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Painel da vida do povo russo no século XVIII e da revolta popular que quase abalou o trono imperial de Catarina, a Grande, A filha do capitão é uma obra em que a genialidade do escritor transforma fatos históricos em vívida ficção.
Capítulo 1
O Sargento da Guarda
Andrei Pietróvitch Griniov, meu pai, serviu, quando jovem, sob o comando do Conde Minikh e se reformou como major em mil setecentos e tantos. Desde aí, viveu em sua aldeia, na província de Simbirsk, onde se casou com Avdótia Vassilievna, filha de um empobrecido nobre da região. Éramos nove irmãos, entre meninos e meninas, porém todos os outros morreram muito crianças. Eu fui alistado como sargento no Regimento Semionovski, por gentileza do major da Guarda, o Príncipe B., que era nosso parente chegado, mas gozando de licença até acabar os meus estudos.
Naquele tempo a educação não era como nos nossos dias e, com cinco anos, fui entregue aos cuidados do servo Saviélitch que, por sua excelente conduta, foi designado meu preceptor. Graças à sua devoção, aos onze anos já sabia ler e escrever corretamente o russo, bem assim como reconhecer as qualidades de um bom galgo. E, então, para aprimorar os meus conhecimentos, meu pai contratou os serviços de um francês — Monsieur1 Beaupré —, que veio de Moscou juntamente com o estoque anual de vinho e azeite de oliveira.
Tal decisão feriu profundamente Saviélitch, que resmungava: — Acho que o menino está perfeitamente limpo, penteado e alimentado. Por que razão fazer uma despesa inútil? Dá até impressão de que não há gente aqui capaz de tomar conta dele.
Beaupré havia sido cabeleireiro em seu país natal, depois fora soldado na Prússia e viera para a Rússia para “ser professor”, conquanto não soubesse bem o que fosse ensinar.
Era uma boa alma, mas extremamente desorientada. Seu ponto mais fraco era a queda pelas mulheres, que lhe valia frequentes sovas, e por conta das quais ficava de corpo moído, gemendo um bom par de dias.
Como se não bastasse, tinha forte inclinação para a bebida; segundo as suas próprias palavras, “não era inimigo da garrafa”, o que equivalia a dizer que gostava de abusar dela.
Mas, como o vinho era servido muito racionadamente em nossa casa — um cálice ao jantar e nada além — e a ração do meu Beaupré era costumeiramente esquecida, não teve ele outro remédio senão se habituar aos licores caseiros russos, o que, aliás, rapidamente aconteceu, e chegando mesmo à conclusão de que eram mais saudáveis para a digestão do que os vinhos pátrios.
Prontamente nos entendemos e, embora ele tivesse a obrigação de me ensinar francês, alemão e quantas matérias pudesse, achou melhor aprender comigo a conversar mais fluentemente em russo, e o resto cada um fazia como bem queria. Assim sendo, vivíamos às mil maravilhas, e não poderia desejar eu outro mentor. Infelizmente o destino depressa nos separou, e a razão foi a seguinte: a lavadeira Palachka, gordota e bexigosa, e Akukha, moça zarolha e que cuidava das vacas, caíram um dia aos pés de minha mãe, queixando-se, entre lágrimas, de que o francês as importunava com os seus impulsos amorosos. Mamãe era intransigente em questões de moralidade e fez pronta queixa a meu pai, que mandou logo chamar o namorador à sua presença.
Informaram-lhe que monsieur estava dando-me aula. Papai marchou para o meu quarto. Foi encontrar o professor espichado na cama, dormindo a sono solto. Eu me ocupava em importante trabalho. É que haviam mandado buscar para mim em Moscou um bonito mapa, que fora pendurado na parede, sem nenhum préstimo até então, e que eu andava namorando pela excelência e tamanho do papel, pretendendo fazer dele um papagaio.
Exatamente naquele dia, aproveitando o sono de Beaupré, resolvera pôr mãos à obra. E, quando colocava um rabo de pano no cabo da Boa Esperança, eis que papai entra. Vendo o meu exercício de geografia, deu-me um tremendo puxão de orelha, atirou-se sobre o professor, acordou-o com um resoluto safanão e passou-lhe uma descompostura em regra.
Claro que Beaupré tentou levantar-se. Foi impossível — o pobre coitado estava inteiramente bêbado. Meu pai suspendeu-o pela gola, empurrou-o pela porta a fora e no mesmo dia expulsou-o de casa, para indescritível júbilo de Saviélitch. E de tal maneira terminou a minha educação.
Passei a levar uma vida muito comum entre os meninos da aristocracia — descuidada, caçando pombos, pulando carniça, inventando travessuras com a molecada da herdade. Mas, ao fazer dezesseis anos, as coisas mudaram.
Foi em certo dia do outono na sala de jantar. Mamãe preparava um doce de mel e eu, lambendo os beiços, observava a espuma que fervia na panela. Papai, junto à janela, lia o Calendário da Corte, que ele recebia todos os anos e cuja atenta leitura provocava nele sempre uma singular reação biliosa. Minha mãe, que não ignorava os menores hábitos e enervamentos do marido, procurava por todas as maneiras esconder a perturbadora publicação, e assim o Calendário da Corte, depois de chegado, passava meses sem cair sob os olhos de papai. Mas, quando por acaso o encontrava, mergulhava nele horas a fio, de vez era quando sacudindo a cabeça ou os ombros e rosnando surdamente: “Tenente-coronel... Vejam só! Ele, que na minha companhia não passava de sargento! Condecorado com as duas ordens russas! Quem poderia imaginar!”
O mesmo sucedeu naquele dia, e, após atirar o Calendário da Corte sobre o divã, engolfou-se num profundo meditar que não augurava nada de bom.
De repente, virou-se e perguntou à minha mãe: — Avdótia Vassilievna, quantos anos tem Petruchka?
— Acaba de completar dezesseis — respondeu ela. — Petruchka nasceu no mesmo ano em que a tia Nastácia Guerassimovna sofreu o acidente em que...
— Muito bem — interrompeu-a meu pai. — Pois então já é tempo de mandá-lo para o serviço militar. Chega de andar em estripulias.
A ideia de uma próxima separação do filho, tão subitamente lembrada, feriu de tal forma minha mãe que ela deixou a colher cair dentro da panela e as lágrimas escorreram-lhe imediatamente pelo rosto. Entretanto, é difícil descrever o entusiasmo de que fui tomado. A noção do serviço militar estava em mim intimamente ligada à da liberdade e dos prazeres da vida em São Petersburgo. E eu já me imaginava oficial da Guarda, posição que achava ser o ponto supremo da felicidade humana.
Papai não era homem de alterar ou adiar as suas decisões. O dia da minha partida foi marcado.
Na véspera, disse ele que eu seria portador de uma carta para o meu futuro comandante e requisitou caneta e papel.
— Não se esqueça, Andrei Pietróvitch, de mandar meus cumprimentos ao Príncipe B. — disse minha mãe. — Espero que Petruchka continue a merecer a sua proteção.
— Que lembrança mais boba! — retrucou papai. — Por que cargas-d’água iria escrever ao Príncipe B.?
— Mas você não disse que ia escrever ao comandante de Petruchka?
— Precisamente.
— Ora, Petruchka está alistado no Regimento Semionovski e o comandante do Regimento Semionovski é o Príncipe B....
— Alistado! Que me importa que ele esteja alistado? Petruchka não vai para São Petersburgo. O que é que poderá aprender servindo lá? Esbanjar dinheiro e fazer doidices? De maneira nenhuma! Vai é para o exército. Carregará mochila, sentirá o cheiro da pólvora. Será um verdadeiro soldado e não um malandro da Guarda! Onde você meteu o passaporte dele? Trate de encontrar.
Minha mãe foi buscar o passaporte, que guardava numa caixa de madeira, junto com a camisinha com que eu fora batizado, e o entregou a meu pai com a mão tremendo.
Papai leu o documento com a maior atenção, colocou-o depois sobre a mesa e começou a escrever a carta.
A curiosidade me torturava. Se não era para São Petersburgo, para onde me iriam mandar? De longe, acompanhava atentamente a mão de meu pai, que escrevia muito devagar.
Por fim ele terminou a missiva, meteu-a no envelope juntamente com o passaporte, lacrou-o, tirou os óculos e me chamou: — Aqui tem você uma carta para meu velho amigo e camarada Andrei Karlovitch, sob as ordens de quem irá servir em Orienburg.
E assim todas as minhas brilhantes esperanças ruíram por terra. Em vez da divertida vida em São Petersburgo, aguardava-me o tédio dum lugar deserto e remoto. O serviço militar, que um instante apenas atrás despertava em mim tão grande entusiasmo, se apresentava agora como uma terrível calamidade. Mas discutir a questão estava fora de cogitação! Na manhã do dia imediato, um trenó me esperava à porta de casa. Nele depositaram a minha mala, uma caixa com o serviço de chá e embrulhos de bolos e doces, últimas demonstrações dos mimos caseiros.
Deram-me a bênção e meu pai falou: — Adeus, Piotr. Sirva fielmente a quem prestar juramento. Obedeça aos superiores. Não fuja das obrigações. E não se esqueça do provérbio: “Cuide da sua roupa nova e da sua honra enquanto é jovem”.
Derramada em lágrimas, mamãe recomendava que eu tomasse cuidado com a saúde e que Saviélitch velasse bem por mim.
Vestiram-me um capote de pele de lebre e, por cima, uma peliça de raposa. Acomodei-me no trenó com Saviélitch e parti, os olhos inundados de lágrimas.
Cheguei a Simbirsk na mesma noite.
Devia passar um dia ali comprando coisas que me faltavam, tarefa de que Saviélitch foi encarregado.
Permaneci na hospedaria enquanto ele varejava as lojas. Cansado de olhar pela janela o imundo beco, fui perambular pelas dependências da casa. No bilhar dei com um cavalheiro alto, de uns trinta e cinco anos, bigodes grandes e negros, enfiado num roupão; empunhava um taco e mordia o cachimbo. Disputava uma partida com o empregado do bilhar, que, se ganhava, embutia um copinho de vodca e, se perdia, passava de gatinhas sob a mesa de jogo. Pus-me a apreciar a partida. Quanto mais se prolongava, mais frequentes eram as passagens por baixo da mesa, até que o rapaz ficou definitivamente debaixo dela. O cavalheiro, então, com a maior gravidade, rezou umas palavras fúnebres, como se estivesse num enterro, e me desafiou para uma partida. Como não soubesse jogar, recusei, e a recusa muito o surpreendeu. Olhou-me com evidente piedade, mas imediatamente entabulou conversa. Fiquei informado de que se chamava Ivan Ivánovitch Zúrin e era capitão do Regimento de Hussardos, sediado em X; viera a Simbirsk para presidir o recrutamento e estava alojado na hospedaria. Convidou-me para jantar, “contentando-se com o que houvesse, como um bom soldado”, e aceitei prazerosamente. Abancamo-nos à mesa. Zúrin bebeu a valer e estava sempre enchendo meu copo, afirmando que eu precisava ir-me acostumando com o serviço militar. Contou várias anedotas de caserna, que quase me mataram de riso, e quando nos levantamos da mesa éramos como velhos amigos. Aí, ele se prontificou a me ministrar uma lição de bilhar: — Saber este jogo é verdadeiramente indispensável para um soldado. A gente chega, por exemplo, a uma aldeia, depois duma boa marcha. Que é que vai fazer? Surrar judeus nem sempre é possível. Instintivamente ruma-se para a hospedaria e começa-se a jogar bilhar. . . Mas, para tanto, é necessário saber pegar num taco!
Eu estava plenamente de acordo com o que ele acabava de expor e, com a máxima aplicação, comecei a aprendizagem. Zúrin me animava com frequentes exclamações e aplaudia ruidosamente os meus rápidos progressos. Depois de alguns ensinamentos, propôs jogarmos uma partida a dinheiro, dois copeques2 apenas — uma insignificância! —, mas para não jogarmos “a leite de pato”, o que, segundo afirmava, era o pior dos hábitos.
Aceitei prontamente e o parceiro mandou vir ponche, convencendo-me a prová-lo, repetindo-me que era urgente ir-me acostumando com o serviço militar, pois sem ponche ninguém podia falar em serviço militar!
Experimentei a bebida. E o jogo prosseguia.
Quanto mais goles tomava, mais ousado me sentia. A todo instante as bolas pulavam da mesa para o chão. Nervoso, discutia com o empregado que marcava os pontos, sabe Deus de que maneira, e aumentava o valor das apostas. Em suma, eu me portava como um menino que se sente pela primeira vez em liberdade.
O tempo passou sem que eu desse conta.
A voltas tantas, Zúrin consultou o relógio, encostou o taco na parede e me declarou que eu havia perdido cem rublos. Fiquei um pouco perturbado e, como meu dinheiro estivesse com Saviélitch, comecei a pedir desculpas. Mas Zúrin me interrompeu: — Não tem importância! Não precisa desculpar-se. Eu posso esperar perfeitamente.
Mas, para matar o tempo, vamos à casa de Arinuchka.
Que fazer? E o dia terminou tão levianamente quanto começara. Ceamos em casa de Arinuchka. Zúrin não se cansava de encher o meu copo, insistindo que me devia familiarizar com o serviço militar. Ao me levantar da mesa, mal podia ficar em pé. Era meia-noite quando Zúrin me conduziu de volta à hospedaria.
Saviélitch estava na porta nos esperando.
Mostrou-se contristado ao constatar os inequívocos sinais do meu amor ao serviço militar.
— O que é que aconteceu com o senhor? — perguntou com voz gemente. — Onde se foi embebedar de tal maneira? Meu Deus, nunca vi pecado igual!
— Cale a boca,velho idiota! — respondi tontamente. — Você é que está bêbado! Vá dormir e não me amole!
No outro dia despertei com uma dor de cabeça feroz, recordando muito confusamente o que me acontecera. Saviélitch interrompeu meus pensamentos, trazendo-me uma xícara de chá:
— Piotr Andreitch, o senhor está começando a beber demasiado cedo — disse balançando desaprovadoramente a cabeça. — A quem saiu o senhor? Que eu saiba não há bêbados na família de seu pai. Sua mãe, ninguém mais do que eu pode afirmar, nunca levou uma bebida à boca! E quem é culpado de tudo? Aquele maldito monsieur! A cada minuto vinha correndo para pedir a Antipoevna: “Madame je vous prie vodca!”3 Aqui temos o resultado do ”je vous prie!” O miserável educou o senhor muito bem! Precisava-se mesmo contratar semelhante traste como professor! Como se o patrão não tivesse a sua própria gente!
Eu estava muitíssimo encabulado. Virei a cabeça para a parede e disse: — Vá embora, Saviélitch. Não quero chá.
Era, porém, quase impossível fazer Saviélitch calar, quando ele encetava um sermão:
— Está vendo só, Piotr Andreitch, o que acontece quando a gente se mete em patuscadas? A cabeça fica pesada como chumbo, o apetite desaparece. Homem que bebe não serve para coisa nenhuma, meu filho. Beba um pouco de salmoura de pepinos misturada com mel, ou melhor, beba um cálice de licor. Para quebrar a maldade da bebedeira é muito bom. Não quer?
No exato momento, entrou um rapazinho trazendo um bilhete de Zúrin. Abri-o e li as breves linhas:
Estimado Piotr Andreitch: Rogo o favor de enviar pelo portador os cem rublos que perdeu ontem para mim. Estou precisando muito do dinheiro. Às suas ordens, Ivan Zúrin.
Não tinha outra saída. Pus no rosto uma expressão de indiferença e, dirigindo-me a Saviélitch, que era o zelador do meu dinheiro, da minha roupa e dos meus negócios, ordenei que entregasse os cem rublos ao rapazinho.
— Que me diz? Por que vou fazê-lo? — perguntou Saviélitch tomado da maior surpresa.
— É que estou devendo — respondi com a mais forçada tranquilidade.
— Está devendo?! — retrucou Saviélitch com crescente surpresa. — Mas como pode estar devendo? Quando contraiu tal dívida? Tudo isto não me está cheirando bem! Pode fazer o que quiser, meu senhor, mas o dinheiro é que eu não entregarei.
Rapidamente raciocinei que, se naquele momento decisivo não impusesse a minha vontade, mais tarde dificilmente conseguiria livrar-me daquela teimosa tutelagem. Fitando-o com arrogância, determinei: — Eu sou o senhor e você é meu servo. O dinheiro me pertence. Perdi no jogo e não tenho de lhe dar satisfações. Aconselho-o a que não se meta a resolver os meus assuntos.
Ponha-se no seu lugar.
Saviélitch ficou tão perplexo com as minhas palavras que parecia paralisado.
— Por que fica parado aí? — berrei zangado.
Saviélitch rompeu em pranto: — Meu patrãozinho Piotr Andreitch, não me mate de desgosto! Ouça o conselho de um pobre velho. Escreva a esse ladrão vagabundo dizendo que estava brincando e que não temos tão grande importância. Cem rublos! Meu Deus do céu! Escreva dizendo que seus pais o proibiram severamente de jogar, a não ser “a leite de pato”...
— Chega de mentiras — cortei-o com rudeza.
— Passe já para cá os cem rublos, do contrário vou expulsá-lo, daqui a pontapés.
Ele me olhou com profunda tristeza e foi buscar o dinheiro. Tive muita pena do pobre velho, mas queria libertar-me e provar que já não era uma criança.
Satisfeita a dívida, Saviélitch apressou-se em me tirar daquela maldita hospedaria.
Poucos minutos após veio prevenir-me que o trenó estava pronto. Deixei Simbirski com a consciência intranquila e um mudo arrependimento. Não me despedi do meu professor de bilhar, e esperava nunca mais encontrá-lo.
Capítulo 2
O Guia
Não foram nada agradáveis as minhas reflexões pelo caminho. Os cem rublos perdidos constituíam uma considerável quantia naquele tempo. Não podia negar a mim mesmo que meu procedimento naquela hospedaria fora da mais absoluta parvoíce e me sentia culpado perante Saviélitch. E tais coisas me afligiam. Sentado na frente, o velho mantinha-se calado e sombrio, mas de vez em quando virava-se para mim e deixava escapar um fundo suspiro. Eu queria ardentemente voltar e ficar de bem com ele, porém não sabia como começar. Afinal, decidi-me: — Olhe cá, Saviélitch, chega de cara amuada!
Vamos fazer as pazes. Reconheço que procedi muito mal. Fiz ontem uma porção de burrices e ofendi você sem nenhuma razão. Juro que irei comportar-me decentemente no futuro e não deixarei de obedecer-lhe. Nada de emburramentos mais. Vamos ficar de bem!
Saviélitch deu um outro fundo suspiro: — Ah, patrãozinho Piotr Andreitch! Eu estou zangado, mas é comigo mesmo. Só eu tive a culpa de tudo! Como cometi a insensatez de deixá-lo sozinho naquele antro? Foi o diabo que me tentou! Quis ir visitar a mulher do diácono, que é minha comadre. Lá me prenderam o quanto puderam, e, quando voltei, a desgraça estava armada! Com que cara me apresentarei aos meus amos? Que ideia vão fazer de mim ao saberem que o patrãozinho andou bebendo e jogando?
Para acalmar o pobre Saviélitch, dei a minha palavra de honra que jamais disporia de um níquel sequer sem antes consultá-lo. Pouco a pouco ele foi sossegando, conquanto às vezes ainda resmungasse e balançasse a cabeça: — Cem rublos! Como se cem rublos fossem uma ninharia!
Estávamos perto do lugar que me haviam destinado. Em volta, estendiam-se tristes desertos, marcados por colinas e ravinas. A neve cobria tudo e o sol descaía. O trenó ia por uma estrada estreita, melhor dito, pelo sulco deixado pelos trenós dos camponeses. Súbito, o cocheiro entrou a olhar para um lado e para outro e, como se desse por satisfeito, tirou o gorro e perguntou:
— Não me manda voltar, meu patrão?
— Por que razão?
— O tempo está feio. O vento principia a ficar mais forte. Não vê os redemoinhos que faz na neve?
— Mas o que é que tem isso?
— Está vendo aquilo lá? — e apontava o chicote na direção do leste.
— Só estou vendo a estepe branca e o céu bem claro. Nada mais.
— Preste atenção ali. É uma nuvenzinha.
Na verdade havia uma pequena nuvem branca no extremo do céu e que eu tomara antes por uma colina longínqua. E o cocheiro me esclareceu que aquela nuvenzinha anunciava uma tempestade de neve.
Eu já ouvira falar das tempestades de neve que costumam cair naquela região, cobrindo comboios inteiros.
Saviélitch concordava com o cocheiro — o mais prudente era voltar. O vento, porém, não me parecia exagerado, e, como nutrisse a esperança de alcançar a tempo a próxima estação de posta, mandei tocar os cavalos mais depressa.
O cocheiro obedeceu e fez os animais galoparem, mas, aqui e ali, dava uma olhada para as bandas do leste. Os cavalos mantinham um bom ritmo. O vento soprava cada vez com mais força e a pequena nuvem se transformava numa nuvem branca e pesada, que crescia sempre e em pouco acabou por cobrir todo o céu. A neve começou a cair, muito fina, para depois tombar em grandes flocos. O vento passou a uivar. Era a tempestade que se desencadeava. Num átimo o céu escuro se confundiu com a terra nevada e tudo desapareceu.
— É o que eu estava vendo, patrão — gritou o cocheiro.
— Uma tormenta dos diabos!
O vento rugia, os turbilhões de neve se levantavam. Saviélitch e eu estávamos cobertos de neve. Os cavalos iam passo a passo, penosamente, e pouco depois pararam.
— Por que não andamos? — perguntei, impaciente, ao cocheiro.
— Mas de que modo, meu patrão? — respondeu descendo da boleia. — Nem sabemos onde estamos. Não se vê a estrada. Está tudo negro como breu.
Quis repreendê-lo, mas Saviélitch defendeu-o com azedume: — Por que não deu crédito ao que ele disse? Podíamos ter voltado para a estação de posta, o senhor tomaria o seu chá tranquilamente, dormiria lá e prosseguiríamos nosso caminho quando o tempo abrandasse. Para que tanta pressa? Não vamos tirar o pai da forca!
Saviélitch era razoável — não se podia fazer nada. A neve não parava de cair e perto do trenó já havia um considerável monte. Os cavalos tinham a cabeça baixa e estremeciam de vez em quando. O cocheiro dava voltas em redor do trenó e, para não ficar de mãos abanando, fazia uma vistoria nos arreios.
Saviélitch dava seus resmungos e eu punha os olhos em torno na tentativa de distinguir algum sinal de casa próxima ou de estrada, mas nada via além do intenso redemoinho da neve. Eis que, de súbito, percebi uma mancha escura e gritei:
— Olá, cocheiro! Que coisa escura pode ser aquilo lá?
Ele fixou bem os olhos para o ponto indicado e, sentando-se na boleia, respondeu: — Só Deus pode saber, patrão! Trenó posso garantir que não é. Nem árvore, pois está mexendo-se. Acho que deve ser um lobo ou um homem.
Mandei que ele tocasse o trenó na direção do indefinido objeto, que imediatamente começou a avançar ao nosso encontro. Dois minutos depois, alcançávamos um homem. E o cocheiro perguntou-lhe aos gritos: — Olá, meu amigo! Pode dizer-me onde fica a estrada?
— É exatamente aqui. Estou pisando nela — respondeu o homem. — Mas que nos adianta saber?
— Olhe cá, mujique4 — tomei eu a palavra. — Você conhece bem este lugar? Não seria possível conduzir-nos a algum pouso, onde pudéssemos passar a noite?
— Graças a Deus conheço esta região como a palma da minha mão — respondeu o homem.
— Já percorri-a toda centenas de vezes. A pé e a cavalo. Mas, com um tempo assim, nada se pode fazer. Arriscamo-nos a perder facilmente a estrada. O melhor é ficarmos parados aqui, esperando que a nevasca amaine e o céu se limpe. Talvez não demore muito. Então, nos guiaremos pelas estrelas.
A serenidade dele me acalmou. E já estava conformado em entregar tudo a Deus e passar a noite em plena estepe, quando o viajante, pulando rapidamente para a boleia, gritou para o cocheiro: — Graças a Deus há uma casa ali pertinho! Vamos, vire para a direita e toque em frente.
O cocheiro não se mostrou satisfeito: — Por que para o lado direito? Onde é que você viu a estrada? É muito fácil você mandar tocar, quando os cavalos e o trenó não lhe pertencem... Não tem nada a perder...
Achei que o cocheiro tinha razão e o aprovei: — É isso mesmo. Por que nos diz que há uma casa ali perto?
— Quando o vento soprou daquele lado, eu senti um cheiro de fumaça. Logo ali há uma aldeia. . .
A sua lógica e o seu faro causaram-me admiração. Mandei que o cocheiro tocasse o trenó. Os cavalos venciam com dificuldade a densa neve e lentamente o trenó avançava, ora galgando um monte de neve, ora escorregando para o fundo de um barranco, tombando para um lado e para outro, como um barco singrando um mar revolto. Saviélitch gemia, caindo sobre mim a cada instante. Enrolei-me bem na peliça e comecei a dormitar, embalado pela voz da ventania e pelo sacudir do veículo.
Tive, então, um sonho que jamais esqueci e no qual encontro alguma coisa de profético sempre que o recordo e peso os estranhos acontecimentos que me sucederam na vida. O leitor me perdoará, pois, com toda a certeza, sabe por experiência própria como o homem se entrega facilmente à superstição, embora se esforce para desprezá-la. O estado de alma em que me encontrava, antes de adormecer, facilitava que transferisse confusamente para o sonho a realidade vivida. Parecia que a borrasca continuava terrível e que vagávamos pelo deserto de neve... De súbito, apareceu o portão da nossa casa e o trenó entrou no pátio.
O primeiro pensamento que me veio foi o do temor de que papai ficasse zangado comigo pelo involuntário regresso, supondo que eu praticasse uma desobediência. Inquieto, saltei do trenó e vi mamãe me esperando na porta, com um ar de extrema aflição.
— Silêncio — disse-me ela. — Seu pai está moribundo e quer despedir-se de você...
Profundamente chocado, fui atrás dela para o quarto de dormir. O cômodo estava fracamente iluminado e, em volta da cama, havia algumas pessoas com a tristeza estampada no rosto. Aproximei-me na ponta dos pés. Mamãe levantou o cortinado e sussurrou:
— Andrei Pietróvitch, Petruchka está aqui. Veio saber do seu estado. Dê-lhe a bênção.
Ajoelhei-me e levantei os olhos para o enfermo. Mas que vi eu? Não meu pai, mas um mujique de barba negra, que me olhou risonhamente. Espantado, virei-me para minha mãe: — Não compreendo! Este homem não é o meu pai! Por que razão tenho de receber a bênção de um mujique?
E mamãe respondeu: — É a mesma coisa, Petruchka. Ele é o seu padrinho de casamento. Beije-lhe a mão e deixe que ele o abençoe.
Não admiti. Então o mujique deu um pulo da cama e, empunhando um machado que trazia escondido nas costas, brandiu-o em todas as direções. Tentei escapar, mas não consegui. O quarto se atulhara de cadáveres e neles eu tropeçava ou escorregava nas poças de sangue. O terrível mujique me chamava afetuosamente:
— Não tenha medo. Venha receber a minha bênção.
O horror e o pânico tomaram conta de mim... Mas, naquele momento, despertei. Os cavalos estavam parados e Saviélitch me sacudia o braço:
— Vamos descer, senhor. Chegamos!
— Chegamos aonde? — perguntei, estremunhado.
— A uma estalagem. Deus nos valeu! Quase que íamos de encontro ao muro. Rápido, patrãozinho! Uma boa lareira nos espera!
Baixei do trenó. A borrasca não parará, mas atenuara. Estava tão escuro que nada se podia distinguir. O estalajadeiro nos recebeu no portão. Portava uma lanterna, protegida pela aba do capote. Fui levado para um pequeno cômodo bastante limpo, que uma modesta lareira alumiava. Na parede se achavam pendurados uma espingarda e um gorro cossaco.
O estalajadeiro era um cossaco que ia pelos sessenta anos, mas ainda se mostrava forte e lépido. Saviélitch veio atrás de mim, trazendo a minha caixa com serviço de chá, e solicitou logo fogo para fazer a bebida, que jamais me pareceu tão necessária. O estalajadeiro, incontinenti, foi tratar do assunto.
— Onde se meteu o nosso guia? — perguntei a Saviélitch.
— Aqui estou, Vossa Senhoria — respondeu-me uma voz vinda de cima.
Levantei o olhar para o sótão e lá encontrei uma barba negra e dois olhos brilhantíssimos.
— Que é que há, meu velho? Está com muito frio? — perguntei jovialmente.
— Um bocado! Mas com o capotezinho que trago não podia ser menos. Na verdade eu tinha uma boa peliça de carneiro, mas empenhei-a ontem a um taverneiro. Confesso meu erro. . . Mas quem imaginaria que hoje ia fazer um tempo tão desgraçado?
Naquele momento, o estalajadeiro chegava com o samovar fumegando. Ofereci ao nosso guia uma xícara de chá e ele desceu do sótão. O aspecto daquele mujique me pareceu admirável: tinha uns quarenta anos, estatura mediana, magro e espadaúdo. Na barba apontavam alguns fios prateados. Os olhos eram vivazes e inquietos. A fisionomia era extremamente simpática, mas com um toque de velhacaria. O cabelo tinha um corte circular. Usava um capote em trapos e largas calças de tártaro. Bebeu um gole do chá e fez uma careta:
— Vossa Senhoria me podia fazer um favor.
Mande que me sirvam um copo de vinho. Chá não é bebida de cossaco...
Com o maior prazer atendi ao pedido. O estalajadeiro, tirando do armário uma garrafa e um copo, dirigiu-se ao mujique e, encarando-o bem, disse:
— Mas você outra vez por aqui? De onde vem agora?
O improvisado guia deu uma piscadela muito significativa e meteu na resposta um ditado popular:
— “Pela horta dei uma voada e no cânhamo uma bicada; a vovó uma pedra me jogou, mas nem de leve me acertou...” Muito bem, como vocês vão por aqui?
O estalajadeiro retrucou no mesmo tom: — Os daqui? “Íamos tocar o sino para a novena, mas a criada do padre entrou em cena. Quando o padre vai passear, os diabos invadem o lugar...”
— Não diga mais nada, homem! — acrescentou logo o meu vagabundo. — “Se chover, teremos cogumelos, e, se tivermos cogumelos, teremos com que levá-los.” — Deu outra piscadela: — “Agora guarda o machado atrás das cestas, pois o guarda-florestal vem por aí...” — E virando-se para mim: — À saúde de Vossa Senhoria!
Tomou o copo, persignou-se e emborcou o vinho de uma só vez. Fez depois uma reverência à minha pessoa e retornou ao sótão.
Na ocasião não entendi patavina daquele diálogo de ladrões, porém, mais tarde, deduzi relacionar-se com o exército de laizk, que acabava de se render às tropas imperiais na reprimida revolta dos cossacos em 1772.
Saviélitch ouvia a conversa com indisfarçável desagrado. Desconfiado, olhava ora para o estalajadeiro, ora para o guia. A estalagem ficava situada no meio da estepe, distante de qualquer aldeia, e tudo denunciava ser um refúgio de bandoleiros. Mas não podíamos fazer nada. Em continuar a viagem nem se podia pensar, e eu achava engraçada a inquietação de Saviélitch. Apesar da insegura atmosfera, resolvi acomodar-me para varar a noite e me deitei num banco. Saviélitch escolheu seu pouso ao lado da lareira. O estalajadeiro esticou-se no chão. Depressa, toda a isbá roncava e eu dormi como um justo.
Ao acordar de manhã, e já era bastante tarde, verifiquei que a borrasca passara. O sol brilhava e a neve, como um manto de imaculada alvura, forrava a infinita estepe. Os cavalos estavam atrelados. Paguei a hospedagem ao estalajadeiro e o preço foi tão pouco que Saviélitch nem pensou em regatear, como era do seu costume, e até varreu da cabeça as suspeitas da véspera. Chamei o guia, agradeci muito a ajuda que nos prestara e mandei Saviélitch dar a ele uma gorjeta de meio rublo. O velho servo franziu a cara: — Meio rublo de gorjeta?! Mas por quê? Não foi o senhor quem o trouxe até a estalagem? Ora, pode fazer o que quiser, meu senhor, mas tomo a liberdade de lembrar que não temos tantos meios rublos sobrando como certamente imagina. Se formos dar gorjetas a três por dois, bem depressa passaremos fome!
Estava-me vedado discutir com Saviélitch. Conforme minha promessa, no dinheiro era ele que mandava. Mas estava contrariado por não poder gratificar o homem que me tirara duma situação tão embaraçosa.
E calmamente falei: — Está certo. Se não quer dar dinheiro, não dê. Mas ofereça-lhe ao menos um agasalho, que ele bem precisa. Meu capote de pele dê lebre está a calhar.
— O senhor está sonhando, Piotr Andreitch! Para que ele precisa de um capote tão bom? Vai vendê-lo na primeira taverna para beber.
— Você não tem nada com isso, velhinho — disse o guia. — Vossa Senhoria quer presentear-me e está acabado! É a vontade do senhor, e você, que é um servo, o que tem a fazer é obedecer sem discussões.
— Não tem medo de Deus, bandido? — e Saviélitch se irritou. — Está vendo que o menino ainda não tem experiência das coisas e quer aproveitar-se da sua inocência! Para que você precisa de um capote de tal qualidade?
Nem o poderia vestir com o corpo que tem!
— Não se meta no assunto — falei severamente ao relutante servidor. — Vá apanhar o capote e pronto!
— Santo Deus! — gemeu Saviélitch. — Um capote novo em folha! E a quem vai dá-lo? A um bêbado vagabundo!
Mas o capote apareceu e o mujique logo o envergou. Na verdade, o capote, que assentava em mim como uma luva, era justo demais para o homem. Mesmo assim ele conseguiu vesti-lo e, ao forçar, arrebentou algumas costuras.
Saviélitch quase chorou ao ouvir as linhas se romperem.
O vagabundo mostrava-se encantado com o presente. Acompanhou-me ao trenó e despediu-se com uma grande mesura:
— Muito obrigado a Vossa Senhoria! Que Deus recompense tanta bondade. Jamais esquecerei, jamais!
E tomou seu caminho, enquanto eu tomava o meu sem dar atenção à cara trombuda de Saviélitch. Dentro em pouco já não me lembrava mais da tormenta da véspera, do meu improvisado guia e do meu capote de pele de lebre.
Chegando a Orienburg, apresentei-me imediatamente ao meu comandante. O general era um homem de elevada estatura, mas já um pouco curvado pelos anos. Tinha os cabelos compridos e inteiramente brancos. A velha farda desbotada fazia lembrar um guerreiro do tempo da Imperatriz Ana Ivánovna. Falava com um sotaque de alemão.
Entreguei-lhe a carta de meu pai. Ao ouvir meu nome, lançou-me um rápido olhar: — Santo Deus! — exclamou. — Não faz muito tempo e Andrei Pietróvitch era da sua idade.
Agora já tem um filho deste tamanho! Ah, o tempo, o tempo!
Abriu a carta e começou a lê-la em voz baixa, entremeando a leitura com alguns comentários:
— “Caro Amigo Senhor Andrei Karlovitch: Espero que Vossa Excelência...” Mas que cerimônia é essa? Ele não tem vergonha? Bem, compreende-se... Em primeiro lugar, a disciplina... Mas, mesmo assim, não é dessa forma que se escreve a um antigo camarada... “Vossa Excelência não se olvidou...” Hum... “e quando... o falecido Marechal-de-Campo Min... a campanha... também Carolina...” Eh, irmão! Então ele ainda se lembra das nossas velhas diabruras!... ”E passo ao assunto... apresento-lhe o meu peralta...” Hum... “mantê-lo de rédeas curtas...” Que coisa é rédeas curtas? Certamente deve ser um provérbio russo... Que é mantê-lo de rédeas curtas? — repetiu, dirigindo-se a mim.
— Quer dizer — respondi com o ar mais ingênuo — que deve tratar alguém com muito carinho, sem severidades... dando bastante liberdade... É o que quer dizer “mantê-lo de rédeas curtas”.
— Hum, sim... “e não lhe dar muita liberdade...” Não, acho que rédeas curtas tem outro sentido... “Anexo vai o passaporte...” Onde está? Ah, está aqui... “Riscar o Regimento Semionovski...” Perfeito, perfeito, vou fazer tudo o que pede... “Permita-me, passando por cima da hierarquia, abraçá-lo... o velho camarada e amigo...” Oh, até que enfim escreveu direito! Et caetera, et caetera... Muito bem, meu rapaz — disse ele fechando a carta e pondo de parte o meu passaporte —, tudo vai ser feito como determina seu pai. Vai ser transferido, como oficial, para o Regimento X, e, para não perdermos tempo, seguirá amanhã mesmo para a Fortaleza de Bielogorsk, onde ficará sob as ordens do Capitão Mirónov, um homem bom e sério. Vai fazer lá um verdadeiro serviço militar, conhecer o que é uma autêntica disciplina. Aqui em Orienburg não iria fazer nada. A ociosidade debilita um moço. E, hoje, peço que jante comigo.
“As coisas vão em mau caminho!”, conjeturei. “De que me serviu ser sargento da Guarda quase recém-nascido? Onde me foram meter? No Regimento X, trancafiado numa fortaleza perdida na fronteira das estepes quirguizes5!” Jantei em casa de Andrei Karlovitch, estando presente também o seu velho ajudante-de-ordens. Na sua mesa imperava a rigorosa economia alemã, e acho que foi o temor de visitas inesperadas que determinou a sua solicitada transferência para aquele cafundó. No dia seguinte apresentei as minhas despedidas ao velho general e parti para o posto que me destinaram.
Capítulo 3
A Fortaleza
A Fortaleza de Bielogorsk ficava a uns quarenta quilômetros de Orienburg. A estrada corria pela escarpada serra que acompanha o rio laizk. As águas ainda não estavam geladas e deslizavam cor de chumbo e tristes por entre as margens monótonas e cobertas de neve. Do outro lado, a perder de vista, estendiam-se as estepes quirguizes. Ia eu mergulhado em cismares, na maioria melancólicos. A vida na guarnição me oferecia poucos atrativos.
Empenhava-me em formar uma ideia do meu futuro comandante, o Capitão Mirónov, e o que me acudia era a de um velho severo e ranzinza, que nada sabia além do serviço e que, por qualquer ninharia, mandaria prender-me a pão e água.
Foi quando começou a escurecer, íamos com bastante rapidez. Perguntei ao cocheiro: — A fortaleza ainda fica muito longe?
— Não. Já pode ser avistada.
Olhei para todos os lados, pensando encontrar bastiões sinistros, torres, fossos, mas somente vi uma aldeiazinha cercada por uma paliçada. Numa ponta, havia uns três ou quatro montes de feno, meio cobertos de neve, e na outra levantava-se um rústico moinho, com as asas preguiçosamente paradas.
— Mas onde está a fortaleza? — perguntei surpreso.
— Aqui, senhor — respondeu o cocheiro, apontando-me a aldeia na qual acabávamos de entrar.
Junto ao portão havia um vetusto canhão de ferro. As ruazinhas eram estreitas e tortas, as isbás muito baixas e, na maior parte, cobertas de palha. Mandei o cocheiro me levar à casa do comandante e, pouco além, o trenó parou diante de uma casinhola de madeira, levantada sobre uma elevação, perto da igreja também de madeira.
Ninguém me veio receber, Entrei no vestíbulo e, sem cerimônia, abri a porta da entrada. Um velho inválido, à mesa, cosia um remendo na manga da túnica verde. Pedi-lhe que anunciasse a minha chegada.
— Entre, paizinho — respondeu ele. — Todos estão em casa.
Passei, então, a um pequeno cômodo, muito asseado e mobiliado à moda antiga.
Num canto havia um armário para louça.
Numa das paredes, estava pregado um diploma de oficial, devidamente emoldurado e envidraçado, e, ao lado, enfileiradas, viam-se gravuras baratas representando as tomadas de Kinstrin e Otchakov e mais dois quadros — uma cena de noivado e o enterro de um gato.
Perto da janela, vi uma velhinha sentada, que vestia um casaquinho de pele e tinha um lenço na cabeça. Desenrolava a linha que um velhote, de olho furado e fardado de oficial, tinha enrolada numa das mãos.
— Que deseja, meu caro? — inquiriu ela, sem interromper a sua ocupação.
Informei que chegava para me apresentar ao senhor capitão. E lancei um olhar ao estropiado ancião cuidando ser ele o comandante. Mas a mulher cortou o discurso que eu trazia de cor:
— Ivan Kusmitch não está em casa. Foi visitar o Padre Guerássim. Mas não tem importância.
Está falando com a esposa dele. Esteja à vontade. A casa é sua, meu caro. Faça o favor de se sentar.
Gritou pela criada e ordenou que ela chamasse o sargento. O velhote me inspecionava atentamente com seu único olho.
— Permita que pergunte uma coisa — falou ele. — Em que regimento serviu?
Atendi à sua curiosidade. Ele insistiu: — Permita-me, então, saber por que razão deixou a Guarda para servir numa guarnição.
Esclareci que obedecia a ordens superiores.
— Seguramente teve um comportamento incompatível com um oficial da Guarda, não é? — ajuntou o incansável perguntador.
— Basta de tolices! — ralhou a mulher do capitão. — Não desconfia que o rapaz está fatigado da viagem e não quer conversar? Fique com a mão firme! — E, virando-se para mim: — E você, meu caro, não fique triste por ter sido atirado neste buraco. Não é o primeiro, nem será o último. Acabará ajeitando-se e até gostando daqui. Aliexiei Ivánovitch Chvabrin é um exemplo. Foi removido para cá, culpado de assassinato. Só Deus sabe a loucura que o levou a tal! Matou um tenente. Foram para fora da cidade, duelaram-se a espada, diante de duas testemunhas! Que se há de fazer? Pecar é próprio dos homens.
Naquele instante, chegava o sargento, que era um jovem cossaco de excelente aparência.
— Maximitch, arranje um quarto para o senhor oficial, mas que seja bem limpo! — determinou-lhe a mulher do capitão.
— Perfeitamente, Vassílissa legorovna. Posso instalar o excelentíssimo na casa de Ivan Poliejaiev?
— Que maluquice, Maximitch! Em casa de Poliejaiev não há espaço. Além do mais, ele é meu compadre... E não se esqueça de que somos os superiores dele... Leve o senhor oficial... Como é a sua graça, meu caro?
— Piotr Andreitch.
— Pois leve Piotr Andreitch para a casa de Sémion Kuzov. Aquele patife deixou outro dia o seu cavalo entrar na minha horta! Como é, Maximitch, está tudo em ordem lá fora?
— Tudo em paz, graças a Deus. Somente o cabo teve uma briga com Ustínia Niegulina, na casa de banhos. Por causa de um balde de água quente...
— Ivan Ignátitch! Resolva a questão de Prokhorov e Ustínia. Apure quem é o culpado, mas castigue os dois — ordenou a mulher do capitão ao velhinho zarolho. — E você, Maximitch, vá com Deus.
Virou-se para mim:
— Piotr Andreitch, Maximitch irá conduzi-lo ao seu alojamento.
Despedi-me e o sargento me levou para uma isbá, que ficava no barranco do rio, num extremo da fortaleza. Metade dela era ocupada pela família de Sémion Kuzov. Fiquei na outra metade, que consistia num amplo quarto, muito limpo, dividido por um tabique.
Enquanto Saviélitch arrumava os meus pertences, eu dava uma olhada pela estreita janela. A melancólica estepe alongava-se diante de mim. Havia uma fila de pequenas isbás e, na rua, galinhas ciscavam. Uma velha, na porta da sua isbá, distribuía ração aos porcos, que acudiam grunhindo alegremente.
“E eu estava condenado a passar a minha mocidade naquele ermo!”, pensei. Uma imensa tristeza me invadiu. Saí da janela e me estirei na cama, sem nenhuma vontade de comer, o que afligia Saviélitch: — Santo Deus misericordioso! Por que não quer comer? Que irá dizer minha patroa se o senhor ficar doente?
No outro dia, logo cedo, quando começava a me vestir, entrou no quarto um jovem oficial, moreno e feio, mas extremamente desembaraçado, que me disse em francês: — Perdoe a minha falta de cerimônia, mas venho para conhecê-lo. Soube ontem da sua chegada. O desejo de ver uma cara nova foi tão grande que não pude resistir. O senhor só compreenderá a minha ânsia depois de viver aqui algum tempo.
Adivinhei que se tratava do oficial removido da Guarda em consequência do fatal duelo. Começamos a conversar. Chvabrin era muito inteligente e a sua palestra cheia de vivacidade e interesse. Com muita graça fez a descrição da família do comandante, da sociedade local e daquele lugar onde o destino me jogara. Eu ria a bom rir com seu relato, quando entrou no quarto o inválido que eu vira na véspera remendar a túnica no vestíbulo da casa do comandante. Trazia da parte de Vassílissa legorovna convite para jantar.
Chvabrin prontificou-se a me acompanhar.
Na praça, perto da casa do comandante, vi alinhados uns vinte veteranos, de longas trancas e chapéus triangulares. Na frente deles, postava-se o comandante. Era um velho alto e bem disposto. Trazia uma carapuça de dormir enfiada na cabeça e vestia um roupão de algodão. Ao nos ver, adiantou-se ao nosso encontro, gastou algumas palavras amáveis e logo voltou a dar ordens aos seus homens.
Paramos para apreciar a instrução; ele, porém, nos rogou que fôssemos fazer companhia a Vassílissa legorovna, prometendo não se demorar. E ajuntou:
— Aqui não há nada para ver.
Vassílissa legorovna nos recebeu simples e cordialmente e me tratou como se eu fosse um velho conhecido. O inválido e Palachka punham a mesa.
— Não sei o que deu hoje em Ivan Kusmitch para dar tanta instrução aos veteranos! — disse a mulher do capitão.
— Palachka, vá chamar o seu patrão para jantar. Mas onde Macha se meteu?
Como se atendesse prestamente a um chamado, entrou uma moça dos seus dezoito anos. Tinha o rosto redondo e corado, cabelos claros, penteados para trás, descobrindo as orelhas, que estavam muito vermelhas. Assim, de pronto, não me agradou muito. Olhava-a com prevenção, pois Chvabrin descrevera a filha do capitão como uma parva total. Ela, que se chamava Maria Ivánovna, sentou-se num canto e pôs-se a bordar. Aí, já estavam servindo a sopa de repolho. Vassílissa legorovna, vendo que o marido não aparecia, mandou Palachka chamá-lo outra vez: — Diga ao seu patrão que as visitas estão esperando e que a sopa vai esfriar! Posso garantir que a instrução não vai fugir e ele terá ocasiões de sobra para berrar quanto quiser!
O capitão não demorou a aparecer, seguido pelo velhote de olho furado.
— Como é, paizinho? — ralhou ela com ternura. — A comida já está há um tempão na mesa e você nada de vir!
— Você bem sabe que não estava mandriando, Vassílissa Iegorovna. Estava dando instrução aos meus soldadinhos.
— Tempo perdido! — retrucou ela. — Eles não aprendem nada, não querem nada com o serviço. Melhor seria que ficassem em casa rezando... Meus caros convidados, façam o favor de vir para a mesa.
Abancamo-nos. Vassílissa Iegorovna não parou um segundo de falar. Cobriu-me de perguntas: quem eram meus pais, se ainda viviam, onde moravam e se tinham fortuna. Ao saber que meu pai possuía trezentos servos, não se pôde conter:
— Nossa Mãe, como há gente rica neste mundo! Nós, meu caro, só temos uma serva. É a Palachka. E nos vamos arrumando com a graça de Deus. Só uma coisa me preocupa: nossa filha Macha já está na idade de se casar, mas que dote tem ela? Um pente, uma vassoura e meio rublo, que Deus me perdoe, para ir à casa de banhos... Se não encontrar um homem decente, que a queira assim, ficará mesmo para titia...
Olhei Maria Ivánovna: ficara vermelhíssima, ameaçando chorar. Tive pena da moça e, procurando mudar o rumo da conversa, fui bastante inoportuno: — Ouvi dizer que os basquires estão se preparando para atacar a fortaleza.
— Quem foi que lhe disse? — perguntou Ivan Kusmitch.
— Contaram-me em Orienburg — respondi.
— Besteirada! — voltou o capitão. — Há muito tempo que reina a paz cá por estes lados. Os basquires têm medo e os quirguizas já receberam uma boa lição. Não se atrevem a mexer com a gente... Mas se puserem o rabo de fora, levarão uma tal surra que ficarão sossegados uns dez anos!
— E a senhora não tem medo de ficar aqui sujeita a perigos? — continuei, dirigindo-me à mulher do capitão.
— Já me acostumei, meu caro. Há vinte anos, quando viemos para cá, só Deus sabe como me apavorava com estes malditos pagãos! Ao ver os seus gorros de pele de lince e ouvir os seus berros, acredite, meu caro, que meu coração ficava gelado! Mas agora estou tão habituada que nem me movo do lugar, quando alguém me vem avisar que os patifes estão galopando nas imediações da fortaleza.
— Vassílissa legorovna é uma dama muito valente — falou enfaticamente Chvabrin. — Ivan Kusmitch pode dar mil provas.
O capitão confirmou:
— É a pura verdade. Minha mulher não é nada medrosa.
— E Maria Ivánovna é tão valente quanto a senhora? — perguntei.
— Se Macha é valente? — respondeu a mãe. — Nada! É medrosíssima! Até hoje não pode ouvir um tiro. Começa logo a tremer... E há dois anos, quando Ivan Kusmitch, no dia do meu aniversário, teve a lembrança de atirar com o canhão, a coitadinha quase morreu de medo...
Também foi a última vez que disparamos o canhão...
Levantamo-nos da mesa. O capitão e a mulher foram fazer a sua sesta. Eu saí com Chvabrin, fomos para a casa dele e lá fiquei até que a noite caiu.
Capítulo 4
O Duelo
Transcorreram várias semanas e a vida na Fortaleza de Bielogorsk tornou-se para mim não apenas tolerável, mas até agradável. Na casa do comandante eu era tratado como pessoa da família. Era um casal que merecia o maior respeito. Conquanto filho de um soldado, Ivan Kusrnitch chegara a oficial.
Simplório, de pouca instrução, era, porém, bondoso e honestíssimo. A esposa tinha completa ascendência sobre ele. Governava a casa com o seu jeito despreocupado e, sem alterá-lo, estendia tal poder por toda a fortaleza. Depressa, Maria Ivánovna perdeu a sua timidez para comigo e nos entendemos perfeitamente. Verifiquei que era uma moça sensata e de sensibilidade. Insensivelmente fui agarrando-me aquela gente tão boa e também a Ivan Ignátitch, o zarolho tenente da guarnição, a quem Chvabrin imputava uma relação criminosa com Vassílissa legorovna.
Era uma infâmia, porém Chvabrin não tinha remorsos.
Fui promovido a oficial. O serviço não me pesava, pois, naquela fortaleza que Deus indisfarçavelmente protegia, não havia revistas, instrução, rondas, sentinelas. Por mero divertimento, o comandante às vezes ministrava ensinamentos aos soldados, mas não conseguia meter na cabeça de todos a diferença entre o lado esquerdo e o lado direito.
Chvabrin possuía alguns livros franceses. Eu os lia e vi despertar em mim um pendor literário. Consumia as manhãs mergulhado na leitura, exercitava-me em traduções, e até aventurei-me a escrever alguns versos.
Jantava quase todos os dias na casa do comandante, onde comumente passava o resto da tarde. Uma vez por outra lá aparecia, de noite, o Padre Guerássim, com a sua mulher, Akulina Pamfúovna, a grande linguaruda da paróquia. Com Chvabrin, é lógico, me encontrava diariamente, e sua conversa se tornava, cada dia, menos agradável para mim.
Suas contumazes piadas a respeito da família do comandante me aborreciam e, muito especialmente, certos ditos ferinos sobre Maria Ivánovna.
A respeito dos boatos, os basquires não se rebelaram e a tranquilidade imperava em volta da nossa fortaleza. Todavia, a paz foi rompida por inesperada luta interna.
Já disse que me interessava por literatura. Para aquela época as minhas experiências eram apreciáveis, e até o poeta Alexandre Pietróvitch Sumarokov, anos mais tarde, as elogiaria muito. Certo dia, escrevi um pequeno poema, que plenamente me satisfez. É coisa sabida que os poetas, sob o pretexto de precisarem de conselhos, procuram muitas vezes um ouvinte benevolente. Assim sendo, tendo passado a limpo os meus versos, procurei Chvabrin, que, na minha opinião, era a única pessoa na fortaleza capaz de avaliar os méritos duma composição poética. Após um rápido preâmbulo, saquei do bolso o meu caderno e li para ele a seguinte poesia:
Tento em vão me libertar
Da sua beleza, Macha.
Destruir a trama amorosa
Em que cego fui cair.
Mas seus olhos feiticeiros
Escravizaram-me para sempre.
Atormentam minha alma,
Deixam-me louco de amor.
Sabendo dos meus tormentos,
Macha, venha em meu socorro.
Rompa a cadeia em que vivo,
Prenda-me no seu coração.
— Que é que você acha? — perguntei a Chvabrin, cuidando receber um elogio, como prêmio que não podia deixar de merecer. Mas, com grande surpresa minha, o companheiro, habitualmente tão indulgente, declarou-me de maneira categórica que o meu poema não valia dois caracóis.
— Mas por quê? — quis saber, tentando esconder minha decepção.
— Porque parecem da lavra do meu professor Vassili Kirilitch Trediakovski. Não diferem nada das quadrinhas amorosas daquele asno.
E, tirando o caderno das minhas mãos, entrou a criticar ferozmente cada verso, palavra por palavra, ridicularizando-me da maneira mais insolente. Não aguentei mais e, arrancando-lhe o caderno, garanti-lhe que jamais lhe mostraria qualquer coisa que fizesse. Chvabrin riu abertamente: — Vamos ver se cumprirá a sua palavra. Os poetas precisam tanto de ouvintes como Ivan Kusmitch da sua garrafa de vodca antes do jantar. Mas quem é essa tal Macha por quem confessa tão grande paixão? Não me vai dizer que é a Maria Ivánovna?
— Não tenho que lhe dar satisfação de que Macha se trata — respondi, vincando a testa de raiva. — Guarde a sua opinião e as suas suposições para você mesmo.
— Ora, vejam só! Além de poeta vaidoso é um apaixonado bastante modesto — prosseguiu Chvabrin, enraivecendo-me mais ainda. — Ouça um conselho de amigo sincero: se pretende ter êxito, arranje outro meio e deixe de fazer versos...
— Que quer dizer com isso? É bom explicar melhor.
— Com a máxima satisfação, meu amigo.
Quero simplesmente dizer que, se tenciona receber a visita de Maria Ivánovna ao cair da tarde, deve presenteá-la com um par de brincos e não com versinhos melífluos.
Senti o sangue ferver:
— Por que faz tal opinião dela? — e, a custo, continha a indignação.
— Porque conheço por experiência própria os hábitos dela — respondeu com um sorriso que me encheu de nojo.
— Mente da maneira mais vil, miserável! — gritei furiosamente.
A fisionomia de Chvabrin se sombreou: — As coisas não ficarão assim — disse, ameaçando-me com a mão fechada. — Exijo uma satisfação!
— Para quando quiser — respondi com um sorriso, sentindo que naquele momento era capaz de estraçalhá-lo.
Saí imediatamente à procura de Ivan Ignátitch e encontrei-o de agulha na mão: obedecendo à ordem de Vassílissa legorovna, enfiava cogumelos para secar, a fim de serem guardados em fieiras para o inverno.
— Olá, Piotr Andreitch, bons olhos o vejam! — disse quando entrei.
— Que o trouxe aqui? Solte logo o assunto, se me faz favor.
Em rápidas palavras relatei-lhe a discussão com Chvabrin e o que dela advirá. E pedi-lhe que fosse o meu padrinho no duelo.
Ivan Ignátitch ouviu-me atentamente, arregalando o único olho: — O senhor me está informando que se vai bater em duelo com Aliexiei Ivánovitch e que me deseja ter como testemunha, não é assim? Faça o favor de me dizer!
— Precisamente.
— Pelo amor de Deus, Piotr Andreitch! Que maluquice o senhor foi inventar! Teve uma desavença com Aliexiei Ivánovitch... Não tem a mínima importância! Os desaforos vão como vêm. Ele o insultou? Pois insulte-o mais fortemente. Ele lhe deu um bofetão, responda com outro... E está acabado. Depois nós cuidaremos da reconciliação... Mas, se me faz o favor, responda-me: está direito matar o próximo? Ainda bem se o senhor o matasse.
Enterraríamos Aliexiei Ivánovitch e, que Deus me perdoe, mas triste não ficaria, pois não gosto nada dele. Mas se o senhor for morto?
Que me diz da hipótese? Quem faria o papel de palerma, faça o favor de me dizer?
As ponderações do sensato tenente não me demoveram. Permanecia nos meus propósitos.
— Pois que seja como o senhor quiser, se acha que assim é que está certo. Mas por que cargas-d’água tenho de ser testemunha? Não há novidade nenhuma numa luta. Graças a Deus lutei contra suecos e contra turcos e me fartei de pelejas. Por que tenho de ser ainda testemunha de mais, faça o favor de me dizer!
Esforcei-me para lhe explicar o papel dos padrinhos no duelo, mas foi em vão — não entrava na cabeça de Ivan Ignátitch. E, por fim, ele disse:
— Muito bem. Se o senhor insiste que eu me meta mesmo na questão, posso ir à presença de Ivan Kusmitch e, por dever de ofício, relatar-lhe que na fortaleza se está tramando um ato contrário aos interesses do Estado. E esperaria dele as providências que achasse urgente tomar...
Suas palavras me assustaram e roguei-lhe encarecidamente que não denunciasse nada ao comandante. Não foi com facilidade que consegui demovê-lo, mas acabou por me dar a palavra de honra que guardaria silêncio, e eu saí mais sossegado, prescindindo de tê-lo como padrinho.
Como se fazia costumeiro, passei o serão em casa do comandante. Caprichei em me mostrar contente e tranquilo, para não despertar suspeitas e evitar perguntas embaraçosas. Mas, a bem da verdade, confesso que não tinha aquele sangue-frio de que se gabam em geral os que se encontraram em situação semelhante. Naquela reunião, a minha tendência era para os ternos sentimentos. Maria Ivánovna me agradava mais que nunca. A ideia de que, porventura, estivesse contemplando-a pela derradeira vez dotou meus olhos duma comovente expressão.
Chvabrin também compareceu; chamei-o para um canto e comuniquei-lhe a minha entrevista com Ivan Ignátitch. Ele foi seco: — Para que precisamos de padrinhos?
Podemos passar perfeitamente sem eles.
Acertamos realizar o duelo às sete da manhã do dia seguinte, atrás dos montes de feno, que ficavam perto da fortaleza. E falávamos de maneira tão amistosa, que Ivan Ignátitch cuidou que nós houvéssemos entendido, e cometeu uma indiscrição: — Já não era sem tempo — disse-me ele com ar risonho. — Uma paz, mesmo má, vale mais do que a melhor das brigas. Pelo menos é mais satisfatória para a saúde...
— Como é? Como é, Ivan Ignátitch? — perguntou Vassílissa legorovna, que, a um canto da sala, manobrava um baralho para fazer adivinhações.
Ivan Ignátitch percebeu no meu rosto sinais de contrariedade e, lembrando-se da promessa que fizera, ficou perturbado, sem saber o que dizer. Chvabrin acudiu em seu socorro:
— Ivan Ignátitch está aprovando a nossa reconciliação.
— E com quem você brigou, meu caro?
— Eu e Piotr Andreitch tivemos um pega sério...
— Mas por que motivo?
— Por uma coisa à-toa, Vassílissa legorovna: uma canção.
— Brigar por causa duma canção? Mas como pôde acontecer?
— É que Piotr Andreitch compôs uma canção e hoje cantou-a para mim. Eu, então, cantei a minha canção predileta: ”Filha do capitão, não vá passear de noite...” Daí nasceu a discussão.
Piotr Andreitch ficou danado! Mas depois se acalmou, compreendendo que cada um tem o direito de cantar o que lhe aprouver. E assim tudo terminou bem.
A sem-vergonhice de Chvabrin quase me fez perder a cabeça. Mas ninguém, exceto eu, percebeu as suas grosseiras insinuações. Pelo menos, ninguém lhe deu atenção.
Da canção, a conversa passou naturalmente para os poetas, e o comandante emitiu a opinião de que todos eram uns bêbados e me aconselhou carinhosamente a largar a poesia de mão, pois ela era incompatível com o serviço militar e jamais levava a um bom fim.
Era-me intolerável a presença de Chvabrin, e assim, pouco depois, despedi-me de todos. Chegando em casa, examinei minha espada, verifiquei o seu fio e me deitei, determinando a Saviélitch que me acordasse antes das sete.
No dia seguinte, à hora combinada, postava-me atrás dum monte de feno.
Chvabrin não tardou a comparecer.
— Podem supreender-nos — disse logo que chegou.
— Vamos andar depressa!
Tiramos as túnicas e, apenas de camisa, desembainhamos as espadas. E eis que surge, de trás de um dos montes de feno, a figura de Ivan Ignátitch, à frente de cinco soldados veteranos. Exigiu que o acompanhássemos à presença do comandante, e, contrariados, obedecemos. No meio dos soldados, batemos para a fortaleza atrás de Ivan Ignátitch, que triunfalmente encabeçava a marcha, com uma imponência nunca vista.
Chegando à casa do comandante, Ivan Ignátitch abriu a porta e gritou solenemente: — Estão aqui!
Vassílissa legorovna correu para nos receber:
— Ah, meus caros amigos, como se atrevem?!
Não tem cabimento! Um assassinato em nossa fortaleza! Serão punidos severamente por Ivan Kusmitch! — Fez uma pausa e voltou com a maior energia: — Piotr Andreitch! Aliexiei Ivánovitch! Entreguem as suas espadas! Já!
Já! Palachka, ponha estas espadas na despensa. Piotr Andreitch, nunca pensei que me fizesse uma coisa assim. Não se sente envergonhado? Aliexiei Ivánovitch já foi removido da Guarda por um assassinato. É um ateu! O senhor, por acaso, quer seguir a mesma trilha?
Ivan Kusmitch apoiava inteiramente a mulher e ajuntou: — Vassílissa Iegorovna diz a pura verdade! Os duelos são terminantemente proibidos pelo regulamento militar!
Enquanto os dois falavam, Palachka recolheu as nossas espadas e levou-as para a despensa. Não pude conter o riso, porém Chvabrin manteve o seu ar superior e dirigiu-se à esposa do comandante, afetando a maior serenidade:
— Com todo o respeito que nutro pela senhora, não posso deixar de observar que se está incomodando inutilmente. Nosso julgamento é da competência exclusiva do nosso comandante.
Prontamente ela replicou: — Ah, meu caro, está muito enganado! Marido e mulher são uma coisa só, em corpo e espírito! — E, virando-se para o marido: — Ivan Kusmitch, por que está aí sem fazer nada? Trancafie-os, a pão e água, em prisões separadas até que a cabeça deles volte para o lugar. E que o Padre Guerássim obrigue-os a uma penitência para ficarem em paz com Deus e se arrependerem perante os homens.
Ivan Kusmitch não sabia que decisão tomar. Maria Ivánovna estava branca como papel. Mas, afinal, as coisas se aquietaram.
Vassílissa legorovna, mais sossegada, obrigou-nos a um aperto de mão e Palachka nos devolveu as armas.
Deixamos a casa do comandante aparentemente de bem. Ivan Ignátitch nos acompanhou. Mostrei-me zangado com ele: — O senhor não se envergonha de ter rompido sua palavra de honra? Como nos foi denunciar ao capitão?
— Juro por Deus que nada revelei a Ivan Kusmitch! Foi Vassílissa legorovna que, desconfiada, arrancou tudo de mim. As ordens foram todas dadas por ela, à absoluta revelia do capitão. Felizmente, com a graça de Deus, tudo acabou bem...
E, sem mais palavras, encaminhou-se para a sua casa, deixando-me a sós com Chvabrin.
— Nosso caso não pode terminar assim — disse eu.
— Claro que não — respondeu Chvabrin. — O senhor vai pagar com o sangue o que me fez. Advirto, porém, que seremos vigiados. Por alguns dias teremos que ficar na moita. Até breve! E cada um foi para o seu lado, como se nada houvesse entre nós. Voltando à casa do comandante, eu, como de costume, fui sentar-me junto de Maria Ivánovna.
Ivan Kusmitch havia saído.
Vassílissa legorovna entretinha-se em ocupações caseiras. Conversamos baixinho.
Muito carinhosamente, Maria Ivánovna ralhou comigo por causa do rebuliço que provocara a minha desavença com Chvabrin: — Quase desmaiei quando soube que vocês iam duelar. Como são complicados os homens!
Por causa duma ninharia, que seria olvidada numa semana, chegam ao ponto de se matar, indiferentes à aflição daqueles que... Mas tenho a certeza de que não foi o senhor quem provocou a briga. Tudo partiu de Aliexiei Ivánovitch.
— Por que pensa que foi ele?
— Porque ele faz pouco dos outros. Não gosto nada dele. Mas, coisa curiosa, de maneira nenhuma gostaria de incorrer no seu desagrado. Ficaria preocupadíssima.
— Poderia esclarecer-me o que diz. Acha que o agrada ou não?
Maria Ivánovna confundiu-se e enrubesceu: — Francamente, acho que ele se interessa por mim.
— Como assim?
— Já pediu a minha mão.
— Já pediu a sua mão? Não me diga! Quando foi que ele lhe propôs casamento?
— No ano passado. Dois meses antes de o senhor chegar.
— E recusou, Maria Ivánovna?
— Não está claro que sim? Não nego que Aliexiei Ivánovitch seja um homem inteligente, de boa família e rico. Mas, quando me lembro de que teria de beijá-lo na frente de todos, na cerimônia do casamento... Não! Nem por todas as riquezas do mundo!
O que Maria Ivánovna me disse abriu os meus olhos, esclareceu muita coisa. Compreendi a razão da malevolente perseguição que Chvabrin movia à moça.
Muito provavelmente ele percebera a nossa mútua inclinação e se empenhara em nos separar. E as palavras que motivaram a nossa briga se me afiguraram ainda mais ignóbeis.
Não eram apenas grosseiras, mas constituíam uma preconcebida calúnia. O desejo de castigar o infame difamador cresceu em mim, e comecei a esperar, impacientemente, uma ocasião propícia.
Não esperei muito. No outro dia, quando burilava uma elegia, mordendo a caneta no nervosismo de encontrar uma rima melhor, Chvabrin bateu na minha janela. Larguei a caneta, peguei a espada e saí ao seu encontro.
— Para que esperar mais? — disse ele. — Agora ninguém nos vigia. Vamos até o rio. Lá não seremos perturbados.
Caminhamos calados. Descemos um íngreme atalho, chegamos à beira do rio e desembainhamos as espadas. Chvabrin era melhor esgrimista; eu, porém, era mais forte e impetuoso. Monsieur Beaupré, que, como eu já disse, fora soldado, dera-me algumas aulas da matéria, que de muito me valiam naquela ocasião. Chvabrin não contara encontrar em mim um adversário que oferecesse perigo, e estava surpreendido. Por bom espaço de tempo trocamos espadeiradas sem nenhum dano.
Mas, quando percebi que ele começava a afrouxar, entrei a atacá-lo com redobrada firmeza e consegui fazê-lo retroceder a ponto de molhar os pés na água. De repente, ouvi gritar o meu nome. Virei um pouco a cabeça e vi Saviélitch correndo em nossa direção pelo mesmo íngreme atalho que descêramos. No exato instante, senti uma fisgada no peito, abaixo do ombro direito, e caí desacordado.
Capítulo 5
O Amor
Quando voltei a mim, não pude logo compreender o que me havia acontecido.
Estava deitado numa cama, num quarto que não conhecia, e tomado de imensa fraqueza.
Saviélitch, ao meu lado, segurava uma vela.
Alguém, com muito cuidado, tirava a atadura que me enfaixava o peito e o ombro.
Lentamente fui ganhando consciência.
Lembrei-me do duelo e compreendi que fora ferido. Eis que a porta rangeu.
— Como ele está passando? — falou baixinho uma voz, fazendo tremer meu coração.
— A mesma coisa — respondeu Saviélitch com um suspiro. — Já se vão cinco dias e permanece inconsciente.
Tentei virar a cabeça, mas me faltaram forças. Então, com muito esforço, falei: — Onde estou? Quem é que está aí?
Maria Ivánovna abeirou-se da cama e dobrou-se sobre mim: — Como está se sentindo?
— Graças a Deus estou vivo — respondi fracamente. — É Maria Ivánovna?
E não pude dizer mais nada, pois as forças me fugiram. Saviélitch soltou uma exclamação e o seu rosto se inundou de alegria.
— Recuperou os sentidos! Recuperou os sentidos! — repetiu. — Com a graça de Deus! Ah, Piotr Andreitch, que susto o senhor me pregou! Cinco dias desacordado não é pouca coisa!
Maria Ivánovna cortou-o: — Não fale muito com ele, Saviélitch. Está ainda muito enfraquecido.
E se retirou, cerrando a porta com cuidado. Meus olhos ganharam nitidez.
Encontrava-me em casa do comandante e Maria Ivánovna viera ver-me! Quis fazer umas quantas perguntas a Saviélitch, mas o velho balançou negativamente a cabeça e tapou os ouvidos com as mãos. Aborrecido, fechei os olhos e de novo caí na sonolência.
Quando despertei, chamei Saviélitch, mas em vez dele, me atendeu Maria Ivánovna. Com voz angelical me deu bom dia. É indescritível a suave emoção que me assaltou naquele instante. Peguei na mão dela, encostei-a no meu rosto, molhei-a com as lágrimas do meu reconhecimento. Macha consentiu e, de repente, seus lábios pousaram no meu rosto num beijo quente e perturbador. Senti o peito em fogo:
— Querida Maria Ivánovna, seja minha esposa.
Faça a minha felicidade!
Ela dominou-se, retirou a mão e disse meigamente:
— Pelo amor de Deus, acalme-se. Ainda corre perigo. O ferimento não está cicatrizado. Tome cuidado. Faça isto por mim...
E retirou-se, deixando-me nas nuvens. A felicidade me ressuscitou. Ela me amava! Ela seria minha esposa! E o inefável pensamento inflava todo o meu ser.
Daquele momento em diante, comecei a recuperar-me rapidamente. Encontrava-me sob os cuidados do barbeiro da fortaleza, porquanto não havia médico, mas, graças a Deus, ele não era insensato e não se excedia. A mocidade e a natureza me ajudaram. Toda a família do comandante me desvelava cuidados, especialmente Maria Ivánovna, que não me deixava sozinho um minuto sequer. É óbvio que, na primeira oportunidade, retomei a declaração interrompida. Ela me ouvia mais pacientemente. Com a maior simplicidade me confessou que também gostava muito de mim, garantindo que os pais ficariam muito satisfeitos com a escolha que fizera. E acrescentou: — Mas pense bem no que faz. A sua família estará de acordo com o nosso casamento?
Pus-me a pensar. Da compreensão de minha mãe não tinha dúvidas. Mas meu pai era diferente. Conhecia sua maneira de ser e sabia que o meu amor não o tocaria muito.
Atribuiria meu sentimento a um impulso da mocidade. Com a máxima franqueza confessei a Maria Ivánovna os meus temores. E resolvi escrever uma carta a papai, relatando tudo com a mais recomendável veemência e pedindo-lhe que abençoasse a pretendida união. Escrita a carta, mostrei-a a Maria Ivánovna. Ela achou-a tão persuasiva e comovente que não teve dúvidas da sua eficiência e entregou-se aos sentimentos do seu doce coração, confiante na mocidade e no amor.
Reconciliei-me com Chvabrin tão logo fiquei bom. Ivan Kusmitch, repreendendo-me pelo duelo, disse:
— Prezado Piotr Andreitch! A rigor eu deveria prendê-lo. Mas já teve o castigo merecido.
Quanto a Aliexiei Ivánovitch, continua preso no armazém de cereais, com sentinela à vista.
A espada dele Vassílissa legorovna trancou a chave. Que a reclusão areje as suas ideias a ponto de se arrepender do ato praticado.
Eu me sentia tão feliz que não podia conservar no coração nenhum sentimento de vingança e roguei a Ivan Kusmitch que soltasse Chvabrin.
Ele relutou, mas, parlamentando com a mulher, que não punha objeções, acabou por mandar pô-lo em liberdade. O meu adversário veio fazer-me uma visita. Externou o seu arrependimento pelo lamentável incidente, confessou-se culpado de tudo e pediu que eu esquecesse o passado.
Não tendo gênio rancoroso, pronta e sinceramente perdoei-lhe a desavença que provocara e o golpe com que me ferira. Certo de que a sua calúnia não passava de amor-próprio ferido e de despeito por se ver desprezado, foi com generosidade que perdoei ao desventurado rival.
Alguns dias depois, plenamente restabelecido, voltei para minha casa. Ansioso, esperava a resposta da minha carta, não muito seguro da aquiescência e procurando abafar alguns tristes pressentimentos. Ainda não falara com Vassílissa legorovna nem com o comandante a respeito das minhas intenções, mas tinha a certeza de que não iriam ficar surpreendidos com elas. Tanto eu quanto Maria Ivánovna não escondíamos deles os nossos sentimentos, seguros de contarmos com total aprovação.
Afinal, certa manhã, Saviélitch irrompeu no meu quarto com um envelope na mão.
Recebi-o tremendo, ao reconhecer no sobrescrito a caligrafia paterna. Não ignorava o que significava aquilo. Comumente era mamãe quem me escrevia, limitando-se meu pai a acrescentar no fim da carta uma linha do próprio punho. Permaneci algum tempo sem abrir o envelope, lendo e relendo o endereço algo solene: ”Ao meu filho Piotr Andreitch Griniov. Província de Orienburg. Fortaleza de Bielogorsk”. Tentei adivinhar pelo talhe da letra o estado de espírito em que fora escrita.
Por fim, resolvi abri-la e logo pelas linhas iniciais vi que tudo havia ido por água abaixo.
O teor da carta era o seguinte:
Meu filho Piotr,
Recebemos no dia 15 deste a carta em que pede a nossa bênção e o nosso consentimento para se casar com Maria Ivánovna, filha de Mirónov.
Quero não somente negar os seus dois pedidos, como severamente repreendê-lo por seu procedimento, digno de uma criança irresponsável. Não posso levar em conta sua patente de oficial, pois você provou sobejamente que não está à altura dela. A espada que lhe foi entregue para defender a Pátria, você a sujou num reles duelo com um vagabundo da sua laia. Vou escrever agora mesmo a Andrei Karlovitch solicitando a sua imediata remoção para um posto ainda mais distante, no qual poderá curar-se da sua sentimental tolice. Sua mãe, ao saber do duelo e do ferimento que recebeu, caiu doente de desgosto e ainda se encontra de cama. Que espera da vida? Imploro a Deus para que lhe de juízo, porém não tenho esperanças de ser atendido por sua infinita misericórdia.
Seu pai
A. G.
A leitura da carta provocou em mim os mais variados sentimentos. As expressões cruéis com que papai me brindava magoaram-me fundamente. O desprezo com que se referia a Maria Ivánovna parecia-me tão indigno quanto injusto. A ideia de ser transferido de posto me alarmava. Porém o que mais me desgostou foi saber que minha mãe estava enferma. Fiquei zangadíssimo com Saviélitch, pois julguei que tinha sido ele quem informara meu pai do duelo. Depois de andar de um lado para outro no quarto, parei diante dele e reprovei-o ameaçadoramente: — Não ficou satisfeito em ser responsável pelo meu ferimento, que me pôs quase um mês às portas da morte! Ainda quis matar minha mãe!
Não seria diferente a expressão de estupor de Saviélitch se um raio tivesse caído em sua cabeça:
— Meu senhor! Que é que me está dizendo?
Fui culpado de seu ferimento? Deus sabe que corria para defendê-lo com meu corpo contra a espada de Aliexiei Ivánovitch! Se não consegui, foi porque a maldita velhice me tirou as pernas! Mas o que foi que fiz à sua mãe?
— O que fez? Quem mandou você escrever contando o meu duelo? Por acaso encarregaram-no de me espionar?
— Eu escrevi? — e Saviélitch chorava. — Meu Deus misericordioso! Leia esta carta e verá se eu contei alguma coisa. É do senhor seu pai.
Tirou do bolso uma carta e me entregou.
Nela eu li as desaforadas palavras que se seguem:
Devia ter vergonha do seu procedimento, velho cão lazarento, pois, contrariando minhas ordens expressas, nada me comunicou sobre as extravagâncias do meu filho. Se não fosse por estranhos, não saberia de nada. E desta forma relapsa que cumpre a sua obrigação e as determinações do seu senhor? Vou colocá-lo como porqueiro, velho cão miserável, por fazer segredo das estripulias do rapaz e ser cúmplice dele. Ordeno-lhe que, tão cedo receba esta, me responda informando-me como ele está passando. Segundo me escreveram, está melhor. Não se esqueça de me relatar minuciosamente em que lugar foi ferido e qual tem sido o tratamento.
Era patente a inocência de Saviélitch.
Minhas censuras e suspeitas não tinham o menor fundamento.
Pedi-lhe que me perdoasse, mas o velho estava inconsolável: — Vejam só para que vivi eu tantos anos! Estou recebendo o pagamento dos meus préstimos! Sou um cão lazarento, sirvo somente para guardar porcos e fui o culpado do seu ferimento! Não, meu patrãozinho! Não sou culpado de nada. A culpa cabe toda àquele miserável francês! Foi ele quem o ensinou a manejar espadas e a bater com os pés no chão, como se fosse com espadeiradas e patadas que o senhor ia escapar da sanha de um homem sem coração! Para tanto é que se contratou aquele francês, jogando-se dinheiro pela janela!
Mas fiquei matutando. Quem teria denunciado a papai o meu comportamento? O general não fora. Pouco se importava ele comigo, e mesmo Ivan Kusmitch não achara necessário enviar-lhe um relatório sobre o duelo. Fazia mil suposições, até que minhas suspeitas recaíram sobre Chvabrin. Era a única pessoa que lucraria com a delação, porquanto poderia ela resultar em minha remoção e o decorrente esfriamento dos laços que me uniam à família do comandante.
Fui procurar Maria Ivánovna para pô-la a par de tudo. Recebeu-me na porta da casa: — Que foi que aconteceu? Como o senhor está pálido!
— Veja! Está tudo perdido! — respondi, entregando-lhe a carta de meu pai.
Tocou a ela empalidecer. Depois de ler a carta, devolveu-a com a mão trêmula e falou com a voz embargada:
— Cada um tem seu destino. O meu não era ser sua esposa. Seus pais não me querem na família. Seja feita a vontade de Deus! Ele sabe o que me convém. E, se não podemos ir contra a vontade dele, Piotr Andreitch, meu desejo é que seja muito feliz...
Tomei-lhe a mão: — Só serei feliz ao seu lado! A senhorita me ama e eu estou disposto a tudo. Vamos ajoelhar-nos aos pés dos seus pais. Eles são simples, bondosos, sem orgulho... Não recusarão a bênção. Nós nos casaremos, e depois, passados uns tempos, suplicarei a meu pai que faça o mesmo. Tenho a certeza, de que ele não recusará. Mamãe estará do nosso lado.
Tudo fará para demovê-lo.
— Não, Piotr Andreitch — respondeu Macha.
— Não me casarei com o senhor sem antes receber a aprovação do seu pai. Não poderíamos ser felizes sem ela. É melhor nos curvarmos ante a vontade de Deus. Se encontrar aquela que o céu lhe destinou, que Deus esteja consigo, Piotr Andreitch. De minha parte, nunca deixarei de rezar pela felicidade dos dois...
Começou a chorar e se despediu. Quis ir atrás dela pela casa adentro, porém senti que não me poderia conter e voltei para casa.
Estava sentado, imensamente abatido, quando Saviélitch cortou meus melancólicos pensamentos. Estendeu-me uma folha de papel e disse:
— Meu senhor! Veja se eu o denunciei e se sou culpado da discórdia entre o senhor e seu pai.
Peguei o papel. Era a resposta à carta que ele recebera de meu pai. E li:
Senhor Andrei Pietróvitch, nosso bondoso pai,
Recebi sua magnânima carta, na qual se digna ralhar comigo, seu fiel servo, dizendo que eu não tenho vergonha por não cumprir as suas determinações. Eu não sou nenhum cão lazarento, mas seu obediente servo, que sempre cumpriu as suas ordens e sempre serviu lealmente até que seus cabelos ficaram brancos. Nada informei sobre o ferimento de Piotr Andreitch unicamente para não assustá-lo, mas soube que a nossa bondosa patroa Avdótia Vassilievna tomou tamanho susto que ficou doente, e pela saúde dela tenho rezado sempre.
Piotr Andreitch sofreu um ferimento no peito, debaixo do ombro direito, exatamente junto ao osso, e o ferimento tinha quase um dedo de fundo. Da margem do rio, onde se deu o duelo, foi carregado por nós para a casa do comandante e lá ficou, sendo tratado pelo barbeiro da fortaleza, Stiepan Paramonov.
Agora, graças a Deus, está restabelecido e a respeito do seu comportamento só posso dizer coisas boas. Os superiores, é voz corrente, estão muito satisfeitos com ele e em casa de Vassílissa Iegorovna é considerado como um filho. O que aconteceu com ele foi uma infelicidade, e não deve ser destratado por isso: o cavalo tem quatro patas e, às vezes, dá um tropeção. Quanto ao que o senhor se dignou escrever a respeito de me mandar buscar de volta para ser seu porqueiro, que seja feita a sua vontade, senhor.
Com os humildes cumprimentos do seu fiel servo
ARKHIP SAVIELITCH
Não foi possível deixar de sorrir certas vezes ao ler a carta do generoso velho. Eu, porém, não me sentia em condições de responder a meu pai e, para sossegar mamãe, achei que a missiva de Saviélitch era mais do que bastante.
Após aquele dia, a minha vida mudou.
Maria Ivánovna já quase não me dirigia a palavra, procurando de todas as formas me evitar. A casa do comandante perdeu o interesse para mim e fui-me habituando a permanecer solitário no meu quarto. A princípio Vassílissa legorovna se queixava da minha ausência, mas, como eu mantivesse a mesma disposição arredia, acabou por não me falar mais nada. No que tange a Ivan Kusmitch, só o via quando o serviço me obrigava. Muito raramente e a contragosto encontrava Chvabrin, percebendo nele uma escondida animosidade contra mim, o que mais fazia aumentar a minha desconfiança.
Levava, enfim, uma vida insuportável.
Afundava-me em permanente melancolia, alimentada pela solidão e pelo ócio dos meus dias. Foi-se o gosto pela leitura e pelas composições literárias. Estava aniquilado a ponto de temer ficar louco ou entregar-me à devassidão.
Felizmente, inesperados acontecimentos, que tiveram extrema significação em toda a minha vida, sacudiram forte e freneticamente a minha alma.
Capítulo 6
A Rebelião de Pugatchev
Antes de iniciar a narrativa dos singulares fatos que testemunhei, é necessário dizer umas palavras sobre a situação em que se achava a província de Orienburg, nos fins de 1773.
A imensa e rica terra era povoada por muitas tribos semi-selvagens, que só há bem pouco tempo haviam reconhecido o poder dos czares russos. Suas costumeiras revoltas, sua inconformidade às leis e à vida civil, a ousadia e crueldade das suas incursões, exigiam do governo uma permanente vigilância para conservá-las obedientes. As fortalezas eram levantadas em lugares propícios e mantidas, na maior parte, por cossacos, que eram os primitivos dominadores das regiões banhadas pelo rio laizk. Mas justamente os cossacos de laizk, que deveriam zelar pela ordem e paz daqueles ermos, tornaram-se a partir de certa época os súditos mais indisciplinados e perigosos. Em 1772 revoltava-se a sua principal cidade contra as rígidas medidas impostas pelo General Traubenberg com o fito de manter a ordem no Exército. Daí redundou o bárbaro assassinato de Traubenberg, a arbitrária mudança da administração e, por fim, o sufocamento da insurreição a fogo de metralha e com impiedosos castigos.
Tais acontecimentos se haviam verificado pouco antes da minha chegada à Fortaleza de Bielogorsk. Na ocasião tudo estava calmo, ou parecia estar. As autoridades acreditavam infantilmente na submissão dos matreiros insurretos, que muito ardilosamente escondiam o seu rancor, à espera de uma oportunidade para reiniciar a baderna.
Dito isso, tornemos à narrativa.
Certa noite, no começo de outubro de 1773, estava eu sozinho em casa, sentado perto da janela, ouvindo o uivar do vento outonal e observando as nuvens que rapidamente corriam diante da lua, quando me vieram chamar por ordem do comandante.
Imediatamente fui. Em casa de Ivan Kusmitch encontrei Chvabrin, Ivan Ignátitch e o sargento cossaco. Vassílissa legorovna e Maria Ivánovna não apareceram. O comandante tinha um ar apreensivo. Cerrando as portas, mandou-nos sentar, exceto o sargento, que postou-se à porta de entrada, sacou do bolso um papel e falou:
— Senhores oficiais, tenho uma notícia grave. O general acaba de me escrever. Ouçam o que ele me diz.
E, pondo os óculos, leu-nos o seguinte:
Ao Senhor Comandante da Fortaleza de Bielogorsk, Capitão Mirónov.
Confidencial.
Pela presente comunicação, informo que o cossaco do Don e herege Emilian Pugatchev escapou da prisão. Incorrendo em inominável insolência, adotou o nome do finado Imperador Pedro e, à frente de um bando de salteadores, revoltou as povoações do laizk, arrasando várias fortalezas e praticando em toda a região pilhagens e assassinatos. Na contingência, ao tomar conhecimento desta, solicito ao senhor capitão tomar imediatamente as devidas providências para repelir o aludido bandido e usurpador e, se possível, aniquilar completamente o bando, caso ele ataque a fortaleza confiada à sua responsabilidade.
— Tomar as devidas providências! — exclamou o comandante, tirando os óculos e dobrando o comunicado.
— É muito fácil dizer! Mas o bandido seguramente dispõe de forças e nós aqui não temos mais que cento e trinta homens, não contando os cossacos, dos quais não podemos esperar grande coisa, mas o que digo não atinge a sua pessoa, Maximitch.
O sargento sorriu e o comandante continuou: — Na verdade, pouco podemos fazer, senhores oficiais! Mas vamos executar o que está ao nosso alcance. Manteremos sentinelas e patrulhas noturnas. No caso de ataque, fechem os portões e espalhem os soldados em posições vantajosas. Você, Maximitch, ponha olho nos seus cossacos! Examinem e limpem bem direito o canhão. E, principalmente, guardem absoluto silêncio de tudo, pois é da maior conveniência que nada transpire na fortaleza antes do tempo.
Dadas as ordens, Ivan Kusmitch suspendeu a reunião. Retirei-me junto com Chvabrin, e entramos a comentar o que acabáramos de ouvir:
— Qual é a sua opinião? Como irão terminar as coisas? — perguntei.
— Só Deus pode saber. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos. Por enquanto não vejo motivo para maiores apreensões. Contudo, se...
Interrompeu o que dizia, pôs-se pensativo, depois começou a assobiar uma cançoneta francesa.
Não obstante todas as cautelas, a notícia da fuga de Pugatchev se espalhou pela fortaleza. Apesar do grande respeito que Ivan Kusmitch tinha pela mulher, nada no mundo o faria revelar-lhe um segredo de serviço a ele confiado. Todavia foi por intermédio dela que a notícia se divulgou.
Recebida a comunicação do general, Ivan Kusmitch usou de um estratagema para Vassílissa legorovna não ficar sabendo o conteúdo dela. Informou à mulher que o Padre Guerássim acabara de receber interessantíssimas notícias de Orienburg, das quais estava guardando a mais estranha reserva. Foi o bastante para Vassílissa legorovna querer imediatamente fazer uma visita à esposa do sacerdote, e, a conselho do marido, carregou a filha consigo.
Inteiramente dono da casa, Ivan Kusmitch trancou Palachka na despensa para que não ouvisse nada, e mandou-nos convocar.
Vassílissa legorovna retornou sem ter apurado nenhuma das interessantíssimas notícias recebidas pelo Padre Guerássim, mas soube que, na sua ausência, tinha havido uma reunião de oficiais e que Palachka fora trancafiada na despensa. Desconfiou que o marido a enganara e pôs-se a inquiri-lo. Ivan Kusmitch, que havia convenientemente se preparado, resistiu bravamente ao assédio.
Sem um tropeço, rebateu todas as investidas da curiosidade feminina.
— Você sabe, Vassílissa legorovna, que as mulheres daqui têm a mania de usar palha para acender os fogões. Como tal prática é imprudente, baixei ordens terminantes para utilizarem somente ramos secos.
— Mas por que precisou trancar Palachka na despensa?
Com esta ele não contava. Compreendeu, e mastigou uma resposta sem sentido.
Vassílissa legorovna bispou que havia gato escondido, mas nada arrancaria do marido, e desviou a conversa para os pepinos salgados, que Akulina Pamfílovna preparava de maneira toda especial. Mas passou a noite em claro, verrumando que segredo era aquele que o marido não podia revelar, ele, que não lhe escondia nada.
No outro dia, quando vinha da missa, deu com o marido retirando da boca do canhão trapos, pedrinhas, pedaços de madeira, ossos, enfim, todo o lixo que a meninada enfiava ali de brincadeira. “Por que faz aquilo?”, pensou ela. “Será que teme algum ataque dos quirguizes? Por que ele quis esconder uma bobagem daquela?”
Chegando em casa, chamou Ivan Ignátitch com a firme disposição de fazer com que ele aclarasse o mistério que tanto a atormentava.
Começou com algumas observações sobre as coisas caseiras, assim como um juiz de instrução que dá início ao inquérito com perguntas alheias à questão para engambelar o acusador e arrancar depois a confissão que tem em vista. Após um breve silêncio, deu um prolongado suspiro e disse, balançando a cabeça:
— Santo Deus! E agora esta! Como nos vamos arranjar?
— Oh, minha senhora, não se preocupe! — respondeu Ivan Ignátitch. — Soldados temos, pólvora não falta e o canhão está em forma. Com a ajuda de Deus podemos repelir Pugatchev.
— Quem é esse Pugatchev?
Ivan Ignátitch percebeu que dera com a língua nos dentes, mas já era tarde. Vassílissa legorovna obrigou-o a contar tudo, prometendo ser mais discreta do que um túmulo.
Vassílissa legorovna cumpriu dignamente a promessa não tocando no assunto com ninguém, exceção feita da mulher do padre, assim mesmo porque Akulina Pamfuovna deixava uma vaca pastando na estepe, onde corria o risco de ser roubada pelos bandoleiros.
Em dois tempos toda a gente falava de Pugatchev nas mais diversas versões. O comandante encarregou o sargento de fazer uma rigorosa investigação nas aldeias e fortalezas vizinhas. Passados dois dias o sargento voltou informando ter visto um bom número de forasteiros, a uns sessenta quilômetros da fortaleza, e ter ouvido dos basquires que uma grande força deslocava-se para a região. Infelizmente não podia garantir nada, pois não se atrevera a ir mais adiante.
Na fortaleza os cossacos ficaram intensamente agitados. Iam e vinham nas ruas, formavam grupos, conversavam em voz baixa, dispersando-se logo que viam aparecer um soldado da guarnição. Alguns homens de confiança foram designados para espioná-los, e lulai, um calmuco7 batizado, fez um importante depoimento. Estava certo de que o sargento mentira. O astuto cossaco, ao voltar da missão de reconhecimento, declarara aos companheiros que se encontrara com os revoltosos, tendo-se apresentado ao chefe, a quem beijara a mão e com quem conversara largamente. O comandante não teve dúvidas: mandou prender o sargento, ato que repercutiu muito mal entre os cossacos.
Passaram eles a resmungar ostensivamente, e certo dia, quando Ivan Ignátitch desempenhava uma ordem do comando, ouviu perfeitamente uma ameaça: — Vai ver o que é bom, rato de guarnição! — No mesmo dia o comandante resolveu interrogar o sargento, mas ele fugira da prisão, provavelmente com o auxílio dos companheiros.
Um novo caso veio aumentar a inquietação do comandante. Um basquir foi surpreendido com um manifesto de Pugatchev, o que levou Ivan Kusmitch a convocar os oficiais para outra reunião, e, como da outra vez, resolveu afastar Vassílissa legorovna com um pretexto convincente.
Como sua imaginação não é das mais fortes, veio com a mesma conversa, antecipada de um pigarro: — Olhe, Vassílissa legorovna, estão dizendo que o Padre Guerássim recebeu de Orienburg...
— Chega de embustes, Ivan Kusmitch! — gritou ela. — Quer é me afastar outra vez da reunião de oficiais para falar de Emilian Pugatchev! Não me enganará mais!
Ivan Kusmitch estava pasmo: — Se sabe de tudo, minha querida, fique.
Discutiremos em sua presença.
— Vou ficar mesmo. E deixe de bancar o esperto. Não tem o menor jeito. Vamos, mande chamar os oficiais.
Novamente nos reunimos, com a participação de Vassílissa legorovna. O comandante leu o manifesto de Pugatchev, da lavra de algum cossaco de poucas letras. O bandoleiro anunciava o propósito de atacar imediatamente a nossa fortaleza, pedia a adesão de cossacos e soldados e aconselhava os oficiais a não se oporem sob pena de execução sumaria. O manifesto era pródigo em palavras grosseiras mas veementes e devia impressionar vivamente as criaturas simples.
— Que atrevimento! — exclamou Vassílissa legorovna. — Propor que marchemos ao seu encontro e depositemos as bandeiras imperiais aos seus pés! Ah, miserável filho de uma cadela! Será que ele não sabe que temos quarenta anos de serviço ativo e já enfrentamos coisas muito piores, com a graça de Deus? Será crível que haja comandantes que se rendam a tal bandido?
— É duro saber — respondeu Ivan Kusmitch.
— Mas fomos informados que várias fortalezas já se entregaram.
— Se é assim, força ele deve ter — comentou Chvabrin.
— Tem que prová-la aqui — disse Ivan Kusmitch. — Vassílissa legorovna, dê-me a chave do depósito. E o senhor, Ivan Ignátitch, vá buscar o basquir e mande lulai trazer as chibatas.
— Espere um pouco — pediu Vassílissa legorovna, levantando-se. — Deixe primeiro eu levar Macha para um lugar distante. Ela não suporta ouvir gritos. Fica assustadíssima. Eu também, para ser sincera, não sou adepta de interrogatórios a pancada. Aos senhores que ficam, felicidades!
Naquela época, o emprego da tortura estava tão arraigado nas práticas judiciárias que o humanitário decreto que a aboliu ficou muito tempo sem ser cumprido. Pressupunha-se que a confissão do criminoso era prova cabal para imputar-lhe o crime, conceito não somente sem fundamento, como até contrário ao espírito jurídico, pois se a negativa do acusado não é admitida como prova da sua inocência, também a sua confissão extraída não deve ser considerada como prova de culpa.
Se ainda hoje ouço velhos juizes lamentarem a abolição do bárbaro costume, naquele tempo, então, ninguém punha em dúvida a necessidade da tortura, indiferentemente fossem juizes ou acusados. Por tais razões, nenhum de nós estranhou ou se alarmou com a decisão do comandante. E Ivan Ignátitch foi buscar o basquir que estava trancafiado no depósito. Não demorou a trazê-lo para o vestíbulo, mas Ivan Kusmitch mandou que o fizessem entrar na sala.
Não foi com facilidade que ele transpôs o umbral, por causa do grande e pesado grilhão que trazia. Tirou o gorro alto, e parou junto à porta. Olhei-o e tremi. Viva cem anos e não esquecerei aquela figura. Devia ter mais de setenta anos, e não tinha nariz nem orelhas. A cabeça era raspada e, como barba, uns poucos fios grisalhos. Baixo, magro e corcovado, os seus olhos fuzilavam.
— Ora! — exclamou o comandante, ao reconhecer no prisioneiro, pelos medonhos sinais, um dos rebeldes castigados em 1741. — Vejo que é lobo velho e já caiu na nossa armadilha. Vamos. Chegue mais perto e diga: quem lhe mandou vir aqui?
O velho basquir não abriu a boca, e olhava para o comandante com absoluta indiferença.
— Por que não responde? Será que não entende o russo, idiota? — falou Ivan Kusmitch. — lulai, pergunte-lhe na sua língua quem o mandou cá à fortaleza.
lulai repetiu em tártaro a pergunta de Ivan Kusmitch. Mas o prisioneiro continuou na mesma indiferença e nada respondeu.
— Não vai ficar assim! — gritou Ivan Kusmitch.
— Agora mesmo irá falar. Soldados!
Arranquem o roupão dele e esquentem-lhe bem as costas. Olhe, lulai, quero um trabalho bem feito!
Dois veteranos começaram a despir o basquir. A expressão do desgraçado, olhando para um lado e para o outro, era a de um animal acuado. Um dos veteranos pegou-lhe as mãos, colocou-as à altura do seu pescoço e assim suspendeu o velho. lulai levantou a chibata. Aí o prisioneiro deu um débil e suplicante gemido. Sacudindo a cabeça, abriu a boca e, em lugar da língua, deixou ver um pequeno toco dela.
Quando considero que isso aconteceu no meu século e que hoje vivo no tranquilo reinado do Imperador Alexandre, é impossível deixar de admirar os rápidos progressos da civilização e a propagação das doutrinas humanitárias. Jovens! Se esta minha história chegar às suas mãos, lembrem-se de que as mais sólidas transformações da humanidade são aquelas que têm por base o aprimoramento dos costumes, sem abalos violentos.
Ficamos todos perplexos com o que víamos.
— Senhores, é evidente que nada obteremos do prisioneiro — disse o comandante. — lulai, leve-o de volta para o depósito. E voltemos nós a conversar.
Começamos a analisar a nossa situação, quando Vassílissa legorovna entrou na sala, ofegante e alarmada.
— Que houve com você? — perguntou, um tanto aflito, o comandante.
— Uma desgraça! A Fortaleza de Nijneozérnaia foi tomada hoje! Um criado do Padre Guerássim acaba de chegar de lá. Assistiu a tudo. O comandante e todos os oficiais foram enforcados! Os soldados foram aprisionados!
Os bandidos, em breve, marcharão para cá!
A infausta notícia me abalou fortemente.
Conhecera o comandante da Fortaleza de Nijneozérnaia. Era um homem simples, severo, muito moço ainda. Não havia dois meses que ele estivera em Bielogorsk, vindo de Orienburg.
Acompanhava-se da esposa e pernoitara em casa de Ivan Kusmitch. A Fortaleza de Nijneozérnaia ficava a uns vinte e cinco quilômetros da nossa apenas. Assim, de uma hora para outra poderíamos ser atacados. O triste destino de Maria Ivánovna acudiu-me à mente e meu coração ficou frio. Tomei, então, a palavra: — Ivan Kusmitch, é nosso dever defender a fortaleza a qualquer preço. E sobre isso nem é preciso falar. Mas é urgente pensar na segurança das mulheres. Se o caminho para Orienburg ainda oferece possibilidade, devemos mandá-las para lá. Ou então para uma outra fortaleza mais distante, longe do alcance dos bandidos.
Ivan Kusmitch virou-se para a esposa: — É bem pensado, querida. Não seria mais conveniente levar vocês duas para outro lugar mais garantido, até liquidarmos a questão aqui?
— É uma asneira! — replicou energicamente ela. — Haverá, porventura, alguma fortaleza onde as balas não cheguem? Em que se baseia para pensar que Bielogorsk não é segura?
Graças a Deus estamos aqui há mais de vinte e um anos. Já enfrentamos basquires e quirguizes. Quem dirá que não podemos também enfrentar Pugatchev?
— Está direito — respondeu Ivan Kusmitch. — Fique se tem confiança nas nossas possibilidades. Mas pense em Macha. Tudo correrá bem se resistirmos ao ataque e recebermos reforços. Mas se não nos aguentarmos e os miseráveis tomarem a fortaleza?
Vassílissa legorovna gaguejou um pouco: — Se for assim...
— Não, Vassílissa legorovna — prosseguiu o comandante, vendo que as suas objeções haviam calado no ânimo da mulher, o que acontecia pela primeira vez na vida. — Não é prudente que Macha permaneça aqui. Vamos enviá-la para Orienburg. Ficará com a madrinha. Lá há numerosa soldadesca, canhões em penca e a muralha é de pedra. Francamente, aconselho que vá com ela. Conquanto já não seja nenhuma jovem, pense bem no que lhe acontecerá se a fortaleza for tomada.
— Concordo, em parte! — disse ela. — Que Macha seja mandada para Orienburg. Eu, porém, não arredarei o pé daqui. Não é depois de velha que me irei separar de você, nem ser enterrada sozinha em terra estranha. Se vivemos juntos, juntos morreremos.
— Se é o seu desejo, não me oponho — respondeu Ivan Kusmitch, comovido. — Mas não percamos tempo. Vá aprontar Macha para partir. Amanhã, logo cedo, sairá daqui.
Arranjaremos uma escolta, embora fiquemos desfalcados, pois nem tantos homens temos.
Mas onde Macha se meteu?
— Está em casa de Akulina Pamfílovna — informou Vassílissa legorovna. — A coitadinha desmaiou quando soube da queda de Nijneozérnaia. Tenho medo que ela fique doente. Santo Deus, que vida a nossa!
Vassílissa legorovna saiu para preparar a viagem da filha e a reunião prosseguiu. Nela, porém, não abri a boca e até nem mesmo ouvia o que diziam. Maria Ivánovna apareceu para o jantar. Estava muito pálida, os olhos marcados pelo pranto. Comemos quase que em silêncio e deixamos a mesa mais cedo que de hábito.
Despedimo-nos de toda a família e cada qual tomou o seu rumo. Eu, porém, de propósito, esquecera a espada e voltei para apanhá-la.
Tinha a certeza de que iria encontrar Maria Ivánovna sozinha. E assim foi. Ela, na porta, me entregou a espada e disse com os olhos marejados:
— Adeus, Piotr Andreitch. Estão me mandando para Unenburg. Desejo que seja feliz. Talvez Deus consinta que nos encontremos ainda.
Mas se não...
Começou a soluçar. Tomei-a em meus braços:
— Adeus, meu anjo! Adeus, sonho da minha vida! Aconteça o que me acontecer, será você o meu último pensamento, será sua minha última prece!
Macha chorava convulsamente, colada ao meu peito. Beijei-a ardentemente e parti.
Capítulo 7
O Ataque
Aquela noite não dormi, nem me despi.
Tinha o propósito de ir, cedinho, para o portão por onde Maria Ivánovna deixaria a fortaleza e me despedir dela pela derradeira vez.
Verificara-se em mim uma considerável mudança: a agitação dos meus pensamentos era menos pungente do que o abatimento em que estivera até há pouco mergulhado. À melancolia da separação vinham juntar-se uma vaga e doce esperança, uma nervosa expectativa dos perigos a enfrentar e um nobre sentimento do dever a cumprir. A noite correu sem que eu desse conta.
Já ia eu saindo de casa, quando chegou um cabo com a informação de que os cossacos haviam abandonado a fortaleza, carregando lulai, e que pelas redondezas viam-se cavaleiros desconhecidos. A hipótese de que Maria Ivánovna não pudesse deixar a fortaleza me amedrontou. Dei apressadamente umas ordens ao cabo e corri para a casa do comandante.
O dia vinha rompendo. Ia a toda, quando ouvi que me chamavam. Era Ivan Ignátitch, que me alcançou: — Aonde vai? Ivan Kusmitch está na muralha e mandou que eu viesse buscá-lo. Pugatchev chegou!
— Maria Ivánovna já foi? — perguntei angustiadamente.
— Não conseguiria. A estrada para Orienburg já foi cortada. A fortaleza está cercada. As coisas não vão bem, Piotr Andreitch!
Chegamos à muralha. Era uma elevação natural do terreno fortificada com uma paliçada. Toda a gente da fortaleza se aglomerara lá, sendo que os soldados já haviam tomado posição com os seus fuzis. O canhão fora transportado na véspera. O comandante andava de um lado para outro na frente do seu minguado contingente e a aproximação do perigo despertara no velho soldado uma energia assombrosa. Cavalgando pela estepe, não muito distante, avistava-se uma vintena de homens. Pareciam ser cossacos, mas entre eles havia também basquires, facilmente identificados pelos gorros de pele de lince e pelas aljavas. O comandante passou em revista a sua tropa e incentivou-a: — Valentes soldados! Chegou a hora de defender a imperatriz, nossa mãe, e mostrar ao mundo que sabemos cumprir o nosso juramento!
A veemência das palavras entusiasmou os soldados, que responderam com vivas!
Chvabrin, ao meu lado, olhou demoradamente o inimigo. Os cavaleiros espalhados pela estepe ouviram o grito dos soldados e se juntaram em certo ponto, parecendo conferenciar. O comandante ordenou que Ivan Ignátitch apontasse o canhão para o ajuntamento e ele próprio manejou a mecha. A bala passou zunindo por cima do grupo, sem causar-lhe mossa.
Foi quando surgiu Vassílissa legorovna, em companhia de Macha, que não queria ficar só: — Então, como vai o combate? Onde está o inimigo?
— Anda aí por perto — respondeu Ivan Kusmitch. — Mas, com a ajuda de Deus, sairemos a contento. E você, Macha, está com muito medo?
— Não, meu paizinho. Aqui fico mais tranquila do que sozinha em casa...
E me olhou, fazendo um grande esforço para sorrir. Instintivamente apertei fortemente o punho da espada, recordando-me que a recebera, na véspera, das suas mãos, como se estivesse na emergência de defendê-la. Meu coração pulsava, acelerado. Imaginava-me seu paladino e ansiava por demonstrar ser merecedor da sua confiança. Indócil, comecei a esperar pelo momento decisivo.
Mas um magote de cavaleiros apareceu por trás duma elevação, a quinhentos metros da fortaleza, e depressa a estepe estava coalhada de inumeráveis homens armados de lanças e arcos. Destacava-se, entre eles, cavalgando um cavalo branco, um homem de caftã8 vermelho com o sabre desembainhado na mão. Tratava-se de Pugatchev em pessoa.
Em dado momento, sofreou o animal. Foi cercado por numerosos comparsas e, provavelmente por uma ordem sua, quatro homens galoparam em direção à fortaleza.
Reconhecemos logo serem alguns dos nossos desertores. Um prendia, sob o gorro, uma folha de papel. Outro trazia fincada na lança a cabeça de lulai, que, lançada por cima da paliçada, veio cair aos pés do comandante. E os traidores berraram: — Não atirem! Entreguem-se ao czar! O czar está aqui!
— Vão ver o czar! — gritou Ivan Kusmitch. — Fogo, soldados!
Houve uma descarga. O cossaco que trazia o papel cambaleou e caiu do cavalo, enquanto os outros, rapidamente, retrocediam.
Olhei para Maria Ivánovna. Horripilada à vista da cabeça ensanguentada do calmuco e atordoada pelo estampido, parecia que ia perder a razão. O comandante destacou um cabo para apanhar o papel da mão do cossaco morto. O cabo trouxe também pela rédea o cavalo do bandido. Ivan Kusmitch leu o papel e rasgou-o depois em pedacinhos. Enquanto isso, os assaltantes pareciam organizar-se para desfechar o ataque. Realmente, poucos minutos após as balas começarem a assobiar sobre as nossas cabeças, umas flechas esparsas vieram cravar-se na paliçada ou cair perto de nós.
— Vassílissa legorovna, isso aqui não é assunto para mulheres! — disse o comandante. — Trate já de levar Macha embora. Não vê como ela está apavorada?
Vassílissa legorovna abaixara-se para se proteger dos tiros. Depois deles, perdera um pouco a animação. Observou a estepe, onde se processava uma grande agitação. E, virando-se para o marido, disse: — Ivan Kusmitch, nossa vida ou nossa morte depende da vontade de Deus. Abençoe sua filha. Macha, aproxime-se de seu pai.
Muito branca, tremendo, Macha se acercou do pai, ajoelhou-se e curvou-se, quase roçando a testa no chão. O velho comandante fez por três vezes o sinal-da-cruz, depois ergueu-a, beijou-a e falou com voz sufocada: — Seja feliz, Macha. Reze a Deus, e ele não se esquecerá de você. Se encontrar um homem direito, que Deus lhe dê amor e discernimento.
Vivam tão unidos quanto vivemos eu e sua mãe. Agora, adeus, Macha. Que Deus nos proteja. — E, voltando-se para a mulher: — Leve-a depressa daqui, Vassílissa legorovna!
Chorando, Macha enlaçou o pescoço do pai. E, entre lágrimas, Vassílissa legorovna falou: — Vamos despedir-nos também, Ivan Kusmitch. Adeus! Perdão se alguma vez aborreci você.
— Adeus! Adeus, minha querida! — e o comandante abraçou fortemente a velha companheira. — Agora, chega! Vão para casa que já não é sem tempo.
Vassílissa legorovna e a filha rumaram para se abrigarem em casa. Acompanhei-as com o olhar, até que Maria Ivánovna se virou e me acenou com a cabeça. Mas aí Ivan Kusmitch já se dedicava inteiramente aos seus soldados. Atentamente observou as manobras dos inimigos, que se reuniram em torno do chefe e depois apearam dos cavalos. Ivan Kusmitch alertou os seus comandados: — Agora, firmes! Eles vão atacar.
No mesmo instante, ecoaram gritos e uivos arrepiantes. Os rebeldes corriam aceleradamente para a fortaleza. O canhão estava carregado. O comandante deixou que eles chegassem bem perto e, então, mandou disparar. A bala caiu precisamente no meio dos assaltantes, que fugiram para todos os lados, deixando o chefe sozinho, brandindo o sabre, procurando convencê-los a se reincorporarem. Efetivamente conseguiu, e os gritos e uivos recomeçaram.
— Ótimo, soldados! — falou o comandante. — Agora abram o portão e toquem o tambor. Para a frente, soldados! Para atacar, sigam-me!
Num átimo, o comandante, Ivan Ignátitch e eu nos encontrávamos fora da paliçada. A guarnição, porém, amedrontada, não deu um passo.
— Como é, meus filhos? Por que estão parados? — gritou Ivan Kusmitch. — Se temos de morrer, morramos! Faz parte do nosso dever!
Mas aí os assaltantes já nos haviam envolvido e penetrado na fortaleza. O tambor silenciou. Os soldados arriaram as armas. Vi-me atirado ao chão, mas rapidamente me levantei e, misturando-me com os rebeldes, entrei na fortaleza. Ferido na cabeça, o comandante estava cercado por um grupo de bandoleiros, que lhe exigiam as chaves. Tentei ir em seu auxílio, mas alguns cossacos me seguraram, me amarraram com cintos, gritando:
— Vão pagar bem caro a desobediência ao czar!
Fomos arrastados pelas ruas. Os habitantes saíram das casas oferecendo pão e sal, que eram os símbolos da hospitalidade. Os sinos tocavam. De súbito, berraram no meio da multidão que o czar aguardava os prisioneiros na praça, onde recebia os juramentos de fidelidade. Todos correram para lá e nós fomos levados aos empurrões.
Pugatchev encontrava-se repimpado numa poltrona, diante da porta da casa do comandante. Envergava um cafetã vermelho de cossaco, enfeitado de galões. O gorro de pele de marta, com borlas douradas, enterrava-se na sua cabeça até os olhos, que luziam. O rosto não me pareceu desconhecido. Os chefes cossacos o rodeavam. Branco como cal, tremendo como vara verde, o Padre Guerássim encostava-se no portão, com um crucifixo nas mãos, e, silenciosamente, parecia suplicar pelos prisioneiros. Na praça, apressadamente armaram uma forca. Ao nos aproximarmos os basquires afastaram o povaréu e nos empurraram para diante de Pugatchev. Os sinos se calaram e baixou um profundo silêncio.
— Onde está o comandante? — perguntou o impostor.
O nosso sargento avançou e apontou Ivan Kusmitch. Pugatchev encarou severamente o velho e perguntou:
— Como teve o atrevimento de se opor a mim, que sou o czar?
O ensanguentado e enfraquecido comandante reuniu as últimas forças e respondeu com voz firme: — Não é czar, coisa nenhuma! Não passa de um ladrão e de um impostor!
Pugatchev fechou a cara e agitou um lenço branco. Imediatamente uns cossacos agarraram o velho capitão e o arrastaram para a forca. O mutilado basquir cujo interrogatório havia fracassado na véspera subiu ao travessão da forca e manejou a corda para a execução. Instantes depois Ivan Kusmitch era enforcado. Tocou, então, a vez de Ivan Ignátitch ser levado à presença de Pugatchev.
— Preste juramento a seu czar Piotr Fiodorovitch! — gritou-lhe Pugatchev.
Ivan Ignátitch repetiu as palavras do seu comandante:
— Não é czar, coisa nenhuma! Não passa de um ladrão e de um impostor!
Novamente Pugatchev agitou o lenço e o corpo do bom tenente ficou pendurado ao lado do corpo do comandante.
Chegou a minha vez. Tinha os olhos resolutamente postos em Pugatchev e me dispunha a repetir o que disseram os meus valentes companheiros. Foi quando vi, com indescritível espanto, Chvabrin entre os mais destacados chefes rebeldes. Tinha o cabelo cortado em círculo e vestia um cafetã cossaco.
Acercou-se de Pugatchev e falou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
— Forca com ele — disse o impostor, sem mesmo me olhar.
Passaram-me um laço no pescoço.
Comecei a rezar baixinho, pedindo perdão a Deus por todos os meus pecados e implorando a salvação de todos os que me eram caros. E fui arrastado para a forca.
— Não tenha medo, não tenha medo — repetiam os meus carrascos, talvez me desejando encorajar.
Aí, escutei um grito: — Esperem, malditos! Esperem!
Os homens pararam. E vi Saviélitch atirar-se aos pés de Pugatchev.
— Nosso pai! Que vai lucrar com o sacrifício de um jovem aristocrata? Conserve-o vivo e procure obter um bom resgate. Mas, se quer um exemplo para impor respeito, aqui estou.
Mande-me enforcar. Sou um velho que já não serve para nada.
Pugatchev fez um sinal com a mão e eu fui desamarrado.
— Está livre. Nosso pai o perdoou — disseram-me.
Não ouso dizer que, naquele momento, tivesse ficado alegre com a minha liberdade. Mas também não posso dizer que a lamentei. Os meus sentimentos estavam deveras perturbados. Empurraram-me para junto de Pugatchev, obrigaram-me a ajoelhar aos seus pés. Ele estendeu-me a mão de duras veias.
— Beije! Beije! — gritavam à minha volta.
Eu, porém, preferia a morte mais atroz àquela vil humilhação.
— Patrãozinho Piotr Andreitch, não seja cabeçudo! — disse baixinho Saviélitch, cutucando-me as costas. — Não lhe vai tirar pedaço! Beije a mão do bandido... Livra! Ande, beije-lhe a mão!
Fiquei imóvel. Pugatchev retirou a mão e falou com um leve sorriso: — Vossa Senhoria certamente ficou aparvalhado pela alegria. Levem-no daqui!
Levantaram-me e me deixaram livre.
Permaneci vendo o resto da terrível comédia.
Teve início o juramento de fidelidade pelos habitantes da fortaleza. Vinha um após outro, beijava o crucifixo e fazia uma reverência ao impostor. Os soldados da guarnição estavam em fila. O alfaiate da fortaleza, com a sua bem pouco amolada tesoura, ia cortando-lhes as trancas; depois de tosados, curvavam-se ante Pugatchev, que os declarava perdoados e os aceitava no bando. A cerimônia durou cerca de três horas. Por fim, Pugatchev se levantou e se afastou, seguido do seu estado-maior. Trouxeram um cavalo branco ricamente ajaezado. Dois cossacos o ajudaram a montar. Pugatchev, do alto da sela, informou ao Padre Guerássim que iria jantar em sua casa. No exato momento, ouviu-se um grito de mulher.
Alguns bandoleiros arrastavam de casa Vassílissa legorovna, desgrenhada e quase nua. Um deles já se apossara do seu casaquinho, outros traziam colchões de pena, malas, serviços de chá, roupas, em suma, o que puderam saquear.
— Misericórdia! — gritava a infeliz velha. — Levem-me para junto de Ivan Kusmitch!
De repente, deu com os olhos na forca e viu o marido pendurado, e foi como se tivesse um ataque de loucura:
— Miseráveis! Que fizeram com ele! Ivan Kusmitch meu querido, meu valente soldado!
Você escapou das baionetas prussianas e das balas turcas! E não tombou numa luta honrosa! Morreu nas mãos dum porco fugitivo.
— Façam a velha bruxa calar a boca! — gritou Pugatchev.
Um jovem cossaco descarregou um golpe de sabre na cabeça dela e Vassílissa legorovna caiu morta no sopé da escada.
Pugatchev picou o cavalo e o povaréu saiu correndo atrás dele.
Capítulo 8
Um Conviva Inesperado
A praça ficou deserta. Continuei parado no mesmo lugar, com a mente em desordem, chocado pelos trágicos acontecimentos que acabava de testemunhar. Mas o que mais me torturava era não saber o destino de Maria Ivánovna. Onde se encontrava? Que lhe teria sucedido? Tivera oportunidade de escapar?
Seria seguro o seu esconderijo? Cheio de inquietantes dúvidas, entrei na casa do comandante. Nada escapara à sanha dos assaltantes. Mesas, cadeiras e armários em pedaços. Cacos de louça cobriam o chão. O resto havia sido roubado. Subi a pequena escada que levava ao quarto de Maria Ivánovna. Pela primeira vez ali entrava. A cama havia sido revolvida pelos bandidos. O armário estava quebrado e dele tinham levado tudo.
Uma lamparina brilhava frouxamente diante do oratório vazio. Restara, intacto, o espelho pregado na parede. Onde estava a dona daquele quarto de donzela? Tive um pensamento horrível: imaginei-a nas mãos dos bandidos... E senti uma dolorosa pressão no coração. Não pude conter o choro e, em voz alta, gritei pela minha amada. Ouvi, então, um leve ruído e Palachka surgiu de trás do armário, lívida, tremendo: — Ah, Piotr Andreitch! — disse, torcendo as mãos — Que dia atroz! Que monstruosidade!
— E Maria Ivánovna? — perguntei, impacientemente. — O que aconteceu com ela?
— Está viva. Escondeu-se em casa de Akulina Pamfílovna.
— Está na casa do padre! — exclamei alarmado. — Santo Deus, Pugatchev também está lá!
Em dois pulos estava na rua e, tonto, corri para a casa de Guerássim. A distância já se ouviam gritos, gargalhadas, canções.
Pugatchev comemorava a vitória com os seus sequazes. Palachka correra em meu encalço.
Mandei que ela, sorrateiramente, chamasse Akulina Pamfílovna. A mulher do padre não demorou a vir encontrar-se comigo no vestíbulo. Trazia na mão uma garrafa vazia.
— Pelo amor de Deus! Onde está Maria Ivánovna? — perguntei na maior aflição.
— A coitadinha está deitada na minha cama, atrás do tabique. Por pouco não se dava uma desgraça, Piotr Andreitch! Felizmente, Deus não consentiu! O bandido acabava de se sentar para jantar, quando ela acordou e gemeu...
Quase morri de medo! Ele ouviu o gemido e me perguntou quem era. Fiz um salamaleque e respondi que era minha sobrinha, que se encontrava de cama, doente, há mais de uma semana. “E a sua sobrinha é moça?”, quis saber ele. Respondi que sim. Pediu, então, que a trouxesse para ele ver. Fiquei em cólicas, mas consegui apelar para uma saída expliquei-lhe que ela não se podia levantar, estava muito fraca. Não tem importância, velha. Eu vou vê-la”, disse ele. E o maldito foi mesmo espiá-la atrás do tabique. Abriu o cortinão, olhou-a com seus olhos de ave de rapina e nada fez.
Deus nos protegeu! Sabe de uma coisa? Eu e meu marido já estávamos preparados para morrer. Por milagre, a pobrezinha não o reconheceu! Santo Deus, que dia horrível!
Pobre Ivan Kusmitch! O que fizeram com ele! E Vassílissa legorovna! E Ivan Ignátitch! O que fez o bom velhote? Não sei como pouparam o senhor. E que monstro o Chvabrin! Cortou o cabelo em círculo e está participando do festim aqui em casa! Não se pode negar que é finório!
Quando falei da sobrinha doente, ele olhou para mim e o seu olhar era como uma faca que me atravessasse. Todavia, não denunciou nada e, pelo menos, ficamos devendo isso a ele.
Ouviam-se os gritos bêbados dos convivas e a voz do Padre Guerássim. Exigiam vinho e o padre chamava a mulher. Ela ficou inquieta: — Vá para casa, Piotr Andreitch! Agora não tenho tempo para atendê-lo. E os bandidos estão embriagados. Corre risco se cair na mão deles agora. Adeus, Piotr Andreitch. O que tiver de ser, será. Confiemos que Deus se apiede de nós!
Ela voltou para a sala e eu fui para casa mais apaziguado. Ao passar pela praça, vi alguns basquires em volta da forca, tirando as botas dos sacrificados. Contive a minha indignação, pois senti a inutilidade da minha intervenção. Os bandidos corriam pela aldeia, pilhando as casas dos oficiais. Por todos os cantos se ouviam os gritos dos bandidos, embriagados.
Saviélitch me esperava na porta. E exclamou ao me ver: — Graças a Deus! Cuidei que tinha caído outra vez na unha dos bandidos! Ah, patrãozinho, acredite! Os miseráveis nos surrupiaram tudo! Roupas, equipagem, louça... Carregaram tudo! Ainda bem que o deixaram com vida! O senhor reconheceu o chefe deles, patrãozinho?
— Não, não o reconheci. Quem é?
— Como, meu senhor?! Então se esqueceu daquele vagabundo da estalagem que o embrulhou e levou o seu capote de pele de lebre? De pele de lebre e quase novo! E o animalejo estragou-o logo quando o vestiu!
Fiquei atônito. Constatava, agora, a incrível parecença. E compreendia, então, o motivo do inexplicável perdão que merecia.
Como era engraçada a vida! Um capote oferecido a um vagabundo me salvara da forca, o bêbado de ontem, que perambulava pelas estalagens de estrada, era o homem que tomava fortalezas e ameaçava o império!
— O senhor não vai comer qualquer coisa? — perguntou Saviélitch, inflexível nos seus hábitos. — Cá em casa não temos nada. Mas vou arranjar-me lá fora.
Ficando só, entreguei-me à meditação.
Que iria fazer? Tanto permanecer na fortaleza dominada pelo impostor quanto acompanhar o bando era procedimento fora de cogitação, indigno de um oficial. Meu dever impunha que me apresentasse onde meus serviços pudessem ser úteis naqueles conturbados dias... Mas o amor me impelia a ficar perto de Maria Ivánovna, para a eventualidade de poder defendê-la e ampará-la. Conquanto farejasse uma bem breve mudança na situação, não podia deixar de tremer imaginando os perigos que a jovem corria.
Minhas reflexões foram cortadas pela chegada de um cossaco, que veio correndo com o recado de que “o grande czar exigia a minha presença”.
— Onde ele está? — perguntei, aprontando-me para obedecer.
— Na casa do comandante — informou o cossaco. — Quando acabou de jantar, o nosso pai foi para a casa de banhos, mas agora está repousando. Vossa Senhoria deve concordar, por tudo o que se vê, que ele é uma grande personalidade. No jantar comeu dois leitões assados. No banho, exigiu o vapor tão quente que Taras Kurotchkin não aguentou ficar fustigando-lhe o corpo com o raminho de bétula, passou-o a Fomka Bikhaiev, e a muito custo se recuperou com água fria. Sim, são procedimentos que demonstram a sua personalidade. E dizem que, no banho, viram a grande medalha que tem pendurada no peito.
De um lado, uma águia bicéfala, e do outro o seu próprio perfil!
Não achei oportuno contrariar a opinião do cossaco e acompanhei-o à casa do comandante, imaginando no trajeto o meu encontro com Pugatchev e tentando adivinhar qual seria o seu desfecho. O leitor pode facilmente avaliar o meu grau de serenidade...
Já escurecia quando chegamos à casa do comandante. A forca com as suas vítimas era uma sinistra visão. O corpo de Vassílissa legorovna ainda estava atirado próximo da porta de entrada, guardado por dois cossacos.
O rebelde que me conduzia foi comunicar a minha chegada e depressa retornou; fui levado para a sala onde, na véspera, tão ternamente me despedira de Maria Ivánovna.
Deparei com uma cena incrível. Em torno da mesa, coberta com uma toalha e crivada de copos e garrafas, estavam aboletados Pugatchev e uma dúzia de chefes cossacos, com seus gorros e berrantes camisas. Tinham os rostos vermelhos pela ação do vinho e os olhos faiscavam.
Entre eles não se encontravam os nossos dois traidores: Chvabrin e o sargento.
Ao me ver, Pugatchev me convidou: — Seja bem-vindo, Vossa Senhoria! Queira fazer o favor de escolher um lugar.
Os convivas se apertaram um pouco e eu me sentei, calado, numa ponta da mesa. Meu vizinho, que era um jovem e belo cossaco, encheu-me logo o copo de vinho; eu, porém, nem o toquei. Pus-me a observar curiosamente a assembleia. Pugatchev plantava-se à cabeceira, os cotovelos fincados na tábua, as amplas mãos apoiando o queixo escondido por espessa barba negra. O rosto de traços harmoniosos e até simpáticos não denunciava nenhuma ferocidade. Com insistência falava a um homem dos seus cinquenta anos, tratando-o ora de “conde”, ora de Timofei e uma vez por outra de ”tiozinho”. Todos se tratavam como camaradas, não demonstrando qualquer deferência especial pelo chefe.
Falaram abundantemente do assalto daquela manhã, do sucesso da revolta e de planos futuros. Cada um enaltecia as façanhas praticadas, opinava sobre a marcha dos acontecimentos e discutia abertamente com Pugatchev. E naquele singular conselho de guerra ficou resolvido um avanço sobre Orienburg, ação arrojada e que por pouco não seria coroada de êxito. A marcha contra Orienburg foi marcada para o dia seguinte.
— Agora, meus irmãos, antes de dormir — disse Pugatchev —, vamos cantar a minha canção predileta! Comece você, Tchumakov!
Com uma bela e suave voz, meu vizinho começou a entoar uma melancólica canção de barqueiro, e logo todos se lhe juntaram em coro:
Não rumoreje, velha floresta amiga,
Não perturbe os meus cismares,
Pois amanhã serei inquirido
Por um juiz tremendo — o nosso próprio czar!
Já sei o que ele me vai perguntar: “Fale, fale, pobre filho de um mujique,
Quem foi seu companheiro de assaltos
E se eram muitos, fale!”
Confesso, aos vossos pés, humildemente,
Toda a verdade, grande czar e pai nosso.
Sim, tive companheiros. Quatro eram.
O primeiro era a imensa noite escura.
O segundo, meu punhal de aço.
O terceiro, o meu brioso corcel,
E o quarto, meu arco retesado.
Tive espiões também — minhas flechas de fogo.
E o czar, nosso pai, então dirá:
“Salve, ó valente filho de um mujique,
Que tão bem roubou e respondeu!
Por uma e outra coisa vou presenteá-lo
Com um belo castelo em campo aberto,
Feito de dois postes e uma viga...”
Não é possível passar para o papel a impressão que me causou esta canção popular sobre a forca, cantada por homens que nela, um dia, iriam morrer. Seus rostos amedrontadores, suas vozes fortes e afinadas, a expressão de tristeza que imprimiam às palavras, já por si tão significativas — tudo me sacudia e me insuflava um poético horror.
Após enxugarem mais um copo, os homens se levantaram e se despediram de Pugatchev. Ia segui-los, quando Pugatchev me impediu: — Não vá. Quero conversar com o senhor.
Ficamos, então, sozinhos. Houve um mútuo e prolongado silêncio. Pugatchev não tirava o olhar de mim, piscando de vez em quando o olho esquerdo com uma extraordinária expressão de gozação e velhacaria. Por fim, entrou a gargalhar com uma tão sincera alegria que, contaminado, pus-me a rir também, sem saber por que o fazia.
— Vossa Senhoria passou um mau pedaço, hein? — disse. — Confesse que as pernas fraquejaram quando meus camaradas botaram a corda no pescoço do senhor... Viu as coisas mal paradas, hein? A esta hora estaria balançando na forca se não fosse o seu criado... Reconheci logo aquele velho malandro. Vossa Senhoria podia supor que o homem que encontrou na estrada fosse o próprio grande czar? — Aí ele tomou um ar misterioso e importante e continuou: — Para mim Vossa Senhoria tinha muita culpa. Mas eu soube perdoar pela ação generosa que praticou e porque me prestou um grande favor, quando eu tinha que me esconder dos meus inimigos. Mas ainda irá ter muito mais. Vou encher Vossa Senhoria de benefícios quando receber o meu império! Promete servir-me com dedicação?
A pergunta do impostor e a sua ousadia me pareceram tão cômicas que não pude reprimir um sorriso.
— Por que sorri? — perguntou ele, enfarruscando o semblante. — Não acredita que eu seja o grande czar? Fale com sinceridade!
Fiquei perturbado. Reconhecer o vagabundo como czar se me afigurava duma fraqueza inominável. Acusá-lo de impostor seria o mesmo que abrir o meu próprio túmulo. Tal atitude não passava de petulância inútil, sabia-o então perfeitamente, e fora o que eu pensava fazer, diante do povo, quando me passaram a corda no pescoço. E hesitei.
Com a testa franzida, Pugatchev aguardava a minha resposta. Por fim, e muito me orgulho hoje da decisão, falou em mim a voz forte do dever, sobrepondo-se à fragilidade humana, e disse-lhe: — Vou ser franco. Pensa que posso reconhecê-lo como czar? Se o fizesse, homem inteligente que é, veria que o estava enganando.
— Mas quem sou eu, no seu parecer?
— Só Deus sabe quem é! Mas, seja quem for, está se metendo numa empresa muito arriscada.
Pugatchev endureceu o olhar: — Acha, então, que eu não sou o Czar Piotr Fiodorovitch? Muito bem. Mas os ousados não têm o seu prêmio? Grichka Otriopiev não foi czar em outros tempos? Pode fazer de mim o juízo que quiser, mas fique ao meu lado. Que tem a ver com os outros? Sirva-me com dedicação e eu farei do senhor marechal e príncipe. Que tal?
Respondi firmemente: — Não posso. Sou nobre de nascimento e prestei juramento à imperatriz. Não posso servi-lo. Se gosta de mim, como diz, deixe-me ir para Orienburg.
Pugatchev pôs-se pensativo, depois falou: — Mas, se fizer o que pede, posso contar que não lutará contra mim?
— Como posso prometer tal coisa? — retruquei. — Sabe, tão bem quanto eu, que não mando em mim. Sou um militar. Se me ordenarem que marche contra você, marcharei.
É a disciplina. Você mesmo, como chefe agora, exige absoluta obediência dos seus subordinados. Que faria com quem se negasse a obedecê-lo? Bem, minha vida está em suas mãos. Se me deixar ir, eu muito agradeço. Se me condenar, Deus será o seu juiz. Assim disse tudo o que tinha francamente a dizer.
A minha sinceridade tocou Pugatchev: — Compreendo as razões — disse, dando-me uma palmada no ombro. — Se sei condenar, sei também perdoar! Pode ir para onde quiser e fazer o que achar mais certo. Amanhã venha despedir-se de mim. Agora vamos dormir, que eu estou caindo de sono.
Saí para a rua noite era fria e serena. A lua e as estrelas iluminavam fortemente a praça e a forca. Na fortaleza tudo era treva e silêncio. Apenas na taverna havia luz e gritos de retardatários. Olhei para a casa do Padre Guerássim. A porta e as janelas estavam fechadas. Dentro, tudo parecia em paz.
Fui encontrar Saviélitch preocupado com a minha ausência. Quando contei-lhe que estava livre, sua alegria foi imensa: — Deus o protegeu! — exclamou, fazendo o sinal da cruz. — Logo que amanhecer sairemos desta maldita fortaleza! E sem olhar para trás! Preparei uma coisinha para o senhor comer. Vamos, coma, patrãozinho! E durma sossegado.
Segui o seu conselho. Depois de comer com bom apetite, deitei-me no chão, cansado de corpo e espírito.
Capítulo 9
A Despedida
Eu fui despertado pelo rufar do tambor.
Era bem cedo. Dirigi-me ao ponto de reunião.
Em volta da forca, donde ainda pendiam os enforcados na véspera, alinhavam-se os homens de Pugatchev. Os cossacos estavam montados, os infantes portavam as suas armas, as bandeiras tremulavam, uns poucos canhões, entre os quais reconheci o nosso, haviam sido colocados sobre carretas de campanha. Todos os habitantes ali se encontravam à espera do impostor. Diante da porta da casa do comandante, um cossaco segurava pela rédea um magnífico cavalo branco. Procurei, com os olhos, o corpo de Vassílissa legorovna. Tinha sido levado para um canto e coberto com um pano grosseiro.
Afinal, surgiu Pugatchev e a multidão se descobriu. Ele parou à entrada da casa e fez uma larga saudação. Um dos chefes entregou-lhe um saco de moedas de cobre, e ele começou a atirá-las, aos punhados. Aos berros, o povaréu se lançou para apanhá-las e, na balbúrdia, muitos saíram pisados.
Pugatchev foi cercado pelos principais asseclas, e, entre eles, estava Chvabrin. Nossos olhares se cruzaram um instante. Ele bem pôde ler no meu o desprezo que lhe votava, mas me virou as costas, depois de um sorriso de zombaria que escondia toda a sua raiva.
Vendo-me, Pugatchev me fez um sinal com a cabeça para que me acercasse.
— Ouça bem — disse ele. — Vá sem demora para Orienburg e previna o governador e todos os generais que dentro de uma semana estarei lá. Aconselhe-os a me receberem com amor filial e obediência. Do contrário serão todos enforcados. Boa viagem a Vossa Senhoria!
Virou-se, então, para o povo e, apontando Chvabrin, declarou, levantando a voz: — Eis aqui, meus filhos, o novo comandante de vocês! Sejam obedientes, pois ele é que me responderá por vocês e pela fortaleza!
Tais palavras me horrorizaram. Chvabrin era o comandante da fortaleza! Maria Ivánovna ficaria sob a sua custódia. Que seria dela, meu Deus!
Pugatchev avançou. Trouxeram-lhe o cavalo. Agilmente cavalgou a montaria, sem esperar a ajuda dos cossacos. Foi quando Saviélitch saiu do meio do povo e entregou uma folha de papel a Pugatchev. Eu não compreendia nada.
— Que negócio é esse? — perguntou o impostor, autoritariamente.
— Faça o favor de ler e saberá — respondeu Saviélitch.
Pugatchev examinou o papel longa e atentamente. E, por fim, falou: — Por que diabo escreve de modo tão complicado? Meus nobres olhos não decifram nada! Onde está meu secretário-mor?
Um moço, com galões de cabo, correu para Pugatchev, que lhe passou o papel, ordenando:
— Leia isso alto!
Estava eu curiosíssimo em saber que coisas tinha escrito o meu servo a Pugatchev.
E, em voz alta, o secretário-mor começou a soletrar:
— “Dois roupões, um de algodão e outro de seda, seis rublos.”
— Que raio é isso? — e Pugatchev amarrou a cara.
— Mande-o ler mais — respondeu calmamente Saviélitch.
O secretário-mor continuou: — “Um uniforme de lã verde, sete rublos. Uma calça branca, cinco rublos. Uma dúzia de camisas de Linho holandês com punhos, dez rublos. Uma caixa com um serviço de chá, dois rublos e meio...”
— Que besteirada é essa? — cortou Pugatchev.
— Que tenho eu a ver com caixas e camisas de linho?
Saviélitch deu um pigarro e pôs-se a explicar:
— Senhor! É a lista das coisas que foram roubadas do meu patrão pelos bandoleiros...
— Que bandoleiros? — perguntou Pugatchev severamente.
— Perdão! A palavra saiu errada. Eu queria dizer soldados. Eles levaram tudo isso do meu patrão. Não se aborreça! O cavalo tem quatro patas e, mesmo assim, dá tropeções. Mande ler tudo até o fim.
— Leia — disse Pugatchev.
E o secretário-mor prosseguiu a leitura: — “Um cobertor de lã e outro de seda acolchoado de algodão, quatro rublos. Uma peliça de pele de raposa, forrada de lã vermelha, quarenta rublos. Um capote de pele de lebre, dado ao senhor na estalagem, quinze rublos.”
— Que diabo é isso? — perguntou Pugatchev com os olhos soltando faíscas.
Receei pela vida do meu bom servo, que procurava novamente se explicar, porém, o impostor o interrompeu, gritando: — Como tem a ousadia de me vir importunar com semelhantes bagatelas? — E, arrancando o papel das mãos do secretário-mor, atirou-o na cara de Saviélitch. — Velho cretino! Foram roubados? Que se danem! Mas você, velho safado, deve rezar noite e dia pelo resto da vida por mim e por meus soldados. Por um triz escapou de ficar pendurado juntamente com seu patrão, ao lado dos que me desobedeceram! Um capote de pele de lebre! Vou dar-lhe um casaco de pele! Mas da sua, que vou mandar arrancar, sabe?
— Está na sua vontade! — retrucou Saviélitch.
— Mas eu sou um servo e tenho que prestar contas dos pertences do meu patrão.
Pugatchev parecia estar atacado de bondade. Deu-lhe as costas e tocou o cavalo sem dizer mais nada. Chvabrin e os chefes cossacos o seguiram. Em boa ordem o bando deixou a fortaleza e o povo acompanhou-o para vê-lo partir. Ficamos na praça apenas eu e Saviélitch, que examinava a sua lista com uma expressão de profundo pesar. Vendo que Pugatchev tinha para comigo excepcionais deferências, resolvera aproveitá-las. Mas a sua artimanha não dera em nada. Eu comecei a ralhar com ele pelo inoportuno zelo, mas acabei rindo.
— Pode rir, senhor. Pode rir. Mas, quando tivermos de comprar tudo novamente, verá que não será tão divertido...
Apressei-me em ir à casa do Padre Guerássim para ver Maria Ivánovna. Akulina Pamfílovna me recebeu com uma má notícia.
Durante a noite, a moça tivera febre alta e ainda estava delirando. E me conduziu ao quarto da enferma. Aproximei-me da cama na ponta dos pés. Espantei-me com a mudança verificada no seu rosto. Ela não me reconheceu e, por largo tempo, fiquei ali pregado, indiferente ao que diziam o padre e a mulher, provavelmente palavras consoladoras. Um mundo de turvos pensamentos tomava-me o cérebro. Amedrontava-me o estado da infeliz e desamparada órfã, entregue a tão sanguinários algozes, e reconhecia a incapacidade de defendê-la. Mas, principalmente, me assustava a presença de Chvabrin. Investido na autoridade de comandante da fortaleza, em que situação ficava a pobre moça? Inocente objeto do seu ódio, era capaz de, por vingança, fazer tudo com ela. Como eu poderia evitar os seus desmandos? Como poderia livrá-la das mãos daquele malfeitor? Só me restava uma coisa: partir incontinenti para Orienburg, a fim de apressar a retomada da fortaleza de Bielogorsk e pôr na empresa tudo quanto estava ao meu alcance. Despedi-me do padre e de Akulina Pamfílovna, pedindo-lhes encarecidamente que velassem por aquela que já considerava minha esposa. Tomei, então, a mão da infeliz moça e beijei-a, molhando-a com as minhas lágrimas.
— Boa viagem, Piotr Andreitch — despediu-se Akulina Pamfílovna, que me levara até a porta.
— Queira Deus que nos vejamos em dias melhores. Não se esqueça de nós e escreva com frequência. Fora o senhor, Maria Ivánovna não tem ninguém que a proteja...
Na praça, parei um momento, olhei para a forca, inclinei-me diante dela e saí da fortaleza, tomando a estrada para Orienburg, seguido de Saviélitch.
Caminhava absorto em meus pensamentos, quando ouvi o tropel de um cavalo atrás de mim. Virei-me e vi que, da fortaleza, vinha galopando um cossaco, arrastando pela rédea um cavalo basquir.
Como me fizesse sinais, parei e logo pude reconhecer o nosso sargento. Alcançando-nos, entregou-me a rédea do outro animal: — Vossa Senhoria! O nosso pai oferece-lhe este cavalo e uma peliça que ele usava. — Na sela estava amarrado um capote de pele de carneiro. — E lhe manda ainda —acrescentou, gaguejando — uma moeda... de meio rublo...
Mas eu a... perdi no caminho... Queira perdoar-me...
Saviélitch olhou-o de esguelha: — Perdeu-a no caminho, não é? E o que é que está tinindo em seu peito, desavergonhado?
O sargento não se deu por achado: — Tinindo no meu peito? Que Deus lhe perdoe, meu velho! É o metal do bridão e não o meio rublo como supõe.
— Não há nada — intervim. — Apresente meus agradecimentos a quem lhe mandou aqui. E procure o meio rublo na volta. Se o encontrar, fique com ele para a vodca.
— Muito agradeço a Vossa Senhoria! — respondeu, fazendo o cavalo voltar. — Rezarei sempre pelo senhor!
Sem mais, meteu o cavalo a galope, com o cuidado de apertar o peito com a mão. Em pouco, desaparecia de nossa vista.
Vesti o capote, montei e acomodei Saviélitch na garupa.
— Está vendo, senhor? Não foi à toa que eu entreguei a lista àquele biltre! O ladrão sentiu remorsos... Claro que este pangaré e o capote de pele de carneiro não valem nem a metade do que nos roubaram. Mas sempre é melhor do que nada.
Capítulo 10
O Cerco da Cidade
Chegando perto de Orienburg, vimos uma grande quantidade de prisioneiros, com as cabeças tosadas e os rostos mutilados pelos ferros dos carrascos. Trabalhavam perto das fortificações, sob vigilância armada. Uns removiam o lixo acumulado no fosso, outros abriam trincheiras. Havia pedreiros carregando tijolos e reparando a muralha. No portão da cidade, as sentinelas nos mandaram parar e nos exigiram os passaportes. Mas, quando o sargento ouviu que procedíamos da Fortaleza de Bielogorsk, levou-me sem demora à presença do general.
Estava no pomar, cuidando das macieiras desfolhadas, pelo vento outonal. Ajudado por um velho jardineiro, revestia de palha os ramos para defendê-los do frio. Tinha um semblante sereno, saudável e bonachão.
Alegrou-se muito com a minha chegada e crivou-me de perguntas sobre os tétricos acontecimentos que eu presenciara. Fiz um relato completo. O velho me ouvia atentamente, sem deixar de podar os galhos secos.
— Pobre Mirónov! — murmurou ao término do meu depoimento. — É lastimável! Era um correto oficial. E a senhora dele, como era bondosa e com que perfeição salgava os cogumelos! E o que me diz de Macha, a filha do capitão?
Informei-lhe que ficara na fortaleza, aos cuidados da mulher do Padre Guerássim.
— Ai, ai, ai! É mau, muito mau! Não se pode confiar na disciplina de bandoleiros!
Lembrei-lhe que a Fortaleza de Bielogorsk não ficava muito longe e, com toda a certeza, Sua Excelência não demoraria a enviar uma boa tropa para libertar os seus habitantes. O general meneou a cabeça, dando mostra de indecisão:
— Temos que pensar, temos que pensar...
Falaremos ainda sobre o assunto. E peço que venha hoje tomar chá comigo. O conselho de guerra vai reunir-se lá em casa. Poderá fornecer-nos precisas informações sobre o vagabundo Pugatchev e o seu bando. Agora, vá descansar um pouco.
Fui para o alojamento que me havia reservado e já encontrei Saviélitch empenhado na nossa instalação. Impaciente, aguardei a hora marcada para a reunião do conselho. O leitor facilmente poderá imaginar que de forma alguma deixaria de comparecer ao conselho, que deveria ter uma decisiva influência sobre o meu destino. À hora precisa, estava na casa do general.
Lá encontrei uma das autoridades da cidade — o diretor da Alfândega, se não me engano —, um velhote gorducho e vermelho, com um cafetã de brocado. Perguntou-me logo pela sorte de Ivan Kusmitch, a quem chamava de compadre, entrecortando a todo instante o meu relato com perguntas suplementares e comentários de ordem moral, que embora não caracterizassem um conhecedor da arte militar denunciavam ao menos certa sagacidade e inteligência.
Enquanto conversávamos, foram chegando os demais convidados. Quando todos se sentaram e foi servido o chá, o general fez uma demorada e bastante precisa exposição da situação.
— Agora, meus senhores, é urgente resolver como devemos agir contra os insubmissos. Na ofensiva ou na defensiva? Qualquer um dos meios tem vantagens e desvantagens. A ofensiva traz maiores esperanças de pronto desbaratamento do inimigo. A defensiva, porém, é mais garantida. Assim sendo, vamos pôr a decisão em votação. Obedeçamos à ordem hierárquica. Primeiro votam as patentes inferiores. Senhor tenente! — continuou, dirigindo-se a mim. — Dê a sua opinião.
Levantei-me e, em sucintas palavras, tracei a personalidade de Pugatchev e as características do seu bando. Optei pela ofensiva. Mas frisei que os métodos que devíamos empregar não seriam os mesmos que se usavam contra um exército regular.
A minha opinião foi recebida pelas autoridades com patente desagrado. Viam nela apenas a irreflexão e a ousadia própria da mocidade. Houve um murmúrio, no meio do qual ouvi perfeitamente a palavra “rapazote”, proferida a meia voz. O general virou-se para mim e disse com um sorriso: — Senhor tenente! Nos conselhos de guerra é comum que os primeiros votos sejam favoráveis às ações ofensivas. É perfeitamente compreensível. Mas continuemos a votação.
Senhor conselheiro! Qual é a sua opinião?
Apressadamente o velhote de cafetã de brocado acabou de tomar a sua terceira xícara de chá, a que juntou uma boa dose de rum, e respondeu ao general:
— Sou de opinião, Excelência, que não devemos agir nem na ofensiva nem na defensiva.
— Não compreendo, senhor conselheiro — disse o general, tomado de surpresa. — A tática não dispõe de outros meios... Ou atacamos ou defendemos...
— Vossa Excelência se esqueceu do suborno...
— Eh, eh, eh! A sua opinião é da maior sensatez! A corrupção é movimento que tem cabimento na estratégia militar. Iremos aproveitar seu conselho. Podemos prometer uns setenta rublos pela cabeça do bandoleiro...
Até mesmo cem... Há verbas secretas...
— Pois, então! — interrompeu-o o conselheiro da Alfândega. — Quero ser um carneiro quirguiz e não um conselheiro, se os patifes não entregarem seu chefe atado de pés e mãos.
— Vamos pensar um pouco mais, depois resolveremos — falou o general. — Ainda há outras opiniões a serem ouvidas. Continuemos obedecendo à hierarquia. Senhores, formulem seus votos!
Os votos foram unanimemente contrários ao meu. As autoridades aventaram a falta de confiança na tropa, a incerteza do sucesso, a necessidade de prudência e outras coisas do mesmo estilo. Todos estavam acordes em se manter sob a proteção dos canhões, atrás da forte muralha, e não aventurar em campo raso uma duvidosa vitória. Ouvidas todas as opiniões, o general sacudiu a cinza do cachimbo e falou em tom oratório: — Meus senhores! Cumpre-me declarar que compartilho a opinião do senhor tenente.
Fundamenta-se ela nas melhores regras da tática bélica, que prefere, na maioria dos casos, os movimentos ofensivos aos defensivos.
Aí o general fez uma pausa para encher o cachimbo. O meu amor-próprio triunfava e eu olhava soberanamente para as autoridades, que confabulavam entre si, demonstrando preocupação e desagrado. E, misturando um fundo suspiro com uma baforada, o general continuou:
— Mas, meus senhores, eu não poderia arcar sozinho com tamanha responsabilidade, quando está em jogo a segurança das províncias a mim confiadas por Sua Majestade, nossa sereníssima czarina. Por conseguinte, concordo com a maioria dos votos, que decidiu ser mais sensato e mais garantido esperar o cerco da cidade, repelindo os ataques inimigos com a artilharia e, conforme as circunstâncias, tentando algumas sortidas.
Tocou às autoridades olharem para mim com ar de mofa. E o conselho foi dissolvido.
Não pude deixar de lamentar a frouxidão do digno general, que, em vez de impor a sua opinião de militar, aceitava a de pessoas desconhecedoras do assunto.
Passados uns poucos dias, fomos informados de que Pugatchev, fiel à promessa feita, se aproximava de Orienburg. De cima da muralha divisei as tropas rebeldes. Pareceu-me que o seu número engrossara pelo menos dez vezes desde o assalto que eu testemunhara. E vinham fortalecidas por numerosas peças de artilharia, tomadas, certamente, às pequenas fortalezas subjugadas. Recordei-me, então, da deliberação do conselho e quase chorei de tristeza, imaginando o demorado isolamento em que íamos ficar na fortaleza.
Não pretendo narrar todo o cerco de Orienburg, que pertence à História. Limito-me a dizer que, por imprevidência do comando, foram seis meses de fome e terríveis provações.
Não é preciso muita imaginação para conceber quão insuportável tornou-se a vida em Orienburg. A população esperava, sob a maior depressão, o desfecho daquela luta, certa de que a sorte lhe seria adversa. Tudo faltava. O povo acabou acostumando-se às granadas que caíam nos quintais. E até as constantes investidas de Pugatchev perderam o interesse.
Eu estiolava de tédio. O tempo corria, nenhuma carta chegava de Bielogorsk, pois todas as estradas estavam interceptadas. A separação de Maria Ivánovna tornou-se intolerável, amargurado como estava eu pela incerteza do seu destino. As sortidas constituíam meu único passatempo. Graças a Pugatchev, possuía um excelente cavalo. Com ele dividia as minhas parcas rações, com ele saía todos os dias da cidade para escaramuças com os bandoleiros. Nessas escaramuças, eles, em geral, levavam a melhor — mesmo bêbados, estavam bem alimentados e tinham melhores animais. A combalida cavalhada da cidade não poderia competir com a deles. Às vezes, também a nossa esfomeada infantaria saía a campo, mas a espessura da neve não consentia que manobrasse com êxito contra os espalhados inimigos. Inutilmente os canhões ribombavam sobre a muralha; na estepe, porém, se atolava e não se conseguia deslocar em virtude da fraqueza dos cavalos. Assim se desenvolviam as nossas ações militares! E era a inoperosidade que as autoridades de Orienburg chamavam de sensata e garantida!
Certo dia, quando conseguimos, com muita dificuldade, desbaratar e pôr em retirada um grupo bastante numeroso, caí a fundo sobre um cossaco que se atrasara dos companheiros. Já ia abatê-lo com um golpe de sabre, quando, tirando o gorro, ele gritou: — bom dia, Piotr Andreitch! Como vai o senhor? Assombrado, reconheci o nosso sargento. E fui tomado de indescritível alegria.
— Bom dia, Maximitch. Faz muito tempo que saiu de Bielogorsk?
— Há pouco, Piotr Andreitch. Ontem mesmo ainda estava lá. E até trouxe uma cartinha para o senhor.
— Onde está? — perguntei, ansioso.
— Cá guardadinha! — e batia no peito. — Prometi a Palachka que daria um jeito de entregá-la ao senhor.
Entregou-me um papel dobrado e se foi a galope. Com as mãos tremendo de emoção, desdobrei o papel e li:
Por vontade de Deus vi-me privada, subitamente, de meus pais. Não tenho mais no mundo parentes ou protetores. Recorro ao senhor, pois sei que sempre me estimou e sempre está disposto a ajudar qualquer pessoa.
Rogo a Deus para que esta carta chegue às suas mãos. Maximitch jurou entregá-la. Ele disse a Palachka que de vez em quando vê o senhor nas sortidas e que o senhor não tem o menor cuidado, parecendo não pensar naqueles que, com lágrimas, rezam a Deus pela sua sorte. Estive muito tempo doente. Quando fiquei boa, Aliexiei Ivánovitch, que substituiu meu pai no comando da fortaleza, obrigou o Padre Guerássim a me entregar a ele, ameaçando denunciá-lo a Pugatchev. Estou morando em nossa casa, guardada por sentinelas. Aliexiei Ivánovitch vive forçando-me a casar com ele. Diz que me salvou a vida, encobrindo a mentira de Akulina Pamfílovna, que dissera aos bandidos ser eu uma sua sobrinha. Para mim, prefiro a morte a me casar com um homem como Aliexiei Ivánovitch. Ele me trata com a maior crueldade e está sempre ameaçando de me levar para o acampamento de Pugatchev, se eu não aceder aos seus rogos. Lá eu acabaria desgraçada.
Pedi a Aliexiei Ivánovitch que me desse um prazo para pensar. Ele concordou em esperar mais três dias, mas, se eu não aceitasse o casamento, não teria clemência. O senhor, Piotr Andreitch, é a minha única salvação. Ajude esta infeliz! Peça ao general e aos comandantes que nos mandem socorrer urgentemente. E venha o senhor também, se for possível.
Sua humilde amiga e desamparada órfã
MARIA MIRÓNOV
Ao ler a carta, quase fiquei louco. Galopei para a cidade, esporeando sem tréguas meu cavalo. E, pelo trajeto, ia desordenadamente concebendo mil modos de salvá-la, mas claro é que nenhum era eficiente. Transpondo o portão da cidade, fui diretamente para a casa do comandante, onde entrei precipitadamente.
O general estava andando na sala, de um lado para outro, fumando o seu cachimbo. Ao me ver, estacou. Espantado com o meu transfigurado aspecto, quis logo saber a razão da minha inopinada visita.
— Excelência, corro ao senhor como se fosse a meu pai! Pelo amor de Deus, atenda ao pedido que lhe vou fazer! Está em jogo a felicidade da minha vida!
— Mas o que se passa, meu caro? Que posso fazer? Diga!
— Excelência, eu imploro que me dê o comando de uma companhia de soldados e meia centena de cossacos. Prometo tomar a Fortaleza de Bielogorsk!
O general encarou-me severamente, julgando, naturalmente, que eu ficara maluco, coisa que não estava muito longe de ser verdade...
— Não compreendo! Tomará a Fortaleza de Bielogorsk?
— Posso jurar que sim, general — respondi ardentemente. — Basta o senhor me dar a tropa que peço.
— Não é possível, meu jovem amigo — e ele balançou negativamente a cabeça. — É considerável a distância que nos separa de Bielogorsk. Seria fácil ao inimigo cortar as comunicações e aniquilar a sua tropa! Com as comunicações cortadas...
Achei ridículo que ele, naquele momento, se preocupasse com teorias estratégicas, e interrompi-o desaforadamente: — A filha do Capitão Mirónov conseguiu remeter-me uma carta. Pede socorro! Chvabrin quer obrigá-la a se casar com ele!
— Que me diz? Esse Chvabrin é um patife de marca maior! Quando cair nas minhas unhas, será julgado sumariamente e fuzilado na muralha da fortaleza! Mas, por enquanto, devemos ter paciência...
— Que paciência?! — gritei, exaltado. — Enquanto isso ele se casará com Maria Ivánovna!
— Oh! eis uma coisa que não tem grande importância! É até melhor para ela que se case com Chvabrin. Terá a proteção do celerado.
Depois de fuzilado, Deus nos ouça, haveremos de encontrar um marido decente para ela. As viuvinhas encontram marido mais depressa do que as solteiras...
— Prefiro morrer a entregá-la a Chvabrin! — enfureci-me.
— Ah, meu caro! Estou compreendendo tudo.
O senhor está apaixonado por Maria Ivánovna.
Bem, assim o caso muda de figura! Pobre rapaz! Mas mesmo assim não lhe posso ceder a tropa que me pede. Tal expedição não tem cabimento! Não poderia nunca assumir tão grande responsabilidade!
Abaixei a cabeça, sentindo-me desamparado. A angústia me tomava dolorosamente o peito. Mas, de repente, tive uma ideia genial. Qual seja ela, o leitor verá no capítulo seguinte, como costumavam dizer os romancistas antigos.
Capítulo 11
A Aldeia Amotinada
Despedi-me do general e corri para casa.
Saviélitch me brindou com as suas costumeiras advertências: — Que mania tem o senhor de andar lutando contra ladrões embriagados! Não é próprio de nobres! A todo momento está correndo o risco de morrer! Se ao menos fosse contra turcos ou suecos, não dizia nada. Mas contra esta canalha!
Cortei a lengalenga com uma pergunta: — Quanto dinheiro ainda tenho?
— O bastante para as necessidades do senhor — respondeu, muito contente. — Os patifes não puseram a mão nele. Dei um jeito de escondê-lo...
E, realmente, sacou das entranhas do cafetã uma comprida bolsa de tricô, gorda de moedas de prata.
— Ótimo, Saviélitch! Passe-me para cá a metade e guarde o resto. Vou à Fortaleza de Bielogorsk.
— Meu patrãozinho Piotr Andreitch! — disse o bondoso servo com a voz tremida. — Como pode empreender tal viagem, quando os bandidos dominam todas as estradas? Pense nos seus pais, se não quer pensar no senhor!
Por que ir lá? Tenha um pouco de paciência.
Não tardará que cheguem tropas de reforço e desanquem os bandoleiros. Então, sim, poderá ir aonde quiser.
Minha resolução, porém, era inabalável: — Perde seu tempo com tais argumentos. Eu preciso ir e não deixarei de ir. Não fique triste, Saviélitch. Deus é grande e nós ainda nos veremos. Mas olhe uma coisa: não fique com somiticarias. Compre tudo o que for preciso, mesmo três vezes mais caro! O resto do dinheiro será um presente meu, se não voltar depois de três dias...
— Que está dizendo, senhor? — interrompeu-me Saviélitch. — Pensa que eu vou deixá-lo ir sozinho? Nem em sonho me peça tal coisa! Se está decidido a partir, eu irei atrás nem que seja a pé. Que ficaria fazendo aqui? Pode fazer o que lhe der na cabeça, mas eu não abandonarei o senhor!
Não ignorava que era absolutamente inútil discutir com Saviélitch, e deixei que ele começasse os seus preparativos para a viagem.
Foi rápido e, meia hora depois, montei no meu magnífico cavalo, enquanto Saviélitch se encarapitava num matungo, esquelético e manco, que lhe fora dado por um vizinho por não ter condições de alimentá-lo. No portão da cidade, as sentinelas não nos puseram obstáculos, e marchamos para Bielogorsk.
Começava a ficar escuro. A estrada que tomamos passava pela aldeia de Berdsk, onde Pugatchev se abrigava. Estava ela coberta pela neve, mas por toda a extensão da estepe encontravam-se pegadas de cavalos, diariamente renovadas. Ia a trote e Saviélitch, que não podia acompanhar a andadura, a todo minuto gritava de longe: — Mais devagar, patrãozinho! Pelo amor de Deus, vá mais devagar! Meu desgraçado animal não pode emparelhar com o do senhor!
Por que tanta pressa? Não vamos a nenhuma festa, caramba! Vamos é a caminho de um tiro!
Cuidado, patrãozinho! Não se precipite! Santo Deus, a cada momento estou vendo morto o filho do meu amo!
Não demorou que víssemos brilhar as luzes de Berdsk. Chegamos à ravina, que era a defesa natural da povoação, e Saviélitch não se afastou de mim, num ininterrupto chorrilho de lamentações. Eu pretendia rodear a aldeia, mantendo uma cautelosa distância que me livrasse de complicações. Mas, de repente, divisei na escuridão, bem à minha frente, uns cinco mujiques armados de paus: era uma guarda avançada de Pugatchev. Intimaram que parássemos. Ignorando a senha, arrisquei passar por eles calado. Mas fomos cercados e um deles segurou o meu cavalo pela rédea.
Desembainhei o sabre e descarreguei-o na cabeça do mujique. Foi salvo pelo gorro, mas cambaleou e largou a rédea. Os outros, perturbados, recuaram. Aproveitei a confusão, esporeei o cavalo e saí a galope.
As trevas da noite que tombava favoreciam a minha escapada. Mas, olhando para trás, vi que Saviélitch não me seguia. O pobre velho, com o cavalo que tinha, não se podia livrar dos bandidos. Que fazer? Esperei uns minutos e, convencendo-me de que ele fora apanhado, voltei para socorrê-lo.
Chegando perto da ravina, ouvi ruídos, gritos e a voz de Saviélitch. Esporeei o cavalo e em pouco me encontrei entre os homens que me haviam detido momentos antes. Tinham desmontado Saviélitch e estavam amarrando-o. À minha chegada pularam de alegria. Aos gritos atiraram-se contra mim e me arrancaram o cavalo. E aquele que parecia ser o chefe disse que nos ia levar imediatamente à presença do czar: — É o nosso pai. Ele é o que irá resolver se enforcaremos vocês agora ou quando o sol nascer.
Era inútil qualquer resistência, e lá fomos levados em triunfo pelos mujiques. Transpusemos a ravina e entramos na aldeia.
Havia luz, barulho e gritaria por toda parte. As ruas estavam cheias de gente, mas, graças à escuridão, meu uniforme de oficial passou despercebido. Conduziram-nos para uma isbá levantada numa encruzilhada, em cuja porta havia dois canhões e dois barris de vinho.
— O palácio é aqui — falou um dos homens. — Vou comunicar que os prendemos.
E entrou. Olhei para Saviélitch. Ele fez o sinal-da-cruz e começou a rezar baixinho. A demora foi grande, mas, por fim, o mujique voltou e me disse:
— Nosso pai quer falar com o oficial.
Penetrei na isbá, ou no palácio, como o chamavam os mujiques. Estava iluminada por duas velas de sebo e inteiramente forrada de papel dourado. Mas os bancos, a mesa, o lavatório pendurado por uma corda, a toalha num prego, o fogão com muitos potes em cima, tudo, enfim, não destoava duma isbá qualquer.
Pugatchev estava sentado sob os ícones. Vestia um cafetã vermelho, na cabeça um gorro cossaco. Tinha as mãos nos quadris e exibia uma atitude importante. Ao seu lado, com um fingido ar de dependência, estavam alguns dos seus principais camaradas. Fazia-se notório que a notícia da prisão de um oficial despertara intensa curiosidade entre os bandoleiros, que se preparavam para recebê-lo solenemente.
Pugatchev logo me reconheceu e, como num passe de mágica, a sua soberana pose desapareceu:
— Ora, é Vossa Senhoria? — perguntou com vivacidade. — Como passa? A que devemos a honra da sua visita?
Respondi que viajava por assuntos particulares e que os seus homens me haviam interceptado.
— Que assuntos particulares são esses, poderia dizer-me?
Fiquei sem saber como responder.
Pensando que eu não me queria externar diante de estranhos, ordenou aos camaradas que saíssem. Todos abandonaram a sala, menos dois, que ficaram impassíveis.
— Não tenha receio de falar na frente deles — explicou o impostor. — São de absoluta confiança. Nada lhes escondo.
Olhei de esguelha para os seus confidentes. Um era velho e desgastado.
Corcovava, tinha a barba rala e branca e não demonstrava nada de especial, fora uma fita azul passada a tiracolo sobre o capote. Mas se tiver mil anos não esquecerei o outro. Era alto, gordo, espadaúdo, parecia ter uns quarenta e cinco anos. A densa barba ruiva, os olhos cinzentos e rutilantes, o nariz mutilado e as avermelhadas manchas de bexiga que lhe salpicavam a testa e as faces emprestavam ao seu rosto uma expressão inexplicável. Vestia uma camisa vermelha, um casaco quirguiz e a calça de cossaco. O velho, fiquei sabendo depois, era o Cabo Bieloboródov, desertor do Exército imperial, e o outro, chamado Afanási Sokolov, porém mais conhecido pelo apelido de Palmada, era um criminoso que por três vezes conseguira fugir das minas da Sibéria.
A impressão causada por aqueles dois homens, diante dos quais eu fora inesperadamente parar, era tão viva que, por um momento, varreu do meu cérebro todas as preocupações. Pugatchev, porém, me trouxe de volta à realidade, perguntando-me: — Gostaria de saber por que motivo deixou Orienburg!
Um singular pensamento me acudiu: se a fatalidade me punha pela segunda vez diante de Pugatchev, é que me estava oferecendo a oportunidade de realizar o meu intento. Não quis que ela me escapasse e, sem refletir no que verdadeiramente poderia resultar a minha temeridade, respondi:
— Porque quero ir a Bielogorsk libertar uma órfã, que lá está sendo maltratada.
Os olhos de Pugatchev soltaram faíscas: — Que me diz? Qual dos meus homens se atreveu a maltratar uma órfã? Seja quem for, não escapará à punição! Diga! Quem é?
— Chvabrin. Ele mantém presa aquela moça que viu doente em casa do Padre Guerássim, lembra-se? Quer obrigá-la a se casar com ele.
— Pois irá receber uma boa lição! — disse Pugatchev, muito sério. — Para aprender que sou inflexível com quem é indisciplinado e maltrata o povo. Não escapará da forca!
— Uma palavra! — disse Palmada com voz rouca.
— Você se apressou em nomear Chvabrin comandante da fortaleza, como se apressa agora em mandar enforcá-lo. Já alarmou os cossacos, dando-lhes um chefe que é nobre.
Não alarme agora os nobres, enforcando um deles à primeira denúncia...
— Não vejo razão para poupar os nobres! — acrescentou o velho da fita azul. — Enforcar Chvabrin é coisa que não tem nenhuma importância. Mas seria também conveniente interrogar minuciosamente o oficial. Por que fez a queixa? Se ele não o reconhece como czar, não tem o direito de pedir a sua justiça.
Se o reconhece, por que até agora estava metido em Orienburg com os nossos inimigos?
Não acha que seria bom levá-lo para a isbá de interrogatórios e acender lá um foguinho?
Tenho cá minhas suspeitas de que Vossa Senhoria foi mandado pelo comandante de Orienburg.
A lógica do velho me pareceu muito forte.
E fiquei frio ao pensar em que unhas fora parar.
Pugatchev percebeu a minha perturbação.
— Vossa Senhoria está vendo? — e piscou-me o olho. — Meu marechal-de-campo não é de meias medidas. Que me diz?
O bom humor de Pugatchev restabeleceu-me o equilíbrio. E serenamente respondi que, achando-me em seu poder, ele poderia fazer comigo o que lhe desse na telha.
— Exatamente! — concordou Pugatchev. — Mas Vossa Senhoria me precisa contar em que condições está a cidade.
— Graças a Deus tudo está normal.
— Normal?! Como está normal se o povo morre de fome?
Era a pura verdade. Mas, fiel ao meu juramento, procurei convencê-lo de que aquela história de fome não passava de boato e que, em Orienburg, havia provisões de sobra.
— Está vendo só? — rosnou o velho. — Ele está mentindo com o maior descaramento!
Todos os fugitivos são unânimes em dizer que a fome campeia em Orienburg, e que já dão graças a Deus quando encontram uma carniça. No entanto Vossa Senhoria afirma que lá não falta nada. Se quer enforcar Chvabrin, não me oponho. Mas faça o mesmo com este rapaz. Seria uma dupla limpeza!
As considerações do infernal velhinho, segundo me pareceu, fizeram Pugatchev vacilar. Venturosamente, Palmada começou a se opor ao camarada:
— Chega de matança, Naumitch! Com mil diabos, você só pensa em enforcar e apunhalar! Grande herói me saiu! Não sei que raio de coisa tem na cabeça! Está com o pé na cova, mas não pensa senão em desgraçar os outros. Será que não tem nada na consciência?
— Santo do pau oco! — retrucou Bieloboródov.
— Onde foi arranjar tanta bondade?
— Claro que também sou um pecador — respondeu Palmada. — Este braço — e fechou a grossa mão, arregaçou a manga e mostrou o cabeludo antebraço — já derramou muito sangue cristão. Mas só matei inimigos. Jamais toquei num hóspede. E o fiz com minhas armas e não com intrigas de mulher!
O velho virou a cara e rosnou o insulto: — Nariz cortado!
— Que é que rosnou aí, velho miserável? — gritou Palmada. — Eu vou-lhe mostrar o que é nariz cortado! Seu dia chegará, cachorro velho!
Deus não irá permitir que escape à torquês do carrasco... Enquanto não chega o dia, ande com jeito para que eu não lhe arranque a barbicha!
— Senhores generais! — gritou Pugatchev em tom solene, mas conciliador. — Vamos parar com esta briga! Se todos os cães de Orienburg esperneassem na forca não seria nada. Mas que os nossos se estraçalhem entre si é péssimo! Acabem com o bate-boca. Façam as pazes!
Bieloboródov e Palmada não prosseguiram na discussão, mas entreolhavam-se de cara fechada. Senti a premente necessidade de dar outro rumo à conversa, que poderia ter um fim muito desagradável para mim, e, endereçando-me a Pugatchev, disse em tom alegre: — Ah, esqueci-me de agradecer-lhe o excelente cavalo e o capote. Sem a sua delicadeza fatalmente não teria chegado a Orienburg.
Teria morrido de frio no caminho...
O ardil deu certo. O semblante de Pugatchev se abriu:
— Recebe-se com uma mão, dá-se com a outra! — e piscou os olhos. — Mas me conte o que tem com a moça que Chvabrin mantém presa. Não estará apaixonado?
— Ela é minha noiva — confessei, percebendo que o ambiente mudara favoravelmente e não achando preciso esconder a verdade.
— Sua noiva? Por que não me disse logo? Pois vamos casá-los e comemorar condignamente o casório! — E, virando-se para Bieloboródov: — Olhe, meu marechal, Vossa Senhoria e eu somos velhos amigos. Sentemo-nos e jantemos. A noite é boa conselheira. Amanhã tomaremos uma decisão a respeito dele.
Tinha vontade de recusar o convite, mas era impraticável. Duas jovens cossacas, filhas do dono da isbá, forraram a mesa com uma toalha branca. Trouxeram pão, sopa de peixe, vinho e cerveja. E novamente me encontrei à mesa com Pugatchev e seus sinistros sequazes.
O festim, do qual fui involuntária testemunha, se arrastou até altas horas da noite. Mas, afinal, o álcool fez o seu efeito.
Pugatchev caiu no sono na cadeira mesmo. Os dois outros participantes se levantaram e me fizeram sinal para que o deixasse dormir. Saí com eles. Palmada mandou que uma sentinela me conduzisse à isbá que servia de prisão. Lá encontrei Saviélitch, e com ele fiquei trancado a chave.
O meu dedicado servo estava tão espantado com a marcha dos acontecimentos que nem fez perguntas. Acomodou-se num canto, e por algum tempo suspirou e gemeu.
Por fim, começou a roncar. Então, afundei-me num mar de pensamentos e passei toda a noite em claro.
De manhã, Pugatchev mandou chamar-me. Diante da porta da sua isbá estava uma troica e tártaros eram seus três cavalos. O povo se acotovelava na rua. Encontrei Pugatchev no vestíbulo com roupa de viagem, peliça e gorro quirguiz. Os dois camaradas da véspera o ladeavam, mas mostravam uma atitude submissa muito diferente da que tinham na noite anterior. Pugatchev me cumprimentou com grande cordialidade e me mandou sentar ao seu lado na troica.
— Toque para a Fortaleza de Bielogorsk! — ordenou ao espadaúdo tártaro que, de pé, conduzia o veículo.
Meu coração pôs-se a bater com violência. Os cavalos arrancaram, os guizos tilintaram e a troica parecia ter asas. Foi quando ouvi a voz que me era tão familiar: — Pára! Pára!
Saviélitch vinha correndo atrás de nós.
Pugatchev deu ordem de parar. O velho servo implorou:
— Patrãozinho Piotr Andreitch! Não me abandone depois de velho no meio destes bandi...
— Ah, velho safado! — exclamou o impostor. — Mais uma vez Deus nos faz encontrar! Vamos, ajeite-se aí na frente.
— Obrigado, senhor! Obrigado, meu pai! — e Saviélitch, rápido, se acomodou. — Que Deus lhe dê cem anos de vida! Rezarei pelo senhor o resto da minha existência e nunca mais falarei no capote de pele de lebre.
Aquele capote de pele de lebre acabaria agastando seriamente Pugatchev, mas, felizmente, ele não ouviu, ou desdenhosamente fingiu que não ouviu a inoportuna menção. Os cavalos recomeçaram a galopar. À passagem da troica, o povo parava e curvava-se em profunda reverência. Com um movimento de cabeça, Pugatchev agradecia, ora para um lado, ora para o outro. Depressa deixamos a aldeia e desabalamos pela estrada plana.
É fácil calcular a emoção que eu experimentava. Dentro de poucas horas iria ver aquela que já considerava perdida.
Encenei, mentalmente, o momento do encontro... Pensei também no homem em cujas mãos repousava o meu destino e que, por singulares e misteriosas circunstâncias, se ligara tanto a mim. Recapitulei os seus atos monstruosos, os seus hábitos sanguinários. E dizer-se que era tal criminoso que espontaneamente se encarregava de libertar a minha amada! Ele, porém, não sabia que Macha era filha do Capitão Mirónov... Talvez Chvabrin, ameaçado, revelasse a verdade... Ou mesmo, por outra maneira, poderia descobrir tudo... Que seria, então, de Maria Ivánovna?
Um frio me percorreu-me a espinha e meus cabelos se arrepiaram.
De repente, Pugatchev arrancou-me dos meus sobressaltados pensamentos: — Por que Vossa Senhoria está tão pensativo?
— Como não poderia estar? Sou oficial e nobre.
Ainda ontem lutava contra o senhor, hoje estou aqui ao seu lado e toda a minha felicidade depende do seu poder!
— Mas, por acaso, está com medo?
Respondi que, tendo sido já uma vez perdoado por ele, tinha confiança não só na sua clemência como na sua ajuda.
— Tem razão! Deus é testemunha de que tem razão! Viu como os meus companheiros olhavam Vossa Senhoria com maus olhos.
Ainda hoje o velho Bieloboródov teimava que era um espião e que deveria ser torturado e enforcado. Eu, porém, repeli a ideia — e abaixou a voz para que Saviélitch e o cocheiro não ouvissem — porque não me esqueci daquele copo de vinho e daquele capote de pele de lebre. Está vendo que não sou tão cruel como apregoa a sua gente...
Acudiu-me a tomada de Bielogorsk, mas achei prudente silenciar sobre ela, e fiquei calado. Houve uma breve pausa e ele voltou: — Que dizem de mim em Orienburg?
— Dizem que é difícil vencê-lo. Seu nome impõe respeito.
O rosto de Pugatchev era todo vaidade: — É a verdade nua e crua! Estou empregando uma tática invencível! Que dizem lá da batalha de Luseieva? Morreram quarenta generais, quatro exércitos imperiais foram aprisionados... Acha que o rei da Prússia seria capaz de igual façanha?
A jactância do impostor me pareceu engraçada e quis que ela se prolongasse: — E que acha de si mesmo? Poderia derrotar o grande Frederico?
— Como não? Tenho derrotado todos os generais de vocês e, no entanto, eles venceram Frederico... Até agora não perdi uma batalha sequer! É dar tempo ao tempo e eu marcharei sobre Moscou.
— Quer mesmo marchar sobre Moscou?
Por um momento, Pugatchev pareceu meditar. Depois disse em voz baixa: — Deus é quem sabe. Tenho as minhas dificuldades e meu poder é limitado. Meus companheiros querem ser espertos demais...
São todos uns ladrões... Tenho que andar com muita cautela. Ao primeiro insucesso, não trepidarão em entregar a minha cabeça para salvar a deles...
— Sem tirar nem pôr! Não seria melhor deixar que se arranjassem e rogar clemência à imperatriz?
Pugatchev sorriu com amargura: — Não. Já é muito tarde para me arrepender.
Nunca que obteria clemência! Tenho que prosseguir na empreitada que iniciei. Quem sabe? Talvez dê certo. O impostor Grichka Otriopiev não reinou em Moscou?
— Mas ignora como terminou? Foi jogado da janela, apunhalado, queimaram seu corpo, pegaram nas cinzas e com elas carregaram um canhão... E atiraram!
— Preste atenção. Vou contar uma história que ouvi de uma velha calmuca, quando era menino. Um dia, a águia perguntou ao corvo por que ele vivia trezentos anos e ela apenas trinta e três. O corvo respondeu que era por uma razão muito simples: enquanto ela bebia sangue fresco, ele se alimentava de carniça. A águia refletiu bem e resolveu experimentar tal espécie de alimentação. Voaram juntos, ficaram voltejando até que viram um cavalo morto. Desceram e o corvo começou a bicar a carniça, e a cada bicada elogiava a carne podre. A águia se decidiu, deu uma bicada, outra, bateu as asas e disse: ”Não, compadre corvo! Em vez de comer carne podre trezentos anos, prefiro deliciar-me com sangue vivo uma vez só e, depois, seja o que Deus quiser!” Não é uma boa história?
— É curiosa. Mas acho que viver de assassinatos e roubos é o mesmo que comer carniça.
Pugatchev me olhou espantado, mas nada respondeu. Por um bom espaço de tempo, viajamos em silêncio, cada um entregue aos seus pensamentos. Às voltas tantas, o cocheiro tártaro começou a entoar uma canção cheia de tristeza. Saviélitch cochilava, e a troica ia comendo a plana e branca estrada de inverno. De repente, divisei uma aldeia à íngreme margem do rio laizk, com a sua paliçada e a sua igrejinha, e quinze minutos depois entrávamos na Fortaleza de Bielogorsk.
Capítulo 12
A Órfã
A troica foi diretamente à casa do comandante. O povo, reconhecendo os guizos, corria atrás dela e cercou-a quando parou.
Chvabrin foi receber o impostor na porta. O traidor vestia-se como cossaco e deixara a barba crescer. Ajudou Pugatchev a descer, desdobrando-se em atenções servis. Ao dar comigo, ficou perturbado, mas logo se dominou e me estendeu a mão: — Viva! Já é um dos nossos? Devia ter-se passado há mais tempo!
Virei-lhe o rosto, sem dar resposta.
Senti uma dor no coração, quando entrei na sala que tão familiarmente frequentara. Na parede ainda se achava pendurado o diploma de oficial como um triste epitáfio do tempo passado. Pugatchev foi sentar-se no mesmo divã em que Ivan Kusmitch tirava a sua sesta, ninado pelos muxoxos da esposa. Chvabrin fez questão de pessoalmente lhe servir vodca.
Pugatchev escorropichou um cálice e disse, apontando para mim: — Ofereça também a Sua Senhoria!
Chvabrin acercou-se com a bandeja, mas novamente virei-lhe o rosto. Ele estava inteiramente perturbado. Com sua nata esperteza, já percebera que Pugatchev não estava satisfeito com ele. A presença do impostor amedrontava-o e ele me olhava com suspeição.
Pugatchev fez-lhe várias perguntas sobre a fortaleza, sobre os boatos que corriam concernentes à aproximação de forças inimigas e sobre outras coisas do mesmo gênero. De repente, à queima-roupa, perguntou: — Diga-me cá, meu caro, que moça é essa que mantém presa? Eu quero vê-la.
Chvabrin ficou mais pálido do que um cadáver e, gaguejando, respondeu: — Senhor... Senhor, ela não está presa... Está enferma... Acamada em seu quarto...
— Quero ir lá! — disse o impostor, levantando-se. Não havia meios de impedi-lo, e Chvabrin conduziu Pugatchev ao quarto de Maria Ivánovna. Eu fui atrás deles. Na escada o traidor estacou:
— Senhor! A sua autoridade é inconteste.
Obedeço-lhe cegamente! Mas não gostaria que um estranho entrasse no quarto de minha esposa...
Eu tremi e perguntei a Chvabrin, pronto para esmurrá-lo:
— Então se casou?
— Calma! — interveio Pugatchev. — A história é comigo! — E, virando-se para Chvabrin: — Não me venha com patranhas e falsos pudores! Se ela é sua esposa ou não, pouco se me dá. Levo ao quarto dela quem eu bem entender. Vossa Senhoria queira acompanhar-me.
Na porta do quarto, Chvabrin estacou outra vez e disse com voz tremida: — Senhor, quero preveni-lo que ela está com febre muito alta. Há três dias seguidos que delira.
Pugatchev impacientou-se: — Abra logo a porta!
Chvabrin começou a vasculhar os bolsos, acabando por dizer que não trouxera a chave.
Pugatchev deu um violento pontapé na porta, que cedeu, e nós entramos.
Olhei e nem podia acreditar no que via.
Com uma roupa de camponesa em frangalhos, Maria Ivánovna estava sentada no chão, lívida, esquelética, os cabelos desgrenhados. Ao seu lado havia um jarro de água com a boca tapada por um pedaço de pão. Ao me ver, ela estremeceu e deu um grito. O abalo que senti então é impossível descrever.
Pugatchev olhou para Chvabrin e amargamente sorriu: — Você tem uma bela enfermaria! — E, aproximando-se de Maria Ivánovna: — Diga-me, minha amiga, por que motivo o seu marido castigou-a assim? Por acaso praticou alguma falta grave?
— Ele não é meu marido! — protestou ela. — Não é, e jamais serei sua esposa! Prefiro morrer, e certamente morrerei se não me libertarem!
Pugatchev cravou um olhar terrível em Chvabrin:
— E você teve a ousadia de me enganar! Sabe o que merece, canalha?
Chvabrin caiu ajoelhado aos pés do impostor. Todos os meus sentimentos de ódio foram sufocados pelo desprezo que senti.
Fiquei olhando com repugnância aquele nobre que chafurdava aos pés de um criminoso fugido da cadeia. Pugatchev abrandou-se: — Por esta vez está perdoado. Mas fique sabendo que, à primeira patifaria que me fizer, eu não me esquecerei desta também. — E, dirigindo-se a Maria Ivánovna, disse com toda a ternura: — Pode sair daqui, minha bela amiga. Concedo-lhe a liberdade. Eu sou o czar!
Maria Ivánovna levantou os olhos para ele e compreendeu que ali estava o assassino de seus pais. Escondeu o rosto entre as mãos e tombou desmaiada. Corri para ela. Mas, no exato momento, a minha velha conhecida Palachka, sem medir consequências, invadiu o quarto e começou a cuidar da sua patroazinha.
Pugatchev saiu do quarto e foi para a sala de visitas. Eu e Chvabrin o acompanhamos.
— Vossa Senhoria viu? — riu Pugatchev. — Libertamos a moça! Não acha que é hora de chamar o padre e o obrigarmos a casar a sobrinha? Eu serei o padrinho, Chvabrin servirá de testemunha... Daremos uma festa de arromba!
Aquilo que eu tanto temera aconteceu.
Ouvindo a proposta de Pugatchev, Chvabrin viu que poderia vingar-se: — Senhor! — gritou. — Eu sou culpado, pois preguei-lhe uma mentira! Mas Griniov também o iludiu! A moça não é sobrinha do Padre Guerássim coisa nenhuma! É filha do Capitão Mirónov, que foi enforcado quando tomamos a fortaleza!
Pugatchev cravou em mim um olhar de fogo: — Não estou compreendendo!
— Chvabrin falou a verdade — disse eu firmemente.
— Mas não foi o que me contou — tornou Pugatchev, amarrando a cara.
Tive uma verdadeira inspiração: — Não foi. Mas como poderia dizer na frente dos seus homens que a filha de Mirónov estava viva? Eles a matariam! Ninguém poderia salvá-la!
— Lá isso é verdade — riu Pugatchev. — Os meus paus-d’água liquidariam a moça. A mulher do padre fez muito bem em enganá-los.
— Olhe aqui — disse eu, aproveitando a boa maré de Pugatchev. — Francamente não sei quem é. Não sei, nem me interessa. Mas Deus sabe que daria gostosamente a minha própria vida para pagar tudo quanto fez por mim. Peço, porém, que não exija aquilo que a minha honra e a minha consciência repelem. É meu protetor. Já que começou, acabe, deixando-me levar a infeliz órfã para onde Deus achar conveniente. E, esteja onde estiver, aconteça o que lhe acontecer, nós rezaremos fervorosamente pela salvação da sua alma pecadora!
Minhas palavras tocaram coração de Pugatchev: — Pois vai ser exatamente como quer. Grande na punição, grande no perdão, é como tenho procedido. Leve a sua amada para onde quiser, e que Deus lhes dê muito amor e discernimento!
E, virando-se para Chvabrin, deu-lhe ordem para preparar um salvo-conduto válido para todas as fortalezas ocupadas pelas forças rebeldes. O traidor, já inteiramente arrasado, não abriu a boca. E Pugatchev saiu para inspecionar a fortaleza.
Chvabrin o acompanhou, mas eu fiquei, alegando precisar preparar a viagem.
Corri para o quarto de Maria Ivánovna. Encontrei a porta fechada. Bati.
— Quem é? — perguntou Palachka.
Disse o meu nome. E ouvi a meiga voz de Maria Ivánovna, do outro lado da porta: — Espere um pouco, Piotr Andreitch. Estou-me vestindo. Vá para a casa de Akulina Pamfílovna. Dentro de poucos minutos estarei lá.
Rumei para a casa do Padre Guerássim.
Ele e a mulher correram ao meu encontro.
Saviélitch já lhes anunciara a minha chegada.
— Bom dia, Piotr Andreitch! — exclamou Akulina Pamfílovna. — Deus Todo-Poderoso determinou que nos víssemos outra vez. Como passa? Não havia dia que não nos lembrássemos do senhor! Como Maria Ivánovna sofreu com a sua partida! Conte-nos como conseguiu entender-se tão amistosamente com Pugatchev. Como pôde escapar à sanha daquele bandido? Pelo menos por isso, temos de ser gratos ao impostor!
— Pare de tagarelar, velha! — interrompeu-a o Padre Guerássim. — Guarde um pouco para depois... A tagarelice não é uma virtude. Mas faça o favor de entrar, Piotr Andreitch! Há quanto tempo não nos vemos!
Akulina Pamfílovna ofereceu-me tudo quanto tinha em casa, sem parar um segundo de falar. Fiquei sabendo como Chvabrin os obrigara a entregar Maria Ivánovna, como a moça chorara por não querer deixá-los, como fora mantido um contato entre eles, graças a Palachka, rapariga esperta, que conseguira enrolar o sargento, como incutira em Maria Ivánovna a ideia de me escrever, e várias coisas mais. Por meu turno, relatei em poucas palavras a minha história. E, quando contei que Pugatchev sabia da mentira que haviam pregado, o casal persignou-se.
— Que Deus nos ampare e afaste esta nuvem de nós — disse Akulina Pamfílovna. — Mas que nojenta pessoa é Aliexiei Ivánovitch! Nunca vi igual!
E eis que a porta se abre e aparece Maria Ivánovna, pálida e risonha. Vestia-se como outrora, toda simplicidade e bom gosto.
Peguei-lhe nas mãos, mas, por algum tempo, não consegui dizer uma palavra sequer.
Ficamos calados, emocionados. Os donos da casa sentiram que desejaríamos ficar sozinhos e saíram. Então, não nos fartamos de conversar. Ela me relatou pormenorizadamente tudo o que lhe acontecerá depois que a fortaleza caiu em poder dos rebeldes, o medo que se apossara dela, as humilhações a que o asqueroso Chvabrin a submetera. Relembramos os felizes dias passados e, ao fazê-lo, não pudemos conter as lágrimas. Por fim, fiz uma exposição dos meus projetos.
Permanecer na fortaleza, dominada por Pugatchev e comandada por Chvabrin, era impraticável. Em Orienburg, sitiada e sofrendo toda sorte de privações, nem se podia pensar.
E, como Macha não tivesse nenhum parente vivo, propus que ela se abrigasse na aldeia de meus pais. No primeiro momento, hesitou, temerosa da má vontade que meu pai tinha para com ela. Mas consegui convencê-la a ir.
Sabia que papai consideraria uma felicidade e uma obrigação abrigar a filha de um brioso militar, que morrera no cumprimento do dever.
— Querida Maria Ivánovna! — terminei. — Considero-a minha esposa. Estranhos acontecimentos nos ligaram indissoluvelmente e nada no mundo terá a força de nos separar.
Ela me ouviu com singeleza, sem fingido acanhamento, sem inventar obstáculos. Sentia que sua vida estava unida à minha. Mas obstinou-se em reafirmar que só seria minha esposa com o consentimento de meus pais.
Não a contrariei. Beijamo-nos ardentemente, como se selássemos um juramento, e assim tudo ficou resolvido entre nós.
Uma hora depois, o sargento veio entregar-me o salvo conduto, que trazia a garranchosa assinatura de Pugatchev, e me informou que ele queria ver-me. Lá fui e encontrei-o aprontando-se para voltar. Não posso explicar o que senti no momento em que me iria separar daquele homem que para todos era um monstruoso e nefando bandoleiro, mas, para mim, não. Por que esconder a verdade?
Naquele minuto, uma imensa piedade me prendia a ele. Ardentemente desejava arrancá-lo dos facínoras que chefiava e salvar-lhe a vida enquanto era tempo. Mas Chvabrin e o povaréu que nos rodeava não permitiram que eu lhe dissesse tudo o que trazia no coração.
Despedimo-nos cordialmente. Pugatchev achou Akulina Pamfílovna no meio do povo e ameaçou-a com o dedo e piscou-lhe o olho maliciosamente. Acomodou-se na troica e ordenou ao cocheiro que tocasse para Berdsk.
Quando os cavalos arrancaram, ele ainda gritou para mim:
— Adeus, Vossa Senhoria! Talvez nos encontremos um dia!
Realmente, tornamos a nos encontrar, porém em que circunstâncias!
Pugatchev partiu. Durante um bom espaço de tempo permaneci olhando a troica que ia sumindo na estepe coberta de neve. O povo foi deixando a praça. Chvabrin sumiu.
Encaminhei-me, então, para a casa do Padre Guerássim.
Tudo já estava pronto para a nossa partida e eu não queria retardá-la. A bagagem fora arrumada no velho trenó do comandante e o cocheiro atrelava os cavalos. Maria Ivánovna foi despedir-se dos pais enterrados no cemitério que ficava atrás da igreja. Tive a intenção de acompanhá-la; ela, porém, me pediu que a deixasse ir sozinha. Pouco se demorou, e ao voltar trazia no rosto a marca das lágrimas que vertera.
Tomamos assento no trenó, Maria Ivánovna, Palachka e eu. Saviélitch se ajeitou na boleia. O Padre Guerássim e a mulher estavam na porta para a última despedida.
— Adeus, querida Maria Ivánovna! Adeus, caro Piotr Andreitch! — acenava a boa mulher. — Uma boa viagem, e que Deus lhes dê muitas felicidades!
Partimos. Vi Chvabrin na janela da casa do comandante. Seu rosto denunciava o ódio que saturava a sua alma. Eu, porém, não quis tripudiar sobre o inimigo derrotado e desviei o olhar. Transpusemos o portão e, para sempre, deixamos a Fortaleza de Bielogorsk.
Capítulo 13
A Prisão
Unido de maneira tão inesperada à minha adorada Macha, cujo destino ainda naquela manhã tanto me assustava, eu não podia acreditar na realidade e imaginava que a cadeia de acontecimentos de que participara não passava de um sonho. Maria Ivánovna mostrava-se pensativa, olhando ora para mim, ora para a estrada, dando a impressão de que ainda não recuperara totalmente os sentidos.
Palavras não trocávamos, tão cansados estavam os nossos corações. Sem que déssemos conta, duas horas depois entrávamos na fortaleza mais próxima, também ocupada pelos rebeldes. Ali substituímos os animais. Dada a presteza com que os atrelaram e dado o apressado atendimento do barbudo cossaco, colocado por Pugatchev no comando da fortaleza, compreendi que, induzidos pela loquacidade do cocheiro que nos conduzia, tomavam-me por uma figura importante.
Tocamos para diante. Quando a noite começou a cair, estávamos perto de uma pequena cidade onde, conforme informara o barbudo comandante, havia um poderoso contingente que ia juntar-se às forças sitiantes do impostor. Mas fomos detidos por uma patrulha.
— O compadre do czar e a sua mulher! — berrou o cocheiro.
Eis que um grupo de hussardos cercou o trenó aos urros e um sargento de vasta bigodeira gritou:
— Pule daí, compadre do diabo! Você e sua mulher vão ver o que é bom!
Desci e exigi que fosse levado ao comandante. Vendo que eu era um oficial, os soldados sossegaram e o sargento me conduziu à presença de um major. O trenó nos acompanhou a passo. Saviélitch, que não me largou, resmungava ao meu lado.
— Está aí o que dá ser compadre do czar!
Saímos de uma fogueira para cair noutra!
Santo Deus misericordioso! Como é que esta encrenca vai acabar?
Em cinco minutos chegávamos a uma casinha fortemente iluminada. O sargento me deixou com a sentinela e entrou. Depressa voltou e disse que Sua Excelência não tinha tempo para me receber, mas mandara que eu fosse metido na prisão e que a minha esposa fosse levada à sua presença.
— É um absurdo! — exclamei, enfurecido. — O comandante está maluco?
— Como posso saber, excelentíssimo? — respondeu o sargento. — Só sei que Sua Excelência mandou meter o excelentíssimo na prisão e levar a excelentíssima à presença de Sua Excelência. É tudo o que eu sei, excelentíssimo!
Atirei-me para a porta. As sentinelas não me barraram e eu me enfiei pela casa adentro até chegar à sala onde meia dúzia de oficiais de hussardos estavam jogando cartas. O major preparava-se para distribuí-las aos parceiros.
Que surpresa não foi a minha quando, ao defrontá-lo, reconheci Ivan Ivánovitch Zúrin, o bravo capitão que me comera cem rublos na estalagem de Sinibirsk!
— Será possível? O senhor não é Ivan Ivánovitch?
— Ora, viva, Piotr Andreitch! Como passa, meu caro? De onde vem? Não quer entrar aqui no joguinho?
— Muito obrigado... Prefiro que me arranje alojamento.
— Para quê? Fique comigo aqui.
— Não posso. Estou acompanhado.
— Pois traga o seu amigo também para cá!
— Não se trata de um amigo... Trata-se de uma senhora...
— Uma senhora? Onde a apanhou, meu caro?
— e Zúrin deu um assobio tão engraçado que todos riram e eu fiquei encabulado. — Está bem. Vou arranjar um alojamento. Mas é pena... Poderíamos promover aqui uma festinha como aquela, lembra-se? — E, virando-se para um hussardo: — Você aí, rapaz! Por que não trouxe a comadre de Pugatchev? Ela está-se fazendo rogada? Diga-lhe que não precisa ter receio...
Que o chefe cá é boa alma e não lhe irá fazer mal... Mas, ao mesmo tempo, aplique-lhe uns cascudos.
— Alto lá! De quem está falando? — interpelei Zúrin e, encorpando a voz: — Não há comadre de Pugatchev nenhuma! Há é a filha do Capitão Mirónov. Eu libertei-a e a estou levando para a aldeia do meu pai, onde ela vai ficar.
— Não me diga! Então foi você quem chegou ainda agorinha? Que história é essa de compadre de Pugatchev? Não estou compreendendo nada!
— Explicarei tudo depois. Agora, pelo amor de Deus, vamos tranquilizar a moça que os hussardos amedrontaram!
Zúrin deu ordens imediatas. E ele próprio se abalou até o trenó para apresentar suas desculpas a Maria Ivánovna pelo lamentável quiproquó e ordenou ao sargento que arranjasse para ela o melhor alojamento da cidade. Eu dormiria em sua casa.
Terminada a ceia, ficamos a sós, e eu, então, narrei-lhe todas as minhas aventuras.
Zúrin me ouviu com extrema atenção. E, quando acabei, balançou a cabeça e disse: — Tudo está muito direito, meu caro. Mas há uma coisa que não posso compreender. Por que cargas-d’água quer casar-se? Eu sou um oficial decente, não quero enganá-lo. Ouça o que eu digo: o casamento é uma maluquice.
Por que se complicar com uma mulher e com filhos? Tire tal bobagem da cabeça! Preste atenção ao que vou dizer: ponha a filha do capitão de lado. Eu fiz uma limpeza em regra na estrada para Simbirsk. Já não oferece o menor perigo. Pegue a moça amanhã, mande-a sozinha para a casa de seus pais e fique comigo aqui. Não precisa voltar para Orienburg. Não precisa, nem deve. Se cair outra vez nas garras deles, tenho minhas dúvidas de que escape com vida. Assim, sua efervescência sentimental irá extinguir-se por si mesma e tudo entrará em forma.
Conquanto eu não estivesse inteiramente de acordo com ele, entendia que era do meu dever permanecer no Exército da imperatriz. E decidi seguir mais ou menos o seu conselho: mandaria Maria Ivánovna para a aldeia dos meus pais e ficaria no destacamento dele.
Quando Saviélitch veio para cuidar das minhas roupas, determinei-lhe que se aprontasse para viajar, no outro dia, com Maria Ivánovna. Ele relutou: — Que ideia, senhor! Não posso deixá-lo. Quem cuidará do senhor? Que irão dizer seus pais?
Não ignorando a sua natural obstinação, procurei demovê-lo com lealdade e afeto: — Meu grande amigo Arkhip Saviélitch! Não me negue mais este favor. Posso dispensar aqui os seus serviços. Mas ficaria aflitíssimo se Maria Ivánovna partisse desacompanhada. Servir a ela é o mesmo que servir a mim, pois tomei a irrevogável decisão de me casar com ela, tão cedo as circunstâncias permitirem.
Saviélitch levantou os braços num gesto de profundo espanto: — Casar? O meu patrãozinho quer casar-se? E que irá dizer seu pai? E sua mãe, o que irá pensar?
— Eles aprovarão. Tenho certeza que aprovarão, depois que conhecerem Maria Ivánovna. Confio também em você. Papai e mamãe prezam muito você. Irá interceder por nós, não irá?
O querido velho ficou comovido: — Ah, meu patrãozinho Piotr Andreitch! Acho que é muito jovem ainda para se casar. Mas Maria Ivánovna é uma moça tão boa que seria um verdadeiro pecado perder a oportunidade.
Case, case como é do seu gosto! Eu vou acompanhar aquele anjo sim. Como servo fiel, provarei a seus pais que uma noiva assim não necessita trazer dote.
Agradeci a Saviélitch e me deitei para dormir no quarto de Zúrin. Satisfeito, excitado, comecei a tagarelar. Meu hospedeiro ia dando trela, mas, pouco a pouco, suas palavras foram-se espaçando e perdendo o nexo, até que, em vez de responder a uma pergunta que fiz, deu um ronco, seguido de um prolongado assobio. Calei-me e, dentro em pouco, dormia como ele.
Na manhã do dia seguinte, fui ver Maria Ivánovna, onde se encontrava alojada.
Anunciei-lhe os meus planos, e ela, achando-os sensatos, aprovou-os totalmente. O destacamento devia deixar a cidade naquele mesmo dia e, por tal razão, nada adiantava a Maria Ivánovna atrasar a sua partida.
Ao despedir-me dela, confiando-a aos cuidados de Saviélitch, pus-lhe nas mãos uma carta para meus pais. Maria Ivánovna não conteve o pranto e, com voz entrecortada, me disse: — Adeus, Piotr Andreitch! Somente Deus pode saber se nos tornaremos a ver, mas jamais o esquecerei. Até a hora da morte o senhor estará no meu coração!
Nada pude responder, porque numerosos estranhos nos cercaram e eu não queria, diante deles, externar os sentimentos que me agitavam.
Macha se foi e eu retornei, mudo e tristonho, para a casa de Zúrin. Ele achou que eu devia distrair-me; aceitei a sugestão para aliviar o peso do coração e passamos o resto do dia em barulhentos e movimentados divertimentos. Quando a noite desceu, pusemo-nos em marcha.
Escoavam-se os últimos dias de fevereiro.
O inverno, que tornava difíceis as operações militares, estava por pouco e os nossos generais se preparavam para uma ação conjunta.
Pugatchev mantinha-se estacionado nas imediações de Orienburg, enquanto, de todas as direções, as nossas tropas se dirigiam para o ponto onde ele estava. Diante das nossas armas, as aldeias rebeladas se entregavam, grupos de bandidos, em todos os lugares, fugiam e tudo anunciava um fim rápido e feliz.
Não se passou muito tempo para que diante da Fortaleza de Tatichtev, o Príncipe Golozin derrotasse Pugatchev, dispersasse o bando e libertasse Orienburg, concorrendo decisivamente para o esmagamento final da rebelião. Zúrin foi encarregado duma ação contra um bando de basquires, que sumiu antes que o víssemos. O degelo da primavera nos bloqueou numa aldeia tártara. Os rios pularam do leito e as estradas ficaram impraticáveis. Nossa inércia era consolada com a ideia de que, bem depressa, terminaria aquela guerra mesquinha e aborrecida contra bandoleiros e selvagens.
Pugatchev, porém, não foi apanhado.
Conseguiu escapar para a Sibéria, onde organizou novos bandos e recomeçou os seus atos de banditismo. A notícia dos seus sucessos espalhou-se mais uma vez.
Soubemos que aniquilara várias fortalezas siberianas. E, pouco depois, a tomada de Kazan e a marcha do impostor em direção a Moscou alarmaram os comandantes imperiais que haviam negligentemente confiado na incapacidade do terrível revolucionário.
Zúrin recebeu ordem de cruzar o Volga e avançar celeremente para Simbirsk, já ameaçada pelo fogo dos rebeldes. A possibilidade de abraçar meus pais e ver Maria Ivánovna me encheu de contentamento. Zúrin riu da minha exaltação e, num sacudir de ombros, disse: — Tinha a certeza de que acabaria mal. Vai casar-se e será um homem perdido!
Ensarilhamos as armas numa aldeia para passar a noite. No dia seguinte vadearíamos o rio. A autoridade local me informou que, na outra margem, todas as aldeias estavam rebeladas e que os homens de Pugatchev andavam à solta. A notícia me inquietou muito. Fiquei impaciente. A aldeia de meu pai ficava na margem oposta, distante uns trinta quilômetros. Pensei em atravessar o rio, já que todos os aldeões eram pescadores e não faltavam barcos. Fui comunicar a Zúrin a minha intenção:
— Não se precipite — aconselhou-me ele. — É muito arriscado ir sozinho. Deixe o dia romper. Seremos os primeiros a atravessar o rio e correremos a visitar seus pais, levando um esquadrão de hussardos para qualquer emergência.
Bati o pé. O barco estava pronto. Tomei assento, levava dois remadores comigo que imediatamente impulsionaram a frágil embarcação. O céu estava bastante claro. O Volga corria serenamente. O barco ia num suave balanço, vencendo, fácil, a pequena ondulação das águas. Meia hora passou. No meu pensamento se misturavam a tranquilidade da natureza, os terríveis acontecimentos políticos e sonhos de amor...
Chegamos ao meio da corrente. Foi quando os remadores começaram a cochichar.
— Que se passa? — perguntei, voltando à realidade.
— Não sabemos — responderam, com os olhos fixos num mesmo ponto.
Olhei também na mesma direção e vi, nas sombras noturnas, qualquer coisa que deslizava rio abaixo. O indiscriminado objeto se aproximava de nós. Mandei que os remadores parassem e aguardassem. A lua se ocultou por trás de uma nuvem. O objeto ficou ainda mais escuro. Perto já estava, mas impossível de se distinguir o que era.
— Que será? — interrogaram-se os remadores.
— Não parece ser vela, nem mastro.
Súbito, a lua saiu de trás da nuvem e aclarou um espetáculo sinistro. Ao nosso encontro vinha uma forca armada numa jangada, e dela pendiam três corpos. Fui assaltado por uma mórbida curiosidade.
Queria ver os rostos dos enforcados. Ordenei aos remadores que encostassem o barco na jangada. Houve um pequeno choque e eu saltei para a forca flutuante. A lua cheia iluminava os rostos desfigurados daqueles desgraçados.
O primeiro era um velho, o segundo um camponês, rapaz robusto e saudável, que não tinha mais de vinte anos. O terceiro provocou-me um choque, e não contive um grito de comiseração. Tratava-se de Vanka, o meu pobre Vanka, que aderira a Pugatchev por mera ignorância. Na viga da qual pendiam, estava pregada uma tábua com os dizeres pintados em branco: “Ladrões e rebeldes”. Os remadores, algo insensíveis, mantinham a jangada presa com um gancho. Voltei ao barco.
E a jangada prosseguiu sua tétrica viagem. Por algum tempo, a forca avultou na escuridão.
Finalmente sumiu e o meu barco abicou na margem alta e íngreme.
Dei uma regia recompensa aos remadores e um deles me conduziu à autoridade da aldeia mais próxima. Entramos na isbá. Ao saber que eu pretendia cavalos, tratou-me bastante grosseiramente, mas o meu guia sussurrou-lhe alguma coisa no ouvido e, como num passe de mágica, a atitude do homem se transformou radicalmente. Num abrir e fechar de olhos, o carro estava à minha disposição. Acomodei-me e mandei que o cocheiro tocasse para a nossa aldeia.
Íamos a trote pela larga estrada, passando por povoações adormecidas. Só temia ser detido no caminho. Se o encontro da jangada no Volga denunciava a presença dos rebeldes, demonstrava também a forma enérgica com que as forças imperiais os enfrentavam. Para qualquer emergência, eu levava no bolso o salvo-conduto assinado por Pugatchev e uma ordem de Zúrin. Felizmente não encontrei vivalma e, ao romper da manhã, deparei com o rio e o pinheiral atrás do qual fica a nossa aldeia. O cocheiro chicoteou os cavalos e em quinze minutos entrava na povoação, em cuja extremidade estava a casa senhorial. Os animais devoravam o terreno, mas, de repente, no meio da rua principal, o cocheiro começou a refreá-los.
— Que é que há? — perguntei, impaciente.
— Há uma barreira, senhor — respondeu ele, conseguindo conter os fogosos cavalos.
Na verdade, vi uma barreira e uma sentinela armada de cacete. O mujique se acercou e, tirando o gorro, pediu-me o passaporte.
— Para quê? Que significa esta barreira?
— É que estamos revoltados, patrãozinho — respondeu o homem, coçando a cabeça.
— Onde estão os patrões de vocês? — perguntei, com o coração apertado.
— Os nossos patrões estão presos no depósito de trigo.
— No depósito? Que história é essa?
— Andriuchka, secretário da Câmara, mandou amarrá-los e prendê-los. Vai levá-los depois ao paizinho czar.
— Santo Deus! Abra a barreira, idiota! Por que não se mexe?
Ele não se movia. Pulei do carro, dei-lhe um empurrão e abri a barreira. O mujique me olhava com parvo espanto. Voltei ao carro e mandei tocar para a casa senhorial.
O depósito de trigo ficava no pátio. Junto à porta trancada, dois mujiques montavam guarda, também armados de cacetes. O carro parou diante da porta. Saltei e fui direto a eles: — Abram a porta! — ordenei.
Meu aspecto devia ser amedrontador, pois largaram os cacetes e fugiram em disparada. Tentei forçar a fechadura ou arrombar a porta; esta, porém, era de ferro e a fechadura, extremamente resistente. Foi quando um jovem mujique, saindo da isbá dos servos, veio superiormente me interpelar pelo atrevimento.
— Onde está Andriuchka? — berrei-lhe. — Chame-o imediatamente.
— Eu sou Andrei Afanassievitch, e não Andriuchka! — respondeu orgulhosamente, pondo as mãos nos quadris. — Que quer?
Não dei resposta. Agarrei-o pela gola e, arrastando-o para a porta, mandei que a abrisse. Ele relutou, mas, com dois senhoriais bofetões, entrou na linha e, tirando a chave do bolso, abriu a porta do depósito. Precipitei-me e fui encontrar meus pais num canto frouxamente iluminado por uma pequena fresta na parede. Tinham as mãos e os pés amarrados. Olharam-me surpresos. É que três anos de serviço militar haviam operado tal mudança em mim que não podiam prontamente me reconhecer.
Logo ouvi uma voz meiga e conhecida: — Piotr Andreitch! É o senhor?
Virei-me e vi, no outro canto, Maria Ivánovna, que também estava amarrada. Fiquei assombrado. Papai me olhava, mudo, como se não acreditasse no que via, mas a alegria estampava-se no seu semblante. Rapidamente cortei com o sabre as cordas que os imobilizavam.
— Bom dia, Petruchka! — disse papai, apertando-me contra o peito. — Graças a Deus por poder vê-lo!
Minha mãe chorava: — Meu querido Petruchka! Como conseguiu chegar até aqui? Está bem? Não foi ferido?
Mas, quando os conduzia para a porta, encontrei-a outra vez fechada. Gritei: — Andriuchka! Abra a porta!
— Era só o que faltava! — respondeu-me do lado de fora. — Vou ensinar-lhe a fazer badernas e a arrastar pela gola os funcionários do czar!
Apesar da parca iluminação, eu quis examinar o depósito, na esperança de encontrar um meio de sair, mas papai me deteve.
— Não perca tempo. É lógico que só fiz no depósito esta porta para entrar e sair...
Mamãe, que se alegrara por alguns momentos, foi tomada de forte depressão, ao ver que eu caíra na ratoeira e também iria fatalmente ser eliminado.
Eu, porém, mantinha-me calmo por me encontrar junto deles e de Maria Ivánovna. Trazia o sabre e duas pistolas, e assim poderia resistir, enquanto Zúrin, que deveria chegar à tarde, não nos libertasse. Participei-lhes minha disposição, e mamãe e Maria Ivánovna se acalmaram, tornando a se mostrarem alegres com a minha chegada, e algumas horas transcorreram sem darmos conta, entre demonstrações de afeto e infindáveis conversas.
— Olhe, Piotr — disse meu pai —, você praticou uma série de diabruras e fiquei muito aborrecido. Mas não é hora de relembrar águas passadas. Acredito que, farto de peraltices, tenha-se corrigido. Estou a par dos bons serviços que prestou como um digno oficial.
Muito agradeço. Foi um consolo para a minha velhice. Se ficar devendo a você a nossa liberdade, meu fim de vida será infinitamente agradável.
Chorando, beijei-lhe as mãos e fiquei contemplando Maria Ivánovna, que, vendo-me ao seu lado, parecia completamente calma e ditosa.
Por volta do meio-dia, ouvimos vozes e uma grande barulheira. Meu pai ficou intrigado: — Que será? Talvez seu coronel tenha chegado...
— Não é provável. Antes da noite ele não poderia estar aqui.
A barulheira crescia. Os tambores rufaram. Ouvia-se o galopar de cavalos no pátio. E, então, os olhos de Saviélitch apareceram na pequena fresta e ele falou aflitíssimo: — Andrei Pietróvitch! Meu patrãozinho Piotr Andreitch! Maria Ivánovna! Aconteceu uma profunda desgraça! Os bandidos entraram na aldeia. E sabe, Piotr Andreitch, quem está à frente deles? Nem mais nem menos que o maldito Aliexiei Ivánovitch Chvabrin!
Ao ouvir o odiado nome, Maria Ivánovna ficou paralisada. E eu disse a Saviélitch: — Preste atenção! Envie alguém de confiança a cavalo ao encontro do regimento de hussardos. Ele está perto do rio. E avise ao coronel que nós corremos perigo de vida.
— Mas quem eu hei de mandar, senhor? Todos os safados aderiram ao motim e os cavalos estão na mão deles. Com mil demônios! Já entraram no pátio! Estão chegando ao depósito!
Realmente, ouvimos vozes do outro lado da porta. Fiz um sinal para que minha mãe e Maria Ivánovna fossem para um canto, desembainhei o sabre e me encostei na parede, junto da porta. Papai pegou as pistolas, engatilhou-as e postou-se ao meu lado. A fechadura gemeu, a porta se escancarou e surgiu a cabeça do secretário da Câmara.
Atingi-o com um golpe de sabre; ele tombou, obstruindo a passagem, e papai atirou para fora. Os que seguiam o secretário recuaram aos gritos. Carreguei o ferido para dentro e fechei a porta com o trinco. Mas, na rápida ação, consegui ver que o pátio estava cheio de homens e que Chvabrin estava no meio deles.
— Não tenham medo — disse eu às mulheres.
— Há esperanças. E o senhor, papai, não atire mais. É preciso poupar as últimas balas.
Mamãe rezava baixinho. Maria Ivánovna, ao lado dela, esperava com uma serenidade de santa a decisão do seu destino. De fora vinham ameaças, insultos e blasfêmias.
Eu me mantinha firme, pronto para liquidar o primeiro que aparecesse. De repente, houve um silêncio. E ouvi a voz de Chvabrin que me chamava.
— Estou aqui. Que quer?
— Renda-se, Griniov. Não adianta resistir. A teimosia não o salvará. Vou entrar!
— Entre se é capaz, traidor!
— Não me quero arriscar infantilmente, nem jogar com a vida dos meus comandados. Vou mandar incendiar o depósito. Vamos ver como sairá desta, Dom Quixote de Bielogorsk! Mas agora está na hora de jantar. Fique aí, decidindo... Até já! Maria Ivánovna, eu lhe peço desculpas. Acho que não irá aborrecer-se no escuro com o seu paladino.
E o celerado se foi, deixando sentinelas junto ao depósito. Ficamos calados, cada qual remoendo as suas apreensões e não as transmitindo aos outros. Eu imaginava todas as ignomínias que o demoníaco Chvabrin era capaz de praticar. Comigo quase não me preocupava. E devo confessar que a sorte de Maria Ivánovna me perturbava mais do que a dos meus pais. Não ignorava quanto minha mãe era querida pelos servos. Meu pai, não obstante sua inflexibilidade, também era muito estimado pelo senso de justiça que possuía e pela capacidade de avaliar as necessidades dos seus dependentes. O motim em que se envolveram era apenas um ato passageiro de insensatez e não uma manifestação real de descontentamento. Ambos, portanto, seriam provavelmente perdoados.
Mas Maria Ivánovna? Que destino lhe reservava o cruel e inescrupuloso Chvabrin? Não me atrevia a encarar todas as hipóteses e estava resolvido — que Deus me perdoasse! — a matá-la, antes que vê-la, novamente, nas mãos de tão nefando algoz.
Uma hora se passou. Da aldeia vinha o canto dos bêbados. As sentinelas postas à porta do depósito estavam contrariadas, por não participarem da orgia, e vingavam-se de nós, involuntárias causas do seu impedimento, assustando-nos com a tortura e a morte.
Esperávamos que Chvabrin pusesse em execução as suas ameaças e, finalmente, ouvimos um grande movimento no pátio e a voz do traidor:
— Que foi que decidiram? Entregam-se ou não?
Não lhe demos respostas. Ele esperou uns minutos e depois mandou trazer palha.
Não demorou que as chamas se levantassem, aclarando o escuro depósito, e a fumaça começou a entrar pelas fendas da porta.
Maria Ivánovna chegou perto de mim e, pegando-me a mão, disse baixinho: — Não teime, Piotr Andreitch. Por minha causa não se deve sacrificar, nem sacrificar seus pais. Deixe que eu saia. Farei com que Chvabrin me obedeça.
— Nunca! Por nada no mundo! — gritei, arrebatadamente. — Não tem ideia do que a espera!
— Não sobreviverei à desonra — respondeu serenamente. — É possível que eu salve quem me libertou e aqueles que tão carinhosamente me abrigaram e me trataram como filha.
Adeus, Andrei Pietróvitch! Adeus, Avdótia Vassilievna! Abençoem-me! Perdoe-me, Piotr Andreitch! Esteja certo de que... de que... — E caiu no mais convulsivo choro, escondendo o rosto com as mãos.
Eu fiquei como um louco. Mamãe chorava. Papai foi categórico: — Deixe de bobagens, Maria Ivánovna! Daqui não sairá sozinha! Se é para morrer, morramos juntos! Atenção! Que está dizendo ele?
Chvabrin berrava: — Vocês se rendem ou não? Não desconfiam que vão virar torresmo?
— Não nos rendemos, miserável! — gritou meu pai. Seu semblante enérgico e enrugado ganhara intensa animação. Os olhos lançaram faíscas sob as sobrancelhas grisalhas. Virou-se para mim: — Chegou a hora!
Abriu a porta e as chamas invadiram o depósito, subiram até o teto, propagando-se nas vigas revestidas de musgo seco. Meu pai atirou, cruzou a porta incendiada e gritou: — Vamos!
Tomei minha mãe e Maria Ivánovna pelo braço e, rápido, levei-as para o ar livre. À frente da porta, estava caído Chvabrin com uma bala no corpo, pois a mão já trêmula de papai não errara o tiro. Os bandidos, que haviam recuado, ante nossa inesperada saída, reagruparam-se e nos cercaram. Distribuí alguns golpes de sabre, mas um calhau atingiu-me violentamente o peito. Caí e, por alguns instantes, perdi os sentidos. Fui desarmado. E, quando me recuperei, vi Chvabrin sentado sobre o capim salpicado de sangue e, à minha frente, papai, mamãe e Maria Ivánovna.
Seguravam-me pelos braços e um grupo de servos, cossacos e basquires nos cercava.
Chvabrin, branco como cal, com uma das mãos comprimia o ferimento na ilharga. Seu rosto era todo sofrimento e ódio. Suspendeu a cabeça, encarou-me e falou com voz débil: — Enforquem-no... Os outros também... Mas a moça não...
Fomos arrastados para o portão. Mas, aí chegando, nos largaram e correram. Um esquadrão, de sabres em riste, e com Zúrin à frente, vinha a galope.
Os rebeldes fugiram para todos os lados.
Os hussardos os perseguiram, acutilando-os, aprisionando-os. Zúrin desceu do cavalo, fez uma reverência a meu pai, outra a minha mãe e apertou-me calorosamente a mão: — Cheguei na hora exata! Ora viva, aqui está a sua noiva!
Maria Ivánovna ficou vermelha como um tomate.
Papai acercou-se dele e cumprimentou-o, másculo, mas comovido.
Mamãe, porém, pendurou-se nele, chamando-o de anjo salvador.
— Bem-vindo seja à nossa casa — disse papai, encaminhando-o para o vestíbulo.
Ao passar por Chvabrin, Zúrin parou e perguntou, olhando para o ferido: — Quem é?
— Precisamente o chefe do bando — informou meu pai com o orgulho de um velho militar. — Deus permitiu que a minha fraca mão castigasse o traidor e vingasse o sangue de meu filho.
— É Chvabrin — disse eu a Zúrin, dando nome aos bois.
— Ah, é ele? Fico muito contente em saber! — E, virando-se para uns hussardos: — Tomem conta dele, rapazes! E previnam ao cirurgião que trate dele com o máximo cuidado. Quero apresentá-lo à comissão secreta de Kazan.
Sendo um dos cabeças do movimento, o seu depoimento será de suma importância...
Chvabrin volveu para nós um olhar amolecido. Pela sua fisionomia via-se que sofria muito. Os hussardos levaram-no sobre um capote.
Entramos em casa.
Acudiram-me, emocionado, cenas da minha meninice ali desenroladas. Nada mudara, tudo como antigamente. Chvabrin não consentira que a saqueassem, conservando, mesmo no seu aviltamento, o devido respeito pela propriedade alheia.
Os servos domésticos apareceram no vestíbulo. Não haviam participado do motim e se mostravam barulhentamente contentes com a nossa libertação. Saviélitch gozava as delícias da glória. É bom explicar que, durante a confusão provocada pelo ataque dos bandoleiros, ele correra à cocheira, onde se encontrava o cavalo de Chvabrin, arreara-o e sorrateiramente escapulira, galopando ao encontro do regimento, que descansava à margem do Volga. Tomando conhecimento do perigo que enfrentávamos,
Zúrin imediatamente pôs-se à frente de um esquadrão e, a toda brida, conseguira chegar a tempo.
Zúrin fez questão de que a cabeça do secretário da Câmara ficasse exposta por algumas horas em cima de uma estaca, na porta da taverna.
Os hussardos voltaram da caçada aos rebeldes e trouxeram uns tantos prisioneiros, que foram trancafiados no mesmo depósito onde havíamos estado. Retiramo-nos para os nossos quartos. Os velhos necessitavam de descanso. Como passara a noite toda acordado, caí na cama e dormi pesadamente.
Mas Zúrin saiu para tomar providências que considerava urgentes.
De noite, reunimo-nos na sala de visitas, à volta do samovar, rememorando alegremente os superados perigos. Maria Ivánovna ia enchendo as xícaras. Sentei-me a seu lado e a ela me dediquei inteiramente. Meus pais deram mostras de assentimento às nossas relações.
Jamais me esqueci daquele serão. Eu estava feliz, absolutamente feliz. Haverá, por acaso, muitos momentos iguais na nossa pobre existência?
No outro dia, logo de manhã, vieram comunicar a meu pai que os servos estavam reunidos no pátio para pedir perdão. Quando ele apareceu no patamar da escada, os mujiques caíram de joelhos. Interpelou-os: — Que foi que passou pela cabeça de vocês, seus ignorantes? Por que motivo se revoltaram?
— Somos culpados, senhor! — responderam a uma só voz.
— Ainda bem que reconhecem! Fazem suas maluquices e depois se arrependem! Muito bem! Perdôo a todos pela alegria que Deus me proporcionou trazendo meu filho Piotr Andreitch. Vão com Deus, já que estão arrependidos...
— Sim, senhor, somos culpados e pedimos seu perdão.
— Deus nos ofereceu um bom tempo. É preciso aproveitá-lo para cortar o feno. E vocês, seus palermas, que é que fizeram durante esses três dias? Capataz! Leve essa gente logo para o campo de feno. E tome nota, bicho ruivo, quero que todo o feno esteja recolhido antes do São João! Todos para o trabalho!
Os mujiques curvaram-se e lá se foram para as suas ocupações, como se nada tivesse acontecido.
O ferimento de Chvabrin não era mortal.
Foi mandado para Kazan escoltado. Da janela vi como o puseram numa carroça. Nossos olhares se cruzaram. Ele abaixou a cabeça, eu retirei-me apressadamente da janela, receoso de demonstrar algum júbilo pela desgraça do meu inimigo.
Zúrin tinha necessidade de prosseguir, que a campanha não terminara ali. Decidi acompanhá-lo, embora desejasse passar alguns dias mais com a minha gente. Na véspera, segundo os costumes daquela época, ajoelhei-me aos pés de meus pais, pedindo a bênção para o meu casamento com Maria Ivánovna. Os velhos me ergueram e, com demonstrações sinceras de alegria, deram o ambicionado consentimento. Levei, então, Maria Ivánovna, muito pálida e humilde, à presença deles. Recebemos a benção. Fujo de escrever o que senti no momento. Quem já esteve em idêntica situação sabe perfeitamente o que nos sacode. E, a quem ainda não esteve, posso somente lamentar e aconselhar que se apaixone e peça a bênção dos pais, enquanto é tempo.
No dia imediato, o regimento estava aprestado para partir. Zúrin apresentou as suas despedidas. Estávamos certos de que as operações militares terminariam em breves dias. Eu contava casar-me dentro de um mês.
Despedindo-se de mim, Maria Ivánovna me beijou na presença de todos. Sentei-me no carro, e mais uma vez Saviélitch me acompanhava. O regimento pôs-se em marcha.
Olhei demoradamente a casa campesina que novamente deixava. Tinha um triste pressentimento. O coração me dizia que nem todas as desgraças haviam acabado para mim e ainda haveria tempestades.
Deixo de narrar a nossa campanha, bem como o fim da luta contra Pugatchev. Em poucas palavras consignarei que a calamidade tomou proporções alarmantes. Passamos por terras inteiramente devastadas pelo impostor e, sem o querer, tiramos dos míseros habitantes o pouquíssimo que haviam podido salvar. A administração pública deixara de existir em quase todos os lugares e os proprietários refugiavam-se, amedrontados, nas florestas. Os bandos de facínoras perpetravam atrocidades por onde passavam e os comandantes dos destacamentos enviados em perseguição dos rebeldes castigavam indiferentemente culpados e inocentes. E o quadro geral da vasta região, onde lavrava o fogo da contenda, era verdadeiramente trágico.
Perseguido implacavelmente por Ivan Ivánovitch Mikhelson, Pugatchev fugiu. Em breve, chegou-nos a notícia da sua derrota total e aprisionamento, e pouco depois Zúrin recebia ordem de suspender a marcha. A guerra havia terminado. Podia eu, finalmente, voltar para a casa paterna! A perspectiva de abraçar meus pais e rever Maria Ivánovna me enchia de alegria. Pulava como uma criança e Zúrin zombava do meu contentamento.
— Vai acabar na forca do matrimônio, pobre rapaz!
Mas, no auge da alegria, um espinho me pungia o coração, empeçonhava a minha felicidade: a lembrança de Pugatchev, manchado pelo sangue de tantas vítimas inocentes e com a execução pairando sobre a sua cabeça. ”Emilian! Emilian!”, pensava eu, amargurado. ”Por que você não foi traspassado por uma baioneta, ou não foi atingido pelo fogo de um canhão? Melhor teria sido o seu destino.” E eu não podia separar, no pensamento, a figura sinistra do bandido do humano e generoso Pugatchev, a quem devia a vida e a liberdade da minha noiva.
Solicitei uma licença e Zúrin prontamente a concedeu. Em breves dias desfrutaria um repouso junto de meus pais e junto de minha amada. Mas inesperadamente uma tormenta desabou sobre mim.
No dia da viagem, no instante mesmo em que me preparava para partir, Zúrin entrou na isbá, com a testa franzida pela apreensão e com um papel na mão. Senti uma dor no peito.
Sua presença me assustava, embora sem saber por quê. Ele mandou a minha ordenança sair e me disse que tinha recebido uma ordem esquisita.
— Que ordem? — perguntei, alarmado.
— Um pequeno aborrecimento — respondeu, entregando-me o papel. — Veja! Acabei de recebê-lo.
Li. Era uma ordem secreta, dirigida a todos os comandantes de destacamentos, para que eu fosse detido onde me encontrassem e enviado, sob escolta, para Kazan, onde estava instalada a comissão de inquérito que investigava a revolta de Pugatchev.
O papel quase me caiu das mãos. E Zúrin falou:
— Não posso fazer nada. Meu dever é obedecer. Suponho que suas idas e vindas com Pugatchev chegaram ao conhecimento das autoridades imperiais. Espero que a coisa não dê em nada e que se possa justificar plenamente ante a comissão. Não fique triste antes do tempo. Trate de ir.
Eu tinha a consciência tranquila e não temia nenhum julgamento. Mas a ideia de atrasar, não sabia por quanto tempo, o meu doce encontro, me arrepiava. O carro já estava na porta. Sentei-me entre dois hussardos de sabres desembainhados e a partida foi dada.
Capítulo 14
O Julgamento
Eu tinha absoluta convicção de que tudo girava em torno da saída de Orienburg sem licença. E firmava minha defesa no fato de que as sortidas eram permitidas, e até, por todos os meios, fomentadas. Poderiam acusar-me de excessivo ardor combatente, mas nunca de desobediência. Mas as minhas relações com Pugatchev, das quais havia numerosas provas, pareciam à primeira vista bastante suspeitas.
Ao longo do caminho fui pensando no interrogatório a que seria submetido, pesando as respectivas respostas que daria, e acabei por concluir que deveria falar toda a verdade à comissão, julgando ser o meio mais elementar de me inocentar, bem como o mais certo.
Kazan estava praticamente destruída pelo fogo. As ruas eram montes de escombros e os restos de paredes, sem portas nem janelas, mostravam as marcas negras das chamas.
Eram os vestígios da passagem de Pugatchev!
Fui levado para a fortaleza, que escapara intacta no meio da cidade incendiada. Os hussardos me entregaram ao oficial de dia, que mandou imediatamente chamar o ferreiro.
Ligou-me ele os pés com grossa corrente e fui depois metido numa cela exígua e sem luz, de nuas paredes, e no alto de uma delas havia pequena abertura gradeada por onde eu podia ver um pedacinho de céu. Para começo, não cheirava nada bem. Contudo, não perdi o ânimo nem a esperança. Recorri ao consolo de todos os desventurados e, experimentando pela primeira vez o bálsamo da oração, brotada de um coração inocente, embora estraçalhado, entreguei-me serenamente ao sono, sem me preocupar com o que me poderia acontecer depois.
Na manhã seguinte, fui despertado pelo guarda da prisão, que me trazia a ordem de comparecer à comissão investigadora. Dois soldados conduziram-me à casa do comandante, que ficava num extremo do pátio. Pararam no vestíbulo e eu entrei sozinho.
Era uma sala bastante ampla. À mesa, atulhada de papelório, sentavam-se um general de idade provecta, com um olhar frio e austero, e um capitão da Guarda, que não teria mais que vinte e oito anos, simpático, maneiroso e despachado. Junto à janela, numa outra mesa, instalava-se o secretário, com a caneta atrás da orelha, dobrado sobre o papel, pronto para registrar o meu depoimento.
E teve início o interrogatório. Perguntaram-me o meu nome e a minha patente. O general quis saber se eu era filho de Andrei Pietróvitch Griniov. Respondi que sim. E, ao ouvir a resposta, ele comentou, em tom severo: — É lamentável que um varão tão respeitável tenha um filho tão indigno!
Com toda a calma, respondi que, por mais graves que fossem as acusações que pesavam sobre mim, iria removê-las com a mera exposição da verdade. A minha convicção não lhe calhou bem, pois, franzindo as sobrancelhas, retrucou: — É muito ladino, moço, mas já lidamos com outros mais finórios e os encostamos contra a parede!
O capitão me perguntou quando e em que circunstâncias me pusera a serviço de Pugatchev e de que missões fora encarregado.
Altivo e indignado, retruquei que, na condição de oficial e aristocrata, jamais me poderia colocar a serviço do impostor, ou receber dele qualquer incumbência.
— Então como explica que, sendo oficial e aristocrata, foi o único a ser poupado pelo impostor, quando todos os seus demais camaradas foram brutalmente assassinados?
Por que também se sentou cordialmente à mesa dos revoltosos e do cabeça do movimento recebeu uma peliça, um cavalo e meio rublo? E por que motivo estabeleceu tal relação, se não foi por traição ou, pelo menos, por vil e criminosa covardia?
As perguntas do capitão me ofendiam fundamente e, com calor, comecei a me defender.
Minuciosamente narrei como conhecera o impostor na estepe, durante uma borrasca de neve, e como ele me reconhecera e me poupara na Fortaleza de Bielogorsk. Não neguei que aceitara os presentes, pois não vira nenhum mal nisso, mas salientei que participara da defesa da fortaleza com o máximo empenho até a capitulação. E rematei que o general poderia facilmente apurar a devoção com que me portara no prolongado sítio de Orienburg.
Aí o general tomou um papel que estava na mesa e leu em voz sonora:
Atendendo ao pedido de informações, formulado por Sua Excelência, a respeito do Tenente Griniov, acusado de participar da revolta e de manter estreitas relações com o impostor, práticas incompatíveis com o serviço e juramento prestado e passíveis de severa punição, tenho a honra de expor o seguinte: o referido Tenente Griniovfoi incorporado à tropa em Orienburg em princípios de outubro de 1773, onde permaneceu até 24 de fevereiro do corrente ano, data em que se afastou da cidade, não mais se apresentando ao meu comando.
Mas, pela declaração de alguns desertores, apurei que ele esteve na aldeia onde Pugatchev estabelecia o seu quartel-general e com o impostor viajou para a Fortaleza de Bielogorsk, na qual anteriormente servira. No que concerne ao seu comportamento, posso...
O general interrompeu a leitura e me perguntou com dureza:
— Depois do que ouviu, que tem a dizer em sua defesa?
Era meu propósito prosseguir como havia começado e explicar abertamente os sentimentos que me uniam a Maria Ivánovna, mas, de súbito, senti imenso nojo. Acudiu-me que, falando nela, sua presença seria requerida para possíveis acareações e a ideia de envolvê-la naquela imunda questão me pareceu tão repugnante que fiquei apático e confuso.
Os membros da comissão, que, segundo me parecia, já me ouviam com alguma complacência, em vista da minha perturbação tornaram a me olhar com prevenção. O capitão exigiu que eu fosse acareado com o principal denunciante e o general determinou que fizessem entrar o bandido aprisionado. Com o máximo interesse virei-me para a porta à espera do meu denunciante. Poucos momentos depois, ouvi um arrastar de correntes, e qual não foi a minha surpresa quando vi aparecer Chvabrin! Nem parecia o mesmo. Mostrava-se tremendamente magro e pálido. Os cabelos, que eram de um negro tão intenso, haviam embranquecido e a comprida barba estava bastante maltratada. Com voz rouca, mas incisiva, repetiu as acusações que fizera.
Afirmou que Pugatchev me mandara para Orienburg como espião e que, quase todos os dias, eu participava de sortidas com o único intuito de entregar aos sitiantes informações escritas sobre a situação da cidade. Garantiu ainda que não havia sombra de dúvida sobre minha adesão aos rebeldes e que, junto com Pugatchev, eu fora de fortaleza em fortaleza, tramando a perda dos meus companheiros de traição com o intento de ocupar as suas posições e me beneficiar na destruição dos espólios feita pelo impostor.
Ouvi-o sem pronunciar uma palavra e até fiquei satisfeito pelo fato de Maria Ivánovna não ter sido evocada pelo canalha, talvez porque seu amor-próprio sofresse com a lembrança daquela que o repelira com tanto desdém, ou talvez porque seu peito ainda abrigasse uma partícula do mesmo sentimento que me compelira a ficar calado. De qualquer sorte, o nome da filha do Capitão Mirónov não foi pronunciado diante da comissão. Mais firme ainda fiquei na minha deliberação e, quando me interpelaram de que maneira iria refutar as acusações de Chvabrin, limitei-me a dizer que mantinha o meu depoimento e nada mais tinha a acrescentar.
O general ordenou que nos retirássemos.
Juntos saímos, eu e Chvabrin. Sem uma única palavra, olhei-o com a maior serenidade. Ele esboçou um sorriso maldoso, levantou as pesadas e embaraçosas correntes e, passando na minha frente, apressou o passo. Fui metido outra vez na cela e não me chamaram mais para nenhum interrogatório.
Não presenciei os acontecimentos que se seguiram e que é preciso relatar ao leitor para que esta história fique completa. Mas tantas vezes ouvi contá-los que os mínimos pormenores ficaram gravados na minha memória de tal forma que me parece haver deles participado.
A notícia da minha prisão estarreceu meus pais. Maria Ivánovna, plenamente integrada na família, contara com tanta singeleza como eu travara conhecimento com Pugatchev que isso não só não os preocupou como até os fez rir gostosamente. Papai não podia admitir que eu estivesse comprometido numa revolta cuja finalidade era a derrubada do trono e a exterminação da nobreza.
Severamente imprensou Saviélitch. O devotado servo não negou que eu tivesse visitado Pugatchev, que o bandoleiro me houvesse presenteado e dado numerosas provas de gostar de mim, mas jurava pela salvação da sua alma que em tudo não havia a menor sombra de traição. Acalmados a tal respeito, os velhos puseram-se a esperar, com impaciência, melhores notícias minhas. Maria Ivánovna trazia o coração em pânico, mas, como era supinamente discreta e cautelosa, nada deixava transparecer.
Algumas semanas correram e, um dia, papai recebeu de São Petersburgo uma carta do nosso parente, o Príncipe B... Toda ela era sobre mim. Após o intróito protocolar, comunicava que as suspeitas da minha ligação com os rebeldes eram infelizmente bastante fundamentadas e que eu fora condenado à pena máxima. Todavia, a imperatriz, levando em consideração os serviços prestados e a respeitável idade de meu pai, resolvera indultar-me e, livrando-me da ultrajante execução, condenava-me à prisão perpétua numa remota aldeia da Sibéria.
O inesperado golpe por pouco não matou meu pai. Perdeu a habitual firmeza, e ele, que sempre calara a dor, passou a externá-la em amargas lamentações.
— Como é possível?! Meu filho envolvido nos planos de Pugatchev! Santo Deus, para que vivi tanto? A czarina indulta-o da pena capital!
Mas que me adianta tal piedade? Não é a execução que é horrível! Um dos meus bisavôs morreu no patíbulo, defendendo princípios que considerava sagrados. Meu pai foi perseguido por partilhar dos ideais de Volinski e Khruchtchov, que pagaram com a cabeça o seu idealismo! Mas um nobre quebrar seu juramento, unir-se a ladrões, assassinos e servos fujões é demasiado! Uma vergonha, uma desonra para a nossa estirpe!
Mamãe, assustada com aquele desespero, continha o pranto na frente do marido e se esforçava para sossegá-lo, dizendo-lhe que as notícias poderiam ser infundadas e lembrando-lhe a inconsistência da opinião pública. Mas meu pai permanecia inconsolável.
Mais que todos, sofria Maria Ivánovna.
Convencida de que eu poderia provar minha inocência quando bem quisesse, suspeitava do que me impedia fazê-lo e se achava culpada de meu infortúnio. Escondia as suas lágrimas, e não tinha outra ideia senão a de me salvar.
Certo dia, papai sentou-se no diva para compulsar o Calendário da Corte. Mas seu pensamento andava longe e a leitura não produzia nele o costumeiro efeito. De vez em quando assobiava uma velha marcha. Mamãe, em silêncio, tricotava um casaquinho de lã, sem poder evitar que algumas lágrimas viessem a molhar o seu trabalho. De repente, Maria Ivánovna, que também estava na sala ocupada com uma costura, levantou a cabeça e manifestou a necessidade de ir a São Petersburgo, rogando que lhe dessem os recursos para a viagem. Mamãe ficou aflita: — Mas por que precisa ir a São Petersburgo, Maria Ivánovna? Será que nos pretende deixar?
A moça respondeu que o seu futuro dependia daquela decisão. Iria empenhar-se com pessoas influentes para obter proteção, invocando a condição de filha de um homem que se sacrificara por sua fidelidade.
Papai abaixou a cabeça. Toda e qualquer palavra que lhe recordasse o crime atribuído ao filho pesava-lhe enormemente e parecia ser uma ferina censura. E, com um suspiro, disse: — Pode ir, minha filha. Não devemos pôr nenhum obstáculo à sua felicidade. Mas que Deus lhe reserve para marido um homem decente e não um indigno traidor... — E, levantando-se, saiu da sala.
A sós com mamãe, Maria Ivánovna expôs-lhe mais ou menos o seu projeto. Minha mãe abraçou-a fortemente e, chorando, rezou para que ela fosse feliz em sua empresa. Os meios para a viagem foram largamente proporcionados e, poucos dias depois, Maria Ivánovna pôs-se a caminho, acompanhada pela leal Palachka e pelo velho Saviélitch, que se consolava da minha forçada ausência servindo carinhosamente minha noiva.
Sem maiores tropeços, Maria Ivánovna chegou a Sofia, que ficava perto da capital, e, sabendo na estalagem que a corte na ocasião se encontrava em Tsarskoie Sieló, decidiu parar ali. Arranjou uma modesta acomodação na estação da posta, atrás de um tabique. A mulher do encarregado não tardou a entabular conversa com ela, contando que era sobrinha do acendedor de lareiras do palácio imperial e pondo-a logo a par dos infinitos segredos da vida na corte. Informou a que horas a imperatriz se levantava, tomava seu café, fazia seu passeio matinal; enumerou os nobres palacianos que a acompanhavam naquela temporada; repetiu o que ela dissera no jantar da véspera e relacionou o nome das personalidades que recebera de tarde. Em resumo, a conversa de Ana Vlassievna valia por uma verdadeira página de dados históricos, bastante valiosa para a posteridade.
Maria Ivánovna ouvia-a com o maior interesse.
Depois foram passear no parque. Ana Vlassievna contou a minuciosa história de cada alameda e de cada pontezinha. E, quando voltaram para a estação da posta, vinham satisfeitíssimas uma com a outra.
No dia seguinte, bem cedinho, Maria Ivánovna acordou, preparou-se e se esgueirou para o parque. Fazia uma esplêndida manhã, o sol dourava o alto das tílias, já amarelecidas pelo fresco vento outonal. As águas do lago brilhavam mansamente e os cisnes majestosamente nadavam sob a sombra dos arbustos que cresciam na margem. Maria Ivánovna passou por um maravilhoso prado, onde estava sendo levantado um monumento comemorativo às recentes vitórias do Conde Piotr Alexandróvitch Rumiantzev. E aí uma cachorrinha branca, de raça inglesa, latiu e correu para ela. No mesmo instante, ouviu uma voz feminina, de suave timbre: — Não tenha medo! Ela não morde.
E Maria Ivánovna viu uma senhora sentada num banco fronteiro ao monumento.
Avançou e foi ocupar a outra ponta do banco.
A senhora não tirava os olhos dela e Maria Ivánovna, discretamente, olhando-a de esguelha, pôde examiná-la dos pés à cabeça.
Trazia ela um vestido branco de passeio, touca de dormir e um casaquinho. Podia ter uns quarenta anos. O rosto cheio e rosado era todo fidalguia e serenidade. Os olhos azuis e o sorriso eram extremamente sedutores. E foi a dama quem rompeu o silêncio, perguntando suavemente:
— A senhorita parece que não é daqui, estou enganada?
— Não, minha senhora. Está certa. Cheguei ontem da província.
— Veio com seus pais?
— Não, minha senhora. Vim sozinha.
— Sozinha?! Mas a senhorita é tão jovem...
— Já não tenho pai nem mãe.
— Naturalmente veio aqui para tratar de algum caso, não é?
— É a pura verdade. Vim expressamente fazer um pedido à czarina.
— Se a senhorita é órfã, por certo vem fazer uma queixa contra uma injustiça, ou uma ofensa, não é assim?
— Absolutamente, minha senhora. Eu vim rogar clemência e não justiça.
— Poderia dizer-me quem é?
— Sou a filha do Capitão Mirónov.
— Capitão Mirónov! Aquele que foi comandante duma fortaleza na província de Orienburg?
— Exatamente.
A imponente dama pareceu comovida e, com a voz ainda mais suave, falou: — Perdoe-me se me intrometo nos seus assuntos particulares, mas é que tenho acesso fácil à corte. Diga-me qual é o pedido que pretende fazer e eu me esforçarei para que seja atendida. Acredito que serei bem sucedida.
Maria Ivánovna se levantou e respeitosamente agradeceu a atenção. Tudo na desconhecida senhora a atraía e infundia confiança. Tirou do bolso um papel dobrado e entregou-o à inesperada protetora, que começou a lê-lo, a princípio com expressão atenta e simpática. Mas, em dado momento, ficou carrancuda, e Maria Ivánovna, que não despregava os olhos dela, encheu-se de medo com a transformação daquele semblante antes sereno e favorável. Terminada a leitura, a dama perguntou friamente: — A senhorita pede o perdão de Griniov.
Acontece que a czarina não pode perdoar-lhe.
Ele aderiu ao impostor não por ignorância ou por imaturidade, mas como um calculado e perfeito canalha.
— Não é verdade! — replicou Maria Ivánovna com veemência.
— Como não é verdade? — voltou a senhora, enrubescendo.
— Não é! Deus é testemunha de que não é!
Estou a par de tudo, minha senhora, e vou-lhe contar. Foi única e exclusivamente por minha causa que ele suportou todas as acusações sem se defender. Não me queria envolver de maneira alguma na questão.
E ela relatou, calorosamente, tudo quanto o leitor já conhece, enquanto a senhora escutava-a com redobrada atenção.
— Onde a senhorita está hospedada? — perguntou ao final da minuciosa exposição.
E, ao saber que Maria Ivánovna se encontrava sob o teto de Ana Vlassievna, esboçou um sorriso e disse: — Ah, perfeitamente! Agora, adeus. E não diga uma só palavra a ninguém sobre o nosso encontro. Tenho fé de que bem depressa receberá uma resposta à sua carta.
E, levantando-se, enveredou por uma ensombrada alameda, enquanto Maria Ivánovna voltava para a estação da posta, com o coração palpitando de esperança.
Ana Vlassievna passou-lhe um pito por ter saído tão cedo, enfrentando a frialdade do outono, sempre perigosa para a saúde de uma jovem delicada como ela. Trouxe o samovar e, enquanto saboreava o chá, atacou o seu assunto predileto e inesgotável: a vida palaciana. Mas, ao cabo de poucos minutos, eis que pára uma carruagem da corte à porta, e um lacaio, com a libre imperial, traz o convite da czarina para uma urgente visita da Senhorita Mirónov ao palácio.
Ana Vlassievna caiu das nuvens: — Meu Deus! A imperatriz mandou chamá-la!
Como foi que ela soube que estava aqui? E como é que vai-se apresentar a ela? Aposto que não sabe fazer as reverências da etiqueta! Não seria melhor que eu a acompanhasse? Poderia ser de muita utilidade... E não me diga que vai-se apresentar com esse vestido de viagem...
Talvez fosse conveniente pedir emprestado à minha comadre um lindo vestido amarelo que ela tem. É um vestido de alta cerimônia!
O lacaio completou o convite dizendo que a czarina exigia que Maria Ivánovna comparecesse sozinha e com o vestido que trouxesse na ocasião. Ana Vlassievna deu-se por vencida e Maria Ivánovna subiu na carruagem sob uma chuva de bênçãos e recomendações da nova amiga.
Maria Ivánovna tinha o pressentimento de que a sua vida iria ter uma solução e o seu coração batia aceleradamente. Minutos após, a carruagem parava diante do palácio. De pernas bambas, Maria Ivánovna subiu a escadaria. E as portas foram-se abrindo uma após outra.
Atravessou numerosas salas, riquíssimas e desertas, com um lacaio à frente, mostrando-lhe o caminho. Por fim, pararam ante uma porta fechada. O guia palaciano disse que esperasse ali, enquanto ele iria anunciá-la à czarina.
Ao pensar que iria estar com a imperatriz frente a frente, perturbou-se tanto que mal podia suster-se de pé. Não foi grande a espera, a porta se escancarou e ela foi introduzida no quarto de vestir da czarina.
Estava a soberana sentada diante da penteadeira.
Alguns cortesãos, que a rodeavam, respeitosamente deram passagem à jovem visitante. Muito gentilmente a imperatriz se virou e Maria Ivánovna pôde reconhecer a senhora com quem tão abertamente falara há poucos minutos atrás. A Imperatriz Catarina chamou-a mais para perto e disse, sorrindo: — Sinto-me particularmente feliz em poder cumprir a minha palavra e atender a seu pedido. O caso está resolvido. Estou plenamente convencida da inocência do seu noivo. Aqui tem uma carta, que rogo entregar pessoalmente a seu futuro sogro.
Foi com a mão tremendo que Maria Ivánovna recebeu a carta e logo caiu ajoelhada aos pés da imperatriz, que afetuosamente a levantou e a beijou. Quando Maria Ivánovna se acalmou, a soberana disse-lhe: — Senhorita, eu sei que não é rica. Mas eu contraí uma grande dívida e devo pagá-la à filha do Capitão Mirónov. Portanto, não se preocupe com o futuro. Assumo solenemente o provimento das suas necessidades.
E, depois de abraçar a jovem carinhosamente, disse-lhe que a entrevista estava terminada e a carruagem que a trouxera iria levá-la de volta.
Ana Vlassievna, que a esperava morrendo de impaciência, crivou-a de perguntas, às quais Maria Ivánovna ia respondendo com o cuidado de escamotear determinadas coisas.
Ana Vlassievna mostrou-se decepcionada com tão grande falta de memória, mas atribuiu as lacunas a um acanhamento provinciano e generosamente perdoou a moça. Maria Ivánovna, sem ter a menor curiosidade de conhecer São Petersburgo, no mesmo dia voltou para a aldeia.
Assim terminam as notas deixadas por Piotr Andreitch Griniov.
Sabe-se, por tradição familiar, ter sido posto em liberdade nos fins de 1774, por ordem assinada pela imperatriz, e que estava presente à execução de Pugatchev, o qual, reconhecendo-o no meio da multidão, dirigiu a ele um cumprimento com a cabeça, que pouco depois era mostrada ao povo medonhamente ensanguentada. Dias mais tarde, Piotr Andreitch se casava com Maria Ivánovna, e os seus descendentes, até hoje, vivem prósperos e felizes na província de Simbirsk. Possuem vastas propriedades e, numa das casas senhoriais, há, ricamente emoldurada, uma carta do punho de Catarina II. É endereçada ao pai de Piotr Andreitch e nela consta o perdão do seu filho, assim como altos elogios à sua inteligência e à bondade da filha do Capitão Mirónov.
Os manuscritos de Piotr Andreitch Griniov nos foram entregues por um dos seus netos, que soube estarmos empenhados na elaboração de um estudo da época descrita por seu avô. Tomamos apenas a liberdade de alterar alguns nomes próprios.
Notas
1- Senhor. (N. do E.)
2- Centésima parte do rublo, unidade monetária russa. (N. do E.)
3- ”Senhora, por favor, vodca.” (N. do E.)
4- Camponês russo. (N. do E.)
5- Na Quirguízia, república que faz parte da União Soviética. É uma região montanhosa da Ásia Central, e sua capital, atualmente, é Frunze. (N.do E.)
6- Povo de origem mongólica, que habita a região da Basquíria, no sul do Ural, pertencendo à Rússia. (N. do E.)
7- População de raça mongólica, em sua maior parte, que habita o norte do Cáucaso e a margem direita do Volga.
8- veste comprida para homens, comum em todo o Oriente, com cinta e mangas compridas que podem ser estendidas até além das pontas dos dedos.
9- Grande trenó puxado por três cavalos emparelhados, usado na Rússia. (N. do E.)
Aleksander Pushkin
O melhor da literatura para todos os gostos e idades