfraquecida. Quem sabe a vantagem que tal refém nos poderia ter conferido? Não me posso dar ao luxo de um outro erro parecido. Se não consegues controlar os teus homens, não há aqui lugar para ti. Devias dar-te por contente por ter permitido que continuasses ao meu serviço enquanto o assunto era investigado. Devia ter-te despedido no dia em que regressei.
— Pai. — Não tinha percebido, até que ele falou, que Liam estava presente, fora do meu campo de visão. As botas dele fizeram barulho nas pedras da calçada. — Ouve Donal, por favor. Não tem ele sido o nosso guia e tutor ao longo destes 14 anos e mais? Devemos-lhe e a toda a sua paciência, todas as nossas capacidades. Com certeza que o despedimento é um castigo demasiado pesado por uma infracção?
— A decisão é minha, não tua — cortou o pai. — Ainda és muito novo para te meteres em tais assuntos. Talvez não estejas a ver bem a importância desta infracção. Devido a esta inaptidão e à demora em ser informado do que acontecera, o nosso prisioneiro bretão pode muito bem ter regressado a casa, conhecedor do número das nossas tropas, do nosso terreno e das nossas posições. O grupo dele não era um simples bando. Não nos podemos dar ao luxo de nos expormos desta forma.
— Ele estava quase morto naquela noite — disse Donal. — Não pode ter viajado para longe. Além disso, já tínhamos concordado em que ele não tinha nada para dizer. Creio que tereis subestimado a sua importância.
— Eu subestimei? Eu? — A voz do pai subiu de tom. — Não estás em posição de questionar o meu julgamento.
— Talvez não — disse Donal. — Mas há a questão da lealdade. Servi-vos bem, como diz o vosso filho, durante estes 14 anos. Desde os dias da vossa esposa, quando esta casa era um lugar de alegria. Transformei os vossos filhos em jovens e bons guerreiros, prontos para lutar ao vosso lado pelas vossas ilhas perdidas; bem treinados em todas as artes da guerra, para defender as vossas terras e trazer honra ao vosso nome. Gastei com eles o tempo que vós não podíeis dispensar. Vi a vossa filha crescer à imagem da mãe dela, uma rapariga tão doce e visionária como estas florestas nunca viram nascer. Treinei os vossos homens física e espiritualmente e a lealdade deles para convosco está fora de questão. Mas agora... pela senhora, Colum, devo falar, já que não tenho mais nada a perder.
— Recuso-me a ouvir — disse o pai severamente e o manto dele esvoaçou quando ele rodou nos calcanhares.
— Tens de o ouvir, pai. — As mãos de Liam pousaram nos ombros do pai, detendo-o e eu vi o punho fechado do pai erguer-se como que para esmurrar o filho e depois descer lentamente.
— Sentis dificuldade em olhar para mim e ouvir as minhas palavras. — Donal falava com alguma dificuldade. — Podeis crer, a mim ainda me é mais difícil e só o faço porque tenho de deixar este lugar que se tornou a minha casa. Meu senhor, nunca vos pedi muito, para além do meu sustento e a possibilidade de fazer um bom trabalho. Mas peço-vos que me oiçais.
Houve um silêncio. E depois o meu pai disse:
— Então?
— Vou ser directo, meu senhor. Conheço-vos bem, por vezes melhor do que vós próprio. Durante estes anos todos nunca vi o vosso julgamento falhar. Como dizem os vossos homens, por vezes sois duro, mas sempre fostes correcto. É por isso que eles vos seguem até à morte, se for preciso. É por isso que sois dono de tantas terras, da grande floresta até aos pântanos, temido e respeitado por todo o norte. Não cometeis erros. Até agora. Até...
— Continua — disse o pai no tom gelado que utilizava, geralmente, para com Finbar.
— Até conhecerdes Lady Oonagh — disse Donal pesadamente. — Desde então, a vossa mente não vos pertence. A vontade dela está por trás de todas as decisões que tomais e a sua influência cega-vos...
— Chega! — O punho do meu pai atravessou o ar e chocou, duramente, contra a face de Donal. O mestre-de-armas aguentou-se, ao mesmo tempo que uma marca vermelha lhe aparecia no rosto.
— Eu digo a verdade e no vosso coração sabeis que é assim — disse ele muito calmamente. — Nunca me haveis batido antes. Fizeste-lo por causa dela. Envenenou-vos os pensamentos e haveis perdido a capacidade de julgamento. Tende cuidado, meu senhor, porque se os vossos homens perdem a fé em vós, as vossas terras correm perigo.
— Cala-te! — A raiva do meu pai era palpável. — Não fales no nome da minha senhora, porque as tuas palavras conspurcam aquilo que não tem mancha. É assim que me pagas a confiança que depositei em ti? Desaparece da minha vista.
— Pai, ele está simplesmente a pedir-te que o oiças — A voz de Liam tremia ligeiramente. — Donal não está só nestes pensamentos. Lady Oonagh tem um poder que... que nos afecta a todos. Os teus homens não se sentem à vontade, a casa toda está intranquila. Eilis e o pai dela foram forçados a partir. A tua senhora procura dividir o irmão do irmão, o pai do filho e o amigo do amigo, até que cada um de nós esteja só. Destruirá esta família, se a deixares.
Desta vez houve uma longa pausa e eu podia ouvir a respiração do pai e ver o rosto branco e ansioso de Liam. Arriscara imenso. Após uns momentos, o pai disse lentamente:
— O que é que queres dizer, forçados a partir? A rapariga estava mal do estômago, é tudo. O que é que isso tem a ver com a minha senhora?
— Havia veneno na comida — disse Liam calmamente. — Um veneno específico, apenas no prato dela. Tentámos dizer-to. Sorcha sabe muito dessas coisas, que foi o que valeu a Eilis, senão teria morrido. Não há provas, mas os boatos espalham-se depressa.
— Culpar a minha mulher é tão estúpido como culpar a minha filha — disse o pai, mas o tom mudara, como se, por fim, estivesse a ouvir o que lhe diziam. — Por que faria ela semelhante coisa?
Para dividir pai e filho, pensei, para que o seu próprio filho possa herdar. Ou talvez o seu plano seja ainda maior.
— Houve veneno antes — disse o pai. Fixou o olhar no de Donal. — Tu disseste que deram aos teus homens uma droga para eles dormirem, no dia em que o prisioneiro escapou. E isso foi antes da chegada de Lady Oonagh. Essas teorias não passam de invenções, fantasias para salvares o teu orgulho, um estratagema para que eu mude de ideias e te mantenha no cargo por mais algum tempo.
— Isso não é verdade — disse Donal e pegou no pequeno pacote que tinha ao lado. Reparei, então, na espada e no arco, que ele tinha ao ombro. — O meu coração está aqui, assim como o trabalho da minha vida, mas sairei daqui como cheguei. Apenas te peço que prestes atenção às minhas palavras e às do teu filho. Fica avisado e toma cautela.
Estendeu o braço para tocar no cotovelo de Liam e havia lágrimas nos olhos do meu irmão mais velho. E Donal partiu, desaparecendo da nossa vista pelo caminho abaixo. Ouvi o barulho dos arreios quando ele montou o seu cavalo e o som dos cascos desaparecendo lentamente na distância. O pai olhava em frente por entre os olhos semicerrados.
— Primeiro, Eilis e o pai dela, agora Donal — disse Liam. — Se não acordas rapidamente, perdes-nos a todos, um a um.
O pai olhou para ele.
— Talvez fosse melhor dizeres-me o que queres dizer — disse ele.
Liam aproximou-se, pousando uma mão pelo ombro do pai e começou a falar muito suavemente. Um momento mais tarde ouviu-se o repique de um riso e o som de passos leves e Lady Oonagh apareceu, uma visão vestida de veludo, correndo pelo caminho, os pés metidos em delicados chinelos. Uma nuvem de cabelos vermelhos envolvia-lhe as faces coradas e os seios estavam mal cobertos pelo corpete apertado do vestido azul. Uma rede de pequeninas veias sobressaía-lhe na carne cor de pérola e subitamente percebi, talvez mesmo antes dela, que estava grávida do meu pai. A sua pele de alabastro brilhava a partir de dentro. Atrás trotava o meu irmão Diarmid, cheio de covinhas fervorosas no rosto.
— Meu senhor! — Abanava-se a si própria com a mão, fingindo exaustão. — Tão solene, tão sério! Deixai-me alegrar-vos! Está um dia bonito demais para olhares tão agoirentos!
Pôs-se em bicos de pés, as pequenas mãos segurando a frente da túnica e beijou-o nos lábios. O momento de Liam perdera-se para sempre. O braço do meu pai rodeou a sua mulher possessivamente e ela encostou-se a ele como uma trepadeira à sua árvore, enquanto regressavam ambos a casa. Eu fiquei a olhar enquanto Diarmid os seguia, abatido e confuso. Fiquei a olhar enquanto Liam apanhava uma mão-cheia de pedras do chão e as atirava de novo, com força, contra o solo. Vi-o afastar-se a passos largos na direcção dos estábulos, com a frustração nitidamente estampada no rosto. Então e só então saí do meu esconderijo.
Levou-me um momento ou dois, depois de atravessar a casa e chegar à ervanária, a perceber que algo estava errado. Quando um local nos é tão familiar, quando é nosso, tomamo-lo como certo, mal nos apercebendo das cores e formas à nossa volta, como se fosse uma extensão de nós próprios. Assim, demorei uns momentos. Tirei a minha capa e pendurei-a num prego. Virei-me para colocar o saco sobre a mesa. E depois, vi. As prateleiras estavam vazias, as ervas penduradas de qualquer maneira, e as tranças de cebolas e alhos, assim como as plantas secas, tinham desaparecido. As minhas especiarias, os meus unguentos e tinturas, as minhas roupas, badas e trouxas, todas as ferramentas do meu ofício tinham sido levadas. Havia alfazema seca espalhada pelas lajes e a porta exterior estava escancarada. De coração aos pulos, saí para o jardim.
Ao fundo, encostada ao muro, ardia uma pequena fogueira e o seu fumo odorífico espalhava uma suave nuvem sobre a devastação à minha frente. De cada lado do carreiro central, todos os canteiros haviam sido mexidos, todas as plantas desenraizadas e uma confusão de caules quebrados, raízes expostas e solo calcado cobria toda a área. Tropecei por ali, espantada. Alfazema, absinto, tanásia e camomila. Malva silvestre e rosmaninho. Andei pelo meio daqueles restos calcados e o aroma suave das folhas pisadas evolava-se num adeus. Os ramos maiores estavam atirados pelo chão ou empilhados para serem queimados. A minha árvore lilás fora cortada. Não cortes, nunca, madeira viva, dissera Conor, a não ser que precises. E nunca sem pedires ao espírito que vive dentro dela. Não lhe destruas a casa sem uma boa razão. Vagueei por ali, silenciosa, a tremer, cega, de uma vítima para outra. Os bolbos precoces, cuja vida secreta permanece escondida, profundamente, no interior das suas coberturas protectoras; os cogumelos que eu cobrira com tanto cuidado contra o frio do Inverno, cortados, esmagados, expostos, no solo revolto. A minha trepadeira, arrancada do muro e cortada em mil bocados; nunca chegaria a abrir as suas minúsculas flores brancas para dar as boas-vindas, de novo, ao sol da Primavera. Continuei a andar. O pequeno carvalho, a mais querida árvore de todas, que me chegava mais ou menos aos ombros, acarinhada e guardada desde os meus oito anos; esperara vê-la crescer, ano após ano, dar sombra e proteger o meu domínio. Fora arrancada pela base e nunca mais germinaria de novo com a vida da nova estação. Caí de joelhos, remexendo selvaticamente o solo, num vão esforço para salvar alguma coisa; mas não conseguia chorar. Aquilo estava para além das lágrimas, para além do pensamento. No meu coração dei um grande grito de angústia.
Não chamei os meus irmãos em voz alta, mas dois deles ouviram-me. Finbar foi o primeiro a chegar, envolvendo-me com os braços, afagando-me o cabelo, praguejando entre cada respiração. Um momento mais tarde apareceu Conor, avançando pelo carreiro com o rosto atormentado, chamando em altos berros pelos jardineiros, virando a sua fúria para os dois homens em quem eu não reparara, que se escondiam por trás da fogueira, de pá e ancinho na mão, encolhidos sob o interrogatório furioso do meu irmão.
Agarrei com força o gibão de Finbar e lutei para controlar a respiração. A minha cabeça explodia de raiva, desgosto e choque. Após uns momentos, ele parou de falar e tentou acalmar-me com a mente.
Chora, Sorcha. Deixa lá. O que está feito, está feito.
Até as minhas violetas! Até o meu pequeno carvalho! Podiam ter deixado ficar o carvalho!
Tu sobreviveste. Nós somos fortes. E estas coisas voltam a crescer.
Como podem elas crescer se o demónio está aqui? Como pode crescer seja o que for? As minhas ervas, as minhas ervas desapareceram, todas as minhas coisas... como é que eu posso fazer o meu trabalho sem as minhas coisas?
Chora, Sorcha Deixa lá. Nós estamos todos aqui contigo. Deixa lá, irmãzinha. A terra guarda o teu jardim no coração. Ela chora contigo.
Ele era convincente e finalmente sucumbi, com grandes soluços, encharcando-lhe a camisa enquanto ele me abraçava; e depois chegou Conor.
— Foram ordens directas de Lady Oonagh — disse ele firmemente. — Ordens específicas, sem omitir qualquer pormenor. Os homens não podem ser culpados, não tinham escolha; agora já sabem que, de futuro, têm que me perguntar primeiro. Mas para ti é demasiado tarde, pequena coruja. Lamento. Sei como trabalhaste neste paraíso e amaste os seus habitantes. Sei o que isto significa para ti e para aqueles que tu tratas.
— Só porque... só porque... — disse eu entre dois soluços.
— Ofendeste-a em alguma coisa? — perguntou Conor gentilmente.
— Não é preciso ofender. — A voz de Finbar estava fria como eu nunca a ouvira antes. Parecia-se com a do pai. — Lady Oonagh não precisa de provocação para fazer semelhante coisa. Ela vai destruir-nos, um a um, se não for detida!
— Ela... ela disse-me para não ir à aldeia — consegui eu dizer, assoando-me no lenço que Conor me ofereceu. — Mas eles mandaram-me chamar e nunca pensei... eu só queria... e ela... e ela...
Os meus irmãos trocaram olhares.
— Sorcha, respira fundo — disse Conor, levando-me para o banco de pedra, que era o único sobrevivente solitário daquela desolação. — Agora senta-te. Assim está melhor.
Ajoelharam-se os dois a meu lado e Conor segurou-me as mãos nas dele.
— Menina bonita.
Junto da fogueira, os dois jardineiros juntavam destroços, atirando mais ramos arrancados para a pilha. Atiravam olhares nervosos na nossa direcção.
— Muito bem, Sorcha. Quero que vás para o meu quarto e que fiques lá esta noite. Não tentes vê-la, ou ao pai, até termos todos falado e decidido o que fazer. Sei que estás triste; mas Finbar tem razão. As plantas crescem de novo e com a tua habilidade e amor voltarão a florescer no mais difícil dos lugares. Tu não sofreste nada. Isso é que é mais importante.
Eu não conseguia falar. A dor no coração ainda era avassaladora e as lágrimas caíam-me pelas faces abaixo. Agora que começara a chorar, parecia que não me era possível parar.
— Precisamos de falar, todos — disse Conor. — Creio que tu tens a chave disto tudo, Sorcha. Mas primeiro deves ir para dentro, precisas de tempo para te recompores.
— Aqui fora não é seguro para ela — disse Finbar rudemente. — Isto atingiu-a profundamente e, através dela, atingiu-nos a todos. Foi um golpe bem calculado e levado a cabo com perícia. Não podemos ficar parados e deixar que a nossa irmã suporte tal coisa. Devíamos mandá-la daqui para fora, antes que seja tarde.
— Agora, não — disse Conor. — Sorcha precisa de descansar. E tu, irmão, tem cuidado, porque palavras duras, agora, podem pôr-nos ainda em maior perigo. Não tentes pedir contas disto a Lady Oonagh, ou ao nosso pai. Não é essa a maneira.
— Por quanto tempo? Por quanto tempo temos de esperar antes de entrarmos em acção? Por quanto tempo, antes de o fazermos ver quem ela é, do que é capaz?
— Não muito — disse Conor, ajudando-me a levantar. O braço dele em volta dos meus ombros era forte, pesado e reconfortante. — Amanhã agiremos, porque, tal como tu, acredito que chegou a altura. Entretanto, fala aos outros no que aconteceu e manda-os ao meu quarto depois de escurecer. Mas mantém a boca fechada, irmão e mantém a tua mensagem afastada dos olhos. Lady Oonagh lê melhor em ti do que pensas.
Também tu, pensei. Apercebera-me gradualmente e ainda não era totalmente claro. Mas ele viera ajudar-me, logo a seguir a Finbar e algo que ele dissera confirmava-o. Acreditara que o encontro sem palavras era apenas para Finbar e para mim. Imaginei há quanto tempo conseguia Conor ler os nossos pensamentos e sentimentos e porque nunca nos deixara tomar conhecimento disso. Estava ligado, não sei como, ao que o padre Brien nos explicara. Supunha que, se as pessoas olhassem para nós como uma espécie de guia espiritual, pudesse querer dizer que tínhamos alguns poderes para lá do normal, talvez alguns de que ninguém suspeitasse.
— Conor — disse eu enquanto subíamos as escadas com cuidado, para não sermos vistos.
— Não faz mal — disse Conor, abrindo-me a porta para eu entrar. — Os teus pensamentos ficam seguros comigo. Raramente uso esta habilidade e só quando necessito. A tua dor, por vezes, transborda, assim como a de Finbar. Estou aqui para ajudar.
Chegámos ao quarto partilhado por Conor e Cormack. Não muito tempo depois de nós chegou Cormack, o rosto crispado, com Linn trotando logo a seguir e saltando para se instalar perto de mim, na cama estreita. Seguiram-se Padriac e Liam, o primeiro com uma taça de vinho de especiarias que era suposto eu beber, o outro segurando-me na mão, beijando-me a face e depois afastando os irmãos para falar rapidamente e em voz baixa, quase em sussurro. Após um certo tempo, foram-se todos embora menos Cormack, que ficou dentro do quarto com uma faca na mão. Finbar não voltou a aparecer. Após espalhar a notícia, tinha desaparecido para tratar de qualquer assunto seu. Eu sentia-me ferida e vazia e permaneci deitada por um bocado vendo a luz a desaparecer e deixando o cão lamber-me os dedos. E após um certo tempo o vinho fez efeito e eu caí num sono inquieto.
Mais tarde, muito mais tarde, vieram todos, todos menos Diarmid. Eu estava acordada e eles trouxeram-me pão de cevada com mel, mas eu não conseguia comer e dei-o à cadela. Talvez estivesse a sofrer do que nas histórias se chamava doença do coração. Este, o estômago e todo o interior do meu corpo sentiam-se vazios, ocos e doridos.
— Pensa nos bons tempos — disse Conor, mas eu não conseguia. Finbar, quando entrou, colocou um pequeno fardo a meu lado, na cama. Linn farejou-o, esperançada. Desfiz o pacote. Lá dentro estava o meu jardim em embrião: delgadas estacas de alfazema, tanásia, ruda e absinto; uma lasca de madeira de lilás que podia ser enxertada; uma pedra branca, redonda, do carreiro destruído; uma simples bolota. Voltei a embrulhar tudo cuidadosamente. Talvez, talvez pudesse recomeçar. O meu irmão permaneceu de costas voltadas para mim. Senti o amor dentro dele, assim como a raiva.
— Agora — disse Conor — tenho de te perguntar, Sorcha, se partilhas um segredo com os teus irmãos. Com todos.
— Que segredo? — Receava o que ele ia dizer a seguir. Lady Oonagh não conseguira fazer-me tropeçar no meu mais perigoso segredo, aquele que, certamente, poria irmão contra irmão. Porque três deles eram guerreiros, comprometidos com a causa, sempre prontos para a vingança sangrenta; e três deles procurariam sempre arbitrar, emendar, lutar com palavras, não com golpes violentos.
— Ele está a falar na Visão, no espírito que viste na floresta, Sorcha — disse Finbar do seu canto escuro. — Conor crê que isso nos pode ajudar. Podes dizer-lhes.
— Ela veio ter comigo — disse eu. — A Dama da Floresta. Tal como nas histórias. Ela... ela falou-me, acerca do que eu devo fazer da minha vida. Que o percurso seria longo e difícil e que eu devia manter-me nesse caminho. Foi tudo.
Nem tudo. Mas eu não contaria o resto.
— Se lhe pedisses, achas que essa Visão te apareceria de novo? — perguntou Liam. O quarto estava escuro, apenas com uma única vela acesa e os meus irmãos pareciam altos e severos nas sombras, três deles em volta da cama, Finbar no canto mais distante e Padriac de guarda junto da porta.
— Ela não me aparece só porque eu lhe peço — disse eu, recordando quão desesperadamente eu procurara orientação nas minhas tentativas para ajudar Simon. — Ela só aparece quando acha necessário.
— Lady Oonagh abre as asas cada vez mais a cada dia que passa — disse Conor. — O poder dela está a crescer. Eu acho que precisamos de arranjar uma força ainda maior para a combater. Tu podias tentar. No local certo, na altura própria, connosco à tua volta, podias tentar.
— Fazes isso por nós, Sorcha? — Cormack só se apercebeu mais tarde daquilo que estava em questão. Linn levantou a cabeça ao ouvir o som da voz dele. A ferida dela estava a começar a sarar muito bem.
— Como? — perguntei. — Quando?
Olharam todos para Conor. Subitamente, ele parecia ter mais de 16 anos, como se outra sombra dele próprio lhe pairasse por cima.
— Amanhã — disse ele. — Ao pé da árvore da nossa mãe, ao amanhecer. Tratarei do que for necessário e Sorcha vai comigo. Tu, Liam, tens de fazer com que Diarmid também lá esteja. Não me interessa como, trata de o levares lá. Temos de estar todos presentes. Sem cavalos; vão a pé. Sorcha, leva um pacote com coisas para uma noite ou duas, porque não vais voltar para aqui por uns tempos. Tu também, Padriac. Não vou deixar a Sorcha longe, sozinha. Depois de acabarmos, vão os dois ter com o padre Brien e ele arranja-vos um lugar seguro. Acho que o próximo passo dela será matar, talvez virando-nos uns contra os outros. Seremos um bando bem miserável, se não conseguirmos proteger a nossa irmã de tal poder demoníaco.
— Quais são os teus planos, Conor? — perguntou Cormack, olhando de perto para o irmão gémeo.
— Não me perguntes — disse Conor. — Quanto menos souberem, melhor. Não podemos levantar quaisquer suspeitas. Por que é que tu pensas que afastei Sorcha e Finbar da nossa refeição da noite? Ambos são como livros abertos, dizem a verdade com risco das próprias vidas e quando guardam silêncio os pensamentos deles ardem-lhes nos olhos como um farol. É admirável, mas perigoso. Já foi suficientemente mau com o nosso irmão mais velho, aqui, sentado de lábios fechados e franzindo as sobrancelhas às polidas perguntas de Lady Oonagh.
— Ela está furiosa, apesar das boas maneiras — disse Liam. — Ela impediu-me, esta tarde, de falar com o pai. Mas não antes de ele sentir qualquer coisa; não antes de uma pequena semente de dúvida ter sido plantada. Ela deve estar pronta para agir muito brevemente; leio-lhe essa intenção nos olhos.
— Também eu — disse Conor gravemente. — Portanto, fica longe esta noite. Quando o Sol se levantar sobre o lago, encontramo-nos na margem onde cresce a árvore da nossa mãe. Acredito que conseguiremos invocar um poder perante o qual até Lady Oonagh será forçada a recuar.
Cormack deixou o cão dele comigo, como companhia, foi dormir num local qualquer e foi o próprio Conor que ficou de guarda à porta nessa noite, com uma arma perto. Eu dormi aos repelões, acordando muitas vezes sobressaltada, como nas longas noites junto do padre Brien e de todas as vezes o meu irmão estava ali, de pé, com o olhar fixo numa distante visão qualquer, entoando cânticos, suavemente, numa língua desconhecida para mim. Talvez a meia luz me estivesse a pregar uma partida, ou talvez não, mas pareceu-me que ele permanecia com um pé ligeiramente levantado do chão e um braço flectido atrás das costas; e só um dos olhos estava aberto. Permanecia imóvel como uma pedra. A única vela provocava sombras na parede e, por um momento, vi uma ave de grandes asas brancas a voar e uma grande árvore. Deslizei de novo para o sono.
O dia seguinte amanheceu cheio de orvalho e uma névoa persistente cobria a margem do lago. Partimos antes da alvorada e a barra do meu vestido em breve estava ensopada. Segurei com força no pequeno pacote que trouxera comigo. Não tinha muitos tesouros. Percorremos os caminhos da floresta em completo silêncio e sem qualquer luz. Conor ia vestido de branco e eu seguia-o como uma pequena sombra confiante. Atrás de mim, Linn seguia os meus passos. Sentindo uma necessidade de secretismo, refreava a vontade de perseguir qualquer som na vegetação e permanecia em silêncio.
Fomos os primeiros a chegar ao nosso destino. No entanto, já outros lá tinham estado antes de nós, porque na relva ao lado do jovem vidoeiro, onde nos juntáramos tantas vezes antes, havia objectos ali depositados com precisão, esperando a nossa chegada. Os primeiros sinais de pré-alvorada permitiam distinguir margaridas brancas e amarelas, espalhadas pela relva a leste da árvore, onde o solo subia na direcção da floresta. No meio delas estava uma faca, desembainhada, com cabo de osso. No lado ocidental, onde a margem descia para o lago, uma tigela de barro, pouco profunda, permanecia encostada à árvore e, como o cálice de Isha, estava cheia, até às bordas, de água límpida. A sul e a norte, uma delgada vara de vidoeiro e uma pedra cheia do musgo do coração da floresta. Tais eram os preparativos para a nossa cerimónia. Não sabia quem ali pusera os objectos rituais nem o ia perguntar a Conor, porque sentia a necessidade de guardar silêncio, um imenso secretismo e a importância do momento. No entanto, tentava imaginar quem os teria levado para ali, já que o meu irmão estivera comigo toda a noite.
Lentamente, foram chegando. Cormack, uma figura alta, saindo da névoa. Logo a seguir a ele Padriac, transportando um pequeno pacote como o meu. Conor mantinha-se perto da árvore, à espera. Um a um ocupámos os nossos lugares ao lado dele, sem falar. Subitamente, senti Finbar ao meu lado, se bem que não o tivesse visto ou ouvido chegar. O seu sussurro urgente quebrou o silêncio.
— Sorcha. Olha para isto. Diz-me o que é. — Uma pequena garrafa com uma tampa de vidro. Um pequeno vaso elegante, próprio para o perfume de uma senhora. Retirei a tampa, cheirei e retirei uma pequena quantidade de pó negro para a palma da minha mão. Já havia suficiente luz para confirmar a conclusão a que chegara o meu nariz. Era um dos venenos mais mortais que havia. Olhei para Finbar e ele leu a resposta nos meus olhos.
— É acónito — sussurrei. — Onde é que o encontraste?
— Nos alojamentos dela, entre as coisas dela. Pelo menos, prova o que aconteceu a Eilis.
— Silêncio — disse Conor. — Esperai pelos outros. Ainda não amanheceu.
E assim permanecemos, em silêncio e eu tentei esvaziar a minha mente dos pensamentos turbulentos que nela grassavam e focá-la no nosso objectivo. A floresta mantinha-se calma; ainda não chegara a hora de os habitantes das árvores começarem as suas canções à alvorada. Era um momento de verdade e nós devíamos fazer dele o nosso. Mas ainda não estávamos todos juntos. E, sem os sete, o nosso objectivo não seria atingido.
Pareceu uma eternidade, mas, provavelmente, durou pouco tempo até que ouvimos umas leves, rítmicas pancadas na água e um pequeno barco acostou à margem. Era Liam que remava; Diarmid vinha sentado à proa, desinteressado, enrolado numa capa cinzenta, como se fosse um xaile. Cormack desceu pela margem para os ajudar a vir para terra; foram precisos ambos, ele e Liam, para transportar Diarmid e depositá-lo na relva. Havia um cheiro forte a cerveja. Diarmid cambaleava entre os dois irmãos, meio inconsciente, os olhos avermelhados. Liam não parecia melhor. Parecia que tinha competido com o seu prisioneiro, bebida atrás de bebida, no seu esforço para o embriagar.
— Já estamos todos e faltam só alguns minutos para a alvorada — disse Cormack.
Senti de novo a presença de outros, mais sábios, mais fortes, mais velhos, sentando-se em volta dele, como um manto. Em vez de um jovem de cabelos escuros, vestido de branco, era como se um velho sábio estivesse ali ao nosso lado e a clareira parecia, de qualquer modo, alargar-se em volta dele.
— Vamos começar dentro de pouco tempo. Mas aviso-vos. Devemos manter-nos unidos, os sete; aquela que tenta cortar os laços que nos unem fá-lo por sua conta e risco. Este mistério é grande e pode alcançar o fim a que nos propomos. Mas, como em todas as coisas, apenas retiraremos do mundo espiritual a ajuda e a força que os seus habitantes nos quiserem dar. Para além disso, teremos de confiar na nossa própria inteligência, coragem e capacidade de resolução. Agora, vamos começar a nossa cerimónia. E quando acabar, separar-nos-emos por algum tempo. Tu, Sorcha, e tu Padriac, deveis esconder-vos. O padre Brien dar-vos-á abrigo e procurar-vos-á um local seguro. Quando tudo aqui estiver terminado, iremos buscar-vos. E quer o que vamos fazer nos ajude, quer não, nós, os restantes, agiremos hoje, para o bem ou para o mal. Temos a prova; o nosso pai tem de ser confrontado com a verdade e escolher.
Fizemos um círculo em volta da pequena árvore, como muitas vezes antes, bastante perto uns dos outros, de maneira que, se cada um esticasse um braço, poderia tocar na mão do que lhe estava a seguir. Mas não havia necessidade de nos tocarmos. Aquele era o nosso local ritual de unidade; os velhos carvalhos e faias tinham ouvido os nossos versos infantis, os nossos segredos juvenis, tinham testemunhado a nossa comunhão com o espírito da nossa mãe. Por vezes tínhamos sido solenes e sérios e por vezes tínhamos brincado e rido. Aquelas árvores guardavam nos seus corações a história dos anos do nosso crescimento e agora iam testemunhar um mistério maior do que qualquer outro da nossa existência.
O primeiro raio do Sol nascente iluminou a abóbada celeste. Conor virou-se para sul e levantou diante de si a vara de vidoeiro.
— Criaturas do fogo, espíritos que viveis no meio do fogo — disse Conor — crianças das chamas purificadoras, inabaláveis nos vossos propósitos, saudámo-vos!
Pareceu-me que o ar se movera, num momentâneo tremeluzir de luz; mas a clareira continuava envolta em nevoeiro.
Liam permanecia no lado ocidental e olhava para lá das águas do lago. Diarmid não conseguia manter-se direito no seu lugar, encostando-se ao ombro de Cormack, pestanejando face à luz cada vez maior. Cormack apertava com força o braço do seu irmão cambaleante. Liam levantou a taça para colher a pálida alvorada.
— Espíritos da água, mutáveis e fugidios, de grande coragem, sábios, guardiões de mistérios, saudámos-vos — disse ele e baixou de novo a taça.
Finbar virou-se para norte, onde as pedras desordenadas formavam uma espécie de caminho para gigantes por entre as grandes árvores. As suas longas mãos seguravam a pedra coberta de musgo; a luz, que acordava, mostrava a sua superfície, cheia de pequenas marcas e símbolos gravados.
— Habitantes da terra, guardiões de segredos, narradores da verdade, sábios e dignos, nós veneramo-vos — disse ele. Virou-se para o interior do círculo e pousou cuidadosamente a pedra sobre a relva.
— Agora tu, Sorcha — disse Conor calmamente.
Olhei para cima, para as árvores majestosas, espreguiçando-se, perante os meus olhos, para leste. Lá no alto, uma cotovia começou a cantar e Padriac, a meu lado, sorriu, de puro prazer, ao ouvir aquele som. A luz no céu mostrou-nos que a aurora estava a chegar, se bem que a floresta mascarasse o momento do nascer do Sol.
Eu tinha a faca na mão e flores em volta dos pés.
— Sílfides da floresta — sussurrei. — Espíritos dos carvalhos, das faias e dos freixos, dríades das sorveiras-bravas e das aveleiras, ouvi-nos. Vós, que tendes guiado e guardado todos os nossos passos, vós, cujas copas abrigaram o nosso crescimento, veneramo-vos. Dama da Floresta, Dama do manto azul, ouve-me. Ajuda-nos nesta hora, vem até nós neste tempo de escuridão. Vem até nós, se assim o quiseres.
Baixei a faca, virando-me para completar o círculo. Em volta da clareira os pássaros cantavam, enchendo o ar com aqueles sons de flauta. Em volta dos nossos pés e sobre a superfície do lago, a névoa começou a dissipar-se com o Sol nascente. Permanecemos em silêncio, de cabeças baixas. O nosso círculo não podia ser desfeito. Esperámos enquanto o céu passava de cinzento a azul e o brilho das águas do lago furava o nevoeiro rasante.
E então ela apareceu. Era como se tivesse estado sempre ali, connosco, uma leve figura encoberta, de pé, onde a água de lago tocava a areia; e por trás dela, um pequeno barco, escuro, encostado ao outro. Ela ouvira-me e viera. Deu um passo na nossa direcção e depois outro. A névoa chegava-lhe ao vestido. Mas algo estava errado. Linn rosnou, profundamente. E depois um súbito e silencioso aviso vindo de Finbar, de Conor.
Foge, Sorcha, foge.
Para a floresta. Já. Foge!
Vi os primeiros dedos de névoa predadora estenderem-se e enrolarem-se em volta dos corpos dos meus irmãos, segurando-os com força e depois virarem-se para onde eu estava, no outro lado da árvore. E depois vi os olhos dela, escuros como amoras, sob as sobrancelhas arqueadas, e os caracóis castanhos-escuros sob o grande capuz. Levantou uma mão branca para retirar o capuz e o triunfo estava escrito nas feições delicadas de Lady Oonagh. Virei-me e corri, o terror dando asas aos meus pés, sobre as pedras e os seixos, escorregando na lama e no cascalho, subindo sempre pela colina acima até que a floresta me escondeu nas suas sombras quietas. À minha frente corria Linn, com a cauda entre as pernas.
Quando já me tinha afastado o mais que podia, subi para um grande carvalho, que me acolheu nos seus maciços ramos, enquanto eu lutava para recuperar a respiração e o coração me batia desordenadamente. Linn escondeu-se no solo, deixando escapar gemidos de desassossego. Não precisava de ver a margem do lago, porque podia ver através dos olhos de Finbar, sentir com o meu irmão, momento cruel após momento cruel, o inevitável desenrolar da intriga.
Foge, Sorcha, foge! A nossa irmã vira-se e corre através da clareira como uma pequenina coruja e um poder desconhecido esconde-a na segurança das árvores. Mas nós, os seis, estamos imóveis, à medida que os húmidos farrapos de névoa se movem como uma qualquer criatura viva, pelos nossos corpos acima com um propósito inexorável. As nossas pernas estão presas ao chão, os nossos braços atados, as nossas línguas silenciadas. Apenas as nossas mentes ainda lutam, infrutiferamente, por liberdade
Ela retira o capuz e a luz da manhã dança-lhe no cabelo encaracolado. Atira a cabeça para trás num riso triunfante.
— Oh, se vós pudésseis ver a vós próprios, irmãozinhos! Tão cómicos, tão divertidos! — A voz dela escurece. — Pensáveis que me iludíeis com esta reles representação, esta patética tentativa de feitiçaria? Que vergonha! Teríeis feito melhor se vos tivésseis limitado aos vossos brinquedos de guerra e não vos metêsseis em assuntos para lá do vosso entendimento. Bem, aí tendes a vossa recompensa, meus rapazes, veremos como ficareis depois de eu tratar de vós. Porque receio que me tenhais subestimado.
Ela anda em volta do círculo em que nós nos mantemos, impotentes. Junto de cada um ela pára e fala.
— Liam. Protector e chefe. Não foi esse o papel que a tua infortunada mãe reservou para ti? Fizeste um mau trabalho hoje, primogénito. Mas não faz mal. O teu pai pode ter mais filhos como tu. Estas terras nunca serão tuas. Oh, Colum sentirá a tua falta, não duvido, mas só por algum tempo. Eu conforto-o. Além disso, ele já esqueceu o teu aviso.
Move-se na direcção de Diarmid, que continua encostado ao ombro do irmão, mal compreendendo o que se passa.
— Ora, ora, meu doce amante, meu querido. Pensaste que podias tomar o lugar do teu pai, não pensaste? Mas tu não és nada, nada. — Ela dá ênfase ao insulto fazendo estalar os dedos sob o nariz dele. Diarmid pestaneja. — Porque haveria eu de perder tempo com uma criança como tu, quando posso ter um homem a sério na minha cama?
Vira-se para Cormack.
— Gostaste do corte da tua faca em carne viva, belo guerreiro? Talvez estejas interessado em saber no que a tua irmã anda metida quando estás longe de casa. Porque nem todos vós partilhais o mesmo inimigo, receio bem. Aprendeste bem a lição do teu pai, bate primeiro, pergunta depois. Talvez devesses tentar essa técnica em mim.
Vejo os olhos de Conor, porque está de frente para mim. Brilham de coragem. Retine todos os fragmentos de vontade para lhe resistir. Mas ainda é muito novo.
— Falhaste, druidazinho. Falhaste por completo. E aqueles que se atravessam no meu caminho não têm segunda hipótese. Pensaste na verdade que o poder dela era superior ao meu? Sabes muito pouco, mas pensas que sabes muito. Somos ambas a mesma.
Volta-se e fica de frente para mim. Não vou ter medo dela. Chega-me de novo o frio, a estranheza, o grande bater de asas. Vejo a face da morte.
— Tu eras capaz de me desafiar em frente do teu pai — diz ela. Sinto arrepios gelados pela espinha acima. — Terias salvo a tua irmã a qualquer preço. Mas eu conheço-te e vejo-te como aquilo que és, meu velho inimigo. A tua irmã nunca se livrará de mim; hei de encontrá-la e há de sofrer até me pedir a morte. E hei de enviar-te para onde não haja grandes ideais, conceitos morais, bem, ou mal. Apenas sobrevivência. Que preço terão, então, os teus grandes feitos heróicos?
Por fim, vira-se para Padríac, em estado de choque.
— Tu querias saber tudo. Os segredos do voo, as voltas e reviravoltas de tudo o que se move e tem vida, o ideal de todas as criaturas vivas. Vais saber o que é voar e sentirás o terror e a dor de um animal selvagem. Viverás assim até que pedirás para regressar ao mundo dos humanos. Sofrerás e depois morrerás; e não haverá remédio para isso.
Permaneci enroscada na grande árvore, de olhos cerrados, as mãos encostadas, com força, aos ouvidos. As imagens passavam-me pela mente. Não conseguia tirar Finbar do pensamento, por mais que tentasse. A angústia dele estava para lá de qualquer controlo que pudesse ter sobre os seus próprios pensamentos e eu era una com ele à medida que a intriga se desenrolava.
Ela levanta as mãos lentamente. A capa escura cai para trás, mostrando o vestido azul e o transparente lenço de delicada arquitectura de pétalas e flores. As mãos apontam para o céu e os olhos escuros parecem puxar as sombras para baixo. Começa a entoar um cântico misterioso em voz alta, numa língua desconhecida, carregada de ameaças. Subitamente, em volta dos nossos corpos, que continuam imóveis, começam a tremeluzir raios de luz. Esses raios vêm-lhe das mãos, do céu, da terra. A clareira fica cheia de raios e chamas. As aves fogem, assustadas. O cântico atinge o seu auge e cessa. E então, acontece. O frio, o ímpeto, a mudança. Onde havia pesadas botas de pele, aparecem os pés com membrana interdigital de grandes aves aquáticas. Onde as capas ocultavam jovens e musculosos braços, aparecem asas de penas brancas, grandes e arqueadas. Por fim, a mente, o espírito.
Adeus, Sorcha. Adeus, pequena coruja. A luz, a manhã, a água. Agora somos cisnes. O lago e nós somos um. Somos...
Desapareceram. Os meus irmãos tinham desaparecido. Mas a voz deles continuava, sonora, na minha cabeça.
— Não me esqueci de ti, Sorcha, irmãzinha. Quando estiveres cansada e com fome, quando a floresta não for capaz de te abrigar, encontrar-te-ei. Quando menos esperares, estarei ao pé de ti. Porque sem os teus irmãos tu não és nada. Primeiro, vou tratar do teu pai; e depois vou atrás de ti.
A minha passagem pela floresta nesse dia, a caminho do eremitério do padre Brien, aparece confusa na minha memória. Rasguei as roupas, arranhei os joelhos e feri o corpo saltando de rocha em rocha, de árvore em árvore. Linn manteve-se sempre ao pé de mim, olhando-me ansiosamente, esperando enquanto eu lutava para atravessar o rio e me arrastava pela falésia acima. Sentia a cabeça vazia, a garganta inchada e seca, de angústia. Subi e chorei, chorei e voltei a subir, chegando, por fim, à caverna do eremita.
O Sol brilhava e o dia estava agradável. A tarde ia a meio; a minha fuga disparatada fora rápida e tivera alguns custos, porque me sentia tonta e sem fôlego e todo o corpo me doía.
Foi Linn a primeira a ver a silhueta escura de uma mulher alta, sentada tranquilamente no banco à sombra das sobreiras-bravas, o cabelo escuro esvoaçando-lhe pelo dorso. O seu longo manto era do azul das montanhas distantes ao anoitecer. O cão fez uma pausa e continuou depois lentamente em frente, a cauda agitando-se hesitantemente. A mulher estendeu uma mão.
— Vem, filha da floresta. — A sua voz era profunda e ressonante.
Não me movi. Linn submeteu-se aos dedos acariciadores; também ela estava cansada da nossa corrida precipitada e lambeu ligeiramente a mão da mulher, antes de se dirigir à gamela da água para beber com goles longos, sedentos.
— Vem, Sorcha. Sabes quem sou?
Não fez qualquer movimento na minha direcção. Funguei e levei uma mão ao nariz para me assoar. Onde estava o padre Brien?
— Vem, pequena. Chamaste-me quando precisaste de ajuda. Estou aqui, venho ajudar-te.
Então, a ira subiu dentro de mim e eu avancei, ficando à sua frente e fixando-lhe os profundos olhos azuis.
— Não vieste! Chamámos-te, todos... e agora os meus irmãos... os meus irmãos desapareceram... e ela disse, ela disse que tu e ela eram a mesma pessoa, foi a ela que chamámos. — Não conseguia apagar a imagem de todos eles a transformarem-se, a mudarem, a mudarem de homens para cisnes e o terrível vazio enquanto as suas mentes se afastavam de mim e se perdiam para sempre. — Como é que sei em qual das duas hei-de acreditar?
O olhar dela era cortante.
— A espécie dela dir-te-á que não há negro nem branco, apenas sombras. Que tanto pode haver o errado como o certo, que o bom e o mau são duas faces da mesma moeda. Acredita nela, se quiseres. Talvez diga a verdade e eu seja uma mentira. Tens de decidir e tens de escolher o teu próprio caminho. E tens de o fazer agora.
— Não há escolha possível — lamentei-me. — Ela levou-os, transformou-os e desapareceram para sempre! Que outra coisa posso fazer senão correr e esconder-me e estar só? Ela disse que vinha atrás de mim, não posso ficar aqui, tenho de encontrar o padre Brien...
— Chega — disse ela levantando a mão, o que eu fiz, aspirando o ar aos solavancos. — Ele não te pode ajudar desta vez. Escuta.
E eu escutei, sentindo-me subitamente atingida pela ausência de qualquer som. Até os insectos pareciam ter parado de viver. O bosque estava profundamente silencioso.
— És capaz de te perguntar por que razão este local está tão calmo. É a imobilidade do sono, do adeus. Ele está aqui, mas não está aqui.
— O que queres dizer?
Pensei que não era capaz de sentir mais nada; mas as palavras dela gelaram-me.
— Temos pouco tempo — disse ela levantando-se e eu senti o poder da sua presença, tal e qual como da primeira vez naquele mesmo local; era como se o coração da grande floresta estivesse ali concentrado. — Deves escutar e escutar bem. Porque tens uma escolha. Podes fugir e esconder-te, esperando ser encontrada. Podes viver os teus dias em permanente terror, sem o quereres. Ou podes fazer a escolha mais difícil e salvá-los.
Olhei para ela. Linn saciara-se e estava deitada ao sol, com a língua de fora. Houve um pequeno silêncio.
— Salvá-los? — sussurrei após um bocado. — Queres dizer... este feitiço pode ser desfeito?
— Pode — disse a Dama —, mas não será fácil. Tu és a única que o pode conseguir e, portanto, tens de ter muito cuidado, porque ela suspeita disso e procurar-te-á, de modo a impedir-te. O aviso dos teus irmãos salvou-te, mas eles não conseguiram salvar-se a si próprios. Só tu o podes fazer.
— Mas ela disse-lhes... ela disse não há remédio. Eu ouvi as palavras dela, como se fosse um sino a dobrar a finados.
— Ela quis deixá-los sem esperança, pensando apenas que tinham falhado, não apenas na tentativa de se salvarem a si próprios, mas também na tentativa de te protegerem e resgatarem o vosso pai. Sem esperança ficarão vulneráveis, com menos capacidade para sobreviverem. Ou assim pensa ela.
— Que crueldade — disse eu. — Por que é que ela fez isto?
— Está-lhe na natureza — disse a Dama tranquilamente. — De acordo com os seus caprichos, pratica o mal, de uma maneira ou de outra; algumas vezes prejudica muito, outras nem tanto. Este plano dela é grande; mas não sabe que há outros padrões, mais velhos e maiores do que os dela. Tu podes desfazer-lhe o feitiço, desta vez, se tiveres vontade.
Senti renascer em mim um pequeno lampejo de esperança.
— Que devo fazer?
— Demorará tempo, será árduo e doloroso, Sorcha. Terás força suficiente?
— Sim! Sim! Diz-me o que devo fazer.
Os olhos dela mostravam compaixão enquanto se sentava de novo no banco.
— Senta-te aqui ao pé de mim, minha filha. Assim está melhor. Agora, ouve com atenção. Tens de fazer uma camisa para cada um dos teus irmãos. Tanto o fio, como a tecelagem, como todos os pontos, têm de ser feitos por ti.
— Eu consigo fazer isso, eu posso...
— Silêncio. Seria uma tarefa bem fácil, mesmo para um animalzinho selvagem como tu. Mas há mais. A partir do momento em que abandonares este local, até ao momento do regresso final dos teus irmãos à humanidade, nenhuma palavra deve passar pelos teus lábios, nenhum suspiro. Nem contarás a tua história através de desenhos, ou letras, ou sob qualquer outra forma a qualquer criatura viva. Permanecerás silenciosa, muda como os cisnes. Se quebrares o silêncio, a maldição será para sempre.
— Compreendo — disse eu tranquilamente. — E que mais? Como é que eu encontro os meus irmãos, para lhes vestir essas camisas?
— Ah, mais devagar — disse ela e tomou-me as mãos entre as dela. — As dificuldades ainda mal começaram. As camisas não serão feitas de lã, linho, ou pele. Serão tecidas e cosidas a partir das fibras da morugem. Os ramos aguçados cortar-te-ão, os espinhos rasgar-te-ão a carne. Não terás qualquer irmão para te confortar e lavar-te as mãos feridas. Chorarás em silêncio, mordendo os lábios para não chorares em voz alta. Consegues fazer isso?
— Consigo — sussurrei. Linn aproximou-se de mim, enfiando o nariz frio na minha mão. Percorri-lhe o pêlo suave com os dedos. — Voltarei a ver os meus irmãos?
— Vê-los-ás. No próximo ano, na véspera do solstício de Verão e depois duas vezes por ano, no solstício de Verão e no solstício de Inverno, entre o anoitecer e a alvorada, eles retomarão por algum tempo a forma humana e virão ter contigo, se puderem. Mas lembra-te, não deves emitir qualquer som, não deves contar a tua história, mesmo a eles, ou serão cisnes para sempre. A tarefa será longa, Sorcha. Deves deixar este local e ir em busca de segurança, tal como os teus irmãos planearam. Segue o rasto da carroça para oeste. Antes do cruzamento há um velho trilho para a direita, que volta para trás, para a floresta. Olha com atenção, ou não darás por ele, porque está escondido. Segue esse caminho ao longo da margem do lago. Levar-te-á a um lugar seguro, onde a floresta te esconderá, pelo menos por algum tempo. Leva daqui o que precisares. Escolhe com cuidado.
Falei hesitantemente.
— Por vezes, os meus irmãos... por vezes, falamos sem palavras. Através de imagens na mente. Até isso é proibido? Como poderia eu sobreviver se até aquele laço for quebrado?
Olhei para cima, para ela. As suas feições eram muito severas. Pensei que me estava a avaliar, tentando descobrir se eu era tão forte como dizia. Abriu a boca para falar e depois hesitou. Respirei profundamente.
— Farei o que tiver de fazer — disse eu. — Mas os meus irmãos fazem parte de mim e... — não lhe podia pedir mais nenhum favor.
A Dama teve um pequeno sorriso, como se compreendesse demasiado bem.
— Não fui eu que lancei este feitiço; apenas procuro contra-atacar. Creio que a fala silenciosa é segura. Lady Oonagh joga com forças que não compreende na totalidade. A ligação entre os teus irmãos e tu própria é muito mais poderosa de que ela alguma vez poderia imaginar. Não conseguirás chegar até eles, dessa maneira, enquanto forem cisnes. Mas podes fazer uso dela quando eles regressarem. Arriscas-te, se o fizeres. Lembra-te, não lhes deves contar a tua história porque, se o fizeres, o feitiço não será quebrado. Deves aprender a manter a tua mente fechada, até para eles.
— Mas e se...
— Silêncio, filha. Os feitiços são assim, assim como os encantamentos, determinam-nos estas tarefas. Podes escolher fazer como eu te disse, ou não. Lembra-te, quando as camisas estiverem feitas, deves colocá-las no pescoço dos cisnes, um a seguir ao outro e, se mantiveste silêncio, os teus irmãos voltarão a ser homens de novo.
Senti um restolhar de vento nos arbustos à nossa volta e no espaço de uma piscadela de olho ela tinha desaparecido.
Já tinha visto gente morta antes. A natureza de meu ofício tornava-o inevitável. Mas nunca, até agora, acontecera com uma pessoa chegada. O padre Brien jazia no chão da caverna, onde caíra. Não havia tempo para tristezas. Se houvesse, talvez o tivesse chorado e descoberto a causa da sua morte. Talvez tivesse sido natural, um espasmo do coração, ou humores doentes no sangue. Também podia ter sido veneno, ou um dedo aplicado no pescoço com habilidade, Fechei-lhe os olhos sem vida e toquei-lhe na face. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, o rosto dele, agora, irradiava a tranquilidade de uma profunda e permanente aceitação. Estava onde queria e desejava infinitamente continuar assim. Dizem que o espírito não deixa o corpo por completo até à terceira manhã após a morte. O meu velho amigo não partira há tanto assim, mas o seu interior tinha voado para longe, para a grande vastidão abobadada do céu, que ele costumava observar do alto de Ogma’s Peak, por sobre o topo das árvores escuras, as águas do lago e para oeste. Coloquei-lhe a cruz de madeira entre as mãos e as palavras de um cristão vieram-me à mente, mas não as disse. Quem sabe para onde teria voado o seu espírito? Sempre fora um homem aberto para os dois lados; na morte, muitas portas se abririam para ele.
Não tinha qualquer desejo de abandonar o corpo, mesmo desabitado, sem qualquer cerimónia. Devia cremá-lo, mas atear uma fogueira era chamar a atenção. Além disso, precisava de empacotar umas coisas e sair dali enquanto era dia. Havia apenas tempo para lhe deitar por cima ruda, folhas de tanásia e um pouco da sua reserva de acónito. Linn rondava a entrada; não entraria. Não o chorei. Em vez disso, senti um frio sentimento de resolução apoderar-se de mim. A dor ainda estava presente, assim como o vazio. Mas conseguia concentrar-me no que devia ser feito e mexi-me rapidamente para levar a cabo as tarefas necessárias.
Abençoei mais de uma vez o bom padre pelo seu espírito prático. O seu velho cavalo estava ali, atado sob as árvores. Devido à necessidade de rapidez e disfarce, não levaria a carroça, mas o animal poderia carregar as coisas e, assim, ajudar-me. Porque não tinha dúvida de que devia partir sozinha e defender-me a mim própria durante bastante tempo. Se tivesse sabido quanto, talvez me faltasse a coragem. Seis camisas, pensei. Isso duraria, pelo menos, até meio do Verão. E como não encontraria ninguém durante esse período, precisaria de comida, sementes, ervas medicinais e o necessário para fazer fogo, coser, fiar e tecer. O padre Brien não previra isso, mas, de qualquer maneira, preparara-se bem, esperando aprovisionar-me e ao meu irmão para uma viagem para lá das fronteiras da floresta. Eu tinha abandonado o meu próprio pacote na margem do lago, quando fugi aterrorizada. Não teria as minhas roupas, as salvas e remédios, ou os restos de meu jardim arruinado, que Finbar reunira com tanto cuidado. Procurei na algibeira de meu vestido. A pequena e suave peça de madeira, com os seus símbolos gravados, continuava lá.
O padre Brien guardava as suas coisas nas traseiras da cabana e eu levei tudo o que me pareceu útil. Um saco de cevada, um saco de feijão seco, uma pequena caneca de mel. O tempo já estava fresco. Vesti uma velha capa e uma túnica dele. As botas de Simon ainda ali estavam e apropriei-me delas. Uma faca afiada, uma foice e um pote para cozinhar. Ia ser difícil alimentar a cadela. Esperei que ela desenvolvesse uma súbita habilidade para caçar. O padre Brien não tinha roca nem fuso, nem tear. Mas até o vestuário de um santo padre precisa, por vezes, de ser remendado, por isso descobri agulhas de osso e um rolo de fio, coisas que meti no pequeno saco. Uma garrafa de água e uma pá. O cavalo olhou para mim um pouco queixosamente, retorcendo as orelhas. Coloquei no topo alguns cobertores amarrados e atei a carga com firmeza. O pequeno pacote, que continha algumas coisas cuidadosamente seleccionadas da reserva de ervas e especiarias de padre Brien, carregá-lo-ia eu mesma. E usaria o seu bordão de carvalho para me facilitar a jornada.
Permaneci ali um momento, antes de me despedir. A clareira estava cheia de recordações. A chegada do padre Brien, as suas orações, leituras, curas, a sua vida solitária na floresta e os seus ensinamentos. Os seus jovens visitantes: o solene Liam e o alegre Diarmid, os gémeos, como se fossem imagens de um espelho. Cormack, corajoso e temível, Conor, profundo e subtil. Finbar, com a sua integridade apaixonada. Padriac, sedento de conhecimento. E a pequena irmã deles, que não era o sétimo filho do sétimo filho, mas que ia com eles para toda a parte. Ensinara-nos muito ao longo dos anos e agora tinha partido. Agora, o lado humano dos meus irmãos também era só isso, uma recordação, até eu conseguir trazê-los de volta. Ali estava a sorveira-brava, junto da qual eu vira a Dama da Floresta pela primeira vez. Ali, o local onde Simon encostara a sua faca ao meu pescoço e nos perguntara porque não acabávamos com a sua vida miserável. As árvores sussurravam as recordações das minhas histórias e o ar quieto segurava ainda os sons da sua voz; não me deixes, dizia a voz, não me deixes só.
Passei uma mão com força pelas faces e fiz estalar os dedos para chamar Linn. Aprenderia rapidamente que não poderia voltar a chamá-la, ou elogiá-la com palavras amáveis. Peguei na corda que segurava o cavalo, virei o rosto para a floresta e caminhei firmemente para oeste.
CAPÍTULO CINCO
A Dama da Floresta escolhera bem o nosso refúgio. Ficava perto da margem norte do lago, num local onde a curva de um pequeno promontório arborizado abrigava da vista uma pequeníssima baía. No local onde a terra se elevava a partir daquela baía havia uma caverna que devia tanto a uma engenharia astuta como à natureza. Apesar de estar muito próxima da margem, nodosas sorveiras-bravas e pendentes trepadeiras escondiam-na completamente da vista, de maneira que ficaria invisível de qualquer pista ou caminho público. Um pouco mais longe, no alto da encosta, numa pequena clareira, havia uma pequena nascente e ali as ervas cresciam meio selvagens, no local onde haviam sido cultivadas por um vagabundo qualquer, como eu. E ao longo de leito da corrente, até ao lago, cresciam os grandes caules e as folhas leves da morugem. Esta planta não morre no Inverno, permanecendo verde sob o frio mais intenso. Assim, poderia começar imediatamente.
A caverna, em si, fora uma surpresa. As suas paredes tinham marcas de escavações cuidadosas e aqui e ali havia símbolos misteriosos gravados, cujo significado apenas adivinhei indistintamente. Pensei que Conor devia ter sabido que aviso, ou protecção davam, que história contavam. Havia cavidades nas paredes e nem todas estavam vazias. Encontrei cobertores num embrulho oleoso, várias capas velhas e um par de facas com cabos de osso decorados e lâminas maravilhosamente bem conservadas. Parecia que outros se haviam abrigado ali antes de mim, talvez protegidos pelas Criaturas Encantadas. Ainda mais útil, havia papas de aveia numa panela, um stock de doce e maçãs secas.
Os cobertores eram a melhor descoberta, porque se estava perto do solstício do Inverno e não me sentia muito segura a acender senão uma pequena fogueira, para que a minha presença não fosse detectada. Eu já tinha frio, que entrava até aos ossos durante as longas noites e que era muito doloroso nas manhãs cheias de geada. Enrolei os cobertores em volta de mim mesma e tentei não o sentir.
Talvez eu fosse estúpida ao acreditar que poderia quebrar o feitiço. Demasiadas histórias, se calhar, uma cabeça cheia de lendas, onde o herói cumpre determinadas tarefas e ganha, depois, o coração da sua amada. Mas eu não era assim tão tola, mesmo então. Uma vez, disse a Simon que ele podia terminar a sua história da maneira que quisesse. O que não era totalmente verdade. Escolhi o meu caminho; mas havia outros que influenciavam o seu curso, que divergiam, o mudavam e confundiam. E como a Dama da Floresta me avisara, até o princípio seria muito difícil. Muito mais difícil do que acreditara ser quando primeiro a ouvi, pálida, descrever-me a minha tarefa.
Fiar e tecer com linho, ou lã, estraga as mãos, com o pente e os torções a rasparem e ferirem os dedos, ao mesmo tempo que o movimento do fuso começa a provocar uma dor grande nas articulações. Pode-se descobrir uma fiandeira pelas mãos. Enquanto dão beleza ao seu trabalho, estas vão ficando nodosas, torcidas e velhas. As damas nobres das velhas lendas, Etain e Sadb, que se transformou num veado, e Niamh, dos cabelos dourados, cujo nome a minha mãe partilhara, não podiam ter sido fiandeiras e tecedeiras, porque as suas mãos são descritas como brancas e perfeitas, decoradas com anéis de prata, mãos para um bravo guerreiro beijar quando regressa vitorioso de uma batalha. Mãos feitas para bordar, ou para tocar harpa. Dedos esguios para esconder um bocejo delicado, ou para tocar na face de um amante. As damas das velhas lendas nunca ouviram falar da morugem.
Já falei antes desta planta, como parece suave como as penas de uma pomba, com a sua folhagem cinzenta-esverdeada delicada e flores parecidas com estrelas. Como enterra as suas minúsculas agulhas na carne, queimando, furando e torturando como se fosse fogo. Como a carne incha, fica vermelha e lateja, como a dor permanece até que o último vestígio de veneno seja retirado. Mal sabia por onde começar, porque não havia maneira de proteger as mãos e fazer a tarefa. Podia utilizar uma faca para cortar os caules e segurá-los com um bocado de tecido. Essa era a primeira coisa. Mas não podia cortar os caules e as folhas e transformá-los em fio com as mãos enluvadas. Além disso, sabia o suficiente sobre magia para reconhecer que não podia fazer batota. Para salvar os meus irmãos, teria que sofrer o que eles sofriam. Como o meu pai, de certeza, sofria à sua própria maneira, porque nem ele poderia ficar indiferente ao súbito desaparecimento de todos os seus filhos de uma vez só. Perguntava a mim própria que explicação lhe dera Lady Oonagh. Não, eu teria de arrancar aquela planta e fazer aquelas camisas com as mãos nuas, sangrando e fá-lo-ia, porque sabia que era a única maneira de quebrar o feitiço.
Não tinha ferramentas nem muita habilidade. Sabia como fazê-lo porque observara as mulheres da aldeia, sentadas nos seus bancos altos, extraindo a fibra de lã, alimentando-a alternadamente da roca para o fuso, deixando o fio entrançar e crescer, enquanto o fuso rodava lentamente ao nível do solo. Em seguida o fio enredava-se no eixo, giravam o fuso e recomeçava tudo de novo. O trabalho era rítmico e muitas vezes elas cantavam durante a operação, parecia uma coisa simples. Mas eu não ia trabalhar com lã. Uma planta fibrosa, como a morugem, teria que ser ensopada, batida e seca antes de conseguir fabricar o respectivo fio. Teria de começar de qualquer maneira.
Primeiro, fiz o fuso. Havia muitos pinheiros no alto da encosta e até uma extensão de ramos finos, despidos de galhos, que serviriam como fuste do fuso. Quando cortei a madeira com o machado não me esqueci de agradecer silenciosamente aos espíritos da árvore. Se ia viver ali sozinha, a sua boa vontade seria essencial. Linn resolveu a minha parte seguinte do problema enquanto farejava o solo, procurando aromas interessantes. Ela aprendera o jogo da busca e trouxe-me uma pinha que caíra da árvore antes de amadurecer e deixou-a cair, expectantemente, aos meus pés, esperando que eu a atirasse para longe, de maneira a ela poder ir buscá-la. A pinha era bem modelada, simétrica e pesada. E assim arranjei o meu fuso. Afaguei Linn e atirei outra pinha para ela correr atrás. Quando regressei à caverna, utilizei a pequena faca para fazer um buraco na base da pinha e nele enfiei a ponta do fuste. Fiz um entalhe na outra ponta, onde o fio seria preso. Até agora, tudo bem. Em seguida, peguei na faca e fui cortar morugem.
Não me demorarei muito neste processo. Cortei os caules e meti-os em sacos, o que me poupou um pouco as mãos, mas mesmo assim as agulhas alojavam-se-me na carne e as mãos doíam-me mais do que eu julgava ser possível. Apesar da quantidade de plantas, a tarefa decorria lentamente. Quando tinha um conjunto de caules pronto, fui até à margem do lago à procura de um lugar onde pudessem ser encharcados. Tive sorte. A corrente passava por entre grandes pedras cheias de musgo e aqui e ali formavam-se pequenas poças. Mesmo acima da margem pedregosa havia um lugar onde podia mover uma pedra ou duas, de maneira que apenas uma pequena corrente passava por uma poça pouco profunda. Ali abri os braços cheios de caules espinhosos. Com algumas plantas e madeira de freixo fiz uma fogueira para apressar a preparação da fiação. Sabia isso devido ao meu estudo das ervas.
Decidindo que não fazia mal nenhum tentar, esperei até que a minha pequena fogueira arrefecesse e de manhã peguei num punhado de cinza mole e levei-a para a borda-d’água. Borrifei com ela os caules e usei uma pedra redonda para bater e quebrar as duras fibras até ficarem com o aspecto de fios isolados. Torci cada um daqueles novelos duros em volta de um pau, coisa que consegui fazer entre as pedras da poça, de maneira que a água rodeava-os por completo. Depois, esperei. Três dias demorou a espera, tempo suficiente para retirar das mãos os espinhos da morugem e para lhes aplicar uma pomada, tempo suficiente para fazer um inventário das minhas magras provisões e para perceber que, sem provisões, ou sem roubar, não duraria até à Primavera. Tempo suficiente para aprender a ferver aveia em água sobre a fogueira para fazer umas papas simples e para explorar um pouco a minha nova casa. Fiquei surpreendida ao descobrir que não estava muito longe do cume da encosta ocidental e que, de onde estava, podia ver uma extensão de terreno aberto, liberto de floresta, para efeitos de pastagem. Havia lá pequenas casas de fazenda, uma ou duas. Estavam suficientemente perto para, talvez, me poderem fornecer provisões. E estavam suficientemente perto para serem uma ameaça à minha segurança.
No quarto dia retirei a morugem da água, bati de novo as fibras e pendurei-as dentro da caverna até ficarem quase secas. No dia seguinte comecei a fiar.
Pobre Linn. Estava bem adaptada ao meu estado de espírito e mantinha-se humilde e fiel como só um bom cão o pode ser. Estava-lhe para além do entendimento o porquê do meu choro, porque todo o meu corpo estava tenso devido à dor e porque não me conseguia fazer sentir melhor ao lamber-me, gemendo e sentando-se tão perto de mim quanto podia. A sua aflição incomodava-me e tentei trabalhar enquanto ela estava fora, caçando; mas a tarefa era lenta, tão lenta, fio atrás de fio quebradiço que se partia, se desenredava e não torcia, a tentativa para continuar e em breve a dor se tornou demasiado insuportável, deixei cair o fuso e corri para mergulhar as minhas pobres mãos na corrente para suavizar a dor.
Foram tempos difíceis e eu ouvia uma voz interior que me dizia que aquela tarefa era impossível. Porque não desistir? Vê, as tuas mãos estão inchadas e arruinadas, choras dia sim, dia não e qual é o resultado? Um pequeno carretel de fio de má qualidade, rugoso e frágil, que mal dá para fazer a bainha de uma jaqueta para uma borboleta, quanto mais para uma camisa de homem. Esta tua tarefa não pode ser levada a cabo. Além disso, como podes ter a certeza de que a Dama da Floresta não te mentiu? Talvez isto não passe de um truque cruel e o teu trabalho não sirva para nada.
Era difícil ignorar semelhante voz. Mais do que uma vez tirei da algibeira a pequena peça de madeira e olhei para a pequena árvore gravada nela, imaginando-me a falar com Simon, falando, falando sempre do seu desespero, ódio por si próprio e miséria. E comecei a contar histórias a mim própria, não em voz alta, mas mentalmente; e procurava concentrar-me nessa história, quer fosse sobre um herói, um gigante ou três irmãos que saíam de casa em busca de fortuna. Se não me lembrava de uma, inventava-a, ou melhorava outra que conhecesse.
Durante todo o dia, as minhas mãos iam fazendo aquele terrível trabalho e a dor permanecia, assim como o inchaço, que tanto dificultava o controlo do fuso e do fio. Mas a minha mente ultrapassava a dor e ia viver com damas encantadoras, nobres guerreiros ou viajantes cheios de sorte, dragões, serpentes e desejos mágicos.
Quando o anoitecer tornava o trabalho impossível, punha de lado o que tinha feito, tentando não ver quão magra fora a quantidade de fio que produzira. Não havia nenhum irmão para me arrancar da carne as agulhas da morugem, nenhum trovador para me confortar, nenhum amigo para me tratar as mãos com unguentos curativos. As farpas ficavam-me na pele, porque os meus dedos inchados e dormentes não tinham o controlo suficiente para as extrair. De vez em quando a carne supurava e os humores surgiam e escorriam das lesões. Então, ficava febril e tonta. Mas tinha escolhido bem entre o stock de remédios do padre Brien. Trouxera uma pomada de erva-férrea e consolda e fiz uma infusão de casca seca de salgueiro e de uma erva medicinal com água de nascente que utilizava, tanto para me lavar, como para beber. Pouco tempo depois senti-me suficientemente bem para recomeçar, se bem que mais fraca. Parecia que o meu corpo aceitava o inevitável e as minhas mãos ficaram cheias de cicatrizes e ásperas devido ao tratamento precário. A dor mantinha-se, mas eu podia continuar.
O Inverno transformou-se em Primavera e eu emagreci. Conseguia contar as costelas e sentia o frio de noite, se bem que Linn dormisse ao meu lado. E tinha fome. Pois um saco de alimento não dura muito, mesmo para uma rapariga e a não ser que mendigasse, ou roubasse, tinha de contar com o que encontrava. Não comia carne ou peixe desde miúda, porque sempre sentira uma relação muito forte com as outras criaturas, o que fazia com que os meus sentidos se revoltassem à ideia de as comer. Linn aprendera a caçar na floresta; a fazer desaparecer os restos das presas habilmente e longe da vista da sua companheira humana. Para mim era mais difícil. Precisava de encontrar comida, agora que o tempo estava mais quente, uma boa provisão de cogumelos, agriões nas nascentes e cebolas selvagens. Ainda era muito cedo para outras coisas e racionei o que me restava de cevada e a decrescente provisão de feijão para quando chegasse a ocasião das bagas e nozes maduras. Apesar da fome, detestava todo o tempo perdido à procura de comida vegetal.
O cavalo estava cada vez mais esquelético e de olhar selvagem e eu já não podia continuar com ele. Um dia, quando o Sol estava descoberto e os primeiros calores da Primavera pairavam no ar, levei-o através do bosque para o local onde a terra fora desbravada para ser transformada em pastagem, de onde se podia ver os campos verdes, os muros de pedra, uma vaca ou duas à distância e uma coluna de fumo saindo de uma pequena cabana. Pousei-lhe a testa no pescoço durante um momento, tentando dizer-lhe que o padre Brien gostaria que ele ficasse em segurança, fosse útil e bem alimentado. Então, dei-lhe uma palmada no flanco e apontei para a frente. O animal partiu cautelosamente através do campo e eu deslizei de regresso às árvores e deixei-o. Espero que tenha encontrado gente bondosa e um estábulo quente.
No princípio da Primavera houve uma grande trovoada que açoitou a floresta durante um dia e uma noite, chicoteando o topo das árvores numa dança frenética e empurrando agulhas de chuva gelada para dentro do meu abrigo, de maneira que cada cobertor, peça de roupa, canto de solo, estava saturado. A minha fogueira tornou-se inútil e eu sentei-me e tremi desamparadamente, enquanto a cadela fazia os possíveis para me manter quente. Na segunda manhã, quando a trovoada amainava lentamente, fui acometida por convulsões e só conseguia pensar no grande fogão do vestíbulo de casa, com os seus toros de pinho a estalarem e a pequena lareira do meu quarto, que iluminava a coruja e o unicórnio tecidos na tapeçaria. Meio a sonhar, imaginei uns braços fortes a embrulharem-me num cobertor e a embalarem-me até adormecer, quente e segura. Acordar deste sonho, ensopada e a tremer de frio, foi muito cruel. Após um certo tempo, Linn cansou-se de mim e saía de manhã, enquanto eu ficava a chorar silenciosamente, pensando que ia desistir de tudo, ou quase, se alguém me trouxesse uma malga de cerveja forte da Fatjanis.
Não sei quanto tempo fiquei assim, mas o meu sentido de autopiedade foi interrompido pelo ladrar de Linn e eu coxeei para o exterior, os membros entorpecidos a protestar, para ver que um dos grandes freixos tinha caído durante a noite, trazendo com ele muitos dos seus irmãos mais pequenos e jazendo agora no lado de fora da minha porta. Linn estava mais acima, na encosta, procurando algo no solo.
A morte desta grande árvore abrira um grande espaço na densa floresta em volta da minha caverna e eu podia ter um vislumbre do lago, entre os jovens ulmeiros e salgueiros. Permaneci ao lado do gigante caído, pousando-lhe na casca cinzenta e suave as minhas mãos inchadas e falei intimamente com o espírito que vivera dentro dele, porque a trovoada levara-o com um gesto violento. Agradeci-lhe pelos anos de abrigo que a árvore dera às pequenas criaturas, pelo alimento que deixara cair no solo e pela permanente paz e compreensão. Disse-lhe que daria bom uso à madeira, fabricando novas ferramentas para o meu ofício, alimentando a minha fogueira e assegurei-lhe que a luz que agora banhava a encosta, branca e fria, no seu brilho após a trovoada, daria origem a nova vida no solo. Com o tempo, outro vidoeiro cresceria ali. Disse-lhe isso e a fria suavidade da casca acalmou-me a dor dos dedos. Senti o conhecimento e o mistério da grande árvore absorvidos pelo meu espírito, senti-lhe a singularidade, a solidão, a vida e a morte. Ainda não lhe cortaria a madeira. Esperaria que o espírito se afastasse e então, na altura própria, cortaria, secaria e moldaria uma nova roca e um novo fuso e tentaria fabricar um tear, porque pensava que já tinha fiado fio suficiente para começar a fazer a primeira camisa. A minha força ainda não era suficiente para atacar o maciço tronco ou os grandes membros de tamanho gigante, mas o meu pequeno machado podia cortar os ramos mais baixos. Olhei para as minhas mãos inchadas e flecti os dedos doridos. Ia ser duro.
Entretanto, o grande freixo ficaria onde estava, o musgo trepar-lhe-ia para o tronco e as pequenas criaturas fariam os seus ninhos nos pequenos buracos. Até na morte seria um elo na grande cadeia dos seres da floresta.
A estação continuava. As abelhas atacavam as doces flores da alfazema e os bosques estavam atapetados de flores resplandecentes. O dia e a noite equilibravam-se, as aves andavam em busca de pedaços de palha e pequenos ramos, preparando os ninhos para novos nascimentos. Aventurando-me até à margem do lado, uma manhã, vi bandos de aves aquáticas lá longe, na direcção das pequenas ilhas, vagueando sobre a superfície prateada da água, subindo para o céu em grandes nuvens de asas batendo ou mergulhando, à procura de peixe. Não conseguiria dizer, àquela distância, se alguma delas era um cisne.
A água estava mais quente e eu consegui despir-me, lavar-me e limpar o meu vestuário coberto de lama. Durante todo este tempo, não vira qualquer sinal de vida humana na margem. Era como se este canto selvagem estivesse, de alguma maneira, protegido de interferência mortal e talvez fosse verdade, pelo menos por algum tempo. A floresta esconder-te-á, dissera a Dama da Floresta. Quem poderia saber quanto da sua influência não estaria presente?
O tempo passou e a floresta explodiu com vida nova. Todos os dias eu dava uma volta pelas redondezas. Levantava-me de madrugada para me lavar na água do lago, soprava as brasas da minha pequena fogueira para a trazer de novo à vida e fervia água com, talvez, uma mão-cheia de agriões e cebolas selvagens, para um pequeno-almoço frugal. Depois, Linn desaparecia ao longo da margem, ou nos bosques, em busca de caça e eu ia à procura de comida. À medida que a Primavera se aproximava do Verão, esta tarefa tornou-se mais fácil. As amoras amadureciam e havia por aqui e por ali groselhas, prontas a serem colhidas. Os sabugueiros estavam cobertos de branco. As ervas selvagens eram abundantes, os pés-de-leão, a salva, a manjerona e a ficaria. Reparei onde cresciam as madeiras e as aveleiras, porque me forneceriam uma boa colheita mais tarde, no Outono. Já sabia, então, que iria viver aqui, pelo menos, mais um Inverno, já que a tarefa era terrivelmente lenta. Ainda mal tinha fio para uma camisa e já estávamos quase no Verão. Quando regressava da minha busca de comida, pegava na roca e no fuso, no inesquecível fardo de fibras e fiava, fiava, sentindo as farpas entrarem-me na carne, e contava a mim própria histórias em silêncio, com os olhos fixos no vazio. De vez em quando levantava-me para dar um passeio sob as árvores, encostando as costas e ombros doridos a um grande carvalho ou robusto ulmeiro. Então, a minha mente procurava-os, para lá do lago, no céu, algures, onde os meus irmãos pudessem estar.
Onde estás, Finbar?
Mas não havia qualquer resposta. E podiam estar mortos, caídos por terra, vítimas da seta de algum caçador, de um lobo, ou um javali.
Onde estais?
Não me podia permitir fazer isto durante muito tempo. Linn voltava lambendo os beiços, sentava-se ao pé de mim para me fazer companhia e eu voltava para a roca. Mais tarde, durante o dia, pegava no fio que fizera de manhã e acrescentava-o ao que já tinha. Estava para além das minhas capacidades fazer um tear como os que vira as mulheres, em casa utilizar. Mas encontrara um bocado de casca de árvore liso, com duas mãos de comprimento, um pouco menos de largura. Arredondara-lhe os cantos e atara-lhe o fio em volta. A trama tecia-a à mão, com uma agulha de osso, trazida do padre Brien. Por baixo e por cima, por baixo e por cima. O tecido era rugoso e irregular, mas aguentava-se. Mais tarde teria tempo para pensar em como aquilo poderia ser transformado numa camisa.
O solstício do Verão apanhou-me quase de surpresa. Estava a trabalhar tão regularmente quando podia e comecei a procurar morugem mais longe, porque já quase tinha esgotado o stock perto da caverna e tinha de o deixar de lado, para que recuperasse. Um dia, aventurei-me pelo velho carreiro por onde tinha levado o cavalo, pela encosta acima, por entre vinha virgem e trepadeiras, fetos e musgo, pela luz verde-escura filtrada da velha floresta, até estar quase ao pé do local onde o tinha deixado. Havia um sentimento estranho dentro de mim, como se tivesse que me certificar que o resto do mundo não se fora embora enquanto eu permanecia escondida na minha caverna, a fiar. Porque, que era das histórias dos rapazes e raparigas levados pelas Criaturas Encantadas para debaixo da encosta? Passavam uma noite com elas, cantando e dançando e, quando voltavam para casa, descobriam que se tinham passado cem anos e que todos os seus familiares tinham morrido. Quem poderia dizer que não me aconteceria o mesmo?
Aproximei-me o mais que me atrevi da orla da floresta e trepei calmamente para os braços abertos de uma nogueira. Linn ficou a guardar-me a trouxa, feliz por ficar no meio dos fetos, porque o Sol estava quente e o ar pesado, anunciando trovoadas de Verão. Do meu ponto privilegiado olhei por cima de uns amieiros jovens, para um trilho de carroças bordejado por espinheiros-alvar e para lá, para campos divididos por muros, alguns semeados de cevada ou centeio e outros utilizados para pastagens. Havia uma cabana ou duas, bastante longe. Aqui e ali a terra elevava-se em pequenas colinas cónicas, algumas cobertas de pinheiros ou carvalhos no topo. E para lá das terras cultivadas, recomeçava a floresta. Fiquei sentada tranquilamente naquela quietude, praticamente não pensando em nada. O doce cheiro da flor do espinheiro-alvar sentia-se no ar e eu sentia o movimento das pequenas criaturas na sua labuta, insectos indolentes no calor do Verão, o restolho de coelhos e esquilos no solo e os misteriosos e pouco vistos habitantes das árvores, cujas vozes flutuavam no ar como música frágil, sussurrante.
Olá, Sorcha. Sorcha, nossa irmã. O tinir de um riso e o brilho súbito de uma asa delicada ou de uma teia de aranha, meio escondida na luz malhada. Por vezes, podemos cruzar-nos com uma grande mecha de cabelo dourado, ou uma delicada pegada, no local onde passaram. Vem dançar connosco, irmã. Agradeci-lhes em silêncio, sabendo que elas sabiam que não podia segui-las. E então, numa grande agitação, desapareciam; porque ao longo do trilho de carroças vinha um bando de jovens, rapazes e raparigas, rindo, assobiando, gritando, com flores e fitas nos cabelos. Observei-os calmamente e Linn permaneceu silenciosa no sítio onde estava; um gesto seco da minha parte fora o suficiente para a obrigar a obedecer. À medida que o bando passava por entre os espinheiros-alvar, fazia pausas para envolver os ramos, ainda perfumados da floração, com bandeirolas, cantando uma velha canção, pedindo à Grande Mãe uma colheita abundante. Os jovens cantavam com faces e olhos brilhantes; e quando terminaram as raparigas desataram aos risos e correram pelo trilho abaixo com os rapazes a perseguirem-nas, recomeçando tudo de novo.
Dois dos rapazes levavam às costas feixes de lenha e o grupo separou-se, as raparigas continuando pelo trilho afora até cada espinheiro-alvar ficar com a sua bandeirola dourada e branca e fitas verdes. Os rapazes encaminharam-se para a colina mais próxima, vi-os preparar uma fogueira no topo e percebi que eram os preparativos finais para o Meãn Samhraidh, o solstício do Verão.
Esta noite haveria oferendas passadas por cima da fogueira e ervas a arder seriam transportadas para os estábulos e celeiros, para os campos e cabanas, pedindo a bênção de Dana, a mãe-deusa, para todas as criaturas neles residentes.
E chegara a hora. A hora para descobrir, se queria acreditar no que a Dama me dissera. Hora de saber se era verdade que eu podia quebrar o feitiço. Porque recordava muito bem a sua promessa; duas vezes por ano, no solstício do Verão e no solstício do Inverno, eles virão ter contigo, se puderem e do anoitecer ao amanhecer poderão retomar o seu aspecto humano. Aquelas palavras estavam cheias de incerteza. Mas eu acreditava que os meus irmãos viriam e que tinha que voltar para o lago para os esperar.
As raparigas ainda estavam à vista no carreiro e não me atrevi a mexer-me enquanto pudesse ser vista. E agora havia outro rapaz que se aproximava, hesitantemente, muito atrás dos outros. Era atarracado e tinha as feições grosseiras e inocentes de um mal-nascido, um que estaria sempre um passo atrás dos outros. Corria ao longo do carreiro o melhor que podia, coxeando um pouco, as grandes mãos abrindo-se para tocar uma fita aqui, uma flor ali, o grande sorriso revelando um conjunto de dentes salientes.
Os outros tinham-se afastado, mas ele parecia não se importar. Em vez disso, escolheu o local, mesmo por baixo da minha árvore, para se sentar e vasculhar nas algibeiras. Eu queria ir-me embora, mas não me podia mexer. O rapaz tirou um bocado de pão e queijo e começou a comer sem pressa. Quase podia tocar-lhe; no fim de contas, ele escolhera o mesmo local que eu para gozar a vista e os cheiros deste glorioso dia de Verão. Assim, esperei, enquanto ele ia enchendo a boca. Há muito tempo que eu não provava pão. Depois de acabar, o rapaz pareceu adormecer, o chapéu sobre os olhos, as mãos penduradas nos joelhos, aparentemente alheio ao que o rodeava. Esperei um pouco mais. Ele não mostrava sinais de que se iria mexer. Pensei nos meus irmãos e na grande caminhada até ao lago e comecei, muito lentamente, a descer da árvore.
Houve tempos em que podíamos mexer-nos através da floresta, os meus irmãos e eu, com rapidez e em total silêncio. Ninguém nos poderia ver, ou ouvir, ou apanhar. Mas agora as minhas mãos tinham perdido muita da sua sensibilidade. Estavam inchadas e calejadas e as falanges doíam-me, mesmo com o calor do Verão. Não consegui segurar-me, por um momento, agarrei-me a um ramo e ouvi a madeira a estalar, um som mínimo. Num relâmpago, ele estava de pé, olhando-me de frente e os seus redondos olhos castanhos estavam cheios de espanto.
— Uma fada! — exclamou ele em voz alta, ligeiramente indistinta. — Uma fada!
O seu sorriso era enorme e jubiloso, como se o seu mais caro sonho se tivesse tornado realidade; como se tivesse visto o objecto mais maravilhoso da sua imaginação. Por um instante, fiquei também a olhar para ele. Depois, deslizei para o solo, peguei na minha trouxa e desapareci na floresta, certificando-me de que o meu rasto seria tão difícil de descobrir, que ninguém me poderia seguir. Pobre rapaz. Imagino quantas vezes terá ele esperado, naquele local, pela visita de uma fada. Muitas vezes, era a pessoas assim que elas apareciam. Esperava, se ele contasse a sua história, que lhe pusesse muita imaginação. Com sorte, acreditariam que tinha sido, na verdade, uma pequena fada que ele tinha visto.
O encontro abalara-me. Fora uma grande loucura, arriscando-me a ser descoberta no dia do regresso dos meus irmãos. Jurei nunca mais voltar ali, por maior necessidade que tivesse de contacto humano, por maior que fosse o meu isolamento. Nenhuma desconfiança deve chegar à minha aldeia e dali a Lady Oonagh. Porque viria atrás de mim, não tinha qualquer dúvida. Além disso, perdera tempo precioso. Já se estava a meio do Verão e mal começara a primeira camisa. Por aquele andar ficaria ali durante muitas luas. Apressei-me através da floresta, ansiosa pelo cair da noite.
Para dizer a verdade, mal acreditava que eles aparecessem aquela primeira vez, como ela me dissera. Mas preparei-me para eles, lavando-me, passando um pente pelos caracóis em desordem e pondo a melhor ordem que podia na minha simples morada. Deixei o fogo aceso, se bem que abafado e encaminhei-me para o lago muito antes do pôr do Sol. Ali, cumpri o ritual, sozinha e em silêncio. Tive o cuidado de não deixar nada de lado. Agradeci à vez aos espíritos do Fogo, do Ar, da Água e da Terra. Não pedi qualquer favor. Em vez disso, abri a mente para o que viria. Disse-lhes que o aceitaria, fosse o que fosse. Pedi-lhes que me aceitassem pelo que era na grande teia da vida e que fizessem de mim o que quisessem. Quando terminei, peguei no bordão de carvalho que pertencera ao padre Brien e desenhei o círculo na areia branca à minha volta. Sentei-me de pernas cruzadas no meio e esperei, com as vastas e vazias águas do lago defronte. Gradualmente, os sons da floresta começaram a entrar-me na consciência. As árvores restolhavam e as aves chamavam e respondiam, lá no alto. Não podia fazer mais nada.
O céu tornou-se rosa, violeta e cinzento-escuro. Uma coruja voou por cima de mim, invisível, o seu grito queixoso flutuando no ar de fim de tarde. Faltava pouco. Faltava pouco, agora. Linn tinha estado tranquila, agachada na relva, observando-me cuidadosamente. Mas aproximou-se, rosnando ligeiramente. E eles apareceram, na água, deslizando juntos, fantasmas brancos na ondulação escura. O meu coração saltou, mas fiquei sentada e esperei. Os trovões ouviam-se lá longe, a ocidente e o ar pegava-se, húmido, à pele.
O último raio de sol extinguiu-se; a noite estendeu os braços sobre a floresta. Quando o crepúsculo se transformou em escuridão, houve um movimento na água e eles vieram à margem, um a um. O momento da transformação foi-me vedado pela noite, porque a Lua ainda não se tinha mostrado através das nuvens muito juntas. Vi vagamente a forma de uma grande asa, o curvar de um forte e curvo pescoço. E então eles estavam ali, os meus irmãos, os meus queridos, na areia, à minha frente, aturdidos e molhados, meio vestidos com os mesmos trajes usados antes e então, bálsamo para o espírito, veio a saudação silenciosa de mente para mente, aos tropeções e incoerente, a princípio, mas enchendo-me o coração com a maior das alegrias.
Sorcha. Sorcha, estamos aqui.
Aproximei-me e toquei em cada um deles, mal me apercebendo, à luz da minha pequena lanterna, da desolação e confusão nos olhos deles, ouvindo as suas vozes hesitantes. Nada estava bem com eles. Se eu esperava que eles viessem ter comigo inteiros como antes, bravos e verdadeiros, rindo como eu os recordava, então não compreendia a natureza dos encantamentos.
Não é assim tão mau. Conor passou-me o braço pelos ombros enquanto eu lhe ouvia a voz interior. Lembras-te da história das quatro pequenas fadas de Lir? Foram transformadas em cisnes durante novecentos anos e quando por fim voltaram à forma humana eram velhinhos e velhinhas, dobrados e deformados. Nós voltámos incólumes, pelo menos de corpo e mais cedo do que elas.
Estas palavras pouco me tranquilizaram. Não sabiam os meus irmãos nada do feitiço e do contra-feitiço? Nada da duração do seu encantamento e do método de o desfazer? Como lho explicaria eu sem o poder da fala e com a exigência do silêncio no meu discurso? E havia outra coisa qualquer que estava mal.
Onde está Finbar? Porque a minha mente conseguia tocar apenas na mente de um dos meus irmãos e as minhas mãos contavam apenas cinco.
— Ele vem. Dá-lhe tempo — disse Conor em voz alta e eu fiquei tranquilizada porque o som da voz dele era quase o mesmo de antigamente. E os outros estavam agora a levantar-se, resmungando ligeiramente como se tivessem bebido cerveja demais, ou tivessem estado a lutar no pátio e como as suas consciências humanas regressavam lentamente, juntaram-se à minha volta, abraçaram-me, agarraram nos ombros uns dos outros, como se quisessem ter a certeza de que não era outra visão, ou truque, ou feitiçaria. A cadela encaminhou-se de esguelha para Cormack, cautelosa. Ele curvou-se para lhe afagar as orelhas e passou-lhe uns dedos carinhosos pela cicatriz do focinho. E então ela conheceu-o, saltando e pousando-lhe as patas no peito, latindo em êxtase. Vi-o recuar por um segundo e um olhar, quase de medo, passou-lhe pelo rosto; mas depois passou, quando ele lhe afagou o pêlo, rindo.
Tomei conta da jaqueta de Conor, afastando-o da margem. Na outra mão transportava a pequena lanterna. Os meus irmãos seguiram-me pela encosta acima até à caverna, mas eram lentos no regresso ao reconhecimento total e estavam quase todos silenciosos, seguindo-me sem qualquer pergunta. Chegámos à caverna, reavivei o fogo e acendi outra lanterna. Não seria perigoso. Esta noite todas as almas estariam reunidas para os festejos do solstício e apenas os mais temerários, ou um mortal ignorante qualquer, se aventuraria nas profundezas da floresta àquela hora.
Os meus irmãos sentaram-se em volta da pequena fogueira como espíritos perdidos que tinham sido afastados do caminho escolhido. A princípio houve alguma conversa; pareciam atordoados e de vez em quando um estendia um braço para tocar na mão de outro, como que para se assegurarem que tinham, na realidade, voltado à forma humana. Ao fim de um certo tempo apercebi-me de que Finbar também estava presente, saído silenciosamente da água para se juntar ao nosso pequeno círculo. Foi quando estendi uma mão para atirar outro toro de freixo para o fogo que a mão dele me agarrou; os seus olhos sempre tinham sido perspicazes.
— As tuas mãos — disse ele severamente — o que aconteceu às tuas mãos? — E os seus longos dedos moveram-se por cima dos meus, sentindo as rugosidades, o inchaço e a rigidez das articulações. — Sorcha, que aconteceu? Por que não falas connosco?
Eu estava atenta ao facto de que a minha história não podia ser contada, nem sequer aos meus irmãos. Assim, toquei nos lábios fechados com os dedos, juntei as mãos, abri-as rapidamente e abanei a cabeça. Não posso falar. Nada. Não vos posso dizer. Colocara um forte escudo em redor dos meus pensamentos, mas não contara com a intuição de Conor.
— Ela também te amaldiçoou — disse Conor. — É claro. Com que fim? Terá isto um fim?
Abanei a cabeça miseravelmente, mostrando-lhe de novo, com os dedos nos lábios, que não lhe podia dizer.
— Não podes dizer nada? — Tentou Diarmid com o rosto cheio de frustração. — Mas então, como é que nós havemos de saber... como é que nós...
— Não tens memória do tempo passado? — perguntou-lhe Conor cautelosamente.
— Memória? Não. É mais como se...
— Um sentimento, mais do que um pensamento — disse Padriac que, de todos, parecia o mais parecido com ele próprio, talvez um pouco mais calmo. — Fome, medo, calor, frio, perigo, abrigo. É tudo o que os cisnes sentem. É... Diferente. Muito diferente.
Vi-o olhar para os braços, por um momento e suspeitei que desejava que, como homem, ainda pudesse voar.
— Precisas de compreender, Sorcha — disse Conor no seu modo comedido —, que a mente de uma criatura selvagem não é como a de um homem, ou de uma mulher. Creio que muito pouco passa connosco, quando mudamos. Como cisnes, podemos ver as coisas que acontecem aos homens e às mulheres, mas não as compreendemos como tu; e uma vez de volta à nossa forma humana, apenas recordamos a outra vida muito levemente, como se através de uma névoa de Outono. Padriac resumiu-a bem. Uma criatura selvagem conhece a necessidade de se esconder, de se proteger, de fugir, de procurar comida e refúgio. Mas consciência, justiça e razão, isso está-lhe para além da mente. Finbar acha este castigo demasiado duro, porque valoriza estas coisas acima de todas as outras. Até parece que Lady Oonagh escolheu esta maldição especialmente para ele; quanto aos restantes, é suficientemente duro.
Olhou em volta do círculo iluminado pela fogueira, para Finbar, que nos observava em silêncio, com o rosto na sombra.
— O castigo de Sorcha ainda foi pior — disse Cormack sobriamente. — Ficar sozinha na floresta, longe de tudo e sem poder falar.
Olhou para mim de perto.
— Ao menos regressámos e poderemos endireitar as coisas para ti — disse Liam, que estava a esticar cuidadosamente as suas longas pernas, como que para verificar se ainda funcionavam. — Ou será isto uma visão, desaparecermos antes de termos tempo para um pensamento, ou um gesto? Por quanto tempo regressámos às nossas formas humanas?
Mas eu não lhe podia responder. Responder era contar parte da história e isso era proibido.
— Suspeito que não por muito tempo, a julgar pelo olhar miserável de Sorcha — disse Diarmid amargamente.
— Creio que será por uma noite — disse Conor. — Nas velhas lendas é entre o anoitecer e o amanhecer que as coisas mudam. Devemos estar preparados para o pior.
— Uma noite? — Diarmid sentia-se insultado. — O que é que se pode fazer numa noite? Eu gostava de me vingar; gostaria de desfazer o mal que ajudei a criar. Mas estamos muito longe de casa, demasiado longe para regressar. Por que é que estás aqui, Sorcha? E que é feito do padre Brien, que devia ter-te ajudado?
Aquela história era diferente e podia ser contada. Contei-lha com mímica. Uma cruz cristã; dedos nos olhos fechados. Um voo para o alto, para o céu infinito e para ocidente. Todos me compreenderam suficientemente bem.
— Portanto, o nosso amigo está morto — disse Liam.
— E não de causas naturais, aposto — acrescentou Cormack. — Aquele tipo era como um carvalho, por mais frágil que parecesse; tinha uma força interior maior do que a de um grande guerreiro.
— O braço de Lady Oonagh chega longe — disse Diarmid. Conor olhou para ele.
— Haverá vingança — disse ele. — Uma vingança total e terrível. Os assassinos dele serão cortados aos bocados e os corvos hão de comer-lhes a carne até aos ossos.
Olhámos todos para ele. O tom nem sequer tinha mudado.
— Acreditamos em ti — disse Diarmid, levantando uma sobrancelha.
— Ele era cristão — acrescentou Padriac. — Talvez tenha desejado perdão, em vez de retribuição.
Conor olhou para o fogo.
— A floresta protege os seus — disse.
— Esta foi uma grande perda para ti, Sorcha — disse Liam. — Não tens nenhuma companhia aqui, salvo a solidão?
— Ela não to pode dizer — disse Conor. — Mas tudo isto tem um propósito qualquer, não tenho dúvida. Sorcha, sabes quanto tempo vai durar este encantamento? Terá um fim? E quando é que poderemos regressar aqui?
Abanei a cabeça, levando ambas as mãos à boca. Por que não paravam eles de me fazer perguntas? Senti uma lágrima a escorrer-me pela face.
— Penso que vai durar muito tempo. — A voz de Finbar era muito suave. — Um tempo para ser medido em anos, em vez de luas. Não deves pressionar Sorcha em busca de perguntas.
Nenhum deles questionou o que ele disse. Porque quando Finbar falava dizia sempre a verdade.
— Anos! — exclamou Liam.
— Ela não pode ficar aqui sozinha esse tempo todo — disse Diarmid. — Não é seguro, nem nada que se pareça.
— Não há outra alternativa — disse Conor. — Além disso, conheces as velhas lendas tão bem como nós. Tem que haver um propósito nisto tudo, só que ela está proibida de falar nele. Certo, Sorcha?
— Tarefas — disse Cormack tranquilamente de onde estava, com os braços em volta da cadela. — Há tarefas para cumprir antes do fim. — Viu o meu sinal de assentimento. — Podemos fazer alguma coisa, Sorcha?
Abanei a cabeça e afastei as mãos.
Nada. Nada, mas mantende-vos a salvo. Permanecei vivos o tempo que for preciso.
— Tem algo a ver com as mãos dela — disse Conor lentamente e a voz dele era sombria devido a um sentimento qualquer que eu não conseguia compreender totalmente. — Tu não te magoavas assim sem um propósito. Há um poder maligno qualquer nisto tudo, tenho a certeza.
Abanei a cabeça para baixo e para cima porque ele tinha meia razão.
Não. Maligno, não. Mas é a única maneira. Deveis deixar-me fazê-lo. Posso salvar-vos.
— Olhai — disse Padriac por trás de mim. Não o tinha visto entrar na caverna e ele emergia dela com o meu fuso numa mão e uma quantidade de fio pendurado na outra, acerado e quebradiço. A luz da fogueira incidia no seu enganador e delicado aspecto. Houve um parar colectivo de respiração e Padriac sentou-se entre os outros, o fuso balançando-lhe entre as mãos capazes.
— O que é isto? — perguntou Liam ultrajado, ao mesmo tempo que os seus dedos tocavam na fibra. — Este fio está cheio de finíssimas agulhas. Não admira que as mãos dela estejam como estão. Este fio é...
— É morugem — disse Padriac. — Sorcha tem as fibras prontas para fiar e já tem algumas tecidas.
— Fiar com morugem! — exclamou Cormack. — Quem é que já ouviu semelhante coisa?
— Tu próprio falaste em tarefas — lembrou Conor ao irmão gémeo. — Parece que tinhas razão.
— Não precisas de estar tão surpreendido — disse Cormack com um esboço do seu velho sorriso.
— Seis irmãos — Finbar estivera muito quieto e agora a sua voz saía-lhe constrangida, como se só falasse porque tinha necessidade. — Seis irmãos, seis trajes, talvez?
— Trajes de morugem? Nunca usaria de bom grado uma camisa desse material — comentou Diarmid.
O olhar de Conor percorreu-os a todos, calculando-os.
— Talvez as usassem de boa vontade — disse ele lentamente — se elas tivessem o poder de desfazer o feitiço.
Não precisara de muito tempo para perceber tudo.
Por um momento, enquanto olhavam todos uns para os outros por cima da fogueira, pareceu-me que havia uma comunicação qualquer entre os meus irmãos que não precisava de palavras e que eu ficava de fora. Olhei em volta do círculo, sentindo que estavam agora mais próximos uns dos outros do que nunca e então encontrei os olhos de Finbar, do sítio onde estava sentado, um pouco à parte, observando-me. Havia uma prudência na expressão dele que eu nunca vira antes, uma incerteza que me dizia respeito porque, de todos eles, fora sempre o mais seguro de si. Tentei chegar até ele com a mente.
O que é, Finbar?
Mas foi Conor que respondeu.
— É duro voltar, Sorcha, e mais duro para uns do que para outros.
— Talvez nos reste pouco tempo aqui — disse Liam, pondo-se de pé. — Se o que Conor sugere está correcto, talvez tenhamos só até de madrugada. Devemos fazer os possíveis para abastecer a nossa irmã.
— Apenas uma noite e estamos aqui enfiados na floresta — disse Diarmid, amargo. — Por onde havemos de começar, quando há tanto a fazer?
— Algumas coisas podem ser feitas — disse Liam, assumindo o controlo. — Pequenas coisas, talvez, mas úteis. Acredita-me, Sorcha, magoa-nos muito e envergonha-nos sermos forçados a deixar-te aqui sozinha. Mas, pelo menos, podemos assegurar-te um pouco de conforto. Cortar lenha e preparar este local para o Inverno, porque receio que não regressemos antes de a neve começar a cair aqui com força: isto pode ser feito à luz da lanterna. Tens um machado?
Acenei com a cabeça.
— Para ocidente há terra de pastagens e grão armazenado — disse Conor.
— A que distância? — perguntou Cormack.
— Consegues chegar lá e voltar antes de amanhecer — respondeu-lhe o irmão gémeo. — Leva a Linn. Está escuro e os caminhos são traiçoeiros. Ela guia-te. Penso que não consentiria em ficar para trás, de qualquer dos modos.
— Eu vou contigo — disse Padriac. — Ou gostaria de ir, mas estas botas matam-me. É este o problema das transformações. Continuamos a crescer, mas as roupas ficam do mesmo tamanho. Talvez as tuas me sirvam, Finbar. Serviam-lhe o suficiente, porque o meu irmão mais novo estava meia cabeça mais alto do que quando o vira pela última vez. O seu par de botas talvez me servisse um dia, se eu crescesse o suficiente. E lá foram Padriac e Cormack, desaparecendo entre as árvores, a pequena lanterna na mão e facas nos cintos, porque também as tinham encontrado. Esperei que as armas não fossem necessárias. Pensei que talvez passassem despercebidos entre os que festejavam o solstício, andassem por onde andassem. Linn seguiu-os. Pelo menos, dos três, ela conhecia o caminho.
Liam e Diarmid foram com o machado e a machadinha cortar pernadas do vidoeiro morto e armazená-las sob um alpendre natural. Trabalharam com uma rapidez e precisão que me espantou e não pararam por comida ou bebida. Levaram a segunda lanterna para lhes iluminar a tarefa, deixando os restantes na semiescuridão, junto da lareira.
— Bem — disse Conor — agora quero ver essas mãos. Tens alguns unguentos? Cera de abelha?
Mostrei-lhe a minha diminuta provisão, guardada num nicho da caverna.
— Isto não vai durar muito — disse ele com gravidade. — E depois, o que farás? Há alguma outra maneira de esta tarefa ser levada a cabo?
Abanei a cabeça.
— Então, pelo menos, posso tratar-te esta noite e talvez arranjar-te alguma ajuda. Precisas de compreender, corujinha, que isto é o que mais nos custa. Não estar aqui contigo, ter de te ver sofrer à nossa custa, ver-te sacrificar a tua vida por nós, custa-nos muito. Para Finbar ainda é pior. Ele, de todos nós, é o que mais precisa de seguir o seu caminho, forem quais forem os obstáculos que encontre no meio. Tirar-lhe isso, pelo que parece ser pouco mais do que um capricho, destrói-lhe o coração. E agora, ainda tem de magoar aquela que mais ama.
Voltámos para junto da fogueira, onde Finbar continuava sentado em silêncio. Conor tomou a minha pequena mão na dele e começou-me a espalhar o unguento gentilmente sobre a pele, rolando e dobrando-me os dedos com os dele. Deixou de falar e começou a murmurar suavemente uma pequena canção monótona sem princípio nem fim, continuando sempre e que parecia ir bem com a estranha quietude da noite. Longe, o lento som surdo do machado na madeira ritmava com a canção. Comecei a relaxar. Ao princípio tinha hesitado, porque magoa ter alguém a mexer-me nas mãos; mas após um bocado a canção embalou-me e comecei a ouvir as corujas nas árvores em volta e o coaxar das rãs nas pequenas poças em volta do lago. E depois Finbar veio sentar-se ao pé de mim e segurou-me a outra mão na dele. A mão de Conor estava quente e cheia de vida; a de Finbar estava fria como o gelo. Ficámos ali sentados por um bocado e eu entreguei os meus pobres dedos aos cuidados dos meus irmãos, armazenando imagens e sensações que me durariam até ao solstício de Inverno. Teria de ser suficiente. Conor continuava a murmurar fragmentos de canção a cada respiração, usando a força das suas mãos nas minhas e, através delas, entrando dentro de mim. Por fim, Finbar falou.
— Lamento, Sorcha. Nem sei o que dizer. Uma noite. Tão pouco tempo para acordar as nossas memórias deste mundo. A minha mente tem tantas e eu tenho visto... eu... não, algumas coisas, é melhor ficarem por dizer.
Virei-me para ele e desta vez o olhar dele encontrou o meu. Vi luz a tremeluzir-lhe nos olhos cinzentos e havia dúvida neles.
O que é que se passa? Não podes desistir! Tu, acima de todos. O que é que está errado?
Mas ele manteve o véu descido.
— Podes falar connosco, Finbar — disse Conor calmamente. — Aqui, nós os três estamos ligados, mão com mão. Conhecemos-te. Conhecemos a tua coragem. Fala no que te perturba, se não nos abres a tua mente.
Conor disse aquilo com gentileza, mas havia uma tal autoridade nas suas palavras que Finbar pareceu não ter escolha.
— Porquê Sorcha? — disse ele. — Porquê ela para tanto sofrimento? Ela está inocente de qualquer maldade, incapaz de um pensamento mau. Por que há de ela fazer este sacrifício por nós?
— Porque é a mais forte — disse Conor simplesmente. — Porque dobra com o vento, mas não quebra. Sorcha é o fio que nos liga a todos. Sem ela somos como folhas ao vento, sopradas de um lado para o outro.
— Nós somos fortes. Somos todos fortes.
— À nossa maneira, sim. Mas cada um de nós quebraria ante uma tempestade como esta. Até tu, porque há ocasiões em que o caminho se esboroa sob os pés, ou é levado pelas correntes e então, se não tomas outro, perdes-te. Só Sorcha nos pode levar para casa.
— Falas por enigmas — disse Finbar, impaciente. — E tu? Como podes estar tão calmo, tão disposto a aceitar, quando vês a tua irmã magra como um fantasma, vestida de farrapos e com a carne a supurar? Eu preferia morrer, ou ficar sob esta maldição para sempre, do que deixá-la sofrer desta maneira por mim. Como podes tu aceitar isto?
Conor olhou para ele com gravidade.
— Não me julgues mal. Eu sinto profundamente a dor de Sorcha e ela sabe-o. Mas já passei por isto; e estive no limiar, entre o outro mundo e este. Talvez isso tenha facilitado as coisas porque, ao contrário de vós, carrego ambos dentro de mim. Para ti, a mudança será cada vez mais difícil. Mas as tuas dúvidas não facilitam em nada a tarefa de Sorcha. Ela precisa da nossa força, enquanto estamos aqui. Precisa de nos tocar enquanto aqui estivermos.
Ficámos sentados calmamente por um bocado. Ocorreu-me que Conor não tinha respondido, na realidade, à pergunta do irmão. Já era tarde e a floresta estava tranquila, com excepção do som dos golpes de machado na escuridão. Lembrei-me de uma ocasião, quando li uma vez a mente de Finbar, apesar dos seus esforços para se fechar; o frio, a queda, o voo... era isso o que ele temia, as visões, que lhe diziam o que estava para vir? O que veria ele? E seria o futuro tão mau, que ele não se atrevia a partilhar essas visões?
A minha mente estava bem escudada, mas Finbar falou como se conhecesse os meus pensamentos.
— Sorcha — disse ele suavemente. — Acredita-me quando te digo que não devias estar a fazer isto; seria melhor se te fosses embora, para longe e nos esquecesses. Deixa a floresta e procura protecção entre os santos irmãos do oeste. Nunca estarás segura aqui.
Torceu as pontas dos cabelos com dedos irrequietos.
— Vamos morrer todos? — perguntou Conor calmamente. — Lady Oonagh ficaria muito satisfeita com isso. Ofendes a tua irmã com tal sugestão, Fimbar. Nós somos irmãos dela; ela ama-nos, assim como nós a amamos; ela não poderia fazer tal escolha.
— Ela não deve ficar aqui — disse Finbar. O escudo da mente dele era firme; fosse qual fosse o conhecimento sombrio que nela guardava, não era para nos ser mostrado.
— Essas imagens da mente — disse Conor, mexendo nas brasas com um pau comprido — podem ser, em si mesmas, enigmas. Aquilo que vês pode ser a verdade, ou meia verdade, ou um pesadelo imaginado por ti próprio, nascido dos teus medos e desejos. O encantamento de Lady Oonagh até pode estar a funcionar, neste momento, dentro de ti. Talvez ela interfira com as tuas vozes interiores, da mesma maneira que te muda a forma. Não podes confiar nessas visões.
— Em que outra coisa posso eu confiar? — replicou Finbar. — Sem o conhecimento do tempo que não estivemos presentes, que outro mapa temos para guiar as nossas hipóteses? Mal temos tempo para nos recordarmos de quem éramos, antes de sermos, de novo, apagados. O nosso pai até pode estar morto. Ou pior.
— Ele ainda está vivo — disse Conor suavemente. — Enfraquecido pela perda dos filhos e atado pelo feitiço da mulher, mas não totalmente sob o seu domínio. Tem sobrevivido, até agora.
— Como é que sabes?
As suas palavras tinham-nos chocado, aos dois; fizemos a mesma pergunta ao mesmo tempo, eu mentalmente, Finbar em voz alta. Os nossos olhos estavam fixos intensamente em Conor. A nossa expressão, penso, era a mesma.
Conor olhou para baixo, para as nossas mãos unidas, sorrindo um pouco lugubremente.
— Tendes razão, claro — disse ele. — Não se pode ser pássaro e homem ao mesmo tempo. Ao entrar nesse novo estado de consciência, perde-se a memória do velho. Não se pode ser homem sob as penas de um cisne; não é assim tão simples. Muda-se por completo; e a visão do mundo é a de uma criatura selvagem: voar, segurança, perigo, sobrevivência. O lago; o céu. Pouco mais há. Durante esse tempo, pode-se voar sobre a fortaleza de Lorde Colum, ou nadar perto da margem onde Eilis e as suas damas jogam à bola, mas não se vêem, não como um homem. Não se pode; mas eu posso.
Finbar suspendeu a respiração sonoramente.
— Eu devia saber — disse ele lentamente. — Estás muito mais longe no teu caminho do que eu pensava. Lamento, tanto como estou contente; o teu fardo pode ser mais pesado, assim.
Lady Oonagh. Que é dela?
— Ainda manda, Sorcha. E dará à luz uma criança por ocasião das colheitas. A sua influência é grande. Continua à tua procura, mas sem sucesso, porque os habitantes da floresta protegem-te.
— O pai. Disseste que ele não estava totalmente sob o feitiço dela. Que querias dizer? — perguntou Finbar firmemente. — Olhei para ele, surpreendido. Talvez não o conhecesse tão bem como pensava. Ele apanhou-me a expressão.
— O poder do encantamento é grande, Sorcha — disse ele mais calmamente. O poder da perda também é grande. Começo agora a perceber porque agiu ele como agiu. Portanto, é preciso que ele sobreviva. É preciso que ela seja detida. Mas há um limite para o preço que todos nós devemos pagar.
— Podia-te falar no pai — disse Conor. O som do machado na madeira cessara; os meus dois irmãos mais velhos desceram a encosta, respirando com dificuldade e sentaram-se ao pé de nós. — Podia dizer-te mais; mas, por vezes, é melhor não saber.
— Não saber o quê? — perguntou Liam, sentando-se entre mim e Conor e pondo-me um braço em volta dos ombros.
— O que se passa e o que muda no mundo, enquanto estamos naquele outro estado — disse Conor. Liam olhou para ele vivamente.
— Então, tu sabes — disse ele, não aprovando de imediato.
— Algumas coisas, sim, mas outras, não. Não posso estar em toda a parte ao mesmo tempo; o meu corpo é igual ao vosso. Simplesmente, vejo as coisas de outra maneira. Fica tranquilo, que o teu pai continua vivo e não está completamente perdido, se bem que o seu desgosto seja terrível. O que ele mais deseja é ver a filha, em cujo rosto está a última recordação daquela que mais amou e perdeu. Lady Oonagh odeia isso — disse Conor.
O meu queixo caiu, de surpresa. Eu? Mas, ele mal reparava em mim quando lá estava.
— Qual foi a história que ela lhe contou, para ele achar que ela está inocente? — perguntou Diarmid com grande amargura na voz.
— Isso não te sei dizer — disse Conor. — Além disso, porquê aprofundar a dor e as frustrações? Não podemos fazer nada por ele, ou contra ela, até o encantamento ser quebrado. Portanto, devemos fazer como Sorcha quer e deixá-la aqui para completar a sua tarefa, por mais que isso nos destroce os corações.
Foi terrível como o resto da noite passou. Sentámo-nos à lareira, falando disto e daquilo, tentando não olhar para o céu muitas vezes, à procura dos primeiros vestígios da alvorada. Mais tarde, muito mais tarde, os rapazes e Linn voltaram da sua expedição. Tinham escapado à parte mais triste da noite, preenchendo-a com actividade. Seria uma noite longamente recordada pela gente local, um Meán Samhraidh de actividade fora de normal; vários estendais ficaram sem peças, umas poucas vacarias e adegas ficaram com espaços vazios nas prateleiras. Padriac passou-me um quente vestido de lã de um vivo vermelho, vários tamanhos maior, um grande xaile e algumas meias, bem remendadas. Seriam óptimas coisas para o Inverno. Cormack trouxe uma grande saca de carne e um molho de cebolas, um queijo redondo e uma robusta corda. Ambos traziam as algibeiras cheias de pequenos tesouros. Linn lambia os beiços.
— Espero que tenhais tido cuidado para não serdes vistos — disse Liam, franzindo as sobrancelhas. — Não quero que se saiba nada sobre Sorcha entre essa gente, sabes como são as línguas. Basta um viajante para a história ir parar aos ouvidos de Lady Oonagh e isso enquanto o diabo esfrega um olho.
— Tudo bem, irmãozão — riu-se Cormack. — Podemos não ter a certeza se somos homens ou pássaros, mas não perdemos as nossas habilidades. Garanto-te que não deixámos qualquer vestígio. Até a cadela cooperou, não foi Linn?
A cadela dançava em volta dele alegremente; ele estava de volta e o mundo estava de novo no seu lugar. Podia ter chorado por ela, sabendo quão curta a sua estadia ia ser.
— Teremos que recompensar esta gente quando formos nós outra vez — disse Diarmid. — É errado roubar; além disso, são pobres e mal podem dispensar tais coisas. No entanto, acredito que Sorcha, neste momento, precisa mais de que eles.
— Não te preocupes — disse Padriac levemente, sentindo que aquela prelecção lhe era destinada. — Não nos esqueceremos. Numa véspera qualquer de um solstício qualquer, nos anos que vêm, os duendes hão de deixar-lhes à porta uma saca de madeira, um barril de cerveja e alguma quinquilharia. Havemos de voltar.
— Talvez — disse Finbar.
— Chega! — A voz de Liam era cortante. — Para terminar a sua tarefa, Sorcha precisa do nosso apoio, precisa da nossa confiança. Não disseste sempre que nós os sete temos de estar sempre presentes para cada um, que a nossa força está na nossa união? Claro que Sorcha há de completar a sua tarefa e nós havemos de voltar. Não tenho dúvidas nenhumas disso.
— Tão certo como o Sol se segue à Lua — disse Conor calmamente. — Tão certo como sete ribeiros se tornarem um grande rio que corre e rodopia sobre pedras e sob grandes penhascos, nunca hesitando na sua jornada em direcção ao mar.
— Na próxima vez, Sorcha — disse Padriac — hei de fazer-te um tear melhor. Pus a secar uns bons bocados de vidoeiro debaixo daquele alpendre nas traseiras da caverna. Devem estar bons no solstício de Inverno, se mantiveres a chuva longe deles. E guarda essa corda, vou precisar dela.
Sorri para ele; tão desejoso de ajudar e ainda tão novo. Talvez as botas já não lhe servissem, mas, na sua essência, não tinha mudado nada. Não, não era com o meu irmão mais novo que eu estava preocupada.
— Pergunto a mim próprio — disse Finbar com uma nota de teimosia na voz que todos reconheceram — por que é que isto tem de ser assim. Por que é que Sorcha tem que sofrer, por que se há de sacrificar tanto, quando podia estar a salvo, protegida e continuar com a sua vida em paz? Por que não deixar-nos como estamos? Pelo que sei, quando a tarefa estiver terminada, se puder ser terminada, talvez o nosso pai já esteja morto, ou mudado para sempre; por que precisamos, então, de ser salvos e arruinar a vida da nossa irmã?
Olhámos todos para ele. Houve uma ligeira pausa. Foi Conor o primeiro a falar.
— Porque não devemos permitir que o mal triunfe — disse ele.
— Porque devemos reclamar aquilo que é nosso — acrescentou Liam.
— E salvar o nosso pai, se pudermos — disse Cormack. — Ele é um bom homem, apesar de todos os seus defeitos e sem a sua liderança as nossas terras estão perdidas. Os Bretões, os Viquingues e os Pictos invadem as Ilhas e chegam às nossas portas.
— Porque Sorcha acredita que é a coisa certa a fazer — disse Padriac com uma simplicidade devastadora.
— Não posso permitir que Lady Oonagh escape sem castigo — disse Diarmid. — Se não fosse a minha estupidez, talvez a pudéssemos ter impedido. A minha honra exige-me que a encontre e lhe ponha um fim.
— Ouvi — disse Padriac. — Está quase a amanhecer.
Ficaram todos em silêncio. Um pássaro solitário começou a cantar lá em cima, nos ulmeiros. E o céu já começava a clarear com a primeira palidez cinzenta da madrugada.
Encaminhámo-nos para a margem. Liam ia à frente, transportando a lanterna. Eu ia ao lado de Finbar e tentei dar-lhe a conhecer os meus sentimentos, mas não sabia se ele me ouvia.
Vai correr tudo bem. Acredita-me. Aguenta-te e vive. Por todos nós.
Era como enviar pensamentos para o vazio, ser levada por uma brisa qualquer.
Esperámos pela luz de mãos dadas, em círculo, calados, passando força e amor de uns para os outros. Finbar estava entre Conor e eu; deixou-nos pegar-lhe nas mãos, mas estas continuavam geladas, como se nada conseguisse, nunca mais, aquecê-las. Mesmo antes da alvorada, Conor pediu-me que voltasse para a caverna, porque, disse ele, seria melhor se eu não os visse partir. Abraçaram-me, um a um; primeiro Conor e depois os outros à vez, até que só faltava Finbar. Pensei que ele se iria sem uma palavra; mas tocou-me na face e, por um momento, deixou-me entrar.
Mantém-te a salvo, Sorcha. Até a próxima. Continuo aqui, para ti.
O coro das aves aumentou. Era como naquela outra manhã, naquela manhã em que a névoa subira do lago e os levara de mim. Subitamente, foi de mais para mim e senti os lábios tremerem-me e as lágrimas encheram-me as faces.
— Vai-te embora, corujinha — disse Conor gentilmente e a voz dele chegou até mim como se viesse de um profundo e estreito túnel.
— Até ao nosso regresso — disse Cormack, ou talvez fosse outra coisa e então a madrugada chegou e houve o som de um vento apressado, águas que se agitaram, asas a baterem e eu corri, cega pelas lágrimas, para a caverna, onde fiquei a chorar, porque perdê-los agora não era mais fácil do que da última vez e não queria ver, ou sequer imaginar, o desaparecimento das suas mentes e a transformação deles próprios em criaturas selvagens.
Lá fora, Linn começou a uivar terrivelmente, ecoando pelos bosques, por sobre a água e para cima, para o vasto rosa, laranja e deslumbrante azul do céu, à medida que a madrugada se transformava em dia.
CAPÍTULO SEIS
Como vivia ao relento há tanto tempo, comecei a sentir-me como se fizesse parte da própria floresta. Era como uma velha lenda, talvez a de uma jovem cruelmente abandonada pela família, que cresceu com capacidade para falar com as aves e os peixes, com um corvo, um salmão ou um veado. Teria gostado disso. Infelizmente, a presença de uma perpetuamente esfomeada Linn fazia com que as criaturas selvagens evitassem a nossa morada. Havia uma família de ouriços-cacheiros que se aventurava até perto de nós assim que o tempo começou a aquecer e sempre que eu podia dispensar um pouco de comida, colocava-a sobre uma pedra lisa, sob uns arbustos, para eles, fazendo com que Linn permanecesse dentro da caverna até eles regressarem ao mato.
As mudanças de disposição da floresta tinham repercussão no meu estado de espírito. À medida que as noites foram sendo mais longas, as bagas amadureceram nos silvados e nos espinheiros-alvar, e os frutos pendiam, pesados, das aveleiras e dos castanheiros, também eu passei por algumas mudanças. Continuava a ser uma coisa pequena, magricela e a minha dieta era das mais frugais. No entanto, naquele Outono o meu corpo começou a mudar de criança para mulher e eu tive a minha primeira menstruação. Coisa que devia ter sido, suponho, motivo para uma celebração qualquer, mas eu achei-a uma inconveniência, porque toda a minha vontade e energia estavam concentradas nas tarefas de arranjar morugem, fiar e tecer as minhas seis camisas. Mas arranjei tempo, nessa noite da minha primeira menstruação, para me banhar à luz da Lua, beber depois um chá de rosmaninho para as cãibras e sentar-me sob as estrelas para ouvir as corujas e a quietude. Nessa noite senti que a Dama da Floresta estava muito próxima e pressenti um movimento, à minha volta, de uma grande e profunda magia, mas não a vi.
Tornou-se necessário ir mais além em busca de morugem, porque as provisões de fio quebradiço e espinhoso estavam a acabar. Seis quadrados de tecido entrançado tinham sido suficientes para fazer uma rude camisa e já tinha começado a segunda, mas só tinha fio suficiente para uma manga, talvez, não mais. Saí com um pequeno saco e uma faca afiada, à procura das plantas cinzentas, penugentas, que cresciam nas clareiras da floresta, onde a luz do Sol sarapintada conseguia penetrar através da canópia outonal. Esta planta gostava da humidade e crescia nas margens das pequenas correntes juntamente com os fetos e o musgo. Era uma época de abundância e muitas vezes tinha sorte, trazendo também punhados de avelãs e bagas de sabugueiro.
Comecei a perceber, ao explorar os carreiros esquecidos e as sombrias clareiras da floresta, onde Finbar deve ter estado quando desaparecia durante dias e regressava com os olhos cinzentos fixos numa visão distante qualquer que mais ninguém conseguia ver. Vi entalhes Ogham em troncos de árvores e aqui e ali em pedras cheias de musgo; e soube que as misteriosas artes que Conor começara a aprender tinham as suas raízes ali, naquele velho local.
Um dia, por sorte, descobri um dos lugares mais secretos. Subia o leito de uma corrente em busca da planta espinhosa e Linn seguia à minha frente, chapinhando entusiasticamente, sorvendo imensa água límpida ao passar. Fizemos uma curva e passámos sob um grande rochedo. Então, ela parou. E eu parei atrás dela. Do lado de lá de uma poça redonda estava um enorme e venerável carvalho, as raízes estendendo-se em volta do tronco, enredadas profundamente no solo. A sua copa espalhava-se densamente lá no alto, de maneira que a luz mal chegava aos ramos mais baixos. No entanto, as folhas em breve cairiam, porque estavam todas vermelhas e bronzeadas. O musgo dourado pendia, espesso, dos ramos mais altos. E gravado na casca, olhando para mim do outro lado da água sombria, estava um velho rosto, ali desenhado por alguém que buscava a verdade. Não era macho nem fêmea, amigável ou sinistro. Estava simplesmente ali.
Linn não se aproximou, sentando-se e esperando por mim, as orelhas alerta em busca de perigo. E eu contornei a poça para poder ver melhor. Antes do rosto, junto à água, estava uma grande pedra com a superfície lisa, brilhante e suave, devida ao tempo e aos muitos toques.
E depois fiquei gelada. Já lá tinham estado outros antes de mim e recentemente. Porque tinha sido colocada, junto daquela pedra, uma oferenda. Um pedaço de pão caseiro. Uma fatia de queijo. Olhei para trás, para a cadela, fazendo-lhe sinal para estar quieta. Não havia qualquer som de actividade humana nas redondezas, apenas o som do canto de pássaros e o leve roçagar das folhas lá no alto, onde a seca brisa de Outono agitava a copa da árvore. Suspendi a respiração. Talvez quem deixara aqueles presentes já se tivesse ido embora, mas Linn e eu devíamos sair dali, porque aquelas coisas não tinham qualquer sinal de formigas ou outros insectos; não estavam ali há muito tempo. Mas a comida despertou-me os sentidos. Se bem que fosse a época anual dos frutos, eu fora frugal como um esquilo, armazenando nozes e bagas secas para o Inverno e tinha fome. As provisões arranjadas pelos meus irmãos estavam a esgotar-se rapidamente. No fim de contas, eu ainda nem sequer tinha 14 anos e quase sentia na boca o sabor granuloso daquele pão de cevada e daquele queijo fofo. Linn emitiu um pequeno queixume e aquilo fez-me decidir. Acenei respeitosamente com a cabeça para o velho rosto no carvalho, acreditando que não se oporia. Meti o pão e o queijo na algibeira e fomos para casa.
A intuição é uma coisa óptima. Na ocasião, resguardadas pela pequena fogueira e partilhando aquele maravilhoso e inesperado festim à medida que anoitecia, gostei da protecção da floresta e nunca pensei que uma pequena atitude daquelas me pudesse trazer tão terríveis consequências. Na verdade, na ocasião acreditei que aquela herança inesperada nos fora oferecida, uma dádiva, que nos viera parar às mãos pela boa vontade dos espíritos da floresta, ou da própria Dama. Mas tive algum bom senso, no entanto e assim não voltei lá durante muito tempo. Não era suficientemente louca para provocar a minha possível descoberta.
O tempo passou e eu fiei o fio para a segunda camisa. A primeira tinha um aspecto desolador, os quadrados de tecido mal cozidos uns aos outros, as mangas estranhamente desiguais. Uma manhã o chão estava gelado e os arbustos vestiam mantos de prata cintilante que derretiam por meio de gotículas devido à subida do sol brumoso num céu cinzento de alfazema. O Inverno estava a chegar e com ele os meus irmãos. Eu trabalhava constantemente, o melhor que podia e sabia, sempre grata pela lenha seca que eles tinham deixado, porque os meus dedos doíam-me do frio. Arrisquei-me a fazer um fogo maior e assei cebolas roubadas nas brasas. A neve caiu uma vez ou duas, flocos suaves escapando-se da rede de ramos para caírem silenciosamente no chão, no lado de fora da caverna. Aqui, onde as árvores cresciam perto da água, ela não era muita; e eu sentia-me grata por isso. Usava o meu velho vestido, o de lã vermelha por cima, um cobertor pelos ombros e nos pés as botas de Padriac. E continuava com frio.
Quando os meus irmãos regressaram, eu estava a tecer as costas da segunda camisa. Quase me deu vontade de rir ao pensar no dia em que tinha partido do eremitério do padre Brien. Parecia-me ser há tanto tempo. Algumas luas, entre o Inverno e o Verão, talvez, parecera-me o tempo necessário para esta tarefa. E ali estava eu, quase um ano mais tarde e mal tinha começado. Tornara-me um pouco mais rápida com a prática, mas nem sempre as mãos me obedeciam, tão disformes e maltratadas estavam pelo tratamento que lhes dava. Ainda bem, dizia para mim própria, que não me preocupava com o meu casamento e tudo o que vinha com ele. Que homem olharia para uma rapariga com as mãos cheias de calos como as de uma velha? Esse estilo de vida, com casamentos e banquetes, música, leitura e bordados, parecia tão longe que não conseguia imaginar nenhum de nós a voltar para ele. Nunca pensei no que aconteceria depois de eu, finalmente, passar a sexta camisa pela cabeça do meu último irmão, trazendo-os, assim, de volta a este mundo uma vez mais. Trabalhava o mais depressa que podia e deixava a minha mente viajar até uma certa distância, não muita.
Não me lembro tão bem da segunda visita deles como da primeira. Foi na véspera do solstício de Inverno, Meãn Geimhndh. Foi no dia do meu décimo-quarto aniversário. Uma parte dele, suponho, foi apagado pelas coisas que aconteceram depois. Lembro-me que Finbar chegou um pouco mais tarde do que os outros, tal como na primeira visita. Lembro-me do olhar dele, selvagem, que não conseguia esconder de mim.
Houve novidades. Conor sentiu que eu ansiava por elas, mas disse-as com alguma relutância.
— A criança nasceu em Samhain — disse ele. — Um rapaz. Chamaram-lhe Darãn.
Liam atirou um pau para a fogueira.
— É um bom nome, forte — disse ele de má vontade.
Virei as palmas das mãos para a luz cintilante. Estava um frio de rachar, mas sentámo-nos no exterior, porque a pequena fogueira dava um calor que aquecia o coração, assim como reconfortava os ossos. Ali podíamos sentir alguma semelhança com o nosso velho círculo, pretender algumas parecenças com a nossa velha unidade.
Mostrei os cinco dedos de uma mão e mais dois da outra. Os meus irmãos compreenderam; e os olhos deles também deixavam ver a dor que sentiam ao verem as minhas mãos retorcidas.
— É verdade, Sorcha. É o sétimo filho de um sétimo filho. Isso deve ser respeitado.
— Respeitado? — cuspiu Diarmid, furioso. — Não acho. Ele é filho dela, é prole do mal. Devia ser destruído, juntamente com a feiticeira.
Os outros olharam para ele e houve um pequeno silêncio.
— Ele é teu irmão — observou Padriac um pouco depois.
— É filho do nosso pai — disse Liam concordando e está inocente do mal que nos foi imposto. Não poderemos ter a esperança de que este nascimento venha mudar as coisas para melhor?
Ninguém respondeu. O pai sempre tornara claro que desejava que Liam, como seu filho mais velho, herdasse Sevenwaters. Se bem que qualquer homem da linha de Colum pudesse desafiar essa decisão, porque era a lei, não parecia provável. Até agora. Quem poderia assegurar que o nosso pai não preferia o novo filho que a nova mulher lhe tinha dado? Parecia que Conor tinha novidades ainda piores para Liam, porque levou o irmão mais velho para fora do grupo. Ficaram a falar durante algum tempo, a uns metros de distância. Algum tempo depois Conor regressou, mas Liam permaneceu a olhar para o escuro e a cor cinzenta, gelada, da sua expressão, lembrou-me o nosso pai.
— O que é que se passa com ele? — perguntou Cormack com pouco tacto.
Conor lançou ao seu irmão gémeo um olhar de viés.
— Problemas com a mulher.
— Referes-te a Eilis? Ela não morreu?
Conor abanou a cabeça.
— Não. Recuperou bem do envenenamento e Seamus tem-na guardado muito bem, desde então. Fez com que ela não fizesse mais visitas a Sevenwaters. Na realidade, nem era preciso, desde que os filhos do primeiro casamento de Colum desapareceram convenientemente com destino desconhecido. Não, Eilis está bem. De facto, está a desabrochar e está pronta para o casamento. O pai dela prometeu-a a Eamonn de Marshes. Se não consegue segurar a fronteira de leste casando-a com um de nós, tenta segurar a de norte.
Diarmid respirou com força.
— Isso será uma aliança formidável. E se eles se virarem contra o pai? Espero que ele tenha reforçado as nossas defesas até para lá do rio. Seamus era nosso aliado antes, mas essas notícias deixam-me pouco à vontade. Devíamos concentrar as nossas forças, juntas, contra Northwoods e para fazer isso com eficácia precisamos de confiar nos nossos vizinhos.
— Sei muito pouco das defesas dele — disse Conor, aborrecido — Não há sinais da recolocação de Donal e não vejo muita actividade no local. Mas estamos no Inverno. Talvez quando o tempo começar a aquecer, o pai ganhe coragem e reuna os homens.
— E Eilis? — perguntou Padriac, as mãos ocupadas. Trabalhava com rapidez e precisão, à luz da pequena lanterna, num novo tear, com a madeira do freixo cortado por ele e pelo irmão gémeo. — Agrada-lhe casar com esse tipo? Ele não é um pouco velho para ela?
— É contra o desejo dela — disse Conor calmamente, olhando de soslaio para o nosso irmão mais velho que continuava nas sombras, de cabeça curvada. — Mas é uma boa filha e fará o que lhe disserem. Nunca compreendeu como pôde Liam partir sem lhe dizer nada. O coração dela ainda chora por ele, mas será uma esposa fiel e uma mãe dedicada. É melhor assim.
— Melhor para quem? — perguntou Diarmid amargamente.
Foi uma visita sem vida. Gostaria de ser capaz de falar, porque podia ver o desgosto deles, a cólera, o sentimento de culpa e sentia que isso lhes despedaçava o coração, até os virava uns contra os outros, mas sem palavras pouco podia fazer por eles. Dei um abraço a Liam, mas não lhe pude dizer que sabia que Eilis o amava e teria esperado por ele se tivesse podido. Segurei as mãos de Diarmid nas minhas e estudei a amargura que lhe ia no rosto; ter-lhe-ia dito que todos nós lhe perdoávamos pela sua leviandade; que Oonagh podia ter escolhido qualquer um deles; fora apenas o azar que o escolhera para brinquedo dela. Gostaria de lhe pedir que não odiasse tanto. Mas eu não podia falar. Quanto a Finbar, estava sentado sozinho, com os braços em volta dos joelhos, o longo cabelo despenteado e esvoaçando-lhe sobre os olhos enquanto ele olhava na direcção da água escura do lago. Não olhou para mim e não disse nada.
E assim se passou a noite e Padriac terminou o tear. Cormack remendou-me as botas, observado de perto por uma Linn algo enervada. Aqueles dois irmãos não tinham mudado muito, pensei. Padriac estava sempre concentrado numa determinada tarefa, ou problema, talvez a coisa terrível que lhes tinha acontecido fosse, para ele, mais um desafio interessante. Parecia, na verdade, contente por passar a sua única noite de liberdade a construir e consertar e atirar de vez em quando uma palavra ou duas para a conversa geral. Pelo menos, ele sobreviveria, pensei. No caso de Cormack, era provavelmente a falta de imaginação que o ajudava a enfrentar a situação. Não era gentil da minha parte, suponho; mas Cormack tinha tendência para ver o mundo a preto e branco e, nalguns aspectos, isso facilitava-lhe a vida. A sua agressividade era o seu ponto fraco, como Lady Oonagh deduzira antes de qualquer um de nós. Virando isso contra a sua mais querida e de mais confiança companheira, fizera com que ele duvidasse da sua própria integridade e essa dúvida ficaria sempre com ele para toda a vida.
Mais tarde voltaram a falar das Ilhas e qual a estratégia a utilizar para as recuperar; e desenharam mapas no solo arenoso, substituindo homens e árvores por folhas e galhos. Eu mal escutava; o suficiente para ouvir Conor dizer-lhes que as Ilhas nunca seriam recuperadas pela força. Nunca tinham ouvido a lenda, dizia ele, sobre aquele que viria um dia, que não seria originário de Erinw (Antigo nome da Irlanda) nem de Bretanha, mas de ambos; aquele que traria a marca do corvo e restauraria o equilíbrio? Só então uma ponte poderia ligar o abismo que existia entre os nossos dois povos.
— Isso não passa de uma história — disse Cormack em tom de rejeição. — Bem podemos esperar cem anos por tal tipo. Até podemos esperar para sempre. As árvores sagradas é que não podem esperar, enquanto os golpes de machado se ouvem através da água.
— Nem os espíritos vão estar à espera da sua hora enquanto a bota do estrangeiro conspurca as cavernas da verdade — acrescentou Diarmid.
— Além disso — disse Liam — não sei se estaremos interessados em construir uma ponte sobre o abismo entre os nossos dois povos. Reconquistar o que é nosso por direito e expulsá-los das nossas terras para sempre, isso já está mais próximo daquilo que tenho em mente.
— Essas velhas lendas, muitas vezes, tornam-se realidade — observou Padriac. — Por vezes, elas não querem dizer exactamente o que dizem. Talvez Conor tenha razão. As coisas estão a mudar; vede o que nos aconteceu a nós. A nossa história é tão estranha como uma velha lenda.
— Hum — disse Diarmid, duvidoso. — A Fé é muito bonita. Mas eu prefiro a minha escudada por uma espada afiada e uma tropa de bons homens.
— Um pouco de estratégia antecipada nunca fez mal a ninguém — disse Cormack, concordando com o irmão. — Quando regressarmos, devemos estar prontos. O pai pode não estar em condições de assumir o comando e o nosso velho inimigo pode ter usado a nossa fraqueza para fazer um movimento. Precisamos de ter a certeza de que as nossas anteriores vitórias não foram desperdiçadas.
Conor falou pouco, nessa noite. Fora forte; suportar a consciência dos dois mundos era um fardo e isso via-se. Mas Finbar e o seu isolamento era outra coisa. Fui-me sentar ao pé dele quando a madrugada se aproximava, porque me fartara de esperar que ele me falasse e ele não o fizera. Era lua nova e eu mal lhe podia distinguir as feições. Mas não precisava dos olhos para o ver, porque todas as faces dos meus irmãos me estavam gravadas no coração. Nariz comprido, boca larga, a pele pálida cheia de sardas, maxilares bem assentes e sob o cabelo escuro, caído sobre as sobrancelhas, olhos tão límpidos como a mais límpida das águas. Esse era Finbar.
— Desculpa pôr-te de parte — Falou após um longo silêncio, espantando-me. — Já não posso abrir-te a minha mente.
Porque não? Já não confias em mim?
— Querida Sorcha. Era capaz de te confiar a vida. Aliás, não estão elas todas nas tuas mãos? Simplesmente, eu vi... eu vi coisas que daria tudo para apagar do pensamento. Coisas terríveis. Acontece-me esperar, para além da esperança, que Conor tenha razão, que estas visões não sejam a Visão, antes um mal qualquer implantado na minha cabeça pela mulher do nosso pai com um propósito só dela conhecido. Talvez queira enlouquecer-me. Estas imagens são muito cruéis. É melhor eu não as partilhar. Nem contigo, nem com ninguém.
A voz dele dizia-me que, lá no fundo, acreditava que eram verdadeiras.
Porque não? Partilhá-las pode aliviar-te o fardo.
Ele mudou ligeiramente de posição, encolhendo os ombros e torcendo com os dedos um caracol.
— Este fardo, não. Além disso, se for falso, por que provocar dor aos outros? O que mais me preocupa é não saber o que fazer. Se vejo coisas que vêm aí, coisas más, devia agir para tentar preveni-las. Mas, mesmo que tivesse tempo para fazer alguma coisa, quase não saberia por onde começar. Além de que talvez seja exactamente isso que Lady Oonagh quer. E talvez, de novo, estas coisas sejam premeditadas; talvez não possam ser impedidas. Antes, eu sabia sempre qual era o caminho recto. Agora, perdi essa certeza.
Tu continuas o mesmo. Forte.
— Mas, serei suficientemente forte? É cada vez é mais difícil. Estou continuamente a mudar, de maneira que o homem é cada vez mais cisne; mas o cisne nunca pode ser homem. Oh, Sorcha, eu vi o meu próprio fim; nenhum homem deve ver isso. Vi os meus irmãos serem passados a fio de espada, morrerem afogados e vi um deles ir para longe, muito longe, mais longe do que é possível imaginar. E tu... vi um grande mal cair sobre ti e não sei como impedi-lo. Se te puderes ir embora daqui, deves fazê-lo e o mais depressa possível.
Diz-me o que é. Como é que eu posso fazer alguma coisa se não sei o que é?
— Não. Pode não ser verdade.
Estava insensível e não lhe consegui tirar mais nada sobre o assunto. Ficámos ali sentados os dois, calados. Após uns momentos, ele segurou-me na mão e, sem qualquer razão, tive um terrível pressentimento de que nunca mais me tocaria. Os últimos momentos do nosso tempo precioso escoaram-se e eu lutei contra as lágrimas à medida que o céu clareava com a aproximação da madrugada. Chorar não ajudaria ninguém.
Juntámo-nos na margem para nos despedirmos e ali Finbar fez uma coisa que me aterrorizou mais do que todas as palavras de aviso. Retirou o amuleto que trazia ao pescoço, a pedra suave, esburacada, com inscrições rúnicas e passou-ma pela cabeça, para que eu a usasse junto ao coração.
Levantei uma mão em protesto... Não, é tua, foi a mãe que ta deu... mas ele já se tinha virado e não lhe consegui ver o rosto. Fora um gesto de uma finalidade terrível. Nunca o vira, durante toda a minha vida, sem aquele presente da nossa mãe ao pescoço.
Adeus, até à próxima vez. Adeus, meu querido.
Dissera a Simon que ele podia terminar a sua história como muito bem quisesse. A escolha era dele, dissera eu; havia tantos caminhos na vida como fios numa grande tapeçaria e ele era o tecelão. Oh, mas a minha história. Por que não conseguia eu fazer o mesmo com a minha? Por que é que os fios desta teia formam um tecido de violência, ficam vermelhos de sangue e traição, levam à via da corrupção, da angústia e da separação? Com o olhar confiante de um inocente, eu fizera ver a Simon a necessidade de ele assumir o controlo do seu destino, nunca pensando encontrar-me, eu própria, indefesa perante os seus sopros, dois anos mais tarde.
Fimbar sempre buscara a verdade e eu viria a descobrir que a sua visão não era falsa. Mas só aconteceu mais tarde; tão tarde que eu varri da mente o seu aviso, continuando na minha vida como de costume, gozando o tempo quente, porque já tinha passado meio ano e já se estava quase de novo no solstício de Verão. Já tinha duas camisas guardadas e a terceira estava meia feita. Da minha caverna, observava o percurso do Sol, via o amadurecimento gradual das bagas e acreditava que os meus irmãos chegariam numa das próximas noites. Talvez na próxima. Havia cisnes no lago, alguns com crias; lá longe, algures, talvez Conor me estivesse a observar com o seu olhar humano enquanto voava no seu traje branco. Linn aprendeu a apanhar peixe nas poças pouco profundas, coisa rara para um cão. Ficava espantada ao ver a paciência dela, completamente imóvel na água, os olhos fixos numa pedra qualquer invisível, até que a presa prateada se aproximava para uma patada fatal. Enquanto ela praticava este novo jogo, eu fiava, tecia, manejava a agulha e só faltava a manga direita à camisa.
Então, um dia, de repente, tudo mudou. O Sol chamou-me para o exterior da caverna e eu fui sentar-me nas rochas à beira do lago, levando o meu trabalho comigo. Mergulhei os pés quentes na água, rolando os seixos com os dedos. Havia um grupo de cisnes não muito longe da margem, flutuando, limpando as penas, pescando calmamente. Pensei que estavam à espera. Estava com dificuldades para coser a manga e curvei-me sobre a agulha, ignorando as farpas nos dedos devido à longa prática, desejando, mais uma vez, ter prestado mais atenção quando uma das servas tentara ensinar-me a coser como deve ser.
Tinha-me esquecido de Linn até ela ladrar, algures ao longo da margem. Regressava da caça, pensei. Já era tarde para ela continuar longe. Então, começou a ladrar de novo e havia um aviso naquele ladrar. Levantei-me e procurei-a com os olhos, servindo-me da mão como protecção, ao longo da margem e para cima, por entre as árvores. Nada. Um momento mais tarde ouvi uma voz a praguejar e os latidos dela terminaram num horrível, gorgolejante gemido e depois, silêncio. Um pressentimento gelado subiu-me pela espinha. Comecei a subir o carreiro na direcção do abrigo das árvores, caminhando o mais suavemente que podia. Os meus sentidos estavam aguçados pelo medo, mas mesmo assim os homens foram rápidos demais para mim. Eram três, um vindo através do bosque por trás da entrada da caverna, um sorriso preguiçoso mostrando uns dentes amarelos desiguais. Na mão tinha uma faca ensanguentada. Um outro, subitamente por trás de mim, quando se deixou cair de cima de umas rochas e me agarrou pelo pescoço, o desagradável cheiro da sua respiração enchendo-me as narinas. E por trás deles, um mais familiar, cuja voz se fez ouvir, descontrolada, meio excitada, meio aflita.
— A fada! Não magoem a fada!
É difícil dizer o que se seguiu. Na verdade, só o disse uma vez antes, quando precisei e di-lo-ei de novo agora, apenas porque é um fio no tecido da minha história e se entretece no que veio a seguir. Tenho tentado apagar as palavras e as acções deles da minha memória, mas não consigo. Disseram e fizeram coisas terríveis. Creio que não demorou muito tempo, mas pareceu-me muito, muito tempo; e as palavras deles queimavam-me a cabeça, deixando marcas como as de Simon, que nunca cicatrizavam por completo.
— Então esta é que é a tua fada, Will? A mim, parece-me de carne e osso. E bem madurinha! Olha-me para ela!
Levou uma mão à minha túnica e rasgou-a na frente, expondo-me o corpo do pescoço até às ancas. Tentei cobrir-me, mas os braços estavam-me presos nas costas.
— E esta, hein? — disse o outro, quase a babar-se de excitação. Mexeu desajeitadamente no cinto. — Carne fresquinha! Mesmo como eu gosto, nova e sumarenta. Deve ser bem gostosa. — Virou-se para o simplório, que choramingava à entrada da clareira, retorcendo as mãos. — Desaparece, Will. A tua vez há de chegar, rapaz. Primeiro, os meninos crescidos.
— Não a magoes! Não magoes a fada! Não magoes o cão!
Mas eles magoaram.
— És capaz de te calar? — disse o primeiro e o segundo deu semelhante murro na orelha do rapaz que o pôs de joelhos a gemer.
Então, enquanto um me segurava, o outro espetou os dedos, enfiou-os dentro de mim e eu mordi os lábios, estrangulando um grito e sentindo o sangue e as lágrimas molharem-me as faces, ao mesmo tempo que ele tirava as calças e entrava dentro de mim. Doeu; doeu tanto e eu não tinha voz para o amaldiçoar. Tentei o nosso velho truque, contar uma história para bloquear a dor... o nome dela era Deirdre, dama da floresta... Fechei os olhos para não ver os rostos vermelhos deles, suados, excitados. Se te mantiveres quieta, tão quieta como um... como um rato, talvez a vejas... Tentei e voltei a tentar enquanto aquilo continuava, um estremecendo e afastando-se e o outro tomando o seu lugar.
— Estás a ver? Nem uma palavra! Ela gosta, não gostas, putéfia? Rica fada; esta é mortal, pertence ao terreiro. Aposto que foi a melhor coisa que lhe aconteceu.
Os salgueiros sussurravam à medida que ela passava... Ele era enorme, dentro de mim, demasiado grande; mal podia acreditar quão grande. O outro agarrou-me pelo peito, os dedos ferindo-me a pele, a respiração quente nos meus ouvidos... no seu manto de um azul tão escuro, e no cabelo, uma coroa de pequeninas estrelas... empurrava, empurrava, até eu pensar que conseguiria rasgar-me, até eu pensar que ia desmaiar de dor... caminhando .. caminhando sob os grandes carvalhos e... Perdi a noção da história e sentia apenas o martelar horrível, sem fim, as vozes repelentes, o grito crescente que ameaçava sair-me do peito, por mais que cerrasse os dentes.
— Não queiras que ela te abrace — disse o primeiro. — Já viste as garras dela?
— Ela é uma fada, não é? — disse o outro. — Talvez a mãe dela fosse um sapo.
Gargalhadas grosseiras.
Por fim, tudo terminou. O homem grunhiu, relaxou, saiu de mim, o outro largou-me e eu caí, redonda, no chão, os braços em volta da cabeça.
— Anda lá, atrasadinho — disse um. — Está aqui a tua sorte grande! Anda lá! Aposto que é a tua primeira vez, ha, labrego? — Deu-me um pontapé nas costelas. — Ela está prontinha para ti, não estás, rapariga-sapo? Esteve sempre caladinha. Mesmo o que tu querias, não era? Não te aflijas, que de onde este veio há mais.
— Despacha-te — disse o outro — Ela vai desmaiar. Depois, não tem piada.
Mas o atrasadinho choramingava e eu ouvi-o virar-se e correr através da floresta em direcção a casa.
— Raios o partam — disse um — Vai dar à língua se chegar antes de nós. Vamos, não vale a pena ficar mais aqui. É melhor apanhá-lo. Ela fica para outra altura.
— Adeus, coração — disse o outro de modo chocante. Levantou-me a cabeça pelos cabelos e riu-se-me na cara enquanto se curvava. — Desculpa deixar-te tão depressa. Havemos de voltar, coisinha fofa. Sente aqui. — Forçou-me a cabeça entre as pernas dele, roçando-se no meu rosto e eu engasguei-me, fiquei sem ar e lutei para me manter silenciosa.
— Oh, a propósito, o teu cão está lá em cima — disse o outro, rindo com ar trocista. — Ficou um pouco maltratado.
— Deu-me uma grande mordidela, o malandro — observou o primeiro, deixando-me cair de novo no chão. O grande bruto.
As vozes deles desapareceram lentamente sob as árvores e eu fiquei ali, incapaz até de chorar. Então, levantou-se um vento estranho e todas as árvores começaram a restolhar e a vergar, se bem que no solo o ar estivesse quieto. Era como se as trevas tivessem caído sobre a floresta.
Não sei quanto tempo estive deitada no chão. Ficou cada vez mais escuro, mas se era o dia a transformar-se em noite, ou parte do estranho silêncio de mau presságio que se apossou do meu abrigo nessa tarde, não o sabia dizer. Sentia-me perdida na minha miséria. Por cima de mim, as árvores mexiam-se, suspiravam ao vento e havia vozes nelas. Sorcha, Sorcha, sussurravam. Oh, irmãzinha. No chão, nada se mexia. As aves estavam silenciosas.
Após um certo tempo, tive que me mexer. Estava a sangrar; e havia Linn. Não tinha esperança de que ela voltasse, correndo por entre as árvores com a alegre cauda erecta como uma bandeira ao vento; mas, pelo menos, precisava de a encontrar antes do anoitecer. E precisava de água.
Tudo representava o inimigo. Tudo era demasiado difícil. Mexi-me muito lentamente. As minhas roupas estavam rasgadas e imundas. Nunca mais lhes queria tocar. Deixei-as cair junto do fogo. Sentia-me desesperada por me limpar, mas tinha medo de ir até à margem do lago. Havia um balde de água e um pano áspero e eu lavei a imundície deles do meu corpo, sempre a tremer, se bem que o dia estivesse quente. Lavei-me e voltei a lavar-me e quando a água acabou, continuei a esfregar o corpo com o pano até a pele ficar vermelha e dorida. Havia muito sangue; mas não parecia meu, limpei-me o melhor que pude, enrolei-me depois numa das velhas capas e subi a encosta, as pernas trémulas, vendo as árvores turvas dançando perante os meus olhos. Ela vai desmaiar. Depois, não tem piada.
Cheguei ao topo da encosta e quase tropecei em Linn, que jazia onde tinha caído, as mandíbulas segurando ainda um bocado de tecido da túnica do homem. Os dentes estavam arreganhados num último desafio e os olhos fixavam, cegos, o céu. A cauda jazia, também, na poeira do caminho. O pêlo estava ensopado de sangue do profundo golpe na garganta e havia pequenas poças vermelhas entre as pedras e as ervas. Suponho que foi uma boa morte para um cão, perder a vida em defesa daquela que amava. Eu só sabia que a minha amiga se tinha ido e que agora estava, realmente, só.
Linn era uma grande cadela e eu continuava a ser uma miúda. No entanto, antes de escurecer consegui carregá-la até à entrada da caverna e deitei-a na relva. Depois, tremendo da cabeça aos pés, arrastei-me até ao mais ínfimo espaço que pude encontrar na parede de rocha, enrolei-me na capa e tentei fazer com que a minha mente ficasse tão silenciosa como uma pena ao vento tão imóvel como uma pedra. Mas o meu corpo abanava e tremia, o meu espírito estava cheio de medo, ódio e vergonha. Pensei que nunca mais ficaria limpa.
Eles voltaram ao anoitecer. Ouvi as vozes deles e não me mexi. Viram logo o que acontecera. Mais tarde pensei que, se tivessem sido os meus irmãos que eu vira flutuando nas águas tranquilas, o que deve ter sofrido Conor, ao ver tudo aquilo, incapaz de agir até ao pôr do Sol. Trocaram palavras com vozes baixas, furiosas.
— Diarmid? Cormack? — interrogou Liam.
— Não, deixa o Cormack ficar aqui a tratar da cadela. Eu vou. Este trabalho é para mim. — A voz de Finbar tremia.
Então, espreitando por entre os dedos naquela meia luz, vi os três pegarem em capas e facas na caverna e desaparecerem na floresta com a morte nos olhos.
Conor sabia onde eu estava. Senti a mente dele à procura, para tocar na minha, mas eu retraí-me ainda mais. Ele não se aproximou logo de mim. Padriac, com lágrimas de raiva e confusão nos olhos, avivou o fogo, acendeu as lanternas e aqueceu água. O rosto de Cormack parecia talhado na rocha quando pegou na pá e começou a cavar um buraco de descanso para os restos ensanguentados da cadela.
Após um certo espaço de tempo, Conor veio sentar-se perto do buraco onde eu estava. Ainda me lembro da sensação da rocha sólida por trás de mim, como me encostei ainda mais, enroscada em mim própria, tentando fazer-me o mais pequena possível, mordendo os nós dos dedos, um braço sobre a cabeça procurando protecção. Lembro-me de desejar que a terra me absorvesse, me levasse e chupasse toda a minha dor, culpa e miséria. Eu estava cheia de ódio; ódio pelos homens que me tinham feito aquilo, ódio pelo inocente que os tinha levado até mim, ódio por Lady Oonagh, que me fizera ir para aquele lugar tão solitário. Odiava o meu pai pela sua fraqueza. Odiava também os meus irmãos, por não estarem ali quando necessitara deles. Além disso, eles também eram homens. Portanto, como se atreviam a tentar melhorar as coisas?
Mas Conor estava ali sentado, não muito perto e falou comigo naquele tom calmo, medido e o fogo que Padriac tinha reacendido espalhou a sua luz dourada pelas raízes das árvores, pelos fetos e até por aquela fenda estreita na rocha; e após um bocado olhei para fora através da confusão de cabelos que me cobria o rosto e vi a dor e o amor nos olhos deles.
— Sais cá para fora, corujinha? — disse Conor gentilmente. — Temos pouco tempo para te ajudar.
Era difícil, muito difícil. Não conseguia suportar que eles me tocassem. Padriac tinha mãos hábeis, que tinham ajudado muitos animais doentes durante a sua ainda curta vida e, tremendo, deixei-o tratar-me as feridas. Finalmente, envolta em cobertores, apesar do calor da noite, estendi-me ao pé do fogo e eles falaram em voz baixa, ao mesmo tempo que o aroma das ervas curativas subia no ar nocturno.
A cruel tarefa de Cormack chegou ao fim e ele regressou para o pé do fogo.
— Linn já estava morta há um bom bocado — disse ele sobriamente. — Quem fez isto já deve ter saído da floresta. Os nossos irmãos não conseguem seguir-lhes a pista e regressar antes de amanhecer. Mais valia terem ficado aqui, a ajudar-nos. Talvez pudéssemos ter levado Sorcha para um lugar seguro.
Conor olhou para o irmão gémeo e depois para longe. Cormack parecia calmo; mas os seus olhos estavam vermelhos e as faces estavam cheias de terra, no local onde secara as lágrimas.
— Não me parece — disse Conor. — Sorcha não pode ser movida esta noite. Para o melhor e para o pior, tem que ficar aqui, por agora. Quanto a esse outro assunto, acontecem coisas estranhas na floresta, à noite. Especialmente nesta. Por vezes, as pessoas perdem-se no escuro, até em caminhos familiares. Não é raro aparecer uma névoa súbita, escondendo o caminho certo, ou vozes misteriosas, que conduzem um viajante por um trilho enganador. Podem aparecer clareiras onde não as havia antes e um emaranhado de ramos pode, subitamente, esconder outras. Muitos morreram sob estas árvores e os seus corpos nunca foram encontrados.
Os dois irmãos olharam para ele e depois um para o outro.
— Hum — disse Cormack. — Tu lá sabes.
— Pois é. Eu sei — disse Conor.
Padriac estava a ferver uma taça com mais ervas; o cheiro disse-me que estava a usar erva-férrea, por vezes chamada coração-da-terra e os esporos do licodópio, a erva cujo poder deve ser manuseado com tanto cuidado. Já me tinham obrigado a beber, mas o meu estômago até rejeitava o que lhe era benéfico. Voltei a beber, mas pouco. Não tinha vontade de dormir, porque nenhuma infusão me podia prometer um sono sem pesadelos. Observei as estrelas enquanto os meus irmãos falavam em voz baixa. Eu sou uma curandeira; era e continuo a ser. Que estranho, portanto, como naquela noite senti, no fundo da minha alma, que nunca ficaria curada, como se nunca mais conseguisse sair daquele poço de desespero. Eu ajudara Simon e outros antes dele. Mas quem me ia ajudar a mim? Até a minha cadela desaparecera. Olhei para as estrelas até parecerem rodar sobre mim, até as suas imagens se misturarem com as minhas lágrimas.
Também era estranho que naquela noite eu não me preocupasse com quem podia magoar. O rosto de Conor estava branco e repuxado; carregava o fardo do que acontecera à sua irmã, a culpa por não ter estado presente para o impedir, culpa essa que todos sentiam, aliás, assim como conhecia os meus mais íntimos sentimentos, melhor do que os outros. Estava sintonizado com as minhas maldições sem palavras e gritos silenciosos e com o meu angustiado sentido de traição. Não estavas presente. Precisei de ti e tu não estavas presente. Era tal o fluxo de emoção, que não podia ficar escondido. A minha mente extravasava de dor, ele absorveu-a toda, mas não a mencionou uma única vez. Mas podia-se lê-la no rosto dele. O pior era que eu já não queria saber. O meu irmão também era homem. Talvez devesse partilhar o mal que outros homens tinham feito.
Devo ter dormitado por momentos, porque me lembro de acordar sobressaltada quando Liam atirou uma faca ensanguentada para o chão, ao lado da fogueira e limpou as mãos à capa. Os três tinham regressado. O rosto de Diarmid era uma máscara de fúria, o de Liam estava severamente reprimido. Finbar mantinha-se à parte e tinha as mãos encostadas à cabeça, como se os seus pensamentos ameaçassem rebentar. Tinha-as cheias de sangue. Em tempos, o mestre-de-armas Donal treinara-os com disciplina de ferro. Até eu sabia que uma arma deve ser escrupulosamente limpa depois de usada; limpa, oleada e guardada. Esta noite era diferente. As três adagas deles estavam por terra, junto do fogo e os seus reflexos vacilantes mostravam o metal brilhante incrustado de sangue. Fora uma caçada, não uma batalha. Eu não queria saber quantos tinham morto, se dois, se três. Não chorei pelo inocente apanhado em algo que não compreendia. Era tarde, demasiado tarde. O corpo doía-me, estava assustada e mesmo com os meus seis irmãos à minha volta, sentia-me só.
— Oonagh pagará com sangue por isto — disse Diarmid, a voz densa devido à fúria. A sua sede de vingança não fora saciada pelas mortes. — Eu próprio lhe hei de cortar a garganta, se mais ninguém o fizer.
— Ela é responsável por isto, se bem que indirectamente — concordou Liam. — Mas não é chegada a ocasião. Fizemos o que tínhamos de fazer. Agora, devemos cuidar de Sorcha. Ela deve sair daqui e já. Quando é que ela se pode mexer, Conor?
Falaram de mim como se eu fosse uma pedra no jogo de estratégia deles; uma pedra importante, mas ainda assim um objecto a ser manobrado para adquirir vantagem. Fiquei ali de olhos esgazeados, silenciosa, na escuridão. O corpo latejava-me de dor, a mente recordava-me, repetidamente, o que me acontecera. Não conseguia impedi-lo e quase desejei ter bebido infusão suficiente para apagar tudo por uns tempos com um sono drogado, com ou sem pesadelos. A minha mente não tinha descanso; não conseguia concentrar-me numa história, contar as estrelas, ou assimilar convenientemente o que os meus irmãos diziam.
As vozes deles entravam e saíam da minha consciência, Conor dizendo que eu não podia ser movida dali esta noite, Diarmid furioso, Liam tentando fazer planos. Clarões de dor, recordações de outras vozes. Levantei uma mão para cobrir os olhos e senti a sua aspereza roçar-me pela pele. Talvez a mãe dela fosse um sapo. Também havia outras imagens. O meu jardim desfeito. Simon gritando no escuro. Oonagh penteando-me, penteando-me e as criaturas retorcendo-se no espelho dela. Dor e medo. As vozes deles, de novo e mais uma vez. Carne fresquinha, hein? Mesmo como eu gosto, nova e sumarenta. Como é que os meus irmãos podiam continuar a falar, a planear, a argumentar como se eu não estivesse ali?
— Isso é impossível! Está fora de questão! — gritava Diarmid. — Não podemos deixá-la aqui! Deve haver outra maneira qualquer!
— Não há outra maneira — disse Conor calmamente. Tinha o rosto virado para o outro lado.
— Então, por Deus, acabemos com este encantamento de uma vez por todas — disse Cormack e havia uma nota temerária na sua voz. Levantou-se e fixou o seu irmão gémeo no outro lado da fogueira. — Não a podemos abandonar, agora. Digo que devemos aproveitar o tempo que nos resta para a levar para a herdade mais próxima, contar a nossa história e colocarmo-nos à mercê dessa gente. Pelo menos, Sorcha terá mais hipóteses. Se a deixarmos aqui, não chega ao fim da estação.
— Essa gente mostrou pouca mercê quando violou a nossa irmã — disse Diarmid selvaticamente.
— De qualquer maneira, não podemos fazer isso e voltar aqui antes do amanhecer — disse Padriac. Havia uma pergunta velada na sua voz.
— Padriac tem razão, não o podemos fazer — disse Liam. — Se contares a história a esses camponeses, amanhã Lady Oonagh já sabe do paradeiro de Sorcha, ou no dia seguinte. Se estiveres longe da água ao amanhecer, ainda acabas, amanhã, na mesa de jantar de alguém. Espero que não sejais loucos a esse ponto.
— O que é que queres dizer? — Diarmid tinha apanhado a adaga do chão e passava-a de uma mão para a outra, irrequieto.
— Que este plano é impossível. Acho que o melhor é deixarmos Sorcha o mais segura e confortável possível aqui. Talvez na próxima vez a possamos tirar daqui; deve haver outras grutas ao longo da margem. — Liam não parecia feliz com a sua própria sugestão.
— Que dizes tu, druida? — O tom de Diarmid estalou como um chicote. — Nenhuma declaração sábia, nenhuma retórica para nos inspirar? E as tuas capacidades místicas? Talvez seja hora de cessarmos de seguir os teus conselhos e tomarmos o assunto em mãos. — Parecia um cão de caça na ponta da trela esticada.
— Isso não é justo — disse Cormack, indo em defesa do seu irmão gémeo, a despeito das suas próprias dúvidas.
— Nem é exacto — disse Liam firmemente. — Com certeza não te esqueceste de como fomos capazes de seguir, com tanta rapidez, a pista das nossas presas, esta noite. Raramente vi uma névoa descer tão rapidamente ou tão selectivamente. Ou dissipar-se de repente, quando acabámos. Nem nunca vi antes os fetos e o musgo rastejarem e espalharem-se, numa questão de momentos, para esconderem os ossos e a carne dos homens. Houve magia aqui, esta noite; deves agradecer ao teu irmão por isso.
— Tretas — grunhiu Diarmid, mas sentou-se de novo com a faca ainda na mão. As palavras deles evaporaram-se da minha consciência e as imagens demoníacas regressaram. Tentei de novo bloqueá-las, mas elas não desapareciam. Queria gritar, berrar, deixar sair a ira e a dor; mas, não sei como, cerrei os dentes, engoli os sons que ameaçavam sair e as lágrimas escorreram silenciosamente. Os meus irmãos tinham boas intenções. Mas quase desejei que fosse madrugada e que se fossem embora. As vozes continuavam a discutir e após um certo tempo Padriac trouxe-me mais de beber, eu bebi e ele foi-se de novo. As imagens passavam e voltavam a passar-me pela mente. A marca do ferro quente na carne humana. Eilis cheia de convulsões, o belo rosto distorcido pelo esforço de vomitar. A cadela com os olhos confiantes e a faca espetada, profundamente, na garganta. O grande sorriso do atrasadinho quando olhou para cima, para as árvores. Não façam mal à fada! A seguir é a tua vez, labrego. Sob a espessa capa, eu tremia.
Estou aqui, Sorcha.
A princípio não queria acreditar; há tanto tempo que ele não me tocava assim a mente.
Estou aqui. Tenta esquecer, minha querida. Eu sei que te dói. Encosta-te a mim; deixa-me carregar o teu fardo por um bocado.
Mal o podia ver; estava na parte mais afastada da fogueira, por trás dos outros e meio virado de lado, com a cabeça ainda entre as mãos. Parecia que mal se tinha mexido desde que chegara.
Como? Como é que sabes?
Sei. Deixa-me ajudar-te.
Senti a força da mente dele entrar na minha e, não sei como, ele conseguiu fechar as coisas terríveis, escuras e secretas que receara partilhar comigo, enchendo-me a cabeça com imagens de tudo o que era bom e corajoso. Eu própria dançando alegremente, em criança, ao longo dos caminhos da floresta, abrigada pelos grandes ramos, iluminada pelo sol pintalgado. Aquela imagem era antiga, armazenada profundamente na consciência dele e que influenciava tudo o que fazia. Depois, os dois, deitados nas rochas ao lado das lagoas provocadas pelas nascentes, de rosto para baixo, o rosto seguro pelas mãos, quietos como pequenos lagartos a aquecerem-se ao sol, observando as pequenas rãs saltando e mergulhando por entre os agriões. Finbar, extraindo-me, pacientemente, as agulhas de morugem das mãos enquanto Conor contava a história de Deídree, a Dama da Floresta. Os sete em volta do pequeno vidoeiro, de mãos unidas.
Não me dava tempo para pensar, inundava-me a mente, apagava-me, pelo menos por agora, a miséria e o medo. Era como se a mente dele se misturasse com a minha para a livrar do mal. E mais: ele e eu de novo, sentados nas lousas de telhado, olhando para longe, para lá da floresta e do lago. Uma pequena imagem do padre Brien, com a língua entre os lábios, trabalhando com um pincel na página intrincada de um manuscrito. Conor no seu traje branco, lendo nos entalhes do tronco de uma grande sorveira-brava. Diarmid e Liam lutando nos baixios, ombro contra ombro, até que um cedia e o desafio acabava na água, rindo os dois perdidamente. Padriac colocando talas na asa de uma coruja, as mãos ágeis movendo-se sem pressa, para não assustar. Cormack e Linn correndo ao longo da margem e o vento de oeste chicoteando a água para lhes cobrir as pegadas na areia.
As lágrimas começaram a correr-me de novo pelas faces, mas a dor, agora, era diferente.
Chora, minha querida. O nosso amor envolve-te como um cobertor. A nossa força é a tua e a tua mantém viva a nossa esperança.
A floresta segura-te pela mão. Esta voz era diferente, era a de Conor. O caminho abre-se à tua frente. Os restantes tinham caído no silêncio, talvez sentindo que a madrugada se aproximava e que algo estava a acontecer, que era mais vital do que todos os planos que pudessem arquitectar.
Que... vês tu para mim? Custou-me muito perguntar. O que é que me vai acontecer? Mostra-me, desta vez.
Houve uma imagem, decomposta, difícil de discernir. Uma rapariga, eu própria, supunha, à deriva num pequeno barco. Uma coruja piando. Ou era agora e aqui e não parte de uma imagem da mente? Um par de mãos, segurando uma pequena faca, gravando um pequeno bocado de madeira. Uma fogueira verde, púrpura e laranja. A imagem desvaneceu-se e desapareceu. Se era tudo o que Finbar vira, ou se ele fechara a imagem, não sei. E durante todo aquele tempo ele não disse uma única palavra, limitando-se a ficar sentado com a cabeça entre as mãos, como que em transe.
Em breve os primeiros traços cinzentos da alvorada tocaram o céu e quase chegara a hora de eles partirem. A minha respiração estava calma e o meu corpo mais descansado, se bem que ainda me doesse. A minha cabeça estava cheia de luz, fragmentos de histórias de heróis, imagens da nossa infância, um bastião de recordações para manter afastadas as sombras. Finbar não permitiu que qualquer pensamento mau, ou imagem feia, me tocasse. Fiquei quieta, enrolada no meu cobertor e o céu, que clareava, parecia-me suave e a copa das árvores, benigna. Ouvi a voz de uma coruja, chamando através da madrugada tranquila e tocando-me profundamente o espírito. Os meus irmãos permaneceram sentados em silêncio e de rostos crispados em volta das últimas brasas da fogueira.
— Sorcha. — Conor falou em voz alta, desta vez, de maneira que todos pudessem ouvir. — Há uma hipótese, na qual nenhum de nós falou. Quero apresentar-ta. — Descobri que conseguia sentar-me e acenei, compreendendo. A garra na minha mente abrandou um pouco o aperto; mas Finbar segurou-me. Olhei para ele no lado oposto do círculo. O rosto do meu irmão chocou-me; estava branco, enrugado como pergaminho e havia sombras púrpuras sob os olhos. parecia um velho, ou alguém que tivesse passado a noite com as Criaturas Encantadas e nunca mais voltasse a ser o mesmo.
Está tudo bem, Sorcha. Escuta o Conor. Finbar não moveu um músculo.
— Todos pensamos nela, sem dúvida; mas nenhum de nós estava preparado para falar nela, se bem que Cormack se tenha aproximado, penso. Quero que sejas tu a decidir, Sorcha. Leva o tempo que quiseres e escolhe por ti, não por nós.
Liam continuou.
— Não fales por enigmas, Conor. Isso deve ser dito com clareza. Sorcha, o que ele está a tentar dizer é que talvez tenha chegado a altura de parar com a tarefa. Para mim, pelo menos, o preço parece ser muito alto. Todos nós daríamos de boa vontade as nossas hipóteses de futuro em troca da tua segurança.
— Daríamos as nossas vidas por ti. O que mais custa suportar é o sentimento de culpa; porque tu arriscas-te diariamente nessa luta para completar esta tarefa por nós. — A voz de Cormack era friamente lógica.
— Não te podemos proteger — disse Diarmid rudemente. — Somos piores do que inúteis, não passamos de um fardo para ti. — Reparei, então, que ele segurava descuidadamente a pequena trouxa de camisas de morugem nas mãos, apesar das farpas e perto, muito perto das brasas. — Eu digo que se devem destruir estas camisas mágicas, abandonar esta tarefa que te consome e procurar abrigo junto dos santos irmãos, que te podem proteger da feiticeira. Poderemos ficar perdidos para o mundo humano. E depois? Isso pouco interessa.
Este discurso deve ter-lhe custado muito, porque eu sabia que o desejo de vingança lhe ardia no coração. Sabia como Liam desejava regressar a casa e endireitar as coisas, com o pai e as terras, antes que fosse tarde demais para salvar fosse o que fosse. E o futuro de Conor, os seus anos de aprendizagem, o temor com que os aldeões falavam dele, como sendo um dos sábios? Quem o substituiria se ele nunca mais regressasse ao mundo mortal?
— Devíamos ter construído um barco, ou uma jangada — disse Padriac subitamente. — Aqui há pouca gente; podíamos deslocar-nos ao longo do lago, navegando suavemente ao anoitecer ou de madrugada, sob as árvores e perto da margem. Devia ter pensado nisso. — Os outros olharam para ele. — Bem, foi só uma ideia disse ele.
— Não tens estado a ouvir nada? — disse-lhe Liam, franzindo as sobrancelhas.
Padriac estava, de novo, a pôr a taça ao lume, fervendo suficiente chá de ervas para me durar um dia ou dois.
— Tenho, sim — disse ele tranquilamente. — Sorcha vai escolher por nós. Que mais há a acrescentar?
Senti o aperto de Finbar na minha mente abrandar e desaparecer lentamente, deixando-me limpa e vazia. A presença de Conor também desapareceu, retirando-se tão subtilmente como entrara. Queriam que tomasse a decisão sozinha. Mas não havia escolha para mim. Estendi o braço em busca da trouxa das camisas e Diarmid passou-ma.
— Tens a certeza, Sorcha? — perguntou Liam calmamente. Acenei com a cabeça. Ao contrário de Finbar, ainda sabia qual era o caminho que tinha de seguir. parecia-me que, acontecesse o que acontecesse, isso não mudaria.
— Muito bem — disse Liam. — Honraremos a tua decisão. Sobreviveremos e regressaremos de novo no solstício de Inverno.
— Não regressaremos aqui — disse Finbar com a mais fraca das vozes e, ao virarmo-nos todos para ele, oscilou e caiu no chão como morto. Conor foi o primeiro a chegar até ele e ajoelhou, escondendo o rosto do irmão dos outros.
— Levanta-o — disse Diarmid rudemente. — É quase madrugada.
— O que é que se passa com ele? — Cormack foi um pouco mais compreensivo. — Não ouvi uma única palavra dele toda a noite.
— Saboreou o primeiro sangue — disse Diarmid. — Por vezes, acontece isto. Não tem estômago. No entanto, foi bem rápido. Nunca vi um homem espetar tão fundo, nem torcer a faca com tanto prazer. Olha para as mãos dele.
Com tacto, Padriac levou-me dali para me falar de cataplasmas e fricções, de como tivera que me suturar e cujos pontos eu própria teria que retirar, coisa que seria um pouco dificultosa, mas não impossível. Eu só ligeiramente o escutava. Não precisava de me explicar o meu próprio ofício. Liam estava a esbofetear as faces brancas como a cal de Finbar; Conor apalpava-lhe o pescoço com os dedos, sentindo-lhe as veias sob a pele, falando em voz baixa.
— Despacha-te — disse Diarmid. — Pela Dama, que hora para ter um ataque de histerismo. O Sol já está a tocar nas copas das árvores da outra margem do lago. Bate-lhe com força, fá-lo acordar rapidamente. Ainda nos trama a todos.
— Cuidado com a língua! — disse Liam, numa voz parecida com a do pai. Uma voz que provocava o silêncio, subitamente, em homens feitos.
— Estás enganado a respeito de Finbar — disse Conor, ao mesmo tempo que ele e Liam punham o irmão em pé e começavam a andar lentamente na direcção do lago. Porque Diarmid tinha razão; chegara a hora. Meio consciente, Finbar cambaleava entre os dois, movendo os pés como se pesassem toneladas. — Ele deu mais de si, esta noite, do que imaginas. Não julgues com tanta leviandade aquilo que não compreendes.
— Compreendo muito bem — grunhiu Diarmid, mas não tentou interferir mais. E assim chegaram à margem e de novo se despediram de mim. E desta vez, de pé e oscilando, envolta na minha grande capa, não queria que nenhum deles me tocasse e eles sabiam-no sem necessidade de palavras. Assim, deslizaram para a água, um a um e eu senti no coração que passaria muito tempo, mais do que a diferença entre o Verão e o Inverno, até voltar a vê-los. O meu amor por eles não diminuíra, mas penso que não conseguiria, nunca mais, abraçá-los, se bem que fossem meus irmãos. Não poderia voltar a confiar neles, porque não estavam presentes quando precisei deles. Não que tivesse sido culpa deles. Tal era o poder do mal que me tinham feito. E enquanto se encaminhavam para a água, com Finbar ainda amparado pelos dois irmãos e a primeira luz dourada do Sol tocando-lhe as feições pálidas, não o chamei com a minha voz interior. Não disse obrigada ou adeus, meu querido. Virei as costas e encaminhei-me, solitária, para o abrigo dos freixos, com a mente e a língua silenciosos como a morte. Não houvera adeus para os meus irmãos, à medida que as águas os envolviam uma vez mais.
Cormack previra que eu não duraria muito sozinha na floresta com as feridas que tinha. Não tomara em consideração a minha força de vontade, nem as minhas capacidades como curandeira. Não previra a intervenção da própria floresta, por intermédio dos seus mais secretos habitantes.
O tempo passou, a Lua cresceu, diminuiu e os quentes dias de Verão transformaram-se, lentamente, nos duros e frios dias dos princípios de Outono. Estava tudo calmo, tão calmo que até o súbito chilreio de um pássaro me fazia saltar. Demasiado calmo. A pilha de pedras redondas do rio, que marcava a última morada de Linn, falava-me todos os dias do vazio que a morte dela deixara no meu pequeno mundo. Os meus dias eram ordenados pelos padrões dela, tanto como pelos meus. O meu tempo a tecer e a fiar e as jornadas dela pelos bosques à procura de coelhos, ou pelo lago à procura de peixe, as minhas refeições tomadas aquando do regresso dela e as nossas sonecas debaixo do mesmo cobertor. Uma vez encontrei as pegadas dela ainda marcadas na areia, no local onde tinha dado uma corrida e eu chorei e senti o que perdera.
O meu corpo sarava graças aos cuidados de Padriac e aos meus próprios conhecimentos. Após um certo tempo soube que não estava grávida e dei graças por isso. Mas continuava assustada e por vezes até a minha rotina diária era demasiada. O abrigo que se tornara a minha casa já não era um refúgio, transformado, para sempre, pelo mal que aqui acontecera. Imaginava as minhas ervas a morrerem lentamente, ou a crescerem desordenadamente, as flores disformes e as bagas enrugadas. Não me aventurava a sair para colher uma nova provisão da planta de que necessitava, nem sequer com uma faca afiada à cintura.
O mais leve som punha-me o coração aos saltos. Tinha sonhos e esses não os contarei. Tentei lutar contra eles. Fazia os possíveis para dormir de dia e permanecer acordada durante a escuridão. Mas as minhas velas já quase tinham acabado e os sonhos vinham até durante a luz do dia. Recorri ao uso das ervas e durante algum tempo elas deram-me algum descanso. Mas a dosagem que eu precisava começou a crescer, a crescer. Após um certo tempo tomei a decisão de parar, sabendo o poder que tais poções podem exercer sobre os fracos. E os demónios regressaram.
Pensei muito em Simon. Pensei nas suas feridas e como o obrigara a prometer que sobreviveria. Senti que estava fraca, mas que devia dedicar-me, de novo, à minha tarefa. Mas havia dias em que, simplesmente, não tinha vontade e o fio de morujem ficava por fiar, enquanto me sentava encostada ao tronco do freixo, olhando para o vazio. Senti-me como se estivesse à espera, mas não sabia de quê.
Não tinha muita comida, já que tinha medo de me afastar. Não tinha, nem a vontade, nem a energia de preparar bagas para secar e o meu pequeno canteiro de ervas estava cheio de ervas daninhas. Tinha um pequeno saco de ervilhas secas que encontrara há algum tempo ao lado do trilho de carroça, caído da carga de algum camponês. Tinha andado a poupá-las e agora cozia algumas, de manhã, para fazer uma espécie de caldo, quando tinha forças para tal. Alguns dias, até pentear-me me custava.
Emagreci e dava comigo a adormecer inesperadamente, para acordar com pesadelos. À medida que os dias iam ficando cada vez mais pequenos, o meu trabalho progredia pouco. Então, finalmente, ela veio. Silenciosa como um cervo, apareceu subitamente nas sombras, entre os troncos cinzentos dos freixos, os olhos profundos dela olhando para mim com uma expressão que eu não compreendia. Desta vez não trazia a capa azul-escura, nem havia jóias nos seus longos cabelos escuros. Em vez disso, o traje era simples, caindo-lhe pelas ancas, cor de musgo; e os braços sobressaíam, pálidos, sob a luz filtrada pelas árvores. As folhas e os ramos agitavam-se em volta dela e eu senti o profundo e palpitante bater do coração da floresta, como se nascesse para a vida à medida que ela passava. Na última vez dera livre curso à ira e ao medo. Desta vez, apenas senti um profundo vazio.
Chegas tarde.
O rosto dela estava impassível. Se havia nela alguma expressão, era de ligeira desaprovação.
— Chegou a hora, Sorcha — disse ela. — A hora de continuar.
Continuar o quê? Pensei eu debilmente. Tudo me parecia demasiado duro, demasiado esforçoso. Talvez fosse melhor rastejar outra vez para debaixo da rocha e fechar os olhos.
Estou cansada de ser forte.
Ela riu-se. Riu-se de mim, como se eu não passasse de uma pessoa ridícula.
— Tu és o que és — disse ela naquela voz baixa, musical. — E agora, vamos, levanta-te. Não és a primeira mulher da tua raça a ser violada por homens, nem serás a última. Nós vimos, com pena, o que te aconteceu; mas a vingança foi rápida e justa. Agora, deves continuar a partir daqui.
Senti um começo de raiva dentro de mim, lutando para sair através da profunda fadiga que me fazia a cabeça andar à roda e os membros pesados e doridos. Levantei-me e as árvores pareceram estremecer e mover-se à minha volta.
— Óptimo — disse ela calmamente. — Agora, vamos sair daqui. Podes levar contigo algumas coisas. Escolhe com cuidado. Encontrarás um pequeno barco ancorado sob os salgueiros, não muito longe do lado norte da baía. Levar-te-á onde precisas.
Pestanejei para ela. As árvores pareciam agitar-se, à minha volta, em todas as direcções, a luz do fim de tarde tremeluzindo entre as folhas em tons de cinzento, verde, dourado, castanho-avermelhado e castanho. A imagem dela começava a desvanecer-se.
Mas e se... eu não posso... e onde...
Mas ela desaparecera. Fiquei ali quieta, desejando que a Visão ficasse. Lentamente, o mundo voltou ao que era, mais ou menos. Pensei vagamente que talvez não tivesse comido desde o dia anterior. Talvez fosse esse o problema. Sentia-me muito estranha. Mas não havia mais nada a fazer ali. Além disso, se eu podia levar comigo apenas um saco, certamente não ia enchê-lo com maçãs secas ou montes de agrião.
Quando as Criaturas Encantadas nos dão instruções, seguimo-las, quer nos agradem ou não. Era assim. De qualquer maneira, não tinha escolha. Não estava preparada para o Inverno e os meus irmãos tinham mais em que pensar do que cortar lenha ou procurar provisões para mim, como na outra vez. Assim, deixei o meu bordão de carvalho, que tinha sido do padre Brien, as botas de Inverno, as capas quentinhas e as três adagas com os cabos gravados. Deixei a pilha de pedras redondas onde jazia a minha cadela, o último ramo de alfazema seca, que guardava ainda o aroma do calor do Verão e o diminuto monte de lenha de freixo. Até deixei o fuso e o pequeno tear que o meu irmão construíra para mim. Mas levei as duas camisas de morujem e a terceira meio acabada, juntamente com as fibras que ainda não fiara, a agulha e o fio e, no fundo do saco, o pedaço de madeira de Simon. Levava o meu velho vestido e em volta do pescoço o amuleto de Fimbar, que fora da nossa mãe. Afastei-me da caverna sem um único olhar para trás. Mas ouvi umas vozes fracas sussurrando, restolhando e o bater delicado de asas dentro e fora da copa das árvores.
Sorcha, oh Sorcha. Adeus, adeus Os sons seguiram-me ao longo da margem do lago enquanto eu caminhava de pés descalços por entre as pedras e através do cascalho, até que encontrei a chata com um longo pau dentro, para empurrar. Irmã, oh irmã. Onde vais? Quando voltas? Enterrei o pau na areia, desloquei o barco para a corrente e a água levou-me.
CAPÍTULO SETE
Se na ocasião me restasse ainda alguma vontade, teria seguido a sugestão de Padriac e mantido junto à margem do lago, deslocando-me perto dos salgueiros pendentes até chegar a um lugar de relativa segurança. Pensei, de modo indistinto, que a Dama assim quisera e me fizera mudar para me proteger, enquanto completava a minha tarefa. Mas não tinha energia para governar o barco. A minha mente estava nublada devido à fome e eu supunha que estava doente; o fraco balanço do barco parecia-me estranhamente errático, a água estava turbulenta e as árvores, à passagem, inclinavam-se e oscilavam, provocando-me tonturas. Senti, vagamente, que outras mãos faziam mover o pequeno barco numa direcção que não da minha escolha.
As Sílfides da floresta desapareceram lá atrás e na ondulação das águas do lago outras vozes se ergueram, líquidas, evasivas, murmurando umas para as outras, à medida que as suas ondas empurravam o pequeno barco rapidamente, com demasiada rapidez, para longe, para as cada vez mais agitadas águas. Pestanejei e olhei, tentando perceber quanto era real e quanto era imaginação febril. Havia longas e pálidas mãos na água, rostos com grandes olhos e cabelos parecidos com ervas daninhas, cinzentos, verdes e azuis. Havia caudas de escamas brilhantes.
Depressa, depressa cantavam, umas para as outras. Chegou a hora.
E assim o barco deslocava-se cada vez mais depressa, como se num rio rápido. Do céu pendiam pesadas nuvens e o dia ficou escuro. Gordas gotas de chuva começaram a salpicar-me e ouvi um distante trovão. A pequena parte de mim que ainda estava acordada registou aquelas coisas e também que estava sozinha naquela grande extensão de água, de pés descalços e no meu velho vestido, num barco construído para pacíficas lagoas. O vento levantou-se e a pequena barca baloiçava enquanto continuava a sua rota.
Pequenas ondas entravam pelos lados, ensopando-me até à cintura. Mas eu não tinha frio; em vez disso, sentia-me em brasa e ouvia as vozes delas chamando-me, em volta, por baixo, por trás e à minha frente, na água cada vez mais escura.
É fácil, fácil, Sorcha. Atira-te, atira-te pela borda fora e vem ter connosco. Aqui, debaixo de água, está fresco. Atira-te.
E outra.
Vem, vem cá para baixo. Diz adeus à tua dor, deixa que a água a lave. Vem, deixa que a água te leve. Vem e dança connosco no fundo.
As vozes delas coaxavam suavemente. Eu queria sentir a água fresca na testa a escaldar, queria dormir e esquecer. Seria tão simples deixar-me cair, desaparecer sob a água, para longe de tudo.
Atira a tua trouxa! Atira! Deixa cair o teu fardo!
Vi os dedos longos e em forma de garra estenderem-se para cima, na minha direcção, acordei e apertei a trouxa contra o peito, sem querer saber das farpas, que me feriam através do tecido.
Não. Não deixo
Então ouvi-as rir, vozes altas, profundas e o esparrinhar das caudas na água, à medida que se moviam em volta do barco. E depois desapareceram, deixando-me a enfrentar o vento e a água.
Suponho que quase me afoguei, nessa noite. Mas sentia-me doente e cansada e na ocasião o perigo parecia-me pouco importante. Pouco depois o céu escureceu e a luz fendeu a escuridão como grandes lanças brancas, atiradas com tremenda força contra a terra. Uma chuva tempestuosa começou a cair e o barco ficou meio cheio de água. Agarrei-me com as duas mãos para manter o equilíbrio e soube que era apenas uma questão de tempo, antes de me afogar. Soube, também, que não viveria muito mais tempo na água. Há muito que o lago se estreitara até formar um rio rápido e a margem estava agora perto; um raio de luz iluminou paredes de rocha e pequenos bosques de arbustos. Estávamos para lá dos limites da floresta, em campo mais aberto. Aqui e ali podia ver fendas nas rochas e pequenas áreas de terra seca para onde poderia nadar, se tivesse a força necessária. Agarrei no pau, esperando guiar o barco para a margem, porque talvez ali fosse pouco profundo. Mas a minha mente não parecia capaz de me guiar as mãos e o pau fugiu-me e caiu à água, flutuando rapidamente para fora de alcance. Eu estava demasiado fraca para o apanhar, nadando, quanto mais conseguir chegar à margem. E se não me afogasse, o frio acabaria comigo antes da manhã seguinte. Ardia em febre e não sentia o frio, mas a curandeira que havia em mim sabia como aquele calor era enganador e como podia gelar até à morte.
As nuvens tempestuosas afastaram-se por instantes e a Lua apareceu. Uma luz pálida estendeu-se, subitamente, sobre a superfície das águas.
Havia também uma luz na margem e, um momento mais tarde, a voz de um homem gritando:
— Hei! O que é aquilo?
E outra.
— Além... olha! Está alguém lá dentro! Parece-me uma rapariga
O vento uivava, emaranhando-me os cabelos em frente dos olhos. O barco estava outra vez a afastar-se da margem. Perscrutei na direcção da pequena luz. Havia dois homens, um transportando uma espécie de lanterna, enquanto o outro tirava a camisa e se atirava à água, nadando, lutando, na minha direcção.
— És maluco! — gritou o outro.
O homem aproximava-se. Apesar do vento e da corrente, o seu corpo poderoso, branco à luz da Lua, movia-se, em linha recta, na minha direcção. Era um homem grande, nadando com grande determinação. O meu corpo estava tenso de medo e subitamente o pensamento de me deixar cair borda fora, de me afogar, deixando este mundo, pareceu-me tão bom, a única coisa sensata a fazer. Agarrei na trouxa com ambas as mãos e fiquei de pé, pouco segura. O vento fez o resto, inclinando o barco, de maneira que ele se encheu de água e se afundou. A água fechou-se sobre a minha cabeça.
Durante alguns momentos o frio foi uma bênção e o desejo de esquecimento suficientemente forte para apagar tudo o resto. Depois, os pulmões começaram a pedir ar e o espírito disse Não Ainda não. E eu vim à superfície sufocada, tossindo, tremendo e aterrorizada. Vim à superfície ao mesmo tempo que o homem dava as últimas braçadas e me agarrou em volta da cintura com um par de braços que pareciam de ferro. Não conseguia gritar, mas lutei contra ele com quantas forças tinha, arranhando e dando pontapés com as forças que me restavam.
— Pára de lutar, estúpida — disse ele e tapou-me a boca com uma grande mão, virando-me de costas e puxando-me para a margem. Mordi-o. Ele praguejou, utilizando uma palavra que eu ouvira apenas uma vez, porque a língua que ele falava era a dos Bretões. O abraço dele abrandou o suficiente para me permitir deslizar para a água de novo e tentei nadar para longe dele, de qualquer maneira, mas o meu nariz encheu-se de água, o peito doeu-me, ele agarrou-me pelos cabelos e eu senti-me, inexoravelmente, rebocada para a margem, segura num amplexo demasiado forte para mim. Eu chorava, o ranho corria-me pelo nariz e desta vez eu estava tão assustada que desejava, verdadeiramente, ter-me afogado.
Chegámos à margem, onde ele me pôs aos ombros sem a menor cerimónia, como uma peça de caça.
— Maluco — observou o companheiro.
Começaram os dois a andar na direcção dos arbustos, para longe da água. Reparei que ele levava a minha trouxa na outra mão. Ambos tinham facas nos cintos. Pensei que roubaria uma quando eles parassem e me pusessem no chão. Antes que me fizessem alguma coisa, matar-me-ia. Por que haveriam dois homens como aqueles de me salvar, senão para se servirem do meu corpo e o atirarem depois fora? Que mais quereriam de uma rapariga miserável, meio morta de fome, meio afogada? Mas não os deixaria violarem-me. Desta vez, não. Impedi-los-ia por todos os meios ao meu alcance.
Mas quando chegámos ao abrigo sob uma parede de rocha e eu vi que havia um terceiro homem à espera na escuridão, não tive forças para me proteger e fiquei ali, indefesa, onde ele me deixou cair. Tinham diminuído a chama da lanterna, mas pude ver que eram Bretões e vestidos para viajarem, depressa e em silêncio, pelo país.
— Vamos ter que acender uma fogueira. — Era a voz do meu salvador.
— És maluco — disse o outro, o que tinha a lanterna. — E Redbeard e os homens dele? Não devem estar muito longe.
— Ouviste o que ele disse. Acende uma fogueira. — Era o terceiro homem, que parecia mais velho do que os outros. Não me atrevi a abrir os olhos mais do que uma pequena fenda. — Uma fogueira pequena. Esta tempestade vai manter os nossos perseguidores longe de nós até de madrugada. Nessa altura já estaremos longe.
Ouvi alguém a mexer na lanterna e após alguns instantes um suave crepitar. Espalhou-se um pequeno brilho, lançando-lhes para os rostos severos reflexos cor de laranja. Falaram baixo uns com os outros e após alguns momentos consegui dar-lhes nomes. O mais velho chamava-se John; aquele que transportara a lanterna, jovem, de cabelos dourados, chamava-se Ben. Quanto ao alto, que me pescara do rio, o nome dele parecia ser Red, por mais estranho que parecesse. Este encaminhou-se para a minha trouxa. Fechei os olhos e tentei não tremer.
— Ela estava agarrada a isto com todas as forças. O que é que está lá dentro, as jóias da família?
Não houve resposta. Pouco depois abri os olhos um pouco. Red estava a fechar a trouxa.
— Não tem grande coisa — disse ele. A voz soava de modo estranho. Ele também parecia estranho, o rosto focado e desfocado à medida que se inclinava para mim. Cerrei os dentes de repulsa.
— Creio que está doente. Dá-me a tua capa, Ben.
— Hei, está frio. E eu? — A réplica era queixosa, mas o companheiro deu-lha e eu senti o seu calor cobrir-me. A mão do homem tocou-me no ombro e eu estremeci, gritando. Por um momento olhei-o nos olhos, que eram azuis e tinham um ar baralhado. Tinha as sobrancelhas franzidas.
— Calma — disse ele. — Calma! — Como se falasse com um cavalo nervoso, ou um cão meio selvagem. É agora, pensei. É agora que vão agarrar em mim e eu... e eu... mas a minha mente não conseguiu ir mais além porque eles eram três, todos armados e muito maiores do que os outros. Estes eram viajantes endurecidos. Não tinha qualquer hipótese. Mas tinha dentes e unhas afiadas e usá-los-ia até as forças me faltarem.
— Despe-te — disse Red e o meu corpo enroscou-se de terror. Senti-me estremecer. O meu coração, aos pulos, media o silêncio. Quanto tempo demoraria ainda a porem-me as mãos em cima? Por quanto tempo ainda sufocaria o grito de ultraje que me brotava da garganta?
— O que é que se passa contigo? — A sua voz era de exaspero. — Toma. — Segurava algo na minha direcção. Ben falou.
— Ela não te compreende, Red. No fim de contas, é nativa e novinha.
— É mais provável que tenha sido magoada — disse o homem mais velho. — Demasiado aterrorizada para te deixar aproximar. Dá-lhe as roupas e afasta-te. Não vale a pena tentar falar com ela; duvido que ela consiga compreender-te, para já não falar da língua. Tens que lhe mostrar que não lhe queres fazer mal.
O meu salvador arqueou as sobrancelhas e pousou o que transportava no chão, ao pé de mim. Depois os três afastaram-se para a borda da plataforma e, trocando olhares, viraram-me as costas.
— Isto é uma estupidez — disse Ben, de costas voltadas para mim. — Quem é ela, afinal, uma princesa de sangue? Primeiro, é uma bárbara; segundo, é pouco esperta e terceiro, os homens de Redbeard estão-nos nos calcanhares, armados até aos dentes e estamos nós para aqui a olhar para os escrúpulos da modéstia feminina Acho que esta miúda da floresta vos deu a volta à cabeça.
— Cala-te, Ben — disse Red e o companheiro calou-se.
Reparei que me tinham dado uma camisa enorme de linho cru e um cinto para a atar. Cheirava a suor, mas estava seca. Havia também uma espécie de camisola interior.
Red olhou por cima do ombro.
— É suposto tu tirares as tuas roupas molhadas e vestires essas — disse ele, mas era evidente que não esperava que eu o compreendesse. Virou-se e gesticulou na minha direcção enquanto eu olhava para ele.
Talvez, pensei, eles não quisessem mesmo fazer-me mal. Em qualquer dos casos, tinha pouco a perder. Podia sentir a febre a subir, queimando-me. Tinha suficiente senso comum para saber que umas roupas secas me ajudariam. Red virou-me, de novo, as costas.
— Para que é que te maças a falar com ela? — perguntou Ben. Parecia alguns anos mais novo do que o amigo, talvez a idade suficiente para uma expedição como aquela, fosse ela qual fosse. Se, na verdade, eram Bretões, estavam muito longe de casa. — Basta olhar para ela para ver que lhe falta qualquer coisa. Podes ter as tuas razões para vir até aqui, mas tens de admitir que foi uma perda de tempo. E agora arriscamos as nossas hipóteses de fuga por uma rapariga meio maluca. É a última vez que me arrastas para uma coisa destas.
— Tu falas assim agora — disse John —, a quente. Mas quando ele te pedir outra vez, vais logo. Portanto, cala a boca, antes que digas coisas piores.
E, enquanto discutiam, eu lá ia, de coração aos pulos, despindo o meu vestido ensopado e lutando com as roupas secas, atando a grande camisa, o melhor que podia. O cinto dava-me duas vezes a volta à cintura e continuava largo.
A discussão chegou ao fim. Os três viraram-se e, sentada, fui escrutinada, ainda tremendo, ao pé da minúscula lareira. Havia uma sombra de divertimento no rosto do homem mais velho quando olhou para mim. Suponho que o meu aspecto devia ser bem estranho.
— Até agora, tudo bem — disse Red, cuja expressão não deixava transparecer nada. — Põe a capa, também.
Não dei a entender que tinha compreendido. Ele pegou nela e deixou-ma cair sobre os ombros. Recuei quando as mãos dele se aproximaram, mas o calor da capa era bem-vindo e puxei as abas.
— Óptimo — disse ele. — Agora, descansa. Descansa. — Apontou para o chão perto da lareira e pousou o rosto nas mãos. Aquilo parecia, subitamente, uma ideia sensata e eu deitei-me, ainda a tremer e em breve caía num meio sono febril, na bruma do qual as vozes baixas deles me chegavam, a intervalos.
— Tu és maluco, Red. Temos menos de um dia para chegar à costa e encontrar o barco. Que vamos fazer com ela? — Era Ben, aquele que segurava a lanterna na margem.
— Em todo o caso, não ia deixá-la afogar-se — disse John. — Amanhã já ela está boa, se lhe deixarmos um cobertor.
— Pergunto-me o que anelava ela a fazer por aqui. Tempo esquisito para pescar — observou Ben.
— Esta gente é estranha — disse o homem mais velho. — Ouvi dizer que, por vezes, se afastam, à deriva, das margens, como se fosse um castigo. Talvez esta rapariga tenha ofendido alguém.
— Devias tê-la deixado afogar-se.
Aquele a quem chamavam Red parecia ser um homem de poucas palavras. Quando falou, fê-lo mais calmamente do que os seus companheiros.
— Ela tem febre. Mais do que isso, tem um medo de morte.
— Bem, deve ter — disse Ben. — É um deles, não é? O que faz de nós o inimigo. Talvez ela espere a mesma espécie de tratamento que o povo dela dá àqueles de quem não gosta.
— Até agora, não falou — observou John. — Nem um único som. Talvez seja muda. Parece meio selvagem. Pode muito bem ter sido abandonada pelo povo dela, ao verem que tinha uma deficiência, deixando-a por sua conta. Eu não me preocuparia muito com ela, Red. Já fizeste a tua boa acção. Ela recupera.
Houve um silêncio durante alguns instantes. Os homens partilharam uma garrafa de água e umas tiras de carne seca. Deixaram uma ração ao pé de mim, mas eu não conseguia tocar em carne salgada e bebi apenas um gole ou dois da taça. Depois, Red ofereceu-se como voluntário para ficar de vigia e apagaram a lanterna. Os outros enrolaram-se nos cobertores e em breve dormiam. Pareciam homens que estavam em movimento há muito tempo e sabiam como fazer as coisas de maneira ordenada e com pouco barulho. Mas a minha presença ali era tudo menos ordenada.
Espantosamente, devo ter dormido durante algum tempo, para acordar abruptamente antes de amanhecer, o coração aos pulos, devido a um sonho qualquer. Até no sono devo ter guardado silêncio, mas o bretão viu-me sentar-me e levantou-se. Suponho que o meu rosto reflectia os demónios que ainda me espreitavam pelos cantos da consciência. O homem ficou ali sentado, muito quieto, à luz dos restos da minúscula fogueira, observando-me. Podia ver, agora, de onde vinha aquele nome, Red. O cabelo dele estava cortado muito curto, mas, juntamente com a barba de alguns dias, era iluminado pelo brilho do fogo, parecendo as folhas dos carvalhos no Outono. O rosto era formidável, se bem que fosse um homem novo, talvez da idade de Liam. O nariz era longo e direito, os maxilares firmes, a boca larga e de lábios finos. Não gostaria de ter aquele homem como inimigo. Mais longe, os dois companheiros dele continuavam a dormir, enroscados nos cobertores. Parecia que tinha ficado de vigia dois turnos, para os deixar descansar. A plataforma rochosa tinha-nos mantido secos; lá fora, a tempestade amainara e o único som que se ouvia era o da água a correr por entre as pedras.
Enrosquei os braços em volta de mim própria, segurando nas pontas da capa com ambas as mãos. Sentia a cabeça mais clara e o pesadelo estava em retrocesso. Talvez tivesse força suficiente para fugir. Talvez, quando ele virasse as costas, pudesse escapar-me devagarinho. Ficariam satisfeitos por se verem livres de mim. Parecia-me que a velocidade seria essencial e, pelo aspecto, aquele jovem gigante preferiria não me ter ao pé para atrasar a expedição, para onde quer que fossem. Não havia dúvida de que já estava arrependido por me ter pescado das águas do lago. Eu estava concentrada, calculando quantos passos precisaria para me pôr ao largo, entre os arbustos. E então ele falou, fixando-me.
— É melhor comeres alguma coisa. E beber.
Fiquei muito quieta. Parecia-me sensato não dar a entender que compreendia a língua deles. Se pensassem que era uma rapariga selvagem dos bosques, uma idiota qualquer da aldeia, estaria salva. Não seria um grande trofeu, nem mereceria um resgate. No fim de contas, eu era a filha do meu pai.
— Hum. — Ele escrutinou-me enquanto eu estava ali sentada, confusa, na semiescuridão. E então ele tentou de novo, baixando a voz para não acordar os outros.
— Tu... comida? Tu... água? — Parecia que tinha aprendido algumas palavras da nossa língua. O sotaque era de rir. Olhei para ele e ele segurou numa taça de campanha. Afastei-me dele porque, por mais amáveis que fossem as suas palavras, era um homem, muito alto e largo de ombros, suficientemente grande e forte para fazer o que lhe apetecesse comigo. A minha febre baixara, mas eu não parecia capaz de parar de tremer.
Ele pousou a taça no chão, perto de mim e afastou-se. Quando não respondi, tentou de novo.
— Tu... água — repetiu ele. — A não ser — continuou na sua própria língua — que tenhas, tal como eu, engolido metade da água do lago. Fizeste uma boa tentativa para me afogares.
Por um momento, senti uma curiosa sensação, como se já tivesse visto aquela cena, numa ocasião qualquer da minha vida, mas algo diferente. Mas depois essa sensação desapareceu, peguei na taça, aborrecida com a maneira como a minha mão tremia e bebi.
E ele tinha razão, senti-me melhor.
— Óptimo — disse ele, não desviando de mim os olhos vigilantes. Bebi de novo, a minha mão mais segura na taça, desta vez. Dentro de um minuto tentaria levantar-me. Veria se poderia andar. Se poderia correr, o suficiente para fugir. Porque os Bretões tinham a sua própria expedição desesperada. Não perderiam tempo a procurar-me, ficariam antes aliviados por perderem um fardo inesperado. Então, eu... mas, então, o meu pensamento ficou em branco. Estava em território desconhecido, sem roupas adequadas, sem comida, ferramentas ou ajuda de qualquer espécie. E, se bem compreendera, um bando de homens, armados e perigosos, marcharia rapidamente sobre nós assim que amanhecesse. Eles disseram Redbeard. Seria Seamus Redbeard, o pai de Eilis? E se eles me encontrassem? Haveria homens que me conheceriam, mesmo depois daqueles dois anos. O que aconteceria? Nem me atrevia a pensar nisso. Haveria um rápido regresso à casa do meu pai e a Lady Oonagh. O pensamento fez-me ficar com pele de galinha. Naquela direcção havia apenas escuridão e morte, para mim e para os meus irmãos. Eu estava em perigo, tanto por causa dos Bretões, como dos seus perseguidores. Tinha de fugir.
— Toma. Come. — O bretão segurava numa tira de carne seca, como se a estivesse a dar a um cão nervoso. Abanei a cabeça. — Come — repetiu ele, franzindo as sobrancelhas. Os olhos dele eram tão azuis como o gelo, tão azuis como o céu numa manhã gelada de Inverno. Eu tinha fome; mas não tanta que conseguisse comer carne crua. Então, ele voltou a pôr a carne no saco onde parecia que conservavam as suas rações de viagem, procurou outra coisa qualquer e os olhos desviaram-se-lhe, por um momento. Movi-me rápida e silenciosamente, usando todas as minhas capacidades. Para cima, para a frente, sob a plataforma, para fora...
A mão dele moveu-se com tanta velocidade que mal a vi. Agarrou-me no braço dolorosamente, fazendo-me dobrar os joelhos a seu lado. Sufoquei um grito de frustração e medo.
Não me parece. Nem sequer levantara a voz. Os outros continuavam a dormir. Não afrouxou o aperto da mão; sabia como usar a mínima força para causar a maior dor possível, isso era certo. Puxou-me para cima, de encontro a ele, demasiado perto para meu agrado, porque lhe cheirava o suor e a fúria, sentia-lhe a respiração no rosto e via-lhe o gelo nos olhos. A sua força e rapidez alarmaram-me: como pudera pensar em fugir? A febre deve ter-me estupidificado. Mas também estava zangada. Que jogo estava ele a jogar? Por que manter-me ali, quando precisavam de continuar em frente, rapidamente e livres de qualquer estorvo?
Mal se movera do lugar onde estava sentado, o suficiente para me aprisionar o braço e segurar-me contra ele. Os seus dedos cravaram-se-me na carne. Tinha umas mãos muito grandes. Não pude evitar um queixume de dor e o aperto diminuiu, mas pouco.
— Raios te partam — disse ele, sempre naquela voz calma e sempre no mesmo timbre. — Há mais de três meses que estou neste malfadado país, à procura de respostas. Já viajei até aos mais estranhos lugares da terra; já segui todas as pistas, virei do avesso todas as pedras que encontrei. Pus a vidas de amigos em risco. E para quê? Por fome, frio e uma faca no escuro. Não há uma única verdade nesta tua ilha. Em vez disso, há tantas verdades como estrelas no céu; e todas diferentes.
Olhei para ele, espantada. Fosse o que fosse que esperava da boca dele, não era aquilo, de certeza.
— Juraria que me entendes — disse ele, olhando directamente para os meus olhos. — No entanto, como seria possível?
O que é que Conor dissera uma vez, a propósito de mim e de Finbar? Ambos são como livros abertos... os pensamentos deles chispam como raios a saírem-lhes dos olhos... Esperava que aquele bretão não conseguisse ver isso tão bem. Começava a haver luz; ouvi os companheiros dele a mexerem-se.
— Tu queres ir-te embora — disse ele. — Para onde, não consigo imaginar; mas suponho que tens um esconderijo perto daqui. Talvez para te esconderes até chegarem os teus conterrâneos; talvez penses em vê-los cortar-nos aos pedaços. Não pensei em ti como nossa inimiga; nem sequer quando impedi que te afogasses. Talvez sejas uma inocente, como os meus amigos acreditam; demasiado simplória para seres perigosa.
Tentei arrancar o braço àquele aperto.
— Não— disse ele sem ênfase. — Três meses sem respostas e agora, no último dia, no último, encontro a primeira peça do quebra-cabeças. E quem encontro eu para a explicar? Uma rapariga que não pode falar, ou não quer. Estás a ver isto? — Metera a mão na algibeira e pela primeira vez havia um tom na sua voz que ia além do seu habitual timbre de conversação. — Diz-me onde arranjaste isto.
E lá estava aquilo. A pequena peça de madeira de Simon, o pequeno carvalho dentro do seu círculo protector e das linhas onduladas, que podiam ser, ou não, água. Nada de interesse na minha trouxa, dissera ele aos amigos. Nada de especial. Só por si, aquela afirmação fora estranha; pensar-se-ia que as camisas de morugem valiam um comentário. Mas fora aquela coisa que lhe chamara a atenção.
— Diz-me — disse ele. — Quem te deu isto?
E agora ele estava realmente a assustar-me. Tentei ficar impávida. Não pensar em nada. Não o deixar saber nada. Ainda bem que fora obrigada ao silêncio. Não era nenhuma mentirosa; mas pense-se como soaria a verdade. Foi-me dado por um da tua raça. Foi torturado em casa do meu pai e quase morreu devido ao ferro quente. Quase morreu e quase enlouqueceu. Nós salvámo-lo e eu tentei ajudá-lo, ele estava a melhorar e então... e então deixei-o só, quando mais precisava de mim. Foi-se embora para a floresta sem meios de sobrevivência. O musgo deve, agora, cobrir-lhe os ossos brancos, algures por baixo dos grandes carvalhos. As aves devem puxar-lhe o cabelo dourado para fazerem os seus ninhos e os seus olhos vazios olham para cima, para as estrelas. Aquela era a verdade.
— Raios te partam — disse o bretão de novo. — Porque é que não falas? Eu sou capaz de te arrancar a resposta antes de te deixar ir. — E então os outros estavam a acordar, levantando-se em silêncio, enrolando os cobertores, guardando os utensílios, verificando as armas e aprontando tudo para uma partida rápida. E eu pensei, vais esperar muito por uma resposta. Porque tens que esperar até as seis camisas de morugem estarem fiadas, tecidas e cozidas; até ao dia em que os meus irmãos regressarem e eu lhas passar pelas cabeças, quebrando o feitiço. Até esse dia, não ouvirás qualquer resposta da minha boca. E nenhum homem tem paciência para esperar tanto tempo.
Na luz cinzenta antes do amanhecer, observei-os a prepararem-se e maravilhei-me com a silenciosa compreensão entre eles, que falava dos longos dias e noites no campo ou em fuga. Não sabia o que eram, ou onde iam. Talvez fossem espiões, como os que o meu pai capturara e mantinha na sua câmara secreta; ou talvez fossem mercenários. Os rostos vigilantes, os corpos robustos, o material leve e as armas cuidadosamente tratadas falavam de grande experiência e vontade férrea.
Em breve estavam prontos, arranjando tempo, até, para me permitirem uns momentos de privacidade para as necessidades do corpo. Sabia agora que não poderia tentar fugir. Ele agarrar-me-ia, fosse eu para onde fosse. Vencer-me-ia pela astúcia, por mais que eu tentasse. Por agora. Quando regressei das minhas abluções, os três estavam a falar em voz baixa.
— ...não vale a pena discutir. Se Red diz para a levarmos, levamo-la. Vamos devagar; é melhor partirmos agora e cobrirmos a maior distância possível antes de ser dia claro.
Ben estava zangado; as palavras saíam-lhe como se sibilasse, porque estavam a abafar as vozes. Supunha que os homens que os procuravam deviam estar por perto.
— Isto é um loucura completa! Esquece a rapariga; ela fica bem aqui, mas, se não ficar, que te interessa? Os da raça dela são uns selvagens, todos uns assassinos. Quantos homens já se perderam nestes bosques malditos, ou voltaram para casa meras imagens do que eram anteriormente? Não sei que impulso cavalheiresco te deu, Red, mas sei que não arrisco a minha pele por ela. Quanto a ti, John, deves estar louco para o deixares ir em frente com isto. É pura loucura.
Red não lhe ligou, colocando antes a sua trouxa às costas e estendendo-me uma mão.
— Anda — disse ele estalando os dedos e eu olhei para ele. Não me deixaria tratar como um cão qualquer que segue o dono à mínima ordem. — Anda — disse ele de novo e desta vez agarrou-me no braço no local onde antes me tinha magoado e eu sufoquei um grito de dor.
— Ela tem algumas nódoas negras — observou John. — Espero que saibas o que estás a fazer, Red.
Red olhou para ele.
— Sei — disse ele. — Agora separamo-nos, para que aqui o meu amigo não se possa queixar de que a rapariga o atrasa. Vocês dois sigam a rota original que vai dar à enseada. Se partirem agora, conseguem manter-se à frente deles e o barco deve estar lá, pronto para vós, antes de eles lá chegarem. Com sorte.
— E tu? — perguntou Ben.
— Eu levo a rapariga. Dou a volta pela falésia e desço pelo carreiro da escarpa. É, se calhar, mais perigoso, mas é mais directo. É provável que eles vos sigam, creio. Atravesso o rio o mais longe que puder. Se não estiver lá a tempo de apanhar o barco, não esperem. Atravessem. Encontramo-nos no priorado.
— Como? — perguntou John coçando a cabeça. Mas não houve resposta e ninguém ia discutir. Parecia ser sempre assim. Red escolhia e os outros aceitavam, mesmo quando, como parecia ser o caso, lhes fazia confusão. Como podia um homem, que agia de maneira tão imprevisível, que tomava decisões tão erráticas, ser o chefe deles? Se fosse o caso de Liam, consultaria os seus homens e teria chegado a um compromisso sensato. Aqui, não havia lugar para discussão. Ben e John puseram as trouxas às costas e desapareceram por entre os arbustos, silenciosos, e Red segurou-me no pulso e puxou-me de volta ao rio. Eu resisti, fazendo força suficiente para que ele se virasse, exasperado.
— Assim, não vamos longe — disse ele. — Eu... — Ele viu para onde eu estava a apontar. A minha trouxa, com a sua carga de moagem, continuava onde fora deixada, sob a plataforma, perto dos restos da pequena fogueira.
— Está bem — disse ele, pegando nela e atirando-ma. — Mas és tu que a carregas.
Foi uma manhã longa e desesperante. Tentei acompanhá-lo, mas sabia que estava a atrasá-lo. O andamento não era fácil, especialmente uma vez que o terreno subia, escarpado e cheio de arestas, o estreito carreiro atravessando rochas, cascalho e vegetação enfezada, subindo sempre e afastando-se do curso tumultuoso do rio. O lago e a floresta ficavam cada vez mais longe à medida que nos movíamos na direcção de leste e um pouco para norte. O Sol subia, firme, no céu. Fizera muitos passeios pela floresta com os meus irmãos, dormindo ao relento, vivendo de modo selvagem durante um dia ou dois. Era rápida e sabia caminhar pelos bosques e escolher um carreiro. Mas isto era diferente. Para começar, estava muito mais fraca do que pensara e tinha que parar cada vez mais vezes para recuperar o fôlego, antes de continuar. E estava descalça. Apesar de os meus pés estarem calejados, as rochas cortavam-nos e sangravam. Red dava poucas concessões, para além de me agarrar no pulso, ou no braço, para me arrastar ou esperar, silenciosamente, que eu o apanhasse. A expressão dele era sombria. Arrependido da decisão que tomara, pensei, e não admirava. Tinha água numa vasilha de pele e partilhou-a comigo. O Sol subiu alto, prometendo um dia quente. Atravessámos o rio; ou antes, ele atravessou-o, caminhando com segurança com água até à cintura e carregando-me ao ombro. Quando chegámos à outra margem deixou-me cair sobre uma rocha lisa.
— Até agora, tudo bem — disse ele, acocorando-se para que os seus olhos ficassem ao nível dos meus. Olhou para mim de perto. O brilho azul-claro era perspicaz. — Eles ainda estão lá para trás — disse ele. — Mas não muito. Penso que dividiram forças. Podes continuar?
Tentei não mostrar que o compreendia. Não era fácil. Os meus pés doíam-me e sentia de novo, na cabeça, aquele estranho e impreciso sentimento. No entanto, sabia que não tinha escolha, senão continuar.
— Homens — disse ele, tentando a linguagem que sabia que eu podia compreender. — Homens maus. Eu... Tu... caminhar? — Usou gestos para me ajudar a compreender e eu senti vontade de rir, apesar da seriedade da situação. Fechei a boca com firmeza, determinada a não mostrar qualquer fraqueza ou emoção. Tentei lembrar-me vagamente do rumo que eu devia ter seguido quando a Dama da Floresta me mandou para o lago num pequeno barco. Onde teria errado? Porque este, de certeza, era o rumo errado, para leste, sempre para leste, com a cabeça a palpitar, os pés a sangrarem e um estranho de rosto severo como companhia. Como me encontrariam os meus irmãos, tão longe de casa?
Olhei de novo para Red. Ele estava a observar-me os pés, depois as mãos e a sua expressão era esquisita. De troça, pensei; mas essa expressão não me era destinada, era íntima.
— És teimosa, não és? — disse ele, tirando a trouxa do dorso e procurando algo dentro dela. Tirou de lá uma velha peça de vestuário de linho, que rasgou às tiras, segurando uma ponta entre os poderosos dentes brancos. — Mas esses pés não aguentam mais hoje. Deixa cá ver. — As mãos dele trabalharam com agilidade, atando-me os pés, firmemente, com as tiras do tecido. Ele era bom; eu não teria feito melhor. Deixei-o fazer o trabalho, agradecida pelo breve descanso. Não importava se aquelas ligaduras não iam durar um dia de marcha. Supunha que o fazia por bem. No fim de contas, se eu não conseguisse percorrer a distância, ele também não conseguiria. A não ser que me deixasse para trás.
— Óptimo — disse ele —, e agora precisas de comer alguma coisa, para depois terminarmos a nossa jornada. Há maçãs por aqui, reparaste? Parece que amadurecem cedo, por aqui. Talvez gostes mais do que da minha ração. — E eram mesmo maçãs; pequenas, verdes, com pequenas manchas cor-de-rosa na casca. Redondas e perfeitas. Ele apanhou uma e cortou-a em quatro com uma faca pequena, letal. — Toma — disse ele, oferecendo-me um bocado. Peguei nele, espantada. Na verdade, tinham amadurecido antes de tempo e de modo estranho. Havia várias árvores naquele local abrigado, mas apenas uma tinha frutos, que pareciam prontos a ser comidos. Nas outras pendiam duros e verdes. Há muitas histórias no nosso país acerca de maçãs; são os frutos das Criaturas Encantadas e são usados, mais do que uma vez, para tentar os mortais, homens ou mulheres, a ficarem por baixo do monte mais tempo do que o devido. As maçãs são um sinal de amor, uma promessa. Era evidente que Red nunca ouvira falar no que significava o facto de um homem partilhar uma maçã com uma rapariga. Talvez, pensei, não resultasse com Bretões. Além disso, eu tinha fome e ainda havia muito caminho para andar. Assim, aceitei o presente dele e comi-o, e mais um bocado, e foi a melhor coisa que alguma vez provei. Quando acabámos, levantei-me para começar a andar, mas ele fez-me parar.
— Não — disse ele. — Assim é mais rápido. — E pegou em mim ao colo como se eu fosse uma criança. — Segura-te — disse. — Não te preocupes, não mordo.
Era uma corrida perdida desde o princípio. Talvez, se as suas previsões estivessem certas e os perseguidores fossem atrás dos seus dois companheiros, talvez conseguíssemos chegar a tempo. O bretão marchava sem descanso, carregando-me sem aparente dificuldade, pousando-me para escalar uma parede de rocha, puxando-me com um braço, ao mesmo tempo que subia; ou ajudando-me a contornar uma plataforma, ou a descer um talude pouco seguro. Mas em breve se tornou evidente que eles se estavam a aproximar. Eu não sabia quanto faltava ainda. Havia no ar um cheiro húmido, fresco, que sugeria uma grande extensão de água e muitas aves voavam por cima de nós. Passávamos por bosques cerrados de sorveiras-bravas e, à medida que avançávamos, as nossas roupas eram rasgadas por silvados e os rostos e braços chicoteados e arranhados por ramos e espinhos. O passo era rápido; senti o bater do coração do bretão quando ele começou a correr com cuidado sob as árvores. Praguejava a cada fôlego. E eu ouvia o som inegável de muitas botas esmagando folhas, à nossa direita, à nossa esquerda, à nossa retaguarda e o silvo de uma seta por cima do ombro dele, indo alojar-se, vibrando, no tronco de uma imponente sorveira-brava carregada de bagas. O bretão murmurou uma praga e deixou-me cair.
— Foge — disse ele, desembainhando a sua curta espada e encostando-se à árvore. — Vai, foge! — Fez um movimento premente com o braço; queria que eu continuasse sozinha, enquanto ele lutava com os perseguidores. — Foge, raios te partam, foge! — Descobri que não me conseguia mexer; e então era tarde. Eles estavam à nossa volta, homens armados da mesma maneira que os meus irmãos, homens com as longas faces inteligentes e os cabelos escuros encaracolados da minha raça. Homens com ódio e vingança nos olhos. Um estava a rearmar um arco; os outros tinham as espadas desembainhadas. Avançaram com cuidado.
— Tenho uma faca na bota esquerda — murmurou Red, mudando a espada de uma mão para a outra. — Pega nela. Usa-a. E foge, se puderes.
Agarrei-a, ele olhou para mim rapidamente antes de dar um passo em frente, puxando-me para trás dele e o primeiro dos nossos atacantes carregou, gritando e brandindo a espada de um modo que eu reconheci igual ao praticado nos treinos efectuados no pátio do nosso castelo. Os meus irmãos teriam respondido mergulhando e cortando as pernas do oponente. Red não mergulhou. Em vez disso, a sua bota ergueu-se, rápida e arrebatou a espada da mão do seu atacante, apanhando-a com a sua. Num instante pusera o homem a vacilar, com sangue na manga direita.
Reuniram-se em semicírculo, não muito perto. Entre eles havia homens que eu já vira antes, à mesa do meu pai. Fiquei por trás de Red, o mais afastada que pude.
— Ele sabe lutar — disse um. — O filho-da-mãe sabe lutar. Quem é o próximo?
Era como a lenda de Cu Chulainn, quando o filho deste vai à luta. Mas eu não sabia que os homens continuavam a jogar este jogo mortal. Uma espécie de combate singular, no qual cada um tem a sua vez com o intruso, até que por fim este é vencido, ou os adversários se cansam e o atacam em conjunto para acabar com ele. Podia ser uma maneira bem lenta de morrer.
— Eu tomo conta dele — disse outro, erguendo a espada. — O meu irmão morreu na emboscada de Ardruan; é verdade, assim como outros amigos. Ele vai pagar com sangue o sangue que foi lá derramado.
O arqueiro recuou, a arma apontando para o solo; era evidente que, por mais que escolhessem qual deles teria a sua vez com o bretão, o resultado seria apenas um, no fim. O segundo homem preparou-se, ameaçadoramente, para o combate; era mais hábil do que o anterior e a sua táctica era evidente, afastar Red do seu local defensivo, da sorveira-brava onde estava encostado, levando-o para uma posição mais vulnerável. Mas Red tinha a vantagem de ser mais alto e mais pesado; e também era hábil com a espada. Além disso, era ágil de pés, para um homem da sua estatura e o entrechocar das lâminas e o som das respirações pesadas continuou durante algum tempo. Os homens que observavam iam fazendo comentários; trocistas quando o companheiro cometeu um erro e a lâmina de Red desenhou uma delicada linha escarlate no rosto do seu oponente; chocantes e injuriosos quando dirigidos ao bretão. Acusavam-no das coisas mais vis. Era um desporto bem cruel.
Red continuou a lutar sem uma palavra, aparentemente sem se cansar. Creio que ele compreendia o que os seus adversários pretendiam, se não o que diziam. O seu silêncio, penso, enervou o seu oponente, porque por um momento este desviou o olhar do bretão. Foi o suficiente; a parte plana da lâmina de Red bateu-lhe no braço e ele deixou cair a espada, o braço, subitamente, inútil. Talvez partido.
— Filho-da-mãe — sibilou ele através dos dentes cerrados. — És um porco a lutar, como todos os do teu povo.
Então, os restantes aproximaram-se e de súbito eram quatro ou cinco contra um e o caos instalou-se à minha volta. Red mantivera-me sempre atrás dele; mas agora era forçado a rodiar para um e outro lado, à medida que um homem, após outro, o atacava. Mais longe, o arqueiro esperava, silencioso. Mantive a pequena faca na minha mão, perguntando-me se conseguiria servir-me dela, se tivesse ocasião. Corpos caíam pelo chão, ouviam-se gemidos e maldições e pude ver que pelo menos um homem estava morto; a cabeça dele estava num ângulo improvável. Red afastara-se da árvore e girava em volta dos seus oponentes. Dei-lhe mais uns momentos.
— Foge! — gritou ele sem olhar para mim. — Foge, raios te partam!
Então, um dos homens avançou e ele evitou-o, mas ao mesmo tempo outro feriu-o nas pernas, outro atacou-o por trás e ele deixou sair um suspiro quando a espada lhe caiu no chão. Senti-me agarrada pelo ombro e pelos cabelos e virei-me para dar de caras com um dos homens de Seamus.
— Eu conheço-te — disse ele lentamente. — Conheço-te de um lado qualquer, tenho a certeza. O que é que um cuzinho como o teu anda a fazer por estas bandas com um aborto destes? Ou talvez não sejas nenhuma menina bem comportada. Talvez lhe andes a vender segredos juntamente com o teu corpo? Veremos o que o meu senhor tem a dizer a isso.
Puxou-me o cabelo dolorosamente.
— Espera aí — disse um dos outros. — Não é... não, não pode ser. Ela morreu. Há uns dois anos, ou talvez mais. Não pode ser ela.
— Queres dizer...
— É ela. Olha para os olhos verdes. Como os de um gato. É ela.
— Ata-lhe as mãos. Vamos levá-la.
— Fazê-la prisioneira? Podes arranjar sarilhos por causa disso. Sabes de quem ela é filha. Pensa no que os irmãos te fariam, se soubessem. Ela é da nossa raça.
— Poucas probabilidades têm de voltar. Além disso, por que estava ela com ele? Ata-lhe as mãos.
Quando o homem me procurava os pulsos, de corda na mão, fiz um movimento para cima com a faca e ele deixou sair uma praga, soltando-me. O sangue brotou-lhe da mão. Deixei cair a faca. Red era atacado por todos os lados; parecia ter dificuldade em se manter de pé, como se uma das pernas lhe faltasse. Um dos homens mais altos tinha uma faca perto do pescoço de Red; este agarrou no pulso do homem e afastou a faca, os músculos tensos. Por cima da lâmina brilhante os seus olhos encontraram os meus e a sua expressão mostrou-me algo para lá da serenidade gelada. Ia morrer e eu seria levada para casa. Para o pé de Lady Oonagh e para uma morte certa dos meus irmãos.
Gritei por socorro. Se alguma vez precisara da ajuda das Criaturas Encantadas, era agora. Não que me tivessem ajudado muito até agora. Chamei por eles, por alguém que pudesse estar a ouvir, num grito silencioso, do fundo do coração.
Ajudai-o. Ele não deve morrer assim. Ajudai-me. Porque se eu morrer, também os meus irmãos morrem.
E veio a chuva. Veio de um céu claro subitamente cinzento, ao mesmo tempo que o dia quente se transformava num dia gelado de Inverno. Uma chuva torrencial, misteriosa, druídica, que cegava e ensurdecia; que isolava os homens do mundo. Era como estar por baixo de uma grande catarata; era como estar no coração de uma tempestade. Eu não conseguia ver ninguém, não ouvia senão o rugido da torrente à medida que caía, encharcando-me num instante, transformando o chão em lama sob os meus pés descalços. Então procurei por entre o lençol de água, uma grande mão apanhou a minha e os dois começámos a correr, aos trambolhões, escorregando na lama, por entre arbustos e ramos, respirando com dificuldade, os rostos e os corpos a escorrer, os pés fazendo sons de sucção no solo molhado. Desta vez conseguia ouvir a respiração de Red; o som entrecortado, difícil, de um homem ferido seriamente, que exige o máximo de si próprio. Pensei que ele não iria muito mais longe; e então faltou-nos o chão e começámos a deslizar, a cair por uma encosta íngreme, tentando agarrar-nos a ramos, chocando com a folhagem, embatendo em rochas que nos feriam e magoavam, até que finalmente parámos em solo duro e seco. O som da nossa descida precipitada morreu lentamente; pequenas pedras continuavam a cair, deslocadas pela nossa passagem. E depois tudo ficou calmo, com excepção do som da chuva e dos dois lutando por ar.
— Estás bem? — perguntou Red com voz estranha. Afastei a água dos olhos, usei ambas as mãos para afastar os cabelos saturados de água do rosto e tentei secá-los, torcendo-os. Estávamos no interior de uma caverna; olhando para cima, conseguia ver o estreito orifício pelo qual tínhamos, afortunadamente, caído naquele local abrigado. O chão era de rocha dura. Por trás de nós, uma estreita passagem que parecia ir dar a outra caverna maior, mas que dava uma curva, obscurecendo a visão. Olhei para o outro lado. A luz entrava através de uma cortina de folhagem que dissimulava a entrada; a chuva parecia ter parado, tão abruptamente como começara. Movi-me na direcção da entrada.
— Cuidado — disse Red, segurando-me na parte de trás da camisa, quando passei por ele. Dei um safanão para me libertar, mas continuei lentamente, porque as rochas estavam escorregadias à entrada da caverna, devido à chuva. Espreitei para fora por entre a folhagem. E fiquei imóvel, maravilhada.
— Nunca tinhas visto o mar — observou Red, calmamente. Era verdade. Se bem que os meus irmãos me tivessem falado da grande extensão de água selvagem, da miríade de aves e da luz que brilhava, mudava e brincava na superfície ondulada, nada me preparara para aquilo. A caverna onde estávamos situava-se no alto de um declive íngreme, que mais abaixo se transformava numa falésia a pique e eu podia observar até uma grande distância e toda essa distância era água, água até ao horizonte. O céu era azul, não havia qualquer nuvem. As rochas em volta fumegavam gentilmente ao sol. Em breve qualquer sinal da súbita tempestade de chuva teria desaparecido. Excepto, talvez, mais tarde, em lendas. E os nossos perseguidores ir-se-iam embora. Virei-me para o bretão.
Ele estava sentado de costas contra a parede de rocha, com uma perna estendida à frente, de qualquer maneira. Tinha sangue nas roupas, muito sangue. Agora que olhava para ele como deve ser, reparei que tinha o rosto muito branco e os lábios arrepanhados. Os homens conseguem ser um pouco estúpidos acerca dos ferimentos recebidos em batalha, como se, fingindo que está tudo bem, esse ferimento desapareça, ou que as pessoas não notem, se não disserem nada.
— Eles hão de vir atrás de nós — disse ele. — E nem um punhal, ou um pedaço de ferro temos. Receio que não tenhamos escolha, senão ficarmos aqui até escurecer. Talvez então consigamos escapar. Há uma aldeia mais acima, na costa, e pequenos barcos ancorados lá.
Olhei para ele, pensando na grande extensão de água e evitando pensar nas implicações do que ele acabava de dizer. Mas, pelo aspecto daquela perna, já teria sorte se conseguisse coxear até à entrada da caverna, quanto mais descer a falésia e ir até à aldeia. E que aconteceria depois? Decidi que o amigo dele, Ben, tinha razão. Ele era louco. Dito isto, ele precisava da minha ajuda e eu estava determinada a dar-lha. Porque não tinha dúvidas de que me salvara a vida, pelo menos uma vez, talvez duas. Devia-lhe algo, fossem quais fossem os motivos dele.
Ainda tinha a minha pequena trouxa e ele a sua. Uma pequena mercê. Ele olhou para mim quando me acocorei à sua frente, examinando-lhe o ferimento. Portanto, tinha perdido a espada e a outra arma. O que constituía um problema. Mas, e a pequena faca que utilizara para cortar tão perfeitamente aquela maçã? Procurei na trouxa. Ele continuava silencioso. Encontrei-a, juntamente com os restos da velha camisa que ele utilizara para fazer ligaduras para os meus pés. Olhei para baixo; estas tinham quase completamente desaparecido e os meus pés eram uma mistura de sangue e lama.
— Água — disse ele para ajudar. — Vais precisar de água. Consegues compreender-me, não é verdade?
Acenei com a cabeça; parecia que o tempo dos fingimentos tinha acabado. Ele soubera, pensei, quando me dissera para agarrar no punhal, para me defender e eu assim fizera. Apontei para diversos locais da caverna; ouvia-se o som de água a correr e a pingar e soube que descobriria água fresca mais abaixo. Que fazer primeiro? As roupas dele estavam completamente rasgadas; cortei mais um bocado e consegui tirar-lhe a bota deteriorada, o que lhe deve ter causado muita dor, mas à parte uma súbita inalação de ar, pareceu não dar por isso. Havia luz suficiente para eu poder ver o corte feio que lhe percorria a perna, do joelho à anca; para poder ver o sangue que continuava a brotar, para poder ver a profundidade do ferimento e o brilho do metal alojado profundamente na coxa. Olhei-lhe para o rosto.
És teimoso, não és?
O ferimento não o mataria; não se fosse tratado rapidamente por um curandeiro hábil, com uma faca e bons cuidados posteriores. Mas aqui, presos numa caverna, sem provisões e ambos cobertos de lama e detritos e a necessidade de tranquilidade, o caso mudava de figura.
— Nada bom, hã? — disse ele expressivamente. — Consegues consertá-la? Enrolares uma coisa qualquer em volta? — Acenei com a cabeça, tentando mostrar-me capaz e tranquilizadora. Não penso que o tenha conseguido; vi-lhe um canto da boca firmemente fechada torcer-se por um segundo, no que parecia ser um sorriso. Pensando melhor, devia ser uma careta involuntária de dor. Os Bretões não tinham sentido de humor; como podia um povo sem magia, sem vida espiritual, conhecer o riso?
Descobri a vasilha de água em pele na trouxa de Red e embrenhei-me na caverna. Mais abaixo, abria-se de modo assombroso. Estava muito escuro, mas conseguia ver as formas sombrias de grandes rochas que subiam e de outras que se estendiam de cima, tentando alcançá-las; senti que havia pequenas criaturas a dormir muito por cima de mim, na escuridão. E encontrei água fresca, gotejando e caindo, gentilmente, em pequenas poças, na rocha. Enchi a vasilha e regressei.
Desejei desesperadamente o padre Brien, ou outro com a sua habilidade, naquele dia. Fiz o melhor que pude. Pelo menos, podia lavar as mãos e limpar a ferida. O fluxo de sangue era bom, escorrendo apenas e não golfando numa maré mortal. Ajudaria se os humores maléficos deixassem o corpo. Recordei o homem que tinha ferido com o punhal de Red; devia ter perdido muito sangue. Podia ter-lhes dito como estancá-lo; mas não o fiz. Ao vê-los rodearem Red, esquecera-me que era uma curandeira.
Até agora, tudo bem. O meu espectáculo mudo é que se estava a tornar mais dificultoso. Tentei indicar a Red que havia algo na perna dele, algo que eu precisava de ter, que me ajudaria se ele fosse um pouco menos estóico, ou se houvesse um pouco de hidromel, ou cerveja, ou umas ervas bem escolhidas para uns goles adormecedores.
— Não tenho a certeza do que estás a — dizer disse ele. — Precisas de fazer algo mais? Vai doer? Bem, continua.
Por meio de gestos fi-lo compreender que devia permanecer muito quieto, porque tinha apenas a ponta afiada da pequena faca para desalojar o objecto de metal. Ele acenou com a cabeça, muito sério. Pensei para comigo porque não me dissera ele para não me intrometer e deixá-lo em paz. Não tinha qualquer razão para confiar em mim.
Demorou um bocado. Aprendi outra praga na língua inglesa. À parte isso, ele manteve-se quieto, se bem que lhe ouvisse a respiração entrecortada e o rosto a ficar pegajoso de suor. As minhas mãos já não eram tão ágeis como antigamente, mas já há algum tempo que não fiava ou tecia morugem, já que, na minha miséria, negligenciara a minha tarefa e o inchaço estava a desaparecer. Ainda bem. A operação era delicada. A pequena lasca, produto da pancada dada no osso pelo punhal ou espada, estava profundamente alojada e fiquei com as mãos cobertas de sangue antes de a conseguir tirar. Limpei a ferida de novo com água fresca e sequei-a o melhor que pude. Não tinha camomila, alfazema, nem nenhum cataplasma de bagas de zimbro. Não havia mãos hábeis, nem fio para suturar a ferida. Respirei profundamente algumas vezes e peguei numa agulha de osso, a mais pequena que tinha, a que usara para coser os colarinhos das camisas. E na trouxa havia um rolo de fio, fio esse que não era de morugem, antes suave e forte, que um dos meus irmãos tinha roubado naquela noite de solstício de Verão. Cerrei os dentes e comecei a trabalhar, com um ouvido na respiração do bretão. Ele mantinha-a lenta e firme, mas um pouco esforçada. Não me apressei; o trabalho foi feito com tanta limpeza e cuidado quanto pude. Ficaria com uma cicatriz, mas a perna sararia. Terminei, mordi o fio e senti a grande mão dele cobrir a minha.
— Diz-me — disse ele sem levantar a voz — como é que uma rapariga bem-nascida, de pele branca como o leite, tem as mãos de uma peixeira? Quem te infligiu semelhante castigo? O teu crime deve ter sido hediondo.
Foi demais para as minhas forças, creio. De repente, a fome, o choque e a exaustão tomaram conta de mim e deixei-me cair no chão, o mais longe dele que pude e levei as minhas pobres mãos ao rosto, ao mesmo tempo que grossas lágrimas me corriam pelas faces. Não estava zangada com ele, com os homens que nos tinham atacado, nem com ninguém em particular. Sentia-me encharcada, miserável, cansada e queria os meus irmãos, o meu jardim e o meu cão, queria poder contar histórias de novo e voltar a rir. Chorei de autocompaixão e porque sabia que nunca mais poderia voltar. Escolhe-se um determinado caminho e pronto. Chorei pelo padre Brien e por Linn, pelo que os meus irmãos poderiam ter sido e pela minha inocência perdida. Chorei porque tinha umas mãos horrorosas. No fim de contas, só tinha 14 anos.
— Lamento — disse ele de modo estranho, o que não ajudava nada. Descobri que, uma vez a chorar, não conseguia parar. Tal como uma criança pequena, cuja angústia ultrapassa, muitas vezes, a dor, como se o choro, em si próprio, engendrasse mais lágrimas. Chorei até me doer a cabeça e ver estrelas diante dos olhos e finalmente deitei-me sobre a rocha dura e adormeci, ainda a fungar. Ele deve ter feito um grande esforço para se mover, colocando-me uma capa por cima e uma camisa dobrada sob a cabeça, porque foi assim que acordei, mais tarde. Estava tudo escuro, lá fora era noite. Por um momento senti-me completamente desorientada, tacteando em volta, tomada de pânico. Forcei-me a ficar sentada, quieta e a respirar lentamente. E após um certo tempo vi um pálido luar, os seus finos raios entrando por entre a folhagem da entrada da caverna e àquela luz pude ver o bretão a dormir, encostado à parede mais longínqua, o rosto pálido, as pestanas pesadas por um sono de completa exaustão. A ligadura parecia limpa, pelo menos pelo que podia ver dela. Não havia sangue novo. Isso era bom.
Permaneci sentada por um bocado, à medida que a luz aumentava e pequenos sons me entravam na consciência, aos poucos e poucos. Uma coruja a piar, muito perto. Por cima, devia haver outra entrada para a caverna, porque sentia, mais do que ouvia, uma miríade de pequenas criaturas entrando e saindo, uma chiadeira e um roçagar. E para lá, um rugido distante, penetrante, um grande, calmo, movimento sem fim. O mar. O mar, que era tão vasto que não tinha margens; o mar, que se espraiava para oeste, para as ilhas das velhas lendas. O mar, que provocava um rasto de luar na direcção de leste; para a morada dos Bretões. Não precisava de pôr a cabeça de fora da caverna; a sua vastidão estava-me gravada na mente e eu receava que me tivesse capturado o espírito. Não tínhamos nós, em tempos, condenado os nossos criminosos para lá da nona vaga, para morrerem ou serem atirados para uma costa qualquer, segundo a vontade dos deuses? E aquele estrangeiro, que dormia a meus pés, não tinha ele vindo não só do lado de lá da nona vaga, como ainda de mais longe? Falara de barcos e amaldiçoara a terra que não lhe dera qualquer resposta. Ia para casa. Um arrepio invadiu-me o corpo, eriçando-me os pequenos pêlos do pescoço. Ele ia para casa; e obrigar-me-ia a ficar com ele até lhe dizer aquilo que, tão desesperadamente, queria saber. Percebi, com uma certeza que me pesava, como uma pedra no coração, que também eu viajaria para lá da nona vaga, deixando os meus irmãos para trás.
Podias fugir agora, dizia-me a minha voz interior. Podias fugir enquanto ele dorme, talvez para aquela aldeia. Pega nalgumas coisas, volta para a floresta e começa de novo. Ele não acorda tão cedo; e quando acordar será um homem lento. Ouvia-me a mim própria e respondia a mim própria. Não o posso deixar. Tem a perna ferida, os inimigos dele estão perto. Não o posso deixar.
Ainda havia duas maçãs na trouxa dele. Peguei numa e comi-a, pevides, caroço e tudo. Bebi um pouco de água da vasilha; era fria e leve. E então ouvi as vozes. Do interior profundo da caverna, suaves, apelativas, ecoando da escuridão da câmara abobadada.
Vem. Vem, Sorcha. E havia luzes vacilantes, douradas e prateadas, luzes torturantes, coagindo-me a segui-las.
Senti-me compelida a segui-las, os braços abertos tocando nas paredes de rocha, os pés descalços no chão duro, de pedra. Descendo, descendo sempre, para onde o ar era frio e húmido e o peso da terra me pesava nos ombros. Descendo até onde as raízes das árvores pendiam da abóbada; até onde a água cristalina gotejava, fazendo poças na escuridão, sob os pilares de rocha. As luzes acenaram-me, tochas, lanternas, sempre para lá da próxima curva. Tropecei e pensei ouvir uma risada. E música, o fraco sussurrar de uma harpa, o canto melodioso e ritmado de um violino, um assobio, tecendo uma grinalda de notas em volta de uma velha canção. Portanto, até no leste, até na costa mais longínqua as Criaturas Encantadas tinham morada. Porque não duvidava que aquele lugar, onde a sorte nos trouxera, era uma das portas de entrada, de que se falava nas velhas lendas, uma daquelas portas entre o nosso mundo e o delas. Eram encontradas muitas vezes em tais locais, numa caverna ou numa fenda, uma abertura na terra, onde os dois mundos se tocavam por breves momentos, na ocasião propícia.
Cheguei, finalmente, a uma câmara, mais vasta e grandiosa do que qualquer das outras precedentes, onde os pilares de rocha viva iam do solo macio até ao tecto arqueado, as suas formas imponentes reflectidas numa poça grande e calma. Eles estavam ali e o seu riso e canções cessaram abruptamente quando eu avancei para a luz das tochas. Muitos olhos em mim. Vi um rosto conhecido, palidamente belo, com olhos escuros, intensos e o cabelo como seda negra, sussurrante. Acenou-me com a cabeça, solenemente. Mas à sua volta havia muitos mais da sua espécie, todos mais altos um palmo do que os comuns mortais e vestidos com tecidos difusamente brilhantes, trajes de gaze, como asas de borboletas, ou negros e brilhantes como as penas de um corvo. As suas cabeças estavam cobertas com estranhos adornos, penas, conchas e algas, nozes, bagas e folhas. Os seus olhos eram estranhos, profundos, conhecedores, perscrutadores; os seus rostos eram ao mesmo tempo belos e terríveis. Observaram-me em silêncio. Então o círculo de tochas fechou-se ligeiramente e o mais alto dos homens avançou.
— Bem, bem — disse ele, olhando-me de alto a baixo. — Estou a ver que finalmente vieste. Avança, mostra-te. — Olhei para cima, para ele. O seu rosto era brilhante, mais brilhante do que a luz das tochas; alguma da luz parecia fazer com que a sua pele se tornasse dourada e prateada. O seu cabelo afastava-se do rosto como se estivesse coroado por chamas e era de um vermelho-brilhante, excepto onde a geada lhe tocava nas têmporas e na barba cerrada. Os seus olhos não tinham cor e tinham todas as cores. Trajava um vestido branco e quando a luz incidia nele o tecido chispava, como se estivesse cheio de minúsculas pedras preciosas.
Meu senhor.
Saudei-o silenciosamente. Virei-me para a Dama da Floresta, que se mantinha a seu lado.
Minha senhora. Que quereis dizer finalmente vieste?
Ele riu-se atirando a cabeça para trás, deixando o som reverberar pela grande câmara rochosa. Ouviu-se um sussurro de vozes, que morreu instantaneamente quando ele se calou. A Dama não se riu, limitando-se a olhar para mim solenemente.
— Não imaginas que estás aqui por acidente, pois não? — perguntou o Resplandecente. — Imaginas? Esqueço-me quão pouco a tua espécie compreende, quão limitada é. O vosso tempo no mundo é breve e assim o vosso conhecimento está de acordo com esse tempo.
Eu não vim aqui para ser insultada. Descobri que fervia em pouca água. A sua ajuda tinha sido bem pequena até agora, à parte a tempestade de chuva, que eu tinha de admitir, fora bem oportuna. Mas, Criaturas Encantadas ou não, não deixaria que oprimissem. Que quereis de mim?
— De ti, nada, criança da floresta. — Fora ela que falara, a Dama e a sua voz, pelo menos, tinha um tom de calor. — Nada para além do que sabes que tens a fazer. Mostra-me as tuas mãos, Sorcha.
Estendi-lhas, pestanejando, ao mesmo tempo que uma lanterna se aproximava de mim. As minhas mãos foram inspeccionadas.
— Estas mãos não têm sinais de trabalho recente — disse o do cabelo em chamas, franzindo as sobrancelhas. — Como hão de os teus irmãos viver, se tu negligencias a tua tarefa? Como hão de essas camisas serem feitas sem o fuso ou o tear?
Olhei para ele. Isso não é justo.
E todos se riram de novo, eles e elas, enchendo-me os ouvidos de desdém com as suas vozes musicais.
— Justo! — arfou o Resplandecente por entre o riso. — Justo, diz ela? Que criança esta. Tendes a certeza, minha senhora, de que esta é a criança certa? Porque me parece que é maluquinha, para além de preguiçosa.
Aproximou-se de mim e, tomando-me o rosto entre as suas mãos, inclinou-me a cabeça para trás para me examinar mais de perto. Os seus olhos eram muito brilhantes, movendo-se, mudando. Era difícil olhar para eles sem ficar tonta.
— Não tendes necessidade de mo perguntar — disse a Dama da Floresta. — Sabeis muito bem que é ela. No fim de contas fez-vos frente e mantém a cabeça bem alta. Não há razão para duvidar da sua força.
— Negligencia o trabalho. O tempo urge — disse ele e segurou-me nas mãos, virando-as para cima e para baixo. — Será isto vaidade? Choras por as tuas mãos nunca mais serem suaves e brancas?
— Deixa-a.
A minha cabeça virou-se rápida, como um relâmpago; o Senhor e a Dama, assim como todos os seus companheiros, viraram as cabeças estranhas e luminosas para a entrada da caverna, a mesma por onde eu entrara. A luz tremeluzente das tochas mostrou um Red cambaleante, o rosto pálido como giz, uma mão pousada na rocha, à procura de equilíbrio. A sua expressão era feroz.
— Eu disse, deixa-a.
As mãos do Resplandecente afastaram-se das minhas e ele teve um pequeno sorriso, perigoso, mas totalmente inútil para o bretão.
— Toca-a de novo e responderás com sangue — disse Red muito calmamente e avançou, colocando-se a meu lado. Houve um silêncio breve e então os presentes juntaram as mãos e bateram palmas, lentamente, ironicamente. Red começou a levantar um braço e eu levantei uma mão, detendo-o. Era evidente que não fazia a menor ideia de com quem, ou quê, se estava a meter.
O Resplandecente cruzou os braços e olhou para nós com um meio sorriso. Se ele falou na língua dos Bretões, ou noutra qualquer, não me lembro. Só sei que todos o compreendemos.
— Lorde Hugh de Harrowfield, creio ser esse o teu nome? Diz-se que o que se vê não é o que parece; carregas muito ódio sob essa máscara de controlo, jovem. Estás muito longe de casa; demasiado longe, dirão alguns. Que te traz a este lado do mar e à floresta, só, entre estranhos?
Red olhou-o nos olhos. Utilizou o meu ombro para se equilibrar; parecia que a perna não o aguentaria por muito mais tempo.
— Não sou responsável perante ti — disse ele.
— Disparate, exijo-te que respondas — replicou o Resplandecente e eu vi um clarão, como um minúsculo raio de luz, sair-lhe dos olhos na direcção do bretão. Red suspendeu a respiração; fosse o que fosse, tinha-o magoado.
— Responde.
O bretão permaneceu silencioso e obrigou-me a ficar ligeiramente por trás dele. Vi o rosto do Resplandecente ficar contraído e os olhos adquirirem laivos vermelhos. Estava desejoso de uma batalha de vontades e eu sabia que só haveria um vencedor. Não se podia esperar brincar com as Criaturas Encantadas e sair ileso.
Deixai-o em paz. Enviei a minha mensagem ao da coroa flamejante, mas também à Dama. Ele não sabe como jogar este jogo. Deixai-o.
— Diz-me, Lorde Hugh. — Agora era a Dama que falava. — Por que levas a nossa rapariga contigo, quando sabes que ela apenas quer ir para casa? Ela não pertence ao teu mundo.
Aquelas palavras levaram-no a responder.
— A rapariga não é vossa, nem minha, nem de ninguém. Por agora, viaja sob a minha protecção e aquele que lhe puser uma mão em cima terá de responder perante mim.
— Belas palavras — disse a Dama. — Mas perdeste a tua espada e o punhal. A tua perna está aberta até ao osso, tens fome e sono e estás em território inimigo. As tuas ameaças têm pouca substância.
— Tenho os meus dois braços e a minha vontade — disse Red girando, de maneira a servir-me de escudo contra os dois. — Chega. Ele que se atreva. — As costas dele eram suficientemente sólidas; até em bicos de pés eu tinha dificuldade em lhe olhar por cima dos ombros. Era pena a perna, que não duraria mais do que um momento, se fosse posta à prova. Era louco; bravo, mas louco.
— Sai daí — disse o Resplandecente, cansado. — Deixa que a rapariga se mostre. Não lhe queremos fazer mal; ela é um dos nossos.
E o momento de crise parecia ter passado.
— Sabes escolher, filha da floresta — observou a Dama, olhando para Red e depois para mim.
Que queres dizer sei escolher? Eu escolho? Eu não escolhi nada. Estaria aqui se tivesse possibilidade de escolha?
— Silêncio, criança. Há sempre possibilidade de escolha; sabia-lo quando puseste os pés neste caminho.
— Não respondeste com a verdade, Lorde Hugh de Harrowfield — disse o Resplandecente. Nem sequer respondeste. Por que levas a rapariga para longe da floresta dela? Por que tem ela de atravessar o mar? Que queres tu dela?
— Diz a verdade — disse a Dama e havia um aviso na voz dela.
— Não tenho qualquer obrigação para contigo — disse Red. — Não te darei qualquer resposta.
— És louco. — O Resplandecente estendeu as mãos na direcção do céu numa pantomina exasperada. — Pensei que gostarias de saber o que aconteceu ao teu irmão, a sério que pensei. Mas mantém-te silencioso, se assim o queres; se não consegues fazer as perguntas certas, não deves esperar respostas sensatas.
O efeito deste discurso no bretão foi electrizante. Começou a andar em frente, esquecendo a perna ferida, tropeçou e quase caiu; endireitou-se à custa de muito esforço, o rosto alagado em suor. Algo de novo acordara nos seus olhos pálidos, frios.
— O meu irmão! — arquejou ele. — Sabes algo acerca do meu irmão! Conta-me!
— Ah... ah... ah... mais devagar — disse o Resplandecente, astutamente. — Nenhuma informação é de graça, aqui. Além disso, ela é que te pode contar, não eu. — E apontou um longo dedo na minha direcção.
— É por isso que queres levá-la contigo, não é? Não porque ela esteja só, sem ajuda e precise de protecção; mas pela informação que te pode dar. E ela pode dar-ta; ela viu-o, falou com ele e ele deu-lhe a coisa que tu guardas, de maneira tão ciumenta, na tua algibeira. Pergunta-lhe e ela dir-te-á tudo o que queres saber sobre o teu precioso irmão; e outras coisas que não quererás saber.
— A rapariga não pode falar — disse Red e eu percebi que lutava para manter a voz controlada — ou não quer. Dizes que ela falou com o meu irmão. Mas ela, agora, não fala.
— Oh, ela sabe falar muito bem — disse o Senhor com leveza. — Nós ouvimo-la. Ela pediu-nos para não te atormentarmos. Diz que és demasiado estúpido para ser perigoso.
— Mas, eu não consigo ouvir nada — disse Red. — Ela está silenciosa. Está sempre silenciosa.
A Dama olhou para ele.
— Isso é porque tu não aprendeste a ouvir como deve ser — disse ela. — Mas, um dia, ela falará contigo. És um homem paciente?
Red olhou selvaticamente de um para outro.
— Diz-me só uma coisa — disse ele. — O meu irmão ainda vive? Hei de encontrá-lo?
Mas as tochas começavam a apagar-se, os duendes brilhantes com elas, os sinais de risos e seda sussurrante e as fracas notas de harpa pareciam dissipar-se lá em cima, na fria humidade da caverna, frágeis como o perfume de uma flor de Outono.
A Dama ficou diante de mim depois de todos os outros já terem desaparecido.
— Leva isto para te iluminar o caminho, filha da floresta — disse ela. — Disseste-me que estavas cansada de ser forte. Talvez já não precises de ser forte. — Pousou uma pequenina vela redonda, cheirando a ervas, na minha mão aberta. Virou-se para o bretão. — Magoaste-a com as tuas palavras precipitadas — disse ela e os seus olhos tinham perdido qualquer calor que tivessem tido antes. — Procura não a magoares de novo.
E antes que ele pudesse recuperar a respiração, ela virou-se e desapareceu.
Fizemos o caminho para a superfície no mais completo silêncio, as nossas mãos tocando-se para não nos perdermos um do outro na mais completa escuridão, alumiados apenas pela luz tremeluzente da vela. Era eu que transportava a pequena chama na palma da minha mão; cheirava a rosmaninho, rainha-dos-prados e alcaravia. Tal como a partilha de uma maçã, também ela estava cheia de propósitos escondidos. Pus-me a pensar, não pela primeira vez, no que andavam a fazer as Criaturas Encantadas.
Lá em cima, na primeira caverna, fazia um frio de rachar, porque soprava um vento cortante de leste. As nossas roupas ainda estavam húmidas da chuva e a capa não estava melhor. Ia ser uma noite bem desconfortável. Não que o sono fosse possível, de qualquer maneira. A minha mente girava e voltava a girar e não me deixava descansar. Deitei-me no meu lado da caverna e fechei os olhos, mas não conseguia parar de tremer. E pensei, o irmão dele! Devia ter adivinhado. O irmão dele! Não admirava que perseguisse aquela demanda de maneira tão teimosa. E depois pensei, Lorde Hugh. Lorde Hugh de... De qualquer coisa. Como é que eles sabiam o nome dele? Ele não parecia um lorde de coisa nenhuma, com o cabelo cortado à escovinha e as roupas usadas, a maneira como os amigos lhe falavam, como se fosse um igual. Por outro lado, no entanto, pensei em como o meu pai avisara os seus homens para que se certificassem de que Simon permaneceria vivo naquela noite. Fora um prisioneiro de alguma importância; uma pessoa de valor no futuro, talvez como moeda de troca. Assim, talvez o irmão dele fosse Lorde Hugh de qualquer coisa. Achei que Red lhe ficava melhor. Pela Dama, estava frio. Desejei que a manhã viesse; mas ao mesmo tempo a minha mente encolhia-se perante os problemas do dia seguinte. Mudei de posição, tentando arranjar algum conforto.
— Estás a tremer — disse o bretão do outro lado da caverna. — É melhor vires para aqui e deitares-te ao pé de mim. Essa capa pode cobrir-nos a ambos.
Mas eu abanei a cabeça, apertando a capa molhada contra mim. Depois do que me fora feito, creio que nunca mais seria capaz de me deitar ao lado de um homem, nem sequer para dormir, nem sequer com alguém em quem confiasse. E eu não confiava nele com aqueles olhos tão frios e os seus silêncios.
— Não precisas de ter medo de mim — disse ele. — Ficaríamos muito mais quentes.
Mas eu encolhi-me, cruzei os braços no peito, encolhi as pernas de encontro ao peito, fazendo-me pequenina sob a capa. Olhei para a vela; ainda ardia, pequenina e dourada, no espaço entre os dois. Por uns momentos, fez-se silêncio.
— Como queiras — disse Red. Ele estava deitado de costas, olhando para o tecto abobadado da caverna e a luz da vela tremeluzia-lhe na alta ponta do nariz, na maxila firme e na boca severa, fechada. Andei à deriva num sono irregular, com fragmentos de pesadelos, penosas recordações e visões de um inimaginável futuro. E de cada vez que acordava olhava para o outro lado e via-o esticado, com a cabeça sobre a trouxa, o rosto branco à luz da Lua e os olhos abertos. Mas uma vez, ao acordar, vi-o sentado, imóvel, olhando na direcção da abertura da caverna. Quando olhei para lá, num ramo escuro que se estendia em frente da abertura, estava empoleirada uma coruja totalmente branca, debicando as penas fastidiosamente com um bico delicado, observando-nos de tempos a tempos, com os seus olhos brilhantes, antigos. Suspendi a respiração olhando-a, e quando por fim ela abriu as grandes asas e levantou voo, senti como que um fim das coisas, uma continuação e uma despedida que não seria detida por qualquer erva mágica a arder, nem por qualquer intervenção humana ou espiritual. Era tão inevitável como a morte e eu levei as mãos à boca, para me manter silenciosa.
— Que fogo é este — disse Red num sussurro — que fogo é este na minha cabeça que não me deixa descansar?
Olhei para ele; mas não era para mim que ele falava.
Perto da madrugada caímos ambos num sono exausto. E foi assim que, quando os primeiros raios de sol começaram a espalhar-se pelo céu, fomos encontrados por um dos dele, não pelos homens de Seamus. Acordei com um sobressalto e comecei a levantar-me, tremendo, assim como ele, mas mais lentamente, por causa da perna; fôramos ambos acordados por um roçagar nos arbustos, no exterior. Nem sequer havia tempo para pensar. Então, ouvimos o chamamento de uma ave marinha, muito perto; e Red espantou-me, levando as mãos em concha à boca e emitindo o mesmo chamamento. Era um sinal; e um minuto mais tarde uma figura de cabelos loiros como o milho, com roupas de viagem manchadas e botas muito usadas, apareceu na entrada da caverna, afastando a folhagem para entrar, sem fôlego.
— Que subida difícil — disse Ben, porque era um dos companheiros do bretão, dobrando-se para recuperar a respiração, as mãos apoiadas nos joelhos. E por trás dele o outro homem, John. Este olhou para mim e depois para Red, com uma expressão zombeteira.
— Ainda a tens contigo — observou ele. Red franziu as sobrancelhas.
— Eu disse-vos para continuardes sem mim — disse ele. — E Redbeard e os homens dele? Não fostes perseguidos?
Ben deu uma risada trocista.
— Fomos; mas nós somos rápidos e discretos e tínhamos alguns truques na manga. Houve um pequeno problema no promontório, mas nada que não pudéssemos resolver.
— Disse-vos para continuardes sem nós — repetiu Red. Parecia que não gostava de ser desobedecido. Por mim, nunca me senti tão contente por ver alguém, como aqueles dois. Pelo menos agora sempre havia uma hipótese de o descer pela falésia inteiro, mesmo com a perna naquele estado.
— Ficámos ao largo durante a noite — disse John, não parecendo nada apologético.
— Suficientemente mau para me revirar as entranhas — acrescentou Ben pitorescamente. — E aqui estamos. Talvez te queiras matar, armado em herói, mas não contes com a nossa ajuda.
— O barco está à espera aqui em baixo, debaixo das rochas — disse John. — Diria que temos tempo antes de amanhecer por completo; com sorte, podemos estar longe antes de eles aparecerem. Mas precisamos de ir já e rapidamente. Tivemos sorte por te encontrarmos tão depressa.
Red não disse nada, mas agarrou na trouxa e avançou, a coxear.
— Maravilhoso — disse Ben, olhando para as ligaduras improvisadas e para o rosto de Red. — Como é que pensavas escapar sem nós? Não terias conseguido descer metade do caminho; é tão escarpado como o telhado de uma igreja, e a desfazer-se.
— Cá nos teríamos arranjado — disse Red. Os companheiros olharam para mim, um para o outro e nada mais foi dito.
Quando íamos a sair da caverna, olhei em volta em busca dos restos da vela, porque o seu aroma herbário ainda se mantinha, ligeiro, no ar matinal. Mas era demasiado tarde. Foi Red que se inclinou, estranhamente, para levantar a pequena sobra de cera da rocha e segurá-la na mão por um momento, antes de a meter numa algibeira.
— Disparate, claro — disse ele para si próprio. Os outros estavam à entrada da caverna, Ben olhando lá para fora e John afastando os ramos e a folhagem para abrir uma passagem segura. — Apenas um sonho. No entanto, que sonho. Um homem é capaz de perder o juízo neste país maldito.
Então o bretão virou-se, saiu e eu segui-o, já que me parecia ser a única coisa a fazer.
CAPÍTULO OITO
Mais tarde, surpreendi-me por não ter ficado com o coração destroçado ao ter que atravessar o mar, para longe da floresta, não deixando qualquer sinal que pudesse ser lido pelos meus irmãos, nenhum mapa, ou carta, pelos quais eles me pudessem encontrar. O barco rumou a leste e talvez um pouco a sul; supus que íamos a caminho da Bretanha. Mas para onde? Se eu tivesse conseguido pensar, se estivesse em mim, teria sido um dia quase impossível de suportar. Mas o mar, além de ser vasto para lá da imaginação, estava agitado por ventos caprichosos e em breve eu estava deitada de lado no pequeno barco à vela, vomitando convulsivamente, enquanto o meu corpo rejeitava a mais pequena quantidade de comida. Entre todos aqueles espasmos, ouvi os comentários cáusticos dos dois homens, Ben e John e do severo barqueiro que ia ao leme. Red estava ocupado e não disse nada. Perguntei-me até quando ele os deixaria falar, antes de lhes dizer que eu compreendia as piadas e as pragas deles. Apesar disso, fizeram turnos para me segurarem na cabeça, limparem-me o rosto e cobrirem-me do vento. A viagem parecia que ia durar para sempre e eu desejei que, quando por fim regressasse a casa, fosse a única e última vez sobre a água. Sentia-me destroçada, mal conseguia pensar para além do meu estômago revoltado e da minha pobre cabeça, sempre a latejar. E assim a minha terra desaparecia no horizonte e eu mal sentia a dor da partida.
Por fim, o balanço terminou e o barco ficou quieto. Estava a escurecer e eu podia ouvir as gaivotas a chamarem. Os homens mantinham as vozes baixas. Nórdicos, diziam, e abaixa-te. Então, fui arrancada do barco e carregada para o abrigo de uma caverna pouco profunda, pouco mais do que a saliência de uma rocha, por baixo da qual o vento se sentia ligeiramente menos. Ali fiquei embrulhada na minha capa, tremendo. Nem sequer tinha a energia para olhar em volta, à última luz do dia, para ver onde tínhamos atracado.
— Nada de fogueiras — disse Red. — John, ficas com o primeiro turno. Acorda-me, depois. Temos de partir antes da madrugada; quanto menos atenções atrairmos por estas bandas, melhor. As ilhas providenciam-nos uma atracação segura, mas de novo em águas abertas somos presa fácil para os Dinamarqueses ou Pictos.
O meu coração parou de bater, íamos partir de novo, de madrugada. Portanto, ia haver mais. Devíamos estar, talvez, a meio caminho e teríamos de continuar para cima e para baixo, para cima e para baixo...
— A rapariga não está bem — disse John, sem cerimónias. — É melhor dar-lhe, pelo menos, alguma água, se queres que ela dure mais um dia.
Não houve qualquer resposta, mas algum tempo depois foi colocada uma taça de água ao pé de mim e eu peguei nela e bebi-a, sabendo muito bem o que era bom para mim. Consegui mantê-la no estômago e comecei a sentir-me um pouco melhor. Mas tinha frio, tinha cãibras nos braços e nas pernas e dores no corpo todo. Sentei-me e olhei em volta.
A pequena extensão de areia e as pedras pontiagudas que a rodeavam estavam banhadas por um luar frio. Estávamos muito perto da água, já que o trecho de costa que subia até àquele meio abrigo era estreito; e sobre o sussurro suave das pequenas vagas, à medida que avançavam e recuavam, penso que conseguia ouvir as profundas e fracas vozes de estranhas criaturas, lá longe, na escuridão, chamando-se umas às outras. Ao longo das rochas que entravam pelo mar adentro, estava John, perscrutando.
— Toma. — Os outros dois, Ben e Red, estavam sentados perto de mim, encostados à parede de rocha e comiam. O barqueiro parecia estar a dormir. Ben oferecia-me uma tira de carne seca e eu estremeci, como resposta.
— Ela só come maçãs — disse Red. — Toma, tenta isto.
O meu estômago começava a estabilizar e eu percebi que tinha fome. Ele cortou o fruto com firmeza e passou-mo bocado a bocado, até que desapareceu.
— Óptimo — disse ele, aprovador. — Agora levanta-te e caminha para afastares as cãibras das pernas, porque temos outra viagem amanhã. Mas mantém-te calada. Atracados aqui, estamos em segurança, mas é melhor não arriscar.
Caminhei ao longo do areal, estiquei as pernas doridas e olhei por sobre a água, tentando descobrir o que havia para lá dela. Mas era noite e não tinha a certeza se teria visto terra, ou se simplesmente desejava que estivesse lá, na escuridão. Mais tarde, apesar do frio, dormi e depois chegou a madrugada e eram horas, de novo, de embarcar.
Ouvi Red dizer ao barqueiro que navegasse a direito na direcção do priorado. Ouvi os homens a falarem sobre cavalos, quão rapidamente poderiam chegar a casa e antecipando, animados, a comida, o vinho e um coração quente. E então olhei para trás, para o caminho que tínhamos feito. Olhei para trás, para o local onde nos abrigáramos e percebi o que era. As águas estavam calmas, transformadas em azul-pérola, cinzento e rosa pela madrugada. Havia uma grande ilha um pouco para norte de nós; baixa, arborizada e com sinais de habitação humana. Mas não fora ali que ancoráramos.
— Não acostámos ali — disse Red, que me observava. — Se acostares numa daquelas enseadas, tanto podes dar de caras com um picto, um dinamarquês, ou um amigo. É por isso que nos servimos de Little Island.
Não dera por ela antes, quando falámos do assunto. Estava demasiado cansada e enjoada para pensar. Mas ali, atrás de nós, nas águas brilhantes, já quase desaparecendo da vista à medida que o nosso pequeno barco rumava a leste, estavam três ilhas. Pouco mais eram do que rochedos na vasta imensidão do mar, locais onde as aves deviam nidificar e as ervas daninhas deviam crescer, precariamente, nas encostas escorregadias. Eram locais por onde os pescadores deveriam passar, sem lhes prestar grande atenção, preocupados apenas com os rochedos afiados que rodeavam a mais alta. Mas mesmo sem lhes saber os nomes, reconheci-as pelo que eram. Greater Island, Little Island e Needle. Dormira no solo mítico das Ilhas e não me apercebera disso até já estar longe. Olhei para trás, até que o alto pilar de rocha, que era Needle, desapareceu da vista; e então o meu estômago agitou-se, deitei-me de lado e tudo recomeçou.
Foi preciso uma boa parte de outro dia, velejando para leste e depois um pouco para norte, para vermos de novo terra. Havia falésias e vagas a quebrarem nos rochedos e do outro lado erguia-se, ondulada, uma verde colina, dotada de bosques de carvalhos e faias. Havia também um longo e baixo edifício construído no alto e uma torre com uma cruz. Parecia que íamos passar a noite ali, antes de continuar.
Era uma casa de mulheres; irmãs consagradas, dedicadas, tal como o padre Brien, à fé cristã, mas vivendo em comunidade, ao contrário do meu solitário amigo. O que elas pensavam da nossa súbita aparição à sua porta era difícil de dizer. Parecia que conheciam Lorde Hugh, a quem tratavam com algum respeito, quase deferência. Fui introduzida rapidamente no interior e os homens retiraram-se para outro local qualquer, para recuperarem forças. John tinha carregado comigo desde o local da acostagem; as boas irmãs olharam para mim e ordenaram-lhe que me entregassem aos cuidados delas. Enquanto me levavam, olhei em volta, descontroladamente, em busca da minha trouxa; estivera no barco, tinha a certeza, mas com aquele enjoo todo, esquecera-me dela. Não deve haver qualquer negligência da minha parte, a partir de agora, em relação à minha tarefa, tinham-no dito as Criaturas Encantadas. Onde estavam as minhas três camisas de morugem? Tinham de ser bem guardadas, era a única coisa que interessava. Os cisnes podiam morrer com tanta facilidade; a seta de um caçador, as mandíbulas de um lobo, a mordedura do Inverno. Como pudera esquecer-me deles assim? À medida que as irmãs me conduziam, virava-me para olhar por cima do ombro. Os homens estavam a abandonar o edifício. À saída, Red virou-se por um momento. Encontrou o meu olhar desorientado e fez um gesto para a minha pequena trouxa, colocada por cima da dele. Em seguida, desapareceu. Dentro dos claustros apenas podiam circular mulheres. Veríamos os homens mais tarde, informou-me a irmã, na refeição da noite. Agora devia ir com ela, porque, como me disse o seu nariz retorcido, eu estava a precisar de me lavar.
Eu continuava enjoada e exausta. Deixei-as deitar-me água quente por cima e lavar-me dos pés à cabeça, exclamando como os meus ossos me furavam a pele, falando das minhas mãos defeituosas, apontando as minhas outras feridas, ainda não saradas, perguntando-me gentilmente, mas de maneira perspicaz, quem eu era e de onde vinha. Lavaram-me o cabelo com óleo de rosmaninho e enxaguaram-mo com alfazema. Encontraram-me um vestido caseiro e um cinto e alimentaram-me com pão e leite, enquanto uma jovem noviça, de tez fresca e rosada, tentava levar a cabo a tarefa de me pentear. Tiveram o cuidado suficiente em não me deixarem comer demasiado; eu própria sabia o efeito que poderia provocar comer demasiado depois de ter passado fome. Após aquilo tudo descansei, com o meu cabelo entrançado de novo pelas costas abaixo e as roupas novas, ásperas e desconfortáveis, contra a pele. Gradualmente, o mundo deixou de girar à minha volta e o meu estômago estabilizou. Uma tranquila irmã sentou-se ao pé de mim por um bocado, mas quando pensou que eu adormecera, deixou-me sozinha na minúscula cela de paredes brancas, com uma cruz de madeira de freixo como único ornamento. Não conseguia dormir e fiquei a pensar; e mais tarde levantei-me e saí para o jardim, sombrio e sereno à luz do crepúsculo. Estava bem tratado, com ervas culinárias em canteiros bem ordenados, flores para secar e vegetais para a mesa, em companhia harmoniosa, umas das outras, naquele pequeno espaço. Sentia-me melhor ali, na terra, entre as couves, com as mãos em volta dos joelhos. Há muito tempo que não dormia dentro de casa.
Havia um saudável cheiro a pão recém-cozido e a sopa a ferver. Havia luz no edifício, no canto mais longínquo do jardim e ouvia-se o som de pratos a baterem uns nos outros. Antes, ouvira o som de sinos; talvez as irmãs estivessem a rezar. No entanto, ouvi vozes no lado de fora da parede do jardim.
— ...seria melhor deixá-la aqui. Ela já não tem forças para continuar. Precisa de descanso, comida e conselho espiritual.
— Isso não é possível. Há muito que estamos longe de casa. A vossa hospitalidade, por esta noite, é bem-vinda, mas teremos de continuar amanhã.
O suspiro da irmã foi audível.
— Perdoai-me, Lorde Hugh. Espero que sejais capaz de ouvir os conselhos de uma mulher de idade e não os acheis impróprios. Ela não passa de uma criança e foi ferida, penso, talvez mais do que pensais. Deixai-a connosco e continuai a vossa viagem, se assim achais. Ela ficará melhor aqui e para vós será melhor se a deixardes connosco.
Houve uma pausa.
— Não posso fazer isso — disse ele. — A rapariga viaja comigo.
— Já pensastes como reagirá a vossa família, se regressardes com ela a Harrowfield? A raça dela não é aqui bem-vinda; e vós tendes inimigos poderosos.
— Achais que não consigo protegê-la?
— Meu senhor, não duvido da vossa força e da vossa integridade. Penso, antes, que não compreendeis bem o que está aqui em jogo. Talvez não avalieis, na sua totalidade, o sentimento contra este povo. Não podeis dar abrigo a uma coruja órfã no vosso galinheiro e esperar que não haja penas pelo ar. Insistindo, não apenas colocais a rapariga em perigo, como arriscais a vossa própria segurança e a da vossa família.
Não houve resposta. Ouvi-lhes os passos num carreiro de saibro, que devia passar, para baixo e para cima, do outro lado da horta.
— Devo perguntar-vos — acrescentou a freira num tom tímido — e não tomeis isto de modo errado. Há muito que vos conheço, meu senhor, e é a partir desse conhecimento que falo de um assunto tão delicado. Disse-vos antes que a rapariga fora ferida. Ela pouco mais é do que uma criança; cansada, esfomeada e doente da alma. Quanto ao resto, é uma mulher; e houve um homem que abusou dela recentemente. Devo perguntar-vos se confiais nos vossos companheiros. Não vos insultarei sugerindo...
Red praguejou de modo explosivo e ouvi o som de botas a baterem nas pedras do caminho, como se ele tivesse feito um súbito movimento violento.
— Sendo assim — continuou a irmã calmamente — talvez reconsidereis a sensatez de a levardes para vossa casa? O silêncio e a contemplação que praticamos talvez lhe curem o corpo e o espírito. E aqui não andará assustada.
Houve outra longa pausa.
— Obrigado pelos vossos conselhos — disse ele finalmente e o tom formal distanciou-a. — Vou esperar mais esta noite, até a rapariga estar descansada. Em seguida seguiremos para Harrowfield.
Parecia que a conversa tinha terminado e ambos se afastaram.
Durante o dia e as duas noites que passei naquele local, adquiri duas coisas. Passeei pelo jardim, de manhã cedo e por trás dos canteiros ordenados de vegetais, das estacas, dos fios prontos para receber a cobertura de ervilhas ou feijões e do recente monte estrume, vi uma planta familiar. Não estava deslocada naquela cena doméstica, com as suas folhas de um amarelo agradável, se se estiver preparado para manusear os seus implacáveis caules. Estavam duas irmãs a trabalhar tranquilamente no jardim e eu consegui transmitir-lhes, por meio de gestos, o que pretendia. Consultaram-se uma à outra seriamente e uma delas afastou-se, talvez para pedir a opinião da prioresa, ou para perguntar a Red. Quando voltou, trazia um saco e uma faca e deu-mos sem qualquer pergunta. Devia ter escrito no rosto o contentamento que sentia, porque as irmãs sorriram e continuaram metodica- mente com o seu trabalho, ao mesmo tempo que eu começava com todas as minhas forças. Pelo fim da manhã já eu tinha um saco cheio de morugem, o suficiente para me durar até ao solstício do Inverno, pensei. Tentei não pensar no que aconteceria se não me deixassem fiar, tecer e coser, no sítio para onde íamos.
A segunda coisa que adquiri foi um nome. O priorado podia ser um local de calma contemplação, mas as irmãs não eram isentas de sentido de humor e a refeição da noite era ocasião para conversas relaxantes e até espirituosas. Algumas delas, pensava eu, tiravam grande prazer da inesperada presença de três homens à mesa e eu supunha que as mais velhas deviam pensar que um pouco de alegria também faz bem à alma após longos dias de tranquila meditação. Quando nos sentámos à mesa, na segunda noite, uma das irmãs abordou o assunto.
— A vossa jovem companheira precisa de um nome — disse ela. — Não podeis continuar a chamar-lhe «rapariga», como se ela fosse um cão seguindo os vossos passos. Ela tem nome?
— Se tem, não nos pode dizer qual é — disse John. — Mas tendes razão, irmã. Todas as coisas vivas precisam de um nome.
— Ela devia receber um antes de regressardes a casa — disse a prioresa. — Um bom nome cristão, Elizabeth, talvez, ou Agnes. Agnes é um bom nome.
Uma das jovens noviças falou.
— Ela lembra-me um passarinho, talvez um jenny-wren — disse ela sorrindo com os ossos delgados e os olhos claros. — Jenny é que seria um bom nome.
Sob o olhar da superiora calou-se, corando.
— Carriça.
— Mais valia ter o nome de uma ave de rapina, daquelas que têm o bico afiado — resmungou Red, que estava sentado ao meu lado. — Talvez uma coruja, que só fala quando os outros dormem. — Falou de maneira a que todas o pudessem ouvir. — Mas Jenny serve perfeitamente.
E assim fiquei a chamar-me Jenny, um estranho nome, pouco parecido com o meu, mas que era melhor do que ser chamada com um estalido dos dedos. E na segunda manhã havia cavalos prontos para nós e partimos após a alvorada, deixando as irmãs calmamente em pé à porta do priorado e uma delas, pelo menos, com as sobrancelhas franzidas de preocupação. Mas parecia, mais uma vez, que o que Red queria, fazia-se. E assim cavalgámos na direcção de Harrowfield.
Imagine-se um vale todo forrado de verde, onde manchas suaves de freixos e faias são interrompidas, aqui e ali, pelos perfis mais fortes de carvalhos ainda vestidos com os trajes de Outono. Ao longo desse vale ondula um rio brilhante com as margens cheias de salgueiros inclinados. O caminho segue ao longo do rio, curvando aqui e ali, entre campos bem tratados, passando por cabanas e redis de ovelhas, vacarias e celeiros. Os camponeses saem para ver passar os viajantes e os seus rostos abrem-se em boas-vindas quando reconhecem os três homens, cada um dos quais veste uma capa branca sobre as roupas sujas de viagem. Estas capas, tiradas do fundo das trouxas antes da entrada no vale, têm um brasão desenhado nas costas e na frente. É um sinal de quem os homens são e a quem pertencem; é a imagem de um carvalho, com nobres e largos ramos, fechado num círculo e por baixo umas linhas, que poderiam significar água.
Os camponeses clamam:
— Bem-vindo, meu senhor! Boa colheita, Lorde Hugh! E tudo do melhor no vosso regresso!
Aquele a quem eles se dirigem não sorri; parece que raramente sorri. Mas reconhece as saudações com uma cortesia grave, abrandando o andamento do cavalo uma ou duas vezes para agarrar uma mão que se estende, para tocar uma criança oferecida em busca de bênção. E, quando abranda, o povo consegue ver mais de perto a pálida jovem que vai na garupa do seu cavalo, embrulhada numa capa escura, os caracóis negros açoitados pelo vento e as mãos seguras no cinto dele para manter o equilíbrio após uma viagem tão longa. Não fazem perguntas; não lhes cabe fazê-las. Mas calam-se e depois de os cavaleiros passarem murmuram entre si e um ou dois fazem sinais discretos com os dedos, para afastar o demónio.
Foi assim a nossa chegada a Harrowfield. O vale abriu-se e surgiu uma grande e baixa herdade. Tinha muitos edifícios, um óptimo celeiro, estábulos e cabanas encostadas à casa principal. As paredes eram de pedra, bem construídas e havia uma avenida de árvores altas, direitas. Os cavaleiros fizeram uma pausa e Red olhou para trás, por cima do ombro.
— Tudo bem? — perguntou ele. Eu acenei com a cabeça. Era tudo novo, diferente. Eu não estava exactamente assustada; mas não fazia ideia de como seria, quando chegássemos à grande casa. Vira e ouvira o suficiente para não esperar boas-vindas. Seria eu uma prisioneira, uma refém? Uma serva? Iria ser guardada até lhe dar, por fim, a informação que ele queria e libertada depois? Ou iriam tentar fazer-me falar por outros meios, como a minha família fizera ao irmão dele? Creio que não aguentaria isso. A Dama da Floresta ordenara-lhe que fizesse de maneira a que eu não fosse ferida de novo. Mas um bretão não era capaz de aceitar o mundo subterrâneo e as maravilhas que ele continha; Red afastara-as como se tivessem sido um sonho. Nunca compreenderia porque procedia eu assim; era mais fácil catalogá-las como uma espécie de loucura, uma doença estranha da mente, que fazia com que eu me magoasse a mim própria para além da razão. Devia amar o irmão com uma intensidade feroz; mas nunca se compararia com aquilo que eu tenho de fazer pelos meus.
Sem qualquer sinal visível, os três homens incitaram os cavalos a um galope ligeiro e eu tive que me segurar com força. Seguimos rapidamente por entre os álamos dourados e Ben deixou sair um grito exuberante, mostrando os dentes ao mesmo tempo que o vento lhe chicoteava a cabeleira loira como se fosse uma bandeira. Os olhos de John brilhavam de antecipação. E assim entrámos ruidosamente num pátio tão limpo e ordenado como tudo o resto, parando perante uns largos degraus e uma maciça porta de carvalho, que estava completamente aberta. As pessoas tinham sido avisadas, sabe-se lá como, da nossa chegada, porque nos esperava um grupo de boas-vindas nos degraus. Servos bem treinados apareceram para segurar nas rédeas e levar os cavalos cansados e uma pequena multidão reuniu-se. A primeira coisa que Red fez, depois de me fazer descer do cavalo, foi tirar a sua trouxa, fazendo sinal ao servo para que a deixasse com ele. Depois avançou e com a mão livre segurou-me no pulso, de maneira que fui obrigada a segui-lo.
A mulher que esperava, no cimo dos degraus, não me viu. Apenas tinha olhos para Red.
— Mãe — disse ele em voz baixa.
— Hugh — disse ela e exercia o mesmo controlo que eu tinha visto nos seus dois filhos. Via-se bem que fazia um grande esforço para não quebrar e chorar, ou dar-lhe um grande abraço, ou comportar-se de modo indecoroso perante o pessoal. — Bem-vindo. Bem-vindos, Ben e John. Há tanto tempo. — Havia perguntas desesperadas nos seus olhos, que ficariam por esclarecer até mais tarde.
— Bem-vindo, sir. Bem-vindo, meu senhor. — Estavam ali muitos servos para saudar Lorde Hugh; empurravam-se, tocavam-lhe nos ombros, agarravam-lhe na mão. Ele pousou a trouxa no chão, mas não me largou; eu estava em vias de desaparecer no meio da multidão. Olhei para Ben, que continuava a mostrar os dentes com ar louco, rodeado por um bando de lindas raparigas. Mais longe vi John com uma mulher pequena, loira, alguns anos mais nova do que ele. Estava grávida; calculei que daria à luz dentro de três luas, mais ou menos. Era a mulher dele. Ela pendurou-se no braço dele e ele olhou para ela como se não houvesse mais ninguém no mundo. Pensei que também ele exercia o mesmo controlo. Como deve ter ansiado pelo regresso a casa, como o seu coração devia andar apertado, durante todas aquelas luas no outro lado do mar. No entanto, seguira Red sem hesitar. Havia ali uma lealdade que ia para além da minha compreensão.
Só quando conseguimos desprender-nos daquela alegre e dolorosa manifestação de boas-vindas é que a dama reparou em mim. Um servo foi enviado em busca de vinho; entrámos num vestíbulo onde estava preparada uma grande lareira com toros de freixo e espinheiro-alvar, mas ainda não acesa, porque o dia não estava frio. Ela sentou-se numa cadeira perto da lareira e fez sinal ao filho para que se sentasse ao pé dela. Havia outros familiares presentes, mas a uma distância discreta. Os nossos companheiros de viagem tinham desaparecido. Cada um deles tinha, supunha eu, a sua própria manifestação de boas-vindas. E assim Red sentou-se ao pé da mãe, estendendo a perna ferida com alguma precaução. A longa cavalgada fora o último tratamento de que ela necessitara para sarar convenientemente. E eu fui deixada em pé ao lado da cadeira dele, sentindo-me só num círculo de olhares curiosos. Ele continuava a segurar-me no pulso, de maneira que não podia mexer-me. A mãe dele olhou-me nos olhos. O rosto dela era redondo e suave sob o delicado tecido do véu; tinha uma rede de finas linhas em volta dos olhos e da boca. Pequenos caracóis escapavam-se da coifa que lhe cobria a cabeça, de um louro-claro. Em tempos, o seu cabelo deve ter sido da mesma cor do do seu filho mais novo; e os seus olhos eram do mesmo azul-brilhante. Li-lhe choque na expressão, medo e também um pouco de irritação. Não falou. Red deixou-me cair o pulso.
— Lamento — disse ele. — Esperava trazê-lo para casa. Mesmo depois de tanto tempo, esperava poder fazê-lo. Como vedes, não o encontrei. E não tenho qualquer notícia para vós. Lamento não ter podido... não...
— Aprendi a não esperar demasiado — disse a mãe dele e a dama fazia esforço para não chorar. Se chorasse, seria mais tarde, quando estivesse só. — Regressaste são e salvo. Devemos estar gratos por isso.
— É como se ele se tivesse desvanecido no ar — disse Red. — Aquele país é, na realidade, muito estranho e está cheio de lendas acerca de casos parecidos. Disparates, claro. Mas nós estivemos perto, muito perto, do local onde tantos dos homens de Richard morreram. Que ele esteve ali, não resta qualquer dúvida. Mas não havia qualquer sinal de que Simon tivesse estado com eles. Falámos com quem pudemos, a coberto da escuridão. Ninguém sabia de prisioneiros, fugitivos ou reféns. Voltei de mãos vazias, mãe. Lamento muito a dor que a minha ausência vos causou; lamento não trazer respostas.
— Confesso que tinha alguma esperança — disse ela. — Não que ele regressaria ao fim deste tempo todo. Mas algo, um pequeno sinal, que me dissesse que ele estava vivo, ou que tinha morrido, uma resposta qualquer para acabar com esta terrível espera.
Houve uma pequena pausa.
— Não havia nada — disse Red. Absolutamente nada. Descobri que tinha estado a suspender a respiração e deixei-a sair rapidamente. Mas ainda não estava segura.
— Parece que não regressaste de mãos completamente vazias — disse a mãe dele e olhou para mim, de cima a baixo, como se inspeccionasse um bocado de carne para a mesa, mas que não a satisfazia. Devolvi-lhe o olhar, firme. Não tinha vergonha de ser a filha de Lorde Colum, apesar do que ele fizera. O meu povo era antigo, muito mais antigo do que o dela e eu era.
— Como foste capaz de trazer uma... um deles para a tua própria casa? Como consegues, sequer, estar perto dela? Essa gente levou-te o teu irmão; mataram os homens de Richard barbaramente, de modo inimaginável, com uma crueldade inconcebível. Os modos deles já nem sequer são estranhos; perderam qualquer bondade. Como foste capaz de a trazer para minha casa?
A voz dela tremia de emoção. É agora, pensei. Ele agora vai-lhe dizer que eu sou a única ligação com o filho mais novo. E ela vai-me exigir a informação imediatamente, algo que a convença de que o filho ainda está vivo. E tentarão fazer-me falar, seja de que maneira for. Como poderá ele dizer que não à própria mãe? Estranhamente, compreendi como ela se sentia.
Red pôs-se de pé, colocou-se por trás de mim e eu senti-lhe as grandes mãos nos meus ombros.
— O nome dela é Jenny — disse ele em voz baixa. — Está aqui como minha hóspede enquanto lhe apetecer, o que pode demorar um bocado. E será tratada com respeito. Por todos. — A dama olhou para ele com a boca ligeiramente aberta. A minha expressão devia ser semelhante, porque eu não esperava aquilo. Trabalhar na cozinha, talvez, a lavar pratos; era o que eu esperava. — Não quero insultar-vos, mãe. Estou apenas a dizer-vos como será. — Ele levantou a voz, o suficiente para que todos o ouvissem. — Esta jovem é bem-vinda a minha casa. Será tratada como membro da família. Dar-lhe-eis a bondade e a hospitalidade que daríeis a outro hóspede qualquer. Não o direi mais vez nenhuma. Que fique claro. — Havia uma ameaça, pensei, naquelas últimas palavras, mas ele não precisou de dizer mais nada. Um silêncio mortal caiu na sala.
O servo apareceu com o vinho. Red fez-me sentar e pegar numa taça, mas apenas bebi um gole ou dois. O meu estômago ainda estava destabilizado e sentia-me muito cansada. E havia pessoas a mais, demasiada luz, demasiados sons. Tudo o que eu queria era estar só por um bocado e descansar. E queria uma roca, um fuso, um tear e tempo, muito tempo.
— Não me parece grande coisa — disse a mãe de Red, fungando ligeiramente. — O que é que ela vai fazer aqui? Será capaz de fazer qualquer coisa útil?
A boca de Red curvou-se num sorriso que não lhe chegou aos olhos.
— Penso que descobrireis que Jenny sabe fazer muita coisa — disse ele. — Maneja muito bem a agulha e o fio. Mas não é para lhe arranjarem um emprego como serva; espero que as vossas damas a acolham como uma igual.
— Sinto-me chocada por me pedires isso, Hugh. Talvez eu tenha alimentado esperanças, demasiadas, de que me trarias Simon são e salvo para casa. Em vez disso, trazes o inimigo que o destruiu e pedes-me que faça desse inimigo um amigo. — Sob a máscara da gentileza, ela estava furiosa com ele.
Red olhou para ela e depois para mim.
— Jenny não fala — disse ele — porque não pode. Mas faz-se compreender muito bem, vereis. E compreende tudo o que dizeis. — Com aquela resposta, que não era de todo uma resposta, ela teve de contentar-se, mas havia um delicado franzido entre as suas sobrancelhas e eu vi uma profunda angústia nos seus olhos.
— Não nos dás possibilidade de escolha — disse ela de modo fatigado. Pensei em Simon e nas coisas que dissera acerca da sua família. Na sua história acerca dos dois irmãos, o mais novo nunca fora suficientemente bom; nunca estivera à altura do mais velho. Por que pensara que não gostavam dele? Por que pensara em si próprio como uma segunda escolha? Até na sua ausência estava entre a sua mãe e o outro filho, tão vivo como se estivesse ali em carne e osso.
A conversa mudou para terreno mais seguro. Falaram dos assuntos da casa, das colheitas e do gado, do bem-estar dos camponeses. Red fez pergunta atrás de pergunta; parecia ansioso por pegar, de novo, nas rédeas da casa. A minha mente vagueava, revivendo aqueles dias em que Simon estivera ao meu cuidado, recordando as longas histórias, as noites febris, demoníacas, a lenta cicatrização do corpo e do espírito. Recordei a faca dele na minha garganta; recordei as lágrimas dele de furiosa autorepugnância. Estas imagens eram fortes; mal dava pelo que se passava à minha volta. Além disso, estava a ficar tonta por causa do vinho e do dia, que já ia longo. Assim, tive um sobressalto quando senti algo frio e molhado contra a perna, abaixo da bainha do vestido caseiro que as irmãs me tinham dado. Olhei para baixo. Espreitando debaixo do banco onde eu estava sentada estava um cão muito pequeno, velho e cinzento, que olhava para mim com olhos tristes, ramelosos, abanando a cauda gentilmente. Baixei-me e ofereci-lhe uma mão para ele cheirar; ele vacilou e mostrou uma pequena língua cor-de-rosa, lambendo-a num cumprimento. Depois, com um suspiro, sentou-se pesadamente sobre os meus pés como se fosse ali ficar por muito tempo. Abafei um bocejo.
— Estás cansada — disse-me Red. — As damas da minha mãe arranjar-te-ão um sítio qualquer para dormires. Foi um dia bem longo. — De maneira esquisita, levantou-se de novo.
— A tua perna — disse a mãe dele, reparando pela primeira vez que ele estava ferido. — Que aconteceu à tua perna?
— Oh, nada de especial — disse Red de modo previsível. — Um pequeno corte. Não precisais de vos preocupar. — Olhou para mim, viu a minha expressão e eu apanhei-lhe, fugidiamente, aquele ligeiro arabesco que, noutro homem qualquer, passaria por um sorriso reprimido. A mãe dele observava-nos a ambos e o franzir das suas sobrancelhas acentuou-se.
— Megan! — chamou ela. Uma jovem serva, com uma cabeça cheia de caracóis castanhos rebeldes avançou, esboçando uma espécie de cortesia.
— Arranja um quarto decente para... para... a nossa visitante, Megan — disse a dona da casa e eu senti que ela tivera que fazer um esforço para dizer aquelas palavras. — Água para ela se lavar, algo simples para comer. Diz-lhe onde nos há de encontrar amanhã de manhã.
— Sim, minha senhora — disse Megan curvando-se de novo e os seus olhos mantiveram-se, recatadamente, no chão. Mas assim que deixámos a sala, seguindo-a e com o cão trotando atrás de mim como uma sombra, o olhar dela transformou-se numa mistura de viva curiosidade e medo.
— Não te esqueças disto — disse Red à minha passagem, entregando-me a minha pequena trouxa. Acenei com a cabeça em agradecimento e saí. Por trás de mim, ouvi a mãe dele a falar de novo e penso que me senti contente por não poder ouvir o que ela dizia.
Penso que o quarto que me escolheram era próprio de uma bárbara; pequeno, afastado, mal mobilado, localizado perto dos alojamentos dos servos e a pouca distância do barulho das cozinhas. Se pensavam insultar-me, enganaram-se. Porque gostei, instantaneamente do minúsculo quarto quadrado com as suas paredes de pedra, a dura enxerga com armação de madeira e a pesada porta de carvalho que abria para um canto de um jardim mal cuidado, cheio de arbustos emaranhados uns nos outros e que estavam a florir. Assim que houvesse luz iria lá fora e veria se havia lá morugem a crescer. Uma velha rosa trepava pela parede no lado de fora da porta e uma minúscula trepadeira, florida de azul, atapetava os degraus de pedra. Havia um carreiro cheio de musgo, tapado por ervas daninhas. Através da única janela redonda, colocada no alto da parede, o luar velaria pelo meu sono. Havia uma arca de madeira, um cântaro e uma bacia. Megan trouxe-me água quente e uma outra rapariga, de olhar furtivo, trouxe um tabuleiro com pão, queijo e frutos secos, escapulindo-se, depois, do quarto. Pousei a minha trouxa aos pés da cama e esperei que Megan saísse. O cão inspeccionou os cantos todos do quarto com cuidado, farejando calmamente; por fim, satisfeito, reuniu forças e deu um heróico salto para a enxerga, onde se instalou com as patas sobre o nariz.
— Onde está a tua bagagem? — perguntou Megan de modo estranho. — O teu roupão, as outras coisas?
Abanei a cabeça, indicando a pequena trouxa.
— É só? — Parecia chocada. Conseguia ouvir as perguntas por fazer. — Onde te encontrou ele? Que lhe deu para te trazer para aqui, sem mais nada senão as roupas que trazes no corpo? Porquê?
Megan falou de novo, surpreendendo-me.
— Essa era a cadela de Simon — disse ela. — O irmão do meu senhor Hugh. Alys, chamava-lhe ele. Já está muito velha; tinha-a desde criança. Nunca deixou ninguém aproximar-se desde que ele se foi embora. Era capaz de nos arrancar os dedos se nos aproximássemos para lhe fazer uma festa. Até agora. — Esboçou uma tentativa na direcção da velha cadela; esta respondeu com uma rosnadela profunda, mostrando os dentes. — Estás a ver? — disse Megan de modo leviano. — Coisinha depravada. Mas parece que gosta de ti.
Esbocei um sorriso e ela devolveu-mo, a curiosidade natural sobrepondo-se à prudência.
— Vou falar com a minha senhora Anne — disse ela. — Para te arranjar um roupão e algumas outras coisas. E venho ter contigo amanhã de manhã, para te mostrar onde deves ir. Aqui, levantamo-nos cedo.
Nessa noite dormi; mas o cansaço e os efeitos do vinho não foram suficientes para apagar, por completo, os terrores nocturnos que ainda me assaltavam e acordei subitamente de um sonho que é melhor ficar por contar, um sonho que tinha muitas vezes, a espécie de sonho que se prolongava até aos meus pensamentos diurnos, fazendo com que tremesse cada vez que um homem me tocava, a espécie de sonho que me fazia encolher o corpo todo, estremecer e bater o coração no peito. Alys dormia pesadamente sobre os meus pés; não acordara. Uma luz difusa, proveniente da lua em quarto-minguante, entrava-me no quarto. E havia vozes baixas no exterior.
Levantei-me e fui suavemente até à janela. Ambas as portas estavam fechadas, se bem que tivesse preferido deixar uma aberta para cheirar os aromas de alfazema e madressilva da noite, sentir a leve brisa na pele. Mas eu perdera a capacidade de confiar; já não estava protegida pela suave capa da inocência. Assim, aferrolhara as portas. Mas pus-me em bicos dos pés em cima da arca e olhei para o jardim. Duas silhuetas conversavam; ambas estavam vestidas de escuro e vi o reflexo de armas à luz fraca do luar. Uma delas saiu por um portão no muro; de cabelos loiros, desenvolto no modo de andar, apesar de ser noite. A outra era mais alta e andava com um leve coxear. Encostou-se ao muro no canto mais longínquo do jardim, relaxado mas alerta, uma das pernas esticada, quase invisível na escuridão. Era uma longa vigília até de madrugada.
Não consegui perceber se me sentia melhor ou pior, sabendo que estava guardada. Para onde pensavam eles que eu podia fugir, ali no meio do país deles, sem sequer um par de botas ou uma garrafa de água? Além disso, depois da recepção que tivera até agora em Harrowfield, parecia-me pouco provável que os locais me oferecessem ajuda se eu tentasse atingir a costa. E o que faria então, nadaria para casa? Não, estava presa ali, quer quisesse ou não. Portanto, por quê a guarda?
Imaginei, por um momento, se aqueles homens alguma vez dormiriam. Lembrei-me, então, de Red na caverna, o rosto branco de dor e exaustão. Era humano, pensei; simplesmente, não gostava que as pessoas soubessem. E parecia que tinha em grande valor a informação que eu lhe poderia dar; faria com que não lhe escapasse enquanto esperava que eu falasse.
Levantaram-se todos cedo, mas não tão cedo quanto eu. Antes da alvorada já eu estava levantada, lavando a cara na água fresca, indo à retrete, desaferrolhando a porta e saindo para o jardim mal cuidado. A pequena Alys seguiu-me, mas lentamente, com as articulações perras, devido à idade. Alguém tinha cuidado bem daquele jardim, em tempos. Mas não havia morugem; mais tarde, quando precisar de mais, precisarei de a procurar no campo. Amaldiçoei-me por negligenciar a minha tarefa, antes de deixar a floresta. Havia uma velha tina de água por baixo dos arbustos de absinto, meio cheia de lama. Podia usá-la para ensopar as fibras que trouxera do priorado. Havia ali muitas ervas; as suficientes, se eu as tratasse bem, para armazenar uma boa quantidade de pomadas e unguentos, tinturas e essências. Perguntei a mim própria se me deixariam ter um almofariz, algumas facas, cera de abelhas e óleo. Depois, pensei que não havia tempo para isso. E Finbar, Conor e os outros? O tempo corre para eles e já estamos no Outono. No entanto, não havia nada a fazer e quando Megan me veio buscar estava eu a arrancar ervas daninhas, a separar as plantas jovens das velhas, a planear como seria se podasse, cavasse e plantasse. Quase me tinha esquecido onde estava. Dos meus guardiões nocturnos não havia sinal, salvo pelas marcas das botas deles no solo macio. Tinham-se desvanecido com a primeira luz.
A atitude das pessoas de Arrowfield para comigo podia ser descrita como uma espécie de fria cortesia. Lady Anne dava o exemplo. Era evidente que o seu filho era o chefe da casa, esperava ser obedecido e nem ela o questionava. Assim, apenas me falava quando as circunstâncias o exigiam. Quando olhava para mim, mal disfarçava a hostilidade com os seus olhos azuis-claros. Cuidava de mim, mas apenas até onde o exigiam as leis básicas da hospitalidade. Dizia para mim própria que me era suficiente. Vivia de modo selvagem há quase dois anos; tinha-me desabituado do luxo, se a nossa vida em Sevenwaters podia chamar-se assim, porque na nossa família de homens vivia-se de modo bastante simples. Não precisava de vestidos bonitos, pão de milho, ou uma almofada cheia de penas de ganso. Disse-o para mim própria e era verdade.
A companhia é que era difícil. Estivera só durante muito tempo, com excepção daquelas preciosas noites em que os meus irmãos puderam retomar a forma humana, quando pudemos falar mente com mente, quando nos pudemos tocar, olhar e armazenar recordações para os longos e solitários tempos de intervalo. Agora estava rodeada de mulheres, mulheres que falavam permanentemente umas com as outras, que estavam sempre presentes, que me interrompiam os pensamentos, me tornavam a tarefa mais difícil, mais lenta e mais dolorosa, porque preciso de trabalhar o dobro, para não me esquecer da minha presença naquele local e a razão dessa presença. E os olhares; os olhares eram de lado, amargos, cheios de medo. Eu era o inimigo; não interessava muito o que Lorde Hugh dissera, porque a grande sala solarenga onde nos encontrávamos todas as manhãs, para fiar, coser e bordar era um lugar de mulheres e eu lia nos rostos dessas mulheres aquilo que pensavam de mim.
Eu sou a filha da floresta, dizia eu para mim própria enquanto tirava as longas e ásperas tiras de morugem da minha trouxa e começava a fiar com um fuso e uma roca emprestados. Eu sou afilha de Lorde Colum de Sevenwaters. Tenho um irmão que é um óptimo chefe e outro que é perito em mistérios mais antigos do que tudo o que o teu povo pode imaginar. Tenho um irmão que é um guerreiro corajoso e outro que as criaturas selvagens reconhecem como amigo. Tenho um irmão que... tinha um sorriso que encantava as aves das árvores e que um dia voltará a ter. E à medida que o fio me feria uma vez mais e eu o ligava de novo, com as finas farpas furando-me a pele como pontas de ferro quente, dizia para mim própria: Tenho um irmão que sabe como curar o espírito, que dá tudo de si próprio até não lhe restar mais nada. E vós, que tendes vós, com as vossas suaves mãos e os vossos bonitos bordados? A cada volta deste fio acerado eu choro pelos meus irmãos. Com cada farpa na minha carne, estou a chamá-los de volta a casa.
As bretãs pensavam que eu não era boa da cabeça. Após o primeiro choque, ficaram incrédulas ao verem o meu trabalho e ao perceberam que eu o levava a sério, ao trabalhar as fibras daquela planta com os meus dedos. Quando me viram reprimir um grito de dor e forçar-me a manter o rosto calmo, afastaram-se de mim e juntaram-se, olhando de vez em quando, furtivamente, para o canto onde eu estava sentada. Eu ouvia as conversas, se bem que as vozes delas fossem abafadas. Porque a mãe dele estava presente, não questionavam abertamente as razões de Lorde Hugh. Mas contavam velhas histórias, histórias terríveis de como os chefes guerreiros de Erin tinham morto este homem, estropiado aquele, como a fina-flor do seu povo morrera durante a longa guerra entre nós. Olhando para mim por cima do ombro, falavam de homens bons enfeitiçados e traídos por mulheres da minha raça, mulheres de pele pálida, cabelos escuros como a noite e de belas palavras. Tudo aquilo era dito para que eu ouvisse. Podia contar-lhes o nosso lado da história a história do meu pai. Porque Colum era o sétimo filho e quantas vezes o sétimo filho herda as terras do pai? Só quando todos os seus irmãos se perderam na guerra, caindo um a um em defesa daquilo que achavam mais precioso. Mas mantive-me silenciosa.
Entre as sobrancelhas levantadas e os lábios franzidos, havia uma que ousava ser diferente. Era a mulher de John. Tinha estado a observar-me e os olhos dela eram os únicos que não me julgavam. No terceiro dia, quando eu estava sentada num banco alto no meu canto, lutando com o fuso e a roca e tentando conter as lágrimas, ela veio sentar-se ao pé de mim, trazendo o seu trabalho com ela. Estava a fazer a bainha de um vestido minúsculo; o corpo e as mangas já mostravam um conjunto de folhas delicadamente bordadas, com uma abelha amarela ou uma flor escarlate aqui e ali. Podia ver o seu amor pela criança por nascer em cada ponto daquele pequeno traje. Estendi as mãos lamentáveis, inchadas, para o tocar e sorri-lhe.
— O teu nome é Jenny, não é? — perguntou ela em voz baixa. — Eu sou Margery, mulher de John.
Eu acenei com a cabeça, pegando de novo no fuso. Fizera-se silêncio entre as outras mulheres; agora, retomavam a conversação.
— Disseram-me que tinhas o dom da cura — continuou ela, olhando-me de lado. — O ferimento de Red... De Lorde Hugh, não deve ter sido muito fácil de tratar naquelas condições. Ele deve-te muito.
Olhei para ela e a minha surpresa deve ter sido óbvia. Ela estava divertida.
— Os homens, de vez em quando, falam, minha querida — disse ela. — Ficarias surpreendida com aquilo que ouço. E se bem que John guarde quase tudo para ele próprio, não é cego. Há muito que é amigo de Red... De Lorde Hugh, muito antes de eu ter vindo viver para Harrowfield. Ele adivinha o que Hugh não diz em voz alta. A tua chegada pôs esta casa em rebuliço e não vai acalmar tão depressa.
Pensei naquilo. Tínhamos visto os homens na refeição da noite e os três que eu conhecia tinham-me cumprimentado com cortesia. Ben sorrira e puxara-me a longa trança, quase como Cormack poderia ter feito. John saudara-me pelo meu novo nome e sentara-se ao meu lado, ignorando o franzir de sobrancelhas de Lady Anne. Perguntei-me se a guarda iria continuar, de uma forma ou de outra, até durante o dia. De Red, sentado à cabeceira da mesa como era próprio, pouco vira, mas sentira-lhe os olhos em mim à medida que a refeição ia decorrendo e eu aguentava os sons, os cheiros e a proximidade de tantos estranhos, ansiando pela chegada da noite.
John não falou muito, mas reparei que impedia os servos de me porem carne assada no prato e se assegurava de que eu comia algo e quando alguns dos jovens começaram a tornar-se ruidosos devido à cerveja e a lançarem comentários obscenos na minha direcção, silenciou-os com algumas palavras cuidadosamente escolhidas. Como amigo de Red, tinha autoridade. Era, soube-o em seu devido tempo, uma espécie de primo afastado da família e sempre vivera em Harrowfield. Eu sentia-me feliz com a sua protecção e mais ainda nos dias que se seguiram, já que não havia mudança na atitude da família para comigo e havia sempre alguém a observar-me. Quando me sentava com as damas, Margery estava sempre presente, sempre amável, sempre pronta a sair do círculo encantado e a sentar-se ao pé de mim, feliz por conversarmos a duas, de olhos cheios de preocupação ao ver o meu progresso doloroso com o fuso e a roca, nunca deixando sair uma palavra de julgamento. Eu tinha a certeza de que as suas intenções eram boas, mas também me perguntava se alguém lhe teria pedido para me vigiar. A guarda nocturna continuou. Um deles vigiava desde a minha ida para o quarto até à meia-noite, enquanto o outro vigiava da meia-noite até de madrugada. Cada um deles, suponho, dormia de três em três noites. Observava-os sem que eles me vissem e reparei que aquela tarefa cabia apenas a Ben, John e Red. Perguntei-me se naquela casa tão grande e obediente haveria duas pessoas em quem Red realmente confiaria.
Também reparei que nunca se afastavam muito, fosse a que horas fosse do dia. Não podia estar permanentemente a fiar e a tecer, se bem que o desejasse fazer, porque as minhas mãos, meio saradas devido à minha negligência, estavam agora a ficar outra vez ásperas e inchadas e eu era forçada a parar, por algum tempo, todas as tardes, a minha tarefa, antes de continuar o meu lento labor sozinha, à luz da vela, depois da refeição da noite. Tentei começar a trabalhar no jardim, mas os progressos eram lentos, porque as minhas mãos teriam de calejar de novo antes de poder manejar uma faca ou um sacho. Mas tive algum sucesso; o solo era escuro e rico e as ervas daninhas não eram muito difíceis de arrancar. Quando não conseguia mais, saía, com a atarracada Alys a trotar atrás de mim e ia explorar até o mais longe que podia, enquanto tentava ser o mais discreta possível. Era incrível como um daqueles três aparecia, tantas vezes, nas vizinhanças; Ben, treinando um poldro no campo, mesmo por onde eu escolhera passar; John, dirigindo o armazenamento de vegetais para o Inverno, no celeiro, mesmo quando eu ia nessa direcção. O próprio Lorde Hugh, sentado num velho banco no pomar de macieiras numa manhã cedo, com um tinteiro ao lado, escrevendo num livro ou numa folha de papel equilibrada sobre os joelhos. Alys rosnou para ele.
— Ela nunca gostou muito de mim — comentou ele, aparentemente pouco surpreendido por me ver. — Saíste cedo. Não quero que vás para longe.
Subitamente, senti-me aborrecida. Ele tinha sempre a certeza de que tinha razão, estava tão habituado a que todos fizessem o que ele dizia. Pensei que não podia ser sempre boa para ele, fazer sempre as coisas como ele queria. Por que não havia eu de sair sozinha? Tinha medo que eu fugisse para sempre e levasse a minha informação comigo?
Ele leu-me um pouco desta mensagem muda no rosto e pousou o livro e a pena cuidadosamente. Vi linhas de uma escrita cuidadosa e aqui e ali uma imagem bem desenhada, ou um diagrama.
— Há riscos. Quero que fiques perto da casa. Não poderemos garantir a tua segurança se te aventurares para longe.
Gostaria de poder dizer-lhe: Tu tiraste-me da floresta. Pelo menos, deixa-me caminhar sob as tuas árvores, sentir o teu rio correr sobre os meus pés descalços, deitar-me nos teus campos e ver as nuvens passar por cima. Pelo menos, deixa-me estar sozinha um pouco. Porque na tua casa não consigo sentir o ar, ou o fogo. Não consigo cheirar a terra ou ouvir a água. Eu não fujo; não posso. Porque sem a tua protecção, não completarei a minha tarefa.
— Para ti, isto não é fácil, pois não? — comentou ele. — Podias decidir-te a falar comigo, claro. Isso ajudaria muito. Mas vejo na tua expressão que não estás disposta.
Não posso.
— Diz-me uma coisa — disse ele, olhando-me de perto. — Se quisesses, poderias falar comigo agora? Poderias falar-me do meu irmão e do que lhe aconteceu?
Nunca conseguira mentir. Acenei com a cabeça miseravelmente, desejando que ele não continuasse.
— Por que não me dizes? — disse ele suavemente. — Deixar-te-ia ir, bem sabes. Fosse o que fosse que aconteceu a Simon, não deve ter sido feito por ti. Tu não passas de uma criança. Eu deixar-te-ia partir. Mas preciso de saber antes. Se ele está morto, então posso dizê-lo à minha mãe e assim a sua sombra descansará e tudo isto terminará. Esta guerra não é minha e não a continuarei. Não tenciono derramar mais sangue, nem que o dos meus homens seja derramado. Se ele está vivo, pode ser encontrado e eu hei de encontrá-lo. Não gostarias de saber, se ele fosse teu irmão?
Acenei com a cabeça e virei-me subitamente, de maneira a ele não me ver o rosto. Houve um longo silêncio. Senti que não devia sair de ao pé dele; as suas palavras tinham-me feito sentir mal. Não percebia por que me perguntava ele aquilo, quando guardara o que sabia para si próprio, escondendo-o da própria mãe e, pelos vistos, dos próprios amigos. Talvez, pensei, ele tivesse sido chamado para me proteger enquanto eu termino a minha tarefa, agindo assim contra a sua vontade. Se não, já me teria obrigado a fornecer-lhe a informação, tê-lo-ia já conseguido, sem dúvida. Não precisava de ser amável, não precisava de ter paciência. Mas mesmo que eu pudesse falar, não tinha verdadeiras respostas para lhe dar. Quando olhei de novo já ele tinha fechado o livro e pusera de lado a pena e o tinteiro.
— Preciso de fazer exercício com esta perna — disse ele, levantando-se. — Anda por este lado, quero mostrar-te uma coisa.
Ainda coxeava e eu consegui manter o passo, apesar das compridas pernas dele. Seguimos o caminho que rodeava o muro coberto de líquen do pomar e subimos uma colina, abaixo de uns carvalhos jovens, vestindo ainda as últimas folhas douradas. Alys trotava galantemente atrás de nós.
— Eu tinha cinco ou seis anos quando o meu pai e eu plantámos estes — disse ele. — Ele tinha um grande respeito por árvores. Quando se cortavam, plantavam-se. Um carvalho leva uma vida a crescer. Tal como o pai dele antes, via longe.
O caminho continuava a subir e as árvores espreguiçavam-se de um lado e de outro em filas ordenadas. Alys cansava-se e atrasava-se e nós esperámos que ela nos apanhasse. Era demasiado velha para continuar, mas recusou-se a ser carregada. No fim, convenci-a, por meio de gestos e expressões, que devia esperar ali por mim e ela deixou-se ficar, resmungando, sobre as folhas caídas no carreiro. Os seus olhos líquidos seguiram-nos reprovadoramente enquanto continuávamos a subir. Sentia-se uma brisa matinal, cortante; olhando para trás, vi as primeiras nuvens de fumo de fogueiras recentemente acesas na casa e nas cabanas. O povo começava a acordar.
Chegámos ao topo, onde estava uma grande pedra, isolada, rodeada de trepadeiras. A vista era vastíssima; reparei de novo como as terras dele estavam tão bem tratadas, limpas, controladas, como tudo estava bem, se assim se pode dizer. Não admira que todos tenham ficado surpreendidos quando ele decidiu trazer-me. Eu não fazia parte daquele padrão tão asseado. O rio espreguiçava-se preguiçosamente pelo vale; daqui, podia-se ver a vasta extensão do seu domínio, os campos amplos após a ceifa, com os molhos de palha cónicos, as vastas pastagens dotadas aqui e ali com animais, os moinhos e os celeiros, as cabanas brancas aninhadas entre as árvores. Tantas árvores; e os carvalhos, reparei, eram não só jovens, mas já os havia meio crescidos, e já adultos, e para leste eram grossos e velhos, quase uma floresta.
— Enquanto Simon aprendia as primeiras letras, eu vinha aqui para cima com o meu avô colher bolotas, vê-lo erguer um muro e ajudar as ovelhas a parir. Enquanto Simon atirava paus para o cão os ir buscar, eu plantava árvores com o meu pai, aprendia a atar feixes de palha e a cobrir um telhado de colmo para proteger a casa das tempestades. Enquanto Simon aprendia a matar um homem silenciosamente e a não deixar rasto, eu levava lenha aos camponeses para as suas fogueiras de Inverno e aprendendo os nomes de todas as pessoas do domínio. O meu irmão e eu passámos ao lado um do outro, como estranhos. O tempo muda as coisas. O meu pai morreu cedo, o que despedaçou o coração do meu avô. Ambos se foram. — Disse aquilo como se fosse um facto como outro qualquer; não havia maneira de dizer se lamentava ou não. Achei que lamentava. É difícil fazermo-nos compreender sem palavras, a não ser que o que se pretende dizer seja simples. De qualquer modo tentei, usando as mãos e os olhos. Aquelas árvores; tão antigas, certamente guardavam o conhecimento e a sabedoria de todos aqueles que tinham passado por aquele vale. Seguramente guardavam os espíritos dos homens que tinham trabalhado aquela terra com amor, com a força dos seus braços. Tentei mostrar aquilo a Red. Árvores velhas jovens. Homens velhos novos. Crescer. Coração. Vale coração.
Pelo menos não se riu de mim, antes me observou seriamente e acenou com a cabeça quando os meus esforços terminaram.
— Simon nunca compreendeu — disse ele. — Estava sempre ocupado com outra coisa qualquer, sempre para a frente, desafiando, tentando sempre algo novo. O que tínhamos nunca lhe parecia suficiente. No entanto, tínhamos tanto. — Baixou-se até ao chão; ainda não se sentia confortável com a perna. Apontei-lha e levantei as sobrancelhas, ao mesmo tempo que me sentava ao pé dele, mas não muito perto.
— A ferida está com bom aspecto — disse ele. — Não te preocupes, eu chamo-te quando chegar a hora de desfazeres o teu trabalho manual. Não deixaria mais ninguém tocar-lhe. — Usei os dedos para lhe dizer. 20 dias. Os pontos que eu suturara deviam ficar 20 dias sem serem tocados. Ligar e voltar a ligar a ferida. Um cataplasma. Talvez eu pudesse... E então tirar-lhe-ia os pontos e tudo ficaria bem. Red acenou com a cabeça; a mensagem fora mais fácil de transmitir, desta vez.
Ficámos sentados em silêncio por uns momentos a ver o dia a nascer, ouvindo os débeis sons da casa e da herdade a acordarem e a despontarem para a vida. Era um bom lugar, suficientemente perto do céu, suficientemente longe do homem.
— Quero avisar-te d— isse Red, torcendo uma erva entre os dedos. — Porque não sei bem se compreendes como é importante que faças como eu te digo; que deves permanecer perto da casa e não te afastares. Aqui é seguro, se bem que receie que nem todos os da minha família te tratem com gentileza. Isso pode alterar-se. Não são as pessoas desta casa que me preocupam. — Apontou para norte, para a entrada do vale. — Naquela direcção estão as terras do meu tio Richard — disse ele. — Ele é irmão da minha mãe, um homem poderoso, um homem de grande riqueza e influência. Foi uma batalha dele que o meu irmão foi combater; é a guerra dele, que tem custado às mulheres tantos filhos, maridos e amantes. O meu povo sente-se amargurado; será difícil para ele fazer-te sentir em casa. O que ele não consegue ver é que é esta demanda de um homem por poder, a sua sede de sangue, que mantém a velha guerra viva, que envenena as mentes dos homens, fazendo com que o sigam até à morte ou à destruição. O meu irmão era jovem; demasiado jovem para se empenhar em semelhante causa. Não tinha necessidade nenhuma de odiar. Mas Richard deslumbra-os, a estes jovens, com as suas palavras prontas. Talvez tu conheças tais palavras. Talvez tu tenhas ouvido esta história dos lábios do meu irmão.
Abanei a cabeça, espantada por ele ter decidido contar-me aquilo. Essa história, não. Para um homem que falava tão pouco, revelara-me mais dele próprio do que imaginava.
— Estás a tentar imaginar porque te disse eu isto — disse Red, parecendo ler-me os pensamentos. — Disse-to porque o irmão da minha mãe há de saber, em breve, que tu estás aqui. Ele tem informadores por toda a parte e ouvidos aguçados para os rumores. Há de ficar interessado. Mais do que interessado. Pode ser que nos faça uma visita. Podes não acreditar, mas há alguns na minha família que te ajudarão. Quero ter a certeza de que estarás preparada para uma tal visita. É por isso que preciso de saber por onde andas, sempre. Ele é um homem muito esperto. Convinha-lhe muito apanhar-te, como que por sorte, quando estás fora a cavalgar ou a passear sozinha, sem mais nada senão uma amostra de cão para te proteger. Quero que me prometas que não permitirás que isso aconteça.
É fácil, disse eu silenciosamente e expliquei-lho por meio de gestos. Por que não me fechas no meu quarto e metes a chave no bolso?
O mais estranho dos olhares passou-lhe pelo rosto, como se estivesse a fazer um esforço para não se rir.
— Não me parece — disse ele, levantando-se. — A luz não é boa para fiar. Além disso, como arranjava eu maneira de manter o Ben e o Jonh ocupados, sem nada para fazerem à noite? A ociosidade não é nada boa para a saúde. Não, não me parece que seja uma boa ideia. Então, prometes-me?
Acenei com a cabeça. Tinha a certeza que não esperava menos. Não era verdade que todos faziam o que ele dizia?
A conversa parecia ter acabado. Estendeu uma mão para me ajudar e eu tomei-a sem pensar, abafando um grito de dor quando ele ma agarrou com firmeza. O que não lhe passou despercebido. Os olhos azuis-claros concentraram-se nas minhas mãos, abrindo-as para as inspeccionar. As suas próprias eram suficientemente grandes para se fecharem em volta das minhas por completo; mas ele relaxara o aperto até um mero toque, examinando a aspereza da pele, o começo de uma ferida aberta, o remanescente dos espinhos da morugem. As minhas mãos não eram nada agradáveis à vista. Senti-me desconfortável, tão perto dele. O rosto dele mostrava pouco dos seus sentimentos.
— Não gosto — disto comentou ele sem ênfase. — Talvez devesse fechar-te, no fim de contas. Mas duvido que isso te impedisse de continuar, fizesse eu o que fizesse, não é verdade?
Disse que sim com a cabeça.
Não faças demasiadas perguntas. Há coisas que não devo dizer. Não te aproximes.
— Devia estar louco — disse ele para si próprio deixando-me cair as mãos, e começámos a descer a colina. — Todos dizem o mesmo. Louco ou enfeitiçado. Estão cheios de teorias. Eu não me preocupo com elas. De qualquer maneira, podemos ser um pouco melhores do que temos sido.
O terrier já estava descansado e recebeu-nos com um latido agudo e umas violentas abanadelas de cauda. Fartou-se de fazer cabriolas à nossa frente, cheio de importância. Havia olhos em nós à medida que íamos caminhando, mas nada mais foi dito senão «Que bela manhã, meu senhor!» e «Parece que vamos ter bom tempo». Achei que havia em redor dele um espaço encantado e que, enquanto estivesse dentro dele, estaria segura. Se me aventurasse para fora, a história seria diferente. O que não me dava nenhum conforto, porque não gostava de estar dependente de nenhum homem, quanto mais daquele bretão de olhos vivos, que não me dera outra escolha senão a de abandonar a minha terra. E não tinha ilusões quanto aos esforços dele para me proteger, já que eram apenas os seus. No fim, teria conseguido o que queria de mim e pronto. Tira-se o sumo de um fruto maduro, atira-se a casca fora, os corvos vêm e debicam o que sobra até ao último bocado. Se bem que, no fim de contas, pouco interessasse. Porque nunca lhe diria uma palavra até as camisas estarem terminadas. Quando estivessem, então tudo mudaria. Quando os meus irmãos regressassem. Se regressassem.
Fiquei com a certeza, à medida que o tempo passava e a Lua aumentava e diminuía, que havia uma efectiva rede de protecção à minha roda, controlada por Red, como tudo o mais no seu domínio. Havia Margery, que em breve se tornou numa amiga. O que era uma novidade para mim. Nunca tivera uma amiga, se não se contasse com Eilis, que eu sempre achara chata e tola, se bem que não desgostasse do gosto dela por homens. Margery era doce, mas também forte, de uma maneira que se me tornou aparente à medida que os dias se seguiam e ela me defendia dos comentários das outras mulheres com firme polidez, continuando com as usuais pequenas gentilezas para comigo. Foi forte quando admoestou a rapariga que disse, meio a brincar, que Margery não devia deixar que eu lhe tocasse no estômago onde crescia agora o bebé, grande e pesado, não fosse eu lançar-lhe uma maldição e ele nascer morto ou deformado. Foi forte quando perguntou a Lady Anne, muito cortesmente, se eu podia ter outra muda de roupa e uma boa lâmpada de óleo no meu quarto, à noite. Começou a falar comigo sobre outras coisas; sobre como tivera saudades de John quando ele estivera ausente e o bebé a crescer rapidamente no útero. Como esperavam ansiosamente aquela criança, porque ela tivera antes uma que apenas vivera uns momentos e já tinham passado tantas luas desde que a tinham posto a descansar sob os grandes carvalhos. Sobre como Red não quisera que John fosse com ele para o outro lado do mar, porque, dizia ele, um homem deve ficar com a sua mulher numa ocasião destas e que seria suficiente levar Ben. Como John também fora, porque tinha tido sonhos maus, pressentimentos e temia pela segurança de Red. E como John temia que Red tivesse abandonado a busca a meio, para que o companheiro pudesse chegar a casa a tempo.
Não era que ninguém tivesse tentado encontrar Simon quando ele desapareceu. O irmão de Lady Anne, Richard, instigara uma busca que não fora em vão, porque descobriu 12 dos seus homens degolados. Mas o filho mais novo de Harrowfield não estava entre eles. Assim, finalmente, Red decidira ir e ver por si próprio. E pela mãe. Margery disse-me que tinham ficado todos aliviados por apenas a perna de Red ter ficado ferida e por ter regressado, trazendo-me consigo. John dissera que esperava que não houvesse mais surpresas. Geralmente, com Red não aconteciam surpresas. Ele era o centro forte e imutável em volta do qual todo o seu pequeno mundo rodava. Comecei, gradualmente, a perceber a magnitude da sua decisão em me trazer com ele.
A rede continuou apertada em volta de mim. Fui fiel à minha promessa e não me aventurei sozinha para lá das proximidades da casa. As manhãs eram passadas na sala de costura e os comentários sussurrados e olhares dissimulados das mulheres continuaram, mas Margery estava presente e a sua calma presença e sorriso doce faziam com que a dor fosse mais fácil de suportar. De tarde, fazia um pequeno intervalo na minha tarefa, já que as minhas mãos me doíam demais para me permitirem trabalhar o dia todo. Às vezes sentava-me no jardim e Ben aparecia inesperadamente, de pá na mão. Era simples mostrar-lhe o que precisava de ser feito. Ele tinha uns braços fortes e um vasto repertório de anedotas tolas. Outras vezes aparecia John enquanto eu me sentava no muro de pedra a admirar as ovelhas, pálidas e prístinas após a tosquia do Outono e ia comigo até ao rio, falando de tudo e de nada, sentados, como companheiros, sobre as rochas, enquanto eu chapinhava com as mãos e os pés e Alys caçava esquilos ao longo das margens. Mas não esquecera a minha tarefa e estava dolorosamente doente da lentidão dos meus progressos, apesar dos benefícios da boa comida e abrigo, de um fuso adequado, de uma roca e de um tear. Terminara a terceira camisa, que era a de Cormack e estava a fiar o fio para a de Conor. Não tinha esperança de as terminar antes do solstício do Inverno.
Não via muito Red e perguntava-me se sentiria falta das conversas comigo. Ocorreu-me que, devido ao meu silêncio, já que nunca lhe podia responder, ou repetir as suas palavras, ele falava comigo como se falasse com ele próprio. Não me evitava, propriamente; estava muitas vezes por perto, indo de um lado para o outro nos trabalhos da herdade e vigiava-me, mas nunca mais voltou a falar comigo a sós. À noite, a vigília continuava no lado de fora da minha janela.
O irmão de Lady Anne levou tempo a aparecer. Estava-se perto de Samhain, o ar estava frio e as últimas folhas caíam dos carvalhos e das faias. Lorde Richard apareceu com grande pompa, cavalgando ao longo da avenida de álamos nus com a sua companhia montada em cavalos parecidos e os seus acompanhantes bem-vestidos de seda e veludo, para impressionar. Observámo-los das janelas da grande sala, Margery e eu, enquanto Lady Anne e as outras mulheres pousavam o trabalho e se apressavam. Era preciso fazer preparativos e rapidamente, para semelhantes visitantes.
— É a filha dele — disse Margery e eu vi a alta e sumptuosa rapariga cavalgando ao lado do chefe, o cabelo castanho suave apanhado atrás, numa rede adornada de jóias. — Chama-se Elaine. Elaine de Northwoods. Richard não tem filhos. Quando ela se casar com Red, os dois domínios ficarão ligados. Quem os controlar, fica com a melhor parte costeira do noroeste nas mãos.
Observei a cavalgada até aos degraus da entrada. Lady Elaine tinha as costas muito direitas; fazia uma bela figura nas suas largas vestes de montar e nas suas pequenas botas negras. Foi o próprio chefe da casa que a foi ajudar a descer do cavalo. Como não estava preparado para a visita, vestia ainda as roupas de trabalho e um cheiro duvidoso a estábulo. O sol da manhã tocou-lhe no cabelo cortado curto, provocando-lhe reflexos de fogo.
— Uma aliança estratégica — observou Margery secamente. — Prometidos um ao outro desde crianças. Tal casamento, entre primos, é, geralmente, proibido. Mas o pai dela tem amigos em lugares-chave. O bispo foi persuadido a dar a sua aprovação. Acontecerá no próximo Verão, penso. Já devia ter sido há mais tempo; mas Red foi para fora, em vez disso. Richard não gostou nada.
Olhei para Richard de Northwoods enquanto ele desmontava com um movimento fluido e passava as rédeas ao servo que esperava. Vinha vestido de negro e movia-se com a mesma elegância sem esforço da sua filha. Vi-o saudar Red, apertar-lhe o braço e depois saírem da minha vista.
Não regressei ao meu quarto nesse dia. Em vez disso, Margery levou-me até à parte da casa onde ela e John viviam e mostrou-me o berço de madeira com bolotas e folhas gravadas na cabeça e nos pés, recentemente forrado com linho suave e lã; e as minúsculas roupas que fizera. Manteve-me ali durante um certo tempo, com uma coisa e outra e eu observei-a, preocupada. Andava demasiado ocupada, pensei, para quem transportava uma criança tão grande, o rosto inchado, assim como as ancas, coisas que eu já tinha visto em mulheres já perto do parto; não era bom sinal. Quis falar com ela sobre o assunto, talvez perguntar-lhe se a podia tocar, sentir a criança; mas não esquecera as palavras da mulher. É melhor não a deixares aproximar-se do teu bebé, não vá ele nascer mono ou deformado. E ela já tinha perdido um.
Porém, a jovem facilitou-me a tarefa.
— Jenny — disse ela, sentando-se ao pé de mim e trazendo uma caixa de bálsamo e um instrumento que me era desconhecido, que eu soube mais tarde servir para as mulheres arrancarem pêlos das sobrancelhas, das faces, ou de onde quisessem. — Espero que não leves a mal — disse ela timidamente. — Mas nós... eu pensei, as tuas mãos não precisam de sofrer tanto, se tiverem uma pequena ajuda. — Gostaria que parasses com esse teu trabalho, mas disseram-me que não o farás e não vale a pena pedir-to. Pelo menos, deixa-me tirar-te alguns desses espinhos e passar-te um pouco deste bálsamo pelas mãos. Desse modo, penso que poderás movimentar melhor os dedos e talvez a dor seja menor. — Começou a trabalhar nas minhas mãos e eu rendi-me aos seus cuidados, fechando os olhos. E vi Finbar, tantos anos antes, com a língua entre os dentes, usando dois paus aguçados para retirar os espinhos, enquanto eu chorava, em voz alta, lágrimas não reprimidas de criança e Conor contava uma história. O nome dela era Deidre, Dama da Floresta...
— Estou-te a magoar muito? — perguntou Margery ansiosamente e eu estremeci e pestanejei.
Havia lágrimas nos meus olhos. Abanei a cabeça e esbocei uma espécie de sorriso.
— Deve ser muito difícil para ti — disse ela, puxando pacientemente os finos espinhos, um a um. — Não falar, quero dizer. Deves sentir-te tão só. E tão longe de casa. Suponho que tens família, irmãos e irmãs. Deves ter imensas saudades deles.
Acenei com a cabeça.
Não te aproximes demasiado.
— Eu tenho uma irmã — disse ela. — Mas eu casei com John, vim para aqui e ela ficou em casa. É muito longe. Não a vejo há dois anos, desde que...
Desde que perdeste o teu bebé, pensei. Chegara a hora de perguntar. Mas eu não podia falar sem as mãos, ela tinha-as cativas até o trabalho estar terminado e a mistura curativa de consolda e campainhas, com a cera de abelha e um óleo aromático, foi-me aplicado na pele ferida.
— Far-te-ei isto todas as tardes — disse ela. — Não precisas de as ter piores do que o necessário. — Deu um súbito bocejo, enorme. — Oh, meu Deus. Desculpa. Tenho andado um pouco cansada, ultimamente.
Gesticulei o melhor que pude.
Devias descansar. Criança muito grande. Descansa, dorme.
Margery riu-se.
— Não tenho essa sorte! Há muito que fazer para Lady Anne e tenho que manter o John feliz. Ele é um bom homem; foi difícil, quando ele esteve fora. Agora não quero perder um único minuto.
Tentei de novo, indicando que gostaria de lhe tocar, sentir como estava a criança. Ela ficou séria, de repente.
— Se queres — disse ela e havia um toque de ansiedade na voz dela. — Tu sabes mais destas coisas do que eu, espero, se bem que sejas ainda tão pequena. Temos aqui uma parteira; ela fará o que for preciso, suponho, quando chegar a altura.
O bebé ainda estava muito acima, no útero e a cabeça dele estava mesmo por baixo dos seios. Ainda estava a tempo de virar, mas não muito. Dava pontapés e torcia-se, demasiado grande para se sentir confortável. Dei a Margery o melhor sorriso que consegui. O bebé está bem. O que era verdade, pelo menos por agora. Mas tu tu deves descansar. Descansar Dormir. Era fácil demonstrar-lho com as mãos e os olhos. Se ela o pudesse ou quisesse fazer, isso era outra história.
Tinha a minha trouxa comigo e tirei dela o pequeno novelo de fibras de morugem, que era tudo o que me restava. Puxei-a pelo braço, apontei para o que tinha na mão e tentei mostrar-lhe uma planta a crescer até ao joelho ou um pouco mais. Fortes caules a estenderem-se. Fui até à janela, fiz um gesto na direcção do vale e virei-me com uma pergunta nos olhos. Onde? Onde é que ela cresce?
— Oh, Jenny — disse ela reprovadoramente. — De certeza que não queres continuar com isto? Magoa-te tanto.
Agarrei-a pelos ombros e acenei com a cabeça. Oh sim. Ajuda-me.
— Preferia não ser eu a dizer-te — disse ela e por um momento o meu coração parou, porque pensei que ela ia dizer que a planta não crescia ali. — Não gosto nada do que estás a fazer a ti própria e Red também não. Mas esta planta, a que chamamos zaragatoa, cresce muito por aqui. Mas não aqui, perto da casa; mais para norte do vale, do outro lado do rio, subindo uma ravina por onde corre um ribeiro. Há lá uma ponte. É muito longe. Se precisas de mais, é melhor mandares o John ou o Ben buscar-ta. Se quiseres, peço ao John.
Mas eu abanei a cabeça, porque devo ser eu a colher a planta. A Dama da Floresta tornara isso bastante claro. Dei a Margery um abraço de conforto e agradecimento.
Lorde Richard tinha que me ver, mais tarde ou mais cedo. A intimação foi-me trazida por Megan, que de todas as servas parecia a que menos me temia. Eu devia ir ao salão, disse ela. Eu e Margery. Lady Anne disse que devíamos estar todos presentes, como sinal de respeito para com os nossos visitantes. Imediatamente, disse Lady Anne. Margery fez uma careta e disse a Megan que Lady Anne teria que esperar. Não parecia particularmente apressada. Desfez-me a trança, escovou-me o cabelo e entrançou-mo de novo, murmurando para si própria.
— Nunca vi cabelo mais indomável! Passo o pente e logo estes caracóis saem do sítio, como se tivessem vida própria. Bem, terá que servir. Não podemos fazer Lady Anne esperar eternamente. Ela tem uma língua afiada, quando quer usá-la. Cabeça direita, Jenny, estás muito bem assim.
Segui-a ao longo do átrio e pela escadaria de pedra abaixo até ao andar inferior. Talvez não fosse assim tão mau, disse para mim própria. No fim de contas, vai lá estar toda a gente; podemos esgueirar-nos, ficar atrás de toda a gente, fazer uma aparição para satisfazer a dona da casa e depois desaparecer. As minhas mãos estavam melhor; talvez voltasse para o meu quarto para fiar um pouco mais. Seguramente, ninguém daria pela minha falta.
As minhas esperanças desvaneceram-se assim que entrei no salão. Porque se tratava de uma reunião selecta. Não havia possibilidade de anonimato. Lady Anne estava sentada num dos lados da lareira e Elaine no outro. Esta tinha o porte de uma rainha e o rosto era tão delicado e fino como a flor mais premiada de um jardineiro. Os seus grandes olhos azuis observaram-me tranquilamente, sem qualquer tipo de julgamento. Ao lado dela senti-me como a criança selvagem, grosseira, que todos, sem dúvida, me julgavam.
Red estava ao pé da janela, de costas para a sala. Perto dele estava Lorde Richard e eu pude ver, mais de perto, parecenças de família; não muitas, mas elas estavam lá, no cabelo claro acinzentado levemente ondulado e o mesmo olhar perspicaz, calculista, que eu vira nos olhos de Lady Anne. Não era um homem particularmente alto; Red era bem uma cabeça mais alto do que ele. Mas havia nele uma autoridade, uma presença, algo que se sentia instantaneamente. Algo que me pôs em guarda. Sentirás uma certa dificuldade, dissera Red, falando do tio e como seria quando eu o conhecesse. Mas tudo bem. Eu era filha de Lorde Colum de Sevenwaters. Por que haveria de me sentir assustada com um bretão qualquer, mesmo que o seu nome fosse Northwoods?
— Então é esta a rapariga — observou Lorde Richard. A sua voz era propositadamente suave. Suave, pensei, como a pata de um gato quando brinca com um rato. — Bem, avança. Deixa-me olhar para ti, rapariga.
Margery deu-me um ligeiro empurrão nas costas e retirou-se para o canto mais longínquo do salão, onde estava o seu marido, que parecia querer confundir-se com a tapeçaria na parede. Vi que Ben também lá estava; deu-me uma piscadela de olhos tranquilizadora e Lady Anne franziu as sobrancelhas. Havia também dois ou três homens com as cores de Richard, castanho-avermelhado com laivos negros e todos eles olhavam para mim. Red não se virara. Olhei para Lady Anne. Ela acenou-me com a cabeça, um aceno frio e eu avancei um passo, dois passos. Mantive a cabeça bem direita. Olhei-o bem nos olhos. Eu sou a filha da floresta. Não tenho medo de ti.
— É mais nova do que pensava — disse Lorde Richard, escrutinando-me de perto. — Não que isso faça alguma diferença. Está-lhes no sangue, absorvem-no com o leite das mães. Uma espécie de raiva; uma dedicação cega que gera assassinos, fanáticos e loucos. Duvido que algum dia aceitem que o que lhes tirámos nunca lhes pertenceu por direito. Umas reles rochas no meio do mar, uma caverna ou duas, um par de árvores atrofiadas. Mas matam por isso. Morrem por isso. Até que o último caia a fio de espada. Está-lhes no sangue. Reparai no porte dela e no ódio que lhe vai nos olhos. Uma causa perdida. Mas pode ser-nos útil, irmã. Ouvi dizer que não é nenhuma rapariga de aldeia. Pode render-te ouro; o suficiente para comprar uma bela parcela de terra na tua fronteira sul, ou construir uma poderosa torre de menagem. O suficiente para uma bela troca de armamento ou um belo garanhão. Quem é ela? Que família abre assim as garras e entrega assim, de mão beijada, um pedaço destes? Como é que te chamas, rapariga?
Mantive o meu olhar fixo no dele, resoluta.
— Ela não fala — disse Lady Anne. — Esta rapariga tem uma... uma doença qualquer. Creio que não tem os parafusos todos e insiste em magoar-se a si própria. Não sabemos quem ela é.
O tom dela era apologético; pensei que estava embaraçada e receosa. Mas ele era irmão dela. Talvez eu estivesse enganada.
— Não fala? — perguntou Richard suavemente, inspeccionando-me sob todos os ângulos. — Ou não quer falar? — Tinha as mãos juntas atrás das costas; mantive-as descontraídas, respirando devagar. Arrisquei um olhar para Red. Não dissera ele que me ajudaria? Parecia muito interessado no que se passava no exterior.
— Onde a encontraste, Hugh? Um troféu de alguma batalha?
— Pai. — Fora Elaine que falara, surpreendendo-nos a todos, penso. — Não deveis falar da rapariga assim, como se ela não vos compreendesse. Como se não estivesse aqui.
Richard riu-se. Não era um som agradável.
— A tua amabilidade faz-te justiça, minha querida. Mas esqueces-te que esta gente não é como tu, ou como eu. Se visses as coisas que eu vi, se tivesses testemunhado as atrocidades. Deus queira que nunca sejas exposta a tais horrores. Não imaginas, com certeza, que isto pensa e sente como tu, a filha de uma das maiores famílias de Northumbria. Ela é menos do que o chão que tu pisas com a tua bota, minha querida. Além disso, não acredito que uma rapariga da idade dela seja capaz de compreender a nossa língua. A educação dela deve ter sido bem rudimentar, se teve alguma. A não ser, claro, que tenha sido treinada para espia. Isso levanta questões mais interessantes Pensaste nisso, quando a trouxeste para cá?
Elaine fez menção de falar de novo, mas depois pensou melhor. Richard continuou o seu passeio.
— Ela não nos pode dizer quem é murmurou. Que conveniente. Dá muito jeito. Portanto, não podes conseguir um resgate por ela. Eu posso tentar adivinhar, talvez. Talvez esta rapariga tenha ouvido falar de Seamus Redbeard, cujos bárbaros assassinaram homens bons nos desfiladeiros por cima do grande lago? — Olhou para os meus olhos e de súbito senti-me como se estivesse defronte de Lady Oonagh, fazendo apelo a toda a minha força de vontade para não mostrar o menor sinal de conhecimento, mantendo o rosto tão imóvel como uma pedra. — Talvez ela tenha ouvido falar de Eamonn de Marshes, cunhado de Redbeard; o truque dele é a utilização do fogo, de noite. Um fogo bem quente, que só deixa ossos. — Circulou de novo em volta de mim. — Talvez ela tenha ouvido falar de Lorde Colum de Sevenwaters, o mais esquivo de todos, uma seta na minha carne, se eu tivesse uma. Foi contra ele que a fina-flor dos meus homens morreu. Talvez ela tenha ouvido falar deles. Porque todas as raparigas são filhas, ou irmãs; a não ser que acreditemos em fadas. Olha para mim, rapariga. De quem és tu filha?
Silêncio. O silêncio era a única defesa. Inspirar; expirar. Tentar não pensar em nada. Tentar sufocar a raiva que me ia no peito; tentar afastar a dor do rosto. Os teus pensamentos brilham nos teus olhos como faróis; os teus e os de Fimbar. Escondê-los. Imóvel. Imóvel como uma pedra.
— És demasiado brando, Hugh. Isto podia ser como uma brincadeira de crianças. Mas tu nunca gostaste de ter sangue nas mãos.
Virou-se para Lady Anne.
— E o teu filho mais novo, irmã? Quanto darias para o teres em casa, são e salvo? Se ela te pudesse levar até ele, não a farias falar por todos os meios? Seria fácil fazê-la falar, tão fácil. Mas aqui o Hugh, por razões que só ele sabe, não parece preparado para o fazer. Isso faz-me pensar. E levanta muitas outras questões.
Não olhar para Lady Anne. Respirar, apenas. Para dentro. Para fora.
— Ela não passa de uma criança — disse Red, muito sereno. E de súbito percebi que tudo aquilo não era comigo. Era-lhe destinado. Fazia parte de um jogo que apenas aqueles dois homens compreendiam. Era uma espécie de teste. Mas, qual deles estava a ser testado? — Não tem nada a dizer. Ajudou-me quando eu estava em dificuldades; ofereci-lhe abrigo. É tudo.
Houve um silêncio completo na sala. Richard ergueu as sobrancelhas, zombeteiramente.
— Esta criança? — disse ele, insinuante. Tinha as costas viradas para a filha e para Lady Anne. A sua mão levantou-se, um dedo tocou-me na face delicadamente e depois percorreu-me lentamente o rosto, o pescoço e o seio, mesmo acima do decote do vestido. Senti o sangue fugir-me do rosto, as minhas entranhas apertaram-se devido a terrores recordados e suspendi a respiração. Não vi Red mexer-se, tão rápido ele foi. Mas ali estava ele com a sua grande mão em volta do braço de Richard, firme, desviando-o.
— Chega — disse ele suavemente. Não precisava de levantar a voz; o tom dizia tudo. — Estais em minha casa, tio. A dama é minha hóspede. Talvez não tenha sido muito claro.
— Oh, foste muito claro, Hugh, meu rapaz, claro como cristal. — Esfregou o braço com uma expressão comicamente pesarosa. Tinha um vasto repertório. — Espero que seja tão claro para a tua mãe, é tudo o que posso dizer. Talvez ela se sinta menos entusiasmada com a ideia de dar abrigo a esta... dama. — A pequena pausa antes da última palavra fora requintadamente programada. Mas tinha feito uma leitura defeituosa da audiência. Elaine tinha as sobrancelhas levemente franzidas, como se estivesse a pensar intensamente. Lady Anne sentia-se incomodada. No entanto, fez-me sinal e eu, reunindo a dignidade que me restava, abandonei o centro da sala, onde me encontrava, gelada e fui sentar-me no banco bordado a seu lado. Com aquele gesto disse mais do que muitas palavras. Podia não aprovar o que Red fizera; mas ele era filho dela, aquela era a casa dele e ela faria sempre com que os seus hóspedes fossem tratados de maneira correcta, por mais que lhe custasse.
Suportei a refeição da noite. Desta vez estava mais bem protegida, porque a família estava reunida, Lady Anne no seu lugar habitual, à direita do filho e Elaine à direita dele. Lorde Richard estava sentado ao lado da irmã, eu sentia os olhos dele em mim e fiz os possíveis para não olhar para ele. No fundo da mesa, vi-me entre John e Ben, com Margery em frente. O que anulava qualquer necessidade de ouvir o que se dizia, ou afivelar uma expressão diferente. Os três mantinham uma conversa animada acerca de diversos tópicos, sobre a feira de Inverno em Elvington, se o sicômoro ou a nogueira eram boas madeiras para fabricar mobília, ou sobre os méritos da nova porca de Red. Arranjaram maneira de me incluir na conversa e utilizaram uma variedade imaginativa de expressões e gestos, provocando uma certa hilaridade no nosso grupo. Por uma vez ou duas, ao olhar para a cabeceira da mesa, apanhei o olhar de Red, nem aprovador, nem desaprovador, anotando apenas. Passou muito tempo numa calma conversação com Elaine. Estavam bem um para o outro, pensei. Amigos de infância, sabiam qual era o seu lugar no mundo e trabalhariam bem os dois juntos para manterem o que tinham. Ela impressionara-me, na sua tentativa para fazer frente ao pai. Além disso, eram ambos altos e bem constituídos e teriam belos filhos. E recordei as expressões nos rostos de Liam e de Eilis na noite dos seus esponsais; como olhavam um para o outro, como se não existisse mais ninguém no mundo. Não vi essa expressão no rosto de Red, nem no de Elaine. Talvez os Bretões sejam assim, pensei. Não mostrarem o que sentem. Em vez disso, fecham-se à chave, para que ninguém veja. Mas havia excepções, pensei, ao ver Margery partilhando uma anedota com o marido e ao ver o rosto de John passando-lhe um prato de pão, do qual ela retirou um pedaço, tocando-lhe na mão. Havia aqueles cujo amor transparecia de cada gesto, partilhado assim por todos aqueles que os conheciam. Mas eram raros.
Dormi mal; os demónios nocturnos eram poderosos, agarrando-se a mim até no sono e era um alívio acordar, finalmente, fria e encharcada em suor e ver, através da minha janela redonda, os primeiros sinais da alvorada no céu. Lavei-me com água fria e cobri a camisa de noite com uma capa, porque sentia claustrofobia e precisava desesperadamente de ar. Desaferrolhei a porta e saí suavemente para o jardim, de pés descalços, sobre as pedras frias. Alys seguiu-me com alguma relutância, movendo-se rigidamente na madrugada gelada. Dentro de dias gelaria tudo, pensei. Isso era bom; talvez na Primavera eu visse o chão atapetado de junquilhos e açafrão. Hoje estaria bom tempo; podia ainda ver estrelas no céu, onde a cor púrpura se desvanecia e se transformava em cor-de-rosa, para depois passar ao dourado da madrugada.
Alys emitiu uma pequena rosnadela quando nos aproximámos do fundo do jardim. No banco por baixo do muro estava Red a dormir. Este mal tinha tamanho para lhe acomodar o grande corpo; o bretão tinha os braços cruzados por trás da nuca, uma perna estava estendida ao longo do banco e a outra pendurada. Teria umas quantas dores quando acordasse. Tinha consigo a espada e a pequena faca na bota; mas neste momento qualquer estranho acabaria com ele. Fiquei ali quieta, enquanto a madrugada lhe tocava no rosto com a sua luz rosada, lhe corria pelo nariz direito, pelos maxilares bem definidos e pela larga e descontraída boca. A vida está boa para alguns, pensei.
Não levou muito tempo a acordar. Quando o fez, foi com um movimento suave, com ou sem dores, pondo-se de pé instantaneamente alerta, a mão pronta no punho da espada. Alys emitiu um latido de medo. Então, Red viu quem era e sentou-se de novo, coçando a cabeça pesarosamente.
— A dormir em serviço. Nada bom — disse ele, pestanejando. — Devia estar mais cansado do que pensava. O dia de ontem não foi dos melhores.
Acenei com a cabeça. Ficava aquém da realidade. Olhou melhor para mim, perspicazmente.
— Estás com um aspecto horrível — disse ele.
Obrigada. A minha expressão deve ter-lhe dito como me sentia.
— E os teus pés devem estar gelados. Senta-te aqui. — Sentei-me no banco com os pés debaixo do corpo e enrolei-me na capa para os cobrir. A pedra estava fria, mas era um frio bom, aquele frio de Inverno que adormece o jardim, sonhando com o renascimento da Primavera.
— Não tens dormido — disse Red e estendeu uma mão para me tocar no rosto. Recuei e ele deixou-a cair. — Tens olheiras enormes por baixo dos olhos e estás branca como a cal. Lamento o que aconteceu ontem. Eles vão-se embora esta manhã. Não quero que te sintas assustada.
O que eu queria dizer não podia ser traduzido por meio de gestos.
Tu não ajudaste muito. Por que não o detiveste mais cedo? Não conseguia pensar numa maneira de lho dizer. Em vez disso, encolhi os ombros.
— Estou a falar a sério, Jenny. Garanto-te que não o voltará a fazer. Não foi justo para ti, nem para a minha mãe. — Perscrutei-lhe o rosto. Achei que lutava contra si próprio, pouco seguro das suas palavras.
— Ele... não, deixa-me dizer de outro modo. O meu tio é da família. Tenho que aceitar isso. Pelo menos por agora. Deixei que ele falasse, para o caso de... não, não tenho necessidade de te sobrecarregar com isto.
Com quê? Sobrecarregar-me com quê? Daquele homem, com a sua língua suave e mãos arrepiantes, sorriso sempre pronto e palavras venenosas, espera-se tudo. Já deve ser bastante mau tê-lo como tio. Eu não gostaria nada de o ter como sogro, se pudesse escolher. Mas parecia que, para Red, a escolha já estava feita.
— Eu sei porque é que Simon se foi embora — disse Red em voz baixa. Senti, de novo, que falava para si próprio, não para mim. Punha os seus pensamentos em ordem. Dizendo coisas que normalmente não se dizem em voz alta. — Não sei se compreendo bem porque não voltou. Há várias maneiras de conduzir uma campanha e Richard conhece-as muito bem; seja o que for que penses dos motivos dele, é um profissional com anos de experiência no assunto. Esta campanha foi diferente. Não se monta um acampamento no coração do território inimigo, se sabemos do que ele é capaz. Não se colocam os homens todos numa posição vulnerável, para os perder numa única emboscada. Quando se dorme, colocam-se vigias. E, geralmente, não é o recruta mais novo e mais cru que é escolhido para tal missão. Por que é que ele não morreu, como os outros? — Correu a mão pelo cabelo curto, franzindo as sobrancelhas. — Simon era valioso como refém, sei isso muito bem. Mas não houve qualquer pedido de resgate, nenhum contacto, nada. E nem qualquer sinal dele, quando lá estive. Nada; excepto...
Excepto o que eu tinha, pensei. E que passou a ser precioso para ti.
— E quando o próprio Richard foi em busca dele — continuou Red e eu pensei que ele se tinha esquecido que eu estava ali — o que ele nos disse... não bate certo. John disse o mesmo. O que ele nos disse, como eles foram chacinados, como os homens de Erin apareceram de noite... não acontece com homens experientes. Não daquela maneira. Richard disse... Deu a entender... que foi culpa de Simon, que o meu irmão, de algum modo, os traiu, atraiu o inimigo. Mas eu conheço o meu irmão. Pode ser insensato, teimoso, infantil para a idade. Mas não é um traidor.
Acenei com a cabeça. Sabia que Simon não era nenhum informador. Tivera fé nele, mesmo quando ele a perdeu.
— Há uma verdade por descobrir nisto tudo — disse Red. — Há de haver uma verdade nesta história. Esperava, ao ir em busca de Simon, descobrir a verdade, se bem que ao fim de tanto tempo tivesse poucas esperanças de que ele ainda estivesse vivo. Mas não encontrei respostas. Regressei sem elas e com uma mão cheia de perguntas. Ao deixar o meu tio falar, ontem, esperava descobrir outra pista. Foi por isso que o deixei ir tão longe e estou arrependido. Usei-te como peão e magoei-te.
O dia estava a ficar mais claro. O que era bom para o movimento das mãos.
Podias voltar lá. Procurar de novo. Talvez o encontrasses. Podias levar-me contigo. E então, pensei, quando os meus irmãos regressassem, eu estaria lá, à espera deles.
Red olhou para mim, sério. Era evidente que me tinha compreendido.
— Não posso sair daqui por uns tempos. Há muito que fazer; estive fora durante muito tempo e tive que deixar outros encarregues das colheitas e da separação do gado. O rio pode transbordar antes do solstício do Inverno e... — interrompeu-se ao ver a minha expressão. — Não quero voltar, ainda não — disse ele. — A minha ausência de Harrowfield deixa vulneráveis todos aqueles que me são queridos. Estamos em época de mudança, com um novo Rei no sul, que ainda não conhecemos. Duvido que Ethelwulf tenha a força do pai e isso deixa-nos a descoberto perante os Dinamarqueses. O meu dever é aqui, por agora. O meu irmão escolheu ir. Escolheu esse caminho. Não vou perder tudo o que tenho para o trazer de volta. Mas não esqueço. Nem receio derramar sangue, por mais que o meu tio diga. Se Simon está vivo, hei de encontrá-lo. Se for preciso, espero.
Antes de deixar o local, disse-me para ir para dentro, fechar a porta e ficar dentro de casa até ser dia claro.
— Faz o que eu mando, Jenny — disse ele. — O perigo é grande. Já o viste. Talvez eu esteja enganado; talvez me engane a respeito do meu tio. Espero que sim. Ele vai-se embora esta manhã, mas tenho a certeza de que há de voltar para tentar de novo. Ele já te viu. Sei como trabalha a mente dele; a tua força é um desafio para ele. Lembra-te da tua promessa.
Lembrei-me e, sentada muito quieta no meu quarto, com apenas Alys como companhia, lembrei-me de muitas outras coisas, também. Em particular, lembrei-me da Dama da Floresta e de como ela lhe dissera Faz com que ela não seja magoada de novo. E de como ela me disse Já não precisas de ser tão forte. Qual era o jogo das Criaturas Encantadas, que até usavam os Bretões como peões? Encarregarem Lorde Hugh de me proteger, quando isso ia contra qualquer escolha lógica que ele pudesse fazer? Bem, não havia ninguém ali a quem perguntar. Ninguém, senão eu e a pequena Alys. Peguei na agulha e no fio áspero e, à medida que a luz chegava, comecei, laboriosamente, a acabar o quadrado que tinha começado, ponto por doloroso ponto. A primeira parte da camisa de Conor.
***
Após aquela ocasião, a vida assentou um pouco. O tempo tornou-se invernoso, com as geadas que eu antecipara como mero prelúdio dos dias de tempestade e chuvas geladas que transformaram o solo em lama.
As carroças ficavam atoladas e os homens imundos, tentando desatolá-las. O rio transbordou e o gado foi mudado para terras mais altas. Nas cozinhas, um caldeirão de sopa fumegava constantemente, pronto para o contingente seguinte de homens exaustos. Reparei, sem surpresa, que Lorde Hugh e os seus amigos trabalhavam lado a lado com os camponeses e os fazendeiros, libertando os caminhos de árvores caídas, escorando margens, acalmando cavalos enlouquecidos de medo quando um raio atingiu os estábulos. A minha opinião acerca de Lady Anne subiu ligeiramente quando a vi encher cestos de comida e, numa ocasião, aventurando-se para os distribuir, acompanhada por uma serva. E subiu mais ainda quando ela começou a chamar-me pelo nome, em vez de «rapariga» e repreendeu uma serva que sugeriu que a precisão do raio poderia ter algo a ver com a minha presença na casa. Havia filas de botas cheias de lama diante do fogo e roupas encharcadas penduradas na cozinha. O meu quarto estava gelado e eu pedi um cobertor extra.
Pelo menos, aquele tempo significava que não teríamos visitantes durante um certo tempo. A estrada de Harrowfield para Northwoods estava impraticável, inundada pela subida do rio. Estávamos isolados, por agora. Era a época do ano em que, em Sevenwaters, me teria reunido com os meus irmãos para afastar as sombras e pedir a bênção dos espíritos para a estação que se aproximava. Havia o dia da festa cristã, que a família celebrava, mas sem grande aparato. Não havia aqui um padre; eram rezadas muitas orações pelos mortos e acendiam-se velas. Ninguém mencionou o nome de Simon. Mas ele estava entre nós; não era preciso dizê-lo, para o sentir.
Nessa noite, no meu quarto, acendi a única vela. Não me tinha despido, estava demasiado frio. O cão amontoara os cobertores numa espécie de ninho e estava deitado neles, ressonando levemente. A luz dançava nas paredes de pedra, esculpindo formas fantásticas. Silenciosamente, disse os nomes deles. Liam, Diarmid, Cormack, Conor, Finbar, Padriac. Via os rostos deles na minha mente, seis versões do mesmo rosto, mas todos tão diferentes. Nadando sozinhos, inundados pelas minhas lágrimas. Não faltava muito para o solstício do Inverno. Como os havia de encontrar? Só havia três camisas na minha trouxa e parte da quarta. Em breve não me restaria nenhuma morugem. Como a havia eu de a arranjar, quando o vento, lá fora, chicoteava os arbustos até ao chão e a água gelava nos regos dos campos nus? Finalmente, adormeci enquanto olhava para a vela, com Alys enroscada nos cobertores em busca de calor e com os nomes dos meus irmãos a soarem-me na cabeça, como se, ao dizê-los, os pudesse manter vivos mais tempo, só mais um pouco. O suficiente.
CAPÍTULO NOVE
O tempo ficou cada vez mais desagradável e os dias mais pequenos. De manhã o solo ficava quebradiço do gelo e os beirais do celeiro cheios de pingentes. Já fora suficientemente duro, durante o tempo ameno do Outono, manipular, com as mãos inchadas, o fuso e a roca, passar a lançadeira através do tear, enfiar a agulha pelos pontos finais. Agora sentia um palpitar lento nas articulações e que não desaparecia, mesmo quando descansava. Nos piores dias, quando a neve caía lá fora e as lanternas alumiavam o quarto onde trabalhávamos até ao meio-dia, tinha que fazer muita força para as lágrimas não me caírem pela cara abaixo enquanto continuava. Margery já aprendera que eu não aceitava ajuda de ninguém. Tudo o que podia fazer era sentar-se ao pé de mim e falar baixinho de uma coisa ou outra e eu achava a presença dela tranquilizadora. Mas o meu progresso era lento, demasiado lento. Havia um fogo aceso na lareira e as mulheres sentavam-se perto dele para trabalhar. Mas eu não me aproximava, porque não gostava dos olhares equívocos, ou das línguas viperinas, que se mantinham silenciosas apenas na presença de Lady Anne. Não gostava dos pequenos sinais que faziam com os dedos, quando pensavam que eu não estava a olhar. Trabalhava tão continuamente quanto podia, observando pela janela a aproximação do solstício do Inverno e como não me atrevia a tentar adivinhar quanto tempo duraria a tarefa, fixei a mim própria um objectivo menor. Terminaria a camisa de Conor a tempo do Meán Geimhrídh, o solstício do Inverno.
Fechados em casa, os homens encontraram uma nova maneira de se ocuparem. O grande salão foi esvaziado de bancos e mesas e transformou-se num centro para várias formas de combate, armado e desarmado. Após um dia ou dois e quase algumas perdas, Lady Anne ordenou que todas as tapeçarias fossem retiradas, por via das dúvidas.
Comecei a ver onde desenvolvera Red as capacidades que observara durante a nossa viagem do lago até ao mar. Os homens praticavam com espadas, com espadas e punhais ao mesmo tempo e com paus. Lutavam e usavam as mãos e os pés como armas. Os meus irmãos teriam aprendido um truque ou dois.
Aborrecidas com a rotina matinal da costura, as raparigas eram frequentemente descobertas à porta, agrupadas, arfando quando Ben se baixava sob um golpe de espada de John e dava depois um pontapé que fazia voar o punhal do seu oponente, indo cair perto dos rostos admirados das observadoras. Ou emitindo exclamações de admiração quando Red demonstrava o seu método para quebrar uma gravata aplicada por um inimigo muito determinado, uma manobra eficiente, se bem que pouco ética. E não eram apenas estes três que passavam o tempo assim. Red possuía uma força de homens pequena, mas letal, cada um dos quais, pensava eu, poderia, facilmente, dar uma lição a Cormack. O que já era dizer alguma coisa. Intrigava-me que aqueles pastores, lenhadores e moleiros fossem capazes, em apenas alguns momentos, de se transformarem em guerreiros habilidosos de propósitos mortais. Lorde Richard escarnecera de Red devido à relutância deste em se confrontar com o inimigo. Mas pensei que ele estaria pronto quando chegasse a ocasião. Assim como já o estava antes. Se eu fosse inimiga dele, não lhe faria o menor reparo. Trataria de treinar para o combate. Levou-me algum tempo a recordar-me que eu e a minha gente éramos o inimigo. Quase caí na armadilha de pensar que pertencia a este lado.
Que isto estava bem longe da verdade foi-me demonstrado em breve. Lady Anne tornara-se um pouco menos fria desde a visita do seu irmão, mas apenas um pouco. Partilhava das minhas preocupações, penso, ao ver o filho exercitar daquela maneira a perna ainda mal sarada. Eu ficara satisfeita com o meu trabalho, porque os pontos saíram com limpeza e a ferida parecia bem. Nunca mais perderia a longa cicatriz que o seu oponente lhe fizera na carne, mas demonstrava, a cada dia que passava, que a perna estava como nova. Eu estava um pouco aliviada. Mas este sucesso não me valeu o respeito da família. Em vez disso, murmurava-se sobre como fizera eu aquilo e sugeria-se, a meia voz, que uma rapariga tão nova e fraca de espírito não podia ter conseguido resultado tão espectacular sem o uso da feitiçaria, ou algo parecido.
À medida que nos aproximávamos da véspera do solstício do Inverno, soube que tinha de planear as coisas com cuidado. Porque tinha de estar pronta e esperar, entre o crepúsculo e a alvorada, pelo regresso dos meus irmãos. Não importava se atravessara o mar e os deixara para trás. Não importava se me abrigava numa casa que não me pertencia. Sabia que eles não tinham qualquer mapa, qualquer sinal, qualquer luz que os guiasse até mim. Mas eu seguira este caminho e eles tinham de o seguir. Tinham acontecido coisas estranhas; e poderiam vir a acontecer outras ainda mais estranhas. Assim, fui dizendo os nomes deles mentalmente, numa espécie de litania e planeei a minha escapadela. Se eles viessem, seria pela água e, portanto, seria no rio. Não podia ir até tão longe sem ser descoberta e tinha pouco tempo. Não poderia estar lá ao escurecer. Teria que ser entre a refeição da noite e a hora em que era montada a guarda no lado de fora do meu quarto. Acenderia uma vela e teria de arranjar maneira de Alys ficar silenciosa. Depois, fecharia a porta e atravessaria furtivamente o jardim. Conseguiria ir até à margem do rio na escuridão. Tinha esperança de que eles esperassem. Depois, de manhã, dir-lhes-ia adeus, vê-los-ia partir em segurança e veria se o guarda já se fora embora antes de voltar a entrar no meu quarto. Talvez funcionasse. Tinha de funcionar. Tentei não pensar na hipótese de que talvez eles não viessem, que talvez fosse uma longa e vazia noite de espera.
A véspera do solstício de Inverno amanheceu clara e fria. Com um bom fogo aceso na grande sala e a fraca luz do Sol através da janela, lá conseguimos fazer com que os nossos dedos gelados trabalhassem. No grande salão fora colocado um grande tronco de carvalho na lareira, para ser aceso à noite com cerimónia e ramos verdes, azevinho, hera e musgo dourado pendurados por cima de todas as soleiras. Isto era-me familiar. Mas não imaginava fogueiras nos montes, nem as pessoas em volta delas, bebendo e brindando aos espíritos dos campos e das árvores. Ficariam nas suas camas quentes e de portas fechadas. Teria essa vantagem. Poderia esgueirar-me, de noite, sem ser vista.
A sessão de costura, nesse dia, foi curta; a meio da manhã as mulheres foram para a cozinha, onde todos os braços se reuniram na preparação da festa dessa noite. Haveria carne assada, cidra e bolos de ameixa. Os homens faziam os seus jogos de combate ou trabalhavam na herdade. O melhor gado estava fechado nos estábulos durante o Inverno e o restante tinha de ser alimentado diariamente. Foi um dia movimentado, tão movimentado que ninguém reparou em mim e assim fiquei onde estava, saboreando a solidão e cosi a segunda manga na camisa. Estava quase acabada. Enquanto trabalhava, a minha mente afastou-se da sala vazia e do fogo que se ia apagando. Fiz aparecer a imagem do meu irmão Conor nos meus pensamentos: sábio, de olhos bons; magro, rosto fino, longos cabelos brilhantes, como uma castanha madura; um jovem forte de espírito velho. Vi-o na nossa cozinha contando histórias; vi-o à luz das velas, rodeado por sombras estranhas. Vi-o na margem do lago invocando os espíritos do fogo. Vi-o nadar através do lago, com as grandes asas dobradas. Conor. Estou aqui. Onde estás tu? Fiquei ali sentada durante muito tempo, os dedos ocupados com a agulha e o fio e a mente longe. Tentei chegar o mais longe possível, com todas as forças que tinha, para o chamar. Mas não obtive resposta, ou, pelo menos, não a ouvi. Podem estar a voar neste momento, vindos na minha direcção, disse para mim própria. Podem estar sobre a grande água, ou abrigados do frio num local qualquer desolado, entre lá e cá. Vou esperar; há de chegar a ocasião em que, quando eu chamar, ele há de responder.
Vagamente, os meus ouvidos apanhavam a actividade crescente no lado de fora da sala, o som de vozes e passos apressados. A luz era demasiado fraca para trabalhar e a minha mente estava entorpecida e exausta devido ao esforço. Fui até à porta e vi Megan passar apressada, os braços carregados de roupa. Prendi-a pela manga, levantando as sobrancelhas interrogativamente.
— É Mistress Margery — disse ela com a respiração ofegante. — Tem estado com dores a tarde toda, muito fortes e a parteira diz que algo está mal. O bebé está na posição errada, diz ela e ai sabes o que isso quer dizer. Pobre Mistress Margery. O primeiro bebé morreu-lhe, sabes. Parece que vai acontecer o mesmo com este.
As palavras delas provocaram-me um choque e fizeram-me voltar a este mundo. O bebé de Margery, que lhe era tão precioso. Ela e John já tinham perdido um, não podiam perder este. Eu podia ajudar. Já o tinha feito antes, sabia o que fazer. Não lhes podia dizer, mas podia mostrar-lhes. Segui a animada Megan até ao alojamento de Margery, onde havia mulheres amontoadas à porta e luz, lá dentro. Megan desapareceu no interior com a roupa limpa. Mas a minha passagem foi barrada por uma das damas de Lady Anne.
— Tu, não — disse ela com firmeza. Hesitei apenas um momento e tentei passar de novo. Aquilo era ridículo. Se Margery tinha problemas, precisava de mim. De certeza que me queria a mim. E eu sabia o que fazer, pelo menos pensava que sabia. O braço da mulher ergueu-se para me impedir a passagem.
— Não podes entrar — disse ela. — Não podes lançar as tuas maldições sobre uma mulher em trabalho de parto, nem pousar essas mãos sujas no bebé dela. Desaparece. A tua espécie não é aqui bem-vinda.
Eu podia tê-la esbofeteado, se não pensasse que ainda pioraria as coisas. Respirei profundamente.
— O que é? — disse uma voz do interior do quarto. Era Lady Anne, que veio até à porta ao ouvir as vozes elevadas das mulheres. — Jenny. Que estás aqui a fazer? — Parecia cansada, triste e nada contente por me ver. Utilizei as mãos para falar com ela.
Eu posso ajudar. Sei sobre estas coisas. Deixa-me ajudar. Deixa-me entrar.
Lady Anne olhou para mim, cansada.
— Não me parece, Jenny — disse ela, virando as costas. — Nós temos aqui a nossa parteira. Ela sabe o que fazer; se ela não conseguir salvar este bebé, receio que ninguém possa. — E desapareceu.
— Ouviste a minha senhora — disse outra mulher. — Desaparece. Não precisamos dos da tua espécie. É uma curandeira que precisamos aqui, não uma assassina. Por que não voltas para o lugar de onde vieste, bruxa?
Saí. De que valia? Podia ter chorado, pensando em Margery, que se tornara minha amiga e que se arriscava, agora, a perder aquilo que tanto desejava. Voltei para o meu quarto, assegurei-me de que os preparativos para a noite estavam completos e fui para o jardim, onde andei de um lado para o outro, enquanto Alys farejava em volta e por baixo dos arbustos de alfazema. Senti o frio apertar à medida que o céu ia ficando mais escuro, com a noite a aproximar-se. Senti o coração pesar-me com um mau presságio. A morte estava muito perto, nesse dia; senti-a nos ossos. Nenhuma fogueira, nem nenhum ramo de azevinho a afastariam, já que decidira entrar. Desejei vestir a capa e as botas e ir imediatamente para o rio, de maneira a estar lá quando o Sol desaparecesse no horizonte e a terra ficasse cinzenta, púrpura e negra. Mas eu conhecia Red. Eu devia aparecer à mesa, ou iriam à minha procura. Não havia fuga possível até ser noite escura. Não precisava de me fechar à chave, para me manter prisioneira.
Era para ser uma refeição festiva, mas havia pouca alegria entre aqueles que se juntaram no salão, nessa noite. Já estava escuro. Olhei para a escuridão no lado de fora das janelas e o meu espírito chamou de novo. Conor! Finbar Onde estais? Esperai por mim. Imaginei os meus irmãos ao frio sob os salgueiros, não sabendo se eu estaria por perto, ou não. Sozinha no coração do território inimigo. Exausta, na escuridão. Um canto da minha mente registou um John perturbado, a quem entregaram uma taça de vinho, despejando-a de um trago, não se apercebendo bem do que fazia ou onde estava. Um Red, de boca cerrada e olhar frio, falando com a mãe num tom baixo, mas furioso. Pensei que sabia porque estava zangado. Ele sabia que eu era curandeira. Era amigo de John e de Margery. Sabia que eu era capaz de ajudar. Mas Lady Anne não me queria à cabeceira de Margery, com as minhas mãos de feiticeira, ajudando o bebé a nascer. Parecia desconfortável face à ira de Red, mas também havia teimosia naquelas feições suaves. Ben sentou-se ao pé de mim e não disse quase nada. Ninguém tinha muito apetite.
Assim que se tornou polidamente possível, saí da mesa e fui directamente para o meu quarto. Lady Anne e o filho continuavam a discutir; penso que nenhum deles deu pela minha falta. Ainda tinha muito tempo. Meti os pés nas botas e agarrei na capa. Alys mal se mexeu, aninhada nos cobertores. A vela ardia sobre a arca de madeira. Estou a chegar. Esperai mais um pouco. Levantei a mão para abrir a porta.
Ouvi nesse momento um batimento e a voz de Megan na outra porta.
— Jenny! Jenny, estás aí? — Foi como se uma mão se me fechasse sobre o coração. Não, agora não. Não me chamem agora. Mas era para Margery, sabia-o e não podia fazer outra coisa senão abrir a porta e seguir Megan. Tinham levado tempo a perceber que não conseguiriam fazer nascer aquele bebé sem a minha ajuda. A própria Lady Oonagh não teria escolhido momento melhor.
Lady Anne falara com as mulheres; ou alguém falara. Os olhos delas ainda me seguiam nervosamente enquanto eu percorria o quarto e mais de uma fez um sinal da cruz furtivo. Mas não disseram palavra. Margery estava exausta. Tinha grandes olheiras e a pele estava fria e suada.
— Jenny! Estás aqui! — disse ela com voz fraca. — Por que não vieste antes? Eu queria que viesses. Por que é que não havia meio de vires?
Olhei para Lady Anne e ela desviou o olhar, incapaz de me enfrentar. Penso que percebeu, contra vontade, que tinha feito uma coisa imperdoável.
A noite do solstício de Inverno é longa, mas aquela pareceu-me a mais longa da minha vida, enquanto batalhávamos para ajudar a criança a encontrar o caminho para este mundo. Margery tentava e tentava, mas cada vez ficava mais fraca. No entanto, foi uma noite que passou depressa, demasiado depressa enquanto eu trabalhava e lá fora, sobre as copas das árvores, as estrelas brilharam e começaram a desaparecer. E enquanto as minhas mãos iam ficando cheias de sangue, o meu corpo encharcado em suor e ia instruindo as mulheres para que tranquilizassem Margery sem o benefício das palavras, uma parte do meu espírito chamava pelos meus irmãos. Esperai por mim. Esperai só mais um pouco. Antes da alvorada estarei aí.
Era demasiado tarde para virar a criança, porque estava muito em baixo para se poder mexer. Portanto, teria de nascer de traseiro, se conseguisse. Margery tinha já poucas forças. Não conseguia fazer compreender às mulheres aquilo de que necessitava e assim saí do quarto, levando Megan comigo e dirigi-me à ervanária da herdade para encontrar eu própria os ingredientes. Precisava de fazer as coisas como deve ser. Algo para a descontrair, primeiro, um pequeno intervalo para ela ganhar forças de novo. E algo para ajudar essa força, o suficiente para um, dois, três empurrões. E rezar à deusa para que o cordão umbilical não estivesse em volta do pescoço do bebé. Não tenho dúvidas de quem arcaria com as culpas, se a criança nascesse morta. Além disso, creio que não suportaria ver o rosto de Margery, ou o de John, se não conseguisse pôr a criança nos braços da mãe.
Megan segurava na lanterna enquanto eu trabalhava. A casa estava bem fornecida, mas quem armazenara aquelas ervas com tanto cuidado não devia saber da sua eficácia em partos, nem como misturá-las com precisão. Ainda restava algum tempo até de madrugada, mas não muito. Esperai por mim. Deitei a mistura seca que preparei numa pequena taça e dirigi-me para o lume da cozinha. Aquelas ervas tinham que ser embebidas em água quente. Não demorava muito, mas o tempo escasseava, para Margery. A criança também devia estar a ficar cada vez mais fraca, devido ao estrangulamento. Enquanto subia as escadas, vi os três homens agrupados numa semiescuridão, na lareira do salão. John tinha a cabeça nas mãos e Ben falava suavemente com uma mão no ombro do amigo. Red estava em pé ao lado da lareira e foi o único a ver-me. Os olhos dele fizeram a pergunta. Os meus não podiam mentir. Salvá-los-ei a ambos, se puder. Farei o melhor que souber. Penso que ele me compreendeu, mas não disse nada em intenção de John. Acenou-me em sinal de compreensão e eu subi pelas escadas acima com Megan à minha frente, transportando a lanterna.
O fogo brilhava e aquecia o quarto de Margery. A meu pedido, Megan desatou o molho de alfazema seca que trouxera do andar inferior, retirou as hastes prateadas e deixou cair as flores nas brasas, provocando um aroma doce e curativo. A infusão já arrefecera o suficiente; levantei Margery para que ela ficasse sentada e observei-a enquanto ela bebia obedientemente a mistura de tomilho, calaminta e tília aquática, uma erva de último recurso. Não houvera tempo de adoçar a mistura, de a tornar mais agradável ao palato, com mel ou especiarias. Mas ela bebeu-a toda, os olhos cheios de olheiras fixando os meus com uma tal expressão de confiança que me aterrou. Então, por um certo tempo, descansou.
Quando o céu lá fora ficou azul-violeta e depois cinzento-claro, o bebé, finalmente, nasceu. A infusão dera a Margery a força suficiente para o último empurrão decisivo. As minhas mãos, apesar de ásperas, sabiam o que faziam e eu ajudei-a a trazer o bebé para este mundo. Vinha flácido e silencioso.
— O que é que se passa? — perguntou Margery em voz baixa. — Por que é que ele está tão calado? — E as mulheres começaram a murmurar entre elas. Lady Anne estava a limpar uma sobrancelha de Margery e tinha lágrimas nos olhos. Com a luz cada vez mais brilhante dentro do quarto, encostei a minha boca à do bebé e soprei suavemente. Uma vez. E outra.
A parteira agarrou-me no braço, tentando deter-me, mas Lady Anne disse:
— Não, deixa-a.
Um sopro mais. Só mais um. E por fim o bebé arfou e tossiu delicadamente, passando depois a berrar com toda a força dos pulmões. Então, houve uma exclamação geral de vozes e muitas mãos para embrulhar o bebé e encostá-lo ao seio da mãe, ao mesmo tempo que irrompiam lágrimas de alegria. Havia muitas ajudantes para lidar com a placenta, avivar o lume e correr a dar a boa-nova aos homens. Ninguém reparou que eu me escapei pelas escadas abaixo no meu vestido cheio de sangue, corri o grande ferrolho da porta da frente e corri, corri, pela alameda abaixo entre os grandes álamos, passando pelos muros limpos e pelas ovelhas que fugiam espavoridas, na direcção da curva cintilante do rio, onde as primeiras luzes da alvorada transformavam a água em prata líquida, sob os salgueiros inclinados. Mas antes de conseguir chegar à margem o Sol apareceu por entre as árvores nuas, explodiu pelo vale e o mundo ficou cheio de luz. Muitas criaturas deixavam rastos naquelas margens de solo brando, patos e gansos, raposas e lontras. Mas era cedo; os patos ainda estavam a dormir. E não havia cisnes na água enrugada. Não havia pegadas humanas, senão as minhas. Se eles tinham ali estado, já se tinham ido embora.
O meu coração ficou gelado de dor e raiva. Por que não esperastes por mim? Por que não me deixastes um sinal? Assim, nem sequer sei se chegastes a vir! As lágrimas correram-me pelo rosto, lágrimas que não derramara antes, um rio de lágrimas que me exauriu o corpo todo e eu encostei a cabeça contra o tronco de um salgueiro, esmurrando-o até que as minhas mãos sangraram. Se pudesse gritar a minha angústia, teria gritado, até que por todo o vale ecoasse a minha dor. Fiquei ali encostada durante muito tempo. Por fim, deixei-me cair no chão, ao lado do grande salgueiro e cobri as faces com as mãos. Os meus ombros tremiam, o nariz pingava-me e as lágrimas não paravam. Se eu ficasse ali muito tempo, talvez passasse a fazer parte da árvore, uma árvore-rapariga chorosa, chorando todas as noites junto à água. Talvez desaparecesse no solo suave da margem do rio e no meu lugar crescessem juncos, delgados e cinzento-prateados e se um homem fizesse uma flauta desses juncos talvez ela cantasse demasiado tarde, demasiado tarde.
— O sofrimento desta noite não justifica tanta lágrima.
Talvez, sem o saber, eu soubesse que ele vinha. Ouvi o som das botas no chão gelado à medida que ele se aproximava. Depois, senti o calor da capa dele sobre os meus ombros, colocada com muito cuidado, de maneira que as mãos dele mal me tocaram. Soube-me bem, muito bem. Não tinha percebido como estava frio, naquela manhã gelada, só com o vestido e os chinelos. Era como se a capa tivesse passado o calor do corpo dele para o meu.
— Gostaria de saber a razão dessas lágrimas — disse Red serenamente e sentou-se perto de mim, mas não muito perto. — Um dia, hei de saber. Por agora, trago-te os agradecimentos de John e também os meus, pelo que fizeste. Ficamos com uma grande dívida para contigo. Vamos para casa?
Funguei e abri os olhos, mas ele não estava a olhar para mim. Os seus dedos torciam uma erva e ele olhava para além da água. Um casal de patos-bravos nadava na torrente, calmamente, às primeiras luzes do dia. As penas do macho eram verdes-brilhantes, por cima do pescoço branco de neve. A fêmea movia-se na esteira dele, modesta, na sua cor castanha sarapintada.
O silêncio estendeu-se, mas não era desconfortável. Red tirou a pequena faca da bota, um bocado de madeira ainda menor da algibeira e começou a esculpir, semicerrando os olhos, concentrado, contra a luz intensa do Sol. Não podia ver o que ele estava a fazer. Gostaria de saber quem o terá ensinado, a ele e ao irmão. O dia ficou cada vez mais claro e a extensão cintilante da água foi rapidamente quebrada pelos patos, pelos gansos e pelas galinholas. Os meus pensamentos começaram, lentamente, a acalmar. Meio ano. Mais duas estações, antes de voltar a vê-los. Ontem fora o meu décimo quinto aniversário e nem sequer tinha pensado nele, senão agora. De certo modo, já não me parecia importante. Em casa, talvez já estivesse casada. Imaginava quem teria o meu pai escolhido para mim. Uma aliança estratégica, sem dúvida. Mas esse caminho estava tão distante que mais parecia uma história de outra rapariga qualquer. Não a minha. Eu estava aqui, os meus irmãos não e mais uma vez tinha apenas uma escolha. Podia continuar a fiar, a tecer e a coser; podia continuar a esperar. Talvez, se trabalhasse muito, se fosse mais rápida, a minha tarefa estivesse concluída no solstício do Verão. Então voltaria ao rio, na véspera do Meán Samhraidb. Mas estariam lá, eles? Poderiam estar lá? Era um voo tão longo. Como poderiam saber, antes de o Sol mergulhar no horizonte e de se transformarem de novo em homens, que tinham de fazer esta jornada? Porque, enquanto estivessem naquele estado encantado, não tinham qualquer percepção humana.
Excepto Conor. Conseguiria ele? Seria possível que, até para comandar a vontade de criaturas selvagens, as capacidades de um druida não fossem suficientes? Tudo poderia ser em vão. Por que haveria eu, então, de ficar aqui a labutar e a suportar os olhares amargos das pessoas da herdade e ouvir os nomes demoníacos que me chamavam? Por que rasgar as mãos na morugem até me sentir louca, por que passar os dias fechada, suspirando pela floresta? Porque no fundo do meu coração reconhecia que aquela correria até ao rio fora inútil. Eles não tinham vindo. Não teriam vindo e partido sem me deixarem uma mensagem. Sinais ogham esculpidos no tronco de um salgueiro, um monte de pedras na margem do rio, ou uma pena branca. Se tivessem vindo, teria ouvido as vozes interiores de Conor e Finbar. Sorcha, Sorcha, estou aqui.
Passara-se tanto tempo. Mas eu era irmã deles e nós os sete éramos apenas um corpo e um espírito, tão certo como os sete regatos da nossa infância correrem e misturarem-se no grande coração cintilante do lago. Eles não tinham vindo. E faltava tanto tempo, tanto, até ao solstício do Verão.
— Desejas assim tanto voltar? — perguntou Red calmamente, continuando a esculpir o pequeno pedaço de madeira. — Isto aqui é assim tão difícil para ti?
Fiquei surpreendida. Ele estivera silencioso durante algum tempo. Outro homem qualquer ter-me-ia falado no que imaginaria serem os meus sentimentos neste momento: que eu devia estar contente por Margery e o bebé terem sobrevivido. Que devia parar de chorar e enxugar as lágrimas. Outro homem qualquer ter-me-ia dito que não me sentasse no chão gelado, na véspera do solstício do Inverno e fosse para casa imediatamente. Ter-me-ia dito que não o fizesse perder mais tempo. Não tinha resposta para as perguntas de Red. Claro que queria voltar para casa. O meu coração ansiava pela floresta e o meu espírito ansiava por estar perto dos meus irmãos, quer me pudessem ver, quer não. Mas não era estúpida. O senso comum dizia-me que ficar aqui era a minha melhor hipótese de acabar a tarefa. Tinha um telhado sobre a cabeça, boa comida e mais protecção do que aquela que queria ou necessitava. Tinha as ferramentas necessárias e até tinha duas pessoas a quem podia chamar amigos. E já suportara bem pior do que as línguas afiadas e os olhares de soslaio das damas de Lady Anne. Assim, o espírito dizia vai. A mente dizia fica, por agora. Se os teus irmãos não vierem, na próxima vez, então vai e procura-os. Não irias longe a meio do Inverno. Além disso, ele seguir-te-ia e trar-te-ia de volta. Sempre.
Levantei-me, hirta, e coxeei até à margem do rio. Ali, ajoelhei e recolhi água nas mãos em concha, primeiro para beber e depois para refrescar o rosto. Quando o fiz, vi-me reflectida na superfície, os olhos vermelhos, as faces marcadas pelas lágrimas e pálida de exaustão. A água estava gelada.
— Prometo-te uma coisa — disse Red e quando me virei para olhar ele tinha posto de lado o seu trabalho e estava a olhar para mim. Pus-me a pensar por que achara os olhos dele azuis. Hoje pareciam combinar-se com a água do rio, uma cor leve, que mudava, entre o cinzento e o verde. — Prometo que te levo de volta, aconteça o que acontecer. Prometo que te levo a casa, sã e salva, quando chegar a ocasião. Assim que souber a verdade acerca do meu irmão, levo-te. Nunca falto a uma promessa, Jenny. Sei muito bem que te custa confiar em mim. Se um dia descobrir o homem que te fez isso, que te assustou tanto, mato-o com as minhas mãos. Mas podes confiar em mim.
Olhei para ele. Como podia ele fazer semelhante discurso, como se me estivesse a dizer como construir um telhado de colmo, ou a descrever a melhor maneira de arrancar cebolas? Mas havia algo nos seus olhos, algo escondido, tão profundamente, que quase passava desapercebido, uma intensidade, que me disse que acreditava em cada palavra. Senti um arrepio na espinha. Algo mudara; mas não sabia o quê. Era como se o mundo se inclinasse e nada voltasse a ser como dantes. Ou como se tivesse havido uma ínfima mudança no caminho, um minúsculo desvio, que, tomando-o, acabasse num lugar completamente diferente. E era demasiado tarde para voltar para trás.
A minha resposta veio sem eu pensar. Fiz um gesto que queria dizer Eu sei, acredito em ti. E quando ele estendeu a mão para me ajudar a subir a margem, tomei-a sem hesitar, como fizera uma vez, numa torrente tormentosa, quando aquela mão fora a minha única tábua de salvação na minha fuga à morte. Confiava nele. Era um bretão e eu confiava nele. Talvez me mantivesse segura até eu acabar as camisas e então, mas era aí que a minha mente encontrava uma parede. Red podia ser muito amável agora, com as suas promessas e protecção. Mas continuava à espera. À espera que eu lhe contasse a história de Simon. À espera que eu lhe contasse como o seu irmão fora queimado, violado e levado quase até à loucura, pela minha própria gente. Como eu deixara Símon sozinho na floresta, sozinho com os seus demónios, como o deixara embrenhar-se na escuridão e morrer de frio, fome e terror sob os grandes carvalhos. Qual seria o preço da amabilidade de Lorde Hugh, quando ouvisse a história? Como poderia ele manter a promessa, sabendo o que tínhamos feito ao seu irmão mais novo? Eu vira a força naquela implacável boca, a dureza daqueles maxilares inflexíveis. Eu vira como aqueles olhos podiam ser frios. E, pelo menos uma vez, ouvira a paixão da sua voz, quando as Criaturas Encantadas o provocaram com a conversa acerca de Simon. Preocupar-se-ia bem pouco com a minha segurança e com a minha pele, quando soubesse a verdade.
E voltámos para casa, lentamente, porque descobri, subitamente, que estava terrivelmente cansada, tão cansada que os meus pés mal me mantinham no caminho certo.
— Eu podia levar-te ao colo — ofereceu-se Red. — Da última vez funcionou bem. — Mas eu abanei a cabeça. A confiança ia só até ali. No fim de contas, ele era um homem. — Bem — disse ele, enquanto eu continuava a caminhar com dificuldade — se calhar, agora estás mais pesada. É espantoso o que a boa comida pode fazer.
Quando olhei, surpreendi-lhe um ligeiro sorriso no rosto, mas apenas por um momento.
Quase consegui fazer o caminho todo até à herdade. Havia gente por ali, apesar do frio; um jardineiro, com um gorro e luvas de lã, podando uma sebe; um rapaz com um grande pau de freixo, conduzindo com dificuldade um bando de gansos. Continuámos calmamente, evitando a porta principal e conseguindo escapar às atenções. Mesmo à entrada da porta do meu jardim as minhas pernas cederam, de exaustão e para meu grande aborrecimento, ele levou-me ao colo os últimos metros. Quando abriu a porta e me introduziu no quarto, Alys levantou-se e avançou, rosnando e ladrando, num frenesim protector. Red depositou-me rapidamente em cima da cama e retirou para a entrada. A pequena terrier ficou entre os dois, de pernas afastadas, rosnando o mais ameaçadoramente que podia.
— Está bem, está bem — disse Red suavemente, de sobrancelhas levantadas. — Sei muito bem quando não me querem. Eu mando-te alguém para te ajudar, Jenny. Trata de dormir. Foi uma longa noite.
Olhei para ele, pensando que também ele parecia cansado. Era fácil imaginá-lo assim, já que parecia descansar pouco e não lhe fazer diferença. Mas naquela manhã havia uma palidez nele, uma sombra por trás dos olhos, que eu não notara à luz do Sol. Apontei para ele, juntei as mãos, deitei a cabeça nelas e fechei os olhos por um momento. Tu... Também... Dormir.
— Tenho o trabalho do dia para ser feito — disse ele e parecia surpreendido com a minha sugestão. — E tenho uma palavra ou duas a dizer à minha mãe. — Mas — aqui foi surpreendido por um grande bocejo — talvez tenhas razão. Em qualquer dos casos, descansa, Jenny.
Saiu e Alys emitiu um latido agudo ao vê-lo afastar-se.
Pouco depois, Megan chegou com água quente e uma camisa de dormir limpa. Enquanto me lavava e mudava, ela foi buscar vinho quente e um óptimo pão de trigo com passas. Ficou ao pé de mim até eu acabar de comer e beber, levou Alys ao jardim e trouxe-a de volta. Disse-me que Mistress Margery e o pequeno Johnny estavam bem, que eu lhes tinha salvo as vidas e que não sabia onde tinha eu aprendido aquelas coisas. Depois aconchegou-me a roupa, deixou-me e eu dormi até ser noite e, se tive sonhos maus, esqueci-os antes de acordar.
***
Por ocasião do festival de Imbolc, que os Cristãos chamam Candelária, tinha eu acabado a quarta camisa. Mantinha-as todas na arca de madeira do meu quarto, com ervas secas entre elas. Liam, Diarmid, Cormack, Conor. Já não restava nenhuma morugem. Lady Anne, com os seus olhos vivos, observou que eu já não tinha o meu trabalho para fazer e arranjou-me uma entediante peça para me manter ocupada. Trabalhei lentamente, porque as minhas mãos já não tinham o controlo que tais tarefas requeriam, se algum dia o tiveram. Suturar a carne humana, ou ajudar uma criança a vir ao mundo era uma coisa. Introduzir uma agulha tão pequena, que mal se via, dando os pontos mais minúsculos, era outra completamente diferente. Lady Anne observava-me, de sobrancelhas levantadas, enquanto a minha frustração aumentava. Quanto terminámos o trabalho desse dia, ela chamou-me de lado. Senti que desde o nascimento da criança de Margery ela amansara ainda mais em relação a mim. E era estranho. Algo a preocupava. Sentia isso pela maneira como ela olhava para mim, de olhos semicerrados. E, no entanto, não fizera nada que a pudesse ofender. Cheguei a pensar que ela tinha medo de mim. Não conseguia perceber porquê.
— Estás a ter dificuldade com este trabalho — observou ela, pegando no meu trabalho e deixando-o cair novamente com um suspiro. — No entanto, qualquer rapariga de oito anos era capaz de o fazer. A tua educação em assuntos domésticos foi muito limitada. Parece que te falta habilidade até para o trabalho mais básico. Mas, se vais ficar em nossa casa durante muito tempo, tens que te tornar útil, Jenny. Talvez eu consiga arranjar algo mais simples para tu fazeres.
Era uma espécie de oportunidade. Ainda tinha um caule de morugem na trouxa, guardado para semelhante ocasião. Engoli o aborrecimento que sentia e mostrei-lhe o que pretendia.
Não, isso não. Isto. Preciso de fazer isto. Mas preciso de mais plantas. Eu... vou... lá fora apanhar esta planta. Cortar... apanhar.
Os lábios de Lady Anne apertaram-se.
— Não te posso ajudar. Nesta casa não há espaço para essas coisas. Tolerei essa tua loucura porque não tinha escolha. Mas não te vou ajudar a continuar com ela. Já chega. Se queres ser aceite aqui, tens que te esforçar por te comportares mais como nós, Jenny. Se, na verdade, fores capaz.
Parecia que não tinha importância nenhuma o facto de eu ter salvo a vida de Margery e a do bebé. Virei-me para me afastar dela. Era suficientemente orgulhosa para pedir. Além disso, sabia que seria inútil.
— E não vás a correr ter com Lorde Hugh com os teus problemas — disse ela nas minhas costas, com um tom na voz que sugeria outra mensagem qualquer, sem palavras. — Ele tem mais que fazer. Ter-te aqui já é fardo suficiente.
De qualquer modo, não havia mais ninguém para quem me virar. Red andava ocupado, sabia isso muito bem. Era preciso lavrar, preparar a terra para a sementeira e havia também disputas para arbitrar, a espécie de questões que acontecem quando os camponeses estão juntos em espaços pequenos durante o Inverno e começam a implicar com as pequenas injustiças das suas vidas. Havia um sistema para lidar com tais situações. Regularmente, cerca de dez dias após a lua cheia, havia uma reunião a que chamavam assembleia de camponeses. As partes ofendidas iam ao grande salão de Harrowfield e apresentavam as suas queixas perante Lorde Hugh, que as arbitrava.
Essas assembleias de camponeses eram muito frequentadas pelos rendeiros de Lorde Hugh, porque prometiam entretenimento, além de justiça. Houve a ocasião em que os porcos de um camponês entraram num terreno reservado, pelo seu vizinho, para a plantação de abóboras e ervilhas. Estragaram tudo e se Ned Thatcher não conseguia manter os porcos fechados, então deviam ser-lhe tirados e transformados em salsichas e ele, Bill Zarolho, seria o primeiro a fazê-lo, se Ned os deixasse sair outra vez. Tinha uma faca pronta, bem afiada. Ned levantou-se nesse momento para expressar a vontade de que Bill voltasse para Elvington, de onde tinha vindo e levasse com ele a linda mulher e as seis crianças. Se não sabia que porcos são porcos e têm vontade própria, então não sabia grande coisa. Além disso, os animais só tinham comido aveia brava e umas papas secas que a mulher de Bill tinha atirado por cima do muro, desleixada como era.
Red era a diplomacia em pessoa. Acalmou as duas partes com algumas palavras bem escolhidas acerca dos talentos e conhecimentos de ambos nos diferentes campos. Apontou as vantagens de um pedaço de terra ser revirado e fertilizado antecipadamente, de maneira que depois, chegada a ocasião, bastava deitar a semente e esperar. Depois, explicou que, em troca da utilização da terra pelos porcos antes da sementeira, Ned teria provavelmente umas tantas abóboras bem grandes e um cesto, ou dois, de cebolas e de ervilhas. A mulher dele faria uma boa sopa com elas, apaladada com um osso de presunto. É claro que os porcos teriam de sair da propriedade nos primeiros dias quentes de Primavera. Ele próprio enviaria ajuda para construir um muro mais forte. Ambas as partes se retiraram satisfeitas.
Havia disputas mais sérias. Uma luta por causa de uma mulher, na qual um homem fora gravemente ferido na cabeça e um outro partira um braço. Uma rixa depois do rápido consumo de um barril de cerveja, que deixou duas famílias a insultarem-se uma à outra cada vez que se encontravam. Reparei na justeza de Red, assim como na sua autoridade. Conseguia ser bem duro, quando era necessário. Mas nunca viu as suas decisões serem discutidas. Achei que aquele povo tinha sorte. Era aquilo que Fimbar queria, era daquilo que precisávamos em Sevenwaters. Mas o meu pai estava preso à mesma guerra perversa de Lorde Richard. Essa causa tolhia-os, de corpo e alma, não deixando espaço para mais nada. Assim, os nossos camponeses tinham fome, os seus muros tinham caído e temiam Lorde Colum, em vez de o respeitarem. Tentei imaginar como passariam agora. Os meus irmãos tinham dado os primeiros passos para inverter as coisas. Mas tinham desaparecido. Só lá estavam o meu pai e Lady Oonagh.
Decidi tomar o assunto nas minhas próprias mãos. Lady Anne dissera que eu era um fardo para Red. Mas eu não pedira para ser trazida para cá. Ninguém lhe pediu para instalar um guarda no lado de fora do meu quarto todas as noites e obrigar-me a ficar perto de casa, onde me podia vigiar. Ninguém lhe pediu para se sentar ao pé de mim e esperar enquanto eu chorava, levando-me depois para casa. Ninguém lhe pediu para me transportar ao colo quando estava cansada e ver se eu comia como deve ser. Ninguém, senão ele próprio. A não ser bem, ele tinha dito aquilo. Faz com que ela não seja magoada de novo. Escolheste bem. No entanto, Red era tão forte. Poderia estar a agir sob um qualquer feitiço, uma espécie de ordem imposta pelas Criaturas Encantadas naquela noite, para me proteger até eu terminar a minha tarefa? Poderia ele carregar semelhante fardo sem o saber? Quanto mais pensava naquilo, mas acreditava que era possível. O que explicava muitas coisas. Explicava o mais difícil, o porquê de Red parecer estar preparado para esperar o tempo que for preciso que eu lhe fale do irmão. Não parecia ter pressa. Geralmente, os homens não são muito pacientes. Outro homem qualquer teria arrancado a resposta da sua prisioneira no dia em que a apanhou. Não tenho dúvidas de que Lorde Richard assim teria feito. Vira o meu pai tentá-lo. Não havia razão para Red me manter aqui durante tanto tempo. Sentia que era um fardo. Continuava longe de ser bem-vinda. E faltava pouco para que o medo e a desconfiança que a família sentia por mim lhe caísse em cima. Destruir a harmonia e a confiança que eram a alma desta pequena comunidade. Perguntas o porquê da minha vinda para aqui. Por que mantinha ele esta influência demoníaca no coração das suas terras, pondo em risco a segurança do seu próprio povo. Provavelmente, eram apenas o amor e o respeito que lhe votavam que lhes mantinha as bocas silenciosas há tanto tempo. Lady Anne acreditava que eu abusara da hospitalidade. Era apenas uma questão de tempo, antes de outras vozes começarem a falar.
Assim, decidi que não pediria ajuda a Red. Uma manhã, peguei num saco vazio e numa faca afiada e esperei até que um Ben sonolento abandonasse o seu posto de guarda no meu jardim e se dirigisse à cozinha em busca de pequeno-almoço. Então, escapei-me. Na noite anterior, dissera a Margery que não me sentia bem e talvez dormisse até tarde. Estava de novo com o período e era uma boa desculpa para uma pequena indisposição. Escolhi aquele dia porque sabia que os homens estavam todos ocupados, preparando os campos para a sementeira na parte mais ocidental da colina, a alguma distância, ao longo do vale. Estariam fora todo o dia e ninguém me procuraria. Com alguma sorte estaria de volta antes que a minha ausência fosse notada.
Segui a linha do rio corrente acima, percorrendo carreiros escondidos sob os salgueiros. Levava o meu vestido caseiro, uma capa cinzenta e usei as minhas capacidades para não ser vista. Estava preocupada com Alys, que tinha tendência para ladrar aos esquilos e remexer ruidosamente no solo. Mas não tive coragem de a deixar para trás, tão desejosa estava de participar na expedição, como devia ter feito muitas vezes, anos antes, com o seu jovem dono. Assim, deixei-a seguir-me e abrandei o passo para lhe permitir que me acompanhasse com as suas pernas curtas.
Quanto mais me afastava da herdade mais bem-disposta ficava. Estava um dia óptimo, límpido, de temperatura agradável, não ainda Primavera, mas já uma promessa. Farrapos de nuvens estendiam-se pelo céu. Observei um falcão peneireiro a pairar, concentrado na caça, antes de o ver mergulhar para a matança. Por fim, subimos para lá das margens do rio até uma ravina, por onde se precipitava um pequeno ribeiro até encontrar o rio. E finalmente, nas suas margens, por baixo de um afloramento rochoso, encontrei o que procurava. Crescia, luxuriante, de ambos os lados da água, sufocando os pequenos fetos e agriões. Descansei um pouco, enquanto Alys saltitava por ali, ofegante. Em seguida, comecei a trabalhar.
A minha técnica vinha da prática. Pousei o saco aberto no chão a meu lado, cortei a planta pela base, um, dois, três e os caules caíram na minha direcção. Se o fizesse com cuidado, não magoaria muito as mãos e a morugem colhida podia ser atada e carregada às minhas costas. Trabalhei com rapidez. O Sol estava alto e a caminhada era longa, de regresso à herdade. Cortei o mais que pude, o suficiente para uma camisa, talvez um pouco mais. Não precisaria de regressar antes de meados do Verão. Quando julguei a quantidade suficiente, atei os caules com uma guita e pus tudo às costas. Antes de chegar à herdade, os espinhos atravessariam o tecido do saco, o vestido e ferir-me-iam a pele. Estava acostumada àquilo. Não carregara eu a vida de um dos meus irmãos às costas? Valia a pena a dor.
Voltámos para casa. Sentia-me feliz, pensando nas quatro camisas prontas na arca de madeira e na quinta, que iria começar no dia seguinte. Sentia-me feliz porque tinha o Sol no rosto, estava ao ar livre e porque Alys seguia à minha frente, brincando como um cachorro. Desapareceu por baixo de uns vidoeiros e eu tive que me curvar para passar entre duas rochas.
Ouvi um som sibilante por cima da cabeça, a seguir um baque e depois um grito terrível, estridente, um som agudo de puro terror. Corri sob as árvores nuas, o coração a bater. Outra vez não, por favor. A pequena cadela estava encostada ao tronco cinzento-prateado de um vidoeiro e agitava a cabeça de um lado para o outro, enquanto uivava. Tentava apanhar algo, um relâmpago azul-brilhante. Num instante estava ao pé dela, deixando cair a faca e o saco, ajoelhando, enquanto ela gritava de medo e dor. Penas azuis. Uma flecha, que lhe atravessara a espádua e a pregara à árvore. A ponta estava profundamente alojada no tronco.
Não havia tempo para pensar. Com um homem, ou uma mulher, podia ter dito está quieto, que eu vou-te ajudar. Podia explicar o que ia fazer a seguir. Mesmo sem palavras, podia fazê-lo. Com um cão, tinha apenas de o fazer. Desatei o feixe de morugem, passei-lhe a corda pelo pescoço e atei-a de maneira a não o estrangular. Quando a minha mão lhe passou em frente da boca ela abocanhou-ma selvaticamente, mergulhando os dentes nos meus dedos. Mas uma vez a corda atada, podia segurá-la com um pé, mantendo-a com a cabeça virada para um lado, mais ou menos. De seguida, a faca. Estiquei o braço em busca dela. Se ao menos a cadela não uivasse tanto. Se parasse. Os meus dedos fecharam-se sobre a faca. Pronto, já a tenho. E agora preciso de cortar a flecha rapidamente, perto do tronco e depois puxá-la. Observei-a com atenção enquanto fazia aquilo. A cadela era muito velha. Talvez o barulho terrível que fazia fosse bom sinal. Pelo menos, tinha força para protestar. Comecei a puxar a haste da flecha, pestanejando por causa das lágrimas, porque a cada puxão aquele pequeno corpo uivava, angustiado. Era uma tarefa estranha e ela revirava a cabeça, de olhos esbugalhados, mordendo o vazio.
— Precisas de ajuda?
Fiquei gelada. Não havia qualquer engano, era a voz suave, civilizada, do tio de Red, Lorde Richard. Não me virei, mas senti um arrepio na espinha.
— Valha-me Deus. Isso parece mau. As minhas desculpas. Parece que um dos meus caçadores tem fraca pontaria. Será castigado.
Deslocou-se para o meu campo de visão, imaculado no seu fato de montar, enluvado e calçado com o mais suave cabedal, de túnica e perneiras azuis-escuras. A sua expressão, sob os caracóis de um dourado desbotado, era uma máscara das mais sentidas desculpas, com um toque divertido.
— Deixa-me ajudar-te, minha querida. Que velho cão tão tolo, não é? Sempre disse ao rapaz que era melhor arranjar um galgo escocês, ou até um pointer. Deixa, as minhas mãos são mais aptas para isso.
Abanei a cabeça; não o queria perto de mim, ou de Alys. Mas ele aproximou-se e subitamente vi-lhe uma faca na mão. Recuei. Ele levantou as sobrancelhas com um meio-sorriso.
— Dir-se-ia que estás assustada — observou ele, enquanto cortava a haste da flecha com um movimento rápido. Alys deu alguns passos, cambaleando e eu puxei a corda com força.
— Que estavas a pensar fazer a seguir? — perguntou ele, afastando-se. Ignorando-o, ajoelhei e peguei na flecha, perto das penas azuis, na cauda. Pisei a corda com firmeza, de maneira que Alys mal se podia mexer. Puxei com quanta força tinha. A haste saiu com um terrível som de sucção e a cadela deu um latido de terror. Acabara.
— Bravo — disse Lorde Richard, que se sentara num tronco de árvore caído. — E agora?
Lancei-lhe um olhar de intensa aversão. A ferida sangrava; não muito, mas ainda faltava muito para chegar a casa. Utilizei a minha faca para rasgar a bainha da minha camisa, retirando uma tira a toda a volta e ligando depois a ferida o melhor que pude. Desta vez, Alys não tentou morder-me. Deixou-se ficar quieta, tremendo e olhando para mim com olhos confiantes. Lorde Richard dissera que o homem dele tinha fraca pontaria. A que alvo se destinava, então, aquela flecha?
Ele ficou ali sentado a olhar para mim, os olhos azuis seguindo cada um dos meus movimentos enquanto eu ligava a ferida, desatava a corda e voltava a enfeixar a morugem. Pu-la às costas e inclinei-me para pegar na trémula Alys ao colo.
— Hum — disse ele. — Cheia de autocontrole, ha? Eu oferecia-me para ajudar, mas tenho medo de ser mordido. Por um dos dois, claro.
Não podia fazer gestos. Tentei fazê-lo perceber, com um trejeito de cabeça e um olhar carrancudo, que queria que ele me deixasse em paz, para que eu pudesse ir para casa.
— Oh, não, não me parece — disse ele suavemente e não gostei de todo do olhar dele. — Não creio que o meu sobrinho gostasse disso. Deixar a sua pequena protegida sozinha nos bosques, com tanto para carregar? Oh, não, isso não pode ser. Pelo menos, vou escoltar-te. Valerá a pena ver o olhar de Hugh. — Levou dois dedos à boca e deu um assobio estridente. No espaço de um minuto um punhado de homens, transportando arcos, apareceu de direcções diferentes. As suas indumentárias eram cinzentas e castanhas, a cor dos bosques.
— Eu vou a pé com a jovem... dama — disse Lorde Richard e de novo a pausa entre as duas palavras foi requintadamente programada. — Ide à frente para Harrowfield. Levai os cavalos e segui pela estrada. Informai Lorde Hugh, se o encontrardes, que houve um pequeno acidente com uma das pessoas da casa. Nada de grave. Falarei mais tarde com o homem que perdeu a flecha.
Os homens desapareceram para cumprir as suas ordens e eu não tive escolha senão seguir para casa na sua companhia. Não se ofereceu para me levar a trouxa, se bem que tivesse olhado para ela com interesse.
É estranho como algumas coisas ficam gravadas na memória e outras não. Ainda me lembro de tudo o que Richard me disse naquele dia, na longa caminhada até à herdade. Ainda consigo ouvir cada palavra cuidadosamente escolhida, cada cambiante da sua voz suave, cada mudança subtil no tom insinuante. Ainda sinto o peso do pequeno cão nos braços, o sangue nas mãos e a trouxa espinhosa nos ombros. Estremeço ao recordar o toque das mãos arrepiantes de Lorde Richard nos meus braços, nos meus ombros, ou em volta da minha cintura, ao pretender ajudar-me no solo difícil. Detestava-o. Desprezava-o. Mas ele era tio de Red e irmão de Lady Anne. Desejaria cuspir-lhe no rosto. Mas mantive a boca fechada, olhei sempre em frente e dirigi os meus passos para a herdade.
— Estou surpreendido por o meu sobrinho te ter deixado sair sozinha — observou ele quando chegamos à ravina, perto do regato. — Pensava que ele sabia como proteger melhor o seu investimento. E que investimento tu provaste ser, minha querida. É espantoso o que a boa comida pode fazer ao corpo de uma rapariga. — Olhei para ele penetrantemente e interceptei um olhar que me percorreu de alto a baixo, como se estivesse a imaginar o que estava por baixo do vestido caseiro. As minhas entranhas gelaram. — Estás bem cheinha, minha querida. Bem cheinha. — Tentei não o ouvir, mas não havia maneira de o calar. Chegámos ao local onde o regato desaguava no rio.
— Hugh é louco ao deixar-te passear sozinha. Muito louco. Não percebe que tu podes aproveitar-te? Demasiado confiante, o nosso Hugh. É o problema dele. — O braço dele pousou-me no ombro e eu recuei.
— Ah! — murmurou ele. — Ela é temperamental! Melhor ainda. Se calhar, o rapaz recebeu mais do que contava. 22 anos e a cabeça cheia de ideias ridículas, como há dez anos. Receio por ele. A sério. Quando é que ele cresce? Até o jovem Simon tinha melhor sentido da realidade. E... o nosso Hugh não é lá muito esperto, pois não? Reparei no brilho do olhar dele quando te exibiu. Provavelmente, pensou que todas as suas fantasias se tinham tornado realidade, quando te encontrou. Qual é o homem que não sonha, por vezes, com uma mulher irlandesa bravia, esquiva como uma enguia e quente como o fogo do inferno debaixo dessa pele leitosa, com olhos verdes perigosos e cabelos emaranhados em volta do corpo como cordas de seda negra? Foi aprendizagem? Ouvi dizer que ele voltou para casa com marcas de dentes. O que é que achaste do meu sobrinho, Jenny? Correspondeu às tuas expectativas?
Não consegui impedir que o rubor me subisse às faces, de tal maneira as palavras dele me envergonharam e ultrajaram. Porquê, por que saíra eu sozinha? Por que tinha eu de ouvir aquilo? E por favor, que não seja verdade nada daquilo que ele disse. Que não seja verdade.
— Oh, estou a ver — disse ele lentamente, olhando de perto para o meu rosto enrubescido. — Continuas a fingir de inocente, ha? Ou quase. Ele está a guardar-te. Mas, para quê? Não consigo imaginar. O nosso rapaz pode ser puro como a neve exteriormente, mas há um homem de sangue quente por baixo, minha querida. Pode ainda não te ter tido, mas há de ter, não duvides. Pergunta às raparigas da aldeia, que são capazes de te contar muitas histórias. Ele há de ter-te, não tenhas dúvidas. Especialmente agora, que tens mais carne do que ossos. Uma carne deliciosa, se me é permitido dizer. E é. Oh sim. — Riu-se e as árvores pareceram estremecer àquele som. Alys escondeu o focinho no meu seio. Os meus braços doíam-me do peso dela.
— O caminho é longo até casa, não é? — observou Lorde Richard. — Um caminho tão longo para pés tão pequenos. Por que é que não nos sentamos um bocadinho? Para nos conhecermos melhor? Põe o cão no chão, minha querida. Não gostavas de me conhecer um pouco melhor? — A voz dele era como o mel, como o xarope de groselha, com uma generosa porção de erva-moura por cima. Gostaria de lhe dar um pontapé onde mais dói. Não fosse Alys e tê-lo-ia feito, ter-lhe-ia cuspido no rosto. Mas endireitei as costas, mantive a cabeça bem alta e continuei a andar, tentando pôr a cadela numa posição melhor. Eu sou a filha da floresta. Para um animal tão pequeno, era bem pesado.
Richard seguia um passo atrás e mudou ligeiramente a conversa. Chegámos a um carreiro sob os salgueiros. O Sol tinha passado o seu ponto mais alto e a luz era dourada nos ramos nus. Continuava a estar um dia lindo.
— Suponho que é a única razão para ele te ter trazido — disse ele, como se devaneasse. — Não consigo pensar noutra. Tu consegues? — Esfregou as mãos bem tratadas. — Podes achar estranho eu não estar mais chocado. Porque é suposto ele casar com a prima, sabes? Com a minha própria filha. Mas um homem tem que lançar a sua semente, até um idealista convencido como o Hugh precisa de se divertir um pouco. O que o coloca em melhor posição, quando, por fim, se casar. Dá-lhe uma certa vantagem, por assim dizer. Como pode ele ensinar à sua mulher as delicadas e deliciosas habilidades do leito matrimonial? Não, penso que o nosso Hugh vai estar suficientemente maduro no Verão. Agradeço-te por isso, minha querida, entre outras coisas. E posso dizer-te que Elaine está pronta. Que bom que tu não podes falar, boneca. Torna este episódio bem mais... excitante. Não achas?
Como podia ele falar assim da própria filha? Não tinha vergonha? As minhas orelhas ardiam só de o ouvir e desejava poder pôr Alys no chão e fugir. Cerrei os dentes. Se os meus irmãos estivessem aqui, far-te-iam pagar por me falares assim. Mostrar-te-iam o que é ser um verdadeiro homem, Oh, desejava tanto que eles estivessem ali.
— Pergunto-me — continuou ele — que outra razão poderá ele ter para te manter há tanto tempo em casa. Porque não lhe faz bem nenhum, sabes, bem nenhum. As línguas começam a desatar-se. Línguas poderosas. A mãe dele detesta isso. Eu também. Se ficares aqui muito tempo, vais fazer-lhe muito mal. Sabes o que se diz? Queres ouvir?
Gostaria de não ouvir nada. Gostaria de ser surda e muda.
— Diz-se que lhe lançaste um feitiço — disse ele, rindo por entre os dentes. — Que és uma feiticeira, que lançaste a tua rede e o prendeste, mesmo contra a vontade dele. Até os melhores amigos dele o dizem. Que ele está preso a ti e não te pode negar nada. A ti, uma mulher de Erin, parente dos que lhe mataram o irmão mais novo. Que pensas disso, Jenny? Mas, é claro que o teu nome não é Jenny, pois não? Pergunto-me quem te escolheu esse nome tão despropositado. O teu nome deve ser Maeve, ou Colleen, ou talvez Deirdre. Um nome irlandês, bem bárbaro. Jenny não é nome para uma feiticeirazita que chega do ocidente. Podes lançar a tua rede sobre mim quando quiseres, pequena Maeve. Podia ensinar-te algumas coisas. Devias tentar. Talvez te pudesse ajudar, sabes? Uma pessoa para quem te virares, se as coisas se tornarem... difíceis. — E agarrou-me com os dois braços, aproximando o rosto do meu, de maneira que fui forçada a olhar para ele. Tinha os olhos da família, azuis-brilhantes, como os da irmã. Como os de Simon. A ponta da língua saiu, percorreu-lhe os lábios e eu li-lhe o desejo no rosto.
As minhas mãos cerraram-se involuntariamente e Alys latiu. Então, pisei, com força, com o tacão da bota, o pé de Lorde Richard e ele largou-me com um grito. Não podia fugir, mas estávamos próximos de uma pequena ponte que fazia a ligação entre o carreiro em que estávamos com o trilho principal das carroças e eu galguei-a o mais rapidamente que pude, sem sequer olhar para trás. E então ouvi o som de cavalos aproximando-se e vozes e, enquanto emergia de sob os salgueiros, vi um grupo de cavaleiros cavalgando velozmente. Estacaram e várias coisas aconteceram muito rapidamente, sem uma palavra sequer. Vários homens desmontaram imediatamente. Um Red de rosto tenso gesticulou para os outros. Um pegou em Alys ao colo, praguejando ligeiramente enquanto ela lhe ferrava os dentes na mão. A trouxa foi-me retirada dos ombros e atirada a Ben, que a apanhou, encolhendo-se. Depois, vi-me levantada como um saco de batatas, depositada no cavalo de Red e ele montou por trás de mim. Duvido que um homem tivesse tempo de contar até dez durante o tempo que tudo aquilo levou.
— Tio. — A voz de Red era neutra. As mãos dele, porém, apertavam as rédeas de tal maneira que os nós dos dedos estavam brancos. — Não nos avisastes desta visita. Receio que não vos possamos fazer uma recepção... apropriada. — Parecia que também ele era mestre em pausas intencionais. — Podeis ter a certeza que tal não voltará a acontecer.
— Hum! — Richard coxeava visivelmente. — Estás chateado, meu rapaz. É compreensível. Pensavas que tinhas perdido a tua amiguinha, não? O cão teve um pequeno acidente. Nada de cuidado. Mas precisas de vigiar a rapariga. Se a deixas andar por aí, a informação que procuras pode ir parar aos ouvidos errados. Nunca se é demasiado cuidadoso.
— Os meus homens arranjam-vos um cavalo — disse Red, como se não tivesse ouvido uma palavra. — Eu vou à frente para pedir à minha mãe que prepare a vossa chegada. Ficará contente por vos ver, certamente. — Esporeou a montada e partimos à desfilada. Não tenho dúvidas de que os homens demorariam muito tempo para arranjar um cavalo digno do visitante.
Foi uma corrida rápida até à herdade. Rápida e desconfortável. Red não esperou por ninguém, forçando o cavalo a um intenso galope quando nos aproximámos da alameda de choupos. Teria caído se não fosse o braço dele em volta da minha cintura, segurando-me com força contra ele, enquanto controlava o cavalo com os joelhos e a outra mão segurando as rédeas com firmeza. Dirigiu-se a direito para os degraus da frente e desmontou imediatamente, arrastando-me consigo. Como de costume naquela casa bem ordenada, apareceu logo um servo para levar o cavalo. Vi-me a entrar e a subir para os alojamentos de Margery e John. Red bateu, abriu a porta e atirou-me para os braços de uma Margery espantada.
— Fica aqui — disse ele. — E não te mexas até eu voltar. É uma ordem. — Ouvi-o, depois, descer as escadas em tropel, chamando por Lady Anne.
— O que é? Que se passa? John? O John está bem? — As sobrancelhas de Margery estreitaram-se. Acenei com a cabeça, tranquilizando-a. John devia estar, supunha, no cercado ocidental, a lavrar. Margery levou-me para o pé da lareira, fez-me sentar e meteu-me uma taça de hidromel nas mãos. Descobri que estava a tremer e os meus sentimentos estavam tão confusos que não conseguiria explicá-los, mesmo que pudesse falar.
Johnny estava no berço, acordado. Vi-lhe as mãos minúsculas a agitarem-se no ar e ouvi-lhe a voz, emitindo pequenos sons, um após outro. Ela dobrou-se para pegar nele, a mão em concha para lhe segurar na cabeça pelada. Encostou-o ao ombro e sentou-se à minha frente.
— Bebe — disse ela. — Não sei o que se passa, mas tu estás branca como um lençol e Red não parece melhor. Suponho que em breve saberei.
Nesse momento a porta abriu-se, fechou-se de novo, Red atravessou o quarto com dois passos e levantou-me da cadeira, as grandes mãos nos meus ombros. Nunca o tinha ouvido erguer a voz desde que cheguei a Harrowfield. Era a primeira vez.
— Como te atreveste? — Abanou-me com força. — Como te atreveste a desobedecer-me assim? Tu deste-me a tua palavra! É preciso uma coisa destas para veres como és estúpida? Em que é que estavas a pensar?
Johnny começou a chorar e Margery disse a Red, severamente:
— Estás a magoá-la.
Red praguejou, largou-me e virou as costas, as mãos na pedra do fogão. Toquei onde ele me tinha agarrado. Ia ficar com nódoas negras. Nunca o vira tão zangado. Nem sequer quando discutiu com a mãe, na noite do nascimento de Johnny.
— Desculpa — disse ele, com a respiração entrecortada. — Desculpa. Mas, o que é que te deu para saíres sozinha, assim? Pensava que te tinha explicado. Pensava que estavas ciente dos riscos. Por Deus, se... ele tocou-te? Magoou-te? — Andava de um lado para o outro, olhando para mim para me examinar o rosto, fixando-me os olhos. Os dele estavam de um azul-sombrio, gelado.
Abanei a cabeça. Não ia chorar. Não pensaria no que dissera Lorde Richard. Que outra razão teria ele para te ter aqui? Tinha que tirar aquilo da cabeça. Dizem que lhe lançaste um feitiço. Não te consegue negar nada. Tinha que esquecer aquilo. Era um disparate. Não ia chorar. Pestanejei, funguei e uma lágrima traiçoeira escapou e rolou-me pela face. Prático como sempre, Red mergulhou a mão no bolso e tirou um lenço de linho. Quando a mão dele se aproximou do meu rosto, não me pude impedir de estremecer e os meus braços rodearam-me o tronco, defensivamente. Red ficou como se eu lhe tivesse batido. Virou-se com a mão momentaneamente em frente dos olhos, como se não quisesse que eu lhe visse a expressão. É verdade, pensei. Sou um fardo. Nunca devia ter vindo para aqui. Trouxe o sofrimento a esta família, trouxe a discórdia a esta pacífica casa. Ele nunca me devia ter trazido. E sabe-o muito bem.
— O que é que ele te disse? — Red tinha as costas voltadas para mim e falou tão baixo que mal o ouvi. A intensidade do tom dele assustou-me e só pude olhar para o chão, para a parede, para tudo, menos para ele. Era uma pergunta a que nunca conseguiria responder.
— São capazes de me dizer o que se passa? — perguntou Margery suavemente, olhando de Red para mim e vice-versa. Johnny estava mais calmo, soluçando gentilmente contra o ombro da mãe. — O que é que ela fez de tão terrível, Red? Que pode ela ter feito para que a trates assim, lhe grites e a faças chorar? Pensava que éramos homens e mulheres, aqui, não crianças zangadas umas com as outras. Espero que não te voltes a comportar assim em minha casa.
Red olhava para ela. Parecia-me que havia linhas em volta da boca dele que não estavam lá antes.
— Desculpa, Margery — disse ele friamente. — Foi injusto da minha parte. Se alguém aqui tem culpa, sou eu. Mas este é o único lugar seguro para ela, enquanto o meu tio aqui estiver. Não me posso demorar; tenho que estar lá em baixo quando ele chegar. E agora, Jenny — disse ele virando-se para mim e eu podia ver que ele continuava zangado, muito zangado, mas mantendo a voz baixa com grande força de vontade. — Preciso de saber por que foste para tão longe sozinha. Preciso de saber por que quebraste a promessa.
Os ombros doíam-me. Os pés estavam doridos da caminhada e os braços cheios de cãibras por carregarem Alys durante tanto tempo.
A mão, onde ela me mordera, sangrava. O tio dele era uma besta; e naquele momento não pensava melhor do sobrinho. Mantive as mãos imóveis ao longo do corpo. Red fechou um punho e bateu com ele na outra mão, praguejando.
— Raios te partam, Jenny, diz-me.
— Eu creio que sei — disse Margery, olhando para mim ansiosamente. — Jenny tem andado a pedir aquela planta que usa, a que nós chamamos espinheiro, para fiar. Esgotou as provisões que trouxe com ela. Eu recusei-me a ajudá-la, esperando que desistisse dessa tarefa horrível. Mas eu conheço a tua teimosia, Jenny. Deves ter ido à procura dela, não deves?
Os olhos de Red estreitaram-se.
— Disseram-te para olhares por ela — disse ele e o tom frio da sua voz fez Margery empalidecer. — Ela deve ter saído de madrugada. Por que não mandaste ninguém procurá-la? Por que é que eu não soube nada até receber a mensagem de que os homens de Richard tinham sido avistados na estrada?
— Desculpa — disse Margery. Não disse a Red que eu lhe tinha mentido. Provavelmente, era a primeira vez na minha vida que mentia.
— Meu Deus, não posso confiar em ninguém? — Red andava novamente de um lado para o outro.
Desejei que ele se fosse embora e me deixasse na minha miséria.
— Jenny, por que não me pediste? — disse ele finalmente. — Eu sei onde cresce essa tua planta, conheço os cantos todos deste vale. Posso cortar-te essa planta sempre que quiseres e colocar-ta à porta, se assim o desejares. Não precisas de te aventurar para além da segurança destas paredes. E nunca mais o farás. Compreendes? Nunca mais.
Tinha que responder o melhor que podia.
Tu... cortares a planta... não. Não serve. Eu. Eu corto, fio, teço, coso. Só eu.
— Então, levo-te lá — disse ele com a voz mais calma, mas mantendo as mãos atrás das costas, cerradas. — Levo-te, tu cortas o que precisas e trago-te de volta. Não saias de novo sem mim. Agora, vou para baixo. Margery, quero que a mantenhas aqui. Ficais ambas dispensadas do jantar. A minha mãe deve-me um favor. — Fez menção de sair, mas virou-se à porta. — Encarreguei um homem de tratar da cadela — disse ele. — Um dos meus moços de estrebaria percebe dessas coisas. Será bem tratada. — E saiu.
— Bem — disse Margery. Depositou o bebé no berço e pôs a chaleira ao lume. — Enfureceste-o, ha? — E não voltou a tocar no assunto, mas à medida que a tarde passava, bebíamos chá de hortelã, eu a ajudava a dobar lã e a cozinhar bolos na lareira, apanhei-a várias vezes a olhar para mim, perspicaz, avaliadora e imaginei no que estaria a pensar.
Desta vez Richard ficou mais tempo do que nós queríamos, excepto, talvez, Lady Anne. A sua presença tinha uma influência subtil e inegável naquela casa. Se os servos tratavam Red e a mãe com um respeito que mostrava também um desejo de agradar, um serviço que era sempre algo mais do que um simples dever, o respeito que mostravam a Lorde Richard provinha do medo. Não que ele alguma vez mostrasse abertamente alguma irritação, ou mostrasse o seu descontentamento por meio de palavras. Era, antes, algo na sua expressão, as sobrancelhas levantadas ou um ligeiro meio sorriso. Era a maneira como recebia uma taça das mãos de uma serva e lhe tocava na mão. Era o tom de voz ao dar uma ordem a um moço de estrebaria ou despedindo um dos seus homens com um gesto arrogante. Achei que nos desprezava a todos; cria-se, de algum modo, acima de todos. Ninguém era imune às suas referências desdenhosas, aos seus insultos lançados ao acaso, nem sequer os membros da família. Mas, como disse, era um homem subtil. Sabia como ferir, de uma maneira que talvez apenas a sua vítima era capaz de compreender.
No entanto, as pessoas daquela casa eram fortes. Quando Richard troçou de Ben, devido à relutância deste em se juntar a uma expedição, preferindo antes ficar com Lorde Hugh, em vez de testar as suas capacidades numa verdadeira batalha, o bretão limitou-se a rir. Se julgou a sua virilidade insultada, não mostrou qualquer sinal. A arma de Richard contra John era ainda mais tortuosa. Ouvi-o, mais do que uma vez, tentar provocar uma resposta, tentando levar John a discutir o governo da herdade e as suas responsabilidades na defesa daquela área tão vasta. Hugh, dizia Lorde Richard, estava demasiado concentrado no futuro das suas plantações, na pureza dos seus stocks, na manutenção dos muros e sebes. E a costa ocidental? E o seu dever para com os vizinhos? E mais do que isso, para com a sua mãe? Quando é que ele ia fazer alguma coisa contra os que mataram o jovem Simon? John era um homem taciturno por natureza. Tinha o hábito de fazer o que tinha de ser feito e falar apenas quando necessário. Lidou com Richard como eu esperava, declarando que obedecia a Hugh e nunca tivera qualquer razão para duvidar das suas decisões. Além disso, os Dinamarqueses é que eram a verdadeira ameaça, não os Irlandeses. Quando Richard deu um passo em frente e começou a perguntar como se sentia John em relação à segurança da sua mulher, uma rapariga tão doce, fresca como uma rosa e do seu bebé, John, simplesmente, levantou-se e saiu da sala.
Lady Anne, porém, era irmã de Richard. Durante os longos dias que o tio passou em Harrowfield, Red fez mais do que uma tentativa para evitar conversas com ele. Mas não o podia evitar por completo. Não podia estar sempre em casa, porque a estação avançava e o trabalho da herdade era constante, lavrar os campos, plantar, ajudar as ovelhas a parir. Assim, uma tarde, Lady Anne e o irmão passeavam no jardim, conversando, enquanto eu os observava da janela da grande sala onde estava sentada sozinha, perguntando-me o que lhe diria ela. Nessa noite, ao jantar, reparei no olhar de Richard, semicerrado e penetrante, indo de mim para Red e de novo para mim e perguntei-me quanto tempo demoraria até ele me apanhar, de novo, só.
Por fim, uma noite, ao jantar, Richard anunciou que ele e os seus homens se iriam embora no dia seguinte. Os suspiros de alívio foram quase audíveis. Tinha ficado tempo demais. Toda a casa andava constantemente com os nervos à flor da pele e eu acreditava que ninguém lamentaria vê-lo pelas costas. Nem sequer Lady Anne protestou. No entanto, expressou o desejo de que todos nos reuníssemos para uma taça de ponche quente, mais tarde, nessa noite, para lhe desejar boa viagem e esse desejo pareceu incluir, tanto Margery, como eu. Inúmeras desculpas tinham sido arranjadas para mim, em ocasiões anteriores, mas desta vez não tinha saída e assim, um pouco mais tarde, Lady Anne sentou-se no salão com o irmão e o filho mais velho e eu pairei na sombra, tentando não dar nas vistas. Red estava sentado à janela, as mãos ocupadas com a faca e um bocado de madeira. John estava por trás da cadeira de Margery. Uma jovem serva tinha sido enviada para o andar superior, para tomar conta de Johnny, mas este dormia bem e ela teria pouco que fazer. Um mapa estava desdobrado sobre a grande mesa e em volta dele estavam dois dos homens de Richard e Ben, discutindo a exactidão de uma linha territorial qualquer. O tom era suficientemente amigável.
— Qual é a tua opinião, jovem Benedict? — Richard lançou a sua observação sobre o ombro, casualmente. Tinha estado, com toda a sua sem cerimónia, a ouvir, cuidadosamente, a discussão. — Achas que somos capazes de tomar essa torre de vigia na parte norte da baía antes do solstício de Verão? Se a conseguirmos, ficamos com uma boa posição e com um local seguro para o desembarque dos nossos homens. Tem sido um dos nossos problemas; isso e a maneira astuta como eles navegam. Nunca percebi como o fazem. Aparecem em cima de nós vindos não se sabe de onde, saindo da névoa naqueles barquitos matreiros. Nunca sei quando devo estar pronto para eles.
— Dizem que é feitiçaria. — Era um dos homens de Richard, falando com timidez. — Que cada clã tem um feiticeiro, um mago, que consegue esconjurar tempestades, nevoeiros, ventos, invocando o poder do demónio.
— Dizem que exércitos inteiros desapareceram assim. Não que eu acredite, claro. São histórias que correm.
— Histórias postas a circular com o único propósito, de meter medo ao inimigo — disse Richard com algum cinismo. — Uma coisa bem pensada. O mesmo que pintar o corpo, ou rufar tambores. Apanha o inimigo de surpresa, põe-no nervoso, mete-lhe medo. Não há qualquer feitiçaria. Um pouco de sorte, é tudo e um bom conhecimento do clima local. Esses tipos não são mais mágicos do que tu ou eu.
— É verdade — disse o outro homem. — Porque há padres cristãos entre eles, que não tolerariam tais coisas. Além disso, onde é que já se viram pedras de granizo do tamanho de ovos, ou nevoeiro no qual nos podemos afogar? Onde é que já se viu uma tempestade aparecer do nada, ou chover com o céu sem nuvens?
Nesse momento olhei para Red, Red olhou para mim e recordei o toque da mão dele por entre uma torrente de chuva, o toque quente, firme, da única coisa real no meio daquele violento, druídico, aguaceiro. Aquela chuva tinha salvo a vida de ambos. Li-lhe nos olhos que os seus pensamentos eram os mesmos.
— Essas histórias são muito antigas — devaneou Richard, estendendo as elegantes pernas na direcção do fogo. — É um país estranho, com gente estranha. Quanto mais sei sobre eles, menos os compreendo. Um dia, claro, será tudo nosso e os restos dessa gente selvagem desaparecerão por intermédio da morte, da decadência ou dos cruzamentos. Eles têm uma capacidade limitada de resistência, com as suas superstições e fé irracional. Lutam com tal ferocidade que até parece que não têm qualquer apego à vida. Perderam as suas preciosas ilhas. Aquele ancoradouro é nosso. Espero dar mais um passo na minha campanha de Verão.
— Quando tencionais regressar? — perguntou John polidamente.
— Muito brevemente — disse Richard. — Tenho os meus homens sempre prontos. Tenciono aproveitar o primeiro sopro de bom tempo. Enquanto andas pelos campos, Hugh, a brincar aos camponeses, pensa em mim e nos meus, enquanto mantemos o país seguro para ti. Pensa em nós, enquanto livramos as nossas costas daquela escumalha, para que tu possas criar o teu gado em paz.
— Oh, ficai descansado que penso — disse Red. — Ficai descansado, tio, nunca estais longe dos meus pensamentos
— Hum. — Richard pareceu levar aquilo à letra. — Gostaria muito de convencer aqui o jovem Ben a ir comigo, desta vez. Para lhe mostrar um pouco de acção. Mas se ele não for, paciência.
— Seguramente, não planeais colocar uma guarnição isolada na costa mais afastada, se conseguirdes conquistar este bocado de terra — disse John, nitidamente interessado, contra a sua vontade. — Isso é pedir sarilhos. Esses senhores da guerra locais têm um conhecimento do terreno que ultrapassa, de longe o vosso e as forças deles são consideráveis. Como podeis guarnecer um posto tão distante? Como é que o abasteceis? A posição ficaria extremamente frágil. E os Nórdicos? Seríeis um alvo facílimo. E qual é a vossa intenção, ao estabelecerdes-vos ali?
Richard riu-se.
— Realmente, parece pouca coisa, vista assim. A minha maior vantagem reside nas próprias ilhas; provavelmente, não estás ao corrente de como uma força grande pode permanecer ali, durante muito tempo, num porto abrigado. De facto, estou perfeitamente em posição de providenciar abastecimento a um posto avançado naquela costa. O que será um espinho na vaidade deles, daqueles ridículos senhores de nomes impronunciáveis. O inimigo com os calcanhares na sua terra sagrada, isso vai picá-los. Vai arrancá-los do buraco. Então é que havemos de ver.
Houve um breve silêncio.
— Não penseis que conseguis estabelecer-vos para lá da costa — disse Red, rudemente. — Se planeais isso, estais a subestimar o vosso inimigo.
— O nosso inimigo, rapaz, o nosso inimigo — disse Richard, levantando-se para enfrentar o sobrinho, que continuava sentado a alguma distância, concentrado no seu meticuloso trabalho com a pequena faca. — Não, podem-me chamar muitas coisas, mas nunca louco. Simplesmente, não quero ser complacente. São as ilhas que interessam. Quem tiver as ilhas, tem a costa. Enquanto as tiver, tenho a mão na alma do meu inimigo. Ele acredita que elas são uma fonte de magia, uma fonte de poder. Enquanto estiverem na minha posse, ele está mais fraco. Mas não basta estar lá sentado e esperar ser atacado. Devemos tomar a iniciativa, mostrar-lhes a nossa força, mostrar-lhes de que massa somos feitos. E lembra-te, não estou sozinho nisto. Tenho o apoio de três dos nossos vizinhos mais próximos e cem dos melhores homens deles, para o provar. A tua casa, Hugh, é a única, por estas bandas, que não estará representada na minha expedição. — Lançou um olhar a Lady Anne. — E isso envergonha-me, rapaz. A minha própria carne e sangue. Mas ainda estás a tempo. De reunir uma pequena força. Terão de estar reunidos e prontos dentro de seis dias. O teu apoio seria bem-vindo.
Red continuava a trabalhar no seu minúsculo bocado de madeira. Nem se deu ao trabalho de olhar para cima.
— Sabeis o que penso disso, tio — disse ele. — Não faço tenções de deixar homens bons desperdiçarem as suas vidas para nada. Esta guerra é vossa, não minha. As suas origens estão esquecidas, tantos anos se passaram já, tantas vidas se perderam já. Perdoai-me se não acrescento a minha, ou as da minha gente.
— Aguentar as ilhas é uma coisa — disse Ben, que continuava a estudar cuidadosamente o mapa. — Mas não podeis esperar avançar para lá daqui e daqui; estais a ver este grande troço de floresta, que se estende quase até ao mar? Nós estamos ali. É o mais esquisito dos lugares; profundo, impenetrável e ferozmente defendido. O terreno é íngreme e traiçoeiro. Há um grande lago para lá destas árvores, com uma fortaleza. Ninguém se aproxima a menos de um dia de viagem desse local. Está eriçado de homens armados e se não acabarem convosco, a fome, o frio e o profundo mistério do local encarregar-se-ão disso. Se quereis provocar impacte, talvez fosse melhor ir mais para norte. Para aqui, por exemplo.
Os olhos de Richard estreitaram-se.
— Falaste como um verdadeiro soldado — disse ele. — Tens a certeza que não queres vir comigo, rapaz? Serias uma boa ajuda. Não podes dispensá-lo por uns tempos, sobrinho?
Red soprou o pó da madeira e meteu o trabalho no bolso. Limpou a pequena faca à túnica e enfiou-a na bota.
— Eu não decido pelo Ben — disse ele brandamente.
— Então, rapaz?
Ben riu-se.
— Não, obrigado. Tenho trabalho aqui para ser feito. Além disso, lutar contra aquela gente é como lutar contra uma tribo de... de fantasmas, de espíritos. Não que não fôssemos capazes de provocar um certo impacte, uma vez ou duas. Mas... eles têm o hábito de aparecer e desaparecer e quando falam connosco fazem-no por enigmas.
— E o clima? — acrescentou John. — Agora bom, logo a seguir uma porcaria. Quase acreditamos nas histórias deles de magia e feitiçaria, se ficamos lá muito tempo. Não tenho pressa nenhuma em voltar lá. Dêem-me antes um rebanho de ovelhas e um bom par de tesouras.
Estavam a brincar com ele, pensei. Mas Richard já estava a andar noutra direcção, falando como se consigo próprio.
— Magia e feitiçaria. Isso lembra-me uma coisa. — Foi até à lareira, aquecendo as costas, os braços estendidos ao longo da pedra. A sua sombra alongava-se ao longo da sala, o corpo desenhado pelas chamas. — Falaste do lago e da fortaleza na floresta. Ouvi uma história muito estranha, uma história que talvez mude o curso da minha campanha, se há alguma verdade nela. O senhor dessas paragens chama-se Colum de Sevenwaters. Montes de histórias sobre o lago dele, a floresta e a fortaleza; e outras sobre a selvajaria dos combatentes dele, entre os quais estão os filhos. Essas histórias são verdadeiras, creio. Como sabes, foi por aquelas bandas que Simon se perdeu e os meus próprios homens chacinados. Tenho pensado muitas vezes se... mas não. As forças de Colum não são uma multidão de bárbaros. São fortes, bem disciplinados, bem armados e lutam como se não houvesse um amanhã. Como muito bem disseste, Ben, seria louco se atacasse as defesas de um homem assim. Mas, ouvi dizer que as coisas mudaram para Colum há um ou dois anos. Como, não sei; há muitas versões do que aconteceu. Num dia era um homem com seis filhos crescidos. No dia seguinte, não tinha nenhum.
Houve uma pequena pausa. Quem conhecesse Richard, sabia que ele nunca contava uma história para entreter. Devia haver uma farpa qualquer, uma mensagem escondida para alguém.
— Que lhes aconteceu? — perguntou Lady Anne.
— Há umas tantas teorias — replicou Richard. — Uma é que eles estavam na margem do lago e um grande espírito da água desencadeou uma tempestade esquisita, que os engoliu e afogou. Outra, é que foram envenenados por um inimigo, alguém como eu, que procurava enfraquecer o poder do pai deles; envenenados e os corpos escondidos algures naquela vasta floresta. Uma terceira é que os rapazes foram apanhar cogumelos e foram levados pelos duendes. Eles acreditam em duendes, gnomos e fadas, sabes? É estranho, não é, como é possível eles terem em casa um padre cristão, que diz Missa ao domingo e continuarem com as cabeças cheias de superstições e fantasias? Sim, é uma história estranha. Se for verdadeira, Colum tem menos força do que antigamente, menos vontade de resistir. Pode ser a ocasião ideal para atacar. — Ilustrou a última palavra com um movimento rápido do braço, esticando os dedos. — Oh, já me esquecia — disse ele e olhou para mim, na penumbra, perto da parede. — Também havia uma filha. Desapareceu com os irmãos. Varrida. Ouvi dizer que a mãe andava à procura deles. Ou é a madrasta? Manda batedores para toda a parte. Mas nem sinal. Desvaneceram-se no ar. Tal como Simon. Talvez as fadas os tenham levado a todos. Foi, mais ou menos, na mesma altura, segundo me disseram.
Desta vez o silêncio foi mais longo. Estremeci. Pensei que estavam todos a olhar para mim, vendo-me pelo que era e de onde vinha. Como pudera Richard tropeçar assim na verdade?
— Deve ter sido um abalo terrível, perder assim sete filhos de uma vez — disse Margery suavemente. — O homem até pode ter enlouquecido com semelhante golpe.
— Não desejaria isso ao meu pior inimigo — disse Lady Anne. — Mas dói-me ouvir-te falar assim do destino de Simon, Richard. Espero que voltes a procurar notícias dele, quando lá voltares. Não acredito que não haja qualquer sinal dele. Mas é o que Hugh me diz.
O rosto de Richard transformou-se numa imagem de solicitude fraternal.
— É claro que procuro notícias dele — disse ele. — Tenho uma excelente rede de informadores, que me servem bem, mesmo quando estou longe. Ficavas surpreendida com o que oiço. Mas creio que deves tentar perceber, irmã, que os senhores da guerra de Erin são tão brutais como os seus homens. Não dão grande valor aos prisioneiros depois de estes terem servido... os seus propósitos. E Simon era muito novo. Acho que, depois deste tempo todo, não deves esperar grande coisa. Mas, se, como dizes, houver um sinal qualquer, uma pista...
Estava de novo a olhar para mim, com um meio sorriso a curvar-lhe a boca.
— Talvez eu não vos tenha compreendido bem, tio — disse Red em voz baixa. — Estais a sugerir que se o meu irmão foi capturado e submetido a uma forma de tortura qualquer, pode ter sido incapaz de a suportar? Peço desculpa por falar disto abertamente, mãe — acrescentou ele — mas não estamos em ocasião para brincadeiras. Talvez devêssemos falar a sós — disse ele para o tio.
— Não é preciso, rapaz — disse Richard afavelmente. — Somos todos amigos, aqui, creio. À parte a pequena Jenny, talvez, que ocupa uma posição única na tua casa, que eu não consigo compreender. E como não pode falar, precisamos de ter cuidado com o que ouve, não é? Parece que tu não pensas assim.
— Talvez Simon tenha sido mal-aconselhado — disse John — mas ninguém o poderá, nunca, acusar de falta de coragem. A sua força de vontade era formidável num rapaz tão novo.
Aquilo era verdade, pensei, ao recordar o desespero naqueles olhos tão azuis, aquele ódio por si mesmo. Não conseguia aceitar ser um traidor. Eu estava convencida que não o era.
— Ele só tinha 16 anos — disse Lady Anne. — Sabemos todos muito bem de que estofo ele era feito; só preciso de olhar para ti, Hugh, para o ver de novo. Mas não passava de um rapaz, para toda aquela coragem e determinação. Talvez fosse demais para qualquer homem.
A voz dela estava presa por lágrimas não derramadas.
— Isto é mera especulação — disse Ben, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas. — Além disso, nenhum senhor irlandês, digno desse nome, se poderia dar ao luxo de perder tal prisioneiro. E o preço do resgate? E eles tinham uma ideia de quem ele era, quer ele lhes dissesse, quer não. Não faz sentido.
Richard passeava graciosamente pelo salão. Levou tempo a falar, como que a pesar cada palavra cuidadosamente.
— O facto inegável — disse ele, por fim — é que todos os meus homens foram chacinados. Todos. Excepto Simon. Ora, por que faria isso o nosso inimigo? É claro como a água que o rapaz não foi preservado por ser quem era, já que não foi pedido qualquer resgate. Terá ele simplesmente desertado da missão com medo e desaparecido de livre vontade? Dificilmente. Um rapaz daqueles não se misturava facilmente com aquela raça de fanáticos de cabelos negros e pele leitosa. Além disso, como tu dizes, fossem quais fossem os seus defeitos, o rapaz tinha muita coragem. Assim, não é especulação nenhuma sugerir que eles o forçaram a dizer a informação que traiu os companheiros e levou o inimigo até eles, de noite. Mas não devemos culpá-lo. Ele queria ser um homem. Mas, quando chegou a ocasião, a fibra era demasiado fraca.
Descobri, subitamente, que estava extremamente zangada e, sem me conseguir controlar, fiz um gesto com as mãos que dizia claramente, Não. Estás a mentir. E de repente, todos os olhos, no salão, se viraram, penetrantes, para mim.
— Adorava ouvir-te falar, minha selvagenzinha — disse Richard e se bem que o tom fosse suave, o olhar era duro como o ferro frio. — De onde é que tu vens? O que é que tu nos podes dizer? E por que é que de repente ficas tão furiosa como uma loba em defesa da cria? Tu sabes qualquer coisa disto tudo, tenho a certeza. Que conveniente que é, não falar. Pergunto a mim próprio quanto daria a tua gente para te ter de volta.
Houve um curto silêncio. Olhei-o de frente nos olhos. Não tenho medo de ti. Não tenho medo.
— Ela é boa rapariga — disse Margery inesperadamente. — Não veio para aqui com qualquer propósito, meu senhor, tenho a certeza.
— E não é só isso — disse John se estais a sugerir que uma família nobre qualquer pagaria um resgate pelo regresso dela, estais enganado. — Esta criança vive sozinha há bastante tempo, estou convencido. Não tem qualquer família para quem se virar, excepto esta.
— Criança? — Richard parecia um predador à espera de atacar. — Esta rapariga está em idade de casar e é bem jeitosa, apesar de selvagem e toda despenteada. Que futuro tem ela aqui, se o que dizes é verdade?
— O meu irmão e eu tivemos uma ideia, Hugh. — Era Lady Anne e eu senti que pelo menos aquela parte da conversação tinha sido bem preparada. — Ele... nós pensámos, já que não temos aqui companhia para ela, que Jenny podia ir para Northwoods por uns tempos. Richard vai voltar para lá amanhã e não vê qualquer dificuldade em que ela se junte ao grupo. Elaine tem várias companheiras jovens e disse que Jenny seria bem-vinda. Eu gostaria muito, Hugh.
— Está fora de questão. — A resposta de Red foi imediata e abrupta.
— Mais devagar — disse Richard com os olhos a semicerrarem-se-lhe. — Temos de pensar em Elaine, rapaz. A tua prometida. Não te esqueças que vou estar fora dentro em breve e a minha filha pediu isto como um favor especial da tua parte. Sente-se só em Northwoods, com o pai ausente. Uma novidade seria bem-vinda.
O meu coração fraquejou. Tinha poucas dúvidas do verdadeiro propósito daquele pedido. Não era companhia para a filha o que ele queria. Era a informação que eu lhe podia dar. E senti que o interesse dele pelo destino de Simon não era o de um simples tio solícito. Não, havia mais qualquer coisa, tinha a certeza. Red tivera razão ao suspeitar dos motivos do tio. Richard precisava de saber o que eu sabia e se o diria a outros. E estava pronto a fazer-me falar.
— Podia ser uma boa ideia, Hugh — disse a mãe dele cuidadosamente. — Sabes muito bem que a presença de Jenny trouxe algum... desassossego a esta casa e às pessoas da herdade. Já que Elaine foi tão amável em convidá-la, não fazia mal nenhum mandá-la para Northwoods por uns tempos. Aliviava um pouco a pressão, aqui. Talvez tenhas fechado os olhos ao que as pessoas dizem sobre ela e sobre... os teus motivos em tê-la aqui. É um assunto delicado. Mas esta decisão seria acertada, penso.
A boca de Red apertou-se. Pensei que o conheciam todos muito mal. Até eu o compreendia melhor. Ele não podia ser pressionado daquela maneira.
— A casa é minha e a decisão é minha — disse ele. — Se Elaine anda à procura de companhia, ela que nos venha visitar aqui, em Harrowfield. Porque será sempre bem-vinda. A essa sugestão... nem lhe dou atenção. E agora, esta conversa está terminada. — Dirigiu-se a Lady Anne e deu-lhe um beijo na face. — Boa noite, mãe. — Olhou para Richard, que estava de novo encostado à pedra da lareira, os olhos escondidos pelas pestanas, a curva da boca maldosa, perigosa. — Ides partir cedo, amanhã, certamente — disse Red. — Providenciarei uma escolta até à ponte.
Richard levantou as sobrancelhas.
— Despedes-te já? Muito obrigado. Podes ter a certeza que digo a Elaine que gostarias que ela te visitasse. Para ver como vão as coisas por aqui. É claro que ela tem que se encarregar de Nortwoods na minha ausência. Mas posso dispensá-la por uns dias. Porque, naturalmente, o casamento será aqui. Esta visita vai-lhe dar uma boa oportunidade para planear as festividades. No primeiro de Maio, Anne, creio que será mais apropriado. Não é preciso esperar pelo solstício de Verão. Desta vez, a minha campanha será rápida e mortal. Estarei de volta antes de teres saudades minhas.
CAPÍTULO DEZ
Seguiu-se aquilo que mais tarde recordei como os derradeiros bons momentos em Harrowfield. Richard tinha-se ido embora e a Primavera explodira no vale, como se celebrasse a sua partida. O meu pequeno jardim estava cheio de açafrão bravo florido, minúsculos narcisos amarelo-pálidos e ervas aromáticas. O Sol aquecia as paredes de pedra e a velha terrier esticava os membros e aventurava-se a explorar sob os lilases a florir. Levantava-me cedo e andava enquanto o ar era frio e o dia novo. Dessa maneira, quase podia imaginar que estava de regresso a Sevenwaters e que tudo estava bem de novo. Ou quase. Às vezes, ia até ao pomar, com as suas paredes cobertas de líquen, para lá encontrar Red, de capa pelos ombros, protegendo-se do frio, com o tinteiro ao lado, escrevendo no seu livro. Por vezes, sentava-me ao pé dele por um bocado e ele acenava-me com a cabeça em sinal de reconhecimento, continuando a escrever.
Pensava que o livro era uma espécie de registo da herdade, onde as trocas e os lucros eram marcados metodicamente, ano após ano. No entanto, podia ver que havia mais qualquer coisa, porque distinguia diagramas intrincados que pareciam mostrar as camadas por baixo do solo, as diferentes raízes das plantas e a maneira como a chuva caía e as alimentava; e aqui e ali a minúscula representação de uma árvore, folha, ou flor, feita com um controlo delicado. Aquele era o homem cujo tio censurava por brincar aos camponeses; cujas mãos eram tão grandes que engoliam as minhas. Gostava de ficar ali sentada, calmamente, encostada às pedras suaves do muro, vendo-o trabalhar. Outras manhãs, sentia necessidade de andar e ele punha de lado a pena e o tinteiro e caminhava comigo através da floresta de carvalhos cheia do chilrear dos pássaros, até ao topo da colina, da qual me tinha mostrado, pela primeira vez, a vastidão da sua herdade. Do rio ao cume dos montes, da estrada à linha do horizonte, todo o vale estava vestido de verde. Foram bons tempos, pacíficos. Não havia necessidade de palavras entre nós. Lentamente, o veneno da língua de Richard desapareceu-me da mente e eu voltei a confiar. Elaine veio e o seu comportamento era tão impecável como os seus vestidos elegantes e o seu cabelo brilhante e lindamente entrançado. Foi cortês para com Lady Anne, mas deixou bem claro que tinha as suas próprias opiniões e intenções para quando se tornasse senhora de Harrowfield. Foi encantadora com Margery e trouxe um brinquedo para o bebé, uma pequena criatura esculpida em osso, a qual ele podia morder, porque Johny já tinha o seu primeiro dente. Sentia que ela estava muito curiosa quanto ao meu papel na casa, mas, ao contrário do pai, atenuou-a com uma natural reticência e com aquilo que eu acreditava ser um forte sentido de justiça. Sentava-se de manhã com Margery e comigo, cosendo e via-me trabalhar sem, aparentemente, me julgar. Após o que me inspeccionou as mãos, perguntando primeiro se eu tinha alguma objecção.
— Sabes que algumas pessoas te acham louca, ou tocada no espírito — disse ela e os seus grandes olhos azuis olharam directamente para os meus. — Eu não acredito nisso. Creio que há um propósito, um propósito muito forte, para fazeres o que fazes. — Olhou para a manga da camisa que eu estava a tecer e para o cesto com as fibras espinhosas. — Há quanto tempo? Quantas? — Era a primeira pessoa que me perguntava aquilo directamente. Levei os dedos à boca e deixei depois ambas as mãos caírem para baixo e para fora.
Não posso dizer. Não devo falar disto.
— Sim, Red disse-me — disse Elaine gravemente. Pensei que a utilização daquele nome fazia dela um dos do círculo, um daqueles em quem ele confiava. Por que me surpreenderia tanto aquilo? No fim de contas, em breve estariam casados.
— Mas este trabalho não é para sempre, pois não? Deve ter um fim, um objectivo? Talvez me possas dizer isso. — Era tão insistente como o pai, à sua própria maneira. Abanar a cabeça poderia levar a um mal-entendido. Além disso, não me esquecia das palavras da Dama da Floresta. Tinha tornado bem claro que nenhuma palavra da minha história, nem uma única parte, podia ser contada, se queria libertar os meus irmãos do feitiço. Por meio de palavras, sons ou imagens. Em bordados, canções ou por meio de gestos. Fosse qual fosse a gentileza do pedido. E assim virei-me e não respondi às perguntas de Elaine.
Ela só ficou alguns dias. Passou muito tempo com Red, andando para cima e para baixo no jardim, conversando gravemente. Parecia que Elaine odiava estar inactiva; durante as manhãs, conseguiu planear o casamento todo com Lady Anne, enquanto acabava a bainha de um fino véu de cambraia sem esforço aparente. Ouvi-a concordar com o primeiro de Maio sem grande entusiasmo, tomando decisões rapidamente e sem demonstrar um grande interesse, quanto aos hóspedes que deviam ser convidados, ao que devia vestir e se seis pratos ou sete seria mais apropriado. Lidou com tudo como se estivesse a transaccionar a venda de um rebanho de ovelhas, ou a negociar as reparações de um celeiro, como parte de coisas a serem feitas com a maior eficiência possível. A própria cerimónia parecia ser de pouca importância para ela. Aquilo pareceu-me um pouco triste. Ela ia casar com um bom homem. Não encontraria melhor. Talvez se interessasse. Mas os Bretões são assim, fecham a sete chaves as paixões, onde ninguém as pode ver. À superfície, calmos e controlados. Por dentro, quem saberia?
Nas poucas vezes que vi Red e Elaine juntos, caminhando na direcção do rio ou sobre a relva, imersos em conversação, não vi qualquer abrandamento desse controlo. As maneiras dele eram polidas, as dela cuidadosas. Não seguravam as mãos um do outro, não davam o braço nem se tocavam um ao outro, como vira o meu irmão fazer com Eilis. E como, a deusa me perdoasse, vira o meu pai fazer com Lady Oonagh. Dei por mím a observá-los mais do que o necessário e voltei para o meu trabalho, sentindo-me vagamente inquieta. No fim de contas, pensei, o bem-estar daquela pequena comunidade dependia dele. Sentia-me pouco à vontade por ele e por ela, sentindo que algo estava errado. Houve uma manhã em que ela passou a manhã toda com Red nos jardins, sentados num banco por baixo dos lilases, andando em volta das cercas. Ela falava, falava, mexendo as mãos de tempos a tempos para dar ênfase a um determinado ponto. Ele dizia pouco. E então, à tarde, fez as malas e partiu. Alguns da sua casa ficaram, por causa do casamento. Uma cozinheira e um moço ou dois. Com os cumprimentos de Richard de Nortwoods.
Teriam discutido? Aparentemente, não. Red estava incomunicável, mas isso era costume. Era, por natureza, um homem de poucas palavras. As preparações para o casamento continuaram. O trabalho na herdade continuava a bom ritmo e o treino com espada e arco foi posto de lado a favor de actividades mais produtivas. Os homens estavam fora de casa a maior parte do dia, deixando-nos com os nossos trabalhos manuais e os nossos mexericos. Não que houvesse muitos; Lady Anne era muito severa quanto às línguas ociosas e àquilo a que podiam conduzir. No entanto, ouvi algumas coisas que preferia não ter ouvido. Por exemplo, que eu era uma feiticeira que lançara um feitiço sobre Lorde Hugh de maneira a ele me manter na herdade e que quando Elaine lhe pediu para me mandar embora e ele recusou, ela foi-se embora, zangada. Disse que não casaria com ele enquanto a bárbara do outro lado do mar não fosse despachada para o lugar de onde veio. Aquilo preocupou-me, se bem que estivesse inclinada a não acreditar, porque não vira qualquer má vontade de Elaine para comigo. Além disso, os seus sentimentos estavam sempre tão reprimidos que mal conseguia imaginá-la zangada com Red ou com outra pessoa qualquer. Quanto ao feitiço, já tinha ouvido essa. Se alguém lançara um feitiço sobre Lorde Hugh, não fora eu. E ele tinha as suas razões para me manter com ele, assim como eu tinha as minhas para ficar. A quinta camisa ia a bom ritmo e por fim comecei a acreditar que em breve aquela parte da minha história chegaria ao fim.
Havia outra coisa que se dizia e dessa eu gostava menos. Era sobre o encantamento demoníaco que existia no meu trabalho, o retorcido, tortuoso fiar e tecer do espinheiro (assim lhe chamavam). Era através daquela estranha actividade que eu espalhava a minha influência sobre a casa e, em particular, sobre Hugh. Viam muito bem que eram camisas, aquilo que eu fazia. Imaginara-os um povo sem lendas, mas uma vez a semente lançada, parecia que todas as damas, todas as camponesas tinham uma velha história sobre um vestido com poderes demoníacos, que queimava, ou envenenava, ou conduzia quem o vestisse à loucura. A ideia espalhou-se assustadoramente depressa e passado pouco tempo as pessoas nem se davam ao cuidado de baixar a voz, parecendo não se preocuparem com o facto de eu ouvir o que diziam de mim. Os meus amigos tentaram proteger-me, mas foi impossível.
Então, começaram a acontecer pequenas coisas. Escorreguei e sujei o vestido, quando andava a passear. Lady Anne deu-o a uma serva para o limpar, mas houve um contratempo e o vestido foi-me devolvido estranhamente manchado. Não o podia vestir. Mas era o único que eu tinha. Assim, usei-o até que Lady Anne, franzindo as sobrancelhas, me arranjou outro, ainda mais simples e deselegante do que o primeiro. Usei-o e mantive a cabeça direita. Em seguida, Alys desapareceu. O que me deixou frenética, porque me fez recordar Lady Oonagh e os estranhos e cruéis truques que utilizava em Sevenwaters e passei uma boa parte do dia à procura por toda a parte, tentando não mostrar o pânico que sentia. A minha mente recordava a minha fiel Linn, que morrera na floresta ao tentar proteger-me e quando pensava nela era assaltada pelas imagens daquele dia terrível, quando carregara o corpo dela através da floresta e esperara, chorando e sangrando, pelo regresso dos meus irmãos. Tentei acalmar-me o melhor que pude e procurei metodicamente pela casa, nos estábulos, no celeiro, por baixo das sebes, no pomar. Sentia-me muito só, nesse dia, porque Lady Anne mantinha Margery dentro de casa e os homens andavam ocupados na herdade. Podia ter pedido a Megan que me ajudasse a procurar, porque ainda se mantinha, de certo modo, amigável, mas estava a tratar de Johnny e não pude chamá-la.
Para o fim da tarde já estava a começar a ficar resignada quanto ao facto de não conseguir encontrar Alys; que algo de mau lhe acontecera.
Decidi esperar no meu jardim e pedir conselho a Ben, ou a John, quando regressassem. Mas não houve necessidade, porque, mal dobrei a esquina, perto da porta da cozinha, lá estava ela, sentada nos degraus de pedra do lado de fora do meu quarto, de olhar expectante, aparentemente nada cansada. Dei um suspiro de alívio e exaspero. Por onde andara ela durante aquele tempo todo? Como se atrevia a deixar-me ralada daquela maneira, a malandra? Não tinha a certeza se me apetecia rir ou chorar.
Só quando me aproximei é que percebi que nem tudo estava bem, ou era tão simples como eu pensara. Porque Alys arreganhou os dentes e rosnou. Aquele comportamento era comum; era famoso, na casa, pelo mau feitio, um dos privilégios da idade. Mas nunca mo fizera antes, a mim. Mantive-me uns passos afastada, para não a alarmar e inspeccionei-a cuidadosamente. Parecia bem. Talvez se tivesse assustado. Fosse o que fosse que a estava a aborrecer, precisava de lidar com ela com cuidado. Acocorei-me e aproximei-me. Ela rosnou de novo, arreganhando os beiços. Tremia, percorrida por grandes arrepios. Aterrorizada. Por mais que tentasse, não me deixou aproximar.
Recuei para a cozinha em busca de um bocado de toucinho. Os terriers gostam de comida e resistem-lhe com dificuldade. Devagar, muito devagar, aproximei-me dela, até ficar a apenas alguns passos. Então, sentei-me no chão, com o bocado de toucinho ao lado e pus-me a olhar para longe. Gradualmente, os rosnidos desapareceram, Passado um bocado, moveu-se vagarosamente; e ouvi o som furtivo de maxilas a mastigarem. Já podia olhar para ela com segurança.
Não fora ferida. Simplesmente, estivera presa e estava assustada. Para descobrir quem o fizera, talvez tivesse que procurar mãos com sinais de dentadas. Porque o que lhe tinham feito perturbara-a muito. Pude ver que na parte de trás do dorso, no longo pêlo de arame, estava raspado um rude e inequívoco sinal. Um símbolo que eu vira pintado sobre as portas, como protecção contra as bruxas. Um sinal que eu vira ser feito com os dedos, contra o diabo. Uma mensagem destinada a mim. Feiticeira, vai-te embora. Porque desta vez não a tinham ferido, talvez lembrando-se do antigo dono.
Talvez tivessem sido só crianças. Uma brincadeira. Talvez não tivesse importância. Assim, não disse nada, ao jantar, tentando comportar-me como se nada tivesse acontecido, porque não queria juntar achas à fogueira. Mas como Conor me disse uma vez, eu não era muito boa a esconder o que sentia. Não era como alguns. Margery perguntou-me se estava tudo bem e eu disse que sim, Ben disse que eu parecia cansada e eu sorri. John tentou fazer-me comer; estavam sempre a tentar fazer-me comer, mas o meu corpo estava habituado ao jejum, aceitando apenas pequenas quantidades da mais simples das comidas. Um pouco de pão, alguma fruta, uma taça de cerveja. Ocasionalmente, queijo. Todos pensavam que passava fome de propósito, mas não era verdade. Além disso, fazia com que a minha mente se concentrasse melhor. Lembro-me de o padre Brien ter dito isso, uma vez.
Olhando para um e outro lado da mesa e para os membros da família comendo, bebendo e conversando entre si, imaginei quanto me imaginavam uma ameaça. Porque eram, na sua maior parte, boas pessoas, trabalhadeiras, honestas, que davam valor à sua vida simples e ordeira. Red provia a todos, viviam em segurança, retribuindo com trabalho e lealdade. A minha presença era como uma constante perturbação numa poça tranquila; as pequenas ondulações na superfície espalhavam-se, espalhavam-se e desequilibravam tudo. Alguém se preocupara com isso, agindo contra mim. Até agora, apenas pequenas coisas; mas eu sentia-me muito pouco à vontade, porque as pequenas coisas podiam levar às grandes, vira isso muito bem quando Lady Oonagh foi para Sevenwaters. E eu estava tão perto do fim da minha tarefa, cada dia mais perto. Liam, Diarmid, Cormack, Conor, Finbar, cuja camisa de morugem avançava rapidamente, porque eu trabalhava muito e depressa, esquecendo a dor. Em breve só faltaria uma camisa, o feitiço seria quebrado e eu voltaria para casa. Desde que pudesse terminar a tarefa. Em resumo, pensei ir ter com Lady Anne e contar-lhe o que acontecera à cadela, porque sabia que ela reprovava um comportamento tão maldoso na sua casa, por pior que pensasse de mim. Mas contar-lhe era acrescentar lenha ao argumento da minha ida para Northwoods e essa perspectiva assustava-me imenso. Havia algo de demoníaco no tio de Red, uma ameaça nos seus olhos e nas suas palavras, que me gelavam quando na sua presença. Preferia fugir a ir para casa dele. Viveria sozinha, de novo. Decidi não dizer nada a ninguém sobre o que acontecera a Alys. Fiz de conta que não era nada. No fim de contas, que poderia fazer, fosse quem fosse?
Não contava com Red. Foi um erro. Nessa noite, estava eu a coser no meu quarto, à luz da vela, quando ouvi baterem à porta. Não podia dizer «Quem é?» e, depois de tudo o que se passara, não ia abrir às cegas. Então, ouvi a voz dele.
— Abre a porta, Jenny.
Fui até à porta com o trabalho nas mãos e abri o ferrolho. Que estava ele ali a fazer? Era suposto ser a noite de guarda de Ben.
— Sai cá para fora — disse Red. — Quero ver-te o rosto.
Porque estava de costas para a vela. Deixando a porta aberta, saí para o jardim, onde a Lua espalhava uma luz suave e fria sobre a folhagem azul-esverdeada da alfazema e do absinto.
— Olha para mim — disse ele. — Olha para mim como deve ser.
Encontrei o olhar dele, achando que parecia cansado; os dias no campo tinham sido longos, mas as rugas em volta do nariz e da boca mostravam algo mais do que o agradável cansaço do corpo após o trabalho e parecia mais magro.
— Muito bem — disse ele. — Agora, diz-me o que se passa.
Conhecia-o o suficiente para saber que não tinha escolha, senão contar-lhe. Como ele dizia, não gostava de brincar. Assim, mostrei-lhe por meio de gestos cão... ir embora. Eu, procurar... preocupada. Utilizei a mão para demonstrar a passagem do Sol pelo céu, todo o dia. Depois, tive que lhe segurar na manga e levá-lo para dentro do quarto, onde Alys reclamara o seu lugar na enxerga e onde estava quase a adormecer, enroscada nos cobertores. A cadela rosnou profundamente quando nos aproximámos e os arrepios recomeçaram.
Red olhou para a marca no dorso e não disse nada; mas as rugas do seu rosto eram bem nítidas à luz da vela e os lábios cerraram-se-lhe. Voltámos para o jardim e ele fez-me sinal para me sentar no degrau da porta, enquanto ele encostava o grande corpo à parede a meu lado. Ficámos silenciosos por um bocado.
— Não me ias dizer nada acerca disto — observou ele. — Por que não?
Encolhi os ombros.
Por que te havia de dizer? Que poderias fazer?
Red franziu as sobrancelhas, ao mesmo tempo que olhou para mim. Não falou durante algum tempo; ao luar, os seus olhos tinham a cor clara da primeira vez em que nos encontrámos, azul-matinal e havia recordações nas suas profundezas.
— Quero perguntar-te uma coisa — disse ele por fim e agora olhava para as mãos, como se não quisesse encontrar o meu olhar. — Naquela noite... Daquela vez nas cavernas, antes de termos atravessado a água. Foram tempos estranhos. Tenho pensado... Tenho pensado que talvez eu tenha tido febre nessa noite, por causa da perna. Porém, as recordações são... — interrompeu-se, batendo com a bota no chão, falhando, miseravelmente, o que queria dizer. Podia encontrar as palavras por ele, se não estivesse forçada ao silêncio. Após uns momentos, olhando para mim de lado e para longe, tentou de novo.
— Por vezes, acordo de noite — disse ele — de um sonho tão vívido, que até parece que aquele mundo escuro é que era o real, e este uma fantasia. Tenho-o tido várias vezes. Perturba-me, saber que tenho tão pouco controlo sobre a minha mente. Já alguma vez sentiste isto?
Abanei a cabeça. As Criaturas Encantadas brincavam com os nossos pensamentos, não havia dúvida. E o homem da nossa aldeia, Eergal, que perdeu o juízo por completo, depois de o terem levado, provocado e atirado de novo para este mundo? Mas a minha mente, nunca ma tinham levado, se bem que quase a tenha perdido devido aos meus medos. Fiz sinal para Red: Fala. Diz-me o resto.
— Essa noite — disse ele hesitantemente. — Foi a mais vívida de todas. E depois, pensei por um momento... mas não, não podia ser. Suponho que aquelas imagens foram o produto da febre, da doença, provocada pelo choque e pela exaustão. Geralmente, não sou assim tão fraco. Mas na ocasião, pensei... Diz-me, será possível teres partilhado esse sonho comigo? Será possível saberes o que me foi dito? Havia uma vela, ainda a tenho. Mas, como podia haver uma vela? E por que é que ainda oiço as vozes deles no meu sono? Estou a perder o juízo? Já ouvi falar dessas coisas, entre outras. No entanto, sinto-me melhor do que nunca. — Suspirou. — Desculpa Jenny. Mas, com quem poderia eu falar destas coisas? Quem me ouviria, sem me chamar louco?
Aquilo fez-me sorrir. Quem, senão uma rapariga louca, compreenderia pensamentos loucos? Pensei se conseguiria explicar-lhe. As minhas mãos moveram-se e eu falei calmamente, ao mesmo tempo que ele tentava interpretar os meus gestos. Duas mãos, cada uma ligeiramente em concha, separadas, encostadas uma à outra, como as conchas do mar.
— Duas coisas. Dois mundos?
Acenei com a cabeça. Juntei as mãos. Mostrei-as por cima, por baixo.
— Dois mundos, um por cima e o outro por baixo? Um é o espelho do outro. Dois mundos que se juntam e tocam? Então, a qual pertences tu? Também és uma criatura desse outro mundo, do reino dos sonhos e das fantasias? Vais-te desvanecer um dia, como eles fizeram naquela noite, deixando-me na escuridão?
Abanei a cabeça. Apontei para mim própria e depois para a mão ainda erguida, em concha, para baixo.
Eu sou deste mundo. Gesticulei de novo. Como tu. A parte seguinte era mais difícil. Tentei mostrar-lhe que havia um elo, um laço, entre um mundo e outro. Mas cuidado; havia algumas coisas que eu não devia dizer, mesmo através de sinais. Red acenou com a cabeça lentamente.
— Eu ouvi as vozes deles — disse ele. — Compreendi-as, se bem que não conseguisse dizer em que língua falavam. Quem eram eles, Jenny? Como é que eles te compreendiam, como é que te ouviam, se tu não tens voz?
Mostrei-lhe o mundo de baixo, de novo. Duas. Duas pessoas, muito altas. Desenhei um círculo em volta da minha cabeça, tentando indicar uma coroa. Era o melhor que conseguia explicar-lhe.
— Um rei e uma rainha desse outro reino?
Acenei com a cabeça. Já estava perto. Precisava de melhorar os gestos, ou ele melhorar na tentativa de compreender. Em seguida, tentei responder à pergunta seguinte.
— Boca, palavras não. Mente, pensamentos ouvidos, ouvir. Ouvir sem palavras. Nesse caso, eu não posso ouvir-te?
Olhei e apontei para ele, calmamente e fiz um movimento com a mão à minha volta, mostrando-lhe o lugar a que pertencia. O lugar a que também lhe pertencia a ele.
Tu és um bretão. Encolhi os ombros. Que esperavas?
Creio que o ofendi. A boca cerrou-se-lhe um pouco mais, se possível e os olhos ficaram um pouco mais frios. Fosse qual fosse a resposta que esperava de mim, não era aquela. Só passado um bocado voltou a falar.
— Se eu acreditar nisto — disse ele — tudo muda. Tudo. — Sentou-se no último degrau, de costas para mim, olhando para as mãos entrelaçadas. Tive que mudar de posição para ele poder ver o que eu tentava dizer.
Não. Não é preciso. Tu, aqui; tudo à tua volta. As tuas árvores; o teu povo. Tudo como deve ser. Eu vou-me embora. Para longe, para o outro lado da água. Para casa. Tu esquecer.
Limitou-se a olhar para mim.
— Não é assim tão simples — disse ele — sabes tão bem como eu. Como podes ter esquecido? Já te disse, as vozes deles estão nos meus sonhos, esse mundo está perto, faz parte de mim, quer queira, quer não. Quer acredite, quer não. E tu estás aqui.
Eu vou-me embora. Apontei para ele e cruzei as mãos no peito. Tu prometeste Eu sobre a água, para casa
— Não me esqueci — disse Red suavemente. — Não me esqueço e manterei a promessa, ou outra qualquer que faça. Fala-me do meu irmão e farei com que regresses a casa sã e salva. Custe o que custar. Mas... as coisas nunca mais voltarão a ser o que eram. É impossível. A cada dia que passa, mais tenho a certeza.
As palavras dele perturbaram-me. Sabia que a minha presença em Harrowfield tinha abalado uma casa até então ordeira e feliz. Lamentava-o e gostaria de o poder alterar. Mais do que isso, incomodava-me ouvir as pessoas falarem de feitiçaria e encantamentos, que teriam enredado o seu senhor. Porque suponho que sentiam o mesmo que eu sentira quando Lady Oonagh fora para Sevenwaters e lançara a sua rede sobre o meu pai. Só que aqui, a bruxa era eu. Mas eu era empurrada pela necessidade de completar a tarefa e salvar os meus irmãos. Nada mais interessava. E para o fazer, precisava de ficar sob a protecção de Red. Pensei que quando a tarefa terminasse ir-me-ia embora e a tranquila poça acalmaria de novo, como se eu nunca ali tivesse estado para perturbar a sua tranquilidade. Nunca pensara em como isso afectaria Red. Talvez porque me fosse difícil falar-lhe do irmão, como terei um dia de o fazer, se ele me deixar ir embora.
Ajoelhei-me em frente dele, de maneira que ele tinha de olhar para mim. Tentei mostrar-lhe um espelho do próprio rosto.
Tu cansado. Tu triste, preocupado. Aquilo provocou-lhe uma espécie de careta desconsolada. Não gostava que a conversa se virasse para os seus próprios sentimentos.
— Falta de sono, suponho. Acontece quando se acorda de noite com demónios a sussurrarem-nos aos ouvidos. Mas, como podes tu saber o que isso é? — Atirou a observação ao acaso, mas parou imediatamente, quando viu o meu rosto mudar. Por um momento, os meus demónios nocturnos particulares voltaram e devo ter ficado, de repente, branca como a cal.
— Desculpa — disse ele numa voz diferente, tão diferente que até podia vir de outro homem. — Desculpa. O que é que eu disse? — A mão dele estendeu-se, muito gentilmente, na direcção da minha face; mas eu afastei-me um pouco, só até ficar fora de alcance. Abanei a cabeça e fiz um movimento com a mão, como que a afastar a importância do momento.
Nada. Não é nada.
— Ainda tens medo de mim — disse ele suavemente. — Não vês que não seria capaz de te magoar?
Mas magoaste, pensei. Com as tuas mãos, com as tuas palavras. Cruzei as mãos sobre o peito, as mãos tocando nos locais onde ele me tinha feito nódoas negras. Quando estava tão zangado, mais zangado do que nunca.
E então ele disse:
— Quem me dera que falasses comigo.
A voz dele baixara ainda mais, como fazia por vezes quando tentava controlar-se. Não sei como, mas tinha-o perturbado. Não há dúvida de que é assim que queres, pensei. Logo que eu falar, podes ver-te livre de mim e continuar com a tua vida. Uma coisa a menos com que te preocupares. De volta ao normal, seja o que for que penses agora. Porque hás de esquecer, como todos os homens.
— Quero ouvir a tua voz — disse ele. — Quero... mas, o que é que interessa?
Era como se pegasse nas palavras e as canalizasse para onde pensava que deviam estar. Para terreno seguro. Controlado. Não dizer o que se sente, apenas dizer o que deve ser dito. Imaginei que mais tarde se sentiria arrependido por falar naquela ocasião de maneira tão livre.
— A tua segurança, temos de pensar nisso — disse ele. Era Lorde Hugh de Harrowfield que falava, agora. — Penso que posso fazer mais qualquer coisa. Primeiro, falarei com a minha mãe. Ela há de franzir as sobrancelhas a tais brincadeiras, há de descobrir o culpado e fazer com que não se repita. A longo prazo... pode ser que haja uma solução. É óbvio que precisarei de tomar uma atitude, mas isso não será do teu gosto.
O quê? Que solução? Estava-me a deixar preocupada. Não me ia mandar para Northwoods? Ou ia?
— Pode ser que não seja necessário — disse Red, levantando-se. — Mantenhamo-nos em guarda. Se for preciso fazer mais alguma coisa, fá-la-emos. Mas o meu tio não está cá e não conheço mais ninguém que possa ser uma ameaça para ti. — Olhou para mim interrogativamente. Encolhi os ombros. Era demasiado assustador pensar que Lady Oonagh poderia vir ali procurar-me, em Harrowfield. Recusava-me a acreditar em tal. — Por agora, creio que estás segura em minha casa. Se não te posso prometer isso, não sou grande protector.
As minhas mãos moveram-se rapidamente.
Não. Não prometas o que não tens a certeza de cumprir. Não faças uma promessa que não podes cumprir. Não sei se ele compreendeu.
— Está a ficar frio — disse ele. — É melhor ires para dentro. Tranca a porta e dorme. Eu fico de guarda esta noite.
Parecia que me estava a mandar embora. Levantei-me, entrei e virei-me para fechar a porta.
— Jenny — disse ele. Estava de pé nos degraus da porta e essa diferença nas duas alturas fez com que me pudesse olhar a direito nos olhos. Levantei as sobrancelhas, interrogativamente.
— Na próxima vez, fala comigo. Logo. Não guardes para ti. Por mais pequeno que seja o assunto, por mais trivial, diz-me. — Podia aparentar ter afastado a ameaça à minha segurança, mas lá dentro continuava preocupado. Profundamente preocupado.
Acenei com a cabeça e fechei a porta. Mas na vez seguinte não houve necessidade de lhe dizer. Porque na vez seguinte não foi uma brincadeira de crianças, não foi uma maldade perpetrada pelo meu inimigo. Foi uma coisa muito pior, que levou a uma trágica viragem dos acontecimentos, que acordou um profundo terror do espírito, que trouxe a força do demónio ao tranquilo vale e assustou a casa de Harrowfield. E fui eu que a causei.
Aconteceu em duas etapas. A primeira foi difícil, pelo menos para mim; mas não foi nada, comparada com a segunda. A primeira foi uma trapaça, uma cruel trapaça. A segunda, foi um assassínio.
A Primavera avançava, subitamente o primeiro de Maio estava a chegar e o casamento era uma realidade. À minha volta a actividade era fervilhante, mulheres cosendo tecidos maravilhosos, tagarelando sobre o baile e a festa e sobre outros aspectos do casamento iminente que eu preferia não ouvir. Tentei bloquear a conversa delas. Continuei a fiar e a tecer a minha morugem e dei forma à camisa de Finbar. Enquanto trabalhava, imaginava o meu irmão pendurado dos telhados de lousa de Sevenwaters, com o vento de oeste brincando com os seus caracóis negros e os olhos cheios de sonhos. Imaginei-nos aos dois a correr através da floresta num belo dia de Primavera e Finbar esperando que eu o apanhasse. Depois, sentada ao lado dele no galho de um carvalho, ouvindo em silêncio, enquanto a floresta respirava à nossa volta. Pensei em Finbar, como o vi da última vez, depois de me ter dado tanta da sua força que mais nenhuma lhe restou. Cosi o meu amor pelo meu irmão à camisa dele por meio de cada ponto doloroso. Trabalhei muito e a camisa cresceu rapidamente. Tentava não ouvir os murmúrios das mulheres enquanto trabalhavam, como faziam quando Lady Anne estava ausente. Mas não podia deixar de as ouvir por completo. Assim, ouvi muitas opiniões sobre Lorde Hugh, incluindo a de que todas as raparigas da aldeia lhe faziam olhos de vaca de como era um homem tão forte e alto bem proporcionado, não sei se percebes. Além disso, sabes o que se diz dos ruivos. Era uma pena, realmente, que ele não sabe, que ele seja tão metido consigo. Falava-se, pelo menos ela tinha uma amiga, que era amiga de uma amiga, que tinha uma prima que uma vez e ela disse que qualquer rapariga que passasse uma noite com ele ficava logo a saber a sorte que tinha. Uma vez deitada com ele, nunca mais quereria outro.
Forte como um touro, manso como um cordeiro, riu por entredentes uma das mais velhas. O sonho de qualquer rapariga. O irmão dele era na mesma, mesmo com 16 anos. Pobre rapaz.
Houve alguns olhares acerados na minha direcção, juntamente com alguns sussurros.
— Ela? — zombou uma delas. — Não me parece. Por que havia ele de olhar para ela quando pode ter a Elaine? Quando pode ter as que quiser, basta fazer um sinal?
— E quem é que quer uma delas? — disse outra. — Além disso, é tão magricela, uma coisinha tão deslavada. Não tem nada para um homem agarrar. Os seios parecem maçãs verdes e as ancas parecem as de um passarinho. O que é que um homem como ele havia de querer de um pardal daqueles? E com aquelas mãos horríveis.
— Ehhh! — Lady Anne estava de regresso e a conversa virou-se, subitamente, para os relativos méritos dos rebuçados de mel e das violetas cristalizadas. Senti os lábios comprimirem-se até ficarem da espessura de uma linha e durante um momento a vista nublou-se-me, mas não permiti que as lágrimas caíssem. Odiava ouvi-las falarem daquela maneira, porque a ideia de Red e uma mulher qualquer, deitados juntos e a fazer a fazer aquilo, punha-me doente. Como podiam elas falar assim do acasalamento do homem e da mulher, como se como se fosse algo alegre, algo que se deseja ardentemente e do qual se ri? Eu via-o como uma coisa brutal, dolorosa, uma experiência que manchava, envergonhava e aterrorizava. No entanto, no fundo do meu coração, tinha de reconhecer que devia ser mais do que isso, porque vira John e Margery olhando um para o outro, tocando-se com as mãos e testemunhara a mesma mensagem sem palavras, sem fôlego, passando do meu irmão Liam para a sua prometida. Mas aquilo não era para mim. Nunca olharia para os olhos de um homem como Eilis para os de Liam, com tal ardor que lhe ruborizava as faces. Nunca passaria a mão, suavemente, pelo pescoço de um homem, como Margery fazia ao do marido, quando pensava que ninguém estava a olhar. Eu estava ferida; já não era virgem. Ocorreu-me que, se houvesse um futuro para mim e para os meus irmãos, isso seria um problema. O meu pai, sem dúvida, gostaria de me casar, de maneira a fortalecer a posição estratégica de Sevenwaters. Mas teria dificuldade em encontrar um pretendente. Além disso, eu nunca concordaria. Em vez disso, seria como uma vez disse a Diarmid, há tanto tempo que mal me lembrava. Tornar-me-ia numa velha, resmungando e falando de ervas, misturando poções, para os necessitados. Não fora isso o que eu sempre desejara? Simplesmente, agora, já não me parecia o suficiente.
Os meus dedos continuavam a trabalhar, ao mesmo tempo que os espinhos da planta os punham vermelhos, cheios de borbulhas e ásperos. As mulheres tinham razão. Eram umas mãos muito feias. À medida que trabalhava, contava para mim própria uma história acerca de umas mãos semelhantes. Nessa história, a rapariga tinha que trabalhar nas cozinhas de uma grande casa durante sete anos, para conseguir o seu amado. Sete anos a esfregar chãos, a despejar baldes, incharam-lhe as mãos e calejaram-lhe as palmas. No fim da história, a fiel rapariga reuniu-se por fim, com o seu amado. Quando ele a abraçou, lhe levou os dedos aos lábios e as lágrimas lhe caíram em cima, olhai, tornaram-se, de novo, esguios e pequenos, e quando ela os esticou para lhe tocar no rosto, as suas palmas eram tão brancas e finas como as de uma rainha. Mas o seu amado ficou espantado quando ela lhe contou a história, como trabalhara aqueles sete anos e as mãos lhe tinham ficado feias e horríveis. Porque quando finalmente a encontrara, a apertara nos braços e pressionara os lábios contra as palmas ásperas das mãos dela, sentira que eram as mãos mais maravilhosas do mundo.
Uma tarde, Margery levou-me aos alojamentos dela e deu-me um presente. Da parte dela e de John, disse, porque me queriam agradecer pela dádiva da criança. Fizera-me um vestido novo; mais próprio para o casamento do que aquele que vestia. Era encantador, bastante simples, mas moldado para servir na perfeição, de lã suave e clara, de um tom algures entre o azul e o alfazema, como o crepúsculo de um dia de Verão.
Em volta do decote e da bainha havia um rendilhado de vinha virgem, folhas e pequenas criaturas aladas, bordadas num azul-escuro. Era um presente de amor, pus os braços em volta da minha amiga e abracei-a. Não lhe disse que não fazia tenção de vestir aquele vestido, que me realçava a figura e despertaria os olhares dos homens. Sentia-me mais confortável, mais segura, no velho vestido caseiro, que bem podia ser um saco de batatas, tão mal me caía. Mas aquele era um presente precioso, que devia ser usado com um sorriso. Assim, experimentei-o e ela ficou excitada, fazendo uma prega aqui e dando um ponto ali, até se dar por satisfeita. Johnny observava-nos do berço, de olhos esbugalhados. Estava a ter um trabalhão para se virar, ficando ora de barriga para baixo, ora de barriga para cima. Ainda não tinha adquirido grande habilidade, mas a julgar pelos gemidos, não demoraria muito.
Margery entrançou-me o cabelo nas costas, misturando as tranças com fitas de alfazema. Era um bom exercício para o casamento, explicou.
— Pronto — disse ela. — Olha para o espelho, Jenny. Fazes justiça ao meu trabalho, rapariga. Tens de deixar de te esconder.
Não tinha qualquer desejo particular de me ver a mim própria, tendo desistido dos espelhos devido a Lady Oonagh. Mas olhei, pensando ver a pequena escanzelada das conversas das mulheres. Em vez disso, vi uma estranha pequena e delgada ou talvez nem isso, porque a pessoa que me olhava com gravidade tinha algo do visionário e longínquo olhar de Finbar, um arco das sobrancelhas que vira no rosto de Diarmid e bem, não havia dúvida que era a filha de Lorde Colum. Mas mudada. Eles tinham razão, tinha crescido, era agora uma mulher. O vestido suave tocava no corpo e ficava colado, aqui e ali, caindo em folhos graciosos pelas ancas. Seria sempre pequena e delgada, mas aquele vestido mostrava o volume arredondado dos meus seios, bem acima do decote descido. Já não era a criaturazinha selvagem que correra, livre, com os irmãos, na floresta. O meu rosto ainda era muito delgado, mas os grandes olhos verdes, o nariz pequeno e estreito e os lábios curvos não eram os de uma criança. Tinha a pele pálida do meu povo e pequenos cachos de cabelo escuro escapavam-se da trança para se enrolarem em volta das sobrancelhas e das têmporas.
— Fica-te uma maravilha — disse Margery, contente com o seu trabalho. Voltei a sorrir, beijei-a na face e fingi, convincentemente, que estava contente. E estava, na realidade; adorava o presente pela sua beleza e pelo amor que lhe estava adjacente. Simplesmente, não o queria usar. Ainda não. Não no casamento de Red, de qualquer maneira.
Para complicar as coisas, antes de ter tido tempo de mudar para o vestido caseiro, os três homens voltaram para casa e foram directamente para os alojamentos de John, cheios de planos para o primeiro dia de tosquia da Primavera. John entrou à frente dos outros e olhou para ambas; deu um beijo na mulher e levantou o filho nos braços.
— Que bem que te fica, Jenny — disse ele no seu tom sóbrio. — Muito bem, de verdade.
E Ben, que entrou a seguir, deu aquela espécie de assobio que os homens dão quando gostam de uma rapariga que vai a passar. Eu estava acostumada a Ben; sabia que não o fazia por mal; e assim sorri para ele antes de afastar o olhar. Olhei a direito para os olhos de Red, que estava à entrada, a olhar para mim. Estivera a falar e parara a meio de uma frase. Lentamente, também os outros se calaram e uma certa tensão instalou-se na sala. Subitamente, descobri que não queria encontrar o olhar de Red, com medo do que pudesse encontrar nos olhos dele, peguei no vestido caseiro, dirigi-me para a saída roçando-lhe o braço à passagem e fui para o meu quarto, aferrolhando a porta. Ali despi o vestido azul, vesti o velho e tirei as fitas do cabelo, enquanto a pequena cadela me observava, os olhos redondos e ramelosos cheios de simples afeição. Dobrei o presente de Margery, meti-o na arca juntamente com as fitas e fechei-a. Em breve meteria ali a quinta camisa, só faltando uma. Aquela arca guardava as vidas da minha família na sua simples estrutura de carvalho. Liam, Diarmid, Cormack, Conor, Finbar, Padriac, Sorcha. Porque vós sois aquela mulher no espelho, disse para mim própria. Já não és uma criança, por mais que o desejes. És uma mulher com corpo de mulher e já não pensas, ou sentes, como em Sevenwaters, quando corrias, selvagem, pela floresta e as árvores estendiam as suas copas para te protegerem. Os homens vão olhar para ti. Mentaliza-te, Sorcha. Não te podes esconder para sempre. Eles vão olhar para ti com o desejo nos olhos. Foste violada e já não és virgem. Mas a vida continua. Parecia lógico. Mas continuei a pensar que nunca mais sentiria o toque de um homem sem sentir medo. A conversa das mulheres fazia-me estremecer. Mostrar o corpo envergonhava-me. Não poderia olhar de novo para os olhos dos meus amigos, com medo do que pudesse ver neles.
Mais tarde fui até ao pomar, depois de me certificar de que não havia ninguém nas redondezas. Sentei-me na relva, por baixo de uma velha macieira, em cujos ramos nodosos as flores davam lugar aos primeiros frutos verdes. Red e eu tínhamos, em tempos, partilhado uma maçã. Parecia ter sido há muito, muito tempo, noutro mundo. Noutra história. Falei com as Criaturas Encantadas, mentalmente. Falei com a Dama da Floresta. Se algum deles estivesse por perto, naquela terra estrangeira, se algum me pudesse ouvir, seria num lugar como aquele, sob as árvores. Desejei estar no coração da floresta de carvalhos, mas fora proibida de lá ir sozinha. Concentrei-me na mensagem e enviei-a com todas as minhas forças. Deixai-o ir, disse. Libertai-o do vosso feitiço. Não estais a ser justos. Ele nunca soube as regras.
Tudo estava tranquilo. Não havia maneira de saber se alguém me estava a ouvir. Não ouvia risadas nem vozes por entre a folhagem. Ele é um bom homem. Talvez o melhor da sua raça. O que estais a fazer é errado e não o permitirei. Libertai-o. Libertai-o desta obrigação para comigo e devolvei-lhe o sono e a vontade. Esperei uns momentos, mas não houve qualquer som, apenas o leve passar do vento pelos ramos e a respiração de Alys. Magoa-o, o fogo na cabeça. Vós magoai-lo. Cometestes para com ele uma injustiça, fazendo-o meu protector. Além disso, eu posso tomar conta de mim própria. Ele arrisca-se a negligenciar os seus; eles precisam dele mais do que eu. Libertai-o do vosso feitiço.
Depois de terminar, permaneci sentada, quieta, à medida que a luz do dia se desvanecia, esperando, com todo o meu coração, ouvir uma resposta, um reconhecimento de que o outro mundo ainda existia, nesta terra de cépticos, de incrédulos, de pessoas práticas, terra-a-terra o que chamara Richard ao sobrinho idealista emproado? Não fora justo. Red era um homem difícil de entender; mas eu ouvira-o falar com o coração, inseguro e confuso. Sabia-o capaz de ira, ferocidade e grande coragem. Tinha sentimentos, tal como eu. O tio julgara-o mal e um dia teria a prova disso.
Não houve qualquer resposta no pomar. Se as Criaturas Encantadas me ouviram, não o deram a entender. Pelo menos, hoje. Não que isso quisesse dizer alguma coisa, porque eram sempre instáveis e brincalhões quando lidavam com gente da nossa espécie. Bem, dissera o que tinha a dizer e pronto. Por agora.
Ou foi um servo desastrado, ou uma rajada de vento, ou algo mais sinistro. Nunca ninguém descobriu. Fechei a mente ao pensamento de que Lady Oonagh podia estar por trás daquilo, porque era uma ideia demasiado aterradora. As forças do mal são poderosas e não podem ser contidas facilmente. Aconteceu quando estávamos a jantar nessa noite, eu a debicar bocadinhos de cenoura e cebola, Margery a observar-me do outro lado da mesa, John e Ben discutindo amigavelmente acerca da tosquia. Não me lembro do que senti primeiro, se o cheiro do fumo, se a voz de Megan entrando a correr, vinda do átrio.
— Fogo! Há fogo no salão!
A casa era tão disciplinada como o seu chefe. Os homens deixaram os seus lugares rapidamente e sem espalhafato. Apareceram baldes e formou-se uma cadeia, enquanto Lady Anne dirigia os restantes para o exterior. John subiu as escadas a correr, o rosto branco como a cal; reapareceu com o filho ao colo, aos berros, para alívio de Margery, porque os alojamentos deles estavam suficientemente perto para estarem em perigo. Johnny ficou assustado com aquele súbito acordar; o pai tranquilizou-o com algumas palavras sopradas em voz baixa e quando ele se acalmou de novo, deu-o à mãe e voltou para o local do incêndio. Esperámos no pátio, vendo o fumo negro sair das janelas superiores. Figuras passavam em frente da luz tremeluzente, o fumo tornou-se branco e finalmente nada mais restou senão um cheiro acre no ar nocturno. Fora um exercício de eficiência. Não houve feridos. Rápido e eficiente. Não houve grandes prejuízos.
— É melhor vires cá acima — disse Red, aparecendo ao meu lado com a boca num esgar. — Precisas de ver isto. Receio que não sejam boas notícias.
— Meu senhor? — Um dos servos esperava. — Quereis os detritos limpos imediatamente?
— Ainda não — disse Red. — Acabai de jantar, bebei uma cerveja. Eu, depois, chamo-vos.
Segui-o até ao grande salão, evitando pensar. Ficámos ali os dois por um momento. O fogo tinha terminado. No andar de baixo, os baldes estavam a ser arrumados e as pessoas voltavam para a mesa, as vozes animadas.
Fora um fogo estranho. Mais do que estranho. Um dos cantos do salão estava praticamente intocado. Lá estava a cadeira direita de carvalho de Lady Anne com o espaldar gravado, o bastidor dos seus bordados com o intrincado trabalho de um unicórnio e vinha virgem esticado, são e salvo. Lá estavam os cestos de lã, os utensílios de fiar e os pequenos teares manuais. Mas o ar estava pesado do fumo e no canto em que Margery e eu nos sentávamos para trabalhar estava tudo negro. O fogo queimara as tábuas do soalho, os bancos ao longo das paredes e as vigas por cima. Aranhas jaziam, penduradas nos fios das suas teias. O meu fuso e a minha roca eram paus calcinados, o meu banco um monte de carvão. O cesto que continha o resto de morugem era um monte de cinzas. E no chão, quase irreconhecíveis, estavam os frágeis restos queimados da camisa meio acabada de Finbar, que eu deixara sobre o cesto, pronta para continuar no dia seguinte. Encaminhei-me para ela como num sonho, acocorei-me e estendi uma mão para lhe tocar. Desfez-se sob os meus dedos. Imaginei Finbar como o vira pela última vez, desinteressado, entre os dois irmãos, como se a vida lhe tivesse fugido. A sombra de um homem. Vi-lhe os olhos, em tempos cinzentos-claros, profundos como o céu de Inverno, selvagens, confusos e aterrados, tentando transpor o abismo entre o animal e o homem. Segurei nas mãos as cinzas da camisa dele; senti-as deslizarem-me pelos dedos e dispersarem-se.
— Jenny, minha querida. — Olhei para cima, sobressaltada. Lady Anne andava tão silenciosamente como o filho, quando queria. Estava ali ao pé dele, de sobrancelhas franzidas. — Lamento muito. Mas deve ter sido um acidente. Um descuido. Uma rabanada de vento. É claro que te substituo as coisas que perdeste. Temos fusos e rocas suficientes. — Red não disse nada; olhou para o fogão, que estava a alguma distância, a meio da parede; olhou para as chamas. Olhou para mim. Eu não chorava. Os meus dentes estavam cerrados, para evitar que chorasse.
— Hugh — disse Lady Anne. A voz dela soava como devia soar quando ele e o irmão mais novo eram crianças e ela os chamava por ainda não se terem ido deitar, ou por roubarem empadas da cozinha. — Depois disto, tens que pensar seriamente na possibilidade de a mandares embora. Uma coisa destas é intolerável. Tens de pensar na segurança da casa. Por que não a mandas para Northwoods? Até tu percebes, certamente, que ela não pode continuar aqui.
Os olhos de Red estavam gelados.
— Não vejo tal — disse ele calmamente. — Ou não conseguis reconhecer nisto a mão de Richard?
— Que estás a dizer? — A mãe dele estava chocada. — O meu próprio irmão? Por que procuraria ele incendiar a casa da sua família mais próxima, por que se rebaixaria a tamanha baixeza? Sei muito bem que ele não aprova a presença desta rapariga aqui, mas sugerir tal coisa, é absurdo. Além disso, ele está no mar e já há muito tempo. A não ser que acredites que também ele recorre à feitiçaria para atingir os seus fins? Realmente, Hugh, por vezes, espantas-me.
Ele deixou-a acabar.
— Se não foi o vosso irmão, então quem foi? — perguntou ele. — Que outro inimigo tem ela assim tão perto? Porque isto não foi contra nós, mãe. Isto foi contra Jenny, atingiu-a no coração e na vontade. O preço deste fogo é de três, quatro luas de silêncio. Mais uma estação inteira de espera.
Quando ele disse aquilo, desfiz-me em lágrimas. Lágrimas silenciosas, mas suficientemente grandes para me fazerem sacudir os ombros e porem-me o nariz a fungar. Talvez me tivessem esquecido, ali, onde me acocorara ao pé dos restos carbonizados do meu trabalho. Mas eu não conseguia deixar de lhes ouvir as vozes. Levei as mãos ao rosto.
— Devo confessar que sinto alguma simpatia pela rapariga — disse Lady Anne, procurando um lenço. — Toma, pega lá este — disse ela. Red permanecia quieto, observando-me. — Põe-te a andar, Hugh — disse a mãe dele com firmeza. — Não precisas de ficar aqui. Eu trato disto.
Mas ele ignorou-a e eu ouvi-o aproximar-se e ajoelhar-se ao pé de mim, no sítio onde eu estava sentada, a chorar.
— Amanhã — disse ele. — Eu não te posso levar, mas o John leva-te até ao local onde esta planta cresce. Podes trazer contigo a quantidade de que precisares. Isto dói, sei muito bem. Mas tu tens sido muito forte e voltarás a sê-lo. O que foi queimado pode ser substituído; o que foi destruído pode ser feito de novo. Com o tempo, recuperarás a tua voz. Com o tempo... com o tempo encontrarás de novo o teu caminho para casa.
Não olhei directamente para ele, mas baixei as mãos das faces molhadas e usei os dedos para falar com ele. Os meus pensamentos estavam confusos, devido à angústia, os gestos pouco claros.
Muito. Muito tempo. Eu cansada. Tu também cansado.
Estas palavras provocaram uma expressão estranha nele, um retesamento assimétrico da boca.
— Eu sou bom a esperar. Ficarias surpreendida quão bom — disse ele.
Havia outra coisa que eu tinha de lhe perguntar. Não era fácil fazê-lo por meio de gestos.
Como descobriste fiar, tecer voz?
Ele compreendeu perfeitamente. A sombra de um sorriso apareceu-lhe no rosto, desaparecendo logo depois.
— Estou a aprender a ouvir — disse ele. Lentamente.
Reparei no rosto de Lady Anne, desaprovador, observando-nos. Ora, não queria saber do que ela pensava. Usaria de novo toda a minha força e toda a minha vontade para recomeçar, para fazer de novo o trabalho que fora destruído. Não teria energia para especulações ou preocupações. No dia seguinte sairia e reuniria morugem suficiente para duas camisas. E trabalharia dia e noite, noite e dia, até terminar a tarefa. Nenhum inimigo me impediria. Eu era a filha da floresta e se os meus pés vacilavam de tempos a tempos, continuavam, pelo menos, a direito na direcção do desconhecido. E talvez eu não estivesse só.
Enquanto se dirigiam para o patamar, ela falou para o filho em voz baixa. As suas palavras não eram dirigidas aos meus ouvidos, mas eu ouvi-as, porque no meu estado de angústia não me ocorreu afastar-me polidamente do local em que estava, mesmo à entrada da porta.
— Diz-me uma coisa. Só uma. Qual é o lugar desta rapariga nesta casa assim que te casares? Acreditas, por um momento, que a tua mulher tolerará a sua contínua presença? Com o que as pessoas andam a dizer acerca... acerca de ti e dela?
— Não vejo nenhum problema — disse Red e o tom dele era distante, como se mal estivesse a prestar atenção às palavras dela. — Por que haveria de mudar seja o que for?
Lady Anne perdeu o controlo, por momentos.
— Francamente, Hugh! Por vezes, exasperas-me. Como é que podes ser tão cego? Gostaria tanto que desses um passo em frente. Olha para ti por um momento. Porque tu falas com ela como não o fazes com outra pessoa qualquer. Falas com ela como se... como se contigo próprio. Já é tempo de acordares desse sonho. Temo pela tua segurança, por todos nós, se isto continua. A rapariga tem de sair daqui.
Vagueei pelo grande salão, desejando que ela se lembrasse que eu estava ali e parasse. Ouvi a voz de Red, muito suave, muito remota.
— Quando é que me vistes tomar uma decisão errada, mãe? Quando é que eu demonstrei falta de capacidade?
Ela não replicou por uns instantes e pensei que se tinham ido embora. Mas quando me aventurei para fora, eles ainda lá estavam. Lady Anne olhando para o filho, o amor e a ira misturados no rosto e Red a olhar para cima, uma máscara sem qualquer expressão.
— Isto é diferente — foi tudo o que Lady Anne disse. E levou-me para o andar de baixo, onde me deu de comer e beber, a gentileza em pessoa, porque sabia quais eram os seus deveres, se bem que os seus olhos dissessem o contrário. Tinha medo, mas, de quê, não sei.
O dia seguinte começou bem. Apesar de a falta de trabalho me pesar muito, estava resolvida a seguir em frente e proibi a mim própria pensar no que poderia ter acontecido. John apareceu muito cedo com o seu grande cavalo cinzento e uma égua mais pequena para eu montar. Havia outros dois homens à espera. Talvez Red tivesse exagerado um pouco quanto à ameaça de perigo. Eu sentia-me feliz ante a perspectiva de montar, em vez de ir à frente ou na garupa, como um saco de grão. A égua era dócil, mas mantinha um bom passo e chegámos ao pequeno ribeiro, com o seu manto de morugem, antes do meio-dia.
Não havia necessidade de dizer as regras a John. Enviou um homem para o alto da colina para vigiar e o outro para baixo, para a orla das árvores. Ele sentou-se nas rochas, perto de mim e deixou-me trabalhar. Margery deve ter-lhe falado no meu trabalho, porque pareceu compreender que devia ser eu própria a dar todos os passos, se bem que lhe pudesse ver a frustração enquanto me observava a cortar e a atar os caules espinhosos. O Sol estava quente e as abelhas eram muitas, assim como as andorinhas e os insectos. Lembro-me perfeitamente do odor desse dia, porque o ar estava cheio da doçura das primeiras flores do espinheiro-alvar e da fragrância entontecedora das rosas selvagens, precocemente floridas. Perto da água, algumas violetas selvagens lutavam para se libertarem da morugem invasora e estendiam as suas minúsculas faces na direcção da luz. Cortei os caules que lhes retardavam o crescimento, de maneira a poderem gozar o sol da estação.
Ao fim de um certo tempo estava cansada e John fez-me parar para beber de um odre que tinha na sela do cavalo e comer um pouco de pão e queijo. Chamou os homens, passou-lhes as rações e mandou-os de novo para os postos de vigia. Nenhum deles tinha nada a relatar. Observou-me a comer a pequena refeição com um sorriso torcido no rosto.
— Bem — disse ele. — Tu cansas-te demais, Jenny; o corpo não pode continuar permanentemente, se não lhe deres descanso. Gostava de te poder ajudar. És uma rapariga muito pequena para tão grande trabalho. Ainda falta muito?
Eu já tinha um molho atado no fundo da ravina. Fiz um gesto com a mão, indicando outro e depois poderíamos ir para casa. John acenou com a cabeça.
— Tenta segurar na faca assim — disse ele, mostrando-me. — Óptimo. Assim, corta melhor e cansas menos as mãos. Meu Deus, quem te encomendou esta tarefa tem muito por que responder.
Foi a declaração mais veemente que o ouvi proferir. O seu rosto agreste, amável, estava enrugado de preocupação. Dei-lhe uma palmada de conforto no braço.
Não faz mal. Eu aguento.
Segurei na faca como ele me mostrou. Ajudou um pouco. Apareceram-me novas bolhas nas mãos, nos sítios de onde já tinham desaparecido. Sentia o suor a escorrer-me pelas costas, entre os seios e pela testa. Mas era fácil pôr a dor de lado. Focar, simplesmente, a mente no objectivo: os meus irmãos, salvos, de volta a este mundo, de novo como homens. A tapeçaria rota remendada, os sete ribeiros correndo juntos, os caminhos convergindo de novo, transformando-se num só. Desloquei-me mais para adiante, procurando solo mais plano, onde a planta podia ser alcançada com mais facilidade.
Senti-o mesmo antes de acontecer, porque houve uma súbita sensação de frio no ar, um instante de maldade, que me fez eriçar os cabelos e sentir um arrepio na espinha. E tão rápido; sem tempo para me mexer, para respirar, para avisar; sem tempo para pensar, sequer, no que ia acontecer. E então o rugido, o som catastrófico de uma grande quantidade de terra e rochas caindo velozmente; algo caindo-me, com força, sobre os pés, fazendo-me cair. Bati com a cabeça e por um momento tudo ficou negro. Então, a percepção do som a desaparecer, tão lentamente como aparecera; o meu coração a bater-me no peito, uma dor aguda na anca esquerda. Abri os olhos, pestanejando e sufocada, porque o meu rosto e corpo estavam cobertos de terra e o ar em volta estava repleto de pequenas partículas douradas, iluminadas pelo sol. Por cima da minha cabeça, as aves continuavam a cantar e pequenas nuvens continuavam a passar no céu azul-brilhante. Em volta, o silêncio era estranho.
Lutei para me pôr de pé, mas algo me segurava o tornozelo contra o chão. Na minha frente podia ver o saco ainda aberto, os caules de morugem alinhados e o brilho da faca onde a tinha deixado. O outro molho, cuidadosamente enrolado, pronto para ser levado. Para lá o leito do regato, os fetos e as pequenas árvores continuavam de pé. Virei-me. Por trás de mim, tudo tinha desaparecido. Tudo. Olhei, não querendo acreditar. No local onde a ravina subia pela encosta da colina, cortada pela corrente franjada de verde do regato, havia agora uma extensão enorme de rochas caídas, terra e raízes nuas. Mais acima, havia um golpe profundo na colina, como se um bocado de rocha viva tivesse sido cortado e atirado de qualquer maneira pela ravina abaixo. Tivesse ela caído um pouco mais à frente e eu teria sido esmagada. Fora tudo tão rápido; tão rápido. Naquele momento, estive mais perto do que nunca de quebrar o meu voto de silêncio. Porque não houve qualquer movimento, qualquer som, com excepção da queda de pequeninas pedras, bocadinhos de terra, à medida que se moviam e assentavam. Mordi o lábio inferior para me impedir de gritar:
John! John! Onde estás? Não sei como, consegui libertar o pé de sob a rocha que o prendia, consciente de que me tinha ferido ainda mais, mas não me importando. Não sei como, consegui trepar pelas rochas tombadas, procurando o local onde ele estivera, afastando a poeira dos olhos, forçando-me a mover-me, apesar das dores. Por trás de mim, finalmente, ouvi sons. O homem colocado para vigiar a linha de árvores vinha a subir pelo monte acima, o rosto branco como a cal. Do outro, que guardava a parte de cima, nem sinal.
Foi uma busca desesperada, sem utensílios, retirando as pedras com as mãos, respirando os dois com dificuldade, não sabendo, sequer, se o local em que estávamos a escavar era o certo. Não havia maneira de mover as rochas maiores, por mais que tentássemos; quando conseguíssemos o que precisávamos, como cordas, cavalos de tiro e oito ou nove homens, já seria tarde.
Finalmente, encontrámos John. Uma mão, um braço. Após muita luta, após um trabalho doloroso, uma abertura até onde ele estava, esmagado por uma enorme pedra, do peito aos pés. Ainda respirava e estava consciente, porque um estreito triângulo, provocado por duas pedras delicadamente equilibradas lhe tinha deixado uma pequenina bolsa de ar. Não podíamos mover mais nada; não o podíamos libertar.
Mandei o homem em busca de ajuda. Não havia sinal do outro, não sabíamos onde ele estava, sob todas aquelas pedras. Os cavalos estavam amarrados mais abaixo, sob as árvores. Não demoraria muito tempo cavalgar até Harrowfield, trazer homens, cordas e roldanas. Não demoraria muito. Mas era demasiado.
Sentei-me muito quieta sobre as pedras, porque o mais ligeiro movimento poderia fazer desmoronar o resto, fazer com que o peso aumentasse sobre o corpo de John. O rosto dele estava cinzento por baixo da camada de terra e um pequeno fio de sangue corria-lhe pela face e fazia poça na rocha, por trás da sua cabeça. Escutei-lhe a respiração e senti o peso das rochas sobre o meu próprio peito. Não chorei, porque aquilo estava para além de quaisquer lágrimas.
— Jenny — ele estava a tentar falar.
Fiz um gesto, não, não fales. Respira. Respira, apenas.
— Não — conseguiu ele dizer e os seus olhos já tinham a sombra do adeus. — Diz... conta...
Precisava de respirar antes de cada palavra. Cada vez que respirava sentia a agonia daquele peso esmagador, a terra arrancando-lhe, lentamente, a vida.
— Red — disse ele. — Homem certo... escolha certa... certa... Tu... Diz sim... — Por uns momentos fechou os olhos e quando os forçou de novo a abrir, com um arrepio, tentando respirar, vi neles a sombra da morte. Sangrava também do nariz, gotas brilhantes que se transformaram num pequeno regato e depois numa corrente contínua. Tentou aclarar a garganta, mas não conseguiu; em vez disso saiu um som terrível, um som cruel, de cortar o coração. Segurei-lhe na mão, afaguei-lhe a testa, ansiando por qualquer palavra. É terrível ser curandeira e saber que não se pode fazer nada, nada.
— Diz... — conseguiu ele dizer — diz-lhe... — e então um espasmo apossou-se dele, depois outro e ele morreu, tossindo sangue sobre as pedras caídas. Sem terminar o que ia a dizer. Mas não havia necessidade. Eu sabia perfeitamente essa parte.
A ajuda não demorou muito tempo a chegar. No entanto, demorou uma eternidade, enquanto eu sentia a mão de John ficar cada vez mais fria na minha, enquanto o sangue dele caía nas pedras e coagulava em pequenas poças. Não havia qualquer som à minha volta, salvo o cantar das aves e o restolhar da brisa da Primavera nos vidoeiros. A minha voz estava silenciosa; mas o meu espírito gritava, esperando que alguém ouvisse.
Porquê? Porquê levá-lo a ele? Ele era bom; as pessoas gostavam dele. Ele estava inocente nisto tudo. Porquê ele?
Estava há tanto tempo sozinha, afastada de qualquer conhecimento do mundo dos espíritos, que não soube dizer se a pequena voz que me respondeu, na cabeça, era a minha ou a de outra pessoa qualquer.
Não é assim que as coisas funcionam, Sorcha. Sabias que seria duro. Agora, descobres quão duro é.
Mas, porquê John? Ele era feliz. Porquê dar-lhe um filho e depois negar a este o pai?
Uma risada. Não uma risada cruel, apenas de descrédito.
Preferias que tivesse sido outro? Talvez a criança, ou aquele com cabelos de fogo e olhos de gelo? Gostarias de rescrever a história?
Tapei os ouvidos e fechei os olhos, mas a voz continuava dentro da minha cabeça. A cabeça latejava-me. Doía-me.
Qual é a tua força, Sorcha? Quantas despedidas és capaz de suportar antes de conseguires chorar em voz alta? Em seguida, uma gargalhada. Não sabia se estava a falar com as Criaturas Encantadas, com um louco, ou simplesmente com a voz confusa do meu espírito.
Eu não te quero ouvir. Não vou ouvir isto. Silenciosamente, recitei os nomes dos meus irmãos, vezes sem conta, um sortilégio para afastar os demónios. Liam, Diarmid, Cormack, Conor, Finbar, Padriac. Preciso de vós aqui. Preciso de vós. Hei de trazer-vos de volta. Hei de conseguir.
A ajuda chegou. Com os rostos cor de cinza, num silêncio mortal, Red e Ben supervisionaram a desesperada e dolorosa remoção das rochas e da terra e o erguer do corpo esmagado do seu amigo do meio dos escombros. Os cavalos arrastaram os pedregulhos, os homens trabalharam cabisbaixos, com pás, enxadas e com as próprias mãos. Mas não encontraram sinais do corpo do outro homem. Ou estava profundamente enterrado, sob o último grande rochedo impossível de deslocar, ou... mas a alternativa era impensável.
O rosto de Red parecia uma efígie esculpida. Ordenou-me que saísse dali, mas eu não obedeci até o corpo de John ser levado envolto numa capa e colocado em cima do seu cavalo. E assim regressámos a casa, eu à frente de Ben com uma ligadura de emergência em volta do tornozelo, que me ardia como carvões em brasa. A noite caía e os homens que iam à frente e na cauda da pequena procissão transportavam tochas. Ninguém falava. Eu queria que alguém me dissesse, está tudo bem. Queria que alguém me dissesse, a culpa não foi tua. Mas a culpa fora minha. Eu viera para ali, fizera daquelas pessoas minhas amigas e agora um homem inocente morrera porque tinha que me proteger. Num dia de Primavera tão bonito, devia estar a reparar um telhado, ou a pôr o gado a pastar, ou a brincar na relva com o filho. Não a guardar uma rapariga meio louca enquanto cortava molhos de espinhos. Devia estar vivo. E estava morto. E eu via que Lorde Hugh, montando com as costas muito direitas, conduzindo o cavalo que transportava o corpo esmagado do seu dono, levava amarrados à sua sela os dois rolos de morugem que eu tinha cortado, antes da queda das rochas ter destruído o local onde ela crescia. O preço daquela pequena colheita era a vida do seu amigo. Tal era o fardo que transportava, tal era o peso da ordem das Criaturas Encantadas que, mesmo depois daquilo, continuava obrigado a ajudar-me. Não permitia que o rosto mostrasse a dor que sentia, tendo apagado dele qualquer sinal de sentimento. À luz das tochas, era como uma máscara de cinzas, com buracos no lugar dos olhos. Ben chorava abertamente a dor à frente de todos e muitos dos homens, em cima dos seus cavalos, tinham os olhos vermelhos. Mas não Lorde Hugh. Esse escondia a dor lá dentro, tão fundo como se fosse o buraco escuro e secreto de um poço.
Talvez eu tivesse esquecido que Margery também era uma bretã. Em breve me lembrei, quando chegámos ao pátio e lhe vi o rosto ainda calmo, ainda doce; mas subitamente envelhecido, podendo ver-se as finas linhas em volta dos olhos e da boca que teria quando fosse velha. Os homens levaram o corpo do marido dela para dentro e para cima, para ser lavado e deitado e ela não pronunciou uma única palavra. Ninguém estava a olhar para mim; ou antes, pareciam todos muito preocupados em não olhar para mim. Ben desceu-me do cavalo e eu percebi que não podia andar sobre o tornozelo ferido, que inchara alarmantemente. Assim ele levou-me ao colo para dentro, mas ninguém parecia particularmente interessado em me ajudar, por isso encaminhei-me para o meu quarto, encostando-me com uma mão à parede, ao pé coxinho, enquanto o outro me enviava espasmos pela perna acima e, através das costas, para a minha cabeça prestes a rebentar. Fechei ambas as portas e sentei-me na enxerga, abraçando Alys e olhando para o escuro. Que dor era aquela, comparada com a de Margery?
Acabei por acender uma vela. Olhei para o tornozelo, forcei-me a mexer o pé e enrolei-o num bocado de linho para ter algum alívio. Não estava partido. Fui buscar água, fiz as minhas abluções e sacudi a poeira e a terra do cabelo. À distância, ouvi a casa ainda acordada, tratando de várias coisas. Agora, de certeza, ele mandar-me-ia embora. Como poderia não o fazer?
Após muito, muito tempo, bateram à porta e era Lady Anne.
— Margery quer ver-te — disse ela concisamente. Segui-a, passando por todos, ou quase todos os membros da casa, sentados ou em pé em pequenos grupos, incapazes de descansar, unidos na dor e no choque. Eu coxeava, mas ninguém me ofereceu ajuda, se bem que Lady Anne tenha esperado por mim nas escadas.
Ele estava estendido no alojamento dele, se bem que em breve fosse transferido para o andar de baixo, onde decorreria a vigília, com velas. Estava tudo calmo; tão calmo. Aquelas pessoas não eram capazes de sentir dor por um homem tão bom? Não sabiam como chorar e gritar de raiva, amaldiçoar os poderes das trevas? Não sabiam como confortarem-se uns aos outros, como secar as lágrimas uns dos outros, contar histórias das coisas que fizera e do homem que fora, para que tivesse uma boa viagem? Onde estavam as grandes fogueiras e os brindes feitos com cerveja forte, o aroma do zimbro queimado?
John usava uma túnica cinzenta-clara e o seu corpo estava limpo, mas não havia maneira de esconder as terríveis feridas, ou os ossos esmagados do peito e da bacia. Lutara tanto, para aguentar tanto.
— Jenny — disse Margery. Não chorara. Parecia distante, uma sombra de si própria. Os seus olhos estavam calmos e vazios. Queria rodeá-la com os braços, abraçá-la e chorar com ela, porque era minha amiga. Mas manteve um certo espaço entre nós, sem dizer uma palavra. Ben estava presente, sentado contra a parede e, pelo menos, tinha uma caneca de cerveja nas mãos. Red estava na sombra, no canto mais longínquo da sala. Supus que estava ali por uma razão qualquer. Supus que estava ali por tê-lo visto morrer e ela queria saber como fora. Sem palavras, seria uma tarefa desencorajadora.
John falar de ti. As minhas mãos tremiam; mal conseguia suportar o olhar dela, branco, sem expressão. Não deu qualquer sinal de ter entendido.
John diz-me tu, bebé.
— Qual é o objectivo disto? — perguntou rispidamente Lady Anne. — Estes sinais não querem dizer nada e são desrespeitosos neste local de luto. Estás a afligir Margery, rapariga. Em que é que estás a pensar?
Olhei por cima do corpo de John para a mulher e pensei ver os olhos dela pestanejarem, por um momento. Tentei alcançá-la. Por favor. Por favor, ouve.
— Tenta de novo, Jenny — Red estava ao meu lado, olhando-me para as mãos. — Talvez eu possa ajudar.
Recomecei tudo de novo e enquanto mexia as mãos ele disse os meus pensamentos em voz alta.
— John queria... John deixou uma mensagem para ti. — Fechar os olhos, mãos para um lado, descansar a face nas mãos. — Ele morreu em paz. Com coragem.
Aproximei a mão do homem que jazia ali à minha frente, trouxe-a para o meu peito e depois aproximei-a da mulher, que olhou para mim, impassível.
— Ele disse, diz a Margery que a amo — disse Red. — Diz-lhe que está no meu coração.
Era-me muito difícil continuar, mas disse para comigo que, comparado com o que ela está a sentir, isto não é nada. Nada. As minhas mãos continuaram a mover-se, dizendo as coisas que eu sabia que John queria dizer, que teria dito se tivesse tido tempo e a voz calma de Red transformou os meus gestos em palavras.
— Ele disse, diz-lhe que eu sei que ela educará o meu filho de maneira a ele ser um bom homem, forte e sábio.
Olhei para John uma última vez; o seu rosto, calmo sob as feridas, os pés brancos, limpos, não completamente cobertos pelo traje. Levei as pontas dos dedos à boca e movi a mão, gentilmente, na direcção dela.
— Ele disse, diz adeus a todos por mim. E... conta a minha história ao meu filho.
A voz de Red estava presa. Não olhei para ele. O rosto de Margery manteve-se calmo por mais um momento, enquanto me fixava.
— Obrigada — disse ela em voz muito baixa, muito delicada. — Sinto-me contente por ter estado alguém com ele quando... e agora, se não se importam, gostava de ficar sozinha.
— Achas que é prudente? — Era Lady Anne, que mantivera as sobrancelhas franzidas desaprovadoramente durante o tempo todo.
— Por favor. — A voz de Margery tremia um pouco e quando me virei para sair vi-lhe o rosto contorcer-se e as lágrimas começarem a descer, lentamente, pelas faces.
No patamar, Red viu-me a coxear e pegou-me ao colo sem me dizer nada.
— És a pessoa mais teimosa, mais casmurra — murmurou ele. — Como diabo subiste lá para cima?
— Andou — disse a mãe dele, um passo atrás e carrancuda. — Tal como pode fazer agora, na perfeição.
Red parou a meio das escadas, comigo nos braços. Estávamos à vista de toda a gente, reunida em baixo. Conseguia ver os pensamentos de Lady Anne no rosto dela, tão claros como se tivesse falado em voz alta. Um homem morreu hoje por causa dela. Um dos nossos. Marido de alguém, pai de alguém. Ela matou o nosso amigo. Apesar disso, tu carrega-la como se ela fosse uma flor preciosa, uma princesa demasiado frágil para que os pés dela possam tocar no chão. Que vão pensar de ti? Que estás tu a fazer a esta casa? Red também estava a olhar para ela e quando falou, fê-lo muito suavemente.
— Esta rapariga atravessa o inferno todos os dias, anda descalça sobre pedras até os pés lhe sangrarem, põe sempre as suas necessidades em último lugar. Mas, na minha casa, não será a última. Se Jenny não pode falar, então é porque algo está errado, mãe. E eu lidarei com isso como me apetecer.
Muito calmo e controlado. Talvez tivesse sido eu a única pessoa a ouvir-lhe uma ligeira hesitação na voz. A mãe dele estava furiosa. Mas as pessoas podiam ver-lhe o rosto e assim seguiu-nos pelas escadas abaixo com muita dignidade e não disse mais nada. Eu preferia ter ido a coxear, sozinha, para o meu quarto. Mas ninguém me perguntou. Não precisava de olhar em volta para saber o que todos estavam a pensar. John está morto. Com ele morre parte de Harrowfield. Que destruirá ela a seguir? No entanto, ele continua a dar-lhe abrigo. Bruxa; assassina. Ainda não era dito em voz alta; não aos ouvidos de sua senhoria. Por enquanto.
No meu quarto depositou-me na cama e voltou atrás para fechar a porta. A que dava para o jardim estava aberta e no último degrau estavam os dois molhos de morugem, juntamente com a minha faca.
— O teu tornozelo — disse — ele está...?
Fiz sinal que não. Não é nada.
— Não acredito — disse Red. — E eu ajudava, se pudesse. Mas não posso ficar aqui, há assuntos para tratar, eu...
Dirigiu-se para a porta do jardim, passou por cima dos molhos, desceu os degraus e movia-se como se estivesse escuro, como se estivesse cego. No entanto, havia uma vela acesa. Pensei que já se tinha ido embora e fui fechar a porta. Mas quando me aproximei da entrada, coxeando, ele estava de pé, em silêncio, no primeiro degrau, uma mão na parede, a testa encostada às pedras frias e a outra mão, fechada, pressionada contra a boca com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Os ombros tremiam.
Nesse momento, creio que me esqueci que tinha medo de tocar em pessoas. Talvez nem tivesse pensado nisso. A minha mão subiu e pousei-a, gentilmente, no pescoço dele, onde a pele aparecia, pálida e vulnerável, entre a túnica e o cabelo cortado curto, onde os ossos se viam, sob a pele. A sua reacção foi instantânea e violenta. O corpo ficou-lhe completamente rígido, como se gelado pelo choque; e então respirou para fora de maneira explosiva e nesse movimento havia palavras ditas num tom que eu nunca ouvira antes, ásperas, incontroláveis.
— Eu não preciso da tua piedade.
Retirei a mão rapidamente, como que mordida e voltei a subir os degraus, tão depressa quanto o tornozelo magoado me deixou. Por um momento, antes de desaparecer na escuridão, virou o rosto para mim e eu vi a expressão dele a mudar, desaparecendo aquela máscara de compostura. Angústia, fúria, dor; e uma raiva amarga contra si próprio, a imagem do irmão Simon. E por baixo daquilo tudo, algo mais, algo muito mais fugidio que se escondia no fundo dos olhos, guardado por barreiras a serem abertas apenas pelos mais ousados, ou pelos mais loucos.
Nessa noite não dormi. Sentia o espírito pesado e o coração doente. Enquanto estava deitada, observando as sombras moverem-se à minha volta, escutando o ligeiro ressonar de Alys, pensei que, se ficasse aqui, destruí-lo-ia. Podia destruí-los a todos. E pensei que, se partisse, não completaria a minha tarefa. Porque os poderes do mal estavam a apertar o cerco. Se não ficar aqui, perco os meus irmãos. E tudo terá sido em vão. A minha mente ia de um pensamento para outro, voltava de novo para trás e o coração doía-me, rivalizando com a dor do tornozelo. Ele odeia-me, pensei. Todos eles me odeiam. E com razão, porque nesta casa não passo de uma destruidora. E a vozinha na minha cabeça falou:
O que é isto? Autocomiseração? Não te podes dar a esse luxo, Sorcha. E não podes ter as duas coisas. Volta para o teu caminho. Avança. E depressa, porque o inimigo está perto. A vozinha não podia ser ignorada. Mas, primeiro, tinha um assunto para tratar.
Assim, antes do amanhecer, levantei-me, saí para o jardim e juntei aquilo de que necessitava. Ben dormia profundamente, deitado no banco, com uma caneca de cerveja vazia por companhia. Desenhei um círculo no chão macio e coloquei-lhe em cima quatro velas. No centro acendi uma pequena fogueira, com paus de espinheiro-alvar e sabugueiro. Alguém tinha de ajudar o espírito de John a libertar-se e a procurar o seu novo caminho. Não podia esperar que aquela gente fizesse as coisas bem, apesar de o amarem. As chamas eram baixas, mas ardiam bem e brilhavam. Fixei a minha mente no rosto de John, curtido, solene, resoluto, em tudo o que fora e atirei para o lume punhados de agulhas de pinheiro e folhas de tomilho e em breve se espalhava pelo jardim um aroma doce e purificador. A minha mente imaginou John como uma grande árvore, abrigando e guardando, no seu interior e sob a grande copa, muita gente. Pensei nas raízes dessa árvore, firmemente agarradas à terra, como fazendo parte do todo vivo que era o vale. Ele era um homem do vale. Fosse para onde fosse, fosse qual fosse o caminho do seu espírito, uma parte dele ficaria sempre ali. À medida que o dia nascia, extingui as velas, apaguei o círculo e cobri com areia as últimas brasas. Nascera um novo dia e havia trabalho à minha espera.
A partir dessa noite, até ao primeiro de Maio, quando tudo mudou de novo, mantive-me à parte da casa, como se numa concha invisível, protectora. Apliquei toda a minha vontade na minha tarefa. Porque sentia o meu inimigo muito perto, aproximando-se, à medida que a Primavera floria e rebentava, as bagas nasciam nos arbustos, as aves jovens testavam as asas e a casa de Harrowfields escondia a sua dor e punha outra cara, aprontando-se para um casamento.
Em vez de sair de manhã cedo, sentava-me no jardim a fiar, porque Lady Anne tinha-me arranjado um fuso e uma roca, conforme prometera. Se me aventurei mais longe, não foi até ao pomar, ou à pequena floresta de jovens carvalhos. De noite, a guarda mantinha-se no lado de fora da porta. Não sabia quem era e a porta mantinha-se fechada. Resolvi trabalhar no meu quarto, mesmo quando as mulheres se reuniam no andar de cima; não queria ouvir as conversas delas, suportar o franzir de sobrancelhas de Lady Anne ou, pior ainda, sentar-me ao lado de Margery enquanto ela trabalhava mecanicamente, de olhar vazio. Não voltou a pedir para me ver e eu não ia para onde não era desejada. Assim, sentava-me sozinha e contava a mim própria histórias e quando me faltava a energia para continuar, repetia os nomes dos meus irmãos vezes sem conta, em silêncio. As minhas mãos pioraram, devido ao longo uso sem qualquer pausa; sem o tratamento diário de Margery, tinham voltado a ficar inflamadas e ásperas. Continuei a trabalhar. A dor não tinha importância.
Não me podia isolar por completo. Lady Anne exigia a minha comparência ao jantar. Eu ia e sentava-me silenciosamente, comendo o que me punham à frente. Já não tinha John para me incitar a comer; se bem que, uma vez ou duas, desse com Ben a colocar-me uma fatia extra de queijo à frente ou um bocado de fruta, comentando como eu estava magra, como dentro em breve desapareceria. Olhava fixamente para ele e ele pestanejava. Talvez nem todos me odiassem. Os sorrisos atrevidos e as anedotas tinham desaparecido desde que perdêramos John, mas Ben era incapaz de qualquer tipo de malícia e eu acreditava que ele ainda sentia uma espécie de responsabilidade para comigo, talvez por ter sido testemunha do meu salvamento pouco digno, por parte de Red, de ter morrido afogada e talvez, também, por ter sido incapaz de evitar que Hugh de Harrowfield tivesse tomado a única decisão errada da sua vida.
Passei uma vez ou duas por Red no átrio, porque não nos podíamos evitar por completo. Baixei os olhos e passei por ele como uma sombra, encostada à parede. Quando precisava de falar comigo, as suas maneiras eram polidas mas distantes; sobre o que se passara entre os dois naquela noite, nem uma palavra foi dita, nem um olhar trocado. Era como se nada se tivesse passado, com excepção do abismo que se abriu entre os dois e que nenhum tentava transpor. Era melhor assim. Eu tinha uma tarefa para completar e não tinha tempo para distracções. Ele tinha a sua casa para pôr em ordem e depressa, porque o primeiro de Maio aproximava-se a passos de gigante.
Soube, por terceiros, das suas investigações à queda das rochas e à morte de John. Que o segundo homem, que estivera a vigiar de cima, estava emprestado, por assim dizer, por Northwoods, tendo acompanhado Elaine na visita desta e permanecido em Harrowfield. Que substituíra outro, naquele dia, sem informar John. Que não havia qualquer sinal dele desde esse dia. O que tornava as coisas delicadas, porque o corpo dele podia estar ainda sob os escombros. Não foram feitas acusações. Mas as coisas mudaram subtilmente. Havia mais homens no local, na sua maioria, armados. Os géneros alimentícios passaram a ser verificados e provados. Red e Ben passaram noites a conversar e começaram a olhar para mapas. Outros homens chegavam de tempos a tempos, alguns deles estranhos, eram interrogados intensamente, era-lhes dada comida e bebida e mandados embora. Tudo aquilo eu observava e não compreendia, mas não perguntava. Fiava, fiava e contava os dias à medida que passavam.
CAPÍTULO ONZE
Era a véspera do primeiro de Maio e o tempo estava perfeito. Na herdade, as pessoas estiveram acordadas de noite colhendo flores para as pendurar sobre as portas e as janelas, para honrar os primeiros raios de sol. Ofertas de leite foram deixadas nos buracos de certas pedras; fogueiras foram acesas no alto das colinas. Lembrei-me do meu irmão Conor a chegar a casa com uma tocha a arder, que transportara desde os confins da floresta e a acender o nosso fogão de sala. Aqui, as pessoas pareciam ter pouco tempo para tais rituais, talvez não compreendendo a sua importância. No entanto, para minha surpresa, vi fitas presas nos arbustos à beira dos caminhos e ouvi as raparigas, na cozinha, falarem de uma dança em espiral e quais de entre os jovens gostariam de levar para os bosques quando a dança terminasse. Talvez as velhas tradições não tivessem desaparecido de todo por estes lados.
A casa estava cheia de flores e ramos de árvores e as pessoas sorriam, porque um casamento significava renovação, estabilidade e uma nova geração, que aprenderia cuidadosamente a economia das árvores e dos animais e o sustento protector e sábio das boas pessoas do vale. Em Sevenwaters, nunca escolheríamos Beltane para um casamento, se queríamos que ele durasse. Sentei-me a coser no jardim à luz da lanterna e imaginei Red a mostrar ao filho como semear uma bolota; a mostrar à filha pequenina como se tosquiava uma ovelha e como a lã tornava a crescer. Elaine não fazia parte daquela imagem; talvez, pensei eu, sinistramente, mesmo depois do casamento se mantivesse ocupada em favor do pai, que estava sempre muito interessado nos assuntos de Harrowfield.
Tinha chegado nessa manhã, uns dias depois da filha. Pouco o vi, mas ouvi dizer que a expedição não lhe correra de acordo com os planos e ele estava maldisposto O jantar foi uma festa. Toda a família comeu, bebeu, riu e fez as partidas esperadas, mas tudo com bom humor.
Richard sentou-se na sua cadeira e observou-me de soslaio. Red e Elaine mantiveram uma conversa tranquila e exclusiva. Ben parecia invulgarmente distante. Bebia moderadamente e de sobrancelhas franzidas, com o pensamento longe dali. Margery não desceu.
Lady Anne encheu-nos de orgulho, apresentando prato após prato em escudelas de prata, carnes assadas e peixe fresco, em nenhum dos quais eu toquei; vegetais artisticamente arranjados, sopas, molhos e doces. Eu ansiava pela tranquilidade e privacidade do meu quarto, mas não me atrevia a ofender a família, saindo cedo. E então trouxeram o prato principal, ornamentado e envernizado em tons quentes dourados. Uma grande ave assada, rodeada de cenouras e cebolas, cujo aroma entrava pelas narinas e provocava um estado de espírito de acordo com a festa. Creio que fui lenta a reagir. Por momentos, não pensei. E então percebi o que era, o meu estômago agitou-se, a testa humedeceu-se-me de suor e toda a sala girou e dançou perante os meus olhos. Derrubei a cadeira na pressa de atingir a porta e quase derrubei uma serva que transportava uma molheira. Pelo menos não os envergonhei, vomitando o conteúdo do estômago no soalho do grande salão. Consegui sair a tempo e fiquei no exterior a tremer, num esforço para vomitar, até o meu corpo rejeitar toda a comida que estava lá dentro. A terrível vista continuava perante os meus olhos, o odor horrível ainda nas narinas, agarrando-se-me à roupa e a tudo, ao mesmo tempo que as vozes deles me chegavam, em fragmentos, através da porta aberta.
— O que é que se passa com ela?
— Alguém deitou alguma coisa esquisita na comida? Muito bem, quem é o culpado?
— Até eu já senti a tentação.
— Não te safavas. Está tudo vigiado. Dá que pensar.
— Eu é que te digo o que penso. — As vozes baixaram de tom.
— ... está grávida... foi o que ouvi dizer... ainda bem para ele... fica livre de sarilhos... casado há tanto tempo...
— ... não deve ser o primeiro...
— Não deve ser dele, se for verdade. É mais provável que seja de um desses homens que aparecem aí e que desaparecem logo a seguir. Quem mais olharia para ela?
Não era a primeira vez que ouvia coisas daquelas. Um cisne assado; dentro do cisne põe-se um peru, dentro do peru uma galinha e assim sucessivamente até à mais pequena das codornizes. Uma obra-prima de culinária. Nunca mais comeria nada vindo daquela cozinha, nunca mais vestiria aquele vestido, nunca mais...
— Sentes-te melhor? — Era Ben, com um copo de água numa mão e uma toalha limpa na outra. — Tens um estômago muito delicado, não tens? — Foi mesmo na melhor altura, pensei. As anedotas estavam a ficar cada vez piores. — Vá lá, bebe; deve restar alguma coisa lá dentro. Assim está melhor. Bem, não te deve apetecer voltar para a festa. Queres que te acompanhe ao quarto? Talvez devesse dizê-lo de outra maneira. Madame deseja que a acompanhe? Sorri, Jenny. Não é assim tão mau.
Era bom rapaz, bem intencionado. E como poderiam eles saber? Deixei que ele me acompanhasse até ao meu quarto através do jardim e sentámo-nos no banco durante uns momentos, olhando para as estrelas. Perguntei a mim própria porque não voltara ele para a festa. Não que não gostasse da sua companhia. Tudo era melhor a pensar naquele... naquele...
— Pediram-me para te transmitir uma mensagem — Subitamente, Ben ficou sério. — Ele disse... ele disse que esperava que tu fizesses como ele te pediu e que não fizesses muitas perguntas.
O quê? Qual mensagem?
— Ele disse para te levantares cedo, amanhã. Muito cedo, antes de amanhecer. Põe uma capa e umas boas botas e está pronta para partires a cavalo. E deixa o cão fechado. Foi o que ele disse.
O quê? Mas, amanhã é..?
— Não fiques tão preocupada — disse Ben, franzindo as sobrancelhas. — Ele disse-me para te dizer que correrá tudo bem. E que podes deixar ficar o teu... o teu trabalho.
Portanto, não me ia mandar para casa. Não me ia mandar embora. Não me mandaria embora no dia do seu casamento, sem as minhas coisas?
— Vai correr tudo bem — disse Ben, como se estivesse a tentar convencer-se a si próprio. — E agora, é melhor eu voltar para lá. Senão, dão pela minha falta. E parece que o nosso amigo de Northwoods tem novidades para nós. O quê, não sei. Mas é melhor eu estar lá quando ele disser o que é. Não fiques preocupada.
Uma das coisas que as pessoas de Harrowfield gostavam e respeitavam em Lorde Hugh era que inspirava confiança. Confiante, estável, previsível. Não havia surpresas com ele. Se dizia que faria alguma coisa, fá-la-ia. Se fazia uma promessa, cumpria-a. Sólido como um carvalho, assim era Lorde Hugh. Não era preciso estar há muito tempo em Harrowfield para ouvir as pessoas dizer isto. Fora por isso que a minha chegada os chocara; porque era uma quebra num longo e inalterável padrão. Bem, uma aberração podia acontecer, diziam. Podiam muito bem tolerar um erro. Uma vez casado, as coisas assentariam. Uma óptima rapariga, Elaine de Northwoods. Mas voltara a acontecer. Era espantoso, considerando a espécie de pessoa que ele era, que agisse daquela maneira. Nem de propósito teria maior impacte, para ofender mais pessoas, para desgostar ainda mais a sua família. No entanto, foi assim que ele o planeou. E ao fim e ao cabo parecia que, até naquilo, tinha as suas razões.
Eu não tinha problemas em acordar cedo, apesar de ter dormido pouco. Alys ficava contente por ter a cama só para ela e não protestou por ter ficado para trás. Não levaria o vestido caseiro, porque imaginava que ainda cheirava à carne assada; portanto, tinha que vestir o azul e as botifarras. Ainda era suficientemente cedo para estar frio, embrulhei-me numa capa e saí com um pressentimento estranho no estômago. Nervos? Mau presságio? Talvez fosse o resultado de ter vomitado com as entranhas vazias. Estava tudo calmo. A casa ainda dormia.
Ao portão estavam três cavalos e dois homens embrulhados em capas, armados. Red levou um dedo aos lábios, em sinal de silêncio; não havia necessidade, no meu caso. Red ajudou-me a montar e partimos, mantendo os cavalos em cima da erva para evitar fazer barulho. Antes de o Sol nascer já tínhamos passado os limites do vale, passando a cavalgar pelo meio de denso matagal, por caminhos apenas visíveis para um homem dos bosques experiente. Harrowfield ficara há muito para trás e o dia estava a nascer. Eu tremia de frustração, ansiosa, com perguntas que não podia fazer. Os homens pararam por instantes para atravessar um pequeno lençol de água. Agarrei a oportunidade.
Onde é que vamos? O que é isto? Hoje tu casamento! Hoje tu casa! Onde?
Houve um esboço de sorriso no rosto de Red, se bem que também ele parecesse não ter dormido.
— Tantas perguntas! Está tudo bem, Jenny. Ainda temos muito que cavalgar, pelo menos até ao meio-dia. Quero mostrar-te uma coisa. Levar-te-emos de volta, sã e salva. E... arranjei... maneira de o teu trabalho ficar guardado e seguro. Aquele teu cão feroz também há de ajudar, não tenho dúvidas. E agora, consegues continuar? Não estás muito cansada?
Abanei a cabeça, mas ainda não tinha terminado. Ele ainda não me tinha respondido.
Hoje tu casamento? A. mensagem era suficientemente clara no meu rosto, se os gestos não chegassem. Como é que foste capaz de fazer isto? Como é que foste capaz de lhes fazer isto? Red encolheu os ombros, evitando o meu olhar.
— Não há razão para preocupações — disse ele. — Tenho tudo controlado.
E foi tudo. Continuámos e eu descobri que, apesar da minha confusão e ansiedade, apesar do meu profundo choque com a sua atitude, estava a apreciar a liberdade daquela cavalgada, o aroma suave dos bosques, o ruído surdo dos cascos sobre o tapete de fetos e musgo, a companhia silenciosa dos dois homens. Era quase como quando fizemos aquela grande viagem, Red e eu, quando descansámos debaixo de uma macieira e partilhámos os seus frutos. Quando nos abrigámos numa caverna e vimos mais do que queríamos. Apesar do medo e da incerteza, houvera uma ligação entre os dois, quando eu mal o conhecia. Red olhou para mim de soslaio, desviou o olhar e eu acreditei que ele partilhava os meus pensamentos.
Quando cheguei, pela primeira vez a Harrowfield, a cavalgada a partir do mar demorara a maior parte do dia. Agora, percebia que a linha da costa devia ser muito recortada, ou que fazia uma grande curva, porque o caminho que tomámos era muito mais curto, se bem que mais difícil para os cavalos. Estes pareciam conhecer o caminho, que era, nitidamente, pouco frequentado. Não demorou muito a emergirmos das árvores para a enorme e brilhante extensão do mar, no plano inferior, para o barulho ensurdecedor das ondas e o grito das gaivotas. Um carreiro ia dar, pelo meio das rochas, até à água. Era demasiado inclinado para ir em cima do cavalo. De ambos os lados, projectavam-se pequenos promontórios arborizados; o local era escondido, quase secreto. Os dois homens desmontaram e após um momento fiz o mesmo, algo desastrada, porque não estava habituada a cavalgar durante tanto tempo. Ninguém falou, mas vi Red tocar no braço de Ben, como que a agradecer-lhe e este acenou com a cabeça, segurando nas rédeas dos três cavalos e levando-os para debaixo das árvores.
— Por aqui — disse Red, começando a descer o estreito e íngreme carreiro. Não tive outro remédio senão segui-lo. O tornozelo ainda me doía um pouco, mas aguentou-se bem. Havia locais em que o carreiro era íngreme e cheio de pedras soltas e ele precisou de me segurar uma vez ou duas, largando-me logo que possível. Concentrei-me em não escorregar e não olhei em volta. Por fim, fizemos uma pausa numa pequena plataforma rochosa, uns seis ou sete metros acima da praia.
— Olha para ali — disse Red. O local em que nos encontrávamos estava a meio de uma enseada abrigada, onde a areia era branca e fina e a falésia cheia de plantas baixas. No outro extremo, os altos promontórios bloqueavam o vento e as intempéries, abrigando a baía do resto do mundo. Diante de nós, uma pilha de rochas, trazidas pelas tempestades, dividia a praia em duas. Segui o olhar de Red para a esquerda e a boca ficou-me aberta, de puro espanto e prazer.
Já tinha ouvido falar de tais criaturas, mas apenas em histórias. Aqueciam-se ao sol, enormes, macias, elegantes, tranquilas; fixaram em nós aqueles grandes olhos líquidos como que para nos dizer este local é nosso. O mistério do oceano estava naqueles olhos. Eram, talvez, dez ou doze e enquanto eu as observava saiu outra da água, subindo o areal com uma graça ponderada. Agitou o pesado corpo, provocando em volta uma deslumbrante nuvem de gotas prateadas. Em seguida, deitou-se, com um suspiro, ao pé das outras. Sentei-me devagarinho nas rochas, mexendo-me com cuidado para não as assustar. Porque aquele era um dos lugares onde a harmonia das coisas naturais permanece intocada; onde os mundos se encontram e falam; onde o homem e a mulher devem pisar com o maior dos cuidados. Uma das criaturas mexeu a cabeça, observando-me; em seguida, deixou-a cair em cima do dorso de outra, fechando os olhos lentamente. Senti um sorriso de puro prazer espalhar-se-me pelo rosto. Fiquei ali sentada, durante muito tempo, observando aquelas criaturas ao sol de Maio, com as gaivotas gritando por cima. Senti a força daquele lugar em meu redor, ensopando-me, acalmando-me o espírito e enchendo-me de alegria. Não era um sentimento facilmente explicável por palavras; era o mesmo sentimento que eu sentia nos mais profundos e secretos lugares da floresta, ou nos telhados de Sevenwaters, conversando com Finbar sem quaisquer palavras. Está tudo bem. E estará. Gira e volta a girar. Aquele era um lugar de cura do espírito.
Após um certo tempo, lembrei-me que não estava só e virei-me para olhar para Red. Ele estava sentado nas rochas por trás de mim e tinha com ele o livro, a pena e o tinteiro, mas não estava a trabalhar. Estava a olhar para mim.
— Vamos ficar aqui um bocado — disse ele calmamente. Então, abriu o livro e destapou o tinteiro. — Ben volta mais tarde; tem coisas a fazer por estes lados. Aqui estás segura.
Quando ele disse aquilo, lembrei-me imediatamente das perguntas. Como podia ele estar tão furiosamente calmo? Ia dar-me explicações? Como fazer a pergunta com as mãos?
Por que me trouxeste aqui?
— Mais tarde — disse ele. — Temos o dia todo. Mais tarde falamos e eu digo-te, por agora, és capaz de compreender que eu gostaria de dar descanso a essas mãos, apenas por hoje? Que gostaria de libertar a minha prisioneira por algumas horas? Goza o dia, Jenny. Amanhã, começa tudo de novo.
Porquê neste dia? E Elaine e a tua mãe — mas não consegui dizê-lo por meio de gestos. Além disso, ele sabia muito bem o que eu queria perguntar, mas mergulhou a pena no tinteiro, virou as páginas do livro e começou a escrever, ali sentado, com o céu por cima e o mar largo defronte e parecia que apenas tinha olhos para o registo ordenado de como as coisas tinham sido, eram e seriam sempre.
Assim, tirei as botas e desci para o outro lado da praia, que estava praticamente intocada, salvo pelas pequenas pegadas das aves. Ali não havia grandes criaturas marinhas a dormir, mas sim delicadas e intrincadas conchas atiradas pelas marés, fragmentos de madeira descorada e complexos emaranhados de plantas. Sentia a areia suave sob os pés e era tão bom que levantei o vestido e comecei a correr, apesar do tornozelo dorido, com a brisa nos cabelos, até que a fria água do mar me rodeou os pés e o coração, com um arrepio de liberdade. Atravessei as pequenas ondas e a barra do vestido azul ficou molhada e cheia de areia; corri ao longo da praia e as gaivotas seguiram-me lá no alto, gritando umas para as outras. Corri até ficar tonta e sem respiração, até ao extremo da praia, onde o promontório rochoso se elevava da areia branca. Ali, encostei-me às rochas e fiquei a ouvir o meu coração a bater, sorvendo aquele ar selvagem, marinho. Não me tinha apercebido, até então, de como o fardo que me tinham colocado nos ombros era doloroso, tendo sido preciso um dia de liberdade para o reconhecer.
Podia ver Red, uma figura distante, imóvel, sentado nas rochas. O cabelo dele era a única nota vibrante de cor naquela paisagem cinzenta, verde e branca; uma chama sobre a água. Tinha posto o livro de lado e estava sentado, imóvel, de costas direitas, a olhar para mim. Talvez estivesse a pensar que eu tentaria fugir. Mas não; sabia que eu voltaria, porque compreendia, pelo menos, que eu tinha de terminar a minha tarefa, se bem que, se conhecesse as razões de tal tarefa, dificilmente acreditasse nelas. Tais coisas estavam para além da compreensão de um bretão. Vozes na cabeça, sonhos estranhos, isso ele ainda aceitava, com relutância. Mas havia um mundo inteiro para além disso e esse ele não conseguia alcançar.
Regressei lentamente. A meio caminho, o mar descobrira um tesouro de conchas, cada uma mais bela do que a anterior. Sentei-me na areia e peguei numa, depois noutra, maravilhando-me com aquelas minúsculas casas que tinham abrigado, cada uma delas, uma pequena criatura do mar. Porque eu era a filha da floresta e nunca me aventurara, durante todos os anos da minha vida, para lá dos seus braços envolventes, nunca imaginara a maravilha, a estranheza do oceano e a sua vida secreta. A concha na minha mão fora aberta por uma grande tempestade qualquer; lá dentro, um sulco após outro, perfeitamente alinhados, como um manto difuso, cor de pérola, digno de uma rainha. Era verdadeiramente espantoso. Fiquei ali sentada durante muito tempo, olhando e sonhando, os meus pensamentos afastando-se daquele local, virada para dentro de mim mesma. E então e então como poderei descrever aquele momento? Uma voz na minha cabeça, não a que me atormentava, nem a que me falava sem sentido e me acordava; uma voz que eu não ouvia há tanto, tanto tempo.
Sorcha. Sorcha, estou aqui. Estou aqui, pequena coruja.
Conor?
Mal me atrevia a pensar no nome dele, mal me atrevia a chamá-lo, com medo que o momento se perdesse. Olhei para o céu, por cima da água. Lá estava uma ave solitária, com as grandes asas abertas, circulando, planando.
Conor? És mesmo tu?
Ouve com cuidado. Só posso falar por uns momentos. Depois, tenho de partir
Os outros onde estão? Por que é que...
Calma, pequena coruja. Ouve.
Afastei todos os pensamentos, esvaziei a mente e abri-a.
Óptimo. Diz-me, poderei encontrar-te aqui, no solstício do Verão?
Não.
Imaginei o vale de Harrowfield o melhor que pude, tentando mostrar-lhe onde era, sobre as colinas, para sudeste. Como poderia um cisne voar até Harrowfield? Um cisne não segue trilhos, pontes, carreiros sob as árvores.
Estou a ver esse lugar. Quem é aquele que te guarda? Por que vieste para aqui, atravessando a água? É muito longe, demasiado longe para nós.
Senti os olhos marejados de lágrimas e a garganta presa. Não lhe respondi.
As camisas estão feitas? Estarão prontas no solstício do Verão?
As lágrimas começaram a escorrer-me pelas faces.
Não. Ainda falta uma e parte de outra.
Não chores, irmãzinha. Estarei lá. No Meán Samhraidh espera por mim. Eu irei lá.
Senti-o afastar os pensamentos dos meus, delicadamente. Nunca fora o mais habilidoso, naquilo. Vi a ave voar em círculo mais uma vez e com um poderoso bater das suas asas brancas dirigir-se para oeste. Fiquei, de novo, sozinha. Mas não só, porque eles estavam vivos. Vê-los-ia de novo em breve, muito em breve, porque já estávamos em Maio. Não me tinha apercebido, até então, de como quase acreditara na inutilidade da tarefa.
Obrigada, disse eu, silenciosamente. Obrigada, oh, obrigada. Mas não sabia para quem estava a falar. Havia uma força tão poderosa à minha volta que quase podia ser tocada, uma força nas ondas, nas rochas e nas estranhas criaturas marinhas, com os seus olhos tão dóceis. Ouvira a voz do meu irmão devido a essa força, devido ao local em que me encontrava. Mas não me esquecera de quem me trouxera.
Mais tarde, quando a maré atingiu o seu ponto mais baixo, desenhei uma sereia na areia molhada, de longos cabelos louros, olhos cinzentos do feitio de conchas e uma graciosa cauda de peixe. Os seus seios eram redondos, a cintura estreita e as mãos pequenas, delicadas. Era como as criaturas de que eu ouvira falar nas velhas histórias, que chamavam os marinheiros com vozes extremamente sedutoras, capazes de enlouquecer um homem. Fiquei toda molhada e enchi-me de areia, tão absorta que não vi o meu companheiro descer até à praia e só me apercebi dele quando a brisa me atirou o cabelo para os olhos e levantei a cabeça para atirar de novo os caracóis para os ombros. Ele estava sentado não muito longe, a observar-me e surpreendi-lhe um sorriso nos lábios, o primeiro verdadeiro sorriso que já lhe vira, um sorriso que lhe encurvava e suavizava a boca estreita e lhe aquecia os olhos frios, como o gelo; um sorriso que trouxe de volta o sangue ao meu rosto e me fez o coração bater mais depressa. Algo dentro de mim, muito lá no fundo, gritou, perigo! Não te podes dar ao luxo de te desviares do teu caminho. Olhei para além dele, porque quando vi a doçura daquele sorriso senti a mão de Simon ferrar-se na minha, aterrorizado, como se fosse um talismã. Quando olhei para os olhos de Red e vi a profunda solidão, ouvi a voz de Simon, como a de uma criança: não me deixes. Aqueles irmãos, sem uma palavra, pediam mais do que eu podia dar. Sentei-me de costas para ele e observei as aves sobre o mar. Gaivotas, gansos, e outras cujos nomes eu não sabia, grandes viajantes, de grandes asas. Não havia cisnes. Mas algures, do outro lado daquela vastidão aquática, eles estavam à espera. Isso é que interessava.
— Simon e eu costumávamos vir aqui — disse Red por trás de mím. — Há muito tempo. Mais ninguém sabia disto. As focas vêm aqui para descansar, mas não por muito tempo, porque vivem a maior parte das suas vidas no mar e só são vistas quando querem. Nunca sabíamos se elas estariam aqui, ou não. Queria mostrar-tas.
Acenei com a cabeça, mas não olhei para ele.
— Há uma história antiga acerca deste lugar — disse ele. — É sobre uma sereia igual à que tu desenhaste. O teu povo é hábil a contar tais histórias. Eu não tenho o dom da palavra. Mas penso que gostarias de ouvir esta.
Senti-me extremamente surpreendida. Virei-me um pouco. Ele estava sentado na areia, de pernas cruzadas, ainda calçado com as suas botas de montar. Pelo menos, deixara a capa nas rochas, juntamente com o livro, o tinteiro e a pena. Franzi as sobrancelhas, mostrei-lhe os meus pés descalços e apontei para os dele. Mergulhei os dedos na areia.
Pelo menos, podes fazer isto.
Ele estreitou os olhos, mas tirou as botas, levantou-se e foi até à beira da água, até ao pé da sereia. Estudou-a com um meio sorriso no rosto, enquanto as pequeninas ondas se lhe enrolavam nos tornozelos.
— As pessoas, por estas bandas, vivem da pesca — disse ele. — Os miúdos aprendem a lançar a rede e a apanhar um bacalhau quase antes de aprenderem a andar. Mas havia um que não queria seguir esse caminho. Tudo o que fazia, dia após dia, era sentar-se nas rochas, nos promontórios, a tocar no seu assobio. Danças, árias, melodias estranhas, da sua imaginação. O pai desesperava com ele. A mãe dizia que ele era a vergonha de todos, que não era capaz de andar um dia decente nos barcos. Mas Toby, porque era esse o nome dele, continuava a olhar para o mar e assobiava as suas melodias e com o tempo as pessoas começaram a ouvi-lo com receio, porque a sua música fazia-se eco das alegrias e desejos dos seus corações.
Estava estupefacta. Nunca me passara pela cabeça que o sério Hugh de Harrowfield pudesse dizer tais palavras.
— O rapaz transformou-se num homem. Por vezes, pediam-lhe que tocasse num casamento e ele fazia-o com relutância, saindo assim que podia. E então vinha a parte estranha da história. Estranha, mas verdadeira, dizem, porque um homem, que estava a remendar umas redes, o viu com os próprios olhos. Lá estava Toby, ao anoitecer de um dia de Verão, sozinho nas rochas escuras, com as notas do assobio a pairarem por cima dele. E de súbito, a seu lado, apareceu uma bela jovem, de pele pálida como o luar e longos cabelos escuros emaranhados, que caíam para lhe esconder a nudez; e olhos líquidos, da cor do vasto oceano. Saiu da água e por um momento o homem pensou ter visto o brilho de uma cauda prateada, o brilho difuso de escamas, à luz do Sol poente; mas quando olhou de novo ela estava sentada nas rochas, escutando, enlevada, a música, parecendo uma mulher normal, salvo que mais bela e mais selvagem do que qualquer outra nas redondezas.
Red inclinou-se, com umas algas presas cuidadosamente nas mãos. Colocou-as no pescoço da sereia.
— Toby levou-a com ele para casa e a mãe dele, franzindo as sobrancelhas, arranjou um vestido para a tapar e o pai ficou dividido entre a admiração e o receio, quando Toby declarou que iria desposá-la no dia seguinte. Mas a avó disse, não fiques com ela durante muito tempo. É sempre o mesmo com a gente do mar. Pensamos que nos pertencem e um dia ouvem o chamamento das ondas e vão-se.
Os dois mudaram-se para longe do mar, para Elvington, onde Toby tocava em feiras e festas. A sereia manteve-lhe a casa limpa, dormia na cama com ele e com o tempo deu-lhe duas filhas, de frondosos cabelos escuros e olhos afastados. E as pessoas hesitavam em passar pela casa deles ao escurecer, porque por vezes ouviam o som de um assobio, cadenciado, e outras a voz da esposa, entoando um lamento que lhes punha os cabelos em pé, tal era a nostalgia que encerrava ali. Passaram-se os anos e as coisas não iam bem entre eles, porque a esposa de Toby emagreceu e empalideceu e o seu cabelo lustroso ficou seco e quebradiço. Já não se ouviam os sons suaves do assobio ecoando no crepúsculo. As pessoas diziam que a esposa estava perto da morte e que o homem já não era o mesmo, porque ela era a mulher da vida dele e não conseguia pensar em separar-se dela.
“Então, uma manhã, saíram de Elvington tão silenciosamente como haviam chegado: Toby, a sua pálida mulher enrolada num grande xaile e as duas filhas lado a lado, numa carroça puxada por um burro. Viajaram até à costa e a cada passo que o burro dava na direcção do barulho das ondas e da vastidão do oceano, mais os olhos da esposa brilhavam e mais os de Toby empalideciam e envelheciam. Seguiu-se outro crepúsculo, até que, por fim, chegaram de novo às rochas e olharam para ocidente. As pequeninas começaram a brincar nas poças de água, indiferentes ao frio do mar. Ninguém sabe o que Toby disse à esposa, ou ela a ele. Mas dizem que ficaram os dois juntos, mão na mão, até que o último raio prateado de sol desapareceu na água e então Toby tirou o assobio do bolso e começou a tocar um lamento. E quando esse lamento terminou a sereia tinha desaparecido, abraçada pelas ondas. E na água escura moveram-se caudas; e ouviu-se o som de estranhas vozes, cantando uma música de despedida.
Movi as mãos, à espera de mais. Uma história deve ter um fim como deve ser.
— Ela era uma criatura das profundezas e para lá devia voltar, ou morreria. Toby compreendeu-o, mas isso não o ajudou. Porque tudo o que lhe restou dela foi a recordação, na qual ele guardou cada momento em que ela lhe pertencera. Foi tudo o que lhe restou, para afastar a solidão. As suas filhas cresceram, casaram-se e os seus descendentes ainda vivem por estas bandas. Mas isso é outra história.
Red sentou-se, de costas para mim, perto, mas não demasiado. Houve um pequeno hiato de silêncio, enquanto a lenda assentava nas nossas mentes. Pensei que Toby encontrara um tesouro, encontrara a mulher dos seus sonhos e a perdera. Tudo o que tu pescaste foi uma rapariga magricela, com uma maldição que prejudica todos aqueles que se aproximam dela. Fizeste um mau negócio, Hugh de Harrowfield. Mais valia cortar as amarras e deixar-me ir. Mas, onde aprendera um bretão uma lenda como aquela? Na verdade, estava a ser um dia muito estranho.
Red trouxera a pequena trouxa com ele, para a areia. Ofereceu-me a garrafa de água, tirou um bocado de pão, que dividiu, e um canto de queijo, que cortou com a sua pequena faca. Descobri que, apesar de tudo, tinha fome. Ele observou-me a comer, mas pouco comeu. O espaço entre os dois estava pesado, cheio de pensamentos calados. Quando terminei, meteu na trouxa a garrafa e o pano, rodeou os joelhos com os braços e pôs-se a olhar para ocidente.
— Hoje — disse ele — acabei a última página do meu diário. — É tempo de começar outro. Já muitos foram escritos. Cada carvalho plantado, cada celeiro construído, cada geração de ovelhas e gado. As batalhas travadas; os fogos e as cheias enfrentados. A história do vale. Foi sempre o que quis, continuar o trabalho feito pelos meus antepassados; para que os meus animais prosperem, as minhas colheitas cresçam sadias e o meu povo se sinta seguro e feliz. Foi para isto, creio, que nasci.
Seguiu-se uma pausa. Olhei para ele de lado. O seu perfil era muito severo.
Mas? sinalizei eu com as mãos.
— Mas... Desde que Simon se foi embora, desde... Desde que te encontrei e trouxe para Harrowfield, é como se andasse pelo meio das sombras, brincando com fantasmas. Como se tivesse perdido o meu rumo. Ou., ou como se o rumo que eu sempre acreditei ser o meu estivesse a alterar-se sob os meus pés. Antes, sempre me pareceu suficiente, porque a minha vida seguia esse caminho, como o meu pai antes de mim e o pai dele antes dele. Mas eu saí desse caminho e não posso voltar atrás. Não tenho medo, não por mim; mas não me sinto à vontade, porque o real e o irreal se aproximam cada vez mais, enredando-se um no outro, de maneira que não consigo separá-los. Ouço duas versões da mesma história e não sei qual delas é a verdadeira. Aqui estou eu a contar histórias e quase acreditando nelas. Porque, por vezes, penso que também tu voltarás um dia, ouvirás o chamamento do mar e deslizarás para a água. A sereia de Toby fê-lo. Ou talvez uma noite, quando estiver a olhar pela tua janela, veja uma coruja a levantar voo e desaparecer na floresta; e quando for à tua procura talvez só encontre uma pequena pena na tua almofada.
As minhas mãos estavam incapazes de falar por mim. Desde aquela noite, quando tentara confortá-lo e o enfurecera, que perdera a esperança de algum dia me falar daquela maneira. Acreditara que as janelas se tinham fechado para sempre. Por que escolhera aquele momento para revelar tanto de si próprio? Precisava de palavras. Para lhe dizer que era o feitiço. O encantamento que caiu sobre ti, para me protegeres. Para eu poder completar a tarefa. Agora, a tarefa estava quase terminada, os meus irmãos descobrir-me-iam e então também o teu feitiço será quebrado. Poderás voltar para o teu vale e para o caminho ordenado da tua vida e eu... eu irei para casa.
— Não estás a dizer grande coisa — disse Red.
Não fiz qualquer esforço para responder. Pensei que fosse o que fosse que tentasse dizer, ou fazer, seria errado e a máscara desceria de novo. Talvez se eu me sentar aqui muito quieta, consiga guardar este momento, com o céu, e o mar, e o calor do dia, com a voz do meu irmão na mente e Red sentado a meu lado, a falar, como se... como se...
— Faz as tuas perguntas agora, se quiseres — disse ele acanhadamente — Devo-te uma explicação. Várias explicações. E tenho algo para te dizer, assim como algo para te pedir. Não há pressa. Temos o dia todo.
Aquilo preocupava-me. Assim, a minha primeira pergunta foi: Sol a pôr-se a cavalo para casa?
— Não te preocupes com isso — disse ele, franzindo um pouco as sobrancelhas. — Disse que te levaria de volta sã e salva e fá-lo-ei. Pelo menos, nisso podes confiar em nós.
Fiz um gesto de exaspero. Ele era perito em construir respostas que não eram respostas. Mostrei-lhe: Tu casamento hoje?
— Por esta hora — disse ele, olhando para o Sol, que ia alto. — Elaine e o pai dela devem ir a caminho de casa. Não haverá qualquer celebração em Harrowfield.
Fi-lo perceber que achava aquela resposta inadequada.
— Não vão perder tempo com perguntas — disse ele cuidadosamente. Elaine ficou de dar a notícia a Richard esta manhã, assim como à minha mãe. Não desejará ficar mais tempo do que o necessário. — Sim, Jenny, ela já sabia. Não sou tão frio como pensas.
Elaine triste, zangada?
Ele teve um pequeno sorriso lúgubre.
— Não. Desapontada e aborrecida, talvez. Mas ela nunca me quis. Passa-lhe depressa. Com o pai dela é que a história é outra.
Continuava a não responder à verdadeira pergunta, a única que importava.
Porquê?
Não havia um gesto definido, mas não era preciso; a pergunta devia estar escrita nos meus olhos.
— Eu... eu hei de explicar-te, um dia. Há razões. É complicado. Eu...
Terás que fazer melhor do que isso.
— Porquê hoje? Por que não dizer-lhes e acabar com tudo? Acreditas se eu te disser que foi por querer trazer-te aqui, mostrar-te este local, ver-te correr pela areia? Porque só o poderia fazer se mantivesse este dia escondido de todos, salvo daqueles a quem confio a minha própria vida?
Abanei a cabeça.
— No entanto, é uma das razões, Jenny. Desde... Desde o dia em que John morreu que... não, não tenho palavras que cheguem.
Fiz um gesto:
Leva o tempo que quiseres. Estou a ouvir.
— Tens sofrido muito, desde esse dia. Eu não sou cego, eu... Tens de compreender que naquele dia, quando aquilo aconteceu, quando lá chegámos, eu pensei... pensei que ambos... e então, descobri que não podia... Desculpa, isto é... não tenho palavras, só espero que me consigas compreender. Fui injusto para contigo. Não te protegi como devia. Não tiveste culpa do que aconteceu. Cada um de nós se culpa a si próprio. Se eu tivesse feito isto, ou aquilo... mas a culpa foi apenas daquele que deu a ordem. Foi esperto, não há provas. Mas, agora, penso que armou uma cilada a ele próprio, que pode ser descoberta. Só que... — calou-se de novo.
Esperei.
Após um certo tempo disse:
— Está a ficar muito quente. Não devias ficar ao sol muito tempo.
Segui-o pela praia acima e sentámo-nos de novo à sombra do promontório, onde as sombras começavam a arrastar-se ao longo da areia. À beira-mar a maré, subindo, começava a lamber a cauda da sereia, levando-a de volta para o mar.
— Preciso de te fazer uma pergunta — disse Red, virando e revirando uma concha na mão. — Não precisas de responder, se te for proibido. Mas se puderes, responde.
Acenei com a cabeça. Parecia coisa séria. Mas pensei que num dia como aquele pouco mais me surpreenderia.
— Aquela coisa que ele fez para ti, aquele bocado de madeira gravado — disse Red e por um momento não percebi o que queria dizer. — A gravação com as armas de Harrowfield... preciso de saber, foi o meu irmão que ta deu? Pôs-ta nas mãos, percebeste o que ele queria dizer?
Abanei a cabeça. Não, ele deixou-a para mim, apesar de eu o ter abandonado quando mais precisava de mim e quando peguei nela já ele se tinha ido há muito. Não conseguia contar aquela parte.
— Podes dizer-me — disse ele e olhou-me fixamente nos olhos — se o meu irmão ainda vivia no momento em que te conheci?
A pergunta fora feita cuidadosamente. Abanei a cabeça. Acredito que os seus ossos jazem algures na minha floresta. Mas não os vi. Não lhe contei aquela parte.
— Sabes, com alguma certeza, se Simon está morto?
Os seus olhos estavam pálidos sob o sol de Verão Pálidos como poças de água às primeiras luzes do dia. Profundos como recordações por dizer.
Abanei de novo a cabeça.
— Então, não tens a certeza — disse ele, olhando para longe. — Talvez estejas a pensar por que te faço esta pergunta neste momento. Devo dizer-te que... que o teu cativeiro pode ter chegado ao fim. Que a resposta que procuro pode estar noutro lado. Reparaste, suponho, no regresso dos meus mensageiros? Porque também eu tenho informadores espalhados por aí, tal como o meu tio; simplesmente, não falo neles.
Por aquela altura já ele captara a minha atenção por completo, se bem que não conseguisse dizer o que se aproximava. Senti que estava mais à vontade, estabelecendo uma estratégia, um plano; em território mais seguro.
— Pensei que todos os vestígios de Simon se tivessem perdido. A pista fria, apagada pelo tempo. O meu tio falou em procurá-lo e eu varri essa ideia por achar as palavras vãs, atiradas ao vento para manter a minha mãe esperançosa. No entanto, mandei os meus mensageiros em busca de notícias dele. E, por fim, chegaram.
Notícias? Que notícias?
Como é que podia haver notícias de Simon, ao fim de tanto tempo?
— O meu informador ouviu uma história — disse Red — acerca de um jovem de cabelos dourados e olhos azuis, muito brilhantes, um homem tão estrangeiro no teu país como nenhum; que vivia numa comunidade de santos irmãos, numa pequena ilha a oeste da costa de Erin. É muito longe daqui. Um jovem que parecia não estar ferido, no seu perfeito juízo. Só que... só que a sua memória parecia ter desaparecido, tendo apenas conhecimento do presente. Inocente como um recém-nascido; e dizem que tinha 18 ou 19 anos.
Fosse quem fosse, não era Simon, disse para mim própria. Não estava ferido? No seu perfeito juízo? Não podia ser o rapaz de quem eu tratara, cujo espírito estava tão ferido como o desventurado corpo. Mas não o podia dizer.
— Acredito que deve ser o meu irmão — disse Red, olhando para mim. — Sendo assim, vou procurá-lo. E depressa, antes de qualquer outro.
Estava a assustar-me. Porquê?
— Porque — disse ele — não foram as únicas notícias que recebi. Depois de te teres retirado, ontem à noite, o meu tio reuniu-nos a todos e disse-nos que tinha provas em como Simon fora morto, logo depois de o grupo com quem ia ter, sofrido a emboscada na floresta. Capturado, torturado e morto. O corpo dele enterrado sob as árvores, onde a floresta, sempre a crescer, o cobriu. Foi-lhe contado em primeira mão por quem o testemunhou e mais tarde traiu o seu senhor.
Ambas as histórias eram falsas, pensei. Mas como não podia negar uma, também não podia refutar a outra. Não sem lhe dizer a verdade sobre o que sabia. E não o faria. Não enquanto não tivesse palavras. Mesmo então, seria suficientemente doloroso.
— Richard está a mentir — disse Red rudemente. — Por qualquer razão, não quer que o meu irmão seja encontrado. Por isso, devo ir só e em segredo. Nem mesmo a minha mãe deve saber, porque seria cruel alimentar-lhe esperanças enquanto eu não tiver a certeza. Além disso, continua a ser irmã de Richard. Só falei disto a Ben e agora a ti. Há uma longa vastidão de território hostil a atravessar. Jenny devo dizer-te que parto esta noite. Não vou regressar a Harrowfield. Só quando o encontrar.
Senti-me esmagada, instantaneamente, sob um pânico terrível. Estava tudo errado, não podia ser o irmão dele, alguém lhe estava a montar uma armadilha e... pensei no meu regresso a Harrowfield e como seria sem ele presente. Pensei que até poderia nem regressar. A minha mão fugiu-me, involuntariamente, tocou-lhe numa prega da túnica, sobre o coração e mordi o lábio para segurar as lágrimas. O que se passava comigo? Não era eu a mais forte dos sete, aquela cujos pés mal vacilavam no caminho?
— O que me leva — disse Red num tom que pouco mais era do que um sussurro — à última parte daquilo que quero dizer. Acredita-me, há muito que penso nisto; custou-me muitas noites de sono. Não te deixaria sozinha de livre vontade, porque a ameaça à tua segurança é suficientemente real. Mas se o meu irmão está vivo, preciso de o encontrar. Tenho... Tenho-te protegido o melhor que posso. Muitas vezes, não tão bem como desejaria. Gostaria de fazer mais, mas tu nem sempre tens sido uma pessoa fácil. Desta vez, deixo o Ben, contra a sua própria vontade, aliás. Vou só; posso passar sem ser visto, creio, durante a maior parte da viagem. Ben tomará conta de ti e haverá outros que te apoiarão. Pode ser que não seja por muito tempo. Não fiques muito preocupada, Jenny.
Senti uma lágrima na face.
Vai ser por muito tempo.
Senti o peso de um mau presságio no coração, um sentimento profundo de que coisas más estavam para vir. Não vás. Ainda não. Mas não podia dizer-lho.
— Uma vez disse-te que havia uma solução para o problema da tua segurança — continuou ele de modo muito estranho, como se estivesse a andar sobre vidros partidos. Um passo em falso e o dano estaria feito. — Tenho visto muito bem como te tratam, até a minha mãe, como olham para ti e falam nas tuas costas. Como detestam a tua presença no seio da família. Não te aceitam como amiga porque não compreendem... quero dizer, o teu lugar na minha casa permanece pouco claro para eles. O que te deixa vulnerável às pequenas partidas, à falta de delicadeza e aos preconceitos. Mas, como te disse, a solução não será do teu agrado. Qual é? Promete-me — disse ele — que me ouves. Que me escutas, que não foges ou bloqueias a mente, até teres ouvido tudo o que tenho para dizer.
Olhei para ele. A minha mão desprendeu-se da túnica dele e caiu no meu colo. Acenei com a cabeça.
— Como minha convidada — disse ele cuidadosamente — o teu estatuto está... sujeito aos caprichos de outros; a tua segurança não pode ser garantida se não estou presente para te proteger. Como minha mulher, ficarias salva. — O meu coração estremeceu e levantei-me de súbito, o meu vestido enchendo-lhe o rosto de areia. A minha resposta devia ser clara nos meus olhos, à medida que as minhas mãos se mexiam convulsivamente para rejeitar as suas palavras. — Não. Tu não podes fazer isso. Não. Prometeste que ouvias — disse ele calmamente e eu tinha prometido. Assim, sentei-me de novo com os braços em volta do corpo, como que para me proteger. Subitamente, aquele dia solarengo de Primavera tornou-se frio, o seu brilho desapareceu.
— Estás assustada. Não esperava outra coisa. Jenny, eu sei... eu soube que... alguém te magoou, que foi cruel para contigo... sei que ainda te afastas de mim, se bem que espere, apesar de tudo, que sejamos amigos. Este casamento seria... seria apenas no nome, um casamento de conveniência. Ofereço-te a protecção do meu nome, para que possas terminar a tua tarefa em segurança. Nem mais, nem menos.
Não podemos fazer isto. Está errado, tudo errado. Como é que podes pensar — oh, palavras, para lhe dizer como deve ser. A história dele era uma confusão, cheia de nós, um caos. Uma coisa era alterar o padrão, outra destrui-lo por completo.
— Pelo menos, toma atenção ao seguinte — continuou Red, com a voz muito calma, muito suave, como quando tentava controlar-se. Pela minha parte, apetecia-me bater-lhe, esbofeteá-lo, forçá-lo a ver a realidade. Não sabia que aquilo não era a resposta? Não conseguia ver que aquilo era impossível? Imaginava-me a viver em Harrowfield como dona da casa. Até acharia a cena cómica, se não doesse tanto. — Pelo menos, pensa um pouco. Ainda temos algum tempo antes do regresso de Ben.
Percebi, com um horror crescente, que ele desejava que aquilo acontecesse imediatamente; aquele era, na verdade, o dia do seu casamento. Porque estava de partida para o outro lado do mar; e não regressaria; e pretendia que eu ficasse tão protegida quanto possível, antes disso. Mas...
— Olha para mim, Jenny — disse Red e eu olhei. Olhei para o rosto forte, para a palidez da pele, para a cor de fogo do cabelo cortado curto, como o pêlo de uma raposa. Para os profundos e sérios olhos.
— Eu nunca tomei uma mulher contra a sua vontade — disse ele. — Nunca. E não vou começar agora. Especialmente... — não terminou aquele pensamento particular. — Acreditas em mim?
Acenei com a cabeça.
— Não é só isso; se bem que também seja. Ajudaria se te disser que há outras pessoas a saberem disto, que o teu regresso a Harrowfield foi bem preparado? Não precisarás de dar a novidade à minha mãe. Foi Elaine que a deu, antes de regressar a casa.
Pensava que não ficaria mais chocada; enganei-me. Elaine sabia? Quem mais? Toda a casa sabe, antes sequer de tu me pedires?
Ele teve um pequeno sorriso amargo, que não lhe chegou aos olhos.
— Falei apenas com aqueles em quem confio. Com Elaine, sim; ela merecia uma explicação e eu dei-lhe uma. Não é apenas minha prima, Jenny é também uma velha amiga; conheço-a desde criança. Foi ela que carregou o fardo por nós, hoje, ao dizer-lhes; sempre me perguntei como é que aquele meu tio produziu uma filha assim. Ben também sabe; o papel dele nesta história é vital. Será ele que te levará para casa e te protegerá enquanto eu estiver ausente. E... e tinha falado a John nas minhas intenções, há muito tempo.
Houve um silêncio. Um silêncio pesado. Por fim levantei-me e caminhei de novo até ao mar e a areia continuava a saber-me bem sob os pés e a tarde continuava benigna. Mas tudo o resto tinha mudado. Na ocasião, não tinha percebido as últimas palavras de John, rejeitara-as como a confusão delirante de um homem às portas da morte, sofrendo de intensas dores. Que dissera ele? Red, escolha certa. Diz sim. Algo assim, se juntarmos as palavras todas. E eu acenara-lhe com a cabeça, esperando suavizar-lhe as dores. Tinha concordado. Não se falta a uma promessa a um moribundo. Especialmente quando a sua morte é culpa nossa.
Caminhei de novo ao longo da praia, enquanto as sombras se alongavam e o mar escurecia. À beira da água, a sereia tinha quase desaparecido. Tudo o que restava dela era um pedaço de cabelo emaranhado e uma mão delicada, estendida. Sentei-me e fiquei a ver o oceano levá-la de volta para os seus profundos lugares secretos. Clareei a mente; procurei respostas. Mas desta vez nenhuma voz interior veio em minha ajuda. Havia apenas duros e frios factos. Os meus irmãos estavam de regresso. Havia ainda uma camisa para terminar e outra ainda inacabada. Alguém me queimara o trabalho, alguém me matara o meu amigo. Red ia-se embora. E eu tinha prometido a John. Só havia uma conclusão Tinha de acreditar que Hugh de Harrowfield tinha tomado outra das suas sensatas e calculistas decisões. Que ele era, como toda a gente o descrevia, um homem que não faria, nunca, a escolha errada. Tinha que dizer sim, se bem que o meu coração gelasse só de pensar nisso.
No entanto, enquanto permanecíamos os dois nas rochas, um pouco mais tarde, observando as grandes criaturas marinhas uma última vez, à medida que desciam lentamente pela praia e deslizavam para a água, transformando-se instantaneamente em nadadoras graciosas, mágicas, tinha outra pergunta para fazer. Pergunta essa que ele conhecia muito bem.
Tu prometeste eu, casa? Eu, atravessar a água, casa?
— Não faltarei à minha promessa, Jenny — disse ele. — Quando chegar a ocasião, quando estiveres preparada para ir, levar-te-ei lá, sã e salva Quando chegar a ocasião, pede-me e... — não terminou a frase. Mas foi o suficiente.
Estava a fazer-se tarde. A praia estava meia mergulhada em sombra, o céu escurecia cada vez mais. Percebi que não regressaria nessa noite a Harrowfield. Ele não me apressou no sentido de lhe dar uma resposta; limitou-se a ficar ali, observando as focas, esperando. Esperava há muito. O seu diário jazia aberto sobre as rochas, por trás de si e a brisa que se levantava agitava-lhe as folhas, virando-as até mostrar a última, onde escrevera as meticulosas palavras finais dessa manhã, quando estava sentado ao sol; nessa manhã que parecia ter acontecido já há muito. Mas não havia palavras naquela página, apenas imagens, pequenas e delicadas imagens, desenhadas com cuidadosos traços de pena. Já o tinha observado a trabalhar e ficara maravilhada ao ver como preferia escrever, em vez de se extasiar com a beleza que o rodeava. Mas parecia que não precisava de olhar, para lhe apreender a beleza. Porque aquela página mostrava o céu aberto, as suaves e brilhantes faces de pedras molhadas e o suave quebrar das ondas. Mostrava as grandes focas com os seus olhos inteligentes e o voo de uma gaivota contra minúsculas nuvens. No pé da página, muito pequeno, estava o último desenho do livro. Uma jovem a correr, os cabelos esvoaçando como uma nuvem escura, selvagem, o vestido colado ao corpo pela brisa, o rosto iluminado de alegria. Red aproximou-se e fechou o livro com firmeza, metendo-o no pequeno saco. Pensei que, ao fim deste tempo todo, afinal não conheço este homem. De todo. Houve um som vindo de cima, para lá da falésia. O pio de uma ave; um que já ouvira antes. Red levou as mãos à boca e respondeu ao chamamento.
— Chegou a altura de nos irmos embora — disse ele; mas continuou parado. Respirei fundo. Nunca desejara tanto não precisar de responder. As minhas mãos meteram-se ao trabalho. Indiquei a minha própria pessoa; apontei para a mão esquerda, para o terceiro dedo. Acenei com a cabeça ligeiramente. Não me pude impedir de acrescentar um encolher de ombros e um franzir de sobrancelhas. Assegurei-me de que ele compreendia. Houve um lampejo de reacção, do fundo dos seus olhos pálidos, instantaneamente reprimido. Acenou com a cabeça gravemente, o rosto desprovido de qualquer emoção.
— Óptimo. Tinha esperança de que concordasses. Vamos, então. Não me resta muito tempo.
Fora tudo planeado, até ao mais ínfimo pormenor. Partira do princípio, pensei com alguma amargura, que eu diria sim. Sabia que eu não tinha escolha. Ben estava à espera; percorremos uma pequena distância e parámos numa clareira, ao pé de uma construção de pedra, onde estava outro homem à espera. Com uma tonsura na cabeça e um hábito caseiro. Um santo padre; um eremita solitário, como o meu velho amigo, o padre Brien. E tudo terminou rapidamente, tão depressa que não houve tempo para pensar. Ele pronunciou as palavras da cerimónia e nós respondemos como era suposto. Houve um momento estranho e depois tornou-se evidente que eu devia pronunciar o meu voto sem palavras. O padre de olhos perspicazes olhou para Red, olhou para mim e hesitou. Mas perguntou-me, delicadamente, se eu compreendia as palavras; se eu sabia o que estava a fazer. E eu acenei com a cabeça, outra vez e em breve tomava Hugh de Harrowfield como marido através dos laços do santo matrimónio. Ben foi testemunha, disse pouco e manteve a mão no punho da espada. Parecia que apenas naquela enseada encantada estivéramos seguros. E apenas por um dia.
Escurecia cada vez mais. Ben afastou-se alguns passos com o eremita, falando em voz baixa. Que se passa agora, pensei? Vamos ficar aqui nos bosques até ser dia!
— Tenho uma coisa para ti — disse Red, que se mantinha a meu lado. Estava a tirar algo da algibeira. — Quero que uses isto, se não te importas. Uma noiva não deve regressar a casa sem um testemunho do seu casamento, apesar de regressar sem um marido. Toma, leva isto.
Uma coisa pequena, leve, pendurada num fio fino e forte. Era um anel; mas, ao segurá-lo contra a luz cada vez mais fraca, reparei que nunca tinha visto um anel como aquele. Aquele delicado objecto tinha sido esculpido a partir do coração de um grande carvalho. Era fino e delicado, trabalho de um mestre. A face interior era suave como a seda e a exterior tinha um desenho intrincado, fruto de muitos golpes de faca ao longo de muitas e longas noites; um pequeno círculo de folhas de carvalho, com minúsculas bolotas aqui e ali e uma pequena coruja de olhos solenes, empoleirada na folhagem. O anel não fora feito para Elaine. Passei o fio pelo pescoço e meti o testemunho no decote do vestido, sobre o coração, onde ele ficou ao lado de outro velho talismã, pertencente, em tempos, à minha mãe e depois a Finbar. Olhei para Red. O rosto dele não deixava transparecer qualquer emoção. Pensei que aquilo não fazia qualquer sentido. Ele já pensava no casamento antes da morte de John, durante noites a fio, à lareira, no Inverno. O que queria dizer...
— O barco está à tua espera. — A voz de Ben vinha da escuridão. — O barqueiro diz que te consegue desembarcar antes do amanhecer, a tempo de te esgueirares. Estás pronto?
— Não — disse Red. — Mas tenho que ir, de qualquer maneira. Adeus, Jenny. Sê prudente e até ao meu regresso.
Eu estava gelada, incapaz de me mexer. Não vás. Ainda não. É muito cedo. Mas as minhas mãos ficaram quietas e a minha língua, como sempre, silenciosa.
— Eu trago-te uma maçã — disse ele e, virando-se, desapareceu nas sombras. — A primeira maçã da estação. — E desapareceu. E eu não me tinha despedido.
Uma história pode começar de muitas maneiras. Desse modo, transforma-se em várias histórias. Ao mesmo tempo, cada uma delas não passa de uma maneira de contar a mesma. Era uma vez dois irmãos. Esta é a história do irmão mais velho, um homem que tinha tudo. Era bom, forte, sábio e rico. Era um homem que fazia sempre as escolhas certas. Era um homem satisfeito com o que tinha; mais do que satisfeito, porque era obrigado pelo amor e pelo dever a solidificar a sua herança. Até que um dia descobriu que não era o suficiente. Era uma vez dois irmãos. Esta é a história do irmão mais novo, que era esperto, habilidoso e selvagem, um homem de cabelos encaracolados, da cor do sol do Verão num campo de cevada. Havia pessoas que gostavam dele, mas ele não o sentia. Havia um lugar para ele, mas nunca se sentia bem-vindo. Sentia-se sempre a mais. O seu irmão herdaria a herdade; ele, uma pequena parcela de terra que ninguém queria. O seu irmão casar-se-ia bem, para salvaguardar a herdade e consolidar o seu poder; mas quem quereria o filho mais novo, sem qualquer futuro? O seu irmão fazia sempre as coisas bem-feitas. Ele, por vezes, cometia erros de proporções épicas. Esta é também a história de uma jovem. Quem ela era, ninguém sabe bem, excepto que tinha uns olhos verdes estranhos, um cabelo como a meia-noite e que veio do outro lado do mar. Num momento de loucura incaracterística, o irmão mais velho tomou-a como esposa. Em seguida, desapareceu, tal como o irmão mais novo; e tudo o que ambos deixaram para trás foi a rapariga-bruxa, que passava o tempo a fiar, a tecer e a coser um estranho tecido de espinheiro e da boca dela não saía uma única palavra, um único som. Dizem que ela não falava, nem quando as rochas lhe caíram ao pé e um homem morreu. Dizem que era uma mulher sem sentimentos humanos, uma feiticeira, e que quando arrebatou Lorde Hugh à sua prometida, mesmo debaixo do nariz dela, sem lhe pedir licença, arrancou o coração de todo o vale. É o que dizem.
Foi um regresso a casa difícil. A confidência de Red, de que Elaine prepararia a sua entrada na família, não era de todo verdadeira. Ela fizera o melhor que pudera; todos sabiam que o casamento fora cancelado e que, em vez disso, Hugh fizera o impensável e casara comigo. Elaine fora-se embora, assim como Richard e eu tinha uma grande dívida para com ela por causa disso. O que ela não lhes disse, porque não podia, porque ninguém sabia, salvo Ben e eu, era que o seu amado Hugh não regressaria a casa com a sua noiva. Foi um regresso desconfortável, enquanto Ben explicava o melhor que podia, sem dizer exactamente para onde Red fora e eu fiquei no átrio, cansada, rodeada de rostos chocados e olhares curiosos. Lady Anne era uma mulher corajosa. Foi a primeira a recuperar, aparentemente, pelo menos. Os servos foram despachados, em busca de cerveja e hidromel. As damas foram despedidas e os homens de armas foram enviados para os seus lugares. Para Lady Anne, o dever era soberano. Assim, deu-me um beijo gelado na testa e disse «Bem-vinda, filha», numa voz sufocada pelo constrangimento. Foi só nesse momento que me lembrei que só passara um dia desde que Richard lhe dissera que Simon estava morto. Em seguida, fez-me sentar e meteu-me uma taça de hidromel nas mãos; e passado um bocado chamou Megan para me mostrar os meus novos alojamentos. Eu ainda nem sequer tinha pensado naquilo. Mas tudo estava pronto, numa câmara espaçosa, no andar superior, que eu suspeitava nunca tinha pertencido a Red, porque era demasiado confortável. Havia uma cama larga, com cobertores de boa lã e no fogão coberto de telha ardia um pequeno e acolhedor fogo. Havia tapeçarias nas paredes e velas acesas. Grinaldas de flores decoravam a cama, o fogão e a soleira da porta; não tinham sido ali colocadas para mim, de certeza. Mas a um canto estavam a minha arca de madeira, a minha roca e o meu fuso, o meu cesto e os fardos de morugem. Alys estava junto aos calcanhares de Megan e não demorou muito a instalar-se junto ao calor do fogo.
Nessa noite não dormi muito, nem nas muitas que se seguiram, à medida que o Verão avançava e se aproximava o regresso dos meus irmãos. Sentar-me-ia a trabalhar o dia todo, descendo apenas quando fosse preciso, para tomar o meu lugar na mesa à direita de Lady Anne e comer a minha refeição sob o olhar atento dela. Eu sabia que havia coisas que ela queria dizer, perguntas que ardia de desejo por fazer. Mas não lhe estava na natureza. Além disso, sabia que não obteria respostas da minha parte. Por vezes, punha-me a pensar se ela saberia onde fora o filho, porque as explicações de Ben tinham-me parecido bem fracas. Um velho amigo; uma disputa territorial. Onde, perguntaram? Ben não sabia exactamente onde. Mas não demoraria muito; em breve voltaria. Mas, se era só isso, perguntaram as pessoas (como a estação ia avançada), porque não voltara? E se era assim, porque não contara os seus planos a ninguém? Nem sequer à própria mãe? Os rumores abundavam e eu estava em todos eles. Assim, mantive-me calada e quando saí da mesa fui trabalhar para a minha câmara iluminada por velas, apenas com Alys como companhia. O tempo era cada vez mais escasso.
O sono continuou a fugir-me. Andava de um lado para o outro do quarto, a cabeça cheia de visões de Red, capturado e torturado pelos homens do meu pai. De cisnes voando sobre a água tempestuosa, os movimentos das asas cada vez mais difíceis. De Red sofrendo de um ferimento qualquer, num território hostil, sem qualquer ajuda. Sozinho na floresta. Não haveria uma rapariga habilidosa com a agulha e o fio. Nem sequer tivera tempo de lhe coser uma cruz de sorveira-brava no vestuário, antes de ele me deixar. Imaginei Finbar na última vez que o vi, demasiado fraco para andar. Demasiado fraco para voar. Imaginei o rosto de Red, quando finalmente encontrasse o jovem sem passado. O homem que ele acreditava ser o seu irmão. Não podia ser Simon. Se lho pudesse ter dito, talvez não tivesse partido, deixando-me só. Então, a minha pequena e sensível voz falou. Despacha-te, Sorcha. Despacha-te. Não há tempo para essas coisas. Fia. Tece. Faz as tuas camisas. Tens menos tempo do que pensas. No entanto, tinha menos controlo sobre os meus pensamentos do que gostaria. O pequeno anel estava pendurado no meu pescoço, por baixo do vestido, onde ninguém o podia ver. Quando estava só, por vezes tirava-o para fora, imaginando como soubera ele o tamanho, sem mais nada senão os meus dedos inchados e nodosos para se orientar. Imaginando se as minhas mãos algum dia voltariam a ser o que eram, pequenas, brancas e finas. Quando isso acontecesse, se acontecesse, há muito que me teria ido embora. E teria deixado para trás marido e anel de noivado. Não importava muito se o tamanho era o certo ou não. No entanto, quando pensava nisso, dava com a minha mão a pegar no anel, como se não quisesse separar-me dele. É meu, dizia algo dentro de mim. Este sentimento perturbava-me muito.
Na ausência do filho, Lady Anne tomou as rédeas da herdade, como obviamente já o fizera antes, com tranquila competência. Mas agora a tarefa já não era tão fácil. Os dias seguiram o seu padrão familiar, mas sem Red não era o mesmo. As disputas demoravam mais tempo a resolver. Um homem queimou o telheiro de outro e um burro foi salvo in extremis. Um estranho, que passava na estrada, parou numa das cabanas e pediu cerveja e abrigo. Na manhã seguinte foi encontrado morto no pátio com um ferimento de punhal entre as costelas. Alguns dos homens queixavam-se de receber ordens de Ben. Quem pensava ele que era, afinal de contas? Lá porque tinha sido protegido do velho, pai de Lorde Hugh, não podia dar-se ares, agora que Hugh se tinha ausentado. O rapazito andava a armar-se. Além disso, se Mister Benedict não estivesse presente no dia em que Lorde Hugh... bem, tu sabes. Lady Anne disse-lhes para voltarem ao trabalho e deixarem de gastar o tempo de Ben e o dela; a herdade não funcionava sozinha. Os homens obedeceram, resmungando. Mas todos o sentíamos. Os bons tempos tinham acabado. À medida que a Primavera avançava para o Verão e um brilhante e fértil calor arranhava a terra, a desconfiança e a suspeição floresciam. As pessoas andavam receosas e irritadas, não apenas para comigo e para os que me protegiam, mas também para com eles próprios.
As coisas atingiram o máximo uns dias antes do solstício de Verão. A mulher de um camponês foi assaltada; um outro camponês foi acusado, mas protestou a sua inocência. Formaram-se facções. Parecia ser apenas uma questão de tempo, antes que um entusiasta qualquer, brandido uma forquilha ou uma gadanha, ferisse alguém seriamente. Lady Anne chamou as partes e tentou arbitrar a questão. Ben, com a ajuda de um punhado de homens leais, conseguiu mantê-los afastados das gargantas uns dos outros. Mas não se chegou a qualquer solução e a disposição geral piorou. Não havia notícias de Red. Assim, Lady Anne mandou chamar o irmão.
Se a atmosfera da casa já estava tensa, assim que Richard fechou a sua mão bem tratada sobre nós, a casa passou a andar no fio da navalha. O seu método de resolver o problema imediato foi muito eficiente. O acusado foi sumariamente levado, para um lugar qualquer, extremamente privado, acompanhado por vários homens grandes, vestidos com as cores castanho-avermelhado e negro de Northwoods. Mais tarde, no mesmo dia, Richard avisou Lady Anne de que o homem tinha confessado. Mais tarde ainda, foi pendurado numa árvore e foi o fim. Dizem que quando o tiraram de lá o corpo tinha ferimentos que não tinham sido feitos por uma corda em volta do pescoço. É o que dizem, o que não é muito difícil de acreditar. Ninguém se atreveu a salvar aquele homem, que podia ser, ou não, culpado. Não havia nenhum Finbar, nem nenhuma Sorcha, para intervirem, nenhuma criança apaixonada, suficientemente corajosa, para tomar a lei nas próprias mãos, como tínhamos feito com Simon. As outras coisas que se diziam é que teriam preocupado Red. Coisas como, pelo menos Lorde Richard sabe como resolver os problemas. Age com rapidez. As pessoas ficam a saber o que podem e não podem fazer. É claro que a outra facção discordou por completo. Murmuravam coisas como, qualquer homem confessava, fosse o que fosse, se lhe fizessem aquilo, e, que tal uma audiência justa e perguntas como deve ser de ambos os lados? Onde estava Lorde Hugh quando precisavam dele? E quem pensava Lorde Richard que era, para tomar assim decisões? Ouviste o que aconteceu aos homens dele, quando os mandou ao outro lado do mar numa missão de loucos?
Eu mantive-me no meu quarto, mal me aventurando a sair, a não ser para fazer as minhas abluções. Penso que Megan me compreendeu e desculpou na refeição da noite uma, duas, três vezes. Estômago delicado. Não conseguia segurar nada. Antes, Lady Anne ter-me-ia mandado chamar. Mas agora eu era nora dela e tinha que mostrar respeito pelos meus desejos. Eu era, pelo menos no nome, a dona da casa. Megan regressou e disse-me que havia rumores acerca da minha súbita doença. Um pouco cedo, talvez, mas era evidente que Lorde Hugh estivera ocupado, diziam; experimentando o artigo antes de o comprar. Senti uma fúria cega quando ouvi aqueles rumores, mas mantive as rédeas curtas. Não tem importância, disse para mim própria. Nada é importante, senão o meu trabalho. Sempre sozinha no meu quarto, terminei a quinta camisa e comecei a última.
CAPÍTULO DOZE
Foi só pouca sorte, suponho. Pouca sorte e infelicidade, o meu plano de sair de casa sorrateiramente após o escurecer e ir até ao rio ter ficado completamente arruinado pela decisão de última hora de Lady Anne de levar toda a gente até à margem para um jantar ao ar livre. Um piquenique sob as árvores, à luz das tochas, para comemorar a véspera do solstício de Verão. Porque estava consciente do mal-estar, da suspeição e da desconfiança entre a sua gente. Era uma tentativa para os sacudir, para lhes levantar a moral, para os fazer falar de novo. Era uma boa ideia. Uma grande estratégia. A mim, cheirava-me a desastre. Passei o dia todo numa angústia, pensando se devia ir com eles ou pretender estar mais uma vez doente, tentando esgueirar-me mais tarde, quando não estivesse a ser observada. Não fazia ideia nenhuma do sítio onde os meus irmãos iriam dar, mas Conor, supunha, era capaz de ver as coisas como elas eram e talvez os guiasse até um local relativamente seguro. Se eu conseguisse chegar ao rio antes do anoitecer, se conseguisse afastar-me dos outros sem atrair as atenções, talvez eles pudessem voar até onde eu estaria à espera, sozinha, podendo avisá-los. Talvez. O meu espírito contraía-se ao saber que Richard estaria ali, bem perto. Ben tinha olhado por mim, até ali, como uma mãe ansiosa pelo seu delicado bebé. Até Margery me tinha atirado um sorriso pálido, no outro dia. Mas eu continuava a sentir-me só, tão só; o caminho era muito duro e cheio de perigos.
Se Red estivesse presente, teria levado o tio para um complexo debate qualquer sobre fronteiras, ou fidelidade. Se Red estivesse presente, ter-se-ia assegurado de que eu estaria rodeada daqueles em quem ele confiava, protegida de perguntas indiscretas e olhares sugestivos. Mas Red tinha-se ido embora; e o seu tio arvorou-se em meu companheiro, enquanto toda a casa se encaminhava pela alameda de choupos abaixo até à margem verde do rio, naquela quente tarde de Verão. Tinha pouco tempo até ao crepúsculo. Não muito. Não o suficiente. Lady Anne dera-me roupa condizente com o meu novo estatuto de mulher do seu filho. Escolhera o mais simples e mais modesto dos vestidos, verde-escuro, de decote subido e mangas até aos punhos. Mas ele fez um comentário, com um olhar prolongado e um erguer de sobrancelhas insinuante. A sua barba clara estava bem aparada, como um ramo de alfena após a primeira poda de Outono. A sua túnica preta era imaculada, a gola terminando numa fina linha de fio prateado.
— Viva, minha querida. — Olhou-me de cima a baixo, demoradamente. — Uma verdadeira senhora. Surpreendeste-nos a todos. Hugh surpreendeu-nos. Nunca pensei que ele fosse daqueles homens que pensam primeiro com os rins e só depois com a cabeça. O nosso Hugh, não. Que monumental disparate. Mas, vai ser sol de pouca dura.
Continuei a andar, reprimindo sinistramente a vontade de lhe dar um pontapé. A minha frente e atrás de mim, as pessoas transportavam cobertores e cestos, falavam e riam. Lady Anne tinha bons instintos. Onde estava Ben? Pareceu-me ter visto a cabeça loura dele, algures ali à frente.
— Ouvi dizer que te tens sentido um pouco... indisposta, minha querida — disse Richard em tom sedoso. — Que pena. Gostava tanto que te sentisses bem, para te poderes mostrar. Tens que manter as aparências, sabes, agora que entraste para a família. Pergunto a mim próprio como reagirão os locais a um fedelho mestiço como novo herdeiro de Harrowfield? Não muito bem, creio. Muito mal, aliás. Nem de Bretanha, nem de Erin, antes dos dois ao mesmo tempo. Já pensaste? Diz-me, isto fazia parte do teu plano original? Foi por essa razão que te mandaram para aqui?
Continuou naquele tom por mais algum tempo, enquanto eu tentava não ouvir as suas palavras; em breve estaria escuro e eu temia o que poderia acontecer se não me pudesse escapar do grupo e encontrar um local. O encontro com os meus irmãos teria de ser breve. Vê-los-ia, tocá-los-ia e avisá-los-ia do perigo; em seguida eles teriam de permanecer escondidos até ao amanhecer, porque ali não passavam de bárbaros, embrenhados no coração do território inimigo.
— O que ainda não compreendi — disse Richard — é porque tinha ele de casar contigo. Estava assim tão desesperado por ti que tinha de sacrificar o seu futuro só para satisfazer a luxúria? Qualquer outro homem ter-te-ia tomado e continuado com a vida. Não me interpretes mal, minha querida. O teu encanto é óbvio. És capaz de fazer ferver o sangue de qualquer homem. Mas uma aliança de casamento? Isso não era necessário Bastava fazê-los acreditar no que se diz, acerca de feiticeiras, feitiços e poções de amor. Algo fez o rapaz perder a cabeça, o suficiente para ele te pôr um anel no dedo; e aposto o meu melhor garanhão contra um prato de flocos de aveia em como foi o teu jovem e suave corpinho. Oh, desculpa a alusão aos teus dedos. Vejo que não podes usar um anel. Essas mãos não estão aptas para tal. Não são a parte mais atraente da tua anatomia, minha querida, se assim o posso dizer. É outra coisa que me intriga...
Chegámos à margem do rio. Era quase noite; as pessoas estenderam os cobertores na relva e Lady Anne ordenou que um casco de cerveja fosse aberto. Alguém tirou da algibeira um assobio e começou a tocar música de dança. Vi Ben a vigiar as vizinhanças, como se estivesse à procura de sinais de agitação. Cinco ou seis dos seus homens estavam colocados estrategicamente à nossa volta. Fazia o seu trabalho e fazia-o bem. Mas naquela noite eu dispensava bem tal protecção.
Não tinha escolha, senão sentar-me ao lado de Richard e da irmã. Agora, eu era da família, pensassem o que pensassem de mim. Comeram e beberam; sentei-me no chão, de costas direitas, agradecendo secretamente a Lady Anne por entreter o seu irmão numa conversa sobre a venda do excedente de gado. À nossa volta, toda a gente estava descontraída, gozando aquele fim de tarde balsâmico, o sentido de bem-estar aumentado pelo fluxo da boa cerveja. Vi Margery com o bebé. Ele já se sentava sozinho e o seu cabelo castanho crescera o suficiente para mostrar o primeiro caracol. Margery continuava pálida, mas trocava palavras com este e com aquele. Ben não estava descontraído. Ele e os seus homens patrulhavam as vizinhanças, de armas prontas.
O Sol desapareceu por trás das copas altas das árvores e o céu ficou cor de alfazema, violeta e cinzento-escuro. Por cima de nós, os salgueiros suspiravam e permaneciam imóveis. Emoldurada pelos seus ramos lacrimosos, a água do rio escureceu lentamente. Foram acesas tochas e colocadas em estacas em volta do espaço relvado onde estávamos sentados. Ao assobio juntou-se um tambor e um violino e alguns dos jovens levantaram-se para dançar. No rio, não havia qualquer sinal de cisnes.
— Diz-me, minha querida — Richard virou a sua atenção para mim sem qualquer aviso. — Sabes, por acaso, onde foi o teu marido assim tão de repente? Achei a explicação oficial difícil de acreditar. Um pouco exagerada, pensei. O jovem Ben esconde alguma coisa. E tu? Hugh deu a entender onde ia, por que te abandonou tão depressa? Segredos de travesseiro, essa coisa toda? Tu deves gostar disso, fazê-lo vir comer à tua mão, segundo ouvi dizer. O que é que ele te disse?
— Richard — disse Lady Anne, desaprovando as maneiras do irmão. A sua lealdade estava nitidamente dividida.
— Eu, se fosse a ti, não me preocupava, irmã. — Richard olhou para ela de maneira cómica. — Esqueces-te que uma mulher de Erin não pensa e sente como tu. À superfície pode parecer igual, mas se arranhares essa superfície, descobres um inimigo lá dentro. Um espião. Uma feiticeira, até. Apostava. Não se pode confiar neles.
— Jenny é mulher do meu filho — disse Lady Anne firmemente.
— Hum — disse Richard. — É verdade, é verdade. Mas diz-me, minha querida sobrinha, porque a minha irmã quer que eu te chame assim, se bem que me fique atravessado na garganta, onde é que foi o Hugh? Em que missão foi ele? Que coisa urgente foi essa, para abandonar a noiva no dia do casamento? Que coisa tão secreta foi essa, que nem sequer a sua mãe foi informada?
Sorcha. Sorcha, onde estás?
— O que é, Jenny? O que é que se passa? Estás doente? — Lady Anne viu o meu rosto mudar, quando a minha mente captou o chamamento silencioso do meu irmão.
Espera. Espera. Estou a chegar. Não te mexas,
Levantei-me, tentando manter o rosto sem expressão. Acenei com a cabeça e fiz uns gestos:
Por favor, perdoai-me. O meu estômago...
— Leva Megan contigo, minha querida — disse Lady Anne nas minhas costas, enquanto eu caminhava, tão calmamente quanto possível, na direcção do rio, na direcção do abrigo dos salgueiros. Com o pretexto de precisar de privacidade para aliviar o estômago, talvez eu pudesse... Talvez pudesse...
— Onde é que vais? — Ben surgiu de repente à minha frente, o rosto ansioso à luz das tochas. — Por Deus, mulher, tu tens o estômago mais fraco da história. Deixa-me ajudar-te. Não podes afastar-te sozinha, é contra as regras, lembras-te?
Mas eu gesticulei e voltei a gesticular.
Por favor. É só um minuto. Não vou para longe. Por favor.
Ele olhou para mim, franzindo as sobrancelhas. Era verdade, havia certas funções corporais que requeriam a devida privacidade. Mas ele tinha de respeitar as ordens.
Por favor. Não há perigo.
— Está bem — disse ele — mas não vás para longe. — Ele matava-me, se soubesse que eu te perdia de vista. Tem cuidado. Se te demorares, vou à tua procura.
Em seguida, um passeio tranquilo ao longo da relva até ficar fora de vista Os pés movendo-se cautelosamente, a mente procurando freneticamente
Onde estás? A que distância da pequena ponte? Depressa, não tenho muito tempo.
A ponte não fica longe, para sul. Num local onde um grande salgueiro caiu. Vou lá ter contigo.
Não! É perigoso! Espera aí; eu estou a chegar.
Por fim, uma curva e Ben desapareceu. Corri. Apanhei o vestido e corri pelo meio dos salgueiros até ao local onde me lembrava de ver um salgueiro caído, as raízes à mostra, abandonado pelo espírito guardião, em busca de uma nova casa. Não consegui vê-los.
Onde estás?
— Estou aqui, Sorcha. — O meu irmão Conor saiu de trás do emaranhado de raízes, uma delgada e frágil figura à fraca luz do luar. Reparei na extrema palidez do rosto dele, nos longos e emaranhados cabelos, nos farrapos de roupa que lhe restavam. Parecia tão irreal como um espectro.
Não fales alto. Há pessoas perto. Oh, Conor!
Senti os braços dele em volta de mim. Parecia um homem a morrer de disenteria e o corpo tremia-lhe violentamente. Mas era bom, tão bom, abraçá-lo.
Os outros. Onde estão os outros?
— Desta vez, não puderam vir.
Mas... mas...
Um desapontamento amargo apossou-se de mim.
— É preciso uma grande força, uma grande determinação, para os obrigar, para os forçar a continuar, quando o instinto lhes grita que não. Só os conseguirei trazer uma vez. Quando estiveres pronta, chama-me e nós viremos. Não chores, pequena coruja. O que fazes por nós é muito corajoso.
No Meán Geimhridh não vieste. Procurei-te, mas tu não vieste.
Fora uma noite terrível. Terrível, mas de algum modo maravilhosa, porque não esquecera o nascimento do filho de John.
— Fomos à caverna, mas tinhas desaparecido. Não te conseguimos encontrar.
Uma imagem dos meus irmãos à minha procura, desesperados; descobrindo os meus pertences espalhados pela caverna, a pequena lanterna, a capa quentinha e as botas; a lareira coberta de neve. Diarmid praguejando. Finbar sozinho, na margem do lago, silencioso.
Os outros... Conor, eles estão bem? E Finbar?
— Ainda estão vivos. Mas tens que te despachar, se puderes. Assim que estiveres pronta, tens de me chamar. Só podemos vir uma vez.
Ele estava a esconder qualquer coisa; especialista nas artes da mente, fraco como estava, o meu irmão estava a velar a verdade total, de maneira a proteger-me.
O que é? Conor, o que é que não me estás a dizer?
— Silêncio, Sorcha. Quando me chamares, viremos. Prometo-te.
Chorei, a cabeça contra o peito dele, os braços em volta da cintura, os dele em volta dos meus ombros. Ele era meu irmão. Tinha de acreditar nele.
Como resultado da minha angústia e da fraqueza dele, nenhum de nós sentiu a aproximação dos homens, até que foi demasiado tarde. Um pau estalou, muito perto, sob o tacão de uma bota e ouvi a voz de Ben.
— Jenny? Está tudo bem?
A minha cabeça levantou-se com um sacão. Ali estava ele, de espada na mão, o rosto quase cómico devido ao choque, a boca aberta e os olhos espantados, vendo-me nos braços do meu irmão. Abri a boca e fechei-a de novo.
— Agarrai aquele homem! — Agora já havia luzes e o som de armas a serem desembainhadas e por trás de Ben estava Lorde Richard de Northwoods, no rosto uma mistura espantosa de excitação maldosa e justificada afronta. — Levai também a rapariga. Estais a ver como ela paga a confiança de Lorde Hugh!
Fiquei ali parada, estupidamente, de boca aberta, paralisada pelo choque. Mas Conor possuía uma destreza com que aquela gente nunca sonhara e antes de os homens de Lorde Richard avançarem, já ele se tinha apartado dos meus braços, como uma sombra, e desaparecera sob os salgueiros, em total silêncio. Era como se nunca ali tivesse estado.
— Atrás dele! — silvou Richard. — Não o deixeis escapar! — Três homens saltaram para o mato, ansiosos pela caça. Richard ficou para trás e eu senti a mão dele em volta do meu braço, como uma grilheta de ferro.
— Foi extremamente estúpido da tua parte, minha querida. Ias estragando o piquenique da família. Oh, mas que diria o nosso Hugh? O que eu não daria para lhe ver a cara quando ele souber. Casada há menos de duas luas e já vai para os bosques como uma cadela no cio, enrolada com outro homem. E não apenas com outro homem; um da laia dela, um que está ávido de informações que ela lhe pode dar e... bem, vamos embora, rapaz, Dá-me aqui uma ajuda. Vamos levar a prostitutazinha à minha irmã, para vermos o que ela pensa da mulher do filho.
E a coisa mais cruel, enquanto Richard me arrastava atrás dele, foi olhar para o rosto de Ben e ver a expressão de confiança ferida e chocada incompreensão. Que podia ele fazer senão acreditar na evidência dos seus próprios olhos? Ele viera atrás de mim, preocupado apenas com a minha segurança. Encontrara-me na escuridão, nos braços de um jovem do meu próprio povo. Não queria acreditar, mas a minha culpa era clara. Eu não podia dar qualquer explicação. Voltei para a margem do lago com ele a um dos lados, a angústia escrita em cada traço do seu rosto, e Richard no outro, apertando-me viciosamente o braço, como que dizendo-me, pensavas que podias iludir Richard de Northwoods? Cometeste um grande erro, pequena bruxa.
Richard acreditava na justiça rápida. Dessa maneira, mostrava-se ao povo quem mandava. Portanto, o culpado foi identificado. Se não há provas concludentes, arranja-se uma confissão. Prontamente conseguida. Em seguida, cumpre-se o castigo apropriado. Por adultério, pode ser umas chicotadas, ou outra forma qualquer de humilhação pública. Por protecção a fora-da-lei, a morte. Era quase supérfluo acrescentar feitiçaria à lista. Quanto à punição, havia vários métodos. Ele próprio gostaria de seleccionar a mais apropriada. No entanto, no meu caso as coisas não eram assim tão simples. Parecia que certos membros da casa eram casmurros, exigindo que os procedimentos fossem feitos de acordo com a lei, como certamente desejaria Lorde Hugh. O caso poderia ser ouvido na próxima reunião, dentro de duas luas. Perante essa assembleia de todos os rendeiros de Harrowfield, o senhor da herdade poderia ouvir os pontos de vista de todas as partes, de acordo com a lei do Rei. Porque havia aqui e agora apenas um Rei, já que Wessex tinha estendido a mão até ao norte. Mas este caso era delicado, envolvendo um membro chegado do proprietário e combinando três acusações. Talvez a audiência devesse esperar por uma reunião do condado, conduzida pelo próprio magistrado do Rei Ethelwulf. E a próxima reunião do condado não teria lugar, provavelmente, antes do regresso de Lorde Hugh. Era melhor esperar até lá. Diziam alguns.
Mas Richard não via a necessidade de esperar tanto. O povo andava irrequieto, incapaz de se dedicar como devia ser ao trabalho e as coisas deviam ser postas nos eixos antes do regresso de Lorde Hugh, não depois. Além disso, Richard era proprietário da herdade vizinha. Por casamento, era também senhor de Harrowfield na ausência de Hugh. Pertencia-lhe a ele tomar a decisão. Parecia que, a cada dia que passava, tomava em mãos o controlo dos chocados e divididos membros da casa. Fechada num minúsculo quarto no andar superior, sabia disto aos bocados, quando um homem abria a porta para me trazer pão e água, ou para levar o balde da cela, juntamente com um monte de palha e um cobertor muito leve. O quarto tinha apenas uma pequena abertura, no alto da parede. Através dela, eu conseguia vislumbrar uma fita de céu azul durante o dia; à noite, conseguia ver uma estrela a brilhar no escuro. Se eu possuísse o poder da transformação, talvez a pequena coruja pudesse passar através daquela pequena fenda entre pedras. Para as trevas, sobre a água, de volta para os braços envolventes da floresta. O meu coração ansiava pelos meus irmãos. Mas eu ordenara à minha voz interior que se mantivesse silenciosa. Só poderia haver um chamamento; uma convocação, quando o meu trabalho estivesse terminado, e eles ficariam livres.
Ao princípio fiquei desesperada, porque me atiraram para aquela minúscula prisão com mais nada senão o vestido que trazia; até as botas me tinham sido tiradas. Imaginei os homens de Richard a revistarem-me o quarto. Atirando a roca e o fuso para o lado e o que estava dentro da arca, juntamente com o cesto, para o fogo. Naquela primeira noite encostei-me a um canto com os braços em volta da cabeça e os joelhos contra o peito e deixei cair as lágrimas pelas faces abaixo. Temia que Conor fosse capturado. Temia que nunca mais pudesse salvar os meus irmãos; no entanto, enquanto vivesse, havia uma hipótese e assim não poderia gritar a minha inocência; vira o que os do meu povo tinham feito a Simon e sabia que não suportaria o que ele suportou. Como qualquer rapariga tola, cuja cabeça está cheia de fantasias, que sonha com um herói num cavalo branco, ansiava pelo regresso de Red, para me salvar. Porém, receava o seu regresso, porque não acreditaria ele, assim como Ben acreditava, que eu os traíra a todos? Não queria ver aquele olhar de dor e choque. Seria melhor que ele não regressasse, até... De madrugada, cessei de oscilar e chorar e sentei-me como uma concha vazia, a mente vazia. Um pássaro entrou pela janela, chamando a companheira. Uma voz dentro de mim falou, finalmente. Um pé à frente do outro. Sempre em frente. É esse o caminho. Sempre em frente, Sorcha. Sabias que seria duro. Ainda será mais duro. Um pé, depois outro. E outra vez. Na direcção das trevas.
Quando os homens voltaram, trazendo água e um bocado de pão seco, ouvi a conversa deles e soube que Conor os tinha iludido. Porque vasculharam a margem do rio durante toda a noite à luz de tochas, mas não viram sinal do estrangeiro selvagem. Tinha-se desvanecido no ar. Como um fantasma. Não acreditariam que ele tinha estado ali, se não o tivessem visto com os próprios olhos. Era um grande matulão; um daqueles guerreiros irlandeses de que tinham ouvido falar, capazes de torcer um pescoço com um simples torção, se tivessem oportunidade. Em privado, a maioria dos homens estava contente por não o ter encontrado, na escuridão da noite. Mas Lorde Richard não estava contente. Nada contente.
Durante muito tempo, ninguém me veio ver. A porta era aberta e o balde vazio era atirado para o interior, ou levado quando estava cheio. Uma magra refeição era deixada. Mas isso não era problema. Estava habituada a passar fome. O pior era a falta de luz, as paredes de pedra vazias, sólidas, com excepção da pequena fenda no alto. Pior ainda era a agonia das mãos ociosas. Porque estivera perto, tão perto, de terminar a minha tarefa. Cinco camisas terminadas e apenas uma por fazer. Não as ter ao pé de mim, estar fechada sem os meios de poder completar o meu trabalho, era uma grande crueldade. Próxima do desespero, recorri às lendas, um velho meio muito utilizado para ocupar a mente e manter afastado o que não se queria. A demanda de Cullan por Lady Edan. As quatro crianças duendes de Lir. A taça de Isha. Essa história tinha um herói que era extremamente bom a esperar. Medb, a rainha guerreira com uma tendência para jovens heróis robustos. Simon rira-se dessa. E a lenda de Toby e da sereia. De todas as lendas que eu já contara e de todas as que já ouvira, essa era a de que eu mais gostava. Quem diria que Red conhecia uma lenda assim?
Já tinha perdido a conta aos dias, mas muitos se passaram e não via ninguém senão os meus guardas. Então, uma manhã, a porta abriu-se e lá estava Lady Anne com duas mulheres atrás, transportando o meu fuso e a minha roca, o cesto de morugem, as agulhas e o fio. No topo do cesto alguém colocara as cinco camisas. Coibi-me de pegar naqueles objectos preciosos e de os apertar contra o peito. Mantive o rosto calmo. Lady Anne olhou em volta da cela e franziu ligeiramente a testa. As mulheres olharam para mim furtivamente. Devia ser uma linda vista, suja, o cabelo emaranhado, os olhos a piscar à súbita luz vinda do exterior. Lady Anne despediu as mulheres e fechou a porta.
— Apercebes-te — disse ela calmamente — que isto lhe vai despedaçar o coração.
Foi como se me tivesse esbofeteado. Fiquei a olhar enquanto ela dava um passo em frente, franzindo o nariz. Suponho que não cheirava como uma dama devia cheirar.
— O meu filho amava-te — continuou ela, espantando-me ainda mais. — Amava-te como nenhum outro ser vivo; mais do que ao próprio vale. Pensei que era uma coisa passageira, uma paixão da juventude, uma urgência do corpo, mais do que qualquer sentimento. Provou que estava errada ao dar-te o seu nome, se bem que tenha sido contra tudo aquilo em que ele acredita. Como pudeste fazer-lhe isto? Como nos pudeste fazer isto? Demos-te abrigo, fomos bons para ti, considerando o que és. O ódio em ti pelo nosso povo é tão grande que tens de destruir quem tanto amamos? Foi para isto que vieste para cá?
Abanei a cabeça lentamente. Eu não vos odeio. Nunca odiei. Procuro apenas completar a minha tarefa. E estás errada acerca do teu filho, muito errada, ele... Sem palavras não lhe podia explicar nada.
— O teu povo matou-me Simon — disse Lady Anne, cansada. — Tu destruíste-me Hugh. Que mais queres?
Como podes dizer isso, quando me tens aqui prisioneira? Foi o teu filho que me trouxe para aqui. Mas, por ele, eu nunca teria vindo para Harrowfield. A escolha não foi minha. Permaneci muda. Ela deixou sair um suspiro.
— Apesar de tudo, sinto-me obrigada a agir segundo os desejos do meu filho. A despeito de tudo. Ele tem uma grande fé nessa tua tarefa estranha, obrigou-nos a todos a guardar bem o teu trabalho e tu com ele. Na verdade, lançaste-lhe uma rede, da qual não pode escapar sem se magoar e a todos os que o amam. Trouxe-te as tuas coisas. Fiz o que devia. Trabalha, se tens cabeça para isso.
Forcei um sorriso e acenei com a cabeça.
Obrigada.
Ela não se apercebia do muito que fizera por mim. Fez menção de sair. Toquei-lhe na manga, porque precisava de fazer uma pergunta. Ela afastou-se, como se o meu toque a pudesse envenenar.
Emporta, fora o quê, quando?
— O teu futuro não está nas minhas mãos, Jenny — disse ela. — Nem sequer teria dado este passo, trazer-te aqui o teu trabalho, se Hugh não me tivesse feito prometer que te permitiria continuar com ele, acontecesse o que acontecesse. Estou muito próxima disto tudo, muito angustiada, para poder julgar-te com alguma imparcialidade. O meu irmão é que te vai ouvir e decidir o teu destino. Na ausência de Hugh, ele é o chefe desta família e deve julgar como achar justo. Mas também ele deseja evitar qualquer sugestão de que os procedimentos possam ser tudo menos equitativos. Assim, tenciona esperar pelo padre Stephen de Ravenglass, que deve cá vir depois de Lammas. Em questões de feitiçaria, é prudente consultar um homem de religião. — Olhou de novo em volta da cela. — Magoaria muito o meu filho ver-te aqui encerrada. Mas não tanto como a verdade o vai magoar.
Qual verdade? Pensei amargamente enquanto a porta se fechava por trás dela e ouvia o ferrolho a correr. Não dissera Red uma vez que há tantas verdades como estrelas no céu e todas elas diferentes? Talvez essa fosse a única verdade.
Os ratos eram a minha única companhia. Saíam à noite e mordiam a palha da enxerga. Foi a única vez na minha vida que me senti grata pelos espinhos da morugem, porque os ratos não lhe tocavam. Sem mais nada em que me ocupar, sem mais nada em meu redor senão as quatro paredes de pedra, trabalhava enquanto havia luz e tentava dormir quando estava escuro. Passaram-se muitos dias, o último igual ao anterior. Descobri que se tentasse esquecer as dores nas mãos, se forçasse os dedos a continuarem, fazia progressos razoáveis. Parava por isso à noite, porque as mãos doíam-me terrivelmente, negando-me o sono. Lentamente, a sexta camisa tomou forma. Não estava tão bem-feita como as outras, porque a luz era pobre e a visão, por vezes, enevoava-se-me, mas serviria. Tinha que servir. Pela mudança de luz que entrava pela pequena janela, calculei que se estaria por alturas de Lugnasad, perto do fim do Verão, quando comecei a receber visitas de Lorde Richard. Tinha levado o seu tempo até vir devorar-me com os olhos, mas assim que começou tornou-se uma ocorrência regular, que comecei a temer. Talvez levianamente, tinha permitido a mim própria sentir alguma esperança, quando Lady Anne me devolveu o meu trabalho. A tarefa estava ao meu alcance e não dissera ela que estavam à espera do padre Stephen, para que eu pudesse ter um julgamento justo? Então, apareceu Richard e eu vi que a verdade era bem diferente.
— Viva, minha querida. — Mais parecia que estava a saudar-me do outro lado de uma mesa, com uma taça de hidromel na mão. O seu tom era afável. O seu olhar percorreu o minúsculo quarto e depois fixou-se em mim. — O teu reinado como Senhora de Harrowfield foi realmente curto. Julgava-te mais astuta; parece que me enganei. Um erro muito estúpido, minha querida, mesmo muito estúpido. Caíste nas minhas mãos. — Fungou delicadamente. — Que cheiro esquisito que está aqui. Lembra-me uma pocilga. — Tirou da algibeira um lenço de linho, branco como a neve e levou-o ao nariz. Cheirava levemente a essência-de-bergamota. — Suponho que não te deve incomodar. Imagino que em tua casa deve ser... parecido? Ouvi dizer que a tua espécie gosta de chafurdar na própria imundície. A escumalha gosta de escumalha.
Cerrei os dentes e concentrei-me no meu trabalho. Se Red te ouvisse dizeres-me isso, matava-te. Quer fosses tio, quer não. Ele riu-se.
— Oh, gosto dessa expressão severa, essas faíscas nos olhos. Pergunto a mim próprio o que se passará dentro dessa tua cabecinha. Pensará que o Hugh vem aí a galope para te salvar? Não penses nisso. Não tens hipótese nenhuma. Para onde quer que tenha ido, está longe, muito longe. Vê-se nas expressões deles. Muito ansiosos, alguns deles... Dizem-me que choram por ele, mas parece que ninguém sabe onde ele está. Não o fizeste desaparecer, pois não? — Os olhos dele semicerraram-se. — Espero que isso não faça parte do teu plano. É que eu tenho um papel para o Hugh e pretendo vê-lo desempenhá-lo de acordo com os meus desejos, Não esperes um salvamento por esse lado, miúda. Ele não vem. Só quando estiveres morta e enterrada, fora da vida do meu sobrinho e da minha para sempre. A minha rede de informadores é muito extensa. Quando ele estiver a caminho de casa, serei informado; e talvez ele se... atrase. Nada de sério, claro; apenas uma pequena diversão, para o manter afastado o tempo suficiente.
As minhas mãos pararam momentaneamente, a lançadeira entre os fios. Um pé a seguir ao outro. Respirei de novo e puxei a trama, para a ajustar.
— Até te fez parar, ha? Com certeza que não estavas a pensar... não, nem tu serias tão estúpida. A morte é o único castigo possível, minha querida. Apenas o método é que é motivo de reflexão. Tanto por onde escolher, cada um mais... picante... Do que o outro. Há aquele de transportar um ferro quente durante uma certa distância. Mas, para ti não, creio. Há aquele de tirar uma pedra de uma celha com água a ferver. Já vi esse, o tipo precisou de uma certa... persuasão. Há os métodos rápidos, o enforcamento, o afogamento, várias coisas com uma faca. Mas esses são menos divertidos. Gosto mais daqueles que metem calor. É tão difícil decidir. Estou à espera de inspiração divina. O padre Stephen de Ravenglass é o homem do bispo, um clérigo instando e um velho amigo. O reverendo Padre sabe expulsar os demónios, purificar e sabe lidar com as artes da feitiçaria. Confio totalmente nas capacidades dele. Não me lembro de uma única ocasião em que tenhamos estado em desacordo. Somos uma mente única. O apoio dele dará ao meu veredicto uma certa... respeitabilidade. Essencial, penso, para quando o teu marido regressar.
Fui percorrida por um arrepio. Confiaria a minha vida ao padre Brien e vira sabedoria e bondade no rosto do homem que abençoou o meu casamento, naquela noite, nos bosques. Mas algo me dizia que não haveria essa compreensão nos olhos do padre Stephen. Comecei a acreditar, finalmente, que ia morrer. Mas os meus dedos continuaram no seu movimento contínuo, para dentro e para fora, enquanto tecia outro quadrado para a sexta camisa.
— Sabes — observou Richard — talvez tu sejas, realmente, louca. Talvez não percebas a nossa língua tão bem como Hugh pensa. Não tens medo? Não gostarias de ter uma hipótese de te salvares? Qualquer outra rapariga estaria de joelhos, suplicando. E seria fácil. Muito fácil. — Quase ronronava, como um gato satisfeito; mas nenhum gato desceria tão baixo.
— Por baixo dessa porcaria toda, continuas uma putéfia bem suculenta — disse ele suavemente. — Ainda não te ocorreu que ainda tens mercadoria para negociar? Eu sou um homem, minha querida. Posso ser comprado, como Hugh foi. Desaperta os teus botões, deixa-me ver essa carne que o teu vestido esconde. Ou queres que o faça por ti?
Cuspi, com pontaria, na biqueira da polida bota dele. Ele respondeu com uma risada.
— Olha, olha, ela levou-me a sério! Bem-feito, putéfia! Defendes a tua dignidade! Com certeza não pensavas que ia sujar as minhas mãos em ti. Manchá-las nessa imundície e tu com essas grandes garras? Em tempos, talvez o tivesse feito. Mas não estou assim tão desesperado que precise dos restos do meu sobrinho. Tenho outros projectos em mente; aquela jovem viúva, por exemplo, qual é o nome dela, Molly, Mary? Tem mostrado muito interesse pelo teu destino; faz-me pensar se será a pessoa indicada para educar um rapazinho. Tenho de fazer qualquer coisa. Dar uns certos passos. Ela precisa de um homem forte na vida dela, para a desempenar, para lhe ensinar alguns truques. Bem, minha querida, vou deixar-te, por agora. Diverte-te. Já não falta muito.
Não era altura para ódios. Nem para medos. Após um certo tempo, descobri que havia algumas tarefas que podia fazer às escuras e deixei de dormir. Não era a altura de descansar. Acabei a frente da última camisa e comecei a tecer as costas. Lá fora a estação ia avançada e as primeiras folhas entravam, trazidas pelo vento, pelo meu pequeno espaço de céu. Calculei que estaríamos perto de Meán Fómhaire que estava ali presa há três luas. Imaginei as últimas rosas floridas, as bagas gordas e lustrosas nos silvados e nas groselheiras vermelhas, as abelhas ocupadas no meio da alfazema. As maçãs estariam maduras. Ele disse... mas não me permiti terminar o pensamento, porque não havia tempo para esperanças tolas. Fia. Tece, Cose. Um pé depois do outro. Outra vez. Sempre, sempre, a caminho das trevas.
Richard vinha quase todos os dias. Por vezes, apenas por alguns momentos, mas a maioria vinha com óptima disposição, querendo conversar. Agora que me tinha, como ele pensava, na palma da mão, estava menos cuidadoso. Porque, no fim de contas, eu não podia repetir o que ouvia, pois não, mesmo que tivesse oportunidade, o que era pouco provável. E assim, passo a passo, como se estivesse a resolver um quebra-cabeças, comecei a conhecer uma outra versão da história.
— Ora muito bem, cá estamos de novo. Não se pode dizer que estejas com bom aspecto, minha querida, isso seria esticar demais a imaginação. Estás a ser bem alimentada? O suficiente. Quero que vivas, até ao julgamento. A justiça tem que ser vista, para poder ser feita, no fim de contas. Infelizmente, o padre Stephen não há meio de vir. É um homem ocupado. Mas ele vem, não receies. Mas, se não vier, nós vamos em frente sem ele. Hugh está fraco. Embrutecido, é a palavra. Não me posso arriscar a esperar até que ele regresse. Mesmo depois disto, depois de fugires para satisfazeres os teus desejos com outro homem e vender segredos debaixo do nariz dele, não posso confiar no rapaz para fazer o que está certo. Não, tem que ser dentro de pouco tempo e em público. Tem que ser decisivo. Final. É isso que as pessoas esperam e é isso que lhes vamos dar. Uma coisa espectacular, com fogo, acho eu. Dessa maneira, vemo-nos livres da feiticeira e dos feitiços dela numa vertiginosa e deslumbrante exibição de calor e luz. Orgásmica. Beatífica. Vou gostar tanto.
As minhas mãos continuavam, vigorosamente, o seu trabalho; forcei-me a respirar devagar. Mas o meu rosto deve ter mostrado algo.
— Senti-me tentado — disse ele, encostado à parede, o banco equilibrado em duas pernas, apenas. — Muito tentado. Esse teu trabalho deve ser muito importante, não? Que terias tu feito por mim para o recuperar? Terias... — não vou repetir aqui as observações seguintes dele, porque eram mais próprias da mais baixa reunião de bêbedos. — Podia ter tentado isso. Mas a minha irmã antecipou-se-me. Seguindo as ordens do querido Hugh. Incrível. Depois de eu lhe contar o que o teu povo fez a Simon. Bem, sinto uma espécie de divertimento perverso em ver-te magoares-te a ti própria, putéfia. Por que é que fazes isso? Excita-te? Precisas de sentir dor para te satisfazeres? Casaste com o homem errado, filha de Erin. Ele nunca te satisfaria. Além disso — e o tom dele mudou — estava prometido a outra. Preferiu esquecer isso, mas eu não esqueço. Devia ter sido de outra maneira. Será de outra maneira, quando tu fores... solucionada. Hugh casará com Elaine. Harrowfield casará com Northwoods e num único e grande gesto o maior e mais rico condado de Northumbria nascerá. Será fácil, tão fácil. E pensa no que significa para um homem ter esse poder todo. Com um só golpe, fica com as peças todas do tabuleiro. Isso dá-lhe uma satisfação que mulher alguma lhe pode dar. Para quem é que se virarão os vizinhos em busca de protecção? Em quem confiarão para treinar os seus homens e para lhes arranjar armas? A quem vão pagar para terem ordem? — Sorria mostrando os dentes, esticando os braços expansivamente por trás da cabeça. — Acredita-me, miúda, um homem que fareje semelhante poder não permite que nada se lhe meta à frente. Nada.
Estamos a falar do mesmo Hugh de Harrowfield? Não consegui impedir que as sobrancelhas se me elevassem, numa descrença desdenhosa.
— Hugh é maleável. Só se preocupa com as árvores, o gado e com a sua vidinha muito asseada. Elaine é como eu. Precisa de ter as coisas à maneira dela. O problema é que o que ela queria não se ajustava aos meus planos, de todo. Foi tudo muito bonito, muito doce, até que ela começou a crescer, 13, 14 anos, habituada a ter o que queria, não precisei de dizer não até então. Um cavalo novo, um galgo escocês, jóias, berloques. Mas ela quebrou as regras. Apaixonou-se pelo irmão errado. Elaine e Simon? Era uma possibilidade que nunca me passara pela cabeça. Mas que explicava muita coisa. Explicava, em particular, as maneiras dela para com Red, porque eu vira bem que ela o tratava como a um irmão. Pobre Elaine. Um deles estava morto e o outro tinha casado comigo. Não merecia tê-los perdido a ambos. — Uma vez decidida, não queria desistir — continuou Richard. — Tive que lhe dizer, finalmente. Não podes. Não. Tão simples como isso. Ela não gostou. Mas eu sou o pai dela. Hugh é um maricas, não tem aquela veia assassina, aquela maldade que um homem necessita de ter em si para sobreviver, para continuar. Tem uma herdade muito bonita, reconheço. Mas é fraco. É certinho. E tu sabes isso melhor do que ninguém, putéfia. Dobrá-lo foi fácil, não foi? Se ele não te pôde resistir, a ti, como é que achas que vai resistir a Richard de Northwoods? Portanto, casa com a minha filha e todo o vale será meu. Se ela tivesse ficado com o irmão mais novo, o caso teria mudado de figura. Teria sido o fim. Para já, porque ele não herdaria, a não ser que... além disso, era demasiado selvagem. Imprevisível. Instável, quase se poderia dizer. Nunca uma opção segura. Não, é melhor assim. Ou era, antes de tu teres aparecido...
Endireitou-se subitamente e o banco de madeira caiu pesadamente no chão de pedra.
— Sabes, pensava que Hugh te tinha trazido para aqui porque tu tinhas informações para ele. Era o que parecia. Tu tinhas algo de que ele necessitava. Estava à espera que tu falasses. O jogo do gato e do rato. Sou capaz de compreender isso. Mas o meu sobrinho nunca mostrou o menor interesse por semelhante estratégia. Nunca levantou um dedo para ajudar nas campanhas, nunca deu a menor contribuição para a causa. Estava-se nas tintas. Portanto, porquê envolver-se agora? Tinha que ser por causa do irmão. O pequeno Simon. De algum modo, tu eras a chave. Sabias algo que ele precisava de saber. Pareceu-me, na altura, que podias falar, se quisesses. Não há ali qualquer defeito, pensei. Houve alturas em que te vi quase a falar, a abrir essa boquinha pequenina e depois abafares as palavras.
Enrolei o fio na roca, sentindo as fibras ferirem-me os dedos, sabendo que as minhas mãos estavam a ficar cada vez mais ásperas e a cheirarem mal devido à falta de luz, à sujidade, à falta de cuidados e ao excesso de trabalho.
— Mas, então, houve aquele infeliz acidente. Acontece. As rochas caem e as pessoas magoam-se. Coisas da natureza. Disseram-me que não deixaste sair um único som, não pediste ajuda, não gritaste, nada. Nem acredito que não tivesses gritado. Nenhuma rapariga consegue ter esse controlo. Tinha de chegar à conclusão de que a doença era real. Na verdade, tu não podes falar. És muda. Silenciosa como uma tumba. O que acrescenta uma pitada de sal à presente situação. Significa que posso dizer o que me apetece, revelar os segredos da minha alma e tu não lhes podes dizer nada. Nada. Que pena, no entanto, não te ouvir gritar quando o fogo te chegar aos tornozelos, se te agarrar ao vestido e transformar essa tua pele suave num pedaço de carne cozido demais. Teria gostado de ouvir. Bem, não se pode ter tudo.
Depois de ele sair, permiti-me chorar, mas só um pouco. Permiti-me olhar lá para cima, para a janela, onde a chuva entrava, empurrada pelo vento e permiti-me pensar, se ele aqui estivesse, matava-te. Ainda bem que não estava. Se estivesse, teria de fazer uma escolha, que lhe destroçaria o coração. Era melhor que ele não regressasse, senão depois... Mas eu estava cheia de medo. Medo de morrer. Medo do fogo. Aterrorizada por estar a trabalhar tão lentamente que não estaria pronta a tempo... Não chorei muito. A pequena voz, agora, estava sempre presente. Fia. Tece Cose. Continuei a trabalhar e a camisa meio feita, que era a última das seis, estava cheia de sangue das minhas mãos, da sujidade do quarto e molhada das minhas lágrimas. Aquele que a vestisse vestiria o meu amor, a minha dor e o meu terror. E isso libertá-lo-ia.
Recordo um bom momento durante esses tempos de trevas. Habituara-me aos meus guardas. Não lhes conhecia os nomes, mas havia um mais idoso que eu vira antes com Ben. Não vinha muitas vezes, mas, quando vinha, a sua repugnância pela sujidade, pela pequenez da cela e pelo dever que era forçado a cumprir era evidente na sua expressão. Houve um dia em que trouxe o balde, atirou-o para o canto, como de costume e depois tirou um pequeno pacote da algibeira e depositou-o, furtivamente, no meu cesto.
— Queixo para cima, miúda — murmurou ele e desapareceu, batendo com a porta. No pequeno pacote havia pão fresco com grãos de cereal, uma pequena bola de queijo e um punhado de amoras. Fiz durar aquilo tudo, sabendo que o meu estômago poderia rejeitar tal banquete depois de tanta fome. Partilhei as migalhas do pão e do queijo com os ratos, achando que também eles mereciam um pouco de divertimento. Não voltei a ver o guarda, mas a sua bondade aqueceu-me. E ainda recordo o sabor maravilhoso daquela comida, o aveludado daquele queijo, as amoras sumarentas e o pão, com aquele sabor de campo aberto.
A camisa crescia. Era surpreendente o que eu conseguia fazer se esquecesse a dor, se só dormisse quando absolutamente exausta, se continuasse sempre, com luz e sem ela. Se era o amor ou o medo que me apressavam, não o sei dizer. Mas a camisa foi tomando forma à medida que os dias se seguiam uns aos outros, assim como as noites sem sono, enquanto as brisas que entravam pela minha pequena janela me diziam que o Outono estava a chegar. Folhas a arder. Frutos a ferver nas panelas. Nevoeiros que se levantavam do rio, em madrugadas muito frescas. E os sons. Homens descarregando tubérculos para serem armazenados no celeiro. Era a época das colheitas e eu já estava em Harrowfield há quase um ano. Mulheres a discutirem. Rodas de carroça no cascalho do caminho. Uma manhã, um cavaleiro solitário a sair muito cedo. Pouco importava. Parecia que agora, que estava encarcerada, a casa tinha regressado à velha e pacífica rotina. Como se eu nunca aqui tivesse estado. Porque nunca mais vira ninguém, desde aquela visita de Lady Anne; ninguém, senão os meus guardas e Lorde Richard. Talvez me tivessem esquecido.
A espera não podia durar para sempre. Chegou o dia em que ouvi o som de cascos no pátio, de arreios e da voz de homens. E nessa tarde, quando Richard apareceu, foi para me devorar com os olhos. Por fim, o representante do bispo chegara e chegara a hora de eu prestar contas perante uma audiência formal. Essa audiência teria lugar no dia seguinte e então... Richard estava entusiasmado, quase fora de si, com tanta alegria. Perguntei a mim própria por que odiaria ele tanto o sobrinho? Porque a questão era essa. O sentimento de poder excitava-o, isso era certo, mas havia um brilho tão especial nos olhos dele quando pronunciava o nome de Red, que me parecia quase louco. Nesse dia, cometeu um erro. Levado pela sensação antecipada de vitória, falou demais.
— Vamos falar do fogo. — Olhou para mim de olhos semicerrados, enquanto eu cosia a bainha da camisa com movimentos desastrados, trapalhões, da agulha e da trama. Por vezes, os dedos ficavam-me entorpecidos e era-me difícil fazê-los obedecerem-me. — Se tivermos os materiais certos, podemos fazer coisas interessantes com o fogo. Ficarias surpreendida se soubesses com quem aprendi isso. E o teu pai também, minha querida.
Por um momento, fiquei gelada.
— Ah! Toquei num nervo, não toquei? Portanto, adivinhámos. Ela achou que devias ser tu, quando lhe fiz uma descrição. Queres ouvir mais?
Meti a agulha por baixo, por cima e através. Mais um ponto. E outro.
— Não lhe vamos dizer nada, claro. O padre sábio. Não precisa de saber, pois não? A tua culpa é manifesta; não precisamos de lançar mais achas para a fogueira — Deu uma espécie de risadinha abafada. Não era um som agradável. — Piada de mau gosto, desculpa. Mas, como eu ia dizendo. Passei um tempo muito interessante na minha recente viagem ao teu país, minha jovem. Perdi alguns homens; infelizmente. Não consegui estabelecer o posto avançado que queria; isso ainda foi pior. Mas, assim que tiver os meios de Harrowfield à minha disposição, nada me fará parar. Foi um mero revés. Mais nada. Já o atirei para trás das costas. Quanto à informação que consegui, isso já é diferente.
Inclinou-se para a frente, atento.
— Maneiras de fazer uma fogueira bem quentinha. Maneiras de fazer uma fogueira especial, que consuma um corpo, deixando apenas os ossos. Já vi. Ele mostrou-me. Um dos da tua espécie; ao meu jeito. Astuto. Vivo. Decidido. Nada de ideais falsos, com o Eamonn. Negoceia tudo, se lhe convier. Homens. Armas. Informações. Se tens uma coisa que ele quer, ele troca.
Era difícil continuar a trabalhar e não consegui manter o rosto calmo. Eamonn. Eamonn de Marshes? Negociando acordos com um bretão? Mal podia acreditar. Tanto o meu pai, como Seamus Redbeard consideravam Eamonn um dos aliados mais firmes. Não casara com Eilis? Quem é que estava a brincar, agora?
— Nós não somos todos como Hugh, sabes — continuou Richard, estudando a minha expressão. — Cheio de ideais pomposos, cheio de teorias. Se fôssemos todos assim, não seriam apenas as ilhas que iam à vida. A tua gente invadia-nos, como vermes e nada estaria seguro; seria o fim do mundo civilizado. Acredita-me, são os homens como eu que mantêm o país seguro, para que Hugh possa perder tempo com as suas galinhas e os seus preciosos carvalhos.
Eu estava a olhar para ele, sem sequer pretender estar a trabalhar.
— Fiz o negócio da minha vida, nesta última viagem. Já te falei na mulher, não falei, uma mulher notável, não me disse o nome, mas era amiga de Eamonn, unha com carne e ficou particularmente interessada em ti, na última vez que falámos. Contou-me aquela história dos filhos de Sevenwaters e como desapareceram misteriosamente.
O meu coração batia desconsoladamente. Mulher? Que mulher? Com certeza não estava a falar de Eilis?
— Nessa ocasião, fiz uma oferta. Disse que se tu fosses a filha de Colum, aceitaria ser pago pelo teu regresso, sã e salva. Pagamento em terra, de preferência. Uma pequena e bela parcela entre a floresta e a costa. Colum não gostaria disso. Mas disseram-me que ele andava meio maluco, à procura da rapariga. Talvez estivesse suficientemente maluco para me dar o que eu quero. Valia a pena tentar.
Começava a ter dificuldade em respirar.
— Ela levou a mensagem a Colum, da primeira vez. Que mulher extraordinária. Uma juba castanho-avermelhada, figura agradável, encantadora. Pelo menos, Eamonn pensava assim. Não andava a dar muita atenção à pálida mulherzinha dele. Adiante, ela foi a amabilidade em pessoa. Disse-me que levaria a minha mensagem e deu-me dois homens, para me escoltarem de regresso à costa. Ainda os tenho. Tipos de confiança. Calados e habilidosos com uma faca nas mãos. Assim, desta vez fui lá na esperança de receber uma boa resposta de Sevenwaters. Estava optimista. Não só me via livre de ti, como ganhava uma vantagem que nunca esperara. Colum sempre foi a noz mais difícil de quebrar. Não negocia, nem sequer com os aliados. Posição de força. Toda a gente tem medo dele. Mas isto era diferente, pensei eu. Única filha, essas coisas. — Esperei enquanto ele polia as unhas e estendia a mão, apreciando o trabalho. Estava a brincar comigo, saboreando cada momento.
— Por que havia um guerreiro de Erin de se vender a mim, perguntas tu? Que ganhava Eamonn com isso? Não mo deu a entender, por completo. Mas ele tinha um certo interesse por ti e pelo teu pai. Não te esqueças, foi em casa dele que eu ouvi, pela primeira vez, a história dos filhos de Colum, como eles desapareceram um dia sem deixarem rasto. Parece que não sou o único a estar interessado numa certa... expansão. As terras de Colum podem estar suficientemente maduras para serem apanhadas, num futuro próximo, E Eamonn tem alguns truques que eu posso também usar. Tenho homens e com os meios de Harrowfield posso armá-los melhor do que qualquer outro bando, de ambos os lados da água. Já pensaste no que nós os dois éramos capazes de conseguir?
És louco, pensei. Louco por poder. Eamonn está apenas a brincar contigo, assim como Lady Oonagh. Assim que te tiverem onde querem, desfazem-se de ti como se fosses a pele de uma cebola. Neste jogo, não passas de um principiante. Mas, que disse o meu pai?
— Bem, esta visita surpreendeu-me — disse ele expansivamente. — Deixei os homens para trás e viajei como sempre, de maneira discreta, para visitar o meu aliado no seu próprio território. Marshlands. Lodaçais de turfa sem fim. Um lugar desolado. Não admira que ele se queira expandir para sul. No entanto, é fácil de defender. Adiante, cheguei lá em segurança. Ela também lá estava de visita, aquela mulher espantosa, de cabelo vermelho. Mas Colum tinha recusado a minha oferta. Com filha, ou sem filha. Disse que se ela escolheu ir viver no meio de estrangeiros, não era filha dele. Que se deitasse na cama que fez. E se eu pensava que ele ia abrir mão da terra tão duramente conquistada por um pretexto tão fraco, devia ser ainda mais estúpido do que o resto da minha espécie. Isso dói, não dói, bruxa? Não ponhas a mão à frente da cara, não consegues esconder essa lagrimazinha. É verdade, parece que eles não te querem de volta. Não que eu os culpe; não és muito agradável à vista, agora. Bem, fiquei muito desapontado, posso dizer-te, voltar assim de mãos vazias. Mas, então, a dama fez-me uma contraproposta. Primeiro, fez-me uma data de perguntas acerca de ti. Se tinhas alguns aliados aqui, como passavas o tempo, o que dizias às pessoas acerca de ti própria. Deixei-a saber acerca do jovem Hugh, como estava quente por ti, mas que tu não correspondias, ainda não; como tinhas perdido a voz, de maneira que não podias contar os teus segredos; como passavas o tempo a dar cabo das mãos, com esse teu trabalho de bruxa. Posso dizer-te que ela não gostou nada das minhas respostas, mas acreditou nelas. Foi então que ela fez a oferta. Eu receberia informações, informações muito especiais sobre os movimentos de Colum para o Outono e o Inverno, as suficientes para poder tomar aquela baía como certa. As suficientes para poder ter a posição que eu queria. Em troca, tudo o que eu tinha a fazer era tirar-te da paisagem. Até me disse como. Oh, ela não se importa que eu brinque contigo um bocadinho, primeiro. Compreende que faz parte do gozo. Uma parte irresistível. Mas assegura-te, disse ela, de que a rapariga arde e que o trabalho de bruxa arde com ela. É a única maneira de destruir uma feiticeira. Uma fogueira bem quente. Eamonn tinha os ingredientes e ele próprio me mostrou como se faz. Primeiro, arranja-se uma pequena quantidade de sulfato-de-cobre, daquele para tingir, sabes? Custa mais do que umas poucas das tuas cabeças de gado, mas vale a pena. Vale bem a pena. Mói-se num almofariz, até ficar muito fino, até ficar um pó que parece tão inofensivo como a poeira. Mistura-se com um óleo da melhor qualidade, daquele que é utilizado para ungir a testa de um bispo, que ironia divertida, esta. E está pronto. Não é preciso uma grande quantidade, borrifada sobre a lenha, para atear um belo fogo. Colorido, também... o verde é especialmente bonito. Faz grandes chamas. É quente. E tem fome. Mas Eamonn ainda não estava contente. Prepara a lenha antecipadamente, molha-a, absorvendo a mistura até estar pronta a rebentar. Em seguida, seca-a. Havias de ver, quando as chamas a lambem. Trouxe comigo uns toros de freixo, da última vez que visitei o meu amigo. Tenciono usá-los num futuro muito próximo. Foi o que a mulher me disse, no fim de contas. Que seja em breve, disse ela. Destrói essa rapariga rapidamente. Tens de o fazer antes de... Diz-me, minha querida, quantas destas camisas fizeste?
Fiquei imóvel. Até tinha medo de respirar.
— Vamos dar uma olhadela, está bem? — Levantou-se num único movimento fluido e pousou as mãos no meu cesto. — Não que eu acredite em magia, eu. Mas, no entanto, fiz uma promessa. Quantas tens aí, quatro, cinco?
Levantei-me de repente e as minhas mãos estenderam-se, tentando agarrar desesperadamente no cesto, mas estava mais fraca do que pensava, porque ele afastou-me como se eu fosse um insecto maçador.
— Uma, duas, três, quatro, cinco. Temos trabalhado bem, não temos? E outra já quase feita. Muito bem, pequena feiticeira. Mas, já falta pouco. Não me parece que tenha muitas dificuldades em cumprir o desejo da dama. Assegura-te de que o fazes antes de a rapariga acabar, disse ela. Agarra naquilo tudo, na pequena feiticeira e no trabalho dela. Queima tudo junto. E vem fazer-me um relatório, disse ela. Quero uma descrição completa. Sorriu para mim. Uma conclusão limpa, não é? Limpa para todos. Hugh aprovaria. Ele sempre gostou de uma vida limpinha.
Vai-te embora. Vai-te embora, antes que o choque, o medo e a repugnância me destruam. Vai agora, antes que a raiva me leve a tentar uma loucura. Respira, Sorcha. Para dentro, para fora. Para dentro, para fora.
— Limpinha sob todos os aspectos. Bem, quase todos. A pequena bruxa morre; o vale está salvo. Elaine casa com Hugh. Richard de Northwoods estabelece o seu posto avançado na costa. Eamonn de Marshes acrescenta um belo bocado de floresta ao seu território. A misteriosa dama de cabelo vermelho vê realizado o seu desejo. E vivemos todos felizes para sempre. Que pena, o Simon. É a única peça que não se ajusta nisto tudo. Podia ter havido um lugar para aquele rapaz sob o meu comando, se fosse capaz de aprender um pouco de disciplina. Tinha capacidades. Alguém o ensinou bem. Mas tornou-se demasiado inquisitivo. Ouvia o que não devia. Via o que não devia. Não se podia confiar no que ele sabia. Estás interessada, não estás?
Não conseguia pôr-me em pé para apanhar o meu trabalho e fiquei enroscada ao pé do cesto, os braços em volta dele, como protecção. Vai-te embora. A presença dele contaminava o ar que respirávamos. No entanto, precisava de ouvir o fim da história dele. O fim daquela história muito particular.
— Foi uma infelicidade. O meu próprio sobrinho e essas coisas todas. Mas eu conhecia o rapaz; teria ido contar tudo ao irmão e adeus informações. E nem mesmo Hugh teria ignorado. Porque, como sabes, a nossa espécie não se mistura com a tua. Somos inimigos viscerais. Diferentes como a água e o vinho. Mas ele viu-me e ouviu-me com os homens de Eamonn. Ouviu quem e viu o quê? Portanto, tive que dar instruções para que ele fosse... removido. Silenciado. Eliminado. Felizmente, tenho um homem que é especialista nestas coisas. O problema é que eu deixei que a coisa fosse um pouco longe demais. Foi um grande erro. O rapaz desapareceu. Foi-se embora, muito simplesmente. Se calhar, pensava que era uma espécie de herói. Simon sempre foi assim, sempre agiu primeiro e pensou depois. É claro que fui atrás dele, tinha que ser visto a fazer o que devia, família próxima, etc. Além disso, com o que ele sabia, cada momento que ele andava à solta era um momento a mais. A busca foi infrutífera; e quando voltei, estavam todos mortos. Todos os meus homens. Membros arrancados, carne retalhada. Os ossos espalhados pela lama. Até ao último. Precisarei de anos para reconstruir a minha força especial àquele nível.
O tom dele era amargo. Que homem aquele, que valorizava o seu povo como meras ferramentas na sua demanda pelo poder.
— Colum. Só pode ter sido Colum e os filhos. O esquivo e evasivo senhor guerreiro, que parece ser capaz de varrer as peças dos seus adversários do tabuleiro sempre que lhe apetece e desaparecer tão silenciosamente como atacou. Colum de Sevenwaters. Não admira que tantos homens o odeiem e temam. Cheguei à conclusão de que Simon foi capturado e deu à língua. Quem mais podia ter revelado a posição dos meus homens? O rapaz saiu tão fraco como o irmão, gabarolas e sem força nenhuma. Peritos com a espada, o arco e os punhos; mas não podemos contar com eles quando as coisas ficam difíceis. Não concordas? Onde está Hugh agora, quanto tu precisas tanto dele? Não mostrou grande pressa em salvar a sua mulherzinha, pois não? Tem mais que fazer. Seja o que for, gostava de saber o que é. Bem, voltei para casa. Disse à minha irmã que o filho tinha morrido. Ninguém sabia onde. Pelo menos, essa parte é verdadeira. Fiquei um pouco preocupado quando Hugh foi à procura dele, algum tempo mais tarde. Como se não tivesse acreditado no que eu lhe disse. Estava preocupado com a fuga de informação, caso o rapaz ainda estivesse vivo, algures. Pensei que talvez tu soubesses alguma coisa; por que outro motivo arrastaria o meu sobrinho uma fedelha irlandesa com ele? Queria que tu falasses. Se eras parente dos Sevenwaters, era importante fazer-te falar, antes que tagarelasses a verdade ao meu sobrinho. Pensei isso. Mas não consegui aproximar-me de ti, ele guardava-te como uma jóia preciosa. Vigiei-te. Após algum tempo, mudei de ideias. Tu nunca falarás. O rapaz ilude-se se pensa que o farás. Tu és uma rapariga; as raparigas gritam quando são magoadas. Choram quando estão tristes. As raparigas não aguentam dias, luas e anos, caladas. Vais arder sem soltares um som. E eu vou ter um grande prazer em acender a fogueira, minha querida. Uma bofetada sem mão em Colum. Ele pode não querer pagar o teu regresso; eu compreendo isso. Mas não vai gostar da história que eu vou mandar só para os ouvidos dele; como a filha morreu numa fogueira especial. Essa história vai mantê-lo acordado de noite.
Esfregou as mãos de antecipação.
— Sim, calhou tudo muito bem — disse ele. — No fim, só ficou uma ponta solta. Nada que se pareça com o teu trabalho, minha querida, que parece muito trapalhão; estás mesmo concentrada no que estás a fazer? Mas, talvez não tenha importância. A fogueira leva-te, mais as tuas camisas horríveis, numa grande labareda. Roca, fuso, tear e tecido. Vestido, cabelo, pele e unhas. A princípio devagar e depois mais depressa, cada vez mais quente, à medida que as labaredas te envolvem e te penetram. Quando o teu marido regressar, não haverá qualquer sinal de ti em Harrowfield. Terás desaparecido. Obliterada. Ele há de apanhar os cacos da sua vida e há de recomeçar. Os homens esquecem. Esquecem facilmente. Em breve, Elaine pô-lo-á na ordem. É uma rapariga às direitas. Tomará conta disto aqui e quanto a mim...
Levantou os olhos para a janela.
— Está a fazer-se tarde. Ainda há tempo para uma garrafa de vinho e talvez uma costeleta ou duas, tenho sempre apetite a esta hora do dia. — Levantou-se, espreguiçando-se. — Tenho que me ir embora, minha querida. Foi tão agradável conversar contigo. Falei mais do que pensava. Bem, amanhã também é dia, como se diz. Vê se estás pronta quando te vierem buscar. Dei uma palavrinha ao homem do Bispo acerca do teu caso; a tua audiência, se calhar, vai durar o dia todo e ele quer começar cedo.
Uma noite, pensei eu com o coração a bater. Uma noite apenas e o meu destino ficará decidido. Tinha que ser forte, manter a mente longe da fogueira e da morte. Pensei nas palavras de Richard. Ainda bem que o homem estava tão absorvido com a sua pessoa. Tinha-me observado de perto durante o seu espantoso monólogo e talvez tivesse lido no meu rosto mais do que eu queria que ele soubesse. Durante o resto do dia e até à noite, a minha mente recapitulou, vezes sem conta, as coisas que ele me disse. O tio de Red metido com um chefe guerreiro do meu próprio povo, um que o meu pai considerava um amigo. Era capaz de acreditar nisso. Os jogos de poder, era o que eles todos faziam melhor. Aquele era apenas mais um. Lady Oonagh envolvida; devia ser verdade, pois eu já detectara a sua mão na morte de John e na crescente maré de medo, suspeita e infelicidade que ameaçava subjugar o vale, arrastando a família Harrowfield com ela. E parecia que Red estava certo acerca de uma coisa. Richard mentira-lhes. Ele não tinha provas da morte de Simon. A sua história fora fabricada, baseada em suposições. Planeada para apaziguar, inventada para pôr um fim àquela história muito especial. Acabou. Não é preciso procurar mais respostas. Sentia-me feliz por Richard não me ter conseguido ler a expressão do rosto. Não adivinhara para onde fora Red e porquê. E não deve saber. Porque no fundo do meu coração sabia que Richard não se deteria perante nada para obter o que desejava. Gostava do jogo enquanto durava. Mas, no fim, ganhar era a única coisa que lhe interessava. Todas as peças eram prescindíveis. A perda de uma unidade inteira de guerreiros era dura, mas Richard via isso apenas como um percalço a ser remediado com tempo e um saco ou dois de moedas de prata. Bons homens podiam ser comprados e treinados. Eu fora apenas um desafio particularmente incómodo e inesperado para ele. E caíra-lhe nas mãos. Não duvido que ele era capaz de sacrificar, sem remorsos, quem quer que se lhe atravessasse no caminho. Fosse quem fosse. Se um sobrinho podia ser — que palavra utilizara ele, eliminado? — então por que não também o outro, se viesse a saber a intragável verdade acerca do tio? E quem assumiria, depois, o controlo? Entre os homens do meu pai e o tio, o pobre Simon não tivera qualquer hipótese.
Ainda bem que ele me dera tanto que pensar. Remoenclo vezes sem fim, tentando compreender, afastava os outros pensamentos. As imagens da carne queimada, enquanto as labaredas me lambiam os pés descalços e chamuscavam a bainha bordada do vestido. Vi o cesto de salgueiro a pegar fogo e a consumir as cinco camisas de morugem, assim como a sexta, que estava inacabada, porque eu ainda estava a tecer a primeira manga. A frente e as costas estavam acabadas, ligadas no ombro por um ou dois pontos grosseiros. Era um trabalho imperfeito, tal como observara Richard; o meu irmão mais novo ia ficar defraudado. Mas o dia seguinte. No dia seguinte iam interrogar-me. Quereria isso dizer que eu poderia morrer no dia seguinte? Como se pode encarar o último dia do mundo e não ter medo? Pensei nas velhas lendas e como o espírito do herói completava a jornada na sua forma humana e mudava para a seguinte à hora marcada.
Uma boa morte. A roda gira e volta a girar. Pensei na história de Liam sobre a nossa mãe, deslizando deste mundo, despedindo-se tranquilamente dos filhos. Serena, ordenada, inevitável. Eu não sentia nada disso Estava zangada, aterrorizada, o meu coração batia com força e tinha dificuldade em respirar. Doía-me a cabeça. Não estava pronta para morrer. Ainda não, agora não. Antes de abraçar outra vez os meus irmãos, não.
Não dormi nada nessa noite. Tinha que haver ainda tempo. Tinha que haver. As Criaturas Encantadas impunham uma tarefa, tornando-a, depois, impossível de acabar? Não podia acreditar que ma tirassem tão próximo do fim. Tenho de a acabar. Ia acabá-la. Não contei histórias a mim própria enquanto a noite correu na direcção da madrugada. Em vez de trabalhar às escuras, preenchi o espaço em meu redor com imagens mentais, brilhantes, para afastar as sombras, como Finbar fizera uma vez por mim, esgotando-se. Para manter as chamas afastadas. Para afastar a cruel notícia de que o meu pai sabia onde eu estava e não pagaria para me libertar. Por isso, fixei a mente noutro local. Na praia branca e nas grandes e solenes focas de olhos doces. Em Red, observando-me com o seu sorriso de quebrar o coração e o brilhante cabelo, como um facho, contra o cinzento, o verde e o azul do mar. Vi, por instantes, a imagem de John elevando o seu pequenino nos braços, com o amor e o orgulho escritos no rosto curtido. De Margery, entrançando-me o cabelo com dedos ágeis. Fica-te bem. Tens de parar de te esconder. Parecia que o meu fim ia ser público. Toda a gente ia estar presente para ver uma feiticeira a arder. Não, manter esses pensamentos afastados. A floresta, a luz do Sol filtrada por entre as folhas lá muito, muito no alto. Uma criança dançando pelo carreiro abaixo, descalça na terra macia, o cabelo escuro e selvagem pelos ombros. O irmão observando-a com olhos de água límpida, que viam longe, tão longe. Uma rapariga a correr na areia; a sua imagem pequena e nítida, desenhada com cuidadosos traços de pena. A última imagem do livro.
A minha mão ergueu-se para agarrar as duas preciosas coisas que ainda estavam penduradas no meu pescoço, por baixo do vestido manchado. Lady Anne tinha dito que o filho dela me amava. Mas não era amor, já que ele fazia o que fazia porque lhe fora ordenado, mesmo sem o saber. Ele havia de regressar e eu estaria morta, como se nunca tivesse existido. Talvez ele ainda pudesse refazer a teia da sua vida. No entanto, eu queria-o ao pé de mim, naquele momento. Precisava dele ali. Na escuridão, se me sentasse muito quieta, quase conseguia senti-lo a meu lado, muito perto, mas não demasiado. Não te prometi que te manteria sã e salva, diria ele suavemente. Nunca quebrei uma promessa. Não fiques preocupada, Jenny. E eu sabia que ele seria cuidadoso. Suficientemente cuidadoso para não se aproximar demasiado. Cuidadoso, de modo a não me assustar. Esperando, quieto. Eu sou o teu abrigo. Não tenhas medo.
CAPÍTULO TREZE
Então chegou a manhã e eles vieram buscar-me. Era a primeira vez que saía da minha minúscula prisão desde o solstício do Verão, o dia em que apertei Conor nos braços e o ouvi prometer-me que traria os meus irmãos quando estivesse pronta. Agora, parecia que nunca o viria a estar. Pestanejando sob aquela luz que me fora negada durante tanto tempo, tropeçando nas pernas relutantes em obedecer-me, fui levada, com pouca gentileza, até ao grande salão, que fora preparado para a audiência formal da assembleia de homens livres. Havia uma longa mesa no fundo da sala, com quatro cadeiras de carvalho e nelas estava sentado Richard de Northwoods, vestido de veludo negro, com um homem rotundo a seu lado, com as vestes simples e escuras dos clérigos. Supus que era o homem do bispo. Havia ainda dois escribas, um deles jovem, tonsurado e de rosto pálido e sério e o outro, que era o escriba de Harrowfield. Tinteiros, penas e pilhas de pergaminhos estavam colocados à frente deles, com pequenos tabuleiros de areia muito fina, para polvilhar a escrita, ajudando-a a secar. Havia lanternas acesas perto das entradas, porque o Sol ainda não aparecera, por trás das nuvens chuvosas e a sala era muito escura. Um fogo quente ardia na lareira. Em volta dos outros três lados da sala sentavam-se os rendeiros de Harrowfield, como a lei exigia. Havia muitos que eu vira antes e alguns que me eram estranhos. Havia bastante barulho, com velhos amigos a porem a conversa em dia e rápidos negócios acerca de uns tantos porcos ou umas ovelhas, já que a oportunidade se apresentava. Assim que me viram subir para o estrado no centro do salão, todos se calaram.
Richard levantou-se lentamente.
— Está aberta a audiência — pronunciou ele. — Na ausência do meu sobrinho, Lorde Hugh de Harrowfield, senhor desta herdade, serei eu a presidir. Há vários casos para ouvir, mas todos eles, à excepção de um, ficarão para amanhã, ou para o dia seguinte. Haverá comida e bebida para todos enquanto se mantiver esta assembleia. — Murmúrios de aprovação. — Para hoje, temos um único, profundo e grave caso para ser decidido. Diz respeito à jovem conhecida como Jenny, que se apresenta perante vós acusada de várias ofensas, cada uma das quais é punível com a morte, caso seja provado.
Todos os olhares se viraram na minha direcção, para o estrado, onde eu me mantinha de pé, oscilando ligeiramente. Sentia-me estranha. Ou era da falta de sono, da falta de comida, ou da presença de tanta gente, de tanta luz e barulho, mas a minha vista estava desfocada e sentia tonturas. Tinha de me concentrar.
— Como é do vosso conhecimento, já houve antes acções legais destas — continuou Richard — dada a gravidade da acusação. Esperava-se que o padre Stephen de Ravenglass nos desse a graça da sua presença, para que a opinião da Igreja pudesse ser obtida, especialmente na acusação de feitiçaria. — Houve um pequeno sobressalto de horror na assembleia quando aquela palavra foi pronunciada. — Fui avisado de que isso não será possível e o caso não pode ser mais adiado. Dou as boas-vindas ao padre Domimc de Whitehaven, que viajou até nós como representante do bispo em vez do padre Stephen. — Estaria a imaginar, ou Richard parecia maldisposto com esta troca? — A acção será como segue — continuou ele e eu tive a certeza. Havia uma expressão na sua voz, o mesmo tom que ele empregava quando discutia com Red e perdia. Algo o confundira. — Esta manhã, as provas contra a rapariga serão apresentadas e ouvidas. Mais tarde, ser-lhe-á dada a oportunidade de se defender. Interrogá-la-ei e o padre Domimc poderá também fazê-lo, caso o deseje. Se algum dos membros desta assembleia tiver algo a dizer sobre este caso, poderá, também, falar. Proferirei a sentença hoje mesmo, de maneira a que este caso perturbador fique resolvido de uma vez por todas.
— Muito bem, muito bem. — O padre Domimc esticou-se, pegando numa folha de pergaminho e numa pena. Aparentemente habituado àquele comportamento, o seu escriba aproximou o tinteiro. — Quais são, exactamente, as acusações contra esta jovem?
— Primeiro, espionagem, com o intuito de passar informações para os inimigos do seu marido. Não negou as acusações que lhe foram feitas de pertencer aos guerreiros irlandeses que nos guerreiam pelo controlo das Ilhas. Segundo, abrigo a um fora-da-lei, da sua própria espécie, sem nada que fazer por estas bandas. Terceiro, o uso das artes da feitiçaria com o intuito de prejudicar e perturbar esta casa. As três ofensas fazem parte do mesmo plano. O castigo para cada uma delas é a morte.
— Estou ciente disso. E quais são as testemunhas a chamar?
— Várias, padre. Eu próprio serei a principal testemunha contra ela, neste caso.
Vi o padre Domimc acenar com a cabeça, o rosto impassível. Sobre o colarinho do seu traje negro, havia rolos de gordura sob o queixo. Os seus pequenos olhos eram muito perspicazes.
— Muito bem. Começai, então. — Virou-se para mim. — Ouve com atenção, jovem. Porque em devido tempo serás chamada para te defenderes.
Olhei para ele e os seus olhos semicerraram-se.
— Esta rapariga compreende a nossa língua? — Virou-se para Richard com um ligeiro franzir de sobrancelhas. — Ela mal parece ouvir o que se diz. E não parece bem. Diria que há algo de errado com ela. Não se pode esperar que se defenda se não é capaz de compreender as acusações.
— Ela compreende muito bem — disse Richard concisamente e desta vez era óbvio que estava aborrecido. — Mas não tem o dom da palavra. Disseram-me que uma doença lhe tolheu a língua.
— Se é assim, como poderá ela defender-se? Como pode uma assembleia séria ter lugar se a acusada não se pode defender? Tem alguém para a ajudar?
— Ela desenvencilhar-se-á muito bem sozinha. — O tom de Richard era de rejeição. — Posso prosseguir com o meu depoimento?
— Não fico nada satisfeito. Mas continuai. Não percamos tempo.
A maneira como ele disse aquilo pareceu condenatória. Até a mim me pareceu convincente. Pensei que era uma sentença de morte. Richard fez uma óptima exibição, passeando-se pelo centro do salão, pelo meio da multidão, utilizando toda a sua melíflua voz, do sussurrar ao grito de ultraje, contando a história de como o seu sobrinho trouxera uma rapariga de Erin com a melhor das intenções, como as pessoas da casa, assim que a viram, souberam logo que não prestava para nada, como se insinuara na casa e se virara contra o marido, como seria de esperar de uma mulher selvagem dos pântanos da Erin. Contou como eu escutava as conversas depois de jantar, sobre arrendamento de terras, comércio e campanhas militares, armazenando-as para utilização futura. Descreveu como me apanhara uma vez, nos montes, sozinha. Por que sairia eu da casa em segredo, senão para me encontrar com um dos da minha espécie e passar-lhe as informações?
— Isso são conjecturas — disse o padre Domimc calmamente, fazendo uma anotação no seu pergaminho. — Onde estão as provas?
— Já lá vou. — A voz de Richard era áspera. Camuflava o seu aborrecimento com um esforço da vontade, porque precisava de convencer os membros da assembleia, assim como o santo padre, de que o seu parecer devia ser aceite. Então, lançou-se na história do piquenique do solstício de Verão e de como eu fora presa. Atingiu o clímax.
— Vi a rapariga, Jenny, dirigir-se para o rio. Um pouco mais tarde, pensando que poderia não ser seguro para ela, segui-a. À minha frente ia um homem, o jovem Benedict, companheiro do meu sobrinho, filho de William de Greystones. Esse jovem foi criado nesta casa. Ambos a vimos; e também vimos o homem que ela abraçava. Não havia dúvidas do que faziam. — Tossiu ligeiramente, olhando para a sua irmã reservadamente.
— Que quereis dizer? — perguntou o padre Domimc. — Sede claro, porque essa acusação é muito séria.
— Bem, eles... ha... para falar francamente, o homem tinha pouca roupa vestida e a rapariga estava... ha... abraçada a ele de maneira... muito íntima.
— Desejais acrescentar adultério às vossas acusações? — O padre Domimc inclinou-se e escreveu. — E depois? — perguntou ele.
— Perseguimos o irlandês, mas ele desapareceu nos bosques. A rapariga foi presa. Um dos homens que estava comigo tinha-os ouvido falar, antes, mas não sabia quem eram. Falavam de guerreiros, armas e fortificações. Das defesas de Harrowfield.
— Ouviremos esse homem em devido tempo. E esse Benedict de que falastes? Ele está aqui para contar a sua história?
— Ele não tem nada a acrescentar — disse Richard rapidamente. — A história dele é igual à minha. Os meus homens vasculharam a floresta, mas não encontraram o irlandês. Escapou com informações valiosíssimas. Informações que esta rapariga lhe passou.
— Ouçamos Benedict de Greystones — disse o padre Domimc, ignorando-o. Ouvi os homens que guardavam a porta chamar Ben sob este grande nome. Outra vez. E uma terceira, após uma pausa. O escrivão do padre Domimc levantou-se e foi consultar os guardas. O tempo passou e ouviu-se um certo burburinho no salão. Passei uma mão pelos olhos. Sentia-me tão esquisita, como se a sala se inclinasse e oscilasse à minha volta. As lanternas moviam-se como pirilampos e Richard de Northwoods tinha quatro olhos. Lembrava-me de me ter sentido uma vez assim, naquele dia em que fui levada pelo rio abaixo e quase me afoguei. No dia em que conheci Red.
— Ele não está presente, padre — disse o jovem clérigo. — Foram à procura dele. Mas não o encontram, segundo dizem.
Richard respirou de alívio, de modo audível. O padre Domimc franziu os lábios.
— Muito bem, ouvirei os outros que estavam presentes. Eles corroboram essa história?
Era meticuloso. Surpreendentemente meticuloso, considerando que tinha sido convidado apenas para dar uma certa respeitabilidade a uma audiência cuja conclusão já tinha sido decidida por Richard, mesmo antes de começar. Ouvimos três dos homens dele, contando como me encontraram numa posição comprometedora e como perseguiram o meu companheiro durante toda a noite, sem sucesso. Continuava a não haver sinal de Ben. Pensei que talvez, por consideração para com Red, ele não falasse contra mim, não quisesse apressar a minha morte. Mas também não me defenderia. Fora rápido a admitir a minha culpa, tão rápido como todos os restantes.
Ouvimos outro homem contar como me ouvira passar informações ao espião estrangeiro, informações que eu só podia ter recebido do meu marido. Diziam respeito a armas, postos avançados e movimentos de homens. Não valia a pena abanar a cabeça, ou tentar refutar o que era uma simples falsificação. Não me compreenderiam; poucos o conseguiriam. Além disso, sentia que aquele caso só podia ter um fim.
Uma a uma, as pessoas depuseram, disseram coisas e saíram. O padre Domimc anotava-as com tinta preta, inclinando-se e escrevendo. Tinha olhos pequenos, profundos e firmes, sob escuras e enérgicas sobrancelhas. Alguém disse que me vira de noite, dançando nua em volta de uma pequena fogueira. Alguém disse que tinha plantas proibidas no meu jardim, ervas que nenhuma pessoa respeitável permitiria perto da sua cozinha; que tentara envenenar Mistress Margery e que era um milagre o bebé dela ter sobrevivido. Quem sabe o que seria a criança quando crescesse, quando as mãos que a ajudaram a nascer pertenciam a uma feiticeira? Alguém disse que quando suturei a perna de Lorde Hugh deixei lá dentro um pequeno feitiço, que se dirigiu, lentamente, mas com segurança, para o coração. Um feitiço que o prendia à minha vontade até ao fim dos meus dias. Doeu-me muito ouvir aquilo. Houve outras acusações. Deixaram-me levantar uma vez e deram-me um copo de água. Vi Lady Anne a um canto da sala, o rosto branco e silenciosa. Um guarda escoltou os meus acusadores para dentro e para fora. Aquilo continuou durante muito tempo. Comecei a sentir-me cada vez mais esquisita, como se a cabeça tivesse deixado de pertencer ao meu corpo. Então, de repente, tudo ficou negro.
Quanto voltei a mim estava deitada no chão e o salão estava quase vazio. Lady Anne estava perto de mim e Megan limpava-me a testa com um pano molhado. Tentei sentar-me.
— Devagar — disse Lady Anne. Agarrei o braço de Megan e descobri que mal conseguia sentar-me.
— Livra! — disse Megan. — Minha Senhora, achais que?...
— Temos pouco tempo. — Parecia que Lady Anne tinha compreendido a meia pergunta. — Eles precisam de comer e beber e vão querer conversar. O povo precisa de ser alimentado. Molly preparou-lhes uma mesa, na cozinha. Pelo menos, acho que vamos conseguir arranjar-lhe água quente, um pente e um vestido limpo.
Megan afastou-se e os dois homens de guarda à porta não tentaram impedi-la.
— É melhor beberes isto — O tom de Lady Anne era severo quando me colocou a taça na mão. Mas eu não conseguia segurá-la, tremia tanto e ela teve de ma levar aos lábios.
— Terás uma oportunidade de te defenderes, esta tarde — disse ela rudemente. — Nem todas aquelas acusações eram verdadeiras. Muitas foram baseadas no medo e na superstição. Sabes o que acontecerá, se ficares calada.
Acenei com a cabeça. De que valeria? Eu já fora declarada culpada e a pena escolhida, antes mesmo de ter entrado naquela sala. Nada daquilo tinha importância. Tudo o que importava era permanecer viva o tempo suficiente para terminar a última camisa.
Lady Anne franziu a testa.
— Não te posso perdoar o que fizeste — disse ela. — Se te acharem culpada, serás condenada à morte. Devo acatar a decisão deles e submeter-me à sua sabedoria. Ao mesmo tempo, não posso permitir uma prisioneira tão mal alimentada, suja e desgrenhada na minha casa. Há certos princípios que devem ser mantidos, ou não seremos melhores do que vós. Fui avisada de que estavas a ser convenientemente tratada. Quem me avisou tem, certamente, uma perspectiva diferente da minha.
Nesse momento ouviu-se um certo tumulto à porta e uma figura conhecida, o rosto suave tristemente angustiado, forçou a entrada, ignorando os guardas.
— Jenny! Oh, o estado em que tu estás. Oh, minha Senhora, como...
— Silêncio, mulher — Lady Anne segurou firmemente no braço de Margery, parando a corrida desta através da sala. — Olha, aqui está Megan com algumas coisas para nós. Leva Jenny para a antecâmara, ali e ajuda-a a mudar de vestido. Este está bom para ir para o lixo. Não tentes falar com ela. Nem sequer devias estar aqui. Isto é uma audiência formal. Tens que te ir embora antes do regresso do padre Domimc.
Entre as duas, Megan e Margery mudaram-me o vestido, lavaram-me a cara e esfregaram-me a porcaria do corpo com uma esponja. Havia pequenas criaturas a passearem pela minha cabeça.
— Oh, Jenny — murmurou Margery, enquanto Lady Anne ficava por perto e pretendia não ouvir. Puxou-me o vestido pela cabeça, sem um único franzir do nariz ao que viu. — Oh, como tu estás. Estás tão magra como um espectro. Lamento, lamento tanto.
— Vergonhoso — murmurou Megan, mergulhando uma esponja no balde e espremendo-ma nas mãos e nos braços. A água ficou castanha do sangue e da sujidade. — Que infâmia.
Não era dos meus crimes que falavam.
— Eu devia... eu devia ter... — sussurrou Margery, tentando passar-me o pente pelo cabelo, enquanto Megan me lavava as pernas e os pés.
— Mas tenho tantas saudades de John... Só pensei em mim e no Johnny. Se não tivesse sido tão egoísta, talvez pudesse... — calou-se e a mão subiu gentilmente até tocar no anel que pendia do fio em volta do meu pescoço. Um sorriso curvou-lhe a boca quando viu o círculo de folhas de carvalho, as bolotas e a pequena coruja. Lady Anne observava-a.
— Ele há de vir em tua ajuda — sussurrou Margery. — Como poderia não vir?
Megan passou-me o vestido lavado pela cabeça. Quase que chorei, porque era aquele azul, que a minha amiga me fizera com tanto amor. Alguém o tinha limpo sofrivelmente, mas na saia ainda se via uma marca, onde o mar escrevera o seu nome. Não queria morrer queimada com aquele vestido.
— Rápido — disse Lady Anne. — Fazei desaparecer essas coisas e deixai-vos de conversas.
Ocorreu-me que talvez fosse a última vez que eu via a minha amiga. Margery tinha o mesmo pensamento nos olhos e os seus braços abriram-se para me abraçar, mas Lady Anne interpôs-se entre ambas.
— Não torneis as coisas ainda mais difíceis — disse ela e a sua voz tremia. — A rapariga é uma prisioneira; o destino dela está em jogo. Já não pertence a esta casa. Fizestes o que vos foi pedido. Agora, ide-vos.
Saíram as duas, mas Margery voltou-se, tocou com a ponta dos dedos nos lábios e acenou-me: e Megan tinha lágrimas nas faces.
A audiência continuou. Nenhum dos meus interrogadores fez qualquer comentário à minha nova aparência, se bem que Lorde Richard tenha levantado as sobrancelhas e o padre Domimc tenha emitido uma espécie de grunhido, profundo. Lá fora, o dia ia escurecendo. Já estávamos ali há tanto tempo?
— Bom — disse o clérigo, inclinando-se para a frente e fixando em mim os pequenos olhos — já ouvimos todas as acusações contra ti e parecem condenatórias, se não mesmo conclusivas. O propósito desta audiência é determinar se a tua culpa fica provada e determinar o respectivo castigo. Todas as tuas ofensas são da competência jurídica secular e como Lorde Richard tem autoridade em tais assuntos, a decisão final pertence-lhe. No entanto, fui convidado para o assistir nesta decisão, dada a natureza das acusações e os laços familiares entre o acusador e a acusada. Não há qualquer razão para temeres a justiça, minha filha. Agora, tens oportunidade de te defenderes. Leva o tempo que quiseres. Sei que não podes usar a tua voz. Mas talvez haja outra maneira de nos conseguires dizer o que pretendes. Faz-nos sinal se houver algo que não consegues perceber.
Olhei para ele. As suas sobrancelhas encontraram-se a meio do rosto e os seus olhos ficaram com duas almofadas de gordura. No entanto, possuíam uma inteligência viva. As minhas mãos permaneceram quietas ao lado do corpo. O salão ficou silencioso.
— Tendes a certeza que estais correcto ao dizer-me que esta rapariga compreende bem a nossa língua? — Ele olhou para Richard e depois para Lady Anne, ainda sentada a um canto do salão.
— Sim, padre. — Lady Anne pusera uma máscara na expressão que me era dolorosamente familiar. — Não só compreende, como, se o desejar, é capaz de se expressar por meio de gestos rudimentares.
— Acho isso difícil de acreditar — disse o padre Domimc, abanando a cabeça. — Por que havia ela de não querer comunicar, agora? A rapariga quer morrer?
Richard deu uma gargalhada de censura.
— Talvez não tenhais conhecido muita gente desta, padre. Eu conheço muito bem os Irlandeses. Tal provocação nasce com eles e é alimentada cuidadosamente desde o berço. Os espiões deles são treinados para se manterem silenciosos até à morte e para além dela. A recusa desta rapariga em falar é outro sinal da culpa dela.
O padre Domimc olhou para ele com uma antipatia que estava escrita nas suas feições pastosas. Através da minha exaustão e do meu medo, senti surpresa. Aquele homem via Richard de Northwoods por aquilo que ele era. A última coisa que eu esperava era a ilusão de um julgamento justo.
— Há muitos homens letrados naquela costa — disse o padre Domimc. — Alguns, sem dúvida, irmãos meus, peritos no debate e na lei. Não me atrevo a julgar com tanta facilidade. Além disso, a acusada não passa de uma rapariga. É jovem e manejável; se ela fosse preparada para falar em sua própria defesa, para desdizer e abjurar os seus actos anteriores, talvez a sentença pudesse ser comutada.
Richard não disse nada.
Apercebi-me da entrada de mais pessoas na sala, pela porta. Não olhei para trás. Lá fora, a chuva começou a cair, caindo fortemente no lado de fora das janelas. O dia ficou ainda mais escuro.
— Jovem — disse o padre Domimc encontramo-nos aqui perante uma certa dificuldade. — Dizem-me que tu conheces a nossa língua. Olha para mim, criança. Acena com a cabeça se me estás a compreender.
Consegui fazer um ligeiro aceno com a cabeça. Não me posso deixar cair na armadilha de responder às perguntas erradas. Não lhes posso dizer nada da minha história. Mas sentia-me cansada, demasiado cansada para pensar com clareza. A chuva começou a cair com força, tamborilando no telhado. Pensei se Red estaria ao ar livre, algures e se teria um lugar seco para dormir. Pensei se teria alguma hipótese, a mais remota, de tecer uma manga inteira numa noite e cosê-la à última camisa, de manhã.
— Óptimo. Agora, responde-me. És culpada destas acusações?
Descobri que não conseguia responder. De que valia a pena? Porquê concordar, ou discordar, se Richard estava determinado a declarar-me culpada?
— Não respondes? Nem sequer com um aceno de cabeça? Tens de reconhecer que isso significa uma admissão de culpa.
Olhei para ele em silêncio. A sua testa pálida estava franzida e os olhos perturbados.
— Que havia ela de dizer — perguntou Richard — contra tais acusações? É claro que a rapariga é adúltera e espia. Ela caiu sobre esta casa como uma criatura do demónio, que suga a vida das suas vítimas. Abusou da confiança da minha irmã e do meu sobrinho da maneira mais vil. Ela...
— A última testemunha continua por encontrar? — perguntou o padre Domimc com moderação suficiente. — Esse Benedict, o homem de que falastes? Gostaria de ouvir a história dele antes de a sentença ser pronunciada.
— Desapareceu, senhor. — Os homens à porta mexeram os pés, inquietos. — Mandámos buscá-lo, andaram à procura dele, mas os rapazes dos estábulos dizem-nos que ele se foi embora. Por alguns dias, dizem. Foi visitar a família, pensam eles.
Vi os olhos de Richard estreitarem-se ao ouvir aquela notícia e chamou um dos seus homens. Após uma troca de palavras precipitada, o homem saiu da sala rapidamente.
— A sério? — O padre Domimc traçou uma linha em diagonal na página onde tomava notas. Virou-se para Richard e o seu tom era muito frio.
— Esta testemunha era importante. Devia ter sido ouvida. Não fizestes qualquer tentativa para o manter aqui? Contais com os vossos moços de estrebaria para vos darem informações exactas?
— Não sabia que ele se tinha ido embora, padre.
E era verdade, podia vê-lo no rosto de Richard, onde havia uma ira mal disfarçada.
— Bem, é evidente que esta testemunha não será ouvida. Não há mais depoimentos? — perguntou o padre Domimc, correndo os olhos pelo povo reunido.
— Eu... eu gostaria de fazer uma pergunta, se me permitis. — Lady Anne parecia invulgarmente hesitante. As cabeças viraram-se para onde ela estava, a um canto do salão.
— Muito bem, fazei a vossa pergunta. — O padre parecia cansado. Fora um dia longo. Muito longo.
— Se Jenny... se a rapariga é culpada, sei que o castigo é a morte. Mas... mas e se ela estivesse grávida? É possível, até provável. Essa criança seria o herdeiro de Harrowfield; filho do meu filho. Não gostaria...
Senti-me corar de vergonha e humilhação. Mas, ao mesmo tempo, bem no fundo, sabia como ela se sentia. Essa criança seria minha, meio filho de Erin; na sua consideração seria um selvagem, um fanático e um inimigo visceral de tudo aquilo que ela prezava. Mas a criança também seria de Red; de um filho cujo pai, e cujos pais dos pais tinham sustentado a vida do vale. Poderia dizer-lhe que não tinha criança nenhuma no ventre. Mas fiquei imóvel, como uma pedra, desejando que o meu rosto acalmasse. Não me esquecia que era a filha da floresta, nem por um instante. E uma coisa que eu ouvi uma vez, há muito tempo, entrou-me na mente e voltou a sair antes de ter tempo de a agarrar. Algo que me fora contado recentemente... em que alguém não era de Bretanha nem de Erin, mas de ambos ao mesmo tempo... onde ouvira eu aquela história? Sentia-me tonta, não me conseguia lembrar.
— Olha para mim, rapariga. — O padre Domimc estava de pé, os olhos perspicazes fixos em mim. — Trazes uma criança no ventre? Uma criança do teu marido?
Richard deu uma gargalhada grosseira.
— Isto é espantoso! Esperais uma resposta honesta? Esse bastardo pode ser de um qualquer. A rapariga não passa de uma prostituta barata, em qualquer mercado. Até o tentou comigo, há um dia ou dois atrás. Pensou que podia comprar a liberdade abrindo as pernas. A putéfia não tem vergonha nenhuma.
— Chega. — Ao ouvir a voz do padre Domimc, Richard fechou imediatamente a boca. — Bom povo desta assembleia, esta fase da audiência está concluída. Lorde Richard e eu vamos reunir-nos para ponderarmos a sentença. Chamar-vos-emos de novo depois do jantar e nessa altura o nosso veredicto ser-vos-á comunicado. Se houver uma pena a aplicar, ela será conhecida amanhã de manhã.
O povo começou a arrastar os pés na direcção da saída, os movimentos presos por tantas horas sentados. O padre Domimc virou-se para Richard.
— É melhor voltar a prender a rapariga. Assegurai-vos de que ela come alguma coisa; arriscais-vos a perdê-la antes que alguma pena possa ser proferida. Talvez devêssemos retirar-nos para uns aposentos mais reservados, para discutirmos melhor este caso.
— Para mim, é suficientemente claro. — Richard parecia quase petulante.
Não ouvi mais nada, porque os meus guardas seguraram-me pelos braços e fui levada de volta para a minúscula cela. Alguém me levou pão e água, comi e bebi e pouco tempo depois o meu estômago rejeitou até a mais pequena migalha, como se, na realidade, estivesse grávida. Na cela fria, húmida, na escuridão, apalpei em busca do meu trabalho e encontrei-o. Sabia que era a última noite. As minhas mãos seguraram no pequeno tear, procuraram a lançadeira, o novelo da fibra fiada e comecei a trabalhar.
Foi inútil, claro. Era impossível acabar aquela manga, fazer outra e coser as duas numa única noite, sem sequer uma vela para me guiar. Mas continuei a trabalhar. És teimosa, não és? Talvez tivesse um pouco mais de tempo. Richard descrevera a mistura de Eamonn de Marshes, que destruía tudo menos os ossos. Talvez esperasse até ser noite, para ter um espectáculo melhor. Lá fora, a chuva continuava a cair. Era bom para os carvalhos pequenos. Richard estaria à espera de tempo seco. Não se consegue uma boa fogueira com chuva.
À medida que a madrugada se aproximava, como que preparando-se para uma cremação, a chuva parou e levantou-se uma brisa fria. Ouvi uma coruja a chamar no último silêncio antes da madrugada. E desapareceu, voando para o profundo abrigo das árvores. O Sol nasceu e as aves diurnas começaram os seus cantos doces. Tentei, sem grande sucesso, afastar os pensamentos que ameaçavam submergir-me. A última chuva. A última coruja. A última madrugada.
Vieram buscar-me cedo, dois homens enormes com as cores de Northwoods. Ninguém me disse qual tinha sido o veredicto e eu não podia perguntar. A primeira manga estava grosseiramente acabada e segura às outras partes da camisa por um ou dois pontos. A segunda ainda nem sequer estava começada. Não permitais que seja agora, já, pedi silenciosamente. Agora não, ainda não, por favor.
Não me levaram para o salão, para ouvir ler a sentença perante a assembleia do povo. Em vez disso, fui levada para uma câmara no andar de cima, onde a única pessoa presente era Lorde Richard de Northwoods. Fiquei tolhida de medo, quase para além de qualquer sentimento e o meu rosto deve ter mostrado surpresa.
— Mudança de planos, receio — disse ele suavemente. Estava ao pé da janela, uma figura imaculada, do cabelo encaracolado até às botas polidas. Usava uma túnica verde-suave, com roupa branca de linho por baixo, branca como a neve. Fiquei em pé na frente dele, no meio da sala, as mãos ao lado do corpo. Obedecendo a uma ordem muda, os guardas retiraram-se para o lado de fora da porta. — O nosso instruído amigo foi chamado inesperadamente. Saiu logo a seguir ao jantar, ontem à noite, de facto. Parece que alguém espetou uma faca no padre da paróquia, no outro lado do monte, em Elvington. O padre Domimc teve que ir para lá. Nem sequer teve tempo de me ajudar a pronunciar o veredicto. Não foi grande perda, tenho de admitir. Muito convicto. Difícil de convencer. Não que se tenha ido embora sem me dar a sua opinião. — Fez uma pausa momentânea. Requintadamente programada.
— É claro que nunca houve qualquer dúvida da tua culpa — disse Richard e já não brincava, antes estava mortalmente sério. — Culpada de passar segredos para o inimigo. Culpada de enganar o marido e quebrar os laços matrimoniais. E culpada de feitiçaria. O peso das provas contra ti foi esmagador. Aproxima-te, Jenny. — O uso do nome por ele fez-me arrepiar. — Não queres? Então, vou eu até ao pé de ti. — Atravessou a câmara para se pôr diante de mim, os olhos brilhantes de antecipação. — Sabes qual é a pena para estes crimes. Não o simples desterro, nem o sequestro num convento onde poderias viver os teus dias confortavelmente. Oh, não. Fizeste muitos danos aqui. Danos muito sérios. — Baixou a voz. — Tens sido um espinho na minha carne e eu sinto uma alegria imensa em arrancá-lo de uma vez por todas. A pena é a morte. E tu já conheces o método. — O dedo dele subiu para me percorrer o pescoço, lentamente. A última vez que tentara aquilo, Red quase lhe partira o braço. Mas Red não estava ali.
— O agradável disto tudo é que temos o dia todo para pensar nisso — disse ele suavemente. — Portanto, enquanto eu saio e vigio a construção de uma fogueira muito especial, vou permitir que fiques aqui, guardada, claro. Esta sala é mais quente e mais confortável; e poderás ver-me daquela janela ali. Talvez até se arranje um pouco de comida e bebida; uma última refeição para a condenada. Bem, adeus, minha querida. Foi... interessante... conhecer-te. Encontrar-nos-emos de novo ao anoitecer, por breves instantes. Achei que ao anoitecer seria melhor. Mais atmosférico, não achas? Para dar ao povo um verdadeiro espectáculo, algo para poderem contar aos netinhos. Adeus, minha querida.
O meu coração começou a bater descompassadamente.
Mas... mas...
Quebrei as minhas próprias regras e aproximei-me dele, puxando-lhe a manga, gesticulando selvaticamente.
— As minhas coisas fiar, tecer aqui? Trazer aqui?
Ele não me podia fazer uma coisa daquelas. Não podia. O seu pequeno sorriso era um triunfo de ódio e satisfação.
— Oh, não, não me parece. Tenho que cumprir a minha parte. Pior para ti, se não conseguiste acabar a tarefa. Não me posso arriscar, se quero receber o que me prometeram. Além disso, tens andado a trabalhar demasiado, minha querida. Faz uma pausa. Diverte-te, para variar.
Saiu porta fora e os dois guardas seguiram-no, fechando-a.
De todos os dias do meu longo silêncio, há dois que permanecem, claros, na minha memória, com todos os pormenores. Um foi o dia em que corri ao longo da praia no meu vestido azul, ouvi a história de Toby e da sereia e recebi o meu anel de noivado. O outro foi o dia da fogueira
Fiquei à janela uns momentos e vi-os a construí-la, uma rima perfeita de troncos de freixo que arderiam sem fumo, colocados em volta de um mastro central. Construíram-na no pátio, suficientemente longe da casa para que o fogo não se espalhasse desconsoladamente; suficientemente perto para permitir um belo panorama, do pátio às janelas superiores.
Era difícil acreditar que Harrowfield tivesse descido tão baixo. Não conseguia imaginar Lady Anne, Megan, Ben, ou Margery, regozijando-se com semelhante panorama. A maior parte dos homens de Red virariam as costas a tal barbaridade. Mas os homens de Red estavam, estranhamente, ausentes. À medida que o dia passava, uma fila contínua dos trabalhadores de Richard iam e vinham, a pira ia tomando forma e estava quase pronta. Podia ver-se como a condenada seria presa ao mastro e os pés pousados numa estreita plataforma ali construída. Podia ver-se como a madeira seria ateada por baixo, onde uma grande quantidade de galhos secos tinham sido colocados entre os grandes toros e como as chamas pegariam, subindo primeiro lentamente, depois mais rapidamente e... Richard estava atarefado, dando ordens a um trabalhador aqui, ajustando um cavaco ali; e quando tudo ficou feito a seu gosto fez com que dois dos seus homens trouxessem um pequeno baú, que ele abriu com cuidado. Tinham construído uma plataforma ao lado da fogueira, uma estrutura atabalhoada, que certamente arderia no momento em que as chamas atingissem um certo ponto. Talvez tivesse sido feita com a intenção de também arder para ajudar ao espectáculo. Richard subiu os degraus até àquela plataforma, fez com que os homens colocassem o baú a seu lado e, metendo a mão lá dentro, retirou o que pareciam ser uns paus. Deslocou-se cuidadosamente até à pira e começou a colocá-los, com algum cuidado, na camada superior, um aqui e outro ali, a toda a volta. Levou o seu tempo, parando frequentemente para admirar a sua obra de arte. Eram, suponho, os toros de que ele me tinha falado com tanta troça, toros cedidos por Eamonn de Marshes, traidor do seu próprio povo. Embebidos numa mistura cuidadosamente calculada de componentes especiais. Quando acesos, ver-se-ia algo digno de se ver.
Tornou-se evidente que eu não ia reaver o meu trabalho a tempo. Sabia que ia arder comigo ao anoitecer. Não havia escolha possível. Uma vez desaparecida, os meus irmãos não teriam qualquer oportunidade. A Dama da Floresta fora específica. As seis camisas tinham de ser feitas, do princípio ao fim, pelas minhas mãos. Então, quando estivessem prontas, teria, eu própria, de as enfiar pelos pescoços dos cisnes. As seis no mesmo local, uma após outra. Só então, se me tivesse mantido calada, o feitiço seria quebrado. Não os ia deixar matar-me, não sem primeiro ter tentado. Tenho de tentar, apesar de parecer não haver qualquer esperança, porque aquela seria a última oportunidade dos meus irmãos. Não conseguiria acabar a sexta camisa. Mas tinha de os chamar. Talvez, talvez fosse o suficiente.
Afastei-me da janela, sentei-me no chão de modo a olhar directamente para o céu, para ocidente. Para não ver os homens nem o que estavam a construir. Comecei a respirar lentamente e tentei não pensar no que quer que fosse, até que a minha mente ficou vazia e tranquila, como uma pedra no coração da floresta. Dirigi as minhas energias para o meu irmão Conor, algures para além do mar. Toda a força do meu pensamento, toda a minha força de vontade. Visionei-o na minha mente. Alto, pálido, o espírito de um ancião no corpo de um jovem. Rosto pálido, cabelos emaranhados, vestido de trapos.
Conor. Tens de vir já. É hoje, ao anoitecer. Um silêncio de morte, à excepção do ténue som de marteladas.
Conor. Por favor, escuta-me. Vem ter comigo ao pátio da grande casa que te mostrei. Tens de estar aqui ao anoitecer. Trá-los. Trá-los a todos. Nenhuma resposta. Talvez, afinal de contas, fosse demasiado longe. Trá-los. Esta é a última oportunidade. Tens de os trazer. Ouviu-se uma pequena brisa do lado de fora da janela e um pássaro cantou. Foi tudo. Talvez ele não me pudesse ouvir. Mas ele tinha dito, chama e nós viremos.
Parecia que os homens faziam muitas promessas. Finbar dissera uma vez, estarei sempre presente para ti e eu acreditara nele. Red dissera, eu voltarei.
Estremeci. E se os homens de Richard o tivessem interceptado, se...? Sem Red, Harrowfield ficaria fria e sem vida. Até já estava a mudar.
Mais tarde, levaram-me para que eu fizesse as minhas necessidades e trouxeram-me de novo. No caminho, ouvi vozes de mulheres, discutindo no andar de baixo. Ouvi alguém dizer, padre Domimc, mas não apanhei o resto. Não vi ninguém. Então, trouxeram-me comida, mas não lhe consegui tocar. Finalmente, enrosquei-me a um canto, meio a dormir, meio acordada. Lá fora, as marteladas tinham cessado e tudo estava tranquilo. Uma luz suave entrava pelas janelas, transformando as partículas de poeira numa névoa quente.
Podia ter sido um sonho ou outra coisa qualquer. Pensei que os meus olhos estavam abertos. Mas vi-as clara e nitidamente, como uma imagem pintada num grande livro. A princípio acreditei que estava a recordar tempos passados, quando me sentava com os meus irmãos nas rochas macias à beira do lago, observando os corpos prateados e brilhantes dos peixes, deslizando sob a água. Mas aquelas crianças não pertenciam a Sevenwaters. Havia uma rapariga, alta e robusta, de faces coradas e uma cascata de cabelos brilhantes, como um lençol de chamas. Havia um rapaz de cabelos escuros, deitado nas rochas e olhando para cima, para o céu, com olhos límpidos como a água, que viam longe, tão longe.
— Os cisnes estão a chegar — disse ele sem se mover. — Vão chegar hoje. A rapariga estava deitada ao lado dele, de barriga para baixo, e mergulhava os dedos na água gelado do lago.
— Como podes estar tão certo? — perguntou ela. Tens sempre a certeza de tudo. Parecia-me que havia outra criança, no canto da imagem, mas não conseguia vê-la com nitidez. Então a imagem esfumou-se e desapareceu.
São os teus filhos, disse a pequena voz. E calou-se.
Podiam ser os meus filhos, pensei, enquanto a minha mão subia para segurar no anel suspenso no meu pescoço e na pedra furada com os seus sinais nanicos. O meu filho, a minha filha. A pequena pedra estava gravada com o sinal secreto Nuin, que significava o freixo. Mas também significava o N de Niamh, que era o nome da minha mãe. Niamh, a minha filha, de cabelos brilhantes como faróis, como chamas na água. Não pude impedir que as lágrimas me corressem pelas faces e chorei, chorei até o rosto me inchar, a cabeça me doer e a luz, que entrava pelas altas janelas, começar a enfraquecer e morrer. O dia já quase tinha terminado.
Quando me vieram buscar, já não tinha lágrimas. E assim caminhei, de rosto vazio, entre os guardas, para o pátio, enquanto alguém rufava lentamente num tambor e as tochas, uma após outra, brilhavam, espetadas em estacas, de cada lado do caminho até à pira. Reunira-se uma grande multidão e ouvi fragmentos de palavras enquanto passava... leva a cabeça bem direita... não é bem humana, ouvi dizer... eu estaria aos gritos... espera até as chamas a apanharem... então, vais ouvi-la cantar bem alto...
Olhei uma vez para trás e vi um homem transportando o meu cesto, um outro a roca, o fuso e o tear e todos os outros meus pertences. Até as minhas velhas botas vinham ali. Parecia que era tudo para arder. Não ficaria qualquer rasto de mim para envenenar a casa de Harrowfield. Por favor, roguei eu silenciosamente. Por favor, ponde as camisas onde eu lhes possa chegar. Por favor, não me ateis as mãos. Os guardas tinham rostos severos. Senti que não alimentavam qualquer prazer pelo dever que tinham que desempenhar, mas eram forçados a obedecer. Eram bons homens, penso; depois do fogo iriam para casa, para as suas mulheres, beijariam os seus filhos e talvez reflectissem, por uns momentos, no que tinham feito. Eram as normas do poder exercido por Richard, todos tinham de obedecer às suas ordens sem fazer perguntas.
O céu estava a mudar de cor; os primeiros tons púrpura do crepúsculo começaram a substituir o azul do fim de tarde. Chegámos à pira de freixo e à plataforma com os seus degraus bem construídos. E Richard estava lá, resplandecente numa túnica de veludo e, prata brilhante ao pescoço. Usava um anel com a forma de um falcão, com olhos cor de rubi. O tambor parou de rufar. A multidão silenciou. Vi alguns rostos familiares. Lady Anne não estava presente, nem Ben. Não consegui ver Margery. Mas Megan estava lá, o rosto redondo branco à luz das tochas, as maçãs-do-rosto sobressaindo na palidez. Tinha profundas olheiras sob os olhos. Levaram-me até à plataforma onde estava Richard. Uma pequena tocha ardia num suporte, na base da pira. Não tinha dúvidas quanto à sua posterior utilização. O meu coração batia desconsoladamente; não precisava do rufar dos tambores. O céu escureceu até ficar da cor acinzentada da alfazema; para ocidente, o pôr do Sol dava às nuvens uma cor rosa.
— Estais aqui reunidos para testemunhar uma sentença adequada e legal — anunciou Richard grandiosamente. A multidão mexeu-se. — A acção contra esta rapariga, conhecida como Jenny, foi totalmente ouvida ontem. As testemunhas foram chamadas e os depoimentos apresentados provaram ser condenatórios e irrefutáveis. Já conheceis o veredicto. A rapariga apresenta-se perante vós culpada de dar abrigo a um fora-da-lei, de espiar e praticar as artes do demónio, em aditamento à sua conduta adúltera. A pena para estas ofensas é a morte. Nisto o padre Domimc e eu concordámos plenamente. A recusa da rapariga em se defender é uma clara admissão de culpa. Bom povo, com esta morte pelo fogo, removemos a gangrena demoníaca que estava profundamente enterrada no coração de Harrowfield. Com a morte dela, a paz e a prosperidade podem voltar a esta casa e a todo o vale. Convido-vos a que testemunheis.
Houve alguns aplausos e alguém gritou:
— Despacha-te com isso, então!
Mas a multidão parecia pouco à vontade. Ouviam-se resmungos e murmúrios, como se, agora que se tinha chegado ao que toda a gente dizia que mais tarde ou mais cedo aconteceria, não houvesse assim tanta certeza. E uma voz familiar gritou:
— Vergonha! Vergonha! Jenny salvou a minha vida e a do meu bebé. Não podeis fazer isto! — Margery estava ali, algures e não parecia ter medo de falar por mim. Então, mais alguém gritou também:
— E Lorde Hugh? O que pensa ele disto?
Richard fez um pequeno movimento com a mão e de repente apareceu uma linha de homens, em frente da multidão, aguentando a pressão de todos aqueles corpos. As vozes dissidentes foram afogadas pelos gritos de:
— Queimem a feiticeira!
— Morte à espia nojenta!
— Ela que arda!
O barulho cresceu enquanto eu era arrastada pela plataforma até ao rebordo estreito em volta do mastro central. A pira fora habilmente erigida em volta daquele ponto, o topo mesmo por baixo do rebordo. Aqui e ali podia ver os pequenos toros que Richard colocara, tão cuidadosamente, com as suas próprias mãos. Via-se um brilho oleoso em cada um deles. O guarda pegou numa grossa corda e atou-me com firmeza ao mastro. Uma, duas, três em volta da cintura e das costas, onde eu não poderia chegar. Mas deixou-me as mãos livres.
Em baixo, a excitação crescia. Alguns assobiavam, outros chamavam-me nomes feios e alguém me atirou um fruto podre, que caiu, com um ruído surdo, entre os toros. As pessoas discutiam. Os guardas esforçavam-se por manter a multidão afastada. Consegui ver Margery, mesmo por trás de Megan, o rosto cheio de lágrimas. Gritava, mas eu não lhe conseguia ouvir as palavras. O tambor recomeçou a rufar e eu pensei estupidamente, agora um assobio, e um violino, e toca a dançar. Os guardas que seguravam nas minhas coisas estavam na base da pira. Um deles atirou o fuso, a roca e o pequeno tear para a pira. Ouvi o som quando os objectos chocaram contra a madeira e se estilhaçaram. O guarda com o cesto hesitou, olhando para mim. Era o mesmo homem que me tinha levado as amoras à cela, quando me julgara sem um único amigo no mundo.
— Despacha-te, homem — disse Richard, irritado.
As mãos dele, pensei, devem estar mortas por pegar naquela tocha. A ocidente, as nuvens estavam levemente cor-de-rosa. Levantou-se uma pequena brisa, arrastando as folhas pelo pátio. As pessoas começaram a cobrir-se com capas.
Por favor, põe-nas nas minhas mãos. Oh, por favor. O guarda não me podia ouvir; tentei falar com os olhos, com o coração. Ele levantou o cesto. Um pouco mais perto, não consigo chegar. Por favor, oh, por favor.
— Não é preciso isso — disse Richard rispidamente. — Atira tudo para o fogo. O que é preciso é que ardam.
Mas o homem subiu para os toros de freixo, mais alto, levantou o cesto até ao rebordo, mesmo ao lado dos meus pés e eu agarrei-o com ambas as mãos, como se fosse uma corda salva-vidas.
— Que estás a fazer, homem? — estalou a voz de Richard. — Desce daí, a não ser que também queiras arder. — O homem olhou para ele, depois para mim e os seus olhos espelhavam compaixão e repugnância.
— É a última vez que me obrigais a fazer este trabalho — resmungou ele. — Não passa de uma criança.
Levou o seu tempo a descer de novo, enquanto os dedos de Richard se torciam de impaciência. O último raio de sol desapareceu na linha do horizonte. O vento veio em pequenas rajadas, fazendo as tochas brilhar e empalidecer, brilhar e empalidecer. As folhas voavam em círculos, no chão. Ateado por aquele vento, o fogo arderia de maneira extremamente quente.
Vinde agora. Vinde agora. Onde estais?
Não conseguia ouvir nada, nada senão o vento a aumentar, soprando de modo estranho, de um lado e de outro. Apanhou-me o cesto, nas mãos. Richard descia os degraus. O vento apanhou-lhe a túnica e desordenou-lhe os cabelos, impecavelmente penteados. As tochas brilharam.
Um súbito silêncio caiu sobre a multidão. Fechei os olhos.
— Agora. Tem de ser agora. Despachai-vos.
As pessoas esperavam enquanto Richard se encaminhava com firmeza para a base da pira, onde a pequena tocha ardia no seu suporte. Permaneciam silenciosas. Então, forte, clara e inocente, à luz do crepúsculo, ouviu-se a voz de uma criança:
— Olhe, mãe! Olhe além!
Como fantasmas, como grandes espíritos altaneiros, voavam pelos céus, de asas abertas, em fila atrás do líder, os longos pescoços, as grandes asas, brancas como a crista de uma onda, batendo a um ritmo solene. Circularam em volta do pátio onde estávamos e os olhos da multidão seguiram o voo deles. Um, dois, três, quatro, cinco. Finbar fora sempre o último a aparecer.
Descei. Descei até mim.
Fizeram um outro círculo e vi Richard esticar o braço na direcção da tocha. Então, eles deslizaram até ao chão, até à plataforma perto de mim. Amontoaram-se desordenadamente, os olhos selvaticamente confusos, as patas com membrana interdigital batendo nas tábuas ásperas.
Agora, Sorcha. Agora.
Não havia tempo para perguntas. Não havia tempo para olhar para o cada vez mais escuro céu, em busca do outro. Meti a mão no cesto, peguei numa camisa e passei-a pelo pescoço arqueado da primeira grande ave. A multidão resmungava e sussurrava.
Depressa, Sorcha.
Onde estava ele, onde estava Finbar? Ainda sobre o mar? Deixado para trás, demasiado cansado para voar até tão longe? Onde estava ele? Tirei a segunda camisa e depois a seguinte.
— Que feitiçaria demoníaca é esta? — A voz de Richard era uma rosnadela e ouvi a tocha raspar no suporte quando ele a agarrou. — Que familiares chama ela em seu socorro? Vão arder todos! Todos! — E levou a tocha até à camada mais baixa, onde os paus de vidoeiro e salgueiro se retorciam no meio dos toros de freixo. Ouviu-se um ligeiro estalido e um raio de luz. A multidão arfou a uma só voz.
A quarta camisa. A quinta. E fiquei com a última nas mãos, a última, que só tinha uma manga e que estava cheia de porcaria, sangue e lágrimas.
Depressa, Finbar. Depressa.
Os cisnes arrastaram-se em conjunto de modo estranho, esticando os longos e vulneráveis pescoços para o céu. As camisas de morugem caíam-lhes, folgadamente, pelos grandes corpos brancos.
Agora, Finbar!
Os meus olhos iam de um lado para o outro, perscrutando o céu, a multidão. Não olhei para baixo, para os meus pés, onde o fogo começava a crescer, espalhando-se, consumindo um pau e depois outro, ateado pela brisa caprichosa. Senti o calor nos pés e nas pernas, a tiragem fazendo-me voar a saia do vestido. Ainda não sentia dor; ainda não. Os cisnes afastaram-se, as chamas reflectidas ainda com mais força nos seus olhos assustados. O céu estava escuro; não via aves nenhumas. Na parte de trás da multidão, as pessoas empurravam-se e exclamavam. Olhei nessa direcção. Directamente para um par de olhos da cor de sombras geladas; para um rosto que vira tantas vezes nos meus sonhos. Estava totalmente exausto, o rosto selvaticamente aterrorizado e furioso. Tinha uma recente e profunda cicatriz na face esquerda e nódoas negras em volta de um dos olhos. Avançava firmemente, afastando a multidão com os ombros, sem se ralar com quem afastava. Por trás dele, outros dois homens, um de cabelos loiros e com as cores de Harrowfield na túnica. O segundo, jovem, alto e bem-feito. Um homem com os cabelos da cor de um campo de cevada ao sol do Verão e uns olhos de um azul da cor da pervinca.
— Lorde Hugh — exclamava o povo. — Lorde Hugh regressou.
E diziam:
— Simon. Vede, é Mister Simon!
As chamas começavam a lamber a segunda camada de toros. Tentei levantar um pé, depois o outro. Começava a doer muito. Por cima de mim, o vento fustigava e virava, um vento estranho, intruso, como nunca vira. E no meio daqueles turbilhões apareceu outro cisne, voando lentamente, tão lentamente, como se apenas tivesse forças para mover as suas grandes asas. As pessoas apontaram para cima.
— Deixai-me passar! — gritava Red. — Deixai-me passar!
Mas estava preso pela vaga de gente, estendendo os pescoços para ver o cisne, ou para ver o fogo e a sua voz perdia-se no tumulto provocado pelas conversas e gritos, no meio de toda aquela excitação. O calor subia dos toros de freixo; a ave solitária derivou no sentido do solo, para onde eu estava, segurando a última camisa de morugem. Por baixo dos meus pés nus a madeira ardia.
Depressa, Finbar, depressa.
O cisne voava em círculos, como que inseguro do sítio onde pousar.
Depressa.
As pessoas começaram a mexer-se para deixar passar Red, talvez devido à maneira como ele gritava, talvez devido à pequena e aguçada faca que surgira na sua mão. Junto da pira, Richard estava imóvel, observando-me, cego para tudo, excepto para o seu momento de vitória As chamas tornaram-se mais altas, subindo firmemente. Já estavam quase a lamber um dos primeiros gravetos especiais. Um fogo quente, que queima e brilha, não deixando nada senão ossos.
— Jenny! — gritou Red, afastando dois dos homens de Richard — Jenny!
O seu rosto estava branco como a cal. E eu vi qualquer coisa a brilhar, qualquer coisa reflectindo a luz da fogueira, lá no alto, muito acima das cabeças da multidão. Numa das janelas da casa, sobranceira ao pátio, estava um arqueiro a postos, de arco em punho, o dedo pronto na corda. Não me estava a tentar alvejar, nem ao sexto cisne que continuava a voar em círculo por cima da multidão Não estava a tentar alvejar Ben, nem o homem de cabelos dourados, que seguia o seu irmão através da multidão de boca aberta e olhos esbugalhados. Tentava alvejar Hugh de Harrowfield, que surgia com a cabeça e os ombros acima das pessoas em redor, cujo cabelo brilhante, como uma bandeira de guerra. o tornava um alvo nítido e fácil. Richard dissera-me, enquanto me provocava na cela, que me queria fora do seu caminho antes da chegada de Red. Dissera que talvez precisasse de um adiamento. Uma diversão, chamara-lhe Richard. Aquilo era mais do que uma diversão.
Ninguém viu. Ninguém, a não ser eu. Senti, mais do que vi, um ligeiro movimento da mão no arco, a inclinação e a mira firme. Os meus olhos voltaram-se de novo para Red, enquanto ele lutava contra o mar cerrado de gente. Os meus pés começavam a entrar em agonia e a barra do meu vestido principiava a queimar. Então, uma rajada de vento surgiu do nada e arrebatou-me a sexta camisa de morugem, para cima, para o alto, para longe do meu alcance. Red estava encurralado por dois guardas, os corpos sólidos destes evitando que ele fizesse qualquer movimento. O arqueiro ficou estático.
Gritei:
— Red, cuidado! Atrás de ti! — A minha voz saiu-me áspera, quebrada e fraca devido a anos de silêncio. Mas ele ouviu-me, virou-se e a seta apanhou-lhe o ombro com um baque sofredor.
A enormidade do que eu fizera foi como que um golpe que me trespassou o coração. Após todo aquele tempo, após tudo aquilo por que passara, falei. Não fui capaz de me conter. Quebrara o silêncio. Havia chamas por todo o lado; a plataforma ao lado da pira estava a começar a ficar negra. Havia pequenos sons crepitantes e explosivos que vinham da camada superior de madeira. Fiquei a olhar sem expressão enquanto Red esticou o braço e partiu a haste da seta em duas, como se partisse um graveto; e arrancou a outra parte, os dentes cerrados numa careta de dor. E continuou a forçar a passagem. E agora a multidão afastava-se para o deixar passar e ele chegou rapidamente à base da pira. Richard esticou um braço para o impedir, as feições inundadas de raiva e recebeu um soco no rosto que o atirou, cambaleante, para cima da multidão. Em seguida Red saltou através das chamas e do calor para a segunda camada de toros, as botas ágeis na madeira em combustão, subiu até ao topo e cortou uma vez, duas vezes com a pequena faca, a corda que me prendia. O rosto dele estava branco como a morte. As chamas já lambiam os toros mais altos. Ele agarrou-me pela cintura, atirou-me para o ombro como um saco de vegetais e saltou de novo, desta vez de maneira esquisita, de modo que aterrámos os dois no meio da plataforma de madeira em combustão, ao lado da pira. Um instante mais tarde viu-se um brilho súbito, uma deslocação de ar e o fogo começou a ficar estranhamente verde, com uma luz muito brilhante, iluminando o pátio todo, abrindo bocas e esbugalhando olhos, fazendo brilhar a figura de um arqueiro recuando cuidadosamente da janela aberta, iluminando as feições espantadas de Richard de Northwoods, nas quais o medo se misturava com a raiva.
Senti os braços de Red em redor de mim, como um escudo contra o resto do mundo. A boca dele estava encostada ao meu cabelo e o seu coração batia-me violentamente contra o rosto. Fechei os olhos, agarrei-me à camisa dele com ambas as mãos e comecei a chorar. Perdera-os. Perdera-os a todos. Como? Como? Como pudera eu falar, depois de tanto tempo, depois de todo aquele tempo, como pudera deixar sair as palavras, antes que o feitiço fosse quebrado? No entanto, no meu coração, sabia que não podia ter ficado calada, porque naquele momento a única coisa que interessava era que Red vivesse. Salvara-o; mas perdera os meus irmãos.
CAPÍTULO CATORZE
O fogo ardia em tons de verde e dourado e ouviam-se pequenas explosões e estalidos. Cheirava a penas chamuscadas. A multidão teve um grande sobressalto, depois outro e desatou num murmúrio de sons. Sob as minhas faces, a camisa de Red estava molhada de sangue e lágrimas.
— Está tudo bem — dizia ele vezes sem fim. — Está tudo bem, Jenny, está tudo bem. — Nenhum de nós parecia capaz de se mexer. Então, de repente, senti o braço dele apertar-me os ombros com força.
— Toca-lhe com um dedo — disse ele suavemente — e eu mato-te.
— Sou irmão dela, louco — disse alguém numa língua que Red não compreendia. Eu não me podia voltar, de tal maneira ele me apertava.
— Ele não te compreende, Diarmid.
Não conseguia acreditar, mas a voz de Conor continuou, traduzindo tranquilamente.
— Nós somos irmãos dela e viemos para levar Sorcha para casa. Não faremos mal a ninguém se nos arranjares um salvo-conduto para sairmos das tuas terras. A nossa irmã já não precisa da tua protecção.
Por um instante, o braço apertado em redor de mim apertou ainda com mais força; e depois abrandou. Girei para me atirar nos braços de Conor como uma criança e em breve todos eles estavam à minha volta, Liam exclamando, Diarmid praguejando, Cormack e Padriac já armados com curtas espadas habilmente subtraídas a dois homens que jaziam gemendo nos primeiros degraus. Diarmid perscrutava a multidão, medindo a oposição, medindo a distância a percorrer. Comecei a aperceber-me de que estávamos muito expostos, na plataforma e que os rebordos, não muito longe do local em que nos encontrávamos, começavam a arder.
— Estás a pensar sangrar até à morte, ou esperas pelo fogo? — Ben apareceu do nada, o cabelo dourado, brilhante, à luz das chamas. Inclinou-se e obrigou Red a levantar-se, com um esgar. — Caso não tenhas reparado, isto queima. Vamos. Meteu um braço sob o ombro são de Red e começou a arrastar o amigo pelos degraus abaixo. Red olhou para trás, apenas uma vez. Pensei que não seria possível vê-lo mais pálido, mas estava; e as suas feições não tinham qualquer expressão. O lado esquerdo da sua camisa estava ensopado de sangue.
— Vamos, Red — disse Ben. — A tua mãe está ali e o teu irmão também. Não precisas de ficar aqui. Além disso, ninguém quer um herói morto. Quanto a vós — olhou por cima do ombro na direcção dos meus irmãos — o meu conselho é que saíeis daqui o mais rapidamente possível. Arranjai maneira de ir até à casa. Por agora, ficareis lá em segurança. Leváva-vos lá eu próprio, mas como vedes... — E desapareceram.
Cormack desceu os degraus, de espada na mão, com Conor logo a seguir comigo ao colo e os outros na retaguarda.
— Onde está Finbar? — sussurrei, mas ninguém me ouviu. O barulho era ensurdecedor. Vozes gritavam, aqui e ali o tinir de espadas, os estalidos e o grande fragor da grande fogueira, à medida que queimava a madeira de freixo, a lenha e tudo o mais a que podia chegar. As chamas eram monstruosas, como torres, as pontas raiadas de verde e laranja. A saliência onde eu estivera desaparecera e o mastro ardera por completo. À nossa volta, a multidão avançava e havia homens com punhais e espadas e com o medo nos olhos. Não havia passagem, maneira de alcançar a casa em segurança. Os meus irmãos formaram um anel apertado à minha volta, mas a multidão aproximava-se e a situação tornava-se muito feia. Entre eles, havia aqueles que tinham vindo ver uma feiticeira a arder e sentiam-se enganados. Havia aqueles que viam apenas que o inimigo estava no seio deles, armado e perigoso. E havia os homens de Richard, que tinham determinadas ordens para cumprir.
— Não acredito que tenhamos sido salvos para morrer às mãos de uma multidão bretã — rosnou Cormack, tentando, com pouco sucesso, abrir uma clareira através da multidão irada e vociferante. Um homem amaldiçoou-o e Cormack levantou a espada. Os braços de Conor apertaram-me com mais força.
— Isto não está nada bom — concordou Liam, levantando o braço e deixando-o cair, atingindo um homem, que caiu no chão. Por trás dele, outros caíram, tropeçando no primeiro. Um grupo de guardas, com as cores de Northwoods, começou a avançar para nós.
— Bom povo de Harrowfield! — Uma voz ouviu-se, forte, áspera e autoritária. — Testemunhastes uma grande maravilha esta noite. Um milagre, pode-se dizer. — Lentamente, a multidão calou-se e virou-se. Montado num cavalo malhado, de costas direitas no seu traje negro, o padre Domimc de Whitehaven olhava para o povo severamente. Seguiu-se um silêncio mortal. Da segurança dos braços de Conor, olhei para cima. Por que estava ali o padre Domimc? Por que voltara?
— Esta rapariga esteve muito perto da morte. Mas vós vistes a transformação, como estes jovens regressaram às suas formas humanas devido à fé, à esperança e ao trabalho das mãos dela. Seguramente que o demónio lhes lançou esta maldição e foi pela vontade de Deus que eles se salvaram.
Mais resmungos; cabeças a abanarem, cabeças a acenarem. Sentia-me cansada. Tão cansada. Onde estava Finbar? Onde estava?...
— A mão do Senhor pousou sobre esta jovem — continuou o padre Domimc, com uma voz que atravessava o pátio todo. — Deveis considerar-vos abençoados por terdes visto isto. E agradecidos por a ajuda ter chegado a tempo, porque por pouco não se cometeu aqui, esta noite, um erro de justiça. A rapariga não foi condenada à morte. As acusações contra ela não foram provadas; além disso, quem condenaria uma criança sem o dom da fala para apelar à sua inocência? Acreditei que seria imperativo, no interesse da justiça, que o caso dela fosse suspenso até ao regresso do marido, de modo a que este pudesse falar por ela. Transmiti esse desejo a Lorde Richard, antes de ser chamado a outros assuntos. Tenciono averiguar, em devido tempo, por que razão Lorde Richard escolheu anunciar outro veredicto à assembleia e aplicar a pena tão rapidamente. Não fora Lady Anne, que foi à minha procura hoje e não teria sabido nada desta morte pelo fogo até ser demasiado tarde. E a graça do Senhor não teria caído sobre estes jovens desafortunados.
Reparei, então, que LadyAnne estava ao lado dele, sentada na pequena égua e vestida com roupas de montar. Parecia muito cansada.
— Onde está o homem que ordenou isto? — perguntou o padre Dominic e eu vi os homens de Richard misturarem-se com a multidão e desaparecerem. Percebeu-se uma certa agitação na orla da multidão, na semi-escuridão.
— É esse? — disse uma voz, algures na multidão. — Esse tipo que está com ela ao colo. Esse é que é o fugitivo dos bosques, o bastardo irlandês que quase apanhámos naquela noite. Não me ides dizer que ele só está aqui para uma visita cordial. É esse?
Conor olhou por cima e para além daquele mar de corpos e houve um súbito silêncio.
— Eu sou irmão dela — disse ele calmamente, na língua que eles podiam compreender. — Somos todos irmãos dela. O silêncio dela afastou as trevas de nós. O esforço dela libertou-nos.
— Bom povo. — Lady Anne falou e havia uma fadiga desesperada na sua voz. — Esta noite, vimos, aqui em Harrowfield, coisas maravilhosas e terríveis. Há muitas perguntas por fazer e respostas a dar. Vedes que... os meus filhos regressaram; os meus dois filhos e o meu coração está cheio de gratidão por ver que nenhum homem será ferido, ou punido, ou exposto a outra coisa que não cortesia, esta noite. — Tentava não chorar, a voz fortemente controlada. — Estes jovens são hóspedes na minha casa, por agora. Acredito que Jenny está inocente de qualquer maldade. A mão de Deus não dá a sua bênção àqueles que têm a culpa no coração. Haverá tempo suficiente, amanhã, para explicações e conclusões. Agora, ponde de lado as vossas armas, ide para vossas casas, para as vossas camas e dai-vos por satisfeitos por não ter sido derramado sangue inocente no coração deste vale. Alegrai-vos comigo, por os meus filhos terem regressado a casa.
Ouviu-se um ligeiro viva e as pessoas começaram a dispersar com uma certa relutância. Muitos olharam na nossa direcção; mas os selvagens e desvairados rostos dos meus irmãos, com aqueles olhos ferozes, eram o suficiente para assustar qualquer um. Então, alguns homens da casa vieram para nos escoltar para dentro de casa e para a pequena sala que Lady Anne usava quando recebia hóspedes. Havia um fogão aceso e velas. Conor pousou-me cuidadosamente num banco estofado, perto do fogão. Estavam todos ali, Liam ouvindo, de lábios apertados, Lady Anne e Conor traduzindo; Padriac virando um graveto meio queimado da pira nas mãos, vezes sem conta, tocando e experimentando o resíduo que o cobria; Diarmid e Cormack a meu lado, de espadas nuas nas mãos e os olhos na porta. E na janela mais afastada, olhando para fora, estava Finbar, de costas voltadas para nós. A sua mão direita, pousada aberta na parede de pedra, era fina e transparente, como se tivesse sido esculpida no gelo. E eu pude ver o resultado daquela última camisa, a camisa com apenas uma manga. No lugar do braço esquerdo, o meu irmão tinha ainda a forte e brilhante asa de um grande cisne. Fora o último a regressar e assim, para o resto da sua vida, carregaria aquele fardo, o destino de uma peça de vestuário incompleta, feita de amor, lágrimas e sangue. Não emitiu qualquer som: não se virou para mim, para onde eu estava, rodeada pelos meus irmãos. E a sua mente estava completamente tapada.
Tentei de novo com a voz. Após tanto tempo, não era fácil fazê-la funcionar.
— Como é que... eu pensei?...
Conor aproximou-se e ajoelhou a meu lado.
— Bem, conseguiste. Parece que foi mesmo a tempo. — Tinha um sorriso torcido nos lábios, mas os olhos estavam muito sérios. — Esta dama está a dizer-nos que aqui estás em segurança; mas resta saber por quanto tempo. Por agora, precisas de descansar. Finalmente, acabou.
— Mas... mas eu falei, falei antes de as camisas... não guardei silêncio! Como é que vocês podem estar aqui e o feitiço quebrado? — Mesmo que não conseguisse acreditar, no fim de contas tinham sido salvos. Mas os feitiços das Criaturas Encantadas não são impostos e decididos até ao mais cruel pormenor, de maneira a que o menor passo em falso, o menor desvio às regras faz entrar tudo em colapso em redor da infeliz vítima? Como é que o feitiço pôde ser quebrado quando eu gritei bem alto antes de a última camisa ter passado pelo pescoço de Finbar?
— Não tiveste oportunidade de ver — disse Conor gentilmente. — Mas estas coisas acontecem por si próprias, quando chega a ocasião. Já te esqueceste do vento, daquele vento súbito que te arrancou a última camisa das mãos e a levou pelo ar? Quem pode dizer que esse vento não permitiu que a camisa passasse pelo pescoço de Finbar um instante antes de o teu grito sair? O feitiço está quebrado, Sorcha; quase todo...
Voltámo-nos ambos para olhar para Finbar. Pensei que esta história duraria muito tempo e que mudaria ao longo dos anos, à medida que fosse sendo contada e voltada a contar. Mas ele transportaria sempre consigo a evidência dessa verdade. Nunca mais voltará a ser o mesmo, não completamente. Estará sempre dividido entre o outro mundo e este, nunca pertencendo a um nem a outro. Será a sua maldição, mas também a sua bênção.
— Jenny, como é que tu estás? Mas talvez te deva chamar pelo teu verdadeiro nome, Sorcha, não é? — Lady Anne aproximara-se. — Mal posso acreditar no que vi; e, no entanto, é evidente. O padre Domimc tem razão; é um milagre e nós fomos abençoados ao testemunhá-lo. E tu recuperaste a voz, pela vontade de Deus. Minha querida, hoje viraste esta casa de pernas para o ar.
— Peço... peço desculpa — Olhei para ela. Parecia diferente; por trás das suas palavras calmas estava uma excitação mal disfarçada e os seus olhos brilhavam de alegria.
— Eu é que te devo pedir desculpa, por te ter julgado tão mal. Nunca pensei ver semelhante coisa. Mais parecia um truque de ilusionismo; a mudança brusca, à medida que as penas se transformavam em pele e os longos pescoços e olhos selvagens daquelas aves se transformavam em seis homens. Devo dizer que as pessoas da minha casa ficaram assustadas e confusas com isto e levarão tempo a recuperar. A súbita aparição destes teus irmãos no meio delas, como um bando terrível de irlandeses, vestidos de farrapos, assustou-os muito. Mas podemos remediar alguma coisa. Tenho um homem à procura de vestuário, comida e bebida. Eu própria estou meio tonta; para o meu povo, será uma noite para recordar.
— Tens sangue no vestido — disse Cormack franzindo a testa. — Estás ferida, Sorcha?
Abanei a cabeça, cansada, olhando para baixo, para o vestido azul. Além da marca do mar, havia queimaduras na bainha e no peito havia manchas escuras. Mas o sangue não era meu.
— Pensei que ele devia olhar por ti — disse Conor rudemente, aproximando-se de mim. — Ele não foi escolhido para ser o teu protector?
Olhei para ele.
— Que sabes tu disso?
— Vi-o olhar para ti enquanto tu corrias pela areia. Vi-o arrancar-te do fogo. Sou tão bom a adivinhar como qualquer outro. Talvez melhor ainda disse ele. Por que haveria um homem de te defender, a não ser que estivesse sob um feitiço das Criaturas Encantadas? Aposto que quando a Dama da Floresta te colocou neste caminho, fez o mesmo com ele, colocando-o logo atrás de ti.
— E fez um triste trabalho — disse Diarmid. — Quase a perdeu. Quem pensa ele que é, afinal de contas?
— O marido dela — grunhiu Liam.
Os outros viraram-se para ele, de olhos abertos.
— O quê?
— Foi o que o padre disse. E o Conor também. Esperar que o marido dela voltasse para falar por ela. É ele, aposto.
Vários pares de olhos rodearam-me, reprovadores.
— Sorcha?
— É verdade? Casaste-te com um bretão?
— Disparate. Ela não passa de uma criança. — Era Diarmid, de expressão ultrajada.
Apesar de ter recuperado a voz, sentia dificuldade em falar. Em vez disso, agarrei no anel que me pendia do pescoço, rodeei os joelhos com o outro braço e virei o rosto para o outro lado. À janela, Finbar continuava de costas voltadas para a sala, completamente imóvel.
Ouviu-se uma ligeira tosse. Penso que todos se tinham esquecido que Lady Anne estava presente. Ela não compreendera as palavras deles, mas reconheceu a minha aflição.
— A vossa irmã precisa de descansar, de beber um pouco de cerveja e de um pouco de tranquilidade. Estais a afligi-la. — Passou-me um braço pelos ombros e segurou na taça, de modo a que eu pudesse beber. — Assim, minha querida. Devagar. — Em seguida olhou de novo para Conor. — Jen... Sorcha tem passado tempos difíceis: os estranhos acontecimentos desta noite afectaram-nos a todos. Vou levar a vossa irmã para que ela tome banho e mude de roupa. E vou fazer com que todos vós possais receber, também, aquilo de que tendes necessidade; roupa quente, comida e bebida. Quando regressar, haverá tempo para explicações, perguntas para serem respondidas. O padre Domimc quererá falar convosco; e o meu filho também.
— Sorcha não vai a lado nenhum sozinha — disse Conor rudemente. — Pensais que, depois do que testemunhámos aqui esta noite, a vamos perder de vista por um instante? Trazei o necessário para aqui.
Em seguida, falou rapidamente em voz baixa, explicando aos outros.
— Diz-lhe — disse Liam severamente — que não há tempo a perder. Cada momento é precioso; qualquer demora prolonga a nossa estadia nestas costas amaldiçoadas. Quero Sorcha fora daqui, metida num barco a caminho de casa amanhã de manhã cedo e nós com ela.
Conor traduziu palavra por palavra. As sobrancelhas de Lady Anne levantaram-se.
— Sorcha — apelou ela para mim — será possível explicar... podes...
Consegui falar com alguma dificuldade.
— Está tudo bem comigo. Lady Anne só quer o meu bem. E... e eu gostaria muito de me lavar e vestir qualquer coisa quente. Por favor.
— Não é com a dama que eu estou preocupado — disse Conor. — Que garantias temos nós de que ficarás segura assim que saíres por aquela porta? Como podes tu confiar nesta gente depois do que te fizeram esta noite?
— Conor. — Levantei-me, trémula e segurando no braço de Lady Anne. — Estou cansada e suja e prometo que volto dentro de pouco tempo. Vivi aqui quase um ano; muito tempo. Foi a coisa mais parecida com uma casa desde que saí de Sevenwaters e tenho despedidas a fazer. Sei que tendes dificuldade em acreditar, mas esta gente tem sido... amável para comigo, à maneira deles. E como tu próprio dizes, tenho tido um protector estranho, que continua aqui. Não me acontecerá nada.
— Então, Liam vai contigo e montará guarda.
— Não. Esta gente conhece-me. Não deveis sair desta sala. Eles ainda estão zangados e confusos. Por favor, Conor
— Depois do que Sorcha fez por nós, não estamos em posição de dizer seja o que for — acrescentou Padriac.
Assim, fui com Lady Anne, ao longo de um átrio de olhares curiosos, até um quarto quadrado, onde Megan já estava ocupada com água quente, essência de rosmaninho e toalhas secas. Desta vez estava um pouco tímida, como se os acontecimentos da noite me tivessem posto a uma distância pouco confortável para ela. Levou o seu tempo a lavar-me o cabelo e mais tarde, quando eu tentava desemaranhá-lo, segurou no vestido azul, consternada.
— Oh, meu Deus! Parece-me que este já não tem conserto. Nunca mais podereis voltar a vesti-lo.
Dobrou-o, como se fosse desfazer-se dele, atirando-o para o lixo.
— Não! — Sussurrei. — Não... — Megan virou a cabeça, agitando os caracóis castanhos. — Esse vestido é meu — consegui dizer.
Um sorriso doce espalhou-se-lhe pelo rosto.
— Já podeis falar — disse ela maravilhada. — A vossa voz é mesmo como eu pensava que seria. Mas este vestido precisa, pelo menos, de uma boa limpeza. Deixai-o comigo; farei o que puder e depois entrego-vo-lo.
— Não — insisti eu. — Não há tempo.
— Que queres dizer? — perguntou Lady Anne, que estivera a separar roupa branca em cima de uma mesa.
— Os meus irmãos — disse eu retraindo-me, quando o pente emperrou noutro nó do cabelo.
— Deixai, que eu faço isso. — Megan tirou-me o pente das mãos e começou, com habilidade, a separar-me os cabelos emaranhados. Pelo menos, o óleo conseguira remover as pequenas criaturas.
— Eles vão querer partir às primeiras horas do dia — disse eu. — Tenho de estar pronta. Vou precisar das minhas botas; e vou levar este vestido, pelo menos, quando partir.
Não tinha muitas coisas. Não me importava com o que deixava para trás, excepto o vestido azul com marcas de água salgada, fogo e sangue. Três coisas eram-me preciosas: aquele vestido, o amuleto de Finbar e a minha aliança de casamento.
O rosto de Megan era uma máscara de confusão.
— Mas... mas e Lorde Hugh? — perguntou ela, sem pensar em Lady Anne. — Aqueles jovens, os vossos irmãos, compreendo que queiram partir e já; basta ouvir o que as pessoas dizem. Quanto mais longe estiverem daqui, melhor. Mas vós? Não podeis ir assim. E ele? — E então corou e baixou o olhar. — Perdoai-me. Esqueci-me onde estava.
— Na verdade — Não se sabia, pela voz de Lady Anne, o que pensava ela do assunto. — Jenny, preciso de te deixar por uns momentos. O meu filho... o meu filho mais novo... regressou; ainda não falei com ele a sós. Uns momentos apenas. Volto daqui a bocadinho. Por favor, espera aqui por mim.
— Vistes? — perguntou Megan quando a porta se fechou atrás da sua senhora. — Simon, o irmão de Lorde Hugh... ele está cá, bem vivo, quando todos juravam que estava morto, morto pelos... bem, disseram isso e ele voltou. Perdeu a memória, aparentemente; não se lembra de nada desde que saiu daqui com os homens de Richard. Lorde Hugh encontrou-o num mosteiro, longe, numa ilha qualquer, parece. Lady Anne morria por falar com Simon, mas não podia, não antes de cuidar de vós. E com os ferimentos de Lorde Hugh e tudo...
— Megan... — toquei-lhe no braço; tinha uma certa dificuldade em recordar-me das palavras. — Como é que ele... ele está bem? Conseguiram estancar o sangue da ferida, conseguiram...
— Continua inteirinho — disse ela, olhando para mim de lado. — Mas voltaram a sair, ele e Ben e mais alguns homens. Lorde Hugh levava o braço entalado e ligado. Foram à procura do tio dele. Ficou apenas o tempo suficiente para se tratar, foi tudo. Mister Simon também queria ir com ele, estava ansioso, mas Lorde Hugh não o deixou ir. Disse-lhe para ficar aqui e tomar conta das coisas. Dessa maneira a mãe dele poderia vê-lo, antes que desaparecesse de novo. Tendes a certeza que quereis ir para casa?
A pergunta apanhou-me desprevenida.
— É melhor ir — disse eu. — Eu não sou um de vós e nunca serei. — E se a ferida começa a sangrar outra vez? E se ele encontra Richard e... Por que é que ninguém o impediu? — Só vos trouxe desgraças. Agora, acabou. É tempo de voltar para a floresta.
— Perguntastes a Lorde Hugh o que pensa ele disso? — O olhar de Megan era penetrante, enquanto me apertava os laços do meu vestido lavado.
E se ele está demasiado fraco para cavalgar, se os inimigos estão à espera dele? E se ele não regressar antes de eu me ir embora?
— Perguntaste-lhe? — Amaciou-me o cabelo e atou-o com uma fita que condizia com o vestido, um cor-de-rosa suave, de Outono. Um tom inapropriado.
— Isto é o que Lorde Hugh desejaria — disse eu. — Eu não pertenço aqui e os meus irmãos precisam de mim. E ele há de esquecer. Assim que o feitiço lhe for levantado; talvez até já tenha esquecido. Talvez até a partir do momento em que retirou o braço do meu ombro e voltou a por aquela máscara de novo.
Megan ergueu as sobrancelhas para mim, enquanto arrumava os frascos, as taças e os tecidos.
— Talvez devêsseis perguntar a Lorde Hugh quando ele regressar — disse ela. — Não gostaria de estar na pele de Richard de Northwoods esta noite, por nada deste mundo.
Quando regressámos à sala, as coisas tinham mudado. O melhor vinho e o melhor pão de trigo tinham sido providenciados, com carnes assadas frias e a própria Lady Anne estava a cortar fatias de queijo. Olhei rapidamente em volta da sala, mas não havia sinal de Red, ou de Ben. Os meus irmãos tinham um aspecto mais respeitável, se bem que os seus cabelos, longos e emaranhados, e os olhos ferozes, não ligassem muito bem com as roupas simples com que estavam vestidos. O padre Domimc tinha-os juntado à sua roda, ao pé da janela e falava com eles calmamente. Finbar estava na cauda do grupo, silencioso. Com a tradução de Conor e com alguns gestos, os outros pareciam desenvencilhar-se bastante bem. Vi facas nos cintos dos meus irmãos. Fora arriscado, pensei, permitir-lhes que usassem armas. De quem teria sido a ideia? Talvez ninguém tivesse ousado recusar.
Encostado ao fogão estava outro homem; o homem alto de cabelos dourados que não podia ser Simon, mas que, incrivelmente, devia ser, porque a seus pés Alys tremia de alegria, abanando a cauda de tal maneira que parecia que as duas metades do seu corpo eram independentes uma da outra. Um cão não comete erros, não quando esperou tanto tempo pelo regresso do dono.
Como se lê o rosto de uma pessoa quando o seu passado lhe foi apagado? Simon estava mais velho; nos três anos que se tinham passado, desde que o vira pela última vez, passara de rapaz a homem. Tinha o mesmo nariz direito e a mesma maxila do irmão, mas a boca era mais generosa, os olhos menos circunspectos. Não tinha cicatrizes no pescoço, nas orelhas, ou no braço musculado que saía da manga da camisa, enrolada até ao cotovelo. No entanto, como podia ser ele? Não se lembrava de nada? Olhei rapidamente na direcção dos meus irmãos. Atentos às palavras do padre, não pareciam reconhecê-lo. Melhor assim. Os olhos brilhantes de Simon eram tão inocentes e alegres como os de uma criança; sem qualquer artifício.
— Simon — disse Lady Anne — esta é Sorcha, de quem te falei. Sorcha é... é...
— A mulher de Red — disse Simon, olhando para além da mãe, directamente para mim. Vi-lhe o rosto a mudar. Também usava uma máscara e no momento em que a deixou cair soube que, fosse o que fosse que ele tivesse esquecido, não se esquecera de mim.
— Sorcha. Esse nome fica-te bem — disse ele calmamente. — Nunca pensei que o meu irmão casasse com uma mulher de Erin.
— Eu não... ele não... — O meu coração batia descompassadamente. Ele conhecia-me, tinha a certeza. E se se lembrava de mim, lembrava-se dos meus irmãos e... mas então, como podia ele estar ali, a sorrir, com eles tão perto? Onde estava o rapaz frenético, defeituoso, que eu tentara fazer regressar a uma certa sanidade? O rapaz sem esperança, que se agarrou às minhas histórias em busca de sobrevivência, no meio de pesadelos de dor e vergonha? Por que não tinha este homem quaisquer cicatrizes?
— Fizeste uma coisa maravilhosa, esta noite — continuou Simon. — É quase incompreensível para o nosso povo que tal transformação tenha sido possível. Por agora, ponderam na maravilha que foi; mas amanhã, alguns hão de achá-la um truque feito com a luz e outros hão de guardá-la nos recônditos da memória, trazendo-a de volta apenas para a contar aos netos. E alguns, receio, começarão a pensar, de novo, em feitiçaria.
— Não precisas de recear pelo teu irmão — disse eu com alguma dificuldade. — Não vou ficar aqui para ser um fardo para ele. Nós... nós temos um acordo...
— Interessante — disse ele suavemente. — E que acordo é esse?
Fui salva de qualquer réplica pelo padre Dominic, que se levantou e veio saudar-me. Lady Anne, radiante de felicidade devido ao regresso dos filhos, mal ouvira as nossas palavras.
— Jovem — disse o padre — os teus irmãos contaram-me alguma coisa da vossa estranha história. Vem, senta-te e bebe um pouco de vinho. Estás muito pálida; ainda não recuperaste da tua provação.
Sentei-me; e logo os meus irmãos me rodearam, de maneira que o círculo protector ficou de novo formado. Diarmid vigiava Simon e a expressão do rosto dele dizia que o único bretão bom é o bretão morto.
— Richard de Northwoods — disse o padre Domimc. — O homem agiu muito mal, hoje... bem, ontem, já que já passa da meia-noite. Fui muito claro quando lhe disse que seria... imprudente julgar o caso desta jovem sem ouvir todos os depoimentos. E quando falámos em privado ele concordou. Infelizmente, fui chamado antes de ter tempo de explicar o que queríamos aos membros da assembleia. Porque Lorde Richard, ao anunciar o veredicto de culpada em meu nome, assim como no dele, não só mentiu, como abusou, obviamente, da autoridade de que estava investido. Ao aplicar a pena de imediato, agiu de modo sinistro. Deve ser chamado a responder por isso, pelo menos; e talvez por outras coisas.
— Com toda aquela excitação, parece que se escapou — disse Simon, que parecia o irmão a falar. — Mas não vai longe. Eu também tenho um assunto a discutir com o meu tio. Se bem que muitas coisas do meu passado pareçam ter desaparecido, recordo-me de algumas. Tem que responder a muitas perguntas.
— O meu filho mais velho saiu esta noite, com os seus homens, em busca do meu irmão — disse Lady Anne. — Isto tem sido muito desagradável para mim, como deveis imaginar. Sabia, quando vos fui buscar, que podíamos chegar a este ponto. Mas não posso esperar que o meu próprio povo aja com integridade e coragem se não lhe der o exemplo.
— Bem falado — disse o padre Domimc e ao olhar para ela mostrava compaixão. — Darei um interesse especial às respostas de Richard. Dizei a Lorde Hugh que me mandem chamar, quando encontrar o tio. Fiquei chocado por um homem, em semelhante posição de autoridade, agir assim; tais abusos de poder merecem uma rápida e firme resposta.
— Na verdade — disse Conor. — Também nós ouvimos histórias e continuamos a ouvir. Se esse homem é responsável pelas acusações contra a minha irmã e pelo tratamento cruel a que ela foi submetida, fez inimigos mortais, hoje. Para ser franco, o futuro dele parece-me bem limitado e desagradável.
— Os processos legais devem ser seguidos — disse o padre Domimc com moderação, olhando em volta do círculo de guerreiros de rostos severos e lábios cerrados. — Entretanto, deveis alegrar-vos pela vossa transformação e pela generosidade da vossa irmã. — Virou-se para mim, sorrindo. — Minha querida, a tua história é de uma grande coragem. Se não estivesses já casada, as tuas virtudes de paciência e fé seriam bem-vindas à nossa comunidade de santas irmãs. Seria um grande exemplo, uma luz no meio das luzes.
Não encontrei nada para dizer. Bebi um gole de vinho e tentei ignorar o modo como Simon olhava para mim.
— Os teus irmãos estão zangados — continuou o padre. — Querem vingança pelo que te aconteceu. Pelo que quase te ia acontecendo. Mas o caminho não é esse. Melhor será que partam rapidamente. Não deve haver mais sangue derramado, nem mais ódio neste lugar.
Acenei com a cabeça. Era cada vez mais claro que a cada momento que passava só haveria um caminho para mim, uma escolha.
— Pareces triste. Fizeste uma coisa maravilhosa, minha filha. Alegra-te, porque estás entre os abençoados do Senhor. E descansa. O teu descanso é bem-merecido. — Levantou-se. — Também eu me sinto um pouco cansado. Lady Anne, vou aproveitar a vossa hospitalidade por esta noite, se me é permitido. Ai de mim, já vou um pouco avançado na idade e um pouco pesado demais para cavalgar tanto e tão depressa, sem sofrer as consequências. Devemos todos descansar e reflectir nas maravilhas que o Senhor nos concedeu. Maravilhas, sim. Amanhã falarei ao povo de Harrowfield sobre algo mais desta história de sofrimento e redenção. Temos muito a aprender com ela.
Foi Simon que escoltou o bom padre até aos seus aposentos, com Alys ladrando-lhe nos calcanhares. Fechei os olhos por um momento, enquanto os meus irmãos se moviam à minha volta, falando com vozes baixas, intencionais, planeando, preparando. Não descansariam durante a noite; não com tanto pela frente. Falaram de cavalos, armas e barcos. E falaram do meu pai e de Lady Oonagh. Falaram de vingança. Parecia tudo tão irreal, como se fosse um outro mundo. Talvez, se eu ficasse ali sentada, muito quieta, sem quase respirar, me esquecessem; e então não teria de lhes dizer adeus.
— A nossa irmã — disse Conor. — Ela tem muitas coisas que tenham de ser empacotadas?
— Eu trato disso. — A resposta de Lady Anne foi muito calma. — Ela tem pouca coisa. As minhas servas empacotam-lhe as coisas e trazem-nas para aqui. Sorcha está muito cansada. — Havia uma nota de desaprovação na voz dela.
— Mesmo assim — disse Conor — temos de partir de madrugada, para bem desta casa e da nossa segurança. O vosso bom padre interveio mesmo a tempo. Como o vosso filho disse, pouco faltou para que a disposição do vosso povo se azedasse de novo e pusesse as nossas vidas em perigo. Uma vez longe, podeis, com a ajuda dos vossos filhos, restabelecer a ordem. Foram uns tempos bem estranhos, estes, para todos nós.
Houve uma pequena pausa.
— Sabeis — disse Lady Anne timidamente — que a vossa irmã casou recentemente com o meu filho?
Conor traduziu aquelas palavras aos outros e houve respostas iradas. Felizmente, Lady Anne não compreendia a língua dos meus irmãos.
— Portanto, é verdade — rugiu Diarmid. Padriac parecia incrédulo.
— Por que falar nisso agora? Não quer dizer...
— Casamento? — cuspiu Cormack. — Que casamento é esse entre uma rapariga indefesa e um brutamontes de um bretão?
— É provável — disse Liam friamente — que esse casamento não tenha sido consumado.
Falavam como se eu não estivesse presente, como se se tratasse da estratégia de uma campanha. Senti as faces enrubescerem de vergonha, mas ao mesmo tempo sentia-me zangada. Deviam deixar Red fora daquilo. Nada daquilo era culpa dele, nada. Mas ninguém me pedia a opinião.
— A nossa irmã é muito nova — continuou Liam — e esse tipo tem andado por fora à procura de um irmão perdido. Além disso, não posso acreditar que Sorcha tenha consentido em tal coisa de livre vontade. É uma ligação que pode ser rapidamente desfeita, creio eu.
Conor traduziu para Lady Anne.
— Não posso falar por Hugh — disse ela rispidamente. — Terão de lhe perguntar a ele.
— E perguntamos — disse Conor com o rosto severo.
Após uns momentos, Lady Anne, abafando um bocejo, desculpou-se e ficámos sós, excepto os dois homens do lado de fora, de guarda à porta. Deixei que Padriac me servisse mais vinho e aceitei um pedaço de pão, apesar de não me apetecer. A sala parecia-me estranha, como se flutuasse em redor de mim, como num sonho. Sabia que, se não comesse, nem bebesse, não poderia partir a cavalo de madrugada. Finbar estava sentado no banco ao lado da janela, a olhar para fora, eu levei a minha pequena refeição comigo e sentei-me ao pé dele. Lá fora, o vento caíra por completo. Podiam ver-se, na escuridão, as brasas da fogueira, ardendo ainda no pátio. Se voltassem esta noite, poderia vê-los dali.
— Sei o que sentes, meu querido. Como se o teu coração estivesse dividido em dois. Sinto a tua dor.
Respirei profundamente.
De novo.
— Finbar? Eu sei como te sentes. Como se nunca mais fosses um só
Meti a mão no decote do vestido, onde usava os dois fios em volta do pescoço. Um sustinha a minha aliança; o outro, o amuleto que um dia fora da minha mãe. Deixei o primeiro e tirei o outro.
— Isto é teu. Fica com ele. Fica com ele, foi a ti que ela o deu.
Passei-lhe o fio pelo pescoço e a pequena pedra gravada, com os pequenos freixos gravados, ficou-lhe no peito. Estava extremamente magro.
— Mostra-me o outro. O outro talismã que usas.
Lentamente, tirei o anel gravado e pus-lho na palma da mão, para que o meu irmão o visse.
— Foi ele que to fez? Aquele de cabelos dourados, de olhos devoradores?
— Não foi ele. Foi outro.
As imagens vieram-me ao cérebro cheias de força; Red com o braço sobre os meus ombros, como um escudo; Red apanhando uma maçã; Red pontapeando a espada na mão de um homem e apanhando-a; Red de pés descalços na areia, com o mar em volta dos tornozelos.
— Arriscaste-te muito, ao dar o teu amor a um homem desses.
Olhei para ele.
— Amor?
— Não sabias, até agora, que tinhas de dizer adeus?
E então ele deixou que lhe penetrasse na mente. Imagens e não palavras. Vi uma margem com canaviais, um lugar de abrigo e serenidade. Vi uma minúscula praia branca e uma extensão de água tranquila, um lago. Nele nadava um belo cisne fêmea, o pescoço orgulhosamente encurvado, os olhos claros e brilhantes. A seu lado dois patinhos, ainda com poucas penas, mergulhando e esparrinhando na água.
— Eu também tive que dizer adeus.
A imagem desvaneceu-se. O rosto do meu irmão espelhava apenas uma tristeza distante, remota.
— Eu tive algum tempo. Mais do que tu tiveste. Tenho medo do frio, dos lobos e da solidão. Não te consigo explicar o medo que sinto por eles.
Também ele fizera uma escolha terrível. Os cisnes acasalam para a vida inteira. Estendi o braço e toquei-lhe na mão. No fim, não havia escolha. Os sete éramos um; e cada um uma parte dos sete. Devemos estar sempre presentes, uns pelos outros.
O tempo prega partidas terríveis. Aquela noite pareceu-me eterna, enquanto olhava pela janela esperando o regresso deles, com Finbar silencioso a meu lado. Uma vez, há muito tempo, ele acalmara-me e confortara-me ao longo de uma noite interminável; e exaurira todas as suas forças ao fazê-lo. Agora, fazia-me apenas companhia. A minha mente mostrou-me Red sangrando, ferido, exausto, picado pelo ódio; procurando o tio pelos campos, passando correntes a vau, para cima e para baixo ao longo das colinas de Harrowfield. Mais do que tudo, ansiava por vê-lo chegar são e salvo, ao pátio. E assim ali fiquei à espera, vendo as últimas brasas da fogueira desvanecerem-se e morrerem. E pensei se Finbar estaria certo? Será isto amor, isto que me torce e parte o coração? O amor não nos dará outra coisa senão o poder de nos magoarmos? Transformará o menor gesto numa sensação ao mesmo tempo de ânsia e de terror? Seja o que for, parece uma ferida mortal. E, de repente, pareceu-me que a noite se escoava depressa, tão depressa. Porque em breve chegaria a madrugada e partiríamos de Harrowfield por caminhos secretos, para depois chegarmos a casa através da água. Em breve chegaria a hora de dizer adeus. Não sabia dizer a mim mesma qual era o sentimento mais forte, se o medo de que ele não regressasse a tempo, se o pavor de que não regressasse de todo.
Quando, por fim, chegaram, foi com pouca cerimónia. Não havia tochas a arder nem tambores a rufar. Apenas cinco homens a cavalo, em fila. O primeiro era Ben, com um capuz negro que mal lhe cobria o esvoaçante cabelo loiro. E depois outro, vestido também de negro, para passar despercebido na noite. Este homem trazia um cavalo à rédea, no qual cavalgava um prisioneiro de modo esquisito, de mãos atadas atrás das costas. No entanto, a atitude deste era arrogante, os ombros direitos, em sinal de desafio. O seu rosto tinha várias nódoas negras e corria-lhe sangue de um golpe por cima das sobrancelhas. Tinham encontrado Lorde Richard.
— Os dias daquele homem estão contados — disse Cormack, enquanto os meus irmãos se reuniam atrás de mim. — Vai ser responsabilizado seis vezes.
— Ou mais, diria eu — disse Liam, vendo os cavaleiros aproximarem-se. Havia lanternas acesas à entrada e a sua luz incidiu no rosto do quarto homem que escoltava o prisioneiro. Esvaziei os pulmões de uma só vez. Porque lá estava ele, o último, a mão direita segurando as rédeas e o braço esquerdo cruzado sobre o peito. O seu rosto estava tão pálido como o pano que lhe envolvia o braço e o ombro e a boca cerrada, numa linha estreita. Vinha sentado muito direito na sela. Ao passarem sob a janela, olhou para cima, desviando o olhar logo de seguida. E então ficaram fora da nossa vista. Senti-me mal, como se fosse desfazer-me em lágrimas a qualquer momento; no entanto, estava seca, como se nunca mais conseguisse chorar de novo. Confusa, assustada e... e por que é que o meu coração batia com tanta força, como se tivesse acabado de fazer uma corrida? Sabia o que tinha de fazer e dizer. Tinha de ser e depois partir. Mais nada. Não seria muito difícil.
A porta abriu-se e Ben entrou, de rompante, encaminhando-se para mim sem qualquer cerimónia. Ouviu-se um som metálico e de súbito uma série de armas apontou na sua direcção.
— Tudo bem, tudo bem — disse ele levantando a mão numa submissão cómica. — Eu não me demoro.
— Assim não vamos longe — disse eu, zangada. — É apenas um amigo.
Cormack ficou carrancudo, mas Liam fez um sinal com a mão e todos eles recuaram ligeiramente.
— Jenny — disse Ben, olhando para mim de perto. — Estás bem?
Acenei com a cabeça. Por que tinha eu tanta dificuldade em falar? Ele tinha uma ligadura em volta do punho e a maxila tinha um golpe.
— Que...?
Fez uma careta retorcida.
— Com essa companhia toda à tua volta, talvez não seja aconselhável falarmos muito. Digamos que ainda bem que eu fui à procura dele. Consegui ser útil numa situação crítica. Não que ele me tenha agradecido, claro, Quase me matou por te deixar aqui sozinha, tal foi a gratidão dele. Tens a certeza que estás bem?
— Pensei... pensei que tu...
— Eu, duvidar de ti? Nem por um instante. Bem, talvez por um instante. Depois, usei a cabeça. A maneira como tu e Red olham um para o outro não deixa espaço para mais nenhum. Tinha de haver outra explicação. Mas Richard afastou-me, ninguém se podia aproximar de ti, estavas rodeada de homens de Northwoods. Por fim, fui atrás de Red.
— Diz-nos — disse Conor — o que é que vai acontecer a esse homem, Richard de Northwoods?
Ben mediu-o de alto a baixo.
— O meu irmão Conor — disse eu. — Fala fluentemente a vossa língua.
— Estou a ver. Lorde Richard está sob custódia. Vivo e mais ou menos bem de saúde. Tive alguma dificuldade em convencer o teu marido de que ele deve ser julgado legalmente. A alternativa era tentadora, quando finalmente apanhámos o tio dele. Mas há perguntas a serem feitas. Red disse-me que Simon falou muito, durante a longa viagem do mosteiro onde foi encontrado, até aqui. Ele não se esqueceu de tudo e a cada dia que passa recorda cada vez mais. Parece que Richard estava metido em muita coisa ao mesmo tempo. No fim, Red acabou por reconhecer que temos de esperar e ouvir as respostas dele. Mas nunca o tinha visto tão zangado, nem mesmo no dia em que John morreu; nunca o tinha visto perder o sentido da justiça, desta maneira.
— A zanga passa-lhe — disse eu. — Quando eu me for embora, ele restabelecerá a ordem aqui; saberá as respostas e julgará sem medo de errar.
— Embora? — perguntou Ben. — Que queres dizer com isso, embora?
— Pedimos salvo-conduto para a costa; partimos de madrugada — disse Conor. — Certamente não queres que fiquemos cá, quando a nossa presença ameaça destabilizar a vossa casa. Somos inimigos viscerais; a admiração do teu povo pela nossa súbita aparição transformar-se-á, em breve, em ressentimento e medo. Sei que também acreditas nisso e que é suposto arranjarem-nos uma escolta.
Ben olhou em volta do círculo de rostos zangados e depois para mim.
— Bem, sim — disse ele. — É verdade. Mas...
— Ele não pensa — rosnou Diarmid, que seguira suficientemente bem a conversa — que vamos deixar para trás a nossa irmã?
A sala pareceu ficar, repentinamente, mais fria, quando Conor traduziu estas palavras.
— Eu... bem, pode parecer demasiado óbvio — disse Ben — mas, no fim de contas, ele é marido dela.
— Marido? — A voz de Conor era cortante como um punhal. — Que espécie de marido é esse que não o vimos quando Sorcha esteve quase a morrer queimada? Tem medo de se mostrar, depois de não ter protegido a nossa irmã como devia ser? Como é que um homem assim pode reclamar o título de marido?
Ben não se intimidava com facilidade.
— Ele tem as suas razões — disse ele tranquilamente. — Quando encontrámos a tua irmã, ela estava doente, a morrer à fome e aterrorizada. Lorde Hugh salvou-lhe a vida. Jenny não foi coagida a vir para Harrowfield.
— Jenny?
— Quando encontrámos a tua irmã, ela não falava. Não nos podia dizer o nome. Chamámos-lhe assim.
— E também lhe destes o título de Harrowfield, parece. Bem, não ficará com nenhum deles — disse Conor. — A nossa escolta está pronta? A madrugada aproxima-se.
— Estará tudo pronto — disse Ben. — Temos um barco atracado e um homem para fazer a travessia. A cavalo, demora meia manhã a chegar lá; talvez mais um pouco, para vós. Simon está a tratar disso e é ele que vos vai escoltar.
— Não, eu escolto-os — interrompeu uma voz.
Viraram-se todos para o homem que aparecera à porta. Mantinha-se direito com alguma dificuldade, o rosto pálido de extrema exaustão. Havia sangue fresco na ligadura, perto do ombro.
— Não sejas louco — disse Ben rispidamente. Aproximou-se de Red para lhe segurar no braço, mas foi afastado com alguma violência. Atrás de mim, os meus irmãos movimentaram-se. Cormack empunhou um punhal. Liam retesou os braços. Diarmid arvorou um olhar ameaçador.
— Com o devido respeito, meu senhor — disse Ben, aparentemente ciente da delicadeza da situação. — Devíeis deixar o vosso irmão encarregar-se disto. Eu também vou, se achais que não podeis confiar nele. Como podeis ir a cavalo daqui até à costa e voltar, se mal dormis há mais de três dias?
— Eu sou marido dela. Eu levo-os.
Não consegui olhar para ele. A voz era suficientemente desagradável; distante, formal. Gelou-me o coração.
— Marido — disse Conor cuidadosamente. — Sim, já ouvimos dizer isso. Tendes sido um grande marido, para além dos vossos actos heróicos.
Red ficou calado.
— Estáveis ao pé dela — continuou Conor — quando ela estava cheia de fome, suja e gelada? Tomastes conta dela quando ela compareceu perante os seus acusadores, quando ouviu todas aquelas porcarias e mentiras? Estáveis ao pé dela quando ela chorou na escuridão, enquanto esperava e via o vosso tio construir aquela pira funerária? Estáveis? Que espécie de marido fostes, então?
Seguiu-se uma curta pausa.
— Acabastes? — perguntou Red calmamente.
— Pergunta-lhe — disse de súbito Liam na nossa língua — pergunta-lhe que espécie de casamento é o deles; se pôs as mãos imundas e bárbaras na nossa irmã. Pergunta-lhe!
Mas Conor não era o que era por acaso. Não se equivocara acerca do seu oponente.
— Dizei-me apenas se a minha irmã é livre de partir. Tencionais mantê-la presa a alguma promessa, a alguma obrigação para convosco?
— Guardais uma criatura selvagem qualquer depois de estar curada e pronta para voar? — perguntou Red. — Jenny é que escolhe. Sabe que é livre de partir. Sabe que só precisa de mo dizer, quando chegar a ocasião.
Conor traduziu para os outros, calmamente.
— E o nosso salvo-conduto? — perguntou Liam, enquanto Conor traduzia. — Queremos partir de madrugada, ou antes. Resta pouco tempo.
A resposta de Red foi ainda mais suave. Eu já ouvira aquele tom antes.
— Primeiro, quero falar com a minha mulher a sós. Depois, podemos partir, com tudo o que pedistes. Não demorará muito.
Conor traduziu.
— Isso está fora de questão! — disse rispidamente Diarmid.
— Sozinhos? Não me parece — disse Liam severamente.
— Quem pensa este homem que é? — perguntou Cormack. — Não tem quaisquer direitos sobre Sorcha e sabe isso muito bem. Diz-lhe que traga os cavalos para nos podermos ir embora. Chega de negociações.
— Não podemos permitir isso — disse Conor gravemente. — Compreendei que, depois de tudo o que aconteceu, a nossa preocupação vai toda para o bem-estar da nossa irmã. Não a perderemos de vista até deixarmos este país. Passaram-se três anos desde que deixámos a nossa forma humana. Três anos de silêncio e sofrimento para ela. Agora que regressou para o pé de nós, não nos separaremos dela, nem arriscaremos a sua segurança por um minuto que seja.
A boca de Red estreitou-se ainda mais de uma maneira alarmantemente familiar e vi a mão de Ben aproximar-se do punho do punhal.
— Esta casa é minha — disse Red. — Quereis partir em segurança, não quereis? Com cavalos e alguma protecção? Providenciarei isso; mas primeiro, falarei com Jenny a sós.
— A vossa arrogância espanta-me — disse Conor friamente. — Foi a vossa gente que quase levou a nossa irmã à morte; a vossa gente, que continuava na sua vida enquanto ela era fechada numa cela escura, onde os piolhos lhe encheram a cabeça e os ratos se passeavam à noite, no meio da imundície, enquanto chorava, trabalhava arduamente e esperava pelo fim. Como vos atreveis a exigir seja o que for de nós?
Red estava muito pálido, mas determinado a falar.
— Para quem trabalhou ela, por quem permaneceu ela em silêncio durante estes três anos, por quem reprimiu ela o riso, as lágrimas e os gritos de dor? Aceitastes o que ela fez por vós. Sois tão culpados como eu, todos. — Apoiara-se no braço de Ben; agarrando-o com força, os nós dos dedos da sua mão ficaram brancos.
Era como se se tivessem esquecido que eu estava presente.
— Conor — disse eu.
— O que é? — perguntou rispidamente o meu irmão, num tom nunca antes usado comigo.
— A decisão pertence-me — disse eu calmamente. — Não corro perigo nenhum. Não me afastarei; vou só até ao outro lado da porta.
E afastei-me, de olhos fixos na porta. Ninguém tentou impedir-me. No lado de fora da sala continuavam dois homens de guarda. A porta fechou-se atrás de mim.
— Podeis ir — disse eu para os guardas. Ben ficara no interior da sala — um gesto que exigia alguma coragem, atendendo às circunstâncias.
Ficámos sós. Eu fiquei onde estava, à porta. Ele, muito perto, encostado à parede. Olhar para os olhos dele exigiu de mim todas as forças. Estavam frios como o aço, o rosto imóvel e sem expressão.
— Parece que cumpri o meu propósito — disse ele. — Na verdade, não precisas mais da minha protecção.
— É melhor assim. — Forcei as palavras a sair. — É melhor para ti e para a tua casa. É melhor para todos. E pensei, se o feitiço que as Criaturas Encantadas te lançaram ainda não foi levantado, espera até que eu deixe o teu país. O barco levar-me-á para lá da nona vaga e começarás a esquecer.
— Eu disse-te uma vez — disse Red — que gostaria de ouvir a tua voz. Nunca pensei que as primeiras palavras seriam estas.
É verdade, pensei. Acostumámo-nos a ferir-nos um ao outro. Ao fim e ao cabo, depois de um ano inteiro, só aprendêramos aquilo?
— Estas não foram as primeiras palavras — sussurrei, lutando contra as lágrimas. Não choraria.
— Não — concordou ele. — É verdade. Salvaste-me; e eu salvei-te. Talvez tenha sido por isso. Talvez tenha sido essa razão. E agora que acabou, queres voltar para casa. — O tom de Red era cortês. Talvez falasse assim com qualquer hóspede que estivesse de partida. — Farei com que chegues em segurança à costa. Não tenho dúvidas de que os teus irmãos te protegerão como deve ser na tua viagem de regresso.
Engoli em seco. A luz era muito fraca; uma lanterna mantinha-se com a chama baixa, num nicho, provocando profundas sombras. Mas lá fora era quase madrugada. Havia tanto para dizer; e eu não conseguia dizer nada.
— Disse-te que te contaria tudo sobre o teu irmão — arrisquei. — Acerca de Simon.
— Oh, sim. O nosso acordo. Um salvo-conduto para casa em troca de informações. Já quase me tinha esquecido. — Tentava ser desprendido, mas eu podia ver que a mão dele tremia à medida que subia para ajustar a ligadura.
— Estás a sangrar — disse eu. — Deixa-me ajudar-te.
— Não. — Agora era ele que se encolhia face ao meu toque. — Deixa. Não é nada. Simon lembra-se muito pouco desse tempo perdido. Dos acontecimentos mais recentes recorda-se melhor, vieram-lhe à memória pouco a pouco, durante o nosso lento regresso a casa. O suficiente para incriminar o meu tio muitas vezes.
— Eu sei — disse eu. — Quando eu estava... o teu tio falou-me abertamente. Disse-me muitas coisas de que se vai arrepender agora. Ele pensou... pensou que eu não tas diria, pensou que eu nunca...
Podia ouvir a respiração cuidadosa de Red, para dentro, para fora, para dentro, para fora, como se tivesse dificuldade em conter-se.
— O meu tio... pôs-te a mão em cima quando... ele tocou-te, Jenny? Eu quase... quase... Ben impediu-me, mas se...
— Estou bem — disse eu com alguma dificuldade. — Não estou ferida. Ele disse-me que não queria as sobras do sobrinho. Não me fez mal.
— Eu mato-o — disse Red suavemente, escondendo o rosto de mim, virando-o.
— Tu és homem e um bom homem — disse eu. — Esta gente depende de ti; tu és o centro do mundo deles. Livra-te desse ódio e julga-o depois. Todos eles olham para ti em busca de exemplo. Será mais fácil depois de eu me ir embora.
Ele virou a cabeça na minha direcção; deixou-me ver, por instantes, a profunda solidão desses olhos, as sombras e as rugas tão nítidas nessa pele tão branca. Como é possível um homem tão poderoso estar tão só?
— O meu irmão — o tom dele era triste — tem poucas recordações dos anos perdidos. Pelo menos, é o que diz. Mas onde quer que seja que tu entres, não admite uma palavra contra ti. Ouvi-o a falar com a minha mãe ontem à noite, quando regressámos. Ele falou de ti como se... como se tu fosses um anjo. Ele disse, as mãos dela são as mais suaves do mundo e conta tais histórias que é difícil acreditar nelas e, no entanto, quando fala, sabemos que cada palavra é verdadeira. Pode ter esquecido tudo o resto, mas de ti não se esqueceu.
— Eu...
— Ehhh... — disse ele e estendeu a mão, levando os dedos suavemente aos meus lábios, para me silenciar as palavras. — Não digas nada. — Tocou-me apenas por um momento; e eu lutei contra a vontade de pôr a minha mão sobre a dele e depositar-lhe um beijo na palma da mão. Obriguei-me a ficar muito quieta. Então, ele retirou a mão e eu recuei um passo. Palavras por dizer pesavam entre nós. Palavras por dizer, gestos por fazer. Com qualquer outro, diria adeus com um abraço, um beijo, um toque dos dedos na face, um toque de mãos. Com Red, não conseguia fazer nada.
— Tu estás num círculo — disse ele — que tu própria desenhaste à tua volta; John, Ben, estes teus irmãos selvagens. Simon é um teu protector tão feroz como todos eles e, no entanto, tem poucas razões para amar os da tua espécie. Mas mal nos tocaste, os nossos corações deixaram de nos pertencer.
O meu lábio estremeceu e eu mordi-o, estremecendo de dor. Não vou chorar. Já chorei demais. Também sei ser forte. Ergui os braços e tirei o fio que tinha ao pescoço.
— Vais querer isto de volta — disse eu, pestanejando com força para não chorar. O anel estava na palma da minha mão, leve e quente. Precisei de toda a minha força de vontade para não fechar os dedos em volta dele. Vi a mão de Red fechar-se, formando um punho de nós brancos.
— Se esse anel significa tão pouco para ti — disse ele após um momento — deita-o para o fogo, ou atira-o para o lixo. Não me serve para nada.
Então virou-se e encaminhou-se para o átrio e eu lembrei-me da noite em que as rochas caíram, quando ele caminhou como se estivesse cego, se bem que com os olhos abertos.
***
A pequena égua transportava-me com tanta suavidade como no dia em que fomos até à baía das focas. Os meus irmãos iam calados, como se a maravilha que era verem o mundo com os seus próprios olhos fosse demasiada para a poderem suportar. Red cavalgava à cabeça da coluna, o cabelo tão brilhante como as folhas de sicômoro que caíam à nossa volta, reflectindo a luz outonal. Ben seguia, vigilante, à retaguarda.
Era-me difícil afastar as recordações da última vez que percorrêramos aquele caminho, ao longo do trilho escondido, sob as árvores, sobre as colinas, para longe do vale. Não esperava que Simon viesse connosco, mas parecia que tinha discutido com o irmão e tinha-o convencido. Cavalgava perto de mim e eu falei-lhe no que Richard me contara, acerca de Eamonn de Marshes, de trocas e baldrocas e do que acontecera naquela noite, quando Simon desaparecera do campo. Ele ouviu, acenou com a cabeça e deixou-me falar. Não lhe contei tudo. Algumas coisas estavam demasiado perto da nossa própria história, demasiado perto da parte que Red esperara tanto tempo por ouvir e que, no fim, não quisera ouvir.
— O meu tio arriscou-se muito ao contar-te isso — disse Simon pensativamente. — Muito. Assim que se souber, perderá toda a influência que tinha e será afastado da família e dos seus aliados; não estou a ver que futuro possa ter. Estou preocupado com Elaine. Ele colocou-a numa posição muito vulnerável. E não tem filhos. Haverá muitos parentes com vontade de tomar o lugar dele em Northwoods.
Elaine fora uma boa amiga para Red, pensei. Talvez agora conseguisse o que desejava. Talvez agora ela pudesse escolher o que o coração lhe ditava e não o que o pai lhe ordenava. Simon era um belo rapaz e eu desejei que fossem felizes um com o outro.
— Richard pensou que eu ia morrer — disse eu. — Acreditava que eu não voltaria a falar. Como poderia perder? Um homem assim gosta de se gabar e não consegue resistir a partilhar o seu triunfo. Se Red... se o teu irmão não tivesse regressado a tempo, teria sido como ele queria.
— O meu irmão fez os possíveis para chegar a tempo — disse ele retorcidamente. — Nunca vi um homem cavalgar assim, como se fosse guiado por demónios. O bom e velho Hugh. Tão calmo, tão competente. Tão previsível. Mas tu mudaste-o.
Havia um cheiro a sal no ar e pensei ter ouvido uma gaivota. O rosto de Padriac esboçava um sorriso à medida que avançávamos para oeste. A caminho de casa. Ele era jovem. De todos nós, parecia o que menos sofrera. Pensei que refaria a sua vida com facilidade e bem. Quanto aos restantes, não tinha tanta certeza. Liam teria de fazer face ao que acontecia em Sevenwaters; teria de tentar lidar com o nosso pai, com a mulher do nosso pai e teria de tentar reconstruir um lar em tempos fortes. Diarmid parecia consumido pela amargura e Cormack parecia prestes a explodir. Quanto a Conor, o profundo, sensato, misterioso Conor, até ele me demonstrara que podia ficar cego pelas suas convicções. Porque não vira Red pelo que ele era na realidade. E Finbar, que cavalgava como que num sonho, mal se apercebendo do que se passava à sua volta, Finbar viveria uma vida bem diferente da que poderia ter vivido. Trouxera-os de volta; mas cada um deles perdera uma parte de si próprio, durante o longo tempo em que estiveram ausentes.
Progredimos bastante e agora cavalgávamos entre grandes árvores, os nossos cavalos separados pela dificuldade do terreno. Simon e eu seguíamos um pouco afastados dos outros.
— Vais para casa — disse ele. — Mas ainda tens o anel do meu irmão.
Fiquei admirada e não encontrei o que dizer.
E então ele disse:
— Por que não esperaste por mim, Sorcha?
Olhei para ele. E depois disse cuidadosamente:
— Não pude ficar. Eu disse-te. Não te queria deixar, mas os meus irmãos obrigaram-me a ir. Na altura, não passava de uma criança.
— Lembro-me de uma história que me contaste — disse ele. — Acerca de um cálice mágico, do qual podiam beber apenas os de coração puro. Houve um homem que esperou, esperou até ser velho e a sua paciência foi, finalmente, recompensada. Eu esperei muito mais do que isso. Estive longe muito tempo, Sorcha. Para além do alcance do comum dos mortais. Nove vezes nove anos, naquele lugar de que tu falavas nas tuas histórias. Mais tempo do que o meu irmão seria capaz de imaginar.
Continuei a olhar para ele à medida que subíamos uma colina e os nossos cavalos seguiam lado a lado através de uma clareira e na direcção de um bosque. Os cascos deles soavam suavemente no tapete de folhas caídas. Não queria acreditar no que ele me estava a dizer e no entanto sabia, como qualquer contador de histórias sabe, que era verdade.
— Na tua história, a amada esperou por ele — disse Simon, fixando os seus brilhantes olhos azuis em mim com uma intensidade assustadora. — Esperou até serem ambos muito velhos. Anos e anos. Para ti, foram apenas três. Porque te casaste com o meu irmão? Por que não esperaste por mim?
— Como... como... como podia eu saber? — sussurrei, chocada. — Eu não sabia. Nunca pensei...
Ele ficou calado.
— Tu foste ferido — disse eu. — Queimado. Como é que...
— Há homens capazes de apagar cicatrizes, como se elas nunca tivessem existido. Há homens capazes de tais encantamentos, que um homem até se esquece que está neste mundo e quando volta a si, quando já não precisa de mais tratamento, sente-se completamente aniquilado pelo que deixou para trás. Fiquei entre eles muito tempo. Exteriormente, não tenho quaisquer cicatrizes. Os ferimentos causados pelos do teu povo pertencem a outra vida. Há muito, muito tempo atrás. E não estou louco, Sorcha. Mantive a mente clara e lúcida durante todos estes longos anos. Durante todo este tempo de espera, pensei unicamente em regressar e encontrar-te de novo. Rezei para que o tempo fosse bom para comigo e passasse mais lentamente neste mundo. Quando me mandaram embora, tinha poucas recordações da minha vida antiga; as que tinha eram como fantasmas, nebulosas e fugidias. Mas uma manteve-se nítida e real. — Levantou os braços e tirou um cordão do pescoço; entregou-me a pequena bolsa, de pele macia, suspensa desse cordão. — Abre-a e vê.
Abri-a e apalpei o que estava dentro. Algo fino e suave, como um fio de seda. A pequena égua mantinha o passo firme, não precisando de ser guiada. Na frente, Cormack e Conor cavalgavam juntos; atrás, Padriac conversava animadamente com Ben, acerca dos princípios do voo e se seria possível construir uma máquina que transportasse um homem pelo ar. Finbar seguia atrás deles, silencioso. Não conseguia ver Red, Liam e Diarmid. Tirei o pequeno objecto da bolsa. Na minha mão estava um anel de cabelo escuro. O caracol que ele me cortara naquele dia, há muito tempo, com a pequena faca afiada. Não me deixes. Que jogo cruel tinham eles estado a jogar connosco? Que caminho tortuoso tínhamos nós seguido, quais marionetes vendadas, numa dança selvagem qualquer? Não tivéramos força de vontade? Não tivéramos escolha?
— Então, as Criaturas Encantadas levaram-te — sussurrei eu. — Levaram-te da floresta...
— Sabes como eles são — disse ele. — Como nos lisonjeiam, encantam e deliciam. Como nos arreliam, pregam partidas e aterrorizam. Se não fosse esse talismã, teria, realmente, endoidecido. Ter-me-ia perdido vezes sem conta. Teria esquecido. Mas não os deixei tirar-mo; finalmente desistiram, libertaram-me e mandaram-me embora. Devias ter esperado, Sorcha. Devias ter esperado um pouco mais.
Que podia eu dizer? Tirou-me o anel de cabelo dos dedos trémulos, guardou-o de novo e colocou o cordão em volta do pescoço, de modo que a pequena bolsa ficou encostada ao coração.
— Contei-te, uma vez, uma história — disse ele. — Lembras-te?
Acenei com a cabeça.
— Lembro-me. A história dos dois irmãos.
— Disseste que eu poderia terminá-la como quisesse. Por este caminho ou por aquele. Quase que acreditei em ti. Mas estavas errada. Esperei e esperei por ti. Mas tu casaste com o meu irmão. Até isso ele me tirou.
Não havia nada que eu pudesse dizer. Mesmo assim, gaguejei algumas palavras:
— Não sabia... como podia saber?... Lembras-te de tudo? Então por que...
— Quem acreditaria na verdade? — perguntou ele e os olhos azuis ficaram, por um momento, tão profundos, puros e solitários como os do irmão. — Assim, é mais fácil. Quem acreditaria, se não tu?
Continuámos a cavalgar em silêncio. À nossa frente, podia ver Red cavalgando sozinho, conduzindo-nos e atrás dele quatro dos meus irmãos, Liam, Diarmid, Cormack e Conor, os seus cavalos seguindo o de Red ao longo do trilho que estreitava à medida que o terreno ficava mais íngreme. Cavalgámos através de bosques até chegarmos ao local onde as árvores se abriam e pudemos ver a vasta extensão de mar à nossa frente. Do outro lado daquela água brilhante, para oeste, estava a nossa pátria. E a floresta. A minha floresta.
— Há muito tempo, costumávamos vir até aqui — disse Simon. — Algumas vezes víamos focas.
— Eu sei — disse eu.
O olhar dele aguçou-se.
— Ele trouxe-te aqui?
— Eu vi a enseada — disse eu, pensando, não posso voltaria. Não me obriguem a despedir-me lá. Posso ser forte, mas não tão forte como isso.
— Mais ninguém sabia — disse Simon, muito baixinho. — Nunca contámos a ninguém acerca deste local. Nem sequer a Elaine.
Eu não disse nada. Um pouco mais adiante, os outros esperavam por nós. Atrás de nós, Ben e Padriac surgiram de entre as árvores e aproximaram-se a galope. Vi aparecer um enorme sorriso de contentamento no rosto de Padriac, mal avistou a brilhante extensão de água que tanto me espantara quando a vira pela primeira vez. Enquanto ali estivemos, olhando para oeste, Finbar surgiu, lentamente, por trás de nós. Os olhos dele não mostravam nada e a sua expressão era vazia.
— É ali para cima, para norte — disse Red. — Temos um barco na próxima enseada, não longe daqui. O nosso homem deve estar a postos. Está um bom dia para a travessia; um vento razoável.
— Tende atenção ao estômago da vossa irmã — acrescentou Ben. — Ela não morre de amores por viagens no mar.
Chegamos à praia depressa demais, pareceu-me, onde um barqueiro taciturno, que eu já encontrara antes, estava a preparar a pequena embarcação. Padriac, cujas aventuras se tinham, até ali, confinado às águas mais calmas do lago, saltou para o ajudar e em breve se atarefava com cabos e remos. Os cavalos pastavam um pouco mais acima, na colina, ou bem ensinados, ou demasiado cansados para se afastarem. Red tinha-se afastado de nós e estava sozinho, nos rochedos, a olhar para o mar.
Despedi-me de Ben, enquanto Liam transportava a minha pequena e patética trouxa de pertences para o barco. Os outros esticavam os membros dormentes e olhavam para ocidente, por cima das vagas revoltas, para o outro lado do mar, tentando ver a terra que eles sabiam existir do outro lado. Ben abraçou-me e disse:
— Não te esqueças de nós — e eu disse como poderia eu esquecer uma tão bela cabeleira e que contaria todas as suas anedotas aos meus irmãos. Ele afastou-se e começou, talvez depressa demais, a mexer nuns arreios ensarilhados.
— Adeus, Simon — disse eu. Ele tinha colocado, de novo, a pequena bolsa dentro da camisa, longe da vista. Cada um de nós guardava uma recordação do que nos podia ter acontecido.
Quando eu já me voltava, ele disse:
— Como pode ele fazer isto? Se tu fosses minha, lutaria para ficar contigo. Morreria antes de te deixar partir.
Liam gritou da praia:
— Despacha-te, Sorcha! Estamos quase prontos.
Finalmente, chegara o momento. Red esperava, uma figura imóvel nas rochas, de olhos virados para o horizonte distante. As gaivotas gritavam por cima de nós. Aquela enseada era diferente, mas as recordações desse outro dia mantinham-se. Não sei como, estava defronte dele e olhávamos um para o outro. Olhávamos um para o outro e nada mais existia no mundo, a não ser nós. Não encontrava palavras. Nem uma única. As Criaturas Encantadas tinham-me avisado de que o meu caminho seria duro. Mas nada me preparara para algo tão duro como aquilo. Red também estava silencioso. Fora mais fácil compreendermo-nos quando eu não tinha voz. Ao olhar para ele, vi como seria o seu rosto quando fosse velho. Um rosto marcado pelas rugas, por onde as lágrimas teriam corrido, tivesse ele permitido a si próprio chorar. Os seus olhos estavam vazios.
— Vamos, Sorcha — gritou Diarmid.
Não posso ir. Tenho de ir. Refreei as lágrimas, incapaz de me mexer.
— Já me esquecia — disse Red. A sua voz soava estranha, como que vinda de muito, muito longe. Meteu a mão na algibeira. — Tenho uma coisa para ti.
Pô-la na minha mão. Uma maçã, redonda, brilhante, perfeita, verde como erva nova, com um ténue tom rosado. Os olhos dele tinham mudado, de modo que vi o que escondiam, lá no fundo, tão fundo, que só o mais bravo, ou o mais inconsciente, teria coragem de procurar.
Compreendera-me sempre melhor sem palavras. Por isso, levei a mão ao coração, mantive-a lá um momento, tirei-a e coloquei-a de encontro ao peito dele. O meu coração. O teu coração.
— Vamos embora, Sorcha, não temos tempo a perder! — gritou Padriac.
Voltei-me antes de as lágrimas me começarem a surgir nos olhos e correrem-me pelas faces, corri para o barco e fui içada para bordo. Empurraram-no, o vento e as vagas levaram-nos e começaram a transportar-nos em direcção a oeste, sobre o mar e para casa, para Sevenwaters. Fiquei sentada com a maçã nas mãos, os olhos fixos na praia, onde ele se erguia como um homem esculpido em pedra. As lágrimas toldavam-me a vista, mas continuei a olhar para trás, até que tudo o que conseguia ver dele era a pequena chama brilhante do seu cabelo, contrastando com o cinzento, o verde e o branco da orla terrestre. Tudo o que lhe restava dela eram recordações, onde guardava todos os momentos, cada momento em que ela lhe pertencera. Era tudo o que lhe restava para afastar a solidão. Mas Red nunca esqueceria. Agora que eu partira, podia começar a esquecer Quanto ao meu coração, ficou despedaçado e creio que nem o melhor curandeiro do mundo seria capaz de o curar.
CAPÍTULO QUINZE
Navegámos durante todo o dia e toda a noite e quando finalmente acostámos estávamos na escuridão da nossa costa. Uma vez no mar, tornara-se claro que passaria a ser Liam a comandar e no fim era ele que dirigia o barqueiro, por meio de gestos precisos, para uma linha de costa selvagem, aparentemente habitada por vegetação batida pelo vento e rochas espalhadas. Cormack içou-me para fora do barco, Conor pegou no meu saco e ali estávamos nós, os sete, de pé, em Erin, mais uma vez, na noite fria. O pequeno barco desapareceu na escuridão com um leve chapinhar.
Os meus irmãos não tinham enjoado. Quase se tinham divertido. Entre vómitos, tivera tempo de ver o brilho de excitação no rosto de Padriac enquanto lhe permitiam segurar no leme, na vela ou no remo. Não que os meus irmãos não estivessem familiarizados com pequenos barcos; uma família de rapazes não vive tanto tempo próximo de um grande lago sem aprender, por si, algumas habilidades velejadoras. Mas aquilo era diferente. Podia detectar no rosto de Padriac a visão de mares longínquos, um desejo de aventura e terras misteriosas, para além do alcance dos mapas. Vi nos seus olhos o reflexo do que vira há muito tempo, quando libertara a coruja da mão enluvada e ela subira em espiral para o céu infinito. E ouvi a voz interior de Fimbar.
Brevemente, também ele voará para longe. O meu irmão estava sentado, calado, no barco, a capa negra mal lhe escondendo as penas brancas Regozija-te com a felicidade de Padriac. Porque este regresso a casa não é um triunfo.
Fôramos bem abastecidos pela casa de Harrowfield e mal alcançámos o abrigo de um bosque, os meus irmãos acamparam com a calma eficiência advinda da longa prática. Acenderam uma pequena lanterna, abrigando-a de modo a que a pequena luz não se espalhasse para além da pequena clareira onde nos sentámos.
— Nada de fogueiras — disse Liam. — Esta noite, não. E não procuraremos cavalos, apesar de estar ansioso por chegar a casa. É melhor chegarmos sem sermos anunciados e a pé.
— Assim, Sorcha fica muito cansada. — Conor vigiava-me de perto; a ver se eu acabava todas as migalhas do pão de centeio e da papa de feijão que ele me tinha dado. — É muito longe; quatro ou cinco dias, mesmo para nós.
Liam franziu a testa.
— Aqueles Bretões hão de pagar pelo que fizeram à nossa irmã. Mas temos tempo. Há outros assuntos mais importantes.
— Estou ansioso por pôr as mãos no pescoço da feiticeira. — Diarmid cerrava e descerrava os punhos. — Não podemos ir directamente e fazer justiça rápida? Contava a história a todos e fazia com que Lady Oonagh pagasse, de modo a que todos pudessem testemunhar.
— És demasiado precipitado — disse Cormack, cortando um bocado de pão e mastigando pensativamente. — Ainda não sabemos o que aconteceu em Sevenwaters. Liam tem razão. Não nos podemos precipitar com as espadas em riste. Essa aproximação pode conduzir a uma chacina e não só do nosso inimigo.
Conor olhou fixamente para o irmão gémeo.
— Aprendeste alguma coisa durante estes anos afora — observou ele com um pequeno sorriso. Cormack atirou-lhe com uma côdea de pão e falhou.
Padriac concordou, acenando com a cabeça.
— O elemento surpresa pode ajudar-nos — disse ele. — É melhor Lady Oonagh não saber que estamos a chegar.
Ficámos silenciosos por um instante. As recordações eram dolorosas e o medo não desaparecera por completo.
— Mesmo assim — disse Diarmid parece demasiado tempo para esperar.
— Por muito tempo que seja, não será o suficiente. O suficiente para atravessar a floresta e chegar a casa. O suficiente para voltarmos a ser o que éramos.
Ouvira a voz de Finbar, mesmo que os outros não a tivessem ouvido.
— Devemos fazer como nos aconselha Liam — disse eu baixinho. — Depois de uma jornada tão longa, devemos regressar a casa como deve ser. Eu aguento a distância. Até sou bastante forte.
— Hum. — Conor estava a olhar-me de alto a baixo. — Talvez consigamos que nos prometas comer cinco boas refeições por dia até lá chegarmos. Mas ela tem razão, Diarmid. É a única maneira.
E assim atravessámos o país a pé, os meus irmãos ao ritmo dos meus passos. Aquele caminho era diferente daquele que tomara quando deixara a floresta e o rio me transportara tão rapidamente para longe de casa e me depositara nas mãos de um bretão de passagem. Aquele caminho levava-nos através de campos abertos, de um afloramento rochoso para outro, abrigando-nos quando possível em pequenos bosques de árvores descaídas pelas tempestades, acampando de noite e partindo pouco depois do amanhecer. Evitávamos os trilhos humanos, movendo-nos como sete sombras silenciosas, o nosso avanço testemunhado apenas por falésias, rochedos e árvores. E ao terceiro dia chegamos à orla da floresta.
Parámos no cimo de uma encosta à medida que o Sol atravessava as nuvens e vimos um falcão solitário a pairar no ar, por cima do panorama cinzento, verde e dourado outonal que se estendia à nossa frente até onde a vista alcançava.
— Chegámos — disse Conor. Respirei fundo e senti um manto de paz apossar-se do meu espírito. Então, recomeçámos a andar, descendo por entre pedras cobertas de musgo, sob o manto das árvores e dirigimo-nos para casa por trilhos que nos eram familiares, sem mapa ou guia, que nenhum estranho poderia seguir. As árvores tremiam ao vento frio do Outono e eu era seguida por vozes. Sorcha, oh Sorcha. Em casa. Finalmente, chegaste. Levantou-se vento e as folhas caíam à nossa volta, numa chuva brilhante de vermelho e dourado. Irmãzinha, por que continuas tão triste? Regressaste a casa. Se levantasse os olhos, quase as podia ver. Moviam-se à luz fraca do Sol, ao vento, entre os ramos nus dos vidoeiros e dos freixos, quase invisíveis. Se me voltasse para as ver, desapareceriam repentinamente.
— Os postos de vigia estão desguarnecidos — observou Liam, franzindo o sobrolho. — É uma loucura. Quanto mais nos aproximávamos de Sevenwaters, mais os rostos dos meus irmãos ficavam atentos e vigilantes.
Passámos três noites na floresta e os meus irmãos certificaram-se sempre que eu tinha uma cama confortável de fetos e comia o que me ordenavam. O nosso avanço era lento, pois não era a única enfraquecida pela fome e falta de sono e a jornada não fora fácil. Ali, podíamos fazer uma pequena fogueira e fazer uma espécie de chá com as ervas que se encontravam à mão. Aquilo aquecia o corpo, se não o espírito. Ali, na floresta, estávamos em segurança e os meus irmãos dormiam bem à noite. Todos, à excepção de Finbar. Para ele, não havia descanso. Durante o dia, andava como que num sonho. À noite, sentava-se, de pernas cruzadas, olhando para longe, com olhos que pareciam não ver. Não comia nada; não dizia uma palavra. Era como se não estivesse ali, o seu corpo uma concha oca, cujo espírito habitava um mundo qualquer que os restantes não podiam tocar. Quanto a mim, ficava de olhos abertos na escuridão, a esperar pelo sono. Devia estar contente. Não voltara para onde pertencia, para o lugar do meu espírito, com os meus irmãos salvos à minha volta, prontos para recomeçarem as suas vidas? Não os salvara e levara a cabo a minha tarefa contra todas as probabilidades? Mas o meu coração estava engelhado e frio e a minha mente incapaz de ver um futuro se não de total solidão e sonhos por concretizar.
Quanto mais o tempo passava, mais eu me afastava da costa e mais reconhecia quanto abandonara. Disse a mim própria para não ser estúpida. Para não ser egoísta. Que esperava, que Red me tivesse pedido para ficar? Mesmo que isso tivesse acontecido, teria sido obrigada a recusar. Como poderia ter ficado com ele? Para o arrastar para uma vida miserável, como esposa indesejável, objecto de ódio e desconfiança para todo o seu povo? Não lhe podia fazer uma coisa assim. Aquilo que eu queria não interessava. Se eu tivesse ficado, tê-lo-ia destruído. Então, por que me sentia tão miserável?
Que se passava de errado comigo? Qualquer um pensaria... qualquer um pensaria que já não tens medo dos homens
Era a pequena voz sensata, como um banho de água fria. Tenho. Ainda tenho, disse eu para mim própria, porque ainda me recordava como aqueles homens me tinham magoado e envergonhado, das coisas que me tinham dito, com todos os pormenores. A recordação ainda me gelava o corpo, de repugnância. Nunca desapareceria. Esse era um aspecto. O outro, porque havia outro lado, era que daria quase tudo para ter de novo aquele momento, o momento em que permitira que o braço de Red me rodeasse como um escudo contra o mundo, os lábios dele encostados ao meu cabelo e o seu coração batendo contra a minha face. Nesse momento, ele não quisera afastar-se. Está tudo bem. Está tudo bem, Jenny, dissera ele. Mas não estava. Deixei-me ficar ali na escuridão, sob as árvores e amaldiçoei silenciosamente as Criaturas Encantadas pela maneira como nos usavam e abandonavam nos seus jogos estranhos, nada preocupadas com o mal que causavam.
Era o sétimo dia e aproximávamo-nos dos domínios de Sevenwaters. Por entre os ramos nus dos salgueiros, as águas do lago brilhavam e os patos chapinhavam nas poças. Estava tudo muito calmo.
— Não há sentinelas — disse Liam severamente. — Não há postos avançados. Qualquer homem pode vir até aqui à vontade. Que se passa com ele?
Emergimos da orla das árvores, por trás do castelo e o meu coração teve um sobressalto de choque. Para além dos campos murados e das cabanas, das muralhas do domínio, da colina antes vestida de belos vidoeiros, fortes freixos e nobres carvalhos, havia uma grande cicatriz, no lugar onde uma extensão de árvores mais velhas tinha caído e ardido. Não ficara um fragmento de vida, nenhuma árvore sagrada, nenhum espinheiro-alvar para suavizar a ferida. Atrás de mim, Conor começou a cantar suavemente, um lamento cujas palavras eu não compreendia, mas cuja mensagem foi direita à minha alma.
— Que tremenda destruição — disse Liam. — Um acto de pura premeditação, sem outro propósito senão o de fazer mal. Nem sequer deram uso à madeira, queimaram-na no lugar onde ela caiu.
Caminhámos ao longo da aldeia, cujas ruas estavam sulcadas e enlameadas e cujos habitantes tinham olhares tristes e atormentados. Mas aqueles habitantes eram o nosso povo, povo esse que conhecia a ténue linha que separava este mundo do outro. Todos eles tinham visto já um primo ser levado pelos duendes, ou encontrado uma criança estranha sob um monte de urtigas, ou falado com alguém que se aventurara demasiado dentro de uma caverna, ou entrara num anel de cogumelos à luz do luar. Não havia perguntas, olhos semicerrados ou olhares de desconfiança. Em vez disso, saíram de suas casas com os rostos sorridentes e as mãos estendidas em sinal de boas-vindas. Só quando olharam para Finbar é que se calaram, num silêncio de profundo respeito.
— Mister Liam! Mister Conor! Voltastes! — Niall, o moleiro, avançou para dar uma palmada no dorso de Liam.
E Paddy, o porqueiro, com um sorriso de orelha a orelha, agarrou no braço de cada um dos irmãos, exclamando:
— Até que enfim, que voltastes! Eu não disse que eles haviam de voltar, Mary, não disse?
E antes de eu ter dado dois passos pela rua acima já a neta do velho Tom me segurava pelo braço, levando-me até à sua cabana, para ouvir o peito asmático do velho. Prometi-lhe uma infusão de bálsamo e hortelã-pimenta, para lhe facilitar a respiração.
— E uma fogueira — acrescentei. — Gela-se, aqui dentro. — Tens de acender uma fogueira.
Mas não havia lenha seca, nem homens lá em cima, para ajudarem a cortá-la e armazená-la. Este ano, as colheitas não tinham sido nada boas; a distomatose tinha-se instalado com as chuvas de Outono. Pouco fora armazenado para a fria estação que se avizinhava. Os rebanhos tinham sido atacados pela peste e tinham morrido muitas cabeças.
— E o nosso pai? — perguntou Conor, com as sobrancelhas escuras franzidas. — Ele não tomou providências para o vosso bem-estar, durante estes últimos Invernos? Não há nenhum feitor para vigiar as searas, nenhum intendente para entregar provisões àqueles que estão em dificuldades?
Os camponeses balançaram de um pé para o outro, pouco à-vontade.
— Então? — perguntou Liam, parecendo exactamente como o nosso pai.
— Lorde Colum, ele... ele não tem sido ele, desde que vós desaparecestes — arriscou o moleiro. — As coisas mudaram para todos nós.
— Que queres dizer? — perguntou Cormack, franzindo o sobrolho. Mas ninguém estava preparado para responder.
Assim, com promessas de ajuda, de reparações e provisões, deixámos a aldeia e encaminhámo-nos, pelo trilho de carroças, para a nossa velha casa. E ali, na barreira de espinheiros-alvar, por fim, encontrámos uma sentinela.
— Quem vem lá? Dizei quem sois e ao que vindes! — Não podíamos ver o homem, mas a voz parecia-nos familiar.
— À vontade — respondeu o meu irmão mais velho. — Sou Liam de Sevenwaters. Regressado a casa com os meus irmãos e a minha irmã.
— Regressados para reclamar aquilo que nos pertence — acrescentou Diarmid, carrancudo.
O homem apareceu com a espada apontada, firmemente, na nossa direcção. Estava vestido com um corpete de pele, de calças e por cima uma túnica muito usada com, no peito, o símbolo orgulhoso dos dois colares interligados; o brasão de Sevenwaters. A boca do homem ficou aberta e a espada caiu no chão.
— Liam! — um grande sorriso espalhou-se pelo rosto crestado.
— Donal! — Porque era o velho mestre-de-armas, que fora banido pelo nosso pai, à exigência da sua nova mulher. — Pensei que te tinhas ido há muito destas terras! Pensei que isto estava desguarnecido. Afinal, sempre há algum senso, aqui.
— Muito pouco — grunhiu Donal, dando grandes palmadas nos ombros de Liam e abanando a cabeça de espanto. — Por tudo o que há de mais sagrado, que bom é ver-te, rapaz. Vinde, vinde, eu levo-vos até casa.
Mas assim que nos aproximámos do pátio ele já não pareceu muito interessado em continuar. Em vez disso, fizemos uma pausa no local onde eu o ouvira, em tempos, ser despedido pelo meu pai e Conor explicou-lhe o que nos acontecera e onde estivéramos.
— Hum — Ruminou o velho guerreiro pensativamente, quando a estranha história terminou. — Contaram-se muitas histórias por aí, claro e o povo achou que ela tinha a mão no caso. Bastava olhar para ela, para ver que não prestava. Alguns disseram que vós tínheis desaparecido para sempre, mas eu sabia que vós os sete éreis capazes de olhar por vós próprios. Era apenas uma questão de tempo, o vosso regresso. — Olhou para Finbar e abanou ligeiramente a cabeça. Mas vejo que o vosso irmão mudou, infelizmente.
Ninguém fez qualquer comentário e talvez Finbar nem tivesse ouvido, tão ligeiro fora aquele movimento. Donal voltou a abanar a cabeça.
— Ides encontrar as coisas mudadas, aqui — avisou ele — Muito diferentes. Fiquei chocado, posso dizer-vos. Também voltei há pouco tempo, pensando que o passado tivesse sido esquecido e que talvez houvesse aqui um lugar para mim. Estou muito velho para pôr a minha espada ao serviço de quem mais paga. Três anos disso foram suficientes. Comecei a ouvir histórias, por volta do solstício do Verão, de que Colum estava em apuros. Isso fez com que eu voltasse e fiquei. Alguém tem que montar guarda
— Apuros? Que espécie de apuros? — perguntou Liam.
— Diziam que ele estava a perder a garra. Que os homens estavam a desertar aos magotes, os postos desguarnecidos, os concelhos abandonados. As selecções de Outono por fazer e a maior parte do gado morreu à fome, no Inverno passado Os campos foram desbravados sem qualquer propósito. Diziam que ele já não queria saber. Ela dominava-o e ele não conseguia libertar-se
Diarmid andava de um lado para o outro impacientemente, as sobrancelhas carregadas e a mão no punho da espada.
— Onde está ela? — perguntou ele impacientemente. — Onde podemos encontrar Lady Oonagh?
Seguiu-se uma pequena pausa.
— Foi-se embora — disse Donal.
— O quê? — O ar pareceu fender-se com a fúria e a frustração de Diarmid. — Foi-se embora? Como, foi-se embora?
— Fez as malas e partiu à pressa, há sete ou oito dias atrás, ao anoitecer. Como se tivesse apanhado um susto. Levou o filho e os homens dela e desapareceu na noite. Foi um alívio, digo-vo-lo eu.
— Ela levou o nosso irmão? — Havia uma nota de preocupação na pergunta de Conor — Portanto, Ciarán também foi?
— Foi o golpe final no vosso pai — disse Donal sobriamente. — Ides encontrá-lo muito alterado.
— As tuas palavras perturbam-me muito — disse Conor franzindo o sobrolho. — Como é que ele está, agora que ela se foi?
— Colum sempre foi forte — disse Donal. — Mas a vossa perda foi um grande golpe. Alguns dos antigos servidores da casa ficaram e eu soube o que lhe aconteceu por eles. Culpou-se a si próprio pelo vosso desaparecimento e talvez com razão. À medida que o tempo passou, a culpa começou a comê-lo por dentro. Ele podia ter feito mais, mas não conseguia ver-se livre dela. Perdeu a vontade. Os esforços dele para vos encontrar foram em vão. Agora que estais aqui, por fim, não vos posso dizer se ides ser recebidos com alegria, ou simplesmente com confusão.
— Disseste que ele tentou encontrar-nos — disse eu, sem me aperceber. — Disseram-me... disseram-me que lhe ofereceram o meu regresso em troca de ouro ou terras. E que ele recusou.
— O quê? — O tom de Diarmid era de ultraje. Cormack praguejou.
— Pergunta-lhe — disse Donal gravemente. — Diria que isso é impossível. Ele não desejava outra coisa senão o teu regresso. Acredito que ele teria dado tudo para o conseguir. Quem te disse isso devia estar a mentir.
— Veremos — disse Liam, de rosto fechado.
Se eu contasse uma história semelhante, que não inventada por mim, dar-lhe-ia um fim limpo e satisfatório. Os filhos regressariam a casa e o pai recebê-los-ia de braços abertos. A madrasta malvada seria punida pelo mal que fizera e seria banida da casa. O pai e os filhos poriam tudo em ordem e viveriam todos felizes para sempre. Nessas histórias não há fins maus. Não há pontas a desenvencilhar, ou fios retorcidos. As filhas não dão o coração ao inimigo. Os maus não desaparecem assim sem mais nem menos, levando com eles a satisfação da vingança. Os jovens não acabam divididos entre dois mundos. Os pais sabem onde estão os filhos.
Mas aquela era a minha história. E, surpreendentemente, fui a primeira a encontrar o meu pai, porque quando os meus irmãos seguiram Donal até ao interior da casa, eu escapei-me até ao meu velho jardim, que Oonagh, no seu ódio, tinha destruído. Então, ficara com o coração destroçado. Quão fraco conhecimento tinha da dor, então.
O meu jardim continuava um amontoado de pedras e terra revolta, mas as estações tinham sido amáveis desde a minha partida. O musgo cobria o carreiro destruído e vencera a parede de pedra. As trepadeiras emaranhavam-se em redor dos restos de uma ramada; na Primavera estariam cobertas de flores de um branco alvo. Havia vistosas espigas de alfazema entre as ervas daninhas, uma ligeira névoa azul-acinzentada e conseguia cheirar o aroma curativo do tomilho. A porta da oficina estava entreaberta. O velho banco estava quase completamente coberto por uma penugem frondosa de absinto e camomila e nele estava sentado o meu pai, envolto numa capa escura, olhando em frente com olhos vazios O seu rosto, em tempos severo e forte, parecia enevoado, como se alguém tivesse passado um pincel molhado sobre as feições de um rei, num retrato qualquer. Dos seus dois cães-lobos, que em tempos lhe seguiam todos os passos, não havia sinal.
Atravessei o jardim, pisando com cuidado no pavimento escavacado. Ele virou a cabeça lentamente ao ouvir o som e os seus olhos profundos ficaram com uma expressão de puro espanto. Aproximei-me.
— Niamh? — perguntou ele, incrédulo.
— Não, pai — disse eu, engolindo com dificuldade. — Sou eu, a Sorcha, a sua filha. Voltei para casa. Voltámos todos para o pé de si, sãos e salvos.
Sentei-me no banco ao pé dele. Seguiu-se um longo silêncio. Peguei-lhe na mão e segurei-a com as minhas. Tremia.
Não sabia o que dizer. Quando partira era uma criança e ele uma severa e distante figura, que eu mal conhecia. Agora, era como se eu fosse o pai e ele a criança.
— Pai? — arrisquei. — Sabe quem sou eu? — Ele demorou muito tempo a responder.
— A minha filha era uma rapariguinha — disse ele finalmente. — Já... já passou um certo tempo. Perdi-os, sabes? A todos. Até o mais pequeno.
À nossa volta, o jardim estava tranquilo.
— Pai, talvez fosse melhor entrarmos. Os meus irmãos estão cá, todos. Já está tudo bem. — Mas eu sabia que não era verdade.
Ele suspirou.
— Não me parece. Ainda não. Vou ficar aqui um bocado. Vai tu. — Voltou a cair no silêncio e os olhos voltaram a perder o interesse. Por fim, levantei-me e caminhei até à porta, o meu vestido roçando pela camomila e pelo tomilho rastejante, despertando um aroma doce no ar frio da manhã. Quando cheguei à porta, ele falou de novo, por trás de mim.
— Lamento, Niamh — disse ele. — Lamento tanto.
Mas quando virei a cabeça ele não estava a olhar para mim. Poder-se-ia dizer que o seu olhar estava fixo no muro de pedra, mas eu pressenti que ele estava a ver algo mais longe, tão distante como uma velha recordação, ainda doce e forte como a nota de uma harpa e tão dolorosa como um golpe profundo de espada. Entrei para procurar os meus irmãos.
Levaria tempo. Era o que Conor ia dizendo, à medida que cada um de nós tomava parte nas diversas tarefas que era necessário levar a cabo, decisões que precisavam de ser tomadas. Tempo para que o pai voltasse a ter força de vontade, recobrasse de novo o espírito despedaçado, voltasse ao conhecimento de onde estava e de quem era. Tempo para que Finbar emergisse do silêncio, perdesse aquele brilho selvagem do olhar, aquela sinistra palidez da pele. Entretanto, havia trabalho para ser feito e aqueles que tinham a força e a vontade tinham que o fazer. Felizmente, o meu pai não tinha primos, ou sobrinhos, que se pudessem ter habilitado ao domínio, na ausência dos seus filhos. Mas tinha vizinhos poderosos, que não tardariam muito em tirar vantagem da fraqueza de Lorde Colum. Ouvi Liam discutir isso com Donal em frente de uma taça de hidromel, nessa noite.
— É incrível como Eamonn ainda não deu um passo para atacar — disse Donal.
— Seamus Redbeard continua nosso aliado, se bem que tenha casado Eilis com esse traidor — disse Liam. — Conheço-o bem e quando chegar a ocasião, ataco. Eu tinha relatado ao meu irmão mais velho, já há muito tempo, a duplicidade de Eamonn e a sua aliança com Richard de Northwoods. Liam ouvira-me com gravidade, retendo a fúria. Não disséramos nada a Diarmid sobre os laços entre esses homens e Lady Oonagh porque, dissera Liam, era uma situação que exigia um tratamento delicado e um cálculo preciso. Em devido tempo, ele e Seamus lidariam com a situação. Diarmid, ardendo, com razão, de desejo de vingança, ficava melhor de fora até o assunto ficar resolvido.
— Eu sei que a ideia de vingança rápida é tentadora — continuou Liam. — Mas tenciono empregar métodos subtis, porque o homem tem informações úteis para nós e preciso de saber quais são, antes de lhe dar um fim
— Seamus já tem um neto — observou Donal. — Não temes essa aliança? Quem pode dizer se o velho não muda de opinião?
Liam teve um pequeno sorriso, que não lhe chegou aos olhos.
— O filho de Eamonn não será criado como inimigo de Sevenwaters — disse ele.
A notícia do nosso regresso espalhou-se depressa, como todas as notícias do género. Assim como a história do que Lady Oonagh nos fizera e da tarefa que eu completara, de maneira a libertar os meus irmãos do seu encantamento. Como já disse, o nosso povo aceitava estas situações sem grandes surpresas, mas com o tempo a história foi aumentando e enriquecendo, tomando lugar entre as grandes e heróicas lendas que o povo contava nas longas e frias noites de Inverno depois do jantar, frente a uma caneca de cerveja. Na história não se dizia grande coisa sobre os Bretões e como me tinham ajudado; à excepção de Lorde Richard e da tentativa de me queimar viva. Toda a gente gosta de um bom vilão.
Liam calçou as botas do nosso pai, como sempre pensámos que o faria, um dia. Restava pouco pessoal da casa aquando do nosso regresso. Donal e uma meia dúzia dos homens do meu pai, aqueles cuja lealdade os impedia de se irem embora, mesmo naquelas condições; aqueles, demasiado fortes, ou teimosos, que Lady Oonagh não conseguira corromper. Fat Janis, de olhos encovados e magra como um cão, sempre na faina numa cozinha quase vazia, apenas com os restos de uma tardia e desesperada colheita. Um par de rapazes, que dormia nos estábulos e que tratava dos animais. Era tudo. Mas, aos poucos, começaram a voltar, um grupo de homens hoje, um par de criadas risonhas no dia seguinte. Todos sentiram a força da língua de Liam, pela sua deserção. Todos encontraram um lugar na casa e começaram a trabalhar. Começaram a aparecer visitantes de longe, que passavam as noites em profunda discussão com o meu irmão. Acreditava que um dia Eamonn de Marshes acordaria para descobrir que lhe fora estendida uma armadilha, da qual não escaparia. Não pedi quaisquer pormenores. Durante o dia, a voz de Donal percorria o pátio e ouvia-se o som familiar do choque de metal com metal, juntamente com o rufar dos cascos dos cavalos. Na cozinha, Janis ladrava ordens, ao mesmo tempo que a lenha era cortada e os fogões alimentados e a roupa era esfregada e pendurada a secar. A casa de Sevenwaters recomeçou, lentamente, a respirar.
Pareceu-nos, de algum modo, natural, regressar ao vidoeiro da nossa mãe, num dia em que o ar estava seco e frio e as árvores nuas continuavam em volta do pequeno relvado, à beira do lago. Não planeámos nada. Mas parecia que o tínhamos feito, quando naquela manhã especial segurei Finbar pela manga e o guiei através da floresta, ao mesmo tempo que os outros se encaminhavam também para a margem, sozinhos ou aos pares, até que os sete se encontraram todos no local. Desta vez não houve objectos rituais, nem qualquer cerimónia. Limitámo-nos a colocar-nos em círculo em volta do tronco prateado da árvore, deixando que o silêncio nos entrasse nos espíritos. Uma voz, dentro de mim, disse, Estás aqui. Regressaste a casa, minha filha e a ferida sarou. Não nos deixes de novo. Mas se era a voz da minha mãe, ou a voz da própria floresta, não sabia.
Observei os rostos dos meus irmãos enquanto eles permaneciam ali, silenciosos. O feitiço fora quebrado e nós regressáramos a casa. Isso era verdade. A casa desfeita, as alianças quebradas, podiam ser refeitas com trabalho árduo. Mas havia um dano mais profundo, que continuava por consertar e que talvez nunca o viesse a ser. Enviei uma súplica às Criaturas Encantadas, para que os meus irmãos pudessem voltar a ser o que eram, todos eles. E que eu conseguisse, de algum modo, libertar-me daquela terrível dor no peito, que parecia não querer desaparecer.
— Estamos quase no Inverno — disse Conor, baixinho. — Depois da escuridão do Inverno, vem a luz da Primavera. Depois do sono do Inverno, acordamos para a Primavera. Não podemos perder a esperança, quando esta verdade nos é mostrada, ano após ano.
Mas os outros não disseram nada e após uns momentos cada um de nós tocou com a mão na casca pálida da árvore, regressando depois lentamente a casa.
Nem todos se limitaram a apanhar os cacos e a começar de novo. Para Diarmid, era-lhe insuportável que a nossa madrasta tivesse desaparecido na floresta sem ser vista, aparentemente incólume, levando o filho com ela. Ela tinha de ser punida. Devia pagar pelo que fizera. Sem a devida vingança, a história não podia terminar, o padrão não ficava completo. Liam e Conor tentaram chamá-lo à razão. O que fora feito, não podia ser desfeito, disse Conor. Ele tinha que deixar partir a ira e começar de novo. Era como se não houvesse outra saída para as energias dele. Diarmid era um diamante em bruto. Ela tinha de pagar. A feiticeira tinha de pagar. Por que não iam em frente, procurá-la e exigir o preço?
Permaneceu no fio da navalha da sua ira e os seus oponentes é que pagavam a factura na prática diária, no pátio. Lutava com uma intensidade assustadora, não se preocupando, aparentemente, com a sua própria segurança. Sempre que um ataque envolvia Diarmid, lá estava Donal por perto, observando cada movimento; e ainda bem.
Finbar não se aventurava fora do castelo, porque as pessoas seguiam-no e esticavam os braços para lhe tocar nas penas suaves da grande e brilhante asa, como se fosse um talismã; e ele retraía-se ao mínimo toque, como se algo da criatura selvagem continuasse a viver dentro dele. Eu tinha medo por ele e não sabia como ajudá-lo.
Conor fez um inventário dos magros haveres. Lançou o olhar sobre o gado que restava, o estado das casas de lavoura, as necessidades de conserto de cabanas e celeiros. Deslocou-se a outras aldeias para se assegurar da lealdade dos rendeiros locais, para verificar o estado das manadas e dos rebanhos e em nome de Liam para tentar conseguir aprovisionar os postos avançados de guarda. Mas andava invulgarmente abstracto, passando muito tempo a uma janela, olhando para a floresta; como se estivesse à espera de qualquer coisa. Algumas vezes desaparecia, simplesmente, para regressar à noite sem qualquer explicação. E recebia os seus próprios visitantes. Anciãos vestidos com grandes mantos e jovens com olhos de ancião. Falava com eles em particular, fora de portas e depois ficava muito quieto, como se os seus pensamentos estivessem num local distante, longe de Sevenwaters.
Entretanto, os aldeões começaram a sucumbir a uma maleita invernal que atingia o peito, provocando farfalheira e fazendo com que o corpo sentisse calafrios. Tirei Cormack do pátio, onde passara a desempenhar o papel de braço direito de Donal, como se já o tivesse feito antes. Encontrei Padriac no estábulo, onde estava a tratar de um cavalo coxo, com os dois rapazes pendurados de cada palavra que ele dizia. Arranjei uma carroça carregada de lenha e os três, juntamente com os dois rapazes, fomos até à aldeia e assegurámo-nos de que todas as casas recebiam um pequeno fornecimento. Levei sopa, que Janis inventara com cebolas, azedas e bocados de uma galinha velha. Não me faltava trabalho. O Velho Tom estava muito doente; não sabia de nenhum bálsamo, ou hortelã-pimenta, que lhe conseguisse curar a tosse. O fogo ajudou-o um pouco. Mas havia outros que podiam ser salvos, se lhes ministrasse os devidos cuidados.
De regresso a casa, pus uma das raparigas a apanhar e preparar as ervas que ainda cresciam em volta da casa e no jardim e começámos a armazená-las de novo, nas prateleiras da ervanária. O meu trabalho era aquele; aquele era o meu lugar. Eu era a filha da floresta, uma criança que crescera no coração do seu misticismo, imutável, se bem que nunca o mesmo. Mas não conseguia apagar as imagens que subiam do meu coração. Desejava-o tanto; queria-o ao pé de mim, ansiava por sentir os seus braços em redor do meu corpo, ouvir a voz dele, muito baixa, como quando lutava por controlar os seus sentimentos. Está tudo bem, Jenny. Tudo bem. Os meus dias de trabalho iam passando e, por mais que tentasse, a cada momento que passava, a minha mente imaginava onde estaria e o que faria nesse mesmo momento. Imaginava-o no salão de Harrowfield, resolvendo as disputas das pessoas da sua casa, escutando gravemente, distribuindo o seu parecer com sensatez. Pensei nas manhãs de Inverno, nele e em Ben, praticando os seus jogos de guerra. Corpos em esforço, um contra o outro, cabelos louros contra cabelos cor de fogo. As raparigas amontoadas à porta, admirando-os. Depois de terminarem, os dois homens dariam pancadas nos ombros um do outro, rindo. Ben diria uma piada idiota. No dia seguinte talvez fossem reparar um telhado, construir um muro de pedra, ou partir o gelo dos barris de água. Os aldeões de Harrowfield não passariam fome, nem sucumbiriam a maleitas por falta de cuidados. Não dissera adeus a Margery. Sentia-me triste por isso. Talvez Johnny estivesse agora a dar os primeiros passos. Não veria isso. Tinha de aceitar que nunca mais veria Red. Tinha de o esquecer e continuar por um novo caminho. Mas, tal como Diarmid, descobri que não conseguia esquecer.
Diz-se que o tempo cura as doenças do coração e que tais sentimentos se desvanecem devido à ausência. Comigo, não. Durante o dia, exauria as minhas forças com trabalho, mas a imagem dele estava sempre presente na minha mente. À noite dormia pouco e, quando conseguia dormir, sonhava com o que perdera. Os meus irmãos brincavam com isso, chamando-lhe paixão da juventude, algo de que, em breve, despertaria. Apesar de tudo, continuavam a ver-me como uma criança e esperavam ver-me de novo no meu antigo papel em Sevenwaters, como se nada tivesse mudado. Não conseguiam imaginar que eu amava um bretão, que dera o meu coração a um homem em cuja casa quase morrera. Não servia de nada tentar explicar-lhes. Apenas Finbar compreendia a profundidade da minha ligação a Red.
O pai pouco falava. Gostava de se sentar no meu pequeno jardim, fosse qual fosse o tempo. Se chovia um pouco, ele abria um velho saco sobre a cabeça e os ombros e deixava-a cair. Se o vento era frio, embrulhava-se na capa. Quando não estava ocupada na aldeia, trabalhava ao pé dele, cavando, arrancando as ervas daninhas, limpando, enquanto a minha pequena ajudante trabalhava na ervanária.
Às vezes, encontrava também Finbar no jardim, uma figura pálida, silenciosa, cujo rosto continuava doentio e gasto; cujos olhos continham ainda um saber selvagem, para além da compreensão humana. Desde a última noite em Harrowfield que ele erguera um escudo, escondendo de mim os seus pensamentos e a sua voz interior continuava silenciosa. Não sabia o que se passava com ele; mas sabia que falava com o pai, mentalmente.
Talvez o pai lhe respondesse da mesma maneira. Recordei o que o padre Brien nos dissera, há muito tempo. Como os anciãos teriam escolhido Colum, como ele quisera aprender o seu ofício secreto e memorizara os conhecimentos, para se tornar, com o tempo, um membro daquela irmandade mística. Mas Colum pousara os olhos em Niamh, naqueles caracóis escuros, naquela pele branca como o leite e naqueles grandes olhos verdes e perdera o coração. Depois disso, só havia um caminho para ele. E assim Conor fora escolhido no lugar dele. O padre Brien falara de amor e da nossa família. Que dissera ele? Ainda não sabeis nada do amor que atinge como um raio, que vos aperta o coração, tão irrevogavelmente como a morte, que se torna a estrela polar, pela qual guiais o resto das vossas vidas... está na natureza do vosso sangue, amar assim.
Eu já sabia, infelizmente, o que era amar assim, como o meu pai amara a minha mãe. Percebi que Finbar tentava ajudar o pai a recuperar o conhecimento, de volta a um lugar onde ele pudesse tocar neste mundo sem ser destruído pela culpa, pelo desgosto, pela angústia. Eles ficavam sentados em silêncio e eu movia-me em redor deles, apanhando alfazema e rosmaninho, incapaz de reprimir os anseios do meu próprio coração.
O tempo ficou cada vez mais frio. As chuvas pararam e foram substituídas por dias claros e brilhantes e noite de grandes geadas. As últimas folhas caíram dos freixos, dos vidoeiros e dos grandes carvalhos, cujas raízes estavam agora cobertas pelos restos das suas coberturas de Verão. O legado de Lady Oonagh era grande e terrível. O Velho Tom morreu e a sua neta desenvolveu uma grande farfalheira e um brilho febril nos olhos. Atendi crianças cujos corpos estavam pegajosos de suor, que berravam por água fria, enquanto a neve se amontoava à porta das cabanas. Vi homens fortes ficarem débeis como crianças, agarrando-se às minhas mãos como se estivessem com medo do escuro. Nesse Inverno perdemos dez boas pessoas da nossa aldeia. Se não estivessem fracas devido à falta de tratamento, talvez tivessem conseguido lutar.
Estava cada vez mais cansada e zangada e só o percebi quando um dia Diarmid anunciou, solenemente, que ia em busca da feiticeira, para que fosse julgada e que se ninguém queria ir com ele, o problema não lhe pertencia. Alguém tinha que ser arrojado e ter a coragem para fazer o que tinha de ser feito, disse ele. Pegou na espada e no arco e fez-se à estrada, sozinho. Um pouco mais tarde, de lábios cerrados, Cormack selou um cavalo e foi atrás dele, porque, como ele disse, Diarmid era como uma flecha perdida, que tanto podia encontrar o alvo certo, como o errado e era melhor ele assegurar-se de que um mal maior fosse evitado.
— Eu trago-o de volta são e salvo — disse Cormack, ao mesmo tempo que o seu cavalo se inquietava e escarvava o solo, ansioso por partir. — Há uma criança que deve ser encontrada. O nosso irmão. Diarmid esquece-se disso, na sua paixão. Ficarei ao lado dele até que se recomponha. Voltaremos na Primavera.
Conor esticou-se do lugar onde estava, ao lado do cavalo, para apertar a mão do irmão gémeo.
— Tende cuidado na vossa jornada, irmão — disse ele calmamente.
— E tu também — replicou Cormack com um sorriso torcido.
Seamus veio visitar Liam. Passaram dois dias a conferenciar e chegaram a um acordo para a partilha de homens de armas e para a defesa comum das fronteiras. Falaram de Eamonn de Marshes, que se casara com Eilis. Os seus rostos estavam carrancudos e o comportamento de ambos cheio de intenções. Seamus deixou em Sevenwaters um pequeno grupo dos seus homens e promessas de ajuda. Mas, antes da partida, Seamus esteve sentado com Lorde Colum durante uma tarde inteira, falando calmamente e eu pensei ver um relâmpago de reconhecimento nos olhos do meu pai.
Com Diarmid e Cormack ausentes, aproximámo-nos mais uns dos outros. O Inverno estava a ser terrível e tornou-se cada vez mais difícil manter a aldeia aprovisionada, assim como os postos avançados. Trabalhávamos todos os dias até cair de exaustão. À noite, havia pouca cerimónia. A casa reunia-se, senhores, servos e homens de armas na cozinha, onde um fogo era mantido aceso. Janis providenciava o que podia, geralmente uma sopa e fatias de pão escuro. Comíamos juntos, trabalhávamos juntos. O salão estava deserto, demasiado grande para poder ser aquecido, devido à lenha cuidadosamente racionada. Quando a simples refeição terminava, este ou aquele contava uma história, enquanto Janis ia passando malgas de vinho quente com açúcar, retirado do que eu sabia ser o seu sortido, cada vez mais pequeno, de especiarias e frutos secos.
E lentamente, à medida que uma noite escura se seguia a outra noite escura, os olhos do meu pai começaram a perder aquela expressão morta, gelada e a acordar para as lendas acerca de heróicas batalhas ou amores infelizes. Sorriu um pouco quando eu contei a história da rainha guerreira com um grande apetite por rapazes. Acenou com a cabeça gravemente, quando Padriac contou a velha saga da derrota dos três gigantes por parte de Culhan, cada um maior do que o outro. Até Donal, relutantemente, foi persuadido, uma noite, a juntar-se, contando a grande viagem de Maeldun e as coisas incríveis que encontrou, como uma ilha onde as formigas eram tão grandes como cavalos, ou um pomar de macieiras que dava maçãs todo o ano, ou uma fonte que deitava, com força, leite fresco. Uma vez esta história começada, toda a gente lhe acrescentava uma coisa e passaram-se muitas noites até terminar. O meu pai sentava-se ao pé de Finbar, ouvindo aquela história e uma vez ou duas inclinou-se para o filho, fazendo um comentário em voz baixa, enquanto Finbar acenava com a cabeça muito suavemente. Então chegou o dia em que, em vez de se encaminhar para o jardim, para se sentar em silêncio, o pai foi em busca de Liam, no local onde este estava, observando os homens a adestrar os cavalos. Ficou com ele toda a tarde e o que disseram um ao outro não perguntei. Mas nessa noite havia um novo calor nos seus olhos.
Lentamente, começou a falar e a responder, como se nos conhecesse. No entanto, as coisas não eram como antigamente. O nosso pai parecia um homem muito mais velho. O fardo que carregava, e que nos fizera carregar, era-lhe quase insuportável e creio que, por vezes, apenas um ligeiro fio o mantinha mentalmente equilibrado. Era Finbar que olhava por ele, em silêncio, sempre presente nas sombras, como se a sua mente ajudasse a segurar a do pai, tecendo uma teia de protecção em volta do espírito que ia sarando lentamente. Assim, pai e filho começaram a entender-se mutuamente e uma outra ferida sarou. Mas a vitória fora muito cara. Finbar ficou cada vez mais magro, comendo cada vez menos e sempre sem dizer uma palavra. Não era possível uma pessoa dar tanto de si própria sem um custo terrível.
O meu pai quase não me falava. Dizia para mim própria que isso não era nenhuma novidade. Antigamente, parecia não saber o que fazer da sua filha mais nova, que tanto se parecia com a mãe. Agora, era como se fosse Niamh, tão parecida, que a princípio me confundiu com ela, a quem amou tanto e perdeu. Os meus irmãos contaram-lhe a minha história. Ele sabia que eu casara com um bretão, um daquela raça que ele tanto desprezava. Um daquela raça que nos roubara as ilhas que guardavam o mais sagrado dos lugares sagrados do nosso povo e para nada, apenas como um ponto de apoio para outras aventuras de ira e ganância, para ocupar a nossa terra. Disseram-lhe isso. Mas, tranquilizou-o rapidamente Liam, não fora um casamento a sério. A união podia ser anulada, disse Conor e com o tempo, encontrariam um marido adequado para mim. Com o tempo. Não havia pressa. O meu pai ouvia e não dizia nada.
CAPÍTULO DEZESSEIS
O solstício do Inverno passou e com ele o aniversário dos meus 16 anos. O tempo permaneceu extremamente frio. Ia cedo para a aldeia, levando pão de centeio que Janis e eu fizéramos e uma infusão feita das raízes da erva-férrea, para a neta de Tom, que estava a piorar da febre. A geada estalava sob os meus pés. Fui de cabana em cabana e terminei as minhas incumbências quando o Sol ainda se via por trás da filigrana invernal dos vidoeiros. Ouvi o chamamento queixoso de uma coruja, nas profundezas da floresta e uma outra a responder. Em vez de ir direita para casa, subi a colina para lá dos esqueletos das árvores, a minha respiração uma nuvem de vapor no ar gelado. No topo da pequena elevação sentei-me numa pedra lisa e olhei, para lá do emaranhado de ramos, para a água calma do lago. Tinha uma pedra na bota. Tirei as luvas e procurei para a retirar. Só então olhei para as minhas mãos e percebi que o inchaço tinha, por fim, desaparecido, os dedos pequenos e finos como antes, a pele pálida e suave. Quase como se nunca tivessem manejado a roca ou a agulha, quase como se nunca tivessem ouvido falar em morugem. Tinham as marcas e os arranhões do meu trabalho na cozinha e no jardim, mas mais nada. Talvez tivesse havido alguma magia da floresta, porque durante todo o tempo como curandeira nunca vira uma coisa sarar tão depressa.
Sem pensar, retirei o cordão do pescoço e cortei-o com a pequena faca afiada que guardava no saco, com os meus unguentos e salvas. O pequeno anel de carvalho caiu-me na palma da mão, quente e suave por ter estado encostado ao coração. Enfiei-o gentilmente no terceiro dedo da mão esquerda. Ajustava-se como se tivesse sido feito de propósito; como, na verdade, fora.
Fui assaltada pelas lágrimas, que me escorreram pelas faces numa torrente imparável e não havia ninguém sentado tranquilamente ao pé de mim para me oferecer um lenço lavado quando eu tanto precisava de um. Ninguém sentado por perto, mas não demasiado perto, deixando-me chorar, mas pronto a ajudar quando eu estava pronta a pedir. Cobri o rosto com as mãos, pensando que não conseguiria suportar tamanha dor durante muito mais tempo. Eu só tinha 16 anos. Seria o resto da minha vida passado assim, meio acordada, numa semivida, nunca completa? Que fizera eu para ser assim amaldiçoada
Nada disse uma voz perto.
Olhei através dos dedos encharcados de água. Ela estava na minha frente, olhando-me com gravidade, a capa azul-celeste o único sinal de cor no meio das árvores despidas.
— Fizeste um bom trabalho, filha da floresta. O teu trabalho para nós está quase terminado. Foste forte. Quase demasiado forte.
Funguei. Levara tempo a voltar, ela.
— Quase terminado? — gaguejei eu. — Pensei que tinha terminado. Os meus irmãos regressaram. Completei a tarefa. O que é que falta?
A Dama da Floresta sorriu.
— Fizeste tudo o que te foi pedido e provaste ser corajosa e verdadeira, Sorcha. Só falta uma coisa. Saberás, quando chegar a ocasião.
E já começava a desvanecer-se por trás das árvores.
— Esperai! — disse eu insistentemente, como se uma de nós tivesse uma peste mortal. — Por favor, esperai! Preciso que me digais... preciso que me expliqueis...
— O quê, minha filha? — Ela arqueou as sobrancelhas, como se me achasse divertida.
— Vós magoaste-lo. Magoastes ambos. Dissestes... na altura, na caverna... dissestes-me que eu escolhera bem. Ele não passou disso, de uma espécie de guarda que me destinastes por um certo tempo, de maneira a eu poder completar a tarefa em segurança? Foi esse o único propósito ao aproximá-lo tanto de mim? Por que lançar-lhe semelhante feitiço, ferindo os corações de ambos? Sabíeis que não conseguiríamos esquecer, uma vez a tarefa completa.
A Dama franziu um pouco a testa, baralhada.
— De que feitiço estás tu a falar, minha filha?
— Do feitiço, do encantamento que lançastes sobre Lorde Hugh, para o manter perto de mim, para que me guardasse e vigiasse, mesmo à custa de tudo o que lhe era mais querido. Foi um feitiço cruel, porque eu podia ter tomado conta de mim própria, preferia não ter... — Os meus dedos faziam girar o anel no dedo, freneticamente. Ela riu-se com uma risada alta, alegre, como o barulho de uma cascata.
— Ele não precisou de encorajamento — disse ela. — Acredita-me, não houve qualquer encantamento. É te assim tão difícil de acreditar que um tal homem te possa amar, sem a ajuda da magia? Já te olhaste ao espelho? Não sentiste a tua própria força de espírito, a tua lealdade, a tua doçura? A ele bastou-lhe o tempo de uma batida do coração, para ver essas coisas. Se não fosses tão forte, talvez não o tivesses deixado ir. Talvez a tua história precise de um fim diferente.
— Mas — disse eu estupidamente. — Mas, por que é que ele nunca disse nada? Por que é que ele não me disse?
— Ele tentou — disse ela. Sorriu e abanou um pouco a cabeça, como que divertida com a loucura da humanidade e desapareceu no nada.
E enquanto me dirigia para casa, pela colina abaixo, percebi que ele tentara, na verdade, tentara dizer-me; e fora eu que não ouvira. Com a gentileza das mãos e a doçura do sorriso. Com a ira, quando eu saíra sem autorização e encontrara Richard nos bosques. Na maneira como ele vacilou quando eu lhe toquei, na noite em que John morreu. Não preciso da tua piedade, dissera. Na história que me contou, na praia. Ela era a mulher da vida dele e ele não conseguia desistir dela. Mas ele desistira de mim, sem uma palavra. Percebi, com um sentimento de tristeza no coração, que ele fizera aquilo porque acreditava que a única coisa que eu queria era voltar para casa com os meus irmãos. Como podia saber que eu o amava, quando eu própria mal o sabia? Tentara devolver-lhe o anel e ofendera-o. Assim, manteve a promessa e deixou-me partir. E eu nunca mais voltaria. Como podia deixar a floresta, já que, tal como a sereia, não sobreviveria durante muito tempo longe do lugar do meu coração? Red compreendera isso. Regressei a casa, absorta. Apesar de tudo, apesar do coração despedaçado, sentia um ligeiro calor dentro de mim. Se eu tivesse sabido que ele me amava, nem que tivesse sido por pouco tempo, tornaria a dor mais fácil de suportar.
Nessa mesma noite, quando nos reunimos no calor da cozinha para jantar, vesti o meu vestido azul. Lavara-o cuidadosamente e a mancha que atravessava o peito e a manga mal se distinguia no tecido desbotado. Aquela lavagem tornara o vestido suave e confortável, mas ainda não o vestira desde que chegara, porque me trazia à memória recordações de dor, assim como de alegria. Nessa noite senti-me compelida a vesti-lo e o anel no meu dedo era um símbolo de orgulho. Os meus irmãos repararam todos em ambos os objectos, mas não fizeram qualquer comentário, talvez sensíveis aos sinais de choro no meu rosto.
A sopa de cebola e cevada estava boa e o grande caldeirão de Janis em breve ficou vazio. Em seguida, sentámo-nos com as nossas taças de vinho nas mãos, com o brilho da fogueira nos nossos rostos cansados e Liam disse:
— Quem é que, nesta noite de Inverno, nos vai contar uma história? — Seguiu-se um silêncio e ninguém se ofereceu. Neste solstício de Inverno, não houvera ramos de azevinho sobre as portas nem grinaldas nas janelas, para convidar os espíritos errantes a entrar. Não havia madeira seca disponível para fazer fogueiras e ninguém com energia e vontade de celebrar a passagem da estação. No entanto, havia uma grande amizade entre todos, uma espécie de propósito repartido, que nos unia. Acreditei que até o meu pai sentia isso, ao sentar-se ao lado de Liam, olhando longamente para o seu filho mais velho, que já era um chefe. E para Conor, cujo olhar sereno estava abstracto, absorto em profundos pensamentos. Aquele filho era sábio demais para a idade; em breve chegaria a ocasião de ele deixar a casa paterna e havia uma certa luz de perda nos olhos do meu pai. Por fim, lá estava Finbar, de pé por trás da cadeira do pai, observando tudo e nada dizendo. Aquele era o filho que em tempos tanto enfurecera o pai, com o seu olhar penetrante e palavras francas, com a sua teimosa recusa em jogar os jogos de Lorde Colum. Mas fora aquele filho que curara o espírito do seu pai. E Padriac, o favorito. Padriac, que já não era uma criança. Namoriscava as criadas e ria-se para o pai e Colum devolvia-lhe um sorriso cúmplice.
Ficámos sentados por momentos, falando disto e daquilo, relutantes em abandonar o conforto da cozinha pelos nossos quartos gelados. O fogo estava baixo e Donal acrescentou um dos preciosos troncos. Tinha-se cortado e armazenado mais lenha, mas levaria muito tempo a secar e havia muitos corações para aquecer. Os aldeões tinham levado a primeira provisão e nós ficámos com o que restou.
Então, ouviram-se ruídos no exterior e de súbito todos nós estávamos alerta. A porta foi rudemente aberta e Liam pôs-se de pé imediatamente em busca da espada, colocando-me atrás de si. No outro lado apareceu Donal, de adaga em punho. Conor moveu-se para proteger o pai. No meio de uma rajada de vento frio, entraram dois dos guardas de Liam com um prisioneiro entre eles, um prisioneiro com os olhos tapados e as mãos atadas atrás das costas. Tive um vislumbre de Simon, arrastado até ao grande salão na noite em que Liam ficou noivo de Eilis, um cativo furioso, feroz. Aquele prisioneiro era alto e bem constituído e não oferecia resistência, mantendo-se antes imóvel entre os seus captores como se ter sido levado até ali tivesse sido a sua primeira intenção. Aquele prisioneiro tinha o cabelo cortado muito curto, da cor do sol no Outono reflectido nas folhas das faias, uma chama viva na noite fria.
Abri a boca e a mão de Liam subiu imediatamente, tapando-ma e silenciando-me. Donal segurou-me no braço, impedindo que me aproximasse. Assim, impedida de qualquer movimento ou fala, limitei-me a olhar enquanto Red era arrastado para se apresentar perante os homens da minha família. Os guardas soltaram-lhe os braços e afastaram-se. A cozinha ficou em silêncio. Aquilo, sentiram as pessoas, prometia ser um entretenimento melhor do que qualquer história.
— Eu conheço este homem — disse Liam, franzindo o sobrolho para mim e retirando a mão da minha boca, mas fazendo-me sinal de que devia ficar calada. Indicou-me um assento e, de momento, obedeci-lhe. Pensava que o perímetro estava bem guardado. Como é que ele conseguiu passar despercebido?
— É estranho, meu senhor — disse um dos homens, que parecia um pouco ofegante. — Deve ser feitiçaria, porque ele apareceu na colina vindo de norte e desceu depois através dos bosques de freixo, quase até à cerca exterior, sem os nossos homens o ouvirem. Não sei como é que ele o fez. Depois, apareceu mesmo à minha frente e deixou-se prender. Para um homem tão grande, faz pouco barulho.
— Não deve ser muito bom da cabeça — alvitrou o outro guarda.
— Eu falo convosco amanhã — grunhiu Donal de modo selvagem, fazendo os dois homens tremer. — Não passa ninguém, percebestes? Ninguém.
— Que quereis daqui, Hugh de Harrowfield? — inquiriu Conor severamente, na língua estrangeira. — A tua raça está longe de ser bem-vinda em Sevenwaters. Ainda não causaste danos suficientes à minha família? Espanta-me que te tenhas atrevido a pôr os pés nesta casa.
Red aclarou a garganta:
— Estou aqui porque quero falar com a minha mulher — disse ele por trás da venda que lhe tapava os olhos. — Onde está Jenny?
O meu coração bateu desconsoladamente. Conor traduziu para os outros, carrancudo. Liam olhou para mim, levando o dedo aos lábios, avisando-me para me manter em silêncio. Mas eu precisava de lhe dizer, preciso de lhe dizer...
Espera Sorcha. É altura de ele falar.
Olhei para Finbar, na sombra. Nunca me dera ordens sem uma boa razão.
Porquê? Por que devo manter-me calada?
Se queres ouvir as palavras que lhe vão no coração, espera e mantém-te calada.
— Quem é este homem? — perguntou o meu pai, quase parecendo o meu pai de antigamente. — Que mulher?
— Este é o bretão de que te falámos — disse Liam, com a voz fria. — Em cuja casa a nossa irmã esteve perto da morte. Ajudou-nos a escapar daquelas costas, mas não lhe devemos nenhuns favores.
— Espanta-me como este tipo tem a ousadia de mostrar a cara por estas bandas — disse Donal, acariciando o seu punhal. — Quais são as intenções dele?
A venda era forte e estava bem apertada. Red não podia ver nada. O seu rosto estava branco por baixo do tecido escuro. Fizera uma grande jornada. Parecia estar desarmado, se bem que eu suspeitasse que devia trazer uma faca pequena e afiada, algures no seu grande corpo.
— Só desejo ver a minha mulher — disse ele de novo, bastante cansado. — Não vos quero fazer mal algum. Onde está ela?
— Tu não tens mulher, bretão — disse Liam, quando tais palavras lhe foram traduzidas. — A nossa irmã está protegida e feliz entre os da sua raça. Não há lugar para ti na vida dela. — A tradução de Conor foi cruelmente precisa.
— Então, deixa que ela mo diga com os seus próprios lábios — disse Red calmamente. — Ela que mo diga e eu vou-me embora.
Abri a boca e voltei a fechá-la.
Então o meu pai falou, surpreendendo-nos a todos.
— Tivemos pouco entretenimento esta noite, cansados como estamos. Talvez este tipo tenha uma boa história para nos contar nesta noite de Inverno. Talvez se possa defender através dessa história. Trazei um assento para o bretão e dai-lhe espaço. Deixai-o falar e ouçamo-lo em silêncio. Conor traduzirá as suas palavras. Será uma tarefa árdua. Pressinto aqui um mistério; não julgarei precipitadamente.
Foi-lhe trazido um banco e Red sentou-se, as longas pernas cruzadas e a venda sempre a tapar-lhe os olhos. Não lhe desamarraram as mãos. Sentado, de costas direitas, hirto, a luz do fogo dava-lhe uma tonalidade ao mesmo tempo dourada, escarlate e acobreada ao cabelo. Eu respirava com dificuldade. À minha volta, Janis, Donal, os homens e as mulheres da casa permaneciam em pé ou sentavam-se com as taças na mão, de olhares expectantes. Não sabia o que sentir. Estremecia de prazer por poder vê-lo de novo. Olhei para os homens da minha casa que, parecia, estavam sempre a pregar partidas; que não aceitavam um estranho sem o sujeitarem a uma prova qualquer. Pedissem a Red que lutasse com a espada, com a pequena faca, ou com as mãos e os pés e ele seria mais do que um desafio para qualquer um deles. Eu própria o vira. Pedissem-lhe que reconstruísse um muro caído, ou tratasse de um animal doente, ou refazer uma aliança e ele era homem para isso. Mas ele não era um contador de histórias; ainda por cima numa reunião de estranhos como aquela. Não era um actor. Contara-me, uma vez, uma história; mas fora apenas para mim e não dissera a sua mãe que ele falava comigo como consigo próprio? A tarefa que o meu pai lhe destinara era a mais difícil que lhe podia ter dado. Para um tal homem, que guardava os seus sentimentos só para si, sempre reprimidos, cujos olhos frios e boca sempre fechada não deixavam transparecer nada, cujas palavras lhe faltavam quando deixava o coração falar, aquele era um desafio cruel. Tu podes fazê-lo, disse-lhe eu silenciosamente. Conta a tua história só para mim. Um passo depois do outro, sempre em frente.
— Era uma vez... era uma vez um homem — começou ele hesitantemente — que tinha tudo. Bem-nascido, rico, saudável de corpo e alma, cresceu como o filho mais velho e herdeiro de um grande domínio, cujas fronteiras eram a oeste o mar e a leste os montes, cujos campos eram férteis e cujos rios abarrotavam de peixe.
A voz de Conor era de um contraponto grave, ao traduzir as palavras para a nossa língua. Finbar estava à janela, de olhos fixos no nada. Ele compreende, pensei. Não apenas as palavras, mas o significado por trás delas. Finbar e eu somos os únicos a saber. Mas as feições graves de Finbar e o seu olhar desfocado não denunciavam nada.
— Ele cresceu — continuou Red — o pai dele morreu e o domínio passou a ser dele, salvo uma pequena parte que ficou para o seu irmão mais novo. A sua vida estava planeada, cada pormenor previsto. Faria um bom casamento, expandiria as suas terras, sustentaria a sua família e o povo que dele dependia, continuaria o trabalho dos seus antepassados. É este o destino de muitos homens, cumprindo o seu dever, esperando legar aos filhos paz e prosperidade. — Mexeu-se levemente. As suas mãos, ainda atadas atrás das costas, pareceram apertar-se uma contra a outra.
— Então... então as coisas mudaram. Uma maldição caiu sobre a sua família, levando-lhe o irmão mais novo. Com o passar do tempo, tornou-se evidente que tinha de ir à procura dele, quer estivesse morto, ou vivo. Mas ele amava a sua casa, as suas terras e acreditava que havia poucas esperanças de que o seu irmão estivesse vivo. Acreditava que ele estava perdido para sempre. E assim esperou, esperou, até que não teve outro remédio senão atravessar o mar e procurar a verdade.
Houve uma pausa. Talvez eu fosse a única pessoa a saber que ele a utilizava para ordenar os seus pensamentos, para forçar a respiração a abrandar e manter-se firme, para conseguir que a sua voz continuasse confiante. Para os outros, continuava a ser apenas uma história como todas as outras que todos contávamos, noite após noite, histórias cómicas e estranhas, histórias heróicas e de espantar, histórias que nos faziam sonhar.
— O homem viajou até longe e ouviu e viu muitas coisas estranhas nas suas viagens. Soube que... que o amigo e o inimigo não passam de duas faces da mesma moeda. Que o caminho que pensamos escolhido há muito, constante e imutável, direito e extenso, pode alterar-se num instante. Pode ramificar-se e levar o viajante a lugares muito para além dos seus sonhos mais incríveis. Que há mistérios que estão para além da compreensão humana e que negar a sua existência é passar a vida num estado semiconsciente.
Vi o meu pai a acenar com a cabeça gravemente quando ele chegou àquele ponto. Mas Liam e Conor continuavam de sobrolho franzido e maxilares cerrados e Donal continuava carrancudo.
— Uma noite, tudo mudou. Ele... ele salvou uma jovem de morrer afogada; e a partir do momento em que a arrancou das águas, meio morta de fome, meio selvagem, soube. A partir desse momento, cada passo que dava, cada decisão que tomava, passava a ser diferente, por causa dela. Pouco mais era do que uma criança, perdida, ferida e assustada. Mas forte. Oh, ela era a pessoa mais forte que ele já tinha encontrado. Tivera oportunidade de se aperceber disso na difícil jornada de regresso a casa, na maneira como ela se manteve a seu lado; como o tratou, apesar de ser seu inimigo. Como... como lhe mostrou coisas que estavam quase para além da sua compreensão, tão estranhas e espantosas pareciam. Sobre isso não falarei mais, porque alguns segredos devem permanecer secretos.
Inclinou um pouco a cabeça e respirou fundo.
— Na casa dele ela era como uma criatura selvagem, subitamente largada no pátio da herdade, como uma coruja inexperiente num galinheiro. No seu profundo silêncio, na estranha tarefa que era compelida a realizar, trabalhando sob imensas dores e numa grande solidão, sob os olhares críticos da família dele, provocou nele uma profunda confusão nunca antes conhecida. Pouco mais podia fazer do que protegê-la; parecia-lhe imperativo mantê-la em segurança. Não compreendia o que ela fazia, mas sabia, de algum modo, que tinha de a ajudar a completar a sua tarefa, se queria ter a oportunidade de lhe ouvir a voz, se queria ter a oportunidade de lhe dizer... de lhe dizer...
Abri a boca para falar e retive as palavras. Mas devo ter emitido um som qualquer, porque Red ficou muito quieto por um momento e virou a cabeça. A espessa venda cortava-lhe qualquer possibilidade de visão; mas sabia, agora, que eu estava ali.
— Na sua casa ela cresceu e mudou, continuando, no entanto, a ser ela, sem qualquer dúvida. Forte, doce e verdadeira. Sem palavras, falava com ele como mais ninguém, direita ao coração, com as suas mãos desfiguradas e os grandes olhos verdes. Se bem que, por vezes, lhe faltassem as palavras, ela compreendia-o como ninguém antes. Ele via-a chorar por causa das mãos, inchadas e ásperas devido ao trabalho e ouvia outras pessoas chamá-la de feia. Via o que os outros não eram capazes de ver, via o poder, a gentileza e a beleza daquelas mãos e ficava acordado, de noite, desejando que lhe acariciassem o corpo. Mas ela fora ferida, aterrorizada e evitava-o. Ele não lhe podia dizer, por palavras, o que lhe ia no coração. Preferia não se arriscar a assustá-la, porque, se a perdesse, perderia tudo. A cada dia que passava, mais compreendia, enquanto tratava dos assuntos da herdade e da casa. Sem ela, a vida não significaria nada.
Havia uma repugnância nítida na voz de Conor à medida que ia traduzindo, mas ele procurava ser preciso, já que, pelo menos, três dos presentes percebiam a língua dos Bretões. Então, Conor disse:
— Começo a não gostar nada desta história. — O seu tom de voz era como uma facada. — Se esse homem possuía tais sentimentos, por que deixou a rapariga à mercê do seu parente, que era ao mesmo tempo traidor e louco? Como pode um homem culpado de semelhante erro de julgamento merecer uma mulher sem par, como essa criatura que descreves?
— Com o devido respeito — disse Red e a sua voz baixara tanto que as pessoas começaram a mandar-se calar umas às outras para poder ouvi-lo — a minha história ainda não acabou; devíeis ouvir-me até ao fim. E é a resposta dela que eu venho ouvir, não a tua.
— Deixai o homem acabar — disse o meu pai. — Para um bretão, sabe falar. Ouvi-lo não nos faz mal nenhum.
— O meu pai diz para continuares. — O tom de Conor foi brusco quando se dirigiu a Red.
— Obrigado pela vossa cortesia, meu senhor — disse Red, virando a cabeça na direcção do meu pai. Virou-se novamente para Conor. — Tens razão — continuou ele. — Esse homem cometeu, como disseste, um erro de julgamento. Um erro que ainda o faz ficar acordado de noite, cheio de terror, pensando em como esteve quase a perdê-la naquela fogueira. Em como a sua negligência quase custou a vida da rapariga e a hipótese de completar a terrível tarefa que tanto significado tinha para ela. Pensou que ela estava segura, protegida pelo seu nome e pelo casamento, salva, no coração da sua família. Arriscou-se a viajar para encontrar o seu irmão perdido, que estava também em grande perigo; regressou a tempo de a salvar. Nunca sentira tanto medo como nessa noite; nunca ouvira um som como aquele, que quase lhe fez parar o coração, o da voz dela chamando pelo seu nome, avisando-o do perigo, num momento em que ela própria estava em perigo de vida. Por um momento, pensou permitiu-se pensar por um pequeno instante, em tomá-la nos braços e o seu coração recomeçou a bater de novo. Mas, depois, largou-a, porque ela estava rodeada de homens fortes, protectores ferozes, da sua própria raça. Estava, de novo, salva e a razão para aquele tempo tão cruel, de fiar e tecer chegara ao fim. Ela sacrificara a sua infância para salvar os irmãos; amava a sua família mais do que a si própria e o seu espírito ansiava pelo regresso a casa uma vez mais, para a floresta selvagem, para a terra das histórias míticas e dos antigos espíritos, de onde ele a tirara. Aquele era o lugar do seu coração e se ele a amava, devia deixá-la partir.
Os sentimentos das pessoas começaram a mudar subtilmente. Apreciavam uma boa história; e aquela estava a ser contada com sentimento, se bem que algo hesitantemente. Janis tinha os olhos fixos no contador. Ouvi-a sussurrar para uma das criadas.
— Aquilo é um homem e tanto. Se ela não o quiser, serei a primeira a oferecer-lhe uma cama quente para passar a noite.
E então senti a voz interior de Finbar, que eu pensara nem sequer estar a ouvir, tão distante era a sua expressão.
Este homem é bom, Sorcha.
Eu sei.
Suficientemente forte para dizer, na nossa frente, que estava errado. Muito forte.
Eu sei.
— Ele não conseguiu dizer as palavras certas para lhe dizer adeus. Hesitou. Magoara-a ao falar na dor da sua alma. Jurara que não a magoaria, mas magoou. Ter-lhe-ia dito... ter-lhe-ia dito, não interessa se estás aqui, ou ali, porque, para mim, estás sempre presente, a cada momento. Vejo-te na luz da água, no abanar das árvores jovens ao vento da Primavera. Vejo-te nas sombras dos grandes carvalhos, ouço a tua voz no chamamento da coruja, à noite. Tu és o sangue nas minhas veias e no bater do meu coração. Tu és o meu primeiro pensamento, ao acordar e o meu último suspiro antes de adormecer. Tu és... tu és carne da minha carne, sangue do meu sangue.
A sua voz caíra para um sussurro. O meu rosto estava marejado de lágrimas.
— Diz-lhe — disse Liam — diz-lhe que se pensa que as suas lindas palavras de amor lhe devolvem a nossa irmã como esposa, está muito enganado. Sorcha nunca mais regressará àquele lugar; ela é a filha de Sevenwaters e a Sevenwaters pertence.
Conor traduziu, acrescentando:
— Mais valia teres desistido, na altura. E não dares-te ao incómodo de vir até aqui. Sorcha tem apenas 16 anos e está sujeita à autoridade do seu pai. Não pensas, com certeza, que mesmo que ela quisesse, ele permitiria que ela atravessasse o mar para se juntar a um bretão.
Red respirou profundamente.
— Na verdade, tal pensamento estava longe da minha mente. Eu não teria vindo, se... se... ela não me tivesse dito adeus como disse, eu não teria vindo. Mas... mas... ela disse... quero dizer, acreditei que havia ainda uma pequena esperança, uma réstia, que talvez ela... quer dizer...
— A tua história acabou? — Conor era inflexível. — Tens mais alguma coisa a dizer? Está a fazer-se tarde e está frio.
— Deixa-me tornar isto bem claro — disse Red, a sua voz mais firme. — Compreendo muito bem que a vossa irmã não possa regressar. Nunca esperei isso. Foi por essa razão que demorei tanto a vir aqui. O suficiente para pôr em dia os negócios em Harrowfield, o suficiente para ver o meu tio ser castigado pelas suas maldades e para passar a responsabilidade da minha casa e do meu domínio para o meu irmão. Eu não volto para lá. Quer Jenny me queira, quer não, desisti daquela vida.
Seguiu-se um silêncio total. A grandeza de tal decisão não passou despercebida a ninguém. Até Conor, depois de ter traduzido aquelas palavras, não soube o que dizer. Quanto a mim, mal me apercebi do que Red dissera. No entanto, sabia que devia ser verdade. As suas belas terras, o rio brilhante, os rebanhos e as manadas e o povo que tanto o amava. O vale com o seu suave manto de carvalhos, faias, vidoeiros e salgueiros. O registo cuidado de gerações. O meu retrato estava na última página desse diário. A última página do último livro. Nunca mais veria os carvalhos novos crescerem para abrigar as criaturas selvagens de Harrowfield. Desistira de tudo aquilo por mim.
— Pensas ficar aqui? — perguntou Liam, incrédulo, quebrando, finalmente, o silêncio. — Um bretão na nossa casa, casado com a nossa irmã, que nós amamos mais do que as nossas próprias vidas? És louco.
Virei-me para o meu irmão, furiosa.
Espera só um pouco mais, foi o aviso silencioso de Finbar e eu reprimi as palavras de ira.
Então, o meu pai pôs-se de pé lentamente.
— Desata-lhe as mãos, Sorcha — disse ele gravemente. — Retira-lhe a venda que lhe tapa os olhos. A decisão e a escolha pertencem-te. Já és uma mulher e o sacrifício que fizeste pelos teus irmãos deu-te o direito de escolheres o teu próprio caminho, apesar de não ser do nosso agrado.
Parecia que Liam ia falar, mas pensou melhor. Lorde Colum era, afinal de contas, o chefe daquela casa. A cozinha encheu-se de um silêncio de profunda expectativa. Red não compreendera uma única palavra do que o meu pai dissera.
Fui até onde ele estava sentado, pus-me diante dele e estendi os braços para lhe desatar a venda. Fiz aquilo com a mão direita; mas a esquerda, que ostentava o seu anel, deslizou-lhe para o pescoço, onde a pele era branca, entre a túnica e o cabelo cortado curto e ali ficou pousada, o mais suavemente possível. Red suspendeu a respiração abruptamente.
— Desata-me as mãos — disse ele com uma intensidade que me deixou trémula. Debrucei-me e tirei-lhe a pequena faca, do sítio onde eu sabia que estava, escondida nas perneiras da bota esquerda, coloquei-me atrás dele e cortei uma, duas vezes, as cordas apertadas que lhe atavam as mãos. Ele levantou-se, virou-se e os seus braços rodearam-me e envolveram-me, como se nunca mais quisessem largar-me. Senti os seus lábios tocarem-me na testa, muito castamente, pois, mesmo em semelhante ocasião, sentia um terrível constrangimento. Mesmo agora, parecia inseguro de mim. Mas os seus olhos já não estavam gélidos, não tinham a máscara da indiferença. Em vez disso, brilhavam, azuis como o céu de Verão e a mensagem contida neles era fácil de ler e simples de responder. Pus-me em bicos de pés, rodeei-lhe o rosto com as mãos e puxei-lhe a cabeça para baixo, de modo a poder beijar aquela boca cerrada, teimosa e insubmissa. Não tinha prática alguma naquela arte, mas saí-me bastante bem; mais tarde, Padriac disse-me que eu fizera Liam corar, o que não era proeza fácil. Foi um beijo que nunca supus ser capaz de dar; um beijo que imediatamente lhe disse qual era a minha resposta. Por um instante, ele recuou e murmurou:
— Não sou digno de uma tal oferta, Jenny. — Encostei os dedos aos lábios dele para o silenciar.
— Meu amado — murmurei eu dou-to a ti e a mais ninguém. Então, a boca dele desceu em direcção à minha e mostrou-me a força da sua paixão, enquanto os nossos lábios se colavam, saboreavam e se afastavam, enquanto procurávamos respirar ofegantemente e se colavam e saboreavam de novo. E não eram só as minhas lágrimas salgadas que corriam enquanto as mãos dele me afagavam o cabelo, me puxavam o corpo contra o dele, de maneira que fiquei a saber a força do seu desejo por mim. Aquela jornada, longa e difícil para ambos, terminara e a doce excitação que me percorria todas as fibras do corpo dizia-me, ao mesmo tempo, que era o começo de um novo caminho.
O meu pai aclarou a garganta, forçando-nos voltar ao presente. Virámo-nos, tontos, para olhar em redor. A cozinha estava quase vazia; não nos apercebêramos da saída de toda a gente da casa, à excepção do meu pai e de Finbar, silencioso.
— Leva o teu homem, filha — disse o meu pai com um pequeno sorriso, apesar de os seus olhos brilharem com recordações penosas. — Arranja-lhe um lugar aconchegado para dormir. Amanhã, teremos muito tempo para conversar. — E então enrolou-se na capa e saiu, seguido de Finbar. O meu irmão parou momentaneamente na soleira da porta, a única asa branca de um tom rosa-dourado à luz das velas. E desta vez falou em voz alta:
— Finalmente, a história terminou — disse ele numa língua que todos podíamos entender. — Sejam felizes. Mereceis-vos um ao outro. A dádiva de um tal amor só é concedida a poucos Deveis fazer com que cada dia conte.
Red encostou os lábios ao meu cabelo. Vi Fimbar deslizar pela porta, como uma sombra. Então, peguei na mão do meu marido e conduzi-o aos meus aposentos, onde alguém acendera a lareira e colocara velas, vinho e cálices, além de um raminho de alfazema seca sobre a almofada. Apercebi-me que era com esforço que Red controlava a respiração e eu própria não estava melhor.
— Eu... eu receio ter de te magoar — disse ele — mas... mas preciso de ti, Jenny, anseio por ti, creio que não consigo.
— Ehhh — disse eu. — Está tudo bem. Não te preocupes.
A vida real não é como nas histórias. Nas velhas lendas, as coisas más acontecem e à medida que o conto se desenrola e chega ao seu fim triunfal, é como se as coisas más nunca tivessem acontecido. A vida não é tão simples assim. Seria bom poder esquecer, por completo, o mal feito ao meu corpo e à minha mente naquele dia, na floresta, por homens que me usaram brutalmente. Mas tais coisas nunca se esquecem totalmente, apesar de se desvanecerem um pouco com os anos. Desse modo, deitados, juntos, pela primeira vez, houve um momento em que tive um sobressalto de medo ao recordar e o meu corpo gelou e tremeu. Mas Red abraçou-me, afagou-me o cabelo, falou-me docemente, pequenas palavras murmuradas e esperou por mim. E, finalmente, o meu corpo abriu-se para o dele, como uma flor, movendo-nos lentamente em conjunto e depois mais rapidamente, enquanto suspirávamos e gritávamos e encontrávamos satisfação nos braços um do outro. Ele demonstrou-me que a união entre um homem e uma mulher é, na verdade, algo maravilhoso, delicioso e divertido. Reparei que, até essa noite, nunca o ouvira rir. E quanto aos mexericos de Harrowfield sobre o meu marido, eram verdadeiros, se bem que não lhe fizessem justiça.
A primeira coisa que Red fez, mal nos levantámos na manhã seguinte, meio aturdidos de felicidade, com sorrisos tontos nos rostos e incapazes de manter as mãos afastadas um do outro, foi ir comigo à aldeia e enquanto eu atendia este e aquele, dedicou-se a aprender os nomes de cada homem, mulher e criança e como cumprimentá-los cortesmente na sua língua. A princípio, olharam para ele com um certo mal-estar. Mas os seus esforços hesitantes, tentando ser compreendido, provocaram sorrisos e ditos espirituosos e eles viram o que estava a acontecer connosco. A mim, conheciam e amavam e se ele era o meu homem, então estava tudo bem, fosse ele bretão ou outra coisa qualquer. Em breve era detido para admirar uma porca premiada, para aconselhar, através de complicados sinais de mãos, a maneira de substituir a madeira podre numa vacaria, ou para ajudar a segurar num poste, enquanto os suportes eram afixados. Ao fim de pouco tempo, tinham sido todos conquistados.
Em casa foi mais difícil. Naquele primeiro dia, sofreu um pouco a troça de Donal e Liam, porque se era ponto assente que eu fizera a minha escolha, isso não queria dizer que eram obrigados a gostar dele.
Conor, surpreendentemente, disse pouco. Surpreendi os seus graves olhos em mim, observando-me com uma espécie de aceitação perversa e quando mais tarde me afastei um pouco com ele, disse:
— Achaste que aquilo foi injusto, não achaste? Fazer com que um homem se revelasse assim, perante nós?
— Foste duro com ele — disse eu. — Pensei que tu, pelo menos, conseguisses ver nele aquilo que ele é, na realidade, sem semelhante prova.
Conor sorriu.
— Sem semelhante prova, talvez ele nunca te dissesse o que sente por ti. Eu já sabia muito bem que tipo de homem ele era. Sabia que acabaria por ser assim, convosco. Não consigo ver o futuro, como Finbar; mas este encontro de espíritos era inevitável, tão inevitável como o percurso do Sol e da Lua no céu. Já o sabia há algum tempo; mas seria um erro facilitar-lhe as coisas. Tínheis ambos de sentir o poder da perda, antes de vos reunirdes. Diz-me, ela visitou-te, aquele ser do outro mundo que te ajudou no teu caminho? Voltaste a vê-la desde que regressaste a casa?
— Como é que sabes? — Estava espantada e teria ficado aborrecida, não fora a aura de alegria tão forte, em mim, suficiente para afastar tudo o mais.
— Preciso de pôr as minhas capacidades à prova, de tempos a tempos — disse Conor. — Não são grandes; têm sido suficientes até agora, mas não por muito mais tempo. Devo deixar este lugar em breve para ir para longe e pode passar-se muito tempo antes de te poder ver de novo. Fico satisfeito por te ver tão feliz após tanto sofrimento. Acredito que tudo isto foi predestinado.
— Não estás a dizer... não estás a dizer o que penso que estás a dizer? Que tudo isto... tudo... foi planeado? Que ele e eu... não, não posso acreditar.
As palavras dele enchiam-me de confusão. Tinha de estar errado, claro. Não éramos meras marionetas, mas sim homens e mulheres, fazendo as nossas próprias escolhas.
— Uma coisa é certa — disse ele. — Nunca obterás uma resposta por parte das Criaturas Encantadas. Mas é um jogo que eles jogam há muito e as nossas histórias não passam de pequenas peças no grande tabuleiro. Pensa nisso. Cada um de vós foi sujeito a muitas provas; cada um de vós provou ser forte, suficientemente forte para os propósitos deles. Tão fortes, na verdade, que quase lhes frustrastes os planos, porque cada um de vós escolheu abdicar daquilo que era considerado melhor, na esperança de que o outro encontrasse a felicidade. As Criaturas Encantadas não contavam com semelhante generosidade.
— Mas... mas foi uma crueldade. Para nós o fim foi bom, mas e o pai? E Finbar? E houve um homem do... do povo do meu marido, um bom homem, que morreu protegendo-me. E o bebé que Oonagh levou com ela? Diarmid e Cormack foram-se embora e tu, segundo dizes, também te vais; em breve não haverá família alguma em Sevenwaters. Quase acredito no que Lady Oonagh disse naquele dia, que ela e a Dama da Floresta eram uma única, porque a linha que separa a luz das trevas é muito ténue. Que fim justifica tais perdas?
— Eles preocupam-se pouco com quem põem de parte — disse Conor. — Neste jogo há, como disse, um objectivo mais profundo do que podemos compreender. Talvez esteja errado. O tempo o dirá. A tua parte nele, penso, chegou ao fim e o teu caminho, agora, é a direito e verdadeiro. Haverá aqui uma família e bons anos se avizinham. Mas há uma coisa de que não te podes esquecer, se bem que possas esquecer tudo o resto. O bem e o mal não existem, salvo na maneira como vês o mundo. Não há trevas nem luz, salvo na tua visão. Tudo muda com um simples pestanejar; no entanto, permanece na mesma. Se quiseres saber o futuro, pergunta a Finbar. E agora, chega de conversa séria. É melhor ires e libertar Lorde Hugh das garras de Liam, antes que ele sofra mais. Vai, desaparece.
Até ao momento, Red tinha-lhes respondido como deve ser. Que ficaria, tomaria conta de mim e que se tornaria útil. Que tinha capacidades que podiam ser empregues, no acasalamento do gado, por exemplo, e no manuseamento das colheitas. Podia lutar, se necessário, mas havia uma coisa que não faria, que era pegar em armas contra os da sua raça. Que ficasse entendido que não faria isso por conta deles. O pai acenou com a cabeça, satisfeito. Donal grunhiu, dizendo que era tudo conversa fiada; uns bons golpes no pátio e ver-se-ia do que o homem era capaz. Red, como eu esperava, aceitou o desafio imediatamente. Sugeriu que talvez à tarde fosse uma boa ocasião. Os olhos de Donal brilharam. Liam, de maxilas cerradas, não dizia grande coisa. Então, avancei pelo salão onde eles estavam; um sorriso doce encurvou a boca de Red quando me viu e um brilho quente apareceu-lhe nos olhos, reflexo, talvez, dos meus. Coloquei-me ao lado dele e cada um de nós rodeou o outro com um braço, porque era impossível estar tão perto e não nos tocarmos.
— Muito bem — disse Liam. — Se estás pronto, podes mostrar-nos as tuas habilidades. Tens a certeza que és capaz?
— Penso que sim — replicou Red gravemente.
Não era, certamente, do seu interesse fugir para o andar superior comigo, mas não havia maneira de o evitar, porque os nossos corpos falavam um com o outro de uma maneira que não podia ser negada. Suponho que estávamos a recuperar o tempo perdido. Mais tarde, fiquei deitada na cama, envolta apenas num lençol e observei-o a vestir-se com uma certa relutância.
— Não estás cansado? — perguntei, sorrindo. — Os meus irmãos são peritos nas artes da guerra e devem estar mortos por poderem prová-lo. Tens a certeza que consegues fazer-lhes frente?
Ele passou a túnica pela cabeça.
— Hoje era capaz de derrotar três gigantes, cada um maior e mais feio do que o outro, sem esforço nenhum — disse ele. Já estava a começar a falar como um dos nossos. — Fica aqui, volto daqui a instantes. — Tocou nos meus lábios com os dele, tirando-os com alguma dificuldade e saiu, afivelando uma espada emprestada.
Não fiquei na cama, indo antes até uma janela, de onde os podia ver. Foi um assalto interessante. Liam e Red equiparavam-se, pensei; a vantagem que Liam tinha, devido à experiência, era equilibrada pela maior altura e corpulência de Red e pela leveza de pés. Em qualquer dos casos, o que começou por ser um feroz combate, passou a uma demonstração e depois a uma lição, primeiro por um e depois pelo outro, nas técnicas de combate com arma e sem arma. Donal envolveu-se também e depois um grupo de outros homens. Vi Red ensiná-los como executar o pontapé voador, com o pé esquerdo estendido; em seguida foram trazidos cavalos e vi Liam mostrar a Red o truque de deslizar para o lado para evitar um golpe e depois novamente para cima, num único movimento fluido. Ambos ostentavam uns tantos golpes. Ouvi o som de gargalhadas. Como Diarmid teria gostado de mostrar as suas habilidades com a lança, pensei. E Cormack, que se teria metido no meio daquilo tudo, volteando, com um chuço na mão. Ainda não havia notícias deles; os seus lugares à mesa continuavam, vazios. Deixei-os e subi os degraus de pedra, lá para cima, para o local onde me podia sentar, nas lousas do telhado, olhando para longe, sobre a névoa cinzento-azulada da floresta. Sabia que encontraria ali Finbar. Sentei-me ao pé dele, tremendo um pouco, porque a brisa estava fresca.
— Fala comigo, meu querido. Com tanta alegria no meu coração, custa-me ver a tua solidão
— Não terás que a suportar por muito mais tempo.
— O quê? — disse eu em voz alta, porque as palavras dele me chocaram. — Que queres dizer?
— Não demorará muito. Já não faço falta nenhuma aqui.
— Onde vais?
— Para longe. — Estava a ser cuidadoso; a sua mente estava fechada, salvo para a breve mensagem, que era tudo o que pretendia dar-me.
— Por que é que nunca mais falaste comigo? O que é que se passa?
Ele mexeu-se levemente nas lousas frias e a asa ergueu-se um pouco, para o equilibrar.
— És tu que me perguntas?
Ficámos em silêncio. Não conseguia imaginar qual seria o futuro dele; sabia apenas que em tempos ardera com o desejo de endireitar o mundo, ver a justiça ser aplicada e a verdade revelada. Esse rapaz apaixonado desaparecera; e eu não conhecia o homem que o substituíra.
— Há alguma coisa que queiras saber?
Abanei a cabeça. Tinha decidido não lhe perguntar o que o futuro me reservava. Esperava que fosse bom, feliz e que teria sempre o meu marido a meu lado.
Não lhe perguntaria.
Enquanto estávamos ali sentados, formou-se uma imagem na minha mente. A princípio pensei que era uma que ele me mostrara antes, na qual a pequena Sorcha pulava e corria sob as grandes árvores, com luzes sarapintadas caindo em redor dela. Mas esta era diferente, porque a criança tinha cabelos cor de cobre, que lhe caíam pelas costas numa cortina brilhante e havia outra que corria atrás dela, um rapaz de cabelos escuros, que a chamava:
— Niamh! espera por mim!
Eram as mesmas crianças que eu vira na minha mente, no dia da fogueira. E algures, na orla da imagem, havia outra criança, de olhar desvairado; não conseguia ver esta figura muito bem. A rapariga abriu os braços e começou a girar, os pés descalços pisando levemente a terra com o vestido girando também em turbilhão; e a luz do Sol atravessou a copa das árvores e transformou-lhe o cabelo castanho-avermelhado em puro ouro. Depois a luz desvaneceu-se e a imagem desapareceu, ao mesmo tempo que o meu irmão fechava a mente com firmeza.
— É tudo o que vejo.
— E chega. — Tremi de frio, de novo. Esquecera-me de pôr uma capa por cima dos ombros.
— Ir-nos-emos todos embora, uns a seguir aos outros. Não haverá filhos. Serão os teus e os dele que herdarão Sevenwaters.
— Não digas isso! — Falei alto, rispidamente. — Não tentes o destino! Não podes saber tudo.
— Mas sei algumas coisas.
Voltou a retirar-se para o silêncio, os olhos fixos no horizonte, para lá do lago, para oeste.
Algum tempo mais tarde, chegaram homens em busca de Conor. Dois homens muito velhos, que viajavam a pé. Os cabelos deles eram constituídos, ambos, por pequenas tranças, usavam colares de prata no pescoço e vestidos que esvoaçavam fluidamente em volta dos seus corpos magros. Era o chamamento de que ele estava à espera. Achei difícil de acreditar, a princípio, que ele fosse capaz de abandonar a nossa casa com tanta facilidade, porque sempre estivera presente, a voz do equilíbrio e da razão, o irmão que tivera a força de vontade para arrastar os irmãos até Harrowfield, sobre o mar, para serem, finalmente, libertados. Mas aquele era o seu chamamento. Porque não podia aprender a antiga tradição, nem os ofícios místicos e ao mesmo tempo proteger a família e a túath. Precisava de penetrar nas florestas e nas cavernas profundas, para lá do alcance e do conhecimento das pessoas normais. Passar-se-iam anos, muitos anos de estudo e prática, antes de se poder tornar num dos da irmandade.
Pareceu-me que os olhos daqueles dois anciãos olhavam para o meu irmão com profundo respeito, apesar de ser um noviço. Não passara ele quase três anos como criatura selvagem, conservando a sua consciência humana durante esse tempo todo? Não possuía ele já consideráveis capacidades como manipulador dos elementos, como instigador das brumas cegas e do vento caprichoso? Talvez já fosse tarde, mas não tão tarde que não pudesse começar os seus anos de disciplina. Tornar-se-ia forte; um dos mais fortes da sua espécie. Orgulhava-me dele, mas não sentia menos pena por perdê-lo.
Despediu-se no salão, abraçando primeiro o pai, depois Liam, dando uma palmada nas costas de Donal, passando a mão pelo cabelo de Padriac. A Red apertou-lhe os ombros.
— Toma conta da minha irmã — disse ele. — Mantém-na em segurança.
Mas Finbar e eu fomos com ele até à orla da floresta e ficámos lá a vê-lo desaparecer. Os dois anciãos esperaram pacientemente. Conor não tocou em Finbar, mas falou-lhe e eu ouvi as palavras dele.
Sê forte, irmão. Tu também ainda mal começaste a tua jornada.
Finbar olhou-o fixamente nos olhos.
Por vezes, o caminho é duro.
Mas tem luz.
Conor levantou um braço e tocou na testa do irmão com a mão, muito levemente. Em seguida, virou-se e rodeou-me com os braços, abraçando-me com tanta força que eu mal conseguia respirar.
— Adeus, pequena coruja.
Lutei contra as lágrimas, porque sabia que aquele era o seu caminho e ele devia segui-lo. Puxou o capuz sobre a cabeça, pegou no bordão de vidoeiro, meteram os três pelo carreiro que entrava na floresta e no espaço de tempo que leva uma pequenina nuvem a passar em frente do Sol, desapareceram.
***
Uma noite, os homens discutiam vivamente após o jantar. Liam tinha regressado de uma visita a Seamus Redbeard. Trouxera com ele um par de cachorros-lobos e novidades. Agora, planeavam uma espécie qualquer de expedição, que não se preocuparam em me explicar. Até Red se deixou atrair e eu ouvia apenas algumas palavras enquanto permanecia sentada à lareira, bebericando o meu hidromel.
— Seamus já não é novo — disse Donal rudemente. — Ele terá vontade suficiente para isto, conseguirá aguentar o tempo suficiente?
— Ele terá ajuda. — O tom de Liam era pesado. — Faremos com que assim seja. Não estou disposto a ver o filho de Eilis criado numa casa inimiga da minha.
— Esses territórios são muito vastos — comentou Red, estudando o mapa desenrolado na mesa diante deles. — Não receias que Seamus, que parece querer controlar essas terras, mais as dele, se vire contra ti, numa tentativa para ficar com tudo?
— Seamus sempre foi leal e conhece a nossa força — replicou Liam. — É do interesse dele tomar conta dos domínios de Eamonn até à maioridade do rapaz e manter Sevenwaters como aliado. Ele é o avô do rapaz; parece-me difícil outros desafiarem as suas pretensões.
Eu não tinha a certeza de que queria ouvir mais. Sabia, em especial, que não queria ouvir, com exactidão, o que estava a ser planeado para Eamonn, porque parecia não haver lugar para ele na imagem que estavam a pintar. Assim, levantei-me e fui acender uma vela, pensando retirar-me para o meu quarto e quando olhei na direcção da porta principal, apanhei o olhar de Finbar, mesmo antes de ele deslizar para o exterior. Já era muito tarde e ele não levava uma capa. E levava aquele olhar estranho, selvagem, nos olhos. Mas talvez quisesse apenas ficar sozinho como todos nós, de tempos a tempos. Talvez voltasse daí a pouco. Esperei, olhando para a porta. O tempo passou, os homens continuavam a falar e Finbar não regressava. Por fim, não consegui esperar mais. Falei a Red baixinho, não querendo alarmar o meu pai por nada deste mundo. Pegámos ambos nas nossas capas, nas botas e numa lanterna e saímos, seguindo os passos de Finbar.
Estivera a chover, mas agora o ar estava claro e húmido. As pegadas dele eram fáceis de seguir no solo mole, na direcção da enseada secreta, na margem da qual crescia o pequeno vidoeiro. Mas o meu irmão não estava em lado nenhum. Andámos de um lado para o outro na margem, procurando à luz da lanterna, até que a Lua emergiu do seu véu de nuvens e lançou o seu brilho frio sobre a floresta. No extremo do lago, onde a última pegada marcava a divisão da areia branca e da água límpida, algo me chamou a atenção. Red segurou na lanterna e dobrámo-nos para observar mais de perto. Lá estava o amuleto da minha mãe, com o cordão ainda intacto; e uns farrapos de fibra tecida, que podiam ter sido de morugem; e uma única pena branca. Mas de Finbar não vimos qualquer sinal, nem nessa noite, nem na seguinte, nem desde Imbolc até Lugnasad. Desaparecera, muito simplesmente, como se tivesse mudado de novo. Mas não se pode voltar atrás. Eu sabia isso. Não acreditava, ao contrário de muitos, que ele tivesse ido até ao lago e se afogasse. A história dele, pressentia, seria a mais estranha de todas. Só esperava que um dia me fosse permitido conhecer a verdade.
Estavam todos a ir-se embora. Estava tudo a mudar. Ainda não havia notícias de Diarmid e de Cormack, da sua demanda nem de Lady Oonagh, ou do seu filho, apesar de eu saber que Liam enviara mensageiros e fizera inquéritos destinados a encontrá-los. No meu coração temia por eles e pensava ver esse mesmo medo reflectido no rosto do meu pai. E agora Padriac estava a construir um barco, no lago. Não o víamos muito, nem aos rapazes que o estavam a ajudar. Era uma pena, dizia ele, não podermos voar, não que se recordasse, não exactamente, mas agora sabia que havia outras terras mais vastas e outros mares por explorar e era isso que iria fazer, quando o seu barco estivesse pronto. Olhava para mapas, fazia cartas e estudava velhos livros. Lembrei-me do que Finbar dissera uma vez, acerca do seu irmão mais novo. Ele há de ir longe. Mais longe do que qualquer um de nós. Nunca pensei que era aquilo que ele queria dizer. E Padriac era tão novo; tão novo, disse-lhe, para pensar em velejar para longe e deixar-nos.
— Sou mais velho do que tu — disse ele. — E tu já vais ter um bebé. Isso faz de mim um tio. Devo ter idade suficiente.
Porque eu estava, na verdade, à espera de um bebé. Nasceria por alturas do festival de Meán Fómbair, o equinócio do Outono; e sabia que teria cabelos cor de cobre, da cor das folhas das faias. Red andava ansioso, com tendência para se inquietar comigo, como se eu fosse uma planta delicada, devendo ser protegida contra qualquer dano. Ria-me dele, mas fazia o que ele me pedia. A Primavera chegou, o tempo ficou mais brando e continuava a não haver notícias. Então, um dia, o meu pai também resolveu partir.
— Os meus filhos não regressaram — disse ele. — Cabe-me a mim, agora, procurá-los e trazê-los sãos e salvos, os três. É essa a minha demanda — acrescentou, ao mesmo tempo que um, e depois outro, se oferecia para ir com ele. — Ao trazê-los para casa, talvez eu possa minorar os males que fiz à minha própria família. Deixo-te em boas mãos, minha filha — disse ele, beijando-me na face e apertando o braço de Red, num breve e forte adeus. — A minha casa é bem governada e o meu povo está protegido. É tempo de eu dizer adeus. — Aproximou a sua face da de Liam e apertou-lhe a mão, abraçou Padriac e partiu, desaparecendo pelo carreiro, vestido com o traje simples de um trabalhador que escolhera e eu esperei que não tivesse muito frio, no lugar para onde o seu filhote fora levado.
E assim, um a um, os meus irmãos abandonaram Sevenwaters. Sempre disséramos que estaríamos sempre ali, uns para os outros, enquanto vivêssemos. Sempre disséramos isso, iguais às sete correntes de água que davam o nome à nossa casa, fazíamos todos parte de um todo e as nossas vidas estariam sempre interligadas. Que nada nos afastaria, apesar das grandes distâncias que nos pudessem separar. No entanto, em breve só restariam Liam e eu. Intenso, esforçado, este meu irmão canalizava as suas energias, furiosamente, para a restauração daquilo que o meu pai quase deixara fugir por entre os dedos. O sério e incansável Liam, trabalhando como se possesso, exigia e recebia uma lealdade inabalável de todo o seu povo. Agradecia, de má vontade, a presença de Lorde Hugh na sua casa. Porque era Red que arbitrava as disputas entre uma aldeia e outra, enquanto Liam se fechava com Seamus Redbeard, discutindo, ponto a ponto, a sua estratégia. Era Red que supervisionava a reflorestação da terra que Lady Oonagh devastara, explicando ao povo que se deve plantar antes da ceifa e quais as árvores que crescem mais depressa, para assegurar uma boa provisão de madeira nos anos vindouros. Era Red que ajudava os camponeses, comprava gado novo, ensinava o povo a consertar muros de pedra e a reparar telhados de colmo. Ao chegar a Primavera, Liam admitiu, com relutância, que não sabia como se teria desenvencilhado sem ele.
No Meán Earraigh, quando a noite iguala o dia e a terra se veste de cores primaveris, após o longo frio invernoso, levei Red até ao lago e até aos bosques, a um lugar há muito por visitar. Ali, o padre Bríen, o eremita, vivera a sua vida solitária e ordenada. Ali, os filhos de Sevenwaters tinham aprendido estranhas línguas e símbolos secretos. Ali tratara eu de Símon e as sementes de uma parte da minha história haviam sido lançadas à terra. Explicara a Red que tinha de ir àquele lugar antes do nascimento do bebé. Um lugar onde vivera um grande amigo.
Red franziu o sobrolho à ideia de eu cavalgar até lá, temendo que eu me magoasse, ou ao bebé e só concordou em ir se me pudesse levar com ele no seu próprio cavalo, onde, segundo ele, me poderia ter debaixo de olho. Assim, cavalgámos tranquilamente entre os grandes carvalhos e ele ficou silencioso perante a sua força altaneira e os lençóis dourados que pendiam dos ramos superiores, onde o musgo sagrado encontrava abrigo. O dia estava bonito e quente, com uma brisa fresca, que empurrava pequenas nuvens pelo céu. A caverna estava vazia, as prateleiras nuas e a pequena cabana abandonada. Se alguma vez houvera algum cheiro de doença e medo naquela pequena casa, desaparecera e os raios oblíquos do Sol investiam pela caverna e pela cela adentro numa quente modorra, sugerindo que ambas esperavam por alguém que viesse ocupar a tranquila e silenciosa residência. Sentámo-nos nas rochas por baixo dos arbustos de sorveira-brava e partilhámos a água, o pão e os frutos secos que trouxéramos. O cavalo pastava, satisfeito, a verde erva primaveril.
Não havia necessidade de palavras entre nós. Quando acabámos de comer, Red aproximou-se e sentou-se a meu lado, entrelaçando as suas pernas nas minhas e rodeando-me a cintura com os braços, de maneira a eu poder encostar-me a ele e pousou as grandes mãos, gentilmente, no meu estômago, onde o inchaço, provocado pelo bebé, ainda mal se via.
— Este lugar guarda recordações de ti — disse ele por fim. — O que aconteceu aqui marcou-te profundamente.
Acenei com a cabeça. Nunca faláramos antes de Simon, desde que deixara Harrowfield. Mas eu pensava nele muitas vezes. Havia uma ironia terrível na história dele, porque eu temia que o irmão que sempre quisera a terra e a autoridade para si, que sempre odiara ser o segundo, descobrisse, uma vez na posse do inesperado e maravilhoso presente que representava Harrowfield, que afinal de contas desejava uma coisa completamente diferente. Porque era destino dele desejar sempre o que não podia ter. Mas Elaine parecera-me uma rapariga forte, sensata e amava-o. Talvez isso fosse suficiente.
— Queres falar disso? — perguntou Red.
— Não — disse eu. — Por vezes, é melhor as verdades ficarem por dizer. Mesmo àquele que amamos.
Ficámos durante mais algum tempo, ouvindo o chamamento de uma cotovia, lá no alto.
— Não lamentas ter abandonado tudo? — perguntei. — Não desejas voltar, por vezes?
As mãos dele moveram-se suavemente sobre a minha barriga. Pensei que aquela criança seria amada de tal maneira que o seu caminho, através da vida, seria encantador, largo e direito e cheio de luz.
— Como poderia não me sentir feliz com o que tenho? — disse Red suavemente. — Porque tenho tanto.
E mais tarde regressámos lentamente a casa sob os grandes ramos curvos da floresta, ao lado das águas eriçadas do lago e entre as sebes de espinheiro-alvar. O cavalo seguia cuidadosamente, como se consciente da carga preciosa que levava; e os braços do meu marido eram fortes e gentis, em redor de mim e da filha. E se as Criaturas Encantadas nos estavam a ver, planeando o capítulo seguinte da sua longa história, não ouvimos delas sequer um sussurro, enquanto cavalgávamos de regresso a Sevenwaters.
S.D. Perry
O melhor da literatura para todos os gostos e idades