Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A FILHA DO CAPITÃO
Segunda Parte
Afonso caminhou para o quarto sentindo-se dilacerado pela dúvida, ela desejava-o realmente ou tudo não tinha passado de um equívoco, de uma impressão errónea? Reconstituiu a conversa palavra a palavra e a dança passo a passo, tentou ler-lhe o olhar e o tom, recordou cuidadosamente cada expressão, procurou interpretar as intenções por detrás do menor acto, do menor gesto, e concluiu que sim, talvez, era provável que ela desejasse ser seduzida. Pensou então que não passava de um parvo, estava ali uma das mais bonitas e interessantes mulheres que jamais conhecera, parecia-lhe gradualmente evidente que ela alimentava um fraco por si, e ele certamente por ela, mas não tinha sido audaz, encolhera-se, duvidara, acobardara-se. Era, todavia, mais do que isso. Aprofundou a introspecção e descobriu que, de certo modo, estava também a armar-se em cavalheiro, em grande gentleman, a proteger um homem que, no fundo, até lhe era desagradável. Que estúpido! Estúpido, estúpido, estúpido! Abanou a cabeça, os olhos perdidos no soalho. Mas não valia a pena chorar agora sobre o que ficara consumado, não tivera coragem de a beijar e a oportunidade perdera-se, talvez para sempre. Desesperou, sentiu ganas de dar meia-volta e ir a correr à sua procura, implorando-lhe que o perdoasse, que desperdício, quem sabe se ele não iria morrer daí a alguns dias, que o que tinha para dizer ficaria por dizer, e por fazer. Mas nada fez, a não ser encolher os ombros, resignado. Correr atrás dela não passava de uma fantasia, tinha de se conformar, que remédio, paciência, já estava feito, se calhar foi melhor assim.
O capitão entrou no quarto que lhe fora destinado, o mesmo de havia dez dias quando se hospedou pela primeira vez no Château Redier. Acendeu a lamparina, viu a mala que Joaquim lhe deixara ao lado da cama de armação Luís XV, tirou o casaco e pendurou-o numa cadeira. Sentiu-se triste e só. Foi ao cabinet de toilette, rodou a alavanca da torneira e lavou a cara na porcelana da pia em estilo art nouveau, esvaziou a bexiga na decorada sanita Oneas do cubículo vizinho, tão requintada que até fazia pena sujar. Voltou ao quarto, sentou-se na cama, descalçou as botas, desfez vagarosamente a gravata verde-pálida e despiu a farda, ficou de ceroulas, tremia de frio, deitou-se e cobriu- se, encolhendo e enrolando o corpo para melhor aquecer os lençóis e as mantas, quando o tremor acalmou espreitou pelos lençóis, estendeu o braço e apagou a lamparina. Às escuras, fechou os olhos, suspirou e pensou em Agnès, fantasiando uma resposta diferente à oportunidade que acreditava ter tido quinze minutos antes, arquitectando planos para o dia seguinte, imaginando atraí-la para um local discreto onde lhe confessaria o seu amor com palavras românticas e irresistíveis, sentiu- se mais tranquilo quando decidiu que assim iria actuar, atrevido e arrojado, embora soubesse, bem lá no íntimo, que verdadeiramente jamais teria coragem de o fazer, quando a manhã nascesse veria tudo com outros olhos, as destemidas decisões da noite transformar-se-iam em ingénuas ilusões infantis.
Um estalido oriundo da porta desfez as fantasias como uma nuvem que se dissolve no céu. Afonso ergueu a cabeça e olhou para a entrada. Por momentos pareceu-lhe que estava tudo normal, pensou que ouvira talvez uma madeira a dar de si, possivelmente um móvel a estalar com as subtis mudanças de temperatura, afinal de contas um barulho habitual num palacete daquelas dimensões. Mas um novo som, agora um pouco diferente, mais suave e prolongado, confirmou que algo de facto se passava. Afonso sentou-se na cama, alerta. Um ténue clarão de luz emergiu verticalmente da entrada do quarto, era a porta que se abria, devagar.
"Alphonse? "
O capitão arregalou os olhos.
Alphonse? "
"Oui? "
Um vulto entrou com uma vela na mão, os contornos de luz a revelarem as linhas graciosas de Agnès, as sombras dançando no rosto fino, a penumbra acentuando as curvas da cintura e das coxas e a protuberância dos seios firmes que se insinuavam sob o vestido creme. A baronesa estacou, olhando para ele, frágil, quase receosa, submissa até. Ele fitou-a, surpreendido. Agnès sorriu com timidez e doçura, aproximou- se com passos leves, olharam-se de perto, de coração palpitante, aos pulos, caíram um no outro, envolvendo-se num abraço, beijaram-se timidamente, depois com sofreguidão.
Afonso começou pela face, desceu para os lábios, descobriu-os húmidos e fofos, penetrou-a com a língua, a boca era doce, quente, acolhedora, encontrou aí um sabor melífluo que o deixou inebriado, bêbado de prazer, perdido numa dimensão que não sabia existir, como se o tivessem arrancado da realidade e o elevassem à eternidade, Afonso era uma andorinha e Agnès o céu, ela um lago, ele um nenúfar. Sentiu o veludo macio dos grossos lábios vermelhos a recebê-lo com paixão e soube então, nesse preciso instante, como se de uma revelação se tratasse, que esses mesmos lábios de mel eram o seu fado, que aquela boca quente se fizera para ser a sua casa, que aquela mulher terna nascera para ser o seu destino.
O desejo cresceu, tornou-se irresistível, arrebatador, incontrolável, a respiração pesada, ofegante, ela sentiu as pernas fraquejarem, tombou na cama e perdeu-se nos lençóis. O capitão lambeu- lhe a orelha direita, desceu para o pescoço e depois, tirando-lhe os seios para fora da camisa de noite, percorreu os mamilos erectos com a língua, chupou- os e lambeu-os, eram rosados e arrebi-tados. Meteu a mão por baixo do vestido de dormir, ajudou-a a tirar as calcinhas e acariciou-a entre as pernas. Depois, quando a verificou muito húmida, tirou as calças do pijama e procurou-lhe a entrada.
"Doucement", sussurrou ela.
Afonso penetrou-a com suavidade. Sentiu-se inebriado, era como se tivesse mergulhado num delicioso pote de mel, infinitamente doce, quente e húmido, tão saboroso que até salivou. Agnès fechou os olhos, gemeu, deitou a cabeça para trás e experimentou-o dentro de si, abrindo-a, explorando-a. Sem que Afonso o esperasse, ela rodopiou e rolou para cima dele, dominando-o. O capitão nunca vira uma mulher colocar-se sobre si, nem as desavergonhadas meninas das Travessas, em Braga, alguma vez o tinham feito. Passada a surpresa inicial, aceitou a dominação, considerou-a mais uma coisa excitante que esta francesa lhe ensinava. Ela cavalgou-o com entusiasmo, o ventre dançando para cima e para baixo, por vezes acariciando-o com a ponta dos dedos. Quando sentia a ejaculação a aproximar-se, apertava-lhe as mãos.
"Pára! Pára", implorava-lhe.
Ela imobilizava-se, paciente, até a lava que o queimava recuar de man-sinho, e depois recomeçavam, sempre beijando-se e acariciando-se. Minutos mais tarde, ela deitou-se e voltou ele para a posição dominante. Sentiu o corpo ganhar velocidade e ritmo, tomando conta de si, cavalgando autonomamente com crescente intensidade, mais rápido e mais rápido, até não mais se conseguir conter e soltar a erupção com um urro, sentir o corpo explodir e gemer de prazer, ao mesmo tempo que ela se agitava por baixo de si num orgasmo mais prolongado. Todos os músculos se retesaram, atingiram um pico de tensão e, passada a onda alucinante, descontraíram-se de imediato. A respiração readquiriu gradual normalidade, uma indescritível sensação de bem-estar encheu-lhes a alma de paz e adormeceram nos braços um do outro.
A luz era, nessa manhã, límpida e suave. O sol espalhou uma claridade gelada pelo manto branco intermitente que cobria a paisagem agreste das trincheiras. Dezembro trouxera os nevões e um frio glaciar, mais gelado quando o céu se abria num azul puro, como hoje, pedaços de flocos amontoados aqui e ali, como se estivessem ao abandono, pequenas poças de neve derretida nas crateras e nas fossas das ranhuras rasgadas na terra por entre parapeitos e onde se amontoavam as toupeiras humanas. A vegetação jazia queimada, pelo gelo ou pelo fogo de guerra. As árvores, nuas, carbonizadas e mutiladas, erguiam-se como espectros teimosamente de pé naquela terra revolvida pelo aço e pela morte.
A tranquila placidez da paisagem alva criava a ilusão, agradável mas perigosa, de que ali não havia guerra, impressão intensificada pelas novas sensações que tinham entrado de rompante no mundo do capitão Afonso Brandão e que coloriam a sua nova perspectiva da vida. A intensa noite com Agnès e a cumplicidade que se estabelecera entre os dois amantes, cumplicidade cimentada nos fugazes encontros que tiveram nos quatro restantes dias de descanso do oficial, trouxeram-lhe um outro estado de espírito. De certo modo, o capitão receava agora ainda mais as semanas de trincheiras, mas, ao mesmo tempo, e apesar de um mal disfarçado sentimento de culpa por estar a relacionar-se com a mulher de outro homem, a perspectiva do regresso ao descanso apresentava-se mais luminosa, cheia de promessas, de encantos proibidos, de prazeres despertados, de emoções arrebatadas.
Era a manhã do dia 6 de Dezembro, Afonso e Infantaria 8 tinham regressado às posições de Neuve Chapelle na noite anterior. O frio revelava-se cortante, e, se as coisas já assim se apresentavam no princípio do mês, como seria em Janeiro e Fevereiro? Encostado ao parapeito interior da linha B, os pensamentos do capitão dividiam-se entre o esforço para se proteger do gelo que lhe penetrava pelo dólman e o desejo de se refugiar no calor da memória ardente de Agnès e no universo de fantasia que construía na sua alma apaixonada, antecipando os novos encontros que adivinhava depois desta semana nas trincheiras. Tirou do bolso a cigarreira prateada que a baronesa lhe oferecera na emoção da despedida, colocou distraidamente um Kiami! nos lábios e acendeu-o, sempre mergulhado nos seus pensamentos, procurando encontrar no acre fumo do cigarro o doce cheiro da boca da baronesa, o aroma perfumado de L'heure bleue. Tão absorto estava que só se apercebeu da aproximação do tenente Timothy Cook quando o oficial inglês de ligação o cumprimentou.
"What ho, Afonso, old boy? "
O capitão regressou das nuvens e olhou para o recém-chegado. " Hã ", exclamou. "Ah, olá Tim. "
" What up ", perguntou Cook, querendo saber quais as novidades.
"Nada. Tudo na mesma como a lesma. "
" Então qual o motivo de toda a comoção?", perguntou o tenente inglês no seu português britanicamente abrasileirado.
"Comoção? Qual comoção? "
"A que ali vai, na line. "
" O que é que se passa na linha "
"Não sei, me diga você. Vi um ajuntamento à porta do posto de sinaleiros, em Dreadnought Post. "
"Ah sim? Quando "
"Agora mesmo, passei por lá e estava a maior confusão. " Afonso fitou Cook com ar interrogativo.
"Não sei de nada", disse. "Espera aí que eu vou lá ver o que é " O capitão percorreu com Joaquim a linha B, chegou à linha de comunicação, Jock Street, virou à esquerda e meteu pela Winchester Road, apanhou a linha C, seguiu para a direita e foi ter ao posto de sinaleiros de Dreadnought, um buraco aberto entre sacos de areia. Ao aproximar-se, apercebeu-se de que havia, de facto, um burburinho no local.
"O que se passa? ", perguntou ao tenente Curado, que se quedava à porta, rodeado de oficiais excitados.
"Uma revolução, meu capitão."
"Uma revolução? Que revolução? "
"Em Portugal, meu capitão. O Bernardino e o Afonso Costa foram à vida "
"Que história é essa? "
"É como lhe digo, meu capitão. Houve uma revolução em Portugal. "
Afonso penetrou no posto, onde todos falavam animadamente, era a maior algazarra, abriu espaço entre os excitados oficiais e foi ter com o telegrafista.
"Conta lá o que é que está a acontecer. "
O telegrafista, um alferes de nariz protuberante, olhou-o, desanimado, era a vigésima vez que lhe faziam a mesma pergunta, todos queriam saber o que se passava, quais as informações que chegavam por telegrafia, e ele já se cansara de repetir a mesma lengalenga. Suspirou e decidiu ser sucinto.
"Sei pouca coisa, meu capitão. Apenas a informação de que houve ontem uma revolução e que há combates nas ruas de Lisboa."
"Disseram-me ali à porta que o presidente da República e o primeiro- ministro tinham sido derrubados. "
"Tanto quanto sei, isso não se confirma, é apenas especulação. Se há combates, julgo que isso significa que a coisa ainda não está decidida. "
"E quem é que está a encabeçar esse golpe? "
"Um tal de major Paes. "
"Major Paes? Quem é esse? "
"Não sei, meu capitão. "
O tenente Pinto, o seu maior amigo dentro de Infantaria 8, apareceu por entre outros dois oficiais, o cabelo ruivo despenteado, como se tivesse acabado de acordar, e pôs-lhe a mão no ombro.
"Então Afonso? Se calhar, vamos para casa. "
"Olá, Cenoura. Eu acho é que, afinal, estamos no sítio errado. A guerra é em Portugal, não aqui. "
"É, andam lá aos tiros. "
"Quem é esse major Paes? "
"Olha, disseram-me há pouco que é um gajo do Exército que há uns anos esteve no governo e depois foi para nosso ministro em Berlim. "
Afonso arregalou os olhos, identificando o nome. "Aaaaah, o Sidónio Paes! "
"Esse mesmo", confirmou Pinto. "Conheces o tipo? " "Só dos jornais", explicou o capitão.
"E então? "
"Se ele ganhar, é como tu dizes, parece-me que podemos ir fazendo as malas e preparar-nos para irmos para casa. "
"Foi isso mesmo que me disseram. O gajo é monárquico?" "Isso querias tu", sorriu Afonso, largamente conhecedor da costela monárquica do tenente Pinto. "Tanto quanto eu sei, o Paes é republicano, está ligado ao Partido Unio-nista. Lembro-me de que até integrou os primeiros governos da República."
"Mas é contra a guerra... "
"Acho que sim. Ele estava em Berlim quando os boches nos declararam a guerra, fartava-se de elogiar aqueles cabrões e, do que sei, não gostou da nossa vinda aqui para a Flandres " Calou-se, pensativo. "Vais ver que a Virgem de Fátima sempre tinha razão, vamos mesmo mais cedo para casa. "
O capitão Resende, já menos gordo desde que havia duas semanas se sujeitara à recepção ao caloiro, abraçou os dois ho mens, efusivo.
"Vamos para casa, caraças! "
"Aguenta lá os cavalos, Resende", recomendou Pinto. "Ainda não sabemos como é que aquilo acaba, o major Paes pode não ganhar. "
"Estás mas é maluco, Cenoura. Eu conheço o homem, ele vai ganhar. "
" Conheces o gaj o?"
"De Coimbra. Ele deu lá aulas na universidade." "E como é que ele é? "
"Um tipo às direitas, com ele não se faz farinha. Este regabofe dos deputa-dos, do Afonso Costa e da guerra vai acabar, o Paes vai pôr ordem nesta merda."
"Deus te oiça", comentou o tenente Pinto, que nunca digeriu a decisão de Portugal entrar na guerra. "Vocês já viram isto? Ainda em meados de Outubro o Bernardino e o Afonso Costa vieram cá ao CEP e menos de dois meses depois já estão ambos com guia de marcha "
O ambiente no posto era agitado. Os oficiais percebiam que os aconteci-mentos de Lisboa, qualquer que fosse o seu desfecho, teriam impacto nas suas vidas. Se o Partido Democrático permanecesse no poder, mantendo Bernardino Machado como presidente da República e Afonso Costa como primeiro-minis-tro, o plano de envolvimento de Portugal na Grande Guerra provavelmente permaneceria inalterado. Mas, se Sidónio Paes vencesse, as coisas mudavam de figura e ninguém ignorava que era possível a retirada do CEP do teatro das operações. Mais do que entre republicanos e monárquicos, o país estava agora dividido entre intervencionistas e não intervencionistas. Se o Partido Democrá-tico, no poder, era intervencionista, então quem quer que se lhe opusesse teria necessariamente de ser contra o envolvimento de Portugal no conflito.
Afonso saiu do posto e, apesar do frio glaciar, veio cá fora apanhar ar. Sentia-se dividido e não sabia o que pensar. Por um lado, desejava ardente-mente deixar as trincheiras, esquecer a guerra e regressar ao quartel de Braga ou ao ninho de Rio Maior. Fizera a sua parte, cumprira o seu dever, era hora de descansar. Mas, por outro, não deixava de achar que o abandono do conflito deixaria o país malvisto pelos aliados e com o pós-guerra comprometido. Como manter o império se Portugal nem era capaz de aguentar duas divisões na Flandres? E, no fundo da sua mente, isso não era tudo, se o CEP partisse, não era só o prestígio de Portugal que se perderia, havia mais coisas que ficariam para trás. Havia Agnès.
Marcel estranhou o pedido da baronesa, franziu o sobrolho mas limitou-se a assentir.
"Oui, madame", disse, seguindo-a pelos corredores do palacete. Agnès atravessou o foyer com impaciência, cruzou a porta de entrada, recebeu o ar frio da manhã como um sopro de liberdade e desceu as escadarias com alívio, estava cá fora, saíra do palacete, sentia-se leve. O criado ultrapassou-a, apressado, e foi a correr para o lado direito. Instantes mais tarde ouviu-se um motor a roncar e ele apareceu ao volante da Renault amarela do barão Redier, era uma elegante sedan, deu a volta à praceta, imobilizou-se diante da patroa, saltou cá para fora, o motor ainda a funcionar e a despejar fumo negro pelo escape, abriu a porta traseira, Agnès ergueu as largas saias cor-de-rosa, assen-tou o pé direito no degrau e instalou-se no compartimento fechado. Marcel voltou ao volante, destravou e arrancou, uma rajada de vento gelado despen-teou-o quando o carro passou o portão, afinal de contas o lugar do chauffeur era ao ar livre, apenas protegido pelo vidro dianteiro e pelo tejadilho.
A baronesa deixou-se guiar docilmente, os olhos fixos para além das janelas, cravados melancolicamente nas filas de plátanos, de choupos, de olmos, de tílias, que desfilavam pela berma da estrada, olhos que se perdiam na planície, nos bosques, nas ribanceiras, no céu aberto, nas vacas e nos porcos, nos patos e nos gansos, nas casas abandonadas, nos celeiros vazios, nos muros conquistados pela hera, nos flocos de neve que se diluíam em lama, nas carro-ças vagarosas, nos teimosos camponeses que insistiam em lavrar a terra, olhos que olhavam para fora mas apenas viam para dentro, os arbustos agitavam-se e Agnès observava-os sem os ver, diante dos olhos tinha somente Afonso, via-o a sorrir, a beijá-la, imaginava-o algures lá na frente, desde que lhe sentira o calor que deixara de suportar a presença de Jacques, ansiava pelo capitão que lhe fazia lembrar o marido perdido, ansiava tanto que, já desesperada, pedira a Marcel para a levar com ele para o mercado, para o acompanhar nas compras. Ela que nunca se preocupara com as compras na praça queria agora um pretexto para se afastar do palacete que a sufocava, um pretexto para escapar à espera ansiosa pelo seu português, para pensar noutras coisas, para se distrair, também para se sentir mais perto dele naquela vilória por detrás das primeiras linhas onde ele se enterrara. Estarei a ficar louca? questionou-se, ainda vendo sem ver os viçosos campos da Flandres a espraiarem-se para lá da estrada, a estenderem-se até ao fio do horizonte, a prolongarem-se até o verde se fundir no azul do céu. Conheço-o há tão pouco tempo, tão pouco, tão pouco, estarei a ficar louca? Respirou fundo, buscava ar que a libertasse da ansiedade que a oprimia, encheu o peito com aquele aroma frio e puro que lhe trazia notícias da vida, agitou-se com intranquilidade.
O automóvel entrou em Armentières e os olhos de Agnès começaram enfim a ver, a enxergar o que se encontrava para além dos vidros. Lá fora agitava-se a povoação, a lama do carro saltava para as paredes das casas, a neve adquiria um aspecto sujo pelos cantos, via-se ali um estaminet, acolá um barbeiro, além uma boulangerie, por todo o lado soldados, deambulavam por ali todas as nacionalidades, tantas que até faziam lembrar aquele longínquo passeio pela Exposição Universal, eles eram ingleses, escoceses, canadianos, australianos, portugueses. Ah, portugueses! Agnès inclinou-se no assento e olhou-os com curiosidade, com intensidade, estudou-os, procurou neles traços de Afonso e vestígios que os assemelhassem a Serge como Afonso se asseme-lhava, les portugais sont toujours gais, lembrou-se, mas não lhe pareceu. Eram pequenos, atarracados, uns com rostos largos, outros de caras chupadas e maçãs salientes, simplórios, rudes, mal barbeados, botas sujas e descosidas, vestiam roupas ridículas, rotas, casacos azuis com mangas tão grandes que nelas se escondiam as mãos, uns usavam pelicos com peles de carneiro, outros tinham ar andrajoso, pareciam tristes, desenraizados, arrastavam-se pelas ruas em grupo, a fumar, alguns seguiam solitários, metidos consigo, eram miúdos sem alegria da vida, crianças sem infância, homenzinhos abandonados numa terra distante.
A Renault dobrou a esquina e aproximou-se do mercado, havia mais gente nas ruas, viam-se civis, sobretudo velhos e crianças. Ali ao fundo reconheceu uma nuca, o coração disparou, era Afonso. Agnès levou a mão à boca, sobressaltada.
"Alphonse ", murmurou.
Afonso estava ali. Afonso caminhava pelo passeio alagado, de costas, o carro aproximou-se, passou por ele, a francesa com o rosto colado ao vidro, os olhos verdes bem abertos, o automóvel ultrapassou Afonso, ela ficou a vê-lo, vidrada no vidro, a nuca dele tornou-se perfil e finalmente rosto, Afonso tinha os olhos a saltitarem distraidamente pelo chão e um cigarro no canto da boca, o bigode diferente, ela percebeu enfim que não era ele, não era Afonso, era outro, era um soldado canadiano. Agnès encostou-se no assento, ofegante, espantada, surpreendida consigo mesma, a mão no peito.
"Estarei louca?", interrogou-se. "Mon Dieu, já o vejo por toda a parte."
Matias Grande sentia-se cansado e com frio. Mantinha-se alinhado com os homens do pelotão na linha B, perto de Deadhorse Corpse, integrando a formatura da tarde, designada por A Postos, uma rotina diária directamente inspirada no Stand To britânico.
O sargento Rosa olhou para o fundo da trincheira, viu o capitão Afonso Brandão a aproximar-se e gritou para os seus homens.
"Aaaaaa postos!"
O pelotão pôs-se em sentido nos buracos cavados na paisagem branca, chocalhando as botas e os metais das armas e munições num fragor rápido, voltou o silêncio e todos aguardaram a inspecção do oficial. Afonso foi chapinhando pela lama e pisando flocos de neve até ao ponto onde os homens se encontravam formados.
Caminhava quase distraidamente, um bengalão de ponteira metálica balouçando como um pêndulo na luva que calçava a mão esquerda, até que chegou junto do primeiro soldado do pelotão, Vicente Manápulas, olhou para a Lee-Enfield e fez uma careta de desaprovação, um bafo de vapor a sair-lhe pela boca.
"Quero este cano limpo e oleado."
"Sim, meu capitão. "
O oficial passou lentamente pelos homens do grupo, apontando com o bengalão para aqui e para ali, fazendo reparos ao equipamento, às armas, às munições, aos aparelhos antigás. Repreendeu Baltazar Velho porque o seu respirador não se apresentava na devida posição de alerta, uma vez que, embora a máscara estivesse suspensa à frente do peito, como era do regula-mento, as molas da tampa encontravam-se voltadas para fora, o que violava as regras estabelecidas. Afonso passou por Matias Grande e inclinou ligeiramente a cabeça, em sinal de que o reconhecia da aventura de havia duas semanas, e, no final da revista aos homens, estacou junto do sargento Rosa.
"Sargento, quero ver o material de trincheira. "
O sargento percorreu a trincheira com o oficial atrás, mostrando-lhe as tarimbas, os armeiros, as bombas para tirar água das linhas, as picaretas e enxadas, os braseiros, os pulverizadores Vermorel, as pistolas especiais para lançar os cunhetes de iluminantes lerey, também designados por Verey lights, ou very lights, mais as buzinas Strombos e as sinetas de alarme. O mais frustrante eram as bombas, que continuamente retiravam água das trincheiras para os soldados verem mais água a brotar do chão lamacento ou a nascer do gelo acumulado, tornando quase inútil todo o exercício. O capitão mandou limpar algumas fezes que encontrou aninhadas nas tábuas das passadeiras e ordenou que se consertassem duas banquetas danificadas e um rolo de arame farpado que uma minenwerfer tinha rompido duas horas antes, deixando uma cratera junto ao parapeito de sacos de areia.
O Sol, triste e esgotado, deitou-se por detrás das linhas portu guesas e a noite caiu, gelada e escura. O A Postos da tarde terminou, começando o período mais difícil da jornada. Não havia nada que o soldado mais temesse do que a noite, com os seus mistérios e perigos ocultos, com as suas ameaças escondidas e silêncios traiçoeiros. Afonso deu ordens para que fossem colocadas quatro sentinelas de vigia, em vez de uma única, como se fazia de dia. Duas das sentinelas tinham de ficar de pé, vigiando as linhas inimigas pelo parapeito, e as outras duas podiam sentar-se nas banquetas. Ao fim de meia hora, um dos homens de pé trocava de posição com um dos sentados, e meia hora depois era a vez de os dois restantes trocarem igualmente de lugar. Tratava-se de uma forma de manter sempre de vigia um homem com os olhos habituados à escuridão. Apesar dos maiores perigos da noite, os snipers foram dispensados, dado que a visibilidade nocturna era nula e convinha poupar os soldados.
Como comandante da companhia da direita, cabia a Afonso garantir os preparativos para a noite, assegurando a posição das sentinelas, a fiscalização da linha da frente e a divulgação das ordens do dia. Nessa noite mandara efectuar vários trabalhos de reparação de passadeiras, drenagem de trincheiras e reposição de protecções, para além de ordenar a saída de várias patrulhas de reconhecimento e outras de protecção aos homens que trabalhavam no arame farpado. Mas a ordem mais importante dizia respeito à saída de uma patrulha de escuta, destinada a obter informações sobre o que se passava nas posições inimigas.
O problema é que as notícias de Portugal concentravam as atenções de toda a gente, com soldados e oficiais a especularem sobre o futuro da sua presença na Flandres. Não era ainda certo o rumo dos acontecimentos, se o major Sidónio Paes venceria, se Portugal iria pôr termo à sua participação na guerra, mas bastava a hipótese ser colocada para minar o espírito combativo. Ninguém queria morrer tão perto de regressar a casa, e foi, por isso, com contrariedade que Vicente Manápulas e Abel Lingrinhas receberam a ordem de se prepararem para a incursão pela terra de ninguém. A ordem veio de Afonso, mas foi transmitida pelo sargento Rosa.
"Porra, meu sargento, porquê nós?", queixou-se Vicente, a gesticular com veemente indignação.
"Cala-te e veste-te", indicou Rosa, estendendo aos dois homens os impermeáveis brancos.
Estas fardas eram utilizadas como camuflagem em paisagens nevadas, de modo a que os soldados se confundissem com o manto gelado que tudo cobria de serenidade alva.
"Então e porqu'é qu'o capitão não vem também?"
"Cala-te e veste-te."
"É sempr'a mesma merda c'os oficiais", murmurou Vicente, furioso, enquanto punha as calças brancas com gestos bruscos. "Arrotam postas de pescad'e nós é qu'arriscamos o couro. Vê lá s'ele tem tomates p'ra vir connosco."
"Cala-te Manápulas, já te disse. "
"Os camones da direita já mudaram e nós ind'aqui tamos nesta pocilga, a chafurdar na lama com'uns marranos. "
Vicente referia-se à 25, a Divisão britânica do XI Corpo, que ocupava a linha à direita de Ferme du Bois e que, dias antes, tinha sido substituída pela 42, a Divisão do XV Corpo do Exército do BEF. As tropas portuguesas começavam a ver os seus vizinhos a serem substituídos para irem descansar e ansiavam já pelo mesmo.
"Não te aviso mais", rosnou o sargento. Apontou o indicador para Vicente, ameaçador. "Voltas a piar e na semana de descanso vais de serviço às latrinas, ouviste? "
O soldado continuou a resmungar, mas agora de modo imperceptível. Abel Lingrinhas permanecia silencioso, era mais introvertido, mas sentia-se igualmente assustado e irritado. Parecia-lhe pouco sensato fazer aquela opera-ção quando havia a possibilidade de, daí a alguns dias ou semanas, receberem todos ordem de regresso. Mas conformou-se. Mostrava-se determinado a permanecer o mais invisível possível na terra de ninguém e a regressar inteiro às linhas do CEP e foi com essa ideia que vestiu o impermeável branco e, acompanhado pelo sargento Rosa e por um muito contrariado Vicente, seguiu para a linha da frente.
Como sempre quando frequentavam a primeira linha, instalou-se um silêncio respeitoso ao pisarem as tábuas da passadeira da linha da frente, no posto avançado de Duck's Bill. Aquele era o último reduto antes de enfrentarem o inimigo e era por ali que acederiam ao ponto mais perigoso de todos, a terra de ninguém. O sargento fez um sinal e os dois homens armaram as baionetas e sentaram-se nas banquetas, aguardando a chegada do oficial. O capitão Afonso Brandão apareceu em Duck's Bill perto das nove da noite com um rolo de linha telefónica desactivada debaixo do braço e sentou-se junto dos homens que iam partir para a patrulha de escuta.
"Isto é uma operação simples", indicou, a voz num sussurro. "Quero vigilância do terreno sem intervenção. Entendido? "
Os dois soldados permaneceram calados. O manto escuro da noite ocultava-lhes os rostos, apenas era possível distinguir um vago contorno das silhuetas. Afonso sentiu-se desconfortável com aquele silêncio.
"Entendido? ", repetiu.
"O que devemos vigiar? ", quis saber Vicente.
Afonso rolou os olhos, impaciente. Era evidente que o soldado estava contrariado e se fazia desentendido, não era possível que andasse havia dois meses nas trincheiras e ainda não soubesse em que consistia uma patrulha de escuta.
"Quero que verifiquem se há movimento de patrulhas inimigas e número de efectivos, mas não quero tiros, apenas informação", disse com toda a paciência que conseguiu juntar, estendendo-lhes o rolo de fio telefónico que tinha trazido consigo. "Levam o fio a servir de cordão. Um esticão significa que chegaram e que estão bem, dois esticões para regressarem, três esticões se detectarem patrulhas inimigas, seguidos do número de esticões relativos ao número de boches, e quatro esticões se acharem que a patrulha inimiga repre-senta um perigo para as nossas linhas. Entendido?. "
"Sim, meu capitão", assentiu Vicente, resignado. "Vamos a isso, rapazes. Boa sorte e tenham cuidado." Os dois homens embandoleiraram as Lee-Enfield, agarraram o fio de telefone, entregando a ponta ao sargento Rosa, pegaram no arame-guia, que os conduziria por uma rota aberta entre o emaranhado dos rolos de arame farpado, puseram os pés nas banquetas e pularam em silêncio pelo parapeito, mergulhando na noite. Afonso e o sargento assomaram ao parapeito no seu encalço e sentiram, mais do que viram, Vicente e Abel a rastejarem lentamente pela neve, seguindo o percurso revelado pelo arame-guia, até que, uns metros mais à frente, os seus movimentos deixaram de ser perceptíveis. Apuraram a vista, tentando descortiná-los, mas nada registaram e Afonso não pôde deixar de pensar que existiam possivelmente patrulhas alemãs também a circular por ali, invisíveis e silenciosas, traiçoeiras e perigosas, e não desejou estar na pele dos dois homens que acabara de mandar para desafiarem a morte na terra de ninguém.
O capitão e o sargento permaneceram longamente no parapeito, mirando a imensidão de trevas que se estendia à sua frente. Apenas uns ocasionais tiros ou rajadas rompiam o silêncio que se abatera sobre as linhas. A certa altura, um very light, proveniente do lado alemão, acendeu-se no céu e começou a descer com lentidão, lançando uma luminosidade quase diurna sobre a terra de ninguém. Era uma luz estranha e assustadora, tinha algo de sinistro, parecia de outro mundo. Havia quem a achasse bela, mas o capitão sentia um invariável arrepio de medo sempre que via aquele clarão sobrenatural a pairar sobre as linhas. Tentando abstrair-se dos sentimentos sombrios gerados pelo very light, Afonso e Rosa esforçaram-se por aproveitar a visibilidade e detectar presença humana naquela faixa de terreno inóspito, presença que sabiam existir. Mas a paisagem permanecia morta, a luz revelava apenas as árvores tristemente curvadas, amputadas e calcinadas, erguendo-se como espantalhos, as sombras a girarem com suavidade pelo chão numa rotação contraposta ao farol que cruzava o céu, crateras cavadas na terra, um manto branco de neve a resplan-decer luminosamente sob o clarão frio do very light que descia pendurado no seu pequeno pára-quedas. O foco de luz foi morrer perto do horizonte, e, naqueles longos instantes de claridade, não vislumbraram sinais de Vicente e Abel, era como se ambos se tivessem volatilizado da terra de ninguém.
Ao fim de dez minutos, um único esticão do fio telefónico indicou que os dois soldados tinham chegado à posição de observação. Tranquilizado, Afonso sentou-se na banqueta, deixando o sargento a vigiar a terra de ninguém, e acendeu um cigarro curvado sobre si mesmo, as mãos enluvadas a protegerem o lume do vento cortante e, sobretudo, dos olhares inimigos. Os minutos passaram e não vieram novidades. O fio telefónico permaneceu imóvel e, por mais que aguçassem o ouvido ou tentassem discernir algo na escuridão, Afonso e o sargento Rosa não tiveram qualquer indicação proveniente da patrulha. O capitão sabia que, com aquela neve espalhada pelo chão, não deveria manter os dois homens muito tempo na terra de ninguém, sob pena de sofrerem hipotermia, pelo que, ao fim de meia hora, fez sinal ao sargento.
"Manda-os voltar. "
O sargento Rosa puxou duas vezes o fio telefónico e ficou a vigiar pelo parapeito. Dez minutos depois, os vultos dos dois soldados emergiram da noite, brancos de frio, e saltaram para a linha da frente, os queixos a tiritarem, os bra-ços enregelados, tremendo e tremendo, sentaram-se nas banquetas e dobraram-se sobre si, encolhidos em busca de calor. O sargento estendeu-lhes um copo de aguardente, que engoliram de uma vez, ansiando sofregamente pelo ardor quente do álcool que lhes invadiu o corpo e queimou as vísceras.
"Então?", perguntou Afonso quando os homens pareceram mais recom-postos.
"Não há novidade, meu capitão", disse Vicente Manápulas muito rapidamente, engolindo sílabas, num fôlego quebrado pelo frio. "Ouvimos os gajos a falarem ao fund'e mais nada. "
"Nenhum movimento?"
"Nada. "
"Para onde é que vocês foram? "
"P'ra uma cratera ali ao fundo, perto dos gajos. Estav'um zieiro do camano. S'a gente se delatasse mais um pouco, cangava. "
"Em que ponto é que os boches estavam a falar? " "Junt'ó parapeito, em linha recta diante de Rifle Row, ali em Mitre Trench", respondeu Vicente, indicando a direcção com a mão. "Mesm'ali. "
Afonso suspirou e ergueu-se.
"Vão lá descansar", disse, antes de se afastar.
O capitão seguiu para o posto de sinaleiros. Tinha de passar a informação de que permanecia tudo calmo no seu sector e a ordem para metralharem a posição onde a patrulha detectou soldados inimigos a falarem, mas sobretudo queria ainda saber novidades dos acontecimentos em Portugal. Depois de comunicar que a patrulha de escuta não tinha registado nenhum movimento nas posições alemãs, foi informado pelo alferes de serviço ao telégrafo de que as forças revoltosas em Lisboa montaram um acampamento no Parque Eduardo VII, enquanto a Guarda Republicana, leal ao governo, se instalara no Rossio. Não havia mais pormenores e o capitão voltou às linhas para efectuar a ronda da noite e inspeccionar os trabalhos de reparação e drenagem das trincheiras. Só iria deitar-se pela alvorada, depois de o clarão radioso da manhã emergir difuso para além das linhas inimigas.
Matias Grande, Baltazar Velho e mais quatro homens passaram três horas por cima do parapeito da linha da frente, entre Newcut Alley e Château Road, envolvidos no trabalho de fortalecimento das posições defensivas. Operando às escuras e comunicando em murmúrios temerosos, os seis soldados colocaram dezassete concertinas e quatro rolos de arame farpado naquele sector, uma vez que as anteriores protecções tinham sido arrancadas por umas morteiradas que ali caíram durante o dia. Perderam a sensibilidade nos dedos, as mãos agitavam-se num tremor miúdo, dormentes e enregeladas, e foi com grande alívio que deram o trabalho por concluído e receberam autorização do sargento Rosa para recolherem ao abrigo, situado em Baluchi Road.
Matias e Baltazar beberam meia garrafa de rum junto às paredes interiores do parapeito, sentiram o álcool a aquecer-lhes as entranhas como o bafo de um vulcão e, mais reconfortados, fizeram-se ao caminho. Subiram pela Château Road até à Rue Tilleloy e meteram logo pela Baluchi até chegarem ao abrigo. Mergulharam no buraco lamacento e deram com Vicente e Abel estirados no chão e envolvidos em mantas, os corpos iluminados por uma lamparina fraca, a luz amarela e bruxuleante a dançar-lhes no rosto.
"Então essa patrulha? ", perguntou Matias enquanto se instalava.
"Nem me fales", devolveu Vicente, pálido de frio, a manta a cobri-lo até ao nariz. "Estav'um zieiro infernal "
"Então eu não sei? Estou com as mãos inchadas de frieiras caraças." Exibiu os punhos deformados pelo frio, os dedos gordos e vermelho-arroxeados. "Até parece que me sai sangue das unhas. "
"Isto é pior do que a serra", queixou-se Baltazar, que era do Gerês e estava habituado ao gelo seco das alturas. "Nem sinto os dedos, porra! "
Matias fitou Abel e reparou que o amigo tremia descontroladamente.
"Ó Lingrinhas, isso está mau. "
"Ah, Matias, estou gelado", desabafou com dificuldade. "Esta patrulha na neve fez-me mesmo mal. "
"Isso vejo eu. Já emborcaste a murrilha? "
"O sargento deu-me um bocado quando acabou a patrulha" gemeu Abel. "Mas o rum, a mim, não me faz muito efeito."
"Credo, homem, não sei o que te faça. Não te posso acender uma fogueira, não te posso arranjar uma gaja boa para te escacholar. Se aquela mascambilha não te faz efeito. "
Abel Lingrinhas bateu o dente mais um bocado antes de conseguir voltar a falar.
"Sabes o que me fazia mesmo bem? ", perguntou finalmente. "Diz lá "
"É uma coisa que a minha mãe me dava no Inverno " A tremideira de frio acentuou-se e Abel cerrou as pálpebras e calou-se, toda a cabeça a agitar-se num delírio de gelo. Matias impacientou-se.
"Que coisa? Desembucha, homem."
Abel reabriu os olhos.
"Chá. " " Chá?"
"Sim, um chá quentinho, regado a álcool. Pode ser rum. Chá com rum. Ah, isso é que era uma maravilha."
"Ó Lingrinhas, onde é que te vou arranjar chá a esta hora? Não dá para ir ali ao estaminet... "
Abel voltou a fechar os olhos, o corpo sempre a tremer em descontroladas convulsões de frio.
"A malt'ainda tem aqui uns pacotinhos de chá", anunciou Vicente, vasculhando a caixa das rações. "O problem'é a água quente "
"Sempre podíamos fazer uma fogueira", avançou Baltazar, pensativo. "Montávamos um fogo de categoria"
"Estás maluco, Velho", cortou Matias. "Ainda sufocávamos aqui dentro, nem pensar. " Calou-se um instante, pensativo, à procura de soluções. Uma rajada de metralhadora cortou o ar lá fora, o som sincopado a entrar abafado no abrigo, pareceu a Matias que vinha das linhas alemãs, era uma Maxim. O soldado teve uma ideia e ergueu-se num ápice. "A chaleira? "
"Hã "
"A chaleira "
"Est'ali ao fundo, homem", apontou Vicente, apoiado no cotovelo. "Porquê? Queres mesm'acender a fogueira? "
Matias deu três passos, agarrou na chaleira e saiu disparado do abrigo.
"Já volto. "
O cabo subiu a Baluchi em passo rápido e enérgico, tentando gerar calor que o defendesse do frio cortante que lhe penetrava pelo colete de pelica, e foi até Sunken Road. Meteu à direita pela Sunken e, antes do posto de Tilleloy Sul, deu com o ninho de metralhadora camuflado entre sacos de terra e vegetação postiça.
"Rogério", chamou.
"Quem vem lá?", perguntou uma voz vinda da escuridão. "Sou eu, o Matias. "
"Ah, manganão. O que me queres? "
" Estás de serviço à costureira?"
"O que é que julgas que estou aqui a fazer, hã? A pinar uma sansardo-ninha? "
"Preciso de uma ajudinha tua. "
"Diz lá. "
"Tenho um marada que está a cangar de frio, treme que nem uma galinha diante do cutelo. "
"Dá-lhe uma murrilha. "
"Isso já lhe disse eu, mas parece que não faz efeito. " "Então ele que vista um casaco. "
"Porra, Rogério, estou aqui a apanhar um zieiro do catano e não tenho paciência para brincadeiras. "
"Então diz lá o que queres. "
"O meu marada precisa de chá. "
" Chá?"
" Sim, chá. "
"Olha lá, ó Matias, estás a mangar comigo ou quê? " "A sério."
"Chá para aquecer? Diz-me lá, quem está com frio é um marada teu ou não será antes uma demoiselle que trouxeste às escondidas aqui para as trinchas? "
"É um marada, porra. É o Lingrinhas. O tipo andou na neve durante uma patrulha e está que nem pode.
"Mas onde é que queres tu que eu lhe arranje chá? Tens cada uma!
Matias impacientou-se e decidiu ir directo ao assunto. "Olha lá, ó Rogério, já abriste fogo esta noite? " Fez-se silêncio.
"Rogério "
"Estás a reinar comigo, diz-me que estás a reinar comigo. " "Vá lá, sê bacano, dá-me uma mãozinha. "
Fez-se um novo silêncio, mais curto.
"Portanto, se bem entendi, queres que eu abra fogo para que tu possas fazer um chá a um marada que está com frio, ainda para mais o Lingrinhas, esse gramito metido consigo..."
"É isso."
"Tu estás mas é maluco, ó Matias."
"Vá lá."
Novo silêncio.
"O que é que eu ganho com isso?"
"Dou-te um xagrego."
A voz na escuridão riu-se com gosto.
" Um xagrego Um!"
"Está bem, dois"
"Dois xagregos? Estás a reinar comigo."
"Três. "
"Um maço."
"Cinco. "
"Um maço, já te disse. "
Matias suspirou, apalpou o bolso e sentiu o maço de cigarros. "Um maço inteiro não tenho", disse. "Mas posso dar- te todos os xagregos que estão no meu bolso, faz quase um maço "
Fez-se mais um breve silêncio.
"Está bem, seu valdra, negócio fechado. Ajuda-me aqui. " Matias avançou no escuro de braços estendidos. As mãos flutuaram no ar até sentirem o corpo quente de Rogério e a superfície metálica e dolorosamente gelada da Vickers Mk I, a grande metralhadora pesada britânica, de 303 polegadas, assente num tripé.
"Passa-me a caixa que está aí ao fundo", pediu Rogério. "São as munições."
Matias puxou a caixa e tirou uma cinta de balas, eram duzentos e cinquenta projécteis alinhados lado a lado, como dentes afiados e ameaçadores, prontos a rasgarem a carne e a estilhaçarem ossos. Rogério encaixou a fita na metralhadora, agarrou os manípulos com as duas mãos, sentiu o gatilho nos polegares e rodou a arma.
"Para onde é que atiro? "
"Manda umas bujardas ali para a segunda linha da Mastiff Trench, mesmo junto aos boches. "
Rogério apontou para a esquerda, calculou a posição da linha da Mastiff Trench, bem dentro das posições alemãs que se espraiavam diante de si, e carregou no gatilho. Um matraquear ensurdecedor encheu o pequeno abrigo camuflado, as balas saíam do cano em sucessão rápida e explosiva. Tra-tra-tra-tra-tra-tra. Matias pensou que era como um cão a ladrar-lhe sobre os ouvidos, um ronco louco e insuportável, um ruído dos infernos a encher-lhe a cabeça e a testar-lhe os nervos. O tapa-chamas, na ponta do cano, ocultava do inimigo os relâmpagos de cada tiro, impedindo que os alemães detectassem com precisão a fonte dos disparos. A primeira cinta esgotou-se em trinta segundos, tão rápida era a sucessão de fogo, e a arma calou-se. Um silêncio retemperador encheu o pequeno abrigo. Rogério meteu uma segunda cinta e a cacofonia infernal regressou de imediato. Quando a segunda cinta também se esgotou, trinta segundos e outras duzentas e cinquenta balas mais tarde, Rogério colocou uma terceira e, meio minuto mais tarde, uma quarta. Gastou mil balas em dois minutos de tiro, mais algum tempo para as mudas de cinta. Quando terminou, pôs levemente o indicador na grossa manga de arrefecimento para avaliar a temperatura.
"Está bom", disse finalmente.
Matias ergueu-se, foi até à extremidade da gorda manga cilíndrica da Vickers, tacteou o metal quente em busca da abertura para a saída da água e encontrou-a na ponta, por baixo, mesmo atrás do tapa-chamas. Desenroscou a abertura com os dedos, encostou a chaleira por baixo do orifício e deixou a água a ferver encher o recipiente. Quando a chaleira ficou cheia, tirou-a e deixou despejar o resto da água quente no chão. Depois voltou a enroscar a tampa do orifício de evacuação da água e abriu o orifício de entrada de água, no topo da manga, mesmo junto à mira. Rogério deu-lhe um garrafão com água gelada e Matias despejou-o pelo orifício para dentro da manga. Ouviu-se um fzzzz prolongado, era a água gelada a arrefecer o cano quase incandescente. Termi-nada a tarefa, o cabo enroscou a tampa, pegou na chaleira a transbordar de água quente e ergueu-se.
"Isto de a costureira ser arrefecida a água dá um jeitão do caraças", comen-tou com um sorriso. Pôs a mão esquerda no bolso, agarrou no prome-tido maço de cigarros e estendeu-o ao operador da Vickers. "Obrigadinho, ó Rogério"
E abalou por ali fora, a chaleira repleta de água a ferver para o chá do Lingrinhas.
Infantaria 8 terminou o turno nas trincheiras a 12 de Dezembro e logo no dia seguinte, aproveitando a jornada de descanso habitualmente concedida a uma unidade que acabara de abandonar as primeiras linhas, Afonso solicitou um passe para abandonar o acantonamento, requisitou um cavalo, um pesado ardenês branco- sujo com tufos de pelos negros do topete à crineira e manchas escuras nas coxas e no curvilhão, e seguiu a trote para o quartel-general do CEP em St. Venant. Já nas ruas da vila estacou perante uma tabuleta insólita. "Avisa", anunciava a tabuleta, indicando: "É prohibido o uzo latrines inglezas aos portuguezas teem os proprios latrines ao entrada do Parque algumas encontrados uzando otros latrines será castigados severamente. " Releu o texto, atónito e divertido. Quem será o idiota que escreveu isto? interrogou-se. Começou por imaginar um analfabeto das berças, mas logo concluiu que só poderia tratar-se de um inglês, só esperava que não tivesse sido Tim. Ainda a rir-se, deu um estalido com a língua e obrigou o cavalo a retomar a marcha até ao quartel-general, onde chegou minutos depois.
"É então isto a Grande Canja? ", comentou para a sentinela, em tom de provocação, quando viu o edifício diante de si, numa bucólica área verde defendida por um sólido muro de pedra.
Grande Canja era o nome que os homens usavam para se referirem ao quartel-general do CEP, por considerarem ser fácil aí combater na guerra. O quartel-general da 1. a Divisão era a Canja n. 1, e o da 2.a Divisão era a Canja n.o 2, os antros onde formigavam as legiões de combatentes da retaguarda, os bravos guerreiros que faziam dos hotéis e dos restaurantes os seus sangrentos campos de batalha, os indomáveis homens que, em vez das trincheiras cinzentas de Fauquissart, de Neuve Chapelle e de Ferme du Bois, preferiam arriscar a vida nas macias areias das praias de Ambleteuse, Étaples e Boulogne.
O oficial desmontou do cavalo, acariciou-lhe o dorso, entregou-o a uma ordenança e cruzou a pé o portão de entrada para o terreno da Grande Canja. Era uma mansão majestosa, de dois andares e enormes janelas, a principal situada no primeiro andar, sobre a entrada, e assinalada pelo rectangular gradeamento de ferro trabalhado que protegia um pequeno varandim. O capitão atravessou o desmazelado jardim que se estendia defronte da mansão, passou por entre um pequeno Ford T e um elegante Bugatti Tippo 10 estacio-nados à porta e entrou no quartel-general.
Afonso tinha um amigo no quartel-general. Tratava-se do tenente Trinda-de, o seu colega de carteira na Escola do Exército, que trabalhava no secretariado do general Tamagnini Abreu. Trindade era o antigo cadete conhecido na Escola por Ranhoso devido ao célebre incidente infeliz numa aula quando espirrou violentamente sobre um professor. Mas, na Flandres, a alcunha mais adequada era a de "cachapim", o termo pejorativo que os homens das trincheiras reservavam a todos os militares que escolhiam a burocracia como teatro de operações e elegiam as canetas como as suas armas de combate. O CEP estava cheio de cachapins, homens que pululavam na retaguarda para garantirem o funcionamento dos mais variados serviços, desde trabalhos de secre«taria até ao serviço de subsistências, serviço de contabilidade, serviço de beneficiação de fardamento, serviço de salvados, serviço de agronomia e até o serviço de expedição de bagagens e registo de perdas, militares que do campo de batalha nada conheciam. Havia os cachapins ligeiros, que ocupavam o quartel-general da brigada, os médios, que deambulavam pelas divisões, e os cachapins pesados, que se encontravam ali, na Grande Canja. E exis tiam ainda os palmípedes, uma espécie de cachapins de luxo, felizardos que andavam de automóvel e pernoitavam nos palacetes por entre lençóis lavados e chauffage central, o sistema de aquecimento só acessível a uns eleitos. No Château Redier, Afonso fora um palmípede, é verdade, mas apenas por pouco tempo. Já o tenente Trindade era um cachapim de alma e coração, ainda para mais um cachapim pesado com aspirações a palmípede, porventura o único que Afonso não desprezava, privilégio sem dúvida resultante da velha amizade que nem nestas horas se traía.
O capitão bateu à porta do secretariado e perguntou pelo tenente.
"Então, Ranhoso?", disparou em jeito de saudação quando viu o amigo assomar à porta.
"Olha-me este finório!", exclamou o tenente Trindade com um sorriso. "Sê bem-vindo ao meu miserável posto de combate. " Fez sinal para entrar e Afonso obedeceu. "Diz-me uma coisa, ó Aprumadinho. É mesmo verdade que proibiste os teus homens de dizerem palavrões?"
"Sim, porquê? "
Trindade soltou uma ruidosa gargalhada.
" Ena, és mesmo catita, disse, contorcendo-se de gozo. Não há dúvida de que a alcunha de Aprumadinho te caiu a matar. " Riu-se mais um pouco. "Olha lá, quando um magala leva um balázio no cu, que palavras autorizas tu que ele diga, hã? Valha-me Deus? Credo? Ai Jesus? "
Afonso forçou um sorriso.
"Não autorizo palavra nenhuma em especial. O que eu não gosto é de estar a ouvir as ordinarices todas, isso não faz o meu feitio e o pessoal sabe. "
"Ah, caraças, enganaste-te na vocação", observou o tenente. "Devias era ter ido para padre. " Ergueu o indicador. "Para padre, digo-te eu. "
"Vou pensar nisso. "
Trindade bocejou.
"Então diz lá, ó Aprumadinho, o que estás tu aqui a fazer? " "Se queres que te diga, não sei", gracejou Afonso. "Cansei-me do tédio das trincheiras e vim aqui ver como é que se combate no quartel-general. Devo dizer-te que estou impressionado, vocês parecem uns guerreiros temíveis. Os boches cagavam-se todos se aqui viessem. "
O tenente riu-se. Conhecia a má fama dos cachapins entre os homens das trincheiras, mas não se mostrava preocupado. Lá em Portugal a família consi-derava-o um herói, estava na guerra e era tudo o que sabiam, preocupavam-se com a sua segurança e desconheciam que era possível fazer a guerra sem ver a guerra. Era preciso estar na Flandres para conhecer a diferença entre lãzudos e cachapins, à distância eram ambos iguais, encontravam-se todos na guerra, e o que lhe interessava verdadeiramente era o que pensava a malta lá em casa, não a malta das trincheiras. Que melhor coisa havia senão aquela de ter a fama de andar na guerra e ter o conforto de não a viver, de ter a reputação de dormir na lama e passar as noites confortavelmente aninhado debaixo de lençóis perfu-mados e com os pés aquecidos por botijas de água quente, de ser conhecido por matar alemães à baioneta enquanto dos alemães só ouvia falar nas conversas da messe. Além do mais, e bem vistas as coisas, ser um cachapim não era um acto de vontade, mas um capricho do destino. Afinal de contas, quantos lãzudos, se pudessem, não se tornariam cachapins? Quantos homens não dariam um braço para abandonarem a miséria das trincheiras e recolherem-se ao conforto da retaguarda? Quem poderia afirmar, com absoluta sinceridade, que era melhor ser lãzudo do que cachapim? Não seria afinal o desprezo dos lãzudos pelos cachapins uma forma dissimulada de inveja? Tudo isto aflorava à mente do tenente Trindade sempre que era confrontado por um lãzudo, mesmo quando o lãzudo se tratava de um amigo de carteira da Escola do Exército.
"Senta-te, Afonso", convidou, indicando-lhe uma secretária. "Agora não posso ir tomar um copo contigo, estou de serviço aos sinais, mas falamos aqui."
Afonso tirou o boné de oficial e sentou-se junto à secretária do amigo. O gabinete estava repleto de tecnologia de comunicações, desde pombos-correios até às últimas novidades no domínio dos aparelhos eléctricos, como os telégrafos Fullerphones e os telefones Power-Buzzer.
"Muitos mortos nas trinchas?", perguntou Trindade, recostando-se na cadeira.
"Alguns", disse Afonso com tristeza, sem querer entrar em pormenores.
"É bom, é bom!", exclamou o Ranhoso, aprovadoramente. "É preciso que morram muitos para que os nossos aliados vejam o nosso sacrifício, o nosso heroísmo "
O capitão arregalou os olhos, surpreendido com o comentário. "Estás parvo ou quê?"
"A sério, Afonso. Quantos mais morrerem, mais nos respeitam. É assim mesmo, o que é que pensas? Eu sei que parece chocante para quem está nas trinchas, mas nos estados-maiores eles prestam atenção a isso, caraças, quando não há mortos é porque não há combate, há cagufa. É assim que eles pensam. É por isso que precisamos de mostrar trabalho. É fundamental que os camones vejam de que cepa é a nossa gente, de que têmpera é a nossa raça! "
"Não sabes o que dizes", murmurou Afonso, suspirando e abanando a cabeça. "Desde que te conheço que passas a vida a elogiar a matança, a citar Hegel, Moltke e Nietzsche, dizendo que a guerra faz parte da ordem divina, que ajuda a preservar a saúde dos povos, que a crueldade intensificada é a mais elevada forma de cultura e outras balelas do género. Pois olha que nunca te vi nas trinchas a elevar a tua cultura, a preservar a tua saúde e a defender a ordem divina das coisas..."
"Não me viste, nem verás", riu-se Trindade. "Que eu saiba sou militar, mas não sou parvo. A gentinha que se mate. Eu cá estou para a glorificar."
A conversa do Trindade Ranhoso era típica de um cachapim do quartel-general. Quanto mais longe se estava da linha da frente, mais grandiosas e eloquentes eram as tiradas sobre a glória de Portugal e a bravura da raça portuguesa. Os homens que frequentavam as trincheiras não falavam assim, apenas se preocupavam com a sua sobrevivência e com a dos seus camaradas. O patriotismo era um luxo a que não se podiam dar. Olhando para o amigo da Escola do Exército, o capitão considerou que era preciso estar bem confortável na retaguarda para se poder falar daquela maneira, era preciso viver no bem-bom sem arriscar a pele para se ter a coragem de apregoar a glória da morte, era preciso encontrar-se em segurança sem ouvir as minenwerfer a estourarem e as Maxim a matraquearem na sua direcção para se atrever a mencionar palavras como heroísmo e cagufa, era preciso estar longe, bem longe, para imaginar que a guerra engrandecia a pátria e enobrecia os homens. Só com a barriga cheia e vivendo em conforto se podia teorizar sobre conceitos abstractos como a bravura, a honra, o patriotismo. Para os soldados que comiam mal, dormiam na lama, conviviam com ratos, tiritavam de frio, tremiam de medo e lamentavam a morte dos seus camaradas, apenas a realidade contava, a realidade e o desejo de normalidade, o gosto pelas coisas simples, uma sopa quente, uma lareira acolhedora, a roupa seca, o carinho da mãe, da namorada, da mulher. Afonso conhecia bem a conversa dos cachapins e decidiu não contra-argumentar, sentia-se cansado e só iria irritar-se.
O tenente Trindade intuiu o agastamento latente de Afonso e atribuiu-o a quem vive as coisas demasiado perto, no fundo entendia-o, o capitão estava excessivamente próximo da guerra para captar o retrato geral, a proximidade fazia-lhe perder o sentido de perspectiva, a noção do sacrifício individual para o bem comum. Era esse, afinal, o mal de todos os que combatiam nas trincheiras, pensou Trindade. Para eles, a morte era uma coisa pessoal e isso impedia-os de perceberem a importância dos grandes sacrifícios para cimentar o prestígio do país. As pequenas coisas, como a vida de um homem, tornavam-nos cegos aos grandes valores, como a vida de uma nação, viam a árvore mas não enxerga-vam a floresta, as trincheiras tornavam-nos míopes, perdiam a imagem global.
Tudo isto passou pela cabeça dos dois homens em algumas fracções de segundo enquanto se miravam. Vendo que o amigo não dava luta, o rosto do tenente abriu-se num sorriso.
"Então o que te traz por cá?"
"Preciso de um favor teu."
"Depende do favor."
"Não é nada de especial. Precisava que me dessem uns dias para ir descansar a Paris."
"Descansar a Paris?", admirou-se o tenente, franzindo o sobrolho. "Não me digas que há moura na costa..."
O rubor que subiu ao rosto de Afonso traiu-o irrevogavelmente, e Trindade riu-se, deliciado com a sua perspicácia e com o visível embaraço do amigo.
"Quem diria que o Afonso Aprumadinho andava a caçar mademoiselles nas trinchas", exclamou, provocador. "E ainda falam nos cachapins! " Inclinou-se na cadeira, o olhar gozão. "Quem é ela?"
"Deixa-te de merdas, ó Ranhoso", cortou Afonso, reprimindo com dificuldade a irritação. "Arranjas-me a licença ou não? "
O amigo tinha tocado num ponto sensível, o capitão não queria fazer alarde da sua relação com Agnès, ela não era uma paixoneta do momento, pelo menos não era assim que a via.
"Vá, diz lá", insistiu Trindade.
"Não conheces e não interessa! ", declarou Afonso, num modo que não admitia discussão. "Arranjas-me ou não uma licença de uns dias?"
O tenente Trindade voltou a recostar-se na cadeira e respirou fundo.
"Claro", assentiu finalmente. "Mas para o imediato só te consigo obter dois dias. "
"Serve. Quando é que os posso gozar? "
"Vou ali ao velho e já a partir de amanhã podes ir tratar da saúde à tua mademoiselle. "
"És um compincha", disse Afonso, com alívio. "E uma licença mais alargada?"
"Arranjo-te cinco dias depois do Natal. "
"A sério?"
"Sem problema", retorquiu o tenente, levantando-se. Trindade foi ter com um outro oficial no gabinete, pegou nuns papéis e voltou para junto de Afonso.
"Preenche estes formulários que eu trato do resto. " Afonso percorreu os documentos com os olhos, molhou uma caneta na tinta e preencheu-os em silêncio. Quando terminou, entregou-os a Trindade. O tenente verificou se estava tudo nos conformes, notou uma incorrecção, questionou Afonso e rectificou o texto, acabando por se dar por satisfeito.
"Vou ali levar isto ao velho", disse, erguendo-se da cadeira. "Já sabes da revolução? "
"Sim, o major Paes lá venceu. "
O tenente inclinou-se para a secretária, abriu uma gaveta e tirou de lá um jornal, que estendeu a Afonso.
"Lê enquanto eu vou ao velho e já volto. "
O capitão pegou no jornal, era O Século, datado de 8 de Dezembro, tinha apenas cinco dias. A toda a largura da primeira página estendia-se o título "O movimento revolucionário d'estes dias", com uma fotografia aérea de Lisboa e um retrato de Sidónio Paes. Afonso leu avidamente o jornal, que falava sobre "o troar do canhão", "as descargas de fusilaria" e os "cruentos combates" na capi-tal, revelando que os alunos da Escola de Guerra e os homens de Cavalaria 7 e Artilharia se tinham juntado ao major Paes na ocupação do Parque Eduardo VII, contando ainda com o apoio de Infantaria 5, 16 e 33 e de muitos civis, alguns dos quais saquearam lojas. Vários edifícios da Avenida e da Baixa foram atingidos pela artilharia dos revoltosos, incluindo o Avenida Palace, ao mesmo tempo que o Campo Pequeno foi bombardeado por haver notícias de que se encontravam aí elementos afectos ao governo, designadamente a Guarda Republicana. Cruzadores tomaram posições no Tejo, marinheiros ocuparam os telhados da cidade, contaram-se setenta mortos e trezentos feridos, mas as contas não estavam ainda fechadas. Afonso admirou-se com este relato de uma cidade transformada em campo de batalha, com tiroteio no Rossio e nos Restau-radores e canhões a abrirem fogo do Parque Eduardo VII durante uma noite inteira, e interrogou-se pela enésima vez sobre os efeitos daqueles aconteci-mentos na participação portuguesa na guerra. Soubera nas trincheiras que tinha havido uma revolução e que Sidónio Paes vencera após dois dias de combates em Lisboa, mas ninguém ainda conseguia determinar ao certo qual o futuro do CEP. As conjecturas multiplicavam-se, é verdade, mas certezas não havia.
O tenente Trindade regressou entretanto ao gabinete, um semblante de dever cumprido no rosto.
"Está tudo tratado", anunciou. "Aqui tens os teus dois dias de licença, a começar amanhã."
Afonso pegou distraidamente nos documentos, com uma indiferença que espantou o amigo, e acabou por disparar a pergunta que a todos atormentava nas trincheiras.
" Olha lá, ó Ranhoso, a malta volta ou não para casa?" "Voltar para casa?", interrogou-se o tenente, sem perceber. "Mas o que me pediste foi uma licença de uns dias para... "
"Não é isso", cortou Afonso, abanando a cabeça com impaciência. "O major Paes vai manter Portugal na guerra ou vai mandar a malta para casa?"
"Ah! ", exclamou Trindade, caindo pesadamente na cadeira. O tenente abriu a mesma gaveta, tirou de lá outro jornal e estendeu-o ao amigo. "Lê!"
Afonso pegou no jornal, era mais uma vez O Século, só que do dia seguinte ao anterior, estava datado de havia quatro dias, 9 de Dezembro. O capitão admirou-se com a rapidez com que os jornais chegavam ao quartel-general, mas não teceu comentários. Olhou para a primeira página e apanhou o título "Lisboa regressa à normalidade". Começou a ler o texto mas Trindade apontou para um subtítulo na coluna central, ao fundo da página. "Palavras do sr. Sidónio Paes", anunciava o subtítulo.
"O que é que tem? ", quis saber Afonso.
"Não sabes ler?", perguntou Trindade, inclinando-se sobre o jornal e começando a ler em voz alta um trecho da resposta do chefe dos revolucio-nários a uma pergunta feita pelo repórter de O Século. "O governo manterá os compromissos internacionais, nomeadamente os que se filiam na aliança com a Inglaterra." O tenente levantou os olhos do jornal e fitou o amigo. "Percebeste?"
Afonso observava-o de olhos arregalados, digerindo o impacto das palavras atribuídas a Sidónio Paes. Levou um longo segundo a tirar as devidas ilações daquela declaração e a formulá-las numa curta frase.
"Vamos continuar na guerra. "
O tenente Trindade recostou-se na cadeira, pôs as pernas cruzadas sobre a secretária, acendeu um cigarro, aspirou com vagar, tirou o cigarro da boca e expeliu uma enorme e tranquila baforada de fumo cinzento.
"Afonso, és um génio. "
Os triângulos encarnados assinalavam a proximidade das tendas da YMCA, a Young Men Christian Association, que se encontrava espalhada por todo o sector ocupado pelo British Expeditionary Force. O Hudson negociou a curva enlameada e imobilizou-se junto à primeira tenda, para onde convergiam vários tommies ingleses, todos eles visivelmente animados.
"É aqui", disse Afonso, desligando o motor e apeando-se. O capitão deu a volta ao carro pela frente, abriu a porta do passageiro e convidou Agnès a sair. A jovem baronesa mostrava- se elegantemente vestida, apesar de os seus trajos estarem quatro anos ultrapassados na agenda dos exigentes estilistas parisien-ses. A silhueta minaret, que costurara em Paris nos seus tempos de estudante de Medicina, tinha estado na moda em 1913 mas fora já substituída por outras novidades, embora isso não passasse verdadeiramente de um insignificante pormenor que se perdia naquele canto da província embrutecido pela guerra. Uma mulher bela era sempre uma mulher bela, e a sua sofisticada túnica de carmesim flamejante, envolvendo uma apertada saia de crinolina e coroada com um magnífico chapéu cloche, produziu um inevitável efeito dramático entre a soldadesca britânica. Afonso entrou na tenda orgulhoso como um pavão, levan-do no braço uma elegante francesa que deixava os tommies de olhos arregalados. O capitão ofereceu um copo de capilé a Agnès e sentaram-se ambos nas cadeiras, aguardando o início do espectáculo.
"Costumas ir ao cinematógrafo? ", quis saber Afonso enquanto bebericava o seu capilé.
"Agora, raramente. Mas em Paris fui muitas vezes ao Phono-Cinéma- Théâtre du Cours-la-Reine, às salas Omnia e ao Gaumont-Palace, que é o maior cinema do mundo. "
"O maior?", admirou-se Afonso. "Olha que eu acho que, se foi, já não é. Dizem que, na América, foi agora estreado um teatro cinematográfico de luxo, todo ele ricamente decorado, com candelabros de cristal, carpetes no chão e tudo. Li no jornal que é uma coisa faraónica. Ao que parece, o teatro tem mais de três mil lugares sentados e uma orquestra com espaço para trinta músicos."
"Vraiment? Mon Dieu, só na América", comentou Agnès em tom aprecia-tivo antes de mudar para o seu assunto favorito, as estrelas de cinema. "A minha artista favorita é Sarah Bernhardt. "
"Eu cá gosto da Mary Pickford e da Marion Davies. " Ela cerrou as sobrancelhas, fez beicinho e encarou-o com ar grave.
"Se tivesses de escolher, preferia-las a elas ou a mim? " Afonso riu-se, divertido com a pergunta tipicamente feminina. "A ti, claro, ma mignonne. "
"Boa resposta, mon chèri", sorriu Agnès, agradada. "Pois eu prefiro-te muito mais a ti do que ao Douglas Fairbanks. "
Os jovens da YMCA fecharam entretanto o acesso à tenda, procurando impedir a entrada da luz, e anunciaram o início da projecção. A máquina de cinematografia começou a trabalhar, ronronando como uma metralhadora longínqua, tac-tac-tac-tac, emitiu um foco de luz sobre uma tela branca, apareceram números a preto a saltitar na imagem e depois veio o filme. Um padre anglicano sentou-se ao piano e começou a tocar, enchendo a tenda de música e suprimindo o silêncio da película. Primeiro passou um documentário dos Les annales de la guerre, um trabalho da Section photographique et cinématographique de l'Armée com as últimas novidades sobre o conflito, seguindo-se, para descontrair, o sketch cómico The Rink, de Charles Chaplin, que produziu um tremendo efeito dentro da tenda. Os espectadores desataram a aplaudir quando viram a figura do vagabundo de bigode, e as gargalhadas tornaram-se histéricas à medida que Chaplin dava trambolhões no seu papel de trapalhão com patins a tentar equilibrar-se dentro de um ringue. Por fim veio o filme principal, intitulado The Heart of the World. Era um trabalho de desca-rada propaganda patriótica, assinado por D. W. Griffith e rodado parcial-mente na frente francesa, mas depressa Afonso se desinteressou dos ares cruéis de Erich von Stroheim, no papel de um sádico oficial alemão, concentrando-se, em vez disso, no apetecível pescoço de Agnès. A francesa aceitou alguns beijos mais discretos, mas, quando o capitão se começou a empolgar demasiado, viu-se forçada a rejeitar delicadamente os impetuosos avanços, preocupada em não se transformar num espectáculo dentro do espectáculo.
"Pas ici", sussurrou, apelando à paciência do amante. "Après Alphonse. Après."
Quando o filme acabou, abandonaram a tenda da YMCA e seguiram para o Hôtel Boulogne, em Boulogne-sur-Mer, uma vilória a noroeste do sector português, na costa atlântica da Picardia, à entrada do canal da Mancha. Ambos tinham decidido que era inconveniente Afonso voltar ao Château Redier. Para além do desrespeito gratuito que significava dormirem juntos na casa do marido traído, havia o factor de risco a considerar. Nenhum dos dois conseguia disfarçar em absoluto os seus sentimentos na presença do outro, o que o barão inevitavelmente notaria, e, por outro lado, as escapadelas de Agnès para o quarto dos hóspedes acabariam também por serem constatadas pelo anfitrião ou pelos criados. Para tornear o problema, a baronesa disse ao marido que ia passar dois dias a Paris, e, fazendo coincidir esse "passeio" com a licença obtida pelo capitão no quartel-general do CEP, foram ambos para Boulogne-sur-Mer. O inconveniente era o de que, apesar de estarem relativamente longe de Armentières, deveriam evitar aparecer juntos em público, o que os obrigou a fecharem-se no seu quarto de hotel. Em boa verdade, porém, para Afonso isso não foi problema nenhum.
O Hôtel Boulogne serviu para darem largas à sua paixão. Amaram-se fogosa e repetidamente, aproveitando os intervalos para encomendarem refeições ou conversarem sobre tudo e sobre nada. Na manhã do segundo dia, Agnès mostrou-se interessada em conhecer o passado do seu amante, um interesse que não era novo mas que, desta vez, se revelou mais insistente.
"Mas para que é que queres saber a minha história? ", resistiu Afonso. "Não há nada de interessante para contar, ma mignonne."
Agnès franziu o sobrolho, não ia deixar as coisas ficarem por ali.
"Hum, não me convences", disse. "Qual é o problema de me contares o teu passado?"
"Não há problema nenhum, minha pardaleca. É só que não tenho nada de especial para contar. Acho que a minha vida se resume a três ideias principais. Nasci, cresci e conheci-te."
"Desculpa, mas isso não é resposta. Não me queres contar, é? " "Não há nada para contar, minha querida."
Ela cerrou os olhos.
"Acho esse teu silêncio suspeito", sentenciou. "Será que me estás a ocultar algo? Não me digas que és casado..."
"Eu? Casado? ", riu-se Afonso. "Não, meu amor. Não é nada de especial, a verdade é que não tenho particular prazer em falar de mim, percebes? "
"Não, não percebo. Acho que estás a esconder-me alguma coisa... "
"Não estou nada, filha. Acredita!"
Mas Agnès não acreditou. Irritada, fechou-se em si mesma. Encostou-se na cama a ler o enigmático À la recherche du temps perdu e não lhe prestou a mínima atenção. Amuara. Afonso tentou quebrar o gelo com algumas graçolas, mas a francesa mostrou-se altivamente indiferente e permaneceu distante, aparentava estar apenas preocupada com a descrição de Proust sobre o glamour da vida dupla de Swann, as bisbilhotices da tia Léonie, as possessivas soirées dos Verdurin, a conturbada relação com Odette de Crécy.
Ao fim de uma hora, receando desperdiçar-se daquela forma o tão promissor fim de semana, o capitão suspirou e rendeu-se. Encostado à cabeceira da cama, contou finalmente a sua história. Afonso relatou a infância na Carra-chana, a adolescência no seminário de Braga e a juventude na Escola do Exército. Despenderam a manhã a discutir o passado, comparando as educa-ções e a importância das viagens que ambos fizeram em pequenos às respecti-vas capitais, ele a Lisboa, ela a Paris. Perto do meio-dia, Agnès espreguiçou-se e ergueu- se da cama. Tinha seguido a narrativa com atenção, mas dava sinais de se encontrar cansada por permanecer tanto tempo encerrada no quarto do hotel, já lhe bastavam as intermináveis horas em que permanecia fechada no Château Redier, o que ela queria agora era mesmo espraiar-se. A manhã ia adiantada e a francesa, subitamente impaciente, incitou Afonso a dar um passeio.
"Já me contas o resto", disse-lhe enquanto vestia o casaco. " On va!"
O capitão não transbordava de vontade de sair à rua não só porque encontrava no apertado quarto do hotel fartos e ricos motivos de interesse, mas também devido ao seu receio de serem ambos avistados por alguém próximo do barão Redier. A última coisa que lhes convinha é que o marido enganado descobrisse a verdade. O problema é que Agnès não queria saber dos argumen-tos aparentemente razoáveis que o seu amante com insistência lhe apresentou.
"Ninguém vem a Boulogne-sur-Mer para estar o tempo todo fechado no quarto", sentenciou a baronesa num tom que não admitia mais discussão, abrindo a porta de forma decidida e mergulhando resolutamente no corredor. "Anda, mon chèri. "
Afonso resignou-se e não teve outro remédio senão acompanhar Agnès no seu passeio. Abandonaram o Hôtel Boulogne e foram passear pela Grande Place e por todo o sector histórico, situado no interior das muralhas da Haute Ville. Estava uma manhã fria e o sol espreitava timidamente por entre as nuvens. Foram à Basilique Notre-Dame ver a estátua de madeira de Notre-Dame de Boulogne, a patrona da povoação apresentava-se coberta de jóias, e seguiram até ao majestoso castelo poligonal construído no século xIII para os condes de Boulogne, apreciando o exterior todo em pedra e as elegantes janelas que espreitavam pelo telhado negro. Às duas da tarde saíram pela Porte des Degrés, onde admiraram as duas torres medievais que flanqueavam a ruela, e decidi-ram ir almoçar uma terrine de enguias e um foie gras au sauté com lagostim assado a um simpático restaurante de peixe instalado no cais Gambetta, as mesas com vista para o rio Liane, uns deliciosos craquelin de Boulogne para sobremesa.
"Ainda bem que não foste para padre", sorriu Agnès no seu primeiro comentário à narrativa da manhã. "Era um desperdício."
"Também acho", concordou Afonso enquanto trinchava o lagostim com afinco. "Não estava predestinado. "
A francesa fixou-lhe o olhar, maliciosa.
"Aposto que não deixaste essa tua namoradinha em paz", testou-o.
"Qual namoradinha?" perguntou ele, fazendo-se de sonso. "Essa Caro-line."
Afonso engoliu em seco e esboçou um sorriso amarelo, meditando se estaria ou não a cometer um erro ao contar a sua história com tanto pormenor. Com as mulheres nunca se sabe, reflectiu, tudo o que lhes contamos pode virar-se contra nós. Mas a narrativa já ia a meio e não tinha agora modo de voltar atrás.
"Oh, foi uma coisa sem importância", justificou-se, a face a encher-se com um rubor embaraçado.
"Hum, não sei se acredite", disse ela com uma careta sorridente. "Mas conta-me o resto, vá."
"Agora?"
"Pourquoi pas? "
O capitão passou toda a sobremesa a relatar a sua integração em Infantaria 8, os episódios da entrada de Portugal na guerra e a vinda para França. Concluiu a história após o café. Afonso pediu a conta, beijou Agnès, pagou, pegou no Hudson que tinha requisitado no CEP e levou-a num passeio pela costa.
Sentiram a perfumada brisa marítima encher-lhes os pulmões com as fragrâncias frescas do oceano quando o automóvel começou a serpentear pelas estradas marginais à Côte d'Opale até os conduzir à Colonne de la Grande Armée, a norte de Boulogne-sur- Mer. Admiraram de mão dada o monumento em mármore ali erguido, leram na inscrição que a obra tinha sido construída em 1841 para homenagear os planos elaborados por Napoleão para invadir a Grã-Bretanha e ficaram a saborear a bela vista panorâmica da costa até Calais, o grande porto francês perfeitamente visível daquele ponto. Como um casal de namorados, subiram ainda aos promontórios ventosos do Cap Gris-Nez e do Cap Blanc- Nez para apreciarem o mar bravo a bater lá em baixo na encosta escarpada, as manchas brancas dos penhascos da costa inglesa desenhadas entre o azul-escuro do mar e o azul-claro do céu. Viram o pôr do Sol na linha do horizonte, o astro alaranjado a mergulhar no canal da Mancha, e fizeram apaixonadas juras de amor. Quando o manto da noite se estendeu pela costa, meteram-se no carro e deram meia-volta para regressarem ao Hôtel Boulogne. Fazia-se tarde e teriam de viajar ainda nessa noite até ao hotel que reservaram em Merville, uma vez que a licença do capitão estava a expirar e ele tinha ordens para se apresentar na brigada logo pela manhã.
Ao entrar no quarto do hotel, Agnès sentiu-se angustiada e frustrada pela brevidade da licença do seu amante. Queria permanecer com ele e via-se presa pelas correntes de um casamento que não desejava e de uma guerra que temia.
"Então, mon petit choux?", preocupou-se Afonso, atencioso. Sentou- se ao seu lado e enxugou-lhe as lágrimas. Perguntou-lhe em português: "Estás com a mosca? "
"C'est quoi, ça?", quis saber Agnès, não entendendo a pergunta. Afonso traduziu o que dissera e a francesa encostou a cabeça ao seu ombro.
"Estou aterrorizada", disse. Soluçou. "Gosto de ti, Alphonse mas receio sofrer, sofrer muito, sabes? "
O capitão beijou-a repetidamente.
"Mas eu nunca te magoaria, minha flor. "
"Não digas isso, magoares-me não depende de ti, mas de Deus. Entendes?" Soluçou, as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, agora abundantes. "Não depende de ti. "
Afonso puxou-a para si e apertou-a com mais força. "Mas o que se passa contigo? O que tens? "
"O que tenho, Alphonse, é que vivo aterrorizada com a possibilidade de te acontecer o mesmo que sucedeu a Serge. " Fungou. "O que tenho é medo de voltar a passar por aquilo que passei há três anos, de voltar a sentir-me perdida. " Soluçou. "Não sei quem sofre mais, se aquele que vai para a guerra ou se aquela que o espera. É uma coisa... uma coisa que não tem descrição, um sofri-mento, uma ansiedade, uma inquietação... é terrível, terrível, sobretudo para quem vive isto pela segunda vez. "
A palavra "morte" não foi pronunciada, certamente devido ao receio supersticioso de que a sua simples referência atraísse o azar, mas o capitão não tinha dúvidas quanto à natureza dos medos de Agnès. A baronesa não o queria perder e agonizava com a aproximação da hora de se separarem, sofria com o início de mais uma semana de sobressalto, de angústia pela espera, de enervamento quando ouvia os canhões rugirem mais alto, de incerteza quanto à segurança do amante. Ele próprio sabia que havia a possibilidade de não estar vivo daí a pouco tempo, mas nada podia fazer a não ser aproveitar todos os instantes, saborear cada momento, viver para o presente, agarrar o que lhe dava a vida. Abraçou longamente a amante.
Quando ela se acalmou finalmente, levantou-se e foi arrumar as coisas. Fechar a mala revelou-se, todavia, uma tarefa mais complicada do que o previsto devido a um problema com a fechadura. Afonso pôs-se a praguejar e a socar o couro. Por entre o esforço, ouviu Agnès a arranhar um português afrancesado.
"Tás ca mosca?", perguntou ela.
Afonso riu-se e voltou a abraçá-la. O abraço transformou-se em volúpia e, instantes volvidos, amavam-se com fervor, gemendo e respirando com suspiros ofegantes, navegando um no outro, dando e recebendo, os sentidos despertos e inebriados. Toc-toc- toc. Uma batida na porta quebrou o feitiço, ainda tentaram ignorar a interrupção e voltar a concentrar-se em si, regressando ao mar da sua paixão. Toc-toc-toc. Assim não podia ser. A nova batida obrigou Afonso a saltar irritadamente da cama. Agnès encostou-se à almofada, envolvida no lençol, enquanto o capitão vestiu rapidamente o roupão e, passando pelas roupas espalhadas pelo chão, foi ver quem era. Abriu a porta com irritada brusquidão e sentiu o sangue gelar e o coração parar.
Era o barão Jacques Redier.
"A minha mulher está?"
"Uh. perdão?"
O barão empurrou-o, entrou no quarto e encarou Agnès deitada na cama, coberta pelo lençol. O francês ficou rubro de fúria, mas conteve-se.
"Agnès, vamos para casa!"
A baronesa arregalou os olhos, fitando o marido. "Jacques! "
"Vamos embora, anda. "
Afonso foi prostrar-se à cabeceira da cama, preparado para defender Agnès em caso de necessidade.
"Senhor barão", disse o capitão. "Lamento que tenha descoberto tudo desta forma, é realmente. "
"Não quero saber das suas opiniões e faça o favor de não voltar a dirigir-me a palavra", cortou o barão sem o olhar. "Vamos Agnès. "
A francesa hesitou, mas acabou por se decidir. Levantou-se da cama, protegendo o corpo com o lençol, pegou nas roupas e fechou-se no quarto de banho sem dizer palavra. Estabeleceu-se no quarto um silêncio confrangedor, Afonso e Redier evitando trocar olhares. O português, sem perceber ainda o que tencionava Agnès fazer, aproveitou para vestir rapidamente a farda, que se encontrava espalhada pelo chão.
Minutos depois, Agnès reabriu a porta do quarto de banho e reapareceu, já vestida. Dirigiu-se para Afonso e sorriu com fraqueza.
"Desculpa, Alphonse, mas tenho de ir. "
Afonso sentiu o coração cair-lhe nos pés.
"Não acredito", murmurou. "Vais com ele? "
"Desculpa. Tem de ser. "
"Mas porquê? "
"Ele é o meu marido. "
Afonso abanou a cabeça, angustiado, sentindo perder o pé. "Mas tu não o amas. Como podes fazer isso? "
"Desculpa. "
Agnès deu meia-volta, cabisbaixa, pegou na sua mala e dirigiu-se à porta. Afonso agarrou-lhe o braço, desesperado. "Não. Não te deixo ir embora. "
O barão interveio, tentando afastá-lo.
"Meu caro senhor, tenha modos", disse Redier. "Não ouviu a minha mulher? "
Afonso virou a cara para ele e depois para ela. Sentiu-se derrotado e largou-a. Redier puxou Agnès pelo cotovelo e tirou-a do quarto. A francesa ainda espreitou para trás, os olhos tristes, perdidos, suplicantes.
"Desculpa, Alphonse. Adeus. "
As horas seguintes foram difíceis para Afonso. Permaneceu os primeiros instantes colado aos vidros da janela do quarto, observando o barão a levar Agnès até à sua Renault amarela e o sedan a desaparecer pelas ruelas mal ilumi-nadas da cidade. Quando ela partiu, sentiu-se vazio. Ficou lungamente sentado na cama, deprimido, angustiado. Achou o quarto claustrofóbico e decidiu sair à rua.
Deambulou por Boulogne nessa noite cerrada, sem direcção nem rumo, mas não encontrou a tranquilidade que buscava, o coração apertava-se-lhe e experimentava até dificuldades em respirar. Sentiu-se só. A solidão abateu-se sobre si como um manto abafado, como uma porta que se fecha na prisão, como o sol que se esconde no Inverno. Por mais que tentasse distrair-se, não conseguia deixar de pensar na sua francesa. Agnès enchia-lhe a mente, o seu rosto invadia-o, a sua memória doía-lhe. Magoava-o a forma como ela partira, quase sem hesitar, obediente ao marido, esquecendo a comunhão que ambos sentiram, ou julgaram sentir. Pensou que precisava urgentemente de fazer alguma coisa e, quase sem mais nem menos, desatou a correr, correu como uma criança, destemido, sem propósito visível, correu por correr, para se cansar, para se estafar, para esquecer. Mas a dor não abrandou. Mesmo ofegante, os músculos pesados, os pulmões arquejantes, mesmo assim ela permanecia presente.
Voltou para o quarto e acabou de meter as coisas na mala. Encontrou algumas peças de roupa de Agnès, perdidas por entre os lençóis, e cheirou-as, nostálgico. Quando terminou a arrumação, pegou na mala e abriu a porta. Lançou um derradeiro olhar pelo quarto, relembrando a felicidade que aí vivera, estranhando a súbita mudança que se operara naquele cubículo, antes tão preenchido, tão feliz e cheio de vida, agora assim vazio, morto, insuporta-velmente triste, assustadoramente desolado. Não há dúvida, pensou, são as pessoas que fazem os lugares. Aquele quarto, que lhe parecia tão belo e alegre quando estava com Agnès, apresentava-se-lhe agora sombrio, deprimente. Tal como anos antes com Carolina, julgava valorizar mais Agnès agora que a não podia ter, agora que ela partira. A diferença, porém, é que desta vez sempre soubera que a amava, dava-lhe valor, sentia-a insubstituível, única, e a sua ausência deixava-o devastado. Fechou a porta do quarto e arrastou-se pelo corredor, cabisbaixo.
Desceu as escadas e foi ter à recepção, pagou a conta e saiu à rua. Meteu-se no Hudson, colocou o motor a trabalhar e partiu.
Dirigiu-se para o Métropole, o hotel de Merville que tinha previamente reservado para passar essa noite com Agnès. Ainda considerou a possibilidade de não ir lá dormir, ser-lhe-ia penoso estar sozinho no quarto depois de todos os planos que arquitectaram juntos. Mas a verdade é que não tinha previsto qualquer boleto, pelo que teria mesmo de ir para o hotel. Deu entrada no edifí-cio, preencheu o formulário de cliente, pegou na chave e subiu até au quarto.
Como previra, a noite foi longa e difícil. Deu voltas e reviravoltas na cama, tentou distrair-se, pensar noutras coisas, fantasiar outras mulheres, mas Agnès enchia-lhe o pensamento, não havia como fugir-lhe. Repetidamente disse a si mesmo que tinha de dormir, tinha de aproveitar enquanto estava na reta-guar-da, no dia seguinte iria para as trincheiras e passaria uma semana sem quase conseguir pregar olho, mas era escusado, o pensamento voltava-lhe sempre ao mesmo. Recapitulou todas as suas conversas juntos, tudo o que ela lhe disse, tudo o que tinham partilhado, procurou meter-se na sua cabeça e adivinhar-lhe o raciocínio e os sentimentos. Desesperava em alguns instantes, convencido de que a perdera para sempre. Enchia-se de esperança noutros, crendo que ela voltaria. Interrogava-se longamente sobre o que ele próprio deveria fazer. Deveria procurá-la? Deveria aguardar? Deveria escrever-lhe? Como provocar-lhe saudades? O que fazer? Mil interrogações cruzaram o seu espírito, mil dúvi-das, mil certezas, mil angústias. A cabeça fervilhava-lhe de ideias, procurava soluções, testava decisões, arquitectava planos, ensaiava opções e imaginava emocionantes discursos, palavras belas e arrebatadoras a que ela não resistiria.
Às quatro da manhã, esgotado e desanimado, levantou-se e foi fazer a barba. Tinha de se apresentar no acantonamento para preparar a partida para a zona da frente e não lhe restava muito tempo. Vestiu a farda, pegou na mala e saiu. Sentia os olhos cansados, pesados, a arderem de sono, na ressaca da noite que não dormira. Bocejou. Percorreu vagarosamente o corredor, desceu indo-lentemente as escadas e encostou-se com abandono ao balcão da recepção.
"L'addition, s'il vous plait", pediu.
O recepcionista, igualmente meio- ensonado, foi buscar o caderno das despesas para lhe apresentar a conta.
"Qual é o seu quarto? "
"É o 106", retorquiu Afonso, estendendo negligentemente a chave.
O empregado pegou na chave e voltou-se para o cacifo para a depositar na respectiva caixa. Viu um papel na caixa do quarto 106. O homem pegou nele e consultou-o brevemente.
"Ah, monsieur", exclamou. "Já me esquecia. Está uma senhora na sala de estar à sua espera."
O sono desvaneceu-se num instante.
"Uma senhora?"
"Sim, chegou há uma hora para falar consigo. Eu disse-lhe que tinha ordens para não acordar ninguém àquela hora e ela foi ali para a sala de estar. Pediu para o avisar quando descesse. Afonso largou a mala e caminhou rapidamente para a sala de estar, o coração aos pulos, ansioso e excitado. Abriu a porta do salão e viu um vulto estendido sobre um canapé, a dormitar. Era Agnès.
"Agnès", chamou. "Agnès. "
Ela estremeceu e abriu os olhos. "Alphonse", disse. "Estás bem? "
A francesa sorriu timidamente e ergueu-se, tentando abraçá-lo. Inexplica-velmente, tomado por um orgulho inesperado, Afonso recuou, evitando-a. Ela ficou pasmada a olhá-lo, ferida com aquela reacção inesperada.
"O que desejas? ", perguntou ele, magoado e ressentido. "O que desejo? Mas, é evidente, desejo-te a ti. "
"Não foi isso o que disseste ontem... "
"Ontem estava Jacques ao pé de mim, numa situação terrível. Não o podia deixar assim, como um trapo velho, ele que tanto me ajudou. Tens de compre-ender isso. "
"Ah sim? E quem me compreende a mim? Ficaste com ele para não o ofender, mas não te preocupaste em ofender-me a mim. "
"Alphonse, olha para mim", ordenou-lhe, o rosto muito sério. "Jacques ajudou-me muito quando eu estava perdida, deu-me a mão e tirou- me de uma situação muito difícil. Não posso fingir que isso não aconteceu. Além disso, a ingratidão não é coisa de que eu seja capaz. "
"Muito bem, tu é que sabes. Mas, se o escolheste, tens agora de assumir a tua opção, não podes andar a brincar com os meus sentimentos. "
"Alphonse, não sejas criança. Estou aqui, escolhi-te, o que mais queres? "
"A escolha já a fizeste em Boulogne. Está feita, não venhas agora fingir que nada se passou. "
Agnès ficou a olhá-lo durante alguns longos segundos, avaliando a situação, procurando decidir-se. Ao fim de uma interminável pausa, suspirou.
"Muito bem, vejo que não me queres. Não vale a pena insistir. Deu meia-volta e dirigiu-se resolutamente para a porta. Au revoir, Alphonse."
O capitão permaneceu pregado ao chão, vidrado a vê-la partir, abismado com a sua própria reacção. Desejava-a ardentemente, nada mais queria na vida que não fosse a reconciliação, aquele encontro ressuscitava-o do pesadelo em que mergulhara na noite anterior. E o que fazia ele? Rejeitava-a, repelia-a, ignorava-a. Sentiu um incontrolável orgulho a prender-lhe o coração e a toldar-lhe a razão, compreendeu que o seu comportamento se tornara refém desse incomensurável sentimento, egoísta e arrogante, mas sentia-se impotente para o superar. Acima de tudo, desejava tornar difícil a sua rendição, fazê-la sofrer, mostrar- lhe que não podia dispor dele como queria, provar-lhe que o que lhe fizera tinha consequências. O problema é que quem sofria era ele. Com o coração desfeito, viu-a sair da sala de estar e desaparecer para além da porta. Sentiu-se confuso, experimentou sensações contraditórias, o coração enfrentou o orgulho, o peso do mundo desabou-lhe sobre os ombros, a respiração tornou-se-lhe ofegante, pesada, aflitiva. Agitou-se, torturado pela dúvida, dividido quanto ao que fizera e quanto ao que teria de fazer. Sentiu os segundos a esgo-tarem-se, cada segundo a afastá-lo de Agnès, cada instante a tornar irrevogável a separação. Torturado por um doloroso conflito interior, deu três passos em frente, parou, recuou, voltou a avançar, quase em corrida, parou novamente, a indecisão dilacerava-o. Depois de uma derradeira hesitação, o coração venceu. Largou em corrida, atravessou os corredores, passou pela recepção e saiu do hotel. Viu Agnès a subir para uma caleche e receou que ela partisse sem o ver.
"Agnès! ", gritou, a voz a ecoar pelas ruas desertas de Merville naquela hora madrugadora. "Agnès! Attends! "
Por um longo segundo pareceu-lhe que ela o ignorava. Mas a baronesa imobilizou-se quando subia para o seu lugar e voltou a cara, enfrentando-o. Afonso aproximou-se em corrida.
"O que desejas? ", perguntou-lhe ela, expectante. O capitão chegou-se à caleche, ofegante, o peito a subir e a descer, buscando ar.
"Espera", arfou. Parou para recuperar o fôlego. "Desculpa o que te disse. " Engoliu em seco. "Ficas comigo? "
Ela fitou-o com intensidade.
"Estás a falar a sério? "
"Nunca falei mais sério na minha vida. Ficas comigo? " Fez um ar de súplica. "Por favor... "
O rosto abriu-se-lhe num largo sorriso.
"Claro que fico, meu pateta! "
Agnès desceu da caleche e caiu-lhe nos braços. Beijaram-se sofregamente, felizes, aliviados. Afonso enlaçou-a e levou-a de volta ao hotel, apertando-a muito contra si, as cabeças inclinadas uma para a outra, tocando-se com ternura. Pediu de novo as chaves ao recepcionista, com o braço livre pegou na mala que abandonara junto ao balcão, subiram as escadas agarrados um ao outro, o capitão colocou a chave na fechadura, abriu a porta, atirou a mala para a direita, fechou a porta e caíram ambos na cama.
Fizeram amor devagar, com carinho, com paixão, emocionados, reconci-liados, as mãos sempre enlaçadas umas nas outras. Permaneceram depois um longo tempo abraçados, fruindo o momento, trocando sussurros e carícias. Quando o Sol finalmente nasceu, Afonso suspirou e olhou para o relógio.
"Meu amor, é terrível mas tenho mesmo de ir", disse. "Tens de ir onde? "
Afonso suspirou.
"Tenho de me apresentar no batalhão, a minha licença está esgotada. "
"Vais para as trincheiras? "
"Vou. "
"Não podes esquecer-te de ir? "
"Poder, posso, mas isso teria consequências. Seria punido disciplinar-mente e, pior do que isso, retirar-me-iam a licença que me deram para depois do Natal. Achas que vale a pena? "
Agnès cerrou os olhos.
"Não. Se tens de ir, vai. "
"Não fiques zangada, é o meu dever. "
A francesa sentou-se na cama de costas para ele, tapou a cara com as mãos e começou a soluçar.
"Vai."
Afonso aproximou-se, agarrou-a pelas costas e beijou-a no pescoço.
"Tem calma, meu amor, tem calma", murmurou com os lábios colados aos ouvidos.
Agnès soluçava, amargurada. Tirou as mãos da cara e enfrentou-o, os olhos de um verde luminoso, brilhando entre as lágrimas.
"E se te acontece alguma coisa, mon mignon? O que será de mim? Como poderei viver?"
"Não me acontece nada, minha querida, fica descansada. " "Mas isso não depende de ti, pode acontecer. Olha o Serge..." "Não, minha flor, eu fui desta-cado para os serviços administrativos", mentiu-lhe ele num repentino e inspirado improviso.
"Ouviste? Já não estou envolvido em combates, apenas na papelada, na burocracia. "
Ela afastou a cabeça e olhou-o nos olhos, procurando a verdade.
"Vraiment? "
Afonso susteve o olhar apenas o suficiente e depois puxou-a para si, receava que os olhos se descaíssem e traíssem a mentira.
"Claro, ma petite. " Apertou-a no abraço e depois mirou-a novamente. "Eu volto", garantiu-lhe com um sorriso. "Nem que me matem "
Os soldados abriram a boca de espanto, os olhos fixos no céu num esgar de assombro. Uma vasta cortina de luz enchia o firmamento, desenhando um fantasmagórico arco de cores que se perdia nas alturas. O clarão luminoso dançava em silêncio, como um harmónio majestoso e grandioso, a profunda treva celestial pintara-se com manchas de luz amarela, verde, vermelha, azul até, era coisa nunca vista, visão de embasbacar, uma maravilha que enchia de fascínio ou de terror os homens na terra. A cascata brilhante e colorida desli-zava suavemente, muito devagar, num lento e ondulante movimento, cheia de mistério, sublime de imponência. Um murmúrio respeitoso ergueu-se de Ferme du Bois, diversos lãzudos caíram de joelhos a rezar, havia mesmo quem tre-messe de medo, Deus manifestava-se, a Virgem regressava, ou então, pensavam certos soldados mais supersti-ciosos, era a fúria do além que estava prestes a ser desencadeada sobre si, miseráveis pecadores mergulhados na lama e na neve. Alguns homens, passado o estupor inicial, começaram a gritar e a fugir pelas trincheiras, receavam o castigo divino, outros permaneciam pregados ao solo a contemplar aquele vasto incêndio celeste que iluminava a noite como uma fogueira gigante.
"Uma aurora boreal", comentou Afonso, encantado com o singular espectáculo que o céu lhe proporcionava.
Era a noite de 20 para 21 de Dezembro, o batalhão tinha, horas antes, acabado de se instalar nas trincheiras para enfrentar um inimigo mais desgas-tante do que os alemães. O frio. O Natal aproximava-se e um gelo incrível abateu-se sobre toda a Flandres. Afonso batia com os pés no chão, junto ao fogo aceso no grande recipiente cilíndrico instalado no chão do posto, tentando desesperadamente aquecê-los naquele frio glaciar, nunca tinha visto coisa assim, as manhãs geladas de Braga pareciam brisa tépida quando comparadas com aquelas condições polares. De mãos enluvadas apertadas dentro dos bolsos do sobretudo e densas nuvens de vapor a serem expelidas pelo nariz e pela boca, o capitão levantou-se e foi aos saltinhos verificar a temperatura no termó-metro que se encontrava pregado na parede lamacenta do posto. O mercúrio registava quinze graus abaixo de zero e Afonso percebeu o conceito da morte de frio. Tremer de frio, como tantas vezes tremeu em Rio Maior, e sobretudo em Braga, não era frio, era mera frescura incómoda. Frio verdadeiro era aquele, era frio que não fazia tremer, antes feria a pele, dilacerava a carne, ras gava o corpo, era frio que queimava, que doía, que paralisava, que entorpecia, era frio que lhe fazia arder a cara, que lhe roubava o ar, que lhe adormecia as mãos num torpor de insensibilidade, que lhe arrancava uivos doloridos como se lhe estivessem a espetar facas na pele, que escaldava o corpo com um ardor tão forte ao ponto de se confundir com fogo, que lhe inchava e magoava os dedos até às lágrimas, frio verdadeiro era aquele que o torturava lenta e longamente em Ferme du Bois, a ele e a todos os desgraçados que o CEP enviara para a frente.
O aparecimento da aurora boreal nessa noite suspendeu pur um par de horas as hostilidades em terra, como se os soldados temessem que os actos de guerra fossem iluminados por aquela estranha luz que se manifestava no firma-mento. Mas logo que o fogo divino desapareceu, as trincheiras despertaram do seu torpor e reapareceu o fogo humano. As linhas inimigas recomeçaram a trocar ocasionais tiros de canhão ou metralhadora, mas era fogo de rotina, disparos destinados a lembrarem aos soldados de ambos os lados que a guerra não acabara. Vinha aí o Natal e era muito improvável que ocorressem agora operações de grande envergadura, não só necessariamente devido à época festiva, mas também porque o Inverno aparecera inclemente, havia neve e lama por toda a parte, não era prático a infantaria avançar naquele tipo de solo, onde o progresso das tropas se revelava lento e os reabastecimentos difíceis. Com o estado do terreno a impossibilitar qualquer ofensiva em larga escala, o principal adversário dos lãzudos passou a ser aquele frio cruel que os cercava e parali-sava, era contra ele que tinham agora de combater as tropas esfarrapadas que viviam na lama das trincheiras.
No calendário fixado na parede húmida do posto, Afonso contava repetidamente os dias que lhe restavam nas trincheiras. Iria ali passar o Natal e só sairia a 28, era uma eternidade, mas não havia remédio. Para se distrair sentou-se no banco e releu a Ordem de Operações n. 12 destinada ao seu batalhão. O 8 ocupava agora, e durante uma semana, justamente a do Natal, o subsector S.S. 2. ou Ferme du Bois II, e o capitão passou os olhos pelas instru-ções assinadas na véspera pelo comandante interino da brigada, o tenente-coronel Eugénio Mardel. "A companhia avançada da direita guarnecerá os postos Boar's Head e Cockspur, com o comando da companhia em 5. 15. b. 50. 95. A companhia avançada da esquerda guarnecerá os postos Vine, Copse e Goat, com o comando da companhia em S. 15. a. 65. 40. " Muito interessante, pensou, bocejando. "O batalhão do 8 ocupará o posto de observação Savoy (S. 9. d. 08. 18. ), que lhe será entregue pelo chefe dos observadores do batalhão do 3." Afonso verificou no mapa a localização do posto Savoy. "Terminada a ocupação dos novos subsectores, o batalhão do 8 e do 3 comunicá-lo-ão a este Comando, respectivamente pelas palavras Barcellos e Valença pelo telégrafo. " O capitão tomou nota do código Barcellos. "No S. S. 2. o depósito de munições de St. Vaast remuniciará pela decauville de St. Vaast e directamente a companhia da esquerda. O depósito de munições de King's Cross remuniciará pela decauville da Rue du Bois directamente as companhias da direita e apoio. " Afonso procurou na carta os paióis de St. Vaast e King's Cross e verificou que St. Vaast ficava mesmo por trás de Lansdowne, o seu posto, o que o pôs nervoso. Convinha que nenhuma granada inimiga ali caísse, seria um fogo-de-artifício memorável.
Quando acabou de estudar a ordem de operações, deitou-se no catre, cobriu-se com uma manta, fechou os olhos e deixou a sua mente vaguear melancolicamente até Agnès. Percebeu que entre eles já nada seria como dantes, tinha sido dado um passo irreversível, incontornável, os seus destinos estavam agora irrevogavelmente cruzados. Compadeceu-se com a preocupação que ela revelara por si, pela sua segurança, mas não tinha dúvidas de que por detrás daqueles receios de mulher pela vida do homem ao qual se entregava se escondia a firmeza de quem encontrara o seu caminho. O capitão admirou-lhe a determinação, a coragem, aquela não era uma mulher de lamechices, parecia delicada como uma flor mas era afinal dura como uma rocha. Isso assustou-o um pouco, esperava que as mulheres fossem todas dóceis, submissas e frágeis, era assim que se educava em Portugal, mas esta francesa era tesa e o português surpreendeu-se a si mesmo por sentir que tal até lhe agradava. Aquela determinação que se lhe lia nos olhos era ao mesmo tempo assustadora e admirável, o que, inexplicavelmente, o fazia amá-la ainda mais. Era como se temesse que um dia ela o abandonasse com a mesma ligeireza com que agora se afastava do marido, como se mudar de vida fosse tão fácil como virar a página de um livro, não há dúvida de que, nestas coisas de romper as relações, as mulheres são mais corajosas do que os homens. Encarando-a deste modo, o capitão começou a perceber que para amar uma pessoa era preciso admirá- la.
Matias Grande accionou a bomba manual e começou a despejar a água, num esforço para drenar a trincheira. Curvado ao lado, Vicente Manápulas ajudava-o com um balde, enchendo-o de lama gelada e atirando-a para lá das linhas de circulação.
"Esta porra tá sempr'a encher", resmungou Vicente de frustração, as pernas mergulhadas na lama até ao joelho. "Os cabrões dos boches não páram d'atirar água p'rá'qui. "
"Os boches?", admirou-se Matias. "Ó Manápulas, lá estás tu nesse refilanço trapalhão. Ora diz-me lá que culpa têm os boches deste tempo desgraçado? "
"Então não vês a posição deles? ", perguntou Vicente, apontando para a elevação de terreno no outro lado da terra de ninguém, mesmo em frente a Neuve Chapelle, o sector vizinho da esquerda. "Não vês qu'os gajos ocupam uma posição mais elevada do qu'a nossa? "
"Ah sim? E depois?"
"E depois? E depois, disseram-me qu'os tipos também têm bombas e usam-nas p'ra despejarem água p'ró nosso sector"
"Ah é? E quem é que te disse isso? "
"Ouvi uma convers'entre dois oficiais no estaminet. " Matias parou o trabalho de faxina e olhou para o sargento Rosa, que descansava encostado a uns sacos de terra.
"Meu sargento, dá licença que suba a espreitar o inimigo? " O sargento fez um gesto displicente e Matias galgou ao parapeito, donde espreitou fugazmente a posição alemã. O manto de neve cobria toda a linha da frente, a terra de ninguém e o sector inimigo, situado por entre o carbonizado arvoredo do Bois du Biez. Varrendo o terreno com os olhos, constatou que, de facto, as poças de lama e de água não se encontravam na elevação de terreno ocupada pelos alemães, mas cá em baixo, junto às linhas portuguesas.
"É mesmo", confirmou o cabo, recolhendo a cabeça e voltando para o seu posto de trabalho. "Não só temos de gramar com as bombas dos gajos, ainda levamos com a lama daqueles cabrões."
"Já vist'o estad'em que tá'li a Rue de Puits, mesm'atrás d'Euston Post?"
"Então não vi? A lama dá pelo peito, caraças. Disseram-me que, há uns tempos, morreu ali um bife afogado."
Concentraram-se no trabalho, momentaneamente em silêncio. "Isto é uma porra", desabafou Matias, esforçando-se por manter a bomba manual a drenar a trincheira.
"Mas olha lá, ó Matias, tu és cabo, não tens qu'estar aqui a tirar lama."
O matulão de Palmeira encolheu os ombros.
"Não me importo", disse. "Se eu não viesse, ainda mandavam o Velho ou o Lingrinhas, e esses não aguentavam, caraças. Estão derreados."
O cabo endireitou-se na trincheira, repousando por instantes do trabalho de retirar a água e a lama. Tirou um frasco de rum do bolso e engoliu um golo.
"Ahhh, esta murrilha é um achado", considerou Matias, expelindo um bafo quente e vaporoso."Até parece que se acende uma lareira cá dentro. "
"Dá cá um bocado."
Matias Grande atirou o frasco e Vicente bebeu um longo trago de rum.
"Caramba, homem", protestou Matias. "Não emborques tudo. Olha que ainda apanhas uma valente naça e cangas para aí. "
"Ora, não t'apoquentes", devolveu o Manápulas, limpando a boca ao braço. "Vai sobrar muita desta mascambilha, vais ver. "
Matias olhou com desalento para o rio de lama que enchia a trincheira.
"Amanhã é véspera de Natal e vamos passá-la aqui atolados na lama como marranos", desabafou. "Já viste esta merda? "
"Nem me fales nisso. O que val'é qu'eles vão trazer bacalhau. "Bacalhau? Que bacalhau? "
"Ó Matias, andas mesmo distraído. Então não sabes qu'a ração da consoada vai ser bacalhau? "
"Não me digas! ", exclamou Matias, a água a crescer na boca. Estava farto do corned-beef e das pies, e uma posta de bacalhau com batatas e azeite vinha mesmo a calhar. "E isso é amanhã? "
"Espero que sim", riu-se Vicente, devolvendo o frasco de rum. Matias guardou o frasco no bolso e regressou ao trabalho com redobrado entusiasmo.
"Isso é que vai ser", disse, accionando vigorosamente a bomba. "Só faltava mesmo era os boches serem uns compinchas e darem-nos um dia de descanso. "
"Acho qu'é normal não haver guerra no Natal " "Também já ouvi isso, mas não acredito. "
"A mim quem mo disse foi uma buscate de Béthune. Ela contou-m'até que no Natal é sempr'uma fest'aqui nas trinchas, o pessoal cumpriment'os boches, vai ali p'rá Avenid'Afonso Costa e até se jog'à bola. "
"E tu acreditas nisso? ", riu-se Matias.
"Bem. "
"A malta a jogar à bola com os boches na Afonso Costa? Isso é tudo conversa para enganar tolos. Ó Manápulas, és mesmo um zinão. "
O sargento Rosa agitou-se no seu repouso de sacos de terra. Era ele o graduado encarregado de vigiar aquela obra. Tratava-se de um trabalho de menor importância, caso contrário ter-lhe-iam dado quatro, cinco ou até quinze homens, mas estava determinado a fazer sentir a sua autoridade. Foi, por isso, com esforço e elevado sentido de dever que entreabriu um olho para repreen-der os dois homens às suas ordens.
"Então, rapazes?", resmungou preguiçosamente. "Vamos lá, menos paleio e mais trabalho." Bocejou. "Depois das drenagens, temos ainda de fazer reparações nos paradorsos, nos traveses e nas banquetas. " Remexeu o corpo, procurando uma posição mais agradável, e voltou a recostar-se, indolente, nos confortáveis sacos de terra. "Portanto, é despachar, é despachar. "
Fechou os olhos, bocejou de novo e retomou a sesta.
A véspera de Natal nasceu calma. Tímidos raios de sol atravessaram a bruma húmida e banharam de luz fria a neve reluzente de Ferme du Bois, mas apenas por um breve instante.
Pesadas nuvens escuras apressaram-se a cortar- lhes o caminho, ciumen-tas, bloqueando a luz e envolvendo a martirizada planície da Flandres num sombrio e monótono manto cinzento. O termómetro registava um grau abaixo de zero, nada mau para quem viu muito pior havia apenas alguns dias, mas o que mais impressionou Afonso foi o silêncio sepulcral que se abateu sobre a zona de guerra, não se ouvia um único tiro nas trincheiras.
"Bom dia, Joaquim", disse, cumprimentando a ordenança à saída do seu abrigo, o posto de Lansdowne, situado junto a Forresters Lane, uma perpen-dicular a sul da Rue de la Bassée.
"Feliz Natal, meu capitão"
"Feliz Natal. Isto hoje parece calmo, hem? "
"Sim, meu capitão. "
Afonso seguiu para uma ronda pelas linhas e foi saber como tinha sido o A Postos da manhã, a formatura efectuada uma hora antes do nascer do Sol. Meteu pela Forresters Lane em direcção a norte, como se fosse para Neuve Chapelle, desceu pela Rue de la Bassée e virou para dentro na Rue du Bois. Cruzou-se no caminho com o tenente Pinto.
"Ora viva!"
"Feliz Natal, Afonso. "
"Boas festas, Cenoura. Tudo bem no A Postos? " "Uma maravilha. Nem um tiro "
"Isto hoje promete"
"Se promete. Já viste esta calmaria? Disseram-me que no Natal é sempre assim. "
" Quem é que te disse isso?"
"O teu amigo inglês"
" O Tim? Onde está esse sacripanta?"
"Anda por aí "
Afonso seguiu pela trincheira lamacenta de Pioneer's, o bengalão de ponta metálica na mão, Joaquim no encalço. Aquele era o primeiro Natal das tropas portuguesas na zona de combate e a quadra parecia contagiar toda a gente, viam-se sorrisos, havia alegria nas trincheiras. A manhã permaneceu tranquila, com os homens a limparem as armas e a bombearem a água e a lama para fora das passagens. Depois do almoço, Afonso foi inspeccionar o sector de Port Arthur e deu em Pope's Nose com o tenente Cook e um outro oficial britânico calmamente sentados no topo do parapeito e virados para o inimigo, à mercê das balas alemãs.
"Então, Tim, estás maluco ou quê? Sai já daí. " "Xhat ho, Afonso, old lad. Merry Christmas "
"Merry Christmas para ti também, mas faz-me o favor de sair daí, tu e o teu amigo. Ainda levas um balázio. "
"Você descontraia, Afonso", sorriu o tenente Cook, falando com o seu característico sotaque brasileiro. "Está todo o mundo fazendo o mesmo ". Apontou em redor. " Olhe para ali, os soldados portugueses estão no relax. "
Afonso pôs o pé no degrau do parapeito, esticou a cabeça e abriu a boca de espanto, viam-se lãzudos espreguiçando-se languidamente no topo dos parapeitos, ignorando com calma olímpica as letais miras alemãs.
"Mas está tudo louco! "
"Calma, Afonso", disse o inglês. "Hoje é véspera de Natal e as trincheiras costumam ficar tranquilas, é assim todos os anos". Apontou para o sector inimigo. "Além do mais, você está vendo? Há neblina ali em frente, os boches não nos conseguem enxergar. "
Um denso vapor pairava de facto na terra de ninguém, reduzindo forte-mente a visibilidade. O arame farpado misturava-se com as nuvens baixas, a neve perdia-se na claridade alva da neblina. Afonso encolheu os ombros, resignado, e, com movimentos hesitantes e desconfiados, escalou o parapeito e sentou-se junto dos oficiais britânicos.
"Captain Gleen, this is captain Afonso", apresentou-os o tenente Cook. "Afonso, este é o capitão Gleen. O capitão foi destacado pelo Alto Comando para o período do Natal "
"How do you do? ", saudou Afonso.
"Howdy, mate. Merry Christmas. Compris Christmas? "
"Yes. "
"Christmas bonne", riu-se o capitão Gleen, as faces rosadas a encherem-lhe o rosto cheio. "Beaucoup rhum, beaucoup champagne, beaucoup port-wine. Et beaucoup zig-zag! " Fez um gesto com a mão, simulando um movimento de embriaguês. "Compris? Beaucoup rhum, beaucoup zig- zag! "
"Compris. Zig-zag. Compris", devolveu Afonso com uma gargalhada, divertido com o trapalhão patois de inglês e francês tão típico das trincheiras. Voltou-se para o tenente Cook. "Ó Tim, este gajo está com os copos ou quê? "
"Ele é mesmo assim"
"Ah bom", exclamou. Mirou a neblina, ainda pouco à vontade por estar ali a descoberto, perfeito alvo para os franco- atiradores alemães, sentia-se como se estivesse nu. O problema é que ninguém parecia dar grande importância à posição vulnerável onde se encontravam, pelo que não seria ele a dar parte de fraco. Para se abstrair da desconfortável sensação de perigo decidiu alimentar a conversa. "O que é isso de o teu amigo ser destacado durante o período de Natal? "
"O capitão Gleen já viveu três Natais nas trincheiras e o primeiro foi mesmo aqui ao lado, em Neuve Chapelle. O Alto Comando achou que ele poderia ser-nos útil com todo o seu know-how. Assim poderia ajudar-nos com os acontecimentos desta quadra.
Os acontecimentos desta quadra. Que acontecimentos?"A confraterni-zação com o inimigo. O Alto Comando anda preocupado com isso. "
"Confraternização? Que conversa é essa?
"Eu acho que é melhor ser ele mesmo a contar-te", disse o tenente Cook, mudando a conversa para inglês. "Captain, pode dizer aqui ao nosso amigo português o que aconteceu no Natal de 1914?
"Christmas 1914 ", repetiu o oficial britânico, os olhos a encherem-se-lhe de nostalgia. "Foi um Natal extraordinário. Extraordinário". O capitão Gleen retirou do bolso uma caixa amarela de cigarros, Gold Flalze escrito no topo, acendeu um cigarro, largou uma baforada e fixou os olhos no infinito. "A guerra durava havia apenas quatro meses quando chegou o Natal de 1914. Eu era na altura um corporal dos 18th Hussars destacado num regimento indiano de cavalaria dos Royal Garhwal Rifles e estávamos barricados mesmo aqui em Neuve Chapelle, justamente nestas trincheiras onde estão agora os portugueses. Houve violentos combates até ao dia 24, com os jerries a atacarem a 20, os indianos a recuarem a 22 e o nosso Corpo a responder e a reocupar posições. O tiroteio prolongou-se durante a véspera de Natal, mas, quando a noite caiu, os combates pararam totalmente e ficou tudo silencioso. Um silêncio como este, neste momento." Girou a mão em redor. "De repente, no meio da escuridão, começámos a ver luzes a acenderem-se ali do outro lado." Apontou. "Eram filas e filas de luzes. Lançámos um very light e vimos que os jerries estavam a colocar pequenas árvores de Natal iluminadas ao longo do topo dos parapeitos. Nós e os indianos ficámos embasbacados a olhar. A nossa rapaziada começou a dizer que era o divali, o divali. Perguntei-lhes o que era isso do divali e eles explicaram-me que se tratava da mais importante festa do calendário hindu, dedicada a uma deusa qualquer ligada à riqueza. Foi uma noite curiosa, mas as coisas ficaram por aí "
"Isso foi na véspera de Natal", atalhou Afonso, meio perguntando, meio afirmando.
"Indeed", assentiu.
" E no dia de Natal?"
"Bem, aí foi diferente. A manhã de 25 nasceu gloriosa, estava um dia maravilhoso, o Sol brilhava alto no céu, a chuva da Flandres tinha miraculosa-mente desaparecido. A dado momento, os jerries começaram a cantar. Eram prussianos do VII Corpo e cantavam em coro, alguns com magníficas vozes de tenor, até nos arrepiávamos. Ouvíamo-los a entoarem o O Tannenbaum, o Stille Nacht, Heilige Nacht, o O du Frhliche, todos muito afinados, cheios de coração, de emoção. Como eram prussianos, e consequentemente militaristas, não se esqueceram, claro, das canções nacionalistas, em especial do Xacht am Rhein e do Deutschland iiber Alles. Parece que os estou a ouvir... "
O capitão Gleen calou-se por um instante, mergulhado na memória daqueles momentos.
"Vocês responderam? ", quis saber o tenente Cook, quebrando o silêncio.
"Os indianos não. Ficaram calados a ver. Mas alguns oficiais britânicos entoaram baixo o Tipperary. Estão-nos a ver a cantar Its a long Way to Tipperary?" Riu-se. "Bom, pelo meio-dia começámos a vê-los a fazerem passear sobre as trincheiras cha péus e capacetes pendurados na ponta de paus. Depois puseram-se a espreitar pelos parapeitos, primeiro a medo, a seguir erguendo as cabeças com crescente confiança. Nós estávamos especados a vê-los."
"Ninguém disparou?"
"Ninguém disparou. Acho que achámos que, naquelas circunstâncias, isso seria assassínio a sangue frio. Começaram então a gritar em inglês, desejando-nos um feliz Natal. A Happy Christmas to you all! berravam. Alguns até tinham sotaque cockney, dá para acreditar? Outros gritavam Friede aufder Erde. Eu arranho algum alemão, mas não entendi. O capitão Collins, que era fluente em alemão, disse-me que isso significava paz na Terra. Não lhes respondemos. Uma hora depois repetiram a graça. Puseram-se aos gritos de Happy Christmas e, a dado momento, colocaram-se em pé sobre os parapeitos, desarmados, totalmente à mercê das nossas espingardas e metralhadoras. Nós estávamos siderados. Os soldados apontaram as Lee- Enfield para darem cabo dos prussianos mas o capitão Collins deu uma ordem a proibir que se disparasse. Ficou tudo em suspenso, eles a acenarem, nós quietos. A situação era anormal e, meio hesitantes, alguns dos nossos homens puseram-se também de pé e acenaram, o que provocou uma festa do lado dos jerries. Eles gritaram a dizerem que tinham charutos para nos oferecerem e que nós fôssemos lá, que não disparariam, que era Natal. Ficámos desconfiados. Houve então um prussiano que pegou numa caixa de charutos, saltou para a terra de ninguém e veio por ali fora na nossa direcção " O capitão Gleen apontou para um ponto à esquerda, algures na terra de ninguém coberta de neblina. "Veio por ali, parece que o estou a ver, o pickelhaube na cabeça, uma gabardina cinzenta cheia de lama, a caixa de madeira ao peito, segura pelas duas mãos como se fosse um tesouro. Uma vez que ninguém se mexia, eu saltei também para a terra de ninguém e fui ter com ele por ali." Apontou para a esquerda, indicando o ponto da trincheira de Neuve Chapelle que ocupara nessa tarde memorável. "Eu ia nervoso, as pernas tremiam-me, sentia espingardas invisíveis apontadas à minha cabeça, ao meu peito, às minhas pernas. Ainda pensei em dar meia-volta e desatar a correr, mas controlei-me e segui em frente, perguntando mil vezes o que estava a fazer no meio da terra de ninguém. Encontrámo-nos ali no centro, junto ao arame farpado. Ele entregou-me a caixa e disse-me a Happy Christmas to you. Fiquei sem jeito, sem saber o que fazer ou dizer. Estiquei-lhe o braço e apertei- lhe a mão, disse-lhe danke schn und Merry Christmas. Quando nos viram no handshake, os jerries do outro lado começaram a gritar como loucos, pareciam os de Cambridge a festejarem a vitória sobre Oxford na regata, muitos saltaram para a terra de ninguém e vieram na nossa direcção, os nossos indianos imitaram-nos e foram ter com eles, não dava para acreditar. Aperta-ram as mãos uns dos outros, ofereceram-se prendas, nós dávamos-lhes cigarros, corned-beef, biscoitos, chocolates, rum, chá e marmeladas Tickler e eles presen-teavam-nos com schnapps, sauerkraut, cognac, vinho e doces. Mas tinham sobretudo muitos charutos, os quais, pelos vistos, eram profusamente distribuídos lá na retaguarda como prendas do Kaiser. Eram tantos os charutos que o capitão Collins comentou termos caído no meio de um batalhão de milionários. " Gleen deu uma gargalhada e suspirou. "Ah, foi uma festa incrível, vocês haviam de ver, aquilo foi mesmo um Natal a sério. Vendo bem, e de uma certa maneira, talvez tenha sido o melhor Natal da minha vida, o ambiente era absolutamente fantástico. "
"Conversaram? ", perguntou Afonso.
"Claro. Havia muitos handshakes e sorrisos, mas conseguimos falar um pouco. Fiquei com a impressão de que eles achavam que estavam a ganhar a guerra e admiravam-se por nós ainda combatermos. Houve um que até disse que havia tropas alemãs em Londres, o que provocou uma risada geral entre os oficiais britânicos. Acho que ficaram desconcertados com a nossa reacção. " Gleen enterrou o cigarro na neve, a ponta incandescente a mergulhar no gelo fofo e a apagar-se com um fssssh. "Depois, um oficial jerry propôs que enterrássemos os corpos que jaziam abandonados na terra de ninguém, no que concordámos. Todos os jerries que encontrámos do nosso lado foram-lhes entregues e todos os indianos do lado deles foram-nos entregues. Um pároco jerry rezou ali uma missa campal. Estou a vê-lo no pai-nosso, as mãos juntas numa prece, os joelhos na neve, a cabeça tombada, a dizer vater unser, der Du bist im Himmel, Geheiligt werde Dein Name. A seguir tirámos fotografias uns dos outros, voltámos a cumprimentar-nos e despedimo-nos. Ficou combinado que haveria uma nova trégua no ano novo para que, uma vez reveladas as fotografias, déssemos cópias uns aos outros. Voltámos para as trincheiras e o resto do dia permaneceu calmo. Às vezes gritávamos coisas de um lado para o outro, uns a oferecerem charutos, outros a prometerem souvenirs, e à noite voltaram as cantorias. Eles tinham o mesmo repertório da manhã. Nós, os oficiais britânicos, para além do Tipperary, oferecemos-lhes uma valente interpretação do My Little Grey Home in the lXest, do Home Sweet Home e, claro, do God Save the King, tudo com muitos aplausos e aclamações efusivas à mistura. " Suspiro. "Foi realmente um dia extraordinário. "
"No dia seguinte recomeçaram os tiros", disse Afonso. "Not really", retorquiu Gleen, abanando a cabeça. "As coisas permaneceram calmas a 26, ninguém queria dar o primeiro tiro. A artilharia abriu fogo da retaguarda, mas a infantaria permanecia quieta. Por vezes, quando um alto oficial aparecia nas trincheiras, dávamos uns tiros para o ar, para disfarçar. Eles também davam uns tiros e, uma ou duas horas depois, desculpavam-se, alegando que um general qualquer tinha passado por ali. No ano novo permaneceu tudo na mesma e alguns homens encontraram-se junto ao arame farpado da terra de ninguém para oferecerem as fotografias de Natal. As coisas continuaram assim durante meses e só a nossa grande ofensiva de Março de 1915, lançada justamente aqui em Neuve Chapelle e Ferme du Bois, é que pôs um fim a esse estado de coisas. "
"E toda essa confraternização de Natal aconteceu só aqui neste sector? ", quis saber o capitão português.
"Não, foi generalizada", retorquiu Gleen. "Acho que a guerra parou em dois terços da linha da frente britânica, que na altura se situava entre St. Eloi e La Bassée. Diz-se que até os franceses e os belgas, que odeiam os jerries por eles terem invadido as suas terras, confraternizaram com o inimigo. Por toda a parte foi tudo muito parecido. As cantorias, as luzes das pequenas árvores de Natal, os apertos de mão, as fotografias, as trocas de presentes, a relutância em recomeçar a guerra... "
"Ouvi dizer que até jogaram football", indicou o tenente Cook com um sorriso.
"Também ouvi falar nisso, sim, mas não vi nada e nunca conheci ninguém que tivesse testemunhado tal coisa em primeira mão. Mas falou-se muito nisso, dizia-se que, em certos sectores, os nossos homens jogaram football com os Fritz. Uns garantem que andaram todos aos pontapés a uma lata de corned-beef, outros falam em bolas improvisadas de farrapos. Foi até publicada num jornal de Londres a notícia de que um jogo entre os nossos tommies e os jerries terminou com eles a ganharem 3-2. Mas isso são boatos. Eu, pessoalmente, não vi nada."
"Os outros Natais foram todos também assim? ", quis saber Afonso.
"Não com esta dimensão, embora se tenha efectivamente registado confra-ternização. O Alto Comando deu instruções rigorosas para não haver comporta-mento amistoso com o inimigo, mas essas ordens não foram cumpridas em toda a parte. Em 1915, os soldados confraternizaram ali em Laventie, por exemplo." Apontou para a retaguarda da esquerda, atrás de Fauquissart. "E no ano passado, embora não tivesse havido conversa e encontros entre tommies e jerries, também não houve combates, apesar de ter ocorrido alguma actividade de artilharia. De qualquer modo, e no que diz respeito à infantaria, quase se pode dizer que não foram disparados tiros nos três Natais desta guerra. "
Ficaram os três oficiais sentados no topo do parapeito, de olhar perdido na neblina da terra de ninguém, perscrutando as linhas inimigas, adivinhando intenções, procurando sinais. Um bando de aves irrompeu com fragor sobre as trincheiras. Era uma visão rara, nunca os pássaros vinham visitar aquele vulcão de fogo e morte. Afonso suspirou, quase feliz, admirando as pequenas aves a pousarem nas árvores calcinadas e a quebrarem o silêncio com as suas alegres canções de enamoramento.
"Estou cheio de curiosidade para saber o que vai acontecer esta noite", comentou Afonso.
"Você está querendo conversar com os boches", riu-se Cook, em tom de provocação.
"Bem... e por que não?", admitiu o português. "Deve ser interessante conhecer assim o inimigo, falar com ele. Os únicos boches que eu vi ao natural ou eram prisioneiros ou eram vultos distantes que desapareciam num ápice "
"Mas olhe que o Alto Comando não vai querer isso." "O Alto Comando que vá para o raio que o parta. O que é que eles fazem se eu, na noite de Natal, conversar com o inimigo? Mandam-me para as trincheiras?
"Se você fosse britânico, levava com o tribunal de guerra em cima. "
"O quê? Não me digas que prenderam toda a malta que confraternizou em 1914!"
"Não, claro que não. Mas houve oficiais que sofreram sanções discipli-nares em 1915, e os regulamentos tornaram-se, desde então, mais duros no que diz respeito à confraternização com o inimigo. "
"Pois entre nós não há essa preocupação", sorriu Afonso. "Vantagens de ser português. "
"O que tenciona você fazer? "
"Eu? Nada. Mas, quando vierem as cantorias, a gente não se cala, vai ser um concerto do camano. Se os boches se puserem a cantar o O Tannenbaum, a malta responde com o Malhão, Malhão, vais ver. E, se eles mandarem para cá o ZXacht am Rhein, o pessoal do 8 atira-lhes com um vira do Minho. E, se os tipos ainda vierem com o Stille Nacht, vamo-nos a eles com um fadinho da Severa. " Esfregou as mãos, antecipando com impaciência o espectáculo que se montava na sua imaginação. "Vai ser uma beleza. "
O tenente Cook explicou ao capitão Gleen as intenções de Afonso. Gleen abanou a cabeça.
"Você não pode fazer isso. "
"Porquê? "
"Porque os jerries não podem ver o estado em que se encontram as tropas portuguesas."
"Porquê?"
"Se eles vos virem assim como vocês estão, todos rotos e esfarrapados, cansados e ansiosos por saírem daqui, magros, sujos e por barbear, eu é que não quero aqui ficar. Eles saltam-vos em cima com toda a força que têm. "
" Quebram a trégua?"
"Não. Saltam-vos em cima depois da trégua. Depois. " "Ah", exclamou Afonso, ficando a matutar nesta observação. "É imperativo que não haja contacto entre portugueses e jerries, o Alto Comando faz muita questão nisso. Se houver confraternização, o inimigo percebe num instante que vocês são uma potencial vulnerabilidade no nosso sistema defensivo. "
" Combatemos mal?"
"Não é bem isso", atenuou Gleen. "Digamos que dá a impressão de que os vossos homens começam a estar há demasiado tempo nas trincheiras. Quando é que chegaram cá? "
" Onde? A França?"
"Às trincheiras!"
"Bem, a 1.a Divisão ocupou as suas posições na frente de combate no final de Maio e a nossa brigada, que pertence à 2.a Divisão, entrou nas trincheiras exactamente no dia 23 de Setembro."
"Hum, Maio e Setembro...", repetiu Gleen, fazendo as contas de cabeça e enumerando os dedos como se fossem meses.
"Portanto, se bem compreendo, a 1.a Divisão está a combater há sete meses consecutivos e a 2.a Divisão há três. Olhe, se fossem forças britânicas, já tinha chegado a hora de regressarem à retaguarda para um prolongado descanso, em especial a 1.a Divisão.
Nenhum soldado aguenta estar tantos meses seguidos enfiado em poças de lama com bombas a explodirem em redor e balas a voarem constantemente sobre a cabeça. Ora veja os jerries ali em frente, por exemplo. Há pouco tempo estavam naquelas trincheiras, do outro lado, os homens da 50.a Divisão. Pois os últimos prisioneiros que capturámos revelaram-nos que esses já foram descansar. Estão agora ali os tipos da 44. a Divisão, também pertencentes ao VI Exército de von Quast. Ou seja, de um lado estão jerries frescos e do outro encontram-se portugueses fatigados. Fungou. "Se quer que lhe diga, isto cheira mal.
"O que quer que nós façamos?"
"Arranjem reforços, for Christ's sac", retorquiu. Fungou novamente e lançou um escarro para a neve. "Vocês precisam de tropas frescas e ainda não receberam nenhumas. O cansaço acumula-se, o moral ressente-se e isso começa a notar-se na forma como os homens se apresentam."
Sentiram movimento na trincheira, mesmo atrás, e voltaram as cabeças para verem o que era. Passava um lãzudo enregelado, envolvido num pelico roçado e com as mangas rasgadas da farda a sobrarem-lhe, eram maiores do que os braços, mas o que nele mais se destacava eram as botas abertas na frente, a sola a descolar-se do cabedal, parecia uma boca escancarada com a língua de fora, a língua eram os pés, claro, as meias rotas e apodrecidas encontravam-se cobertas de trapos imundos na extremidade, de modo a protegerem os dedos. O cabedal fora confeccionado sem gordura, o que era normal em Portugal e adequado às amenas condições climatéricas do país, mas ali era diferente, o clima da Flandres revelava-se bem mais húmido e, naquelas condições, o calçado português tornava-se largamente permeável à água e à lama, o que facilitava o apodrecimento dos fios de ligação da sola à gáspia e provocava aquele lamentável e ridículo espectáculo.
O capitão Gleen apontou com o polegar para a miserável praça que se arrastava com dificuldade pelas tábuas da trincheira e que tão oportunamente os brindara com a sua inspiradora aparição.
"You see? É justamente por causa disto que não podemos deixar que o Fritz vos veja."
Afonso ficou a olhar para o esfarrapado soldado, pobre e engelhado, que se afastava, cabisbaixo, trincheira a cima, em direcção a Hun Street.
"Compreendo."
"De qualquer modo, todos os oficiais britânicos que fazem ligação com as forças portuguesas receberam ordem para permanecerem todo o dia nas primeiras linhas deste sector", indicou Gleen. "Se os jerries fizerem alguma gracinha do género de 1914 e 1915 aqui em Neuve Chapelle e em Laventie, teremos de passar logo a informação para o quartel- general. "
Afonso lançou um derradeiro olhar para a neblina que tapava as posições inimigas e, apoiando-se no bengalão de ponta metálica, saltou de volta para a trincheira, onde o aguardava Joaquim.
"Não sei da vossa vida, rapazes", disse, despedindo-se dos dois britânicos. "Mas eu tenho uma ronda para fazer. Até logo. "Cheerio."
O capitão foi pela trincheira fora dar a volta por todo o sector ocupado por Infantaria 8, descendo pela Rue du Bois até Richebourg Avoué, depois virou à direita em Factory e subiu pela Edward Road, aqui tropeçou em duas gordas ratazanas junto ao Páteo das Osgas, achou-as repugnantes com as suas caudas longas e os corpos tão anafados que até lhes era difícil correrem, e decidiu voltar novamente à direita, em Windy Corner, apanhando a Forresters Lane até chegar a Lansdowne, o seu abrigo, habitualmente o complexo que albergava o comando do batalhão, mas que desta vez se contentava em acolher o respon-sável pela companhia e mais umas dezenas de homens. O tenente Pinto aguardava-o.
"Viva, Afonso, por onde tens andado? "
"Encontrei o Tim com um outro bife e ficámos à conversa ali em Pope's Nose", retorquiu Afonso, entrando no abrigo e sentando-se no catre de arame. Pinto imitou-o e instalou-se no banco, junto ao caixote de munições que servia de mesa. O capitão tirou o capacete e fitou o amigo. "Os bifes estão preocu-pados com a possibilidade de confraternizarmos com os boches. "
"Disparate!"
"Olha que não é disparate nenhum. Estiveram-me a contar que os boches costumam ser especialmente simpáticos no Natal e os camones receiam que a malta vá na conversa deles e exiba as nossas misérias ao inimigo. "
"Ah é? Ainda não vi acontecer nada... "
"Então não reparaste que não se disparou hoje um único tiro?" "Isso é verdade", concordou o Cenoura. "Aliás, comentei isso contigo logo pela manhã."
"E já viste o pessoal a esticar-se acima dos parapeitos? Isto até parece uma excursão.
"Afonso, isto é uma excursão", devolveu o tenente Pinto com especial ênfase na palavra "é", a costela monárquica anti-intervencionista sempre presente. "A malta não devia estar aqui, já te disse milhões de vezes. O Sidónio tem que nos tirar... "
"Ó Cenoura, poupa-me", cortou Afonso, levantando as mãos para o céu com um gesto de impaciência. "Hoje não quero ouvir essa conversa, não tenho pachorra. Dá-me uma trégua, é Natal. "
Um correio apareceu no posto e espreitou pela entrada. "Meu capitão, dá licença? "
" O que é?"
"Mensagem da brigada. "
O homem estendeu um envelope amarelo. Afonso pegou nele, rasgou-o e leu-o. Um rubor de irritação subiu-lhe à face, e Pinto notou.
"Alguma coisa grave? "
"Estes gajos são uns cabrões", rosnou Afonso. "Uma coisa destas não se faz. "
" O quê?"
"Ora ouve lá", disse, lendo a mensagem em voz alta. "Tomar todas as medidas para combate. Toda a artilharia bombardeará durante meia hora o inimigo às dezassete, às dezanove e às vinte e uma horas. " Levantou a cabeça e acenou com a mensagem. "Já viste isto?"
"Na véspera de Natal? " "Estes gajos são doidos. "
"Mas que bicho lhes mordeu? "
"Eu sei o que é", suspirou Afonso, erguendo-se do catre e saindo do posto. "Eles querem garantir que não haverá confraternização e decidiram oferecer aos boches ameixas como prendas da consoada. E a malta é que se lixa. "
"E agora?"
"E agora vamos avisar o pessoal para se preparar para a festa. Vai ser um bailarico e peras."
Matias Grande acomodou-se o melhor que pôde junto aos sacos de terra da linha B, em Copse Post, entre Port Arthur e Richebourg Avoué. O sargento Rosa tinha passado por ali a avisar que iria haver sarilho, a artilharia ia entrar em acção e era inevitável a retaliação inimiga, pelo que deviam tomar as precauções necessárias. No Verão e no Outono, um aviso sobre a iminente entrada em acção da artilharia conduziria toda a gente para os abrigos, mas agora no Inverno, com a água e a lama a tudo invadirem, os abrigos não ofere-ciam qualquer segurança. Construídos em terras argilosas e com as paredes lamacentas, era comum desmoronarem- se por inteiro quando atingidos por uma granada alemã. Não era a primeira vez que morriam assim vários homens, afogados na vaga de lama que se abatia sob o impacto de uma explosão pró-xima. Daí que, no Inverno, o último sítio para onde os soldados iam durante um bombardeamento inimigo eram justamente os abrigos, a menos que fossem construídos em betão. Preferiam ficar ao ar livre, colados às paredes das trin-cheiras, rezando à Virgem para que os protegesse das bombas e dos estilhaços.
"Ó Manápulas", interpelou Matias. "Passa-me aí um xagrego. "
Vicente foi ao bolso do casaco, sacou uma caixa de cigarros franceses, os Gauloises Bleues, e ofereceu um a Matias.
"Queres lume? ", perguntou Baltazar Velho, o veterano do grupo.
"Sim. "
"Então espera que a artilharia abra fogo", devolveu o serrano com uma gargalhada boçal.
Matias abanou a cabeça, paternalista.
"És mesmo ribaldeiro."
Baltazar tossia e ria-se ao mesmo tempo, divertido com a graçola e sentindo os efeitos da sua tuberculose emergente. Abel Lingrinhas acendeu um fósforo e Matias colou-lhe a ponta do cigarro, aspirando com força.
"Qu'horas são?", quis saber Vicente.
Matias consultou o relógio.
"Falta um minuto "
Ficaram calados, receando a aproximação da trovoada. "Será que vão mesmo dar bacalhau p'ró jantar?", interrogou-se Vicente, quebrando o silêncio tenso.
"Fui à cantina e o Matos confirmou", disse Matias. "Bacalhau com batatas e azeite. E vai haver vinho. "
"Aposto qu'é patreia", resmungou Vicente, desconfiado da qualidade do tinto. "E p'rá sobremesa? "
"Arroz doce. "
"Não há rabanadas? ", perguntou Abel, coçando a cabeça piolhosa. "Cá para mim, Natal sem rabanadas não é Natal. "
"Porra, Lingrinhas, andas mesmo exigente", cortou Baltazar, já recuperado do ataque de riso e de tosse. "Daqui a um bocadinho vais exigir cama com lençóis lavados, almofadas e pijama. E, se estiveres agarrado a uma sansardo-ninha com um valente par de catrinas e um surrasco peludo, ainda melhor"
Um violento rugido interrompeu abruptamente a conversa. O ar estoirou e abanou, agitando-se em vagas sucessivas, medonhas, e a terra pôs-se a tremer sob o impacto das deflagrações.
"Começou", gritou Vicente, mais para si do que para os outros. As detonações vinham de trás, seguindo-se um zumbido a sobrevoar as linhas e explosões a sucederem-se do lado alemão. As baterias portuguesas encontra-vam-se disseminadas pela linha das aldeias, lá para a retaguarda, e disparavam furiosamente sobre as posições inimigas. Eram peças de 75, de tiro tenso, e obuses de 4 polegadas, com fogo mais alongado. Cada canhão descarregava quatro tiros por minuto nos primeiros dez minutos, o que provocava um caos assustador.
"Vocês já viram esta merda? ", perguntou Baltazar por entre o rugido da artilharia portuguesa. "Que falta de categoria, bombardear desta maneira o inimigo na consoada. O que é que os boches vão pensar? "
"É", concordou Matias Grande. "Não é nada católico. Vão julgar que somos uns selvagens. "
"Isto é mesmo um golpe baixo. "
"Bombardear os boches na véspera de Natal vai dar azar", vaticinou Vicente, impressionado com o canhoneio.
" Cala-te, Manápulas. "
"Esperem p'ra ver", repetiu Vicente, erguendo o indicador como quem faz um aviso. "Isto vai dar azar!"
Ao fim de dez minutos, o bombardeamento diminuiu de intensidade. De quatro tiros por minuto, a artilharia portuguesa passou a dois tiros por minuto. A trovoada permaneceu violenta, mas notava-se que se tornara agora um tudo menos cerrada. Quando se esgotou meia hora, o batimento foi abruptamente suspenso.
O silêncio voltou às trincheiras e os lãzudos permaneceram encostados às paredes de lama, os sons das baterias ainda a ressoarem nos tímpanos, todos a aguardarem nervosamente a resposta dos alemães.
"Eles devem estar todos nicados", sussurrou Baltazar, receando que falar alto fosse a gota de água que fizesse transbordar o copo da paciência do inimigo. "Isto vai escacholar, vão ver. "
Continuaram a aguardar, mas nada, os alemães não se mexeram, nem um tiro. Nada. Aguardaram e esperaram, mas apenas o silêncio respondeu.
"Manducaram e calaram", comentou por fim Vicente, no íntimo não acreditando que isso fosse mesmo verdade, era talvez um desejo, uma súplica, uma esperança.
Ao cabo de quinze minutos, contudo, começaram finalmente a acreditar que não haveria retaliação imediata e descontraíram-se um pouco, fumando cigarros em catadupa. Inesperadamente, Baltazar lançou um grito de alarme.
"Atenção, gás! "
Os companheiros deram um pulo e olharam com ansiedade em redor, assustados, procurando em vão a receada nuvem colorida enquanto as mãos buscavam freneticamente as máscaras.
"Gás Onde?"
Baltazar fez pressão com a barriga e, com aparatoso ruído, libertou a flatulência retida nos intestinos.
"Gás feijão", exclamou o Velho antes de se perder em novas gargalhadas. "Categoria, categoria. "
Os homens entreolharam-se, agastados, e voltaram a sentar-se. Matias suspirou e ficou a abanar a cabeça, um sorriso condescendente desenhado nos lábios.
"Ribaldeiro."
Instantes depois, o sargento Rosa apareceu no local e sentou-se de cócoras junto aos homens. Vinha ofegante, o receio da retaliação alemã forçava-o a correr curvado, o que era cansativo. Aproveitou a pausa na ronda para recuperar o fôlego.
"Então?", arfou. "Novidades? "
"Os boches estão quietos, meu sargento", informou Matias. "Já reparei. "
"Por que razão há tão poucos homens nossos aqui nas trinchas, meu sargento? "
"A brigada deu ordem para espalhar a malta pelos campos, lá atrás, na linha das aldeias, por causa da retaliação dos boches. "
"Então e nós?"
"Alguém tinha de ficar nas trinchas, não é? Coube-vos a vocês e a mais uns quantos."
"É sempr'a mesma porra", resmungou Vicente Manápulas. "Os maiorais decidem distribuir castanhas pelo Natal e a malt'é que se nica c'o troco. Puta qu'os pariu! "
"Não vale a pena mandares vir porque os boches, pelos vistos, não escacholaram", admoestou-o o sargento Rosa.
"Por enquanto, meu sargento, por enquanto", insistiu Vicente. "Espere pela volta do correio. "
"Mas que ave mais agoirenta!", comentou Matias reprovadoramente, o cabo sabia que os presságios do Manápulas tinham um efeito negativo no pelotão.
"Quando é que servem o bacalhau? ", perguntou Baltazar, igualmente preocupado com o efeito dos maus agoiros de Vicente e decidido a aligeirar a conversa e levá-la para outros rumos. Como tinha sempre a cabeça no rancho, ainda para mais com a ementa especial de Natal a aguçar-lhe o apetite, achou que este era um magnífico tema para distrair o grupo. "Ouvi dizer que esta noite, para a consoada, era coisa de categoria e eu já estou cá com uma larica... "
"Não vai haver bacalhau para ninguém", atalhou o sargento secamente.
"Como? ", admirou-se Matias. "Mas o Matos disse-me... "
"O rancho na cantina foi suspenso. "
" O quê?"
"Desculpem lá, malta, mas são ordens superiores", explicou Rosa, embaraçado por ser portador daquelas notícias. "Eles querem toda a gente a postos durante a noite, a borrasca vai continuar. "
"Oh, não! ", protestou Baltazar. "Mas que merda essa. "
Lamento, mas, como eu disse, são ordens. Vão ter de se contentar com o corned-beef. "
"Eu quero qu'o corno-bife vá p'rá puta qu'o pariu! ", rugiu Vicente, furioso e inconformado, aplicando um intempestivo pontapé num saco de areia e mais um chorrilho de palavrões. "Aposto com quem quiser qu'a merda do bacalhau vai parar à mesa dos oficiais! "
Ninguém quis apostar, era evidente para todos que o bacalhau seria destinado aos cachapins da retaguarda.
"Mas que borrasca é essa de que falou, meu sargento? ", perguntou Matias, atento às anteriores palavras de Rosa.
"Vai haver novo bombardeamento às sete da noite. " " Outra vez? "
"Outra vez", confirmou o sargento, erguendo-se para prosseguir a ronda, não queria ficar ali a aguentar com os protestos. Deu um passo para se ir embora, hesitou, olhou para trás e esboçou um tímido sorriso. "Feliz Natal, pessoal"
A manhã prolongava-se, agradável e modorrenta, no tranquilo quartel-general do CEP, em St. Venant. Agnès olhou melancolicamente pela janela da mansão, admirando os enormes ulmeiros que se erguiam como torres no jardim, o chilrear amoroso dos pardais a encher de melodia aquele bucólico quadro. Com os olhos pensativamente perdidos na verdura, a francesa achou estranho estar ali, no centro de comando de uma das forças envolvidas naquela guerra terrível, e ver-se rodeada por tal paisagem paradisíaca, como era possível que os homens que mandavam outros para a frente de batalha vivessem num ambiente tão pacífico, tão recatado, tão escondido dos horrores resultantes das ordens que dali emitiam? Agnès suspirou, arquivou numa enorme pasta a carta que tinha na mão e encetou um novo envelope.
Sentiu a porta a abrir-se à esquerda e voltou a cabeça. Era o tenente Trindade que entrava na sala de dactilografia, momentaneamente deserta, ou quase, e ia ter com ela.
"Quer um chá", perguntou o oficial português.
"Não, obrigada."
"Nem um café?"
"Não, não quero nada, obrigada. Estou bem. "
O tenente hesitou, olhou em redor, não estava lá mais ninguém, o resto do pessoal tinha ido almoçar e as máquinas de escrever encontravam-se mergu-lhadas no silêncio.
"Tem a certeza de que não quer ir esta noite dançar um fox-trot comigo?"
"Agradeço-lhe de novo o amável convite, mas não pode ser. " Ia-se divertir. "
"Tenho a certeza, senhor tenente, mas infelizmente não posso. "Oh, não me chame senhor tenente, imploro-lhe. Já lhe pedi tantas vezes para me tratar por Cesário. Vá lá, seja simpática. Cesário. "
"Peço desculpa, tentarei lembrar-me. "
Agnès sentia-se já cansada de todas as atenções com que o tenente Trindade a brindava desde que, havia quase uma semana, começara a trabalhar no quartel-general. Ir para St. Venant tinha sido uma ideia de Afonso, agora que saíra de casa ela precisava de trabalho e o centro de comando do CEP era uma alternativa interessante. Tratava-se de um lugar tranquilo, não era por acaso que os soldados conheciam o quartel-general como Grande Canja. O amante tinha-a apresentado ao seu amigo Trindade Ranhoso logo na manhã em que se reconciliaram e a coisa ficou resolvida, havia necessidade de uma pessoa que fizesse o atendimento aos cidadãos franceses que contactavam o CEP por isto ou por aquilo, e Agnès foi preencher a vaga. O problema é que Afonso foi de imediato enviado para as trincheiras e o seu amigo tenente mostrava pela bela recém-chegada uma inusitada atenção. Tornara-se crescentemente claro que Trindade não lhe manifestava toda aquela gentileza por mero sentido de dever para com Afonso, havia antes um evidente e indisfarçável interesse do rapaz. O tenente passara os últimos dias a visitar a sala de dactilografia, sempre com pretextos para conversa, e das falas galantes passara agora aos convites melosos.
"Nem quer ir ao cinematógrafo comigo?", insistiu ele, após uma pausa embaraçada.
"Seria fantástico, mas não posso. "
"Não sabe o que perde. Vão mostrar um filme de Max Linder que é de rir até às lágrimas e depois a Joana d'Arc com a Geraldine Farrar. "
"Prefiro a Sarah Bernhardt"
"Também gosto. Mas olhe que a Farrar tem uma belíssima voz, dizem que, na ópera, é magnífica. "
"Não interessa que ela tenha uma grande voz", riu-se Agnès. "O filme é mudo. "
"Com efeito", reconheceu Trindade, um rubor a subir-lhe à cara. "Mas venha, vai gostar. "
"Obrigada, mas não posso. "
"Mas porquê? Tem alguma coisa assim de tão importante para fazer? "
"Alphonse chega esta noite. "
O tenente Trindade Ranhoso sentiu o golpe, forçou um sorriso, murmurou uma desculpa imperceptível e, irritado, deu meia-volta e saiu da sala de dactilografia. Divertida com esta reacção, Agnès riu-se baixinho e regressou ao envelope que abrira havia alguns minutos. Era um agricultor de Lestrem a protestar porque os soldados lhe haviam roubado todas as maçãs que tinha amontoado numa carroça junto ao mercado e exigia agora uma compensação. A francesa tomou nota da queixa num formulário próprio e endereçou o assunto ao major Ezequiel, o encarregado das questões entre o CEP e os civis. Agnès sorriu ao pensar nos francos que teriam de ser desembolsados para pagar por estes furtos. Pelo volume de queixas que recebia, verificou que o roubo de comida era comum entre os soldados, em especial batatas e nabos. Mas muitos furtavam também roupas interiores, como camisolas, ceroulas e meias, especialmente de lã, e ainda luvas, coletes, impermeáveis, botas de borracha, tudo o que os pudesse proteger do frio e da lama.
Quando Agnès se preparava para abrir o envelope seguinte, o tenente Trindade espreitou pela porta e interrompeu-a.
"M dame ", chamou.
" Sim?"
"Está ali uma senhora para si. "
" Para mim?"
"Quer dizer, não é bem para si", atrapalhou-se o oficial. "É uma civil e acho que é melhor ser você a falar com ela. "
Agnès levantou-se, intrigada, e seguiu Trindade até à porta de entrada da mansão. Um soldado tapava o acesso, e do lado de fora vinham uns gritos histéricos em francês, era uma rapariga claramente perturbada. Agnès aproxi-mou-se, o soldado deixou-a passar e ela deu com a rapariga lavada em lágrimas.
"O que se passa, mademoiselle?"
Vendo uma francesa à frente, a rapariga acalmou ligeiramente, embora tremesse de nervosismo.
"Vou-me matar, m'dame."
"Disparate. Venha daí e conte-me o que tem. "
Agnès agarrou a rapariga pelos ombros e levou-a para a sala de dactilografia. Trindade, desconfortável com a situação, optou por ficar para trás, detestava cenas de choradeira feminina.
"Então conte lá como se chama e o que a apoquenta", disse-lhe Agnès quando a rapariga se instalou numa das várias cadeiras vazias da sala.
"Chamo-me Germaine e trabalho no 183, a papelaria da madame Fas. "
Pausa.
"E o que se passa? "
"Vou ter um filho. "
"Ah bom", percebeu Agnès. "Tem a certeza? "
"Sim, foi o que o doutor Roche me disse. "
"E o pai é um soldado português. "
"Sim", assentiu, baixando a cabeça.
" E onde está ele?"
"Não sei, desapareceu. " Germaine agarrou a mão de Agnès com força desesperada. "Tem de me ajudar a encontrá-lo m'dame. Tenho de casar com ele. Se não me casar, o meu pai mata-me. Eu própria me mato. "
"Tenha calma. Quem é ele? "
" Chama-se Carlos. "
Agnès levantou-se, foi à porta e espreitou.
"Senhor tenente, por favor. O senhor... " "Cesário, por favor. Chame-me Cesário. "
"Perdão. Cesário. O senhor conhece algum soldado chamado Carlos? "
"Carlos quê? "
Agnès olhou para trás e repetiu a pergunta a Germaine, que abanou a cabeça, não conhecia outro nome, apenas aquele. A baronesa voltou a encarar o tenente Trindade.
" Só Carlos. "
"Há milhares de Carlos no CEP, m'dame. Sabe ao menos a que batalhão pertence esse Carlos?"
Germaine não sabia. Agnès agradeceu ao tenente e voltou para junto da rapariga, explicando-lhe que, sem qualquer identificação mais precisa, seria impossível localizar o rapaz, Carlos era tão comum entre os portugueses como Charles entre os franceses. Germaine tapou o rosto com as mãos e chorou desconsoladamente. Agnès tentou animá-la e para a convencer de que algo seria feito tomou nota da ocorrência, endereçando- a ao major Ezequiel. Dez minutos depois acompanhou Germaine à porta e viu-a partir, abatida, desesperada, entregue ao seu destino.
"Isto é muito comum", comentou negligentemente o tenente Trindade, encostado à porta a acabar um cigarro. "Ainda na semana passada tivemos aqui uma velha corcunda, avó de uma outra rapariga, a insultar-nos a todos. " Largou uma baforada de fumo. "Que bruxa, irra! "
Agnès ouviu-o em silêncio, simulou um sorriso ténue e retirou-se. Voltou à sua secretária, mas já não foi capaz de prosseguir o trabalho. Sentia-se cansada e deprimida e desejou ardentemente o reencontro com Afonso, que mais logo, se Deus quisesse, viria das trincheiras.
A Brigada do Minho abandonou as primeiras linhas na noite de 28 de Dezembro, substituída pela 2.a Brigada da 1. a Divisão.
Infantaria 8 recebeu ordem de marcha e partiu de Ferme du Bois II, ao abrigo da escuridão, até Upton Road, virou à direita na Queen's Mary Road, passou por Senechal Farm, em Lacouture, cruzou o canal La Lawe até Vieille Chapelle, atingiu a linha férrea em Zelobes e estacionou em Paradis South, em plena linha das aldeias. Depois de acompanhar os homens até às suas posições de descanso, Afonso foi à brigada levantar a licença que lhe tinha sido prometida por Trindade. Com o documento na mão, seguiu, muito fatigado, para o Hôtel Métropole, em Merville.
Agnès estava havia duas horas sentada no sofá da recepção à sua espera, ansiosa e nervosa, com o coração nas mãos e muitos medos a corroerem-lhe a alma. Teria tudo corrido bem? Estaria ele são e salvo? E se aconteceu algo nesta última semana e ninguém disse nada? Trincou as peles das unhas e sentiu o estômago doer- lhe, a ansiedade que a consumia contrastava com o seu aspecto sofisticado. A francesa embelezara-se com primor para o receber condigna-mente, mostrava-se exuberante num vestido malva de mousseline de soie e perfumada, como sempre, com os deliciosos aromas de L'heure bleue. Quando, por fim, o viu entrar no foyer do hotel, enlameado e de olhar vidrado e fatigado, grandes olheiras escuras a ensombrarem-lhe o rosto sujo, saltou-lhe para os braços, feliz e aliviada, ele voltara vivo e isso era tudo o que interessava. O abraço foi intenso, mas o cheiro nauseabundo exalado pelo capitão levou-a a abreviar a expansividade.
"Estou esfaimado", confessou-lhe o capitão ao ouvido, sentindo-se fraco.
"Sim", sorriu Agnès, fazendo uma careta por causa do odor fedorento que ele libertava. "Mas primeiro um banho. "
Afonso resistiu, queria comer. A francesa ordenou um jantar aos empregados e aproveitou para lhes pedir que primeiro aquecessem água. Uma vez esta entregue no quarto dentro de um grande jarro, ela própria despiu o português e colocou-o na banheira, sentando-o na longa bacia em ferro fundido assente em pés com forma de garra, despejou-lhe a água quente no corpo e esfregou-o com sabão de mel, incluindo na zona genital, o que o despertou do torpor da fadiga, provocando-lhe uma erecção e fazendo-o lançar-lhe um olhar malicioso.
"Agora não", disse Agnès com um sorriso que era, na verdade, uma pro-messa, quem diz "agora não" deixa subentendido que "depois sim", o brando pas maintenant da francesa continha o gérmen de um ardente oui.
Foi nessa mesma noite que, pela primeira vez, Agnès teve a verdadeira noção de que os homens, ao regressarem das primeiras linhas, vêm uns autên-ticos animais. Quando saiu do banho, Afonso agarrou-se a ela, ainda molhado de água, mas o som de alguém a bater na porta obrigou-o a travar o comboio em marcha, o que não foi fácil. Agnès foi à porta e uma empregada entregou-lhe um tabuleiro com o jantar e ficou com a farda imunda do capitão, mais as cuecas e as meias, para lavar, e as botas para engraxar. A refeição era um cassoulet de cordeiro que Afonso, sentado na cama, devorou sofregamente com a ajuda de um pain de campagne, enchendo o pão com as salsichas, o feijão e a carne do cassoulet e regando abundantemente a refeição com um vin ordinaire, um tinto seco satisfatoriamente saboroso. Agnès encontrava-se impressionada com a voracidade com que o português atacava o prato, parecia que não comia havia alguns dias. Enquanto engolia o cassoulet, Afonso não conversava e apenas emitia uns grunhidos de apreciação. Arrotou no final, enfartado, pôs o tabuleiro no chão e, tremendo de antecipação, arrancou apressadamente o vestido de mousseline de Agnès e penetrou-a sem demora, com abandono, com urgência, ela por baixo ainda mal lubrifi cada, ele logo a urrar, depressa o seu corpo acalmou, veio o silêncio, ela deixou-se ficar durante alguns segundos, sentiu a respiração do homem tornar-se profunda, ouviu um ronco, admirou-se, seria o que ela estava a pensar? Puxou-lhe a cabeça e constatou, decepcionada e já sem surpresa, que ele dormia como uma pedra.
Afonso esteve quinze horas mergulhado num sono profundo. Agnès passou toda a manhã só, vendo-o ressonar pesadamente. Por vezes ele agitava-se, conturbado. Falava sozinho e chegou a dar um grito. Nessas alturas a francesa aconchegava-o e beijava-o, sussurrava-lhe "tout va bien, tout va bien" enquanto lhe passava os dedos pelo cabelo castanho e acalmava o sono agitado. Agnès encomendou o almoço e comeu junto à janela, determinada a não perturbar o descanso do soldado, não havia dúvida de que ele tinha vindo exausto, le petit pauvre.
O capitão só acordou a meio da tarde, os olhos inchados de sono e sujos de ramela preta, era a poeira das trincheiras que as pálpebras expulsavam. Foi lavar a cara e atirou-se ao que restava do almoço, um canard d'orange servido com arroz, nada ralado com o facto de o prato estar frio, a isso já ele se habituara havia muito. Com ar descansado, mostrou-se bem mais falador do que na véspera, fazendo perguntas sobre o que se tinha passado durante a semana.
"Esse Natal? "
"Senti-me só, fizeste-me falta", lamentou-se Agnès. "E o teu? "Nem quero falar nisso", indicou Afonso, com um gesto nervoso. "Bombardeámos os boches na véspera de Natal e eles responderam à granada e com tiros de morteiro no dia 25. Morreram três homens e houve uma dezena de feridos. "
"Lamento", balbuciou a francesa, afagando-lhe o cabelo.
"C'est la guerre", comentou o capitão, com um resignado encolher de ombros enquanto engolia mais um pedaço do seu suculento canard.
"Sabes que tiveste um sono muito agitado? "
" Eu?"
"Sim, tu. Lembras-te do que sonhaste? "
"Não", disse ele, trincando o pato. "Não me lembro. " "Foi com a guerra "
"Não me lembro. "
" Costumas sonhar com a guerra?"
Afonso suspirou.
"Sim, isso costumo. Tenho muitos pesadelos "
"Que tipo de pesadelos? "
"Sei lá, sonho com a morte de soldados que conheço, sonho que fico mutilado, sem pernas e sem braços, sonho que me mandam avançar pela terra de ninguém e que não consigo correr, as pernas pesam-me como chumbo, sonho que vou matar um boche e descubro que ele é o meu pai. É esse tipo de sonhos. "
"Hum", murmurou Agnès, pensativa. "Todos os teus sonhos estão relacionados com a guerra? "
"Sim, creio que sim. "
"Todos? " "Todos. "
"Tens de ter cuidado", aconselhou-o. "Esses pesadelos concentrados num único tema indiciam que estás num processo de desenvolver um trauma emocional. Isso pode ter consequências a prazo. "
"Olha lá, estás a fazer-me uma consulta de psicanálise, é? " "Não, Alphonse. Estou a ajudar-te. "
Afonso beijou-a.
"És amorosa", sorriu. "Mas não há nada que eu possa fazer, não posso chegar ao pé do major Montalvão, o meu comandante, e dizer-lhe: ó major, tire-me lá da guerra que eu já ando a ter pesadelos. Isso não é possível. "
"Mas tens de ter cuidado contigo, ouviste? Percebo que não possas impe-dir-te de estares na guerra, é evidente que isso não depende de ti, mas deves saber gerir as tuas emoções. Por exemplo, o processo de colocar em palavras os sentimentos dolorosos contribui para diminuir o sofrimento psíquico. Além do mais, é importante que compreendas o significado dos teus sonhos, dos teus sentimentos e dos teus pensamentos, isso ajuda-te a resolver esses traumas que estás a desenvolver. "
"Sim, senhora doutora", retorquiu, fazendo continência. "Oh, lá estás tu na brincadeira, não se pode falar a sério contigo. "Pronto, pronto", disse, conciliador. "Não te preocupes, meu amor, lembra-te de que eu agora trabalho sobretudo na área administrativa."
Agnès franziu o sobrolho.
"Olha lá, mon mignon, existe mesmo trabalho administrativo nas primeiras linhas? "
"Então não existe? Há imensa papelada de relatórios, abastecimentos, logística, é um inferno de burocracia " Afonso mexeu-se na cama, novamente desconfortável por estar a mentir sobre as suas funções nas trincheiras, e decidiu afastar-se daquele tema o mais depressa possível. "A propósito de burocracia, como é que te deste no quartel-general de St. Venant? "
"Assim assim."
"O Trindade Ranhoso tratou-te bem? "
"Não me queixo", devolveu ela, decidida a não relatar os avanços do tenente em relação a si, não queria ser fonte de atritos entre homens. "Mas acho que vou tentar outra coisa, penso que posso ser mais útil noutro sítio.
"Ah é? ", surpreendeu-se Afonso, as palavras abafadas, tinha a boca cheia porque estava a trincar um pedaço de peito de pato. "Onde? "
"Tenho andado a pensar que é minha obrigação aplicar os conhecimentos que adquiri em medicina. "
"Mas tu não completaste o curso. "
"Eu sei, mas mesmo assim posso ser útil. Como enfermeira por exemplo. "
"Ah bom. Já me esquecia de que querias ser a Florence Nightingale. "
"Desde pequena", assentiu ela. "Além do mais, ficar aqui no hotel é demasiado caro, tenho de encontrar um sítio mais em conta. "
"Queres que eu veja se há vagas em algum hospital? " "Não sejas tonto, mon petit mignon, claro que há vagas. Estamos numa guerra, não te esqueças, há sempre falta de gente. "
"Tens razão", reconheceu Afonso, pensativo, chupando os dentes para extrair um pedaço de carne. "Vou ver o que pode ser mais interessante para ti. Temos os hospitais de sangue, os depósitos de convalescentes, os hospitais da base..."
"Sim, é uma hipótese. Ou posso ir para um hospital francês, ou mesmo para um inglês "
"Podes, embora num português ficássemos mais perto um do outro."
"Sim, mas acho que os portugueses se dão a demasiadas liberdades com as mulheres."
"Por que é que dizes isso? ", perguntou Afonso, suspendendo a garfada seguinte no ar e fixando-a nos olhos, inquisitivo. "Tiveste algum problema?"
"Não", mentiu ela. "Mas ouvi algumas histórias que não me agradaram."
"Pois", riu-se o capitão, retomando o interesse no canard e engolindo o conteúdo do garfo suspenso. "Nós, os portugueses, somos assim, meu amor. Uns garanhões."
Para provar o que dizia, e alegando que era seu dever patriótico de oficial cimentar a fama dos machos portugueses junto da comunidade feminina francesa no campo de batalha do amor, Afonso engoliu apressadamente o que restava do almoço, arrumou o tabuleiro e estendeu- se na cama com a amante. Começou a explorar Agnès com os lábios, com a língua, com os dedos, muito devagar, contornando-lhe as curvas macias, procurando-lhe os pontos eróge-nos, excitando-a, lubrificando-a, arrancou-lhe as roupas com suavidade, peça a peça, as mãos e a boca sempre a explorá-la, foi lento e metódico até entrar dentro dela, depois ganharam velocidade, os dois juntando-se como corpos em fogo, navegando um no outro em vagas turbulentas de paixão, as águas a agitarem-se com fragor, revoltas, imparáveis, até que a tempestade atingiu o auge da fúria e logo amainou, e a francesa, abandonada por entre os lençóis num torpor inebriante de sentimentos e sensações, se declarou satisfeita, tão satisfeita quanto na véspera ficara frustrada. Dormitaram durante alguns minutos, acabando por despertar com vagarosa lentidão da suave letargia em que tinham mergulhado.
"Vamos a Paris?", perguntou-lhe ele finalmente, num murmúrio, quebran-do o doce silêncio que pairava sobre os corpos saciados.
"A Paris? ", soprou Agnès, os olhos cerrados em plácida modorra. "Mas não tens de te apresentar na brigada? "
"Não te lembras de que consegui cinco dias de licença? ", sorriu Afonso com preguiçoso vagar. "Vamos a Paris. "
Ela abriu os olhos, subitamente muito desperta.
"Mas isso é fantástico", exclamou com entusiasmo e excitação, apoiando-se nos cotovelos. "E quando começa a licença? "
"Já começou. "
"Já começou? Então vamos embora", decidiu Agnès, levantando-se da cama com um vigoroso salto. "Vamos, seu preguiçoso, fora da cama, vamos embora!"
Ele ergueu a cabeça, atarantado.
"Agora?"
"Sim, agora. Tens cinco dias de licença e mais de metade de um já passou."
"Mas... "
"Não há mas nem meio mas. Daqui a três horas passa um comboio para Paris e vamos apanhá-lo. Anda, despacha-te. Vite, vite. "
Afonso fez um esforço e arrastou-se com indolência para fora da cama, quase contrariado. Foi barbear-se e pôr a farda lavada, entregue essa manhã pelos serviços de limpeza do hotel, enquanto Agnès escolhia para vestir a imitação de um Poiret, uma elegante túnica negra em estilo quimono com bainha armada, a cintura alta apertada por um lenço de seda rosa e um turbante preto na cabeça. Afonso olhou-a do quarto de banho como quem olha para uma princesa, inatingivelmente bela e insuportavelmente distante, mas ela piscou-lhe o olho verde, brincalhona, e logo a distância se quebrou, o capitão sentindo-se infinitamente afortunado por ser amado pela mulher mais atraente e meiga que alguma vez conhecera.
"Isso que te brilha aí na cara não são olhos", disse-lhe, embevecido. "São esmeraldas"
O tempo escasseava e tiveram de se apressar. Ele calçou as botas, engraxadas com impecável meticulosidade, e ajudou-a a fazer as malas. Meia hora depois abandonaram o quarto. Afonso pagou a conta e o gerente comprometeu-se a guardar o malão maior até ao regresso da senhora, daí a alguns dias. Apanharam um táxi e, com apenas uma mala a servir de bagagem, seguiram para a estação de Aire-sur-la-Lys a tempo do comboio para Paris.
Chegaram essa noite à grande cidade e um táxi levou-os até Les Halles, onde Agnès conhecia um simpático hotel, localizado na Place Sainte-Oppor-tune. O Citron parisiense entrou no largo e imobilizou-se junto ao passeio, Afonso ajudou Agnès a sair do automóvel, pagou ao chauffeur e admirou a praça num longo relance, era um sítio pequeno e tranquilo.
Num canto, quase escondido, erguia-se o Hôtel de Savoie, um edifício estreito de cinco andares, ao lado uma loja a anunciar Vins Liqueurs, com uma carroça estacionada à porta, por cima o Hôtel de Venise, apertado e envelhe-cido, um cartaz a informar que aquele era um Hôtel meublé. O esguio prédio deste hotel encontrava-se encaixado entre o Hôtel de Savoie e um edifício coberto de cartazes publicitários, todos colados de cima a baixo da longa parede caiada. Afonso fez um esforço para ler os anúncios, um fazia propaganda a uma tal de Moussoline des Alpes, outro anunciava novidades nas Galeries Lafayette, um terceiro fazia publicidade aos sensacionais salões de fotografia Dufayel. O capitão pegou na mala e a sua atenção regressou ao Savoie e ao Venise.
"Qual é o nosso?", perguntou, os olhos fixos nos hotéis colados um ao outro.
"É o Savoie."
"Parece-me bem", aprovou Afonso, que já decidira ser este o que tinha melhor aspecto.
O quarto do Savoie, no terceiro andar, era dominado por uma imponente cama Nenúfar, feita essencialmente de mogno e com remates em bronze folheado a ouro, imagens florais inspiravam os engastes e a madeira escura alongava-se nas vigorosas curvas típicas do formato esparguete que caracte-rizava a art nouveau.
Os recém-chegados comeram uma simples baguette com queijo e presunto e beberam um copo de leite antes de mergulharem na esplêndida cama do hotel e se amarem sucessivamente com tal intensidade e desprendimento que, no final da terceira vez, Agnès se interrogou em voz alta, languidamente estendida sobre os lençóis, já exausta, mas saciada e por entre gargalhadas, se não estaria a transformar-se numa debochada.
Paris foi uma descoberta para Afonso. Agnès levou-o aos locais da sua juventude, a universidade, o apartamento de estudante na Rue de Montfaucon, o Champ-de-Mars e a Torre Eiffel, a Brasserie Lipp, onde conhecera Serge, e os cafés Le Procope, Stohrer e Tortini, onde estudara durante horas a fio, mais todo o bairro de St.-Germain-des-Prés e os elegantes edifícios da Sorbonne, numa emocionante viagem ao seu passado estudantil. O curioso é que ela é que conhecia Paris, mas, apesar disso, perdia-se com frequência, e era ele quem acabava por se orientar nas ruas da cidade. Porém, quando também Afonso se perdia, o que era raro, recusava-se teimosamente a pedir indicações a quem quer que fosse, insistindo em que encontraria o caminho por si mesmo.
Foi, aliás, depois de uma dessas teimosias que acabaram acidentalmente por passar pela galeria Kahnweilec, na Rue Vignon, onde Agnès conheceu o cubismo quando era estudante. A galeria estava fechada e um vizinho informou-a, com evidente satisfação, de que herr Kahnweiler se tinha exilado logo que a guerra começara.
"O boche meteu o rabo entre as pernas e foi-se embora, le salaud", exclamou o vizinho, um velho magro e ossudo. "Devia ter culpas no cartório e é certamente por isso que a loja está sequestrada pelas autoridades"
O encontro de Afonso com a grande arte não se produziu assim na singela galeria Kahnweiler, e tentaram então o imponente Museu do Louvre. Mas o enorme palácio encontrava-se igualmente encerrado, as obras de arte tinham sido retiradas para Toulouse logo que a guerra começara, para desgosto de Agnès, que não se conformava com a má sorte.
"É uma pena", lamentou-se, abanando a cabeça. "Queria tanto mostrar-te as grandes obras, a Vénus de Milo, o Gladiador Borghèse, o Código de Hammurabi "
"Deixa lá, fica para a próxima. "
"O Código de Hammurabi é muito importante", insistiu ela. "Serge, que tirou Direito, explicou-me que o Código é a primeira tábua de leis conhecida, regulou a justiça da Babilónia há quase quatro mil anos. Ele foi precedido pelos Códigos de Ur e pelo Código do rei Ishtar, da Suméria e Acádia, mas é o de Hammurabi a única tábua de leis que sobreviveu intacta ao tempo. O Código estabelece umas trezentas leis e está redigido em caracteres cuneiformes cravados numa estela de diorite, uma espécie de pedra escura que foi trazida aqui para o Louvre. É um pouco como a pedra de Rosetta, dos egípcios, que se encontra em Londres. O Código de Hammurabi é algo realmente impressio-nante, único, extraordinário, é mesmo lamentável que não o possamos ver. "
"O que eu queria mesmo era ter a Gioconda à frente " "Oh, isso tem mais fama do que proveito", atalhou Agnès com uma careta de desprezo, decepcio-nada com a atenção desproporcionada que todos teimavam em dar à minúscula pintura de Da Vinci. "A Gioconda é uma coisa pequenininha, insignificante, ridícula até. Não se compara, em importância, ao Código de Hammurabi, acredita em mim. Mas, sabes, no meu tempo de estudante aconteceu uma coisa engraçada" Sorriu. "A Gioconda foi roubada. Foi um grande escândalo na época, com os jornais cheios de acusações de negligência e de incompetência. Demoraram dois anos a localizá-la, tinha sido furtada por um italiano, que levou a pintura para Itália. Quando o quadro voltou para o Louvre, foi montado um enorme dispositivo policial para o proteger, até parecia que a Gioconda era a rainha de Inglaterra "
A vida nocturna de Paris revelou-se surpreendente, sobretudo porque permanecia tão activa em tempo de guerra. Passaram uma noite no Moulin Rouge e foram dar um pé-de-dança ao animado Moulin de la Galette. Afonso derreteu aqui uma parte significativa do seu pé-de-meia, mas não se importou, ganhava 478 francos por mês e raramente os gastava, as trincheiras faziam pouco apelo ao consumo, de modo que ao longo dos meses foi acumulando os salários. A verdade é que a experiência da guerra relativizara-lhe a importância do dinheiro, encarava agora todos aqueles francos como apenas um meio para viver o presente, saborear o momento, fruir a vida e esquecer tudo o resto.
Foi por isso que, na penúltima noite, a do reveillon, decidiu proporcionar a Agnès uma inesquecível festa de passagem do ano. Levou-a às Folies-Bergère, cuja cabeça de cartaz era um espectáculo com duas das grandes estrelas francesas do momento, a bela Mistinguett e o charmoso Maurice Chevalier.
"Chama-se Chevalier mas não é da família", esclareceu Agnès com uma gargalhada, durante o intervalo. "Nós somos Chevallier com dois eles, ele é Chevalier com apenas um ele "
A principal canção do espectáculo era Pas pour moi, que cantaram novamente quando soou a meia-noite. Brindaram a chegada de 1918 com champagne e fizeram juras de amor eterno num longo abraço de ano novo. Após o reveillon, e já terminado o espectáculo e a festa, Agnès saiu das Folies-Bergère agarrada ao braço de Afonso e a trautear a melodia popularizada por Mistinguett e Chevalier:
a des gens veinards
Qui mang'nt des
huitrs et des z'homards
Des pâtés d'joi'
C'est pas pour moi.
Paris permitiu-lhes conhecerem-se melhor. Deram longos passeios pelas margens do Sena, pelas Tulherias e pelos Champs-Elysées, sempre de mão dada e a desafiarem o frio, e no quarto do Savoie aprofundaram a sua intimidade e aprenderam as manhas de cada um, ela cheia de graça feminina, ele repleto de vigor masculino. Para Agnès, Afonso representava um tipo de companheiro que ia de encontro às suas necessidades. Era sensível, atencioso, compreensivo, preocupado com os pequenos pormenores.
Detalhe importante, revelou-se o único homem que ela conhecera que tinha paciência em acompanhá-la nas compras, mostrou mesmo algum prazer quando Agnès o arrastou para as Galeries Lafayette e ali gastou uma tarde inteira.
"Por que não experimentas este?", perguntou-lhe ele, exibindo um vestido ostentado por um manequim.
Agnès observou o traje, era um vestido creme, longo e apertado nas ancas, com uma saia sobre a saia principal, uma espécie de túnica que ficava abaixo do joelho. Em vez das habituais golas altas, porém, tinha o pescoço aberto em V, pormenor que de imediato chamou a atenção da francesa.
"Oh la la, vais ser excomungado", comentou ela com um sorriso malicioso.
"Eu? Porquê? "
"Não te faças sonso, meu maroto", riu-se. "Então não vês que o vestido se abre à frente, por baixo do pescoço? "
Afonso observou com atenção.
"Ah, pois é!", exclamou. Olhou para ela. "Então é melhor não o compra-res, é um bocado atrevido"
"Oh, isto para nós já não é nada de especial. Mas, há uns três anos, a Igreja denunciou estes vestidos por serem escandalosos e indecentes e até houve médicos que disseram que eles constituíam uma ameaça à saúde pública, vê lá tu."
"Pois, pois", assentiu Afonso. Virou-se imediatamente para outro vestido, mais conservador, procurando desinteressá-la do anterior. "Olha, este também é bonito. "
Para além de a ajudar a escolher as roupas, os chapéus e os sapatos, dando opiniões e resistindo estoicamente às suas indecisões, Afonso chegou até a arrastá-la para outras áreas das galerias que nunca visitara com atenção. O português sentia-se fascinado com aquele gigantesco estabelecimento, nunca vira coisa igual. Aproveitou para adquirir novidades para si próprio, comprou produtos de uso corrente, como uma lata de Crème Eclipse para polir botas, o creme Dianoir para sapatos e um sabão de barbear Erasmic. Além disso, presen-teou Agnès com o último grito da moda parisiense, o badalado Chypre, miracu-loso perfume acabado de colocar no mercado e que levava milhares de france-sas à loucura com os seus deliciosos aromas de bergamota, jasmim e musgo de cedro, combinados com um leve tom de feno libertado pela cumarina.
"Estás a insinuar que L'heure bleue não te agrada?", perguntou a francesa, mirando o delicado frasco de Chypre.
"O que é isso? "
"L'heure bleue é o meu perfume. "
"Oh não, o teu perfume é fantástico", assegurou-lhe Afonso. Cheirou o frasco que ela segurava nas mãos e cerrou os olhos, deliciado com a fragrância. "Mas deves acompanhar a moda n'est pas? "
Foi fora das Galeries Lafayette, todavia, que Afonso efectuou as duas aquisições que o deixaram mais entusiasmado. Uma foi uma grande inovação importada do outro lado do Atlântico, a pasta de dentes Colgates Ribbon Dental Cream, que os dough boys, como eram conhecidos os soldados america-nos, tinham trazido para Paris. Como toda a gente, Afonso estava habituado ao pó para dentes que normalmente comprava em potes de faiança, e achou graça quando descobriu, num quiosque de St. -Germain-des-Prés, a caixa vermelha de papelão a anunciar que o pó dos dentes vinha agora em creme, contido num tubo maleável, as instruções na caixa a mostrarem que bastava dobrar o tubo para a pasta ir saindo.
A outra compra que o empolgou foi a que fez numa pequena loja do Trocadéro. Iam os dois a passar em direcção à Torre Eiffel quando Afonso notou uma pequena máquina fotográfica exposta na montra do estabele-cimento.
"Olha esta câmara", apontou. "Os bifes têm muitas iguais nas trincheiras."
Era uma vest Pocket Kodak. Depois de a namorar com os olhos, Afonso entrou na loja e perguntou pelo preço.
"C'est combien?"
"São sessenta e cinco francos, msieur", disse o comerciante. O vendedor mostrou-lhe como podia prender o estojo da máquina ao cinto, um pormenor de utilidade prática que fez a diferença na decisão de Afonso. Tirou a carteira, contou as notas e entregou-as ao homem. O resto da tarde foi passado em brincadeiras no Champ-de-Mars, ambos divertindo-se como garotos, rolando na relva, correndo por entre os arbustos, rindo e gritando, a minúscula máquina fotográfica a disparar clichet atrás de clichet para registar a felicidade do casal de namorados.
Nem tudo era perfeito, claro. Agnès agastava-se um pouco com a forma como o português punha tudo em pantanas, as roupas sempre desarrumadas no quarto de dormir, negligentemente amontoadas num canto, e o quarto de banho transformado num verdadeiro campo de batalha. Sempre que ia tomar banho, o capitão deixava a banheira repleta de pelos e o soalho inundado de água, era um verdadeiro selvagem. Cantava alto e desafinado na banheira, mas mantinha um desconcertante pudor sempre que ela entrava no quarto de banho. Cobria-se com uma toalha, envergonhado e tímido, o que a fazia rir.
"Olha lá, achas que nunca vi isso, é? ", perguntou-lhe ela certa vez, provocando-o ao entrar no cabinet de toilette para ir buscar uma escova. Divertia-se por vê-lo com tantos pudores. "Ora mostra lá. "
Um rubor embaraçado encheu-lhe a face.
"Oh, não sejas assim", resmungou Afonso, encolhido na toalha. "Despa-cha-te e deixa-me à vontade, vá. "
"Mon Dieu, uma vez seminarista, sempre seminarista!", exclamou Agnès, rolando os olhos numa careta trocista. Pegou na escova, deu meia-volta e dirigiu-se à porta para sair. "Quem te visse nunca diria que és um garanhão na cama." Riu-se e espreitou pela frincha antes de fechar a porta. "Até já, forni-cador púdico"
Noutros instantes era ele que a provocava. Evitava as vulgaridades, preferia floreados mais românticos, com um toque platónico e eloquente.
"Mon petit choux", disse-lhe numa ocasião, preparavam-se para sair. "És uma santa, és bela como uma flor de Primavera. "
Era um piropo banal, um pouco fatela até, mas Agnès sentiu-se agradada.
"Tão querido", agradeceu com ar meigo, devolvendo-lhe o cumprimento nos termos que sabia serem irresistíveis para o ego de qualquer homem. "Pois tu, mon mignon, o teu maior atributo é essa potência incansável. " Revirou os olhos e fez um ar cocotte. "Oh la la."
"Achas?", questionou ele com falsa modéstia, baixando momentanea-mente os olhos, algo envergonhado.
"Ah oui!"
Sempre que ela o testava, perguntando, por exemplo, se tinha o rabo gordo ou os seios demasiado pequenos, coisas que sabia não serem verdadeiras, ele dava sempre a resposta certa e insistia em que Agnès era linda, perfeita, suprema, única.
Quando se aconchegavam na cama, depois de se saciarem no amor e antes de repousarem no sono, Afonso segredava-lhe palavras doces ao ouvido, enal-tecia-lhe a beleza e a generosidade, soprava-lhe ternuras meigas e acariciava-a com um toque suave. Abraçados no quarto do Savoie e à sombra da noite, o capitão jurou-lhe que iria fugir das trincheiras só para lhe cantar uma serenata à chuva. Embalava- a num turturilhar de amor com promessas doces e sussurros melosos, dizia-lhe que a amava, que a adorava, que a idolatrava, que ela era a melhor coisa que lhe tinha acontecido, que iriam envelhecer juntos, que Agnès era uma deusa, a mulher dos seus sonhos. Ela era uma rosa, uma jóia, um raio de sol, um aroma florido, uma ária sublime, uma brisa pura da Primavera. A francesa cerrava os olhos e bebia com avidez aquelas palavras encantadas que a faziam sentir-se tão especial, tão única, bebia-as até ficar tonta, até se sentir embriagada de amor e inebriada de paixão, até achar que, na verdade, Afonso não tinha comparação, era o melhor dos homens.
Mas a licença depressa se esgotou no fulgor daquele intenso e inesquecível passeio por Paris, e o momento do regresso aproximou-se, implacável, inexorá-vel, como uma nuvem negra correndo com rápida e traiçoeira lentidão em direcção ao Sol, correndo até o ocultar e sobre os amantes lançar a sua sinistra e triste sombra, arrancando-os da sobressaltada felicidade em que viviam mergu-lhados e arrastando-os penosamente para o pesadelo da assustadora fornalha em que se transformara a Flandres. Agnès e Afonso apanharam o comboio de regresso a Aire-sur-la-Lys como escravos resignados ao seu amaldiçoado desti-no, a sombria nuvem solitária que os perseguia sempre a crescer, a alargar, a encher o horizonte, ameaçadora e sufocante, cinzenta e carregada, até se tornar, perto do indesejado destino, uma vasta e tenebrosa tempestade de guerra.
Afonso não deixava de se sentir surpreendido com a engenhosa capaci-dade de camuflagem da artilharia portuguesa. Os canhões escondiam-se em buracos espalhados pelos campos atrás do seu sector, e a dissimulação era tão eficaz que havia já dois meses que o inimigo não conseguia detectar e atingir uma única peça do CEP Infantaria 8 encontrava-se de apoio à linha das aldeias no sector de Laventie, por detrás de Fauquissart, e o capitão aproveitou a manhã tranquila para ir admirar um canhão Schneider-Canet de 7, 5 centíme-tros que tinha sido ocultado perto do seu posto, atrás da Rue de Paradis. A peça de artilharia permanecia disfarçada dentro de um abrigo a que os soldados chamavam Elefante, um buraco protegido por chapas de ferro onduladas e espessas, de forma cilíndrica, ligadas por cantoneiras e tapadas por terra e vegetação, a boca do buraco parecendo um curto túnel que emergia do solo.
"Macacos me mordam se os boches conseguem topar esta bisarma", murmurou Afonso para si mesmo, contemplando com admiração aquele trabalho de perfeita camuflagem.
Sentiu passos à direita e viu Joaquim aproximar-se em corrida com uma folha de papel na mão esquerda, a Lee- Enfield a balouçar a tiracolo. O capitão fixou os olhos na folha e reconheceu o Folhetim de Guerra, um impresso que os alemães atiravam regularmente para as linhas portuguesas em tiro de morteiro e que caía do lado de cá em pacotes inseridos nos projécteis que a rapaziada apelidava de ananazes.
"Então, Joaquim?", saudou Afonso. "Trazes aí o Diário de Noticias de Berlim?"
"Sim, meu capitão", confirmou a ordenança, ofegante, estendendo o impresso. "Eles atiraram isto esta manhã. "
"Vamos lá ver se é melhor do que o almocreve das petas", comentou o capitão com ironia, referindo-se à forma como era conhecido o boletim diário das operações emitido pelo CEP. Pegou na folha, o título Folhetim de Guerra bem visível no topo, em baixo todo o texto redigido em português. "Ora deixa cá ver isto. "
Corria o dia 25 de Janeiro de 1918 e a folha assinalava a data de 30 de Dezembro. Era antiga, mas trazia novidades. O primeiro título anunciava sensacionalmente que havia uma "demobilização das tropas em Portugal" e que a excepção era apenas das "tropas portuguezas que se acham nos diversos theatros de guerra". O capitão estudou o estilo de escrita, o que fazia sempre que punha os olhos num exemplar daqueles, e reforçou a sua convicção de que o texto tinha sido redigido por alguém que vivera em Portugal. Ou era um português ou então tratava-se de um alemão que conhecia profundamente a língua portuguesa. O assunto era muito discutido entre os oficiais, divididos entre as duas hipóteses. Afonso achava que se tratava de um compatriota, provavelmente um prisioneiro de guerra, mas também podia ser um monárquico, era conhecida a simpatia que muitos monárquicos nutriam pela Alemanha. Sem chegar a grandes conclusões naquele instante, mas sempre atento aos detalhes que lhe pudessem dar indicações, o capitão passou à segunda notícia, a qual, sob o título de "Portugal e os Alliados", dava nota da existência de más relações entre o novo governo de Sidónio Paes e os executivos de Londres e Paris, indicando que "a Inglaterra se oppõe com todos os meios á tudo quanto o novo governo resolver". A suspeita de que o autor do texto era um monárquico português saiu enfraquecida da leitura de outro trecho desta mesma notícia, designadamente a referência à restauração da monarquia, projecto que, segundo a folha alemã, "nem os próprios monarchistas portugue-zes apoiarião, sabendo, como consta, que o jovem rei Dom Manuel se acha completamente nas mãos dos Inglezes e avassallado por elles". Este ambíguo trecho indiciava que o autor do texto poderia não ser um monárquico. É certo que muitos monárquicos simpatizavam com os alemães e mostravam-se críticos para com o rei no exílio, mas acusá-lo de ser um vassalo dos ingleses parecia ser forte de mais. Ora, se o autor do panfleto não era um monárquico, reflectiu Afonso, então só poderia tratar-se de um prisioneiro, certamente um oficial. Meditou um breve instante sobre o que levaria um militar a trair daquela forma o país e, percebendo que não tinha resposta porque não conhecia as circunstâncias em que o traidor se encontrava, voltou à folha. A terceira notícia, "um successo allemão na África", referia um combate em Moçambique entre forças alemãs e portuguesas, e a última informação do Folhetim de Guerra era a de que tinham sido presos em Lisboa dois antigos ministros portugueses da Guerra, o general Barreto e o coronel Pereira.
"E esta? ", admirou-se Afonso, depois de soltar um longo assobio logo que leu os nomes. "O Pereira foi de cana. Sim senhor, isto está bonito."
O capitão deu meia-volta e seguiu em direcção ao posto com o impresso na mão, havia ali suficiente informação para alimentar uma manhã de conversa com o Cenoura ou mesmo com Tim. Ninguém ignorava que aquele era material de propaganda, mas o que é certo é que tais "notícias" tinham geralmente algum fundamento, o problema era analisar os textos e saber interpretá-los, procurar a verdade por detrás da retórica. Todos sabiam que existiam notícias que o CEP jamais deixava transpirar e que a melhor maneira de a elas ter acesso era através daqueles boletins de propaganda inimiga. Entre os militares prevalecia a convicção de que a verdade se situava algures entre as duas versões, a dificuldade era localizá-la com exactidão na imensa distância que separava ambas as propagandas.
Absorto nos seus pensamentos, o oficial nem deu pela chegada do capitão Resende, o lisboeta-que-era-gordo-e-emagreceu, a quem Afonso e Mascarenhas tinham oferecido dois meses antes uma memorável recepção ao caloiro nas trincheiras.
"Ora viva, capitão Brandão", saudou Resende, muito sorridente, proveniente da direcção de Laventie.
Ah, olá, capitão Resende, devolveu Afonso, como se estivesse a despertar.
"Olá e adeus, digo eu. "
"Ah sim? Então adeus, adeus. "
"Ó homem, quando digo adeus é mesmo adeus. Vou-me embora. "
"Ah é? Para onde? Vai a Paris?"
"Qual Paris, qual carapuça! ", riu-se Resende, realmente bem- disposto. "Vou para Lisboa, caraças, vou para casa. " Afonso abrandou, admirado com tal revelação.
" Para casa? Como?"
"De comboio, como é que havia de ser? De comboio, porra. " "Mas o senhor acabou de chegar! A que propósito é que vai para casa? Que eu saiba, a guerra ainda não acabou. "
"Eu quero lá saber da guerra! Pode não ter acabado para si, capitão Brandão, mas olhe que acabou para mim. Vou-me embora e cago nesta merda toda! "
Afonso estacou, ainda indeciso quanto ao significado daquelas palavras.
"Desculpe, capitão, mas não estou a entender. Quem é que está a autorizar a sua partida? "
"O Sidónio, caraças, quem é que havia de ser? "
" O Sidónio Paes?"
Sim, claro. Vou eu, vai o Almeida, o Cabral, o Carriço e mais uma data de malta que se dava com o Sidónio. Vamos fazer umas comissões em Lisboa, coisas importantes, embora não sejam de natureza militar. De qualquer modo, já estava na hora de o país reconhecer o nosso valor. "
Tudo se tornou agora claro para Afonso. Um rubor de irritação encheu-lhe o rosto, sobretudo ao ouvir o nome do capitão Cabral, aquele que em Tancos o tentou aliciar a juntar- se ao general Machado Santos para se revoltar contra os embarques para França. Juntamente com os outros oficiais sediciosos, Cabral foi detido e enviado à força para a Flandres e era agora premiado com um regresso antecipado a casa. Baixando a voz e cerrando as sobrancelhas, Afonso formulou a pergunta seguinte num tom acusatório.
"O senhor meteu uma cunha para sair daqui? "
"Ó capitão!", devolveu o outro com ar escandalizado, ofendido até. "Eu não fujo das minhas responsabilidades. Vossemecê não me conhece, mas eu sou um homem de bem, cumpridor dos meus deveres, fiel à pátria e à República. É com relutância, digo-lhe sinceramente, é com muita relutância que eu regresso a Portugal. Sabe, a verdade é que eu nunca quis ir, mas o Sidónio..." Fez um gesto vago, como se procurasse a palavra adequada. "Olhe, o Sidónio é um tipo formidável, um gajo às direitas, amigo do seu amigo. Ele mandou dizer que precisava de mim. Que ele precisava, não. Que a pátria precisava de mim. Ainda resisti, garanto-lhe, meu caro capitão Brandão, ainda resisti. Mas aquele manganão é tramado, tem um poder de persuasão que só visto, aquilo é uma força, um arrebatamento. De modo que, ai de mim! deixei-me convencer. Parto de coração destroçado, vossemecê pode crer, pode crer, mas parto com o sentimento de dever cumprido. E, se a pátria precisa de mim em Lisboa, o que quer? Quem sou eu para dizer o contrário? De modo que, meu caro capitão Brandão, eu e mais alguns amigos lá recebemos guia de marcha e vamos agora regressar. "
"E todos os oficiais que se vão embora consigo, como o capitão Cabral e os outros, estão também a responder a um apelo da pátria?"
"Sabe, eu quero crer que sim", disse o capitão Resende, assumindo uma postura de confidência. "Mas suspeito de que haja alguns casos, esses sim, de cunha. " Cerrou os olhos e fez um olhar entendido. "Cunha, digo-lhe eu. "
Afonso ficou a analisá-lo, agastado. Estaria o homem a fazer pouco de si? Era evidente que sim, aquela conversa não era normal, a postura um tudo-nada teatral de mais, mas decidiu não dar parte de fraco.
"Pois sim, capitão Resende, então vá lá prestar o seu serviço à pátria", disse, em tom cordial, antes de despejar a farpa. "Sempre é mais útil estar lá corajosamente sentado num gabinete do que aqui a esconder-se nas trinchas. Ao menos em Lisboa não tem que andar sempre a fugir do inimigo. "
O capitão Resende fulminou-o com o olhar, despeitado e ofendido, virou-lhe as costas e seguiu estrada fora em passo rápido e modos bruscos. Afonso ficou ali parado, no meio da lama, em silêncio, a vê-lo partir, um peso na alma por assistir àquele abandono, sempre era mais um oficial que se ia embora, em boa verdade aquilo só tinha um nome, era uma deserção, aqueles oficiais serviam-se das suas relações com o novo regime e fugiam, deixavam para trás os seus homens, entregues a si mesmos, nas mãos do destino.
Baltazar Velho fixou os olhos no documento e leu-o com esforço, letra a letra, sílaba a sílaba, palavra a palavra. O serrano era o único do grupo que sabia ler, e mesmo assim mal, mas ninguém se podia queixar, o pároco de Pitões das Júnias dera o seu melhor quando o Velho era novo, mais não se podia exigir das poucas aulas que o jovem padre Augusto, com a melhor das boas vontades, ministrara muitos anos antes ao pequeno Baltazar, durante as breves lições de catequese nas frias manhãs de domingo. Baltazar era então um miserável pastorinho que vinha de um lugar ermo perdido lá na serra do Gerês, algures entre Tourém e Outeiro, mais habituado ao balir das ovelhas e ao pipiar das perdizes do que ao estranho latim das missas ou aos sons inteligíveis que as folhas escritas libertavam. Foi difícil, mas a catequese entreabriu-lhe as portas da literacia.
Nesse princípio de tarde, num buraco triste e lamacento da Flandres, Baltazar recompensava o pároco de Pitões com uma leitura gaguejante. Mas mesmo hesitante, cheio de falhas e de dúvidas, somando as letras com dificul-dade para reproduzir sons e formar sentidos, o Velho lia o suficiente para ser capaz de extrair daquele texto rebuscado a informação que todos ansiosamente aguardavam.
"Então, Baltazar?", impacientou-se Vicente Manápulas. "Iss'é p'ra hoje ou p'rá'manhã? "
"Calma, Manápulas, calma lá", disse o Velho, levantando a mão. Arrastou-se mais uns instantes até perceber o significado do que tinha em frente, um telegrama do documento assinado por Sidónio Paes apenas quatro dias antes. "Então é assim. Aqui diz que a malta tem direito à primeira licença cento e vinte dias depois de chegar. "
"Depois de chegar às trinchas? "
Baltazar releu o texto, titubeante. Parou ali. Hesitou, voltou a arrancar e descobriu.
"Não. Depois de chegar a França. "
"Quatro meses? ", exclamou Matias Grande, após fazer as contas. "Já passou, já passou. "
"Pois, os quatro meses já lá vão", reforçou Vicente, coçando o couro cabeludo irritado pelos piolhos. "E que mais? "
"Calma", pediu Baltazar, sempre concentrado no documento. Passou os olhos pelas letras, fungou, murmurou sons imperceptíveis e, após mais uma eternidade a decifrar o texto, captou finalmente o sentido. "Diz aqui que temos direito a trinta dias de licença. "
Um murmúrio de satisfação encheu o abrigo, todos se entreolharam e sorriram, já se imaginavam no Minho, com a família, a ajudar na lavoura, a banharem-se no Cávado, no Este, no Lima, a dançar o vira, a cavar a terra, a apanhar a uva, a encher os espigueiros, a comer um cozido regado com um verde de Melgaço, mas que grande naça iriam apanhar na primeira noite entre os seus.
"Um mês", repetiu Vicente, sonhador.
"Ah se eu me apanho nu Minho, a cheirar os carvalhos e os teixos do Gerês, ou a respirar aquele ar das brandas, lá no alto da serra, nunca mais me põem os olhos em cima", sentenciou Baltazar, cerrando as pálpebras com sentida nostalgia. "Que categoria. Escondo-me lá no mosteiro de Pitões e a tropa que se pine. "
"És tu e eu", disse Vicente, imaginando-se na sua carpintaria de Barcelos e nos passeios por entre os seixos do Cávado. "Vou e não volto, vocês vão ver. "
"Eu cá só quero é a sopa seca que a minha mãe faz lá em casa", desabafou Matias, sentindo-se salivar. "Hum, só de pensar que vou emalar o salpicão, o presunto, a vitela, a galinha e a couve lombarda que ela mistura na sopa! " Suspiro. "Só vos digo, um pitéu. Depois molho um bolacho na sopa. " Passou a mão pelo estômago vazio. "Ah! Vou manducar até ficar inçado que nem um marrano. "
"A minha patroa também faz uma sopa seca levada da breca", comentou Baltazar, que não perdia uma oportunidade para falar de comida. "Mas o melhor é o coração de porco com vinho tinto, cortado em cubos e servido com batatas e vagens cozidas. Ah, rapazes, vocês haviam de ver! Aquilo é que é um prato de se lhe tirar o chapéu! Uma categoria, só vos digo. Uma categoria! "E eu já me estou a imaginar a dar uma pinadela na primeira sansardoninha que me aparecer pela frente", exclamou Abel Lingrinhas, que até aí se mantivera timidamente calado, como era seu feitio. "Começo assim como quem não quer a coisa, com uma bocaringa aqui e outra ali, e depois pino-a toda, os dois agafanhados num espigueiro. No estado em que me encontro, até um almazem marchava. "
Todos fizeram sinal de aprovação. Sentiam o mesmo, sabiam bem o que cada um queria dizer, o ar da terra, a comida de casa e uma boa minhota era tudo o que desejavam da vida, eram afinal homens simples à procura de coisas simples.
"Agora o que é que temos de fazer? ", perguntou Matias, ainda inebriado com os apetites a satisfazer quando regressasse a Palmeira.
"Apresentar o pedido de licença, acho eu", retorquiu Baltazar, encolhendo os ombros e dobrando o documento com as informações sobre o novo sistema de licenças acabado de aprovar pelo governo de Sidónio Paes. "Vamos ter com os cachapins da brigada e metemos os papéis. "
"Mas isso já nós fizemos um porradal de vezes", queixou-se Vicente. "E não deu em nada. "
Um zumbido familiar encheu o ar, em crescendo, e todos se encostaram às paredes do abrigo, quase instintivamente. A minenwerfer explodiu lá fora, o chão tremelicou, as paredes abanaram e libertaram algum pó, mas aguentaram. Depois ouviram um som diferente, como o gorgolejar de um peru, seguido de explosões surdas, com um pop seco, semelhante ao barulho de uma rolha a saltar de uma garrafa de champagne. Depois, mais nada. Os soldados aguardaram um instante, certificaram-se de que não havia consequências de maior e voltaram a sua atenção ao assunto que tinham entre mãos como se não tivesse havido interrupção.
"Com'é qu'a malta sabe que não nos tão outra vez a passar a perna? ", retomou Vicente, o coração carregado de suspeitas quanto ao novo sistema de licenças agora aprovado por Sidónio Paes. "Já não é a primeira vez qu'esses cabrões nos enganam. Ou vocês não se lembram das promessas qu'eles nos fizeram nos últimos meses? E inda cá tamos... "
O grupo despertou do seu torpor e a desconfiança instalou-se, insidiosa.
"Se calhar, tens razão", meditou Baltazar. "Quando a esmola é grande, o pobre desconfia... "
"Querem saber a minha opinião? ", perguntou Matias. O cabo raramente tecia comentários sobre este tema, mas havia já algum tempo que achava terem sido ultrapassados todos os limites. "Pois eu penso que, bem espremidas as coisas, é tudo conversa, tudo conversa.
"S'é conversa, olha qu'é só p'r'alguns", cortou Vicente, levantando o indicador. "Aos oficiais já tão a ser dadas licenças, pois claro. Suas senhorias tão sempr'em primeiro. "
"É", confirmou Baltazar. "Há uns quantos que foram passar férias a Portugal, já lá vai tempo, e nunca mais deram notícias. "
"Até hoje", comentou Vicente, que nunca deixava escapar uma observação sobre o comportamento dos oficiais.
"Chama-lhes burros", considerou Baltazar. "Se vocês fossem de licença, voltavam? "
"Só s'eu fosse parvo", admitiu Vicente, abanando a cabeça. "Mas nós já'qui tamos há mais de seis meses seguidos, já tivemos a nossa conta, n'é? Nem os bifes s'aguentam tanto tempo na frente, não viram agor'os camones da esquer-da, em Fleurbaix, que já foram retirados p'ra descansar? E nós ind'aqui. Eles que mandem outros cá p'ró açougue."
"Além do mais", meditou Matias, "essa merda dos trinta dias de licença nem é novidade, já antes do Sidónio nos disseram o mesmo e a verdade é que a malta não viu nada. "
O ambiente entre os homens do CEP não era dos melhores e deteriorava- se de dia para dia, o cansaço desgastava-os e o exemplo que vinha de cima não era encorajador. Os lãzudos viam os aliados a rodarem regularmente as tropas, ainda dias antes a 38.a Divisão britânica, a vizinha da esquerda do CEP, tinha sido substituída pela 12.a Divisão após ter permanecido apenas três meses na linha. Matias podia ser um homem respeitador da hierarquia, mas não era tolo e tirou as suas conclusões quando começou a ver os próprios oficiais portugue-ses a passarem à frente dos soldados. A verdade é que todos gozavam licenças que, na prática, estavam vedadas às praças. O sentimento de injustiça, que crescia havia algum tempo entre os soldados, começou a afectar profunda mente o estado de espírito nas trincheiras. Onde alguns instantes antes predominava a euforia, sucedeu-se a angústia, a incerteza, a dúvida.
"Os tipos em Portugal tão-s'a a cagar p'ra nós, não percebes?, exclamou Vicente, gesticulando com profusão, frustrado e zangado, ansiava desesperada-mente por regressar a casa. "O Sidónio fez o golp'e abandonou-nos, não mand'ós reforços, não mand'á terceira divisão prometida pelo Afonso Cost'ós camones. "Mas, afinal, com quem é que a Alemanha está em guerra, hã? ", quis saber Baltazar, erguendo a voz. "Está em guerra com
Portugal ou apenas com o CEP? Hã? Está em guerra com quem? É que parece que Portugal não tem nada a ver com esta merda, porra, parece que a guerra é só connosco!
"Os boches é que têm razão", declarou Vicente, abanando a cabeça, desanimado. "Os políticos tramaram-nos e tão agor'a lavar as mãos. "
Vicente referia-se aos folhetos lançados pelos alemães, informando os homens do CEP sobre a nova política de guerra de Sidónio Paes. O Folhetim de Guerra distribuído pelos morteiros inimigos sublinhava nas suas sucessivas edições que Sidónio, antigo ministro plenipotenciário de Portugal em Berlim, era um germanófilo que sempre se opusera à entrada de Portugal no conflito mundial e que, após derrubar o governo de Afonso Costa, tinha travado o projecto de constituição de uma terceira divisão para o Corpo Expedicionário Português. Na versão alemã, o novo governo decidira deixar as forças na Flandres entregues a si mesmas e o melhor era mesmo os soldados renderem- se.
"Vocês não viram o que se passou com o major Gomes?" atalhou Baltazar. "Pediu licença para ir para Portugal, passou à frente do pessoal e partiu. Depois, alegou doença e por lá ficou."
"E o coronel Antunes?", acrescentou Vicente. "Disseram-me qu'o tipo meteu os papéis em Aveiro a jurar que tava com problemas de saúde."
"Problemas de saúde? ", questionou Matias com um sorriso irónico, vol-tando a quebrar o seu silêncio. "Deve ser diarreia. Então não se lembram de que o homem se borrou todo naquela noite em que as marmitas quase atingiram o abrigo onde ele estava escondido, lá em Marmousse? "
Riram-se todos, deliciados, a relembrarem a cena então relatada pela ordenança do coronel, o Alfredo, que assistira a tudo.
"Categoria", exclamou Baltazar, dando uma palmada na coxa. "S'o gaj'é d'Aveiro é porqu'é cagaréu", atalhou Vicente, sempre ácido nos seus comen-tários em relação aos oficiais. "Com'é cagaréu, n'hora do regresso também se deve ter cagado, coitado. "
Vários entre eles já tinham passado pelo mesmo, defecaram nas calças uma ou duas vezes durante um bombardeamento, sobretudo depois das primeiras mortes, no início, quando o som da tempestade de fogo a desabar em torno de si lhes gelava o sangue e libertava os intestinos, problema que, com o tempo e a experiência, aprenderam a controlar. Defecar nas calças não era, consequentemente, algo vergonhoso entre as praças, mas apenas um sinal de inexperiência. No grupo, aquele passou a ser considerado um fenómeno natural, afinal de contas eles eram lãzudos, viviam na lama como toupeiras, partilhavam o rancho com ratazanas e o sono com piolhos e passavam os dias a fintarem a morte, a fugirem aos snipers, a esconderem-se das minenwerfers. Acima de tudo, eram a carne que os canhões esquartejavam. Mas o coronel Antunes era diferente, ele era um cachapim, como quase todos os altos oficiais estava habituado a dar ordens para outros morrerem e a pregar sobre o sacrifício que terceiros deveriam fazer pela pátria, mas desconhecia o que era sofrer de medo, aquele medo da morte que subia pelas pernas fracas e secava a garganta, aquele horror paralisante que se espalhava pelo corpo e penetrava no coração, a tempestade de granadas a explodirem na alma e a despedaçarem a vontade. Era por isso que, quando um cachapim se borrava, todo o lãzudo gozava.
Matias recostou-se no seu canto.
"É tudo verdade", assentiu o cabo, mirando as unhas sujas. "Mas a maior verdade é que o coronel Antunes passeia-se agora em Portugal no bem-bom e nós ainda aqui estamos. "
Os sorrisos desfizeram-se e todos se calaram, pensativos e resignados. Foi nessa altura que Baltazar começou a farejar o ar com inspirações curtas e fortes, como um perdigueiro.
"Vocês não sentem este cheiro a alho? "
"Já tás com larica, Velho? ", perguntou Vicente.
"Por acaso estou. "
"Mas comemos há uma hora... "
"O que é que queres? Tenho fome e este cheirinho não ajuda. " "Tens aqui uma lata de corned-beef. "
"Qual corno-bife qual quê. Um bifinho frito em vinha d'alhos é que vinha mesmo a calhar. "
E espirrou.
O capitão Afonso Brandão abriu a cigarreira prateada que Agnès lhe tinha oferecido depois do seu primeiro encontro amoroso, tirou um Kiamil, acendeu-o e ficou de olhar perdido no horizonte.
"Já viste isto, Cenoura? ", desabafou, sem se voltar para o amigo. "Já metem cunhas para saírem daqui. Cunhas. "
O tenente Pinto passou a mão pelo bigode ruivo e sorriu.
"És mesmo ingénuo, Afonso. Do que é que estavas tu à espera?"
"Até o capitão Cabral! "
"Quem me dera ir com ele... "
Afonso largou uma baforada do seu Kiamil e baixou a cabeça. "Sabes o que é que eu não percebo? "
" O quê?"
"É que não haja uma decisão. "
" Que decisão?"
"Uma decisão qualquer, caraças, mas uma decisão". Olhou para o amigo. "Se o Sidónio acha que é de sair da guerra, então que assuma e vamo-nos todos embora, não estamos cá a fazer nada. Se o Sidónio acha que é de ficar, então que nus envie reforços, que crie as condições para podermos combater com eficácia. Agora, isto? Isto não, isto não é nada, isto é não querer decidir, isto é fugir às responsabilidades. "
Pinto suspirou.
"Ai, Afonso, Afonso, parece que nasceste ontem, homem. Há quanto tempo te ando eu a dizer que nos metemos numa embrulhada, que não estamos aqui a fazer nada? Andamos nós aos tiros e aqueles gajos a gozarem com a malta..."
"A questão não é essa, Cenoura", disse Afonso, dando meia-volta para entrar no posto, fazia demasiado frio cá fora. "A questão é que andamos aos ziguezagues, ora estamos empenhados, ora não estamos, ora estamos outra vez... ", desabafou, gesticulando imenso, irritado, o tenente Pinto a segui-lo para dentro do abrigo. "Assim ninguém se entende. Por exemplo, olha para a palhaçada do sistema de licenças. "
"O que é que tem? "
O capitão sentou-se pesadamente no caixote de munições que servia de banco e o tenente acomodou-se no catre de arame.
"O que é que tem? O que tem é que é uma vergonha pegada. Primeiro, eram quinze dias. Depois, passou para vinte. A seguir, para trinta. Feitas as contas, estamos em zero porque só os oficiais é que as gozam. "
"Ainda te queixas? Que eu saiba, ainda noutro dia foste gozar uma licença a Paris... "
"Mas o problema, Cenoura, não é os oficiais gozarem licenças, isso é normal e merecido. O problema é que as praças não gozam a porra de licenças nenhumas, e isso é que é desmoralizante para os homens. "
"Estás preocupado com eles? "
"Claro que estou, caraças, e tu também devias estar. Como é que nós, os oficiais, vamos comandar soldados que se sentem gozados, esquecidos e humilhados? Que moral temos nós para os mandarmos para o combate quando, na hora das licenças, lhes passamos todos à frente? O que acharão eles destes oficiais que fazem uns arranjinhos para se porem na alheta e que, uma vez em Portugal, vão a uma junta médica efectuada por uns amigalhaços quaisquer e arranjam mil e uma desculpas para não voltarem para cá? É evidente que os magalas podem ser analfabetos, mas não são totalmente estúpidos e percebem muito bem que são os únicos que não arranjam maneira de saírem daqui. "
"Problema deles. "
Afonso atirou o Kiamil esgotado para o chão lamacento do posto e esmagou a beata com a bota, certificando-se de que o lume se extinguia.
"Não é problema deles, não senhor. É um problema nosso, já te disse. Como é que eu vou comandar em combate soldados que se sentem deste modo esquecidos? Qual o moral das tropas quando a coisa der para o torto? Achas que consegues lutar sozi nho contra os boches? Quando a coisa aquecer, tu precisas dos homens, Cenoura. Se eles não estiverem lá ou não quiserem combater, chapéu, estás tramado, quilhado. Não te esqueças disso. "
"Afonso, cada um faz pela vida... "
"Porra, Cenoura, mete na cabeça que, com essa mentalidade, ninguém vai longe. Temos um quadro de oficiais que é uma vergonha, sempre a conspi-rarem, a falarem mal de tudo, no bota -abaixo, a verem quandu é que se põem ao fresco. " "Não são os oficiais que são uma vergonha", cortou o tenente
Pinto, erguendo a voz. "São os políticos que nos venderam, esses Afonsos Costas..."
"Quem é pior? O Afonso Costa, que colocou Portugal nu mapa..." "... esses Bernardinos Machados."
"... ou o Sidónio Paes, que abandonou a malta?"
"Essa canalha toda dos republicanos e do Partido Democrático. "
Já não se ouviam, um e outro aos berros, cada vez mais alto, ambos nervosos, até que a voz de Afonso acabou por se impor,
afinal de contas, embora amigos, era ele o capitão. "Deixa a política de parte", disse finalmente, fazendo um gesto para acalmarem a conversa e evitarem aquela parte controversa sobre a qual nunca chegariam a acordo. "Se calhar, os políticos são todos culpados, não sei e não interessa para o caso. O qyue interessa é que pa ra aqui fomos mandados e aqui estamos. E, se aqui estamos, só temos agora duas opções: ou cumprimos bem a nossa missão ou ficamos de braços cruzados a falar mal de tudo e de todos. Não sei o que é que tencionas fazer, mas eu sei qual o meu dever.
"Vais cumprir bem a tua missão", adiantou o tenente com desdém.
"Exacto", assentiu Afonso, optando por ignorar a ironia colocada pelo amigo no tom de voz. "Não posso aceitar o comportamento que vejo em muitos oficiais que se estão pura e simplesmente a cagar para os homens, não querem saber se eles estão bem, não mostram qualquer interesse em partilharem as suas privações e sacrifícios, nem sequer em correrem os mesmos riscos. Apenas se mostram preocupados no bota-abaixo, em comerem as demoiselles, em andarem nas passeatas, em emborcarem cerveja nos estaminets... "
"Tem graça tu dizeres isso, Afonso", atalhou Pinto com frieza. "Ainda há uma semana estavas tu com uma demoiselle numa passeata... "
"Não é a mesma coisa", corrigiu Afonso, embaraçado. "Em Paris. Agora, o que é mais curioso, meu caro, é que tu falas em partilhar privações, o que é muito bonito, mas a verdade é que já andas a dormir em palacetes. E, quanto a correr riscos ao lado dos homens, eu gostava de saber para que missões já te candidataste tu? "
"Estive a chefiar a operação para expulsar os boches que nos atacaram as trincheiras em Novembro. "
"Isso foi quando eles atacaram, que remédio tiveste tu senão combater. Mas o que eu quero saber é para quantas missões de patrulha e para quantos raides já te candidataste? "
"Sabes muito bem que não têm ocorrido raides nossos. " "Mas tem havido patrulhas todas as noites. Quantas integraste tu?"
"Não calhou. "
"Não integraste nenhuma. Nenhuma, Afonso. As patrulhas são quase exclusivamente constituídas por praças, fazem-se dezenas de patrulhas por noite e raramente há um oficial que as comande. Portanto, não me venhas com tretas e a falar nos nossos oficiais que são uma merda, porque tu também és um deles. Também tu passeias demoiselles pela retaguarda enquanto as praças têm de pagar pelas putas do Le Drapeau Blanc, também tu dormes em palacetes enquanto as praças se ficam pelos palheiros, também tu te abrigas no posto de betão enquanto as praças se aguentam à bronca com as marmitas dos boches a caírem-lhes nos buracos de lama, também tu ficas a ver da primeira linha enquanto as praças tropeçam em boches nas crateras traiçoeiras da Avenida Afonso Costa. No fundo, meu caro, és como eu e o resto do pessoal. Só falas é de maneira diferente."
Afonso fitou o amigo nos olhos e permaneceu um instante em silêncio. Quando falou, falou com intensidade, com convicção, a voz tranquila e segura, o olhar sereno e determinado.
"Estás enganado, Cenoura", disse. "Não sou como vocês e hei-de prová-lo."
Levantou-se e abandonou o posto, seguindo em passo firme para a ronda da tarde. Mas a certeza de que iria provar a diferença foi-se esbatendo à medida que caminhava e reflectia sobre o pouco que sabia de si. Bem lá no íntimo não fazia ideia de como quebrar o medo que lhe tolhia os movimentos nos instantes de puro terror. Tinha consciência de que uma coisa era falar e outra executar, sabia que, nos momentos de aflição, as suas reacções eram imprevisíveis e incontroláveis, a emoção toma conta da mente e a animalidade sobrepõe-se à humanidade. Quantos homens que passavam a vida a falar de heroísmo e a preparar-se para o grande teste não fraquejavam quando o momento chegava, enquanto outros, tímidos e calados, na hora das dificuldades tudo pareciam superar. O que era afinal a temeridade senão fingimento, que era a coragem senão o medo de se ser considerado cobarde? O que era o heroísmo senão um acto resultante do medo social que se sobrepõe ao medo animal? E o que era a bravura senão um momento de pura loucura, um gesto insano feito para benefício alheio e prejuízo nosso?
O major Botelho aproximou a vela para observar melhor os olhos do soldado. Passava das três da manhã quando o grupo de praças lhe apareceu no posto de socorros avançados a queixar-se de mal- estar, e o major era o médico militar de serviço. Analisou superficialmente os soldados, eram quatro homens e alguns gemiam. Começou com o caso que lhe pareceu mais agudo.
"Como é que você se chama? ", perguntou, estudando os olhos inflamados do homem.
"Baltazar, meu major."
"Como é que você apanhou isto, Baltazar?"
"Não sei, meu major. Estava no abrigo com os meus maradas e comecei a espilrar, a espilrar..."
"A espirrar", corrigiu o médico.
"Isso. E aqui os meus maradas no mesmo. Depois sentimos o nariz e a garganta assim a arder, uma sensação cada vez mais forte, percebemos que estávamos com gripe. Há pouco, começaram-nos a doer muito os olhos e a sair ranho do nariz. Vieram-me também umas dores na barriga e vomitei antes de chegar aqui ao posto. "
"Quando é que começaram a espirrar? "
"Foi aí há umas doze horas, ao início da tarde, meu major. " "E vocês? ", perguntou aos outros, sem tirar os olhos da inflamação de Baltazar.
"Nós o mesmo, meu major", disse Matias. "Foi na mesma altura. A diferença é que não vomitámos. "
"A mim, para além da barriga, dói-me também a cabeça", adiantou Vicente.
Abel Lingrinhas apontou para uns pontos na cara e no pescoço.
"Eu tenho aqui umas borbulhinhas. "
O médico ponderou o caso enquanto limpava os olhos de Baltazar com um algodão molhado.
"Hum", murmurou pensativamente. "Vocês por acaso não apanharam um ataque de gás? "
"Não, meu major", negou Matias, enfatizando com um abano da cabeça. "É gripe. "
"Hum", voltou o médico a murmurar. "Abra a boca. " Baltazar abriu e o major Botelho analisou a garganta irritada. "Não sentiram um cheiro a mostarda? "
"Não, meu major"
"Nem a alho? "
Os soldados entreolharam-se.
" Bem. "
" Sentiram um cheiro a alho?"
"Sim, meu major. "
O médico parou de inspeccionar Baltazar e mirou o grupo. "E não puse-ram as máscaras?
Os soldados baixaram a cabeça.
"Não, meu major. " O médico suspirou.
"Burros. Vocês são uns burros. Então não sabem que têm de pôr as máscaras logo que sentem um cheiro a químicos? Não sabem? "
"Meu major", disse Baltazar, a voz submissa. "Nós não cheirámos químicos. Cheirámos comida"
"Qual comida, qual quê! Vocês apanharam foi com gás em cima. Onde é que estavam quando vos cheirou a alho? "
"No abrigo, meu major. "
O major Botelho largou os olhos de Baltazar e sentou-se num caixote, junto a uma mesa. Tirou uns formulários de uma gaveta, colocou-os sobre a mesa e começou a tomar notas. "Quando saíram do abrigo, repararam em algumas granadas intactas?"
"Sim, meu major. "
"Como é que elas eram? "
Os homens entreolharam-se, não percebendo a pergunta.
"Bem, eram granadas de ferro, meu...
"Não é isso", impacientou-se o médico. "Estavam pintadas com alguma cor?"
"Sim, meu major", adiantou Matias, o mais observador do grupo. "Eram granadas de 7, 7 centímetros, de modelo
comprido, pintadas a azul e com a cabeça amarela. Lembro-me de que tinham duas cruzes, acho que uma era verde e a outra amarela. "
"Mau, não percebo nada. Verde e amarela ou azul e amarela? " "As cruzes eram verde e amarela, mas as granadas estavam pintadas a azul e amarelo. "
"Azul e amarelo", repetiu o médico, pegando num grosso dossier que se encontrava numa estante, a capa a indicar tratar-se dos relatórios dos Chemical Advisers do XI Corpo britânico. Abriu a pasta e folheou as páginas. "Azul e amarelo. " Virou uma folha. "Azul e amarelo. " Outra folha. Passou os olhos de relance por cada relatório, apenas atento ao segundo ponto de cada documento, intitulado nature of the shells. "Azul e amarelo. " Mais uma. "Azul e amarelo. " Mais outra. "Azul e amarelo... cá está. " Pousou o dedo na linha que procurava e leu. "Painted blue with yellow on top." Tirou a folha e estudou-a com atenção. Levou um minuto a analisar o relatório e a tirar as suas conclusões, mais para si do que para os homens. "Pois, estou a ver, isto é um derivado do enxofre com uma elevada percentagem de clorina", murmurou, coçando o queixo. Consul-tou demoradamente o último ponto do documento, referenciado como symptoms of personnel. Mais um longo minuto de leitura e voltou enfim a quebrar o silêncio. "Pois, pois, está aqui tudo. Vómitos, olhos inflamados, irritações na garganta." Sem levantar a cabeça, arrancou uma folha do formu-lário e começou a preenchê-la. "Vou mandar-vos para um hospital de sangue. " Agora, sim, ergueu a cabeça e fitou os homens. "Nomes e números? "
"É grave, meu major? "
"É grave, é", confirmou o médico, o olhar carregado. "É grave que vocês sejam casmurros que nem umas portas e não ponham as máscaras conforme diz o regulamento. "
"Mas é muito grave?", insistiu Baltazar, ansioso e com os olhos a lacrimejarem profusamente por causa da inflamação.
"A única coisa que é grave é que o CEP vai ter de sobreviver sem vocês durante dois dias", retorquiu o médico, prolongando o suspense. "Quanto às vossas miseráveis pessoas, vão ficar toda a noite aflitos, mas amanhã, pelo meio-dia, deverão estar melhores. Este é um gás tramado porque quase não se sente o cheiro, mas a vantagem é que não faz demasiado mal. Vou dar-vos uma baixa de quarenta e oito horas e depois regressam às trinchas. "
"Obrigado, meu major", disseram todos quase em coro, aliviados e momentaneamente sorridentes. Não havia melhor coisa do que ter uma baixa devido a um mal que não era permanente.
"Vamos lá, vamos lá", impacientou-se o major Botelho. "Nomes e números?
"Matias Silva, meu major. Número 216 "
Passava do meio-dia e a manhã, como de costume, tinha sido calma. As actividades de ambos os lados das trincheiras foram intensas desde o pôr do Sol da véspera, com legiões de homens a repararem passadeiras, a consertarem o arame farpado e a drenarem as passagens inundadas sob a protecção do manto escuro da noite, enquanto outros patrulhavam a terra de ninguém ou procura-vam alvos na mira das Lee-Enfield, se eram portugueses, ou das Mausers, no caso dos alemães. Quando os raios de sol espreitaram por fim, o astro erguendo-se lenta e majestosamente por detrás das linhas inimigas, já tinha decorrido o primeiro A Postos desse dia 8 de Fevereiro e muitos homens foram-se deitar. Afonso e Pinto acordaram pelas onze, lavaram a cara numa bacia cheia de água barrenta e imunda, urinaram num canto húmido da trincheira, junto ao seu posto de Picantin, e sentaram-se sobre o caixote de munições para comerem o pequeno-almoço que Joaquim lhes trouxera. Engoliram rapida-mente a omoleta e as torradas com manteiga, regadas pela tapioca com açúcar e uma chávena de café forte. Quando estavam prestes a terminar, chegou o tenente Timothy Cook.
"Jhat oh, Afonso, old bean", cumprimentou.
O capitão ergueu-se, esfregou as palmas das mãos nas coxas para as limpar das migalhas das torradas e da gordura da manteiga e apertou a mão ao oficial inglês de ligação.
"Old bean? ", interrogou-se, abafando um arroto. "Por que é que me estás a chamar velho feijão, meu sacripanta "
Tim riu-se.
"Você não ligue, é uma forma amigável de nos exprimirmos. " O inglês cumprimentou Pinto com um aceno.
"Breakfast? ", perguntou Afonso, indicando o que restava do pequeno-almoço.
"Não, obrigado, já comi", indicou Tim. "Bacon com scrambled eggs and baked beans. " Fez um ar satisfeito. "Capital breakfast. Capital. "
"Então, se é assim, vamos lá para a ronda. "
O capitão e os tenentes, com a ordenança atrás, desceram pela Picantin Road até à Rue Tilleloy, viraram à direita para apanharem Picantin Avenue, foram chapinhando na lama até chegarem à linha B, entraram nela junto ao posto avançado Flank Post e seguiram para sul em direcção a Rifleman's Avenue, circundando o seu sector em Fauquissart. Um ronco distante no céu despertou-lhes a atenção. Pararam e ergueram os olhos. Do lado inimigo vinha o que parecia ser, lá longe, uma mosca incómoda, zumbia como uma varejeira, era um avião alemão, as cruzes negras visíveis na fuselagem apesar da distância.
"Um Tauber", disse Pinto.
"Que mania que vocês têm de chamarem Tauber a todos os aeroplanos jerries", notou Tim. "Aquilo é um Fokker"
O tenente Pinto olhou-o, desconfiado.
"Como é que sabe? "
"I know, Iad. know"
"O Tim sabe distingui-los", explicou Afonso. "Ele andou no Royal Flying Corps e conhece os aeroplanos todos. Se o Tim diz que aquele é um Fokker, então, meu caro Cenoura, é porque aquele é mesmo um Fokker."
O monoplano voava alto, como se quisesse passar despercebido. De repente, e de forma inesperada, alterou o seu comportamento. O avião picou em direcção às linhas portuguesas, sobre Fauquissart, parecia que iria abrir fogo.
"Vai largar uma abóbora", exclamou Pinto.
Mas nenhuma bomba foi lançada. Já perto do solo, endireitou-se e sobrevoou as posições do CEP no sentido norte-sul a baixa altura. As Vickers e as Lewis desataram a matraquear, tentando atingir o aparelho, mas o Fokker ganhou altitude logo que cruzou Ferme du Bois, lá ao fundo. Subiu, deu uma pirueta e voltou a descer sobre as posições portuguesas, desta vez no sentido inverso, de sul para norte, embora não disparasse um único tiro, encontrava-se claramente em missão de observação. Um segundo aparelho irrompeu nessa altura sobre as linhas, agora proveniente do lado aliado.
"Um dos nossos", comentou Pinto com satisfação. " Que aeroplano é?", quis saber Afonso, olhando para o tenente britânico.
"Um Sopwith Camel", identificou Tim, de olhos fixos no céu. "Um camelo?"
"Right ho", sorriu o inglês. "Está vendo o formato da carlinga do aeroplano? Há quem ache que aquilo parece uma bossa, embora eu não enxergue como. De qualquer modo, é por isso que lhe chamam camel. "
Os três oficiais e a ordenança ficaram pregados ao chão, na expectativa quanto ao que se iria passar. Os combates aéreos eram altamente apreciados nas trincheiras, sendo considerados o mais emocionante espectáculo da guerra. Em vez da morte impessoal e industrial no meio da lama, com massas de soldados a caírem varados por balas ou esfrangalhados por granadas e bombas lançadas por inimigos invisíveis e distantes, os confrontos no ar estavam envolvidos numa aura romântica, os pilotos eram os modernos cavaleiros do céu, cheios de galanteios cavalheirescos e elegantes actos de nobreza, os seus embates aéreos transformavam-se em emocionantes duelos por entre as nuvens, um contra o outro, coragem contra coragem, perícia contra perícia, um vencedor e um vencido.
As trincheiras agitaram-se em antecipação, viam-se indicadores apontados para cima, soldados e oficiais chamaram-se uns aos outros, mais homens abandonaram os abrigos e juntaram-se aos que permaneciam especados a aguardarem o duelo. Mas um "oooh! desapontado percorreu as linhas quando o avião alemão deu meia- volta e fugiu para as suas posições, recusando o combate. O Sopwith Camel ainda o perseguiu durante alguns minutos, mas voltou para trás e ficou a patrulhar os céus sobre Ferme du Bois, Neuve Chapelle e Fauquissart.
"Os jerries têm medo dos Sopwith Camel", comentou Tim com um sorriso orgulhoso.
" Porquê?"
"O Sopwith Camel é um aeroplano muito bom", disse. "Mas, atenção, não é para qualquer um. É difícil de pilotar, costuma... como se diz, spin out of control... "
" Ficar descontrolado "
"Yes, fica out of control nos... tight turns? "
" Curvas apertadas. "
"Right ho", confirmou o inglês. "Muitos aviadores pouco experientes morreram nestes aeroplanos. Mas os bons pilotos acham que o Sowith Camel é o melhor aeroplano que existe. É muito ágil e sobe em grande velocidade. É por isso que os grandes ases do Royal Flying Corps os pilotam. Os jerries sabem isso. Daí que tenham medo e fujam"
Quando já ninguém esperava mais novidades, eis que emergiu do sector de Bois du Biez, nas linhas alemãs, um segundo avião. Os homens do CEP, muitos dos quais tinham já desmobilizado, voltaram a posicionar-se para assistirem ao grande espectáculo, agora com a certeza de que o combate era inevitável.
"Oh, blast it! Este é um Albatros D-type", exclamou Tim, referindo-se ao novo aparelho alemão.
" E então?"
"É o melhor aeroplano jerry. Voa a cento e setenta quilómetros por hora, tem uma excelente velocidade de subida e está equipado com duas metralhadoras sincronizadas. "
"O que é isso? "
"Metralhadoras sincronizadas? Well, o sincronismo é um mecanismo que permite aos pilotos disparar as metralhadoras através do... propeller? "
"Hélice. "
"Right ho. Dispara através do... hélice, sem atingir as pás do hélice. "
"Da hélice. "
"Sorry. Da hélice. A hélice está ligada ao gatilho da metralhadora de uma forma que a impede de disparar sempre que uma pá fica à frente do cano da metralhadora, de modo a evitar que a pá seja destruída pelos tiros. No caso deste aeroplano, ele não tem apenas uma, mas duas metralhadoras sincroni-zadas com os movimentos da hélice. "
"O aeroplano inglês não tem essas metralhadoras? "
"Tem. "
"Então qual é o problema? "
"None whatsoever", disse Tim. "Aqueles são os melhores aeroplanos dos dois lados. Vai ser a jolly good fight "
O Albatros alemão mergulhou em direcção ao Sopwith Camel. O confronto parecia iminente, mas o avião britânico deu subitamente meia- volta e, claramente em fuga, começou a ganhar altitude. Os oficiais e os soldados voltaram a suspirar de desapontamento, afinal iam mesmo ser privados daquele grande espectáculo.
"O bife está a pisgar-se", protestou Pinto.
"Não percebo", admirou-se Afonso.
"O gajo acagaçou-se, o que é que queres? "
O tenente inglês permaneceu calado, um rubor envergonhado a encher- lhe a cara enquanto via o Sopwith Camel em fuga. O aparelho britânico escondeu-se numa nuvem, mas o alemão não desistiu e, sempre no encalço, foi procurá-lo lá em cima. Quando o Albatros passou pela nuvem, o Sopwith Camel saiu disparado na sua direcção, como se se fosse esmagar no inimigo, endireitou-se no último instante, mesmo por cima do alemão, e largou uma bomba. O Albatros explodiu em pleno ar, foi envolvido pelas chamas e come-çou a cair. Um novo "oooh!", agora emocionado, ergueu-se das trincheiras. O avião atingido mergulhava velozmente em direcção ao solo, libertando um rasto de fumo negro, mas, quando todos esperavam o impacto, eis que o piloto alemão conseguiu controlar o aparelho e, apesar de ele estar envolto em línguas de fogo, curvou para leste e tentou levá-lo de volta para as linhas alemãs. Os homens nas trincheiras sustiveram a respiração, colados ao esforço titânico do piloto inimigo. Já perto do solo, ainda sobre as linhas aliadas, os soldados viram uma figura tombar do aparelho fumegante, parecia uma bala disparada para baixo, a corrida abruptamente interrompida quando se esmagou no chão. Logo a seguir, o avião, já sem piloto, inclinou o nariz, desceu com rapidez e embateu violentamente na terra, rolando e rolando, era agora uma bola de fogo a desconjuntar-se, uma massa ardente a esfrangalhar-se, um bloco de lava a rodar no chão, incandescente. O silêncio abateu-se momentaneamente sobre as trin-cheiras, os homens mostravam-se petrificados com a cena. Quando os destroços flamejantes do Albatros se imobilizaram junto às paredes de umas ruínas, levantou-se uma salva de palmas das linhas portuguesas, eram os lãzudos, não a festejarem a morte do inimigo, mas a homenagearem-no no seu último voo de valente.
"O bife enganou-o bem", comentou o tenente Pinto, dando meia-volta para prosseguir a ronda.
"Enganou-o a ele e a nós", corrigiu Afonso, os olhos pregados no chão à procura das partes menos enlameadas onde assentar os pés. "Pensámos que se ia pôr ao pira, e afinal. "
A actividade recomeçou nas trincheiras. Uma metralhadora alemã abriu fogo à esquerda, o matraquear claramente audível, e a artilharia portuguesa respondeu com dois disparos de um morteiro pesado, pelo som todos identificaram um calibre de quinze centímetros, provavelmente um morteiro Hadfields. Os três oficiais e a ordenança encolheram-se um pouco mais na linha B, mas, tirando essa postura reflexiva, prosseguiram como se nada se passasse.
"O boche não estava nada à espera de levar com a bomba", considerou Pinto. "Teve uma morte chata, a cair assim ao chão. "A alternativa era pior, believe me", explicou Tim. "Os pilotos morrem normalmente por três razões. " Ergueu três dedos da mão esquerda à medida que enumerava as razões. "Ou são metralhados pelo inimigo, ou se esmagam no solo, ou morrem carbonizados vivos dentro dos aeroplanos. A morte pelas chamas é a pior. " Fez uma careta. "Ghastly! " Bateu com a palma da mão direita no coldre. "Muitos pilotos levam sempre uma pistola à cintura e, se o aeroplano se incendeia e eles vêem que não podem escapar, dão um tiro na cabeça. "
"A sério?"
"No shit. "
Sempre a comentar as incidências do emocionante duelo aéreo, ainda mais dramático do que aqueles a que habitualmente assistiam todos os dias das linhas, chegaram a Rotten Row e viraram para dentro, cruzando a Rue Tilleloy e prosseguindo pela Regent Street até à Rue du Bacquerot, donde voltaram para a direita até Picantin Road, regressando ao posto depois de passarem pelas redes de arame farpado. Picantin Post era um pequeno reduto de perfil elevado, com duas posições descobertas para metralhadoras e um paiol e ainda três abrigos pequenos. Tinha capacidade para uma guarnição de cem homens e era defendido exteriormente por três abrigos para metralhadoras pesadas Vickers, construídos em tijolo e ferro e à prova de estilhaços, com seteiras viradas para a estrada e para Picadilly Trench. A sua importância era enorme, uma vez que defendia o acesso mais curto e directo das primeiras linhas até Laventie, sendo por isso normal que se vissem ali bastantes homens. Mesmo assim, Afonso notou um estafeta que se encontrava sentado à entrada do abrigo de Picantin. Quando os viu aproximarem-se, o soldado ergueu-se num pulo e fez continência.
"Capitão Afonso Brandão? "
" Sim "
"Com a sua licença, meu capitão, o tenente-coronel Mardel deseja falar consigo. "
Eugénio Mardel era um dos mais altos oficiais da Brigada do Minho, o homem que assumia o comando da brigada sempre que o comandante se ausentava. Se Mardel o chamara, raciocinou Afonso, era porque havia novidades, e das grandes.
"Onde está o senhor tenente-coronel? "
"Em Laventie, meu capitão. "
Afonso entrou no abrigo, pegou na máquina de escrever e colocou-a sobre o caixote que lhe servia de mesa, sentou-se no banco, colocou duas folhas com papel químico no meio para fazer uma cópia e redigiu apressadamente o relatório da sua companhia sobre as últimas vinte e quatro horas no sector de Fauquissart. Sabia que Mardel iria querer ver o documento e não tencionava desapontá-lo. A redacção do texto obedecia a um formato previamente estabe-lecido e o capitão apenas precisou de meia hora para o concluir. Quando acabou de dactilografar o texto, releu tudo, fez duas pequenas correcções com a caneta, assinou, dobrou o documento, meteu-o no bolso do casaco e saiu.
"Vamos lá", disse ao abandonar o abrigo. "Pinto, substitui-me no posto. Até logo, Tim. "
"Cheerio, old bean. "
Não eram as dores nos músculos que incomodavam Matias, mas o cansaço e, sobretudo, a indisposição geral que o deixavam prostrado. O cabo perma-neceu encostado ao parapeito e aspirou com força o Xoodbine que tinha nas mãos, tratava-se do mais baratucho dos cigarros ingleses, embora servisse perfeitamente para o fim em vista. Sentiu o fumo invadir-lhe os pulmões, tentou descontrair as costas e expirou devagar, libertando um acre sopro cinzento.
"Como é que achas que ficou o corpo do tipo? ", perguntou Baltazar, sentado ao lado a limpar a Lee-Enfield.
"Quem? O gajo do aeroplano? "
"Sim. "
"Deve estar esfrangalhado, não é? "
Matias sentiu a acidez do vómito ainda presente na garganta e voltou a chupar o Xoodbine para tentar tirar aquele gosto azedo da boca. A noite não tinha sido fácil. Três dias antes, um homem do 8 fora abatido na terra de ninguém, junto a Bertha Trench, durante uma patrulha nocturna, e os compa-nheiros fugiram desordenadamente, deixando-o para trás. Nas noites seguintes foram organizadas patrulhas para o localizar, mas apenas na madrugada anterior conseguiram enfim detectá-lo. Matias integrou esta última patrulha e foi o cheiro nauseabundo de um cadáver em putrefacção, um odor que lhe lembrava a pestilência libertada por batatas podres, que o atraiu para o local onde afinal se encontrava o corpo do homem perdido. Deu com ele dentro de uma cratera, semimergulhado em águas fétidas, à esquerda do sector português, já na área patrulhada habitualmente pelos ingleses estacionados em Fleurbaix. Depois de atingido, deve-se ter desorientado e arrastado até aqui, raciocinou Matias, reconstituindo mentalmente o itinerário do soldado mori-bundo. Não admira que as patrulhas não o tenham encontrado, pensou ainda, está muito longe do sítio onde se deu a escaramuça. O cabo inclinou-se sobre o cadáver para o levantar, mas congelou o gesto ao ouvir um ruído e sentir actividade a seus pés. Levou um instante a perceber que eram ratazanas a arrancarem pedaços de carne do morto. O cheiro era aqui forte, imundo, repugnante. Afugentou os roedores com a coronha da espingarda, colocou a Lee-Enfield a tiracolo e, vencendo o nojo, pegou no corpo, sentiu-o hirto e endurecido, caminhou umas dezenas de metros na escuridão, sempre a tentar conter a respiração, não conseguiu, o peso do cadáver fê-lo arfar, a pestilência invadiu-lhe as narinas, sentiu o estômago revoltar-se, deixou cair o morto, inclinou-se para a frente e vomitou. O barulho atraiu as atenções do resto da patrulha. Com sussurros mal contidos, os outros soldados vieram ajudá-lo a transportar o corpo pelo caminho de lama até às linhas portuguesas. Disseram a senha à sentinela e caíram na linha da frente portuguesa, aliviados. Pousaram o cadáver no chão e sentaram-se no parapeito, derreados e arquejantes, a recuperar o fôlego. Minutos depois um dos homens levantou-se e foi à procura dos maqueiros, deixando os restantes a descansar. A certa altura, já recupe-rados, veio-lhes a curiosidade de conhecerem o rosto do morto que tinham resgatado à terra de ninguém. Acenderam uma lanterna e Matias observou de relance a figura estendida no estrado da trincheira. O cadáver estava inchado, a pele amarelo-acinzentada, um braço voltado para cima, hirto, congelado naquela posição, os olhos vidrados e revirados para cima, partes dos lábios e da face tinham sido arrancadas, presumivelmente pelas ratazanas, revelando a dentição, via-se ali o início da caveira. O cabo vomitou uma segunda vez.
"Não vai estar pior do que o tipo que foste buscar", comentou Baltazar.
Matias olhou-o sem compreender.
"Quem?"
"O boche do aeroplano, caraças! ", exclamou o Velho, enervando-se com o ar ausente do amigo. "Se acabou de morrer, não deve cheirar tão mal como o outro, pois não?" Admirou a sua Lee-Enfield, já limpa e oleada. "Bem, a verdade é que, estando esfrangalhado no chão, deve ter as tripas de fora. E as tripas cheiram a merda, não é? "
O cabo mirou o parapeito com o olhar perdido no infinito e acabou o Woodbine. Enterrou a ponta do cigarro na lama e atirou a beata para longe.
"Sabes qual foi o primeiro morto que eu vi, Baltazar? "
" Hum."
"Quando eu era miúdo, tinha uns catorze anos, havia uma gaja lá no bairro, em Palmeira, que era casada com um marinheiro. " Afagou as patilhas. "Chamava-se Maria do Céu. Era mulher aí para uns trinta anos. Tinha uma cara larga e muito rosada, com uma verruga debaixo do olho. Não era bonita, mas tinha umas mamas do camano. Aquilo é que eram umas valentes catrinas "
" Era um almazem?"
"Um almazem, não direi, mas tinha um ar bem constituído." Fez uma pausa, como se estivesse a recordar algo. "Um dia, a tipa veio ter comigo. Eu já era um matulão e na altura trabalhava na terra para quem me pagasse. Pois ela veio e disse que me queria contratar para trabalhar todas as manhãs no seu quintal, tinha uma horta para tratar e o marido andava lá nos barcos. De modo que fui. " Coçou o nariz. "Aquilo não tinha nada que saber. Havia para lá umas batatas, umas couves, uns tomates, uma macieira, tudo com trementelos à volta, e no canto estava uma cerca com uns marranos e umas galinhas. Era tudo um pouco acanhotado. Fui para lá trabalhar naquilo e a tipa não me largava, abacou ali e ficou a topar-me. Pensei que era desconfiada. Olé, disse cá para mim. Então não é que a gaja me está a vigiar? Senti-me um bocado escamado, caraças, a coisa abuzinou-me um pedacito. Ao segundo dia pôs-se-me a fazer perguntas. Queria saber se eu tinha namorada, se era muito ribaldeiro, se já tinha dado bocaringas a alguém, coisas assim. Fiquei assim um bocado envergonhado, aquilo não eram conversas para ter com uma mulher, não é? Passado um pedaço desta conversa, a gaja disse que queria mijar. Levantou a saia à minha frente e pôs-se a reinar, via-se a breixa e tudo. "
"Categoria. "
"Enquanto reinava, ela olhava para mim. Gostas de me ver a mijar? perguntou-me a tipa. Fiz que sim com a cabeça e senti a minha mingalha crescer dentro das calças, foi como se o mazápio tivesse acordado ao ouvir aquela pergunta. Acho que percebi ali o que a gaja queria. Era uma rifeira bem melada. Ela topou que a minha mingalha estava toda bazulaca e aproximou-se. Despiu a camisola e deixou as catrinas ao léu, aquilo é que eram uns melões do catano, nunca tinha visto coisa tão boa. Estavam um pouco descaídos e tinham uns mamilos muito largos, avermelhados, com a ponta tesa. Tirou-me as calças devagarinho e agarrou-se com a boca ao mazápio. "
"Ena! Categoria! Só eu é que nunca tive vizinhas assim caraças. "
"De modo que, sempre que eu ia trabalhar para casa da Maria do Céu, era para a brincadeira. Ela ensinou-me tudo o que havia para aprender e era danada para as pinadelas, não havia dia nenhum que não pedisse o saçarugo. Mesmo quando andava chanfanada queria ir ao castigo, largava sangue por todo o lado, parecia um marrano em dia de matança, mas a tipa não se ficava, gozava o prato todo. Só havia ali uma coisa que era estranha. Ela fazia questão de que eu só lá fosse de manhã. À tarde, não. Só de manhã. De maneira que andei um ano na vadiagem todas as manhãs por conta da fome da Maria do Céu. " Matias cuspiu para o chão, tentando expulsar os últimos traços do sabor ácido do vómito. "Um dia, o marido voltou e eu deixei de lá ir. O homem veio para ficar uns dias. Ao fim de uma semana houve um grande reboliço, as vizinhas a chamarem ó da guarda, ó da guarda. O tipo tinha morto a mulher. "
"Ah!", exclamou Baltazar, quase chocado. "Não me digas que ele soube que a gaja andava metida contigo."
"Comigo, não. Mas, pelos vistos, percebeu que havia homens a irem ali a casa. O marinheiro foi preso e eu fui lá pela última vez. Encontrei uma multidão à porta, as mulheres todas na conversa, pareciam umas galinhas tontas, e o corpo da Maria do Céu deitado no chão, numa poça de sangue. O tipo esfaqueou-a toda, viam- se golpes no peito e na barriga, uma tristeza. "
"E depois? "
"E depois, nada. Foi a primeira pessoa que eu vi morta, só isso. " Ouviram um sibilo crescente, encolheram a cabeça e sentiram a explosão da granada duzentos metros atrás. Voltaram-se para verem o penacho de fumo e poeira ascender ao céu e, após uma hesitação, Matias mirou o amigo de novo. "Fez-me um pouco impressão vê-la assim morta, parecia uma boneca, custava até imaginar que aquele corpo parado, que agora não reagia à minha presença, era antigamente uma fogueira esfaimada, nunca ficava quieto. Mas o que achei mais estranho é que não senti coisa alguma cá dentro. Tive pena, claro, até rezei por ela, era boa moça. Uma rifeira do camano, mas boa moça. Só que a gaja finou-se e isso não me abuzinou, nem sequer fiquei agónico. " Tirou das calças o maço de ìfJoodbine. "Vai um xagrego?"
"Dá cá. "
Matias estendeu um cigarro ao amigo e tirou um outro, que colocou na boca.
"Um ano depois, à conversa com um rapaz meu vizinho, o Lourenço, vim a descobrir uma coisa do caraças. "
"O quê? "
"A certa altura falámos, nem sei porquê, mas falámos na Maria do Céu. O tipo fez um ar comprometido e, assim meio a medo, contou-me que foi ela quem o levou pela primeira vez ao castigo. " Raspou um fósforo e acendeu o cigarro, libertando a primeira nuvem de fumo. "Era sempre às tardinhas. "
Afonso e Joaquim seguiram o estafeta, o capitão algo nervoso com a convocatória que acabara de receber. Percorreram de novo a Picantin Road e foram apanhar a Rue du Bacquerot, flectiram para sul e, logo junto a Red House, viraram à direita para Harlech Road. Antes de chegarem à Rue de Paradis, voltaram à esquerda e entraram em Laventie, dirigindo-se para o edifício onde se encontrava sediado o quartel-general da brigada durante o período em que a força minhota permanecesse naquele sector de Fauquissart, na ponta norte das linhas portuguesas. O estafeta foi à sua vida e Afonso dirigiu-se ao graduado do edifício e indicou que vinha falar com o tenente-coronel Mardel. O graduado pediu-lhe a identificação, mandou-o esperar e voltou instantes depois, apontando-lhe a porta entreaberta. Afonso espreitou e viu Mardel.
"O senhor tenente-coronel dá licença? "
"Meu caro capitão", exclamou Mardel efusivamente, erguendo-se da cadeira onde trabalhava e vindo ter à porta. "Bons olhos o vejam. "
Afonso fez continência e depois apertaram as mãos. "Vim assim que fui convocado."
"Obrigado, obrigado", agradeceu Mardel, indicando outra cadeira. "Sente-se, sente-se. Esteja à vontade. "
O capitão acomodou-se na cadeira, disfarçando o nervosismo e tentando acomodar-se o melhor possível. Mardel instalou-se no lugar donde se erguera.
"Quer café? ", perguntou o tenente- coronel, recostando-se na sua cadeira.
"Sim, se faz favor. "
Mardel voltou-se para a porta do abrigo.
"Duarte", chamou.
A cabeça do graduado assomou à entrada.
"Sim, meu tenente-coronel? "
"Traz aí dois cafés. Quentinhos, hã?" "Imediatamente, meu tenente-coronel."
O graduado retirou-se e Mardel voltou- se para Afonso. "Então como vão as coisas?
"Vai-se andando", respondeu Afonso. Pôs a mão no bolso e retirou o relatório das últimas vinte e quatro horas, sabia que era um documento lido com muito interesse pelo Alto Comando. "Quer o relatório? "
"Afirmativo", disse Mardel, estendendo a mão. "Mostre lá. " O tenente-coronel pegou na folha, abriu-a e leu-a com atenção. "Pelos vistos, uma patrulha detectou problemas no arame dos boches", disse com um sorriso.
"Sim, meu tenente-coronel", assentiu Afonso. "No sector de Wick Salient."
"Uma coisa a explorar", comentou cripticamente. O graduado entrou no gabinete com duas chávenas fumegantes e uma caixinha de açúcar numa prateleira, colocou o café na mesa e retirou-se. Os dois oficiais mergulharam o açúcar no café, mexeram-no e tragaram um golo.
"Ah, maravilha", exclamou Mardel.
"Uma delícia", concordou o capitão, sentindo o travo quente e açucarado do café a adoçar-lhe a boca.
Mardel pousou a chávena.
"Viu o combate aéreo de há pouco? "
"Sim, meu tenente-coronel. Foi renhido. "
"Afirmativo. Lá renhido foi", concordou Mardel. "Mas sabe o que é verdadeiramente relevante no que vimos no céu? "
"A vitória do aeroplano inglês, meu tenente-coronel? " "Negativo, capitão. Isso foi agradável, mas não o mais importante. O mais significativo foi o comportamento do primeiro aeroplano boche. Não reparou em nada de estranho, capitão? "
"Ele fugiu quando viu o aeroplano inglês. "
"Negativo. Isso é relevante, mas não é o mais estranho. O que é verdadeiramente insólito é que ele não abriu fogo sobre as nossas linhas. Sabe certamente o que isso significa. "
Afonso ajeitou-se na cadeira, desconfortável com o método de questio-nário sucessivo, sentia-se de regresso à escola primária de Rio Maior, onde era forçado a responder às perguntas do professor, só que desta vez não era Manoel Ferreira a testá-lo com a cartilha João de Deus, mas o seu superior hierárquico.
"Estava em observação", disse finalmente, esperando acertar. "Afirmativo. A sua missão era a de observar as nossas linhas do ar, provavelmente tirando fotografias. E foi certamente por isso que evitou o combate, o confronto não era a sua missão. Mas sabe o que é que me anda realmente a perturbar, a mim e a todo o comando do CEP? "
"Não, meu tenente-coronel. "
"O que nos anda a perturbar é que estamos a notar um crescente interesse dos boches em nós. Aumentaram as patrulhas inimigas, aparecem cada vez mais aeroplanos de observação, vêem-se oficiais boches a observarem-nos de binóculos. Enfim, estão a estudar-nos e nós começamos a ficar nervosos "
"Os boches estão a estudar o CEP? "
"Afirmativo, capitão. "
"E sabe qual o objectivo? "
"Negativo. Presumimos que queiram fazer um raide, mas isso somos nós a falar. A verdade é que não sabemos. "
Bebericaram mais um golo do café, o capitão estranhando a linguagem telegráfica que preenchia o colorido léxico do seu superior hierárquico. Afonso pousou a chávena e pronunciou aquela que suspeitava ser a frase-chave da conversa.
"Vamos ter de saber o que se passa. "
"Afirmativo, capitão", concordou Mardel, desta vez com solenidade, acen-tuando a palavra "afirmativo" e pronunciando-a de forma pausada. O tenente-coronel inclinou-se então para a frente e cravou os olhos no seu interlocutor. "Há já alguns dias que andamos a pensar nisto, mas o comportamento do primeiro aeroplano boche desfez todas as dúvidas e tomámos uma decisão final. Temos de efectuar um raide às linhas inimigas e quero que você prepare o plano "
"Eu, meu tenente-coronel? Porquê eu? "
"Por que não você? Tem medo?"
A pergunta foi formulada em tom de desafio, de provocação, de teste à sua masculinidade, e Afonso percebeu que não tinha opções. O capitão suspirou.
"Medo temos todos, meu tenente-coronel. Mas terei muito gosto em preparar esse plano e executá-lo. "
O rosto de Mardel abriu-se num sorriso largo.
"Sabia que podia contar consigo, capitão Brandão", disse. "Irei comunicar ao general Simas a sua disponibilidade, ele vai ficar satisfeito. "
O general Simas Machado era o comandante da 2.a Divisão e, a par do general Gomes da Costa, da 1.a Divisão, respondia apenas perante o general Tamagnini Abreu, o comandante do CEP.
"E o major Montalvão? ", perguntou Afonso, preocupado em não passar por cima do comandante de Infantaria 8, não queria problemas com o seu superior hierárquico.
"Falei com ele há pouco e pedi-lhe para me dar a honra de ser eu a convidá-lo para preparar o raide", disse Mardel. "Como vê, ele acedeu. "
"Muito bem", disse o capitão. "Qual o objectivo táctico da operação?"
"O plano tem três objectivos", enumerou Mardel, sempre telegráfico, levantando os dedos um a um. "Um, capturar prisioneiros para obter infor-mações. Dois, mostrar ao inimigo capacidade de combate. Três, elevar o moral das nossas tropas. "O moral das tropas? "
"Afirmativo. Como sabe, o pessoal anda há demasiado tempo nas linhas e está a ficar saturado. Lisboa não manda reforços e não temos maneira de darmos descanso aos homens. À falta de melhor, pode ser que um espectacular golpe de mão anime a malta. "
"Estou a ver", disse Afonso sem grande convicção. Engoliu o último trago de café e pousou indolentemente a chávena. "Para quando quer esta operação?"
"Para daqui a um mês", indicou Mardel. "Não tenha pressa, estude bem as coisas, observe o terreno, procure os pontos fracos do inimigo, estabeleça procedimentos. Estamos no final da primeira semana de Fevereiro e você tem de preparar bem os pormenores do raide, a executar na primeira semana de Março, mais coisa menos coisa. Quando tiver tudo estudado, venha ter comigo para ratificação. "
O tenente-coronel ergueu-se da cadeira e Afonso imitou-o. Mardel estendeu a mão, despediram-se e o capitão saiu do posto de Laventie e regressou pensativamente ao seu abrigo de Picantin, os olhos perdidos num ponto infinito de preocupação.
Agnès sentia-se cansada. Apesar disso, fez um esforço para manter um ar sorridente ao passar pela enfermaria. Tinha permanecido a noite toda de serviço e o seu turno aproximava-se do fim, mas havia que manter uma aparência fresca perante os pacientes, era importante para o moral dos convalescentes. Além do mais, gostava do trabalho que fazia, desde que a guerra começara nunca se sentira tão útil, tão necessária, tão empenhada na vida, abraçava o cansaço com fome de trabalho, com a alma inteiramente dedicada à tarefa em mãos, o sonho de infância concretizava-se, era finalmente Florence Nightingale, um anjo de conforto a pairar num antro de dor e sofrimento.
A mudança que se operara na sua vida devia-a ao seu capitão.
Graças a uns cordelinhos mexidos por Afonso, entrara havia uma semana ao serviço no Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, bem na retaguarda, escapando ao tédio do quartel-general de St. Venant e aos incómodos avanços do tenente Trindade Ranhoso. O capitão tentou inicialmente colocá-la num dos dois hospitais de sangue, o hospital n. 1, em Merville, ou o hospital n. 2, em St. Venant, ambos constituídos por oito tendas e com capacidade para duzentos pacientes, mas Agnès tinha feito questão de ir para o mais longe possível do Ranhoso e o Hospital Misto parecera-lhe adequado. Adaptara-se facilmente ao trabalho, e os pacientes a ela, não era comum ver uma mulher daquela beleza a cirandar entre a soldadesca, uma palavra amável aqui, uma festinha ali, um sorriso cativante acolá, a sua simples passagem pela enfermaria era um tónico maravilhoso para os acamados. Embora tivesse estudado para ser médica, via-se no papel de enfermeira e desempenhava-o com gosto e dedicação. Não falava português, mas os soldados desembrulhavam-se no patusco patois das trincheiras e isso parecia chegar. Moi pas bonne, mademoiselle bonne, boches méchants, eram frases que faziam agora parte do seu quotidiano de diálogos.
Agnès cruzou apressadamente a enfermaria nessa manhã porque tinha sido informada pelo contínuo de que um oficial se apresentara à porta do hospital para falar consigo. Presumiu que se tratava de Afonso, que o seu português estava de regresso das trincheiras, mas havia também a pavorosa possibilidade de ser uma má notícia, um amigo do amante com a terrível novidade, temia todos os dias que o que se passara com Serge viesse a repetir-se com Afonso, um correio desconhecido com um telegrama negro a destruir-lhe a vida, e o pensamento encheu-a de ansiedade, de inquietação. Quase correu até à porta, o coração aos pulos, em sobressalto.
Ao chegar à entrada, estacou debaixo da aduela e suspirou de alívio, viu-o sentado num degrau, o boné nas mãos, os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás de modo a melhor receber o ar fresco da manhã, deixando-se embalar pelo meloso ruflar dos beija-flores e pelo cantarolante gorjear das cotovias que esvoaçavam pelas tílias do jardim. Murmurou de olhos cerrados uma breve prece de agradecimento e correu finalmente para ele, abraçou-o e beijou-o, dividida entre o alívio de o ver são e salvo e o dever de manter uma postura respeitável no perímetro hospitalar.
"Tu m'as manqué", soprou-lhe ao ouvido.
"Mon petit choux", foi tudo o que ele conseguiu dizer no calor do abraço.
"T'es bien? "
Ele fez que sim com a cabeça. Sentiu-lhe a delicada fragrância de Chypre e sorriu, era o perfume que lhe tinha oferecido em Paris. A francesa afagou-lhe os cabelos e, desprendendo-se devagar, pegou-lhe na mão e puxou-o.
"Viens, anda ver a minha enfermaria.
Afonso deixou-se levar, deslizando pela porta de entrada atrás de Agnès. O suave aroma de Chypre desapareceu de imediato e, em sua substituição, o capitão notou o cheiro a éter e a desinfectante a pairar no ar. O hospital revelava-se-lhe feio e frio, feito de compridos corredores de chapa zincada e canelada, tudo metálico e negro, pintado a piche. O soalho, constituído por madeira encerada ou envernizada, rangeu quando o pisou; a luz entrava a jorros por janelas abertas em pestana na chapa de zinco. As mobílias eram de ferro e vidro, num estilo art nouveau rudimentar, aqui um jarro de begónias ou de rosas perfumadas, ali uma revista pregada na parede com uma beldade estampada na capa. Via-se muito movimento pelos corredores, uma azáfama de enfermeiros, um punhado de médicos e muito pessoal auxiliar, uns para aqui e outros para ali, atarefados e apressados, observados por pacientes silenciosos, alguns tossiam aflitivamente, cinco ou seis balouçavam nas cadeiras os cotos amputados das pernas e dos braços.
"Hoje é dia de evacuação", explicou ela. "Vamos mandar pacientes para o hospital de Hendaya, de modo que isto está agora um pouco caótico."
"Se calhar, era melhor eu vir visitar isto noutro dia...
"Não, fica. Só daqui a duas horas é que vão aparecer os camiões para levarem os pacientes à estação. "
"Estação?"
"Sim, claro. Hendaya fica junto à fronteira espanhola."
"Mas isso é longe!"
"Oui. Não se percebe bem por que razão o exército português colocou em Hendaya o seu principal hospital. Mas, voilà, é mesmo assim.
Chegaram a uma porta e ela largou-lhe a mão.
"Esta é a minha enfermaria", anunciou com intensidade. "Todos os pacientes que aqui estão são tuberculosos." Levantou o indicador. "Agora presta atenção. Nesta enfermaria, eu não sou a tua Agnès, sou a enfermeira que não só ajuda os acamados como até alimenta os seus sonhos, as suas fantasias, sobretudo a sua vontade de ficarem bons. Portanto, nada de intimidades perante os doentes, ouviste?"
"Bem. "
"Ouviste?"
"Uh... sim. "
Feito o aviso, e parecendo dar-se por satisfeita com a titubeante resposta, empurrou a porta e entrou na enfermaria com Afonso no encalço. Era uma sala grande e bem iluminada, com camas dispostas em fila, lado a lado, de uma ponta à outra, um corredor de passagem pelo eixo central da enfermaria. Agnès seguiu por esse corredor, o capitão quase encostado a si, ao lado. O ar enchia-se de tosse, tosse persistente nuns casos, tosse seca noutros, alguns com pequenas bacias na mesinha de cabeceira para aí deitarem a expectoração, uns poucos a gemerem fracamente. A enfermeira francesa, com ar muito profissional, indicou um paciente que dormitava à esquerda.
"Este está muito fraco, tem febres constantes, não sei se se safa. " Apontou para o do lado direito, que tossia consecutivamente. "Aquele vai um pouco melhor, mas também parece tremido. " O seguinte da esquerda, com uma perna engessada. "Este é um caso curioso. Foi para a ala dos traumatizados, um estilhaço quase lhe levou a perna. Quando estava a recuperar, apanhou a tuberculose. Vai-se aguentando. "Mademoiselle", chamou um, do lado direito. "Moi pas bonne. Massage, sirv'ó puré. "
"S'il vous plait", corrigiu Agnès.
"Sirva o puré", insistiu o paciente.
"Après, Luís, après", retorquiu a enfermeira. Voltou-se para Afonso e riu-se. "Este é um brincalhão, diz que vai casar comigo quando a guerra acabar. "
"Ah é?"
"Não fiques com ciúmes, mon petit mignon", sorriu Agnès.
"Ele está quase bom e vai ter alta em breve, de modo que não volta a pôr-me os olhos em cima."
O capitão não gostou, mas permaneceu calado. Sabia que era inevitável que a sua francesa, bonita como era, atraísse piropos num mundo de homens famintos de fêmeas. Custou-lhe mais ver isso acontecer à sua frente, mas aguentou-se, não teve outro remédio, estava fora de questão ir esbofetear o paciente atrevido.
"O que mais não falta por aqui são brincalhões", acrescentou ela, após uma breve pausa. Tirou do bolso um papel bem dobrado e exibiu-o a Afonso. "Estás a ver isto? É uma carta que um paciente me entregou há dias para mandar ao irmão." Sorriu.
"O rapaz fez questão de escrever em francês para mostrar lá na terra que fala bem, quer impressionar. " Agnès estendeu a carta ao capitão. "Ora lê, c'est rigolo. "
Afonso desdobrou o papel. A carta estava escrita com letras mal desenhadas, as linhas a descaírem, mas o conteúdo era bizarro:
France, 2-2-1918.
Ma chere frére:
Te participe que muá parlè tré bian le franciú. Ha bocú de madamuaseles joli.
Mangè tujur cornobife è une cigarrete à jur.
Camones tré simpatiques, muá acheté á un anglé un par de palhetes até ô genú aveque cordons è muá doné á lui une garrafe de picles.
Muá émé agore un madamuasele è apré la guerre fini partir Portugal aveque muá fiancé. Les mules du Parue bone santé.
Bocú de sovenires de ta frere
José Papagaio.
Com ar divertido, Afonso devolveu a carta, que Agnès prontamente guardou no bolso.
"Até parece inventada", comentou o capitão.
A enfermeira continuou a caminhar pelo corredor central da enfermaria e, já no final, abrandou e foi observar um paciente deitado na cama da esquerda. Pôs-lhe a mão na testa e afagou-lhe os cabelos. O sorriso que lhe dançava nos lábios desfez-se. O soldado respirava com dificuldade, arquejante e cansado, os olhos mortiços por entre olheiras profundas e escuras, a pele seca como um pergaminho, os malares sobressaídos no rosto magro e macilento, parecia uma múmia. Afonso espreitou para o bacio colocado na mesinha de cabeceira e constatou que o recipiente estava sujo de expectoração com laivos de sangue. A enfermeira olhou resignadamente para o capitão.
"Não se safa, le petit auvre", murmurou. "Não deve passar de hoje "
Depois de dar de beber ao paciente moribundo, Agnès saiu da enfermaria com o oficial sempre atrás.
"Morrem muitos?", quis saber Afonso.
"Alguns, não demasiado", disse Agnès. "Um terço dos mortos por doença é vitimado pela tuberculose, este é o mal que mais mata. Lá mais para trás vêm a meningite e a pneumonia. Mas temos muitos casos de astenia e anemia que tornam os soldados incapazes de regressarem às linhas."
"São essas as doenças mais comuns?"
"Sim", disse a francesa. Fez uma pausa, hesitou e acrescentou em voz baixa, apressadamente: "Há também as doenças venéreas, mas esses pacientes vão para outro hospital. "
"Pelas vossas contas, os soldados morrem mais por doença ou por combate? "
"Combate. Pelo que já vi, em cada quatro mortos, três resultam de ferimentos em combate e apenas um de doença. "
"E os feridos? "
"Também os temos, claro. Estão noutra enfermaria ou então são manda-dos para os hospitais ingleses, como o 39th Stationary
Hospital e o General Hospital 7, e depois ficam no depósito de convales-centes."
Um enfermeiro passou por eles, empurrando uma cama de rodas com um homem sem o braço esquerdo, o coto engessado pelo ombro, manchas de sangue seco a sujarem o pano branco.
"Qual é o tipo de feridos mais comum?", perguntou Afonso sem tirar os olhos do rapaz mutilado.
Agnès fez uma pausa para pensar.
"Os gaseados andam aí pelos quarenta por cento dos feridos aparecem muitos, muitos. Morre-se pouco de gás, mas os soldados ficam com lesões incuráveis nos pulmões e até noutros órgãos. Tudo porque não põem as máscaras, ou põem-nas mal, ou tiram-nas cedo de mais." Fez nova pausa. "Há ainda uns dez por cento de feridos em acidentes. Mas não há dúvida de que metade dos feridos que aqui vêm parar foi atingida por projécteis em combate. A maior parte apanha estilhaços, são feridas horríveis, já vi um que ficou sem o queixo, apareceu aí vivo sem metade da cara..."
Afonso começou a sentir-se maldisposto, tudo aquilo não era uma mera abstracção, mas um futuro possível para si, uma realidade que o poderia atingir em breve, irreversível, final. Angustiado, decidiu subitamente ir-se embora do hospital, não queria ver nem saber mais, sentiu um pânico a crescer-lhe na alma, uma claustrofobia a estrangular-lhe a respiração, estar ali naquele sítio de sofrimento era mau agoiro, que péssima ideia ter entrado, tinha de se ir embora, sair, fugir, balbuciou uma desculpa esfarrapada e despediu-se apressadamente com um beijo fugidio, quase correu para a porta, lá fora correu mesmo, correu com medo, com ansiedade, correu como se de correr dependesse a sua vida. Só parou, ofegante, quando chegou ao Hudson que lhe tinham emprestado no quartel-general da 2. a Divisão, em La Gorgue, e ali ficou à espera, sentado ao volante, com gotas de suor frio a brotarem-lhe na testa, os olhos fixos nos portões do Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, aguardando pelo final do turno da mulher que amava.
Afonso conseguiu em La Gorgue uma dispensa para poder elaborar o plano do raide sem se preocupar com os deveres do dia a dia. Nada revelou a Agnès sobre as ordens que recebera, justificando a sua súbita liberdade de movimentos com uma licença especial que lhe fora atribuída para tratar de papéis, no âmbito das funções burocráticas que desempenhava. Não via razões para lhe aumentar a ansiedade e destruir a felicidade que ela sentia por tê-lo mais tempo consigo.
O capitão passou vários dias a estudar mapas e a analisar fotografias aéreas, identificando todas as linhas de comunicação no sector inimigo, incluindo bifurcações e cruzamentos, mais a posição conhecida de minas, postos de atiradores, ninhos de metralhadoras, posições de morteiros e artilharia. Este foi, de resto, um exercício particularmente difícil, uma vez que, do ar, a leitura do terreno revelou-se complicada, só se viam crateras, manchas e linhas dentadas. A confusão era tal que decidiu pedir ajuda a Tim Cook.
"Você sabe", explicou o tenente inglês, "quando são vistos de cima, os objectos têm um aspecto diferente daquele que apresentam quando os vemos do solo."
"Mas como é que eu entendo isto?", desesperou Afonso, exibindo uma ininteligível fotografia aérea da terra de ninguém e das posições alemãs diante de Fauquissart.
Tim agarrou na fotografia e analisou-a com cuidado. "Nós temos especialistas que passam a vida visitando as linhas que conquistamos aos jerries e comparando a perspectiva do solo com a perspectiva aérea", murmurou o inglês, sempre a estudar a fotografia. "Aprendem assim a perceber qual o aspecto que uma coisa apresenta quando vista de cima". Apontou para uma linha dentada. "Está vendo isso? São trincheiras. "
Afonso suspirou de impaciência.
"Obrigadinho, ó Tim", disse com ironia. "Até aí já eu tinha chegado. O problema é o resto. "
O tenente apontou para uma cratera.
"Essa aí é uma posição de metralhadora e essa outra de artilharia ", garantiu.
"Como é que sabes?", admirou-se Afonso, que perscrutava intensamente a fotografia. "Só vejo aí uma cratera, não vislumbro metralhadora nenhuma, nem qualquer canhão."
"Você não esqueça que eu estive muito tempo envolvido na fotografia aérea quando voava no Royal Flying Corps" Apontou para um ponto na imagem. "Está vendo essa linha mais clara que está saindo da cratera?"
"Sim?"
"Isso é a prova de que essa não é uma cratera qualquer. Essa linha é um caminho e significa que a cratera tem uso. E não me estou referindo a um uso para plantar batatas, não. Estou- me referindo a metralhadoras e artilharia."
"Hum", foi tudo o que Afonso conseguiu dizer.
"E isso aí, está vendo? ", perguntou Tim, apontando para outras manchas. "São abrigos e latrinas. E ali está arame farpado."
Com as fotografias devidamente interpretadas e a respectiva informação passada para o mapa, Afonso foi visitar as linhas para observar a área onde tencionava desencadear a operação. Tomou nota do sítio onde se encontravam os drenos, os pontos de difícil passagem, os renques de árvores, as posições de arame farpado e a localização de crateras para abrigo em caso de necessidade. Munido de um telémetro, mediu distâncias através de um engenhoso sistema de triangulação ocular, os olhos fixos no óculo, e foi registando as coordenadas. Inspeccionou postos de artilharia e ninhos de metralhadora, estudando as suas posições de tiro, e consultou os relatórios sobre as anteriores operações lançadas contra as posições inimigas, procurando extrair lições dos sucessos e fracassos.
A vida com Agnès assumiu entretanto aspectos de verdadeira vivência conjugal. A francesa já não estava hospedada no hotel de Merville. Tinha alugado um anexo de um casarão nos arredores de Béthune, a importante povoação mesmo a sul do sector do CEP. Encontrava-se aí instalado o quartel-general do Corpo do Exército britânico, que guarnecia as linhas à direita das forças portuguesas, a sul de Ferme du Bois. Beneficiando da sua licença especial, Afonso passou a pernoitar em Béthune, quase fazendo vida conjugal com a francesa. Levava para o anexo delícias portuguesas que comprava na Cantina Depósito e que lhe transportavam para a Flandres os sabores da sua terra. Apresentou a Agnès o Ermida tinto maduro, o Bucellas branco e o Amarante verde, todos a menos de dois francos, mais um porto de 1870 que adquirira por oito francos. Também lhe deu a experimentar a ginja, que comprou a cinco francos, e ainda a bolacha Maria, cuja lata de um quilo lhe custou a astronómica quantia de dezoito francos. Beberam água Vidago-Sabrozo e o capitão entre-gou-lhe bacalhau, que comprou a quatro francos e cinquenta cêntimos o quilo, ensinando-a a cozinhá- lo segundo uma receita que lhe rabiscara o Matos, o cozinheiro do batalhão.
Por vezes iam os dois visitar as tendas da YMCA para uma sessão de cinematógrafo. Nesse final de Inverno assistiram ao sensacional Le mystère d'une nuit d'été, um melodrama romântico com Yvette Andreyor lavada em lágrimas do princípio ao fim, e ao exótico Cleopatra, com a sensual Theda Bara no prin cipal papel. Mas a pièce de résistance era, inevitavelmente, o grande Charlie Chaplin, que emergia depois do newsreel, o bloco de notícias da Pathé, para desencadear um terramoto de gargalhadas na tenda sobrelotada de soldados.
Durante este período, o capitão encontrou-se várias vezes com Mardel e com Montalvão para fazer um ponto da situação. O tenente- coronel foi-o mantendo a par da evolução dos acontecimentos, e a verdade é que cada vez havia mais coisas a relatar. Os diversos batalhões davam conta de um aumento da actividade das patrulhas e da artilharia inimiga, aumento que começou a ser notado sobretudo a partir do final de Fevereiro.
"Os boches sabem que estamos de rastos", confidenciou Mardel com preocupação, exibindo uma mão-cheia de relatórios de operações e informações. "Capitão, preciso dessa operação para breve."
"Daqui a alguns dias apresento-lhe o plano", prometeu Afonso. "Acha que este aumento da actividade inimiga traz água no bico?"
"Afirmativo. Eles estão a preparar alguma. O quê, não sei, mas lá que os tipos andam a preparar alguma, lá isso andam."
Afonso voltou às linhas para ultimar o plano. Sabia que, antes de o apresentar, teria ele próprio de efectuar uma patrulha pela terra de ninguém para reconhecer o terreno. Essa era uma actividade geralmente reservada aos soldados, todas as noites as forças portuguesas efectuavam mais de uma dezena de patrulhas e era relativamente raro ver oficiais a acompanhá-las. Mas, imper-tigado pelos confrontos verbais com o Cenoura e preocupado em elaborar com cuidado um plano para o raide, o capitão decidiu chefiar uma patrulha daí a três noites. Foi ter com o sargento Rosa e ordenou-lhe que preparasse um grupo de homens para a acção.
"Quero aquele matulão que consegue carregar a Luisa", fez questão de indicar.
"Quem, meu capitão?"
"Aquele matulão, o grandalhão."
"O cabo Matias Grande, meu capitão?"
"Esse mesmo. O que acha dele?"
"O Matias é bom homem, bom soldado. É forte como um touro e esconde o medo, com ele os boches não fazem farinha. O pessoal gosta dele, sente-se seguro com o gajo por perto, os homens até combatem melhor quando estão ao lado do Matias."
"Então esse que venha. Esse e mais uns quantos."
"Exactamente quantas praças ao todo, meu capitão?"
"Homem, sei lá, umas cinco ou seis, não mais. Isto não é um raide, é uma patrulha de reconhecimento do terreno, tem de ser coisa discreta. Olhe, vou eu, vai você, vai o cabo latagão e mais uns três" Somou com os dedos. "Seis."
"Vou chamar os homens do Matias, meu capitão."
"Eles são bons?"
"Sim, meu capitão. O meu capitão chegou a comandá-los quando houve aquele ataque dos boches no ano passado ali em Neuve Chapelle. "
"Ah, já me lembro", exclamou Afonso, fazendo uma expressão de reco-nhecimento. "Eram bons, eram. Como é que eles se chamam?"
"São só três, meu capitão. O pelotão está muito desfalcado, temos de meter mais homens. Mas Lisboa não manda ninguém..."
"Adiante, homem", impacientou-se o capitão. "Diga lá como é que eles se chamam."
"Tem lá o Vicente Manápulas, que é um bocado refilão, protesta muito, é daqueles homens que fervem em pouca água e passa a vida a agoirar, até enerva. Mas na hora do aperto é teso que se farta, pode estar certo. O Baltazar Velho é uma espécie de paizinho do grupo, preocupa-se com o conforto e dá-lhes estabilidade. O problema é que é um lambuzão, só pensa em comida, e com esta dieta de corned-beef isso às vezes é mau para o moral. E o Abel Lingrinhas é do tipo calado, metido consigo. Não tem muita iniciativa, embora faça tudo o que lhe dizem. Pode estar borrado de medo, mas não se pira quando as coisas escacholam. "
"Está bem, esses que venham"
Afonso passou dois dias em nervosa actividade, preparando em pormenor a patrulha na terra de ninguém. Na manhã de 2 de Março, um estafeta foi chamá-lo e o capitão apresentou-se no quartel-general da 2. a Divisão, em La Gorgue, onde o mandaram sentar numa cadeira junto à entrada. Ficou quatro horas à espera, sem que ninguém lhe dissesse o que quer que fosse. Pela uma da tarde, Eugénio Mardel irrompeu apressadamente no edifício. Afonso ergueu-se num salto e fez continência. O tenente-coronel emitiu um grunhido maldisposto e fez-lhe sinal com a cabeça para o seguir. Percorreu o corredor em silêncio, entrou no gabinete e caiu pesadamente sobre a sua cadeira. Suspirou e ficou a aguardar que Afonso se sentasse.
"Então já sabe da merda que houve esta manhã? ", perguntou-lhe finalmente, com ar cansado.
"Não, meu tenente-coronel", admirou-se Afonso. "O que aconteceu?"
"Os boches fizeram-nos um raide em Neuve Chapelle e a coisa correu mal." Abanou a cabeça com ar desanimado. "Caíram-nos com tudo em cima. Artilharia, gases, morteiros, metralhadoras. Depois assaltaram as nossas posições em Chapigny em vagas sucessivas, ocuparam a primeira linha, chegaram às linhas de suporte e andaram para ali a passear-se durante duas horas, até a nossa artilharia os obrigar a retirar. "
"Sofremos muitas baixas? "
"Muitas." A cabeça abanou afirmativamente. "Muitas. Perdemos mais de cem homens."
"Porra."
"Os gajos caíram em cima de Infantaria 4, de Faro, e de Infantaria 17, de Beja. Fala-se até em cento e cinquenta baixas, entre mortos, feridos e prisio-neiros." Fez uma pausa. "É uma merda!"
Afonso mirou o mapa das trincheiras, pregado na parede do posto.
"Conheço bem Chapigny. Já estive no Dreadnought Post e no Grants Post, mesmo atrás. "
"Passei a manhã numa reunião do comando para analisar a situação e discutir as nossas opções", disse Mardel, como se não tivesse escutado Afonso. "Tenho boas e más notícias para si. Quais quer ouvir primeiro? "
O capitão fez um trejeito nervoso com a boca.
"Se calhar, é melhor começar pelas más. "
"Muito bem", assentiu Mardel. "O general Simas esteve a discutir o seu raide com o general Tamagnini e decidiram não avançar. "
Afonso suspirou profundamente. Parecia um suspiro contrariado, feito de desilusão e frustração, mas era na verdade um suspiro de alívio, o capitão não tinha vontade nenhuma de avançar a peito descoberto pela terra de ninguém, debaixo de uma chuva de balas e estilhaços, nem alimentava ambições de grandes actos de bravura. Queria era viver, sobreviver se necessário, mas sobretudo saborear todos os momentos, deleitar-se com cada instante, procu-rava apenas os prazeres simples que a vida lhe concedia, os pequenos nadas, comer um bacalhau, beber umas cervejolas, dormir numa cama de palha, amar Agnès. O projecto de raide não o entusiasmava, era uma mera obrigação de militar, um risco estúpido e desnecessário, o capricho de um cachapim da retaguarda que fantasiava feitos de glória arriscando a vida alheia. Mas não o podia confessar. Por isso, simulou desapontamento.
"É pena", lamentou com disfarçada satisfação. "Sabe dizer-me por que razão decidiram assim?"
"Afirmativo", exclamou Mardel. "Foi emitida há dias uma ordem do Exército britânico a colocar em prática um acordo de Janeiro entre os governos de Portugal e da Grã-Bretanha. O acordo prevê a dissolução do CEP como corpo autónomo e a sua integração num corpo de exército britânico, sendo tratado como se fosse uma formação inglesa. O CEP ficará com uma divisão nas primeiras linhas e a outra irá para o descanso. Como a 1. a Divisão está há mais tempo nas trinchas, será ela a descansar. Ora, à luz dos acontecimentos de hoje, o comando decidiu lançar mesmo um raide e, uma vez que a 1. a Divisão está de saída, o comando entendeu que ela deveria sair em grande. Tendo de escolher entre um raide de Infantaria 8 e outro de Infantaria 21, o comando optou pela proposta do 21, uma vez que essa unidade pertence à 1. Divisão. "
"Que sorte que esses gajos tiveram", comentou Afonso, já descontraído." O 21 é donde?"
"É malta da Covilhã. "
"Mas que grande vaca! Vê-se mesmo que nasceram com o cu virado para a Lua. "
Mardel sorriu pela primeira vez.
"Mas, ó capitão, tenho também boas notícias para si." "Ah pois", excla-mou. Se as más notícias tinham sido assim tão boas, Afonso ficou com curio-sidade para saber se as boas poderiam ser ainda melhores. "Então conte lá."
"O general Simas intercedeu veementemente por si e obteve uma concessão do general Tamagnini e do general Gomes da Costa. "
"Uma concessão? "
"Afirmativo. O general Gomes da Costa aceitou que um pelotão do 8 fosse incluído no raide do 21"
"Como assim?"
"Ó homem, será que tenho de lhe explicar tudo? Você também vai participar no raide, caraças!" Estendeu-lhe a mão. "Parabéns Agnès veio nessa noite algo diferente." Afonso estava sentado na cama a fumar um Tagus e a consumir-se com o pensamento de que iria mesmo participar no raide quando sentiu a porta abrir-se e viu a sua francesa entrar. Ela vinha com um elegante jersey de malha e um casaco de lã azul sem gola e abotoado à frente. Agnès sorriu fracamente, sem convicção nem espontaneidade. Os lábios esboçaram o sorriso, mas os olhos verdes mostravam-se carregados de preocupação. Pousou dois sacos à entrada, fechou a porta e veio dar-lhe um beijo.
"Salut, mon mignon", saudou-o.
Afonso devolveu-lhe distraidamente o beijo e ficou sentado na cama a vê-la dirigir-se à banca da cozinha e a preparar o jantar. Em circunstâncias normais, ele teria de imediato notado que havia algo de anormal naquele comportamento, que ela não estava em si. Mas aquelas não eram circunstâncias normais. O capitão passou o último mês angustiado com a perspectiva do raide que andava a preparar e dividido quanto ao que poderia contar-lhe. Deveria dizer-lhe que iria participar num ataque às linhas alemãs? O mês esgotou-se rapidamente, e agora, com o raide na iminência de ser efectuado, a angústia tornou-se profunda e deixou-o cego ao mundo em redor. O tenente-coronel Mardel revelara-lhe que a operação fora marcada para 9 de Março, daí a exactamente uma semana, e que ele teria de se articular com os homens do 21. O anúncio significava que o capitão teria de tomar uma decisão em relação ao que dizer a Agnès. Passou as últimas horas a ponderar o assunto e sentia-se inclinado a nada lhe contar. De que serviria mortificá-la com a notícia?
O que tinha a ganhar com isso, a não ser uma semana de ansiedade partilhada? Por outro lado, considerou que talvez aquela fosse a sua derradeira semana juntos, talvez não a voltasse a ver, e interrogou-se se teria o direito de lhe ocultar essa informação.
Embrenhado nos seus pensamentos, Afonso demorou a perceber que Agnès se encostara à banca num pranto silencioso. Os olhos viam-na, mas o cérebro não registava. Até que, sem que o esperasse, uma imagem das lágrimas da francesa se intrometeu na complicada cadeia de raciocínio que lhe consumia a mente. O capitão estremeceu, como se acabasse de despertar, e viu-a com olhos de ver, viu-a curvada na banca a chorar baixo, uma mão diante da boca, os olhos cerrados e brotando delicadas gotas que deslizavam devagar até ao queixo. Ergueu-se num salto, surpreendido e alarmado, e foi abraçá-la.
"O que se passa, mon petit choux? "
Ela soluçou e fixou os olhos no soalho.
"C'est rien, c'est rien. "
Afonso suspeitou de que ela tinha sido informada do raide. Admirou-se por constatar que uma informação tão secreta estivesse já a circular entre os civis, parecia impossível, mas depois lembrou-se de que Agnès trabalhava no hospital, e num hospital sabe-se tudo.
"Tem calma", soprou-lhe ao ouvido. "Tem calma. " Ela encostou-se ao seu corpo e Afonso sentiu-a tremer. Pegou-a ao colo e levou-a para a cama, deitou-a com delicadeza e limpou-lhe as lágrimas. Agnès estava vermelha, a face molhada, os olhos verdes a brilharem com intensidade, mais bela do que nunca. Esboçou um sorriso doce, confortado.
"Merci, mon mignon. "
O capitão sentiu-se derreter com o calor suave daquelas palavras. Beijou-a nas bochechas e nos lábios húmidos, passou-lhe os dedos pelos cabelos longos e encaracolados, deslizou o indicador pelo nariz arrebitado e molhado.
"Diz-me o que te apoquenta. "
Agnès ergueu-se lentamente na cama, sentou-se e fixou em Afonso os seus olhos cristalinos e enamorados, mas neles via-se também preocupação, vislum-brava-se receio. Pegou-lhe na mão.
"Alphonse, tu amas-me?"
"Bien súre, minha fofa."
"Mas amas-me mesmo, Alphonse? Amas-me de verdade?" Afonso franziu o sobrolho, espantado com a intensidade dos sentimentos que nela detectava.
"Claro, minha santa. O que se passa?"
"Amas-me como um soldado que amanhã me esquecerá ou como um homem que nunca me deixará?"
"Que pergunta, meu amor! Claro que nunca te deixarei, só se fosse louco. Amo-te com todas as minhas forças."
"Vraiment?"
"Sim, amo-te acima de tudo, acima do meu ser. Tu és o ar que eu respiro, a alma que me preenche, a luz que me guia, a vida que me faz viver."
"E o que vai ser de nós quando a guerra acabar?"
"Quando a guerra acabar, ma petite, eu fico aqui contigo. Fico aqui ou levo-te comigo. Nunca nos separaremos."
A francesa fez um hum hum com a garganta, afinando a voz.
"Alphonse", disse ela.
Hesitou e deixou a frase suspensa no ar. Fez-se silêncio.
"Sim"
"Alphonse", recomeçou Agnès. "Fui hoje ao doutor Almeida."
"Quem?"
"Fui ao doutor Almeida, um médico lá do hospital."
"Ah, sim. Je suis enceinte. "
" Como?"
"Estou grávida"
Os bocejos pareciam contagiosos, sucedendo-se uns atrás dos outros, em sequência, os homens abriam a boca sucessivamente, aspirando o ar frio e húmido daquela madrugada de 9 de Março e expelindo-o num longo e vapo-roso suspiro. Afonso invejou o sono desses homens, só podia bocejar assim quem não tinha medo, quem não era consumido pela ânsia, quem não iria participar na operação. A artilharia trovejava havia quase uma hora, regando as posições inimigas, o horizonte acendera-se em fogo e, em pleno caos, pasme-se, havia homens a bocejar. O capitão olhou em redor e achou curiosa a diferença de postura dos soldados. As praças e os maqueiros da segunda companhia de Infantaria 21, serranos da Covilhã, encostavam-se modorrentamente aos parapeitos de Copse Trench, os olhos ensonados, era evidente que não iriam saltar para a terra de ninguém, cabia-lhes outra missão, os soldados iam guardar a primeira linha e cobrir os flancos da força de ataque e os maqueiros ficariam a assegurar a retirada dos feridos.
Mas já os outros, os que integravam a força de assalto, os que iam enfrentar a morte, esses agitavam-se bem despertos, nervosos e expectantes, os olhos dançando temerosamente em todas as direcções, as gargantas secas, a adrenalina a contaminar-lhes o sangue, a força a faltar-lhes nas pernas, um tremor invisível a consumir-lhes o ânimo perante o vulcão de fogo que se estendia à sua frente e para o qual se iriam lançar. Afonso sentia-se desgastado pelo medo, cansado da espera, desejava que tudo começasse depressa, não suportava mais a angústia de saber que iria combater. Se esse momento era inevitável, pensou, então que viesse já.
Olhou para Matias e admirou-se com o ar tranquilo que o cabo exibia, dir-se-ia estar convencido de que ia apenas dar um passeio até às linhas alemãs. Já o Lingrinhas agitava-se nervosamente, o corpo franzino a balouçar na penumbra como um pêndulo, irrequieto, os olhos saltitando por entre os clarões da artilharia, receosos, assustando-se com as sucessivas detonações que faziam trepidar o ar, parecia um pardal a tremer diante dos predadores.
Baltazar tinha as pálpebras cerradas, rezava decerto, os lábios agitando-se num leve murmúrio dirigido aos céus, o pensamento nos filhos que deixara em Pitões das Júnias. O capitão virou o pulso e consultou pela enésima vez o seu Pate Philippe de pulso, os ponteiros incandescentes indicavam agora as quatro e cinquenta e cinco.
"Faltam cinco minutos", disse Afonso. "Vamos ao conhaque. "
Os homens desenroscaram os cantis, satisfeitos por ocuparem a mente, por a distraírem da cacofonia de explosões e da enervante espera, alguns engoliram o rum em golos sucessivos, sôfregos, deixando gotas escaparem-se-lhes pelo canto das bocas e deslizarem até ao queixo, outros saborearam o álcool com forçada lentidão, muito compenetrados, como se aquela fosse a última bebida das suas vidas, o derradeiro prazer antes do extertor final. A cada trago faziam uma pausa para expirarem o calor que lhes crescia pelo ventre a cima; o medo ainda por saciar, engoliam mais um golo ardente.
"Aaaah!", exclamou Baltazar Velho. "Valente murrilha!"
Sentiram-se gradualmente mais calmos, tranquilos e descontraídos, o álcool subiu-lhes rapidamente à cabeça e dominou o medo, deixou-os serenos, invadidos por um sentimento de irrealidade, como se estivessem num sonho, o tempo abrandou, as batidas cardíacas desaceleraram e alguns esboçaram mesmo um sorriso.
"Esta bodega é porreira", comentou Afonso, piscando o olho a Matias.
"Vamo-nos a eles, meu capitão, vamo-nos a eles! ", devolveu o enorme cabo, esfregando as mãos de impaciência, era a espera que mais o afligia. "Temos de lhes dar a paga de anteontem. "
Matias Grande referia-se a um raide efectuado dois dias antes pelos alemães sobre Neuve Chapelle e Ferme du Bois, rechaçado por Infantaria 15, de Tomar, e Infantaria 22, de Portalegre. Apesar de a operação ter redundado num fracasso para o inimigo, aos oficiais portugueses não passou despercebido o facto de se ter tratado do segundo raide alemão no espaço de apenas uma semana e do primeiro a envolver um assalto simultâneo a dois sectores portu-gueses.
"Estás parv'ou quê?", cortou Vicente, olhando para Matias. "Ist'inda vai dar azar. Ai vai, vai. "
"Ó Manápulas, pára lá com os agoiros."
Afonso voltou a consultar o relógio. Faltavam dois minutos. Um sargento de Infantaria 21 aproximou-se dos homens do 8.
"Meu capitão, é melhor tomarem posição."
O oficial assentiu com a cabeça, fez sinal ao sargento Rosa e o pequeno grupo do 8 escalou o parapeito. Tacteando o terreno, os homens aninharam-se junto ao arame. O sargento do 21 juntou-se a eles e indicou um ponto invisível na escuridão.
"Não se esqueçam, vão por ali", disse. "O arame já está todo cortado e a via aberta."
"Por ali?", perguntou Afonso, preocupado em não se enganar. "Sim, por ali. Boa sorte."
O sargento voltou à trincheira, contente por não fazer parte da força de ataque. Afonso ficou colado ao chão lamacento, os olhos fixos no relógio de aviador que Tim lhe tinha oferecido pelo Natal. Sorriu ao lembrar-se de que aqueles mesmos relógios de pulso foram durante anos considerados meras peças de joalharia, adornos semelhantes a pulseiras só adequadas a senhoras. Se os irmãos o vissem ali naquela figura, pensou, chamar-lhe-iam rabicho. Mas a verdade é que a guerra tinha mostrado que esta era a forma mais prática de transportar um relógio, e ali estava ele, com um rude Patek Philippe suíço, tornado mais feio pela grelha de metal que protegia a montra dos estilhaços. Suspirou e assinalou o tempo.
"Um minuto."
O ponteiro dos segundos iniciou a última volta, progredindo inexoravel-mente, alguns homens rezavam baixinho, os olhos cerrados, os canhões rugiam, o ponteiro dos segundos começou a subir, tiques atrás de tiques, ponto a ponto para cima, Vicente fechou os olhos, Abel suspirou fundo, Matias desentorpeceu os braços, Baltazar fez o sinal da cruz, Rosa manteve-se hirto, o ponteiro subiu ainda mais e atingiu o cume, o fatídico 12.
"Vamos!", ordenou Afonso.
O grupo do 8 ergueu-se da lama e desatou a correr, primeiro com prudên-cia, procurando o caminho aberto por entre o arame, depois mais rápido, mais rápido, todos em correria pela terra de ninguém, às escuras, as pernas moles de pavor, o grupo a tentar chegar o mais longe possível antes de os alemães darem pela sua presença, mais rápido, força, força, os soldados seguiam pelo itinerário previamente estudado, o terreno inclinava-se para cima, ressoavam os cliques e claques metálicos das Lee-Enfield embaionetadas, dos cintos, das munições, das Mills, das botas, mais o arfar ofegante dos homens em esforço, alguns tropeçavam na escuridão, as pernas sempre moles, Afonso caiu num charco invisível e logo se levantou, desengonçado, interrogou- se mil vezes sobre o que estava ali a fazer, que disparate era aquele. O torpor do álcool desaparecera, aniquilado pela adrenalina fulminante, mas o sentido de irrealidade permanecia, a sensação de sonho ainda os invadia a todos quando soou o primeiro tiro de espingarda, ouviram-se gritos do lado alemão, era o alerta, surgiram mais tiros, quatro, cinco, dez, vinte tiros, um foguete ergueu-se em Sally Trench e explodiu no ar, era um very light a iluminar a terra de ninguém. A luz fantasmagórica do foguete encheu as trincheiras como um pequeno sol, resgatando da penumbra minúsculas figuras em movimento, viam-se agora os soldados portugueses a correr em direcção às linhas inimigas, tropeçando em buracos, caindo em crateras, esbarrando em obstáculos, mais de cem homens da primeira companhia do 21 e um punhado do 8 vinham de Ferme du Bois e avançavam a descoberto pela terra de ninguém em direcção ao inimigo, a Sally Trench, a Sapper Trench, a Mitzi Trench, as linhas alemãs aguardavam-nos. Mais very lights foram lançados para o ar, os alemães iluminaram o campo de batalha com sóis sucessivos, a noite fez-se dia, os tiros isolados das Mausers cresceram e misturaram-se à cacofonia da artilharia, as Maxims juntaram-se à festa e começaram a ladrar por toda a parte, voavam granadas e surgiram as primeiras explosões na terra de ninguém. E os portugueses sempre a correr, a correr, a correr.
A primeira linha alemã apareceu-lhes inesperadamente em frente, por detrás de uma derradeira vedação de espesso arame farpado.
"Alicates!", gritou Afonso logo que caiu junto ao arame com os seus homens.
Uma praça do 21 aproximou-se rapidamente e, as mãos protegidas por umas luvas muito grossas, começou a cortar o arame com urgência, claque aqui, claque ali, claque, claque, os fios metálicos contorciam-se, as agulhas do arame balouçavam com maldade, procurando rasgar a pele de quem as mutilava, mas o homem evitava-as com perícia e ia abrindo o caminho, devagar, devagar, todos impacientes, o homem do alicate não havia meio de se despachar, claque, claque, todos deitados no chão, cada um a vigiar o inimigo, um olho nos alemães, o outro no homem do alicate, claque, claque, o alicate sempre a cortar o arame, o céu iluminava-se com foguetes e no solo dançavam as sombras, zzziiimm, zzziiimm, as balas a cortarem o ar em zumbidos sucessivos, em sibilos metálicos, em assobios de morte, traiçoeiros e enervantes, claque, claque, zzziiimm, zzziiimm, claque, claque, zzziiimm, zzziiimm.
"Já está", anunciou por fim a praça, banhada em suor naquela madrugada gelada.
Os portugueses ergueram-se, penetraram temerosamente pelo caminho aberto pelo alicate, alguns rasgaram a pele nas pontas soltas do arame mas avançaram na mesma, saltaram à pressa para o buraco da primeira linha inimiga, as espingardas apontadas, os olhos atentos, procurando vultos ameaçadores, a trincheira parecia deserta mas o ar era sempre cortado por zumbidos, sibilos, assobios.
"Abriguem-se!", ordenou Afonso, sentindo as balas a zurzirem como moscas em redor.
Os homens anicharam-se às paredes. O capitão olhou em volta e viu praças do 21 misturadas com o seu pelotão do 8. Matias esticou a cabeça acima do nível do parapeito para lobrigar o inimigo, detectou clarões de armas a serem disparadas e logo se encolheu.
"Estão naquela direcção", indicou entre duas arfadas, apontando com a mão para a direita.
O cabo ajeitou a Lewis, respirou fundo para recuperar o fôlego, ergueu-se num ímpeto, apontou a metralhadora para o sector que identificara e começou a vomitar rajadas. Os outros homens, encorajados pelo exemplo de Matias, ergueram-se igualmente e dispararam as Lee-Enfield na mesma direcção. Os very lights continuavam activos, iluminando a batalha, e os portugueses viram os alemães lá ao fundo a fugir.
"Fogo à vontade! ", exclamou Afonso, a pistola na mão. A Lewis e as Lee-Enfield despejavam balas e balas sobre os fugitivos, alguns tombaram no chão, um ou outro ainda se levantou e retomou a corrida em dificuldade, a coxear, o fogo permaneceu intenso até os alemães que ainda se encontravam em pé saírem do campo de visão. Afonso chamou então o sinaleiro do seu grupo. O homem aproximou-se com o telefone na mão, o fio esticado desde as linhas portuguesas. Afonso fez sinal ao sargento Rosa.
"Larga o foguete de chegada "
O sargento pegou num very light e disparou-o para o céu.
O foguete explodiu em luz vermelha lá em cima, lançando uma claridade de sangue sobre as linhas. Outros very lights vermelhos explodiram à direita e à esquerda. Era o sinal convencionado para anunciar às linhas portuguesas que a primeira linha alemã se encontrava ocupada pelo CEP. Satisfeito com a indicação de que as coisas estavam a correr bem com os outros pelotões, Afon so pegou no telefone.
"Aqui pelotão do centro", anunciou o capitão pelo bocal. "Estamos em posição. Henrique. Repito. Henrique. "
"Henrique" era o nome de código para a artilharia portuguesa alongar o tiro para a retaguarda alemã. A ideia era fustigar o inimigo e evitar atingir as tropas portuguesas instaladas na primeira linha alemã.
Logo que a artilharia corrigiu o tiro, Afonso fez sinal aos homens e o grupo progrediu cautelosamente por uma trincheira de comunicação com o intuito de limpar o terreno, os soldados avançando curvados e de espingarda em riste. Matias ia à frente, a pesada Lewis nos braços, seguido do sargento Rosa e de Abel, atrás vinham Afonso, Vicente e Baltazar, mais os homens do 21. Viram um buraco à direita e hesitaram.
"Um abrigo", murmurou Matias para trás, a metralhadora apontada para um buraco aberto na base de um maciço bloco de cimento.
Afonso aproximou-se e verificou a entrada do abrigo sem se atrever a aproximar-se.
"Façam-me a limpeza disso."
O sargento Rosa disparou dois tiros para o interior e ficou a aguardar. Nada. Matias avançou, colocou o cano da Lewis pelo buraco e espreitou. Estava tudo escuro.
"Lanterna."
Afonso deu uma lanterna eléctrica ao sargento Rosa, que a colocou nas mãos do cabo. Matias acendeu a luz e verificou o abrigo. O clarão percorreu as paredes, viam-se estantes com livros nas paredes, fios eléctricos e lâmpadas penduradas no tecto. A luz da lanterna desceu pelo chão, iluminaram-se sofás, cadeiras, camas duplas com grossos cobertores, o soalho parecia seco. Ao fim de algum tempo, Matias deu-se por satisfeito e voltou a cabeça para trás.
"Não está cá ninguém", disse aos companheiros. De seguida, o cabo mergulhou no buraco e desceu para inspeccionar melhor o abrigo. Atrás dele seguiram os outros homens do 8 e alguns do 21, todos embasbacados com o bunker alemão.
"Ena, caraças, já me toparam isto? ", exclamou Baltazar. "Isto é um abrigo de reis! Porra! Que categoria! "
"É do camano", confirmou Vicente, sentando-se com visível prazer na superfície fofa do sofá. "Andamos nós a viver na lama e estes gajos a refaste-larem-se nestes palacetes. Sim senhor, ist'é qu'é vida! A eles tratam-nos bem. Já connosco é o qu'a malta sabe..."
"Se o pessoal tivesse um hotel destes, até nem me importava de andar nas trinchas", gracejou Baltazar. "Categoria! "
Afonso sentia-se igualmente surpreendido com a qualidade do abrigo, era, de longe, superior a qualquer coisa existente no CEP ou mesmo nas posições britânicas que visitara. Mas a estupefacção durou pouco. Tinha pressa em sair dali, completar a missão e regressar à segurança relativa das trincheiras portuguesas. Constatou que não havia documentos para apreender e decidiu abandonar o local.
"Vamos, vamos embora daqui! ", ordenou. "Vamos lá, vamos lá, rápido! "
Os homens saíram do abrigo e regressaram à trincheira de comunicação, restabelecendo-se a hierarquia anterior. Matias à frente, Rosa logo a seguir, os restantes atrás. A trincheira fez uma leve curva à esquerda e, no meio daquela escuridão iluminada pelos clarões da artilharia e pelos sucessivos very lights, o cabo detectou um vulto a desaparecer ao fundo.
"Boches! ", avisou.
O grupo parou por momentos e, após uma ligeira hesitação, retomou a marcha, Matias muito atento a qualquer movimento.
Trinta metros mais à frente, perto do sector onde tinha visto o vulto, deparou com novo buraco, desta feita à esquerda, na base do parapeito.
"Abrigo."
Mais uma paragem. Rosa repetiu o procedimento anterior e disparou dois tiros para o esconderijo. Ouviu-se barulho lá dentro e um tiro respondeu ao fogo português.
"Granadas", pediu Matias.
Rosa entregou-lhe duas Mills, Matias pegou numa, premiu a alavanca, puxou pela argola e arrancou a cavilha de segurança, atirou-a pelo buraco e repetiu a operação com a outra. Ouviram-se gritos em alemão, "achtung!", "was ist das?", "granate!", sucederam-se duas explosões, veio o silêncio, ouviu-se um gemido e Matias aproximou-se da entrada do abrigo, apontou a lanterna e viu estantes partidas, um corpo estendido de bruços, uma perna decepada, um outro corpo pendurado numa cadeira, um terceiro a mexer-se no chão, barriga para o ar, o ventre aberto e os intestinos a escorregarem-lhe pelas mãos, o homem a olhar surpreendido para as suas entranhas expostas. Ergueu os olhos e mirou Matias.
"Entschuldigen... Sie bitte!", disse, arfando. "Knnen Sie... mir helfen?" Respirou fundo. Gemeu. "Bitte... Kamerad."
Matias olhou para trás, para os seus companheiros. "O abrigo está limpo."
"Os boches?", quis saber Afonso. "Estão dois mortos e um ferido"
O capitão espreitou pela entrada e viu o alemão estendido no chão, a gemer.
"Coitado", comentou. "Já viram que ficou com as tripas de fora? Matias assentiu com a cabeça. "Não se safa. Está a bombar."
O alemão insistiu, o esgar perdido.
"Bitte." Arfou. "Kamerad." Gemeu. "Knnen... Sie mir. Helfen"
Afonso entendeu.
"Está a pedir ajuda", explicou. "Se calhar, é melhor dar-lhe um tiro, acaba-se-lhe já o sofrimento"
O capitão olhou em redor, como que a pedir voluntários. Matias baixou os olhos, os que estavam atrás fizeram- se desentendidos. Afonso voltou a mirar o alemão, ergueu a pistola, apontou-a à cabeça do homem, deixou-a apontada, aguardou, hesitou terrivelmente, pensou que era um acto de caridade, de mise-ricórdia, mas logo outro pensamento contrapôs, lembrando-lhe que ia matar alguém, que ia pecar, era talvez a sua reprimida consciência de seminarista a revoltar-se, pensou e hesitou, a hesitação prolongou-se, o alemão agonizante devolveu-lhe o olhar, percebeu tudo, os olhos azuis miravam- no aterrorizados, viam o abismo, viam o fim. Afonso suspirou e baixou a pistola. Não era capaz.
"Vamos embora", disse pesadamente, regressando à trincheira de comunicação.
O grupo avançou pelas linhas abandonadas pelo inimigo e chegou à Mitzi Trench. Mais abrigos desertos foram inspeccionados, todos revelando condições de habitabilidade infinitamente superiores às existentes do lado aliado. Afonso chamou os sapadores-mineiros da terceira companhia, igualmente envolvidos na operação, e os abrigos foram arrasados. Pouco depois, um very light verde iluminou o céu à direita. Era o sinal de retirada dado pelo comandante da operação, o capitão Ribeiro de Carvalho. Os homens regressaram à primeira linha alemã e Afonso voltou ao telefone do sinaleiro.
"Aqui pelotão do centro", anunciou. "António. Repito. António.
Tratava-se da palavra de código a informar que ia retirar. Devolveu o telefone ao sinaleiro e deu ordem de retirada. O grupo meteu pela brecha aberta no arame farpado, atravessou a terra de ninguém e regressou a Copse Trench, o ponto de Ferme du Bois donde tinham partido duas horas antes.
Afonso abandonou as linhas num estado de total exaustão e, tal como todos os homens que participaram no raide, beneficiou de uma dispensa de dois dias. Depois de apresentar um relatório ao major Montalvão, o coman-dante de Infantaria 8, requisitou um cavalo e foi até Béthune, ao anexo que se tinha transformado no seu lar. Deixou a montada amarrada a um carvalho, junto a um bebedouro, e caminhou ansiosamente para o cubículo alugado por Agnès. Estacou frente à porta de madeira tosca, procurou a chave no bolso, colocou-a na fechadura e entrou.
"Agnès"
Ninguém respondeu. Olhou em redor e verificou que tudo se encontrava bem arrumado e o anexo relativamente aquecido. A sua francesa tinha provavelmente ido trabalhar, mas deixara o anexo impecável antes de sair. Afonso fechou a porta, despiu o casaco, foi até ao bacio, mirou-se ao espelho, tinha o ar cansado, a barba por fazer, olheiras a ensombrarem-lhe os olhos. Pegou no jarro, despejou água fria nas mãos, lavou a cara, despiu a roupa imunda, tirou as botas enlameadas e as meias sujas, mergulhou os pés no bacio, a água estava tão fria que até os ouvidos lhe doeram, passou água pelo corpo, esforçando-se por retirar a lama seca que lhe cobria a pele, esfregou com sabão, voltou a passar água, depois mergulhou a cabeça na água barrenta, mais lama saiu, passou ainda uma toalha molhada pelo corpo, a tremer de frio secou-se apressadamente, colocou meias limpas, um pijama lavado, atirou-se para a cama e enroscou-se nos cobertores.
Uma superfície húmida, quente e macia colada às bochechas e um agradável e familiar aroma perfumado fizeram-no abrir os olhos. Viu uns lábios enormes à sua frente e levou dois segundos a compreender. Era Agnès que o beijava.
"Ça va, mon mignon? »
A voz era suave, quase uma carícia, e Afonso sentiu-se bem. "Olá mon petit choux", disse com voz de sono.
Reparou então que estavam na penumbra, tudo se encontrava escuro, a noite caíra, passara todo o dia a dormir. A francesa passou-lhe a mão carinho-samente pelo rosto.
"Então como foi a guerra hoje? "
Afonso hesitou. Quis contar-lhe tudo, relatar-lhe o raide, os mil perigos, o medo, os mortos e a história do alemão moribundo, ainda abriu a boca mas interrompeu-se a tempo, pensou que era pouco avisado estar a relatar-lhe a operação, ela ficaria assustada e passaria a viver em sobressalto mais do que já vivia, mais valia que continuasse a acreditar que o seu capitão estava agora unicamente encarregado de tarefas burocráticas nas trincheiras.
"Tudo normal", devolveu, fingindo-se despreocupado. "Muita papelada, muita papelada"
"Não fizeste des bêtises? "
"Non. "
"Não andaste atrás de demoiselles? "
"Nas trincheiras?
Ela riu-se.
" Oh la la! São as piores! ", exclamou, piscando o adorável olho verde.
"Ah sim, o que para lá mais há são mesmo demoiselles!", comentou Afonso com um sorriso amargo. "Parvinha "
Disse "parvinha" em português, e ela arregalou os olhos.
"Quoi?"
"Parvinha."
"est quoi, ça?"
"Parvinha? Uh... sei lá, é tipo... uh... parvalhone."
"Parvalhone?"
Afonso riu-se. Quando não sabia qual a exacta palavra francesa, afrance-sava uma palavra portuguesa, mas nem sempre saía bem.
"Não interessa", disse, desistindo de procurar a palavra exacta. "Como vai o pequerrucho? "
Agnès olhou para o ventre. A protuberância da gravidez era ainda minúscula.
"Oh, tem-se portado bem, é um amor."
"Temos de lhe escolher um nome. Já pensaste? "
"Oui", disse ela, fazendo-se séria. "Por que não Alphonse, como o seu papá? "Afonso? Não, vamos pensar noutro... "
"Temos sempre a hipótese do nome do meu pai. Como se diz Paul em português?"
"Paulo."
"Hum, parece italiano." Fez um ar meditativo, apreciando a sonoridade do nome. "Paolo. Gosto."
"Paulo", corrigiu Afonso. "Parece-me bem. " Deu-lhe um beijo. "Mas, olha lá, e se for menina?"
"Se for menina, temos duas hipóteses. Ou Michelle, como a minha mãe, ou então o nome da tua mãe. Como é que ela se chama mesmo?"
"Mariana. "
"Mariana então. Um desses dois. "
"Por que não Inês? "
"Inês? Que nome é esse? " "É Agnès em português. "
Agnès fez um trejeito de boca, pensativa.
"É uma ideia. Vamos amadurecer isso, afinal de contas temos tempo. O doutor Almeida disse-me que o parto só deve ser lá para Outubro "
Afonso fez nessa noite amor com intranquilidade, as imagens do raide, do alemão desventrado, da correria tresloucada, dos projécteis a sibilarem, tudo sempre na sua mente. Olhava Agnès e via a guerra, os mortos, as explosões, os disparos, os very lights, os gritos, a crueldade, o medo. Teve dificuldade em concentrar-se. Depois de saciarem os corpos, agarrou-se a ela como se a fosse perder dentro de instantes. Emocionado, pegou-lhe na mão e fitou-a nos olhos.
"Queres casar comigo? "
Agnès estremeceu e abraçou-o com força.
"Oui, oui", soprou. "Pensei que nunca irias perguntar.
Ele beijou-a nos lábios e sentiu-lhe a face molhada.
"Casamo-nos, temos o filho e vens comigo para Portugal. Vais ver aquele sol..."
Ela fungou.
"Oui."
"Vou pedir uma licença para casar. Que dizes de final de Abril?"
"Parece-me difícil."
"Porquê?"
"Alphonse, não te esqueças de que eu ainda estou casada. Já meti os papéis do divórcio, mas acho que só lá para o Verão serei uma mulher livre"
Afonso suspirou, conformado.
"Então será no Verão. O problema é que a Igreja não aceita divórcios...
"Não sejas bête. Não vês que eu não me casei pela Igreja?
"Como assim, não te casaste pela Igreja?"
"Com Serge casei-me na igreja, mas ele morreu. Com Jacques, que é ateu, casei-me na Conservatória de Armentières. Portanto, para a Igreja eu nem sequer sou casada, sou viúva.
"Mas isso resolve tudo", exclamou Afonso com entusiasmo.
"Assim sendo, casamos mesmo pela Igreja, comme il faut."
Pedimos ao capelão do Exército e fazemos a cerimónia ali na paróquia de Aire ou de Merville. "
"Não, aí não, é demasiado vulgar. Sempre sonhei num casamento gran-dioso. Por que não na Catedral de Amiens? "
"Na Catedral de... "
"A Catedral de Amiens é a maior de França, uma coisa magnífica."
"Muito bem, será na Catedral de Amiens", concordou. "Só é pena que a minha família não possa assistir"
Ficaram algum tempo agarrados um ao outro, em silêncio. De repente, Afonso pegou na vela que estava na mesinha de cabeceira, levantou-se, foi sentar-se à mesa, nu, cobriu-se com uma manta e rodeou- se da caneta, do tinteiro e de um papel de carta.
"O que estás tu a fazer? ", perguntou ela, apoiada sobre o cotovelo, na cama, admirada por vê-lo a escrever àquela hora.
"Vou escrever uma carta", limitou-se a dizer.
Agnès ficou a observá-lo, o seu homem curvado sobre a folha de papel a desenhar as letras com a língua entre os lábios, relendo baixinho o que escre-vera naquele idioma desconhecido, volta e meia pousava a ponta da caneta no tinteiro e voltava a escrever. Finalmente dobrou a folha, inseriu-a no envelope, passou a língua molhada pela cola, fechou o envelope e entregou-lho. A fran-cesa ficou a olhar para o sobrescrito, surpreendida.
"Escreveste-me a mim?", perguntou sem compreender. "Não, escrevi à minha mãe."
"Mas o que é que queres que eu faça com isto? Queres que a vá pôr no correio?"
"Não, não, isso seria mau sinal", disse-lhe ele. "Só deves mandar essa carta se me acontecer alguma coisa, entendeste? "
A francesa fitou-o com alarme e ansiedade.
"Se te acontecer alguma coisa?"
"Não te preocupes, é uma mera medida de prevenção. Estamos em guerra, eu ando nas trincheiras, em princípio não acontece nada porque estou encarre-gado da papelada, não de combater, mas nunca se sabe, não é? De modo que, se me acontecer alguma coisa, o que não penso que venha a acontecer, mas, se acontecer, tens aí o contacto da minha mãe com todas as minhas explicações. "
"Que explicações?"
"As coisas normais em tais circunstâncias. Quem tu és, que eu te amo, que quero casar contigo, que tens o meu filho no ventre, que ela deve dar-te toda a assistência de que precisares, que todas as minhas poucas posses vão para ti... tudo."
Agnès voltou a mirar a carta, atrapalhada.
"E a que propósito é que tu te lembraste disso agora, a esta hora?"
Ele abraçou-a.
"Sei lá, lembrei-me, pronto. " Deu-lhe um beijo. "Mas não te preocupes, ma mignonne, já te disse que não morro nem que me matem, vais ver. Nem que me matem. Aqui o teu Afonso é rijo como um carapau, está para lavar e durar. "
Depois de Agnès ter adormecido, o capitão permaneceu ainda longas horas desperto, a rever os acontecimentos da madrugada, segundo a segundo, imagem por imagem, emoção atrás de emoção. Sentia-se exausto mas, quando se foi deitar, tardou a adormecer, era a consciência que o apoquentava, a imagem do alemão com as entranhas de fora, a voz numa súplica de moribundo a ecoar-lhe na memória.
Teve vários pesadelos durante a noite, chegou a acordar transpirado, Agnès a acalmá-lo, "tout va bien, mon petit, tout va bien", sussurrou-lhe ela, mas quando acordou da última vez viu que a luz do Sol lhe entrava pela janela. Apalpou a cama, pro curando a francesa ao lado, mas a mão apenas encontrou o lençol, percebeu que ela já lá não estava, tinha ido trabalhar. Deixou-se ficar ainda uma meia hora na cama, meio para lá, meio para cá, no quentinho, na sorna, numa modorra gostosa, até que sentiu fome, bocejou e levantou- se. Era meio-dia. Vestiu uma farda lavada, colocou o sobretudo e saiu à rua.
Choviscava cá fora, mas o boné de oficial protegia-lhe a cabeça. Deu de comer e de beber ao cavalo, que permanecia atado à árvore, e seguiu a pé pela vila. A trovoada da artilharia mostrava-se nesse dia particularmente intensa e Afonso agradeceu aos céus por não se encontrar de serviço nas trincheiras. Cirandou pelas ruas de Béthune e foi a um estaminet muito frequentado pelos oficiais do CEP, a proprietária era madame Cazin, uma normanda rechonchuda e bem-disposta, boa compincha dos portugueses. Afonso sentou-se numa mesa à janela e a senhora Cazin trouxe-lhe uma marmite Dieppoise, um suculento prato da sua Dieppe natal, servido num tacho onde se misturavam peixe, mariscos e molho de natas, com uma tarte normande a rematar, tudu regado a poiré, uma bebida tradicional normanda feita a partir de peras. Estava já ele a trincar a maçã da tarte quando viu um rosto familiar entrar no estaminet.
"Psst, Mascarenhas", chamou. "Ó Mascarenhas! Mascarenhas! " O seu amigo transmontano da Escola do Exército, o sportinguista dos cinco costados que era segundo comandante de Infantaria 13, veio ter consigo.
"Ora viva, Afonso! Com que então por aqui? "
"Cá vamos. Senta-te, homem. "
O major Mascarenhas acomodou-se na cadeira em frente, a claridade da luz do dia a penetrar pela janela e a iluminar-lhe o lado direito do rosto.
"O que é que andas aqui a fazer?", perguntou o recém-chegado. "Deser-taste ou quê? Que eu saiba, o 8 está nas linhas e aquilo anda hoje bem quentinho."
"Pois anda, mas eu estou de licença, graças a Deus." "Ah sim? Quem é que tiveste de subornar, meu sacripanta?" "Não me digas nada, homem. Participei ontem de madrugada num raide à Mitzi."
"O quê? O raide do 21? Tu estiveste lá? "
"Estive pois. "
"Mas o que é que tu andavas a fazer no raide do 21? Mudaste de batalhão ou quê? "
"É muito complicado, Mascarenhas, muito complicado. Coisas de política dentro do CEP. Era uma operação da 1.a Divisão, mas o pessoal da 2.a também quis um quinhão e quem serviu de carne para canhão foi aqui o teu amiguinho"
"Ena, caramba", riu-se Mascarenhas. "Não me digas. Conta lá como foi aquilo "
"Correu mais ou menos"
"Mais ou menos? Fala-se num grande êxito, nos objectivos todos alcan-çados e numa catadupa de cruzes de guerra e promoções a caminho...
Afonso encolheu os ombros, cansado.
"Sim, sob esse ponto de vista não correu mal. No conjunto de todos os pelotões que participaram no raide, matámos um porradal de boches, fizemos um prisioneiro, destruímos um decauville e uma data de abrigos, não foi mal. "
"Vocês sofreram muitas baixas? "
"No meu pelotão, nenhuma. Mas, nos outros pelotões, mais de uma dezena de homens ficaram feridos, incluindo um alferes e um tenente. Acho que encontraram um abrigo que era um verdadeiro vespeiro de boches, mas mataram-nos todos. Ou melhor, quase todos, ainda prenderam um, vá lá. "
"Ouvi dizer que os nossos dois oficiais que ficaram feridos estão mal", comentou Mascarenhas em voz baixa. Fez- se, por um momento, um silêncio embaraçado, mas o transmontano depressa relançou a conversa em tom mais animado. "E tu? Viste muitos boches?"
"Nem por isso. Os gajos pisgaram-se, ainda apanhámos uns quantos em fuga e outros escondidos nos abrigos, mas nada de especial. "
"Espero que o raide tenha posto os tipos em sentido. Andam a ficar cada vez mais atrevidotes, com os ataques que nos lançaram nos dias 2 e 7. Já reparaste que os gajos intensificaram as operações?
"É, está a chegar a Primavera, a lama começa a secar e a coisa vai aquecer.
"Mas não são só os raides", insistiu o major. "Estive a ler os relatórios e reparei que os tipos intensificaram também as patrulhas, este mês já tentaram entrar várias vezes à sucapa na nossa primeira linha. Ora isso raramente acontecia antes."
"Ah sim? Não sabia disso..."
"E já notaste que a artilharia boche tem estado mais activa do que o normal?"
"Issu eu já tinha reparado. Interrogo-me sobre o que é que eles andam a congeminar. Aliás, o próprio Mardel anda preocupado, daí o raide que ontem fizemos. "
"Pois hoje as coisas voltaram a aquecer, o comando teve informações de que os gajos iam atacar a todo o momento e emitiu uma ordem para a nossa artilharia bombardear Piètre, Ligny le Petit e alguns sectores da retaguarda por alturas de Illies. De modo que, neste momento, vai para lá uma actividade danada."
Ficaram os dois a ouvir o rumor distante da artilharia, os canhões portu-gueses e alemães em fogo e contrafogo. Madame Cazin aproximou-se entre-tanto da mesa com a ementa. Mascarenhas consultou a lista e pediu umas andouilles com maçã. A dona do estaminet afastou-se e o major piscou o olho a Afonso.
"Não sei que treta é esta das andouilles, mas pelo nome parece uma ave. Será que são andorinhas?"
Afonso sorriu.
"Chouriço em tripas", disse.
"Tripas?"
"Recheadas de chouriço. E maçãs. Os normandos põem maçãs em tudo. "
"Normandos?"
"Sim, homem, normandos. Não sabias que a dona deste estaminet é normanda?"
"O quê? Aquela? Uma viking?"
"Não, homem, a Normandia é uma região de França aqui perto, junto à costa. Ela veio de lá, é só isso."
"Ah", exclamou. Fez uma pausa e ficou a pensar no prato que encomen-dara. "Não desgosto de tripas, nem de chouriço. Lá em Vila Real comemos isso e muito mais "
Permaneceram os dois calados, a olhar pela janela que se encontrava ao lado da mesa. Afonso bebeu o último trago do poiré.
"Sabes que mais me admirou quando andámos ontem a passear lá pela Mitzi?"
"O quê?"
"As trinchas dos gajos."
" O que é que têm."
"São de um luxo do caraças. Tudo bem tratado, o chão seco, sofás, beliches, livros, iluminação eléctrica, gramofones, relógios de pêndulo, tapetes, eu sei lá. Até vi um abrigo decorado com papel de parede, vê lá tu."
"Estás a reinar."
"A sério. Aquilo é incrível, parece que estão em casa, é tudo muito asseado, muito organizadinho. Além do mais, são de uma segurança a toda a prova. Os abrigos da linha estão cavados em profundidade, defendidos por paredes de betão e ligados uns aos outros por uma rede de túneis subterrâneos. Não dá para acreditar"
"Mas isso é mesmo assim? "
"É como te digo. O Tim já uma vez me tinha dito issn, só que eu não acreditei, achei que eram balelas. Mas agora que vi... "Como é que eles conse-guem ter isso tudo assim tão arranjadinho."
"Investiram muito nas instalações de defesa. Ao que parece, enquanto nós consideramos as trincheiras um local de passagem, um abrigo efémero enquanto não os obrigamos a recuar, eles consideram-nas um posto de permanência a longo prazo, um sítio donde nunca sairão. Os nossos comandos acham que temos de permanecer desconfortáveis para que tenhamos vontade de os expulsar, dizem eles que é para mantermos o espírito ofensivo. Já os comandos dos tipos pensam que a sua tropa tem de permanecer confortável para não ter vontade de recuar. De modo que, enquanto a malta está na pocilga, os gajos refastelam-se em sumptuosas mansões cavadas na terra."
Mascarenhas abriu as mãos com as palmas para cima, num gesto confor-mado.
"C'est la vie "
A mão direita curvou-se em garra, as unhas encardidas da sujidade preta da lama escura da terra, aquela lama viscosa e peganhenta que tudo invadia e tudo impregnava, insidiosa e tão omnipresente que a ela todos se tinham resignado. Vicente meteu a mão por baixo da camisa e coçou o ombro esquerdo.
"Porra p'rás pulgas!", exclamou, voltando o pescoço para o lado onde sentiu a comichão. Ergueu ligeiramente a camisa, pela gola, e espreitou para a borbulha vermelha nascida da picada do parasita. Acto contínuo, a mesma mão foi coçar o couro cabeludo, irritado pelos piolhos. Vicente passou os olhos pelo abrigo e suspirou de enervação. "Só mesm'a nós é que nos põem neste gali-nheiro", resmungou. "Quem viu os boches a viverem como fidalgos, lá nos seus palacetes subterrâneos, e quem nos vê p'rá'qui, neste buraco cheio de lam'e merda, deve pensar que somos parvos." Calou-se por instantes, a reflectir. "E sabem que mais? Somos mesmo. Somos parvos, som'uns grandes parvos por nos sujeitarmos a estas condições, e todos caladinhos, enquant'os cabrões dos oficiais s'abotoam c'as melhores instalações, os bons ranchos, as grandes vinhaças e as gajas boas, e s'estão a cagar p'ra nós. A cagar."
"Podes crer, Manápulas", concordou Baltazar, deitado no seu catre, os braços abertos e as mãos cruzando-se na nuca, a sustentarem a cabeça como almofadas. "Isto não é vida, não é vida. Andamos para aqui a arrastar-nos, manducamos umas rações mal amanhadas e, ainda por cima, temos de aguentar com estes bombardeamentos da porra que não há meio de pararem."
Lá fora, a artilharia dos dois lados encontrava-se nesse dia muito activa, mais do que o normal. É verdade que a actividade crescera nas duas últimas semanas, mas parecia agora prolongar-se para além do costume. Os canhões vomitavam granadas a um ritmo regular, sucedendo-se explosões em ambos os lados das trincheiras, não muito intensas, mas permanentes, uma detonação aqui, depois outra ali, e outra ainda. Não era uma barragem de ataque, mas um martelar de desgaste.
"Dizes bem, não param", queixou-se Abel, os nervos em franja. "Isto para mim é o pior. Há dois dias que não durmo. Não sei que bicho mordeu aos gajos, mas a verdade é que, desde que há umas semanas lhes deu para nos chatearem a toda a hora e nos atirarem com as garrafas de litro, os copos de meio litro, as abóboras e eu sei lá que mais, eu não prego olho. "
"P'ra mim, o pior são os barris d'almude", comentou Vicente, referindo-se aos projécteis de grosso calibre. "Quand'eles estouram, até os tomates se me tremem, caraças! "
Todos esboçaram um sorriso fatigado. A canhoada prosseguia, incansável.
"Os bombardeamentos são tramados, é verdade", insistiu Baltazar. "Mas a paparoca é que dá cabo de mim. " Sentou-se no catre e mirou os companheiros, num esforço para desviar as atenções do violento bombardeamento que se desenrolava no exterior. "Então não é que eu fui comprar um queijinho lá à Cantina Depósito, um queijinho que era uma categoria, hã? uma categoria de queijo flamengo, trouxe-o aqui para as trinchas e já me desapareceu todo? "
"Desapareceu, como? ", quis saber Matias, até ali entretido a limpar a Lewis.
"Desapareceu. Pendurei-o ali, apagámos a luz, fui bater uma sorna e, quando lá voltei, foi-se."
"Estás parvo ou quê? Então deixas o queijo para aí e depois surpreendes-te que ele tenha desaparecido?"
"Sim, claro que me surpreendo. Nunca imaginei que os meus maradas me gamassem comida, caraças "
"A malta? Gamar-te o farnel" Matias pôs o pano de limpar numa pedra e bateu com o indicador na testa. "Ó homem, tem mas é juízo! Não vês que isto está cheio de ratos?"
"E o que é que os ratos têm a ver com o meu queijo? " Matias ficou baralhado.
"O que é que têm a ver? Mas, se são ratos... "
"Quais ratos, qual porra! Estás a reinar comigo ou quê?" Baltazar levan-tou-se bruscamente, com grandes gestos, irritado. "Pois se eu pendurei o queijo! Pendurei-o, percebes? Aqui." Indicou com as mãos o sítio. "Estás a ver este gancho no tecto?" Tocou no gancho. "Amarrei o queijo e pendurei-o aqui no gancho. Como é que queres que os ratos tenham vindo buscar o queijo, hã? Como é que queres? Só se forem ratos voadores..."
"Ó Baltazar, tem mas é tino nessa cabeça!"
"Tino? Eu?"
"Sim, tino! Então não sabes que os ratos se penduram nos ganchos para chegarem à comida?"
"Penduram-se nos ganchos? Os ratos? Nos ganchos? Vai-te cardar! "
"Estou-te a dizer que se penduram em tudo, Baltazar. Tudo. Até nos ganchos."
"Já viste?"
"Por acaso, já."
Baltazar olhou-o com incredulidade.
"Estás a reinar."
"Estou-te a dizer que já vi. Uma vez, quando vocês estavam a trabalhar nas drenagens das trinchas e eu voltei sozinho de um serviço de sentinela, deixei uma baguette pendurada num saco pregado ao tecto. Fui-me deitar e, quando comecei a dormir, senti ratazanas a correrem em cima de mim. Passado um bocado, quis ir mijar. Acendi a vela e vi os ratos todos pendurados no pão, pareciam um cacho, as caudas pretas suspensas no ar. Ao verem a luz, largaram a baguette, caíram no chão e pisgaram-se todos, mas o certo é que eles estavam lá pendurados. Andei a investigar, a meter o bedelho nas coisas, vi-lhes os olhinhos a brilharem nos buracos e topei tudo. Eles montaram um sistema de túneis nas paredes das trinchas e põem-se à coca. Quando a luz se apaga, vai de saírem e atirarem-se à doida para a comida. A doida. Sentem-lhe o cheiro e saltam de todos os lados. Portanto, foi de certeza assim que eles também te limparam o queijo. "
"Homessa!", exclamou Baltazar, surpreendido. "Ora querem lá ver isto? É verdade que eles andam sempre por aqui a escarafunchar e à noite, quando a luz está apagada, aparecem mais. Mas nunca imaginei que conseguissem apanhar farnel pendurado no ar, caraças. É do camano!"
"Os ratos são uma merda! ", grunhiu Vicente, ainda a coçar as borbulhas das picadas das pulgas. "Também já não sei onde poss'esconder a comida. E fic'aqui quilhado quand'os sint'andarem por cima de mim durant'a noite. Os mais pequenos saltitam, s'estivermos ferrados nem se dá por ela, inda vá que não vá. Mas há os outros, aqueles gordos e anafados, tão a ver? Esses são mesmo pesados, catano, é difícil ignorá-los. Ainda por cim'às vezes escond'o pão debaixo d'almofada, p'ra eles não lhe chegarem, mas os cabrões não me largam, põem-se-m'a cheirar o cabelo. "
"É, parecem lontras", assentiu Abel com ar conhecedor. "Já repararam que, depois dos combates, os gajos andam mais gordos? Já repararam nisso, hã"
Calaram-se todos e ficaram momentaneamente a matutar nesta perturba-dora observação do Lingrinhas, embalados pelo som das explosões. Matias lembrou-se do cadáver que semanas antes tinha resgatado da terra de ninguém, meio comido pelas ratazanas, e estremeceu. Na altura não comentou o assunto com ninguém e preferia não o fazer agora.
"Mas por qu'é que não se faz um extermínio dos ratos?", perguntou Vicente, também ele arrepiado com a ideia de os ratos se alimentarem de carne humana. "Sempre s'acabava c'o esta praga..."
"O comando não deixa", respondeu Baltazar. "Consta que os maiorais acham que os ratos são úteis "
"Úteis? Os ratos? Úteis p'ra quê?"
"Os tipos acham que os ratos não deixam apodrecer a carne dos mortos, são úteis para a higiene ali da Avenida Afonso Costa", disse o Velho, projec-tando a mão direita vagamente em direcção da terra de ninguém.
"Porra, caraças!", vociferou Vicente, elevando a voz. "Só mesm'a mente dos porcalhões dos oficiais p'ra pensar numa nojeira dessas! Cabrões de merda! Marranos d'um raio! E o qu'é qu'eles diriam se lhes atirássemos umas ratazanas esfaimadas p'ra cima dos cornos, hã? Isso também não seria útil p'rá higiene das trinchas? Se calhar era melhor, livrávamo-nos d'uma vez por todas dessa corja de chupistas e paneleiros e íamos mas é todos p'ra casa! " Era nos momentos de irritação que Vicente mais se atrapalhava a falar e mais sílabas engolia. "Puta qu'os pariu!"
A artilharia calou-se nesse momento e os soldados respiraram de alívio. Matias arrumou a Lewis a um canto, sacudiu as mãos e ergueu-se, decidido.
"Malta", disse então. "Vamos lá tratar da saúde aos ratos." "Como assim, tratar-lhes da saúde?", admirou-se Baltazar. O cabo ignorou a pergunta.
"Abel e Vicente, vão lá fora buscar quatro pás." Os dois soldados ergue-ram-se, sem nada compreenderem, penduraram as máscaras antigás ao pesco-ço, não fosse o diabo tecê-las, e saíram do abrigo para executarem a ordem. Matias acocorou-se junto às provisões, tirou uma lata de corned-beefe e abriu-a. As praças regressaram, entretanto, com as quatro pás e ficaram a aguardar instruções. O cabo pegou em duas pás, ficou com uma na mão e entregou a outra a Baltazar. De seguida, espalhou um pouco de corned-beef pelo chão húmido do abrigo e olhou para os seus homens.
"Vamos apagar a luz. Quando os gajos aparecerem e vierem para aqui manducar a carne, à minha ordem começamos a aviá-los com as pás. Entendido?"
Todos murmuraram que sim e foram apagar os candeeiros. Logo que o abrigo mergulhou na escuridão, ouviu-se o habitual som das patinhas a percorrerem o soalho molhado e a convergirem para o local onde se encontrava a comida. Escutaram-se pequenos corpos a roçar uns nos outros, atarefados e gulosos, certamente que se amontoavam, sôfregos, esfaimados, disputando com ferocidade o mísero pedaço de carne.
"Agora! ", exclamou Matias.
Os quatro homens despejaram as pás sobre o molho invisível de ratos, acertaram no sítio onde estava a carne e ouviram guinchos a escaparem-se do chão. Sempre às escuras, reergueram as pás e voltaram a bater, desta vez usando o perfil da concha da pá como se fosse uma lâmina gigante, e bateram ainda mais uma e outra vez, por vezes as pás atrapalhando-se umas às outras, mas batendo na mesma. Ouviram os ratos a espraiarem-se pelo abrigo, em pânico, e a violência terminou tão depressa como começara. Sentindo a calma restabelecida, Baltazar reacendeu os candeeiros. A luz revelou pequenos corpos negros e castanhos estendidos no chão, ensanguentados, mutilados, contaram sete, dois mortos, três moribundos, dois feridos. Os que ainda mexiam foram prontamente aniquilados pelas vingativas pás. Terminada a matança dos sobreviventes, os soldados encheram as pás de corpos desfeitos de ratos e ratazanas e levaram-nos para as trincheiras. Chovia lá fora. Atiraram os corpos para poças de lama que se encontravam para além do parapeito e repararam que nesses charcos havia outros ratos, vivos, a nadar, os narizinhos espetados à superfície, todos a convergirem para os cadáveres recém-chegados.
"Que se comam uns aos outros! ", disse Baltazar com um esgar de nojo. "Bom proveito"
Soaram nesse instante as buzinas Strombos. O soldado colocou a máscara no rosto e apressou o passo em direcção ao abrigo. Vinha aí gás.
Afonso e Pinto foram na manhã de 18 de Março ao Laventie East Post para coordenarem o apoio às primeiras linhas. O regresso da Primavera tinha sido turbulento, com as posições portuguesas a enfrentarem sucessivos vendavais de bombardeamentos alemães. O inimigo lançou novos raides a 12 e nesse dia 18, reflectindo um aumento de actividade que provocou uma razia entre os depauperados efectivos portugueses. Quando o último raide terminou e os alemães retiraram, os dois oficiais seguiram pela Harlech Road em direcção a Red House, na Rue du Bacquerot. A meio da estrada, perto de Harlech Castle, cruzaram-se com o tenente Cook, que vinha em sentido contrário.
"What ho, Afonso, my lad!", cumprimentou o inglês, fazendo continência. Olhou para o Cenoura. "Como está, seu Pinto?"
"Viva Tim", saudou Afonso. "Por aqui?"
"É mesmo, estou preparando um report para o meu boss." "Isto está mau, hem?"
"Right ho", assentiu o tenente Cook sombriamente. "Not good, not bloody good."
"Anda, vamos ali tomar um chazito."
O inglês aceitou o convite e juntou-se aos dois portugueses. Caminharam pela Harlech Road, apanharam a Rue du Bacquerot junto a Red House e viraram à esquerda até Picantin Road, indo instalar-se em Picantin Post.
"Joaquim, chá para três", disse Afonso à sua ordenança ao entrar no posto.
O soldado foi aquecer a chaleira enquanto os três oficiais recém- chegados se instalavam dentro do abrigo do capitão, sentados em caixotes de munições. Cook retirou do bolso um cachimbo e um saquinho com o que parecia ser erva escura.
"Tabaco de Aleppo", explicou, notando o olhar inquisitivo dos portu-gueses.
O tenente inglês colocou o tabaco no cachimbo e juntou-lhe o lume de um fósforo. Afonso pigarreou.
"O que é que achas que os tipos estão a preparar? " " Quem? Os jerries?"
"Sim. "
O tenente inglês aspirou forte, com o fósforo aceso sobre o tabaco, e conseguiu puxar uma baforada de fumo. O aroma agradável do cachimbo perfumou o abrigo.
"Hard to say", disse finalmente. Aspirou mais um pouco e largou uma nova nuvem de fumo. "Não há dúvidas de que os jerries vão atacar em breve. No doubts whatsoever. O próprio Alto Comando já comenta isso abertamente. A questão é saber onde."
"Achas que será aqui?"
"Hardly." Ergueu-se e aproximou-se do mapa que se encontrava na parede. "Temos informações fidedignas que apontam para algures no sector de Arras, mais para o sul." Indicou com o cachimbo o ponto que referenciava Arras no mapa. "Aqui."
"Então por que é que estão a bombardear- nos desta forma todos os dias e a lançar estes raides? "
"O Alto Comando pensa que são manobras de diversão. Os jerries que-rem manter-nos no escuro, a tentarmos adivinhar qual o ponto que vai ser ata-cado. Por isso, reactivaram esta frente" "Mas sabes o que é que nós já notá-mos?", perguntou Afonso, remexendo-se desconfortavelmente sobre o caixote onde se encontrava sentado. "Os boches estão a regular o tiro sobre nós."
Cook fez um ar intrigado.
" Jhat do you mean "
"O fogo de artilharia não está a cair aleatoriamente. Antes pelo contrário, eles estão a disparar com muita precisão sobre determinados alvos. Por exemplo, andam a regular o tiro sobre estradas, cruzamentos e postos de comando. " Estreitou os olhos. "Dá a impressão de que estão a ensaiar. Para que é que lhes serve bombardearem estradas, a não ser para as referenciarem de modo a que, se lançarem um grande ataque, possam impedir a circula ção de reforços?"
"Isso é curioso", reflectiu Cook, sentando-se no seu caixote. "Confesso que me vou inclinando para a possibilidade de eles estarem tentando criar uma manobra de diversão, mas isso que você diz me deixa na dúvida." Aspirou o cachimbo e soltou mais uma lufada de fumo aromático. "Sabe, dá a impressão de que esses raides todos estão servindo para os sujeitos testarem as vossas defesas. Admito que eles lancem uma operação por aqui, mas olhe que vai ser coisa limitada, será só para nos xingarem, entendeu?"
Afonso e Pinto entreolharam-se. O capitão ergueu-se, foi buscar uma pasta que guardava debaixo do catre e voltou a sentar-se no caixote. Abriu a pasta e exibiu uma resma de folhas dactilografadas em papel químico, eram cópias de documentos.
"Estás a ver isto?", perguntou, levantando as folhas e agitando- as à frente do inglês. "São os nossos relatórios diários. São elaborados pelos oficiais da Brigada do Minho e referem-se à actividade aqui em Fauquissart, o sector à nossa guarda." Afonso pôs-se a folhear os documentos, lendo aqui e ali, mudando de folha, lendo mais um pouco, mudando novamente, e assim por diante. A certa altura parou numa folha, voltou para a folha anterior, de novo a seguinte, outra vez a anterior. "Cá está", exclamou finalmente. Apontou para o meio da página. "Olha para isto."
"What? "
Afonso leu o documento.
"Este é o relatório do dia 7 de Março, há menos de duas semanas. Nessa noite saíram várias patrulhas para a terra de ninguém, e diz aqui o seguinte. " Fez uma pausa para ler o texto. "Foi notado bastante ruído de viaturas à retaguarda das linhas inimigas." Ergueu a cabeça e fixou o inglês. "Ouviste? É a primeira vez que um relatório menciona a existência de ruído de viaturas na retaguarda alemã." Mudou para a folha seguinte. "Agora é o relatório de 8 de Março. " Começou a ler o trecho que lhe interessava. "Ouviu-se o rodar de vagonetas à retaguarda da primeira linha inimiga." Sem levantar a cabeça, passou à folha seguinte. "Este é o relatório de 9 de Março " Uma ligeira pausa. "Durante toda a noite foi ouvido o rodar de vagonetas à retaguarda da primeira linha inimiga " Nova folha. "Relatório de 12 de Março " Hesitou, surpreendido. "Olha, falta-me o de 10 e o de 11." Procurou na resma, foi para trás e para a frente, mas não encontrou. Encolheu os ombros, resignado. "Não faz mal, vamos ver o de 12" Curta pausa. "Todas as patrulhas informam que durante a noite houve grande movimento de viaturas à retaguarda das linhas inimigas e rodar de vagonetas. " Folha seguinte. "Relatório de 13 de."
"All right, all right, got it", interrompeu Cook. "Já entendi que há grande movimento de viaturas nas linhas alemãs. "
Afonso ergueu a cabeça e fixou-lhe os olhos.
"Exactamente. Eles estão a movimentar tropas à nossa frente. " "Pode ser muita coisa."
"Pode ser. "
"Pode ser que estejam movimentando forças para outros pontos da frente."
"Pode ser. Mas também pode ser que estejam a movimentar forças de outros pontos para aqui. Aliás, tudo isto coincide com o aumento dos bombardeamentos e dos raides inimigos sobre as nossas linhas. Basta somar dois e dois"
Joaquim entrou no abrigo com a chaleira a ferver e copos de latão. Os dois oficiais portugueses serviram-se, mas o inglês preferiu concentrar-se no cachimbo. Cook aspirou forte, os lábios a envolverem o bocal, mas não saiu fumo nenhum.
"Damn!", praguejou, inspeccionando o tabaco inserido no cachimbo. "Se apagou. "
Colocou o cachimbo de lado, irritado, e serviu-se de chá. "O problema é que esta actividade dos boches está a reflectir-se negativamente no moral das tropas", disse Afonso. "Eu notei", devolveu Cook. "Enxerguei sentinelas cochi-lando nas trincheiras, munições espalhadas pelo chão, à toa, parapeitos por reparar. Isso não é bom, não."
Afonso suspirou.
"Andamos aqui há demasiado tempo, demasiado. Olha, Tim, quando a nossa brigada entrou nas linhas, em Setembro, os boches tinham diante de nós a 219.a Divisão. Em Novembro, essa divisão foi rendida pela 50. a Em Janeiro saiu a 50.a e entrou a 44.a E este mês a 44. a foi descansar e temos agora pela frente a 81.a Divisão alemã. Ou seja, em seis meses eles colocaram ali quatro divisões diferentes, rodando os homens e deixando- os descansar. Pois nesses seis meses nós nunca descansámos e tivemos sempre de enfrentar tropas frescas. " Bebeu um golo de chá. "Mesmo as vossas forças têm estado sempre a ser rendidas. À nossa esquerda, desde Setembro, estiveram sucessivamente a 38.a Divisão britânica, a 12.a Divisão e agora a 57.a Divisão. E à direita sucederam-se, no mesmo período, a 25.a Divisão, a 42.a Divisão e agora a 55.a Divisão. E nós sempre na mesma, parece que criámos raízes. Como é que queres que o moral das nossas tropas permaneça elevado Hã?"
Cook assentiu com a cabeça.
"Vocês têm de ser substituídos, não tenho dúvida nenhuma. Nem eu, nem o Alto Comando. Aliás, essa é a minha recomendação ao meu boss. " Engoliu de assentada o resto do chá e ergueu-se. "Look, Afonso, tenho de ir andando para fazer meu report. Se eu tiver novidades, eu te digo, tá? " Fez continência. "Cheerio, old chap. "
Começou por ser apenas um rumor, alguém que disse que alguém ouviu dizer, e a palavra foi circulando de boca em boca, esvoaçando pelas trincheiras, saltitando pelos abrigos. No posto de sinaleiros, porém, o boato transformou-se em certeza.
"Sim, meu capitão, os boches lançaram uma grande ofensiva", confirmou o oficial de serviço aos sinais, um tenente.
"Onde? ", quis saber Afonso.
"Entre Arras e St. Quentin, meu capitão. "
Afonso dirigiu-se ao mapa.
"Hum, isso é em frente de Amiens", verificou, medindo as distâncias em relação a Armentières e em relação a Paris. "E como é que estão as coisas? "
"Acho que mal, meu capitão. Temos poucas informações, mas dizem que é o maior bombardeamento de sempre e que há uma maré de boches a avança-rem sobre os camones."
"Os gajos avançaram até onde?", quis saber Afonso, sempre com os olhos pregados ao mapa.
"Isso não sei, meu capitão."
Afonso sentiu um peso a libertar-se-lhe dos ombros. Corria o dia 21 de Março e aquela era certamente a grande ofensiva da Primavera. Os alemães davam o tudo por tudo para quebrarem as linhas aliadas e, mais importante do que o resto, não escolheram o sector do rio Lys para o fazerem. O capitão quase sorriu de contentamento, o pior cenário, aquele que mais temera e que mais o consumira, não se confirmara. Tim tinha razão quando dizia ter informações seguras de que os alemães iriam antes avançar no sector de Arras.
Reforçando a convicção de que já não havia motivos para recear uma grande operação alemã contra o CEP, a actividade do inimigo sobre as posições portuguesas diminuiu drasticamente de intensidade nos dias que se seguiram ao grande ataque do dia 21. As patrulhas ainda continuaram a registar enorme movimento de viaturas na retaguarda das linhas alemãs, mas a partir do dia 25 instalou-se a tranquilidade.
Afonso suspirou de alívio.
"O quê? Atacas com trunfo?", perguntou Afonso, olhando surpreendido para o sete de copas deitado sobre a mesa de madeira tosca.
É a manilha. Vá, vê lá se cobres isso, anda, desafiou o tenente Pinto com ar de troça.
O capitão retirou uma carta do seu jogo e lançou-a para a mesa. Era o ás de copas.
O tenente sorriu.
"Estás a ver como tinhas o ás, hã? "
"Tinha, pois", disse Afonso, recolhendo as cartas. "Tinha o ás e fiquei-te com a manilha. "
Pinto mirou o seu jogo. Sem levantar os olhos das cartas, voltou ao assunto que lhe interessava.
"Não percebo como é que eles planearam a ofensiva. " Abanou a cabeça. "Não percebo. "
"Quem? Os boches? ", perguntou Afonso, sabendo muito bem que era sobre os alemães que o tenente falava. "Se calhar, os nossos homens também deram uma ajuda, afinal de contas não os íamos deixar vir por aí em passeio, não é? "
"Mesmo assim."
Os dois oficiais jogavam às cartas ao princípio da tarde de 3 de Abril, sentados em sacos de terra junto a um dos postos de metralhadora de Picantin Post, a comentarem o fim da ofensiva alemã. O inimigo tinha chegado a tomar Ham e Bapaume, aproximando-se perigosamente de Amiens e Arras e lançando o pânico entre os aliados. Mas uma muralha improvisada, constituída inclusiva-mente por artilharia proveniente do sector do CEP, conseguiu travar o caminho aos alemães e a ofensiva esgotou-se.
Afonso preparava-se para lançar o três de copas e, desse modo, destrunfar o adversário quando um estafeta chegou de bicicleta e tirou um envelope do saco que levava a tiracolo. O capitão assinou o papel a acusar a recepção, pegou no envelope, rasgou a extremidade, tirou a folha que estava lá dentro e desdobrou-a. Era a Ordem R. O. /23. Começou a lê-la e um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
"O que é, Afonso?", quis saber Pinto, a quem não passou despercebida a reacção do amigo.
"Cenoura, meu caro, cheira-me que em breve vamos passear a Paris."
"Estás a reinar comigo", excitou-se o tenente, inclinando-se para a frente e estendendo a mão para pegar na ordem. "Mostra lá isso."
O capitão deu uma gargalhada e atirou o braço para trás, mantendo a folha fora do alcance do amigo, que se esticava para a alcançar.
"Calma", riu-se. "Calma. " "És indecente. Mostra lá... "
Pinto voltou a sentar-se, embora relutantemente, e Afonso leu de novo a ordem.
"Então é assim", disse, perante a expectativa do tenente. "Amanhã à noite, a 1.a Brigada sai da linha e vai descansar, sendo substituída pela 2.a Brigada. Depois de amanhã, a 3.a Brigada sai da linha e as que cá ficam esticam as suas forças para ocuparem o espaço que ela deixou. A 2. Divisão, reforçada pela 1.a Brigada, vai tomar conta de todo o sector, enquanto a 1.a Divisão irá finalmente repousar. E daqui a três dias passamos a ficar integrados no XI Corpo dos bifes"
O tenente hesitou.
"Não percebo por que é que estás assim tão contente", desabafou, decep-cionado. "Quem vai descansar é a 1.a Divisão, esses é que devem estar aos pulos. Nós ficamos aqui a amochar, qual é a piada?"
"A piada, meu caro Cenoura, é que isto significa que também nós iremos em breve descansar. Então não percebes que a 2.a Divisão, mesmo reforçada por uma brigada da 1.a Divisão, não pode ficar eternamente a aguentar um sector que antes era defendido por duas divisões? Os camones não vão nisso. Quando passarmos a integrar o XI Corpo, os gajos ficam a controlar-nos e, zás! substituem-nos logo. " Fez um gesto rápido com a mão, a acompanhar o "zás". "Eles sabem que estamos a dar as últimas. "
Foi a vez de Pinto sorrir.
"Sim, talvez tenhas razão", admitiu. "E onde é que fica a nossa brigada?"
"Essa, meu caro Cenoura, é a cereja em cima do bolo. A 2.a Brigada vai para Ferme du Bois, a 6.a para Neuve Chapelle e a 5.a para Fauquissart. E a Brigada do Minho, meu caro, a nossa Brigada do Minho sai daqui de Fauquissart e fica gloriosamente de reserva!"
O tenente deu uma entusiasmada palmada na coxa e riu-se. "Boa, boa! Boas decisões! É assim mesmo! Adeus Brigada do Minho, viva a Barrigada do Minho."
Uma hora depois, a Ordem R. O. /23 foi completada pela Ordem de Operações n.o 19, emitida pela Brigada do Minho com instruções detalhadas sobre o processo de rendição de forças. Este segundo documento, assinado pelo comandante interino da brigada, o tenente-coronel Mardel, estabelecia que a rendição ficaria completa em três dias, com Infantaria 8 a ser colocada em apoio e, logo a seguir, em reserva. O ambiente entre os minhotos desanuviou-se consideravelmente e Afonso mal podia conter a ansiedade por voltar a ver Agnès. O dia seguinte, 4 de Abril, voltou a ser tranquilo. Os homens quase só falavam nas rendições que se anunciavam, pressentindo nelas o prelúdio de um descanso mais prolongado, quem sabe o regresso a casa. Viam-se soldados a sorrir, a brincar, o pesadelo aproximava-se do fim.
Na manhã do dia 5, o capitão foi chamado a Laventie para uma reunião com o tenente-coronel Mardel. Os comandantes dos quatro batalhões do Minho e os restantes comandantes de companhias juntaram-se na sala de conferências do quartel-general, havia muitos sorrisos, algumas gargalhadas no burburinho animado da conversa, os oficiais estavam descontraidamente agarrados aos cigarros, vivia-se um ambiente festivo, alegre, aliviado.
O suave rumor das vozes foi interrompido quando a porta se abriu e Mardel entrou na sala. O comandante interino da Brigada do Minho vinha com o rosto fechado e ar grave. Cumprimentou- os com um gesto seco e mandou-os sentar. Os oficiais calaram-se e acomodaram-se em torno da grande mesa, subitamente inquietos, pressentiam problemas no olhar sombrio de Mardel.
"Oh diacho!", comentou Afonso para Montalvão entre dentes. "Vem com ar de caso."
Mardel aguardou que todos se instalassem. Afonso notou que ele tinha as sobrancelhas carregadas e um tique nervoso no nariz, não era bom augúrio.
"Meus senhores", disse enfim o tenente- coronel, olhando lentamente em redor. "Na noite passada, os homens de Infantaria 7 pegaram em armas e revoltaram-se."
Um murmúrio tenso percorreu a mesa. O 7, de Leiria, pertencia à 2.a Brigada e todos sabiam que essa era a única brigada da 1. a Divisão que não iria descansar. Mardel deixou a notícia assentar.
"As praças do 7 não aceitaram ficar na linha enquanto as outras brigadas retiravam. Segundo informações que agora me chegaram, os soldados recu-saram-se a marchar para Ferme du Bois, o sector que lhes estava destinado. Puseram-se aos tiros e impediram que Infantaria 23 e Infantaria 24 seguissem para as suas posições. " O 23 e o 24 também pertenciam à 2. a Brigada. "De modo que, meus senhores, lamento ter de vos comunicar que recebi ordens de St. Venant no sentido de que a Brigada do Minho terá de se manter em Fauquissart."
Os oficiais entreolharam-se, decepcionados. Todos pensaram no efeito que a notícia teria nos homens, já felizes por saírem da linha e serem colocados de reserva.
"Meu tenente-coronel, qual será a nossa disposição? ", perguntou o major Xavier da Costa, comandante de Infantaria 29, o outro batalhão de Braga.
"Fica tudo como está. Nas primeiras linhas permanecerão Infantaria 8, à esquerda, e Infantaria 20, à direita. Atrás teremos Infantaria 29 e Infantaria 3. "
"E a 5 a Brigada vai para Ferme du Bois? ", quis saber o major Montalvão, comandante do 8.
"Afirmativo. Irá substituir a 2.a Brigada. Para além de nós, quem se trama é a 3.a Brigada, que ia descansar e já não vai, fica de reserva por causa da revolta na 2.a Brigada "
Como era de prever, os homens não receberam bem a notícia. Ouviram-se insultos e protestos, mas, no fundo, todos compreendiam que o pessoal da 1. a Divisão tinha mais direito ao descanso do que o da 2. a Divisão, uma vez que se encontrava havia mais tempo nas linhas.
A preocupação de Afonso adensou-se nessa noite. O capitão mandou o sargento Rosa e o seu pelotão efectuarem uma patrulha de reconhecimento e ficou na linha da frente, junto à Great Northern Trench, a aguardar o regresso dos homens. Ouviu várias rajadas de metralhadora enquanto a patrulha se encontrava na terra de ninguém, o que o fez recear pela segurança dos homens. Ao fim de duas horas, porém, a voz de Matias, com a senha do dia, devolveu-lhe a tranquilidade. O enorme cabo saltou de regresso à primeira linha, seguido de Abel, do sargento Rosa, de Vicente e de Baltazar.
"Então? Tudo calmo? ", perguntou Afonso ao sargento. "Meu capitão, eles tiveram as costureiras muito activas, foi um pouco agitado "
"Eu ouvi-as. E quanto ao resto? "
O sargento fez um trejeito com a boca e olhou de relance para o resto da patrulha, o olhar ensombrado de apreensão.
"Não sei, meu capitão. Não sei. "
"Não sabes o quê? ", admirou-se Afonso.
Rosa suspirou.
"Sabe, meu capitão, estão a passar-se coisas estranhas do outro lado... "
"Coisas estranhas? Que coisas estranhas? "
"A malta ouviu o som de motores na retaguarda dos gajos, eram camionetas e camiões a passarem uns atrás dos outros, um movimento danado. " Rosa coçou a barba rala. "E ouvimos também um som diferente, assim catacá-catacá-catacá, parecia, sei lá, parecia um comboio. "
"Um comboio? "
Rosa olhou para Matias.
"Era ou não era um comboio? ", certificou-se o sargento.
Matias fez que sim com a cabeça, sem dizer nada, e os outros homens imitaram-no.
"Um comboio? ", interrogou-se Afonso, verdadeiramente intrigado. Olhou para Rosa. "E foi tudo? "
"Não, houve mais", indicou o sargento. "Vimos também muitos homens desarmados, lá ao fundo, e um grupo a consertar fios telefónicos. "
Afonso regressou pensativo e preocupado ao seu posto de Picantin. Foi falar com o tenente Pinto, comunicando-lhe as novidades, e decidiram ir ambos conversar com os homens que participaram nas patrulhas dos dias anteriores. Localizaram os soldados na manhã seguinte, 6 de Abril, e o que ouviram deixou-os verdadeiramente inquietos. As praças envolvidas nas acções de reco-nhecimento revelaram ter recomeçado no dia 2 a escutar o barulho de camiões a circular na retaguarda alemã. Os soldados falavam excitadamente num grande movimento de tropas inimigas e diziam ter visto homens a consertar fios telefó-nicos, a colocar tabuletas, a transportar madeira, a carregar sacos e caixotes, a montar crateras artificiais, a melhorar as vias de comunicação. Uma das praças afirmou mesmo ter observado um oficial alemão a estudar de binóculos as linhas portuguesas e a tomar notas, enquanto outras detectaram o uso de periscópios.
Imensamente alarmado, Afonso requisitou um cavalo e seguiu pela Harlech Road até Laventie. Apresentou-se no quartel-general da brigada e pediu para falar com o tenente-coronel Mardel. Após uma espera de apenas cinco minutos, o comandante interino da Brigada do Minho recebeu- o e Afonso comunicou-lhe todas as informações que tinha recolhido. Quando concluiu a exposição, Mardel sorriu.
"Você preocupa-se demasiado, caro capitão Brandão." Afonso corou, embaraçado.
"O senhor acha, meu comandante? "
"Então não hei-de achar? "
"Mas não pensa que estes sinais são preocupantes?" "Afirmativo. Penso que são preocupantes, capitão, muito preocupantes até."
O capitão ficou atrapalhado, sem entender a desconcertante reacção de Mardel.
"Mas então... "
"Os sinais são preocupantes, mas não para nós", cortou o comandante. "São preocupantes é para os bifes. "
"Para os bifes?", admirou-se Afonso. "Mas olhe que isto está tudo a passar-se à nossa frente, meu comandante, isto vai cair-nos em cima!"
"Negativo, capitão. Negativo. Vai cair em cima dos bifes. " Afonso hesitou.
"Mas... como é que..."
"Tenha calma, capitão, tenha calma", adiantou Mardel. Abriu uma gaveta da sua secretária e tirou umas folhas dactilografadas. "Está a ver isto? " Exibiu-lhe a primeira página e Afonso percebeu que era um documento redigido em inglês. "Isto é a Ordem de Rendição n.o 329, emitida esta manhã pelo general Haking, o comandante do XI Corpo britânico, e que me chegou há pouco aqui à brigada, há coisa de uns vinte minutos. E sabe o que é que diz? " Mardel fixou os olhos em Afonso, procurando captar-lhe a expressão quando pronunciasse a frase seguinte. "A Ordem de Rendição n. 328 determina a retirada da frente de combate de todo o corpo português. " Fez uma pausa dramática. "Todo. "
Afonso abriu a boca, tentando digerir o impacto da notícia. "Todo o corpo português? Vamos retirar? "
"Afirmativo, capitão Brandão. Vamos ser rendidos." "Mas ainda há dias."
"O general Haking veio visitar as nossas linhas", apressou-se Mardel a esclarecer. "Ele viu o estado das tropas e concluiu que os homens não podem continuar na frente, já não estão em condições. De modo que, meu caro, saímos nós e entra a 50.a Divisão britânica. "
"Mas isso é magnífico, meu comandante. Magnífico! " Afonso não se conteve de alegria. Efusivo, o capitão levantou-se da cadeira e, com entusiasmo, estendeu a mão para cumprimentar Mardel. O tenente-coronel devolveu o cumprimento e o sorriso.
"Daqui a dias, capitão, vamos a Paris, caramba, vamos às gajas! "
Afonso olhou pela janela e sentiu um aroma suave a encher-lhe os pul-mões, respirou aquela fragrância leve que lhe anunciava a liberdade há muito desejada, era um sentimento inexprimível e inefável, o coração dançava-lhe no peito, teve ganas de pular, de cantar, de correr, de sair porta fora e ir contar a Agnès a grande novidade, apeteceu-lhe abraçar Mardel e cheirar as flores, quis rir e chorar, dizer poemas e amar. As cores pareciam- lhe mais vivas, o ar mais perfumado, os sons mais melodiosos. Porém, a inesperada sombra de uma suspeita, furtiva e traiçoeira, toldou-lhe momentaneamente o espírito.
"Quando é que será a rendição?", perguntou, desconfiado.
"Começamos a sair na noite de 9 de Abril e completamos a retirada na noite seguinte. "
"9 de Abril?"
"9 de Abril."
Afonso contou mentalmente.
"Estamos a 6 de Abril." Sentiu os dedos com o polegar. Sete, oito, nove. "Três dias. " Descontraiu-se. "Faltam três dias."
O capitão Afonso Brandão estava entretido a arrumar as coisas no abrigo de Picantin Post, dois dias depois, quando Joaquim assomou à porta.
"Meu capitão, recebemos uma comunicação da brigada a dizer que o tenente Cook deseja falar consigo com urgência, pelo que se deve apresentar ainda hoje no quartel-general da 40. a Divisão britânica, em Fleurbaix. "
Afonso olhou para a sua ordenança, intrigado. Mas que raio de coisa teria Tim para lhe dizer com tanta urgência? Corria o dia 8 de Abril, tudo perma-necia calmo, na noite seguinte as forças portuguesas iriam ser rendidas, o que haveria assim de tão importante que não pudesse esperar mais vinte e quatro horas? O capitão ainda hesitou e admitiu a hipótese de ignorar o pedido, mas reflectiu melhor e considerou que aquele era um excelente pretexto para dar um salto à retaguarda e ir ver Agnès.
Requisitou um cavalo, na verdade uma égua, e abandonou Fauquissart. Quando chegou a Laventie, em vez de virar para norte, rumo a Fleurbaix, pros-seguiu para oeste. Foi ter ao Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, desmontou, deixou a égua junto ao portão e mandou chamar a enfermeira Agnès Chevallier. A francesa correu para ele mal o viu. Tinha uma bata branca, um uniforme concebido para reprimir a feminilidade das enfermeiras, mas naquele corpo o uniforme era manifestamente incapaz de lhe retirar a sensualidade. Agnès abraçou-o com força, beijaram-se na face, no pescoço, nos lábios.
"Salut mon mignon", disse ela finalmente, segurando-lhe o rosto com as duas mãos. "Estás bem? Já vieste da guerra? "
"Ainda não, mas tenho uma novidade para te dar", anunciou-lhe.
"Vraiment? Boa ou má? "
"Boa, boa", sorriu ele, tranquilizando-a. "Amanhã saímos das trincheiras e vamos para um longo descanso na retaguarda. Para mim, a guerra acabou. C'est fini! Zut! "
"Oh la la!", exclamou Agnès, os olhos verdes incendiados. Abraçou-o novamente com muita força. "Merci, merci, mon Dieu! Estou tão contente, não imaginas como estou contente. "
Soprou-lhe beijos nos ouvidos, dos lábios rosados saíram-lhe carícias e sussurros, palavras suaves e melosas.
"Meu amor", murmurou ele, os olhos cerrados, o corpo a senti-la comprimida a si.
"Estou tão aliviada!", suspirou Agnès. "Ah, oui, que bom, terminou o pesadelo."
Tiveram enorme dificuldade em despedir- se. Agnès acompanhou Afonso até ao portão, beijaram-se e abraçaram-se, sentiam-se radiantes. O capitão lá acabou por se encher de coragem e saltou para a sua montada. Afastou-se lenta e relutantemente. Ao fundo da rua, antes da curva, voltou-se uma derradeira vez para trás, viu Agnès pregada ao chão, as mãos cruzadas no coração, os cabelos castanhos-claros a reluzirem ao sol, trigueiros e cristalinos, um sorriso feliz desenhado nos lábios. Ergueram ambos os braços e disseram adeus. Afonso esporeou a égua e desapareceu na curva.
Uma hora e meia depois, o capitão português apresentou-se no quartel-general da 40. a Divisão britânica, em Fleurbaix, e pediu para falar com o tenente Timothy Cook. Tim apareceu pouco depois, descendo as escadas e indo ter com Afonso ao lobby.
"What ho, Afonso. Jolly good to see you! "
"Olá, Tim, estás bom? "
"Come on", convidou Tim, conduzindo Afonso pelas escadas. "És mesmo um camone", sorriu o português. "Então que coisa urgente é essa que me fez vir até aqui? "
O tenente inglês estacou num degrau.
"Temos informações... disturbing... como se diz?"
"Preocupantes."
"Right ho, preocupantes. Temos informações preocupantes." Recomeçou a subir as escadas, os olhos fixos nos degraus. "Desde o dia 31 de Março que a nossa aviação tem registado um movimento geral de tropas e artilharia alemãs para norte, congestionando estradas e caminhos de ferro. No dia 1 de Abril, um único aeroplano contou, em apenas duas horas, cinquenta e cinco comboios a convergirem para o sector imediatamente diante das vossas posições. Essa observação foi confirmada nos dias seguintes por outros aeroplanos. " Olhou de relance para o português. "Anteontem os aeroplanos verificaram que as estradas e linhas férreas mesmo à frente do sector português se encontravam engarrafadas com camiões e camionetas, e as nossas patrulhas viram os jerries a transportarem caixas e caixas de munições para as suas linhas de apoio. "
"Isso não é grande novidade para nós, Tim", retorquiu Afonso. "Há já algum tempo que percebemos que os gajos estão a montar um grande ataque neste sector. Mas esse, se queres que te diga, já não é um problema nosso. É vosso. Amanhã à noite, meu amigo, saímos das linhas. " Fez sinal de adeus com a mão direita. " Goodbye "
"wrong, Afonso, esse é um problema vosso", disse Tim, acentuando a palavra. Chegaram ao segundo andar e meteram por um corredor. "É um problema vosso e é um grande problema. "
O capitão olhou-o, perturbado. "O que queres dizer com isso? "
"Quero dizer que os nossos especialistas acham que os preparativos terminaram e que os jerries vos vão atacar agora com toda a força que têm."
Afonso sentiu o ar a faltar-lhe.
"Como... como é que eles podem prever isso? ", gaguejou. "Os boches podem só atacar daqui a alguns dias. Porquê justamente amanhã? "
"Por causa do que se está a passar hoje. "
"E o que é que se está a passar hoje? "
"Nada."
"Nada? Então qual é o problema? "
"O problema é que nada significa tudo. "
"Olha lá, estás parvo ou quê? O que queres tu dizer com isso?"Quero dizer que hoje não se passou nada nas linhas alemãs. Nada. "
"E então?"
Chegaram junto a uma porta e Tim imobilizou-se. "Afonso, quando estão decorrendo preparativos para um ataque, há sempre uma grande azáfama por detrás das linhas. No momento em que a azáfama pára, isso significa que os preparativos terminaram." Ergueu o indicador. "Eles estão prontos e vão atacar."
O capitão voltou a respirar com dificuldade. Suspirou pesadamente e olhou para o amigo com ar de súplica.
"Está bem, terminaram os preparativos, já percebi. Mas o que é que nos garante que eles vão mesmo atacar amanhã? Por que não noutro dia?
Tim não respondeu imediatamente. Rodou a maçaneta da porta e abriu-a, convidando Afonso a entrar. Era uma sala larga, cheia de actividade, havia mesas encostadas às paredes com enor mes aparelhos em cima e homens sentados com auscultadores a tomarem notas. Tim aproximou-se de um deles e disse-lhe para vagar o lugar. O homem ergueu-se, fez continência e saiu, e o tenente fez sinal ao capitão para se sentar.
"Este é um sistema que nós temos que nos permite interceptar as comuni-cações telefónicas entre os chrries", explicou, estendendo-lhe os auscultadores. "Se chamam Listening Sets. Como você fala alemão, estou certo de que achará essas conversas muito interessantes."
Afonso sentou-se na cadeira e colocou os auscultadores. Os ouvidos encheram-se-lhe de sons estranhos, metálicos, apenas se escutava estática, estalidos e assobios. O capitão aguardou um minuto, o barulho era permanente. Fez sinal ao tenente Cook, como quem diz que não havia ali nada para ouvir, mas Tim pediu-lhe paciência com um gesto. Afonso não teve outro remédio senão permanecer com os auscultadores colocados. Passaram-se dez minutos, quinze, vinte, as pálpebras começaram a pesar-lhe, tinha sono, ia-se deixando embalar pelo som da estática. De repente, uma voz ressoou-lhe aos ouvidos.
"Hallo, Spandau", chamou a voz.
"Jawohl", devolveu uma outra.
"Bleiben Sie am Apparat. "
"Vas ist das "
"Bleiben Sie am Apparat. Geben Sie mir das Kennwort. "
"Jawohl. "
Ouviu-se um sinal eléctrico.
"Hallo. Ist die verbindung in Ordnung? "
"Jawohl. "
Álso, jetzt gut aufpassen, auf keinen Fall von dem Aparat weggehen. "
Fez-se silêncio, mas Afonso permaneceu agarrado aos auscultadores, tenso, na expectativa, totalmente desperto, preso a cada palavra que fora pronunciada. O silêncio prolongou-se por cinco minutos, até que a primeira voz voltou à linha.
"Spandau. Passen Sie auf... Uhr 36. Ruben Sie Oberhalb an und geben Sie es weiter Passen Sie auf... 5 Uhr 36. Muss aber genau stimmen. "
Afonso retirou os auscultadores, horrorizado, os olhos vidrados de medo.
"Meu Deus! ", murmurou. "Eles estão a sincronizar os relógios.
Tempestade
Foi como se alguém tivesse ligado o interruptor. Num instante estava tudo calmo, sereno, silencioso. Ouviam-se rãs a coaxar junto aos charcos imundos e grilos a estridular nos descampados devastados. No momento seguinte, porém, a tempestade foi desencadeada com uma violência inaudita. Não foi primeiro um tiro, seguido de outro e de mais outro ainda. Foram os canhões em simultâneo a metralhar explosivos com uma intensidade brutal, numa cerrada barragem de fogo, como uma brusca maré que, sem aviso, galga terreno e invade a praia numa fúria destruidora, como uma orquestra que de repente rasga o silêncio e irrompe furiosamente numa infernal sinfonia.
Desde que regressara de Fleurbaix que o capitão Afonso Brandão tinha mergulhado num grande estado de ansiedade. Comunicou ao major Montalvão tudo o que soubera no quartel-general da 40.a Divisão britânica, mas o coman-dante de Infantaria 8 não se mostrou muito preocupado, provavelmente pensou que era mais um de muitos falsos alarmes dados por mais um oficial demasiado nervoso. Sentindo-se impotente para travar o rumo dos acontecimentos, Afonso resignou-se ao seu destino e regressou ao Picantin Post ainda com a íntima esperança de que os seus receios fossem realmente infundados. Não conseguiu dormir. Passou a noite irrequieto, a inspeccionar as trincheiras, a mandar limpar as armas e a verificar os paióis. Fixava por vezes os olhos nas linhas inimigas, tentando lobrigar movimento, procurando adivinhar o que ali se tramava, mas nada via, era como se ali estivesse erguido um muro negro, ameaçador e sinistro, insondável e impenetrável. Pelas quatro da manhã, já algo cansado, recolheu ao posto e sentou-se junto ao ninho de metralhadoras a beber um chá com dois homens de serviço à Vickers.
Apesar de já estar de sobreaviso, Afonso quase entornou a caneca de chá com o susto provocado por aquela enorme vaga de explosões que de súbito acendeu o horizonte e iluminou as sombras. Um fragor tumultuoso encheu a noite, o solo tremia como se fosse abalado por um tremendo terramoto, brutal e medonho, de uma intensidade alucinante, colérica, o ar vibrava e trepidava ao ponto de baralhar os olhos, a barulheira era tanta e tão cerrada que o capitão teve dificuldade em entender o que lhe gritava um dos homens da metralha-dora situada a uns meros dois metros de distância.
"... á... ra... go. "
" Como?"
"á... ra... go"
Afonso olhou para o soldado, perplexo. Não conseguia entender o que ele lhe gritava. Deu um passo e encostou o ouvido direito à boca da praça.
"Vá para o abrigo! ", berrava o homem.
O capitão fez que não com a cabeça. A intenção do soldado era boa, mas ali quem dava ordens era ele. Olhou para o relógio e verificou que eram quatro e um quarto da madrugada. Esticou a cabeça acima do monte de sacos de terra que protegia o ninho e viu o horizonte incendiado à frente e atrás de si, uma claridade de vermelho do inferno erguia-se das trincheiras enquanto clarões luminosos cruzavam o céu às centenas, aos milhares, todos a assobiarem, eram os projécteis incandescentes que os alemães lançavam como chuva sobre as linhas portuguesas, batendo inicialmente a área do comando, na retaguarda. Os tiros de canhão eram tantos que não se ouvia nenhum isoladamente, antes formavam todos um urro único, surdo, brutal, sinistro. Pelo sentido das detona-ções, tornara-se evidente que o bombardeamento não era aleatório, mas diri-gido com precisão para as estradas, cruzamentos e pontos de comando. Clarões de fogo brilhavam no sector onde se situava Laventie, era provavelmente o quartel-general da brigada que ardia.
O major Gustavo Mascarenhas acordou em sobressalto e viu pedaços de tijolo, terra e caliça espalhados pela manta que o aquecia. Deu um salto na cama, surpreendido, os ouvidos ainda a zunir, e, já em pé, olhou para além da janela despedaçada. A noite acendera-se, iluminada por sucessivas explosões, a planície tremia sob uma barragem de fogo jamais vista pelas tropas portuguesas. O segundo comandante de Infantaria 13 despiu atabalhoadamente o pijama e colocou a farda num tropel. Uma vez vestido e armado, saiu do quarto e desceu à sala que servia de secretaria, para onde convergiram também os outros oficiais do batalhão transmontano.
"Meu major, já viu isto?", perguntou-lhe o alferes Veiga, ainda a calçar uma bota. "Nem no último dia os boches nos deixam em paz. Nem no último dia, caraças. "
"É", assentiu Mascarenhas, bem-disposto. "Acho que já estão com sauda-des nossas e resolveram mandar-nos estes simpáticos postais de despedida."
Todos se riram nervosamente, incluindo dois sargentos que executavam tarefas de amanuenses na secretaria do batalhão. O comando de Infantaria 13 encontrava-se instalado num edifício designado por Senechal Farm, em Lacou-ture, um posto que estava para Ferme du Bois como Laventie para Fauquissart.
Lá fora, o barulho das detonações era ensurdecedor. A casa tremia com a vibração das explosões, mas os oficiais mostravam-se calmos.
"Sabem o que isto é? ", perguntou o capitão Ambrósio depois de mais um estremeção dos alicerces da casa.
"Uma retaliação pelo nosso bombardeamento de ontem?", arriscou Veiga.
"Nem mais. Os gajos estão a dar-nos o troco."
A artilharia portuguesa tinha, na véspera, bombardeado as posições alemãs em Bois du Biez, frente a Neuve Chapelle, e todos concordavam que estavam a assistir à resposta inimiga.
"Ó Veiga, vê lá se este bombardeamento é só em nossa honra ou se está também a atingir outros batalhões", ordenou Mascarenhas.
O alferes era o sinaleiro de Infantaria 13 e foi ao telefone comunicar com a brigada. Pegou no aparelho, colou- se ao bocal e colocou o auscultador junto ao ouvido esquerdo.
"Está lá? Está lá?", chamou. Fez uma pausa. "Ouve bem? Está lá? Está lá?" Tentou durante mais um minuto até se convencer de que a ligação não era possível. Olhou para Mascarenhas e abanou a cabeça. "Não há resposta, meu major. As granadas devem ter cortado os fios."
"Pega aí em dois homens e vão lá fora reparar as linhas", ordenou o major.
Veiga vestiu a gabardina, chamou duas praças, pegou numa caixa de ferramentas e saiu, mergulhando na noite turbulenta.
Havia já uma hora que o pelotão comandado pelo sargento Rosa se enco-lhia na linha da frente, vendo a trincheira da primeira linha a ser metodi-camente despedaçada pelas granadas e bombas que ululavam em aproximação. As primeiras salvas tinham sido dirigidas para a retaguarda, mas a artilharia alemã foi pouco a pouco encurtando o tiro, arrasando as posições portuguesas de trás para a frente como um rolo compressor, até se concentrar na primeira linha. Vicente tinha já sido atingido de raspão no ombro esquerdo por um estilhaço de bomba, quando se ouviu mais um zumbido e todos se encolheram, instintivamente perceberam que a granada ia mesmo cair por cima deles.
A explosão ocorreu em cheio na linha da frente, numa zona guarnecida por alguns homens do pelotão. Foi uma deflagração terrível, seguida de um sopro quente de ar e de uma chuva de destroços, pedras e poeira, era como se um bafo dos infernos por ali estivesse a passar. Matias Grande ergueu-se, os ouvidos a zumbirem, inspeccionou o corpo, confirmou que escapara ileso apesar de a farda ter sido rasgada nas mangas, e olhou para a cratera onde a granada tinha caído. No lugar dos seus camaradas encontrava-se apenas aquele sinistro buraco fumegante, era evidente que os corpos tinham sido cortados aos bocados ou mesmo se tinham evaporado pela acção do calor da explosão. O sargento Rosa levantou-se com igual dificuldade, sentia-se tonto, e olhou para cada um dos homens do pelotão, contabilizando-os.
"Faltam três", concluiu. Olhou de novo, buscou os rostos que não via e chamou-os. "O Ribeiro?" Procurou ainda. "Ribeiro! Ribeiro!" Todos permane-ceram calados, o olhar pesado, tenso. "O Parente O Oliveira."
Não houve resposta e o grupo presumiu, sem grande margem para dúvi-das, que os três estavam mortos. Na cratera viam-se alguns pedaços de carne solta e reconheciam-se mesmo dois dedos, um deles um polegar. Havia mais vestígios, mas ninguém os quis analisar. Outros dois homens encontravam-se feridos e gemiam encostados ao que restava do parapeito, uns sacos de terra já rasgados. Um dos feridos sangrava abundantemente da cabeça e o segundo tinha um estilhaço cravado na perna.
"Pedroso", chamou Rosa. "Ajuda esses dois e leva-os ao posto médico."
"Sim, meu sargento."
Pedroso colocou a Lee-Enfield a tiracolo, agarrou no braço do que ficara ferido na perna, que se apoiou nele, e pegou na mão do outro, seguindo trincheira a cima até onde lhes pudesse ser prestada ajuda.
O pelotão encontrava-se agora reduzido a uns meros quatro homens estendidos na primeira linha a vigiarem a terra de ninguém. Ao longo da trincheira abrigavam-se outros pelotões da companhia, mas não estavam à vista. Dez minutos mais tarde, duas outras granadas caíram de seguida em plena linha da frente, a uns quinze metros de distância dos restos do pelotão do sargento Rosa, e os homens entreolharam-se.
"Meu sargento", chamou Matias, encostado ao ouvido de Rosa. "É melhor irmos para uma trincha de comunicação, senão estamos quilhados. Esta linha não se aguenta. "
Rosa analisou a parte da linha da frente que se estendia ao alcance dos seus olhos e verificou que a trincheira ficara totalmente desmantelada, havia partes em que já não existia parapeito, apenas uma amálgama de terra e lama e tábuas quebradas e sacos rebentados. Os homens encontravam-se todos deita-dos no chão, as mãos a taparem os ouvidos, era a única maneira de se defen-derem das sucessivas explosões. Rosa ergueu-se, tocou nas costas de cada um para lhes chamar a atenção, fez sinal com a cabeça, agarrou no telefone e foi a correr, curvado, até Burlington Arcade, era a primeira trincheira de comuni-cação que lhe apareceu à frente; o que restava do pelotão seguiu- o. Uma vez na nova trincheira, que se encontrava mais composta e oferecia melhor protecção às detonações de flanco, os homens anicharam- se, as Lee-Enfield embaione-tadas, Matias sempre agarrado à sua Lewis, e aguardaram.
Afonso olhou mais uma vez para o relógio. Eram seis da manhã, havia quase duas horas que se encolhia no abrigo, esmagado pela violência daquele fogo cerrado. O capitão interrogou-se quanto à duração do bombardeamento. Convicto de que se encontravam perante uma grande ofensiva, admitiu a hipótese de a chuva de bombas se prolongar por mais de um dia e questionou-se se, naquelas condições, seria possível fazer a rendição do CEP pelas novas forças britânicas destinadas àquele sector. Era desejável que isso acontecesse antes do avanço da infantaria alemã, raciocinou, mas Afonso sabia que tal se tornara improvável, jamais os ingleses efectuariam uma rendição de forças sob semelhante bombardeamento.
"Eu acho que eles vão fazer um raide", opinou o tenente Pinto com a voz trémula.
Todos os oficiais que se encontravam no abrigo de Picantin concordaram. Aquele só poderia ser o bombardeamento preliminar de mais um raide alemão. Afonso tinha outra opinião, mas inibiu-se de a manifestar, sabia que ela só iria corroer a determinação e o moral das tropas.
"André, liga aí para a linha da frente", ordenou ao telefonista de serviço.
O sargento André agarrou-se ao telefone e chamou. "Está lá? Está lá? Primeira linha? " Fez uma pausa. "Um momento, o capitão Brandão quer falar."
Afonso foi ao telefone.
"Está lá? Aqui capitão Brandão. Quem fala? ". Pausa. "Sargento Rosa, o que se passa na primeira linha? ". Pausa prolongada. "Sim, fizeram bem. " Mais uma pausa. "Pois. " Pausa. "Sargento, a ordem é a de resistir, entendeu? Se vir necessidade, recuem para a linha B. Mas resistam, ouviu? Resistam. " Pausa. "Até logo, sargento. Até logo. "
Pousou o auscultador e olhou para os seus companheiros no abrigo.
"Então? ", quis saber Pinto.
"A linha da frente está toda destruída", disse. "Caíram umas granadas em cima do pelotão do Rosa, matando três praças e ferindo duas, já retiradas para o posto médico. O resto do pelotão colocou-se na Burlington. " Olhou para o telefonista. "André, passa-me aí os outros postos da primeira linha. "
O sargento agarrou-se ao telefone, mas Joaquim chamou Afonso antes de a nova ligação ser estabelecida.
"Meu capitão, está aqui uma ordenança da companhia do centro", anunciou, mostrando um soldado magrinho, com ar assustado.
"O que é, rapaz? "
"Meu capitão, o meu comandante manda comunicar que retirou parte da companhia para a direita e outra parte para a esquerda porque não se pode estar no ponto onde nos encontrávamos, a barragem é muito forte e já temos dois mortos e seis feridos."
"Muito bem", retorquiu Afonso. "Diz ao comandante que eu tomei nota e vou passar essa informação " Voltou-se para o tenente Pinto. "Cenoura, chama-me aí o Augusto. Quero que ele vá ter com o major Montalvão para lhe transmitir estas informações e pedir instruções. "
"Meu capitão", interrompeu André, agarrado ao telefone. "Tenho aqui o cabo Veloso na primeira linha "
Afonso olhou para todos os rostos voltados para si, ansiosos, multipli-cando-se em solicitações, e pensou que ia ter um dia bem difícil.
A Senechal Farm era abalada por sucessivas detonações e os seus ocu-pantes começaram agora a ficar seriamente preocupados. O alferes Veiga tinha saído havia quase três horas para consertar as linhas telefónicas, mas a verdade é que os telefones permaneciam mudos.
"São sete da manhã, já lá vão três horas de bombardeamento" impaci-entou-se Mascarenhas. "Isto não deve ser retaliação."
"É um raide, meu major, só pode ser mais um raide", alvitrou o capitão Ambrósio. "E que raide!"
A porta de entrada abriu-se com brusquidão e entrou um soldado esbaforido, outros vinham atrás.
"Meu major, dá licença? "
"O que é?"
"Temos feridos, meu major"
"Entrem, entrem", disse.
Pela porta passaram quatro homens levando aos ombros outros três com as roupas esfarrapadas, manchas de sangue nos braços, nas pernas, na cabeça. O capitão Ambrósio levou-os para os quartos e ajudou a colocar-lhes os pensos. O sargento Cacheira, um dos amanuenses que se encontravam na sala, encos-tara-se junto de uma janela a observar as explosões quando lançou o alarme.
"Acabaram de cair invólucros vazios", anunciou. "Têm fumo lá dentro!" Esticou a cabeça para ver melhor. "Atenção! É gás! É gás! "
Colocaram todos as máscaras, mesmo os feridos. Os militares sentiram a respiração pesada, o ar a rarear, os óculos a embaciarem-se, mas resistiram à vontade de arrancarem as máscaras e assim se deixaram ficar.
O Sol ergueu-se por detrás das linhas alemãs, mas ninguém o conseguia ver. A claridade do dia emergia palidamente do nevoeiro cerrado que se abatera sobre as trincheiras, uma neblina tão densa e opaca que apenas permitia uma visibilidade de trinta metros, cinquenta no máximo. Afonso cansou-se de usar os binóculos para tentar observar o que se passava, os seus olhos embatiam numa barreira nublada que as lentes não logravam penetrar. O bombardeamento diminuíra sensivelmente de intensidade sobre as primeiras linhas, com a artilharia alemã concentrada agora na retaguarda do sector português. Esta evolução, por um lado encarada com alívio, era, na verdade, muito preocupante porque significava que o inimigo, com alta probabilidade, fazia avançar a sua infantaria. O problema é que o denso nevoeiro impedia que se observasse o que se passava na terra de ninguém, dando assim uma enorme vantagem às forças atacantes.
"André, não me arranjas a primeira linha?", perguntou Afonso. O sar-gento abanou a cabeça.
"Acho que os fios telefónicos foram cortados, meu capitão. Ninguém responde."
Afonso suspirou. Precisava urgentemente de falar com a linha da frente para saber se tinham sido avistados soldados inimigos, mas sem comunicações era difícil determinar a situação da companhia. Os telefones não funcionavam e o nevoeiro não permitia ver os very lights lançados pelos diferentes pelotões e companhias a solicitarem socorro ou a informarem o abandono de linhas.
Percebendo que não podia operar sem dispor de qualquer informação, o capitão foi à porta do abrigo e chamou a sua ordenança.
"Joaquim! Joaquim!"
O soldado saiu do seu bunker e aproximou- se em passo rápido. "Sim, meu capitão?"
"Quero que vás à primeira linha ver o que se está a passar. Se vires algum boche, não quero cá tiroteios. Voltas a correr e informas-me, percebeste? "
"Sim, meu capitão."
"Vai lá, anda."
Afonso regressou ao abrigo, pensativo. Se o bombardeamento abrandara, raciocinou novamente, era certamente porque a infantaria alemã avançava. O nevoeiro só servia para ocultar a pro gressão das tropas.
"Cenoura", disse, dirigindo-se ao tenente Pinto. "Vai dizer aos homens das metralhadoras que quero que reguem a terra de ninguém com rajadas sucessivas. Eles que disparem para lá, mesmo que não enxerguem nada. "
Matias agitava-se na trincheira, preocupado por não conseguir ver a terra de ninguém. Ouviam-se disparos de metralhadora e espingardas, mas nada se podia observar, eram apenas sons que vinham de algures. O problema é que não era só aquele nevoeiro denso que lhe toldava a visão. Era também a posição onde o pelotão se encontrava. A Burlington Arcade podia até ser mais segura do que a primeira linha durante um bombardeamento pesado, mas, devido ao seu enfilamento perpendicular, não constituía certamente o melhor sítio para observar qualquer eventual avanço da infantaria inimiga. Não era por acaso, de resto, que a Burlington não fora concebida como trincheira de combate, mas apenas de comunicação.
"Meu sargento", chamou para trás.
Já não havia necessidade de gritar, as granadas continuavam a estourar por ali, mas sem a intensidade das três primeiras horas.
"O que é, Matias?"
"A infantaria boche deve estar a avançar a qualquer momento, se é que não avançou já", indicou o cabo. "Aqui nesta trincha não os conseguimos topar. Ouvimos os tiros, mas não vemos nada. Temos de nos mudar."
"E onde queres ir tu, Matias?", admirou-se o sargento Rosa.
"Não vês que a primeira linha ficou inutilizada? Aliás, já nem há primeira linha. "
"Eu sei, meu sargento. O melhor é irmos para a linha B."
"O capitão Brandão mandou resistir até ao fim."
"Sim, meu sargento", assentiu Matias. "Mas aqui não resistimos nada. Se os boches aparecerem, do ponto que ocupamos só os topamos quando eles nos caírem em cima. Além do mais, como a artilharia boche já abrandou o tiro sobre esta zona, é muito possível até que eles nos estejam a tentar envolver, apanhando-nos por trás. É por isso que temos de ir para a linha B. Lá resistimos melhor."
"Ele tem razão, meu sargento", concordou Baltazar, deitado atrás de Matias.
Rosa ficou a matutar no assunto. Ergueu a cabeça, olhou para um lado e para outro, constatou que, de facto, não conseguia ver o que se passava nem à direita nem à esquerda e voltou-se para o pelotão.
"Está bem", exclamou finalmente. "Vamos lá."
Eram oito da manhã quando o pelotão do sargento Rosa abandonou a sua posição na Burlington Arcade, junto à linha da frente, e recuou por aquela trincheira de comunicação rumo à linha B. Os homens avançaram em passo rápido, sempre curvados, e foram dar com a Rue Tilleloy, onde se formava a segunda linha. Continuaram a correr para atravessarem a grande estrada, mas, quando iam a meio, sentiram o ar a ser cortado por projécteis rasantes, estaca-ram surpreendidos, ouviram o matraquear de uma metralhadora à direita, desorientaram-se, um deles caiu no chão com um som seco, foi atingido, Rosa saltou em frente e atirou-se para a berma, o resto do pelotão recuou e ficou do outro lado.
"Boches!", berrou Matias, ofegante, cosido ao chão. "Estão boches aqui na Tilleloy!"
Os homens ergueram a cabeça e observaram o companheiro que tombara em plena estrada, atingido pela metralhadora inimiga. Era Abel, o rapaz magri-nho e calado que viera de Gondizalves. O ferimento era sério, a sua situação parecia desesperada. O Lingrinhas agarrava-se ao pescoço, donde saíam, em pavorosas golfadas, esguichos de sangue escuro, as mãos pintadas de vermelho a tentarem estancar a hemorragia, o buraco na garganta a emitir horríveis ruídos de ar a tentar entrar e sair. Abel asfixiava em silêncio, incapaz de proferir um gemido que fosse, e ninguém o podia ajudar. Vicente ergueu-se para saltar para a estrada e ir socorrer o amigo, a metralhadora abriu fogo e Matias placou-o pelas pernas e atirou-o ao chão.
"Deixa-me!", debateu-se Vicente, tentando libertar-se. "Deixa-m'ajudá-lo!"
"Está quieto, Manápulas!", rugiu o cabo. "Não o podes ajudar. E, se fores para ali, eles matam-te também."
Matias era muito mais forte do que o companheiro e manteve-o firme-mente preso nos seus enormes braços. Vicente percebeu que não conseguiria libertar-se, esticou a mão esquerda em direcção de Abel, que ainda se contorcia em plena Tilleloy, e começou a chorar, desesperado, impotente. Já tinha visto outros camaradas morrerem, mas este era diferente, fazia parte do seu mais restrito núcleo de amigos do pelotão. O Lingrinhas torcia-se agora em convul-sões, era evidente que vivia os seus últimos instantes, e todos os homens, à excepção de Matias, voltaram a cara para o lado ou fecharam os olhos, não queriam assistir à morte do rapaz. Apenas o cabo viu o extertor final, as pernas a tremerem num violento espasmo, os olhos a revirarem- se para o branco, o corpo a estremecer na derradeira convulsão, um suspiro cavado e tenebroso, a carne a imobilizar-se finalmente, o sangue a estancar e a deixar de jorrar pela garganta.
Os homens do pelotão permaneceram um longo minuto calados. Vicente tinha recuperado o controlo das emoções e manteve-se igualmente silencioso. Mas os homens sabiam que se encontravam numa situação bem mais difícil do que tinham antecipado. Matias interrogava-se sobre o que estava uma metralhadora alemã a fazer na Rue Tilleloy, no sector de Fleurbaix, à esquerda das linhas portuguesas, uma área que era suposto estar guarnecida pelas tropas britânicas da 40.a Divisão.
"Meu sargento", chamou.
"O que é?", respondeu a voz do outro lado da Tilleloy.
"Não vê os camones?"
"Não."
Matias ficou pensativo.
"Devem ter cavado", cogitou em voz alta para Rosa. "Os camones cava-ram e os boches estão a entrar por ali" Fez uma pausa para prosseguir o seu raciocínio. "Isto significa que eles nos começaram a flanquear, meu sargento, estão a dar a volta para nos apanharem por trás. Estamos quilhados! "
"Temos de recuar mais", disse o sargento. "O que sugeres? " Matias olhou para o pelotão. Vicente e Baltazar permaneciam deitados atrás de si, muito imóveis. O cabo rastejou até uma árvore calcinada, a dez metros de distância, ergueu a cabeça, devagar, e espreitou pela berma do tronco para a sua direita. Viu homens lá ao fundo. Olhou com atenção para os capacetes e confirmou que eram alemães. Baixou-se e rastejou de volta para junto dos homens.
"Os boches estão mesmo ali ao fundo, a vigiar a Tilleloy", disse, suficientemente alto para Rosa o ouvir. "Vamos fazer assim. " Fez uma pausa para recuperar o fôlego. "Eu já os topei e vou abrir fogo sobre os gajos aqui com a minha Luisa. Quando eu mandar as rajadas, vocês saltam para o outro lado", ordenou, falando agora para os dois soldados ao seu lado. "Depois, é a vez de vocês os três dispararem sobre os boches e de eu saltar. Compreendido?"
Os homens assentiram com a cabeça e Rosa confirmou de viva voz. Matias fez sinal aos companheiros para se aprontarem, agarrou a Lewis com firmeza, respirou fundo, ergueu-se e abriu fogo.
Acto contínuo, Vicente e Baltazar levantaram-se e atiraram-se para o outro lado da estrada. Os alemães responderam e o cabo baixou-se de imediato. Aguardou um instante.
"Está tudo bem? "
"Sim", confirmou Rosa. "Aguenta um pouco, vamos agora aprontar-nos nós. Ao meu sinal, abrimos fogo e saltas tu " Fez-se um compasso de espera para os três homens prepararem as Lee- Enfield. Mais uns instantes e ouviu-se a voz do sargento. "Agora! "
Os três homens ergueram-se e dispararam as espingardas. Ao mesmo tempo, Matias atirou-se para o outro lado da Tilleloy e rebolou pela berma, enquanto a Maxim alemã voltava a bater a estrada, os repicos da rajada a levantarem nuvens de terra e lama.
"Estás fino? ", perguntou Rosa, novamente agachado. "Sim, eu... "
Um ruído por trás deixou-os momentaneamente paralisados. Voltaram as armas para a Picadilly Trench, a trincheira de comunicação que prolongava a Burlington Arcade, e prepararam-se para carregar nos gatilhos, mas o azul da farda do homem que viram emergir da linha fê-los suspender os disparos. O recém-chegado era português.
"Então, malta? ", saudou o desconhecido.
Os elementos do pelotão suspiraram.
"Ó homem, íamos dar-te cabo do canastro, caraças", exclamou o sargento Rosa. "O que estás aqui a fazer? "
"O capitão Brandão mandou-me ver o que se passa na linha da frente", disse o soldado, erguendo-se para prosseguir. "Tenho de ir até lá. "
"Como é que te chamas? "
"Joaquim. "
"Pois bem, Joaquim, a linha da frente é aqui." "Aqui? Mas isto é a Tilleloy. Eu tenho é de... "
"Joaquim", cortou Rosa. "A primeira linha já não existe, está arrasada. Percebes? Há boches ali à esquerda com uma costureira pronta a limpar-nos o sebo. Por isso, já não podes avançar, esta é agora a linha da frente. Entendeste?"
Joaquim olhou para os quatro homens com desconfiança. Mas o seu ar sério e cansado, mais o corpo estendido em plena estra-da, convenceram-no de que, por incrível que parecesse, estavam a falar verdade. Os alemães tinham mesmo chegado à Rue Tilleloy.
"Os boches estão aqui? "
"Sim", confirmou Matias, apontando para a esquerda. "Ali ao fundo. "
"Vocês viram-nos? "
"Nós vimo-los, disparámos sobre eles, eles dispararam sobre nós e mataram-nos um marada. "
Joaquim deu meia-volta.
"Então é melhor acompanharem-me até ao Picantin Post. O capitão Brandão vai querer falar convosco "
À mesma hora, oito da manhã, o alferes Viegas entrou na casa de Senechal Farm com um soldado atrás de si. O homem vinha ofegante, coberto de pó e lama, e, pormenor muito notado pelos oficiais de Infantaria 13, encontrava-se desarmado.
"Meu major", disse Viegas. "Apanhei este desertor a correr pela estrada, feita galinha tonta. Traz novidades da frente. "
O major Mascarenhas aproximou-se do homem, que parecia absoluta-mente aterrorizado.
"Identificação "
"Sou o soldado Fonseca, meu major" Arfou. "Praça n.o 173, contramestre de corneteiros de Infantaria 17 "
"Infantaria 17?", repetiu Mascarenhas, reconstituindo mentalmente a dis-posição das forças no terreno. "Se não me engano, devias estar em Ferme du Bois. Creio que o teu comando é no Lansdowne Post. O que é que andas aqui a fazer, hã? Quem é que te autorizou a ausentares-te do teu posto? "
O homem olhou-o com horror.
"Mas, meu major... não está a compreender", exclamou de forma ataba-lhoada. "Os boches... os boches entraram de roldão... um mar deles, pareciam formigas... prenderam tudo, o comando do 17, o comando do 4, mais os homens todos... está tudo a cavar, tudo a cavar... o cavanço é geral, meu major... eles vêm aí, temos de fugir. "
"Mas tu estás a reinar comigo ou quê?", perguntou Mascarenhas com ar duro. "Quais boches, qual quê! Tu és um desertor, abandonaste os teus cama-radas, é o que é!"
"Meu major... por favor." O homem gaguejava, arquejava, revirava os olhos, as palavras saíam-lhe num tropel, hesitantes e trapalhonas, mostrava-se agitado e parecia à beira de um ataque de nervos. "Temos de cavar... por favor, deixe-me cavar daqui!"
Uma sentinela do 13 entrou na sala.
"Meu major, apareceram mais desertores na estrada, vêm a fugir das primeiras linhas. O que fazemos? "
Mascarenhas hesitou. Olhou para o contramestre dos corneteiros do 17, percebeu que a história por ele contada era verdadeira, só podia ser verdadeira dado o seu estado de nervos e o aparecimento de mais fugitivos, e voltou-se para a sentinela.
"Arrebanhem-me esses desertores todos e recolham a informação que eles têm para dar", ordenou. "Depois, preparem-nos para resistirem. Está na hora de esses tipos deixarem de cavar e irem combater" Apontou para o soldado Fonseca. "E levem-me também este gajo daqui "
O major fez sinal aos oficiais do seu estado-maior para se aproximarem e foi buscar um mapa, que estendeu sobre uma das mesas da sala. Pegou num lápis e assinalou a situação no terreno antes do ataque.
"Portanto, na linha de Ferme du Bois estava o 17 em Lansdowne Post e o 10 em Path Post, com o 4, atrás, em Chavattes Post", disse, escrevendo os números dos respectivos batalhões no ponto por eles supostamente guarnecido. "Ora, a acreditar naquele idiota, e tudo indica que ele está mesmo a falar verdade, o 17 e o 4 deixaram de combater. Não temos notícias do 10, mas, se o 4, que está atrás, foi aniquilado, o 10 também já deve encontrar-se fora de combate " Assinalou cruzes sobre Lansdowne, Path e Chavatte, assumindo que não podia contar com essas forças.
Ergueu a cabeça e fitou os seus oficiais. "Isso significa que somos nós agora a linha da frente e que os boches vêm aí" Fez-se silêncio. "Alguma sugestão? "
O capitão Ambrósio pigarreou.
"Meu major, não deveríamos aplicar o plano de defesa? "
"Sim", concordou Mascarenhas. "O problema é que não temos plano de defesa. Pedimo-lo ontem ao major Passos e Souza e ele disse que ia tratar do assunto, mas não nos comunicou mais nada. Portanto, não há plano e temos de ser nós a inventar um. " Olhou de novo para o mapa e suspirou. "Só vejo um caminho. Temos de avançar no terreno e estabelecer contacto com o inimigo. " Voltou a mirar os seus oficiais. "Voluntários? "
"Eu, meu major", exclamou de imediato o tenente Alcídio de Almeida, comandante da segunda companhia.
"Muito bem, Alcídio", disse Mascarenhas em tom de aprovação. Voltou com o lápis ao mapa. "A segunda companhia vai ocupar aqui a trincheira 5 e enviar patrulhas para explorar o terreno em frente. A missão dessas patrulhas é localizarem o inimigo, ligarem-se a quaisquer homens nossos que venham a encontrar e resistirem até ao limite." O major ergueu a cabeça e mirou o alferes Martins, ajudante do batalhão. "Aliás, o mesmo devem fazer a primeira e a terceira companhias. Por isso, senhor alferes, transmita estas ordens ao tenente Gonçalves e ao capitão Magno." Endireitou-se, dando sinal de que a reunião estava concluída. "Meus senhores, vamos resistir até virem os reforços. Está previsto que os ingleses nos rendam esta tarde. Uma hora, uns dez minutos apenas, podem fazer a diferença. Temos de esperar por eles para depois, e de forma compacta, empurrarmos os boches lá para o inferno. Por isso, meus caros, conto convosco para aguentarem o impossível, aguentarem até os ingleses chegarem. Boa sorte a todos."
Os oficiais destroçaram. Mascarenhas acompanhou o tenente Alcídio até junto dos homens da segunda companhia e constatou que as munições eram um ponto crítico. Faltavam cartuchos, cada soldado apenas estava munido da sua dotação individual.
Além disso, não havia granadas de mão nem de espingarda. O major lembrou-se então de que os homens de Infantaria 24, que antes ocupavam Senechal Farm, deixaram várias caixas de cartuchos abandonadas, espalhadas pelo acantonamento de Lacouture, e foi com os soldados buscar essas munições, entretanto recolhidas e guardadas na secretaria. Os cartuchos foram distribuí-dos a todos. E, quando a segunda companhia partiu finalmente, Mascarenhas saiu à procura de mais munições.
Foi ao fazer a toilette da manhã que Agnès pela primeira vez se apercebeu de que algo de anormal estava a passar-se. Ao aproximar-se da janela do anexo reparou que o rumor da artilharia tinha recrudescido de intensidade em relação ao habitual. Deteve-se a meio de um movimento e ficou estática, atenta aos sons distantes. Em vez dos costumados estampidos que caracterizavam os longín-quos tiros de canhão, notou agora um rolar permanente, um marulhar ininter-rupto e assustador. Abriu a porta e esticou a cabeça para fora, confirmando essa impressão. Ficou apreensiva e pensou imediatamente num raide. Para se acal-mar lembrou-se repetidamente de que Afonso desempenhava funções de secre-taria e não ocupava as primeiras linhas. Além do mais, nada garantia que, a ser um raide, se tratasse de um raide inimigo. Podia muito bem ser uma operação dos portugueses. Acalmou-se. O pânico deu lugar a um nervosismo miudinho.
Saiu à rua quinze minutos depois, num estado de grande inquietação, ansiosa e perturbada. Pegou na bicicleta e dirigiu-se apressadamente ao hospital para assegurar o turno que lhe fora destinado. Pedalou com os olhos voltados para leste, para a fonte do fragor da batalha, e percebeu pela reacção dos transeuntes que também estes achavam que o barulho da artilharia era mais intenso do que o habitual. Igualmente o tráfego de viaturas militares parecia anormalmente elevado, o que contribuía para o estado de nervosismo geral que se apossara de todos.
Logo que entrou no hospital, Agnès notou que o ambiente era caótico, o movimento intenso, o pátio encontrava-se pejado de feridos e pairava no ar uma inquietação indefinível. Com um mau pressentimento a pesar-lhe a alma, a francesa passou pela secretaria.
"mademoiselle!", chamou a enfermeira-chefe portuguesa quando a viu pela porta do seu gabinete. "Hoje precisamos de si nos traumatizados, vai para lá um reboliço que só visto!"
"Nos traumatizados? Porquê?"
A enfermeira-chefe estacou, surpreendida.
"Porquê? Ora, que pergunta! Então não vê que hoje temos muitos feridos?"
Agnès sentiu-se paralisada. Queria formular a pergunta que tinha em mente, a pergunta crucial, a pergunta que a consumia desde que pela primeira vez ouvira o anormalmente intenso marulhar da artilharia. Experimentava, porém, um pavor que a imobilizava, receava a resposta, temia a verdade. Hesitou um longo segundo, angustiada e indecisa, mas acabou por pronunciar as palavras que a sufocavam.
"O que se passa "
A enfermeira-chefe preenchia o registo das admissões da última hora e nem levantou a cabeça.
"Então não sabe? Os boches lançaram uma grande ofensiva. " O coração de Agnès disparou.
"Onde?"
"Em todo o sector português. Ferme du Bois, Neuve Chapelle, Fauquissart. É uma catástrofe, há muitos mortos e os feridos estão sempre a chegar, são às centenas. "
Agnès olhou apavorada para o registo que estava a ser feito pela enfermeira-chefe, arrancou-o com brusquidão das mãos da sua superiora hierárquica, deixando-a boquiaberta, e procurou com sofreguidão e em grande estado de ansiedade o nome do capitão Afonso Brandão. Percorreu a lista três vezes. Depois de se certificar de que ele não constava do registo, deixou cair o documento no chão e foi a correr para o pátio. Com os olhos marejados de lágrimas e a mão direita colada à boca, ficou vidrada a mirar o horizonte.
"Alphonse", murmurou, abalada.
Quis gritar, mas as forças faltavam- lhe, apenas um soluço lhe assomou à garganta. Ali permaneceu especada, de olhar perdido, invadida por pressenti-mentos tumultuosos, o desespero a apossar-se-lhe da alma, a esperança atirada para um recanto, acossada e esquecida. Sentia-se perdida, amedrontada, aban-donada pelo destino, cercada pelo sinistro fragor da batalha, esmagada pelas tenebrosas colunas de fumo negro que se estendiam para o céu num pavoroso augúrio de morte, eram afinal o oráculo, a profecia de uma terrível tragédia.
Pouco passava das nove da manhã e Afonso sabia que a situação era muito crítica. O sargento Rosa tinha-lhe trazido a notícia de que os alemães estavam a flanquear o batalhão, entrando pelo sector inglês de Fleurbaix, o que significava que o posto corria o risco de ser cercado.
"Não entendo por que motivo os bifes não disseram nada" desabafou para Pinto. "Então os gajos recuam e não avisam? "
O tenente Pinto encarou-o com ar alucinado. "Devíamos fazer como eles, Afonso", disse. "Se os tipos cavaram, temos também de cavar, é perigoso estar aqui. "
Afonso ficou siderado com este comentário proferido diante das praças.
"Ó tenente, componha-se!", rugiu o capitão, assumindo com firmeza o seu papel de superior hierárquico. "Não quero ouvir aqui esse tipo de conversa! Temos um dever a cumprir e vamos cumpri-lo. Faça o favor de garantir que os homens sob este comando se mantêm com espírito de combate "
O tenente nada mais disse e foi sentar- se junto ao telefonista, cabisbaixo. Afonso olhou-o com preocupação. Pinto parecia-lhe muito assustado. Recusa-va-se a sair do abrigo, alegando os mais variados e absurdos pretextos, trans-pirava abundantemente e mantinha-se alheado das funções de comando a que, por ser oficial, estava obrigado. O capitão considerou que, dadas as circuns-tâncias, isso era normal, ele próprio se encontrava terrivelmente amedrontado, mas o Cenoura não deveria deixar transparecer de modo tão visível o seu medo, sobretudo à frente dos homens. Mais do que afectar o prestígio dos oficiais, essa atitude era, naquelas circunstâncias, tremendamente perigosa.
Uma intensa fuzilaria eclodiu nesse momento no posto. As metralhadoras e as espingardas desataram a disparar, e ouviam-se zumbidos por todo o lado. Afonso saiu do abrigo de comando e foi a correr até um dos três ninhos de Vicers existentes no posto. O operador da metralhadora disparava furiosamente para a frente, enquanto o ajudante preparava uma segunda cinta de balas para encaixar na arma. O capitão colou-se-lhe à orelha, tentando fazer-se ouvir no meio da cacofonia.
"O que se passa? "
"Boches, meu capitão", gritou o ajudante de volta. Apontou em frente e Afonso viu capacetes a movimentarem-se nas linhas, eram centenas e centenas. "Estão ali."
O capitão olhou em redor e viu os soldados que defendiam o posto de Picantin a abrirem fogo para leste e para norte. Voltou ao abrigo de comando para pegar, também ele, numa espingarda e coordenar a defesa. Assomou à porta e deu as suas ordens.
"André, vais com uma praça até Red House pedir socorro. Diz-lhes que estamos a ser cercados e precisamos de reforços e munições."
"Imediatamente, meu capitão", exclamou o telefonista, saltando da cadeira e agarrando numa arma.
Afonso olhou em redor.
" Onde está o tenente Pinto?"
André encarou-o com embaraço. "O tenente... saiu, meu capitão"
"Saiu? Foi para onde? " O telefonista encolheu os ombros e baixou os olhos. O capitão percebeu que ele não estava a falar toda a verdade. "André, vai chamá-lo, vá " Afonso foi ao armário do abrigo e agarrou na última Lee-Enfield que lá se encontrava. Deu meia-volta para sair e viu André especado no mesmo sítio. "Então? O que estás aí a fazer? "
"Meu capitão", gaguejou o telefonista, calando-se de imediato.
"O que é, homem?", impacientou-se Afonso, cheio de pressa. "Desem-bucha, vá! "
"Meu capitão, o tenente Pinto não está cá", disse André com grande esforço.
"Isso já eu sei. Vai buscá-lo."
O telefonista hesitou.
"Meu capitão, o tenente Pinto cavou"
O major Gustavo Mascarenhas olhou para as caixas de munições que conseguira reunir. Eram agora dez horas da manhã e o segundo comandante de Infantaria 13 juntara apenas três mil cartuchos, mendigados junto do coman-dante de um batalhão de ciclistas ingleses que se encontrava no blockhaus de Lacouture, ao lado da igreja. Não eram muitas balas, pensou, mas teriam de viver com o que tinham. O problema era agora fazer chegar estas munições às companhias que partiram à procura do inimigo.
"Meu major, dá licença? "
Mascarenhas virou-se e viu o alferes Viegas.
"O que é, Viegas."
"Apareceram ali tropas do 15, meu major."
O major seguiu o alferes e encontrou os elementos de Infantaria 15, de Tomar, junto à igreja. Esse batalhão mantinha-se de reserva atrás de Vieille Chapelle e o seu aparecimento era a primeira boa notícia do dia. Mascarenhas foi ter com o comandante do 15, o major Peres, que se encontrava na cave de uma casa das redondezas, e expôs-lhe o problema da falta de munições.
"Não tenho cartuchos para lhe dar", retorquiu Peres. Mascarenhas suspi-rou, desalentado.
"Então não sei como resista", desabafou. "Sem balas não temos como nos opor ao avanço do inimigo. "
O major Peres ficou pensativo, desdobrou um mapa sobre a mesa e indicou um ponto.
"Major Mascarenhas, o melhor que podemos fazer é montar um serviço de remuniciamento através de postos até aqui, a Vieille Chapelle. Vocês vão aos postos buscar as munições e distribuem-nas pelas tropas. Serve? "
"É melhor do que nada", consolou-se Mascarenhas. "Mas precisava também de reforços "
O major Peres tamborilou com os dedos sobre a mesa onde se estendia o mapa, pesando as opções. Acabou por se decidir.
"Dou-vos uma companhia", disse. "A do capitão Brito. " O alferes Viegas entrou nesse momento na cave, acompanhado por um soldado ofegante.
"Meu major, dá licença? ", disse, dirigindo-se a Mascarenhas. " Diz lá "
"Está aqui o soldado Camacho, da segunda companhia, que acabou de chegar com informações "
" O que se passa?"
O soldado fez continência, o peito arfando pesadamente, viera a correr.
"Meu major, os desertores estão a dizer que os boches avançam pelos intervalos dos postos, cercando-os e prendendo toda a gente. " Fez uma pausa para respirar. "O tenente Alcídio pergunta o que fazer. " Alcídio era o comandante da segunda companhia. "Ele também pede munições. "
"Muito bem, Camacho", disse Mascarenhas. "Vais voltar para as linhas e levar algumas munições contigo. Diz ao tenente Alcídio que lhe vamos enviar forças do 15 para o apoiarem. Já tiveram contacto com o inimigo?"
"Ainda não, meu major"
"Quando tiverem, as ordens são as de resistir, resistir sempre. Perce-beste?"
"Sim, meu major. "
"Então vai lá. "
Vicente Manápulas sentia os músculos do braço direito cansados de tanto repetir o movimento. Apontava para um alemão, disparava, abria a culatra, puxava-a, deixava a bala entrar no cano, fechava a culatra, apontava, disparava, abria a culatra, puxava-a, deixava a bala seguinte entrar no cano, fechava a culatra, apontava, disparava, e assim sucessivamente, até esgotar, no espaço de dois minutos, as dez balas do depósito da Lee-Enfield. Nessa altura substituía o depósito e recomeçava o processo de abrir a culatra, puxá- la, deixar a bala entrar no cano, fechar a culatra, apontar e disparar. Na verdade, o processo de esvaziar um depósito durava dois minutos porque o capitão Brandão tinha dado ordens para se pouparem balas e só dispararem pela certa. Caso contrário, os soldados eram capazes de despenderem as dez balas em apenas cinquenta segundos, uma vez que o processo de carregar a espingarda durava uns meros cinco segundos.
"A equipa da costureira caiu!", gritou alguém. "Acudam!" Vicente perce-beu, pela alteração na cacofonia que o rodeava, que uma das Vickers tinha deixado de disparar. Seguiu-se alguma confusão, apenas com as espingardas e uma outra Vickers a abrir fogo, até que alguém lhe tocou no ombro. Manápulas virou-se e viu Afonso com o alarme estampado nos olhos.
"Sabes usar a Vickers?", perguntou-lhe o oficial. "Mais ou menos, meu capitão."
"Então vai lá. O Sérgio ajuda-te com as cintas de munições. " Vicente correu curvado até ao ninho da metralhadora e viu os dois homens que a operavam estendidos no chão. Um jazia inerte, o outro mexia-se e estava a ser visto por um companheiro. Num olhar de relance, percebeu que tinham sido atingidos por balas, presumivelmente de metralhadora. Espreitou pela seteira, a brecha aberta entre os sacos de terra, e procurou a arma inimiga que varrera os homens da Vickers. À esquerda, encostada a um tronco de árvore, posicionava-se efectivamente uma Maxim, provavelmente acabada de ser colocada pelos alemães sem que a equipa da Vickers a tivesse referenciado. O Manápulas agarrou as pegas da metralhadora pesada, apontou para a Maxim, esperou que Sérgio viesse juntar-se a ele para o remuniciar e, já confortável, premiu o gatilho. Sucessivos penachos de terra e poeira ergueram-se junto ao tronco. A Maxim respondeu, Vicente insistiu, largou rajada sobre rajada e a metralhadora inimiga calou-se. Quando a poeira assentou, a Maxim apareceu voltada ao contrário, claramente tinha sido atingida.
"Apanhámo-los!", congratulou-se Vicente, sorrindo para Sérgio.
O ajudante devolveu o sorriso.
"Boa, Manápulas."
Vicente viu umas dezenas de homens a correrem perto do sítio onde se encontrava a Maxim e voltou a premir o gatilho, largando novas rajadas que atingiram mais alguns alemães. De repente, a metralhadora portuguesa passou a disparar em seco. Vicente ficou admirado, olhou e viu que a cinta de balas se esgotara.
"Mete-me mais munições", pediu a Sérgio. "Depressa, depressa! O ajudan-te pegou numa nova cinta e encostou-se ao tambor da Vickers para a encaixar na metralhadora. Ao tocar na arma, porém, o Manápulas gritou de dor.
"Caramba, esta merda tá a ferver! ", exclamou, sacudindo a mão.
Vicente experimentou a temperatura do metal com um leve toque dos dedos e verificou que a metralhadora estava efectivamente a escaldar.
"Água", pediu, olhando freneticamente em redor. "Ond'é qu'há água "
Não encontraram água para arrefecer o tambor e Sérgio foi ter com Afonso para ver se arranjava alguma. O capitão deu um salto ao ninho de metralhadora e, após verificar igualmente a temperatura da Vickers, mirou Vicente.
"A pouca água que temos tem de ser racionada e está destinada unicamente a dar de beber aos homens", disse.
"Mas, meu capitão, com'é qu'arrefecemos a costureira? Ela tá a escaldar e, se continuar assim, o cano vai derreter. "
Afonso fixou-lhe os olhos.
"Olha lá, não tens vontade de mijar? "
O rosto de Vicente congelou-se numa expressão interrogativa, mas em dois segundos abriu-se-lhe um sorriso, tinha compreendido. O Manápulas foi buscar uma vasilha, puxou a Vickers, retirando-a da seteira aberta entre os sacos de terra, colocou a vasilha por baixo da parte dianteira da manga, desen-roscou a tampa e do interior da manga começou a jorrar água a ferver para a vasilha. Quando a água deixou de correr, recolocou a tampa enquanto Afonso desenroscava outra tampa, esta situada na parte superior da manga, logo a seguir à mira da arma. Os dois homens, aos quais se juntou Sérgio, ergueram-se, mantendo o tronco curvado para não se exporem ao fogo inimigo, abriram as braguilhas e fizeram pontaria à abertura situada no topo da manga. Quando a urina tocou no ferro escaldante produziu-se de imediato um ffzzzz de arrefe-cimento, parte do líquido evaporou-se, a outra parte acumulou-se na manga cilíndrica. Cada um esvaziou a bexiga no interior da manga e Afonso foi chamar mais homens para urinarem na Vickers. Quando a manga ficou cheia, Sérgio enroscou a tampa e Vicente experimentou com os dedos a temperatura do metal.
"Ainda tá quente, mas tá muito melhor", disse. "Aguenta mais uns cinco minutos, dez no máximo"
"Quando estiver outra vez a ferver, voltas a esvaziar a manga e metes-lhe a água da vasilha", instruiu-o Afonso, consultando o relógio. Eram dez da manhã.
"Sim", concordou Vicente. "C'o briol que p'rá'qui vai, por ess'altura a água já deve ter arrefecido. "
Afonso espreitou pela seteira para as posições inimigas. "De qualquer modo, tenta poupar munições, hã? Não te esqueças.
O capitão retirou-se, deixando Vicente e Sérgio a operar a Vickers. O Manápulas recolocou a metralhadora na seteira, viu mais alemães a correrem lá ao fundo, largou uma rajada e outra logo a seguir. Alguns alemães tombaram, os restantes foram procurar refúgio. Vicente girou a Vickers para a esquerda e para a direita, procurando novos alvos. Pelo canto do olho sentiu um objecto metálico a cair-lhe ao lado, parecia uma garrafa. Sérgio ergueu-se de repente, como se tivesse sido impelido por uma mola.
"Granada! ", gritou.
O ninho da Vickers explodiu.
Os sons da guerra ecoavam intensos à volta de Senechal Farm. Eram já onze da manhã e o major Mascarenhas mostrava-se surpreendido com a persistência do nevoeiro. Começou a suspeitar de que todo aquele fumo não resultava de uma mera neblina matinal, mas era também fruto do emprego de granadas de fumo destinadas a ocultarem o movimento da infantaria atacante. Colocou os binóculos nos olhos e inspeccionou o nevoeiro. À esquerda apenas se via vapor branco e à frente também. Girou os binóculos para a direita e, por entre as nuvens baixas, observou vultos a esgueirarem-se pelo terreno. Baixou os binóculos e mirou a olho nu aquele sector. Havia ali, de facto, alguns pontos minúsculos a movimentarem-se. Presumiu que se trataria de uma das companhias que enviara para estabelecerem contacto com o inimigo, embora não pudesse ter a certeza. Olhou de novo pelos binóculos, mas a imagem tremia em excesso, devido aos ligeiros movimentos das suas mãos, tremendamente amplificados pelas lentes. Para estabilizar os binóculos assentou-os sobre uma pedra e acocorou-se atrás dela, espreitando pelos óculos. A imagem apresen-tava-se agora muito melhor e Mascarenhas distinguiu com clareza o contorno dos capacetes. Eram alemães.
"Maciel!", gritou, chamando o alferes que o acompanhava. O homem aproximou-se a correr.
"Sim, meu major? "
"Estás a ver aqueles pontos ali?", perguntou Mascarenhas, apontando para a direita.
O alferes Maciel virou-se na direcção indicada, esticou a cabeça para a frente, estreitou os olhos e, após uma breve hesitação, assentiu.
"Estou a vê-los, meu major"
"São boches. Façam fogo nutrido sobre aquele sector, mas depois tenham cuidado porque há também para ali homens nossos. 547
As metralhadoras e as espingardas portuguesas abriram uma barreira de fogo sobre a direita, varrendo a área onde os alemães tinham sido avistados. O inimigo respondeu ao fogo com fogo, generalizando-se o tiroteio à direita de Senechal Farm. Os defensores distribuíram as tarefas, com os ciclistas ingleses a defenderem a esquerda, que permanecia calma, Infantaria 13 a vigiar o centro e Infantaria 15 na direita. Uma hora depois foram avistados alemães igualmente à esquerda e as tropas portuguesas varreram o sector com duas metralhadoras e muitas espingardas. Vários soldados inimigos tombaram no solo, apanhados pela saraivada, mas Mascarenhas não tinha ilusões. Os alemães apareciam à esquerda e à direita, em breve Senechal Farm ficaria cercada. Vendo-se momentaneamente impedidos de progredirem, os atacantes fixaram-se no terreno. Depressa Mascarenhas ficou apreensivo, não apenas por causa da fragilidade da sua posição, como sobretudo devido ao crescente isolamento das companhias que enviara para fazerem frente ao inimigo.
"Maciel! ", voltou a chamar.
"Sim, meu major? "
"Manda-me ordenanças com cunhetes para as companhias da frente. "
O alferes Maciel foi executar a ordem e Mascarenhas voltou aos binóculos.
O posto de Picantin já só tinha um punhado de homens a resistirem. Afonso contou-os, eram uns vinte e as três Vickers estavam fora de serviço, uma destruída pela granada que matara Vicente Manápulas e Sérgio, outra bloqueara e a terceira tinha o cano derretido. Como metralhadoras, apenas funcionavam duas Lewis, uma delas operada por Matias Grande.
"Meu capitão", gritou o cabo. "Já só tenho um disco" A Lewis era alimen-tada por um disco com noventa e sete balas. A guarnição de Picantin já tinha saqueado um paiol e levado todos os discos para as Lewis, cintas para as Vickers e depósitos para as Lee- Enfield, mas as munições chegavam agora ao fim e a defesa do posto tornava-se insustentável. Afonso sabia que era impossível resistir com baionetas. Sem balas não valia a pena permanecer em Picantin.
"Vamos evacuar o posto!", gritou. "Toda a gente ajuda os feridos a saírem. Carreguem-nos às costas, se for preciso. " Apontou para Matias. "Cabo, você fica aí a dar-nos cobertura com a Luisa e só sai quando o último homem abandonar o posto" Apontou para a sua ordenança. "Joaquim, ajuda-o. "
Joaquim posicionou-se no ninho da Vickers bloqueada com a Lee- Enfield a espreitar pela seteira e Matias Grande colocou-se num ponto donde podia observar em simultâneo a esquerda e a direita. Quando o resto da guarnição deixou de disparar e começou a retirar, Joaquim passou a alvejar os vultos que se moviam em frente, enquanto Matias abria fogo em diversas direcções com rajadas muito curtas. O objectivo dos dois portugueses já não era agora o de abaterem soldados inimigos, mas simplesmente criarem a impressão de que aquela posição tinha ainda muitos homens a defendê-la.
Afonso registou a hora em que o posto foi abandonado. Eram onze da manhã. A guarnição de Picantin Post fez-se às trincheiras quase sem munições e carregando duas dezenas de feridos. A maior parte seguiu pelo próprio pé, alguns apoiando-se nos camaradas quando os seus ferimentos eram numa perna e os impediam de andar normalmente. Três seguiram em macas impro-visadas, não estavam em condições de caminhar. Com a coluna a caminho, Afonso olhou uma derradeira vez para o posto e interrogou-se quanto ao tempo que Matias e Joaquim ainda conseguiriam resistir sozinhos.
Dançando numa direcção e noutra, o cabo continuava a manter o inimigo ocupado, enquanto Joaquim se conservava fixo no ninho da Vickers. Mas a ilusão de que o posto ainda permanecia guarnecido durou apenas cinco minu-tos, findos os quais se esgotou o derradeiro disco da metralhadora de Matias. A Lewis aquecera até ao rubro, o cano prestes a fundir-se, e o cabo largou no chão a arma que tanto o servira nos últimos meses, agarrou numa Lee-Enfield abandonada por um companheiro, estranhou já não ouvir disparar a espin-garda de Joaquim, foi ao ninho da Vickers e viu o seu camarada estendido no chão, varado pelo tiro certeiro de uma Mauser inimiga. Sentiu-lhe o pulso e verificou que Joaquim estava morto. Afagou-lhe o cabelo, numa breve carícia de despedida, e, sem perder mais tempo, largou a correr no encalço da coluna que fugia para Red House.
Os aviões alemães irromperam em voo baixo sobre Senechal Farm. Os Gotha, os Halberstadt, os Roland e todos os outros desceram sobre as posições portuguesas, regando-as com metralhadoras e bombas e enviando sinais lumi-nosos para regularem o fogo da artilharia. Mascarenhas começou a convencer-se de que não conseguiria manter Senechal Farm por muito mais tempo. Nenhuma das ordenanças enviadas para remuniciarem as companhias da frente tinha regressado. Além disso, o facto de aparecerem cada vez mais soldados alemães pela frente deixava supor o pior. A confirmação de que Senechal Farm era agora, literalmente, a linha da frente foi dada quando surgiu no local um punhado de sobreviventes da primeira companhia e alguns homens das restantes.
"Meu major", disse um cabo acabado de chegar, o olhar alucinado. "Eles varreram-nos quando os atacámos com uma carga de baioneta. Há ainda algum pessoal do 13 a resistir nas trinchas, mas estão cercados e não vão durar muito."
Mascarenhas olhou em redor.
"Maciel!", chamou. "Distribui cartuchos por estes homens" O fogo inimi-go tornou-se mais nutrido quando era meio-dia e meia, os alemães dispunham visivelmente de mais soldados no sector. Os aviões pareciam moscardos a polvilharem o céu. Mascarenhas observou-os um a um e apenas identificou enormes cruzes negras desenhadas nas asas e na carlinga.
"Mas onde é que estão os camones?", interrogou-se em voz alta, abrindo os braços com frustração. "Só se vêem aeroplanos boches! "
Infantaria 13 e uma companhia de Infantaria 15 resistiam ali com apenas duas Lewis e as Lee-Enfield de cada praça. Os portugueses batiam os alemães de flanco, procurando retardar a sua progressão. A uma da tarde, a resistência dos defensores estava circunscrita, na esquerda, ao blockhaus, onde se refu-giava o batalhão de ciclistas ingleses, e ao cemitério, onde permaneciam outros ingleses. No meio permaneciam os portugueses, ocupando Senechal Farm, e, à direita, junto a King George's Street, outra força portuguesa. A certa altura, o alferes Sevivas, que empunhava uma das Lewis em Senechal, desapareceu, e a resistência ficou ali circunscrita a uma única metralhadora ligeira. O alferes Maciel, visivelmente consternado, aproximou-se do seu segundo comandante.
"Meu major, vamos ser envolvidos", disse.
"Eu sei, já reparei." Mascarenhas olhou para o compacto abrigo de cimen-to que se encontrava junto à igreja de Lacouture. "Temos de retirar para o blockhaus." Observou a disposição das suas forças. "Quem é aquele?", pergun-tou, apontando para o soldado que tinha a única Lewis operacional nas mãos.
"É o sargento Carvalho, meu major. "
"Ele que nos cubra. "
A ordem de evacuação foi dada de imediato. Dezenas e dezenas de solda-dos portugueses convergiram para o sector da igreja, correndo curvados por entre o arvoredo, saltando sobre as crateras, contornando o arame farpado, cruzando a ribeira Loisne, e entraram no blockhaus. O sargento Carvalho ficou para trás, sozinho, a Lewis a manter as formações alemãs em respeito naquele terreno acidentado e coberto de verdura. Quando verificou que os companhei-ros tinham todos retirado de Senechal Farm, Carvalho esgueirou-se pelos arbustos, correu, correu, correu e entrou enfim, também ele, no maciço abrigo de betão.
Havia quase duas horas que a coluna chefiada por Afonso errava pela labiríntica rede de trincheiras, tentando desesperadamente evitar o contacto com o inimigo. As munições encontravam-se praticamente esgotadas e o volume de feridos fazia daqueles homens uma ineficaz força de combate. A coluna estava agora reduzida a metade desde que abandonara o Picantin Post. Os alemães flagelavam implacavelmente a unidade, que foi perdendo homens à medida que os sobreviventes de Infantaria 8 deparavam com as forças inimigas. A ideia inicial de Afonso era retirar para Red House, onde se encontrava o comando de Infantaria 29, mas, por esta altura, esse plano estava totalmente desbaratado. Todos os caminhos se mostravam bloqueados, as posições e postos portugueses tinham caído nas mãos do inimigo e a coluna que evacuara Picantin já só procurava recuar, fosse para onde fosse, mas recuar.
Pelas duas da tarde, os homens do 8 foram alvejados simultaneamente à frente e na retaguarda. Afonso percebeu que já só tinha uma carta na manga, uma carta frágil, incerta, fraca. Mas era a única.
"Os feridos que podem caminhar vão prosseguir a retirada" gritou, deitado no chão enquanto as balas zumbiam sobre as cabeças dos portugueses. "Serão escoltados pelo cabo Esperança e mais um homem. Os restantes ficam comigo para atrair o inimigo e cobrir a retirada. Quando os feridos estiverem longe, retiraremos igualmente. Entendido? "
"E os feridos que não podem andar, meu capitão? ", perguntou Rosa, apontando para os três homens deitados nas macas.
"Vão ter de se render, não vejo outra hipótese." Os homens assentiram, sabiam que não restavam alternativas. O cabo Esperança rastejou para junto dos feridos que conseguiam andar e daí, à distância, chamou Afonso.
"Meu capitão, qual é o homem que levo comigo?" "Sei lá", devolveu Afonso, encolhendo os ombros com indiferença. "Um à sua escolha, tanto me faz."
O cabo escolheu uma praça da sua confiança e ambos foram puxando os feridos até chegarem a uma zona de trincheira com os parapeitos altos. Puse-ram-se aí todos de pé e partiram, os que tinham uma perna inutilizada apoiados em espingardas, usadas como se fossem bengalas. Deitado na lama, Afonso contou os seus efectivos. Tinha ali o cabo Matias, o sargento Rosa, o soldado Baltazar e mais um outro que só conhecia de vista. Somavam cinco homens.
"Quantas balas temos?", perguntou Afonso.
Os soldados contaram os cartuchos. Eram, ao todo, vinte e duas balas.
"Ainda dá para aviarmos vinte e dois boches", gracejou Baltazar. "Categoria, hã "
Ninguém se riu.
"Quando eles vierem, só disparem pela certa, no momento em que eles estiverem mesmo perto. Entenderam? " Afonso fechou ruidosamente a culatra da sua espingarda. "Cada tiro, cada melro. "
Os alemães disparavam furiosamente sobre a posição portuguesa, prote-gida por sacos de terra, e a ausência de fogo de resposta deu-lhes atrevimento. Começaram a aproximar-se, devagar, devagarinho. Quando se encontravam a cinquenta metros, Afonso mandou disparar e vários alemães rolaram por terra. Os restantes abrigaram-se e voltaram a regar os portugueses com tiros de Mauser. A certa altura, uma Maxim juntou-se ao tiroteio. Logo à segunda rajada, por sinal certeira, o sargento Rosa foi atingido na cabeça e tombou morto, o outro homem sofreu vários tiros nas costas e deixou igualmente de dar sinal de si. Um dos feridos que se encontrava deitado na maca também foi atingido e agonizava, moribundo. Afonso, Matias e Baltazar entreolharam-se. Perceberam que tinham chegado ao fim da linha. Antes que fosse disparada a terceira rajada, Afonso esticou o pescoço e gritou:
"Kamerad!"
O primeiro a levantar-se, os braços bem erguidos, foi Baltazar. O Velho pôs-se de pé e foi imediatamente abatido por vários tiros de espingarda. Matias viu-o tombar ao seu lado sem soltar um gemido, os olhos a rolarem para cima e a ficarem brancos, um buraco na testa e outros presumivelmente no tronco, a nuca aberta pela saída da bala, via- se a matéria branca e esponjosa da massa encefálica a escorregar para fora do crânio. O cabo observou-o, estupefacto, mal queria acreditar que aquele era o seu amigo Baltazar, que ele caíra morto, abatido como um cão quando se rendia. Parecia a Matias que vivia um sonho, experimentou uma sensação de profunda irrealidade, de uma estranheza dormente, teve a impressão de que nada daquilo estava a acontecer, via e não acreditava. Primeiro tinha sido o Lingrinhas, depois o Manápulas, agora o Velho, o seu desfalcado pelotão já não existia, tinha sido dizimado em poucas horas, os amigos transformados em pedaços de carne inerte. Cerrou os olhos, abanou a cabeça e abriu-os novamente, na ilusão de que despertaria assim do sonho, mas Baltazar permanecia deitado, o olhar vidrado. Estava mesmo morto. Fitou-o aparvalhado, atordoado, perdido numa incredulidade embasbacada.
A voz do capitão, rouca e gutural, despertou-o da letargia. "Kamerad! ", gritou Afonso, a plenos pulmões. "Kamerad! " O tiroteio foi enfim suspenso. Aproveitando a pausa, o capitão voltou a berrar. "Ich bin Kamerad! "
Ouviu-se um burburinho à distância e uma voz respondeu a Afonso.
"Ergebt euch.", gritou. "Legt die Waffen nieder Los Los" Depois, uma segunda voz adoptou o francês das trincheiras. "Armes pas bonnes. Portugais prisoniers, bonnes. Portugais guerre, pas bonnes Jetez les armes "
Afonso olhou para Matias. O cabo encontrava-se em estado de choque, embora já estivesse a sair do breve transe em que mergulhara. A sensação de irrealidade permanecia forte, ainda acreditava que tudo aquilo podia não passar de um sonho mau, mas, à cautela, algo dentro de si decidiu que se deveria portar com prudência, afinal de contas o que estava a acontecer em seu redor começava a parecer muito real.
"Eles querem que atiremos as armas fora", explicou-lhe Afonso. Os dois pegaram nas respectivas Lee-Enfield e projectaram-nas para a frente, de forma suficientemente alta para serem vistas à distância. A seguir, devagar, a medo, ergueram-se com as mãos levantadas, primeiro permaneceram curvados, esperando a todo o momento o pior, e depois, mais confiantes, endireitaram o tronco, os braços sempre esticados para o céu.
Mascarenhas espreitou pela seteira e olhou na direcção que lhe indicava o alferes Veiga. Lá ao fundo circulavam camionetas a transportarem soldados e viam-se homens com bandeirolas a regularem o trânsito, eram os alemães a enviarem reforços para aproveitarem as brechas abertas pela ofensiva dessa manhã. O céu cobrira-se de aviões inimigos, o que consternava os sitiados.
"É impressionante!", exclamou Mascarenhas. "Não se vê um único aero-plano nosso."
Veiga assentiu.
"Estamos totalmente isolados, meu major. Somos uma ilha num mar de boches."
Já passava das quatro da tarde e o major decidiu inspeccionar o blockhaus. O abrigo de cimento onde se encontrava encerrado estava camuflado por uma casa. Era constituído por dois andares, ambos com seteiras por onde os ciclistas britânicos colocavam as suas metralhadoras pesadas e regavam as posições ini-migas. Mascarenhas contou os efectivos, contabilizando setenta ingleses e quase cento e setenta portugueses, a maior parte do 13, mas alguns do 15. Muitos dos portugueses estavam feridos e tinham pensos espalhados pelo corpo. Dentro do blockhaus havia ainda uma zona de segurança adicional, um abrigo de betão com câmara de rebentamento, onde se entrincheirara o comandante britânico com a maior parte das munições. Mascarenhas foi lá implorar um remuni-ciamento e o major inglês cedeu-lhe cinco mil cartuchos. O major do 13 distribuiu as balas pelos homens e, já sem nada para fazer, voltou às seteiras.
A sombra da noite emergiu no horizonte como um vulto umbroso, sobretudo do lado donde vinha o inimigo, mas os aviões mantinham-se no ar com os seus voos rasantes.
"Parecem moscas", comentou Mascarenhas junto do cabo Guedes.
"Gostava de apanhar um com a minha Luisa", comentou o cabo. "Daqui não é possível", explicou-lhe o major. "Precisavas de estar num ponto alto. "
O cabo franziu o sobrolho.
"O meu major está-me cá a dar uma ideiazinha", disse, com um sorriso malicioso. "Vou lá acima, ao telhado. Pode ser que tenha sorte. "
Guedes pegou na Lewis e subiu ao telhado da casa erguida por cima do blockhaus. Encostou-se à chaminé e ficou a aguardar, observando a evolução dos aparelhos sobre Lacouture. Um avião aproximou-se finalmente pela frente, baixou e, quase em voo rasante, começou a metralhar o abrigo de betão. O cabo ergueu a Lewis, apontou e largou uma rajada. O aparelho flectiu para a direita e ganhou altura, esquivando-se ao fogo do telhado. Desapontado, Guedes regressou ao blockhaus.
Afonso e Matias Grande caminhavam lado a lado sem trocarem palavra. Sentiam-se demasiado cansados para isso. Marchavam como máquinas, alheios ao que os rodeava, a mente apenas fixa nos acontecimentos da manhã, relem-brando cada episódio, os instantes dos bombardeamentos e as circunstâncias que envolveram a morte dos amigos. Caminhavam como sonâmbulos, trope-çando pelo caminho, a mente ausente, estavam já mergulhados no passado, nas memórias daquela manhã brutal, reviviam ainda cada sentimento, cada sensação, o terror e o medo, os cheiros e os sons, as explosões e os gritos.
O nevoeiro já tinha levantado, revelando uma paisagem lunar fumegante, as trincheiras revolvidas pelas bombas e pelas granadas ao ponto de se terem tornado irreconhecíveis. Os prisioneiros seguiam sozinhos, sem escolta, cruzando-se com milhares e milhares de soldados alemães que marchavam por Fauquissart rumo à frente de combate. O oficial que os revistara tirara-lhes as máscaras antigás, pelo que ambos vigiavam o terreno de uma forma incons-ciente, pareciam alheados de tudo e, no entanto, algures na sua mente permane-ciam vigilantes, preocupados em detectarem atempadamente qualquer nuvem suspeita. Avançaram pela Great Northern e passaram ao lado de Flank Post. Afonso lançou um olhar ausente sobre o abrigo, mas a desolação daquele sítio familiar despertou-lhe a atenção, o posto encontrava-se totalmente devastado. Viam-se alguns mortos, corpos esfacelados, deitados de bruços ou em posições estranhas. Os soldados alemães paravam aqui e ali para examinarem os cadáveres. Tiravam-lhes dinheiro, algumas peças do vestuário, botas, relógios e, sobretudo, comida.
Afonso e Matias chegaram à antiga linha da frente e constataram que, das trincheiras portuguesas, apenas restava agora um vago enfilamento. O seu interesse pelo que os rodeava aumentou consideravelmente a partir desse ponto, foi como se começassem a emergir de um sonho. Entraram na terra de ninguém e meteram em direcção às antigas linhas inimigas. Afonso achou estranho estar a passear assim, à luz do dia e com descontracção, por sectores onde antes apenas se circulava à noite e muito a medo.
Um soldado alemão, por sinal corpulento, aproximou-se dos dois e gritou para Matias, apontando-lhe para os pés.
"Gib mir deine Stiefel! "
"Ele quer as tuas botas", traduziu Afonso.
Matias ficou surpreendido, mas obedeceu. Sentou-se no chão e descalçou maquinalmente as botas, que entregou ao soldado inimigo. O alemão tirou as suas e colocou as do português, que eram aproximadamente do mesmo tamanho. Ergueu-se e assentou bem os pés no solo.
"Mist, die sind kaputt!", vociferou, desagradado. Arrancou as botas de Matias e atirou-as furiosamente contra o cabo. De seguida, calçou de novo as suas e foi-se embora.
"O gajo devia julgar que as nossas botas eram iguais às dos camones", comentou Matias enquanto se calçava.
"O que é que têm as tuas botas? "
"Estão descosidas à frente", explicou o cabo, exibindo a sola aberta. "Está a ver? " Esticou a perna e aproximou a bota dos olhos do capitão. "O boche ficou pior do que uma barata. "
Atingiram a primeira linha alemã em Nut Trench e meteram por um enfilamento de trincheiras até chegarem à curva de uma estrada. Fazendo um esforço para recordar o traçado das linhas inimigas nos mapas, Afonso concluiu que aquela era a Rue Deleval, uma estrada com tanta importância para os alemães como a Rue Tilleloy para os portugueses. Se esta era a Rue Deleval, raciocinou Afonso, ali à esquerda situava-se a Farm Delapone e Orchard e a curva onde se encontravam correspondia a Irma's Elephant.
Um oficial aproximou-se dos dois e ordenou-lhes que se dirigissem para um ponto à direita, na Rue Deleval. Obedeceram e foram dar a um local onde se encontrava um punhado de militares portugueses.
"Ora viva", saudou Afonso.
"Ruhe!", berrou um guarda, mandando-o calar.
O grupo permaneceu em silêncio à espera de instruções. A noite caía e surgiu um segundo oficial que os mandou seguir dois soldados. Dirigiram-se para oeste e fizeram a curva para sul num local que Afonso identificou como sendo "Sousa", uma casa assinalada no mapa do CEP e que, por ironia, perten-cera a um português radicado na Flandres. Desceram pela estrada, caminhando paralelamente às antigas primeiras linhas alemãs, viram a Rue Dante à esquerda, mas os guardas ignoraram-na, e prosseguiram pela Rue Deleval. Continuavam a ver-se aqui muitas formações de soldados a marchar com aprumo para combate, homens enquadrados por oficiais a cavalo que lançavam sobre os prisioneiros olhares cheios de curiosidade. Diversos oficiais alemães chegaram a abrandar a marcha das montadas para melhor observarem os soldados inimigos. Seguindo mecanicamente os guardas, os portugueses cruzaram Clara Trench e Butt House, mas, quando atingiram a Fauquissart Road, apanharam-na em direcção a leste, rumo a Aubers, afastando-se definiti-vamente da Rue Deleval e da zona da frente.
As granadas começaram a atingir o blockhaus com violência às seis e meia da tarde. Ouvia-se o guincho dos projécteis em voo e, com o impacto das bombas, o edifício estremecia, abanando até aos alicerces, um fragor terrível a encher o interior. A estrutura rangia, algumas partes desmoronavam-se, caíam destroços por toda a parte, uma nuvem de pó dançava no ar. Mas, no essencial, o abrigo aguentava-se, era sólido e maciço.
Mascarenhas decidiu percorrer os dois andares do blockhaus, preocupado em manter o moral dos homens. Nada melhor do que uma conversa para distrair a mente e fazer os homens esquecerem as granadas que choviam sobre o edifício.
"Não se preocupem, o abrigo foi construído para aguentar isto e muito mais", explicou a um grupo do 13 que guarnecia uma das seteiras.
"Ó meu major, a malta cá não corta prego", disse um soldado com um sorriso forçado. "Mas, mesmo que estivéssemos cagados de medo, não tínhamos por onde cavar, não é? "
"Quem vai cavar são os boches, vocês vão ver. Os camones vão-nos enviar reforços, corremos com esses cabrões todos e ainda vamos ser tratados como uns heróis. "
Uma granada atingiu o blockhaus, fazendo estremecer o edifício, e todos se calaram. Caiu algum pó, mas não houve consequências de maior.
"A mim, o que me deixa mais nicado é a fome ", exclamou um soldado.
Mascarenhas sorriu.
"Se pudesses encomendar um prato, o que é que escolhias? " "Ó meu major, isso é pergunta que se faça? "
"Então, rapaz? Não temos comida, mas nada nos proíbe de sonharmos com ela, não é?"
"Ah, meu major, eu alambazava-me com uma boa feijoada à transmontana, caraças, uma daquelas que a minha mãe faz. "
"Tu és donde? "
"Eu sou de Bisalhães, meu major, mesmo ali ao pé de Vila Real. "Bem sei, bem sei", retorquiu Mascarenhas. "A terra dos barros negros. " O major sabia que não havia nada de que um soldado mais gostasse do que falar de comida e sonhar com a sua terra. Esses eram dois temas que garantidamente desperta-vam o interesse de qualquer homem, para além das mulheres, claro. Dadas as circunstâncias, falar sobre esses assuntos era o melhor modo de os manter distraídos e animados. Voltou-se, por isso, para outro soldado. "E tu donde és?"
"Eu sou de Lamas de Olo, meu major."
"Onde é isso? "
"Em Trás-os-Montes, meu major"
"Ó homem, isso já eu sei, aqui toda a malta é de Trás-os-Montes. Mas onde é que fica essa terra? "
"Lamas de Olo é lá para o Alvão, meu major. Entre o Tâmega e o Corgo "
"E é bonito? "
"Se é bonito? É o paraíso, meu major, o paraíso! Vive-se lá no meio da serra, tomam-se umas banhocas nas Fisgas de Ermelo, dá-se um passeio até ao Alto das Caravelas, anda-se à caça, come-se perdiz com uvas, faisão com castanhas, eu sei lá." O homem suspirou. "Ah, meu major, isto é que são cá umas saudades."
"Não me falem em comida, caraças, não me falem na paparoca", cortou o primeiro soldado. "Com a larica com que estou, até a merda do corno-bife me sabia a cabrito assado!"
Uma nova explosão interrompeu a conversa, era uma minenwerfer que embatera no bloclzhaus com aparato. O clarão da explosão iluminou as seteiras, agora que a noite caíra e toda a luz brilhava mais forte.
O soldado alemão apontou a Mauser para o tenente português e berrou:
"Die Jace her! "
O tenente ficou embasbacado, sem perceber o que queria o homem.
"Dê-lhe a gabardina", disse-lhe Afonso. "Ele quer a gabardina" Aparva-lhado, o tenente despiu a gabardina, o alemão ficou com ela e foi-se embora.
"Ora esta", queixou-se o tenente. "Agora gamaram-me a gabardina, vejam lá... "
Ninguém disse nada, as ordens eram para manter o silêncio. O grupo prosseguiu a marcha, os guardas ignorando os soldados que pilhavam os prisioneiros. Contornaram o Bois du Biez, a posição alemã tantas vezes bombardeada pela artilharia portuguesa, e observaram com curiosidade os sólidos bunkers instalados no bosque e os muitos canhões que por ali se encontravam espalhados, eram um autêntico mar. Não se viam corpos de homens, mas havia em abundância cadáveres de cavalos, vítimas inocentes dos bombardeamentos portugueses. Prosseguiram o caminho pela Fauquissart Road e chegaram a Aubers. A povoação mostrava-se aniquilada, as casas reduzidas a ruínas, parecia Neuve Chapelle.
Depois de Aubers seguiram até Illies, onde foram levados para uns barracões erguidos num perímetro protegido por arame farpado. Ao fim de uma hora serviram-lhes o jantar, pão de centeio com uma salsicha e um dedo de manteiga. Foi o seu primeiro contacto com os bratwurst. Para beber, os guardas distribuíram água. Quando os prisioneiros terminaram a pequena refeição, receberam a visita de um general com ar bonacheirão.
"Guten Abend. uJillkommen in Illies", saudou-os o oficial. "Mein Name ist General Albert Zeitz. " Os portugueses olharam-no com cara de quem nada percebia e o general depressa mudou para o patusco francês das trincheiras. "Moi général Zeitz. Allemands bonnes. Portugais promenade aujourd'hui à Lille. Compris "
Um major português levantou o braço e o general fez-lhe sinal para falar.
"Compris. Portugais cansés, promenade pas bonne. Dormir bonne. Compris? "
O general assentiu. Não sabia o que raio queria dizer cansés, nunca tinha ouvido semelhante palavra, mas admitiu tratar-se de uma expressão requin-tada, rebuscada, porventura até um francês de qualidade literária. O que valia, pensou, é que as restantes palavras lhe eram familiares. Sorriu com bonomia, satisfeito por poder comunicar com tanta fluência com os prisioneiros, e não lhe custou, por isso, ceder à sua vontade.
"Compris", concordou, magnânimo.
Alguns homens dormitavam encostados ao cimento. O bombardeamento contra o blockhaus tinha parado, mas todos se sentiam fracos, sonolentos, eram os efeitos do cansaço e da fome.
"O que eu agora não dava pelo corned-beef e pelas compotas dos camo-nes", desabafou o alferes Viegas, sentindo-se fraco e esfaimado.
"Estamos todos com fome, Viegas", disse Mascarenhas. "Mas temos de aguentar, pode ser que cheguem reforços. "
O alferes inclinou a cara.
"O meu major acredita mesmo nisso? "
Mascarenhas suspirou.
"Acredito que é possível. "
"Lá possível é, meu major", admitiu Viegas com um trejeito de boca. "Mas olhe que isto está mal. Só se vêem boches lá fora, os aeroplanos são todos deles e o som da artilharia está a afastar-se, dá a impressão de que os tipos continuam a avançar e a nossa primeira linha a recuar"
O major aproximou-se de uma seteira, vigiada por uma sentinela do 15. Para lá da pequena abertura era a escuridão total.
Sim, vai lá fora um movimento danado, disse, chamando o alferes com a mão. "Anda cá, anda cá. Queres ouvir isto? "
Calaram-se e ficaram à escuta. No exterior, à distância, escutava-se o som de motores.
"São camiões, meu major. "
"Pois são. Os gajos estão a reforçar as linhas e nós não passamos de um empecilho, um espinho que lhes ficou cravado nas costas. "
De súbito, eclodiu uma sequência de detonações e o blockhaus voltou a ser atingido sucessivamente pelas granadas. O abrigo tremeu até aos alicerces e todos os soldados acordaram, assustados com o fragor infernal do bombar-deamento. O relógio de pulso de Mascarenhas, um Longines prateado, assina-lava as quatro da manhã. Alguns homens sentiam-se de tal modo cansados que voltaram a adormecer, mesmo debaixo daquela cacofonia de explosões, mas a maior parte permaneceu de vigília.
"Gás! ", gritou uma voz, dando o alerta.
As máscaras foram colocadas à pressa, os dentes a apertarem o bocal, uma pinça metálica a bloquear as narinas para obrigar a respiração a processar-se pela boca, as fitas elásticas a ajustarem a tela da máscara ao rosto. Ficaram assim vinte minutos, num grande incómodo, o ar a faltar-lhes, a respiração pesada e ruidosa. Quando tiraram as máscaras, primeiro um homem, depois os restantes, o ar regressara ao normal, as narinas apenas detectaram o eterno cheiro a pólvora a que se tinham habituado em zona de guerra.
A fome começou entretanto a apertar. Apesar de o edifício continuar a ser alvejado pela artilharia inimiga, rangendo assustadoramente a cada impacto de granada, Mascarenhas decidiu mandar sair uma patrulha para avaliar a situação e, já agora, detectar alimentos.
"Voluntários ", pediu.
Ofereceram-se cinco homens e o major determinou que o raide seria comandado pelo mais graduado, o cabo Macedo. A porta foi destrancada e a patrulha esgueirou-se pela escuridão com a missão de ir vasculhar uma casa próxima. O edifício localizava-se na linha de tiro das seteiras do blockhaus, pelo que os alemães não se tinham ainda atrevido a ocupá-lo ou mesmo a inspec-cioná-lo. Às sete da manhã, o bombardeamento contra o reduto de Lacouture foi suspenso e a patrulha regressou, antecipando-se à alvorada. Os homens trouxeram comida e ofereceram-na aos oficiais. Era pão e queijo.
Os prisioneiros levantaram-se com a aurora e formaram no pátio dos barracões a tremelicarem de frio. Um oficial alemão dividiu os portugueses em dois grupos, de um lado os oficiais, do outro os soldados, a maior parte com aspecto miserável, pareciam vagabundos e pedintes. Afonso e Matias viram-se assim separados, irmãos de armas divididos pela hierarquia e pelo destino. Procuraram-se com os olhos, despediram-se com um aceno à distância, em silêncio desejaram-se mutuamente boa sorte e seguiram caminhos diferentes.
A coluna do capitão marchou até Fournes, as bermas da estrada pejadas de civis franceses que olhavam, calados, taciturnos, para os prisioneiros de guerra. Alguns acenavam com pães ou aproximavam-se com tigelas de caldo, mas logo lanceiros a cavalo, que faziam a escolta da coluna, intervinham, interpondo-se entre os civis e os prisioneiros, impedindo o contacto, afugen-tando a multidão.
Ao final da manhã, a coluna entrou em Lille pela Porte de Béthune, a sul da grande cidade, e meteu pela Rue d'Isly, a qual mais à frente, após a Place de Tourcoing, se transformava no Boulevard Vauban. Soldados alemães montaram cordões de segurança em toda a largura da avenida, impedindo ainda que os civis entrassem em contacto com os prisioneiros. Os populares enchiam os passeios, olhando com tristeza para os soldados capturados. Alguns atiravam pães ou chouriços para a coluna, outros choravam amargamente, a mão na boca, choravam com tal emoção que Afonso se sentiu comovido e chorou tam-bém. Em alguns pontos, o cordão dos soldados estava rompido, presumivel-mente por falta de efectivos, e alguns civis arriscavam umas palavras, lançadas com carinho, atiradas como flores.
"T'es anglais?", perguntou uma mulher jovem, olhando Afonso com inten-sidade.
"Non", disse o capitão, abanando a cabeça e caminhando sempre. "Je suis portugais. "
A mulher hesitou, surpreendida. Não sabia que havia portugueses a combaterem pela França. Era jovem, mas o rosto mostrava-se prematuramente envelhecido, não era fácil a vida sob ocupa ção inimiga. Vendo os soldados vencidos a desfilarem diante de si, lamentando a sua derrota mas querendo confortá-los, abriu-se num sorriso triste. Quase a correr pelo passeio, num comovente esforço para acompanhar a marcha dos prisioneiros, a francesa beijou os dedos e soprou na direcção de Afonso.
"Merci, le Portugal. "
Quando os prisioneiros cruzaram a Rue Colbert, os civis que enchiam os passeios começaram a cantar. La Marseillaise estava proibida pelas autoridades ocupantes, mas os franceses tinham outras opções para animarem os prisio-neiros e desafiarem os carcereiros. As vozes ergueram- se em coro, desafinadas e em desafio, os olhares fixos nos homens derrotados que marchavam miseravelmente pelo piso calcetado do Boulevard Vauban:
Où t'en vas-tu, soldat de France, Tout équipé, prêt au combat? Où t'en vas-tu, petit soldat? C'est comme il plait à la Patrie, Je n'ai qu'à suivre les tambours. Gloire au drapeau, Gloire au drapeau.
J'aimerais bien revoir la France, Mais bravement mourir est beau.
Afonso achou a letra desadequada, era uma canção para militares fran-ceses que partiam para a guerra, não para soldados portugueses que dela vinham em cativeiro. Mas o capitão percebeu a intenção, sentiu o calor humano a erguer-se daquelas vozes, o orgulho a vibrar no coro, a multidão a agradecer, a prestar homenagem aos estrangeiros que por ela combateram. O oficial português deixou de caminhar curvado, com os olhos fixos no chão, arrastando-se pela calçada, abatido e cabisbaixo, não era essa a pose que dele esperavam aqueles franceses. Ergueu a cabeça, endireitou o tronco, atravessou a verdejante Esplanade e entrou com altivez pela majestosa Porte Royale, cruzando os muros fortificados da Citadelle.
O tiroteio recomeçou às oito da manhã, mas desta feita os sitiados pude-ram responder ao fogo inimigo. O Sol já nascera, iluminando os campos calci-nados de Lacouture e as posições donde os alemães abriam fogo sem cessar. As munições chegaram ao fim e Mascarenhas foi ao abrigo onde se refugiava o comandante do batalhão britânico e pediu mais cartuchos.
"Take it", disse o major inglês, apontando para umas caixas de munições. "Les derniers, compris? Les derniers. "
Mascarenhas contou os cartuchos, eram dois mil. Os últimos. As munições foram distribuídas pelos homens que guarneciam as seteiras, com a recomen-dação de serem conservadores no gatilho e só atirarem pela certa. O major observou os terrenos circundantes e constatou que havia alemães por toda a parte, o blockhaus encontrava-se totalmente cercado. Às onze da manhã, as munições esgotaram-se, cada espingarda ficara reduzida à baioneta e a duas ou três balas, guardadas para derradeiras eventualidades.
Um homem aproximou-se então com uma bandeira branca na mão esquerda. Mascarenhas observou-o pelo binóculo. O indivíduo vestia uma farda kakhi, era um soldado britânico. As portas do blockhaus foram abertas, dando passagem ao homem. Tratava-se de um maqueiro inglês que tinha sido aprisio-nado pelos alemães e trazia uma mensagem do inimigo. A mensagem foi entre-gue ao major inglês, que se reuniu à porta fechada com os comandantes de Infantaria 13 e Infantaria 15. A reunião terminou meia hora mais tarde e o comandante do 13 chamou os homens e anunciou que o comando do reduto tinha decidido que iriam render-se. Já não havia munições e o inimigo, aperce-bendo-se de que o fogo do blockhaus quase parara, ameaçava atirar tudo pelos ares. O maqueiro saiu com a resposta dos sitiados e voltou mais tarde com as instruções dos alemães.
Mascarenhas desarmou os cem soldados de Infantaria 13, enquanto os oficiais do 15 e do batalhão inglês faziam o mesmo às suas praças. As Lee-Enfield, as Lewis e as Vickers foram amon toadas num canto. Os homens choravam convulsivamente ao formarem no interior do blochaus. Ainda choravam quando as portas se abriram e marcharam para fora do abrigo, entregando-se ao inimigo. O major ficou na cauda do grupo e foi dos últimos a abandonarem o reduto. De repente, ouviu armas a abrirem fogo e viu os homens à sua frente a recuarem, num pânico, num tropel aflito, os braços esticados no ar em sinal de rendição, mas também de desespero.
"Os gajos estão a disparar!", gritou um soldado que tentava a todo o custo reentrar no blochaus. "Os gajos estão a matar-nos. "
Mascarenhas ainda viu, estupefacto e indignado, os alemães a descarre-garem as armas sobre os prisioneiros, mas um oficial inimigo interveio e o fogo foi suspenso. Alguns homens rebolavam-se pelo chão, feridos. O oficial alemão, com uma fita branca no braço e uma pistola em riste, gritava com os seus soldados. Depois, fez sinal aos sitiados para saírem, mas parecia mais preocupado em vigiar os seus efectivos do que os portugueses e os ingleses.
Os prisioneiros receberam ordem de marcha e seguiram pela estrada rumo ao cativeiro. Os homens de Infantaria 13, transmontanos rudes e teimosos, gente do campo habituada à vida dura em Boticas, em Alfândega, no Moga-douro, em Romeu e em Moncorvo, estes rústicos de modos bruscos e palavras toscas ergueram as vozes como crianças e começaram, de baixinho, num coro suave, a entoar o hino do batalhão:
Palpita um peito d'aço em cada farda Do 13 nem um passo p'ra retaguarda.
Um alemão mandou-os calar. Passavam poucos minutos do meio-dia de 10 de Abril.
O cativeiro em Lille durou apenas alguns dias. Afonso foi colocado com três mil prisioneiros portugueses por detrás das portas de ferro do quartel do antigo regimento de couraceiros franceses, instalações militares encerradas na gigantesca Citadelle. Tratava-se de uma enorme fortificação em forma de estrela pentagonal, situada a noroeste de Lille e separada da cidade pelo rio Deúle e respectivos canais.
Foram dias duros, com os homens alimentados a pão, água e sopas aguadas. Dormiam no chão e tiritavam de frio por falta de agasalhos. Os contactos com civis franceses eram proibidos, uma ordem de resto desnecessária devido ao isolamento em que se encontravam os prisioneiros. Mesmo assim, Afonso lobrigou um francês a prestar serviço na cantina e não tardou em meter conversa.
"Você é de Lille? ", perguntou-lhe na primeira oportunidade quando o homem lhe servia sopa, na fila do refeitório.
O francês olhou em redor, assustado.
"Shut, não posso falar com os prisioneiros. "
Afonso fixou-lhe os olhos.
"Conhece Paul Chevallier? Tem uma loja de vinhos na Vieille Bourse. "
O homem fitou-o com ar surpreendido. Para Afonso era evidente que o seu interlocutor conhecia o pai de Agnès. O francês recompôs-se e fingiu que verificava a sopa do português.
"Agora não", murmurou muito baixo, falando apressadamente. "Escreva num papel o que quer e dê-mo amanhã, quando vier buscar a sopa "
Afonso passou a tarde à volta de uma folha, tentando redigir uma carta em francês. Consultou amiúde um oficial português de origem francesa, pedindo-lhe para verificar palavras e rever frases. Procurava desse modo evitar erros ortográficos e incoerências gramaticais, como faltas de concordância e de género, num esforço para criar uma boa primeira impressão no destinatário, o pai de Agnès. Quando terminou de rever o texto, deu-se por satisfeito e passou a versão final para um papel limpo:
Caro senhor Paul Chevallier,
O meu nome é Afonso Brandão, capitão de infantaria do exército português em França, actualmente prisioneiro na Citadelle de Lille. Escrevo-lhe estas curtas linhas para lhe comunicar que conheci a sua filha Agnès em Armentières e ela contou-me que, com o inicio da guerra, deixou de ter contacto com a família. Assim sendo, informo-o de que o seu marido Serge morreu em combate logo nas primeiras batalhas e ela foi viver para casa do barão Redier em Armentières. Apaixonámo-nos e pedi-lhe a mão em casamento, tendo a felicidade de a ver aceitar a minha proposta. Ela agora é enfermeira num hospital de guerra português e encontra-se bem de saúde. Rogo-lhe que lhe comunique, se tiver oportunidade de a ver antes de eu a encontrar, que estou vivo e de saúde, tendo sido feito prisioneiro pelos alemães. Não sei qual o destino que me reserva o inimigo, mas garanta-lhe, por favor, que a procurarei logo que seja libertado.
Com os melhores cumprimentos,
Afonso Brandão.
Quando concluiu esta versão final, Afonso releu o texto, dobrou a folha e guardou-a no bolso. Ainda reconsiderou se valeria mesmo a pena omitir que Agnès se tinha casado e separado do barão Redier e que se encontrava grávida de um filho seu, mas receou que os padrões morais do seu futuro sogro fossem de tal modo estreitos que essa informação deitasse tudo a perder. Decidiu, por conseguinte, manter assim o texto. No dia seguinte, ao almoço, passou o papel discretamente para as mãos do francês das sopas, murmurando que o entregasse ao monsieur Chevallier.
O francês levou algum tempo a cumprir a missão. Alegou que não encontrava Paul Chevallier e que a sua loja de vinhos estava encerrada. As autoridades alemãs anunciaram entretanto que os portugueses iriam ser enviados para um campo de prisioneiros na Alemanha, e Afonso começou a temer que saísse de Lille antes de estabelecer contacto com o pai de Agnès. Mas, ao quarto dia, a resposta veio finalmente. O francês entregou-lhe um envelope por baixo da tijela da sopa e Afonso teve dificuldade em reprimir, durante a refeição, a vontade de ler imediatamente a carta que escondera dentro das calças. Engoliu apressadamente a sopa e o naco de pão e retirou-se para as camaratas, onde, encostado a uma parede, encetou o envelope:
Meu caro capitão Brandão,
Não sabe até que ponto fez de mim um homem feliz por ter recebido enfim noticias da minha pequena Agnès. Lamento a morte de Serge, parecia-me bom rapaz mas, devo dizer, não o conheci bem. O que interessa, porém, é que a minha filha se encontre de saúde e feliz, como parece ser o caso.
A vida aqui em Lille, sob ocupação inimiga, tem sido muito difícil. A minha pobre Michelle faleceu há três anos, segundo os médicos vitima de pneumonia, mas na realidade vitima dos alemães. Os ocupantes começaram em 1914 a requisitar todos os bens das casas dos franceses. Levaram-nos mobílias, bicicletas, telefones e, o mais grave de tudo, até as camas. Tivemos de passar a dormir no chão. Houve também uma grande fome em 914 e 915. Debilitada e deitando-se todas as noites no frio soalho de pedra de nossa casa, a minha mulher não resistiu e desenvolveu uma pneumonia fatal. Restou-me a minha filha Claudette, mas, em 1916, os alemães deportaram-na de Lille, levando-a com muitas outras raparigas para trabalhos forçados no campo. Foram vinte e cinco mil pessoas de Lille, sobretudo mulheres e crianças, enviadas à força para a provincia para cultivarem a terra, partirem pedras, construirem pontes, fazerem sacos de terra e outros trabalhos de escravo. Felizmente, só durou cinco meses essa provação, e Claudette já se encontra de novo comigo.
Perdoe-me estas divagações de velho, mas elas têm um propósito. Conto-lhe todos estes pormenores sobre a nossa vida para o caso de ocorrer a circunstância contrária à que o senhor teme, isto é, encontrar-se o senhor primeiro com a minha filha. Asseguro-lhe porém, meu caro capitão, que, no caso de ser eu o primeiro a vê-la, lhe mostrarei sem falta a missiva que teve a amabilidade de me remeter e pode estar certo de que abençoarei o matrimónio que já acordaram, ciente de que o senhor a honrará e fará dela uma mulher feliz.
Deus o abençoe,
Paul Chevallier.
Dias depois, os guardas alemães mandaram os prisioneiros formar para serem transferidos para a Alemanha. Afonso e os seus companheiros saíram da Citadelle e atravessaram uma grande avenida, com o irónico nome de Boulevard de la Liberté, até chegarem à gare de mercadorias, no outro lado da cidade.
A viagem de comboio durou quatro dias e só terminou em Rastatt, uma pequena povoação na orla da Floresta Negra, na Baviera, onde os prisioneiros, esfaimados e doridos, foram encerrados num Russen Lager, ou campo russo. O campo tinha trinta hectares e estava dividido por blocos, cada um isolado por duas redes de arame farpado. O campo era inicialmente destinado a prisioneiros russos, mas, com a saída da Rússia da guerra no ano anterior, passou a albergar franceses, britânicos e portugueses.
Começou aí um calvário de vida de recluso. Afonso e outros oficiais foram submetidos a uma dura dieta de beterraba, cenoura, batata e farinha, por vezes com pedaços de carne ou farrapos de bacalhau. Os militares portugueses passavam as refeições a protestar contra a qualidade da alimentação, enquanto os oficiais britânicos se mantinham à mesa compostos e serenos.
Ao fim de poucos dias, Afonso foi transferido para a fortaleza de Friedrichfest, ainda em Rastatt, regressando mais tarde ao Russen Lager. Algumas semanas depois, os alemães levaram-no para Karlsruhe, fechando-o no Kriegs offizier gefangenenlager, um confortável campo de oficiais prisio-neiros situado num acolhedor parque da cidade e onde os portugueses se entretinham a admirar as atrevidas fraulein que se iam propositadamente bambolear frente aos reclusos estrangeiros. Houve mesmo um, o tenente Ribeiro, que fez amizade com uma alemã muito loira, a bochona, como lhe chamavam, não era esbelta mas parecia uma valente valquíria e caiu-lhe no goto, o namoro tornou-se tema de conversa entre os reclusos, era danado o Ribeiro! Não durou muito a permanência nesse cárcere paradisíaco, uma vez que o capitão recebeu nova ordem de transferência, desta feita para um miserável campo em Hannover, onde encontrou o comandante do seu batalhão, o major Montalvão, igualmente capturado na grande batalha.
Durante todo o tempo em que andou a saltar de campo de prisioneiros em campo de prisioneiros, Afonso procurou arranjar maneira de manter contactos com o exterior. Escreveu à família através da Cruz Vermelha, mas teve maiores dificuldades em localizar Agnès, uma vez que não tinha memorizado a morada do anexo de Béthune. Optou por endereçar as cartas ao Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, sem nunca obter resposta. O silêncio da francesa deixou-o perturbado e era permanente tema de preocupação. O capitão variava diariamente de estados de espírito, mergulhando em quieta melancolia ou consumindo-se em agitada inquietação, humores que alternava com esgotante frequência. Os torpores melancólicos eram dominados por recordações pormenorizadas de todos os instantes que com ela passara e por emocionantes fantasias sobre o reencontro, mas os momentos de inquietação revelavam-se piores, interrogava-se então sobre a gravidez e a sua evolução e questionava-se doentiamente quanto aos motivos por detrás do silêncio às suas insistentes cartas. Poderá a correspondência ter-se extraviado? Terá Agnès abandonado o hospital? Será que ela já o esquecera? Emergia esgotado desses instantes de maior angústia, compensando-os com outros momentos onde alimentava a certeza de que estava tudo bem, tentava consolar-se, tranquilizar-se, convencia-se de que, afinal de contas, as sucessivas transferências de campos de prisioneiros certamente dificultavam as coisas à Cruz Vermelha, impediam que os serviços fizessem chegar às suas mãos as ansiadas cartas de resposta.
Na companhia de Montalvão, Afonso mudou-se meses mais tarde para o campo de Breensen, em Mecklemburg, o último destino dos permanentes pas-seios pelo interior da Alemanha. Passou ali o mês de Outubro numa monótona existência, apenas animada por uma divertida representação de uma peça de teatro, encenada em três actos pelo tenente-coronel Malheiro, com o título de O Amor na Base do CEP. A acção decorria nas praias de Tréport e Paris-Plage, em França, facto que o capitão achou significativo. Na verdade, a escolha dessas estâncias de veraneio para o local da acção era bem representativa da forma como alguns oficiais encaravam os seus deveres na guerra, aquela era mesmo uma história de cachapins e palmípedes, oficiais da retaguarda habituados ao ócio e à vida au grand air na prazenteira costa francesa. Afonso conhecia alguns que até se gabavam de serem pagos para irem gozar a praia, beneficiando de um absurdo sistema de subvenções que premiava o desleixo. Enquanto um capitão que arriscava a vida nas trincheiras se limitava a ganhar a subvenção de campanha, aqueles que iam passear pelas grandes estâncias de veraneio beneficiavam de um subsídio extra de vinte francos diários para pagarem alimentação e casa e mais uns valentes trocos para o combustível.
Embora a peça lhe tenha devolvido inadvertidamente à memória alguns dos aspectos mais caricatos e lamentáveis da organização do CEP, a verdade é que a representação teatral teve o condão de, mesmo que por apenas um breve instante, lhe permitir desligar-se das suas preocupações obsessivas. Aquele tornou-se indubitavelmente um acontecimento no campo de prisioneiros, por sinal até bem divertido, sobretudo porque as várias personagens femininas eram, como não podia deixar de ser, interpretadas por oficiais. Foi de rir até às lágrimas ver o capitão Grilo, com o seu bigode farfalhudo e os braços gordos e peludos, a personificar uma jovem actriz parisiense, supostamente esbelta e deslumbrante, e a fazer arrebatadas declarações de amor ao enfezado tenente Santos. Só faltou os dois oficiais beijarem- se nos lábios para que a excitada plateia deitasse abaixo o barracão.
A representação não passou, porém, de uma fugaz distracção para Afonso, sempre com a mente voltada para a gravidez de Agnès. Pelas contas que os médicos tinham feito, o parto deveria ocorrer por esta altura e o capitão deses-perava por não poder estar presente. Havia momentos em que a ansiedade o sufocava, apetecia-lhe fugir, passar pelo portão a correr, saltar as vedações, tinha sede de liberdade e fome de amor, faltava-lhe o ar naquela prisão, queria sair dali a todo o custo, a guerra não havia meio de terminar.
Este estado de espírito só veio a ser alterado numa manhã cinzenta de Novembro. Afonso acordou cedo, como todos os prisioneiros, vestiu-se e saiu do barracão, enfrentando o frio cortante e agreste da alvorada para se dirigir às latrinas. Quando passava perto do portão reparou que os guardas alemães do campo de Breensen estavam todos agarrados a jornais, o ar circunspecto, sombrio, trocando comentários em murmúrios secretivos. Já na véspera tinha notado que o ambiente era estranho entre os carcereiros, mas não atribuíra grande importância a esse facto. Agora, porém, o comportamento dos guardas tornara-se mais pesado e parecia ter os jornais como epicentro. Cheio de curiosidade, Afonso aproximou-se do grupo, formado por quatro soldados.
"Hallo", cumprimentou. " Jie geht "
Um soldado respondeu com um grunhido maldisposto, os outros mantiveram-se calados, ignorando-o, os olhos sempre fixos no jornal, perdidos nas notícias da frente. Estranhando aquela postura, Afonso baixou a cabeça, espreitou a primeira página e sentiu um baque no coração. O jornal, datado desse dia, 12 de Novembro de 1918, anunciava que a guerra tinha acabado na véspera. Os aliados venceram.
Apesar do armistício, Afonso permaneceu mais dois meses no cativeiro. Foi libertado em Janeiro, em pleno Inverno, o corpo debilitado pelo frio e pela malnutrição. Apanhou um comboio para França, planeando ir à procura de Agnès, mas não tinha dinheiro e encontrava-se febril e enfraquecido. Percebeu que não estava em condições de ir no encalço da sua francesa e deixou-se levar até Brest com outros companheiros que com ele vieram desde Breensen.
No dia 25 apanhou o paquete Gil Ennes no grande porto francês e rumou a Portugal, o navio repleto de ex-prisioneiros e doentes, a maior parte tuberculosos. O capitão procurou entre os tuberculosos aqueles que estiveram internados no Hospital Misto de Medicina e Cirurgia e depressa encontrou quem se lembrasse de Agnès.
"Er'uma gaja muita boa, nã era? ", disse um dos tuberculosos, por entre dois ataques de tosse. Falava de modo trapalhão, como Vicente, uma espécie de Manápulas com cerrado sotaque algarvio. "Alembro-me dela, pois m'alembro. Atão nã havia de m'alembrar? Aquil'é qu'era uma mulher, camano, nã era com'uns estafermos ordinarões que p'ra lá andavam, umas gajas qu'até bigode tinham naquelas bêças. "
"O que lhe aconteceu?"
"À francesa? Depois do 9 de Abril andava muita tristonha, tadinha!" Tossiu. "A gaja tava prenha, acho qu'o homem er'um português que se finou durant'a batalha" Mais tosse. "Andava desconsolada, a pobrezita. Ao fim d'algum tempo meteu baixa e nunca mais lhe pusemos os olhos em cima." Ainda mais tosse. "Foi uma pena, aquela moça até ressuscitava um morto, cara-ças, er'um'alegria vê- la passar pel'enfermaria a abanar aquela pêda gostosa."
A ponte foi colocada com firmeza, estabelecendo a ligação entre o Gil Ennes e o cais do porto de Lisboa. O oficial que comandava a operação coçou a barba rala enquanto observava os homens a assegurarem- se de que a ponte estava transitável. Quando as verificações ficaram concluídas e a atracagem completa, voltou-se para a legião de militares miseráveis e esfarrapados que observavam terra com incontida e faminta ânsia.
"Muito bem", berrou. "Primeiro descem os oficiais, depois as praças e, no fim, saem os acamados. Quero um desembarque ordeiro e sem confusões. " Fez um gesto para um sargento colocado junto à ponte. "Vamos lá. "
Os oficiais dirigiram-se para a ponte e atravessaram-na. Afonso aguardou a sua vez na fila, paciente, os olhos perdidos no horizonte entrecortado pelos familiares telhados vermelhos de Lisboa, a baça cor de tijolo a espraiar-se sob o azul-pálido do céu invernal. A sua atenção deambulou distraidamente em redor, fixou-se nas gaivotas que grasnavam em irrequietas nuvens, melancólicas, iam e vinham como ondas a cortarem o ar, por vezes rasavam as águas cristalinas do Tejo e perdiam-se nas cintilações de luz reflectida na crista da espuma, o aroma salgado do mar, no seu encontro amoroso com o rio, a encher-lhe as narinas e a trazer- lhe aos pulmões o esquecido perfume da sua terra, a maresia fresca e revigorante que flutuava na brisa baixa.
O capitão atravessou finalmente a ponte, pisou o chão do cais e verificou, surpreendido, que a fila dos oficiais se mantinha.
"Ó meu major, que bicha é esta?", perguntou a Montalvão três lugares mais à frente.
"É para a Comissão Protectora dos Prisioneiros de Guerra." "Ah sim? Já temos comissão protectora? E ela protege-nos de quê?"
"Deve ser dos boches", riu-se Montalvão.
À medida que a fila avançava, Afonso apercebeu-se de que, instaladas por detrás de uma mesa, umas senhoras de meia-idade iam entregando aos oficiais uns papéis pequenos. Quando chegou a sua vez, uma das mulheres também lhe deu uma mão-cheia dos papéis.
" O que é isto, minha senhora?"
"São senhas, senhor oficial" "Senhas? Senhas para quê? "
"Correspondem a donativos de vestuário e dinheiro. Com essas senhas, o senhor oficial pode adquirir os produtos de que necessita.
Afonso guardou as senhas no bolso e seguiu o grupo de oficiais. Aglomeravam-se todos à volta de uma outra mesa instalada no cais, discutindo animadamente, alguns mostravam-se agastados e erguiam a voz, outros abriam os braços em desconsolo resig nado. O capitão estranhou o burburinho e foi ter com Montalvão.
"Meu comandante, o que se passa? "
O major encolheu os ombros.
"Não sei bem", disse, hesitante. "Parece que há um problema qualquer e não podemos ir para Braga "
"Não podemos ir para Braga? Porquê? "
"Não sei, não sei, não percebi. "
Afonso furou por entre o grupo e foi ter com um tenente que se encontrava sentado na mesa. Era um rapaz jovem, de bigode fino e com um tique na boca. O tenente tomava nota dos nomes dos recém- chegados.
"Ó tenente, o que se passa? "
O tenente nem levantou os olhos.
"Vocês vão ter de ficar aquartelados aqui em Lisboa", disse, atarefado, sem parar de escrever "Ponha-se na bicha, se faz favor"
Afonso olhou com intensidade para aquele rapazola acabado de sair da Escola de Guerra, deu consigo a pensar que o miúdo nunca tinha escutado um tiro disparado em fúria, evidentemente nem sabia quão desesperada era a angústia que atormentava os homens diante de si, ignorava por certo aquela dolorosa e pungente ânsia de quem sofre pelo reencontro com as famílias, permanecia friamente alheio à fome de afecto e à sede de conforto que lhes assaltava o corpo e inquietava a alma. Em vez de os respeitar, o jovem tenente comportava-se até como se estivesse a fazer-lhes um favor, gastando a sua preciosa atenção com um bando de maltrapilhos malcheirosos. O capitão sentiu uma fúria cega, poderosa e libertadora, crescer-lhe no estômago, encher-lhe o peito, subir-lhe à cabeça e tomar conta de si.
"Tenente", berrou de súbito, com voz de comando. "Em sentido perante o seu superior! "
O tenente estremeceu de susto, olhou alarmado para Afonso, ergueu- se atrapalhadamente da cadeira e pôs-se muito hirto, em sentido. Fez-se silêncio em redor.
"Mas que merda vem a ser esta? ", insistiu Afonso em tom ameaçador. "Então não se faz continência ao superior hierárquico?"
"Sim, meu capitão", disse finalmente o tenente, lívido, erguendo a mão em continência.
Afonso mirou-o de alto a baixo, inspeccionando-o. Apontou para os pés.
"Isto são botas que se apresentem? Hã? Isto são botas que se apresentem?"
O tenente mirou de relance as botas.
"Meu capitão... uh... as minhas desculpas", gaguejou, sem perceber o que havia de errado com as botas.
"Quando eu acabar de tratar de si, quero essas botas a brilharem como a baioneta de um boche, ouviu? Como a baioneta de um boche! "
"Sim, meu capitão. "
Afonso estava rubro. Respirou fundo e acalmou-se, subitamente surpreen-dido com a sua própria fúria, mais ainda por ter dito um palavrão, desde os tempos do seminário que era incapaz de dizer "merda"
"Agora conte-nos lá por que razão a malta tem de ficar aquartelada aqui em Lisboa", ordenou o capitão, num tom de voz mais tranquilo.
Um clamor de aprovação ergueu-se do grupo de oficiais. O miúdo fora posto na ordem e tinha agora de responder à questão que todos queriam ver esclarecida.
"São... são ordens do general Figueiredo, meu capitão." "E quem é esse caramelo? "
"É o meu comandante, meu capitão "
"O general Paneleiredo, ou lá como é que esse tipo se chama, não sabe que a malta das trincheiras não vê a família há mais de um ano? Hã? Não sabe? "
O tenente baixou os olhos.
"Eu... uh... eu cá não sei nada disso, meu capitão " Afonso ficou a observá-lo, as sobrancelhas cerradas, o ar desconfiado, intimamente perplexo por ter esboçado um segundo palavrão, Paneleiredo era algo que nunca pensou ser capaz de chamar a um superior hierárquico.
"E você? ", perguntou finalmente. "Sabe ao menos por que razão não podemos ir para Braga? "
"É por causa da revolta, meu capitão. "
"Da revolta? Qual revolta? " "A do Norte, meu capitão "
"A revolta do Norte? Mas você ensandeceu? Que revolta é essa, hã? Explique lá, homem! Vamos, desembuche! "
O tenente transpirava. Olhou em redor, deixando escapar um esgar aflito.
"Foram os monárquicos, meu capitão", titubeou. "Revoltaram-se há uns dez dias. A Junta Militar do Norte proclamou a monarquia no Porto e aclamou D. Manuel II como rei de Por4tugal. Aqui em Lisboa também se revoltaram, os monárquicos acamparam ali em Monsanto e houve porrada da grossa na semana passada, mas os republicanos acabaram por vencê-los.
O tenente calou-se e os oficiais entreolharam-se, espantados.
"Sim senhor, isto está bonito", comentou um major.
"Chegámos à balbúrdia, é o que é. "
"É a treta do costume", avançou outro oficial.
"Sempre a mesma merda. "
"E o Sidónio, hã? Não faz nada? ", inquiriu Montalvão.
O tenente mirou-o com um olhar estupidificado.
"O presidente da República morreu. "
Fez-se silêncio no grupo.
" O que diz você ", perguntou uma voz. " O Sidónio morreu?"
"Foi assassinado na estação do Rossio", esclareceu o tenente.
"Aí há coisa de mês e meio, antes do Natal. "
Com o país em pé de guerra e o Norte em rebelião, os militares minhotos foram instalados num quartel de Lisboa, aguardando o desenlace dos acontecimentos. Mas Afonso não era minhoto e tinha a família em Rio Maior, do lado de cá da fronteira invisível que, durante os tormentosos vinte e cinco dias que durou a Monarquia do Norte, dividia o país. Sem nada a prendê-lo à capital, o capitão apresentou-se no quartel-general, preencheu os documentos que regularizavam a sua situação, solicitou uma licença, que lhe foi imediatamente concedida, e dois dias depois, já bem dormido e comido, dirigiu-se à estação do Rossio. Corriam os primeiros dias de Fevereiro de 1919quando apanhou um comboio até às Caldas da Rainha e seguiu de caleche para Rio Maior, mal contendo a ansiedade que lhe enchia o peito.
O reencontro com a família foi emotivo e triste. Afonso soube então que o pai tinha morrido no ano anterior, na sequência de uma queda enquanto apanhava frutos numa árvore. O capitão foi nesse dia ao cemitério visitar a campa onde ele se encontrava sepultado. Depositou uma coroa de flores junto ao túmulo, rezou num murmúrio e encomendou uma missa em memória de Rafael Laureano.
À noite, a família juntou-se na Carrachana para o jantar, vieram os irmãos, Manuel, Jesuína, João e Joaquim, mais as respectivas famílias, todos reunidos para celebrarem o regresso do mais novo. A senhora Mariana colocou na mesa uma panela de misturadas e Afonso engoliu a sua dose com um prazer que o surpreendeu, não se lembrava de ter apreciado tanto aquele prato na sua meninice.
"Isto está muito bom, mãe, está mesmo saboroso", exclamou, acompa-nhando a sopa com o pão.
"Então não havia de estar bom?", riu-se Manuel, o mais velho. "Para quem andava a comer aquelas porcarias todas na França e na Alemanha, isto deve ser um manjar de reis. "
"Diz lá se a nossa paparoca não é melhor do que a dos estrangeiros, hã? Diz lá", desafiou-o Jesuína.
"Então não é?", concordou Afonso. "Onde é que lá os franceses têm panela de misturadas?"
"O que é que eles comem, filho?", quis saber Mariana. "Bem, comem mais ou menos o que nós comemos, só que confeccionado de maneira diferente e com nomes finos. Por exemplo, em vez de linguado frito, eles dizem linguado a la meunière, fica mais chic"
"E tu comias isso, meu filho? "
"Às vezes, quando ia aos estaminets ou aos bistrôts." "Ai que nomes esquisitos!", comentou Jesuína. "Jesus, credo!
Até me faz espécie! "
"Ó Jesuína, tem juízo", atalhou Joaquim. "Então que nomes querias que os franciús dessem às suas casas de pasto, hã? Tasca do Zé Russo, não? " Deu uma grande gargalhada. "Havia de ser bonito, os franciús a dizerem uns aos outros: olha lá, vou ali à Tasca do Zé Russo aviar umas febras! "
Riram-se todos. Manuel sabia ter graça quando se juntavam em grupo. Assumindo-se agora como o chefe da família, ou não fosse ele o homem mais velho depois da morte do pai, gostava de animar as reuniões familiares.
"Ó Manel, não é nada disso", retorquiu Jesuína, vexada por ser alvo da chacota do irmão. "Estava só admirada por o Afonso saber as palavras estran-geiras, só isso. "
"Mas, ó Afonso, então tinhas de comer essas coisas dos franceses, era? ", insistiu a mãe, sempre preocupada com a alimentação que o filho teve na guerra, afinal de contas, constatou, o rapaz veio magro que nem um carapau, até as costelas se lhe viam, coitadinho, decididamente a comida não devia ser lá grande coisa.
Sim, mãe, também comia isso, mas só enquanto estava na retaguarda. Quando ia para as trincheiras, davam-nos uma carne que vinha em latas inglesas, e isso era bem pior do que a alimentação francesa, acredite. E, depois de ser preso pelos boches, a coisa ainda piorou, os tipos quase nem tinham carne para os seus soldados, quanto mais para nós. "
"Ah sim, filho? E o que é que esses comem? "
"Quem? Os bifes ou os boches? "
"Os dois. "
"Como é bom de ver, os bifes comem bifes", disse. "Os boches enchem-se de salsichas, aquilo é uma coisa horrorosa, cheia de gordura, mas foi a única carne que para lá vi. Tudo o resto eram vegetais, batatas e coisas do género."
"Nenhum faz as comezainas da tua rica mãezinha, pois não? " "Oh, mãe, claro que não."
"Não há paparoca como a da nossa mãezinha", concordou Manuel, sempre bem-disposto e já ligeiramente tocado pelo vinho. Olhou para a mulher e acrescentou: "A nossa mãezinha e aqui a minha Aurinda, pois claro "
"Ah, estava a ver!", devolveu a mulher.
Afonso olhou em redor, como se procurasse alguma coisa. Desde que chegara a casa que queria saber se Agnès lhe tinha escrito, essa era uma questão absolutamente essencial, prioritária. Precisava de conhecer o seu paradeiro, receber notícias, entrar em contacto com ela, arranjar maneira de ir à Flandres para a ir buscar ou para lá ficar. Além do mais, e pelas suas contas, já deveria ser pai havia uns dois ou três meses, mas necessitava da confirmação. O problema era levantar a questão, não sabia bem como o fazer. Engoliu em seco e encarou a senhora Mariana, esforçando-se por dar o ar mais natural possível à pergunta que tinha para lhe colocar.
"Ó mãe, já agora, não recebeu nenhum correio para mim, pois não? ", perguntou, fingindo que essa ideia acabara de lhe ocorrer.
"Correio donde, filho? "
"Sei lá. De França, por exemplo."
"De França?"
A senhora Mariana mostrava-se genuinamente surpreendida e Afonso, acossado pela impaciência e vergado pela ansiedade, não resistiu e foi direito ao assunto.
"Sabe, mãe, estou à espera de uma carta de uma senhora francesa. "
Foi a risada geral, para grande embaraço de Afonso, imediatamente arrependido por ter levantado a questão à frente de todos. A mãe sorriu e piscou-lhe o olho.
"Com que então o meu menino tem amiguinhas francesas, é? " Afonso corou.
"Oh mãe, não é nada do que está para aí a pensar..." "Ah, grande Afonso!", rugiu Manuel do outro lado da mesa. "Bem me parecia que ias honrar o nome dos machos da família, caraças! É d'homem! Aposto que as francesas te vieram todas comer à mão, hã? Rica vida deves ter tido lá na França, sim senhor!"
"Cala-te, Manel!", ordenou a mulher, a tesa Aurinda. "Já chega de brincadeiras, deixa lá o rapaz."
Mas foi Mariana quem não o largou.
"Então e a Carolina, hã? Já não queres saber dela?" "Mas o que é que eu tenho a ver com a Carolina, mãe? Ela está casada e que seja muito feliz."
"Está casada, não. Está viúva."
"Viúva? O que é que aconteceu ao marido?"
"Apanhou o tifo. Houve para aí uma epidemia desgraçada no ano passa-do, em Março, e o senhor engenheiro bateu a bota. "
"Coitado. "
"Coitado, não! Não se tivesse metido com a Carolina, que era tua. Olha, ela se calhar até ficou melhor! " Olhou-o com matreirice. "Assim como assim, está agora sem homem"
"Vai-te a ela!", berrou Manuel, os bigodes a pingarem gotas de tinto.
"Cala-te, Manel", insistiu Aurinda.
A paciência de Afonso chegara ao limite.
"Chega, parem com isso", exclamou, a voz irritada. "Deixem-me em paz! "
"Pronto, pronto, não te enerves. "
Afonso respirou fundo. Tinha levantado a questão e iria agora até ao fim.
"Ó mãe, diga lá, recebeu ou não recebeu nada para mim? " " De França?"
"Sim. "
Mariana esboçou um trejeito de boca enquanto vasculhava a memória.
"Não... não... hã, espera... lembro-me de que o Inácio apareceu aí... "
"O Inácio?"
"Sim, o carteiro. Agora, que falas nisso, lembro-me de que ele apareceu aí com uma carta para ti. Como não tínhamos notícias tuas, eu mandei o teu irmão ler a carta", disse, apontando para Joaquim.
Afonso interrogou o irmão com os olhos, mas este encolheu os ombros.
"Ó Afonso, eu abri a carta, lá isso abri, mas não percebi patavina do que estava para lá escrito, era em estrangeiro."
"Francês? "
"Sei lá. Até podia ser em chinês. Não se percebia nada, eram uns gata-funhos horrorosos."
"E o que fizeram com a carta?"
"Olha, filho", atalhou a senhora Mariana. "Como nós não entendíamos aquela algaraviada toda, fui levar a carta à dona Isilda, que é muito culta e conhece as chinesices todas. Ela leu-a e disse-me para estar descansada, não era nada de importante."
"A dona Isilda leu a carta? "
"Sim, Afonso, ela leu e."
Afonso ergueu-se da mesa, interrompendo-a.
"Desculpe, mãe, mas é imperativo que eu saiba o que dizia essa carta. Quando é que a recebeu? "
"Sei lá, foi... foi antes do Natal, mesmo antes. "
"Em Dezembro? "
"Sim, filho. "
Afonso vestiu um casaco e dirigiu-se apressadamente à porta. "Mas, ó filho, acaba o jantar. Onde vais tu, valha-me Deus?" "Vou ali à dona Isilda", despediu-se. "Já volto."
O capitão seguiu a pé da Carrachana até ao centro de Rio Maior. A Casa Pereira encontrava-se encerrada, já era noite, mas Afonso sabia que a proprie-tária vivia no andar de cima e bateu à porta. Ouviu passos e a porta abriu-se. Carolina fitava-o com ar surpreendido, estupefacto até.
"Olá, Carolina, como vai isso? "
Estava mais madura, o cabelo num desalinho, embora permanecesse atraente. Continuava a não ser uma beldade, mas não há dúvida de que era capaz de despertar as atenções dos homens.
"Afonso... que surpresa! O que estás aqui a fazer?" "Vim falar com a tua mãe. Ela está? "
Os olhos de Carolina mostraram uma ligeira decepção, ocultando com dificuldade a desilusão por Afonso ter vindo à procura da mãe, não de si.
"Sim, sim, entra, disse ela, abrindo totalmente a porta. Desculpa receber-te assim, nestes preparos, mas, sinceramente, não estava nada à espera "
Subiram as escadas e Carolina levou-o à presença da mãe. Dona Isilda pareceu-lhe bem mais velha, acabada, o corpo franzino enroscado numa manta junto à lareira. Os olhos brilharam- lhe quando viu o seu antigo protegido entrar na sala, garboso naquela farda azul de militar.
"Olha quem é ele!", exclamou. "O nosso herói" Afonso beijou-lhe a mão. "Como está, dona Isilda? "
"Melhor", sorriu ela. "Melhor, agora que te vejo. Estás um homem, rapaz, um homem. "
"E a senhora continua rija... "
"Não digas disparates, Afonso. A idade não perdoa."
"Como vai o seu irmão? "
"Bem, ele vai bem. Foi transferido para Chaves, vê lá tu, mas anda fino. E pergunta muitas vezes por ti, oh se pergunta! "
"Mande-lhe cumprimentos meus, dona Isilda. Diga-lhe que tenho sauda-des dele. "
"Serão entregues. Vai ficar contente por te saber de regresso da guerra. Coisa terrível, a guerra, hã? Terrível!"
Afonso suspirou.
"Sim, é algo inimaginável". Fez uma pausa. "A propósito, fiz muitas amizades lá em França, e a minha mãe disse-me ter recebido uma carta para mim escrita numa língua que ela não identificou, que presumo ser francês, e que a trouxe aqui para a senhora ler. Tem aí essa carta? "
Dona Isilda agitou-se na cadeira, desconfortável. O rosto ensombrou-se-lhe e olhou de soslaio para Carolina, que assistia à conversa de pé.
"Carolina, minha filha, vai ali preparar uma tisana para a mãe e para o Afonso, vais?"
Carolina ensaiou uma vénia e retirou-se para a cozinha. Mal a filha abandonou a sala, dona Isilda fez sinal a Afonso para se sentar e pegou- lhe na mão.
"Meu filho, tens de ser forte", disse simplesmente. Afonso olhou-a com horror, um pavoroso pressentimento a pesar-lhe na alma.
" O que foi, dona Isilda?" "Eu queimei essa carta."
"Queimou a carta? Mas a que propósito? "
"Queimei a carta porque ela era terrível, Afonso, terrível. "
O capitão sentiu um baque no coração.
"O que é que a senhora quer dizer com isso? O que é que dizia a carta?"
A velha baixou os olhos e suspirou.
"Não me lembro dos pormenores, só do essencial. A carta foi remetida de Lille e era assinada por um senhor"
"Um homem?"
"Sim, um homem. "
Só podia ser Paul Chevallier, pensou Afonso.
"E o que dizia ele? "
Dona Isilda apertou-lhe a mão ainda com mais força. "Dizia que a filha tinha morrido. "
Afonso abriu a boca, horrorizado. Não queria acreditar no que estava a ouvir.
"Qual... qual filha?", balbuciou.
"Lembro-me de que se chamava Agnès", disse dona Isilda. "Ela morreu. Ela e... a criança. Entendes? A criança. Apanharam a gripe espanhola e morre-ram em Lille "
Afonso permaneceu um longo minuto paralisado, boquiaberto, em estado de choque. Tentou falar, mas nada conseguiu dizer. Lembrou-se da última imagem que guardava de Agnès, a francesa no portão do hospital, sorridente, os olhos enamorados, despedindo-se de si com ar feliz, alegre com a notícia de que Afonso iria em breve abandonar as trincheiras. O capitão levantou-se com brusquidão e arrastou-se pela sala, sentiu-se a perder o equilíbrio, ouviu vagas vozes em torno de si, eram dona Isilda e Carolina a falar, mas não as entendeu, cambaleou pelas escadas aos sucessivos encontrões ao corrimão, julgou-se mergulhado num pesadelo mau, caminhou como um sonâmbulo e, quando finalmente saiu à rua, a noite ficou turva de lágrimas e ele chorou, chorou como nunca tinha chorado desde a infância, chorou com abandono, com desespero, chorou perdidamente, a voz largando urros terríveis, em atroz sofrimento. Sentiu-se perdido, rejeitado pela sorte, acossado pelo destino. Descobriu-se horrivelmente só.
Afonso estava sentado numa banqueta de Picantin Post, a fumar um cigarro, quando ouviu uma buzina Strombo a dar o alerta de gás tóxico. O alarme soava mesmo ao lado, ferindo-lhe os ouvidos. Sobressaltado, o capitão olhou em direcção à origem do som e descobriu, com estupefacção, que era Agnès quem accionava a Strombo. Deu um salto na banqueta, confuso. Receava acreditar nos seus olhos. Mas, no instante seguinte, as dúvidas desfizeram-se, era mesmo ela, sentiu um banho de felicidade a encher-lhe a alma e uma libertadora sensação de euforia a percorrer-lhe o corpo. Correu para ela, imensamente aliviado por vê-la viva, a tremenda alegria que o invadia a relegar para segundo plano a estranheza por encontrá-la ali nas trincheiras. Mas, quando se aproximava da sua francesa, preparando-se para a apertar num maravilhoso abraço de reencontro, viu o vulto cinzento de um alemão a aparecer sobre as trincheiras, mesmo por detrás de Agnès. Sacou da pistola e abateu-o. Logo um outro alemão surgiu também, e um outro ainda, e mais outro. Puxando Agnès para trás de si, foi-os abatendo um a um. Mas eles não paravam de chegar, pareciam um formigueiro, avançavam inexoravelmente e tentavam cercá-los. Afonso começou a desesperar, a sentir que não conseguiria travar aquela inesgotável onda de assalto. Protegia Agnès com o corpo e abria fogo sem descanso para a direita e para a esquerda, febrilmente, matava-os uns atrás dos outros e eles, mesmo assim, avançavam, eram tantos que o oficial português entrou em pânico, tentou abraçar Agnès e disparar ao mesmo tempo, sentiu que a queriam levar, que lha tentavam roubar, que a procuravam matar, isso não podia ser, isso não podia ele permitir, nem pensar, nem pensar, uma imensa aflição encheu-lhe a alma, um indizível terror apossou-se-lhe do coração ante a perspectiva de a voltar a perder. Pôs-se a chorar, implorando à divina Providência para que a poupasse, para que a deixasse ficar com ele, Agnès era agora um frágil vulto atrás de si, ambos cercados por alemães que avançavam ameaçadoramente, ela debilmente protegida por um desesperado Afonso.
"O que é, filho? "
Afonso deu consigo sentado na cama, a gritar e a chorar, um nó na garganta, a mãe à porta a olhá-lo com alarme. Sentiu gotas de suor na testa, estava ofegante e tinha lágrimas nos olhos. Olhou em redor, momentaneamente confuso, aparvalhado, mas acabou por perceber. Suspirou.
"Não é nada, mãe. Foi um pesadelo. "
A senhora Mariana levou a mão ao peito.
"Ai que susto que me pregaste, Afonso. Gritavas que era uma coisa aflitiva, valha-me Deus. "
"Foi só um pesadelo. "
"É mais um esta semana, filho. Vê lá se sonhas com coisas mais alegres, ouviste? "
"Sim, mãe. Boa noite. "
"Boa noite, filho. Descansa, vá. "
Afonso fechou os olhos, recostou-se na cama e tentou acalmar-se. Desde que soubera da morte de Agnès que aquele tipo de pesadelo lhe aparecera, era sempre diferente e, no entanto, sempre o mesmo, tão repetitivo no tema que se tornara recorrente. Lembrou-se das conversas com a namorada sobre Freud e a importância dos sonhos e pôs-se a imaginar o que Agnès lhe diria sobre aquele pesadelo em particular. Talvez que ele ocultava um desejo e um sentimento de culpa, o desejo de a ver viva e os remorsos por não ter sabido protegê-la da morte, por não ter estado com ela no momento da doença, quem sabe se a sua presença não teria sido crucial para impedir o desenlace trágico. A mente de Afonso era assaltada por mundos alternativos, por hipóteses diferentes, a palavra "se" atormentava-o a todo o instante. Se ao menos eu tivesse feito algo diferente, pensava. Se eu não lhe tivesse arranjado aquele lugar no hospital, ou se eu tivesse ficado com ela no dia em que a fui ver ao hospital pela última vez, ou se eu tivesse fugido dos campos alemães, ou ainda se eu tivesse feito algo diferente, algo que alterasse o encadear dos acontecimentos, então talvez ela ainda vivesse. Eram tantos os "ses", tantos os pequenos nadas que não foram alterados, tantas as minúsculas pedrinhas que provocaram aquela dolorosa avalancha. A culpa consumia-o, cruel e implacável, obsessiva e incansável.
O capitão permaneceu dois meses fechado em casa da mãe, na Carra-chana. Encerrou-se no quarto com os seus demónios, atormentado pelos fantasmas que lhe assombravam a alma. Carolina foi vê-lo várias vezes nas duas primeiras semanas. A partir da terceira semana passou a visitá-lo todos os dias. De início ela falava e ele permanecia calado, em silêncio, deprimido, mergulhado nas suas memórias e nos seus planos destroçados, por vezes com ataques de ansiedade ou acessos de culpa. Tinha insónias e receava permanecer acordado, era atormentado por pesadelos e temia mergulhar no sono. Não comia, sentia-se fraco e sem energia, a boca secava-se-lhe e a cabeça doía-lhe, deixara de se lavar, de se barbear ou de mudar de roupa. Mostrava-se apático, metido consigo, calado, solitário, não passavam cinco minutos em que não pensasse em Agnès, em que não sentisse dó da sua desgraça. Os sonhos e os pensamentos concentravam-se obcecadamente no mesmo tema, como se tentasse reorganizar o passado, como se procurasse um desenlace diferente, mais feliz. Custava-lhe aceitar a realidade, alimentava por vezes a secreta esperança de receber uma carta que tudo desmentisse, acordava de manhã com a fugaz ilusão de que tudo não passara de um pesadelo, mas era apenas por um breve instante de traiçoeira fantasia. Depressa caía em si e percebia que o guião já estava escrito, não era possível mudar o passado, o que fora feito ficara feito, aquela era uma estrada já percorrida e sem retorno, uma ópera triste que já fora cantada. Pequenas coisas, palavras, sons, melodias, aromas, minúsculos nadas, lembravam-lhe Agnès. Doía-lhe a forma abrupta como tudo acontecera, a impossibilidade de se despedir. Agonizava sobre os instantes que precederam o falecimento, interrogava-se se ela sofrera, se estaria assustada, se se apercebera da morte a acercar-se, insidiosa e inexorável como uma terrível tempestade que se abate sobre a terra. Nesses instantes tornava-se ainda mais sombrio, deprimido, sorumbático, sentia-se vazio e fechava-se em si, mergulhava nas trevas de um abismo sem fundo.
A dada altura, porém, começou a reagir. Depois do choque inicial e dos primeiros meses de depressão, dias cuja existência não passava agora de um obscuro borrão na sua memória, despertou da letargia. Lembrou-se das palavras de Agnès sobre o efeito terapêutico da compreensão dos traumas e da verbali zação dos sentimentos e sentiu uma inesperada energia, ligeira mas firme, a tomar conta de si. Ajudado pela memória da francesa e por tudo o que ela lhe ensinara a respeito da mente e das suas dores, começou gradualmente a tentar resolver aquele sofrimento que o paralisava. O primeiro passo foi dado quando se pôs a escutar Carolina, sobretudo quando ela lhe falava no trauma da morte do marido. Compreendiam-se bem, tinham passado pelo mesmo, perderam o outro e custava-lhes encarar a realidade. Num certo sentido, eram almas gémeas, irmãos na mesma dor.
Afonso foi-se abrindo lentamente. De ouvinte passivo passou a narrador activo, de início titubeante, era difícil transformar os sentimentos em palavras, a dor era inefável, inexprimível. Mas, com o tempo, o capitão tornou-se mais fluido, mais articulado, emergiu a par e passo do abismo onde tinha mergulhado. Sentado na cama ou encostado à janela, reviveu dolorosamente o passado, passou os sentimentos a palavras, falou-lhe de Agnès, da sua vida, dos seus sonhos, dos seus projectos a dois, do amor que não vivera e da dor que o dilacerava. Chorou como uma criança quando começou a tocar na profunda ferida que lhe rasgava o coração, falava aos soluços e com esforço, receando aquele sofrimento mas enfrentando-o para o resolver, enfrentou- o com tal determinação que até parecia autoflagelação, fazia pena vê-lo sofrer daquela maneira.
Uma tarde, logo depois do almoço, o padre Álvaro apareceu-lhe no quarto. Carolina saiu para os deixar a sós e o pároco sentou-se à borda da cama onde Afonso se encontrava estendido e quase se assustou com o aspecto do seu antigo discípulo, o cabelo despenteado e revolto dava-lhe um certo ar de doente, de louco. O capitão, por seu turno, olhou para o padre que o levou na adolescência para Braga e achou-o velho, a pele riscada de rugas e o corpo franzino a dobrar-se em curva, quase como se estivesse a desenvolver uma corcunda, os cabelos grisalhos a revirarem-se com rebeldia na cabeça e na barba.
"Então, filho?", perguntou o padre Álvaro com voz meiga. "Então?"
Afonso permaneceu calado. Avaliou-o com os olhos e depois fixou-se no infinito, num ponto perdido para além da janela. Só falou ao fim de três minutos.
"Porquê? ", perguntou enfim o capitão.
O padre observou-o, surpreendido.
"Como?"
"Porquê?"
"Porquê o quê? "
"Porquê? Por que é que isto me aconteceu?" Afonso mirou-o. "Passei a guerra a pensar que morria, que talvez não escapasse. E, quando vejo que escapei, quando penso que tudo acabou, que a guerra terminou e que poderei afinal viver, é justamente nessa altura que ela morreu. Qual o sentido de isso ter acontecido? Que propósito essa morte serviu? Por que é que isto aconteceu? Porquê "
"Foi a vontade de Deus, meu filho. "
Afonso endureceu o olhar e voltou a fixar-se no infinito para além da janela.
"Deus não existe", sentenciou finalmente.
O padre Álvaro endireitou-se, desconfortável com a blasfémia, olhou em redor, como se estivesse a assegurar-se de que o Senhor não estava no quarto e não ouvira tal heresia, e fixou-se no seu protegido.
"Então, filho? O que é isso? Vamos lá, vamos lá, é preciso acreditar n'Ele, na Sua bondade." Estendeu o dedo, indicando que aquele era um aviso, e levantou a voz para um nível que considerava suficientemente alto para que o Senhor o escutasse. "E é preciso também temer a Deus."
"Disparate!", cortou Afonso, cravando-lhe os olhos, canalizando ali a sua revolta interior. "Deus é bondoso ou Deus é temível? Hã? Em que ficamos? Que contradição é essa? Ou bem que é bondoso, ou bem que é temível. Não pode é ser as duas coisas ao mesmo tempo."
O padre Álvaro contemplou-o com serenidade.
"Deus é bondoso, temos de ter fé mas temos também de O temer. Afonso suspirou, impaciente.
"Sabe, senhor padre, eu vi muita coisa nestes últimos dois anos. Coisas de que não quero falar, coisas de que não consigo sequer falar. Até já me esqueci de algumas delas, veja lá. E, ao ver tudo isso, e após reflectir no assunto, só posso concluir que nos enganamos quando falamos de Deus. "
"Então, filho? Que coisas dizes, minha Nossa Senhora? " "É tudo uma mão-cheia de disparates", exclamou. Ergueu a mão esquerda, a palma voltada para cima. "Olhe, diz a Igreja que é preciso acreditar em Deus, é preciso ter fé, é preciso rezar. E eu pergunto, para quê? Então, os que não acreditam n'Ele vão para o inferno só porque não acreditam n'Ele? Então, se eu for um patife e rezar todos os dias como um beato, e se outro for um homem de bem, íntegro e honesto, mas não tiver fé nem rezar, eu vou para o céu e ele vai para o inferno? Eu que sou um patife e ele que é íntegro? Mas isto faz algum sentido? Que Deus é este que é de tal modo egoísta que exige que O idolatrem, que coloca a idolatração acima da bondade? "
O padre revirou os olhos, fazendo uma prece silenciosa para que o Senhor estivesse distraído e não tivesse escutado aquele chorrilho de palavras pecami-nosas.
"Deus é o Criador, temos de O respeitar, de O amar, de O temer. "
"Olhe, se quiser, até estou pronto para aceitar a Sua existência", assentiu Afonso. "Mas garanto-lhe que, se Deus existe, não é certamente este Deus de que fala a Igreja. Deus não é bom nem mau, Deus é inexprimível, está para além das palavras, dos conceitos, da moral. Ele é simplesmente o Criador, a fonte das coisas, a origem da morte e a inspiração da vida. Deus está-se bem ralando para que morram dez, cem ou mil soldados, Ele quer lá saber de mim, de si, de Agnès ou de quem quer que seja. Para Deus, uma pedra vale tanto como uma andorinha, como uma pessoa, como eu ou o senhor, tudo o que existe são Suas criações, tudo tem o mesmo valor." Afonso pigarreou, pensativo. "Olhe, sabe qual é a grande questão, a questão que a tudo responde? "
"O quê?"
"A grande questão é a velha dúvida de saber por que razão Ele nos criou, por que razão Ele nos impinge tanto sofrimento, que propósito tudo isto serve? Essa é a grande questão, o grande mistério. " Mordeu os lábios. "Acho que a chave desse mistério radica no problema de determinar se o futuro está aberto ou está fechado. Ou seja, se as coisas estão ou não previamente determinadas, se somos realmente livres e donos do nosso futuro ou se apenas temos a ilusão da liberdade e não passamos de escravos do destino, meras personagens no teatro divino." Afonso estudou as unhas, contemplou-as sem as ver verdadeira-mente, os olhos embrenhavam-se no mistério que o apoquentava. "Estaria a morte de Agnès previamente determinada? Acho que a resposta a este proble-ma permite-nos perceber qual o desígnio da criação." O olhar perdeu-se de novo na janela. "A dificuldade, naturalmente, é que não tenho modo de respon-der a essa pergunta que tanto me atormenta. Será que a morte de Agnès estava antecipadamente determinada?" Suspirou mais uma vez. "Bem, se a morte dela estava escrita desde o início dos tempos, isso significa que Deus é tudo, Ele tudo controla e tudo decide, nós somos uma ínfima parte do Seu ser. Tal como uma célula desconhece que faz parte do corpo, nós desconhecemos que fazemos parte de Deus. O corpo é constituído por milhões de células, cada uma é uma entidade viva que tem uma individualidade e que não sabe que faz parte de um todo muito complexo, o corpo. Pois nós, a exemplo do que acontece com as células, vivemos na ilusão de que temos uma individualidade e que uma coisa somos nós e outra é o mundo, o universo, Deus, quando afinal é tudo a mesma coisa, tudo é uma ínfima parte do todo, de Deus "
"E se o futuro não está previamente determinado?" "Nesse caso, senhor padre, receio mesmo que Deus não exista. Ou, se existir, tem muito pouco poder"
"Ai filho, não será isso antes o indício de que Deus decidiu conceber o homem como um ser livre?"
"Não creio. Sabe, não acredito nessa ideia de que o Todo-Poderoso tenha alienado o seu poder de tudo decidir. Se assim fosse, Ele não seria todo- poderoso. Se existe de facto um Criador omnipotente, pode estar certo de que Ele não criou o universo para deixar as coisas entregues ao acaso. Se Ele é todo-poderoso, Ele tudo decidiu. Consequentemente, se o futuro não está já determinado, é porque Ele tem poderes limitados. Um deus com poderes limitados não é Deus. Nesta hipótese, Deus talvez mesmo nem exista. "
"Ai, Jesus, como é que podes dizer isso?", exclamou o padre Álvaro, revirando outra vez os olhos para cima, quase pedindo desculpa ao divino pela blasfémia do seu antigo pupilo, como se sentisse que aquele insulto a Deus também fosse da sua responsabilidade. "Virgem santíssima! "
"Olhe, digo isto por uma razão muito simples. Se o futuro não está previamente determinado, isso significa que eu tenho livre arbítrio e que Deus não me controla nem a mim nem ao futuro. Ora, se eu controlo o meu destino, então é porque Deus não é todo-poderoso. As coisas não acontecem porque têm de acontecer, mas apenas como fruto do acaso e das várias vontades indivi-duais, sem propósito último nem razão transcendente. Nesse caso, provavel-mente, Deus não passa de um desejo, de uma criação humana destinada a procurar um inexistente sentido para a existência "
"E tu, filho? O que achas? "
Afonso recostou-se na cama e fixou os olhos no tecto. Havia duas aranhas coladas às teias num canto das paredes caiadas e escurecidas pela humidade, e o capitão ficou a observá-las a deambularem por entre os insectos inertes presos às suas redes. Estariam aqueles movimentos das aranhas determinados desde que o tempo começou? A questão apoquentava-o deveras.
"Eu quero acreditar que o futuro está previamente determinado", disse finalmente. "Só isso dá sentido a tudo o que passei e estou a passar. "
"Acreditando nisso, temes a Deus? "
"Isso é um disparate, já lhe disse. De que serve a Deus o medo dos homens? Na verdade, o medo a Deus é um conceito ridículo uma vez que sugere que o Criador é inseguro, talvez até prepotente, mimado, mesquinho e egoísta. Mas, se o futuro está previamente determinado, presumivelmente por Ele, de que Lhe serve que os homens O amem ou O receiem se foi Ele quem tudo determinou ao escrever a ópera cósmica que interpretamos a todo o momento? " Afonso abanou a cabeça e fez um trejeito de boca. "Não, Deus não é para ser amado nem temido. Deus é, Ele simplesmente é. Move-se com um propósito misterioso e acredito que todos nós, homens, animais, plantas, coisas, todos fazemos parte desse propósito, desse projecto. Nada ocorre por acaso, tudo tem uma causa e um efeito. Agnès morreu e esse é um acontecimento aparentemente insignificante à escala do universo. Porém, acredito que essa morte faz parte do universo, acredito que o universo ficou diferente com o desaparecimento de Agnès e de cada um dos meus camaradas de armas. O seu falecimento é mais um acto da grandiosa peça de teatro previamente composta pelo dramaturgo divino, mesmo que o propósito da morte nos pareça gratuito. O seu verdadeiro sentido permanece-nos desconhecido "
"Os desígnios do Senhor são insondáveis", sentenciou o padre Álvaro.
Afonso mirou-o meditativamente.
"Essa é possivelmente a única grande verdade que a Igreja ensina, senhor padre. Tudo tem um propósito, acho eu, mas esse propósito escapa-nos" Baixou a cabeça. "A alternativa seria simplesmente insuportável. A de que as coisas acontecem por acon tecerem, sem sentido nem razão. Isso seria insuportável!"
Afonso sentiu falta do padre Nunes, pensou que talvez só o seu antigo mestre seria capaz de o compreender realmente e calou-se. A tarde prolongou-se, silenciosa e lânguida. O padre Álvaro despediu-se ao cair da noite, partiu intranquilo e inquieto, mas Carolina permaneceu. Nesse dia e nos seguintes. Foi para ela que Afonso se voltou em busca do equilíbrio, da salvação. Não tinha capacidade para acompanhar os seus raciocínios, mas oferecia-lhe conforto emocional. Carolina dava-lhe a mão nos momentos mais difíceis, chegava mesmo a abraçá-lo quando o sentia desesperado, perdido, esvaziado. Deu-lhe forças e calor humano, ajudou-o a enfrentar os fantasmas do passado, as memórias de Agnès, a dor pela perda, os remorsos e o sentimento de culpa, a fúria e a revolta pela partida que o destino lhe pregara, o desespero por aquele ser um caminho sem retorno. Fragilizado, Afonso agarrou-se àquela bóia, prendeu-se àquele porto seguro, soltou as emoções e abriu a alma. Ele abriu-se-lhe tanto que, quase sem dar por isso, de mansinho, foi-lhe também abrindo o coração.
Carolina e Afonso casaram no Verão de 1920, numa boda simples realizada na pequena igreja de Rio Maior. A missa foi celebrada pelo idoso padre Álvaro, tio de Carolina e protector de Afonso em Braga, um entusiástico mestre de cerimónias muito compenetrado no seu papel, o pároco fazia questão de conferir àquele casamento uma solenidade e grandiosidade que o tornariam inesquecível.
Mas um dos nubentes mal o ouvia. De pé no altar, diante do padre a celebrar a missa em latim, o capitão passou grande parte do tempo abstraído do que se passava em redor de si, a mente a vaguear pelo passado como um vagabundo perdido, a procurar Agnès, a imaginá-la ao seu lado, a fingir que aquela não era a pequena igreja de Rio Maior mas a grande catedral de Amiens, a efabulação tornou-se tão perfeita que até detectou um sotaque francês no latim do eclesiasta. Durante alguns instantes, todavia, regressava à realidade e intuía vagamente a monstruosidade da sua traição, percebia que entregava o seu corpo incompleto àquela mulher, faltava-lhe a alma e o coração, ambos reféns no amor de outra. Compreendia a falsidade desse momento, a duplicidade daquela situação, os seus sentimentos encontravam-se longe dali, casava com uma e dificilmente passava uma hora em que não pensasse na outra. Arrependia-se e apetecia-lhe fugir, sair da igreja e correr, abandonar o altar e procurar o refúgio no aconchego uterino do quarto da Carrachana. Num supremo esforço para se distrair, a mente depressa mergulhava no seu sonho, na sua fantasia, na estrada imaginária por onde caminhava em delírio febril, um trilho feito de memórias e sensações, de recordações de tempos felizes e de desejos por satisfazer.
No momento da verdade, quando o padre Álvaro lhe formulou a pergunta sacramental, Afonso disse que sim, ao seu lado estava Carolina e ouviu-o dizer sim, supôs ela que ele lhe dizia sim a si, não sabia que dizia sim a outra que lá não podia estar, o fantasma que para sempre seria a sua sombra.
Montaram casa junto à Praça do Comércio, em Rio Maior, atrás da velha Casa Comercial de José Ferreira Lopes. Dona Isilda iniciou Afonso na gestão da Casa Pereira. Levou-o às fábricas onde ia buscar a mercadoria, apresentou-o aos fornecedores, explicou-lhe as contas e revelou-lhe as técnicas de venda. Ensinou-lhe como expor os produtos, como receber os clientes, como avaliar os empregados, como decidir quando se deve ou não conceder crédito a um cliente, quanto crédito e durante quanto tempo.
"Um comerciante não tem coração", repetiu-lhe ela. "A prioridade é defender o negócio, só isso conta. As decisões não podem ser ditadas pela piedade, mas pela racionalidade. "
Afonso afagou o bigode, meditando nestas palavras, duvidando se teria estômago para pôr na prática o que, com aquela facilidade, era dito.
"Mas, dona Isilda, às vezes encontramos situações humanas..." "A Igreja que as resolva", cortou a sogra. "Se fores piedoso e estiveres a conceder crédito a toda a gente que não pode pagar e mantiveres na loja empregados incom-petentes, tudo porque tens pena de toda essa gente, irás rapidamente à falência. Quando isso acontecer, rapaz, acabaste por prejudicar todos. Prejudicaste-te a ti, à tua família, aos teus bons empregados e aos teus bons clientes." Fez uma pausa e olhou-o bem nos olhos. "E sabes qual é a grande ironia, hã? Sabes? É que, feitas as contas, os maus empregados e os maus clientes ficaram como ficariam se tu os tivesses enfrentado mais cedo, uns ficam na mesma sem emprego e outros sem crédito, porque a casa faliu. A piedade nem a eles serviu. Nem a eles. "
"Mas cortar o crédito a quem precisa dos bens e despedir quem necessita de trabalho para viver é uma crueldade", disse o capitão. "Não sei se sou capaz de o fazer. "
Isilda suspirou.
"Imagina, Afonso, imagina que estás na guerra e és atingido na perna por uma bala. Vais para o hospital e os médicos verificam que a perna está a gangrenar. Constatando essa situação, os médicos só têm duas opções. Ou cortam a perna e salvam-te a vida, ou deixam ficar tudo como está, porque têm pena da perna, e tu morres no fim. Morres tu e, grande ironia, morre a própria perna. Agora imagina que o teu corpo é a Casa Pereira, o médico és tu e a perna gangrenada é um mau empregado ou um mau cliente. Se cortares a perna, salvas o corpo. Se não cortares, o corpo morre e a perna também. O que fazes, hã? O que fazes? "Bem... "
"O que fazes?"
"Uh... suponho que tenho de salvar o corpo, não é?" "Lindo menino" Ergueu o dedo. "Não te esqueças, rapaz. Um comerciante não tem coração e a prioridade é defender o negócio. "
Não foi fácil a adaptação, mas Afonso gradualmente se habituou às exigências da função, à impossibilidade de agradar a todos, à necessidade de avançar para rupturas, à prioridade de defender o colectivo sobre o individual. Afinal de contas, não era isso o que fizera durante a guerra? Apercebeu-se de uma curiosa ironia, a de que, nos momentos críticos, apesar de o colectivo beneficiar das suas decisões, era o individual que atraía a simpatia geral. Se despedia um empregado fraco, por exemplo, todos o lamentavam, acusavam-no de não ter coração e de ser desumano, ninguém percebia que isso era para o bem da maioria. O colectivo era abstracto, o individual concreto, as pessoas reviam-se no indivíduo, não no grupo. Vendo bem, pensou, a morte da sua ordenança em Picantin tinha sido uma tragédia, mas a morte de qua trocentos homens em toda a batalha não passava de uma mera estatística. O colectivo era mais importante, reflectiu, embora fosse com o indivíduo que as pessoas realmente se identificavam.
O capitão começou por dividir a sua vida entre o negócio da família e a carreira militar. Passava muito tempo a viajar entre Braga e Rio Maior, até chegar à conclusão de que não podia continuar assim. Ainda considerou a hipótese de pedir transferência para o quartel de Santarém, mas, ao fim de dois anos de persistentes conversas, dona Isilda convenceu-o de que havia uma melhor opção.
"Tens de abandonar a vida militar, Afonso", disse-lhe ela. "Há quanto tempo te digo isto, hã? Um negócio é como um casamento. Requer exclusi-vidade"
Farrapos brancos e esponjosos, como tiras de algodão rasgado, pairavam imóveis por entre o azul profundo do céu, eram cirros matinais, nuvens altas e majestosas que assinalavam a suave chegada da Primavera de 1922. Afonso atravessou o Campo do Conde Agrolongo com os sentidos bem despertos, registando cada instante, inebriado por todas as sensações daquela manhã, queria guardar dentro de si o momento da despedida. Escutava com atenção o musical gorjear das recém-chegadas andorinhas, sentia o aroma perfumado dos pinheiros a flutuar na brisa fresca da manhã, era um ventinho macio e puro que lhe acariciava o rosto com gentileza e soprava com brandura sobre as árvores, os ramos agitados num farfalhar delicado, marulhante, sussurrado. Lançou um longo e nostálgico olhar sobre a larga fachada alva do quartel do Pópulo, sabia que aquela era provavelmente a última vez que visitava o edifício onde se fizera oficial.
O capitão dirigiu-se ao quartel para apresentar os papéis e despedir-se dos camaradas que com ele viveram a guerra. À conversa nas escadarias ou na messe, os veteranos deitavam ainda contas aos acontecimentos do 9 de Abril, contavam histórias, reconstituíam episódios, recordavam companheiros caídos, faziam balanços. O curioso é que, da guerra, as memórias pareciam apenas concentrar-se no pitoresco, relegando para um conveniente esquecimento justamente tudo aquilo que fizera daquela experiência uma coisa terrível. Não havia no Pópulo quem não tivesse orgulho na cruz de guerra de primeira classe que distinguira Infantaria 8 pelo seu comportamento na grande batalha, ou não considerasse justa a Ordem Militar da Torre e Espada que dois anos antes fora concedida à cidade de Lille pelo apoio que os seus habitantes prestaram aos reclusos portugueses, alimentando- os e ajudando-os à revelia dos ocupantes.
Afonso por todos passou, acenando aqui e cumprimentando acolá, subiu as largas escadarias cruzadas do pátio central e encostou-se languidamente à janela da secretaria.
"Então muito bom dia", saudou, espreitando para o interior. Um alferes curvava-se sobre a mesa a dactilografar documentos. O homem ergueu a cabeça e levantou-se quando viu o superior hierárquico.
"Bom dia, meu capitão", disse, fazendo continência. Deu dois passos e chegou-se à janela. "Posso ajudá-lo? "
Afonso olhou em redor e mirou o alferes.
"O que tenho de fazer para sair do Exército?"
"Como?"
"Eu quero sair do Exército. O que tenho de fazer? " O alferes hesitou.
"Bem... uh... tem de preencher uns documentos e fazer um requerimento ao senhor comandante. "
"E quais são os termos do requerimento? "
"Tenho ali uma minuta, quer ver? "
"Ora passe-me lá isso. "
O alferes foi a uma gaveta, tirou uma folha e entregou-lha. "Aqui está. Mas, por favor, meu capitão, devolva-ma depois, é a minha única cópia. "
"Fique descansado. "
O alferes afinou a voz com um hum hum arranhado. "Sabe, o senhor comandante pode recusar o seupedido... "
"Fique descansado", sorriu Afonso. "Eu falo com o comandante e ele não recusará nada. Depois do que passei na Flandres, era o que mais faltava "
O capitão demissionário preenchia os documentos no corredor do pri-meiro andar do quartel, sentado num banco junto à janela da secretaria quando sentiu um vulto a prostrar-se diante de si.
"Então, capitão? A escrever uma carta a uma demoiselle, é? Ergueu a cabeça e reconheceu o agora coronel Eugénio Mardel, o homem que comandara a Brigada do Minho durante a grande batalha. Levantou-se num salto, um enorme sorriso no rosto.
"Meu comandante", exclamou, fazendo continência. "Bons olhos o vejam"
Mardel estendeu a mão, informal.
"Como está, capitão? Então como foi a sua passagem pela Alemanha, hã? Os boches trataram-no bem? "
Apertaram as mãos com vigor.
"Cinco estrelas, meu comandante. Cinco estrelas. Até distribuíam caviar de aperitivo e champagne para matar a sede. Mardel riu-se.
"Imagino.
"O que está o senhor comandante a fazer aqui no Pópulo? " "Olhe, vim visitar os regimentos da brigada, uma espécie de passeio da saudade, percebe?"
"Ah, muito bem, muito bem"
"Você já almoçou? "
"Não, ainda não. Mas confesso que já estou cá com uma traça."
"Então venha daí comigo. Há por aqui alguma tasca de jeito.
"Temos o restaurante do hotel, do outro lado do largo."
"Come-se bem? "
"Melhor do que nas trinchas, meu comandante"
Abandonaram as instalações do Pópulo e foram almoçar juntos ao restau-rante do Grande Hotel Maia, mesmo em frente ao quartel, no outro lado do Campo do Conde Agrolongo. Pediram umas iscas de fígado à moda de Braga e mergulharam nas memórias do passado. A pedido de Mardel, Afonso relatou tudo o que lhe acontecera desde o dia da batalha. Quando concluiu o relato, o coronel manteve-se silencioso, o olhar ausente.
"Em que pensa, meu comandante?"
Mardel pigarreou.
"Questiono-me se tudo isto valeu a pena", desabafou. "Cumprimos o dever, é certo, mas será que serviu para alguma coisa?"
Afonso fitou-o nos olhos.
"A guerra é feita por jovens, que se matam para glória de velhos. Para os jovens, claro que não valeu a pena. Para os velhos... "
A frase ficou em suspenso e foi Mardel quem a concluiu. "Para os velhos ficam glórias que não merecem", disse. "Eu sei. " Fez uma careta. "Sabe, capitão Brandão, apenas seis batalhões foram condecorados por bravura em combate durante o 9 de Abril. Nesse número contavam-se os nossos quatro batalhões da Brigada do Minho, mais os dois batalhões transmontanos, Infantaria 10, de Bragança, que combateu à direita de Ferme du Bois, e Infantaria 13, de Vila Real, que resistiu em Lacouture.
"O segundo comandante do 13, o major Mascarenhas, é meu amigo dos tempos da Escola do Exército. "
"Ah sim? Pois, olhe, o seu amigo foi um bravo. "
"Eu sei. "
"Bem, isto para dizer que só os minhotos e os transmontanos combateram. Os restantes batalhões, incluindo todos os da Brigada de Lisboa, mais os algarvios do 4 e os alentejanos do 11 e do 17, cavaram perante o inimigo ou renderam-se quase sem oferecerem resistência e não foram distinguidos. "
Afonso franziu o sobrolho.
"Isso é curioso", comentou com lentidão. "Será que o pessoal do Norte é mais valente do que o do Sul? "
"Não tenho a certeza de que essa seja a pergunta certeira. Penso que a verdadeira questão é saber se o pessoal do campo é mais bravo do que o das cidades. " Mardel passou a mão pelo cabelo. "Sabe, capitão Brandão, não há guerreiro mais temível do que o agricultor. A malta do campo está habituada à dureza da vida, ao trabalho na terra, às contrariedades impostas pela natureza, e não se impressiona facilmente com as dificuldades da guerra. São tesos p'ra caraças! Já os galrichos das cidades são o que se sabe, querem é regabofe e fadinho, gajas e boa vida, bola e paparoca na mesa. Quando a coisa aquece e dá para o torto, cavam todos "
"Isso pode explicar o comportamento dos lisboetas, não digo que não. Mas e os alentejanos e os algarvios? "
"Confesso que não encontro explicação para esses. Dizem-me que eles têm uma natureza mais indolente, mas tenho dúvidas de que tenha sido a indo-lência que os pôs no cavanço. Até porque o Wellington tinha unidades algarvias e fartava-se de as gabar. "Bem, não interessa", exclamou Afonso, fazendo um gesto impaciente com a mão. "O que é facto é que fomos a única brigada que resistiu em bloco. Mas de que serviu isso? "
"De nada, acho eu", suspirou Mardel. Encolheu os ombros. "De nada. Morreram quatrocentos portugueses nessa batalha e mais de seis mil foram feitos prisioneiros. Se formos a ver bem, os mais espertos até foram os lisboetas, que cavaram e andam agora a passear com as mulheres pelo Rossio e pela Rotunda, vivinhos da silva. Nós e os transmontanos, que demos luta, nós é que nos tramámos, em vez de estarmos a saborear a vida, andamos a lamentar os mortos e a consolar as viúvas. E o trágico, meu caro capitão, o trágico é que o sacrifício dos que combateram foi em vão. Os boches entraram pelas nossas linhas como um furacão, foram por ali fora, os bifes viram-se aflitos para os travarem e a situação tornou-se de tal modo crítica para os aliados que os camones chegaram a emitir uma ordem a dizer às tropas para que morressem onde estavam. Você imagina o que isso é, capitão Brandão, receber uma ordem para morrermos onde estamos?" O capitão abanou a cabeça.
"Ainda bem que nunca recebemos uma ordem dessas... "
Mardel fez um silêncio pensativo.
"Aí é que você se engana", disse finalmente. "Essa ordem também nos foi dada. "
"A nós, portugueses? "
"Afirmativo. "
"Para morrermos onde estávamos? "
"Afirmativo. "
"Essa ordem foi dada pelos bifes? "
"Afirmativo. "
"Durante a batalha? "
"Antes da batalha. "
"Antes da batalha? Como assim? "
"Seis dias antes do ataque dos boches, o general Haking, que comandava o XI Corpo, emitiu uma ordem à 2. Divisão do CEP para morrer na linha caso o inimigo avançasse. A ordem mencionava explicitamente essa instrução, morrer na linha B. "
"E o que é que vocês fizeram? "
"O que é que havíamos de fazer, diga lá? Ouvimos, calámos e não dissemos nada a ninguém, não queríamos espalhar o pânico. É por isso que você não soube. "
"Ah bom", exclamou Afonso. "Muito me conta, sim senhor. " Fez uma pausa, observando o empregado do restaurante do hotel a servir as iscas de fígado, acompanhadas de arroz branco e cebola frita. Quando o empregado se retirou, os dois oficiais começaram a comer em silêncio. Afonso trincou a primeira fatia da sua isca e retomou a conversa enquanto mastigava. "Mas então, meu coronel, estava a dizer-me que os boches avançaram por ali fora e os camones começaram a ver as coisas pretas "
"Pois, foi isso, mas tudo se compôs e veio a verificar-se que aquela foi verdadeiramente a última grande ofensiva dos boches. Os aliados estancaram a hemorragia aberta no nosso sector e passaram depois ao ataque, acabando por ganhar a guerra. "
"Vá lá, vá lá, a nossa reputação conseguiu escapar ilesa... " Mardel parou momentaneamente de mastigar e fez um trejeito de boca.
"Negativo, capitão Brandão, negativo. A bem dizer, a nossa reputação ficou foi na lama. Os bifes passaram a olhar-nos com desconfiança, diziam que não tínhamos capacidade de combate, que tínhamos fugido, que éramos uns desorganizados, que só servíamos para dar umas pinadelas às demoiselles, que isto e que aquilo, e mandaram as nossas tropas fazerem trabalhos de estrada, como se a malta não passasse de uns operários de terceira, de uns chinocas. Foi uma vergonha."
"Ora essa! Mas eles não sabiam o que aconteceu? "
O coronel inclinou-se na mesa e fitou-o fixamente.
"E o que aconteceu, diga-me lá? "
Afonso devolveu-lhe o olhar, atrapalhado.
"Bem... uh... enfim, tudo", gaguejou.
"Mas o quê? Explique-me lá o que poderíamos nós dizer aos bifes? "
"Sei lá... talvez, não sei, talvez que houve seis batalhões nossos que resistiram, por exemplo, ou que a nossa única divisão, que se encontrava já bem cansada e desgastada, apanhou com quatro divisões boches pela frente, todas elas fresquinhas como alfaces. Ou ainda que a nossa única divisão defendia uma linha que era suposto ser defendida por duas divisões, portanto com menos soldados por quilómetro de trincheira." O capitão fez um ar inquisitivo. "Não é? Que eu saiba, não foi pouco, não acha?
Mardel voltou ao seu prato, trinchando mais uma fatia.
"Alguns camones sabiam o que aconteceu realmente, é verdade, mas a maior parte só ligou ao facto de que os boches entraram pelo nosso sector. Ou seja, se nós cedemos, é porque éramos fracos. Ponto final. Tudo o resto não passava de conversa.
Afonso suspirou.
"Bem, meu coronel, temos de reconhecer que isso tem efectivamente algum fundamento. É um facto que as nossas tropas estavam muito desgas-tadas, mas disso não tinham os bifes culpa nenhuma. Se as tropas se sentiam cansadas, que descansassem, caraças! Portugal devia era substituí-las. Se não substituiu é porque mostrou incapacidade para andar ali. E, se não era capaz de sustentar o esforço de guerra, que não se metesse naquelas cavalgadas. O governo devia era ter juízo e mandar a gente de volta."
"É verdade, é verdade", concordou Mardel, mastigando a comida. "Os bifes não têm nada a ver com o facto de que a malta foi abandonada por Lisboa. Tudo o que eles sabiam é que já não nos encontrávamos em condições de combater, e isso, bem vistas as coisas, era realmente verdade. "
Afonso engoliu a derradeira fatia de iscas.
"Portanto, se bem compreendi, nunca mais nos mandaram para a frente de combate."
"Bem, isso é inexacto", indicou Mardel. "A malta de artilharia voltou a combater, integrada em unidades inglesas, e nós chegámos também a meter dois batalhões de infantaria em acção, mesmo no final da guerra. Andaram para lá a perseguir os boches nas margens do Escalda. "
"Ah sim? Lisboa sempre mandou os reforços? "
Mardel riu-se com gosto.
"Lisboa? Lisboa estava-se a cagar para a malta! " Ergueu o indicador. "Não nos mandaram nem um homem, nem sequer um maricas para amostra, eles não queriam saber do pessoal para nada "
"Mas, então, que infantaria foi essa? "
"A mesma de sempre, homem, a malta que já lá andava. " "Ah é? E como é que o pessoal reagiu? "
"Mal, como você calcula. Houve revoltas sucessivas, incluindo até da Brigada do Minho, e ocorreu mesmo um incidente do qual nem quero falar. "
Afonso ficou curioso.
"Incidente? Que incidente? "
"Já lhe disse que não quero falar nisso. "
"Vá lá, diga lá. Já que mencionou o assunto, conclua, que diabo! Não me deixe assim pendurado, isso não se faz. "
Mardel hesitou. Respirou fundo, inclinou-se sobre a mesa e baixou a voz.
"Isto que lhe vou contar não se pode saber, percebeu? Não se pode saber."
"Muito bem, vou ficar de bico calado, esteja descansado. Mas conte lá. "
"Então é assim", começou Mardel, inclinando-se para a frente, o tom muito secretivo. "Tudo aconteceu em meados de Outubro, mais exactamente na noite do dia 16. Portanto, a menos de um mês do fim da guerra. Estava-se na altura a tentar reunir unidades com o objectivo de as preparar para serem enviadas para a frente de combate, era um esforço destinado a reorganizar o CEP. Ora bem, os magalas do reconstituído batalhão 11/17 souberam destas intenções e pegaram em armas durante o bivaque. Que não iam, que nem pensar em marchar para o açougue, que mandassem outros, que já tinham feito mais do que o suficiente, que queriam era voltar para Portugal, que fossem todos para o raio que os partisse e que fossem também para outras partes, enfim, você imagina. Vai daí, o comando não esteve de modas. No dia seguinte, 17 de Outubro de 1918, nunca mais me esquece essa data, nesse dia decidiram actuar à séria. Chamaram Infantaria 23, os revoltosos foram cercados e, pimba! metralharam-nos."
Fez-se uma pausa.
"O quê?", murmurou Afonso, incrédulo. "O quê?"
"Mataram-nos a tiros de metralhadora. "
A derradeira visita de Afonso a Braga serviu para acertar as últimas contas do passado. O capitão demissionário nunca mais falou com o tenente Pinto. Quando por acaso com ele se cruzava nos corredores do quartel, virava a cara para o lado, não lhe perdoava a fuga no momento mais difícil da companhia no 9 de Abril, quando do cerco ao Picantin Post.
A verdade, porém, é que só havia mesmo uma pessoa que Afonso fazia absoluta questão de reencontrar. O problema é que desconhecia o seu paradeiro. Fez vários inquéritos e a oportunidade acabou por surgir a dois dias de regressar a Rio Maior, quando o alferes que trabalhava na secretaria do quartel descobriu um documento a referenciar a residência do homem que procurava num sítio chamado Palmeira, um lugar remoto a norte de Braga. Sem perder tempo, o capitão requisitou um cavalo e trotou até ao local. Meteu pelos caminhos de terra e foi dar com a morada que rabiscara num papel.
"É aqui que mora o Matias Silva? ", perguntou Afonso, inclinando- se da montada.
Uma velha minhota, curvada na bengala, a pele enrugada em torno dos olhos azuis, um lenço negro a cobrir-lhe a cabeça, apontou tremulamente para a casa ao lado.
"O Matias é ali, senhor"
Afonso olhou para a casa de pedra que lhe foi indicada. Parecia- lhe uma versão minhota dos pardieiros da Carrachana, claramente partilhava com o antigo cabo a mesma origem humilde. Desmontou, amarrou o cavalo a uma árvore e deu uns passos pelo caminho de cabras até chegar diante da casa. A porta de madeira tosca estava entreaberta e o capitão entrou, hesitante.
"Está aqui alguém? ", chamou.
Ouviu o som de um talher a bater na porcelana e uma tosse cavada. Olhou na direcção do ruído. Um enorme vulto encontrava-se na penumbra, sentado à mesa e debruçado sobre uma tigela. Não se lhe via o rosto, mas Afonso reconheceu-o. O vulto ficou momentaneamente paralisado e, ao fim de um longo e silencioso segundo, ergueu-se com lentidão.
"Meu capitão."
Os dois homens aproximaram-se e estacaram um diante do outro, meio sem jeito. Já não se viam havia quatro anos, desde que os alemães os tinham separado em Illies. Abraçaram-se finalmente. Abraçaram-se com força, como irmãos, como velhos amigos que as circunstâncias da vida tinham afastado, como companheiros de estrada que se reencontravam após uma longa e difícil jornada.
"Sente-se aqui, sente-se aqui", disse Matias, puxando Afonso para a mesa. O capitão acomodou-se e o antigo cabo foi buscar uma outra tigela de sopa. "É uma canjinha de sonho, meu capitão. Se o Baltazar aqui estivesse, chamava-lhe uma categoria. "
Tossiu. "Foi a minha Francisca que a fez, ora prove lá. "
Afonso engoliu uma colher e piscou o olho.
"Está boa. "
"Está, não está? A minha Francisca é uma grande cozinheira lá isso é. Pena que não esteja aqui, foi ali ao rio lavar a roupa e pô-la a abelar. Mas já volta. " Tossiu. "Ela era a minha namorada sabe? Quando voltei da Alemanha, pensei cá para mim: Ó Matias, a moça é séria e honesta, não é nenhuma sansardo-ninha, não é nenhuma rifeira, é boa de verdade, casa-te com ela, anda.
Tossiu outra vez, desta feita prolongadamente.
"Isso está mal", notou Afonso com preocupação.
Reconhecera aquela tosse e sabia que não era de bom agoiro.
Matias ficara rubro de tanto tossir, mas acabou por recuperar o fôlego.
"São a merda dos gases, meu capitão." Tossiu novamente. "Os boches ainda me estão a matar com os gases que me meteram no corpo. Até sinto o líquido a escorrer cá dentro, no peito. " Respirou fundo, para demonstrar o que dizia, e, de facto, os pulmões pareciam assobiar. "Os gases estão a fazer aquilo que as costureiras e abóboras não conseguiram nas trinchas, estão-me a dar cabo do canastro " Sorriu com tristeza. "Era estranha aquela vida nas trinchas, não era? A morte perseguia-nos todos os dias, cheirava-nos, roçava-nos, mas, sabe, eu sempre tive em mim a vontade de viver"
"Você era um optimista", considerou Afonso. "Havia uns que achavam que iam morrer, passavam a vida à espera da desgraça, tudo os deitava abaixo, viviam invadidos de maus pressentimentos, eram verdadeiras aves agoirentas. O Manápulas era assim... "
"E depois havia os outros, os tipos como você, aqueles que tornavam grandes as mais minúsculas coisas, saboreavam uma pausa, procuravam a felicidade nos pequenos nadas, num naco de pão, num rouxinol que cantava, num raio de Sol capaz de vencer aquele sombrio manto de nuvens cinzentas "
Um novo acesso de tosse encheu a sala. Matias respirou fundo e engoliu em seco.
"Sabe, só era possível viver ali se conseguíssemos ignorar o que aquilo tinha de mau, se conseguíssemos erguer um muro que nos isolasse de toda aquela desgraça. " Matias tossiu. "Lembra-se, meu capitão, da indiferença com que olhávamos para um morto ou para um corpo mutilado? Isso era o muro que nos protegia. Tanto nos esgotámos a sofrer por nós que já não conse-guíamos sofrer por eles. Essa é que era a verdade, os mortos tornaram-se-nos indiferentes."
"Excepto os camaradas", atalhou Afonso.
"Excepto os maradas", confirmou o antigo cabo. Tossiu. "Os maradas eram a melhor coisa daquela merda toda. Só eles contavam. " Tossiu nova-mente. "Qual pátria, qual porra! Era pelos maradas que eu lutava. Manducávamos juntos, dormíamos juntos, sofríamos juntos, éramos amigos, irmãos, tudo. Foi ali na guerra que eu verdadeiramente conheci os homens, conheci-os à séria, no bom e no mau, mas sobretudo no bom, na entreajuda, na amizade, nas pequenas coisas e nos grandes gestos." Baixou a cabeça. "O proble-ma era quando morriam, isso era insuportável. " Fitou Afonso. "Sabe que eu fiz uma peregrinação aqui pelo Minho para visitar as famílias dos maradas do meu pelotão, os maradas caídos em França? É verdade, fiz isso. Foi duro, foi xuega para caramba. Fui a Barcelos falar com a mãe do Vicente Manápulas, dei um salto a Gondizalves para ver os pais e os irmãos do Abel Lingrinhas e viajei até ao Gerês, até Pitões das Júnias, para conhecer a mulher e os filhos do Baltazar Velho. E aqui ao lado, em Palmeira, está a mulher e o filho do Daniel Beato, um marada que o capitão não conheceu, mas que foi decapitado por uma granada "
"Por que fizeste isso? "
Matias suspirou.
"Remorsos, acho eu", disse. "Sabe que eu sonho muitas vezes com os maradas? O que é engraçado é que eles nunca estão mortos. Sonho que fazemos as coisas do costume, andamos a matar ratos, a abrir drenos, a contar anedotas, todos armados em ribaldeiros. Quando se passam duas semanas sem sonhar com eles, sinto saudades e quero sonhar outra vez. " Tossiu. "Estranho, não é? "
"Isso é a guerra que continua na nossa cabeça. " "Talvez. Mas, no meio disto tudo, meu capitão, há uma coisa que não compreendo, que não aceito. " Tossiu ainda. "Sabe o que é? "
"O quê?"
"Não percebo por que sobrevivi. Não entendo, não concebo por que razão morreram eles todos e eu vivi. O que fiz eu de especial para viver? Qual o sentido de ter escapado? Porquê eu? Não percebo, não percebo. " Baixou a voz. "Sinto-me culpado, agónico, anelante, é como se os tivesse traído, como se os tivesse abandonado, como se não os merecesse. Eles lutaram até à morte e eu rendi-me, não tive coragem de ir até ao fim, sobrevivi sem os salvar, amaldiçoo-me todos os dias por isso. "
"Também penso nisso muitas vezes", confessou Afonso. "Mas a verdade é que, naquela altura, naquelas circunstâncias, não tínhamos alternativas. O que podíamos nós fazer? Deixarmo-nos abater como cães? "
Matias mirou o infinito, irremediavelmente perdido na sua batalha interior.
"Sabe, meu capitão, descobri que o mais duro não é fazer a guerra", mur-murou o antigo cabo. "O mais difícil é sobreviver a ela, é viver com ela depois de ter vivido nela. Percebe o que eu quero dizer?"
Afonso respirou fundo.
"Então não percebo, Matias? Todas as noites sonho com isso. " Fez uma pausa. "Nem sei mesmo se sobrevivi. Olha, por exemplo, às vezes sonho que estou nas trinchas rodeado de mortos, viro um corpo para cima para lhe ver a cara e descubro que o cadáver sou eu. " Estremeceu, arrepiado com o pensamento.
"Levei muito tempo a perceber este sonho, mas acho que já entendi. Ele significa que uma parte de mim morreu nas trinchas e que estou de luto pela minha própria morte."
"É isso mesmo, meu capitão. Estamos de luto por nós mesmos. " Suspirou. "Sabe, quando andamos aos tiros, as coisas acontecem e nós nem damos por isso, ou não ligamos, continuamos a agir sem pensarmos, mecanicamente, amanhã é um novo dia, há que seguir em frente " Fez uma pausa e olhou para a mão, olhou-a mas não a via, estava absorto no seu raciocínio. "Agora, quando se acaba a guerra, quando ela acaba, meu capitão, a coisa começa logo cá dentro, a moer, a moer, a moer sem descanso. Bateu com o indicador na testa. "Parece que não, mas fica cá tudo, aqui na tola, para depois ser digerido, devagar, devagar. " Nova pausa. "Olhe, a morte do Lingrinhas, o senhor não assistiu, mas foi uma coisa... nem sei como dizer. Nós estávamos a retirar da primeira linha, ele foi apanhado por uma costureira boche e ficou ali, no meio da Tilleloy, com um buraco na garganta, a asfixiar, a bombar. O Manápulas tentou ajudá-lo, tentou ir lá, e sabe o que fiz eu? Hã? Sabe? "
Afonso abanou a cabeça.
"Agarrei o Manápulas e não o deixei ajudar o Lingrinhas." Uma grossa lágrima correu pelo rosto rude de Matias. "Agarrei-o com toda a força, toda a força, e não o deixei ajudar o Lingrinhas, coitadinho, o Lingrinhas que morria ali no meio da Tilleloy, sozinho, sozinho, sem ninguém ao menos lhe dar a mão.
Soluçou. "Sonho muitas vezes com o Lingrinhas e o Manápulas, sonho que deixo o Manápulas ajudar o Lingrinhas e que o Lingrinhas se safa e fico feliz... Mas depois, quando acordo... quando acordo vejo que não passou tudo de um sonho, que o Lingrinhas morreu porque não deixei o Manápulas ajudá-lo. " Fungou e limpou o nariz. "E o Velho, que morreu estupidamente! Se o meu capitão visse os filhos, coitados, tão felizes quando lhes disse que o Baltazar os adorava, que ele só falava neles... que morte estúpida o Velho teve, meu capitão. Morrer quando se rendia... "
Afonso saiu destroçado do encontro com Matias. A conversa foi catársica, fez-lhe bem, mas não tinha a certeza de conseguir sobreviver a outra igual. Planeara antecipadamente dar um salto a Vila Real para abraçar o major Mascarenhas, o velho amigo sportinguista da Escola do Exército, o homem de Infantaria 13 que resistira mais de vinte e quatro horas em Lacouture, mas a dolorosa experiência com Matias dissuadiu-o, achou que não iria aguentar e preferiu regressar discretamente a Rio Maior. Seria Carolina quem iria suportar a guerra que ele levava na cabeça.
As contas da Casa Pereira não batiam certas. Afonso endireitou os óculos e decidiu recomeçar a soma das vendas do dia. As cópias dos recibos assinalavam a data, 9 de Abril de 1928. Os olhos de Afonso retiveram-se na data. 9 de Abril? Recostou-se na cadeira do seu escritório, abalado. Dez anos. Fazia nesse dia dez anos que ocorrera a grande batalha. Parecia a Afonso que os trágicos aconteci-mentos da Flandres se tinham passado apenas na semana anterior. O antigo capitão contava agora trinta e oito anos e não conseguira ainda digerir tudo o que se passara na sua vida naquele fatídico ano de 1918.
Olhou para as fotografias que tinha espalhadas pela secretária, numa estava ele, todo janota, com a sua farda de oficial e os olhos carregados de esperança e sonhos de glória, um bengalim na mão e uma pose imperial. Outra era uma foto de família, ao seu lado encontravam-se Carolina e os três pequenos filhos, Rafael, Joaquim e Inês, cada nome uma homenagem, o mais velho era um tributo ao pai, o do meio à sua ordenança na Flandres e a menina a Agnès. Se tivesse mais um menino, pensou, chamar-lhe-ia Matias, em memória do valente cabo, o irmão de armas que morrera meses depois do seu derradeiro encontro, havia mais de cinco anos. Alguém lhe disse que Matias expirou pela última vez na sua miserável casa de Palmeira, asfixiado, os pulmões liquefeitos, mais uma vítima tardia dos gases das trincheiras.
Decidiu nessa noite beber em memória dos seus camaradas e da sua francesa, gente que lhe ficou na carne, pessoas que o acompanhavam todos os dias, em pensamento, em sonhos, em pesadelos. Os pesadelos eram diários desde que regressara a Portugal. Sonhava com Joaquim, que deixara ficar no posto de Picantin para morrer. Sonhava com o sargento Rosa, abatido ao seu lado numa trincheira miserável. Sonhava com Baltazar, caído quando erguia os braços em rendição. Sonhava com Matias, o grande Matias, generoso e valente, um coração de ouro e uns pulmões de merda. E sonhava sobretudo com Agnès, via-a entrar-lhe em casa, dialogava com ela, falavam sobre Freud e sobre a vida, sobre Deus e a medicina, a arte e a ciência, conversavam tanto em tantas noites que Afonso chegava a interrogar-se se os sonhos não seriam mesmo uma forma de manter o contacto com o além, de estabelecer ligação com as pessoas que realmente contavam.
Abanou a cabeça, espantando os fantasmas como se fossem uma nuvem de fumo e regressando daquele mundo já desaparecido. Agora, raciocinou, não podia estar com fantasias, tinha mesmo era de voltar ao presente e refazer as contas. Inclinou-se sobre a secretária e mergulhou de novo nas facturas.
Ouviu um tumulto no corredor, a porta do escritório abriu-se com violência e Carolina irrompeu num pranto.
"Afonso! Afonso! " " O que foi, filha?"
"A minha mãe... a minha mãe está-se a sentir mal. "
Dona Isilda foi a enterrar no dia seguinte, uma manhã primaveril de Abril. Carolina era filha única e única herdeira, mas não se encontrava em condições de tratar dos papéis, tarefa de que Afonso ficou encarregado. Passou dois dias a remexer os documentos da velha. Viu títulos, hipotecas e contas e no final deitou mãos à pasta da correspondência. Eram sobretudo cartas do irmão, dos primos, de amigas, de vendedores, de credores e de fornecedores. Quando se preparava para fechar a pasta, Afonso notou, no meio de todas aquelas cartas, um pequeno envelope que lhe era endereçado. Estranhou ver entre a correspondência para dona Isilda uma carta que lhe estava destinada e olhou para o selo. Era francês. Estudou o carimbo e verificou que o envelope tinha sido remetido de Lille. Abriu a boca de espanto e ali ficou a mirar o envelope, incrédulo, a interrogar-se sobre o seu conteúdo, a decidir o que fazer. Com as mãos trémulas, retirou a folha dobrada dentro do sobrescrito e leu o texto, redigido em francês:
Lille, 9 de Dezembro de 918
Caro capitão Alphonse Brandão,
É com o maior pesar que lhe venho comunicar a morte da minha querida filha, Agnès Chevallier, vitima da terrivel gripe espanhola que tantas vidas está a ceifar por essa Europa fora.
Desconheço se o senhor já regressou do cativeiro, mas rogo a Deus que esta minha missiva o encontre de saúde. Foi a minha própria filha quem me deu a morada da senhora sua mãe, que espero lhe faça chegar a carta que esperava nunca ter de lhe escrever.
Lille foi libertada no passado dia 17 de Outubro pelas tropas britânicas, e Agnès apareceu em minha casa logo no dia 20. Não pode calcular a nossa alegria nem a felicidade que ela sentiu quando lhe mostrei a carta que me remeteu da Citadelle, ela que o julgava morto nos campos de batalha. Agnès estava, como saberá, grávida e deu à luz uma bela menina no dia 27 de Outubro, a quem baptizou de Marianne, aparentemente em homenagem à senhora sua mãe.
Mas a nossa felicidade não durou muito. Na semana passada, Agnès começou a queixar-se de fortes dores de cabeça, dizendo que parecia que estavam a dar-lhe marteladas mesmo atrás dos olhos. Além disso, veio-lhe uma tosse assustadora e sangrou do nariz. Alarmados, levámo-la ao hospital de St. -Sauveur, donde não mais saiu. Atiraram-na lá para uma enfermaria especial e não nos deixaram ficar com ela. Um amigo meu que trabalha no Instituto Pasteur pediu informações aos seus colegas do hospital e disse-nos, nessa noite, que o caso era muito grave. A tosse tornara-se muito violenta e as hemorragias tinham-se estendido para os ouvidos. Agnès apanhou a gripe espanhola e foi colocada de quarentena numa enfermaria onde se encontravam internadas todas as pessoas que contrairam a epidemia. Como deve calcular, ficámos em pânico, mais ainda quando o nosso amigo nos comunicou que a pele dela estava agora azul-escura, parecia uma negra de África. Não há dúvida, foi atacada pela peste negra, só que ninguém lhe chama esse nome para não assustar as pessoas mais do que elas já estão. Garantiu-me o nosso amigo que muitas pessoas atingidas pela espanhola acabavam por recuperar, mas, infelizmente, não foi esse o caso da mi nha Agnès. Após três dias em delirio e sofrimento, veio a falecer.
Remeto-lhe esta carta, meu caro amigo, para lhe dar a triste noticia do desaparecimento de Agnès e para lhe comunicar que ela lhe deixou uma linda menina, agora com um mês de idade, e que está a ser cuidada por Claudette até que o senhor nos dê instruções.
Aguardo noticias suas e peço-lhe que tenha coragem nestes
tempos dificeis que estamos a viver.
Deus o abençoe, Paul Chevallier
Afonso leu a carta duas vezes, siderado.
"O diabo da velha!", murmurou, quando concluiu a segunda leitura. "A grande puta."
Percebeu que dona Isilda não lhe contara toda a verdade, em bom rigor até lhe mentira quando disse que a criança também tinha morrido. Tornava-se agora evidente que o casamento com Carolina foi planeado pela velha senhora após a viuvez da filha e que a existência da criança era a pedra no sapato desse projecto. Para eliminar o problema escondeu a pedra por baixo do tapete. Ocultou a carta e alterou a crucial informação que a missiva transmitia, a notícia de que o capitão tinha uma filha à sua espera.
Afonso permaneceu dois dias a matutar no assunto, sem nada dizer a ninguém. Tomou gradualmente consciência de que dona Isilda tinha sido, de uma estranha forma, a pessoa mais importante da sua vida. Foi ela quem convenceu os pais a permitirem que Afonso fosse para o seminário, dando-lhe uma oportunidade de educação que de outro modo não teria. Quando esse meio de o afastar da filha falhou, foi ela quem engendrou a ideia de o inscrever na Escola do Exército, conferindo-lhe um novo rumo à vida. E dez anos antes, logo que ele regressou da guerra, foi ela quem preparou tudo para viabilizar o casamento com a sua filha viúva. Pelo caminho mentiu, ocultou, manobrou, seduziu, manipulou, fez tudo o que foi necessário para alcançar os seus objectivos, sempre fiel à velha máxima de que um comerciante não tem coração, a sua prioridade é defender o negócio. Afonso percebeu que, feitas as contas, lhe devia tudo o que de bom e de mau lhe acontecera na vida e que todas as decisões cruciais da sua existência não foram tomadas por ele, nunca por ele, mas por ela. Agora, porém, Afonso via-se confrontado com uma decisão de grande magnitude, uma daquelas opções determinantes para o seu futuro, e dona Isilda não se encontrava ali para, nas sombras, mais uma vez fazer a escolha por si. Em boa verdade, ele poderia até desfazer o que ela decidira em segredo dez anos antes. E a decisão a tomar era muito clara. Deveria ou não Afonso assumir a paternidade da criança? Por um lado, aquela menina constituía um embaraço para a sua vida familiar, apenas lhe vinha atrapalhar a existência, mergulhar Carolina no desgosto e os filhos na vergonha de terem uma irmã bastarda. Mas, por outro lado, pensou que a pequena não era vergonha nenhuma, era um legado de Agnès, era o fruto do maior amor da sua vida, não tinha o direito de o renegar. Além disso, não estava no seu sangue abandonar o seu sangue.
Ao terceiro dia tomou a decisão. Iria a Lille conhecer a sua filha, iria lá buscá-la, doesse a quem doesse, custasse o que custasse. Se Carolina verdadeiramente o amava, não teria outro remédio senão aceitar a realidade e acolher a irmã dos seus filhos. Foi com essa convicção em mente que, depois do pequeno-almoço, convidou a mulher para um passeio até às salinas. A ideia suscitou a estranheza de Carolina.
"Mas para que queres tu ir agora até às salinas?", questionou ela. "Tens cada uma..."
"Tenho uma coisa para conversar contigo.
"Então conversa."
"Aqui não."
A mulher mirou-o, desconfiada, mas ele evitou o olhar, o que apenas serviu para a perturbar. Entregaram as crianças aos cuidados da ama e meteram-se no Hispano-Suiza que tinham adquirido no ano anterior, o prémio pela boa gestão da Casa Pereira. O belo carro azul, um H6B Torpédo Scaphandrier, era o orgulho de Afonso e uma atracção em Rio Maior, uma máquina de provocar inveja a um santo.
Meteram pela estrada de terra batida e depressa chegaram às salinas. Viam-se homens a amontoar o sal com as pás e a despejá-lo em sacos. O Sol, ainda baixo na sua ascensão, desenhava os contornos dos pinheiros em sombras deitadas na terra, pedaços de neblina agarravam-se às copas das árvores como algodões doces e pegajosos, eram o bocejo lento e farto da pacatez preguiçosa que se estendia por aquela fresca manhã de Primavera.
Afonso estacionou o vistoso automóvel por baixo de um pinheiro manso e mostrou então à mulher a carta que descobrira no espólio de dona Isilda, narrando-lhe os acontecimentos do passado e traduzindo-lhe o conteúdo da missiva. No final, Carolina estava lívida.
"O que queres que te diga? ", perguntou a mulher sombriamente.
"Não quero que me digas nada", retorquiu Afonso, fitando-a bem nos olhos. "Mas tomei uma decisão. "
"Ah sim?"
"Vou a Lille buscar a minha filha. "
"O quê? ", exclamou Carolina, exaltando-se, os olhos arregalados numa expressão de horror.
Afonso já aguardava aquela reacção e não se deixou impressionar.
"É como te digo. Vou buscar a minha filha. "
"Mas será que tu ensandeceste, Afonso? Mas que disparate te está a passar pela cabeça, Santo Deus? "
Carolina gesticulava agora.
"Não é disparate nenhum. Tenho uma filha a viver em França e vou lá buscá-la, é tão simples como isso. "
"Não vais nada buscá-la, era o que mais faltava! " "Ai vou, vou. "
"Então e os nossos filhos? "
Afonso fez um trejeito de boca, com ar de quem não percebia onde ela queria chegar.
"O que têm os nossos filhos? "
Carolina respondeu com um gesto de impaciência. "Ó Afonso, não te faças de sonso! O que vão pensar os nossos filhos quando virem uma miúda estrangeira entrar na nossa casa para viver connosco?"
"Vão ficar todos contentes porque ganharam uma irmã mais velha. "
"E o que dirão as pessoas, valha-me Deus? "
"Quais pessoas? "
"A... a dona Maria Vicência, por exemplo. " Era a mulher do professor Manoel Ferreira. "A dona Constança. " Era a mulher do médico. "A dona Isabel. " A mulher do advogado. "Já viste a humilhação que me vais fazer passar, trazer para a minha casa a tua filha bastarda? Já viste? "
Afonso suspirou.
"Ó filha, eu quero lá saber o que essas galinhas pensam! Tanto se me dá como se me deu. A questão está em que eu descobri que tenho uma filha e não vou fugir às minhas responsabilidades. "Apontou-lhe o dedo. "Olha lá, tu eras capaz de deixar um filho abandonado?"
"Afonso, não me venhas cá com baralhações! Eu não tenho nenhum filho abandonado, graças a Deus. O que eu não quero é uma escandaleira de filhos bastardos na minha casa, desculpa, mas isso não pode ser. "
O marido fitou-a nos olhos, avaliando a situação. Aquela reacção negativa era natural, considerou. A notícia que lhe tinha dado constituía sem dúvida um choque. Por um lado, dava-lhe, como nunca ela tivera, uma ideia da intimidade das suas relações com Agnès, tornava-lhe brutalmente real o facto de que a ligação que ele tivera com a francesa não era de natureza meramente platónica e isso com certeza que a fazia sentir-se desconfortável. Por outro, significava uma importante mudança na sua vida e, sobretudo, uma afronta à moral da boa sociedade riomaiorense. Mas, no final, e por muito que protestasse, Afonso não tinha dúvidas de que Carolina acabaria por se conformar com a situação. De resto, não havia remédio. A decisão já estava tomada.
Suportou com infinita paciência as recriminações, a revolta, as lágrimas, a fúria e as ameaças, e numa manhã de Maio, decidido e esperançado, apanhou o comboio até Lisboa, donde seguiu para Madrid, depois para Paris e finalmente para a Flandres. Foi uma viagem longa, feita em silêncio, a mente revolta num turbilhão de pensamentos. Preocupava-o o que iria encontrar, a forma como a filha reagiria à sua presença e ele à dela. Seriam estranhos do mesmo sangue, unidos por uma única mulher, ela órfã de mãe, ele viúvo do amor que não vivera, ambos vítimas de acontecimentos que não controlavam, meros joguetes nas mãos do destino, folhas atiradas ao vento pelo sopro de uma terrível e assombrosa tempestade.
Quando o comboio percorria velozmente a melancólica planície da Flan-dres, Afonso sentiu uma irresistível vontade de se reencontrar com o passado, de se confrontar com os fantasmas que diariamente assombravam o seu sono. Decidiu, por isso, num ímpeto, num arrebatamento, fazer escala em Aire-sur-la-Lys antes de prosseguir viagem até Lille. Apeou-se na estação de Aire, admirou o ar familiar que as coisas tinham, estranhou as pequenas mudanças, as paredes reconstruídas, as estradas recompostas, havia ainda muitas ruínas mas sentia-se o cheiro das coisas novas. Meteu-se num táxi e pediu ao motorista para o levar às antigas trincheiras do sector entre Fauquissart e Ferme du Bois. O pequeno Peugeot foi até Laventie e passou ao lado do cemitério militar. Afonso mandou parar e foi visitar o local. Consultou um responsável e descobriu algumas campas que procurava. Estavam lá as de Joaquim e do Vicente Manápulas, que tinham morrido em Picantin Post, mas não havia sinais das sepulturas do sargento Rosa, do Abel Lingrinhas e do Baltazar Velho, provavelmente enterra-dos apressadamente pelos alemães numa qualquer vala comum. As lápides de Joaquim e do Manápulas, a exemplo das restantes, apresentavam-se maltra-tadas e o cemitério tinha um ar abandonado. Ajoelhou-se sobre as duas campas, comovido, e rezou em memória dos homens que comandara até à morte.
Voltou depois ao táxi e prosseguiu até Fauquissart. Reconheceu a Rue Tilleloy, agora bem arranjadinha, a estrada tratada, os campos verdejantes nuns lados, dourados de trigo noutros, as árvores viçosas e as flores garridas, o orvalho a reluzir nas pétalas coloridas, eram lágrimas frescas e cristalinas. O horizonte enchia-se de robustos choupos, plátanos, tílias, olmos, viam-se preguiçosas vacas a pastar onde antes apenas se encontrava desolação, a vida renascera sobre as crateras e tudo transformara. Em vez de esventrada por granadas, a terra era agora removida pelos instrumentos agrícolas que planta-vam batatas, cereais, beterraba, aveia, cenouras. As velhas trincheiras mostra-vam-se irreconhecíveis, tapadas pela vegetação, a natureza encarregara-se de ocultar com plantas aquelas cicatrizes abertas na terra. Identificou por aproxi-mação o local onde se situara o Picantin Post, palco de tantos pesadelos, voltou a lembrar-se de Joaquim e do Vicente Manápulas, tinham ambos caído ali. Sentiu uma comoção enorme ao passar pelo antigo posto, mas não havia dúvida de que tudo mudara, tornara-se diferente, mais aprazível, acolhedor mesmo.
Desceu até Neuve Chapelle e foi visitar o memorial da guerra, na Mairie, e a igreja de St. -Christophe, já reconstruída e albergando um dos célebres Cristos das trincheiras que, durante a guerra, tanto impressionaram os soldados portugueses. Aquela estátua de Cristo na cruz sobrevivera à destruição da igreja, mantendo- se a cruz plantada no meio das ruínas, a céu aberto, a figura de Jesus praticamente intacta, numa teimosa resistência que suscitara o vene-roso respeito dos atemorizados soldados portugueses. Afonso deu ainda um salto a Béthune para rever o anexo onde viveu com Agnès. A casa permanecia igual, mas o anexo fora transformado, uma das paredes tinha sido substituída por um portão, era agora uma garagem. Ao ver aquele cubículo onde passou dias tão intensamente felizes, uma dor lancinante apertou-lhe o coração, a velha ferida dava de si. Com um nó na garganta e os olhos húmidos, afastou-se rapi-damente, a saudade dolorosa era um sofrimento que não queria reviver, não com aquela intensidade.
Ao pôr do Sol, cansado e abatido, vergado pela triste melancolia de quem acabou de remoer a ferida ainda por cicatrizar, de remexer a úlcera do seu sofrimento diário, pediu ao taxista para finalmente o levar a Lille. Não era muito longe, agora que os alemães não barravam o caminho. Quando o Peugeot arrancou, pregou a cara ao vidro traseiro, viu pela derradeira vez a paisagem que assombrava os seus pesadelos, despediu-se em silêncio dos companheiros caídos, disse adeus ao passado e às memórias que o afligiam, viu a velha linha da frente desaparecer no lúgubre fio do horizonte, banhado pelos mesmos raios dourados do crepúsculo, e endireitou-se no assento, sentindo-se subitamente leve e aliviado, sereno e em paz consigo mesmo.
Tal como dez anos antes, entrou em Lille pela Porte de Béthune e subiu pela Rue d'Isly e pelo Boulevard Vauban até chegar à Citadelle. Uma vez aí, virou à direita, para o Boulevard de la Liberté, e meteu na primeira à esquerda, na Rue Nationale, até desembocar na Grande Place. Disse ao taxista para aguardar e foi até à Vieille Bourse procurar o Château du Vin. Encontrou a loja dos vinhos, mas estava encerrada, o que não era surpresa, passavam já das nove da noite. Sem desanimar, bateu em todas as portas em busca de indicações sobre o paradeiro do velho Paul Chevallier. Uma senhora de meia-idade suge-riu-lhe que falasse com o guarda das lojas e indicou o sítio onde o encontrar. Afonso deu finalmente com o homem, mas teve alguma dificuldade em convencê-lo a confiar-lhe a morada da casa do dono do Château du Vin, o que só veio a conseguir após acenar com uma nota de dez francos.
Às nove da noite, o táxi imobilizou-se à frente de uma das portas da Rue do Palais Rlhour, contígua à Grande Place. Afonso estudou a fachada, tratava-se de um edifício antigo em pleno centro da cidade, as varandas bem cuidadas, coloridas, mignonnes, como diria Agnès. A noite abatera-se gelada, como nos velhos tempos, o ar húmido, crescendo em nuvens de vapor à frente da boca, uma névoa a pairar sobre os telhados, abraçando-os com ciúme. Respirou fundo e atravessou a rua. Carregou na campainha e ouviu o toque soar no interior da casa. Aguardou um ins tante. Sentiu passos vagarosos a aproximarem-se. A porta abriu-se e um velho alto e magro, o rosto cravado de rugas e marcado por malares salientes, os olhos de um azul-cristalino e os cabelos tão brancos que pareciam neve, espreitou para fora.
"Oui? S'il vous plait? "
"Monsieur Paul Chevallier? "
"C'est moi. "
"Bon soir. Eu sou o capitão Afonso Brandão, de Portugal. " Fez-se silêncio. O velho arregalou os olhos azuis, fitou-o com intensidade, abriu a boca e fechou-a novamente, mas voltou a abri-la.
"Capitão Alphonse? "
Afonso sorriu com carinho, reconhecia aquele Alphonse de algum lado.
"C'est moi. Finalmente. "
O velho olhou-o com desconfiança.
"Você é mesmo o capitão Alphonse? "
"Sim, sou eu. " "De Portugal? "
"Sim, sim, sou eu. "
O velho parecia atrapalhado.
"Zut alors! ", exclamou. "Mas eu recebi uma carta há dez anos, creio que da sua mãe, a dizer que o senhor tinha morrido. " Hesitou. "Ela até me pediu para não voltar a escrever. "
Foi a vez de Afonso se surpreender. Maldita Isilda, pensou. Não lhe escapou nada. Previu tudo, o diabo da velha. Que arda no inferno.
"Monsieur", começou por dizer. "Essa carta que lhe remeteram era falsa e foi-lhe enviada para manter escondido de mim o segredo da existência da minha filha. De resto, só no mês passado tive acesso à carta que o senhor me enviou, há dez anos, a dar conta do que acontecera, razão pela qual só hoje aqui estou. "
O velho mirou-o, digerindo com dificuldade o que lhe estava a ser dito, mas decidiu que o português era sincero e abriu-se num grande sorriso.
"Capitão Alphonse, não percebo nada dessa história, mas não faz mal, ainda bem que está vivo. Seja bem-vindo à casa de Agnès. "
Afonso subiu o degrau e entrou na casa.
"A minha filha está?"
"Marianne? "
"Sim. "
O pai de Agnès virou-se para o fundo do corredor, onde se via uma luz.
"Marianne! ", gritou. "Marianne! Viens ici! "
Ouviu-se uma voz melosa lá ao fundo.
" Oui papy."
"Viens ici, tout de suite!
Uma figurinha frágil, de menina, apareceu no corredor e estacou quando viu um estranho ao pé do avô. Afonso olhou- a e reconheceu aqueles cabelos castanhos encaracolados, aqueles olhos verdes adocicados, aquela figura magri-nha de menina bonita. Abriu os braços na sua direcção. Ela viu-lhe lágrimas nos olhos, o avô também se comovia atrás dele, mas foi sobretudo o que o estranho dizia, a voz embargada e carregada de emoção, a voz que a acariciava com as palavras que só em sonhos fantasiara ouvir, foi sobretudo aquela simples e poderosa frase que lhe tocou na alma e lhe arrebatou o coração.
"Ma fille, ma petite fille. "
Marianne ficou a estudá-lo, hesitante, receando acreditar. Deu um passo em frente, a medo, depois outro e outro ainda, começou a andar e o andar transformou-se em corrida, correu para ele como se sempre o tivesse conhecido, ninguém lhe disse que era ele mas ela soube-o, talvez fosse desejo, talvez fantasia, talvez aquela recusa infantil em acreditar que o papá tinha ido para o céu, o certo é que ela o reconheceu, reconheceu-o e correu até ele, até o envolver num longo e inesquecível abraço. Intenso. Como um braseiro que queima, como uma paixão que asfixia, como o Sol que nos encandeia, era intenso aquele abraço entre o pai e a filha. E, enquanto apertava a sua menina, os olhos turvos e um nó na garganta, sentindo aquele pequeno corpo a anichar-se no seu, Afonso lembrou-se inesperadamente do padre Nunes, não sabia porquê mas lembrou-se do velho mestre do seminário, interrogou-se se aquele instante não estaria previsto desde o amanhecer dos tempos, se a sua vida e se aquele encontro não obedeceriam a um estranho e misterioso desígnio, se tudo aquilo não estava afinal predestinado. Mas duvidou. Talvez não. Talvez estivesse apenas a tentar fazer sentido do caos, a procurar dar significado à vida, a esforçar-se por atribuir uma razão a tudo o que lhe sucedera, quando, feitas as contas, não há verdadeiramente um sentido nem um significado, as coisas são o que são e acontecem como acontecem, acontecem com simplicidade, com a naturalidade daquele abraço do capitão à sua filha perdida, daquele murmúrio de voz embargada que lhe brotava dos lábios e era repetidamente soprado aos ouvidos da menina que o enlaçava pelo pescoço.
"Ma petite fille."
José Rodrigues dos Santos
O melhor da literatura para todos os gostos e idades