Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A FILHA DA FLORESTA
Segunda Parte
A conversa mudou para terreno mais seguro. Falaram dos assuntos da casa, das colheitas e do gado, do bem-estar dos camponeses. Red fez pergunta atrás de pergunta; parecia ansioso por pegar, de novo, nas rédeas da casa. A minha mente vagueava, revivendo aqueles dias em que Simon estivera ao meu cuidado, recordando as longas histórias, as noites febris, demoníacas, a lenta cicatrização do corpo e do espírito. Recordei a faca dele na minha garganta; recordei as lágrimas dele de furiosa autorepugnância. Estas imagens eram fortes; mal dava pelo que se passava à minha volta. Além disso, estava a ficar tonta por causa do vinho e do dia, que já ia longo. Assim, tive um sobressalto quando senti algo frio e molhado contra a perna, abaixo da bainha do vestido caseiro que as irmãs me tinham dado. Olhei para baixo. Espreitando debaixo do banco onde eu estava sentada estava um cão muito pequeno, velho e cinzento, que olhava para mim com olhos tristes, ramelosos, abanando a cauda gentilmente. Baixei-me e ofereci-lhe uma mão para ele cheirar; ele vacilou e mostrou uma pequena língua cor-de-rosa, lambendo-a num cumprimento. Depois, com um suspiro, sentou-se pesadamente sobre os meus pés como se fosse ali ficar por muito tempo. Abafei um bocejo.
Estás cansada disse-me Red. As damas da minha mãe arranjar-te-ão um sítio qualquer para dormires. Foi um dia bem longo. De maneira esquisita, levantou-se de novo.
A tua perna disse a mãe dele, reparando pela primeira vez que ele estava ferido. Que aconteceu à tua perna?
Oh, nada de especial disse Red de modo previsível. Um pequeno corte. Não precisais de vos preocupar. Olhou para mim, viu a minha expressão e eu apanhei-lhe, fugidiamente, aquele ligeiro arabesco que, noutro homem qualquer, passaria por um sorriso reprimido. A mãe dele observava-nos a ambos e o franzir das suas sobrancelhas acentuou-se.
Megan! chamou ela. Uma jovem serva, com uma cabeça cheia de caracóis castanhos rebeldes avançou, esboçando uma espécie de cortesia.
Arranja um quarto decente para... para... a nossa visitante, Megan disse a dona da casa e eu senti que ela tivera que fazer um esforço para dizer aquelas palavras. Água para ela se lavar, algo simples para comer. Diz-lhe onde nos há-de encontrar amanhã de manhã.
Sim, minha senhora disse Megan curvando-se de novo e os seus olhos mantiveram-se, recatadamente, no chão. Mas assim que deixámos a sala, seguindo-a e com o cão trotando atrás de mim como uma sombra, o olhar dela transformou-se numa mistura de viva curiosidade e medo.
Não te esqueças disto disse Red à minha passagem, entregando-me a minha pequena trouxa. Acenei com a cabeça em agradecimento e saí. Por trás de mim, ouvi a mãe dele a falar de novo e penso que me senti contente por não poder ouvir o que ela dizia.
Penso que o quarto que me escolheram era próprio de uma bárbara; pequeno, afastado, mal mobilado, localizado perto dos alojamentos dos servos e a pouca distância do barulho das cozinhas. Se pensavam insultar-me, enganaram-se. Porque gostei, instantaneamente do minúsculo quarto quadrado com as suas paredes de pedra, a dura enxerga com armação de madeira e a pesada porta de carvalho que abria para um canto de um jardim mal cuidado, cheio de arbustos emaranhados uns nos outros e que estavam a florir. Assim que houvesse luz iria lá fora e veria se havia lá morugem a crescer. Uma velha rosa trepava pela parede no lado de fora da porta e uma minúscula trepadeira, florida de azul, atapetava os degraus de pedra. Havia um carreiro cheio de musgo, tapado por ervas daninhas. Através da única janela redonda, colocada no alto da parede, o luar velaria pelo meu sono. Havia uma arca de madeira, um cântaro e uma bacia. Megan trouxe-me água quente e uma outra rapariga, de olhar furtivo, trouxe um tabuleiro com pão, queijo e frutos secos, escapulindo-se, depois, do quarto. Pousei a minha trouxa aos pés da cama e esperei que Megan saísse. O cão inspeccionou os cantos todos do quarto com cuidado, farejando calmamente; por fim, satisfeito, reuniu forças e deu um heróico salto para a enxerga, onde se instalou com as patas sobre o nariz.
Onde está a tua bagagem? perguntou Megan de modo estranho. O teu roupão, as outras coisas? Abanei a cabeça, indicando a pequena trouxa.
É só? Parecia chocada. Conseguia ouvir as perguntas por fazer. Onde te encontrou ele? Que lhe deu para te trazer para aqui, sem mais nada senão as roupas que trazes no corpo? Porquê?
Megan falou de novo, surpreendendo-me.
Essa era a cadela de Simon disse ela. O irmão do meu senhor Hugh. Alys, chamava-lhe ele. Já está muito velha; tinha-a desde criança. Nunca deixou ninguém aproximar-se desde que ele se foi embora. Era capaz de nos arrancar os dedos se nos aproximássemos para lhe fazer uma festa. Até agora. Esboçou uma tentativa na direcção da velha cadela; esta respondeu com uma rosnadela profunda, mostrando os dentes. Estás a ver? disse Megan de modo leviano. Coisinha depravada. Mas parece que gosta de ti.
Esbocei um sorriso e ela devolveu-mo, a curiosidade natural sobrepondo-se à prudência.
Vou falar com a minha senhora Anne disse ela. Para te arranjar um roupão e algumas outras coisas. E venho ter contigo amanhã de manhã, para te mostrar onde deves ir. Aqui, levantamo-nos cedo.
Nessa noite dormi; mas o cansaço e os efeitos do vinho não foram suficientes para apagar, por completo, os terrores nocturnos que ainda me assaltavam e acordei subitamente de um sonho que é melhor ficar por contar, um sonho que tinha muitas vezes, a espécie de sonho que se prolongava até aos meus pensamentos diurnos, fazendo com que tremesse cada vez que um homem me tocava, a espécie de sonho que me fazia encolher o corpo todo, estremecer e bater o coração no peito. Alys dormia pesadamente sobre os meus pés; não acordara. Uma luz difusa, proveniente da lua em quarto-minguante, entrava-me no quarto. E havia vozes baixas no exterior.
Levantei-me e fui suavemente até à janela. Ambas as portas estavam fechadas, se bem que tivesse preferido deixar uma aberta para cheirar os aromas de alfazema e madressilva da noite, sentir a leve brisa na pele. Mas eu perdera a capacidade de confiar; já não estava protegida pela suave capa da inocência. Assim, aferrolhara as portas. Mas pus-me em bicos dos pés em cima da arca e olhei para o jardim. Duas silhuetas conversavam; ambas estavam vestidas de escuro e vi o reflexo de armas à luz fraca do luar. Uma delas saiu por um portão no muro; de cabelos loiros, desenvolto no modo de andar, apesar de ser noite. A outra era mais alta e andava com um leve coxear. Encostou-se ao muro no canto mais longínquo do jardim, relaxado mas alerta, uma das pernas esticada, quase invisível na escuridão. Era uma longa vigília até de madrugada.
Não consegui perceber se me sentia melhor ou pior, sabendo que estava guardada, Para onde pensavam eles que eu podia fugir, ali no meio do país deles, sem sequer um par de botas ou uma garrafa de água? Além disso, depois da recepção que tivera até agora em Harrowfield, parecia-me pouco provável que os locais me oferecessem ajuda se eu tentasse atingir a costa. E o que faria então, nadaria para casa? Não, estava presa ali, quer quisesse ou não. Portanto, por quê a guarda?
Imaginei, por um momento, se aqueles homens alguma vez dormiriam. Lembrei-me, então, de Red na caverna, o rosto branco de dor e exaustão. Era humano, pensei; simplesmente, não gostava que as pessoas soubessem. E parecia que tinha em grande valor a informação que eu lhe poderia dar; faria com que não lhe escapasse enquanto esperava que eu falasse.
Levantaram-se todos cedo, mas não tão cedo quanto eu. Antes da alvorada já eu estava levantada, lavando a cara na água fresca, indo à retrete, desaferrolhando a porta e saindo para o jardim mal cuidado. A pequena Alys seguiu-me, mas lentamente, com as articulações perras, devido à idade. Alguém tinha cuidado bem daquele jardim, em tempos. Mas não havia morugem; mais tarde, quando precisar de mais, precisarei de a procurar no campo. Amaldiçoei-me por negligenciar a minha tarefa, antes de deixar a floresta. Havia uma velha tina de água por baixo dos arbustos de absinto, meio cheia de lama. Podia usá-la para ensopar as fibras que trouxera do priorado. Havia ali muitas ervas; as suficientes, se eu as tratasse bem, para armazenar uma boa quantidade de pomadas e unguentos, tinturas e essências. Perguntei a mim própria se me deixariam ter um almofariz, algumas facas, cera de abelhas e óleo. Depois, pensei que não havia tempo para isso. E Finbar, Conor e os outros? O tempo corre para eles e já estamos no Outono. No entanto, não havia nada a fazer e quando Megan me veio buscar estava eu a arrancar ervas daninhas, a separar as plantas jovens das velhas, a planear como seria se podasse, cavasse e plantasse. Quase me tinha esquecido onde estava. Dos meus guardiões nocturnos não havia sinal, salvo pelas marcas das botas deles no solo macio. Tinham-se desvanecido com a primeira luz.
A atitude das pessoas de Arrowfield para comigo podia ser descrita como uma espécie de fria cortesia. Lady Anne dava o exemplo. Era evidente que o seu filho era o chefe da casa, esperava ser obedecido e nem ela o questionava. Assim, apenas me falava quando as circunstâncias o exigiam. Quando olhava para mim, mal disfarçava a hostilidade com os seus olhos azuis-claros. Cuidava de mim, mas apenas até onde o exigiam as leis básicas da hospitalidade. Dizia para mim própria que me era suficiente. Vivia de modo selvagem há quase dois anos; tinha-me desabituado do luxo, se a nossa vida em Sevenwaters podia chamar-se assim, porque na nossa família de homens vivia-se de modo bastante simples. Não precisava de vestidos bonitos, pão de milho, ou uma almofada cheia de penas de ganso. Disse-o para mim própria e era verdade.
A companhia é que era difícil. Estivera só durante muito tempo, com excepção daquelas preciosas noites em que os meus irmãos puderam retomar a forma humana, quando pudemos falar mente com mente, quando nos pudemos tocar, olhar e armazenar recordações para os longos e solitários tempos de intervalo. Agora estava rodeada de mulheres, mulheres que falavam permanentemente umas com as outras, que estavam sempre presentes, que me interrompiam os pensamentos, me tornavam a tarefa mais difícil, mais lenta e mais dolorosa, porque preciso de trabalhar o dobro, para não me esquecer da minha presença naquele local e a razão dessa presença. E os olhares; os olhares eram de lado, amargos, cheios de medo. Eu era o inimigo; não interessava muito o que Lorde Hugh dissera, porque a grande sala solarenga onde nos encontrávamos todas as manhãs, para fiar, coser e bordar era um lugar de mulheres e eu lia nos rostos dessas mulheres aquilo que pensavam de mim.
Eu sou afilha da floresta, dizia eu para mim própria enquanto tirava as longas e ásperas tiras de morugem da minha trouxa e começava a fiar com um fuso e uma roca emprestados. Eu sou afilha de Lorde Colum de Sevenwaters. Tenho um irmão que é um óptimo chefe e outro que é perito em mistérios mais antigos do que tudo o que o teu povo pode imaginar. Tenho um irmão que é um guerreiro corajoso e outro que as criaturas selvagens reconhecem como amigo. Tenho um irmão que... tinha um sorriso que encantava as aves das árvores e que um dia voltará a ter. E à medida que o fio me feria uma vez mais e eu o ligava de novo, com as finas farpas furando-me a pele como pontas de ferro quente, dizia para mim própria: Tenho um irmão que sabe como curar o espírito, que dá tudo de si próprio até não lhe restar mais nada. E vós, que tendes vós, com as vossas suaves mãos e os vossos bonitos bordados? A cada volta deste fio acerado eu choro pelos meus irmãos. Com cada farpa na minha carne, estou a chamá-los de volta a casa.
As bretãs pensavam que eu não era boa da cabeça. Após o primeiro choque, ficaram incrédulas ao verem o meu trabalho e ao perceberam que eu o levava a sério, ao trabalhar as fibras daquela planta com os meus dedos. Quando me viram reprimir um grito de dor e forçar-me a manter o rosto calmo, afastaram-se de mim e juntaram-se, olhando de vez em quando, furtivamente, para o canto onde eu estava sentada. Eu ouvia as conversas, se bem que as vozes delas fossem abafadas. Porque a mãe dele estava presente, não questionavam abertamente as razões de Lorde Hugh. Mas contavam velhas histórias, histórias terríveis de como os chefes guerreiros de Erin tinham morto este homem, estropiado aquele, como a fina-flor do seu povo morrera durante a longa guerra entre nós. Olhando para mim por cima do ombro, falavam de homens bons enfeitiçados e traídos por mulheres da minha raça, mulheres de pele pálida, cabelos escuros como a noite e de belas palavras. Tudo aquilo era dito para que eu ouvisse. Podia contar-lhes o nosso lado da história a história do meu pai. Porque Colum era o sétimo filho e quantas vezes o sétimo filho herda as terras do pai? Só quando todos os seus irmãos se perderam na guerra, caindo um a um em defesa daquilo que achavam mais precioso. Mas mantive-me silenciosa.
Entre as sobrancelhas levantadas e os lábios franzidos, havia uma que ousava ser diferente. Era a mulher de John. Tinha estado a observar-me e os olhos dela eram os únicos que não me julgavam. No terceiro dia, quando eu estava sentada num banco alto no meu canto, lutando com o fuso e a roca e tentando conter as lágrimas, ela veio sentar-se ao pé de mim, trazendo o seu trabalho com ela. Estava a fazer a bainha de um vestido minúsculo; o corpo e as mangas já mostravam um conjunto de folhas delicadamente bordadas, com uma abelha amarela ou uma flor escarlate aqui e ali. Podia ver o seu amor pela criança por nascer em cada ponto daquele pequeno traje. Estendi as mãos lamentáveis, inchadas, para o tocar e sorri-lhe.
O teu nome é Jenny, não é? perguntou ela em voz baixa. Eu sou Margery, mulher de John.
Eu acenei com a cabeça, pegando de novo no fuso. Fizera-se silêncio entre as outras mulheres; agora, retomavam a conversação.
Disseram-me que tinhas o dom da cura continuou ela, olhando-me de lado. O ferimento de Red... de Lorde Hugh, não deve ter sido muito fácil de tratar naquelas condições. Ele deve-te muito.
Olhei para ela e a minha surpresa deve ter sido óbvia. Ela estava divertida.
Os homens, de vez em quando, falam, minha querida disse ela. Ficarias surpreendida com aquilo que ouço. E se bem que John guarde quase tudo para ele próprio, não é cego. Há muito que é amigo de Red... de Lorde Hugh, muito antes de eu ter vindo viver para Harrowfield. Ele adivinha o que Hugh não diz em voz alta. A tua chegada pôs esta casa em rebuliço e não vai acalmar tão depressa.
Pensei naquilo. Tínhamos visto os homens na refeição da noite e os três que eu conhecia tinham-me cumprimentado com cortesia. Ben sorrira e puxara-me a longa trança, quase como Cormack poderia ter feito. John saudara-me pelo meu novo nome e sentara-se ao meu lado, ignorando o franzir de sobrancelhas de LadyAnne. Perguntei-me se a guarda iria continuar, de uma forma ou de outra, até durante o dia. De Red, sentado à cabeceira da mesa como era próprio, pouco vira, mas sentira-lhe os olhos em mim à medida que a refeição ia decorrendo e eu aguentava os sons, os cheiros e a proximidade de tantos estranhos, ansiando pela chegada da noite.
John não falou muito, mas reparei que impedia os servos de me porem carne assada no prato e se assegurava de que eu comia algo e quando alguns dos jovens começaram a tornar-se ruidosos devido à cerveja e a lançarem comentários obscenos na minha direcção, silenciou-os com algumas palavras cuidadosamente escolhidas. Como amigo de Red, tinha autoridade. Era, soube-o em seu devido tempo, uma espécie de primo afastado da família e sempre vivera em Harrowfield. Eu sentia-me feliz com a sua protecção e mais ainda nos dias que se seguiram, já que não havia mudança na atitude da família para comigo e havia sempre alguém a observar-me. Quando me sentava com as damas, Margery estava sempre presente, sempre amável, sempre pronta a sair do círculo encantado e a sentar-se ao pé de mim, feliz por conversarmos a duas, de olhos cheios de preocupação ao ver o meu progresso doloroso com o fuso e a roca, nunca deixando sair uma palavra de julgamento. Eu tinha a certeza de que as suas intenções eram boas, mas também me perguntava se alguém lhe teria pedido para me vigiar. A guarda nocturna continuou. Um deles vigiava desde a minha ida para o quarto até à meia-noite, enquanto o outro vigiava da meia-noite até de madrugada. Cada um deles, suponho, dormia de três em três noites. Observava-os sem que eles me vissem e reparei que aquela tarefa cabia apenas a Ben, John e Red. Perguntei-me se naquela casa tão grande e obediente haveria duas pessoas em quem Red realmente confiaria.
Também reparei que nunca se afastavam muito, fosse a que horas fosse do dia. Não podia estar permanentemente a fiar e a tecer, se bem que o desejasse fazer, porque as minhas mãos, meio saradas devido à minha negligência, estavam agora a ficar outra vez ásperas e inchadas e eu era forçada a parar, por algum tempo, todas as tardes, a minha tarefa, antes de continuar o meu lento labor sozinha, à luz da vela, depois da refeição da noite. Tentei começar a trabalhar no jardim, mas os progressos eram lentos, porque as minhas mãos teriam de calejar de novo antes de poder manejar uma faca ou um sacho. Mas tive algum sucesso; o solo era escuro e rico e as ervas daninhas não eram muito difíceis de arrancar. Quando não conseguia mais, saía, com a atarracada Alys a trotar atrás de mim e ia explorar até o mais longe que podia, enquanto tentava ser o mais discreta possível. Era incrível como um daqueles três aparecia, tantas vezes, nas vizinhanças; Ben, treinando um poldro no campo, mesmo por onde eu escolhera passar; John, dirigindo o armazenamento de vegetais para o Inverno, no celeiro, mesmo quando eu ia nessa direcção. O próprio Lorde Hugh, sentado num velho banco no pomar de macieiras numa manhã cedo, com um tinteiro ao lado, escrevendo num livro ou numa folha de papel equilibrada sobre os joelhos. Alys rosnou para ele.
Ela nunca gostou muito de mim comentou ele, aparentemente pouco surpreendido por me ver. Saíste cedo. Não quero que vás para longe.
Subitamente, senti-me aborrecida. Ele tinha sempre a certeza de que tinha razão, estava tão habituado a que todos fizessem o que ele dizia. Pensei que não podia ser sempre boa para ele, fazer sempre as coisas como ele queria. Por que não havia eu de sair sozinha? Tinha medo que eu fugisse para sempre e levasse a minha informação comigo?
Ele leu-me um pouco desta mensagem muda no rosto e pousou o livro e a pena cuidadosamente. Vi linhas de uma escrita cuidadosa e aqui e ali uma imagem bem desenhada, ou um diagrama.
Há riscos. Quero que fiques perto da casa. Não poderemos garantir a tua segurança se te aventurares para longe.
Gostaria de poder dizer-lhe: Tu tiraste-me da floresta. Pelo menos, deixa-me caminhar sob as tuas árvores, sentir o teu rio correr sobre os meus pés descalços, deitar-me nos teus campos e veras nuvens passar por cima. Pelo menos, deixa-me estar sozinha um pouco. Porque na tua casa não consigo sentir o ar, ou o fogo. Não consigo cheirara terra ou ouvir a água. Eu não fujo; não posso. Porque sem a tua protecção, não completarei a minha tarefa.
Para ti, isto não é fácil, pois não? comentou ele. Podias decidir-te a falar comigo, claro. Isso ajudaria muito. Mas vejo na tua expressão que não estás disposta.
Não posso.
Diz-me uma coisa disse ele, olhando-me de perto. Se quisesses, poderias falar comigo agora? Poderias falar-me do meu irmão e do que lhe aconteceu?
Nunca conseguira mentir. Acenei com a cabeça miseravelmente, desejando que ele não continuasse.
Por que não me dizes? disse ele suavemente. Deixar-te-ia ir, bem sabes. fosse o que fosse que aconteceu a Simon, não deve ter sido feito por ti. Tu não passas de uma criança. Eu deixar-te-ia partir. Mas preciso de saber antes. Se ele está morto, então posso dizê-lo à minha mãe e assim a sua sombra descansará e tudo isto terminará. Esta guerra não é minha e não a continuarei. Não tenciono derramar mais sangue, nem que o dos meus homens seja derramado. Se ele está vivo, pode ser encontrado e eu hei-de encontrá-lo. Não gostarias de saber, se ele fosse teu irmão? Acenei com a cabeça e virei-me subitamente, de maneira a ele não me ver o rosto. Houve um longo silêncio. Senti que não devia sair de ao pé dele; as suas palavras tinham-me feito sentir mal. Não percebia por que me perguntava ele aquilo, quando guardara o que sabia para si próprio, escondendo -o da própria mãe e, pelos vistos, dos próprios amigos. Talvez, pensei, ele tivesse sido chamado para me proteger enquanto eu termino a minha tarefa, agindo assim contra a sua vontade. Se não, já me teria obrigado a fornecer-lhe a informação, tê-lo-ia já conseguido, sem dúvida. Não precisava de ser amável, não precisava de ter paciência. Mas mesmo que eu pudesse falar, não tinha verdadeiras respostas para lhe dar. Quando olhei de novo já ele tinha fechado o livro e pusera de lado a pena e o tinteiro.
Preciso de fazer exercício com esta perna disse ele, levantando-se. Anda por este lado, quero mostrar-te uma coisa. Ainda coxeava e eu consegui manter o passo, apesar das compridas pernas dele. Seguimos o caminho que rodeava o muro coberto de líquen do pomar e subimos uma colina, abaixo de uns carvalhos jovens, vestindo ainda as últimas folhas douradas. Alys trotava galantemente atrás de nós.
Eu tinha cinco ou seis anos quando o meu pai e eu plantámos estes disse ele. Ele tinha um grande respeito por árvores. Quando se cortavam, plantavam-se. Um carvalho leva uma vida a crescer. Tal como o pai dele antes, via longe. O caminho continuava a subir e as árvores espreguiçavam-se de um lado e de outro em filas ordenadas. Alys cansava-se e atrasava-se e nós esperámos que ela nos apanhasse. Era demasiado velha para continuar, mas recusou-se a ser carregada. No fim, convenci-a, por meio de gestos e expressões, que devia esperar ali por mim e ela deixou-se ficar, resmungando, sobre as folhas caídas no carreiro. Os seus olhos líquidos seguiram-nos reprovadoramente enquanto continuávamos a subir. Sentia-se uma brisa matinal, cortante; olhando para trás, vi as primeiras nuvens de fumo de fogueiras recentemente acesas na casa e nas cabanas. O povo começava a acordar.
Chegámos ao topo, onde estava uma grande pedra, isolada, rodeada de trepadeiras. A vista era vastíssima; reparei de novo como as terras dele estavam tão bem tratadas, limpas, controladas como tudo estava bem, se assim se pode dizer. Não admira que todos tenham ficado surpreendidos quando ele decidiu trazer-me. Eu não fazia parte daquele padrão tão asseado. O rio espreguiçava-se, preguiçosamente, pelo vale; daqui, podia-se ver a vasta extensão do seu domínio, os campos amplos após a ceifa, com os molhos de palha cónicos, as vastas pastagens dotadas aqui e ali com animais, os moinhos e os celeiros, as cabanas brancas aninhadas entre as árvores. Tantas árvores; e os carvalhos, reparei, eram não só jovens, mas já os havia meio crescidos, e já adultos, e para leste eram grossos e velhos, quase uma floresta.
Enquanto Simon aprendia as primeiras letras, eu vinha aqui para cima com o meu avô colher bolotas, vê-lo erguer um muro e ajudar as ovelhas a parir. Enquanto Simon atirava paus para o cão os ir buscar, eu plantava árvores com o meu pai, aprendia a atar feixes de palha e a cobrir um telhado de colmo para proteger a casa das tempestades. Enquanto Simon aprendia a matar um homem silenciosamente e a não deixar rasto, eu levava lenha aos camponeses para as suas fogueiras de Inverno e aprendendo os nomes de todas as pessoas do domínio. O meu irmão e eu passámos ao lado um do outro, como estranhos. O tempo muda as coisas. O meu pai morreu cedo, o que despedaçou o coração do meu avô. Ambos se foram. Disse aquilo como se fosse um facto como outro qualquer; não havia maneira de dizer se lamentava ou não. Achei que lamentava. É difícil fazermo-nos compreender sem palavras, a não ser que o que se pretende dizer seja simples. De qualquer modo tentei, usando as mãos e os olhos. Aquelas árvores; tão antigas, certamente guardavam o conhecimento e a sabedoria de todos aqueles que tinham passado por aquele vale. Seguramente guardavam os espíritos dos homens que tinham trabalhado aquela terra com amor, com a força dos seus braços. Tentei mostrar aquilo a Red. Árvores velhasjovens. Homens velhos novos. Crescer. Coração. Vale coração.
Pelo menos não se riu de mim, antes me observou seriamente e acenou com a cabeça quando os meus esforços terminaram.
Simon nunca compreendeu disse ele. Estava sempre ocupado com outra coisa qualquer, sempre para a frente, desafiando, tentando sempre algo novo. O que tínhamos nunca lhe parecia suficiente. No entanto, tínhamos tanto. Baixou-se até ao chão; ainda não se sentia confortável com a perna. Apontei-lha e levantei as sobrancelhas, ao mesmo tempo que me sentava ao pé dele, mas não muito perto.
A ferida está com bom aspecto disse ele. Não te preocupes, eu chamo-te quando chegar a hora de desfazeres o teu trabalho manual. Não deixaria mais ninguém tocar-lhe. Usei os dedos para lhe dizer. 20 dias. Os pontos que eu suturara deviam ficar 20 dias sem serem tocados. Ligar e voltar a ligar a ferida. Um cataplasma. Talvez eu pudesse... E então tirar-lhe-ia os pontos e tudo ficaria bem. Red acenou com a cabeça; a mensagem fora mais fácil de transmitir, desta vez.
Ficámos sentados em silêncio por uns momentos a ver o dia a nascer, ouvindo os débeis sons da casa e da herdade a acordarem e a despontarem para a vida. Era um bom lugar, suficientemente perto do céu, suficientemente longe do homem.
Quero avisar-te disse Red, torcendo uma erva entre os dedos. Porque não sei bem se compreendes como é importante que faças como eu te digo; que deves permanecer perto da casa e não te afastares. Aqui é seguro, se bem que receie que nem todos os da minha família te tratem com gentileza. Isso pode alterar-se. Não são as pessoas desta casa que me preocupam. Apontou para norte, para a entrada do vale. Naquela direcção estão as terras do meu tio Richard disse ele. Ele é irmão da minha mãe, um homem poderoso, um homem de grande riqueza e influência. Foi uma batalha dele que o meu irmão foi combater; é a guerra dele, que tem custado às mulheres tantos filhos, maridos e amantes. O meu povo sente-se amargurado; será difícil para ele fazer-te sentir em casa. O que ele não consegue ver é que é esta demanda de um homem por poder, a sua sede de sangue, que mantém a velha guerra viva, que envenena as mentes dos homens, fazendo com que o sigam até à morte ou à destruição. O meu irmão era jovem; demasiado jovem para se empenhar em semelhante causa. Não tinha necessidade nenhuma de odiar. Mas Richard deslumbra-os, a estes jovens, com as suas palavras prontas. Talvez tu conheças tais palavras. Talvez tu tenhas ouvido esta história dos lábios do meu irmão.
Abanei a cabeça, espantada por ele ter decidido contar-me aquilo. Essa história, não. Para um homem que falava tão pouco, revelara-me mais dele próprio do que imaginava.
Estás a tentar imaginar porque te disse eu isto disse Red, parecendo ler-me os pensamentos. Disse-to porque o irmão da minha mãe há-de saber, em breve, que tu estás aqui. Ele tem informadores por toda a parte e ouvidos aguçados para os rumores. Há-de ficar interessado. Mais do que interessado. Pode ser que nos faça uma visita. Podes não acreditar, mas há alguns na minha família que te ajudarão. Quero ter a certeza de que estarás preparada para uma tal visita. É por isso que preciso de saber por onde andas, sempre. Ele é um homem muito esperto. Convinha-lhe muito apanhar-te, como que por sorte, quando estás fora a cavalgar ou a passear sozinha, sem mais nada senão uma amostra de cão para te proteger. Quero que me prometas que não permitirás que isso aconteça.
É fácil, disse eu silenciosamente e expliquei-lho por meio de gestos. Por que não me fechas no meu quarto e metes a chave no bolso?
O mais estranho dos olhares passou-lhe pelo rosto, como se estivesse a fazer um esforço para não se rir.
Não me parece disse ele, levantando-se. A luz não é boa para fiar. Além disso, como arranjava eu maneira de manter o Ben e o Jonh ocupados, sem nada para fazerem à noite? A ociosidade não é nada boa para a saúde. Não, não me parece que seja uma boa ideia. Então, prometes-me?
Acenei com a cabeça. Tinha a certeza que não esperava menos. Não era verdade que todos faziam o que ele dizia?
A conversa parecia ter acabado. Estendeu uma mão para me ajudar e eu tomei-a sem pensar, abafando um grito de dor quando ele ma agarrou com firmeza. O que não lhe passou despercebido. Os olhos azuis-claros concentraram-se nas minhas mãos, abrindo-as para as inspeccionar. As suas próprias eram suficientemente grandes para se fecharem em volta das minhas por completo; mas ele relaxara o aperto até um mero toque, examinando a aspereza da pele, o começo de uma ferida aberta, o remanescente dos espinhos da morugem. As minhas mãos não eram nada agradáveis à vista. Senti-me desconfortável, tão perto dele. O rosto dele mostrava pouco dos seus sentimentos.
Não gosto disto comentou ele sem ênfase. Talvez devesse fechar-te, no fim de contas. Mas duvido que isso te impedisse de continuar, fizesse eu o que fizesse, não é verdade?
Disse que sim com a cabeça.
Não faças demasiadas perguntas. Há coisas que não devo dizer. Não te aproximes.
Devia estar louco disse ele para si próprio deixando-me cair as mãos, e começámos a descer a colina. Todos dizem o mesmo. Louco ou enfeitiçado. Estão cheios de teorias. Eu não me preocupo com elas. De qualquer maneira, podemos ser um pouco melhores do que temos sido.
O terrier já estava descansado e recebeu-nos com um latido agudo e umas violentas abanadelas de cauda. Fartou-se de fazer cabriolas à nossa frente, cheio de importância. Havia olhos em nós à medida que íamos caminhando, mas nada mais foi dito senão «Que bela manhã, meu senhor!» e «Parece que vamos ter bom tempo.» Achei que havia em redor dele um espaço encantado e que, enquanto estivesse dentro dele, estaria segura. Se me aventurasse para fora, a história seria diferente. O que não me dava nenhum conforto, porque não gostava de estar dependente de nenhum homem, quanto mais daquele bretão de olhos vivos, que não me dera outra escolha senão a de abandonar a minha terra. E não tinha ilusões quanto aos esforços dele para me proteger, já que eram apenas os seus. No fim, teria conseguido o que queria de mim e pronto. Tira-se o sumo de um fruto maduro, atira-se a casca fora, os corvos vêm e debicam o que sobra até ao último bocado. Se bem que, no fim de contas, pouco interessasse. Porque nunca lhe diria uma palavra até as camisas estarem terminadas. Quando estivessem, então então tudo mudaria. Quando os meus irmãos regressassem. Se regressassem.
Fiquei com a certeza, à medida que o tempo passava e a Lua aumentava e diminuía, que havia uma efectiva rede de protecção à minha roda, controlada por Red, como tudo o mais no seu domínio. Havia Margery, que em breve se tornou numa amiga. O que era uma novidade para mim. Nunca tivera uma amiga, se não se contasse com Eilis, que eu sempre achara chata e tola, se bem que não desgostasse do gosto dela por homens. Margery era doce, mas também forte, de uma maneira que se me tornou aparente à medida que os dias se seguiam e ela me defendia dos comentários das outras mulheres com firme polidez, continuando com as usuais pequenas gentilezas para comigo. Foi forte quando admoestou a rapariga que disse, meio a brincar, que Margery não devia deixar que eu lhe tocasse no estômago onde crescia agora o bebé, grande e pesado, não fosse eu lançar-lhe uma maldição e ele nascer morto ou deformado. Foi forte quando perguntou a Lady Anne, muito cortesmente, se eu podia ter outra muda de roupa e uma boa lâmpada de óleo no meu quarto, à noite. Começou a falar comigo sobre outras coisas; sobre como tivera saudades de John quando ele estivera ausente e o bebé a crescer rapidamente no útero. Como esperavam ansiosamente aquela criança, porque ela tivera antes uma que apenas vivera uns momentos e já tinham passado tantas luas desde que a tinham posto a descansar sob os grandes carvalhos. Sobre como Red não quisera que John fosse com ele para o outro lado do mar, porque, dizia ele, um homem deve ficar com a sua mulher numa ocasião destas e que seria suficiente levar Ben. Como John também fora, porque tinha tido sonhos maus, pressentimentos e temia pela segurança de Red. E como John temia que Red tivesse abandonado a busca a meio, para que o companheiro pudesse chegar a casa a tempo.
Não era que ninguém tivesse tentado encontrar Simon quando ele desapareceu. O irmão de Lady Anne, Richard, instigara uma busca que não fora em vão, porque descobriu 12 dos seus homens degolados. Mas o filho mais novo de Harrowfield não estava entre eles. Assim, finalmente, Red decidira ir e ver por si próprio. E pela mãe. Margery disse-me que tinham ficado todos aliviados por apenas a perna de Red ter ficado ferida e por ter regressado, trazenclo-me consigo. John dissera que esperava que não houvesse mais surpresas. Geralmente, com Red não aconteciam surpresas. Ele era o centro forte e imutável em volta do qual todo o seu pequeno mundo rodava. Comecei, gradualmente, a perceber a magnitude da sua decisão em me trazer com ele.
A rede continuou apertada em volta de mim. Fui fiel à minha promessa e não me aventurei sozinha para lá das proximidades da casa. As manhãs eram passadas na sala de costura e os comentários sussurrados e olhares dissimulados das mulheres continuaram, mas Margery estava presente e a sua calma presença e sorriso doce faziam com que a dor fosse mais fácil de suportar. De tarde, fazia um pequeno intervalo na minha tarefa, já que as minhas mãos me doíam demais para me permitirem trabalhar o dia todo. Às vezes sentava-me no jardim e Ben aparecia inesperadamente, de pá na mão. Era simples mostrar-lhe o que precisava de ser feito. Ele tinha uns braços fortes e um vasto repertório de anedotas tolas. Outras vezes aparecia John enquanto eu me sentava no muro de pedra a admirar as ovelhas, pálidas e prístinas após a tosquia do Outono e ia comigo até ao rio, falando de tudo e de nada, sentados, como companheiros, sobre as rochas, enquanto eu chapinhava com as mãos e os pés e Alys caçava esquilos ao longo das margens. Mas não esquecera a minha tarefa e estava dolorosamente de nte da lentidão dos meus progressos, apesar dos benefícios da boa comida e abrigo, de um fuso adequado, de uma roca e de um tear. Terminara a terceira camisa, que era a de Cormack e estava a fiar o fio para a de Conor. Não tinha esperança de as terminar antes do solstício do Inverno.
Não via muito Red e perguntava-me se sentiria falta das conversas comigo. Ocorreu-me que, devido ao meu silêncio, já que nunca lhe podia responder, ou repetir as suas palavras, ele falava comigo como se falasse com ele próprio. Não me evitava, propriamente; estava muitas vezes por perto, indo de um lado para o outro nos trabalhos da herdade e vigiava-me, mas nunca mais voltou a falar comigo a sós. À noite, a vigília continuava no lado de fora da minha janela.
O irmão de Lady Anne levou tempo a aparecer. Estava-se perto de Samhain, o ar estava frio e as últimas folhas caíam dos carvalhos e das faias. Lorde Richard apareceu com grande pompa, cavalgando ao longo da avenida de álamos nus com a sua companhia montada em cavalos parecidos e os seus acompanhantes bem-vestidos de seda e veludo, para impressionar. Observámo-los das janelas da grande sala, Margery e eu, enquanto Lady Anne e as outras mulheres pousavam o trabalho e se apressavam. Era preciso fazer preparativos e rapidamente, para semelhantes visitantes.
É a filha dele disse Margery e eu vi a alta e sumptuosa rapariga cavalgando ao lado do chefe, o cabelo castanho suave apanhado atrás, numa rede adornada de jóias. Chama-se Elaine. Elaine de Northwoods. Richard não tem filhos. Quando ela se casar com Red, os dois domínios ficarão ligados. Quem os controlar, fica com a melhor parte costeira do noroeste nas mãos.
Observei a cavalgada até aos degraus da entrada. Lady Elaine tinha as costas muito direitas; fazia uma bela figura nas suas largas vestes de montar e nas suas pequenas botas negras. Foi o próprio chefe da casa que a foi ajudar a descer do cavalo. Como não estava preparado para a visita, vestia ainda as roupas de trabalho e um cheiro duvidoso a estábulo. O sol da manhã tocou-lhe no cabelo cortado curto, provocando-lhe reflexos de fogo.
Uma aliança estratégica observou Margery secamente. Prometidos um ao outro desde crianças. Tal casamento, entre primos, é, geralmente, proibido. Mas o pai dela tem amigos em lugares-chave. O bispo foi persuadido a dar a sua aprovação. Acontecerá no próximo Verão, penso. Já devia ter sido há mais tempo; mas Red foi para fora, em vez disso. Richard não gostou nada.
Olhei para Richard de Northwoods enquanto ele desmontava com um movimento fluido e passava as rédeas ao servo que esperava. Vinha vestido de negro e movia-se com a mesma elegância sem esforço da sua filha. Vi-o saudar Red, apertar-lhe o braço e depois saírem da minha vista.
Não regressei ao meu quarto nesse dia. Em vez disso, Margery levou-me até à parte da casa onde ela e John viviam e mostrou-me o berço de madeira com bolotas e folhas gravadas na cabeça e nos pés, recentemente forrado com linho suave e lã; e as minúsculas roupas que fizera. Manteve-me ali durante um certo tempo, com uma coisa e outra e eu observei-a, preocupada. Andava demasiado ocupada, pensei, para quem transportava uma criança tão grande, o rosto inchado, assim como as ancas, coisas que eu já tinha visto em mulheres já perto do parto; não era bom sinal. Quis falar com ela sobre o assunto, talvez perguntar-lhe se a podia tocar, sentir a criança; mas não esquecera as palavras da mulher. É melhor não a deixares aproximar-se do teu bebé, não vá ele nascer mono ou deformado. E ela já tinha perdido um.
Porém, a jovem facilitou-me a tarefa.
Jenny disse ela, sentando-se ao pé de mim e trazendo uma caixa de bálsamo e um instrumento que me era desconhecido, que eu soube mais tarde servir para as mulheres arrancarem pêlos das sobrancelhas, das faces, ou de onde quisessem. Espero que não leves a mal disse ela timidamente. Mas nós... eu pensei, as tuas mãos não precisam de sofrer tanto, se tiverem uma pequena ajuda. Gostaria que parasses com esse teu trabalho, mas disseram-me que não o farás e não vale a pena pedir-to. Pelo menos, deixa-me tirar-te alguns desses espinhos e passar-te um pouco deste bálsamo pelas mãos. Desse modo, penso que poderás movimentar melhor os dedos e talvez a dor seja menor. Começou a trabalhar nas minhas mãos e eu rendi-me aos seus cuidados, fechando os olhos. E vi Finbar, tantos anos antes, com a língua entre os dentes, usando dois paus aguçados para retirar os espinhos, enquanto eu chorava, em voz alta, lágrimas não reprimidas de criança e Conor contava uma história. O nome dela era Deidre, Dama da Floresta...
Estou-te a magoar muito? perguntou Margery ansiosamente e eu estremeci e pestanejei.
Havia lágrimas nos meus olhos. Abanei a cabeça e esbocei uma espécie de sorriso.
Deve ser muito difícil para ti disse ela, puxando pacientemente os finos espinhos, um a um. Não falar, quero dizer. Deves sentir-te tão só. E tão longe de casa. Suponho que tens família, irmãos e irmãs. Deves ter imensas saudades deles.
Acenei com a cabeça.
Não te aproximes demasiado.
Eu tenho uma irmã disse ela. Mas eu casei com John, vim para aqui e ela ficou em casa. É muito longe. Não a vejo há dois anos, desde que... Desde que perdeste o teu bebé, pensei. Chegara a hora de perguntar. Mas eu não podia falar sem as mãos, ela tinha-as cativas até o trabalho estar terminado e a mistura curativa de consolda e campainhas, com a cera de abelha e um óleo aromático, foi-me aplicado na pele ferida.
Far-te-ei isto todas as tardes disse ela. Não precisas de as ter piores do que o necessário. Deu um súbito bocejo, enorme. Oh, meu Deus. Desculpa. Tenho andado um pouco cansada, ultimamente.
Gesticulei o melhor que pude.
Devias descansar. Criança muito grande. Descansa, dorme.
Margery riu-se.
Não tenho essa sorte! Há muito que fazer para Lady Anne e tenho que manter o John feliz. Ele é um bom homem; foi difícil, quando ele esteve fora. Agora não quero perder um único minuto.
Tentei de novo, indicando que gostaria de lhe tocar, sentir como estava a criança. Ela ficou séria, de repente.
Se queres disse ela e havia um toque de ansiedade na voz dela. Tu sabes mais destas coisas do que eu, espero, se bem que sejas ainda tão pequena. Temos aqui uma parteira; ela fará o que for preciso, suponho, quando chegar a altura.
O bebé ainda estava muito acima, no útero e a cabeça dele estava mesmo por baixo dos seios. Ainda estava a tempo de virar, mas não muito. Dava pontapés e torcia-se, demasiado grande para se sentir confortável. Dei a Margery o melhor sorriso que consegui. O bebé está bem. O que era verdade, pelo menos por agora. Mas tu tu deves descansar. Descansar Dormir. Era fácil demonstrar-lho com as mãos e os olhos. Se ela o pudesse ou quisesse fazer, isso era outra história.
Tinha a minha trouxa comigo e tirei dela o pequeno novelo de fibras de morugem, que era tudo o que me restava. Puxei-a pelo braço, apontei para o que tinha na mão e tentei mostrar-lhe uma planta a crescer até ao joelho ou um pouco mais. Fortes caules a estenderem-se. Fui até à janela, fiz um gesto na direcção do vale e virei-me com uma pergunta nos olhos. Onde? Onde é que ela cresce?
Oh, Jenny disse ela reprovadoramente. De certeza que não queres continuar com isto? Magoa-te tanto.
Agarrei-a pelos ombros e acenei com a cabeça. Oh sim. Ajuda-me.
Preferia não ser eu a dizer-te disse ela e por um momento o meu coração parou, porque pensei que ela ia dizer que a planta não crescia ali. Não gosto nada do que estás a fazer a ti própria e Red também não. Mas esta planta, a que chamamos zaragatoa, cresce muito por aqui. Mas não aqui, perto da casa; mais para norte do vale, do outro lado do rio, subindo uma ravina por onde corre um ribeiro. Há lá uma ponte. É muito longe. Se precisas de mais, é melhor mandares o John ou o Ben buscar-ta. Se quiseres, peço ao John.
Mas eu abanei a cabeça, porque devo ser eu a colher a planta. A Dama da Floresta tornara isso bastante claro. Dei a Margery um abraço de conforto e agradecimento.
Lorde Richard tinha que me ver, mais tarde ou mais cedo. A intimação foi-me trazida por Megan, que de todas as servas parecia a que menos me temia. Eu devia ir ao salão, disse ela. Eu e Margery. Lady Anne disse que devíamos estar todos presentes, como sinal de respeito para com os nossos visitantes. Imediatamente, disse Lady Anne. Margery fez uma careta e disse a Megan que Lady Anne teria que esperar. Não parecia particularmente apressada. Desfez-me a trança, escovou-me o cabelo e entrançou-mo de novo, murmurando para si própria.
Nunca vi cabelo mais indomável! Passo o pente e logo estes caracóis saem do sítio, como se tivessem vida própria. Bem, terá que servir. Não podemos fazer Lady Anne esperar eternamente. Ela tem uma língua afiada, quando quer usá-la. Cabeça direita, Jenny, estás muito bem assim.
Segui-a ao longo do átrio e pela escadaria de pedra abaixo até ao andar inferior. Talvez não fosse assim tão mau, disse para mim própria. No fim de contas, vai lá estar toda a gente; podemos esgueirar-nos, ficar atrás de toda a gente, fazer uma aparição para satisfazer a dona da casa e depois desaparecer. As minhas mãos estavam melhor; talvez voltasse para o meu quarto para fiar um pouco mais. Seguramente, ninguém daria pela minha falta.
As minhas esperanças desvaneceram-se assim que entrei no salão. Porque se tratava de uma reunião selecta. Não havia possibilidade de anonimato. Lady Anne estava sentada num dos lados da lareira e Elaine no outro. Esta tinha o porte de uma rainha e o rosto era tão delicado e fino como a flor mais premiada de um jardineiro. Os seus grandes olhos azuis observaram-me tranquilamente, sem qualquer tipo de julgamento. Ao lado dela senti-me como a criança selvagem, grosseira, que todos, sem dúvida, me julgavam.
Red estava ao pé da janela, de costas para a sala. Perto dele estava Lorde Richard e eu pude ver, mais de perto, parecenças de família; não muitas, mas elas estavam lá, no cabelo claro acinzentado levemente ondulado e o mesmo olhar perspicaz, calculista, que eu vira nos olhos de LadyAnne. Não era um homem particulAnnente alto; Red era bem uma cabeça mais alto do que ele. Mas havia nele uma autoridade, uma presença, algo que se sentia instantaneamente. Algo que me pôs em guarda. Sentirás uma certa dificuldade, dissera Red, falando do tio e como seria quando eu o conhecesse. Mas tudo bem. Eu era filha de Lorde Colum de Sevenwaters. Por que haveria de me sentir assustada com um bretão qualquer, mesmo que o seu nome fosse Northwoods?
Então é esta a rapariga observou Lorde Richard. A sua voz era propositadamente suave. Suave, pensei, como a pata de um gato quando brinca com um rato. Bem, avança. Deixa-me olhar para ti, rapariga. Margery deu-me um ligeiro empurrão nas costas e retirou-se para o canto mais longínquo do salão, onde estava o seu marido, que parecia querer confundir-se com a tapeçaria na parede. Vi que Ben também lá estava; deu-me uma piscadela de olhos tranquilizadora e LadyAnne franziu as sobrancelhas. Havia também dois ou três homens com as cores de Richard, castanho-avermelhado com laivos negros e todos eles olhavam para mim. Red não se virara. Olhei para LadyAnne. Ela acenou-me com a cabeça, um aceno frio e eu avancei um passo, dois passos. Mantive a cabeça bem direita. Olhei-o bem nos olhos. Eu sou afilha da floresta. Não tenho medo de ti.
É mais nova do que pensava disse Lorde Richard, escrutinando-me de perto. Não que isso faça alguma diferença. Está-lhes no sangue, absorvem-no com o leite das mães. Uma espécie de raiva; uma dedicação cega que gera assassinos, fanáticos e loucos. Duvido que algum dia aceitem que o que lhes tirámos nunca lhes pertenceu por direito. Umas reles rochas no meio do mar, uma caverna ou duas, um par de árvores atrofiadas. Mas matam por isso. Morrem por isso. Até que o último caia a fio de espada. Está-lhes no sangue. Reparai no porte dela e no ódio que lhe vai nos olhos. Uma causa perdida. Mas pode ser-nos útil, irmã. Ouvi dizer que não é nenhuma rapariga de aldeia. Pode render-te ouro; o suficiente para comprar uma bela parcela de terra na tua fronteira sul, ou construir uma poderosa torre de menagem. O suficiente para uma bela troca de armamento ou um belo garanhão. Quem é ela? Que família abre assim as garras e entrega assim, de mão beijada, um pedaço destes? Como é que te chamas, rapariga?
Mantive o meu olhar fixo no dele, resoluta.
Ela não fala disse Lady Anne. Esta rapariga tem uma... uma doença qualquer. Creio que não tem os parafusos todos e insiste em magoar-se a si própria. Não sabemos quem ela é. O tom dela era apologético; pensei que estava embaraçada e receosa. Mas ele era irmão dela. Talvez eu estivesse enganada.
Não fala? perguntou Richard suavemente, inspeccionando-me sob todos os ângulos. Ou não quer falar? Tinha as mãos juntas atrás das costas; mantive-as descontraídas, respirando devagar. Arrisquei um olhar para Red. Não dissera ele que me ajudaria? Parecia muito interessado no que se passava no exterior
Onde a encontraste, Hugh? Um troféu de alguma batalha?
Pai. Fora Elaine que falara, surpreendendo-nos a todos, penso. Não deveis falar da rapariga assim, como se ela não vos compreendesse. Como se não estivesse aqui.
Richard riu-se. Não era um som agradável.
A tua amabilidade faz-te justiça, minha querida. Mas esqueces-te que esta gente não é como tu, ou como eu. Se visses as coisas que eu vi, se tivesses testemunhado as atrocidades. Deus queira que nunca sejas exposta a tais horrores. Não imaginas, com certeza, que isto pensa e sente como tu, a filha de uma das maiores famílias de Northumbria. Ela é menos do que o chão que tu pisas com a tua bota, minha querida. Além disso, não acredito que uma rapariga da idade dela seja capaz de compreender a nossa língua. A educação dela deve ter sido bem rudimentar, se teve alguma. A não ser, claro, que tenha sido treinada para espia. Isso levanta questões mais interessantes Pensaste nisso, quando a trouxeste para cá?
Elaine fez menção de falar de novo, mas depois pensou melhor. Richard continuou o seu passeio.
Ela não nos pode dizer quem é murmurou. Que conveniente Dá muito jeito Portanto, não podes conseguir um resgate por ela. Eu posso tentar adivinhar, talvez. Talvez esta rapariga tenha ouvido falar de Seamus Redbeard, cujos bárbaros assassinaram homens bons nos desfiladeiros por cima do grande lago? Olhou para os meus olhos e de súbito senti-me como se estivesse defronte de Lady Oonagh, fazendo apelo a toda a minha força de vontade para não mostrar o menor sinal de conhecimento, mantendo o rosto tão imóvel como uma pedra. Talvez ela tenha ouvido falar de Eamonn de Marshes, cunhado de Redbeard; o truque dele é a utilização do fogo, de noite. Um fogo bem quente, que só deixa ossos. Circulou de novo em volta de mim. Talvez ela tenha ouvido falar de Lorde Colum de Sevenwaters, o mais esquivo de todos, uma seta na minha carne, se eu tivesse uma. Foi contra ele que a fina-flor dos meus homens morreu. Talvez ela tenha ouvido falar deles. Porque todas as raparigas são filhas, ou irmãs; a não ser que acreditemos em fadas. Olha para mim, rapariga. De quem és tu filha?
Silêncio. O silêncio era a única defesa. Inspirar; expirar. Tentar não pensar em nada. Tentar sufocar a raiva que me ia no peito; tentar afastar a dor do rosto. Os teus pensamentos brilham nos teus olhos como faróis; os teus e os de Fimbar. Escondê-los. Imóvel. Imóvel como uma pedra.
És demasiado brando, Hugh. Isto podia ser como uma brincadeira de crianças. Mas tu nunca gostaste de ter sangue nas mãos.
Virou-se para LadyAnne.
E o teu filho mais novo, irmã? Quanto darias para o teres em casa, são e salvo? Se ela te pudesse levar até ele, não a farias falar por todos os meios? Seria fácil fazê-la falar, tão fácil. Mas aqui o Hugh, por razões que só ele sabe, não parece preparado para o fazer. Isso faz-me pensar. E levanta muitas outras questões.
Não olhar para Lady Anne. Respirar, apenas. Para dentro. Para fora.
Ela não passa de uma criança disse Red, muito sereno. E de súbito percebi que tudo aquilo não era comigo. Era-lhe destinado. Fazia parte de um jogo que apenas aqueles dois homens compreendiam. Era uma espécie de teste. Mas, qual deles estava a ser testado? Não tem nada a dizer. Ajudou-me quando eu estava em dificuldades; ofereci-lhe abrigo. É tudo.
Houve um silêncio completo na sala. Richard ergueu as sobrancelhas, zombeteiramente.
Esta criança? disse ele, insinuante. Tinha as costas viradas para a filha e para Lady Anne. A sua mão levantou-se, um dedo tocou-me na face delicadamente e depois percorreu-me lentamente o rosto, o pescoço e o seio, mesmo acima do decote do vestido. Senti o sangue fugir-me do rosto, as minhas entranhas apertaram-se devido a terrores recordados e suspendi a respiração. Não vi Red mexer-se, tão rápido ele foi. Mas ali estava ele com a sua grande mão em volta do braço de Richard, firme, desviando-o.
Chega disse ele suavemente. Não precisava de levantar a voz; o tom dizia tudo. Estais em minha casa, tio. A dama é minha hóspede. Talvez não tenha sido muito claro.
Oh, foste muito claro, Hugh, meu rapaz, claro como cristal. Esfregou o braço com uma expressão comicamente pesarosa. Tinha um vasto repertório. Espero que seja tão claro para a tua mãe, é tudo o que posso dizer. Talvez ela se sinta menos entusiasmada com a ideia de dar abrigo a esta... dama. A pequena pausa antes da última palavra fora requintadamente programada. Mas tinha feito uma leitura defeituosa da audiência. Elaine tinha as sobrancelhas levemente franzidas, como se estivesse a pensar intensamente. Lady Anne sentia-se incomodada. No entanto, fez-me sinal e eu, reunindo a dignidade que me restava, abandonei o centro da sala, onde me encontrava, gelada e fui sentar-me no banco bordado a seu lado. Com aquele gesto disse mais do que muitas palavras. Podia não aprovar o que Red fizera; mas ele era filho dela, aquela era a casa dele e ela faria sempre com que os seus hóspedes fossem tratados de maneira correcta, por mais que lhe custasse.
Suportei a refeição da noite. Desta vez estava mais bem protegida, porque a família estava reunida, Lady Anne no seu lugar habitual, à direita do filho e Elaine à direita dele. Lorde Richard estava sentado ao lado da irmã, eu sentia os olhos dele em mim e fiz os possíveis para não olhar para ele. No fundo da mesa, vi-me entre John e Ben, com Margery em frente. O que anulava qualquer necessidade de ouvir o que se dizia, ou afivelar uma expressão diferente. Os três mantinham uma conversa animada acerca de diversos tópicos, sobre a feira de Inverno em Elvington, se o sicômoro ou a nogueira eram boas madeiras para fabricar mobília, ou sobre os méritos da nova porca de Red. Arranjaram maneira de me incluir na conversa e utilizaram uma variedade imaginativa de expressões e gestos, provocando uma certa hilaridade no nosso grupo. Por uma vez ou duas, ao olhar para a cabeceira da mesa, apanhei o olhar de Red, nem aprovador, nem desaprovador, anotando apenas. Passou muito tempo numa calma conversação com Elaine. Estavam bem um para o outro, pensei. Amigos de infância, sabiam qual era o seu lugar no mundo e trabalhariam bem os dois juntos para manterem o que tinham. Ela impressionara-me, na sua tentativa para fazer frente ao pai. Além disso, eram ambos altos e bem constituídos e teriam belos filhos. E recordei as expressões nos rostos de Liam e de Eilis na noite dos seus esponsais; como olhavam um para o outro, como se não existisse mais ninguém no mundo. Não vi essa expressão no rosto de Red, nem no de Elaine. Talvez os bretões sejam assim, pensei. Não mostrarem o que sentem. Em vez disso, fecham-se à chave, para que ninguém veja. Mas havia excepções, pensei, ao ver Margery partilhando uma anedota com o marido e ao ver o rosto de John passando-lhe um prato de pão, do qual ela retirou um pedaço, tocando-lhe na mão. Havia aqueles cujo amor transparecia de cada gesto, partilhado assim por todos aqueles que os conheciam. Mas eram raros.
Dormi mal; os demónios nocturnos eram poderosos, agarrando-se a mim até no sono e era um alívio acordar, finalmente, fria e encharcada em suor e ver, através da minha janela redonda, os primeiros sinais da alvorada no céu. Lavei-me com água fria e cobri a camisa de noite com uma capa, porque sentia claustrofobia e precisava desesperadamente de ar. Desaferrolhei a porta e saí suavemente para o jardim, de pés descalços, sobre as pedras frias. Alys seguiu-me com alguma relutância, movendo-se rigidamente na madrugada gelada. Dentro de dias gelaria tudo, pensei. Isso era bom; talvez na Primavera eu visse o chão atapetado de junquilhos e açafrão. Hoje estaria bom tempo; podia ainda ver estrelas no céu, onde a cor púrpura se desvanecia e se transformava em cor-de-rosa, para depois passar ao dourado da madrugada.
Alys emitiu uma pequena rosnadela quando nos aproximámos do fundo do jardim. No banco por baixo do muro estava Red a dormir. Este mal tinha tamanho para lhe acomodar o grande corpo; o bretão tinha os braços cruzados por trás da nuca, uma perna estava estendida ao longo do banco e a outra pendurada. Teria umas quantas dores quando acordasse. Tinha consigo a espada e a pequena faca na bota; mas neste momento qualquer estranho acabaria com ele. Fiquei ali quieta, enquanto a madrugada lhe tocava no rosto com a sua luz rosada, lhe corria pelo nariz direito, pelos maxilares bem definidos e pela larga e descontraída boca. A vida está boa para alguns, pensei.
Não levou muito tempo a acordar. Quando o fez, foi com um movimento suave, com ou sem dores, pondo-se de pé instantaneamente alerta, a mão pronta no punho da espada. Alys emitiu um latido de medo. Então, Red viu quem era e sentou-se de novo, coçando a cabeça pesarosamente.
A dormir em serviço. Nada bom disse ele, pestanejando. Devia estar mais cansado do que pensava. O dia de ontem não foi dos melhores.
Acenei com a cabeça. Ficava aquém da realidade. Olhou melhor para mim, perspicazmente.
Estás com um aspecto horrível disse ele.
Obrigada. A minha expressão deve ter-lhe dito como me sentia.
E os teus pés devem estar gelados. Senta-te aqui. Sentei-me no banco com os pés debaixo do corpo e enrolei-me na capa para os cobrir. A pedra estava fria, mas era um frio bom, aquele frio de Inverno que adormece o jardim, sonhando com o renascimento da Primavera.
Não tens dormido disse Red e estendeu uma mão para me tocar no rosto. Recuei e ele deixou-a cair. Tens olheiras enormes por baixo dos olhos e estás branca como a cal. Lamento o que aconteceu ontem. Eles vão-se embora esta manhã. Não quero que te sintas assustada.
O que eu queria dizer não podia ser traduzido por meio de gestos.
Tu não ajudaste muito. Por que não o detiveste mais cedo? Não conseguia pensar numa maneira de lho dizer. Em vez disso, encolhi os ombros.
Estou a falar a sério, Jenny. Garanto-te que não o voltará a fazer. Não foi justo para ti, nem para a minha mãe. Perscrutei-lhe o rosto. Achei que lutava contra si próprio, pouco seguro das suas palavras.
Ele... não, deixa-me dizer de outro modo. O meu tio é da família. Tenho que aceitar isso. Pelo menos por agora. Deixei que ele falasse, para o caso de... não, não tenho necessidade de te sobrecarregar com isto.
Com quê? Sobrecarregar-me com quê? Daquele homem, com a sua língua suave e mãos arrepiantes, sorriso sempre pronto e palavras venenosas, espera-se tudo. Já deve ser bastante mau tê-lo como tio. Eu não gostaria nada de o ter como sogro, se pudesse escolher. Mas parecia que, para Red, a escolha já estava feita.
Eu sei porque é que Simon se foi embora disse Red em voz baixa. Senti, de novo, que falava para si próprio, não para mim. Punha os seus pensamentos em ordem. Dizendo coisas que normalmente não se dizem em voz alta. Não sei se compreendo bem porque não voltou. Há várias maneiras de conduzir uma campanha e Richard conhece-as muito bem; seja o que for que penses dos motivos dele, é um profissional com anos de experiência no assunto. Esta campanha foi diferente. Não se monta um acampamento no coração do território inimigo, se sabemos do que ele é capaz. Não se colocam os homens todos numa posição vulnerável, para os perder numa única emboscada. Quando se dorme, colocam-se vigias. E, geralmente, não é o recruta mais novo e mais cru que é escolhido para tal missão. Por que é que ele não morreu, como os outros? Correu a mão pelo cabelo curto, franzindo as sobrancelhas. Simon era valioso como refém, sei isso muito bem. Mas não houve qualquer pedido de resgate, nenhum contacto, nada. E nem qualquer sinal dele, quando lá estive. Nada; excepto...
Excepto o que eu tinha, pensei. E que passou a ser precioso para ti.
E quando o próprio Richard foi em busca dele continuou Red e eu pensei que ele se tinha esquecido que eu estava ali o que ele nos disse... não bate certo. John disse o mesmo. O que ele nos disse, como eles foram chacinados, como os homens de Erin apareceram de noite... não acontece com homens experientes. Não daquela maneira. Richard disse... deu a entender... que foi culpa de Simon, que o meu irmão, de algum modo, os traiu, atraiu o inimigo. Mas eu conheço o meu irmão. Pode ser insensato, teimoso, infantil para a idade. Mas não é um traidor.
Acenei com a cabeça. Sabia que Simon não era nenhum informador. Tivera fé nele, mesmo quando ele a perdeu.
Há uma verdade por descobrir nisto tudo disse Red. Há-de haver uma verdade nesta história. Esperava, ao ir em busca de Simon, descobrir a verdade, se bem que ao fim de tanto tempo tivesse poucas esperanças de que ele ainda estivesse vivo. Mas não encontrei respostas. Regressei sem elas e com uma mão-cheia de perguntas. Ao deixar o meu tio falar, ontem, esperava descobrir outra pista. Foi por isso que o deixei ir tão longe e estou arrependido. Usei-te como peão e magoei-te.
O dia estava a ficar mais claro. O que era bom para o movimento das mãos.
Podias voltar lá. Procurar de novo. Talvez o encontrasses. Podias levar-me contigo. E então, pensei, quando os meus irmãos regressassem, eu estaria lá, à espera deles.
Red olhou para mim, sério. Era evidente que me tinha compreendido.
Não posso sair daqui por uns tempos. Há muito que fazer; estive fora durante muito tempo e tive que deixar outros encarregues das colheitas e da separação do gado. O rio pode transbordar antes do solstício do Inverno e... interrompeu-se ao ver a minha expressão. Não quero voltar, ainda não disse ele. A minha ausência de Harrowfield deixa vulneráveis todos aqueles que me são queridos. Estamos em época de mudança, com um novo Rei no sul, que ainda não conhecemos. Duvido que Ethelwulf tenha a força do pai e isso deixa-nos a descoberto perante os Dinamarqueses. O meu dever é aqui, por agora. O meu irmão escolheu ir. Escolheu esse caminho. Não vou perder tudo o que tenho para o trazer de volta. Mas não esqueço. Nem receio derramar sangue, por mais que o meu tio diga. Se Simon está vivo, hei-de encontrá-lo. Se for preciso, espero.
Antes de deixar o local, disse-me para ir para dentro, fechar a porta e ficar dentro de casa até ser dia claro.
Faz o que eu mando, Jenny disse ele. O perigo é grande. Já o viste. Talvez eu esteja enganado; talvez me engane a respeito do meu tio. Espero que sim. Ele vai-se embora esta manhã, mas tenho a certeza de que há-de voltar para tentar de novo. Ele já te viu. Sei como trabalha a mente dele; a tua força é um desafio para ele. Lembra-te da tua promessa.
Lembrei-me e, sentada muito quieta no meu quarto, com apenas Alys como companhia, lembrei-me de muitas outras coisas, também. Em particular, lembrei-me da Dama da Floresta e de como ele lhe dissera Faz com que ela não seja magoada de novo. E de como ela me disse Já não precisas de ser tão forte. Qual era o jogo das Criaturas Encantadas, que até usavam os Bretões como peões? Encarregarem Lorde Hugh de me proteger, quando isso ia contra qualquer escolha lógica que ele pudesse fazer? Bem, não havia ninguém ali a quem perguntar. Ninguém, senão eu e a pequena Alys. Peguei na agulha e no fio áspero e, à medida que a luz chegava, comecei, laboriosamente, a acabar o quadrado que tinha começado, ponto por doloroso ponto. A primeira parte da camisa de Conor.
Após aquela ocasião, a vida assentou um pouco. O tempo tornou-se invernoso, com as geadas que eu antecipara como mero prelúdio dos dias de tempestade e chuvas geladas que transformaram o solo em lama.
As carroças ficavam atoladas e os homens imundos, tentando desatolá-las. O rio transbordou e o gado foi mudado para terras mais altas. Nas cozinhas, um caldeirão de sopa fumegava constantemente, pronto para o contingente seguinte de homens exaustos. Reparei, sem surpresa, que Lorde Hugh e os seus amigos trabalhavam lado a lado com os camponeses e os fazendeiros, libertando os caminhos de árvores caídas, escorando margens, acalmando cavalos enlouquecidos de medo quando um raio atingiu os estábulos. A minha opinião acerca de Lady Anne subiu ligeiramente quando a vi encher cestos de comida e, numa ocasião, aventurando-se para os distribuir, acompanhada por uma serva. E subiu mais ainda quando ela começou a chamar-me pelo nome, em vez de «rapariga» e repreendeu uma serva que sugeriu que a precisão do raio poderia ter algo a ver com a minha presença na casa. Havia filas de botas cheias de lama diante do fogo e roupas encharcadas penduradas na cozinha. O meu quarto estava gelado e eu pedi um cobertor extra.
Pelo menos, aquele tempo significava que não teríamos visitantes durante um certo tempo. A estrada de Harrowfield para Northwoods estava impraticável, inundada pela subida do rio. Estávamos isolados, por agora. Era a época do ano em que, em Sevenwaters, me teria reunido com os meus irmãos para afastar as sombras e pedir a bênção dos espíritos para a estação que se aproximava. Havia o dia da festa cristã, que a família celebrava, mas sem grande aparato. Não havia aqui um padre; eram rezadas muitas orações pelos mortos e acendiam-se velas. Ninguém mencionou o nome de Simon. Mas ele estava entre nós; não era preciso dizê-lo, para o sentir.
Nessa noite, no meu quarto, acendi a única vela. Não me tinha despido, estava demasiado frio. O cão amontoara os cobertores numa espécie de ninho e estava deitado neles, ressonando levemente. A luz dançava nas paredes de pedra, esculpindo formas fantásticas. Silenciosamente, disse os nomes deles. Liam, Diarmid, Cormack, Conor. Finbar. Padriac. Via os rostos deles na minha mente, seis versões do mesmo rosto, mas todos tão diferentes. Nadando sozinhos, inundados pelas minhas lágrimas. Não faltava muito para o solstício do Inverno. Como os havia de encontrar? Só havia três camisas na minha trouxa e parte da quarta. Em breve não me restaria nenhuma morugem. Como a havia eu de a arranjar, quando o vento, lá fora, chicoteava os arbustos até ao chão e a água gelava nos regos dos campos nus? Finalmente, adormeci enquanto olhava para a vela, com Alys enroscada nos cobertores em busca de calor e com os nomes dos meus irmãos a soarem-me na cabeça, como se, ao dizê-los, os pudesse manter vivos mais tempo, só mais um pouco. O suficiente.
O tempo ficou cada vez mais desagradável e os dias mais pequenos. De manhã o solo ficava quebradiço do gelo e os beirais do celeiro cheios de pingentes. Já fora suficientemente duro, durante o tempo ameno do Outono, manipular, com as mãos inchadas, o fuso e a roca, passar a lançadeira através do tear, enfiar a agulha pelos pontos finais. Agora sentia um palpitar lento nas articulações e que não desaparecia, mesmo quando descansava. Nos piores dias, quando a neve caía lá fora e as lanternas alumiavam o quarto onde trabalhávamos até ao meio-dia, tinha que fazer muita força para as lágrimas não me caírem pela cara abaixo enquanto continuava. Margery já aprendera que eu não aceitava ajuda de ninguém. Tudo o que podia fazer era sentar-se ao pé de mim e falar baixinho de uma coisa ou outra e eu achava a presença dela tranquilizadora. Mas o meu progresso era lento, demasiado lento. Havia um fogo aceso na lareira e as mulheres sentavam-se perto dele para trabalhar. Mas eu não me aproximava, porque não gostava dos olhares equívocos, ou das línguas viperinas, que se mantinham silenciosas apenas na presença de Lady Anne. Não gostava dos pequenos sinais que faziam com os dedos, quando pensavam que eu não estava a olhar. Trabalhava tão continuamente quanto podia, observando pela janela a aproximação do solstício do Inverno e como não me atrevia a tentar adivinhar quanto tempo duraria a tarefa, fixei a mim própria um objectivo menor. Terminaria a camisa de Conor a tempo do Meán Geimhrídh, o solstício do Inverno.
Fechados em casa, os homens encontraram uma nova maneira de se ocuparem. O grande salão foi esvaziado de bancos e mesas e transformou-se num centro para várias formas de combate, armado e desarmado. Após um dia ou dois e quase algumas perdas, Lady Anne ordenou que todas as tapeçarias fossem retiradas, por via das dúvidas.
Comecei a ver onde desenvolvera Red as capacidades que observara durante a nossa viagem do lago até ao mar. Os homens praticavam com espadas, com espadas e punhais ao mesmo tempo e com paus. Lutavam e usavam as mãos e os pés como armas. Os meus irmãos teriam aprendido um truque ou dois.
Aborrecidas com a rotina matinal da costura, as raparigas eram frequentemente descobertas à porta, agrupadas, arfando quando Ben se baixava sob um golpe de espada de John e dava depois um pontapé que fazia voar o punhal do seu oponente, indo cair perto dos rostos admirados das observadoras. Ou emitindo exclamações de admiração quando Red demonstrava o seu método para quebrar uma gravata aplicada por um inimigo muito determinado uma manobra eficiente, se bem que pouco ética. E não eram apenas estes três que passavam o tempo assim. Red possuía uma força de homens pequena, mas letal, cada um dos quais, pensava eu, poderia, facilmente, dar uma lição a Cormack. O que já era dizer alguma coisa. Intrigava-me que aqueles pastores, lenhadores e moleiros fossem capazes, em apenas alguns momentos, de se transformarem em guerreiros habilidosos de propósitos mortais. Lorde Richard escarnecera de Red devido à relutância deste em se confrontar com o inimigo. Mas pensei que ele estaria pronto quando chegasse a ocasião. Assim como já o estava antes. Se eu fosse inimiga dele, não lhe faria o menor reparo. Trataria de e treinar para o combate. Levou-me algum tempo a recordar-me que eu e a minha gente éramos o inimigo. Quase caí na armadilha de pensar que pertencia a este lado.
Que isto estava bem longe da verdade foi-me demonstrado em breve. Lady Anne tornara-se um pouco menos fria desde a visita do seu irmão, mas apenas um pouco. Partilhava das minhas preocupações, penso, ao ver o filho exercitar daquela maneira a perna ainda mal sarada. Eu ficara satisfeita com o meu trabalho, porque os pontos saíram com limpeza e a ferida parecia bem. Nunca mais perderia a longa cicatriz que o seu oponente lhe fizera na carne, mas demonstrava, a cada dia que passava, que a perna estava como nova. Eu estava um pouco aliviada. Mas este sucesso não me valeu o respeito da família. Em vez disso, murmurava-se sobre como fizera eu aquilo e sugeria-se, a meia voz, que uma rapariga tão nova e fraca de espírito não podia ter conseguido resultado tão espectacular sem o uso da feitiçaria, ou algo parecido.
À medida que nos aproximávamos da véspera do solstício do Inverno, soube que tinha de planear as coisas com cuidado. Porque tinha de estar pronta e esperar, entre o crepúsculo e a alvorada, pelo regresso dos meus irmãos. Não importava se atravessara o mar e os deixara para trás. Não importava se me abrigava numa casa que não me pertencia. Sabia que eles não tinham qualquer mapa, qualquer sinal, qualquer luz que os guiasse até mim. Mas eu seguira este caminho e eles tinham de o seguir. Tinham acontecido coisas estranhas; e poderiam vir a acontecer outras ainda mais estranhas. Assim, fui dizendo os nomes deles mentalmente, numa espécie de litania e planeei a minha escapadela. Se eles viessem, seria pela água e, portanto, seria no rio. Não podia ir até tão longe sem ser descoberta e tinha pouco tempo. Não poderia estar lá ao escurecer. Teria que ser entre a refeição da noite e a hora em que era montada a guarda no lado de fora do meu quarto. Acenderia uma vela e teria de arranjar maneira de Alys ficar silenciosa. Depois, fecharia a porta e atravessaria furtivamente o jardim. Conseguiria ir até à margem do rio na escuridão. Tinha esperança de que eles esperassem. Depois, de manhã, dir-lhes-ia adeus, vê-los-ia partir em segurança e veria se o guarda já se fora embora antes de voltar a entrar no meu quarto. Talvez funcionasse. Tinha de funcionar. Tentei não pensar na hipótese de que talvez eles não viessem, que talvez fosse uma longa e vazia noite de espera.
A véspera do solstício de Inverno amanheceu clara e fria. Com um bom fogo aceso na grande sala e a fraca luz do Sol através da janela, lá conseguimos fazer com que os nossos dedos gelados trabalhassem. No grande salão fora colocado um grande tronco de carvalho na lareira, para ser aceso à noite com cerimónia e ramos verdes, azevinho, hera e musgo dourado pendurados por cima de todas as soleiras. Isto era-me familiar. Mas não imaginava fogueiras nos montes, nem as pessoas em volta delas, bebendo e brindando aos espíritos dos campos e das árvores. Ficariam nas suas camas quentes e de portas fechadas. Teria essa vantagem. Poderia esgueirar-me, de noite, sem ser vista.
A sessão de costura, nesse dia, foi curta; a meio da manhã as mulheres foram para a cozinha, onde todos os braços se reuniram na preparação da festa dessa noite. Haveria carne assada, cidra e bolos de ameixa. Os homens faziam os seus jogos de combate ou trabalhavam na herdade. O melhor gado estava fechado nos estábulos durante o Inverno e o restante tinha de ser alimentado diariamente. Foi um dia movimentado, tão movimentado que ninguém reparou em mim e assim fiquei onde estava, saboreando a solidão e cosi a segunda manga na camisa. Estava quase acabada. Enquanto trabalhava, a minha mente afastou-se da sala vazia e do fogo que se ia apagando. Fiz aparecer a imagem do meu irmão Conor nos meus pensamentos: sábio, de olhos bons; magro, rosto fino, longos cabelos brilhantes, como uma castanha madura; um jovem forte de espírito velho. Vi-o na nossa cozinha contando histórias; vi-o à luz das velas, rodeado por sombras estranhas. Vi-o na margem do lago invocando os espíritos do fogo. Vi-o nadar através do lago, com as grandes asas dobradas. Conor. Estou aqui. Onde estás tu? Fiquei ali sentada durante muito tempo, os dedos ocupados com a agulha e o fio e a mente longe. Tentei chegar o mais longe possível, com todas as forças que tinha, para o chamar. Mas não obtive resposta, ou, pelo menos, não a ouvi. Podem estar a voar neste momento, vindos na minha direcção, disse para mim própria. Podem estar sobre a grande água, ou abrigados do frio num local qualquer desolado, entre lá e cá. Vou esperar; há-de chegar a ocasião em que, quando eu chamar, ele há-de responder.
Vagamente, os meus ouvidos apanhavam a actividade crescente no lado de fora da sala, o som de vozes e passos apressados. A luz era demasiado fraca para trabalhar e a minha mente estava entorpecida e exausta devido ao esforço. Fui até à porta e vi Megan passar apressada, os braços carregados de roupa. Prendi-a pela manga, levantando as sobrancelhas interrogativamente.
É Mistress Margery disse ela com a respiração ofegante. Tem estado com dores a tarde toda, muito fortes e a parteira diz que algo está mal. O bebé está na posição errada, diz ela e ai sabes o que isso quer dizer. Pobre Mistress Margery. O primeiro bebé morreu-lhe, sabes. Parece que vai acontecer o mesmo com este.
As palavras delas provocaram-me um choque e fizeram-me voltar a este mundo. O bebé de Margery, que lhe era tão precioso. Ela e John já tinham perdido um, não podiam perder este. Eu podia ajudar. Já o tinha feito antes, sabia o que fazer. Não lhes podia dizer, mas podia mostrar-lhes. Segui a animada Megan até ao alojamento de Margery, onde havia mulheres amontoadas à porta e luz, lá dentro. Megan desapareceu no interior com a roupa limpa. Mas a minha passagem foi barrada por uma das damas de LadyAnne.
Tu, não disse ela com firmeza. Hesitei apenas um momento e tentei passar de novo. Aquilo era ridículo. Se Margery tinha problemas, precisava de mim. De certeza que me queria a mim. E eu sabia o que fazer, pelo menos pensava que sabia. O braço da mulher ergueu-se para me impedir a passagem.
Não podes entrar disse ela. Não podes lançar as tuas maldições sobre uma mulher em trabalho de parto, nem pousar essas mãos sujas no bebé dela. Desaparece. A tua espécie não é aqui bem-vinda. Eu podia tê-la esbofeteado, se não pensasse que ainda pioraria as coisas. Respirei profundamente.
O que é? disse uma voz do interior do quarto. Era Lady Anne, que veio até à porta ao ouvir as vozes elevadas das mulheres. Jenny. Que estás aqui a fazer? Parecia cansada, triste e nada contente por me ver. Utilizei as mãos para falar com ela. Eu posso ajudar. Sei sobre estas coisas. Deixa-me ajudar. Deixa-me entrar.
LadyAnne olhou para mim, cansada.
Não me parece, Jenny disse ela, virando as costas. Nós temos aqui a nossa parteira. Ela sabe o que fazer; se ela não conseguir salvar este bebé, receio que ninguém possa. E desapareceu.
Ouviste a minha senhora disse outra mulher. Desaparece. Não precisamos dos da tua espécie. É uma curandeira que precisamos aqui, não uma assassina. Por que não voltas para o lugar de onde vieste, bruxa?
Saí. De que valia? Podia ter chorado, pensando em Margery, que se tornara minha amiga e que se arriscava, agora, a perder aquilo que tanto desejava. Voltei para o meu quarto, assegurei-me de que os preparativos para a noite estavam completos e fui para o jardim, onde andei de um lado para o outro, enquanto Alys farejava em volta e por baixo dos arbustos de alfazema. Senti o frio apertar à medida que o céu ia ficando mais escuro, com a noite a aproximar-se. Senti o coração pesar-me com um mau presságio. A morte estava muito perto, nesse dia; senti-a nos ossos. Nenhuma fogueira, nem nenhum ramo de azevinho a afastariam, já que decidira entrar. Desejei vestir a capa e as botas e ir imediatamente para o rio, de maneira a estar lá quando o Sol desaparecesse no horizonte e a terra ficasse cinzenta, púrpura e negra. Mas eu conhecia Red. Eu devia aparecer à mesa, ou iriam à minha procura. Não havia fuga possível até ser noite escura. Não precisava de me fechar à chave, para me manter prisioneira.
Era para ser uma refeição festiva, mas havia pouca alegria entre aqueles que se juntaram no salão, nessa noite. Já estava escuro. Olhei para a escuridão no lado de fora das janelas e o meu espírito chamou de novo. Conor! Finbar Onde estais? Esperai por mim. Imaginei os meus irmãos ao frio sob os salgueiros, não sabendo se eu estaria por perto, ou não. Sozinha no coração do território inimigo. Exausta, na escuridão. Um canto da minha mente registou um John perturbado, a quem entregaram uma taça de vinho, despejando-a de um trago, não se apercebendo bem do que fazia ou onde estava. Um Red, de boca cerrada e olhar frio, falando com a mãe num tom baixo, mas furioso. Pensei que sabia porque estava zangado. Ele sabia que eu era curandeira. Era amigo de John e de Margery. Sabia que eu era capaz de ajudar. Mas Lady Anne não me queria à cabeceira de Margery, com as minhas mãos de feiticeira, ajudando o bebé a nascer. Parecia desconfortável face à ira de Red, mas também havia teimosia naquelas feições suaves. Ben sentou-se ao pé de mim e não disse quase nada. Ninguém tinha muito apetite.
Assim que se tornou polidamente possível, saí da mesa e fui directamente para o meu quarto. Lady Anne e o filho continuavam a discutir; penso que nenhum deles deu pela minha falta. Ainda tinha muito tempo. Meti os pés nas botas e agarrei na capa. Alys mal se mexeu, aninhada nos cobertores. A vela ardia sobre a arca de madeira. Estou a chegar. Esperai mais um pouco. Levantei a mão para abrir a porta.
Ouvi nesse momento um batimento e a voz de Megan na outra porta.
Jenny! Jenny, estás aí? Foi como se uma mão se me fechasse sobre o coração. Não, agora não. Não me chamem agora. Mas era para Margery, sabia-o e não podia fazer outra coisa senão abrir a porta e seguir Megan. Tinham levado tempo a perceber que não conseguiriam fazer nascer aquele bebé sem a minha ajuda. A própria Lady Oonagh não teria escolhido momento melhor.
LadyAnne falara com as mulheres; ou alguém falara. Os olhos delas ainda me seguiam nervosamente enquanto eu percorria o quarto e mais de uma fez um sinal da cruz furtivo. Mas não disseram palavra. Margery estava exausta. Tinha grandes olheiras e a pele estava fria e suada.
Jenny! Estás aqui! disse ela com voz fraca. Por que não vieste antes? Eu queria que viesses. Por que é que não havia meio de vires?
Olhei para Lady Anne e ela desviou o olhar, incapaz de me enfrentar. Penso que percebeu, contra vontade, que tinha feito uma coisa imperdoável.
A noite do solstício de Inverno é longa, mas aquela pareceu-me a mais longa da minha vida, enquanto batalhávamos para ajudar a criança a encontrar o caminho para este mundo. Margery tentava e tentava, mas cada vez ficava mais fraca. No entanto, foi uma noite que passou depressa, demasiado depressa enquanto eu trabalhava e lá fora, sobre as copas das árvores, as estrelas brilharam e começaram a desaparecer. E enquanto as minhas mãos iam ficando cheias de sangue, o meu corpo encharcado em suor e ia instruindo as mulheres para que tranquilizassem Margery sem o benefício das palavras, uma parte do meu espírito chamava pelos meus irmãos. Esperai por mim. Esperai só mais um pouco. Antes da alvorada estarei aí.
Era demasiado tarde para virar a criança, porque estava muito em baixo para se poder mexer. Portanto, teria de nascer de traseiro, se conseguisse. Margery tinha já poucas forças. Não conseguia fazer compreender às mulheres aquilo de que necessitava e assim saí do quarto, levando Megan comigo e dirigi-me à ervanária da herdade para encontrar eu própria os ingredientes. Precisava de fazer as coisas como deve ser. Algo para a descontrair, primeiro, um pequeno intervalo para ela ganhar forças de novo. E algo para ajudar essa força, o suficiente para um, dois, três empurrões. E rezar à deusa para que o cordão umbilical não estivesse em volta do pescoço do bebé. Não tenho dúvidas de quem arcaria com as culpas, se a criança nascesse morta. Além disso, creio que não suportaria ver o rosto de Margery, ou o de John, se não conseguisse pôr a criança nos braços da mãe.
Megan segurava na lanterna enquanto eu trabalhava. A casa estava bem fornecida, mas quem armazenara aquelas ervas com tanto cuidado não devia saber da sua eficácia em partos, nem como misturá-las com precisão. Ainda restava algum tempo até de madrugada, mas não muito. esperai por mim. Deitei a mistura seca que preparei numa pequena taça e dirigi-me para o lume da cozinha. Aquelas ervas tinham que ser embebidas em água quente. Não demorava muito, mas o tempo escasseava, para Margery. A criança também devia estar a ficar cada vez mais fraca, devido ao estrangulamento. Enquanto subia as escadas, vi os três homens agrupados numa semiescuridão, na lareira do salão. John tinha a cabeça nas mãos e Ben falava suavemente com uma mão no ombro do amigo. Red estava em pé ao lado da lareira e foi o único a ver-me. Os olhos dele fizeram a pergunta. Os meus não podiam mentir. Salvá-los-ei a ambos, se puder. Farei o melhor que souber. Penso que ele me compreendeu, mas não disse nada em intenção de John. Acenou-me em sinal de compreensão e eu subi pelas escadas acima com Megan à minha frente, transportando a lanterna.
O fogo brilhava e aquecia o quarto de Margery. A meu pedido, Megan desatou o molho de alfazema seca que trouxera do andar inferior, retirou as hastes prateadas e deixou cair as flores nas brasas, provocando um aroma doce e curativo. A infusão já arrefecera o suficiente; levantei Margery para que ela ficasse sentada e observei-a enquanto ela bebia obedientemente a mistura de tomilho, calaminta e tília aquática, uma erva de último recurso. Não houvera tempo de adoçar a mistura, de a tornar mais agradável ao palato, com mel ou especiarias. Mas ela bebeu-a toda, os olhos cheios de olheiras fixando os meus com uma tal expressão de confiança que me aterrou. Então, por um certo tempo, descansou.
Quando o céu lá fora ficou azul-violeta e depois cinzento-claro, o bebé, finalmente, nasceu. A infusão dera a Margery a força suficiente para o último empurrão decisivo. As minhas mãos, apesar de ásperas, sabiam o que faziam e eu ajudei-a a trazer o bebé para este mundo. Vinha flácido e silencioso.
O que é que se passa? perguntou Margery em voz baixa. Por que é que ele está tão calado? E as mulheres começaram a murmurar entre elas. LadyAnne estava a limpar uma sobrancelha de Margery e tinha lágrimas nos olhos. Com a luz cada vez mais brilhante dentro do quarto, encostei a minha boca à do bebé e soprei suavemente. Uma vez. E outra.
A parteira agarrou-me no braço, tentando deter-me, mas LadyAnne disse:
Não, deixa-a.
Um sopro mais. Só mais um. E por fim o bebé arfou e tossiu delicadamente, passando depois a berrar com toda a força dos pulmões. Então, houve uma exclamação geral de vozes e muitas mãos para embrulhar o bebé e encostá-lo ao seio da mãe, ao mesmo tempo que irrompiam lágrimas de alegria. Havia muitas ajudantes para lidar com a placenta, avivar o lume e correr a dar a boa-nova aos homens. Ninguém reparou que eu me escapei pelas escadas abaixo no meu vestido cheio de sangue, corri o grande ferrolho da porta da frente e corri, corri, pela alameda abaixo entre os grandes álamos, passando pelos muros limpos e pelas ovelhas que fugiam espavoridas, na direcção da curva cintilante do rio, onde as primeiras luzes da alvorada transformavam a água em prata líquida, sob os salgueiros inclinados. Mas antes de conseguir chegar à margem o Sol apareceu por entre as árvores nuas, explodiu pelo vale e o mundo ficou cheio de luz. Muitas criaturas deixavam rastos naquelas margens de solo brando, patos e gansos, raposas e lontras. Mas era cedo; os patos ainda estavam a dormir. E não havia cisnes na água enrugada. Não havia pegadas humanas, senão as minhas. Se eles tinham ali estado, já se tinham ido embora.
O meu coração ficou gelado de dor e raiva. Por que não esperastes por mim? Por que não me deixastes um sinal? Assim, nem sequer sei se chegastes a vir! As lágrimas correram-me pelo rosto, lágrimas que não derramara antes, um rio de lágrimas que me exauriu o corpo todo e eu encostei a cabeça contra o tronco de um salgueiro, esmurrando-o até que as minhas mãos sangraram. Se pudesse gritar a minha angústia, teria gritado, até que por todo o vale ecoasse a minha dor. Fiquei ali encostada durante muito tempo. Por fim, deixei-me cair no chão, ao lado do grande salgueiro e cobri as faces com as mãos. Os meus ombros tremiam, o nariz pingava-me e as lágrimas não paravam. Se eu ficasse ali muito tempo, talvez passasse a fazer parte da árvore, uma árvore-rapariga chorosa, chorando todas as noites junto à água. Talvez desaparecesse no solo suave da margem do rio e no meu lugar crescessem juncos, delgados e cinzento-prateados e se um homem fizesse uma flauta desses juncos talvez ela cantasse demasiado tarde, demasiado tarde.
O sofrimento desta noite não justifica tanta lágrima.
Talvez, sem o saber, eu soubesse que ele vinha. Ouvi o som das botas no chão gelado à medida que ele se aproximava. Depois, senti o calor da capa dele sobre os meus ombros, colocada com muito cuidado, de maneira que as mãos dele mal me tocaram. Soube-me bem, muito bem. Não tinha percebido como estava frio, naquela manhã gelada, só com o vestido e os chinelos. Era como se a capa tivesse passado o calor do corpo dele para o meu.
Gostaria de saber a razão dessas lágrimas disse Red serenamente e sentou-se perto de mim, mas não muito perto. Um dia, hei-de saber. Por agora, trago-te os agradecimentos de John e também os meus, pelo que fizeste. Ficamos com uma grande dívida para contigo. Vamos para casa?
Funguei e abri os olhos, mas ele não estava a olhar para mim. Os seus dedos torciam uma erva e ele olhava para além da água. Um casal de patos-bravos nadava na torrente, calmamente, às primeiras luzes do dia. As penas do macho eram verdes-brilhantes, por cima do pescoço branco de neve. A fêmea movia-se na esteira dele, modesta, na sua cor castanha sarapintada.
O silêncio estendeu-se, mas não era desconfortável. Red tirou a pequena faca da bota, um bocado de madeira ainda menor da algibeira e começou a esculpir, semicerrando os olhos, concentrado, contra a luz intensa do Sol. Não podia ver o que ele estava a fazer. Gostaria de saber quem o terá ensinado, a ele e ao irmão. O dia ficou cada vez mais claro e a extensão cintilante da água foi rapidamente quebrada pelos patos, pelos gansos e pelas galinholas. Os meus pensamentos começaram, lentamente, a acalmar. Meio ano. Mais duas estações, antes de voltar a vê-los. Ontem fora o meu décimo quinto aniversário e nem sequer tinha pensado nele, senão agora. De certo modo, já não me parecia importante. Em casa, talvez já estivesse casada. Imaginava quem teria o meu pai escolhido para mim. Uma aliança estratégica, sem dúvida. Mas esse caminho estava tão distante que mais parecia uma história de outra rapariga qualquer. Não a minha. Eu estava aqui, os meus irmãos não e mais uma vez tinha apenas uma escolha. Podia continuar a fiar, a tecer e a coser; podia continuar a esperar. Talvez, se trabalhasse muito, se fosse mais rápida, a minha tarefa estivesse concluída no solstício do Verão. Então voltaria ao rio, na véspera do Meán Samhraidb. Mas estariam lá, eles? Poderiam estar lá? Era um voo tão longo. Como poderiam saber, antes de o Sol mergulhar no horizonte e de se transformarem de novo em homens, que tinham de fazer esta jornada? Porque, enquanto estivessem naquele estado encantado, não tinham qualquer percepção humana.
Excepto Conor. Conseguiria ele? Seria possível que, até para comandar a vontade de criaturas selvagens, as capacidades de um druida não fossem suficientes? Tudo poderia ser em vão. Por que haveria eu, então, de ficar aqui a labutar e a suportar os olhares amargos das pessoas da herdade e ouvir os nomes demoníacos que me chamavam? Por que rasgar as mãos na morugem até me sentir louca, por que passar os dias fechada, suspirando pela floresta? Porque no fundo do meu coração reconhecia que aquela correria até ao rio fora inútil. Eles não tinham vindo. Não teriam vindo e partido sem me deixarem uma mensagem. Sinais ogham esculpidos no tronco de um salgueiro, um monte de pedras na margem do rio, ou uma pena branca. Se tivessem vindo, teria ouvido as vozes interiores de Conor e Finbar. Sorcha, Sorcha, estou aqui.
Passara-se tanto tempo. Mas eu era irmã deles e nós os sete éramos apenas um corpo e um espírito, tão certo como os sete regatos da nossa infância correrem e misturarem-se no grande coração cintilante do lago. Eles não tinham vindo. E faltava tanto tempo, tanto, até ao solstício do Verão.
Desejas assim tanto voltar? perguntou Red calmamente, continuando a esculpir o pequeno pedaço de madeira. Isto aqui é assim tão difícil para ti?
Fiquei surpreendida. Ele estivera silencioso durante algum tempo. Outro homem qualquer ter-me-ia falado no que imaginaria serem os meus sentimentos neste momento: que eu devia estar contente por Margery e o bebé terem sobrevivido. Que devia parar de chorar e enxugar as lágrimas. Outro homem qualquer ter-me-ia dito que não me sentasse no chão gelado, na véspera do solstício do Inverno e fosse para casa imediatamente. Ter-me-ia dito que não o fizesse perder mais tempo. Não tinha resposta para as perguntas de Red. Claro que queria voltar para casa. O meu coração ansiava pela floresta e o meu espírito ansiava por estar perto dos meus irmãos, quer me pudessem ver, quer não. Mas não era estúpida. O senso comum dizia-me que ficar aqui era a minha melhor hipótese de acabar a tarefa. Tinha um telhado sobre a cabeça, boa comida e mais protecção do que aquela que queria ou necessitava. Tinha as ferramentas necessárias e até tinha duas pessoas a quem podia chamar amigos. E já suportara bem pior do que as línguas afiadas e os olhares de soslaio das damas de LadyAnne. Assim, o espírito dizia vai. A mente dizia fica, por agora. Se os teus irmãos não vierem, na próxima vez, então vai e procura-os. Não irias longe a meio do Inverno. Além disso, ele seguir-te-ia e trar-te-ia de volta. Sempre.
Levantei-me, hirta, e coxeei até à margem do rio. Ali, ajoelhei e recolhi água nas mãos em concha, primeiro para beber e depois para refrescar o rosto. Quando o fiz, vi-me reflectida na superfície, os olhos vermelhos, as faces marcadas pelas lágrimas e pálida de exaustão. A água estava gelada.
Prometo-te uma coisa disse Red e quando me virei para olhar ele tinha posto de lado o seu trabalho e estava a olhar para mim. Pus-me a pensar por que achara os olhos dele azuis. Hoje pareciam combinar-se com a água do rio, uma cor leve, que mudava, entre o cinzento e o verde. Prometo que te levo de volta, aconteça o que acontecer. Prometo que te levo a casa, sã e salva, quando chegar a ocasião. Assim que souber a verdade acerca do meu irmão, levo-te. Nunca falto a uma promessa, Jenny. Sei muito bem que te custa confiar em mim. Se um dia descobrir o homem que te fez isso, que te assustou tanto, mato-o com as minhas mãos. Mas podes confiar em mim.
Olhei para ele. Como podia ele fazer semelhante discurso, como se me estivesse a dizer como construir um telhado de colmo, ou a descrever a melhor maneira de arrancar cebolas? Mas havia algo nos seus olhos, algo escondido, tão profundamente, que quase passava desapercebido, uma intensidade, que me disse que acreditava em cada palavra. Senti um arrepio na espinha. Algo mudara; mas não sabia o quê. Era como se o mundo se inclinasse e nada voltasse a ser como dantes. Ou como se tivesse havido uma ínfima mudança no caminho, um minúsculo desvio, que, tomando-o, acabasse num lugar completamente diferente. E era demasiado tarde para voltar para trás.
A minha resposta veio sem eu pensar. Fiz um gesto que queria dizer Eu sei, acredito em ti. E quando ele estendeu a mão para me ajudar a subir a margem, tomei-a sem hesitar, como fizera uma vez, numa torrente tormentosa, quando aquela mão fora a minha única tábua de salvação na minha fuga à morte. Confiava nele. Era um bretão e eu confiava nele. Talvez me mantivesse segura até eu acabar as camisas e então mas era aí que a minha mente encontrava uma parede. Red podia ser muito amável agora, com as suas promessas e protecção. Mas continuava à espera. À espera que eu lhe contasse a história de Simon. À espera que eu lhe contasse como o seu irmão fora queimado, violado e levado quase até à loucura, pela minha própria gente. Como eu deixara Símon sozinho na floresta, sozinho com os seus demónios, como o deixara embrenhar-se na escuridão e morrer de frio, fome e terror sob os grandes carvalhos. Qual seria o preço da amabilidade de Lorde Hugh, quando ouvisse a história? Como poderia ele manter a promessa, sabendo o que tínhamos feito ao seu irmão mais novo? Eu vira a força naquela implacável boca, a dureza daqueles maxilares inflexíveis. Eu vira como aqueles olhos podiam ser frios. E, pelo menos uma vez, ouvira a paixão da sua voz, quando as Criaturas Encantadas o provocaram com a conversa acerca de Simon. Preocupar-se-ia bem pouco com a minha segurança e com a minha pele, quando soubesse a verdade.
E voltámos para casa, lentamente, porque descobri, subitamente, que estava terrivelmente cansada, tão cansada que os meus pés mal me mantinham no caminho certo.
Eu podia levar-te ao colo ofereceu-se Red. Da última vez funcionou bem. Mas eu abanei a cabeça. A confiança ia só até ali. No fim de contas, ele era um homem. Bem disse ele, enquanto eu continuava a caminhar com dificuldade se calhar, agora estás mais pesada. É espantoso o que a boa comida pode fazer. Quando olhei, surpreendi-lhe um ligeiro sorriso no rosto, mas apenas por um momento.
Quase consegui fazer o caminho todo até à herdade. Havia gente por ali, apesar do frio; um jardineiro, com um gorro e luvas de lã, podando uma sebe; um rapaz com um grande pau de freixo, conduzindo com dificuldade um bando de gansos. Continuámos calmamente, evitando a porta principal e conseguindo escapar às atenções. Mesmo à entrada da porta do meu jardim as minhas pernas cederam, de exaustão e para meu grande aborrecimento, ele levou-me ao colo os últimos metros. Quando abriu a porta e me introduziu no quarto, Alys levantou-se e avançou, rosnando e ladrando, num frenesim protector. Red depositou-me rapidamente em cima da cama e retirou para a entrada. A pequena terrier ficou entre os dois, de pernas afastadas, rosnando o mais ameaçadoramente que podia.
Está bem, está bem disse Red suavemente, de sobrancelhas levantadas. Sei muito bem quando não me querem. Eu mando-te alguém para te ajudar, Jenny. Trata de dormir. Foi uma longa noite. Olhei para ele, pensando que também ele parecia cansado. Era fácil imaginá-lo assim, já que parecia descansar pouco e não lhe fazer diferença. Mas naquela manhã havia uma palidez nele, uma sombra por trás dos olhos, que eu não notara à luz do Sol. Apontei para ele, juntei as mãos, deitei a cabeça nelas e fechei os olhos por um momento. Tu... também... dormir.
Tenho o trabalho do dia para ser feito disse ele e parecia surpreendido com a minha sugestão. E tenho uma palavra ou duas a dizer à minha mãe. Mas aqui foi surpreendido por um grande bocejo talvez tenhas razão. Em qualquer dos casos, descansa, Jenny. Saiu e Alys emitiu um latido agudo ao vê-lo afastar-se.
Pouco depois, Megan chegou com água quente e uma camisa de dormir limpa. Enquanto me lavava e mudava, ela foi buscar vinho quente e um óptimo pão de trigo com passas. Ficou ao pé de mim até eu acabar de comer e beber, levou Alys ao jardim e trouxe-a de volta. Disse-me que Mistress Margery e o pequeno Johnny estavam bem, que eu lhes tinha salvo as vidas e que não sabia onde tinha eu aprendido aquelas coisas. Depois aconchegou-me a roupa, deixou-me e eu dormi até ser noite e, se tive sonhos maus, esqueci-os antes de acordar.
Por ocasião do festival de Imbolc, que os Cristãos chamam Candelária, tinha eu acabado a quarta camisa. Mantinha-as todas na arca de madeira do meu quarto, com ervas secas entre elas. Liam, Diarmid, Cormack, Conor. Já não restava nenhuma morugem. Lady Anne, com os seus olhos vivos, observou que eu já não tinha o meu trabalho para fazer e arranjou-me uma entediante peça para me manter ocupada. Trabalhei lentamente, porque as minhas mãos já não tinham o controlo que tais tarefas requeriam, se algum dia o tiveram. Suturar a carne humana, ou ajudar uma criança a vir ao mundo era uma coisa. Introduzir uma agulha tão pequena, que mal se via, dando os pontos mais minúsculos, era outra completamente diferente. LadyAnne observava-me, de sobrancelhas levantadas, enquanto a minha frustração aumentava. Quanto terminámos o trabalho desse dia, ela chamou-me de lado. Senti que desde o nascimento da criança de Margery ela amansara ainda mais em relação a mim. E era estranho. Algo a preocupava. Sentia isso pela maneira como ela olhava para mim, de olhos semicerrados. E, no entanto, não fizera nada que a pudesse ofender. Cheguei a pensar que ela tinha medo de mim. Não conseguia perceber porquê.
Estás a ter dificuldade com este trabalho observou ela, pegando no meu trabalho e deixando-o cair novamente com um suspiro. No entanto, qualquer rapariga de oito anos era capaz de o fazer. A tua educação em assuntos domésticos foi muito limitada. Parece que te falta habilidade até para o trabalho mais básico. Mas, se vais ficar em nossa casa durante muito tempo, tens que te tornar útil, Jenny. Talvez eu consiga arranjar algo mais simples para tu fazeres.
Era uma espécie de oportunidade. Ainda tinha um caule de morugem na trouxa, guardado para semelhante ocasião. Engoli o aborrecimento que sentia e mostrei-lhe o que pretendia.
Não, isso não. Isto. Preciso de fazer isto. Mas preciso de mais plantas. Eu... vou... lá fora apanhar esta planta. Cortar... apanhar.
Os lábios de Lady Anne apertaram-se.
Não te posso ajudar. Nesta casa não há espaço para essas coisas. Tolerei essa tua loucura porque não tinha escolha. Mas não te vou ajudar a continuar com ela. Já chega. Se queres ser aceite aqui, tens que te esforçar por te comportares mais como nós, Jenny. Se, na verdade, fores capaz.
Parecia que não tinha importância nenhuma o facto de eu ter salvo a vida de Margery e a do bebé. Virei-me para me afastar dela. Era suficientemente orgulhosa para pedir. Além disso, sabia que seria inútil.
E não vás a correr ter com Lorde Hugh com os teus problemas disse ela nas minhas costas, com um tom na voz que sugeria outra mensagem qualquer, sem palavras. Ele tem mais que fazer. Ter-te aqui já é fardo suficiente.
De qualquer modo, não havia mais ninguém para quem me virar. Red andava ocupado, sabia isso muito bem. Era preciso lavrar, preparar a terra para a sementeira e havia também disputas para arbitrar, a espécie de questões que acontecem quando os camponeses estão juntos em espaços pequenos durante o Inverno e começam a implicar com as pequenas injustiças das suas vidas. Havia um sistema para lidar com tais situações. Regularnnente, cerca de dez dias após a lua cheia, havia uma reunião a que chamavam assembleia de camponeses. As partes ofendidas iam ao grande salão de Harrowfield e apresentavam as suas queixas perante Lorde Hugh, que as arbitrava.
Essas assembleias de camponeses eram muito frequentadas pelos rendeiros de Lorde Hugh, porque prometiam entretenimento, além de justiça. Houve a ocasião em que os porcos de um camponês entraram num terreno reservado, pelo seu vizinho, para a plantação de abóboras e ervilhas. Estragaram tudo e se Ned Thatcher não conseguia manter os porcos fechados, então deviam ser-lhe tirados e transformados em salsichas e ele, Bill Zarolho, seria o primeiro a fazê-lo, se Ned os deixasse sair outra vez. Tinha uma faca pronta, bem afiada. Ned levantou-se nesse momento para expressar a vontade de que Bill voltasse para Elvington, de onde tinha vindo e levasse com ele a linda mulher e as seis crianças. Se não sabia que porcos são porcos e têm vontade própria, então não sabia grande coisa. Além disso, os animais só tinham comido aveia brava e umas papas secas que a mulher de Bill tinha atirado por cima do muro, desleixada como era.
Red era a diplomacia em pessoa. Acalmou as duas partes com algumas palavras bem escolhidas acerca dos talentos e conhecimentos de ambos nos diferentes campos. Apontou as vantagens de um pedaço de terra ser revirado e fertilizado antecipadamente, de maneira que depois, chegada a ocasião, bastava deitar a semente e esperar. Depois, explicou que, em troca da utilização da terra pelos porcos antes da sementeira, Ned teria provavelmente umas tantas abóboras bem grandes e um cesto, ou dois, de cebolas e de ervilhas. A mulher dele faria uma boa sopa com elas, apaladada com um osso de presunto. É claro que os porcos teriam de sair da propriedade nos primeiros dias quentes de Primavera. Ele próprio enviaria ajuda para construir um muro mais forte. Ambas as partes se retiraram satisfeitas.
Havia disputas mais sérias. Uma luta por causa de uma mulher, na qual um homem fora gravemente ferido na cabeça e um outro partira um braço. Uma rixa depois do rápido consumo de um barril de cerveja, que deixou duas famílias a insultarem-se uma à outra cada vez que se encontravam. Reparei na justeza de Red, assim como na sua autoridade. Conseguia ser bem duro, quando era necessário. Mas nunca viu as suas decisões serem discutidas. Achei que aquele povo tinha sorte. Era aquilo que Fimbar queria, era daquilo que precisávamos em Sevenwaters. Mas o meu pai estava preso à mesma guerra perversa de Lorde Richard. Essa causa tolhia-os, de corpo e alma, não deixando espaço para mais nada. Assim, os nossos camponeses tinham fome, os seus muros tinham caído e temiam Lorde Colum, em vez de o respeitarem. Tentei imaginar como passariam agora. Os meus irmãos tinham dado os primeiros passos para inverter as coisas. Mas tinham desaparecido. Só lá estavam o meu pai e Lady Oonagh.
Decidi tomar o assunto nas minhas próprias mãos. LadyAnne dissera que eu era um fardo para Red. Mas eu não pedira para ser trazida para cá. Ninguém lhe pediu para instalar um guarda no lado de fora do meu quarto todas as noites e obrigar-me a ficar perto de casa, onde me podia vigiar. Ninguém lhe pediu para se sentar ao pé de mim e esperar enquanto eu chorava, levando-me depois para casa. Ninguém lhe pediu para me transportar ao colo quando estava cansada e ver se eu comia como deve ser. Ninguém, senão ele próprio. A não ser bem, ele tinha dito aquilo. Faz com que ela não seja magoada de novo. Escolheste bem. No entanto, Red era tão forte. Poderia estar a agir sob um qualquer feitiço, uma espécie de ordem imposta pelas Criaturas Encantadas naquela noite, para me proteger até eu terminar a minha tarefa? Poderia ele carregar semelhante fardo sem o saber? Quanto mais pensava naquilo, mas acreditava que era possível. O que explicava muitas coisas. Explicava o mais difícil, o porquê de Red parecer estar preparado para esperar o tempo que for preciso que eu lhe fale do irmão. Não parecia ter pressa. Geralmente, os homens não são muito pacientes. Outro homem qualquer teria arrancado a resposta da sua prisioneira no dia em que a apanhou. Não tenho dúvidas de que Lorde Richard assim teria feito. Vira o meu pai tentá-lo. Não havia razão para Red me manter aqui durante tanto tempo. Sentia que era um fardo. Continuava longe de ser bem-vinda. E faltava pouco para que o medo e a desconfiança que a família sentia por mim lhe caísse em cima. Destruir a harmonia e a confiança que eram a alma desta pequena comunidade. Perguntas o porquê da minha vinda para aqui. Por que mantinha ele esta influência demoníaca no coração das suas terras, pondo em risco a segurança do seu próprio povo. Provavelmente, eram apenas o amor e o respeito que lhe votavam que lhes mantinha as bocas silenciosas há tanto tempo. Lady Anne acreditava que eu abusara da hospitalidade. Era apenas uma questão de tempo, antes de outras vozes começarem a falar.
Assim, decidi que não pediria ajuda a Red. Uma manhã, peguei num saco vazio e numa faca afiada e esperei até que um Ben sonolento abandonasse o seu posto de guarda no meu jardim e se dirigisse à cozinha em busca de pequeno-almoço. Então, escapei-me. Na noite anterior, dissera a Margery que não me sentia bem e talvez dormisse até tarde. Estava de novo com o período e era uma boa desculpa para uma pequena indisposição. Escolhi aquele dia porque sabia que os homens estavam todos ocupados, preparando os campos para a sementeira na parte mais ocidental da colina, a alguma distância, ao longo do vale. Estariam fora todo o dia e ninguém me procuraria. Com alguma sorte estaria de volta antes que a minha ausência fosse notada.
Segui a linha do rio corrente acima, percorrendo carreiros escondidos sob os salgueiros. Levava o meu vestido caseiro, uma capa cinzenta e usei as minhas capacidades para não ser vista. Estava preocupada com Alys, que tinha tendência para ladrar aos esquilos e remexer ruidosamente no solo. Mas não tive coragem de a deixar para trás, tão desejosa estava de participar na expedição, como devia ter feito muitas vezes, anos antes, com o seu jovem dono. Assim, deixei-a seguir-me e abrandei o passo para lhe permitir que me acompanhasse com as suas pernas curtas.
Quanto mais me afastava da herdade mais bem-disposta ficava. Estava um dia óptimo, límpido, de temperatura agradável, não ainda Primavera, mas já uma promessa. Farrapos de nuvens estendiam-se pelo céu. Observei um falcão peneireiro a pairar, concentrado na caça, antes de o ver mergulhar para a matança. Por fim, subimos para lá das margens do rio até uma ravina, por onde se precipitava um pequeno ribeiro até encontrar o rio. E finalmente, nas suas margens, por baixo de um afloramento rochoso, encontrei o que procurava. Crescia, luxuriante, de ambos os lados da água, sufocando os pequenos fetos e agriões. Descansei um pouco, enquanto Alys saltitava por ali, ofegante. Em seguida, comecei a trabalhar.
A minha técnica vinha da prática. Pousei o saco aberto no chão a meu lado, cortei a planta pela base, um, dois, três e os caules caíram na minha direcção. Se o fizesse com cuidado, não magoaria muito as mãos e a morugem colhida podia ser atada e carregada às minhas costas. Trabalhei com rapidez. O Sol estava alto e a caminhada era longa, de regresso à herdade. Cortei o mais que pude, o suficiente para uma camisa, talvez um pouco mais. Não precisaria de regressar antes de meados do Verão. Quando julguei a quantidade suficiente, atei os caules com uma guita e pus tudo às costas. Antes de chegar à herdade, os espinhos atravessariam o tecido do saco, o vestido e ferir-me-iam a pele. Estava acostumada àquilo. Não carregara eu a vida de um dos meus irmãos às costas? Valia a pena a dor.
Voltámos para casa. Sentia-me feliz, pensando nas quatro camisas prontas na arca de madeira e na quinta, que iria começar no dia seguinte. Sentia-me feliz porque tinha o Sol no rosto, estava ao ar livre e porque Alys seguia à minha frente, brincando como um cachorro. Desapareceu por baixo de uns vidoeiros e eu tive que me curvar para passar entre duas rochas.
Ouvi um som sibilante por cima da cabeça, a seguir um baque e depois um grito terrível, estridente, um som agudo de puro terror. Corri sob as árvores nuas, o coração a bater. Outra vez não, por favor. A pequena cadela estava encostada ao tronco cinzento-prateado de um vidoeiro e agitava a cabeça de um lado para o outro, enquanto uivava. Tentava apanhar algo, um relâmpago azul-brilhante. Num instante estava ao pé dela, deixando cair a faca e o saco, ajoelhando, enquanto ela gritava de medo e dor. Penas azuis. Uma flecha, que lhe atravessara a espádua e a pregara à árvore. A ponta estava profundamente alojada no tronco.
Não havia tempo para pensar. Com um homem, ou uma mulher, podia ter dito está quieto, que eu vou-te ajudar. Podia explicar o que ia fazer a seguir. Mesmo sem palavras, podia fazê-lo. Com um cão, tinha apenas de o fazer. Desatei o feixe de morugem, passei-lhe a corda pelo pescoço e atei-a de maneira a não o estrangular. Quando a minha mão lhe passou em frente da boca ela abocanhou-ma selvaticamente, mergulhando os dentes nos meus dedos. Mas uma vez a corda atada, podia segurá-la com um pé, mantendo-a com a cabeça virada para um lado, mais ou menos. De seguida, a faca. Estiquei o braço em busca dela. Se ao menos a cadela não uivasse tanto. Se parasse. Os meus dedos fecharam-se sobre a faca. Pronto, já a tenho. E agora preciso de cortar a flecha rapidamente, perto do tronco e depois puxá-la. Observei-a com atenção enquanto fazia aquilo. A cadela era muito velha. Talvez o barulho terrível que fazia fosse bom sinal. Pelo menos, tinha força para protestar. Comecei a puxara haste da flecha, pestanejando por causa das lágrimas, porque a cada puxão aquele pequeno corpo uivava, angustiado. Era uma tarefa estranha e ela revirava a cabeça, de olhos esbugalhados, mordendo o vazio.
Precisas de ajuda?
Fiquei gelada. Não havia qualquer engano, era a voz suave, civilizada, do tio de Red, Lorde Richard. Não me virei, mas senti um arrepio na espinha.
Valha-me Deus. Isso parece mau. As minhas desculpas. Parece que um dos meus caçadores tem fraca pontaria. Será castigado.
Deslocou-se para o meu campo de visão, imaculado no seu fato de montar, enluvado e calçado com o mais suave cabedal, de túnica e perneiras azuis-escuras. A sua expressão, sob os caracóis de um dourado desbotado, era uma máscara das mais sentidas desculpas, com um toque divertido.
Deixa-me ajudar-te, minha querida. Que velho cão tão tolo, não é? Sempre disse ao rapaz que era melhor arranjar um galgo escocês, ou até um pointer. Deixa, as minhas mãos são mais aptas para isso.
Abanei a cabeça; não o queria perto de mim, ou de Alys. Mas ele aproximou-se e subitamente vi-lhe uma faca na mão. Recuei. Ele levantou as sobrancelhas com um meio-sorriso.
Dir-se-ia que estás assustada observou ele, enquanto cortava a haste da flecha com um movimento rápido. Alys deu alguns passos, cambaleando e eu puxei a corda com força.
Que estavas a pensar fazer a seguir? perguntou ele, afastando-se. Ignorando-o, ajoelhei e peguei na flecha, perto das penas azuis, na cauda. Pisei a corda com firmeza, de maneira que Alys mal se podia mexer. Puxei com quanta força tinha. A haste saiu com um terrível som de sucção e a cadela deu um latido de terror. Acabara.
Bravo disse Lorde Richard, que se sentara num tronco de árvore caído. E agora?
Lancei-lhe um olhar de intensa aversão. A ferida sangrava; não muito, mas ainda faltava muito para chegar a casa. Utilizei a minha faca para rasgar a bainha da minha camisa, retirando uma tira a toda a volta e ligando depois a ferida o melhor que pude. Desta vez, Alys não tentou morder-me. Deixou-se ficar quieta, tremendo e olhando para mim com olhos confiantes. Lorde Richard dissera que o homem dele tinha fraca pontaria. A que alvo se destinava, então, aquela flecha?
Ele ficou ali sentado a olhar para mim, os olhos azuis seguindo cada um dos meus movimentos enquanto eu ligava a ferida, desatava a corda e voltava a enfeixar a morugem. Pu-la às costas e inclinei-me para pegar na trémula Alys ao colo.
Hum disse ele. Cheia de autocontrole, ha? Eu oferecia-me para ajudar, mas tenho medo de ser mordido. Por um dos dois, claro.
Não podia fazer gestos. Tentei fazê-lo perceber, com um trejeito de cabeça e um olhar carrancudo, que queria que ele me deixasse em paz, para que eu pudesse ir para casa.
Oh, não, não me parece disse ele suavemente e não gostei de todo do olhar dele. Não creio que o meu sobrinho gostasse disso. Deixar a sua pequena protegida sozinha nos bosques, com tanto para carregar? Oh, não, isso não pode ser. Pelo menos, vou escoltar-te. Valerá a pena ver o olhar de Hugh. Levou dois dedos à boca e deu um assobio estridente. No espaço de um minuto um punhado de homens, transportando arcos, apareceu de direcções diferentes. As suas indumentárias eram cinzentas e castanhas, a cor dos bosques.
Eu vou a pé com a jovem... dama disse Lorde Richard e de novo a pausa entre as duas palavras foi requintadamente programada. Ide à frente para Harrowfield. Levai os cavalos e segui pela estrada. Informai Lorde Hugh, se o encontrardes, que houve um pequeno acidente com uma das pessoas da casa. Nada de grave. Falarei mais tarde com o homem que perdeu a flecha.
Os homens desapareceram para cumprir as suas ordens e eu não tive escolha senão seguir para casa na sua companhia. Não se ofereceu para me levar a trouxa, se bem que tivesse olhado para ela com interesse.
É estranho como algumas coisas ficam gravadas na memória e outras não. Ainda me lembro de tudo o que Richard me disse naquele dia, na longa caminhada até à herdade. Ainda consigo ouvir cada palavra cuidadosamente escolhida, cada cambiante da sua voz suave, cada mudança subtil no tom insinuante. Ainda sinto o peso do pequeno cão nos braços, o sangue nas mãos e a trouxa espinhosa nos ombros. Estremeço ao recordar o toque das mãos arrepiantes de Lorde Richard nos meus braços, nos meus ombros, ou em volta da minha cintura, ao pretender ajudar-me no solo difícil. Detestava-o. Desprezava-o. Mas ele era tio de Red e irmão de LadyAnne. Desejaria cuspir-lhe no rosto. Mas mantive a boca fechada, olhei sempre em frente e dirigi os meus passos para a herdade.
Estou surpreendido por o meu sobrinho te ter deixado sair sozinha observou ele quando chegamos à ravina, perto do regato. Pensava que ele sabia como proteger melhor o seu investimento. E que investimento tu provaste ser, minha querida. É espantoso o qhe a boa comida pode fazer ao corpo de uma rapariga. Olhei para ele penetrantemente e interceptei um olhar que me percorreu de alto a baixo, como se estivesse a imaginar o que estava por baixo do vestido caseiro. As minhas entranhas gelaram. Estás bem cheinha, minha querida. Bem cheinha. Tentei não o ouvir, mas não havia maneira de o calar. Chegámos ao local onde o regato desaguava no rio.
Hugh é louco ao deixar-te passear sozinha. Muito louco. Não percebe que tu podes aproveitar-te? Demasiado confiante, o nosso Hugh. É o problema dele. O braço dele pousou-me no ombro e eu recuei.
Ah! murmurou ele. Ela é temperamental! Melhor ainda. Se calhar, o rapaz recebeu mais do que contava. 22 anos e a cabeça cheia de ideias ridículas, como há dez anos. Receio por ele. A sério. Quando é que ele cresce? Até o jovem Simon tinha melhor sentido da realidade. E... o nosso Hugh não é lá muito esperto, pois não? Reparei no brilho do olhar dele quando te exibiu. Provavelmente, pensou que todas as suas fantasias se tinham tornado realidade, quando te encontrou. Qual é o homem que não sonha, por vezes, com uma mulher irlandesa bravia, esquiva como uma enguia e quente como o fogo do inferno debaixo dessa pele leitosa, com olhos verdes perigosos e cabelos emaranhados em volta do corpo como cordas de seda negra? Foi aprendizagem? Ouvi dizer que ele voltou para casa com marcas de dentes. O que é que achaste do meu sobrinho, Jenny? Correspondeu às tuas expectativas?
Não consegui impedir que o rubor me subisse às faces, de tal maneira as palavras dele me envergonharam e ultrajaram. Porquê, por que saíra eu sozinha? Por que tinha eu de ouvir aquilo? E por favor, que não seja verdade nada daquilo que ele disse. Que não seja verdade.
Oh, estou a ver disse ele lentamente, olhando de perto para o meu rosto enrubescido. Continuas a fingir de inocente, ha? Ou quase. Ele está a guardar-te. Mas, para quê? Não consigo imaginar. O nosso rapaz pode ser puro como a neve exteriormente, mas há um homem de sangue quente por baixo, minha querida. Pode ainda não te ter tido, mas há-de ter, não duvides. Pergunta às raparigas da aldeia, que são capazes de te contar muitas histórias. Ele há-de ter-te, não tenhas dúvidas. Especialmente agora, que tens mais carne do que ossos. Uma carne deliciosa, se me é permitido dizer. E é. Oh sim. Riu-se e as árvores pareceram estremecer àquele som. Alys escondeu o focinho no meu seio. Os meus braços doíam-me do peso dela.
O caminho é longo até casa, não é? observou Lorde Richard. Um caminho tão longo para pés tão pequenos. Por que é que não nos sentamos um bocadinho? Para nos conhecermos melhor? Põe o cão no chão, minha querida. Não gostavas de me conhecer um pouco melhor? A voz dele era como o mel, como o xarope de groselha, com uma generosa porção de erva-moura por cima. Gostaria de lhe dar um pontapé onde mais dói. Não fosse Alys e tê-lo-ia feito, ter-lhe-ia cuspido no rosto. Mas endireitei as costas, mantive a cabeça bem alta e continuei a andar, tentando pôr a cadela numa posição melhor. Eu sou afilha da floresta. Para um animal tão pequeno, era bem pesado.
Richard seguia um passo atrás e mudou ligeiramente a conversa. Chegámos a um carreiro sob os salgueiros. O Sol tinha passado o seu ponto mais alto e a luz era dourada nos ramos nus. Continuava a estar um dia lindo.
Suponho que é a única razão para ele te ter trazido disse ele, como se devaneasse. Não consigo pensar noutra. Tu consegues? Esfregou as mãos bem tratadas. Podes achar estranho eu não estar mais chocado. Porque é suposto ele casar com a prima, sabes? Com a minha própria filha. Mas um homem tem que lançar a sua semente, até um idealista convencido como o Hugh precisa de se divertir um pouco. O que o coloca em melhor posição, quando, por fim, se casar. Dá-lhe uma certa vantagem, por assim dizer. Como pode ele ensinar à sua mulher as delicadas e deliciosas habilidades do leito matrimonial? Não, penso que o nosso Hugh vai estar suficientemente maduro no Verão. Agradeço-te por isso, minha querida, entre outras coisas. E posso dizer-te que Elaine está pronta. Que bom que é tu não poderes falar, boneca. Torna este episódio bem mais... excitante. Não achas?
Como podia ele falar assim da própria filha? Não tinha vergonha? As minhas orelhas ardiam só de o ouvir e desejava poder pôr Alys no chão e fugir. Cerrei os dentes. Se os meus irmãos estivessem aqui, far-te-iampagar por me falares assim. Mostrar-te-iam o que é ser um verdadeiro homem, Oh, desejava tanto que eles estivessem ali.
Pergunto-me continuou ele que outra razão poderá ele ter para te manter há tanto tempo em casa. Porque não lhe faz bem nenhum, sabes, bem nenhum. As línguas começam a desatar-se. Línguas poderosas. A mãe dele detesta isso. Eu também. Se ficares aqui muito tempo, vais fazer-lhe muito mal. Sabes o que se diz? Queres ouvir?
Gostaria de não ouvir nada. Gostaria de ser surda e muda.
Diz-se que lhe lançaste um feitiço disse ele, rindo por entre os dentes. Que és uma feiticeira, que lançaste a tua rede e o prendeste, mesmo contra a vontade dele. Até os melhores amigos dele o dizem. Que ele está preso a ti e não te pode negar nada. A ti, uma mulher de Erin, parente dos que lhe mataram o irmão mais novo. Que pensas disso, Jenny? Mas, é claro que o teu nome não é Jenny, pois não? Pergunto-me quem te escolheu esse nome tão despropositado. O teu nome deve ser Maeve, ou Colleen, ou talvez Deirdre. Um nome irlandês, bem bárbaro. Jenny não é nome para uma feiticeirazita que chega do ocidente. Podes lançar a tua rede sobre mim quando quiseres, pequena Maeve. Podia ensinar-te algumas coisas. Devias tentar. Talvez te pudesse ajudar, sabes? Uma pessoa para quem te virares, se as coisas se tornarem... difíceis. E agarrou-me com os dois braços, aproximando o rosto do meu, de maneira que fui forçada a olhar para ele. Tinha os olhos da família, azuis-brilhantes, como os da irmã. Como os de Simon. A ponta da língua saiu, percorreu-lhe os lábios e eu li-lhe o desejo no rosto.
As minhas mãos cerraram-se involuntariamente e Alys latiu. Então, pisei, com força, com o tacão da bota, o pé de Lorde Richard e ele largou-me com um grito. Não podia fugir, mas estávamos próximos de uma pequena ponte que fazia a ligação entre o carreiro em que estávamos com o trilho principal das carroças e eu galguei-a o mais rapidamente que pude, sem sequer olhar para trás. E então ouvi o som de cavalos aproximando-se e vozes e, enquanto emergia de sob os salgueiros, vi um grupo de cavaleiros cavalgando velozmente. Estacaram e várias coisas aconteceram muito rapidamente, sem uma palavra sequer. Vários homens desmontaram imediatamente. Um Red de rosto tenso gesticulou para os outros. Um pegou em Alys ao colo, praguejando ligeiramente enquanto ela lhe ferrava os dentes na mão. A trouxa foi-me retirada dos ombros e atirada a Ben, que a apanhou, encolhendo-se. Depois, vi-me levantada como um saco de batatas, depositada no cavalo de Red e ele montou por trás de mim. Duvido que um homem tivesse tempo de contar até dez durante o tempo que tudo aquilo levou.
Tio. A voz de Red era neutra. As mãos dele, porém, apertavam as rédeas de tal maneira que os nós dos dedos estavam brancos. Não nos avisastes desta visita. Receio que não vos possamos fazer uma recepção... apropriada. Parecia que também ele era mestre em pausas intencionais. Podeis ter a certeza que tal não voltará a acontecer.
Hum! Richard coxeava visivelmente. Estás chateado, meu rapaz. É compreensível. Pensavas que tinhas perdido a tua amiguinha, não? O cão teve um pequeno acidente. Nada de cuidado. Mas precisas de vigiar a rapariga. Se a deixas andar por aí, a informação que procuras pode ir parar aos ouvidos errados. Nunca se é demasiado cuidadoso.
Os meus homens arranjam-vos um cavalo disse Red, como se não tivesse ouvido uma palavra. Eu vou à frente para pedir à minha mãe que prepare a vossa chegada. Ficará contente por vos ver, certamente. Esporeou a montada e partimos à desfilada. Não tenho dúvidas de que os homens demorariam muito tempo para arranjar um cavalo digno do visitante.
Foi uma corrida rápida até à herdade. Rápida e desconfortável. Red não esperou por ninguém, forçando o cavalo a um intenso galope quando nos aproximámos da alameda de choupos. Teria caído se não fosse o braço dele em volta da minha cintura, segurando-me com força contra ele, enquanto controlava o cavalo com os joelhos e a outra mão segurando as rédeas com firmeza. Dirigiu-se a direito para os degraus da frente e desmontou imediatamente, arrastando-me consigo. Como de costume naquela casa bem ordenada, apareceu logo um servo para levar o cavalo. Vi-me a entrar e a subir para os alojamentos de Margery e John. Red bateu, abriu a porta e atirou-me para os braços de uma Margery espantada.
Fica aqui disse ele. E não te mexas até eu voltar. É uma ordem. Ouvi-o, depois, descer as escadas em tropel, chamando por LadyAnne.
O que é? Que se passa? John? O John está bem? As sobrancelhas de Margery estreitaram-se. Acenei com a cabeça, tranquilizando-a. John devia estar, supunha, no cercado ocidental, a lavrar. Margery levou-me para o pé da lareira, fez-me sentar e meteu-me uma taça de hidromel nas mãos. Descobri que estava a tremer e os meus sentimentos estavam tão confusos que não conseguiria explicá-los, mesmo que pudesse falar.
Johnny estava no berço, acordado. Vi-lhe as mãos minúsculas a agitarem-se no ar e ouvi-lhe a voz, emitindo pequenos sons, um após outro. Ela dobrou-se para pegar nele, a mão em concha para lhe segurar na cabeça pelada. Encostou-o ao ombro e sentou-se à minha frente.
Bebe disse ela. Não sei o que se passa, mas tu estás branca como um lençol e Red não parece melhor. Suponho que em breve saberei.
Nesse momento a porta abriu-se, fechou-se de novo, Red atravessou o quarto com dois passos e levantou-me da cadeira, as grandes mãos nos meus ombros. Nunca o tinha ouvido erguer a voz desde que cheguei a Harrowfield. Era a primeira vez.
Como te atreveste? Abanou-me com força. Como te atreveste a desobedecer-me assim? Tu deste-me a tua palavra! É preciso uma coisa destas para veres como és estúpida? Em que é que estavas a pensar?
Johnny começou a chorar e Margery disse a Red, severamente:
Estás a magoá-la.
Red praguejou, largou-me e virou as costas, as mãos na pedra do fogão. Toquei onde ele me tinha agarrado. Ia ficar com nódoas negras. Nunca o vira tão zangado. Nem sequer quando discutiu com a mãe, na noite do nascimento de Johnny.
Desculpa disse ele, com a respiração entrecortada. Desculpa. Mas, o que é que te deu para saíres sozinha, assim? Pensava que te tinha explicado. Pensava que estavas de nte dos riscos. Por Deus, se... ele tocou-te? Magoou-te? Andava de um lado para o outro, olhando para mim para me examinar o rosto, fixando-me os olhos. Os dele estavam de um azul-sombrio, gelado.
Abanei a cabeça. Não ia chorar. Não pensaria no que dissera Lorde Richard. Que outra razão teria ele para te ter aqui?Tinha que tirar aquilo da cabeça. Dizem que lhe lançaste um feitiço. Não te consegue negar nada. Tinha que esquecer aquilo. Era um disparate. Não ia chorar. Pestanejei, funguei e uma lágrima traiçoeira escapou e rolou-me pela face. Prático como sempre, Red mergulhou a mão no bolso e tirou um lenço de linho. Quando a mão dele se aproximou do meu rosto, não me pude impedir de estremecer e os meus braços rodearam-me o tronco, defensivamente. Red ficou como se eu lhe tivesse batido. Virou-se com a mão momentaneamente em frente dos olhos, como se não quisesse que eu lhe visse a expressão. É verdade, pensei. Sou um fardo. Nunca devia ter vindo para aqui. Trouxe o sofrimento a esta família, trouxe a discórdia a esta pacífica casa. Ele nunca me devia ter trazido. E sabe-o muito bem.
O que é que ele te disse? Red tinha as costas voltadas para mim e falou tão baixo que mal o ouvi. A intensidade do tom dele assustou-me e só pude olhar para o chão, para a parede, para tudo, menos para ele. Era uma pergunta a que nunca conseguiria responder.
São capazes de me dizer o que se passa? perguntou Margery suavemente, olhando de Red para mim e vice-versa. Johnny estava mais calmo, soluçando gentilmente contra o ombro da mãe. O que é que ela fez de tão terrível, Red? Que pode ela ter feito para que a trates assim, lhe grites e a faças chorar? Pensava que éramos homens e mulheres, aqui, não crianças zangadas umas com as outras. Espero que não te voltes a comportar assim em minha casa. Red olhava para ela. Parecia-me que havia linhas em volta da boca dele que não estavam lá antes.
Desculpa, Margery disse ele friamente. Foi injusto da minha parte. Se alguém aqui tem culpa, sou eu. Mas este é o único lugar seguro para ela, enquanto o meu tio aqui estiver. Não me posso demorar; tenho que estar lá em baixo quando ele chegar. E agora, Jenny disse ele virando-se para mim e eu podia ver que ele continuava zangado, muito zangado, mas mantendo a voz baixa com grande força de vontade. Preciso de saber por que foste para tão longe sozinha. Preciso de saber por que quebraste a promessa.
Os ombros doíam-me. Os pés estavam doridos da caminhada e os braços cheios de cãibras por carregarem Alys durante tanto tempo.
A mão, onde ela me mordera, sangrava. O tio dele era uma besta; e naquele momento não pensava melhor do sobrinho. Mantive as mãos imóveis ao longo do corpo. Red fechou um punho e bateu com ele na outra mão, praguejando.
Raios te partam, Jenny, diz-me.
Eu creio que sei disse Margery, olhando para mim ansiosamente. Jenny tem andado a pedir aquela planta que usa, a que nós chamamos espinheiro, para fiar. Esgotou as provisões que trouxe com ela. Eu recusei-me a ajudá-la, esperando que desistisse dessa tarefa horrível. Mas eu conheço a tua teimosia, Jenny. Deves ter ido à procura dela, não deves?
Os olhos de Red estreitaram-se.
Disseram-te para olhares por ela disse ele e o tom frio da sua voz fez Margery empalidecer. Ela deve ter saído de madrugada. Por que não mandaste ninguém procurá-la? Por que é que eu não soube nada até receber a mensagem de que os homens de Richard tinham sido avistados na estrada?
Desculpa disse Margery. Não disse a Red que eu lhe tinha mentido. Provavelmente, era a primeira vez na minha vida que mentia.
Meu Deus, não posso confiar em ninguém? Red andava novamente de um lado para o outro.
Desejei que ele se fosse embora e me deixasse na minha miséria.
Jenny, por que não me pediste? disse ele finalmente. Eu sei onde cresce essa tua planta, conheço os cantos todos deste vale. Posso cortar-te essa planta sempre que quiseres e colocar-ta à porta, se assim o desejares. Não precisas de te aventurar para além da segurança destas paredes. E nunca mais o farás. Compreendes? Nunca mais.
Tinha que responder o melhor que podia.
Tu... cortares a planta... não. Não serve. Eu. Eu corto, fio, teço, coso. Só eu.
Então, levo-te lá disse ele com a voz mais calma, mas mantendo as mãos atrás das costas, cerradas. Levo-te, tu cortas o que precisas e trago-te de volta. Não saias de novo sem mim. Agora, vou para baixo. Margery, quero que a mantenhas aqui. Ficais ambas dispensadas do jantar. A minha mãe deve-me um favor. Fez menção de sair, mas virou-se à porta. Encarreguei um homem de tratar da cadela disse ele. Um dos meus moços de estrebaria percebe dessas coisas. Será bem tratada. E saiu.
Bem disse Margery. Depositou o bebé no berço e pôs a chaleira ao lume. Enfureceste-o, ha? E não voltou a tocar no assunto, mas à medida que a tarde passava, bebíamos chá de hortelã, eu a ajudava a dobar lã e a cozinhar bolos na lareira, apanhei-a várias vezes a olhar para mim, perspicaz, avaliadora e imaginei no que estaria a pensar.
Desta vez Richard ficou mais tempo do que nós queríamos, excepto, talvez, LadyAnne. A sua presença tinha uma influência subtil e inegável naquela casa. Se os servos tratavam Red e a mãe com um respeito que mostrava também um desejo de agradar, um serviço que era sempre algo mais do que um simples dever, o respeito que mostravam a Lorde Richard provinha do medo. Não que ele alguma vez mostrasse abertamente alguma irritação, ou mostrasse o seu descontentamento por meio de palavras. Era, antes, algo na sua expressão, as sobrancelhas levantadas ou um ligeiro meio sorriso. Era a maneira como recebia uma taça das mãos de uma serva e lhe tocava na mão. Era o tom de voz ao dar uma ordem a um moço de estrebaria ou despedindo um dos seus homens com um gesto arrogante. Achei que nos desprezava a todos; cria-se, de algum modo, acima de todos. Ninguém era imune às suas referências desdenhosas, aos seus insultos lançados ao acaso, nem sequer os membros da família. Mas, como disse, era um homem subtil. Sabia como ferir, de uma maneira que talvez apenas a sua vítima era capaz de compreender.
No entanto, as pessoas daquela casa eram fortes. Quando Richard troçou de Ben, devido à relutância deste em se juntar a uma expedição, preferindo antes ficar com Lorde Hugh, em vez de testar as suas capacidades numa verdadeira batalha, o bretão limitou-se a rir Se julgou a sua virilidade insultada, não mostrou qualquer sinal. A arma de Richard contra John era ainda mais tortuosa. Ouvi-o, mais do que uma vez, tentar provocar uma resposta, tentando levar John a discutir o governo da herdade e as suas responsabilidades na defesa daquela área tão vasta. Hugh, dizia Lorde Richard, estava demasiado concentrado no futuro das suas plantações, na pureza dos seus stockse na manutenção dos muros e sebes. E a costa ocidental? E o seu dever para com os vizinhos? E mais do que isso, para com a sua mãe? Quando é que ele ia fazer alguma coisa contra os que mataram o jovem Simon? John era um homem taciturno por natureza. Tinha o hábito de fazer o que tinha de ser feito e falar apenas quando necessário. Lidou com Richard como eu esperava, declarando que obedecia a Hugh e nunca tivera qualquer razão para duvidar das suas decisões. Além disso, os Dinamarqueses é que eram a verdadeira ameaça, não os Irlandeses. Quando Richard deu um passo em frente e começou a perguntar como se sentia John em relação à segurança da sua mulher uma rapariga tão doce, fresca como uma rosa e do seu bebé, John, simplesmente, levantou-se e saiu da sala.
Lady Anne, porém, era irmã de Richard. Durante os longos dias que o tio passou em Harrowfield, Red fez mais do que uma tentativa para evitar conversas com ele. Mas não o podia evitar por completo. Não podia estar sempre em casa, porque a estação avançava e o trabalho da herdade era constante, lavrar os campos, plantar, ajudar as ovelhas a parir. Assim, uma tarde, Lady Anne e o irmão passeavam no jardim, conversando, enquanto eu os observava da janela da grande sala onde estava sentada sozinha, perguntando-me o que lhe diria ela. Nessa noite, ao jantar, reparei no olhar de Richard, semicerrado e penetrante, indo de mim para Red e de novo para mim e perguntei-me quanto tempo demoraria até ele me apanhar, de novo, só.
Por fim, uma noite, ao jantar, Richard anunciou que ele e os seus homens se iriam embora no dia seguinte. Os suspiros de alívio foram quase audíveis. Tinha ficado tempo demais. Toda a casa andava constantemente com os nervos à flor da pele e eu acreditava que ninguém lamentaria vê-lo pelas costas. Nem sequer Lady Anne protestou. No entanto, expressou o desejo de que todos nos reuníssemos para uma taça de ponche quente, mais tarde, nessa noite, para lhe desejar boa viagem e esse desejo pareceu incluir, tanto Margery, como eu. Inúmeras desculpas tinham sido arranjadas para mim, em ocasiões anteriores, mas desta vez não tinha saída e assim, um pouco mais tarde, Lady Anne sentou-se no salão com o irmão e o filho mais velho e eu pairei na sombra, tentando não dar nas vistas. Red estava sentado à janela, as mãos ocupadas com a faca e um bocado de madeira. John estava por trás da cadeira de Margery. Uma jovem serva tinha sido enviada para o andar superior, para tomar conta de Johnny, mas este dormia bem e ela teria pouco que fazer. Um mapa estava desdobrado sobre a grande mesa e em volta dele estavam dois dos homens de Richard e Ben, discutindo a exactidão de uma linha territorial qualquer. O tom era suficientemente amigável.
Qual é a tua opinião, jovem Benedict? Richard lançou a sua observação sobre o ombro, casualmente. Tinha estado, com toda a sua sem cerimónia, a ouvir, cuidadosamente, a discussão. Achas que somos capazes de tomar essa torre de vigia na parte norte da baía antes do solstício de Verão? Se a conseguirmos, ficamos com uma boa posição e com um local seguro para o desembarque dos nossos homens. Tem sido um dos nossos problemas; isso e a maneira astuta como eles navegam. Nunca percebi como o fazem. Aparecem em cima de nós vindos não se sabe de onde, saindo da névoa naqueles barquitos matreiros. Nunca sei quando devo estar pronto para eles.
Dizem que é feitiçaria. Era um dos homens de Richard, falando com timidez. Que cada clã tem um feiticeiro, um mago, que consegue esconjurar tempestades, nevoeiros, ventos, invocando o poder do demónio.
Dizem que exércitos inteiros desapareceram assim. Não que eu acredite, claro. São histórias que correm.
Histórias postas a circular com o único propósito de meter medo ao inimigo disse Richard com algum cinismo. Uma coisa bem pensada. O mesmo que pintar o corpo, ou rufar tambores. Apanha o inimigo de surpresa, põe-no nervoso, mete-lhe medo. Não há qualquer feitiçaria. Um pouco de sorte, é tudo e um bom conhecimento do clima local. Esses tipos não são mais mágicos do que tu ou eu.
É verdade disse o outro homem. Porque há padres cristãos entre eles, que não tolerariam tais coisas. Além disso, onde é que já se viram pedras de granizo do tamanho de ovos, ou nevoeiro no qual nos podemos afogar? Onde é que já se viu uma tempestade aparecer do nada, ou chover com o céu sem nuvens?
Nesse momento olhei para Red, Red olhou para mim e recordei o toque da mão dele por entre uma torrente de chuva, o toque quente, firme, da única coisa real no meio daquele violento, druídico, aguaceiro. Aquela chuva tinha salvo a vida de ambos. Li-lhe nos olhos que os seus pensamentos eram os mesmos.
Essas histórias são muito antigas devaneou Richard, estendendo as elegantes pernas na direcção do fogo. É um país estranho, com gente estranha. Quanto mais sei sobre eles, menos os compreendo. Um dia, claro, será tudo nosso e os restos dessa gente selvagem desaparecerão por intermédio da morte, da decadência ou dos cruzamentos. Eles têm uma capacidade limitada de resistência, com as suas superstições e fé irracional. Lutam com tal ferocidade que até parece que não têm qualquer apego à vida. Perderam as suas preciosas ilhas. Aquele ancoradouro é nosso. Espero dar mais um passo na minha campanha de Verão.
Quanto tencionais regressar? perguntou John polidamente.
Muito brevemente disse Richard. Tenho os meus homens sempre prontos. Tenciono aproveitar o primeiro sopro de bom tempo. Enquanto andas pelos campos, Hugh, a brincar aos camponeses, pensa em mim e nos meus, enquanto mantemos o país seguro para ti. Pensa em nós, enquanto livramos as nossas costas daquela escumalha, para que tu possas criar o teu gado em paz.
Oh, ficai descansado que penso disse Red. Ficai descansado, tio, nunca estais longe dos meus pensamentos,
Hum. Richard pareceu levar aquilo à letra. Gostaria muito de convencer aqui o jovem Ben a ir comigo, desta vez. Para lhe mostrar um pouco de acção. Mas se ele não for, paciência.
Seguramente, não planeais colocar uma guarnição isolada na costa mais afastada, se conseguirdes conquistar este bocado de terra disse John, nitidamente interessado, contra a sua vontade. Isso é pedir sarilhos. Esses senhores da guerra locais têm um conhecimento do terreno que ultrapassa, de longe, o vosso e as forças deles são consideráveis. Como podeis guarnecer um posto tão distante? Como é que o abasteceis? A posição ficaria extremamente frágil. E os Nórdicos? Seríeis um alvo facílimo. E qual é a vossa intenção, ao estabelecerdes-vos ali? Richard riu-se.
Realmente, parece pouca coisa, vista assim. A minha maior vantagem reside nas próprias ilhas; provavelmente, não estás ao corrente de como uma força grande pode permanecer ali, durante muito tempo, num porto abrigado. De facto, estou perfeitamente em posição de providenciar abastecimento a um posto avançado naquela costa. O que será um espinho na vaidade deles, daqueles ridículos senhores de nomes impronunciáveis. O inimigo com os calcanhares na sua terra sagrada, isso vai picá-los. Vai arrancá-los do buraco. Então é que havemos de ver.
Houve um breve silêncio.
Não penseis que conseguis estabelecer-vos para lá da costa disse Red, rudemente. Se planeais isso, estais a subestimar o vosso inimigo.
O nosso inimigo, rapaz, o nosso inimigo disse Richard, levantando-se para enfrentar o sobrinho, que continuava sentado a alguma distância, concentrado no seu meticuloso trabalho com a pequena faca. Não, podem-me chamar muitas coisas, mas nunca louco. Simplesmente, não quero ser complacente. São as ilhas que interessam. Quem tiver as ilhas, tem a costa. Enquanto as tiver, tenho a mão na alma do meu inimigo. Ele acredita que elas são uma fonte de magia, uma fonte de poder. Enquanto estiverem na minha posse, ele está mais fraco. Mas não basta estar lá sentado e esperar ser atacado. Devemos tomar a iniciativa, mostrar-lhes a nossa força, mostrar-lhes de que massa somos feitos. E lembra-te, não estou sozinho nisto. Tenho o apoio de três dos nossos vizinhos mais próximos e cem dos melhores homens deles, para o provar. A tua casa, Hugh, é a única, por estas bandas, que não estará representada na minha expedição. Lançou um olhar a Lady Anne. E isso envergonha-me, rapaz. A minha própria carne e sangue. Mas ainda estás a tempo. De reunir uma pequena força. Terão de estar reunidos e prontos dentro de seis dias. O teu apoio seria bem-vindo.
Red continuava a trabalhar no seu minúsculo bocado de madeira. Nem se deu ao trabalho de olhar para cima.
Sabeis o que penso disso, tio disse ele. Não faço tenções de deixar homens bons desperdiçarem as suas vidas para nada. Esta guerra é vossa, não minha. As suas origens estão esquecidas, tantos anos se passaram já, tantas vidas se perderam já. Perdoai-me se não acrescento a minha, ou as da minha gente.
Aguentar as ilhas é uma coisa disse Ben, que continuava a estudar cuidadosamente o mapa. Mas não podeis esperar avançar para lá daqui e daqui; estais a ver este grande troço de floresta, que se estende quase até ao mar? Nós estamos ali. É o mais esquisito dos lugares; profundo, impenetrável e ferozmente defendido. O terreno é íngreme e traiçoeiro. Há um grande lago para lá destas árvores, com uma fortaleza. Ninguém se aproxima a menos de um dia de viagem desse local. Está eriçado de homens armados e se não acabarem convosco, a fome, o frio e o profundo mistério do local encarregar-se-ão disso. Se quereis provocar impacte, talvez fosse melhor ir mais para norte. Para aqui, por exemplo.
Os olhos de Richard estreitaram-se.
Falaste como um verdadeiro soldado disse ele. Tens a certeza que não queres vir comigo, rapaz? Serias uma boa ajuda. Não podes dispensá-lo por uns tempos, sobrinho?
Red soprou o pó da madeira e meteu o trabalho no bolso. Limpou a pequena faca à túnica e enfiou-a na bota.
Eu não decido pelo Ben disse ele brandamente.
Então, rapaz? Ben riu-se.
Não, obrigado. Tenho trabalho aqui para ser feito. Além disso, lutar contra aquela gente é como lutar contra uma tribo de... de fantasmas, de espíritos. Não que não fôssemos capazes de provocar um certo impacte, uma vez ou duas. Mas... eles têm o hábito de aparecer e desaparecer e quando falam connosco fazem-no por enigmas.
E o clima? acrescentou John. Agora bom, logo a seguir uma porcaria. Quase acreditamos nas histórias deles de magia e feitiçaria, se ficamos lá muito tempo. Não tenho pressa nenhuma em voltar lá. Dêem-me antes um rebanho de ovelhas e um bom par de tesouras.
Estavam a brincar com ele, pensei. Mas Richard já estava a andar noutra direcção, falando como se consigo próprio.
Magia e feitiçaria. Isso lembra-me uma coisa. Foi até à lareira, aquecendo as costas, os braços estendidos ao longo da pedra. A sua sombra alongava-se ao longo da sala, o corpo desenhado pelas chamas. Falaste do lago e da fortaleza na floresta. Ouvi uma história muito estranha, uma história que talvez mude o curso da minha campanha, se há alguma verdade nela. O senhor dessas paragens chama-se Colum de Sevenwaters. Montes de histórias sobre o lago dele, a floresta e a fortaleza; e outras sobre a selvajaria dos combatentes dele, entre os quais estão os filhos. Essas histórias são verdadeiras, creio. Como sabes, foi por aquelas bandas que Simon se perdeu e os meus próprios homens chacinados. Tenho pensado muitas vezes se... mas não. As forças de Colum não são uma multidão de bárbaros. São fortes, bem disciplinados, bem armados e lutam como se não houvesse um amanhã. Como muito bem disseste, Ben, seria louco se atacasse as defesas de um homem assim. Mas, ouvi dizer que as coisas mudaram para Colum há um ou dois anos. Como, não sei; há muitas versões do que aconteceu. Num dia era um homem com seis filhos crescidos. No dia seguinte, não tinha nenhum.
Houve uma pequena pausa. Quem conhecesse Richard, sabia que ele nunca contava uma história para entreter. Devia haver uma farpa qualquer, uma mensagem escondida para alguém.
Que lhes aconteceu? perguntou Lady Anne.
Há umas tantas teorias replicou Richard. Uma é que eles estavam na margem do lago e um grande espírito da água desencadeou uma tempestade esquisita, que os engoliu e afogou. Outra, é que foram envenenados por um inimigo, alguém como eu, que procurava enfraquecer o poder do pai deles; envenenados e os corpos escondidos algures naquela vasta floresta. Uma terceira é que os rapazes foram apanhar cogumelos e foram levados pelos duendes. Eles acreditam em duendes, gnomos e fadas, sabes? É estranho, não é, como é possível eles terem em casa um padre cristão, que diz Missa ao domingo e continuarem com as cabeças cheias de superstições e fantasias? Sim, é uma história estranha. Se for verdadeira, Colum tem menos força do que antigamente, menos vontade de resistir. Pode ser a ocasião ideal para atacar. Ilustrou a última palavra com um movimento rápido do braço, esticando os dedos. Oh, já me esquecia disse ele e olhou para mim, na penumbra, perto da parede. Também havia uma filha. Desapareceu com os irmãos. Varrida. Ouvi dizer que a mãe andava à procura deles. Ou é a madrasta? Manda batedores para toda a parte. Mas nem sinal. Desvaneceram-se no ar. Tal como Simon. Talvez as fadas os tenham levado a todos. Foi, mais ou menos, na mesma altura, segundo me disseram.
Desta vez o silêncio foi mais longo. Estremeci. Pensei que estavam todos a olhar para mim, vendo-me pelo que era e de onde vinha. Como pudera Richard tropeçar assim na verdade?
Deve ter sido um abalo terrível, perder assim sete filhos de uma vez disse Margery suavemente. O homem até pode ter enlouquecido com semelhante golpe.
Não desejaria isso ao meu pior inimigo disse Lady Anne. Mas dói-me ouvir-te falar assim do destino de Simon, Richard. Espero que voltes a procurar notícias dele, quando lá voltares. Não acredito que não haja qualquer sinal dele. Mas é o que Hugh me diz.
O rosto de Richard transformou-se numa imagem de solicitude fraternal.
É claro que procuro notícias dele disse ele. Tenho uma excelente rede de informadores, que me servem bem, mesmo quando estou longe. Ficavas surpreendida com o que oiço. Mas creio que deves tentar perceber, irmã, que os senhores da guerra de Erin são tão brutais como os seus homens. Não dão grande valor aos prisioneiros depois de estes terem servido... os seus propósitos. E Simon era muito novo. Acho que, depois deste tempo todo, não deves esperar grande coisa. Mas, se, como dizes, houver um sinal qualquer, uma pista...
Estava de novo a olhar para mim, com um meio sorriso a curvar-lhe a boca.
Talvez eu não vos tenha compreendido bem, tio disse Red em voz baixa. Estais a sugerir que se o meu irmão foi capturado e submetido a uma forma de tortura qualquer, pode ter sido incapaz de a suportar? Peço desculpa por falar disto abertamente, mãe acrescentou ele mas não estamos em ocasião para brincadeiras. Talvez devêssemos falar a sós disse ele para o tio.
Não é preciso, rapaz disse Richard afavelmente. Somos todos amigos, aqui, creio. À parte a pequena Jenny, talvez, que ocupa uma posição única na tua casa, que eu não consigo compreender. E como não pode falar, precisamos de ter cuidado com o que ouve, não é? Parece que tu não pensas assim.
Talvez Simon tenha sido mal-aconselhado disse John mas ninguém o poderá, nunca, acusar de falta de coragem. A sua força de vontade era formidável num rapaz tão novo. Aquilo era verdade, pensei, ao recordar o desespero naqueles olhos tão azuis, aquele ódio por si mesmo. Não conseguia aceitar ser um traidor. Eu estava convencida que não o era.
Ele só tinha 16 anos disse Lady Anne. Sabemos todos muito bem de que estofo ele era feito; só preciso de olhar para ti, Hugh, para o ver de novo. Mas não passava de um rapaz, para toda aquela coragem e determinação. Talvez fosse demais para qualquer homem. A voz dela estava presa por lágrimas não derramadas.
Isto é mera especulação disse Ben, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas. Além disso, nenhum senhor irlandês, digno desse nome, se poderia dar ao luxo de perder tal prisioneiro. E o preço do resgate? E eles tinham uma ideia de quem ele era, quer ele lhes dissesse, quer não. Não faz sentido.
Richard passeava graciosamente pelo salão Levou tempo a falar, como que a pesar cada palavra cuidadosamente.
O facto inegável disse ele, por fim é que todos os meus homens foram chacinados. Todos. Excepto Simon. Ora, por que faria isso o nosso inimigo? É claro como a água que o rapaz não foi preservado por ser quem era, já que não foi pedido qualquer resgate. Terá ele simplesmente desertado da missão com medo e desaparecido de livre vontade?
Dificilmente. Um rapaz daqueles não se misturava facilmente com aquela raça de fanáticos de cabelos negros e pele leitosa. Além disso, como tu dizes, fossem quais fossem os seus defeitos, o rapaz tinha muita coragem. Assim, não é especulação nenhuma sugerir que eles o forçaram a dizer a informação que traiu os companheiros e levou o inimigo até eles, de noite. Mas não devemos culpá-lo. Ele queria ser um homem. Mas, quando chegou a ocasião, a fibra era demasiado fraca.
Descobri, subitamente, que estava extremamente zangada e, sem me conseguir controlar, fiz um gesto com as mãos que dizia claramente, Não. Estás a mentir. E de repente, todos os olhos, no salão, se viraram, penetrantes, para mim.
Adorava ouvir-te falar, minha selvagenzinha disse Richard e se bem que o tom fosse suave, o olhar era duro como o ferro frio. De onde é que tu vens? O que é que tu nos podes dizer? E por que é que de repente ficas tão furiosa como uma loba em defesa da cria? Tu sabes qualquer coisa disto tudo, tenho a certeza. Que conveniente que é, não falar. Pergunto a mim próprio quanto daria a tua gente para te ter de volta.
Houve um curto silêncio. Olhei-o de frente nos olhos. Não tenho medo de ti. Não tenho medo.
Ela é boa rapariga disse Margery inesperadamente. Não veio para aqui com qualquer propósito, meu senhor, tenho a certeza.
E não é só isso disse John se estais a sugerir que uma família nobre qualquer pagaria um resgate pelo regresso dela, estais enganado. Esta criança vive sozinha há bastante tempo, estou convencido. Não tem qualquer família para quem se virar, excepto esta.
Criança? Richard parecia um predador à espera de atacar. Esta rapariga está em idade de casar e é bem jeitosa, apesar de selvagem e toda despenteada. Que futuro tem ela aqui, se o que dizes é verdade?
O meu irmão e eu tivemos uma ideia, Hugh. Era LadyAnne e eu senti que pelo menos aquela parte da conversação tinha sido bem preparada. Ele... nós pensámos, já que não temos aqui companhia para ela, que Jenny podia ir para Northwoods por uns tempos. Richard vai voltar para lá amanhã e não vê qualquer dificuldade em que ela se junte ao grupo. Elaine tem várias companheiras jovens e disse que Jenny seria bem-vinda. Eu gostaria muito, Hugh.
Está fora de questão. A resposta de Red foi imediata e abrupta.
Mais devagar disse Richard com os olhos a semicerrarem-se-lhe. Temos de pensar em Elaine, rapaz. A tua prometida. Não te esqueças que vou estar fora dentro em breve e a minha filha pediu isto como um favor especial da tua parte. Sente-se só em Northwoods, com o pai ausente. Uma novidade seria bem-vinda.
O meu coração fraquejou. Tinha poucas dúvidas do verdadeiro propósito daquele pedido. Não era companhia para a filha o que ele queria. Era a informação que eu lhe podia dar. E senti que o interesse dele pelo destino de Simon não era o de um simples tio solícito. Não, havia mais qualquer coisa, tinha a certeza. Red tivera razão ao suspeitar dos motivos do tio. Richard precisava de saber o que eu sabia e se o diria a outros. E estava pronto a fazer-me falar.
Podia ser uma boa ideia, Hugh disse a mãe dele cuidadosamente. Sabes muito bem que a presença de Jenny trouxe algum... desassossego a esta casa e às pessoas da herdade. Já que Elaine foi tão amável em convidá-la, não fazia mal nenhum mandá-la para Northwoods por uns tempos. Aliviava um pouco a pressão, aqui. Talvez tenhas fechado os olhos ao que as pessoas dizem sobre ela e sobre... os teus motivos em tê-la aqui. É um assunto delicado. Mas esta decisão seria acertada, penso.
A boca de Red apertou-se. Pensei que o conheciam todos muito mal. Até eu o compreendia melhor. Ele não podia ser pressionado daquela maneira.
A casa é minha e a decisão é minha disse ele. Se Elaine anda à procura de companhia, ela que nos venha visitar aqui, em Harrowfield. Porque será sempre bem-vinda. A essa sugestão... nem lhe dou atenção. E agora, esta conversa está terminada. Dirigiu-se a Lady Anne e deu-lhe um beijo na face. Boa noite, mãe. Olhou para Richard, que estava de novo encostado à pedra da lareira, os olhos escondidos pelas pestanas, a curva da boca maldosa, perigosa. Ides partir cedo, amanhã, certamente disse Red. Providenciarei uma escolta até à ponte.
Richard levantou as sobrancelhas.
Despedes-te já? Muito obrigado. Podes ter a certeza que digo a Elaine que gostarias que ela te visitasse. Para ver como vão as coisas por aqui. É claro que ela tem que se encarregar de Nortwoods na minha ausência. Mas posso dispensá-la por uns dias. Porque, naturalmente, o casamento será aqui. Esta visita vai-lhe dar uma boa oportunidade para planear as festividades. No primeiro de Maio, Anne, creio que será mais apropriado. Não é preciso esperar pelo solstício de Verão. Desta vez, a minha campanha será rápida e mortal. Estarei de volta antes de teres saudades minhas.
Seguiu-se aquilo que mais tarde recordei como os derradeiros bons momentos em Harrowfield. Richard tinha-se ido embora e a Primavera explodira no vale, como se celebrasse a sua partida. O meu pequeno jardim estava cheio de açafrão bravo florido, minúsculos narcisos amarelo-pálidos e ervas aromáticas. O Sol aquecia as paredes de pedra e a velha terrier esticava os membros e aventurava-se a explorar sob os lilases a florir. Levantava-me cedo e andava enquanto o ar era frio e o dia novo. Dessa maneira, quase podia imaginar que estava de regresso a Sevenwaters e que tudo estava bem de novo. Ou quase. Às vezes, ia até ao pomar, com as suas paredes cobertas de líquen, para lá encontrar Red, de capa pelos ombros, protegendo-se do frio, com o tinteiro ao lado, escrevendo no seu livro. Por vezes, sentava-me ao pé dele por um bocado e ele acenava-me com a cabeça em sinal de reconhecimento, continuando a escrever.
Pensava que o livro era uma espécie de registo da herdade, onde as trocas e os lucros eram marcados metodicamente, ano após ano. No entanto, podia ver que havia mais qualquer coisa, porque distinguia diagramas intrincados que pareciam mostrar as camadas por baixo do solo, as diferentes raízes das plantas e a maneira como a chuva caía e as alimentava; e aqui e ali a minúscula representação de uma árvore, folha, ou flor, feita com um controlo delicado. Aquele era o homem cujo tio censurava por brincar aos camponeses; cujas mãos eram tão grandes que engoliam as minhas. Gostava de ficar ali sentada, calmamente, encostada às pedras suaves do muro, vendo-o trabalhar. Outras manhãs, sentia necessidade de andar e ele punha de lado a pena e o tinteiro e caminhava comigo através da floresta de carvalhos cheia do chilrear dos pássaros, até ao topo da colina, da qual me tinha mostrado, pela primeira vez, a vastidão da sua herdade. Do rio ao cume dos montes, da estrada à linha do horizonte, todo o vale estava vestido de verde. Foram bons tempos, pacíficos. Não havia necessidade de palavras entre nós. Lentamente, o veneno da língua de Richard desapareceu-me da mente e eu voltei a confiar. Elaine veio e o seu comportamento era tão impecável como os seus vestidos elegantes e o seu cabelo brilhante e lindamente entrançado. Foi cortês para com Lady Anne, mas deixou bem claro que tinha as suas próprias opiniões e intenções para quando se tornasse senhora de Harrowfield. Foi encantadora com Margery e trouxe um brinquedo para o bebé, uma pequena criatura esculpida em osso, a qual ele podia morder, porque Johny já tinha o seu primeiro dente. Sentia que ela estava muito curiosa quanto ao meu papel na casa, mas, ao contrário do pai, atenuou-a com uma natural reticência e com aquilo que eu acreditava ser um forte sentido de justiça. Sentava-se de manhã com Margery e comigo, cosendo e via-me trabalhar sem, aparentemente, me julgar. Após o que me inspeccionou as mãos, perguntando primeiro se eu tinha alguma objecção.
Sabes que algumas pessoas te acham louca, ou tocada no espírito disse ela e os seus grandes olhos azuis olharam directamente para os meus. Eu não acredito nisso. Creio que há um propósito, um propósito muito forte, para fazeres o que fazes. Olhou para a manga da camisa que eu estava a tecer e para o cesto com as fibras espinhosas. Há quanto tempo? Quantas? Era a primeira pessoa que me perguntava aquilo directamente. Levei os dedos à boca e deixei depois ambas as mãos caírem para baixo e para fora.
Não posso dizer. Não devo falar disto.
Sim, Red disse-me disse Elaine gravemente. Pensei que a utilização daquele nome fazia dela um dos do círculo, um daqueles em quem ele confiava. Por que me surpreenderia tanto aquilo? No fim de contas, em breve estariam casados.
Mas este trabalho não é para sempre, pois não? Deve ter um fim, um objectivo? Talvez me possas dizer isso. Era tão insistente como o pai, à sua própria maneira. Abanar a cabeça poderia levar a um mal-entendido. Além disso, não me esquecia das palavras da Dama da Floresta. Tinha tornado bem claro que nenhuma palavra da minha história, nem uma única parte, podia ser contada, se queria libertar os meus irmãos do feitiço. Por meio de palavras, sons ou imagens. Em bordados, canções ou por meio de gestos. Fosse qual fosse a gentileza do pedido. E assim virei-me e não respondi às perguntas de Elaine.
Ela só ficou alguns dias. Passou muito tempo com Red, andando para cima e para baixo no jardim, conversando gravemente. Parecia que Elaine odiava estar inactiva; durante as manhãs, conseguiu planear o casamento todo com Lady Anne, enquanto acabava a bainha de um fino véu de cambraia sem esforço aparente. Ouvi-a concordar com o primeiro de Maio sem grande entusiasmo, tomando decisões rapidamente e sem demonstrar um grande interesse, quanto aos hóspedes que deviam ser convidados, ao que devia vestir e se seis pratos ou sete seria mais apropriado. Lidou com tudo como se estivesse a transaccionar a venda de um rebanho de ovelhas, ou a negociar as reparações de um celeiro, como parte de coisas a serem feitas com a maior eficiência possível. A própria cerimónia parecia ser de pouca importância para ela. Aquilo pareceu-me um pouco triste. Ela ia casar com um bom homem. Não encontraria melhor. Talvez se interessasse. Mas os Bretões são assim, fecham a sete chaves as paixões, onde ninguém as pode ver. À superfície, calmos e controlados. Por dentro, quem saberia?
Nas poucas vezes que vi Red e Elaine juntos, caminhando na direcção do rio ou sobre a relva, imersos em conversação, não vi qualquer abrandamento desse controlo. As maneiras dele eram polidas, as dela cuidadosas. Não seguravam as mãos um do outro, não davam o braço nem se tocavam um ao outro, como vira o meu irmão fazer com Eilis. E como, a deusa me perdoasse, vira o meu pai fazer com Lady Oonagh. Dei por mím a observá-los mais do que o necessário e voltei para o meu trabalho, sentindo-me vagamente inquieta. No fim de contas, pensei, o bem-estar daquela pequena comunidade dependia dele. Sentia-me pouco à vontade por ele e por ela, sentindo que algo estava errado. Houve uma manhã em que ela passou a manhã toda com Red nos jardins, sentados num banco por baixo dos lilases, andando em volta das cercas. Ela falava, falava, mexendo as mãos de tempos a tempos para dar ênfase a um determinado ponto. Ele dizia pouco. E então, à tarde, fez as malas e partiu. Alguns da sua casa ficaram, por causa do casamento. Uma cozinheira e um moço ou dois. Com os cumprimentos de Richard de Nortwoods.
Teriam discutido? Aparentemente, não. Red estava incomunicável, mas isso era costume. Era, por natureza, um homem de poucas palavras. As preparações para o casamento continuaram. O trabalho na herdade continuava a bom ritmo e o treino com espada e arco foi posto de lado a favor de actividades mais produtivas. Os homens estavam fora de casa a maior parte do dia, deixando-nos com os nossos trabalhos manuais e os nossos mexericos. Não que houvesse muitos; LadyAnne era muito severa quanto às línguas ociosas e àquilo a que podiam conduzir. No entanto, ouvi algumas coisas que preferia não ter ouvido. Por exemplo, que eu era uma feiticeira que lançara um feitiço sobre Lorde Hugh de maneira a ele me manter na herdade e que quando Elaine lhe pediu para me mandar embora e ele recusou, ela foi-se embora, zangada. Disse que não casaria com ele enquanto a bárbara do outro lado do mar não fosse despachada para o lugar de onde veio. Aquilo preocupou-me, se bem que estivesse inclinada a não acreditar, porque não vira qualquer má vontade de Elaine para comigo. Além disso, os seus sentimentos estavam sempre tão reprimidos que mal conseguia imaginá-la zangada com Red ou com outra pessoa qualquer. Quanto ao feitiço, já tinha ouvido essa. Se alguém lançara um feitiço sobre Lorde Hugh, não fora eu. E ele tinha as suas razões para me manter com ele, assim como eu tinha as minhas para ficar. A quinta camisa ia a bom ritmo e por fim comecei a acreditar que em breve aquela parte da minha história chegaria ao fim.
Havia outra coisa que se dizia e dessa eu gostava menos. Era sobre o encantamento demoníaco que existia no meu trabalho, o retorcido, tortuoso fiar e tecer do espinheiro (assim lhe chamavam). Era através daquela estranha actividade que eu espalhava a minha influência sobre a casa e, em particular, sobre Hugh. Viam muito bem que eram camisas, aquilo que eu fazia. Imaginara-os um povo sem lendas, mas uma vez a semente lançada, parecia que todas as damas, todas as camponesas tinham uma velha história sobre um vestido com poderes demoníacos, que queimava, ou envenenava, ou conduzia quem o vestisse à loucura. A ideia espalhou-se assustadoramente depressa e passado pouco tempo as pessoas nem se davam ao cuidado de baixar a voz, parecendo não se preocuparem com o facto de eu ouvir o que diziam de mim. Os meus amigos tentaram proteger-me, mas foi impossível.
Então, começaram a acontecer pequenas coisas. Escorreguei e sujei o vestido, quando andava a passear. Lady Anne deu-o a uma serva para o limpar, mas houve um contratempo e o vestido foi-me devolvido estranhamente manchado. Não o podia vestir. Mas era o único que eu tinha. Assim, usei-o até que Lady Anne, franzindo as sobrancelhas, me arranjou outro, ainda mais simples e deselegante do que o primeiro. Usei-o e mantive a cabeça direita. Em seguida, Alys desapareceu. O que me deixou frenética, porque me fez recordar Lady Oonagh e os estranhos e cruéis truques que utilizava em Sevenwaters e passei uma boa parte do dia à procura por toda a parte, tentando não mostrar o pânico que sentia. A minha mente recordava a minha fiel Linn, que morrera na floresta ao tentar proteger-me e quando pensava nela era assaltada pelas imagens daquele dia terrível, quando carregara o corpo dela através da floresta e esperara, chorando e sangrando, pelo regresso dos meus irmãos. Tentei acalmar-me o melhor que pude e procurei metodicamente pela casa, nos estábulos, no celeiro, por baixo das sebes, no pomar. Sentia-me muito só, nesse dia, porque Lady Anne mantinha Margery dentro de casa e os homens andavam ocupados na herdade. Podia ter pedido a Megan que me ajudasse a procurar, porque ainda se mantinha, de certo modo, amigável, mas estava a tratar de Johnny e não pude chamá-la.
Para o fim da tarde já estava a começar a ficar resignada quanto ao facto de não conseguir encontrar Alys; que algo de mau lhe acontecera.
Decidi esperar no meu jardim e pedir conselho a Ben, ou a John, quando regressassem. Mas não houve necessidade, porque, mal dobrei a esquina, perto da porta da cozinha, lá estava ela, sentada nos degraus de pedra do lado de fora do meu quarto, de olhar expectante, aparentemente nada cansada. Dei um suspiro de alívio e exaspero. Por onde andara ela durante aquele tempo todo? Como se atrevia a deixar-me ralada daquela maneira, a malandra? Não tinha a certeza se me apetecia rir ou chorar.
Só quando me aproximei é que percebi que nem tudo estava bem, ou era tão simples como eu pensara. Porque Alys arreganhou os dentes e rosnou. Aquele comportamento era comum; era famoso, na casa, pelo mau feitio, um dos privilégios da idade. Mas nunca mo fizera antes, a mim. Mantive-me uns passos afastada, para não a alarmar e inspeccionei-a cuidadosamente. Parecia bem. Talvez se tivesse assustado. Fosse o que fosse que a estava a aborrecer, precisava de lidar com ela com cuidado. Acocorei-me e aproximei-me. Ela rosnou de novo, arreganhando os beiços. Tremia, percorrida por grandes arrepios. Aterrorizada. Por mais que tentasse, não me deixou aproximar.
Recuei para a cozinha em busca de um bocado de toucinho. Os terriers gostam de comida e resistem-lhe com dificuldade. Devagar, muito devagar, aproximei-me dela, até ficar a apenas alguns passos. Então, sentei-me no chão, com o bocado de toucinho ao lado e pus-me a olhar para longe. Gradualmente, os rosnidos desapareceram, Passado um bocado, moveu-se vagarosamente; e ouvi o som furtivo de maxilas a mastigarem. Já podia olhar para ela com segurança.
Não fora ferida. Simplesmente, estivera presa e estava assustada. Para descobrir quem o fizera, talvez tivesse que procurar mãos com sinais de dentadas. Porque o que lhe tinham feito perturbara-a muito. Pude ver que na parte de trás do dorso, no longo pêlo de arame, estava raspado um rude e inequívoco sinal. Um símbolo que eu vira pintado sobre as portas, como protecção contra as bruxas. Um sinal que eu vira ser feito com os dedos, contra o diabo. Uma mensagem destinada a mim. Feiticeira, vai-te embora. Porque desta vez não a tinham ferido, talvez lembrando-se do antigo dono.
Talvez tivessem sido só crianças. Uma brincadeira. Talvez não tivesse importância. Assim, não disse nada, ao jantar, tentando comportar-me como se nada tivesse acontecido, porque não queria juntar achas à fogueira. Mas como Conor me disse uma vez, eu não era muito boa a esconder o que sentia. Não era como alguns. Margery perguntou-me se estava tudo bem e eu disse que sim, Ben disse que eu parecia cansada e eu sorri. John tentou fazer-me comer; estavam sempre a tentar fazer-me comer, mas o meu corpo estava habituado ao jejum, aceitando apenaspequenas quantidades da mais simples das comidas. Um pouco de pão, alguma fruta, uma taça de cerveja. Ocasionalmente, queijo. Todos pensavam que passava fome de propósito, mas não era verdade. Além disso, fazia com que a minha mente se concentrasse melhor. Lembro-me de o padre Brien ter dito isso, uma vez.
Olhando para um e outro lado da mesa e para os membros da família comendo, bebendo e conversando entre si, imaginei quanto me imaginavam uma ameaça. Porque eram, na sua maior parte, boas pessoas, trabalhadeiras, honestas, que davam valor à sua vida simples e ordeira. Red provia a todos, viviam em segurança, retribuindo com trabalho e lealdade. A minha presença era como uma constante perturbação numa poça tranquila; as pequenas ondulações na superfície espalhavam-se, espalhavam-se e desequilibravam tudo. Alguém se preocupara com isso, agindo contra mim. Até agora, apenas pequenas coisas; mas eu sentia-me muito pouco à-vontade, porque as pequenas coisas podiam levar às grandes, vira isso muito bem quando LadyOonagh foi para Sevenwaters. E eu estava tão perto do fim da minha tarefa, cada dia mais perto. Liam, Diarmid, Cormack, Conor. Finbar, cuja camisa de morugem avançava rapidamente, porque eu trabalhava muito e depressa, esquecendo a dor. Em breve só faltaria uma camisa, o feitiço seria quebrado e eu voltaria para casa. Desde que pudesse terminar a tarefa. Em resumo, pensei ir ter com LadyAnne e contar-lhe o que acontecera à cadela, porque sabia que ela reprovava um comportamento tão maldoso na sua casa, por pior que pensasse de mim. Mas contar-lhe era acrescentar lenha ao argumento da minha ida para Northwoods e essa perspectiva assustava-me imenso. Havia algo de demoníaco no tio de Red, uma ameaça nos seus olhos e nas suas palavras, que me gelavam quando na sua presença. Preferia fugir a ir para casa dele. Viveria sozinha, de novo. Decidi não dizer nada a ninguém sobre o que acontecera a Alys. Fiz de conta que não era nada. No fim de contas, que poderia fazer, fosse quem fosse?
Não contava com Red. Foi um erro. Nessa noite, estava eu a coser no meu quarto, à luz da vela, quando ouvi baterem à porta. Não podia dizer «Quem é?» e, depois de tudo o que se passara, não ia abrir às cegas. Então, ouvi a voz dele.
Abre a porta, Jenny.
Fui até à porta com o trabalho nas mãos e abri o ferrolho. Que estava ele ali a fazer? Era suposto ser a noite de guarda de Ben.
Sai cá para fora disse Red. Quero ver-te o rosto. Porque estava de costas para a vela. Deixando a porta aberta, saí para o jardim, onde a Lua espalhava uma luz suave e fria sobre a folhagem azul-esverdeada da alfazema e do absinto.
Olha para mim disse ele. Olha para mim como deve ser.
Encontrei o olhar dele, achando que parecia cansado; os dias no campo tinham sido longos, mas as rugas em volta do nariz e da boca mostravam algo mais do que o agradável cansaço do corpo após o trabalho e parecia mais magro.
Muito bem disse ele. Agora, diz-me o que se passa.
Conhecia-o o suficiente para saber que não tinha escolha, senão contar-lhe. Como ele dizia, não gostava de brincar. Assim, mostrei-lhe por meio de gestos cão... ir embora. Eu, procurar... preocupada. Utilizei a mão para demonstrar a passagem do Sol pelo céu, todo o dia. Depois, tive que lhe segurar na manga e levá-lo para dentro do quarto, onde Alys Reclamara o seu lugar na enxerga e onde estava quase a adormecer, enroscada nos cobertores. A cadela rosnou profundamente quando nos aproximámos e os arrepios recomeçaram.
Red olhou para a marca no dorso e não disse nada; mas as rugas do seu rosto eram bem nítidas à luz da vela e os lábios cerraram-se-lhe. Voltámos para o jardim e ele fez-me sinal para me sentar no degrau da porta, enquanto ele encostava o grande corpo à parede a meu lado. Ficámos silenciosos por um bocado.
Não me ias dizer nada acerca disto observou ele. Por que não?
Encolhi os ombros.
Por que te havia de dizer? Que poderias fazer?
Red franziu as sobrancelhas, ao mesmo tempo que olhou para mim. Não falou durante algum tempo; ao luar, os seus olhos tinham a cor clara da primeira vez em que nos encontrámos, azul-matinal e havia recordações nas suas profundezas.
Quero perguntar-te uma coisa disse ele por fim e agora olhava para as mãos, como se não quisesse encontrar o meu olhar. Naquela noite... daquela vez nas cavernas, antes de termos atravessado a água. Foram tempos estranhos. Tenho pensado... tenho pensado que talvez eu tenha tido febre nessa noite, por causa da perna. Porém, as recordações são... interrompeu-se, batendo com a bota no chão, falhando, miseravelmente, o que queria dizer. Podia encontrar as palavras por ele, se não estivesse forçada ao silêncio. Após uns momentos, olhando para mim de lado e para longe, tentou de novo.
»Por vezes, acordo de noite disse ele de um sonho tão vívido, que até parece que aquele mundo escuro é que era o real, e este uma fantasia. Tenho-o tido várias vezes. Perturba-me, saber que tenho tão pouco controlo sobre a minha mente. Já alguma vez sentiste isto? Abanei a cabeça. As Criaturas Encantadas brincavam com os nossos pensamentos, não havia dúvida. E o homem da nossa aldeia, Eergal, que perdeu o juízo por completo, depois de o terem levado, provocado e atirado de novo para este mundo? Mas a minha mente, nunca ma tinham levado, se bem que quase a tenha perdido devido aos meus medos. Fiz sinal para Red: Fala. Diz-me o resto.
Essa noite disse ele hesitantemente. Foi a mais vívida de todas. E depois, pensei por um momento... mas não, não podia ser. Suponho que aquelas imagens foram o produto da febre, da doença, provocada pelo choque e pela exaustão. Geralmente, não sou assim tão fraco. Mas na ocasião, pensei... diz-me, será possível teres partilhado esse sonho comigo? Será possível saberes o que me foi dito? Havia uma vela, ainda a tenho. Mas, como podia haver uma vela? E por que é que ainda oiço as vozes deles no meu sono? Estou a perder o juízo? Já ouvi falar dessas coisas, entre outras. No entanto, sinto-me melhor do que nunca. Suspirou. Desculpa Jenny. Mas, com quem poderia eu falar destas coisas? Quem me ouviria, sem me chamar louco?
Aquilo fez-me sorrir. Quem, senão uma rapariga louca, compreenderia pensamentos loucos? Pensei se conseguiria explicar-lhe. As minhas mãos moveram-se e eu falei calmamente, ao mesmo tempo que ele tentava interpretar os meus gestos. Duas mãos, cada uma ligeiramente em concha, separadas, encostadas uma à outra, como as conchas do mar.
Duas coisas. Dois mundos?
Acenei com a cabeça. Juntei as mãos. Mostrei-as por cima, por baixo.
Dois mundos, um por cima e o outro por baixo? Um é o espelho do outro. Dois mundos que se juntam e tocam? Então, a qual pertences tu? Também és uma criatura desse outro mundo, do reino dos sonhos e das fantasias? Vais-te desvanecer um dia, como eles fizeram naquela noite, deixando-me na escuridão?
Abanei a cabeça. Apontei para mim própria e depois para a mão ainda erguida, em concha, para baixo.
Eu sou deste mundo. Gesticulei de novo. Como tu. A parte seguinte era mais difícil. Tentei mostrar-lhe que havia um elo, um laço, entre um mundo e outro. Mas cuidado; havia algumas coisas que eu não devia dizer, mesmo através de sinais. Red acenou com a cabeça lentamente.
Eu ouvi as vozes deles disse ele. Compreendi-as, se bem que não conseguisse dizer em que língua falavam. Quem eram eles, Jenny? Como é que eles te compreendiam, como é que te ouviam, se tu não tens voz?
Mostrei-lhe o mundo de baixo, de novo. Duas. Duas pessoas, muito altas. Desenhei um círculo em volta da minha cabeça, tentando indicar uma coroa. Era o melhor que conseguia explicar-lhe.
Um rei e uma rainha desse outro reino? Acenei com a cabeça. Já estava perto. Precisava de melhorar os gestos, ou ele melhorar na tentativa de compreender. Em seguida, tentei responder à pergunta seguinte.
Boca, palavras não. Mente, pensamentos ouvidos, ouvir. Ouvir sem palavras.
Nesse caso, eu não posso ouvir-te?
Olhei e apontei para ele, calmamente e fiz um movimento com a mão à minha volta, mostrando-lhe o lugar a que pertencia. O lugar a que também lhe pertencia a ele.
Tu és um bretão. Encolhi os ombros. Que esperavas?
Creio que o ofendi. A boca cerrou-se-lhe um pouco mais, se possível e os olhos ficaram um pouco mais frios. Fosse qual fosse a resposta que esperava de mim, não era aquela. Só passado um bocado voltou a falar.
Se eu acreditar nisto disse ele tudo muda. Tudo. Sentou-se no último degrau, de costas para mim, olhando para as mãos entrelaçadas. Tive que mudar de posição para ele poder ver o que eu tentava dizer.
Não. Não é preciso. Tu, aqui; tudo à tua volta. As tuas árvores; o teu povo. Tudo como deve ser. Eu vou-me embora. Para longe, para o outro lado da água. Para casa. Tu esquecer.
Limitou-se a olhar para mim.
Não é assim tão simples disse ele sabes tão bem como eu. Como podes ter esquecido? Já te disse, as vozes deles estão nos meus sonhos, esse mundo está perto, faz parte de mim, quer queira, quer não. Quer acredite, quer não. E tu estás aqui.
Eu vou-me embora. Apontei para ele e cruzei as mãos no peito. Tu prometeste Eu sobre a água, para casa,
Não me esqueci disse Red suavemente. Não me esqueço e manterei a promessa, ou outra qualquer que faça. Fala-me do meu irmão e farei com que regresses a casa sã e salva. Custe o que custar. Mas... as coisas nunca mais voltarão a ser o que eram. É impossível. A cada dia que passa, mais tenho a certeza.
As palavras dele perturbaram-me. Sabia que a minha presença em Harrowfield tinha abalado uma casa até então ordeira e feliz. Lamentava-o e gostaria de o poder alterar. Mais do que isso, incomodava-me ouvir as pessoas falarem de feitiçaria e encantamentos, que teriam enredado o seu senhor. Porque suponho que sentiam o mesmo que eu sentira quando Lady Oonagh fora para Sevenwaters e lançara a sua rede sobre o meu pai. Só que aqui, a bruxa era eu. Mas eu era empurrada pela necessidade de completar a tarefa e salvar os meus irmãos. Nada mais interessava. E para o fazer, precisava de ficar sob a protecção de Red. Pensei que quando a tarefa terminasse ir-me-ia embora e a tranquila poça acalmaria de novo, como se eu nunca ali tivesse estado para perturbar a sua tranquilidade. Nunca pensara em como isso afectaria Red. Talvez porque me fosse difícil falar-lhe do irmão, como terei um dia de o fazer, se ele me deixar ir embora.
Ajoelhei-me em frente dele, de maneira que ele tinha de olhar para mim. Tentei mostrar-lhe um espelho do próprio rosto.
Tu cansado. Tu triste, preocupado. Aquilo provocou-lhe uma espécie de careta desconsolada. Não gostava que a conversa se virasse para os seus próprios sentimentos.
Falta de sono, suponho. Acontece quando se acorda de noite com demónios a sussurrarem-nos aos ouvidos. Mas, como podes tu saber o que isso é? Atirou a observação ao acaso, mas parou imediatamente, quando viu o meu rosto mudar. Por um momento, os meus demónios nocturnos particulares voltaram e devo ter ficado, de repente, branca como a cal.
Desculpa disse ele numa voz diferente, tão diferente que até podia vir de outro homem. Desculpa. O que é que eu disse? A mão dele estendeu-se, muito gentilmente, na direcção da minha face; mas eu afastei-me um pouco, só até ficar fora de alcance. Abanei a cabeça e fiz um movimento com a mão, como que a afastar a importância do momento.
Nada. Não é nada.
Ainda tens medo de mim disse ele suavemente. Não vês que não seria capaz de te magoar?
Mas magoaste, pensei. Com as tuas mãos, com as tuas palavras. Cruzei as mãos sobre o peito, as mãos tocando nos locais onde ele me tinha feito nódoas negras. Quando estava tão zangado, mais zangado do que nunca.
E então ele disse:
Quem me dera que falasses comigo. A voz dele baixara ainda mais, como fazia por vezes quando tentava controlar-se. Não sei como, mas tinha-o perturbado. Não há dúvida de que é assim que queres, pensei. Logo que eu falar, podes ver-te livre de mim e continuar com a tua vida. Uma coisa a menos com que te preocupares. De volta ao normal, seja o que for que penses agora. Porque hás-de esquecer, como todos os homens.
Quero ouvir a tua voz disse ele. Quero... mas, o que é que interessa? Era como se pegasse nas palavras e as canalizasse para onde pensava que deviam estar. Para terreno seguro. Controlado. Não dizer o que se sente, apenas dizer o que deve ser dito. Imaginei que mais tarde se sentiria arrependido por falar naquela ocasião de maneira tão livre. A tua segurança, temos de pensar nisso disse ele. Era Lorde Hugh de Harrowfield que falava, agora. Penso que posso fazer mais qualquer coisa. Primeiro, falarei com a minha mãe. Ela há-de franzir as sobrancelhas a tais brincadeiras, há-de descobrir o culpado e fazer com que não se repita. A longo prazo... pode ser que haja uma solução. É óbvio que precisarei de tomar uma atitude, mas isso não será do teu gosto.
O quê? Que solução? Estava-me a deixar preocupada. Não me ia mandar para Northwoods? Ou ia?
Pode ser que não seja necessário disse Red, levantando-se. Mantenhamo-nos em guarda. Se for preciso fazer mais alguma coisa, fá-la-emos. Mas o meu tio não está cá e não conheço mais ninguém que possa ser uma ameaça para ti. Olhou para mim interrogativamente. Encolhi os ombros. Era demasiado assustador pensar que Lady Oonagh poderia vir ali procurar-me, em Harrowfield. Recusava-me a acreditar em tal. Por agora, creio que estás segura em minha casa. Se não te posso prometer isso, não sou grande protector.
As minhas mãos moveram-se rapidamente.
Não. Não prometas o que não tens a certeza de cumprir. Não faças uma promessa que não podes cumprir. Não sei se ele compreendeu.
Está a ficar frio disse ele. É melhor ires para dentro. Tranca a porta e dorme. Eu fico de guarda esta noite.
Parecia que me estava a mandar embora. Levantei-me, entrei e virei-me para fechar a porta.
Jenny disse ele. Estava de pé nos degraus da porta e essa diferença nas duas alturas fez com que me pudesse olhar a direito nos olhos. Levantei as sobrancelhas, interrogativamente.
Na próxima vez, fala comigo. Logo. Não guardes para ti. Por mais pequeno que seja o assunto, por mais trivial, diz-me. Podia aparentar ter afastado a ameaça à minha segurança, mas lá dentro continuava preocupado. Profundamente preocupado.
Acenei com a cabeça e fechei a porta. Mas na vez seguinte não houve necessidade de lhe dizer. Porque na vez seguinte não foi uma brincadeira de crianças, não foi uma maldade perpetrada pelo meu inimigo. Foi uma coisa muito pior, que levou a uma trágica viragem dos acontecimentos, que acordou um profundo terror do espírito, que trouxe a força do demónio ao tranquilo vale e assustou a casa de Harrowfield. E fui eu que a causei.
Aconteceu em duas etapas. A primeira foi difícil, pelo menos para mim; mas não foi nada, comparada com a segunda. A primeira foi uma trapaça, uma cruel trapaça. A segunda, foi um assassínio.
A Primavera avançava, subitamente o primeiro de Maio estava a chegar e o casamento era uma realidade. À minha volta a actividade era fervilhante, mulheres cosendo tecidos maravilhosos, tagarelando sobre o baile e a festa e sobre outros aspectos do casamento iminente que eu preferia não ouvir. Tentei bloquear a conversa delas. Continuei a fiar e a tecer a minha morugem e dei forma à camisa de Finbar. Enquanto trabalhava, imaginava o meu irmão pendurado dos telhados de lousa de Sevenwaters, com o vento de oeste brincando com os seus caracóis negros e os olhos cheios de sonhos. Imaginei-nos aos dois a correr através da floresta num belo dia de Primavera e Finbar esperando que eu o apanhasse. Depois, sentada ao lado dele no galho de um carvalho, ouvindo em silêncio, enquanto a floresta respirava à nossa volta. Pensei em Finbar, como o vi da última vez, depois de me ter dado tanta da sua força que mais nenhuma lhe restou. Cosi o meu amor pelo meu irmão à camisa dele por meio de cada ponto doloroso. Trabalhei muito e a camisa cresceu rapidamente. Tentava não ouvir os murmúrios das mulheres enquanto trabalhavam, como faziam quando Lady Anne estava ausente. Mas não podia deixar de as ouvir por completo. Assim, ouvi muitas opiniões sobre Lorde Hugh, incluindo a de que todas as raparigas da aldeia lhe faziam olhos de vaca de como era um homem tão forte e alto bem proporcionado, não sei se percebes. Além disso, sabes o que se diz dos ruivos. Era uma pena, realmente, que ele não sabe, que ele seja tão metido consigo. Falava-se, pelo menos ela tinha uma amiga, que era amiga de uma amiga, que tinha uma prima que uma vez e ela disse que qualquer rapariga que passasse uma noite com ele ficava logo a saber a sorte que tinha. Uma vez deitada com ele, nunca mais quereria outro.
Forte como um touro, manso como um cordeiro riu por entredentes uma das mais velhas. O sonho de qualquer rapariga. O irmão dele era na mesma, mesmo com 16 anos. Pobre rapaz.
Houve alguns olhares acerados na minha direcção, juntamente com alguns sussurros.
Ela? zombou uma delas. Não me parece. Por que havia ele de olhar para ela quando pode ter a Elaine? Quando pode ter as que quiser, basta fazer um sinal?
E quem é que quer uma delas? disse outra. Além disso, é tão magricela, uma coisinha tão deslavada. Não tem nada para um homem agarrar. Os seios parecem maçãs verdes e as ancas parecem as de um passarinho. O que é que um homem como ele havia de querer de um pardal daqueles? E com aquelas mãos horríveis.
Ehhh! Lady Anne estava de regresso e a conversa virou-se, subitamente, para os relativos méritos dos rebuçados de mel e das violetas cristalizadas. Senti os lábios comprimirem-se até ficarem da espessura de uma linha e durante um momento a vista nublou-se-me, mas não permiti que as lágrimas caíssem. Odiava ouvi-las falarem daquela maneira, porque a ideia de Red e uma mulher qualquer, deitados juntos e a fazer a fazer aquilo, punha-me doente. Como podiam elas falar assim do acasalamento do homem e da mulher, como se como se fosse algo alegre, algo que se deseja ardentemente e do qual se ri? Eu via-o como uma coisa brutal, dolorosa, uma experiência que manchava, envergonhava e aterrorizava. No entanto, no fundo do meu coração, tinha de reconhecer que devia ser mais do que isso, porque vira John e Margery olhando um para o outro, tocando-se com as mãos e testemunhara a mesma mensagem sem palavras, sem fôlego, passando do meu irmão Liam para a sua prometida. Mas aquilo não era para mim. Nunca olharia para os olhos de um homem como Eilis para os de Liam, com tal ardor que lhe ruborizava as faces. Nunca passaria a mão, suavemente, pelo pescoço de um homem, como Margeiy fazia ao do marido, quando pensava que ninguém estava a olhar. Eu estava ferida; já não era virgem. Ocorreu-me que, se houvesse um futuro para mim e para os meus irmãos, isso seria um problema. O meu pai, sem dúvida, gostaria de me casar, de maneira a fortalecer a posição estratégica de Sevenwaters. Mas teria dificuldade em encontrar um pretendente. Além disso, eu nunca concordaria. Em vez disso, seria como uma vez disse a Diarmid, há tanto tempo que mal me lembrava. Tornar-me-ia numa velha, resmungando e falando de ervas, misturando poções, para os necessitados. Não fora isso o que eu sempre desejara? Simplesmente, agora, já não me parecia o suficiente.
Os meus dedos continuavam a trabalhar, ao mesmo tempo que os espinhos da planta os punham vermelhos, cheios de borbulhas e ásperos. As mulheres tinham razão. Eram umas mãos muito feias. À medida que trabalhava, contava para mim própria uma história acerca de umas mãos semelhantes. Nessa história, a rapariga tinha que trabalhar nas cozinhas de uma grande casa durante sete anos, para conseguir o seu amado. Sete anos a esfregar chãos, a despejar baldes, incharam-lhe as mãos e calejaram-lhe as palmas. No fim da história, a fiel rapariga reuniu-se por fim, com o seu amado. Quando ele a abraçou, lhe levou os dedos aos lábios e as lágrimas lhe caíram em cima, olhai, tornaram-se, de novo, esguios e pequenos, e quando ela os esticou para lhe tocar no rosto, as suas palmas eram tão brancas e finas como as de uma rainha. Mas o seu amado ficou espantado quando ela lhe contou a história, como trabalhara aqueles sete anos e as mãos lhe tinham ficado feias e horríveis. Porque quando finalmente a encontrara, a apertara nos braços e pressionara os lábios contra as palmas ásperas das mãos dela, sentira que eram as mãos mais maravilhosas do mundo.
Uma tarde, Margery levou-me aos alojamentos dela e cleu-me um presente. Da parte dela e de John, disse, porque me queriam agradecer pela dádiva da criança. Fizera-me um vestido novo; mais próprio para o casamento do que aquele que vestia. Era encantador, bastante simples, mas moldado para servir na perfeição, de lã suave e clara, de um tom algures entre o azul e o alfazema, como o crepúsculo de um dia de Verão.
Em volta do decote e da bainha havia um rendilhado de vinha virgem, folhas e pequenas criaturas aladas, bordadas num azul-escuro. Era um presente de amor, pus os braços em volta da minha amiga e abracei-a. Não lhe disse que não fazia tenção de vestir aquele vestido, que me realçava a figura e despertaria os olhares dos homens. Sentia-me mais confortável, mais segura, no velho vestido caseiro, que bem podia ser um saco de batatas, tão mal me caía. Mas aquele era um presente precioso, que devia ser usado com um sorriso. Assim, experimentei-o e ela ficou excitada, fazendo uma prega aqui e dando um ponto ali, até se dar por satisfeita. Johnny observava-nos do berço, de olhos esbugalhados. Estava a ter um trabalhão para se virar, ficando ora de barriga para baixo, ora de barriga para cima. Ainda não tinha adquirido grande habilidade, mas a julgar pelos gemidos, não demoraria muito.
Margery entrançou-me o cabelo nas costas, misturando as tranças com fitas de alfazema. Era um bom exercício para o casamento, explicou.
Pronto disse ela. Olha para o espelho, Jenny. Fazes justiça ao meu trabalho, rapariga. Tens de deixar de te esconder.
Não tinha qualquer desejo particular de me ver a mim própria, tendo desistido dos espelhos devido a Lady Oonagh. Mas olhei, pensando ver a pequena escanzelada das conversas das mulheres. Em vez disso, vi uma estranha pequena e delgada ou talvez nem isso, porque a pessoa que me olhava com gravidade tinha algo do visionário e longínquo olhar de Finbar, um arco das sobrancelhas que vira no rosto de Diarmid e bem, não havia dúvida que era a filha de Lorde Colum. Mas mudada. Eles tinham razão, tinha crescido, era agora uma mulher. O vestido suave tocava no corpo e ficava colado, aqui e ali, caindo em folhos graciosos pelas ancas. Seria sempre pequena e delgada, mas aquele vestido mostrava o volume arredondado dos meus seios, bem acima do decote descido. Já não era a criaturazinha selvagem que correra, livre, com os irmãos, na floresta. O meu rosto ainda era muito delgado, mas os grandes olhos verdes, o nariz pequeno e estreito e os lábios curvos não eram os de uma criança. Tinha a pele pálida do meu povo e pequenos cachos de cabelo escuro escapavam-se da trança para se enrolarem em volta das sobrancelhas e das têmporas.
Fica-te uma maravilha disse Margery, contente com o seu trabalho. Voltei a sorrir, beijei-a na face e fingi, convincentemente, que estava contente. E estava, na realidade; adorava o presente pela sua beleza e pelo amor que lhe estava adjacente. Simplesmente, não o queria usar. Ainda não. Não no casamento de Red, de qualquer maneira.
Para complicar as coisas, antes de ter tido tempo de mudar para o vestido caseiro, os três homens voltaram para casa e foram directamente para os alojamentos de John, cheios de planos para o primeiro dia de tosquia da Primavera. John entrou à frente dos outros e olhou para ambas; deu um beijo na mulher e levantou o filho nos braços.
Que bem que te fica, Jenny disse ele no seu tom sóbrio. Muito bem, de verdade.
E Ben, que entrou a seguir, deu aquela espécie de assobio que os homens dão quando gostam de uma rapariga que vai a passar. Eu estava acostumada a Ben; sabia que não o fazia por mal; e assim sorri para ele antes de afastar o olhar. Olhei a direito para os olhos de Red, que estava à entrada, a olhar para mim. Estivera a falar e parara a meio de uma frase. Lentamente, também os outros se calaram e uma certa tensão instalou-se na sala. Subitamente, descobri que não queria encontrar o olhar de Red, com medo do que pudesse encontrar nos olhos dele, peguei no vestido caseiro, dirigi-me para a saída roçando-lhe o braço à passagem e fui para o meu quarto, aferrolhando a porta. Ali despi o vestido azul, vesti o velho e tirei as fitas do cabelo, enquanto a pequena cadela me observava, os olhos redondos e ramelosos cheios de simples afeição. Dobrei o presente de Margery, meti-o na arca juntamente com as fitas e fechei-a. Em breve meteria ali a quinta camisa, só faltando uma. Aquela arca guardava as vidas da minha família na sua simples estrutura de carvalho. Liam, Diarmid, Cormack, Conor. Finbar. Padriac. Sorcha. Porque vós sois aquela mulher no espelho, disse para mim própria. Já não és uma criança, por mais que o desejes. És uma mulher com corpo de mulher e já não pensas, ou sentes, como em Sevenwaters, quando corrias, selvagem, pela floresta e as árvores estendiam as suas copas para te protegerem. Os homens vão olhar para ti. Mentaliza-te, Sorcha. Não te podes esconder para sempre. Eles vão olhar para ti com o desejo nos olhos. Foste violada e já não és virgem. Mas a vida continua. Parecia lógico. Mas continuei a pensar que nunca mais sentiria o toque de um homem sem sentir medo. A conversa das mulheres fazia-me estremecer. Mostrar o corpo envergonhava-me. Não poderia olhar de novo para os olhos dos meus amigos, com medo do que pudesse ver neles.
Mais tarde fui até ao pomar, depois de me certificar de que não havia ninguém nas redondezas. Sentei-me na relva, por baixo de uma velha macieira, em cujos ramos nodosos as flores davam lugar aos primeiros frutos verdes. Red e eu tínhamos, em tempos, partilhado uma maçã. Parecia ter sido há muito, muito tempo, noutro mundo. Noutra história. Falei com as Criaturas Encantadas, mentalmente. Falei com a Dama da Floresta. Se algum deles estivesse por perto, naquela terra estrangeira, se algum me pudesse ouvir, seria num lugar como aquele, sob as árvores. Desejei estar no coração da floresta de carvalhos, mas fora proibida de lá ir sozinha. Concentrei-me na mensagem e enviei-a com todas as minhas forças. Deixai-o ir, disse. Libertai-o do vosso feitiço. Não estais a ser justos.
Ele nunca soube as regras. Tudo estava tranquilo. Não havia maneira de saber se alguém me estava a ouvir. Não ouvia risadas nem vozes por entre a folhagem. Ele é um bom homem. Talvez o melhor da sua raça. O que estais afazer é errado e não o permitirei. Libertai-o. Libertai-o desta obrigação para comigo e devolvei-lhe o sono e a vontade. Esperei uns momentos, mas não houve qualquer som, apenas o leve passar do vento pelos ramos e a respiração de Alys. Magoa-o, o fogo na cabeça. Vós magoai-lo. Cometestes para com ele uma injustiça, fazendo-o meu protector. Além disso, eu posso tomar conta de mim própria. Ele arrisca-se a negligenciar os seus; eles precisam dele mais do que eu. Libertai-o do vosso feitiço.
Depois de terminar, permaneci sentada, quieta, à medida que a luz do dia se desvanecia, esperando, com todo o meu coração, ouvir uma resposta, um reconhecimento de que o outro mundo ainda existia, nesta terra de cépticos, de incrédulos, de pessoas práticas, terra-a-terra o que chamara Richard ao sobrinho idealista emproado? Não fora justo. Red era um homem difícil de entender; mas eu ouvira-o falar com o coração, inseguro e confuso. Sabia-o capaz de ira, ferocidade e grande coragem. Tinha sentimentos, tal como eu. O tio julgara-o mal e um dia teria a prova disso.
Não houve qualquer resposta no pomar. Se as Criaturas Encantadas me ouviram, não o deram a entender. Pelo menos, hoje. Não que isso quisesse dizer alguma coisa, porque eram sempre instáveis e brincalhões quando lidavam com gente da nossa espécie. Bem, dissera o que tinha a dizer e pronto. Por agora.
Ou foi um servo desastrado, ou uma rajada de vento, ou algo mais sinistro. Nunca ninguém descobriu. Fechei a mente ao pensamento de que Lady Oonagh podia estar por trás daquilo, porque era uma ideia demasiado aterradora. As forças do mal são poderosas e não podem ser contidas facilmente. Aconteceu quando estávamos a jantar nessa noite, eu a debicar bocadinhos de cenoura e cebola, Margery a observar-me do outro lado da mesa, John e Ben discutindo amigavelmente acerca da tosquia. Não me lembro do que senti primeiro, se o cheiro do fumo, se a voz de Megan entrando a correr, vinda do átrio.
Fogo! Há fogo no salão!
A casa era tão disciplinada como o seu chefe. Os homens deixaram os seus lugares rapidamente e sem espalhafato. Apareceram baldes e formou-se uma cadeia, enquanto LadyAnne dirigia os restantes para o exterior. John subiu as escadas a correr, o rosto branco como a cal; reapareceu com o filho ao colo, aos berros, para alívio de Margery, porque os alojamentos deles estavam suficientemente perto para estarem em perigo. Johnny ficou assustado com aquele súbito acordar; o pai tranquilizou-ocom algumas palavras sopradas em voz baixa e quando ele se acalmou de novo, deu-o à mãe e voltou para o local do incêndio. Esperámos no pátio, vendo o fumo negro sair das janelas superiores. Figuras passavam em frente da luz tremeluzente, o fumo tornou-se branco e finalmente nada mais restou senão um cheiro acre no ar nocturno. Fora um exercício de eficiência. Não houve feridos. Rápido e eficiente. Não houve grandes prejuízos.
É melhor vires cá acima disse Red, aparecendo ao meu lado com a boca num esgar. Precisas de ver isto. Receio que não sejam boas notícias.
Meu senhor? Um dos servos esperava. Quereis os detritos limpos imediatamente?
Ainda não disse Red. Acabai de jantar, bebei uma cerveja. Eu, depois, chamo-vos.
Segui-o até ao grande salão, evitando pensar. Ficámos ali os dois por um momento. O fogo tinha terminado. No andar de baixo, os baldes estavam a ser arrumados e as pessoas voltavam para a mesa, as vozes animadas.
Fora um fogo’estranho. Mais do que estranho. Um dos cantos do salão estava praticamente intocado. Lá estava a cadeira direita de carvalho de Lady Anne com o espaldar gravado, o bastidor dos seus bordados com o intrincado trabalho de um unicórnio e vinha virgem esticado, são e salvo. Lá estavam os cestos de lã, os utensílios de fiar e os pequenos teares manuais. Mas o ar estava pesado do fumo e no canto em que Margery e eu nos sentávamos para trabalhar estava tudo negro. O fogo queimara as tábuas do soalho, os bancos ao longo das paredes e as vigas por cima. Aranhas jaziam, penduradas nos fios das suas teias. O meu fuso e a minha roca eram paus calcinados, o meu banco um monte de carvão. O cesto que continha o resto de morugem era um monte de cinzas. E no chão, quase irreconhecíveis, estavam os frágeis restos queimados da camisa meio acabada de Finbar, que eu deixara sobre o cesto, pronta para continuar no dia seguinte. Encaminhei-me para ela como num sonho, acocorei-me e estendi uma mão para lhe tocar. Desfez-se sob os meus dedos. Imaginei Finbar como o vira pela última vez, desinteressado, entre os dois irmãos, como se a vida lhe tivesse fugido. A sombra de um homem. Vi-lhe os olhos, em tempos cinzentos-claros, profundos como o céu de Inverno, selvagens, confusos e aterrados, tentando transpor o abismo entre o animal e o homem. Segurei nas mãos as cinzas da camisa dele; senti-as deslizarem-me pelos dedos e dispersarem-se.
Jenny, minha querida. Olhei para cima, sobressaltada. Lady Anne andava tão silenciosamente como o filho, quando queria. Estava ali ao pé dele, de sobrancelhas franzidas. Lamento muito. Mas deve ter sido um acidente. Um descuido. Uma rabanada de vento. É claro que te substituo as coisas que perdeste. Temos fusos e rocas suficientes. Red não disse nada; olhou para o fogão, que estava a alguma distância, a meio da parede; olhou para as chamas. Olhou para mim. Eu não chorava. Os meus dentes estavam cerrados, para evitar que chorasse.
Hugh disse Lady Anne. A voz dela soava como devia soar quando ele e o irmão mais novo eram crianças e ela os chamava por ainda não se terem ido deitar, ou por roubarem empadas da cozinha. Depois disto, tens que pensar seriamente na possibilidade de a mandares embora. Uma coisa destas é intolerável. Tens de pensar na segurança da casa. Por que não a mandas para Northwoods? Até tu percebes, certamente, que ela não pode continuar aqui.
Os olhos de Red estavam gelados.
Não vejo tal disse ele calmamente. Ou não conseguis reconhecer nisto a mão de Richard?
Que estás a dizer? A mãe dele estava chocada. O meu próprio irmão? Por que procuraria ele incendiar a casa da sua família mais próxima, por que se rebaixaria a tamanha baixeza? Sei muito bem que ele não aprova a presença desta rapariga aqui, mas sugerir tal coisa, é absurdo. Além disso, ele está no mar e já há muito tempo. A não ser que acredites que também ele recorre à feitiçaria para atingir os seus fins? Realmente, Hugh, por vezes, espantas-me.
Ele deixou-a acabar.
Se não foi o vosso irmão, então quem foi? perguntou ele. Que outro inimigo tem ela assim tão perto? Porque isto não foi contra nós, mãe. Isto foi contra Jenny, atingiu-a no coração e na vontade. O preço deste fogo é de três, quatro luas de silêncio. Mais uma estação inteira de espera.
Quando ele disse aquilo, desfiz-me em lágrimas. Lágrimas silenciosas, mas suficientemente grandes para me fazerem sacudir os ombros e porem-me o nariz a fungar. Talvez me tivessem esquecido, ali, onde me acocorara ao pé dos restos carbonizados do meu trabalho. Mas eu não conseguia deixar de lhes ouvir as vozes. Levei as mãos ao rosto.
Devo confessar que sinto alguma simpatia pela rapariga disse Lady Anne, procurando um lenço. Toma, pega lá este disse ela. Red permanecia quieto, observando-me. Põe-te a andar, Hugh disse a mãe dele com firmeza. Não precisas de ficar aqui. Eu trato disto. Mas ele ignorou-a e eu ouvi-o aproximar-se e ajoelhar-se ao pé de mim, no sítio onde eu estava sentada, a chorar.
Amanhã disse ele. Eu não te posso levar, mas o John leva-te até ao local onde esta planta cresce. Podes trazer contigo a quantidade de que precisares. Isto dói, sei muito bem. Mas tu tens sido muito forte e voltares a sê-lo. O que foi queimado pode ser substituído; o que foi destruído pode ser feito de novo. Com o tempo, recuperarás a tua voz. Com o tempo... com o tempo encontrarás de novo o teu caminho para casa.
Não olhei directamente para ele, mas baixei as mãos das faces molhadas e usei os dedos para falar com ele. Os meus pensamentos estavam confusos, devido à angústia, os gestos pouco claros.
Muito. Muito tempo. Eu cansada. Tu também cansado. Estas palavras provocaram uma expressão estranha nele, um retesamento assimétrico da boca.
Eu sou bom a esperar. Ficarias surpreendida quão bom disse ele.
Havia outra coisa que eu tinha de lhe perguntar. Não era fácil fazê-lo por meio de gestos.
Como descobristefiar, tecer voz?
Ele compreendeu perfeitamente. A sombra de um sorriso apareceu-lhe no rosto, desaparecendo logo depois.
Estou a aprender a ouvir disse ele. Lentamente.
Reparei no rosto de Lady Anne, desaprovador, observando-nos. Ora, não queria saber do que ela pensava. Usaria de novo toda a minha força e toda a minha vontade para recomeçar, para fazer de novo o trabalho que fora destruído. Não teria energia para especulações ou preocupações. No dia seguinte sairia e reuniria morugem suficiente para duas camisas. E trabalharia dia e noite, noite e dia, até terminar a tarefa. Nenhum inimigo me impediria. Eu era a filha da floresta e se os meus pés vacilavam de tempos a tempos, continuavam, pelo menos, a direito na direcção do desconhecido. E talvez eu não estivesse só.
Enquanto se dirigiam para o patamar, ela falou para o filho em voz baixa. As suas palavras não eram dirigidas aos meus ouvidos, mas eu ouvi-as, porque no meu estado de angústia não me ocorreu afastar-me polidamente do local em que estava, mesmo à entrada da porta.
Diz-me uma coisa. Só uma. Qual é o lugar desta rapariga nesta casa assim que te casares? Acreditas, por um momento, que a tua mulher tolerará a sua contínua presença? Com o que as pessoas andam a dizer acerca... acerca de ti e dela?
Não vejo nenhum problema disse Red e o tom dele era distante, como se mal estivesse a prestar atenção às palavras dela. Por que haveria de mudar seja o que for?
Lady Anne perdeu o controlo, por momentos.
Francamente, Hugh! Por vezes, exasperas-me. Como é que podes ser tão cego? Gostaria tanto que desses um passo em frente. Olha para ti por um momento. Porque tu falas com ela como não o fazes com outra pessoa qualquer. Falas com ela como se... como se contigo próprio. Já é tempo de acordares desse sonho. Temo pela tua segurança, por todos nós, se isto continua. A rapariga tem de sair daqui.
Vagueei pelo grande salão, desejando que ela se lembrasse que eu estava ali e parasse. Ouvi a voz de Red, muito suave, muito remota.
Quando é que me vistes tomar uma decisão errada, mãe? Quando é que eu demonstrei falta de capacidade?
Ela não replicou por uns instantes e pensei que se tinham ido embora. Mas quando me aventurei para fora, eles ainda lá estavam. LadyAnne olhando para o filho, o amor e a ira misturados no rosto e Red a olhar para cima, uma máscara sem qualquer expressão.
Isto é diferente foi tudo o que Lady Anne disse. E levou-me para o andar de baixo, onde me deu de comer e beber, a gentileza em pessoa, porque sabia quais eram os seus deveres, se bem que os seus olhos dissessem o contrário. Tinha medo, mas, de quê, não sei.
O dia seguinte começou bem. Apesar de a falta de trabalho me pesar muito, estava resolvida a seguir em frente e proibi a mim própria pensar no que poderia ter acontecido. John apareceu muito cedo com o seu grande cavalo cinzento e uma égua mais pequena para eu montar. Havia outros dois homens à espera. Talvez Red tivesse exagerado um pouco quanto à ameaça de perigo. Eu sentia-me feliz ante a perspectiva de montar, em vez de ir à frente ou na garupa, como um saco de grão. A égua era dócil, mas mantinha um bom passo e chegámos ao pequeno ribeiro, com o seu manto de morugem, antes do meio-dia.
Não havia necessidade de dizer as regras a John. Enviou um homem para o alto da colina para vigiar e o outro para baixo, para a orla das árvores. Ele sentou-se nas rochas, perto de mim e deixou-me trabalhar. Margery deve ter-lhe falado no meu trabalho, porque pareceu compreender que devia ser eu própria a dar todos os passos, se bem que lhe pudesse ver a frustração enquanto me observava a cortar e a atar os caules espinhosos. O Sol estava quente e as abelhas eram muitas, assim como as andorinhas e os insectos. Lembro-me perfeitamente do odor desse dia, porque o ar estava cheio da doçura das primeiras flores do espinheiro-alvar e da fragrância entontecedora das rosas selvagens, precocemente floridas. Perto da água, algumas violetas selvagens lutavam para se libertarem da morugem invasora e estendiam as suas minúsculas faces na direcção da luz. Cortei os caules que lhes retardavam o crescimento, de maneira a poderem gozar o sol da estação.
Ao fim de um certo tempo estava cansada e John fez-me parar para beber de um odre que tinha na sela do cavalo e comer um pouco de pão e queijo. Chamou os homens, passou-lhes as rações e mandou-os de novo para os postos de vigia. Nenhum deles tinha nada a relatar. Observou-me a comer a pequena refeição com um sorriso torcido no rosto.
Bem disse ele. Tu cansas-te demais, Jenny; o corpo não pode continuar permanentemente, se não lhe deres descanso. Gostava de te poder ajudar. És uma rapariga muito pequena para tão grande trabalho. Ainda falta muito?
Eu já tinha um molho atado no fundo da ravina. Fiz um gesto com a mão, indicando outro e depois poderíamos ir para casa. John acenou com a cabeça.
Tenta segurar na faca assim disse ele, mostrando-me. Óptimo. Assim, corta melhor e cansas menos as mãos. Meu Deus, quem te encomendou esta tarefa tem muito por que responder.
Foi a declaração mais veemente que o ouvi proferir. O seu rosto agreste, amável, estava enraigado de preocupação. Dei-lhe uma palmada de conforto no braço.
Não faz mal. Eu aguento.
Segurei na faca como ele me mostrou. Ajudou um pouco. Apareceram-me novas bolhas nas mãos, nos sítios de onde já tinham desaparecido. Sentia o suor a escorrer-me pelas costas, entre os seios e pela testa. Mas era fácil pôr a dor de lado. Focar, simplesmente, a mente no objectivo: os meus irmãos, salvos, de volta a este mundo, de novo como homens. A tapeçaria rota remendada, os sete ribeiros correndo juntos, os caminhos convergindo de novo, transformando-se num só. Desloquei-me mais para jusante, procurando solo mais plano, onde a planta podia ser alcançada com mais facilidade.
Senti-o mesmo antes de acontecer, porque houve uma súbita sensação de frio no ar, um instante de maldade, que me fez eriçar os cabelos e sentir um arrepio na espinha. E tão rápido; sem tempo para me mexer, para respirar, para avisar; sem tempo para pensar, sequer, no que ia acontecer. E então o rugido, o som catastrófico de uma grande quantidade de terra e rochas caindo velozmente; algo caindo-me, com força, sobre os pés, fazendo-me cair. Bati com a cabeça e por um momento tudo ficou negro. Então, a percepção do som a desaparecer, tão lentamente como aparecera; o meu coração a bater-me no peito, uma dor aguda na anca esquerda. Abri os olhos, pestanejando e sufocada, porque o meu rosto e corpo estavam cobertos de terra e o ar em volta estava repleto de pequenas partículas douradas, iluminadas pelo sol. Por cima da minha cabeça, as aves continuavam a cantar e pequenas nuvens continuavam a passar no céu azul-brilhante. Em volta, o silêncio era estranho.
Lutei para me pôr de pé, mas algo me segurava o tornozelo contra o chão. Na minha frente podia ver o saco ainda aberto, os caules de morugem alinhados e o brilho da faca onde a tinha deixado. O outro molho, cuidadosamente enrolado, pronto para ser levado. Para lá o leito do regato, os fetos e as pequenas árvores continuavam de pé. Virei-me. Por trás de mim, tudo tinha desaparecido. Tudo. Olhei, não querendo acreditar. No local onde a ravina subia pela encosta da colina, cortada pela corrente franjada de verde do regato, havia agora uma extensão enorme de rochas caídas, terra e raízes nuas. Mais acima, havia um golpe profundo na colina, como se um bocado de rocha viva tivesse sido cortado e atirado de qualquer maneira pela ravina abaixo. Tivesse ela caído um pouco mais à frente e eu teria sido esmagada. Fora tudo tão rápido; tão rápido. Naquele momento, estive mais perto do que nunca de quebrar o meu voto de silêncio. Porque não houve qualquer movimento, qualquer som, com excepção da queda de pequeninas pedras, bocadinhos de terra, à medida que se moviam e assentavam. Mordi o lábio inferior para me impedir de gritar:
John! John! Onde estás? Não sei como, consegui libertar o pé de sob a rocha que o prendia, consciente de que me tinha ferido ainda mais, mas não me importando. Não sei como, consegui trepar pelas rochas tombadas, procurando o local onde ele estivera, afastando a poeira dos olhos, forçando-me a mover-me, apesar das dores. Por trás de mim, finalmente, ouvi sons. O homem colocado para vigiar a linha de árvores vinha a subir pelo monte acima, o rosto branco como a cal. Do outro, que guardava a parte de cima, nem sinal.
Foi uma busca desesperada, sem utensílios, retirando as pedras com as mãos, respirando os dois com dificuldade, não sabendo, sequer, se o local em que estávamos a escavar era o certo. Não havia maneira de mover as rochas maiores, por mais que tentássemos; quando conseguíssemos o que precisávamos, como cordas, cavalos de tiro e oito ou nove homens, já seria tarde.
Finalmente, encontrámos John. Uma mão, um braço. Após muita luta, após um trabalho doloroso, uma abertura até onde ele estava, esmagado por uma enorme pedra, do peito aos pés. Ainda respirava e estava consciente, porque um estreito triângulo, provocado por duas pedras delicadamente equilibradas lhe tinha deixado uma pequenina bolsa de ar. Não podíamos mover mais nada; não o podíamos libertar.
Mandei o homem em busca de ajuda. Não havia sinal do outro, não sabíamos onde ele estava, sob todas aquelas pedras. Os cavalos estavam amarrados mais abaixo, sob as árvores. Não demoraria muito tempo cavalgar até Harrowfield, trazer homens, cordas e roldanas. Não demoraria muito. Mas era demasiado.
Sentei-me muito quieta sobre as pedras, porque o mais ligeiro movimento poderia fazer desmoronar o resto, fazer com que o peso aumentasse sobre o corpo de John. O rosto dele estava cinzento por baixo da camada de terra e um pequeno fio de sangue corria-lhe pela face e fazia poça na rocha, por trás da sua cabeça. Escutei-lhe a respiração e senti o peso das rochas sobre o meu próprio peito. Não chorei, porque aquilo estava para além de quaisquer lágrimas.
Jenny, ele estava a tentar falar. Fiz um gesto, não, não fales. Respira. Respira, apenas,
Não conseguiu ele dizer e os seus olhos já tinham a sombra do adeus. Diz... conta...
Precisava de respirar antes de cada palavra. Cada vez que respirava sentia a agonia daquele peso esmagador, a terra arrancando-lhe, lentamente, a vida.
Red disse ele. Homem certo... escolha certa... certa... tu... diz sim... Por uns momentos fechou os olhos e quando os forçou de novo a abrir, com um arrepio, tentando respirar, vi neles a sombra da morte. Sangrava também do nariz, gotas brilhantes que se transformaram num pequeno regato e depois numa corrente contínua. Tentou aclarar a garganta, mas não conseguiu; em vez disso saiu um som terrível, um som cruel, de cortar o coração. Segurei-lhe na mão, afaguei-lhe a testa, ansiando por qualquer palavra. É terrível ser curandeira e saber que não se pode fazer nada, nada.
Diz... conseguiu ele dizer diz-lhe... e então um espasmo apossou-se dele, depois outro e ele morreu, tossindo sangue sobre as pedras caídas. Sem terminar o que ia a dizer. Mas não havia necessidade. Eu sabia perfeitamente essa parte.
A ajuda não demorou muito tempo a chegar. No entanto, demorou uma eternidade, enquanto eu sentia a mão de John ficar cada vez mais fria na minha, enquanto o sangue dele caía nas pedras e coagulava em pequenas poças. Não havia qualquer som à minha volta, salvo o cantar das aves e o restolhar da brisa da Primavera nos vidoeiros. A minha voz estava silenciosa; mas o meu espírito gritava, esperando que alguém ouvisse.
Porquê? Porquê levá-lo a ele? Ele era bom; as pessoas gostavam dele. Ele estava inocente nisto tudo. Porquê ele?
Estava há tanto tempo sozinha, afastada de qualquer conhecimento do mundo dos espíritos, que não soube dizer se a pequena voz que me respondeu, na cabeça, era a minha ou a de outra pessoa qualquer.
Não é assim que as coisas funcionam, Sorcha. Sabias que seria duro. Agora, descobres quão duro é.
Mas, porquê John? Ele era feliz. Porquê dar-lhe um filho e depois negar a este o pai?
Uma risada. Não uma risada cruel, apenas de descrédito.
Preferias que tivesse sido outro? Talvez a criança, ou aquele com cabelos de fogo e olhos degelo? Gostarias de rescrever a história?
Tapei os ouvidos e fechei os olhos, mas a voz continuava dentro da minha cabeça. A cabeça latejava-me. Doía-me.
Qual é a tua força, Sorcha? Quantas despedidas és capaz de suportar antes de conseguires chorar em voz alta? Em seguida, uma gargalhada. Não sabia se estava a falar com as Criaturas Encantadas, com um louco, ou simplesmente com a voz confusa do meu espírito.
Eu não te quero ouvir. Não vou ouvir isto. Silenciosamente, recitei os nomes dos meus irmãos, vezes sem conta, um sortilégio para afastar os demónios. Liam, Diarmid. Cormack, Conor. Finbar, Padriac. Preciso de vós aqui. Preciso de vós. Hei-de trazer-vos de volta. Hei-de conseguir.
A ajuda chegou. Com os rostos cor de cinza, num silêncio mortal, Red e Ben supervisionaram a desesperada e dolorosa remoção das rochas e da terra e o erguer do corpo esmagado do seu amigo do meio dos escombros. Os cavalos arrastaram os pedregulhos, os homens trabalharam cabisbaixos, com pás, enxadas e com as próprias mãos. Mas não encontraram sinais do corpo do outro homem. Ou estava profundamente enterrado, sob o último grande rochedo impossível de deslocar, ou... mas a alternativa era impensável.
O rosto de Red parecia uma efígie esculpida. Ordenou-me que saísse dali, mas eu não obedeci até o corpo de John ser levado envolto numa capa e colocado em cima do seu cavalo. E assim regressámos a casa, eu à frente de Ben com uma ligadura de emergência em volta do tornozelo, que me ardia como carvões em brasa. A noite caía e os homens que iam à frente e na cauda da pequena procissão transportavam tochas. Ninguém falava. Eu queria que alguém me dissesse, está tudo bem. Queria que alguém me dissesse, a culpa não foi tua. Mas a culpa fora minha. Eu viera para ali, fizera daquelas pessoas minhas amigas e agora um homem inocente morrera porque tinha que me proteger. Num dia de Primavera tão bonito, devia estar a reparar um telhado, ou a pôr o gado a pastar, ou a brincar na relva com o filho. Não a guardar uma rapariga meio louca enquanto cortava molhos de espinhos. Devia estar vivo. E estava morto. E eu via que Lorde Hugh, montando com as costas muito direitas, conduzindo o cavalo que transportava o corpo esmagado do seu dono, levava amarrados à sua sela os dois rolos de morugem que eu tinha cortado, antes de a queda das rochas ter destruído o local onde ela crescia. O preço daquela pequena colheita era a vida do seu amigo. Tal era o fardo que transportava, tal era o peso da ordem das Criaturas Encantadas que, mesmo depois daquilo, continuava obrigado a ajudar-me. Não permitia que o rosto mostrasse a dor que sentia, tendo apagado dele qualquer sinal de sentimento. À luz das tochas, era como uma máscara de cinzas, com buracos no lugar dos olhos. Ben chorava abertamente a dor à frente de todos e muitos dos homens, em cima dos seus cavalos, tinham os olhos vermelhos. Mas não Lorde Hugh. Esse escondia a dor lá dentro, tão fundo como se fosse o buraco escuro e secreto de um poço.
Talvez eu tivesse esquecido que Margery também era uma bretã. Em breve me lembrei, quando chegámos ao pátio e lhe vi o rosto ainda calmo, ainda doce; mas subitamente envelhecido, podendo ver-se as finas linhas em volta dos olhos e da boca que teria quando fosse velha. Os homens levaram o corpo do marido dela para dentro e para cima, para ser lavado e deitado e ela não pronunciou uma única palavra. Ninguém estava a olhar para mim; ou antes, pareciam todos muito preocupados em não olhar para mim. Ben desceu-me do cavalo e eu percebi que não podia andar sobre o tornozelo ferido, que inchara alarmantemente. Assim ele levou-me ao colo para dentro, mas ninguém parecia particularmente interessado em me ajudar, por isso encaminhei-me para o meu quarto, encostando-me com uma mão à parede, ao pé coxinho, enquanto o outro me enviava espasmos pela perna acima e, através das costas, para a minha cabeça prestes a rebentar. Fechei ambas as portas e sentei-me na enxerga, abraçando Alys e olhando para o escuro. Que dor era aquela, comparada com a de Margery?
Acabei por acender uma vela. Olhei para o tornozelo, forcei-me a mexer o pé e enrolei-o num bocado de linho para ter algum alívio. Não estava partido. Fui buscar água, fiz as minhas abluções e sacudi a poeira e a terra do cabelo. À distância, ouvi a casa ainda acordada, tratando de várias coisas. Agora, de certeza, ele mandar-me-ia embora. Como poderia não o fazer?
Após muito, muito tempo, bateram à porta e era LadyAnne.
Margery quer ver-te disse ela concisamente. Segui-a, passando por todos, ou quase todos os membros da casa, sentados ou em pé em pequenos grupos, incapazes de descansar, unidos na dor e no choque. Eu coxeava, mas ninguém me ofereceu ajuda, se bem que LadyAnne tenha esperado por mim nas escadas.
Ele estava estendido no alojamento dele, se bem que em breve fosse transferido para o andar de baixo, onde decorreria a vigília, com velas. Estava tudo calmo; tão calmo. Aquelas pessoas não eram capazes de sentir dor por um homem tão bom? Não sabiam como chorar e gritar de raiva, amaldiçoar os poderes das trevas? Não sabiam como confortarem-se uns aos outros, como secar as lágrimas uns dos outros, contar histórias das coisas que fizera e do homem que fora, para que tivesse uma boa viagem? Onde estavam as grandes fogueiras e os brindes feitos com cerveja forte, o aroma do zimbro queimado?
John usava uma túnica cinzenta-clara e o seu corpo estava limpo, mas não havia maneira de esconder as terríveis feridas, ou os ossos esmagados do peito e da bacia. Lutara tanto, para aguentar tanto.
Jenny disse Margery Não chorara. Parecia distante, uma sombra de si própria. Os seus olhos estavam calmos e vazios. Queria rodeá-la com os braços, abraçá-la e chorar com ela, porque era minha amiga. Mas manteve um certo espaço entre nós, sem dizer uma palavra. Ben estava presente, sentado contra a parede e, pelo menos, tinha uma caneca de cerveja nas mãos. Red estava na sombra, no canto mais longínquo da sala. Supus que estava ali por uma razão qualquer. Supus que estava ali por tê-lo visto morrer e ela queria saber como fora. Sem palavras, seria uma tarefa desencorajadora.
John falar de ti. As minhas mãos tremiam; mal conseguia suportar o olhar dela, branco, sem expressão. Não deu qualquer sinal de ter entendido.
John diz-me tu, bebé.
Qual é o objectivo disto? perguntou rispidamente Lady Anne. Estes sinais não querem dizer nada e são desrespeitosos neste local de luto. Estás a afligir Margery, rapariga. Em que é que estás a pensar?
Olhei por cima do corpo de John para a mulher e pensei ver os olhos dela pestanejarem, por um momento. Tentei alcançá-la. Por favor. Por favor, ouve.
Tenta de novo, Jenny Red estava ao meu lado, olhando-me para as mãos. Talvez eu possa ajudar.
Recomecei tudo de novo e enquanto mexia as mãos ele disse os meus pensamentos em voz alta.
John queria... John deixou uma mensagem para ti. Fechar os olhos, mãos para um lado, descansar a face nas mãos. Ele morreu em paz. Com coragem. Aproximei a mão do homem que jazia ali à minha frente, trouxe-a para o meu peito e depois aproximei-a da mulher, que olhou para mim, impassível.
Ele disse, diz a Margery que a amo disse Red. Diz-lhe que está no meu coração. Era-me muito difícil continuar, mas disse para comigo que, comparado com o que ela está a sentir, isto não é nada. Nada. As minhas mãos continuaram a mover-se, dizendo as coisas que eu sabia que John queria dizer, que teria dito se tivesse tido tempo e a voz calma de Red transformou os meus gestos em palavras.
Ele disse, diz-lhe que eu sei que ela educará o meu filho de maneira a ele ser um bom homem, forte e sábio. Olhei para John uma última vez; o seu rosto, calmo sob as feridas, os pés brancos, limpos, não completamente cobertos pelo traje. Levei as pontas dos dedos à boca e movi a mão, gentilmente, na direcção dela.
Ele disse, diz adeus a todos por mim. E... conta a minha história ao meu filho. A voz de Red estava presa. Não olhei para ele. O rosto de Margery manteve-se calmo por mais um momento, enquanto me fixava.
Obrigada disse ela em voz muito baixa, muito delicada. Sinto-me contente por ter estado alguém com ele quando... e agora, se não se importam, gostava de ficar sozinha.
Achas que é prudente? Era Lady Anne, que mantivera as sobrancelhas franzidas desaprovadoramente durante o tempo todo.
Por favor. A voz de Margery tremia um pouco e quando me virei para sair vi-lhe o rosto contorcer-se e as lágrimas começarem a descer, lentamente, pelas faces.
No patamar, Red viu-me a coxear e pegou-me ao colo sem me dizer nada.
És a pessoa mais teimosa, mais casmurra murmurou ele. Como diabo subiste lá para cima?
Andou disse a mãe dele, um passo atrás e carrancuda. Tal como pode fazer agora, na perfeição.
Red parou a meio das escadas, comigo nos braços. Estávamos à vista de toda a gente, reunida em baixo. Conseguia ver os pensamentos de Lady Anne no rosto dela, tão claros como se tivesse falado em voz alta. Um homem morreu hoje por causa dela. Um dos nossos. Marido de alguém, pai de alguém. Ela matou o nosso amigo. Apesar disso, tu carrega-la como se ela fosse uma flor preciosa, uma princesa demasiado frágil para que os pés dela possam tocar no chão. Que vão pensar de ti? Que estás tu a fazer a esta casa? Red também estava a olhar para ela e quando falou, fê-lo muito suavemente.
Esta rapariga atravessa o inferno todos os dias, anda descalça sobre pedras até os pés lhe sangrarem, põe sempre as suas necessidades em último lugar. Mas, na minha casa, não será a última. Se Jenny não pode falar, então é porque algo está errado, mãe. E eu lidarei com isso como me apetecer. Muito calmo e controlado. Talvez tivesse sido eu a única pessoa a ouvir-lhe uma ligeira hesitação na voz. A mãe dele estava furiosa. Mas as pessoas podiam ver-lhe o rosto e assim seguiu-nos pelas escadas abaixo com muita dignidade e não disse mais nada. Eu preferia ter ido a coxear, sozinha, para o meu quarto. Mas ninguém me perguntou. Não precisava de olhar em volta para saber o que todos estavam a pensar. John está morto. Com ele morre parte de Harrowfield. Que destruirá ela a seguir? No entanto, ele continua a dar-lhe abrigo. Bruxa; assassina. Ainda não era dito em voz alta; não aos ouvidos de sua senhoria. Por enquanto.
No meu quarto depositou-me na cama e voltou atrás para fechar a porta. A que dava para o jardim estava aberta e no último degrau estavam os dois molhos de morugem, juntamente com a minha faca.
O teu tornozelo disse ele está...? Fiz sinal que não. Não é nada.
Não acredito disse Red. E eu ajudava, se pudesse. Mas não posso ficar aqui, há assuntos para tratar, eu...
Dirigiu-se para a porta do jardim, passou por cima dos molhos, desceu os degraus e movia-se como se estivesse escuro, como se estivesse cego. No entanto, havia uma vela acesa. Pensei que já se tinha ido embora e fui fechar a porta. Mas quando me aproximei da entrada, coxeando, ele estava de pé, em silêncio, no primeiro degrau, uma mão na parede, a testa encostada às pedras frias e a outra mão, fechada, pressionada contra a boca com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. Os ombros tremiam.
Nesse momento, creio que me esqueci que tinha medo de tocar em pessoas. Talvez nem tivesse pensado nisso. A minha mão subiu e pousei-a, gentilmente, no pescoço dele, onde a pele aparecia, pálida e vulnerável, entre a túnica e o cabelo cortado curto, onde os ossos se viam, sob a pele. A sua reacção foi instantânea e violenta. O corpo ficou-lhe completamente rígido, como se gelado pelo choque; e então respirou para fora de maneira explosiva e nesse movimento havia palavras ditas num tom que eu nunca ouvira antes, ásperas, incontroláveis.
Eu não preciso da tua piedade.
Retirei a mão rapidamente, como que mordida e voltei a subir os degraus, tão depressa quanto o tornozelo magoado me deixou. Por um momento, antes de desaparecer na escuridão, virou o rosto para mim e eu vi a expressão dele a mudar, desaparecendo aquela máscara de compostura. Angústia, fúria, dor; e uma raiva amarga contra si próprio, a imagem do irmão Simon. E por baixo daquilo tudo, algo mais, algo muito mais fugidio que se escondia no fundo dos olhos, guardado por barreiras a serem abertas apenas pelos mais ousados, ou pelos mais loucos.
Nessa noite não dormi. Sentia o espírito pesado e o coração doente. Enquanto estava deitada, observando as sombras moverem-se à minha volta, escutando o ligeiro ressonar de Alys, pensei que, se ficasse aqui, destruí-lo-ia. Podia destruí-los a todos. E pensei que, se partisse, não completaria a minha tarefa. Porque os poderes do mal estavam a apertar o cerco. Se não ficar aqui, perco os meus irmãos. E tudo terá sido em vão. A minha mente ia de um pensamento para outro, voltava de novo para trás e o coração doía-me, rivalizando com a dor do tornozelo. Ele odeia-me, pensei. Todos eles me odeiam. E com razão, porque nesta casa não passo de uma destruidora. E a vozinha na minha cabeça falou:
O que é isto? Autocomiseração? Não te podes dar a esse luxo, Sorcha E não podes ter as duas coisas. Volta para o teu caminho. Avança E depressa, porque o inimigo está perto. A vozinha não podia ser ignorada. Mas, primeiro, tinha um assunto para tratar.
Assim, antes do amanhecer, levantei-me, saí para o jardim e juntei aquilo de que necessitava. Ben dormia profundamente, deitado no banco, com uma caneca de cerveja vazia por companhia. Desenhei um círculo no chão macio e coloquei-lhe em cima quatro velas. No centro acendi uma pequena fogueira, com paus de espinheiro-alvar e sabugueiro. Alguém tinha de ajudar o espírito de John a libertar-se e a procurar o seu novo caminho. Não podia esperar que aquela gente fizesse as coisas bem, apesar de o amarem. As chamas eram baixas, mas ardiam bem e brilhavam. Fixei a minha mente no rosto de John, curtido, solene, resoluto, em tudo o que fora e atirei para o lume punhados de agulhas de pinheiro e folhas de tomilho e em breve se espalhava pelo jardim um aroma doce e purificador. A minha mente imaginou John como uma grande árvore, abrigando e guardando, no seu interior e sob a grande copa, muita gente. Pensei nas raízes dessa árvore, firmemente agarradas à terra, como fazendo parte do todo vivo que era o vale. Ele era um homem do vale. Fosse para onde fosse, fosse qual fosse o caminho do seu espírito, uma parte dele ficaria sempre ali. À medida que o dia nascia, extingui as velas, apaguei o círculo e cobri com areia as últimas brasas. Nascera um novo dia e havia trabalho à minha espera.
A partir dessa noite, até ao primeiro de Maio, quando tudo mudou de novo, mantive-me à parte da casa, como se numa concha invisível, protectora. Apliquei toda a minha vontade na minha tarefa. Porque sentia o meu inimigo muito perto, aproximando-se, à medida que a Primavera floria e rebentava, as bagas nasciam nos arbustos, as aves jovens testavam as asas e a casa de Harrowfields escondia a sua dor e punha outra cara, aprontando-se para um casamento.
Em vez de sair de manhã cedo, sentava-me no jardim a fiar, porque LadyAnne tinha-me arranjado um fuso e uma roca, conforme prometera. Se me aventurei mais longe, não foi até ao pomar, ou à pequena floresta de jovens carvalhos. De noite, a guarda mantinha-se no lado de fora da porta. Não sabia quem era e a porta mantinha-se fechada. Resolvi trabalhar no meu quarto, mesmo quando as mulheres se reuniam no andar de cima; não queria ouvir as conversas delas, suportar o franzir de sobrancelhas de Lady Anne ou, pior ainda, sentar-me ao lado de Margery enquanto ela trabalhava mecanicamente, de olhar vazio. Não voltou a pedir para me ver e eu não ia para onde não era desejada. Assim, sentava-me sozinha e contava a mim própria histórias e quando me faltava a energia para continuar, repetia os nomes dos meus irmãos vezes sem conta, em silêncio. As minhas mãos pioraram, devido ao longo uso sem qualquer pausa; sem o tratamento diário de Margery, tinham voltado a ficar inflamadas e ásperas. Continuei a trabalhar. A dor não tinha importância.
Não me podia isolar por completo. Lady Anne exigia a minha comparência ao jantar. Eu ia e sentava-me silenciosamente, comendo o que me punham à frente. Já não tinha John para me incitar a comer; se bem que, uma vez ou duas, desse com Ben a colocar-me uma fatia extra de queijo à frente ou um bocado de fruta, comentando como eu estava magra, como dentro em breve desapareceria. Olhava fixamente para ele e ele pestanejava. Talvez nem todos me odiassem. Os sorrisos atrevidos e as anedotas tinham desaparecido desde que perdêramos John, mas Ben era incapaz de qualquer tipo de malícia e eu acreditava que ele ainda sentia uma espécie de responsabilidade para comigo, talvez por ter sido testemunha do meu salvamento pouco digno, por parte de Red, de ter morrido afogada e talvez, também, por ter sido incapaz de evitar que Hugh de Harrowfield tivesse tomado a única decisão errada da sua vida.
Passei uma vez ou duas por Red no átrio, porque não nos podíamos evitar por completo. Baixei os olhos e passei por ele como uma sombra, encostada à parede. Quando precisava de falar comigo, as suas maneiras eram polidas mas distantes; sobre o que se passara entre os dois naquela noite, nem uma palavra foi dita, nem um olhar trocado. Era como se nada se tivesse passado, com excepção do abismo que se abriu entre os dois e que nenhum tentava transpor. Era melhor assim. Eu tinha uma tarefa para completar e não tinha tempo para distracções. Ele tinha a sua casa para pôr em ordem e depressa, porque o primeiro de Maio aproximava-se a passos de gigante.
Soube, por terceiros, das suas investigações à queda das rochas e à morte de John. Que o segundo homem, que estivera a vigiar de cima, estava emprestado, por assim dizer, por Northwoods, tendo acompanhado Elaine na visita desta e permanecido em Harrowfield. Que substituíra outro, naquele dia, sem informar John. Que não havia qualquer sinal dele desde esse dia. O que tornava as coisas delicadas, porque o corpo dele podia estar ainda sob os escombros. Não foram feitas acusações. Mas as coisas mudaram subtilmente. Havia mais homens no local, na sua maioria, armados. Os géneros alimentícios passaram a ser verificados e provados. Red e Ben passaram noites a conversar e começaram a olhar para mapas. Outros homens chegavam de tempos a tempos, alguns deles estranhos, eram interrogados intensamente, era-lhes dada comida e bebida e mandados embora. Tudo aquilo eu observava e não compreendia, mas não perguntava. Fiava, fiava e contava os dias à medida que passavam.
Era a véspera do primeiro de Maio e o tempo estava perfeito. Na herdade, as pessoas estiveram acordadas de noite colhendo flores para as pendurar sobre as portas e as janelas, para honrar os primeiros raios de sol Ofertas de leite foram deixadas nos buracos de certas pedras; fogueiras foram acesas no alto das colinas. Lembrei-me do meu irmão Conor a chegar a casa com uma tocha a arder, que transportara desde os confins da floresta e a acender o nosso fogão de sala. Aqui, as pessoas pareciam ter pouco tempo para tais rituais, talvez não compreendendo a sua importância. No entanto, para minha surpresa, vi fitas presas nos arbustos à beira dos caminhos e ouvi as raparigas, na cozinha, falarem de uma dança em espiral e quais de entre os jovens gostariam de levar para os bosques quando a dança terminasse. Talvez as velhas tradições não tivessem desaparecido de todo por estes lados.
A casa estava cheia de flores e ramos de árvores e as pessoas sorriam, porque um casamento significava renovação, estabilidade e uma nova geração, que aprenderia cuidadosamente a economia das árvores e dos animais e o sustento protector e sábio das boas pessoas do vale. Em Sevenwaters, nunca escolheríamos Beltane para um casamento, se queríamos que ele durasse. Sentei-me a coser no jardim à luz da lanterna e imaginei Red a mostrar ao filho como semear uma bolota; a mostrar à filha pequenina como se tosquiava uma ovelha e como a lã tornava a crescer. Elaine não fazia parte daquela imagem; talvez, pensei eu, sinistramente, mesmo depois do casamento se mantivesse ocupada em favor do pai, que estava sempre muito interessado nos assuntos de Harrowfield.
Tinha chegado nessa manhã, uns dias depois da filha. Pouco o vi, mas ouvi dizer que a expedição não lhe correra de acordo com os planos e ele estava maldisposto O jantar foi uma festa. Toda a família comeu, bebeu, riu e fez as partidas esperadas, mas tudo com bom humor.
Richard sentou-se na sua cadeira e observou-me de soslaio. Red e Elaine mantiveram uma conversa tranquila e exclusiva. Ben parecia invulgAnnente distante. Bebia moderadamente e de sobrancelhas franzidas, com o pensamento longe dali. Margery não desceu.
Lady Anne encheu-nos de orgulho, apresentando prato após prato em escudelas de prata, carnes assadas e peixe fresco, em nenhum dos quais eu toquei; vegetais artisticamente arranjados, sopas, molhos e doces. Eu ansiava pela tranquilidade e privacidade do meu quarto, mas não me atrevia a ofender a família, saindo cedo. E então trouxeram o prato principal, ornamentado e envernizado em tons quentes dourados. Uma grande ave assada, rodeada de cenouras e cebolas, cujo aroma entrava pelas narinas e provocava um estado de espírito de acordo com a festa. Creio que fui lenta a reagir. Por momentos, não pensei. E então percebi o que era, o meu estômago agitou-se, a testa humedeceu-se-me de suor e toda a sala girou e dançou perante os meus olhos. Derrubei a cadeira na pressa de atingir a porta e quase derrubei uma serva que transportava uma molheira. Pelo menos não os envergonhei, vomitando o conteúdo do estômago no soalho do grande salão. Consegui sair a tempo e fiquei no exterior a tremer, num esforço para vomitar, até o meu corpo rejeitar toda a comida que estava lá dentro. A terrível vista continuava perante os meus olhos, o odor horrível ainda nas narinas, agarrando-se-me à roupa e a tudo, ao mesmo tempo que as vozes deles me chegavam, em fragmentos, através da porta aberta.
O que é que se passa com ela?
Alguém deitou alguma coisa esquisita na comida? Muito bem, quem é o culpado?
Até eu já senti a tentação.
Não te safavas. Está tudo vigiado. Dá que pensar.
Eu é que te digo o que penso. As vozes baixaram de tom.
... está grávida... foi o que ouvi dizer... ainda bem para ele... fica livre de sarilhos... casado há tanto tempo...
... não deve ser o primeiro...
Não deve ser dele, se for verdade. É mais provável que seja de um desses homens que aparecem aí e que desaparecem logo a seguir. Quem mais olharia para ela?
Não era a primeira vez que ouvia coisas daquelas. Um cisne assado; dentro do cisne põe-se um peru, dentro do peru uma galinha e assim sucessivamente até à mais pequena das codornizes. Uma obra-prima de culinária. Nunca mais comeria nada vindo daquela cozinha, nunca mais vestiria aquele vestido, nunca mais...
Sentes-te melhor? Era Ben, com um copo de água numa mão e uma toalha limpa na outra. Tens um estômago muito delicado, não tens? Foi mesmo na melhor altura, pensei. As anedotas estavam a ficar cada vez piores. Vá lá, bebe; deve restar alguma coisa lá dentro. Assim está melhor. Bem, não te deve apetecer voltar para a festa. Queres que te acompanhe ao quarto? Talvez devesse dizê-lo de outra maneira. Madame deseja que a acompanhe? Sorri, Jenny. Não é assim tão mau.
Era bom rapaz, bem intencionado. E como poderiam eles saber? Deixei que ele me acompanhasse até ao meu quarto através do jardim e sentámo-nos no banco durante uns momentos, olhando para as estrelas. Perguntei a mim própria porque não voltara ele para a festa. Não que não gostasse da sua companhia. Tudo era melhor a pensar naquele... naquele...
Pediram-me para te transmitir uma mensagem Subitamente, Ben ficou sério. Ele disse... ele disse que esperava que tu fizesses como ele te pediu e que não fizesses muitas perguntas.
O quê? Qual mensagem?
Ele disse para te levantares cedo, amanhã. Muito cedo, antes de amanhecer. Põe uma capa e umas boas botas e está pronta para partires a cavalo. E deixa o cão fechado. Foi o que ele disse.
O quê? Mas, amanhã é..?
Não fiques tão preocupada disse Ben, franzindo as sobrancelhas. Ele disse-me para te dizer que correrá tudo bem. E que podes deixar ficar o teu... o teu trabalho.
Portanto, não me ia mandar para casa. Não me ia mandar embora. Não me mandaria embora no dia do seu casamento, sem as minhas coisas?
Vai correr tudo bem disse Ben, como se estivesse a tentar convencer-se a si próprio. E agora, é melhor eu voltar para lá. Senão, dão pela minha falta. E parece que o nosso amigo de Northwoods tem novidades para nós. O quê, não sei. Mas é melhor eu estar lá quando ele disser o que é. Não fiques preocupada.
Uma das coisas que as pessoas de Harrowfield gostavam e respeitavam em Lorde Hugh era que inspirava confiança. Confiante, estável, previsível. Não havia surpresas com ele. Se dizia que faria alguma coisa, fá-la-ia. Se fazia uma promessa, cumpria-a. Sólido como um carvalho, assim era Lorde Hugh. Não era preciso estar há muito tempo em Harrowfield para ouvir as pessoas dizer isto. Fora por isso que a minha chegada os chocara; porque era uma quebra num longo e inalterável padrão. Bem, uma aberração podia acontecer, diziam. Podiam muito bem tolerar um erro. Uma vez casado, as coisas assentariam. Uma óptima rapariga, Elaine de Northwoods. Mas voltara a acontecer. Era espantoso, considerando a espécie de pessoa que ele era, que agisse daquela maneira. Nem de propósito teria maior impacte, para ofender mais pessoas, para desgostar ainda mais a sua família. No entanto, foi assim que ele o planeou. E ao fim e ao cabo parecia que, até naquilo, tinha as suas razões.
Eu não tinha problemas em acordar cedo, apesar de ter dormido pouco. Alys ficava contente por ter a cama só para ela e não protestou por ter ficado para trás. Não levaria o vestido caseiro, porque imaginava que ainda cheirava à carne assada; portanto, tinha que vestir o azul e as botifarras. Ainda era suficientemente cedo para estar frio, embrulhei-me numa capa e saí com um pressentimento estranho no estômago. Nervos? Mau presságio? Talvez fosse o resultado de ter vomitado com as entranhas vazias. Estava tudo calmo. A casa ainda dormia.
Ao portão estavam três cavalos e dois homens embrulhados em capas, armados. Red levou um dedo aos lábios, em sinal de silêncio; não havia necessidade, no meu caso. Red ajudou-me a montar e partimos, mantendo os cavalos em cima da erva para evitar fazer barulho. Antes de o Sol nascer já tínhamos passado os limites do vale, passando a cavalgar pelo meio de denso matagal, por caminhos apenas visíveis para um homem dos bosques experiente. Harrowfield ficara há muito para trás e o dia estava a nascer. Eu tremia de frustração, ansiosa, com perguntas que não podia fazer. Os homens pararam por instantes para atravessar um pequeno lençol de água. Agarrei a oportunidade.
Onde é que vamos? O que é isto? Hoje tu casamento! Hoje tu casa! Onde?
Houve um esboço de sorriso no rosto de Red, se bem que também ele parecesse não ter dormido.
Tantas perguntas! Está tudo bem, Jenny. Ainda temos muito que cavalgar, pelo menos até ao meio-dia. Quero mostrar-te uma coisa. Levar-te-emos de volta, sã e salva. E... arranjei... maneira de o teu trabalho ficar guardado e seguro. Aquele teu cão feroz também há-de ajudar, não tenho dúvidas. E agora, consegues continuar? Não estás muito cansada? Abanei a cabeça, mas ainda não tinha terminado. Ele ainda não me tinha respondido.
Hoje tu casamento? A. mensagem era suficientemente clara no meu rosto, se os gestos não chegassem. Como é que foste capaz de fazer isto? Como é que foste capaz de lhes fazer isto? Red encolheu os ombros, evitando o meu olhar. Não há razão para preocupações disse ele. Tenho tudo controlado. E foi tudo. Continuámos e eu descobri que, apesar da minha confusão e ansiedade, apesar do meu profundo choque com a sua atitude, estava a apreciar a liberdade daquela cavalgada, o aroma suave dos bosques, o ruído surdo dos cascos sobre o tapete de fetos e musgo, a companhia silenciosa dos dois homens. Era quase como quando fizemos aquela grande viagem, Red e eu, quando descansámos debaixo de uma macieira e partilhámos os seus frutos. Quando nos abrigamos numa caverna e vimos mais do que queríamos. Apesar do medo e da incerteza, houvera uma ligação entre os dois, quando eu mal o conhecia. Red olhou para mim de soslaio, desviou o olhar e eu acreditei que ele partilhava os meus pensamentos.
Quando cheguei, pela primeira vez a Harrowfield, a cavalgada a partir do mar demorara a maior parte do dia. Agora, percebia que a linha da costa devia ser muito recortada, ou que fazia uma grande curva, porque o caminho que tomámos era muito mais curto, se bem que mais difícil para os cavalos. Estes pareciam conhecer o caminho, que era, nitidamente, pouco frequentado. Não demorou muito a emergirmos das árvores para a enorme e brilhante extensão do mar, no plano inferior, para o barulho ensurdecedor das ondas e o grito das gaivotas. Um carreiro ia dar, pelo meio das rochas, até à água. Era demasiado inclinado para ir em cima do cavalo. De ambos os lados, projectavam-se pequenos promontórios arborizados; o local era escondido, quase secreto. Os dois homens desmontaram e após um momento fiz o mesmo, algo desastrada, porque não estava habituada a cavalgar durante tanto tempo. Ninguém falou, mas vi Red tocar no braço de Ben, como que a agradecer-lhe e este acenou com a cabeça, segurando nas rédeas dos três cavalos e levando-os para debaixo das árvores.
Por aqui disse Red, começando a descer o estreito e íngreme carreiro. Não tive outro remédio senão segui-lo. O tornozelo ainda me doía um pouco, mas aguentou-se bem. Havia locais em que o carreiro era íngreme e cheio de pedras soltas e ele precisou de me segurar uma vez ou duas, largando-me logo que possível. Concentrei-me em não escorregar e não olhei em volta. Por fim, fizemos uma pausa numa pequena plataforma rochosa, uns seis ou sete metros acima da praia.
Olha para ali disse Red. O local em que nos encontrávamos estava a meio de uma enseada abrigada, onde a areia era branca e fina e a falésia cheia de plantas baixas. No outro extremo, os altos promontórios bloqueavam o vento e as intempéries, abrigando a baía do resto do mundo. Diante de nós, uma pilha de rochas, trazidas pelas tempestades, dividia a praia em duas. Segui o olhar de Red para a esquerda e a boca ficou-me aberta, de puro espanto e prazer.
Já tinha ouvido falar de tais criaturas, mas apenas em histórias. Aqueciam-se ao sol, enormes, macias, elegantes, tranquilas; fixaram em nós aqueles grandes olhos líquidos como que para nos dizer este local é nosso. O mistério do oceano estava naqueles olhos. Eram, talvez, dez ou
12 e enquanto eu as observava saiu outra da água, subindo o areal com uma graça ponderada. Agitou o pesado corpo, provocando em volta uma deslumbrante nuvem de gotas prateadas. Em seguida, deitou-se, com um suspiro, ao pé das outras. Sentei-me devagarinho nas rochas, mexendo-me com cuidado para não as assustar. Porque aquele era um dos lugares onde a harmonia das coisas naturais permanece intocada; onde os mundos se encontram e falam; onde o homem e a mulher devem pisar com o maior dos cuidados. Uma das criaturas mexeu a cabeça, observando-me; em seguida, deixou-a cair em cima do dorso de outra, fechando os olhos lentamente. Senti um sorriso de puro prazer espalhar-se-me pelo rosto. Fiquei ali sentada, durante muito tempo, observando aquelas criaturas ao sol de Maio, com as gaivotas gritando por cima. Senti a força daquele lugar em meu redor, ensopando-me, acalmando-me o espírito e enchendo-me de alegria. Não era um sentimento facilmente explicável por palavras; era o mesmo sentimento que eu sentia nos mais profundos e secretos lugares da floresta, ou nos telhados de Sevenwaters, conversando com Finbar sem quaisquer palavras. Está tudo bem. E estará. Gira e volta a girar. Aquele era um lugar de cura do espírito.
Após um certo tempo, lembrei-me que não estava só e virei-me para olhar para Red. Ele estava sentado nas rochas por trás de mim e tinha com ele o livro, a pena e o tinteiro, mas não estava a trabalhar. Estava a olhar para mim.
Vamos ficar aqui um bocado disse ele calmamente. Então, abriu o livro e destapou o tinteiro. Ben volta mais tarde; tem coisas a fazer por estes lados. Aqui estás segura. Quando ele disse aquilo, lembrei-me imediatamente das perguntas. Como podia ele estar tão furiosamente calmo? Ia dar-me explicações? Como fazer a pergunta com as mãos?
Por que me trouxeste aqui?
Mais tarde disse ele. Temos o dia todo. Mais tarde falamos e eu digo-te, por agora, és capaz de compreender que eu gostaria de dar descanso a essas mãos, apenas por hoje? Que gostaria de libertar a minha prisioneira por algumas horas? Goza o dia, Jenny. Amanhã, começa tudo de novo.
Porquê neste dia? E Elaine e a tua mãe mas não consegui dizê-lo por meio de gestos. Além disso, ele sabia muito bem o que eu queria perguntar, mas mergulhou a pena no tinteiro, virou as páginas do livro e começou a escrever, ali sentado, com o céu por cima e o mar largo defronte e parecia que apenas tinha olhos para o registo ordenado de como as coisas tinham sido, eram e seriam sempre.
Assim, tirei as botas e desci para o outro lado da praia, que estava praticamente intocada, salvo pelas pequenas pegadas das aves. Ali não havia grandes criaturas marinhas a dormir, mas sim delicadas e intrincadas conchas atiradas pelas marés, fragmentos de madeira descorada e complexos emaranhados de plantas. Sentia a areia suave sob os pés e era tão bom que levantei o vestido e comecei a correr, apesar do tornozelo dorido, com a brisa nos cabelos, até que a fria água do mar me rodeou os pés e o coração, com um arrepio de liberdade. Atravessei as pequenas ondas e a barra do vestido azul ficou molhada e cheia de areia; corri ao longo da praia e as gaivotas seguiram-me lá no alto, gritando umas para as outras. Corri até ficar tonta e sem respiração, até ao extremo da praia, onde o promontório rochoso se elevava da areia branca. Ali, encostei-me às rochas e fiquei a ouvir o meu coração a bater, sorvendo aquele ar selvagem, marinho. Não me tinha apercebido, até então, de como o fardo que me tinham colocado nos ombros era doloroso, tendo sido preciso um dia de liberdade para o reconhecer.
Podia ver Red, uma figura distante, imóvel, sentado nas rochas. O cabelo dele era a única nota vibrante de cor naquela paisagem cinzenta, verde e branca; uma chama sobre a água. Tinha posto o livro de lado e estava sentado, imóvel, de costas direitas, a olhar para mim. Talvez estivesse a pensar que eu tentaria fugir. Mas não; sabia que eu voltaria, porque compreendia, pelo menos, que eu tinha de terminar a minha tarefa, se bem que, se conhecesse as razões de tal tarefa, dificilmente acreditasse nelas. Tais coisas estavam para além da compreensão de um bretão. Vozes na cabeça, sonhos estranhos, isso ele ainda aceitava, com relutância. Mas havia um mundo inteiro para além disso e esse ele não conseguia alcançar.
Regressei lentamente. A meio caminho, o mar descobrira um tesouro de conchas, cada uma mais bela do que a anterior. Sentei-me na areia e peguei numa, depois noutra, maravilhando-me com aquelas minúsculas casas que tinham abrigado, cada uma delas, uma pequena criatura do mar. Porque eu era a filha da floresta e nunca me aventurara, durante todos os anos da minha vida, para lá dos seus braços envolventes, nunca imaginara a maravilha, a estranheza do oceano e a sua vida secreta. A concha na minha mão fora aberta por uma grande tempestade qualquer; lá dentro, um sulco após outro, perfeitamente alinhados, como um manto difuso, cor de pérola, digno de uma rainha. Era verdadeiramente espantoso. Fiquei ali sentada durante muito tempo, olhando e sonhando, os meus pensamentos afastando-se daquele local, virada para dentro de mim mesma. E então e então como poderei descrever aquele momento? Uma voz na minha cabeça, não a que me atormentava, nem a que me falava sem sentido e me acordava; uma voz qhe eu não ouvia há tanto, tanto tempo.
Sorcha. Sorcha, estou aqui. Estou aqui, pequena coruja.
Conor?
Mal me atrevia a pensar no nome dele, mal me atrevia a chamá-lo, com medo que o momento se perdesse. Olhei para o céu, por cima da água. Lá estava uma ave solitária, com as grandes asas abertas, circulando, planando.
Conor? És mesmo tu?
Ouve com cuidado. Só posso falar por uns momentos. Depois, tenho de partir’Os outros onde estão? Por que é que...
Calma, pequena coruja. Ouve.
Afastei todos os pensamentos, esvaziei a mente e abri-a.
Óptimo. Diz-me, poderei encontrar-te aqui, no solstício do Verão?
Não.
Imaginei o vale de Harrowfield o melhor que pude, tentando mostrar-lhe onde era, sobre as colinas, para sudeste. Como poderia um cisne voar até Harrowfield? Um cisne não segue trilhos, pontes, carreiros sob as árvores.
Estou a ver esse lugar. Quem é aquele que te guarda? Por que vieste para aqui, atravessando a água? É muito longe, demasiado longe para nós.
Senti os olhos marejados de lágrimas e a garganta presa. Não lhe respondi.
As camisas estão feitas? Estarão prontas no solstício do Verão?
As lágrimas começaram a escorrer-me pelas faces.
Não. Ainda falta uma e parte de outra.
Não chores, irmãzinha. Estarei lá. No Meán Samhraidh espera por mim. Eu irei lá.
Senti-o afastar os pensamentos dos meus, delicadamente. Nunca fora o mais habilidoso, naquilo. Vi a ave voar em círculo mais uma vez e com um poderoso bater das suas asas brancas dirigir-se para oeste. Fiquei, de novo, sozinha. Mas não só, porque eles estavam vivos. Vê-los-ia de novo em breve, muito em breve, porque já estávamos em Maio. Não me tinha apercebido, até então, de como quase acreditara na inutilidade da tarefa.
Obrigada, disse eu, silenciosamente. Obrigada, oh, obrigada. Mas não sabia para quem estava a falar. Havia uma força tão poderosa à minha volta que quase podia ser tocada, uma força nas ondas, nas rochas e nas estranhas criaturas marinhas, com os seus olhos tão dóceis. Ouvira a voz do meu irmão devido a essa força, devido ao local em que me encontrava. Mas não me esquecera de quem me trouxera.
Mais tarde, quando a maré atingiu o seu ponto mais baixo, desenhei uma sereia na areia molhada, de longos cabelos louros, olhos cinzentos do feitio de conchas e uma graciosa cauda de peixe. Os seus seios eram redondos, a cintura estreita e as mãos pequenas, delicadas. Era como as criaturas de que eu ouvira falar nas velhas histórias, que chamavam os marinheiros com vozes extremamente sedutoras, capazes de enlouquecer um homem. Fiquei toda molhada e enchi-me de areia, tão absorta que não vi o meu companheiro descer até à praia e só me apercebi dele quando a brisa me atirou o cabelo para os olhos e levantei a cabeça para atirar de novo os caracóis para os ombros. Ele estava sentado não muito longe, a observar-me e surpreendi-lhe um sorriso nos lábios, o primeiro verdadeiro sorriso que já lhe vira, um sorriso que lhe encurvava e suavizava a boca estreita e lhe aquecia os olhos frios, como o gelo; um sorriso que trouxe de volta o sangue ao meu rosto e me fez o coração bater mais depressa. Algo dentro de mim, muito lá no fundo, gritou, perigo! Não te podes dar ao luxo de te desviares do teu caminho. Olhei para além dele, porque quando vi a doçura daquele sorriso senti a mão de Simon ferrar-se na minha, aterrorizado, como se fosse um talismã. Quando olhei para os olhos de Red e vi a profunda solidão, ouvi a voz de Simon, como a de uma criança: não me deixes. Aqueles irmãos, sem uma palavra, pediam mais do que eu podia dar. Sentei-me de costas para ele e observei as aves sobre o mar. Gaivotas, gansos, e outras cujos nomes eu não sabia, grandes viajantes, de grandes asas. Não havia cisnes. Mas algures, do outro lado daquela vastidão aquática, eles estavam à espera. Isso é que interessava.
Simon e eu costumávamos vir aqui disse Red por trás de mím. Há muito tempo. Mais ninguém sabia disto. As focas vêm aqui para descansar, mas não por muito tempo, porque vivem a maior parte das suas vidas no mar e só são vistas quando querem. Nunca sabíamos se elas estariam aqui, ou não. Queria mostrar-tas.
Acenei com a cabeça, mas não olhei para ele.
Há uma história antiga acerca deste lugar disse ele. É sobre uma sereia igual à que tu desenhaste. O teu povo é hábil a contar tais histórias. Eu não tenho o dom da palavra. Mas penso que gostarias de ouvir esta.
Senti-me extremamente surpreendida. Virei-me um pouco. Ele estava sentado na areia, de pernas cruzadas, ainda calçado com as suas botas de montar. Pelo menos, deixara a capa nas rochas, juntamente com o livro, o tinteiro e a pena. Franzi as sobrancelhas, mostrei-lhe os meus pés descalços e apontei para os dele. Mergulhei os dedos na areia.
Pelo menos, podes fazer isto.
Ele estreitou os olhos, mas tirou as botas, levantou-se e foi até à beira da água, até ao pé da sereia. Estudou-a com um meio sorriso no rosto, enquanto as pequeninas ondas se lhe enrolavam nos tornozelos.
As pessoas, por estas bandas, vivem da pesca disse ele. Os miúdos aprendem a lançar a rede e a apanhar um bacalhau quase antes de aprenderem a andar. Mas havia um que não queria seguir esse caminho. Tudo o que fazia, dia após dia, era sentar-se nas rochas, nos promontórios, a tocar no seu assobio. Danças, árias, melodias estranhas, da sua imaginação. O pai desesperava com ele. A mãe dizia que ele era a vergonha de todos, que não era capaz de andar um dia decente nos barcos. Mas Toby, porque era esse o nome dele, continuava a olhar para o mar e assobiava as suas melodias e com o tempo as pessoas começaram a ouvi-lo com receio, porque a sua música fazia-se eco das alegrias e desejos dos seus corações.
Estava estupefacta. Nunca me passara pela cabeça que o sério Hugh de Harrowfield pudesse dizer tais palavras.
O rapaz transformou-se num homem. Por vezes, pediam-lhe que tocasse num casamento e ele fazia-o com relutância, saindo assim que podia. E então vinha a parte estranha da história. Estranha, mas verdadeira, dizem, porque um homem, que estava a remendar umas redes. o viu com os próprios olhos. Lá estava Toby, ao anoitecer de um dia de Verão, sozinho nas rochas escuras, com as notas do assobio a pairarem por cima dele. E de súbito, a seu lado, apareceu uma bela jovem, de pele pálida como o luar e longos cabelos escuros emaranhados, que caíam para lhe esconder a nudez; e olhos líquidos, da cor do vasto oceano. Saiu da água e por um momento o homem pensou ter visto o brilho de uma cauda prateada, o brilho difuso de escamas, à luz do Sol poente; mas quando olhou de novo ela estava sentada nas rochas, escutando, enlevada, a música, parecendo uma mulher normal, salvo que mais bela e mais selvagem do que qualquer outra nas redondezas.
Red inclinou-se, com umas algas presas cuidadosamente nas mãos. Colocou-as no pescoço da sereia.
Toby levou-a com ele para casa e a mãe dele, franzindo as sobrancelhas, arranjou um vestido para a tapar e o pai ficou dividido entre a admiração e o receio, quando Toby declarou que iria desposá-la no dia seguinte. Mas a avó disse, não fiques com ela durante muito tempo. É sempre o mesmo com a gente do mar. Pensamos que nos pertencem e um dia ouvem o chamamento das ondas e vão-se.
Os dois mudaram-se para longe do mar, para Elvington, onde Toby tocava em feiras e festas. A sereia manteve-lhe a casa limpa, dormia na cama com ele e com o tempo deu-lhe duas filhas, de frondosos cabelos escuros e olhos afastados. E as pessoas hesitavam em passar pela casa deles ao escurecer, porque por vezes ouviam o som de um assobio, cadenciado, e outras a voz da esposa, entoando um lamento que lhes punha os cabelos em pé, tal era a nostalgia que encerrava.
Passaram-se os anos e as coisas não iam bem entre eles, porque a esposa de Toby emagreceu e empalideceu e o seu cabelo lustroso ficou seco e quebradiço. Já não se ouviam os sons suaves do assobio ecoando no crepúsculo. As pessoas diziam que a esposa estava perto da morte e que o homem já não era o mesmo, porque ela era a mulher da vida dele e não conseguia pensar em separar-se dela.
Então, uma manhã, saíram de Elvington tão silenciosamente como haviam chegado: Toby, a sua pálida mulher enrolada num grande xaile e as duas filhas lado a lado, numa carroça puxada por um burro. Viajaram até à costa e a cada passo que o burro dava na direcção do barulho das ondas e da vastidão do oceano, mais os olhos da esposa brilhavam e mais os de Toby empalideciam e envelheciam. Seguiu-se outro crepúsculo, até que, por fim, chegaram, de novo, as rochas e olharam para ocidente. As pequeninas começaram a brincar nas poças de água, indiferentes ao frio do mar. Ninguém sahe o que Toby disse à esposa, ou ela a ele. Mas dizem que ficaram os dois juntos, mão na mão, até que o último raio prateado de sol desapareceu na água e então Toby tirou o assobio do bolso e começou a tocar um lamento. E quando esse lamento terminou a sereia tinha desaparecido, abraçada pelas ondas. E na água escura moveram-se caudas; e ouviu-se o som de estranhas vozes, cantando uma música de despedida.
Movi as mãos, à espera de mais. Uma história deve ter um fim como deve ser.
Ela era uma criatura das profundezas e para lá devia voltar, ou morreria. Toby compreendeu-o, mas isso não o ajudou. Porque tudo o que lhe restou dela foi a recordação, na qual ele guardou cada momento em que ela lhe pertencera. Foi tudo o que lhe restou, para afastar a solidão. As suas filhas cresceram, casaram-se e os seus descendentes ainda vivem por estas bandas. Mas isso é outra história.
Red sentou-se, de costas para mim, perto, mas não demasiado. Houve um pequeno hiato de silêncio, enquanto a lenda assentava nas nossas mentes. Pensei que Toby encontrara um tesouro, encontrara a mulher dos seus sonhos e a perdera. Tudo o que tu pescaste foi uma rapariga magricela, com uma maldição que prejudica todos aqueles que se aproximam dela. Fizeste um mau negócio, Hugh de Harrowfield. Mais valia cortar as amarras e deixar-me ir. Mas, onde aprendera um bretão uma lenda como aquela? Na verdade, estava a ser um dia muito estranho.
Red trouxera a pequena trouxa com ele, para a areia. Ofereceu-me a garrafa de água, tirou um bocado de pão, que dividiu, e um canto de queijo, que cortou com a sua pequena faca. Descobri que, apesar de tudo, tinha fome. Ele observou-me a comer, mas pouco comeu. O espaço entre os dois estava pesado, cheio de pensamentos calados. Quando terminei, meteu na trouxa a garrafa e o pano, rodeou os joelhos com os braços e pôs-se a olhar para ocidente.
Hoje disse ele acabei a última página do meu diário. É tempo de começar outro. Já muitos foram escritos. Cada carvalho plantado, cada celeiro construído, cada geração de ovelhas e gado. As batalhas travadas; os fogos e as cheias enfrentados. A história do vale. Foi sempre o que quis, continuar o trabalho feito pelos meus antepassados; para que os meus animais prosperem, as minhas colheitas cresçam sadias e o meu povo se sinta seguro e feliz. Foi para isto, creio, que nasci.
Seguiu-se uma pausa Olhei para ele de lado. O seu perfil era muito severo.
Mas? sinalizei eu com as mãos.
Mas... desde que Simon se foi embora, desde... desde que te encontrei e trouxe para Harrowfield, é como se andasse pelo meio das sombras, brincando com fantasmas. Como se tivesse perdido o meu rumo. Ou, ou como se o rumo que eu sempre acreditei ser o meu estivesse a alterar-se sob os meus pés. Antes, sempre me pareceu suficiente, porque a minha vida seguia esse caminho, como o meu pai antes de mim e o pai dele antes dele. Mas eu saí desse caminho e não posso voltar atrás. Não tenho medo, não por mim; mas não me sinto à-vontade, porque o real e o irreal se aproximam cada vez mais, enredando-se um no outro, de maneira que não consigo separá-los. Oiço duas versões da mesma história e não sei qual delas é a verdadeira. Aqui estou eu a contar histórias e quase acreditando nelas. Porque, por vezes, penso que também tu voltarás um dia, ouvirás o chamamento do mar e deslizarás para a água. A sereia de Toby fê-lo. Ou talvez uma noite, quando estiver a olhar pela tua janela, veja uma coruja a levantar voo e desaparecer na floresta; e quando for à tua procura talvez só encontre uma pequena pena na tua almofada.
As minhas mãos estavam incapazes de falar por mim. Desde aquela noite, quando tentara confortá-lo e o enfurecera, que perdera a esperança de algum dia me falar daquela maneira. Acreditara que as janelas se tinham fechado para sempre. Por que escolhera aquele momento para revelar tanto de si próprio? Precisava de palavras. Para lhe dizer que era o feitiço. O encantamento que caiu sobre ti, para me protegeres. Para eu poder completar a tarefa. Agora, a tarefa estava quase terminada, os meus irmãos descobrir-me-iam e então também o teu feitiço será quebrado. Poderás voltar para o teu vale e para o caminho ordenado da tua vida e eu... eu irei para casa.
Não estás a dizer grande coisa disse Red.
Não fiz qualquer esforço para responder. Pensei que fosse o que fosse que tentasse dizer, ou fazer, seria errado e a máscara desceria de novo. Talvez se eu me sentar aqui muito quieta, consiga guardar este momento, com o céu, e o mar, e o calor do dia, com a voz do meu irmão na mente e Red sentado a meu lado, a falar, como se... como se...
Faz as tuas perguntas agora, se quiseres disse ele acanhadamente Devo-te uma explicação. Várias explicações. E tenho algo para te dizer, assim como algo para te pedir. Não há pressa. Temos o dia todo. Aquilo preocupava-me. Assim, a minha primeira pergunta foi: Sol a pôr-se a cavalo para casa? Não te preocupes com isso disse ele, franzindo um pouco as sobrancelhas. Disse que te levaria de volta sã e salva e fá-lo-ei. Pelo menos, nisso podes confiar em nós.
Fiz um gesto de exaspero. Ele era perito em construir respostas que não eram respostas. Mostrei-lhe: Tu casamento hoje?
Por esta hora disse ele, olhando para o Sol, que ia alto. Elaine e o pai dela devem ir a caminho de casa. Não haverá qualquer celebração em Harrowfield.
Fi-lo perceber que achava aquela resposta inadequada.
Não vão perder tempo com perguntas disse ele cuidadosamente. Elaine ficou de dar a notícia a Richard esta manhã, assim como à minha mãe. Não desejará ficar mais tempo do que o necessário. Sim, Jenny, ela já sabia. Não sou tão frio como pensas.
Elaine triste, zangada?
Ele teve um pequeno sorriso lúgubre.
Não. Desapontada e aborrecida, talvez. Mas ela nunca me quis. Passa-lhe depressa. Com o pai dela é que a história é outra.
Continuava a não responder à verdadeira pergunta, a única que importava.
Porquê?
Não havia um gesto definido, mas não era preciso; a pergunta devia estar escrita nos meus olhos.
Eu... eu hei-de explicar-te, um dia. Há razões. É complicado. Eu... Terás que fazer melhor do que isso.
Porquê hoje? Por que não dizer-lhes e acabar com tudo? Acreditas se eu te disser que foi por querer trazer-te aqui, mostrar-te este local, ver-te correr pela areia? Porque só o poderia fazer se mantivesse este dia escondido de todos, salvo daqueles a quem confio a minha própria vida?
Abanei a cabeça.
No entanto, é uma das razões, Jenny. Desde... desde o dia em que John morreu que... não, não tenho palavras que cheguem.
Fiz um gesto:
Leva o tempo que quiseres. Estou a ouvir.
Tens sofrido muito, desde esse dia. Eu não sou cego, eu... tens de compreender que naquele dia, quando aquilo aconteceu, quando lá chegámos, eu pensei... pensei que ambos... e então, descobri que não podia... desculpa, isto é... não tenho palavras, só espero que me consigas compreender. Fui injusto para contigo. Não te protegi como devia. Não tiveste culpa do que aconteceu. Cada um de nós se culpa a si próprio. Se eu tivesse feito isto, ou aquilo... mas a culpa foi apenas daquele que deu a ordem. Foi esperto, não há provas. Mas, agora, penso que armou uma cilada a ele próprio, que pode ser descoberta. Só que... calou-se de novo.
Esperei.
Após um certo tempo disse:
Está a ficar muito quente. Não devias ficar ao sol muito tempo. Segui-o pela praia acima e sentámo-nos de novo à sombra do promontório, onde as sombras começavam a arrastar-se ao longo da areia. À beira-mar a maré, subindo, começava a lamber a cauda da sereia, levando-a de volta para o mar.
Preciso de te fazer uma pergunta disse Red, virando e revirando uma concha na mão. Não precisas de responder, se te for proibido. Mas se puderes, responde.
Acenei com a cabeça. Parecia coisa séria. Mas pensei que num dia como aquele pouco mais me surpreenderia.
Aquela coisa que ele fez para ti, aquele bocado de madeira gravado disse Red e por um momento não percebi o que queria dizer. A gravação com as armas de Harrowfield... preciso de saber, foi o meu irmão que ta deu? Pôs-ta nas mãos, percebeste o que ele queria dizer?
Abanei a cabeça. Não, ele deixou-a para mim, apesar de eu o ter abandonado quando mais precisava de mim e quando peguei nela já ele se tinha ido há muito. Não conseguia contar aquela parte.
Podes dizer-me disse ele e olhou-me fixamente nos olhos se o meu irmão ainda vivia no momento em que te conheci?
A pergunta fora feita cuidadosamente. Abanei a cabeça. Acredito que os seus ossos jazem algures na minha floresta. Mas não os vi. Não lhe contei aquela parte.
Sabes, com alguma certeza, se Simon está morto? Os seus olhos estavam pálidos sob o sol de Verão Pálidos como poças de água às primeiras luzes do dia. Profundos como recordações por dizer.
Abanei de novo a cabeça.
Então, não tens a certeza disse ele, olhando para longe. Talvez estejas a pensar por que te faço esta pergunta neste momento. Devo dizer-te que... que o teu cativeiro pode ter chegado ao fim. Que a resposta que procuro pode estar noutro lado. Reparaste, suponho, no regresso dos meus mensageiros? Porque também eu tenho informadores espalhados por aí, tal como o meu tio; simplesmente, não falo neles.
Por aquela altura já ele captara a minha atenção por completo, se bem que não conseguisse dizer o que se aproximava. Senti que estava mais à-vontade, estabelecendo uma estratégia, um plano; em território mais seguro.
Pensei que todos os vestígios de Simon se tivessem perdido. A pista fria, apagada pelo tempo. O meu tio falou em procurá-lo e eu varri essa ideia por achar as palavras vãs, atiradas ao vento para manter a minha mãe esperançosa. No entanto, mandei os meus mensageiros em busca de notícias dele. E, por fim, chegaram.
Notícias’’’ Que notícias?
Como é que podia haver notícias de Simon, ao fim de tanto tempo?
O meu informador ouviu uma história disse Red acerca de um jovem de cabelos dourados e olhos azuis, muito brilhantes, um homem tão estrangeiro no teu país como nenhum; que vivia numa comunidade de santos irmãos, numa pequena ilha a oeste da costa de Erin. É muito longe daqui. Um jovem que parecia não estar ferido, no seu perfeito juízo. Só que... só que a sua memória parecia ter desaparecido, tendo apenas conhecimento do presente. Inocente como um recém-nascido; e dizem que tinha 18 ou 19 anos.
Fosse quem fosse, não era Simon, disse para mim própria. Não estava ferido? No seu perfeito juízo? Não podia ser o rapaz de quem eu tratara, cujo espírito estava tão ferido como o desventurado corpo. Mas não o podia dizer.
Acredito que deve ser o meu irmão disse Red, olhando para mim. Sendo assim, vou procurá-lo. E depressa, antes de qualquer outro.
Estava a assustar-me. Porquê?
Porque disse ele não foram as únicas notícias qhe recebi. Depois de te teres retirado, ontem à noite, o meu tio reuniu-nos a todos e disse-nos que tinha provas em como Simon fora morto, logo depois de o grupo com quem ia ter, sofrido a emboscada na floresta. Capturado, torturado e morto. O corpo dele enterrado sob as árvores, onde a floresta, sempre a crescer, o cobriu. Foi-lhe contado em primeira mão por quem o testemunhou e mais tarde traiu o seu senhor.
Ambas as histórias eram falsas, pensei. Mas como não podia negar uma, também não podia refutar a outra. Não sem lhe dizer a verdade sobre o que sabia. E não o faria. Não enquanto não tivesse palavras. Mesmo então, seria suficientemente doloroso.
Richard está a mentir disse Red rudemente. Por qualquer razão, não quer que o meu irmão seja encontrado. Por isso, devo ir só e em segredo. Nem mesmo a minha mãe deve saber, porque seria cruel alimentar-lhe esperanças enquanto eu não tiver a certeza. Além disso, continua a ser irmã de Richard. Só falei disto a Ben e agora a ti. Há uma longa vastidão de território hostil a atravessar. Jenny devo dizer-te que parto esta noite. Não vou regressar a Harrowfield. Só quando o encontrar.
Senti-me esmagada, instantaneamente, sob um pânico terrível. Estava tudo errado, não podia ser o irmão dele, alguém lhe estava a montar uma armadilha e... pensei no meu regresso a Harrowfield e como seria sem ele presente. Pensei que até poderia nem regressar. A minha mão fugiu-me, involuntariamente, tocou-lhe numa prega da túnica, sobre o coração e mordi o lábio para segurar as lágrimas. O que se passava comigo? Não era eu a mais forte dos sete, aquela cujos pés mal vacilavam no caminho?
O que me leva disse Red num tom que pouco mais era do que um sussurro à última parte daquilo que quero dizer. Acredita-me, há muito que penso nisto; custou-me muitas noites de sono. Não te deixaria sozinha de livre vontade, porque a ameaça à tua segurança é suficientemente real. Mas se o meu irmão está vivo, preciso de o encontrar. Tenho... tenho-te protegido o melhor que posso. Muitas vezes, não tão bem como desejaria. Gostaria de fazer mais, mas tu nem sempre tens sido uma pessoa fácil. Desta vez, deixo o Ben, contra a sua própria vontade, aliás. Vou só; posso passar sem ser visto, creio, durante a maior parte da viagem. Ben tomará conta de ti e haverá outros que te apoiarão. Pode ser que não seja por muito tempo. Não fiques muito preocupada, Jenny.
Senti uma lágrima na face.
Vai ser por muito tempo.
Senti o peso de um mau presságio no coração, um sentimento profundo de que coisas más estavam para vir. Não vás. Ainda não. Mas não podia dizer-lho.
Uma vez disse-te que havia uma solução para o problema da tua segurança continuou ele de modo muito estranho, como se estivesse a andar sobre vidros partidos. Um passo em falso e o dano estaria feito. Tenho visto muito bem como te tratam, até a minha mãe, como olham para ti e falam nas tuas costas. Como detestam a tua presença no seio da família. Não te aceitam como amiga porque não compreendem... quero dizer, o teu lugar na minha casa permanece pouco claro para eles. O que te deixa vulnerável às pequenas partidas, à falta de delicadeza e aos preconceitos. Mas, como te disse, a solução não será do teu agrado. Qual é? Promete-me disse ele que me ouves. Que me escutas, que não foges ou bloqueias a mente, até teres ouvido tudo o que tenho para dizer.
Olhei para ele. A minha mão desprendeu-se da túnica dele e caiu no meu colo. Acenei com a cabeça.
Como minha convidada disse ele cuidadosamente o teu estatuto está... sujeito aos caprichos de outros; a tua segurança não pode ser garantida se não estou presente para te proteger. Como minha mulher, ficarias salva. O meu coração estremeceu e levantei-me de súbito, o meu vestido enchendo-lhe o rosto de areia. A minha resposta devia ser clara nos meus olhos, à medida que as minhas mãos se mexiam convulsivamente para rejeitar as suas palavras. Não. Tu não podes fazer isso. Não. Prometeste que ouvias disse ele calmamente e eu tinha prometido. Assim, sentei-me de novo com os braços em volta do corpo, como que para me proteger. Subitamente, aquele dia solarengo de Primavera tornou-se frio, o seu brilho desapareceu.
Estás assustada. Não esperava outra coisa. Jenny, eu sei... eu soube que... alguém te magoou, que foi cruel para contigo... sei que ainda te afastas de mim, se bem que espere, apesar de tudo, que sejamos amigos. Este casamento seria... seria apenas no nome, um casamento de conveniência. Ofereço-te a protecção do meu nome, para que possas terminar a tua tarefa em segurança. Nem mais, nem menos.
Não podemos fazer isto. Está errado, tudo errado. Como é que podes pensar oh, palavras, para lhe dizer como deve ser. A história dele era uma confusão, cheia de nós, um caos. Uma coisa era alterar o padrão, outra destrui-lo por completo.
Pelo menos, toma atenção ao seguinte continuou Red, com a voz muito calma, muito suave, como quando tentava controlar-se. Pela minha parte, apetecia-me bater-lhe, esbofeteá-lo, forçá-lo a ver a realidade. Não sabia que aquilo não era a resposta? Não conseguia ver que aquilo era impossível? Imaginava-me a viver em Harrowfield como dona da casa. Até acharia a cena cómica, se não doesse tanto. Pelo menos, pensa um pouco. Ainda temos algum tempo antes do regresso de Ben.
Percebi, com um horror crescente, que ele desejava que aquilo acontecesse imediatamente; aquele era, na verdade, o dia do seu casamento. Porque estava de partida para o outro lado do mar; e não regressaria; e pretendia que eu ficasse tão protegida quanto possível, antes disso. Mas...
Olha para mim, Jenny disse Red e eu olhei. Olhei para o rosto forte, para a palidez da pele, para a cor de fogo do cabelo cortado curto, como o pêlo de uma raposa. Para os profundos e sérios olhos.
Eu nunca tomei uma mulher contra a sua vontade disse ele. Nunca. E não vou começar agora. Especialmente... não terminou aquele pensamento particular. Acreditas em mim?
Acenei com a cabeça.
Não é só isso; se bem que também seja.
Ajudaria se te disser que há outras pessoas a saberem disto, que o teu regresso a Harrowfield foi bem preparado? Não precisarás de dar a novidade à minha mãe. Foi Elaine que a deu, antes de regressar a casa.
Pensava que não ficaria mais chocada; enganei-me. Elaine sabia? Quem mais? Toda a casa sabe, antes sequer de tu me pedires?
Ele teve um pequeno sorriso amargo, que não lhe chegou aos olhos.
Falei apenas com aqueles em quem confio. Com Elaine, sim; ela merecia uma explicação e eu dei-lhe uma. Não é apenas minha prima, Jenny é também uma velha amiga; conheço-a desde criança. Foi ela que carregou o fardo por nós, hoje, ao dizer-lhes; sempre me perguntei como é que aquele meu tio produziu uma filha assim. Ben também sabe; o papel dele nesta história é vital. Será ele que te levará para casa e te prótegerá enquanto eu estiver ausente. E... e tinha falado a John nas minhas intenções, há muito tempo.
Houve um silêncio. Um silêncio pesado. Por fim levantei-me e caminhei de novo até ao mar e a areia continuava a saber-me bem sob os pés e a tarde continuava benigna. Mas tudo o resto tinha mudado. Na ocasião, não tinha percebido as últimas palavras de John, rejeitara-as como a confusão delirante de um homem às portas da morte, sofrendo de intensas dores. Que dissera ele? Red, escolha certa. Diz sim. Algo assim, se juntarmos as palavras todas. E eu acenara-lhe com a cabeça, esperando suavizar-lhe as dores. Tinha concordado. Não se falta a uma promessa a um moribundo. Especialmente quando a sua morte é culpa nossa.
Caminhei de novo ao longo da praia, enquanto as sombras se alongavam e o mar escurecia. À beira da água, a sereia tinha quase desaparecido. Tudo o que restava dela era um pedaço de cabelo emaranhado e uma mão delicada, estendida. Sentei-me e fiquei a ver o oceano levá-la de volta para os seus profundos lugares secretos. Clareei a mente; procurei respostas. Mas desta vez nenhuma voz interior veio em minha ajuda. Havia apenas duros e frios factos. Os meus irmãos estavam de regresso. Havia ainda uma camisa para terminar e outra ainda inacabada. Alguém me queimara o trabalho, alguém me matara o meu amigo. Red ia-se embora. E eu tinha prometido a John. Só havia uma conclusão Tinha de acreditar que Hugh de Harrowfield tinha tomado outra das suas sensatas e calculistas decisões. Que ele era, como toda a gente o descrevia, um homem que não faria, nunca, a escolha errada. Tinha que dizer sim, se bem que o meu coração gelasse só de pensar nisso.
No entanto, enquanto permanecíamos os dois nas rochas, um pouco mais tarde, observando as grandes criaturas marinhas uma última vez, à medida que desciam lentamente pela praia e deslizavam para a água, transformando-se instantaneamente em nadadoras graciosas, mágicas, tinha outra pergunta para fazer. Pergunta essa que ele conhecia muito bem.
Tuprometeste eu, casa? Eu, atravessar a água, casa?
Não faltarei à minha promessa, Jenny disse ele. Quando chegar a ocasião, quando estiveres preparada para ir, levar-te-ei lá, sã e salva Quando chegar a ocasião, pede-me e... não terminou a frase. Mas foi o suficiente.
Estava a fazer-se tarde. A praia estava meia mergulhada em sombra, o céu escurecia cada vez mais. Percebi que não regressaria nessa noite a Harrowfield. Ele não me apressou no sentido de lhe dar uma resposta; limitou-se a ficar ali, observando as focas, esperando. Esperava há muito. O seu diário jazia aberto sobre as rochas, por trás de si e a brisa que se levantava agitava-lhe as folhas, virando-as até mostrar a última, onde escrevera as meticulosas palavras finais dessa manhã, quando estava sentado ao sol; nessa manhã que parecia ter acontecido já há muito. Mas não havia palavras naquela página, apenas imagens, pequenas e delicadas imagens, desenhadas com cuidadosos traços de pena. Já o tinha observado a trabalhar e ficara maravilhada ao ver como preferia escrever, em vez de se extasiar com a beleza que o rodeava. Mas parecia que não precisava de olhar, para lhe apreender a beleza. Porque aquela página mostrava o céu aberto, as suaves e brilhantes faces de pedras molhadas e o suave quebrar das ondas. Mostrava as grandes focas com os seus olhos inteligentes e o voo de uma gaivota contra minúsculas nuvens. No pé da página, muito pequeno, estava o último desenho do livro. Uma jovem a correr, os cabelos esvoaçando como uma nuvem escura, selvagem, o vestido colado ao corpo pela brisa, o rosto iluminado de alegria. Red aproximou-se e fechou o livro com firmeza, metendo-o no pequeno saco. Pensei que, ao fim deste tempo todo, afinal não conheço este homem. De todo. Houve um som vindo de cima, para lá da falésia. O pio de uma ave; um que já ouvira antes. Red levou as mãos à boca e respondeu ao chamamento.
Chegou a altura de nos irmos embora disse ele; mas continuou parado. Respirei fundo. Nunca desejara tanto não precisar de responder. As minhas mãos meteram-se ao trabalho. Indiquei a minha própria pessoa; apontei para a mão esquerda, para o terceiro dedo. Acenei com a cabeça ligeiramente. Não me pude impedir de acrescentar um encolher de ombros e um franzir de sobrancelhas. Assegurei-me de que ele compreendia. Houve um lampejo de reacção, do fundo dos seus olhos pálidos, instantaneamente reprimido. Acenou com a cabeça gravemente, o rosto desprovido de qualquer emoção.
Óptimo. Tinha esperança de que concordasses. Vamos, então. Não me resta muito tempo.
Fora tudo planeado, até ao mais ínfimo pormenor. Partira do princípio, pensei com alguma amargura, que eu diria sim. Sabia que eu não tinha escolha. Ben estava à espera; percorremos uma pequena distância e parámos numa clareira, ao pé de uma construção de pedra, onde estava outro homem à espera. Com uma tonsura na cabeça e um hábito caseiro. Um santo padre; um eremita solitário, como o meu velho amigo, o padre Brien. E tudo terminou rapidamente, tão depressa que não houve tempo para pensar. Ele pronunciou as palavras da cerimónia e nós respondemos como era suposto. Houve um momento estranho e depois tornou-se evidente que eu devia pronunciar o meu voto sem palavras. O padre de olhos perspicazes olhou para Red, olhou para mim e hesitou. Mas perguntou-me, delicadamente, se eu compreendia as palavras; se eu sabia o que estava a fazer. E eu acenei com a cabeça, outra vez e em breve tomava Hugh de Harrowfield como marido através dos laços do santo matrimónio. Ben foi testemunha, disse pouco e manteve a mão no punho da espada. Parecia que apenas naquela enseada encantada estivéramos seguros. E apenas por um dia.
Escurecia cada vez mais. Ben afastou-se alguns passos com o eremita, falando em voz baixa. Que se passa agora, pensei? Vamos ficar aqui nos bosques até ser dia!
Tenho uma coisa para ti disse Red, que se mantinha a meu lado. Estava a tirar algo da algibeira. Quero que uses isto, se não te importas. Uma noiva não deve regressar a casa sem um testemunho do seu casamento, apesar de regressar sem um marido. Toma, leva isto.
Uma coisa pequena, leve, pendurada num fio fino e forte. Era um anel; mas, ao segurá-lo contra a luz cada vez mais fraca, reparei que nunca tinha visto um anel como aquele. Aquele delicado objecto tinha sido esculpido a partir do coração de um grande carvalho. Era fino e delicado, trabalho de um mestre. A face interior era suave como a seda e a exterior tinha um desenho intrincado, fruto de muitos golpes de faca ao longo de muitas e longas noites; um pequeno círculo de folhas de carvalho, com minúsculas bolotas aqui e ali e uma pequena coruja de olhos solenes, empoleirada na folhagem. O anel não fora feito para Elaine. Passei o fio pelo pescoço e meti o testemunho no decote do vestido, sobre o coração, onde ele ficou ao lado de outro velho talismã, pertencente, em tempos, à minha mãe e depois a Finbar. Olhei para Red. O rosto dele não deixava transparecer qualquer emoção. Pensei que aquilo não fazia qualquer sentido. Ele já pensava no casamento antes da morte de John, durante noites a fio, à lareira, no Inverno. O que queria dizer...
O barco está à tua espera. A voz de Ben vinha da escuridão. O barqueiro diz que te consegue desembarcar antes do amanhecer, a tempo de te esgueirares. Estás pronto?
Não disse Red. Mas tenho que ir, de qualquer maneira. Adeus, Jenny Sê prudente e até ao meu regresso.
Eu estava gelada, incapaz de me mexer. Não vás. Ainda não. É muito cedo. Mas as minhas mãos ficaram quietas e a minha língua, como sempre, silenciosa.
Eu trago-te uma maçã disse ele e, virando-se, desapareceu nas sombras. A primeira maçã da estação. E desapareceu. E eu não me tinha despedido.
Uma história pode começar de muitas maneiras. Desse modo, transforma-se em várias histórias. Ao mesmo tempo, cada uma delas não passa de uma maneira de contar a mesma. Era uma vez dois irmãos. Esta é a história do irmão mais velho, um homem que tinha tudo. Era bom, forte, sábio e rico. Era um homem que fazia sempre as escolhas certas. Era um homem satisfeito com o que tinha; mais do que satisfeito, porque era obrigado pelo amor e pelo dever a solidificar a sua herança. Até que um dia descobriu que não era o suficiente. Era uma vez dois irmãos. Esta é a história do irmão mais novo, que era esperto, habilidoso e selvagem, um homem de cabelos encaracolados, da cor do sol do Verão num campo de cevada. Havia pessoas que gostavam dele, mas ele não o sentia. Havia um lugar para ele, mas nunca se sentia bem-vindo. Sentia-se sempre a mais. O seu irmão herdaria a herdade; ele, uma pequena parcela de terra que ninguém queria. O seu irmão casar-se-ia bem, para salvaguardar a herdade e consolidar o seu poder; mas quem quereria o filho mais novo, sem qualquer futuro? O seu irmão fazia sempre as coisas bem-feitas. Ele, por vezes, cometia erros de proporções épicas. Esta é também a história de uma jovem. Quem ela era, ninguém sabe bem, excepto que tinha uns olhos verdes estranhos, um cabelo como a meia-noite e que veio do outro lado do mar. Num momento de loucura incaracterística, o irmão mais velho tomou-a como esposa. Em seguida, desapareceu, tal como o irmão mais novo; e tudo o que ambos deixaram para trás foi a rapariga-bruxa, que passava o tempo a fiar, a tecer e a coser um estranho tecido de espinheiro e da boca dela não saía uma única palavra, um único som. Dizem que ela não falava, nem quando as rochas lhe caíram ao pé e um homem morreu. Dizem que era uma mulher sem sentimentos humanos, uma feiticeira, e que quando arrebatou Lorde Hugh à sua prometida, mesmo debaixo do nariz dela, sem lhe pedir licença, arrancou o coração de todo o vale. É o que dizem.
Foi um regresso a casa difícil. A confidência de Red, de que Elaine prepararia a sua entrada na família, não era de todo verdadeira. Ela fizera o melhor que pudera; todos sabiam que o casamento fora cancelado e que, em vez disso, Hugh fizera o impensável e casara comigo. Elaine fora-se embora, assim como Richard e eu tinha uma grande dívida para com ela por causa disso. O que ela não lhes disse, porque não podia, porque ninguém sabia, salvo Ben e eu, era que o seu amado Hugh não regressaria a casa com a sua noiva. Foi um regresso desconfortável, enquanto Ben explicava o melhor que podia, sem dizer exactamente para onde Red fora e eu fiquei no átrio, cansada, rodeada de rostos chocados e olhares curiosos. Lady Anne era uma mulher corajosa. Foi a primeira a recuperar, aparentemente, pelo menos. Os servos foram despachados, em busca de cerveja e hidromel. As damas foram despedidas e os homens de armas foram enviados para os seus lugares. Para Lady Anne, o dever era soberano. Assim, deu-me um beijo gelado na testa e disse «Bem-vinda, filha», numa voz sufocada pelo constrangimento. Foi só nesse momento que me lembrei que só passara um dia desde que Richard lhe dissera que Simon estava morto. Em seguida, fez-me sentar e meteu-me uma taça de hidromel nas mãos; e passado um bocado chamou Megan para me mostrar os meus novos alojamentos. Eu ainda nem sequer tinha pensado naquilo. Mas tudo estava pronto, numa câmara espaçosa, no andar superior, que eu suspeitava nunca tinha pertencido a Red, porque era demasiado confortável. Havia uma cama larga, com cobertores de boa lã e no fogão coberto de telha ardia um pequeno e acolhedor fogo. Havia tapeçarias nas paredes e velas acesas. Grinaldas de flores decoravam a cama, o fogão e a soleira da porta; não tinham sido ali colocadas para mim, de certeza. Mas a um canto estavam a minha arca de madeira, a minha roca e o meu fuso, o meu cesto e os fardos de morugem. Alys estava junto aos calcanhares de Megan e não demorou muito a instalar-se junto ao calor do fogo.
Nessa noite não dormi muito, nem nas muitas que se seguiram, à medida que o Verão avançava e se aproximava o regresso dos meus irmãos. Sentar-me-ia a trabalhar o dia todo, descendo apenas quando fosse preciso, para tomar o meu lugar na mesa à direita de Lady Anne e comer a minha refeição sob o olhar atento dela. Eu sabia que havia coisas que ela queria dizer, perguntas que ardia de desejo por fazer. Mas não lhe estava na natureza. Além disso, sabia que não obteria respostas da minha parte. Por vezes, punha-me a pensar se ela saberia onde fora o filho, porque as explicações de Ben tinham-me parecido bem fracas. Um velho amigo; uma disputa territorial. Onde, perguntaram? Ben não sabia exactamente onde. Mas não demoraria muito; em breve voltaria. Mas, se era só isso, perguntaram as pessoas (como a estação ia avançada), porque não voltara? E se era assim, porque não contara os seus planos a ninguém? Nem sequer à própria mãe? Os rumores abundavam e eu estava em todos eles. Assim, mantive-me calada e quando saí da mesa fui trabalhar para a minha câmara iluminada por velas, apenas como Alys como companhia. O tempo era cada vez mais escasso.
O sono continuou a fugir-me. Andava de um lado para o outro do quarto, a cabeça cheia de visões de Red, capturado e torturado pelos homens do meu pai. De cisnes voando sobre a água tempestuosa, os movimentos das asas cada vez mais difíceis. De Red sofrendo de um ferimento qualquer, num território hostil, sem qualquer ajuda. Sozinho na floresta. Não haveria uma rapariga habilidosa com a agulha e o fio. Nem sequer tivera tempo de lhe coser uma cruz de sorveira-brava no vestuário, antes de ele me deixar. Imaginei Finbar na última vez que o vi, demasiado fraco para andar. Demasiado fraco para voar. Imaginei o rosto de Red, quando finalmente encontrasse o jovem sem passado. O homem i que ele acreditava ser o seu irmão. Não podia ser Simon. Se lho pudesse ter dito, talvez não tivesse partido, deixando-me só. Então, a minha pequena e sensível voz falou. Despacha-te, Sorcha. Despacha-te. Não há tempo para essas coisas. Fia. Tece. Faz as tuas camisas. Tens menos tempo do que pensas. No entanto, tinha menos controlo sobre os meus pensamentos do que gostaria. O pequeno anel estava pendurado no meu pescoço, por baixo do vestido, onde ninguém o podia ver. Quando estava só, por vezes tirava-o para fora, imaginando como soubera ele o tamanho, sem mais nada senão os meus dedos inchados e nodosos para se orientar. Imaginando se as minhas mãos algum dia voltariam a ser o que eram, pequenas, brancas e finas. Quando isso acontecesse, se acontecesse, há muito que me teria ido embora. E teria deixado para trás marido e anel de noivado. Não importava muito se o tamanho era o certo ou não. No entanto, quando pensava nisso, dava com a minha mão a pegar no anel, como se não quisesse separar-me dele. É meu, dizia algo dentro de mim. Este sentimento perturbava-me muito.
Na ausência do filho, Lady Anne tomou as rédeas da herdade, como obviamente já o fizera antes, com tranquila competência. Mas agora a tarefa já não era tão fácil. Os dias seguiram o seu padrão familiar, mas sem Red não era o mesmo. As disputas demoravam mais tempo a resolver. Um homem queimou o telheiro de outro e um burro foi salvo in extremis. Um estranho, que passava na estrada, parou numa das cabanas e pediu cerveja e abrigo. Na manhã seguinte foi encontrado morto no pátio com um ferimento de punhal entre as costelas. Alguns dos homens queixavam-se de receber ordens de Ben. Quem pensava ele que era, afinal de contas? Lá porque tinha sido protegido do velho, pai de Lorde Hugh, não podia dar-se ares, agora que Hugh se tinha ausentado. O rapazito andava a armar-se. Além disso, se Mister Benedict não estivesse presente no dia em que Lorde Hugh... bem, tu sabes. Lady Anne disse-lhes para voltarem ao trabalho e deixarem de gastar o tempo de Ben e o dela; a herdade não funcionava sozinha. Os homens obedeceram, resmungando. Mas todos o sentíamos. Os bons tempos tinham acabado. À medida que a Primavera avançava para o Verão e um brilhante e fértil calor arranhava a terra, a desconfiança e a suspeição floresciam. As pessoas andavam receosas e irritadas, não apenas para comigo e para os que me protegiam, mas também para com eles próprios.
As coisas atingiram o máximo uns dias antes do solstício de Verão. A mulher de um camponês foi assaltada; um outro camponês foi acusado, mas protestou a sua inocência. Formaram-se facções. Parecia ser apenas uma questão de tempo, antes que um entusiasta qualquer, brandido uma forquilha ou uma gadanha, ferisse alguém seriamente. Lady Anne chamou as partes e tentou arbitrar a questão. Ben, com a ajuda de um punhado de homens leais, conseguiu mantê-los afastados das gargantas uns dos outros. Mas não se chegou a qualquer solução e a disposição geral piorou. Não havia notícias de Red. Assim, Lady Anne mandou chamar o irmão.
Se a atmosfera da casa já estava tensa, assim que Richard fechou a sua mão bem tratada sobre nós, a casa passou a andar no fio da navalha. O seu método de resolver o problema imediato foi muito eficiente. O acusado foi sumariamente levado, para um lugar qualquer, extremamente privado, acompanhado por vários homens grandes, vestidos com as cores castanho-avermelhado e negro de Northwoods. Mais tarde, no mesmo dia, Richard avisou Lady Anne de que o homem tinha confessado. Mais tarde ainda, foi pendurado numa árvore e foi o fim. Dizem que quando o tiraram de lá o corpo tinha ferimentos que não tinham sido feitos por uma corda em volta do pescoço. É o que dizem, o que não é muito difícil de acreditar. Ninguém se atreveu a salvar aquele homem, que podia ser, ou não, culpado. Não havia nenhum Finbar, nem nenhuma Sorcha, para intervirem, nenhuma criança apaixonada, suficientemente corajosa, para tomar a lei nas próprias mãos, como tínhamos feito com Simon. As outras coisas que se diziam é que teriam preocupado Red. Coisas como, pelo menos Lorde Richard sabe como resolver os problemas. Age com rapidez. As pessoas ficam a saber o que podem e não podem fazer. É claro que a outra facção discordou por completo. Murmuravam coisas como, qualquer homem confessava, fosse o que fosse, se lhe fizessem aquilo, e, que tal uma audiência justa e perguntas como deve ser de ambos os lados? Onde estava Lorde Hugh quando precisavam dele? E quem pensava Lorde Richard que era, para tomar assim decisões? Ouviste o que aconteceu aos homens dele, quando os mandou ao outro lado do mar numa missão de loucos?
Eu mantive-me no meu quarto, mal me aventurando a sair, a não ser para fazer as minhas abluções. Penso que Megan me compreendeu e desculpou na refeição da noite uma, duas, três vezes. Estômago delicado. Não conseguia segurar nada. Antes, Lady Anne ter-me-ia mandado chamar. Mas agora eu era nora dela e tinha que mostrar respeito pelos meus desejos. Eu era, pelo menos no nome, a dona da casa. Megan regressou e disse-me que havia rumores acerca da minha súbita doença. Um pouco cedo, talvez, mas era evidente que Lorde Hugh estivera ocupado, diziam; experimentando o artigo antes de o comprar. Senti uma fúria cega quando ouvi aqueles rumores, mas mantive as rédeas curtas. Não tem importância, disse para mim própria. Nada é importante, senão o meu trabalho. Sempre sozinha no meu quarto, terminei a quinta camisa e comecei a última.
Foi só pouca sorte, suponho. Pouca sorte e infelicidade, o meu plano de sair de casa sorrateiramente após o escurecer e ir até ao rio ter ficado completamente arruinado pela decisão de última hora de Lady Anne de levar toda a gente até à margem para um jantar ao ar livre. Um piquenique sob as árvores, à luz das tochas, para comemorar a véspera do solstício de Verão. Porque estava consciente do mal-estar, da suspeição e da desconfiança entre a sua gente. Era uma tentativa para os sacudir, para lhes levantar a moral, para os fazer falar de novo. Era uma boa ideia. Uma grande estratégia. A mim, cheirava-me a desastre. Passei o dia todo numa angústia, pensando se devia ir com eles ou pretender estar mais uma vez doente, tentando esgueirar-me mais tarde, quando não estivesse a ser observada. Não fazia ideia nenhuma do sítio onde os meus irmãos iriam dar, mas Conor, supunha, era capaz de ver as coisas como elas eram e talvez os guiasse até um local relativamente seguro. Se eu conseguisse chegar ao rio antes do anoitecer, se conseguisse afastar-me dos outros sem atrair as atenções, talvez eles pudessem voar até onde eu estaria à espera, sozinha, podendo avisá-los. Talvez. O meu espírito contraía-se ao saber que Richard estaria ali, bem perto. Ben tinha olhado por mim, até ali, como uma mãe ansiosa pelo seu delicado bebé. Até Margery me tinha atirado um sorriso pálido, no outro dia. Mas eu continuava a sentir-me só, tão só; o caminho era muito duro e cheio de perigos.
Se Red estivesse presente, teria levado o tio para um complexo debate qualquer sobre fronteiras, ou fidelidade. Se Red estivesse presente, ter-se-ia assegurado de que eu estaria rodeada daqueles em quem ele confiava, protegida de perguntas indiscretas e olhares sugestivos. Mas Red tinha-se ido embora; e o seu tio arvorou-se em meu companheiro, enquanto toda a casa se encaminhava pela alameda de choupos abaixo até à margem verde do rio, naquela quente tarde de Verão. Tinha pouco tempo até ao crepúsculo. Não muito. Não o suficiente. LadyAnne dera-me roupa condizente com o meu novo estatuto de mulher do seu filho. Escolhera o mais simples e mais modesto dos vestidos, verde-escuro, de decote subido e mangas até aos punhos. Mas ele fez um comentário, com um olhar prolongado e um erguer de sobrancelhas insinuante. A sua barba clara estava bem aparada, como um ramo de alfena após a primeira poda de Outono. A sua túnica preta era imaculada, a gola terminando numa fina linha de fio prateado.
Viva, minha querida. Olhou-me de cima a baixo, demoradamente. Uma verdadeira senhora. Surpreendeste-nos a todos. Hugh surpreendeu-nos. Nunca pensei que ele fosse daqueles homens que pensam primeiro com os rins e só depois com a cabeça. O nosso Hugh, não. Que monumental disparate. Mas, vai ser sol de pouca dura.
Continuei a andar, reprimindo sinistramente a vontade de lhe dar um pontapé. A minha frente e atrás de mim, as pessoas transportavam cobertores e cestos, falavam e riam. Lady Anne tinha bons instintos. Onde estava Ben? Pareceu-me ter visto a cabeça loura dele, algures ali à frente.
Ouvi dizer que te tens sentido um pouco... indisposta, minha querida disse Richard em tom sedoso. Que pena. Gostava tanto que te sentisses bem, para te poderes mostrar. Tens que manter as aparências, sabes, agora que entraste para a família. Pergunto a mim próprio como reagirão os locais a um fedelho mestiço como novo herdeiro de Harrowfield? Não muito bem, creio. Muito mal, aliás. Nem de Bretanha, nem de Erin, antes dos dois ao mesmo tempo. Já pensaste? Diz-me, isto fazia parte do teu plano original? Foi por essa razão que te mandaram para aqui?
Continuou naquele tom por mais algum tempo, enquanto eu tentava não ouvir as suas palavras; em breve estaria escuro e eu temia o que poderia acontecer se não me pudesse escapar do grupo e encontrar um local. O encontro com os meus irmãos teria de ser breve. Vê-los-ia, tocálos-ia e avisá-los-ia do perigo; em seguida eles teriam de permanecer escondidos até ao amanhecer, porque ali não passavam de bárbaros, embrenhados no coração do território inimigo.
O que ainda não compreendi disse Richard é porque tinha ele de casar contigo. Estava assim tão desesperado por ti que tinha de sacrificar o seu futuro só para satisfazer a luxúria? Qualquer outro homem ter-te-ia tomado e continuado com a vida. Não me interpretes mal, minha querida. O teu encanto é óbvio. És capaz de fazer ferver o sangue de qualquer homem. Mas uma aliança de casamento? Isso não era necessário Bastava fazê-los acreditar no que se diz, acerca de feiticeiras, feitiços e poções de amor. Algo fez o rapaz perder a cabeça, o suficiente para ele te pôr um anel no dedo; e aposto o meu melhor garanhão contra um prato de flocos de aveia em como foi o teu jovem e suave corpinho. Oh, desculpa a alusão aos teus dedos. Vejo que não podes usar um anel. Essas mãos não estão aptas para tal. Não são a parte mais atraente da tua anatomia, minha querida, se assim o posso dizer. É outra coisa que me intriga...
Chegámos à margem do rio. Era quase noite; as pessoas estenderam os cobertores na relva e Lady Anne ordenou que um casco de cerveja fosse aberto. Alguém tirou da algibeira um assobio e começou a tocar música de dança. Vi Ben a vigiar as vizinhanças, como se estivesse à procura de sinais de agitação. Cinco ou seis dos seus homens estavam colocados estrategicamente à nossa volta. Fazia o seu trabalho e fazia-o bem. Mas naquela noite eu dispensava bem tal protecção.
Não tinha escolha, senão sentar-me ao lado de Richard e da irmã. Agora, eu era da família, pensassem o que pensassem de mim. Comeram e beberam; sentei-me no chão, de costas direitas, agradecendo secretamente a Lady Anne por entreter o seu irmão numa conversa sobre a venda do excedente de gado. À nossa volta, toda a gente estava descontraída, gozando aquele fim de tarde balsâmico, o sentido de bem-estar aumentado pelo fluxo da boa cerveja. Vi Margery com o bebé. Ele já se sentava sozinho e o seu cabelo castanho crescera o suficiente para mostrar o primeiro caracol. Margery continuava pálida, mas trocava palavras com este e com aquele. Ben não estava descontraído. Ele e os seus homens patrulhavam as vizinhanças, de armas prontas.
O Sol desapareceu por trás das copas altas das árvores e o céu ficou cor de alfazema, violeta e cinzento-escuro. Por cima de nós, os salgueiros suspiravam e permaneciam imóveis. Emoldurada pelos seus ramos lacrimosos, a água do rio escureceu lentamente. Foram acesas tochas e colocadas em estacas em volta do espaço relvado onde estávamos sentados. Ao assobio juntou-se um tambor e um violino e alguns dos jovens levantaram-se para dançar. No rio, não havia qualquer sinal de cisnes.
Diz-me, minha querida Richard virou a sua atenção para mim sem qualquer aviso. Sabes, por acaso, onde foi o teu marido assim tão de repente? Achei a explicação oficial difícil de acreditar. Um pouco exagerada, pensei. O jovem Ben esconde alguma coisa. E tu? Hugh deu a entender onde ia, por que te abandonou tão depressa? Segredos de travesseiro, essa coisa toda? Tu deves gostar disso, fazê-lo vir comer à tua mão, segundo ouvi dizer. O que é que ele te disse?
Richard disse Lady Anne, desaprovando as maneiras do irmão. A sua lealdade estava nitidamente dividida.
Eu, se fosse a ti, não me preocupava, irmã. Richard olhou para ela de maneira cómica. Esqueces-te que uma mulher de Erin não pensa e sente como tu. À superfície pode parecer igual, mas se arranharesessa superfície, descobres um inimigo lá dentro. Um espião. Uma feiticeira, até. Apostava. Não se pode confiar neles.
Jenny é mulher do meu filho disse Lady Anne firmemente.
Hum disse Richard. É verdade, é verdade. Mas diz-me, minha querida sobrinha, porque a minha irmã quer que eu te chame assim, se bem que me fique atravessado na garganta, onde é que foi o Hugh? Em que missão foi ele? Que coisa urgente foi essa, para abandonar a noiva no dia do casamento? Que coisa tão secreta foi essa, que nem sequer a sua mãe foi informada?
Sorcha. Sorcha, onde estás?
O que é, Jenny? O que é que se passa? Estás doente? Lady Anne viu o meu rosto mudar, quando a minha mente captou o chamamento silencioso do meu irmão.
Espera. Espera. Estou a chegar. Não te mexas,
Levantei-me, tentando manter o rosto sem expressão. Acenei com a cabeça e fiz uns gestos:
Por favor, perdoai-me. O meu estômago...
Leva Megan contigo, minha querida disse Lady Anne nas minhas costas, enquanto eu caminhava, tão calmamente quanto possível, na direcção do rio, na direcção do abrigo dos salgueiros. Com o pretexto de precisar de privacidade para aliviar o estômago, talvez eu pudesse... talvez pudesse...
Onde é que vais? Ben surgiu de repente à minha frente, o rosto ansioso à luz das tochas. Por Deus, mulher, tu tens o estômago mais fraco da história. Deixa-me ajudar-te. Não podes afastar-te sozinha, é contra as regras, lembras-te?
Mas eu gesticulei e voltei a gesticular.
Por favor. É só um minuto. Não vou para longe. Por favor.
Ele olhou para mim, franzindo as sobrancelhas. Era verdade, havia certas funções corporais que requeriam a devida privacidade. Mas ele tinha de respeitar as ordens.
Por favor. Não há perigo.
Está bem disse ele mas não vás para longe. Ele matava-me, se soubesse que eu te perdia de vista. Tem cuidado. Se te demorares, vou à tua procura.
Em seguida, um passeio tranquilo ao longo da relva até ficar fora de vista Os pés movendo-se cautelosamente, a mente procurando freneticamente
Onde estás? A que distância da pequena ponte? Depressa, não tenho muito tempo.
Aponte não fica longe, para sul. Num local onde um grande salgueiro caiu. Vou lá ter contigo.
Não! É perigoso! Espera aí; eu estou a chegar.
Por fim, uma curva e Ben desapareceu. Corri. Apanhei o vestido e corri pelo meio dos salgueiros até ao local onde me lembrava de ver um salgueiro caído, as raízes à mostra, abandonado pelo espírito guardião, em busca de uma nova casa. Não consegui vê-los.
Onde estás?
Estou aqui, Sorcha. O meu irmão Conor saiu de trás do emaranhado de raízes, uma delgada e frágil figura à fraca luz do luar. Reparei na extrema palidez do rosto dele, nos longos e emaranhados cabelos, nos farrapos de roupa que lhe restavam. Parecia tão irreal como um espectro.
Não fales alto. Há pessoas perto. Oh, Conor!
Senti os braços dele em volta de mim. Parecia um homem a morrer de disenteria e o corpo tremia-lhe violentamente. Mas era bom, tão bom, abraçá-lo.
Os outros. Onde estão os outros?
Desta vez, não puderam vir.
Mas... mas...
Um desapontamento amargo apossou-se de mim.
É preciso uma grande força, uma grande determinação, para os obrigar, para os forçar a continuar, quando o instinto lhes grita que não. Só os conseguirei trazer uma vez. Quando estiveres pronta, chama-me e nós viremos. Não chores, pequena coruja. O que fazes por nós é muito corajoso.
No Meán Geimhridh não vieste. Procurei-te, mas tu não vieste.
Fora uma noite terrível. Terrível, mas de algum modo maravilhosa, porque não esquecera o nascimento do filho de John.
Fomos à caverna, mas tinhas desaparecido. Não te conseguimos encontrar.
Uma imagem dos meus irmãos à minha procura, desesperados; descobrindo os meus pertences espalhados pela caverna, a pequena lanterna, a capa quentinha e as botas; a lareira coberta de neve. Diarmid praguejando. Finbar sozinho, na margem do lago, silencioso.
Os outros... Conor, eles estão bem? E Finbar?
Ainda estão vivos. Mas tens que te despachar, se puderes. Assim que estiveres pronta, tens de me chamar. Só podemos vir uma vez.
Ele estava a esconder qualquer coisa; especialista nas artes da mente, fraco como estava, o meu irmão estava a velar a verdade total, de maneira a proteger-me.
O que é? Conor, o que é que não me estás a dizer?
Silêncio, Sorcha. Quando me chamares, viremos. Prometo-te.
Chorei, a cabeça contra o peito dele, os braços em volta da cintura, os dele em volta dos meus ombros. Ele era meu irmão. Tinha de acreditar nele.
Como resultado da minha angústia e da fraqueza dele, nenhum de nós sentiu a aproximação dos homens, até que foi demasiado tarde. Um pau estalou, muito perto, sob o tacão de uma bota e ouvi a voz de Ben.
Jenny? Está tudo bem?
A minha cabeça levantou-se com um sacão. Ali estava ele, de espada na mão, o rosto quase cómico devido ao choque, a boca aberta e os olhos espantados, vendo-me nos braços do meu irmão. Abri a boca e fechei-a de novo.
Agarrai aquele homem! Agora já havia luzes e o som de armas a serem desembainhadas e por trás de Ben estava Lorde Richard de Northwoods, no rosto uma mistura espantosa de excitação maldosa e justificada afronta. Levai também a rapariga. Estais a ver como ela paga a confiança de Lorde Hugh!
Fiquei ali parada, estupidamente, de boca aberta, paralisada pelo choque. Mas Conor possuía uma destreza com que aquela gente nunca sonhara e antes de os homens de Lorde Richard avançarem, já ele se tinha apartado dos meus braços, como uma sombra, e desaparecera sob os salgueiros, em total silêncio. Era como se nunca ali tivesse estado.
Atrás dele! silvou Richard. Não o deixeis escapar! Três homens saltaram para o mato, ansiosos pela caça. Richard ficou para trás e eu senti a mão dele em volta do meu braço, como uma grilheta de ferro.
Foi extremamente estúpido da tua parte, minha querida. Ias estragando o piquenique da família. Oh, mas que diria o nosso Hugh? O que eu não daria para lhe ver a cara quando ele souber. Casada há menos de duas luas e já vai para os bosques como uma cadela com cio, enrolada com outro homem. E não apenas com outro homem; um da laia dela, um que está ávido de informações que ela lhe pode dar e... bem, vamos embora, rapaz, Dá-me aqui uma ajuda. Vamos levar a prostitutazinha à minha irmã, para vermos o que ela pensa da mulher do filho.
E a coisa mais cruel, enquanto Richard me arrastava atrás dele, foi olhar para o rosto de Ben e ver a expressão de confiança ferida e chocada incompreensão. Que podia ele fazer senão acreditar na evidência dos seus próprios olhos? Ele viera atrás de mim, preocupado apenas com a minha segurança. Encontrara-me na escuridão, nos braços de um jovem do meu próprio povo. Não queria acreditar, mas a minha culpa era clara. Eu não podia dar qualquer explicação. Voltei para a margem do lago com ele a um dos lados, a angústia escrita em cada traço do seu rosto, e Richard no outro, apertando-me viciosamente o braço, como que dizendo-me, pensavas que podias iludir Richard de Northwoods? Cometeste um grande erro, pequena bruxa.
Richard acreditava na justiça rápida. Dessa maneira, mostrava-se ao povo quem mandava. Portanto, o culpado foi identificado. Se não há provas concludentes, arranja-se uma confissão. Prontamente conseguida. Em seguida, cumpre-se o castigo apropriado. Por adultério, pode ser umas chicotadas, ou outra forma qualquer de humilhação pública. Por protecção a fora-da-lei, a morte. Era quase supérfluo acrescentar feitiçaria à lista. Quanto à punição, havia vários métodos. Ele próprio gostaria de seleccionar a mais apropriada. No entanto, no meu caso as coisas não eram assim tão simples. Parecia que certos membros da casa eram casmurros, exigindo que os procedimentos fossem feitos de acordo com a lei, como certamente desejaria Lorde Hugh. O caso poderia ser ouvido na próxima reunião, dentro de duas luas. Perante essa assembleia de todos os rendeiros de Harrowfield, o senhor da herdade poderia Ouvir os pontos de vista de todas as partes, de acordo com a lei do Rei. Porque havia aqui e agora apenas um Rei, já que Wessex tinha estendido a mão até ao norte. Mas este caso era delicado, envolvendo um membro chegado do proprietário e combinando três acusações. Talvez a audiência devesse esperar por uma reunião do condado, conduzida pelo próprio magistrado do Rei Ethelwulf. E a próxima reunião do condado não teria lugar, provavelmente, antes do regresso de Lorde Hugh. Era melhor esperar até lá. diziam alguns.
Mas Richard não via a necessidade de esperar tanto. O povo andava irrequieto, incapaz de se dedicar como devia ser ao trabalho e as coisas deviam ser postas nos eixos antes do regresso de Lorde Hugh, não depois. Além disso, Richard era proprietário da herdade vizinha. Por casamento, era também senhor de Harrowfield na ausência de Hugh. Pertencia-lhe a ele tomar a decisão. Parecia que, a cada dia que passava, tomava em mãos o controlo dos chocados e divididos membros da casa. Fechada num minúsculo quarto no andar superior, sabia disto aos bocados, quando um homem abria a porta para me trazer pão e água, ou para levar o balde da cela, juntamente com um monte de palha e um cobertor muito leve. O quarto tinha apenas uma pequena abertura, no alto da parede. Através dela, eu conseguia vislumbrar uma fita de céu azul durante o dia; à noite, conseguia ver uma estrela a brilhar no escuro. Se eu possuísse o poder da transformação, talvez a pequena coruja pudesse passar através daquela pequena fenda entre pedras. Para as trevas, sobre a água, de volta para os braços envolventes da floresta. O meu coração ansiava pelos meus irmãos. Mas eu ordenara à minha voz interior que se mantivesse silenciosa. Só poderia haver um chamamento; uma convocação, quando o meu trabalho estivesse terminado, e eles ficariam livres.
Ao princípio fiquei desesperada, porque me atiraram para aquela minúscula prisão com mais nada senão o vestido que trazia; até as botas me tinham sido tiradas. Imaginei os homens de Richard a revistarem-me o quarto. Atirando a roca e o fuso para o lado e o que estava dentro da arca, juntamente com o cesto, para o fogo. Naquela primeira noite encostei-me a um canto com os braços em volta da cabeça e os joelhos contra o peito e deixei cair as lágrimas pelas faces abaixo. Temia que Conor fosse capturado. Temia que nunca mais pudesse salvar os meus irmãos; no entanto, enquanto vivesse, havia uma hipótese e assim não poderia gritar a minha inocência; vira o que os do meu povo tinham feito a Simon e sabia que não suportaria o que ele suportou. Como qualquer rapariga tola, cuja cabeça está cheia de fantasias, que sonha com um herói num cavalo branco, ansiava pelo regresso de Red, para me salvar. Porém, receava o seu regresso, porque não acreditaria ele, assim como Ben acreditava, que eu os traíra a todos? Não queria ver aquele olhar de dor e choque. Seria melhor que ele não regressasse, até... De madrugada, cessei de oscilar e chorar e sentei-me como uma concha vazia, a mente vazia. Um pássaro entrou pela janela, chamando a companheira. Uma voz dentro de mim falou, finalmente. Um pé à frente do outro. Sempre em frente. É esse o caminho. Sempre em frente, Sorcha. Sabias que seria duro. Ainda será mais duro. Um pé, depois outro. E outra vez. Na direcção das trevas.
Quando os homens voltaram, trazendo água e um bocado de pão seco, ouvi a conversa deles e soube que Conor os tinha iludido. Porque vasculharam a margem do rio durante toda a noite à luz de tochas, mas não viram sinal do estrangeiro selvagem. Tinha-se desvanecido no ar. Como um fantasma. Não acreditariam que ele tinha estado ali, se não o tivessem visto com os próprios olhos. Era um grande matulão; um daqueles guerreiros irlandeses de que tinham ouvido falar, capazes de torcer um pescoço com um simples torção, se tivessem oportunidade. Em privado, a maioria dos homens estava contente por não o ter encontrado, na escuridão da noite. Mas Lorde Richard não estava contente. Nada contente.
Durante muito tempo, ninguém me veio ver. A porta era aberta e o balde vazio era atirado para o interior, ou levado quando estava cheio. Uma magra refeição era deixada. Mas isso não era problema. Estava habituada a passar fome. O pior era a falta de luz, as paredes de pedra vazias, sólidas, com excepção da pequena fenda no alto. Pior ainda era a agonia das mãos ociosas. Porque estivera perto, tão perto, de terminar a minha tarefa. Cinco camisas terminadas e apenas uma por fazer. Não as ter ao pé de mim, estar fechada sem os meios de poder completar o meu trabalho, era uma grande crueldade. Próxima do desespero, recorri às lendas, um velho meio muito utilizado para ocupar a mente e manter afastado o que não se queria. A demanda de Cullan por LadyEdan. As quatro crianças duendes de Lir. A taça de Isha. Essa história tinha um herói que era extremamente bom a esperar. Medb, a rainha guerreira com uma tendência para jovens heróis robustos. Simon rira-se dessa. E a lenda de Toby e da sereia. De todas as lendas que eu já contara e de todas as que já ouvira, essa era a de que eu mais gostava. Quem diria que Red conhecia uma lenda assim?
Já tinha perdido a conta aos dias, mas muitos se passaram e não via ninguém senão os meus guardas. Então, uma manhã, a porta abriu-se e lá estava Lady Anne com duas mulheres atrás, transportando o meu fuso e a minha roca, o cesto de morugem, as agulhas e o fio. No topo do cesto alguém colocara as cinco camisas. Coibi-me de pegar naqueles objectos preciosos e de os apertar contra o peito. Mantive o rosto calmo. Lady Anne olhou em volta da cela e franziu ligeiramente a testa. As mulheres olharam para mim furtivamente. Devia ser uma linda vista, suja, o cabelo emaranhado, os olhos a piscar à súbita luz vinda do exterior. Lady Anne despediu as mulheres e fechou a porta.
Apercebes-te disse ela calmamente que isto lhe vai despedaçar o coração.
Foi como se me tivesse esbofeteado. Fiquei a olhar enquanto ela dava um passo em frente, franzindo o nariz. Suponho que não cheirava como uma dama devia cheirar.
O meu filho amava-te continuou ela, espantando-me ainda mais. Amava-te como nenhum outro ser vivo; mais do que ao próprio vale. Pensei que era uma coisa passageira, uma paixão da juventude, uma urgência do corpo, mais do que qualquer sentimento. Provou que estava errada ao dar-te o seu nome, se bem que tenha sido contra tudo aquilo em que ele acredita. Como pudeste fazer-lhe isto? Como nos pudeste fazer isto? Demos-te abrigo, fomos bons para ti, considerando o que és. O ódio em ti pelo nosso povo é tão grande que tens de destruir quem tanto amamos? Foi para isto que vieste para cá?
Abanei a cabeça lentamente. Eu não vos odeio. Nunca odiei. Procuro apenas completar a minha tarefa. E estás errada acerca do teu filho, muito errada, ele... Sem palavras não lhe podia explicar nada.
O teu povo matou-me Simon disse Lady Anne, cansada. Tu destruíste-me Hugh. Que mais queres?
Como podes dizer isso, quando me tens aqui prisioneira? Foi o teu filho que me trouxe para aqui. Mas, por ele, eu nunca teria vindo para Harrowfield. A escolha não foi minha. Permaneci muda. Ela deixou sair um suspiro.
Apesar de tudo, sinto-me obrigada a agir segundo os desejos do meu filho. A despeito de tudo. Ele tem uma grande fé nessa tua tarefa estranha, obrigou-nos a todos a guardar bem o teu trabalho e tu com ele. Na verdade, lançaste-lhe uma rede, da qual não pode escapar sem se magoar e a todos os que o amam. Trouxe-te as tuas coisas. Fiz o que devia. Trabalha, se tens cabeça para isso.
Forcei um sorriso e acenei com a cabeça.
Obrigada.
Ela não se apercebia do muito que fizera por mim. Fez menção de sair. Toquei-lhe na manga, porque precisava de fazer uma pergunta. Ela afastou-se, como se o meu toque a pudesse envenenar.
Euporta, fora o quê, quando?
O teu futuro não está nas minhas mãos, Jenny disse ela. Nem sequer teria dado este passo, trazer-te aqui o teu trabalho, se Hugh não me tivesse feito prometer que te permitiria continuar com ele, acontecesse o que acontecesse. Estou muito próxima disto tudo, muito angustiada, para poder julgar-te com alguma imparcialidade. O meu irmão é que te vai ouvir e decidir o teu destino. Na ausência de Hugh, ele é o chefe desta família e deve julgar como achar justo. Mas também ele deseja evitar qualquer sugestão de que os procedimentos possam ser tudo menos equitativos. Assim, tenciona esperar pelo padre Stephen de Ravenglass, que deve cá vir depois de Lammas. Em questões de feitiçaria, é prudente consultar um homem de religião. Olhou de novo em volta da cela. Magoaria muito o meu filho ver-te aqui encerrada. Mas não tanto como a verdade o vai magoar.
Qual verdade? Pensei amargamente enquanto a porta se fechava por trás dela e ouvia o ferrolho a correr. Não dissera Red uma vez que há tantas verdades como estrelas no céu e todas elas diferentes? Talvez essa fosse a única verdade.
Os ratos eram a minha única companhia. Saíam à noite e mordiam a palha da enxerga. Foi a única vez na minha vida que me senti grata pelos espinhos da morugem, porque os ratos não lhe tocavam. Sem mais nada em que me ocupar, sem mais nada em meu redor senão as quatro paredes de pedra, trabalhava enquanto havia luz e tentava dormir quando estava escuro. Passaram-se muitos dias, o último igual ao anterior. Descobri que se tentasse esquecer as dores nas mãos, se forçasse os dedos a continuarem, fazia progressos razoáveis. Parava por isso à noite, porque as mãos doíam-me terrivelmente, negando-me o sono. Lentamente, a sexta camisa tomou forma. Não estava tão bem-feita como as outras, porque a luz era pobre e a visão, por vezes, enevoava-se-me, mas serviria, Tinha que servir. Pela mudança de luz que entrava pela pequena janela, calculei que se estaria por alturas de Lugnasad, perto do fim do Verão, quando comecei a receber visitas de Lorde Richard. Tinha levado o seu tempo até vir devorar-me com os olhos, mas assim que começou tornou-se uma ocorrência regular, que comecei a temer. Talvez levianamente, tinha permitido a mim própria sentir alguma esperança, quando Lady Anne me devolveu o meu trabalho. A tarefa estava ao meu alcance e não dissera ela que estavam à espera do padre Stephen, para que eu pudesse ter um julgamento justo? Então, apareceu Richard e eu vi que a verdade era bem diferente.
Viva, minha querida. Mais parecia que estava a saudar-me do outro lado de uma mesa, com uma taça de hidromel na mão. O seu tom era afável. O seu olhar percorreu o minúsculo quarto e depois fixou-se em mim. O teu reinado como Senhora de Harrowfield foi realmente curto. Julgava-te mais astuta; parece que me enganei. Um erro muito estúpido, minha querida, mesmo muito estúpido. Caíste nas minhas mãos. Fungou delicadamente. Que cheiro esquisito que está aqui. Lembra-me uma pocilga. Tirou da algibeira um lenço de linho, branco como a neve e levou-o ao nariz. Cheirava levemente a essência-de-bergamota. Suponho que não te deve incomodar. Imagino que em tua casa deve ser... parecido? Ouvi dizer que a tua espécie gosta de chafurdar na própria imundície. A escumalha gosta de escumalha.
Cerrei os dentes e concentrei-me no meu trabalho. Se Red te ouvisse dizeres-me isso, matava-te. Quer fosses tio, quer não. Ele riu-se.
Oh, gosto dessa expressão severa, essas faíscas nos olhos. Pergunto a mim próprio o que se passará dentro dessa tua cabecinha. Pensará que o Hugh vem aí a galope para te salvar? Não penses nisso. Não tens hipótese nenhuma. Para onde quer que tenha ido, está longe, muito longe. Vê-se nas expressões deles. Muito ansiosos, alguns deles... dizem-me que choram por ele, mas parece que ninguém sabe onde ele está. Não o fizeste desaparecer, pois não? Os olhos dele semicerraram-se. Espero que isso não faça parte do teu plano. É que eu tenho um papel para o Hugh e pretendo vê-lo desempenhá-lo de acordo com os meus desejos, Não esperes um salvamento por esse lado, miúda. Ele não vem. Só quando estiveres morta e enterrada, fora da vida do meu sobrinho e da minha para sempre. A minha rede de informadores é muito extensa. Quando ele estiver a caminho de casa, serei informado; e talvez ele se... atrase. Nada de sério, claro; apenas uma pequena diversão, para o manter afastado o tempo suficiente.
As minhas mãos pararam momentaneamente, a lançadeira entre os fios. Um pé a seguir ao outro. Respirei de novo e puxei a trama, para a ajustar.
Até te fez parar, ha? Com certeza que não estavas a pensar... não, nem tu serias tão estúpida. A morte é o único castigo possível, minha querida. Apenas o método é que é motivo de reflexão. Tanto por onde escolher, cada um mais... picante... do que o outro. Há aquele de transportar um ferro quente durante uma certa distância. Mas, para ti, não, creio. Há aquele de tirar uma pedra de uma celha com água a ferver. Já vi esse, o tipo precisou de uma certa... persuasão. Há os métodos rápidos, o enforcamento, o afogamento, várias coisas com uma faca. Mas esses são menos divertidos. Gosto mais daqueles que metem calor. É tão difícil decidir. Estou à espera de inspiração divina. O padre Stephen de Ravenglass é o homem do bispo, um clérigo instando e um velho amigo. O reverendo Padre sabe expulsar os demónios, purificar e sabe lidar com as artes da feitiçaria. Confio totalmente nas capacidades dele. Não me lembro de uma única ocasião em que tenhamos estado em desacordo. Somos uma mente única. O apoio dele dará ao meu veredicto uma certa... respeitabilidade. Essencial, penso, para quando o teu marido regressar.
Fui percorrida por um arrepio. Confiaria a minha vida ao padre Brien e vira sabedoria e bondade no rosto do homem que abençoou o meu casamento, naquela noite, nos bosques. Mas algo me dizia que não haveria essa compreensão nos olhos do padre Stephen. Comecei a acreditar, finalmente, que ia morrer. Mas os meus dedos continuaram no seu movimento contínuo, para dentro e para fora, enquanto tecia outro quadrado para a sexta camisa.
Sabes observou Richard talvez tu sejas, realmente, louca. Talvez não percebas a nossa língua tão bem como Hugh pensa. Não tens medo? Não gostarias de ter uma hipótese de te salvares? Qualquer outra rapariga estaria de joelhos, suplicando. E seria fácil. Muito fácil. Quase ronronava, como um gato satisfeito; mas nenhum gato desceria tão baixo.
Por baixo dessa porcaria toda, continuas uma putéfia bem suculenta disse ele suavemente. Ainda não te ocorreu que ainda tens mercadoria para negociar? Eu sou um homem, minha querida. Posso ser comprado, como Hugh foi. Desaperta os teus botões, deixa-me ver essa carne que o teu vestido esconde. Ou queres que o faça por ti?
Cuspi, com pontaria, na biqueira da polida bota dele. Ele respondeu com uma risada.
Olha, olha, ela levou-me a sério! Bem-feito, putéfia! Defendes a tua dignidade! Com certeza não pensavas que ia sujar as minhas mãos em ti Manchá-las nessa imundície e tu com essas grandes garras? Em tempos, talvez o tivesse feito. Mas não estou assim tão desesperado que precise dos restos do meu sobrinho. Tenho outros projectos em mente; aquela jovem viúva, por exemplo, qual é o nome dela, Molly, Mary? Tem mostrado muito interesse pelo teu destino; faz-me pensar se será a pessoa indicada para educar um rapazinho. Tenho de fazer qualquer coisa. Dar uns certos passos. Ela precisa de um homem forte na vida dela, para a desempenar, para lhe ensinar alguns truques. Bem, minha querida, vou deixar-te, por agora. Diverte-te. Já não falta muito.
Não era altura para ódios. Nem para medos. Após um certo tempo, descobri que havia algumas tarefas que podia fazer às escuras e deixei de dormir. Não era a altura de descansar. Acabei a frente da última camisa e comecei a tecer as costas. Lá fora a estação ia avançada e as primeiras folhas entravam, trazidas pelo vento, pelo meu pequeno espaço de céu. Calculei que estaríamos perto de MeánFómhaire que estava ali presa há três luas. Imaginei as últimas rosas floridas, as bagas gordas e lustrosas nos silvados e nas groselheiras vermelhas, as abelhas ocupadas no meio da alfazema. As maçãs estariam maduras. Ele disse... mas não me permiti terminar o pensamento, porque não havia tempo para esperanças tolas. Fia. Tece, Cose. Um pé depois do outro. Outra vez. Sempre, sempre, a caminho das trevas.
Richard vinha quase todos os dias. Por vezes, apenas por alguns momentos, mas a maioria vinha com óptima disposição, querendo conversar. Agora que me tinha, como ele pensava, na palma da mão, estava menos cuidadoso. Porque, no fim de contas, eu não podia repetir o que ouvia, pois não, mesmo que tivesse oportunidade, o que era pouco provável. E assim, passo a passo, como se estivesse a resolver um quebra-cabeças, comecei a conhecer uma outra versão da história.
Ora muito bem, cá estamos de novo. Não se pode dizer que estejas com bom aspecto, minha querida, isso seria esticar demais a imaginação. Estás a ser bem alimentada? O suficiente. Quero que vivas, até ao julgamento. A justiça tem que ser vista, para poder ser feita, no fim de contas. Infelizmente, o padre Stephen não há meio de vir. É um homem ocupado. Mas ele vem, não receies. Mas, se não vier, nós vamos em frente sem ele. Hugh está fraco. Embrutecido, é a palavra. Não me posso arriscara esperar até que ele regresse. Mesmo depois disto, depois de fugires para satisfazeres os teus desejos com outro homem e vender segredos debaixo do nariz dele, não posso confiar no rapaz para fazer o que está certo. Não, tem que ser dentro de pouco tempo e em público. Tem que ser decisivo. Final. É isso que as pessoas esperam e é isso que lhes vamos dar. Uma coisa espectacular, com fogo, acho eu. Dessa maneira, vemo-nos livres da feiticeira e dos feitiços dela numa vertiginosa e deslumbrante exibição de calor e luz. Orgásmica. Beatífica. Vou gostar tanto.
As minhas mãos continuavam, vigorosamente, o seu trabalho; forcei-me a respirar devagar. Mas o meu rosto deve ter mostrado algo.
Senti-me tentado disse ele, encostado à parede, o banco equilibrado em duas pernas, apenas. Muito tentado. Esse teu trabalho deve ser muito importante, não? Que terias tu feito por mim para o recuperar? Terias...
não vou repetir aqui as observações seguintes dele, porque eram mais próprias da mais baixa reunião de bêbedos. Podia ter tentado isso. Mas a minha irmã antecipou-se-me. Seguindo as ordens do querido Hugh. Incrível. Depois de eu lhe contar o que o teu povo fez a Simon. Bem, sinto uma espécie de divertimento perverso em ver-te magoares-te a ti própria, putéfia. Por que é que fazes isso? Excita-te? Precisas de sentir dor para te satisfazeres? Casaste com o homem errado, filha de Erin. Ele nunca te satisfaria. Além disso e o tom dele mudou estava prometido a outra. Preferiu esquecer isso, mas eu não esqueço. Devia ter sido de outra maneira. Será de outra maneira, quando tu fores... solucionada. Hugh casará com Elaine. Harrowfield casará com Northwoods e num único e grande gesto o maior e mais rico condado de Northumbria nascerá. Será fácil, tão fácil. E pensa no que significa para um homem ter esse poder todo. Com um só golpe, fica com as peças todas do tabuleiro. Isso dá-lhe uma satisfação que mulher alguma lhe pode dar. Para quem é que se virarão os vizinhos em busca de protecção? Em quem confiarão para treinar os seus homens e para lhes arranjar armas? A quem vão pagar para terem ordem? Sorria mostrando os dentes, esticando os braços expansivamente por trás da cabeça. Acredita-me, miúda, um homem que fareje semelhante poder não permite que nada se lhe meta à frente. Nada.
Estamos a falar do mesmo Hugh de Harrowfield? Não consegui impedir que as sobrancelhas se me elevassem, numa descrença desdenhosa.
Hugh é maleável. Só se preocupa com as árvores, o gado e com a sua vidinha muito asseada. Elaine é como eu. Precisa de ter as coisas à maneira dela. O problema é que o que ela queria não se ajustava aos meus planos, de todo. Foi tudo muito bonito, muito doce, até que ela começou a crescer, 13, 14 anos, habituada a ter o que queria, não precisei de dizer não até então. Um cavalo novo. um galgo escocês, jóias, ber- loques. Mas ela quebrou as regras. Apaixonou-se pelo irmão errado. Elaine e Simon? Era uma possibilidade que nunca me passara pela cabeça. Mas que explicava muita coisa. Explicava, em particular, as maneiras dela para com Red, porque eu vira bem que ela o tratava como a um irmão. Pobre Elaine. Um deles estava morto e o outro tinha casado comigo. Não merecia tê-los perdido a ambos. Uma vez decidida, não queria desistir continuou Richard. Tive que lhe dizer, finalmente. Não podes. Não. Tão simples como isso. Ela não gostou. Mas eu sou o pai dela. Hugh é um maricas, não tem aquela veia assassina, aquela maldade que um homem necessita de ter em si para sobreviver, para continuar. Tem uma herdade muito bonita, reconheço. Mas é fraco. É certinho. E tu sabes isso melhor do que ninguém, putéfia. Dobrá-lo foi fácil, não foi? Se ele não te pôde resistir, a ti, comoéj que achas que vai resistir a Richard de Northwoods? Portanto, casa comH a minha filha e todo o vale será meu. Se ela tivesse ficado com o irmão mais novo, o caso teria mudado de figura. Teria sido o fim. Para já, porque ele não herdaria, a não ser que... além disso, era demasiado selvagem. Imprevisível. Instável, quase se poderia dizer. Nunca uma opção segura. Não, é melhor assim. Ou era, antes de tu teres aparecido...
Endireitou-se subitamente e o banco de madeira caiu pesadamente no chão de pedra.
Sabes, pensava que Hugh te tinha trazido para aqui porque tu tinhas informações para ele. Era o que parecia. Tu tinhas algo de que ele necessitava. Estava à espera que tu falasses. O jogo do gato e do rato. Sou capaz de compreender isso. Mas o meu sobrinho nunca mostrou o menor interesse por semelhante estratégia. Nunca levantou um dedo para ajudar nas campanhas, nunca deu a menor contribuição para a causa. Estava-se nas tintas. Portanto, porquê envolver-se agora? Tinha que ser por causa do irmão. O pequeno Simon. De algum modo, tu eras a chave. Sabias algo que ele precisava de saber. Pareceu-me, na altura, que podias falar, se quisesses. Não há ali qualquer defeito, pensei. Houve alturas em que te vi quase a falar, a abrir essa boquinha pequenina e depois abafares as palavras.
Enrolei o fio na roca, sentindo as fibras ferirem-me os dedos, sabendo que as minhas mãos estavam a ficar cada vez mais ásperas e a cheirarem mal devido à falta de luz, à sujidade, à falta de cuidados e ao excesso de trabalho.
Mas, então, houve aquele infeliz acidente. Acontece. As rochas caem e as pessoas magoam-se. Coisas da natureza. Disseram-me que não deixaste sair um único som, não pediste ajuda, não gritaste, nada. Nem acredito que não tivesses gritado. Nenhuma rapariga consegue ter esse controlo. Tinha de chegar à conclusão de que a doença era real. Na verdade, tu não podes falar. És muda. Silenciosa como uma tumba. O que acrescenta uma pitada de sal à presente situação. Significa que posso dizer o que me apetece, revelar os segredos da minha alma e tu não lhes podes dizer nada. Nada. Que pena, no entanto, não te ouvir gritar quando o fogo te chegar aos tornozelos, se te agarrar ao vestido e transformar essa tua pele suave num pedaço de carne cozido demais. Teria gostado de ouvir. Bem, não se pode ter tudo.
Depois de ele sair, permiti-me chorar, mas só um pouco. Permiti-me olhar lá para cima, para a janela, onde a chuva entrava, empurrada pelo vento e permiti-me pensar, se ele aqui estivesse, matava-te. Ainda bem que não estava. Se estivesse, teria de fazer uma escolha, que lhe destroçaria o coração. Era melhor que ele não regressasse, senão depois... Mas eu estava cheia de medo. Medo de morrer. Medo do fogo. Aterrorizada por estar a trabalhar tão lentamente que não estaria pronta a tempo... Não chorei muito. A pequena voz, agora, estava sempre presente. Fia. Tece Cose. Continuei a trabalhar e a camisa meio feita, que era a última das seis, estava cheia de sangue das minhas mãos, da sujidade do quarto e molhada das minhas lágrimas. Aquele que a vestisse vestiria o meu amor, a minha dor e o meu terror. E isso libertá-lo-ia.
Recordo um bom momento durante esses tempos de trevas. Habituara-me aos meus guardas. Não lhes conhecia os nomes, mas havia um mais idoso que eu vira antes com Ben. Não vinha muitas vezes, mas, quando vinha, a sua repugnância pela sujidade, pela pequenez da cela e pelo dever que era forçado a cumprir era evidente na sua expressão. Houve um dia em que trouxe o balde, atirou-o para o canto, como de costume e depois tirou um pequeno pacote da algibeira e depositou-o, furtivamente, no meu cesto.
Queixo para cima, miúda murmurou ele e desapareceu, batendo com a porta. No pequeno pacote havia pão fresco com grãos de cereal, uma pequena bola de queijo e um punhado de amoras. Fiz durar aquilo tudo, sabendo que o meu estômago poderia rejeitar tal banquete depois de tanta fome. Partilhei as migalhas do pão e do queijo com os ratos, achando que também eles mereciam um pouco de divertimento. Não voltei a ver o guarda, mas a sua bondade aqueceu-me. E ainda recordo o sabor maravilhoso daquela comida, o aveludado daquele queijo, as amoras sumarentas e o pão, com aquele sabor de campo aberto.
A camisa crescia. Era surpreendente o que eu conseguia fazer se esquecesse a dor, se só dormisse quando absolutamente exausta, se continuasse sempre, com luz e sem ela. Se era o amor ou o medo que me apressavam, não o sei dizer. Mas a camisa foi tomando forma à medida que os dias se seguiam uns aos outros, assim como as noites sem sono, enquanto as brisas que entravam pela minha pequena janela me diziam que o Outono estava a chegar. Folhas a arder. Frutos a ferver nas panelas. Nevoeiros que se levantavam do rio, em madrugadas muito frescas. E os sons. Homens descarregando tubérculos para serem armazenados no celeiro. Era a época das colheitas e eu já estava em Harrowfield há quase um ano. Mulheres a discutirem. Rodas de carroça no cascalho do caminho. Uma manhã, um cavaleiro solitário a sair muito cedo. Pouco importava. Parecia que agora, que estava encarcerada, a casa tinha regressado à velha e pacífica rotina. Como se eu nunca aqui tivesse estado. Porque nunca mais vira ninguém, desde aquela visita de LadyAnne; ninguém, senão os meus guardas e Lorde Richard. Talvez me tivessem esquecido.
A espera não podia durar para sempre. Chegou o dia em que ouvi o som de cascos no pátio, de arreios e da voz de homens. E nessa tarde, quando Richard apareceu, foi para me devorar com os olhos. Por fim, o representante do bispo chegara e chegara a hora de eu prestar contas perante uma audiência formal. Essa audiência teria lugar no dia seguinte e então... Richard estava entusiasmado, quase fora de si, com tanta alegria. Perguntei a mim própria por que odiaria ele tanto o sobrinho? Porque a questão era essa. O sentimento de poder excitava-o, isso era certo, mas havia um brilho tão especial nos olhos dele quando pronunciava o nome de Red, que me parecia quase louco. Nesse dia, cometeu um erro. Levado pela sensação antecipada de vitória, falou de mais.
Vamos falar do fogo. Olhou para mim de olhos semicerrados, enquanto eu cosia a bainha da camisa com movimentos desastrados, trapalhões, da agulha e da trama. Por vezes, os dedos ficavam-me entorpecidos e era-me difícil fazê-los obedecerem-me. Se tivermos os materiais certos, podemos fazer coisas interessantes com o fogo. Ficarias surpreendida se soubesses com quem aprendi isso. E o teu pai também, minha querida.
Por um momento, fiquei gelada.
Ah! Toquei num nervo, não toquei? Portanto, adivinhámos. Ela achou que devias ser tu, quando lhe fiz uma descrição. Queres ouvir mais?
Meti a agulha por baixo, por cima e através. Mais um ponto. E outro.
Não lhe vamos dizer nada, claro. O padre sábio. Não precisa de saber, pois não? A tua culpa é manifesta; não precisamos de lançar mais achas para a fogueira Deu uma espécie de risadinha abafada. Não era um som agradável. Piada de mau gosto, desculpa. Mas, como eu ia dizendo. Passei um tempo muito interessante na minha recente viagem ao teu país, minha jovem. Perdi alguns homens; infelizmente. Não consegui estabelecer o posto avançado que queria; isso ainda foi pior. Mas, assim que tiver os meios de Harrowfield à minha disposição, nada me fará parar. Foi um mero revés. Mais nada. Já o atirei para trás das costas. Quanto à informação que consegui, isso já é diferente.
Inclinou-se para a frente, atento.
Maneiras de fazer uma fogueira bem quentinha. Maneiras de fazer uma fogueira especial, que consuma um corpo, deixando apenas os ossos. Já vi. Ele mostrou-me. Um dos da tua espécie; ao meu jeito. Astuto. Vivo. Decidido. Nada de ideais falsos, com o Eamonn. Negoceia tudo, se lhe convier. Homens. Armas. Informações. Se tens uma coisa que ele quer, ele troca.
Era difícil continuar a trabalhar e não consegui manter o rosto calmo. Eamonn. Eamonn de Marshes? Negociando acordos com um bretão? Mal podia acreditar. Tanto o meu pai, como Seamus Redbeard consideravam Eamonn um dos aliados mais firmes. Não casara com Eilis? Quem é que estava a brincar, agora?
Nós não somos todos como Hugh, sabes continuou Richard, estudando a minha expressão. Cheio de ideais pomposos, cheio de teorias. Se fôssemos todos assim, não seriam apenas as ilhas que iam à vida. A tua gente invadia-nos, como vermes e nada estaria seguro; seria o fim do mundo civilizado. Acredita-me, são os homens como eu que mantêm o país seguro, para que Hugh possa perder tempo com as suas galinhas e os seus preciosos carvalhos.
Eu estava a olhar para ele, sem sequer pretender estar a trabalhar.
Fiz o negócio da minha vida, nesta última viagem. Já te falei na mulher, não falei, uma mulher notável, não me disse o nome, mas era amiga de Eamonn, unha com carne e ficou particularmente interessada em ti, na última vez que falámos. Contou-me aquela história dos filhos de Sevenwaters e como desapareceram misteriosamente.
O meu coração batia desconsoladamente. Mulher? Que mulher? Com certeza não estava a falar de Eilis?
Nessa ocasião, fiz uma oferta. Disse que se tu fosses a filha de Colum, aceitaria ser pago pelo teu regresso, sã e salva. Pagamento em terra, de preferência. Uma pequena e bela parcela entre a floresta e a costa. Colum não gostaria disso. Mas disseram-me que ele andava meio maluco, à procura da rapariga. Talvez estivesse suficientemente maluco para me dar o que eu quero. Valia a pena tentar.
Começava a ter dificuldade em respirar.
Ela levou a mensagem a Colum, da primeira vez. Que mulher extraordinária. Uma juba castanho-avermelhada, figura agradável, encantadora. Pelo menos, Eamonn pensava assim. Não andava a dar muita atenção à pálida mulherzinha dele. Adiante, ela foi a amabilidade em pessoa. Disse-me que levaria a minha mensagem e deu-me dois homens, para me escoltarem de regresso à costa. Ainda os tenho. Tipos de confiança. Calados e habilidosos com uma faca nas mãos. Assim, desta vez fui lá na esperança de receber uma boa resposta de Sevenwaters. Estava optimista. Não só me via livre de ti, como ganhava uma vantagem que nunca esperara. Colum sempre foi a noz mais difícil de quebrar. Não negoceia, nem sequer com os aliados. Posição de força. Toda a gente tem medo dele. Mas isto era diferente, pensei eu. Única filha, essas coisas. Esperei enquanto ele polia as unhas e estendia a mão, apreciando o trabalho. Estava a brincar comigo, saboreando cada momento.
Por que havia um guerreiro de Erin de se vender a mim, perguntas tu? Que ganhava Eamonn com isso? Não mo deu a entender, por completo. Mas ele tinha um certo interesse por ti e pelo teu pai. Não te esqueças, foi em casa dele que eu ouvi, pela primeira vez, a história dos filhos de Colum, como eles desapareceram um dia sem deixarem rasto. Parece que não sou o único a estar interessado numa certa... expansão. As terras de Colum podem estar suficientemente maduras para serem apanhadas, num futuro próximo, E Eamonn tem alguns truques que eu posso tambémusar. Tenho homens e com os meios de Harrowfield posso armá-los melhor do que qualquer outro bando, de ambos os lados da água. Já pensaste no que nós os dois éramos capazes de conseguir?
És louco, pensei. Louco por poder. Eamonn está apenas a brincar contigo, assim como Lady Oonagh. Assim que te tiverem onde querem, desfazem-se de ti como se fosses apele de uma cebola. Neste jogo, não passas de um principiante. Mas, que disse o meu pai?
Bem, esta visita surpreendeu-me disse ele expansivamente. Deixei os homens para trás e viajei como sempre, de maneira discreta, para visitar o meu aliado no seu próprio território. Marshlands. Lodaçais de turfa sem fim. Um lugar desolado. Não admira que ele se queira expandir para sul. No entanto, é fácil de defender. Adiante, cheguei lá em segurança. Ela também lá estava de visita, aquela mulher espantosa, de cabelo vermelho. Mas Colum tinha recusado a minha oferta. Com filha, ou sem filha. Disse que se ela escolheu ir viver no meio de estrangeiros, não era filha dele. Que se deitasse na cama que fez. E se eu pensava que ele ia abrir mão da terra tão duramente conquistada por um pretexto tão fraco, devia ser ainda mais estúpido do que o resto da minha espécie. Isso dói, não dói, bruxa? Não ponhas a mão à frente da cara, não consegues esconder essa lagrimazinha. É verdade, parece que eles não te querem de volta. Não que eu os culpe; não és muito agradável à vista, agora. Bem, fiquei muito desapontado, posso dizer-te, voltar assim de mãos vazias. Mas, então, a dama fez-me uma contraproposta. Primeiro, fez-me uma data de perguntas acerca de ti. Se tinhas alguns aliados aqui, como passavas o tempo, o que dizias às pessoas acerca de ti própria. Deixei-a saber acerca do jovem Hugh, como estava quente por ti, mas que tu não correspondias, ainda não; como tinhas perdido a voz, de maneira que não podias contar os teus segredos; como passavas o tempo a dar cabo das mãos, com esse teu trabalho de bruxa. Posso dizer-te que ela não gostou nada das minhas respostas, mas acreditou nelas.
Foi então que ela fez a oferta. Eu receberia informações, informações muito especiais sobre os movimentos de Colum para o Outono e o Inverno, as suficientes para poder tomar aquela baía como certa. As suficientes para poder ter a posição que eu queria. Em troca, tudo o que eu tinha a fazer era tirar-te da paisagem. Até me disse como. Oh, ela não se importa que eu brinque contigo um bocadinho, primeiro. Compreende que faz parte do gozo. Uma parte irresistível. Mas assegura-te, disse ela, de que a rapariga arde e que o trabalho de bruxa arde com ela. É a única maneira de destruir uma feiticeira. Uma fogueira bem quente. Eamonn tinha os ingredientes e ele próprio me mostrou como se faz. Primeiro, arranja-se uma pequena quantidade de sulfato-de-cobre, daquele para tingir, sabes? Custa mais do que umas poucas das tuas cabeças de gado, mas vale a pena. Vale bem a pena. Mói-se num almofariz, até ficar muito fino, até ficar um pó que parece tão inofensivo como a poeira. Mistura-se com um óleo da melhor qualidade, daquele que é utilizado para ungir a testa de um bispo, que ironia divertida, esta. E está pronto. Não é preciso uma grande quantidade, borrifada sobre a lenha, para atear um belo fogo. Colorido, também... o verde é especialmente bonito. Faz grandes chamas. É quente. E tem fome. Mas Eamonn ainda não estava contente. Prepara a lenha antecipadamente, molha-a, absorvendo a mistura até estar pronta a rebentar. Em seguida, seca-a. Havias de ver, quando as chamas a lambem. Trouxe comigo uns toros de freixo, da última vez que visitei o meu amigo. Tenciono usá-los num futuro muito próximo. Foi o que a mulher me disse, no fim de contas. Que seja em breve, disse ela. Destrói essa rapariga rapidamente. Tens de o fazer antes de... diz-me, minha querida, quantas destas camisas fizeste?
Fiquei imóvel. Até tinha medo de respirar.
Vamos dar uma olhadela, está bem? Levantou-se num único movimento fluido e pousou as mãos no meu cesto. Não que eu acredite em magia, eu. Mas, no entanto, fiz uma promessa. Quantas tens aí, quatro, cinco?
Levantei-me de repente e as minhas mãos estenderam-se, tentando agarrar desesperadamente no cesto, mas estava mais fraca do que pensava, porque ele afastou-me como se eu fosse um insecto maçador.
Uma, duas, três, quatro, cinco. Temos trabalhado bem, não temos? E outra já quase feita. Muito bem, pequena feiticeira. Mas, já falta pouco, Não me parece que tenha muitas dificuldades em cumprir o desejo da dama. Assegura-te de que o fazes antes de a rapariga acabar, disse ela. Agarra naquilo tudo, na pequena feiticeira e no trabalho dela. Queima tudo junto. E vem fazer-me um relatório, disse ela. Quero uma descrição completa. Sorriu para mim. Uma conclusão limpa, não é? Limpa para todos. Hugh aprovaria. Ele sempre gostou de uma vida limpinha.
Vai-te embora. Vai-te embora, antes que o choque, o medo e a repugnância me destruam. Vai agora, antes que a raiva me leve a tentar uma loucura. Respira, Sorcha. Para dentro, para fora. Para dentro, para fora.
Limpinha sob todos os aspectos. Bem, quase todos. A pequena bruxa morre; o vale está salvo. Elaine casa com Hugh. Richard de Northwoods estabelece o seu posto avançado na costa. Eamonn de Marshes acrescenta um belo bocado de floresta ao seu território. A misteriosa dama de cabelo vermelho vê realizado o seu desejo. E vivemos todos felizes para sempre. Que pena, o Simon. É a única peça que não se ajusta nisto tudo. Podia ter havido um lugar para aquele rapaz sob o meu comando, se fosse capaz de aprender um pouco de disciplina. Tinha capacidades. Alguém o ensinou bem. Mas tornou-se demasiado inquisitivo.
Ouvia o que não devia. Via o que não devia. Não se podia confiar no que ele sabia. Estás interessada, não estás?
Não conseguia pôr-me em pé para apanhar o meu trabalho e fiquei enroscada ao pé do cesto, os braços em volta dele, como protecção. Vai-te embora. A presença dele contaminava o ar que respirávamos. No entanto, precisava de ouvir o fim da história dele. O fim daquela história muito particular.
Foi uma infelicidade. O meu próprio sobrinho e essas coisas todas. Mas eu conhecia o rapaz; teria ido contar tudo ao irmão e adeus informações. E nem mesmo Hugh teria ignorado. Porque, como sabes, a nossa espécie não se mistura com a tua. Somos inimigos viscerais. Diferentes como a água e o vinho. Mas ele viu-me e ouviu-me com os homens de Eamonn. Ouviu quem e viu o quê? Portanto, tive que dar instruções para que ele fosse... removido. Silenciado. Eliminado. Felizmente, tenho um homem que é especialista nestas coisas. O problema é que eu deixei que a coisa fosse um pouco longe demais. Foi um grande erro. O rapaz desapareceu. Foi-se embora, muito simplesmente. Se calhar, pensava que era uma espécie de herói. Simon sempre foi assim, sempre agiu primeiro e pensou depois. É claro que fui atrás dele, tinha que ser visto a fazer o que devia, família próxima, etc. Além disso, com o que ele sabia, cada momento que ele andava à solta era um momento a mais. A busca foi infrutífera; e quando voltei, estavam todos mortos. Todos os meus homens. Membros arrancados, carne retalhada. Os ossos espalhados pela lama. Até ao último. Precisarei de anos para reconstruir a minha força especial àquele nível.
O tom dele era amargo. Que homem aquele, que valorizava o seu povo como meras ferramentas na sua demanda pelo poder.
Colum. Só pode ter sido Colum e os filhos. O esquivo e evasivo senhor guerreiro, que parece ser capaz de varrer as peças dos seus adversários do tabuleiro sempre que lhe apetece e desaparecer tão silenciosamente como atacou. Colum de Sevenwaters. Não admira que tantos homens o odeiem e temam. Cheguei à conclusão de que Simon foi capturado e deu à língua. Quem mais podia ter revelado a posição dos meus homens? O rapaz saiu tão fraco como o irmão, gabarolas e sem força nenhuma. Peritos com a espada, o arco e os punhos; mas não podemos contar com eles quando as coisas ficam difíceis. Não concordas? Onde está Hugh agora, quanto tu precisas tanto dele? Não mostrou grande pressa em salvar a sua mulherzinha, pois não? Tem mais que fazer. Seja o que for, gostava de saber o que é. Bem, voltei para casa. Disse à minha irmã que o filho tinha morrido. Ninguém sabia onde. Pelo menos, essa parte é verdadeira.
Fiquei um pouco preocupado quando Hugh foi à procura dele, algum tempo mais tarde. Como se não tivesse acreditado no que eu lhe disse. Estava preocupado com a fuga de informação, caso o rapaz ainda estivesse vivo, algures. Pensei que talvez tu soubesses alguma coisa; por que outro motivo arrastaria o meu sobrinho uma fedelha irlandesa com ele? Queria que tu falasses. Se eras parente dos Sevenwaters, era importante fazer-te falar, antes que tagarelasses a verdade ao meu sobrinho. Pensei isso. Mas não consegui aproximar-me de ti, ele guardava-te como uma jóia preciosa. Vigiei-te. Após algum tempo, mudei de ideias. Tu nunca falarás. O rapaz ilude-se se pensa que o farás. Tu és uma rapariga; as raparigas gritam quando são magoadas. Choram quando estão tristes. As raparigas não aguentam dias, luas e anos, caladas. Vais arder sem soltares um som. E eu vou ter um grande prazer em acender a fogueira, minha querida. Uma bofetada sem mão em Colum. Ele pode não querer pagar o teu regresso; eu compreendo isso. Mas não vai gostar da história que eu vou mandar só para os ouvidos dele; como a filha morreu numa fogueira especial. Essa história vai mantê-lo acordado de noite. Esfregou as mãos de antecipação.
Sim, calhou tudo muito bem disse ele. No fim, só ficou uma ponta solta. Nada que se pareça com o teu trabalho, minha querida, que parece muito trapalhão; estás mesmo concentrada no que estás a fazer? Mas, talvez não tenha importância. A fogueira leva-te, mais as tuas camisas horríveis, numa grande labareda. Roca, fuso, tear e tecido. Vestido, cabelo, pele e unhas. A princípio devagar e depois mais depressa, cada vez mais quente, à medida que as labaredas te envolvem e te penetram. Quando o teu marido regressar, não haverá qualquer sinal de ti em Harrowfield. Terás desaparecido. Obliterada. Ele há-de apanhar os cacos da sua vida e há-de recomeçar. Os homens esquecem. Esquecem facilmente. Em breve, Elaine pô-lo-á na ordem. É uma rapariga às direitas. Tomará conta disto aqui e quanto a mim...
Levantou os olhos para a janela.
Está a fazer-se tarde. Ainda há tempo para uma garrafa de vinho e talvez uma costeleta ou duas, tenho sempre apetite a esta hora do dia. Levantou-se, espreguiçando-se. Tenho que me ir embora, minha querida. Foi tão agradável conversar contigo. Falei mais do que pensava. Bem, amanhã também é dia, como se diz. Vê se estás pronta quando te vierem buscar. Dei uma palavrinha ao homem do Bispo acerca do teu caso; a tua audiência, se calhar, vai durar o dia todo e ele quer começar cedo.
Uma noite, pensei eu com o coração a bater. Uma noite apenas e o meu destino ficará decidido. Tinha que ser forte, manter a mente longe da fogueira e da morte. Pensei nas palavras de Richard. Ainda bem que o homem estava tão absorvido com a sua pessoa. Tinha-me observado de perto durante o seu espantoso monólogo e talvez tivesse lido no meu rosto mais do que eu queria que ele soubesse. Durante o resto do dia e até à noite, a minha mente recapitulou, vezes sem conta, as coisas que ele me disse. O tio de Red metido com um chefe guerreiro do meu próprio povo, um que o meu pai considerava um amigo. Era capaz de acreditar nisso. Os jogos de poder, era o que eles todos faziam melhor. Aquele era apenas mais um. Lady Oonagh envolvida; devia ser verdade, pois eu já detectara a sua mão na morte de John e na crescente maré de medo, suspeita e infelicidade que ameaçava subjugar o vale, arrastando a família Harrowfield com ela. E parecia que Red estava certo acerca de uma coisa. Richard mentira-lhes. Ele não tinha provas da morte de Simon. A sua história fora fabricada, baseada em suposições. Planeada para apaziguar, inventada para pôr um fim àquela história muito especial. Acabou. Não é preciso procurar mais respostas, Sentia-me feliz por Richard não me ter conseguido ler a expressão do rosto. Não adivinhara para onde fora Red e porquê. E não deve saber. Porque no fundo do meu coração sabia que Richard não se deteria perante nada para obter o que desejava. Gostava do jogo enquanto durava. Mas, no fim, ganhar era a única coisa que lhe interessava. Todas as peças eram prescindíveis. A perda de uma unidade inteira de guerreiros era dura, mas Richard via isso apenas como um percalço a ser remediado com tempo e um saco ou dois de moedas de prata. Bons homens podiam ser comprados e treinados. Eu fora apenas um desafio particularmente incómodo e inesperado para ele. E caíra-lhe nas mãos. Não duvido que ele era capaz de sacrificar, sem remorsos, quem quer que se lhe atravessasse no caminho. Fosse quem fosse. Se um sobrinho podia ser que palavra utilizara ele, eliminado? então por que não também o outro, se viesse a saber a intragável verdade acerca do tio? E quem assumiria, depois, o controlo? Entre os homens do meu pai e o tio, o pobre Simon não tivera qualquer hipótese.
Ainda bem que ele me dera tanto que pensar. Remoenclo vezes sem fim, tentando compreender, afastava os outros pensamentos. As imagens da carne queimada, enquanto as labaredas me lambiam os pés descalços e chamuscavam a bainha bordada do vestido. Vi o cesto de salgueiro a pegar fogo e a consumir as cinco camisas de morugem, assim como a sexta, que estava inacabada, porque eu ainda estava a tecer a primeira manga. A frente e as costas estavam acabadas, ligadas no ombro por um ou dois pontos grosseiros. Era um trabalho imperfeito, tal como observara Richard; o meu irmão mais novo ia ficar defraudado. Mas o dia seguinte. No dia seguinte iam interrogar-me. Quereria isso dizer que eu poderia morrer no dia seguinte? Como se pode encarar o último dia do mundo e não ter medo? Pensei nas velhas lendas e como o espírito do herói completava a jornada na sua forma humana e mudava para a seguinte à hora marcada.
Uma boa morte. A roda gira e volta a girar. Pensei na história de Liam sobre a nossa mãe, deslizando deste mundo, despedindo-se tranquilamente dos filhos. Serena, ordenada, inevitável. Eu não sentia nada disso Estava zangada, aterrorizada, o meu coração batia com força e tinha dificuldade em respirar. Doía-me a cabeça. Não estava pronta para morrer. Ainda não, agora não. Antes de abraçar outra vez os meus irmãos, não.
Não dormi nada nessa noite. Tinha que haver ainda tempo. Tinha que haver. As Criaturas Encantadas impunham uma tarefa, tornando-a, depois, impossível de acabar? Não podia acreditar que ma tirassem tão próximo do fim. Tenho de a acabar. Ia acabá-la. Não contei histórias a mim própria enquanto a noite correu na direcção da madrugada. Em vez de trabalhar às escuras, preenchi o espaço em meu redor com imagens mentais, brilhantes, para afastar as sombras, como Finbar fizera uma vez por mim, esgotando-se. Para manter as chamas afastadas. Para afastar a cruel notícia de que o meu pai sabia onde eu estava e não pagaria para me libertar. Por isso, fixei a mente noutro local. Na praia branca e nas grandes e solenes focas de olhos doces. Em Red, observando-me com o seu sorriso de quebrar o coração e o brilhante cabelo, como um facho, contra o cinzento, o verde e o azul do mar. Vi, por instantes, a imagem de John elevando o seu pequenino nos braços, com o amor e o orgulho escritos no rosto curtido. De Margery, entrançando-me o cabelo com dedos ágeis. Fica-te bem. Tens deparar de te esconder. Parecia que o meu fim ia ser público. Toda a gente ia estar presente para ver uma feiticeira a arder. Não, manter esses pensamentos afastados. A floresta, a luz do Sol filtrada por entre as folhas lá muito, muito no alto. Uma criança dançando pelo carreiro abaixo, descalça na terra macia, o cabelo escuro e selvagem pelos ombros. O irmão observando-a com olhos de água límpida, que viam longe, tão longe. Uma rapariga a correr na areia; a sua imagem pequena e nítida, desenhada com cuidadosos traços de pena. A última imagem do livro.
A minha mão ergueu-se para agarrar as duas preciosas coisas que ainda estavam penduradas no meu pescoço, por baixo do vestido manchado. Lady Anne tinha dito que o filho dela me amava. Mas não era amor, já que ele fazia o que fazia porque lhe fora ordenado, mesmo sem o saber. Ele havia de regressar e eu estaria morta, como se nunca tivesse existido. Talvez ele ainda pudesse refazer a teia da sua vida. No entanto, eu queria-o ao pé de mim, naquele momento. Precisava dele ali. Na escuridão, se me sentasse muito quieta, quase conseguia senti-lo a meu lado, muito perto, mas não demasiado. Não te prometi que te manteria sã e salva, diria ele suavemente. Nunca quebrei uma promessa. Não fiques preocupada, Jenny. E eu sabia que ele seria cuidadoso. Suficientemente cuidadoso para não se aproximar demasiado. Cuidadoso, de modo a não me assustar. Esperando, quieto. Eu sou o teu abrigo. Não tenhas medo.
Então chegou a manhã e eles vieram buscar-me. Era a primeira vez que saía da minha minúscula prisão desde o solstício do Verão, o dia em que apertei Conor nos braços e o ouvi prometer-me que traria os meus irmãos quando estivesse pronta. Agora, parecia que nunca o viria a estar. Pestanejando sob aquela luz que me fora negada durante tanto tempo, tropeçando nas pernas relutantes em obedecer-me, fui levada, com pouca gentileza, até ao grande salão, que fora preparado para a audiência formal da assembleia de homens livres. Havia uma longa mesa no fundo da sala, com quatro cadeiras de carvalho e nelas estava sentado Richard de Northwoods, vestido de veludo negro, com um homem rotundo a seu lado, com as vestes simples e escuras dos clérigos. Supus que era o homem do bispo. Havia ainda dois escribas, um deles jovem, tonsurado e de rosto pálido e sério e o outro, que era o escriba de Harrowfield. Tinteiros, penas e pilhas de pergaminhos estavam colocados à frente deles, com pequenos tabuleiros de areia muito fina, para polvilhar a escrita, ajudando-a a secar. Havia lanternas acesas perto das entradas, porque o Sol ainda não aparecera, por trás das nuvens chuvosas e a sala era muito escura. Um fogo quente ardia na lareira. Em volta dos outros três lados da sala sentavam-se os rendeiros de Harrowfield, como a lei exigia. Havia muitos que eu vira antes e alguns que me eram estranhos. Havia bastante barulho, com velhos amigos a porem a conversa em dia e rápidos negócios acerca de uns tantos porcos ou umas ovelhas, já que a oportunidade se apresentava. Assim que me viram subir para o estrado no centro do salão, todos se calaram.
Richard levantou-se lentamente.
Está aberta a audiência pronunciou ele. Na ausência do meu sobrinho, Lorde Hugh de Harrowfield, senhor desta herdade, serei eu a presidir. Há vários casos para ouvir, mas todos eles, à excepção de um, ficarão para amanhã, ou para o dia seguinte. Haverá comida e bebida para todos enquanto se mantiver esta assembleia. Murmúrios de aprovação. Para hoje, temos um único, profundo e grave caso para ser decidido. Diz respeito à jovem conhecida comojenny, que se apresenta perante vós acusada de várias ofensas, cada uma das quais é punível com a morte, caso seja provado. Todos os olhares se viraram na minha direcção, para o estrado, onde eu me mantinha de pé, oscilando ligeiramente. Sentia-me estranha. Ou era da falta de sono, da falta de comida, ou da presença de tanta gente, de tanta luz e barulho, mas a minha vista estava desfocada e sentia tonturas. Tinha de me concentrar.
Como é do vosso conhecimento, já houve antes acções legais destas continuou Richard dada a gravidade da acusação. Esperava-se que o padre Stephen de Ravenglass nos desse a graça da sua presença, para que a opinião da Igreja pudesse ser obtida, especialmente na acusação de feitiçaria. Houve um pequeno sobressalto de horror na assembleia quando aquela palavra foi pronunciada. Fui avisado de que isso não será possível e o caso não pode ser mais adiado. Dou as boas-vindas ao padre Domimc de Whitehaven, que viajou até nós como representante do bispo em vez do padre Stephen. Estaria a imaginar, ou Richard parecia maldisposto com esta troca? A acção será como segue continuou ele e eu tive a certeza. Havia uma expressão na sua voz, o mesmo tom que ele empregava quando discutia com Red e perdia. Algo o confundira. Esta manhã, as provas contra a rapariga serão apresentadas e ouvidas. Mais tarde, ser-lhe-á dada a oportunidade de se defender. Interrogá-la-ei e o padre Domimc poderá também fazê-lo, caso o deseje. Se algum dos membros desta assembleia tiver algo a dizer sobre este caso, poderá, também, falar. Proferirei a sentença hoje mesmo, de maneira a que este caso perturbador fique resolvido de uma vez por todas.
Muito bem, muito bem. O padre Domimc esticou-se, pegando numa folha de pergaminho e numa pena. Aparentemente habituado àquele comportamento, o seu escriba aproximou o tinteiro. Quais são, exactamente, as acusações contra esta jovem?
Primeiro, espionagem, com o intuito de passar informações para os inimigos do seu marido. Não negou as acusações que lhe foram feitas de pertencer aos guerreiros irlandeses que nos guerreiam pelo controlo das Ilhas. Segundo, abrigo a um fora-da-lei, da sua própria espécie, sem nada que fazer por estas bandas. Terceiro, o uso das artes da feitiçaria com o intuito de prejudicar e perturbar esta casa. As três ofensas fazem parte do mesmo plano. O castigo para cada uma delas é a morte.
Estou ciente disso. E quais são as testemunhas a chamar?
Várias, padre. Eu próprio serei a principal testemunha contra ela, neste caso.
Vi o padre Domimc acenar com a cabeça, o rosto impassível. Sobre o colarinho do seu traje negro, havia rolos de gordura sob o queixo. Os seus pequenos olhos eram muito perspicazes.
Muito bem. Começai, então. Virou-se para mim. Ouve com atenção, jovem. Porque em devido tempo serás chamada para te defenderes.
Olhei para ele e os seus olhos semicerraram-se.
Esta rapariga compreende a nossa língua? Virou-se para Richard com um ligeiro franzir de sobrancelhas. Ela mal parece ouvir o que se diz. E não parece bem. Diria que há algo de errado com ela. Não se pode esperar que se defenda se não é capaz de compreender as acusações.
Ela compreende muito bem disse Richard concisamente e desta vez era óbvio que estava aborrecido. Mas não tem o dom da palavra. Disseram-me que uma doença lhe tolheu a língua.
Se é assim, como poderá ela defender-se? Como pode uma assembleia séria ter lugar se a acusada não se pode defender? Tem alguém para a ajudar?
Ela desenvencilhar-se-á muito bem sozinha. O tom de Richard era de rejeição. Posso prosseguir com o meu depoimento?
Não fico nada satisfeito. Mas continuai. Não percamos tempo.
A maneira como ele disse aquilo pareceu condenatória. Até a mim me pareceu convincente. Pensei que era uma sentença de morte. Richard fez uma óptima exibição, passeando-se pelo centro do salão, pelo meio da multidão, utilizando toda a sua melíflua voz, do sussurrei ao grito de ultraje, contando a história de como o seu sobrinho trouxera uma rapariga de Erin com a melhor das intenções, como as pessoas da casa, assim que a viram, souberam logo que não prestava para nada, como se insinuara na casa e se virara contra o marido, como seria de esperar de uma mulher selvagem dos pântanos da Erin. Contou como eu escutava as conversas depois de jantar, sobre arrendamento de terras, comércio e campanhas militares, armazenando-as para utilização futura. Descreveu como me apanhara uma vez, nos montes, sozinha. Por que sairia eu da casa em segredo, senão para me encontrar com um dos da minha espécie e passar-lhe as informações?
Isso são conjecturas disse o padre Domimc calmamente, fazendo uma anotação no seu pergaminho. Onde estão as provas?
Já lá vou. A voz de Richard era áspera. Camuflava o seu aborrecimento com um esforço da vontade, porque precisava de convencer os membros da assembleia, assim como o santo padre, de que o seu parecer devia ser aceite. Então, lançou-se na história do piquenique do solstício de Verão e de como eu fora presa. Atingiu o clímax.
Vi a rapariga, Jenny, dirigir-se para o rio. Um pouco mais tarde, pensando que poderia não ser seguro para ela, segui-a. À minha frente ia um homem, o jovem Benedict, companheiro do meu sobrinho, filho de William de Greystones. Esse jovem foi criado nesta casa. Ambos a vimos; e também vimos o homem que ela abraçava. Não havia dúvidas do que faziam. Tossiu ligeiramente, olhando para a sua irmã reservadamente.
Que quereis dizer? perguntou o padre Domimc. Sede claro, porque essa acusação é muito séria.
Bem, eles... ha... para falar francamente, o homem tinha pouca roupa vestida e a rapariga estava... ha... abraçada a ele de maneira... muito íntima.
Desejais acrescentar adultério às vossas acusações? O padre Domimc inclinou-se e escreveu. E depois? perguntou ele.
Perseguimos o irlandês, mas ele desapareceu nos bosques. A rapariga foi presa. Um dos homens que estava comigo tinha-os ouvido falar, antes, mas não sabia quem eram. Falavam de guerreiros, armas e fortificações. Das defesas de Harrowfield.
Ouviremos esse homem em devido tempo. E esse Benedict de que falastes? Ele está aqui para contar a sua história?
Ele não tem nada a acrescentar disse Richard rapidamente. A história dele é igual à minha. Os meus homens vasculharam a floresta, mas não encontraram o irlandês. Escapou com informações valiosíssimas. Informações que esta rapariga lhe passou.
Ouçamos Benedict de Greystones disse o padre Domimc, ignorando-o. Ouvi os homens que guardavam a porta chamar Ben sob este grande nome. Outra vez. E uma terceira, após uma pausa. O escrivão do padre Domimc levantou-se e foi consultar os guardas. O tempo passou e ouviu-se um certo burburinho no salão. Passei uma mão pelos olhos. Sentia-me tão esquisita, como se a sala se inclinasse e oscilasse à minha volta. As lanternas moviam-se como pirilampos e Richard de Northwoods tinha quatro olhos. Lembrava-me de me ter sentido uma vez assim, naquele dia em que fui levada pelo rio abaixo e quase me afoguei. No dia em que conheci Red.
Ele não está presente, padre disse o jovem clérigo. Foram à procura dele. Mas não o encontram, segundo dizem. Richard respirou de alívio, de modo audível. O padre Domimc franziu os lábios.
Muito bem, ouvirei os outros que estavam presentes. Eles corroboram essa história?
Era meticuloso. Surpreendentemente meticuloso, considerando que tinha sido convidado apenas para dar uma certa respeitabilidade a uma audiência cuja conclusão já tinha sido decidida por Richard, mesmo antes de começar. Ouvimos três dos homens dele, contando como me encontraram numa posição comprometedora e como perseguiram o meu companheiro durante toda a noite, sem sucesso. Continuava a não haver sinal de Ben. Pensei que talvez, por consideração para com Red, ele não falasse contra mim, não quisesse apressar a minha morte. Mas também não me defenderia. Fora rápido a admitir a minha culpa, tão rápido como todos os restantes.
Ouvimos outro homem contar como me ouvira passar informações ao espião estrangeiro, informações que eu só podia ter recebido do meu marido. Diziam respeito a armas, postos avançados e movimentos de homens. Não valia a pena abanar a cabeça, ou tentar refutar o que era uma simples falsificação. Não me compreenderiam; poucos o conseguiriam. Além disso, sentia que aquele caso só podia ter um fim.
Uma a uma, as pessoas depuseram, disseram coisas e saíram. O padre Domimc anotava-as com tinta preta, inclinando-se e escrevendo. Tinha olhos pequenos, profundos e firmes, sob escuras e enérgicas sobrancelhas. Alguém disse que me vira de noite, dançando nua em volta de uma pequena fogueira. Alguém disse que tinha plantas proibidas no meu jardim, ervas que nenhuma pessoa respeitável permitiria perto da sua cozinha; que tentara envenenar Mistress Margery e que era um milagre o bebé dela ter sobrevivido. Quem sabe o que seria a criança quando crescesse, quando as mãos que a ajudaram a nascer pertenciam a uma feiticeira? Alguém disse que quando suturei a perna de Lorde Hugh deixei lá dentro um pequeno feitiço, que se dirigiu, lentamente, mas com segurança, para o coração. Um feitiço que o prendia à minha vontade até ao fim dos meus dias. Doeu-me muito ouvir aquilo. Houve outras acusações. Deixaram-me levantar uma vez e deram-me um copo de água. Vi Lady Anne a um canto da sala, o rosto branco e silenciosa. Um guarda escoltou os meus acusadores para dentro e para fora. Aquilo continuou durante muito tempo. Comecei a sentir-me cada vez mais esquisita, como se a cabeça tivesse deixado de pertencer ao meu corpo. Então, de repente, tudo ficou negro.
Quanto voltei a mim estava deitada no chão e o salão estava quase vazio. Lady Anne estava perto de mim e Megan limpava-me a testa com um pano molhado. Tentei sentar-me.
Devagar disse Lady Anne. Agarrei o braço de Megan e descobri que mal conseguia sentar-me.
Livra! disse Megan. Minha Senhora, achais que?...
Temos pouco tempo. Parecia que Lady Anne tinha compreendido a meia pergunta. Eles precisam de comer e beber e vão querer conversar. O povo precisa de ser alimentado. Molly preparou-lhes uma mesa, na cozinha. Pelo menos, acho que vamos conseguir arranjar-lhe água quente, um pente e um vestido limpo. Megan afastou-se e os dois homens de guarda à porta não tentaram impedi-la.
É melhor beberes isto O tom de Lady Anne era severo quando me colocou a taça na mão. Mas eu não conseguia segurá-la, tremia tanto e ela teve de ma levar aos lábios.
Terás uma oportunidade de te defenderes, esta tarde disse ela rudemente. Nem todas aquelas acusações eram verdadeiras. Muitas foram baseadas no medo e na superstição. Sabes o que acontecerá, se ficares calada.
Acenei com a cabeça. De que valeria? Eu já fora declarada culpada e a pena escolhida, antes mesmo de ter entrado naquela sala. Nada daquilo tinha importância. Tudo o que importava era permanecer viva o tempo suficiente para terminar a última camisa.
Lady Anne franziu a testa.
Não te posso perdoar o que fizeste disse ela. Se te acharem culpada, serás condenada à morte. Devo acatar a decisão deles e submeter-me à sua sabedoria. Ao mesmo tempo, não posso permitir uma prisioneira tão mal alimentada, suja e desgrenhada na minha casa. Há certos princípios que devem ser mantidos, ou não seremos melhores do que vós. Fui avisada de que estavas a ser convenientemente tratada. Quem me avisou tem, certamente, uma perspectiva diferente da minha.
Nesse momento ouviu-se um certo tumulto à porta e uma figura conhecida, o rosto suave tristemente angustiado, forçou a entrada, ignorando os guardas.
Jenny! Oh, o estado em que tu estás. Oh, minha Senhora, como...
Silêncio, mulher Lady Anne segurou firmemente no braço de Margery, parando a corrida desta através da sala. Olha, aqui está Megan com algumas coisas para nós. Leva Jenny para a antecâmara, ali e ajuda-a a mudar de vestido. Este está bom para ir para o lixo. Não tentes falar com ela. Nem sequer devias estar aqui. Isto é uma audiência formal. Tens que te ir embora antes do regresso do padre Domimc.
Entre as duas, Megan e Margery mudaram-me o vestido, lavaram-me a cara e esfregaram-me a porcaria do corpo com uma esponja. Havia pequenas criaturas a passearem pela minha cabeça.
Oh, Jenny murmurou Margery, enquanto Lady Anne ficava por perto e pretendia não ouvir. Puxou-me o vestido pela cabeça, sem um único franzir do nariz ao que viu. Oh, como tu estás. Estás tão magra como um espectro. Lamento, lamento tanto.
Vergonhoso murmurou Megan, mergulhando uma esponja no balde e espremendo-ma nas mãos e nos braços. A água ficou castanha do sangue e da sujidade. Que infâmia.
Não era dos meus crimes que falavam.
Eu devia... eu devia ter... sussurrou Margery, tentando passar-me o pente pelo cabelo, enquanto Megan me lavava as pernas e os pés.
Mas tenho tantas saudades de John... Só pensei em mim e no Johnny. Se não tivesse sido tão egoísta, talvez pudesse... calou-se e a mão subiu gentilmente até tocar no anel que pendia do fio em volta do meu pescoço. Um sorriso curvou-lhe a boca quando viu o círculo de folhas de carvalho, as bolotas e a pequena coruja. Lady Anne observava-a.
Ele há-de vir em tua ajuda sussurrou Margery. Como poderia não vir?
Megan passou-me o vestido lavado pela cabeça. Quase que chorei, porque era aquele azul, que a minha amiga me fizera com tanto amor. Alguém o tinha limpo sofrivelmente, mas na saia ainda se via uma marca, onde o mar escrevera o seu nome. Não queria morrer queimada com aquele vestido.
Rápido disse Lady Anne. Fazei desaparecer essas coisas e deixai-vos de conversas. Ocorreu-me que talvez fosse a última vez que eu via a minha amiga. Margery tinha o mesmo pensamento nos olhos e os seus braços abriram-se para me abraçar, mas Lady Anne interpôs-se entre ambas.
Não torneis as coisas ainda mais difíceis disse ela e a sua voz tremia. A rapariga é uma prisioneira; o destino dela está em jogo. Já não pertence a esta casa. Fizestes o que vos foi pedido. Agora, ide-vos.
Saíram as duas, mas Margery voltou-se, tocou com a ponta dos dedos nos lábios e acenou-me: e Megan tinha lágrimas nas faces.
A audiência continuou. Nenhum dos meus interrogadores fez qualquer comentário à minha nova aparência, se bem que Lorde Richard tenha levantado as sobrancelhas e o padre Domimc tenha emitido uma espécie de grunhido, profundo. Lá fora, o dia ia escurecendo. Já estávamos ali há tanto tempo?
Bom disse o clérigo, inclinando-se para a frente e fixando em mim os pequenos olhos já ouvimos todas as acusações contra ti e parecem condenatórias, se não mesmo conclusivas. O propósito desta audiência é determinar se a tua culpa fica provada e determinar o respectivo castigo. Todas as tuas ofensas são da competência jurídica secular e como Lorde Richard tem autoridade em tais assuntos, a decisão final pertence-lhe. No entanto, fui convidado para o assistir nesta decisão, dada a natureza das acusações e os laços familiares entre o acusador e a acusada. Não há qualquer razão para temeres a justiça, minha filha. Agora, tens oportunidade de te defenderes. Leva o tempo que quiseres. Sei que não podes usar a tua voz. Mas talvez haja outra maneira de nos conseguires dizer o que pretendes. Faz-nos sinal se houver algo que não consegues perceber.
Olhei para ele. As suas sobrancelhas encontraram-se a meio do rosto e os seus olhos ficaram com duas almofadas de gordura. No entanto, possuíam uma inteligência viva. As minhas mãos permaneceram quietas ao lado do corpo. O salão ficou silencioso.
Tendes a certeza que estais correcto ao dizer-me que esta rapariga compreende bem a nossa língua? Ele olhou para Richard e depois para Lady Anne, ainda sentada a um canto do salão.
Sim, padre. Lady Anne pusera uma máscara na expressão que me era dolorosamente familiar. Não só compreende, como, se o desejar, é capaz de se expressar por meio de gestos rudimentares.
Acho isso difícil de acreditar disse o padre Domimc, abanando a cabeça. Por que havia ela de não querer comunicar, agora? A rapariga quer morrer?
Richard deu uma gargalhada de censura.
Talvez não tenhais conhecido muita gente desta, padre. Eu conheço muito bem os Irlandeses. Tal provocação nasce com eles e é alimentada cuidadosamente desde o berço. Os espiões deles são treinados para se manterem silenciosos até à morte e para além dela. A recusa desta rapariga em falar é outro sinal da culpa dela.
O padre Domimc olhou para ele com uma antipatia que estava escrita nas suas feições pastosas. Através da minha exaustão e do meu medo, senti surpresa. Aquele homem via Richard de Northwoods por aquilo que ele era. A última coisa que eu esperava era a ilusão de um julgamento justo.
Há muitos homens letrados naquela costa disse o padre Domimc. Alguns, sem dúvida, irmãos meus, peritos no debate e na lei. Não me atrevo a julgar com tanta facilidade. Além disso, a acusada não passa de uma rapariga. É jovem e manejável; se ela fosse preparada para falar em sua própria defesa, para desdizer e abjurar os seus actos anteriores, talvez a sentença pudesse ser comutada.
Richard não disse nada.
Apercebi-me da entrada de mais pessoas na sala, pela porta. Não olhei para trás. Lá fora, a chuva começou a cair, caindo fortemente no lado de fora das janelas. O dia ficou ainda mais escuro.
Jovem disse o padre Domimc encontramo-nos aqui perante uma certa dificuldade. Dizem-me que tu conheces a nossa língua. Olha para mim, criança. Acena com a cabeça se me estás a compreender.
Consegui fazer um ligeiro aceno com a cabeça. Não me posso deixar cair na armadilha de responder às perguntas erradas. Não lhes posso dizer nada da minha história. Mas sentia-me cansada, demasiado cansada para pensar com clareza. A chuva começou a cair com força, tamborilando no telhado. Pensei se Red estaria ao ar livre, algures e se teria um lugar seco para dormir. Pensei se teria alguma hipótese, a mais remota, de tecer uma manga inteira numa noite e cosê-la à última camisa, de manhã.
Óptimo. Agora, responde-me. És culpada destas acusações? Descobri que não conseguia responder. De que valia a pena? Porquê
concordar, ou discordar, se Richard estava determinado a declarar-me culpada?
Não respondes? Nem sequer com um aceno de cabeça? Tens de reconhecer que isso significa uma admissão de culpa.
Olhei para ele em silêncio. A sua testa pálida estava franzida e os olhos perturbados.
Que havia ela de dizer perguntou Richard contra tais acusações? É claro que a rapariga é adúltera e espia. Ela caiu sobre esta casa como uma criatura do demónio, que suga a vida das suas vítimas. Abusou da confiança da minha irmã e do meu sobrinho da maneira mais vil. Ela...
A última testemunha continua por encontrar? perguntou o padre Domimc com moderação suficiente. Esse Benedict, o homem de que falastes? Gostaria de ouvir a história dele antes de a sentença ser pronunciada.
Desapareceu, senhor. Os homens à porta mexeram os pés, inquietos. Mandámos buscá-lo, andaram à procura dele, mas os rapazes dos estábulos dizem-nos que ele se foi embora. Por alguns dias, dizem. Foi visitar a família, pensam eles.
Vi os olhos de Richard estreitarem-se ao ouvir aquela notícia e chamou um dos seus homens. Após uma troca de palavras precipitada, o homem saiu da sala rapidamente.
A sério? O padre Domimc traçou uma linha em diagonal na página onde tomava notas. Virou-se para Richard e o seu tom era muito frio.
Esta testemunha era importante. Devia ter sido ouvida. Não fizestes qualquer tentativa para o manter aqui? Contais com os vossos moços de estrebaria para vos darem informações exactas?
Não sabia que ele se tinha ido embora, padre. E era verdade, podia vê-lo no rosto de Richard, onde havia uma ira mal disfarçada.
Bem, é evidente que esta testemunha não será ouvida. Não há mais depoimentos? perguntou o padre Domimc, correndo os olhos pelo povo reunido.
Eu... eu gostaria de fazer uma pergunta, se me permitis. Lady Anne parecia invulgarmente hesitante. As cabeças viraram-se para onde ela estava, a um canto do salão.
Muito bem, fazei a vossa pergunta. O padre parecia cansado. Fora um dia longo. Muito longo.
Se Jenny... se a rapariga é culpada, sei que o castigo é a morte. Mas... mas e se ela estivesse grávida? É possível, até provável. Essa criança seria o herdeiro de Harrowfield; filho do meu filho. Não gostaria...
Senti-me corar de vergonha e humilhação. Mas, ao mesmo tempo, bem no fundo, sabia como ela se sentia. Essa criança seria minha, meio filho de Erin; na sua consideração seria um selvagem, um fanático e um inimigo visceral de tudo aquilo que ela prezava. Mas a criança também seria de Red; de um filho cujo pai, e cujos pais dos pais tinham sustentado a vida do vale. Poderia dizer-lhe que não tinha criança nenhuma no ventre. Mas fiquei imóvel, como uma pedra, desejando que o meu rosto acalmasse. Não me esquecia que era a filha da floresta, nem por um instante. E uma coisa que eu ouvi uma vez, há muito tempo, entrou-me na mente e voltou a sair antes de ter tempo de a agarrar. Algo que me fora contado recentemente... em que alguém não era de Bretanha nem de Erin, mas de ambos ao mesmo tempo... onde ouvira eu aquela história? Sentia-me tonta, não me conseguia lembrar.
Olha para mim, rapariga. O padre Domimc estava de pé, os olhos perspicazes fixos em mim. Trazes uma criança no ventre? Uma criança do teu marido?
Richard deu uma gargalhada grosseira.
Isto é espantoso! Esperais uma resposta honesta? Esse bastardo pode ser de um qualquer. A rapariga não passa de uma prostituta barata, em qualquer mercado. Até o tentou comigo, há um dia ou dois atrás. Pensou que podia comprar a liberdade abrindo as pernas. A putéfia não tem vergonha nenhuma.
Chega. Ao ouvir a voz do padre Domimc, Richard fechou imediatamente a boca. Bom povo desta assembleia, esta fase da audiência está concluída. Lorde Richard e eu vamos reunir-nos para ponderarmos a sentença. Chamar-vos-emos de novo depois do jantar e nessa altura o nosso veredicto ser-vos-á comunicado. Se houver uma pena a aplicar, ela será conhecida amanhã de manhã. O povo começou a arrastar os pés na direcção da saída, os movimentos presos por tantas horas sentados. O padre Domimc virou-se para Richard. É melhor voltar a prender a rapariga. Assegurai-vos de que ela come alguma coisa; arriscais-vos a perdê-la antes que alguma pena possa ser proferida. Talvez devêssemos retirar-nos para uns aposentos mais reservados, para discutirmos melhor este caso.
Para mim, é suficientemente claro. Richard parecia quase petulante.
Não ouvi mais nada, porque os meus guardas seguraram-me pelos braços e fui levada de volta para a minúscula cela. Alguém me levou pão e água, comi e bebi e pouco tempo depois o meu estômago rejeitou até a mais pequena migalha, como se, na realidade, estivesse grávida. Na cela fria, húmida, na escuridão, apalpei em busca do meu trabalho e encontrei-o. Sabia que era a última noite. As minhas mãos seguraram no pequeno tear, procuraram a lançadeira, o novelo da fibra fiada e comecei a trabalhar.
Foi inútil, claro. Era impossível acabar aquela manga, fazer outra e coser as duas numa única noite, sem sequer uma vela para me guiar. Mas continuei a trabalhar. És teimosa, não és? Talvez tivesse um pouco mais de tempo. Richard descrevera a mistura de Eamonn de Marshes, que destruía tudo menos os ossos. Talvez esperasse até ser noite, para ter um espectáculo melhor. Lá fora, a chuva continuava a cair. Era bom para os carvalhos pequenos. Richard estaria à espera de tempo seco. Não se consegue uma boa fogueira com chuva.
À medida que a madrugada se aproximava, como que preparando-se para uma cremação, a chuva parou e levantou-se uma brisa fria. Ouvi uma coruja a chamar no último silêncio antes da madrugada. E desapareceu, voando para o profundo abrigo das árvores. O Sol nasceu e as aves diurnas começaram os seus cantos doces. Tentei, sem grande sucesso, afastar os pensamentos que ameaçavam submergir-me. A última chuva. A última coruja. A última madrugada.
Vieram buscar-me cedo, dois homens enormes com as cores de Northwoods. Ninguém me disse qual tinha sido o veredicto e eu não podia perguntar. A primeira manga estava grosseiramente acabada e segura às outras partes da camisa por um ou dois pontos. A segunda ainda nem sequer estava começada. Não permitais que seja agora, já, pedi silenciosamente. Agora não, ainda não, por favor.
Não me levaram para o salão, para ouvir ler a sentença perante a assembleia do povo. Em vez disso, fui levada para uma câmara no andar de cima, onde a única pessoa presente era Lorde Richard de Northwoods. Fiquei tolhida de medo, quase para além de qualquer sentimento e o meu rosto deve ter mostrado surpresa.
Mudança de planos, receio disse ele suavemente. Estava ao pé da janela, uma figura imaculada, do cabelo encaracolado até às botas polidas. Usava uma túnica verde-suave, com roupa branca de linho por baixo, branca como a neve. Fiquei em pé na frente dele, no meio da sala, as mãos ao lado do corpo. Obedecendo a uma ordem muda, os guardas retiraram-se para o lado de fora da porta. O nosso instruído amigo foi chamado inesperadamente. Saiu logo a seguir ao jantar, ontem à noite, de facto. Parece que alguém espetou uma faca no padre da paróquia, no outro lado do monte, em Elvington. O padre Domimc teve que ir para lá. Nem sequer teve tempo de me ajudar a pronunciar o veredicto. Não foi grande perda, tenho de admitir. Muito convicto. Difícil de convencer. Não que se tenha ido embora sem me dar a sua opinião. Fez uma pausa momentânea. Requintadamente programada.
É claro que nunca houve qualquer dúvida da tua culpa disse Richard e já não brincava, antes estava mortalmente sério. Culpada de passar segredos para o inimigo. Culpada de enganar o marido e quebrar os laços matrimoniais. E culpada de feitiçaria. O peso das provas contra ti foi esmagador. Aproxima-te, Jenny. O uso do nome por ele fez-me arrepiar. Não queres? Então, vou eu até ao pé de ti. Atravessou a câmara para se pôr diante de mim, os olhos brilhantes de antecipação. Sabes qual é a pena para estes crimes. Não o simples desterro-, nem o sequestro num convento onde poderias viver os teus dias confortavelmente. Oh, não. Fizeste muitos danos aqui. Danos muito sérios. Baixou a voz. Tens sido um espinho na minha carne e eu sinto uma alegria imensa em arrancá-lo de uma vez por todas. A pena é a morte. E tu já conheces o método. O dedo dele subiu para me percorrer o pescoço, lentamente. A última vez que tentara aquilo, Red quase lhe partira o braço. Mas Red não estava ali.
O agradável disto tudo é que temos o dia todo para pensar nisso disse ele suavemente. Portanto, enquanto eu saio e vigio a construção de uma fogueira muito especial, vou permitir que fiques aqui, guardada, claro. Esta sala é mais quente e mais confortável; e poderás ver-me daquela janela ali. Talvez até se arranje um pouco de comida e bebida; uma última refeição para a condenada. Bem, adeus, minha querida. Foi... interessante... conhecer-te. Encontrar-nos-emos de novo ao anoitecer, por breves instantes. Achei que ao anoitecer seria melhor. Mais atmosférico, não achas? Para dar ao povo um verdadeiro espectáculo, algo para poderem contar aos netinhos. Adeus, minha querida.
O meu coração começou a bater descompassadamente.
Mas... mas...
Quebrei as minhas próprias regras e aproximei-me dele, puxando-Ihe a manga, gesticulando selvaticamente.
As minhas coisasfiar, tecer aqui? Trazer aqui?
Ele não me podia fazer uma coisa daquelas. Não podia. O seu pequeno sorriso era um triunfo de ódio e satisfação.
Oh, não, não me parece. Tenho que cumprir a minha parte. Pior para ti, se não conseguiste acabar a tarefa. Não me posso arriscar, se quero receber o que me prometeram. Além disso, tens andado a trabalhar demasiado, minha querida. Faz uma pausa. Diverte-te, para variar. Saiu porta fora e os dois guardas seguiram-no, fechando-a.
De todos os dias do meu longo silêncio, há dois que permanecem, claros, na minha memória, com todos os pormenores. Um foi o dia em que corri ao longo da praia no meu vestido azul, ouvi a história de Toby e da sereia e recebi o meu anel de noivado. O outro foi o dia da fogueira. Fiquei à janela uns momentos e vi-os a construí-la, uma rima perfeita de troncos de freixo que arderiam sem fumo, colocados em volta de um mastro central. Construíram-na no pátio, suficientemente longe da casa para que o fogo não se espalhasse desconsoladamente; suficientemente perto para permitir um belo panorama, do pátio às janelas superiores.
Era difícil acreditar que Harrowfield tivesse descido tão baixo. Não conseguia imaginar Lady Anne, Megan, Ben, ou Margery, regozijando-se com semelhante panorama. A maior parte dos homens de Red virariam as costas a tal barbaridade. Mas os homens de Red estavam, estranhamente, ausentes. À medida que o dia passava, uma fila contínua dos trabalhadores de Richard iam e vinham, a pira ia tomando forma e estava quase pronta. Podia ver-se como a condenada seria presa ao mastro e os pés pousados numa estreita plataforma ali construída. Podia ver-se como a madeira seria ateada por baixo, onde uma grande quantidade de galhos secos tinham sido colocados entre os grandes toros e como as chamas pegariam, subindo primeiro lentamente, depois mais rapidamente e... Richard estava atarefado, dando ordens a um trabalhador aqui, ajustando um cavaco ali; e quando tudo ficou feito a seu gosto fez com que dois dos seus homens trouxessem um pequeno baú, que ele abriu com cuidado. Tinham construído uma plataforma ao lado da fogueira, uma estrutura atabalhoada, que certamente arderia no momento em que as chamas atingissem um certo ponto. Talvez tivesse sido feita com a intenção de também arder para ajudar ao espectáculo. Richard subiu os degraus até àquela plataforma, fez com que os homens colocassem o baú a seu lado e, metendo a mão lá dentro, retirou o que pareciam ser uns paus. Deslocou-se cuidadosamente até à pira e começou a colocá-los, com algum cuidado, na camada superior, um aqui e outro ali, a toda a volta. Levou o seu tempo, parando frequentemente para admirar a sua obra de arte. Eram, suponho, os toros de que ele me tinha falado com tanta troça, toros cedidos por Eamonn de Marshes, traidor do seu próprio povo. Embebidos numa mistura cuidadosamente calculada de componentes especiais. Quando acesos, ver-se-ia algo digno de se ver.
Tornou-se evidente que eu não ia reaver o meu trabalho a tempo. Sabia que ia arder comigo ao anoitecer. Não havia escolha possível. Uma vez desaparecida, os meus irmãos não teriam qualquer oportunidade. A Dama da Floresta fora específica. As seis camisas tinham de ser feitas, do princípio ao fim, pelas minhas mãos. Então, quando estivessem prontas, teria, eu própria, de as enfiar pelos pescoços dos cisnes. As seis no mesmo local, uma após outra. Só então, se me tivesse mantido calada, o feitiço seria quebrado. Não os ia deixar matar-me, não sem primeiro ter tentado. Tenho de tentar, apesar de parecer não haver qualquer esperança, porque aquela seria a última oportunidade dos meus irmãos. Não conseguiria acabar a sexta camisa. Mas tinha de os chamar. Talvez, talvez fosse o suficiente.
Afastei-me da janela, sentei-me no chão de modo a olhar directamente para o céu, para ocidente. Para não ver os homens nem o que estavam a construir. Comecei a respirar lentamente e tentei não pensar no que quer que fosse, até que a minha mente ficou vazia e tranquila, como uma pedra no coração da floresta. Dirigi as minhas energias para o meu irmão Conor, algures para além do mar. Toda a força do meu pensamento, toda a minha força de vontade. Visionei-o na minha mente. Alto, pálido, o espírito de um ancião no corpo de um jovem. Rosto pálido, cabelos emaranhados, vestido de trapos.
Conor. Tens de vir já. É hoje, ao anoitecer. Um silêncio de morte, à excepção do ténue som de marteladas.
Conor. Por favor, escuta-me. Vem ter comigo ao pátio da grande casa que te mostrei. Tens de estar aqui ao anoitecer. Trá-los. Trá-los a todos. Nenhuma resposta. Talvez, afinal de contas, fosse demasiado longe. Trá-los. Esta é a última oportunidade. Tens de os trazer. Ouviu-se uma pequena brisa do lado de fora da janela e um pássaro cantou. Foi tudo. Talvez ele não me pudesse ouvir. Mas ele tinha dito, chama e nós viremos.
Parecia que os homens faziam muitas promessas. Finbar dissera uma vez, estarei sempre presente para ti e eu acreditara nele. Red dissera, eu voltarei.
Estremeci. E se os homens de Richard o tivessem interceptado, se...? Sem Red, Harrowfield ficaria fria e sem vida. Até já estava a mudar.
Mais tarde, levaram-me para que eu fizesse as minhas necessidades e trouxeram-me de novo. No caminho, ouvi vozes de mulheres, discutindo no andar de baixo. Ouvi alguém dizer, padre Domimc, mas não apanhei o resto. Não vi ninguém. Então, trouxeram-me comida, mas não lhe consegui tocar. Finalmente, enrosquei-me a um canto, meio a dormir, meio acordada. Lá fora, as marteladas tinham cessado e tudo estava tranquilo. Uma luz suave entrava pelas janelas, transformando as partículas de poeira numa névoa quente.
Podia ter sido um sonho ou outra coisa qualquer. Pensei que os meus olhos estavam abertos. Mas vi-as clara e nitidamente, como uma imagem pintada num grande livro. A princípio acreditei que estava a recordar tempos passados, quando me sentava com os meus irmãos nas rochas macias à beira do lago, observando os corpos prateados e brilhantes dos peixes, deslizando sob a água. Mas aquelas crianças não pertenciam a Sevenwaters. Havia uma rapariga, alta e robusta, de faces coradas e uma cascata de cabelos brilhantes, como um lençol de chamas. Havia um rapaz de cabelos escuros, deitado nas rochas e olhando para cima, para o céu, com olhos límpidos como a água, que viam longe, tão longe.
Os cisnes estão a chegar, disse ele sem se mover. Vão chegar hoje. A rapariga estava deitada ao lado dele, de barriga para baixo, e mergulhava os dedos na água gelado do lago.
Como podes estar tão certo? perguntou ela. Tens sempre a certeza de tudo. Parecia-me que havia outra criança, no canto da imagem, mas não conseguia vê-la com nitidez. Então a imagem esfumou-se e desapareceu.
São os teus filhos, disse a pequena voz. E calou-se.
Podiam ser os meus filhos, pensei, enquanto a minha mão subia para segurar no anel suspenso no meu pescoço e na pedra furada com os seus sinais nanicos. O meu filho, a minha filha. A pequena pedra estava gravada com o sinal secreto Nuin, que significava o freixo. Mas também significava o N de Niamh, que era o nome da minha mãe. Niamh, a minha filha, de cabelos brilhantes como faróis, como chamas na água. Não pude impedir que as lágrimas me corressem pelas faces e chorei, chorei até o rosto me inchar, a cabeça me doer e a luz, que entrava pelas altas janelas, começar a enfraquecer e morrer. O dia já quase tinha terminado.
Quando me vieram buscar, já não tinha lágrimas. E assim caminhei, de rosto vazio, entre os guardas, para o pátio, enquanto alguém rufava lentamente num tambor e as tochas, uma após outra, brilhavam, espetadas em estacas, de cada lado do caminho até à pira. Reunira-se uma grande multidão e ouvi fragmentos de palavras enquanto passava... leva a cabeça bem direita... não é bem humana, ouvi dizer... eu estaria aos gritos... espera até as chamas a apanharem... então, vais ouvi-la cantar bem alto...
Olhei uma vez para trás e vi um homem transportando o meu cesto, um outro a roca, o fuso e o tear e todos os outros meus pertences. Até as minhas velhas botas vinham ali. Parecia que era tudo para arder. Não ficaria qualquer rasto de mim para envenenar a casa de Harrowfield. Por favor, roguei eu silenciosamente. Por favor, ponde as camisas onde eu lhes possa chegar. Por favor, não me ateis as mãos. Os guardas tinham rostos severos. Senti que não alimentavam qualquer prazer pelo dever que tinham que desempenhar, mas eram forçados a obedecer. Eram bons homens, penso; depois do fogo iriam para casa, para as suas mulheres, beijariam os seus filhos e talvez reflectissem, por uns momentos, no que tinham feito. Eram as normas do poder exercido por Richard, todos tinham de obedecer às suas ordens sem fazer perguntas.
O céu estava a mudar de cor; os primeiros tons púrpura do crepúsculo começaram a substituir o azul do fim de tarde. Chegámos à pira de freixo e à plataforma com os seus degraus bem construídos. E Richard estava lá, resplandecente numa túnica de veludo e, prata brilhante ao pescoço. Usava um anel com a forma de um falcão, com olhos cor de rubi. O tambor parou de rufar. A multidão silenciou. Vi alguns rostos familiares. Lady Anne não estava presente, nem Ben. Não consegui ver Margery. Mas Megan estava lá, o rosto redondo branco à luz das tochas, as maçãs-do-rosto sobressaindo na palidez. Tinha profundas olheiras sob os olhos. Levaram-me até à plataforma onde estava Richard. Uma pequena tocha ardia num suporte, na base da pira. Não tinha dúvidas quanto à sua posterior utilização. O meu coração batia desconsoladamente; não precisava do rufar dos tambores. O céu escureceu até ficar da cor acinzentada da alfazema; para ocidente, o pôr do Sol dava às nuvens uma cor rosa.
Estais aqui reunidos para testemunhar uma sentença adequada e legal anunciou Richard grandiosamente. A multidão mexeu-se. A acção contra esta rapariga, conhecida como Jenny, foi totalmente ouvida ontem. As testemunhas foram chamadas e os depoimentos apresentados provaram ser condenatórios e irrefutáveis. Já conheceis o veredicto. A rapariga apresenta-se perante vós culpada de dar abrigo a um fora-da-lei, de espiar e praticar as artes do demónio, em aditamento à sua conduta adúltera. A pena para estas ofensas é a morte. Nisto o padre Domimc e eu concordámos plenamente. A recusa da rapariga em se defender é uma clara admissão de culpa. Bom povo, com esta morte pelo fogo, removemos a gangrena demoníaca que estava profundamente enterrada no coração de Harrowfield. Com a morte dela, a paz e a prosperidade podem voltar a esta casa e a todo o vale. Convido-vos a que testemunheis. Houve alguns aplausos e alguém gritou:
Despacha-te com isso, então!
Mas a multidão parecia pouco à-vontade. Ouviam-se resmungos e murmúrios, como se, agora que se tinha chegado ao que toda a gente dizia que mais tarde ou mais cedo aconteceria, não houvesse assim tanta certeza. E uma voz familiar gritou:
Vergonha! Vergonha! Jenny salvou a minha vida e a do meu bebé, Não podeis fazer isto! Margery estava ali, algures e não parecia ter medo de falar por mim. Então, mais alguém gritou também:
E Lorde Hugh? O que pensa ele disto?
Richard fez um pequeno movimento com a mão e de repente apareceu uma linha de homens, em frente da multidão, aguentando a pressão de todos aqueles corpos. As vozes dissidentes foram afogadas pelos gritos de
Queimem a feiticeira!
Morte à espia nojenta!
Ela que arda!
O barulho cresceu enquanto eu era arrastada pela plataforma até ao rebordo estreito em volta do mastro central. A pira fora habilmente erigida em volta daquele ponto, o topo mesmo por baixo do rebordo. Aqui e ali podia ver os pequenos toros que Richard colocara, tão cuidadosamente, com as suas próprias mãos. Via-se um brilho oleoso em cada um deles. O guarda pegou numa grossa corda e atou-me com firmeza ao mastro. Uma, duas, três em volta da cintura e das costas, onde eu não poderia chegar. Mas deixou-me as mãos livres.
Em baixo, a excitação crescia. Alguns assobiavam, outros chamavam-me nomes feios e alguém me atirou um fruto podre, que caiu, com um ruído surdo, entre os toros. As pessoas discutiam. Os guardas esforçavam-se por manter a multidão afastada. Consegui ver Margery, mesmo por trás de Megan, o rosto cheio de lágrimas. Gritava, mas eu não lhe conseguia ouvir as palavras. O tambor recomeçou a Rufar e eu pensei estupidamente, agora um assobio, e um violino, e toca a dançar. Os guardas que seguravam nas minhas coisas estavam na base da pira. Um deles atirou o fuso, a roca e o pequeno tear para a pira. Ouvi o som quando os objectos chocaram contra a madeira e se estilhaçaram. O guarda com o cesto hesitou, olhando para mim. Era o mesmo homem que me tinha levado as amoras à cela, quando me julgara sem um único amigo no mundo.
Despacha-te, homem disse Richard, irritado.
As mãos dele, pensei, devem estar mortas por pegar naquela tocha. A ocidente, as nuvens estavam levemente cor-de-rosa. Levantou-se uma pequena brisa, arrastando as folhas pelo pátio. As pessoas começaram a cobrir-se com capas.
Por favor, põe-nas nas minhas mãos. Oh, por favor. O guarda não me podia ouvir; tentei falar com os olhos, com o coração. Ele levantou o cesto. Um pouco mais perto, não consigo chegar. Por favor, oh, por favor.
Não é preciso isso disse Richard rispidamente. Atira tudo para o fogo. O que é preciso é que ardam.
Mas o homem subiu para os toros de freixo, mais alto, levantou o cesto até ao rebordo, mesmo ao lado dos meus pés e eu agarrei-o com ambas as mãos, como se fosse uma corda salva-vidas.
Que estás a fazer, homem? estalou a voz de Richard. Desce daí, a não ser que também queiras arder. O homem olhou para ele, depois para mim e os seus olhos espelhavam compaixão e repugnância.
É a última vez que me obrigais a fazer este trabalho resmungou ele. Não passa de uma criança.
Levou o seu tempo a descer de novo, enquanto os dedos de Richard se torciam de impaciência. O último raio de sol desapareceu na linha do horizonte. O vento veio em pequenas rajadas, fazendo as tochas brilhar e empalidecer, brilhar e empalidecer. As folhas voavam em círculos, no chão. Ateado por aquele vento, o fogo arderia de maneira extremamente quente.
Vinde agora. Vinde agora. Onde estais?
Não conseguia ouvir nada, nada senão o vento a aumentar, soprando de modo estranho, de um lado e de outro. Apanhou-me o cesto, nas mãos. Richard descia os degraus. O vento apanhou-lhe a túnica e desordenou-lhe os cabelos, impecavelmente penteados. As tochas brilharam.
Um súbito silêncio caiu sobre a multidão. Fechei os olhos.
Agora. Tem de ser agora. Despachai-vos.
As pessoas esperavam enquanto Richard se encaminhava com firmeza para a base da pira, onde a pequena tocha ardia no seu suporte. Permaneciam silenciosas. Então, forte, clara e inocente, à luz do crepúsculo, ouviu-se a voz de uma criança:
Olhe, mãe! Olhe além!
Como fantasmas, como grandes espíritos altaneiros, voavam pelos céus, de asas abertas, em fila atrás do líder, os longos pescoços, as grandes asas, brancas como a crista de uma onda, batendo a um ritmo solene. Circularam em volta do pátio onde estávamos e os olhos da multidão seguiram o voo deles. Um, dois, três, quatro, cinco. Finbar fora sempre o último a aparecer.
Descei. Descei até mim.
Fizeram um outro círculo e vi Richard esticar o braço na direcção da tocha. Então, eles deslizaram até ao chão, até à plataforma perto de mim. Amontoaram-se desordenadamente, os olhos selvaticamente confusos, as patas com membrana interdigital batendo nas tábuas ásperas.
Agora, Sorcha. Agora.
Não havia tempo para perguntas. Não havia tempo para olhar para o cada vez mais escuro céu, em busca do outro. Meti a mão no cesto, peguei numa camisa e passei-a pelo pescoço arqueado da primeira grande ave. A multidão resmungava e sussurrava.
Depressa, Sorcha.
Onde estava ele, onde estava Finbar? Ainda sobre o mar? Deixado para trás, demasiado cansado para voar até tão longe? Onde estava ele? Tirei a segunda camisa e depois a seguinte.
Que feitiçaria demoníaca é esta? A voz de Richard era uma rosnadela e ouvi a tocha raspar no suporte quando ele a agarrou. Que familiares chama ela em seu socorro? Vão arder todos! Todos! E levou a tocha até à camada mais baixa, onde os paus de vidoeiro e salgueiro se retorciam no meio dos toros de freixo. Ouviu-se um ligeiro estalido e um raio de luz. A multidão arfou a uma só voz.
A quarta camisa. A quinta. E fiquei com a última nas mãos, a última, que só tinha uma manga e que estava cheia de porcaria, sangue e lágrimas.
Depressa, Finbar. Depressa.
Os cisnes arrastaram-se em conjunto de modo estranho, esticando os longos e vulneráveis pescoços para o céu. As camisas de morugem caíam-lhes, folgadamente, pelos grandes corpos brancos.
Agora, Finbar!
Os meus olhos iam de um lado para o outro, perscrutando o céu, a multidão. Não olhei para baixo, para os meus pés, onde o fogo começava a crescer, espalhando-se, consumindo um pau e depois outro, ateado pela brisa caprichosa. Senti o calor nos pés e nas pernas, a tiragem fazendo-me voar a saia do vestido. Ainda não sentia dor; ainda não. Os cisnes afastaram-se, as chamas reflectidas ainda com mais força nos seus olhos assustados. O céu estava escuro; não via aves nenhumas. Na parte de trás da multidão, as pessoas empurravam-se e exclamavam. Olhei nessa direcção. Directamente para um par de olhos da cor de sombras geladas; para um rosto que vira tantas vezes nos meus sonhos. Estava totalmente exausto, o rosto selvaticamente aterrorizado e furioso. Tinha uma recente e profunda cicatriz na face esquerda e nódoas negras em volta de um dos olhos. Avançava firmemente, afastando a multidão com os ombros, sem se ralar com quem afastava. Por trás dele, outros dois homens, um de cabelos loiros e com as cores de Harrowfield na túnica. O segundo, jovem, alto e bem-feito. Um homem com os cabelos da cor de um campo de cevada ao sol do Verão e uns olhos de um azul da cor da pervinca.
Lorde Hugh exclamava o povo. Lorde Hugh regressou. E diziam: Simon. Vede, é Mister Simon!
As chamas começavam a lamber a segunda camada de toros. Tentei levantar um pé, depois o outro. Começava a doer muito. Por cima de mim, o vento fustigava e virava, um vento estranho, intruso, como nunca vira. E no meio daqueles turbilhões apareceu outro cisne, voando lentamente, tão lentamente, como se apenas tivesse forças para mover as suas grandes asas. As pessoas apontaram para cima.
Deixai-me passar! gritava Red. Deixai-me passar!
Mas estava preso pela vaga de gente, estendendo os pescoços para ver o cisne, ou para ver o fogo e a sua voz perdia-se no tumulto provocado pelas conversas e gritos, no meio de toda aquela excitação. O calor subia dos toros de freixo; a ave solitária derivou no sentido do solo, para onde eu estava, segurando a última camisa de morugem. Por baixo dos meus pés nus a madeira ardia.
Depressa, Finbar, depressa.
O cisne voava em círculos, como que inseguro do sítio onde pousar.
Depressa.
As pessoas começaram a mexer-se para deixar passar Red, talvez devido à maneira como ele gritava, talvez devido à pequena e aguçada faca que surgira na sua mão. Junto da pira, Richard estava imóvel, observando-me, cego para tudo, excepto para o seu momento de vitória As chamas tornaram-se mais altas, subindo firmemente. Já estavam quase a lamber um dos primeiros gravetos especiais. Um fogo quente, que queima e brilha, não deixando nada senão ossos.
Jenny! gritou Red, afastando dois dos homens de Richard Jenny! O seu rosto estava branco como a cal. E eu vi qualquer coisa a brilhar, qualquer coisa reflectindo a luz da fogueira, lá no alto, muito acima das cabeças da multidão. Numa das janelas da casa, sobranceira ao pátio, estava um arqueiro a postos, de arco em punho, o dedo pronto na corda. Não me estava a tentar alvejar, nem ao sexto cisne que continuava a voar em círculo por cima da multidão Não estava a tentar alvejar Ben, nem o homem de cabelos dourados, que seguia o seu irmão através da multidão de boca aberta e olhos esbugalhados. Tentava alvejar Hugh de Harrowfield, que surgia com a cabeça e os ombros acima das pessoas em redor, cujo cabelo brilhante, como uma bandeira de guerra. o tornava um alvo nítido e fácil Richard dissera-me, enquanto me provocava na cela, que me queria fora do seu caminho antes da chegada de Red. Dissera que talvez precisasse de um adiamento. Uma diversão, chamara-lhe Richard. Aquilo era mais do que uma diversão.
Ninguém viu. Ninguém, a não ser eu. Senti, mais do que vi, um ligeiro movimento da mão no arco, a inclinação e a mira firme. Os meus olhos voltaram-se de novo para Red, enquanto ele lutava contra o mar cerrado de gente. Os meus pés começavam a entrar em agonia e a barra do meu vestido principiava a queimar. Então, uma rajada de vento surgiu do nada e arrebatou-me a sexta camisa de morugem, para cima, para o alto, para longe do meu alcance. Red estava encurralado por dois guardas, os corpos sólidos destes evitando que ele fizesse qualquer movimento. O arqueiro ficou estático.
Gritei:
Red, cuidado! Atrás de ti! A minha voz saiu-me áspera, quebrada e fraca devido a anos de silêncio. Mas ele ouviu-me, virou-se e a seta apanhou-lhe o ombro com um baque sofredor.
A enormidade do que eu fizera foi como que um golpe que me trespassou o coração. Após todo aquele tempo, após tudo aquilo por que passara, falei. Não fui capaz de me conter. Quebrara o silêncio. Havia chamas por todo o lado; a plataforma ao lado da pira estava a começar a ficar negra. Havia pequenos sons crepitantes e explosivos que vinham da camada superior de madeira. Fiquei a olhar sem expressão enquanto Red esticou o braço e partiu a haste da seta em duas, como se partisse um graveto; e arrancou a outra parte, os dentes cerrados numa careta de dor E continuou a forçar a passagem. E agora a multidão afastava-se para o dei- xar passar e ele chegou rapidamente à base da pira. Richard esticou um braço para o impedir, as feições inundadas de raiva e recebeu um soco no rosto que o atirou, cambaleante, para cima da multidão. Em seguida Red saltou através das chamas e do calor para a segunda camada de toros, as botas ágeis na madeira em combustão, subiu até ao topo e cortou uma vez, duas vezes com a pequena faca, a corda que me prendia. O rosto dele estava branco como a morte. As chamas já lambiam os toros mais altos. Ele agarrou-me pela cintura, atirou-me para o ombro como um saco de vegetais e saltou de novo, desta vez de maneira esquisita, de modo que aterrámos os dois no meio da plataforma de madeira em combustão, ao lado da pira. Um instante mais tarde viu-se um brilho súbito, uma deslocação de ar e o fogo começou a ficar estranhamente verde, com uma luz muito brilhante, iluminando o pátio todo, abrindo bocas e esbugalhando olhos, fazendo brilhar a figura de um arqueiro recuando cuidadosamente da janela aberta, iluminando as feições espantadas de Richard de Northwoods, nas quais o medo se misturava com a raiva.
Senti os braços de Red em redor de mim, como um escudo contra o resto do mundo. A boca dele estava encostada ao meu cabelo e o seu coração batia-me violentamente contra o rosto. Fechei os olhos, agarrei-me à camisa dele com ambas as mãos e comecei a chorar. Perdera-os. Perdera-os a todos. Como? Como? Como pudera eu falar, depois de tanto tempo, depois de todo aquele tempo, como pudera deixar sair as palavras, antes que o feitiço fosse quebrado? No entanto, no meu coração, sabia que não podia ter ficado calada, porque naquele momento a única coisa que interessava era que Red vivesse. Salvara-o; mas perdera os meus irmãos.
O fogo ardia em tons de verde e dourado e ouviam-se pequenas explosões e estalidos. Cheirava a penas chamuscadas. A multidão teve um grande sobressalto, depois outro e desatou num murmúrio de sons. Sob as minhas faces, a camisa de Red estava molhada de sangue e lágrimas.
Está tudo bem dizia ele vezes sem fim. Está tudo bem, Jenny, está tudo bem. Nenhum de nós parecia capaz de se mexer. Então, de repente, senti o braço dele apertar-me os ombros com força.
Toca-lhe com um dedo disse ele suavemente e eu mato-te.
Sou irmão dela, louco disse alguém numa língua que Red não compreendia. Eu não me podia voltar, de tal maneira ele me apertava
Ele não te compreende, Diarmid.
Não conseguia acreditar, mas a voz de Conor continuou, traduzindo tranquilamente.
Nós somos irmãos dela e viemos para levar Sorcha para casa. Não faremos mal a ninguém se nos arranjares um salvo-conduto para sairmos das tuas terras. A nossa irmã já não precisa da tua protecção. Por um instante, o braço apertado em redor de mim apertou ainda com mais força; e depois abrandou. Girei para me atirar nos braços de Conor como uma criança e em breve todos eles estavam à minha volta, Liam exclamando, Diarmid praguejando, Cormack e Padriac já armados com curtas espadas habilmente subtraídas a dois homens que jaziam gemendo nos primeiros degraus. Diarmid perscrutava a multidão, medindo a oposição, medindo a distância a percorrer. Comecei a aperceber-me de que estávamos muito expostos, na plataforma e que os rebordos, não muito longe do local em que nos encontrávamos, começavam a arder.
Estás a pensar sangrar até à morte, ou esperas pelo fogo? Ben apareceu do nada, o cabelo dourado, brilhante, à luz das chamas. Inclinou-se e obrigou Red a levantar-se, com um esgar. Caso não tenhas reparado, isto queima. Vamos. Meteu um braço sob o ombro são de Red e começou a arrastar o amigo pelos degraus abaixo. Red olhou para trás, apenas uma vez. Pensei que não seria possível vê-lo mais pálido, mas estava; e as suas feições não tinham qualquer expressão. O lado esquerdo da sua camisa estava ensopado de sangue.
Vamos, Red disse Ben. A tua mãe está ali e o teu irmão também. Não precisas de ficar aqui. Além disso, ninguém quer um herói morto. Quanto a vós olhou por cima do ombro na direcção dos meus irmãos o meu conselho é que saíeis daqui o mais rapidamente possível. Arranjai maneira de ir até à casa. Por agora, ficareis lá em segurança. Leváva-vos lá eu próprio, mas como vedes... E desapareceram.
Cormack desceu os degraus, de espada na mão, com Conor logo a seguir comigo ao colo e os outros na retaguarda.
Onde está Finbar? sussurrei, mas ninguém me ouviu. O barulho era ensurdecedor. Vozes gritavam, aqui e ali o tinir de espadas, os estalidos e o grande fragor da grande fogueira, à medida que queimava a madeira de freixo, a lenha e tudo o mais a que podia chegar. As chamas eram monstruosas, como torres, as pontas raiadas de verde e laranja. A saliência onde eu estivera desaparecera e o mastro ardera por completo. À nossa volta, a multidão avançava e havia homens com punhais e espadas e com o medo nos olhos. Não havia passagem, maneira de alcançar a casa em segurança. Os meus irmãos formaram um anel apertado à minha volta, mas a multidão aproximava-se e a situação tornava-se muito feia. Entre eles, havia aqueles que tinham vindo ver uma feiticeira a arder e sentiam-se enganados. Havia aqueles que viam apenas que o inimigo estava no seio deles, armado e perigoso. E havia os homens de Richard, que tinham determinadas ordens para cumprir.
Não acredito que tenhamos sido salvos para morrer às mãos de uma multidão bretã rosnou Cormack, tentando, com pouco sucesso, abrir uma clareira através da multidão irada e vociferante. Um homem amaldiçoou-o e Cormack levantou a espada. Os braços de Conor apertaram-me com mais força.
Isto não está nada bom concordou Liam, levantando o braço e deixando-o cair, atingindo um homem, que caiu no chão. Por trás dele, outros caíram, tropeçando no primeiro. Um grupo de guardas, com as cores de Northwoods, começou a avançar para nós.
Bom povo de Harrowfield! Uma voz ouviu-se, forte, áspera e autoritária. Testemunhastes uma grande maravilha esta noite. Um milagre, pode-se dizer. Lentamente, a multidão calou-se e virou-se. Montado num cavalo malhado, de costas direitas no seu traje negro, o padre Domimc de Whitehaven olhava para o povo severamente. Seguiu-se um silêncio mortal. Da segurança dos braços de Conor, olhei para cima. Por que estava ali o padre Domimc? Por que voltara?
Esta rapariga esteve muito perto da morte. Mas vós vistes a transformação, como estes jovens regressaram às suas formas humanas devido à fé, à esperança e ao trabalho das mãos dela. Seguramente que o demónio lhes lançou esta maldição e foi pela vontade de Deus que eles se salvaram.
Mais resmungos; cabeças a abanarem, cabeças a acenarem. Sentia-me cansada. Tão cansada. Onde estava Finbar? Onde estava?...
A mão do Senhor pousou sobre esta jovem continuou o padre Domimc, com uma voz que atravessava o pátio todo. Deveis considerar-vos abençoados por terdes visto isto. E agradecidos por a ajuda ter chegado a tempo, porque por pouco não se cometeu aqui, esta noite, um erro de justiça. A rapariga não foi condenada à morte. As acusações contra ela não foram provadas; além disso, quem condenaria uma criança sem o dom da fala para apelar à sua inocência? Acreditei que seria imperativo, no interesse da justiça, que o caso dela fosse suspenso até ao regresso do marido, de modo a que este pudesse falar por ela. Transmiti esse desejo a Lorde Richard, antes de ser chamado a outros assuntos. Tenciono averiguar, em devido tempo, por que razão Lorde Richard escolheu anunciar outro veredicto à assembleia e aplicar a pena tão rapidamente. Não fora Lady Anne, que foi à minha procura hoje e não teria sabido nada desta morte pelo fogo até ser demasiado tarde. E a graça do Senhor não teria caído sobre estes jovens desafortunados.
Reparei, então, que LadyAnne estava ao lado dele, sentada na pequena égua e vestida com roupas de montar. Parecia muito cansada.
Onde está o homem que ordenou isto? perguntou o padre Domimc e eu vi os homens de Richard misturarem-se com a multidão e desaparecerem. Percebeu-se uma certa agitação na orla da multidão, na semiescuridão.
É esse? disse uma voz, algures na multidão. Esse tipo que está com ela ao colo. Esse é que é o fugitivo dos bosques, o bastardo irlandês que quase apanhámos naquela noite. Não me ides dizer que ele só está aqui para uma visita cordial. É esse? Conor olhou por cima e para além daquele mar de corpos e houve um súbito silêncio. Eu sou irmão dela disse ele calmamente, na língua que eles podiam compreender. Somos todos irmãos dela. O silêncio dela afastou as trevas de nós. O esforço dela libertou-nos. Bom povo. Lady Anne falou e havia uma fadiga desesperada na sua voz. Esta noite, vimos, aqui em Harrowfield, coisas maravilhosas e terríveis. Há muitas perguntas por fazer e respostas a dar.
Vedes que...
os meus filhos regressaram; os meus dois filhos e o meu coração está cheio de gratidão por ver que nenhum homem será ferido, ou punido, ou exposto a outra coisa que não cortesia, esta noite. Tentava não chorar, a voz fortemente controlada. Estes jovens são hóspedes na minha casa, por agora. Acredito que Jenny está inocente de qualquer maldade. A mão de Deus não dá a sua bênção àqueles que têm a culpa no coração. Haverá tempo suficiente, amanhã, para explicações e conclusões. Agora, ponde de lado as vossas armas, ide para vossas casas, para as vossas camas e dai-vos por satisfeitos por não ter sido derramado sangue inocente no coração deste vale. Alegrai-vos comigo, por os meus filhos terem regressado a casa.
Ouviu-se um ligeiro viva e as pessoas começaram a dispersar com uma certa relutância. Muitos olharam na nossa direcção; mas os selvagens e desvairados rostos dos meus irmãos, com aqueles olhos ferozes, eram o suficiente para assustar qualquer um. Então, alguns homens da casa vieram para nos escoltar para dentro de casa e para a pequena sala que Lady Anne usava quando recebia hóspedes. Havia um fogão aceso e velas. Conor pousou-me cuidadosamente num banco estofado, perto do fogão. Estavam todos ali, Liam ouvindo, de lábios apertados, Lady Anne e Conor traduzindo; Padriac virando um graveto meio queimado da pira nas mãos, vezes sem conta, tocando e experimentando o resíduo que o cobria; Diarmid e Cormack a meu lado, de espadas nuas nas mãos e os olhos na porta. E na janela mais afastada, olhando para fora, estava Finbar, de costas voltadas para nós. A sua mão direita, pousada aberta na parede de pedra, era fina e transparente, como se tivesse sido esculpida no gelo. E eu pude ver o resultado daquela última camisa, a camisa com apenas uma manga. No lugar do braço esquerdo, o meu irmão tinha ainda a forte e brilhante asa de um grande cisne. Fora o último a regressar e assim, para o resto da sua vida, carregaria aquele fardo, o destino de uma peça de vestuário incompleta, feita de amor, lágrimas e sangue. Não emitiu qualquer som: não se virou para mim, para onde eu estava, rodeada pelos meus irmãos. E a sua mente estava completamente tapada.
Tentei de novo com a voz. Após tanto tempo, não era fácil fazê-la funcionar.
Como é que... eu pensei?...
Conor aproximou-se e ajoelhou a meu lado.
Bem, conseguiste. Parece que foi mesmo a tempo. Tinha um sorriso torcido nos lábios, mas os olhos estavam muito sérios. Esta dama está a dizer-nos que aqui estás em segurança; mas resta saber por quanto tempo. Por agora, precisas de descansar. Finalmente, acabou.
Mas... mas eu falei, falei antes de as camisas... não guardei silêncio! Como é que vocês podem estar aqui e o feitiço quebrado? Mesmo que não conseguisse acreditar, no fim de contas tinham sido salvos. Mas os feitiços das Criaturas Encantadas não são impostos e decididos até ao mais cruel pormenor, de maneira a que o menor passo em falso, o menor desvio às regras faz entrar tudo em colapso em redor da infeliz vítima? Como é que o feitiço pôde ser quebrado quando eu gritei bem alto antes de a última camisa ter passado pelo pescoço de Finbar?
Não tiveste oportunidade de ver disse Conor gentilmente. Mas estas coisas acontecem por si próprias, quando chega a ocasião. Já te esqueceste do vento, daquele vento súbito que te arrancou a última camisa das mãos e a levou pelo ar? Quem pode dizer que esse vento não permitiu que a camisa passasse pelo pescoço de Finbar um instante antes de o teu grito sair? O feitiço está quebrado, Sorcha; quase todo...
Voltámo-nos ambos para olhar para Finbar. Pensei que esta história duraria muito tempo e que mudaria ao longo dos anos, à medida que fosse sendo contada e voltada a contar. Mas ele transportaria sempre consigo a evidência dessa verdade. Nunca mais voltará a ser o mesmo, não completamente. Estará sempre dividido entre o outro mundo e este, nunca pertencendo a um nem a outro. Será a sua maldição, mas também a sua bênção.
Jenny, como é que tu estás? Mas talvez te deva chamar pelo teu verdadeiro nome, Sorcha, não é? Lady Anne aproximara-se. Mal posso acreditar no que vi; e, no entanto, é evidente. O padre Domimc tem razão; é um milagre e nós fomos abençoados ao testemunhá-lo. E tu recuperaste a voz, pela vontade de Deus. Minha querida, hoje viraste esta casa de pernas para o ar.
Peço... peço desculpa Olhei para ela. Parecia diferente; por trás das suas palavras calmas estava uma excitação mal disfarçada e os seus olhos brilhavam de alegria.
Eu é que te devo pedir desculpa, por te ter julgado tão mal. Nunca pensei ver semelhante coisa. Mais parecia um truque de ilusionismo; a mudança brusca, à medida que as penas se transformavam em pele e os longos pescoços e olhos selvagens daquelas aves se transformavam em seis homens. Devo dizer que as pessoas da minha casa ficaram assustadas e confusas com isto e levarão tempo a recuperar. A súbita aparição destes teus irmãos no meio delas, como um bando terrível de irlandeses, vestidos de farrapos, assustou-os muito. Mas podemos remediar alguma coisa. Tenho um homem à procura de vestuário, comida e bebida. Eu própria estou meio tonta; para o meu povo, será uma noite para recordar.
Tens sangue no vestido disse Cormack franzindo a testa. Estás ferida, Sorcha?
Abanei a cabeça, cansada, olhando para baixo, para o vestido azul. Além da marca do mar, havia queimaduras na bainha e no peito havia manchas escuras. Mas o sangue não era meu.
Pensei que ele devia olhar por ti disse Conor rudemente, aproximando-se de mim. Ele não foi escolhido para ser o teu protector?
Olhei para ele. Que sabes tu disso?
Vi-o olhar para ti enquanto tu corrias pela areia. Vi-o arrancar-te do fogo. Sou tão bom a adivinhar como qualquer outro. Talvez melhor ainda disse ele. Por que haveria um homem de te defender, a não ser que estivesse sob um feitiço das Criaturas Encantadas? Aposto que quando a Dama da Floresta te colocou neste caminho, fez o mesmo com ele, colocando-o logo atrás de ti.
E fez um triste trabalho disse Diarmid. Quase a perdeu. Quem pensa ele que é, afinal de contas?
O marido dela grunhiu Liam.
Os outros viraram-se para ele, de olhos abertos.
O quê?
Foi o que o padre disse. E o Conor também. Esperar que o marido dela voltasse para falar por ela. É ele, aposto.
Vários pares de olhos rodearam-me, reprovadores.
Sorcha?
É verdade? Casaste-te com um bretão?
Disparate. Ela não passa de uma criança. Era Diarmid, de expressão ultrajada.
Apesar de ter recuperado a voz, sentia dificuldade em falar. Em vez disso, agarrei no anel que me pendia do pescoço, rodeei os joelhos com o outro braço e virei o rosto para o outro lado. À janela, Finbar continuava de costas voltadas para a sala, completamente imóvel.
Ouviu-se uma ligeira tosse. Penso que todos se tinham esquecido que Lady Anne estava presente. Ela não compreendera as palavras deles, mas reconheceu a minha aflição.
A vossa irmã precisa de descansar, de beber um pouco de cerveja e de um pouco de tranquilidade. Estais a afligi-la. Passou-me um braço pelos ombros e segurou na taça, de modo a que eu pudesse beber. Assim, minha querida. Devagar. Em seguida olhou de novo para Conor. Jen... Sorcha tem passado tempos difíceis: os estranhos acontecimentos desta noite afectaram-nos a todos. Vou levar a vossa irmã para que ela tome banho e mude de roupa. E vou fazer com que todos vós possais receber, também, aquilo de que tendes necessidade; roupa quente, comida e bebida. Quando regressar, haverá tempo para explicações, perguntas para serem respondidas. O padre Domimc quererá falar convosco; e o meu filho também.
Sorcha não vai a lado nenhum sozinha disse Conor rudemente. Pensais que, depois do que testemunhámos aqui esta noite, a vamos perder de vista por um instante? Trazei o necessário para aqui. Em seguida, falou rapidamente em voz baixa, explicando aos outros.
Diz-lhe disse Liam severamente que não há tempo a perder. Cada momento é precioso; qualquer demora prolonga a nossa estadia nestas costas amaldiçoadas. Quero Sorcha fora daqui, metida num barco a caminho de casa amanhã de manhã cedo e nós com ela.
Conor traduziu palavra por palavra. As sobrancelhas de Lady Anne levantaram-se.
Sorcha apelou ela para mim será possível explicar... podes... Consegui falar com alguma dificuldade.
Está tudo bem comigo. Lady Anne só quer o meu bem. E... e eu gostaria muito de me lavar e vestir qualquer coisa quente. Por favor.
Não é com a dama que eu estou preocupado disse Conor. Que garantias temos nós de que ficarás segura assim que saíres por aquela porta? Como podes tu confiar nesta gente depois do que te fizeram esta noite?
Conor. Levantei-me, trémula e segurando no braço de Lady Anne. Estou cansada e suja e prometo que volto dentro de pouco tempo. Vivi aqui quase um ano; muito tempo. Foi a coisa mais parecida com uma casa desde que saí de Sevenwaters e tenho despedidas a fazer, Sei que tendes dificuldade em acreditar, mas esta gente tem sido... amável para comigo, à maneira deles. E como tu próprio dizes, tenho tido um protector estranho, que continua aqui. Não me acontecerá nada. Então, Liam vai contigo e montará guarda. Não. Esta gente conhece-me. Não deveis sair desta sala. Eles ainda estão zangados e confusos. Por favor, Conor
Depois do que Sorcha fez por nós, não estamos em posição de dizer seja o que for acrescentou Padriac.
Assim, fui com Lady Anne, ao longo de um átrio de olhares curiosos, até um quarto quadrado, onde Megan já estava ocupada com água quente, essência de rosmaninho e toalhas secas. Desta vez estava um pouco tímida, como se os acontecimentos da noite me tivessem posto a uma distância pouco confortável para ela. Levou o seu tempo a lavar-me o cabelo e mais tarde, quando eu tentava desemaranhá-lo, segurou no vestido azul, consternada. - Oh, meu Deus! Parece-me que este já não tem conserto. Nunca mais podereis voltar a vesti-lo. Dobrou-o, como se fosse desfazer-se dele, atirando-o para o lixo. Não! Sussurrei. Não... Megan virou a cabeça, agitando os caracóis castanhos. Esse vestido é meu consegui dizer. Um sorriso doce espalhou-se-lhe pelo rosto.
Já podeis falar disse ela maravilhada. A vossa voz é mesmo como eu pensava que seria. Mas este vestido precisa, pelo menos, de uma boa limpeza. Deixai-o comigo; farei o que puder e depois entrego-vo-lo.
Não insisti eu. Não há tempo.
Que queres dizer? perguntou Lady Anne, que estivera a separar roupa branca em cima de uma mesa.
Os meus irmãos disse eu retraindo-me, quando o pente emperrou noutro nó do cabelo.
Deixai, que eu faço isso. Megan tirou-me o pente das mãos e começou, com habilidade, a separar-me os cabelos emaranhados. Pelo menos, o óleo conseguira remover as pequenas criaturas.
Eles vão querer partir às primeiras horas do dia disse eu. Tenho de estar pronta. Vou precisar das minhas botas; e vou levar este vestido, pelo menos, quando partir. Não tinha muitas coisas. Não me importava com o que deixava para trás, excepto o vestido azul com marcas de água salgada, fogo e sangue. Três coisas eram-me preciosas: aquele vestido, o amuleto de Finbar e a minha aliança vde casamento.
O rosto de Megan era uma máscara de confusão.
Mas... mas e Lorde Hugh? perguntou ela, sem pensar em Lady Anne. Aqueles jovens, os vossos irmãos, compreendo que queiram partir e já; basta ouvir o que as pessoas dizem. Quanto mais longe estiverem daqui, melhor. Mas vós? Não podeis ir assim. E ele? E então corou e baixou o olhar. Perdoai-me. Esqueci-me onde estava.
Na verdade. Não se sabia, pela voz de Lady Anne, o que pensava ela do assunto. Jenny, preciso de te deixar por uns momentos. O meu filho... o meu filho mais novo... regressou; ainda não falei com ele a sós. Uns momentos apenas. Volto daqui a bocadinho. Por favor, espera aqui por mim.
Vistes? perguntou Megan quando a porta se fechou atrás da sua senhora. Simon, o irmão de Lorde Hugh... ele está cá, bem vivo, quando todos juravam que estava morto, morto pelos... bem, disseram isso e ele voltou. Perdeu a memória, aparentemente; não se lembra de nada desde que saiu daqui com os homens de Richard. Lorde Hugh encontrou-o num mosteiro, longe, numa ilha qualquer, parece. Lady Anne morria por falar com Simon, mas não podia, não antes de cuidar de vós. E com os ferimentos de Lorde Hugh e tudo...
Megan... toquei-lhe no braço; tinha uma certa dificuldade em recordar-me das palavras. Como é que ele... ele está bem? Conseguiram estancar o sangue da ferida, conseguiram...
Continua inteirinho disse ela, olhando para mim de lado. Mas voltaram a sair, ele e Ben e mais alguns homens. Lorde Hugh levava o braço entalado e ligado. Foram à procura do tio dele. Ficou apenas o tempo suficiente para se tratar, foi tudo. Mister Simon também queria ir com ele, estava ansioso, mas Lorde Hugh não o deixou ir. Disse-lhe para ficar aqui e tomar conta das coisas. Dessa maneira a mãe dele poderia vê-lo, antes que desaparecesse de novo. Tendes a certeza que quereis ir para casa?
A pergunta apanhou-me desprevenida.
É melhor ir disse eu. Eu não sou um de vós e nunca serei. E se aferida começa a sangrar outra vez? E se ele encontra Richard e,.. Por que é que ninguém o impediu? Só vos trouxe desgraças. Agora, acabou. É tempo de voltar para a floresta.
Perguntastes a Lorde Hugh o que pensa ele disso? O olhar de Megan era penetrante, enquanto me apertava os laços do meu vestido lavado.
E se ele está demasiado fraco para cavalgar, se os inimigos estão à espera dele? E se ele não regressar antes de eu me ir embora?
Perguntaste-lhe? Amaciou-me o cabelo e atou-o com uma fita que condizia com o vestido, um cor-de-rosa suave, de Outono. Um tom inapropriado.
Isto é o que Lorde Hugh desejaria disse eu. Eu não pertenço aqui e os meus irmãos precisam de mim. E ele há-de esquecer. Assim que o feitiço lhe for levantado; talvez até já tenha esquecido. Talvez até a partir do momento em que retirou o braço do meu ombro e voltou apor aquela máscara de novo.
Megan ergueu as sobrancelhas para mim, enquanto arrumava os frascos, as taças e os tecidos.
Talvez devêsseis perguntar a Lorde Hugh quando ele regressar disse ela. Não gostaria de estar na pele de Richard de Northwoods esta noite, por nada deste mundo.
Quando regressámos à sala, as coisas tinham mudado. O melhor vinho e o melhor pão de trigo tinham sido providenciados, com carnes assadas frias e a própria Lady Anne estava a cortar fatias de queijo. Olhei rapidamente em volta da sala, mas não havia sinal de Red, ou de Ben. Os meus irmãos tinham um aspecto mais respeitável, se bem que os seus cabelos, longos e emaranhados, e os olhos ferozes, não ligassem muito hem com as roupas simples com que estavam vestidos. O padre Domimc tinha-os juntado à sua roda, ao pé da janela e falava com eles calmamente. Finbar estava na cauda do grupo, silencioso. Com a tradução de Conor e com alguns gestos, os outros pareciam desenvencilhar-se bastante bem. Vi facas nos cintos dos meus irmãos. Fora arriscado, pensei, permitir-lhes que usassem armas. De quem teria sido a ideia? Talvez ninguém tivesse ousado recusar.
Encostado ao fogão estava outro homem; o homem alto de cabelos dourados que não podia ser Simon, mas que, incrivelmente, devia ser, porque a seus pés Alys tremia de alegria, abanando a cauda de tal maneira que parecia que as duas metades do seu corpo eram independentes uma da outra. Um cão não comete erros, não quando esperou tanto tempo pelo regresso do dono.
Como se lê o rosto de uma pessoa quando o seu passado lhe foi apagado? Simon estava mais velho; nos três anos que se tinham passado, desde que o vira pela última vez, passara de rapaz a homem. Tinha o mesmo nariz direito e a mesma maxila do irmão, mas a boca era mais generosa, os olhos menos circunspectos. Não tinha cicatrizes no pescoço, nas orelhas, ou no braço musculado que saía da manga da camisa, enrolada até ao cotovelo. No entanto, como podia ser ele? Não se lembrava de nada? Olhei rapidamente na direcção dos meus irmãos. Atentos às palavras do padre, não pareciam reconhecê-lo. Melhor assim. Os olhos brilhantes de Simon eram tão inocentes e alegres como os de uma criança; sem qualquer artifício.
Simon disse Lady Anne esta é Sorcha, de quem te falei. Sorcha é... é...
A mulher de Red disse Simon, olhando para além da mãe, directamente para mim. Vi-lhe o rosto a mudar. Também usava uma máscara e no momento em que a deixou cair soube que, fosse o que fosse que ele tivesse esquecido, não se esquecera de mim.
Sorcha. Esse nome fica-te bem disse ele calmamente. Nunca pensei que o meu irmão casasse com uma mulher de Erin.
Eu não... ele não... O meu coração batia descompassadamente. Ele conhecia-me, tinha a certeza. E se se lembrava de mim, lembrava-se dos meus irmãos e... mas então, como podia ele estar ali, a sorrir, com eles tão perto? Onde estava o rapaz frenético, defeituoso, que eu tentara fazer regressar a uma certa sanidade? O rapaz sem esperança, que se agarrou às minhas histórias em busca de sobrevivência, no meio de pesadelos de dor e vergonha? Por que não tinha este homem quaisquer cicatrizes?
Fizeste uma coisa maravilhosa, esta noite continuou Simon. É quase incompreensível para o nosso povo que tal transformação tenha sido possível. Por agora, ponderam na maravilha que foi; mas amanhã, alguns hão-de achá-la um truque feito com a luz e outros hão-de guardá-la nos recônditos da memória, trazendo-a de volta apenas para a contar aos netos. E alguns, receio, começarão a pensar, de novo, em feitiçaria.
Não precisas de recear pelo teu irmão disse eu com alguma dificuldade. Não vou ficar aqui para ser um fardo para ele. Nós... nós temos um acordo...
Interessante disse ele suavemente. E que acordo é esse? Fui salva de qualquer réplica pelo padre Domimc, que se levantou e
veio saudar-me. Lady Anne, radiante de felicidade devido ao regresso dos filhos, mal ouvira as nossas palavras.
Jovem disse o padre os teus irmãos contaram-me alguma coisa da vossa estranha história. Vem, senta-te e bebe um pouco de vinho. Estás muito pálida; ainda não recuperaste da tua provação.
Sentei-me; e logo os meus irmãos me rodearam, de maneira que o círculo protector ficou de novo formado. Diarmid vigiava Simon e a expressão do rosto dele dizia que o único bretão bom é o bretão morto.
Richard de Northwoods disse o padre Domimc. O homem agiu muito mal, hoje... bem, ontem, já que já passa da meia-noite. Fui muito claro quando lhe disse que seria... imprudente julgar o caso desta jovem sem ouvir todos os depoimentos. E quando falámos em privado ele concordou. Infelizmente, fui chamado antes de ter tempo de explicar o que queríamos aos membros da assembleia. Porque Lorde Richard, ao anunciar o veredicto de culpada em meu nome, assim como no dele, não só mentiu, como abusou, obviamente, da autoridade de que estava investido. Ao aplicar a pena de imediato, agiu de modo sinistro. Deve ser chamado a responder por isso, pelo menos; e talvez por outras coisas.
Com toda aquela excitação, parece que se escapou disse Simon, que parecia o irmão a falar. Mas não vai longe. Eu também tenho um assunto a discutir com o meu tio. Se bem que muitas coisas do meu passado pareçam ter desaparecido, recordo-me de algumas. Tem que responder a muitas perguntas.
O meu filho mais velho saiu esta noite, com os seus homens, em busca do meu irmão disse Lady Anne. Isto tem sido muito desagradável para mim, como deveis imaginar. Sabia, quando vos fui buscar, que podíamos chegar a este ponto. Mas não posso esperar que o meu próprio povo aja com integridade e coragem se não lhe der o exemplo
Bem falado disse o padre Domimc e ao olhar para ela mostrava compaixão. Darei um interesse especial às respostas de Richard Dizei a Lorde Hugh que me mandem chamar, quando encontrar o tio. Fiquei chocado por um homem, em semelhante posição de autoridade, agir assim; tais abusos de poder merecem uma rápida e firme resposta.
Na verdade disse Conor. Também nós ouvimos histórias e continuamos a ouvir. Se esse homem é responsável pelas acusações contra a minha irmã e pelo tratamento cruel a que ela foi submetida, fez inimigos mortais, hoje. Para ser franco, o futuro dele parece-me bem limitado e desagradável.
Os processos legais devem ser seguidos disse o padre Domimc com moderação, olhando em volta do círculo de guerreiros de rostos severos e lábios cerrados. Entretanto, deveis alegrar-vos pela vossa transformação e pela generosidade da vossa irmã. Virou-se para mim, sorrindo. Minha querida, a tua história é de uma grande coragem. Se não estivesses já casada, as tuas virtudes de paciência e fé seriam bem-vindas à nossa comunidade de santas irmãs. Seria um grande exemplo, uma luz no meio das luzes.
Não encontrei nada para dizer. Bebi um gole de vinho e tentei ignorar o modo como Simon olhava para mim.
Os teus irmãos estão zangados continuou o padre. Querem vingança pelo que te aconteceu. Pelo que quase te ia acontecendo. Mas o caminho não é esse. Melhor será que partam rapidamente. Não deve haver mais sangue derramado, nem mais ódio neste lugar.
Acenei com a cabeça. Era cada vez mais claro que a cada momento que passava só haveria um caminho para mim, uma escolha.
Pareces triste. Fizeste uma coisa maravilhosa, minha filha. Alegra-te, porque estás entre os abençoados do Senhor. E descansa. O teu descanso é bem-merecido. Levantou-se. Também eu me sinto um pouco cansado. Lady Anne, vou aproveitar a vossa hospitalidade por esta noite, se me é permitido. Ai de mim, já vou um pouco avançado na idade e um pouco pesado demais para cavalgar tanto e tão depressa, sem sofrer as consequências. Devemos todos descansar e reflectir nas maravilhas que o Senhor nos concedeu. Maravilhas, sim. Amanhã falarei ao povo de Harrowfield sobre algo mais desta história de sofrimento e redenção. Temos muito a aprender com ela.
Foi Simon que escoltou o bom padre até aos seus aposentos, com Alys ladrando-lhe nos calcanhares. Fechei os olhos por um momento, enquanto os meus irmãos se moviam à minha volta, falando com vozes baixas, intencionais, planeando, preparando. Não descansariam durante a noite; não com tanto pela frente. Falaram de cavalos, armas e barcos. E falaram do meu pai e de Lady Oonagh. Falaram de vingança. Parecia tudo tão irreal, como se fosse um outro mundo. Talvez, se eu ficasse ali sentada, muito quieta, sem quase respirar, me esquecessem; e então não teria de lhes dizer adeus.
A nossa irmã disse Conor. Ela tem muitas coisas que tenham de ser empacotadas?
Eu trato disso. A resposta de Lady Anne foi muito calma. Ela tem pouca coisa. As minhas servas empacotam-lhe as coisas e trazem-nas para aqui. Sorcha está muito cansada. Havia uma nota de desaprovação na voz dela.
Mesmo assim disse Conor temos de partir de madrugada, para bem desta casa e da nossa segurança. O vosso bom padre interveio mesmo a tempo. Como o vosso filho disse, pouco faltou para que a disposição do vosso povo se azedasse de novo e pusesse as nossas vidas em perigo. Uma vez longe, podeis, com a ajuda dos vossos filhos, restabelecer a ordem. Foram uns tempos bem estranhos, estes, para todos nós. Houve uma pequena pausa.
Sabeis disse Lady Anne timidamente que a vossa irmã casou recentemente com o meu filho?
Conor traduziu aquelas palavras aos outros e houve respostas iradas. Felizmente, Lady Anne não compreendia a língua dos meus irmãos.
Portanto, é verdade rugiu Diarmid. Padriac parecia incrédulo.
Por que falar nisso agora? Não quer dizer...
Casamento? cuspiu Cormack. Que casamento é esse entre uma rapariga indefesa e um brutamontes de um bretão?
É provável disse Liam friamente que esse casamento não tenha sido consumado. Falavam como se eu não estivesse presente, como se se tratasse da estratégia de uma campanha. Senti as faces enrubescerem de vergonha, mas ao mesmo tempo sentia-me zangada. Deviam deixar Red fora daquilo. Nada daquilo era culpa dele, nada. Mas ninguém me pedia a opinião.
A nossa irmã é muito nova continuou Liam e esse tipo tem andado por fora à procura de um irmão perdido. Além disso, não posso acreditar que Sorcha tenha consentido em tal coisa de livre vontade. É uma ligação que pode ser rapidamente desfeita, creio eu.
Conor traduziu para Lady Anne.
Não posso falar por Hugh disse ela rispidamente. Terão de lhe perguntar a ele.
E perguntamos disse Conor com o rosto severo.
Após uns momentos, Lady Anne, abafando um bocejo, desculpou-se e ficámos sós, excepto os dois homens do lado de fora, de guarda à porta. Deixei que Padriac me servisse mais vinho e aceitei um pedaço de pão, apesar de não me apetecer. A sala parecia-me estranha, como se flutuasse em redor de mim, como num sonho. Sabia que, se não comesse, nem bebesse, não poderia partir a cavalo de madrugada. Finbar estava sentado no banco ao lado da janela, a olhar para fora, eu levei a minha pequena refeição comigo e sentei-me ao pé dele. Lá fora, o vento caíra por completo. Podiam ver-se, na escuridão, as brasas da fogueira, ardendo ainda no pátio. Se voltassem esta noite, poderia vê-los dali. <
Sei o que sentes, meu querido. Como se o teu coração estivesse dividido em dois. Sinto a tua dor i
Respirei profundamente. De novo. i
Finbar? Eu sei como te sentes. Como se nunca mais fosses um só, meti a mão no decote do vestido, onde usava os dois fios em volta do pescoço. Um sustinha a minha aliança; o outro, o amuleto que um dia fora da minha mãe. Deixei o primeiro e tirei o outro.
Isto é teu. Fica com ele. Fica com ele, foi a ti que ela o deu.
Passei-lhe o fio pelo pescoço e a pequena pedra gravada, com os pequenos freixos gravados, ficou-lhe no peito. Estava extremamente magro.
Mostra-me o outro. O outro talismã que usas.
Lentamente, tirei o anel gravado e pus-lho na palma da mão, para que o meu irmão o visse.
Foi ele que to fez? Aquele de cabelos dourados, de olhos devoradores?
Não foi ele. Foi outro.
As imagens vieram-me ao cérebro cheias de força; Red com o braço sobre os meus ombros, como um escudo; Red apanhando uma maçã; Red pontapeando a espada na mão de um homem e apanhando-a; Red de pés descalços na areia, com o mar em volta dos tornozelos.
Arriscaste-te muito, ao dar o teu amora um homem desses.
Olhei para ele.
Amor?
Não sabias, até agora, que tinhas de dizer adeus?
E então ele deixou que lhe penetrasse na mente. Imagens e não palavras. Vi uma margem com canaviais, um lugar de abrigo e serenidade. Vi uma minúscula praia branca e uma extensão de água tranquila, um lago. Nele nadava um belo cisne fêmea, o pescoço orgulhosamente encurvado, os olhos claros e brilhantes. A seu lado dois patinhos, ainda com poucas penas, mergulhando e esparrinhando na água.
Eu também tive que dizer adeus.
A imagem desvaneceu-se. O rosto do meu irmão espelhava apenas uma tristeza distante, remota.
Eu tive algum tempo. Mais do que tu tiveste. Tenho medo do frio, dos lobos e da solidão. Não te consigo explicar o medo que sinto por eles.
Também ele fizera uma escolha terrível. Os cisnes acasalam para a vida inteira. Estendi o braço e toquei-lhe na mão. No fim, não havia escolha. Os sete éramos um; e cada um uma parte dos sete. Devemos estar sempre presentes, uns pelos outros.
O tempo prega partidas terríveis. Aquela noite pareceu-me eterna, enquanto olhava pela janela esperando o regresso deles, com Finbar silencioso a meu lado. Uma vez, há muito tempo, ele acalmara-me e confortara-me ao longo de uma noite interminável; e exaurira todas as suas forças ao fazê-lo. Agora, fazia-me apenas companhia. A minha mente mostrou-me Red sangrando, ferido, exausto, picado pelo ódio; procurando o tio pelos campos, passando correntes a vau, para cima e para baixo ao longo das colinas de Harrowfield. Mais do que tudo, ansiava por vê-lo chegar são e salvo, ao pátio. E assim ali fiquei à espera, vendo as últimas brasas da fogueira desvanecerem-se e morrerem. E pensei se Finbar estaria certo? Será isto amor, isto que me torce e parte o coração? O amor não nos dará outra coisa senão o poder de nos magoarmos? Transformará o menor gesto numa sensação ao mesmo tempo de ânsia e de terror? Seja o que for, parece uma ferida mortal. E, de repente, pareceu-me que a noite se escoava depressa, tão depressa. Porque em breve chegaria a madrugada e partiríamos de Harrowfield por caminhos secretos, para depois chegarmos a casa através da água. Em breve chegaria a hora de dizer adeus. Não sabia dizer a mim mesma qual era o sentimento mais forte, se o medo de que ele não regressasse a tempo, se o pavor de que não regressasse de todo.
Quando, por fim, chegaram, foi com pouca cerimónia. Não havia tochas a arder nem tambores a rufar. Apenas cinco homens a cavalo, em fila. O primeiro era Ben, com um capuz negro que mal lhe cobria o esvoaçante cabelo loiro. E depois outro, vestido também de negro, para passar despercebido na noite. Este homem trazia um cavalo à rédea, no qual cavalgava um prisioneiro de modo esquisito, de mãos atadas atrás das costas. No entanto, a atitude deste era arrogante, os ombros direitos, em sinal de desafio. O seu rosto tinha várias nódoas negras e corria-lhe sangue de um golpe por cima das sobrancelhas. Tinham encontrado Lorde Richard.
Os dias daquele homem estão contados disse Cormack, enquanto os meus irmãos se reuniam atrás de mim. Vai ser responsabilizado seis vezes.
Ou mais, diria eu disse Liam, vendo os cavaleiros aproximarem-se. Havia lanternas acesas à entrada e a sua luz incidiu no rosto do quarto homem que escoltava o prisioneiro. Esvaziei os pulmões de uma só vez. Porque lá estava ele, o último, a mão direita segurando as rédeas e o braço esquerdo cruzado sobre o peito. O seu rosto estava tão pálido como o pano que lhe envolvia o braço e o ombro e a boca cerrada, numa linha estreita. Vinha sentado muito direito na sela. Ao passarem sob a janela, olhou para cima, desviando o olhar logo de seguida. E então ficaram fora da nossa vista
Senti-me mal, como se fosse desfazer-me em lágrimas a qualquer momento; no entanto, estava seca, como se nunca mais conseguisse chorar de novo. Confusa, assustada e... e por que é que o meu coração batia com tanta força, como se tivesse acabado de fazer uma corrida? Sabia o que tinha de fazer e dizer. Tinha de ser e depois partir. Mais nada. Não seria muito difícil.
A porta abriu-se e Ben entrou, de rompante, encaminhando-se para mim sem qualquer cerimónia. Ouviu-se um som metálico e de súbito uma série de armas apontou na sua direcção.
Tudo bem, tudo bem disse ele levantando a mão numa submissão cómica. Eu não me demoro.
Assim não vamos longe disse eu, zangada. É apenas um amigo.
Cormack ficou carrancudo, mas Liam fez um sinal com a mão e todos eles recuaram ligeiramente.
Jenny disse Ben, olhando para mim de perto. Estás bem?
Acenei com a cabeça. Por que tinha eu tanta dificuldade em falar? Ele tinha uma ligadura em volta do punho e a maxila tinha um golpe.
Que...?
Fez uma careta retorcida.
Com essa companhia toda à tua volta, talvez não seja aconselhável falarmos muito. Digamos que ainda bem que eu fui à procura dele. Consegui ser útil numa situação crítica. Não que ele me tenha agradecido, claro, Quase me matou por te deixar aqui sozinha, tal foi a gratidão dele. Tens a certeza que estás bem?
Pensei... pensei que tu...
Eu, duvidar de ti? Nem por um instante. Bem, talvez por um instante. Depois, usei a cabeça. A maneira como tu e Red olham um para o outro não deixa espaço para mais nenhum. Tinha de haver outra explicação. Mas Richard afastou-me, ninguém se podia aproximar de ti, estavas rodeada de homens de Northwoods. Por fim, fui atrás de Red.
Diz-nos disse Conor o que é que vai acontecer a esse homem, Richard de Northwoods?
Ben mediu-o de alto a baixo.
O meu irmão Conor disse eu. Fala fluentemente a vossa língua.
Estou a ver. Lorde Richard está sob custódia. Vivo e mais ou menos bem de saúde. Tive alguma dificuldade em convencer o teu marido de que ele deve ser julgado legalmente. A alternativa era tentadora, quando finalmente apanhámos o tio dele. Mas há perguntas a serem feitas. Red disse-me que Simon falou muito, durante a longa viagem do mosteiro onde foi encontrado, até aqui. Ele não se esqueceu de tudo e a cada dia que passa recorda cada vez mais. Parece que Richard estava metido em muita coisa ao mesmo tempo. No fim, Red acabou por reconhecer que temos de esperar e ouvir as respostas dele. Mas nunca o tinha visto tão zangado, nem mesmo no dia em que John morreu; nunca o tinha visto perder o sentido da justiça, desta maneira.
A zanga passa-lhe disse eu. Quando eu me for embora, ele restabelecerá a ordem aqui; saberá as respostas e julgará sem medo de errar.
Embora? perguntou Ben. Que queres dizer com isso, embora?
Pedimos salvo-conduto para a costa; partimos de madrugada disse Conor. Certamente não queres que fiquemos cá, quando a nossa presença ameaça destabilizar a vossa casa. Somos inimigos viscerais; a admiração do teu povo pela nossa súbita aparição transformar-se-á, em breve, em ressentimento e medo. Sei que também acreditas nisso e que é suposto arranjarem-nos uma escolta.
Ben olhou em volta do círculo de rostos zangados e depois para mim.
Bem, sim disse ele. É verdade. Mas...
Ele não pensa rosnou Diarmid, que seguira suficientemente bem a conversa que vamos deixar para trás a nossa irmã? A sala pareceu ficar, repentinamente, mais fria, quando Conor traduziu estas palavras.
Eu... bem, pode parecer demasiado óbvio disse Ben mas, no fim de contas, ele é marido dela.
Marido? A voz de Conor era cortante como um punhal. Que espécie de marido é esse que não o vimos quando Sorcha esteve quase a morrer queimada? Tem medo de se mostrar, depois de não ter protegido a nossa irmã como devia ser? Como é que um homem assim pode reclamar o título de marido?
Ben não se intimidava com facilidade.
Ele tem as suas razões disse ele tranquilamente. Quando encontrámos a tua irmã, ela estava doente, a morrer à fome e aterrorizada. Lorde Hugh salvou-lhe a vida. Jenny não foi coagida a vir para Harrowfield.
Jenny?
Quando encontrámos a tua irmã, ela não falava. Não nos podia dizer o nome. Chamámos-lhe assim.
E também lhe destes o título de Harrowfield, parece. Bem, não ficará com nenhum deles disse Conor. A nossa escolta está pronta? A madrugada aproxima-se.
Estará tudo pronto disse Ben. Temos um barco atracado e um homem para fazer a travessia. A cavalo, demora meia manhã a chegar lá; talvez mais um pouco, para vós. Simon está a tratar disso e é ele que vos vai escoltar.
Não, eu escolto-os interrompeu uma voz.
Viraram-se todos para o homem que aparecera à porta. Mantinha-se direito com alguma dificuldade, o rosto pálido de extrema exaustão. Havia sangue fresco na ligadura, perto do ombro.
Não sejas louco disse Ben rispidamente. Aproximou-se de Red para lhe segurar no braço, mas foi afastado com alguma violência. Atrás de mim, os meus irmãos movimentaram-se. Cormack empunhou um punhal. Liam retesou os braços. Diarmid arvorou um olhar ameaçador.
Com o devido respeito, meu senhor disse Ben, aparentemente ciente da delicadeza da situação. Devíeis deixar o vosso irmão encarregar-se disto. Eu também vou, se achais que não podeis confiar nele. Como podeis ir a cavalo daqui até à costa e voltar, se mal dormis há mais de três dias?
Eu sou marido dela. Eu levo-os.
Não consegui olhar para ele. A voz era suficientemente desagradável; distante, formal. Gelou-me o coração.
Marido disse Conor cuidadosamente. Sim, já ouvimos dizer isso. Tendes sido um grande marido, para além dos vossos actos heróicos.
Red ficou calado.
Estáveis ao pé dela continuou Conor quando ela estava cheia de fome, suja e gelada? Tomastes conta dela quando ela compareceu perante os seus acusadores, quando ouviu todas aquelas porcarias e mentiras? Estáveis ao pé dela quando ela chorou na escuridão, enquanto esperava e via o vosso tio construir aquela pira funerária? Estáveis? Que espécie de marido fostes, então?
Seguiu-se uma curta pausa.
Acabastes? perguntou Red calmamente.
Pergunta-lhe disse de súbito Liam na nossa língua pergunta-lhe que espécie de casamento é o deles; se pôs as mãos imundas e bárbaras na nossa irmã. Pergunta-lhe!
Mas Conor não era o que era por acaso. Não se equivocara acerca do seu oponente.
Dizei-me apenas se a minha irmã é livre de partir. Tencionais mantê-la presa a alguma promessa, a alguma obrigação para convosco?
Guardais uma criatura selvagem qualquer depois de estar curada e pronta para voar? perguntou Red. Jenny é que escolhe. Sabe que é livre de partir. Sabe que só precisa de mo dizer, quando chegar a ocasião.
Conor traduziu para os outros, calmamente.
E o nosso salvo-conduto? perguntou Liam, enquanto Conor traduzia. Queremos partir de madrugada, ou antes. Resta pouco tempo.
A resposta de Red foi ainda mais suave. Eu já ouvira aquele tom antes.
Primeiro, quero falar com a minha mulher a sós. Depois, podemos partir, com tudo o que pedistes. Não demorará muito.
Conor traduziu.
Isso está fora de questão! disse rispidamente Diarmid.
Sozinhos? Não me parece disse Liam severamente.
Quem pensa este homem que é? perguntou Cormack. Não tem quaisquer direitos sobre Sorcha e sabe isso muito bem. Diz-lhe que traga os cavalos para nos podermos ir embora. Chega de negociações.
Não podemos permitir isso disse Conor gravemente. Compreendei que, depois de tudo o que aconteceu, a nossa preocupação vai toda para o bem-estar da nossa irmã. Não a perderemos de vista até deixarmos este país. Passaram-se três anos desde que deixámos a nossa forma humana. Três anos de silêncio e sofrimento para ela. Agora que regressou para o pé de nós, não nos separaremos dela, nem arriscaremos a sua segurança por um minuto que seja.
A boca de Red estreitou-se ainda mais de uma maneira alarmantemente familiar e vi a mão de Ben aproximar-se do punho do punhal.
Esta casa é minha disse Red. Quereis partir em segurança, não quereis? Com cavalos e alguma protecção? Providenciarei isso; mas primeiro, falarei comjenny a sós.
A vossa arrogância espanta-me disse Conor friamente. Foi a vossa gente que quase levou a nossa irmã à morte; a vossa gente, que continuava na sua vida enquanto ela era fechada numa cela escura, onde os piolhos lhe encheram a cabeça e os ratos se passeavam à noite, no meio da imundície, enquanto chorava, trabalhava arduamente e esperava pelo fim. Como vos atreveis a exigir seja o que for de nós?
Red estava muito pálido, mas determinado a falar.
Para quem trabalhou ela, por quem permaneceu ela em silêncio durante estes três anos, por quem reprimiu ela o riso, as lágrimas e os gritos de dor? Aceitastes o que ela fez por vós. Sois tão culpados como eu, todos. Apoiara-se no braço de Ben; agarrando-o com força, os nós dos dedos da sua mão ficaram brancos.
Era como se se tivessem esquecido que eu estava presente.
Conor disse eu.
O que é? perguntou rispidamente o meu irmão, num tom nunca antes usado comigo.
A decisão pertence-me disse eu calmamente. Não corro perigo nenhum. Não me afastarei; vou só até ao outro lado da porta.
E afastei-me, de olhos fixos na porta. Ninguém tentou impedir-me. No lado de fora da sala continuavam dois homens de guarda. A porta fechou-se atrás de mim.
Podeis ir disse eu para os guardas. Ben ficara no interior da sala; um gesto que exigia alguma coragem, atendendo às circunstâncias.
Ficámos sós. Eu fiquei onde estava, à porta. Ele, muito perto, encostado à parede. Olhar para os olhos dele exigiu de mim todas as forças. Estavam frios como o aço, o rosto imóvel e sem expressão.
Parece que cumpri o meu propósito disse ele. Na verdade, não precisas mais da minha protecção.
É melhor assim. Forcei as palavras a sair. É melhor para ti e para a tua casa. É melhor para todos. E pensei, se o feitiço que as Criaturas Encantadas te lançaram ainda não foi levantado, espera até que eu deixe o teu país. O barco levar-me-á para lá da nona vaga e começarás a esquecer.
Eu disse-te uma vez disse Red que gostaria de ouvir a tua voz. Nunca pensei que as primeiras palavras seriam estas.
É verdade, pensei. Acostumámo-nos aferir-nos um ao outro. Ao fim e ao cabo, depois de um ano inteiro, só aprendêramos aquilo?
Estas não foram as primeiras palavras sussurrei, lutando contra as lágrimas. Não choraria.
Não concordou ele. É verdade. Salvaste-me; e eu salvei-te. Talvez tenha sido por isso. Talvez tenha sido essa razão. E agora que acabou, queres voltar para casa. O tom de Red era cortês. Talvez falasse assim com qualquer hóspede que estivesse de partida. Farei com que chegues em segurança à costa. Não tenho dúvidas de que os teus irmãos te protegerão como deve ser na tua viagem de regresso.
Engoli em seco. A luz era muito fraca; uma lanterna mantinha-se com a chama baixa, num nicho, provocando profundas sombras. Mas lá fora era quase madrugada. Havia tanto para dizer; e eu não conseguia dizer nada.
Disse-te que te contaria tudo sobre o teu irmão arrisquei. Acerca de Simon.
Oh, sim. O nosso acordo. Um salvo-conduto para casa em troca de informações. Já quase me tinha esquecido. Tentava ser desprendido, mas eu podia ver que a mão dele tremia à medida que subia para ajustar a ligadura.
Estás a sangrar disse eu. Deixa-me ajudar-te.
Não. Agora era ele que se encolhia face ao meu toque. Deixa. Não é nada. Simon lembra-se muito pouco desse tempo perdido. Dos acontecimentos mais recentes recorda-se melhor, vieram-lhe à memória pouco a pouco, durante o nosso lento regresso a casa. O suficiente para incriminar o meu tio muitas vezes.
Eu sei disse eu. Quando eu estava... o teu tio falou-me abertamente. Disse-me muitas coisas de que se vai arrepender agora. Ele pensou... pensou que eu não tas diria, pensou que eu nunca...
Podia ouvir a respiração cuidadosa de Red, para dentro, para fora, para dentro, para fora, como se tivesse dificuldade em conter-se.
O meu tio... pôs-te a mão em cima quando... ele tocou-te, Jenny? Eu quase... quase... Ben impediu-me, mas se...
Estou bem disse eu com alguma dificuldade. Não estou ferida. Ele disse-me que não queria as sobras do sobrinho. Não me fez mal.
Eu mato-o disse Red suavemente, escondendo o rosto de mim, virando-o.
Tu és homem e um bom homem disse eu. Esta gente depende de ti; tu és o centro do mundo deles. Livra-te desse ódio e julga-o depois.
Todos eles olham para ti em busca de exemplo. Será mais fácil depois de eu me ir embora.
Ele virou a cabeça na minha direcção; deixa-me ver, por instantes, a profunda solidão desses olhos, as sombras e as rugas tão nítidas nessa pele tão branca. Como é possível um homem tão poderoso estar tão só?
O meu irmão o tom dele era triste tem poucas recordações dos anos perdidos. Pelo menos, é o que diz. Mas onde quer que seja que tu entres, não admite uma palavra contra ti. Ouvi-o a falar com a minha mãe ontem à noite, quando regressámos. Ele falou de ti como se... como se tu fosses um anjo. Ele disse, as mãos dela são as mais suaves do mundo e conta tais histórias que é difícil acreditar nelas e, no entanto, quando fala, sabemos que cada palavra é verdadeira. Pode ter esquecido tudo o resto, mas de ti não se esqueceu.
Eu...
Ehhh... disse ele e estendeu a mão, levando os dedos suavemente aos meus lábios, para me silenciar as palavras. Não digas nada. Tocou-me apenas por um momento; e eu lutei contra a vontade de pôr a minha mão sobre a dele e depositar-lhe um beijo na palma da mão. Obriguei-me a ficar muito quieta. Então, ele retirou a mão e eu recuei um passo. Palavras por dizer pesavam entre nós. Palavras por dizer, gestos por fazer. Com qualquer outro, diria adeus com um abraço, um beijo, um toque dos dedos na face, um toque de mãos. Com Red, não conseguia fazer nada.
Tu estás num círculo disse ele que tu própria desenhaste à tua volta; John, Ben, estes teus irmãos selvagens. Simon é um teu protector tão feroz como todos eles e, no entanto, tem poucas razões para amar os da tua espécie. Mas mal nos tocaste, os nossos corações deixaram de nos pertencer.
O meu lábio estremeceu e eu mordi-o, estremecendo de dor. Não vou chorar. Já chorei demais. Também sei ser forte. Ergui os braços e tirei o fio que tinha ao pescoço.
Vais querer isto de volta disse eu, pestanejando com força para não chorar. O anel estava na palma da minha mão, leve e quente. Precisei de toda a minha força de vontade para não fechar os dedos em volta dele. Vi a mão de Red fechar-se, formando um punho de nós brancos.
Se esse anel significa tão pouco para ti disse ele após um momento deita-o para o fogo, ou atira-o para o lixo. Não me serve para nada. Então virou-se e encaminhou-se para o átrio e eu lembrei-me da noite em que as rochas caíram, quando ele caminhou como se estivesse cego, se bem que com os olhos abertos.
A pequena égua transportava-me com tanta suavidade como no dia em que fomos até à baía das focas. Os meus irmãos iam calados, com se a maravilha que era verem o mundo com os seus próprios olhos fosse demasiada para a poderem suportar. Red cavalgava à cabeça da coluna, o cabelo tão brilhante como as folhas de sicômoro que caíam à nossa volta, reflectindo a luz outonal. Ben seguia, vigilante, à retaguarda.
Era-me difícil afastar as recordações da última vez que percorrêramos aquele caminho, ao longo do trilho escondido, sob as árvores, sobre as colinas, para longe do vale. Não esperava que Simon viesse connosco, mas parecia que tinha discutido com o irmão e tinha-o convencido. Cavalgava perto de mim e eu falei-lhe no que Richard me contara, acerca de Eamonn de Marshes, de trocas e baldrocas e do que acontecera naquela noite, quando Simon desaparecera do campo. Ele ouviu, acenou com a cabeça e deixou-me falar. Não lhe contei tudo. Algumas coisas estavam demasiado perto da nossa própria história, demasiado perto da parte que Red esperara tanto tempo por ouvir e que, no fim, não quisera ouvir.
O meu tio arriscou-se muito ao contar-te isso disse Simon pensativamente. Muito. Assim que se souber, perderá toda a influência que tinha e será afastado da família e dos seus aliados; não estou a ver que futuro possa ter. Estou preocupado com Elaine. Ele colocou-a numa posição muito vulnerável. E não tem filhos. Haverá muitos parentes com vontade de tomar o lugar dele em Northwoods.
Elaine fora uma boa amiga para Red, pensei. Talvez agora conseguisse o que desejava. Talvez agora ela pudesse escolher o que o coração lhe ditava e não o que o pai lhe ordenava. Simon era um belo rapaz e eu desejei que fossem felizes um com o outro.
Richard pensou que eu ia morrer disse eu. Acreditava que eu não voltaria a falar. Como poderia perder? Um homem assim gosta de se gabar e não consegue resistir a partilhar o seu triunfo. Se Red... se o teu irmão não tivesse regressado a tempo, teria sido como ele queria.
O meu irmão fez os possíveis para chegar a tempo disse ele retorcidamente. Nunca vi um homem cavalgar assim, como se fosse guiado por demónios. O bom e velho Hugh. Tão calmo, tão competente. Tão previsível. Mas tu mudaste-o.
Havia um cheiro a sal no ar e pensei ter ouvido uma gaivota. O rosto de Padriac esboçava um sorriso à medida que avançávamos para oeste. A caminho de casa. Ele era jovem. De todos nós, parecia o que menos sofrera. Pensei que refaria a sua vida com facilidade e bem. Quanto aos restantes, não tinha tanta certeza. Liam teria de fazer face ao que acontecia em Sevenwaters; teria de tentar lidar com o nosso pai, com a mulher do nosso pai e teria de tentar reconstruir um lar em tempos forte. Diarmid parecia consumido pela amargura e Cormack parecia prestes a explodir. Quanto a Conor, o profundo, sensato, misterioso Conor, até ele me demonstrara que podia ficar cego pelas suas convicções. Porque não vira Red pelo que ele era na realidade. E Finbar, que cavalgava como que num sonho, mal se apercebendo do que se passava à sua volta, Finbar viveria uma vida bem diferente da que poderia ter vivido. Trouxera-os de volta; mas cada um deles perdera uma parte de si próprio, durante o longo tempo em que estiveram ausentes.
Progredimos bastante e agora cavalgávamos entre grandes árvores, os nossos cavalos separados pela dificuldade do terreno. Simon e eu seguíamos um pouco afastados dos outros.
Vais para casa disse ele. Mas ainda tens o anel do meu irmão. Fiquei admirada e não encontrei o que dizer.
E então ele disse:
Por que não esperaste por mim, Sorcha? Olhei para ele. E depois disse cuidadosamente:
Não pude ficar. Eu disse-te. Não te queria deixar, mas os meus irmãos obrigaram-me a ir. Na altura, não passava de uma criança.
Lembro-me de uma história que me contaste disse ele. Acerca de um cálice mágico, do qual podiam beber apenas os de coração puro. Houve um homem que esperou, esperou até ser velho e a sua paciência foi, finalmente, recompensada. Eu esperei muito mais do que isso. Estive longe muito tempo, Sorcha. Para além do alcance do comum dos mortais. Nove vezes nove anos, naquele lugar de que tu falavas nas tuas histórias. Mais tempo do que o meu irmão seria capaz de imaginar.
Continuei a olhar para ele à medida que subíamos uma colina e os nossos cavalos seguiam lado a lado através de uma clareira e na direcção de um bosque. Os cascos deles soavam suavemente no tapete de folhas caídas. Não queria acreditar no que ele me estava a dizer e no entanto sabia, como qualquer contador de histórias sabe, que era verdade.
Na tua história, a amada esperou por ele disse Simon, fixando os seus brilhantes olhos azuis em mim com uma intensidade assustadora. Esperou até serem ambos muito velhos. Anos e anos. Para ti, foram apenas três. Porque te casaste com o meu irmão? Por que não esperaste por mim?
Como... como... como podia eu saber? sussurrei, chocada. Eu não sabia. Nunca pensei...
Ele ficou calado.
Tu foste ferido disse eu. Queimado. Como é que...
Há homens capazes de apagar cicatrizes, como se elas nunca tivessem existido. Há homens capazes de tais encantamentos, que um homem até se esquece que está neste mundo e quando volta a si, quando já não precisa de mais tratamento, sente-se completamente aniquilado pelo que deixou para trás. Fiquei entre eles muito tempo. Exteriornente, não tenho quaisquer cicatrizes. Os ferimentos causados pelos do teu povo pertencem a outra vida. Há muito, muito tempo atrás. E não estou louco, Sorcha. Mantive a mente clara e lúcida durante todos estes longos anos. Durante todo este tempo de espera, pensei unicamente em regressar e encontrar-te de novo. Rezei para que o tempo fosse bom para comigo e passasse mais lentamente neste mundo. Quando me mandaram embora, tinha poucas recordações da minha vida antiga; as que tinha eram como fantasmas, nebulosas e fugidias. Mas uma manteve-se nítida e real. Levantou os braços e tirou um cordão do pescoço; entregou-me a pequena bolsa, de pele macia, suspensa desse cordão. Abre-a e vê.
Abri-a e apalpei o que estava dentro. Algo fino e suave, como um fio de seda. A pequena égua mantinha o passo firme, não precisando de ser guiada. Na frente, Cormack e Conor cavalgavam juntos; atrás, Padriac conversava animadamente com Ben, acerca dos princípios do voo e se seria possível construir uma máquina que transportasse um homem pelo ar. Finbar seguia atrás deles, silencioso. Não conseguia ver Red, Liam e Diarmid. Tirei o pequeno objecto da bolsa. Na minha mão estava um anel de cabelo escuro. O caracol que ele me cortara naquele dia, há muito tempo, com a pequena faca afiada. Não me deixes. Que jogo cruel tinham eles estado a jogar connosco? Que caminho tortuoso tínhamos nós seguido, quais marionetes vendadas, numa dança selvagem qualquer? Não tivéramos força de vontade? Não tivéramos escolha?
Então, as Criaturas Encantadas levaram-te sussurrei eu. Levaram-te da floresta...
Sabes como eles são disse ele. Como nos lisonjeiam, encantam e deliciam. Como nos arreliam, pregam partidas e aterrorizam. Se não fosse esse talismã, teria, realmente, endoidecido. Ter-me-ia perdido vezes sem conta. Teria esquecido. Mas não os deixei tirar-mo; finalmente desistiram, libertaram-me e mandaram-me embora. Devias ter esperado, Sorcha. Devias ter esperado um pouco mais.
Que podia eu dizer? Tirou-me o anel de cabelo dos dedos trémulos, guardou-o de novo e colocou o cordão em volta do pescoço, de modo que a pequena bolsa ficou encostada ao coração.
Contei-te, uma vez, uma história disse ele. Lembras-te? Acenei com a cabeça.
Lembro-me. A história dos dois irmãos.
Disseste que eu poderia terminá-la como quisesse. Por este caminho ou por aquele. Quase que acreditei em ti. Mas estavas errada. Esperei e esperei por ti. Mas tu casaste com o meu irmão. Até isso ele me tirou.
Não havia nada que eu pudesse dizer. Mesmo assim, gaguejei algumas palavras:
Não sabia... como podia saber?... Lembras-te de tudo? Então por que...
Quem acreditaria na verdade? perguntou ele e os olhos azuis ficaram, por um momento, tão profundos, puros e solitários como os do irmão. Assim, é mais fácil. Quem acreditaria, se não tu?
Continuámos a cavalgar em silêncio. À nossa frente, podia ver Red cavalgando sozinho, conduzindo-nos e atrás dele quatro dos meus irmãos, Liam, Diarmid, Cormack e Conor, os seus cavalos seguindo o de Red ao longo do trilho que estreitava à medida que o terreno ficava mais íngreme. Cavalgámos através de bosques até chegarmos ao local onde as árvores se abriam e pudemos ver a vasta extensão de mar à nossa frente. Do outro lado daquela água brilhante, para oeste, estava a nossa pátria. E a floresta. A minha floresta.
Há muito tempo, costumávamos vir até aqui disse Simon. Algumas vezes víamos focas.
Eu sei disse eu.
O olhar dele aguçou-se.
Ele trouxe-te aqui?
Eu vi a enseada disse eu, pensando, não posso voltaria. Não me obriguem a despedir-me lá. Posso ser forte, mas não tão forte como isso.
Mais ninguém sabia disse Simon, muito baixinho. Nunca contámos a ninguém acerca deste local. Nem sequer a Elaine.
Eu não disse nada. Um pouco mais adiante, os outros esperavam por nós. Atrás de nós, Ben e Padriac surgiram de entre as árvores e aproximaram-se a galope. Vi aparecer um enorme sorriso de contentamento no rosto de Padriac, mal avistou a brilhante extensão de água que tanto me espantara quando a vira pela primeira vez. Enquanto ali estivemos, olhando para oeste, Finbar surgiu, lentamente, por trás de nós. Os olhos dele não mostravam nada e a sua expressão era vazia.
É ali para cima, para norte disse Red. Temos um barco na próxima enseada, não longe daqui. O nosso homem deve estar a postos. Está um bom dia para a travessia; um vento razoável.
Tende atenção ao estômago da vossa irmã acrescentou Ben. Ela não morre de amores por viagens no mar.
Chegamos à praia depressa de mais, pareceu-me, onde um barqueiro taciturno, que eu já encontrara antes, estava a preparar a pequena embarcação. Padriac, cujas aventuras se tinham, até ali, confinado às águas mais calmas do lago, saltou para o ajudar e em breve se atarefava com cabos e remos. Os cavalos pastavam um pouco mais acima, na colina, ou bem ensinados, ou demasiado cansados para se afastarem. Red tinha-se afastado de nós e estava sozinho, nos rochedos, a olhar para o mar.
Despedi-me de Ben, enquanto Liam transportava a minha pequena e patética trouxa de pertences para o barco. Os outros esticavam os membros dormentes e olhavam para ocidente, por cima das vagas revoltas, para o outro lado do mar, tentando ver a terra que eles sabiam existir do outro lado. Ben abraçou-me e disse:
Não te esqueças de nós e eu disse como poderia eu esquecer uma tão bela cabeleira e que contaria todas as suas anedotas aos meus irmãos. Ele afastou-se e começou, talvez depressa demais, a mexer nuns arreios ensarilhados.
Adeus, Simon disse eu. Ele tinha colocado, de novo, a pequena bolsa dentro da camisa, longe da vista. Cada um de nós guardava uma recordação do que nos podia ter acontecido.
Quando eu já me voltava, ele disse:
Como pode ele fazer isto? Se tu fosses minha, lutaria para ficar contigo. Morreria antes de te deixar partir.
Liam gritou da praia:
Despacha-te, Sorcha! Estamos quase prontos.
Finalmente, chegara o momento. Red esperava, uma figura imóvel nas rochas, de olhos virados para o horizonte distante. As gaivotas gritavam por cima de nós. Aquela enseada era diferente, mas as recordações desse outro dia mantinham-se. Não sei como, estava defronte dele e olhávamos um para o outro. Olhávamos um para o outro e nada mais existia no mundo, a não ser nós. Não encontrava palavras. Nem uma única. As Criaturas Encantadas tinham-me avisado de que o meu caminho seria duro. Mas nada me preparara para algo tão duro como aquilo. Red também estava silencioso. Fora mais fácil compreendermo-nos quando eu não tinha voz. Ao olhar para ele, vi como seria o seu rosto quando fosse velho. Um rosto marcado pelas rugas, por onde as lágrimas teriam corrido, tivesse ele permitido a si próprio chorar. Os seus olhos estavam vazios.
Vamos, Sorcha gritou Diarmid.
Não posso ir. Tenho de ir. Refreei as lágrimas, incapaz de me mexer.
Já me esquecia disse Red. A sua voz soava estranha, como que vinda de muito, muito longe. Meteu a mão na algibeira. Tenho uma coisa para ti.
Pô-la na minha mão. Uma maçã, redonda, brilhante, perfeita, verde como erva nova, com um ténue tom rosado. Os olhos dele tinham mudado, de modo que vi o que escondiam, lá no fundo, tão fundo, que só o mais bravo, ou o mais inconsciente, teria coragem de procurar.
Compreendera-me sempre melhor sem palavras. Por isso, levei a mão ao coração, mantive-a lá um momento, tirei-a e coloquei-a de encontro ao peito dele. O meu coração. O teu coração.
Vamos embora, Sorcha, não temos tempo a perder! gritou Padriac.
Voltei-me antes de as lágrimas me começarem a surgir nos olhos e correrem-me pelas faces, corri para o barco e fui içada para bordo. Empurraram-no, o vento e as vagas levaram-nos e começaram a transportar-nos em direcção a oeste, sobre o mar e para casa, para Sevenwaters. Fiquei sentada com a maçã nas mãos, os olhos fixos na praia, onde ele se erguia como um homem esculpido em pedra. As lágrimas toldavam-me a vista, mas continuei a olhar para trás, até que tudo o que conseguia ver dele era a pequena chama brilhante do seu cabelo, contrastando com o cinzento, o verde e o branco da orla terrestre. Tudo o que lhe restava dela eram recordações, onde guardava todos os momentos, cada momento em que ela lhe pertencera. Era tudo o que lhe restava para afastar a solidão Mas Red nunca esqueceria. Agora que eu partira, podia começar a esquecer Quanto ao meu coração, ficou despedaçado e creio que nem o melhor curandeiro do mundo seria capaz de o curar.
Navegámos durante todo o dia e toda a noite e quando finalmente acostámos estávamos na escuridão da nossa costa. Uma vez no mar, tornara-se claro que passaria a ser Liam a comandar e no fim era ele que dirigia o barqueiro, por meio de gestos precisos, para uma linha de costa selvagem, aparentemente habitada por vegetação batida pelo vento e rochas espalhadas. Cormack içou-me para fora do barco, Conor pegou no meu saco e ali estávamos nós, os sete, de pé, em Erin, mais uma vez, na noite fria. O pequeno barco desapareceu na escuridão com um leve chapinhar.
Os meus irmãos não tinham enjoado. Quase se tinham divertido. Entre vómitos, tivera tempo de ver o brilho de excitação no rosto de Padriac enquanto lhe permitiam segurar no leme, na vela ou no remo. Não que os meus irmãos não estivessem familiarizados com pequenos barcos; uma família de rapazes não vive tanto tempo próximo de um grande lago sem aprender, por si, algumas habilidades velejadoras. Mas aquilo era diferente. Podia detectar no rosto de Padriac a visão de mares longínquos, um desejo de aventura e terras misteriosas, para além do alcance dos mapas. Vi nos seus olhos o reflexo do que vira há muito tempo, quando libertara a coruja da mão enluvada e ela subira em espiral para o céu infinito. E ouvi a voz interior de Fimbar.
Brevemente, também ele voará para longe. O meu irmão estava sentado, calado, no barco, a capa negra mal lhe escondendo as penas brancas Regozija-te com a felicidade de Padriac. Porque este regresso a casa não é um triunfo
Fôramos bem abastecidos pela casa de Harrowfield e mal alcançámos o abrigo de um bosque, os meus irmãos acamparam com a calma eficiência advinda da longa prática. Acenderam uma pequena lanterna, abrigando-a de modo a que a pequena luz não se espalhasse para além da pequena clareira onde nos sentámos.
Nada de fogueiras disse Liam. Esta noite, não. E não procuraremos cavalos, apesar de estar ansioso por chegar a casa. É melhor chegarmos sem sermos anunciados e a pé.
Assim, Sorcha fica muito cansada. Conor vigiava-me de perto; a ver se eu acabava todas as migalhas do pão de centeio e da papa de feijão que ele me tinha dado. É muito longe; quatro ou cinco dias, mesmo para nós.
Liam franziu a testa.
Aqueles bretões hão-de pagar pelo que fizeram à nossa irmã. Mas temos tempo. Há outros assuntos mais importantes.
Estou ansioso por pôr as mãos no pescoço da feiticeira. Diarmid cerrava e descerrava os punhos. Não podemos ir directamente e fazer justiça rápida? Contava a história a todos e fazia com que Lady Oonagh pagasse, de modo a que todos pudessem testemunhar.
És demasiado precipitado disse Cormack, cortando um bocado de pão e mastigando pensativamente. Ainda não sabemos o que aconteceu em Sevenwaters. Liam tem razão. Não nos podemos precipitar com as espadas em riste. Essa aproximação pode conduzir a uma chacina e não só do nosso inimigo.
Conor olhou fixamente para o irmão gémeo.
Aprendeste alguma coisa durante estes anos fora observou ele com um pequeno sorriso. Cormack atirou-lhe com uma côdea de pão e falhou.
Padriac concordou, acenando com a cabeça.
O elemento surpresa pode ajudar-nos disse ele. É melhor Lady Oonagh não saber que estamos a chegar.
Ficámos silenciosos por um instante. As recordações eram dolorosas e o medo não desaparecera por completo.
Mesmo assim disse Diarmid parece demasiado tempo para esperar.
Por muito tempo que seja, não será o suficiente. O suficiente para atravessar a floresta e chegar a casa. O suficiente para voltarmos a ser o que éramos.
Ouvira a voz de Finbar, mesmo que os outros não a tivessem ouvido.
Devemos fazer como nos aconselha Liam disse eu baixinho. Depois de uma jornada tão longa, devemos regressar a casa como deve ser. Eu aguento a distância. Até sou bastante forte.
Hum. Conor estava a olhar-me de alto a baixo. Talvez consigamos que nos prometas comer cinco boas refeições por dia até lá chegarmos. Mas ela tem razão, Diarmid. É a única maneira.
E assim atravessámos o país a pé, os meus irmãos ao ritmo dos meus passos. Aquele caminho era diferente daquele que tomara quando deixar a floresta e o rio me transportara tão rapidamente para longe de casa e me depositara nas mãos de um bretão de passagem. Aquele caminho levava-nos através de campos abertos, de um afloramento rochoso para outro, abrigando-nos quando possível em pequenos bosques de árvores descaídas pelas tempestades, acampando de noite e partindo pouco depois do amanhecer. Evitávamos os trilhos humanos, movendo-nos como sete sombras silenciosas, o nosso avanço testemunhado apenas por falésias, rochedos e árvores. E ao terceiro dia chegamos à orla da floresta.
Parámos no cimo de uma encosta à medida que o Sol atravessava as nuvens e vimos um falcão solitário a pairar no ar, por cima do panorama cinzento, verde e dourado outonal que se estendia à nossa frente até onde a vista alcançava.
Chegámos disse Conor. Respirei fundo e senti um manto de paz apossar-se do meu espírito. Então, recomeçámos a andar, descendo por entre pedras cobertas de musgo, sob o manto das árvores e dirigimo-nos para casa por trilhos que nos eram familiares, sem mapa ou guia, que nenhum estranho poderia seguir. As árvores tremiam ao vento frio do Outono e eu era seguida por vozes. Sorcha, oh Sorcha. Em casa. Finalmente, chegaste. Levantou-se vento e as folhas caíam à nossa volta, numa chuva brilhante de vermelho e dourado. Irmãzinha, por que continuas tão triste? Regressaste a casa. Se levantasse os olhos, quase as podia ver. Moviam-se à luz fraca do Sol, ao vento, entre os ramos nus dos vidoeiros e dos freixos, quase invisíveis. Se me voltasse para as ver, desapareceriam repentinamente.
Os postos de vigia estão desguarnecidos observou Liam, franzindo o sobrolho. É uma loucura. Quanto mais nos aproximávamos de Sevenwaters, mais os rostos dos meus irmãos ficavam atentos e vigilantes.
Passámos três noites na floresta e os meus irmãos certificaram-se sempre que eu tinha uma cama confortável de fetos e comia o que me ordenavam. O nosso avanço era lento, pois não era a única enfraquecida pela fome e falta de sono e a jornada não fora fácil. Ali, podíamos fazer uma pequena fogueira e fazer uma espécie de chá com as ervas que se encontravam à mão. Aquilo aquecia o corpo, se não o espírito. Ali, na floresta, estávamos em segurança e os meus irmãos dormiam bem à noite. Todos, à excepção de Finbar. Para ele, não havia descanso. Durante o dia, andava como que num sonho. À noite, sentava-se, de pernas cruzadas, olhando para longe, com olhos que pareciam não ver. Não comia nada; não dizia uma palavra. Era como se não estivesse ali, o seu corpo uma concha oca, cujo espírito habitava um mundo qualquer que os restantes não podiam tocar. Quanto a mim, ficava de olhos abertos na escuridão, a esperar pelo sono. Devia estar contente. Não voltara para onde pertencia, para o lugar do meu espírito, com os meus irmãos salvos à minha volta, prontos para recomeçarem as suas vidas? Não os salvara e levara a cabo a minha tarefa contra todas as probabilidades? Mas o meu coração estava engelhado e frio e a minha mente incapaz de ver um futuro se não de total solidão e sonhos por concretizar.
Quanto mais o tempo passava, mais eu me afastava da costa e mais reconhecia quanto abandonara. Disse a mim própria para não ser estúpida. Para não ser egoísta. Que esperava, que Red me tivesse pedido para ficar? Mesmo que isso tivesse acontecido, teria sido obrigada a recusar. Como poderia ter ficado com ele? Para o arrastar para uma vida miserável, como esposa indesejável, objecto de ódio e desconfiança para todo o seu povo? Não lhe podia fazer uma coisa assim. Aquilo que eu queria não interessava. Se eu tivesse ficado, tê-lo-ia destruído. Então, por que me sentia tão miserável?
Que se passava de errado comigo? Qualquer um pensaria... qualquer um pensaria que já não tens medo dos homens
Era a pequena voz sensata, como um banho de água fria. Tenho. Ainda tenho, disse eu para mim própria, porque ainda me recordava como aqueles homens me tinham magoado e envergonhado, das coisas que me tinham dito, com todos os pormenores. A recordação ainda me gelava o corpo, de repugnância. Nunca desapareceria. Esse era um aspecto. O outro, porque havia outro lado, era que daria quase tudo para ter de novo aquele momento, o momento em que permitira que o braço de Red me rodeasse como um escudo contra o mundo, os lábios dele encostados ao meu cabelo e o seu coração batendo contra a minha face. Nesse momento, ele não quisera afastar-se. Está tudo bem. Está tudo bem, Jenny, dissera ele. Mas não estava. Deixei-me ficar ali na escuridão, sob as árvores e amaldiçoei silenciosamente as Criaturas Encantadas pela maneira como nos usavam e abandonavam nos seus jogos estranhos, nada preocupadas com o mal que causavam.
Era o sétimo dia e aproximávamo-nos dos domínios de Sevenwaters. Por entre os ramos nus dos salgueiros, as águas do lago brilhavam e os patos chapinhavam nas poças. Estava tudo muito calmo.
Não há sentinelas disse Liam severamente. Não há postos avançados. Qualquer homem pode vir até aqui à vontade. Que se passa com ele?
Emergimos da orla das árvores, por trás do castelo e o meu coração teve um sobressalto de choque. Para além dos campos murados e das cabanas, das muralhas do domínio, da colina antes vestida de belos vidoeiros, fortes freixos e nobres carvalhos, havia uma grande cicatriz, no lugar onde uma extensão de árvores mais velhas tinha caído e ardido. Não ficara um fragmento de vida, nenhuma árvore sagrada, nenhum espinheiro-alvar para suavizar a ferida. Atrás de mim, Conor começou a cantar suavemente, um lamento cujas palavras eu não compreendia, mas cuja mensagem foi direita à minha alma.
Que tremenda destruição disse Liam. Um acto de pura premeditação, sem outro propósito senão o de fazer mal. Nem sequer deram uso à madeira, queimaram-na no lugar onde ela caiu.
Caminhámos ao longo da aldeia, cujas ruas estavam sulcadas e enlameadas e cujos habitantes tinham olhares tristes e atormentados. Mas aqueles habitantes eram o nosso povo, povo esse que conhecia a ténue linha que separava este mundo do outro. Todos eles tinham visto já um primo ser levado pelos duendes, ou encontrado uma criança estranha sob um monte de urtigas, ou falado com alguém que se aventurara demasiado dentro de uma caverna, ou entrara num anel de cogumelos à luz do luar. Não havia perguntas, olhos semicerrados ou olhares de desconfiança. Em vez disso, saíram de suas casas com os rostos sorridentes e as mãos estendidas em sinal de boas-vindas. Só quando olharam para Finbar é que se calaram, num silêncio de profundo respeito.
MisterLiam! Mister Conor! Voltastes! Niall, o moleiro, avançou para dar uma palmada no dorso de Liam.
E Paddy, o porqueiro, com um sorriso de orelha a orelha, agarrou no braço de cada um dos irmãos, exclamando:
Até que enfim, que voltastes! Eu não disse que eles haviam de voltar, Mary, não disse?
E antes de eu ter dado dois passos pela rua acima já a neta do velho Tom me segurava pelo braço, levando-me até à sua cabana, para ouvir o peito asmático do velho. Prometi-lhe uma infusão de bálsamo e hortelã-pimenta, para lhe facilitar a respiração.
E uma fogueira acrescentei. Gela-se, aqui dentro. Tens de acender uma fogueira.
Mas não havia lenha seca, nem homens lá em cima, para ajudarem a cortá-la e armazená-la. Este ano, as colheitas não tinham sido nada boas; a distomatose tinha-se instalado com as chuvas de Outono. Pouco fora armazenado para a fria estação que se avizinhava. Os rebanhos tinham sido atacados pela peste e tinham morrido muitas cabeças.
E o nosso pai? perguntou Conor, com as sobrancelhas escuras franzidas. Ele não tomou providências para o vosso bem-estar, durante estes últimos Invernos? Não há nenhum feitor para vigiar as searas, nenhum intendente para entregar provisões àqueles que estão em dificuldades?
Os camponeses balançaram de um pé para o outro, pouco à-vontade.
Então? perguntou Liam, parecendo exactamente como o nosso pai.
Lorde Colum, ele... ele não tem sido ele, desde que vós desaparecestes arriscou o moleiro. As coisas mudaram para todos nós.
Que queres dizer? perguntou Cormack, franzindo o sobrolho. Mas ninguém estava preparado para responder.
Assim, com promessas de ajuda, de reparações e provisões, deixámos a aldeia e encaminhámo-nos, pelo trilho de carroças, para a nossa velha casa. E ali, na barreira de espinheiros-alvar, por fim, encontrámos uma sentinela.
Quem vem lá? Dizei quem sois e ao que vindes! Não podíamos ver o homem, mas a voz parecia-nos familiar.
À vontade respondeu o meu irmão mais velho. Sou Liam de Sevenwaters. regressado a casa com os meus irmãos e a minha irmã.
Regressados para reclamar aquilo que nos pertence acrescentou Diarmid, carrancudo.
O homem apareceu com a espada apontada, firmemente, na nossa direcção. Estava vestido com um corpete de pele, de calças e por cima uma túnica muito usada com, no peito, o símbolo orgulhoso dos dois colares interligados; o brasão de Sevenwaters. A boca do homem ficou aberta e a espada caiu no chão.
Liam! um grande sorriso espalhou-se pelo rosto crestado.
Donal! Porque era o velho mestre-de-armas, que fora banido pelo nosso pai, à exigência da sua nova mulher. Pensei que te tinhas ido há muito destas terras! Pensei que isto estava desguarnecido. Afinal, sempre há algum senso, aqui.
Muito pouco grunhiu Donal, dando grandes palmadas nos ombros de Liam e abanando a cabeça de espanto. Por tudo o que há de mais sagrado, que bom é ver-te, rapaz. Vinde, vinde, eu levo-vos até casa.
Mas assim que nos aproximámos do pátio ele já não pareceu muito interessado em continuar. Em vez disso, fizemos uma pausa no local onde eu o ouvira, em tempos, ser despedido pelo meu pai e Conor explicou-lhe o que nos acontecera e onde estivéramos.
Hum Riminou o velho guerreiro pensativamente, quando a estranha história terminou. Contaram-se muitas histórias por aí, claro e o povo achou que ela tinha a mão no caso. Bastava olhar para ela, para ver que não prestava. Alguns disseram que vós tínheis desaparecido para sempre, mas eu sabia que vós os sete éreis capazes de olhar por vós próprios. Era apenas uma questão de tempo, o vosso regresso. Olhou para Finbar e abanou ligeiramente a cabeça. Mas vejo que o vosso irmão mudou, infelizmente.
Ninguém fez qualquer comentário e talvez Finbar nem tivesse ouvido, tão ligeiro fora aquele movimento. Donal voltou a abanar a cabeça.
Ides encontrar as coisas mudadas, aqui avisou ele, Muito diferentes. Fiquei chocado, posso dizer-vos. Também voltei há pouco tempo, pensando que o passado tivesse sido esquecido e que talvez houvesse aqui um lugar para mim. Estou muito velho para pôr a minha espada ao serviço de quem mais paga. Três anos disso foram suficientes. Comecei a ouvir histórias, por volta do solstício do Verão, de que Colum estava em apuros. Isso fez com que eu voltasse e fiquei. Alguém tem que montar guarda
Apuros’ Que espécie de apuros? perguntou Liam.
Diziam que ele estava a perder a garra. Que os homens estavam a desertar aos magotes, os postos desguarnecidos, os concelhos abandonados. As selecções de Outono por fazer e a maior parte do gado morreu à fome, no Inverno passado Os campos foram desbravados sem qualquer propósito. Diziam que ele já não queria saber. Ela dominava-o e ele não conseguia libertar-se
Diarmid andava de um lado para o outro impacientemente, as sobrancelhas carregadas e a mão no punho da espada.
Onde está ela? perguntou ele impacientemente. Onde podemos encontrar Lady Oonagh?
Seguiu-se uma pequena pausa.
Foi-se embora disse Donal.
O quê? O ar pareceu fender-se com a fúria e a frustração de Diarmid. Foi-se embora? Como, foi-se embora?
Fez as malas e partiu à pressa, há sete ou oito dias atrás, ao anoitecer. Como se tivesse apanhado um susto. Levou o filho e os homens dela e desapareceu na noite. Foi um alívio, digo-vo-lo eu.
Ela levou o nosso irmão? Havia uma nota de preocupação na pergunta de Conor Portanto, Ciarán também foi?
Foi o golpe final no vosso pai disse Donal sobriamente. Ides encontrá-lo muito alterado.
As tuas palavras perturbam-me muito disse Conor franzindo o sobrolho. Como é que ele está, agora que ela se foi?
Colum sempre foi forte disse Donal. Mas a vossa perda foi um grande golpe. Alguns dos antigos servidores da casa ficaram e eu soube o que lhe aconteceu por eles. Culpou-se a si próprio pelo vosso desaparecimento e talvez com razão. À medida que o tempo passou, a culpa começou a comê-lo por dentro. Ele podia ter feito mais, mas não conseguia ver-se livre dela. Perdeu a vontade. Os esforços dele para vos encontrar foram em vão Agora que estais aqui, por fim, não vos posso dizer se ides ser recebidos com alegria, ou simplesmente com confusão.
Disseste que ele tentou encontrar-nos disse eu, sem me aperceber. Disseram-me... disseram-me que lhe ofereceram o meu regresso em troca de ouro ou terras. E que ele recusou.
O quê? O tom de Diarmid era de ultraje. Cormack praguejou.
Pergunta-lhe disse Donal gravemente. Diria que isso é impossível. Ele não desejava outra coisa senão o teu regresso. Acredito que ele teria dado tudo para o conseguir. Quem te disse isso devia estar a mentir.
Veremos disse Liam, de rosto fechado.
Se eu contasse uma história semelhante, que não inventada por mim, dar-lhe-ia um fim limpo e satisfatório. Os filhos regressariam a casa e o pai recebê-los-ia de braços abertos. A madrasta malvada seria punida pelo mal que fizera e seria banida da casa. O pai e os filhos poriam tudo em ordem e viveriam todos felizes para sempre. Nessas histórias não há fins maus. Não há pontas a desenvencilhar, ou fios retorcidos. As filhas não dão o coração ao inimigo. Os maus não desaparecem assim sem mais nem menos, levando com eles a satisfação da vingança. Os jovens não acabam divididos entre dois mundos. Os pais sabem onde estão os filhos.
Mas aquela era a minha história. E, surpreendentemente, fui a primeira a encontrar o meu pai, porque quando os meus irmãos seguiram Donal até ao interior da casa, eu escapei-me até ao meu velho jardim, que Oonagh, no seu ódio, tinha destruído. Então, ficara com o coração destroçado. Quão fraco conhecimento tinha da dor, então.
O meu jardim continuava um amontoado de pedras e terra revolta, mas as estações tinham sido amáveis desde a minha partida. O musgo cobria o carreiro destruído e vencera a parede de pedra. As trepadeiras emaranhavam-se em redor dos restos de uma ramada; na Primavera estariam cobertas de flores de um branco alvo. Havia vistosas espigas de alfazema entre as ervas daninhas, uma ligeira névoa azul-acinzentada e conseguia cheirar o aroma curativo do tomilho. A porta da oficina estava entreaberta. O velho banco estava quase completamente coberto por uma penugem frondosa de absinto e camomila e nele estava sentado o meu pai, envolto numa capa escura, olhando em frente com olhos vazios O seu rosto, em tempos severo e forte, parecia enevoado, como se alguém tivesse passado um pincel molhado sobre as feições de um rei, num retrato qualquer. Dos seus dois cães-lobos, que em tempos lhe seguiam todos os passos, não havia sinal.
Atravessei o jardim, pisando com cuidado no pavimento escavacado. Ele virou a cabeça lentamente ao ouvir o som e os seus olhos profundos ficaram com uma expressão de puro espanto. Aproximei-me.
Niamh? perguntou ele, incrédulo.
Não, pai disse eu, engolindo com dificuldade. Sou eu, a Sorcha, a sua filha. Voltei para casa. Voltámos todos para o pé de si, sãos e salvos.
Sentei-me no banco ao pé dele. Seguiu-se um longo silêncio. Peguei-lhe na mão e segurei-a com as minhas. Tremia.
Não sabia o que dizer. Quando partira era uma criança e ele uma severa e distante figura, que eu mal conhecia. Agora, era como se eu fosse o pai e ele a criança.
Pai? arrisquei. Sabe quem sou eu? Ele demorou muito tempo a responder.
A minha filha era uma rapariguinha disse ele finalmente. Já... já passou um certo tempo.
Perdi-os, sabes? A todos. Até o mais pequeno. À nossa volta, o jardim estava tranquilo.
Pai, talvez fosse melhor entrarmos. Os meus irmãos estão cá, todos. Já está tudo bem. Mas eu sabia que não era verdade.
Ele suspirou.
Não me parece. Ainda não. Vou ficar aqui um bocado. Vai tu. Voltou a cair no silêncio e os olhos voltaram a perder o interesse. Por fim, levantei-me e caminhei até à porta, o meu vestido roçando pela camomila e pelo tomilho rastejante, despertando um aroma doce no ar frio da manhã. Quando cheguei à porta, ele falou de novo, por trás de mim.
Lamento, Niamh disse ele. Lamento tanto.
Mas quando virei a cabeça ele não estava a olhar para mim. Poder-se-ia dizer que o seu olhar estava fixo no muro de pedra, mas eu pressenti que ele estava a ver algo mais longe, tão distante como uma velha recordação, ainda doce e forte como a nota de uma harpa e tão dolorosa como um golpe profundo de espada. Entrei para procurar os meus irmãos.
Levaria tempo. Era o que Conor ia dizendo, à medida que cada um de nós tomava parte nas diversas tarefas que era necessário levar a cabo, decisões que precisavam de ser tomadas. Tempo para que o pai voltasse a ter força de vontade, recobrasse de novo o espírito despedaçado, voltasse ao conhecimento de onde estava e de quem era. Tempo para que Finbar emergisse do silêncio, perdesse aquele brilho selvagem do olhar, aquela sinistra palidez da pele. Entretanto, havia trabalho para ser feito e aqueles que tinham a força e a vontade tinham que o fazer. Felizmente, o meu pai não tinha primos, ou sobrinhos, que se pudessem ter habilitado ao domínio, na ausência dos seus filhos. Mas tinha vizinhos poderosos, que não tardariam muito em tirar vantagem da fraqueza de Lorde Colum. Ouvi Liam discutir isso com Donal em frente de uma taça de hidromel, nessa noite.
É incrível como Eamonn ainda não deu um passo para atacar disse Donal.
Seamus Redbeard continua nosso aliado, se bem que tenha casado Eilis com esse traidor disse Liam. Conheço-o bem e quando chegar a ocasião, ataco. Eu tinha relatado ao meu irmão mais velho, já há muito tempo, a duplicidade de Eamonn e a sua aliança com Richard de Northwoods. Liam ouvira-me com gravidade, retendo a fúria. Não disséramos nada a Diarmid sobre os laços entre esses homens e Lady Oonagh porque, dissera Liam, era uma situação que exigia um tratamento delicado e um cálculo preciso. Em devido tempo, ele e Seamus lidariam com a situação. Diarmid, ardendo, com razão, de desejo de vingança, ficava melhor de fora até o assunto ficar resolvido.
Eu sei que a ideia de vingança rápida é tentadora continuou Liam. Mas tenciono empregar métodos subtis, porque o homem tem informações úteis para nós e preciso de saber quais são, antes de lhe dar um fim
Seamus já tem um neto observou Donal. Não temes essa aliança? Quem pode dizer se o velho não muda de opinião?
Liam teve um pequeno sorriso, que não lhe chegou aos olhos.
O filho de Eamonn não será criado como inimigo de Sevenwaters disse ele.
A notícia do nosso regresso espalhou-se depressa, como todas as notícias do género. Assim como a história do que Lady Oonagh nos fizera e da tarefa que eu completara, de maneira a libertar os meus irmãos do seu encantamento. Como já disse, o nosso povo aceitava estas situações sem grandes surpresas, mas com o tempo a história foi aumentando e enriquecendo, tomando lugar entre as grandes e heróicas lendas que o povo contava nas longas e frias noites de Inverno depois do jantar, frente a uma caneca de cerveja. Na história não se dizia grande coisa sobre os bretões e como me tinham ajudado; à excepção de Lorde Richard e da tentativa de me queimar viva. Toda a gente gosta de um bom vilão.
Liam calçou as botas do nosso pai, como sempre pensámos que o faria, um dia. Restava pouco pessoal da casa aquando do nosso regresso. Donal e uma meia dúzia dos homens do meu pai, aqueles cuja lealdade os impedia de se irem embora, mesmo naquelas condições; aqueles, demasiado fortes, ou teimosos, que Lady Oonagh não conseguira corromper. Fat Janis, de olhos encovados e magra como um cão, sempre na faina numa cozinha quase vazia, apenas com os restos de uma tardia e desesperada colheita. Um par de rapazes, que dormia nos estábulos e que tratava dos animais. Era tudo. Mas, aos poucos, começaram a voltar, um grupo de homens hoje, um par de criadas risonhas no dia seguinte Todos sentiram a força da língua de Liam, pela sua deserção. Todos encontraram um lugar na casa e começaram a trabalhar. Começaram a aparecer visitantes de longe, que passavam as noites em profunda discussão com o meu irmão. Acreditava que um dia Eamonn de Marshes acordaria para descobrir que lhe fora estendida uma armadilha, da qual não escaparia. Não pedi quaisquer pormenores. Durante o dia, a voz de Donal percorria o pátio e ouvia-se o som familiar do choque de metal com metal, juntamente com o rufar dos cascos dos cavalos. Na cozinha, Janis ladrava ordens, ao mesmo tempo que a lenha era cortada e os fogões alimentados e a roupa era esfregada e pendurada a secar. A casa de Sevenwaters recomeçou, lentamente, a respirar.
Pareceu-nos, de algum modo, natural, regressar ao vidoeiro da nossa mãe, num dia em que o ar estava seco e frio e as árvores nuas continuavam em volta do pequeno relvado, à beira do lago. Não planeámos nada. Mas parecia que o tínhamos feito, quando naquela manhã especial segurei Finbar pela manga e o guiei através da floresta, ao mesmo tempo que os outros se encaminhavam também para a margem, sozinhos ou aos pares, até que os sete se encontraram todos no local. Desta vez não houve objectos rituais, nem qualquer cerimónia. Limitámo-nos a colocar-nos em círculo em volta do tronco prateado da árvore, deixando que o silêncio nos entrasse nos espíritos. Uma voz, dentro de mim, disse, Estás aqui. Regressaste a casa, minha filha e aferida sarou. Não nos deixes de novo. Mas se era a voz da minha mãe, ou a voz da própria floresta, não sabia.
Observei os rostos dos meus irmãos enquanto eles permaneciam ali, silenciosos. O feitiço fora quebrado e nós regressáramos a casa. Isso era verdade. A casa desfeita, as alianças quebradas, podiam ser refeitas com trabalho árduo. Mas havia um dano mais profundo, que continuava por consertar e que talvez nunca o viesse a ser. Enviei uma súplica às Criaturas Encantadas, para que os meus irmãos pudessem voltar a ser o que eram, todos eles. E que eu conseguisse, de algum modo, libertar-me daquela terrível dor no peito, que parecia não querer desaparecer.
Estamos quase no Inverno disse Conor, baixinho. Depois da escuridão do Inverno, vem a luz da Primavera. Depois do sono do Inverno, acordamos para a Primavera. Não podemos perder a esperança, quando esta verdade nos é mostrada, ano após ano.
Mas os outros não disseram nada e após uns momentos cada um de nós tocou com a mão na casca pálida da árvore, regressando depois lentamente a casa.
Nem todos se limitaram a apanhar os cacos e a começar de novo. Para Diarmid, era-lhe insuportável que a nossa madrasta tivesse desaparecido na floresta sem ser vista, aparentemente incólume, levando o filho com ela. Ela tinha de ser punida. Devia pagar pelo que fizera. Sem a devida vingança, a história não podia terminar, o padrão não ficava completo. Liam e Conor tentaram chamá-lo à razão. O que fora feito, não podia ser desfeito, disse Conor. Ele tinha que deixar partir a ira e começar de novo. Era como se não houvesse outra saída para as energias dele. Diarmid era um diamante em bruto. Ela tinha de pagar. A feiticeira tinha de pagar. Por que não iam em frente, procurá-la e exigir o preço?
Permaneceu no fio da navalha da sua ira e os seus oponentes é que pagavam a factura na prática diária, no pátio. Lutava com uma intensidade assustadora, não se preocupando, aparentemente, com a sua própria segurança. Sempre que um ataque envolvia Diarmid, lá estava Donal por perto, observando cada movimento; e ainda bem.
Finbar não se aventurava fora do castelo, porque as pessoas seguiam-no e esticavam os braços para lhe tocar nas penas suaves da grande e brilhante asa, como se fosse um talismã; e ele retraía-se ao mínimo toque, como se algo da criatura selvagem continuasse a viver dentro dele. Eu tinha medo por ele e não sabia como ajudá-lo.
Conor fez um inventário dos magros haveres. Lançou o olhar sobre o gado que restava, o estado das casas de lavoura, as necessidades de conserto de cabanas e celeiros. Deslocou-se a outras aldeias para se assegurar da lealdade dos rendeiros locais, para verificar o estado das manadas e dos rebanhos e em nome de Liam para tentar conseguir aprovisionar os postos avançados de guarda. Mas andava invulgarmente abstracto, passando muito tempo a uma janela, olhando para a floresta; como se estivesse à espera de qualquer coisa. Algumas vezes desaparecia, simplesmente, para regressar à noite sem qualquer explicação. E recebia os seus próprios visitantes. Anciãos vestidos com grandes mantos e jovens com olhos de ancião. Falava com eles em particular, fora de portas e depois ficava muito quieto, como se os seus pensamentos estivessem num local distante, longe de Sevenwaters.
Entretanto, os aldeões começaram a sucumbir a uma maleita invernal que atingia o peito, provocando farfalheira e fazendo com que o corpo sentisse calafrios. Tirei Cormack do pátio, onde passara a desempenhar o papel de braço direito de Donal, como se já o tivesse feito antes. Encontrei Padriac no estábulo, onde estava a tratar de um cavalo coxo, com os dois rapazes pendurados de cada palavra que ele dizia. Arranjei uma carroça carregada de lenha e os três, juntamente com os dois rapazes, fomos até à aldeia e assegurámo-nos de que todas as casas recebiam um pequeno fornecimento. Levei sopa, que Janis inventara com cebolas, azedas e bocados de uma galinha velha. Não me faltava trabalho. O Velho Tom estava muito doente; não sabia de nenhum bálsamo, ou hortelã-pimenta, que lhe conseguisse curar a tosse. O fogo ajudou-o um pouco. Mas havia outros que podiam ser salvos, se lhes mimstrasse os devidos cuidados.
De regresso a casa, pus uma das raparigas a apanhar e preparar as ervas que ainda cresciam em volta da casa e no jardim e começámos a armazená-las de novo, nas prateleiras da ervanária. O meu trabalho era aquele; aquele era o meu lugar. Eu era a filha da floresta, uma criança que crescera no coração do seu misticismo, imut
ável, se bem que nunca o mesmo. Mas não conseguia apagar as imagens que subiam do meu coração. Desejava-o tanto; queria-o ao pé de mim, ansiava por sentir os seus braços em redor do meu corpo, ouvir a voz dele, muito baixa, como quando lutava por controlar os seus sentimentos. Está tudo bem, Jenny. Tudo bem. Os meus dias de trabalho iam passando e, por mais que tentasse, a cada momento que passava, a minha mente imaginava onde estaria e o que faria nesse mesmo momento. Imaginava-o no salão de Harrowfield, resolvendo as disputas das pessoas da sua casa, escutando gravemente, distribuindo o seu parecer com sensatez. Pensei nas manhãs de Inverno, nele e em Ben, praticando os seus jogos de guerra. Corpos em esforço, um contra o outro, cabelos louros contra cabelos cor de fogo. As raparigas amontoadas à porta, admirando-os. Depois de terminarem, os dois homens dariam pancadas nos ombros um do outro, rindo. Ben diria uma piada idiota. No dia seguinte talvez fossem reparar um telhado, construir um muro de pedra, ou partir o gelo dos barris de água. Os aldeões de Harrowfield não passariam fome, nem sucumbiriam a maleitas por falta de cuidados. Não dissera adeus a Margery. Sentia-me triste por isso. Talvez Johnny estivesse agora a dar os primeiros passos. Não veria isso. Tinha de aceitar que nunca mais veria Red. Tinha de o esquecer e continuar por um novo caminho. Mas, tal como Diarmid, descobri que não conseguia esquecer.
Diz-se que o tempo cura as doenças do coração e que tais sentimentos se desvanecem devido à ausência. Comigo, não. Durante o dia, exauria as minhas forças com trabalho, mas a imagem dele estava sempre presente na minha mente. À noite dormia pouco e, quando conseguia dormir, sonhava com o que perdera. Os meus irmãos brincavam com isso, chamando-lhe paixão da juventude, algo de que, em breve, despertaria. Apesar de tudo, continuavam a ver-me como uma criança e esperavam ver-me de novo no meu antigo papel em Sevenwaters, como se nada tivesse mudado. Não conseguiam imaginar que eu amava um bretão, que dera o meu coração a um homem em cuja casa quase morrera. Não servia de nada tentar explicar-lhes. Apenas Finbar compreendia a profundidade da minha ligação a Red.
O pai pouco falava. Gostava de se sentar no meu pequeno jardim, fosse qual fosse o tempo. Se chovia um pouco, ele abria um velho saco sobre a cabeça e os ombros e deixava-a cair. Se o vento era frio, embrulhava-se na capa. Quando não estava ocupada na aldeia, trabalhava ao pé dele, cavando, arrancando as ervas daninhas, limpando, enquanto a minha pequena ajudante trabalhava na ervanária.
Às vezes, encontrava também Finbar no jardim, uma figura pálida, silenciosa, cujo rosto continuava doentio e gasto; cujos olhos continham ainda um saber selvagem, para além da compreensão humana. Desde a última noite em Harrowfield que ele erguera um escudo, escondendo de mim os seus pensamentos e a sua voz interior continuava silenciosa. Não sabia o que se passava com ele; mas sabia que falava com o pai, mentalmente.
Talvez o pai lhe respondesse da mesma maneira. Recordei o que o padre Brien nos dissera, há muito tempo. Como os anciãos teriam escolhido Colum, como ele quisera aprender o seu ofício secreto e memorizara os conhecimentos, para se tornar, com o tempo, um membro daquela irmandade mística. Mas Colum pousara os olhos em Niamh, naqueles caracóis escuros, naquela pele branca como o leite e naqueles grandes olhos verdes e perdera o coração. Depois disso, só havia um caminho para ele. E assim Conor fora escolhido no lugar dele. O padre Brien falara de amor e da nossa família. Que dissera ele? Ainda não sabeis nada do amor que atinge como um raio, que vos aperta o coração, tão irrevogavelmente como a morte-, que se torna a estrela polar, pela qual guiais o resto das vossas vidas... está na natureza do vosso sangue, amar assim.
Eu já sabia, infelizmente, o que era amar assim, como o meu pai amara a minha mãe. Percebi que Finbar tentava ajudar o pai a recuperar o conhecimento, de volta a um lugar onde ele pudesse tocar neste mundo sem ser destruído pela culpa, pelo desgosto, pela angústia. Eles ficavam sentados em silêncio e eu movia-me em redor deles, apanhando alfazema e rosmaninho, incapaz de reprimir os anseios do meu próprio coração.
O tempo ficou cada vez mais frio. As chuvas pararam e foram substituídas por dias claros e brilhantes e noite de grandes geadas. As últimas folhas caíram dos freixos, dos vidoeiros e dos grandes carvalhos, cujas raízes estavam agora cobertas pelos restos das suas coberturas de Verão. O legado de Lady Oonagh era grande e terrível. O Velho Tom morreu e a sua neta desenvolveu uma grande farfalheira e um brilho febril nos olhos. Atendi crianças cujos corpos estavam pegajosos de suor, que berravam por água fria, enquanto a neve se amontoava à porta das cabanas. Vi homens fortes ficarem débeis como crianças, agarrando-se às minhas mãos como se estivessem com medo do escuro. Nesse Inverno perdemos dez boas pessoas da nossa aldeia. Se não estivessem fracas devido à falta de tratamento, talvez tivessem conseguido lutar.
Estava cada vez mais cansada e zangada e só o percebi quando um dia Diarmid anunciou, solenemente, que ia em busca da feiticeira, para que fosse julgada e que se ninguém queria ir com ele, o problema não lhe pertencia. Alguém tinha que ser arrojado e ter a coragem para fazer o que tinha de ser feito, disse ele. Pegou na espada e no arco e fez-se à estrada, sozinho. Um pouco mais tarde, de lábios cerrados, Cormack selou um cavalo e foi atrás dele, porque, como ele disse, Diarmid era como uma flecha perdida, que tanto podia encontrar o alvo certo, como o errado e era melhor ele assegurar-se de que um mal maior fosse evitado.
Eu trago-o de volta são e salvo disse Cormack, ao mesmo tempo que o seu cavalo se inquietava e escarvava o solo, ansioso por partir. Há uma criança que deve ser encontrada. O nosso irmão. Diarmid esquece-se disso, na sua paixão. Ficarei ao lado dele até que se recomponha. Voltaremos na Primavera. Conor esticou-se do lugar onde estava, ao lado do cavalo, para apertar a mão do irmão gémeo.
Tende cuidado na vossa jornada, irmão disse ele calmamente.
E tu também replicou Cormack com um sorriso torcido.
Seamus veio visitar Liam. Passaram dois dias a conferenciar e chegaram a um acordo para a partilha de homens de armas e para a defesa comum das fronteiras. Falaram de Eamonn de Marshes, que se casara com Eilis, Os seus rostos estavam carrancudos e o comportamento de ambos cheio de intenções. Seamus deixou em Sevenwaters um pequeno grupo dos seus homens e promessas de ajuda. Mas, antes da partida, Seamus esteve sentado com Lorde Colum durante uma tarde inteira, falando calmamente e eu pensei ver um relâmpago de reconhecimento nos olhos do meu pai.
Com Diarmid e Cormack ausentes, aproximámo-nos mais uns dos outros. O Inverno estava a ser terrível e tornou-se cada vez mais difícil manter a aldeia aprovisionada, assim como os postos avançados. Trabalhávamos todos os dias até cair de exaustão. À noite, havia pouca cerimónia. A casa reunia-se, senhores, servos e homens de armas na cozinha, onde um fogo era mantido aceso. Janis providenciava o que podia, geralmente uma sopa e fatias de pão escuro. Comíamos juntos, trabalhávamos juntos. O salão estava deserto, demasiado grande para poder ser aquecido, devido à lenha cuidadosamente racionada. Quando a simples refeição terminava, este ou aquele contava uma história, enquanto Janis ia passando malgas de vinho quente com açúcar, retirado do que eu sabia ser o seu sortido, cada vez mais pequeno, de especiarias e frutos secos.
E lentamente, à medida que uma noite escura se seguia a outra noite escura, os olhos do meu pai começaram a perder aquela expressão morta, gelada e a acordar para as lendas acerca de heróicas batalhas ou amores infelizes. Sorriu um pouco quando eu contei a história da rainha guerreira com um grande apetite por rapazes. Acenou com a cabeça gravemente, quando Padriac contou a velha saga da derrota dos três gigantes por parte de Culhan, cada um maior do que o outro. Até Donal, relutantemente, foi persuadido, uma noite, a juntar-se, contando a grande viagem de Maeldun e as coisas incríveis que encontrou, como uma ilha onde as formigas eram tão grandes como cavalos, ou um pomar de macieiras que dava maçãs todo o ano, ou uma fonte que deitava, com força, leite fresco. Uma vez esta história começada, toda a gente lhe acrescentava uma coisa e passaram-se muitas noites até terminar. O meu pai sentava-se ao pé de Finbar, ouvindo aquela história e uma vez ou duas inclinou-se para o filho, fazendo um comentário em voz baixa, enquanto Finbar acenava com a cabeça muito suavemente. Então chegou o dia em que, em vez de se encaminhar para o jardim, para se sentar em silêncio, o pai foi em busca de Liam, no local onde este estava, observando os homens a adestrar os cavalos. Ficou com ele toda a tarde e o que disseram um ao outro não perguntei. Mas nessa noite havia um novo calor nos seus olhos.
Lentamente, começou a falar e a responder, como se nos conhecesse. No entanto, as coisas não eram como antigamente. O nosso pai parecia um homem muito mais velho. O fardo que carregava, e que nos fizera carregar, era-lhe quase insuportável e creio que, por vezes, apenas um ligeiro fio o mantinha mentalmente equilibrado. Era Finbar que olhava por ele, em silêncio, sempre presente nas sombras, como se a sua mente ajudasse a segurar a do pai, tecendo uma teia de protecção em volta do espírito que ia sarando lentamente. Assim, pai e filho começaram a entender-se mutuamente e uma outra ferida sarou. Mas a vitória fora muito cara. Finbar ficou cada vez mais magro, comendo cada vez menos e sempre sem dizer uma palavra. Não era possível uma pessoa dar tanto de si própria sem um custo terrível.
O meu pai quase não me falava. Dizia para mim própria que isso não era nenhuma novidade. Antigamente, parecia não saber o que fazer da sua filha mais nova, que tanto se parecia com a mãe. Agora, era como se fosse Niamh, tão parecida, que a princípio me confundiu com ela, a quem amou tanto e perdeu. Os meus irmãos contaram-lhe a minha história. Ele sabia que eu casara com um bretão, um daquela raça que ele tanto desprezava. Um daquela raça que nos roubara as ilhas que guardavam o mais sagrado dos lugares sagrados do nosso povo e para nada, apenas como um ponto de apoio para outras aventuras de ira e ganância, para ocupar a nossa terra. Disseram-lhe isso. Mas, tranquilizou-o rapidamente Liam, não fora um casamento a sério. A união podia ser anulada, disse Conor e com o tempo, encontrariam um marido adequado para mim. Com o tempo. Não havia pressa. O meu pai ouvia e não dizia nada.
O solstício do Inverno passou e com ele o aniversário dos meus 16 anos. O tempo permaneceu extremamente frio. Ia cedo para a aldeia, levando pão de centeio que Janis e eu fizéramos e uma infusão feita das raízes da erva-férrea, para a neta de Tom, que estava a piorar da febre. A geada estalava sob os meus pés. Fui de cabana em cabana e terminei as minhas incumbências quando o Sol ainda se via por trás da filigrana invernal dos vidoeiros. Ouvi o chamamento queixoso de uma coruja, nas profundezas da floresta e uma outra a responder. Em vez de ir direita para casa, subi a colina para lá dos esqueletos das árvores, a minha respiração uma nuvem de vapor no ar gelado. No topo da pequena elevação sentei-me numa pedra lisa e olhei, para lá do emaranhado de ramos, para a água calma do lago. Tinha uma pedra na bota. Tirei as luvas e procurei para a retirar. Só então olhei para as minhas mãos e percebi que o inchaço tinha, por fim, desaparecido, os dedos pequenos e finos como antes, a pele pálida e suave. Quase como se nunca tivessem manejado a roca ou a agulha, quase como se nunca tivessem ouvido falar em morugem. Tinham as marcas e os arranhões do meu trabalho na cozinha e no jardim, mas mais nada. Talvez tivesse havido alguma magia da floresta, porque durante todo o tempo como curandeira nunca vira uma coisa sarar tão depressa.
Sem pensar, retirei o cordão do pescoço e cortei-o com a pequena faca afiada que guardava no saco, com os meus unguentos e salvas. O pequeno anel de carvalho caiu-me na palma da mão, quente e suave por ter estado encostado ao coração. Enfiei-o gentilmente no terceiro dedo da mão esquerda. Ajustava-se como se tivesse sido feito de propósito; como, na verdade, fora.
Fui assaltada pelas lágrimas, que me escorreram pelas faces numa torrente imparável e não havia ninguém sentado tranquilamente ao pé de mim para me oferecer um lenço lavado quando eu tanto precisava de um. Ninguém sentado por perto, mas não demasiado perto, deixando-me chorar, mas pronto a ajudar quando eu estava pronta a pedir. Cobri o rosto com as mãos, pensando que não conseguiria suportar tamanha dor durante muito mais tempo. Eu só tinha 16 anos. Seria o resto da minha vida passado assim, meio acordada, numa semivida, nunca completa? Que fizera eu para ser assim amaldiçoada
Nada disse uma voz perto.
Olhei através dos dedos encharcados de água. Ela estava na minha frente, olhando-me com gravidade, a capa azul-celeste o único sinal de cor no meio das árvores despidas.
- Fizeste um bom trabalho, filha da floresta. O teu trabalho para nós está quase terminado. Foste forte. Quase demasiado forte.
Funguei. Levara tempo a voltar, ela.
Quase terminado? gaguejei eu. Pensei que tinha terminado. Os meus irmãos regressaram. Completei a tarefa. O que é que falta?
A Dama da Floresta sorriu.
Fizeste tudo o que te foi pedido e provaste ser corajosa e verdadeira, Sorcha. Só falta uma coisa. Saberás, quando chegar a ocasião.
E já começava a desvanecer-se por trás das árvores.
Esperai! disse eu insistentemente, como se uma de nós tivesse uma peste mortal. Por favor, esperai! Preciso que me digais... preciso que me expliqueis...
O quê, minha filha? Ela arqueou as sobrancelhas, como se me achasse divertida.
Vós magoaste-lo. Magoastes ambos. Dissestes... na altura, na caverna... dissestes-me que eu escolhera bem. Ele não passou disso, de uma espécie de guarda que me destinastes por um certo tempo, de maneira a eu poder completar a tarefa em segurança? Foi esse o único propósito ao aproximá-lo tanto de mim? Por que lançar-lhe semelhante feitiço, ferindo os corações de ambos? Sabíeis que não conseguiríamos esquecer, uma vez a tarefa completa.
A Dama franziu um pouco a testa, baralhada.
De que feitiço estás tu a falar, minha filha?
Do feitiço, do encantamento que lançastes sobre Lorde Hugh, para o manter perto de mim, para que me guardasse e vigiasse, mesmo à custa de tudo o que lhe era mais querido. Foi um feitiço cruel, porque eu podia ter tomado conta de mim própria, preferia não ter... Os meus dedos faziam girar o anel no dedo, freneticamente. Ela riu-se com uma risada alta, alegre, como o barulho de uma cascata.
Ele não precisou de encorajamento disse ela. Acredita-me, não houve qualquer encantamento. É-te assim tão difícil de acreditar que um tal homem te possa amar, sem a ajuda da magia? Já te olhaste ao espelho? Não sentiste a tua própria força de espírito, a tua lealdade, a tua doçura? A ele bastou-lhe o tempo de uma batida do coração, para ver essas coisas. Se não fosses tão forte, talvez não o tivesses deixado ir. Talvez a tua história precise de um fim diferente.
Mas disse eu estupidamente. Mas, por que é que ele nunca disse nada? Por que é que ele não me disse?
Ele tentou disse ela. Sorriu e abanou um pouco a cabeça, como que divertida com a loucura da humanidade e desapareceu no nada.
E enquanto me dirigia para casa, pela colina abaixo, percebi que ele tentara, na verdade, tentara dizer-me; e fora eu que não ouvira. Com a gentileza das mãos e a doçura do sorriso. Com a ira, quando eu saíra sem autorização e encontrara Richard nos bosques. Na maneira como ele vacilou quando eu lhe toquei, na noite em que John morreu. Não preciso da tua piedade, dissera. Na história que me contou, na praia. Ela era a mulher da vida dele e ele não conseguia desistir dela. Mas ele desistira de mim, sem uma palavra. Percebi, com um sentimento de tristeza no coração, que ele fizera aquilo porque acreditava que a única coisa que eu queria era voltar para casa com os meus irmãos. Como podia saber que eu o amava, quando eu própria mal o sabia? Tentara devolver-lhe o anel e ofendera-o. Assim, manteve a promessa e deixou-me partir. E eu nunca mais voltaria. Como podia deixar a floresta, já que, tal como a sereia, não sobreviveria durante muito tempo longe do lugar do meu coração? Red compreendera isso. Regressei a casa, absorta. Apesar de tudo, apesar do coração despedaçado, sentia um ligeiro calor dentro de mim. Se eu tivesse sabido que ele me amava, nem que tivesse sido por pouco tempo, tornaria a dor mais fácil de suportar.
Nessa mesma noite, quando nos reunimos no calor da cozinha para jantar, vesti o meu vestido azul. Lavara-o cuidadosamente e a mancha que atravessava o peito e a manga mal se distinguia no tecido desbotado. Aquela lavagem tornara o vestido suave e confortável, mas ainda não o vestira desde que chegara, porque me trazia à memória recordações de dor, assim como de alegria. Nessa noite senti-me compelida a vesti-lo e o anel no meu dedo era um símbolo de orgulho. Os meus irmãos repararam todos em ambos os objectos, mas não fizeram qualquer comentário, talvez sensíveis aos sinais de choro no meu rosto.
A sopa de cebola e cevada estava boa e o grande caldeirão de Janis em breve ficou vazio. Em seguida, sentámo-nos com as nossas taças de vinho nas mãos, com o brilho da fogueira nos nossos rostos cansados e Liam disse:
Quem é que, nesta noite de Inverno, nos vai contar uma história? Seguiu-se um silêncio e ninguém se ofereceu. Neste solstício de Inverno, não houvera ramos de azevinho sobre as portas nem grinaldas nas janelas, para convidar os espíritos errantes a entrar. Não havia madeira seca disponível para fazer fogueiras e ninguém com energia e vontade de celebrar a passagem da estação. No entanto, havia uma grande amizade entre todos, uma espécie de propósito repartido, que nos unia. Acreditei que até o meu pai sentia isso, ao sentar-se ao lado de Liam, olhando longamente para o seu filho mais velho, que já era um chefe. E para Conor, cujo olhar sereno estava abstracto, absorto em profundos pensamentos. Aquele filho era sábio demais para a idade; em breve chegaria a ocasião de ele deixar a casa paterna e havia uma certa luz de perda nos olhos do meu pai. Por fim, lá estava Finbar, de pé por trás da cadeira do pai, observando tudo e nada dizendo. Aquele era o filho que em tempos tanto enfurecera o pai, com o seu olhar penetrante e palavras francas, com a sua teimosa recusa em jogar os jogos de Lorde Colum. Mas fora aquele filho que curara o espírito do seu pai. E Padriac, o favorito. Padriac, que já não era uma criança. Namoriscava as criadas e ria-se para o pai e Colum devolvia-lhe um sorriso cúmplice.
Ficámos sentados por momentos, falando disto e daquilo, relutantes em abandonar o conforto da cozinha pelos nossos quartos gelados. O fogo estava baixo e Donal acrescentou um dos preciosos troncos. Tinha-se cortado e armazenado mais lenha, mas levaria muito tempo a secar e havia muitos corações para aquecer. Os aldeões tinham levado a primeira provisão e nós ficámos com o que restou.
Então, ouviram-se ruídos no exterior e de súbito todos nós estávamos alerta. A porta foi rudemente aberta e Liam pôs-se de pé imediatamente em busca da espada, colocando-me atrás de si. No outro lado apareceu Donal, de adaga em punho. Conor moveu-se para proteger o pai. No meio de uma rajada de vento frio, entraram dois dos guardas de Liam com um prisioneiro entre eles, um prisioneiro com os olhos tapados e as mãos atadas atrás das costas. Tive um vislumbre de Simon, arrastado até ao grande salão na noite em que Liam ficou noivo de Eilis, um cativo furioso, feroz. Aquele prisioneiro era alto e bem constituído e não oferecia resistência, mantendo-se antes imóvel entre os seus captores como se ter sido levado até ali tivesse sido a sua primeira intenção. Aquele prisioneiro tinha o cabelo cortado muito curto, da cor do sol no Outono reflectido nas folhas das faias, uma chama viva na noite fria.
Abri a boca e a mão de Liam subiu imediatamente, tapando-ma e silenciando-me. Donal segurou-me no braço, impedindo que me aproximasse. Assim, impedida de qualquer movimento ou fala, limitei-me a olhar enquanto Red era arrastado para se apresentar perante os homens da minha família. Os guardas soltaram-lhe os braços e afastaram-se. A cozinha ficou em silêncio. Aquilo, sentiram as pessoas, prometia ser um entretenimento melhor do que qualquer história.
Eu conheço este homem disse Liam, franzindo o sobrolho para mim e retirando a mão da minha boca, mas fazendo-me sinal de que devia ficar calada. Indicou-me um assento e, de momento, obedeci-lhe. Pensava que o perímetro estava bem guardado. Como é que ele conseguiu passar despercebido?
É estranho, meu senhor disse um dos homens, que parecia um pouco ofegante. Deve ser feitiçaria, porque ele apareceu na colina vindo de norte e desceu depois através dos bosques de freixo, quase até à cerca exterior, sem os nossos homens o ouvirem. Não sei como é que ele o fez. Depois, apareceu mesmo à minha frente e deixou-se prender. Para um homem tão grande, faz pouco barulho.
Não deve ser muito bom da cabeça alvitrou o outro guarda.
Eu falo convosco amanhã grunhiu Donal de modo selvagem, fazendo os dois homens tremer. Não passa ninguém, percebestes? Ninguém.
Que quereis daqui, Hugh de Harrowfield? inquiriu Conor severamente, na língua estrangeira. A tua raça está longe de ser bem-vinda em Sevenwaters. Ainda não causaste danos suficientes à minha família? Espanta-me que te tenhas atrevido a pôr os pés nesta casa.
Red aclarou a garganta:
Estou aqui porque quero falar com a minha mulher disse ele por trás da venda que lhe tapava os olhos. Onde está Jenny?
O meu coração bateu desconsoladamente. Conor traduziu para os outros, carrancudo. Liam olhou para mim, levando o dedo aos lábios, avisando-me para me manter em silêncio. Mas eu precisava de lhe dizer, preciso de lhe dizer...
Espera Sorcha. É altura de ele falar.
Olhei para Finbar, na sombra. Nunca me dera ordens sem uma boa razão.
Porquê? Por que devo manter-me calada?
Se queres ouvir as palavras que lhe vão no coração, espera e mantém-te calada.
Quem é este homem? perguntou o meu pai, quase parecendo o meu pai de antigamente. Que mulher?
Este é o bretão de que te falámos disse Liam, com a voz fria. Em cuja casa a nossa irmã esteve perto da morte. Ajudou-nos a escapar daquelas costas, mas não lhe devemos nenhuns favores.
Espanta-me como este tipo tem a ousadia de mostrar a cara por estas bandas disse Donal, acariciando o seu punhal. Quais são as intenções dele?
A venda era forte e estava bem apertada. Red não podia ver nada. O seu rosto estava branco por baixo do tecido escuro. Fizera uma grande jornada. Parecia estar desarmado, se bem que eu suspeitasse que devia trazer uma faca pequena e afiada, algures no seu grande corpo.
Só desejo ver a minha mulher disse ele de novo, bastante cansado. Não vos quero fazer mal algum. Onde está ela?
Tu não tens mulher, bretão disse Liam, quando tais palavras lhe foram traduzidas. A nossa irmã está protegida e feliz entre os da sua raça. Não há lugar para ti na vida dela. A tradução de Conor foi cruelmente precisa.
Então, deixa que ela mo diga com os seus próprios lábios disse Red calmamente. Ela que mo diga e eu vou-me embora. Abri a boca e voltei a fechá-la.
Então o meu pai falou, surpreendendo-nos a todos.
Tivemos pouco entretenimento esta noite, cansados como estamos. Talvez este tipo tenha uma boa história para nos contar nesta noite de Inverno. Talvez se possa defender através dessa história. Trazei um assento para o bretão e dai-lhe espaço. Deixai-o falar e ouçamo-lo em silêncio. Conor traduzirá as suas palavras. Será uma tarefa árdua. Pressinto aqui um mistério; não julgarei precipitadamente. Foi-lhe trazido um banco e Red sentou-se, as longas pernas cruzadas e a venda sempre a tapar-lhe os olhos. Não lhe desamarraram as mãos. Sentado, de costas direitas, hirto, a luz do fogo dava-lhe uma tonalidade ao mesmo tempo dourada, escarlate e acobreada ao cabelo. Eu respirava com dificuldade. À minha volta, Janis, Donal, os homens e as mulheres da casa permaneciam em pé ou sentavam-se com as taças na mão, de olhares expectantes. Não sabia o que sentir. Estremecia de prazer por poder vê-lo de novo. Olhei para os homens da minha casa que, parecia, estavam sempre a pregar partidas; que não aceitavam um estranho sem o sujeitarem a uma prova qualquer. Pedissem a Red que lutasse com a espada, com a pequena faca, ou com as mãos e os pés e ele seria mais do que um desafio para qualquer um deles. Eu própria o vira. Pedissem-lhe que reconstruísse um muro caído, ou tratasse de um animal doente, ou refazer uma aliança e ele era homem para isso. Mas ele não era um contador de histórias; ainda por cima numa reunião de estranhos como aquela. Não era um actor. Contara-me, uma vez, uma história; mas fora apenas para mim e não dissera a sua mãe que ele falava comigo como consigo próprio? A tarefa que o meu pai lhe destinara era a mais difícil que lhe podia ter dado. Para um tal homem, que guardava os seus sentimentos só para si, sempre reprimidos, cujos olhos frios e boca sempre fechada não deixavam transparecer nada, cujas palavras lhe faltavam quando deixava o coração falar, aquele era um desafio cruel. Tu podes fazê-lo, disse-lhe eu silenciosamente. Conta a tua história só para mim. Um passo depois do outro, sempre emfrente.
Era uma vez... era uma vez um homem começou ele hesitantemente que tinha tudo. Bem-nascido, rico, saudável de corpo e alma, cresceu como o filho mais velho e herdeiro de um grande domínio, cujas fronteiras eram a oeste o mar e a leste os montes, cujos campos eram férteis e cujos rios abarrotavam de peixe.
A voz de Conor era de um contraponto grave, ao traduzir as palavras para a nossa língua. Finbar estava à janela, de olhos fixos no nada. Ele compreende, pensei. Não apenas as palavras, mas o significado por trás delas. Finbar e eu somos os únicos a saber. Mas as feições graves de Finbar e o seu olhar desfocado não denunciavam nada.
Ele cresceu continuou Red o pai dele morreu e o domínio passou a ser dele, salvo uma pequena parte que ficou para o seu irmão mais novo. A sua vida estava planeada, cada pormenor previsto. Faria um bom casamento, expandiria as suas terras, sustentaria a sua família e o povo que dele dependia, continuaria o trabalho dos seus antepassados. É este o destino de muitos homens, cumprindo o seu dever, esperando legar aos filhos paz e prosperidade. Mexeu-se levemente. As suas mãos, ainda atadas atrás das costas, pareceram apertar-se uma contra a outra.
Então... então as coisas mudaram. Uma maldição caiu sobre a sua família, levando-lhe o irmão mais novo. Com o passar do tempo, tornou-se evidente que tinha de ir à procura dele, quer estivesse morto, ou vivo. Mas ele amava a sua casa, as suas terras e acreditava que havia poucas esperanças de que o seu irmão estivesse vivo. Acreditava que ele estava perdido para sempre. E assim esperou, esperou, até que não teve outro remédio senão atravessar o mar e procurar a verdade.
Houve uma pausa. Talvez eu fosse a única pessoa a saber que ele a utilizava para ordenar os seus pensamentos, para forçar a respiração a abrandar e manter-se firme, para conseguir que a sua voz continuasse confiante. Para os outros, continuava a ser apenas uma história como todas as outras que todos contávamos, noite após noite, histórias cómicas e estranhas, histórias heróicas e de espantar, histórias que nos faziam sonhar.
O homem viajou até longe e ouviu e viu muitas coisas estranhas nas suas viagens. Soube que... que o amigo e o inimigo não passam de duas faces da mesma moeda. Que o caminho que pensamos escolhido há muito, constante e imutável, direito e extenso, pode alterar-se num instante. Pode ramificar-se e levar o viajante a lugares muito para além dos seus sonhos mais incríveis. Que há mistérios que estão para além da compreensão humana e que negar a sua existência é passar a vida num estado semiconsciente.
Vi o meu pai a acenar com a cabeça gravemente quando ele chegou àquele ponto. Mas Liam e Conor continuavam de sobrolho franzido e maxilares cerrados e Donal continuava carrancudo.
Uma noite, tudo mudou. Ele... ele salvou uma jovem de morrer afogada; e a partir do momento em que a arrancou das águas, meio morta de fome, meio selvagem, soube. A partir desse momento, cada passo que dava, cada decisão que tomava, passava a ser diferente, por causa dela. Pouco mais era do que uma criança, perdida, ferida e assustada. Mas forte. Oh, ela era a pessoa mais forte que ele já tinha encontrado. Tivera oportunidade de se aperceber disso na difícil jornada de regresso a casa, na maneira como ela se manteve a seu lado; como o tratou, apesar de ser seu inimigo. Como... como lhe mostrou coisas que estavam quase para além da sua compreensão, tão estranhas e espantosas pareciam’. Sobre isso não falarei mais, porque alguns segredos devem permanecer secretos.
Inclinou um pouco a cabeça e respirou fundo.
Na casa dele ela era como uma criatura selvagem, subitamente largada no pátio da herdade, como uma coruja inexperiente num galinheiro. No seu profundo silêncio, na estranha tarefa que era compelida a realizar, trabalhando sob imensas dores e numa grande solidão, sob os olhares críticos da família dele, provocou nele uma profunda confusão nunca antes conhecida. Pouco mais podia fazer do que protegê-la; parecia-lhe imperativo mantê-la em segurança. Não compreendia o que ela fazia, mas sabia, de algum modo, que tinha de a ajudar a completar a sua tarefa, se queria ter a oportunidade de lhe ouvir a voz, se queria ter a oportunidade de lhe dizer... de lhe dizer...
Abri a boca para falar e retive as palavras. Mas devo ter emitido um som qualquer, porque Red ficou muito quieto por um momento e virou a cabeça. A espessa venda cortava-lhe qualquer possibilidade de visão; mas sabia, agora, que eu estava ali.
Na sua casa ela cresceu e mudou, continuando, no entanto, a ser ela, sem qualquer dúvida. Forte, doce e verdadeira. Sem palavras, falava com ele como mais ninguém, direita ao coração, com as suas mãos desfiguradas e os grandes olhos verdes. Se bem que, por vezes, lhe faltassem as palavras, ela compreendia-o como ninguém antes. Ele via-a chorar por causa das mãos, inchadas e ásperas devido ao trabalho e ouvia outras pessoas chamá-la de feia. Via o que os outros não eram capazes de ver, via o poder, a gentileza e a beleza daquelas mãos e ficava acordado, de noite, desejando que lhe acariciassem o corpo. Mas ela fora ferida, aterrorizada e evitava-o. Ele não lhe podia dizer, por palavras, o que lhe ia no coração. Preferia não se arriscar a assustá-la, porque, se a perdesse, perderia tudo. A cada dia que passava, mais compreendia, enquanto tratava dos assuntos da herdade e da casa. Sem ela, a vida não significaria nada.
Havia uma repugnância nítida na voz de Conor à medida que ia traduzindo, mas ele procurava ser preciso, já que, pelo menos, três dos presentes percebiam a língua dos Bretões. Então, Conor disse:
Começo a não gostar nada desta história. O seu tom de voz era como uma facada. Se esse homem possuía tais sentimentos, por que deixou a rapariga à mercê do seu parente, que era ao mesmo tempo traidor e louco? Como pode um homem culpado de semelhante erro de julgamento merecer uma mulher sem par, como essa criatura que descreves?
Com o devido respeito disse Red e a sua voz baixara tanto que as pessoas começaram a mandar-se calar umas às outras para poder ouvi-lo a minha história ainda não acabou; devíeis ouvir-me até ao fim. E é a resposta dela que eu venho ouvir, não a tua.
Deixai o homem acabar disse o meu pai. Para um bretão, sabe falar. Ouvi-lo não nos faz mal nenhum.
O meu pai diz para continuares. O tom de Conor foi brusco quando se dirigiu a Red.
Obrigado pela vossa cortesia, meu senhor disse Red, virando a cabeça na direcção do meu pai. Virou-se novamente para Conor. Tens razão continuou ele. Esse homem cometeu, como disseste, um erro de julgamento. Um erro que ainda o faz ficar acordado de noite, cheio de terror, pensando em como esteve quase a perdê-la naquela fogueira. Em como a sua negligência quase custou a vida da rapariga e a hipótese de completar a terrível tarefa que tanto significado tinha para ela. Pensou que ela estava segura, protegida pelo seu nome e pelo casamento, salva, no coração da sua família. Arriscou-se a viajar para encontrar o seu irmão perdido, que estava também em grande perigo; regressou a tempo de a salvar. Nunca sentira tanto medo como nessa noite; nunca ouvira um som como aquele, que quase lhe fez parar o coração, o da voz dela chamando pelo seu nome, avisando-o do perigo, num momento em que ela própria estava em perigo de vida. Por um momento, pensou permitiu-se pensar por um pequeno instante, em tomá-la nos braços e o seu coração recomeçou a bater de novo. Mas, depois, largou-a, porque ela estava rodeada de homens fortes, protectores ferozes, da sua própria raça. Estava, de novo, salva e a razão para aquele tempo tão cruel, de fiar e tecer chegara ao fim. Ela sacrificara a sua infância para salvar os irmãos; amava a sua família mais do que a si própria e o seu espírito ansiava pelo regresso a casa uma vez mais, para a floresta selvagem, para a terra das histórias míticas e dos antigos espíritos, de onde ele a tirara. Aquele era o lugar do seu coração e se ele a amava, devia deixá-la partir.
Os sentimentos das pessoas começaram a mudar subtilmente. Apreciavam uma boa história; e aquela estava a ser contada com sentimento, se bem que algo hesitantemente. Janis tinha os olhos fixos no contador. Ouvi-a sussurrar para uma das criadas.
Aquilo é um homem e tanto. Se ela não o quiser, serei a primeira a oferecer-lhe uma cama quente para passar a noite.
E então senti a voz interior de Finbar, que eu pensara nem sequer estar a ouvir, tão distante era a sua expressão.
Este homem é bom, Sorcha.
Eu sei.
Suficientemente forte para dizer, na nossa frente, que estava errado. Muito forte.
Eu sei.
Ele não conseguiu dizer as palavras certas para lhe dizer adeus. Hesitou. Magoara-a ao falar na dor da sua alma. Jurara que não a magoaria, mas magoou. Ter-lhe-ia dito... ter-lhe-ia dito, não interessa se estás aqui, ou ali, porque, para mim, estás sempre presente, a cada momento. Vejo-te na luz da água, no abanar das árvores jovens ao vento da Primavera. Vejo-te nas sombras dos grandes carvalhos, ouço a tua voz no chamamento da coruja, à noite. Tu és o sangue nas minhas veias e no bater do meu coração. Tu és o meu primeiro pensamento, ao acordar e o meu último suspiro antes de adormecer. Tu és... tu és carne da minha carne, sangue do meu sangue.
A sua voz caíra para um sussurro. O meu rosto estava marejado de lágrimas.
Diz-lhe disse Liam diz-lhe que se pensa que as suas lindas palavras de amor lhe devolvem a nossa irmã como esposa, está muito enganado. Sorcha nunca mais regressará àquele lugar; ela é a filha de Sevenwaters e a Sevenwaters pertence.
Conor traduziu, acrescentando:
Mais valia teres desistido, na altura. E não dares-te ao incómodo de vir até aqui. Sorcha tem apenas 16 anos e está sujeita à autoridade do seu pai. Não pensas, com certeza, que mesmo que ela quisesse, ele permitiria que ela atravessasse o mar para se juntar a um bretão.
Red respirou profundamente.
Na verdade, tal pensamento estava longe da minha mente. Eu não teria vindo, se... se... ela não me tivesse dito adeus como disse, eu não teria vindo. Mas... mas... ela disse... quero dizer, acreditei que havia ainda uma pequena esperança, uma réstia, que talvez ela... quer dizer...
A tua história acabou? Conor era inflexível. Tens mais alguma coisa a dizer? Está a fazer-se tarde e está frio.
Deixa-me tornar isto bem claro disse Red, a sua voz mais firme. Compreendo muito bem que a vossa irmã não possa regressar. Nunca esperei isso. Foi por essa razão que demorei tanto a vir aqui. O suficiente para pôr em dia os negócios em Harrowfield, o suficiente para ver o meu tio ser castigado pelas suas maldades e para passar a responsabilidade da minha casa e do meu domínio para o meu irmão. Eu não volto para lá. Quer Jenny me queira, quer não, desisti daquela vida.
Seguiu-se um silêncio total. A grandeza de tal decisão não passou despercebida a ninguém. Até Conor, depois de ter traduzido aquelas palavras, não soube o que dizer. Quanto a mim, mal me apercebi do que Red dissera. No entanto, sabia que devia ser verdade. As suas belas terras, o rio brilhante, os rebanhos e as manadas e o povo que tanto o amava. O vale com o seu suave manto de carvalhos, faias, vidoeiros e salgueiros. O registo cuidado de gerações. O meu retrato estava na última página desse diário. A última página do último livro. Nunca mais veria os carvalhos novos crescerem para abrigar as criaturas selvagens de Harrowfield. Desistira de tudo aquilo por mim.
Pensas ficar aqui? perguntou Liam, incrédulo, quebrando, finalmente, o silêncio. Um bretão na nossa casa, casado com a nossa irmã, que nós amamos mais do que as nossas próprias vidas? És louco.
Virei-me para o meu irmão, furiosa.
Espera só um pouco mais, foi o aviso silencioso de Finbar e eu reprimi as palavras de ira.
Então, o meu pai pôs-se de pé lentamente.
Desata-lhe as mãos, Sorcha disse ele gravemente. Retira-lhe a venda que lhe tapa os olhos. A decisão e a escolha pertencem-te. Já és uma mulher e o sacrifício que fizeste pelos teus irmãos deu-te o direito de escolheres o teu próprio caminho, apesar de não ser do nosso agrado.
Parecia que Liam ia falar, mas pensou melhor. Lorde Colum era, afinal de contas, o chefe daquela casa. A cozinha encheu-se de um silêncio de profunda expectativa. Red não compreendera uma única palavra do que o meu pai dissera.
Fui até onde ele estava sentado, pus-me diante dele e estendi os braços para lhe desatar a venda. Fiz aquilo com a mão direita; mas a esquerda, que ostentava o seu anel, deslizou-lhe para o pescoço, onde a pele era branca, entre a túnica e o cabelo cortado curto e ali ficou pousada, o mais suavemente possível. Red suspendeu a respiração abruptamente.
Desata-me as mãos disse ele com uma intensidade que me deixou trémula. Debrucei-me e tirei-lhe a pequena faca, do sítio onde eu sabia que estava, escondida nas perneiras da bota esquerda, coloquei-me atrás dele e cortei uma, duas vezes, as cordas apertadas que lhe atavam as mãos. Ele levantou-se, virou-se e os seus braços rodearam-me e envolveram-me, como se nunca mais quisessem largar-me. Senti os seus lábios tocarem-me na testa, muito castamente, pois, mesmo em semelhante ocasião, sentia um terrível constrangimento. Mesmo agora, parecia inseguro de mim. Mas os seus olhos já não estavam gélidos, não tinham a máscara da indiferença. Em vez disso, brilhavam, azuis como o céu de Verão e a mensagem contida neles era fácil de ler e simples de responder. Pus-me em bicos de pés, rodeei-lhe o rosto com as mãos e puxei-lhe a cabeça para baixo, de modo a poder beijar aquela boca cerrada, teimosa e insubmissa. Não tinha prática alguma naquela arte, mas saí-me bastante bem; mais tarde, Padriac disse-me que eu fizera Liam corar, o que não era proeza fácil. Foi um beijo que nunca supus ser capaz de dar; um beijo que imediatamente lhe disse qual era a minha resposta. Por um instante, ele recuou e murmurou:
Não sou digno de uma tal oferta, Jenny. Encostei os dedos aos lábios dele para o silenciar.
Meu amado murmurei eu dou-to a ti e a mais ninguém. Então, a boca dele desceu em direcção à minha e mostrou-me a força da sua paixão, enquanto os nossos lábios se colavam, saboreavam e se afastavam, enquanto procurávamos respirar ofegantemente e se colavam e saboreavam de novo. E não eram só as minhas lágrimas salgadas que corriam enquanto as mãos dele me afagavam o cabelo, me puxavam o corpo contra o dele, de maneira que fiquei a saber a força do seu desejo por mim. Aquela jornada, longa e difícil para ambos, terminara e a doce excitação que me percorria todas as fibras do corpo dizia-me, ao mesmo tempo, que era o começo de um novo caminho.
O meu pai aclarou a garganta, forçando-nos voltar ao presente. Virámo-nos, tontos, para olhar em redor. A cozinha estava quase vazia; não nos apercebêramos da saída de toda a gente da casa, à excepção do meu pai e de Finbar, silencioso.
Leva o teu homem, filha disse o meu pai com um pequeno sorriso, apesar de os seus olhos brilharem com recordações penosas. Arranja-lhe um lugar aconchegado para dormir. Amanhã, teremos muito tempo para conversar. E então enrolou-se na capa e saiu, seguido de Finbar. O meu irmão parou momentaneamente na soleira da porta, a única asa branca de um tom rosa-dourado à luz das velas. E desta vez falou em voz alta:
Finalmente, a história terminou disse ele numa língua que todos podíamos entender. Sejam felizes. Mereceis-vos um ao outro. A dádiva de um tal amor só é concedida a poucos Deveis fazer com que cada dia conte.
Red encostou os lábios ao meu cabelo. Vi Fimbar deslizar pela porta, como uma sombra. Então, peguei na mão do meu marido e conduzi-o aos meus aposentos, onde alguém acendera a lareira e colocara velas, vinho e cálices, além de um raminho de alfazema seca sobre a almofada. Apercebi-me que era com esforço que Red controlava a respiração e eu própria não estava melhor.
Eu... eu receio ter de te magoar disse ele mas... mas preciso de ti, Jenny, anseio por ti, creio que não consigo. Ehhh disse eu. Está tudo bem. Não te preocupes.
A vida real não é como nas histórias. Nas velhas lendas, as coisas más acontecem e à medida que o conto se desenrola e chega ao seu fim triunfal, é como se as coisas más nunca tivessem acontecido. A vida não é tão simples assim. Seria bom poder esquecer, por completo, o mal feito ao meu corpo e à minha mente naquele dia, na floresta, por homens que me usaram brutalmente. Mas tais coisas nunca se esquecem totalmente, apesar de se desvanecerem um pouco com os anos. Desse modo, deitados, juntos, pela primeira vez, houve um momento em que tive um sobressalto de medo ao recordar e o meu corpo gelou e tremeu. Mas Red abraçou-me, afagou-me o cabelo, falou-me docemente, pequenas palavras murmuradas e esperou por mim. E, finalmente, o meu corpo abriu-se para o dele, como uma flor, movendo-nos lentamente em conjunto e depois mais rapidamente, enquanto suspirávamos e gritávamos e encontrávamos satisfação nos braços um do outro. Ele demonstrou-me que a união entre um homem e uma mulher é, na verdade, algo maravilhoso, delicioso e divertido. Reparei que, até essa noite, nunca o ouvira rir. E quanto aos mexericos de Harrowfield sobre o meu marido, eram verdadeiros, se bem que não lhe fizessem justiça.
A primeira coisa que Red fez, mal nos levantámos na manhã seguinte, meio aturdidos de felicidade, com sorrisos tontos nos rostos e incapazes de manter as mãos afastadas um do outro, foi ir comigo à aldeia e enquanto eu atendia este e aquele, dedicou-se a aprender os nomes de cada homem, mulher e criança e como cumprimentá-los cortesmente na sua língua. A princípio, olharam para ele com um certo mal-estar. Mas os seus esforços hesitantes, tentando ser compreendido, provocaram sorrisos e ditos espirituosos e eles viram o que estava a acontecer connosco. A mim, conheciam e amavam e se ele era o meu homem, então estava tudo bem, fosse ele bretão ou outra coisa qualquer. Em breve era detido para admirar uma porca premiada, para aconselhar, através de complicados sinais de mãos, a maneira de substituir a madeira podre numa vacaria, ou para ajudar a segurar num poste, enquanto os suportes eram afixados. Ao fim de pouco tempo, tinham sido todos conquistados.
Em casa foi mais difícil. Naquele primeiro dia, sofreu um pouco a troça de Donal e Liam, porque se era ponto assente que eu fizera a minha escolha, isso não queria dizer que eram obrigados a gostar dele.
Conor, surpreendentemente, disse pouco. Surpreendi os seus graves olhos em mim, observando-me com uma espécie de aceitação perversa e quando mais tarde me afastei um pouco com ele, disse:
Achaste que aquilo foi injusto, não achaste? Fazer com que um homem se revelasse assim, perante nós?
Foste duro com ele disse eu. Pensei que tu, pelo menos, conseguisses ver nele aquilo que ele é, na realidade, sem semelhante prova.
Conor sorriu.
Sem semelhante prova, talvez ele nunca te dissesse o que sente por ti. Eu já sabia muito bem que tipo de homem ele era. Sabia que acabaria por ser assim, convosco. Não consigo ver o futuro, como Finbar; mas este encontro de espíritos era inevitável, tão inevitável como o percurso do Sol e da Lua no céu. Já o sabia há algum tempo; mas seria um erro facilitar-lhe as coisas. Tínheis ambos de sentir o poder da perda, antes de vos reunirdes. Diz-me, ela visitou-te, aquele ser do outro mundo que te ajudou no teu caminho? Voltaste a vê-la desde que regressaste a casa?
Como é que sabes? Estava espantada e teria ficado aborrecida, não fora a aura de alegria tão forte, em mim, suficiente para afastar tudo o mais.
Preciso de pôr as minhas capacidades à prova, de tempos a tempos disse Conor. Não são grandes; têm sido suficientes até agora, mas não por muito mais tempo. Devo deixar este lugar em breve para ir para longe e pode passar-se muito tempo antes de te poder ver de novo. Fico satisfeito por te ver tão feliz após tanto sofrimento. Acredito que tudo isto foi predestinado.
Não estás a dizer... não estás a dizer o que penso que estás a dizer? Que tudo isto... tudo... foi planeado? Que ele e eu... não, não posso acreditar. As palavras dele enchiam-me de confusão. Tinha de estar errado, claro. Não éramos meras marionetas, mas sim homens e mulheres, fazendo as nossas próprias escolhas.
Uma coisa é certa disse ele. Nunca obterás uma resposta por parte das Criaturas Encantadas. Mas é um jogo que eles jogam há muito e as nossas histórias não passam de pequenas peças no grande tabuleiro. Pensa nisso. Cada um de vós foi sujeito a muitas provas; cada um de vós provou ser forte, suficientemente forte para os propósitos deles. Tão fortes, na verdade, que quase lhes frustrastes os planos, porque cada um de vós escolheu abdicar daquilo que era considerado melhor, na esperança de que o outro encontrasse a felicidade. As Criaturas Encantadas não contavam com semelhante generosidade.
Mas... mas foi uma crueldade. Para nós o fim foi bom, mas e o pai? E Finbar? E houve um homem do... do povo do meu marido, um bom homem, que morreu protegendo-me. E o bebé que Oonagh levou com ela? Diarmid e Cormack foram-se embora e tu, segundo dizes, também te vais; em breve não haverá família alguma em Sevenwaters. Quase acredito no que Lady Oonagh disse naquele dia, que ela e a Dama da Floresta eram uma única, porque a linha que separa a luz das trevas é muito ténue. Que fim justifica tais perdas?
Eles preocupam-se pouco com quem põem de parte disse Conor. Neste jogo há, como disse, um objectivo mais profundo do que podemos compreender. Talvez esteja errado. O tempo o dirá. A tua parte nele, penso, chegou ao fim e o teu caminho, agora, é a direito e verdadeiro. Haverá aqui uma família e bons anos se avizinham. Mas há uma coisa de que não te podes esquecer, se bem que possas esquecer tudo o resto. O bem e o mal não existem, salvo na maneira como vês o mundo. Não há trevas nem luz, salvo na tua visão. Tudo muda com um simples pestanejar; no entanto, permanece na mesma. Se quiseres saber o futuro, pergunta a Finbar. E agora, chega de conversa séria. É melhor ires e libertar Lorde Hugh das garras de Liam, antes que ele sofra mais. Vai, desaparece.
Até ao momento, Red tinha-lhes respondido como deve ser. Que ficaria, tomaria conta de mim e que se tornaria útil. Que tinha capacidades que podiam ser empregues, no acasalamento do gado, por exemplo, e no manuseamento das colheitas. Podia lutar, se necessário, mas havia uma coisa que não faria, que era pegar em armas contra os da sua raça. Que ficasse entendido que não faria isso por conta deles. O pai acenou com a cabeça, satisfeito. Donal grunhiu, dizendo que era tudo conversa fiada; uns bons golpes no pátio e ver-se-ia do que o homem era capaz. Red, como eu esperava, aceitou o desafio imediatamente. Sugeriu que talvez à tarde fosse uma boa ocasião. Os olhos de Donal brilharam. Liam, de maxilas cerradas, não dizia grande coisa. Então, avancei pelo salão onde eles estavam; um sorriso doce encurvou a boca de Red quando me viu e um brilho quente apareceu-lhe nos olhos, reflexo, talvez, dos meus. Coloquei-me ao lado dele e cada um de nós rodeou o outro com um braço, porque era impossível estar tão perto e não nos tocarmos.
Muito bem disse Liam. Se estás pronto, podes mostrar-nos as tuas habilidades. Tens a certeza que és capaz?
Penso que sim replicou Red gravemente.
Não era, certamente, do seu interesse fugir para o andar superior comigo, mas não havia maneira de o evitar, porque os nossos corpos falavam um com o outro de uma maneira que não podia ser negada. Suponho que estávamos a recuperar o tempo perdido. Mais tarde, fiquei deitada na cama, envolta apenas num lençol e observei-o a vestir-se com uma certa relutância.
Não estás cansado? perguntei, sorrindo. Os meus irmãos são peritos nas artes da guerra e devem estar mortos por poderem prová-lo. Tens a certeza que consegues fazer-lhes frente?
Ele passou a túnica pela cabeça.
Hoje era capaz de derrotar três gigantes, cada um maior e mais feio do que o outro, sem esforço nenhum disse ele. Já estava a começar a falar como um dos nossos. Fica aqui, volto daqui a instantes. Tocou nos meus lábios com os dele, tirando-os com alguma dificuldade e saiu, afivelando uma espada emprestada.
Não fiquei na cama, indo antes até uma janela, de onde os podia ver. Foi um assalto interessante. Liam e Red equiparavam-se, pensei; a vantagem que Liam tinha, devido à experiência, era equilibrada pela maior altura e corpulência de Red e pela leveza de pés. Em qualquer dos casos, o que começou por ser um feroz combate, passou a uma demonstração e depois a uma lição, primeiro por um e depois pelo outro, nas técnicas de combate com arma e sem arma. Donal envolveu-se também e depois um grupo de outros homens. Vi Red ensiná-los como executar o pontapé voador, com o pé esquerdo estendido; em seguida foram trazidos cavalos e vi Liam mostrar a Red o truque de deslizar para o lado para evitar um golpe e depois novamente para cima, num único movimento fluido. Ambos ostentavam uns tantos golpes. Ouvi o som de gargalhadas. Como Diarmid teria gostado de mostrar as suas habilidades com a lança, pensei. E Cormack, que se teria metido no meio daquilo tudo, volteando, com um chuço na mão. Ainda não havia notícias deles; os seus lugares à mesa Continuavam, vazios. Deixei-os e subi os degraus de pedra, lá para cima, para o local onde me podia sentar, nas lousas do telhado, olhando para longe, sobre a névoa cinzento-azulada da floresta. Sabia que encontraria ali Finbar. Sentei-me ao pé dele, tremendo um pouco, porque a brisa estava fresca.
Fala comigo, meu querido. Com tanta alegria no meu coração, custa-me ver a tua solidão
Não terás que a suportar por muito mais tempo.
O quê? disse eu em voz alta, porque as palavras dele me chocaram. Que queres dizer?
Não demorará muito. Já não faço falta nenhuma aqui.
Onde vais?
Para longe. Estava a ser cuidadoso; a sua mente estava fechada, salvo para a breve mensagem, que era tudo o que pretendia dar-me.
Por que é que nunca mais falaste comigo? O que é que se passa?
Ele mexeu-se levemente nas lousas frias e a asa ergueu-se um pouco, para o equilibrar.
És tu que me perguntas?
Ficámos em silêncio. Não conseguia imaginar qual seria o futuro dele; sabia apenas que em tempos ardera com o desejo de endireitar o mundo, ver a justiça ser aplicada e a verdade revelada. Esse rapaz apaixonado desaparecera; e eu não conhecia o homem que o substituíra.
Há alguma coisa que queiras saber?
Abanei a cabeça. Tinha decidido não lhe perguntar o que o futuro me reservava. Esperava que fosse bom, feliz e que teria sempre o meu marido a meu lado.
Não lhe perguntaria.
Enquanto estávamos ali sentados, formou-se uma imagem na minha mente. A princípio pensei que era uma que ele me mostrara antes, na qual a pequena Sorcha pulava e corria sob as grandes árvores, com luzes sarapintadas caindo em redor dela. Mas esta era diferente, porque a criança tinha cabelos cor de cobre, que lhe caíam pelas costas numa cortina brilhante e havia outra que corria atrás dela, um rapaz de cabelos escuros, que a chamava:
Niamh! espera por mim!
Eram as mesmas crianças que eu vira na minha mente, no dia da fogueira. E algures, na orla da imagem, havia outra criança, de olhar desvairado; mnão conseguia ver esta figura muito bem. A rapariga abriu os braços e começou a girar, os pés descalços pisando levemente a terra com o vestido girando também em turbilhão; e a luz do Sol atravessou a copa das árvores e transformou-lhe o cabelo castanho-avermelhado em puro ouro. Depois a luz desvaneceu-se e a imagem desapareceu, ao mesmo tempo que o meu irmão fechava a mente com firmeza.
É tudo o que vejo.
E chega. Tremi de frio, de novo. Esquecera-me de pôr uma capa por cima dos ombros.
Ir-nos-emos todos embora, uns a seguir aos outros. Não haverá filhos. Serão os teus e os dele que herdarão Sevenwaters.
Não digas isso! Falei alto, rispidamente. Não tentes o destino! Não podes saber tudo.
Mas sei algumas coisas.
Voltou a retirar-se para o silêncio, os olhos fixos no horizonte, para lá do lago, para oeste.
Algum tempo mais tarde, chegaram homens em busca de Conor. Dois homens muito velhos, que viajavam a pé. Os cabelos deles eram constituídos, ambos, por pequenas tranças, usavam colares de prata no pescoço e vestidos que esvoaçavam fluidamente em volta dos seus corpos magros. Era o chamamento de que ele estava à espera. Achei difícil de acreditar, a princípio, que ele fosse capaz de abandonar a nossa casa com tanta facilidade, porque sempre estivera presente, a voz do equilíbrio e da razão, o irmão que tivera a força de vontade para arrastar os irmãos até Harrowfield, sobre o mar, para serem, finalmente, libertados. Mas aquele era o seu chamamento. Porque não podia aprender a antiga tradição, nem os ofícios místicos e ao mesmo tempo proteger a família e a túath. Precisava de penetrar nas florestas e nas cavernas profundas, para lá do alcance e do conhecimento das pessoas normais. Passar-se-iam anos, muitos anos de estudo e prática, antes de se poder tornar num dos da irmandade.
Pareceu-me que os olhos daqueles dois anciãos olhavam para o meu irmão com profundo respeito, apesar de ser um noviço. Não passara ele quase três anos como criatura selvagem, conservando a sua consciência humana durante esse tempo todo? Não possuía ele já consideráveis capacidades como manipulador dos elementos, como instigador das brumas cegas e do vento caprichoso? Talvez já fosse tarde, mas não tão tarde que não pudesse começar os seus anos de disciplina. Tornar-se-ia forte; um dos mais fortes da sua espécie. Orgulhava-me dele, mas não sentia menos pena por perdê-lo.
Despediu-se no salão, abraçando primeiro o pai, depois Liam, dando uma palmada nas costas de Donal, passando a mão pelo cabelo de Padriac. A Red apertou-lhe os ombros.
Toma conta da minha irmã disse ele. Mantém-na em segurança.
Mas Finbar e eu fomos com ele até à orla da floresta e ficámos lá a vê-lo desaparecer. Os dois anciãos esperaram pacientemente. Conor não tocou em Finbar, mas falou-lhe e eu ouvi as palavras dele.
Sê forte, irmão. Tu também ainda mal começaste a tua jornada.
Finbar olhou-o fixamente nos olhos.
Por vezes, o caminho é duro.
Mas tem luz.
Conor levantou um braço e tocou na testa do irmão com a mão, muito levemente. Em seguida, virou-se e rodeou-me com os braços, abraçando-me com tanta força que eu mal conseguia respirar.
Adeus, pequena coruja.
Lutei contra as lágrimas, porque sabia que aquele era o seu caminho e ele devia segui-lo. Puxou o capuz sobre a cabeça, pegou no bordão de vidoeiro, meteram os três pelo carreiro que entrava na floresta e no espaço de tempo que leva uma pequenina nuvem a passar em frente do Sol, desapareceram.
Uma noite, os homens discutiam vivamente após o jantar. Liam tinha regressado de uma visita a Seamus Redbeard. Trouxera com ele um par de cachorros-lobos e novidades. Agora, planeavam uma espécie qualquer de expedição, que não se preocuparam em me explicar. Até Red se deixou atrair e eu ouvia apenas algumas palavras enquanto permanecia sentada à lareira, bebericando o meu hidromel.
Seamus já não é novo disse Donal rudemente. Ele terá vontade suficiente para isto, conseguirá aguentar o tempo suficiente?
Ele terá ajuda. O tom de Liam era pesado. Faremos com que assim seja. Não estou disposto a ver o filho de Eilis criado numa casa inimiga da minha.
Esses territórios são muito vastos comentou Red, estudando o mapa desenrolado na mesa diante deles. Não receias que Seamus, que parece querer controlar essas terras, mais as dele, se vire contra ti, numa tentativa para ficar com tudo?
Seamus sempre foi leal e conhece a nossa força replicou Liam. É do interesse dele tomar conta dos domínios de Eamonn até à maioridade do rapaz e manter Sevenwaters como aliado. Ele é o avô do rapaz; parece-me difícil outros desafiarem as suas pretensões.
Eu não tinha a certeza de que queria ouvir mais. Sabia, em especial, que não queria ouvir, com exactidão, o que estava a ser planeado para Eamonn, porque parecia não haver lugar para ele na imagem que estavam a pintar. Assim, levantei-me e fui acender uma vela, pensando retirar-me para o meu quarto e quando olhei na direcção da porta principal, apanhei o olhar de Finbar, mesmo antes de ele deslizar para o exterior. Já era muito tarde e ele não levava uma capa. E levava aquele olhar estranho, selvagem, nos olhos. Mas talvez quisesse apenas ficar sozinho como todos nós, de tempos a tempos. Talvez voltasse daí a pouco. Esperei, olhando para a porta. O tempo passou, os homens continuavam a falar e Finbar não regressava. Por fim, não consegui esperar mais. Falei a Red baixinho, não querendo alarmar o meu pai por nada deste mundo. Pegámos ambos nas nossas capas, nas botas e numa lanterna e saímos, seguindo os passos de Finbar.
Estivera a chover, mas agora o ar estava claro e húmido. As pegadas dele eram fáceis de seguir no solo mole, na direcção da enseada secreta, na margem da qual crescia o pequeno vidoeiro. Mas o meu irmão não estava em lado nenhum. Andámos de um lado para o outro na margem, procurando à luz da lanterna, até que a Lua emergiu do seu véu de nuvens e lançou o seu brilho frio sobre a floresta. No extremo do lago, onde a última pegada marcava a divisão da areia branca e da água límpida, algo me chamou a atenção. Red segurou na lanterna e dobrámo-nos para observar mais de perto. Lá estava o amuleto da minha mãe, com o cordão ainda intacto; e uns farrapos de fibra tecida, que podiam ter sido de morugem; e uma única pena branca. Mas de Finbar não vimos qualquer sinal, nem nessa noite, nem na seguinte, nem desde Imbolc até Lugnasad. Desaparecera, muito simplesmente, como se tivesse mudado de novo. Mas não se pode voltar atrás. Eu sabia isso. Não acreditava, ao contrário de muitos, que ele tivesse ido até ao lago e se afogasse. A história dele, pressentia, seria a mais estranha de todas. Só esperava que um dia me fosse permitido conhecer a verdade.
Estavam todos a ir-se embora. Estava tudo a mudar. Ainda não havia notícias de Diarmid e de Cormack, da sua demanda nem de Lady Oonagh, ou do seu filho, apesar de eu saber que Liam enviara mensageiros e fizera inquéritos destinados a encontrá-los. No meu coração temia por eles e pensava ver esse mesmo medo reflectido no rosto do meu pai. E agora Padriac estava a construir um barco, no lago. Não o víamos muito, nem aos rapazes que o estavam a ajudar. Era uma pena, dizia ele, não podermos voar, não que se recordasse, não exactamente, mas agora sabia que havia outras terras mais vastas e outros mares por explorar e era isso que iria fazer, quando o seu barco estivesse pronto. Olhava para mapas, fazia cartas e estudava velhos livros. Lembrei-me do que Finbar dissera uma vez, acerca do seu irmão mais novo. Ele há-de ir longe. Mais longe do que qualquer um de nós. Nunca pensei que era aquilo que ele queria dizer. E Padriac era tão novo; tão novo, disse-lhe, para pensar em velejar para longe e deixar-nos.
Sou mais velho do que tu disse ele. E tu já vais ter um bebé. Isso faz de mim um tio. Devo ter idade suficiente.
Porque eu estava, na verdade, à espera de um bebé. Nasceria por alturas do festival de Meán Fómbair, o equinócio do Outono; e sabia que teria cabelos cor de cobre, da cor das folhas das faias. Red andava ansioso, com tendência para se inquietar comigo, como se eu fosse uma planta delicada, devendo ser protegida contra qualquer dano. Ria-me dele, mas fazia o que ele me pedia. A Primavera chegou, o tempo ficou mais brando e continuava a não haver notícias. Então, um dia, o meu pai também resolveu partir.
Os meus filhos não regressaram disse ele. Cabe-me a mim, agora, procurá-los e trazê-los sãos e salvos, os três. É essa a minha demanda acrescentou, ao mesmo tempo que um, e depois outro, se oferecia para ir com ele. Ao trazê-los para casa, talvez eu possa minorar os males que fiz à minha própria família. Deixo-te em boas mãos, minha filha disse ele, beijando-me na face e apertando o braço de Red, num breve e forte adeus. A minha casa é bem governada e o meu povo está protegido. É tempo de eu dizer adeus. Aproximou a sua face da de Liam e apertou-lhe a mão, abraçou Padriac e partiu, desaparecendo pelo carreiro, vestido com o traje simples de um trabalhador que escolhera e eu esperei que não tivesse muito frio, no lugar para onde o seu filhote fora levado.
E assim, um a um, os meus irmãos abandonaram Sevenwaters. Sempre disséramos que estaríamos sempre ali, uns para os outros, enquanto vivêssemos. Sempre disséramos isso, iguais às sete correntes de água que davam o nome à nossa casa, fazíamos todos parte de um todo e as nossas vidas estariam sempre interligadas. Que nada nos afastaria, apesar das grandes distâncias que nos pudessem separar. No entanto, em breve só restariam Liam e eu. Intenso, esforçado, este meu irmão canalizava as suas energias, furiosamente, para a restauração daquilo que o meu pai quase deixara fugir por entre os dedos. O sério e incansável Liam, trabalhando como se possesso, exigia e recebia uma lealdade inabalável de todo o seu povo. Agradecia, de má vontade, a presença de Lorde Hugh na sua casa. Porque era Red que arbitrava as disputas entre uma aldeia e outra, enquanto Liam se fechava com Seamus Redbeard, discutindo, ponto a ponto, a sua estratégia. Era Red que supervisionava a reflorestação da terra que LadyOonagh devastara, explicando ao povo que se deve plantar antes da ceifa e quais as árvores que crescem mais depressa, para assegurar uma boa provisão de madeira nos anos vindouros. Era Red que ajudava os camponeses, comprava gado novo, ensinava o povo a consertar muros de pedra e a reparar telhados de colmo. Ao chegar a Primavera, Liam admitiu, com relutância, que não sabia como se teria desenvencilhado sem ele.
No Meán Earraigh, quando a noite iguala o dia e a terra se veste de cores primaveris, após o longo frio invernoso, levei Red até ao lago e até aos bosques, a um lugar há muito por visitar. Ali, o padre Bríen, o eremita, vivera a sua vida solitária e ordenada. Ali, os filhos de Sevenwaters tinham aprendido estranhas línguas e símbolos secretos. Ali tratara eu de Símon e as sementes de uma parte da minha história haviam sido lançadas à terra. Explicara a Red que tinha de ir àquele lugar antes do nascimento do bebé. Um lugar onde vivera um grande amigo.
Red franziu o sobrolho à ideia de eu cavalgar até lá, temendo que eu me magoasse, ou ao bebé e só concordou em ir se me pudesse levar com ele no seu próprio cavalo, onde, segundo ele, me poderia ter debaixo de olho. Assim, cavalgámos tranquilamente entre os grandes carvalhos e ele ficou silencioso perante a sua força altaneira e os lençóis dourados que pendiam dos ramos superiores, onde o musgo sagrado encontrava abrigo. O dia estava bonito e quente, com uma brisa fresca, que empurrava pequenas nuvens pelo céu. A caverna estava vazia, as prateleiras nuas e a pequena cabana abandonada. Se alguma vez houvera algum cheiro de doença e medo naquela pequena casa, desaparecera e os raios oblíquos do Sol investiam pela caverna e pela cela dentro numa quente modorra, sugerindo que ambas esperavam por alguém que viesse ocupar a tranquila e silenciosa residência. Sentámo-nos nas rochas por baixo dos arbustos de sorveira-brava e partilhámos a água, o pão e os frutos secos que trouxéramos. O cavalo pastava, satisfeito, a verde erva primaveril.
Não havia necessidade de palavras entre nós. Quando acabámos de comer, Red aproximou-se e sentou-se a meu lado, entrelaçando as suas pernas nas minhas e rodeando-me a cintura com os braços, de maneira a eu poder encostar-me a ele e pousou as grandes mãos, gentilmente, no meu estômago, onde o inchaço, provocado pelo bebé, ainda mal se via.
Este lugar guarda recordações de ti disse ele por fim. O que aconteceu aqui marcou-te profundamente.
Acenei com a cabeça. Nunca faláramos antes de Simon, desde que deixara Harrowfield. Mas eu pensava nele muitas vezes. Havia uma ironia terrível na história dele, porque eu temia que o irmão que sempre quisera a terra e a autoridade para si, que sempre odiara ser o segundo, descobrisse, uma vez na posse do inesperado e maravilhoso presente que representava Harrowfield, que afinal de contas desejava uma coisa completamente diferente. Porque era destino dele desejar sempre o que não podia ter. Mas Elaine parecera-me uma rapariga forte, sensata e amava-o. Talvez isso fosse suficiente.
Queres falar disso? perguntou Red.
Não disse eu. Por vezes, é melhor as verdades ficarem por dizer. Mesmo àquele que amamos.
Ficámos durante mais algum tempo, ouvindo o chamamento de uma cotovia, lá no alto.
Não lamentas ter abandonado tudo? perguntei. Não desejas voltar, por vezes?
As mãos dele moveram-se suavemente sobre a minha barriga. Pensei que aquela criança seria amada de tal maneira que o seu caminho, através da vida, seria encantador, largo e direito e cheio de luz.
Como poderia não me sentir feliz com o que tenho? disse Red suavemente. Porque tenho tanto. E mais tarde regressámos lentamente a casa sob os grandes ramos curvos da floresta, ao lado das águas eriçadas do lago e entre as sebes de espinheiro-alvar. O cavalo seguia cuidadosamente, como se consciente da carga preciosa que levava; e os braços do meu marido eram fortes e gentis, em redor de mim e da filha. E se as Criaturas Encantadas nos estavam a ver, planeando o capítulo seguinte da sua longa história, não ouvimos delas sequer um sussurro, enquanto cavalgávamos de regresso a Sevenwaters.
Juliet Marillier
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