Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DA PROFECIA - P.3 / Juliet Marillier
A FILHA DA PROFECIA - P.3 / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

CAPíTULO TREZE

 

Eles treinaram vezes sem conta o barco, a corrente e os nadadores. E Darragh estava entre eles enquanto deslizavam para a água gelada. Faziam-no durante o dia. Faziam-no à noite com lanternas na proa. Habituaram-se a fazê-lo com máscaras no rosto, roupas escuras e justas, de modo a parecerem-se com criaturas do oceano, verdadeiros filhos de Manannán. Faziam-no ao luar, sem as lanternas; eu ouvia-os a subir os degraus vindos da enseada, rindo. Parecia-me que eram muito temerários, um bando de camaradas, ligados por uma fé mútua e inabalável. Sentia-me preocupada por Darragh se ter transformado num deles tão rapidamente. E não era apenas o meu receio pela sua segurança que me dava noites de insónia. Era algo que eu tinha vergonha de admitir. Ele era meu e eu não queria partilhá-lo. Não queria que ele mudasse e se transformasse num homem duro e sem escrúpulos como os outros. Por vezes, o que me dava forças para continuar, era a imagem de Darragh, com o seu sorriso torcido, cavalgando tranquilamente o seu belo pónei branco por um carreiro iluminado pelo Sol entre sorveiras-bravas. Se perdesse isso, que me restava?

 

 

 

 

Então, Coll adoeceu. Um dia, teve uma ligeira dor de cabeça, coisa pouca, apenas o suficiente para o fazer resmungar um pouco mais do que o costume enquanto trabalhava. No dia seguinte, tinha febre e não saiu da cama. Eu não o fui ver. Fiquei à minha mesa, atarefada com a pena, registando as qualidades medicinais de uma erva chamada escrofulária, geralmente conhecida como ficaria. Não falei com ninguém.

 

Liadan não esteve presente ao jantar, assim como Gull. O Chefe estava muito calado, mas isso não era nada invulgar. Johnny também não dizia grande coisa e pensei que me vigiava.

 

O miúdo está mesmo doente murmurou Biddy. Está tão quente como um ferro em brasa e só diz disparates.

 

Retirei-me cedo para o meu canto, dizendo para mim própria que a criança recuperaria. A culpa era minha. Como podia ter-me esquecido?

 

Como me permitira arranjar outro amigo? Como fora possível ser tão tola, acreditando que a minha avó me deixaria em paz? Tinha acabado de acender a lâmpada quando me mandaram chamar. Estavam todos na enfermaria, Liadan sentada à cabeceira do filho. O Chefe e Johnny de semblantes carregados e silenciosos por trás dela, enquanto o miúdo transpirava, murmurava e virava a cabeça, sem descanso, de um lado para o outro.

 

Eu sou filha de um feiticeiro, recordei a mim própria enquanto avançava na direcção deles. Mas não pareceu ajudar-me muito.

 

Lamento que Coll esteja doente disse eu com a maior calma possível. Espero que seja apenas uma constipação e que melhore em breve. Mantive as mãos unidas atrás das costas para as obrigar a ficar quietas.

 

Senta-te, Fainne. A voz de Liadan perdera o calor que tivera no nosso último encontro. Depois de me sentar no outro lado da cama do rapaz, como ele me indicara, vi que os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e que a sua boca estava cerrada. A expressão do Chefe estava alarmantemente feroz e a de Johnny circunspecta, como se estivessem a pesar um dilema.

 

Suponho que sabes por que razão te chamámos aqui disse Liadan enquanto pegava num pequeno pano e o usava para enxugar a testa de Coll.

 

Talvez seja melhor dizer-me. Consegui manter a voz sob controlo apesar do bater do meu coração.

 

Então, foi o Chefe que falou numa voz muito suave, numa voz treinada para instigar o medo nos homens.

 

A minha mulher disse-me que esta febre, tão alta, que apareceu de repente, não pode ter aparecido sem uma... intervenção exterior. Havia uma pergunta no tom de voz, mas eu não respondi. Se o meu filho morrer os responsáveis não escaparão ao castigo.

 

Ontem, Coll estava bem disse Liadan e a sua voz tremia. Corria, metia-se com toda a gente e estava perfeitamente. Não há razão para isto. Esta febre não responde, como devia, às gotas de ervas; ele está a arder, como se tivesse sido atingido por um dragão. Se não baixa dentro de pouco tempo, receio que ele não aguente. Fainne, foste tu que fizeste isto?

 

Hesitei. Se bem que estivesse à espera que me deitassem as culpas, não contava com uma confrontação tão directa da parte dela.

 

Não, tia Liadan. Seria imaginação, ou a minha voz parecia-me pouco segura? Na verdade, não fora eu a causadora; eu não lançara nenhum feitiço a nenhuma criança, nem nunca considerara tal hipótese, mesmo que a minha avó mo tivesse exigido; mesmo que me tivesse ameaçado com o maior dos castigos. Coll ainda era pequeno. Nunca o magoaria. Mas era, de qualquer modo, culpada. Se não fosse eu, a minha avó nunca teria reparado no miúdo. Nunca lhe passaria pela cabeça atingi-lo. Por isso, era como se tivesse usado a arte.

 

Eu não faço magia desde que vim para Inis Eala disse eu, o mais firmemente que consegui. É a verdade. Não seria capaz de magoar Coll. Ele é meu amigo.

 

Não seria um grande teste à tua vontade? perguntou Johnny cuidadosamente. Uma demonstração de força? Magoar um amigo em vez de um adversário?

 

Olhei para ele.

 

Não há nada de errado com a minha vontade murmurei, chocada por ele se ter aproximado tanto da verdade. Eu não preciso de magoar crianças para a demonstrar. E então senti um arrepio gelado na espinha, porque, claro, acontecera o incêndio, e Maeve. Magoar uma criança era algo que uma feiticeira era capaz de fazer sem a mínima hesitação; e eu era uma feiticeira. Levei as mãos à cabeça para que eles não me vissem o rosto.

 

Olha para nós, Fainne.

 

O Chefe tem de ser obedecido. Olhei para cima. Era como enfrentar um juiz que já tivesse decidido que eu era culpada, sem ouvir as provas. E isso magoava-me. Eu não queria ser assim julgada por aquela boa gente; pela minha gente.

 

Eu não fiz isto disse eu em voz baixa, levantando-me. É verdade Talvez... talvez seja só uma constipação. Talvez Coll melhore dentro de pouco tempo. Eu ajudo a tratar dele, se quiser. Eu...

 

Eu não te quero perto do meu filho. A voz de Liadan era áspera. Eu vi o que aconteceu em Sevenwaters; não quis acreditar que fosses tu a responsável, mas sei que és capaz de fazer fogo quando te apetece. Sei que Ciarán permitiu que a sua mãe te... te influenciasse. Não admira que Eamonn fosse um boneco nas tuas mãos. Não admira que o teu rapaz esteja tão desesperado por te tirar daqui. Sabe das maldades que és capaz de fazer.

 

As suas palavras encheram-me de angústia e gelaram-me. Pouco tempo antes ouvira-a falar com afeição, como uma mãe. Mas a minha avó transformara essa afeição numa inimizade amarga.

 

Não fui eu disse eu de novo, sentindo a cabeça tonta e os olhos cheios de lágrimas que não podiam ser derramadas. É verdade! Juro!

 

Vai para o teu quarto até decidirmos o que fazer. O Chefe falou calmamente, mas eu vi o olhar que ele lançou na direcção do filho. Se calhar, é melhor permitirmos que Darragh te leve para casa. Não podes continuar connosco depois disto.

 

Mas, não tem provas! Não é justo! Não me pode mandar embora, não pode! Johnny? Com certeza não acreditas que eu faria tal coisa?

 

Johnny olhou para mim com um estranho sorriso, mas não disse nada. Que a deusa me valesse, estava tudo à ruir à minha volta, tudo. Um falhanço total; estaria a ira da minha avó por trás daquilo tudo?

 

Por favor disse eu a custo. Por favor. Juro que não fui eu. Desta vez não fui eu.

 

Seguiu-se um momento de silêncio terrível. Então, Liadan disse.

 

Que queres dizer, desta vez?

 

Emiti uma espécie de som, algo entre um soluço e um grito e de repente estava a fugir pela porta fora para a noite, para o escuro, correndo, correndo o mais depressa que o meu pé defeituoso me permitia, para longe da criança febril e dos olhos acusadores da minha família, para longe daquela boa gente com um objectivo brilhante, firme, na sua frente, para longe do meu amigo apanhado no meio de uma coisa de que não podia fazer parte, para longe através do pasto dos carneiros, para lá do muro, para lá. Corri até a cabeça me latejar, o coração batendo como um tambor e o respirar se transformar numa agonia. A Lua iluminava-me o caminho; as minhas botas batiam em pequenas pedras, escorregavam em grandes rochas molhadas e afundavam-se em areia mole. Subi pequenas elevações, desci, aos trambolhões, até pequenos vales, fui de encontro a arbustos e quase caí de uma falésia para o mar lá muito em baixo. Um acidente; e enquanto oscilava, pensei que seria uma saída. Mas recuperei o equilíbrio. Seria uma fraca solução e, assustada, ferida e confusa como estava, não me decidiria por ela. Havia uma coisa boa que podia fazer e apesar do que quer que fosse que se metesse à minha frente, fá-lo-ia. Faria com que o meu pai se orgulhasse de mim apesar de tudo.

 

Continuei a correr. À luz da lua primaveril, a paisagem encheu-se de uma luz prateada, fazendo brilhar as rochas, tornando a areia cor de pérola e fazendo reluzir os arbustos, como se estivesse a passar por um reino desconhecido dos mortais. E havia sons estranhos: sobre o rugido do oceano ouviam-se gritos quase inaudíveis, tristes, como se fossem de uma grande criatura das profundezas, chorando algo perdido, algum tesouro nunca recuperado. Havia uma angústia naqueles gritos, uma tristeza que estava para além de qualquer conforto.

 

Corri o mais depressa que pude até ao promontório a norte da ilha. Nunca olhei para trás em busca de pessoas com lanternas, ou archotes. Quem se importaria se eu caísse de uma falésia e partisse o pescoço? Por que se importariam se eu caísse ao mar e as águas negras como tinta me engolissem? Ficariam contentes por se terem visto livres de mim. Darragh estava enganado acerca da família e Liadan estava enganada acerca do amor. Ambas as coisas traziam, apenas, complicações desnecessárias. Era melhor não ter nem uma, nem outra.

 

Cheguei ao rochedo e havia uma entrada, um pequeno túnel com solo arenoso, que ia dar, talvez, até um abrigo e senti-me em casa. Ainda ofegante, com os cabelos sobre os olhos e as mãos estendidas para apalpar o caminho, entrei. Pensei em entrar apenas o suficiente para me abrigar do vento, enrolando-me, depois, sobre mim mesma, fechando os olhos com força e fingir, até de manhã, que não havia mais ninguém no mundo. Nem Coll, nem Liadan, nem Johnny, nem Darragh. E, especialmente, nem a minha avó. Estender-me-ia na areia e afastá-los-ia até o Sol nascer. Então, levantar-me-ia, regressaria e voltaria a ser forte.

 

Avancei na escuridão, os dedos tocando nas paredes de rocha de cada lado e movendo os pés com cuidado. Não fiz qualquer som. Algures, lá dentro, o túnel pareceu abrir-se; não conseguia ver quase nada, mas havia um movimento de ar, uma espécie de espaço e um barulho de água que não era o mar. Vislumbrei uma coisa branca à minha frente, no meio das sombras, como um pedaço de tecido, ou um rolo de penas. Estendi a mão e em vez de rocha dura, ou espaço vazio, os meus dedos tocaram em algo suave, quente e inegavelmente vivo. Dei um grito de medo, recuei, tropecei no vestido e caí dolorosamente no chão. Ouvi, em resposta, uma exclamação de alarme na escuridão e o som suave de passos afastando-se. Fiquei ali sentada, tentando recuperar o fôlego. Para dentro, para fora, Disciplina. Vi uma luz e depois o brilho da chama de uma lanterna a aproximar-se. Levantei-me devagarinho, olhando para o homem que a transportava e pestanejando, incrédula. Ele olhou para mim. Sem dúvida, a expressão de choque nas suas feições pálidas era igual à minha. Mas não foi o susto provocado pelo encontro que me fez bater o coração. Não foi a semelhança daquele homem com o meu tio Sean e com Liadan, com o seu longo e pálido rosto, os cabelos escuros e as feições esbeltas, rectas e inteligentes. Nem foi o seu traje e capa esfarrapados e os pés descalços que me chocaram. Foi a asa que ele tinha no lugar do braço esquerdo; uma coisa grande, brilhante; uma coisa cintilante, dourada, cor-de-rosa e bege à luz da lanterna. A minha avó dissera: Terás de ter cuidado com o tipo da asa de cisne.

 

Tu fugiste observou o homem ali a olhar para mim.

 

Quem é você? consegui dizer ainda sem respiração. A sua voz era muito estranha; sem sotaque, mas com a hesitação de quem fala uma língua que não é a sua.

 

Parece que a minha história ainda não chegou a Kerry observou ele secamente. Vem. Tu correste durante muito tempo. Vais querer descansar e talvez beber alguma coisa. Eu não tenho uma fogueira, mas posso arranjar-te água fresca e um lugar para te sentares confortavelmente. Espero que não te tenhas magoado.

 

Não é o facto de me ter magoado que constitui problema disse eu azedamente, seguindo-o enquanto ele caminhava à minha frente pela gruta dentro. Na realidade, parecia não haver alternativa, senão segui-lo.

 

Chegámos a um local onde havia reentrâncias na rocha e uma pequena poça de água, que cintilava à nossa frente. Acima dela, a câmara abria-se para o céu; na água escura, as estrelas brilhavam, remotas e misteriosas. O homem pousou a lanterna e foi buscar uma pequena caneca de metal escuro. Inclinou-se, encheu-a na poça e eu ouvi-o murmurar umas palavras, umas palavras familiares. Passou-me a caneca com a mão direita. Eu estava a tentar não olhar para as penas, apenas meio-escondida pela velha capa esfarrapada.

 

Obrigada disse eu e bebi, sentindo a frescura e a pureza da sua oferta entrarem no meu corpo. O ritmo da minha respiração abrandou; acalmei-me. Honra a terra quando tira dela observei.

 

Eu não sou um druida, pequena. A minha mãe ensinou-nos a respeitar aquilo que nos dá a vida. É uma lição que nunca mais se esquece.

 

Ensinou-nos? Procurei na minha memória. Conhecia a história, claro; mas, talvez por ter acontecido na família, eu não tenha acreditado. Mas devia ter acreditado. Aquela criatura, meio homem, meio cisne, era obra da minha avó. Quer dizer você, Conor e os seus irmãos?

 

Ele inclinou a cabeça.

 

E a minha irmã. Por que vieste aqui?

 

Por acaso. Não sabia que havia aqui alguém. Nunca ninguém me disse nada. Eu só queria... eu só queria um lugar para me esconder. Só por um bocado.

 

Nesse caso, encontraste um. Eles não vêm à tua procura?

 

Eles não querem saber disse eu miseravelmente, tão enredada na minha angústia que nem pensei na estranheza de estar a falar com um estranho. Disseram que eu fiz uma coisa má, e eu não fiz, mas eles não acreditam. Ninguém quer saber onde estou.

 

No entanto disse o homem esfarrapado talvez fosse melhor dar-lhes a saber. Então, podes ficar aqui sem que ninguém te perturbe, até recuperares.

 

Dar-lhes a saber? olhei para ele sem expressão. Como? Então, vi os seus olhos; profundos, sem cor, como luz em água parada, uns olhos que eram a imagem dos olhos de Sibeal. Não precisava que me respondesse.

 

Fiquei sentada nas rochas durante algum tempo, fui bebendo a água e vendo as sombras dançarem e oscilarem em redor da caverna à luz da lanterna. A poça de água estava imóvel; o sussurro fraco que ouvira antes tinha desaparecido. Aquele era um lugar de grande tranquilidade; de imenso silêncio. Era como a pequena gruta por baixo de Favo de Mel; um
lugar de limites. Respirei lentamente; a minha cabeça continuava a latejar.

 

Este é um lugar onde os segredos são guardados disse o homem numa voz suave. Está protegido por forças mais antigas e mais fortes do que o tempo. Estou surpreendido por eles não te terem mandado vir comigo mais cedo, porque vejo que estás profundamente perturbada.

 

O que é que me está a oferecer? Conselhos? Uma conversa? Eu tenho um amigo que está pronto para me oferecer ambas as coisas e não compreende que não preciso delas. Eu percorro o meu caminho. Por que razão havia de lhe dizer fosse o que fosse?

 

Ele esperou antes de responder.

 

Eu não ofereço conselhos. Por vezes, vejo coisas, e por vezes falo delas. Tenho visitas, por vezes, que falam comigo. Os filhos de Liadan vêm cá muitas vezes. Ela não vem porque não precisa.

 

Porque falam um com o outro através da mente?

 

Tu não tens esse dom? Surpreende-me. Franzi o sobrolho.

 

Por que havia de o surpreender? Parece saber quem sou. A Visão não vem dos seus antepassados Fomhóire? A minha mãe não tinha esse dom, e o meu pai também não. as nossas capacidades são limitadas: Foi decretado assim pelos Túatha Dê, há muito tempo.

 

Ele ergueu as sobrancelhas.

 

Quem te contou essa história? Não respondi.

 

Os segredos, aqui, ficam bem guardados. Todos os segredos. Ninguém te falou de mim. Por isso, assustámo-nos um ao outro. O meu nome é Finbar.

 

O meu é Fainne disse eu rigidamente. Como é possível ficarem bem guardados? Ninguém está seguro, Não enquanto...

 

Enquanto usares isso em redor do pescoço?

 

Percebi que, durante a minha louca corrida o amuleto saíra do seu esconderijo e estava agora completamente visível no lado de fora do meu vestido. Levantei a mão num esforço vão para o esconder. O metal estava frio.

 

Um feitiço muito poderoso observou Finbar. Se resististes à sua influência até agora, és, na realidade, a digna filha do teu pai. Reconheço o cordão.

 

Reconhece? O homem era cheio de surpresas.

 

Oh sim. Foi Liadan que o fez e o deu à tua mãe quando ela se foi embora. Quem te deu esse amuleto, certamente não te deu o cordão.

 

Não. Era eu que o tinha. E a mim parece-me...

 

Ah sim Finbar acenou com a cabeça. Um neutraliza o outro o mais possível. Deves agradecer às mulheres fortes da tua família por esse talismã familiar, porque possui um poderoso feitiço de protecção. Não é um feitiço de feitiçaria, antes algo mais simples e puro. Liadan fê-lo com fibras das roupas de todos aqueles que viviam em Sevenwaters. Com isso, tentava, o melhor que podia, manter Niamh segura. A tua mãe era muito amada, sei que tu duvidas.

 

Olhei para ele, incapaz de encontrar palavras.

 

Esse amuleto tem uma influência maligna e poderosa disse ele solenemente. Mas aqui, neste lugar, não pode desempenhar a tarefa para que foi desenhado. Por que não o tiras?

 

Fiquei gelada de medo.

 

Não! murmurei. Não! Não posso! Nem sequer podemos estar a falar disso, senão...

 

Senão ela ouve-nos? Olha em redor, Fainne. Liadan disse-me que o teu pai te educou no conhecimento druídico; um conhecimento do padrão de todas as existências. Olha em redor com os olhos do espírito. Aqui, todos os segredos ficam guardados.

 

Nem sequer queria pensar na possibilidade de aquilo ser verdade. Deixara-me aterrorizada ao sugerir que retirasse o amuleto ali, com Darragh tão perto; não sabia que a minha avó viria ter comigo mal eu tirasse o cordão do pescoço?. Olhei no escuro para a poça, silenciosa.

 

Tens medo de falar. Na verdade, carregas um grande fardo, demasiado grande para ti; no entanto, carrega-lo estoicamente, Fainne. Deves essa força aos ensinamentos do teu pai, creio. Não precisas de dizer nada; se quiseres, podes ficar aqui em silêncio até de manhã. Não tens razão para confiar em mim. Compreendo isso. Talvez ajude se te disser que sei o que significa estar só; longe de todos, sem uma alma que compreenda o meu dilema; nem um único amigo para me ajudar. Quando estamos assim isolados precisamos de ser muito fortes para prosseguir. Houve tempos em que quase desisti. Tinha tantas esperanças; tantos sonhos, grandes e maravilhosos, antes de Lady Oonagh aparecer e me transformar para sempre. Queria endireitar o mundo. Queria transformar os tiranos em homens honestos. Queria pôr fim à crueldade e à opressão. Eram esses os sonhos de um rapaz da tua idade, Fainne. Antes dos vinte, o fogo desses sonhos transformou-se em cinzas frias e eu tornei-me no que vês perante ti: uma coisa, nem homem, nem animal, uma criatura entre dois mundos, sem lugar em nenhum deles. Mas continuo aqui. Não escolhi o caminho da faca pequena e afiada, ou a falésia e o voo para o esquecimento.

 

Porquê? Por que não? Ficou aqui por querer vingar-se dela? As suas palavras chocaram-me e fascinaram-me e eu esqueci-me de ser cautelosa.

 

Vingança? Ele disse a palavra como se tivesse esquecido o seu significado. Nunca pensei nisso. Se não tivemos a força para agir contra ela na ocasião, eu próprio, Conor e todos os outros juntos, como havia eu de a ter agora? Aconteceu há muito tempo. Sem dúvida, a feiticeira reforçou os poderes que foram desfeitos pela minha irmã. Não me atrevo a confrontá-la. Não conseguiria enfrentar isso uma segunda vez e perder de novo.

 

O seu rosto pálido estava calmo, mas havia um medo profundo por trás das suas palavras, que eu reconhecia, porque também o sentira ao olhar para os olhos cor de amora da minha avó.

 

Acenei com a cabeça.

 

Nesse caso, por que razão continuou? perguntei-lhe. Por que não acabou com tudo, como disse?

 

Não tomaria esse caminho enquanto a minha irmã vivesse. Deitar fora a vida que ela reconquistara para nós seria desdenhar o seu sacrifício e o seu amor. Além disso, há o Johnny.

 

Johnny? Fiquei surpreendida. Que tem ele a ver com isto? Finbar sorriu. Pareceu-me que aquilo era uma coisa que ele fazia tão pouco, que quase esquecera como se fazia; como falar em voz alta.

 

Ele é o Filho da Profecia, não é? Uma pessoa assim não pode crescer à solta. Não precisa, apenas, de desenvolver as forças do corpo. Conor podia ter feito melhor. Liadan arranjou-me um lugar seguro aqui. Eu não posso viver como os outros homens. Eu... eu não sou o mesmo de antigamente. Deves saber, como filha de Ciarán, que a mente de uma criatura selvagem difere da de um homem. Não sei aonde te levaram os ensinamentos do teu pai...?

 

Já experimentei o que acaba de dizer disse eu rigidamente. Sei o que quer dizer. Há... instintos, que nos chamam com muita força. Pode ser difícil ignorá-los, ao mesmo tempo que tentamos ser nós próprios.

 

Então, já sabes. E podes imaginar o que acontece comigo. Desde esses tempos, desde que a feiticeira nos transformou que eu possuo um pouco das duas naturezas, homem e cisne. Nunca estou livre desses medos: do frio, da fome, dos dentes de um cão. É por isso que vivo aqui e não visito a aldeia. Liadan tem sido uma pessoa avisada e tem-me tratado bem. Pareces duvidosa, pequena. A tua tia há-de saber, com o tempo, de que fibra és feita.

 

Como é que sabe? perguntei-lhe. Teve uma visão?

 

Não. Mas acredito. Vejo que não tiras o feitiço de feiticeira que trazes ao pescoço. Diz-me para que serve.

 

Olhei em volta e baixei a voz. Fechei a mão sobre o amuleto e senti de novo a dureza fria do metal.

 

Tem a certeza que é seguro? murmurei.

 

Absoluta, pequena.

 

É que... é que ela pode ver-me disse eu num fio de voz. De modo que pode vir atrás de mim e certificar-se de que faço o que ela quer. Ela não me vigia o tempo todo. Mas se lhe apetecer ver-me e ouvir-me, consegue, desde que eu use isto. Fica mais quente quando ela está próxima e quando está a olhar. E... hesitei. E... eu acho que há também outro tipo de controlo. A única vez em que o tirei, tornei-me, de novo, eu própria, como antes. Capaz de ver com clareza; capaz de me recordar que posso ser boa, sábia e fazer bons juízos. Quando o uso, é fácil ver as trevas que há em mim. Sem o cordão, sem o talismã da família, não sei como poderia prosseguir.

 

Por que não tiras essa coisa imediatamente, se só faz o mal?

 

Porque disse eu com a voz trémula a única vez que o fiz, ela ficou muito zangada, veio ter comigo e castigou-me.

 

À luz trémula da vela, pareceu-me ver o rosto pálido de Finbar ficar ainda mais branco. Não havia dúvida de que partilhava o meu medo e o compreendia.

 

Castigou-te como?

 

Primeiro, magoou-me. Depois, quando viu que não dava resultado, ameaçou... ameaçou os que amo. Ela... ela fez-me fazer coisas muito más. Coisas que nunca mais posso fazer de novo. Só há uma pessoa, além dela e de mim, que sabe de tudo. Eu tenho um mal terrível dentro de mim; nunca pensei que seria capaz de magoar um inocente, mas magoei. Por minha causa morreram três excelentes pessoas. E agora, hoje, o meu primo Coll está doente e não fui eu a causadora, mas Liadan não acredita em mim e vão-me mandar embora.

 

Eu posso dizer-lhe...

 

Não! Não, não faça isso. Eles não podem saber a verdade. Disse que era seguro...

 

Não te atormentes. Eu não revelarei o que tu queres manter em segredo. Por que razão a feiticeira havia de quer magoar o teu primo? O rapaz ainda é uma criança.

 

Para me punir disse eu hesitantemente.

 

Punir-te porquê?

 

Por... por lhe desobedecer. Por ser lenta. Eu ainda não agi contra ela, directamente. Mas ela tem razão para duvidar da minha lealdade e mostra o seu poder ameaçando os... aqueles de quem gosto. Assim, comanda as minhas acções. Eu tenho sido muito tola. Aproximei-me de Coll e dos outros. Só serviu para lhe fornecer munições novas. Fui estúpida. Já tinha obrigação de saber.

 

Uma lição muito difícil disse ele solenemente. Mas, agora, gostaria que pensasses numa teoria. Não tenho a certeza de que funcione, mas tenho fé. Acredito que esse amuleto tem outro propósito, além desse. Não te vou perguntar nada acerca da tarefa que a feiticeira quer que tu leves a cabo; tenho uma ideia do que deve ser e compreendo as suspeitas de Liadan. Se fosse a ti, tentaria descobrir por que razão Lady Oonagh precisa tanto de te ter sob controlo. E aposto que esse feitiço é para ela, não só uma janela para os teus movimentos, mas também um freio para as tuas capacidades. Não é só o facto de ela poder limitar a tua força: uma força que provém de Ciarán, dela própria e de uma longa linhagem de humanos, de Fair Folk e dos próprios Fomhóire. Ela usa esse feitiço para te enfraquecer, porque sabe que tens a capacidade de a derrotar.

 

O quê

 

É só uma teoria. Pensa. Tu tiras o amuleto e imediatamente vês o teu caminho com clareza; és tu de novo, a filha de Ciarán, uma das filhas de Sevenwaters, forte e verdadeira. E ela vem logo a correr, antes que lhe escapes para sempre. Ela age assim por está aterrorizada com o que possas fazer. Uma vez, ela disse que eu era um velho inimigo e eu pensei no que isso significaria. Hoje, acho que ela viu nos meus olhos, mesmo quando me estava a transformar, a chama dos meus ideais de juventude: justiça, coragem, integridade. Talvez veja esse velho inimigo renascido em ti. Vê, de certeza, a tua força, porque tu possuis muitas coisas que eu nunca tive: a sabedoria de um druida, a arte de um feiticeiro e o sangue das quatro raças. O comportamento dela revela que sabe isto tudo e que o teme acima de tudo.

 

Afaguei o amuleto, distraída, e senti os lábios curvarem-se num sorriso hesitante.

 

Acredita realmente nisso? Não está a dizê-lo só para me fazer sentir melhor?

 

A sua risada retiniu na abóbada silenciosa da gruta, espantando-me. Mas ele ficou de novo solene.

 

Não, pequena. Isto são coisas grandes, importantes; assuntos desesperados. A mim, parece-me extremamente cruel que sejas tu a carregar esse fardo; mas tens uma grande força interior. Johnny também é forte, à sua maneira. Ele suspirou. Liadan teme pelo filho e com razão. Mas não é a ti que ela deve recear; deve recear, antes, a falta de prontidão dele para a tarefa que tem pela frente.

 

Ele parece ser bom homem disse eu hesitantemente, sem compreender. Um líder, muito sábio apesar da idade, bravo e equilibrado. Pelo menos, tem a percepção de que tem de fazer mais do que levar apenas o seu exército à vitória. Mas... mas está triste, ao mesmo tempo.

 

Finbar acenou com a cabeça.

 

Sabe o que é que ele tem de fazer? Compreende o que os Fair Folk querem? perguntei-lhe. Ouvi dizer... disseram-me... que havia uma referência a uma espécie de sentinela, um guardião. O Vigilante da Needle. Na ocasião pareceu-me estranho. Mas há uma ilha chamada Needle. E... e eles disseram que os velhos costumes morreriam. Que a sabedoria da terra e do oceano, e o percurso do Sol e da Lua se perderiam para sempre, a não ser que a sentinela lá continuasse. É isso, de algum modo, que Johnny tem de fazer?

 

Finbar olhava espantado para mim.

 

Estou a ver disse ele lentamente que outros, para além de LadyOonagh, te têm guiado os passos. Quem te revelou essas coisas? Os Fair Folk?

 

Não disse eu suavemente. Uns anciãos mais pequenos; criaturas da terra e do mar. Fomhóire. Têm-me protegido desde que ajudei um da espécie deles através da arte. Mas, aqui, não estão.

 

Eles estão em toda a parte, acho eu disse Finbar. Mas não se mostram assim sem mais nem menos. Isso que disseste é maravilhoso.

 

O tio tem a Visão. Diga-me. Liadan diz que viu Johnny e que me viu a mim, no fim. E o tio, o que é que viu? O que é que nos vai acontecer?

 

Mas o homem com a asa de cisne apenas abanou a cabeça.

 

Não te posso dizer disse ele. Creio que te cabe a ti determinar o caminho; fazer com que a Visão seja verdadeira.

 

Verdadeira e brilhante disse eu suavemente.

 

Devias descansar disse Finbar. É tarde e está frio. Tenho aí algures um cobertor. De manhã, o teu amigo há-de vir buscar-te.

 

Eu hesitei.

 

É possível que eu não volte aqui. Eles querem mandar-me embora. O Chefe e Liadan. Até Johnny acredita que eu lancei um feitiço sobre o irmão, para o adoecer. Se... se não puder voltar a falar consigo, gostaria de não perder o meu tempo a dormir. Pergunto a mim própria se...?

 

Pergunta, pequena. Se te puder ajudar...

 

Preciso de recobrar a minha força. Para fazer o que tenho de fazer, preciso de... de empregar um ramo da arte que é um tanto perigoso para quem o executa. Só o fiz uma vez e tive ajuda. Compreende o que quero dizer?

 

Finbar acenou com a cabeça.

 

Acho pouco provável Johnny vir a ser persuadido a incluir-te nas suas forças especiais. Para lá estar, precisas de te transformar. E voltar à forma primitiva, acho. A visão de Liadan era acerca de uma rapariga, não de um peixe, ou um gafanhoto.

 

A minha prima Sibeal disse-me para ter cuidado com gatos. Haverá necessidade de atravessar mar e terra para estar perto dos homens, mas, ao mesmo tempo, ser capaz de retirar rapidamente. Creio que, desta vez, terei de me transformar numa ave.

 

Muito perigoso. E cansativo. Assisti a uma coisa parecida em Sevenwaters. Os jovens druidas têm de experimentar metamorfoses como parte da disciplina. Mas são mais mentais do que físicas e são sempre vigiadas. Isto é diferente. Ciarán tinha um talento especial para coisas assim.

 

Eu sei. Foi ele que me ensinou. E disse-me para não o usar. Mas não tenho escolha. No entanto, há uma dificuldade. Como é que recobro as forças e a arte com a rapidez necessária para agir depois de voltar à minha forma? Na última vez fiquei tão fraca como um bebé durante três dias, sem um fragmento de magia. Se isso acontecer de novo, não posso fazer o que deve ser feito.

 

Imagino que o que Ciarán te ensinou vai consideravelmente além das minhas capacidades. No entanto, há técnicas que te ajudarão. Essas podes aprender. Mas não numa noite, Fainne.

 

Nesse caso, posso regressar aqui para te visitar?

 

Serás mais do que bem-vinda, pequena. Mas o tempo urge. Pensei na boca cerrada do Chefe e nos olhos vermelhos de Liadan.

 

Talvez só tenha esta noite disse eu se eles me mandarem embora.

 

Não é isso que eu quero dizer. Porém, podemos começar. Qual é que achas que é o «caroço» do teu treino? A essência?

 

O conhecimento.

 

Então, como só temos uma noite, vamos utilizá-lo para nos concentrarmos. Eu não sou druida; não tenho essas coisas na memória. Mas sei ouvir e posso ajudar-te, libertando-te a mente do que a confunde. De manhã estarás mais forte. Depois, veremos.

 

Sentámo-nos de pernas cruzadas junto da poça subterrânea e ele apagou a lanterna. Quando os nossos olhos se acostumaram à profunda escuridão da noite primaveril, as minúsculas estrelas reflectidas na poça pareceram mais brilhantes e mais próximas, duplicados preciosos das suas irmãs celestes. Os olhos do corpo fixaram-se naqueles pontos de luz. Os olhos da mente moveram-se para cima e para baixo, pairando no reino abobadado por cima de nós. Com a voz transformada num sussurro na profunda quietude da gruta, comecei a litania das perguntas e respostas.

 

Quem foram os primeiros na terra de Erín?

 

Os Anciãos. Os Fomhóire. Um povo das profundezas do oceano, dos poços e dos lagos. Gente do mar e dos mais escuros recônditos da terra. E quem veio depois? OsFirBolg. Os homens-saco.

 

E depois deles?

 

Depois deles vieram os Túatha DéDanann, de Oeste...

 

Não se pode recitar todo o conhecimento numa noite. São precisos dezanove anos, na floresta, para que um homem, ou uma mulher, se tornem druidas; e muitas estações para memorizar a antiga sabedoria. Eu mal lhe toquei, mas continuei firmemente até pouco antes da madrugada, quando o céu começou a clarear e o primeiro e hesitante gorjeio flutuar no ar calmo, quando as aves começam a chamar o Sol. Finbar estava sentado, muito quieto a ouvir e eu sentia uma profunda calma, que parecia fluir da sua mente para a minha, como se, durante algum tempo, fôssemos apenas um. Ao mesmo tempo que os meus lábios repetiam as palavras rituais, os meus pensamentos eram visitados por imagens do passado, coisas boas que eu tinha quase esquecido. Lá estava o meu pai, o rosto pálido, de capa negra, os cabelos da cor de uma fogueira do solstício, mostrando a uma rapariguita como apontar o dedo e fazer com que umas pedrinhas subissem uma encosta. Nómadas em viagem, de lenços coloridos, rindo, e uma criança escondida nos arbustos, observando e esperando. Maeve, sorrindo tristemente enquanto eu acomodo Riona a seu lado e me sento para lhe contar uma história. O som de uma gaita-de-foles. Algures, um pónei branco e um xaile com as cores do arco-íris. E... muito débil, a pequena imagem de uma mulher, uma jovem frágil com grandes olhos azuis e cabelos cor de mel até à cintura. Sentada na areia, uma criança desenhando letras com o dedo e olhando, depois, para cima e a mulher a dizer: Muito bem, Fainne, sorrindo para a criança. Aquelas imagens iam e vinham enquanto eu continuava a litania. Senti o seu calor no coração e durante algum tempo não senti medo.

 

Lá fora o dia nascia. Calei-me. Finbar levantou-se, encheu a caneca e colocou-ma na mão. Reparei, de novo, como a água era fria; dava à cabeça uma estranha claridade.

 

Não bebe? perguntei-lhe. Ele abanou a cabeça.

 

Parece que já não preciso dessas coisas. Comida, bebida, uma cama macia para passar a noite. Suponho que é estranho. Mas estou acostumado.

 

Bocejei.

 

Que está a dizer? Que transcendeu a necessidade de um apoio físico e que vive apenas espiritualmente?

 

Nada de tão impressionante, receio bem. Não sei dizer o que é; apenas que não consigo viver como um ou como o outro, como homem e como ave. No entanto, vivo. O castigo dela foi, no meu caso, muito efectivo, foi para a vida toda.

 

Diga-me uma coisa. Ele esperou polidamente.

 

O tio estava tão assustado como eu quando deu de caras comigo. Eu ouvi-o. Mas decidiu confiar em mim, imediatamente. Não compreendo.

 

Uma parte de mim vive assediada por medos, Fainne. Tenho medo dos sons das criaturas selvagens; tenho medo do gelo do lago; tenho medo do toque humano. A tua mão, na escuridão, teria sido o suficiente. Mas o teu rosto...

 

O meu rosto? Sou assim tão monstruosa?

 

Olhei para os teus olhos e vi os olhos de uma feiticeira disse ele com uma sombra de voz. Sem necessidade de qualquer luz, vi-os antes de eu próprio os ver. Isso fez-me recordar um momento de terror que nunca me chegou a deixar: o momento da mudança irrevogável. A perda da consciência humana; o roubo de vidas jovens e a destruição da inocência da minha irmã.

 

L... lamento disse eu inadequadamente. Talvez eu me pareça com ela. Lamento se o assustei. Mas...

 

Aprendi a olhar com profundidade. Liadan tinha razão para estar preocupada contigo. Eu acho que tu tens o poder de criar e de destruir; e só escolherás o caminho no fim.

 

As suas palavras chocaram-me e falei sem qualquer precaução.

 

Serei suficientemente forte. Tenho de ser. De qualquer modo, dificilmente me poderá julgar. A sua vida parece a de uma criatura que está sempre escondida; sábia, talvez, mas é um triste fim para um jovem que um dia ardeu com o desejo de tornar o mundo melhor. Que aconteceu a esse fogo, que o tio fechou aqui, por baixo da terra?

 

Espantara-o, não havia dúvida. Provavelmente, nunca ninguém lhe tinha falado daquela maneira. Na verdade, fiquei instantaneamente arrependida. Ele fora tão amável comigo.

 

Finbar puxou para trás a capa gasta para mostrar a asa branca. Olhou para ela, como se fosse ao mesmo tempo um fardo e, ao mesmo tempo, um amigo.

 

Eu não posso entrar no mundo dos homens disse ele calmamente. Uma deformidade destas chama não só a atenção, mas é também ridícula, motivo de chacota; um lugar, talvez, numa feira algures, para as pessoas me verem e deixarem que os seus filhos me atirem fruta podre. Seria uma mó no pescoço da minha família; embaraço, apenas. Aqui, posso partilhar as coisas que sei e o que sou longe das pessoas. É melhor assim.

 

Disparate! disse-lhe eu de modo cortante. Aquilo a que chama deformidade é um sinal de honra. Um sinal da sua força e resistência, seleccionando-o para um grande objectivo. Se permitir que os seus sonhos de rapaz morram, se se esquecer do que foi em tempos, a minha avó triunfou, na verdade, sobre o seu velho inimigo. Aqui, esconde-se da vida. No entanto, pede-me que vá em frente e tente ter uma visão. E a sua? Nós somos da mesma família. Certamente, todos nós temos um papel a desempenhar.

 

Seguiu-se um longo silêncio. Finbar olhou para mim e eu reparei como ele estava magro, um espectro, os ossos do rosto aparecendo por baixo da pele branca. Os seus estranhos olhos pálidos estavam raiados de sombra e o seu cabelo escuro estava baço e desgrenhado, como se nunca se tivesse preocupado em tratar dele.

 

Mas eu sou um velho disse ele, por fim.

 

Em anos, talvez. Mas não parece. Na verdade, não parece mais velho do que o meu tio Sean. E pensa degenerar e morrer aqui. Que perda.

 

Ele não me respondeu. Ofendera-o, sem dúvida. As minhas palavras tinham sido uma fraca recompensa pela sua paciência e compreensão. Estava a formular uma desculpa quando se ouviu uma voz familiar a chamar no exterior.

 

Fainne! Fainne, onde estás? Franzi o sobrolho.

 

Por que o mandaram a ele? perguntei, irritada. Fizera tudo para o evitar e agora teria de regressar com ele. Eu podia muito bem ir sozinha resmunguei.

 

Vem disse Finbar calmamente. Eu levo-te até à entrada. Quem é ele?

 

Um amigo funguei eu enquanto o seguia ao longo do túnel sombrio apenas iluminado pela luz da madrugada. Seguiu-me até Inis Eala e agora não se quer ir embora. Mas tem de ir. E o tio sabe porquê.

 

Finbar não fez qualquer comentário, mas após uns momentos disse:

 

Suponho que ele está aqui com um objectivo. Em todo o caso, pode ser que já seja demasiado tarde.

 

Demasiado tarde?

 

Demasiado tarde para o mandar embora.

 

Emergimos da entrada do túnel para uma manhã pálida e límpida. Longas nuvens esfarrapadas, tingidas de cor-de-rosa, enchiam o céu e os pássaros já tinham acordado, cantando energicamente em coro para o novo dia. E lá estava Darragh à minha espera, vestido de cinzento, o mesmo cinzento dos homens de Johnny. Pelo menos, pensei sinistramente, não tinha o rosto tatuado. Os seus olhos honestos e o seu sorriso doce continuavam os mesmos.

 

Fainne! Estás bem, então. O alívio no seu tom era indisfarçável.

 

É claro que estou bem. Não era preciso teres vindo.

 

Obrigado por teres vindo, meu rapaz. Finbar falou de um modo um pouco estranho, como se não estivesse habituado a estranhos. Eu sou tio de Fainne e asseguro-te que a tua amiga esteve em boas mãos. Agora, é melhor irem para casa e dizerem ao pequenito que penso nele e que vou visitá-lo assim que estiver melhor.

 

Então, Darragh deu um passo em frente, estendeu a mão num gesto de cumprimento e Finbar, nitidamente espantado, apertou-lha.

 

Obrigado, meu senhor disse Darragh, sorrindo. Nem uma única vez olhou para a asa de cisne; era como se não fosse diferente de outra parte qualquer do corpo do homem. Obrigado por ter tomado conta dela. Ela nunca soube olhar por si própria como deve ser.

 

Nas feições austeras de Finbar apareceu um pequeníssimo sorriso.

 

E tu tencionas fazer isso por ela observou ele secamente. Darragh retirou a mão.

 

Pode parecer ridículo um nómada misturado com guerreiros, senhores e visionários. Mas eu faço o que devo fazer. Se a estrada me trouxe aqui, é aqui que devo estar.

 

Finbar acenou com a cabeça. Mas já não sorria.

- Desde que compreendas a escolha que fizeste. Uma escolha muito difícil; com muitos perigos e poucas recompensas.

- Não é isso que me vai impedir disse Darragh. Finbar virou-se para mim.

 

Adeus, Fainne.

 

Adeus e... obrigada.

 

Se calhar, eu é que te devo agradecer. Foi uma visita muito esclarecedora. Não estava nada à espera.

 

Dito aquilo, Finbar voltou a entrar no túnel e desapareceu.

 

É melhor irmos andando disse Darragh, subitamente inquieto. Tens a tua capa? Está frio e ventoso.

 

Deixa-te de espalhafato, está bem? disse eu, enquanto a tranquilidade e a certeza do conhecimento começavam a desvanecer-se, substituídos pelos medos e pressentimentos familiares. Uma grande caminhada ao ar livre e eu com o amuleto. Os meus dedos moveram-se para o tocar; não parecia estar quente. No entanto, era preciso despacharmo-nos.

 

Faço uma corrida contigo até àqueles arbustos disse Darragh inesperadamente. É uma boa maneira de aquecermos. Pronta? Um, dois, três!

 

Os velhos hábitos levam tempo a morrer. Corri pelo estreito carreiro pedregoso, coxeando e sabendo que nunca lhe poderia ganhar. Corri o mais depressa que pude, coisa nada fácil depois de uma noite sem dormir. E ainda não comera nada. Podia ouvir os seus passos suaves atrás de mim, mesmo nas minhas costas.

 

Chegámos às rochas juntos. Juntos, os nossos dedos estenderam-se para tocar ao mesmo tempo na superfície rochosa. Era assim que terminavam
todas as nossas corridas de infância; com ele sempre impassível, nada afectado. Darragh esperou que eu recobrasse o fôlego. O vento afastava-lhe os cabelos escuros do rosto; a luz dourada da madrugada

 

espalhava um brilho quente pela pele suave das suas faces e da sua fronte. Estava preocupado disse ele. Fugiste.

 

Que havia de fazer? Ficar ali enquanto me acusavam de uma coisa que não fiz? Eles disseram que fui eu que fiz aquilo a Coll. Não é verdade. E agora o Chefe quer mandar-me embora.

 

Já recuperaste o fôlego? Óptimo. É melhor irmos andando.

 

Darragh? murmurei.

 

Sim?

 

Coll. Ele...?

 

A sua expressão era grave.

 

Eles não dizem grande coisa. Ele ainda está vivo, isso eu sei. Saberemos mais quando lá chegarmos.

 

Fiquei silenciosa, cheia de pensamentos sombrios.

 

Eu disse-lhes disse Darragh. Eu disse-lhes que não foste tu.

 

Tu o quê?

 

Eles ficaram preocupados quando tu fugiste. Johnny perguntou-me se sabia para onde tu tinhas ido. Eu exigi uma explicação; e ele deu-me uma. Depois, fui ter com o Chefe e com a tua tia e disse-lhes que tu nunca poderias ter feito uma coisa daquelas.

 

Arrisquei um olhar de relance para ele.

 

Por que é que disseste isso? Sabes melhor do que ninguém do que eu sou capaz. És o único a saber. Morreram pessoas. Por que me defendeste? Não sabias.

 

Sabia disse Darragh muito calmamente, dando-me a mão para me ajudar a passar por cima de um muro de pedra. Não foste tu, pois não?

 

É claro que não!

 

Nesse caso...

 

De qualquer modo, por que razão lhes foste dizer? Não é o que queres? Que eles me mandem embora?

 

Seguiu-se um pequeno silêncio.

 

Pára com isso, Caracóis disse ele asperamente. Pára de lutar comigo. Pensas que não me dói, mas dói e eu não sei se consigo aguentar isto por muito mais tempo. Eu sei que não me queres aqui. Sei que estás zangada comigo por ter vindo. Mas continuamos a ser amigos, não? Não devias precisar de me perguntar essas coisas. Seja o que for que eu queira, não vou permitir que eles te castiguem por uma coisa que não fizeste. Qualquer pessoa vê que tu gostas do miúdo. Eu limitei-me a dizer a verdade, mais nada, e não o lamento. É sempre melhor dizer a verdade, mesmo se, com isso, não conseguimos o que queremos.

 

Eu não disse nada. A sua bondade enchia-me de vergonha. Subimos as pequenas colinas, atravessámos os pequenos vales, passámos pelos pastos escassos e pelas cabras descendo ao longo de carreiros íngremes sobre o mar. Tínhamos de nos apressar, mas, no entanto, de certo modo, eu queria ir devagar, porque as recordações enchiam-me a mente, recordações de Kerry, quando o mundo era um lugar simples e dois amigos podiam passar o dia inteiro ao ar livre sem qualquer temor ou estranheza mútuos. Apareceram, à distância, as primeiras casas da aldeia. Caminhávamos em silêncio há já algum tempo. Então, ambos abrandamos o passo.

 

Fainne? Darragh parecia muito sério.

 

O que é?

 

Tu sabes que, em breve, me vou embora. No fim de contas, é para isso que aqui estou. Para ser um guerreiro. Vai haver uma missão e uma batalha. Quero que me dês a tua palavra em como vais ter cuidado contigo enquanto estou fora. Olha por ti e pensa antes de fazer as coisas e... e tem cuidado. Quero que esperes aqui na ilha por mim.

 

Olhei para ele sem compreender.

 

Esperar por ti? Creio que não posso prometer isso. Esperar porquê? As suas faces coraram.

 

Esperava que... que quanto tudo acabasse, a batalha e tudo o mais, me deixasses levar-te para casa. Para Kerry. Gostaria de fazer isso. Para junto do teu pai, de novo. Eu sei que não posso ter tudo o que quero; foi o que ele disse, o visionário, não foi? Mas eu gostava muito que tu ficasses livre de perigo, em casa, onde pertences. Vais comigo depois do Verão?

 

Ele fizera-me aquela oferta uma vez, eu dissera que não e sentira o coração chorar com saudades de casa. Mas, agora, senti apenas uma frieza desesperada.

 

Não te posso prometer nada. Não sei o que vai acontecer; mas acho que nunca mais regressarei à enseada, Darragh. Cometeste um erro ao vir aqui. Acho que vais ficar desapontado.

 

Ah, isso é que não. Eu estou aqui, tu estás aqui. É melhor do que nada. E estás aqui a falar comigo. Já é qualquer coisa. Se me esforçar, talvez por ocasião de Lugnasad consiga um sorriso. Seria óptimo.

 

D... desculpa. Não tenho grandes razões para sorrir.

 

Há sempre uma razão qualquer para sorrir, Caracóis, Coisas tolas; coisas boas. O som de um assobio à tardinha; a luz no cabelo de uma rapariga. Uma piada entre amigos. Tu é que te esqueceste, mais nada. Ah, o que é que se passa agora? Perturbei-te. Não foi minha intenção.

 

Era estranho como as suas palavras pareciam ter entrado numa pequena parte de mim e despertado sentimentos que eu queria deixar adormecidos, de maneira a poder continuar com o que tinha de fazer. A dor era tanta que levei as mãos ao rosto, com medo das lágrimas. Elas estavam lá, logo abaixo da superfície. Mas a filha de um feiticeiro não chora.

 

O que é, Caracóis? O que é que se passa? Gentilmente, os seus dedos agarraram-me nas mãos e afastaram-mas do rosto. Diz-me, querida. Diz-me o que se passa.

 

N... não posso murmurei, incapaz de não lhe olhar para os olhos, cheios de preocupação e algo mais que eu não queria interpretar.

 

Não te posso dizer.

 

Podes sim. Nós somos amigos, não somos? Uma das mãos aproximou-se para me afastar os cabelos das têmporas e ficou ali, afagando docemente.

 

Eu... eu não quero que sofras. Aquele pequeno murmúrio escapou-me apesar de todos os meus esforços. Se te acontecer alguma coisa a culpa é minha e eu não sei se conseguirei suportar isso. Fechei os lábios com força para impedir que mais palavras tolas se escapassem. O seu toque era de uma doçura tão grande que me senti derreter e tive medo de fazer uma coisa ainda mais estúpida, que era pôr-lhe os braços à volta do pescoço e abraçá-lo com muita força para o manter sempre junto de mim. Que se passava comigo? Dera em fraca à última da hora? Pestanejei e recuei.

 

É melhor irmos disse eu com um esforço terrível. A minha voz tremia como um vidoeiro no Outono. Não devia ter dito o que disse. Por favor, esquece. Recomecei a andar, a capa bem enrolada em redor do corpo. E Darragh caminhou a meu lado, calado, mantendo o mesmo passo.

 

Talvez tu não possas prometer disse ele uns momentos depois, mas eu posso. Prometo que nunca te deixarei sozinha. A não ser que não queiras. É só desta vez, é só esta campanha, porque dei a minha palavra a Johnny. Depois, será tudo diferente. Juro, Fainne. Não precisas de ter medo por mim. Estarei sempre presente quando precisares de mim. Sempre.

 

Quando ele disse aquela palavra, uma nuvem tapou o sol matinal. Seria um acidente? Uma grade ave escura passou por cima de nós, gritando asperamente enquanto caminhávamos na direcção da aldeia no mais completo silêncio. Seria um acaso?

 

Ainda era muito cedo; no entanto, já havia pessoas na rua. O fumo subia pelas chaminés e havia no ar um cheiro a peixe frito e panquecas. Os homens carregavam coisas na direcção da enseada, decidida e silenciosamente. Johnny estava sentado numas pedras junto da muralha exterior, afiando uma faca e tendo a seu lado, empoleirado, um grande corvo. O animal virou a cabeça para o lado e fixou os seus pequenos e intensos olhos em mim.

 

Fiacha! exclamei. O meu coração bateu com força. O meu pai está cá? perguntei, dividida entre o medo e uma esperança impossível.

 

Só o pássaro disse Johnny metendo a faca na bainha. A mãe disse que era provável que ele te fosse familiar, como foi para mim, um dia. Há muito tempo, tanto que já nem me lembro; ainda era bebé. O animal está aqui por alguma razão; segue-me por toda a parte. Talvez tenha uma mensagem para ti.

 

Não me parece. Nunca consegui comunicar com esse corvo, mas também não estou muito interessada. Fiacha tem um bico muito aguçado. Falo por experiência própria. Os meus dedos moveram-se instintivamente para tocarem no ombro, por baixo do vestido, onde o pássaro me picara há muito tempo. Tinha-me doído e, desde então, nunca mais gostara dele. E Coll, como é que ele está? perguntei, fazendo um esforço.

 

Melhor disse Johnny com indiferença. Está a comer papas de aveia e a resmungar por a mãe dizer que tem de ficar de cama.

 

Apeteceu-me dizer uma quantidade de coisas quando a imensa maré de alívio me percorreu, mas contive-me. De que valeria? Darragh estava menos circunspecto.

 

Nesse caso, acho que deves a Fainne uma desculpa. Ele olhou a direito para Johnny, de boca cerrada e olhos semicerrados; nunca vira aquela expressão no seu rosto.

 

Tudo bem, Darragh disse eu pousando-lhe uma mão no braço. Foi um erro razoável, atendendo às circunstâncias.

 

Não está nada tudo bem. A sua voz era firme. Tu ficaste perturbada e assustada. Está longe de estar bem. A tua tia devia pedir-te desculpa, se Johnny não o fizer.

 

Infelizmente disse Johnny suavemente isto não prova nada. Fainne é tão capaz de desfazer este tipo de feitiços como de os fazer. Sei-o por experiência própria, amigo. E agora, já que estamos aqui, diz-me porque foste buscá-la sozinho em vez de levar Godric contigo? Não compreendes as ordens que te dão?

 

Darragh corou. Não gostei nada de o ver zangado. Ele nunca se zangava.

 

Johnny disse eu, metendo-me entre os dois. Eu não dormi e não como nada desde o pequeno-almoço de ontem. Não quero saber do que pensas; sei qual é a verdade, Darragh também sabe e isso é suficiente para nós. Eu quero ir ver Coll e depois quero descansar. E Darragh tem trabalho para fazer, sem dúvida. Podemos parar com isto, por favor?

 

Johnny sorriu e olhou de relance para Darragh.

 

Ela sempre foi assim? perguntou ele.

 

Mas Darragh tinha o sobrolho franzido e não respondeu. Em vez disso, virou-se para mim com muita calma:

 

Ficas bem?

 

Eu acenei com a cabeça, não confiando suficientemente em mim para responder. Então, ele afastou-se sem uma palavra e um momento depois Johnny seguiu-o. O pássaro abriu as suas grandes asas brilhantes e voou atarás dele, em círculos, umas vezes à frente, outras vezes atrás. E eu esperei que a sua ligação com o meu pai fizesse dele mais um amigo do que um inimigo.

 

Coll estava mesmo melhor. Estava sentado na cama ainda um pouco corado, enquanto Liadan lhe ajustava as almofadas.

 

Fainne! exclamou ele quando eu entrei. Gull estava presente, empacotando coisas que estavam nas prateleiras, tintura e emplastros, pomadas e unguentos. Sorriu para mim, os dentes brancos brilhando na pele escura como a noite. As suas mãos defeituosas moviam-se agilmente quando pegava num frasco minúsculo ou numa tigela delicada. Onde tens estado? continuou Coll. Os seus olhos estavam extremamente brilhantes; mas a mudança era notável.

 

Na ponta norte disse eu avançando até à cabeceira da cama. Coll deitou-se; a mãe aconchegou-lhe o cobertor, tapando-lhe o peito. Eu olhei para ela e ela devolveu-me o olhar calmamente. Não havia maneira de saber o que pensava, mas não vi uma desculpa nos seus olhos. Posso sentar-me um bocadinho? perguntei-lhe.

 

Liadan acenou com a cabeça.

 

Está bem, Fainne. Mas só um bocadinho.

 

Liadan levantou-se e foi ajudar Gull. Começaram uma conversa qualquer acerca de ferimentos de facas e se a verbena, ou a tintura eram melhores contra os maus humores.

 

Foste mesmo até à ponta norte? perguntou Coll. Sozinha? De noite?

 

Sim.

 

Não tiveste medo.

 

Por que havia de ter medo?

 

Podias ter caído de uma falésia, ou partido uma perna. E o tio Finbar?

 

Não fales tanto disse-lhe eu firmemente. Estiveste muito doente. Tens de descansar e ficar melhor para recomeçarmos as nossas lições, antes que te esqueças do que te ensinei.

 

Coll suspirou.

 

Lições! Talvez seja melhor ficar na cama. Fainne?

 

Hum?

 

Eles disseram que talvez te fosses embora. Vais-te embora? Olhei para Liadan.

 

Não sei, Coll disse eu.

 

Talvez ainda não. O tom da minha tia era solene. Se continuares a fazer progressos com as tuas letras, pode ser que a deixemos ficar mais um pouco. Além disso, vou precisar da ajuda dela.

 

Óptimo disse Coll de modo sonolento. Estou contente por não te ires embora. Isso aqui vai ficar tão calmo como uma tumba depois de toda a gente se ir embora. Até Cormack vai. O garoto fechou os olhos.

 

Tardiamente, apercebi-me de uma coisa terrível. Os homens transportando fardos para a enseada. Gull empacotando medicamentos. Finbar dizendo que não havia tempo.

 

Tia Liadan? perguntei com a voz a tremer.

 

O que é, Fainne?

 

A... a campanha. Não era suposto ser só no Verão? Seguiu-se uma espécie de silêncio delicado. Então, Gull falou.

 

- O Chefe joga com informações falsas disse ele apertando a tampa de uma pequeno frasco de barro e metendo-o no fundo do saco. Oficialmente é no Verão. Mas estamos para partir a qualquer hora e parece que vai ser agora.

 

A... agora? Quer dizer... agora mesmo? Hoje? O meu coração falhou um batimento. Aquilo queria dizer que teria de fazer a transformação sem preparação, sem qualquer ajuda. Queria dizer que antes da madrugada veria Darragh entrar num daqueles barcos e navegar para a batalha.

 

Amanhã disse Liadan. Hoje vamos fazer uma festa para nos despedirmos. Bran não irá enquanto Coll estiver em perigo. Mas...

 

É tão cedo disse eu, tremendo. Tão cedo. Nunca pensei que fosse já.

 

Liadan surpreendeu-me. Sentou-se na cama a meu lado e passou-me um braço pelos ombros.

 

Não é fácil dizer-lhes adeus disse ela. É como morrer um pouco; pedimos aos deuses por eles. Os homens não sabem o que é esperar. As mulheres suportam-no porque têm de o fazer. É o preço do amor. Suponho que, para ti, é a primeira despedida.

 

Entre mim e ele não há nada disso disse eu ferozmente, porque a sua amabilidade ainda era pior do que a sua desaprovação. Ele não devia ir, mais nada. Ele não sabe o que está a fazer. Pelo menos, estes homens, Johnny e Snake, e o Chefe, pelo menos são guerreiros. É a profissão deles. Darragh é... é um inocente.

 

Ah sim. A mão de Liadan subiu e tocou-me no cabelo, afastando-o um pouco do meu rosto. Eu devia estar um susto, com olheiras e os caracóis todos emaranhados por causa do vento. Reconhece-lo. Por vezes, os inocentes passam por um campo de batalha incólumes, Fainne. É essa mesma qualidade que os protege. Esperemos que regressem todos sãos, salvos e vitoriosos. Mas, agora, acho que Coll precisa de descansar. E tu deves estar exausta e cheia de fome. Biddy e Annie levantaram-se cedo e devem ter feito um óptimo pequeno-almoço. Por que é que não vais comer, gozar um pouco de companhia e depois dormir um pouco? Não podes mudar o que vai acontecer.

 

Gull tinha acabado de empacotar tudo e estava a atar o saco.

 

Foi alguma vez com eles? perguntei à minha tia. Eles devem precisar desesperadamente de curandeiros nestas ocasiões.

 

Um campo de batalha não é lugar para uma mulher. Mas, se me deixassem, ia, acredita; é como ter uma faca espetada no coração saber que estão longe, em perigo. Mas Bran nunca o permitiria. É demasiado perigoso. Gull vai com eles; é ele que vai tratar dos ferimentos deles. Entretanto, eu trato das coisas por aqui.

 

Liadan?

 

Ela olhou para mim, mas eu não encontrei palavras para o que queria dizer. Ela sorriu levemente numa espécie de reconhecimento.

 

Finbar disse-me que não temos outra hipótese se não confiar em ti disse ela. Se ele confia, suponho que também eu posso confiar. Tem mais razões para ter medo do que eu. E agora, vai. E não faças má cara. Temos de nos despedir destes homens com sorrisos e confiança e não com lágrimas. Essas ficam para depois, quanto ficarmos sozinhas.

 

Comi, mas não muito. Sentia uma dor no estômago. Dormi e fui visitada por sonhos tão maus que nem os posso contar aqui. Acordei, lavei o rosto e mudei de roupa. Penteei os cabelos de modo a caírem-me pelas costas abaixo. Em seguida saí e sentei-me no alto da falésia por cima da baía e pensei nas aves. O tempo estava calmo. Os barcos estavam fundeados, prontos para partir. Havia três grandes e muitos mais pequenos, alguns carregados de sacos e fardos e outros vazios. Suponho que levariam armas. Suprimentos. Deveriam acampar algures, no caminho. Não fazia a mínima ideia onde seria e eles não me tinham deixado olhar para os mapas. Teria de voar e teria de ir logo a seguir a eles, porque, se não os encontrasse, atravessaria aquela extensão toda de água até as minhas asas se cansarem e eu cair nas presas de uma criatura marinha qualquer. Isso se não morresse antes de frio. Pensei nos homens nadando de noite e estremeci. Certamente que no Verão seria melhor. Por que não tinham esperado até Beltane, pelo menos? O ar estava gelado; e o mar devia estar implacável.

 

Aves. Aves marinhas: gaivotas, andorinhas-do-mar, albatrozes. Boas para longas distâncias através do oceano, abençoadas com resistência e força. Mas talvez não tão boas em terra. Demasiado barulhentas; demasiado selvagens. Talvez fosse necessário aproximar-me; talvez fosse essencial ser discreta. Uma carriça; um pardal. Não. Demasiado vulneráveis, demasiado fracos. Um jantar saboroso para um predador alado qualquer. Sim, talvez um caçador, um açor, ou uma águia. Mas também não me pareceu. Qual era a ave mais pequena, mais simples, com pouco medo do homem e capaz de voar longas distâncias? Havia uns pequenos pássaros cinzentos em Kerry; apareciam, por vezes, quando eu estava sentada à sombra das pedras, pavoneando-se e olhando para mim na esperança de que eu tivesse alguns grãos, ou um pedaço de pão. Umas coisinhas rechonchudas, de cabeças e bicos pequenos. Chamavam-lhes pombos das rochas. As pessoas, por vezes, não enviavam pombos com mensagens? Mas havia a empada de pombo. Mas, se calhar, no sítio para nós íamos, as pessoas não gostavam muito de cozinhar. Um pombo era um pássaro pequeno, mas não demasiado pequeno. Tinha uma voz suave e doce e uma plumagem modesta, discreta. E voava muito bem. Era isso, então. Assim que eles partissem, faria a transformação e sem qualquer ajuda. E, no outro lado, teria de ser suficientemente forte.

 

Aquela gente já se tinha despedido muitas vezes antes, mas, mesmo para eles, era uma coisa pouco vulgar. Das outras vezes, era um grupo de homens que partia para uma missão qualquer, regressando algum tempo depois com uma baixa ou duas e um ou dois feridos, um sem um olho e o outro com um braço ferido, ou talvez um ombro. Estavam habituados a isso, disse-me Biddy enquanto estávamos sentadas na cozinha comigo a comer uma tigela de sopa. Não me podia dar ao luxo, naquela manhã, de estar fraca com uma jornada daquelas pela frente. Naqueles dias, continuou Biddy, antes de o Chefe vir para Inis Eala, andavam fugidos o tempo todo, nunca estavam seguros, andavam sempre escondidos, ou arriscando as vidas numa missão impossível qualquer. Tinham a reputação de conseguir o que os outros não conseguiam. Ela já perdera um bom homem; só lhe restava esperar não perder outro. Graças ao Chefe, os seus filhos tinham um ofício, não eram guerreiros, ficando, assim, na ilha. Mas Gull tinha de ir: não o podia impedir. A sua primeira lealdade era para com Johnny, disse ela retorcidamente enquanto borrifava com rosmaninho um carneiro que Annie virava no espeto. Johnny era filho do Chefe e o Chefe dera uma vida a Gull. Ela compreendia isso. O que não impedia que Gull fosse um perfeito idiota e ela havia de lho dizer. Um homem que já tinha passado os quarenta era demasiado velho para fazer um tal disparate e não merecia que uma mulher lhe mantivesse a cama quente para quando regressasse.

 

Mas desta vez era algo mais. Nunca antes, desde que tinham vindo para a ilha, construído a escola e a comunidade, tinham ido tantos para uma missão. O seu trabalho era ensinar as artes da guerra e não irem eles
próprios para a guerra. Dizia-se que o Chefe não queria que eles fizessem parte daquele empreendimento. Ele, agora, era um proprietário, com responsabilidades diferentes, instalado em Harrowfield. Continuava a interessar-se por Inis Eala porque não o podia evitar; estava-lhe no sangue. Mas quisera ficar de fora daquela missão. Mas Sean de Sevenwaters era da família e eles deviam-lhe muito. Fora Sean que os ajudara a estabelecerem-se; que passara palavra no sentido de que, se alguém precisasse de homens bem treinados, seria em Inis Eala que os encontraria. E Sean era irmão de Liadan. Além disso havia Johnny, que era o herdeiro de Sevenwaters. E havia a profecia. E assim lá foram, todos eles, menos os velhos, os mais novos e aqueles cujo ofício não estava ligado às armas. Todos os jovens que nos tinham guardado de modo tão silencioso e inteligente; todo aquele bando estranho e capaz, com os seus estranhos nomes e trajes coloridos. Até o jovem Cormack foi; esse era, na verdade, um guerreiro.

 

Houve uma festa com carneiro, galinhas recheadas com alho e um pudim com especiarias e frutos. Houve cerveja, mas não em abundância; era preciso que as cabeças estivessem límpidas para poderem partir de madrugada. E depois houve música. Sam e Ciem tocaram até mais não poderem; a mulher da harpa excedeu-se, primeiro com uma giga e um reel e depois com uma ária flutuando das cordas tão docemente como uma música de fadas. Quando ela terminou alguém falou em dançar e a banda recomeçou.

 

Como era a última noite, parecia que homens e mulheres se podiam tocar, havia olhares e palavras sussurradas. Como os seus homens estavam ocupados com o assobio e o bodhrán, Brenna e Annie dançaram uma com a outra, dando risadinhas. Os jovens puseram-se em pé e de repente não havia uma mulher no salão que não estivesse a girar e a bater palmas ao som da música enérgica e do ritmo trepidante. E a actividade não estava apenas reservada ao jovens. A grande Biddy dançou com o alto e magro Spider; a rapariga que criava galinhas andou às voltas com o feroz e cheio de cicatrizes Snake, resplandecente na sua túnica de pele de serpente. Gull levou Liadan para a pista, os dois rindo como velhos amigos. O Chefe não dançava. Estava sentado muito quieto, os olhos cinzentos sempre fixos na figura esbelta e vestida com simplicidade da sua mulher enquanto ela passava por baixo do braço de Gull, ou girava graciosamente em redor dele, ou dava passos intrincados com ele por entre as filas de dançarinos. Eu compreendia o olhar do Chefe, intenso, esfomeado. Estava a armazenar recordações, que durassem até regressar e tomá-la nos braços uma vez mais.

 

Johnny aproximou-se sorrindo, pediu-me para dançar e eu recusei polidamente. Então, Gareth tentou o mesmo, tropeçando nas palavras, corando e eu disse que estava cansada. Corentin olhou para mimde sobrancelhas escuras franzidas e olhou para Darragh, mas não se aproximou. Darragh não dançava. Estava sentado perto de mim, mas não demasiado perto e eu podia ver, pela maneira como os seus pés batiam no chão e os dedos estalavam que estava mortinho por fazer parte da festa. Aquele rapaz respirava música. Mas não se levantou e eu também não. O reel acabou e Liadan aproximou-se, corada e a sorrir, do Chefe. Não olharam um para o outro; a mão dele, simplesmente, estendeu-se para agarrar a dela quando ela se sentou a seu lado e as duas figuras aproximaram-se uma da outra. Como era a última noite, não se preocupavam com o que os outros pudessem pensar, já que o tempo era pouco.

 

Mais uma! pediu o loiro Godric, que tinha Brenna como par. Aquilo demonstrava uma certa coragem, já que o namorado dela, Sam, estaria a observar cada movimento enquanto o seu braço de ferreiro batia no bodhrán. Mas o tocador de harpa estava cansado, queria descansar e beber um pouco de cerveja e Ciem dissera que era tempo de dançar um pouco com Annie.

 

Darragh! gritou Godric, sentindo-se frustrado. Não disseste que sabias tocar gaita-de-foles? Que tal uma moda?

 

Darragh sorriu ligeiramente.

 

Está guardada disse ele.

 

Então, vai buscá-la. Não há nada melhor do que uma gaita-de-foles para dançar.

 

Aquilo era verdade. Podia ver, pela expressão dos rostos de todos, que esperavam ouvir os sons rudes e trapalhões de um rapaz que teria aprendido a tocar em romarias, copiando o que ouvia na ocasião, ou talvez por tentativa. Poderia ter-lhes dito o contrário, mas não houve necessidade. Em breve, Darragh enchia o fole, metia-o debaixo do braço, os seus longos e finos dedos começavam a voar sobre os orifícios da cana e um rio de melodia enchia o ar, calando as vozes no grande salão. Ficaram todos quietos e calados, até que Sam começou a bater o ritmo para a giga, os mais velhos juntaram-se batendo palmas e a dança recomeçou.

 

Armazenando recordações. O Chefe não era o único. Ele precisaria das suas até ao fim da campanha. Achei que as minhas teriam de ser para sempre. Mas não precisava de olhar para Darragh para perceber que não as poderia ter. Podia fechar os olhos e deixar que o som da gaita-de-foles formasse a imagem por mim: um rapaz de cabelos escuros em cima do seu belo pónei branco e por cima dele o grande e pálido céu de Kerry, o ar suave e o som do mar.

 

Tudo bem, miúda?

 

Pestanejei e olhei para cima. Biddy estava ali ao pé de mim, ofegante do esforço, o rosto doce e largo muito corado e umas madeixas de cabelo formando um halo brilhante.

 

Estás branca como o leite; espero que não estejas a adoecer.

 

Estou bem. Pelo menos, estava até Darragh ter terminado a frenética giga e com um olhar de relance para mim ter começado um lento lamento. A dança parou; os risos e as conversas morreram. Os pares ficaram de pé, mão na mão, ou sentados, muito quietos, os olhares adoçaram-se e aqui e a ali caiu uma lágrima enquanto a melodia pairava e descia tão graciosamente como uma andorinha, transformada em fina filigrana de luz e sombra pelo padrão intrincado da decoração do salão. Uma boa canção, tal como uma boa história, fala a cada ouvinte de maneira diferente. Faz surgir o que vai no espírito de cada um; acorda o que ele mal sabe ter lá dentro, tão tapado está pela desordem da vida de todos os dias, pela capa da autoprotecção. Darragh tocava com o coração, como sempre e no fim descobri que, simplesmente, não conseguia suportar. Um pouco mais e choraria, ou gritaria, ou arrancaria o amuleto, gritando que não poderia fazê-lo e que ninguém me poderia obrigar. Mas fora bem treinada. Levantei-me silenciosamente e saí. Não para muito longe. Sentei-me no muro da horta, por baixo da Lua pálida. Lá dentro o lamento continuava; uma canção de amor e dor; uma canção de adeus, que falava do que podia ter sido. Cerrei os dentes, envolvi-me nos meus próprios braços e recordei a mim própria que era filha de um feiticeiro e que tinha uma tarefa para fazer. Tinha de esquecer que era uma mulher e que Darragh era um homem e lembrar-me de que no dia seguinte seria uma criatura do ar, voando sobre o mar traiçoeiro. Tinha de me lembrar da minha avó e do mal que ela forjara; uma família quase destruída e uma casa despedaçada. Finbar, um jovem transformado num fantasma ambulante. A morte das esperanças da minha mãe e dos sonhos do meu pai; tudo começara com ela. Tinha de me lembrar do que ela me obrigara a fazer e do que me obrigara a ser. Se isso não me desse a força de que precisava, estaria, então, perdida.

 

A música cessou. As luzes apagaram-se; as pessoas começaram a sair do grande salão e encaminharam-se para as suas camas. Eu esperaria, pensei, até que Brenna e as outras estivessem deitadas para entrar depois, silenciosamente. Não me apetecia falar. Precisava de todas as minhas forças, de toda a esperança e de toda a confiança. Mas, em vez disso, senti-me só, desanimada e cheia de medo. Como poderia transformar-me se não tinha fé? Agora que a música cessara, tinha de respirar fundo, como o meu pai me ensinara: lentamente, a partir da barriga; em três fases, como a água de uma grande cascata. E outra vez. O controlo era tudo. Sem controlo ficava à mercê de sentimentos e os sentimentos não eram outra coisa senão um obstáculo.

 

Fainne?

 

Dei um salto. Ele estava ali na minha frente, eu não o ouvira nem vira.

 

Assustaste-me! De qualquer modo, não podes estar aqui sozinho comigo, pelo menos de noite. É contra as regras.

 

Que regras? perguntou Darragh, erguendo-se para cima do muro a meu lado. É melhor termos uma conversa. De manhã não temos tempo. Assustei-te mesmo?

 

É claro que não.

 

Saíste. Pensei que gostavas de me ouvir tocar.

 

A música entristeceu-me. Darragh, é melhor ires-te embora, ou vou eu. Ainda há luzes acesas e há pessoas na rua. Pode alguém ver-nos.

 

- Somos apenas dois amigos a conversar, mais nada. Onde está o mal?

 

Sabes muito bem que não é só isso. E agora vai-te embora, por favor. Não tornes isto mais difícil do que já é. A minha voz tremia. Precisava de todas as minhas forças para não olhar para ele. Darragh não disse nada durante alguns momentos. Então, deslizou do muro e virou-se para olhar para mim, os seus olhos ao nível dos meus, para que não os pudesse evitar.

 

Não é só isso? Que queres dizer? A sua voz soava muito doce na escuridão. Por trás dele, através da porta meio aberta, podia ver o brilho da luz de uma lanterna e ouvir as vozes de Biddy e de Gull preparando-se para se deitarem.

 

Nada. Esquece. Por favor.

 

Que quiseste dizer com isso, Caracóis? Ele estendeu uma mão, ergueu-me o queixo com ela e o seu olhar fez-me sentir extremamente esquisita. Fez-me querer fazer coisas que eu sabia não poder fazer.

 

Não te posso dizer. Olhei para ele, mantive as mãos muito quietas no colo e comecei a respirar profundamente: para dentro, dois, três; i para fora, dois, três. Controlo. Consegui não erguer uma mão para lhe tocar. Consegui não lhe rodear o pescoço com os braços e encostar o meu rosto ao dele, cedendo à grande onda de calor e desejo que me percorria o corpo. Era cruel. Por um instante, pensei que podia conseguir o que tanto desejava. Podia sorrir-lhe como sorrira a Eamonn, pedir-lhe que fechasse os olhos e beijá-lo como a minha avó me ensinara, de um modo que fazia com que um homem ardesse de desejo por uma mulher e fizesse tudo para a ter. E podia, também, fazer barulho, fazendo com que Gull, ou Biddy saíssem e nos apanhassem ali. Então, mandariam Darragh embora e eu ter-lhe-ia salvo a vida. Mas não o podia fazer; nem sequer por essa razão. Ele era meu amigo. Era a única pessoa do mundo em quem eu confiava para além do meu pai. Não podia abastardar o que havia entre nós. Porém, o que mais desejava naquele momento, com todo o meu ser, era apertá-lo contra mim e despedir-me como namorada dele, com palavras ternas e o calor do meu corpo. Mantive-me muito quieta. Não disse nada. Mas não podia esconder os meus olhos.

 

Caracóis? disse Darragh cuidadosamente, como se tivesse visto algo em que não conseguia acreditar.

 

Toca-me outra vez, disse uma voz dentro de mim apesar de todos os meus esforços. Põe os teus braços em redor da minha cintura e abraça-me. Só uma vez. Só esta vez.

 

Mas Darragh virou as costas, cruzou os braços e a sua voz, quando falou, tremia com um sentimento qualquer que eu não conseguia compreender.

 

É melhor ires disse ele. Vai, Fainne. Já é tarde. É melhor ires. Deslizei do muro, subitamente frio. Que fizera eu de errado? Ele parecia zangado; no entanto, pensei...

 

Vai, Fainne. Ele continuava de costas voltadas para mim, de braços cruzados, como se a ideia de olhar para mim, ou de me tocar, fosse, subitamente, repugnante. Não sabia que podia doer tanto; era como se tudo o que me restava da minha infância se tivesse transformado em cinzas. Estendi uma mão e, por um instante, ela ficou pousada na manga dele.

 

É melhor não fazeres isso disse ele numa voz que me pareceu chocada e afastou-se como um cavalo nervoso.

 

Nesse caso, boa-noite. Fiz um esforço para que as palavras saíssem e lutei para conseguir controlar a respiração. Tinha de ser forte para a manhã seguinte, para a jornada. Não me podia permitir aquilo. Estava a desfazer-me por dentro.

 

Adeus, Fainne. Não te metas em sarilhos enquanto eu estiver ausente. Darragh continuava a não olhar para mim. Mas a sua voz era a mesma de sempre, forte e verdadeira. Afastei-me antes de dizer algo de que me arrependeria para sempre. Passei pela grande casa onde Gull e Biddy estavam sentados à lareira, conversando docemente juntos. Todos faziam as suas despedidas, mas achei que nenhumas eram tão terríveis, ou definitivas, como as minhas. Cheguei à pequena cabana onde dormia, entrei e deitei-me na enxerga de olhos abertos. Duas das raparigas já ressonavam suavemente. A voz de Brenna chegou até mim num sussurro.

 

Estás bem, Fainne?

 

Hum disse eu e puxei o cobertor para cima do rosto. Não estava nada bem e parecia-me que nunca viria a estar. Tinha feito tantas coisas erradas. Tinha magoado tanta gente, tal como dissera a criatura-mocho. A nós parece-nos que te estás nas tintas para as baixas que deixas para trás. Mas eu preocupava-me, o problema era esse. Era isso que me fazia resistir. Sentimentos. Amizade. Lealdade. Amor. Era muito mais
fácil para uma feiticeira como a minha avó, que se estava nas tintas para o que deixava para trás. O que interessa é o poder, dizia ela. Quase conseguia ouvi-la naquele momento, bem dentro de mim; uma voz baixa, sombria, há muito tempo adormecida e agora, mais uma vez, acordada. Tens de compreender isso, Fainne. Adormeci de dentes e olhos cerrados e o corpo feito numa pequena bola por baixo do cobertor. Sonhei com o fogo.

 

Darragh tivera razão. De manhã não houve tempo. Levantei-me antes da madrugada e ao sair do edifício da escola vi luzes na baía e ouvi passos ordenados de homens nos degraus. Ouvi velas a estalarem; a brisa de norte já soprava. À luz de uma vela encontrei um bocado de pergaminho, tirei a tampa do tinteiro e peguei na pena. Que havia de escrever? Como havia de dizer aquilo? Por fim, fui breve. Tenho de me afastar por algum tempo. Peço desculpa. Assinei o meu nome e espalhei areia pela folha para secar a tinta. Dobrei e selei a mensagem, escrevi o nome de Liadan na parte da frente e coloquei-a num sítio onde o padre, ou o druida, a encontrariam. Em seguida, fui até ao local que escolhera, uma estreita plataforma logo abaixo do topo da falésia, de frente para a baía. Um maciço de arbustos raquíticos esconder-me-ia, dando-me, ao mesmo tempo, uma vista parcial da frota preparando-se para a partida. Talvez devesse ter escolhido umas roupas mais próprias, visando o meu destino. Talvez devesse ter roubado qualquer coisa de Cormack; vestida de guerreiro teria mais hipóteses de permanecer discreta quando regressasse à minha forma. Mas, em vez disso, estava corajosamente vestida. Usava um vestido simples às riscas azuis e verdes, a espécie de vestido que as raparigas nómadas usam em ocasiões especiais, como uma feira de cavalos, por exemplo. Por cima tinha o xaile mais bonito de todo o Erin, magnífico com as belas criaturas pintadas com todas as cores do arco-íris. Tinha os cabelos soltos; os primeiros raios do Sol da manhã, tornavam-nos vermelhos. Estava vestida para mostrar que era eu própria, não pertencia a ninguém. Mas continuava a usar o amuleto, porque ia deixar aquele local de protecção e ia partir para o desconhecido. Sabia que, se o tirasse, ela apareceria. Ela não podia vir, pelo menos por enquanto. Tinha de me ver e acreditar que eu era leal até ao fim, desconhecendo o poder do cordão da minha mãe, desconhecendo que, por fim, eu começara a reconhecer a força que tinha em mim, a força que recebera do meu pai e da minha mãe. Não era ao mesmo tempo uma feiticeira e uma filha de Sevenwaters, uma poderosa mistura? Como a minha avó dissera, tudo tinha de acontecer de acordo com a profecia até ao fim, mesmo até ao fim. Então, compreenderia como tinha escolhido mal o seu instrumento de vingança.

 

Levava Riona metida no cinto; não a podia deixar para trás. Esperei enquanto os homens desciam e embarcavam; esperei enquanto as mulheres
acenavam e diziam adeus. Esperei até os remos entrarem na água escura, até o vento encher as velas e os barcos começarem a navegar para leste, para fora da baía e para mar aberto. Então, fechei os olhos e disse as palavras do feitiço. Como todo o meu ser, mente corpo, espírito, pensei: pomba. As palavras do feitiço vibraram através do meu corpo. Senti o poder na ponta dos dedos, nas solas dos pés, nos cabelos, para cima e para baixo na espinha, como uma grande corrente, transportando-me. Abri os olhos, abri as asas e voei.

 

 

                                               CAPíTULO CATORZE

 

Parecia simples. As aves batem as asas para cima e para baixo e vira para sul ou para norte, conforme a direcção que quer tomar. E segue o bando até ao seu destino, descendo facilmente para aterrar numa árvore, num ulmeiro, por exemplo, com muitos poleiros. Mas não era nada simples.

 

Uma parte acontecia por instinto: bater as asas, seguir as correntes, sentir a luz e as sombras, sentir a distância, o calor e o frio e ajustar-me a tudo isso. Mas algo estava errado. Assim era perigoso. Ficava longe da comida, de um abrigo e de terra. E essas coisas chamavam por mim com enorme intensidade. Para trás. Volta para trás! Por aí não! E não havia nenhum pequeno ser do Outro Mundo para me guiar. Estava só, um pequeno monte de penas e ossos à deriva no ar, muito acima daquele mar setentrional gelado e cinzento onde os pequenos barcos, tripulados por homens corajosos, enfrentavam as enormes vagas. Os barcos. A missão. Algures, lá em baixo, ia o meu primo, o Filho da Profecia, a caminho da grande campanha da sua vida. Algures, lá em baixo, ia um nómada que mal conseguia distinguir entre o cabo e a ponta de uma espada. E que ia para a guerra por minha causa. Não me podia esquecer de quem era; do que era. A pomba era apenas um disfarce. A pomba levar-me-ia onde eu queria. Não me podia perder na sua consciência, ou estaria perdida. Continuar a voar, continuar a bater as asas, porque os barcos moviam-se rapidamente no oceano, levados pelo mesmo vento norte que me levava a mim através do céu pálido. O mar está tão lá em baixo; mais lá em baixo do que a distância do alto de uma grande torre para o chão; uma distância maior do que um mergulho do alto de uma falésia; um mergulho que mataria antes que a água gelada pudesse fazer a sua função, ou que os cientes de uma criatura do mar rasgassem uma pequena vítima qualquer. À sua maneira, uma queda seria uma bênção.

 

Os meus olhos viam um mundo diferente; maior, mais luminoso, mais límpido. Era confuso, porque eu não via os objectos como padrões de luz ou de escuridão; ou as sombras acima de mim como sinal de perigo; ou manchas em baixo que poderiam ser lugares de repouso. Sentia o corpo suspenso no ar; transportado pela corrente. Parte humana, parte animal, via com a excelente visão da ave e lembrava a mim própria, constantemente, como eram as coisas e como devia agir. Barcos. Velas. Segue-os, dizia a minha parte humana. Casa, dizia a ave. Regressa a casa. É muito longe. Mas eu continuava, porque a única coisa que nunca me abandonava era o medo de ser demasiado lenta, ou demasiado fraca. Tinha medo de os perder de vista, perdendo-me, assim irremediavelmente.

 

Era uma grande distância. Não pensara que fosse assim; não fizera os cálculos num mapa, ou numa carta. O que era uma lamentável falta de autodisciplina. O meu pai nunca teria encetado uma tal viagem sem estar devidamente preparado. Mas tinha de continuar; não podia permitir que a minha avó ganhasse aquela batalha. A profecia falava numa grande vitória; o meu primo comandaria as forças de Sevenwaters e reconquistaria as Ilhas. Johnny velejava lá em baixo e eu devia segui-lo, porque, no fim, precisaria de mim. Senti um calor nas penas do peito; o amuleto continuava comigo, mesmo na forma de ave, e ela também. Os seus olhos estavam, mais uma vez, abertos, a sua presença toldava-me. Assim seja; levá-la-ia comigo até ao momento em que me viraria e a enfrentaria. Porque, no fim, ela estaria lá; não tinha a mínima dúvida. Estaria lá para ver e gozar o seu grande triunfo. Eu tinha de continuar. Mas estava cansada, o vento cada vez mais forte e o ar parecia mais frio. Não estavam os barcos mais longe, não por baixo de mim e à minha frente, mas à minha direita e eu a ser desviada para leste? Batia as asas, tentando encontrar um nível onde as correntes me ajudariam, mas sempre que olhava, os barcos pareciam mais pequenos e a terra para além deles mais distante. Iria aquele vento cruel afastar-me para as costas de Alba?

 

Senti, por cima de mim, uma sombra. Grande, rápida, um eco daquela presença sombria que aterrorizara o cavalo de Sibeal, quase causando a morte da pequenita. Medo, perigo. De asas bem abertas, inclinei-me, mergulhei e flutuei de volta a um nível mais alto, fora de alcance. A sombra moveu-se; pairou no ar, por cima e atrás, à espera. Terror, morte. Voei mais baixo, menos insegura, o pânico ameaçando desfazer o precário controlo que eu exercia sobre aquele voo nas asas do vento. As grandes vagas cinzentas do mar aproximaram-se; imaginei monstros com enormes dentes sob a sua superfície. A presença ameaçadora por cima de mim empurrava-me para oeste, fora do meu campo de visão mas perto, tão perto que senti as garras saídas e o bico ameaçador de um predador esfomeado. Flutuei, aterrorizada, enquanto o vento soprava e o mar cor de ardósia subia na minha direcção, cada vez mais perto. Voltar para trás; voar de volta antes que fosse tarde de mais, dizia o meu instinto. Espera,
dizia a parte de mim que ainda era capaz de pensar. Controlo; era essa a chave.

 

Mas não é fácil manter o controlo quando a morte está tão perto como uma bicada. O terror dava força às minhas asas; o pânico deu lugar a um bater de asas firme, para cima e para baixo, para cima e para baixo. Fixei a minha rota na direcção sudoeste, voando baixo, acima da superfície do mar e a presença invisível atrás de mim acompanhou-me como se fosse a minha sombra. Esperava, a qualquer momento, o ataque final, o mergulho final. Continuei a voar e os barcos ficaram cada vez mais perto, cada vez mais perto; já via nitidamente as pequenas velas negras, castanhas e beges, os remos entrando e saindo da água e, por fim, reconheci as silhuetas de alguns dos homens: o Chefe com as suas tatuagens intrincadas; as feições escuras de Gutt; e Johnny, de pé à proa de um pequeno barco, protegendo os olhos contra o Sol enquanto olhava para Sul.

 

Atrás de mim e um pouco acima, algo reunia forças, talvez preparando o ataque. Depressa. Tinha de aterrar, tinha de encontrar um lugar num dos barcos, entre os homens, antes que aquelas garras se fechassem sobre mim e eu ficasse reduzida a um monte de penas e carne. Depressa. Mas onde? Onde estava a salvação? E se, depois de aterrar, eu fosse apanhada e estrangulada para o jantar dessa noite?

 

Não tinha escolha. O animal atacou violentamente, destruidor, rápido e cheio de intenção. Desviei-me, evitando-o por uma unha negra e aterrei desastradamente, não na amurada do pequeno barco, não num cabo tenso ou num dos bancos de remador, mas no ombro de um dos homens, as minhas pequenas patas fincando-se instintivamente no pano macio da sua capa gasta. A coisa que me perseguia passou por mim e fez uma aterragem precisa na proa do barco, no sítio onde seguia o meu primo, imóvel e silencioso, os olhos fixos no oceano em frente. E era Fiacha, negro, de olhos brilhantes e bico afiado como uma faca; Fiacha, que me perseguira até eu chegar àquele lugar seguro. Agora que era um pássaro, ainda gostava menos dele.

 

Ah disse o homem em cujo ombro eu aterrara e ergueu a mão direita na minha direcção. A pomba sentiu o perigo. Afastei-me, as patas agarrando-se ao tecido da capa do homem. E consegui ver-lhe o rosto; mesmo com a visão da ave conheci aquelas feições pálidas, magras e aqueles olhos sombrios, sem cor. Mesmo sem o vislumbre de penas brancas sob o traje esfarrapado soube quem era.

 

Que grande jornada disse Finbar suavemente. Podia estar a referir-se a mim, a si próprio, ou a ambos.

 

Portanto, também viera. Contra todas as expectativas, respondera à minha chamada.

 

Gareth ia agarrado a um remo, as sobrancelhas carregadas devido ao esforço.

 

Deve ter sido desviada pelos ventos tempestuosos observou ele. Uma criatura destas pertence a um sítio onde haja árvores, certamente, e não ao mar aberto.

 

A minha mãe costumava fazer umas tartes de pombo óptimas, com alho-porro acrescentou Godric.

 

Desta vez não. Finbar moveu o seu braço cuidadosamente; eu caminhei por ele acima e instalei-me no seu ombro, debicando as penas. Fiacha, assim parecia, guiara-me com precisão para o lugar mais seguro que eu poderia encontrar, exactamente para o meio daqueles guerreiros ferozes. É uma criatura muito delicada; podemos muito bem dar-lhe abrigo.

 

Coisa rara observou Gareth.

 

O quê? disse Godric franzindo o sobrolho e inclinando-se ao movimento do grande remo.

 

Ele está a falar da plumagem. A voz de Finbar era plácida. Um pombo das rochas tem uma cor muito simples, uma variedade de cinzentos, mais nada. Nunca vi um assim, com uma crista tão vermelha. Um sinal de sorte, talvez. A deusa sorri para nós nesta campanha.

 

Hum disse Godric olhando para mim com um certo desapontamento. Sem dúvida, aquele esforço para fazer avançar o barco através daquele mar varrido pelo vento abria-lhe o apetite.

 

A hora da refeição chegou muito mais tarde e na ementa não havia tarte de pombo. Já estava escuro e até o mais forte daqueles guerreiros tinha o rosto cinzento de exaustão. Navegamos por algum tempo à vista de terra, uma grande ilha, verde, a leste. Pensei se não seriam as costas da Bretanha, perto de Harrowfield, casa de Bran e de Liadan, que, curiosamente, tinham escolhido instalar-se na vizinhança do seu arqui-inimigo.

 

Não é Northumbria observou Finbar calmamente é a ilha de Mannan. Acampamos aqui, descansamos um pouco e depois vamos ter com os nossos aliados. Ficaremos pouco tempo.

 

Os homens olharam para ele de modo estranho, achando esquisito que ele dissesse uma coisa que já todos sabiam, mas ele não pareceu perturbado. Na verdade, estivera sempre calmo e tranquilo durante toda a viagem, como se, agora que decidira confrontar-se com os seus medos, estes tivessem deixado de o perturbar. Quanto a mim, continuava no seu ombro, onde Fiacha não me podia alcançar. Os barcos fundearam, ou foram puxados para terra, os homens espreguiçaram-se, amaldiçoaram os corpos doridos, descarregaram os barcos e montaram o acampamento rápida e silenciosamente no escuro.

 

As nuvens tinham-se juntado durante todo o dia e a chuva começou a cair mal os homens tinham iniciado a sua frugal refeição, cozinhada numa pequena fogueira. Houve uma retirada geral para todos os abrigos que foi possível encontrar. Johnny montara uma guarda bem armada no perímetro do acampamento, mas a chuva transformou-se num dilúvio e eu achei que só as rãs poderiam ficar no exterior naquela noite. Finbar puxou o capuz da sua capa sobre a cabeça e eu aninhei-me junto do seu pescoço, sequinha naquele pequeno abrigo. Fomos para um lugar onde as rochas se abriam para uma espécie de gruta pouco profunda. Ali, um homem podia sentar-se no chão relativamente seco, se bem que os céus se tivessem aberto lá fora.

 

Mas já outros tinham encontrado aquele refúgio antes de nós. Três jovens guerreiros estavam sentados no chão, quase invisíveis na escuridão, envoltos nas capas para se protegerem do frio: Waerfrith, Godric e Darragh. Afastaram-se para dar lugar a Finbar e este, quando se sentou, desceu o capuz e estendeu a mão para me afagar, como para se assegurar que eu estava sã e salva. Se eu estivesse na minha forma, teria usado a arte. Com a arte, teria acendido uma pequena fogueira para nos secar e manter-nos quentes. Estava frio, a Primavera apenas um sonho no coração da terra e a tempestade estava mesmo por cima de nós. A parte de mim que era uma pomba estava com medo; com medo do escuro, sentindo a estranheza de estar acordada tão perto da espécie humana. Esse frio fez-me tremer; fez-me mover os pés de modo irrequieto no ombro de Finbar, desejando ter um lugar seguro para dormir, escondida no meio dos ramos espessos de uma grande árvore ou nas reentrâncias de uma encosta rochosa. De regresso a Kerry e ao sol, sob as pedras erectas, debicando migalhas de pão deixadas por umas crianças que costumavam sentar-se ali partilhando a sua pequena refeição. Era ali que devia estar uma pomba, não naquela gruta gelada.

 

A chuva amainou por um bocado e um fraco raio de luar entrou no nosso estreito abrigo.

 

Pronto disse Finbar num murmúrio. Pronto. Não é preciso teres medo. Estás segura e entre amigos.

 

O animal parece que se ligou a si, meu senhor disse Godric, sorrindo. É engraçado, mas pensei que o animal da sua preferência seria um logo, ou uma águia, um animal forte e impressionante; não uma coisinha trémula como essa.

 

Os druidas não têm animais, estúpido disse Waerfrith, dando-lhe um murro nas costelas. Isso são os feiticeiros. O nosso senhor, aqui, não é nem uma coisa, nem outra.

 

Darragh não falava; olhava com atenção, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas.

 

Eu não sou druida disse Finbar calmamente. O meu irmão acompanha Sean de Sevenwaters nesta campanha; ele é o mais sábio dessa espécie antiga e celebrará os augúrios e os rituais que um empreendimento destes requer. Eu estou aqui... eu estou aqui porque...

 

Porque foi chamado disse Darragh em voz baixa. Ele continuava a olhar para mim e então estendeu o braço, lentamente, para não me assustar, até que os seus longos e morenos dedos chegaram ao meu peito, quase me tocando. Anda, pequenino disse ele. Anda, anda. Eu não te faço mal. Sabes que sou incapaz disso.

 

Havia algo na sua voz que me acalmava e chamava ao mesmo tempo. Talvez fosse a mesma coisa que levara o pónei branco a afastar-se da manada; a mesma coisa que fizera dele o único amigo de uma rapariguita solitária, na enseada. Então, eu receava ser vista; no entanto, morria de desejo de o ver naquele dia mágico do ano, quando os nómadas regressavam a Kerry. Eu era desajeitada e não falava com Dan, Peg, Molly e com os pescadores; mas Darragh partilhara os meus segredos mais profundos. Não gostava que me tocassem. Mas gostava que ele me tocasse.

 

Anda, Caracóis disse ele suavemente. Anda.

 

Dei um pequeno passo com os meus pequenos pés de pássaro, depois outro e empoleirei-me cuidadosamente nos dedos que ele me estendia. Então, senti o calor da sua mão por baixo de mim, segurando-me enquanto me afagava a cabeça com um dedo e eu ouvia a sua voz, apenas um murmúrio.

 

Isso mesmo. Isso mesmo, pequenina.

 

Caracóis? perguntou Waerfrith. Que raio de nome é esse?

 

Fica-lhe bem disse Darragh em voz muito baixa. Vê, ela tem um pequeno tufo de penas na cabeça, todo encaracolado.

 

Ela? Godric ergueu as sobrancelhas.

 

Sem dúvida, ela disse Finbar. E agora é melhor tentarmos dormir, porque segundo me parece, só temos um dia para nos juntarmos e depois vamos estar muito ocupados durante algum tempo. Aqui pode não ser confortável, mas é seco.

 

Eu já dormira nos braços de Darragh e desejara não mais acordar. Agora, enquanto me aninhava, quente, na cova das suas mãos, tão perto do seu rosto que até sentia a sua respiração roçando-me nas penas, desejei algo diferente. Aquela noite estranha estava a ser um presente inesperado, porque pensara que nos despedíramos para sempre quando ele me virou as costas na escuridão de Inis Eala. Um presente, portanto, por poder estar assim tão perto, sentir o seu toque carinhoso e partilhar o seu sono inocente. Mas desejava, oh como desejava ser uma rapariga de novo e não estar ali mais ninguém. Havia um desejo em mim que quase me rasgava o coração, um desejo enorme de o abraçar; um desejo enorme de retribuir a mesma gentileza que ele me concedia com tanta generosidade, sem nunca pensar em si próprio. Desejei ter voz de mulher, não a de uma ave, para lhe poder murmurar coisas ao ouvido. Dir-lhe-ia... Dir-lhe-ia...

 

Dormimos; e então chegou a madrugada. Um pássaro canta à alvorada e lança-se no céu, procurando luz e calor, comida e água. Mas eu não era um pássaro apesar da minha aparência. Quando um feiticeiro se transforma, não se torna no outro; simplesmente, converte-se, assemelhando-se a esse outro para iludir as pessoas. Se a transformação for bem sucedida, a essência da coisa escolhida sentir-se-á mais: os instintos, as mudanças de equilíbrio, a visão, a audição. No entanto, os melhores feiticeiros retém, ao mesmo tempo, a sua consciência. Um equilíbrio precário. Enquanto na forma alterada, o feiticeiro não pode usar a arte. Quando me transformei na mulher do camponês e me confrontei com o trapaceiro na feira de cavalos, usei apenas a forma menor do Encantamento e, mesmo assim, parcamente, de modo a poder lançar encantamentos e feitiços, transformando um pássaro numa serpente, abrindo fechos e quase estrangulando um homem. Mas, agora, era impossível. Tudo o que podia fazer era ver e ouvir. Tudo o que podia fazer era manter-me afastada de Fiacha, observar aqueles homens e preparar-me para o dia seguinte.

 

Abandonei o abrigo das mãos de Darragh e o doce calor do seu corpo. Finbar estava acordado, imóvel, de pé, no exterior do abrigo, olhando para o céu pálido. A tempestade tinha passado; não havia o menor sussurro de brisa vinda de Oeste. A expressão de Finbar era estranha; os olhos imensos e brilhantes. Quando lhe pousei no ombro senti a sua respiração, lenta e deliberada. Assim, pensei, acalmava o coração agitado e a cabeça cheia de visões. Não lhe podia falar, mas, se tivesse voz, ter-lhe-ia oferecido umas palavras de reconhecimento: Sei como te deve ser difícil vir aqui; enfrentar o terror que partilhamos. E saúdo-te pela tua coragem.

 

Bem, Fainne disse Finbar calmamente. Mais uma manhã. A última antes de começar a nossa grande campanha, se o meu irmão ler os sinais e os achar correctos. Hoje é dia de observação, creio; ver e ouvir. Nessa forma és vulnerável aos elementos, aos predadores selvagens e à falta de cuidado do homem. De todos nós, só dois sabem quem tu és. O teu jovem sofre por te ver assim disfarçada, porque sabe que não te pode proteger. Não há lugar para uma criatura tão pequena numa grande batalha, nem numa missão secreta por mar. Quanto a mim, proteger-te-ei o melhor que puder. Partilhamos o mesmo inimigo e o mesmo medo, tu e eu. Mas não sei qual é o teu objectivo. Voarás para Norte, sem dúvida e regressarás quando te apetecer. Quero que saibas que estarei perto e te protegerei o melhor que puder.

 

Eu não podia responder e assim, à medida que o céu clareava e um bando de gaivotas passava por cima de nós, com a plumagem brilhando à luz da madrugada, abri as asas e voei, mal sabendo para onde ia e com que propósito.

 

Apesar de ainda ser cedo, os homens já se mexiam, emergindo dos seus abrigos, juntando-se em pequenos grupos, acendendo uma fogueira, preparando uma refeição qualquer com uma eficiência vinda da prática. Encontrei um poleiro nos ramos nus de uma velha macieira. Não estava bem escondida, talvez, mas sentia-me segura e bem colocada para ver e ouvir. Não sentia necessidade de comida nem de bebida; talvez não fizesse uma coisa nem outra até regressar à minha forma.

 

À nossa frente estava uma baía, não tão grande e aberta como a enseada da minha infância, mas um lugar seguro e secreto, com águas profundas e braços de terra altos e abrigados de ambos os lados. Os barcos maiores estavam fundeados e os mais pequenos estavam em terra, numa praia pedregosa. Além da frota de Johnny havia muitos outros barcos, alguns feitos de peles esticadas sobre uma armação, alguns de madeira, tudo barcos pequenos, rudes e fortes. Entre eles, quais cisnes imponentes no meio de um bando de patos, estavam três barcos muito maiores, vistosos nas suas linhas longas e ágeis, prancha curva contra prancha curva num perfeito equilíbrio, de proas altas e graciosas, cada uma delas com uma sereia, uma princesa e um deus da guerra com cornos esculpidos, parecendo cada um deles uma nave mística de uma história antiga: o barco em que um qualquer grande viajante navegou para encontrar o fim do mundo; o barco em que um guerreiro lendário viajou para conquistar a sua dama e o seu reino. Nunca vira uns barcos assim. Cada um deles era suficientemente grande para, pensei, transportar uma força de combate considerável. Com o complemento dos remadores e um vento favorável, podiam ser utilizados em ataques ligeiros a barcos mais lentos ou a uma linha de costa pouco preparada, velejando rapidamente e desembarcando a sua carga de homens armados enquanto os habitantes indefesos ainda esfregavam os olhos de sono. Não tinha dúvida de que aqueles barcos pertenciam aos Finn-ghaill; eram os barcos dos Homens do Norte, iguais aos que o meu pai tinha devastado anos antes, em Kerry.

 

No entanto, não havia ali pânico. Por baixo da minha árvore, os jovens guerreiros do bando de Johnny comiam o pequeno-almoço e preparavam as suas armas como se fosse um dia como os outros. E lá estavam, também, os mais velhos, Snake, Gull e o próprio Chefe, conversando calmamente sem sequer um olhar para a visão terrível dos barcos fundeados nas águas calmas. Era como se ninguém tivesse visto a ameaça.

 

Tinham chegado outros homens, Johnny cumprimentava-os e eu vi que alguns deles traziam o símbolo dos dois colares interligados: o emblema de Sevenwaters. Outros traziam um símbolo diferente, as túnicas brasonadas com uma imagem a vermelho, uma serpente enrolada, devorando a própria cauda. E havia homens vestidos de verde: homens de Eamonn. A manhã ia ficando cada vez mais clara; após a tempestade, o ar parecia lavado e a terra respirava profundamente, como se a Primavera não estivesse longe. Por baixo do ramo onde eu estava empoleirada, um nómada terminava o seu magro pequeno-almoço, uma refeição comida de modo abstracto enquanto olhava para aqui e para ali como se procurasse alguma coisa perdida. Mudei ligeiramente de posição no meu ramo; ele olhou para cima e franziu o sobrolho. Um instante mais tarde, Finbar juntou-se a ele e falaram em voz baixa.

 

Parece que vai haver um conselho; um encontro entre estes líderes todos, para tomarem uma decisão final. Tens de deixar que Fainne faça o que quer; não podes alterar o curso dos acontecimentos. Não a podes proteger a partir deste ponto. Temos, simplesmente, de confiar na sua força para fazer o que tem de ser feito.

 

Não está certo. A voz de Darragh era tensa. Não gostei nada de o ouvir assim tão perturbado.

 

No entanto disse Finbar gentilmente não podes fazer nada. Tens de a deixar fazer o que ela quer; ela tem de ficar por conta própria.

 

É disso que tenho medo disse Darragh.

 

O conselho teve lugar num sítio secreto e bem guardado. Acabei por pedir a ajuda de Finbar, porque não consegui voar para dentro do longo e baixo edifício onde os homens se iam encontrar e instalar-me, como que por acaso, numa das traves para ouvir as suas conversas secretas. Entrei na sala do conselho no ombro do vidente, meio escondida nas dobras da sua capa, meio oculta pelas tranças de cabelo escuro. E vi, logo, por que razão não ouvira gritos de alarme nem setas disparadas face à vista daqueles elegantes barcos fundeados na baía. À mesa do conselho, juntamente com Sean de Sevenwaters e o seu tio Conor, juntamente com os chefes de guerra dos Uí Néill e do próprio Filho da Profecia, estavam vários homens grandes, com grandes rostos claros e longos cabelos entrançados. Usavam ouro nos pescoços e nas fivelas das suas capas; ouro delicadamente trabalhado sob a forma de machados de guerra, cabeças de cão ou sóis nascentes. Eram os líderes dos Finn-ghaill, os mesmos senhores da guerra viquingues que tinham assaltado e pilhado as costas de Erin e da Bretanha durante anos. Aquela aliança era terrível. Como podia o meu tio Sean juntar-se àqueles selvagens, nem que fosse para assegurar a vitória sobre o seu pior inimigo? Mas, não tinha o meu tio dito algo acerca de uma disputa ter sido sanada por meio do casamento de um senhor de Tirconnell com uma mulher viquingue? Talvez, no fim de contas, não fosse assim tão impossível. Permaneci ali muito quieta, ouvindo, espantada.

 

Aquele conselho era muito selectivo. Do nosso bando apenas Johnny, o seu pai e Snake estavam presentes. Sean e Conor representavam Sevenwaters. O meu tio tinha um ar severo e cheio de intenção; Conor olhou uma vez na direcção de Finbar e acenou em sinal de reconhecimento. Os Uí Néill pareciam cautelosos; os Homens do Norte falavam entre eles e um dos homens de Bran, um tipo grande, de barba escura, chamado Wolf, apareceu para se dirigir a eles na sua própria língua.

 

Wolftraduzirá para nós disse o Chefe calmamente. Podemos começar? A manhã já vai longe; certamente que pouco mais há para ser resolvido nesta fase. Cada um de nós sabe o seu papel.

 

Um dos viquingues fez um comentário ruidoso.

 

Hakon pergunta: e estes lugares vazios na mesa? traduziu Wolf. Não estamos todos reunidos aqui? As decisões tomadas neste conselho devem ser aprovadas por todos, ou podemos contar com uma faca nas costas?

 

Sean franziu o sobrolho.

 

Eamonn já está na ilha, acampado não muito longe. Há-de estar a chegar. Devíamos esperar um pouco mais; Hakon fala sensatamente. Tal como o resto de nós, Eamonn foi trazendo os seus homens aos poucos e por várias rotas, de modo a não chamar a atenção para a magnitude da nossa campanha.

 

Então, um dos chefes de guerra dos noruegueses bateu as palmas e um rapaz trouxe um grande corno com bebida, que foi passado de mão em mão. Ocorreu-me, tardiamente, que aqueles viquingues eram, não só, aliados da campanha, como aquele lugar lhes pertencia, uma colónia, talvez, na orla da ilha de Manannán. Alguém, ali, fizera um grande negócio. Era evidente que ia ter de aprender muito acerca da guerra.

 

Houve alguma agitação na entrada e entraram três homens; homens vestidos de verde. Vi Eamonn atravessar a sala para tomar o seu lugar no conselho. Os seus homens sentaram-se à sua esquerda e à sua direita, como que para o separar dos outros. Olhou ao longo da mesa e depois directamente para os olhos cinzentos de Bran de Harrowfield.

 

Bem, bem, bem disse Eamonn afavelmente, sorrindo. Há quanto tempo. Como está a tua encantadora mulher? Uma rapariga de talentos únicos, sempre disse.

 

O Chefe não respondeu. Em vez disso, o seu olhar passou por Eamonn como se ele não existisse. Virou-se para Sean e Conor.

 

O tempo passa rapidamente disse ele. Tomemos uma decisão e continuemos.

 

Estamos aqui reunidos disse Sean solenemente. Nesta reunião confirmamos o nosso plano de acção e renovamos a nossa promessa de nos apoiarmos mutuamente nesta aliança. O meu tio, o arquidruida, celebrará o augúrio e, se a deusa nos sorrir, amanhã de manhã testemunharemos a promulgação da nossa estratégia. Seguir-se-á, certamente, uma grande vitória. O senhor de Sevenwaters olhou para Johnny. O meu sobrinho lidera esta campanha. Johnny é o herdeiro de Sevenwaters; ao mesmo tempo, nasceu em Harrowfield, a propriedade bretã do meu pai. A profecia que nos guiou até este encontro final menciona-o como o líder destinado a levar-nos à vitória. Johnny é o Filho da Profecia; será ele a testemunhar o cumprimento da antiga verdade. Ele é a luz brilhante que nos guiará no triunfo contra Northwoods. As Ilhas serão nossas mais uma vez; o nosso inimigo será banido para sempre para as suas costas, para longe do nosso solo sagrado.

 

Eu não questiono a capacidade do rapaz para liderar disse um dos homens que usava o símbolo da serpente na túnica. Mas, e o pai dele? Não há aqui lugar para a dúvida, quando um de nós é bretão e vizinho do chefe de guerra a quem nos opomos? Bran de Harrowfield partilha uma fronteira com Edwin de Northwoods. Na verdade, há, até, algum parentesco, tanto quanto sei. Quem nos garante que esta aliança se manterá, quando há Bretões contra Bretões?

 

Não creio que isso seja problema disse Eamonn suavemente, antes de Sean ou o Chefe conseguirem falar. Esse homem nunca teve dificuldade, no passado, em mudar de campo, ou em virar-se contra os da sua própria espécie. O que é preciso é ter bastante prata para o engodar. É a única linguagem que ele compreende.

 

Seguiu-se um pequeno silêncio extremamente difícil. Os olhos de Snake semicerraram-se até ficarem duas perigosas fendas e a sua mão moveu-se na direcção da espada. Ouviu-se o barulho do metal. Wolfnão fez qualquer tentativa para traduzir. Bran, de dentes cerrados, manteve o seu controlo e não falou. Foi Johnny que se levantou.

 

Meus senhores disse ele não há dúvidas nenhumas acerca da força desta aliança, nem da lealdade dos seus aliados. O papel do meu pai não será o de líder. Ele conseguiu para nós o apoio destes grandes chefes de guerra, Hakon e Ulf e o generoso empréstimo dos seus poderosos navios. Mas eu é que sou o líder, não Bran de Harrowfield. Estes homens estão sob o meu comando. Amanhã, o meu pai regressa a Harrowfield; ele não entrará em guerra contra Northwoods, a não ser que as suas fronteiras estejam ameaçadas. Reparei que ele não falou em nadar nem em afundar barcos. Parecia que essa parte era secreta, mesmo para os aliados. E agora continuou Johnny calmamente permiti que vos demonstre como se vai desenrolar este empreendimento; para que cada um saiba qual é o seu papel. Cada um de vós é vital; cada um de vós ficará separado até ao fim e deve desempenhar o seu papel independentemente e com precisão. Cada um de vós é responsável pelas suas próprias forças. Sem confiança, esta campanha está condenada ao fracasso.

 

Ouviram-se murmúrios e sons de concordância em redor da mesa. Eamonn sorriu torcidamente; o Chefe estava impassível.

 

Se a deusa quiser disse Johnny a campanha começa esta noite mesmo. De madrugada teremos de estar em posição de ataque...

 

Observei-o enquanto andava para a frente e para trás, gesticulando e demonstrando, ao mesmo tempo que os seus olhos cinzentos brilhavam de esperança, iluminando a câmara solene com a chama do seu entusiasmo. E observei os homens ali presentes, cada um deles chefes de guerra experimentados, homens muito mais velhos e mais experientes do que aquele que lhes falava, homens habituados a comandarem, acostumados a tomar as suas próprias decisões. Escutavam-no petrificados. Nem um músculo se movia; nem um suspiro se ouvia. Com a sua voz confiante e uma esperança ardente no rosto, Johnny mantinha-os a todos silenciosos enquanto delineava o arrojado plano que os levaria a triunfar sobre o velho inimigo. Na verdade, eu estava tão impressionada com a autoridade do meu primo que perdi o curso do seu discurso durante algum tempo e não apanhei os pormenores todos. Não disse nada acerca da aventura planeada para essa noite. Não lhes falou do pequeno barco que partiria depois de anoitecer, transportando um grupo especial de cinco homens, incluindo ele próprio e Bran de Harrowfield e que seriam arriados do barco para a água gelada. Talvez o seu pai não desembarcasse na ilha, talvez não fosse visto com uma espada na mão enfrentando Edwin de Northwoods, mas, certamente, tencionava ajudar a afundar os cinco navios da frota de Northwoods naquela mesma noite. Eu sabia, mas era evidente que nenhum daqueles homens saberia. Johnny disse, apenas, que um dos barcos partiria primeiro e que, se tudo corresse bem, seria dado um sinal: uma bandeira vermelha para avançar. Antes da madrugada os três grandes navios dos Finn-ghaill estariam em posição, não com tripulações viquingues, mas sim com os nossos próprios homens, os homens de Sevenwaters, de Inis Eala, os guerreiros dos Uí Néill e as forças de Sidhe Dubh e Glencarnagh, os homens de vermelho. Quando o Sol se levantasse, os Bretões levantar-se-iam das suas camas sem suspeitarem de nada. Então, da direcção menos esperada, vindos do perigoso canal entre as rochas afiadas como facas, contornando o grande turbilhão a que chamavam Worm’s Mouth apareceriam os mortíferos navios com a sua carga de guerreiros armados. Hakon e Ulf comandariam os dois navios; Gull comandaria o terceiro. A sua habilidade guiaria aqueles navios através de águas até então julgadas impossíveis. Atacariam rápida e ferozmente os Bretões antes de estes terem tempo de montar a defesa. Eu sabia, se bem que Johnny não o tivesse dito, que não haveria fuga possível para as forças de Northwoods. Os seus navios estariam destruídos; render-se-iam ou seriam aniquilados. Os homens do Uí Néill desembarcariam na Little Island, dissera Johnny, para subjugar as forças mais pequenas. O resto iria para a Greater Island e cercaria o acampamento inimigo. Por ocasião do crepúsculo do dia seguinte estaria tudo terminado.

 

A exposição de Johnny chegou ao fim, todos os homens se levantaram ao mesmo tempo, afastaram-se da mesa e com apertos de mão, palmadas nos ombros, sorrisos ferozes e palavras agressivas, aqueles estranhos aliados, companheiros de aventura, confirmaram uns aos outros o seu empenhamento; viquingues e homens do Ulster, bretões e chefes de guerra de sangue real de Erin. Conor foi o primeiro a sair; havia ainda que interpretar oráculos e solicitar orientação aos deuses antes de ser tomada a decisão final: ou naquela noite, ou esperar. A estação ainda ia no princípio, tão no princípio que os elementos só eram previsíveis na sua imprevisibilidade. Por outro lado, quando mais cedo os aliados dessem o primeiro passo, mais eficaz seria o efeito surpresa.

 

Do meu vantajoso ponto de observação, sobre o ombro de Finbar, vi Eamonn aproximar-se do Chefe de mão estendida, num gesto de aparente amizade.

 

Selemos, então, este acordo disse ele com um estranho sorriso já que parece que te tornaste respeitável e até tens lugar em mesas de conselho, em vez de agires traiçoeiramente, na escuridão.

 

Mas Bran limitou-se a olhar para ele por um momento, os olhos cinzentos frios como o aço e as feições tatuadas desprovidas de expressão, virando-lhe depois as costas, como se o que tivesse visto não tivesse qualquer importância. Olhei para o rosto de Eamonn e o que vi fez-me tremer. Raiva, ofensa, amargura, esperava ver essas emoções. Mas não esperava ver uma expressão de triunfo naqueles olhos sombrios.

 

No exterior daquela casa de conselho havia uma extensão de solo arenoso, bem nivelado. Em redor do seu perímetro estavam reunidos muitos homens, todos eles guerreiros, cada um com as cores do seu líder. Alguns empunhavam bandeiras: a serpente enroscada, que parecia ser o emblema do Uí Néill, os colares de Sevenwaters e a torre escura sobre um prado verde que o era o emblema de Eamonn de Sídh Dubh e Glencarnagh. A casa de Harrowfield não estava representada; o Chefe, era evidente, não era um aliado oficial naquela campanha e desejava limitar a sua participação à missão daquela noite.

 

Conor avançou de bordão de vidoeiro na mão e começou a recitar, lentamente, as palavras solenes de um ritual de augúrio. Uma pequena coluna de fumo acre ergueu-se no ar: estavam a ser queimadas ervas de adivinhação. Abandonei o ombro de Finbar e voei para o telhado de troncos de árvore do edifício, um local de observação melhor. O druida desenhou um círculo; pediu a bênção aos quatro pontos cardeais e expressou o respeito de todos pelo poder dos elementos e pelas divindades a que cada um pertencia. Alguns dos presentes não eram crentes da velha fé; eu já vira cruzes em alguns pescoços e vira um homem que parecia ser um padre tonsurado entre as forças dos Uí Néill. De qualquer modo, todos eles estavam silenciosos; todos olhavam com intensidade para Conor no centro do círculo. Este fez aparecer um pequeno saco de pele de cabrito atado com um cordão dourado. Tirou os coelbrens, os delgados gravetos de vidoeiro com os sinais Ogbam gravados e, invocando a deusa, espalhou-os à sua frente no solo liso. Todos os olhares estavam pousados nele; todos, menos um. Eamonn estava ligeiramente afastado, flanqueado pelos seus guardas vestidos de verde. Nas suas feições continuava um pequeno sorriso estranho; o olhar presunçoso, antecipatório, de um gato que mantém o rato vivo, mas indefeso, nas suas garras. O grupo de homens fitou Conor enquanto o druida se inclinava para estudar a queda dos gravetos do augúrio. Mas Eamonn olhava para mim. Mexi-me no meu poleiro, pouco à-vontade, tentando perceber como seria possível ele saber; como seria possível ele adivinhar. Inclinei a cabeça para debicar as penas nervosamente, abrindo uma pequena asa e dobrando-a de novo como vira aquele mocho esfarrapado fazer. Tentei parecer como um outro pássaro qualquer, tratando dos seus assuntos numa manhã clara. O sorriso de Eamonn abriu-se num divertimento aparente; acenou ligeiramente em sinal de reconhecimento sem afastar os olhos de mim. Lembrei-me dele em Sevenwaters, sempre a olhar, observando silenciosamente, como se estivesse a juntar as peças de um quebra-cabeças, tentando tirar vantagem do que via. Pensei que ele nunca poderia descobrir aquele segredo, mas parecia que, mais uma vez, o subestimara.

 

O silêncio prolongou-se enquanto Conor perscrutava os gravetos, imóvel. O augúrio devia ser simples, só se procurava uma resposta: ir agora, ou esperar. Mas o arquidruida ficara muito pálido, com a fronte sem idade franzida. Os homens começaram a murmurar uns para os outros. Por que não dizia o tipo o que tinha visto? O oráculo mostrara algo assim tão terrível, que ele não pudesse dizer?

 

Conor ergueu a cabeça e olhou para o irmão. O medo de Finbar era quase palpável enquanto caminhava lentamente na direcção do druida, uma figura direita, esbelta, com o seu traje gasto, a capa esfarrapada e a
asa de cisne à vista de todos naquela manhã de Primavera. Ouviram-se algumas exclamações de surpresa rapidamente reprimidas. Vi um homem fazer furtivamente o sinal da cruz. Um cão ladrou, algures e o homem da asa de cisne parou momentaneamente. Senti um terror que ele sentiu como se fosse meu; também eu era meio selvagem. Mas Finbar não podia mudar. Sê forte, pensei. Sê forte como já foste, em tempos. Finbar recomeçou a andar e foi acocorar-se junto do irmão. Os dois homens estudaram os coelbrens de perto. Nenhum deles falava. Talvez não fosse preciso. O silêncio espalhou-se de novo e os guerreiros ali reunidos começaram a sentir-se pouco à-vontade. Diz-nos. Foi Sean de Sevenwaters o primeiro o quebrar o silêncio, falando calmamente do sítio onde estava com os seus homens. Quais são os sinais? A deusa sorri à nossa campanha? Vamos lá, homem, desembucha. O chefe de guerra dos Uí Néill, que devia ser cristão, sabia muito bem que a ocasião dependia daquilo, porque os que lideravam a campanha não iriam em frente se os sinais não fossem favoráveis.

 

Conor levantou-se com as feições solenes e calmas. Parecia-me que a sua máscara de serenidade se mantinha devido a uma grande força de vontade; por trás dela havia um pressentimento qualquer. As pregas do seu traje branco sombrias, mesmo à luz do Sol da manhã.

 

Eu vou dizer a verdade disse ele numa voz que parecia em surdina, mas que, de algum modo foi ouvida por toda a assembleia. Os sinais não são todos bons. Há aqui uma obscuridade, uma escuridão que ensombra a nossa empresa, que condiciona todo o padrão. É como se nem as grandes forças do Outro Mundo tivessem a certeza. No entanto, a mensagem do oráculo é clara num aspecto. Devemos começar já, não devemos protelar. Amanhã de manhã a nossa frota chegará às costas das Ilhas e antes de o Sol se pôr a terra encher-se-á com o sangue daqueles que se atreveram a pôr o pé no nosso solo sagrado. Expulsá-los-emos, ou perecerão sob as nossas espadas; até ao último homem. Isto, juramos que é verdade.

 

Ouviu-se um grande rugido de aprovação vindo da multidão. Achei que as palavras de Conor tinham sido cuidadosamente escolhidas para provocarem aquele efeito. As reservas ao seu augúrio seriam rapidamente esquecidas; os homens pressentiam a vitória e agora puxavam as trelas como cães de caça. Talvez houvesse sangue e morte, mas qual é o guerreiro que acha que é o seu? Havia uma luz nos seus olhos e uma Primavera nos seus passos enquanto regressavam aos seus acampamentos para prepararem as armas, para dar os últimos retoques nos barcos, nas velas e nos apetrechos de guerra. Não viram a palidez nas feições de Conor, nem a sombra nos olhos claros e estranhos do seu irmão Finbar quando ambos falaram com Sean de Sevenwaters, com Johnny e com o Chefe. Não repararam no queixo severo de Sean, nem na determinação feroz do rosto do Filho da Profecia. Mas eu vi; e ouvi a voz da minha avó enquanto estava ali no telhado da casa do conselho. Uma voz há muito silenciosa, acordada agora no meu íntimo enquanto o amuleto aquecia contra o meu peito. Muito bem, Fainne. Muito bem, pequena. Está tudo a caminhar bem. Não me deixes ficar mal agora, tão perto do fim.

 

O meu coração saltou quando a ouvi. Tinha razão; ela vigiava-me, sabia onde eu estava, mesmo na minha forma de pássaro. Conor vira uma sombra; eu sabia o que significava essa sombra e quando viria. A minha avó era a causadora e eu também, quer quisesse, quer não. Fui percorrida por um medo terrível ao recordar-me onde dormira a última noite, aninhada no calor das mãos de Darragh. Não me podia aproximar dele de novo; até que tudo terminasse. Nem a aproximaria de Finbar, já de si tão prejudicado pela sua crueldade. Tinha de passar o dia e a noite seguinte completamente sozinha.

 

Não havia muitas árvores. Alguns arbustos raquíticos e macieiras de ramos nus. Havia casas meio escondidas pela ondulação do terreno ou construídas quase sob o solo, com grandes montes de turfa sobre os telhados para as abrigar do vento e do gelo, que não ofereciam esconderijo a um pequeno pássaro contra uma raposa, ou um gato, ou os olhares indiscretos de um chefe de guerra com um interesse especial em resolver quebra-cabeças. Para não falar de Fiacha. Sabia que ele estava, de certo modo, do meu lado, mas continuava a tremer o seu bico afiado, as suas garras e a sua rapidez. Perto de Fiacha, talvez eu ficasse a salvo de alguns predadores. Mas a minha metade pássaro gelava de terror ao vislumbrar a sua forma negra quando ele seguia Johnny pelo acampamento, umas vezes à frente, outras atrás, acompanhando-o, velando por ele. Não me atrevia a aproximar-me.

 

Descobri um local nos arbustos perto do carreiro que ia dar ao ancoradouro. Não era um esconderijo; fiquei o mais imóvel que pude, tentando passar despercebida. Maldita crista vermelha. O feitiço que usara para me transformar não falava nela; fora feita por um qualquer poder maligno e fazia com que aqueles que sabiam me pudessem identificar. Até Darragh descobrira; Darragh, que não sabia nada de magia.

 

O dia passou; os homens continuaram com os seus assuntos, rostos severos de concentração ou iluminados de esperança. Não tinham o medo da morte nos seus olhos. Passavam no carreiro mas não olhavam para mim. Mas uma vez, quando os guerreiros vestidos de verde desciam na direcção dos barcos que pairavam graciosamente nas águas calmas, o chefe de guerra de Sídh Dubh e Glencarnagh fez uma paragem e fez sinal aos seus homens para continuarem. Ficou ali com a mão em pala sobre os olhos, como que inspeccionando a frota, ou as nuvens ou o mar para lá da baía.

 

Bem, Fainne disse ele em voz baixa. Que estranho encontro. Os meus homens haviam de achar que eu sou maluco, para estar aqui a conversar com uma criatura selvagem. Mas não posso deixar passar a oportunidade. Suponho que também esperaste aqui com esse objectivo. Estou em dívida contigo, minha querida. A informação que me mandaste serviu-me melhor do que podes imaginar. Finalmente, esta noite, o homem é meu; amanhã, depois da sua morte, o mundo será um lugar melhor. Oh, Fainne, o que fizeste por mim não tem preço.

 

As suas estranhas palavras fizeram-me tremer. O olhar no seu rosto encheu-me de medo. Que informação? Eu não lhe mandara nenhuma informação. Que queria ele dizer?

 

A explicação será simples continuou ele. Ninguém me poderá apontar o dedo. O homem, simplesmente, era demasiado velho para uma campanha destas. Será o que as pessoas vão dizer amanhã. Vai estar escuro e frio; a distância é grande e a tarefa é difícil, mesmo para um homem do seu valor. Mais valia ter mandado outro qualquer; mas ele era um homem que gostava de estar na primeira linha. Mas, então, já será tarde de mais. Ele sorriu e eu vi um brilho de maldade nos seus olhos. Pensei ouvir a voz da minha avó. Oh sim, continua.

 

É estranho ver-te com essa forma disse Eamonn, olhando para mim de relance e depois de novo para a água. E daí, talvez não seja tão estranho assim. Creio que a nossa sociedade vai ser muito vantajosa para ambos. Essa forma que tu escolheste é muito vulnerável, minha querida. Tens de ter cautela; não quero que te aconteça mal nenhum. Fico excitado só de pensar na nossa noite de casamento. Descobrirás um mundo completamente novo. Na verdade, temos uma vida nova pela frente, os dois.

 

Mexi-me nervosamente no poleiro, desejando que ele se fosse embora, já que não me sentia pronta para voar por não ter para onde ir. As suas primeiras palavras deixaram-me desorientada; tentei tirar algum sentido delas.

 

Apareceram outros homens no carreiro, por trás de Eamonn. Talvez Finbar, ou Darragh, não se preocupassem em ser vistos a conversar solenemente com um pequeno pássaro cinzento como se ele os compreendesse. Mas Eamonn era demasiado cioso da sua dignidade para ser apanhado numa tal tolice.

 

Adeus murmurou ele. Cuida-te, minha querida. Não quero que te aconteça mal nenhum. Então, continuou pelo carreiro abaixo e os outros atrás dele.

 

Ele sabia, portanto. Sabia da missão especial dessa noite e do terrível risco que seria corrido, naquela noite, por cinco homens, para se assegurarem de que os Bretões ficariam em desvantagem antes mesmo de a frota aliada tocar nas praias das Ilhas. Ele sabia e planeava atacar quando o Chefe estivesse mais vulnerável. Mas, como tivera conhecimento do segredo? Por que me agradecera por essa informação? Eu não lhe dissera nada. Não falara a ninguém do que sabia; a ninguém, excepto... excepto à minha avó. Subitamente, lembrei-me de lhe ter falado naquela missão específica, porque fora necessário convencê-la de que continuava a seguir as suas ordens. E ela conseguira, de algum modo, fazer com que Eamonn soubesse; fizera-o de modo a que ele pensasse que a informação provinha de mim. Devia ser coisa fácil; uma espécie de mensagem disfarçada; um sussurro na noite, quase como num sonho. Uma garantia, dissera ela. Teria de lhe dar uma garantia. E quando eu não lha dei, ela arranjou uma. Não confiava em mim; provavelmente, nunca confiara.

 

O meu coração batia com toda a força e eu sentia o corpo gelado. Tinha de me aquecer. Tinha pouco tempo, o dia passava rapidamente e eu não sabia a que horas sairia o pequeno barco com os nadadores para alcançarem a frota bretã nem a que horas regressaria. Tinha de lhes dizer que havia um traidor entre eles, que punha o seu desejo de vingança à frente da grande campanha. Mas como? Como era possível dizer-lhes? Eu era uma pomba; não podia falar e não me podia, ainda, transformar de novo em rapariga. Seria a batalha do dia seguinte que decidiria o fim das coisas; e para estar presente precisava de manter a minha forma actual, de maneira a poder voar para os seguir, e ser muito forte. Se me transformasse, o tio Sean recambiar-me-ia para Erin, por mais que lhe dissesse a verdade. Se isso acontecesse, não poderia fazer o que tinha de fazer, que era impedir que Lady Oonagh levasse a cabo a sua obra de destruição. Essa era a minha tarefa e só eu a podia levar a cabo. E, a longo prazo, isso era mais importante do que tudo o resto.

 

Como poderia avisá-los? Não sabia quais eram as intenções de Eamonn. Ele não iria com o grupo. Imagino o que o Chefe diria disso. Qual era o plano dele? Talvez o pudesse seguir e conseguisse ouvir algo. No entanto, seria o mesmo que nada, porque não poderia falar nem usar a mente. E só havia dois homens que sabiam da minha identidade, à excepção do próprio Eamonn. Finbar e Darragh. E também não me podia aproximar deles; não atrairia para eles o interesse da minha avó, porque seria colocá-los em grande risco e colocar nas mãos dela uma grande arma contra mim.

 

Voei de volta ao grande acampamento, frustrada por não poder regressar à minha forma natural. Empoleirei-me numa árvore; num cabo de tenda; num poste. Os homens trabalhavam em silêncio ou descansavam, preparando-se para um longo esforço sem dormir. Ouviam-se orações, de uma fé ou de outra. Sean conversava com Eamonn e com os chefes
de guerra dos Uí Néill e olhava para os mapas. As feições pálidas de Eamonn estavam calmas e sérias; os seus olhos não revelavam qualquer sinal de loucura. Era como outro chefe de guerra qualquer, que planeia um saque com os seus aliados de sempre: parecia, numa palavra, digno de confiança.

 

Johnny dedicava-se a outras ocupações. Vi-o deixar a área das tendas com mais três homens, os que o seguiriam nessa noite; Sigurd, Gareth e Darragh. Afastaram-se em silêncio, talvez para um ensaio final para a arriscada manobra nocturna. Algum tempo depois, descobri o Chefe na enseada com Snake e Gull a seu lado, examinando o pequeno barco de velas escuras; eles tinham velejado de um ilhéu para outro, em Inis Eala, manobrando como se aquela pequena embarcação fosse uma ave marinha. Voei sobre a espuma das pequenas ondas para aterrar, o melhor que pude, na proa do barco; mas, uma vez lá, não consegui pensar numa maneira de lhes fazer passar qualquer mensagem. Uma pomba não podia desenhar na areia, ou lançar os coelbrens, pressagiando um desastre. Uma pomba só podia abrir as asas ansiosamente e emitir pequenos e preocupados pios.

 

O pássaro parece perturbado observou Snake com um meio sorriso enquanto ajustava um cabo. Anda para aqui como uma galinha que sabe que vai para a panela.

 

Veio desde o Ulster num dos barcos, segundo ouvi disse Gull. Talvez seja um presságio.

 

Um bom presságio, espero disse Snake. A criatura está bastante agitada; até parece que nos quer dizer qualquer coisa. Estes pássaros não são bastante tímidos?

 

Nós não precisamos de boa sorte, nem de presságios. As feições tatuadas do Chefe estavam solenes e os seus olhos cinzentos, iguais aos do filho, estavam límpidos e cheios de intenção. A luz do Sol brilhava-lhe na face não tatuada e, por um momento, até podia ser Johnny, ali, de pé. Capacidade, planeamento e uma boa preparação são garantias de sucesso, como sempre foram em missões anteriores. Deixai o pássaro; talvez esteja perdido, talvez tenha sido afastado da rota pelo vento. Nós só precisamos da nossa força, não precisamos de bons ou maus presságios.

 

Mas disse ele, olhando de novo para mim. Mas não continuou e eu percebi que não tinha maneira de lhes dizer o que sabia. Então, subitamente, Gareth apareceu, descendo pelo carreiro, com uma expressão tensa nas feições amáveis e pálidas. O Chefe, que ajustava os cabos, endireitou-se lentamente.

 

Então? perguntou ele. O que é que se passa?

 

Sigurd adoeceu. Disenteria; apareceu de repente. Não vai ser capaz de nadar.

 

A boca dura do Chefe cerrou-se ainda mais.

 

Gull?Não lhe podes dar nada? Tens alguma poção para isto?

 

É muito grave? Gull já parara de fazer o que estava a fazer, pronto para correr para o acampamento, as suas escuras feições franzidas de preocupação.

 

Muito. Vomita como se tivesse ingerido um veneno qualquer. Terias de fazer um milagre para conseguires pô-lo bom a tempo.

 

Senti um nó no estômago. Veneno. Só havia cinco nadadores e um deles era Darragh.

 

E o substituto? perguntou o Chefe calmamente. Como veterano que era, não entrou em pânico, limitando-se a avaliar a situação rápida e calmamente.

 

Mikka? Não está à altura, Chefe. Magoou-se numa mão esta manhã, no treino; não vai poder usá-la hoje. Amanhã, na batalha, já deve estar bem, mas hoje não. Johnny diz que não arrisca.

 

Snake murmurou uma praga em voz baixa.

 

Só temos inválidos, afinal de contas? perguntou o Chefe suavemente. Ficamos descalços logo à primeira? Não acredito.

 

Cormack diz que está pronto se lhe derem uma oportunidade disse Gareth com alguma hesitação. Ele nunca nadou uma distância tão grande, mas ele diz que consegue.

 

Não me parece. Havia um tom na voz do Chefe que não admitia réplica. Posso arriscar a vida de um filho nesta missão, mas não a de dois. Cormack ainda é muito novo e não tem qualquer treino. Amanhã, ocupará o seu lugar entre os homens com orgulho; mas hoje, não. Temos de encontrar outro, porque temos de ser cinco, um por cada barco. Assim, só com quatro, é muito arriscado; com quatro, é uma loucura. Ninguém gosta de ser apanhado perto dos navios dos Bretões com uma máscara a tapar o rosto e um espigão na mão. Com cinco, atacamos juntos e retiramos juntos.

 

Gareth acenou com a cabeça, as feições rudes muito sérias.

 

Johnny está a perguntar aos homens, discretamente disse ele. Pode ser que haja um entre os Uí Néill, ou entre os homens de Lorde Eamonn.

 

Bran cuspiu com eficiência para o chão.

 

Um dos Uí Néill, talvez; ou um dos noruegueses disse ele. Mas não confio em nenhum dos vestidos de verde.

 

Foi assim que partiram cinco homens para Sul, na escuridão, para a missão secreta, com um assassino a bordo. Foi assim que os vi partir sem poder fazer nada para os impedir. Na verdade, havia um dos homens dos Uí Néill que era um excelente nadador; os seus companheiros apoiaram-no e disseram muito bem da sua força e resistência. Tinha uns cabelos louros que lhe caíam pelas costas e um defeito físico qualquer, que fazia com que um ombro estivesse mais descaído do que o outro. Coisa que não o impedia de nadar, disseram. Johnny testou-o naquele mar gelado, para lá da baía e declarou-se satisfeito. Mas o Chefe não estava nada satisfeito; mas não tinha outra hipótese se não aceitar o tipo. Não podiam esperar pela recuperação de Sigurd. Este estava reduzido a um destroço trémulo e suado, incapaz de guardar uma gota de água no estômago. Não estaria pronto no dia seguinte, nem no seguinte, nem no outro. E o druida dissera que tinha de ser agora.

 

Quanto a mim, vira aquele nadador antes. Talvez fosse um dos homens do Uí Néill. Pelo menos, usava o símbolo da serpente enroscada. Mas eu vira-o em Glencarnagh, através da greta de uma porta, num conselho secreto. Sabia que era um homem de Eamonn, um espião e um assassino.

 

Assim, quando partiram, não tive outra hipótese senão segui-los. Estava escuro; estava frio. O instinto de um pombo das rochas era voar em busca de abrigo e esconder-se dos predadores nocturnos. Mas eu voei para a escuridão cada vez maior com o coração a bater de terror; com medo das ondas, do escuro, do frio; dos mochos e dos outros predadores; de me perder, de voar por cima do mar até cair de exaustão. Mas tinha de ir, se bem que não pudesse fazer nada por eles. Se corresse mal, seria minha a culpa. Porque, quem mais sabia daquela missão secreta, senão eu?

 

Os cinco não iam sós. O ataque dependia do apoio; o pequeno barco tinha seis remadores e os nadadores iam silenciosos, sentados nos seus bancos, todos vestidos de negro e as cabeças tapadas por capuzes. Por baixo dos fatos de lã, os seus corpos tinham sido untados com gordura de ganso, de modo a protegê-los do frio. À luz do luar não se conseguia distinguir uns de outros. Cada um deles levava às costas um instrumento constituído por um longo cabo de madeira e um espigão de ferro na ponta com um gancho um palmo atrás. Cada um deles levava à cintura uma faca afiada; para um guerreiro, um ataque inesperado é sempre uma possibilidade, mesmo na missão mais meticulosamente planeada. Além disso, havia monstros marinhos.

 

A brisa era moderada; ergueram a pequena vela e o barco deslizou sobre a água com tanta rapidez e segredo como um habitante das profundezas. E eu segui-o, amaldiçoando a forma de ave que pertencia a uma criatura diurna; o instinto animal fazia vibrar cada poro do meu pequeno corpo por estar ali sozinha, de noite e incapaz de ver dois metros à minha frente. A Lua brilhava; segui a esteira de espuma deixada pela proa do barco, bem visível e os rostos pálidos dos remadores, que se inclinavam sobre os remos como um único homem. Apenas os nadadores usavam capuzes; a sua missão ia levá-los ao coração do território dos Bretões. Se fossem vistos seriam capturados, porque, tão perto da costa, estariam em inferioridade numérica. Não era precisa muita imaginação para adivinhar o que se seguiria, se Northwoods descobrisse as suas intenções. Maldito Darragh. Por que aparecera ele em Inis Eala? O rapaz era tão estúpido que não percebia que não se podia comparar com aqueles guerreiros temíveis, já que não passava de um nómada? Não percebia que podia estar morto na manhã seguinte?

 

Sentia-me cada vez mais cansada. A noite estava muito fria: o abraço gelado do oceano parecia cada vez mais perto à medida que eu continuava, persistentemente, a voar. Não podia aterrar no barco. Darragh ver-me-ia. E ele já tinha bastante com que se preocupar. E poderia a minha avó estar a ver-me, mesmo naquela ocasião? O corpo doía-me; mal conseguia mover as asas para cima e para baixo. Se caísse estaria perdida para sempre. Tinha de continuar. Eu não era uma pomba, no fim de contas, era a filha de um feiticeiro. Tinha de ser forte, como o meu pai me ensinara.

 

A uma ordem em voz baixa de Johnny, os homens começaram a arriar a vela. O movimento dos remos mudou. À proa do barco começou a ouvir-se um rugido, como se fosse a voz de um desafio vinda do próprio oceano, uma ameaça profunda. Quem vem lá? Aproxima-te se te atreves.

 

Não muito longe à nossa frente, à luz do luar, pude, for fim, ver terra, uma ilha rochosa tão pequena e alta que o seu cume parecia perfurar o céu escuro. A água espumava na sua base, branca e traiçoeira. E havia rochas perto, as suas formas pontiagudas quase invisíveis, com excepção dos sítios onde as suas superfícies escorregadias brilhavam sob a luz fria, ou onde o mar se atirava contra elas numa cortina de espuma. Os remadores mantiveram o barco mais ou menos imóvel. Aquela manobra era como que uma segunda natureza para eles; tantas vezes treinada que quase a podiam realizar sem pensar.

 

Prontos? Chegou a hora. A voz de Johnny era calma. Remai com força para a Needle; lembrai-vos do que vos disseram acerca da corrente. Não deixeis que os recifes vos puxem. Isto não é um treino, rapazes; só temos uma hipótese. A Worm’s Mouth não perdoa. Usai a sua força para passar. Havemos de passar. Força e vontade. E que a deusa nos ajude.

 

Ninguém respondeu, mas os remadores agarraram-se aos remos com mais força, pareceram abraçar-se uns aos outros e então, com uma rapidez que me fez sobressaltar o coração, mergulharam as pás na água, remaram na direcção das rochas afiadas como facas que rodeavam a ilha alta e escarpada e o barco deslizou, mais rápido do que o esforço humano julgaria possível. Uma tremenda corrente agarrara-o e a embarcação desapareceu num vazio de trevas onde o único ponto de referência era a superfície líquida e espumante da água. Certamente, o mar engolira-os e cuspi-los-ia de novo num jacto de madeira despedaçada e ossos partidos. Nenhum homem podia sobreviver a um caldeirão fervente daqueles. Tinham desaparecido. Eu ficara sozinha na escuridão da noite. Em tempos, tivera medo de tomar banho nas águas calmas de um pequeno lago, com medo de me afogar. Abaixo de mim, o mar fervia e rugia, Abaixo de mim, a longa extensão estendia-se até ao acampamento; sem nada para seguir, como poderia eu encontrar o rumo? Diante de mim estava aquele canal impossível; a entrada secreta para o ancoradouro dos Bretões. Não admirava que ninguém tivesse pensado antes em o utilizar. Era intransponível; a tentativa era um acto totalmente estúpido. Mas Johnny não era estúpido. O Chefe não era louco. E algures, com os dois, estava Darragh, que não estaria metido naquilo se não fosse eu. E algures, naquelas trevas, estava um homem com uma faca no cinto e a morte na mente. Com uma oração silenciosa a Manannan, reuni as minhas forças e voei atrás deles, através do turbilhão furioso, na direcção das águas abertas.

 

O barco estava lá, depois do estreito canal e já os homens de capuzes negros deslizavam pela amurada para o abraço gelado do mar. Havia outras ilhas maiores não muito longe, brilhando como criaturas marinhas monstruosas. Algures, numa baía abrigada, estava fundeada a frota dos Bretões. Algures, naquelas encostas cobertas de erva, o acampamento fortificado de Northwoods abrigava um forte contingente de guerreiros habituados à guerra. Haveria archeiros nas torres; guardas nos perímetros. Aqueles nadadores iam, agora, aventurar-se no coração do território proibido. Eu não podia segui-los; só serviria para chamar a atenção para eles. Além disso, estava cansada, não conseguiria ir mais longe. Relutantemente, flutuei e aterrei na ré do barco.

 

Os remadores estavam sentados, quietos. Continuavam a manter o barco mais ou menos imóvel na água.

 

Tu outra vez? murmurou Waerfrith, que era o remador mais próximo de mim.

 

O que é? murmurou Godric.

 

O amigo do druida disse Waerfrith. O amigo do latoeiro. Continua connosco. É um bom presságio. É bom.

 

Eles vão precisar de todos os presságios que conseguirem observou mais alguém. Está a chegar a hora. Ir lá, fazer o trabalho, sair, fazer o sinal de madrugada, trazer a frota. Não há grande margem para erro.

 

Johnny não comete erros. O tom de Godric era de confiança, se bem que ele mantivesse o tom de voz num sussurro. Eles regressam a horas. Vai ser um golpe triplo em Northwoods; primeiro a frota, segundo o ataque deste lado contra todas as expectativas. Terceiro, o ataque dos noruegueses. Não vão estar à espera.

 

Só o Chefe para conseguir o apoio de Hakon disse Waerfrith. Só demonstra que os favores dão jeito, por vezes.

 

Ehhh disse alguém, e eles calaram-se.

 

O tempo passou. A noite de Primavera estava muito fria; ericei as penas, mas o vento continuava forte. Os jovens guerreiros esperavam sem se queixar. Aquelas privações faziam parte do seu longo treino, da disciplina integral do seu modo de vida. Eu sabia bem o que era aquilo, ao recordar o Inverno em Favo de Mel. O frio aumentou. Pensei naqueles homens, dentro de água. Entre as garras geladas do oceano, a guarda vigilante de Northwoods e o traidor. As suas hipóteses pareciam ser bem pequenas. Se o traidor atacasse o Chefe morreria e a minha tia Liadan perderia o homem a quem chamava amante, marido e alma gémea. Seria ela a suportar o fardo da terrível vingança de Eamonn. Talvez fosse essa a sua verdadeira intenção, no fim de contas; puni-la por tê-lo preterido. E eu ajudara-o.

 

Esperei, a tremer, enquanto a noite ia passando. Não haveria descanso para aqueles homens. Quando chegasse a madrugada a frota dos Irlandeses chegaria e invadiriam as Ilhas com os outros com arcos e flechas, clavas, machados e espadas, até que os Bretões lhes caíssem aos joelhos, rendidos, ou passados a fio de espada. Ia ser uma longa noite, mas o dia seria ainda mas longo.

 

Por fim, o luar desvaneceu-se e o céu começou a clarear, passando ao cinzento que anunciava a madrugada. Aqueles homens não tinham qualquer dúvida. Johnny era o seu líder e o Filho da Profecia. E todos estavam a par da reputação do Chefe. Ele nunca falhara uma missão, por mais difícil que fosse. Regressariam. Tinham de regressar. Por isso, ninguém disse: Onde estão eles, ou, Está afazer-se tarde. Na verdade, ninguém disse uma palavra, mas à medida que a superfície do mar mudava, passando de uma cor escura como a tinta para um verde-profundo e as gaivotas começavam a andar em círculos em redor do barco, eu via as expressões severas dos homens e os seus maxilares cerrados, e fiquei alarmada. Quem melhor do que eu sabia o que teria atrasado os nadadores? Sempre empoleirada na popa do barco, tremendo de medo e de frio, vi as silhuetas das ilhas maiores tornarem-se lentamente mais claras à medida que o céu ia ficando cada vez mais vivo e duvidei se teria forças para voar até onde devia.

 

Talvez a minha visão de pássaro fosse realmente apurada, mas fui a primeira a vê-los, não mais do que alguns pontos na água, dirigindo-se para nós na crista e na vau das grandes vagas. Abri as minhas pequenas asas, desloquei-me ao longo da amurada do barco e tentei chamar a atenção dos homens, mas a voz de um pombo não foi feita para grandes alarmes, para chamamentos à acção. Mas os homens depressa avistaram os nadadores e meteram os remos na água para aproximar o barco, porque o regresso já era tardio; tinham de regressar ao ponto onde estariam visíveis para a frota que esperava, erguendo o sinal para o avanço; a bandeira vermelha. Se se demorassem, e Northwoods se apercebesse do que estava a acontecer, dar-lhe-iam a oportunidade de montar uma sólida defesa, com navios ou sem navios. E isso não fazia parte do plano.

 

Só vêm três murmurou Godric quando a embarcação se aproximou. Três... não, quatro... mas...

 

Falta qualquer coisa disse Waerfrith e fez sinal para que imobilizassem o barco. Os nadadores já estavam perto; eu conseguia ouvir as suas respirações apressadas e ver os seus olhos sombrios através dos buracos dos capuzes. E podia ver, também, que dos quatro homens, um deles vinha a boiar, seguro apenas pelo abraço de outro em redor do peito; e podia ver a ligadura vermelha de sangue, brilhante como uma papoila na superfície escura da água.

 

Rápido disse uma voz. Ele está ferido. Puxai-o para bordo.

 

Era Gareth, que nadava ao lado do homem e que tentava erguê-lo para que Godric e Waerfrith o puxassem para bordo. A silhueta vestida de negro ficou estatelada entre os bancos dos remadores; Waerfrith puxou a máscara com dedos cuidadosos para revelar as feições brancas como a cal e o cabelo louro do homem de Eamonn. A luz da madrugada brincava nos seus olhos esbugalhados, nos lábios sem sangue e no metal do punhal que estava profundamente enterrado no seu peito.

 

Este homem não está ferido, está morto disse Godric, rolando o cadáver e colocando-o no fundo do barco, fora do caminho. Puxai os restantes, depressa; já é quase dia.

 

Primeiro entrou Gareth, sinistramente silencioso. Em seguida um homem alto e magro. Murmurei uma oração de graças à deusa, se bem que tivesse algumas dúvidas de que ela tivesse preservado a vida de Darragh. Finalmente, o último homem, mais pequeno, bem constituído. Todos eles tiraram os capuzes. Godric passou-lhes um frasco de metal e todos eles beberam, tossiram e estremeceram. O silêncio era palpável.

 

Onde está Johnny? disse-alguém finalmente, fazendo a pergunta que ninguém se atrevia a fazer.

 

Perdemo-lo disse Gareth pesadamente, levando novamente o frasco à boca e limpando os lábios com as costas da mão.

 

Perdeste-lo? Que queres dizer com isso, perdeste-lo? Não pode ser.

 

O tom de Godric era de incredulidade.

 

Gareth olhou de relance para o Chefe que estava sentado a seu lado, silencioso.

 

Afogado disse ele. Não sabemos o que aconteceu. A missão foi cumprida: cada um de nós fez um rombo num navio, como planeado. Mas quando nos juntamos para voltarmos para trás só éramos três. Procuramos, se bem que não tivéssemos tempo e nos arriscássemos a ser descobertos. Encontrámos Felim a flutuar com uma faca no peito; mas nem sinal de Johnny.

 

O meu coração gelou; a luta terminara. Ela ganhara. A minha avó ganhara quase por acidente, antes, sequer, de eu me poder erguer contra ela. Não conseguira a vitória por meio de inteligência, ou sub-repticiamente, ou do uso da magia. Triunfara porque o assassino de Eamonn cometera um erro; confundira os homens na escuridão. Durante quanto tempo os dois homens teriam lutado na água antes de um vencer o outro, espetando-lhe o punhal no peito, fazendo-o esvair-se em sangue, e o primeiro ficar à deriva, talvez estrangulado, talvez afogado, talvez ele próprio vítima, também, de uma facada?

 

Temos de ir. O Chefe falou de novo de voz constrangida, como se estivesse a fazer um grande esforço para falar. Os navios estão à espera. Não podemos protelar o ataque, ou o elemento de surpresa desaparecerá.

 

Mas, Chefe! O tom de Godric era de completo ultraje. Não podemos deixá-lo ali!

 

Bran olhou para ele friamente.

 

Está morto disse ele e, apesar dos seus esforços, a sua voz tremeu. Acredita, nós procurámos; procurámos até ao último momento possível. Afogou-se e foi levado pela maré. Houve aqui uma traição qualquer: mas parece que a única testemunha foi silenciada. Ele olhou para o homem morto estendido a seus pés.

 

Como é que podemos ir sem Johnny? perguntou um dos homens incrédulo. Como é que podemos vencer a batalha sem o Filho da Profecia?

 

Houve um silêncio.

 

Esta é a faca de Johnny disse Waerfrith, olhando para o morto. Era capaz de a reconhecer fosse onde fosse. Aposto que sei o que aconteceu. Estão a ver? A bainha da faca dele está vazia.

 

A verdade descobrir-se-á; o culpado será punido. O tom de voz do Chefe estava, de novo, sob controlo; era, de novo, o tom de voz de um veterano de guerra. Por agora, temos de tomar uma decisão rápida. Içai a vela; seja qual for a escolha, temos de nos afastar rapidamente. Não podemos ficar aqui à espera de um milagre.

 

Por um momento pensei que os homens não lhe iam obedecer. Olharam para as águas vazias os rostos pálidos do choque. Não era apenas a perda do líder, era também a perda das suas vidas. No entanto, continuavam a ser profissionais. A vela foi erguida, os remos entraram na água e o barco começou, rapidamente, a afastar-se de terra.

 

Nunca teria trazido este tipo para bordo se não fosse Darragh disse Gareth. Foi ele que o rebocou. Pensou que talvez ainda tivesse uma hipótese.

 

Mais valia não se ter dado ao trabalho resmungou Waerfrith. O homem está morto e bem morto. Os Uí Néill vão ter de responder a uma pergunta ou duas antes de o dia acabar.

 

Darragh, por seu lado, estava silencioso. Talvez estivesse exausto, ou talvez estivesse chocado por aquela primeira visão de traição e morte. Permaneci por trás dele, fora do seu campo de visão. O nosso pequeno barco deslizou através das vagas, rápido como uma gaivota e em breve surgiu a ordem para acenar e esperar.

 

É este o ponto disse Waerfrith. Daqui podemos ser vistos pelo navio da frente; temos de dar o sinal. Vermelho para avançar; branco para adiar para outro dia.

 

Seguiu-se um silêncio.

 

A frota foi afundada. A missão foi cumprida. Temos de erguer a bandeira vermelha disse Gareth. Pensei ver lágrimas nas suas faces rudes.

 

Como é possível fazermos isso? cortou-lhe Godric a fala com a voz a tremer de raiva. O nosso líder está morto. O Filho da Profecia morreu. Não admira que o druida não quisesse dizer-nos o resultado da adivinhação. Não podemos ganhar esta batalha sem Johnny.

 

- Ele tem razão disse Waerfrith pesadamente. A profecia é clara. Ide sem ele e sereis todos chacinados. Tudo depende de Johnny. Sem a sua liderança não pode haver vitória.

 

- A mim, parece-me todos se viraram para Darragh quando ele falou calmamente que podemos muito bem continuar. Temos navios óptimos, óptimos homens e aliados fortes a apoiar-nos. E afundámos a frota dos Bretões, o que faz com que partam para a batalha em desvantagem. E há algo ainda mais importante. Que quereria Johnny que fizéssemos? Quereria que os seus homens retirassem com medo de falharem, ou que mostrassem a sua coragem e lutassem pelo que ele ansiava? O nómada fez uma pausa. Eu sei que não sou nenhum guerreiro, mas parece-me que é uma questão de bom senso.

 

Oh, não, pensei. Não é bom senso, é coragem louca. Vais morrer; vão morrer todos. Para casa. Salvai-vos, ao menos, já que parece que não se pode salvar mais nada.

 

Mas Gareth olhou para Darragh surpreendido e acenou com a cabeça; Waerfrith coçou o queixo. Godric continuava hostil; era a dor, talvez, que lhe alimentava a ira.

 

Não temos líder disse ele sinistramente. Como podemos erguer a bandeira para mandar avançar as forças dos aliados quando eles perderam a razão para continuar? A campanha seria uma mentira.

 

Eu comando. O Chefe falou muito calmamente, mas a sua voz era metálica.

 

Tu, meu senhor? Godric ergueu as sobrancelhas. Podes ser um grande campeão, mas continuas a ser um bretão. Não juraste que te manterias à parte desta confrontação em nome das tuas tréguas com Nortwoods? Como podes comandar-nos?

 

Bran virou os seus frios olhos cinzentos para o jovem guerreiro.

 

O meu filho morreu disse ele. Passo eu a comandar. Godric caiu em silêncio. Gareth respirou fundo e encolheu os ombros.

 

Muito bem, homens disse ele firmemente com as marcas das lágrimas ainda frescas nas suas feições amáveis. Vamos fazer isto por Johnny. Se ele não pode pegar hoje na espada, usaremos as nossas para o honrar. Se ele não pode cumprir a profecia, nós podemos, pelo menos, assegurar que os homens de Erin não morrem sem uma boa luta. Mas pode ser que triunfemos. Ele olhou de relance para o Chefe.

 

Bem falado, rapaz. Bran olhou em frente na direcção da terceira ilha, para aquele alto e hirto pináculo de rocha, cuja base traiçoeira escondia o canal secreto, a Worm’s Mouth.

 

Iça a bandeira vermelha ordenou ele. Esta é a madrugada na nossa grande aventura. Dormiremos, esta noite, o sono da vitória; ou o longo e sombrio sono da morte.

 

 

                                       CAPíTULO QUINZE

 

Foi uma visão de gelar o sangue; uma visão das velhas histórias. Os guerreiros içaram o pano vermelho no mastro e ao mesmo tempo que os primeiros raios de Sol se espalhavam pela água, iluminando a alta torre rochosa da Needle, a frota de Sevenwaters emergia do canal impossível; três grandes navios navegando com grande maestria contra o terrível turbilhão, as proas altas e orgulhosas na madrugada; e depois deles os barcos mais pequenos, os curraghs, de armação de vime e alcatroados, pequenos e simples barcos de pesca, cada um com o seu contingente de guerreiros. Assim que se viram livres das perigosas correntes provocadas pelo turbilhão, os barcos separaram-se. Um dos navios viquingues rumou à ilha mais pequena com dois barcos mais pequenos na sua esteira, enquanto a maior parte da frota rumava à maior massa de terra, onde os navios dos Bretões estavam, agora, afundados; onde jazia o corpo do meu primo, algures, nos braços de Manannan mac Lir. O nosso curragh virou e seguiu-os. De um local escondido à proa Godric e Waerfrith tiraram as nossas armas, espadas e punhais, machados, facas e elmos; todos os homens tinham de estar preparados para desempenhar o seu papel, mesmo aqueles que tinham passado a noite na água. Não havia roupas secas para eles; um homem não podia combater se estivesse enregelado: Olhei para Darragh enquanto ele colocava por cima dos cabelos escuros um elmo e afivelava um cinto com uma espada, em seguida abri as asas e voei, porque uma batalha não é lugar para uma mulher, nem sequer para um pássaro mais pequeno do que o punho fechado de um homem.

 

Reuni todas as minhas forças e voei para a Greater Island sem querer saber de águias, açores ou predadores humanos, porque me parecia que aquela batalha estava para além do medo, para além da dor e que o corajoso estandarte de Sevenwaters devia ser içado, apesar de a aventura estar perdida antes mesmo de começar. Se o Filho da Profecia morrera, o grande objectivo dos Fair Folk não poderia ser conseguido. As Ilhas estariam perdidas; os velhos costumes seriam esquecidos. Uma profecia era uma profecia. Os homens morreriam e enquanto isso Lady Oonagh rir-se-ia, rir-se-ia, ao mesmo tempo que o sangue daqueles jovens guerreiros se derramaria em vão. Mas eu não acreditava que ela vencesse com essa facilidade. No entanto, devia acreditar. Devido à minha imprudência, fizera com que ela vencesse. Mas não podia ser. Não podia ser. Certamente não fora tudo em vão?

 

As velhas histórias falam de grandes batalhas: dos feitos de heróis como Cu Chulainn; dos actos heróicos de Fionn mac Cumhaill e do seu bando de foras-da-lei. Todas elas falam de força e coragem, de triunfo e recompensa. Falam de inimigos desbaratados. Mas não falam do que eu vi naquele dia enquanto voava através das colinas cobertas de erva da Greater Island. Vi a luz do empenhamento nos olhos de um jovem guerreiro transformar-se em terror um instante antes de o machado do adversário lhe arrancar a cabeça dos ombros. Vi Snake, um guerreiro experimentado sem igual, chorar sobre o corpo do jovem Mikka estendido no chão num mar de sangue, com o sangue a sair em golfadas do seu próprio braço ferido; ouvi o jovem chamar pela mãe com a voz de uma criança subitamente acordada por um pesadelo. O rosto de Snake estava atormentado e velho enquanto murmurava:

 

Descansa, filho; lutaste com grande coragem e usou a sua faca para garantir a Mikka a dádiva de um sono sem sonhos. A rapidez daquilo fez-me parar o coração. Nenhuma história pode descrever o olhar de um homem, quando ele se ergue depois de um acto daqueles e regressa à peleja com a lâmina ensanguentada na mão. Quanto aos homens de Johnny, brandiam as armas como Bran de Harrowfield; como se não se importassem de morrer. Uma tal força é terrível e os Bretões recuaram perante a luz sobrenatural dos olhos daqueles guerreiros.

 

Perdi Darragh de vista. Ele estava algures, no meio de tudo, mas as túnicas dos exércitos oponentes estavam cheias de lama e de sangue, e a confusão era geral. As forças de Sevenwaters tinham conquistado o ancoradouro e a enseada ocidental; ali, era possível ver Gulla dar ordens rápidas; ali, as silhuetas dos mortos e dos estropiados eram estendidas nos abrigos que era possível arranjar. Nem todos puderam ser evacuados para ali. Havia muitos chacinados; de tarde, parecia que cada ondulação de terreno estava juncada de corpos de bretões e irlandeses e a água em redor da ilha estava vermelha do sangue dos dois velhos inimigos. Por entre os feridos andavam o arquidruida e o seu irmão, o homem com a asa de cisne. Talvez só pudessem murmurar uma palavra ou duas de conforto; talvez só pudessem pegar na mão de um homem enquanto ele gritava e se contorcia no chão, já para além de qualquer ajuda cirúrgica ou curandeira, aguardando que a deusa tivesse misericórdia e lhe concedesse o descanso final. Eu ficara chocada com o que Snake fizera, mas agora compreendia que fora um acto de misericórdia.

 

O dia passou e o crepúsculo estava a chegar. Falara-se de vitória antes de a noite cair. Mas era claro que não havia vitória alguma, pelo menos por enquanto. Os Bretões estavam bem armados e apesar do elemento surpresa, tinham-se reunido e formado uma defesa ordeira e disciplinada. No ponto mais alto da Greater Island havia um forte e foi para lá que retiraram quando o dia chegou ao fim. Por trás, tinha íngremes falésias que davam directamente para o mar; o lado de terra estava protegido por um grande fosso, ao longo do qual corria um alto talude de terra, que protegia as casas, o depósito de armas e os armazéns de provisões. No centro estava uma poderosa torre de pedra, redonda e alta. Naquele lugar era possível resistir durante muito tempo. Mas não eternamente. Os Uí Néill já deviam ter conquistado os aquartelamentos da Little Island, porque eram superiores às forças bretãs ali instaladas. Talvez Sean de Sevenwaters só precisasse de esperar.

 

Quando a noite caiu o exército retirou para o seu ponto de encontro. Uma estranha calma espalhou-se à medida que a luz ia desaparecendo; uma espécie de compreensão, como se cada lado reconhecesse as perdas do outro. Na verdade, em algumas bolsas de terreno, onde os mortos jaziam como brinquedos abandonados, podiam ser vistos pequenos grupos de homens com lanternas, inclinando-se para reunir os seus, e se um guerreiro grisalho de Northwoods olhava e via um cara pálida do Ulster não muito longe fazendo a mesma coisa, desviava o olhar e continuava com o que estava a fazer. Apesar daquela paz enganadora, era sabido que na madrugada seguinte ambos os lados voltariam a pegar nas armas, avançando de novo e recomeçando a matança.

 

Nessa noite voei por cima dos dois campos e aprendi que um bretão e um irlandês derramam o mesmo sangue e sentem a mesma dor. O dia mostrara-me que a guerra traz ao de cima tudo o que há de mais bravo num homem. Ela deixa que a sua coragem brilhe. Em tempos de conflito, um homem simples pode tornar-se num herói. Mas há um vencido em todas as batalhas e esse vencido pode ser, também, um homem de grande bravura e resistência, valor e grandeza de coração. As histórias não falam de sangue e sacrifício; de angústia e perda.

 

Junto da linha de costa havia pequenas fogueiras e em redor de cada uma estavam reunidos homens silenciosos, procurando no calor do fogo uma lembrança do lar e dos entes queridos tão longe. Tinham tido um dia bom, mas as perdas eram terríveis e nenhuma delas era pior do que a perda daquele que representava o triunfo certo; o Filho da Profecia. Ninguém o dizia, mas eu achava que todos eles o sabiam nos seus corações; sem Johnny, a vitória não seria verdadeira. Mas continuavam: por Sean,
por Sevenwaters, pelo seu comandante na batalha, fosse ele Bran de Harrowfield, estranhamente presente entre eles e pegando em armas contra o seu próprio povo, ou os nobres chefes de guerra do Uí Néill. Estavam sentados tranquilamente em redor das fogueiras, olhando para o fogo. Não muito longe, abrigados em tendas improvisadas, os feridos jaziam e morriam. Alguns já estavam amortalhados para serem enterrados; se a batalha terminasse em breve, talvez pudessem ser levados para casa e pudessem ser sepultados com as lágrimas das mães, ou um lamento das namoradas, ou esposas. Entre os caídos estavam três dos bravos jovens guerreiros de Johnny. Mikka, que fora ajudado na agonia pela faca misericordiosa de Snake. A seu lado jaziam os dois amigos Waerfrith e Godric. Os homens contaram uma história que me fez chorar o coração: Waerfrith fora ferido com uma ferida na barriga e Godric carregara-o desde o cume e através do mais aceso da batalha. Quando estavam quase a chegar à enseada e à segurança, um guerreiro bretão avançou em ar de desafio. Aguentando o amigo inconsciente, Godric estava demasiado lento para se mover, demasiado carregado para fugir; e não queria pousar o ferido para se salvar. A espada do bretão apanhou-o no peito; e enquanto jazia ferido, viveu o suficiente para ver o inimigo enterrar a lâmina com eficiência no pescoço do homem que transportava. Assim, morreram juntos; seriam, para sempre, jovens, risonhos e terríveis. Naquele dia morreram os dois, além de muitos mais. No dia seguinte poderia calhar a vez a Gareth, ou a Corentin. Poderia calhar a Darragh. Tinham sido chacinadas, por causa daquelas ilhas, gerações de homens; os irmãos de Finbar e de Conor, os irmãos do seu pai, que, curiosamente, foi, também, meu avô. Eram a minha gente; mas os outros também, porque a minha linhagem era tanto de Harrowfield como de Sevenwaters, e os de Harrowfield eram parentes dos de Northwoods. Voei através da noite, sem prestar atenção ao perigo e pousei na muralha da fortaleza bretã. E ali, não muito longe, estava pousada uma grande ave de olhos fixos em mim, brilhantes e terríveis.

 

Descobri que já não tinha medo de Fiacha. O medo pareceu-me, subitamente, uma perda de tempo. A minha avó vencera; eu já não podia fazer nada. Só me restava ver, chorar e esperar que Lady Oonagh não aparecesse para gozar a vista, agora que a vitória final lhe pertencia. Assim, fiquei ali junto do corvo na muralha, olhando para o acampamento de Northwoods. Ouvi-os falar; vi-os chorar. Havia muitos mortos e ainda mais feridos. E tinha outro problema. Naquele posto avançado, há muito considerado seguro, alguns tinham as mulheres e os filhos, uma autêntica pequena aldeia. Agora, os seus líderes, de feições preocupadas, juntavam-se em redor do fogo para debater uma terrível escolha. Se os selvagens de Erin vencessem, se conseguissem penetrar na fortaleza, que aconteceria às mulheres? Chegaria a ocasião, talvez no dia seguinte, em que teriam de decidir se passariam a fio de espada as próprias mulheres, ou se as deixariam à mercê do invasor. O melhor seria, talvez, armá-las e esperar que tivessem a coragem de enterrar um punhal no próprio peito, ou no dos filhos, antes de caírem vítimas do horror da violação, ou da brutalidade da tortura e da escravidão. Falavam dos homens do meu tio como se fossem monstros. Pensei naqueles jovens guerreiros, Johnny e os seus companheiros. Pensei no amável Sean de Sevenwaters, no amável e risonho Gull e no Chefe, talvez um homem duro, mas, ao mesmo tempo, leal. Aquilo estava tudo errado; aquela longa guerra gerara um terror baseado na ignorância e na falta de compreensão. Aqueles bretões de rostos severos não compreendiam que tudo o que Sevenwaters queria era que as Ilhas fossem deixadas em paz? Nenhum deles compreendia a razão de tudo aquilo?

 

Teria voado para longe, tentando encontrar um local qualquer abrigado para fazer uma vigília até chegar a madrugada raiada de sangue, mas o olhar de Fiacha era intenso. Algo nele me mantinha onde estava, olhando para Edwin de Northwoods, para um jovem de ombros largos que parecia ser o seu filho e mais quatro ou cinco. Um era um padre cristão, tonsurado, de hábito religioso e uma cruz ao peito. Outro era idoso, de barba grisalha, de ombros caídos; demasiado velho para estar num lugar perigoso como aquele. Parecia terem chegado a uma decisão. As mulheres ficariam na torre com o Irmão Jerome. Ser-lhes-iam dadas facas. Quanto chegasse a hora escolheriam por si próprias.

 

E agora vamos descansar, se pudermos disse Edwin de Northwoods solenemente. Amanhã continuamos a luta. Lutaremos até ao último homem. Não quero ser recordado como o cobarde que deixou fugir as ilhas. Rezai amigos, para que o Senhor não nos abandone. Rezai por um milagre.

 

Nesse preciso momento surgiu um clarão no ponto mais longínquo do recinto fechado, perto da torre redonda que era o seu último bastião de defesa, e um grupo de homens. Um transportava um archote; dois seguravam entre si um jovem guerreiro todo vestido de negro, um homem cuja pele se mostrava branca como a cal à luz do archote, cujo rosto estava ferido e inchado e cujos olhos brilhavam de desafio enquanto os bretões o arrastavam e levavam diante de Edwin de Northwoods. O líder bretão olhou para o cativo; olhou fixamente para os ferozes olhos cinzentos, cuja jovem intensidade era aumentada pela tatuagem delicada na testa e nas faces, do lado esquerdo; o sinal do corvo.

 

Vede o que a maré nos trouxe, meu senhor disse um dos homens.

 

Talvez disse Edwin suavemente seja este o nosso milagre. Com um prisioneiro destes, quem sabe se não faremos um bom negócio?

 

O senhor de Northwoods virou-se para os seus capitães. Sabeis quem é?

 

Ouviu-se um murmúrio de reconhecimento. Talvez não tivessem visto o homem antes, mas este parecia ser conhecido pelas descrições que se faziam dele.

 

Johnny falou. A sua voz era suave; eu mal consegui ouvir as palavras. As suas roupas estavam encharcadas e o seu corpo hirto de frio. Perguntei a mim mesma quanto tempo estivera na água antes de o mar o atirar para as mãos do inimigo.

 

Eles não negoceiam disse ele. O meu tio não comprometerá a missão por causa da minha vida, ou da minha segurança. Nós fazemos as coisas assim.

 

Talvez não disse Edwin em voz baixa. Talvez Sean de Sevenwaters não faça as coisas assim, mas, e o teu pai?

 

Johnny ficou silencioso; não conseguia esconder a surpresa que lhe ia nos olhos.

 

Oh sim disse Edwin. Ele está a lutar com eles; ele ergue a espada contra os seus. Achas que será capaz de ver morrer o filho por um princípio?

 

Ele não faz acordos contigo; nem por mim, nem por ninguém. Edwin cruzou os braços.

 

Veremos isso em seu devido tempo. Creio que és capaz de ficar surpreendido. Northwoods virou-se para os homens que o seguravam. Fechai-o bem durante esta noite. Montai uma guarda forte. Ele está todo molhado. Dai-lhe um cobertor.

 

Ele está ferido, meu senhor disse um deles hesitantemente. E está a sangrar; e tem uma costela ou duas partidas. E está meio-afogado. Estou admirado por ter sobrevivido durante tanto tempo; atirado contra as rochas, ao que parece e, mesmo assim conseguiu nadar para terra. Encontrei-o por acaso.

 

Ele morre esta noite?

 

Não, meu senhor.

 

Muito bem, então. Como já disse, dai-lhe um cobertor e fechai-o. Amanhã é outro dia.

 

Vi-os arrastarem o cativo; e vi como Edwin e os seus homens se afastavam para irem descansar, os rostos iluminados por uma nova esperança. Olhei para Fiacha e ele olhou para mim. Então, ele abriu as asas e voou para longe da ilha, rapidamente e a direito, rumando para sudoeste na escuridão da noite. Nunca gostara do seu modo de fazer as coisas.

 

Nessa noite atingi quase o pânico total. Johnny estava vivo; o Filho da Profecia sobrevivera contra todas as probabilidades. O meu coração saltava de alegria; a esperança renascia em mim. E com a esperança veio
o terror. Afinal ainda não tinha acabado. Eu tinha hipótese de vencer, de fazer com que tudo desse certo. Mas, antes de tudo acabar, sabia que ela viria e eu teria de a enfrentar e teria de ser suficientemente forte. A batalha final, a única que contava, ainda não tinha acabado. Fiacha tinha-se ido embora; os meus amigos do Outro Mundo pareciam ter desertado. Não procuraria a ajuda de Finbar. Não me revelaria a Conor, nem ao meu tio Sean. Não haveria mais vítimas espalhadas à beira do caminho. Venceria sozinha a ira da minha avó. Esperaria até que fosse dia, regressaria à minha forma e recuperaria, assim o esperava, as forças rapidamente. Porque não tinha dúvidas de que não conseguiria derrotar Lady Oonagh, a não ser que usasse toda a magia, toda a vontade, toda a capacidade de controlo que o meu pai me ensinara.

 

Talvez fosse a criança do fogo, mas a minha educação garantira-me que eu era uma criatura das falésias e das rochas, das grutas e dos lugares secretos e seria para esse canto selvagem da terra que eu retiraria em busca de um lugar para mudar de forma. Não me esquecera da última vez e da fraqueza que se seguira à transformação. Tinha de ficar isolada, longe do campo de batalha e rezar para que as minhas forças regressassem antes de a minha avó perceber que o fim estava quase a chegar e se apressasse a testemunhar a vitória final. Então... então... não tinha a certeza do que faria, mas sabia que teria de fazer os impossíveis para mudar as coisas antes que ela tivesse conhecimento e viesse a correr para me forçar à sua vontade. Quando ela chegasse, teria de a enfrentar e esperar alguma ajuda, fosse ela humana ou do Outro Mundo. Parecia que, como nem os Fair Folk, nem os Fomhóire se mostravam, teria de fazer tudo sozinha. Tinha de esperar que, chegada a hora, tudo estivesse bem comigo. Concentração. Seria o que o meu pai me diria. Esvazia a tua mente, faz com que o teu espírito esteja receptivo. Então, encontrarás as respostas.

 

Havia um lugar na costa sul da Greater Island, não muito longe da fortaleza bretã, onde a terra se erguia em grandes falésias a partir do mar, hirtas e traiçoeiras. Vira lá um refúgio enquanto voava, nessa manhã. Um pouco abaixo do topo havia uma pequena plataforma, o que pressupunha reentrâncias, grutas pouco profundas, onde algumas plantas rasteiras suavizavam as paredes rochosas e o solo pedregoso permitia o espaço suficiente para que um homem, ou uma mulher, se sentasse em relativa segurança, olhando para a grande extensão de água abaixo e ao longe. Havia poucos esconderijos naquela ilha sem interesse, mas aquele era um deles e eu escolhi-o como o meu lugar de transformação precisamente por isso. Poderia recuperar ali as forças; poderia decidir ali o que fazer, quando e como. Uma coisa era certa: ninguém me podia ver na minha forma original até ao momento em que avançasse e desempenhasse o meu papel, no fim. Se agisse demasiado cedo, o meu tio Sean
recambiar-me-ia para os barcos com ordens expressas de que me mantivesse afastada. Se voltasse a ser rapariga antes de tempo, não me poderia mover com facilidade. Só tinha aquela hipótese.

 

Tudo dependia de Johnny. Ele estava prisioneiro; e era crucial para o resultado final. Northwoods usá-lo-ia para conseguir uma troca e, provavelmente, fá-lo-ia de imediato, antes que se perdessem mais homens. Logo de manhã, pensei. Qual seria o acordo? A vida de Johnny em troca da retirada Irlandesa? Se fosse isso, as forças do meu tio ficavam com um grande dilema. Sabiam que não podiam vencer a batalha sem o Filho da Profecia. Sacrificá-lo era admitir a derrota e continuar a lutar significava a morte. A profecia era bastante clara. Mas eu não achava que abandonassem a luta para o salvar. Como Johnny dissera, não era o modo deles de fazerem as coisas. Vira a luz nos olhos deles enquanto carregavam para a batalha; o olhar nos rostos severos enquanto seguiam o estandarte de Sevenwaters para a refrega, gritando o nome do líder. Não tinha a certeza, mas a retirada parecia-me fora de questão.

 

Teria de agir cedo, nesse caso, antes que a minha avó visse, e soubesse, como era fácil vencer. O Filho da Profecia estava prisioneiro; seria simples acabar com a sua vida e com as esperanças deles mediante um rápido e espectacular acto de magia. Seria simples tomar o caminho mais fácil, permitindo que Northwoods fizesse tudo sozinho. Porque ela tinha razão; tudo se centrava em Johnny. Era melhor desfazer o feitiço já, na escuridão, naquela pequena depressão rochosa, com o mar espumando lá em baixo, batendo e recuando. Era melhor encostar-me o mais possível às paredes da falésia, não fosse o diabo tecê-las. Certamente que teria tempo; tempo para recobrar forças e encaminhar-me para o centro da acção quando chegasse a madrugada. Movimentei-me cautelosamente ao longo da estreita plataforma com os meus pequenos pés de pássaro, procurando um local onde as reentrâncias fossem maiores e fornecessem maior abrigo. Dei um passo, dois, e da escuridão saiu uma mão para me apanhar. O meu coração gelou de medo e lancei um pio estrangulado.

 

Não é preciso isso. A voz era suave; a voz que tantas vezes acalmara animais assustados. Pronto. Pronto. Eu largo-te, se é isso que queres. Não te quis assustar. Descobriste o mesmo lugar que eu para te esconderes, não descobriste? É um lugar óptimo para se estar sozinho, ou com um amigo. Muito parecido com Kerry, com o céu e o mar, não é? Darragh retirou a mão lentamente e sentou-se de pernas cruzadas na rocha. Não era assim tão surpreendente, de facto, que cada um de nós tivesse pensado naquele canto, que nos fazia recordar os Verões descuidados da nossa infância. Fora num refúgio como aquele que murmuramos um ao outro os nossos maiores segredos.

 

Eu sabia que devia ir procurar outro lugar qualquer para o meu objectivo. A última coisa que eu queria era chamar a atenção de Lady Oonagh para Darragh. Por que razão tentara afastá-lo de mim vezes sem conta? Mas não me conseguia mover. Ali, na escuridão, empoleirada no alto da falésia por cima do mar traiçoeiro, com ele a meu lado, senti-me, finalmente, segura.

 

Caracóis? disse Darragh em voz baixa. Eu não lhe podia responder, mas mantive-me imóvel nas rochas, junto dele. Quero dizer-te uma coisa continuou ele e eu pude ver, na escuridão, que ele torcia as mãos e franzia o sobrolho. Vi coisas terríveis, aqui. Suponho que também viste. Coisas que nunca imaginei ver, nem nos meus piores pesadelos. E fiz coisas de que não me orgulho. Provei que era capaz de lutar; mas não me parece certo derramar o sangue de um tipo qualquer apenas porque é de uma raça diferente. Ele olhou para as mãos. Sempre pensei que acabaríamos por ir para casa, sabes, para Kerry, quando isto acabasse. Pensei que bastava esperar, ficar contigo e aguentar. Mas... mas isto é diferente, não é nada do que eu esperava. Amanhã vai haver mais mortes e eu vou-me juntar a eles porque é para isso que aqui estou. E tenho um pressentimento de que, desta vez, não haverá amanhã, Caracóis. Não gosto nada de te pedir isto, mas vou-to pedir de qualquer maneira, porque me parece que não tenho mais nada a perder. Se eu morrer, se for esse o meu destino, eu... eu gostaria muito de te ver uma última vez. Quer dizer, ver-te como tu és na realidade, como rapariga. Dizer-te adeus como deve ser. Há coisas que gostaria de te dizer; coisas que só sou capaz de dizer se... mas... não, esquece. Não seria seguro para ti, é evidente. Não quero que te arrisques.

 

Aquilo sempre fora a minha fraqueza e a minha loucura. Tentara lutar, mas agora não conseguia resistir àquela voz gentil, hesitante, a mesma a que o pónei branco selvagem também não conseguira resistir. Desejava loucamente que ele me tocasse, desejava loucamente confortá-lo, também, com a minha voz, ficar junto dele uma vez mais, silenciosamente, como há tantos anos atrás. Ericei as penas, disse mentalmente o feitiço e transformei-me.

 

Ouvi a exclamação de surpresa de Darragh e senti as suas mãos agarrarem-me quando ele se pôs rapidamente de pé. Arfei e disse:

 

- Não digas a ninguém... não digas a ninguém onde estou... promete... e então o seu rosto desvaneceu-se e as estrelas por cima de mim começaram a rodopiar loucamente. Caí de joelhos e desmaiei.

 

Entrei numa inconsciência mais profunda do que um abismo; uma escuridão desprovida de quaisquer sonhos. Só voltei a mim quando a madrugada já tocava o céu com os seus primeiros raios dourados. Abri os olhos; senti um cansaço terrível, que me percorria o corpo como se tivesse combatido numa longa batalha. Percebi que tinha a cabeça no colo de Darragh e senti a sua mão afagar-me os cabelos. Durante um longo momento não me mexi, mas depois fiz um esforço, sentei-me e a seguir levantei-me, estendendo as mãos para me agarrar às plantas quando a minha visão se enevoou e a cabeça me começou a andar à roda. Darragh pôs-se de pé num instante, as suas mãos nos meus braços, amparando-me. Que a deusa me valesse, mal me conseguia manter de pé, mal conseguia pensar, quanto mais realizar um grande feito de magia. Não poderia ser útil a ninguém naquelas condições. E já era dia.

 

Eh lá... devagar... devagarinho disse Darragh, amparando-me com um forte abraço. Ele estava carrancudo; os seus olhos escuros estavam extremamente sérios ao perscrutar-me o rosto. Sou louco disse ele de modo insípido. Não devia ter prometido. Tu estás doente, Fainne, precisas de ajuda. Deixa-me ir buscar alguém... deixa-me dizer a alguém...

 

Não! Consegui reunir forças suficientes para o impedir, a minha voz áspera devido ao terror. Não, não vás! Eu tenho de ficar sozinha para fazer isto... as minhas palavras saíram ao mesmo tempo que uma onda de náusea me percorria, seguida de um forte desejo de chorar. Não ia conseguir, não ia conseguir de maneira nenhuma. Controlo. Força. Eu era filha de um feiticeiro, com uma missão para cumprir.

 

Fainne! recomeçou Darragh.

 

Não disse eu, dando à minha voz, com grande esforço, um tom frio. Não digas. Não digas nada. Vai e deixa-me só. Eu fico bem. Eu sei olhar por mim própria. E agora, vai, Darragh. Estou a ouvir vozes de homens. Tens uma batalha pela frente.

 

Darragh olhou para mim.

 

É mesmo isso o que tu queres? Que eu vá passar uns tipos a fio de espada e que te deixe aqui sozinha, numa falésia, incapaz de te manteres de pé, a quilómetros de casa, sem ninguém que olhe por ti? É isso? Não foi o que disseste antes.

 

Ele tirou-me as mãos dos braços. Consegui aguentar-me agarrando-me às plantas com as duas mãos e encostando-me à rocha. Onde estavam os Fomhóire quando eu precisava tanto deles?

 

Por favor, vai disse eu em voz sumida. -Já falta pouco tempo. Fá-lo por mim. Oh, por favor, fazei com que ele vá, antes que seja demasiado tarde.

 

Houve um pequeno silêncio.

 

Está bem disse ele. Está bem. Nesse caso, adeus. Mas não se afastou. Em vez disso, rodeou-me com os braços e abraçou-me com força, senti-lhe os dedos nos meus cabelos, o calor do seu corpo contra o meu e, num instante, tudo mudou; porque eu desejava-o loucamente, desejava-o com toda a força do meu ser. Não podia fazer nada. Agarrei-me a ele, beijei-o e por um longo momento esqueci a minha avó, esqueci tudo, tudo, menos aquela doçura.

 

Oh, Caracóis murmurou Darragh, afagando-me o pescoço com a mão, por baixo dos cabelos. Desculpa. Desculpa.

 

Desculpa? consegui dizer. Por que estás a pedir desculpa?

 

Queria tanto salvar-te. Fiz os possíveis. Desculpa se as coisas não aconteceram de maneira diferente para nós. Gostaria de ter sido bom para ti.

 

Por um momento os seus braços apertaram-me ainda mais e eu senti o seu coração bater contra o meu. Abri a boca para lhe dizer que não tinha percebido nada; eu é que não tinha sido boa e nunca poderia ser. Mas antes que pudesse dizer fosse o que fosse, ele afastou-se e eu vi o que ele tinha na mão.

 

A princípio não acreditei. Mas, quando percebi, foi como se me tivessem espetado uma faca no coração. Olhei e pestanejei. Levei os dedos ao pescoço e enquanto a pele se me ia arrepiando de medo, procurei dentro do vestido e soube que tinha sido traída pelo meu melhor amigo.

 

Dá-me isso! sibilei. Vi o seu rosto ficar branco e o maxilar cerrar-se. Darragh! Dá-me isso!

 

Darragh não disse nada e afastou-se um pequeno passo, sempre segurando na mão o amuleto de bronze e o forte e inquebrável cordão que o segurava.

 

Dá-mo! Como foste capaz? Como foste capaz de me tocar dessa maneira, dizer essas coisas, quando foi só para... Darragh, tens de me dar isso! Não sabes o que estás a fazer!

 

Aproximei-me e tentei tirar-lho, mas ele era demasiado rápido; além disso, era muito mais forte do que eu. Sempre fora.

 

É melhor assim disse ele.

 

Como podes dizer isso? Tu não sabes nada! Não percebes nada! Oh, depressa, depressa, dá-me isso! Vais fazer com que sejamos os dois amaldiçoados!

 

Mas Darragh ficou ali, teimoso, com as mãos atrás das costas, olhando para mim com uns olhos que pareciam cheios de tristeza.

 

Estás enganada, Caracóis. Todos dizem a mesma coisa. Lorde Sean. Lady Liadan. Johnny, e até o Chefe. Esta coisa é maldita. Está a pôr-te louca; está a fazer com que fiques louca. É por isso...

 

É por isso o quê? disse eu, perturbada pela possibilidade de uma conspiração disparatada qualquer me impedir de os salvar a todos. São todos loucos e o tempo foge. Não compreendes? Assim que o tirar ela sabe imediatamente, vem à minha procura e eu ainda não tenho forças para... oh, por favor...

 

Por cima de nós, as nuvens começavam a formar-se, estranhas, encasteladas, cinzento-escuras, espessas como um capote de lã e trazendo com elas um vento frio. Por cima de nós, as gaivotas gritavam numa espécie de aviso. Pensei ouvir a voz familiar, se bem que ainda distante, uma voz que gelava o coração. Fainne. Fainne, onde estás?

 

Ela estava a chegar. Já estava a chegar, trazendo consigo o vento e as nuvens. Estava a chegar e ia matar e estropiar até que eu me dobrasse à sua vontade. Formulei mentalmente as palavras de um feitiço para forçar Darragh a ir-se embora; para fazer com que a sua mão largasse o que ele achava um tesouro. Murmurei as palavras e tentei encontrar a vontade. Mas não houve nada. A minha mente estava vazia, esgotada; e o meu espírito completamente vazio por causa da transformação. Não tinha um único fragmento de magia em mim.

 

Darragh ia andando de costas ao longo da saliência; obedecia às minhas ordens e ia-se embora. Não muito longe, eu conseguia ouvir vozes de homens e o tinir de metal contra metal.

 

Por favor, Darragh murmurei, usando a única arma que me restava e avançando na direcção dele com a mão levantada para lhe tocar na face.

 

Não disse ele rigidamente. Guarda esses truques para os teus chefes de guerra. Não os tentes comigo. Se não confias em mim e não me dizes o que te vai no coração, é melhor não fazeres nada. O seu tom era feroz, quase irado; quando lhe toquei no rosto senti lágrimas nos dedos. Fiquei gelada; não me podia mexer, se bem que ouvisse a voz da feiticeira algures, sobre o oceano. Atreves-te a desobedecer-me, pequena? Atreves-te a fazer troça de mim, finalmente?

 

Abri a boca para dizer algo, qualquer coisa. Então, olhei para os olhos dele e as palavras faltaram-me. Naquele momento, vi como ele tinha mudado; como o rapaz de sorriso torcido e com o mundo todo pela frente se tornara pálido e cansado, de olhos sombrios e com olheiras, como se transportasse aos ombros uma carga de trabalhos. E vi o que ele me fizera.

 

Caracóis? disse ele muito suavemente.

 

Olhei para ele, esperando que ele tivesse caído em si e me devolvesse rapidamente o amuleto; que mo desse e se salvasse.

 

Talvez eu tenha feito isto porque eles me pediram disse ele. Mas é só uma parte. Também o fiz por ti. Senti-me obrigado.

 

Obrigado? murmurei, ao mesmo tempo que o vento aumentava, soprando do mar e o ar ficava cheio de neblina salgada e gritos de aves. Obrigado como?

 

Ele olhou para os meus olhos e abanou lentamente a cabeça, como se de incredulidade.

 

Obrigado a defender-te. Dos que te querem fazer mal e de ti própria. Por amor, Caracóis.

 

E antes de eu me poder mexer, antes de o poder deter, ele ergueu o braço, atirou o amuleto e eu vi-o, brilhando à luz do Sol, ultrapassar a plataforma e cair, cair na direcção do oceano esfomeado lá em baixo. O meu coração parou de terror. No meu íntimo, ouvi uma voz dizer «Não, oh não, oh não» vezes sem conta. Enterrei o rosto nas mãos e registei, vagamente, que a voz era a minha.

 

Caracóis? A voz de Darragh era agora mais gentil, desaparecida a ira. Não conseguia responder-lhe. Se aquilo era amor, então eu estivera certa o tempo todo; o amor não passava de confusão e dor.

 

Tenho de ir disse ele. Tens razão, há uma batalha para travar. Não posso ficar de lado, tenho de ajudá-los; pelo menos, enquanto usar as cores de Johnny.

 

Não... comecei a dizer com as mãos estendidas, como uma cega.

 

Ehhh disse Darragh e estendeu uma mão para me afagar o cabelo, para arrumar um caracol desgarrado. Já chega. Então, inclinou-se para me dar um beijo na face, o tipo de beijo que um rapaz dá a uma rapariga quando ambos são muito novos e demasiado tímidos para dizer o que sentem. Fechei os olhos, mas não consegui fechar os ouvidos ao som da voz da minha avó.

 

Adeus, Caracóis disse Darragh. Tem cuidado contigo. Esperei pelo que ele diria a seguir, mas o silêncio manteve-se e quando voltei a abrir os olhos ele tinha desaparecido.

 

Como se fosse uma criança a brincar, contei lentamente até cem. Esperei até que ele desaparecesse por completo e caminhei aos trambolhões ao longo do parapeito, passei por cima das rochas e olhei para terreno aberto. No campo de batalha, ele jogaria a sua sorte juntamente com os outros. Talvez fosse um dos escolhidos e escapasse com vida. Comigo a seu lado estaria, certamente, condenado.

 

O céu estava cheio de nuvens escuras e a neblina salgada cobria a enseada. Os poucos arbustos rasteiros que se agarravam à paisagem escarpada inclinavam-se rendidos; aproximava-se uma tempestade, uma tempestade cuja ferocidade tinha origem na fúria de uma feiticeira. Não havia tempo para nada. Que podia eu fazer? Ela estava a chegar e eu não tinha armas para a batalha, nenhumas, senão o meu pobre corpo cansado e a minha mente confusa, deprimida; senão o meu espírito maculado e o meu coração traiçoeiro, que se sentia como se o tivessem dilacerado. Fiquei a baloiçar à beira da falésia enquanto o vento me chicoteava os cabelos para a frente do rosto, como se fosse uma bandeira. Pensa, Fainne. Concentra-te. A bandeira vermelha da vitória. Eu tinha a minha. Não usava as cores de Sevenwaters, antes as minhas, num xaile tão deslumbrante quanto encantador, tão cheio de vida e prodígios quanto a própria terra. Talvez o meu espírito estivesse maculado e o meu coração dilacerado, não podendo eu voltar a ser o que era; não podendo, nunca mais, dizer o que sentia, por mais que quisesse. Mas o espírito de Darragh brilhava; o seu coração era o melhor e mais verdadeiro de todo o Erin. Enquanto usasse a sua dádiva, a sua dádiva de amor, poderia ir em frente. E tinha Riona, ainda metida no meu cinto, de vestido cor-de-rosa amarrotado e olhos escuros pensativos. Riona era como se fosse da família; recordava-me de quem eu era, realmente, filha. Muito bem, portanto. Esquecer os membros doridos, a cabeça confusa e os olhos cheios de lágrimas por derramar. Comecei a andar, seguindo o som de vozes vindo da pequena elevação acima de mim. Não valia a pena tentar esconder-me. A paisagem era quase toda igual. Assim que chegasse ao topo daquela elevação, eles ver-me-iam.

 

Por aí não, estúpida.

 

Ouvi um bater de asas e uma pequena perturbação na estrutura das coisas. Ouvi um som de fractura na terra e um breve ribombar. Na minha frente apareceu uma pedra de tamanho médio que não estava ali antes e junto dela uma criatura parecida com um mocho, de nariz arrebitado e botas vermelhas.

 

Não vás para ali, aconselhou-me a criatura-mocho. A coragem é uma coisa muito bonita, mas precisas de ter cuidado com ela.

 

Que outra coisa posso fazer? perguntei em voz sumida, por fim aliviada por ter chegado alguma ajuda. A feiticeira vem a caminho; sinto-o. Tenho de agir agora. E não há lugares onde me possa esconder. Que posso eu fazer senão sair daqui e dizer-lhes... dizer-lhes...

 

O ser-rocha tossiu solenemente e ficou silencioso. A criatura-mocho ergueu as sobrancelhas espessas.

 

Dizer-lhes o quê? Que achas que eles deviam ir-se embora? Ora vamos, usa a cabeça. Usa o teu treino. Nós podemos ajudar-te. Podemos dar-te cobertura; temos talento para isso, para desaparecermos, por assim dizer. Mas a solução está nas tuas mãos, rapariga do fogo, não nas nossas. Tens de ser tu a descobrir a última peça do quebra-cabeças. O teu pai não te ensinou a procurar respostas? Esta está ao teu alcance; mas tens de a descobrir antes de Lady Oonagh, ou desapareceremos todos.

 

Franzi o sobrolho, exasperada.

 

Isto não é um jogo estúpido qualquer! Não depende tudo disto? O futuro das Ilhas, o futuro dos Fair Folk, dos Fomhóire e dos humanos? Como é possível depender tudo de... de um enigma? Por que é que vocês não me dão a resposta, malditos sejam?

 

Seguiu-se um pequeno silêncio.

 

Uma profecia é uma profecia, observou finalmente o ser-rocha. É assim. Infelizmente, depende tudo de ti. Mas nós ajudamos-te no que pudermos. Mas não te podemos dizer como. Isso é com os humanos. É por isso que os Fair Folk estão na retaguarda, mesmo agora. Mortos por avançarem e fazerem alguma coisa, todos eles. Mas não podem. Como já te disse, uma profecia é uma profecia.

 

Pareceu-me ouvir, em redor de nós, um clamor, uns gritos, e não eram gritos de gaivotas, antes um som de raiva, alguém à procura, um som sobrenatural, que me fez ranger os dentes. Onde estás? Não penses que me enganas. Atreve-te a desobedecer-me e eu destruo-te. Na última vez, ela demorara um dia inteiro a chegar. Desta vez, seria mais rápida.; ela não me podia ver sem o amuleto, mas sabia que estava perto. Não demoraria muito.

 

Comecei a andar e quando me aproximei da beira da falésia olhei para uma pequena fila de arbustos de aspecto penugento que não estava lá momentos antes; uma pedra redonda que parecia ter nascido, num instante da simples encosta varrida pelo vento.

 

Esconde-te, murmurou a criatura-mocho. Esconde-te até chegar a ocasião. Só terás uma hipótese, uma única. A criatura escondeu-se comigo nos arbustos; a rocha cheia de musgo à minha esquerda, com a sua boca parecida com uma fenda, muito perto de mim, de modo a esconder-me o mais possível.

 

E Fiacha? perguntei enquanto esticava o pescoço para olhar na direcção da fortaleza bretã. Ele também faz parte disto tudo? Ele foi-se embora e deixou-me sozinha.

 

Oh sim. Essa criatura já desempenhou um papel e voltará a desempenhar outro, sem dúvida. Ele tem ligações poderosas. Mas tu pareces não gostar dele.

 

Tremi.

 

E não gosto. Ele salvou-me a vida, creio, no voo do Ulster para aqui. Mas nunca gostei dele.

 

Por que não? A voz do ser-rocha era agora sumida e suave.

 

Porque...

 

E, subitamente, fiquei sem palavras. Subitamente, a última peça do quebra-cabeças entrou no seu lugar, o meu coração deu um baque parecido com o som de um sino antigo e a minha cabeça reconheceu a verdade inacreditável; a solução era tão espantosamente simples que não tinha pensado nela antes. Os meus dedos subiram para coçar um pequeno local no meu ombro, por baixo do vestido; e pensei que se tivesse tido a coragem para tirar o amuleto antes, talvez tivesse pensado nisto, e as pessoas não teriam sofrido nem morrido. Talvez.

 

Ela não sabe disse eu hesitantemente. A minha avó. Tenho a certeza que não sabe, ou não me teria enviado para aqui.

 

Suspeita, disse a criatura-mocho. Não isto, exactamente; mas pressente o teu poder, e procura assegurar-se de que o usas apenas para os seus fins.

 

Não admira que tenha medo de mim disse eu num murmúrio. Mas... mas eu, agora, não tenho magia nenhuma. Nenhuma. Demora muito tempo a regressar depois de uma transformação. Dias, talvez. Como posso eu fazer alguma coisa sem a arte?

 

Terás de fingir, disse o ser-rocha como quem não quer a coisa. Os humanos são fáceis de enganar. Nós ajudamos-te, se pudermos. Faz de conta. Confunde-os com surpresas. Até os teus poderes regressarem.

 

Usa o que puderes, aconselhou a criatura-mocho. Usa o que existe, como os druidas. A magia natural do Sol e da Lua, do vento e da água, das rochas e do fogo. Extrai-lhes esse poder e canaliza-o para os teus objectivos.

 

Mas... Encolhi os ombros, exasperada, enquanto o meu coração continuava a bater desordenadamente com a descoberta que acabara de fazer; a verdade que mudava tudo. E essa revelação enchia-me de consternação e terror; ao mesmo tempo que me enchia de orgulho e esperança. As coisas terríveis que eu fizera já não importavam. Já não importava o caminho maldito que a feiticeira preparara para mim. Já não importava a minha fraqueza. Seria a filha do meu pai.

 

Os aliados tinham aproveitado bem o tempo. Num breve espaço de tempo, desde a madrugada, tinham avançado através da ilha até ao perímetro da fortaleza de Northwoods, de modo que as suas forças estavam agora colocadas ao longo da parte exterior do fosso, por baixo da muralha de terra. Ainda não tinham entrado, porque Edwin tinha um forte contingente de arqueiros postado no alto das defesas, encoberto, e toda a gente sabia da perícia dos bretões com o arco. Em vez disso, pareciam esperar algo. Por baixo de um ponto central na muralha, onde umas fortificações de pedra marcavam uma espécie de posto da guarda, os líderes dos irlandeses esperavam do outro lado do fosso. Estavam ali todos. No centro estava Sean de Sevenwaters, solene e pálido, com a sua túnica arvorando os colares interligados, simbolizando este mundo e o outro, os humanos da floresta e os seres misteriosos, cujo futuro dependia, naquele dia, da espécie humana. Também lá estava Eamonn de Glencarnagh, magnificamente vestido de verde, afastando uma madeixa de cabelo da testa enquanto semicerrava os olhos para perscrutar sinais de movimento nas fortificações. O seu rosto estava sombrio; talvez o seu sono tivesse sido visitado por pesadelos, nos quais o menor dos erros nega a um homem o seu tão desejado prémio. Algo insignificante, como um pai e um filho muito parecidos um com o outro, ambos vestidos de preto e dentro de água. Presentes, também, os chefes de guerra dos Uí Néill, ricamente vestidos e armados; e Bran de Harrowfield, pálido, com Snake e Gull a seu lado, juntamente com os do bando de Johnny que tinham sobrevivido ao primeiro dia. O grande Gareth, de rosto amável; o intenso e simpático Corentin; e Darragh. E, para minha surpresa, o arquidruida Conor, muito direito e solene no seu traje branco e com o colar dourado em redor do pescoço; e a seu lado o irmão Finbar, o homem da asa de cisne. Estavam todos um pouco afastados dele, respeitavam-no, mas uma diferença daquelas tem tendência para engendrar medo, mesmo no mais duro dos homens. No entanto, Darragh não o temia. Darragh compreendia as criaturas selvagens; conhecia-as tão bem que as pessoas diziam que ele era, também, meio selvagem. Sabia como transformar, com paciência, o medo em amor.

 

Aquela reunião era, certamente, percursora de um grande acontecimento. Deviam ter lançado um ultimato: rendei-vos, ou destruímos a fortaleza; desisti ou pomo-vos cerco e matamos-vos à fome. E agora aguardavam a resposta. Ou talvez fosse Northwoods a lançar um ultimato, porque no topo da muralha de terra apareceu um pequeno grupo de bretões, um com uma bandeira branca, denotando que pretendiam parlamentar. Ouviu-se um murmúrio entre os homens de Erin; um tinir de metal, um arrastar de pés.

 

O meu senhor de Northwoods deseja discutir as condições gritou um dos guerreiros bretões do outro lado do fosso, tentando fazer-se entender por cima do rugido do vento. O homem falou na língua de Erin, com um sotaque forte. A bandeira branca agitava-se furiosamente, ameaçando lançar-se no ar a qualquer momento. O rapaz que a transportava mantinha-a presa a um pau com dificuldade. Ele tem uma proposta. Se Sean de Sevenwaters e os seus chefes de guerra avançarem até ao ponto por baixo da torre, ele também avançará. Isto no pressuposto de que não haverá qualquer ataque de ambos os lados, até que as partes com as negociações. O meu senhor está de boa-fé.

 

Vi Sean olhar para Conor, de sobrancelhas erguidas e este acenar levemente com a cabeça. Talvez estivessem à espera daquilo. Northwoods tinha sido forçado a refugiar-se por trás da sua última linha de defesa e não podia fugir da ilha. Que outra coisa poderia fazer, senão render-se? Mas havia dúvida nas feições duras do Chefe, nos olhos semicerrados de Snake e também no rosto solene do meu tio quando disse a um dos homens para responder de acordo com a proposta. Aquilo parecia fácil de mais. Era uma vitória simples, apesar das baixas; e a profecia?

 

Então, de entre os bretões reunidos na torre, apareceu um homem que eu já sabia ser Edwin de Northwoods. Na noite anterior, à luz da fogueira, parecera cansado de morte, oprimido por terríveis hipóteses. Agora vestia uma armadura completa e sobre ela uma túnica castanho-avermelhada, a sua barba estava aparada e o cabelo afastado do rosto. A sua expressão era calma e a voz firme.

 

Lorde Sean. Tu conheces-me, creio. Os teus chefes de guerra compreendem a minha língua?

 

O meu druida traduz. O meu tio falou na língua dos bretões. No fim de contas, era a língua nativa do seu pai. - Que queres, Northwoods? Nós estamos à tua porta; estás à nossa mercê. Ganhaste juízo, finalmente, e vens negociar a salvação dos teus homens? Havia um tom de impaciência na voz de Sean. Conor olhou para ele de relance e depois traduziu as suas palavras para irlandês num tom uniforme.

 

É verdade. O vento uivava; Northwoods ergueu a voz para que este pudesse ser ouvida para lá do fosso. Venho debater um acordo contigo, Sevenwaters, mas não o que tu imaginas. Quero a salvação dos meus homens e de todas as famílias aqui presentes. Quero um barco e creio que tu mo darás, além de muito mais.

 

As sobrancelhas de Sean ergueram-se.

 

Não imagino como poderemos chegar a outro acordo, senão o de concordares em abandonar as Ilhas imediatamente e regressares com os teus homens a Inglaterra. Quero uma garantia, assinada e selada, de que Northwoods nunca mais porá os pés nestas costas. Posso ser magnânimo, se assim o desejar. Está a chegar um navio de Harrowfield, capitaneado pelo meu sobrinho mais novo, Fintan. Os teus homens podem embarcar nesse navio com alguma dignidade. Mas nenhum regressará a Inglaterra enquanto tu não jurares que não voltas a pôr os pés nestas Ilhas. São estas as minhas condições.

 

Harrowfield! Edwin virou-se para um lado e cuspiu para o chão. Harrowfield, cujo senhor está entre os teus homens, um traidor? Não entro nesse barco, nem que a minha vida dependa disso.

 

A escolha é tua disse Sean, indiferente. Aceita e retira em segurança. Recusa e serás corrido. Morrerão todos e as Ilhas serão nossas uma vez mais. A mim, pouco me importa o que possas vir a escolher.

 

Seguiu-se uma pausa.

 

Verás disse Northwoods cuidadosamente que quem dita as condições sou eu e serás tu que terás de escolher. O bretão virou-se para os seus guardas. Tragam-no ordenou e olhou de novo para Sean. Tenho aqui algo que te pertence, algo que, se calhar, pensas ter perdido. Quanto pagarás, penso eu, para o recuperares?

 

Então, um dos guardas subiu os degraus até chegar ao ponto mais alto do posto, empurrando na sua frente um prisioneiro cujas mãos estavam atadas atrás das costas; um prisioneiro cujos olhos exaustos estavam, no entanto, cheios de esperança e desafio; cuja pele clara tinha, indiscutivelmente, a marca do corvo.

 

Doce Jesus Cristo! exclamou Snake. Ele está vivo!

 

Senti a grande onda de excitação que percorreu as forças irlandesas, Está vivo, o Filho da Profecia está vivo, sem qualquer reserva. Estava de volta; Johnny estava de volta. Afinal, não o tinham perdido. O que queria dizer que venceriam; tinham de vencer. A profecia assim o dizia.

 

Os olhos cinzentos do Chefe brilharam. Estava ainda mais pálido do que Johnny e aproximou-se do ombro de Sean, a olhar para a figura do filho, de mãos atadas atrás das costas. Parecia ser o único a ver, para além do júbilo do momento, o perigo da situação. Johnny encontrou o olhar de Bran e acenou levemente com a cabeça. Pensei que ele queria dizer: Eu sou o líder. Eu resolvo isto.

 

Pretendes oferecer-nos esse prisioneiro em troca de um barco? perguntou Sean. Vi a sua mão apertar com força o punho da sua espada, mas a sua voz era firme. Não terás nada sem me garantires que abandonas este território, com ou sem prisioneiro. Nós não negociamos assim, Northwoods, Pensei que nos conhecesses melhor.

 

Edwin cruzou os braços.

 

Estás a fazer batota, Lorde Sean. Eu sei quem é este rapaz. Conheço a profecia que guia a tua gente, a história que diz que Sevenwaters não pode recuperar este território sem o guerreiro dessa história antiga; o guerreiro que traz a marca do corvo, descendente do Erin e de Inglaterra. E este é o vosso escolhido. Pergunta aos teus homens o que acontecerá se eu lhe cortar a garganta. Pergunta-lhes se terão vontade de continuar se ele morrer agora mesmo. Sem este rapaz nunca vencereis. A sua morte seria a morte das vossas esperanças, o fim dos vossos sonhos.

 

A morte dele está nas tuas mãos, Northwoods! gritou Bran de Harrowfield, incapaz de ficar calado. O Chefe falou na língua bretã, que era a sua. Não nos julgues precipitadamente. Atreve-te a fazer mal ao meu filho, e tens o destino traçado. Os nossos anos de tréguas terminarão, e eu varrer-te-ei da face da terra juntamente com os teus filhos!

 

Ouviu-se um arrastar de pés entre os homens; Conor estava sinistramente silencioso.

 

O que é que ele está a dizer? alguém perguntou. O que é que o bretão está a dizer?

 

Conor tossiu para aclarar a voz.

 

Diz-nos o que queres, Northwoods. A voz de Sean era pesada. Qual é o teu preço para a liberdade de Johnny?

 

O mesmo que pensavas pedir-me, Sevenwaters. A voz do líder bretão era agora mais calma; talvez pressentisse alguma fraqueza; talvez pressentisse a vitória. A retirada total das Ilhas por parte das tuas tropas e uma garantia assinada, na qual afirmarás nunca mais tentares invadi-las. Renuncia totalmente a este território. Deixarás aqui um dos navios; podes ficar com os outros para transportar as tuas tropas e as dos teus duvidosos aliados. Eu também posso ser generoso. Quanto ao meu vizinho de Harrowfield, tornarei público este acto de traição por toda a Northumbria e mais além. Talvez encontre o seu território menos seguro do que pensava, daqui em diante.

 

Não podemos aceitar tais condições. O rosto de Sean estava tão cinzento como a morte. As Ilhas são nossas. É nossa missão recuperá-las. Concordar com essa proposta é troçar dos nossos pais e dos pais deles, que morreram por esta causa. Não o farei.

 

Não? O tom de voz de Northwoods tornou-se, subitamente, selvagem. Muito bem, então. O bretão tirou uma faca do cinto e encostou-a à garganta de Johnny. Ouviu-se um rugido de ultraje vindo dos guerreiros reunidos em redor do perímetro do fosso e as espadas e os punhais foram desembainhados em simultâneo. Aqui e ali, pequenos grupos de homens avançaram. De trás da muralha veio o som de setas a serem encostadas às cordas dos arcos e estes a serem esticados prontamente.

 

Ergui-me um pouco, sabendo que devia agir, mas ainda pouco certa.

 

Agora? perguntei com alguma incerteza para o local onde a criatura-mocho estivera a observar a cena em silêncio. Mas em vez dos seus olhos redondos e zombeteiros, vi um olhar tão escuro como amoras num rosto tão pálido como o meu, só que enrugado, velho e coroado por uma cabeleira branca e selvagem.

 

Não, Fainne disse a minha avó numa voz baixa que me transformou a espinha em gelatina. Agora não. Isto e demasiado interessante para ser interrompido. Não adoras quando os homens discutem? Eu digo-te quando deves avançar. Só no fim, pequena.

 

Não conseguia parar de tremer; ela trespassava-me com o olhar, como um predador fixando uma presa, o terror impedindo qualquer fuga. Depois de toda a panóplia do vento, das nuvens e das vozes sinistras, acabara por aparecer atrás de mim tão subtilmente como uma sombra.

 

Onde está o amuleto? sibilou ela subitamente. Que lhe fizeste? Tu prometeste-me. Prometeste que nunca o tirarias. Mentiste-me, Fainne. Como sei que não me trairás agora, no fim? E pareceu-me que ela ficou maior, mais escura, deixando de ser uma velha maluca para se transformar numa grande rainha, misteriosa e poderosa. Não admirava que os Fomhóire tivessem desaparecido para debaixo da terra, por assim dizer.

 

Eu não a trairei, avó. Poderia não ter um grão de magia em mim, mas continuava a ser a filha do meu pai, disciplinada, autocontrolada. Mantive a voz firme e o olhar calmo. Receio que o amuleto se tenha perdido. Eu estava escondida nas falésias e ele caiu ao mar. Mas já
não preciso dele A avó está aqui ao pé de mim, no fim de contas. Vai ajudar-me quando chegar a ocasião? Até esbocei um sorriso, se bem que por baixo estivesse gelada de terror.

 

Por que hás-de precisar de ajuda? Ehhh. Eles estão a mexer-se. Passava-se qualquer coisa junto do fosso. Sean e os seus líderes

 

tinham formado um pequeno grupo e estavam a conferenciar. Quanto aos guerreiros, faziam um barulho terrível; o significado das palavras do líder bretão tinha-se espalhado e eles estavam furiosos. Ao longo do fosso, Snake estava a dispor os guerreiros de Inis Eala para prevenir qualquer assalto, qualquer acto suicida de heroísmo. Só um ataque em massa poderia esperar penetrar naquelas defesas, já que a parte superior estava cheia de arqueiros. Gareth e Corentin faziam-nos recuar, assim como os mais velhos, Wolf, Rat e muitos outros. No lado sul, onde a muralha de terra dava lugar às falésias escarpadas, última barreira defensiva, pensei ver Darragh no meio deles, de faca na mão. Virei-me rapidamente para a minha avó.

 

Que dilema disse ela com um pequeno sorriso. Sevenwaters não pode ganhar, seja qual for a escolha. Se deixarem que o rapaz morra, perdem; está na profecia. Se negociarem a vida dele, serão obrigados a retirar. É uma questão de honra.

 

A mim, parece-me disse eu, observando o debate e vendo Finbar olhar na direcção de Johnny, no alto da torre, oscilando ligeiramente, pálido como a morte que, seja o que for que eles decidam, vão ter dificuldade em reter os homens. Johnny inspira uma grande lealdade. Estes homens farão tudo por ele.

 

E, quase como se tivesse tido a mesma ideia, Finbar aproximou-se do meu tio Sean e começou a falar-lhe em voz baixa. Espalhou-se, pela multidão, um estranho silêncio; quando Finbar acabou, o silêncio era total. Até o vento caíra.

 

Sean de Sevenwaters endireitou os ombros e olhou de novo para o seu velho inimigo.

 

Nós temos uma contraproposta gritou ele.

 

Ouviste as minhas condições rugiu Edwin de Northwoods. Não falei em compromisso nenhum.

 

Pelo menos, ouve o que eu tenho para dizer disse Sean. Tu disseste muita coisa acerca da profecia. É tudo verdade, porque este lugar é o coração da nossa fé; para nós não é um mero ancoradouro, mas sim um símbolo da nossa ligação à terra. Mas não espero que tu compreendas isso; mas pressinto que sabes o que significa para estes homens. Estrategicamente, a tua posição é fraca, tão fraca que, sem esse refém, sereis escorraçado daí antes do cair da noite. Creio que sabes isso, Lorde Edwin. Mas tu não és louco. Sabes que, se esse homem morrer, nós não podemos vencer. Eles podem pôr a tua fortaleza a ferro-e-fogo e chacinar todos os bretões dentro dela, mas não seria uma vitória. Sem o Filho da Profecia, sem a sua intervenção, esta guerra não pode terminar.

 

E depois? O olhar de Edwin era penetrante; talvez adivinhasse o que vinha a seguir.

 

E depois, pergunta-lhe. Pergunta a Johnny, que é o herdeiro de Sevenwaters e ao mesmo tempo teu parente, qual é a decisão que deve ser, aqui, tomada. Ele que determine. Ele é o nosso líder. Os homens aceitarão a sua decisão.

 

E quando Conor traduziu, ouviu-se, desta vez, uma grande aclamação da parte dos irlandeses, fazendo tremer o chão com o seu poder.

 

Bando de loucos resmungou a minha avó. Arriscar tudo com aquilo. O rapaz está meio-morto, pelo aspecto. Nem se consegue ter de pé como deve ser. Que raio de decisão é que ele vai tomar? Ele não pode escolher a própria morte. Ainda bem que estás aqui, Fainne, para fazer isto por mim, senão ainda me escapava tudo por entre os dedos outra vez. E não podemos permitir que isso aconteça, pois não?

 

Não avó.

 

Edwin falou com o prisioneiro e este respondeu-lhe qualquer coisa. O bretão não tinha grande escolha e eu achei que ele sabia. Ele tinha apenas o prisioneiro como moeda de troca e o melhor que podia esperar era poder embarcar sem ser molestado, podendo, eventualmente, regressar mais tarde. Edwin era um combatente experimentado. Talvez, lá dentro, soubesse que assim que cortasse a garganta de Johnny era um homem morto, assim como todos os outros.

 

Johnny deu um passo hesitante em frente e olhou para baixo, para a multidão dos seus homens. Fez-se um profundo silêncio.

 

Isto não pode ser decidido assim. A sua voz era firme, mas fraca; devia estar a fazer um grande esforço para a manter controlada. A expressão do seu rosto era de profunda exaustão. Homens de Sevenwaters, de Glencarnagh e de Sídhe Dubh; homens de Inis Eala e de Tirconnell. Sugiro que regulemos isto com um combate singular. O vencedor fica com as Ilhas; o vencido fica com um salvo-conduto para as suas costas, com a promessa de nunca mais voltar. É tempo de acabar com a matança; que cessem as perdas. Ambos os lados aceitam a proposta e submetem-se-lhe. Se eu for derrotado neste combate, não haverá brechas nestas muralhas, nem chacinas indiscriminadas. Um combate limpo; um fim limpo. Se eu morrer, regressareis a Erin e nunca mais reclamareis estas Ilhas. O jovem virou-se para Nortwoods. Combaterei com o campeão que escolheres entre os teus guerreiros. Se ele for vencido, aceitarás a oferta do meu tio, levando para Inglaterra os teus homens no navio que o meu irmão traz de Harrowfield. O meu pai vai contigo; ele é teu vizinho e parente e eu acredito que ele apenas combateu porque pensava que eu tinha morrido. Sanarás as tuas questões com ele. Concordas com esta proposta? Edwin olhou para ele.

 

Tu? Combateres com um dos meus guerreiros? Estiveste um dia inteiro no mar, estás ferido e... O bretão deteve-se.

 

Johnny abriu a boca num pequeno sorriso.

 

Nesse caso, estás em vantagem disse ele calmamente.

 

E assim se jogaria o destino das Ilhas e o cumprimento da profecia: num combate entre dois homens. As tropas de Sevenwaters ficaram excitadas, extasiadas. Os homens sabiam da capacidade de Johnny com a espada; melhor ainda, sabiam do seu papel quase mítico na profecia e, nas suas mentes, não podia perder. Nem ouviram as últimas palavras de Edwin; nem viram, como eu vi, o Filho da Profecia meio afogado, exausto, com as costelas partidas e o corpo martirizado a ser conduzido para uma cela para passar a noite. Achavam que ele era sobre-humano; mas, por mais coragem e qualidade que tivesse, não passava de um mortal cansado e ferido. Ouvi Bran argumentar ferozmente com os outros: Ele não pode combater! Combato eu! Deixem-me! e, por sua vez, Conor, Sean e Finbar dizerem-lhe que a profecia tinha de se cumprir; que a estranha decisão de Johnny devia estar certa. Parecia acreditarem que ele venceria, contra todas as probabilidades, porque estava escrito. De qualquer modo, Snake continuava com a sua guarda postada ao longo do fosso; ele sabia que os seus homens não romperiam as linhas, mas tinha os outros debaixo de olho, especialmente os vestidos de verde.

 

Quanto à minha avó, ria para si própria e tinha um sorriso de orelha a orelha.

 

Oh, isto vai ser fácil, Fainne, muito fácil. Quase uma vergonha, a sério, um rapaz tão novo, tão bravo, se bem que nunca haverá outro Colum de Sevenwaters. Mas este parece ser, também, um belo espécime: ombros largos, pernas fortes. Fainne? Estás a ouvir? Presta atenção, rapariga! Tens de estar pronta quando eu disser. Sabes o que tens a fazer?

 

Sei, avó murmurei, com os punhos fechados com tal força que as unhas se me enterraram nas palmas das mãos.

 

Achas que tens coragem?

 

Tenho, avó. Oh sim, tinha coragem. A arte é que era o problema. Ainda não sentia o seu poder; continuava tão fraca que mal me conseguia ter de pé. E não podia testá-la; estávamos ambas escondidas por trás de uns arbustos e de umas pedras e não podia permitir que ela soubesse quão indefesa estava. Tinha de sair dali e esperar, quando dissesse as palavras do feitiço, que acontecesse alguma coisa.

 

Tens a certeza? A minha avó olhava para mim de sobrancelhas franzidas, os seus penetrantes olhos, escuros como contas, perscrutando-me o rosto.

 

Certeza absoluta disse-lhe, com a voz firme como uma rocha e devolvendo-lhe o olhar com uns olhos que eu sabia serem o espelho dos dela.

 

Eu achava uma loucura, uma coisa inacreditável, que Johnny se arriscasse daquela maneira, estando tão fraco. Mas os homens confiavam na sua opinião e por um momento pareceu-me que tinham razão. Não devia ter-me sentido surpreendida, talvez, já que ele era filho de Inis Eala, nascido e criado ao som da espada e da lança. Ele era bom; tão bom, de facto, que em breve se tornou óbvio que sem a desvantagem da sua fraqueza, dos seus ferimentos e de uma costela ou duas partidas, venceria o seu adversário com toda a facilidade. Mas o campeão bretão também era capaz e era forte. Parecia que também Northwoods pensava arriscar, porque o jovem de ombros largos que circulava ali, abaixo de mim, manobrando a espada, não era outro senão o filho de Edwin, que estivera a seu lado durante a noite em conselho. O equilíbrio e o simbolismo davam àquele combate a ressonância de uma velha história.

 

Os homens estavam reunidos num grande círculo. De um lado, o lado mais afastado do fosso e da muralha, estavam os homens de Erin e do outro os guerreiros de Northwoods, porque tinham de estar presentes para proteger o seu campeão e assegurarem-se que o combate era leal. Os homens de Inis Eala continuavam a patrulhar, cautelosos e vigilantes, assegurando-se de que as coisas não se descontrolariam. Apesar do acordo entre os líderes, a situação continuava no fio da navalha e o menor lapso de disciplina poderia provocar um banho de sangue. Ainda no dia anterior aqueles homens se tinham esquartejado e esmagado as cabeças uns dos outros, enquanto davam gritos de guerra. Era um milagre estarem todos juntos, de armas embainhadas. Por isso, os homens de Johnny andavam pela orla da multidão, de mãos nas espadas e de olhos semicerrados. E no centro do espaço aberto, em redor do qual a multidão se amontoava, combatiam os dois jovens. Usavam as suas pesadas espadas, girando e esquivando-se, as armas assobiando no ar, os seus grunhidos e arquejos como contraponto àquela música mortal. Não tinham escudos; aquele era um combate directo e brutal, que, certamente, não duraria muito. Johnny estava cansado. Podia vê-lo pelo modo como movia os pés, lutando por conseguir equilíbrio. Podia ver uma mudança nos seus firmes olhos cinzentos, como se sentisse a morte perto. Se ele perdesse, perderia tudo.

 

O filho de Edwin sangrava de um profundo ferimento no ombro e de um corte na coxa. O seu rosto estava corado do esforço e encharcado em suor. Johnny estava mortalmente pálido; pressenti uma sombra sobre ele e senti-me gelar. Chegaria o momento, em breve, em que ele seria atirado ao chão com a arma do outro na garganta e eu teria de correr e... e...

 

O filho de Edwin deu uma estocada e desta vez o equilíbrio de Johnny não foi perfeito. O seu pé escorregou; ele oscilou por um instante e a arma do seu adversário rasgou-lhe a roupa e a carne. Os olhos de Johnny abriram-se um pouco; a sua boca abriu-se e fechou-se. O filho de Edwin deu um passo atrás; ergueu de novo a espada; preparou-se para o golpe final. Johnny deu um passo em frente com firmeza, rodou nos calcanhares e o seu pé atingiu o punho do seu adversário, fazendo-lhe saltar a arma da mão. A pesada espada voou através do ar, ao mesmo tempo que a multidão arquejava em uníssono. Um momento mais tarde, o bretão estava estendido no chão e Johnny estava em cima dele com a ponta da sua espada a um dedo da garganta do seu oponente. Johnny estava vestido de preto; mas eu podia ver como o sangue corria do grande corte que o filho de Edwin lhe fizera e como o rosto do meu primo ficava cada vez mais pálido, ao mesmo tempo que o Sol saía de trás das nuvens para iluminar aquela cena com um brilho fantasmagórico.

 

Por um momento, Johnny ficou completamente imóvel e a multidão, silenciosa, esperou. Os líderes estavam todos juntos no mesmo grupo. Sean, Conor, Eamonn e Bran de Harrowfield não muito longe; os meus olhos procuraram Finbar e encontraram-no estranhamente sozinho na parte mais afastada do círculo. Apesar de estar escondida, pareceu-me que ele estava a olhar directamente para mim e, mais estranho ainda, pensei ouvir o que lhe ia na mente.

 

Agora seria uma boa ocasião. Nós ajudamos-te.

 

Agora seria uma boa ocasião murmurei. Não acha?

 

Ehhh sibilou a minha avó, subitamente de mau humor. O que é que ele está a dizer?

 

Os olhos de Johnny pareciam duas lagoas escuras; a sua boca estava severamente cerrada. O jovem olhou para o seu pai e depois para Sean. E olhou para o rosto cor de cinza de Edwin de Northwoods.

 

Isto é um combate de morte? perguntou ele polidamente com a voz de um homem muito perto da inconsciência.

 

Ouviu-se um rugido vindo da multidão e, depois, silêncio. Parecia-me que, fosse qual fosse a resposta, estávamos à beira de um desastre. E se havia alguém cuja capacidade de discernimento respeitava, esse alguém era Finbar. Levantei-me, saí lentamente do meu esconderijo, os braços ao longo do corpo e os cabelos em turbilhão por causa do vento. A bandeira vermelha, sinal para avançar. O meu coração batia desordenadamente de terror.

 

Por trás de mim, a minha avó deu uma risada, deliciada.

 

Muito bem, Fainne, muito bem! Faz com que me orgulhe de ti, pequena!

 

Não tinha um único fragmento de magia em mim. Os meus ajudantes do Outro Mundo tinham-se ido embora. A minha avó estava ali a olhar para mim. E eu a coxear, desarmada, uma rapariga com um vestido às riscas e um xaile macio, com uma boneca presa no cinto e um exército de guerreiros ferozes resmungando e abrindo alas para me deixar passar. Porquê, não sei. Talvez não passasse de uma surpresa, aparecer ali uma rapariga naquela ilha isolada, no meio de uma grande campanha. Talvez alguns pensassem que eu era uma criatura do Outro Mundo. À medida que me aproximava do espaço aberto onde continuavam os dois guerreiros completamente imóveis, o silêncio ia aumentando. O sangue das duas raças caía no chão, misturando-se.

 

Continua, parecia sussurrar a voz da minha avó. Olhei por cima do ombro; ela vinha mesmo atrás de mim, de capa negra, capuz negro, e parou na orla da multidão, observando cada um dos meus movimentos. Acaba. Acaba com ele. Ele já está meio-morto. É simples. Rápido, antes que ele mergulhe essa espada no pescoço do bretão com as forças que lhe restam. Depressa. Eles estão todos a olhar. Estão todos a olhar. Quero ver as caras deles quando o Filho da Profecia se engasgar com o próprio sangue. Fá-lo por mim, e por todos os da nossa espécie.

 

Não estava muito longe de Johnny, que continuava à espera. Dez passos, talvez. Muita coisa pode acontecer no espaço entre dez passos. Olhei em redor do círculo; vi o rosto chocado do meu tio Sean, a expressão horrorizada de Eamonn e as feições solenes e compreensivas de Conor. Vi o aceno de compreensão e aprovação de Finbar. E vi a confusão e a dúvida nos rostos do bretão e do irlandês. E, para lá do círculo, vi outros esperando silenciosamente, de olhar intenso e perscrutante: uma mulher mais alta do que qualquer mortal, pálida como a neve da Primavera, com longos e sedosos cabelos negros; um homem com uma coroa de chamas, cujo traje flutuava em redor do seu corpo como uma cortina de fogo vivo. E havia outros, muitos outros, seres com caracóis brilhantes como algas e peles translúcidas como vidro; criaturas encantadoras vestidas de penas e bagas, ervas e folhas, líquen. Casca de árvore e musgo. Todos mais altos do que se poderia imaginar e todos a olharem para mim. Chegou a hora, pareciam dizer, apesar de ser eu, talvez, a única a vê-los e a ouvi-los. Chegou a hora, por fim. Os Fair Folk tinham chegado. Mas não me iam ajudar. Teria de fazer tudo sozinha.

 

Vai, Fainne, apressou-me a voz da minha avó. Agora. Só há uma maneira. Mata-o. Agora, rapariga!

 

Dei mais um passo e depois outro. Estava quase a meio do círculo. Então, ouviu-se um grito na língua dos bretões:

 

É um truque! Detenham a rapariga! Ouvi uma espécie de assobio no ar por trás de mim e um ofegar; ouvi alguém a correr na minha direcção e fui afastada brutalmente para o lado, de modo que me estatelei no chão e fiquei com algo pesado em cima de mim. Ouviu-se um rugido de vozes, o som de armas a serem desembainhadas e a voz do meu tio Sean a gritar:

 

Não! Calma! Para trás!

 

Lutei para me pôr de pé, desalojando o peso morto de cima de mim. Havia sangue no meu vestido, muito sangue; o vestido cor-de-rosa de Riona estava escarlate. Jazia um homem a meus pés e era o seu sangue que me ensopava, porque fora trespassado por uma lança e a sua ponta rebarbada saia-lhe do corpo e arrepanhava-me o vestido. O homem sufocava; um rio vermelho saía-lhe às golfadas da boca e do nariz, enchendo-lhe a túnica verde. Quanto tentei tocar-lhe na testa, para lhe afastar os cabelos castanhos que lhe caíam para os olhos agonizantes, ele disse uma palavra, numa voz arquejante, que podia ser o meu nome e caiu de costas, morto. Contra todas as probabilidades, fora Eamonn que agira daquele modo, por impulso, salvando-me a vida; contra todos os padrões, morrera como um herói. Fiquei gelada. Não podia haver mais coisas daquelas. Não podia haver mais sangue. Nem mais mortes. Aquilo tinha de parar. Eu tinha de parar aquilo.

 

Para trás! gritou Snake. Já não podes fazer nada!

 

Temos de fazer as coisas como deve ser! Era a voz de Edwin. Mantenham a disciplina, homens! Fizemos um acordo e honrá-lo-emos.

 

Ouvistes Lorde Edwin! Mantenham as fileiras! Para trás! Agora era a voz de Sean de Sevenwaters, cujos homens clamavam agora por sangue; porque fora uma lança bretã que matara Eamonn de Glencarnagh, se bem que me fosse destinada. Pouco faltava para que aqueles guerreiros, sedentos de vingança, violassem a atravessassem a guarda montada pelos homens de Snake e se lançassem uns contra os outros mais uma vez, matando-se até que toda a ilha se transformasse num mar de sangue.

 

Um círculo. Um círculo de protecção. Era do que eu precisava. E tinha de ser de fogo, porque o fogo era fácil e assustava as pessoas, o suficiente para manter os guerreiros afastados. Ergui os braços, disse um feitiço e girei no lugar onde estava. Sabia que ainda não tinha a força suficiente para aquele simples truque; a única coisa que conseguiria seria uma minúscula comichão na ponta dos dedos, demasiado fraca para provocar uma simples faísca. No entanto, à medida que girava e apontava, as chamas saíram da minha mão estendida, de modo que Johnny, o jovem bretão e eu própria ficámos circundados por um anel de fogo de três palmos de altura e suficientemente quente para afastar os homens. Estávamos salvos, pelo menos por enquanto. Do outro lado do círculo apareceu Finbar com o seu braço estendido e a grande asa aberta. E do lado oposto, Conor, o arquidruida, fez o mesmo, os braços bem afastados e as mãos abertas num gesto de poder. O círculo em chamas correu dele para o irmão e de novo para ele. Era óptimo, de certo modo, ter druidas na família.

 

A minha avó continuava à espera na orla do círculo, uma figura esbelta, vestida de escuro, silenciosa, enquanto eu me encaminhava para Johnny. Mesmo então, enquanto me aproximava dele, não sabia exactamente o que diria, ou como faria a diferença, sem a arte. Mas todos eles esperavam; os guerreiros, o vidente, o druida e os líderes de Inglaterra e de Erin. Por trás dos homens, num plano mais alto, estavam reunidas muitas criaturas pequenas, uma criatura-mocho, uma rocha musgosa com uns buracos no lugar dos olhos, um pequeno arbusto com a folhagem a fazer de dedos; uma lebre, uma carriça, uma coisa parecida com água e com a forma de uma criança. E a toda a roda, por trás de todos, os Fair Folk, guardiões dos segredos da terra, detentores dos mistérios da nossa fé; até eles tinham a respiração suspensa, aguardando as minhas palavras.

 

Mas eu não tinha magia. Era apenas uma rapariga, e um fraco exemplo do género. Não tinha virtude nem nobreza. Não era capaz de inspirar os homens, como Johnny. Não conseguia encantar as criaturas selvagens, como Darragh. Não sabia como curar um homem de um ferimento, não sabia nadar, nem dançar. Sem a arte, não era nada.

 

Usa o que existe, dissera-me o Fomhóire; a magia natural da terra e da água, do ar e do fogo. Magia de druida. Usa-a. E no momento em que me coloquei ao lado de Johnny, o céu começou a escurecer. A manhã já ia a meio; as nuvens tinham-se dispersado tão rapidamente como se juntavam, e o céu estava limpo. Mas o brilho do Sol começou a desvanecer-se e caiu sobre a terra um crepúsculo sobrenatural, como se o dia se tivesse transformado num estranho anoitecer. Os homens começaram a murmurar, pouco à-vontade; alguns fizeram sinais na direcção do ar acima deles.

 

Depressa, Fainne! Onde está a tua coragem? Despacha-te!, a minha avó estava a ficar cada vez mais impaciente.

 

Também eu teria ficado com medo daquela escuridão se outras coisas não me tivessem já deixado quase inconsciente de terror; o sangue de Eamonn, a voz da minha avó e a minha própria terrível fraqueza. Concentra-te. Controla-te. Pensei no meu pai e no tanto que lhe devia e ajoelhei junto do bretão, de modo que Johnny não o poderia matar sem pôr em risco a minha própria vida.

 

Fainne! Que estás a fazer? sibilou o meu primo. Agora que estava perto, podia ver como as suas mãos tremiam; em breve seria incapaz de suportar o peso da sua espada. Quanto ao bretão, tinha o rosto branco como a cal e jazia numa poça de sangue. O céu ficou mais escuro e o anel de fogo brilhou na estranha obscuridade matinal. Por fim, as palavras vieram-me à mente.

 

Eu sou Fainne de Kerry, filha do feiticeiro Ciarán! gritei eu numa voz tão solene quanto possível. Tinha de ser rápida, ou os dois homens sangrariam até à morte onde estavam, e teria sido tudo inútil. Venho de uma grande linhagem de magos. Estou aqui para vos pedir que baixeis as vossas armas e que abandoneis este lugar para sempre. Vede como o céu escurece; é um sinal de aviso para todos. Chega de sangue derramado nestas Ilhas; chega de tantas gerações de vidas perdidas. O Filho da Profecia está vivo e regressou e a grande demanda dos Fair Folk aproxima-se do seu fim. Os vossos filhos estão aqui, feridos, próximos da morte. O seu sangue ensopa a terra que vos divide. Sois capaz de os perder apenas por causa da vossa sede de poder? Retirai, salvai-vos e não luteis mais! Olhei para cima. Parecia, na verdade, que uma sombra do Outro Mundo encobria a luz do Sol; era o suficiente para fazer com que o coração se apertasse de medo. Ouvi uma voz vinda da orla do círculo ardente, pensei que era a de Corentin, traduzindo as minhas palavras para a língua dos bretões, de modo a que todos compreendessem. E então os guerreiros ali reunidos começaram a olhar para trás de si nervosamente, os olhos deslizando por aquelas figuras altas e misteriosas, que continuavam silenciosas; cujo olhar parecia antigo e sábio sob aquele estranho céu escuro. O Sol esconde a sua face continuei. A meu lado, Johnny tirara a espada da garganta do bretão; os dois olhavam espantados para mim. Deveis sair deste lugar, porque as minhas palavras são verdadeiras quando digo que nenhum homem poderá viver aqui a partir de amanhã; ficar nestas costas é como medir a vossa vida pelo percurso do sol, desde que nasce, a leste, até se pôr no oceano As palavras pareciam fluir da minha boca sem que eu as pensasse; na verdade, mal compreendia o que estava a dizer. As Ilhas são o Último Lugar. Não são para as mãos ansiosas dos homens; nem os Bretões, nem os do Ulster, nem os Noruegueses, nem os Pictos as poderão possuir a partir de hoje, porque se desvanecerão nas brumas do mistério e só se revelarão aos viajantes do espírito. Homens de Erin, homens de Northumbria, ouvi-me. Esta longa guerra terminou.

 

O céu ficara ainda mais escuro, quase como se já fosse noite. O Sol estava obscurecido, um mero anel dourado, o seu centro escondido por uma qualquer sombra maligna. A estranha luz deu às minhas palavras um poder para além do normal e os homens em redor resmungavam e murmuravam, e alguns gritavam de medo, ou chamavam um deus ou outro, para que os salvasse. Alguns já se estavam, até, a afastar-se da multidão, dirigindo-se para os navios.

 

A rapariga não fala senão a verdade. O meu coração bateu com força quando ouvi a voz de Lady Oonagh. Ela puxou para trás o capuz escuro e deu um passo em frente, de modo a ficar na orla do círculo ardente, as chamas lambendo-lhe a bainha do vestido, mas sem o queimarem. Era como se fosse insensível ao seu calor. Não usava a sua imagem de anciã, antes o disfarce de uma mulher alta, bela, de pele branca, cabelos ruivos e uma voz doce e forte como a de uma cotovia. A retirada é a vossa única hipótese, pobres e loucos guerreiros humanos. Tudo para nada, estas mortes, estas perdas; para nada. A profecia nunca será cumprida; não passa de uma série de disparates de alguns velhos druidas, senis e ignorantes. Aqui não há vencedores, senão os da minha espécie: Eu, Lady Oonagh e a minha neta Fainne, que se mostra agora como ela própria, uma feiticeira tão poderosa como eu!

 

A minha avó virou-se para mim e, à medida que falava, vi o meu tio Sean a olhar para mim, horrorizado; e Bran de Harrowfield, de rosto severo, avançando para o círculo de fogo, inconsciente do perigo e sendo puxado por Gull e Snake, um de cada lado. Ninguém passaria aquela barreira, excepto um feiticeiro mais forte do que o que a tinha feito.

 

Agora, Fainne! A minha avó deu uma risada de satisfação malvada. Agora, como planeamos! Mata o rapaz; acaba com esses novos-ricos e com os seus patrões do Outro Mundo. Acaba com essa farsa da profecia. O tipo até já nem pode com as pernas; e os dedos já não conseguem segurar a arma. Faz como me prometeste, acaba com ele!

 

Ouviram-se gritos de ultraje na multidão; Ouvi Bran gritar:

 

Não!

 

Senti a raiva e a frustração dos homens à nossa volta, tanto do Ulster como dos bretões. Porém, nenhum poderia entrar dentro do círculo enquanto ele ardesse; a decisão estava nas minhas mãos. Olhei para cima e senti uma profunda dor ao ver aqueles homens, que me tinham tratado com tanto respeito e amizade, olharem para mim como se eu fosse uma criatura demasiado louca para ser contemplada. Gareth, Corentin, Gull, Snake e até o meu tio Sean, olhavam para mim com ar chocado e com repugnância. Talvez eu não merecesse melhor.

 

Johnny caíra de joelhos; tinha uma mão encostada com força a um dos lados do corpo, os dedos cheios de sangue. O filho de Edwin estava deitado de costas, os olhos abertos e a respiração ofegante.

 

Depressa, pequena! disse a feiticeira. Usa a arte! Ou usa a espada, se quiseres. Vamos! Ele tem de morrer pela tua mão!

 

Lamento, avó disse eu polidamente, com a voz a tremer como uma folha de Outono. Creio que não posso fazer isso.

 

Vi o seu rosto mudar; estremeci ao ver a expressão dos seus olhos. Com aquele olhar, uma feiticeira era capaz de transformar, por meio do terror, um simples mortal em pedra. Para lá da minha avó podia ver Conor, ainda de braços abertos, mantendo o círculo protector. Lady Oonagh podia ser insensível ao fogo, mas não podia entrar naquele espaço encantado; ela tentava entrar, as sobrancelhas franzidas de fúria. Talvez uma força, mais forte do que todos nós, a estivesse a impedir.

 

O quê gritou ela. O céu continuava escuro; o vento ergueu-se de novo, um vento lamentoso, estranho, que lhe chicoteava o vestido. Umas sombras estranhas espalharam-se à sua volta, no chão, e ela pareceu enorme e ameaçadora. Os seus olhos eram fendas num rosto branco como a cal, os lábios vermelhos como sangue e os dentes autênticas facas afiadas. À sua esquerda e à sua direita o círculo de fogo começou a abrandar e a morrer.

 

Aguenta, irmão! gritou Conor. As suas mãos tremiam; por trás de mim ouvi o lamento de dor e de medo de Finbar. Ela estava a fazer o máximo para o quebrar, e era muito forte. O druida e o vidente, no fim de contas, não passavam de mortais. Se eu, ao menos, não estivesse tão fraca, se tivesse apenas um fragmento do meu verdadeiro poder.

 

Atreves-te a desobedecer-me, rapariga? Tu, um aborto, uma atrasada mental, com uma mãe imbecil e com as tuas estúpidas noções de amor e lealdade? Ou tens fraca memória ou pensas que sou excepcionalmente estúpida.

 

E então ela virou-se e olhou para o fosso e para a muralha de terra, para o local onde as fortificações davam lugar à falésia virada para sul. Ali só havia ninhos de aves e pequenas plantas suspensas. Ali não havia saliências suficientemente grandes para um homem ou uma mulher descansarem; não havia lugares seguros na superfície alcantilada. Em vez disso, o solo erguia-se gentilmente, parava e lá em baixo, muito lá em baixo, estava o mar. Snake postara os seus homens no alto para prevenir incursões prematuras ao fosso e por cima da muralha de terra; postara-os exactamente naquela extremidade. E quem melhor para ficar mesmo na extremidade, o lugar mais fácil de vigiar, onde nada poderia passar, senão um nómada que não queria ser um guerreiro?

 

Agora disse Lady Oonagh com a respiração alterada. Agora, oh, agora vais fazer o que te digo. Porque isto não suportas tu!

 

A atenção de Darragh tinha-se desviado do seu dever; estava a olhar para cima, para um bando de andorinhas-do-mar que voava por cima da cabeça dele numa formação perfeita, talvez em busca da Primavera. Quando percebi, todo o meu corpo gelou de terror e vi a feiticeira mandar subir o vento, arrasando os homens à passagem, atirando-os por terra com a sua força. A rajada apanhou Darragh desprevenido, chicoteando-lhe o cabelo escuro para trás, rasgando-lhe a capa curta e fazendo-a subir em espiral, para cima, para cima, para céu aberto. Ele cambaleou, tentou agarrar-se a uma rocha, a um arbusto, a qualquer coisa; mas não havia nada a que se pudesse agarrar e a violenta rajada atirou-o para trás, sempre para trás, os seus pés cada vez mais próximos do ponto onde o chão desaparecia e o grande espaço se abria para o mar. Os homens começaram a correr na sua direcção com o vento por trás, mas muito lentamente, muito lentamente. Gareth, com os seus grandes ombros, Corentin, com os seus cabelos escuros, gritando: Aguenta-te! Já vamos! Era evidente que não iam chegar a tempo.

 

Agora! gritou Lady Oonagh com os olhos escuros, cor de amora, fixos em mim e a boca rosnando, selvagem como uma doninha. Faz o que digo! Faz o que te digo! Mata o rapaz, ou o teu latoeirozinho morre! Faz o que te digo, maldita sejas! Faz o que te digo, ou ele morre!

 

Johnny estava a meu lado, ajoelhado, os seus firmes olhos cinzentos virados para mim. Vi a morte neles, mas não vi medo. Só podia ser ele o Filho da Profecia, um modelo de coragem e dignidade. Sem ele, o povo de Sevenwaters voltaria, uma vez mais, a andar à deriva, sem objectivo, mais uma vez na escuridão. Sem ele, não valeria a pena; sem ele, nada valeria a pena.

 

Não posso murmurei e soube o que era sentir o coração despedaçado.

 

Eu sabia um feitiço. Sabia um pequeno feitiço, bem ensaiado quando era ainda criança e ainda não sabia o que era o amor. Pára. Cai. Devagarinho, agora. Eu sabia aquele truque, nunca partira um único vidro. Mas não tinha nenhuma magia em mim.

 

Não precisava de olhar. Com os olhos fechados e as duas mãos no rosto, vi tudo. Vi a fúria louca nos olhos da feiticeira, uma luz maldita. Vi o vento pegar em Darragh como se ele não fosse mais pesado do que uma folha de Outono, vi o modo cruel como Lady Oonagh o manteve suspenso por um momento, mesmo por cima do precipício, provocando-me, insultando-me, como se um grito, uma palavra, um simples suspiro, ainda o pudesse trazer de volta, se eu quisesse. E vi como, no fim, o nómada transformou a sua longa e última descida para o esquecimento numa coisa maravilhosa e bela, numa coisa tão bela como as últimas notas do lamento de uma gaita-de-foles. Porque ele não caiu, antes torceu o corpo no ar, colou os braços ao corpo e mergulhou de cabeça, rápido e a pique, como uma andorinha, na direcção do abraço implacável do mar frio, na direcção das rochas afiadas como facas e da agitação branca das vagas.

 

 

                                           CAPíTULO DEZASSEIS

 

Alguém gritava. Alguém berrava, um terrível som de angústia que fazia gelar o sangue, um som de esfrangalhar os nervos. Um som que faria tremer o mais forte dos homens. Os meus punhos estavam metidos nas órbitas dos meus olhos; o meu maxilar estava cerrado com toda a força; a minha cabeça vibrava de dor. Por fim, aprendera a fazer uma coisa que sempre acreditara não poder ser feita pela filha de um feiticeiro. Aprendera a chorar. Chorei como nenhuma rapariga chorara antes, um rio de lágrimas, uma torrente de dor. Fiquei ali a chorar a minha dor ao vento, enquanto Lady Oonagh olhava para mim com um sorriso no rosto. A meu lado, Johnny estendeu um braço para o seu adversário estendido no chão.

 

Vamos disse ele. Acabou. Precisamos ambos de cuidados médicos e depois precisamos de falar. Deixa-me ajudar-te. O bretão fez um esforço e pôs-se de pé; ficaram os dois a meu lado, amparando-se um ao outro.

 

Ainda não. Ela ainda não acabara; não se deixava enganar facilmente. Se calhar, pensas que ganhaste; achas que eu não posso levar a tarefa até ao fim sem a tua ajuda. Rapariga tonta. Puseste de lado a única pessoa que se preocupava contigo e para nada. Eu vou quebrar este círculo; vou destroçar esta gente como antes, há muito tempo. Um a um, estes filhos de Sevenwaters, e depois mato-vos a ambos; mato o Filho da Profecia e mato-te a ti, neta desobediente.

 

Ouvi o meu tio Sean gritar:

 

Não! E avançou, para ser atirado para trás pelas chamas que nos protegiam; vi a minha avó erguer as mãos e enviar um raio verde ao longo do círculo ardente, um raio que atingiu primeiro Finbar e o fez cair de joelhos, gemendo de dor. Conor estava pronto e tentou aguentar, mas o seu rosto ficou cinzento e os olhos adquiriram uma expressão de aflição.

 

Depressa, Fainne! disse ele. Não conseguimos aguentar isto por muito mais tempo. Ajuda-nos!

 

Mas eu não podia. A arte estava a regressar, mas lentamente, os meus dedos picavam-me, o meu sangue já corria com mais rapidez e eu podia senti-lo percorrer-me como uma profunda ira, crescendo, crescendo, inexorável, imparável. Mas continuei ali imóvel, gelada pela dor, paralisada pela perda, dos dois filhos de Sevenwaters e de Northumbria, ambos em risco de sangrarem até à morte se eu não os ajudasse.

 

Qual há-de ser o primeiro? sibilou Lady Oonagh, mostrando os dentes como um gato, e enviou outro raio através do círculo, vermelho desta vez, da cor do sangue. Finbar gritou e ela riu-se. Pude ver uma espécie de fumo a sair das penas da sua asa; o seu rosto estava pálido, cor de cinza, e aterrorizado. Mais uma vez e ele ficaria incapaz de lhe fazer frente. Ela ergueu os braços bem alto com um sorriso terrível no rosto e, quando o fez, o céu começou a clarear de novo, o Sol a emergir da sua estranha obscuridade e uma grande ave voou através do círculo, passando tão perto dos olhos da feiticeira que ela tentou esquivar-se; passando para pousar no ombro de uma figura vestida de escuro que aparecera entre os espectadores, tão abruptamente como se o tivesse feito com um passe de mágica. A feiticeira ergueu de novo as mãos e pareceu atrair faíscas do ar para os seus dedos. O seu corpo ficou vestido de luz. Parecia muito mais alta do que qualquer mulher mortal.

 

Tu, guinchou ela. Tu, que me desafiaste uma vez, tu, que suportaste o que nenhum homem poderia suportar, desta vez vou acabar contigo.

 

A feiticeira baixou os braços e apontou-os para Finbar, que ajoelhou arfando de dor, os olhos ainda límpidos e conscientes, enquanto tentava aguentar o fogo protector.

 

Agora! sibilou ela e a estranha chama pareceu fluir dos seus dedos e atravessar o círculo. A silhueta vestida de escuro puxou para trás o seu capuz e ergueu as mãos, ao mesmo tempo que afastava os braços, as palmas para cima, um eco da postura de Conor. As faíscas nos dedos da feiticeira zumbiram e morreram.

 

Acho que não, mãe disse Ciarán, imóvel, com o corvo empoleirado no seu ombro. O seu olhar era franco e o seu rosto estava pálido, mas calmo. Para quem estivera doente, às portas da morte, parecia bem. Ela mentira-me. Manipulara-me e eu acreditara nela. Quantas mais das suas ameaças seriam isso mesmo, falsidades venenosas que usava para me aterrorizar?

 

Tu, cuspiu ela, furiosa. Como te atreves a meter-te nisto, pobre de espírito, com a cabeça cheia de noções druídicas! Não admira que a tua filha tenha falhado no fim! Foste tu o causador, tu e aquela tua mulherzinha, a tua preciosa Niamh, com as suas maneiras suaves e cabeça vazia. Ainda bem que me livrei dela, ou nunca conseguiria nada da rapariga. Mas Fainne não correspondeu às minhas expectativas. Perdeu a coragem quando mais precisava dela.

 

O meu pai avançou um passo, muito lentamente. Parecia que podia atravessar o círculo com a maior das facilidades.

 

Que disse? perguntou ele suavemente.

 

A rapariga não presta. É igual à mãe. Houve uma mudança na voz de Lady Oonagh, como se estivesse surpreendida, ou assustada. Por cima de nós, o Sol começou a emergir; o dia ficou cada vez mais brilhante.

 

Não foi isso. Disse que se livrou de Niamh. Que quis dizer com isso, mãe?

 

Um pequeno acidente, nada mais. Uma escorregadela na falésia. Um pequeno empurrão e lá foi ela para o esquecimento. Ela não prestava para ti, Ciarán. Podias ter sido um grande homem; um homem de poder e influência. Ela estragou-te e enfraqueceu a rapariga. Tinha de ir.

 

O rosto do meu pai corou de fúria. Havia um tal perigo naquele olhar que até uma feiticeira era capaz de vacilar. Quanto a mim, as suas palavras fizeram-me estremecer de horror. Conhecia-a bem, mas não a sabia capaz de uma coisa tão maldosa. Fora ela que lhes dera cabo da vida, nem Sean, nem Conor, nem um marido cruel, ou uma família desinteressada. Os olhos do meu pai pareciam duas pedras de gelo. A sua voz estava mortalmente calma.

 

Portanto, chegámos a isto disse ele olhando para a mãe do outro lado do círculo. Um teste de vontades; um teste de força. Mas primeiro... O meu pai olhou para Johnny, que estava junto de mim com Edwin apoiado no seu ombro. Eu conseguia ouvir a respiração dos dois jovens; era difícil dizer qual dois estava mais pálido. Saiam do círculo disse-lhes Ciarán calmamente. Saiam, que eu protejo-os. Senti, mais do que vi, o efeito do feitiço que ele estava a usar, uma capa protectora, invisível, a toda a prova, envolvendo os dois jovens guerreiros. O meu pai não conseguiria aguentar aquele encantamento por muito tempo, mas, entretanto, era um escudo que nenhuma espada, flecha, lança, ou feiticeira poderia penetrar. Envoltos naquele feitiço, podiam atravessar, imunes, a barreira ardente. Johnny hesitou, sentindo, sem dúvida, a magia, mas compreendendo lentamente o seu significado através da bruma da exaustão e dos ferimentos.

 

Olhei para o meu primo.

 

É melhor ires consegui dizer com a voz alquebrada e áspera, porque as lágrimas ainda me corriam pelas faces abaixo. Vai, vai buscar ajuda, declara umas tréguas. Toda a gente tem de estar longe daqui ao anoitecer. Vem aí uma vaga, e uma bruma; não é seguro para ninguém.

 

Palavras, de novo, que pareciam vir de fora da minha mente; palavras que tinham um sentido curioso. Johnny olhou para mim.

 

Mas... disse ele fracamente.

 

Ehhh, disse eu. Vai correr tudo bem. Vai, pede a Gull que te trate esse ferimento. Resolve as tuas questões com os Bretões. O teu papel é esse; liderar. Não precisamos de ti aqui.

 

Fainne...

 

Vai, Johnny. Confia em mim. Eu sou da tua família. Vi a cabeça da feiticeira virar-se na minha direcção quando eu disse aquelas palavras. Os seus olhos semicerraram-se. No momento em que a sua atenção se afastou, o círculo de chamas amainou um pouco e os dois jovens saltaram por cima dele, protegidos pela capa do feitiço do meu pai e caindo nos braços dos curandeiros que os aguardavam. Bran de Harrowfield e Edwin de Northwoods dirigiram-se para cada um dos filhos; conduziram os dois feridos para um lugar seguro. As forças de Inis Eala continuavam a controlar a multidão; os guerreiros resmungavam cada vez mais. Tinham vindo ali na expectativa de uma boa batalha, não de uma exibição de truques de magia que transformavam o dia em noite mesmo diante dos seus olhos. O meu pai voltou a erguer os braços e o fogo aumentou de novo. A feiticeira sorriu ligeiramente; os seus dentes aguçados brilhavam à luz das chamas. Deu um passo, dois passos no interior do círculo. Não demorara muito a descobrir uma entrada.

 

Ciarán mantinha-se calmo e firme com as chamas por trás de si. No seu ombro, Fiacha estava imóvel como uma estátua. Por trás do meu pai, o fogo continuava a arder furiosamente. Conor continuava quieto e silencioso, de braços estendidos, mantendo o círculo inquebrável, ao mesmo tempo que no lado oposto Finbar fazia o mesmo, acocorado, com o rosto pálido, parecendo um fantasma, os olhos escurecidos de dor. Mãe e filho enfrentavam-se a menos de seis passos do sítio onde eu estava ajoelhada, a minha cabeça ainda tonta por saber que a minha mãe tinha sido assassinada, tendo vivido com uma mentira aqueles anos todos, uma mentira que enchera de culpa e vergonha os dias do meu pai. Ele acreditara, durante aquele tempo todo, que o seu amor por Niamh não fora suficiente; acreditara, durante aquele tempo todo, que ela preferira deixá-lo. Perante aquela nova dor, o meu coração encolheu-se perante o vazio da perda que nunca poderia ser reparada, nem que vivesse três vezes mais do que um humano. A minha boca não conseguia segurar a dor, mas no meu íntimo a canção da dor berrava como uma bansheem, carpindo,

 

NT Fada que, no folclore irlandês e escocês, carpia no exterior de uma casa, anunciando a morte de um membro da família.

 

gritando, alto e bom som, como um caco de vidro retorcendo-se nas minhas entranhas. E se bem que sentisse a magia voltar, cada vez mais forte, poderosa e verdadeira, não me conseguia mexer; fiquei ali no chão, paralisada pelo choque e pela angústia.

 

Para lá das chamas, a multidão de guerreiros caíra em silêncio, com excepção de alguns resmungos e sussurros; orações, talvez. Aquilo estava para além da experiência de qualquer homem normal, fosse ele um guerreiro endurecido, um padre cristão, um pescador ou um pastor, chamados às armas para servir o seu chefe de guerra. O terror empalidecia-lhes as feições; o fascínio mantinha-os pregados ao chão perante o espectáculo que se desenrolava diante dos seus olhos.

 

Portanto disse Lady Oonagh e pareceu-me que o seu poder tenebroso aumentava enquanto olhava para o filho; estava mais alta, mais grandiosa e os seus olhos cor de amora brilhavam de maldade no rosto suavemente pálido e terrível. Portanto, achas que te podes bater comigo; tu, meu filho fracote, corrompido pelos druidas, infectado pela família, mutilado pelo amor. Já te esqueceste de quem te deu à luz, amostra de feiticeiro, para tentares, agora, futilmente, aliás, salvar estes loucos e as suas patéticas ilhas de pedra? Ou estás, simplesmente, a tentar proteger a tua filha, que acaba de provar ser como tu, sem préstimo algum? Olha para ela ali toda enroscada, a tremer, um destroço patético! Que grande feiticeira! Preocupou-se mais com o latoreirozinho do que com a tarefa que lhe propus, confundiu tudo, no fim, deixou escapar tudo. E agora não tem nada, nem poder, nem influência, nem amante, nem família, porque eles vão expulsá-la quando souberem o que ela fez. Estropiou crianças, matou druidas, espiou, insinuou-se no meio deles com a destruição no coração. Não há regresso possível para a tua preciosa aluna, Ciarán. Devias tê-la visto nos braços de Eamonn. Ter-te-ia aberto os olhos para a verdade. Oh sim, ela herdou uma ou duas coisas da mãe. Niamh era boa na cama, não era? Por que outra razão havias de ter querido uma cabeça tonta como aquela?

 

Os olhos da minha avó permaneceram fixos no meu pai enquanto falou; nunca deixaram o seu rosto. Os lábios dele estavam cerrados, assim como os maxilares; os seus olhos ardiam de raiva. Mas não perdeu o controlo. Senti que cada um esperava pelo momento em que a guarda do outro baixasse; o instante da oportunidade. O ar parecia estralejar de magia; feitiço e contrafeitiço na mente, mas não ainda nos lábios, guerreavam-se no ar por cima do círculo ardente. A silhueta escura de Fiacha estava contornada por pequenas faíscas. O meu próprio corpo formigava de magia; sentia a sua força nas mãos, nos pés, ardia-me no coração.

 

Acabou, mãe disse Ciarán calmamente. Há aqui forças reunidas contra si que nem imagina. Falhou. O jovem guerreiro continua vivo para liderar os seus homens; vejo a paz nos seus olhos, as tréguas na força do seu braço. A sua aventura não tem razão de ser. E se Fainne não conseguiu levar a cabo a tarefa que lhe propôs, diga-me, diga-nos a todos, por que razão não a levou a cabo a senhora?

 

Oonagh devolveu-lhe o olhar. O seu olhar já não era o de uma dama bela, de aspecto real, antes mudara de novo; vi uma caveira por trás da pele esticada, vi o olhar nos seus olhos e soube que era de medo.

 

Isso não quer dizer nada! retorquiu ela. O rapaz não presta para nada! Filho da Profecia! Ah! Ele não tem categoria para fazer o que lhe foi destinado. Que interessa se vive ou morre? Vós é que perdestes, todos! Tudo isto se transformará em poeira e cinzas, por mais que façais. Poeira e cinzas, desolação e desespero!

 

Responda-me disse o meu pai com a mais calma das vozes e eu vi Fiacha a descer do seu ombro e a deslizar pelo braço estendido, como se se preparasse para levantar voo. Responda à minha pergunta. Não? Então eu respondo por si, mãe. Mandou a minha filha matar o Filho da Profecia porque não o podia fazer por si própria. Não o podia fazer porque a sua força está a fraquejar, dia-a-dia, a cada estação que passa. À medida que minha filha crescia, trabalhava e estudava e se tornava forte na arte, os seus poderes iam diminuindo. A mãe nunca recuperou da derrota que sofreu às mãos dos humanos. Nunca mais será o que foi. Não consegue destruir o segredo das Ilhas. Admita. Perdeu, quando imaginava que este seria o seu grande momento de triunfo.

 

Lady Oonagh pestanejou. Por um ínfimo momento os seus olhos desfocaram-se e nesse momento Fiacha levantou voo, as grandes asas abertas, rápido como uma seta na direcção do seu rosto. Ela foi rápida: os seus olhos tornaram-se de novo acerados e com um pequeno som, um pequeno estalo, levantou a guarda. Uma mão subiu e uma bola de luz verde começou a perseguir o corvo enquanto ele voava em círculos sobre a sua cabeça, inclinando-se e mudando de direcção para escapar ao seu fogo terrível. A ave não podia fugir; Ela mantinha-a preso a si. O feitiço reduzi-lo-ia a cinzas quando o tocasse. Os meus dedos moveram-se subtilmente e Fiacha passou a ser um corvo minúsculo, do tamanho de uma abelha, um pequeno ponto negro, fugindo do feitiço com a mesma facilidade com que um peixe escapa a uma rede de pesca e procurando refúgio num pequeno arbusto que talvez estivesse ali, ou não, no momento anterior. O meu pai limitou-se a lançar uma olhadela na minha direcção. Oonagh olhou para o filho.

 

O que é isto? troçou ela. Um jogo de truques? O cão caça o gato, o gato caça o rato, o rato caça a abelha e assim por diante? Certamente que estamos acima dessas habilidades. E estás errado. Eu tenho mais poder do que tu, muito mais do que eles. O seu olhar de escárnio percorreu o grande círculo de guerreiros estupefactos, passou pelo rosto cor de cinza de Conor, pelas feições duras de Sean, pela figura acocorada e arfante de Finbar e passou pelas figuras altas e estáticas dos seres do Outro Mundo, que estavam por trás, silenciosas, observadores solenes. Tu nunca soubeste como derrotar o teu inimigo, Ciarán; nunca soubeste e nunca saberás.

 

Então, ela transformou-se. Ela era fantástica com o Encantamento, melhor ainda do que o meu pai; vira-a demonstrá-lo muitas vezes quando se punha em frente do espelho, em Favo de Mel e me mostrava uma rapariga afectada, uma rainha maravilhosa, uma serpente coleante, ou um gato. Mas nunca me mostrara aquilo. Transformou-se no espaço de um batimento de coração e no lugar dela apareceu uma rapariga de dezoito anos, de faces pálidas delicadamente coradas, de olhos grandes, sinceros e azuis como o céu de Verão, de cabelos avermelhados como o cobre, que lhe caíam pelos ombros. Usava um vestido violeta e nos pés tinha uns sapatos de pele de cabrito, de dança. Ouvi a exclamação de choque do meu tio Sean e ouvi a encantadora rapariga, que não era a minha mãe, dizer: «Ciarán?» com uma voz suave, doce, que tremia de alegria, hesitante. Vi o olhar no rosto do meu pai; baixara a guarda e, por um momento, ficou indefeso. A rapariga tinha algo na mão, meio escondido nas pregas sedosas do vestido; algo brilhante, algo mortal Abri a boca para o avisar, para fizer um feitiço, qualquer coisa, mas também hesitei; a rapariga olhou para mim com uns olhos cheios de amor; era a minha mãe...

 

Finbar mexeu-se. Rápido como a luz do Sol, levantou-se, entrou no círculo correndo, voando, a asa aberta para deter o raio letal que a rapariga lançou na direcção do peito do meu pai quando ergueu o braço. Finbar caiu aos pés da minha avó, atingido pelo feitiço que era dirigido ao seu irmão, as penas da asa branca queimadas e um corte sangrento no peito, onde a capa, a túnica e a carne tinham sido atingidos por aquele raio mortal. Ficou ali, inofensivo, fumegando, sem forças. Ciarán continuou mudo, os seus olhos não no homem moribundo a seus pés, mas na figura na sua frente, agora uma velha desdentada e de cabelos brancos desgrenhados.

 

Matou o meu irmão disse Ciarán com uma voz parecida com a de uma criança. Matou-o.

 

Conor lançara um grande grito de angústia quando vira cair Finbar. Começou a entoar um cântico, as palavras doces caindo como lágrimas no silêncio agreste. Vi o rosto de Sean torcer-se de dor; senti uma dor dilacerante no coração, eu, que pensava não poder suportar mais nenhuma tristeza. Quando o som das gargalhadas da minha avó se elevaram no ar, o meu pai ajoelhou-se junto do irmão e pegou-lhe na mão sem se preocupar com o perigo.

 

Que a terra te receba e te abrigue disse Ciarán suavemente. Que as águas te levem gentilmente para a tua nova vida. Que o vento de oeste te leve depressa e em segurança. O fogo já tu o tens, irmão, forte e subtil, porque foste filho do espírito. Deste a tua vida por mim; não desperdiçarei essa dádiva. Tens a minha palavra; palavra de irmão.

 

Então, Finbar sorriu, morreu e, por um momento o céu escureceu, como se uma sombra tivesse passado por cima de nós. E quanto pestanejei de novo, pareceu-me que o homem que jazia ali sem vida era um homem que nunca fora tocado pelo mal, um homem sem qualquer desfiguração, porque tinha os dois braços abertos e os seus olhos límpidos olhavam para o céu, como se procurassem uma resposta que devia estar longe, muito longe, no reino onde estava a sua família com os corações atingidos pela dor da perda.

 

Então, o meu pai ergueu-se, virou-se para a feiticeira e a expressão no rosto dela mudou quando viu o olhar do filho. Não podia permitir que ele fizesse aquilo; um filho não podia ser o instrumento do castigo da mãe. Essa tarefa cabia-me a mim; chegara a minha hora.

 

Não, pai disse eu calmamente, levantando-me e avançando. É a minha vez. A sua parte terminou.

 

A cabeça de Lady Oonagh virou-se rapidamente para mim, de novo; os seus lábios abriram-se. Parecia pressentir a vitória.

 

Fainne arrulhou ela minha querida, como és valente. Mas é melhor ficares de fora. Isto está para além dos teus poderes limitados. Vê como estás fraca. A transformação tirou-te as forças. Não sejas louca, querida. Deixa isto para o teu pai. Então, os seus olhos abriram-se muito, engoliu em seco e as suas mãos apertaram-se com força quando sentiu o meu feitiço, um feitiço que a prendeu onde estava, capaz de ver, capaz de falar, mas incapaz de se libertar. Vi, no seu olhar selvagem, que me subestimara por completo.

 

Esperta disse ela com esforço. Ensinei-te bem. Seja, faz o que tens a fazer. De qualquer maneira, é inútil. Eu ganhei esta batalha apesar dos vossos truquezinhos manhosos. Talvez Sevenwaters não a tenha perdido; mas as Ilhas perderam-se e o grande objectivo dos Fair Folk frustrou-se. Oh sim, eles estão ali a ver; olha por cima do ombro e vê-los-ás, A Dama da Floresta e o Senhor do Fogo, os dos Rios e do Oceano, das montanhas altaneiras e das grutas profundas. Sevenwaters não pode vencer. O Filho da Profecia está vivo, mas não pode levar a cabo a profecia. Simplesmente, não foi feito para isso.

 

Os lábios do meu pai abriram-se num pequeno e estranho sorriso, olhou para mim e eu olhei para ele.

 

Que queres dizer? perguntou Conor. O seu rosto estava cheio de lágrimas; parecia velho e gasto. Johnny liderou os seus homens corajosamente, quase pagando com a sua vida. Triunfou no campo de batalha e as Ilhas foram conquistadas por Sevenwaters. Que mais queres? Lady Oonagh riu-se, um riso jovem, descontraído, como o toque de minúsculas campainhas.

 

A batalha só foi parcialmente vencida, meu pequeno druidazinho. O que vem depois é que conta. O Filho da Profecia tem de ficar aqui como vigilante; uma longa vigília, nem mais nem menos do que a guarda dos mais ínfimos segredos do conhecimento; os mistérios que os Fair Folk guardam com tanto zelo. Ele tem de subir lá acima ao topo daquele pináculo, além, no mar, e ficar lá o resto da sua vida, só, guardando tudo isso. Sem o Vigilante da Needle, os velhos mistérios degenerarão, morrerão e com eles os Fair Folk. Talvez isso não esteja escrito na profecia, mas é verdade. Pergunta a Ciarán. Ele percebeu que é assim. Pergunta àqueles grandes senhores e senhoras dos Túatha Dê, que eles dizem-te.

 

O Vigilante da Needle? A voz de Sean era áspera, chocada, amarga, desapontada. Ele tem de viver lá, na cela por baixo das sorveiras-bravas, sozinho? Johnny é o herdeiro de Sevenwaters; ele é um chefe de guerra, futuro guardião do túath, vital para a segurança e bem-estar do nosso povo. Estás a dizer que, no fim, depois desta chacina, destas baixas todas, a verdadeira batalha não foi ganha? Que a profecia não se cumprirá se Johnny não fizer esse sacrifício para restabelecer o equilíbrio?

 

Seguiu-se um silêncio. Então, Conor levou as mãos ao rosto e inclinou a cabeça.

 

Está tudo perdido disse ele. Porque o rapaz não pode fazer isso; todos o sabemos. Johnny é um guerreiro; o seu coração bate ao ritmo da espada, não ao lento desenrolar do Conhecimento. A sua mãe traçou-lhe o destino, há muitos anos, quando o levou para fora da floresta. Ele não é um sábio, não é nenhum místico; num lugar assim não dura mais do que um ano, de Sambain a Sambain, antes de enlouquecer. Johnny não é capaz; e se a verdade é essa, então foi tudo para nada.

 

Sábias palavras, irmão disse Ciarán solenemente. O rapaz deve regressar a Sevenwaters e, a seu devido tempo, deve tomar o lugar a que tem direito no esquema das coisas. Ele será o guardião da floresta e do povo e desempenhará o seu papel com nobreza, tal como o seu tio faz agora.

 

Ah! disse Lady Oonagh de modo cortante, lutando ainda por se libertar do feitiço que eu lhe fizera. Portanto, concordas comigo. Como vês, tive sempre razão. Os Fair Folk estão acabados.

 

Não consigo acreditar, mas parece que é verdade disse Conor numa voz pesada de derrota.

 

Não é, não disse o meu pai. Uma profecia não é assim tão simples. Tem muitos enigmas, assim como o próprio Conhecimento. Tal como um quebra-cabeças, pode ter mais do que uma solução.

 

Senti a meu lado uma pequena perturbação do ar; um agitar de penas. E no outro lado um leve ranger, um ligeiro rolar de pedras. Subitamente, estava rodeada de Fomhóire. E um restolhar, umas fungadelas e uns gorjeios disseram-me que outros se aproximavam.

 

Hum, hum!, disse a criatura-mocho. Em redor do círculo, os homens mantinham-se num silêncio completo, a olhar; não havia um divertimento daqueles há muitos anos e o mais estranho era que se tinham esquecido de ter medo. Não deste por nós, creio. Mais uma vez. Mas não faz mal. Vamos, Fainne. Chegou a hora de dizer a verdade. Chegou a hora de lhes falar na boa ideia que é ficar com algo de reserva, por assim dizer, no caso de as coisas não correrem como planeamos. Os Fair Folk não compreendem assim, mas nós estamos cá há mais tempo, há muito mais. Sabemos o valor da segurança.

 

Tio disse eu, engolindo as lágrimas que pareciam teimar em rolar-me pelas faces e pestanejando para poder fixar o rosto muito cansado de Conor enquanto me aproximava dele. Nem tudo está perdido. Johnny não pode ir para a Needle para que a profecia se cumpra; mas eu posso.

 

Tu? Fora Sean que falara, franzindo o sobrolho ferozmente. Era evidente que estava longe de saber ao certo de que lado eu estava.

 

É verdade disse o meu pai, aproximando-se e colocando-se a meu lado. A sua voz era profunda e ressonante. Havia um padrão, montado pelos Fair Folk. Liadan mudou-o. Ela assegurou-se de que o seu filho não desempenharia o papel que lhe estava destinado. Mas a profecia não fala de um homem, ou de guerreiros, ou de batalhas. Fainne, é melhor explicares tudo ao teu tio.

 

Olhei para ele.

 

O pai sabia disse eu quase sem poder respirar, dividida entre o espanto e a ira. Sempre soube e não me disse?

 

Ciarán abanou a cabeça; uma sombra de um sorriso torceu-lhe a boca severa.

 

Suspeitava, mais nada; não podemos saber estas coisas. Se tivesse a certeza, talvez te tivesse dito, minha filha. Mas talvez não. Se tivesse a certeza, a tua jornada teria sido diferente; e o seu fim talvez não tivesse sido o mesmo. Deste modo, os teus erros fortaleceram-te, as dificuldades prepararam-te para a longa vigília que tens pela frente.

 

O quê? explodiu Lady Oonagh, ainda firmemente presa pelo meu feitiço. Que estás tu a dizer, miserável? Não pode ser! A rapariga não tem nenhuma marca... ela não pode ser a Filha da Profecia!

 

Virei-me de novo, de modo que a feiticeira me pudesse ver bem.

 

A avó disse que a minha educação tinha sido insuficiente disse-lhe. Uma coisa que o meu pai me ensinou foi a resolver quebra-cabeças; procurar sinais. Eu teria sabido isto antes se tivesse estudado as palavras da profecia com mais atenção. Ela fala de uma criança de Erin e de Inglaterra, que, ao mesmo tempo, não é, nem uma coisa, nem outra. A minha mãe, que a avó tanto despreza, era uma das filhas de Sevenwaters, uma criança da floresta. Mas o pai dela era Hugh de Harrowfield, um bretão, que, por escolha própria, casou com uma mulher de Erin e viveu toda a sua vida exilado da sua terra natal. O meu pai é feiticeiro, mas também ele é um dos filhos de Sevenwaters; na verdade, filho de Lorde Colum, em tempo um grande líder do povo da floresta, até que a avó o apanhou na sua armadilha; até que o seu desejo de vingança lhe fizesse perder o juízo. Os humanos de Sevenwaters, então, lutaram contra si e triunfaram; e triunfaram, de novo, hoje. Eu sou, na verdade, filha de Erin e de Inglaterra; no entanto, não sou, nem uma coisa, nem outra. Transporto no meu sangue a semente de quatro raças, a herança dos ancestrais Fomhóire e a linhagem dos Fair Folk através de si, avó. A avó não é descendente do povo que despreza através de uma linhagem de párias? O corpo da minha avó tremia de fúria e incredulidade.

 

Isso não quer dizer nada! cuspiu ela. Palavras espertas, argumentos astuciosos, porcarias de druida! Tu nunca poderás levar a cabo a profecia! Os Fair Folk não podem vencer! E a marca do corvo? Patética, aborto de rapariga, como te atreves? Tu não és nenhuma heroína; és uma fraca e uma inútil, tal como a tua mãe!

 

Os meus dedos tocaram no cabelo cor de manteiga de Riona e no seu vestido manchado de sangue. A meus pés, Finbar estava estendido por terra, o cabelo escuro emaranhado em redor da cabeça, as feições pálidas e tranquilas. Mais longe do lado de lá do círculo, o corpo de Eamonn jazia onde caíra. Não fora ele eu teria morrido e Lady Oonagh teria vencido a batalha. As palavras já não me feriam. Tudo o que sentia era um enorme vazio. O meu coração estava paralisado. Mas sabia que iria em frente, tinha de ir, ou todas aquelas perdas teriam sido para nada.

 

Está enganada, avó disse eu calmamente. As profecias são um pouco como a Visão, creio. Mostram-nos as coisas distorcidas, ou subtilmente mudadas, de modo que precisamos de ser bons a resolver quebra-cabeças para as compreendermos. Afastei o decote do meu vestido e os meus dedos tocaram na minúscula cicatriz que ainda marcava a pele branca do meu ombro. Fiacha picou-me aqui, uma vez, quando eu era criança. Os bicos dos corvos são afiados; ainda tenho a cicatriz. Como vê, os grandes Mistérios são sempre insondáveis. Na verdade, eu tenho a marca do corvo. Eu sou filha de Erin e de Inglaterra. Sou, em todos os aspectos, a Filha da Profecia, tanto quanto Johnny. Além disso...

 

Além disso disse Conor, compreendendo subitamente tudo foste criada como druida, quer o teu pai o tivesse feito de propósito, quer não. Foste criada na disciplina, foste habituada às dificuldades e aprendeste o Conhecimento. Foste criada com amor na solidão e treinada na arte da magia.

 

Que estás tu a dizer? Sean olhou para mim, aparentemente dividido entre um entendimento horrorizado e uma promessa de esperança.

 

Mas eu fiquei subitamente muito cansada, tão cansada que mal sabia como lhe responder; e, perante os meus olhos, a minha avó começou a lutar contra o feitiço, tentando desatar os laços invisíveis com as mãos ossudas e a boca, de dentes aguçados, num esgar de raiva.

 

Não! sibilou ela. Não pode ser!

 

Creio que pode disse o meu pai tranquilamente, aproximando-se de mim e colocando-me uma mão no ombro; para me passar a sua própria força. Creio que reconhecerá, mãe, que cometeu um grande erro ao partilhar o seu conhecimento comigo, deixando, depois, de me prestar a menor das atenções. Como druida, também eu aprendi a resolver quebra-cabeças e a respeitar o resultado. Como feiticeiro, aprendi a jogar e jogo sempre para ganhar. A mãe exigiu que a minha filha obedecesse à sua vontade; e ao fazer isso, fabricou a arma da sua própria destruição. Na forja da sua crueldade, com os seus testes de vontade e resistência, criou a Filha da Profecia e o instrumento da sua queda. Eu preparei-a o melhor que soube; a mãe aperfeiçoou-a.

 

Vem.

 

Houve um súbito silêncio, porque aquela era uma voz diferente e os homens recuaram, espantados. De quatro posições no círculo avançaram quatro seres maravilhosos, todos eles mais altos do que qualquer homem ou mulher de linhagem humana e tão brilhantes como se o Sol tivesse aparecido de novo sobre aquela desolada encosta. Eram Túatha Dê; tinham estado a observar e tinham esperado até que aquele combate, aquele debate, terminasse. E agora avançavam, de rostos pálidos e solenes e vozes límpidas como água a correr sobre seixos, ou o som distante de uma trovoada de Outono.

 

Eu sou Deirdre da Floresta. Uma mulher avançou na minha direcção com uma mão longa e branca estendida. O cabelo caía-lhe pelas costas numa cortina escura e sedosa; os seus olhos eram do azul-profundo do céu ao crepúsculo, da cor das pregas da sua capa. O tempo passa. Estamos prontos.

 

Vem, Filha do Fogo. Fora um homem que falara, se se podia chamar homem àquela maravilhosa criatura; o seu cabelo era de um vermelho-brilhante, um halo de chamas que dançava e faiscava em redor da sua cabeça. Os seus olhos também faiscavam; maliciosos, perigosos. A tua longa tarefa aguarda-te. Vamos.

 

Nós acompanhamos-te. Aquele ser tinha uma voz parecida com a do oceano, suave e poderosa, um som parecido com as ondas que ecoavam nas grutas de Favo de Mel. O mar leva-te. Não era capaz de dizer como ela era, apenas que era uma coisa da água, transparente se bem que real, um ser móvel, sempre a mudar, com cabelos frondosos e olhos selvagens, as mãos e os pés fluídos como o fluxo e refluxo da maré nas poças das rochas.

 

Ainda não! disse o quarto ser e todos se viraram para ele. Esse era pouco mais do que uma perturbação do ar; a sugestão de um vestido difusamente brilhante, o brilho agora presente e agora ausente de um par de olhos profundos, o esplendor de uns cabelos parecidos com pequenas jóias movendo-se sob a brisa. Isto tem de acabar agora. Avança!

 

Uma voz de comando que não podia ser desobedecida; uma voz de poder. Mas aquelas palavras não eram para mim. O feitiço que eu lançara desfez-se abruptamente, provocado por uma magia maior. Senti as mãos do meu pai nos meus ombros, segurando-me firmemente enquanto Lady Oonagh avançava na minha direcção com passos pouco certos, estendendo os longos dedos predadores.

 

Vou destruir-te! guinchou ela, tremendo da cabeça aos pés e a ameaça nos seus olhos negros era suficiente para gelar a mais forte das vontades. Vou-te rasgar, membro por membro, minha fracalhota!

 

À sua volta, os grandes senhores e damas dos Túatha Dê Danann continuavam imóveis e silenciosos. Eu sentia as mãos do meu pai, fortes e quentes; senti o seu amor naquele toque. Conor entoava cânticos antigos em voz baixa. A barreira de chamas continuava a arder, mantendo afastados aqueles que poderiam ainda tentar uma intervenção com espadas, ou lanças.

 

Não senti qualquer medo enquanto a via aproximar-se, se bem que o veneno dos seus olhos fosse real e assustador. Não senti nada senão um enorme vazio e o conhecimento do meu próprio poder.

 

Deves ser tu a fazer isto, Fainne disse a Dama da Floresta calmamente. Está escrito. Acaba com as trevas. Usa o que aprendeste.

 

Assim, olhei directamente para os olhos da minha avó, que eram um reflexo dos meus e disse as palavras de um pequeno feitiço há muito aperfeiçoado sob a sua tutela. Sempre fora boa naquilo e a magia fluiu através de mim com tanta força e segurança como nos velhos tempos de Kerry, nos tempos antes de eu ter saído de casa e ter aprendido que o amor é a mais cruel das coisas. Um momento antes de ela mudar, vi o reconhecimento nos seus olhos, a certeza da sua própria derrota; e terror.

 

De todo o mal que fez murmurei há uma coisa, só uma, que nunca esquecerei. Mas não vou matá-la. Pode tentar a sua sorte, como todos nós. Então, estalei os dedos e a terrível feiticeira transformou-se numa galinha, cacarejando e debicando aqui e ali, a meus pés, assustada com a multidão. Estalei os dedos de novo e apareceu uma pequena serpente, deslizando, enroscando-se, brilhando, escura como amoras, procurando fugir até eu a transformar numa barata. Algures, atrás de mim, ouvi um agitar de penas, uma ligeira mudança do estado das coisas. Movi a mão e murmurei; a barata transformou-se num rato rechonchudo, bem alimentado pelo grão da estação passada. O animal desatou a correr, porque estava ali perto uma pedra musgosa, boa para uma criatura selvagem se esconder. Mas quando o rato se aproximou, a pedra rolou subtilmente e afastou-se; e, num instante, mergulhou um pássaro, rápida e mortalmente, para subir de novo com a criatura aos guinchos firmemente preso no bico. O mocho andrajoso pousou no topo da pedra musgosa; engoliu uma vez e a última coisa que vi do rato foi a sua cauda pendurada do bico. O mocho engoliu de novo e o rato desapareceu. Nenhum de nós disse uma palavra.

 

Vem, Fainne. A Dama da Floresta estendeu de novo a sua mão pálida e suave, indicando-me o caminho. Chegou a hora. Ela virou-se para os homens ali reunidos, para Sean, para Conor e para os líderes de Inglaterra e de Erin. A rapariga disse a verdade disse ela. Cuidado com o aviso dela, e com o meu. Depois de hoje, ninguém deve ficar aqui. Depois da noite que se aproxima, nenhum pé humano deve pisar estas costas, salvo os desta rapariga. Usai os navios que tendes, levai os vossos homens sem tardar e navegai até porto seguro. Porque se ficardes nestas Ilhas morrereis. A profecia cumpriu-se. A demanda terminou. Ide para vossas casas e recomeçai as vossas vidas.

 

Neste momento, os vossos filhos discutem os termos da paz disse o senhor dos cabelos em chamas, a sua voz tão solene e profunda como um trovão. Uma paz que vai ser conseguida com facilidade por um homem tão sábio e corajoso como a Filha da Profecia. Para que não haja dúvidas, o jovem também desempenhou o seu papel; sem ele, a batalha não teria sido vencida, porque é ele que dá aos vossos homens o ânimo que os sustenta. Sem ele não haveria paz entre Northwoods e Sevenwaters; entre Harrowfield e o seu vizinho. Johnny é nosso filho; a sua linhagem é a nossa. Ouvi por trás de mim uma ligeira tosse; os Anciãos apareceram para exprimir uma opinião algo diferente, mas não naquele ponto. O rapaz é um exemplo raro e brilhante para todos vós. Segui-o e gozareis a paz em ambos os lados da água. Segui-o e podereis preservar as vossas terras e a vossa floresta por mais algum tempo. Por mais algum tempo. Havia uma profunda tristeza por trás daquelas comoventes palavras.

 

Vem, Fainne.

 

Não me podia recusar a segui-los; chegara a hora, na verdade. Os guerreiros dispersavam rapidamente; alguns, sob as ordens de Snake, dirigiam-se já para o ancoradouro para carregarem os navios e prepararem-se para a partida. Havia muitos homens para transportar e era necessário um milagre de organização. Mas os homens de Inis Eala eram bons naquelas coisas. Ao anoitecer estariam todos a caminho, em segurança. Alguns guerreiros vestidos de verde levantavam o corpo de Eamonn e retiravam-lhe a lança. Alguns homens de Sevenwaters cobriam o corpo andrajoso e tranquilo de Finbar com um pano branco que ostentava o símbolo de Sevenwaters, os dois colares interligados. Sean olhava para o posto da guarda, porque Edwin de Northwoods continuava à espera.

 

Só um momento disse eu aos meus guias do Outro Mundo; achei que, como aquela separação era para sempre, podiam conceder-me um pouco mais de tempo. Virei-me para o meu tio, o senhor de Sevenwaters.

 

Diga às suas filhas que nunca as esquecerei disse eu o mais firmemente que pude. Elas ensinaram-me o que é uma família e muitas outras coisas. Gostaria que Eamonn tivesse uma despedida como deve ser, com luzes, música e honras militares, porque, apesar de ter cometido muitos erros, no fim morreu corajosamente. E diga a Maeve... diga-lhe que lamento, que lamento muito.

 

Havia dor nos olhos de Sean, mas também um certo respeito. O senhor de Sevenwaters acenou com a cabeça e beijou-me nas duas faces, mas não disse uma palavra.

 

Adeus, tio disse eu a Conor.

 

Adeus, minha querida. A sua expressão era muito séria. Esta despedida é para sempre. Gostaria de poder ajudar-te. És tão nova para esta missão tão grande. Tão nova, com a vida inteira pela frente.

 

Parece que isso não tem importância sussurrei, e as lágrimas começaram, de novo, a cair-me pelas faces. Mas vou em frente, já que só sirvo para isto.

 

Só? disse Conor. Que só tão grande e maravilhoso, minha querida.

 

Ele não compreendeu. Nenhum deles compreendia o vazio que eu sentia. Virei-me para o meu pai.

 

Pai?

 

Ciarán olhou para mim com o rosto muito pálido e os olhos escuros ainda circunspectos.

 

Tenho uma grande fé em ti, filha disse ele. Sempre tive. Uma grande fé e um grande orgulho. E amo-te muito. Nunca te esqueças disso.

 

Pai, vai regressar? A Sevenwaters? Eles precisam de si. Conor está velho e cansado. Chegou a hora de os laços familiares se reatarem e de a sabedoria da sua espécie recuperar o seu lugar na floresta. E há lá uma rapariguita que pode vir a ser uma grande mística, se a ensinar. Eu provoquei muito mal, pai, mas só pensava em proteger os que amo. Queria que o pai não sofresse e... e...

 

As minhas palavras caíram no silêncio.

 

Tu foste muito forte; suficientemente forte por todos nós, no fim de contas. Vou pensar no teu pedido. Ele olhou para a silhueta envolta num pano branco, aos nossos pés. Talvez tenha chegado a hora para que todas estas feridas sarem. Adeus, filha. O meu pai inclinou-se para me beijar na testa. Que a mão da deusa te ampare; que o Sol aqueça os teus dias e que a Lua ilumine os teus sonhos.

 

Adeus, pai. Ficará sempre no meu coração.

 

Mas parecia-me, enquanto os Fair Folk me conduziam à praia, onde um barco negro esperava, que o meu coração estava vazio, limpo de tudo o que possuíra e que nunca mais se voltaria a encher. Parecia não ter importância o que me aguardava, o perigo e a solidão da minha tarefa. Parecia não ter importância o que deixava para trás. Eles não compreendiam. Os Anciãos tinham razão. Eu deitara fora o meu único tesouro. Só percebi o que perdera quando já era demasiado tarde.

 

O barco afastou-se da praia sem uma vela ou um remo, sem um marinheiro que o conduzisse à Needle. Por trás de mim, na praia, os Fair Folk observavam a minha partida, solenes e silenciosos. Aconcheguei Riona nos meus braços como se fosse ainda uma criança, enquanto o barco se afastava cada vez mais rapidamente.

 

Não foi justo sussurrei, furiosa. Darragh era tão bom, nunca fez nada de mal e ela matou-o; tudo por minha causa. E Finbar morreu por minha causa, porque fiz com que ele viesse aqui. Ninguém compreende. Ninguém sabe. Eles esperam que eu me sinta como uma espécie de heroína; como se sentisse em mim uma grande fé. Mas eu só sinto um vazio muito grande.

 

E pareceu-me ouvir a voz silenciosa da boneca enquanto olhava para os seus olhos escuros, impenetráveis. Eu sei, disse ela. Eu, feita por Niamh com as suas próprias mãos, ponto aponto; eu sei o que é o amor.

 

Olhei para trás, para a praia, onde Conor e o meu pai estavam lado-a-lado, ambos de mão erguida em sinal de adeus. As suas figuras ficaram cada vez mais pequenas e, por fim, deixei de as ver, enquanto o pequeno barco prosseguia levado pela corrente na direcção das rochas traiçoeiras da Needle. Fechei os olhos e entreguei-me ao que tinha pela frente.

 

Os Fair Folk viajam mais depressa do que o vento de oeste; com mais subtileza do que uma sombra. Estavam à minha espera quando o barco se aproximou da Needle, penetrou numa gruta por baixo das rochas e parou abruptamente junto de uma saliência rudemente talhada. Uma espécie de ancoradouro, se bem que nenhum outro barco maior do que aquele pudesse atracar ali. A Dama da Floresta estendeu de novo a mão, ajudando-me a sair da embarcação e conduzindo-me por uns degraus impossíveis acima, talhados na rocha íngreme. Como seria possível viver naquele lugar? A mínima rajada de vento podia atirar-me pela falésia abaixo; e como sobreviveria? Vi-me a esperar por uma morte solitária comendo algas e um qualquer marisco ocasional apanhado nas rochas com os dedos em sangue. Uma vida de eremita. Era possível, evidentemente. Havia aquele lugar, em Kerry, Skelligs, e os monges que ali tinham sobrevivido durante as invasões viquingues, no meio da pilhagem e da matança, no meio das tempestades de Meán Fómbaire dos Invernos rigorosos. Ano após ano, tinham-se mantido agarrados àquele pináculo, o isolamento fortalecendo-lhes a fé e estimulando-lhes as mentes, tornando-os mais conscientes para contemplar os grandes mistérios. Eu não compreendia a fé Cristã. Os meus estudos sugeriam-me que ela não tinha, de algum modo, respeito pelas coisas que existem: o poder da terra e do Sol, a força da água e a pureza do ar. São essas as pedras basilares da velha fé, porque sem elas, sem o conhecimento da Lua e das estrelas, sem a compreensão de todas as existências, como podemos nós compreender a existência das coisas? Nós fazemos parte de todas essas maravilhas, como um recém-nascido está ligado à sua mãe; se não sabemos isso, não nos conhecemos a nós próprios. Há tantas manifestações de beleza: o rápido gamo e o salmão esguio; a delicada carriça, a misteriosa estrela-do-mar, o forte carvalho e o esbelto vidoeiro. E as coisas para além do conhecido, que só raramente se mostram: os seres impenetráveis e instáveis do Outro Mundo, que caminham a nosso lado ao longo das nossas curtas vidas, visíveis apenas quando querem, ou quando nós próprios aprendemos a passar essa fronteira. Em Sambain podemos vê-los, ou com sonhos, ou em visões; mas já não é como era, quando os Anciãos caminhavam pela terra e a fronteira quase não existia entre as grandes coisas que existem e aqueles que são os seus guardiões. Quanto aos humanos, somos uma pequena parte de um grande todo, muito pequena; no entanto, cada um de nós é precioso, uma jóia de grande valor e cada um de nós é diferente. Os Fair Folk talvez não pensassem assim, supunha eu. Não podiam compreender como a perda da vida de um simples humano podia ser tão pesada, porque os seus pensamentos estavam concentrados no grande esquema das coisas; eu só era importante pelo papel que ia desempenhar para eles.

 

Chegámos ao topo dos degraus. Eu estava ofegante e tonta, porque não comera nada desde que saíra de Inis Eala. Ali, a superfície íngreme dava lugar a um pequeno planalto abrigado por uma parede natural de rocha. Havia sorveiras-bravas, espessas, com folhas e bagas, se bem que ainda não estivéssemos na Primavera. O vento não atingia aquele pequeno espaço abrigado; na verdade, era estranhamente calmo, como se estivesse
isolado do resto do mundo, das tempestades e do frio, do passar das estações, talvez, até, do tempo. No centro do espaço brotava uma nascente, por entre as pedras, fazendo uma pequena poça na base da rocha antes de correr, por um estreito canal, até à berma e cair no mar, lá em baixo. Junto da poça estava uma caneca. Ou alguém vivia ali, ou vivera; ou o lugar fora preparado para mim.

 

Há muito tempo disse a Dama da Floresta que um homem, ou uma mulher, não vivem neste lugar. Em tempos houve um druida. Mas foi diferente; A Needle está desabitada desde que os homens e as mulheres, e os pais deles, e os pais dos pais deles têm memória. Quase a perdemos. Sevenwaters deixou escapar as Ilhas; os invasores cortaram as árvores sagradas e conspurcaram a nascente sagrada; caminharam pelas grutas da verdade. Mas não viram nada. Não compreenderam nada. Os mistérios só se revelam a uns poucos, apenas àqueles que compreendem o sentido das coisas.

 

Se é assim perguntei-lhe por que não deixar as coisas como estão? Por que precisais de uma humana fraca como eu para ficar aqui por vós e tomar conta do local como uma espécie de... de guarda? Este local não se guarda a si mesmo? Não podeis manter os humanos afastados por meio de magia? Brumas, monstros, tempestades? Por que precisais da Filha da Profecia?

 

O terrível Senhor apareceu a seu lado. Eu já reparara no seu estilo, um tanto resplandecente; parecia dado a súbitas chuvas de faíscas e raios coloridos de luz.

 

Ah disse ele com um sorriso severo. A explicação está nas palavras. Uma profecia deve ser respeitada. Nós podemos ajudar um pouco, mas no fim é ela que governa o desenrolar dos acontecimentos. Há muito tempo que sabemos que os nossos dias estão contados; há muito tempo que sabemos que esta profecia deve ser cumprida se quisermos preservar aquilo que é precioso para todos. A nossa era está a chegar ao fim. Os Anciãos continuarão, apesar de fracos, mas possuem, no entanto, a sabedoria da própria terra, a capacidade de se misturarem, de se confundirem na bruma das coisas, de resistirem. As capacidades dos Túatha Dê são outras. Em tempos fomos realmente grandes, governámos o reino de Erin, supremos e poderosos. Na verdade, brilhámos; nós éramos a personificação dos mistérios e dos prodígios, da magia e do encantamento. Mas as coisas mudam. Nesta era da espécie humana, são poucos os nossos lugares de refúgio. A floresta de Sevenwaters é um dos últimos; e enquanto Lorde Sean ali governar e depois dele o seu filho Johnny, podemos caminhar sob os seus carvalhos em segurança. O arquidruida é um dos verdadeiros filhos de Sevenwaters; ele velará pela velha fé e inspirará outros. E Ciarán também terá o seu tempo e a sua influência, porque, no fim de contas, também é filho dela. O homem tem bom coração e tem muito para dar. Todos eles conseguirão uma estação, um ano, uma vida para a floresta e para os seus habitantes. Mas há-de chegar o tempo, em breve, em que até as velhas árvores cairão sob o machado para garantir ao homem as suas terras de pastorícia, as suas aldeias, as suas torres e as suas muralhas. O homem tenciona, na sua ignorância, conquistar a própria terra, forçar o oceano à sua vontade. E, assim, matará o corpo da mãe que lhe deu a vida; e não saberá o que faz. Os velhos costumes serão esquecidos, Fainne, por mais que façamos. Está a começar uma nova era; uma era de trevas, durante a qual aqueles que andam pela terra se verão afastados das coisas que lhes deram a vida.

 

Sem ti, tudo se perderá. O ser que falara parecia ser feito apenas de ar e luz; tudo o que eu conseguia ver dele era os seus olhos luminosos e as tranças douradas do seu cabelo. Porque, enquanto os mistérios permanecerem vivos no coração de uma simples criatura humana, enquanto o conhecimento da nossa espécie estiver guardado no seu coração, não desapareceremos para sempre, ficaremos apenas à espera, sonhando, até que cheguem novos tempos de mudança, do renascimento da verdade sagrada, da compreensão do grande círculo da existência.

 

Tens de manter tudo isso vivo, Fainne disse o ser semelhante à água, cujos cabelos longos esvoaçavam em redor dos seus ombros como delicadas algas. Pensei ver neles peixes minúsculos, brilhantes, entrando e saindo daquela frondosidade. É essa a tua missão.

 

Mas... comecei eu a dizer, com uma pergunta óbvia na ponta da língua.

 

Vem, nós mostramos-te.

 

A Dama da Floresta pegou-me na mão e guiou-me até à parede de rocha e então eu vi uma abertura, uma mera fenda escondida, que poderia passar por uma irregularidade da superfície, ou uma sombra.

 

Há aqui muito mais do que parece disse ela solenemente. Esta entrada não é fácil de encontrar; porém, é aqui que guardamos o que nos resta. Uma vez lá dentro, descobrirás que isto é muito maior do que imaginas.

 

Tal como o espírito brilha e parece demasiado grande para caber na pequena concha do corpo, assim é este lugar disse solenemente o ser parecido com a água. O mundo interior é maior e mais complexo do que o exterior, mais profundo e intrincado. Verás muitas coisas; verás o que era, o que é e o que será. Verás e recordarás.

 

E foi, na verdade, como eles disseram. A fenda na rocha deu lugar a uma passagem e a passagem deu lugar a uma gruta muito maior em altura e comprimento do que a estreita plataforma dava a entender que seria possível. E havia outras grutas de cada lado da câmara central; através de uma abertura vislumbrei a luz dourada de uma lâmpada, um lugar para dormir, com almofadas e lençóis de linho e um cobertor que parecia a pele de uma grande criatura selvagem. Os meus olhos esbugalharam-se.

 

Vê, Fainne.

 

O objectivo daquela câmara central tornou-se-me evidente de imediato, criada que fui no conhecimento dos mistérios e práticas rituais. Ao meio havia uma grande bacia de bronze, pouco profunda e vazia; junto dela estava um jarro ornamentado do mesmo material, colocado numa laje de granito. Por cima daqueles vasos cerimoniais o tecto da gruta elevava-se em arco; e no centro abria-se para o céu. Pareceu-me que o buraco redondo nas rochas fora feito com precisão, assim como as pedras de Kerry, cada uma com a sua posição e propósito. Aquela abertura deixava ver um pedaço de céu azul, sem nuvens. Era, talvez, meio-dia, talvez um pouco mais. Naquela noite poderia olhar para cima e ver uma estrela; ou a escuridão aveludada, profunda e tranquila. Em determinadas épocas do ano os raios do Sol penetrariam pela abertura, tocando na água ritual como um fogo vivo. Aquela gruta era parecida com aquela que Finbar habitara em Inis Eala. Um lugar antigo. Um lugar seguro. Os braços da deusa abraçavam-na, o seu corpo maternal amparava-a. Se havia um local onde era possível preservar os velhos costumes, mantê-los intactos na memória e no bater do coração da espécie humana, era ali. Mas por quanto tempo? Abri a boca para fazer a pergunta e o ser parecido com o oceano apontou a sua mão parecida com algas para a bacia de bronze, enchendo-a instantaneamente com água límpida. Fechei a boca sem dizer palavra. O Senhor que era mais ar do que substância inclinou-se, soprou para a água e a sua superfície tornou-se viva com uma miscelânea de minúsculas imagens, brilhantes como flores de Verão, movendo-se e mudando num padrão complexo e estonteante.

 

Vem, Filha do Fogo disse o Senhor com os cabelos em chamas. Nós mostramos-te.

 

A Dama da Floresta pegou-me na mão esquerda e ele na direita e, juntos, olhámos para a água. Havia ali tanta coisa, tanta; estava tudo misturado e fragmentado, mas naquele movimento intrincado eu via coisas familiares que desapareciam logo a seguir; um peixe contorcendo-se no solo; gaiolas a abrirem-se, animais voando rapidamente; um fogo e o rosto de um homem contorcido de dor. Fechei os olhos com força.

 

Eu não sei adivinhar o futuro disse eu secamente. Não presto para isso. Se é esta a tarefa que querem que eu faça, escolheram a rapariga errada.

 

Concentra-te disse a Dama.

 

Controla-te disse o Senhor ardente. Tu achas isto difícil, não porque não tenhas a habilidade, mas porque a tens em grande quantidade.

 

Tens de estreitar os teus horizontes; fixa-te numa época, num lugar, numa sequência. Encontra um padrão e fecha tudo o resto até precisares. Aqui encontras todas as existências, Fainne. Aqui encontras o que aconteceu: o movimento eterno das estrelas, as vozes das rochas antigas, os mistérios das profundezas do oceano. Aqui podes ver as histórias da nossa espécie, da tua e da outra. Podes ver o que é: neste momento o teu pai e os outros estão a abandonar as costas da Greater Island, neste momento os Bretões estão a caminho de casa, deixando para trás a sua promessa de paz. O comandante do navio que os leva é um primo teu, que nunca conheceste: Fintan, herdeiro de Harrowfield. Para eles, o futuro é brilhante; breve, mas brilhante.

 

Verás estas coisas disse a Dama e ser-te-á mostrado o futuro, ou o que pode ser o futuro. Há um perigo nisso que, estou certa, compreenderás. Foste escolhida para isto, Fainne, por seres o que és. Para ti não há barreiras; nada impedirá o teu conhecimento acerca dos reinos mais altos da arte, se é a isso que aspiras. Aquela que te disse o contrário mentiu-te, assim como mentiu ao teu pai. Mesmo então, mesmo quando eras criança, ela sentiu o poder que havia em ti; um poder, no fim, muito maior do que o dela. O seu erro foi acreditar que poderia canalizá-lo com a sua vontade. Ela subestimou a força de Ciarán e a tua. É um paradoxo, porque sem o seu sangue, o sangue dos banidos, não terias a força suficiente para esta missão. Lady Oonagh era um de nós. Os da sua espécie são as nossas sombras, os nossos reflexos, que caminham a nosso lado, mantendo o equilíbrio. Um não pode existir sem o outro. No entanto, estamos em guerra, eternamente. Portanto, foi ela que te deu a força que tens. Tu tens uma profunda compreensão das coisas, apesar de seres tão nova. Essa capacidade, que ainda não dominas por completo, será desenvolvida por nós. Oh sim ela ergueu as sobrancelhas, sorrindo para o meu ar de surpresa nós vimos cá, de vez em quando, pelo menos até estares devidamente instalada. E agora olha outra vez; escolhe apenas uma imagem e concentra a tua mente nela. Faz com que ela se mostre. Bloqueia o resto.

 

Olhei para a água, recordando a pequena Sibeal e a sua concentração total, silenciosa. Ela só tinha oito anos. Eu tinha muito que aprender. No meio daquele movimento caótico de imagens, houve uma que me atraiu. Três crianças deitadas numas rochas, junto de um lago. O lago de Sevenwaters, não muito longe da fortaleza. Era Verão; duas delas tinham as mãos metidas na água e observavam os peixes. A terceira, um rapaz de cabelos escuros, estava deitado de costas com os braços estendidos, olhando para o céu. O rapaz era parecido com Coll; tinha uns ares do meu tio Sean. Mas eu só conhecia um homem com aqueles olhos, profundos, sem cor, salvo a da sabedoria. Não havia dúvida de que a imagem que eu estava a ver era muito antiga e aquela criança era Finbar, olhando para lá do sítio onde o seu irmão e irmã brincavam, para o seu estranho destino. A pequena imagem mudou, mas ficou a mesma. As rochas, o lago e os patos castanhos nadando nele. As três crianças, filhas de Sevenwaters. Continuava a ser Verão, mas um Verão diferente e as crianças também eram diferentes. Dois gémeos, um rapaz e uma rapariga, visionários e de cabelos escuros, estendendo os braços para tentar tocar no peixe que nadava por entre os caniços; e outra rapariga, encantadora como um espírito de Outono, com os seus grandes olhos azuis e longa cabeleira avermelhada. A criança pequena de cabelos escuros, que era a minha tia Liadan, disse qualquer coisa, Sean acotovelou-a nas costelas e a minha mãe riu-se, as suas feições doces, puras, iluminadas pela alegria. Aproximei o rosto da água, querendo ver mais, querendo ver aquela criança como fora naquele tempo, antes de ter perdido a alegria de viver. Sibeal, de pernas cruzadas na mesma pedra à beira do lago e com as mãos no colo. Os seus olhos pareciam não ver nada e pareciam ver tudo. Olhou para mim e sorriu; e a imagem desapareceu.

 

Depressa aprendes disse a Dama da Floresta enquanto eu pestanejava e esfregava os olhos. Depressa aprendes a ficar com essas coisas na mente e no espírito; a preservar o que tem valor. Recita o Conhecimento, observa os rituais. O Sol e a Lua proteger-te-ão; o mar será a tua fortaleza e as pedras vivas o teu refúgio. Protege o laço misterioso entre a terra e a vida que vive nela e a nossa grande mãe sustentar-te-á.

 

Senti-me ligeiramente fraca e espantada. Talvez as minhas perguntas não tivessem importância, na realidade. A missão que me tinham confiado era muito importante; devia sentir-me honrada. Mas eu não sentia nada, salvo o vazio no coração e a dor das minhas lágrimas.

 

Queres perguntar-nos algo, antes de partirmos? A Dama da Floresta falou-me com gentileza; mas eu não me esquecia de quem ela era. Aquela gente não sabia nada acerca da espécie humana; para eles, as nossas vidas não tinham consequência no desenrolar das coisas.

 

Gostaria de saber aventurei eu.

 

O quê, minha filha?

 

Tenho duas perguntas. Uma rapariga humana precisa de comida, de calor e de roupa para vestir; e meios para poder ter calor no Inverno. Estou preparada para estar sozinha; isso não tem nada de novo para mim. Mas, como vou arranjar tempo para levar a cabo os deveres que vós me exigis, se tenho também de esgravatar nestas rochas estéreis para viver? Não sei pescar à linha, mas...

 

Os quatro riram alto, profundamente, uma espécie de música atravessando a câmara.

 

Terás tudo o que necessitares disse o Senhor ardente. Através de um acto de inesperada gentileza, ganhaste estranhos e leais amigos.

 

Os Anciãos assegurarão que terás tudo o que precisas. Na verdade, insistiram para que pudessem ficar com esse dever só para eles. Que estranhas criaturas. Não terás necessidade de... pescar. E rompeu de novo às gargalhadas.

 

Muito bem disse eu olhando em volta e tentando perceber quantos olhos nos estariam a observar. Os Anciãos sabiam disfarçar-se; nunca se sabia que pequena sombra, que montão de pedras poderia, sem aviso, transformar-se numa criatura viva. Pelo menos, teria alguma companhia. Mas há outra coisa em que parecem não ter pensado disse eu. A minha avó disse-me que a nossa espécie vive muito tempo. Como temos o mesmo sangue que vós, o nosso tempo de vida é superior aos dos outros humanos. Mas eu não sou eterna. Posso manter estes segredos a salvo até ser velhinha, como Lady Oonagh. Mas, eventualmente, morrerei, e os segredos perder-se-ão comigo.

 

Os olhos líquidos do ser-oceano abriram-se e as suas frondosas sobrancelhas ergueram-se.

 

Oh não disse ele, surpreendido. Os segredos não morrem contigo; as coisas não se passam assim. A nossa visão é muito maior do que a vida de um único guardião. Ensinarás à tua filha estas coisas, de modo que ela possa continuar a tua missão; com o tempo, ela passará esse conhecimento à filha dela. Vai demorar muito tempo, oh, tanto tempo, antes que este Conhecimento possa ser conhecido, de novo, pelo mundo. É por essa razão que escondemos as Ilhas, esta noite, do mundo dos humanos. Uma grande onda passará por aqui; e elevar-se-á uma grande bruma, que as esconderá. Os viajantes bem podem procurá-las, mas nenhum as encontrará.

 

A minha filha disse eu de modo indiferente. Estou a ver. Corrigi-me se estiver errada, mas eu pensava que era preciso um homem, tanto como uma mulher, para fazer um filho. O pai dessa criança vai ser um caranguejo, ou uma gaivota, talvez? Ou tencionam fazer com que um marinheiro naufrague e me venha bater à porta, para que eu possa ter um uso conveniente para ele?

 

Seguiu-se um silêncio súbito. Talvez eu não tivesse percebido qualquer coisa. Os quatro grandes seres dos Túatha Dê olharam para mim solenemente. Então, o Senhor do fogo estendeu uma mão e ali, na minha frente, surgiu uma frágil bola de vidro, suspensa no ar, tão encantadora e brilhante como uma estrela.

 

Tu conheces o feitiço disse ele. Mostra-nos.

 

Olhei para ele horrorizada, emudecida por tanta crueldade. Mordi as palavras que me vieram aos lábios. Cai. Alto. Agora, suavemente. Como se atreviam? Como se atreviam a fazer aqueles truques?

 

A bola não se esmagou no chão. Caiu, parou e ficou suspensa a um palmo da superfície rochosa. Mas não fora eu a fazer o feitiço. A bola brilhava, reflectindo o fogo dos cabelos ardentes do Senhor. Este avançou e apanhou-a.

 

Estás a ver? disse ele suavemente. Tu não és a única que sabe fazer este passe de magia.

 

Caranguejos, gaivotas, marinheiros naufragados; não me parece disse a Dama da Floresta. Creio que somos capazes de fazer melhor do que isso.

 

Senti um baque no coração. Aterrorizada com a possibilidade de ter percebido mal, sussurrei:

 

Que quer dizer?

 

Que espécie de pai necessitaria essa criança, a crescer neste local tão isolado? meditou ela. Uma criança assim precisaria de ser desembaraçada, alegre e sábia. Precisaria de ser capaz de trepar e saber equilibrar-se; e a respeitar as criaturas selvagens que nos rodeiam neste local cercado pelo mar. Seria útil ter um pai que a ensinasse a nadar, já que a mãe não pode. E que mais, diz-me?

 

Que está a dizer? A minha voz fraquejou de angústia e eu tremia como um vidoeiro no Inverno. Temia que me estivessem a atormentar, porque não podia ser verdade, certamente; como seria possível? As falésias eram altas, as rochas eram aguçadas e o oceano era gelado. Mas... a esperança cresceu em mim como a seiva na Primavera, doce e forte.

 

Um pouco de música para ajudar a passar o tempo disse o Senhor feito de ar e luz. Um pouco de riso, um pouco de doçura. Paciência e uma razão para continuar. Acho que isso se chama amor.

 

Pareceu-nos que só tínhamos uma possibilidade disse o ser-oceano.

 

Quer dizer... quer dizer que ele está vivo? Mal me atrevia a formular as palavras com medo da resposta. Pensei que o meu coração me ia saltar do peito, porque batia como um tambor. Salvaram-no? Mas, como é possível? Como pôde ele sobreviver àquele mar traiçoeiro depois de um mergulho daqueles? E onde está ele? Não me mintam, por favor...

 

Silêncio, filha. Nós partimos, em breve. Este assunto não é simples, porque não foi fácil arrancá-lo às garras da morte. A Dama da Floresta falava com ar solene; havia uma sombra na sua expressão. Foi necessário fazer uns ligeiros ajustamentos nas coisas para que isto fosse possível. E ele ainda não está aqui. Não virá ter contigo assim com tanta facilidade, porque terás de fazer outra espécie de teste; um teste que destinaste a ti própria.

 

Que teste? Fiquei gelada de novo, desconcertada pelas suas palavras. Que tenho de fazer?

 

Ela suspirou.

 

Ele seguiu-te até ao fim do mundo. Desistiu de tudo o que mais amava por ti. Tu tremes de alegria, agora, que sabes que está vivo; no entanto, mandaste-o embora vezes sem conta. Talvez demasiadas; talvez, desta vez, ele não queira regressar, sabendo que não conseguirá suportar outro não.

 

Os quatro começaram a desvanecer-se, preparando-se para partir. As suas formas ficaram transparentes e atenuadas, até que só lhes podia ver os olhos, tristes, orgulhosos e não sem alguma piedade.

 

Digam-me! Por favor, por favor, digam-me o que devo fazer!

 

A Dama da Floresta foi a última a partir. A sua voz pareceu-me tão frágil e efémera como o suspiro da brisa nas folhas de uma grande floresta, um restolhar suave de despedida.

 

Deves ir até ao mar e esperar por ele disse ela. Só terás uma oportunidade. Se a perderes, perdê-lo-ás para sempre. Deves abrir o teu coração e dizer a verdade. Ah, ainda não acrescentou ela quando eu me precipitei para a entrada. Só ao anoitecer. Tens que esperar que o tempo mude. Só então poderás trazê-lo para casa. A sua figura indistinta enevoou-se e desapareceu. Quando o azul-claro do fim de tarde começou a extinguir-se e a escurecer, como se um pincel tivesse passado pela vasta extensão do céu para o pintar da cor da lavanda, ou da tonalidade das asas de uma pomba, ou da cor do líquen de uma pedra, saí descalça para o exterior, desci os degraus rudemente talhados até onde as grandes rochas lisas se erguiam sobre o mar, na costa sul da Needle. Havia ocasiões em que a água lavava a superfície fendida daquelas pedras monumentais; mesmo naquele momento, nos seus cantos escondidos havia pequenas poças, cada uma com o seu delicado quinhão de vida; frágeis criaturas marinhas, agarradas, frondosas anémonas e minúsculos peixes iridiscentes, do tamanho de pestanas. Mas agora a superfície da grande rocha estava seca; sentei-me ali de pernas cruzadas, as costas direitas e fixei o olhar nas águas cada vez mais escuras. Senti o calor armazenado naquela pedra antiga e o abraço amigo da terra, fazendo entrar a vida do Sol no meu corpo.

 

As palavras chegaram-me em silêncio como uma vez, em tempos. Esta rocha é a tua mãe, tem-te na palma da mão Este calor é o teu pai, ele dá-te a sua vida, o seu espírito e a sua força Apesar de toda a serenidade da hora e do local, o meu coração batia com força à medida que a luz se esvaía; o mar estava cada vez mais escuro e eu não via nenhum nadador no seu abraço frio, nenhuns filhos, ou filhas, de Manannan mac Lir brincando na rebentação enquanto o Sol descia a oeste, algures para lá das verdes colinas de Kerry. A água sussurrava aos meus pés, banhando as velhas pedras, rolando-as, como se estivesse a lavar coisas antigas e a substituí-las por novas. Uma grande inundação; um grande rio de lágrimas. Mas as lágrimas nunca seriam suficientes para lavar o que eu fizera. Se o mar atirasse para aquela praia selvagem um tesouro, quem menos do que eu, uma simples filha de feiticeiro, mereceria recebê-lo, que magoara tanta gente com os seus disparates? Como poderia isso tudo ser remediado?

 

As palavras vieram-me de novo, secretas, nascidas do sopro do vento de oeste, suspirando nas grandes ondas do mar. Este sopro é uma promessa, uma dádiva de amor e lealdade. A maré muda-, todas as coisas mudam, e renascem. A terra sofre e resiste-, o oceano estremece, esperando a renovação. As coisas boas perecem e a inocência morre. Mas a esperança sobrevive se o Guardião mantiver a fé, na Needle. Esta é a verdade.

 

Tremi ao ouvir aquelas palavras, mas continuei sentada nas rochas, porque me parecia que não podia fazer outra coisa senão esperar e ter esperança. Se perdesse a esperança, então não me restaria mais nada, absolutamente nada.

 

Percebi um súbito movimento nas águas cada vez mais escuras que não era certamente devido apenas às ondas, ou às brilhantes algas emaranhadas nascidas do seu seio. Eram... eram criaturas, de corpos esguios, criaturas marinhas de cabeças redondas, brincando, mergulhando, dançando nas ondas, as suas formas a verdadeira essência do elemento móvel, fluído, que habitavam com tanta alegria. Semicerrei os olhos e olhei com atenção. Sim, eram selkies; cinco ou seis movendo-se em círculos. De vez em quando erguiam as cabeças, a pele escura e macia brilhando à última luz do dia e fixavam os olhos líquidos, queixosos, em mim, ali sentada nas rochas da Needle. Certamente que iriam aproximar-se. E ali, onde eu estava sentada, onde a rocha se inclinava suavemente para entrar no mar, uma delas poderia sair e... e... mas elas não vinham e o Sol estava a desaparecer no horizonte, a ocidente e estava a ficar escuro. Devia ser o meu castigo, talvez, por me ter atrevido a ter esperança de que, no fim de contas, poderia receber um presente tão grande, abraçar mais uma vez o homem que amava tanto e que pensava ter perdido para sempre. Era o meu castigo por me atrever a acreditar, nem que fosse por um só momento, que a deusa me acharia digna de tal coisa. Murmurei o seu nome enquanto as selkies se afastavam da ilha, cada vez mais, até eu mal conseguir vê-las à luz do crepúsculo. Darragh, sussurrei, como uma rapariga tola, apaixonada. Oh, por favor. Por favor.

 

Tens de fazer melhor do que isso, disse uma vozinha seca à minha esquerda. Olhei para baixo. Desta vez nem se dera ao cuidado de se transformar; era o pequeno e desgrenhado mocho, sem bem que não tivesse visto nenhuma ave a voar, ou a pousar. Tens de fazer melhor do que isso e depressa. A noite está a chegar; em breve estará escuro e será demasiado tarde.

 

Pensa, rapariga, pensa, disse uma voz profunda e de cana rachada à minha direita, uma voz que parecia vir das próprias rochas; seria aquela fenda uma espécie qualquer de boca e seria aquele buraco redondo, ornamentado com uma concha, uma espécie de olho? Os Fomhóire estavam por toda a parte. Tinham sobrevivido, dessa maneira, durante eras incontáveis, enquanto outros eram chacinados, ou exilados. Pensa, disse de novo a voz. Usa a cabeça. Recorda.

 

Não consigo murmurei. Não o vejo. É demasiado tarde, se calhar. Mas, não estava uma selkie na água, sob aquela luz crepuscular, os seus olhos brilhantes olhando na direcção de terra, relutante em seguir as outras para leste, para o abrigo das baías das ilhas maiores? Ela esperou; mas não esperaria eternamente. Que tinha eu de fazer? Não podia chamar; aquilo era uma criatura selvagem, a minha voz assustá-la-ia. Pensa, Fainne. Recorda-te. Recorda-te.

 

Cantar murmurei, à medida que me ia lembrando. Darragh tocando gaita-de-foles, docemente, chamando-me, tentando fazer com que eu fosse ter com ele. Que dissera ele? Algo acerca de focas, era isso. Aposto que não és capaz de cantar para chamar as focas dissera ele. Que a deusa me ajudasse. Como podia eu cantar para chamar aquela criatura, eu, com a minha voz de cana rachada, que mais parecia a voz de uma criatura dos pântanos? Olhei para os olhos escuros e líquidos da selkie, ela olhou para mim e eu soube que era precisamente isso que devia fazer; que a minha voz era a única que podia atraí-lo. Porque, por mais rachada que fosse, não era a voz do amor?

 

Despacha-te, insistiu a criatura-mocho. Senão, quando escurecer por completo, será demasiado tarde.

 

Na verdade, no mar, a selki virou a cabeça para olhar para as outras; e virou-se de novo para olhar para mim. Assim, respirei fundo e comecei a cantar. A minha voz era fraca e desafinada; um pequeno fio de som foi levado pelo vento, certamente uma canção demasiado pequena para chegar até à criatura que boiava nas ondas. A selkie olhava para mim.

 

Muito bem, disse a criatura-mocho, mentindo nitidamente.

 

Mais, encorajou o ser-rocha. Mais. Mais alto. Ele está a ouvir-te. Depressa.

 

Na verdade, parecia que ela me ouvia, porque se aproximou e eu imaginei ver algo, como que um reconhecimento, nos seus estranhos olhos, escuros, tristes, como a solidão do mar. Recomecei. O calor das grandes rochas fluiu através de mim, o vento de oeste deu-me forças e a voz do mar emprestou um profundo contraponto ao fluxo hesitante da minha melodia. Cantei enquanto a luz desaparecia e a água ficava escura como tinta, enquanto as sombras estendiam os seus braços para mim e o céu ficava da cor violeta escura do crepúsculo. A minha voz era um farrapo patético de sons mal-formados na vasta extensão daquele lugar remoto, a canção não tinha forma e as palavras eram hesitantes. Mas a canção vinha-me do coração e pus nela todo o meu amor e desejo há muito escondidos. Tudo o que eu nunca lhe dissera, porque não podia. Cantei para o crepúsculo, esperando a chegada da noite.

 

A última luz do dia esfumou-se. A meus pés, entre o mar e a terra, a selkie esperava, a sua cabeça escura e suave mal visível à tona da água, os olhos redondos fixos em mim. A minha cação aproximou-se do seu fim hesitante. Estendi a mão enquanto o crepúsculo se transformava em noite e os meus dedos apertaram a mão forte de um homem. Puxei com todas as minhas forças enquanto as lágrimas me escorriam de novo pelas faces e por fim, nas rochas junto de mim, estendido, a tremer à luz difusa da Lua, estava o meu amado, ensopado, tremendo dos pés à cabeça e completamente nu. Acocorei-me junto dele, rodeei-o com os braços e perguntei a mim mesma porque duvidara de que ele regressaria para mim. Não fora ele sempre o mais leal dos amigos?

 

Desculpa murmurei. Desculpa, Darragh, desculpa por te ter feito isto.

 

Ele pestanejou e virou a cabeça para um lado e para outro, como se não soubesse bem se era uma foca ou um homem. Talvez, a acreditar nas histórias, ele, de futuro, não fosse uma coisa nem outra. Tremia tanto que eu sentia os espasmos por todo o meu corpo. Tentei tirar o xaile, pensando rodeá-lo com ele.

 

Desculpa disse eu de novo por entre lágrimas de alegria e tristeza. Darragh pôs-se cautelosamente de pé. O seu corpo, à luz da Lua, era pálido; pálido, nu e muito, muito belo. Engoli em seco.

 

É possível viver aqui continuei, desejando que ele falasse, mas sentindo medo, também, porque abrira o meu coração e comecei a pensar se não teria sido uma tolice. No fim de contas, ele virara-me as costas uma vez, quando eu desejara tanto que ele me tocasse. Há comida, água e abrigo. Mas pouco mais. Não podemos deixar este lugar. Desculpa. Por minha causa perdeste tudo o que poderias vir a ter.

 

Darragh olhou para mim naquela meia escuridão.

 

Tu sempre disseste que não s... sabias cantar observou ele com os dentes a bater. Gostava muito de ouvir essa canção outra vez. Foi a canção mais bonita que eu jamais ouvi. Cantas-ma mais uma v... vez, se eu te pedir com jeitinho?

 

Senti as faces corarem.

 

Talvez disse eu. Mas, agora, temos de arranjar forma de te secar, antes que morras de frio.

 

Eu sei de uma ou duas disse Darragh, também ele corando intensamente. Ele estendeu os braços para mim, eu estendi os meus para ele sem me preocupar com a falta de roupa e senti o bater firme do seu coração contra o meu corpo, tão bom, tão bom, que pensei morrer de doçura.

 

Darragh disse eu. Aqui não há nada para ti. Nada senão eu, as aves marinhas e o tempo. Isto não é vida para ti. De qualquer modo, continuei agarrada à única coisa que tinha; compreendia, agora, que algumas coisas são demasiado preciosas para serem abandonadas.

 

Tudo o que sempre desejei foi ter-te a meu lado e a estrada à nossa frente disse Darragh. Isto é a mesma coisa.

 

Não é lá grande estrada disse eu, sentindo o desejo subir-me pelo corpo acima, sentindo a necessidade de me manter chegada a ele, irresistível.

 

Uma grande aventura. A voz de Darragh soou doce nos meus cabelos. É o que é. O seu corpo estremeceu de novo, profundamente e eu afastei-me.

 

Diz-me uma coisa disse eu. Aquela noite em Inis Eala, quando tocaste a gaita-de-foles e me perturbaste. Por que me viraste as costas? Por que não me disseste adeus com um beijo, ou um abraço? Eu pensava... eu pensava...

 

Rapariga tonta disse Darragh gentilmente. Nunca percebeste, pois não? Nunca chegaste a perceber como te amo, como te desejo, de tal modo que quase não conseguia impedir-me de te tocar, sabendo que, se começasse não conseguiria parar e com medo de te fazer algo que te assustasse e te fizesse fugir para sempre? Acontece connosco, homens, Caracóis, este querer; mesmo agora... ele olhou para o próprio corpo nu e de novo para cima mesmo agora, cheio de frio, sabes...? E sorriu torcidamente.

 

Vem, então disse eu com voz trémula, estendendo uma mão para ele não percamos mais tempo.

 

E, juntos, começámos a longa subida para o calor do abrigo; para uma nova vida. Porque parecia que o destino dele era o meu destino e o meu o dele, ali, naquele lugar marginal, naquele lugar onde a terra e o fogo, o ar e a água se encontravam e separavam de novo, doce e misteriosamente, numa dança eterna.

 

 

                                           EPÍLOGO

 

Nos anos que se seguiram à grande batalha pelas Ilhas, muitas histórias se contaram acerca dos acontecimentos que tiveram lugar e suas consequências. Durante algum tempo contou-se algo parecido com a verdade; uma história que até poderia ser História. Essa história dizia que Sean de Sevenwaters desafiara os Bretões com a ajuda dos seus aliados e sob a liderança de um jovem chamado Johnny, um guerreiro de poderes quase sobrenaturais. Essa vitória foi tal, que Northwoods renunciou para sempre à disputa por esse território. No entanto, de certo modo, Edwin não perdeu. Formaram-se novas alianças entre os velhos inimigos. Com o tempo, a filha de Northwoods casou com o herdeiro de Harrowfield e assim, ironicamente, por meio da paz, finalmente, os dois grandes domínios de Northumbria conseguiram exactamente que o vilão Richard de Northwoods desejou um dia: uma só grande propriedade, forte, no noroeste de Inglaterra. Houve uma aliança ainda mais estranha, a que se fez entre Northwoods e Sevenwaters, nada mais nada menos do que uma promessa de paz e boa vontade entre Bretões e Irlandeses. Isso foi obra de Johnny, que resultou em longos anos de felicidade e prosperidade em ambos os lados do mar. Ninguém falou muito da batalha em si; todos sabiam que tinha havido coisas estranhas, como o uso de navios muito parecidos com os dos Finn-ghaill e a intervenção de uns estrangeiros muito poderosos e como tudo tinha acabado, no fim, num combate singular entre dois homens. Alguns disseram que tinha havido uma mulher e outros um ogre, ou uma fada; mas muitos acharam isso fruto da imaginação.

 

À medida que o tempo passou, as histórias desenvolveram vida própria. Os pescadores, especialmente, gostavam de as contar entre eles nas noites frias à volta da fogueira, enriquecidas pelos efeitos de uma boa caneca de cerveja. O que era engraçado era que todos falavam das Ilhas e como elas tinham sido reconquistadas, finalmente, com grande coragem e habilidade. Mas quando se perguntava a alguém onde eram essas ilhas, ninguém parecia capaz de o dizer com exactidão. Alguns diziam que eram a sul de Man, mas não tinham a certeza, porque todos eles tinham navegado até lá nos seus curraghs e todos sabiam que não havia ilhas nenhumas por ali, apenas umas rochas batidas pelas marés. Alguns diziam talvez para Norte, mas outros discordavam. Fosse onde fosse o local original das Ilhas, já lá não estavam; pelo menos, não eram capazes de as encontrar.

 

Mas, por vezes, ouviam uma história acerca de um tipo, ou outro, que tinha visto qualquer coisa e quanto se juntam essas histórias todas, fica-se com uma bem estranha, quase inacreditável; no entanto, eles acreditavam, ou quase. Um tipo remando sozinho e uma bruma aparecendo subitamente, como que por magia e quando ela se ergueu, por momentos, viu um grande pilar de rocha, como que uma torre construída por gigantes, só que aquela estava no meio do mar com as ondas a esmagarem-se nela. E, por vezes, via-se gente lá, à noite, sentada nas rochas ao luar, ou subindo e descendo a falésia como se fossem caranguejos, tão agilmente se moviam por aquela encosta íngreme. Gente pequena, como se fossem crianças, de cabelos tão vermelhos como as folhas de uma faia no Outono; e por vezes um homem e uma mulher, mas tudo o que se conseguia ver deles era um mero avistamento, antes de a bruma se fechar de novo sobre eles. Um tipo viu luzes, mesmo no topo, e outro jurou ter visto uma criatura com uma capa de penas e botas encarnadas; mas os outros disseram-lhe que era imaginação. Um outro disse que havia lá muitas focas, nas rochas, no lado sul; e uma mulher sentada à beira da água a cantar. Uma sereia, pensou ele que era. Disparate, disseram os outros. Mas continuam a contar essas histórias.

 

As histórias fazem-me rir. Vejo os homens no meu espelho de água límpida e à medida que os anos vão passando vejo a nossa história transformar-se num estranho reflexo distorcido dela própria, tornando-se mais aceitável para as pessoas, sem o sangue e as mortes, sem a crueldade, os erros terríveis, o desperdício e, eu sorrio e vejo-a passar. Ouço a minha filha recitar o conhecimento e elogio-lhe os esforços, Muito bem, Niamh, mas não demasiado, ou não terá nada por que lutar. Dou-lhe tempo para brincar com o pai e o irmão mais novo. Riem, cantam e contam histórias sentados ao sol sob as sorveiras-bravas. Fazem assobios de ossos de baleia e inventam novos nomes para os peixes, para os pássaros e para a fugidia criatura de rocha. Não vêem qualquer estranheza nos Fomhóire.

 

Danny talvez nos deixe quando crescer; mas nós achamos que fica. Ele, aqui, tem duas casas, o mar e a terra, divertindo-se na liberdade de um e agradecendo o calor da outra. O destino da nossa filha será mais difícil. Para ela, talvez os Fair Folk façam naufragar um viajante, um homem de coragem e visão, que se sinta atraído por este lugar escondido pelas brumas e se deixe capturar pelo amor.

 

Daqui a muito tempo. Depois do meu tempo, do tempo da minha filha e do tempo da filha dela. Veremos coisas terríveis nas grutas da verdade; veremos a pilhagem da terra, a degradação dos oceanos, o desaparecimento das grandes florestas. Veremos a crueldade do homem e a sua ganância, o desaparecimento da velha fé em quase todos os corações. Mas virá o tempo. Tem de vir; não o disseram os próprios Fair Folk? Finalmente, a sabedoria triunfará, quando o mundo estiver quase perdido; e o homem descobrirá a sua ligação com a terra, em tempos sua mãe. Esta é a grande e solene verdade e nós cumpri-la-emos fielmente.

 

Aprendi muitas coisas na minha jornada para a Needle. Aprendi muita coisa acerca de lealdade, coragem e perdão. Aprendi que o amor é a mais cruel das coisas e a mais maravilhosa. Aprendi que se encontram amigos nos sítios mais estranhos, se soubermos procurar. A minha vida, aqui, é mais rica do que se pode imaginar; a deusa foi, sem dúvida, boa para nós. Concedeu-me a dádiva maravilhosa da segunda oportunidade; e eu não a desapontarei.

  

                                                                  Juliet Marillier

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades