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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DE MISTRAL - P.2 / Judith Krantz
A FILHA DE MISTRAL - P.2 / Judith Krantz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                                                     Capitulo 19

 

Mesmo no meio do inverno há uma alegria especial que sempre reina em Avignon. Teddy estava andando apressada pela Rue Joseph Vernet, a caminho do cabeleireiro, bem agasalhada contra o frio seco que dominava o sul da França. Mas um sol festivo brilhava de um céu límpido sobre todas as pedras antigas da cidade, pedras de prata, pedras como açúcar mascavo, pedras do dourado do champanha, pedras rosadas e de um violeta desbotado. Rue Joseph Vemet, curva e estreita, era tão chique quanto uma rua de Paris, bordejada por casas de cidade, cujos andares térreos tinham sido transformados em salons de coiffeurs, floristas, antiquários e elegantes butiques de roupas. Teddy tinha hora marcada na manhã de sexta-feira, para...

 

 

 

 

fazer o cabelo, a única hora marcada nas suas semanas todas, pois Teddy l unel e Julien Mistral tinham feito uma vida juntos que existia fora do tempo comum.

Desde a primeira noite que passaram juntos, não se haviam separado uma vez sequer. Ele nunca voltara a La Tourrello, abandonara tudo como se sua casa, seu estúdio, sua mulher e filha fossem um pé de meia usada, e tinham vivido juntos num estado de felicidade espantada que, nos últimos quatro meses, os havia isolado das realidades da vida cotidiana. Estavam tão livres das considerações normais que, juntos, pareciam um navio velejando, levado por um vento forte e constante, dirigindo-se infindavelmente para uma ilha rósea.

Depois dos primeiros dias passados no Hotel Europe, eles tinham descoberto um apartamento grande, para alugar, dentro dos muros medievais daquela cidade soberana, com sua opulenta luz toscara, sua centena de campanários, sua história de pompa, aparato e júbilo datando dos dias em que sete papas tinham ali sua corte faustosa, tomando sob sua proteção, a certo preço, aqueles que não se sentiam seguros fora dos limites da cidade: judeus, contrabandistas, prisioneiros fugitivos e, imaginava Teddy, muitos outros amantes como eles. Avignon, animada, próspera, rindo dentro de suas muralhas douradas, continha tudo que pudesse tornar a vida deliciosa, pensou ela, recostando-se e sentindo as mãos experientes da assistente que lhe escovava os cabelos, para desembaraçá-los.

O apartamento que eles ocupavam formava todo o segundo andar de uma mansão do século XVIII, que antes pertencera a um rico comerciante do elegante Quartier Préfecture. As janelas altas davam para os canteiros de flores e gramados, cheios de pavões, do Museu Calvet. Mistral fizera do aposento maior um estúdio e ao lado ficava o quarto de dormir, onde tinham instalado uma enorme cama de dossel, com reposteiros de veludo azul rei, borda da internamente com cenas de uma caça ao veado. Nas noites frias, os reposteiros podiam ser fechados para proteger a cama, de todos os lados.

Não havia aquecimento central e cada um dos grandes aposentos tinha uma lareira, onde, a partir do princípio de novembro, ardiam grandes fogos de fragrante eucalipto e pinheiro, o dia todo e a noite inteira. O estúdio, era mais aquecido do que todas as outras peças, graças um fogão vienense barroco, de porcelana branca, parecendo um monte de creme batido, mais alto do que o próprio Mistral, que ele comprara de um antiquário para manter Teddy aquecida, enquanto ela posava para ele, o que fazia quase todas as tardes.

Nunca na vida, disse ele a Teddy, ele ficara acordado até tão tarde, sentado com ela presa em seus braços diante da lareira no quarto de dormir, conversando e rindo pela noite adentro, partindo nozes, assando castanhas e bebendo o conteúdo de garrafas compridas, de gargalo fino, dos conhaques sem cor destilados de frutas, que ela comprava encantada com seus nomes irresistíveis: pnmelle de buissons, mure sauvage, églantine e myrtille des bois. Tampouco ele jamais dormira até tão tarde. Ágora, ao acordar, ficava deitado, olhando Teddy dormir, até ela abrir os olhos. Depois, muitas vezes, eles se amavam num voluptuoso esquecimento de tempo e espaço. Depois, Teddy descobria que se perdera de tal modo que nem sabia onde estava, no

instante, quando olhava para a floresta bordada com seus caçadores correndo, cães saltando e flores silvestres de pétalas pequeninas.

- Madame deseja outra ensaboada? - perguntou a assistente. Teddy fez que sim e se descontraiu mais ainda, contemplando os detalhes de sua nova vida. Eles viviam como soberanos, seguros no redemoinho de seu amor, contentes em se beijar e olhar um para o outro, sabendo que estavam certos.

Todo dia, antes do almoço, eles iam tomar um apéritif no Café du Palais, onde nunca se cansavam do espetáculo da Place de I'Horloge, uma praça

grande a aberta, cercada por fileiras de venerandos plátanos com sua casca variegada, malhada, cheia de bandos de pombos esvoaçantes e animada com os

cidadãos de Avignon, que sempre passeavam ali ao meio-dia, enchendo os muitos cafés. Ao crepúsculo, muitas vezes eles iam ao topo do Rocher dês Doms, onde encontravam um parque cheio de rosas que floresciam até o Natal. As vezes, quando havia um filme com Gérard Phillipe, Jean Gabm ou Michele Morgan, eles iam a um dos cinemas locais e, no intervalo, quando os sorveteiros vendiam suas mercadorias nos corredores, Teddy comia dois "Esquimós" e Mistral quatro.

Parecia a Teddy que, embora ela às vezes visse as pessoas olhando-os na rua ou num restaurante, ninguém em Avignon se preocupava com eles. Mistral era um vulto que eles já estavam habituados a ver, havia anos, indo e vindo, e se ele agora aparecia com uma moça, seria indiscreto e grosseiro ficar olhando.

Eles não fizeram nenhuma amizade a não ser com o médico e a mulher que ocupavam o rez de çhaussée logo abaixo deles. Dois amigos Ihes bastavam, pois Julien Mistral tinha dolorosos sentimentos primitivos. Queria montar guarda sobre Teddy e nunca deixá-la longe de suas vistas. Escondia o seu sofrimento cada vez que ela saía do apartamento para fazer alguma coisa, escutava de noite para ouvi-la respirar, quando os homens olhavam para ela ele gostaria de ranger os dentes, se pudesse. Ela era toda mulher para ele, sua noiva, sua filha, às vezes tema como uma mãe ou brincalhona como a irmã que ele nunca tivera, sempre o seu tesouro, que não podia ser conhecido por ninguém, só por ele.

Sob o seu turbante de espuma de sabão, Teddy fez uma cara feia, ao se lembrar da carta que recebera de Maggy naquele dia. Fora conciliadora, muito diferente das primeiras cartas cruéis e raivosas que Maggy mandara depois que Teddy lhe escrevera contando sua nova vida com Julien. Agora, escreveu Maggy, sua única preocupação era o futuro de Teddy. Ela estava apavorada de que, de algum modo, a história se repetisse e que a intenção de Julien de conseguir um divórcio, não tivesse mais sucesso do que tivera a idéia do pai de Teddy.

Como é que ela podia comparar os dois casos, perguntou-se Teddy? Kate Mistral era protestante e não católica e ela se casara com Julien numa cerimônia civil e não religiosa. Teddy tentou conciliar a Kate Mistral que sua mãe descrevia - uma mulher que, disse Maggy, ela temera assim que a vira, uma mulher que, segundo ela, tinha uma força de vontade maior ainda que a de Mistral - com a mulher que tinha conhecido: desbotada, meio frágil, de meia-idade e se derramando toda com Marietta Norton.

Não, Teddy se garantiu, enquanto lhe faziam uma leve massagem na cabeça, a mãe estava errada, estava vendo fantasmas. Os tempos tinham mudado. Será que alguma mulher, hoje, se agarraria a um homem que tivesse perdido inteiramente?

A cabeleireira levou muito tempo para enxugar e escovar os cabelos compridos que Teddy não se dava mais ao trabalho de ondular. Tampouco ela usava mais maquilagem, a não ser rímel. Ela parecia mais jovem do que quando começara a ser modelo e seu rosto estava corado, devido ao tempo que passava com Mistral ao ar livre. Toda a comida e bebida, todo o preguiçoso desfile de seus dias, em que o único trabalho que ela fazia era posar durante três ou quatro horas, deleitando-se no calor do fogão vienense, a fizeram engordar. As saias Korrigan que ela comprara, depois de se resolver a ficar na Provença, estavam ficando apertadas e as calças que usara no aviso vindo de Nova York estavam custando a fechar.

       Eu hoje nunca trabalharia para Mode, pensou Teddy, caminhando para o Café du Palais para se encontrar com Mistral. Marietta Norton teria um chilique se me visse agora. Ela parou num mercado para comprar um pote de mé1 de alfazema Mont, Ventoux, uma bisnaga comprida de pão quente, um cilindro de queijo de cabra brancogiz e meio quilo de manteiga amarela de fazenda. A única refeição que - Ia preparava era o café da manhã, as outras eles faziam em restaurantes ou compravam da charcuteria, Comiam em fôrma de piquenique na sala de jantar, onde a única mobília consistia de duas poltronas fundas, estilo bergére, estofadas com um brocado amarelo desbotado e uma mesa de jogo velha, com incrustações complicadas, sobre a qual estavam quatro castiçais de prata pesados, descombinados. Depois da casa organizada e imaculada de Kate, Mistral se deliciava com aquela quase boêmia.

       Teddy olhou para o relógio e começou a andar depressa para a Place de Morloge. Enquanto balançava a bolsa de compras de rede, que continha suas poucas compras. Viu Mistral se apressando pela rua para se encontrar com ela, o topo de sua cabeça crespa e ruiva, inclinada com o mesmo estilo de cavaleiro de sempre, claramente visível a distância acima do povo. Espantando os pombos na rua, na sua ânsia, Teddy começou a correr.

       Kate Mistral estava de pé, pensativa, no grande aposento sem janelas, à prova de fogo, junto do estádio de Mistral, em que tinham sido instaladas prateleiras de metal para guardar suas pinturas. Lá, em carreiras e mais carreiras, protegidas da luz do dia e da poeira, esticadas, datadas e envernizadas, mas riso assinadas nem emolduradas, estavam as melhores obras dele, de um período de mais de um quarto de século. Mistral nunca vendera os quadros que considerava os de mais sucesso de cada ano de trabalho. Em alguns anos ele conservara meia dúzia de telas, em outros só uma ou duas, outras vezes até 20. Kate conhecia de memória cada tela, sabia em que prateleira estava, sabia com uma precisão de quase um cêntimo quanto daria, se algum dia Étienne Delage tivesse permissão de vendê-la. Ela acendeu todas as luzes e foi andando pelos corredores, que tinham sido criados para um acesso fácil às telas, e puxou uma prateleira dos fundos do depósito. Nela estava o quadro de Maggy, despida na pilha de almofadas verdes, o mais famoso da série Rouquinne. Desde 1931, Kate não olhava para aquele quadro, quando ele voltara da exposição de Nova York, mas nunca se esquecera de que estava ali, junto com os outros seis, como uma substancia radioativa mortífera e em desenvolvimento, dentro de um recipiente de metal, invisível mas vivo.

"Ah, sim", pensou ela, "é fácil compreender. Afinal, qual o homem que resistiria? Carne nova, todos eles o desejam, na idade dele, e se pudessem, todos fariam fila no mercado para comprá-la, aos quilos. Julien não é diferente. Talvez até seja mais suscetível do que os outros, eu sempre soube que nada lhe importa tanto quanto o aspecto das coisas, aquilo que seus olhos podem ver, superfícies, nada a não ser as superfícies. Mas que tolo ele é, que grande tolo, infantil, tipicamente de meia-idade. A gente não se casa com isso, não se joga fora a vida pela carne!"

"Quanto tempo ele levou para entender isso, no caso da mãe? Uns meses, apenas. Como eu a odiava, aquela garota judia mal-humorada, sem nada a não ser uma boca de beicinho e um corpo maduro, aquela moça que nunca entendeu o que um gênio como Julien precisava de uma mulher. "Ela ficou com a boca azeda de nojo, ao pensar em Maggy. Aquela garota gananciosa e vagabunda devia ter tido muitos amantes, depois de Julien, pois evidentemente essa americana era uma bastarda, do contrário, por que havia de ter o nome da mãe?

Será que Julien via a mãe, na filha? Será que o homem pensava que podia viajar para trás no tempo e se tornar jovem de novo, só por se enterrar de novo em carne jovem? Ela cerrou as mãos num esforço para não rasgar a tela, não atacá-la com um dos instrumentos afiados que estavam no estúdio, a apenas alguns metros.

Com brusquidão, ela tornou a empurrar a prateleira para o lugar. Nos sete anos depois da guerra, as sete Rouquinnes tinham triplicado de valor, como o mais belo exemplo dos primeiros trabalhos de Mistral. Fora o melhor investimento que fizera, pensou ela com amargura, e ela venderia as telas no

dia seguinte, se não tivesse certeza de que poderia triplicar ou mesmo quadruplicar de valor de novo, nos próximos dez anos. Ela não tinha nada a ganhar,

desfazendo-se delas agora, por qualquer preço. Mas se resolvesse vender, se afinal resolvesse que não podia mais suportar a presença delas em sua propriedade, mesmo escondidas no depósito, gostaria de faze-lo por meio de Adrien Avigdor. Já que tinha de fazer negócio com judeus - e no mundo das artes era impossível não fazê-lo - era melhor tratar com o mais sabido deles.

Kate se lembrou de sua viagem a paris, depois da guerra, e sua última entrevista com Avigdor. Ela tivera necessidade de vê-lo, pois ele ainda estava com uma rena de quadros de Mistral, que guardara num lugar seguro antes da Ocupação. Ela receava que ele ainda insistisse em seus direitos de vender os quadros, embora o seu contrato com Mistral já tivesse expirado. Mas o homem estava mais que disposto a entregá-los a Delage.

       Ela não tinha entendido, até que ele lhe contou - por que nunca mais queria ter negócios com Mistral. Expulso de La Tourrello, é? Bem.. . e daí? Qualquer francês que abrigasse judeus o faria arriscando a vida, Avigdor não sabia disso? É o que lhe importava que ele tivesse descoberto que o mesmo acontecera com outros judeus que tinham procurado ajuda com Julien? Ela não ligava a mínima se fossem uma dúzia, 100 ou só um judeu.

       Que direito tinha eles de pôr Julien em perigo?, perguntou ela a Avigdor, sentado severo atrás da mesa, na sua suntuosa galeria, com a fita da Legigo de Honra na lapela, conseguida, ele não deixou de dizer a ela, por suas atividades na Resistência. Ela lhe perguntara, zangada, se ele achava que um gênio como o marido tinha de viver segundo as regras que Avigdor fazia para si. Ele conhecia tão pouco os artistas, depois de todos esses anos, que achava que eles iam se preocupar com a política, a não ser que isso atendesse a suas necessidades temáticas? Avigdor também era um tolo, disse ela consigo, e se esqueceria dele. Já servira o seu propósito.

       Kate foi andando pelos corredores, a esmo, parando para puxar uma tela grande, de uma macieira em flor, a voz oculta do quadro falando de uma atmosfera tio densa de primavera que ela poderia ouvir até a seiva correndo pelos ramos, se olhasse com alguma atenção. Mas Kate olhou aquilo sem ver, lembrando-se de uma conversa que tivera com um tabelião que ela fora procurar em Nice, uma semana atrás. Uma de suas poucas amigas em Félice era mulher do tabelião e como desconfiava que a amiga poderia saber de coisas por intermédio do marido, ela fizera a longa viagem da Alta Provença até a grande cidade, onde ela por certo encontraria um tabelião que não soubesse quem ela em.

       A visita em si não levou muito tempo e as respostas a suas perguntas foram simples. Ele lhe garantiu que a instituição do casamento civil era respeitada na França como em poucos países do mundo. Desde 1866, o divórcio só era possível pour faute. Ele se recostara em sua cadeira, em expectativa, sabendo que ainda não merecera seus honorários.

- Pour faute? - perguntara ela, habilmente escondendo sua ansiedade.

       - Depois da apresentação de fatos que constituam violaç4es graves e repetidas, minha cara senhora, dos deveres e obrigações do casamento, que tornem intolerável o prosseguimento da vida conjugal.

       Ele, evidentemente, estava apreciando o ritmo sonoro de suas palavras, ao pronunciá-las.

       - Não compreendo bem - dissera ela. - Isso significa que se o meu marido me der motivo de divórcio, se ele estiver em erro, eu posso me divorciar dele?

- Sim, senhora. É apenas uma questão de tempo. E de provas.

       - Mas se eu não quisesse lhe conceder o divórcio, a despeito do erro dele?

- Então, o divórcio não seria possível.

- Não? Mesmo que ele quisesse se divorciar de mim?

- Nunca, madame, seria completamente impossível.

Ela agradecera ao tabelião, pagara e tomara a estrada comprida e sinuosa de volta a Félice, subindo aos poucos pelas campinas despidas do inverno. Ela não precisava se preocupar, nem agir, nem responder. Estava protegida pelo peso de quase l00 anos de Direito francês.

Aquele imbecil desprezível, seu marido, saberia disso? Já teria sabido da verdade através de tabelião? Ela não tencionava contar a ele.

Ele que descobrisse, ele que aprendesse os fatos e aos poucos compreendesse - pois a princípio, não acreditaria, ia se enfurecer e berrar e dizer que nada o impediria de conseguir o que quisesse - ele que se desse conta de que estava inteiramente impotente, inteiramente sem poder, pela primeira vez na vida.

Ela quase podia ter pena dele, se quisesse. Mas isso ela não queria. Ele devia ter-se esquecido de como ela era paciente, ele realmente não devia estar lembrado de que ela não desistia nunca.

Não o deixei ir embora quando eu era jovem, pesou Kate, quando podia ter qualquer homem que quisesse, quando poderia ter tido a vida que quisesse levar, quando podia ter dirigido o meu futuro para onde bem entendesse, e escolhi você, Julien. Será provável que, depois que passei a vida moldando a sua carreira, que vou deixá-lo escapar agora? Ah, sujeito desprezível, para que se deu sequer ao trabalho de escrever, pedindo isso? Como ousa imaginar que eu algum dia o darei a essa garota ladina e ladra, que veio e o levou embora? Será que me compreende mesmo tão pouco? Você me pertence. Eu o possuo, assim como possuo estes quadros. Paguei por eles, ainda tenho o recibo da compra, são propriedade minha. E, queira você ou não, você também é.

Mistral largou os pincéis de repente e ficou muito quieto. Teddy continuava a olhar, sonhadora, para as decorações do teto do estúdio, os olhos meio fechados pousados nas guirlandas de flores, os arcos e cupidos que ela passara a conhecer tão bem durante as horas de poses. Será que ainda não estava na hora do intervalo? Parecia-lhe que ela acabara de se deitar no tablado dos modelos.., mas talvez ela tivesse cochilado, coo fazia às vezes, depois de um almoço pesado. Ele foi para junto dela e ficou olhando-a, distraído..

- O que é, meu amor? - perguntou ela. - Não me diga que eu estava roncando.

Ele se agachou e estendeu a mão, traçando uma linha no seu corpo despido, desde entre os seios até abaixo da barriga.

- Não. Roncando, não... você nunca ronca, mas está engordando.

- Eu sei. É essa boa vida. Um dia vou ser uma Rubens. Mas parece que eu não me importo, mesmo.,. você se importa?

- Não... não... claro que não.

Ele parecia estar um pouco incerto. Talvez ele na verdade quisesse que ela continuasse magra como nos tempos em que era modelo. Talvez a sua nova voluptuosidade, que ela achava tão agradável, a estivesse tomando nos própria para ser pintada, por algum motivo. Os franceses se preocupavam sempre com la ligue - as mulheres francesas, em todo caso. Mistral pegou cada um dos seios dela em suas mãos grandes e os afagou, pensativo. Depois, pôs as mãos na cintura dela, os polegares se tocando, os dedos longos rodeando sua cintura. Ele parecia estar escutando alguma coisa.

- Ei, o que é que está acontecendo? - riu-se Teddy. - Suas mãos estão frias.

- Você está grávida - disse ele, com uma voz de uma alegria incrédula.

- Ah, não estou, não!

Ela se sentou, os olhos arregalados, alarmados.

- Ah, está, sim. Isso não é gordura, não do jeito que está distribuído... pode crer, conheço a diferença. - Ele mergulhou o rosto no estômago dela e beijou a pele, num entusiasmo louco. - Meu Deus, meu Deus, você nem imagina como estou feliz.      - Você! Você! - gaguejou Teddy. - Julien, você está me assustando... coo é que pode saber?

- Não é possível? Pense, Teddy.    Não é possível, sim. Ah, - Não!... sim... imagino que sim... ah, merda, não, não pode ser!

- Estou certo - disse ele triunfante. - Eu sabia.

- Julien, o que vou fazer? 

Teddy puxou um xale para cima de si, cobrindo-se o mais que pode.

- Fazer... por que havia de fazer alguma coisa?

- Julien! Você ainda nem está divorciado, pelo amor de Deus...

- Teddy, eu vou me divorciar. Prometo isso pela minha vida, pelo meu - Teddy, eu vou me divorciar. amor por você, o meu trabalho, tudo o que você considere sagrado. Vou me divorciar! Especialmente agora que você está grávida. Quando Kate souber do bebê, ela há de ver que nada adianta se agarrar a mim. Eu sei como é que ela pensa, conheço-a suficiente bem para dizer exatamente o que, se passa na cabeça dela. Ela sabia das outras garotas de que lhe falei, mulheres sem importância, um sexo fácil, melancólico, sem significado. As noites em que eu não voltava para casa foram demais, para que ela não percebesse. Seria pior se eu tivesse mulheres de Félice... nessas cidades pequenas, não há nada mais vergonhoso do que ser traído publicamente. Mas ela ainda não entendeu o que se passa entre nós. Existe algum meio dela saber que você é única mulher, se a única pessoa, que eu já amei, em toda a minha vida? - Ele se levantou e olhou para Teddy, encolhida em seu xale. - Eu ainda estou assombrada com isso, que abençôo todo dia que vejo você na cama comigo! E quando nós formarmos uma família, quando eu registrar a criança na prefeitura e disser ao mundo sobre ela, quando a notícia se tornar pública, o orgulho de Kate não permitirá que ela fique passiva. Ou muito antes, mesmo, assim que ela souber que o bebê está a caminho, ela vai agir, com calma, sensatamente.., por causa de Nadine, por causa do seu próprio narre, para impedir que as pessoas falem. Li, é isso que vai acontecer, estou convencido.

- Você sabe de que me faz lembrar? - perguntou Teddy, com violência. - Daquelas histórias que eu lia na National Geographic sobre certas tribos em que os homens nem sequer consideram uma mulher como esposa em potencial até ela engravidar e provar que não é estéril. - Teddy levantou a voz, com violência. - Julien, você está falando de mim, Teddy Lunel, que vai ter um - bebê ilegítimo! "Registrar um filho... e na prefeitura, nada menos... isso é bárbaro! Sou de Nova York e não uma camponesa. Ganho 70 dólares por hora! Ganho trás mil dólares por semana!... Ah, Julien, você não entende... - ela parou e rompeu num pranto apaixonado, agarrando-o corro uma criança, sentindo os braços dele a abraçarem e a moldarem com firmeza e posse o seu corpo.

Enquanto ela chorava, deu-se conta de que não era mais a Teddy Lunel que ganhava 70 dólares por hora - essa Teddy Lunel que atravessava a Rua 57 e só faltava fazer parar o tráfego - ela se tomara outra pessoa, uma mulher que amava um homem, uma mulher que estava grávida desse homem, uma mulher que se tornara parte da história desse homem.

Os seus pensamentos dançaram, enquanto ela imaginava como seria fácil fazer um aborto. Havia uma dúzia de modelos em Nova York a quem ela podia telefonar pedindo certo endereço bem conhecido na Suécia. Seriam duas horas de avião do aeroporto de Nice, um fim de semana numa clínica impecável de Estocolmo e estaria de volta na terça ou quarta-feira. Mas enquanto pensava nisso, sabia que não o faria. Julien compreenderia, se o fizesse, a felicidade dele com ela não dependia de use filho para ser completa.

Não, era outra coisa, uma emoção que ela sentira só uma vez antes, uma sensação de inevitabilidade que cresceu dentro dela. Ela já se sentia mudada, uma mulher de verdade agora, não mais uma garota. Era a mesma sensação que ela tivera naquela primeira noite, no Hotel Europe... era irrevogável tão irrevogável quanto seu amor por Mistral e, portanto, tinha de ser igualmente certo.

De mês em mês, Teddy viajou pelo inverno e primavera de 1953, seu destino aproximando-se cada vez mais. O bebê devia nascer em junho, disse-lhe o obstetra e, desde o momento em que ela aceitou o bebê, viveu dentro de um círculo de harmonia encantada. Ela sabia que Mistral estava-se esforçando muito para conseguir o divórcio, mas ela se recusava a preocupar-se com os detalhes das negociações que, ela supunha, estavam-se realizando numa atmosfera desagradável. Nada de desagradável podia tocá-la, agora. Para garantir que Maggy não partisse para lá de repente, de avião, ela simplesmente não contou sobre o bebê, nas cartas mensais que mandava para Nova York. Havia tempo para dar essa informação quando ela também pudesse comunicar o dia de seu casamento.

Julien agora insistiu para que arranjassem empregados, que morariam em vários dos quartos vazios do apartamento. Teddy escolheu um Casal jovem, não por serem especialmente habilitados carro caseiro e cozinheira, mas e estavam tão visivelmente apaixonados. Teddy, obediente, cedia a todo o instinto protetor dele, deixando até que ele fosse ao médico com ela todo mês, se bem que ela nunca tivesse estado com mais saúde. Ela era um ralo de um animal sadio, foi como ela felicitou sua imagem, admirando-se como nunca fizera, quando se sentava diante dos espelhos dos quartos de vestir dos melhores fotógrafos do mundo. Sua única queixa era que nunca podia deixar de adormecer ao tomar a sua eau de vie de noite e Julien tinha de carregá-la para a cama, com carinho, levantando-a com facilidade, a despeito de seu volume.

De manhã eles davam longas caminhadas e de tarde Teddy ainda posava. Mistral nunca ficara tão cativo de um tema como ficou com o corpo dela. O trabalho dele nunca fora inatingível ele vivia embriagado com a forma e cor, mas agora, quando ele pintava Teddy, aos poucos ficando grande com o filho, ele começou a interpretar, a pesquisar, a pensar na tinta, a penetrar a superficie mais profundamente do que jamais o fizera. Antes, a maternidade não era um assunto que lhe interessasse. Quando Kate estava grávida, ele ficara vagamente repugnado diante do modo como o ventre parecia se estufar, sem simetria como resto de seu corpo magro, como se fosse uma protuberância, em vez de uma parte orgânica do corpo. A gravidez esgotara o rosto de Kate de energia e colorido e, embora ela a suportasse sem reclamações, a criança dentro dela era uma estranha para ele.

Teddy, porém, florescia tão extasiantemente: os seios, antes pequenos, segundo a moda, desabrocharam num viço sem constrangimento; as velas azuis apareciam claramente na brancura translúcida de sua pele; os bicos dos seios se alastraram e ficaram mais rosados e macios; os braços e pernas estavam menos angulosos, mais delicadamente arredondados. O corpo dela era um milagre de beleza e, em seu volume que se expandia, ele sentiu o poder da natureza como nunca o sentira em qualquer paisagem. Nenhuma tempestade, nenhum céu ou noite estrelada, nenhum pomar maduro ou vinhedo carregado jamais o comovera assim. Era um tema inexaurível, um pintor e poderia nunca não pintar mais nada a não ser aquela maravilhosa curva da barriga, que a mesma, de um dia para outro. Muitas vezes ele terminava um quadro em uma semana e em breve o estúdio estava cheio de telas encostadas à parede, mais telas ao mesmo tempo do que jamais ele tivera, desde que pintara Maggy pela primeira vez.

Em meados de junho, Teddy entrou em trabalho de parto. Julien a levou à maternidade próxima e, conforme a tradição antiga da Provença, permitiram que ficasse com Teddy, enquanto ela dava à luz. Teddy se agarrou à mão dele, mas o parto só levou seis horas e ela o suportou com facilidade e

com coragem. Quando o bebê saiu, o médico teve de lhe dar várias palmadas para ele começar a chorar e, quando afinai chorou, foi com uivos de indignação. Uma enfermeira o embrulhou logo em uma das mantas cor-de-rosa especiais para os recém-nascidos e o apresentou a Mistral.

- Urna menina, monsieur - disse ela, com tanto orgulho como se tivesse sido ela a dar à luz. Mistral, aturdido, subjugado, ficou olhando fixamente para o embrulho assombroso. Um rosto roxo, de onde continuavam a sair enérgicos gritos de raiva, cabelos cor de laranja, tudo enrolado em lã corde rosa. Ele examinou a filha com atenção e depois teve um rugido de prazer.

- Uma Fauve, por Deus. Minha querida, você teve uma ferinha selvagem. É assim que a chamaremos, não? Fauve? Gosta do nome?

Teddy concordou com a cabeça, mas a enfermeira protestou.

- Monsieur Mistral, isso não é nome de santa... não vai seguir os costumes?

- Nome de santa? Que diabos! Fauve é filha de um pintor!

 

 

                                                         Capitulo 20

 

Maman - gemeu Nadine - Arlette disse que eu tenho uma irmãzinha nova. Eu disse que ela era mentirosa. Nunca mais vou brincar com ela, ela é malvada e eu detesto ela.

- Por que ela disse isso? Vamos, Nadine, lembre-se.

- Ela disse que a mãe dela soube isso pela irmã, que trabalha num hospital em Avignon.

- Quando foi que ela lhe disse isso?

- Hoje, em Félice, quando fui com o Monsieur Pollison para apanhar um embrulho no correio. Arlette contou a todo mundo.

- Ela mentiu, Nadine. Você não teve uma nova irmã, nunca terá uma nova irmã. Mas o seu pai teve uma filha bastarda. Diga isso a Arlette da próxima vez que ela disser alguma coisa.

Nadine arregalou os olhos e puxou os cachos com as duas mãos. Ela sabia o que era aquela palavra, qualquer garota de sete anos das redondezas sabia o que queria dizer, pois os filhos naturais não eram coisa desconhecida em Félice e os filhos do pessoal da aldeia eram criados ouvindo as conversas dos mais velhos desde que tinham idade de ficarem no colo, na hora das refeições.

- Não compreendo, maman.

- Você se lembra de quanto tempo faz desde que seu pai foi embora? Enquanto ele esteve fora, viveu com uma mulher má e agora essa mulher teve uma filha. Essa filha é bastarda.

- Quando é que o papai vai voltar?

- Você sabe muito bem que eu não tenho certeza, mas, se você tiver paciência, ele há de voltar mais cedo ou mais tarde.

- Ele vai trazer a mulher má com ele?

- Ora, você está sendo boba, Nadine.

- Ele vai trazer a bastarda? - perguntou Nadine, com ciúmes, ousando pronunciar a palavra porque a mãe a pronunciara.

Todos em casa a tinham mimado tanto, desde que Mistral desaparecera, que ela parara de pensar no pai. Ele sempre tinha visto a verdade, nas mentiras dela - ela o achava apavorante. Enquanto ele esteve fora, ninguém corrigia seus modos à mesa, nem lhe dizia para parar de tagarelar. Mas muitas de suas amigas do colégio tinham irmãozinhos bebês e ela sabia que, depois que nasce um bebê, espera-se que os mais velhos cedam lugar aos pequeninos, nos carinhos dos pais.

- Claro que não! Nadine, não diga besteiras!

Kate levantou-se de um salto e largou a filha que começava a choramingar, sem tentar consolá-la. Ela correu para o quarto, trancou a porta e sentou-se na sua poltrona preferida, olhando para a frente, sem ver nada. Estava esperando ter essa notícia a qualquer momento, mas nunca pensou que teria a notícia da boca da própria filha. Quantos outros mexericos Nadine teria ouvido, dos quais nunca falara?

Evidentemente, os mexeriqueiros de Félice, a maioria dos quais era aparentada, de uma maneira ou de outra, com as pessoas de cada aldeia e cidade num raio de 80 quilômetros, funcionavam com maior eficiência do que o seu advogado de Avignon. Ela soubera, por Julien, da gravidez da mulher Lunel, seis meses antes, chegara até a cumprir a formalidade de se encontrar com o advogado dele e estabelecer o seu ponto de vista, de uma vez por todas. O marido era vítima de uma aberração, uma ilusão, uma loucura temporária que um milhão de homens da idade dele experimenta, disse ela ao homem. A posição dela era inflexível.

Julien, porém, nunca aceitara isso. Continuava a lhe mandar cartas urgentes, iludidas, alucinadas, procurando convence-la de que ela não tinha nada a perder concedendo-lhe o divórcio, pois ele nunca mais seria marido dela.

Nada a perder? O desprezo dela por ele era tão total que tinha até vontade de rir. Ela, Madame Julien Mistral, que recebera o maior respeito em todo o mundo internacional das artes, cujo poder era lendário porque controlava Mistral; ela, a quem os curadores dos museus procuravam para implorar; ela que podia fazer a fama de qualquer galeria, emprestando quadros para urna exposição de Mistral; ela, a ca que podia recusar ou conceder licença para reproduzir um dos quadros Mistral; ela, que tinha de ser conquistada antes que algum estudioso ou jornalista pudesse se aproximar de Mistral; ela que tinha o controle absoluto de todos os seus negócios complexos... ela não tinha nada a perder?

E se ela nunca tivesse levado Avigdor para ver as obras dele? Com o ódio que Mistral tinha pelos negociantes, ele bem poderia nunca ter tido a sua primeira exposição. Quantos outros pintores tinham sido enterrados muito antes de sua obra ser apreciada? Perdia-se a conta. Ela é que lhe dera aquela primeira oportunidade indispensável e foi o dinheiro dela que pagou por La Tourrello; e mais tarde foi o seu controle cuidadoso que lhe tomou possível trabalhar durante o último quarto de século numa total ausência de preocupações, coisa com que nenhum outro pintor poderia sequer sonhar. Ah, não, ela não pretendia renunciar, jogar fora tudo isso, para deixar que uma putinha de modelo assumisse a sua situação. Ele lhe devia a vida.

Kate fez um ruído inarticulado, um rangido de raiva, e começou a andar de uma janela para outra. Como é que um homem podia pensar que uma gota do seu esperma no corpo daquela vaca de Lunel podia levá-la a desistir de tudo por que trabalhara? Como ele a conhecia pouco, na verdade. Não havia nada que pudesse torná-la mais disposta a se agarrar a seus direitos do que o nascimento dessa filha bastarda. As cartas de Julien lhe ofereciam tudo: La Tourrello, que ela um dia lhe dera como dote; todos os quadros; o dinheiro de suas contas nos bancos; como se fosse apenas uma questão de encontrar o preço justo para pagar lhe, para ela desistir de sua identidade. Ela era Madame Julien Mistral. Nada jamais poderia modificar isso.

Kate alisou os cabelos e destrancou a porta. Tinha agido mal com Nadine. Se a menina repetisse suas palavras, isso só Poderia piorar a situação. O escândalo, sem dúvida, já dera ao pessoal da aldela o melhor divertimento que tinham tido em muitos anos. Eles viviam para falar sobre os vizinhos e de nenhum com um interesse tão maldoso quanto dos que na verdade não pertenciam à aldela.

Kate encontrou Nadine sentada triste num canto da cozinha, enquanto Marte Pollison dirigia a cozinheira e sua ajudante na preparação da refeição avantajada que os trabalhadores dos campos esperavam encontrar no fim do dia.

Ela levou a menina de volta ao seu quarto e a pôs no colo.

- Nadine, meu bem, o que eu te disse há pouco estava errado. Não de atenção. Mamãe estava sendo boba... às vezes as maca também são bobas, sabe, como as outras pessoas. Não quero que você diga nada a Arlette, se ela lhe perguntar alguma coisa sobre o seu pai ou sobre mim - tudo vai dar certo breve, papai vai voltar para nós, mas não é boa idéia falar com as pessoas sobre isso. Elas confundem tudo e não é da conta delas. Não diz respeito a elas. Não quero que você vá a Félice, por algum tempo...

- Mas, manam, a escola só fecha em julho.

- Eu sei, meu bem, mas vou falar com sua professora e ela há de entender. Você vai tão bem nos estudos que não fará diferença. Nós vamos nos divertir, as duas, vamos dar passeios no carro grande da mamãe. Você vai comer nos restaurantes comigo, ver coisas bonitas e todo dia eu lhe compro uma surpresa especial, uma coisa bem bonita. Não vai ser divertido?

Nadine não pareceu se convencer. Se eu a pudesse levar para Paris ou Nova York, pensou Kate. Se ao menos eu pudesse sair desse maldito vale, em

que todo mundo sabe de tudo. Mas não posso ir, não mais do que por algumas horas de cada vez. Se Julien soubesse que nos tínhamos ido - e ele saberia no mesmo dia - haveria de pensar que eu tinha desistido. Não, tenho de agir como se nada tivesse acontecido, como se eu não tivesse sabido de nada, como se não houvesse nada para eu saber. Não posso reagir, tenho de continuar como sempre. Ele não pode me provocar â menor ação. Um dia isso acaba e será uma história antiga, confusa, sem importância. Mas agora ninguém, ninguém pode ter pena de mim.

- Em que está pensando, maman? - perguntou Nadine.

- Estou resolvendo o que usar hoje à noite. Há uma grande festa nos Gimpels... o que você acha, meu bem, o meu costume branco, ou aquele vestido de que você gosta tanto, o azul?

Teddy e Julien estavam tomando pesos antes do jantar, no terraço do Sennequier, em St. Tropez. Um ano antes, Vogue tinha descoberto a "vida feliz, o lazer fácil, a calma de lótus" daquela pequena aldeia de pescadores, mas ela ainda não estava estragada. Assim que Fauve completou duas semanas, eles a tinham arrumado, com a ama, e ido para o litoral e tomado uma suite no Hotel I' Aioli, para passar o verão.

- Estou agitada, Julien - disse Teddy, de mau humor.

- Eu sei, minha querida, sinto isso saltando aos meus olhos. Eu demorei muito no jogo de boules, esta tarde? Desculpe... O só que esses velhinhos daqui são muito bons. Por que será que nunca me lembrei de vir aqui? Têm sido umas férias perfeitas.

- E por que não? - disse Teddy, num rompante de irritação. - Mesmo que Fauve não fique quieta por muito tempo, ela e eu somos as melhores modelos que você poderia desejar. A amante do pintor e sua filha natural... um tema clássico, não é? Você já deve ter bastantes telas nossas para pelo menos

três de suas séries.

- Teddy!

- Já sei, já sei, a culpa não é sua,, não o estou acusando de nada, pelo amor de Deus, mas por quanto. tempo isso ainda vai se arrastar? Detesto essa situação, Julien!

- Querida, seja razoável. Fauve está só com dois meses. Você não acha mesmo que Kate pode resistir, durante anos e anos, não é? Um dia ela há de compreender como está sendo estraga prazeres, como não há esperança... basta nós suportarmos.

- Você faz a coisa parecer a retirada de Napoleão de Moscou. O que é que eu vejo pela minha frente, Julien? Escute só! No ano passado, eu estava num estado de passividade induzida pelos hormônios... eu estava hibernando, enfada naquele apartamento assim, comendo, dormindo e sonhando, os meses inteiros, como uma espécie de mamãe ursa. Isso é um artifício da natureza, mas agora já voltei ao normal e não posso suportar não ter idéia do que

me espera.

- Você recebeu outra carta de sua mãe - gemeu ele.

- Isso mesmo. E estou começando a me perguntar se ela afinal não terá razão. E se a história se estiver repetindo mesmo? Ela nunca conseguiu se casar e a maior parte das pessoas hão de concordar que ela é uni bocado mais inteligente dó que eu.

Mistral pegou as duas mãos dela e apertou seus lábios nas palmas.

- Não fale essas coisas, amor, isso só faz piorar...

- Teddy! Teddy Lunel! Eu positivamente não acredito! - gritou uma voz de garota.

Sobressaltada, Teddy puxou as mãos e olhou para cima. Ali na calçada diante do café, estavam dois homens e duas mulheres. Peggy Arnold, que a reconhecera, tinha sido uma estrela das modelos da Agência Lunel, nos dois últimos anos. Teddy levantou-se de um salto e lhe deu um grande abraço. Teddy ficou assombrada ao ver como se sentiu feliz ao ver um rosto conhecido. De repente, Peggy Arnold parecia ser sua melhor amiga.

- Então é aqui que você estava escondida! Todo mundo estava perguntando, por tanto tempo, que já iam desistir, achando que você estava perdida. Sua mãe disse que você se tinha apaixonado pela França, mas, meu Deus! Teddy, esta é Ginny Maxwell... ela também é da Lunel... e Bill Clark e Chase Talbot... estamos todos aqui, para o fim de semana.

Mistral se levantou e se aproximou deles.

- Este é Julien Mistral - disse Teddy, a posse evidente em sua voz. A sombra salpicada de sol, do Sennequier, de repente passou a parecer um palco de teatro, enquanto ela via Julien apertar as mãos dos quatro americanos bronzeados, vestidos de branco, espantados, que de repente tinham ficado encabulados, duros - positivamente com respeito por ele. Aquilo a fez lembrar do dia, 14 meses antes, em que ela conhecera Mistral; e olhando para ele agora, ela se comoveu de novo com sua cabeça heróica, sua altura magnífica e a força controlada de seus olhos. Ela estava orgulhosa e contente porque alguém de sua vida antiga afinal os vira juntos, e, por Deus, ela queria exibi-lo.

- Ah, Peggy, tenho um bilhão de perguntas a te fazer! - exclamou Teddy. - Escute, vocês quatro não podem jantar comigo e Julien esta noite?

- Não podemos, benzinho, vamos a uma função de gala em Monte Carlo. Mas escute, Chase está com seu barco a vela, ou iate, ou seja o que for o nome quando tem 23 metros, e está bem ancorado aqui no porto... por que vocês dois não vêm dar um passeio conosco amanhã e almoçam a bordo?

- Nós adoraríamos, não é, Julien?

- Nada nos daria maior prazer - disse Julien a Peggy Arnold. Naquele momento, ele agradecia qualquer distração. Estava convencido de que Kate acabaria cedendo, mas estava começando a se dar conta de que levaria mais tempo do que imaginara e não ousava partilhar suas desconfianças com Teddy. A cada dia que se passava, estava tendo mais dificuldade em tranqüiliza-la.

No dia seguinte, Teddy e Julien embarcaram no Lhe Baron, o iate fretado por Chase Talbot, às 10 horas. Urna tripulação de quatro pessoas, inclusive cozinheiro, fora contratada para levar o iate num cruzeiro, calmo de um porto a outro, pelas costas da França e Itália.

Quando o Lhe Baron se moveu tranqüilamente do porto de St. Tropez para o Mediterrâneo, os seis passageiros se recostaram em almofadas, ao sol, junto da proa do barco. Teddy deixou sua mão cair ao acaso sobre o braço de Mistral, enquanto conversava com Ginny e Peggy, voltando com prazer às notícias do mundo que abandonara sem olhar para trás.

Ela sentira falta de amigas do tipo dela, foi o que percebeu, enquanto conversavam. Ela e Julien tinham vivido numa solidão tão propositada que era bom, por pouco tempo, voltar a um ambiente em que a diferença entre Bem Zuckerman e Norma Norell era, se não crítica, pelo menos reconhecida, um mundo cheio de suposições e referências que um dia lhe haviam parecido importantes e que ainda era importante para elas.

Enquanto elas conversavam avidamente, pondo-se em dia com as notícias de Nova York, com um dedo ela acariciava os músculos rijos do braço de Julien. Só esse leve contato a fez compreender que nada que sua vida antiga algum dia lhe oferecera fora mais do que um simples fac-símile de existência. Ela largou a conversa e semicerrou os olhos. A realidade era Julien Mistral, o homem que tomara a sua vida inteira, o homem que a transformara de uma moça que temia nunca poder amar em uma mulher que sabia poder amar para sempre. A realidade era Fauve, a filha a quem ela estava ligada por um sentimento tão diferente, em estrutura e força, de tudo quanto ela jamais concebera como amor. Quando ela pegava a filha no colo, nua, só de fralda, e encostava Fauve em seu pescoço e sentia aquele corpinho sedoso, gorducho, macio e incrivelmente forte se descontrair numa confiança absoluta junto dela, aí Teddy conhecia uma emoção que não encontrava palavras para exprimir.

A realidade era Julien e Fauve. A realidade era o fim dessas férias e a viagem de volta a Avignon. A realidade era se instalar para o outono e inverno naquela cidade cor de champanha, procurando nos antiquários mais móveis para o apartamento, levando Fauve para passeios no parque, buscando uma grande provisão de lenha, indo ao mercado... ah, a realidade era tão cheia de coisas lindas para fazer e comer, beber, cheirar e tocar! E se a realidade pudesse incluir outro filho, Teddy disse para si, rindo, Kate teria de se confessar vencida. Por que ela não tinha pensado nisso antes? Era uma idéia brilhante.

- Vamos lançar a âncora do almoço - sugeriu Bill.

- O que é isso? - perguntou Teddy, despertada de seu devaneio.

- É uma âncora leve, uma Danforth. Nós a usamos quando só queremos parar por uma hora, mais ou menos, para nadar e comer. A outra, a Plough, é muito trabalhosa de usar, a não ser que se queira passar a noite. É uma desgraçada grande e pesada e eu a mantenho presa debaixo da proa o mais que posso. Sou um marinheiro médio, preguiçoso.

- Ah.

Os iatistas sempre contavam mais do que a gente precisava saber, pensou Teddy, recordando seus verões nos Hampton.

- Vamos nadar, beber ou ambos? - perguntou Chase Talbot ao grupo.

Como está a água? - perguntou Ginny.

- Ótima. Se quiserem nadar, agora é a melhor hora.

O iate estava vários quilômetros ao largo do litoral, em águas calmas. O sol estava quente, no convés, e todos preferiram nadar primeiro e depois beber. Durante mela hora, os seis se revezaram, mergulhando do púlpito, uma estrutura cromada em forma de U acima da proa, de onde pendiam dois cabos salva-vidas. O convés do Lhe Baron estava a apenas 1,50m acima do Mediterrâneo, de modo que o púlpito, que se erguia a mais um metro acima da proa, dava uma boa plataforma de mergulho.

Há dois anos Teddy não tinha oportunidade de mergulhar em águas profundas, mas, depois de algumas tentativas, toda a sua memória muscular voltou, enquanto ela subia usando os cabos salva-vidas e enroscava os dedos dos pés com perícia em volta do corrimão do púlpito até chegar o momento de largar o estai de proa e mergulhar no mar.

- Gim tônica para toda a tripulação - gritou-lhe Peggy, quando Teddy tomou seu lugar na proa. Ela olhou para trás. Todos os quatro americanos tinham caído, rindo, nas almofadas do convés, reunidos em volta de uma bandeja de copos levada por um dos tripulantes. Ela olhou para o mar. A uns oito metros, Julien lhe acenou de dentro d'água.

- Só mais um, rápido - disse ela. Ia nadar para onde estava Julien, pôr os braços nos ombros dele, ficar boiando lá com ele, beijá-lo e lhe sussurrar sua nova idéia maravilhosa.

Um grande pesqueiro, que eles não perceberam com sua algazarra, passara por trás da popa do Lhe Baron, momentos antes. No instante em que Teddy largou o estai de proa, preparando-se graciosamente para mergulhar, a pesada marola do pesqueiro bateu no iate. Todo o barco jogou fortemente.

Teddy se desequilibrou, pairou no ar por uma fração de segundo e deu uma cambalhota desajeitada. Havia duas garras de aço pontudas, de una 20 centímetros, que se projetavam da grande âncora Plough, presa logo abaixo da proa. Quando Teddy caiu, sua cabeça bateu de lado numa dessas pontas cruéis. Mistral mergulhou tão logo viu que Teddy tinha batido. Ele a encontrou quase imediatamente, apanhou-a com facilidade debaixo de um braço e a levou para a tona com uma forte braçada do braço livre. Chase e Bill o ajudaram a levar Teddy para o convés. Ela não estava afogada. Não houve tempo para isso. Teddy estava morta antes de entrar na água.

Três dias depois, no cemitério americano em Nice, Teddy foi sepultada. Maggy e Julien Mistral foram os únicos que compareceram. Mistral proibira a ida dos quatro americanos do iate e eles estavam temerosos demais da sua angústia monstruosa para insistirem.

Maggy ainda não tinha olhado de frente para Mistral e ainda não conseguia se forçar a isso. Ela estava sentindo um ódio tão extremo por ele que era quase impossível pronunciar sequer algumas palavras necessárias. Ela sabia que devia manter a calma suficiente para convence-lo a lhe entregar a neta. Ele já matara sua filha.

- Quero levar Fauve comigo - disse ela, por fim. - Claro - murmurou ele.

- Entendeu o que eu quis dizer?

Ele não podia ter entendido. Decerto não ouvira.

- Naturalmente, deve levá-la Não há mais ninguém. Não tenho um lar para ela, nunca voltarei a Avignon, nunca mais quero ver La Tourrello... vou embora, não sei para onde, não sei por quanto tempo...

- Se eu a levar agora, se você concordar, não vai poder mudar de idéia - disse ela ferozmente, a voz severa, ameaçadora.

Mistral levantou-se com um movimento tateante, hesitante, quase sem ver, seu corpo monumental desengonçado, as mãos trêmulas e hesitantes. O rosto dele estava coberto pela barba por fazer, grisalha, pois ele não se tinha barbeado, dormido nem comido durante os três dias após o acidente. Seus olhos não estavam vermelhos, pois não conseguira chorar, mas o fogo azul que sempre tiveram desaparecera inteiramente. Ele era um velho 'de olhos mortos.

- Volte para casa, Maggy. Não posso falar mais. Vá.

Ele saiu no saguão do hotel, vacilante, e, um minuto depois, Maggy o ouviu partir no carro.

Ela ficou imóvel por um momento, sem ousar se mexer, com medo de ouvir o carro voltar. Então, galvanizada, foi à recepção e fez uma reserva no primeiro avião para Paris, mandou chamar um táxi e foi para o quarto, arrumar as malas.

- Madame?

Era a ama, entrando no quarto nas pontas dos pés.

- Arrume uma valise com as coisas do bebê. Tem uma receita de mamadeira para ela?

- Ela bebe leite comum, madame, há duas semanas já. Mas não se esqueça de aquecer a mamadeira.

- Obrigada, mademoiselle. Disso eu ainda me lembro.

Um dia depois, acompanhada por um jovem concierge do Ritz que fora incumbido de acompanhá-la ao portão de embarque, Maggy atravessou o Aeroporto de Orly, a fim de tomar o avião para Nova York Fauve estava em seus braços. Quando ela passou por uma banca de jornais, parou de repente, apertando Fauve com tanta força que o bebê começou a chorar. Uma pilha de números da nova Paris Match acabara de ser colocada no balcão. A foto da capa, em preto e branco, fora tirada a bordo do Lhe Baron. Ali, olhando-se dentro dos olhos, estavam Teddy e Julien Mistral. Estavam rindo, na mais completa felicidade, inteiramente absortos um no outro. Uma mecha dos cabelos molhados de Teddy estava caída no ombro musculoso dele e Mistral a estreitava ao peito nu, num ar possessivo, com ambos os braços.

Quantos minutos, naquele momento, perguntou-se Maggy, Teddy ainda

teria de vida? Ela se sentiu como se uma membrana vital de dentro de seu peito tivesse sido arrancada.

- O que foi, madame? - perguntou o jovem concierge, alarmado, ao ver o rosto dela.

- Por favor, me compre um número da Match - disse Maggy, tensa.

Ela teria de enfrentar a história. Não podia fingir que não existia, quando todo mundo leria urna ou outra versão dela.

Maggy ficou sentada na sala de espera da primeira classe, segurando Fauve com um braço e mexendo na revista, as mãos tremendo tanto que era quase impossível virar as páginas lisas. A manchete da capa dizia ` La Mort de la Compagne de Mistral" - pelo menos chamaram Teddy de sua companheira, não sua amante, pensou Maggy, aturdida.

Parecia não haver outra grande história no mundo, naquela semana, ou pelo menos nenhuma que agradasse tanto aos sagazes redatores da grande revista francesa, pois tinham dedicado 12 páginas de fotos e texto a isso.

Estando além da surpresa, ou era o que ela pensava, mas não além do desespero, Maggy virou as páginas. Havia três fotos eletrizantes que Bill Hatfield tirara de Teddy e Mistral no estúdio, não as fotos que Mode tinha publicado, mas fotos deles se falando, ignorando a câmara, já extasiados, já perdidos. Havia três páginas de fotos tiradas em La Tourrello, de Mistral, Kate e Nadine, o pintor e sua família dedicada, apenas dois anos antes. Entre as grandes fotos de Teddy, tiradas enquanto ela era modelo, havia um retrato sério de Maggy, cercada de suas modelos mais famosas, que fora tirado para Life três anos antes e, sim, ali, como ela supusera, estava uma reprodução daquele mais famoso da série La Rouquinne, a própria Maggy, naquelas malditas almofadas, espalhada em duas páginas. Ela não tinha de ler a legenda para saber o que diria. Match raramente perdia a vez.

Ela olhou o essencial do texto, prendendo a respiração numa apreensão medrosa. Até então, não houvera revelações da existência de Fauve, em lugar algum. A própria Maggy só soubera do nascimento de Fauve três semanas depois de ocorrido... Teddy tinha esperado até terem chegado a St. Tropez para escrever a ela. Ela ficara por demais chocada, indignada para se obrigara responder àquela carta. Agora não havia necessidade, ela se deu conta, com um sofrimento tão profundo que lhe deu a força da perda total, que lhe permitiu procurar a história da Match.

Lá, no segundo parágrafo, estava o relato da investigação do registro de nascimentos na prefeitura de Avignon. Fauve Lunel, Enfant Adulterin, era o status civil de sua neta. O bebê era filha de um adultério, que, segundo o Direito francês, teria de permanecer para sempre não reconhecida, bem diferente do status de efant naturel, apenas filho ilegítimo cujos pais são livres para se casarem, se quiserem, e cujo pai lhe pode dar o nome, mesmo sem se casar com a mãe.

Teddy, havia muito, tinha adquirido cidadania americana, na mesma ocasião em que Maggy se tomara cidadã, mas Maggy sabia que se os jornalistas tivessem conseguido procurar no registro certo em Paris, teriam descoberto mais outro fato: o registro do nascimento de Théodora Lunel: Enfant Adulterin. Mas a., célebre exatidão da Match não funcionara com toda a sua eficiência. Isso, peio menos, eles não tinham descoberto.

Maggy deixou a revista se fechar sem terminar a história. Afinal, que diferença fazia?... por que é que uma coisa tão pequena havia de importar, agora que Teddy não existia mais nesse mundo? Teddy se fora, sua menina linda, sonhadora, irresponsável, querida, e nada do que ela temera que lhe acontecesse chegava aos pés da realidade.

O bebê no colo de Maggy acordou. Os olhos, de um cinza delicado, como fumaça, tinham uma profundidade sem fim. Ela olhou bem para Maggy, com uma nitidez chocante, para uma criaturinha tão pequena. Piscou uma ou duas vezes, sob sua cabeleira de cenoura, e quando nada aconteceu, fez um barulho pequenino, mas positivamente de fome. Maggy, procurando na bolsa a tiracolo a mamadeira que tinha de ser aquecida, lembrou-se de um ditado que toda criança francesa repete depois de dois fatos imprevistos de qualquer tipo: dois tinteiros derrubados, dois tombos no pátio de recreio, duas farpas no mesmo dedo. "Jamais deux sans unis." Nunca dois sem três. Magali Lunel. Théodora Lunel. E agora... Fauve Lunel.

O bebê uivou tão alto que todos os passageiros da sala se viraram para olhar para Maggy. Ela olhou de volta, furiosa. Não tinham nada melhor para fazer? Esperavam que ela desse leite frio à neta?

- Escute aqui, sua bastardinha - murmurou ela a Fauve - cale-se, já vem, já vem. - A criança parou de gritar imediatamente. - Então, prefere escutar a comer? Isso, pelo menos, é um sinal de inteligência. Talvez você seja uma terceira de sorte.

Fazendo um sinal para que o servente da sala de espera aquecesse a mamadeira, ela estreitou bem o bebê e, o mais baixinho que pôde, lhe cantou uma canção de ninar. De onde teria vindo essa canção? Era em francês e ela nem tinha idéia de como a conhecia. Devia ser de sua própria avó, pensou Maggy. Sua boa avó, Cécile Lunel.

 

 

                                             Capitulo 21

 

- Como é - perguntou Maggy a Darcy - que você espera que uma criança que ainda nem aprendeu a andar brinque com um ursinho que é duas vezes do tamanho dela?

- Foi irresistível... eu estava passando por F.A.O. Schwarz e estava ali na vitrine...

- Aquela espelunca... ora, provavelmente vendem mela dúzia todos os sábados.

- Não, este é o protótipo, não tem nenhum maior em toda a loja - disse ele, com orgulho. - Mandei verificar.

- Bom, eu o coloquei no cercado e desde então não ouvi nenhum barulho do quarto dela, de modo que ela obviamente gostou. Isso nos deu quase mela hora de paz, hoje. Vamos aproveitar, enquanto dura.

Passara-se um ano desde que Maggy voltara da França, com Fauve. Ela e Darcy estavam sentados no grande salan de seu magnífico apartamento na Quinta Avenida, sala decorada de propósito para simular que devia certamente dar para um vasto parque pertencendo a uma nobre mansão em estilo georgiano, nos confins de Devonshire. No entanto, ocupava um espaço ainda mais caro do que vastos hectares ingleses, meio andar de um dos prédios mais indiscutivelmente impecáveis de Manhattan, um edifício de apartamentos do East Side possuidor de um pedigree que praticamente garantia a origem de toda pessoa que pudesse morar nele.

Maggy resolvera que, para criar devidamente um bebê cujas origens adúlteras, além de ilegítimas, tinham sido tab extensamente documentadas pela imprensa mundial, ela teria de faze-lo com a mais alta classe, no estilo mais franco e grandioso. Todos os seus impulsos que a tinham levado a esconder Teddy no relativamente deselegante West Side, que a tinham feito mandar a filha para a pouco conhecida Elm School, deviam ser invertidos, no caso de Fauve. Ela ia estabelecer a neta, desde o princípio. Todos sabiam tudo o que havia a saber sobre ela. Bom! Já que Mistral era pai dela, que isso se tornasse uma vantagem. Filha de um dos maiores pintores do mundo, neta e única herdeira de Maggy Lunel, da Agência Lunel - Fauve se tornaria uma personage, ainda no berço!

Ela podia ter-se poupado o trabalho, pensava muitas vezes. A não ser que ela fosse uma avó mais coruja do que achava, Fauve era uma criança que poderia criar-se sozinha. Quando ela agitava os braços e dava o seu gorgolejo espantosamente profundo, as coisas aconteciam, as pessoas corriam, até estranhos faziam as vontades dela. Ela não gostava que a agradassem por muito tempo, o seu corpinho firme se libertava dos braços de Maggy, enquanto ela continuava a sua exploração infindável do seu universo; gostava, mais que tudo, de uma cara nova debruçada para vê-la, ou um objeto estranho, qualquer objeto estranho. Se estivesse nas proximidades de uma cobra grossa ou um cão grande e perigoso, ela se teria lançado a eles, gritando de prazer.

Ela não tinha qualquer senão de medo e detestava as restrições. Aos 14 meses, Fauve muitas vezes ficava furiosa porque caía ao tentar andar e a locomoção impedida era a pior restrição de todas. No seu cercado, ela sacudia as grades como um gorila zangado, gritando todas as palavras que conhecia, pois tinha um vocabulário extensão. Quando a punham no chão, ela engatinhava com uma velocidade espantosa e uma falta de discernimento impressionante, derrubando mesas, lâmpadas, vasos e cinzeiros em tomo dela e rindo muito diante dos lindos barulhos que fazia. Mesmo quando era atingida por um objeto caindo, só chorava por um segundo. A vida era interessante demais para as lágrimas, a não ser que fossem lágrimas de raiva, e mesmo essas só duravam até que ela encontrasse uma coisa nova e fascinante para olhar.

Fauve tinha uma ama. Fauve teve uma porção de amas, que, uma a uma, se despediram, não conseguindo acompanhar a energia dela. Elas adoravam o bebê, explicavam a Maggy, mas ficavam tão cansadas. Maggy compreendia e contratava outra ama.

Mais uma vez, ela estava procurando não cometer um dos muitos erros que, estava convencida, devia ter cometido com Teddy. Passava muito tempo com Fauve, reorganizando a Agência Lunel para poder fazer isso. Tinha contratado três pessoas altamente eficientes para fazer grande parte do trabalho que ela antes achava que devia supervisionar pessoalmente e a agência estava prosperando e se desenvolvendo como nunca.

Sábado, aquele dia, era um dos dias de folga da ama e Maggy e Darcy tinham-se acostumado a levar Fauve para passear no parque, no carrinho. Como o "21" não admitia bebês, mesmo um ligado a Darcy, seu estimado freguês desde os tempos da Lei Seca, eles se dirigiram para o Russian Tea Room, na Rua 57. Lá, podiam beber alguma coisa em um dos pequenos compartimentos de couro vermelho, defronte do bar comprido, enquanto Fauve bebia suco de laranja espremido na hora. Todos os garçons, com suas túnicas de cossaco, todas as garçonetes russas, idosas e maternais, concorriam para levar o suco para aquela criança resplendente, que chamava mela dúzia deles pelo nome:

- Katya! Rosa! Gregos! - dizia ela, imperiosamente. Não chamava ninguém tantas vezes quanto Sidney Kaye, proprietário do Tea Room, que lhe' contava histórias engraçadas com apartes em iídiche, o que ela escutava atentamente, olhando para ele, de seu carrinho, com seus olhos cinzentos arregalados de assombro e as sobrancelhas vermelhas levantadas, gorgolejando quando ele acabava a história, como se, de um modo misterioso, ela o tivesse entendido.

- Eu tenho cara de avó? - perguntou Maggy a Darcy, de repente, quando eles estavam sentados, aproveitando o raro sossego do momento.

Maggy estava com 46 anos e durante uma semana ou um mês, de nenhum outro modo notados entre os 40 e 41 anos, ela perdera o ar de ser mais jovem do que era, que conservara durante a casa dos 30. Um dia, ela acordou e descobriu uma mulher no espelho, que chegara àquela idade de onde nunca é possível recuar, aquela "certame age" como todo francês o exprime, com galanteria mas de modo desanimados.

Ela era uma mulher espantosamente bem conservada, disse Maggy a si mesma. Mas, depois que alguma coisa é descrita como "bem conservada", a sua essência original evidentemente foi perdida. Era a diferença, pensou ela, entre um vestido de baile na noite em que é usado pela primeira vez por uma donzela vitoriana, valsando, e o mesmo vestido, em estado excelente, exposto numa vitrine de um museu de roupas.

Nos seis anos seguintes, as modificações tinham sido gradativas mas inconfundíveis, para uma pessoa com o olho crítico e inclemente. Ela nunca poderia ser uma dessas mulheres que só olha para os seus melhores traços no espelho, evitando, inconscientemente e tão espertamente, os lugares que mostram idade. Maggy sabia exatamente a freqüência com que tinha de mandar retocar seus cabelos ruivos, para que não aparecesse um traço de grisalho na raiz dos cabelos. Ela olhava para sua boca, aquela flor ainda viçosa e saliente, e via claramente que havia algumas rugas verticais acima do lábio superior. A linha do queixo estava frouxa e um pouco indefinida. Ah, ela estava na meia idade e não havia noite bem dormida, nem férias, nem cirurgião plástico que lhe pudesse devolver aquele frescor incondicional, aquela nuvem de novidade que proclama a juventude. Aquilo era, resolveu ela, tão inevitável e merecia tão pouca luta quanto o nascer do sol, ou o fato de que todo abricó que não é comido um dia perde o seu frescor.

Ela não via as outras modificações ocorridas nela, já no ano que se seguiu à morte de Teddy. A beleza de Maggy era ainda profunda como os ossos, sua superfície estava brilhantemente mantida, e no entanto, de vez em quando, ela adquiria um ar de vulnerabilidade. Ela nunca soube que o sofrimento com que vivia podia ser notado numa expressão de pesar amargo que lhe velava os olhos quando, distraída por um momento, ela parecia estar espiando para uma distância grande e temível.

Sua atitude nos negócios, que nunca tinha sido fácil, estava mais ríspida, mais impaciente do que jamais fora. Suas novas assistentes sabiam que, embora a Chefe nunca fosse injusta ou irracional, era bom elas terem um motivo sólido e defensável para todas as decisões que tomassem. A maior parte das modelos Lunel estavam francamente petrificadas por ela. Maggy sabia. As vezes isso a aborrecia, de outras vezes a divertia e, mais freqüentemente, ela achava que era um estado sadio para elas. Melhor do que a indolência.

- Tenho cara de avó? - repetiu ela.

- Você nunca vai ter cara de avó respondeu Darcy.

Ele não se importava nada com as modificações nela - nem as via. Os olhos verde dourados que inicialmente o cativaram nunca o haviam libertado. Ela continuava a ser a mulher magnífica que ele jamais conseguira fazer completamente sua, desde a primeira noite em que a conhecera na gincana de Lally Longbridge. De um certo modo que ele aos poucos passara a prezar, e não a lutar contra, ela conservara um centro enigmático. Havia coisas relativas a Maggy que eram inexplicáveis: enigmas, partes de sua vida que ela nunca lhe confiara, por mais íntimos que se tivessem tomado, coisa que aumentava a cada ano. Por fim, Darcy se contentava em nem sequer tentar adivinhar. Embora ela nunca quisesse ser mulher dele, era sua amante e sua melhor amiga e isso passara a ser suficiente.

Ele sabia que o caso eterno deles irritava a certas pessoas. Já que Maggy e Darcy vão ficar juntos - e tão desgraçadamente fiéis, tão dedicados - resmungavam uns para os outros, por que não se casam, como todo mundo? Porque nós não somos como todo mundo, lhes diria Darcy, se eles ousassem lhe fazer a pergunta diretamente. Ele não sabia bem o que queria dizer com isso, mas ele sabia que possuía de Maggy tanto quanto qualquer homem poderia jamais ter. A não ser que ele a tivesse conhecido antes de Julien Mistral. Ela deixara algo de essencial naquele relacionamento distante, algo que só permanecera na tela - ou talvez na recordação dela - se bem que ele procurasse nunca considerar essa possibilidade... e quase conseguisse.

Maggy lhe lançou um olhar rápido. Não, ele estava falando sério. Respondera á pergunta dela com aquele olhar duro, sombrio, aquele olhar de lince que pela primeira vez chamara a sua atenção. O rosto fino de Darcy estava ainda mais destacado do que fora, havia tanto tempo; os cabelos estavam ficando positivamente grisalhos, mas o seu olhar indagador de filósofo tinha-se acentuado e não ficara mais branco com a maturidade; e a expressão indiscutível de autoridade se firmara mais em seus lábios. Ela estendeu a mão para ele, com amor. Como estivera certa em não se casar com aquele homem.

Urna cascata de livros caiu ao chão atrás deles, com uma longa série de baques fortes. Eles deram um salto e olharam para trás. Fauve chegou-se a eles, correndo em seus pezínhos gordos, tão desequilibrada como se estivesse dançando em bolhas, os braços bem abertos para se equilibrar, uma expressão extasiada de realização no rosto.

- Urso - gritou a nova pedestre, felicitando-se, dirigindo-se para Darcy, que fornecera os meios de sua fuga da prisão. - Trepei urso!

Veneza, Londres, Alexandria, Oslo, Budapeste - as cidades não prestavam para nada. O campo não era melhor: os Alpes suíços, a Toscara, a Guatemala. Tampouco eram possíveis as ilhas, Isquia, as Cícladas da Grécia, Fidji - todas estavam vazias daquilo que ele procurava, e por fim Julien Mistral compreendeu que mais valia voltar para casa.

Ele não tinha pintado nada, nos últimos três anos, mas havia bebido uma quantidade enorme de qualquer que fosse a bebida alcoólica mais forte existente no lugar em que se instalava, por uma semana, um mês ou um dia. Ele às vezes se hospedava num hotel e saía de lá uma hora depois, sem qualquer motivo. De outras vezes, ficara numa cidade muito depois dela lhe apresentar qualquer novidade, numa imobilidade que era tão profunda quanto sua agitação. Como estava cansado demais para ir a qualquer lugar, a não ser para trás. Félice era um lugar melhor do que qualquer dos outros que ele tinha encontrado.

Os portões de La Tourrello estavam fechados, quando Mistral chegou. Ele estacionou o carro de um lado da campina e ficou ali sem buzinar nem tocar a campainha que soava na cozinha. Era a hora do almoço: todo o pessoal da casa devia estar reunido dentro de casa e ele queria adiar o momento inevitável do encontro. Ele seguiu pelo caminho, agora quase todo cheio de mato, que seguia ao lado dos muros que protegiam a mas, chegando à pequena porta dos fundos do estúdio. Existia uma chave para aquela porta, que ainda permanecia no bolso dele. Era a única coisa que ele levara consigo, além da roupa do corpo e o carro em que estava, quando fora se encontrar com Teddy Lunel para jantar no Hiely, em Avignon, numa noite de setembro quatro anos antes.

Ele abriu a porta e entrou. O estúdio estava às escuras, a não ser por alguns raios de sol que entravam pelas frestas das venezianas. Mistral puxou os cordões que controlavam o toldo pesado que cobria a vidraça e num minuto o estúdio ficou banhado com a luz forte do meio-dia. Nada fora tocado, desde que ele partira. A tela vazia, junto da qual ele posara com Teddy, ainda estava no cavalete. Numa mesa desarrumada viu a paleta que ele estava segurando na ocasião, agora com uma crosta de tinta seca.

Mistral olhou pelas paredes, devagar. Lá estavam as pinturas, pendura das tão juntas que algumas delas quase tapavam um canto de outras, que tinham emudecido de tal modo os visitantes da Mode. Ele olhou demoradamente de uma pintura para outra, sem se mover nem um centímetro para junto de nenhuma. Tanto quanto se lembrava de ter tido idéias racionais sobre o ato de pintar, ele achava que estava tentando pôr na tela aquilo que via do modo mais direto possível, sem deixar que o processo intelectual se interpusesse entre os seus olhos e a tela. Agora, numa percepção crescente, ele entendeu que tinha pintado o que sentia no momento em que via. Os quadros eram um equivalente visual de suas emoções. Neles tinham sido registradas as ondas do coração e não a atividade do cérebro.

Essa compreensão deu-lhe o primeiro consolo que se permitiu, desde que se ajoelhara no convés do Lhe Baron e vira que o corpo que segurava nos braços com tanta força estava morto, que Teddy o abandonara. Os quadros eram a prova de que Julien Mistral tinha vivido, que ele um dia se interessara, sentira. Ele cambaleou, vencido pela fadiga e o choque de deixar que um sentimento o tocasse. Mistral fugira do sentimento com uma concentração tão absoluta, nos últimos três anos, que qualquer emoção, mesmo uma boa, o deixava tonto com o receio de poder ser acompanhada de uma dor tão aniquiladora, que ele se mataria para fugir dela.

No canto do estúdio havia uma velha poltrona de mogno e couro. Feita muito tempo atrás para um cultivador de fumo da Martinica, ela se abria, de modo engenhoso, possibilitando que a pessoa se estendesse ao comprido. Mistral sentou-se nela e deu um grande suspiro de alívio. Dentro de minutos, estava dormindo.

Horas depois, Kate foi à piscina para o seu banho da tarde, e notou que o sol estava brilhando através do vidro do telhado do estúdio. Quanto ao resto, o estúdio estava inteiramente fechado, como estivera durante quatro anos. Ou a lona caíra ou um vândalo ou ladrão tinha arrombado e entrado pela porta do lado da casa. Movendo-se sem fazer barulho, ela seguiu pelo lado da piscina e se aproximou do estúdio. Uma das grossas venezianas de madeira estava um pouco vergada, na dobradiça, e ela podia ver uma linha dentro do estúdio. Só viu uma parte da mão de um homem, imóvel, pendurada. Kate virou-se logo, voltou para a casa, sem fazer barulho e entrou na cozinha.

- Marte, diga à cozinheira para ir matar outra galinha para o jantar - ordenou ela. - Mande o jardineiro buscar mais alface, tomates e uvas. Você vá pessoalmente abrir o quarto de monsieur e ponha lençóis limpos na cama. Veja que não haja poeira nenhuma, toalhas no banheiro, um sabonete novo na pia e na banheira... para que está aí parada?

- A senhora não me disse que estava esperando visita, madame - respondeu Marte Pollison, com dignidade. Ela não gostava de preparativos de última hora, apressados.

- Monsieur voltou.

- Oh, madame!

- Não há motivo para surpresa - disse Kate. Ela se virou depressa, para Marte não ver o seu sorrisinho calmo, triunfante. - Eu o estava esperando.

Numa tarde do fim da primavera, quatro anos depois, em 1961, Maggy estava-se vestindo para jantar quando Fauve entrou de repente no quarto dela, sem bater. Ela se virou do espelho, mas as recriminações que pretendia fazer morreram em seus lábios, quando viu sua neta maravilhosa dançar no tapete claro.

Fauve estava com quase oito anos, as roupas, como sempre depois de um passeio ao parque, esfarrapadas, os joelhos esfolados, os sapatos cobertos de pó, a blusa rasgada por fora da saia de algodão, da qual um dos bolsos estava pendurado por um fio. Pelo menos naquele dia ela não estava com um dos olhos preto, pensou Maggy, nem o nariz estava sangrando. Fauve, conforme se queixavam todos os garotos da turra dela, "não brigava como menina". Não havia um só que ela não tivesse esmurrado, em uma ou outra ocasião, mas ainda assim eles não a deixavam em paz. Atraídos irresistivelmente por ela, eles manifestavam sua fascinação com perseguições e astúcias de garotos de oito anos. Se ela usasse trancinhas, eles teriam arranjado tinteiros para mergulhá-las.

Fauve tinha uma beleza perturbadora, imprudente, que brotava em parte de uma exultação tão forte que os adultos temiam as lágrimas que tal estado de espírito teria produzido numa criança normal. No entanto, Fauve só chorava, conforme ela explicou a Maggy um dia, se houvesse um final feliz num livro que ela lesse ou filme que visse, mas ela não sabia por que chorava e assim procurava esconder essas lágrimas.

O colorido dela ofuscava; a penugem cor de cenoura com que nascera se transformara num ruivo sem nome, porque continha vários tons de vermelho e saltava da cabeça numa desordem espessa, que hipnotizava a vista com sua energia elétrica; suas cores tão misturadas sob algumas luzes formavam padrões mais rosados do que bronzeados, sob outras, mais acobreados do que dourados. As íris cinza claro de seus olhos eram cercadas por um círculo do cinza mais escuro. Quando ela estava séria, seu olhar era grave e equilibrado e se Maggy examinava os olhos dela, sentia como se estivesse olhando para uma névoa cerrada, que só se abria para revelar outra cortina de névoa, atrás da qual havia mais névoa ainda. Mas, naquele dia, os olhos de Fauve estavam tão ardentemente brilhantes, que Maggy pensou que ela parecia estar à beira de algo como histeria.

- O que é que você andou fazendo? - perguntou ela, aflita.

Indomável, mais ativa do que dez crianças, curiosa, rebelde e voluntariosa como era Fauve - todas características normais que, Maggy se dizia sempre, seriam de esperar numa criança bem dotada - nunca havia meios de se prever o que ela faria em seguida.

Fauve levantou uma das mãos atrás das costas, implicando.

- Tenho uma surpresa, a surpresa mais maravilhosa, a melhor surpresa do mundo, Magali, Magali!

A voz de Fauve estava rachada, com o esforço de não dizer logo o que

era. Maggy se recusara a ser chamada por qualquer variação de avó, no entanto Maggy parecia íntimo demais, de modo que Fauve a chamava pelo verdadeiro nome de batismo, que ninguém usara, desde que a avó dela morrera. Maggy quis pegar a mão escondida, mas Fauve recuou.

- Não é um bicho? - perguntou Maggy. Era uma velha luta.

- Eu prometi, não foi.?

- Vegetal ou mineral?

- Também não é - declarou ela, arrebentando de informação. - Então, desisto.

- E o meu pai! - explodiu Fauve, mostrando uma folha de papel e colocando-a na mão de Maggy. Nela estava um desenho inconfundível de Fauve sentada num banco do parque, o queixo sobre a mão.

Enquanto Maggy olhava para aquilo, muda de choque, as palavras de Fauve foram jorrando tão depressa que ela mal podia acompanhá-las.

- Estávamos todos brincando no parque quando chegou um velho com uma barba e se apresentou à Sra. Bailey e à Sra. Summer... elas ficaram tão espantadas e empolgadas... e depois ele chegou perto de mim e disse que eu devia ser Fauve Lunel e eu disse que sim e ele perguntou... perguntou se eu sabia quem era o meu pai. Eu disse que era filha de Mistral, claro, todo mundo sabe disso. E então, Magali, ele disse que era meu pai, era Julien Mistral! Por um segundo não acreditei, porque no retrato que tenho ele está tão mais moço e não tem barba, mas aí eu soube, senti e dei um abraço bem grande nele, Magali, o maior abraço, mais forte que posso, e ele disse que eu era exatamente como ele achava que eu seria. Aí, pegou minhas mãos e beijou e ele parecia que não sabia mais o que dizer... foi aí que a Sra. Bailey e a Sra. Summer foram falar com ele, mas ele não queria falar com elas, então pediu para eu ficar quieta um minuto, enquanto ele desenhava o meu retrato. Ele fez tão depressa, mais depressa ainda do que eu, Magali, e você sabe como eu desenho depressa. Depois, ele escreveu uma carta para você e me fez prometer que te entregava. Meu pai! Ah, Magali, estou tão feliz! Eu queria que ele viesse para casa comigo, mas ele disse que não podia, ainda não... ah, olha a carta dele.

Ela pegou um pedaço de papel dobrado do bolso que ainda restava na saia.

- Fauve, vá para o seu quarto agora, lave as mãos e o rosto e vista uma roupa limpa - disse Maggy, baixinho.

- Mas eu quero ver você ler a carta.

- Vá, querida, e volte daqui a dez minutos. Lembre-se, hoje é o Sabá e vou acender as velas daqui a pouco... você não pode estar desarrumada para isso.

Então aconteceu, pensou Maggy, sem abrir o papel. Houvera um único dia, nos últimos oito anos; em que ela estivera livre da expectativa daquele minuto? A princípio ela se dissera que era só uma questão de tempo, até que ele aparecesse, não importa o que tivesse prometido. Depois, quando Fauve foi crescendo, ela quase se convenceu de que talvez estivesse enganada; talvez aquele homem que não obedecia lei alguma, só as dele, resolvesse ignorar uma filha inconveniente. Mas agora ela não sentia surpresa alguma. Desdobrou o papel.

 

               Querida Maggy,

Pensei que pudesse vê-la apenas uma vez e ir embora. Tive de vir a Nova York e, uma vez aqui, não pude resistir. Agora tenho de vê-la e falar com você. Eu lhe telefono amanhã para o seu escritório... ou para casa, se o escritório estiver fechado. Perdoe-me, mas sei que você há de compreender.

                               Julien

 

Perdoar a ele? Seria tão impossível perdoar a ele, disse Maggy para si mesma, quanto seria impossível não compreender. Como ele bem sabia.

Julien Mistral nunca compreendeu que não foi nenhum de seus argumentos razoáveis que convenceu Maggy a permitir que Fauve passasse o verão em La Tourrello, nunca soube que podia ter-se poupado a entrevista com ela.

Durante os anos seguintes à morte de Teddy, ela fora assaltada, vezes e mais vezes, por um monólogo triste e inútil, que repetia a história em seu cérebro. A vida de Teddy não teria seguido um rumo diferente se ela tivesse tido um pai? Mistral era tão mais velho do que Teddy... não seria apenas a busca de um pai que a atraíra a ele? E se Maggy conseguisse falar sobre Peny Kilkullen... isso não teria feito Teddy sentir que tivera um pai, embora nunca chegasse a conhecê-lo? Pior que tudo, se Teddy tivesse sabido de tudo sobre o relacionamento de Maggy com Mistral, sabido como ele tomara friamente tudo o que Maggy tinha a dar - sua virgindade, todo o seu coração, até mesmo o seu dinheiro - e depois a largara, sem um pensamento e o menor escrúpulo, por uma americana rica, isso não teria levado Teddy a odiá-lo desde o berço? Quantas oportunidades ela perdera para modificar o rumo dos acontecimentos? Até que ponto ela era culpada?

Com o tempo, Maggy se obrigaria a esquecer essa ladainha atormentadora de erros e a se ocupar de maneiras práticas de garantir que, acontecesse o que acontecesse, num plano prático a vida de Fauve seria diferente da de Teddy. Fauve devia ter tradições, resolveu ela, e comprou um monorah para substituir o de metal amassado que ela deixara havia tanto tempo, em Paris. Desde o tempo em que Fauve podia-se lembrar de alguma coisa, havia uma imagem de Maggy acendendo as velas do Sabá - era o primeiro fogo que o bebê via e ela gritava por ele, fascinada com sua mágica. Cada um dos oito dias de Chanukah era comemorado com a sua dádiva, acendendo-se primeiro uma e depois uma vela adicional para cada noite das festas. Desde que atingira a idade para decorar, se não para ler, Fauve sempre fazia as quatro perguntas da Páscoa festiva (Seder), que Maggy agora celebrava todo ano, verificando que nunca houvesse crianças mais novas presentes, para reivindicarem esse privilégio.

Ela passava horas com Fauve, todo dia, e muito antes que a menina pudesse entender o que as palavras significavam, Maggy lhe disse que ela era sua muito querida neta natural, assim como os pais de filhos adotados usam a palavra "adotada" para criar uma aceitação desde os primeiros momentos da compreensão da criança. Quando Fauve teve idade de compreender, Maggy lhe contou a história de sua família, desde os fragmentos muito enfeitados que a avó Cécile lhe contara da história antiga dos judeus da Provença, até a tragédia de Teddy e Julien Mistral. Antes de Fauve completar quatro anos, já sabia a respeito de Maggy e Perry Kilkullen, conhecia a triste história do valente David Astruc, pai de Maggy, e da mãe de Maggy, que tinha morrido de parto.

Fauve tinha sido até bem iniciada nas advertências do Rabino Taradash. As Vezes, Maggy se perguntava se estava certa, enchendo a cabeça da criança com tanta história de família judia - uma menina que só tinha uma avó judia, de quatro - m W ú que mais ela tinha para dar a menina? Não sabia nada sobre os Kilkullens, nada sobre os Mistrals, mas quanto às mulheres Lunel, infelizmente, ela era especialista.

- Por que rugiu pai nunca vem me ver? - perguntava Fauve e era a (mica pergunta que Maggy nunca podia responder direito.

- Ele é casado.., mora longe, muito longe, está trabalhando muito, é um homem que não viaja...

Que tipo de respostas eram essas? Ela chegara a pensar em escrever a Mistral, para lhe lembrar a existência da filha, mas nunca se dispusera a fazê-lo, pensando que Fauve era uma criança tão feliz que essa única tristeza teria de ser suportada. Mas agora que Julien afinal se dispusera a ver Fauve, Maggy trincou os dentes e deu seu consentimento para Fauve ir visitar a Provença, no verão. Só a idéia de Kate Mistral é que a deixava nervosa.

- Maggy, eu lhe asseguro que Kate .quer o que eu quiser - dissera Julien, impaciente. - Ela me aceita como eu sou, sempre aceitou. Uma criança de oito anos não será ameaça para ela. Pense, Maggy, estou com 61 anos, ela quase 60, estamos casados há 34 anos... você não pensa que ela vá ter ciúmes de uma menininha, vai?

- Acho que ela teria ciúmes de um canarinho, se você resolvesse ter um de estimação.

- Maggy, você nunca foi racional, com relação a Kate.

- Kate não é uma mulher com relação a quem me foi possível ser racional. Se ela concordasse num divórcio, para você poder se casar com Teddy...

- Podíamos ter saído naquele barco de qualquer maneira, Maggy. Quem pode olhar para trás e saber que combinação de circunstâncias dá a oportunidade ao destino?

- Nunca pensei ouvir você falar no destino.

- É a, única explicação que suporto.

- Você não acorda de noite se perguntando o que é que você fez para que as coisas dessem errado? Não se culpa?

- Sempre hei de me culpar. Eu convivo com a culpa, mas isso ajuda? Qualquer pequena modificação nos fatos podia ter mudado o que aconteceu. Se o barco pesqueiro tivesse passado um minuto depois, ou se eu não tivesse acenado para Teddy, ou se ela não tivesse largado a corda quando largou, se os americanos não tivessem ido para St. Tropez, se não estivéssemos sentados no Sennequier, se... não há fim para os ses. Só o que posso fazer é pintar, Maggy. Isso, pelo menos, é alguma coisa, mas culpar-me não é coisa alguma. Estou errado?

- Não.

Maggy calou-se. Era perigoso confiar Fauve a Julien Mistral, mesmo durante os curtos meses do verão. Confiar qualquer pessoa a ele era um perigo. Mas ela teria alguma escolha, de fato?

- Não - repetiu Maggy, em voz alta, mas não estava falando com Mistral. Era ainda mais perigoso não permitir que Fauve tivesse um pai.

 

 

                                        Capitulo 22

 

Num dia de junho de 1969, na Gare de Lyon, Julien Mistral e Fauve, sua filha de 16 anos, tomaram o expresso de luxo que vai de Paris a Marselha. Todos os meses de junho, havia oito anos, Mistral viajava para Paris, vindo de Félice, para receber Fauve no aeroporto, passar uma noite em Paris com ela e depois seguir para a Provença, a fim de passar todo o verão. Em todos esses anos, Fauve nunca deixava de se empolgar com o nome do trem: Le Mistral.

Na primeira vez em que viajou nesse trem, ela supusera que o nome era em homenagem ao pai e ainda não sabia bem quando é que tivera de reconhecer, afinal, que o trem tinha o nome do vento dominante na Provença. O mistral, esse infernal vento frio e seco, só sopra quando o céu está de um azul bem vivo e o sol ardendo ou, dependendo da pessoa com quem você fala a respeito, que torna o céu branco e esconde o sol, esse vento mais uma vez, dependendo da opinião individual - que sopra durante um período de três dias ou seis dias ou nove dias, sem parar; um vento que obriga todas as árvores da Provença a se inclinarem para o sul; que faz com que todas as casas sejam construídas sem janelas em sua parede norte, um vento como um dragão que se esconde, quieto, quando os campos quase se esqueceram dele e depois salta, berrando, dos Alpes ao Mediterrâneo, a 80 quilômetros por hora, penetrando nos aposentos mais fechados e dando aos moradores da Provença uma desculpa para qualquer mal, desde uma dor de cabeça a um assassinato.

Fauve adorava o mistral, para ela era um vento intensamente pessoal e ela era íntima dele. Ela o chamava por seus nomes provençais: Le Mistral ou Le Vent Terrau, e ficava alucinada e exultante quando ouvia o barulho impetuoso, roncando, que fazia nos galhos das árvores em volta de La Tourrello. Para Fauve, era o espírito da terra.

Os vagões de primeira classe do Le Mistral são divididos em cabines com duas fileiras de três aposentos, um diante do outro. Fauve logo pegou dois

lugares junto da janela, cobertos por um tom especialmente feio de verde musgo, enquanto o pai se ocupava com o garçom do vagão restaurante, comprando bilhetes cor-de-rosa que lhes reservariam lugares para o almoço.

- Lyon, Diou, Valence, Avignon - murmurou ela baixinho, pensando, como sempre, como ia ter a paciência de esperar as seis horas que levariam para chegar. O percurso entre Valence e Avignon era o mais decepcionante, pois ela via a paisagem mudar dramaticamente, à medida que se aproximavam. Ah, como seu coração saltava ao ver os primeiros ciprestes escuros, esgalhados, lhe dando as boas-vindas, a embriaguez que sentia ao ver os primeiros olivais, as primeiras carreiras compridas e baixas das videiras!

- Fauve, você não quer um apéritif antes do almoço?

Mistral interrompeu os pensamentos dela, de pé ali diante dela, quando o trem saiu da estação. Ela se levantou de um salto e o acompanhou pelas portas pesadas que se abriam por célula fotoelétrica, para o vagão restaurante, onde os garçons com seus paletós brancos já estavam arrancando as rolhas das garrafas de vinho e servindo uísque e Perrier aos passageiros de primeira classe. Esse aperitivo antes do almoço era outra tradição que começara com sua primeira viagem a Félice. Ela sempre tomava duas garrafinhas de suco de abacaxi e depois, diante de alguma insistência, mais outra, pois eram garrafinhas muito pequenas mesmo.

- Um xerez, por favor - disse Fauve.

- Ah, então você agora já bebe, é? - Mistral pôs a mão sobre a dela.

- Só em ocasiões especiais - disse ela, rindo para ele, encantada com a paixão do amor que sentia se transmitir da mão dele para a dela. Ele era, pensou ela, o homem menos domesticado do mundo e, no entanto, ela sabia que qualquer coisa referente a ela lhe importava mais do que tudo, em sua vida.

- Um xerez para a minha filha - disse ele - e me traga um partis.

Mistral examinou o rosto dela, procurando, como sempre, com um misto doloroso de esperança e medo, traços da beleza clássica e catastrófica de Teddy. Mas, a medida que Fauve ia crescendo, parecia-lhe que ela possuía uma beleza que não devia nada à da mãe, a não ser a altura e a cor dos cabelos. Era, refletiu ele, procurando a palavra certa para descrever direito aquela menina que ele tanto adorava, uma beleza inteligente. Havia sempre alguma coisa fascinantemente pensativa na expressão de Fauve, alguma coisa que lhe dava vontade de saber exatamente o que se estava passando pela cabeça dela, a cada minuto, alguma coisa que o impedia de se satisfazer bem coro qualquer dos muitos retratos que fizera dela. Havia, em seus olhos cinzentos quase impossíveis de pintar - o que Leonardo teria feito com ela? - um mistério valente e absorvente, uma seriedade que pairava nos cantos de sua boca fascinante, até o momento em que se curvava num sorriso de feiticeira.

Mistral nunca conseguira concentrar por muito tempo o olhar nos olhos ou na boca de Fauve; tinha de olhar para o rosto dela como um todo, porque, para ele, era como uma paisagem num dia variável da primavera. Nenhum estado de espírito durava muito tempo, cada momento tinha um novo encanto, uma nova percepção. Não, ele nunca conseguira captá-la direito na tela.

Fauve, tomando o seu xerez, percebeu que Mistral a estava observando com atenção. Era sempre a mesma coisa, durante a primeira semana de cada visita, enquanto ele estudava as modificações que um ano fizera nela. Ela se sujeitava ao exame dele com a resignação contente que adquirira, tendo crescido sob o olhar vigilante de Maggy. Alguma outra adolescente do mundo tinha de ser examinada todo dia pela mulher mais entendida no assunto do rosto feminino e depois, nas férias de verão, ser o objeto de uma atenção detalhada de um pai que via tudo?

- Rímel - comentou Mistral, num tom neutro. - Pensei que vote nem ia notar.

- Imagino que isso combine com o xerez, não?

- Isso mesmo. Magali disse que é perfeitamente próprio, aos 16 anos, se eu o aplicar direito. Ela mesma me ensinou a pôr. Gosta?

- Não muito, mas já que, quanto ao resto, vote tem um aspecto bastante agradável, para que hei de reclamar, especialmente se sei que não vai adiantar nada? Sobrevivi a quatro anos de minissaias, que parecem estar cada ano mais curtas, passei pela era de botinhas de plástico branco, mal pisquei quando vote mandou fazer um corte de cabelos geométrico... Sassoon, não foi?... ou a metade, pelo menos. Portanto para que hei de me preocupar com um pouco de preto em suas pestanas, que sem dúvida há de sair antes de acabar o dia?

- Que papai tão filosófico e paciente e querido que eu tenho.

- Você sempre zombou de mim, mesmo quando era pequenina. Você é a única pessoa que zomba de mim, sabia disso?

- A única que viveu para contar a história?

- A única que sequer tentou.

- E a minha mãe? Ela com certeza viu como vote é engraçado?

- Não, não... ou talvez, sim, mas nunca zombou de mim... não era como vote. Fauve. Ninguém tem o seu topete.

- Choupa, papai, é isso que Magali diz que é. E não é um elogio. Significa audácia, em hebraico.

- E o que há de errado com a audácia? A gente não consegue nada no mundo sem ela.

- Bom, significa também uma imprudência descarada e desfaçatez... acho que Magali gostaria que a minha audácia fosse um pouco mais bem-educada. Mas estou melhorando. Este ano não me meti em nenhuma briga de murros, fui a uma porção de festas horríveis com vestidos bonitos e conversei bobagens com garotos horrorosos e aborrecidos...

- Ninguém que lhe interessasse, nem um só?

- Eu teria dito nas minhas cartas, vote sabe disso. Não, papai, você tem uma filha que acha o sexo masculino muito menos interessante do que a levaram. a crer que seria.

- Mas você só tem 16 anos! Por que haveria de achá-los interessantes, na sua idade? Há muito tempo para isso, quando vote crescer.

- Dezesseis anos supostamente já é ser crescida - disse Fauve, séria, mas Mistral apenas sacudiu a cabeça para ela. Dezesseis anos era ser criança, era ser um bebê. Ele estava com 69 e 161he parecia tão jovem que ele nem se lembrava de como era; e certamente não queria se lembrar de que a avó de Fauve só tinha mais um ano do que ela quando ele viu pela primeira vez o seu corpo nu.

Ele pensava em Maggy o mais raramente possível. Queria que Fauve lhe pertencesse exclusivamente, que fosse só dele, filha de Mistral e mais nada; no entanto, havia Maggy, tão amada por Fauve, a quem ele agora se achava ligado para sempre, ligado pelo sangue. Os netos dele seriam bisnetos de Maggy, e quem, entre eles, faria alguma distinção de gerações, naquele futuro inimaginável? Ele se ressentia quando Fauve às vezes usava uma palavra hebraica ou iídiche, ressentia que ela observasse as festas judaicas, sobre as quais ela lhe escrevia, ressentia o modo como Maggy lhe ensinara a história judia da família... O que Fauve tinha a ver com tudo isso? Ela não era judia!

No entanto, ele não ousava criticar Maggy, pois era o meio certo de fazer com que Fauve se virasse contra ele, furiosa. No ano anterior, ela descobrira um poema em provençal, pelo poeta Frédéric Mistral - uma canção, aliás - feita para ser cantada ao som de uma melodia napolitana, e ele nunca disse como era enlouquecedor, quando ela cantava:

 

                       Mai, o Magali

                       Douto Magali,

                       Gaio Magali,

                       Es tu que m'as fa trefouli.

 

- Espere só até que ela ouça isso: "Mas oh, Magali, doce Magali, viva Magali, é você que me fez tremer de prazer"... que tal isso, não é sexy, papai?

- Deve agradar a ela - dissera ele, com cuidado.

- Não me cubra de elogios.., ah, está bem, então não sou amurada, mas pelo menos estou aprendendo o provençal.

- E que utilidade tem?

- Na Provença, pelo menos, é mais útil do que qualquer outro idioma.

Estou pretendendo usá-la para convencer Monsieur Hugonne e Monsieur Piano para me deixarem organizar um time de boules de meninas...

O quê!

- É o que todos dizem, como se eu tivesse pedido para chegar até ao bar e tornar um gole da garrafa de Pernod! Félice não é exatamente um trampolim para os esportes de equipe femininos, mas não vou desistir. O maior problema são as meninas.... ainda ficam tão chocadas quando eu sequer falo nisso. O que há de tão sagrado numa bola de metal, afinal de contas?

- Fauve, não procure modificar costumes que já têm centenas de anos. As garotas jogam futebol, nos Estados Unidos?

- Velho, as garotas fazem tudo nos Estados Unidos.

- Não me chame de “velho” - foi a única resposta que ele pôde dar à sua sugestão escandalosa, refletiu ele, debruçando-se sobre o cardápio prìx fi xe que o garçom acabara de colocar diante deles.

O vagão restaurante de primeira classe de Mistral tem uma cozinha numa das extremidades, em que dois chefs preparam uma comida surpreendentemente boa, ao nível de bistro superior. Fauve e Mistral pediram lotte, esse peixe que só se encontra na França, e o ensopado de coelho com batatinhas e salada, seguido de queijos sortidos e bombe glacê, sobremesa de sorvete que Fauve passava o ano esperando, ansiosa.

- O que você está pintando agora? - perguntou Fauve.

Com o passar dos anos, Mistral estava pintando cada vez mais devagar, tornando-se mais crítico, terminando menos telas e destruindo uma percentagem maior das que completava.

- Não interessa o que eu faço... em que você está trabalhando? Ainda está naquele curso natural?

- Claro. Ah, papai, há tanta coisa a aprender. Nunca chega o dia em que a gente acha que já aprendeu tudo de uma coisa, só uma coisa, de uma vez.

- Nunca chegou para mim... não "de uma vez", portanto, por que há de chegar para você? Cada tela deve levar a um novo problema, você deve acordar todo dia pensando o que vai descobrir, o que vai se ensinar, que coisas novas você não sabia hoje e que saberá esta noite... mas quantas vezes eu já lhe disse isso, minha Fauve? Você algum dia vai começar a acreditar em mim?

- Eu fico pensando que devia ser melhor - resmungou Fauve.

A pintura era o único setor em que ela ficava cada vez mais perplexa, sem poder fazer progresso devido a uma insegurança e frustração crescentes.

Quando era pequenina - e agora, olhando para trás, parecia um paraíso de inocente - Fauve tinha tanta audácia, não conhecia limites para o que tentava desenhar ou pintar, mas a cada ano a responsabilidade de ser- filha de Mistral se tomava mais pesada. Ela às vezes desejava não ter talento artístico nenhum - isso tomaria a vida tão mais simples, não querer trabalhar no

mesmo ramo que o pai liquidando o seu peixe, Fauve se lembrou daquele primeiro verão em La Tourrello, quando, depois de pensar por um ou dois dias, Mistral permitira que ela entrasse o estúdio dele, sob a condição de que ela ficasse inteiramente quieta, enquanto ele trabalhava. Ele lhe dera uns pedaços de carvão, papel e depois, pensando melhor, algumas bisnagas de tinta já quase vazias, alguns pincéis gastos e   tela, instalando-a num canto.

A princípio ela só sou olhando para ele, mas ele andava pelo estúdio por tanto tempo, entre cáfila ataque relâmpago do pincel, que ela logo perdeu o interesse por seus movimentos estranhos e se voltou para o material que ele lhe dera.

Em casa, em Nova York, ela só tinha lápis, creions grudentos e pastéis, que logo se quebravam, e estojos de aquarela, com que ela tentara, durante anos, copiar ilustrações de alguns de seus livros de histórias favoritos, mas ninguém jamais pensara em deixá-la junto de tintas a óleo.

O cheiro das bisnagas foi para ela imediatamente embriagador, ela se lembrava claramente do instante em que tinha esfregado a tinta nos dedos e cheirado, extasiada. Depois, imitando o que vira Mistral fazer antes de começar a trabalhar, ela espremeu uma bolota de tinta de cada bisnaga e as dispôs num semicírculo na tabuinha que ele lhe entregou. E depois, pensou ela, enfrentando a primeira tela em branco de sua vida? Ela queria perguntar ao pai, mas não ousava interromper o trabalho dele. Não havia livros por ali, para ela procurar ilustrações para copiar, nem flores numa jarra, nem frutas numa fruteira. Os quadros imensos nas paredes em torno dela eram muito confusos, complexos demais para ela sequer sonhar em copiá-los, de modo que Fauve acabou mergulhando o pincel na tinta mais escura, um azul profundo, e começou a esboçar o objeto mais central no estúdio, o cavalete do pal.

Ela franziu as sobrancelhas vermelhas, unindo-as numa linha reta, enquanto se concentrava naquilo, com liberdade e audácia, sem se perturbar com o problema de perspectiva, já que não sabia o que era perspectiva, e só via o que estava mesmo diante dos olhos. Ela trabalhou firme e tão quieta que se passou uma hora, até que Mistral se lembrou dela. Ela estava tão absorta que nem notou quando ele se chegou por trás dela e olhou o que ela estava fazendo. Os pêlos dos braços dele e de sua nuca se eriçaram, num choque de reconhecimento. Ela vê do modo que um pintor vê, pensou ele, sem precisar de se explicar o que queria dizer com aquilo. Ele não fez comentários naquele dia, mas no dia seguinte deu a ela um raminho de capim num vaso para ela trabalhar; e no dia seguinte a esse uma maçã.

- Regarde! Regarde, Fauve... use os seus olhos, pequenina, você tem de aprender a ver... veja essa maçã... parece redonda, não é? Mas se você olhar... se olhar de verdade... verá que a parte de cima é mais alta no lado esquerdo... não é nada redonda, é? E por que é que não rola como uma bola, essa maçã? Porque é quase chata embaixo... você vê isso com os seus olhos, minha pequenina? E essa marquinha na casca da maça... pode me dizer onde começa e onde acaba? De que cor é a marca, Fauve? É quase branca? Regarde! Você vê como o vermelho da maça é tingido de amarelo? E vê onde o amarelo fica mais forte, bem no lado? Agora, diga-me, você vê onde, em sua tabuinha, colocou essas cores, esse vermelho, esse amarelo? Está tudo aí, Fauve, se você usar os seus olhos.

Então, como ele estava ardendo por fazer desde o primeiro dia, num momento que os dois nunca esqueceriam, ele afinal estendera a mão imensa e a pusera bem sobre a mão de Fauve, dirigindo-a com seus dedos poderosos de modo que o pincel dela se movia sob sua direção, sua força passando para os dedos dela. Ela descontraiu a mãozinha, mas continuou a segurar o pincel com firmeza, deixando que seu pulso, seus ossos e tendões se inclinassem aos dele, como um bom dançarino acompanha um par forte, nem cedendo demais nem rígido demais, e enquanto ela via seu pincel fazer traços e mais traços, ia bebendo o conhecimento com seus músculos, bem como sua mente.

É assim que se deve sentir, a mão dele informava a mão dela, é assim que é. Por mais original que um pintor se deva tomar, Mistral acreditava que na arte, bem como na linguagem, há uma gramática básica que tem de ser aprendida antes que seja possível a verdadeira linguagem. E foi nessa gramática que ele treinou Fauve.

Aquele verão em que Fauve tinha oito anos, o verão em que começaram suas lições de pintura, foi também o ano em que Mistral recomeçou a freqüentar o café de Félice. Depois de uma ausência de 20 anos, ele começou a levar Fauve lá com ele, antes do jantar, todo dia, só para poder pedir uma bebida "para a minha filha, Fauve". Pouco a pouco, os homens da cidade, que quase nunca o viam desde que a guerra interrompera todas as suas vidas, começaram a se agrupar em volta deles, admirando a menina, enquanto ele lhes oferecia rodadas e mais rodadas com uma jovialidade que não conseguia conter, uma simpatia que eles começaram a aceitar, a princípio devagar e desconfiados, mas conquistados pela criança animada, curiosa e simpática.

Mistral nunca levara sua filha Nadine a Félice. Mesmo se ele quisesse, Kate o teria desencorajado. Quando ele voltou de suas peregrinações, em 1957, descobriu, sem qualquer pesar, que desde os oito anos Nadine fora mandada para um colégio interno na Inglaterra.

A despeito dos quatro primeiros anos que Nadine estudara na escola da aldeia, Kate sempre achara fora de cogitações que a olha fosse criada por muito tempo no interior, pois ela deveria ser cidadã do grande mundo em que Kate morara antes de conhecer Mistral.

Nadine era muito pequena quando aprendeu a considerar Félice como uma esquisitice sem importância e antiquada, na sua própria vida importante.

Existia como um cenário, pintado num estilo caprichoso e ingênuo, um Breugel vivo, que punha em realce, de modo valioso, as qualidades de Mademoiselle Nadine Mistral. Kate permitia que a filha considerasse a própria La Tourrello como uma escolha de residência encantadora e pouco convencional, ditada pelo capricho de um pai famoso, e que portanto podia ser excêntrico.

Nadine, ao crescer, descobriu por si que La Tourrello era muito útil na sua ordem das coisas pois era famosa em todo o mundo, e quando ela falava da casa ás amigas, o nome era acolhido com a mesma reverência como se fosse um castelo. A mas tornou-se um lugar de exibição que ela de vez em quando mostrava a amigas prediletas, antes de ir com elas passar os verões nos lugares mais civilizados e desejáveis freqüentados por elas.

Nadine, a linda Nadine, com seus olhos frios, de um azul água, os cabelos louros e lisos, compridos até aos ombros e aquele eterno sorrisinho que não era um sorriso, e sim a forma do lábio superior de sua delicada boca rosada, não era nada querida em Félice.

Da primeira vez que Mistral levou Fauve ao café, no verão de 1961, ninguém se preocupou muito com as possíveis reações de Mademoiselle Nadine diante da chegada de uma meia irmã que tinha aparecido do nada, ou melhor, do magnífico escândalo que eles conheciam tão bem, pois não aparecera em todos os jornais e revistas e não era o tipo de história que a pessoa não esquece?

Tampouco as emoções de Kate mereceram simpatia, na torrente de mexericos que inundou Félice por ocasião da chegada de Fauve, mais um capítulo nas conjecturas interminavelmente discutidas, deliciosamente suculentas sobre a vida doméstica de Mistral, que ocupavam os aldeões por muitas horas agradáveis, no correr dos anos. Kate Mistral fazia todas as suas compras em Apt ou Avignon, desprezando as lojas da aldeia, um traço detestável e imperdoável em uma pessoa que morava nas vizinhanças, e que lhe granjeou um grau de inimizade sempre crescente. Kate mal se dignava a parar no posto de gasolina da aldeia para abastecer o carro. Mas o que se podia esperar de uma mulher que se achava melhor do que os outros?

Nenhuma das outras famílias ricas que tinham comprado casas no Lubéron era alvo das conjecturas do povo local, como acontecia com a de Mistral. As residências dos outros eram usadas para as férias de verão, eram apenas visitantes, evidentemente não pertenciam ao local. Mas a situação de Mistral era ambígua, desde o dia em que se estabeleceu em Félice, em 1927. Ele se tomara quase, mas não de todo, parte da aldeia nos anos em que foi o principal esteio do time de boules, aqueles anos antes da guerra em que Kate se contentara em viver numa relativa tranqüilidade, recebendo demais, era verdade, mas, afinal de contas, ela era americana.

Depois da guerra, o próprio ambiente da aldeia mudou; oito homens de Félice tinham sido mortos e uma dúzia pássara anos na Alemanha, em trabalhos forçados, enquanto que muitos dos mais jovens tinham lutado na Resistência.

No café, onde antes as discussões mais animadas eram méritos relativos dos campos de boules de outras aldeias, agora se discutiam política a sério e a conversa às vezes tomava um tom feio; os adeptos de De Gaulle se recusavam a beber com os homens que votavam nos comunistas. Mistral, com seu horror à política, evitava o café e sua ausência era interpretada como um sentimento de superioridade, opinião bem comprovada quando Kate mandou construir a piscina. Nenhum de seus atos isolados poderia aliená-la mais completamente dos vizinhos, cuja renda dependia, basicamente, da quantidade de chuva anual.

A distância que tanto Mistral quanto Kate tinham colocado entre eles e a vida da aldeia, depois da guerra, nada fez para parar o falatório sobre eles; bem ao contrário, pois não continuavam ali, como que desafiando os vizinhos?

Tampouco ajudou o fato de Marte Pollison não poder resistir de dar certos detalhes sobre a vida em La Tourrello aos primos que eram donos da loja de ferragens de Félice. Em breve, todas as donas de casa da cidade sabiam exatamente quanto Madame Mistral gastava com champanha nas festas que dava, quantos quilos de patê de fole firas e salmão defumado eram entregues pela melhor mercearia de Avignon antes de uma grande recepção, quantos empregados extras Marte supervisionava durante a movimentada temporada de verão.

Nada poderia surpreende-los, diziam eles uns aos outros, sobre aquela mulher que tinha mandado instalar cinco banheiros com água quente e banheiras em La Tourrello, quando fora morar lá, numa época em que muitos dos fazendeiros mais ricos do vale ainda nem tinham instalado água encanada em suas casas. Que loucura! Os Mistrals não sabiam que o delegado fiscal não podia deixar de reparar neles?

Não faria diferença alguma se o povo de Félice soubesse que, em 1960, em Parke-Bernes, em Nova York, um Mistral primitivo tinha sido vendido por meio milhão de dólares. Eles já tinham bastante dificuldade em acreditar nos detalhes da decoração do quarto que foi preparado pára Fauve, nas seis semanas que se passaram desde o momento em que Maggy concordou em deixar que ela fosse passar o verão lá, em 1961, e o dia em que ela chegou.

Um pedreiro, empregado no projeto de restaurar o quarto superior da torre circular, no pigeonnier, pode silenciá-los com o seu relato da decoração.

- Mas sim, eu garanto, as paredes são cobertas de fazenda, do teto ao chão, em dobras fundas como uma cortina, mas indo de uma janela a outra, centenas e centenas de metros, num estampado de flores brancas e lilás. A caseira me disse que vinha da fábrica de Monsieur Demary, em Tarascon.

- Ele parou, para ver se todos estavam prestando atenção. - E a cama - continuou, satisfeito com a platéia - tem um dossel da mesma fazenda e uma cabeceira entalhada como uma das velhas arcas do Hotel de Ville, digna de uma princesa. Azulejos no chão, claro, mas também um tapete branco que

Marte Pollison disse ter vindo da Espanha, e uma gaiola branca com periquitos dentro. Sim, eu os vi. Sabe aquele banheiro que Mistral mandou o bombeiro instalar tão depressa? Pois bem, as paredes do banheiro também são recobertas de tecido!

Foi esse detalhe final que fez com que a maioria das donas de casa de Félice deixassem de acreditar na história dele, pois nem mesmo Madame Mistral podia ser tola a ponto de fazer uma coisa dessas.

Tinham toda a razão. Não fora Kate e sim o próprio Mistral, quem apoquentara os trabalhadores, febrilmente; ele resolvera reformar o pombal, pois sabia que um quarto de torre romântica havia de encantar uma menina; ele é que pensou em usar o tecido com o padrão tradicional, para garantir que o mistral frio do verão, que soprava às vezes, não entrasse assobiando pelas velhas pedras, embora tivessem sido novamente cobertas de estuque; ele que realizara o impossível, conseguindo que os artesãos provençais terminassem o trabalho no prazo estipulado, com uma eficiência inaudita em todo o Midi.

Quando Fauve chegou a La Tourrello, naquele primeiro verão, ela se apaixonou pelo quarto desde o momento em que entrou nele. No entanto, quando começou o verão, passou muitas horas tristes lá, pensando nos motivos do ódio que ela sentia emanar de Nadine e de Kate.

Seria, pensou ela, porque o pai estava-lhe ensinando a pintar que Nadine a tratava com uma inimizade tão distante, tão repleta de rejeição, que ela nem podia apreender nem lutar contra ela? Será que a meia irmã a teria odiado, em qualquer circunstâncias?

Seria o fato dela ser bastarda que levava Kate a ter por ela uma animosidade que não era sentida por ninguém, salvo Fauve? Pois Kate era esperta demais para não saber que qualquer coisa desagradável que pudesse dizer ou fazer à menina lhe custaria muito mais dissabores de parte do marido do que valeria a pena. Kate tinha o cuidado de parecer generosa e sem rancor, porém o seu ódio existia mesmo no modo de insistir com Fauve para tomar mais geléia de abricó feita em casa, no gesto que ela fazia para encher o copo de Fauve com leite, no sorriso que acompanhava a sugestão de que Fauve poderia gostar de ter uma bicicleta, para poder ir à aldeia.

Por fim, o orgulho de Fauve se afirmou. Já que Kate e Nadine a detestavam, ela ia ignorá-las e tratar de sua vida. Ia procurar as crianças de sua idade em Félice e travar amizade com elas.

Ela nunca desconfiou de como a comunidade unida de meninas de oito anos a tinham encarado com suspeitas, aquela menina americana alta, com roupas esquisitas, os cabelos ruivos esvoaçando, que vinha de bicicleta do "château", como chamavam La Tourrello, uma menina sobre cujo quarto enfeitado tinham ouvido tanta coisa. Fauve lhes falava num francas do norte, da cidade, mas cometia muitos erros de gramática; e não entendia que tinha de apertar as mãos de todos, nem que não devia jogar no fliperama com os meninos, essa garota de nome tão pouco civilizado, que não tinha nem um dia de sua santa para comemorar.

Elas tinham inveja do modo como o pai de Fauve passeava com ela pelo café, como se ela fosse um bebê que mal soubesse dar os primeiros passos, em vez de uma menina desengonçada, da idade delas; tinham inveja da sua bicicleta nova e reluzente e de suas roupas bonitas. Quem era ela, para aparecer junto de seu grupinho e querer penetrar nele?

No entanto, nenhuma delas conseguiu resistir muito tempo a Fauve, nenhuma conseguiu resistir à sua intenção borbulhante, franca e ardente de gostar delas. Ela se ofereceu para ajudá-las a cortar capim para os coelhos que criavam para o mercado e se ofereceu para tomar conta dos irmãozinhos pequenos, enquanto elas brincavam de pegar. Fauve lhes ensinou a jogar beisebol e convidou-as todas à sua casa para muitos suntuosos gouters, a merenda da tarde, de pão, brioche, chocolate e três tipos de geléia, que constitui a refeição preferida das crianças francesas. Depois, ela as levou ao quarto, onde se esparramaram todas na sua espantosa cama de dossel, enquanto ela lhes contava sobre o seu colégio em Nova York, onde, evidentemente, ninguém estudava nada, comparado com o que se esperava delas na escola da aldeia. Então, no inverno, ela escrevia cartas a cada uma delas, de modo que quando voltava no verão, era como se uma velha amiga estivesse de regresso.

Havia duas meninas em especial que se tinham tornado as duas melhores amigas de Fauve: Sophie Borel, morena, bonitinha, que Fauve apelidara de "Pomme" (maçã) por causa de suas faces rosadas como maçã, e Louise Gordin, apelidada " Épinette", ou "espinho", por causa de seu gênio forte, que formava um contraste tão marcante com seu rostinho de anjo. Pomme, humorista e encrenqueira nata, era uma grande fonte de informações, pois o pai dela era o carteiro local. Épinette, a tempestuosa, foi uma das primeiras defensoras de Fauve. Quase desde o início, ela defendia Fauve diante de outras meninas que ainda não tinham sido conquistadas pela presença da estrangeira em sua comunidade isolada e chauvinista.

Ela mal podia esperar para rever Pomme e Épinette, pensou Fauve, enquanto o almoço continuava e os garçons, ágeis como acrobatas, equilibravam as travessas do bem temperado ensopado de coelho, servindo a todos no carro restaurante com movimentos rápidos e graciosos, enquanto o trem, viajando a alta velocidade, oscilava sempre de um lado para outro no sinuoso leito da estrada.

Nem Pomme nem Épinette eram boas correspondentes e, enquanto Fauve estava afastada de Félice, sempre se preocupava pensando que poderia acontecer alguma coisa para modificar a aldeia que ela tanto amava. E se alguém construísse um supermercado, ou um Monoprix, ou um cinema?

Félice lhe parecia muito bonita assim como era. Era tão pitoresca como qualquer cidade nesse planeta poderia ser, pensou Fauve, mas pitoresca

não era a palavra certa para uma coisa tão modestamente, tão inteiramente natural, um local de moradia humana que não assumia qualquer fantasia para atrair o visitante, um mundo privado em que o modo de vida não mudara, basicamente, durante centenas de anos.

Muitas vezes Fauve refletia sobre a diferença de atitude quanto ao seu nascimento ilegítimo, segundo Nova York e Félice. Em Manhattan, quando

ela foi crescendo e aparecendo mais, muitas vezes sentia uma onda camuflada de atenção desagradável e maldosa, quando saía em público com Maggy e Darcy ou com Melvin Allenberg, que se tornara seu guia no mundo da arte. Havia um tipo de olhar alerta, francamente curioso, que se desviava depressa de seu rosto; um tom inconfundível nas vozes abaixadas discretamente numa mesa próxima, num restaurante, uma expressão impessoal e vazia, nada natural, que conseguia raspar por toda a sua superfície e absorver todos os detalhes de seu aspecto; todos sinais de reconhecimento que lhe diziam inconfundivelmente que alguém tinha acabado de cochichar para outra pessoa:

- Olhe, lá está aquela garota, a filha natural de Mistral.

Nesses momentos, sem saber que o fazia, Fauve se endireitava em toda a sua altura de 1,78m, punha os ombros esguios para trás e abria bem os olhos, sem piscar, olhando para as pessoas que a haviam notado com um olhar o de um orgulho tão severo e franco que não ficaria mal no rosto do pai, um olhar capaz de fazer as pessoas se calarem, assustadas.

- ilegítima - dissera Fauve um dia a Maggy. - Por que as pessoas não preferem ser originais? Procurei no Lhesaurus do Webster e eu podia ser chamada de tantas outras coisas... natural, filius nullius, filha da puta e filha espúria... prefiro filha espúria, você não?

- Realmente... , uma pena que mais pessoas não tenham um vocabulário mais vasto - respondera Maggy, secamente.

Mas em Félice, quando havia conseqüências de sexo antes do casamento, a opinião geral era que a única culpa cabia aos pais, por não terem tido o devido cuidado. Nenhum dedo era apontado para uma criança que crescia na ilegitimidade. Em Félice, Fauve sentia que era plenamente filha de Mistral, de um modo perfeitamente terreno e natural, aceita como o produto inocente de uma paixão culposa, mas aceita.

Ela olhou para fora, pela janela do trem, com impaciência. Ainda não tinham chegado a Lyon e o almoço estava quase acabando.

- Há alguma notícia da aldeia? - perguntou ao pai. - Nada de novo, desde a aia última carta?

- Novidades? Nada, a não ser que você conte essa ralé maldita, sem gosto, essa turma inominavelmente imunda de decoradores de Paris que estão comprando as casas velhas em todo o vale.., pintando-as de verde, amarelo limão e até de roxo, por Deus, contra toda a tradição, reformando-as no interior e vendendo-as aos estrangeiros e parisienses imundos e decadentes por dez vezes o seu valor.., é uma praga! - resmungou Mistral.

- Em Félice? - perguntou Fauve, alarmada.

- Não mais do que antes, só alguns de fora nos descobriram, mas em fiordes e Roussillon está cada vez pior. As aldeias já perderam toda a aia atmosfera, estão do jeito que deve ser a aia Disneylândia, nojentamente pitoresca, com as casas antigas enfeitadas como prostitutas num casamento, e enxames de centenas de fotógrafos, só Deus sabe que tipo de bárbaros, que chegam de ônibus de excursão, tomam Coca Cola nos cafés, compram cartões postais às dúzias, nem fazem caso da aldeia em si, voltam aos ônibus e seguem para o próximo local.., u n dia para ver todo o Lubéron!

Ele está mais parecido com um conquistador valente e heróico do que nunca, pensou Fauve, enquanto Mistral esbravejava. A medida que ela ia ficando mais velha, ele lhe parecia mais jovem, talvez porque ela tivesse aprendido a olhar de verdade para ele, talvez porque ele tivesse raspado a barba que a impedira de reconhece-lo no primeiro dia. O nariz grande estava mais saliente do que nunca e a boca mais apertada, a tifo ser que ele estivesse olhando para ela, mas a colocação ousada e aventureira da bela cabeça não mudara; ele parecia, como sempre, mais forte, mais reto, tão maior do que qualquer homem que ela jamais vira. Ele é um prodígio, pensou ela, usando sua palavra nova favorita. Tenho um pai que é um prodígio.

 

 

                                 Capitulo 23

 

- Pervertida! - berrou Pomme. - Depravada... debochada... você esta doente, Fauve Lunel, é o que está!

- Roceira... medieval... - Fauve exclamou, no meio de lágrimas de riso, enquanto Pomme a sacudia com toda a força. - Você está vivendo em outro século, coitada.

Quando ela colocara um disco de Three Dog Night cantando Easy to be Hard, sabia que as amigas não estavam nada preparadas para isso. Antes ela as conquistara para Johnny Cash e Engelbert Humperdink, se bem que elas ainda preferissem os Bee Gees. Mas Fauve não resistira à idéia de implicar com elas. Elas gostavam disso tanto quanto ela.

As adolescentes da Provença eram alucinadas pela dança, a despeito do fato de seu gosto musical estar atrasado, com relação a Nova York. Cada aldeia tinha duas festas de dança públicas todo ano, de modo que no Lubéron quase não havia noite de sábado em que não se pudesse ir a uma festa numa região acessível de carro ou de ônibus.

Aos 14 e 15 anos, Fauve tinha licença de ir às festas com um grupo de garotas acompanhadas por um dos pais, mas agora, aos 16 anos, todas tinham atingido a idade em que lhes era permitido - aliás, era de se esperar - ir a uma festa com um par.

Depois que Pomme e Épinette, com relutância, foram embora para jantar em casa, Fauve guardou os discos, pensativa. Ela não deixara de perceber que houvera uma modificação básica em suas amigas, desde o verão anterior.

Naquele dia, elas quase tifo falaram de outra coisa a não ser a festa que ia haver em Uzès no sábado, à qual cada uma fora convidada por um garoto da região. Elas garantiram a Fauve que ela estava convidada para ir à festa com os quatro, num carro do pai de um dos rapazes, mas, chegando lá, Fauve se perguntou: o quê?

No ano anterior, tinha sido perfeitamente possível ficar no canto das "garotas", com um bando de amigas, às risadas, e, se nenhum rapaz se apresentasse, dançarem umas com as outras. A maior parte das moças de Félice iam com seus pares, segundo a informação de Pomme, que era tão oficial quanto qualquer comunicado gravado.

Mal-humorada, Fauve pensou nas festas provençais. Na Salle des Fétes as garotas e os rapazes migravam para seus setores separados, assim que chegavam, olhando-se de esguelha o mais secretamente possível, mas não se comunicando, mesmo que tivessem ido juntos. Os primeiros a dançar eram sempre os pares que não se importavam com a opinião dos outros: o animado açougueiro com sua filha de cinco anos; uma garota de nove anos que tinha agarrado o irmão de seis, num aperto de que ele não conseguia se livrar; dois primos que tinham feito uma aliança divertida; talvez um ou dois pares recém casados, exibindo-se para os vizinhos.

Aos poucos, cada garoto ia procurar seu par, se tivesse, mas sem qualquer expressão de graça ou prazer. Por que todos tinham tanta loucura pela dança, ela se perguntou, resmungando, se pareciam tão tristes quando dançavam? Na Provença as pessoas dançavam como marionetes, cujas pernas se mo. viam independentes de seus torsos rígidos. A expressão adotada durante a dança era a de um desespero fixo. A conversa, ou mesmo um sorriso entre os pares, estava fora de cogitação. Quando a dança acabava, o par se separava, tão bruscamente quanto se tivessem estado abraçados numa luta de pugilismo, e voltavam para seus cantos respectivos, onde, afinal, podiam comunicar-se com os membros de seu sexo. E chamavam aquilo de dança!

Por que tinha de se sujeitar a isso? Ela podia ficar em casa, nas noites de sábado, sem provocar comentários de ninguém. Kate estava esperando uns amigos ingleses para o fim de semana e ninguém em La Tourrello saberia da festa de Uzès, nem se perguntaria por que ela não estava lá. No entanto, Fauve se lembrou, ela resolvera participar da vida da aldela de Félice e se faltasse a uma festa isso seria interpretado, com razão, que estivesse se afastando de suas amigas. A falta de um par não era desculpa. Todas as garotas de todas as aldeias num raio de 100 quilômetros, que conseguissem condução, estariam presentes, pois essa rede de festas fornecia o único meio pelo qual elas acabariam arranjando um companheiro.

Ah, se fosse o verão passado, pensou Fauve, com uma onda de nostalgia, se ao menos todo. esse negócio de pares ainda não tivesse começado! Pomme e Épinette, que antes não pensavam em nada senão escapulir das mães e se meter em encrencas com ela, agora estavam empolgadas demais com seus pares para a noite de sábado.

Dentro de dois anos, elas provavelmente ficariam noivas ou estariam casadas e então, antes que Fauve percebesse, já seriam jovens mães, exibindo-lhe orgulhosamente os seus bebês, sua liberdade inteiramente sacrificada, uma liberdade que seria quase esquecida e provavelmente nem mesmo lamentada, a não ser por algum instante de recordação.

Da maneira mais básica, Pomme e Épinette já se tinham ido para sempre, pensou ela, estremecendo, com um pressentimento. Suas amizades de verão, que no ano anterior pareciam eternas, agora se revelavam efêmeras - tinham sido substituídas, na passagem de um único inverno, pela sombra do fim da adolescência, tão inconfundível quanto mal recebida. Por que tinha de acabar?

Fauve jogou-se na cama com um impulso de uma pureza apaixonada. Quem precisava de garotos? Por que é que Pomme e Épinette tinham de se importar com eles? Não podiam ter esperado mais um ano? Mas ela sabia que já era tarde. Ambas se haviam lançado no mar do romance, a julgar por um tom de uma ternura desacostumada que Pomme, normalmente uma fonte de zombaria, tinha usado ao mencionar Raymond Binard, o jovem eletricista de Apt. E onde estava a rispidez previsível, encantadora, de Épinette, quando ela declarou com orgulho que Paul Alouette, seu "amigo" que estava de licença do serviço militar, pedira emprestado o Citroën novo do pai, para aquela ocasião? Que tipo de realização era essa, pedir um cano emprestado?

Em Nova York, Fauve fazia parte de um grupo de colegas na Dalton School, garotos e garotas, que tinham freqüentado a mesma escola de dança e agora se juntavam para concertos de rock e festas. Ela sabia que eles eram considerados atrasados, numa' turma em que outros fumavam maconha e faziam experiências sexuais, mas nenhuma de suas amigas estava com pressa de se lançar no complicado jogo de homem mulher que elas viam começar a ser jogado ao seu redor.

Se ao menos o tempo pudesse parar! Se nada tivesse de mudar, jamais!

Espantada ao se ver quase chorando, Fauve deu um suspiro profundo que, sem compreender, era o seu primeiro sinal de maturidade, um suspiro que reconhecia a passagem do tempo e a noção amarga e inútil de que não há nada que se possa fazer a respeito.

Aos poucos, Fauve começou a se sentir reconfortada, em seu quarto. Pelo menos aquilo era uma coisa que ela podia contar que nunca mudaria. O quarto da torre estava á espera de que ela voltasse para ele, todo ano, possuía uma vida interior sua, que, ela sabia, só cedia a ela. Antes de ser usado como pombal, fora um moinho de vento e ela quase podia ver as grandes velas que tinham feito os círculos lentos do lado de fora das janelas, um século antes; quase podia ouvir o rufiar das asas de gerações de pombos que tinham feito os ninhos onde estava sua cama hoje.

Nos últimos oito anos, Fauve fora enriquecendo o seu quarto, até que era agora um museu de seu desenvolvimento. Gerações de bonecas estavam sentadas direitinhas contra as paredes, fotos de Fauve e Mistral, juntos, tiradas todos os verões, estavam penduradas nas paredes com cartões-postais antiquados que ela encontrara nos antiquários locais e flores que tinha prensado e enquadrado, bem como cartazes anunciando fêtes de aldeias no passado, os bailes dos bombeiros voluntários e outras ocasiões que lhe eram caras. Ela nunca tirava nada dessas coleções de recordações, nem nunca levava nada de Félice para Nova York. Instintivamente, conservava seus dois mundos separados um do outro, como eram na realidade.

Deitada ali, num devaneio, Fauve de repente ouviu a voz de Kate no pátio. Como parecia com a voz de Nadine, Nadine que, graças a Deus, só visitava La Tourrello uma ou duas vezes no verão, agora que estava casada com Phillipe Dalmas e morava em Paris.

Nadine tivera algum pesar, um segundo sequer, quando passara de menina de 15 anos, fria, controlada, superior, a uma de 16 anos, com pose e experiente? Fauve duvidava disso. Se Nadine, ou qualquer uma de sua turma, algum dia tivesse ido a uma festa da aldela, teria sido para ficar de lado e se divertir, como se aquele fosse um espetáculo especialmente engraçado de folclore. Se tivesse se dignado a participar das danças, seria apenas para fazer daquilo uma história engraçada, que mostrasse como o pessoal do local era pitoresco.

Pensando em sua meia irmã, Fauve cerrou os punhos e se levantou da cama de um salto, sua melancolia desaparecendo num ímpeto de luta, que se traduziu na pergunta eterna que pode fazer qualquer criatura do sexo feminino se esquecer de questões tão profundas como a brevidade da juventude, e de como o tempo passa rápido.

Que roupa ia pôr?

- Cinco dias depois, Fauve estava no canto das garotas da Salle des Fetes de Uzès, movimentada cidade de mercado de muitas torres medievais, que é a vivenda de campo do Duque de Uzès, o principal duque da França. O ano de 1969 foi um ano especialmente confuso para os enfeites pessoais, mas mesmo no Lubéron a minissaia marcou sua presença. Fauve passara horas, a semana toda, experimentando e largando vestido após vestido. A seus olhos de repente conscientes de si, todos lhe pareciam ou muito enfeitados demais, como se ela estivesse esperando uma ocasião mais importante do que uma festa de aldela, ou simples demais, como se ela não se tivesse dado ao trabalho de vestir o que tinha de melhor, como sabia que as outras garotas fariam. Ela ainda, estava ali de pé, indecisa, vestida só de calças cor de tangerina, quando Marte Pollison bateu à porta do quarto, para dizer que as amigas estavam esperando lá fora, no carro.

Num súbito impulso de desafio, Fauve meteu-se num vestido mini, rosa shocking, com uma faixa comprida, larga e geométrica de fita roxa. Ela deu mais uma escovadela nos cabelos ruivos. Cada flor comprido e vivo flertava com o ar. Meteu os pés num par de sapatilhas verde forte de Capezzio e desceu correndo a escada de sua torre particular, sem ir ao salão para se despedir.

Se Kate reprovasse o seu sentido de cores, ela não queria saber. Nunca - e especialmente não naquele momento.

O canto das meninas na sala estava fervilhando, mas Fauve não ouvia as conversas. Estava vendo dois rapazes se aproximando dela, do canto deles, cada qual com a intenção clara de convida-la para dançar. Um era Lucien Gromet, de cujo mau hálito ela ainda se lembrava, do ano anterior, e o outro, Henri Savati, era o tipo de dançarino que só consegue se arrastar ao som da música. Aflita, ela pensou se não devia convidar uma das meninas mais novas para dançar e assim evitar os dois.

Os dois rapazes estavam-se aproximando à mesma velocidade, nenhum dos dois querendo parecer estar concorrendo com o outro. Estavam a poucos passos quando, de repente, foram empurrados bruscamente para o lado por um terceiro vulto masculino, que parou, derrapando, diante de Fauve. Ele se virou para os dois outros, com um floreio.

- Mil desculpas, caros amigos, mas mademoiselle me prometeu todas as danças do carne dela, esta noite.

Lucien e Henri ficaram boquiabertos, diante dessas palavras. A maneira aceita de convidar uma garota para dançar era murmurar alguma coisa para ela, fazer um sinal com o dedo em direção à pista de dança e se dirigir para lá, sem nem olhar para ver se ela estaria olhando. Carne de danças!

Fauve piscou duas vezes.

- Ah, Roland, eu estava começando a pensar o que lhe teria acontecido - disse ela, dando o braço a ele. - Pensei que talvez tivesse tido de parar para dar comida aos rouxinóis.

- Não, hoje foram os pavões... meteram-se num briga indecorosa por causa da pavoa. Vamos valsar?

- Eu não gostaria de outra coisa, mas, infelizmente, a orquestra não está de acordo.

- Então, vamos ficar sentados durante esta dança?

- Talvez fosse conveniente, Roland.

- Meu nome é Eric - disse ele - mas você pode me chamar de Roland, se preferir, por algum motivo.

- Meu nome é Fauve.

Em geral os rapazes das vizinhanças, ao ouvirem o nome dela pela primeira vez, faziam algum comentário bobo. Ela esperou, mas ele não disse nada, examinando-a calmamente com uma expressão de franca fascinação. Ela pensou que não se lembrava de ter visto nenhum homem - pois ele era um homem e não um rapaz - que parecesse tão à vontade dentro da própria pele. Eric tinha bem mais de 1,82m e havia nele alguma qualidade notável de que Fauve tinha uma forte noção, mas ela não conseguiu determinar o que era, olhando para ele. Não era apenas a boa aparência, embora ele fosse excepcionalmente bonito, com feições fortes, rudes e bem formadas, a pele muito bronzeada e cabelos castanhos grossos, que se levantavam desordenadamente de uma mecha sobre o olho direito e caíam sobre a testa, de ambos os lados. O' lábio inferior era cheio e deprimido no centro, o foco de seu rosto, dando-lhe uma expressão divertida e generosa. Mas o que seria, pensou Fauve, que lhe parecia ser um aspecto fora do comum e importante naquele estranho?

- Você está-me olhando fixamente - disse ele, rindo.

- Você é que está - disse ela, indignada.

- Prefere dançar?

- Talvez seja melhor.

A orquestra tinha começado a tocar La Ve en Rose, quando Eric a tomou nos braços. Fauve, que estava preparada na pose normal de dança da região, viu que estava sendo apertada contra o peito dele e levada de modo dominador no que era, para seus pés que reagiram de imediato, positivamente uma valsa. Talvez a orquestra não estivesse tocando os necessários compassos ternários, um, dois, três, de uma valsa vienense, mas, não obstante, eles estavam valsando magicamente, e com tanta graça que o chefe de orquestra, observando-os, fez sinal para que o conjunto tocasse Danúbio Azul, em seguida. Quando a valsa acabou, eles pararam de repente, ambos abismados ao se verem no centro de um círculo de outros bailarinos que os observavam com tanta curiosidade com se Ginger Rogers e Fred Astaire se tivessem materializado na pista de dança.

- Foi maravilhoso! - disseram os dois ao mesmo tempo, suas palavras se chocando no meio da frase.

- Vamos beber alguma coisa gelada. Descobri três coisas importantes sobre você e pretendo impressioná-la com a minha inteligência - disse Eric, levando-a para fora do círculo. Havia um café ao lado da Salle des Fetes, onde os acompanhantes se juntavam para jogar cartas. Fauve e Eric ocuparam uma mesa e pediram Coca Cola.

- Primeiro - disse ele - você é estrangeira, segundo, é pintora e terceiro, tem um perfume melhor do que qualquer outra garota no mundo. - Mas eu não uso perfume - protestou Fauve.

- É isso mesmo que eu disse.

- Ah. - Ela pensou naquilo um instante e descobriu que estava corando, aquele rubor desastroso que tinha sido transmitido em linha direta de uma Lunel para outra. - Como é que você sabe que sou estrangeira? - disse Fauve depressa, passando com facilidade para o sotaque do Midi.

- Tarde demais para tentar esse truque e, em todo caso, também sei fazer isso. Você dança valsa como estrangeira... divinamente, para ser franco a única pequena da Provença que poderia tomar o Arquiduque Rodolfo de Maria Vetsera. Não foi aqui que você aprendeu isso.

- Ah! - Fauve tinha visto uma reprise de Mayerling na televisão e seu rubor se acentuou. - Como você sabe que sou pintora? - perguntou, nervosa.

- Porque só um pintora podia usar essas cores propositadamente... o vestido com os seus cabelos poderia ser só para ser notada, mas depois as melas collant laranja e esses sapatos...

- Eu me interesso pela pintura - disse Fauve, vagamente.

Ela nunca contava às pessoas que pintava. Só a família e Melvin Allenberg e alguns amigos íntimos sabiam que ela pintava e assim mesmo nenhum deles tinha idéia de como ela possuía um sentimento profundo por seu trabalho.

- "Interessa-se pela pintura?" - disse ele. - É só isso? Só um interesse?

- Vou a muitas galerias e museus. Nova York é a capital mundial da arte, afinal.

- É o que os nova-iorquinos gostariam de achar - disse Eric, na defensiva. Nenhum francês admitiria que depois da guerra o centro do mundo das artes, efetivamente, se mudara para os Estados Unidos.

- Ora, vamos, você sabe que é. Aos sábados à tarde você pode ver mais arte moderna, só entrando e saindo das galerias da Madison Avenue do que poderia ver em Paris, sem falar nos museus. Meu amigo Melvin e eu saímos para ver, duas ou três vezes por mês - respondeu Fauve.

- O seu amigo Melvin? Ele é especialista? - perguntou Eric, eriçado.

- Melvin é positivamente brilhante! É um assombro quanta coisa ele sabe... e é um amor.

- Esse paradigma... com certeza também é bonito?

- Bem, talvez não de uma maneira óbvia, mas é extraordinário o número de garotas que se apaixonam por ele. Primeiro elas ficam cativadas pelo cérebro e talento dele, depois se dão conta de como ele é atraente e simpático. As vezes eu acho que não há ninguém no mundo com quem eu possa conversar como converso com Melvin... é como se eu pudesse dizer tudo a ele e contar com a compreensão dele.

- Está até parecendo que você também está apaixonada por ele - disse Eric, com ironia.

- Apaixonada? Ah, Eric, que idéia maravilhosa! - riu-se Fauve.

- O que é que há de tão maravilhoso nisso? Acho de um mau gosto horroroso você ficar aí sentada só falando do Melvin, brilhante, bonito, um amor, com quem você partilha tantas tardes artísticas.

- E noites, também, Eric. Há todas as inaugurações das galerias, sabe, e vernissages, e a minha avó me deixa ir às mais importantes com ele - disse Fauve, com um sorriso maldoso.

- Ah, isso é demais! - Eric acabou sua Coca e bateu com o copo na mesa. - Vou voltar para a festa.

- Eric!

- O que é? - disse ele, bruscamente, olhando para ela furioso.

- Melvin é um velho... ancião... deve ter pelo menos 43 ou 44 anos. É como meu tio ou coisa assim... ele saía com a minha mas, pelo amor de Deus.

- Que idade você tem, afinal? - perguntou ele, sentando-se de novo, mal escondendo o alívio.

- Tenho 16 anos - respondeu Fauve. De repente, 16 anos parecia absurdamente jovem. Sua nostalgia por seus 15 anos tinha desaparecido e só tornaria a aparecer decênios depois.

- Eu tenho 20.

Eles se sorriram, por motivo nenhum e por todos os motivos. Fauve se deu conta do que a impressionara no rosto de Eric, desde o momento em que o vira. Ela confiava nele. Ela confiara nele de modo absoluto e imediato. Parecia estranho ter determinado isso como qualidade dominante naquele rosto. Como é que ela podia confiar num estranho total, à primeira vista? E um que era tão bonito? Pomme e Épinette diziam que homens assim são mimados e cheios de si, e devem ser evitados a todo custo. Pois bem, Pomme e Épinette não entendiam tanto quanto pensavam.

- Além de saber de tudo sobre a pintura, graças ao caduco, bondoso e aniso, o Melvin, imagino que também saiba de tudo sobre arquitetura? - perguntou Eric.

- Nada, a não ser as coisas que a gente aprende andando por aí. Sou mesmo desenformada.

- Bom, graças a Deus - disse Eric, encantado. - Sou arquiteto, ou melhor, em breve serei.... estou na Beaux-Arts.

- Por que fica tão satisfeito por eu ser ignorante?

- Quero ter alguma coisa para lhe ensinar - respondeu ele. - O. K. Pode começar.

- Não quero dizer agora, quero dizer amanhã, depois de amanhã, na semana que vem, o verso todo... você não tem romance dentro de si?

- Não tenho certeza... quero dizer, como se pode saber? - perguntou Fauve, séria, juntando as sobrancelhas, em sua concentração.

- Então você também é uma analfabeta em romantismo? Isso é melhor ainda. Venha, Fauve, vamos valsar mais um bocado e depois deixe-me levá-la em casa. Ou veio com alguém? É impossível saber, nessas festas. - De repente ele parecia inseguro.

- Vim com umas amigas, mas elas não se importam se você me levar em casa.

- Onde é que você mora?

- Perto de Félice.

- Isso não é bem ali na esquina - ele parecia feliz.

- São uns 50 quilômetros - disse ela, em tom de desculpa.

- É disso que eu gosto. Agora, Fauve, você tem de parar de corar, quando lhe faço algum elogio. Vou treiná-la, como um cachorro. Um elogio a cada dez minutos, por umas duas horas, e você vai se esquecer como é que se cora... não, talvez não seja boa idéia, afinal. Acho que gosto do seu rubor... dá um tom de rosa tão interessante a todos os outros.

As festas na Provença nunca começam antes das 21:00 e raramente terminam antes das 2:00, mas Fauve insistiu em sair logo depois da meia noite, pois sua casa era longe e o pai sempre esperava por ela.

Perto de Remoulins, onde tomaram a Route Nationals 100, que se dirigia quase para leste, para Félice, Eric procurou convencê-la a dar uma volta rápida para ver a Pont du Gard ao luar.

- É uma das maiores maravilhas da antigüidade, quase intacta depois de 2.000 anos... você nunca há de entender os romanos se não vir esse aqueduto, é... não, tem certeza? Você pode mesmo existir mais um dia, sem um aqueduto? Bem... teremos de voltar aqui.

Em Villeneuve-les-Avignon, ele deu outra sugestão.

- Vamos até à casa de meus pais, para cumprimentá-los... nunca estão dormindo tão cedo, e a vista que têm do terraço sobre o Fort St. André é a melhor que você jamais verá... pode bem ser o melhor exemplo de uma fortificação com tones geminadas... nem isso? Você não gosta de uma bela fortaleza? Está bem, está bem... Vou atravessar o rio, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita, se bem que você esteja cometendo um erro em não dar uma espiada ao Palácio do Papa hoje... de dia não presta.

- Para casa, Eric - insistiu Fauve e, depois de passarem por Avignon, correram através da planície fértil, Eric propondo e rejeitando uma dezena de programas para o dia seguinte. Ele estava sentindo uma grande responsabilidade por escolher a primeira experiência de Fauve com a arquitetura. Como os arredores ali possuíam as ruínas de uma cidade fenícia fundada seis séculos antes de Cristo e mais cem maravilhas de todas as eras desde então, o que deveria escolher, como ponto de partida? Até que ponto uma ruína deveria ser uma ruína? Qual o seu plano de tolerância para pedras?

Fauve percebeu que mal o ouvia quando se aproximaram de Félice. O pai nunca a vira com um rapaz especial antes daquela noite, pensou ela, apreensiva. O que ele havia de pensar, vendo-a partir de noite com um grupo de amigos e voltando para casa com um rapaz estranho, que tinha conhecido na festa? Será que isso devia acontecer com as outras garotas, o tempo todo? Ele devia ficar satisfeito por ela não ter sobrado, pensou ela, mostrando a Eric a estrada para La Tourrello. Ele devia ficar satisfeito por ela ter conhecido alguém que estava estudando uma coisa interessante como a arquitetura, não?

Os grandes portões de La Tourrello estavam escancarados e as luzes do salon acesas, no extremo do pátio.

- Pode ir entrando - disse Fauve, distraída. Ele parou o cano no pátio. - Bom, é melhor você vir conhecer o meu pai... - murmurou ela, dirigindo-se na frente, nervosa, para o salon, onde ela sabia que ele ficava sempre, esperando por ela.

Quando eles entraram na sala, Mistral se levantou da poltrona ao lado da lareira e se dirigiu para eles, olhando de Fauve para Eric, surpreendido. Só surpresa, pensou Fauve, com grande alívio, não irritação.

- Este é o meu pai - disse ela, sem ousar olhar para Eric.

Ela devia ter-lhe dito que era filha de Mistral, ela sabia disso, mas não houvera um momento adequado, ou melhor, o momento em que teria sido natural surgira e desaparecera tão depressa que ela não se lembrara de aproveitar; em todo caso, como ele não tinha perguntado, e daí? Ele não gostara dela por ela ser filha de Mistral, nem ia deixar de gostar dela por isso, tampouco, mas agora que era tarde, ela desejou muito que isso não tivesse sido uma surpresa. Eric podia pensar que ela planejara aquilo para impressioná-lo.

- Papai, este é o Eric - disse ela, numa voz débil.

- Estou vendo - disse Mistral, apertando a mão do outro, com um sorriso. - Mas que estranho costume tribal é esse, dos jovens nunca saberem os sobrenomes dos outros? Eric de que, posso saber?

- Boa-noite, Monsieur Mistral.

Por que, pensou Fauve, Eric estava tão estranho? Estava zangado com ela, afinal?

- O nome de minha família - continuou Eric - é Avigdor. E o nome de meu pai, Monsieur Mistral, é Adrien Avigdor.

- Mas você não pode proibir Fauve de sair com esse rapaz - disse Kate, numa voz calma. - Isso é mesmo um absurdo, Julien, nesses dias de hoje. Pense bem. Você não tem absolutamente motivo algum que ela possa compreender ou aceitar. A única coisa que aconteceria seria encorajá-la a fazer perguntas que você não tem muita vontade de responder, não é? Se eu fosse você, deixava toda essa confusão em paz... vai desaparecer por si, se você não se meter.

- Você não viu a cara dele, Kate. Não ouviu a voz dele. - Ele disse alguma coisa fora do comum?

- Não, foi muito correto, quanto a isso, mas havia alguma coisa... sei que não estou enganado nisso.

- Julien, a única coisa que ele podia saber é que o pai dele um dia foi seu marchand. Naturalmente, Avigdor deve estar ressentido por ter perdido você... qual o negociante que não ficaria assim? Sem dúvida, é uma famosa história de honor da família... como Julien Mistral foi lançado por Avigdor e depois teve a ingratidão incrível de trocar de vendedor... você sabe como essa gente só fala de negócios o tempo todo. Perder você provavelmente foi o acontecimento mais importante da vida de Avigdor... depois de consegui-lo.

- Não quero que Fauve se meta com ele.

- Ela ainda é uma criança... ainda não tem idade para se "meter" com um rapaz, aos 16 anos, pelo menos não a sério. Que mal pode vir daí? Um pintor tem o direito de trocar de marchand, afinal. Fauve disse que esse rapaz só tem 20 anos, não foi? Pois bem, você não vê Avigdor desde antes da guerra... acho que foi em 1938 que ele veio aqui, a última vez... ou talvez mesmo 1937... não me lembro. Já são mais de 30 anos! Seja razoável! Acho que você está levando tudo isso muito a sério, só porque se trata de Fauve. Você nunca fez tanta onda por causa de ninguém que saísse com Nadine e Deus sabe que eles trouxe para casa muitos rapazes, nos tempos dela.

Não havia motivo, como Kate se dera conta havia muito tempo, para que Julien soubesse que Marte Pollison lhe contara exatamente o que se passara entre ele e Avigdor durante a guerra. Esta era uma das muitas informações sobre o marido que tinha guardada na memória. Nunca se podia saber quando seriam úteis.. . eram uma forma de capital, talvez, a seu modo, tão valiosas quanto qualquer das telas do depósito.

Enquanto isso, ela gozou a expressão de angústia na fisionomia de Julien. Kate tinha tão poucas armas e ele tantas. Estranho. Um dia Fauve parecera ser mais uma das armas dele, um perigo para ela, uma ameaça para Nadine. Agora, quando Fauve estava crescendo e se tornando mais preciosa para Mistral, a cada ano, mais cara a ele do que tudo - pois Kate era por demais lúcida para ignorar isso - Fauve se tornava uma anua que ela mesma poderia utilizar.

Um dia, algum dia, no futuro, teria de haver um pagamento pelo sofrimento que Julien lhe causara. Kate acreditava na inevitabilidade da vingança. A vida não podia, não devia tratá-la com injustiça... não no final de contas, se ela tivesse paciência. Como era interessante o fato de Fauve ter conhecido esse jovem Avigdor.

Como era a cara dele? - perguntou ela, com naturalidade. - Tinha muita coisa do pai?

- Alguma coisa... talvez... mas não prestei muita atenção. Ele é bem mais bonito, mais alto, eu nunca imaginaria que fossem parentes.

- Quer dizer que não parece judeu?

- Não foi isso que eu quis dizer! Avigdor também não parecia judeu, como você bem sabe.

- Meu Deus, Julien, não é preciso me agredir... procure ser menos sensível. Daqui a duas semanas Fauve vai se cansar de visitar prédios velhos com esse estudante e vai haver mais dez rapazes para você se preocupar. Então, ele é mais bonito, é? Muito? Avigdor não era nenhuma beleza, afinal.

- Muito, muito melhor. Melhor demais.

- Procure dormir um pouco, Julien - disse Kate, com doçura. - Você está vendo fantasmas.

 

 

                                             Capitulo 24

 

- Em que é que você estava pensando, Eric, para começar esse programa cultural indo ao Palácio do Papa? - perguntou Beth Avigdor, com uma indignação suave e divertida. - Um lugar que parece um quartel, sem qualquer mobília para parecer menos inóspito... e ainda por cima cheio de turistas? Não admira que esteja exausta, Mademoiselle Lunel. Há anos que evito por os pés lá.

- Gostei... durante quase a primeira hora... e a essa altura, já tínhamos passado do ponto de retorno - respondeu Fauve, remexendo os dedos doloridos, grata pelo guarda-sol que dava uma sombra fresca sobre a mesa de almoço no jardim de Le Prieuré.

A mãe de Eric era uma mulher a ser considerada, pensou ela, franca e escultural, com belos olhos escuros e cabelos que só tinham alguns fios grisalhos, aqui e ali. Ela parecia ser pelo menos 20 anos mais moça do que o pai de Eric, que estava sentado, parecendo bem à vontade, examinando, pensativo, a carta de vinhos de 14 páginas, que era enfeitada espirituosamente por sete desenhos de página inteira de Ronald Searle. Adrien Avigdor nunca parecera especialmente jovem, nem mesmo quando rapaz, e agora estava agradavelmente careca, agradavelmente corpulento, e agradavelmente enrugado, com a maturidade forte de um camponês próspero. A fisionomia dele fora sempre tão pouco notável, tão independente de qualquer feição destacada, tão dominada por sua expressão de bondade rústica, que a idade só a acentuara.

Em 1945, ele se casara com a bela Beth Levi, que lutara ao seu lado durante três anos na Resistência. Seu filho únicos Eric, que herdara a beleza da mãe e o ar do pai, nascera em 1949. Os Avigdors tinham um casamento bom e harmonioso e sua galeria na Rue du Faubourg St. Honoré era uma das mais bem sucedidas e respeitadas da França.

Muitos anos antes, quando ele comprara a casa de veraneio na Provença, resolvera morar na elegante e simpática cidadezinha de Villeneuve-les-Avignon, tão diferente em topografia e atmosfera daquelas bárbaras aldeias montanhesas do Lubéron, que ainda conservavam recordações que ele não queria ressuscitar. E agora, por Deus, lá estava o Eric com a filha de Mistral, pensou Avigdor, enquanto pesava a possibilidade de um interessante Nuits St. Georges Clos de la Maréchale contra um altamente promissor Romanée St. Vivant.

Fora impossível impedir que Beth, com sua curiosidade maternal despertada pelo entusiasmo de Eric, combinasse aquele almoço. A mulher nunca soubera nada sobre Mistral além do simples fato de que o marido um dia fora marchand do pintor.

- Não nos demos bem, mas isso não vale a pena discutir - ele dissera a ela, anos antes. No último ano, Eric ficara curioso para saber do motivo da briga dele com o pintor, mas ele resistira e não dera a explicação que o filho pedira.

- Digamos que foi uma desavença mútua - dissera ele, com a cara tão fechada, nem um pouco típica dele, que só servira para convencer Eric de que houvera entre eles uma rixa séria.

Não podia haver ninguém que Avigdor menos desejasse ver o filho interessado, mas ele resolveu que seria tiro amável com ela quanto seria com qualquer outra moça. Aliás, qual o homem que não faria isso, depois de pousar os olhos nela?

Os anos tinham ensinado certas coisas a Avigdor e uma delas era a sorte que ele tivera em sobreviver quando tantos tinham perecido. Era importante para ele ser agradecido à vida, importante não relembrar as velhas feridas. Ele só queria viver com dignidade e com decência para com os outros, mas as lições aprendidas a duras penas para sobreviver durante a Ocupação o levavam a dar as costas sempre que ouvia as pessoas falarem de religião ou política. Se ao menos, pensava ele muitas vezes, essas duas forças que tinham dividido a humanidade tão violenta e persistentemente, tivessem sido deixadas fora do esquema das coisas, como a vida podia ser doce para todos. Ele não queria ter nada a ver com certas recordações que, a despeito de sua filosofia, nunca tinham desaparecido. E Fauve Mistral as trazia de volta.

- Então, mademoiselle - disse ela, virando-se propositadamente para Fauve, com um ar bondoso - estuda nos Estados Unidos, é?

- Ah, por favor, me chame de Fauve... sim, moro em Nova York, mas venho passar o verão com meu pai, todos os anos.

- Claro, claro, muito agradável. Ah, Jacques - disse Adrien Avigdor, virando-se para Jacques Mille, gerente do hotel, filho do proprietário do Le Prieuré, que o comprara de Madame Blé - o que acha do Nuits St. Georges comparado com o Romanée St. Vivant? Sua opinião pessoal, veja bem, entre amigos.

- Se fosse o meu paladar, Monsieur Avigdor, escolheria o Beaune Vignes Franches, 1955.

O jovem Jacques Mille, vestido com naturalidade, à moda nitidamente inglesa, com um encanto franco e correto e educado para presidir sobre uma obra-prima de hotel e restaurante, era um homem cujo conselho era de confiança, em todas as coisas.

- Então, está resolvido - disse Avigdor, satisfeito. O resto da refeição então podia girar em torno do vinho, em vez de escolherem o vinho para acompanhar a comida... ele preferia assim.

O jardim do Prieuré estava cheio, como sempre, de grupos festivos; famílias que comemoravam alguma data e mesas de gourmets sérios, sentados em volta de mesas redondas em almofadas azuis sob guarda-sóis vermelhos. Os garçons e seus auxiliares se movimentavam sob os olhos vigilantes da animada Marie France Mille, mulher de Jacques, de fala macia, que personificava aquela beleza morena provençal que o poeta italiano Petrarca imortalizou em sua Laura.

O que diria o espectro do piedoso Cardeal Arnaud de Via, sobrinho do Papa João XXII, que deu seu palácio a 12 cônegos, em 1333, para fazer um priorado, a respeito dessa alegre cena de almoço? O que diria o espectro de Madame Blé, que dirigira uma pensão tão sossegada, da piscina olímpica e as duas quadras de tênis que ficavam do outro lado do roseiral, longe das vistas dos comensais? Como ela não teria exclamado de admiração se pudesse ver o anexo magnífico, construído recentemente e perfeitamente integrado com os prédios velhos, com suas suítes com ar condicionado e banheiros luxuosos? E o que diria o espectro de Teddy Lunel, se pudesse olhar do quarto em que resolvera o seu destino e visse sua filha, alta, jovem e linda, sentada ali almoçando com Adrien Avigdor, um homem de quem Julien Mistral nunca lhe falaria durante sua breve vida em comum?

- Estou tão contente por conhece-lo, Monsieur Avigdor - disse Fauve. - Minha avó me falou do senhor.

- Então, Maggy não se esqueceu de mim? - perguntou Avigdor, satisfeito.

- Claro que não. Magali sempre me contou tudo sobre o passado dela. Ela acha que é importante os olhos saberem o mais possível sobre os pais e avós... especialmente quando são ilegítimos.

Fauve escolheu as palavras propositadamente. Ela queria que os pais de Eric soubessem desde o princípio que, fosse o que fosse que tivessem na cabeça sobre o nascimento dela, não precisavam tratá-lo com tato.

- Eu gostaria que o senhor me contasse sobre o meu pai, quando ele era moço - continuou ela. - Na verdade, só o conheço direito há uns oito anos. Por perfeito que seja, ele se recusa a contar suas recordações. Mas foi o senhor quem fez a primeira exposição dele, de modo que deve conhece-lo há... mais de 40 anos! Como é que ele era, então?

Na fisionomia dela havia a mais ardente curiosidade.

Mistral, em moço? Avigdor procurou depressa uma recordação agradável. Não podia propriamente dizer a essa filha dedicada que o pai sempre fora um homem maldito, mal-humorado, arrogante e egoísta. Um homem que mandara mais de um judeu para a morte. Mas tinha de arranjar alguma coisa para dizer.

- Bom, deixe ver... é difícil descreve-lo direito. Sempre foi impressionante, sempre a pessoa mais notável em qualquer lugar. - Ele parou, pensou um pouco e depois encontrou uma inspiração. - O que nunca hei de esquecer, nunca mesmo, é a primeira vez que o vi. Kate Browning, quer dizer, a sua madrasta, claro, que levou ao estudiozinho de seu pai em Montpamasse.. . ora, ainda vejo Maggy saindo da cozinha, de pés descalços, com o vinho e os cálices... é espantoso como me lembro bem dela, mas, claro, ela era tão maravilhosamente bela, uma moça tão soberba e não tinha nem a sua idade, Fauve, só 17, acho, e tão apaixonada, tão fiel...

- Fiel - repetiu Fauve, numa vozinha débil.

- Mas claro, fiel, isso acima de tudo. Eu a admirava muito, sabe, sustentando o seu pai, com seu trabalho de modelo, antes de Mistral começar a vender os trabalhos dele... mas, naturalmente, quando a mulher ama de verdade, ela faz qualquer sacrifício, não é mesmo? Ah, formavam um casal notável, ambos tão altos, ambos ruivos, o dele tão escuro, o dela tão vivo, eram a lenda do quartier... ah, sim, Julien Mistral e Maggy, La Rouquinne, já deviam estar vivendo juntos há algum tempo, antes dele conhecer Kate. Aliás, como está Kate agora? Eu a perdi de vista inteiramente.

- Ela está... bem - disse Fauve, numa confusão tão profunda que falava vagamente.

- Está com boa saúde? - perguntou Avigdor.

- Perfeita, ao que eu saiba - disse Fauve, obrigando-se a sorrir educadamente. Adrien Avigdor falou mais um pouco até que o aparecimento do linguado de Dover passasse a conversa para a comida, mas Fauve não ouviu mais nada.

O pai dela e a avó? Eles se tinham amado? Eles tinham vivido juntos? Mas era a mãe dela e o pai que se tinham amado, vivido juntos! Uma onda de confusão tão forte e complicada, que a impedia de se mexer, passou por cima dela e foi só a pressão aflita da mão de Eric na sua, sob a toalha, que a levou de volta e permitiu que pegasse o garfo.

Com algumas palavras nostálgicas, bem-intencionadas, Adrien Avigdor pegara o modelo que ela fizera para explicar sua própria vida e o modificara para sempre, tão irrevogavelmente quanto se alguém fizesse um movimento com um caleidoscópio. As formas conhecidas estavam perdidas, destruídas. "Por que você nunca me contou isso, Magali? Eu só sabia que você tinha posado para o meu pai, nada mais. Que tipo de homem é ele? O que realmente houve entre vocês? Em que posso confiar agora, de tudo o que vote me contou?"

- O seu linguado não está gostoso, Fauve? - perguntou Beth Avigdor, delicadamente. Ela teria chutado o marido se soubesse que ele ia falar daquele jeito, mas, para ser justa, Fauve provocara aquilo, ao declarar que a avó lhe tinha contado "tudo" - algum pai ou avo algum dia contava "tudo" aos jovens? Esse seria o primeiro caso, na história. Por algum motivo, a moça estava visivelmente absorta em seus pensamentos. - Fauve - repetiu ela - o peixe não está bom?

- Ah, não, está excelente, obrigada, Madame Avigdor.

- Fauve, eu lhe prometo, chega de arquitetura por 24 horas - disse Eric, contrito. - Dois dias? Uma semana? Como quiser. Vamos fazer o que você quiser, esta tarde.

- Vamos à Pont du Gard - disse Fauve, dando-lhe um sorriso firme. - Você está louca... parece estar extenuada.

- Estou muito bem. E louca para compreender bem os romanos.

- Eric tem essa idéia de que a gente só pode compreender uma civilização depois que entende o que eles acham da água - resmungou Adrien Avigdor. - Por que a água e não o vinho, eu lhe pergunto? Ah-ah! Ninguém pode me responder. Nunca podem.

- Provavelmente poderia obter uma resposta de um estudioso do Talmude - sugeriu Fauve - se quisesse mesmo saber.

- Isso não é o tipo de coisa de que se fala na Bíblia - protestou Eric.

- A Bíblia? - Fauve riu-se. - O que é que a Bíblia tem a ver com as dúzias e dúzias de discussões e comentários sobre a Torá, os Cinco Livros de Moisés?

- Dúzias e dúzias de o quê? - disse Eric, perplexo.

- Ora, pare de brincar comigo. Monsieur Avigdor, deve haver pelo menos duas opiniões no Talmude, ou talvez até uma dúzia, de modo que o senhor não teria uma resposta mesmo, mas pelo menos teria uma discussão. Pelo menos, é o que o Rabino Taradash teria dito, segundo a minha avó.

Avigdor abriu a boca, espantado.

- Beba um pouco de vinho - disse Beth Avigdor ao marido, depressa. Em sua opinião, era uma sugestão inteiramente razoável; antiquada e inesperada, de parte de uma mocinha, mas por certo não era motivo para um assombro tão grande. Filha de Mistral ou não, Lunel não era um nome judeu? E até bom e antigo? O que é que dera nesse homem?

Fauve, quando foi-se deitar naquela noite, tinha construído uma casca de racionalização protetora em torno da revelação de Adrien Avigdor. Não se sentia mais traída pela avó. Agora que podia pensar no que ele dissera, sem o elemento de surpresa, fazia todo sentido que Magali não lhe tivesse contado toda a história, guardasse em parte o segredo. Quando ela era mais nova, simplesmente não teria podido compreender. Deus sabia que a história da família das mulheres Lunel e todos aqueles seus amantes infelizes já era bem complicada. Era mesmo um pouco romântico - o amor em duas gerações - pensou ela, com sono, mas, por algum motivo, achou que não podia perguntar nada ao pai sobre as recordações de Monsieur Avigdor. Ia esperar para perguntar a Magali, quando voltasse para casa. Ninguém lhe escondera nada... ninguém a traíra... ela podia confiar neles... tudo estava como sempre fora... só havia uma camada de mistério... sem importância... tão no passado... havia tanto tempo...

- Fauve, ande, acabe o seu café - disse Mistral. - Está na hora de sua lição de pintura.

- Prometi passar o dia com Eric - disse Fauve. - Ele vai me levar para ver a Arena Romana em Aries.

- Imagino que vote esteja me provocando. Separei um tempo para você, todas as manhãs.

- Não, estou falando sério.

- Mas Fauve, você tem a vida toda para passar olhando as arenas romanas.. , onde estão as suas prioridades? Com o seu talento, não pode desperdiçar tempo vendo as paisagens! Não é possível! Quantos dias temo verão?

Você não sabe que ainda tem muita coisa a aprender?

- Sei, papai, mas eu prometi.

- Julien - disse Kate - você não está sendo razoável? Por que Fauve há de querer passar a manhã trancafiada no estúdio com vote, quando pode

sair com um rapaz tão irresistível? Sei que, na idade dela, eu certamente teria preferido namorar a pintar.. , não seja insensível.

- Kate, isso não tem nada a ver com vote. Fauve, venha logo. Quando esse rapaz aparecer, Kate, diga-lhe que espere até que Fauve acabe, por hoje.

Se ele estiver interessado, ainda estará aqui ao meio-dia.

- Não, papai.

- Não? O que quer dizer com isso?

- Não vou pintar com você este verão.. , de jeito nenhum. Não posso mais. .

- Do que está falando? - Mistral agora estava espantado demais para se zangar. - Não pode? Não pode o quê? Não está querendo dizer que é incapaz de pintar? Quantas vezes já lhe disse que vote tem um talento natural sé rio? O que é tudo isso?

- Pensei nisso o inverno todo - disse Fauve, a voz falseando a princípio, mas logo se firmando. - No verão passado, você se lembra, quando eu quis fazer um pouco de trabalho experimental, vote disse que eu estava contaminada por toda a vulgaridade e ostentação das exposições que vejo em Nova York e voltamos a pintar figuras, paisagens e naturezas-mortas... bem, eu queria dizer que não posso continuar a tentar pintar como Mistral, porque não sou Mistral, nunca serei Mistral e não há motivo para você ficar esperando que eu possa ser alguma coisa de parecido com você... mas não tive coragem. Eu me prometi que este verão ia ter coragem para isso... bem, é isso, é por

isso que não vou ao estúdio com você.

- Fauve - disse Mistral, lutando para manter a calma. - Você vive no centro de um redemoinho de toda a imundície de todo o mundo da pintura, se é que se pode dignificar essa máquina de dinheiro, essa anarquia total que reina em Nova York, chamando-a de pintura e arte. Posso compreender por que você não consegue evitar certo contágio. É uma espécie de loucura de decorador de Broadway Hollywood, um bando de exibicionistas sem talento... mas você certamente não leva a sério gente que faz "arte" de tubos de luz fluorescente, estantes moduladas, isopor, revistas em quadrinhos e coisas que encontram nas latas de lixo! Jesus Cristo, Fauve, se você quiser se divertir com a arte, vá estudar Marcel Duchamp... pelo menos ele fazia a coisa com classe e fez tudo primeiro!

- Você não está entendendo o que quero dizer. Não quero fazer Pop ou Op ou Mínimo.. , nenhum dos outros estilos... nem quero fazer o que qualquer outra pessoa estiver fazendo... e não posso fazer o que você faz, não quero pintar, de modo algum!

- Você não pode deixar de querer pintar, Fauve. Você é pintora, não tem escolha. - A voz de Mistral era delicada, paciente, como se ele falasse com um cavalo puro-sangue inesperadamente obstinado. - Nunca lhe pedi para imitar, que eu saiba. Apenas procurei impedir que você fosse levada a uma fossa de ditas idéias novas... elas só podem distorcer e corromper os seus dotes naturais. Você sabe o que eu sempre disse: que não pode voar antes de criar asas suficientemente fortes para levantá-la do solo e levar para o céu. Você precisa ter todo o equipamento essencial... depois pode fazer qualquer coisa... ora, até Picasso, gasto e obcecado com o erotismo, ainda sabe desenhar como mil anjos, quando quer. Ele precisou o treinamento clássico para poder deixá-lo para trás. Só lhe estou dizendo que você ainda não tem... ainda não inteiramente.. , todo esse lastro necessário, todas essas habilidades. Fauve, vamos para o estúdio. Pode fazer o que quiser esta manhã... não será uma lição... vamos só pintar juntos, quietos, sem críticas, nem sugestões, só pinte.

- Não, papai.

Mistral apertou os lábios.. Olhou para Fauve e viu alguma coisa em sua fisionomia que o fez refletir um segundo e depois resolver encontrá-la em seu terreno.

- Está bem, então, se você acha que está precisando visitar uma arena romana, vá e divirta-se. Depois falamos mais sobre isso, hem? Afinal, não é uma coisa que se tenha de resolver agora.

A campainha tocou na cozinha.

- É o Eric disse Fauve, levantando-se da mesa depressa. - Volto para o jantar... ou, se não voltar, telefono. - Ela beijou Mistral na face. - Até logo.

Pegou a bolsa a tiracolo, de uma cadeira, e saiu da sala, depressa.

- Então, Julien - disse Kate, com o seu modo inexpressivo de falar - devo confessar que estou estatelada. Nunca pensei que ela detestasse tanto as suas lições. Ela não entende o privilégio que é aprender com você?

- Ora, não diga besteira, Kate. Ela é minha filha e o privilégio não tem nada a ver com isso. É esse mundo de Nova York em que ela vive, todo o sentido de valores desapareceu de lá, há muito tempo. São as pessoas com quem ela tem licença de conviver, sabe Deus por quê. Aquele fotógrafo, Falk, que a leva para essas nojentas galerias novas, é um contágio, é uma doença...

- Nunca lhe ocorreu, Julien, que ela simplesmente pode não estar mais interessada? Por que você espera que Fauve seja diferente da maioria das moças de 16 anos? Elas vivem e respiram equitação, patinação no gelo, balé e então um dia descobrem um rapaz... como o filho de Avigdor... e perdem o interesse da noite para o dia por aquilo a que dedicaram anos de vida. É um fenômeno muito conhecido.

Kate parou, a lista de compras na mão. Depois, como que pensando melhor, ela continuou.

- Afinal, quantas grandes pintoras existem? Quantas vezes você já não disse que as energias delas deveriam ter ido para produzir filhos? E quantos filhos de pais célebres conseguem alcançar alguma coisa importante no mesmo ramo que os pais, hem? Algum dia já houve uma pintora boa, bem conhecida, mesmo, que fosse filha de um artista de seu quilate? - Ela pôs a mão no ombro de Mistral. - Não leve isso tão a sério... tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde... o jovem Avigdor apenas forneceu a centelha que fez explodir a mistura... e devo dizer que certamente entendo por que, depois que o conheci. Que rapaz tão extraordinariamente bonito! E como os pais foram amáveis com Fauve ontem.. , parece que estavam com muita pressa para acolhê-la no seio da família.

- Que coisa absurda, dizer isso sobre um almoço - disse Mistral, o rosto vermelho de raiva.

Kate fez uma cara de filósofa.

- É isso que acontece com os filhos - disse ela, observando Mistral com cuidado. - A gente passa a vida se preocupando com eles e fazendo tudo o que pode por eles e então, quando chegam à idade mais interessante, vão embora com o primeiro que aparece e deixam a gente a ver navios. Eu reclamo porque Nadine quase nunca vem aqui? Desde que ela se casou com Phillipe, eles passam todas as férias na Sardenha ou Marrakech ou seja onde for que estejam os amigos... é tudo bem normal. Você o aceitou com Nadine... a mesma coisa está acontecendo com Fauve, só isso. - Ela deu de ombros, em sinal de resignação.

       - Parece difícil acreditar que você já tenha sido uma mulher inteligente, Kate. - Mistral estava tão enraivecido que sua voz perdeu todo o colorido. Fauve e Nadine não têm nada em comum. Fauve é bem dotada, muitíssimo bem dotada. . . nasceu para pintar. Ela está apenas passando por uma fase de rebelião. Amanhã ou depois, estará de volta, trabalhando.

Ele se levantou, saiu da sala, sem mais uma palavra.

       Kate ficou sentada sozinha à mesa do café da manhã, escutando os ruídos do campo. Um leve sorriso passou por seus lábios bem modelados, quando ela pensou na expressão abatida do rosto de Julien, a fúria que ela o vira ocultar de Fauve. Ah, Julien, disse ela para si. Não sabe que isso é apenas o começo? Você apenas começou a perdê-la... Você... você que era um homem inteligente?

       - Por que Cavaillon? - perguntou Eric, dirigindo o carro. - Sei que é lá que cultivam os melhores melões da França, mas pensei que íamos a Arles. Cavaillon, basicamente, não tem interesse arquitetónico.

       - Porque uma arena romana pode esperar mais um dia, mas em Cavaillon há uma coisa que eu quero ver. Em todo caso, você não disse que eu podia fazer o que quisesse ontem? E eu não fui àquele velho aqueduto e escutei todas as suas explicações?

- E eu que pensei que você estivesse realmente interessada.

- E estava, incrivelmente fascinada. Os sistemas de água romanos têm

um encanto misterioso só deles - disse Fauve, provocando-o.

- Eu acho que você está precisando é de ser beijada - disse Eric, severo.

- Ah, não estou, não! - exclamou Fauve, alarmada.

- Ah, está sim. Eric desviou o carro para uma estradinha secundária e desligou o motor. Estendeu a mão sobre o banco e puxou Fauve para si com facilidade, a despeito das tentativas dela de resistir. Mas depois de tentou levantar o queixo que ela mantinha bem enfiado no pescoço. Em vez disso, beijou a cabeça quente e sedosa. Devagar, ela se descontraiu e eles

ficaram sentados abraçados, ouvindo o som de sua respiração e comunicando um segredo sem palavras, do qual cada um possuía a metade. Passaram-se minutos prolongas, doces e sonhadores. Por fim, Fauve disse, com uma vozinha encabulada, o queixo ainda abaixado:

- Você pode me beijar, se é isso que você quer.

- Não é o que você quer? - perguntou Eric, sorrindo da juventude dela.

- Se você precisa perguntar...

       Fauve levantou a cabeça e passou o dedo pelas saliências marcadas do lábio inferior de Eric. Com um gemido, ele apertou os lábios dela com os seus, sentindo um choque na alma, ao receber a inocência de seu beijo de todo o coração.

- Ah! - sussurrou ela, com uma surpresa incandescente. - Ah, que bom! Ela abriu bem os braços e os apertou em torno do pescoço dele. Eles se agarraram, beijando-se vezes e mais vezes, cada beijo completo em si, não levando a nada senão a outro beijo, cada, beijo um cosmo em miniatura em que eles perdiam toda a noção da existência de qualquer outro mundo. Totalmente cativada pelo momento, Fauve sentiu que no fundo de seu peito um novo pulso se anunciava, batendo pela primeira vez, como se fosse um tambor proclamando o nascimento de alguma coisa que estivera à espera dentro dela, aguardando que aquele determinado homem a beijasse.

       De repente, o carrinho começou a balançar de um lado para outro. Fauve e Eric se enrijeceram, alarmados, e olharam em volta. As vidraças do carro estavam tapadas até à metade por formas gordas, cinzentas, empoeiradas, uma sucessão barulhenta e indiferente de corpos fortes irracionais que batiam no Renault como se fosse um arbusto inconveniente.

- Nem ouvi os carneiros chegando - disse Fauve, assombrada.

       - Nem eu... ah, Fauve... minha querida Fauve... ah, diabos, lá vêm os pastores... olhe no espelho retrovisor.

Eric se afastou dela, para uma distância respeitável.

       - Pastores? - escarneceu Fauve, sem fôlego, refugiando-se de sua nova emoção, implicando com ele. - Eles estão acostumados com a natureza em todas as suas manifestações. Volte já para cá!

       Cavaillon, uns 15 quilômetros a sudoeste de Félice, na direção de Avignon, é uma calma e próspera cidade de mercado de 1.800 habitantes. Fauve e Eric; estavam sentados do lado de fora do café onde tinham almoçado, de mãos dadas, calados, olhando para uma praça sonolenta e sem importância. Por fim, Eric disse:

       - Não me importo mesmo que não haja nada para se ver em Cavaillon, se bem que continue me perguntando o que estamos fazendo aqui.

Estamos esperando que chegue o guia.

       O guia? Aqui não há nada que mereça uma excursão com guia... só nós e o garçom. . . até as lojas estão fechadas até às 16 horas.

Espere - disse Fauve, num tom de voz superior.

Como quiser, prazer de pastor.

Nós enfeitamos o dia deles mesmo, você não acha?

       Não me lembrei de perguntar, mas talvez eles já tenham visto gente se beijando antes.

- Ah, venha, Eric, lá está ele!

Fauve levantou-se de um salto e começou a atravessar a praça em direção a uma escada de um prédio de três andares, sem distinção alguma, onde um rapaz em mangas de camisa se postara. Eric a acompanhou, sacudindo a cabeça, perplexo.

Quando eles se aproximaram do rapaz, começaram a surgir pessoas das esquinas de todas as ruas que davam para a praça, saindo de canos estacionados e de portas, quase da própria terra. Quando eles chegaram ao pé da escada, faziam parte de um grupo de umas 25 pessoas, e todas, para os olhos espantados de Eric, pareciam saber muito bem para aonde iam. Ele procurou se manter o mais próximo de Fauve que pôde, mas era difícil, pois quase todos estavam querendo subir pela escada estreita ao mesmo tempo. Em cima havia uma sacada e duas portas de madeira altas, bem entalhadas e fechadas, numa arcada de pedra maciça.

- O que...? - começou Eric a dizer, mas Fauve lhe fez um gesto para ele se calar. O pessoal afinal se arrumou em volta do jovem guia e ficou esperando, num silêncio de expectativa. O rapaz abriu as portas com uma certa cerimônia séria.

- Bem-vindos à Sinagoga de Cavaillon - disse ele. - Não posso acreditar! - murmurou Eric.

- Imaginei que não acreditasse - ontem, quando vota misturou o Talmude com a Bíblia - disse Fauve, encantada com a sua surpresa. - Descobri isso quando li o guia verde Michelin da Provença, no inverno do ano passado; está relacionada no capítulo de "Outras Curiosidades" em Cavaillon, junto com a velha catedral e o museu de arqueologia. Eu tinha planejado vir aqui, quando voltasse.

- Bem, o que devemos fazer agora? - perguntou Eric. - Fazer uma visita, claro. Você não quer?

- Bom, claro... acho que... por que não?

- Você me assombra, sabe. Quero dizer, você é judeu, não é?

- Naturalmente... os meus pais são, portanto eu também... mas o que tem isso a ver com a história? Eles não são nada religiosos, nenhum dos dois, e eu nunca fui a uma cerimônia... ah, espere, uma vez um primo se casou, quando eu era menino, e me levaram ao casamento, em Paris, mas quase não me lembro. Para mim, ser judeu não tem relação com ir a uma sinagoga, a não ser que a gente tenha vontade, e eu nunca tive essa necessidade. Em todo caso, por que vota está tão interessada? É algum passatempo?

- Ontem o seu pai estava faiando sobre a minha avó, Magali, lembra-se? Ela é judia, nascida na França, e a filha dela, minha mãe, era meio judia e meio irlandesa católica. O meu pai é católico francas, de modo que eu sou um quarto judia... mais do que o suficiente para me fascinar, pois é parte de minha história, minha história pessoal, e é a única parte sobre a qual tenho informações.

O meu pai não sabe de nada sobre os avós dele.., ele francamente não liga e nem sabe se eles são originários da Provença, apesar do nome dele. Só o que sei sobre o outro lado da família é que o pai de minha mãe era um americano chamado Kilkullen... isso e dois dólares lhe compram uma dose de uísque irlandês no dia de São Patrício. Assim, tenho curiosidade em visitar a sinagoga, entendeu?

- Como quiser, sua birutinha. Só não posso acreditar que todos esses turistas... devem estar falando 14 línguas estrangeiras... de onde é que brotaram?

- De 15 países estrangeiros. Esse é um lugar de peregrinação, Eric. O que é mais, tem até um sistema de águas lá dentro, segundo o Michelin, embora não seja um aqueduto romano.

- O que é?

- Um banho ritual - declarou Fauve, os olhos brilhando de malícia.

- Ah, não! Isso também já é demais.

- É só para mulheres, seu ignorante idiota, e em todo caso essa sinagoga é um monumento, não é usada para nada, hoje em dia. Olhe, o guia tem um livro para vender. Vamos comprar um, assim podemos olhar por nós, sem ter de acompanhar a turma. Detesto estar presa num rebanho.

Eric comprou as entradas e pagou por um livro fino de André Dumoulin, curador de museus e monumentos de Cavaillon. Continha uma breve história da comunidade judia de Cavaillon, bem como fotografas e descrições da sinagoga.

Fauve e Eric largaram o grupo de turistas, todos escutando atentamente o que dizia o guia, e foram sozinhos para a parte central do templo. Nenhum tinha qualquer idéia do que devia esperar e pararam de repente depois de entrarem, inteiramente surpresos. Encontravam-se numa sala quase vazia, que, não obstante, dava uma impressão imediata da maior harmonia de espírito. Poderia ter sido um pequeno salão de algum palácio abandonado, construído no estilo e na época de Versalhes. A sinagoga fora construída em 1774, no local de um templo mais antigo, datando de 1499, e o arquiteto e os artesãos que trabalharam em seu interior tinham sido treinados no formalismo incomparavelmente delicado de Luís XV.

As paredes da sala alta, com sacadas, eram pintadas de um branco suave e inteiramente almofadadas. Cada painel era enfeitado com madeira entalhada e dourada em motivos de rosas, guirlandas de folhas de palmeira, cestas de flores, conchas do mar e instrumentos musicais - todas as fantasias e caprichos tão caros ao gosto da Marquesa de Pompadour. Havia vários lustres dependurados do teto, alguns com pingentes frágeis de antigo cristal de rocha, enquanto outros, mais sólidos, eram feitos de cobre bem polido, todos tendo alegres grupinhos de velas amarelas compridas. Uma luz fraca, de um dourado suave, entrava pelas janelas altas.

Tanto Eric como Fauve se sentiram irresistivelmente impelidos a avançarem e se postarem diante de uma grade, de cerca de 1,20m, feita de ferro forjado com detalhes complexos, colocada como proteção, em, volta de um par de portas magistralmente entalhadas e decoradas, que eram, sem dúvida, o foco de todo o templo. As portas, que pareciam dar para algum espaço nobre, eram flanqueadas por altas colunas coríntias, sustentando uma série de frontões complicados, coroados por uma cesta de onde explodia uma profusão de buquês de rosas.

Fauve, procurando no livro guia, viu que eram as portas atrás das quais os pergaminhos da Torá, a Bíblia hebraica, eram guardados quando o templo ainda funcionava como casa de culto. Ela ficou ali, em veneração, procurando imaginar o que veria, se lhe permitissem penetrar no recinto, abrir as portas fechadas do tabernáculo; mas não conseguiu. Era além de sua capacidade.

Eric a ouviu suspirar, com tristeza, e a puxou delicadamente dali, levando-a para o outro lado do templo, que parecia uma jóia, onde eles subiram por uma das duas escadas semicirculares que davam para a sacada almofadada, com guirlandas, que se estendia por toda a largura da sala.

Fauve se inclinou com cuidado na balaustrada, que era feita com a delicadeza de uma renda, e achou que daquele ponto o templo parecia um salão de baile em que ela imaginava senhoras de cabeleira empoada e homens de casacos de brocado, dançando. Mas o livro guia, novamente consultado, lhe informou que ela estava no que fora o púlpito de quem dirigia o ofício. Sua visão de bailarinos desapareceu quando ela olhou para baixo e tentou imaginar o suntuoso templozinho cheio de bancos e os bancos repletos de pessoas vestidas como se vestiam antigamente em toda a Provença, roupas que hoje só eram usadas por cantores populares representando nos festivais.

O passado parecia próximo, como se estivesse logo atrás de uma cortina de luz, tão poderosa e palpável era a atmosfera do lindo lugar deserto que se tomava impossível perceber que estava vazio, assim como era impossível saber como realmente fora, quando em uso. Como todos os lugares santos abandonados, em que um dia a alma humana despejou suas emoções mais profundas, vibrava com uma energia complexa e fazia o visitante calar-se.

Quando o grosso dos outros visitantes começou a entrar na parte principal da sinagoga, Fauve e Eric desceram depressa a escada e foram para o andar térreo do prédio, onde, na antiga padaria da comunidade judaica, a cidade de Cavaillon e a Beaux-Arts tinham instalado um pequeno museu.

Lá, sozinhos de novo, eles se viram numa sala comprida, de teto baixo, com um piso de pedra. Duas vitrinas cheias de fotografias e documentos ocupavam o centro da sala e em ambas as paredes havia armários iluminados que continham todo tipo de objetos de rituais usados nas cerimônias. Continha até as portas do tabernáculo do templo de 1499, em estilo renascentista, adornado com um baixo-relevo de vasos, com ramos de frutas e flores e pintado com as letras hebraicas das tábuas que Moisés levou do Sinai. Fauve estava contemplando essas portas, que tinham sido novas quase 500 anos antes, procurando penetrar o véu dos tempos, quando Eric a puxou para um dos outros armários.

- Olhe! - disse ele, entusiasmado. - Aqui está um lampião de óleo romano, do século I a.C. Está vendo os dois menorahs na base? Diz aqui no livro que é uma das mais antigas representações do menorah encontrado em solo francês... é 100 anos mais velho do que a Pont du Gard.

Fauve de repente ficou abismada ao ver o objetozinho modesto.

- Ah, Eric, pense só na terra debaixo da qual deve ter sido encontrado.. , tantos metros de terra... história demais... anos demais... quantas gerações há em 2.000 anos, quantos nascimentos e mortes? Não suporto pensar nisso... estou com problema em voltar 200 anos, quanto mais 2.000.

Ela se virou para as vitrinas, com alívio. As fotografias, por velhas que fossem, de algum modo eram dos dias atuais.

Ela foi andando devagar, de um lado para outro, quase cansada, olhando com um interesse decrescente para as cartas e proclamações antigas. De repente, ficou parada diante de uma fotografa, tirada em 1913, de um senhor idoso, bonito e distinto, com um bigode branco bem aparado, terno jaquetão preto e chapéu preto, com a aba virada, de um estilo tipicamente provençal. Ele estava a um lado da grade que cercava as portas do tabernáculo da sinagoga acima deles e, de pé, do outro lado, estava uma mulher imponente, de olhos escuros, vestido comprido, de cintura apertada, com um véu leve sobre os cabelos grisalhos.

- Eric - exclamou ela - venha olhar para isso. Olhe, olhe só! Diz aqui que eles foram dois dos últimos representantes da comunidade judaica em Cavaillon.

- Certamente são imponentes - disse Eric, intrigado com a emoção

dela.

- Os nomes deles! Monsieur e Madame Achille Astruc. .. Astruc, nome do meu bisavô! Ah, Eric, ainda não contei sobre ele. David Astruc era pai de Magali.., eles podem ser meus parentes! Já eram velhos quando Magali era menina... podiam ser primos, ou tia-avó e tio-avô... ah, não se... alguma coisa...

Fauve estava com lágrimas nos olhos, debruçada sobre a foto daqueles velhos belos e serenos. Eric ficou ali quieto, balançando-a de leve, os braços passados pela cintura dela, enquanto ela examinava a fotografia, entregue a suas conjecturas e assombro.

Passaram-se vários minutos até que os outros turistas começaram a entrar no museu.

- Acho que já vimos o melhor - murmurou Eric e Fauve concordou logo, lançando um último olhar à fotografia, antes de acompanhá-lo pela escada e ir para fora.

- Estou precisando de uma Coca Cola.., e você? - perguntou Eric.

- Alguma coisa fria, com muito açúcar - concordou Fauve, e eles voltaram ao café e quase caíram juntos de uma mesa, com aquela exaustão especial, esgotada mas animada, que só conhecem os turistas que, por algum motivo, foram obrigados a viajar no tempo e não apenas obrigados a observar.

Eric pegou o livro guia e o folheou com curiosidade.

- Quantos judeus terão morado em Cavaillon? Vamos ver... aqui diz que foi sempre um número reduzido, nunca mais de 300 pessoas no máximo. Isso é interessante, Fauve, os arquivos municipais mencionam que houve um rabino em Cavaillon desde o século XI, mas quando houve a Revolução, em 1790, os judeus começaram a sair da Provença e se espalhar por toda a França e depois de 1793 não há nenhum traço de atividade comunitária. Olhe, aqui tem uma lista dos nomes dos últimos membros da comunidade... é dos arquivos de Cavaillon e separaram os nomes em grupos, para mostrar as origens.

Fauve pegou o livro.

- Há mais nomes franceses do que outros - disse ela - todos com nomes derivados de várias localidades de onde vieram... Carcassonne, Cavailion, claro, e Digne e Monteau... todos nomes de lugares... e... e bine!.

- Lunel? - repetiu ele.

- Lunel! Então deve haver um lugar chamado Lunel! Nunca soube disso! Nunca sequer me ocorreu que poderia ser o nome de um lugar. Ah, Eric, nós temos de poder encontrá-lo no mapa, se ainda existir! Eric, quando podemos procurar Lunel?

Esquecendo-se do cansaço, Fauve estava parecendo pronta para começar a busca logo. Eric sorriu diante de sua beleza ansiosa, franca, impaciente.

- Tem de estar em algum lugar, Fauve, e vou descobrir para você.. . os lugares não desaparecem. Mas hoje não.

Ele tirou o livro da mão dela e olhou para a página que ela estava lendo.

- Há uns outros nomes de origem hebraica, como Cohen e Jehuda, e alguns outros do latim... é daí que vem o seu Astruc, meu bem, de "astrum", astro. O último grupo é estrangeiro, gente de Cavaillon que veio para cá de outros países... Lisbonne e Lubin... um Pole... e...

- E?... - perguntou Fauve, intrigada porque ele tinha parado.

- Maldito seja o tempo! Leva tudo consigo - resmungou ele.

Pessoas de nome Astruc e Lunel tinham pertencido àquele templo que ele acabara de visitar, como se fosse apenas uma curiosidade um pouco maior do que o comum de outra civilização. O passado, provocador, fugidio, estava sempre logo além do alcance e lhe dera um tapa no ombro. Ele estremeceu, assombrado. Se ele soubesse o suficiente, se houvesse documentos - e não havia - por que ele não podia descobrir as origens da família de Fauve até antes de os romanos terem construído a Pont du Gard? Por que se perdera tanto conhecimento? Como tinha sido esquecido?

- Ah, não se preocupe - disse Fauve, compreendendo a emoção dele. - É só que não é justo, não poder saber, é tão decepcionante... Eric, nós dois somos tão tristemente desinformados e ignorantes, não somos? Somos uma vergonha.

- Somos mesmo.

- Mas imagine... - continuou Fauve, os olhos maiores do que nunca, em suas conjecturas - imagine só... Lunels, Astrucs, Lubins e Carcassonnes todos indo juntos ao templo... conhecendo-se... as famílias morando bem aqui, durante centenas de anos... talvez um deles foi aquele rabino do século XI... quase os posso ver. E você?

Eric ficou calado, olhando para o rosto dela, lindo e pensativo, tão animado com as visões que ela via. Ele se viu voando de volta do passado e totalmente, maravilhosamente vivo no presente.

- É impossível ver alguém, a não ser você.

- Eric - disse Fauve, ralhando. - Que falta de imaginação!

- Porque eu te amo.

- O quê?

- Eu te amo. Você me ama? Ama, minha querida?

- Não sei... nunca amei antes - murmurou ela.

- Olhe para mim - ordenou ele. Ela levantou as pálpebras devagar e o que ele viu nos olhos dela era tão inconfundível que ele quase gritou de alegria.

- Mas eu não pretendia me apaixonar! - protestou Fauve.

- Agora é tarde - disse ele, triunfante.

 

 

                                                     Capitulo 25

 

O escritor que reclama da solidão de seu trabalho, o pintor que fala com melancolia da solidão de seu estúdio, o compositor que declara que está condenado a se trancar para compor música num quarto isolado - todos têm um traço em comum: estão mentindo. Se fossem reconhecer a verdade deselegante, teriam de dizer que há poucos lugares menos solitários do que o espaço privilegiado em que a mente está livre para se concentrar em seu trabalho e não há privacidade mais ciosamente vigiada contra a intromissão.

O grande estúdio em que Julien Mistral trabalhava em La Tourrello fora seu único lar de verdade, durante 40 anos. Quando ele abria as portas, respirava fundo, regalando-se com o aroma complexo, composto do cheiro de tintas à base de óleo de semente de papoula, as telas preparadas, o pinho sazonado usado como estirador, os trapos manchados de tinta, agradavelmente rançosos, espalhados por ali, tudo misturado numa infusão pungente e necromântica. Mistral se via recebido por uma população de imagens que representavam tudo por que ele sempre se interessava. Naquele estúdio ele tinha desenvolvido seus recursos heróicos. De pincelada em pincelada, destilara sua própria vida e a liberação dessa essência de cada hora de trabalho deixara uma

impressão no próprio ar. Os quadros que ele vendera com o correr dos anos lhe pareciam tão constantes, em sua presença, quanto os que ele guardara para

si, como se recusassem a partir. Ele nunca tivera um minuto de solidão, em seu estúdio densamente povoado.

Então, perguntou-se Mistral, vagamente, o que era essa sensação que aguilhoava tão insistentemente o seu consciente, a ponto dele se pilham olhando, sem ver, uma tela meio acabada por uma hora seguida? O que era essa inquietação, essa irritação, essa sensação de alguma coisa não realizada, alguma

coisa incompleta?

Passou-se um mês até que ele se dispusesse a reconhecer que era a ausência de Fauve, um mês até ele chegar ao ponto em que não podia mais dizer a si mesmo que amanhã ela voltaria, um mês até que ele conseguiu isolar e definir a percepção de que, durante os últimos oito anos, as lições de pintura que ele lhe dava todas as manhãs, durante o seu veraneio, se haviam tornado essenciais para ele.

Ele precisava dela.

Depois da morte de Teddy, Mistral resolvera nunca mais precisar de outro ser humano. Ele largara Fauve sem um momento de hesitação, passara oito anos afastado dela porque tinha medo de que ela lhe lembrasse Teddy. Quando ele não viu semelhança com a mãe no rosto dela, ficou aliviado; nenhum homem podia amar duas vezes como ele amara Teddy e sobreviver. Ele não se podia dar ao luxo de fornecer outro refém assim à sorte. Os nove meses que Fauve passava em Nova York se escoavam sem muito sofrimento, embora devagar demais, pois havia a certeza de que em todos os meses de junho ela voltaria para ele e passariam juntos todo o verão.

Ele nunca poderia acreditar que ela o abandonaria. Não houvera qualquer sinal, na última viagem de Paris, fazia apenas cinco semanas, de qualquer mudança básica nela. Uma nova maturidade, sim, por certo, e um que de insatisfação com seu próprio trabalho, pensando bem, mas qual o verdadeiro artista que algum dia ficava satisfeito? Não, não tinha nada a ver com sua desaprovação das aventuras dela na abstração... certamente Fauve devia saber que, se ela realmente insistisse, tinha a liberdade de pintar com uma vassoura em vez de com um pincel, de pintar alvos de arco e flecha ou quebra-cabeças, de fazer bolos de lama e aparelhos de gesso. Tudo isso não era mais que um pretexto conveniente. O motivo por que ela o deixara era Eric Avigdor. Fauve fora filha dele até a noite em que conhecera o rapaz.

Era uma explicação tão simples e tão óbvia, que Mistral não compreendeu como não tinha visto isso antes. Kate estava certa, tinha toda a razão - talvez se ela não tivesse dito nada, ele teria entendido logo, mas sempre que se tratava de Fauve, ele desprezava todas as opiniões de Kate.

Afinal, onde é que Fauve estivera, nos dias que se tinham passado? Arles, disse ela, e Cavaillon, Nimes e Orange, Carpentras, Tarascon, St. Rémy e Aix-en-Provence. Ah, que banalidade turística! Sobre o que ela conversava, nas poucas noites em que lhes fizera o favor de lhes conceder sua companhia, ao jantar? Uma mistura irritante de assombros arquitetônicos - nenhum dos quais Mistral achava comparável a uma única cerejeira em flor - e as descobertas que ela estava fazendo, pouco a pouco, naquele assunto mais confuso de todos, a história dos judeus da Provença.

Ela achava que ele se interessava por uma palavra daquilo? Ele não tinha nada contra os judeus, eles apenas não o interessavam, assim como não o interessavam os maometanos ou hindus. Por que ela estava fascinada com um passado que não tinha nada a ver com ela, e tão pouca relevância com o mundo moderno? Teria ela idéia de como o tema era rebuscado?

Maggy, que afinal era judia, nunca pensara nisso, ao que ele se lembrasse, e Teddy só se importava com o presente que eles viviam juntos. No entanto, lá estava a filha dele, remexendo nas sinagogas, em Avignon, em Aix, em Carpentras. Sinagogas!

Ainda na véspera, não controlando sua irritação, ele lhe perguntara por que, já que ela estava passando por uma fase religiosa, e já que três de seus quatro avós eram católicos, por que ela não visitava as catedrais?

- As catedrais são acessíveis demais - dissera ela, com um ar enlouquecedor de estar satisfeita consigo. - Existem por toda parte, não há uma cidade sem uma ou duas... são velhas, mas não têm mistério.

Mistral largou a paleta e desistiu de qualquer tentativa de continuar a trabalhar. Começou a andar pelo estúdio, num pânico crescente. Estavam quase no meio de julho. Dentro de mais seis semanas, a visita de verão de Fauve Maria terminada e ela estava a ponto de se distanciar dele. Quando voltasse, no ano seguinte, teria 17 anos - não seria mais criança - e ele teria 70. Setenta anos! Ora, era apenas um número. Ele tinha mais energia, mais curiosidade do que tinha aos 50 anos.

Era o comportamento de sua filha adolescente que o aborrecia e não o peso dos anos. Exposta ás atenções do primeiro rapaz que reparara nela, Fauve tinha ficado caprichosa, tonta e cheia de entusiasmos exagerados e momentâneos. Ela precisava voltar à terra, era só isso.

Em cada um dos verões passados, Fauve tinha posado para um retrato, mas naquele ano ela passeara tanto que ele não tivera a oportunidade de exigir tempo dela. Tudo quanto estavam acostumados a fazer juntos - as ações de pintura e a pose, as visitas ao café de Félice, tudo havia sido modificado pelo aparecimento desse rapaz abominável na vida de Fauve.

Mistral tirou a tela do cavalete e a encostou à parede, sem cuidado. Movendo-se ansioso como um rapaz indo a um encontro com a mulher que amava, ele foi ao canto onde estavam empilhadas suas telas em branco e escolheu a maior que encontrou. Sim! Um retrato de corpo inteiro, uma ode, um hino a Fauve Lunel e sua minissaia - ela havia de gostar disso.

- Descobri por que Avigdor significa "o juiz" - disse Eric a Fauve. - Parece que no livro das Crônicas, o nome é usado duas vezes e uma interpretação posterior diz que é um dos nomes de Moisés. Eu falei ao meu pai e ele disse para eu não me entusiasmar muito com isso... não havia legisladores na minha família, ele me informou, mas apenas antiquários, até ele aparecer, e agora um arquiteto em formação.

- Que maravilha! - disse Fauve, com orgulho.

Os dois estavam num sebo em Avignon, procurando livros que pudessem ajudá-los em sua busca de conhecimento histórico. Até então tinham tido pouca sorte de verdade, só encontrando poucas referências nos livros, mas Eric não se desencorajou.

- Como é que você descobriu?

- Dei um telefonema. Foi um palpite louco, mas eu sabia que tinha de haver um rabino numa cidade grande como Marselha, de modo que procurei o número dele no catálogo, liguei e perguntei. Ele disse para eu ligar de novo dali a dois dias, para ele ter tempo de pesquisar. Quando liguei, ele me disse. Nem pareceu ficar espantado, com o pedido. Talvez ele receba muitos desses telefonemas.

- Hum... é provável - disse ela, desinteressando-se.

- Fauve, o que é que há?

- É o meu pai.

- O que é que há com ele? Olhe, eu sei que ele não gosta de mim. Ninguém pode acusar Julien Mistral de ser bom ator. Ele fica pairando bem nos limites extremos da tolerância, quando vou buscar você. Mas desde que ele permita que eu entre lá, tudo bem.

- Não, não é você.

Fauve sentou-se na escada que dava para o andar de cima da livraria e passou os braços em volta das pernas compridas. Estava com um comissão de cambraia, sem mangas, franzido, com um saiote. Era atado na frente como o corpete de uma atriz de um velho filme de bangue-bangue, sendo a última moda em todas as butiques do Midi. Suas madeixas de cabelos, agora bronzeados na luz difusa da escada, caíam em ondas pesadas sobre os seios. Se ela estivesse com uma saia por baixo, em vez de blue jeans, pareceria uma donzela vitoriana se aprontando para ir para a cama. Havia uma riqueza insinuante na beleza dela, pensou Eric, olhando para ela, que despertaria o poeta no mais experiente dos homens.

- Ele sempre pintou um retrato de mim, todos os verses - continuou Fauve. - Quer que eu pose para ele, a partir de amanhe Não posso recusar, Eric, é impossível, ele ficaria magoado demais. É uma tradição conosco. Já me sinto bem culpada por não deixar que ele me de aulas de pintura. Ele não falou mais nada sobre isso, mas quando o vejo na hora do café da manhã, sei que está na cabeça dele, e que ele só está se controlando. Ah, Deus...

- Acho notável que você tenha tido a força de vontade de continuar a resistir - disse Eric.

- É preciso - disse Fauve, com simplicidade. - É uma questão de autopreservação: O papai não entende conscientemente que, na verdade, ele quer que eu o imite. Isso está implícito em tudo o que ele me mostra, tudo o que me diz, embora ele o negue, achando estar dizendo a verdade. Sabe, meu pai acha que o jeito dele é o único jeito... não tem uma palavra de elogio para nenhum outro pintor vivo.., os únicos que ele admira já morreram. Mas o trabalho dele vem dele, vem de seja o que for que há dentro dele, e isso não se pode ensinar.

- Então, todos esses anos de lições... - disse Eric.

- Ah, não foram desperdiçados. eu tenho habilidade técnica.. . não vou ser modesta quanto a isso.. , mas há muitos outros pintores que também têm. Se tiver mais alguma coisa, só vou saber quando começar a trabalhar no meu próprio estilo. E nunca hei de descobrir esse estilo, se continuar a aprender com ele.

- Por que você esperou tanto tempo para se decidir?

- Até o ano passado, eu me contentava em pintar "pequenos" Mistrais. Freqüento uma escola de pintura em Nova York e os professores têm receio de me criticar de verdade por causa de quem sou e porque andei fazendo trabalhos no estilo dele. Eles ficam tão impressionados com quem ele é que não consigo que me digam uma palavra honesta. Levei muito tempo para entender isso... acho que fui burra.

- Burra não, querida, só jovem - disse Eric.

- O papai sempre me elogiou demais - acrescentou Fauve, pensativa. - Não sei se um dia chegarei a ser boa mesmo, mas sei muito bem que não posso ser tão boa quanto ele diz que sou. Ele provavelmente só está fazendo isso para me encorajar, mas o efeito é o oposto: como sei que o meu trabalho não merece elogios tão extravagantes, eu me pergunto: merece algum elogio? Se eu não soubesse mesmo pintar, ele diria, mas estou numa posição intermediária. Sei pintar, como um Mistral muito inferior, e isso eu não quero! Se algum dia eu quiser fazer alguma coisa minha, seria fatal continuar a estudar com ele.

- Você não podia dizer tudo isso a seu pai e fazer com que ele entenda?

- Acho que não conseguiria ir além do meio da primeira frase. Você nunca o ouviu discutir, ou melhor, pontificar. E mesmo se ele me ouvisse até o fim, e conseguisse entender o que eu estava dizendo, não é possível trabalhar lá naquele estúdio. Tem uma tal influência que a gente não pode imaginar ver as coisas de outro modo senão do dele. Domina a minha própria imaginação, se é que existe. Mas tenho de posar para ele, não há outra saída.

Eric sentou-se aos pés dela.

- O que é que isso significa, em matéria de tempo?

- Ele queria trabalhar algumas horas de manhã e algumas depois do almoço. Eu disse que só podia posar para ele de manhã. Ele replicou que só nos restam seis semanas, que as manhãs não bastavam, mas insisti. Eu me sinto dividida, Eric. Nunca me senti desleal na vida e agora me sinto desleal para com vocês dois.

- Nada disso. Você está sendo leal para com nós dois. Fauve, querida, querida, não se atormente. Sei como andei tomando o seu tempo e não posso culpar seu pai. Ainda temos as tardes e as noites. Olhe, eu estava guardando isso para mais tarde, mas você está precisando de se animar.

Eric tirou da mochila um livro velho, encadernado em couro, e o deu a Fauve.

- Acredite ou não, a minha mãe me deu isso ontem. Ela afinal se lembrou de que o tinha guardado em algum lugar. Foi publicado em 1934 e o acharam na casa de minha avó, quando ela morreu. Parece que ninguém na família se deu ao trabalho de ler isso.

- Histoire des Juifs d Avignon et du Comtat Venaissin, de Armand Mossé - Fauve leu o título do livro com uma voz cada vez mais entusiasmada. - É isso! Tem de ter isso aqui! O Comtat inclui toda a região vizinha. Ah, que colosso! Já começou a ler?

- Não, achei que podíamos ler juntos, mas agora que não temos tanto tempo, você pode levá-lo e ler quando puder. Talvez possa ler enquanto estiver posando.

- Não com o meu pai. Ele não permite nenhuma distração, nem movimento de olhos, eu mal ouso engolir. - Fauve abaixou-se e pegou o livro nos braços, embalando-o no colo. - Vou ter bastante cuidado com ele, prometo. Até quando será que remonta?

- Olhei para a primeira página e parece que os judeus estavam sendo exilados de Roma e mudando-se para a França, quando Tibério era imperador... mais ou menos no ano 20 a.C. ...portanto, se é antigüidade que você quer, vai encontrar.

- Ah. . . eu estava esperando alguma coisa mais contemporânea.

- Um... E o Vento Levou judeu?

- Bem... por que não, afinal?

Fauve estava de pé junto do tablado de modelos com o mini rosa shocking que ela usara na noite em que conheceu Eric, em Uzès. Já que não podia estar com ele, enquanto posava, pelo menos podia usar o que estava usando da primeira vez que o vira. Ela sentia necessidade de estar em contato com Eric, em todos os momentos do dia.

Agora que ela se conformara com as horas de pose de manhã, viu que eram bem-vindas, de uma maneira inesperada. Isso lhe dava tempo para pensar em Eric, de verdade, coisa que antes ela não tinha. Eles tinham passado juntos quase todos os dias do verão e quando ela chegava em casa, estava muito aturdida com o ímpeto lento e doce dos beijos dele, para ter qualquer pensamento, a não ser um espanto quase vertiginoso por ver que uma felicidade dessas podia existir. Que mundo de assombros, em que podia viver um Eric, vagando às soltas como se fosse igual às outras pessoas, um mundo em que ele a amava. O assombro era tão grande que chegava a ser indecifrável, mudava tudo, tomava todos os seus anos passados um país distante de onde ela navegara sem nem olhar para trás.

Ela pensou na simetria firme do crânio de Eric entre suas mãos, quando ela as passava pelos cabelos castanhos dele, tão limpos e espessos que resistiam aos seus dedos. Ela chegava a sentir a redondeza sólida do osso nas pontas dos dedos. Ela estava de pé, de sapatilhas de balé, os pés em ângulo reto um com o outro, o peso sobre uma das pemas, a outra levemente dobrada, as nãos viradas para fora e os braços pendurados frouxos atrás das costas. Era uma pose, que Mistral escolhera como um tributo a Degas, dizendo que aquela saia rosa era mais curta do que qualquer tutu e podia até ter provocado um sorriso naquele grande velho mal-humorado.

Para Fauve, posando pacientemente, a imagem de uma pequena cicatriz triangular no rosto de Eric, logo abaixo do olho direito, recordação de uma queda quando ele tinha cinco anos, era mais real para ela do que o som dos passos de Mistral afastando-se do cavalete.

Em seus lábios ela' sentia como era lisa a pele quente quando ela beijava Eric na ponta da orelha e depois, abaixando os lábios meio centímetro de cada vez, o beijava de leve e delicadamente pelo lado da face bem barbeada e no queixo e por fim, devagar, aproximava os lábios da boca sequiosa do rapaz.

Ele dissera que Fauve possuía os lábios mais macios do mundo, mas ela replicava que não podia fazer comparações semelhantes, porque nenhum dos outros garotos que beijara na vida tinham dado beijos memoráveis. Ela sorriu, lembrando-se do recuo dele ao ouvir aquilo, perguntando quantos garotos ela já tinha beijado. Alguns, respondera ela, só alguns, uns poucos, pateticamente poucos, sabendo que nada o enfureceria mais. Ela não conseguia evitar de enciumá-lo, porque ele era quatro anos mais velho e, naturalmente, com muito mais experiência que ela, embora ele nunca se referisse a isso.

Ele era tão infernalmente protetor diante dos 16 anos dela, pensou Fauve, franzindo a testa, sem saber que Mistral estava notando todas as mudanças de expressão de seu rosto. Ela agora desejava violentamente ter mentido a Eric, quando ele lhe perguntara a idade. Se ela ao menos tivesse dito que tinha 18 anos! Com sua altura, ela bem poderia tê-lo feito acreditar, especialmente porque ele não tinha meios de compará-la com uma americana de 18 anos e adivinhar a verdade. Mas ele sabia que ela mal saíra de seus 15 anos e ele tinha uma determinação galante, idealista, de não se aproveitar dela.

Na véspera, eles tinham jantado cedo num pequeno restaurante italiano, bom e barato, chamado La Mamma, em Villeneuve-les-Avignon, e depois foram explorar o jardim do Le Prieuré, não o roseiral formal, cercado de santolina e umas antigas com gerânios pendurados, onde cresciam as flores frescas que eram colocadas todo dia nos quartos dos hóspedes.

Como todo o pessoal do hotel estava concentrado na chegada dos fregueses que iam jantar no restaurante, eles haviam escapulido, sem serem vistos, pela garagem e depois pela sala da caldeira do hotel, indo sair no jardim murado das flores de corte, um paraíso de flores, cercado por essas coisinhas ocas e vermelhas chamadas lanternas chinesas.

Eles perambularam por lá, os braços passados apertados pelas cinturas, e depois foram descansar encostados a uma pereira velha, crescida demais, sem poda, que ficava nos confins do jardim.

Estavam inteiramente sós e protegidos de vista pelos galhos da árvore e Fauve se atirara sobre Eric, empurrando-se contra ele e esfregando-se para cima e para baixo. Não se importava de parecer desajeitada ou agressiva; o que ela não soubesse sobre o ato de fazer amor ela aprenderia, havia de aprender. Mas ele a afastou, a princípio delicadamente e depois com resolução, segurando-a a distância.

Não, dissera ele, era evidentemente impossível e ela mesma devia ver isso. Se ele a deixasse continuar assim, aquilo ia levar adiante e depois ainda mais adiante e eles não conseguiriam parar, não iam querer parar, ela não entendia? Ela era muito jovem, não seria direito, não seria justo... Fauve suspirou profundamente, pensando se ele teria razão, desconfiando que talvez tivesse, mas, ah, como ela o desejava.

- Fauve! Não posso trabalhar se você ficar aí fazendo caretas e mais caretas! Quer tentar ficar com o rosto fixo um minuto, ou vamos parar?

Fauve soprou o cabelo da testa, fazendo um exagerado beicinho.

- Não estou fazendo caretas, estou pensando. Quer fazer uni retrato de uma boneca sem cérebro ou de uma mulher que pensa?

- Ah! Tem certa razão, embora seja um pouco prematuro. Está bem, vamos descansar um pouco.

Fauve saiu de sua pose e desenroscou o corpo como um pedaço de corda comprida, esticando todas as juntas. Depois, foi para a poltrona comprida no canto do estúdio e sentou-se, pegando o livro velho que Eric lhe dera. Dentro de alguns segundos, estava absorta.

Mistral já sabia demais sobre aquele livro. Quando tinham começado o retrato ela o levara e, em todos os intervalos, voltava a ele, muitas vezes parando para ler trechos em voz alta. Por fim, irritado, Mistral disse que aquilo perturbava sua concentração e que já era bem ruim um pintor precisar dar descanso ao modelo a toda hora, sem, ainda por cima, ser obrigado a absorver uma lição de história.

- Bom - disse ela, com calma - tudo bem, mas isso aqui é um negócio incrível. Mais tarde eu lhe conto - e voltou à sua leitura.

No ano anterior, sempre que estava na hora de um descanso, eles conversavam sobre a sua pintura, ou então ela o divertia contando casos de suas duas amigas, Pomme e Épinette, que, por estranho que parecesse, eram netas de dois dos membros de sua equipe original de boules no café da aldela.

As vezes, ele se lembrava, amargamente, eles iam-se sentar ao sol do lado de fora do estúdio, para conversar sobre o status do Union, Sportif de Félice, a valente equipe de futebol que vivia empenhada numa luta perpétua e prolongada com os outros times de futebol das aldeias vizinhas. Muitas vezes, nesses minutos preciosos, ele lhe explicara por que a arte era a única coisa que valia a pena fazer num mundo caótico, a única coisa que tinha alguma possibilidade de perdurar. A história, disse ele, era apenas história daquilo que as pessoas achavam que tinha acontecido, ou queriam que você acreditasse ter acontecido. Não se pode confiar na história.

E agora lá estava ela, obviamente mergulhada na história como se fosse a revelação de uma verdade imutável. O que ele não dana para ter a filha de volta, para ter a Fauve do ano anterior, em vez dessa "mulher que pensa", como ela se descrevera? Quase qualquer coisa, pensou Mistral, quase tudo, mas o que ele tinha para dar, que uma garota de 16 anos poderia querer?

- Pronta para continuar? - perguntou ele.

- Ah... claro. Mas papai, você se importava muito se nós hoje parássemos mela hora mais cedo? Os pais de Eric estão passando uns dias em Aix, para o festival de música, e nos convidaram para almoçar no Vendo-me... a viagem leva uma hora e mela e não quero me atrasar. Está bem, só por hoje? É só meia hora.

O que ele podia dizer? Insistir para ela ficar? Que ela compensasse no dia seguinte? Não era a primeira vez que a pose era abreviada, por um motivo ou por outro. Para dizer a verdade, disse para si mesmo, a cara fechada, não era a primeira vez que ele se dava conta de que, para posar para ele, ela estava desistindo de alguma excursão que exigia uma partida cedo e uma volta tardia. Quando ele a pintou, em todos aqueles outros verses, o tempo que passavam juntos era cheio de uma comunhão profunda, cuja melodia ele só apreciava plenamente agora que ela desaparecera, sendo substituída pelo senão do dever e uma afeição distraída.

- Claro, Fauve, pode ir. Podemos parar agora, se quiser. - Ah, papai! Você é um amor! Obrigada!

Liberada, ela o abraçou depressa e saiu correndo do estúdio, sem nem pensar em esconder o seu sentimento de alívio.

Sim, notou ele, o queixo duro com uma raiva surda, uma linha de dor, de orgulho ferido, ela não se esquecera de levar consigo aquele livro desgraçado.

Se a classe é conseguida quando a sua superfície exterior corresponde perfeitamente à sua verdadeira personalidade, quando você aparenta ser o que é, então Nadine tinha uma classe extrema, pensou Fauve, ao se reunir ao pai, à madrasta e à meia irmã para um raro jantar em família. Nadine acabara de chegar de Paris para passar alguns dias em La Tourrello, deixando o marido ocupado com os detalhes de um negócio. Mistral detestava o homem com quem ela se casara e existia um acordo tácito entre Nadine e Kate para não lembrar a Mistral a existência de Phillipe Damas mais do que o necessário.

Quando Fauve foi passar o primeiro verão na Provença, Nadine tinha 15 anos e meio, um ano e meio mais moça do que Fauve era agora. E no entanto, mesmo então, ela parecia mais sofisticada do que qualquer pessoa que Fauve já tivesse conhecido.

Essa primeira impressão só fora confirmada com a passagem do tempo.

Agora, aos 23 anos, Nadine era toda feita de arestas ásperas e brilhantes. Os cabelos louros formavam dois arcos brilhantes e reluzentes debaixo do queixo, como se fossem um véu de freira truncado, a franja lisa e comprida pare cia poder cortar sua testa, os olhos delineados em linhas definidas em verde escuro, com uma precisão egípcia.

Os planos de seu nariz eram apurados a um ponto que apenas escapava de torná-lo pontudo, os dentes tão brancos e regulares que lembravam a Fauve que o seu propósito primordial era o de morder. O queixo tinha uma linha de faca, mas o lábio superior ainda se curvava em seu eterno sorriso. Ela era interessante, reconheceu Fauve. Era quase impossível deixar de ficar olhando para Nadine. Onde quer que ela estivesse, de pé ou sentada, esse lugar era sempre o centro do palco.

Nadine Mistral se apresentava como era, sem qualquer esforço para disfarçar a alta conta em que se tinha. A superioridade era manifesta na perfeição absoluta de suas calças de linho branco, de corte impecável, nas linhas simples e elegantes de sua blusa de seda preta, enrolada e amarrada em sua cintura fina, no magnífico par de brincos de ônix rodeado de brilhantes pendentes dos lobos das orelhas.

Ela não se permitia nenhum defeito, nem mesmo uma unha mais curta do que as outras. Ninguém sabia quantas horas por dia eram necessárias para alcançar aquela aparência implacavelmente reluzente, mas Fauve tinha certeza de que havia mulheres que podiam passar a vida tentando imitar a elegância glacial e insolente sem jamais o conseguir, pois, à última hora, ficariam tentadas a por mais um colar de pérolas ou afofar um pouco os cabelos ou enfiar uma flor numa faixa. Nadine era, a seu modo, uma minimalista, que fazia suas declarações com o mínimo possível de elementos.

A determinação de Kate Browning, de se dedicar a Julien Mistral desde o primeiro dia em que viu o homem e sua obra, fora em grande parte transferida para a filha Nadine. Os quatro anos em que Mistral a largou por Teddy Lunel e, depois da morte dela, para vagar pelo mundo, tinham trancado Kate na mais apaixonada das ligações maternais. Por mais importante que fosse, e sempre seria, para ela, ser Madame Julien Mistral, sua segunda preocupação agora era a felicidade da filha e sua situação na vida.

Desde o casamento de Nadine, Kate vivia num estado de fúria impotente contra Mistral, que se interpunha entre Nadine e o seu status de direito, como uma das maiores herdeiras da França. Com o tempo, Nadine havia de herdar tudo o que Julien possuía, o tesouro de quadros no depósito, a propriedade rica e rendosa de La Tourrello, as contas em bancos, seus investimentos; toda essa vasta fortuna seria dela, pela lei francesa. Mas, enquanto isso, Nadine tinha sido obrigada a aceitar um emprego para manter o seu tipo de vida.

Dois anos antes ela se casara com Phillipe Dalmas, homem que, na falta de uma descrição mais específica, era sempre citado na imprensa carro ` um investidor". Ele fora famoso nas páginas das colunas sociais dos meios de comunicação muitos anos atrás, antes de conhecer Nadine, devido aos casos que tivera com uma porção das mulheres mais disputadas da época. Phillipe muitas vezes era chamado de "o homem mais arredio de Paris" porque, aos 39 anos, nunca se casara.

Por profissão, era um intermediário, juntando pessoas que precisavam de dinheiro e as que o possuíam para investir. Por algum motivo, só alguns de seus negócios se concretizavam e suas comissões sobre estes davam justo o suficiente para ele se sustentar com grande classe, como solteiro.

Phillipe podia se dar ao luxo de ter um caseiro camareiro, tinha dinheiro suficiente para mandar fazer seus ternos sob medida em Larsen, onde podia escolher entre as 700 peças de casimira que enchiam as prateleiras como livros raros, e sua coleção de lenços de pescoço - pois nunca usava" sobretudo - era da grande casa de Hilditch e Key. Seu pequeno apartamento ficava num prédio irrepreensível, perto do Arco do Triunfo, e era bem mobiliado com algumas boas peças estilo Império, mas o seu único capital de verdade era o seu encanto.

Phillipe Dahmas era o Melhor Convidado do Mundo. Divertido, bonito e magnificamente heterossexual, era assunto de devaneio de todas as donas de casa.

Quando Nadine conheceu aquele homem sensual, dedicado ao prazer, dado e recebido, um homem envolto numa imensa aura de impossibilidade, ela logo resolveu conquistá-lo. Quanto a ele, vendo aproximar-se o seu 40° aniversário, achou que era um momento sensato de terminar a sua triunfal vida de solteiro. Ele não tinha qualquer intenção de passar sua meia idade visitando a casa dos outros, por mais agradáveis que fossem.

Nadine conseguiu casar com ele, quando tantas outras falharam, graças ao meio simples e banal de aparecer na vida dele no momento certo. Seus 21 anos radiosos, sua perfeição deslumbrante e, naturalmente, suas perspectivas incontestáveis como filha de Julien Mistral, a tornavam uma escolha quase inevitável, pois embora Phillipe Dalma nunca se casasse se por dinheiro, ele certamente não poderia se dar ao luxo de' se casar com alguém que não tivesse dinheiro.

Nadine Mistral e Phillipe Dalias tinham em comum o tipo de superficialidade profundo, nato, que se pode tornar, quando bem montado, urra certo tipo de objetividade. A profunda atenção que dispensavam às aparências dava um falso brilho a cada um e, juntos, eles constituíam um casal inesquecivelmente decorativo, como um par de objetos raros, polidos a um grau invejando todas as anfitriões de Paris se conformaram com a perda de Phillipe como homem solteiro, começaram a concorrer umas com as outras pela presença dos Dalmas, que tinham um desses casamentos em que tanto marido e mulher, juntos, se tornam a estrela única de uma noite.

Kate teria desprezado certas ambições mais elevadas que há muito nutria para a filha, pois não podar negar que Nadine adorava o marido, se não fosse Julien Mistral, que depois de passar meia hora com Phillipe Dalmas, chegou à conclusão de que o presente de casamento que ele é deu ao casal foi apenas um apartamento de tamanho médio na Avenue Montaigne, o mínimo, conforme Kate conseguiu convencê-lo, que eles poderiam decentemente oferecer.

Desde então, a mesada que ele lhes poderia ter dado, tão facilmente, nunca fora paga - e nem seria, ele garantiu a Kate, enquanto ele vivesse. Tampouco lhe era possível agora dar presentes caros ao casal. Mistral, que permitira que a mulher tomasse todas as decisões financeiras por ele, durante o seu longo casamento, de repente insistiu em tomar a si toda a corres procedência com seus Marchands e banqueiros.

Kate ficou impedida de manusear em segredo qualquer de vulto e o único dinheiro que ela ainda podia gastar livremente era o necessário para a manutenção de La Tourrello. Ela estava reduzida a pouco mais que uma caseira e administradora de propriedade, pensou ela com ódio.

Nadine, porém, aceitou essa decepção com a filosofia de quem tem um pai com quase 70 anos. Isso era provisório, afinal, e entrementes era chique e divertido ela ter de trabalhar para ganhar a vida, mais interessante do que se fosse apenas mais uma moça rica, especialmente já que não podia haver dúvidas quanto à riqueza imensa que um dia teria.

Nadine arranjara para si um emprego que a exibia com perfeição. Trabalhava com Jean François Albin, o único outro costureiro francês que gozava do nível de importância internacional de Yves Saint Laurent.

O trabalho dela não tinha um título específico e seus limites eram difíceis de definir. Não era chefe de relações públicas, pois esse cargo, com seus detalhes técnicos de lidar com a imprensa mundial, era preenchido por Lily de Mars, que fora treinada com Dior; tampouco ela estava envolvida no desenho das roupas, ou em sua venda, ou qualquer dos negócios da casa de Albin. No entanto, de um modo que era tão claro como se fosse oficial, Nadine estava empregada para ser a melhor amiga de Jean François Albin.

Ela era o único ser humano no mundo sem o qual ele simplesmente não podia funcionar. Ela agia como um escudo entre ele e o mundo inteiro, que ele via como cheio de brutos, ou, no máximo, inimigos, gente sem sensibilidade. Ele acreditava que só Nadine nunca lhe mentiria. Estava convencido de que ela era a única pessoa que não procurava alguma espécie de melhoria por sua ligação com ele, pois o que é que a filha de Julien Mistral poderia lucrar com a intimidade de um costureiro, por mais famoso que fosse?

Para Albin, Nadine Dalmas era a encarnação idealizada da mulher para quem ele fazia seus figurinos. Ele atribuía a ela poderes quase místicos, para consolá-lo, inspirá-lo e repousá-lo. Ele agora precisava dela ao seu lado em todos os momentos de crise. Henri Gros, o sólido homem de negócios que era sócio de Albin numa casa de couture, próspera com os lucros de três perfumes e uma porção de contratos de licenças de âmbito mundial, ficou encantado em pagar a Nadine um bom ordenado por sua dedicação, por mais vago que parecesse ser o seu papel. A máquina criadora frágil que era Jean François Albin tinha de ser alimentada, consolada e compreendida, a todo custo, para poder continuar a produzir duas coleções por ano.

Enquanto Nadine conversava sobre seu trabalho, ao jantar, com os pais e Fauve, sua maneira altiva, fria e airosa, que não era afetada e sim sua forma de expressão natural, não mudara em nada. No entanto, era evidente que ela estava absorta em sua vida. Ela falava, como sempre, num tom igual e confiante, um pouco mais forte do que o das outras pessoas, de modo que estas às vezes paravam suas conversas para ouvi-la.

- Sabe, papai, Jean François estava quase em colapso. A nova coleção está toda pronta, até ao último detalhe e botão, mas na quarta-feira passada ele me telefonou, desesperado, no meio da noite, e corri para o ateliê para encontrá-lo a ponto de meter a tesoura em todas as peças de roupa. Eu o levei dali com tanto cuidado como se ele fosse sonâmbulo e disse que íamos à melhor clínica de St. Cloud, onde ele faria uma sonoterapia até à segunda-feira, e fiquei segurando a mão dele até ele estar dormindo em paz. Na segunda feira, quando eu voltar, ele estará novo.

- Isso costuma acontecer com freqüência? - perguntou Kate.

- Ele só teve problemas, nesses últimos meses - explicou Nadine - nossas cinco manequins negras nos abandonaram para ir trabalhar para Givenchy e aquela casa de veraneio de que lhe falei na Sardenha o está deixando alucinado de preocupação. Naturalmente, Jean François insiste com o decorador para que pegue os brocados antigos mais preciosos e os drapeje como cassa e use madeiras marchetadas com a mesma facilidade como se fosse madeira bruta, mas o sujeito parece que não consegue cumprir as ordens.

- Puxa vida! - murmurou Fauve para si mesma.

- Felizmente - continuou Nadine - pude tirar muitas dessas responsabilidades de cima do François e deixá-lo livre para se concentrar na sua arte,

mas, por mais que eu faça, no final é a decisão dele que prevalece e este ano e o pior de todos. Afinal, ele não pode ignorar que se tornou um objeto de culto... não há nada que torne a pessoa mais vulnerável do que ser elevada a esse tipo de adoração... e no entanto, o que ele pode fazer? Tem de se expor, vezes e mais vezes... tem de se arriscar, tem de mudar.

- Mudar o quê? - perguntou Mistral, empurrando o prato.

- O comprimento, papai, Jean François acha que chegou o momento de impor o comprimento máximo... a mini morreu... mas como é que essas vacas do público podem ser suficientemente sutis e ousadas para acompanhá-lo? Podem subir ao plano dele? Ele estava com tanto horror dos compradores e da imprensa... não sei se conseguirá enfrentá-los, quando terminar a coleção.. .

- Então, para que faze-lo? - resmungou Mistral.

- Se ele não aparecer para agradecer, papai, os boatos vão recomeçar. Vão dizer que ele morreu ou está drogado ou trancado num hospício... nem posso imaginar como ele suporta isso. A tentação, claro, é fazer um conchavo, criar um comprimento que não seja revolucionário, mas apenas evolutivo. Mas Jean François é um artista grande demais para não ser fiel a si mesmo.

- Diga-me - falou Mistral - que idade exatamente tem Jean François?

- Ninguém sabe ao certo, nem mesmo eu, mas acho que deve estar com quase 40 anos.

- Ele parece uma criança. E se você viver num mundo de criança, vai baixar ao nível dele - disse Mistral, com desdém.

- Basta de Jean François - disse Kate, com rispidez, correndo para salvar a conversa. Ela conhecia bem a opinião de Mistral quanto ao valor da haute couture e sabia como Nadine se tomaria glacial, se Jean François fosse criticado. - Nadine, você precisa pedir a Fauve que lhe conte sobre o verão dela... tem sido uma revelação, positivamente.

Nadine olhou para a mãe e percebeu um brilho nos olhos dela. Elas nunca tinham precisado de palavras para se comunicarem. Ela deu de ombros e virou-se para Fauve.

- Pensando bem, você hoje está muito calada, o que não é normal. No entanto, parece que ouvi falar alguma coisa de você e um jovem arquiteto simpático. Então, Fauvezinha, afinal dignou-se a reconhecer o sexo masculino? E o que acha do primeiro amor, hem?

Nadine falou com uma curiosidade fria, tão penetrante que Fauve quase recuou. Instintivamente, procurou um meio de desviar essa curiosidade, pois Nadine, como um gato com um bichinho na boca, não largaria o objeto de sua atenção até ficar satisfeita.

- Acho o sexo masculino maravilhosamente útil, obrigada. Como é que passei todos os verões aqui sem outro transporte a não ser a minha bicicleta?

Esse rapaz tem carro, de modo que pude convence-lo a me levar para passear por aí... vi mais dessa região em seis semanas do que nos últimos oito anos.

- Então o seu interesse é meramente turístico? Fauve, espera que eu acredite nisso?

- Pode acreditar no que quiser..., estou investigando a história dos judeus na Provença.

- Meu Deus, mas que coisa tão bizarra... pensei que estivessem todos em Paris!

- L o que muita gente acha - disse Fauve, quase rindo diante do sucesso de seu expediente. Nadine nem perguntara o nome de Eric. - Os judeus têm vivido aqui há 2.000 anos.

- Há 2.000 anos.., tem certeza, Fauve? - disse Nadine, devagar. Seu olhar, do verde da malaquita, era positivamente duvidoso.

- Claro! E até o tempo das Cruzadas foram tratados mais ou menos como todo mundo. Até os vândalos, visigodos e outros bárbaros os deixaram em paz, quando invadiram a região. Foi só no século XII, quando os reis de França foram reconquistar a Terra Santa, que realmente começaram a perseguir os judeus.

Fauve teve de largar o garfo, entusiasmada com a oportunidade de falar sobre as revelações que ela encontrava todo dia no livro de ás quais tanto o pai como Kate pareciam tão indiferentes. Ela agarrou aquela oportunidade avidamente, embora soubesse perfeitamente que só parecera porque Kate queria evitar uma discussão.

Fauve estava positivamente acesa, com nomes, datas e estatísticas. Parecia que o Papa Alexandre VI e Júlio II, que tinham ambos empregado judeus como seus médicos, eram seus amigos pessoais. Com igual ardor ela odiava Júlio III, que ordenara a queima do Talmude.

Ela estava por demais empolgada em seu assunto para notar o desdém velado que passou de Nadine a Kate, enquanto ficava cada vez mais indignada falando sobre os mais de 500 anos, só terminando com a Revolução, durante os quais todos os judeus da Provença tiveram de se submeter, desde a

infância, a usarem uma aplicação amarela em mas roupas. Mistral ficou ouvindo, sem expressão, enquanto ela descrevia os horrores dos velhos guetos, trancados todas as noites, em que inúmeras gerações moravam em barracos apinhados e sem ar, enquanto todos os outros homens tinham a liberdade de viverem livres e a vontade no vasto e rico vale do Vaucluse. Os regulamentos, cruéis, restritivos e arbitrários, que as autoridades impunham a todos os aspectos da vida judaica, foram jorrando dela num monólogo comprido e ardoroso. Mistral parou de comer e seus sábios se apertaram, com raiva, mas Fauve não pareceu notar. Ela não tinha idéia de quanto tempo falou apaixonadamente até que Nadine acabou de comer seu queijo e disse, displicente:

- Você não está sendo meio piegas, Fauve? Toda essa gente já morreu há muito tempo... é tão mórbido falar como se isso ainda importasse, hoje... acho isso muito esquisito de sua parte.

- Não tão esquisito assim, Nadine. Por toda parte no livro de Mossé encontro os nomes de Lunel e Astruc... nomes da minha fama, meu nome, aliás.

- Isso não é forçar o que é provavelmente um parentesco muito distante?

- Distante? Não, que diabos, não acho que haja nada de distante nisso... - respondeu Fauve, furiosa, quando Mistral afinal rompeu o seu silêncio meditativo.

- Basta! Quando você voltou daquele lugar em Cavaillon, o descreveu de um modo que me convenceu de que os judeus locais deviam estar bem de vida e eram bem tratados; agora você nos submete a esse catálogo infindável de desgraças. Isso já está se tomando uma mania!

- Eu estava sendo uma romântica mal informada, papai, vivendo uma ilusão - declarou Fauve, com coragem, sem se intimidar com a reprovação dele. - Aquele prédio não tem nem 200 anos e fui bastante tola para pensar que indicava um passado idílico. Agora sei que é um remanescente ilusório de um dos breves períodos em que os judeus puderam viver em relativa tranqüilidade... e mesmo assim, era rodeado por um terrível gueto, que foi demolido. Ainda há gente, gente bem-intencionada, que se gaba de que a Provença foi "O Paraíso dos Judeus". Bem... e foi, se a compararmos as dezenas de outros lugares da França em que os judeus foram todos queimados vivos! A Provença é um paraíso no sentido mais restrito e irônico da palavra, tal como dizer que foi a melhor das prisões para gente que não tinha cometido crime algum.

- Prisão? - disse Kate, olhando com cuidado para a expressão de Mistral, enquanto Fauve o desafiava. Ela era a única pessoa à mesa que sabia como ele achava detestável o interesse de Fauve por tudo o que era judeu, a única pessoa que tinha gozado bem todas as palavras pronunciadas por Fauve. - Por que "prisão", Fauve? Não somos nós os responsáveis pelo que aconteceu com essa gente, nós nunca fomos cruéis para com os judeus, nós nunca tratamos os judeus como-se tivessem cometido um crime. Realmente,

Fauve, estou surpreendida que você não nos tenha acusado a todos de tê-los mandado para os campos de concentração.

 

 

                                              Capitulo 26

 

Mistral desde o momento em que Mistral representara um papel com Julien Mistral desde o momento que o conhecera. O mais perto que ele chegara de conhecê-la intimamente fora o momento em que ela o pedira em casamento. Agora, depois de 42 anos de casados, ela estava presa dentro de um papel que evoluíra com os anos, um papel em que ela nunca revelara todas as suas emoções a esse mais necessário dos adversários. Quando ela admirava uma atriz no palco ou num filme, nunca lhe ocorria que, em sua própria vida domestica, há longo tempo, ela era uma atriz habitual e consumada. Todos os seus relacionamentos humanos se davam num teatro íntimo em que ela supunha que todos estivessem representando, grande parte do tempo. Eram raros os momentos em que ela podia largar parcialmente a sua máscara dramática. Por vezes ela se aproximava da verdade - e um verdadeiro momento de contato íntimo - com Nadine. Nunca com o marido.

Kate estava sentada placidamente, diante da penteadeira, tirando o colar de pérolas, enquanto Mistral estava de pé, zangado, aporta do quarto, sem querer entrar e sentar-se, porém incapaz de ir para o quarto dele, tentar dormir.

- Por que é que você está tão perturbado, Julien? - indagou ela, com brandura. - Concordo que é irritante Fauve insistir em nos aborrecer à mesa do jantar, mas por que tratar isso como se fosse um problema grave? Todas as moças passam por fases difíceis, na adolescência.

- Você a encorajou, propositadamente.

- Tolice. Você hoje não pode dizer uma palavra cortês a Fauve, sem desencadear a obsessão dela. Você mesmo sabe que basta dizer bom dia para se

arriscar a uma Preleção sobre mil anos no Muro das Lamentações. Não há como fazê-la, sempre que ela come conosco, tenho medo de cairmos numa dessas, a não ser que você queira proibi-la inteiramente.

- Não se pode proibir Fauve de falar sobre os assuntos que interessam a ela, ela não e esse tipo de moça - disse ele, sério. - Maldito seja esse garoto Avigdor! É ele o culpado de tudo isso.

- Você está sendo muito injusto. Claro que o rapaz põe lenha na fogueira, mas, em minha opinião, isso está acima dele. Se quiser culpar alguém, a culpada é Maggy Lunel.

- Que diabo quer dizer com isso?

- Dizem os jesuítas que, se você lhes der uma criança pelos sete primeiros anos de vida, eles podem moldá-la pelo resto da vida. Você entregou Fauve à avó e ela não perdeu tempo em imprimir a própria identidade na neta. Afinal, Fauve tem esse traço judeu, por menos que você goste disso. Não subestime o poder disso, Julien. Toda criança precisa de um sentimento de identidade... ou é o que dizem.

- Ela é minha filha... ela é pintora. Isso não lhe basta como identidade, por Cristo? O que mais é que pode esperar uma garota de 16 anos, pelo amor de Deus! Mas não... em vez de aproveitar este verão, está perdendo tempo, correndo por aí, imaginando que encontrou uma tal de tradição que não tem nada a ver com ela. Está maluca se imagina que os Lunels e Astrucs daquele livro maldito são da família dela. Não pode encontrar coisa alguma

e mesmo que houvesse um vago parentesco, é tão sem importância que não significa nada!

- Talvez não baste a ela saber que é sua filha natural. - Kate guardou as pulseiras, fechou a caixa de jóias e começou a escovar os cabelos bonitos, que caíam tão bem em volta de seu rosto. - Vá dormir, Julien. Você está-me pondo nervosa, aí de pé.

Um minuto depois, Mistral estava a caminho de seu estúdio, num escuro iluminado por aquele céu claro da noite da Provença em que as estrelas entravam do espaço, até parecer que deviam cantar para o homem como fazem nas outras grandes extensões da terra, no deserto ou nas vastidões polares. Ele não acendeu as luzes de trabalho, mas foi diretamente para o cavalete em que estava o retrato de Fauve, meio acabado. Ficou olhando para o retângulo da tela, de um cinza quase sólido sob a clarabóia, perdido em seus pensamentos. As palavras de Kate se repetiam em sua cabeça. "Toda criança precisa de um sentimento de identidade." Como ele podia negar que ela tivesse razão? Desde o dia em que Fauve nasceu, ele não pudera lhe dar o próprio nome. Sob a lei francesa, ele não podia reconhece-la como filha, ela não se podia chamar Fauve Mistral, de modo que ela naturalmente se considerava uma Lunel - membro dessa família. Durante todo o verão ela estivera se afastando dele, esquivando-se dele cada dia mais e, embora ele tivesse capturado a imagem dela na tela, sabia que, ao contrário dos outros anos, não tinha conseguido capturar o espírito, pois mesmo enquanto ele a pintava, ela estava em outro lugar.

Com desdém, Mistral deu as costas à pintura - para que se dar ao trabalho de acabar esse borrão? - e começou a rondar pelo estúdio em sombras.

Como é que se agarra uma moça de 16 anos, prendendo-a e fazendo-a ver a razão? Seria mais fácil conversar com um beija-flor. Se ao menos ela fosse francesa, criada bem ali em Félice, sob as vistas dele. Se ao menos ela não fugisse dele todos os anos, se ao menos pudesse ser congelada no tempo!

Inquieto, ele procurou o único consolo que sempre achara eficaz - a presença do seu próprio trabalho. Destrancou a porta do depósito, acendeu as luzes de cima e andou pelos corredores bem iluminados, puxando um suporte aqui, outro ali e contemplando a pintura nele como se fosse um objeto estranho, como se não tivesse passado muitas semanas, às vezes muitos meses, no esforço mais intenso de que era capaz em cada uma delas. Depois de muito tempo, começou a estender a mão e passá-la sobre uma superfície pintada, sentindo a trama áspera da tela como se fosse um ser que sentisse. Pouco a pouco, ele se permitiu um alívio, lentamente aceitou o consolo. Estas viviam. Ele tinha tanta certeza disso como do fato de ser ele Julien Mistral. Viviam agora e viveriam enquanto existissem. Esse aposento não estava cheio de pinturas acabadas, e sim de criaturas que falavam e respiravam. Ali estava a identidade dele, lá naquele quarto sem janelas, estava tudo que jamais seria necessário dizer sobre Julien Mistral.

Havia uma parte do quarto que ele nunca visitava. As pinturas que fizera de Teddy quando ela estava grávida e de Teddy e Fauve durante os dois primeiros anos da vida de Fauve, durante os quais ele trabalhara mais depressa do que jamais trabalhara, antes ou depois, estavam todas guardadas nos fundos do quarto grande. Ele as abandonara em seu apartamento de Avignon, depois da morte de. Teddy, onde tinham sido. guardadas com cuidado pelo casal que trabalhara para eles. Depois de voltar a La Tourrello, Mistral providenciara para que as pinturas fossem apanhadas e levadas para o seu depósito, mas nunca mais olhara para elas.

Ele então foi devagar para um dos suportes e o puxou para o corredor largo. O suporte só continha uma tela grande e inacabada, o último retrato que ele pintara de Teddy, em St. Tropez. Ela estava sentada num jardim, num balanço listrado de azul e branco, com Fauve no colo, a cabeça 'inclinada, olhando para o bebê.

Nem mesmo em seus sonhos atormentados pelo desejo, ela nunca parecera tão bonita. Ele tinha pintado o seu amor tão claramente que a tela parecia gritar numa nota aguda de alegria, clara e sem palavras. Ele empurrou depressa o suporte para longe, fora de suas vistas, e saiu correndo do depósito, trancando-o ao sair. Saiu pela porta dos fundos do estúdio e foi depressa pelo caminho que rodeava os muros de La Tourrello, só parando quando se encontrou bem dentro da floresta de carvalhos. Sentou-se no chão, encostado a uma árvore, respirando fundo, como se tivesse corrido para salvar a vida. Por que fizera isso? Por que se arriscara a uma dor tão certa?

Tão instintivamente como se estivesse fugindo de um rio de água fervendo, ele se preservou de sentir o ferimento apagando a imagem de Teddy e pondo em foco em sua mente o ponto da tela em que ele pintara aquele pingo de gente, o bebê Fauve. Mesmo então ela já possuía uma vitalidade ardente. Ele se lembrou dela no momento do nascimento, embrulhada numa manta rosa, apenas saída do ventre, mas já tão destacada que ele logo concebera o nome certo para ela. A raiva contra ela, que se acumulara o verão todo, enquanto ela escapava das suas mãos, se evaporou quando ele pensou nela como estava ao jantar naquela noite. A fisionomia de Fauve refletia todas as emoções que ela sentia, ela não conseguia restringir sua natureza idealista, volátil, assim como não poderia ser hipócrita ou diplomática.

Julien Mistral não era um homem capaz de uma compaixão abstrata. Não só não tinha empalia com as pessoas, sozinhas ou em grupos, como não tinha o menor desejo de ter. Sua arte era inteiramente pessoal; só abraçava as coisas que entravam no domínio que ele exigia para si; certos aspectos da natureza, certos elementos da vida humana da Provença, e as poucas - muito poucas - pessoas que ele amava. Sem a motivação do amor, ele era uma pedra - uma pedra que pintava.

Sentado encostado à árvore, seu amor por Fauve lhe permitiu penetrar na mente dela, permitiu-lhe acesso ao seu espírito e, aos poucos, foi tomando conhecimento das perguntas que ela devia estar-se fazendo. Quem sou eu? De que trata a vida? Para onde vou? Quem foi antes de mim? Há alguma ligação?

Claro que ela estava procurando alguma coisa que respondesse a essas perguntas, pois não era uma romântica, tão romântica quanto fora Teddy? Não admira que Fauve estivesse confusa, não admira que se estivesse debatendo com preocupações tolas. Durante alguns segundos, Julien Mistral se permitiu contemplar a glória de uma vida em que Fauve poderia ter-se criado, vigiada e cuidada por Teddy, uma criança que tivesse mãe e pai, segura, amada. Ele gemeu sob o golpe de um desespero inútil e afastou a imagem, mas, pela primeira vez na vida, percebeu plenamente que não era a única pessoa no mundo que fora amargamente privado do amor de Teddy Lunel. E ele nem sequer jamais mostrara aquela pintura de Fauve e Teddy a alguém. Nem mesmo a Fauve.

Ele ficou ali inteiramente parado, tão aturdido com a idéia que então lhe ocorreu, que ficou repassando aquilo na cabeça, procurando falhas, sem poder acreditar que isso nunca lhe ocorrera. O rosto sério de chefe de tribo se expandiu numa careta irresistível de uma alegria feroz, antes de se endurecer numa expressão de resolução tão intensa que ele parecia estar suportando, abraçando até, algum sofrimento profundo. Ele sabia como dar a Fauve o sentimento de identidade que a prenderia a ele para sempre, que o imprimiria na vida dela de um modo que tornaria impossível a ela algum dia procurar uma herança que não tivesse nada a ver com ele. Ela estava tão desesperada que fora levada a procurar um pouco de sentimento de identidade na carcaça de uma sinagoga do tempo de Luís XV. No entanto, só ele, na face de toda a Terra imensa, tinha o poder de lhe dar uma identidade, uma herança, um sentimento de pertencer que a levaria a compreender que o seu laço mais básico, mais importante no mundo era e sempre seria com ele.

Julien Mistral nunca havia feito um testamento, mas, quando os pais dele morreram, ele se vira envolvido com os detalhes da herança. A mãe dele o espantara e desagradara, deixando uma terça parte de seus poucos bens a uma amiga com quem ela muitas vezes fazia seus trabalhos de agulha, uma mulher com quem ela não tinha parentesco algum. Quando Mistral perguntara ao advogado sobre a legalidade daquilo, o homem lhe dissera que qualquer pessoa tem o direito de deixar uma terça parte de seus bens para um estranho. Os outros dois terços devem ser distribuídos entre os descendentes legítimos, queira a pessoa ou não.

Fauve, legalmente, era uma estranha para ele. Nada no Direito francês lhes concedia algum parentesco oficial. Ela não tinha status legal. Como enfant adulterin, não podia herdar nada... mas como estranha, uma terça parte! Ah, como iam estudar todos os quadros do depósito intimamente, intensamente, quantas horas passariam no processo alegre, complicado e sério de separar a terça parte que seria propriedade de Fauve, separando-os daqueles que deveriam, forçosamente, pertencer a Nadine, e a Kate, claro, se ela sobrevivesse a ele.

Fauve estaria trancada em sua vida, para sempre. Que empoeirado livro de história poderia liga-la mais intimamente a ele do que a posse da melhor obra da vida dele? Que bagatela arquitetônica, que livro, que relação de nomes de pessoas mortas há tanto tempo poderiam faze-la sentir maior identidade do que saber que, ainda em vida, o pai lhe dera o mais que pudera do tesouro para o qual ele vivera? A obra que era ele.

Ele se levantou e espanou os detritos do solo da floresta grudados em suas calças. Voltando a La Tourrello, o vulto de Julien Mistral à luz das estrelas parecia tão animado e jovem como no dia em que ele pela primeira vez se aproximara dos portões da grande casa de fazenda que deveria determinar o rumo de seu futuro.

- Kate, por favor, providencie para prepararem dois dos quartos de hóspedes - disse Mistral à mulher, na manhã seguinte, Quando ela estava sentada junto da piscina, sozinha.

- Você tem convidados? - perguntou ela, espantada Ele deixava a vida social deles inteiramente nas mãos dela.

- Vem aí dois homens, que vão ter de comer conosco, já que por aqui não há onde possam comer. Provavelmente vão ficar uma semana ou dez dias. - Julien, de que é que vote está falando... isso é absurdo.

- Resolvi fazer um testamento. Os quadros tem de ser avaliados. Telefonei hoje de manhã para Étienne Delage, me aconselhando. Como negociante, ele sabe de tudo. Disse que eu não devia fazer um testamento até saber o valor de cada uma de minhas obras. Do contrário, o governo fará isso depois que eu morrer. E, naturalmente, hão de atribuir o maior valor possível, para o meu inventário ter de pagar o maior imposto possível. Mas se isso for feito enquanto eu estiver vivo, tenho o direito de escolher um dos avaliadores, enquanto o governo manda outro... são os dois cavalheiros que virão... e entre eles, chegam a um acordo razoável. Étienne me arranjou um homem que dará o menor valor realista aos quadros... é a especialidade dele.

- Muita consideração da parte de Étienne. Posso perguntar por que vote resolveu fazer testamento?

- Vou deixar uma terça parte de meus bens para Fauve, a parte que pode caber a um estranho. - Ele olhou para Kate, procurando sinais de contrariedade, mas os óculos escuros lhe tapavam os olhos e a expressão dela não mudou. - Ontem à noite eu me lembrei que isso era possível, fiquei ouvindo as suas palavras, "uma criança precisa de um sentimento de identidade", e vi o que tinha de fazer. Quero que vote e Nadine receberão os outros dois terços. Vou deixar a parte de Fauve inteiramente sob a forma de quadros, já que seria inútil deixar-lhe uma terça parte de uma fazenda, ou de investimentos num país em que ela não mora. Isso significa que tenho de estabelecer o valor total de La Tourrello e de nossas contas correntes e outros investimentos, bem como o dos quadros, para poder ter certeza de que ela receberá uma terça parte justa.

- Sei - disse Kate, sem expressão.

- Tudo isso vai levar tempo... provavelmente os detalhes não estarão todos acertados até bem depois de Fauve voltar para casa, mas Étienne diz que quadros... como móveis ou pratas ou jóias... podem ser deixados individualmente. Em outras palavras, um quadro que valha uma certa importância será deixado para Fauve, um do mesmo valor para Nadine, e um para vote, e assim por diante.

- Então vote vai deixá-los todos, por nome e descrição?

- Vou. Ah, não me esqueci de que vote possui toda a série La Rouquinne, não tenha receio. Foi um investimento inteligente que vote fez, Kate.

- Foi mesmo.

- Pretendo comprá-los de volta de vote.

- É?

- É... devem caber a Fauve... afinal de contas, são retratos de família, por assim dizer.

Ele deu uma risada como há tempos ela não via.

- Realmente... são mesmo. Você tem idéia de quanto valem?

- Seja o que for, eu pago.

- Bom.

- Bem. - Mistral levantou-se, aliviado. - Então, está resolvido. Você diz aos empregados o que é necessário? Os avaliadores chegam daqui a dois dias.

- Claro - disse Kate. - Você já informou a Fauve?

- Não, ainda não. Vou falar com ela hoje à noite, quando ela voltar para trocar de roupa. Vai a uma festa hoje.

Ele desapareceu no estúdio, pensando que Fauve podia bem correr por ali o dia todo, pois no dia seguinte não ia conseguir se livrar das descobertas do depósito..

Kate ficou sentada ali, inteiramente parada, pensando se ia conseguir suportar a raiva destruidora que lhe cortava a carne, como brocas de ferro movidas a motor furando um pedaço de madeira. Então, não bastava deixar Nadine na miséria, obrigando-a a trabalhar até ele morrer, é? Agora ele a estava despojando, roubando, reduzindo a própria filha ao mesmo plano que a bastarda.

Será que ele achava que ela era tão tola que acreditava na explicação que ele dera, da "justiça" do processo de escolher os quadros que deixaria para Fauve? Não entendia que ela sabia tão bem quanto ele que em dois quadros que são avaliados pela mesma quantia, há uma enorme diferença de importância, que só o pintor pode atribuir? Ele nem desconfiava que ela sabia perfeitamente bem que ele só daria a Fauve os quadros que tinha certeza de serem os seus maiores? As obras-primas de suas obras-primas? Se Fauve recebesse toda a sua terça parte em quadros, deixando de fora as terras, o dinheiro, os investimentos dele, seria bem possível que recebesse pelo menos a metade do conteúdo do depósito. A imagem daquele quarto a fez prender a respiração e se curvar, segurando o estômago com ambas as mãos.

"Como ele ousava fazer isso com ela?" Ela, Kate Browning, tinha pegado um pintor desconhecido e feito dele Julien Mistral e, maldito fosse para todo o sempre, ele pertencia a ela. Ele não tinha direitos sobre a face da Terra, a não ser que ela os concedesse. Como ele podia falar com um velho idiota de "partilhar" o trabalho dele, quando tudo, todo pedacinho de tela em que ele algum dia pusera tinta, por direito era dela?

"Ele era uma criatura dela." O que ele teria sido, se ela não se tivesse casado com ele? Nada! Ele não seria nada, um velho amargurado, morando em algum estúdio ordinário em Paris, perguntando-se por que o mundo não fora bater à sua porta. Ele teria perdido sua oportunidade e algum outro pintor teria tido a glória. E mesmo assim ele ousava, ele chegava a ousar falar em dar a sua obra a Fauve?

O que era o trabalho dele senão o que ela lhe possibilitara criar? Se ele desse a sua obra, estaria dando a única coisa no mundo - a única coisa mesmo que pertencia exclusivamente a ela. Isso ele não poderia fazer. Isso ele não deveria fazer. Paralisada por um acesso de fúria mais forte do que ela jamais tivera na vida, maior do que a emoção que sentira quando Mistral a deixara por Teddy Lunel, Kate ficou ali sentada ao sol, sem ver, enquanto suas entranhas se contorciam, arrebentando de violência, até que ela afinal teve de se arrancar de sua imobilidade e correr para o caramanchão da piscina, vomitando sua náusea na privada do banheiro.

Quando acabou, sentiu-se firme, calma e muito certa do que tinha de fazer.

- Quer vir aqui ao meu quarto e fechar a porta um instante, Fauve? - disse Kate, assim que ouviu a moça subir, naquela tarde.

- Claro... mas estou um caco e Eric vem me buscar às 18 horas. É coisa demorada?

- Não, não muito. Fauve, não sei se você compreende o quanto está perturbando seu pai com o tipo de discussão a que nos submeteu a todos, ontem à noite.

- Ah, eu sei que falei demais, Kate. Pensei a respeito hoje e vi que mais ou menos tomei conta da conversa. Não vai tornar a acontecer. Sinto muito mesmo.

- Não é questão de falar demais, Fauve, foi o tema... você não largou o assunto do sofrimento dos judeus.

- O que?

- Eu esperava nunca ter de lhe contar isso, mas estou vendo que você está muito envolvida com suas raízes maternas... é inteiramente compreensível e acho isso bem comovente e fascinante... mas, sabe, o seu pai... quando você fala em judeus assim, é como abrir velhas feridas.

- Imagino que você queira dizer que isso lembra a ele a minha avó? Sei a respeito disso, Kate, e não creio que o que eu possa dizer o leve necessariamente a pensar nela. Maggy não é a única judia no mundo.

- Não estou falando disso, de modo algum. Nem me ocorreu. Não, Fauve, é uma coisa muito mais difícil de explicar.

- O que é que está querendo dizer, Kate? - perguntou Fauve, intrigada com a expressão atenta e concentrada no rosto de Kate, normalmente tão controlado.

- Fauve, você só tem 16 anos. Sempre viveu num mundo seguro, porém, apenas dez anos antes de você nascer, houve a Segunda Guerra Mundial e catástrofes que você nem pode imaginar eram acontecimentos diários.

- Ah, meu Deus - disse Fauve, devagar. - Ontem à noite, quando você falou aquilo sobre os campos de concentração, estava pensando no que aconteceu com os judeus na guerra, não é? Estava procurando me avisar... ah, Deus, Kate, sinto muito! Não pensei que isso o aborreceria... nunca pensei...

- Fauve, eu não me expliquei bem. Estou falando da Ocupação da França e o que aconteceu aqui durante esse tempo. Quando voltei para Félice, depois da guerra, Marte Pollison, que passou o tempo todo aqui em La Tourrello, me contou coisas que eu nunca imaginei ter de contar a alguém.

Com avidez, Kate estudou a fisionomia perplexa de Fauve, que já tinha perdido a radiância despreocupada e entusiasmada com que entrara no quarto.

- Fauve, há semanas que você está fascinada com os judeus que viveram na Provença e eu a tenho desanimado sempre. Havia um motivo para isso... achei que você acabaria perdendo o interesse. Mas isso não aconteceu e agora, antes de lhe dizer por que você deve parar de falar nesse assunto, quero ter certeza de que você realmente compreende o seu pai. Ele só vive para pintar. Você compreende o que o trabalho dele significa para ele, não? Você sabe que a arte dele é tudo, a razão da vida dele?

- Ele também é uma pessoa, um homem - disse Fauve, devagar.

- Mas não como os outros. Nenhum gênio jamais é. Tive de aprender isso com os anos e certamente não e coisa que espere que você entenda plenamente, mas há uma certa dimensão que falta ao gênio, uma dimensão de humanidade comum, que é negada aos gênios precisamente porque são gênios.

- Parece que eu não entendo "plenamente", Kate.

- L, eu achava que não entenderia. Um exemplo lhe poderá mostrar melhor do que simples palavras o que quero dizer. Nos últimos anos da guerra havia alemães por toda parte, não havia lugar algum tão remoto que eles não soubessem do que se passava, nem mesmo aqui em Félice. Eles levaram embora quase todos os homens válidos, para trabalhos forçados na Alemanha.. .

- Kate parou e sacudiu a cabeça, com tristeza.

- E...?

- O seu pai também teria sido mandado embora, se não fosse a proteção de um oficiai alemão, de alta patente, de quem ele se tornou... muito amigo, muito íntimo.

- Não acredito.

- Não, Fauve, claro que não. É exatamente isso o que eu queria dizer sobre a dificuldade de fazer você entender, até mesmo uma coisinha como essa.

- Uma coisinha?

O rosto de Fauve estava branco, notou Kate, com grande satisfação. E o que é que ela lhe contara, por enquanto? Nada de importante, nada mesmo. Como ela fora sábia por ter-se mantido nas boas graças de Marte Pollison, durante todos esses anos. A mulher era uma tirana, mas não resistia aos mexericos.

- Esse oficial amava a pintura. Fornecia as preciosas tintas ao seu pai, de modo que ele pôde continuar a pintar, a despeito de todas as faltas de recursos, e o tirou da lista dos que deveriam ser mandados para as fábricas na Alemanha. Algumas das melhores obras dele foram feitas nesses anos. No entanto, se as pessoas soubessem disso, logo o chamariam de colaboracionista.

- Por que está me contando isso?

- Para fazer você compreender bem o que o gênio de seu pai exige dele.

Quando ele contou ao alemão sobre a turma de jovens vagabundos que lhe roubaram os preciosos lençóis... durante anos ele não tinha outra coisa para usar como telas. - como ele podia saber que eram membros dos maquis? Foi um mal entendido horrível e ele nunca se perdoou por isso... foram 20, todos apanhados e executados imediatamente. Ora, ele nunca nem teria sabido o que Lhes acontecera, se o alemão não tivesse devolvido os lençóis.

- Não acredito em nenhuma palavra do que você está dizendo – disse Fauve, furiosa. - É uma mentira desprezível. E que diabo tem isso a ver com ontem à noite? Eu estava falando dos judeus que viviam na Provença antes da Revolução e não sobre os alemães!

Kate suspirou e levou as mãos ao rosto por um momento. Agora, pensou ela, agora!

- Ah, Fauve - disse ela, cansada, a voz suave, suplicante, como que querendo forçar a moça a dar um salto de inteligência. - Foi só um exemplo do tipo de coisa, o tipo de coisa horrível e trágica que pode acontecer em tempo de guerra. Foi para lhe dar uma percepção da situação com aqueles judeus que o procuraram pedindo socorro, no tempo da Ocupação.

- Judeus... que judeus?

- Judeus de Paris, tentando sair da França Ocupada. Vieram e continuaram a vir... gente que se achava com direito, só pelo fato de serem velhos amigos dele, dos tempos em que ele morava em Paris, ou porque tinham sido convidados para vir aqui antes da guerra. Ora, às vezes eram só amigos de amigos. Marte me contou a respeito. Ah, Fauve... isso é muito difícil de explicar a alguém de sua geração... o que é que você sabe da guerra? - Kate se encolheu na poltrona, o rosto fechado.

- O que é muito difícil de explicar? - disse Fauve, em voz fraca, o coração batendo com tanta força que ela sentia que devia fugir, como se a casa estivesse pegando fogo e ela corresse perigo mortal. Kate respirou fundo, resolvendo-se, e falou com calma, olhando para o tapete:

- O seu pai mandou que Marte e Jean construíssem uma barreira para esconder a entrada para La Tourrello, lá na estrada principal, de modo que nenhum refugiado, nem judeus nem outros, viessem perturbá-lo aqui, interromper o trabalho dele. Naturalmente ele também teve de fechar os portões grandes, pois alguns deles se infiltravam pelo mato... naturalmente sabiam que a casa estava aqui, já tinham estado aqui. Mas o seu pai sabia que, se fraquejasse e deixasse que um só judeu passasse a noite sob o teto dele, poderia correr um grave perigo. Todo francês que ajudasse um judeu estava pondo a própria vida em perigo.

- Mas e todos os franceses que ajudaram os judeus, que lutaram na Resistência, que bombardearam os trens dos alemães, que reagiram? - perguntou Fauve, tensa.

- Gente miúda, Fauve, gente miúda com menos a perder do que o seu pai. Ele tinha de escolher entre a pintura e arriscar a vida. Acredito inteiramente que ele escolheu o certo e espero que você também ache... ele chegou à conclusão de que sua única lealdade era para com o trabalho dele e não abrigar gente por quem ele nunca tivera qualquer responsabilidade. Você já tem idade para compreender isso.

- Idade - repetiu Fauve. - Idade?

- Mas Fauve, eles tinham de ser mandados embora! Ninguém os convidou, mas eles continuaram a vir. Teriam destruído a paz de espirito dele. Por que você acha que ele levou oito anos para ir ver você? Tinha medo, por causa da paz de espírito dele, seus poderes de concentração. Aqueles judeus o teriam impedido de pintar, mesmo que nunca fossem apanhados, mesmo que ninguém soubesse de nada. La Tourrello é remota, reconheço, mas na aldela tudo se sebe, mais cedo ou mais tarde, e alguém poderia denunciá-lo às autoridades. E é por isso, Fauve, que a sua conversa constante sobre os judeus o está aborrecendo... isso o faz recordar todas as pessoas que pasmam pela cerca na estrada e ficaram tocando e tocando a campainha da cozinha,

- Como é que você sabe disso? Não estava aqui! É Marte de novo, pois não acredito em uma droga de mentira que ela lhe contou!

- Você ainda não compreendeu bem. Ah, Fauve, por que eu me daria ao trabalho de lhe mentir? O que estava em jogo era o trabalho de seu pai, você não sabe o que isso significa? Nada podia ser mais importante.

- Mentirosa!

- Pergunte ao Adrien Avigdor, já que não acredita em mim. - O quê?

- Você ouviu o que eu disse. Ele era o melhor amigo de seu pai, antes da guerra. Mas o seu pai teve de expulsá-lo, também a ele, teve de se recusar a recebê-lo. O próprio Avigdor me disse isso em Paris, em 1946, e durante todo o tempo em que você vem vendo o Eric, eu estava apavorada de que o velho lhe pudesse ter dito alguma coisa. Ele estava muito amargo por causa disso, da última vez que o vi. Parece que chegou a tomar nota das pessoas que vieram aqui... pintores, em sua maioria, claro. A animosidade pessoal dele foi assustadora. Ele agiu como se fosse culpa de seu pai que houvesse

Europa e muitos desses infelizes fossem presos e deportados, , , uma te teriam morrido, não importa o que o seu pai fizesse.

- Deportados... morreram... presos...

- Fauve, não podia deixar de lhe contar. Não podemos mais ter as suas lições de história durante as refeições. Você me dá a sua palavra.. .

As palavras de Kate morreram, ao ver Fauve sair do quarto correndo. Não, ela pensou, não tinha omitido nada de importante.

Quando Fauve abriu a porta do estúdio, Mistral estava trabalhando no retrato dela, animado em todos os poros, com energia e percepção. Sua capacidade de participar na busca de Fauve por um sentido de si mesma lhe fornecera o elemento que faltava em seu trabalho nessas últimas semanas e, em um dia, ele conseguira o retrato.

- Graças a Deus que você voltou! Tenho tanta coisa a lhe dizer.

Ele largou o pincel e se adiantou para beijá-la. Ela parou, junto da porta, e levantou uma das mãos, afastando-o.

- Papai, você se recusou a ajudar os refugiados judeus durante a guerra... escutou a campainha tocando e não foi ao portão, para deixá-los entrar?

Mistral reagiu. O choque do desafio de Fauve só lhe deixou um pensamento.

- Avigdor - rugiu ele. - Que diabo ele andou lhe contando?

- Então, é verdade - exclamou Fauve, toda a sua esperança aflita morrendo assim que ele pronunciou o nome de Avigdor. - Você nunca pensa neles... os judeus que morreram por sua causa?

Ela se virou depressa, mas não tanto que deixasse de ver a verdade tão claramente estampada no rosto dele. Ele quis alcançá-la, mas ela já se fora. E ele não ousou ir atrás dela. Ficou ali, tremendo, no centro do estúdio, irresoluto, e depois começou, com a pressa de um homem que está correndo perigo de vida, a trancar todas as portas e janelas do estúdio, por dentro, para ficar a salvo do ódio que vira nos olhos da filha.

Eric Avigdor, ao chegar três quartos de hora depois, encontrou Fauve esperando do lado de fora dos muros de La Tourrello. As malas dela estavam pousadas no caminho de cascalho e ela trazia a capa de chuva no braço.

Vamos a algum lugar, meu bem? - disse ele, alegremente. Estava preparado para todos os caprichos de Fauve.

- Por favor, Eric, me leve à estação de trem de Avignon.

- De modo nenhum. Se você teve uma briga com aquela que se diz sua irmã, vou lá dentro quebrar uma das unhas dela.

- Eric, não, não brinque...

Fauve abaixou a cabeça e, com uma onda de medo, ele se virou para afastar a cortina de cabelos que quase lhe escondia o rosto. Quando ele a tocou, ela teve um soluço angustiado e Eric viu que Fauve devia estar chorando por muito tempo antes da chegada dele, pois seu rosto estava vermelho com as lágrimas que tinham corrido para a boca e pelo queixo.

- Meu Deus, o que é que lhe aconteceu? - exclamou ele, mas ela sacudiu a cabeça, às cegas, e entrou no carro, encolhendo-se no assento. Ele jogou as malas atrás e tentou abraçá-la e consolá-la, mas ela o repeliu.

       - Leve-me daqui - disse ela, num tom que o fez ligar o carro sem dizer mais uma palavra. Eles partiram, na direção de Avignon. Já estavam correndo pela estrada principal há cinco minutos, quando ele tentou de novo.

       - Fauve, diga-me o que aconteceu. Por favor, querida, deixe que eu a ajude. Sei que posso.

_ Não, Eric.

A voz dela não parecia vir de seu corpo.

- Fauve, você não confia em mim? Nada pode ser assim tão ruim.

- Não posso falar a respeito.

       Ela havia parado de chorar, mas trazia no rosto jovem uma expressão maculada, desesperançada, enrugada, que o apavorou, quando ele olhou para ela. Ele parou o carro, saindo da estrada.

       - Fauve, não vou levá-la mais longe até você me contar o que aconteceu. Nunca vi ninguém no estado em que você está.

       Ela abriu a porta do carro e saltou. Depois, estendeu a mão para pegar uma das malas. Ele fechou dentro do carro.

- O que é que você está fazendo? Está maluca? Fauve!

       - Se você continuar a me fazer perguntas, vou pedir uma carona para Avignon. Alguém deve aparecer e me dá condução.

       - Está bem, está bem, você venceu. Mas por que não quer falar comigo? Não sabe quanto eu a amo?

       Diante dessa promessa de ternura, essa doce proteção, ela perdeu o controle e se entregou a um tumulto de sofrimento alucinado, soluços infantis misturados a um gemido de perda tão violenta que Eric mal se impediu de tornar a parar o carro. Ele se sentia como se o campo em volta deles se tivesse desintegrado. Quando eles se aproximaram dos arredores de Avignon, ela se acalmara e estava num estado de vazio aturdido.

- Por favor; me deixe na estação. Vou esperar o trem da noite lá.

- Vou ficar com você.

- Prefiro que não fique.

- Não pode me impedir.

       Eles ficaram sentados num banco do lado de fora da estação, Fauve olhando para a frente, tão muda e isolada de qualquer contato como se estivesse numa caixa de concreto. Eric tentou pegar na não dela, mas ela se afastou dele depressa e passou os braços pelo próprio corpo, enfiando as mãos debaixo dos braços. Só seus cabelos, ardendo com sua chama inextinguível, garantiam a ele que aquela era Fauve, sua garota implicante e ágil, com seu coração festivo e impulsos alegres. Mesmo quando ela ficava séria ou triste, sempre estivera disposta a explorar sentimentos difíceis sem se controlar, mas agora estava trancada numa espécie de transe glacial que nem mesmo todo o seu amor podia penetrar. Se ao menos ele fosse adulto mesmo, se soubesse o que fazer, pensou Eric, angustiado, odiando-se por só ter 20 anos. Ele não compreendia que ela não lhe pudesse contar o que descobrira, como se ela mesma fosse responsável pelo que Mistral fizera. Fauve se sentia abatida por um peso de vergonha tão grande que era como a própria culpa. Ela se sentia contaminada por ser filha do pai dela, seu monstruoso amor por ela a fazia sentir que devia estar maculada pelo mal dele; e as palavras reveladoras de Kate, com um segredo imundo depois do outro, enchiam sua cabeça como pedras que se roçassem por uma eternidade.

- Aonde é que você vai? - perguntou Eric.

- Para Nova York.

       - Está com sua passagem de avião? - Ela fez que sim. - Sua passagem do trem?

- Compro no trem.

- Vou comprá-la para você agora.

- Não.

       - Fauve, você tem de me deixar fazer alguma coisa por você, ou vou enlouquecer!

       Ela deu de ombros, aceitando, e ele foi comprar a passagem e sanduíches e água mineral para a viagem e, num impulso de sofrimento desalentado, todas as revistas que pôde encontrar, embora já soubesse que ela ficaria sentada imóvel até Paris. Alguma coisa terrível lhe fora feita e sua intuição apaixonada lhe dizia que nada no mundo lhe daria de volta a mesma garota que ele deixara nos portões de La Tourrello apenas algumas horas antes.

       - Obrigada - disse Fauve, numa voz vazia, quando ele voltou com suas compras. - Sinto muito, Eric.

- Você vai responder às minhas cartas?

- Vou.

       - Fauve, você de vez em quando pode parar e se lembrar de que eu a amo, que a amarei sempre? Se você fosse alguns anos mais velha, eu nunca a deixaria ir, fosse qual fosse o motivo, você sabe disso, não?

       - Sei, Eric - respondeu Fauve, mas o coração dele se encolheu, ao ouvir o tom passivo e distante da voz dela. Fauve estava dizendo sim a tudo só para se ver livre dele, para fazer com que ele a deixasse tomar o trem que ele ouvia apitando a distância. Em tomo deles as pessoas estavam-se levantando, pegando a bagagem e se dirigindo para a plataforma.

       O trem parou e Eric foi na frente de Fauve, pondo as valises dela na prateleira acima da cabeça da jovem, num vagão de primeira classe, arranjando um lugar para ela e guardando suas provisões.

       Ela se enterrou no assento tio murcha como um bicho morto e ele ficou ali ao lado, irresoluto, por alguns segundos, até ouvir o apito do guarda anunciando a partida do trem. Ele a pegou pelos cotovelos e a fez levantar-se e olhar para ele.

- Nunca chegamos a ir a Lunel - disse ele. - Não.

O trem começou a se mover devagar, enquanto ele a beijava. Foi aumentando de velocidade e Eric a soltou.

- Prometi que iríamos e havemos de ir. Você é o meu único amor, Fauve. Nunca se esqueça de mim.

Ele correu pelo corredor e saltou bem na borda da plataforma, ficando ali com as lágrimas lhe escorrendo pelas faces, vendo o trem desaparecer ao norte, levando o seu coração.

Num outro dia de fim de verão, um ano depois, Kate Mistral estava sentada sozinha, depois do café, esperando até que Mistral saísse de casa. Já fazia

alguns meses que ele saía, de manhã à noite. Ele não dizia aonde suas andanças o levavam, mas ela sabia o suficiente para adivinhar que ele estava investigando os arredores em busca de uma idéia nova. Ele passara por um longo período improdutivo e há meses não passava tempo algum no estúdio. Kate era realista demais para não saber que não era coincidência esse período de aridez ter começado quando Fauve deixara La Tourrello. Desde então, Mistral tinha escrito a Fauve seis vezes. Marte Pollison, que recebia a correspondência do carteiro, no portão, comunicava a Kate cada vez que as cartas eram devolvidas, fechadas. Que mentiras, que tentativas de explicação Julien poderia ter inventado?, era o que Kate se perguntava. Quando Fauve fora embora, ele só dissera que era por causa de um mal-entendido de adolescente, uma briga estúpida porque ela estava passando tanto tempo com aquele rapaz Avigdor e se envolvendo demais com a família dele.

Várias semanas antes, ele afinal se forçara a escrever a Maggy e desde então Kate tinha esperado, com medo, uma resposta que revelaria o papel que ela tivera na partida de Fauve. Na véspera, chegara afinal a resposta de Maggy, pouco antes de Kate sair para um encontro em Apt, e Mistral enfiara a carta no bolso, sem abri-la.

Na noite da véspera, durante o jantar, que foi calado e melancólico como durante todo o ano que se passara, a expressão de Mistral fora zangada, cansada e amarga. Parecia abranger tudo: a bela refeição que lhe fora apresentada, a mesa bem-posta, o serviço esmerado, até o ar noturno, deliciosament3 fragrante. O que Maggy podia ter escrito? Ela precisava saber.

Assim que Kate ouviu Mistral partir, ela subiu ao quarto dele e se trancou lá dentro. O quarto, como sempre, estava arrumado e impessoal, pois a verdadeira vida dele não se passava ali. Não havia carta alguma na mesinha de cabeceira, onde ele guardava aquele livro sobre os judeus de Avignon que Fauve deixara. Kate o vira ali antes, quando ela de vez em quando passava uma revista no quarto dele, e ela ainda não podia compreender por que ele o conservava. Não era típico de Julien ficar se torturando. O tampo de sua escrivaninha também estava vazio. Ela revistou as gavetas dele com perícia e, por fim, enfiada debaixo de uma pilha de cartas de admiradores de todo o mundo, que ele não respondera, ela encontrou o envelope que 'o vira pôr no bolso, na véspera. Ele o rasgara, para abri-lo. Ela leu depressa o bilhete que continha.

 

Julien, Não, não tenho idéia alguma do motivo por que Fauve não quer responder as suas cartas, ou sequer lê-las. Já tentei falar com ela sobre o verão passado, mas ela se recusa positivamente a me contar alguma coisa, dizendo apenas que não quer falar a respeito. Ela tem andado muito triste e perturbada, atais do que posso dizer, e cada vez que você escreve a ela, ela se sente pior. Quando ela viu que você me escreveu, disse que eu devia responder a carta como eu bem entendesse, mas que no futuro, se vote lhe escrevesse de novo, ela nem queria tomar conhecimento disso. De agora em diante, ela me pediu para devolver quaisquer cartas que você mande sem nem lhe dizer que chegavam.

Não sei nada acerca dessa situação entre votes dois e não pretendo me meter nisso, de jeito nenhum. O que quer que tenha feito para fazer Fauve se voltar contra você já está feito e é tarde para ser desfeito. A minha experiência com vote é tal que não

sinto vontade de lhe fazer qualquer concessão.

                     Maggy

 

Kate leu a carta duas vezes, recolocou-a no lugar e saiu do quarto, indo depressa sentar ao sol ao lado da piscina.

Ela agora estava segura, bem segura, pensou. Não teria de se preocupar mais com cartas, não havia qualquer possibilidade de Fauve escrever ao pai para lhe dizer quem lhe havia revelado tudo o que ela soubera naquela tarde, um ano antes. Segura - todos os quadros dele, a terra, os investimentos, as contas nos bancos, tudo seguro, sem divisão, salvos intactos para Nadine herdar. O futuro da filha não estaria comprometido e ela mesma não tinha mais nada a recear de parte de Fauve.

Kate nunca deixara de ter um senão de ironia e foi isso, e só isso, que a fez ficar ali sentada ao sol, tão quieta.

Ela chegara a tempo para seu compromisso em Apt, na véspera, sua consulta ao Dr. Elbert. Elbert fora o médico que fizera o parto de Nadine e ela o preferia a outros especialistas de Avignon. Quando, na semana passada, ela recomeçara a sangrar, 15 anos depois de ter passado pela menopausa, com relutância fora consultar o médico, a quem não se dava ao trabalho de consultar havia anos. Câncer do útero, foi o que ele disse, e tão adiantado que se propagara ao fígado. Quanto tempo de vida ela teria? Um ano, talvez, um pouco mais ou um pouco menos, mas, Madame Mistral, não há nada que se possa fazer, nesse estágio da doença. Para que se pudesse fazer alguma coisa, deveria tê-la examinado muito antes... e, mesmo assim, quem sabe?

Quem sabia, de fato? Quem é que podia saber?, foi o que Kate se perguntou. Ela olhou em volta. Tudo estava em ordem, um império rico, magnífico, seguro e inteiramente intacto. Pela primeira vez desde que Teddy Lunel entrara pelas portas de La Tourrello, Kate afinal teve certeza de que estava

em plena posse de novo... por um ano.. , um pouco mais, ou um pouco menos.

 

 

                                            Capitulo 27

 

Fauve Lunel estava completando 21 anos, em meados de junho de 1974, e o segundo andar do Russian Tea Room estava cheio, com 200 pessoas, cada uma radiante com o prazer não expresso de saber que sua importância estava sendo reconhecida, por ter sido convidada para aquela determinada festa comemorativa da maioridade, um prazer que é um elemento tão básico da natureza humana que já devia ter sido sentido pelos homens da caverna, reunidos em volta de um fogo especialmente prestigioso.

Por trás de seus óculos grandes, Falk, cujos amigos mais íntimos ainda chamavam de Melvin, observou a turba que vibrava com um barulho num nível de decibéis só alcançado em Nova York, os olhos dilatados com a intensidade de uma observação que era tão profunda quanto rápida. Ali, bem ah, pensou ele, estavam reunidas todas as pessoas que tinham o poder de resolver como é que a mulher americana podia esperar parecer cada manhã, ao acordar.

Ele beijou Diana Vreeland e Cheryl Tiegs, esticando-se para faze-lo sem mais constrangimento do que sente uma mulher baixa para beijar um homem alto e, ao abraçar Lauren Hutton, satisfeito com a conformação especial das feições dela, ele refletiu que as mulheres acreditavam que elas é que tinham a escolha em matéria de suas aspirações físicas e, no entanto, eram os fotógrafos como ele os responsáveis pela onda de mudanças que mandavam as mulheres para os cabeleireiros, balcões de cosméticos e lojas de departamentos. Porém sabia que nem ele tinha tanta influência quanto Maggy Lunel, que, escolhendo novas modelos e mandando-as procurar as pessoas certas, podia determinar o modo como todo o mundo passaria a pensar sobre a beleza feminina.

Mas será que o poder final repousava realmente nas mãos do redator de modas ou de beleza, que resolvia usar uma garota e não outra, ou, pensou ele, dando um beijo em cada face radiosa de Christine Ferrare, será que estava nas mãos dessas garotas esplendorosas que se ofereciam à câmara? Onde iria parar todo o sistema de revistas de modas, agencias de publicidade, companhias de cosméticos, fotógrafos e agencias de modelos, sem um suprimento infindável de belezas dispostas a dedicar suas jovens vidas a se tornarem ícones para todas as outras mulheres? Em todo caso, Falk não era obrigado a chegar a nenhuma conclusão irrevogável naquela noite, já que todos os envolvidos em criar os padrões a que todas as mulheres do país reagiriam estavam bem ali, naquela sala. Todos, isto é, menos Fauve. Onde é que estava Fauve?

Nos últimos cinco anos, Falk a vira menos do que desejaria. Quando ela estava crescendo, eles tinham passado a maior parte das tardes de sábado fazendo a ronda das galerias, mas no princípio do outono de 1969 ela simplesmente tinha virado as costas para a pintura e não havia outro meio dele poder descrever a modificação que se operara nela. Ela atribuíra a culpa dessa perda de interesse abrupta - e, para Falk, chocante - à experiência de ter ido à exposição que foi um marco, a chamada "Pintura e Escultura de Nova York: 1940-1970", organizada por Henry Geldzahler no Metropolitan Museum.

Deus sabe, tinha sido mesmo de dar a qualquer um uma indigestão visual, aquela misturada rica demais em que tinham sido usadas 35 galerias

diferentes, para dar 35 retrospectivas de 35 dos maiores pintores contemporâneos, mas Falk achava que um apetite de uma garota de 16 anos suportaria um esgotamento estético desse tipo. Até mesmo ele, veterano da arte espetacular, ficara arrasado pelo fausto inaudito da noite, aturdido com seus excessos, ensurdecido pelo conjunto de rock e com os pés doendo devido ao tamanho da exposição, mas Fauve tinha reagido com algo parecido com histerismo, dizendo que nunca mais queria olhar para outra obra de pintura ou escultura. Ele tinha certeza de que ela só se referia até a exposição interessante seguinte, pois como é que alguém com a paixão pela pintura que tinha Fauve poderia tomar-se indiferente diante da complexa série de experiências que lhe devia dar apenas o ato de contemplar obras novas?

No entanto, com o passar do tempo, ele verificou que a repugnância dela não só persistiu, como ainda se intensificou numa espécie de tristeza, como se ela estivesse lamentando a morte da pintura. Ela insistia em dizer que todos os grandes homens já tinham pintado, todas as inovações já tinham sido feitas, todos os grandes temas usados, todas as possibilidades gráficas descobertas, de modo que os artistas novos só estavam usando as varreduras dos chãos dos estúdios dos mestres antigos.

Falk achara graça das idéias de Fauve, até perceber que ela parara de trabalhar na sua própria pintura. Quando ele a interrogou a respeito, ela foi sincera. Não pretendia jamais voltar a pintar. Como poderia continuar, se não tinha nada de novo a acrescentar? Embora Falk sempre tivesse reconhecido a influência inconfundível de Mistral no trabalho dela, ele também percebera um talento real e original, lutando para se revelar. Ele sabia que era apenas uma questão de tempo para ela se realizar, para que tudo de pessoal e fresco no trabalho dela se tornasse bastante forte para levá-la a se separar do pai e trabalhar por si. Mas, em vez de progredir, ela desistira de uma hora para outra e, a essa altura, ele tinha certeza, de vez.

Falk mordeu um pirojok, saboreando o sonho quente e fofo feito de massa de creme azedo. Mastigando, refletiu que o que a seu ver era uma verdadeira perda para o mundo das artes, tinha sido lucro para o mundo das agências de modelos.

Quem imaginaria que Fauve, diplomando-se do segundo grau aos 17 anos, se decidiria a trabalhar com Maggy, ao invés de ir para a universidade? - E quem iria esperar que ela desse tão espantosamente certo nesse trabalho? Nos últimos quatro anos, ela não só aprendera o negócio completamente, como ainda fizera inovações que mantiveram a Agência Lunel à frente da concorrência, de modo que se tomara o braço direito de Maggy. Ela havia trabalhado tanto, com tanta ambição, energia e força de vontade que sua juventude e inexperiência tinham sido superadas quando ela fez 19 anos. E, desde então, o nome "Lunel" cada vez mais se referia igualmente a Fauve e a Maggy.

Falk viu que estava junto com Dick Avedon e Irving Penn os dois únicos fotógrafos que se tinham mantido no auge por tanto tempo quanto ele, os únicos outros com quem cada novo talento era inevitavelmente comparado. Conversando com eles, ele refletiu sobre a raridade da longevidade, do poder permanente e excelência sem fim, neste mundo em que a mudança era a regra. No entanto, Maggy Lunel ainda se movia numa aura de supremacia.

Ela agora estava numa idade que seria melhor descrita como "sem idade", enigmaticamente, espetacularmente, triunfalmente sem idade. E continuaria sem idade, resolveu ele, saudando-a mentalmente, durante pelo menos mais dois decênios, até passar, com elegância, para um período em que seria conhecida, certamente para seu grande aborrecimento, como, uma "lenda viva".

Quando ele a cumprimentara, naquela noite, houvera uma troca de um triste reconhecimento, sob os sorrisos deles. Cada qual conhecia os pensamentos do outro e partilhava de uma palavra não expressa de um sofrimento nunca esmorecido. "Se Teddy estivesse aqui..."

Falk afastou o pensamento, como tinha feito tantos milhares de vezes, através de três casamentos com manequins, o nascimento de quatro filhos, todos herdando os genes das mães e agora todos mais altos do que ele - graças aos céus pelas garotas altas - e procurou a única pessoa que queria ver na sala apinhada. Ele gostava dos filhos, gostava muito deles, mas Fauve entrara em seu coração antes dele se casar pela primeira vez e, por algum processo de desejo que nunca quis examinar, ela sempre parecera a filha que ele deveria ter tido com Teddy Lunel. Mas onde é que estava Fauve?

Maggy Lunel deu uma olhada final para se examinar, no seu espelho de três faces que ia do teto ao chão, antes de sair de seu apartamento para ir à festa de aniversário de Fauve. Então, ela era uma mulher com uma neta de 21 anos, era? Bem, melhor! Ela girou, verificando as costas do casaco, feito de várias camadas de crepe de (bine de seda preta estampado com flores imensas, em tons difusos e orientais de ameixa, lilás e um roxo cada vez mais escuro. Será que todas as mulheres, pensou ela, passando a mão pelos cabelos, atrás, onde se curvavam para dentro, num pajem liso na nuca, sentiam o mesmo que ela? Como se ela tivesse parado de envelhecer numa certa idade indefinida, que nunca mudava, a não ser em certos dias maus? Uma idade que pairava num momento agradavelmente maduro, mas fresco, entre os 26 e 32 anos?

Ela pegou a borda do casaco e examinou o forro estampado de folhagens. Isso era realmente um requinte, pois o forro nunca seria notado, mas uma coisa que Karl Lagerfeld, de Chloé, que desenhara a roupa com uma vaga forma de quimono, e o vestido em estampado mais miúdo por baixo, devia ter adorado fazer, pois ele não era o homem que, com toda a seriedade, pedira à mãe para lhe dar um criado de quarto só dele, como presente do seu quarto aniversário? Sim, o conjunto era um sucesso porque as linhas compridas e firmes do corpo por baixo dele tinham suportado a prova do tempo, mas, ao fechar o colar de brilhantes de Van Cleef e Arpeis no pescoço, Maggy teve de reconhecer que o nível de idade interior não estava bem a par da evidência do seu pescoço. Por que é que a maior parte das mulheres que possuíam o tipo de colar que um joalheiro - com um ar que classificava as palavras como tendo um significado técnico exato, podia considerar "importante" - não tinham pescoços sem rugas? Malditos os pescoços! Se ao menos todas as cabeças pousassem diretamente nos ombros, como o mundo seria mais agradável. Os ombros dela ainda podiam competir, em qualquer companhia.

Maggy, percebendo a idéia passageira e jactanciosa, perguntou-se, num misto de divertimento e irritação, se estaria ficando vaidosa. Ela poderia jurar que qualquer vaidade que um dia tivera havia sido completamente arrancada pelo contato diário com as mais jovens e lindas de todos os milhões de moças do mundo. O pescoço dela devia ser apenas um sinal do marco que era o aniversário de Fauve.

No entanto, no caso de Fauve, os 21 anos certamente não significavam o início da maturidade ou vida adulta. Não, essa modificação se dera cinco anos antes e naquele dia Maggy não sabia mais sobre o que o provocara do que soubera então, quando Fauve voltara do seu verão na França inesperadamente cedo. A princípio, Maggy a bombardeara com perguntas, mas Fauve se recusara a falar sobre o que acontecera com uma obstinação, uma tenacidade firme e inflexível que Maggy tinha certeza que ela não poderia manter. Mas, quando as semanas foram passando e ela viu as diferenças em Fauve, a perda de suas ilusões de mocinha, o desaparecimento de seu espírito brincalhão e inocente, começou a compreender que mais uma vez ela mandara uma menina querida para a Europa e mais uma vez essa menina fora modificada, terrivelmente modificada, por Julien Mistral. Mas pelo menos esta tinha voltado.

Depois que um ano se passou, Maggy simplesmente aceitou o fato de que ela provavelmente nunca saberia o que ocorrera. Fauve, tão espontânea, tão aberta, tão viva que cada entusiasmo que lhe passava pelo coração aparecia em seu rosto, tinha aprendido a guardar segredo, de algum modo. Aquele fora um ano profundamente aflitivo, aquele ano entre os 16 e 17 anos, o último ano de Fauve na escola, pensou Maggy, segura agora, sabendo que já passara havia muito. A misteriosa dor nunca se dissipara. Fauve nunca mais voltara à França. Depois que Maggy respondeu à carta que Mistral lhe enviou, toda a comunicação entre ele e a filha tinha cessado, tão completamente como se aqueles oito verões em Félice nunca tivessem existido.

Fauve, tão flexível, tão afetuosa e indulgente, fora inteiramente implacável com relação ao pai. Ela o expulsara de sua vida. A princípio, Maggy teve de admitir uma curiosidade intensa para saber o que tinha causado a ruptura, mas, no que concernia a Julien Mistral, não era prudente pensar muito, nem profundamente.

Nos primeiros anos, Fauve tinha recebido e respondido a cartas freqüentes daquele rapaz que ela conhecera lá, o filho do velho Avigdor, logo quem, mas agora as cartas tinham quase parado de chegar - Maggy nem sabia ao certo se eles ainda se escreviam ou não. Mas, com o tempo, Fauve conseguira sair da depressão em que mergulhara.

O tempo... em parte era a passagem do tempo, resolveu Maggy, em parte a abençoada elasticidade de juventude, mas acima de tudo fora graças a um remédio: o trabalho. Quando Fauve disse pela primeira vez que não queria ir para a universidade e preferia trabalhar, Maggy pensou, por um momento

de desespero, que Fauve queria ser modelo. Ela não o poderia impedir. Fauve tinha aquela qualidade inatacável, hipnotizadora, que teria feito dela o rosto que personificaria a sua época tão nitidamente quanto Suzy Parker e Teddy tinham personificado os anos 50 e Jean Shrimpton dominara os meados da década de 60. Mas, graças a Deus, Fauve quisera seguir os passos dela no negócio. Ela deu as costas ao uso dos privilégios de beleza como fonte de identidade com a mesma resolução que dera as costas ao seu talento para a pintura. Fauve não estava interessada em se tomar a guardiã vigilante de sua fachada, não tinha desejo de lidar com o comércio de sua própria superfície e se adaptara ao negócio da agência como se o tivesse absorvido a vida toda.

Fauve se afundara no trabalho com uma eficiência e diligência que assombraram Maggy e durante os dois primeiros anos ela teve oportunidade de aprender todos os serviços da agência. Quando Fauve completou 19 anos, na primavera de 1972, Maggy se acostumou a poder contar com Fauve para tomar decisões que ela nunca permitira que outra pessoa tomasse. Em atividade, Fauve era ríspida, forte e eficiente de um modo que demonstrava uma solidez maior do que os seus anos.

Foi então que Maggy ousou tirar férias, as primeiras em muito tempo, e quando ela e Darcy voltaram, depois de duas semanas em Londres, ela encontrou a agência florescente e Fauve segura e serena. Maggy foi dominada por uma exultação, um sentimento de aturdimento, uma embriaguez de alívio, um alívio maravilhoso, que a fez sentir-se mais leve e lhe deu uma avidez por atividades a que ela não se deixara dedicar por muito tempo, durante todos os anos desde que começara o seu negócio, os anos em que ela se sustentara e à filha, jurando nunca mais ser fraca e tola a ponto de depender de homem algum para nada a não ser afeto, e mesmo a passar sem isso, se necessário.

Ela se permitiu dormir até tarde, deliciando-se, chegando ao escritório só duas horas antes da hora de sair para almoçar com alguma amiga, e aí ficava conversando até o meio da tarde, tão despreocupada como se tivesse passado a vida toda fazendo isso. Jogou fora todos os seus chapéus e luvas o que estavam fazendo em seu guarda-roupa? Mandou trocar o penteado e até mudou a cor dos cabelos, do castanho que era próprio para a sua imagem de escritório, para um tom mais suave, habilmente misturado com ticiano e castanho-claro, em que alguns fios de prateado podiam penetrar, como que por engano. Maggy passou muitas horas fazendo compras, de roupas novas e menos, severas, e contratou Suste Frankfort para dar. ao seu apartamento suntuoso, e quase distinto demais, um encanto caprichoso e original. Ah, mas que felicidade começar a largar o fardo que ela carregara sozinha por tanto tempo, pensou Maggy, mas como é que ninguém notava? Todos a tratavam como sempre, percebeu ela, com uma irritação crescente. Ela fora a Chefe, aquela trabalhadeira, com os negócios na cabeça por tanto tempo que as pessoas só a viam sob esse aspecto. Ela não esperava que eles agissem como se ela tivesse acabado de ser eleita a Rainha da Primavera, mas certamente alguém poderia notar!

Uma noite, no fim daquela primavera que foi como um renascimento, Maggy e Darcy foram jantar fora. No "21", o maítre, Walter Weiss, os levou para a mesa deles, a mesma mesa em que se tinham sentado da primeira vez em que lá estiveram juntos, em 1931, quando era o melhor bar clandestino de Nova York.

Darcy, como era seu hábito inalterável, quase sagrado, de 42 anos, sentou-se à mesa 7 na primeira seção do bar, à esquerda da entrada e no centro da parede do lado. Era uma banqueta de primeira, estratégica, bem visível e muito cobiçada, a que muitos outros homens poderosos tinham aspirado, em vão.

Qualquer mesa nas duas primeiras seções do bar era extremamente desejável, pois "21" era o único lugar de jantares em Nova York que conservara a glória e brilho de sua história, o único restaurante cujo status imperial permanecia inalterado enquanto ele navegava pelos decênios com a firmeza de um grande transatlântico em que nada poderia dar errado; um mundo em si como nenhum outro restaurante dos Estados Unidos jamais conseguiu ser ou será. A certeza de ser sempre conduzido a uma mesa específica e importante no bar do "21" era uma coisa que o simples título de sócio de um clube muito fechado ou um lugar no mais importante conselho diretor, pois significava um lugar elevado e continuado na estrutura do poder do país. O direito de Darcy sobre a mesa 7 fazia parte da organização íntima de sua vida e ele suspirou numa satisfação visível quando eles se sentaram na banqueta.

- Por que - reclamou Maggy - nós sempre temos de nos sentar nesse bar? Você sabia que nunca comemos no restaurante principal, lá em cima?

Darcy pareceu ficar tão espantado como se tivesse encontrado a mesa 7 ocupada por um astro do rock

- Parece - continuou Maggy, com um ar melancólico, próximo da petulância - que lá em cima o ambiente é muito agradável. Ouvi dizer que é menos barulhento e mais espaçoso. Onassis sempre come lá e o Dr. Armand Hammer e a Sra. Douglas MacArthur e Nelson Rockefeller... e nós sempre ficamos metidos aqui embaixo. Parece mesmo uma pena.

- Mas você nunca quis comer lá em cima, nem sequer viu lá em cima, ao que eu saiba.

Darcy estava indignado. O andar de cima era bom, ele imaginava, solido e formal, mas um homem que ainda tivesse algum tutano havia de preferir comer no bar, no qual ele ainda imaginava poder sentir, ouvir e cheirar todos aqueles grandes dias da Lei Seca, quando Jack e Charlie's serviam a melhor bebida da cidade.

- Isso não é motivo para você fazer essas suposições - disse Maggy, queixosa. Ela pegou com desdém na toalha de mesa de xadrez vermelho e branco. - Nas mesas lá em cima há lindas toalhas de linho branco liso, do tipo antigo, bem lisas e engomadas, pelo menos é o que Lally disse. E há flores nas mesas, em vez dessas feias carteirinhas de fósforos vermelhas.

Ela suspirou com a tristeza resignada de uma menina sem um vintém com o nariz encostado a uma vitrina de confeitaria. Pensativa, acertou o laço da blusa azul-marinho que combinava com o costume branco de Adolfo, ousadamente náutico.

- Que diabo, se você está tão infeliz aqui, por que não me disse isso antes? - disse Darcy, furioso. - Vamos subir... ande.

- Ah, não, é muito trabalho. Foi só uma idéia, uma coisa que me passou pela cabeça - murmurou Maggy. - Em todo caso, não estou propriamente infeliz aqui, só estou irrequieta. - Ela bebericou da taça de champanha da garrafa de Bollinger Brut 1947, que o garçom tinha aberto assim que viu

Maggy e Darcy se sentarem à mesa em que jantavam duas ou três vezes por semana, desde 1931. - Como será o gosto de tequilas? - disse ela, numa voz de desalento, diminuída.

- Vou-lhe mandar vir um pouco - rosnou Darcy, levantando as sobrancelhas.

- Ah, não, não se incomode, não me importo mesmo, foi só uma fantasia passageira. - Ela parecia tristemente com pena de si, rejeitando a simples idéia de tequilas. - Champanha serve, para mim... ou é o que você sempre supôs... não de atenção.

- Que diabo está se passando, afinal? - perguntou Darcy, virando-se para olhar para ela, sentada ali, reta e esguia como sempre e, de tantos modos irritantes, uma sereia tão inescrutável quanto na primeira noite em que ele a levara ali e olhara dentro de seus olhos grandes, daquele tom que ainda era tão verde quanto dourado, e pensou: quem é Maggy Lunel?

- Estou cansada... - ela estava quase sussurrando.

- Vamos para casa - disse ele, alarmado. Maggy raramente ficava cansada, a não ser que estivesse doente.

- Estou cansada de você pensar que não estou apta a ter novas experiências, estou cansada de ser tratada como se qualquer quebra de rotina fosse mal recebida - murmurou ela. - Estou cansada da... da... sua falta de atenção, Darcy. Você me tem como certa - disse ela, ruminando.

- Mas que tolice completa!

- Então você nega, é? - De repente, ela estava tremendo com energia. As palavras saíram aos borbotões. - Era o que eu pensava, de um homem insensível, sem consideração, pouco romântico como você.. , a gente parece até que está saindo para jantar com o tio velho... o avo... o bisavô....

- O quê! - rugiu ele.

- Não grite comigo! Quanto tempo faz que você não me pede para casar com você? - O rosto dela estava vermelho de indignação, acusando-o.

- Quanto tempo? Desde que resolvi parar de fazer papel de idiota! Há tanto tempo assim... - balbuciou ele, com a injustiça das palavras dela.

- Você não respondeu à minha pergunta - disse ela, implacável.

- Uns 15 anos.. , não, acho que pedi no Dia dos Namorados, há uns 12 anos, como um idiota total... agora me lembro... você parecia estar especialmente carinhosa, naquela noite, e então tentei mais uma vez, como o pobre coitado fiel que sou, embora soubesse perfeitamente que não havia possibilidade. Seria de se esperar que eu já tivesse aprendido.

- Ah-ah! - Maggy estava triunfante em sua raiva. - Agora eu sei por que você ficou pedindo sempre. Porque estava seguro e não lhe custava absolutamente fazer esse gesto. Eu sempre achei isso, sempre soube que você era igual aos outros, sempre vi que estava representando. Já estou bem farta desse abandono, obrigada! Desprezo as suas táticas vis e não pretendo tolerá-las

por mais um minuto. É uma vergonha!

- Você... sua... vagabunda ingrata!

- Isso é uma proposta? - perguntou ela, os olhos lampejando de fúria.

- De jeito nenhum!

- Viu? Quando é para por as cartas na mesa, você não está disposto a se comprometer, não é? É uma decisão grande demais, é? - disse ela, com escárnio. - O.K., Darcy, você tem exatamente um minuto para acertar as suas prioridades.

- Isso é uma proposta?

- Só um homem a quem falta a galanteria na própria alma pediria a uma mulher para responder a uma pergunta dessas. Que coragem!

- Maítre! - chamou Darcy. - Vamos passar lá para cima, para jantar. Mande subir duas tequilas com gelo. Madame e eu temos de combinar umas coisas e este bar está barulhento demais.

E assim, lembrou-se Maggy, eles tinham-se casado, dois anos antes, e não era sem tempo, conforme dissera Lally Longbridge, como sempre, atribuindo todo o crédito a si. Ela ainda estava de pé diante do espelho, quase num transe, quando Darcy entrou, vestido para ir à festa do aniversário de Fauve. Olhando para a imagem dupla deles, ela sentiu um saltinho de uma alegria irreprimível. Como ela fizera bem em se casar com aquele homem.

Darcy comeu outra batatinha recheada com caviar fresco, com pingos de creme azedo em cima, e achou que Henry Mclheeny, aquele bon vivant que um dia dissera, "O caviar nunca deve ser servido com coquetéis; é preciso estar sentado para apreciá-lo", fora pomposo demais. Ele pegou outra e a meteu na boca, aproveitando ao máximo um intervalo temporário no alto da escadaria em que ele e Maggy estavam recebendo os convidados, enquanto atrás deles a festa se aproximava daquele momento em que se poderia dizer que estava em órbita. No entanto, onde estava Fauve?

Polly Mellen, da Vogue, que sabia mais sobre por a modelo perfeitamente certa no vestido perfeitamente certo - e o que era' mais importante - da maneira perfeitamente certa, estava presente, com a maior parte de ma equipe, bem como Tony Mazzola, que era redator-chefe da Harper a vida toda, acompanhado pelo seu alto escalão, bem como Tom Hogan, de Clairol, e Estée Lauder com toda a família, e Gilbert Shawn, presidente da Warshaw, os produtores de catálogos e talvez mais prolíficos empregadores de modelos no mundo e, para espanto total de Darcy, Eileen e Jerry Ford, cuja agencia de modelos tinha sido a concorrente principal - e a mais formidável - de Maggy, desde fins de 1940.

O fato de Maggy convidar sua principal rival era a indicação mais significativa de que a mulher que ele amara por tanto tempo tinha realmente mudado, pensou Darcy. Três anos antes, se lhe perguntassem se era mais provável que Maggy se casasse com ele do que se convidasse os Fords para uma festa, ele teria optado pela hipótese do casamento, por impossível que lhe parecesse então. A concorrência entre as duas agencias tinha aumentado com os anos e com o aumento constante nas taxas horárias pagas aos modelos.

A renda de Maggy, sem as despesas, sobre as taxas ganhas por suas modelos era de perto de dois milhões de dólares por ano e os Fords não ficavam muito atrás. Cada agencia tinha, entre suas várias centenas de modelos, um grupo de mela dúzia mais ou menos de modelos das mais categorizadas, que, embora ganhassem mais do que quase qualquer homem do país, sempre seriam chamadas de "moças" e nunca "mulheres". Essas moças eram bens, tão reais quanto se cada uma delas fosse um prédio de escritórios todo alugado, cujos inquilinos sempre pagassem o aluguel pontualmente.

Durante mais de 20 anos Maggy Lunel e Eileen Ford tinham concorrido por essas mesmas preciosas peças de bens e como nenhuma delas gostava de perder, e como uma delas perdia cada vez que a outra ganhava, uma trégua, por provisória que fosse, tinha assombrado Darcy.

- Nós somos como os países produtores de petróleo - explicara Maggy. - Eileen e eu, e agora Wilhelmina, nos últimos sete anos, e até mesmo Zoli, desde 1970, dirigimos os únicos negócios da cidade que merecem menção. Não podemos fixar preços nem formar um monopólio porque isso é contra essas ridículas leis antitrustes. Mas somos responsáveis perante as nossas moças para manter os padrões, para que elas não sejam tratadas injustamente pelas agencias de publicidade e pelos fotógrafos... afinal de contas, faz poucos anos que elas começaram a ganhar bem, até passaram da conta... portanto, como representantes delas, sempre achei que devíamos manter relações razoavelmente boas, umas com as outras.

Darcy então entendeu a motivação dela: estava pensando no futuro de Fauve.

Um dia Fauve estaria dirigindo a agencia e Maggy queria que ela estivesse o mais segura possível, livre de brigas antigas. Darcy não acreditava que essa fosse uma idéia que algum dia fosse posta em prática, mas gostava de ver Maggy lutando com sua tentativa de ser pragmática. Basicamente, pensou ele, examinando-a agora, a mulher mais esplêndida na sala, em sua opinião, embora também estivessem presentes Karen Graham e Rene Russo, uma racionalidade suave não era o estilo dela. Ele a apreciava mais quando ela era o seu natural, fogosa e animada, mas a organização daquela festa exibira o lado maternal de Maggy e, para essa ocasião ela conseguira disfarçar o espírito terrivelmente competitivo que existia, sempre existira e sempre existiria no ramo de agencias de modelos. Sua própria ambigüidade o encantava.

Jason Darcy sabia que era um homem de sorte. Ele arrastara Maggy para a frente de um juiz antes que ela tivesse a oportunidade de mudar de idéia, mas enquanto a cerimônia se realizava, ele se indagara que diferença um laço legal poderia fazer numa união que já durara tanto tempo. Enquanto ele repetia seus juramentos, estava-se lembrando de casos inúmeros de pessoas que tiveram relacionamentos prolongados e afetuosos, até cometerem o erro de se casarem. E o exemplo da romancista Fanny Hurst, que viveu muito feliz com o marido, por muitos anos, durante os quais eles ocuparam dois apartamentos diferentes, marcando encontros cada vez que queriam estar juntos? Esse não poderia ser o meio ideal de conduzir um arranjo tão desnaturai, desumano e artificial como era o casamento? Mas Maggy, essa Maggy ardente, melancólica, jovem e primaveril, que tinha aparecido uma noite no "21", aparentemente pretendia tornar-se mulher dele e ele não ousara pensar duas vezes.

E era diferente, sim. Simplesmente, era melhor. Melhor saber que ela afinal confiava nele, melhor saber que afinal ela estava disposta a depender um pouco dele, melhor não acordar de manhã em outro quarto e em outra rua, sem saber o que sua amada estava fazendo ou sentindo, até falar com ela pelo telefone. Ele resolveu que o casamento era uma delícia tão grande que deveria ser reservado só para as pessoas de meia idade. Os jovens deviam ser proibidos por lei de regularizar os seus romances até depois dos 50 anos, pois não poderiam apreciar os encantos do matrimônio enquanto o considerassem um direito e não um privilégio. Deveria ser uma recompensa pela fidelidade e o amor, reservada para as pessoas que tivessem sido féis umas com as outras. Todavia, ele teve o bom senão de guardar para si essas opiniões. Sua reputação de dureza seria destruída se elas viessem a público e, como Darcy ainda publicava um dos grupos de revistas de maior sucesso no país, não queria parecer dominado pela mulher.

- Onde está Fauve, que diabo? - disse uma voz de homem atrás dele.

- Pensei que ela poderia estar com você - disse Darcy, virando-se para Ben Utchfeld, seu antigo protegido, que ele vira subir de um emprego de vendedor de espaço no departamento de publicidade da Woman's Joumal, a maior e mais bem sucedida revista feminina do país, para redator-chefe, assombrando o mundo das revistas femininas e alcançando o auge pouco antes de completar 30 anos.

- Quem me dera - disse ele - mas não a vejo desde segunda-feira.

Benjamin Franklin Litchfeld era Jornais ardente e, aparentemente, o mais bem sucedido dos muitos admiradores de Fauve, se bem que ela não fosse dada a confidencias e Maggy e Darcy só pudessem tecer conjecturas.

Darcy sentia um interesse de proprietário no caso do homem, pois ele mesmo os apresentara, um ano antes.

Fauve e Ben deviam conhecer-se, foi o que ele resolveu, num dia em que tentou falar com eles pelo telefone, numa manhã de domingo, e descobriu ambos em seus respectivos escritórios, trabalhando com afinco em assuntos que tinham reservado para o fim de semana, quando não seriam interrompidos. Ele tinha insistido para que ambos terminassem o trabalho dentro de uma hora e fossem almoçar com ele e Maggy. Fora preciso toda a sua autoridade para convencer o par trabalhador a uma tal perda de tempo, mas, desde esse primeiro encontro, Darcy tinha motivos para imaginar que eles estivessem caminhando para passar as manhãs de domingo juntos na cama, um arranjo que ele considerava muito mais humano e melhor para a circulação, a pele e a mente.

Maggy Também aprovava o jovem Litchfeld. De certa maneira, ele lhe lembrava Darcy, quando ela o conhecera: tinha aquela intensidade que encobria a capacidade de se divertir com os grandes absurdos da vida, tinha a curiosidade e, ela sentia, grande parte da generosidade de Darcy, mas fisicamente não tinha nada da distinção parca e filosófica, quase ascética, que fora a primeira coisa que a atraíra para o seu amor.

Ben Litchfeld, sendo bonito, era em geral amarfanhado. Ele começava o dia com as melhores das intenções, alto, musculoso, vestido convencionalmente com um terno bem passado, camisa limpa e sapatos engraxados, mas na hora do almoço já estava uma vergonha para o mundo do Gentleman's Quarterly. Já tinha puxado os cabelos grossos e ruivos tantas vezes, em desespero, que eles estavam arrepiados, quando não lhe caíam dentro dos olhos; tinha puxado o nó da gravata, impaciente, até que ela chegava ao terceiro botão da camisa, já desabotoado, e a camisa já estava aparecendo entre as calças e o casaco, os bolsos cheios de papéis e pontas dos lápis de outras pessoas, e em geral já tinha perdido os três óculos de aros de chifre de que precisava para ver os layouts ou ler manuscritos.

Mas quando Ben Litchfield tirava os óculos, os seus olhos enormes azuis e míopes eram tão espantados e felizes como os de um bebê que acordasse e visse um elefante pela primeira vez. Ele recebia tudo na vida com esse mesmo olhar de surpresa e aceitação, se bem que já se tivesse ouvido os seus companheiros dizerem que ele era tão inocente quanto uma patrulha do esquadrão de costumes de Detroit. Ele tinha o sorriso repentino, doce e meio espantado de um homem que está fazendo aquilo de que mais gosta e fazendo melhor do que qualquer outra pessoa. Estava tão ocupado querendo chegar ao máximo, que nunca havia parado para procurar uma garota séria, até conhecer Fauve.

- Desde a segunda-feira? - perguntou Darcy. - Pensei que vocês dois andavam se vendo sempre... já são três dias.

- Eu sei - gemeu Litchfield. - Escute, Darcy. Você me ensinou tudo o que sei, conforme já me lembrou várias vezes, em geral em público. Como é que a gente faz para fazer uma garota casar com a gente?

- Ter paciência, rapaz, paciência.

- Muito obrigado. Você me ajudou muito.

- As mulheres Lunel não são muito de casar, quando casam.

Aliás, pensou Darcy, complacente, ele era o único homem que tinha conseguido casar-se com uma delas, o único homem que seduzira uma das três lindas e ruivas mulheres Lunel para o matrimônio. Uma das três mulheres bastardas, pensou ele, pois Maggy lhe contara toda a história na lua-de-mel deles e ele era, ao que acreditava, a única pessoa no mundo além de Fauve que sabia que Maggy e Teddy tinham sido tifo ilegítimas quanto a própria Fauve.

- Não vou ter um minuto de paz de espírito até ver Fauve bem casada - dissera Maggy. - Três bastardas em seguida são mais do que suficientes.

- Ora vamos, Ben, deixe-me lhe arranjar um blini e vamos conversar a sério sobre isso. Pode ser que eu lhe possa dar bons conselhos... pensando bem, não creio que paciência demais seja boa idéia - disse Darcy. Talvez não fosse inteiramente justo açambarcar o mercado nas Lunels. Ele tinha obrigação de ajudar mais a Maggy. Mas onde é que estava Fauve?

Ele tornou a olhar para a escadaria. Afinal! Lá vinha ela, tão flagrantemente deslumbrante como ele jamais a vira, os cabelos ruivos e compridos esvoaçando, com um vestido de lantejoulas prateadas, cortado como uma combinação curta, as faces brilhando com um rubor de empolgação, subindo a escada de dois em dois degraus e gritando:

- Magali, Magali, desculpe o atraso!

Garota suculenta como uma salamandra, cujo elemento natural é o Togo, Fauve Lunel chegou à sua festa de aniversário, mas não sozinha. A mão dela estava segurando com firmeza o pulso de outra moça - pelo menos Darcy achava que era uma moça - uma criatura que parecia um espantalho, de 1,82m de altura, de macacão e tênis, os cabelos louros cortados quase rentes e uma expressão espantada no rosto, correndo atrás de Fauve.

- Magali, olhe o que lhe trouxe! Ela acabou de saltar do ônibus, procedente de Arkansas... o que você acha?

Maggy examinou a moça. O aspecto das melhores modelos da época era elegante, sofisticada, escultural, com cabelos soltos. Essa garota era só

ossos, com dentes um pouco salientes, sardas e sobrancelhas arqueadas. Pare cia incrivelmente promissora. Então, o aspecto estava para mudar. Fauve sabia das coisas.

- É por causa dela que você se atrasou?

- É. Eu estava lá em cima, no escritório, verificando algumas coisas antes da festa e ela entrou. As amigas que vieram com ela no ônibus, a tinham desafiado, duvidando que ela subisse. Assim, naturalmente, tive de conversar com elas e depois telefonar aos pais dela, para explicar por que ela não ia voltar para casa, convence-los de que eu não era traficante de escravas brancas e arranjar um lugar para ela ficar... você sabe.

- Como se chama? - perguntou Maggy à garota.

- Ida Clegg.

- Hum... bem, seja bem-vinda à Agencia Lunel. Vock bebe vodca?

- Macacos me mordam se hoje não é um dia de primeiras coisas - disse a garota, com uma voz com sotaque sulista, macia. - Sim, senhora, acho que vou beber.

Magali virou-se para Fauve e beijou-a, cochichando:

Mas por que você não deixou todos esses detalhes para amanha?

- Magali, ela também tinha o endereço de Eileen num papel.., as amigas também a tinham desafiado a ir lá - cochichou Fauve.

- Por que não disse logo, pelo amor de Deus? Eu já estava preocupada. - Porque... olhe para trás.

Maggy virou-se e encontrou Eileen Ford atrás dela, parecendo, como sempre, a garota que inevitavelmente será eleita a presidente de qualquer turma em que estiver.

- Feliz aniversário, Fauve - disse Eileen, com um sorriso afetuoso. - Obrigada, Eileen.

- Você deve estar muito orgulhosa, Maggy.

- Ah, estou, sim!

- E quem é esta?

- Uma nova garota que acabamos de descobrir... Arkansas.

Eileen lançou um olhar rápido e penetrante a Ida Clegg, um olhar que via tudo, sabia de tudo, compreendia tudo.

- Arkansas? - perguntou ela. - Arkansas o que? - Só Arkansas - respondeu Fauve.

Sei. Muito patriótico. Bem, Arkansas, seja bem-vinda a Nova York. Eileen afastou-se, pensativa. Não parecia feliz.

- Quem é essa senhora simpática? - perguntou Arkansas. - HL.. essa era... - começou Maggy.

- Ninguém que você tenha de conhecer - garantiu Fauve, depressa.

 

 

                                   Capitulo 28

 

Fauve Lunel só faltou correr pelas portas do velho elevador que se abria tão devagar no teimo andar do prédio de escritórios do Camegie Hall, onde estava situada a Agencia Lunel. Ela estava atrasada para o seu encontro semanal da sexta-feira com Casey d'Augustino, mas Benjamin Litchfield se mostrara extremamente persistente, na véspera, e ela dormira demais, naquele dia. Fauve passou depressa pela sala de espera, onde na parede estavam penduradas seis capas de revista, enquadradas, de antigas modelos Lunel.

- Somente seis - dissera Maggy uma vez - entre todas as nossas centenas, porque quando alguém espera para ser entrevistada naquela sala e olha para aquelas capas, vai embora, se não tiver bastante confiança em si de que vai vencer. Depois, se eu tiver de recusá-la, quando ela sair vai se consolar com as mesmas fotos, porque, afinal, como é que se pode esperar que alguém seja tão bonita quanto aquelas garotas eram?

A agencia, à medida que foi crescendo com os anos, foi ocupando mais e mais espaço no belo edifício antigo e ainda estava apinhada. Todas as agem cias de modelos são apinhadas, como as cozinhas de restaurantes, acampamentos de exército e bastidores são apinhados. Nunca há espaço suficiente para todos os artigos necessários para se executar direito as funções a que se destina o local e se, por um milagre de planta, houvesse espaço suficiente, o trabalho seria prejudicado devido à falta de comunicação entre o pessoal necessário.

O gabinete de Maggy era grande e confortável, mas Fauve e Casey partilhavam dois escritórios pequenos, junto de uma das três salas de reservas, que eram o coração da agencia. As contatos - moças que faziam as reservas dos modelos - pareciam estar todas ocupadas nos telefones, observou Fauve, maquinalmente, sentando-se a sua secretária e tocando a campainha. para chamar Casey. O Departamento Masculino, dirigido por Joe O'Donnel, que já fora modelo também, ficava do outro lado do corredor e ocupava um espaço ainda mais apertado e menos elegante.

Casey d'Augustino, que tinha 25 anos, só estava trabalhando na agência havia um ano, mas ela e Fauve funcionavam como uma equipe. Ela era diplomada por Hunter, o ginásio público que só aceita os alunos melhores e mais inteligentes de Nova York, e Casey, esperta, esperta, nascida com o que ela considerava o nome étnico pouco imaginativo de Anna-Maria, de uma família numerosa do Brooklyn vinda de Palermo havia apenas duas gerações, era a maior amiga de Fauve. Ela sentou-se numa das duas cadeiras do outro lado da mesa e gemeu, passando a mão com cuidado sobre os cabelos crespos e curtos na testa, como se procurasse calombos e machucados.

- O que é que há? - perguntou Fauve, alegre.

- Ressaca de champanha. Do pior tipo. Todo mundo está assim, todo o pessoal. Foi beber todos aqueles brindes.

- Eu me sinto bem - disse Fauve, espantada.

- Você não pode se brindar a si mesma, portanto não precisa ficar com esse ar tifo virtuoso, só porque o aniversário foi seu e rifo meu. No meu eu lhe prometo uma ressaca mortal.

- Eu lhe trouxe um presente.

- Não há nada que possa melhorar o meu estado. - É um contra irritante.

- Já não gosto.

- É o novo número de Cosmo. Um artigo sobre Lauren Hutton e Guy Flatley. Escute só. Ela está falando sobre uma entrevista com Diana Vreeland, sua primeira aventura na alta moda.

 

"Uma dúzia de modelos estavam desfilando em volta dela. E lá estava eu sentada como um sapo, olhando aquela cena. De repente, no meio de

uma frase... D.V. parou e apontou um dedo comprido, numa luva branca, para mim.

- Você! - disse ela. - Eu?

- r, você... você tem muita presença - disse ela, me penetrando com os olhos enormes, de águia.

- Obrigada - disse eu. - Você também.

Ela me lançou um sorrisinho e voltou a acabar a frase. E naquela

tarde, me chamaram para me apresentar no estúdio de Richard Avedon' e tirar umas fotos."

 

- Ah, merda! - Casey levantou-se de um salto. - Não, diga que não é verdade! Diga que está inventando! Diga que é só uma piada maldosa e você só fez isso para me mostrar que gosta de mim, para tirar os meus pensamentos de minha paralisia física, para obrigar o meu sangue a tentar irrigar o meu fígado de novo.

- Já está-se sentindo melhor, não é? - disse Fauve, satisfeita.

- Deus, sim. Parece que posso esganar uma leoa com as minhas mãos. Ah, como é que podem nos fazer uma coisa dessas? Você sabia que milhares de mulheres lêem todos os números de Cosmo religiosamente e quando virem essa historinha vão todas pensar que isso podia acontecer com elas? "Sentada ali como- um sapo", uma ova! Lauren nunca pareceu um sapo, nem no pior dia de sua vida. Em todo caso, foi Eileen, pelo amor de Deus, quem a mandou procurar a Vreeland, ela não passou por ali assim! E onde é que vão acabar todas essas leitoras de Cosmo? Bem aqui no nosso corredor, esperando em fila pelas audiências públicas nas manhas de terça-feira. É melhor contratarmos mais uma garota para atendê-las.

- É. Mas, Casey, você sabe que pode acontecer e deve ter acontecido assim mesmo, pois Lauren é tão correta que ela não ia inventar isso.

- Claro.. Um "raio" tem de cair, de vez em quando... mas isso não quer dizer que, se você for para o Central Park e ficar esperando dez anos, vai cair em cima de você. Em todo caso, o que é isso que ouvi falar de você e a Miss Texarkana? Faith saiu com ela para comprar-lhe umas roupas... o que é que há?

- Mais "raios".

As duas trocaram um sorriso de antecipação e um entusiasmo discreto, como dois garimpeiros batendo ouro que podem ter descoberto uma mina. A indústria dos modelos era um negócio construído sobre um "raio" ocasional e muitas horas de um trabalho árduo, mas sem o "raio", o aparecimento repentino de um tipo de beleza novo e singular, não seria o negócio que se tornara cada vez mais fascinante nos últimos decênios, até rivalizar com a produção de filmes, para atrair o público.

Como todo mundo que trabalha num ramo que negocia com o negócio fugaz do glamour, elas conheciam as verdades por trás dessa ilusão fugidia; a importância vital de poder arcar com a rotina diária; a persistência incrível, e a disciplina sem fim, sem falar da necessidade vital de estar no lugar certo no momento certo. E no entanto, sabiam que o glamour realmente existia e que certos rostos o possuíam, uma qualidade tifo inexplicável quanto o encanto. Elas compreendiam que alguns rostos inspiravam emoção e estavam treinadas para reconhecer esses rostos no meio de um mar de garotas que eram apenas bonitas. A diferença era tifo pequena que, em muitos casos, tinha de ser uma decisão subjetiva.

Todo ano milhares de garotas eram vistas pela Agência Lunel; as que escreviam, enviando fotografias; as que ganhavam as dezenas de concursos de modelos regionais, realizados em todo o mundo, e as que iam pessoalmente à agência. E, entre todas essas, elas escolhiam nada mais do que 30 para representarem. Por que aceitavam essas determinadas 30? Nem Maggy nem Fauve nem Casey poderiam escrever isso em palavras ou fazer um diagrama.

Todas as regras básicas eram bem conhecidas, todos os outros requisitos de uma modelo poderiam ser satisfeitos por um grande número das garotas esperançosas que recusavam. Elas viam tantas candidatas que só alguma que

fosse realmente especial era olhada duas vezes. Casey chamava a isso "alguma coisa por trás dos olhos" e Fauve chamava de um sentido de "realidade realçada", mas ambas queriam dizer a mesma coisa - o "raio".

- Primeiro, em minha agenda - disse Casey - temos o caso da Srta.

Day O'Daniel, que tomou a ligar hoje. Ela está disposta a virar a casaca e vir para cá, mas quer a sua própria contato.

- Até que ponto isso é negociável? - perguntou Fauve, bruscamente. - E a contato dela, ou nada feito.

Day O'Daniel era uma das mais importantes entre mela dúzia de garotas de outra agência. Recentemente, tinha ficado irrequieta, como as modelos às vezes ficavam, por motivos que ninguém podia entender bem, e fizera saber que poderia passar para a Lunel. O contrato dela, como todos os contratos em 1974, só exigia 30 dias de aviso prévio de ambas as partes, para seu cancelamento, e Fauve e Casey estavam ansiosas por representarem a morena de os

satura tão bem-feita, que tinha um âmbito dos maiores no negócio. O âmbito; a capacidade de vestir um vestido de Galanos com uma autoridade displicente e ainda parecer docilmente linda num anúncio de revista popular, era uma das qualidades necessárias para que qualquer moça que já fosse modelo importante aspirasse a um status de super estrela - e Day possuía isso. No entanto, a Lunel tinha uma norma, estabelecida por Maggy, de não permitir que qualquer modelo tivesse sua contato.

- Day disse que não se acharia realizada se não tivesse uma contato sua, disse que queria alguém com quem se sentisse inteiramente segura e à

vontade, alguém que conhecesse todas as suas necessidades, alguém que lhe desse a sensação de que estava sendo protegida. Estou citando.

- Talvez ela deva voltar para casa da mamãe - disse Fauve, ruminando. - É uma idéia tão errada e ingênua, pensar que, por ter sua própria contato, você venceu. Ela não entende que se eu lhe fizer essa concessão, todas as outras contatos daqui mentalmente se desligarão dela, se esquecendo dela? E se a contato dela sair para o almoço? E se adoecer por uma semana, ou arranjar outro emprego? Day nunca estaria bem protegida. É uma maneira maluca de dirigir uma carreira. Espero que você lhe tenha dito isso.

- Puxa, não, Fauve. Achei melhor deixar você cuidar disso pessoalmente, pois faz isso tão bem.

- Engraçado. Estou vendo que você melhorou. É assustador como você pode ser boazinha, quando está se sentindo mal mesmo. Eu sempre fico tranqüilizada quando você volta ao seu natural horroroso. Então, a nossa Central Máxima não basta para Day O'Daniel?

Os olhos de Fauve se voltaram para a atividade que ela podia ver através da parede meio envidraçada de seu gabinete. Fauve tinha vista para as três partes de reservas: a sala menor, da Central de Testes, onde todas as garotas novas, começando a carreira, eram atendidas por quatro contatos; a grande sala da Central principal, onde 14 funcionárias combinavam os programas da maioria das modelos Lunel; e a lendária sala da Central Máxima, em que três altas funcionárias atendiam os chamados de apenas 20 moças, as estrelas da agência.

- Ela disse claramente que não era suficiente estar na Central Máxima? - insistiu Fauve.

- Achei que eu deixaria isso para você descobrir.

- Acho que vou deixar que Magali fale com ela - disse Fauve.

- Ela foi passar o fim de semana no campo, lembre-se, e a Srta. O'Daniel quer uma resposta hoje. Day deixou o número de seu telefone de casa.

Você pode ligar para ela de noite.

- Está bem, o seguinte.

Mais uma vez, Fauve se lembrou de que, da tarde de quinta-feira até tarde na manhã de segunda-feira, Maggy agora passava o tempo na casa de campo que ela e Darcy tinham comprado junto de Bedford Village. Ainda era difícil se dar conta de que Maggy chegara a se forçar a deixar a agência inteiramente nas mãos de Fauve, durante dois dias em cinco por semana. Mas Darcy treinara os seus vários redatores a só exigirem dele três dias por semana, descobrindo, ao fazer isso, que eles se tornavam mais eficientes e confiantes. Ele sempre achara que o trabalho se contrai para caber confortavelmente no menor período de tempo que você está disposto a dedicar a ele e, quando ele e Maggy se casaram, resolveu realizar o seu sonho de passar prolongados fins de semana no campo.

- O seguinte - disse Casey - Miss Nébula, Miss Cosmos, Miss Supernova, Miss Via Láctea, ou seja o que for que ela tenha ganho, se nega a se submeter ao programa Diz que não precisa dele... já treinou o suficiente para toda a vida. Não, não ouse perguntar-me. Já disse a ela que todo mundo segue o Programa, sem exceção, a não ser que seja uma modelo muito importante que nos venha de outra agência e mesmo assim tomamos essa decisão com uma base individual. Mas ela é sueca, muito de outra galáxia e muito obstinada. .

A Agência Lunel fazia uma avaliação, chamada o Programa, de todos os modelos novos que aceitavam, de que participavam Maggy, Fauve, Casey e três das contatos mais experientes. A agência pagava para mandar as moças a um fotógrafo para uma série exaustiva de fotografias destinadas expressamente a demonstrar como ela trabalhava diante da câmara em suas próprias

roupas e maquilagem. Depois, todos os detalhes eram analisados e as seis resolviam como polir a nova modelo. Elas se indagavam se ela precisava melhorar a postura; se os cabelos estavam no comprimento, penteado e colorido ideal; o que mais devia aprender sobre maquilagem para ampliar o seu âmbito; se precisava de mais instrução sobre suas expressões para adquirir flexibilidade e presença diante da câmara; ou aulas de dança para maior facilidade de movimento e pose. Se viesse de uma escola de modelos, elas se perguntavam: o que ela devia desaprender?

- Nunca houve sueca nenhuma tão obstinada quanto eu - comentou Fauve. - A não ser que ela tenha o seu próprio disco voador, a Miss Suécia vai passar pelo Programa, mesmo que a Revlon telefone hoje e queira assinar com ela um contrato exclusivo para o resto da vida dela. Cometemos um erro com Jane, quando resolvemos que ela não precisava de Programa... e isso para mim foi uma lição que nunca esquecerei.

- Essas vencedoras de concursos de beleza realmente gastam muito tempo nessas coisas, até conseguirem vencer - disse Casey, procurando ser justa.

- Nada disso tem a ver com a profissão de modelo. - Como eu bem sei.

- Vou atender a Miss Magnífica... acho que era o Universo, Casey... quando tiver um minuto. Enquanto isso, vamos chamar Loulou.

Fauve pegou o interfone e ligou para a Central Máxima e pediu a Loulou, a contato mais antiga da agência, para ir ao gabinete dela.

Meio minuto depois, Loulou entrou na sala, jogando-se satisfeita numa poltrona. Tinha 26 anos e era uma mulher gorducha, loura, de aspecto agradável, cuja expressão invariavelmente combinava uma preocupação profunda e um otimismo absoluto, de modo que ela parecia que estava afundando no Titanic, com uma fé absoluta na existência do Paraíso. Loulou, como um grande treinador de cavalos de corrida ou professora de balé suprema, fizera uma arte daquele equilíbrio especial que lhe permitia lidar com uma raça diferente dela, uma aristocracia natural muito emotiva, de alto custo, altamente vulnerável, impedida, pelo sistema de classe da beleza, de jamais ser igual às outras mulheres.

- Oi, caras - disse ela. - Bom, vamos ver. Betty não quer furar as orelhas para os brincos de brilhantes do anúncio de De Beers. Diz que não é covarde, mas não suporta agulhas. Hillary fora de atividade para todo o mês de outubro. Vai ao Himalaia, meditar ou seja o que for, com aquele guru dela, ou seja quem for. Glamour me deu o melhor orçamento para a viagem a Tânger e só dá para duas garotas e mela e eles precisam de três, de modo que perguntei às garotas se aceitavam menos para ver a Casbá. Aquela canadense nova fica me dizendo que só quer fazer catálogo, quando eu sei que está preparada para o editorial... alguém tem de falar com ela sobre o seu problema de imagem. Há nove telefones enguiçados, como sempre, mas Pete, o nosso consertados de telefones permanente, está de férias, e como realmente ninguém mais compreende a nossa organização, é sorte hoje ser sexta-feira. Uma de vocês vai ter de fazer Cindy se demitir, pois não recebo pedido para ela há duas semanas e vocês sabem que isso quer dizer que acabou-se para ela aqui. Mas, que diabo, ela está com 26 anos e sabe que isso está para acontecer há um ano ou mais, de modo que talvez seja até um alívio. Há uma venda na sala de exposição de Anne Klein; Halston vai dar uma festa e linda não recebeu convite... não posso me responsabilizar pelo que ela pode fazer... conservem-na longe das lâminas de gilete. Tento insistir com Fabergé para usarem Jessica que agora estão loucos por ela, não querem outra pessoa e precisam dela amanhã, mas ela está no México; o pai de Dawn chegou de Siracusa e ela escolheu justamente este fim de semana para sair da cidade com seu amiguinho. O que é que vou dizer ao velho papai? Doyle Dane ligou de repente para me lembrar que Patsy tem de dirigir um cano mecânico, naquele anúncio da Alfa Romeo... ela já está a meio caminho da locação e, ao que eu saiba, ela não dirige de todo; lima das garotas- que está treinando para contato esqueceu de ligar para Lani acordando-a de manhã, de modo que ela dormiu até tarde e dou dez pessoas esperando durante uma hora e elas querem cobrar dela; Patsy acabou de telefonar pedindo para marcar hora para ela no dentista, médico, limpeza de pele e depilação, mas nós nem sabemos o que é que ela quer depilar... em todo caso, se vocês não têm mais nada a fazer senão ficar sentadas aí, batendo papo e reclamando, tudo bem.

Mas eu tenho muito trabalho, de modo que se me derem licença... ah, queriam falar comigo? O que é que há?

- Muita bondade sua perguntar - disse Fauve.

- Muito amável, você perder tempo conosco - resmungou Casey.

- Day O'Daniel vai se juntar à nossa família feliz - declarou Fauve.

- Por que não? - Loulou nunca aparentava surpresa. Assim como sua expressão não mudava nunca, sua pose não podia ser abalada. Se Fauve tivesse resolvido se livrar de todas as 20 modelos da Central Máxima, Loulou teria dado de ombros. Sua filosofia era que a cada três meses chegava uma nova geração de modelos das vastidões daquele mundo misterioso e sem importância, fora de Nova York, e o trabalho dela era apenas pô-las a trabalhar o mais lucrativamente possível. As modelos da Central Máxima ganhavam 750 dólares por dia, se hem que algumas tivessem a idéia de que valiam mais, até mil dólares por dia. Ninguém, nem Maggy, nem Eileen Ford, nem Fauve, e certa mente nem Loulou, tinha alguma idéia de que dentro de mela dúzia de anos todas as grandes modelos de todas as agências estariam ganhando 3.000 dólares por um dia de trabalho.

Loulou tinha treinado Fauve e Casey e elas sabiam que, embora Loulou tivesse suas modelos favoritas, como toda contato, a agência era sempre mais importante para ela do que qualquer moça individualmente.

- Vou fazer um quadro para ela - disse Loulou, suspirando, se espreguiçando e bocejando. - Minha caba - gemeu ela.

- Loulou, você não está curiosa para saber por que ela vem para cá? - perguntou Casey.

- Já sei. Acabei de ganhar cinco dólares apostando nisso. Devia ter apostado mais. Ah, Deus, por que é que eu bebo? Não há nada tão divertido que compense a gente se sentir assim. Escutem, caras, tenho de voltar para a central. Para vocês pode ser uma droga de um emprego, mas para mim lá fora é coisa de vida ou morte.

Ela saiu e fechou a porta.

- Um dia - disse Casey, com tristeza - ainda hei de espantá-la. - Não vai, não.

- Não vou, não - concordou Casey. - Contatos!

Certamente, pensou Nadine Mistral Dahnas, as contas de Arene deviam estar erradas. Como é que ela podia ter gasto 12 mil francos em flores, nos últimos meses? Arene era a florista mais cara de Paris e a de maior prestígio. Era uma demonstração de falta de inteligência, na opinião de Nadine, mandar flores de qualquer outra loja, a uma anfitriã, pois, por mais que se gastasse em outro lugar, as flores não davam a mesma impressão. Mandar flores, as flores corretas, da maneira correta, do lugar correto, era um dos detalhes cuidadosamente calculados que Nadine tinha aperfeiçoado durante os seis anos em que fora Madame Phillipe Dalmas.

Eles tinham sido chamados de o casal mais invejado de Paris, lembrou-se Nadine, sentada à escrivaninha de seu salon moderno e enfrentando a pilha de contas de que ela, afinal, se forçara a tratara A maior parte era já de três ou quatro meses atrás e muitas das pessoas que não queriam saber se ela era filha do Comte de Paris, pretendente legítimo ao trono de França, ou filha de Julien Mistral, cujos bens a deixariam tão imensamente rica, quando ele morresse. Quando morresse. O pai dela, maldito fosse, estava dando todas as mostras de viver até aos 100 anos e os comerciantes de Paris não tinham nada em comum com os comerciantes britânicos de um século antes, que forneciam dinheiro a um herdeiro baseados em suas expectativas.

Nadine examinou a conta de Arene com cuidado. Duas orquídeas miniaturas cymbidium, plantadas em cache pots de porcelana, para a Princesa Édouard de Lobkowicz. Como podiam ter cobrado tanto, se ela mesma fornecera os cache pots? Nadine tinha certo orgulho desse presente determinado, pois ela é que tivera a idéia de comprar os cache pots mais encantadores na Le Grenier de la Marquise, velha e fascinante casa de presentes na Rue de Sévigné, levando-os à Arene para que plantassem neles. Naturalmente, isso encarecia muito as flores, mas como é que alguém que tivesse a menor pretensão ao bom gosto poderia mandar um buquê banal a uma senhora que nascera Princesa Françoise de Bourbon-Parme? Uma senhora que incluía Nadine e Phillipe, com o Duque e Duquesa de Uzés e o Duque e Duquesa de Torlonia, num jantar de 12 pessoas, servido por quatro mordomos em louça de Meissen, um jantar em que o menu colocado diante de cada prato tinha a coroa do Sacro Império Romano? Ela não mandava flores cada vez que eles aceitavam a hospitalidade dos Lobkowiczs, mas quando mandava tinham de ser extraordinárias.

Lirios do vale para a Viscondessa de Ribes, mandados só depois de convites para dois jantares íntimos, seguidos de cinema, e um jantar sentado a rigor, para 40 pessoas. Nadine hesitara o mais possível até se decidir quanto às flores a mandar para a mulher mais elegante de Paris. Por fim, ela achara que só serviriam as flores mais simples. Claro, nesse caso era evidente que devia haver quatro duzias... qualquer gesto inferior teria sido insignificante, não chamaria atenção alguma. Flores para Helène Rochas, flores para São Schlumberger, flores para a Princesa Ghislaine de Polignac... ela pôs de lado a conta de Arene. Não duvidava de que fosse tão exata quanto necessária, uma das obrigações que ela aceitava, a fim de conservar o seu lugar no círculo íntimo da sociedade parisiense.

Embora pudesse parecer aos de fora que a sociedade de Paris fosse organizada de modo negligente, pois incluía certos costureiros, alguns escritores e um ou dois decoradores, e até mesmo os Borys, donos da grande cadela de mercearias Fauchon, Nadine. sabia bem, com a sintonização delicada a cada vibração que tem um aramista funcionando sem rede, que na verdade esse era um mundo em que, se não fosse a sua vigilância incessante, até mesmo "o casal mais invejado de Paris" poderia desaparecer bem depressa.

A discriminação sempre foi uma arte na sociedade francesa, onde as categorias são tão calibradas que até entre os duques há três - Brissac, Uzés e Luynes - que são mais ducais do que outros. É uma sociedade que ainda se baseala sobre os títulos. Tratava-se de uma pequena porção dos parisienses, mas eram as únicas pessoas no mundo que ainda interessavam a Nadine.

Havia alguns estrangeiros escandalosamente ricos a quem era sempre permitida a entrada, pois eles não contavam - como poderiam contar, se não eram

franceses? Permitia-se que eles gastassem dinheiro em diversões para comprar sua entrada para um lugar puramente provisório na sociedade, um lugar que dependia exclusivamente da qualidade extravagante e de bom gosto de sua prodigalidade. Um homem bem educado, interessante, livre, com amantes categorizadas, como fora Phillipe antes de seu casamento, muitas vezes era admitido, bem como certos diplomatas estrangeiros, enquanto ocupavam seus postos, bem como um punhadinho de políticos poderosos.

Mas as grandes anfitriãs nunca convidavam pessoas apenas porque as haviam convidado antes. Cada convite, por maior que fosse a recepção, era

considerado, examinado, pesado, medido e depois reconsiderado com cuidado. Por que, Nadine imaginava uma anfitriã se perguntando, vou convidar os Dalmas para a minha mesa? Ainda valem a pena? Ele não contribui em nada, como status, pois há séculos que anda por aí, e não tem um nome histórico, nem realização alguma, e agora nem mesmo a virtude de ser livre. Mas ela é mais íntima de Jean François Albin do que qualquer outra pessoa... a última coleção dele foi uma maravilha... e os dois ainda são muito decorativos... sim, vou tornar a convidá-los, desta vez. Afinal, ela é filha de Mistral.

Três anos antes, Nadine se perguntara por quanto tempo o período de tolerância poderia continuar a se prolongar para os Dalmas, aquele casal que, engraçado, era pobre. Mais um ano, talvez... ou menos? Foi então que ela percebeu que eles não podiam mais parecer empobrecidos, por temporariamente que fosse, sem decaírem socialmente. Se ela não tivesse tomado a decisão de que eles tinham de receber, em breve seriam tachados com o terrível estigma de gente que só recebe hospitalidade, sem nunca retribuir.

Isso seria acompanhado de um esquecimento social gradativo, até se encontrarem tão fora da sociedade autêntica quanto esses membros da grã - finagem que compram entradas para todos os bailes de caridade e dão gorjetas exageradas ao maítre do Relais Plaza para conseguir uma mesa junto do bar, tudo para se comprazerem na ilusão de que se estabeleceram em Paris, quando na verdade eles apenas tiveram licença de usar um pouco de espaço vazio.

O que é que elas fazem, essas pessoas que não são convidadas para as festas particulares corretas, pensou Nadine, o corpo todo se enrijecendo de desprezo? Como podiam suportar a vida quando tinham de viver fora do único mundo que interessava? Não sabiam como eram vis, como importavam pouco, como sua posição era abjeta? Não compreendiam que habitavam um ermo tão vazio e. despido de significado como o espaço exterior? Observando-as, essas estranhas, encomendando vestidos maravilhosos com Albin, ela ficava impressionada vezes e mais vezes com o fato incompreensível de que essas roupas estavam sendo compradas para não serem usadas em lugar algum. Os jantares a que eram convidadas eram por demais desprezíveis, suas noites de gala nos restaurantes eram abjetas. Elas só existiam para enriquecer Albin. Ela poderia chegar a achar que eram patéticas, se não lhe fossem tão detestáveis, se a inferioridade delas não as tornasse, não que lhe dizia respeito, menos do que humanas.

Nadine se debruçou sobre a conta de Lenotre, o grande banqueteiro de Paris. Como ela e Phillipe não tinham empregados, a não ser uma faxineira, a conta de Lenotre era a maior de todas. De três em três meses, eles ofereciam um "coquetel", bem planejado para ocorrer pouco antes de uma estréia importante ou um grande baile, de modo que as pessoas se contentavam em se servir de um magnífico bufê de hors d'oeuvres, sabendo que mais tarde iam comer de novo. Ao preencher o cheque fabuloso, Nadine pensou que nada seria mais estúpido do que utilizar um banqueteiro de segunda categoria. Melhor um coquetel de Lenotre do que um jantar sentado de qualidade inferior, ela se garantiu, enquanto ao mesmo tempo se lembrava, com uma inveja tão pura que parecia um vento frio, da recente festa de aniversário de casamento a que eles tinham sido convidados pela Duquesa de La Rochefoucauld. Jeanne-Marie convidara 140 pessoas para um jantar sentado e mais 200 foram convidadas para ir dançar depois. O único meio de se saber que a anfitriã era meio americana foi pela escolha espirituosa do cardápio: presunto a Virgínia e salada de batata, no meio de todas as outras iguarias.., ah, ser tão imensamente, inimaginavelmente segura a ponto de poder servir uma comida dessas ao Rei Umberto da Itália e ao Príncipe Charles de Luxemburgo, pensou Nadine, ainda dura de inveja. Jeanne-Marie era a mulher de mais sorte... ela sabia a sorte que tinha? Apreciava isso?

Nadine despertou de seu devaneio, lembrando-se de que ela era muito mais exigente, mais cuidadosa, mais selecionada na sua escolha de convidados do que a ocupada duquesa, que dava tantas festas que recebia gente que Nadine nunca convidaria para sua casa. Não, os pequenos coquetéis de Nadine Dalmas se haviam tornado famosos pela exclusão inclemente de qualquer um que não fosse positivamente de primeira categoria.

Muitas vezes, ela e Phillipe aceitavam convites de gente cuja posição social era um pouquinho duvidosa, só para poder deixar de convidá-los. Eles

sempre ficavam tão ridiculamente magoados, decerto esperando que um coquetel tinha de se tornar um repositório para todo tipo de gente, achando que

mereciam uma certa reciprocidade. Não havia dúvida de que a fórmula dela era certa. Quatro coquetéis por ano, só para as melhores pessoas, davam a uma anfitriã uma atração infinitamente maior do que se ela desse dúzias de jantares suntuosos mas menos discriminatórios. E era muito mais econômico.

Quem havia de pensar que eles não eram ricos? A melhor florista, o melhor banqueteiro, os melhores clubes, com exceção do Jockey - a família de Phillipe, embora fosse boa, não lhe dava direito de ser sócio do Jockey.

Lá estavam as contas do Clube de Pólo e o Golfe de St. Cloud. Phillipe pertencera a eles em solteiro, uma de suas poucas despesas, nesse período da vi

da, e deixá-los estava fora de cogitação. A conta dele pelo aluguel de cavalos de pólo, nos dois últimos meses, quando ele jogara no time do Aga Khan, era de mais de quatro mil francos, notou ela, mas era aceitável alugar cavalos, se a pessoa jogasse bem, e pelo menos não saía tão caro quanto as pesadas perdas dele no jogo, no inverno, quando o clube se enchia de jogadores de gin-rummy.

Nadine fez os cheques o mais depressa que pôde, para acabar com a tarefa, e, ao escrever, meditou sobre as coisas que eles não tinham de pagar. Essas contas, por altas que fossem, só representavam uma pequena percentagem na escala em que viviam. O imenso guarda-roupa de Nadine, sempre renovado, era todo feito pela casa de Jean François Albin; o apartamento não lhes custava nada, eles viajavam nos jatos particulares dos amigos; esquiavam hospedados nos chalés deles na alta Sabóia ou St. Moritz, velejavam nos iates deles no Egeu, passavam semanas em palacetes particulares de St.-Jean-de-Cap-Ferrat, Porto Cervo e Baviera. Nadine tinha conta no Relais Plaza e no Maxim's para os almoços, ainda pagos pela casa de Albin, e, naturalmente, eles jantavam fora toda noite, durante a temporada em Paris.

Nadine gastava pouco dinheiro e só onde seria notada. No Édouard e Frederic, cabeleireiros mais na moda de Paris, onde ela ia quase diariamente, dava gorjetas generosas, O homem que a conservava loura, o rapaz que lhe fazia o xampu, o homem que secava seus cabelos, a mulher que lhe fazia as unhas de pés e mãos - eles sempre seriam os primeiros a falar. Se uma princesa ou a mulher de um armador de navios grego podia se dar ao luxo de ser mesquinha, a simples Madame Dalmas não podia.

Simples Madame Dalmas. Nadine se levantou da mesa e começou a rondar pelo seu salon. Por que, pensou, e se perguntou por que se dava ao trabalho de se fazer de novo a pergunta amarga, por que é que ela se casara com um homem pobre? Por que a mãe não a impedira? Por que a haviam deixado cometer a loucura de sua vida? Deslumbrada como ela estava, alguém certamente poderia tê-la avisado, deveria tê-la impedido. E um homem que não só era pobre, mas também um burro ineficaz, que, durante os seis anos de casamento, só concretizara alguns de seus negócios nebulosos.

Ela provavelmente o amara um dia, por incrível que isso parecesse agora. Mas qual a outra explicação para o modo como ela gastara o dinheiro que a mãe lhe deixara, ao morrer? Kate tinha morrido de câncer quatro anos antes, deixando muito mais dinheiro do que dissera a Nadine que ela poderia esperar. Parece que ela possuía alguns quadros, que conseguira vender com um grande lucro. Em todo caso, o dinheiro agora tinha desaparecido. Nadine aderira ao sonho de Phillipe, sua resolução estúpida de ter uma casa de campo. A metade de sua herança fora gasta para comprar o château na Normandia. Desde então, ele se recusara a desistir da propriedade, embora eles nunca tivessem tido os meios de restaurá-la direito, nem de tomá-la habitável. Ele sonhara com uma casa própria durante tanto tempo, insistiu ele... e, em todo caso, em breve teriam muito dinheiro.

Amor por Phillipe. Devia ter existido, do contrário por que ela teria permitido que ele investisse o resto do legado da mãe? Houvera o suficiente para comprar parte de uma boate que pretendia concorrer com o Castel's, com 3.000 sócios. Jean Castel recusava centenas de clientes toda noite, portanto, era óbvia a necessidade de outra boate.

Juntos, como acreditavam Phillipe e seu sócio, eles conheciam todo mundo interessante nesse círculo rarefeito de filhos da noite, essa gente famosa e aborrecida, tão aborrecida que até sua fama os aborrecia, gente permanentemente desajustada que, às 23 horas, toda noite, começava a procurar um substituto para o sono. O que eles não perceberam foi que essa gente não queria, nem precisava, nem achava bom, ter outro lugar para ir, a não ser o seu querido e conhecido Castel's na Rue Princesse. Depois de um ano, Phillipe tivera de abandonar o empreendimento terrivelmente dispendioso, com um prejuízo total.

Sim, ela com certeza o amara, pois do contrário fora tão criminosamente tão sem juízo quanto ele. Depois do fracasso da boate, Phillipe agiu como se isso tivesse sido por culpa dela. Ele se tornou petulante e mal-humorado com a decepção, castigando Nadine por não poder provê-lo com novos fundos. Ficou com preguiça de querer continuar a encanto-la.

Havia amargura comparável à de viver com um homem que não tinha nada a não ser o encanto, quando ele deixava esse encanto desaparecer como se fosse uma mulher gorda quando tira a cinta apertada? Contudo, se o telefone tocasse, ele vestia o seu encanto, ao atender. Ela podia observá-lo numa festa, com tanta frieza como se ele estivesse dentro de uma vitrina, observar como homens e mulheres reagiam a ele, esse homem que fazia perguntas irresistíveis, que fazia os elogios mais imaginosos, que escutava com arte e, ao falar de si, o fazia com modéstia e só com humor. Um manto de encanto o envolvia como um traje de toureiro. Cada um dos artifícios dele era nojentamente conhecido dela. Até mesmo a beleza dele era repugnante. Ela se importava tão pouco com ele que era indiferente aos seus casos amorosos. Felizmente, ele tinha o bom gosto de se limitar a mulheres de dinheiro e poder, que eram sempre hospitaleiras. Era a única coisa que ele fazia com alguma esperteza.

Nadine empilhou os envelopes em que colocara os cheques e os levou para o quarto. Ela os levaria para a casa Albin, para serem despachados na

segunda-feira. Para que comprar selos, se sua secretária os poria no correio?

Ela abriu os três pares de portas em uma das paredes de seu quarto e examinou seu guarda-roupa. Um milhão de francos em roupas, sapatos, chapéus, peles, lingerie; todas as peças, menos a lingerie, feitas sob medida, tudo lhe tendo custado apenas o preço da lavagem a seco e o seu orgulho.

Há anos que ela se dera conta de que detestava Jean François Albin. Ela não sabia quando começara essa admissão de que não passava de uma ama-seca glorificada e fantasiada de um menino chorão, fraco, inteira mente egocêntrico, freqüentemente cruel, que só tinha um único talento que o mundo aceitava como de um valor enorme. Sua melhor amiga, sua musa! Que farsa era aquilo, uma farsa que ambos ainda representavam; Nadine, porque não podia se dar ao luxo de perder as roupas de graça e o prestígio que tal ligação lhe dava; Albin, porque, depois que o seu breve encanta mento por ela seguira o seu rumo normal, agitado e sempre decepcionante, ele verificara que Nadine Mistral, chique, superior, se tomara útil para ele. Ele agora exigia que ela levasse seus cães neurastênicos ao veterinário, contratasse e despedisse seus empregados, escrevesse seus agradecimentos, almoçasse com os seus clientes mais aborrecidos e ricos, se livrasse de amantes de uma noite que tivessem pretensões, comprasse seu haxixe e ficasse a sua disposição as 24 horas do dia.

Naquela noite, Nadine teria de convencê-lo e importuná-lo para ir à festa de seu próprio aniversário, ao qual ele não queria ir, depois que ela passara semanas planejando-o. Lagostas demais, reclamou ele, duquesas demais. Por que ela não arranjara uma coisa divertida, um piquenique, por exemplo, com chucrute, mocotó e muito vinho tinto barato? Por que ela fora tão convencional, tão burguesa? Nadine se rira e lhe dissera para se lembrar de que o vinho tinto o enjoava, mas ela estava indignada. Ele era intolerável, ela detestava o som da voz dele, porém o seu emprego com Albin representava a única fonte de renda fixa que os invejáveis Dgumas possuíam. Era apenas o suficiente para atender a algumas de suas necessidades, não o suficiente para cobrir a conta da casa de flores que ela acabara de pagar. Desde a ocasião em que fracassara a aventura da boate, eles tinham vivido quase exclusivamente de dinheiro que Nadine pedira emprestado a Étienne Delage, o marchand de Mistral. Tinha horror de ir procurá-lo, pois cada vez que ia, sentia-se mais dependente dele. Mas quem mais havia de lhe emprestar dinheiro, para ser pago quando o pai morresse?

Nadine se jogou na cama e se perdeu em seu devaneio eternamente reconfortante. Ele havia de morrer. Ela ia herdar. Os bens valeriam.. , tanto, tanto! Ela nem podia imaginar quanto. Claro que ela não poderia vender muito depressa, para não desvalorizar o mercado, mas havia de adquirir pelo menos muitos milhões de francos de uma vez, o suficiente para pagar todas as sua contas, o suficiente para se prover de todos os francos que pudesse gastar. Poderia largar Albin no pior momento possível, aleijando-o emocionalmente pouco antes de uma coleção, quando ele estivesse mais vulnerável. Ela havia de enxotar Phillipe de um modo tão humilhante que ele nunca poderia falar sobre isso com os amigos. Ela compraria uma grande casa particular na Rive Gauche - na Rue de Lille, talvez - e mandaria decorá-la por Didier Aaron, com um refinamento clássico que não ficaria devendo nada, nada mesmo, à simples moda. E começaria a viver. Nadine Mistral, a grande herdeira, assumiria o seu lugar de direito no coração do círculo íntimo da sociedade parisiense.

Mas até aquele dia, ela não faria absolutamente nada para perturbar o status quo. Ela não poderia divorciar-se, enquanto sua situação social dependesse do encanto e das amizades do marido e da magia do nome de seu patrão. Ela ainda precisava ser Madame Phillipe Dgumas, a melhor amiga de Jean François Aibin - não havia orquídeas em cache-pots que a pudessem conservar nas listas de convites se ela ficasse sem essas proteções. Ela só poderia triunfar como mulher sozinha se fosse uma mulher apenas rica. Ela esperaria. Cristo, mas quanto tempo ainda aquele velho ia viver?

 

 

                                                Capitulo 29

 

Fauve espreguiçou-se. Ah, que bom. Espreguiçar-se, pensou ela, sonolenta, estava na mesma categoria superior de comer, ouvir música e beijar. Graças a Deus que ninguém era tão pobre que não pudesse se espreguiçar. Ela bocejou. Um bocejo grande era quase tão bom quanto uma boa espreguiçada. Ela bocejou e se espreguiçou ao mesmo tempo. Não, perdiam alguma coisa, combinados. Com tantas sensações gostosas ao mesmo tempo, ela não se podia concentrar direito.

Ele rolou na cama e estendeu a mão para pegar Ben e lhe contar isso, mas ele não estava lá. Ela abriu os olhos e olhou em volta do quarto escurecido, um lugar desconhecido, pois era a primeira vez que ela acordava no apartamento dele. Ainda seria noite? Aonde ele podia ter ido? Ela esperou um pouco, quase adormecendo de novo, mas quando ele não apareceu, ela se levantou da cama, tateou até às janelas e afastou as cortinas.

A luz do sol fraca e relutante de uma manhã de março em Nova York a fez piscar. Nuvenzinhas, altas acima da cidade, pareciam trituradas, e dedinhos de ar frio penetravam das bordas das vidraças. Ela tornou a se afundar na cama e considerou as alternativas. Podia gritar e ele viria correndo, de onde estivesse. Podia tornar a dormir ou podia procurar alguma coisa para vestir, pois estava nua, e ir escovar os dentes. Os dentes primeiro, resolveu ela, pegando a colcha do chão e se envolvendo nela, pois não parecia haver nenhuma peça de roupa sua no quarto.

No banheiro, ela encontrou um bilhete enfiado num tubo de pasta de dentes.

 

                       Querida,

Sai para comprar alguma coisa para o café da manhã. Volto logo que puder. Eu te amo.

                 Ben

 

Isso foi uma idéia, disse ela consigo mesma, procurando uma escova de dentes. Um café da manhã realmente magnífico - majestoso, voluptuoso, erótico - era o único meio de começar uma manhã de domingo em Nova York.. Mais importante, isso provava que ele não esperava que ela estivesse ali naquela manhã, ou teria abastecido a geladeira na véspera. Como ela não descobriu nenhuma escova a não ser a de Ben Litchfeld, notou que ele obviamente não achava natural a presença de uma dama, pois do contrário teria uma de reserva. Bom, uma escova de dentes molhada e de segunda mão era melhor do que nada. Ela tomou um banho de chuveiro rápido, enxugou-se numa das toalhas dele, ligeiramente úmida, e vestiu o roupão de banho limpo mas meio surrado que ele deixara pendurado do cabide da porta do banheiro. Positivamente, um estabelecimento de homem solteiro.

Fauve foi para a sala e viu logo que não havia ninguém na cozinha, preparando alguma coisa maravilhosa. A sala não estava apenas vazia, mas tinha um tal caráter impessoal e glacial que ela teve certeza de que o mesmo decorador que arrumara o escritório de Ben também arrumara o apartamento. Tinha as mesmas cadeiras de Barcelona - alguém algum dia teve mais do que o par previsível, ou havia alguma lei a respeito? - e mesas de vidro e cromado iguais. O tapete, como as cadeiras, era evidentemente caro e cuidadosamente combinando com as cortinas esportivas, mas as plantas pouco simpáticas pareciam ter sido escolhidas por sua capacidade de sobreviver ao abandono, e as litografias nas paredes não davam qualquer indicação de um gosto pessoal.

O único sinal de humanidade na sala de Ben eram os exemplares do New York Times e Daily News de domingo, que ele tinha parado para comprar na banca da Rua 58 e Madison, na noite da véspera, antes de eles voltarem. Ela olhou para os jornais desmembrados espalhados pela mesinha e rejeitou a idéia de apanhá-los. Por algum motivo, eles não se coadunavam com o seu animado estado de espírito. O seu corpo estava todo sensível, e bem manuseado, como de fato o fora. Em todo caso, que boas notícias ela poderia esperar encontrar no Times? Certamente nada que merecesse ser impresso, refletiu ela, e tentou se enroscar no sofá nada sensual.

Por que é que os solteiros sempre tinham móveis que eram estofados com espuma de borracha? Ela deveria ir para a cozinha, fosse onde fosse, procurar um saquinho de chá? Não, ia esperar que Ben voltasse. Depois daquela noite, uma xícara de chá tomada sozinha parecia uma maneira pouco digna de começar esse domingo lindo e preguiçoso... esse domingo necessariamente breve, como ele sabia, pois ela devia partir para Roma naquela tarde, com as cinco garotas que Valentine escolhera para desfilar suas roupas na inauguração de sua coleção da primavera. Passariam duas semanas, indo para Milão e Paris, depois de Roma.

Sem sucesso, Fauve tentou se enroscar numa pilha rebelde de almofadas de espuma. Benjamin Franklin Litchfield, onde está você? A noite da véspera tinha sido a primeira vez que ela passara a noite toda com ele, ou com alguém, aliás, pensou Fauve, considerando a curta lista de seus amantes. Ela sabia que estava fora da moda, mas só houvera dois, além de Ben.

Fauve imaginava, quando tinha tempo para pensar a respeito, o que era raro, que o modo como ela vivera era estranho, para a década de 70, tão liberada. Embora ela trabalhasse por muito tempo, com afinco e até tarde, e tivesse estabelecido sua independência financeira de um modo que muitas outras moças de sua idade não conseguiram fazer, ela se contentara em morar na casa da família, até dois anos antes. Tinha sido cobiçada por muitos homens, mas, durante pelo menos três anos depois de sua última viagem à Provença, Fauve permanecera por demais perseguida pela recordação de Eric para poder reagir a outra pessoa.

Por fim, chegou um momento em que simples cartas não foram o suficiente para sustentar esse amor. Eric tinha sido obrigado a fazer dois anos de serviço militar, depois de se diplomar na Beaux-Arts, e isso impedira qualquer oportunidade dele visitá-la nos Estados Unidos. Ela tirara férias breves, mas nunca numa época em que ele estivesse livre.

Depois de algum tempo, Fauve começou a sentir que ambos estavam sendo pouco realistas quanto a sua intenção de tornarem a se encontrar. Com o decorrer dos anos, aquelas poucas semanas passadas juntos, quando Fauve tinha 16 anos, se tomaram mais fragmentadas, enquanto iam recuando cada vez mais na memória. Certos momentos estavam fixos, tão vívidos e nítidos na memória que ela mal podia examiná-los, mas o tecido de ligação entre esses momentos se apagou. Ela não conseguia mais se lembrar de toda a trama de um dia inteiro passado com Ene, só pedacinhos esparsos.

Será que eles não souberam corresponder aos seus sentimentos, perguntou-se ela, triste, ou apenas tinham interpretado mal a força desses sentimentos? Será que ele também teria passado pelo mesmo processo de obscurecimento do passado?

Fauve afundou-se no mundo dos modelos e, aos poucos, tornou-se cada vez mais difícil escrever a Eric. Ela relia suas cartas e se perguntava como é que ele se poderia interessar pela atitude de Lauren Hutton, da alta moda, rompendo a tradição e concordando em posar para Avedon vestida apenas com um sutiã de renda preta, biquínis pretos e um chapéu maroto? O que lhe poderia importar saber que a principal decisão da semana dela fora promover uma garota da Central Principal para a Central Máxima? Não havia meio de lhe 'explicar como isso era importante, pois uma vez que fizesse essa mudança vital na carreira, uma modelo não podia voltar atrás, e se a mudança se revelava malsucedida ou prematura, a carreira dela seria destruída, em grande parte.

Os detalhes que lhe enchiam os dias, as preocupações que pareciam tão vitais, porque diziam respeito a pessoas de quem ela gostava e porque tinham verdadeiras repercussões comerciais e pessoais, se reduziam a uma tal trivialidade quando ela as escrevia, que ela rasgava cinco cartas, para cada uma que ela afinal mandava.

Se não fosse a surpresa do casamento de Magali, Fauve achava que ela provavelmente ainda estaria morando em casa, satisfeita em jantar com Magali e Darcy várias vezes por semana. Tinha-se sentido tão bem e feliz ali que nada a teria feito sair do apartamento, a não ser a sua resolução de lhes dar uma oportunidade de ficarem a sós, juntos. Magali tinha protestado, dizendo que era ridículo tratá-los como um casal em lua-de-mel, mas Fauve sabia que o seu instinto e noção de oportunidade estavam certos.

Ela arranjara um dúplex gostosinho para si numa casa estreita e antiquada na Rua 70 Leste, perto da Terceira Avenida, e lá, pouco antes de completava 20 anos, ela teve o seu primeiro caso de amor. E o segundo. Não foram experiências especialmente satisfatórias, Fauve confessou a si mesma. Faltara alguma coisa, algum elemento essencial e, se ela quisesse dar um nome ao que fosse, diabos, só havia uma palavra de que se lembrasse - romance.

Ela estaria sendo nostálgica, estaria procurando alguma coisa que só poderia acontecer uma vez na vida? As experiências físicas tinham sido satisfatórias, os rapazes eram inteligentes e divertidos, mas aquela outra dimensão, aquele fio tênue de melodia, aquele senão de poesia frisando a coisa mais comum, aquela transformação do mundo, que ela um dia conhecera sentada num carrinho numa estrada perto de Félice, rodeada por carneiros - não, não tinha acontecido.

Fauve nunca deixara nenhum dos seus dois casos passarem a noite toda com ela, embora não houvesse dúvida que sua cama era bastante grande para dois, aquela cama de dossel com reposteiros de gaze estampados com botões de rosa, tão compridos que arrastavam no tapete vitoriano, com florões. Apenas ela não podia imaginar acordar com algum deles - acordar com alguém parecia uma coisa mais íntima do que fazer amor, em certos sentidos.

Na véspera ela pensara, ao adormecer, que acordar com Ben Litchfield poderia ser uma revelação. O romance parecia estar no ar, não bastante perto para se captar, mas positivamente pairando, esperando para acontecer. Ele tentara falar em casamento, mas ela não deixara - não era o momento certo. Ela sentira como se estivesse escutando uma orquestra aforando, um sortimento de sons dissonantes que prometia a chegada da música.

No momento, pensou Fauve, sentindo que seus pés estavam gelando, ela se contentaria com a comida e deixaria o romance ir para onde quer que fosse, quando não estava funcionando. Salsicha da roça - o tipo pequeno, apimentado, bem tostada com panquecas, cheios de xarope de bordo, por exemplo. Talvez fosse isso que Ben ia trazer? Ou Waffles com manteiga derretida e geléia de morangos? Talvez ele tivesse ido comprar brioches, croissants e fatias finas de presunto da Virgínia curado no açúcar ou mesmo um bolo Pepperidge Farm, pronto para esquentar, o tipo com a glacê branca deliciosa e gosmenta, com passas? Ou ele estaria apenas preso, esperando na fila para comprar sonhos judeus? Sonhos de centeio integral com manteiga sem sal e fatias de esturjão, esturjão suculento e branco dos Grandes Lagos? Ah, Deus, ela não estava pedindo muita coisa... não estava esperando ovos Benedict com mais malho holandês; não estava insistindo por um copo alto e gelado de suco de laranja espremido na hora, sem a polpa; só queria um café da manhã, não um almoço pelo amor de Deus, o café combinado com o almoço com panquecas macias recheadas com galinha e cobertas por um molho de cogumelos... mesmo ensopado de ostras.

Fauve enfiou as pernas debaixo do corpo, na posição de Lótus, para se esquentar e na esperança de que isso a levaria à meditação, impedindo-a de pensar sobre a comida. Em todo caso, ela não pretendia ir remexer na cozinha e estragar a surpresa dele.

Ela ouvira falar muito sobre Ben Litchfreld, antes de começar a sair com ele, pois a equipe dele era cheia de redatoras cobiçosas que ansiavam por ele, sem sucesso. Ela o observava atentamente, para ver sintomas de que ele tratava as mulheres com displicência, mas não viu sinais disso, na corte que ele lhe fazia. Ele tinha uma mente picante, arguta e indagadora e compreendia a conversa de trabalho dela e o seu horário irregular. Ela gostava de sua perspicácia.

Ele tinha uma energia insistente e ela se sentia à vontade com as preocupações dele, pois se acostumara com o mundo editorial por causa de Darcy. Ben Litchfleld a perseguira com constância e firmeza por muito tempo, até que ela afinal permitira que ele lhe fizesse amor. Ele era um.. , amante muito... confortador, pensou Fauve, procurando a palavra exata. Ela se sentia segura com ele, segura, sossegada e quente e... confortável.

O estômago de Fauve roncou e ela pensou em ler os jornais, afinal, qualquer negócio, para fazer passar o tempo, sem pensar em sonhos, sonhos com geléia e açúcar em cima, sonhos de gengibre, sonhos de trigo integral, sonhos cobertos de chocolate - ela nem sequer gostava de sonhos, pelo amor de Deus. Quando é que Ben tinha tempo de ler o Times e o News?, pensou ela.

Ela se lembrou vagamente de ter acordado no meio da noite e ter visto a luz do banheiro acesa e ouvido o farfalhar de jornal. Ele teria tido um acesso de insônia e tentado ler para dormir?

A chave de Ben Litchfield raspou na porta e ele entrou, com os braços tão carregados que Fauve se levantou de um salto para aliviá-lo.

- Dois pacotes de cereal Kellogg's, leite, ovos... é isso?

Ela teve vontade de choramingar, mas o orgulho a impediu.

- Eu não sabia se você preferia focos de milho ou de arroz - disse ele - de modo que trouxe bastante de ambos. Tem manteiga e pão de fôrma na cozinha.

Ele a beijou no nariz, por cima de um monte de jornais de um metro de altura.

- Você levou horas!

- Pensei que vote ainda estava dormindo... tive de ir até Hotaling's, em Times Square. Imagine, o Philadelphia Inquirer estava atrasado hoje, de modo que. tive de esperar - disse ele, depositando com cuidado as edições de domingo de Lhe Boston Globe, Lhe Pittsburgh Press, Lhe Washington Post, Lhe Cleveland Plain Dealer, Lhe Los Angeles Times, Newsday, Lhe Houston Chronicle, Lhe Atlanta Joumal-Constitution e Lhe San Francisco Examiner Chronicle. - Mas, por outro lado, tive sorte. olhe, um Miami Herald! Normalmente, a gente não consegue um aos domingos... quase que compensa não ter conseguido um Chicago Trib ... isso nunca se consegue, só amanhã. Dê-me mais um beijo.

- Não tem bacon? - perguntou Fauve, com - cuidado. - Para comer com os ovos?

- Bacon me passou pela cabeça, mas eu só tenho uma frigideira. De modo que não há meio de se cozinhar bacon e ovos.

- Você nunca pensou em cozinhar o bacon primeiro e depois fritar os ovos na gordura do bacon? - perguntou ela, num salto de imaginação inspirado pela fome.

- Minha espertinha querida... as mulheres sabem de tanta coisa. Vamos experimentar isso em outra ocasião - disse ele, começando a percorrer os jornais depressa, separando certas seções e jogando o resto no chão.

- O que é que está procurando? - balbuciou Fauve. - Aconteceu alguma coisa muito importante?

- Hum... não... nada de especial... tenho de ler as seções da revista de domingo e as seções femininas... Moda, Panorama, Lar ou Lazer, seja qual for o fome...

- Você tem de ler isso?

- Você nem imagina as idéias novas que aparecem nesses jornais de fora, aos domingos... são muito úteis... - murmurou ele, procurando febrilmente no Cleveland Plain Dealer. - Diabos, diabos! Aquele sacana me enganou! O suplemento da revista não está aqui! Não se pode confiar nesses caras

é um crime... bom, que diabo, não é culpa da banca... é o pessoal que ds prepara e põe no avião no sábado... ah, merda!

- Ben!

- Sim, amor? - Ele levantou os olhos.

- Vamos voltar para a cama.

- Agora?

- Agora mesmo - disse ela, passando os braços em volta dele e tirando-lhe os óculos.

- Antes, do café?

- É melhor de estômago vazio. É perigoso com o estômago cheio.

- Bem... - disse ele, olhando com um pesar e relutância infinitos para seus jornais. - Bom...

- Ou - sugeriu Fauve, baixinho - vote prefere ler os seus jornais enquanto eu preparo o café... e depois voltamos para a cama?

- Que idéia maravilhosa! Ah, querida, como eu te amo! - Ben, o que aconteceu com as minhas roupas? - Você não está bem assim?

- O roupão é grande demais e não tenho nada para calçar.

- Pendurei tudo no meu armário, enquanto vote estava dormindo.. .

Detesto acordar num quarto desarrumado.

- Obrigada - disse ela, enquanto ele agarrava a seção Panorama de Los Angeles Times com a avidez de um viciado.

Cinco minutos depois, ela saiu do apartamento tão quietinha que Bem Litchfield nem reparou que ela se fora até já ser tarde demais. "Saí para o almoço" dizia o recado que ela escreveu com batom no espelho do banheiro dele.

Maggy estava esparramada no chão da grande sala da casa de fazenda reformada, de calças de lã marrons e um suéter de cashmere cor de tonada. Sobre o tapete escocês havia um rolo comprido de papel quadriculado, uma porção de creions coloridos e o White Rower Farm Catalogue. Darcy, com um livro no colo, estava olhando para as chamas do belo fogo que ele acendera da pilha de lenha junto da lareira.

Ele bebericou seu martíni e pensou na sua felicidade. Havia alguma coisa melhor do que saber que era domingo de noite e que ele só tinha de voltar para a cidade no dia seguinte, no fira da manhã? Ele e Maggy tinham ido dar uma longa caminhada a pé nos bosques que estavam começando a brotar, naquela tarde, provando de novo sua teoria de que um martíni nunca tinha um gosto melhor do que depois de uma exposição a uma grande dose de oxigênio e o desenvolvimento enérgico de todos os músculos. Não adiantava realmente fazer exercício, se isso não fosse acompanhado por uma bebida.

- O que vote está fazendo, amor? - perguntou ele a Maggy.

- Estou encomendando umas plantas novas para o jardim de lírios.

- Mas para que o papel quadriculado?

- Eu não enterro as plantas na terra de qualquer jeito, filhote. Meço o espaço do meu jardim e faço o plano no papel, seis quadrados em cada 30cm, e desenho a cores os contornos dos canteiros de lírios, para se fundirem naturalmente uns nos outros. Depois procuro no catálogo e 'escolho as cores que combinem com o que plantei no ano passado. e depois encomendo pelo correio. Na verdade, eu devia ter feito isso no mês passado, mas estava muito ocupada, pensando na nova cerca inglesa.

- Ah, Deus, para que é que fui falar isso? - perguntou ele às traves do teto caiadas de branco. - Por que eu não vi logo, por. que alguém não me avisou?

- De que e que você está falando?

- O dia em que eu disse que você não entendia nada de jardim. Dá vontade de me xingar. O dia em que você despediu o jardineiro, lembra-se?

- Foi um ponto marcante em minha vida, meu bem. Você me deixou tão zangada que resolvi provar-lhe que qualquer pessoa, mesmo uma moça da cidade como eu, podia aprender a jardinar pelos livros. Não é mais difícil do que cozinhar.

- Mas Maggy, você está obcecada! Compreendo essa teoria de que é sábio plantar uma roseira de três dólares num buraco de seis dólares, mas por Deus, você passou o verão todo fazendo buracos de 60 dólares! Comeu metade do gramado, com esses buracos. Cada um lhe tomou um dia inteiro, para cavar e preparar.

- Eu só queria ter certeza de que as minhas roseiras tivessem todo o espaço necessário para espalhar suas raízes e todos os adubos no fundo dos buracos, para ajudarem-nas a crescer nos próximos 100 anos.

- Mas e essas noites em que você ia catar mato e eu tinha de ficar segurando a lanterna para você ver o que estava fazendo? Acha que isso é normal?

- Quando a gente só tem os fins de semana, é preciso aproveitar todos os minutos - disse Maggy, serena.

- E no outono do ano passado, quando você passou seis dias cobrindo

tudo com 5cm de esterco de vaca? Você estava enterrada até aos cotovelos!

- Quando a gente pode o jardim para dormir no outono, amorzinho - disse Maggy, com um ar de entendida - n o basta dizer adeus... é preciso cobrir com palha ou esterco! Vou ter a minha recompensa no mês que vem, quando as coisas começarem a florir. A jardinagem me ensinou a ter paciência. Você devia estar contente.

- Estou encantado. É uma Maggy inteiramente nova, a rainha das plantas em vaso. Acho que você conseguiria carregar o dobro do seu peso, contanto que seja terra molhada num vaso de barro. Mas o que não entendo é por que faz questão de ir ao escritório amanhã. E daí, se Fauve não está lá? Isso

atrapalha o nosso fim de semana - resmungou ele, de repente lembrando-se da falha do dia seguinte, de que se esquecera.

- Querido, você só tem de voltar de tardinha e estarei à sua espera mas não gosto de deixar a agência sem alguém tomando conta.

- Casey pode tomar conta por um dia, não pode? Você está sempre me dizendo como ela é responsável e como tem bom senão.

- Não é a mesma coisa. Fauve tem o negócio no sangue. Quando ela não estiver lá, eu devo estar - disse Maggy.

- Sempre uma Lunel no leme? "Oh, comandante, meu comandante?" Esse tipo de coisa?

- A Lunel representa alguma coisa e não posso deixar que andem por aí sem alguma autoridade máxima que possa estar presente imediatamente. - Maggy estava resolvida.

- Você é que sabe. Na verdade, nunca acreditei que você pudesse cumprir esse plano de passar fins de semana compridos aqui... não devia estar reclamando.

- Não devia, não - disse Maggy, pensando, ao voltar para o seu papel quadriculado, que ela já passara a detestar esses fins de semana de quatro dias, um depois do outro, o ano inteiro.

Quando Darcy comprara aquela casa, seu plano para a vida deles parecia prometer a combinação ideal de trabalho e lazer. Mas, depois de alguns meses; ela se dera conta de que não era feita para quatro dias de vida descontraída no campo, todas as semanas. Maggy tomou aulas de golfe e de tênis e detestou cada minuto. Ela preparava refeições complicadas demais, para o almoço e jantar, e estava começando a olhar esperançosa debaixo das camas, procurando uma poeira inexistente, quando apareceu o desafio da jardinagem, que lhe deu alguma coisa para absorver sua energia.

Se não fosse a jardinagem... Ela chegava quase a compreender como o Duque de Windsor, sem ter de representar o seu papel de monarca, tinha conseguido encher os anos criando um jardim maravilhoso. Mas isso era apenas um substituto para o trabalho de verdade, no que lhe dizia respeito. Não era suficiente, nem mesmo durante o tempo em que as coisas brotavam, e de fins de outubro até fins de março, quando o jardim dormia, ela estava reduzida a planejar para a primavera seguinte. Maggy teria sido obrigada a dizer a Darcy que esse plano não estava dando certo, que ela se sentia infeliz se ficasse à toa, que não estava preparada para esse tipo de semi aposentadoria, se não fosse Fauve, e a necessidade de prepará-la para tomar conta inteiramente, quando o negócio passasse para ela.

A Agência Lunel nunca parara de crescer, desde seus princípios insignificantes, em 1931. John Robert Powers tinha encerrado as atividades em 1948 e mesmo com o aparecimento de Eileen e Jerry Ford, agora, em 1975, a Lunel continuava a ser a maior e mais sólida agência do mundo. Mas as agências de modelos dependem das pessoas que as dirigem, para seu êxito, de modo que Maggy se forçou a ficar no campo nas sextas e segundas-feiras, com a mesma firmeza com que se obrigou a aceitar as decisões que Fauve tomava nesses dias. Ela se forçou a dar a Fauve a liberdade de dirigir o negócio por sua conta, de errar, de aprender a duras penas.

E o plano dera certo. Certo demais, confessou Maggy a si mesma, com tristeza. Não se pode abdicar pela metade, pensou Maggy, percebendo que essa certeza lhe viera tarde demais. Fauve conquistara o direito de exercer o poder e se Maggy tentasse minar esse poder, procurasse recapturá-lo, ela minaria a mulher de negócios capaz e confiante em si que Fauve passara a ser.

Pelo menos no dia seguinte, estando Fauve na Europa, Maggy tinha um motivo para estar à sua mesa na segunda-feira - uma bela segunda-feira, quando poderia ter alguma emergência resultante das atividades de 200 moças animadas, sem falar em oito rapazes sadios, pensou Maggy, com alegria. Problemas. Ela estava disposta a enfrentar os problemas. Talvez, pensou ela, esperançosa, houvesse o tipo de encrenca fela mesmo, que todos pensavam ocorrer

sempre no negócio de modelos, mas que, na verdade, ocorria raramente. Ou, se não acontecesse nada naquela determinada segunda-feira, durante as duas

semanas em que Fauve estivesse ausente, alguma coisa certamente devia dar errado. Ela levaria Loulou para- almoçar fora. Havia semanas que elas não tinham uma conversa boa e suculenta. Mas, como sempre, a primeira providencia era levar de volta a correspondência sem que alguém percebesse, pensou Maggy, lembrando-se da valise que tinha escondida em cima, em seu quartinho de estar, uma valise arrebentando de cheia de uma seleção a esmo das centenas de cartas que chegavam todas as semanas, de pretensas modelos.

Na Lunel, como nas outras agências, essa correspondência era aberta rotineiramente e examinada por uma garota treinando para contato, ou mesmo pela recepcionista, estando ambas perfeitamente bem qualificadas para selecionar qualquer fotografia que devesse ser levada a alguém com mais experiência. Maggy conseguia pôr as mãos em algumas dessas comunicações inferiores - entre as quais, em toda a história da agência, só umas poucas modelos foram reveladas - e as levava para o campo, toda tarde de quinta-feira. No fim de semana, em horas esparsas, quando Darcy estava ocupado em outra coisa, ela fugia para esse tesouro escondido e, com uma faca de papel, ativamente, examinava toda a correspondência. Sempre havia a possibilidade - sempre a possibilidade... raio - pensava ela, ao cortar cada envelope, com uma avidez como se fosse o mais tentador dos pacotes de surpresa. Ela ainda não tinha descoberto sua última modelo. Nunca se sabe!

Fauve arrebanhou suas cinco pupilas altas, tão diferentes dos romanos que se apressavam em volta delas como se fossem um bando de gazelas selvagens, e as levou para uma mesa vazia que ela descobrira, milagrosamente, na varanda da calçada da Pasticcena Rosati.

- Sentem-se! - ordenou ela sucintamente, sabendo, por experiências anteriores, que a captura de uma mesa na Rosati era como ganhar na brincadeira das cadeiras musicais. A não ser Fauve, que já fora a Roma uma vez, nenhuma outra do grupo tinha estado lá. Todas tinham o dia livre para descansar da viagem, antes que as modelos começassem a trabalhar, e Fauve tinha escolhido a Rosati para o seu aperitivo, devido a sua localização na Piazza del Popolo, aquele conjunto incrivelmente barroco de igrejas com domos geminados, o Chafariz de Bernini, o Obelisco Ramãete e o portão cerimonial da Via Flaminia.

A praça tinha sido projetada há 300 anos, para impressionar o viajante entrando pela primeira vez na Cidade Eterna, e conseguira isso de forma tão brilhante que parecia quase um sacrilégio sentar e pedir um Campar, num ambiente de tal pompa e cerimônia imperial. No entanto, isso era Roma, a destiylação de Roma, a teatralidade sem-par da vida cotidiana, em que a roupa lavada era estendida para secar em palácios projetados por Miguel Angelo, um simples restaurante ocupava a casa em que nascera Lucrécia Bórgia, e as crianças brincavam de pegar nos jardins da Villa Medici.

Nada pode surpreendei os cidadãos de Roma, nada os pode impressionar. É uma raça que se mantém à parte, reservada e privada, notavelmente taciturna para com os turistas. Foram obrigados a partilhar a sua cidade com os peregrinos desde os tempos dos césares. Para os romanos, todos os outros na face da Terra são simples provincianos e eles fazem ouvidos moucos e se negam a ver a enxurrada sempre constante dos visitantes que os cercam. Só há uma exceção, só um tipo de forasteiro para quem o romano vira a cabeça.

- Cruzes - disse Arkansas - esse pessoal todo não parece tão simpático?

Sem surpresa, Fauve olhou para os rostos fascinados em torno delas, que nem procuravam esconder seu interesse. Nunca, na história das modelos, houvera uma paixão tão difundida pelas garotas americanas, altas, magras, ousadas, com um mundo de cabelos em que o vento parecia estar sempre se agitando, com uma sensualidade forte, mas inocente, brandindo uma beleza excessiva e uma juventude recém cunhada. O velho mundo não parecia capaz de produzir nada parecido com essas criaturas magníficas, com seu desembaraço risonho e seu glamour violento, que assolavam a Europa.

Os modelos fotográficos americanos agora apresentavam a nova coleção de figurinistas que, alguns anos antes, nem pensariam em exibir suas roupas em alguém que não fossem as manequins da casa, em quem tinham sido provadas, moças européias que sabiam desfilar numa passarela dez vezes mais profissionalmente do que qualquer americana que normalmente trabalhava diante de uma câmara. Mas agora o negócio da haute couture era como um poodle miniatura, objeto de luxo, que arrastavam atrás de si um grande trem de carga de produtos feitos em massa, vendidos sob o nome de cada figurinista. Os vestidos continuavam a ser feitos a mão em Paris, Londres e Roma, mas as poucas clientes ricas que os compravam, por mais jovens que fossem, eram chamadas de "dinossauros", pois eram parte de uma raça quase extinta na face da Terra.

No entanto, os desfiles de modas nunca foram tão teatrais, nem tão espetaculares. As modelos eram contratadas, a altos custos, de todas as grandes agências de modelos de Nova York, e levadas de avião para a Europa, para as coleçOes, porque a grande quantidade de publicidade que provocavam se refletia imediatamente nas vendas de produtos importados nas ruas comerciais, de Indiana a Oslo, de Tóquio a Hamburgo.

A febre agitada, a mania cada vez maior de modelos americanas se espalhara às revistas de modas européias e já era rotina Maggy, Wilhelmina e Eileen Ford mandarem suas modelos novas mais promissoras passarem três meses em Paris ou Roma. Uma vez lá, a desconhecida era imediatamente contratada pelos melhores fotógrafos, todos ávidos pelos rostos americanos maravilhosamente novos. Elas aprendiam a usar roupas mais caras e complicadas do que qualquer coisa feita nos Estados Unidos; os maiores cabeleireiros e artistas de maquilagem experimentavam com seu aspecto, até ela conhecer os limites máximos de seu potencial; e ela poderia fazer o seu livro com dúzias de fotos do Bazaar italiano e Vogue francês, além das muitas outras revistas de modas publicadas no exterior. Quando essa rainha da beleza ginasiana, relativamente crua, voltava para casa, polida, exótica, reluzente e não mais de olhos arregalados, vinda das escolas de aperfeiçoamento de Paris e de Roma, ela estava mais firmemente lançada no negócio do que se tivesse passado dois ou três anos de um desenvolvimento constante em Nova York.

Se voltasse para casa.

Maggy e Fauve estavam bem cientes dos perigos de mandarem suas modelos para a Europa. Embora a maior parte morasse em casas particulares e todas fossem contratadas pelas agencias locais, que se mantinham num contato constante com a Lunel, havia uma lista ilimitada de coisas que podiam dar errado com mocinhas longe de casa. Uma pessoa da Agencia Lunel ia à Europa de meses em meses, para se certificar de que tudo estava bem com elas e, nessa viagem, Fauve estava encarregada de procurar todas as modelos Lunel trabalhando na Europa, além de garantir que Arkansas e as outras quatro modelos contratadas para fazer os desfiles de Valentino em Roma, Aramam e Versache em Milão e Saint Laurent e Dior em Paris, cumprissem os seus horários apertados.

- O que foi que eu lhes disse sobre os homens romanos? – perguntou Fauve a Arkansas, que estava sorrindo, encabulada, para a mesa ao lado.

- Para não confiar neles nem um pingo - disse Arkansas, sorrindo mais ainda.

- E quem é que você acha que são esses homens para quem você está sorrindo?

- Bom, sabe Deus, pode ser que sejam estrangeiros, como nós. Não es tão usando placas com os nomes, Fauve. Sabe por que é que você é tão desconfiada? Porque é da cidade. É por isso que você é positivamente antipática. Eles me parecem ótimas pessoas.

- E você parece ótima para eles. Ah, meu Deus, será que vai ser assim, durante duas semanas inteiras? . Não, não responda. Vai ficar pior. Isso é só

o começo.

- Mas Fauve - protestou Angel, uma da última safra da Carolina do Sul, o estado que, misteriosamente, produzia mais manequins da alta moda do que qualquer outro. - Minha mãe me disse que se uma garota não leva um beliscão no traseiro em Roma, isso é um verdadeiro insulto. Ela disse que é costume da terra e que vou parecer uma caipira se me aborrecer com isso.

- A última dos batedores de carteira italianos é que enquanto um belisca o outro pega a sua bolsa... aí está a admiração dos romanos. Diga a sua mamãe que os tempos mudaram - disse Fauve, com ar sinistro.

- Vamos passar as duas semanas inteiras trabalhando? E o jantar? Nós todas precisamos de nos alimentar - retrucou Ivy Columbo, com seu sotaque de Boston. Ivy, inteligente, tinha sido aceita por Radcliffe e Lunel na mesma semana. A instrução universitária nem entrou no páreo.

- Olhem - disse Fauve - em Milão os homens são diferentes, mais de negócios, um pouco menos perigosos. Quando chegarmos a Milão, vocês podam sair para jantar, se ainda tiverem a força para sair do hotel depois do dia de trabalho, o que duvido. Mas em Roma fiquem comigo. Prometi levar vocês todas aos melhores restaurantes, não foi?

Fauve olhou para o círculo de caras rebeldes. Um garçom se aproximou, com uma garrafa de vinho.

- O cavalheiro da mesa ao lado deseja oferecer ás damas um cálice de vinho - disse ele.

Fauve o dispensou com um gesto.

- Agradeça ao cavalheiro, mas diga que a religião das damas as obriga a pagar por suas bebidas.

- Ah, droga - disse Arkansas.

- Malvada! - resmungou Angel. – Estraga prazeres.

- Não faria mal algum ser um pouco mais educada - contribuiu Ivy, sacudindo os cabelos pretos e crespos de modo a atrair todos os olhos da varanda. Até mesmo Bambi Um e Bambi Dois, que não tinham dito nada até agora, olharam para Fauve com tristeza em seus olhos maravilhosos.

- Escutem, garotas - disse Fauve, com severidade - esta é a primeira manha do primeiro dia dessa viagem e vocês já me estão dando trabalho. Isso simplesmente não é justo e não vou permiti-lo. Se eu deixar que alguém nos pague uma bebida, isso será interpretado como um convite para eles se juntarem a nós e aí vamos ter o trabalho de nos livrar deles, quem quer que sejam. Não existe isso de um gesto simplesmente simpático de parte de qualquer homero em Roma... vocês não só devem recusar uma bebida, como não podem retribuir um sorriso, não podem nem mostrar que notaram que estão reparando em vocês. Toda a vida deles gira em torno de seduzir as mulheres... os homens romanos são os Casanovas mais escandalosos, de menos confiança no mundo... vocês não haviam de querer se envolver com eles em circunstância alguma. Entenderam todas? Fui bem explícita? Nem uma palavra, nem um olhar, nem um sorriso... - disse ela, olhando para elas séria ao falar, pois era a primeira vez que Maggy achara que Fauve adquirira a maturidade suficiente para se desincumbir sozinha da tarefa árdua de acompanhante de modelos. Ela era a única responsável por aquele grupo e não queria que elas tivessem qualquer dúvida sobre sua autoridade. Fauve estava tão absorta no que estava dizendo que nem notou o homem que abria caminho para uma mesa do outro lado da varanda, um homem que parou, olhou para ela, tornou a olhar, se virou e começou a se dirigir para ela, o mais depressa possível.

-... nem um gesto do dedo mindinho - terminou ela, olhando para as pupilas, com raiva. Quando ela pronunciou as últimas palavras, o homem chegou junto dela, sem ela reparar. Ele ficou atrás dela por um instante, olhando para ela, incrédulo; e depois, quando as cinco modelos levantaram os olhos para ele, abaixou-se e beijou o topo da cabeça dela. Fauve abriu a boca, indignada. Bateu nos cabelos e levantou-se, furiosa, preparada para a luta.

- Que... audácia! - gritou ela, enquanto Eric Avigdon a pegava nos braços.

As moças deram uma salva de palmas, mas Fauve nem as ouviu.

 

 

                                                         Capitulo 30

 

- Estou tomando nota do tempo - disse Ivy, sossegadamente - e faz bem uns cinco minutos que ela não nos lança nenhum olhar desconfiado.

Ela estava sentada com as outras quatro modelos, Arkansas, Angel, Bambi Um e Bambi Dois a uma mesa no Dal Bolognese, um restaurante barulhento ao lado da Rosati. Elas almoçavam numa mesa enquanto Eric e Fauve estavam juntos em outra, de onde ela podia ver tudo o que as modelos faziam, embora estivesse muito longe para ouvir o que diziam.

- Estou tão farta de fmgir que estou olhando para você, Arkansas - gemeu Angel. - É bom que eu não consiga nem ver até o outro lado dessa mesa sem meus óculos. Alguém que tenha boa vista pode fazer o favor de me dizer se esse amigo de Fauve é tão irresistível quanto eu acho que é?

- Minha velha professora do ginásio diria que você o está condenando com parcos elogios - resmungou Arkansas. - E por que implicar comigo? Faça o seu negócio de fingir que vê com Bambi Um ou Bambi Dois. Isso me deixa positivamente nervosa.

- É mais fácil com você. Você é a forma mais alta que posso distinguir - explicou Angel. - Acho que Fauve é o fim! Tudo muito bem, ela almoçar com um homem, porque ele é um velho amigo, ou é o que ela diz, e para provar que ele não é um desses romanos sinistros, ele tem um sotaque francês. E daí? Eu digo que ela é uma fraude bem grande e gorda.

- Se você não fosse quase cega tinha de saber que ele tem de ser um velho amigo - retrucou Bambi Dois. - Devia ter visto como ele olhou para ela. É um pouco mais do que um simples conhecido, se quiser a minha opinião.

- Ela suspirou.

- Poupe-me! - disse Angel, aborrecida.

- Não comecem a brigar, amores - avisou Ivy às outras quatro. - Estamos indo brilhantemente. Ela se esqueceu de nós. Não se desleixem, não olhem para os lados, não se façam de tolas. Quem está com o livro guia?

- Eu - disse Bambi Um, dobrando o pescoço comprido de um modo que provocava o caos, desde que ela tinha 12 anos.

- Pois abra e leia para nós - disse Ivy.

- Mas estou comendo - protestou Bambi Um. - E não me chame mais de Bambi Um. Resolvi mudar o meu nome. Minha pobre mãe tentou ser original, mas há cinco Bambis no negócio, cinco Dawns, sete Kellys e uma dúzia de Kims, 17 Lisas, nove Heidis... de agora em diante podem me chamar de Harold.

- Harold, amor, abra o livro. Pode comer mais tarde. Vamos todas nos revezar na leitura - prometeu Ivy. - Até mesmo Angel vai pôr os óculos quando chegar a vez dela, não vai, Angel?

A mesa das modelos passou a comer a massa, sérias, escutando atentamente enquanto Harold lia um exemplar do Fielding's Europe.

- Dal Bolognese - leu ela, queixosa - é um ponto de encontro favorito de belas estrelas cinematográficas em ascensão, pintoras e garotas das artes criativas... grande coisa! Não era mesmo de esperar? Se eu não estou em ascensão, quem estará? E ainda não vi ninguém a não ser o garçom e o ajudante

nem mesmo outra garota de arte criativa, não que me interesse.

- Cale a boca e continue a ler, Harold - ordenou Ivy. - Fauve acabou de olhar para nós.

Harold abaixou ainda mais a cabeça linda de cabelos louro acinzentados sobre o livro e continuou a ler depressa, enquanto as garotas comiam com uma concentração total, sem olharem para os lados, ignorando que a mesa delas era o centro das atenções de todo o restaurante. Já se vira coisa assim, em toda a história de Roma? Cinco divindades, sem dúvida americanas, com olhos só umas para as outras e algum livro? Seriam algum novo tipo de ordem religiosa? Podiam ser um culto de lésbicas? E aquela incrivelmente alta, com os cabelos louros mais curtos que já se viu... seria essa a nova moda?, perguntaram-se as mulheres romanas, angustiadas. Se fosse, elas estavam nas vésperas de dias terríveis, pois só a maior beldade podia se safar com a cabeça tosada. Ianques, go home!

- Elas estão-nos espionando, estou sentindo - disse Fauve, endireitando-se, constrangida.

- Em absoluto. Estão fascinadas com o livro-guia, como todas as boas turistas. Parecem ser um grupo de garotas encantadoras, sérias - disse Eric.

Depois dos primeiros dez minutos de entusiasmo louco, em que ele e Fauve estavam surpreendidos demais para dizer alguma coisa coerente, ele sentiu uma timidez totalmente inesperada paralisá-lo. Ela era uma mulher, disciplinada, experiente, polida, tão responsável por sua vida. O que acontecera com a sua Fauve? Ela parecia tão... tão mulher de negócios, com seu blazer preto de corte masculino, a saia de flanela cinza, os sapatos caros, de saltos baixos e a blusa impecável de seda branca. Só uma echarpe de escocês lhe lembrou a maneira deliciosamente louca de Fauve se vestir e mesmo o escocês era discreto, em tons de cinza e ferrugem. Sua beleza, com aquela roupa severa, ficava ainda mais acentuada. A cabeça parecia uma grande flor, espantosa, pousada numa haste perfeita. Ela parecia bem mais adulta do que aquele emaranhado de garotas bonitas que a rodeavam. Não admira que ela não tivesse respondido a sua última carta... ela não era a mesma pessoa a quem ele escrevera.

- O que você está fazendo em Roma? - perguntou Fauve, com calma. - Entrei para uma firma de arquitetura em Avignon e estou aqui para uma conferencia sobre moradias. Só começa daqui a uns dias, mas vim antes. Um arquiteto devia visitar Roma pelo menos uma vez por ano, sejam quais forem suas teorias estéticas... não concorda?

- Ah, claro. Tantas... ruínas.

- Não é só isso, tantos prédios de tantas eras que ainda estão em bom estado - concordou Eric, sem sorrir.

Ele já se esqueceu das ruínas, pensou Fauve, com tristeza. Não admira que ele não tivesse respondido a sua última carta. Mas o que ela podia esperar? Ela escrevera a um rapaz de 20 anos, impulsivo e entusiasmado, apaixonado pelos aquedutos em ruínas e Fauve Lunel, mas ele agora estava tão crescido, tão adulto. Os cabelos ainda se levantavam naquela mecha rebelde que ela havia alisado tantas vezes, o lábio inferior era tão cheio e ela ainda não podia afastar os olhos das depressões no meio, mas ele falava com uma espécie de poder e desembaraço que o distanciava dela. A beleza dele estava plenamente terminada e formada e era quase de intimidar.

- Que coincidência estarmos os dois aqui hoje .- disse ela.

- É o tipo de coisa que acontece em Roma - respondeu Eric, com displicência.

- Para onde levam todos os caminhos? - perguntou Fauve, pensando que eles estavam procurando assunto, eles. E o que ele .queria dizer, com "esse tipo de coisa"? Não era mais do que um tipo de coisa?

- Fauve... - começou Eric, quando uma voz o interrompeu. Ivy tinha aparecido ao lado da mesa deles.

- Desculpe, Fauve, por interromper você e o seu amigo, assim, mas nós todas pensamos que, já que só temos uma tarde livre para ver a cidade, o melhor a fazer é entrar numa dessas excursões em ônibus de teto de vidro, com um guia que fale inglés, e ver o que pudermos.

Ivy estava com o exemplar do Fielding metido debaixo do braço.

- Tem toda a razão, Srta. Columbo - assegurou-lhe Eric, depressa. - Também há uma excursão de Roma à Noite... a não ser que estejam muito cansadas da viagem.

- Ah, não, estamos todas muito empolgadas para dormir. Assim, quando você quiser ir, Fauve, nós gostaríamos de ir andando. Ninguém está com muita fome.

- Bem... - Fauve hesitou, com relutância. Não podia propriamente se levantar e largar Eric, mesmo que ele não fosse o Eric dela. Malditas garotas, por que não podiam almoçar em paz? Que diabo era toda aquela pressa?

- Como quiser. - Ivy postou-se ao lado da mesa, evidentemente esperando uma decisão. - Podíamos todas ir à Via Condotti, se você acha que essa coisa de ônibus é uma chatice, e ver a loja Gucci... talvez tenham alguma coisa em liquidação... Diga o que resolveu e vou avisar às outras. E podemos procurar no livro para ler, enquanto você acaba aqui.

- Mas certamente, Srta. Columbo, não vai deixar de ver o Vaticano? - disse Eric. Ele e Ivy trocaram olhares de um entendimento instantâneo.

- Ótimo! Idéia formidável! Fauve, você quer ir ao Vaticano, não quer? - Bem...

- Ora, puxa, Fauve, resolva-se. Estamos perdendo um tempo precioso. Estamos todas loucas para mandar cartões-postais do Vaticano.

- Ora, dane-se, Ivy, podem ir! Eu as encontro no hotel. Já vi o Vaticano.

Ivy foi para a outra mesa, vibrando de satisfação. Ela sempre soubera que não bastava ser bonita. Quando insistiu em recitar um poema que escrevera sobre o legado de Thomas Jefferson, em vez de sapatear, e ganhou o Concurso da Miss Adolescente americana, não era porque ela não soubesse sapatear e muito bem. Aquela mandona de Fauve Lunel não ia impedir que Ivy Columbo fizesse o que quer que fosse que os romanos fazem quando em Roma, com os perigosos romanos altos, morenos e de cabelos crespos, com as camisas desabotoadas até ao umbigo.

- Vamos, amores - murmurou ela, voltando para junto das outras quatro - antes que ela mude de idéia. Aquele cara está sabendo. Mas nada de correria. Quero ver uma saída distinta, como damas. Arkansas, pare de dar risada. Bambi Dois, não ouse olhar para a mesa de Fauve, Harold, pare de piscar para aquele homem...

- Meu Deus - reclamou Arkansas - tem gente que náo pode mesmo entrar na Doke Vta.

- Não tenha assim tanta certeza - retrucou Ivy.

- Vamos dar ura volta a pé? - perguntou Eric, quando saíram do restaurante para o aparato da Piazza dei Popolo, onde as cascatas de mármore das balaustradas que levavam ao Morro Pincio não pareciam ter menos movimento do que os pinheiros ondulantes nos jardins altos da Villa Borghese.

- Aonde? - perguntou Fauve, perplexa com a necessidade de escolher.

- Sem destino fixo - disse Eric, dando o braço a ela.

- É o meu lugar favorito. Ah, eu me sinto como se estivesse fazendo gazeta na escola. Devia estar-me sentindo culpada, deixando-as irem sozinhas, mas não podia suportar a idéia do Vaticano. Só estive em Roma uma vez, e claro que achava que tinha obrigação de visitá-lo... quando cheguei à Capela Sistina, estava quase me arrastando. Mas como se pode ir ao Vaticano e não ver a capela? É obrigatório. Obviamente, significa muito para Ivy, mas eu não podia encarar isso.

- Lembra-se do Palácio do Papa em Avignon? - perguntou Eric. - Desde então que eu sei que você não é do tipo Vaticano. Foi uma sugestão inteiramente segura.

- Ah.

- Você não estava pensando que eu ia deixar que você fosse embora com aquelas garotas, estava?

- Eu. .. não sabia bem.

- Tenho muitas coisas a lhe perguntar. Primeiro, voltou a Félice?

- Não.

- E vai continuar a não me dizer por que?

- Vou - disse Fauve, abruptamente. - Como vão os seus pais?

- Ambos muito bem. Florescendo. Meu pai se aposentou para Villeneuve, de modo que está feliz porque resolvi morar em Avignon. E a sua avó? O casamento dela deu certo?

- Ela e Darcy compraram uma casa no campo e ela está positivamente feliz, fazendo todas as coisas que nunca tinha tempo de fazer antes. Magali adora a vida dela... agora só vai à agência três dias na semana... sente bastante confiança em mim, de modo que afinal pode viver um pouco para si... Deus sabe que ela merece - disse Fauve, pensativa.

Eles estavam caminhando pela Via Margutta, estreita e apinhada, na direção da Escada Espanhola, passando sem ver dúzias de galerias de arte, quando de repente Eric conduziu Fauve por umas portas, num prédio velho e mal conservado. Dentro havia um pátio espaçoso e, nos fundos deste, o mergulho verdejante do Morro Pincio, que descia íngreme, coberto por folhagens espessas e plumosas, para o coração de Roma.

- É aqui... sem destino fixo - disse ele e olhou para ela, para ver sua reação de surpresa. No rosto dele ela viu aquela qualidade especial e rara de confiança que a impressionara logo na Salle des Fêtes em Uzès e, de repente, os anos que os separavam se dissolveram, sumiram, desapareceram como se nunca tivessem existido. Ela o encarou e olhou nos olhos dele.

- Por que você não respondeu à minha última carta? - perguntou Fauve, afinal conseguindo fazer a pergunta que não podia tirar da cabeça.

- Mas escrevi, sim! Você é que parou de escrever.

- Não é possível.

- Eu sei que fui o último a escrever - insistiu Eric.

- Eu sei que fui eu.

- Não podemos ter razão os dois - disse Eric. - Tampouco podemos estar os dois errados!

- Talvez estejamos ambos... ambos certos e ambos errados? – sugeriu ele.

- Eu pensei... pensei que minhas cartas fossem muito tolas, que você tivesse se desenvolvido numa direção tão diferente de mim que havia perdido o interesse pelo que eu tinha a dizer.

- Pois eu pensei que as minhas cartas eram muito maçantes, compara das com a sua vida, Só podia lhe contar sobre a Beaux-Arts e o exército. Eu tinha carinho com suas cartas.. , guardei todas elas. Estão lá em casa, na minha secretária.

- Eu achei que você devia ter-se apaixonado... e não queria me escrever a respeito - disse Fauve, numa voz abafada.

- Eu imaginei que todos os homens de Nova York estivessem atrás de você.

- Ah, estavam sim. Aliás, ainda estão. A metade, pelo menos. Eu os ponho a correr, com porretes.

- E que você provavelmente estava envolvida com alguém... amando alguém.

- Eu não estava.

- Nem um pouquinho?

- O que eu chamo de amor não vem aos pouquinhos. Mas você.. , em quase seis anos?

- Ah, eu tentei. Tentei todos os remédios tradicionais específicos para um coração partido, muito trabalho, bebida e outras mulheres. Mas nada ajudou.

- Que coração partido? - perguntou ela, os olhos da cor de uma névoa de rio que se forma no fim de um dia de primavera perfeito.

- O meu. Nunca deixei de te amar e você nunca voltou para mim. Então ele se partiu.

- Ah, meu amor. - Fauve balançou contra ele, o mundo girando em torno dela num círculo vasto, tonto e maravilhoso. - Onde é o seu hotel? - A cinco minutos daqui se...

- Mas o tráfego.. , nada se mexe.

-. .. se formos andando. Três minutos, se formos correndo.

Era uma cama grande, com um colchão que vergava num vate conãortá vel no meio e se erguia em volta deles em pufes suave e cheios. Era como estar perdido num monte de neve quente, pensou Fauve, enquanto eles ficavam ali deitados tão entrelaçados que ela nem sabia onde parava o seu corpo e começava o dele. Sua mente divagou por camadas de sentimento e emoção. Tanta coisa lhe acontecera nas últimas horas que ela estava embriagada, aturdida, madura e cheia de descobertas. Os detalhes estavam todos misturados; os pêlos tão sedosos debaixo dos braços de Eric, a onda de um pudor extremo que ela sentira quando ele se mostrou em sua nudez, os minutos calados, prendendo a respiração, quando ele chupara os bicos de seus seios e ela olhara para o topo da cabeça escura dele e vira que nunca havia sentido a verdadeira ternura na vida; e depois o momento em que a ternura se transformara num desejo tão transcendente que abolia a ternura; a explosão de paixão pura em que as duas metades de um segredo, que eles partilharam pela primeira vez num carrinho numa estrada de Félice, finalmente se haviam unido numa florescência de muitas pétalas de um prazer indizível'- o passado e o presente se misturavam; eles estavam valsando juntos ao som de úma orquestra de aldela, estavam protegidos pelos galhos de uma velha pereira num jardim murado, estavam deitados naquele calor diáfano, de mel, vermelho-dourado, que só os tijolos e estuque de Roma, dourados pelo tempo, podem destilar do sol. As pálpebras dele se moveram, batendo debaixo dos lábios dela.

- Não estou dormindo - disse ele - só fechei os olhos por um minuto.

- Nunca, jamais, em toda a minha vida estive tão exatamente onde queria estar - pensou Fauve e depois percebeu que tinha pensado em voz alta.

- Em Roma? - murmurou ele, no pescoço dela.

- Esta cama. O mundo é esta cama. Nunca mais quero sair dela.

- Ah, amor, nem vai precisar. Vou guardar você aqui para sempre. Vou-lhe trazer comidas deliciosas e coisas maravilhosas para beber. E de vez em quando troco os lençóis, se bem que tenham um cheiro tão bom, de nós dois nos amarmos, que eu não vou querer... jamais vou deixar você partir. Eu devia ter feito você se casar comigo quando tinha 16 anos.

- Você é um sonhador... 'de pensar isso - suspirou ela.

- Não, não tinha de ser um sonho. Eu podia ter feito isso acontecer, se tivesse tido algum senão e previsão. - Eric deslizou para fora do braço de Fauve, e apoiou a cabeça na mão e olhou para ela, sério. - Você nem sabe quantas vezes repassei mentalmente aquela cena na estação. Em vez de levá-la à estação, eu devia tê-la carregado diretamente para a casa de meus pais e tomado conta de você até passar aquele estado estranho e terrível em que estava; e depois podíamos ter-nos casado e todos esses anos não se teriam perdido. Mas eu era jovem demais para saber o que fazer, e como um idiota infantil e indefeso, deixei-a partir. Nunca me perdoei.

- Mas Eric! - Fauve sentou-se, rindo, implicando, os biquinhos tenros dos seios meio encobertos pelo véu dos cabelos. - Isso é tal e qual João e Maria se cobrindo de folhas no mato, com folhas de outono. Nós éramos umas crianças... as crianças não se casam e vão morar numa cabana junto de uma cachoeira. Você não imaginou tudo isso, não é?

Ele olhou para baixo e não respondeu.

- Ora, eu não podia ter-me casado então! - continuou Fauve. - Eu não sabia nada, não tinha nenhuma experiência, não tinha aprendido a ganhar a vida, dirigir um negócio... eu nunca ficaria satisfeita em ser uma noiva menina... você, você está só brincando, não é? - Ela estava zombando dele, mas em sua voz havia uma indagação.

Com o dedo, Eric traçou as maçãzinhas altas e redondas que adquiriam vida em suas faces quando ela sorria - as pommettes, aquela forma curva e doce de que ele tantas vezes se lembrara. Fez-se um silêncio entre eles, um silêncio de espera como o de uma platéia entre o fim de um movimento de uma sonata de piano e o princípio do movimento seguinte, um silêncio tenso, com a percepção do que alguém que não conheça música pense que a peça terminou e aplaudir no momento errado.

- Claro que eu estava brincando - respondeu ele, por fim. - Os soldados têm umas fantasias muito loucas no meio da noite e essa foi a menos lúgubre das minhas. Eu tinha bom senão demais e você também... mesmo então.

- Ah, querido, eu às vezes desejo não ter tanto bom senão. Fico tão cansada de estar enterrada na realidade. Você já leu livros de todos aqueles autores que falam e falam sobre como você devia viver a sua vida, como se cada dia fosse ser o último? Acho que são apenas um bando de sádicos, promovendo a insatisfação universal.

- Eu me pergunto: como seria o mundo se todos realmente vivessem como se não houvesse um amanhã? - perguntou Eric.

- Não posso falar pelos outros, mas se para mim não houvesse um amanhã, eu sei o que faria.

- O quê? - perguntou Eric.

- Vou-lhe mostrar - disse ela e escorregou de novo para o vale do colchão. Prendeu os ombros fortes dele em seus braços esguios e abaixou a cabeça, de modo que seus lábios pousaram bem na pele quente entre as clavículas, onde o sangue batia com força. Vou-lhe mostrar exatamente... não vou omitir nada...

Lá fora, o sol se pôs devagar, mas nem Fauve nem Eric prestaram atenção. Só quando alguém acendeu uma luz numa janela do outro lado do pátio do hotel de Eric é que Fauve se sentou, com um sobressalto violento.

- Ah, meu Deus, que horas são?

Eric estendeu a mão para a mesinha de cabeceira e olhou para o relógio.

- Umas 17:50.

- Ah, não. Ah, não. - Ela se levantou da cama de um salto e correu para o banheiro, acendeu a luz e se olhou no espelho. Estava aturdida, rosada, descabelada. - Ah, não! Basta elas me darem um olhar para saber onde e como passei a tarde - exclamou ela, com pânico na voz. - Tenho de tomar um banho de chuveiro, pôr maquilagem nova e fazer alguma coisa nos cabelos, e mesmo assim elas vão adivinhar. Eric, a que horas fecha o Vaticano? Você tem idéia? Ah, nem sei por onde começar! Que bagunça!

- Espere um instante, querida. Não fique maluca, vamos pensar.

- Pensar? Quem tem tempo para pensar? Eu tenho de voltar ao Grand o mais depressa possível e rezar para que elas estejam lá, à minha espera. E se não estiverem?

Fauve começou a correr pelo banheiro, nua, tentando ajustar o chuveiro estranho, procurando freneticamente e sem sucesso na bolsa uma escovinha de cabelo, esparramando água fria no rosto ardente, girando em círculos, estonteada, horrorizada ao ver como deixara o tempo escapulir.

- Querida, você está hiperventilando. E está gelada, está toda arrepiada. - Eric a prendeu dentro de uma colcha, enrolou-a nela, pegou-a e a carregou, esperneando e protestando, de volta para a cama,. - Agora, cale a boca e deixe eu telefonar. Você disse o Grand?

Ele falou com a telefonista do hotel num italiano rápido.

- Mas o que é que eu vou dizer? Desligue, pelo amor de Deus. Tenho de pensar nisso.

Ela tentou arrancar o fone da mão dele, mas ele a prendeu com uma das mãos.

- Signorina Ivy Columbo, per favore - disse ele.

- Não! Ivy não! É a mais esperta. Chame... chame Bambi Dois.

Eric não fez caso.

- Alô, é a Srta. Columbo? Aqui fala Eric Avigdor, sim... como foi o Vaticano? Inspirador? Achei que devia ser. Fauve? Está descansando num banco e pediu que eu telefonasse e verificasse as coisas. Não, ela está bem, mas um pouco tonta... uma combinação de cansaço da viagem e claustrofobia... acabamos de sair das Catacumbas... sim, as Catacumbas de S. Callisto... bem fora de Roma, na Via Appia Antica. Quilômetros e quilômetros... A culpa é toda minha. Foi minha idéia... eu tinha esquecido como são escuras e estreitas, e depois que a gente entra tem de ficar com o guia, senão pode se perder e nunca mais encontrar a saída... a visita se prolonga... mas não se pode perder as Catacumbas, se há algum interesse pelos mártires cristãos... você não sabia que a Fauve se interessava? Pois é, ela não... C um de meus passatempos... acho que fui muito egoísta. O caso é o seguinte, parece que o meu cano enguiçou e está na hora do rush e o empregado do posto de gasolina quer fechar o posto... C daqui que estou falando... portanto, nem sei a que horas vamos chegar. Muito tarde, eu acho... não posso dizer quando. Ela está preocupada por abandonar vocês... não há problema? Ah, vão todas comer no quarto e dormir cedo? Tem toda a razão... C a melhor coisa. Todas exaustas? Bom, por que não põem o aviso "Não Incomo dar" em todas as portas quando acabarem o jantar? Aí eu digo a Fauve para não se preocupar.

- Mandar chamarem de manhã! - cochichou Fauve. - Não se esqueça de dizer à telefonista a hora em que deve acordá-las amanhã... não, não confie nos despertadores de viagem, nunca funcionam. Certo, digo a ela. Boa-noite, Srta. Columbo... o quê? Ivy?... Boa-noite, Ivy. Obrigado por ser tão sensata. Fauve vai ficar aliviada. Ele desligou.

- Catacumbas! - disse Fauve. - Ela não pode ter acreditado. - Eu achei que fui muito convincente.

- E foi... eu não sabia que você sabia mentir tão bem... mas quem podia ser tão absurdo a ponto de ir visitar as Catacumbas numa linda tarde de primavera em Roma?

- O mesmo tipo de pessoas que iriam ao Vaticano. -Ah...

- Acho que é o que se chama de impasse mexicano - disse Eric, com ternura, soltando o braço que a prendia na cama.

- E o que é isso?

- Significa apenas que ninguém leva vantagem, um empate.

- Você quer dizer que perdi a minha autoridade moral?

- Você está apenas mantendo-a em estado jacente. Amanhã você pode

vestir aquele paletó impressionantemente severo e os seus sapatos sensatos e arrebanhar o seu pessoalzinho...

- Mas o que você acha que elas estão tramando, de verdade? Você acreditou nela?

- Po* que não? Bia parecia cansada mesmo.

- Ivy? De jeito nenhum... provavelmente está sapateando pelo quarto - disse Fauve, séria.

- Te*.ho certeza quanto ao jantar no quarto - disse Eric, beijando o pescoço dela e terminando a discussão. Qual a outra explicação para o ruído de uma rolha de champanha estourando no quarto de Ivy?

Na manhã seguinte, Fauve estava sentada no saguão do Grand, lendo o Diaily American com o ar angelical e um tanto de vítima, de quem está esperando pacientemente, quando as modelos saíram do elevador, no horário, e, conãorme ela viu com grande alívio, obviamente descansadas. Ela as acompanhou ao Valentino's, onde deviam ficar até de tarde, provando as roupas para o desfile de quinta-feira.

O dia, pensou ela, estava inevitavelmente perfeito, se bem que o mes de março em Roma possa ser úmido e frio. Os cafés ao ar livre já se estavam enchendo, o aroma do café expresso temperava o ar suave, as árvores lançavam seus galhos florescentes de trás de cada muro, parecia haver uma banca de flores, cheia de botões, em cada esquina.

Fauve comprou centenas de cravinhos pungentes, vermelhos escuros, enchendo os braços e a bolsa a tiracolo com todos os que conseguiu carregar. Seu coração estava cheio de uma ternura desordenada, inebriante. Ela se sentia como um balão cor-de-rosa, cheio de hélio, que fora solto no céu turquesa, seu cordão dançando alegremente na brisa. Por que estava com tantas flores, pensou ela, por um minuto, voltando à terra, e lembrou-se de que estava indo visitar as três modelos Lunel que estavam trabalhando em Roma, havia seis semanas. Ela as encontrou muito animadas e deu a cada uma um monte de cravos e um beijo apressado, antes de ficar livre, afinal, para poder correr ao encontro de Eric.

Até à hora de ir buscar Ivy e companhia no estúdio de Valentino, o dia era dela, para passar com Eric - o tempo fora do tempo, tempo que não tinha relação com á vida real, tempo a ser agarrado e vivido de minuto em minuto, não tocado por qualquer pensamento do amanhã. Ainda era Quarta feira de manhã e ela só tinha de ir para Florença, de avião, na noite de quinta-feira - era uma eternidade, se ela pensasse naquilo como uma sucessão de momentos milagrosos, cada qual completo em si.

Enquanto eles almoçavam num restaurantezinho perto do Forum, Eric não conseguia deixar de olhar para Fauve. Ela parecia ter 15 anos, o rosto sem qualquer maquilagem, a não ser rímel, e os cabelos escovados, de modo que o seu brilho se tomara uma nuvem avermelhada. Ela estava com um suéter de gola enrolada, macio, cor de sorvete de pistache, e calças de veludo de algodão branco sujo, que ela enfiara em botas baixas, cor de mel. Com o poncho azul vivo e a bolsa a tiracolo, parecia estar pronta para o primeiro dia de aula, pensou ele, o coração tão desordenado e descontrolado de amor que ele se sentia idiota. Depois do almoço, eles foram a pé ao Forum e pagaram suas entradas naquela bilhetenazinha que é tão extraordinariamente comum, como se um simples ingresso seja a única coisa necessária para se viajar para trás na história.

- Também vim aqui, da última vez - disse Fauve. - No dia depois do Vaticano. E prometi a mim mesma que sempre havia de voltar, se tomasse a vir a Roma. Você não se importa, não é? Acho que aqui não há grande coisa para um arquiteto.

- Colunas quebradas, alguns arcos, umas estátuas sem cabeça? - disse Eric, olhando em volta. - Um deserto de fragmentos... tudo caindo por cima de tudo o mais, os destroços de séculos caídos uns sobre os outros, e tudo coberto por hera, trepadeiras e azevinho... muita coisa aqui para um arqueólogo, em todo caso - riu-se ele. - O que a atrai nisso?

- É o único lugar em Roma que me pareceu dar o verdadeiro sentimento de como a cidade é velha. Nos outros lugares todos os monumentos são tão conservados e restaurados que perco esse sentido do passado, mas aqui... bem, resta tão pouca coisa que posso sonhar, posso me entregar a esse estado de espirito e dar asas à minha imaginação.

Fauve e Eric foram andando debaixo dos ciprestes para a crista do Monte Palatino, onde outrora os monarcas de todo o mundo conhecido tinham seus palácios. Não havia nenhum outro turista, e certamente nenhum romano, por ali.

- Este deve ser o lugar mais tranqüilo de Roma - disse Fauve, em voz baixa. O silêncio poético do Forum a encantava. Havia alguma coisa quase sobrenatural que vinha de estar de posse desse espaço misteriosamente abandonado, onde um dia os povos de todas as partes do Império Romano se haviam acotovelado para verem os cidadãos afortunados passando em seu esplendor. Ela sentiu um senão empolgante de vanglória, como se estivesse pisando sobre milênios em botas de sete léguas. Pegou um ramo de folhas de acanto verde-escuro e examinou sua forma clássica. Ela desejou saber fazer uma coroa delas, pensou ela, olhando para Eric. Imaginou que algum jovem cônsul romano, regressando para dar notícias da situação nos confins do unpério, poderia ter a mesma expressão de aventura e força que se estampava sobre as feições bronzeadas de Eric. Da cabeça dele pendia uma coroa.

Eles chegaram ao topo do morro e subiram a escada íngreme para o verde do pequeno jardim de buxo, maltratado, que era só o que restava dos outrora grandes jardins suspensos dos Farnese.

- Como gosto disso aqui! - exclamou Fauve. - Não tem um perfume maravilhoso? Que cheiro é esse?

- O buxo... ou serão os séculos? - perguntou Eric, olhando para baixo, vendo todo o Forum em fragmentos espalhado debaixo deles.

- Eu me sinto mais viva aqui do que em qualquer outro lugar em Roma - disse Fauve, numa voz de assombro. - Até os espectros são simpáticos. - Sim... também sinto isso... como é que você sabia?

- Foi assim da última vez... eu tinha certeza de que você também sentiria isso.

Eles se sentaram num banco de pedra e se calaram, enriquecidos e reconfortados pelas vibrações tangíveis do passado que desaparecera, mas que nunca morrem.

Eric foi o primeiro a romper o silêncio.

- Conte sobre sua pintura... ainda não falou nada a respeito.

- Não pinto mais... nunca mais pintei, desde o verão em que te conheci.

- Você abandonou a pintura? - disse ele, espantado. - Como ¿que isso pôde acontecer? Como foi possível, quando significava tanto para você?

- Eric, querido - disse Fauve, numa voz que o impressionou com seu tom profundo de um pesar perplexo - não me pergunte a respeito... não posso mesmo explicar, nem mesmo para mim. Fale mais de você. Esse negócio de conferência, de que é que trata?

- É empolgante, Fauve. Importante de verdade. - Ele se levantou do banco e ficou andando de um lado para outro, no caminho de cascalho, gesticulando animadamente com as mãos grandes e bem-feitas, enquanto falava. Os olhos cheios de fervor. - Você se lembra de todos aqueles prédios horrorosos que construíram na zona industrializada de Cortine, perto de Avignon?

- Como poderia esquecer? Eram a única coisa realmente feia na paisagem.

- E não precisavam ser! A conferência é sobre como humanizar as habitações de baixo custo, tornando-as boas em vez de más, pelo mesmo preço... ou menos... do que custa hoje. É uma questão de projeto, de cuidado. Nunca aceitarei a idéia de que as habitações populares não podem ser belas... e o mesmo se dá com uma porção de outros arquitetos de todo o mundo. Vamos nos reunir para trocar idéias e técnicas.

- Esse é o único tipo de prédios por que você se interessa?

- Em absoluto... apenas os mais necessários, eu acho, mas não exatamente os mais divertidos. Minha especialidade é restaurar casas de fazenda antigas em toda a Provença. Você nem acredita quanta gente consegue comprar velhas mas e depois querem transformá-las em uma cabana tirolesa ou uma vila grega. Eu lhes dou uma casa confortável, que funciona na vida moderna e não estraga a beleza do original. Mas a minha maior emoção é quando consigo a oportunidade de construir uma casa nova. Aí, não me limito a copiar uma velha mas... isso seria fácil, mas onde está o desafio? Projetar uma casa nova para a paisagem da Provença, uma casa moderna que dá prazer à vista e abrigo ao corpo e respeita as exigências do horizonte e os morros... e os vizinhos... ah, esse é um sonho de um arquiteto! Quero mostrá-las a você... você vem ver algumas de minhas casas? Não volte para Nova York, depois de Paris... olhe, é fácil planejar...

Fauve recuou logo da impetuosidade dele. Ela levantou a mão, advertindo-o.

- Nada de planos! O máximo que posso adiantar para o futuro é pensar no que vamos fazer com essas minhas garotas, hoje a noite. Tenho uma forte impressão de que elas têm uma agenda escondida. Não posso deixá-las sós, mas não posso suportar me separar de você nem por um minuto.

- Por que eu não desencavo outros arquitetos? Podemos ir todos jantar juntos - propôs Eric.

- Arquitetos? Arquitetos romanos?

- Esta conferência é como as Olimpíadas, todas as nacionalidades são representadas. Muitos, como eu, já estão em Roma.

- Hum... - Fauve pensou muito. - Os latinos, de todo tipo, estão positivamente fora. Os suecos são duvidosos... tem de haver um motivo por que tantos filmes pomo têm a palavra "sueco" em seus títulos... ingleses.. . ingleses... não, há aquela antiga teoria francesa de que não há mulher tão sensual quanto uma suposta inglesa frígida. E se isso se aplicar aos ingleses também? Não posso correr esse risco.

- Finlandeses - sugeriu Eric. - Por que não arriscamos uns finlandeses? Não parecem se reproduzir muito.

Naquela noite, depois de um jantar que passaria aos anais da história das bine!, Fauve verificou que suas pupilas estavam todas bem seguras nos seus quartos, antes de voltar para o hotel de Eric. A grande campina de cama, em que eles só tinham passado uma noite, os recebeu bem. Ela já tinha começado a adquirir uma qualidade mítica, pensou Eric, contando as horas que lhes restavam. Ele estava tão ciente da passagem das horas que a trama dos lençóis, o terreno desigual do colchão, o brilho âmbar da lâmpada da mesinha de cabeceira pareciam fazer parte do passado, tanto quanto do momento presente.

- Só ternos esta noite - disse ele, aninhando a cabeça dela entre as mãos. - Amanhã você não pode ficar comigo, a não ser quando houver o desfile, e depois vai tomar esse avião horrível para Florença. Por que, ah, por que você tem de ir embora na quinta-feira de noite?

- Não conte as horas. Não conte os minutos... você vai estragar o agora. Não me faça ficar triste, não me deixe mais triste do que já estou - pediu Fauve. - As garotas tem de se levantar bem cedinho na sexta-feira de manhã, você sabe disso tão bem quanto eu. As provas vão levar todo o fim de semana... Versache, Armarei... eu pensei que você compreendesse.

- Infelizmente, é tão simples e lógico quanto uma planta. O que eu não entendo é por que você se esquivou todas as vezes em que tentei lhe falar seriamente, desde que nos encontramos. Não insisti porque imaginei que talvez o momento não fosse oportuno, mas agora...

- Ah... deixe eu me esquivar mais um pouco. Eu me esquivo tão bem - murmurou Fauve, cobrindo o peito dele com beijos.

- Deixo, se você me responder uma pergunta muito simples: você me ama, Fauve?

- Ah, sim.

- Então, temos de fazer planos, temos de falar sobre o futuro...

- Você disse que se eu respondesse, você me deixaria esquivar-me de você - protestou Fauve, interrompendo o fluxo de palavras dele. - Planos... o futuro... não é disso que são feitas as esquivas.

- Se você dissesse que não me ama, eu me calaria e faria amor com você, mas você me ama. não vê que isso muda tudo?

O alívio transfigurava a voz dele.

Fauve se afastou dele, levantou-se da cama e ficou junto da janela, nua e branca no escuro que caía fora da luz do abajur. Ela juntou as mãos atrás da cabeça abaixada e a sacudiu de um lado para outro, num gesto quase imperceptível de confusão e negação.

- Por favor, ah, Eric, por favor, hoje não.

- Mas quando? Você não pode estar pretendendo partir sem... isso não pode ser! Fauve, quantas outras oportunidades você pensa que vamos ter?

- Eric, eu não tenho desejado pensar - disse ela, devagar, o rosto virado. - Estive vivendo sem calcular ou pensar nas possibilidades... estive vivendo. .. só plainando com o vento. Estive tão feliz, só saltitando como uma linda bolha de sabão, mas se continuarmos a conversar, minha linda bolha vai arrebentar. Por favor?

Eric foi para trás de Fauve, junto da janela, e envolveu-a com os braços, segurando o peso macio de seus seios nas mãos em concha. Ele pousou o queixo em cima da cabeça da jovem e a protegeu com seu corpo grande e quente.

- Você está tremendo. Não fique aqui, está muito frio. Venha para a cama, meu amorzinho. E traga a sua bolha com você... é uma bolha tão brilhante e você a usa tão lindamente.

- Amanhã, Eric, prometo.

- Amanhã.

Na quinta-feira, depois do almoço, Eric estava sentado no Rosati, esperanto por Fauve. Ele olhou para o relógio, impaciente. O desfile de Valentino já devia ter começado. Ele e Fauve teriam pelo menos duas horas para fazer seus planos, até ela ter de partir para apanhar as moças e a bagagem e ir a Fumicito, a tempo do avião.

Ele a viu chegando e se levantou de um salto. Ela se dirigiu para ele, com um amplo casaco de viagem. O vento primaveril estava fresco, na praça.

- Vamos sentar lá dentro disse ele, levantando a cabeça de Fauve para beijá-la. - Graças a Deus que você não ficou presa.

- Depois que aquele desfile começou, nada a não ser uma bomba no vestiário podia impedir que as minhas garotas funcionassem... e assim mesmo, elas provavelmente só andariam em volta dos escombros. Eu fugi. Tenho de voltar a tempo de felicitar Valentino, mas é uma coleção grande.

- Café? - ofereceu ele.

- Eu gostaria mesmo é de um bom bule de chá. Existe isso na Itália?

- Há uma longa tradição de ingleses excêntricos que vieram para Roma e nunca mais foram embora... tenho certeza de que fazem chá. Fauve.. . quer casar comigo?

- Eu estava com medo que você dissesse isso - disse ela, naquela voz estranha e abafada. Eric olhou para ela e não parecia possível que aquela moça pálida, novamente vestida de branco e preto, só os cabelos dando colorido ao seu rosto, pudesse ser o espírito de fogo e desenvoltura com quem ele passara a noite, até ela deixá-lo pouco antes do amanhecer.

- Com medo por quê? - Porque não posso.

- Por que não, meu amor? Que motivo pode haver para que duas pessoas que se amem como nós não se possam casar? - Ele falou com calma e tranqüilidade. Tinha certeza de que ela havia de opor alguma resistência, isso fora evidente na sua ambigüidade, sua insistência em nunca olhar além do presente. - Você não tem mais 16 anos... sei que aquela foi uma idéia maluca, mas agora tudo está diferente.. , não há nada que nos impeça.

- Não estou preparada para me casar. Como é que você espera que eu passe dois dias com você... só dois dias... e tome uma decisão dessas? Foi tudo perfeito e nada é perfeito assim na vida real, nada! Não podia continuar a ser assim... isso foi um interlúdio, Eric. Mas não é só este o motivo. - A voz de Fauve estava forte, certa do que tinha a dizer. - Tenho uma responsabilidade para coam Magali, que não posso ignorar. Se eu largasse a agencia, ela teria de voltar a trabalhar cinco dias por semana, ou então, desistir dela... vende-1a, provavelmente. Ela passou a vida toda construindo esse negócio, eu passei cinco anos aprendendo e ela conta comigo... tem todo o direito de contar. Ah, ela nunca haveria de se opor aos meus desejos, mas sei que se eu saísse de Nova York, isso mudaria todo o modo de vida de Magali, não seria justo! Ela ficaria tristíssima se tivesse de desistir da agencia; e ficaria igualmente triste por ter de trabalhar em horário integral de novo, com a idade dela. Em todo caso, o que é que eu havia de fazer de minha vida, morando em Avignon?

- Espere um pouco! São três motivos... você não podia parar um instante para respirar? Tome o seu chá. Leite? Limão? Muito bem, o casamento não seria como dois dias em Roma. Não há nada que seja como dois dias em Roma. Nada como uma semana em Florença. Nada como um mês no campo. O casamento é o casamento e cada um é diferente.., e o nosso seria maravilhoso; de vez em quando, provavelmente não seria perfeito, mas só crianças é que esperam que o casamento seja perfeito e você não é criança. Isso é o número um. Dois. De tudo o que você me contou sobre Magali, ela sabe tomar conta de si. Ela ficaria indignada se pensasse que você estava se sacrificando por ela... Não posso imaginar que ela não resolvesse a situação, de um jeito ou de outro... ela conseguiu se haver magistralmente, por sua conta, a maior parte da vida, não? Tres. Esse é um problema de verdade, mas não creio que não possa ter uma solução. Eu podia me mudar para Paris, por exemplo, entrar para uma firma lá, e você podia arranjar um emprego, ou podia abrir uma agencia de modelos, se é isso que você quer... morar em Avignon não é essencial para mim...

- Pare, Eric! Você está sendo tão infernalmente racional sobre isso! Até parece um horário de trem.

- Mas você está-me dando razões e eu estou-lhe dando razões, por que as suas razões estão erradas. Se você quiser dizer coisas irracionais, fico calado e escuto.

- Ah... ah... - Fauve levantou as mãos, sem poder falar.

- Vamos... diga coisas irracionais - insistiu ele.

- Estou assustada, apavorada - explodiu ela. - Estou paralisada com a idéia de tomar uma decisão tão grande. É demais para mim... só de pensar, o meu sangue gela... ah, Eric, eu nasci para florescer tarde. Desisto de cada fase de minha vida o mais devagar que posso, olhando para trás o tempo todo... preciso de velhos hábitos, segurança, familiaridade. Fico petrificada diante da idéia de passar o resto da vida com você... ou com qualquer pessoa, aliás. Não o conheço direito, não você adulto. Nem sequer me conheço a mim. Não tenho tido muito tempo para mim, não - estou preparada para ser casada, não quero planejar o meu futuro... C fácil para você, você está com 26 anos, já teve tempo de se descobrir, de experimentar. Eu me sinto apressada, pressionada... como pode esperar que eu esteja preparada?

- Isso não é irracional, é natural. - Ele pegou as mãos dela nas suas. - Entendo que é muito cedo para tomar uma decisão. Venha viver comigo... só para ver como é para nós dois juntos. Isso não é um passo assim tão importante a dar, é? Nada de prisões, só um interlúdio, se é só isso que você quer. Não volte para Nova York, depois de Paris... venha passar a primavera em Avignon, comigo.

Fauve olhou para dentro da xícara, mais confusa do que jamais se sentira na vida. Não posso faie-lo compreender. como posso dizer, afinal, que não confio nele, ah, não, a despeito de pensar que confiava? Confiei no meu pai e- olhe o que ele fez... como posso confiar em algum homem, algum dia? Um “interlúdio"... só um interlúdio, diz ele... C sempre um interlúdio quando começa... antes de fazer uma coisa horrível na gente. Foi só um interlúdio para Magali, em Paris, há tanto tempo, só um interlúdio para minha mãe... interlúdios se tornam prelúdios e depois? E depois, oh, Deus? A primavera em Avignon? Não! É perigoso, perigoso demais. Estou certa, por sentir o perigo. Sempre há perigo quando a gente confia, quando depende de outra pessoa, quando põe a vida nas mãos dela. Ah, eu quero a vida que conheço, quero a vida onde tenho um lugar, onde tenho um escritório, onde as pessoas precisam de mim, uma vida em que me criei, onde estou segura.

- Não - disse ela, olhando para dentro da xícara. - Não posso. Tenho de voltar para Nova York. Talvez quando eu tirar férias - gaguejou - nas próximas férias... talvez então...

- Não se preocupe. - Eric levantou-se. - Eu' não sabia que você tinha tanto honor a essa idéia - disse ele, tenso. - Não teria importunado você tanto tempo, se soubesse. Você disse que me amava, mas não ama... não o suficiente. Nem por sombra. Desculpe, o engano foi meu. Ele pôs o dinheiro na mesa e foi embora.

- Eu sabia que ele não havia de entender - murmurou Fauve para si mesma.

- Há alguma coisa, signorina? - perguntou o garçom. - Não - disse Fauve. - Nada. É só o fim... –O fim...

- De um interlúdio.

 

 

                                   Capitulo 31

 

Falk estava acostumado com a adulação de mulheres bonitas e dava o devido desconto. Ele estava tão saturado de lisonjas que nem sabia mais como era a sensação de ser lisonjeado, mas quando Fauve Lunel o convidou para jantar, só eles dois, no apartamento dela, o primeiro jantar que ela preparara sozinha, ele se sentiu... lisonjeado.

- Provavelmente não sou boa cozinheira - ela o prevenira.

- Quem disse isso?

- Ninguém, só que nunca cozinhei para ninguém. Então, como posso ser boa cozinheira?

- Eu me arrisco.

Falk, esperando que Fauve voltasse da cozinha, onde estava misturando as bebidas, olhou em tomo da sala. Era como olhar no sótão de uma residência de família, pensou ele, ou então um monte de álbuns de recordações. Fauve nunca jogara nada fora? Ele só via dois exemplos de controle: ela pintara o chão de verde esmeralda e o deixara despido e a fazenda que ela usara nos móveis bem estofados, exuberantemente vitorianos, estava de acordo: um estampado de gigantescas rosas num chintz brilhante que, quando ele olhou bem, certamente tinha sido usado como cortinas no apartamento de Maggy, na Quinta Avenida, antes dela redecorá-lo.

Ele se lembrava da origem de tantos objetos que via; lá estava a imensa gaiola de arame que ele comprara para Fauve na Terceira Avenida, numa tarde de sábado. Ela parecia ter gerado mais sete gaiolas, empilhadas artisticamente em tomo dela, tornando-a uma estrutura complexa, onde nenhum pássaro cantava. E lá estava o imenso chapéu de palha que ele trouxera para ela de uma viagem que fizera ao Yucatán, e agora acompanhado por dúzias de

outros, de todos os feitios e tamanhos, pendurados de ganchos nas paredes.

A lira graciosa que ele lhe dera de presente de Natal, quando ela fez 12 anos, estava pendurada em outra parede, rodeada de uma porção de instrumentos musicais antigos: flautas, violinos, oboés e até um clarinete velho que fora bem areado. Fauve tinha cestas por toda parte, cestas em cima de outras cestas, algumas cheias de plantas, outras com lápis, outras com livrinhos de notas e peças de fazenda e novelos de Almofadas! Fauve parecia ter açambarcado o mercado de almofadas, pensou ele, com a saudação de connoisseur de um homem que se considerava perito no ar atravancado. Isso ia além do atravancamento - isso era histórico. Os livros em suas estantes apinhadas incluíam uma coleção completa dos livros de Oz, as muitas aventuras de Mary Poppins e as obras de E. Nesbitt, bem como os livros que Fauve tinha lido desde criança, nenhum dos quais ela jamais pareceu deixar que lhe escapassem. Um par de esfinges de pedra, drapejadas, em tamanho natural, era o que lhe parecia, se bem que ele nunca tivesse visto uma esfinge em bom estado físico, montavam guarda à lareira, dentro da qual havia uma grelha de metal bem areado.

Não havia fogo aceso - era um dia ameno de setembro, em 1975 - mas Fauve tinha acendido uma galáxia de velinhas votivas em copinhos transparentes, distribuindo-os na grelha, de modo que a lareira não tinha um aspecto escuro nem vazio. Uma mesinha redonda estava posta junto de janelas altas que davam para uma árvore de acanto florescente. A mesa estava coberta por três toalhas diferentes: a primeira, bem franzida, chegava até ao chão e era de um tafetá vermelho vivo; a segunda era um tapete velho, sedoso, estampado em todos os tons de rosa, e a toalha de cima era feita de um linho branco delicado, com uma barra larga de organdi bordado.

Na escrivaninha de Fauve, em molduras antigas e trabalhadas, estavam as únicas três fotos da sala: um instantâneo de Maggy e Darcy sentados no grasnado em frente de sua casa, uma foto de um número de Life de 1951, mostrando Maggy rodeada por suas modelos mais famosas, e uma ampliação de uma das fotos de teste que Falk tirara de Teddy em 1947. Teddy Lunel, aos 20 anos.

Ele virou o rosto, não podendo olhar para aquilo por mais de um momento, e seu olhar foi atraído por um objeto extraordinário, um ursinho estofado gigantesco, que já vira dias melhores, sentado em um lugar de honra, numa cadeira de balanço, num canto. Sobressaltado, ele procurou outros animais. Uma frota de carrancas de navio, um exército de estatuetas, uma coleção de caixas de música, uma floresta de castiçais descasados e, em cada mesa, grupos de vasinhos de um botão só, de todas as alturas, cada qual com uma flor ou um raminho de folhinhas ou alguns capins silvestres - sim, tudo isso, mas, ele ficou aliviado, não havia outros animais estofados.

- Muito aconchegante - disse ele a Fauve, quando ela lhe deu um copo.

- Não fiz muita coisa - disse ela mas aos pouquinhos vai tomando jeito.

- Que jeito você tinha em mente?

- Não sei bem. Vou saber quando chegar lá... provavelmente quando não conseguir mais andar pela sala sem tropeçar em alguma coisa. É por isso que não tenho tapete. Reduz a confusão. Se eu tivesse um tapete grande, ia querer pôr outro tapetinho em cima dele; e precisava de um tapete para a lareira, claro... uma coisa estampada... parece que estou sempre encontrando coisas.

- Eu adoro coisas - disse Falk. - Não há nada como uma coisa.

- Eu sabia que você ia compreender. - Eles se sorriram com o maior prazer mútuo possível. - Você nunca me perguntaria se isso não junta muito pó ou que tipo de neurose representa, nem comentaria com ar sabido sobre o meu instinto de fazer ninho.

- Nunca. Mas eu me pergunto...?

- O quê?

- Nada de quadros?

Não, não tenho lugar para quadros. Tem coisas demais nas paredes, em todo caso, e para fazer justiça aos quadros a gente tem de subordinar a sala a eles.

- Essa sala é positivamente insubordinada.

- Exatamente. Ah, a galinha! Com licença um minuto.

Ela voltou com um eventual branco liso de chef sobre o vestido sem mangas nem costas, de algodão alaranjado vivo.

- Está cozinhando, é só o que posso dizer a favor dela, no momento.

- Que tipo de galinha é? - perguntou ele, com fome.

- A húngara. Galinha à páprica. Estou contando com o fato de que não há nada no mundo que não possa ser melhorado com muito creme azedo. Sei que isso é enganar, mas preciso de todo o auxílio que puder arranjar.

- Quando é que você começou a cozinhar? Isso lhe veio assim de repente?

- Acho que deve ser uma coisa de maturação, ou talvez um desejo desnaturado, como no Bebê de Rosemary. Desde que me mudei para cá, quando não sou convidada para jantar fora, tenho comprado alguma coisa no Dover Deli. Há algumas semanas, eu estava passando pelo açougue e, quando percebi, estava entrando e comprando duas costeletas de cameiro. Pensei em pôlas numa panela e cozinhá-las. Bom, ainda não sei o que fiz de errado, mas a cozinha ficou cheia de fumaça e uma porção de gordura quente começou a esporar em cima de mim. Fiquei tifo apavorada que agarrei a panela do fogo e joguei tudo pela janela dos fundos. Mas isso me levou a pensar que, se Maggy pode aprender jardinagem com os livros, eu provavelmente posso aprender a cozinhar. Então, comprei A Alegria de Cozinhar. Hoje será uma noite histórica - Ela começou a pôr a mesa.

- Maggy acha que você está trabalhando demais - disse Falk. - Ela me disse que você está deixando que o negócio domine a sua vida.

- Ela tem topete! Você sabe o que é que ela fez, no último fim de semana? Encomendou 5.000 bulbos de narcisos. Cinco mil! Ela mesma vai plantá-los naqueles morrinhos baixos atrás da casa e na primavera que vem eles vão brotar como se tivessem crescido silvestres ali há anos, em barrancos. Barrancos... ela está sempre falando desses barrancos. E depois de instalar os narcisos, pretende fazer um jardim de sombra nos bosques, como seria se a natureza tivesse seu senão de elegância. Você já imaginou alguém que pretende cavar 5.000 buracos vir dizer que eu trabalho demais?

- A gente não cava buracos individuais, cava uma porção de terra e mais ou menos despeja os bulbos por ali, ou foi o que ela disse. Como semear cereais, ou coisa assim.

- Bem, seja como for, é trabalho. Sabe, acho que Maggy talvez esteja mais interessada nos jardins dela do que na agência, agora - disse Fauve, pondo os pratos na toalha de linho.

- O que a faz dizer isso?

- É uma coisa bem esquisita, nas quintas-feiras. Todas as quintas de tarde, ela vai ficando cada vez mais irritável, como se não conseguisse esperar para ir embora, mas recusando-se a confessar. Encontra erros não existentes por toda parte, anda pelas salas de contatos e verifica de novo os cartões de todas elas, para ver se ninguém atrapalhou sexta-feira e segunda-feira, começa a se preocupar com as modelos que vão indo muito bem, vai ao departamento de contabilidade para saber se estão preparados para o dia de pagamento, como se, depois de tantos anos, eles não soubessem que toda modelo vai buscar o cheque dela na sexta-feira, chova ou faça sol. Ela está deixando todo mundo um pouco maluco. As novas contatos estão apavoradas com ela. Depois, ela começa a descobrir coisinhas que ela "tem de fazer", à medida que a tarde continua, de modo que não podemos fechar o tempo... coisas desnecessárias, de que Casey, Loulou ou eu podíamos nos encarregar na sexta-feira, perfeitamente. h' como se ela se obrigasse a trabalhar até tarde, porque se sente culpada por ter tanto tempo de folga, o que é inteiramente louco.

- Já falou com ela a respeito? - perguntou Falk.

- Não, não quero dizer nada que pareça uma crítica. Acho que ainda chegará o dia em que ela vai ver por si que não quer trabalhar três dias por semana. Então, há de me deixar saber - disse Fauve, examinando sua mesa e achando que estava completa.

- O que você acha de dirigir a agência se ela - não estivesse por lá?

- É para isso que fui treinada, é o que sei fazer. Temos pessoas de confiança trabalhando para nós, em todos os departamentos. Casey sabe fazer tudo o que eu faço, Loulou tem a parte dos contatos, controlando-a tanto quanto se pode controlar... sei que é um negócio grande para ser dirigido por uma pessoa da minha idade, mas estou nisso há cinco anos e acho que poderia dar conta. No entanto... Maggy é a Lunel. Todas as modelos esperançosas do mundo querem ir lá para ver Maggy Lunel e não Fauve Lunel. Os redatores de revista confiam nas opiniões dela como só vão confiar nas minhas daqui a anos e anos, a agência nunca seria a mesma... mas... se ela está mesmo farta, eu compreendo. Eu teria de... ah, a minha galinha!

Quando Fauve voltou da cozinha, parecia aliviada. - Provei e acho que vai ser vagamente húngara.

- Você nunca cozinhou nada para Ben Litchfield? - perguntou Falk. - Ben Litchfeld não tem droga nenhuma de paladar. - Pensei...

- Sei o que pensou. É só nisso que todo mundo pensa. Francamente, Melvin, parece que Manhattan só tem dois quarteirões quadrados, do jeito que todo mundo se mete na vida particular de todo mundo. - Fauve sentouse ao lado de Falk e bebeu a metade de seu cálice de vinho. - Não me refiro a você, claro.

- Sei que não. Então, conte-me sua vida particular.

- Ele quer casar comigo.

- Grande novidade!

- Não, quero dizer que ele quer mesmo se casar. Ele falava nisso de vez em quando, mas você é o tempo todo. Pressão, pressão - disse Fauve, séria.

- A maioria das garotas - disse Falk.

- Exatamente. A maioria das garotas. Todas as garotas, provavelmente. É um camarada maravilhoso, é brilhante, é bom, venceu na vida, e sério, é muito, muito atraente, é uma pessoa com quem posso conversar, temos muita coisa em comum, é bonzinho, é tudo o que se pode desejar.

- Ah, não estou gostando do jeito disso.

- Eu acho que Ben e eu somos o que se chama bons um para o outro - disse Fauve, com um sorriso malicioso.

- Se você dissesse que ele era impossível, maluco, imprevisível, e você não entendesse como é que está tão loucamente apaixonada por ele.., aí talvez.

- Talvez sim... talvez não. Nem isso garantiria nada.

- Nada garante nada, Fauve - disse Falk, com brandura. - É tudo uma loteria.

- Não há um jeito de se ter certeza, um jeito de se garantir as coisas para elas acontecerem sob o seu controle? Se a gente tiver muito, muito cuidado? - perguntou Fauve, pensativa.

- Não se você vai se arriscar a fazer uma modificação. As mudanças não podem ser formadas e organizadas e moldadas antes de acontecerem. A natureza da mudança é levar você para outro lugar. Você cresce, é a única coisa de que pode ter certeza, o crescimento. Mas toda mudança tem seu quinhão de surpresas.

- Nunca fui grande apreciadora de surpresas - disse Fauve, com uma expressão sombria de tanta tristeza no rosto, que o coração de Falk ficou apertado.

- Você acha que a galinha está pronta? - perguntou ele. - Está cheirando.

- Vou investigar. Como é que vou saber se está pronta?

- Quando a pema se mexer com facilidade na junta. Também pegue um espeto comprido, espete e veja se o caldo que sai está límpido. Espete na coxa, não no peito.

- Como é que você sabe?

- Quantas mulheres já tive?

- Só três.

- Uma delas deve ter-me ensinado, mas não me lembro qual. E bom saber esse tipo de coisa, mesmo que esteja errado. Chama se sabedoria popular. Fauve saiu da cozinha carregando uma travessa. Estava radiante. - Parece boa, a julgar pelas aparências.

A galinha estava gostosa, o arroz também, as vagens, cortadas a francesa e congeladas, estavam gostosas e o creme azedo temperado com páprica elevou tudo a um ponto em que a gula se tomava uma virtude, pois não comer aquilo vorazmente teria sido pecar por omissão.

Depois do jantar, Fauve e Falk ficaram sentados defronte da lareira, bebendo conhaque, vendo as luzes votivas ainda piscando. Fauve ficou calada, pensativa. Depois de um silêncio prolongado e confortável, ela levantou os olhos e disse:

- Todas as pessoas mais importantes na minha vida, Magali, Darcy, e até Lally Longbridge, que parece uma tia, e você, especialmente você, Melvin, com quem eu posso falar com maior liberdade do que com qualquer outra pessoa... nenhum de vocês quer faiar sobre a minha mãe. Por que será?

- Eu sempre pensei... que Maggy lhe tivesse contado tudo sobre cia... que nada foi escondido - respondeu Melvin, sem jeito.

- Ah, o esboço da vida dela, sim. Os detalhes básicos, as coisas que tinha de me contar. Já olhei para tantas fotos, por tantas horas... há uma biblioteca completa de revistas velhas no escritório e, entre 1947 e 1952, há milhares de fotos de Teddy Lunel, mas elas não podem me dizer as coisas que quero saber, por mais que olhe nos olhos dela.

Que tipo de coisas? - perguntou Falk, o coração batendo pesadamente.

- Eu tenho pouco menos da idade dela, quando morreu. Eu a teria amado? Ela me teria dito o que fazer, quanto ao Ben? Do que ela gostava mais que tudo, no mundo? Por que ela não se casou com você?

- Você sabe disso? Quem lhe contou? - Ele largou o cálice de conhaque com um movimento súbito, sobressaltado.

- Ah, eu adivinhei, há muito tempo. Há alguma coisa no seu rosto, quando você olha para mim. Sei que gostava dela. Vocês foram amantes, vocês dois? - perguntou Fauve, com brandura, séria.

- Eu fui... fui o primeiro garoto que disse a ela que ela era linda, o primeiro que saiu com ela, que lhe deu o primeiro beijo, o primeiro homem que fez amor com ela... a única coisa que não quis foi ser o primeiro somem cujo coração ela despedaçou.

- Sinto muito... sinto muito, Melvin, queria que ela não tivesse despedaçado o seu coração.

- Ela não queria, não podia evitar, não conseguiu chegar a se apaixonar por mim... estava procurando outra coisa, uma coisa... uma outra coisa.

- Ela teve muitos amantes?

Fale vacilou. Tinha o direito de responder? Fauve tinha o direito de perguntar?

- Está vendo? - disse Fauve. - E isso que quero dizer. Se ela fosse viva, eu diria "Mamãe, você teve muitos amantes quando era da minha idade?", e ela me teria dito alguma coisa, mesmo que fosse para cuidar da minha vida. Mas claro que não posso perguntar a Magali, e você agora fica aí todo calado. O que é que ela me teria dito?

- Eu acho que ela lhe teria contado tudo o que você quisesse saber. Não tenho certeza de que ela lhe desse conselhos acertados. Ser sensata não era prioridade para Teddy... mas acho que ela teria sido franca com você.

- Então?

- Eu lhe disse que ela estava em busca de outras coisas. Procurou muito tempo e quando compreendia que não tinha encontrado o que queria... fosse lá o que fosse... procurava em outra parte... assim, teve uma série de casos. Não sei o que quer dizer "muitos", exatamente, mas talvez ela tenha tido um amante para cada 100 homens que a desejavam... ou cada 200...

- Mas ela gostava deles?

- De todos eles, até parar de gostar. Aí começava a procurar de novo. Então, ela encontrou o seu pai e era ele o que ela queria, coitada.

- Estou sendo injusta com você? - perguntou Fauve, de repente. - Atraindo você aqui com a minha galinha divina e depois fazendo perguntas sobre coisas que você não quer discutir?

- Não! Meu Deus, não. Acho que nós todos fomos muito injustos com você, não lhe contando mais, não falando sobre Teddy porque era penoso demais. A morte dela modificou todas as pessoas que ficaram. Nenhum de nós jamais foi a mesma coisa.

- Isso não é verdade sempre que morre uma pessoa jovem?

- Talvez. Mas a sua mãe era.., era...

- Diferente? Especial? - A voz de Fauve tremia, na sua necessidade ansiosa de saber.

- Quem me dera poder sequer começar a explicar o encanto dela... eu lia E. E. Cummings... todos da minha idade leram E. E. Cummings... e sempre pensava nela... "a primavera branca musical... não, era preciso eu ser poeta para transmitir até uma décima parte de Teddy. E, sim, você a teria amado tanto, tanto, e ela féria amado você mais do que tudo no mundo... isso é o mais triste de tudo.

Ele se levantou e foi para onde Fauve estava encolhida na poltrona e a abraçou.

- Mas lembre-se de uma coisa. A sua mãe afinal encontrou o que procurava há tanto tempo. E foi maravilhosamente feliz até o último segundo de sua vida.

- Posso lhe servir mais um pouco de conhaque, Melvin? - perguntou Fauve, levantando-se tão depressa que derrubou uma pasta grande que estava numa mesa ao lado de sua cadeira. Caiu no chão e os papéis se espalharam. Fauve foi apanhá-los e Falk se abaixou para ajudar. Os papéis escorregavam pelo piso envernizado e, depois de juntar um montinho, ele parou para ver o que era. Olhou normalmente, depois espiou de novo pelos óculos e em seguida levou os papéis do lugar sombrio em que estavam sentados e os pôs debaixo da luz de um abajur.

- Não são nada - disse Fauve. - Dê aqui.

- Uma ova. Uma ova que vou dar.

- São só uns rabiscos, Melvin. Ande, não me aborreça. Isso é particular. Ela enfiou os papéis que tinha apanhado dentro da pasta e tentou puxar o resto da mão dele.

- Não rasgue! - ameaçou ele, recuando.

- E então? E se rasgar?

- Fauve, você andou desenhando, andou trabalhando... há quanto tempo que anda fazendo isso? você tem idéia de como tem talento, sua garota burra, burra?

- É só que eu... tenho uma necessidade nervosa de desenhar coisas... é como um tique.., por favor, não de importância a isso, Melvin. Você sabe o que eu acho da pintura... isso é só uma coisinha sem importância, nem mesmo um passatempo. Todo mundo desenha e rabisca, mostre-me uma pessoa que não rabisque.

- Jesus, Fauve, com quem você pensa que está falando? Uma pessoa que não entende nada? Esses desenhos são excelentes, porra! Está pintando também? Fauve, diga!

- Não há nada a contar. Está bem... então, desenho um pouco... confesso... não pinto nada... é verdade, nada de tintas, você sentiria o cheiro se houvesse tintas no apartamento: - Fauve abriu os braços num gesto de inocência. - Não há lei alguma contra o desenho, não é nem considerado um vício. Ande, Melvin, pare de me olhar assim. É constrangedor. E me devolva os meus desenhos.

Ele os devolveu e deu de ombros.

- Se é isso que você quer, filhinha, não há nada que eu possa dizer. Se você um dia resolver me dar um presente de aniversário ou de Dia dos Namorados, ou apenas um presente... de um de seus rabiscos. Nem precisa se dar ao trabalho de emoldura-los. Você encontrou a sua linha, o seu estilo pessoal, e isso não tem nada a ver com o seu pai ou qualquer outro pintor. Entende o que isso quer dizer? Não? Não faz mal, burrinha. Acho que aceito esse conhaque que você ofereceu. Nunca estive tão precisado.

Marte Pollison, já com seus 70 e tantos anos, nunca mudara em sua longa dedicação a Nadine. A seus olhos Nadine continuava a ser a criança milagrosamente linda, a filhinha que ela nunca pudera ter. Nadine, que sabia que Marte a adorava cegamente, sempre apelara, instintiva e desavergonhadamente, para o lado sentimental da camponesa rabugenta, correndo para se consolar com ela sempre que tinha um machucado ou um arranhão tão insignificante que Kate teria rido daquilo; ficava sentada com ela na cozinha, escutando suas tagarelices sobre a vida na aldela, horas a fio, esperando os doces deliciosos que Marte fazia especialmente para ela. Depois de sair de casa a fui de ir para o colégio interno, Nadine esqueceu-se inteiramente de Marte, até voltar para casa, nas férias, e então o antigo relacionamento agradável era logo reatado. E Marte, a cada ano, a adorava mais. Depois da morte de Kate, Marte tornou-se o único contato de Nadine com o mundo de La Tourrello, pois Mistral fora grosseiro, mostrando que ela não era bem-vinda.

- A sua vida é uma farsa, o seu marido é indigno e sou muito ocupado para ser interrompido. Você não é bem-vinda aqui, Madame Dalmas - dissera ele, desagradavelmente, da última vez que ela sugerira ir passar um fim de semana em Félice e, desde esse dia, num período de quase quatro anos, Nadine prudentemente resolvera manter contato com Mistral por meio de um telefonema a Marte, de vez em quando.

Ah, quantas vezes ela já ouvira aquelas notícias irritantes, monótonas, que não variavam, dadas na voz velha e rachada de Marte.

- Ele está na mesma, ma petite cherie. Ele se levanta, toma o café da manhã, tranca-se no estúdio o dia todo, janta e vai para a cama. Não, a saúde está boa, nunca me diz nada, a não ser me avisar para não deixar estranhos entrarem, como se eu não soubesse. O que é que ele faz o dia todo? Conserva o estúdio trancado e eu nunca fui de bisbilhotar. Desde que sua mãe morreu, isso aqui está triste é solitário. Ele abandonou as terras, despediu os lavradores, a maquinaria está toda enferrujada, as videiras e olivais são a vergonha das redondezas, mas ele nem se importa, ele não. Se não fosse eu, ele provavelmente ia morrer de fome, sem notar. Só fico aqui por causa de você e pela memória de sua pobre mãe.

Em meados de setembro de 1975, Marte Pollison telefonou a Nadine para dizer que o pai estava tossindo, há vários dias. Estava trabalhando sempre, recusando-se a mudar de rotina, mas naquela noite não conseguira se levantar da cama.

- Não quer me deixar chamar o médico, ma petite, mas acho que ele pode estar com bronquite. O que devo fazer?

- Nada, Marte, estarei aí de manhã. Você sabe como é que ele é com os médicos. Não o contrarie.

Phillipe Dalmas ofereceu-se, por obrigação, para ir de avião a Nice, com Nadine, e acompanhá-la de carro a Félice, coisa de pouco mais de hora e mela, mas Nadine recusou. Quando chegou perto dos portões, ficou chocada. La Tourrello parecia abandonada, um montão de pedras de onde a vida se esgotara. Na cozinha, ela se submeteu cortesmente aos abraços de Marte.

- Você está mais linda do que nunca! Como deve ser alegre em Paris - exclamou Marte, ocupando-se de Nadine, feliz.

- Por que a casa está fechada, Marte? Por que as venezianas estão fechadas, os móveis todos cobertos?

- Ah, não me culpe, não é minha culpa. A piscina também está vazia e o jardim virou mato, mas aqui não tem ninguém para fazer o trabalho, só eu. Mantenho a casa varrida, tiro o pó e as telhas são consertadas quando é preciso, mas sabe que monsieur despediu todos os empregados depois que madame morreu. E minha artrose piora cada vez que sopra o mistral.

- Coitada de você, Marte., claro que eu compreendo - disse Nadine.

- Por muito tempo eu me ofereci para acender um fogo para ele na lareira do salon, para ele poder se sentar lá de noite, mas ele nunca permitiu. Arejei e limpei bem o seu quarto, hoje de manha, e vou servir o seu jantar na sala, se quiser, ou na cozinha. Quanto tempo pode ficar?

- Até ter certeza de que ele está melhor - respondeu Nadine e subiu a escada para o quarto de Mistral.

- Não sei por que diabo você está aqui - disse Mistral para a filha, quando ela entrou. - Já era tarde para impedi-la quando Marte me disse que você vinha, maldita seja ela

- Marte está preocupada com você.

- É uma velha intrometida. Senil! Estou muito resfriado. -SÓ preciso é de ficar quatro dias na cama.

- Não acha que devia chamar o médico?

- Não seja ridícula. Nunca consultei um médico na minha vida. Não preciso de médico, preciso é de um pouco de paz e sossego. - Marte acha que é bronquite.

- Ela não sabe do que está falando. É qualificada para fazer um diagnóstico? Deixem-me em paz, só isso.

- Anda trabalhando demais? - perguntou Nadine.

- Trabalhando demais? Você tem idéia do que isso significa? Trabalho, só isso. Trabalho é trabalho.

Ele tossiu, uma tosse explosiva, inesperada, incontrolável.

- Saia daqui - disse ele, quando tomou fôlego. - Vai apanhar o meu resfriado.

Ele bebeu água de um copo junto da cama.

- Não, papai. Vou-lhe fazer companhia mais um pouco. Não me de atenção. Fico sentada aqui.

Mistral fechou os olhos, com indiferença, e depois de um minuto caiu num sono leve, roncando de vez em quando. Nadine não conseguia deixar de olhar para ele. Era esse o homem que Marte dizia estar em boa saúde? Talvez fosse só que Marte não tivesse notado, morando com ele, todo dia, mas Mistral estava tão magro que o corpo dele só formava uma saliência comprida debaixo das cobertas. Da cadeira junto da cama dele, em que ela estava sentada, o corpo dele tinha um cheiro rançoso de suor. Ela estremeceu de repugnância.

Ele era um velho resistente e só tinha 75 anos. Tinha conseguido trabalhar como sempre, até à véspera. Quem sabia lá que reservas de força restariam naquele corpo? Quando ela era menina, ele era o homem mais forte do mundo. Os grandes pintores, como os grandes maestros, viviam para sempre, se não conseguissem se matar, de um modo ou de outro, em sua juventude. Certamente, o jeito dele não era o de um homem que se acreditasse estar correndo algum perigo.

Nadine mordeu os lábios, num acesso de gênio, impotente. Provavelmente era um alarme falso, uma febre, uma tosse, uma gripe, nada que ela não tivesse tido uma dúzia de vezes. No entanto, não havia dúvida de que ele tinha emagrecido muito. Mas as pessoas magras vivem mais do que as gordas, pensou ela, zangada, e nas pontas dos pés foi para junto da cama, para olhar a cara dele. O nariz parecia ter o dobro do tamanho de antes, pois agora se destacava num rosto de onde a carne tinha sumido, uma máscara dura, sombria e arcaica.

- Que diabos, Nadine, me deixe em paz! Quero dormir! - disse Mistral, em voz rouca, sem abrir os olhos.

O coração dela deu um salto e ela fugiu para a cozinha.

- Marte, não creio que haja motivo para se preocupar com ele. Está de tão mau humor que não pode estar doente de verdade.

- Eu não podia assumir a responsabilidade, tinha de lhe telefonar - murmurou Marte.

- Claro que sim. Em todo osso, estou contente por ter vindo, nem que tenha sido só para ver você. Papai me afastou por tanto tempo. Você sabe que eu teria vindo sempre que possível, mas ele se recusava a me ver. Nunca entendi isso, mas o que podia fazer? A casa é dele, afinal.

- Se ao menos a sua mãe fosse viva. Lembra-se das festas? E como a casa era linda, cheia de flores, empregados por toda parte, a cozinha cheia de comida? E toda aquela gente famosa? Ah, madame era a rainha dessa região -

disse ela, triste.

- Você parece cansada, minha pobre Marte - disse Nadine, consolando-a.

- Ontem passei a noite indo olhar para ele, subindo e descendo essas escadas. Não dormi muito, mas você não se deve preocupar comigo.

- Acho que nós duas devemos ir dormir cedo hoje. Estou perto do quarto dele, no corredor, e vou deixar a minha porta e a porta do quarto dele abertas. Se papai precisar de alguma coisa eu ouço... tenho o sono leve.

Você não deve ficar subindo a escada assim, com - a sua artrose. E amanhã, se eu achar que é preciso, vou chamar o médico, diga ele o que disser.

- Estou contente que você tenha vindo, petite chérie. Sinto-me muito melhor vendo que você está tomando conta das coisas. Tudo isso é demais

para uma velha como eu.

Deitada na cama aquela noite, Nadine estava alerta demais para dormir. Ela se imaginou pegando uma vela, descendo á cozinha e encontrando a chave do estúdio na grande argola de chaves que ficava pendurada lá. Imaginou-se passando pelos aposentos silenciosos da casa fechada e indo para os fundos, passando pela piscina vazia, para as grandes portas de madeira do estúdio. Viu-se destrancando as portas, acendendo as luzes e passando pelo estúdio para o depósito, onde as melhores obras do maior pintor vivo da França estavam em seus suportes, centenas de telas, mais valiosas do que quaisquer jóias. Mentalmente ela as contou, avaliou o seu valor.. , sim, as centenas de milhões de francos, se o marchand de Mistral estivesse certo, e não havia motivo para supor que não estivesse. Uma fortuna grande demais, vasta demais para se compreender. Naquele estúdio estava o seu futuro brilhante e triunfal, disse Nadine a si mesma, abraçando o corpo com impaciência. Não simples quadros... não, muito mais. As casas que ela possuiria em todo o mundo, os objetos maravilhosos que havia de comprar e comprar e comprar, as recepções que ofereceria; a glória herdada que, afinai, conclusivamente, passaria a ela, a atração que lhe permitiria conhecer todo mundo. O mundo estaria aos pés da filha de Mistral. Breve. Muito breve. Quando?

Ela se levantou da cama e foi de mansinho ao quarto de Mistral. A respiração dele estava feia, muito mais difícil do que antes. Ele lutava terrivelmente para produzir cada ronco estrangulado. Ela o observou com cuidado por muito tempo, bem distante da cama, para ele não poder vê-la se abrisse os olhos. Por fim, Nadine voltou para o quarto e dormiu profundamente até de manhã. Vestiu-se depressa e voltou para a cabeceira de Mistral. Ele estava meio desperto e o copo d'água ao lado da cama estava vazio. O urinol que Marte colocara ao lado da cama estava pelo meio. Nadine o esvaziou, enjoada e rígida. Encheu um copo com água e o levou aos lábios dele.

- Como está-se sentindo? - perguntou ela.

- Como ontem - disse ele, mas a voz era um sussurro e, mesmo sem tocar na pele dele, Nadine sentia a febre que o dominava estender seus dedos quentes para ela. Ela pegou um esfregão com água morna e o limpou, escondendo sua aversão.

- Acho melhor não tentar lhe fazer a barba... nunca fiz isso - disse ela, num tom ligeiro. - Quer que eu peça a Marte para lhe fazer o café da manhã?

- Não tenho fome... mais água - murmurou ele, tossindo de novo daquele modo bárbaro, ofegante, tão profundo que parecia vir dos intestinos, uma tosse que o sacudia na cama e o dobrava ao meio.

Nadine foi à cozinha e viu que Marte estava chegando de fora, com uma expressão preocupada.

- Ele passou uma boa noite - disse Nadine, animada. - Lavei-o com esponja e o deixei arrumadinho. Está dormindo de novo. É a melhor coisa para

ele. Tentei faze-lo comer, mas ele não quer. Sei bem como é que ele está-se sentindo... quando tenho esse tipo de resfriado, nem quero sentir o cheiro

de comida, só quero líquidos. Meu médico de Paris diz que ainda não se inventou nada igual ao repouso na cama e líquidos.

- Ah, eu me sinto culpada por deixar você fazer tudo isso - disse Marte, infeliz.

- Marte, minha velha Marte, se não posso nem cuidar do meu pai?... olhe, faça uma boa sopa forte, um caldo de carne, e mais tarde, quem sabe, vou ver se ele toma um pouco.

- Não acha que devemos telefonar ao médico de Apt, que tratou de madame?

- Isso deixaria papai com tanta raiva que ele ia piorar. Você sabe como ele se orgulha de nunca ficar doente. Eu não queria ser responsável por trazer um médico aqui, a não ser que achasse que ele estava realmente mal. Ele ficaria tão furioso quanto se visse um padre entrando aqui. Só está

precisando é de bons cuidados. Marte, sei o que você pode fazer para ser útil! Faça-me uma bela galinha assada, como só você sabe fazer. Estou morta de fome! E uma de suas tortas de abricó e uma grande travessa de queijos, só para mim. Sonho com os queijos de Félice. E manteiga da roça.

- Vou ter de ir à aldela, não temos grande coisa em casa. - Então vá, vá. Estou aqui, não se preocupe.

Durante todo aquele dia quente de setembro, Nadine tomou conta do quarto do doente. Ficou de pé no corredor, junto da porta meio aberta, escutando avidamente. Mistral tossia constantemente e com violência. As vezes, ele gemia e chamava o nome dela numa voz tão fraca que mal se podia ouvir. Cochichava asperamente chamando Marte, vezes e mais vezes, e tossia de novo, com mais violência a cada hora. No entanto, parecia-lhe, sem tanta força quanto antes. Uma vez, quando ele estava roncando, ela entrou no quarto e encheu o copo d'água. Lá embaixo, Marte, aliviada e reconfortada, se ocupava em cozinhar e dar um ar agradável à casa.

- Abra todas as venezianas, Marte, tire essas cobertas horríveis dos móveis, apanhe umas flores, acenda um fogo na lareira... de noite isso está muito deprimente - ordenara Nadine, e Marte, contente com a nova vida na casa, ficara feliz por obedecer. Quando monsieur estivesse bem a ponto de poder descer e reclamar, haveria tempo para tornar a fechar as venezianas.

No meio da noite, Nadine acordou com um sobressalto, como se alguém tivesse chamado seu nome, mas a casa estava quieta. Marte, ela sabia, estava dormindo no quatro atrás da cozinha, lá embaixo. No entanto... alguma coisa... havia alguma coisa. Ela vestiu um roupão e foi ao quarto de Mistral. No segundo em que entrou, viu que ele estava morrendo. A morte enchia o espaço, uma presença primitiva, uma espessura no ar, um definhamento que nada poderia inverter. Afinal. Afinal.

Ele estava se afogando no líquido de seus pulmões. Ela o ouvia. Nunca ouvira aquele barulho medonho antes, mas o reconheceu. O que mais poderia ser, aquele gorgolejo sufocado, desesperado? Se ao menos o fedor do quarto não fosse tão repugnante - mas ela não pretendia sair de lá, antes de ter certeza.

Nadine foi à janela e a abriu, para a brisa poder entrar e afastar um pouco da imundície abominável que emanava da cama. Ela puxou uma cadeira para bem perto da janela, o mais possível, e acendeu uma lâmpada de pé bem acima de sua cabeça. Atentamente, examinou as unhas. O esmalte numa delas estava lascado. Ah, em duas. Ela teria de arranjar uma manicura em Félice, antes do enterro.

Ela ouviu um ruído fraco e novo da cama, um som suplicante, pedindo. Água? Como poderia querer água, se estava se afogando? Impossível. Ele estava tentando falar. Tolices. Silabas sem sentido. Ela nem ouviu.

Em breve, não houve mais sons da cama. Nada. Nadine continuou sentada quieta no frágil poço de luz. Esperou até ter certeza absoluta de ter vencido, antes de voltar depressa para o quarto.

Estava precisando dormir. A luz da manha a despertaria. Essas coisas eram tão repentinas.

 

 

                                                      Capitulo 32

 

Continuava a chover. Não tinha parado o dia todo, pensou Fauve, espiando pela janela do apartamento de Maggy, para onde ambas tinham-se retirado, depois de ouvirem a notícia da morte de Mistral.

- Quanto tempo - perguntou Darcy a Fauve, delicadamente - você acha que vou poder dizer que você não pode falar a todos esses repórteres? Além do New York Times, o Daily News e o Post, há camaradas de serviço telegráfico e mela dúzia de correspondentes de fora, um bando de fotógrafos, e duas equipes de noticiário de TV bem do lado de fora do prédio. Não conseguiram entrar na portaria, mas não vão embora, chovendo ou não.

- Por que não me podem deixar de fora disso? - perguntou Fauve, infeliz.

- Infelizmente, você é a parte mais suculenta da história, amor. Quando todo esse pessoal da comunicação de massa foi aos seus arquivos dos jornais para fazer a biografia de Mistral, o aspecto mais digno de notícia, do ponto de vista deles, é a filha de Mistral, Fauve Lunel... infelizmente, é a parte da história com maior interesse humano e você está bem aqui, onde podem ter acesso a você. A morte dele, só em si, já seria objeto de uma grande atenção, mas junte a história de sua mãe... bem, você pode ver por que a querem.

- Tenho mesmo de falar com eles e responder às perguntas deles?

- Não vejo por que Fauve tenha de fazer isso. E você, Darcy? - perguntou Maggy. - É necessário?

- Seria o meio mais simples de se acabar com isso - respondeu Darcy. - Pegar o touro à unha.

- Que tipos de coisas eles vão querer saber? - perguntou Fauve, inteiramente no ar.

- Antes de tudo, todos têm-me perguntado se você vai ao enterro. Depois disso, não sei mesmo. Qual foi a última vez que você o viu, qual a sua reação ao evento trágico... você sabe o tipo de coisa que perguntam .os familiares.

- Nunca esperei isso - disse Fauve, devagar.

- Pois eu sim - disse Maggy, com amargura. - Lembro-me como foi quando sua mãe morreu... não há nada que não perguntem, nem nada que não publiquem. Darcy, você não pode escrever uma declaração e ler para eles? Diga que Fauve está muito aflita para falar.

- Vale a pena tentar - disse ele, na dúvida.

- Mas não diga que vou ao enterro - avisou Fauve - porque não vou. Houve um silêncio na sala, não interrompido até que Maggy e Darcy

trocaram um olhar rápido e, em conseqüência, ele se levantou para sair.

- Vou para a biblioteca, escrever a declaração - explicou ele.

Maggy foi para o sofá em que Fauve estava sentada e pegou a mão dela. - Olhe, Fauve, supondo que não vá mesmo ao enterro, você não vê que isso provocará dez vezes mais curiosidade? Fossem quais fossem os problemas pessoais entre vocês, o seu pai era um vulto importante em todo o mundo...

não apenas para os colecionadores de arte. E além de Nadine Dalmas, você é a única outra filha que ele teve. Você tem de ir.

O tom de Maggy era racional, mas confiante. Desde a manhã, tinham evitado falar sobre a recusa de Fauve de ir ao enterro e Maggy tivera tempo para reconsiderar a situação.

- Não tem nada a ver com problemas pessoais, Magali - murmurou Fauve.

- Querida, eu não a entendo. Daqui a três dias vai haver um grande enterro em Félice... sabemos disso pela entrevista à imprensa que Nadine deu. Você não pode deixar de estar lá. Vou com você, se quiser. Isso vai chamar mais atenção ainda, mas não tem importância.

- Não, Magali. Não é preciso. Obrigada... mas eu não vou mesmo.

- Olhe, Fauve, todo dia milhares de pessoas comparecem a enterros e ninguém lhes pergunta o que sentiam em seu íntimo sobre a pessoa que morreu. Basta fazerem ato de presença. Pode ser apenas uma formalidade, mas tem um significado profundo, um gesto de respeito, se não for mais nada. Especialmente no caso de um pai.

- Não posso fazer esse gesto - disse Fauve, com uma voz tão baixa que Maggy mal podia ouvi-la. Ela se aproximou mais e passou o braço pela neta.

- Você certamente pode encontrar na obra dele o suficiente para respeitá-lo... seja o que for que houve de errado entre vocês. A obra permanece, Fauve. Não se esqueça disso. Você deve mesmo fazer isso... é uma responsabilidade que tem, como filha dele.

- Não. Não vamos falar mais disso - disse Fauve, levantando-se.

- Não entendo mesmo - disse Maggy, aflita e perplexa. Fauve nunca deixava de atender à razão.

- Eu jurei que nunca lhe contaria... sobre o que ele fez, por que eu nunca mais pude vê-lo... mas agora acho que devo contar, se não você nunca vai compreender.

Fauve ajoelhou-se junto do sofá em que Magali estava sentada e olhou para o rosto dela com uma expressão que era um misto de pesar, tristeza, relutância e alguma outra emoção que Maggy não identificou, uma emoção que a fez recuar de medo.

- A obra de que você fala, a obra que eu devia respeitar, Magali, ele sacrificou muita gente para fazer essa obra.

- Sacrificou?

- Durante a guerra, ele resolveu pintar, enquanto o resto do mundo estava lutando. Outros fizeram isso... não foi só ele. Ele colaborou com os alemães... também não foi o único. Quando um grupo de homens da Resistência... os maquis... roubaram os lençóis em que ele estava pintando, ele os denunciou a um amigo, um oficial alemão. Foram todos assassinados, todos aqueles rapazes... mas ele recebeu seus lençóis de volta, de modo que o trabalho dele não foi interrompido. Mas isso não foi o pior, Maggy, nem mesmo isso. Durante toda a guerra, sempre que um refugiado tentou passar a noite em La Tourrello, ele se recusou a admiti-lo. Gente fugindo para salvar a vida a maior parte judeus. Eram amigos de Paris, Maggy, provavelmente muitos seus amigos também. Ele expulsou até Adrien Avigdor. Podia ter salvo algumas dessas pessoas, mas elas poderiam ter perturbado o trabalho dele. Judeus, ninguém sabe quantos, foram para os campos de concentração por causa da obra dele. E morreram lá. Nada, nem a decência humana podia atrapalhar o trabalho dele.

- Como... quem...? - exclamou Maggy.

- Kate me contou, mas ele o confessou.

- Ele o confessou?

- Sim. A mim. Foi nesse dia que parti. Eu não queria que você soubesse, Magali.

- Meu Deus... meu Deus... por que você teve medo de dizer alguma coisa?... era uma criança... devia ter-me contado - disse Maggy, desolada.

- Eu tinha muita vergonha. Mais tarde, não havia motivo para dizer nada, estava tudo acabado. Ele sabia que nunca mais me veria.

- Vergonha?

- Vergonha por ele ser meu pai, um homem capaz de fazer essas coisas. Vergonha por ele, acima de tudo, vergonha de saber o que ele valia, como homem. É por isso que não posso fazer um gesto de respeito, Magali, nem para com ele, nem para a obra dele. Que obra pode ser mais importante do que vidas humanas?

Nadine Mistral Dalmas não teve exatamente o grau de satisfação que achava que merecia. Como sempre, disse ela consigo, tentando pôr as coisas em perspectiva, nenhum fato humano deixava de ter uma falha. O sepultamento tinha sido quase como ela queria que fosse. O ministro das Belas-Artes tinha vindo de Paris, com uma comitiva, e o velho cemitério varrido pelo vento, bem no topo de Félice, compôs um cenário muito fotogênico para o longo cortejo que acompanhou o caixão depois da missa de réquiem.

Todos os moradores adultos de Félice estavam presentes, claro, como estariam no caso de qualquer morte na comunidade, mas esse grupo fora aumentado por um grupo de amantes das artes de toda a Provença, que queriam poder dizer que tinham visto o sepultamento de Mistral. Um belo comparecimento, pensou ela, a despeito do fato de que, além de Phillipe e alguns amigos dele melo sem importância, ninguém em Paris pudera comparecer. Naturalmente, todas as pessoas que ela gostaria de ver ainda estavam fora, de férias. Naturalmente, teria sido impossível eles irem de avião de onde estivessem para um lugar tão incômodo Se ao menos o velho tivesse morrido em outubro, em Paris, seria bem diferente, pensou Nadine. No entanto, a cerimônia fora perfeita. Mesmo nessa aldela provinciana, a igreja católica não falhava em seu senão de classe. Impecável. Não havia nada que ela quisesse modificar, quanto ao gosto com que tudo fora executado.

Ela estava-se sentindo um tanto desamparada, agora que a imprensa se fora sem maiores cerimônias, retirando sua atenção assim que o caixão foi depositado dentro do túmulo. No entanto, isso lhe dava a oportunidade de descansar, pela primeira vez depois da morte.

Era o negócio do delegado fiscal que a irritava mais, pensou Nadine. Que audácia desse funcionariozinho em proibi-la de abrir o estúdio? Ele esperava que ela roubasse a sua própria propriedade?, perguntou ela, quando ele lacrou as portas da frente e dos fundos. Ele tinha dado um grunhido de um modo muito natural para ser impertinente - apenas a rotina num caso desses, dissera ele, só até chegarem os senhores de Paris, apenas uma formalidade. Mas depois que ela reclamou de Étienne Delage, o marchand de Mistral - dela agora, ela se fez lembrar - ele lhe disse que não havia nada a fazer. O estado tinha de fixar sua parte nos bens antes que se pudesse mudar alguma coisa, quanto mais vender. Era irritante ter de esperar mais um minuto, depois de ter esperado tanto tempo, era alucinante ter de reconhecer as exigências do governo, mas ela não tinha escolha.

- E agora - perguntou Nadine a Marte, que tinha aparecido na porta do scion - o que é?

- Maitre Banette, tabelião de Apt, acabou de chegar. Pediu para falar com você.

- Nunca ouvi falar desse homem. Diga que estou dormindo, livre-se dele.

- Tentei fazer isso, ma petite, mas ele insistiu. Diz que é importante.

- Ah, está bem - suspirou Nadine. Todo mundo sabia que não se podia evitar os tabeliães. Ela já lidara com a morte e os impostos, como é que não havia de lidar com um tabelião?

O homem que entrou, rechonchudo e vermelho, com um terno azul-marinho, tinha a pretensão de assumir ares importantes, notou Nadine, com um acesso de mau humor.

- O senhor escolheu um mau momento para importunar, monsieur.

- Permite que lhe apresente meus pêsames, Madame Dahmas? Mas, naturalmente, a senhora há de convir que tive de vir assim que pude. - Não sei por que... Maitre Banette, não é? Por que está aqui?

- Madame - disse ele, com ar reprovador - só as minhas obrigações profissionais me poderiam levar a perturbá-la em sua dor. Mas esse assunto do

testamento de Monsieur Mistral, naturalmente, deve ser levado a sua atenção.

Está arquivado no Fichier Centrale des Dernidres Volontés, em Aix, como é de praxe, mas eu lhe trouxe uma cópia. Pensei que o desejaria.

- Testamento dele? - Nadine se empertigou, de repente. - Ele fez testamento? Nunca soube disso.

Alarmada, ela se perguntou se o velho podia ter deixado algum dinheiro para caridade. Não, não era nada típico dele. Certamente que não.

- Ele foi me consultar há três anos, madame - continuou Maitre Banette. - Houve a questão da Lei do Dia 3 de janeiro de 1972...

- Que lei? 1972? Não me lembro de nada de lei que afetasse a propriedade. O meu advogado de Paris me teria informado.

- Ah, não, madame. Não tem nada a ver com a propriedade em si - disse Maitre Banette, melindrado. - Em 1972, o Parlamento na França tornou possível, pela primeira vez, o reconhecimento legal de filhos de uniões adulterinas. Monsieur fez um ato de reconhecimento de Mademoiselle Fauve Lunel.

Nadine ficou ali sentada, boquiaberta. Maitre Banette continuou.

- Então, existe um testamento, um documento muito estranho. Eu verifiquei que ele era uma pessoa muito difícil de se aconselhar, madame. A princípio, ele queria deixar todos os bens para Mademoiselle Fauve Lunel. Expliquei-lhe que isso era impossível, segundo o Direito francês. O máximo que ele poderia fazer seria dividir os bens entre as duas filhas...

- Dividir!

- Madame, fique tranqüila, não foi possível dividir em dois, não, o Artigo 760 na lei de Les Successions é explícito. Mademoiselle Lunel só tem direito a uma metade do que ela herdaria se fosse legítima, isto é, 25% dos bens e não 50%. A senhora conserva 75% do que restar, depois de pagos os impostos. - Ele parou e esperou que Nadine dissesse alguma coisa, mas quando ela não falou nada, ele continuou, animando-se em sua tarefa. - O testamento, madame, está escrito de um modo que eu não aprovo. Informei a minha opinião a Monsieur Mistral, mas lamento dizer que ele não quis seguir o meu conselho.

- Fauve - disse Nadine, com uma voz venenosa. - Sempre Fauve.

- Precisamente, madame. Parece ter havido certo... favoritismo para com essa filha.

- O que é que ele disse? - perguntou Nadine. - Dê cá esses papéis.

- Madame! - Ele segurou os papéis junto do peito pomposo, com ar protetor. - É só porque Mademoiselle Fauve Lunel não está em Félice..., andei indagando... que vim procurá-la sem esperar a presença dela. Ela terá de ser notificada, terá de vir aqui, mas, enquanto isso, achei direito informar-lhe do conteúdo do testamento, já que não tenho meios de saber onde encontrá-la.

- Leia o negócio, raios - disse Nadine, com raiva.

- Madame, é exatamente isso que pretendo fazer - disse ele, reprovando, pigarreando.

 

"Eu, Julien Mistral, desejo deixar toda a minha obra para a minha filha muito amada e querida, Fauve Lunel. No entanto, como a lei me impede de fazer isso, desejo que ela fique com a série La Rouquinne que comprei de minha mulher, Katharine Browning Mistral, estando o recibo da compra anexo a este documento. Desejo que minha filha Fauve fique com todos os quadros que fiz dela e da mãe, Théodora Lunel, que foi a única mulher que amei. Em especial, desejo deixar para Fauve a série Caváillon, que ela me inspirou a pintar. Por causa de Fauve, aprendi afinal - mas, para meu pesar eterno, tarde demais - as liçoes mais importantes de minha vida. Se minha amada filha Fauve desejar, gostaria de lhe deixar a propriedade La Tourrello e todas as terras que lhe pertencem. Se ela não quiser aceitar a propriedade, determino que seja vendida e o provento acrescido a meus bens.

Em hipótese alguma desejo que La Tourrello e o estúdio em que trabalhei se tornem propriedade de Madame Nadine Dalmas. Sei com certeza que ela nunca apreciou nem compreendeu a beleza de terra alguma nem a natureza de qualquer arte: O resto de meus bens, até o valor de 25%, deixo também para minha filha Fauve. Eu me sentiria honrado se ela se chamasse Fauve Mistral, mas compreenderei se ela não o quiser.

O que restar, segundo a lei, deve caber à Madame Nadine Dalmas, que tenho certeza, venderá tudo para obter os meios de continuar na vida superficial, indigna, sem valor e inteiramente vã que sempre quis levar."

 

- É só isso, madame.

- Aquele sacana! Aquela vagabunda, puta imunda! Não! Nunca! Não há de ficar com nada, nem um franco, não enquanto eu viver! Ele devia estar inteiramente louco! Vou contestar o testamento, não há de ter validade!

O rosto de Nadine, parecendo uma máscara do mal japonesa, emitia uma voz que fez o tãoelião se levantar e recuar, a aversão estampada em sua fisionomia. Ele fez um esforço para se envolver em sua dignidade.

- Devo dizer-lhe, madame - conseguiu balbuciar - que não pode haver questão de insanidade. Se eu duvidasse da sanidade mental de Monsieur Mistral, nunca teria feito o testamento. É perfeitamente válido.

- Saia daqui! Que diabo você pensa que sabe? Vou chamar meus advogados de Paris. Seu burro pomposo, provinciano, idiota estúpido... claro que esse testamento maluco pode ser contestado. Fora!

Nadine avançou para o tabelião com tanta raiva que o homem pegou o chapéu e fugiu da sala sem dizer outra palavra, levando o testamento.

Não havia dúvida de que era a melhor história que eles tinham havia muito tempo, concordaram os jornalistas, ao saberem dos detalhes. "Inconduite notoire de la mere" Código Civil, Ato 339 - fazia muito tempo que não ouviam essa. "Mau procedimento notório" de parte de Teddy Lunel, ainda a maior garota de capa de revista que jamais existira - não era fácil provar, diziam os especialistas entre eles, mas sem dúvida o único meio de impugnar aquele testamento extraordinário que Julien Mistral tinha feito, cujo texto fora descoberto nos arquivos de Aix, assim que se espalhou a notícia do processo, um texto que também lhes dera uma história danada de boa. Ao todo, um bom proveito de uma notícia que, ao que pensavam, tinha acabado num cemitério no alto do lado norte do Lubéron. Devia durar semanas, disse um repórter novato, empolgado. Meses, seu ignorantezinho, meses, corrigiu o mais vê

lho, esfregando as mãos, com prazer.

- Não importa que Nadine Dalmas não consiga provar nada - disse Darcy. - Ainda assim, ela há de se vingar, há de arrastar o nome de Teddy na lama.

- Ela tem liberdade de desencavar tudo que puder encontrar sobre a minha mãe, mesmo que não venha ao caso, não é? - perguntou Fauve, com violência.

- Acho que sim. Deve ser isso mesmo que ela quer fazer. Por que outro motivo ela havia de tomar uma medida que tornasse público o texto do testamento? Se ela não tivesse feito um processo para invalidar o testamento, ninguém saberia do desprezo que Mistral sentia por ela.

Fauve estava rondando a sala de Maggy, os punhos cerrados. Todos os músculos de seu corpo se achavam tão tensos que ela estava dobrada, os ombros curvos, andando de um lado para outro, sem poder parar e se sentar nem por um minuto. Estava possuída por uma raiva que ela nunca pensou poder existir. Era como uma onda perigosa que de repente aparecesse num mar calmo, pairando sobre um barquinho e levantando-o a uma altura de 15 metros. Nada que ela jamais experimentara na vida parecia importar, comparado com o. ataque de Nadine à memória da mãe. Ela mataria Nadine ali, mesmo naquele momento, se fosse possível, percebeu Fauve, não sentindo choque algum.

- Vou para Avignon amanhã. Vou impedir que isso aconteça. Minha mãe não vai ser chamada de prostituta! Não me importam os quadros, mas Nadine não pode fazer isso... não vou permitir.

- Fauve... - disse Maggy e parou. Começou de novo: - Tudo isso aconteceu antes de você nascer...

- Vou arrumar minha mala - disse Fauve, sem lhe dar atenção.

- Não há ninguém com quem você possa falar? - pediu Maggy. - Alguém que lhe pudesse ajudar, de todos os verões que você passou na França? Não se lembra de uma única pessoa?

- Sim - disse Fauve, devagar, parando a caminho da porta. - Há alguém, sim. Como eu podia ter esquecido?

Eric Avigdor estava esperando no aeroporto de Marselha. Estava constrangido, ao dar os pêsames a Fauve, lembrando-se do modo como eles se tinham separado, seis meses antes.

- Papai ficou muito contente por você ter ligado para ele - disse Eric, enquanto corriam para Avignon pela Autoroute du Sud.

- Ele deve ter ficado espantado. Eu só pedi informações de interurbano para o número dele e fizeram a ligação em minutos. Acho que já era quase meia noite. Não pensei na diferença de hora.

- Ele nunca vai dormir cedo.

- Foi o que ele disse, mas achei que ele só estava sendo educado.

- Papai? Desistiu de ser educado quando se aposentou.

- Ele me arranjou um advogado? - perguntou Fauve, aflita.

- O melhor de Avignon. Está á sua espera em casa de meus pais. Chama-se Maitre Jean Perrin. Lutou com papai na Resistência. - L muita bondade de seu pai.

- Ele gosta muito de você.

Eric sorriu para ela, pela primeira vez, e Fauve sorriu um pouco. Só de pensar em Adrien Avigdor, ela já se sentia melhor.

Eles se calaram de novo, mas isso era menos formal do que as palavras forçadas que tinham trocado enquanto esperavam pela mala de Fauve. Ela seguira diretamente de avião para Marselha, depois de saltar do primeiro avião em Paris, e estava exausta e amarrotada, mas a luz da tarde da Provença em princípios de outubro, a vista das oliveiras sempre renovadas e os ciprestes pontudos, como sentinelas, operaram o seu milagre costumeiro e ela sentiu um prazer animal por estar de volta.

Pela primeira vez, desde os 16 anos, Fauve se permitiu lembrar de como gostava daquela região. Eles saíram da Autoroute onde ela atravessava a estrada principal Leste-Oeste e, em vez de rumarem para leste, o que os teria levado a Félice, viraram para oeste e, dentro de mela hora, chegaram à casa de Avigdor na Rue de la Montée St. André, em Vlleneuve-les-Avignon.

Fauve ficou logo decepcionada e preocupada, ao ver o advogado. Ela esperava que Jean Perrin fosse da idade de Adrien Avigdor, mas aquele homem não podia ter mais de 38 ou 39 anos. Era esguio, baixo, parecia quase um rapazinho. No entanto, olhando bem, tinha olhos cinzentos que a fizeram se empertigar muito, pois Jean Perrin era do tipo, de homem que absorve tudo num olhar rápido, geral e dominador.

Adrien Avigdor, nada mudado, estava com um suéter e camisa de gola aberta, mas Maitre Perrin vestia um terno de jaquetão, com o distintivo da Legião de Honra na lapela. Sua roupa elegante e de cidade lhe dava, pensou Fauve, inquieta, um ar de um moleque vestido com suas melhores roupas.

Beth Avigdor abraçou Fauve com um carinho como se ela fosse uma sobrinha querida.

- Você deve estar tão cansada, minha pobre Fauve. O quarto de hóspedes está à sua espera. Gostaria de se deitar por uma hora, antes do jantar?

- Não, obrigada, Madame Avigdor. Prefiro falar já com Maïtre Penn.

Fauve e o advogado foram sentar-se na larga sacada da casa, bem ao alto da cidade, com o Ródano ah perto e, além dele, os vultos dos palácios de Avignon, torres e pontas como um imenso navio sorridente navegando no rio turbulento.

- Eric me contou que o senhor esteve na Resistência co n Monsieur Avigdor - sondou Fauve, ainda preocupada com a juventude dele.

- Bom, sabe, eu detestava a escola. Era mais divertido fugir para as montanhas de Aix e brincar de mocinho e bandido. Eu tinha 13 anos, quando terminou a guerra. Infelizmente, ainda estava em tempo de me fazerem voltar à escola. Portanto, como vê, tornei-me um cidadão relativamente respeitável.

- Quantos anos tinha, quando fugiu do colégio?

- Tinha dez anos - disse ele, dando de ombros e rindo. - Mas já era da altura que sou hoje.

Quando ele sorriu, Fauve teve um vislumbre do patriota destemido que ele fora, ainda nem adolescente, e sentiu desaparecer toda a sua falta de confiança.

- Maitre Perrin, o senhor vai poder me ajudar?

- É só no que tenho pensado, desde que Adrien me telefonou ontem à noite. Aliás, mademoiselle, passei o dia trabalhando nisso, um dia mais interessante do que os que em geral passo em meu escritório, posso lhe assegurar.

- Já começou a trabalhar? Mas nós ainda nem conversamos!

- O problema, evidentemente, se reduz à questão das testemunhas do caráter, não é? Portanto, eu as procurei. E encontrei uma, tenho o prazer de lhe dizer.

- Uma? Uma testemunha do caráter? - protestou Fauve. - De que isso pode adiantar contra uma acusação de "mau procedimento notório"? Minha mãe tinha 24 anos quando conheceu meu pai... evidentemente tinha vivido, não era uma freira... e agora está entregue às mãos de minha meia irmã, que pretende arruiná-la... ah, a minha mãe é tão vulnerável.

A confiança de Fauve em Jean Perrin desapareceu tão depressa quanto aparecera. Como poderia aquele homem, que agora lhe parecia de novo ingênuo e inexperiente, começar a adivinhar o que poderia ser descoberto e distorcido contra Teddy Lunel, que tinha cativado os corações de tantos homens ainda vivos? "Uma série de amantes", dissera Melvin e ela sabia que ele estava sendo discreto.

Quantos deles não se gabariam? Qual deles poderia resistir a falar sobre o seu caso com a moça mais bonita do mundo?

- Mademoiselle, o que tem a idade de sua mãe a ver com esse processo? - Tudo, eu imagino - disse ela, aflita. Ele não estava entendendo.

- A senhorita não falou com um advogado francês, nem mesmo um tabelião?

- Minha avó falou com o consul francês em Nova York e eu tomei o avião na manhã seguinte.

- Ah, um diplomata. Uma pena. No entanto, como ele poderia saber, afinal? Sabe, mademoiselle, a lei francesa é muito explícita e firme nesse ponto, não permite qualquer dúvida, não permite que se façam acusações maldosas à toa. A acusação de mau procedimento só se aplicaria ao período durante o qual os seus pais se conheceram, durante o qual a sua paternidade poderia ser questionada. Pelo que eu soube, eles nunca se separaram desde o dia em que se conheceram até o dia em que ela morreu. Este fato eu pretendo ver provado sem possibilidade de dúvida.

Ela desviou o olhar. Era indecente presenciar um tal alívio. Quando Jean Perrin a ouviu começando a soluçar, levantou-se sem dizer nada e voltou para dentro de casa.

- O que é que há? - perguntou Beth Avigdor. - Devo ir ter com ela?

- Não, eu a deixaria sozinha, um pouco - aconselhou Jean Perrin.

Eric não fez caso e correu para a sacada. Fauve estava encolhida numa espreguiçadeira, chorando descontrolada, tremendo, de um modo que o deixou assustado. Ele a pegou e a abraçou com força, deixando-a chorar até o seu peito ficar ensopado com as lágrimas dela. Ele a consolou com barulhinhos suaves, embalando-a como um bebê, até que, por fim, ela levantou o rosto molhado, inchado, vermelho e exclamou:

- Lenço.

Ele procurou nos bolsos mas não encontrou nada. - Assoe o nariz na minha manga - disse ele.

- Ah, não posso - gemeu Fauve. - Não na sua manga.

- Então, vou faze-lo por você - disse ele, rindo e desabotoando o punho com uma das mãos. - Agora, assoe!

Mela hora depois, Fauve, de rosto lavado e cabelos escovados, estava sentada no salon com os trás Avigdors, enquanto Maitre Perrin contava os detalhes do dia dele, com um orgulho tão contido que só Adrien Avigdor sabia o que ele estava sentindo. Os olhos de Jean brilhavam assim, pensou Avigdor, quando ele voltava de uma de suas incursões na Resistência. Ele parecia estar tão timidamente satisfeito quanto na noite em que fez explodir aquele trem de carga que carregava armas para a Batalha do Bolsão.

- Comecei me perguntando o que é que duas pessoas que, por assim dizer, desapareceram de seus mundos habituais, continuariam a fazer o que também fazem as pessoas comuns. Isto é, pessoas que não estão vivendo só de amor - começou Jean Perrin. - E para isso só há uma resposta, não é? - Ele parou, mas nenhum deles aventurou um palpite. - Eles comem.

- Bebem vinho - corrigiu Adrien Avigdor.

- Ambos, mon vieux, ambos. E onde é que comem? Em restaurantes, pelo menos de vez em quando, pois duas pessoas, por mais apaixonadas que estejam, não se contentam com comida caseira o ano inteiro. E onde, em Avignon, comeria o mãior pintor da França?

Ele parou de novo e dessa vez Fauve respondeu, gritando:

- Hiely!

- Como é que sabia, mademoiselle?

- Meu pai me levava lá às vezes, como uma surpresa especial - exclamou ela e depois parou, espantada. Ela ficou toda ruborizada. Havia tantos anos que não pronunciava as palavras "meu pai" que não podia acreditar que tivessem saído de sua boca com tanta naturalidade.

- Claro, em Hiely, o único restaurante de duas estrelas em Avignon. Não foi difícil adivinhar. Então, fui lá hoje de manhã e conversei com Monsieur Hiely. Ele estava aprendendo o métier na cozinha do pai em 1953, mas muitas vezes ia até à porta e espiava, para admirar sua mãe. Lembrava-se bem dela. Pedi para ver o Livre d'Or deles, pois sabia que eles deviam ter pedido a Julien Mistral para assiná-lo. E lá, numa das páginas, encontrei a assinatura dele. Mais do que uma assinatura, um bonito desenho do velho Hiely. E, embaixo, sua mãe também tinha assinado.

- Mas... mas... isso não prova nada - gaguejou Fauve.

- Com efeito, não. No entanto, a familia Hiely manda cartões de Natal aos seus bons clientes e têm um registro dos endereços deles. Pesquisei um pouco os arquivos deles e consegui encontrar o lugar onde moravam os seus pais, quando estavam em Avignon. E fui lá, sem parar para almoçar, coisa que Adrien estranharia muito. A casa ainda existe e a concierge ainda é a mesma. Imagino que Madame Bette ainda estará lá no ano 2000. Em todo caso, ela ajudou multo...

- A concierge? - interrompeu Fauve.

- Não, mademoiselle, não duvide tanto. Não é a concierge que é a sua testemunha de caráter, se bem que ela servisse, se precisássemos de mais de uma. Madame Bette me disse que seus pais tinham feito amizade com um médico que ainda mora no segundo andar da casa. Há umas duas horas, consegui encontrar o doutor em casa. Ele me disse que ele e a mulher conheceram seus pais desde o dia em que se mudaram para lá... aliás, eles ajudaram a fazer a mudança de parte dos móveis que seu pai comprou. Os dois casais costumavam beber alguma coisa juntos, de vez em quando, e também saíam para jantar, no Hiely, no Prieuré, a lugares no campo. Gostavam muito de sua mãe, muito mesmo. Nunca mais viram o seu pai, depois da morte de sua mãe, mas sempre compreenderam por que Mistral desapareceu da vida deles. Falaram da dedicação total de seus pais um pelo outro. O médico, Professor Daniel...

- Dr. Daniel - exclamou Beth Avigdor. - Mas eu o conheço!

- Claro, Beth. É um dos homens mais notáveis de Avignon, professor da Universidade de Aix, Mademoiselle Lunel - explicou Jean Perrin, prosseguindo depressa. O Professor Daniel ficou extremamente indignado diante dessa acusação odiosa que foi feita... ficou escandalizado. Na verdade, eu poderia dizer que ele considerou isso um assunto pessoal. Naturalmente, tanto ele como a mulher estão dispostos a testemunhar que a sua mãe nunca teve nada a ver com qualquer outro homem que não o seu pai, durante todo o tempo em que ela morou em Avignon. A impugnação do testamento vai ser paralisada antes mesmo de começar. Não pode haver mais qualquer dificuldade de parte de Madame Dalmas.

Jean Perrin deu o seu sorriso tímido, de patife, triunfante.

- Pessoal? - perguntou Fauve. - Por que o médico considerou isso um

assunto pessoal? Foi só porque era tão amigo de meus pais? - Foi ele, mademoiselle, que a pós neste mundo.

 

 

                                    Capitulo 33

 

- Madame Dalmas, que prazer em vê-la.

Madame Violette, a vendedora mais antiga do salon de Yves Saint Laurent, era treinada demais para mostrar o seu espanto quando Nadine entrou lá, mas houve um farfalhar perceptível de interesse espantado do grupo de vendedoras menos categorizadas, que estavam esperando para conduzir as freguesas aos seus lugares, antes do desfile. Madame Violette, acompanhando Nadine à cadeira mais bem colocada na sala, perguntou:

- Há alguma coisa em especial que lhe interesse, madame?

- Um guarda-roupa novo, inteiramente novo - disse Nadine, com um ar de indiferença. - Vivi com Albin tanto tempo que isso se tornou inteiramente maçante, previsível demais.

- Ah, mas madame está magnificamente vestida. No entanto, devo concordar que uma mudança é sempre divertida. Monsieur Saint Laurent há de lamentar ao saber que a senhora veio quando ele estava fora.

Nadine pegou o tradicional toco de lápis dourado e o bloquinho branco em que escreveria os números das roupas que lhe interessassem para provar. Era desorientados sentar assim, como uma freguesa qualquer, esperando para ver uma coleção nova. E muito empolgante, também. Não haveria nada do conhecimento íntimo quando ela via os figurinos de Jean François evoluírem num período de meses, de modo que, cada vez que ela vestia uma roupa nova, sentia que a tinha usado durante anos.

Saint Laurent era o melhor fgurinista do mundo, mas seria inadmissível ela reconhecer isso antes de ontem. Hoje ela estava livre, livre afinal da tirania daquele bebê chorão super valorizado, Jean François Albin, com suas rabugices e chiliques. Hoje ela estava numa situação em que, cia imaginava, nenhuma outra mulher do mundo se encontrava: tinha todo o dinheiro que poderia gastar e mais um bocado e em suas filas de armários não havia nem um vestido, uma blusa, nem mesmo uma bolsa que ela pretendesse guardar um dia mais do que o necessário. Mesmo a noiva do homem mais rico do mundo, pensou ela, devia ter alguma coisa em seu guarda-roupa de que não quisesse se separar, alguma coisa que pretendesse tornar a usar. Mas desde a sua entrevista - se é que se podia chamar assim ao que houvera - com Jean François na véspera, Nadine pretendia jogar tudo fora. Não era nada que ele tivesse dito, aliás, eles trocaram poucas palavras. Nadine simplesmente entrara no escritório dele e lhe dissera que daquele momento em diante ele teria de se haver sem ela.

- Ah, sei - respondera ele, com tão pouca expressão que devia estar aturdido demais para começar as suas queixas de sempre.

- Você compreende, Jean François, que agora... - Ela levantara os ombros num gesto que dizia perfeitamente o que as palavras não podiam: agora não tenho mais tempo a perder com suas necessidades mesquinhas e petulantes, agora você vai ter de se haver sem mim, agora vai ver a sua vidinha tola se desmoronar porque não posso mais me aborrecer com você.

- Compreendo, sim, Nadine. Vou ter de me arranjar. Perdão, Nadine, mas a Princesa Grace está na sala de provas e prometi ir ter com ela. Eu a verei hoje à noite, no jantar? Não? Claro, você ainda deve estar de luto. Então, à bientôt?

Ele a beijou no rosto, do jeito seco que beijava todo mundo, e saiu correndo, agitado, cantarolando, gritando para a sua provadora preferida ir servi-lo, mandando uma secretária levar café para a sala de prova onde estava a princesa, só parando uma vez, para afagar os afghans que estavam deitados à entrada do seu ateliê.

- Sim, meus lindos, sim, votes são as criaturas mais lindas que Deus já criou, sim, amores, sim - disse ele aos cães e desapareceu pelo corredor.

Bem representado, pensou Nadine, e podia ter enganado qualquer um. Ela sabia, claro, que lhe dera um golpe sério, que bem poderia lançá-lo numa de suas depressões nervosas.

Não obstante, houvera alguma coisa... alguma coisa que ela não deixara de perceber - que a levara a ir a Saint Laurent naquele dia. Se ela não conhecesse Albin tão bem, diria que fora uma expressão de.. , divertimento? Seria possível? Por certo que não, pensou ela, olhando com um desprezo indisfarçado para as mulheres em torno dela. Não era a época do ano certa para encomendar roupas novas; aquelas ali eram mulheres das províncias, ou estrangeiras, que ficavam empolgadas por estarem ali. Ela não gostava de se ver ali olhando a coleção com elas, mas resolveu não usar mais as roupas de Albin. O que é que Jean François poderia estar achando engraçado?

As manequins passaram, num rebuliço de passos rápidos, com tailleurs para o dia, destinados ao outono e inverno, roupas que já tinham sido exibidas antes, no verão. A essa altura, pensou Nadine, todas as suas amigas que se vestiam em Saint Laurent já teriam recebido seus novos costumes de outono, e os estavam usando.

Se ela pedisse a Madame Violette, tinha certeza de que o tempo necessário para fazer suas roupas seria mínimo. Ela teria de ser tratada como se fosse uma turista, com apenas duas semanas para as provas, pensou ela, com ironia. Não importa, ela veria a coleção da primavera seguinte na estréia para a imprensa, enfeitando a primeira fila de cadeiras com as outras clientes privilegiadas de Sant Laurent, fazendo tanto parte do ritual quanto as próprias roupas, e, de certo modo, mais significativamente.

Ela rabiscou números no bloco, procurando não refletir sobre a conversa que tivera de manhã com o advogado. Ela voltara a ele numa última tentativa de convence-lo a fazer mais investigações sobre a vida daquela puta, a mãe de Fauve. Quando soube do testemunho do Dr. Daniel, de Avignon, o advogado disse a Nadine que o caso dela contra o testamento do pai estava acabado, liquidado. Ela procurara outros advogados e todos lhe haviam dito a mesma coisa: só se pode fazer uma action en reduction de um testamento. Ela devia aceitar o testamento como definitivo: agora nada poderia impedir que Fauve recebesse os 25% dos bens, exatamente conforme estava determinado no testamento. Ela teria de se contentar com ?5%, disseram eles, como se isso a impedisse de saber que tinha sido irrevogavelmente esbulhada, roubada!

Como era típico de parte de seu advogado insistir em ter a última palavra, mesmo no fracasso, pensou Nadine. Ele era criminosamente pouco profissional, dissera Nadine, ao que ele retrucou apenas que, desde o princípio, lhe aconselhara a não impugnar o testamento. Lembrando-se da complacência dele, o lápis de Nadine se quebrou, sob a pressão que ela fez. Madame Violette, que estava nos fundos da sala, observando as clientes, logo lhe levou outro.

Então, surgiu na passarela um grupo de terninhos de calças, com corte de alfaiate, com aquele exagero especial de Saint Laurent que Albin nunca conseguira atingir. Muito no estilo dela. Exatamente o que ela mais gostava, pensou Nadine, virando a folha e começando outra.

As mulheres de ambos os lados estavam olhando os números que ela escrevia, com uma inveja tão evidente que ela teve vontade de rir na cara delas. O que devia ser, ir lá e saber que só se podia comprar um conjunto? Inimaginável, uma vida em que voei olhasse no armário e só encontrasse uma roupa feita sob medida. Era como fazer uma refeição por ano e viver de pão e água o resto do tempo. Para que se dar ao trabalho, sequer? Nadine escreveu mais números, depressa, gulosamente, sabendo das coisas. Mal podia esperar para ir à sala de provas, se ver nessas roupas.

Ela culpava o advogado por mais do que o testemunho destruidor do médico de Avignon. Por que ele não á prevenira direito quanto ao fato de que o texto do testamento seria publicado? Por que não lhe dissera que os jornalistas iam a Aix em enxames, para ler a cópia arquivada lá? Aquele arremedo de homem, repugnante, cheio de si, não poderia ter previsto que o testamento seria traduzido para todas as línguas estrangeiras, e sem notícia em todas as cidades estrangeiras? Pelo menos, era o que Phillipe dissera. Talvez Phillipe estivesse errado, talvez fosse só em Paris que aparecera? Ela não pretendia averiguar.

As opiniões de Phillipe agora não eram nada para ela, nem mesmo pequenos aborrecimentos. Ela o expulsara no mesmo dia em que o testamento fora publicado em Le Monde e Le Fygaro. Disse para ele sair dentro de uma hora. Fora assombroso e, a seu modo, admirável mesmo, a rapidez com que ele fez as malas, com tão poucos protestos.

Ele devia estar prevendo isso, concluiu Nadine, e devia estar preparado para isso. Um homem com a experiência dele não podia deixar de saber que, uma vez que ela conseguisse o dinheiro, se livraria dele. Provavelmente estava planejando como receber aquilo de boa cara, desde o dia em que Mistral morrera. Phillipe não era burro nessas coisas, ela reconhecia. Em tudo o mais, sim, mas não quanto ao dinheiro dos outros. Um homem que podia ser parasita a vida toda tinha de ter certa esperteza.

Em todo caso, pensou ela, com alívio, nunca mais teria de se preocupar com as contas dele, nem suas dívidas, nem suas opiniões. As únicas opiniões a que ela dava valor eram as de seus amigos. Eles haviam de perceber que Mistral estava caduco - louco, doente, senil. Os outros, os pobres diabos que constituíam o resto do mundo, se esqueceriam dentro de uma hora, se é que se dariam ao trabalho de ler aquelas manchetes, aquela história. Então, Monsieur Phillipe Dalmas achava que ela havia despejado um balde de esterco na cabeça, é? Palavras típicas de um homem amargo, a caminho da decadência. Como ele podia explicar que ninguém, nem uma única pessoa, sequer mencionara o testamento a ela? Que idéia absurda... que ninguém o mencionara porque não queriam constrange-la. Na véspera, quando tinha encontrado Helène e Peggy junto de Hermes, nenhuma tinha falado nada sobre o testamento. Mas também não tinham dado os pêsames convencionais. Agiram como se não lhe tivesse acontecido absolutamente nada, desde que a tinham visto, antes da morte do pai. Pareciam... bem, um pouquinho secas, talvez.

As vezes é difícil até para as pessoas mais bem-educadas falarem da morte. Não era por isso que em geral se escrevia bilhetes de pêsames, em vez de telefonar? Helène e Peggy. Havia alguma coisa... divertida... nos olhares delas? Se o pai de uma delas tivesse escrito um testamento tão evidentemente louco, ela bem poderia ter tido o bom-tom, o tato de fazer uma pilhéria daquilo, mas teria feito isso em voz alta, para que soubessem que ela entendia como era ridículo e sem importáncia, como refletia pouco a realidade. Nadine pegou um lencinho e enxugou a testa, sob a franja. Estava quente demais, em Saint Laurent.

Ah, os vestidos de jantar curtos. Ela sempre admirara especialmente como ele o fazia, sua bravura flamenga. Ela sempre se ressentia por ter de usar os vestidos de jantar de Albin, com seu sex appeal classicamente disfarçado. Ele exagerava a sutileza, Albin, como exagerava tudo o mais.

Examinando os vestidos, os olhos treinados admirando cada detalhe, Nadine se perguntou a esmo o que seria a série Cavaillon. Era uma brincadeira, deserdá-la de uma casa em que ela nem sonharia em morar, e um grupo de retratos de três gerações de vagabundas, como se isso pudesse ser mais importante do que o vasto conjunto da obra dele que passaria a ela. Cavaillon? Uma cidade de mercado, um lugar sem qualquer interesse.

A curiosidade dela não chegou ao ponto de querer estar presente quando as autoridades fiscais abrissem o estúdio, no dia seguinte. Étienne Delage,

seu marchand, a representaria. Ele havia de ganhar bastante com as comissões dela, Deus sabia, para ir e ficar lá o tempo necessário, de olho nos agentes fiscais, enquanto faziam o seu inventário dos diabos.

Quando a primeira manequim apareceu, num vestido de noite que ela precisava ter, Nadine não tinha mais papel onde escrever o número. Ela já enchera totalmente o bloquinho, anotando todas as roupas lindas que estava louca para encomendar. Ela levantou a cabeça para fazer um sinal a Madame Violette pedindo outro bloco, e a pilhou cochichando atrás dela com duas outras vendedoras. As três estavam olhando bem para Nadine. Elas desviaram os olhares no instante em que as viu, mas no rosto de cada uma Nadine percebeu a mesma expressão de divertimento que vislumbrara no rosto de Jean François, no de Peggy, no de Hélène. Estavam rindo dela. Escarnecendo? Não, rindo.

Nadine se levantou, passando pela fileira sem respeitar as pernas das mulheres por quem passava. Foi caminhando cada vez mais depressa, ao se aproximar da saída da sala de desfile.

- Madame Dalmas? Há alguma coisa? Posso ajudá-la? - cochichou Madame Violette, alcançando-a no momento em que chegou à porta.

- Isso aqui está sufocante. Não se pode esperar que as pessoas passem horas sentadas sem ar condicionado, num dia desses.

- Ah, Madame Dalmas, a senhora tem toda a razão. Estou desolada. Monsieur Saint Laurent vai ficar desolado. Se me permitir, deixe-me ficar com o seu bloco. Quando voltar, prometo que o ar condicionado estará ligado e todos os números que escolheu estarão reunidos na nossa maior sala de provas.

- Não vi nada que eu quisesse.

- Nada? - repetiu Madame Violette, sem poder acreditar.

- Nem mesmo uma blusa. Uma coleção decepcionante. Albin me estragou para todos os outros.

Fauve Lunel podia ser, se isso fosse possível, quase tão obstinada quanto fora o pai, disse Adrien Avigdor a si mesmo, enquanto discutia com ela, os dois sentados na biblioteca de sua casa.

- Continuo pretendendo voltar diretamente para Nova York - repetiu Fauve, delicadamente, pois tinha grande afeição por Adrien Avigdor, mas com uma resolução cuja sabedoria ela se recusava a por em dúvida.

- Claro que sim, mas agora não, não antes do estúdio ser aberto, de você ver os quadros que o seu pai lhe deixou.

- Não pode aceitar o fato de que não quero ter nada a ver com eles? - disse ela, de novo. - Que eu me recuso? Pedi a Maítre Perrin para tratar de tudo por mim e ele concordou.

- Tenho toda a confiança em Jean, mas há certas coisas que não se pode pedir... nem esperar... que os outros façam por nós.

- Estão precisando de mim em Nova York - disse Fauve, tentando outro argumento. - O senhor não compreende bem, querido Monsieur Avigdor. Imagine centenas de moças lindas e 3.000 clientes em perspectiva, todos ansiosos por seus serviços. Como posso abandona-los?

- Essas moças lindas, você as está vendendo?

- Acho que o senhor sabe o que é que eu faço. - Ela riu-se, diante da tentativa dele de implicar, com ar sério.

- Também sei que há pessoas que tratam da agencia quando você está aqui. Creio que minha velha amiga Maggy não ficou vadia com a passagem do tempo. Tenho muita fé de que ela não deixe nenhuma daquelas moças murcharem na videira.

Fauve vacilou, examinando o rosto dele. Ele certamente não tinha um ar irredutível, impossível nem intratável. Parecia tão plácido e descontraído quanto um homem ordenhando uma vaca, quase dormindo ao sol, mas ela ainda não conseguira convence-lo de que tinha razão. Agora que estava resolvido o problema do processo de Nadine, agora que a memória de sua mãe estava salva, por que Adrien Avigdor fazia tanta questão de usar toda a força de sua autoridade para fazê-la demorar mais? Ela estava grata demais pela ajuda dele para poder simplesmente ignorar tal resolução, mas, por outro lado, ele não se abalara com nada do que ela dissera.

- Não falta resolver mais nada - respondeu Fauve, recorrendo à sua força de vontade. - O que eu havia de querer com La Tourrello? Só tenho algumas semanas de férias por ano e não hei de querer passá-las sempre aqui, não é? Bom, o que é que acontece quando ura casa fica desocupada? E os incêndios? E os canos que estouram? E o mistral que sopra e faz goteiras? Eu teria de alugá-la ou contratar um caseiro para morar lá o tempo todo. É muito complicado. Vou vendê-la, claro.

- O testamento de seu pai dizia claramente que você fizesse o que quisesse.

- E então? - perguntou Fauve.

- Não obstante, acho que você deve, pelo menos, ver o seu legado, a série Cavaillon. seu dever.

- Monsieur Avigdor - disse Fauve, com um ar final - podíamos continuar assim durante dias e dias. Mas esse não é o problema. Eu sei... sei como o meu pai procedeu, durante a guerra.

- Ah.

Ele conseguiu não revelar o enorme choque e a surpresa que teve.

- Também sei que o senhor sabe, que está ciente do que ele fez, não só com o senhor, mas com muitos outros... não, não diga nada! Agora, diga-me

se ainda acha que tenho um "dever", como disse, de ver o meu legado. - Acho - disse ele, com firmeza. - Mas por que... como pode?

- Porque, fosse ele o que fosse ou fizesse o que fizesse, você não pode negar que Julien Mistral amava a sua mãe e ela o amava. E ele amava você muito. Isso ficou bem claro no testamento dele. A série Cavaillon, seja o que for, foi pintada para você, Fauve, pintada por causa de você. Você não pode virar as costas a isso.

- Então, o senhor o perdoou?

- Sim, espero que sim.

- Por quê? - ela tomou a perguntar, inclinando-se para tentar compreender.

- Por quê? Em parte, claro, porque ele era um gênio. Eu sei, o gênio não é desculpa, mas certamente é uma explicação, uma explicação parcial. No Livro de Jó, se me lembro bem, o meu pai me dizia que em algum lugar diz que "os grandes homens nem sempre são sábios". Nem são sempre bons ou corajosos, Fauve. Mas há algo mais do que isso. Eu o perdoei porque ele era um homem e eu também sou um homem... apenas um homem... e não o juiz dele.

Quando ele falou essas últimas palavras, Eric entrou na biblioteca e ficou escutando. Fauve olhou para Eric, respondendo ao pai dele:

- Talvez tenha razão, mas assim mesmo não quero parte do passado.

- Uma visita, Fauve, é só o que peço - insistiu Avigdor. - Depois disso, faça o que quiser.

- Eu acho - disse Eric - que vocês dois chegaram a um impasse mexicano.

Adrien Avigdor olhou, interessado, para o rubor forte que subiu dos ombros de Fauve à raiz de seus cabelos, enquanto ela meneava a cabeça, num consentimento relutante. O que levava aquele patife de filho a achar que ele, Adrien Avigdor, precisava que lhe dissessem que tinham chegado a um impasse mexicano, fosse o que fosse essa coisa bizarra? Ele apenas tinha vencido a negociação, como sempre pretendera, como sempre tivera certeza de vencer. Não estava habituado a perder nessas coisas.

       Vários dias depois, na segunda semana de outubro, os três avaliadores que tinham sido nomeados pela delegacia fiscal de heranças afinal conseguiram se reunir em La Tourello. O governo esperara até que os maiores especialistas franceses em pintura estivessem todos disponíveis, pois o conteúdo do estúdio de Mistral ora uma fonte de renda importante demais para ser avaliada por qualquer que não fosse dos mais conhecedores.

       A ansiedade de Fauve foi aumentando sempre, enquanto ela se dirigia para Félice, com Eric o os Avigdors. Ela achava difícil aceitar o fato de que se deixam convencer a voltar, mesmo pela última vez, à casa que continha os dois aposentos que ela um dia amara mais que todos no mundo: o estúdio do pai e o seu quarto de dormir pigeonnier, a casa que ela tentava esquecer desde os 16 anos.

       O horror que ela sentira, a amargura escaldante, a compaixão desesperançada por aqueles desconhecidos a quem fora negado refúgio, a vergonha constante, todas as emoções que a tinham arrasado quando ela saiu de La Tourrello, tantos anos antes, voltaram para inundá-la, quando o carro passou por Ménerbes e se aproximou de Félice. Ela estava fria até aos ossos, a apreensão e tensão a faziam sentir a espinha como se cada vértebra individual fosse um dente que fora atacado por uma sensação de um desconforto intenso, não uma dor, mas um desassossego quase insuportável.

       Os sentidos de Fauve estavam vivos demais. O colorido do campo parecia tão forte que mesmo os óculos escuros lhe davam pouco alívio, ~ consciência das vozes de Eric e dos pais como se estivessem exageradas, levemente distorcidas, sintonizadas num tom mais agudo do que o normal. E seus gestos pareciam estar fragmentados, descontrolados. Ela tentou tocar na realidade, mas tudo tinha o ar de uma alucinação que se tomava cada vez mais insuportável, à medida que eles subiam a estrada estreita pela floresta de carvalhos e viam os muros antigos de La Tourello erguendo-se além da alameda de ciprestes rodopiantes.

       Eles estacionaram o carro fora, na campina, coberta de emaranhados de cardos e capim em espigas, que tinham secado o verão todo. Fauve saltou do carro com relutância, devagar. O aroma da madressilva a atingiu como um golpe. Ela havia conseguido se esquecer de tantos detalhes. Tinha conseguido esquecer-se de que a mas era coberta de madressilvas. Tinha conseguido esquecer que nunca respirava bastante a sua doçura, que nunca enjoava, nunca ficava menos provocantemente fragrante, com um perfume que continha um mistério que ela nunca capturara, um perfume que era a própria memória da felicidade destilada.

       - Olhe, já tem uns, carros aqui. Os avaliadores devem estar lá dentro, esperando - disse Adrien, Avigdor, para tentar fazer Fauve avançar. Ela estava ali rígida, a relutância evidente em cada linha tensa do corpo e mais alguma coisa. Uma coisa que ele só podia chamar de medo. Ele mesmo estava sentindo uma emoção profunda e dolorosa. Não pisava naquele lugar desde o verão de 1942, quando a entrada lhe fora recusada por Marte Pollison e ele olhara para trás e vira Julien Mistral deixando que ele se fosse.

       - Vamos - disse Eric, pegando a mio de Fauve, sem cerimônia. Ele a puxou pelos portões abertos, para dentro do pátio.

       Um grupo de cinco homens estava fumando e conversando no pátio. Um era Étienne Delage, o marchand de Mistral, que agora representava Nadine Dalmas, três eram os avaliadores e um era supervisor da Delegacia Fiscal de Avignon. Todos se apresentaram solenemente, apertando as mãos de Fauve, Eric e dos Avigdors.

       - Parece que não há ninguém para abrir a porta - disse um dos avaliadores, um parisiense barbudo, alto e elegante.

       - Eu tenho a chave - disse o negociante. - Fui informado de que a velha empregada se aposentou. A casa está vazia. Todas as chaves ficaram com o tabelião de Apt, Monsicur Banette. Ele me pediu que as entregam a Madernoiselle Lunel, já que não poderia estar aqui hoje. Também pediu para dizer que está às suas ordens, se precisar dele para assuntos do inventário.

Ele pegou uma argola de chaves e a entregou a Fauve.

       - Se me faz o favor, Monsieur - disse ela, recuando de repente. - Pode destrancar a porta?

       Étienne Delage fez que sim e foi na frente. Embora ele conhecesse a casa menos do que Fauve, ela ficou para trás de todos, dando cada passo contra a sua vontade, enquanto ele dirigia o grupo pela mo mal iluminada, por aposentos em que ainda havia uma veneziana aberta e por fim saindo pelos fundos, para a ala do estúdio. Afinal todos pararam defronte das portas que davam para o estúdio de Julien Mistral.

       O inspetor fiscal de Avignon tirou o lacre colocado nas portas, horas depois da morte de Mistral ter sido comunicada.

       - Mademoiselle - disse ele a Fauve, indicando a porta. Ela sacudiu a cabeça, recusando-se, e novamente foi Delage quem destrancou as portas do estúdio.

       Então, com um gesto, todos recuaram e Fauve foi levada, pela cortesia deles e senso de oportunidade, a entrar primeiro. Ela endireitou os ombros, deu meia dúzia de passos rápidos para dentro do estúdio sombrio e parou de repente. O choque que ela levara com o perfume da madressilva não foi nada comparado com o assalto sobre seus sentidos daquele aroma querido, bem conhecido, desse domínio, em que o pai tinha pintado durante quase 50 anos. Ela quase soltou uma exclamação, ao colidir com as horas mais importantes de seu passado.

       O estúdio não estava escuro, embora todas as venezianas estivessem fechadas. Parte da clarabóia estava aberta e as luzes de trabalho ainda acesas, como Mistral as deixara. Raios do sol da manhã, num torvelinho de um bilhão de universos de grãos de poeira, pareciam colunas de onde a pungência da tinta a óleo era liberada no ar.

Fauve fechou os olhos um instante, assaltada por recordações. Depois, refazendo-se, ficou de pé, rígida, olhando para o chão. Por fim, ela levantou

os olhos e enfrentou o estúdio.

O que era isso? O que era essa sinfonia de tinta voando? O que eram essas telas imensas, respirando vida, esse sentimento de criação tão alegre, tão

generoso que tinha asas mais fortes do que as de uma águia? De que lugar vinha o ritmo que avançava pelo estúdio com um trovão majestoso?

Não havia nada em todo aquele espaço vasto senão umas pinturas enormes, maiores do que Mistral jamais pintara, cada qual pendurada com uma exatidão de colocação que revelava muito pensamento. O único sinal da presença dele era uma escada forte e móvel, num canto, a mesa de trabalha e o velho cavalete no qual estava colocada uma tela vazia, nova.

Mas Fauve, olhando para as paredes, soltou uma exclamação, perplexa, deslumbrada, aturdida com a fantasia complexa que parecia dançar para ela. Seus olhos iam para uma tela e encontravam leões coroados, empinando no ar, cordeiros saltando, gazelas dançando e pombos esvoaçando, tudo contra um brilho emaranhado de flores silvestres reluzentes como jóias e macieiras, o verde de peridoto e resedá. Ela olhou mais, para outra tela, seus olhos cativados pelo peso majestoso de feixes de trigo e cevada, profusões de romãs, uvas, azeitonas e figos. Ali, as cores radiosas de Mistral eram os verdes fortes e opulentos e os dourados do pleno verão, os cereais oscilando esplendidos como flâmulas. A tela seguinte explodia com uma madureza estuante, a profundidade, a intensidade dos tons do equinócio de outono: ametista, vinho, abóbora e rubi, vibrando com a realização da colheita. Ramos de palmeira entrelaçados com salgueiro e murta estavam pairando ao alto numa procissão gloriosa que se realizava sob uma lua cheia vermelha e muitas estrelas.

Pássaros cantando, a rosa de Sharon... os cedros do Líbano... o que era aquilo?

Então, na parede extrema, ela viu a maior pintura de todas e logo foi atraída por seu magnetismo. Toda a profusão brilhante de outras imagens empalideceu em torno dela e Fauve estreitou a visão, aproximando-se da tela gigantesca em que um candelabro de sete braços brilhava com um crescendo de luz essencial, um menorah monumental, que irradiava a glória de mil anos de fé num fundo de vermelho triunfante. Fauve ficou ali, muda, olhando para cima, o coração aos pulos, a mente vazia de tudo, a não ser a veneração.

Atrás dela, em voz alta, Eric disse as palavras que Julien Mistral tinha pintado em letras altas e ousadas sob a base do menorah:

- La Lumière Qui Vit Toujours. La Synagogue de Cavaillon, .1774... a luz que vive para sempre...

- Ele... foi a Cavaillon! - exclamou Fauve, com assombro e alegria. - A série Cavaillon.., e isso que significa - disse Eric, devagar, com reverência.

- Mas os outros quadros...? O que...?

- Há uma inscrição em cada um - respondeu Eric.

Em todo o estúdio o grupo de visitantes estava-se espalhando, esquecendo-se na aventura da descoberta, exclamando alto, falando com si mesmo e com os outros, experimentando os mares não percorridos do gênio Mistral.

Fauve não se virou, mas continuou a olhar para os grandes candelabros que celebravam o vaso sagrado que estava no santuário do deserto e nos dois Templos de Jerusalém. Por fim, ela se virou e pegou a mão de Eric. Juntos, eles andaram por toda a extensão do estúdio e pararam diante da primeira pintura grande.

Ali havia duas velas colocadas em castiçais polidos; um pão trançado e uma taça de prata cheia de vinho estavam sobre uma toalha de mesa branca. Cada uma das formas simples, elementares, falava apaixonadamente da gratidão pelos dons do Criador ao homem. Uma paz, uma alegria, uma solenidade jovial se derramavam da pintura e Fauve meneou a cabeça, começando a compreender.

- Shabbat - disse o perito de pintura barbudo, de Paris, traduzindo a inscrição, que estava escrita não em francês, mas nas letras do alfabeto hebraico. - O Sabá.

Fauve procurou as formas fortes, estranhas e evocativas das letras e nelas viu o traço de pincel que era nitidamente de Mistral, vívido e violento, e no entanto contido dentro de uma disciplina a que ele nunca se curvara antes.

Ela passou ansiosa para as pinturas seguintes e percebeu que as três telas, aquelas em que as gazelas estavam saltando e os galhos crescendo, as primeiras telas que chamaram sua atenção, tinham sido penduradas de modo a ficarem bem separadas das outras. Ela recuou para poder vê-las como um grupo.

Perplexa, e no entanto elevada a outro auge de prazer visual, ela olhou numa confusão empolgada de uma para outra. Qual era a chave para esses ritmos apaixonados, essa riqueza de imagens?     

Ao seu ombro direito ela ouviu a voz de Adrien Avignon, parando entre cada palavra ao traduzir o significado das palavras nas inscrições hebraicas, compostas das letras que ele estudara durante alguns anos, uma vida antes, letras que, ele descobriu, nunca haviam desaparecido de sua lembrança.

- Pessach - disse ele, com sua voz ressoante, olhando para a primeira tela.

- A Festa do Exodo - acrescentou o perito de Paris. - O aniversário da revelação do Sinai.. ele usou os símbolos do Cântico dos Cânticos.

- Shavuot - disse Avigdor, virando-se para a tela seguinte, e mais uma vez veio a explicação do perito.

- O Festival do Verão... levando frutas e cereais ao Templo.

- Sukot - leu Avigdor da terceira tela e parou.

- A Festa do Outono - veio a voz do parisiense. - Os tabernáculos feitos de ramos e caniços, em que todos dormiram por uma semana, vendo o céu ao alto.

Fauve oscilou e, em volta dela, as formas imensas dos quadros pareciam chegar cada vez mais alto, até tocarem no teto do estúdio e passarem além dele, para um firmamento cheio de luar. As paredes recuaram, as cores se tornaram cada vez mais vivas, ela ouviu as estrelas cantando e as folhas de palmeira rindo, sentiu as asas do vento quando as imagens deram a impressão de se moverem, elevarem-se das telas, girarem em toro dela, num hino de louvor dominante, brilhante, incandescente, um hosana vitorioso de cores.

Alguma coisa profunda de Fauve abriu-se e, por fim, ela compreendeu: Julien Mistral tinha vivido os campos verdejantes do tempo e vivera na velha Jerusalém; seu pincel pagão fora transportado e ele gastara suas últimas forças e as maiores, pintando essas celebrações de um povo que tinha adorado, e ainda adorava, um Deus invisível.

Ele respeitara a invisibilidade do Deus deles. No tentara o impossível; não tentara pintar a voz da Sarça Ardente, mas alcançara o âmago de seus festivais e pintara o espírito com que comemoravam o seu Deus, pintando-o de um modo que todos os outros povos do mundo compreenderiam, pois todos os homens viviam pela roda sempre girando da natureza.

Ela fechou os olhos e se apoiou no braço de Eric.

- Você está bem? - perguntou ele, aflito.

- Vamos lá fora um instante... mais tarde vejo os outros quadros.

Quando eles iam saindo, Adrien' Avigdor se aproximou de Fauve e estendeu a mão, no rosto uma pergunta que foi respondida por um olhar aos olhos transfigurados de Fauve. Ele deixou cair a mão, satisfeito, e os deixou ir. Fauve tinha passado pelo cavalete de Mistral quando voltou, tendo visto um pedacinho de papel pregado na madeira. Sobre ele, na letra conhecida do pai, havia apenas uma linha. Ela parou. O papel estava rasgado, amarelado e manchado por um arco-íris de cores desbotadas, como se tivesse sido muito manuseado; no entanto, esvoaçava do cavalete como uma bandeira com um leme.

- Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um - disse ela, lendo em voz alta. - É só isso que diz.

- Não basta?

 

 

                                                     Capitulo 34

 

- É tão enlouquecedor de difícil tentar descrevê-los assim, pelo telefone... você não pode vir aqui de avião e ver por si, Magali? - pediu Fauve.

- Eu vou, mas no momento é impossível. As coisas nunca estiveram tão alucinantes e não tenho coragem de largar a agência sozinha, sem nós duas. O mais importante é sabermos que o seu pai foi levado a fazer esses quadros, sabemos que ele quis criar uma coisa que pudesse contrabalançar o passado. Acho que a única coisa que se pode dizer é que se trata de uma redenção... não que seja uma palavra que eu use normalmente, meu benzinho. Dou graças a Deus que ele tenha tido o tempo para fazer isso.

- É mais do que ter tido o tempo, Magali. Você há de entender, quando os vir. Ele pintou com a última gota do sangue dele. Monsieur Avigdor diz que às vezes esse tipo de visão avassaladora aparece ao artista, em sua velhice, mas só os maiores deles... Donatello, Rembrandt... uma coisa inteiramente nova, que paira acima de tudo que já conseguiram. Como todo mundo. Monsieur Avigdor estava pensando, já que papai não tinha produzido nada em oito anos, que ele tinha perdido o dom, que estava-se escondendo porque não queria confessar que não pintava mais.

- Todos ficaram tão assombrados quanto você?

- Sim, embora... a não ser no caso dos Avigdors... não tivessem tido o choque a mais, sabendo como papai se sentia antes, quanto aos judeus. Os peritos ficaram assombrados, aturdidos mesmo, embora estejam lidando com os grandes pintores o tempo todo. O homem que mais me comoveu foi o inspetor da Delegacia Fiscal. Ele não tem experiência de pintura, mas ficou andando por ali, num êxtase sem palavras, só se regalando... tão transportado pela série Cavaillon que se esqueceu inteiramente de todos os outros quadros no depósito. Eu quis ligar para você logo, mas por sorte me lembrei que ainda era o meio da noite em Nova York. Então, esperei até saber que você estava no escritório.

- Ah, estou aqui, sim - disse Magali. - Afinal, são quase nove horas. - O caso é o seguinte, não posso sair já da Provença, Magali. Vai haver um interesse enorme pela série e, como me pertence, tenho de ficar por aí, não sei bem quando vou poder ir embora. Detesto deixar você assim no ar... - Não se preocupe comigo nem por um segundo. Está tudo em ordem. - Mas os seus fins de semana - protestou Fauve.

- Nem pense neles. O jardim está quase no fim da floração deste ano e, até você voltar, só vamos para o campo aos sábados e domingos. Darcy compreende... quando é que Darcy não compreendeu?

- Ah, Magali, obrigada. E diga obrigada a Darcy. Vou telefonar sempre. Dê beijos em todos por mim, especialmente em Casey e Loulou e... eu te amo, Magali. Estou tão contente.

- Estou notando em sua voz, querida. Não se apresse, decida as coisas com juízo, não se apresse em nada. Eu te amo, Fauve.

Maggy desligou e se recostou na cadeira. Como Fauve, ela estava num estado de choque, de euforia. A descrição da série Cavaillon, embora Fauve a considerasse ineficiente, levara mais de 20 minutos, com detalhes empolgados e extasiados. Então aquele homem afinal usara o talento que Deus lhe dera para fazer ao mundo uma contribuição maior do que a simples beleza. Maggy descobriu que, embora estivesse extremamente feliz pela neta, também estava feliz por Julien Mistral, o Julien Mistral que ela amara e odiara por tantos anos. Eles tinham contas que nunca poderiam ser ajustadas, não, nem que ele tivesse ilustrado todas as linhas do Velho Testamento, mas agora, pelo menos, ela podia pensar "Descanse em paz", com sinceridade. Ela ficou ali sentada, pensando, por muito tempo. Depois, sobressaltando-se ao olhar para o relógio, tocou a campainha chamando Casey e Loulou ao seu gabinete.

- Acabei de falar com Fauve, senhoras. Ela manda beijos especiais a vocês duas e diz que vai ter de ficar na França mais um pouco. Há coisas que ela tem de tratar.

- Como vão as coisas com ela? - perguntou Casey, aflita.

- Positivamente maravilhosas! Nunca melhores. Agora! Há uns assuntos sobre os quais eu estava querendo falar com Fauve e que não podem esperar até ela voltar. Casey, estive olhando as fotos de teste daquela garota que você encontrou no Southwest Regional Modeling Competition. Não dá, Casey, de jeito nenhum. - Maggy sacudiu sua cabeça elegante, numa negativa firme.

- Maggy, ela era claramente a garota mais linda de todo o concurso - protestou Casey.

- Você caiu numa armadilha. Viu centenas de pequenas e escolheu a melhor. Mas lembrou-se de levar umas fotos de nossas garotas para comparar com ela?

- Bom, não... esqueci. Mas passei três dias compridos à beça julgando aquelas garotas.

- É esse o problema. Depois de três dias, vendo uma garota depois da outra, você pegou a melhor delas. 1 incrivelmente fácil iludir a vista, fazer concessões, esquecer de que a garota tem de ser supinamente boa. Eu mesma já fiz isso uma porção de vezes. Ela é uma moça muito bonita, Casey, mas não o suficiente para a Lunel.

Maggy empurrou a série de fotos de teste para Casey, que olhou bem para elas e suspirou, concordando.

- Ganhou - disse Casey. - Ah, bom, ela está noiva de um cara, na terra dela. Talvez ela fique aliviada. Ele certamente ficará.

- Loulou - disse Maggy - estive escutando as entrevistas abertas. Notei que a nossa sala de recepção nunca parece se esvaziar. Você sabia que BobbieAnn adquiriu um complexo de Pigmalião?

- Ah, Deus, ela está encarregada das entrevistas há uns dois meses e tenho estado muito ocupada para prestar muita atenção. O que é que há?

- Loulou, há um milhão de meios de recusar as pessoas com gentileza. Mas Bobbie-Ann não diz "sinto muito" simplesmente e delicadamente. Hoje de manhã ela passou sete minutos mostrando a uma garota como usar o blusher antes de recusá-la e mais outros oito com outra candidata, dizendo para ela trocar o penteado... e depois a recusou também. Não ¿justo dar esperanças vãs a alguém, nem mesmo por alguns minutos - disse Maggy, com rispidez. - Fale com ela, Loulou. Se Bobbie-Ann não tiver jeito, sempre pode ir dirigir uma escola de beleza. Se uma candidata tem de ser rejeitada, isso deve ser feito com um mínimo de contato pessoal, antes dela começar a sentir que fez uma nova amiga. Assim não dói tanto, posso garantir.

- Sim, senhora! Vou falar isso. Escute, Maggy, Bambi Dois está me deixando preocupada. Diz que se sente com saudades de casa e está comendo como uma danada. Ontem mesmo eu a flagrei nisso.

- Vou falar com ela. Talvez se vocês todas parassem de chamá-la de Bambi Dois, isso ajudaria, para começar. Experimente. Vamos ver, ela esteve três vezes na capa da Glamour e Vogue está pensando nela. Será que ela sabe disso?

- Sabe.

- Bem, claro que ela está com saudades de casa, claro que está comendo todas as porcarias que consegue pegar... talvez consiga engordar bastante para não aparecer na capa da Vogue. Isso é apenas a velha insegurança de todo dia, comum, razoável e compreensível, que está vindo à tona. Quem não havia de ter uma ligeira crise de identidade? E já veio tarde.

Maggy sorriu para as outras. Tinha ajudado mela centena de Bambis a vencerem esse determinado obstáculo.

- Mais alguma coisa? - perguntou Casey, desconfiada.

- Não, pelo menos por enquanto. Lembrei-me de dizer que, no que me diz respeito, vocês duas são inteiramente indispensáveis? Não? Bem, considerem-se oficialmente notificadas. Ah, e querem mandar alguém me comprar um cravo vermelho... só um, para a minha lapela.

Ela pegou o telefone para ligar para Darcy, quando elas saíram do escritório.

- Hum - disse Casey, quando chegaram ao corredor.

- O que significa esse barulho? - perguntou Loulou, ainda bem rosada do elogio sem precedentes de Maggy.

- Acho bom, ter Maria Antonieta tumultuando de novo. - Não acabamos de ser chutadas no traseiro?

- Justo o suficiente - riu-se Casey. - Justo comma il faut, Loulou, se entende o que quero dizer.

Nadine Dabnas tinha resolvido trocar de cabeleireiro, experimentar Alexandre. Como sempre, quando a gente trata bem as pessoas, elas tendem a tomar intimidadas, esquecendo-se de que a linha divisória entre os que são servidos e os que os servem pode ser invisível, mas é real, e nunca deve ser ultrapassada.

Na semana anterior, quando ela fora mandar retocar as raízes dos cabelos, Monsieur Christophe, que tratava da cor dos seus cabelos, chegara a ter a pretensão de lhe dar um relato do caso do avó, que morrera sem fazer testamento. Tinha três filhos, um dos quais, parecia ser o destino dela saber isso, fora o pai de Monsieur Christophe. Os herdeiros tinham lutado tão obstinadamente quanto à divisão da fazenda da família que a propriedade acabara sendo vendida em leilão. Nadine não pudera se levantar e fugir desse relato sórdido, pois o homem estava aplicando o descolorante, nem ousou mostrar que estava indignada por ser tratada como uma platéia cativa. Quando um colorista está com as mãos em seus cabelos, você tem de tomar cuidado para não irritá-lo, seja você quem for.

- Portanto, a senhora vê, Madame Dalmas, ele estava errado, o meu avô, esperando que os filhos chegassem a um bom acordo. Devia ter feito um testamento, mas já que não o fez, a propriedade saiu das mãos da família, para sempre. Uma grande lástima, não acha?

Nadine, com a fisionomia inteiramente calma e distante, teve de inclinar a cabeça para mostrar que estava escutando. Por que é que ela estaria sendo submetida a essa história de família? O que dava ao Monsieur Christophe o direito de lhe infligir sua experiência pessoal?

- Sim, madame, mesmo um mau testamento é melhor do que nenhum - disse ele, por fim, antes de leva-la para lhe lavarem os cabelos.

Que intolerância espantosa do homem, falar com ela num tom de voz consolador! Era seu igual, para ousar tomar essa liberdade? Oferecer-lhe a sua compreensão, a sua lealdade? Baseado em quê ele achava que ela estava precisando de consolo, lealdade? O atrevimento dele a deixou sem fôlego.

No entanto, se ela voltasse na semana seguinte, Monsieur Christophe poderia ter ainda mais a dizer sobre esse assunto odioso, que ele evidentemente aproveitara para fazer de conta que estava no mesmo plano que ela.

Não, ali no Alexandre, onde ela nunca fora, seria tratada como tinha direito de ser e, agora que estava rica, não teria de ser tão generosa com as gorjetas quanto antes, refletiu Nadine, sentando-se no móvel circular, grande demais, tipo harém, forrado de pele de leopardo, em que todos, menos as rainhas, tinham de esperar a vez.

O salão estava horrivelmente cheio, mesmo para uma sexta-feira. Uma das vantagens de seu salão anterior era que lá todos sabiam seus horários, terças e sextas para lavar e escovar, segundas, quintas e sábados de manhã para escovar só. Ela levaria tempo para acostumar o pessoal de qualquer salão novo, foi o que Nadine se fez lembrar, resolvida a ficar com Alexandre até ter estabelecido sua rotina de manutenção de modo satisfatório. Ela não precisava mais de se preocupar em chegar atrasada ao escritório, graças a Deus. Foi realmente espantoso como Albin conseguiu encontrar depressa uma das pequenas Montesquiou para ocupar o lugar dela, embora fosse um trabalho ingrato. Ela não ficaria muito tempo com ele, a criaturinha tola. Ficaria cativada temporariamente pela grã finagem, até descobrir que porcaria era a casa de Albin.

Nadine afastou uma pilha de revistas que uma jovem assistente de avental lhe ofereceu. Não, ela não queda Match nem Jours de France nem Maria Claire nem Elle. Não, obrigada.

Aliás, ela já as tinha visto. Havia comprado um monte de revistas semanais bem coloridas numa banca, na véspera, e as levara logo para casa, para ler em particular, pois cada uma tratava a série Cavaillon como sua história principal. Que acesso de loucura incompreensível levara o velho a pintar aquelas coisas monstruosas com letras hebraicas nelas?, perguntou-se Nadine, com nojo e repugnância. Ela não suportava olhar para elas - só as inscrições a faziam fechar os olhos. Como era típico da imprensa fazer tanta onda por isso, um espalhafato exagerado, como se Julien Mistral fosse uma nova descoberta„ uma sensação de um dia para outro, uma revelação. Ela não podia entender a quantidade de espaço, as capas e fotos de página inteira dedicadas a esse punhado de telas. E, Deus sabia, não era que as uvas estivessem verdes, disse; ela consigo. Ela não as desejaria para si, por nada desse mundo. "Imortal", um crítico chegara a dizer. "A prova final de seu gênio ilimitado", outro. "Um le.. gado que enriquece toda a raça humana", declarava um terceiro. Eram todos igualmente ridículos, ladrando juntos como uma matilha de cães, como sempre faziam, cada qual querendo sobrepujar os demais, como os comenta riscas de modas depois de um desfile bem sucedido. As palavras podiam referir-se a uma nova moda, tão bem quanto a tinta sobre a tela.

No entanto, no final das contas, isso tudo só tomava os quadros dela mais valiosos. Ela não podia realmente se opor, se quisessem redescobrir Mistral, pensou Nadine. Naturalmente, todos se tinham lançado sobre a série Cavaillon, já que o velho a destacara em seu testamento, e naturalmente todos tinham interesse em tratar Fauve como se ela fosse a estrela de todo o número extra do espetáculo de circo. Ela não invejava Fauve e nem o seu momentozinho barato a luz da publicidade. Isso passaria depressa.

Nadine estava tão absorta em seus pensamentos que ficou surpreendida ao ver o coiffeur lhe apresentando um espelho para ela poder examinar o trabalho dele. Ela olhou com cuidado a parte de trás da cabeça. Viu que estava perfeitamente aceitável, mas não podia levá-lo a pensar que ela era fácil de agradar.

- Talvez esteja um pouco achatado do lado - disse ela, passando a mão sobre os cabelos brilhantes que faziam uma curva sob o queixo.

Enquanto ele trabalhava, ela olhou em volta. Devia haver ali uma dúzia de mulheres que ela conhecia, percebeu Nadine, trocando cumprimentos e sorrisos pela sala grande. Não imaginara que tantas de suas amigas freqüentassem Alexandre, que tantas clientes dele fossem as mulheres com quem ela estava acostumada a jantar e almoçar. Em sua opinião, todas pareciam enfeitadas demais. Para que a Condessa d'Omani resolvera pôr aquelas tranças postiças em seus lindos cabelos pretos? E a Princesa Laure de Beauveau-Craon resolvera, por algum motivo estranho, usar cachos de pequeninas orquídeas roxas em seu coque. Muito estranho. Quanto a Baronesa Guy, as mechas louras e compridas estavam apanhadas numa espécie de rede dourada. Madame Patilío, a Princesa Alexandra de Iugoslávia, a jovem Baronesa Olímpia de Rothschield - todas com os cabelos muito enfeitados. Não sabiam como parecia complicado, como era incompatível com a vida real? Se era isso que os cabeleireiros de Alexandre faziam com as mulheres cujo gosto em geral era bom, era melhor ela se precaver.

- Se me permite uma sugestão, madame - disse o cabeleireiro – talvez pudéssemos experimentar uma coisa um pouco mais formal.

- Não o toque - disse Nadine, com aspereza. - Está bem. - Como quiser. Pensei que para o baile, esta noite... - Estou de luto - disse Nadine, depressa.

- Meus sentimentos, madame.

Evidentemente, ele estava aliviado por não ter tido falta de tato. - Eu não poderia ir a um baile.

- Claro que não, madame. É uma pena, não? - murmurou ele.

- Especialmente perder este baile, a primeira vez que a Princesa Mane-Blanche abre o château, depois da morte do marido. É por isso que há tanta gente aqui, esta tarde. Dizem que será o baile mais importante, desde o último do Barão de Rédé.

- Sim, foi uma bela noite - disse Nadine, maquinalmente. A Princesa Marfe-Blanche? Então, o caso dela com Phillipe continuara, mesmo enquanto o príncipe estava morrendo, mesmo depois da morte dele, até agora. Do contrário, por que ela não teria convidado uma amiga tão íntima como Nadine, para o baile? A única explicação possível era que Phillipe, de certa maneira, seria o anfitrião não oficial. Estranho, gite ela não tivesse ouvido falar nada sobre Marie-Blanche e Phillipe, pois Mane-Blanche dizia dancem e eles dançavam; quando dizia viajem 80 km para o campo, para um baile, eles viajavam e se consideravam fazendo parte dos abençoados. O que é que Marie-Blanche havia de querer com Phillipe Dalmas, pelo amor de Deus?

Nadine, olhando no espelho para os seus próprios olhos bem delineados, fez uma lista mental do número de homens de meia idade em Paris, que fossem livres, encantadores, bonitos, bem vestidos e heterossexuais, que dançassem bem, jogassem cartas bem, jogassem pólo bem e fossem adorados por todas as anfitriãs. Além de Phillipe ela conhecia três - não, quatro, contando Omar Sharif. E quantas mulheres havia que fossem muito ricas - muitas bem mais ricas do que ela - livres, e loucas por um acompanhante, quanto mais um homem assim? Dúzias. Dúzias e dúzias. O coração dela murchou, um pó imundo e ruim lhe encheu a boca e em seu abdome acendeu-se uma dor que ela não acreditaria que existisse, uma dor que parecia ser um rato ardente lhe roendo as entranhas, um rato em fogo correndo alucinado com patas de chumbo quente.

Não, ela não tinha ouvido falar nada sobre Phillipe e Marie-Blanche. Não tinha ouvido nada porque não estava sendo convidada por ninguém - nenhum convite que valesse a pena, só alguns convites indubitavelmente de terceira categoria, que ela nem se dignara de recusar. Diante da escolha entre

a Princesa Marie-Blanche e Nadine Dalmas, as pessoas, claro, escolheriam a Princesa Marie-Blanche. Ela mesma faria essa escolha. Não havia concorrência.

Ao dar a gorjeta ao cabeleireiro, tão grande que ele chegou a mostrar sua surpresa, Nadine só tinha um pensamento. Por acaso, ela naquele dia estava com um costume preto, Dali em diante, só ia usar preto. Ia arranjar um cabeleireiro modesto, no seu bairro, onde não encontraria as amigas. Conheci das. Ela não tinha amigas. Usaria preto em luto pelo pai e ia resolver o que fazei com o resto de sua vida, uma vida em que ela seria, sem dúvida, muitas vezes descrita como ex empregada de Jean François Albin, como ex mulher de Phillipe Damas, pois quem era Nadine Dalmas? Quem se importava?

Ela foi andando pela rua, procurando um táxi para levá-la para casa.

Um táxi vazio passou enquanto ela ficava ali, imóvel, olhando para uma manchete no France Soir, exibida no lado de uma banca. "Fauve Lunel - Frendra-t-elle le non de Mistral, son père?" Fauve usaria o nome do pai? Quem importava lá se ela usasse, aquela bastarda de nada, aquela intrusa, aquela vagabunda espertalhona? Por que ela era tratada como se fosse a única filha de Julien Mistral? "Eu", era o que Nadine queria gritar bem alto para todos os que passavam, "Eu sou a filha de Mistral!"

Quando Fauve resolveu passar mais umas semanas na Provença, ela tomou um quarto no Prieuré e depois, quando este se fechou, para a temporada em novembro, ela se mudou para o Hotel Europe, em Avignon.

Certa manhã, em fins de novembro, ela foi no seu Peugeot alugado para Félice, resolvida a tomar uma decisão quanto a La Tourrello, antes de terminar o dia. A casa andava cheia de gente, desde que fora revelada a série Cavaillon. Ela tivera de receber uma grande variedade de convidados: jornalistas, historiadores de arte e curadores de museus. Mas agora estava resolvido o problema do que fazer com a série Cavaillon. Na véspera, a última tela fora cuidadosamente embalada e carregada nos caminhões forrados que levariam o conjunto para Amsterdã, onde começaria o seu progresso lento de continente a continente, de grande cidade a grande cidade, a todos os museus que tinham pedido, levando sua mensagem festiva de fraternidade pelo mundo afora. Se ela tivesse conservado as telas em La Tourrello, só um número relativamente reduzido de pessoas as teria visto, a não ser em reproduções. Um dia, as telas transcendentais voltariam a suas mãos, mas, durante muitos anos ainda, a série Cavaillon pertenceria à humanidade.

Agora que o estúdio estava vazio, agora que o depósito também estava vazio de tudo, menos dos retratos de família que Fauve pretendia guardar para si, ela poderia formar o seu juízo com calma sobre a casa. A não ser o futuro da série Cavaillon, ela achava que nada do que ela resolvera desde a partida de Nova York se baseara sobre pensamentos firmes e tranqüilos. Ela tivera de se precipitar para as coisas, tinha sido arrastada pelos acontecimentos e, ao cabo de cada dia, achava-se tão exausta que caía na cama sem pensar em nada a não ser os compromissos da manhã seguinte. Ela contratara uma jovem viúva, Lucette Albion, de Lacoste, para ir todo dia e fazer a limpeza da casa e preparar o almoço e café para todos os visitantes. Naquele dia, os últimos tinham ido embora e La Tourrello estaria inteiramente vazia, pois era domingo e Lucette tinha ido a um casamento em Bonnieux, em que os dois filhos iam ser pajens.

Um mistral soprava já há alguns dias e Fauve estava embrulhada num paletó de escocês quente, sobre calças de lã verde e um suéter creme, em ponto de corda, estilo pescador irlandês, mas naquela manha o vento desaparecera do Lubéron tão caprichosamente quanto chegara. O céu azul vivo demais passara a um azul suave de novo e mechas de nuvens se drapejavam aqui e ali, como fitas, os enfeites de festa do céu. O único sinal do verdadeiro inverno era a aridez dos campos. Os quebra ventos de ciprestes estavam verdes e alerta, e nas oliveiras, as folhas das árvores pareciam tanto um rio de prata que Fauve quase esperava ver peixes nadando nelas. Enquanto ela dirigia, ouvia o som de tiros de espingarda nos monos, onde os fazendeiros procuravam aves de caça; o riso estridente e empolgado das crianças ressoava, em suas brincadeiras de domingo, liberadas de seus eternos deveres de casa, e na entrada de muitas mas havia uma mesa com frutas maduras, à venda. Fauve parou numa delas e comprou uma pára e uma maçã para seu almoço.

Ela estava ficando redondinha - bem, um pouco, em todo caso, pensou ela, passando por Les Baumettes. Todas as pessoas que conhecera havia mãe mostrado tão hospitaleiras que, por mais cansada que estivesse no fim do dia, muitas vezes acabava jantando bem, com Jean e Félice Perrin ou o Dr. Lucien Daniel e a mulher, Céline, ou com alguns dos outros novos amigos que fizera em Avignon, em Apt, em Ronnieux. Em Félice ela muitas vezes comia com Pomme e Épinette, ambas travessas e irreverentes como sempre, a despeito de serem respeitáveis senhoras casadas. E, naturalmente, ela estava sempre com Beth e Adrien Avigdor.

Eric não tinha aparecido muito, refletiu ela, sentindo, contra todo o bom senão, que ele devia ter comparecido mais. Mas ele estava construindo duas casas importantes do outro lado das montanhas do Lubéron, em Les Baux, e de lá a Avignon a viagem era comprida e curiosamente complicada, pelas estradinhas, pois a autoroute não passava perto de Les Baux. Eric tinha projetado grandes casas de férias para dois industriais suecos e teve de supervisionar pessoalmente grande parte da construção, pois os mestres artífices da Provença não se tornaram menos imprevisíveis, diante da escalada da procura de seus serviços. Aquela região da França era um paraíso para os pedreiros, carpinteiros e canteiros. Eles podiam escolher o trabalho à vontade. Eric pretendia aprontar as casas para os proprietários na primavera, nem que tivesse de ficar em Les Baux e ver o seu progresso, de centímetro em centímetro.

Naturalmente, ele estava tão ocupado quanto ela, disse Fauve a si mesma. Não era de propósito que eles se tinham encontrado tão poucas vezes. Não, talvez não de propósito, mas ele não poderia ter arranjado mais tempo para estar com ela? Não podia, que diabos, estar um pouco mais louco para vê-la? Nove meses antes, esse homem queria que ela largasse tudo o que constituía o seu mundo para se casar com ele. Agora o pai e a mãe dele, pelo amor de Deus, a tratavam com mais carinho do que ele. Para o diabo com Eric Avigdor! Ele que passasse a vida atrás dos serventes de pedreiro, pensou ela, com desprezo, abrindo a porta da frente de La Tourrello com uma chave que pegou daquela argola grande que se tomara tão conhecida e pouco notável quanto seu batom.

Fauve andou pelo salon de La Tourrello para verificar se Lucette tinha esvaziado todos os cinzeiros e tirado todos os cálices de vinho da mesa onde, na véspera, junto com Adrien Avigdor, Jean Perrin e vários cavalheiros do museu de Amsterdã, ela brindara a partida da série Cavaillon. O salon tinha um ar arrumado demais, com todas as almofadas afofadas, todas as superfícies das mesas limpas. Ela não se dera ao trabalho de comprar flores para. a

casa, já que não estava morando aí. Parecia um escritório num domingo, um lugar que não era para estar aberto e vivido, resolveu Fauve, e retirou-se para a cozinha, onde descobriu os restos do grande almoço de comemoração da véspera guardados direitinho na geladeira. Galinha fria, uma metade de patê de fígado, a última garrafa de vinho branco, ainda quase cheia.

Pondo a comida na mesa da cozinha, resolveu começar uma dieta séria no dia seguinte. Dentro de uma semana, quando voltasse para Nova York, já teria perdido os três quilos que devia ter engordado. Ela estaria de volta antes de estarem arrumadas as vitrinas de Natal na Quinta Avenida, de volta para todas as festas de voltiia para o primeiro grande espetáculo da temporada. Não, Fauve se corrigiu, as vitrinas já deviam estar enfeitadas; apareciam antes do Dia de Ação de Graças. A primeira nevada ocorrera uma semana atrás, lhe dissera Maggy da última vez que se falaram, de modo que agora já devia estar coberta de sujeira; flocos negros caindo sobre a neve branca, dos céus cinzentos de Nova York. Táxis de folga; poças de lama em cada esquina, tão largas que era preciso passar por dentro delas para entrar num ônibus superaquecido, se ele não passasse sem parar pelo ponto; o gemido constante de sirenas, como se a cidade estivesse constantemente pegando fogo, em um ou outro lugar - mas festas, talvez uma festa de boas-vindas, a festa anual de Natal de Lunel, danças em Doubles, de onde ela era sócia, o concerto Horowitz, para o qual, Melvin escrevera, ele tinha ingressos, a exposição Avedon, Bobby Short no Café Carlyle, Baryshnikov e sonhos; em que outro lugar, além de Nova York?

Fauve procurou os tomates que Lucette levara na véspera. Bom, havia o suficiente para uma salada com a galinha. Ou talvez ela só comece os tomates e as frutas, quando estivesse na hora do almoço. Não podia chegar na agência uma gama mais gorda do que partira... as modelos ficariam encantadas de poder atacá-la por não manter a disciplina que ela lhes pregava. Por algum motivo, não tinha importância que o pessoal da agência fosse gorducho quanto quisesse, mas Maggy e Fauve Lunel deviam ser magras como modelos.

Fauve caiu num devaneio, em que as delícias da Provença se misturavam e confundiam; a tapanade, aquela pasta feita de azeitonas pretas, espalhada no pão como manteiga; as estrelas que no céu da noite chegavam tão perto da terra que um passeio depois do jantar parecia um vôo; o café em Félice onde ela podia ficar sentada, vendo toda a aldela passando, a cada dia conhecendo o nome de mais pessoas; a cor da luz, a cor do céu, a cor das pedras - a cor da luz, a luz. Suspirando, ela soprou os cabelos para fora dos olhos e, resolvida, encarou o problema de La Tourrello.

Podia alugá-la, conforme planejara antes, ou vendê-la. Jean Perrin lhe garantira que qualquer das opções não apresentaria problemas; havia uma procura enorme de propriedades em todo o sul da França, e a casa de Julien Mistral, tão bem mobiliada, alcançaria um preço elevado. Era tão famosa quanto rara, com seus prédios maravilhosamente restaurados, sua piscina, aquecimento central, banheiros confortáveis. Ela preferia vendê-la logo, pensou Fauve, de repente. Os pés de abricó, as videiras, os campos de aspargos, os olivais, toda a terra fértil de La Tourrello estava num estado vergonhoso de abandono. Como ela podia confiar num inquilino para supervisionar o trabalho que teria de ser feito? Ninguém que apenas alugasse uma casa desejaria ter o trabalho necessário para fazer a propriedade voltar a sua antiga produtividade. Por outro lado, quem comprasse a propriedade, o faria sabendo que a fazenda daria uma renda constante e considerável, quando fosse novamente explorada como devia ser.

Sim, o comprador ideal seria um rico chefe de família de algum lugar do norte da Europa, onde não havia sol, um homem que sempre tivesse desejado muitos hectares na Provença - não era com isso que todo mundo sonhava? - que contratasse um lavrador local com a mulher para morarem lá o tempo todo, um homem que pudesse passar os verões na Provença e ir para lá de Munique, Copenhague ou Bruxelas para tomar o sol do inverno, duas semanas no Natal, duas semanas na Páscoa levando as crianças, claro; talvez num avião particular que poderia pousar no aeroporto junto de Avignon. Podiam guardar o carro no aeroporto e estar em La Tourrello mela hora depois de pousarem.

Fauve, pensativa, pegou a pêra e a maçã que tinha comprado na estrada, andando pelos aposentos de La Tourrello, imaginando-se como mulher do comprador em perspectiva. Pretendia guardar para si algumas das antigas cômodas e mesas, resolveu, mas havia de modificar os tapetes e cortinas e se livraria de todos os estofados - o lugar tinha móveis de menos. A casa estava pedindo sofás maiores, poltronas mais fundas, tecidos menos simples - precisava de cor, de calor, precisava, acima de tudo, de coisas. Estranho, ela antes nunca se importara com a austeridade artística da decoração, mas sempre pensara naquilo como a casa de Kate e combinava com Kate. Bom, não combinava com ela - no entanto, quem sabe - talvez fosse perfeita, assim mesmo, para a mulher daquele belga rico? Fauve tinha quase certeza de que seria um belga. Eles tinham os piores invernos da Europa.

O seu quarto na torre? Provavelmente seria um quarto de hóspedes, a não ser que tivessem uma filha adolescente que o quisesse para si. Fauve esperava que tivessem uma filha, alguém que se deitasse na cama e sonhasse de olhos bem abertos.     

O que aconteceria com o estúdio, perguntou-se Fauve, diante de suas portas? Será que o usariam como sala de jogos, pondo ali uma mesa de pingue-pongue?

Na véspera, ela estivera muito ocupada, fazendo as combinações finais com o pessoal de Amsterdã, para poder trancar o estúdio depois que a série Cavaillon fora levada para fora, de modo que Jean Perrin o fizera, dando-lhe a chave antes de ir. Ela nunca tinha visto o estúdio sem os quadros, percebeu, hesitando do lado de fora das portas. Queria entrar ali? Precisava entrar? Ousava entrar?

Ela se disse para não ser absurda e destrancou o estúdio. A sala que ela sempre imaginara enorme, vasta, imensa - era apenas de um tamanho normal. Um estúdio grande, certo, mas sem as pinturas de Mistral não era tão intimidante, afinal. Uma dimensão humana. Fauve compreendeu que era porque as paredes estavam nuas. O trabalho do pai sempre abrira para uma outra dimensão, qualquer que fosse o tema, sempre conduzia a vista além dos limites da tela. Agora só havia as paredes, o teto alto, o vidro e as traves. Só o que lembrava que Mistral tinha trabalhado ali eram a mesa de trabalho, a escada e o cavalete com a tela vazia.

Ela pôs a pêra e a maçã, ambas ainda intactas, no canto menos manchado de tintas da mesa de trabalho e maquinalmente, sem pensar, começou a juntar os muitos pincéis que estavam espalhados por ah. Sempre fora seu trabalho especial, depois de um dia de trabalho, pegar esses pincéis e limpá-los na pia do quartinho ao lado do estúdio, onde Mistral guardava seu material de pintura. O Pai sempre cuidara dos pincéis tão meticulosamente quanto qualquer bom artesão. A despeito da desordem que sempre reinava no estúdio dele, ele começava o dia com pincéis limpos e quando ensinou a Fauve a pintar também lhe ensinou a limpar as coisas depois do trabalho.

Ela viu que o trabalho não seria fácil nem rápido. Suas duas mãos estavam cheias dos pincéis que ele tinha largado na última noite em que pintara, largados, largados às pressas, percebeu ela, olhando para eles, em desalento. Estavam emaranhados, empastados, endurecidos com a tinta seca Provavelmente teriam de ser jogados fora. Ela teria mais trabalho do que previra, para devolver alguma vida a esses instrumentos maltratados. No entanto, Fauve se pilhou indo para a pia, em que estavam os vidros tapados de terebintina e solvente.

Devagar, com carinho e capricho, ela começou a lenta tarefa de limpar os pincéis de Julien Mistral. Por fim, ela deixou todos menos um, que não fora usado, para passar a noite de molho. Ela voltou à mesa de trabalho com o único pincel limpo e se pôs, irresoluta, diante da tela em branco, a mente vazia, as mãos paradas. Ficou ali, sem nada para decidir, sem pensar no que faria em seguida, até se ver voltando atrás no tempo, enquanto, presa num lento desmoronamento da memória, ela sentia a mão grande de Julien Mistral cobrir a sua, apertando-a, comunicando-lhe poder, dirigindo seus dedos como fizera tantas vezes depois do primeiro dia, o dia quando ela estava com oito anos. Ela o ouviu dando aquelas ordens conhecidas. "Regarde", ela ouviu sua voz dizer-ihe. "Está vendo, Fauve? Regarde, sempre regarde. Você tem de aprender a ver."

E ela viu mesmo, num momento de uma definição total, o que ia fazer. Era mais do que apenas saber, era uma admissão súbita de uma necessidade negada por muito tempo, mas total, pura e dominante, sem complicações, uma ordem absoluta.

Tèntar. Ela era pintora. Sempre fora pintora. Tinha rejeitado a pintora dentro de si quando rejeitara o pai, mas agora... agora... ela só tinha certeza de que precisava tentar. Os muros tinham sido derrubados, as portas escancaradas, uma vasta campina aberta se estendia à sua frente, uma campina que ela não poderia atravessar sem perigo, uma campina que, uma vez atravessada, a levaria a modificações inimagináveis, a tarefas e experiências que ela só podia começar a imaginar. Mas tinha de tentar.

Fauve sabia que estava no princípio de uma longa viagem de descobertas, uma aventura que a chamava irresistivelmente. Do outro lado da campina havia um mistério, um mundo desconhecido que devia ser explorado. Ela se sentia cheia de impulsos maravilhosamente imprudentes, ávida para se defrontar com o mistério, pronta para ousar, pronta para tentar, pronta para mudar.

Uma vibração que nunca parara se agitou nos pulsos e dedos de Fauve. Poderes e faculdades que ela reprimira e de que fugira começaram a avançar com a força de jovens brotos se abrindo ao sol da primavera.

Ela teria de recomeçar. Não do princípio, mas em todo caso, de novo.

Devia ter perdido a técnica, a facilidade, a habilidade - a maquinaria da pintora provavelmente se enferrujara como o Homem de Lata de Oz, deixado na chuva. A tinta e ela teriam de ter intimidade, de novo. Mas ela já conhecera a linguagem... não era assim tão fácil de esquecer, especialmente por que ela nunca perdera o hábito nervoso que fazia sua mão pegar toda caneta ou lápis à mão e traçar linhas num papel.

Fauve pilhou-se sentada à mesa, olhando para a tela, um pincel numa das mãos e a maçã na outra. Ia comer a maçã ou pinta-la? Ela riu e deu uma mordida na maçã. Ia pintar a pêra.

 

 

                                               Capitulo 35

 

Se ela telefonasse naquela hora, ia encontrar

Maggy e Darcy lendo os jornais, depois do café da manhã no campo, calculou Fauve, contando as cinco horas de fuso horário. Ela se levantou da mesa, pegou a pêra e correu do estúdio para telefonar da biblioteca de La Tourrello.

Discou para a telefonista internacional e depois, antes de atenderem, largou o fone depressa, dominada por idéias posteriores. Essa decisão abrupta, essa mudança de direção resolvida tão de repente - como afetaria Maggy e a vida que ela e Darcy tinham construído para si, com tanto cuidado, uma vida em que eles estavam tão organizados, tão confortáveis e felizes juntos?

Isso não era exatamente o tipo de egoísmo, perguntou-se Fauve, em que vivera o pai dela? Ele agia da maneira que fosse melhor para ele, sem pensar nas conseqüências. Ela agora pretendia colocar o seu trabalho à frente de todas as outras obrigações na vida? O seu sentido de propósito, a sua necessidade física e espiritual de pintar, seriam o mesmo sentimento que ele conhecera? Não era essa a urgência que o dominara? E que o cegara?

Fauve ficou sentada muito parada, tentando imaginar-se esquecendo-se daquela manhã e voltando à Agência Lane!. Afinal, podia guardar os fins de semana para pintar. Passaria os dias presidindo à sorte das 200 melhores modelos do mundo, tentando se interessar de novo, como antes, por tudo quanto acontecia na estufa competitiva da moda. Tinha sido criada para fazer isso, não é?

Não de verdade. Não mesmo, agora que ela parava para pensar bem nisso. Quando ela se formara no primeiro grau, Maggy nunca indicara que tivesse a esperança secreta de um dia dar o nome à agencia de Lunel e Neta. Fora dela a idéia de resolver aprender o trabalho, como se essa fosse a solução de todos os seus problemas. Se havia alguma coisa que Fauve sabia a respeito do negócio de modelos, era que não se devia trabalhar nele a não ser que isso fosse importante. Quando a pessoa deixava de ficar sinceramente chocada ao ver uma moça da Wilhelmina em vez de da Lunel na capa da Vogue, estava na hora de dar o fora.

Quando Fauve tornou a pegar o fone, ela disse a si mesma que sabia uma coisa, com certeza: Maggy havia de querer que ela fosse sincera, mesmo que não ficasse feliz com a verdade. Colocar a pintura acima de muitas coisas era o que todo pintor tinha de fazer. Ela devia se lembrar de não colocá-la acima de tudo. Pelo menos, não o tempo todo.

Fauve pediu a Darcy para ir escutar da extensão e disse a ambos o que lhe acontecera naquela manhã. Foi o mais franca e clara possível. Não fazia sentido procurar velar os fatos ou fingir que ela não estava resolvida.

- Bem - disse Maggy, depois de uma pausa, numa voz que parecia ou muito longe ou muito abafada, Fauve não sabia bem. - Bem, devo dizer, Fauve... não sei bem até que ponto estou surpreendida.

- Magali, não pense que não pensei no que isso vai representar para vocês - disse Fauve, séria. - Sei como você faz questão que uma de nós fique na agência todo dia e sei que ou você vai ter de trabalhar em horário integral agora... ou, de algum modo, fazer um conchavo e confiar mais em Casey ou Loulou.

- Eu estava começando a pensar por que você estava demorando tanto, não era absolutamente necessário você passar o inverno todo em Félice... você podia ter arranjado gente para tratar de seus negócios. Darcy, quantas vezes já lhe disse que alguma coisa estranha estava-se passando com Fauve? - perguntou Maggy, como quem ganhou uma aposta.

- Magali! Você não está entendendo o que eu estava dizendo? Não quero dirigir uma agência de modelos, pelo amor de Deus.

- Bem, isso se compreende. Nem todo mundo tem essa vocação - disse Maggy, com um ligeiro tom de complacência na voz.

- Você não se importa? - disse Fauve, sem acreditar.

- Não quero me intrometer nessa conversa de carreiras - interrompeu Darcy - mas, Maggy, achei que devo lhe dizer que me oponho firmemente a você construir essa estufa na sala de jantar.

- Diabos, Darcy, você sabe muito bem que eu estava pretendendo cultivar orquídeas durante o inverno, depois que Fauve voltasse - disse Maggy, irritada. - Não se pode fazer isso sem uma estufa.

- Mas ela não vai voltar, a sujeira nas suas unhas não desaparece, desde a primavera até o outono. . . não me casei com uma Nero Wolfe de saias... casei-me com Maggy Lane!. Como você, estou farto de fins de semana de quatro dias. Você está dez vezes mais agradável de se conviver depois que Fauve foi para a França. Nada de estufas.

- Darcy! Há quanto tempo é que você sabia... sobre os fins de semana? - perguntou Maggy.

- Digamos que prefiro permanecer enigmático.

- Vocês dois estão falando comigo, ou com o outro? - perguntou Fauve. - Essa é uma discussão particular? Afinal, estou pagando por esse telefonema.

Jean Perrin lhe dissera que, com o tempo, ela herdaria pelo menos 25 milhões de dólares, mas nada disso parecia real, para Fauve. No entanto, interurbano era interurbano.

- Você devia ter ligado a cobrar - disse Maggy. - Nós aceitaríamos. Agora escute, Darcy, isso quer dizer que você se recusa a me deixar construir a estufa?

- Acho que deixei isso bem claro.

- Nesse caso - disse Maggy - eu me recuso a desistir de minhas sextas-feiras na agencia.

- E as segundas-feiras? - respondeu Darcy, depressa.

- Sob uma condição. Passo as segundas no campo com você, se puder comprar aquele brejózinho nos limites de nosso terreno.

- "Brejozinho"? Tem cerca de três hectares. Para que quer aquilo? - Um jardim de nenúfares, como o de Monet em Giverny - disse Maggy, num tom visionário.

- Isso implica em tratores - resmungou Darcy.

- Mas só por algumas semanas. E pense, querido, podíamos ter um barco a remo e um caramanchãozinho, e podíamos remar até lá para tomar os martínis antes do jantar, no verão.

- Estamos combinados em três dias, certo? - barganhou ele. - De sexta à noite até segunda, inclusive?

- Fechado. Nas segundas deixo Casey, Loulou e Ivy tomam conta das coisas por mim. Em geral, o dia começa lentamente, mesmo. - Ivy? - perguntou Fauve, espantada.

- Ivy Columbo. Existe mais de uma Ivy? Ela resolveu que a carreira de modelo era de prazo muito curto para ela, de modo que está começando como contato. Supostamente como aprendiz, mas aquela garota é tão mandona que o termo nem se aplica. Ela me lembra... eu mesma. I; uma pena aposentar os melhores joelhos da passarela do negócio, mas, por outro lado, ela está noiva de um italiano maravilhoso que conheceu na Capela Sistina quando esteve em Roma com você, em março. Gosto dela, ela serve - disse Maggy, com satisfação. - Mas Fauve, naturalmente, se você voltar, se mudar de idéia, o seu lugar é sempre seu. Você sabe disso.

- Obrigada - disse Fauve, distraída... na Capela Sistina?... imaginando as lutas que haveria nas segundas-feiras. Loulou era mais antiga, Casey era mais inteligente, mas Ivy era mais... tudo.

- Então, onde é que você vai morar? - perguntou Maggy, num tom prático.

- Pensei que você tinha entendido. Aqui, em La Tourrello, claro. - Morar aí sozinha! - Maggy parecia bem avó. - Não acho nada boa idéia.

- Você! - explodiu Fauve. - Você que dançava até de madrugada toda noite e foi carregada nua em pelo numa fruteira e vivia numa espelunca em Montparnasse sabe Deus com quem... e provavelmente fumava ópio... Você pode mesmo falar!

- Estou vendo que Adrien Avigdor andou contando suas memórias. Deve estar ficando caduco... Eu nunca, nunca fumei ópio. Não que não me oferecessem, entende. Em todo caso, tudo isso aconteceu quando eu era mocinha e boba. Quando eu tinha a sua idade, estava ganhando a vida muito bem e muito respeitavelmente, também.

- Com uma filha natural e provavelmente fazendo misérias com Darcy, aposto - sugeriu Fauve, baixinho.

- Não creio que eu já conhecesse Darcy, conhecia, meu bem? Quando foi mesmo a gincana de Lally... foi em...?

- Magali, não importa a data exata - interrompeu Fauve. - Em todo caso, não vou ficar aqui sozinha. Vou perguntar a Lucette se ela não quer vir morar aqui com os filhos. Ela está morando com os sogros e está detestando, de modo que tenho certeza de que vai aceitar feliz. E isso aqui vai estar cheio de gente cultivando a terra, La Tourrello nunca mais ficará vazia - disse Fauve, alegre.

- Por falar nisso, Fauve, acho que você deve saber que vi Ben Litchfield no "21", na quinta-feira passada - disse Darcy, com o ar de quem se sente obrigado a pesar todos os mínimos artigos. - Meu Deus, Pete Krindler lhe deu a mesa 9 e ele só tem 30 anos. Em todo caso, perguntou quando é que você volta, ao sair.

- Com quem é que ele estava? - perguntou Fauve, maquinalmente.

- Uma garota excepcionalmente bonita. Deve ser modelo.

- De quem e ela? - perguntou Fauve, sinceramente interessada.

- Nossa - disse Maggy, secamente. - Era Arkansas, como Darcy sabe muito bem.

- Arkansas! Por que não pensei nisso? Mas é perfeito! Ela aprende depressa e assim Ben fica na família. Não deixe de dizer a Arkansas que ele faz uma coisa bem esquisita nas manhãs de domingo, mas para não ligar; não dura muito.

- Não vou dizer nada disso - disse Maggy, indignada.

- Então, ela vai ter de descobrir por si. Imagino que já tenha descoberto. Dê um abraço nela que eu mando. Ah, Maggy, eu lhe mandei aquele retrato que o papai lhe deu, o que a Kate lhe roubou... sabe, deitada nas almofadas verdes, lembra-se?

- Não é propriamente um retrato que alguém possa esquecer - disse Darcy. - Onde é que você acha que podemos pendurá-lo?

- Vocês arranjam um lugar - disse Fauve, jovialmente. - Guardei os outros seis para os meus bisnetos.

- Bisnetos? Fauve... você não está... não está... - gaguejou Maggy. - Realmente, Magali, como poderia estar? Afinal, não sou casada - reprovou Fauve. - Mas se eu estivesse grávida, seria um caso nítido de pré disposição genética. Darcy, você se lembra daquele ursinho estofado que você me deu, uma vez?

- Muito bem.

- Bom, você acha que eu estaria sendo tola e infantil, se lhe pedisse para me mandar o ursinho? Está sentado numa cadeira de balanço na sala de meu apartamento.

-,Por certo que não acharia tolice. Todo mundo precisa de um ursinho.

Há mais alguma coisa que você queira do seu apartamento?

- Na verdade... essa casa está vazia demais. Talvez você consiga uma companhia de mudanças para embalar tudo e me mandar para cá? - Embalar o quê?

- Tudo do apartamento. Ah, sei que vai ser uma gota d'água, mas isso vai ser um começo, para encher essas salas.

- Por que não?

- Ah, Darcy, você é um amor, tão compreensivo. Estou tão contente que você tenha obrigado Magali a casar com você.

- Foi ela quem me obrigou a casar com ela, na verdade.

- Nunca soube disso - disse Fauve, fascinada. - Como é que aconteceu? Conte tudo!

- Acho que essa conversa já está muito comprida - interrompeu Maggy. - Fauve, querida, você está fazendo a única coisa que devia... estou muito feliz por você, estou feliz por mim e estou feliz por Darcy, embora não saiba bem se ele merece isso. Um homem que não cumpre a promessa de uma estufa...

- Tem alguém na porta da frente. Estou ouvindo a campainha tocando na cozinha - disse Fauve, depressa. - Tenho de desligar. Torno a ligar daqui a uns dias. Adoro vocês dois.

De coração leve e cabeça leve, ela correu para a porta da frente e viu Eric Avigdor ali de pé, encostado no umbral da porta, o paletó pendurado no ombro.

- Ah-ah! O mestre construtor. Pode entrar.

- Cheguei de Les Baux ontem à noite e fui procurar você hoje. Como não estava no hotel, pensei que podia estar aqui, então vim até cá... está bem?

- Claro, tenho muito prazer em receber qualquer filho dos meus queridos amigos Avigdors.

- Você parece muito...

- Pareço o quê? - perguntou ela, girando, a cabeleira chamejante se destacando agressivamente, a beleza dela focalizada e deslumbrante, como ela bem sabia.

- Não sei bem definir o tom - disse ele, com cuidado.

- Aceito isso como um elogio. Como vão as suas casas?

- Muito bem. A parte mais importante da construção já acabou, vão ficar prontas a tempo. Em breve volto ao meu horário normal. Escute, Fauve, o que eu vim fazer mesmo foi dizer que lamento não ter aparecido muito, mas você estava tão ocupada que não parecia que tivesse tempo mesmo... e agora papai me disse que você já vai voltar para Nova York, na semana que vem.

- O dever me chama - disse ela, lançando-lhe um olhar de esguelha, perverso, pelo lado de seus grandes olhos cinzentos de névoa. Era assim, pensou, que a mãe dela devia ter tratado os homens que não podiam deixar de se apaixonar por ela. Ela se sentia puramente Lunel e não era culpa dela, era?

- Imagino que sim - disse ele, sem expressão.

- Quer almoçar? - perguntou Fauve, hospitaleira.

- Não quero lhe dar trabalho... olhe, eu a levo para aquele hotelzinho, a Hostellerie, em Bonnieux, que tem uma comida tão boa.

- Estou com muita fome para esperar e estou com a cozinha cheia de sobras que bem podemos acabar. Só comi uma maçã desde o café, e isso já foi há séculos.

Ela foi na frente para a cozinha, onde a mesa já estava cheia da comida que ela pegara antes. Os queijos já estavam em bom estado, o patê e a galinha tinham perdido o frio da geladeira e, enquanto Eric bebia um cálice do vinho branco, Fauve pôs a mesa e cortou tomates para uma salada.

- Nunca vi você tão doméstica - disse ele, sério.

- Você ainda não viu nada. Sou uma cozinheira dos diabos. Minha especialidade é Galinha à Páprica com bastante creme azedo.

- Creme azedo? O que é isso?

- Q'ème frafche, só que melhor - respondeu Fauve, que tinha pensado muito nesse problema gastronômico insolúvel e não achava estar cometendo nenhuma blasfêmia.

- Não sei por que, nunca imaginei você cozinhando.

- Se é que pensou em mim, afinal - murmurou ela, medindo o azeite.

- Isso não é justo! - ele quase gritou, largando o cálice.

- Ah, está bem. Peço desculpas. Golpe baixo. Vamos, o almoço está pronto.

Os dois comeram, com fome, quase calados. Fauve abaixou a cabeça e suas sobrancelhas formavam uma linha reta, alaranjada, enquanto ela se concentrava em não olhar para as mãos de Eric, nem os punhos que saíam das mangas do suéter, nem seu pescoço nem o rosto, especialmente o rosto.

- Você sabe - disse ela, afinal, num tom de voz pensativo, como quem faz um relatório. - Eu nunca diria que você é do tipo de pessoa que se esquece de uma promessa sagrada. Darcy prometeu uma estufa a Magali e voltou atrás, mas isso é diferente, posso entender isso. Era uma questão de cheques e saldos. Você, por outro lado, parecia muito sincero.

- De que diabo você está falando?

- Você prometeu me levar a Lunel, lembra-se? Eu sempre tive esperança de poder encontrar uma pista lá, um indício que me dissesse alguma coisa sobre a minha origem. Há quantos anos que você prometeu? Você ainda não fez isso e não parece ter a menor intenção de me levar lá - disse ela calmamente, impiedosamente omitindo qualquer tom de reprovação da voz.

- Diabos, Fauve, isso é demais! Você vai embora sem dar uma palavra, desaparece durante anos, reaparece em Roma por dois dias apenas, desaparece de novo, seis meses depois aparece do nada por causa de uma coisa que não tem nada a ver comigo, passa o tempo todo rodeada de advogados, negociantes, novos amigos, jornalistas e fotógrafos, agora já vai desaparecer de novo e tem a audácia incrível, assombrosa, de me acusar de não cumprir uma promessa!

- Você não nega que tenha prometido? - repetiu ela, com calma, com um sorriso doce e inocente que ignorava a explosão dele, como se nem a tivesse ouvido.

- Claro que prometi. Estou com os mapas no cano, para provar. Deus, mas você não presta mesmo! Lunel fica ao sul de Nimes e ao norte de Montpellier... um pouco adiante, saindo da estrada A-9. Se tomássemos o carro agora estaríamos lá em pouco mais de uma hora... tomando o atalho por Saint Rémy e Tarascon... não fica longe do mar, na beirada de Camargue, aliás, poucos quilômetros fora do mapa da Provença, é no Languedoc, propriamente dito.

- Você foi lá sem mim! - exclamou ela, acusando-o. - Claro que não. Nunca faria isso.

- Então, como é que tem tanta certeza de onde é? Eric, onde está a minha pêra?

- Pêra? Acabei de comê-la... desculpe, devia ter perguntado se você

queria a metade. O que é que há com você?

- Você comeu... você comeu... - Fauve guinchou, mal podendo articular as palavras -... o meu primeiro... tema!

- "Tema?" Era só uma pêra... juro, Fauve, que nunca fui nem perto de Lunel, mas queria saber exatamente onde ficava.. .

- Por quê? - perguntou ela, recuperando-se com dificuldade de seu acesso de riso.

- Só para o caso - disse ele - de você voltar e se lembrar de que queria ir lá.

- Há quanto tempo está com esses mapas no cano?

- Desde que você foi embora... quando tinha 16 anos. Quando eu trocava de carro, tirava os mapas do porta-luvas e punha no outro.

- Então acho que vou resolver perdoá-lo. Pelo menos, foi bem-intencionado, mesmo que demonstre uma lamentável falta de propósito. As boas intenções contam alguma coisa, imagino...

- Eu diria que isso é um bocado mais do que boas intenções.

- O que é que você diria que é? - Fauve apoiou-se nas mãos e olhou de frente para ele, por sobre a mesa da cozinha. - Diria que é sentimentalismo? Nostalgia? Um gesto romântico na direção de uma maneira de sentir de antigamente?

- Sua putinha!

- Ah? - Ela conseguiu levantar as sobrancelhas numa pergunta cortês, enquanto seu coração dava cambalhotas de júbilo.

- Não brinque assim comigo outra vez! Já se divertiu bastante em Roma, está lembrada? Fazer-me pensar que ainda me amava, me deixando perdidamente apaixonado por você, fugindo à última hora, provocante, sádica, sem coração... assim como está fazendo agora... não há palavras que exprimam o que eu penso de você.

Ele se levantou.

Fauve também se levantou e deu a volta à mesa, depressa, transfigurada, certa, tão certa, tão segura quanto se sentira no estúdio vazio, recebendo a vida.

Eric olhou para ela e o seu mundo foi recriado. O único amor de sua vida, o rosto ruborizado e pródigo com um amor que igualava o dele, estava-lhe estendendo os braços num gesto que abrangia todo o futuro deles, brilhante, inequívoco.

- Você está tentando dizer, a seu modo original, que ainda me ama? - perguntou Fauve, abraçando-o. - Está tentando pedir que eu me case com você? Porque, eu lhe aviso, estou disposta a correr todos os riscos, esta tarde. É o momento de me prender, se me quiser, estou-me sentindo espantosamente ousada, estou voando alto.

- Nunca houve um segundo em que eu não a quisesse... eu pensava que você não me queria... - murmurou ele, olhando para o mistério dos olhos dela e indo até ao fundo. - Mas - acrescentou Eric, de repente perturbado - não me quero aproveitar do seu estado de espírito... você me fez passar um mau pedaço... e se mudar de idéia amanhã?

- Eric, não é um estado de espírito. Nunca nada foi menos isso. Eu só estava implicando com você, não pude evitar, tive de deixar você furioso para alcançá-lo. Todos esses anos, eu queria me casar com você... lembra-se do seu sonho de fugirmos juntos para nos casarmos, quando eu tinha 16 anos? Eu também tive esse sonho, vezes e mais vezes, mas tinha medo de confessar, porque sabia o que teria de significar, aonde teria de nos levar. Nunca tive um coração inconstante, mas tive uma falta de fé.. ah, não em você, mas na possibilidade da confiança absoluta... isso passou agora. Há duas coisas que espero da vida, e nenhuma delas será certa sem a outra. Quero ser sua mulher e quero tentar pintar...

- Pintar? Como é que isso aconteceu? Quando... não, não importa... conte depois... é perfeito... eu sempre soube que você tinha de voltar a isso. - Você moraria aqui, em La Tourrello, Eric?

- Esta casa estava à nossa espera, você não sabia disso?

- Sou um pouco lenta... mas sim, agora eu sei.

Ele traçou os lábios dela com o dedo, sentindo seu coração batendo contra o dele.

- Você ainda quer ir a Lunel? Não quero deixar de cumprir aquela promessa - disse ele, sério.

- Agora não, hoje não - respondeu ela.

- Não quer ver por si?

- Não estou com pressa - disse Fauve, pensativa. - Parece que não me é mais necessário. Mas Eric, gostaria de ir de cano... não é longe na estrada tenho de comprar outra pêra.

 

 

                                                                  Judith Krantz

 

 

                      

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