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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DO FARAÓ / Georgette Heyer
A FILHA DO FARAÓ / Georgette Heyer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O aristocrata Max de Ravenscar considerava todas as mulheres com indiferença, preferindo os cavalos, as brigas de galos ou as corridas.
Quando soube que seu primo Adrian, lord Mablethorpe, tinha a intenção de se casar com Deborah Grantham, uma anfitriã na casa de jogo de sua tia, Max imaginou que seria fácil subornar a formosa espertalhona para que desistisse.
Mas Deborah, além de formosa, era uma mulher de caráter, e Max recebeu seu merecido castigo.

 

 

 


 

 

 


Capítulo I

Ao anúncio de seu mordomo da visita do senhor de Ravenscar, lady Mablethorpe, que tinha ficado adormecida com a leitura de uma novela da biblioteca ambulante, se sentou de um salto e com a mão se ajustou a touca.

-Que dizia? O senhor de Ravenscar? Diga que suba agora mesmo.

Enquanto o criado afastava-se para transmitir esta mensagem ao visitante matutino, sua senhoria ajeitava sua desarrumada pessoa; tomou forças aspirando os seus sais aromáticos, e acomodou-se no sofá para receber seu convidado.

O cavalheiro que agora era introduzido na sala teria uns vinte anos menos que ela, e sua figura parecia singularmente fora de lugar no gabinete de uma senhora. Era um homem muito espigado, com sólidas pernas em botas de campanha, formosos e largos ombros sob um casaco de boa qualidade, traços duros, boca inflexível e olhos cinza profundamente impenetráveis. Sua negra cabeleira, levemente ondulada, brilhava com um corte de cabelo que se assemelhava de forma farta e perigosa ao que se usava nos subúrbios de Bedford. Lady Mablethorpe, que pertencia a uma geração mais velha, e que seguia fazendo livre uso das caixinhas de perfume, apesar do iníquo imposto do senhor Pitt sobre os pós para cabelos, nunca podia olhar uma nova cabeça sem sentir um calafrio. Agora, teve um ao posar seu olhar, não somente sobre o detestável penteado de seu sobrinho, mas também sobre seu desalinhado sobretudo, suas botas, a única espora que levava e a forma descuidada com que tinha amarrado sua gravata passando suas pontas através de um botão guarnecido em ouro. Lady Mablethorpe levou de novo ao seu nariz os sais aromáticos, e disse com voz apagada:

-Palavra de honra, Max, sempre que lhe ponho a vista em cima pressinto que vou sentir cheiro de estábulo.

Ravenscar que passeava pela sala, se deteve dando as costas ao fogo da lareira.

-E você o está sentindo? -perguntou amavelmente.

Lady Mablethorpe optou por ignorar essa exasperante pergunta.

-Por que, santo Deus, só usas uma espora?

-É o último grito da moda -disse Ravenscar.

-O que faz com que pareça um cocheiro para todos.

-Não pretendo outra coisa.

-E sabes perfeitamente que a moda não te importa nada! Rogo-lhe que não ensines a Adrian a se converter em tão vulgar espetáculo de si mesmo!

-Não é provável que me vá criar tantos problemas -exclamou o senhor de Ravenscar franzindo o cenho.

Esta afirmação em nada apaziguou os ânimos de sua tia. Manifestou severamente que até aquela data não tinha tido notícia de que a moda consistisse em apresentar os devidos respeitos a uma dama vestido com um traje próprio para as corridas de cavalos.

-Neste preciso instante acabei de chegar à cidade a cavalo -explicou Ravenscar, com uma indiferença que apagava de sua explicação toda impressão de desculpa- Pensei que desejava me ver.

-Durante estes cinco dias, ou mais, estive esperando vê-lo. Por amor de Deus, onde andavas metido, cansativa criatura? Fui de carro até Grosvenor Square, só para descobrir que a casa estava fechada, e arrancada a aldrava da porta.

-Tenho estado em Chamfreys.

-Ah, sim! Perfeito, estou segura de que encontrou sua mãe em excelente estado de saúde. Mas vamos, é o cúmulo do absurdo chamar a senhora de Ravenscar de sua mãe, já que nada tem de tal.

Não é um disparate?

-Não -disse Ravenscar, lacônico.

-Bom, espero que a tenhas encontrado bem -repetiu lady Mablethorpe levemente contrariada.

-Não a encontrei. Está em Tunbridge Wells com Arabella.

Ao ouvir mencionar o nome de sua sobrinha, os olhos de lady Mablethorpe se iluminaram.

-Minha querida menina! -exclamou-. E como está ela?

A evocação de sua meia irmã não pareceu dar ao senhor de Ravenscar nenhuma satisfação.

-É um maldito estorvo -contestou.

Uma sombra de ansiedade cruzou pelo firme semblante de sua senhoria.

-Oh! Deveras? Claro, é muito jovem, e me atreveria a dizer que a senhora de Ravenscar é mais indulgente com ela do que deveria. Mas...

-Olivia é tão estúpida como Arabella -respondeu rapidamente Ravenscar-. As duas vão vir à cidade na próxima semana. O XIV de Infantaria está aquartelado perto de Tunbridge.

Esta horrenda declaração aparentemente comportava um mundo de informações para lady Mablethorpe. Depois de uma pausa levemente reflexiva, ela disse:

-Já seria hora de que a querida Arabella pensasse em casamento. Apesar de tudo, eu me casei quando tinha a sua idade.

-Não pensa nunca em outra coisa -assegurou Ravenscar-. O último é um verdadeiro moleque desconhecido que veste roupa vermelha.

-Deverias mantê-la sob sua proteção -afirmou sua tia-. É seu tutor, tanto como o a senhora de Ravenscar.

-A manterei.

-Talvez se pudéssemos casá-la devidamente...

-Minha querida senhora -disse impaciente Ravenscar-, Arabella está tão preparada agora para o casamento como estava quando era uma menina. Por Olivia soube que tem estado loucamente apaixonada por não menos cinco galanteadores no espaço de uns meses.

-Deus meu, Max! Se não tomas a vigilância mais a sério, algum desses horríveis caçadores de fortunas escapará com ela!

-O que não me surpreenderia nem um pouco.

Lady Mablethorpe manifestou leves sinais de agitação.

-É o mais irritante dos seres! Como pode falar tão friamente dessa desastrosa possibilidade?

-Pelo menos me livraria dela -disse com dureza o senhor de Ravenscar-. Se você pensa casá-la com Adrian, o que lhe posso dizer?

-Oh, Max! Por isso queria lhe ver! -Interrompeu sua tia ao lembrar-se do nome de seu filho relacionado com o mais angustiante problema do momento-. Estou profundamente perturbada pela angústia!

-Ah? -disse Ravenscar com fingido interesse-. Que está fazendo esse louco jovenzinho?

Lady Mablethorpe se sobressaltou instintivamente ao ouvir esta pouco agradável descrição de seu filho único, mas uma breve reflexão deu-lhe a desagradável convicção de que ele merecia semelhante termo desdenhoso.

-Acha que está apaixonado -disse tragicamente.

O senhor de Ravenscar manteve-se impassível.

-Acreditará nisso muitas vezes durante os próximos cinco ou seis anos. Que idade tem o rapaz?

-Se levarmos em conta que você é um de seus tutores, seguramente sabe que ainda não fez os vinte e um!

-Faça você as advertências, então -recomendou Ravenscar, impertinente.

-Gostaria que falasse sério! Não é para levar na brincadeira! Dentro de um par de meses será maior de idade! E antes que saibamos onde estamos, temos que o casar com alguém de boa posição que se preste a isso!

-Me atreveria a pensar que é bastante improvável, madame. Deixe que o rapaz se arranje. Por Deus! Precisa perder seus dentes de leite!

Lady Mablethorpe enrubesceu de raiva.

-Tudo está perfeito para você, fica aí falando desse modo tão odioso, como se nada lhe importasse.

-Só tenho a responsabilidade sobre a sua fortuna.

-Devia saber que só virias aqui para ser desagradável! Quer se desinteressar do meu pobre rapaz, que assim seja: não esperava outra coisa de você. Mas não me censures se contrair o mais desagradável dos casamentos!

-Quem é a garota? -perguntou o senhor de Ravenscar.

-Uma criatura, oh! Uma ordinária! De uma casa de jogo!

-Que? -inquiriu ele, incrédulo.

-Sabia que não ia ficar tão impassível quando soubesses de tudo! -disse sua senhoria, com mórbida satisfação-. Nunca em minha vida estive tão aterrorizada como quando me inteirei disso!

Imediatamente fui a tua casa, Max! Tem que fazer algo!

Ele se encolheu de ombros.

-Oh, deixe que se divirta! Isto não significa grande coisa. Talvez lhe custe menos que uma bailarina.

-Lhe custará bem mais! -disse sua senhoria, mordaz-. Tem a intenção de casar-se com essa criatura!

-Isto não faz sentido! Não é tão estúpido. Não se casa com as mulheres das casas de jogo.

-Gostaria que falasse com ele, porque não fará o mínimo caso com que eu possa lhe dizer. Quer fazer-nos achar que a garota é algo fora do comum. Por certo que isto está mais claro que a luz do dia. O tonto é mais inocente que um cordeiro, e está cheio das mais absurdas noções românticas!

Essa odiosa, vulgar e desonesta mulher atraiu-o com armadilhas à sua própria casa, e a sobrinha fez o resto. Asseguro-lhe que, desde o início, ela se propôs a prendê-lo. Sally Repton contou-me que é positivamente absurdo ver como Adrian adora a essa rameira. Com ele não há nada o que fazer. Ela que precisa ser comprada. Por isso lhe mandei chamar. -Ela observou no olhar de Ravenscar uma expressão claramente triste, e acrescentou com tom mordaz-. Não tens por que temer, Max!

Conheço-o demasiado para esperar que gastes um único penny de sua odiosa fortuna neste assunto.

-Suponho que assim será, tia, pois não tenho a mínima intenção de gastar nada!

-Seria realmente perda de tempo alguém lhe pedir para fazer algo semelhante -disse ela, severa. E

não é que o gasto pudesse lhe afetar, rico que é. Na verdade, não consigo imaginar em que podes gastar a metade de seus rendimentos, e, tenho que acrescentar, Max, que pelo aspecto que se apresenta ninguém vai supor que é o homem mais rico da cidade.

-Está me elogiando, madame, minha falta de ostentação?

-Não, não é isso o que faço -disse sua senhoria com frieza-. Nunca senti o mais remoto desejo de elogiá-lo em nada. Pelo que mais quero neste mundo, desejaria poder me dirigir a outra pessoa que não fosses você, para pedir ajuda para este transe. É um homem duro, Max, carece de sentimentos, e é excessivamente egoísta.

Ravenscar buscava no fundo de seu bolso a caixa de rapé, tirou-a, e a abriu.

-Tente com tio Julius -sugeriu.

-Esse hipócrita! -exclamou lady Mablethorpe, acabando com seu irmão político com uma frase de desprezo-. Por favor, quer me dizer o que poderia fazer neste assunto?

-Condoer-se por você -disse Ravenscar, tomando rapé. Viu que lady Mablethorpe fazia uso dos sais aromáticos novamente, e fechou inesperadamente a caixa. - Bom, o melhor será que me diga quem é a cortesã de Adrian.

-É a sobrinha dessa vulgar lady Bellingham ou assim o pretendem -respondeu lady Mablethorpe, deixando de lado os sais aromáticos-. Naturalmente conheces Eliza Bellingham! Tem uma casa de jogo em St. Jame's Square.

-Da família de Archer e Buckimgham?

-Assim é. Bom, eu não digo que ela seja tão má como esse precioso par, já que, na verdade quem poderia o ser? Mas isso não é o que importa. Ela era a esposa de Ned Bellingham, e eu pelo menos nunca a considerei de elevada condição, quando todos nós sabíamos quem era Bellingham.

-Acho que minha ignorância é grande.

-Na realidade, isto ocorreu muito antes do seu tempo. O que não tem muita importância porque faz quinze anos que ele morreu: as bebedeiras levaram-no à tumba, apesar de chamarem de inflamação dos pulmões. Tolices! É claro que a lhe deixou um montão de dívidas, tudo o que se podia esperar. O que não se sabe, é como conseguiu se arranjar para viver até que abriu essa maldita casa de jogo: atrevo-me a dizer que talvez tivesse familiares ricos. Mas não é do que se trata aqui. Ela é vista em todos os lugares; inclusive alugou um camarote na ópera! Mas ninguém da sociedade a recebe.

-Como se arranja então para que sua casa esteja tão concorrida? Discretas cartas de convite, um jantar extraordinário, vinhos de qualidade inferior em abundância, e umas mesas para jogar cartas?

-Estava me referindo a senhoras educadas -disse friamente sua tia-. Todos sabemos que pelo jogo, os cavalheiros vão a qualquer lugar!

Ravenscar esboçou uma leve e irônica reverência.

-Se a memória me é fiel, também o fazia lady Sarah Repton.

-Não faço exceção com Sally. Mas, filha de duque ou não, nunca me atreveria a afirmar que pertence à boa sociedade!

Ele pareceu se divertir.

-Gostaria que me explicasse algo: Já a recebeu?

-Não seja absurdo, por favor! Sally tem naturalmente assegurada a entrada em todo lugar. Muito diferente é o caso de Eliza Bellingham, e pode ter a certeza de que apesar de Sally ir a sua casa, ela nunca pôs os pés na de Sally! Foi Sally quem preveniu-me do que estava ocorrendo. E como podes supor, imediatamente fui falar com Adrian.

-É o que supunha -conveio com ar zombador o senhor de Ravenscar.

Lady Mablethorpe dirigiu-lhe um desagradável olhar de desdém.

-Inútil que imagine que sou uma estúpida, Max. Claro está que neste assunto eu agi com tato.

Nunca pensei que ia descobrir que isto não era mais que um... que um... Bom, já sabes o que qualquer um pode supor, quando ouve dizer que um rapaz se apaixonou de uma meretriz de uma casa de jogo! Já pode imaginar qual foi o meu desgosto quando Adrian, inesperadamente e sem titubeios, me disse que estava perdidamente apaixonado pela garota, e que tinha o propósito de se casar com ela! Max, foi tal o golpe que recebi, que fiquei sem fala.

-Perdeu o juízo? -perguntou Ravenscar.

-É igual ao seu pai -disse lady Mablethorpe, com desalento-. Depende se meteu na cabeça algum desejo romântico. Já sabe que, desde garoto, sempre estava lendo livros de cavalaria, e esses disparates! Tenho aqui vários! Oxalá o tivesse mandado a Eton!

O senhor de Ravenscar levantou a vista, e pensativamente contemplou o retrato em frente a ele pendurado da parede.

Representava um jovem vestido com jaqueta azul, que surgia no quadro com um leve sorriso em seus bonitos olhos. Era um rapaz formoso, pouco mais que um garoto. Sua fina cabeleira tinha sido atada à nuca, e uma de suas finas e belas mãos apoiava o queixo. Tinha uma expressão doce, mas existia certa obstinação na curva de seus lábios, algo que estava em contradição com a doçura sonhadora de seus olhos.

Lady Mablethorpe seguiu com seu olhar o de seu sobrinho, e analisou com receio o retrato do IV

visconde. Lady Mablethorpe deixou escapar um suspiro de desalento, e dirigiu sua atenção ao senhor de Ravenscar.

-Que podemos fazer, Max? -perguntou.

-Não pode se casar com uma rameira.

-Lhe falará?

-É claro que não.

-Confesso que é difícil, mas talvez possamos conseguir que te escute.

-É impossível conceber nada mais improvável. Que soma você está disposta a dar para comprar a garota?

-Nenhum sacrifício seria suficiente para tirar a meu filho dessa confusão! Deixo em tuas mãos. Eu não entendo nada destes assuntos. O que quero somente é salvar o pobre rapaz!

-Repugna-me ter que fazê-lo -disse Ravenscar, inflexível.

Lady Mablethorpe ficou rígida.

-Deveras? Por favor, que pretendes dizer?

-Uma aversão instintiva a ser sangrado, madame.

-Oh! -disse ela se tranqüilizando. - Pode se consolar pensando que sou eu, e não você, quem será sangrado.

-Um pobre consolo -admitiu ele.

-Não tenho a menor dúvida de que encontrarás essa garota. Sally disse-me que ela tem pelo menos cinco anos mais que Adrian.

-Será muito tola se aceitar menos de dez mil -disse Ravenscar.

-Max! -exclamou lady Mablethorpe, atônita.

Ele encolheu os ombros.

-Adrian não é precisamente um indigente, minha querida tia. Também tem o título. Dez mil.

-Isto parece indecente.

-É indecente.

-Como gostaria de estrangular a essa aborrecida criatura!

-Desgraçadamente, as leis deste país a impedem de levar a cabo essa admirável ação.

-Teremos que pagar -disse ela com voz surda-. Estou persuadida de que a essa mulher seria inútil suplicar-lhe.

- Você cometeria um grave erro revelando tanta fraqueza.

-Nada me levaria a dirigir a palavra a uma mulher assim! Imagine Max! Ela preside as mesas nessa horrível casa! Já podes imaginar a ousada e vulgar peça que é! Sally diz que ali vão os piores libertinos da cidade, e ela concede seus favores a homens tais como esse terrível lord Ormskirk.

Sempre está a seu lado. Atrever-me-ia a dizer que ela representa mais para ele do que meu tolo filho sonha. Mas é inútil pensar em tal coisa! Ele se encolerizaria no mesmo instante.

-Ormskirk? -disse Ravenscar pensativo. Isto esclarece as coisas: qualquer tentativa de impor condições razoáveis a uma dama que tem por costume incentivar seus avanços estaria irremediavelmente condenada ao fracasso. Tinha melhor opinião de Adrian.

-Não o podes censurar -disse lady Mablethorpe-. Que experiência ele teve com esse tipo de gente? Aposto dez contra um, que a garota lhe contou alguma história comovedora de si mesma! Já sei que é encantadora, segundo me contou Sally Repton. Suponho que não há esperanças de que ela se decida pelos favores de Ormskirk?

-Acho que não existe a mais remota possibilidade. Ormskirk não se casará com ela.

Lady Mablethorpe mostrava indícios de irromper em pranto.

-Oh, Max, que fazer se ela não quiser renunciar a ele?

-Temos que a obrigar que o deixe.

-Se não fosse pelas revoluções que estão acontecendo no continente, me sentiria inclinada a enviá-

lo ao estrangeiro! Ainda que atreva-me a dizer que se negaria a fazê-lo.

-Muito provavelmente.

Lady Mablethorpe esfregou suavemente os olhos.

-Se meu filho ficar preso a uma rameira como essa, eu morreria!

-Duvido, mas não tem por que se atormentar, madame. Ela não o apanhará.

Estas palavras tranqüilizaram-na um pouco.

-Sabia que podia contar consigo, Max! Que pensa fazer?

-Ver a sedutora com meus próprios olhos -respondeu-. Disse St. Jame's Square?

-Sim, mas já sabe como são vigiadas essas casas, Max, por causa dos regulamentos. Atrevo-me a dizer que não lhe aceitarão, se não possuir um convite.

-Não vão aceitar ao rico Ravenscar? -disse cinicamente-. Minha querida tia! Me receberão com os braços abertos.

-Bom, espero que não consigam lhe depenar -disse lady Mablethorpe.

-Ao contrário, você desejaria que o fizessem -replicou-. Mas sou um velho pássaro para deixar-me depenar.

-Se encontrares Adrian ali, descobrirá por que fostes. Com certeza pensará que sou eu quem te enviou.

-Pois negue-o -disse Ravenscar, indolente.

Lady Mablethorpe dispunha-se a dar um sermão sobre os perigos da trapaça mas, vendo que seu sobrinho não ligava o mínimo, se conteve e disse com acento algo vingativo:

-Rogo-te que ajas com cuidado, Max! Dizem que a garota é como um pote de mel, e te posso assegurar que não o desejo ver preso em suas redes.

Ele esboçou um sorriso.

-Não tem que se preocupar com nada, madame. Já não tenho vinte abris, nem um caráter romântico. Melhor será que não diga a Adrian que estive aqui. O mais seguro é que esta noite o encontre em St. James's Square.

Ela lhe estendeu a mão, bastante tranqüilizada.

-És um homem muito irritante, Max, mas na verdade não sei o que faria sem você. Leva tudo com cuidado: dependo totalmente de você!

-Por uma vez -disse Ravenscar, levando a mão dela aos lábios- você pode confiar em mim, plenamente.

Despediu-se dela e partiu. Lady Mablethorpe abriu de novo seu livro, mas durante um momento permaneceu sentada com os olhos postos sobre o fogo da lareira, com a mente ocupada em agradáveis quimeras. Uma vez a salvo do atual aperto, abrigava a esperança de que isto serviria de lição a seu filho, e, que no futuro, este se mantivesse à margem desses enredos. O que Ravenscar lhe tinha contado sobre o comportamento de sua meia-irmã não tinha sido muito do seu agrado, mas lady Mablethorpe era uma mulher tolerante, e, não tendia a fazer muito caso dos humores de uma garota que só tinha dezoito verões. Incomodava-a que Arabella fosse tão coquete, mas o que em outra jovem teria sido uma falta surpreendente, era, numa herdeira de sua linhagem, mero capricho da juventude. Coquete ou não, lady Mablethorpe tinha a firme intenção de ver a Arabella casada com seu filho. Pensou que nada seria mais conveniente, Arabella era uma garota de berço, tinha fortuna, e era bonita: conhecia intimamente o seu primo desde a mais tenra infância, e, seria uma excelente esposa para ele. A vivacidade da garota não apresentava objeção alguma para lady Mablethorpe: parecia-lhe encantadora, como a divertida deferência que sempre tinha demonstrado para sua tia.


Por um instante, a lembrança do anônimo pretendente de casaco escarlate perturbou os complacentes pensamentos de sua senhoria. Logo dissipou-a de sua mente, pensando que se podia contar com Max para pôr termo a tal absurdo. Max podia ser um cínico, mas de modo algum era o tipo de homem que ia permanecer parado enquanto Arabella se entregava, ela e suas oitenta mil libras, a um João ninguém de um regimento de infantaria. Em seu foro íntimo, lady Mablethorpe tinha que admitir que seria muito desagradável que Arabella cedesse essas ricas prendas a outro homem que não fosse o jovem lord Mablethorpe.

Ela não era, insistia, uma mulher interesseira e, se seu querido filho não gostasse de sua prima, seria a última a fazer questão de que se casasse com ela. Mas oitenta mil libras investidas com tino dariam muito retorno! Qualquer mulher com senso comum deveria almejar que essa fortuna engrossasse as arcas familiares, sobretudo levando-se em conta que (se acreditasse em Max) em breve teria que se desfazer da incrível soma de dez mil libras do patrimônio acumulado pela prolongada minoria de idade de Adrian. Neste contexto, pensou sua senhoria, era uma circunstância feliz que a administração de todos os bens da propriedade dos Mablethorpe tivessem sido deixadas nas experientes mãos de Max, melhor que nas do honorável Julius Mablethorpe. Não tinha dúvidas de que Max tinha sobre os ombros uma cabeça muito aguda. Graças, em grande parte, a sua forma de proceder, quando Adrian fosse maior de idade se converteria (apesar da perda dessas dez mil libras) no dono de uma apetitosa fortuna. Claro que não teria comparação com a de Ravenscar, triste circunstância que durante anos tinha causado a sua senhoria um pesar completamente irracional. Às vezes inclusive tinha desejado ter uma filha que pudesse casar com Max.

Teria suportado melhor se tivesse tido a satisfação de o ver dilapidar sua fortuna. Mas este consolo era-lhe negado.

Os gostos do senhor de Ravenscar eram singelos. Mantinha uma enorme casa em Grosvenor Square, e é claro, a sua residência de campo, em Chamfreys, que era uma nobre mansão, com parque de cervos, um excelente campo de caça, e uma considerável extensão de terra anexa à propriedade. Mas não celebrava ali fastuosas reuniões: o que, pensou sua lastimada tia, teria podido fazer perfeitamente, contando com sua madrasta para desempenhar a função de anfitriã. O

que teria permitido à segunda senhora de Ravenscar, a oportunidade de pensar menos em seu estado de saúde. O estado físico da segunda senhora de Ravenscar era um tema que, apesar de que não lhe afetar diretamente o mínimo, nunca deixava de irritar a lady Mablethorpe. Sua senhoria morava numa linda casa em Brook Street, mas sem dúvida alguma teria preferido viver em Grosvenor Square, onde teria podido celebrar fastuosas festas. De maneira que era um constante motivo de desgosto para ela, que sua cunhada manifestasse que com a situação delicada de seus nervos não podia suportar a balbúrdia de Londres, e, tivesse que passar a maior parte do tempo em Bath, ou em Tunbridge Wells. As festas que Max organizava eram, portanto, reuniões de solteiros, ou de tal natureza que não permitiam a sua tia desempenhar as funções de anfitriã em seu lugar.

Ela se perguntava como podia gostar viver em absoluta solidão naquela casa tão abandonada!

Sendo ela mesma uma mulher de gostos gregários, também se interrogava a respeito de por que lhe importavam tão pouco os prazeres do seu mundo. Em vão se buscaria o senhor de Ravenscar em salas de festa, diversões públicas, ou bailes de máscaras: dez contra um que estaria numa briga de galos, ou batendo-se com boxeadores em alguma arena vulgar de Whitechapel. Ravenscar era membro de numerosos clubes da moda, mas raras eram as ocasiões em que os freqüentava. Sua tia tinha ouvido dizer que jogava frequentemente em Brooks, onde as apostas eram elevadas, e sabia que seus cavalos eram a inveja de seus amigos; mas estas eram positivamente suas únicas extravagâncias. Enquanto na cidade pululavam os elegantes dandis, e inclusive homens que não aspiravam atingir essas exigências da moda e passavam horas para desenhar um casaco, gastavam fortunas em anéis, caixas de rapé, fivelas de sapatos, e alfinetes, o senhor de Ravenscar não dispensava tempo nem dinheiro em nada mais que em seus botas (que eram reconhecidamente excelentes), e nunca tinha sido visto levando outro enfeite que não fosse o pesado anel com selo de ouro que embelezava sua mão esquerda.

Ravenscar tinha trinta e cinco anos, e tinha decorrido muito tempo desde que qualquer uma das mães que andavam arranjando casamentos -a exceção das mais otimistas- tivesse abrigado a esperança de que ele lançasse seu olhar em direção a sua filha. A algum tempo, tinha sido um dos homens mais cortejados de Londres; choviam-lhe convites; estendiam-lhe as mais astutas armadilhas; mas a indiferença que considerava todas as mulheres desejáveis (indiferença que nunca tentou ocultar), sua fria reserva, e, o costume de fazer o que lhe apetecesse em toda circunstância tinha finalmente conseguido convencer às irritadas matronas de que nada tinham a esperar dele, nem sequer uma lindo mimo de preço como prova de sua estima para aquelas damas que se consideravam suas amigas. O senhor de Ravenscar não brindava obséquios. Era inútil pensar que por galanteria se oferecesse a perdoar a qualquer suas perdas no whist1 ou no silver loo2; o mais provável era que se levantasse da mesa de jogo mais rico que antes. Fraco consolo era pensar que as senhoras de virtude duvidosa que em algumas ocasiões seu nome tinha se visto misturado, nunca puderam fazer brilhar jóias presenteadas por ele: o que singelamente revelava uma mesquinharia execrável, um defeito horrível! Consideravam-no orgulhoso, um ser desagradável; seu comportamento não era nada atraente e, pese a que os cavalheiros diziam que era um excelente desportista, as senhoras estavam mais inclinadas a pensar que era um dissoluto, com um pronunciado gosto pelas companhias ruins.

Lady Mablethorpe, que se apoiava nele e que durante muitos anos tinha confiado em seus conselhos, censurava sua rudeza, deplorava a frieza de seus sentimentos e se mantinha levemente temerosa de sua eventual língua viperina, confiava em que alguém, em algum dia, lhe daria seu merecido castigo. Seria uma boa lição se perdesse uma grande quantidade de dinheiro em St.

James's Square, por exemplo: dez mil libras, talvez, o que qualquer homem menos odiosamente egoísta teria oferecido para pôr termo à desafortunada conduta de seu jovem primo.


1 Jogo de cartas.

2 Jogo de carta com dois jogadores.

Capítulo II

Ao senhor de Ravenscar foi poupada a necessidade de ter que pôr em jogo nome e fortuna, ao encontrar, na entrada da casa de lady Bellingham, em St. James's Square, com um conhecido que manifestou-se disposto a apresentar-lhe a sua senhoria. O senhor Berkeley Crewe disse que a velha ficaria encantada em o receber. Assegurou-lhe que o jogo era correto, o vinho suportável, e os jantares os melhores da cidade; também lhe confiou que as senhoras Sturt e Hobart empalideciam ante a personalidade de lady Bel. Abriu-lhes a porta um sujeito forte de semblante tosco que tinha uma orelha igual a uma couve flor. Ambos cavalheiros entraram em uma grande sala, o senhor Crewe saudou amistosamente ao segurança e lhe disse brevemente:

-Um amigo, Wantage.

Wantage obsequiou o desconhecido com um olhar escrutinador antes de ajudar-lhe a tirar-se o sobretudo. Ravenscar por sua vez olhou-o com interesse e perguntou-lhe:

-Quanto tempo faz que não sobe ao ring?

Wantage pareceu contente.

-Oh, faz muito tempo! -disse-. Isso foi antes que entrar no ramo. Que maravilha que o tenha notado!

-Não era muito difícil -replicou Ravenscar, ao mesmo tempo em que ajeitava as rendas do punho.

-Adivinhei quando tirou o sobretudo que era conhecedor, senhor -observou Wantage.

Ravenscar esboçou um leve sorriso, mas não respondeu nada. Depois de arranjar a jaqueta ao seu gosto, dar um toque em seus punhos, e examinar com certa ansiedade seu aspecto num espelho, o senhor Crewe dirigiu-se para as escadas. Ravenscar deu um olhar ao seu redor, observou que a casa estava mobiliada com gosto extraordinário, e o seguiu às salas reservadas que tinha no primeiro andar.

Ao entrar nos salões de jogo pela primeira porta que tinham se deparado, se encontraram numa sala totalmente destinada aos jogos de carta. Ao redor da mesa sentava-se uma dúzia de pessoas, tão absorvidas no jogo das cartas que passou desapercebido a entrada dos recém chegados.

Reinava na sala um silêncio mortal que produzia um profundo contraste com o alegre barulho que se ouvia na peça contigua, para a qual o senhor Crewe conduziu a seu amigo. O salão estava situado na parte nobre da mansão. As paredes estavam cobertas com cetim cor de palha, mobiliado com muitas de cadeiras, mesas e veladores para que os jogadores depositassem suas fichas e seus copos. Num canto da sala estava em pleno auge uma partida de Faraó3 cuja condução era feita por uma senhora de rubras faces empoadas, vestida em cetim purpúreo, e usando um turbante enfeitado prodigamente com plumas de avestruz; em outro canto, perto da lareira acesa, um barulhento grupo de pessoas estava agrupado ao redor de uma mesa de E.Ou4 , que era conduzida por uma jovem e esbelta mulher de cabelo castanho e olhos escuros sob finas e arqueadas sobrancelhas.


3 Jogo baseado em torno da idéia de uma carta no topo de uma ou duas pilhas.

4 Jogo parecido com a roleta.

Sua exuberante cabeleira estava penteada singelamente. Sem pós, recolhido o cabelo para a parte superior da cabeça, de onde pendiam mechas encaracoladas e suaves. Uma dos cachos tinha deslizado para frente e, ao inclinar-se sobre a mesa, e posou sobre seus brancos seios. A aproximação do senhor Crewe, levantou a vista, e Ravenscar, observando-a sem paixão, não teve a mínima dificuldade em compreender o porquê de seu jovem parente ter perdido a cabeça de forma tão lamentável. Os olhos da garota eram os mais expressivos e radiantes que jamais tinha visto. Seu efeito sobre um jovem impressionável, pensou, seria do mais devastador. Como bom conhecedor dos encantos femininos não pôde deixar de aprovar a estampa que apresentava miss Grantham.

Majestosos eram os contornos de seu corpo, perfeito o porte de sua cabeça, bonitas as mãos, e irrepreensivelmente torneados os tornozelos. Parecia ter um fino senso do humor e, ao falar, o timbre de sua voz era grave e grato ao ouvido. Do lado dela, sentado confortavelmente num cadeirão, um homem vestido com traje listrado e peruca empoada, observava o jogo da mesa, distraído e distante; no outro, o primo de Ravenscar devorava com os olhos a figura de miss Grantham. Ao perceber a um desconhecido que cruzava a sala depois do senhor Crewe, miss Grantham o observou com olho crítico. Educada por necessidade a fazer um julgamento rápido dos homens, lhe foi difícil fazer um de Ravenscar. Seu simples casaco, a ausência de qualquer jóia ou enfeite, não indicava uma grande fortuna. Mas seu semblante revelava uma firmeza involuntária, como se estivesse acostumado a ir onde quisesse, e a fazer o que tinha vontade em companhia de quem quer que fosse. Se no primeiro momento tinha-o tomado por um rústico de províncias, esta impressão cedo viu-se corrigida. «Pode que seja um descuidado no vestir, mas essa simples jaqueta não é obra de um alfaiate popular», pensou.

Ela se dirigiu ao cavalheiro de idade madura que se recostava-se no cadeirão.

-Quem é nosso novo amigo, milord? Um puritano que vem a se misturar conosco?

Languidamente, o elegante cavalheiro alçou seu monóculo, e ajustou-o devidamente. Por baixo da sofisticada maquilagem assomava um fino e belo rosto, curiosamente talhado. Esboçou um leve movimento de sobrancelhas.

-Não é um puritano, querida -disse com voz suave e indolente-. Na realidade trata-se de um rico pássaro. É Ravenscar.

Ao ouvir pronunciar este nome, o jovem lord Mablethorpe voltou rapidamente a cabeça. Incrédulo olhou seu primo e exclamou:

-Max!

O tom de sua voz revelava certa surpresa, não isenta de suspeita. Seu formoso semblante se ruborizou qual se fosse um menino, o que lhe dava um ar mais jovem que nunca e, nada culpado.

Avançou uns passos e, e na defensiva, exclamou:

-Não esperava vê-lo por aqui!

-Por que não? -disse com calma Ravenscar.

-Não sei. É que? Pensava... Conheces a lady Bellingham?

-Confiava em que Crewe me apresentasse.

-Oh! Foi Crewe quem o trouxe! -disse sua senhoria, levemente aliviado-. Pensava... Pelo menos imaginava... Mas não importa!

Ravenscar observava-o com uma espécie de suave surpresa.

-Parece que minha chegada o afetou bastante, Adrian. Poderias dizer-me o que fiz para merecer sua reprovação?

Lord Mablethorpe pôs-se ainda mais vermelho que antes, e agarrou-lhe o braço com um rápido aperto amistoso.

-Oh, Max, não sejas tonto! Claro que não me fizeste nada! Estou muito contente de vê-lo. Quero apresentar-lhe miss Grantham. Deb! Este é meu primo, o senhor de Ravenscar. Suponho que já tenhas ouvido falar dele. É um jogador de primeira, posso assegurar!

Miss Deborah Grantham ao encontrar com os olhos cinzas e duros do senhor de Ravenscar, não esteve muito segura que gostasse. Ela correspondeu a sua reverência e disse suavemente:

-Seja você bem-vindo, senhor, está, sem dúvida, em sua casa. Conhece lord Ormskirk? Acho que sim, não?

O elegante cavalheiro já entrado em anos e Ravenscar trocaram uma saudação com a cabeça. Um homem fornido e largo de costas que estava de pé no outro extremo da mesa interveio, gracejando:

-Não seja você tímido, Ravenscar: estamos todos profundamente ansiosos para ganhar seu dinheiro! Mas, previno-o, miss Grantham está com sorte, não é assim, querida? E até agora a banca está ganhando muito.

-O normal é que a banca ganhe -observou uma voz metálica, ligeiramente depreciativa, à altura do cotovelo de Ravenscar-: A seu serviço.

Respondendo a esta saudação, o senhor de Ravenscar formulou mentalmente um voto para resgatar seu primo da sociedade em que o tinham metido, ainda que tivesse que fazê-lo sair a golpes ou o seqüestrar para consegui-lo. O conde de Ormskirk, sir James Filey, e (como seu olhar perspicaz lhe tinha mostrado ao observar ao redor da sala) todos os mais experientes jogadores que freqüentavam Pall Mall e seus arredores, não eram os parceiros mais adequados para um jovem que mal acaba de deixar as fraldas. Nesse momento senhor de Ravenscar teria tido um grande prazer em ver a miss Grantham no pelourinho, junto com sua tia e com todas as vigaristas que seduziam jovens inexperientes para os arruinar nessas elegantes casas de jogo.

Nada disto se transparecia no semblante de Ravenscar ao aceitar o convite à aposta que lhe brindava miss Grantham. As mesas de E/Ou não representavam a mínima tentação para ele, mas já que tinha ido a St. James's Square com o firme propósito de estabelecer boas relações com miss Grantham e, considerando que o melhor meio de conseguir isso era gastar a maior quantidade de dinheiro possível em sua casa, durante a próxima meia hora passou apostando com temeridade.

Enquanto isso, a respeitável matrona que presidia o jogo do Faraó , que não era outra que lady Bellingham, descobriu sua identidade e se sentiu agradavelmente lisonjeada. Um de seus vizinhos lhe confiou que Ravenscar dispunha de vinte ou trinta mil libras de renda ao ano, mas atenuou essa boa nova acrescentando que lhe atribuíam uma sorte de todos os diabos nos jogos de azar. Se era assim, esta noite a sorte lhe era desfavorável. Ravenscar perdeu uns quinhentas guinéus durante o tempo que permaneceu na mesa. Enquanto afetava interesse, que estava muito distante de ter, pela bolinha que dava voltas, ao senhor de Ravenscar apresentou-se a almejada oportunidade de observar miss Grantham. Também se viu obrigado a contemplar as atenções de amante que seu primo tinha para com ela, espetáculo que lhe fez se sentir mal fisicamente. Os olhos azuis e francos de Adrian adoravam-na abertamente; mal prestava atenção aos demais; e sua atitude para lord Ormskirk recordava-lhe a Ravenscar a de um cão que tomava conta de um osso.

Ormskirk parecia ligeiramente divertido. Em várias ocasiões dirigiu certas provocadoras observações a Adrian, como se aborrecer o rapaz lhe desse um prazer sádico. Várias vezes pareceu que Adrian ia explodir numa discussão intempestiva, mas miss Grantham sempre intervinha desviando a seta envenenada de sua senhoria com considerável destreza, lançando uma resposta risonha, e tranqüilizando Adrian com um rápido e íntimo sorriso, que parecia assegurar que entre os dois existia um secreto entendimento que não conseguiria ser abalado pelas tiradas de Ormskirk.

Ravenscar admitiu que era uma mulher inteligente, mas nem por isso melhorou a opinião que lhe tinha. Com rápidas intervenções ela conduzia dois amantes muito diferentes, e até agora não tinha embaralhado as rédeas. Mas, mesmo a que Adrian fosse fácil de levar, isso não ocorria com Ormskirk, refletia Ravenscar com torva satisfação.

Sua senhoria, que estava mais perto dos cinqüenta que dos quarenta, tinha se casado duas vezes, e agora estava de novo viúvo. Dizia-se que tinha levado a suas duas esposas à tumba. Tinha vários filhas, ainda que nenhuma delas tivesse abandonado ainda a escola, e um filho, que ainda vestia calções curtos. Sua irmã administrava-lhe a casa; mulher apagada, de pranto fácil, o que talvez fosse a causa pela qual sua senhoria se encontrasse ainda em casa. Seus dois casamentos, tinham sido satisfatórios e, já que durante anos se acostumou a buscar o prazer nos braços de um desfile de formosas cortesãs, era muito improvável que agora estivesse considerando uma terceira aventura matrimonial. Se tinha intenção de casar não andaria buscando esposa numa casa de jogo.

As pretensões que abrigava por miss Grantham eram estritamente desonestas; e a julgar por seu frio ar de proprietário, estava muito seguro dela, demasiado seguro para se sentir desconcertado pelo estúpido amor de um jovem pretendente.

Mas Ravenscar conhecia demasiado bem a Ormskirk para se sentir tranqüilizado. Se miss Grantham decidisse que o casamento com Adrian era mais importante para ela que manter uma relação mais flexível com Ormskirk, Adrian ganharia um inimigo muito perigoso. Sua juventude não contaria para alguém cujo orgulho consistia em ser considerado mortal tanto com a espada curta como com a pistola. Ravenscar sabia perfeitamente que Ormskirk tinha matado em três ocasiões o seu rival em duelo; e começou a dar-se conta que arrancar seu primo das redes de miss Grantham era um assunto muito mais urgente do que inicialmente tinha suposto.

O terceiro cavalheiro que parecia ter certas pretensões sobre miss Grantham era o homem que lhe tinha saudado jovialmente no início, quando o senhor de Ravenscar se acercou da mesa. Parecia estar em boas relações com a senhorita, sem que isso incomodasse a Adrian ou a lord Ormskirk. Era um tipo agradável, sorridente, e de modos agradáveis. O senhor de Ravenscar ficaria surpreso se não se tratasse de um caçador de fortunas. Miss Grantham chamava-o de Lucius, e ele tratava sua amada, com tal familiaridade que revelava uma longa amizade, ou uma verdadeira relação íntima.

Miss Grantham, pensou o senhor de Ravenscar, era demasiadamente livre com seus favores.

À uma da madrugada ela renunciou à mesa, convidando ao senhor Lucius Kennet a que a substituísse.

-Ah, estou cansadíssima, e quero cear! Milord, acompanha-me? Palavra que estou faminta!

-Com o maior prazer do mundo, querida -disse lord Ormskirk, com voz entediada.

-Oh, por certo que a acompanharei, Deb! -disse lord Mablethorpe, oferecendo-lhe o braço.

Ela estava entre os dois, no semblante um desmaiado sorriso, olhando ao um e ao outro.

-Oh, sinto-me realmente agraciada, não é verdade?

Ravenscar acercou-se a ela.

-Madame, está entre dois fogos! Permita-me que vá em sua ajuda! Posso ter a honra de convida-la para cear?

-Arrebata o estopim dos fogos? -disse ela, com tom confidencial-. Senhores -e fez-lhes uma profunda reverência-, rogo-lhes que me perdoem.

-Tudo para o senhor de Ravenscar -disse sir James Filey, esboçando uma de seus sorrisos zombeteiros -. Assim vai o mundo!

Pelos olhos de miss Grantham passou um brilho de ira, mas dominou-se e saiu da sala pelo braço de Ravenscar.

Na sala de jantar do térreo já tinha várias pessoas, mas Ravenscar encontrou um lugar para ela numa das mesas menores situada junto à parede e, depois de lhe ter servido um pouco de salmão a escabeche e um copo de champanhe gelado, se sentou em frente a ela, pegou seu garfo e faca, e disse:

-Me permitirá que diga, miss Grantham, que me considero afortunado com a desgraça de suas senhorias.

Ela moveu levemente a comissura dos lábios.

-Isto é sumamente encantador de sua parte, senhor. Nunca imaginei que dissesse frases tão bonitas.

-Depende das pessoas com as quais me encontro -replicou ele.

Ela lhe observava, pensativa.

-O que lhe trouxe aqui? -perguntou-lhe de repente.

-A curiosidade, miss Grantham.

-Está satisfeito?

-Oh, ainda não, madame! Permita que lhe sirva um pouco destes guisados: estão realmente excelentes!

-Sim, somos muito orgulhosos pela qualidade de nossos jantares -disse ela-. Por que jogou a roleta? Não é o Faraó o seu jogo?

-De novo a curiosidade, miss Grantham. Meu vício habitual.

-A curiosidade de ver a uma mulher atuar como croupier?

-Assim é -admitiu.

-Foi por isso que veio?

-É claro -disse ele, friamente.

-Pois ao vê-lo não pensei que era você um jogador! -riu ela.

-Tomou-me você por um tolo, miss Grantham?

Seus olhos esboçaram um brilho bem mais atraente.

-Como? Na verdade sim, por um instante tomei-o por um tolo! Mas lord Ormskirk jogou por terra todos os meus sonhos. A sorte do rico senhor de Ravenscar nos dados e nas cartas é proverbial.

-Esta noite foi nula.

-Oh, você não estava nem um pouco interessado nesse jogo estúpido! Desejaria que hoje não arruinasse a banca de minha tia e seu Faraó .

-Se ao guarda costa que tem na porta lhe comunicar que tenho o acesso livre, prometo-lhe que tentarei fazê-lo quando voltar de novo.

-Deve que saber que todas as portas estão abertas ao rico senhor de Ravenscar... e em particular este tipo de portas.

-Diga então a seu acólito que seja mais amável, ou poderia acontecer um alvoroço na entrada.

-Ah, Silas é um guardião que conhece muito bem seu oficio. Aqui só é negada a entrada aos oficiais de justiça e a seus espiões, e Silas consegue descobrir um a sessenta passos.

-Deve ser para você uma aquisição de grande valor!

-Seria impossível imaginar a existência sem sua presença. Era o sargento de meu pai; e o conheço desde quando estava eu no berço.

-Era seu pai militar de corrida? -disse o senhor de Ravenscar arqueando ligeiramente as sobrancelhas.

-Sim, numa época o foi.

-E depois?

-Outra vez curioso, senhor de Ravenscar?

-Muito curioso.

-Era jogador. Como vê, trago no sangue.

-Isto explicaria sua presença aqui, claro.

-Oh, desde a infância vivi familiarizada com as casas de jogo! Posso lhe dizer de qualquer um , após dez minutos de permanência nesta habitação, se é um trapaceiro ou um profissional; posso levar-lhe a banca no Faraó ; posso detectar quando os dados foram adulterados para que saísse um par de cincos tão de pressa como você possa fazê-lo; e não existe o homem que possa mudar as cartas quando eu estou na mesa.

-Deixa-me perplexo, miss Grantham. A verdade é que é uma pessoa culta!

-Não -disse ela, muito séria-. Minha obrigação é conhecer todas estas coisas. Não sou uma pessoa culta. Não sei cantar, nem tocar o piano, nem pintar aquarelas. Isso é cultura.

-É verdade -concordou ele-. Mas, por que estar descontente? Em certos meios estas coisas podem ser de rigueur, mas aqui, imagino, lhe seriam de pouca utilidade. Foi sensata em não gastar tempo nessas tolices: você é perfeita para seu meio, madame.

-Meu meio! -repetiu ela, enrijecendo ligeiramente-. Ao diabo! Seu primo é bem mais galante!

-Sim, diria que sim -respondeu Ravenscar enchendo seu copo de vinho-. Meu primo é muito jovem e impressionável.

-Estou certa de que você, senhor, não é claro impressionável.

-Nem um pouco -disse, amável-. Mas estou totalmente disposto a render-lhe todos os elogios que você queira, se isto é o que deseja.

Ela mordeu o lábio, dizendo, ao cabo de um momento, com voz ofendida.

-Não o desejo em absoluto.

-Neste caso -disse Ravenscar- pressinto que vamos nos dar bem. Joga Piquet?

-Claro que sim.

-Quero dizer o suficiente para jogar comigo uma partida?

Miss Grantham olhou-lhe de meta em meta com marcada hostilidade.

-Consideram me -disse friamente- uma pessoa que possui um bom conhecimento do jogo.

-Também o têm muitas pessoas que poderia citar, mas isso não significa que sejam boas jogadoras de cartas.

Miss Grantham mantinha-se muito erguida em sua cadeira. Seus magníficos olhos brilhavam com fulgor.

-Minha perícia nas cartas, senhor de Ravenscar, até agora nunca foi posta em dúvida.

-Mas até agora você não tinha jogado comigo ainda -precisou Ravenscar.

-Isto é algo que se pode remediar! -replicou ela.

Ele arqueou uma de suas sobrancelhas.

-Está certa em se atrever, miss Grantham?

Ela sorriu com desdém.

-Atrever-me! Eu? O enfrentarei quando desejar, senhor de Ravenscar, e você mesmo poderá determinar o montante das apostas.

-Então que seja esta mesma noite -disse ele, rapidamente.

-Que seja agora mesmo! -disse ela, se levantando-se da cadeira.

Também ele se levantou, e lhe ofereceu o braço. Ele conservava um semblante perfeitamente grave, mas a ela pareceu que por dentro se estava troçando dela.

Subindo as escadas encontraram-se com lord Mablethorpe, que descia para cear. Ao perceber a miss Grantham se alterou, exclamando:

-Já terminaram de cear? Estava certo de encontrá-los no salão! Oh, por favor, Deb, regresse! Volte e tome um copo comigo!

-Chegas muito tarde -disse Ravenscar-. Miss Grantham está comprometida comigo por uma hora.

-Por uma hora! Oh, vamos, Max, não pode ser! Não sejas piadista!

-Nada disso: vamos jogar uma partida ou duas ao piquet.

Adrian riu-se.

-Ah, pobre Deb! Não jogue com ele: via tosquiá-la de forma vergonhosa!

-Se o fizer, tenho a convicção que será de forma desavergonhada -sorriu miss Grantham.

-Na realidade assim o fará, pois meu primo não tem nem uma pitada de cavalheirismo. Preferiria que não tivesse nada que ver com ele. Que vai ser de mim?

-Bom, se a roleta não tem encanto para você, pode vir e contemplar como lido com seu primo.

-Irei resgatá-la -prometeu.

Ela riu, e seguiu subindo as escadas se dirigindo às salas de jogo. Na sala maior tinha uma ou duas mesas livres; miss Grantham dirigiu-se a uma dessas mesas, e pediu ao garçom um baralho. Ela observava atenciosamente Ravenscar, enquanto este tomava assento em frente a ela; os olhos de Ravenscar encontraram com os seus, e a sombra de troça que ela detectou a convenceu de que tinha estado rindo dela.

-É um homem muito singular! -disse miss Grantham, em seu estilo direto-. Por que me falou assim?

-Para aguçar sua curiosidade -respondeu-lhe com a mesma franqueza.

-Santo Deus, e com que propósito, por favor?

-Para que jogasse cartas comigo. São tantos os nobres admiradores que tem, madame, e a cortejam com tal assiduidade, que é impossível imaginar que um amistoso convite tivesse sido correspondido.

-Por isso foi você tão descortês comigo, e, tosco! Palavra de honra, não sei o que merece, senhor de Ravenscar!

Ele se voltou para pegar os baralhos que o garçom lhe apresentava numa bandeja, e depositou em seu lugar alguns bilhetes.

-Que me depenarão, sem dúvidas. Qual será a aposta, miss Grantham?

-Recorde que a decisão é sua.

-Bom -disse-, coloquemos a dez xelins o ponto, já que isto é uma mera partida amistosa.

miss Grantham arregalou levemente os olhos, pois a aposta era alta, mas disse friamente:

-Como queira senhor. Se a você está satisfeito, não vejo por que tenho que pôr reparos.

-Mas, que humildade, miss Grantham! -disse, embaralhando as cartas-. Se parece-lhe insípido, sempre teremos a oportunidade de dobrar a aposta.

Miss Grantham manifestou estar de acordo com isso, e num momento de arrojo sugeriu que poderiam jogar a vinte e cinco libras a partida, em acréscimo. Feito isso puseram-se a jogar, ela com os nervos tensos, ele muito distante.

Cedo descobriu-se que o senhor de Ravenscar era um jogador bem mais experiente que sua adversária; o cálculo que fazia dos pontos era excelente; jogava oportunamente suas cartas; e tinha um truque desconcertante para calcular as mãos de miss Grantham, era suficientemente preciso para fazer dele um adversário temível. A primeira partida ela perdeu, ainda que a perda não fosse muito elevada, se comprometendo a jogar três partidas com ele. Ravenscar admitiu que a sorte estava do seu lado.

-Espero que não ache totalmente insignificante o meu modo de jogar -disse miss Grantham.

-Oh, nem um pouco! -respondeu ele-. Para uma dama, seu jogo é excelente. Você é mais fraca no descarte.

Miss Grantham cortou os naipes com gesto algo zombador.

No meio da terceira partida, lord Mablethorpe regressou ao salão, e dirigiu-se diretamente para miss Grantham.

-Já está arruinada, Deb? -perguntou dirigindo-lhe um cálido sorriso.

-Não falemos em tais coisas! Perdemos uma partida cada um, e esta vai ser a decisiva, silêncio agora! Estou totalmente entregue ao jogo, e não deve me distrair.

Ele acercou uma cadeira dourada, frágil, e sentou-se escarranchado, apoiando os braços no respaldo.

-Disse que podia olhar!

-Claro que pode, e também pode me trazer boa sorte, espero. Seu ponto é bom, senhor de Ravenscar.

-É também minha quinta, miss Grantham?

-Também é.

-Muito bem, então; uma quinta, uma terça, catorze ases, três reis, e onze cartas jogadas, madame.

Miss Grantham deu um rápido olhar franzindo o cenho à galáxia de figuras que Ravenscar expôs ante seus olhos, e um olhar dubitativo ao dorso de uma carta que estava na mão de Ravenscar.

-Oh, vamos em frente. Tudo depende dessa carta. E juro que não tenho a menor idéia das cartas que devo conservar!

-Uma de ouro! -disse ela, pondo por cima do resto de suas cartas.

-Perdeu -disse Ravenscar, mostrando uma carta de paus.

-Depenada pela segunda vez -disse lord Mablethorpe-. Minha querida Deb, já lhe tinha previnido que não tivesse nenhum trato com Max! Anda, vamos!

-Não sou tão covarde! Deseja prosseguir, senhor?

-Com toda minha alma! -disse o senhor de Ravenscar, recolhendo as cartas-. É uma boa perdedora, miss Grantham.

-Oh, não acho que isto seja uma derrota, lhe asseguro! Ainda não estou rendida!

No entanto à medida que avançava a noite, ela começou a decair consideravelmente, como se Ravenscar, caçoando no início, tivesse decidido exercer toda a sua habilidade contra ela. Miss Grantham pensava que a sorte estava do seu lado, mas se viu obrigada a admitir que ele era um mestre.

-Me faz sentir como se fosse uma novata! -disse-lhe descuidadamente, quando ele ganhou uma partida-. Esteve magistral guardando o valete de Piquet Na realidade, eu não o utilizo assim!

-Claro, você teria jogado um pequeno Piquet ante a mínima possibilidade de recolher um as ou um rei, não é assim?

-Sempre jogo com uma mínima margem de possibilidades e raras vezes perco! Mas você é um jogador frio, senhor de Ravenscar!

-Eu não aposto contra as vantagens, as possuo -disse sorrindo, e fazendo gesto a um garçom-. Não tomaria um copo de clarete, miss Grantham?

-Não, não quero nada mais que limonada, obrigado. Preciso, nestas circunstâncias, dispor de todas as minhas faculdades. Mas esta tem que ser nossa última partida. Vejo que minha tia desceu ao segundo jantar, e acho que pelo menos já são três da madrugada.

Lord Mablethorpe, que se tinha afastado dali desconsoladamente já fazia algum tempo, voltou à mesa lhes informando das perdas que tinha tido na mesa de Faraó , e se queixando de que sua Deb o tinha abandonado por seu aborrecido primo.

-Como vai a conta? -perguntou, apoiando sua mão sobre o dorso da cadeira de miss Grantham.

-Bom, perdi algo, ainda que não mais que duas ou trezentas libras, imagino.

Ele lhe disse baixinho:

-Já sabe que odeio que faça isso!

-Está interrompendo o jogo, querido.

-Quando estivermos casados -murmurou o jovem- não o permitirei.

Ela lhe dirigiu um malicioso sorriso.

-Quando estivermos casados, pobre garoto, é claro que farei o que você quiser. Faça o jogo, senhor de Ravenscar!

O senhor de Ravenscar, a quem não tinha passado despercebido este diálogo, recolheu o baralho, e em lugar das cartas desejava ter entre suas magras e sólidas mãos o pescoço de miss Grantham.

A última partida foi realmente má para miss Grantham. Ravenscar ganhou-a em duas rápidas jogadas, e anunciou-lhe que o total de suas perdas se elevava a seiscentas libras. Ela acolheu a notícia sem pestanejar, e deu meia volta para falar baixinho algo ao senhor Lucius Kennet, que, junto com uma ou duas pessoas tinha se acercado para observar o desenvolvimento da partida.

Assentiu, e dirigiu-se para a sala contigua. Sir James Filey disse zombador:

-Que erro cometeu você, querida, ao jogar com Ravenscar! Alguém tinha que lhe ter prevenido.

-Sua senhoria, por exemplo -disse Ravenscar, dirigindo-lhe um olhar sob suas negras sobrancelhas-. O gato escaldado? Não é assim?

Miss Grantham, que odiava sir James, contemplou agradecida aquele que momentos antes tinha sido seu rival. Sir James se transfigurou, mas continuou sorrindo, e disse igualmente:

-Oh, o Piquet não é meu jogo! Não me medirei com você quanto a isso. Mas, agora mesmo o faria no terreno esportivo! Isto é coisa diferente!

-Em que desporto? -perguntou Ravenscar.

-Tem ainda um par de cavalos de competição em seus estábulos? -disse sir James, sacando a caixa de rapé.

-Como, de novo com isso? Claro que os tenho, e é claro que ainda ganharão os que sua senhoria possui.

-Não acho que seja assim -disse sir James, tomando rapé com um elegante gesto da mão.

-Eu não apostaria contra eles -disse um homem que vestia um casaco violeta, e usava uma pequena peruca -. Eu os compraria, se você os vendesse, Ravenscar.

O senhor de Ravenscar moveu a cabeça.

-Oh, Max ganha todas as corridas! -manifestou lord Mablethorpe-. Ele mesmo criou a esses cavalos tordilhos, e jurou que nunca se separaria deles nem por uma fortuna. Perderam alguma vez, Max?

-Não, ainda não.

-Porque nunca competiram em igualdade de condições -disse sir James.

-Em certa ocasião sua senhoria achou que o fizeram -observou Ravenscar, com um leve sorriso nos lábios.

-Oh, concedo-lhe! -replicou Filey, com gesto airoso-. São iguais a tantos outros, os valorizo menos.

O senhor Lucius Kennet regressou ao salão, e depositou alguns bilhetes sobre a mesa. Miss Grantham empurrou-os para o senhor de Ravenscar e disse:

-Seus ganhos.

Ravenscar olhou-os com indiferença, e estendendo a mão pegou dois bilhetes, segurou-os entre os dedos e disse.

-Quinhentas libras sobre a mesa, Filey. Comprometo-me a conduzir meus tordilhos contra qualquer par de sua senhoria, escolha-os para competir com eles, a distância que sua senhoria deseje, e no dia que sua senhoria escolha.

Os olhos de lord Mablethorpe brilharam.

-Uma aposta! E agora que o diz você, Filey?

-Que, isto é uma mesquinharia! -disse sir Filey-. Só quinhentas libras, Ravenscar? Temo que não me leve a sério!

-Oh -disse Ravenscar negligente- podemos multiplicar a aposta, é claro!

-Agora estou com sua senhoria! -disse sir Filey, pondo a caixa de rapé no bolso-. Multiplicar por quanto?

-Por dez -disse Ravenscar.

Miss Grantham estava tranqüilamente sentada em sua cadeira, observando a um e outro. Lord Mablethorpe assobiou.

-Isto faz cinco mil libras -disse-. Eu não aceitaria. Todos nós conhecemos seus tordilhos. Isto é muito elevado, Filey!

-Sua senhoria aceitaria se eu lhe oferecesse uma vantagem -disse Ravenscar.

O homem que vestia o casaco violeta riu.

-Por Deus! Que emocionante está isso! Aceita, Filey?

-Com a maior presteza do mundo! -disse sir Filey. Olhou Ravenscar que seguia sentado na cadeira com uma mão afundada no bolso-. Sua senhoria está muito seguro de seus tordilhos e de sua habilidade! Mas temo que desta vez ganharei! Dizia que me ofereceria uma vantagem?

-Disse -respondeu imperturbável Ravenscar.

Lord Mablethorpe, que tinha estado observando a Filey, disse rapidamente:

-Cuidado, Max! Apesar de tudo ignoras o tipo de cavalos que pode enfrentar aos teus!

-Bom, espero que sejam bastante bons como para concederem uma corrida -disse Ravenscar.

-São suficientemente bons para isso -sorriu sir James-. Que vantagem me brindará contra minha desconhecida parelha?

-Cinco contra um -respondeu Ravenscar.

Inclusive sir James ficou surpreendido. Lord Mablethorpe lançou um gemido, e exclamou:

-Max, estás louco!

-Ou bêbado -sugeriu o homem do casaco violeta, sacudindo a cabeça.

-Tolices -disse Ravenscar.

-Fala sério? -perguntou Filey.

-Nunca como agora.

-Então, santo Deus, tomo-lhe a palavra! A corrida ocorrerá daqui a uma semana, sobre um percurso que se decidirá posteriormente. De acordo?

-De acordo -assentiu Ravenscar.

O senhor Kennet, que tinha estado seguindo a discussão com grande interesse, disse:

-Ah, e agora, cavalheiros, vamos redigir a aposta! Garçom, traga o livro de apostas!

O senhor de Ravenscar olhou a miss Grantham franzindo os lábios.

-De maneira que até tem um livro de apostas! -observou-. Pensa em tudo, não é assim, madame?

Capítulo III


Tendo-se negado a arriscar seus ganhos em seu jogo favorito, o senhor de Ravenscar abandonou o estabelecimento de lady Bellingham, enquanto seu jovem parente seguia ocupando a mesa de Faraó . No momento de colocar-se seu abrigo castanho surpreendeu-se com a chegada de lord Ormskirk, que descia lentamente a escada brincando com o monóculo entre seus pálidos dedos.

-Ah, meu querido Ravenscar! -disse sua senhoria arqueando suas finas sobrancelhas-. Para você também está algo tedioso! Meu chapéu, Wantage; minha capa! Se vai na minha direção estou seguro de que me honrará com sua companhia. Minha bengala, Wantage!

-Sim, o acompanharei com muito prazer -disse o senhor de Ravenscar.

-Muito amável de sua parte, meu querido amigo! Não acha o ar noturno (bom, o da manhã) reconfortante?

-Tremendamente -disse o senhor de Ravenscar.

Sua senhoria sorriu, e saiu do estabelecimento ajustando umas elegantes luvas cinzas. Surgiu um criado com sua tocha resplandecente, oferecendo uma cadeirinha ou um condutor.

-Iremos andando -disse Ravenscar.

Acabavam de dar as quatro horas e no céu apontava uma pálida luz fantasmagórica. Iluminou a praça silenciosa o suficiente para que os dois homens vissem seu caminho. Dirigiram-se para o norte e começaram a atravessar a praça em direção a York Street. Um par de guias sonolentos acordou para oferecer seus serviços. Uma voz melancólica apregoava a hora, indicando que o vigilante estava longe, mas este era aparentemente o único sinal de vida nas ruas.

-Recordo uma época -observou Ormskirk com má vontade - que era muito perigoso percorrer a cidade à noite. Se jogava com a vida.

-Rufiões? -perguntou o senhor de Ravenscar.

-Que indivíduos tão selvagens e dsapiedados! -suspirou sua senhoria.

-Hoje em dia estas coisas não acontecem, ainda que ouvi dizer que os salteadores nos caminhos estão criando bastante problemas. Assaltaram-no alguma vez, Ravenscar?

-Numa ocasião.

-Estou certo que demonstrou sua coragem -sorriu Ormskirk-. Sua destreza no boxe é admirável.

Realmente, esse desporto nunca me chegou a interessar. Lembro que em certa ocasião me vi obrigado a presenciar um combate numa charneca em Down (na realidade não consigo me lembrar); tudo me parecia tão tremendamente longínquo, só o barro me deixou impressão na minha memória! Tinha um ser escorregadio com um desagradável nariz a quem todos pareciam concordar em exaltar. Sim, era nada menos que o Grande Mendoza: você não pode imaginar até que grau chegava a minha indiferença! Seu rival era um indivíduo chamado Humphries que, surpreendentemente, ostentava o título de gentleman. Não recordo o resultado, provavelmente fiquei dormido. Foi todo muito sangrento e rude, e o aroma do populacho, considerando tudo o que podia trazer esse desagradável vento leste, era sumamente penetrante. Mas devo estar falando com um dos admiradores de Mendoza!

-Fui seu discípulo -replicou Ravenscar-. Suponho que não decidiu voltar para casa comigo unicamente para falar de boxe. Falemos claro, milord. Que deseja de mim?

Ormskirk fez um gesto de desaprovação.

-Que brusquidão, meu querido Ravenscar! O fato de passear com você indica um sentimento de simples amizade!

O senhor de Ravenscar riu.

-A seu serviço, milord!

-Não, por favor! -murmurou sua senhoria-. Dispunha-me a propor-lhe (em prova das minhas amistosas intenções, é claro) que a retirada de seu jovem e impetuoso primo seria muito conveniente. Estou certo de que me compreende perfeitamente.

-Sim -respondeu Ravenscar com bastante frieza.

-Agora, rogo que não interprete mal minhas intenções! -disse-lhe sua senhoria-. Tenho razões para suspeitar que sua visita ao acolhedor estabelecimento de lady Bellingham foi levada a cabo precisamente com esta intenção. Goza você de todas minhas simpatias; na verdade seria bastante lamentável ver como se põem a perder um jovem tão promissor! Da minha parte, não tenho nenhuma intenção de lhe ocultar, querido amigo, que acho que seu primo está demais.

O senhor de Ravenscar assentiu.

-Que significado tem essa mulher para você, Ormskirk? -perguntou com brusquidão.

-Digamos que albergo esperanças não de todo infundadas -sugeriu sua senhoria suavemente.

-Desejo-lhe sorte em sua determinação.

-Obrigado, Ravenscar, obrigado! Estava convencido de que teríamos a mesma opinião sobre isso, ainda que não concordássemos em outros assuntos. Dou-lhe minha palavra de que, apesar de sua inexperiência, me veria obrigado a afastá-lo do meu caminho.

-Sou consciente disso -disse o senhor de Ravenscar, ao mesmo tempo em que sua voz uniforme adotava um tom ligeiramente desagradável-. Serei franco, Ormskirk! Consentiria que mandasse açoitar meu primo, se isto servisse a qualquer um dos nossos propósitos; mas se desafiá-lo, estará acabado! Não me deterei por nada para levá-lo à ruína total. Creia-me, já que nunca falei mais sério em toda minha vida!

Teve um momento de silêncio. Ambos se detiveram e olharam cara a cara. Não tinha luz suficiente para que Ravenscar apreciasse a expressão de sua senhoria, mas acreditou ver que sua esbelta figura ficara tenso sob a camada que o envolvia. Então Ormskirk rompeu o silêncio com um suave riso.

-Mas, querido Ravenscar -objetou- qualquer um pensaria que tenta me provocar!

-Se deseja pensar assim, milord.

-Não, não! -disse sua senhoria suavemente-. Isso não conviria aos nossos propósitos, querido amigo. Temo que você seja muito impetuoso. Ao contrário, asseguro-lhe que sou o ser mais pacífico do mundo! Ponhamos fim a este... temo que teremos de chamar de discussão! Estamos de acordo que ambos desejamos atingir os mesmos objetivos. Pergunto se você está consciente de que seu impulsivo primo pediu em casamento à dama em questão.

-Assim é. Essa foi a razão que me levou a ver a sedutora em pessoa.

Lord Ormskirk suspirou.

-Deu você com o mot juste, como sempre, querido Ravenscar. Realmente encantadora, não é assim? Tem, como terá você percebido, certa frescura tremendamente sugestiva para um paladar cansado.

-Cumprirá à perfeição o papel que lhe atribuiu -disse Ravenscar com um gesto de ironia.

-Sem dúvida. Mas estes jovenzinhos têm umas idéias tão românticas! E você, Ravenscar, concordará em considerar o casamento como um chamariz muito atraente! Não pode negar que é um chamariz!

-Especialmente se vai acompanhado de um título e de fortuna -acrescentou Ravenscar bruscamente.

-Estava certo de que nos compreenderíamos bastante bem -disse sua senhoria-. Estou convencido de que se poderá solucionar o assunto satisfatoriamente para ambas as partes. Teria sido diferente se estivessem em jogo os sentimentos da preciosa criatura. Suponho que nesse caso não teria tido mais remédio que renunciar as minhas aspirações um tanto desconcertado! Ela tem o seu orgulho: é pouco prático, mas afinal de contas o tem. Mas acho que este não é o caso.

-Por Deus! O amor não tem nada que ver com isto! -disse Ravenscar com desprezo-. O que admito é que existe uma grande ambição.

-E por que teríamos de culpá-la? -disse sua senhoria afavelmente-. Compreendo-a neste assunto.

Que pena não ser jovem, solteiro e tolo! Um dia fui tanto jovem como solteiro, mas nunca, que eu recorde, um tolo.

-Adrian é as três coisas -disse o senhor de Ravenscar sem consideração -. Eu, por outro lado, sou solteiro mas nem jovem nem tolo. Por esta razão, Ormskirk, não tenho o propósito de discutir o assunto com meu primo, nem de tentar afastá-lo da companhia da dama. As fanfarronadas de um jovenzinho na inquietude de sua primeira aventura amorosa estão totalmente desprovidas de interesse para mim e, apesar de não me destacar pela minha imaginação, esta é suficientemente aguda para predizer os resultados de qualquer intervenção bem intencionada de minha parte. O

coup de grace corresponde à própria miss Grantham.

-Fantástico! -sussurrou sua senhoria-. Surpreende-me a similitude de nossas opiniões, Ravenscar.

Como poderá imaginar, essa possibilidade já me tinha ocorrido. Em fim, para ser-lhe franco, considero totalmente providencial sua intervenção em nossa pequena cena! Confio que você me exima da necessidade de recorrer ao emprego de uma arma desagradável. Meu instinto me leva a pensar que você tem a intenção de oferecer à divina Deborah dinheiro para que abandone suas pretensões à mão de seu primo.

-A julgar pelo estilo do estabelecimento, sua idéia de uma recompensa adequada não coincidirá provavelmente com a minha -disse o senhor de Ravenscar.

-Mas as aparências são tão frequentemente enganosas -disse suavemente sua senhoria-. A tia (certamente uma mulher admirável!) não foi agraciada com aquelas qualidades que desfrutam outras damas da mesma condição. Suas idéias, que são encantadoramente pródigas, excluem a possibilidade de explorar o estabelecimento obtendo um benefício, no sentido vulgar do termo.

Numa palavra, meu querido Ravenscar, a economia de sua senhoria não está precisamente num bom momento.

-Suponho que está bem informado -disse o senhor de Ravenscar.

-Ninguém poderia estar melhor do que eu -contestou Ormskirk-. Veja, tenho uma hipoteca sobre o estabelecimento. Num desses momentos de generosidade, com os que sem dúvida está familiarizado, eu me fiz credor de algumas das dívidas mais urgentes de sua senhoria.

-Essa -disse o senhor de Ravenscar- é uma forma de generosidade que nunca havia me inclinado até agora.

-Considerei-o como um investimento -precisou sua senhoria-. Arriscado, é claro, mas não sem a promessa de um considerável benefício.

-Se possui promissórias de lady Bellingham, não parece estar precisando de minha ajuda -disse o senhor de Ravenscar bruscamente-. Faça uso delas!

Uma nota de pesar invadiu a suave voz de sua senhoria.

-Querido amigo! Temo que já não estamos de acordo. Rogo-lhe que pare para pensar um momento! Você apreciará sem dúvida a enorme diferença que existe entre a entrega por, digamos, gratidão e a rendição a que nos vemos obrigados a chamar force majeure.

-Em qualquer caso você se encontra na posição de um canalha -replicou ofensivamente o senhor de Ravenscar-. Prefiro uma aproximação mais direta.

-Mas, desgraçadamente, quando alguém considera a si mesmo um cavalheiro -assinalou Ormskirk-. É triste, e às vezes molesto, mas este se vê obrigado a recordar que é um cavalheiro.

-Deixe-me ver se o entendo, Ormskirk! -disse o senhor de Ravenscar-. Já que seu sentido da honra é demasiado sensível para utilizar as dívidas da garota como ameaça ou suborno, ou como queira você o chamar, considera ao contrário oportuno que outra pessoa (eu, por exemplo) solucione o assunto em seu lugar.

Lord Ormskirk deu uns quantos passos ao lado do senhor de Ravenscar antes de contestar com seriedade.

-Freqüentemente tenho deplorado a tendência que existe hoje em dia de se empregar na conversa cortês certa crueza, uma violência que é ofensiva a pessoas de minha geração. Você, Ravenscar, prefere os punhos à espada. Meu caso é outro. Creia-me, sempre é um erro o pôr demasiado ardor nas palavras.

-Talvez não lhe soe bem a linguagem atual? -respondeu com mordacidade Ravenscar-.

Permita-me que o tranqüilize! Meu primo não se casará com miss Grantham.

Sua senhoria suspirou.

-Estou certo de que posso confiar em você, meu querido amigo. Não há nenhuma necessidade de se prosseguir com este tema. Alguém jogou uma ou duas partidas de Piquet com a divina Deborah!

Ouvi dizer que é notável sua habilidade no jogo. Mas acho que você joga em Brooks's. Que mausoléu! Pergunto-me o que o leva a freqüentá-lo. Tem de conceder-me a honra de cear em minha casa uma noite, e de me dar a oportunidade de comprovar sua destreza. Não me considero precisamente um inexperiente, sabe?

Já tinham chegado a Grosvenor Square, onde também estava situada a casa de sua senhoria.

Ormskirk deteve-se ante ela e disse pensativamente:

-A propósito, meu querido Ravenscar, você sabia que Filey comprou os dois puro-sangue castanhos mais belos que vi em minha vida?

-Não -disse Ravenscar com indiferença-. Supunha que tinha comprado um casal melhor que o que apresentou contra meus tordilhos faz seis meses.

-Que sang-froid tão admirável tem você! -observou sua senhoria-. Acho encantador, realmente encantador! Então você confiava em ganhar sem ter visto a parelha com quem ia competir!

-Não sei nada dos cavalos de Filey -respondeu Ravenscar-. No entanto, bastou-me com competir uma vez com ele para considerá-lo um condutor tremendamente vergonhoso.

-Quase convenceu-me a apostar em você, querido Ravenscar! Lembro que seu pai era um condutor notável -disse sua senhoria, rindo suavemente.

-Sim, o era; não é assim? -disse o senhor de Ravenscar-. Se a parelha de Filey é tão boa como diz você, poderá fazer uma aposta muito vantajosa-. Enquanto falava, tirou o chapéu e inclinou a cabeça em sinal de despedida, continuando o caminho para sua casa no outro extremo da praça.

Estava terminando o café da manhã, umas horas mais tarde, quando foi anunciada a chegada de lord Mablethorpe. Ainda se podia ver sobre a mesa algo de café, cerveja, restos de um lombo, e um presunto, que punham à vista o grande apetite do senhor de Ravenscar. Lord Mablethorpe, cujo aspecto era um tanto sonolento, fez uma careta ante o banquete, e exclamou:

-Como podes ser capaz, Max! E isso que ceaste a uma em ponto!

O senhor de Ravenscar, que estava vestido somente com uma camisa, uns calções, e um roupão de brocado de aspecto exótico lhe apontou uma cadeira situada em frente a ele.

-Senta e toma um pouco de cerveja, ou de café, ou do que acostumes tomar a estas horas-.

Dirigindo-se ao mordomo, que estava de pé junto a sua cadeira, disse -: Prepare o quarto da senhora de Ravenscar, e depois diga à senhora Dove que tenha pronto o Quarto Azul para miss Arabella. Creio recordar que a última vez que esteve aqui se apaixonou por ele. E tire as capas das cadeiras do salão! Se faltar algo mais, sem dúvida você saberá melhor que eu.

-Oh, vão vir tia Olivia e Arabella de Londres? -perguntou Adrian-. Fantástico! Faz meses que não vejo Arabella. Quando chegam?

-Hoje, de acordo com minhas últimas notícias. Venha cear conosco.

-Esta noite não posso -disse Adrian, enquanto um repentino rubor delatava-o -. Mas diga a Arabella que lhe farei uma visita amanhã mesmo.

O senhor de Ravenscar fez uma careta zombadora, despediu o mordomo e serviu-se de outra jarra de cerveja. Com esta na mão se acomodou numa cadeira e percorreu com a vista a mesa, até se deter no rosto ingênuo de seu primo.

-Bom, já que não vens cear esta noite, vêm amanhã conosco aos jardins de Vauxhall -sugeriu-. Eu acompanharei Arabella e Olivia. Há um baile ou alguma tolice desse tipo!

-Oh, obrigado! Sim, certamente ficarei encantado em ir! Isto é, se... Mas não creio... -Deteve-se com verdadeiro ar misterioso-. Alegro-me de tê-lo encontrado em casa. Tinha grande interesse em vê-lo.

-De que se trata? -perguntou Ravenscar.

-Na realidade, vim pedir-lhe um conselho -contestou Adrian precipitadamente-. Bom, não exatamente, já que estou decidido! Mas o caso é que minha mãe confia muito em sua opinião, e você sempre se portou muito bem comigo, pelo que pensei que deveria lhe pôr a par de minha situação.

O senhor de Ravenscar não tinha vontade de ouvir o relato da paixão que sentia seu primo por miss Grantham, mas, no entanto disse:

-Diga-me! A propósito, irás ver minha corrida?

Esta pergunta conseguiu distrair lord Mablethorpe por um momento, e respondeu, alegrando-lhe o rosto:

-Oh, por Júpiter, certamente que sim! Mas que esperto é, Max! Por Deus, ouvi-lo fazer uma aposta como essa! Suponho que ganharás. Não há ninguém que o iguale no manejo das rédeas. Onde acontecerá?

-Oh, imagino que em Epsom! Deixei que Filey escolhesse o lugar.

-Que ser tão odioso! -disse Mablethorpe, franzindo o cenho-. Desejo que o venças.

-Bem, farei todo o possível. Irás a Newmarket no mês que vem?

-Sim. Não. Isto é, não estou certo. Mas não vim lhe falar disto!

O senhor de Ravenscar se resignou ante o inevitável, acomodou-se na cadeira e disse:

-Então, de que vieste me falar?

Lord Mablethorpe pegou um garfo e começou a traçar figuras com ele sobre a mesa.

-Não tinha intenção de te contar -confessou-. Não é meu tutor, apesar de tudo! Certamente, já sei que é um dos administradores de minha fortuna, mas isso é uma coisa bastante diferente não é assim?

-Oh, é claro! -assentiu Ravenscar.

-Queria dizer que não és responsável por nada do que eu faça -disse Adrian, insistindo no tema com verdadeiro desassossego.

-Assim é.

-Em qualquer caso, serei maior de idade dentro de um par de meses. Realmente, isto não interessa a ninguém!

-A ninguém em absoluto -disse Ravenscar, sem mostrar nenhum indício da inquietude que seu parente evidentemente esperava que sentisse-. Aliás o melhor que podes fazer é seguir seu próprio critério, e tomar um pouco de cerveja.

-Não, não quero -disse Adrian com certa impaciência-. Como disse não tinha nenhuma intenção de lhe contar. Mas como casualmente visitaste o estabelecimento de lady Bel ontem à noite, tiveste ocasião de a conhecer.

-No entanto, não troquei mais que meia dúzia de palavras com lady Bellingham.

-Não se trata de lady Bellingham! -disse Adrian, irritado ante semelhante estupidez-. Referia-me a miss Grantham!

-Ah, miss Grantham! Sim, certamente, estive jogando o Piquet com ela. E daí?

-Que impressão te causou, Max? -perguntou cautelosamente.

-Na realidade, não recordo que me causasse nenhuma impressão em especial. Por quê?

Adrian levantou a vista com indignação.

-Santo Deus! Ao menos a terás observado sem dúvida? Quão bela é!

-Bom, sim, suponho que é mediamente bonita! -admitiu Ravenscar.

-Mediamente bonita! -exclamou Adrian, não dando crédito a seus ouvidos.

-Sim, certamente, tendo em conta que já não é uma menina. Demasiadamente exuberante para meu gosto, provavelmente engordará com a idade, mas admito que seja uma mulher bem parecida.

Adrian posou o garfo e disse com o rosto inflamado:

-Mais vale que te diga sem rodeios, Max, que... tenho a intenção de casar-me com ela!

-Casar com miss Grantham? -disse Ravenscar arqueando as sobrancelhas-. Mas meu querido rapaz, por quê?

Esta forma tão lacônica de receber notícias tão alarmantes era muito desalentadora para um jovem que tinha se armado de coragem para enfrentar uma violenta oposição, e por um momento Adrian não soube o que dizer. Depois de uma breve pausa, exclamou com grande dignidade:

-A amo.

-Que estranho! -disse Ravenscar, aparentemente perplexo.

-Não encontro nada estranho em isso!

-Não, claro que não. Por que terias que fazê-lo? Mas sem dúvida, alguém mais perto da sua idade...

-A diferença de idades não tem nenhuma importância, em absoluto. Falas como se Deb estivesse com trinta!

-Rogo que me desculpes.

Adrian observou-o com considerável aborrecimento.

-Tomei uma decisão irrevogável, Max. Nunca amarei a outra mulher. Quando a vi soube que para mim era a única no mundo! Certamente, não espero que compreendas, já que és o indivíduo mais frio... bom, quero dizer que, nunca o vi apaixonado!

Ravenscar riu-se.

-Bom, não como eu entendo -retificou sua senhoria.

-Evidentemente não. Mas que tem que ver tudo isto comigo?

-Nada em absoluto! -respondeu Adrian enfaticamente-. Só que, já que conheceu a Deb, pensei em dizer-lhe. Não desejo fazer nada escondido. Não me envergonho nem um pouco de amar a Deb!

-Seria muito estranho se assim fosse -observou Ravenscar-. Devo entender que miss Grantham aceitou tua oferta?

-Bom, não precisamente -confessou Adrian-. Isto é, estou certo de que se casará comigo, mas é a criatura mais deliciosamente caprichosa...! Oh, não sei como explicar, mas quando a conhecer mais poderá ver por si mesmo!

-Que quer dizer com isso de «não precisamente»? -perguntou Ravenscar deixando sua jarra.

-Oh, diz que devo esperar ser maior de idade antes de tomar uma decisão... como se alguma vez pudesse me arrepender dela! Não queria que eu dissesse nada ainda, mas alguém contou a minha mãe que eu tinha sido apanhado (apanhado!) por ela, e portanto tudo se descobriu. E esta é a causa, em parte, de que tenha vindo te ver, Max.

-Ah, sim?

-Minha mãe te escutará -disse Adrian confiadamente-. Veja, meteu na cabeça a absurda idéia de que Deb não está a minha altura! É claro, compreendo que sua presença no estabelecimento de lady Bel é uma circunstância sumamente desafortunada, mas não é de forma alguma o tipo de garota que imaginas, Max. Dou-lhe minha palavra de que não o é! Nem sequer é muito fanática pelas cartas! Faz tudo isso para ajudar a sua tia.

-Ela lhe contou?

-Oh não, quem me contou foi o senhor Kennet! Conhece-a desde que era uma menina. Para valer, Max, é a pessoa mais encantadora, mais doce... oh, não existem palavras para a descrever!

O senhor de Ravenscar poderia ter encontrado várias, mas absteve-se de fazê-lo.

-Não conheci nenhuma mulher como ela -continuou sua senhoria-. Estranha-me que não lhe chamasse atenção!

-Bem, eu conheci muito mais mulheres que você tenha tido tempo de conhecer -disse Ravenscar como desculpa-. Talvez isto o explique tudo.

-Sim, mas eu havia pensado que até você... no entanto, isso é algo que não se pode explicar! O que quero que compreenda Max, é que estou disposto a me casar com Deb, sem levar em conta a opinião dos demais!

-Muito bem, e agora que o compreendo, que esperas que eu faça?

-Bem, Max, pensei que me seria mais fácil falar contigo que com minha mãe. Já sabes como é ela.

Simplesmente porque Deb dirige uma casa de jogo, nega-se a escutar qualquer palavra do que digo! É uma injustiça monstruosa! Não é culpa de Deb se ver obrigada a ser amável com homens como Filey ou Ormskirk: não tem remédio senão fazê-lo! Oh, não posso esperar o momento de afastá-la de tudo isto!

-Já vejo -disse Ravenscar-. Devo admitir que me pegou desprevenido. Sem dúvida estava equivocado, mas teria jurado que a dama favorecia mais o galanteio de Ormskirk que o teu.

Esta observação perturbou Adrian.

-Não, não, não entendeste nada! Isso é precisamente o que me preocupa. Em resumo, lady Bel contraiu um compromisso com Ormskirk (um compromisso de caráter econômico, sabes) e Deb não se atreve desagradá-lo. É uma situação insuportável para ela! Se pudesse dispor de minha fortuna agora mesmo poria fim a isto de imediato!

Ravenscar não teve nenhuma dificuldade de acreditá-lo, e só pôde se alegrar de que ainda tinham de decorrer dois meses até a maioridade de seu primo.

-Posso perguntar se tua fonte de informação volta a ser o senhor Kennet? -perguntou.

-Oh, sim! Deb nega-se a falar de isto! Mas Kennet conhece todos os pormenores.

-Miss Grantham é realmente afortunada por poder contar com um amigo tão fervoroso -observou o senhor de Ravenscar com ironia.

-Bom, sim, suponho que sim? exceto que... bom, não é exatamente o tipo de pessoa que... Mas todo isso mudará quando estivermos casados!

-Suponho que não será necessário perguntar se miss Grantham procede de uma família respeitável

-inquiriu Ravenscar, num tom direto.

-Oh, sim, os Grantham estão aparentados com Amberley, creio. São primos ou algo assim. Não disponho de uma informação muito detalhada. O pai de Deb era militar, mas arruinou-se. -Lord Mablethorpe levantou a vista com um encantador sorriso-. Bem, na verdade é que devia ser um jogador. Nasceu numa família respeitável, mas tudo me leva a achar que ele não o era precisamente. Mas apesar de tudo está morto; e não se pode culpar Deb por seus pecados. Existe também um irmão. Ainda não tive a ocasião de conhecê-lo, mas pelo visto vai vir de licença: está designado em algum lugar do sul. Também é militar, e estudou em Harrow; pelo que podes ver, não há nada que objetar. -Deteve-se, esperando a que seu primo fizesse algum comentário. No entanto, Ravenscar não disse nada. Sua senhoria aspirou com força-. E agora que eu lhe expliquei, Max, desejaria que... isto é, ficaria eternamente agradecido se falar com minha mãe.

-Eu? -disse Ravenscar-. Que desejaria que lhe dissesse?

-Bom, pensei que a faria ver que não é uma união tão terrível, apesar de tudo!

-Não, não acho que possa fazer isso -contestou Ravenscar-. Duvido que alguém possa fazêlo.

-Mas, Max...

-Eu em teu lugar esperaria ser maior de idade.

-Mas se conseguisse que mamãe desse seu consentimento, eu não teria que esperar! E deve-se levar em conta esse indivíduo, Ormskirk! Quero que mamãe dê sua aprovação para que Deb não tenha nenhuma reserva. Então poderia-se anunciar nosso compromisso, e certamente não existiria inconveniente algum em me adiantar parte de minha fortuna.

-Impossível!

-Mas, Max, se você e o tio Julius concordassem com isso?

-E o que o faz supor que o faríamos?

-Mas tenho te explicado tudo! -disse sua senhoria com inquietude.

O senhor de Ravenscar levantou-se e esticou suas longas pernas.

-Espera a ser maior de idade -disse- e então poderás fazer o que quiser.

-Não pensei que você fosse se comportar desta forma tão mesquinha! -exclamou Adrian.

Ravenscar sorriu.

-Mas sem dúvida sabe que sou horrivelmente mesquinho.

-Não é teu dinheiro -murmurou Adrian entre dentes-. Imagino que no fundo é igual a mamãe e que não deseja que me case com Deb!

-Não lhe ocultarei que não me entusiasma esse compromisso. Será melhor que vás a teu tio Julius.

-Sabes perfeitamente que faz igual a mamãe! Contava com tua ajuda para convencer a mamãe!

Sempre confiei em você! Não podia imaginar que me abandonarias no assunto mais importante de minha vida!

Ravenscar rodeou a mesa e pousou uma mão sobre o ombro de seu primo, segurando-o por um momento.

-Acredite, não tenho a intenção de abandoná-lo -disse-. Mas tem paciência! e agora vou pegar meus tordilhos e fazer exercício. Acompanhe-me!

A resposta de Adrian demonstrava até que ponto o obsedava seu amor por Deb. Movendo a cabeça desconsoladamente disse:

-Não, acho que não irei. Agora mesmo não estou com humor. Está na hora de partir. Se conhecesses melhor a Deb cedo mudarias de opinião!

-Então devias desejar que se produza um maior conhecimento mútuo -disse Ravenscar, se dirigindo para a lareira e fazendo soar a campainha que se achava junto a ela.

Adrian levantou-se.

-Estou decidido a casar-me com ela apesar de tudo! -disse desafiante.

Ravenscar acompanhou-o até o vestíbulo.

-Não deixes de fazê-lo, se continuares pensando o mesmo dentro de dois meses. A propósito, transmite minhas mais cordiais saudações a minha tia.

-Acredito que não lhe contarei que estive com você -replicou Adrian, com voz de colegial contrariado.

-Isso me servirá de lição -disse seu primo.

Geralmente a Adrian não lhe durava o enfado mais que uns poucos minutos. Sorrindo de má vontade conseguiu que desaparecesse seu gesto de contrariedade.

-Oh, maldito sejas, Max! -disse ao sair.

O senhor de Ravenscar voltou à sala onde estava o café da manhã e ficou de pé por um instante, com o braço apoiado sobre a cornija da lareira, olhando fixamente pela janela. Não tinha um conceito muito elevado de miss Grantham e, enquanto pensava nela, sua expressão se tornou um tanto desagradável. «Que astúcia a dessa mulher ao fazer que o oportuno senhor Kennet contasse sua patética história a Adrian! Então não queria que anunciasse seu compromisso até que fosse maior de idade? Bom, isso também era muito hábil, por sua vez, mas não o suficiente. “Miss Grantham ia ter a honra de medir suas forças com certo Max Ravenscar, e talvez aprendesse algo do encontro.»

-Chamou, milord?

O senhor de Ravenscar voltou a cabeça.

-Sim, chamei. Avise às cocheiras, por favor, que os tordilhos estejam preparados em meia hora.


Capítulo IV


Miss Grantham esteve dormindo até tarde naquela manhã, e quando abandonou seu quarto eram já passavam das onze. Os criados, com aventais de feltro verde e em mangas de camisa, estavam ainda varrendo e tirando o pó dos salões, e miss Grantham não demorou muito em encontrar a sua tia em uma bata, sentada ante uma mesa sobre a qual seus objetos de toucador se misturavam com faturas, cartas, plumas, tinta e biscoitos.

Lady Bellingham tinha sido uma mulher muito bonita em sua juventude, mas já não exsitiam quase vestígios em seu rosto roliço que permitissem reconhecer sua anterior beleza. Uma cútis, que algum dia foi de porcelana estava agora arruinado pelos cosméticos, tinham aparecido olheiras sob seus olhos azul pálido, suas faces estavam flácidas, e não se podia dizer que uma peruca dourada fosse o que mais a favorecesse.

Ainda existiam restos de pós para o cabelo sobre esta estrutura, mas tinham desaparecido as horrendas plumas da noite anterior, e em seu lugar se encontrava uma touca rendado, com laços de cor lilás amarrados sob seu queixo murcho. Sua corpulenta figura estava envolvida numa volumosa bata cheia de dobras e laços, e levava além disso um longo xale de Paisley que continuamente caía de seus ombros, embaraçando suas franjas com os pregadores de cabelo e pentes espalhados pelo tocador.

Quando sua sobrinha entrou no quarto, alçou a vista, e disse com voz perturbada:

-Oh, querida, ainda bem que estás aqui! Estou tão aflita! Sem dúvida estamos na ruína!

Miss Grantham, que estava muito bonita com um vestido estampado e penteada singelamente, se inclinou para lhe dar um beijo na face.

-Oh não! Não diga essas coisas! Eu tive graves perdas ontem à noite.

-Lucius comunicou-me que tinhas perdido seiscentas libras -disse lady Bellingham-. Bom, isso é algo que já não tem remédio, mas, por que se negou o senhor de Ravenscar a jogar o Faraó ? Que aborrecida é essa gente às vezes! Querida, não há nada pior que a situação na qual nos encontramos. Olhe esta fatura de Priddy's! Doze dúzias de vinho do Rhin seleto a trinta xelins a dúzia, e isso que é uma droga infecta! O mesmo de clarete, colheita escolhida, a quarenta e dois xelins a dúzia (um autêntico roubo!). O mesmo de champanhe branco, a setenta xelins (é inconcebível como foram capazes de beber a metade, e Mortimer já veio a me dizer que logo precisaremos de mais!).

Miss Grantham sentou-se e pegou a fatura do Almacén de Produtos Exóticos e Bodegas Priddy.

-Certamente parece exorbitante -assentiu-. Acha que deveríamos comprar um vinho mais barato?

-Impossível! -disse Lady Bellingham, mordaz-. Sabe perfeitamente o que diz todo mundo dessa droga que a tal senhora Hobart oferece a seus clientes! Mas isto não é o pior! Onde estará essa odiosa fatura de carvão? Estamos pagando a tonelada a quarenta e quatro xelins, Deb, e isso que não é tudo! Depois está a fatura dos carroceiros. (Aqui está! Não, não é essa.) Setenta libras por ervilhas frescas: não parece muito justo, não acredita, querida? Parece que nos estão roubando, mas que podemos fazer? Que é isto? Velas, 50 libras, e isto só para seis meses! Se soubesse, não teria acendido as de cera na cozinha. Onde está isso? Oh, tive-o na mão o tempo todo! E agora escuta, Deb! Setecentas libras pelos baios e por um novo birlocho 5! Bom, não imagino de onde tiraremos o dinheiro. Parece uma soma exorbitante.

-Poderíamos prescindir dos baios e alugar um par de cavalos -sugeriu miss Grantham com indecisão.

-Não posso viver na miséria, nem estou disposta a fazê-lo! -declarou sua tia com voz chorosa.

Miss Grantham começou a juntar as faturas e a ordená-las.

-Eu sei. Seria horrível, mas nos veríamos livres destas importunas faturas de reparos. Que é isto de ferro K. Q., tia Lizzie?

-Não tenho nem idéia, querida. Talvez utilizamos isso também?

-Bom, aqui diz, uma barra de ferro K. Q. de primeira qualidade, oh, era para o eixo de uma roda!

-Isso era imprescindível -disse lady Bellingham aliviada-. Mas quando o preço de umas librés que têm a cor mais horrível que vi em minha vida e que não são nem ao menos o que eu queria, ascende a oitenta libras, me parece um verdadeiro abuso!

Miss Grantham alçou a vista com uma expressão de incredulidade.

-Tia, é verdade que pagamos quatrocentas libras por um palco na ópera?

-Temo que sim. É tudo pelo estilo! Estou convencida de que não o usamos mais de três vezes em toda a temporada.

-Teremos que renunciar a ele -disse miss Grantham com firmeza.

-Deb, rogo que sejas sensata! Quando o pobre sir Edward estava vivo, sempre tivemos um palco na ópera. Todo mundo tinha!

-Mas sir Edward está morto a doze anos, tia -observou miss Grantham.

Lady Bellingham secou suas lágrimas com um delicado lenço.

-Ai de mim, sou uma pobre viúva indefesa a quem todos se deleitam em enganar! Mas nego-me a prescindir de meu palco na ópera!

Ao que parece não tinha nada mais que falar sobre o tema. Miss Grantham tinha feito outro achado, ainda mais alarmante.

-Oh, tia! -disse, alçando o olhar aflito para o monte de faturas-. Dez metros de tafetá verde italiano! Era para aquele vestido que descartei, porque não me favorecia!

-Bom, e que outra coisa se pode fazer com os vestidos que não lhe sentam bem? -perguntou sua tia razoavelmente.

-Ao menos poderia me avisar! Ao contrário, compramos todo esse cetim (me refiro ao colorido), e o mandamos fazer!

-Nunca tiveste um vestido que te favorecesse tanto, Deb, -disse sua senhoria recordando-lhe-.

Usava-o no primeiro dia que Mablethorpe te viu.


5 Carro de duas rodas puxado por um cavalo, leve e fácil de manobrar.

Produziu-se uma breve pausa. Miss Grantham olhou a sua tia de forma perturbada, e juntou as faturas que tinha na mão.

-Suponho -disse lady Bellingham com cautela- que não estarias disposta a...

-Não -disse Deborah.

-Não -repetiu lady Bellingham, com um profundo suspiro-. Só que seria uma união tão maravilhosa, e os credores não me importunariam se soubessem que é a noiva de Mablethorpe!

-Ainda não completou os vinte e um anos.

-É verdade, querida, mas sente tal devoção por você!

-Sou seu amor de juventude. Não se casará com uma mulher que procede de uma casa de jogo.

O rosto de lady Bellingham adquiriu uma expressão comovedora.

-O fiz com minha melhor intenção! É verdade que nos põe numa situação delicada, mas como iria me arranjar? E minhas partidas de cartas tiveram sempre tanta aceitação, (cheguei a ser muito célebre graças a elas!), que me pareceu uma medida muito acertada. Mas desde que compramos esta casa nossos gastos parecem ter ascendido com tanta rapidez que asseguro que não sei o que vai ser de nós. E é preciso ter em conta o nosso querido Kit! Esqueci-me de dizer, querida. Tenho uma carta sua em alguma parte (bom, não tem importância, provavelmente a terei perdido). Mas o caso é que meu querido rapaz opina que estaria mais satisfeito num regimento de cavalaria, e gostaria de transferir-se.

-Transferir-se! -exclamou sua irmã, estupefata-. Suponho que pelo menos custariam setecentas ou oitocentas libras!

-É muito provável -disse lady Bellingham com desalento-. Mas não podes negar que lhe sentaria maravilhosamente o uniforme de husardo, e nunca me agradou que estivesse nesse horrível regimento de infantaria. A única coisa é que não sei de onde obteríamos o dinheiro!

-Kit não pode se transferir. Seria insensato! Deve fazer-lhe ver que é impossível.

-Mas prometi ao pobre Wilfred que sempre cuidaria de seus pequenos! -disse lady Bellingham tragicamente.

-Assim o fez, minha querida tia Lizzie -disse Deborah carinhosamente-. Não fomos mais que um pesado ônus para você!

-Estou certa de que ninguém teve jamais uns sobrinhos tão bons. E se não aceitas Mablethorpe, estou convencida de que cedo encontrarás um pretendente mais rico!

Miss Grantham contemplou suas delicadas mãos.

-Lord Ormskirk tem estado fazendo proposições muito precisas, tia.

Lady Bellingham pegou a borla de pós e começou a empoar-se o rosto com agitação.

-Vês! Se aceitasse a oferta de Mablethorpe terminaríamos com as aspirações de Ormskirk! Não posso negar, Deb, que a esse respeito nos encontramos numa situação muito embaraçosa. Por Deus, não contraries esse homem! Seria capaz de mandar-nos para a prisão por dívidas num abrir e fechar de olhos!

-Quanto dinheiro devemos a Ormskirk? -perguntou Deborah, levantando seu olhar claro até encontrar-se com a de sua tia.

-Querida, não me perguntes! Os números nunca foram meu forte! Em primeiro lugar existeessa odiosa hipoteca sobre a casa. Fui enganada! Contava com que ganharíamos muito dinheiro nos instalando num estabelecimento elegante. Mas com ervilhas frescas, dois jantares grátis todas as noites, sem mencionar todo esse clarete e champanhe, além de que fizeram saltar a banca de Faraó duas vezes numa semana, estou convencida de que é um milagre que ainda possamos abrir nossas portas! E se fosse pouco, querida, puseste a jogar Piquet com Ravenscar; não é que te reprove, estou certa de que fizeste bem, e se conseguimos persuadi-lo para que prove sua sorte no Faraó , terá valido a pena. Pareceu que estava satisfeito, querida?

-Não o sei -contestou Deborah com ingenuidade-. É um indivíduo estranho. Tive a sensação de que não lhe agradava, mas decidiu jogar comigo durante toda a noite.

Lady Bellingham depositou a borla de pós sobre a mesa, e voltou-se para sua sobrinha com uma expressão radiante.

-Acha que chegará a pedir tua mão, Deb? Oh, se isso sucedesse...! Asseguro que me morreria de alegria! É o homem mais rico de Londres. Agora bem, por favor, suplico que não lhe tomes uma de tuas antipatias! Pensa por um momento que nossos problemas se resolveriam!

Deborah não pôde reprimir uma gargalhada, mas ao mesmo tempo moveu a cabeça e disse:

-Querida tia, estou certa de que ao senhor de Ravenscar não se lhe passou essa idéia pela cabeça!

Desejaria que não pensasses tanto em meu casamento. Duvido que tenha nascido para me vestir de branco.

-Não diga isso, Deb! És tão bonita que até Ormskirk pôs seus olhos em você. E não é que eu deseje que te convertas em sua amante, já que estou scerta que não é o que seu pai teria desejado para você em absoluto, além de a colocar numa situação embaraçosa e de descartar todas as possibilidades de conseguir um bom partido. Só que terás que escolher entre Ormskirk e o casamento.

-Que disparate! Guarde todas essas faturas e as esqueça. É verdade que tivemos uma maré de má sorte, e além disso fomos enormemente pródigas, mas nos recuperaremos, confie em mim!

-Certamente não o conseguiremos com musselina indiana a dez xelins a peça e palha de trigo para as cocheiras a uma coroa a braçada (ou como queira que se chame essa medida) -disse lady Bellingham com tristeza.

-Palha de trigo? -perguntou miss Grantham franzindo o cenho.

-Para as cocheiras -precisou sua tia com um profundo suspiro.

Miss Grantham adquiriu consciência da gravidade do assunto, e uma vez mais inclinou sua cabeça sobre as faturas que tinha na mão. Após examiná-las minuciosamente, disse com desalento:

-Minha querida senhora, nunca comemos nesta casa outra coisa que salmão e frango?

-Na semana passada tomamos jarrete de vitela e focinho de porco fervido -contestou lady Bellingham pensativa-. Isso foi para nossa comida, mas não poderíamos servi-los nos jantares, querida.

-Não -conveio miss Grantham de má vontade-. Talvez não devêssemos servir dois jantares todas as noites.

-Tudo o que seja mesquinho me repugna! -disse sua tia com firmeza-. Sir Edward não o teria consentido.

-Mas me atreveria a afirmar que também não teria consentido que você administrasse uma casa de jogo! -observou Deborah.

-Seguramente não, querida. Asseguro-te que não é o tipo de ocupação à que me dedicaria se tivesse possibilidade de escolha; mas se Ned não desejava que o fizesse, não deveria ter morrido de forma tão desconsiderada -disse lady Bellingham.

Miss Grantham abandonou este tema de conversa e continuou examinando as faturas. Artigos tais como sabão de Nápoles, meias de seda, escova de dentes indiana e ataduras de tela de algodão ascendiam a uma quantidade bastante alarmante; enquanto uma fatura de Warren's, a perfumaria, e outra de uma costureira, que enumerava artigos tão necessários como um vestido matinal, de Paris, dois tocados soupir d'étouffes, e uma capa de cetim enfeitada com gaze Opera Brûlée, fizeram que se sentisse com a moral no chão. Mas estas faturas eram insignificantes comparadas com a impressionante lista de gastos de manutenção da casa, que evidentemente lady Bellingham tinha estado tentando calcular. A escritura desordenada de sua senhoria cobria várias folhas de papel prensado, onde se amontoavam numa desesperante desordem os salários dos criados, librés, velas, o açougueiro, vinhos e os impostos. Ao que parece, a manutenção da casa da praça de Saint James custava uma grande quantidade de dinheiro, e apesar de não ter nada que objetar do salário de quatro criados, sessenta libras, ao contrário dois garçons por vinte libras cada um, um encarregado por cinqüenta e cinco e o cocheiro por quarenta eram exorbitantes.

Miss Grantham dobrou estes papéis deprimentes e colocou-os embaixo do monte.

-Asseguro-te que estou disposta a viver com maior sobriedade -disse lady Bellingham-. Mas como poderás observar por ti mesma, Deb, é impossível! Seria diferente se gastasse o dinheiro em coisas inúteis.

-Suponho -disse Deborah, contemplando com desânimo a fatura do estofador - que não nos era realmente imprescindível estofar todas as cadeiras do salão de entrada de cetim amarelo claro.

-Não -admitiu lady Bellingham-. Acho que cometemos um engano. Não é nada duradouro, e tenho estado pensando se não teríamos que voltar a estofá-las de damasco púrpura. Que achas, querida?

-Acho que seria conveniente que não gastássemos mais dinheiro nelas até que melhore nossa sorte -disse Deborah.

-Bem, querida, neste tal caso isso nos trará uma poupança -disse sua senhoria com esperança-.

Mas, pensaste que se a sorte não muda...?

-Tem que mudar, e o fará! -disse Deborah com determinação.

-Asseguro que confio em que assim seja, mas não consigo imaginar como nos recuperaremos com as ervilhas a este preço, e você além disso jogando com Ravenscar o Piquet a dez xelins o ponto.

Miss Grantham inclinou a cabeça.

-Estou sinceramente arrependida -se desculpou-. Disse que voltaria para me conceder a revanche, mas talvez seja conveniente que invente uma desculpa.

-Não, não, isso não serviria de nada! Esperemos que cedo se interesse pelo Faraó , e tentaremos tirar o máximo partido. Mablethorpe enviou-lhe esta manhã uma cesta de rosas, querida.

-Já o sei -contestou Deborah-. Ormskirk mandou-me um ramo de cravos com um suporte de pedras preciosas. Tenho quase um armário cheio dos presentes que me deu. Gostaria de jogá-los em a sua cara pintada!

-E poderias fazê-lo, se decidisses pelo pobre Mablethorpe -observou sua tia-. Estou convencida de que seu temperamento é sumamente agradável, e que seria um parceiro extremamente afetuoso.

E quanto a sua maioridade, cedo a atingirá, e se estás pensando em sua mãe, não há necessidade de se preocupar já que, ainda que possa ser muito aborrecida, Selina Mablethorpe não tem mau coração.

-Não, não estava pensando nela -disse Deborah-. E nego-me a pensar em Adrian, rogo-lhe, tia!

Pode ser que eu seja uma das filhas do Faraó , mas não colocarei nenhuma armadilha para qualquer jovem infeliz para que se case comigo, ainda que minha negativa leve a prisão!

-Não te parece que Ormskirk seria preferível ao cárcere? -sugeriu lady Bellingham com desalento.

Deborah soltou uma gargalhada.

-Tia Lizzie, você é um ser totalmente chocante! Como podes chegar a dizer essas coisas?

-Bem, mas, querida sem dúvida numa prisão estará tão irremediavelmente perdida como sob a proteção de Ormskirk, e será muito menos agradável -disse sua senhoria razoavelmente-. Não é que eu deseje semelhante relação, te asseguro que não é assim, mas que outra coisa podemos fazer?

-Oh, tenho o estranho pressentimento de que algo acontecerá e solucionará tudo! Certamente que sim!

-Sim, querida -disse lady Bellingham, sem muitas esperanças-. Ambas tínhamos esse pressentimento quando apostamos quinhentos guinéus em Jack-Come-Tickle-Me nas corridas de Newmarket, mas não resultou como esperávamos.

-Bem -disse miss Grantham, arrojando todas as faturas numa das gavetas de uma pequena mesa que tinha junto à janela-. Estou disposta a apostar a favor do senhor de Ravenscar na corrida de carriolas com sir James Filey. Ele oferece uma vantagem de cinco a um.

-Que estás dizendo? -perguntou lady Bellingham-. É verdade que Lucius comentou algo a respeito de uma aposta absurda, mas não estava prestando atenção.

-Oh, sir James estava tão odioso como sempre, e parece que foi derrotado por Ravenscar numa corrida faz seis meses, e está ansioso em conseguir uma revanche. O caso é que Ravenscar se ofereceu para competir com ele quando e onde quisesse por uma aposta de cinco mil libras. E

como se isto fosse pouco, deu a Filey uma vantagem de cinco a um! Deve estar muito seguro de si mesmo.

-Mas isso são vinte e cinco mil libras! -exclamou lady Bellingham, que tinha estado fazendo contas com grande rapidez.

-Se perder!

-Nunca ouvi semelhante disparate! -afirmou sua senhoria-. Se pode se permitir o luxo de perder vinte e cinco mil libras, rogo que me expliques por que não pôde fazê-lo na banca de Faraó . Mas as coisas são assim! Os homens não têm a mínima consideração por qualquer coisa que não constitua sua própria satisfação! Bem, lembro que seu pai era um homem muito desagradável e egoísta, e provavelmente o filho é igual. Miss Grantham não contestou. Sua tia, descontente com seu aspecto, pegou um pote de ruge e começou a aplicar-se sem compaixão esta ajuda à beleza.

-É extremamente curioso -observou- mas todos os homens mais ricos são os seres mais odiosos que se possa imaginar! Pensa em Filey, e se fosse pouco, em Ravenscar!

-Deus meu, não irá comparar ao senhor de Ravenscar com esse patife! -exclamou miss Grantham ruborizando-se.

Lady Bellingham posou o pote de ruge.

-Deb, não me diga que se enrabichou por Ravenscar! -exclamou-. Seria tão maravilhoso que pedisse tua mão; mas tenho estado pensando, e não acho que dê nenhum resultado. Já chegou aos trinta e cinco e, que eu saiba, nunca pediu a uma mulher que se case com ele. Ademais, diz-se que é tremendamente tacanho, e isso não nos conviria em absoluto.

-Pedir minha mão? Claro que não o fará, nem eu aceitaria, acredite tia! Em quanto a enrabichar-me? bah, que disparate! Gostei que aceitasse sem vacilação a provocação de sir James, e porque se diferencia de todos esses homens, mas foi bastante descortês comigo sabe? Estou certa que me despreza por presidir as mesas de jogo. Não posso imaginar o que lhe terá trazido a nossa casa, ao menos que fosse para comprovar de que classe de harpia se tinha apaixonado seu primo.

-Deus meu! -suspirou lady Bellingham-. Suponho que seja essa a razão! Nos arrebatará o pobre Adrian e não teremos mais remédio além de recorrer a Ormskirk!

Miss Grantham riu.

-Por mim pode levá-lo, lhe asseguro, mas me pareceu um homem muito sensato, e sem dúvida terá podido apreciar que o jovenzinho não corre nenhum perigo nesta casa. Como, se nem sequer lhe permito que aposte um rolo a mais de dez guinéus de uma só vez!

-Não -disse sua senhoria pesarosa-. E não é em absoluto um jogador afortunado. Certamente, é uma pena, querida.

-Bem sabe você que não gosta depenar colegiais -disse Deborah, rodeando carinhosamente com o braço os ombros de sua tia.

Lady Bellingham deu-lhe a razão nisso, mas sem demasiada convicção. Um pequeno pajem negro arranhou a porta pedindo permissão para entrar, e anunciou a presença de Massa Kennet no andar de abaixo. Deborah beijou a sua tia, e aconselhou-a que não se preocupasse com as faturas, e saiu para se reunir com seu amigo de infância no pequeno quarto traseiro que tinha junto a sala de jantar.

Se os meios de vida de um soldado de fortuna eram o talento e o copo dos dados, o senhor de Ravenscar tinha definido corretamente ao senhor Lucius Kennet. Apesar de ser consideravelmente mais jovem que ele, tinha sido um dos amigos mais íntimos do defunto capitão Wilfred Grantham, tendo vagabundeado juntos por Europa, e compartilhado freqüentemente de sua sorte incerta.

Como Silas Wantage, que estava naquele momento limpando a prata na despensa, enquanto Mortimer, o bem remunerado mordomo de lady Bellingham, cochilava com um exemplar do Morning Advertiser lhe cobrindo a cara, Lucius Kennet sempre tinha feito parte do ambiente em que se tinha desenvolvido a vida de miss Grantham. Nunca se tinha negado a arranjar um boneco quebrado, ou a colocar um curativo em um machucado de um dedo; e quando Deborah atingiu a adolescência, tinha se convertido num protetor um tanto bonachão. O capitão Grantham tinha sido sempre incapaz de se preocupar por um par de irritantes fedelhos. O maior esforço que tinha feito em sua vida pelo bem de seus filhos foi os colocar sob a tutela de sua irmã após a morte de sua sofrida esposa.

Lady Bellingham, sem filhos, e dedicada a um irmão que só se lembrava de sua existência quando estava em algum aperto que ela podia lhe livrar, ficou encantada com esta tarefa, e não podia imaginar que um rapaz de doze anos e uma jovem de quinze pudessem lhe causar o menor transtorno. Durante uns quantos anos, tinha levado uma existência um tanto precária, e cedo descobriu que um rapaz em idade escolar, e uma garota cuja educação exigia os serviços de uma perceptora, constituíam um luxo. Tinha uma pequena fortuna própria, além de uma pensão de viuvez bem escassa, e geralmente confiava em sua boa sorte em todos os jogos de azar para salvar a diferença entre seus rendimentos e seus gastos. Celebrava pequenas e acolhedoras festas em sua casa de Clarges Street, e teve tanto sucesso na mesa de Faraó que pouco a pouco surgiu em sua mente a idéia de tirar partido do dom que possuía para as cartas. O senhor Lucius Kennet, que apareceu repentinamente em Londres com a notícia da morte do capitão Grantham, acontecida em Munich, teve muito gosto não só em compartilhar com sua senhoria o benefício de sua experiência e de seus conselhos, mas também em participar em sua primeira mesa de Faraó . Tinha tido uma excelente acolhida, e inclusive tinha proporcionado o dinheiro suficiente para que o senhor Christopher Grantham pudesse adquirir um par de insígnias no momento em que nosso jovem cavalheiro abandonou o colégio.

No princípio, não tinha feito parte dos planos de lady Bellingham admitir sua sobrinha em seu salão de jogo. Não estava do todo segura do que tinha acontecido para que Deborah, faltando um mês para terminar o colégio, fizesse sua aparição numa de suas festas íntimas, mas na verdade é que assim tinha acontecido, e a garota teve imediatamente tanto sucesso com os convidados de sua tia, e atraiu a tantos novos clientes ao estabelecimento, que teria sido um disparate prescindir dela.

As partidas de cartas em Clarges Street tinham acontecido durante uma época em que o jogo tinha atingido um auge excepcional. Os cavalheiros não tinham pensado em outra coisa que em apostar rolos de cinquenta guinéus em uma única carta, e os ganhos da modesta casa tinham justificado a aquisição de um local muito maior em Saint James's Square. Mas porque apareceram grande quantidade de absurdas calunias nos jornais sobre o vício que reinava nas casas de jogo como na da senhora Sturt ou a de lady Buckingham que podiam ter causado uma ligeira diminuição de público, ou porque os gastos do estabelecimento de Saint James's Square eram bem mais elevados do que tinha previsto lady Bellingham, não tinham podido desfrutar de ganho algum durante vários meses.

É claro, lady Bellingham embolsava consideráveis somas de dinheiro, mas, sem saber como, a torrente de faturas que inexplicavelmente ameaçavam levar o estabelecimento a ruína, as absorvia.

Além disso, nas últimas semanas, o estabelecimento tinha sido afetado por uma insistente maré de má sorte. Numa noite funesta, tinham feito saltar a banca de Faraó na quantia de seis mil libras, e era difícil recuperar-se de tal infortúnio. Lady Bellingham fez todo o possível introduzindo o jogo de E.Ou. em seus salões, mas inclusive isto não tinha contribuído muito para solucionar as coisas, já que os autênticos jogadores eram propensos a desdenhá-lo, e na verdade não se podia afirmar que melhorasse a reputação do estabelecimento. De fato, como observava Deborah com amargura, o rebaixava à categoria de uma vulgar casa de jogos.

Tinha sido uma das idéias de Lucius Kennet, bem intencionadas, sem dúvida, mas muito desagradável para miss Grantham. Ultimamente tinha se falando de um novo jogo chamado roleta, cujas regras eram ao que parecia, semelhantes às do E.Ou., mas miss Grantham estava decidida a que nenhuma mesa de roleta entrasse em Saint James's Square.

O senhor Kennet, quando miss Grantham se reuniu com ele, estava atirando os dados com displicência, sua mão direita contra a esquerda, sobre uma pequena mesa que tinha no centro da sala.

-Bom dia, querida -disse alegremente, sem abandonar sua ocupação-. Observa a sorte que tem minha mão esquerda, a condenada! Por minha vida, não pode perder! -Dirigiu um sagaz olhar ao rosto pensativo de miss Grantham, e acrescentou-: Que passa, querida? Trata-se de Ormskirk de novo, ou desta vez é o pequeno?

-Não me preocupa nenhum dos dois -replicou Deborah, sentando em frente a ele-. Ao menos, não mais do que o normal. Lucius, que será de nós?

-Por que? Suponho que nada em especial.

-Minha tia está bastante preocupada. Temos faturas por todas partes!

-Ah, querida! Joga-as ao fogo!

-Sabes tão bem como eu que isso não resolveria nada! Gostaria que deixasses de atirar os dados!

Pegando-os em sua mão, ele os lançou ao ar e os pegou enquanto caíam. Tinha um ar zombeteiro em seu olhar enquanto perguntou:

-Você não é feita para isto, verdade?

-Às vezes penso que o detesto -admitiu, afundando seu queixo entre suas mãos abertas e franzindo o cenho-. Demônios, Lucius! Eu não tenho alma de jogadora!

-Tu o quiseste querida. Eu diria que o levas no sangue.

-Bom, assim eu pensava, mas me é mais tedioso que se possa imaginar! Acho que algum dia terei uma casinha no campo, e me dedicarei a criar galinhas.

Ele soltou uma gargalhada.

-Que o Senhor se apiede delas! E você, enquanto isso, ceia lagosta todas as noites, enfeitada com sedas e punhos, e deixando que os guinéus deslizem por esses dedos tão lindos que tens.

Seus olhos brilharam e não pôde reprimir um sorriso.

-Aí está o problema -confessou-. Que fazer?

-És uma criança -disse ele com cautela-. Acredite-me que ficaria encantado em dar-lhe sua casinha de campo, se é isso o que realmente desejas, e poderias brincar de camponesa como a Santa Rainha Francesa, que Deus a tenha em sua glória!

-Conhece-me perfeitamente! -disse no mesmo instante-. Acredita-me capaz de jogar com um romântico rapaz um golpe baixo como esse? Que estranho lhe seria encontrar-se unido a uma jogadora cinco anos mais velha que ele!

-Sabe, Deb -disse, enquanto contemplava-a com olhos semicerrados- há momentos em que estaria disposto a fugir contigo.

Ela sorriu, mas disse movendo a cabeça:

-Quando estás ébrio, poderia ser.

Ele fechou a mão e voltou a cabeça para a contemplar.

-Não sejas injusta; estou suficientemente sóbrio. Que dizes a isto, querida? Estarias disposta a compartilhar sua sorte com um tipo inútil que acabará mal neste mundo, sem mencionar o outro?

-Está pedindo minha mão, Lucius? -perguntou, com uma expressão de incredulidade.

-Pois claro que estou pedindo sua mão! Estou totalmente louco, mas que importa? Vem a correr mundo comigo, querida! Juraria que tens a coragem necessária!

Ela o olhou com sinceridade nos olhos.

-Se te amasse, Lucius. Mas não é assim, compreendes. Não como sua esposa, só como uma boa amiga.

-Ah, bem! -disse atirando os dados de novo-. Suponho que é melhor assim!

-Sem dúvida, acho que você não seria um bom marido -disse reflexivamente-. Antes que tivesse passado um ano estaria farto de mim!

-É possível -assentiu.

-Ademais -acrescentou judiciosamente- como poderia nosso casamento conseguir que tia Lizzie saísse de seus apuros?

-Ah, ao diabo com a velha! És demasiado jovem para se preocupar com seus problemas, querida!

Asseguro-te!

-Quando falas assim é quando pior me agrada, Lucius -disse.

Ele encolheu os ombros.

-Como quiser. Queres que diga o que será de você? Que prefere, a mesa de roleta ou o nobre conde de Ormskirk?

-Nem o um nem o outro!

-Comunica sua decisão a sua tia, Deb e verás qual é sua reação.

-Que queres dizer com isso? -perguntou furiosamente.

-Deus nos abençoe, garota! Se não lestá preparando o terreno para sua senhoria, então o que pôde convencê-la para que tomasse dinheiro emprestado dele?

-Referes à hipoteca da casa! Ela não se podia imaginar que...

-Sim, e também quer acreditar que sua senhoria comprou as faturas movido unicamente por sentimentos humanitários.

Suas faces empalideceram.

-Lucius, não me diga que fez isso.

-Pergunte à idosa senhora.

-Oh, pobre tia Lizzie! -exclamou-. Não me estranha que esteja tão preocupada! Sem dúvida não podia imaginar que esse homem tão odioso as fosse utilizar para me obrigar a me converter em sua amante! Pois não o farei! Prefiro que me metam no cárcere!

-É um lugar extremamente incômodo, querida!

-Não o fará! -disse confiadamente-. Tudo isto são suposições! Nunca me ameaçou! Realmente estou convencida de que é demasiado orgulhoso. Oh, daria o que fosse para lhe tirar essas faturas das mãos!

Ele dirigiu-lhe um olhar irônico.

-Estava pensando que o melhor seria que pedisses ao teu novo e endinheirado amigo que as compre de novo, querida. Ficaria realmente encantado em ajudar-te, mas meus bolsos estão totalmente vazios, como já sabe.

-Oxalá não fosses tão absurdo! -disse com aborrecimento-. Tenho uma probabilidade entre dez de voltar a ver a Ravenscar, e se o fizesse... oh, não sejas tonto, Lucius, não estou com humor para piadas!

A porta abriu-se e Mortimer entrou na sala.

-Chegou o senhor de Ravenscar, e deseja vê-la. Conduzi-o ao salão amarelo.

-Na verdade, é um enviado do céu, Deb! -disse o senhor Kennet rindo.

-O senhor de Ravenscar? -repetiu miss Grantham com incredulidade-. Deve estar equivocado!

Sem dizer uma única palavra, o mordomo mostrou-lhe a salva que levava. Miss Grantham tomou o cartão de visita que tinha sobre ela e leu com assombro sua inscrição; nele estava gravado com singelas letras seu nome: Max de Ravenscar.


Capítulo V


O senhor de Ravenscar encontrava-se de pé no salão amarelo, olhando pela janela. Estava vestido com botas de campanha e calções de couro, levava um lenço estampado no pescoço e um sobretudo castanho com várias capas que chegava-lhe até a panturrilha. No momento em que miss Grantham entrou na sala, voltou-se, e esta pôde perceber que tinha feito algumas marcas de chicote em sua lapela e que levava luvas curtidos em York.

-Bom dia -disse, dando uns quantos passos para a saudar-. Gostaria de dar um passeio de carro pelo parque, miss Grantham?

-Um passeio pelo parque? -repetiu ela com um tom de surpresa.

-Sim, por que não? Estou levando meus tordilhos para fazer exercício, e vim a pedir-lhe que me honrasse com sua companhia.

Ainda que percebesse perfeitamente da irresistível vontade que sentia de o acompanhar, disse, desconcertada:

-Mas não estou pronta para sair.

-Imagino que isso se poderá remediar.

-É verdade, mas... -interrompeu-se, e alçou a vista, olhando-o nos olhos-. Por que me pede?

-perguntou bruscamente.

-Pelo que pude observar ontem à noite, madame, parecia impossível estar sozinho com você sob este teto.

-Deseja estar sozinho comigo, senhor de Ravenscar?

-Sem dúvida alguma.

Invadiu-a uma sensação muito estranha, como se algo estivesse preso na garganta e ameaçasse com afogá-la. Tremiam-lhe as pernas, e estava consciente de que se tinha ruborizado.


-Mas se mal me conhece! -conseguiu dizer por fim.

-Isso ie fácil de corrigir. Vamos; miss Grantham, gostaria muito que me acompanhasse, lhe rogo!

-É muito amável. Realmente, gostaria de fazê-lo! Mas devo mudar de vestido, e suponho que não quer manter seus cavalos esperando -contestou ela com certa dificuldade.

-Se olhar pela janela, verá que o criado os está exercitando.

-Não me deixa outra alternativa. Conceda-me somente dez minutos, e lhe acompanharei com muito gosto.

Ele assentiu, e se dirigiu à porta para abri-la. Ela lhe olhou de relance quando passou ao seu lado, e uma vez mais a desconcertou sua expressão. «É um ser tão estranho!» Tinha interessado a muitos homens para não reconhecer esse olhar ardente que tinham nos olhos quando contemplavam a mulher de seus sonhos. Isto não estava nos olhos do senhor de Ravenscar; mas se não era prisioneiro de seus encantos, que movido tinha para convidá-la para passear com ele?

Não demorou muito em mudar seu traje floreado por um vestido de passeio. Uma touca verde de asa abaulada, e várias plumas de avestruz onduladas, emolduravam de forma admirável seu rosto, e realçavam a beleza de seus cabelos castanhos. Estava plenamente consciente de que tinha um aspecto deslumbrante, e esperou que o senhor de Ravenscar pensasse que era em sua honra.

Lady Bellingham, informada do convite do senhor de Ravenscar, vacilou entre o júbilo e a dúvida de que sua sobrinha não deveria sair passeando sozinha com um cavalheiro que só tinha visto uma vez em sua vida; mas as evidentes vantagens que oferecia o fato de que o senhor de Ravenscar se fixara em Deborah cedo inclinaram a balança a favor do primeiro. Lucius Kennet optou por fazer-lhe um apiada, e debochar cruelmente de miss Grantham por ter feito uma conquista tão importante; mas esta lhe contestou bastante incomodada, afirmando que não se tratava disso, e que considerava suas piadas de mau gosto. O resultado foi que, quando se reuniu pouco tempo depois com Ravenscar no salão amarelo, estava ruborizada. Contemplando-a com um olhar crítico, viu-se obrigado a reconhecer que era uma criatura extraordinária. Desceu as escadas em sua companhia até a porta principal, onde se reuniram com Kennet, que percorreu lentamente o salão para se despedir.

Ravenscar e ele trocaram alguns elogios, e o criado conduziu aos tordilhos até a porta. O senhor Kennet examinou-os com um olhar experiente, enquanto Ravenscar dava a mão a miss Grantham para ajudá-la a subir na carriola, e disse que apostaria com eles contra o tiro de Filey.

Sem dúvida alguma, eram uns animais esplêndidos, de uma envergadura superior aos quinze palmos, com cabeças pequenas, peito e patas largas, fortes traseiros e belos pescoços arqueados.

-Ah, aposto a que andam maravilhosamente! -disse o senhor Kennet; acariciando um pescoço de veludo.

-Sim -reconheceu Ravenscar-. São velozes como o vento.

Subiu à carriola, enquanto o palafrenero sujeitava os cavalos, estendeu uma manta sobre os joelhos de miss Grantham. Pegando o chicote, e apalpando ligeiramente a boca dos cavalos, fez uma aceno ao lacaio.

-Não preciso de você -disse laconicamente-. Servidor, senhor Kennet!

Tanto o lacaio como Kennet se afastaram, e os tordilhos, que estavam nervosos, se precipitaram pela rua calçada.

-Não se assuste! -disse Ravenscar a miss Grantham-. Só estão um pouco nervosos.

-Pergunto-me como os pode dominar com tanta facilidade! -confessou, reprimindo o desejo instintivo de agarrar-se à beira do carro.

Ele sorriu, mas não contestou. Dobraram rapidamente a esquina de Kings's Street, dirigiram-se para o oeste, e continuaram seu caminho em direção a Saint James's Street.

Tinha tráfico suficiente para que a atenção do senhor de Ravenscar se mantivesse ocupada em sua tarefa, já que os tordilhos, apesar de estarem perfeitamente adestrados, optaram por excitarem-se ante a presença de uma carreta que avançava com grande estrondo pela esquina, por sobressaltarem-se alegremente ante uma cadeirinha, por contemplarem com um receio repentino o chapéu enfeitado com plumas de uma dama, e por decidirem que as fileiras de postes brancos, unidos por correntes, que separavam a cera dos canaletes e da calçada, lhes ameaçavam com um perigo inesperado até o momento. Mas atingiram sem nenhum contratempo as portas de entrada de Hyde Park, e uma vez franqueadas, os tordilhos se serenaram, andando a um passo regular e ágil, aparentemente satisfeitos de encontrar-se num ambiente que era mais próprio a sua origem e criação.

Tinha várias carruagens no parque, incluindo alguns faetons, e certo número de birlochos. O senhor de Ravenscar levava a mão ao chapéu de vez em quando para saudar a seus conhecidos mas, em pouco tempo, se afastando dos outros veículos, pôde concentrar sua atenção em seu acompanhante.

-Encontra-se confortável, miss Grantham?

-Muito. Sua carruagem é muito confortável. Correrá com ela?

-Oh, não! Tenho uma carriola especialmente fabricada para isso.

-Vencerá? -perguntou ela, olhando-o com um ligeiro sorriso.

-Assim o espero. Não me diga que vai arriscar seu dinheiro em meus tordilhos.

-Oh, tenho que fazê-lo! Mas devo dizer-lhe que nunca me acompanha a fortuna, e provavelmente lhe trarei má sorte.

-Não o temo em absoluto. Ontem a sorte não a favoreceu, mas confio em que possa se recuperar em outra ocasião.

-É muito amável por sua vez, senhor de Ravenscar, mas temo que o que falhou não foi tanto minha sorte mas minha habilidade -admitiu ela.

-Pode ser. -Recolheu as rédeas com destreza no momento em que os tordilhos adiantavam a uma caleça, e as afrouxou-as de novo quando a tinham ultrapassado-. É de esperar que sua má sorte não seja duradoura. Sem dúvida seria catastrófico para o sucesso de seu delicioso estabelecimento se assim fosse.

-Certamente -concordou ela com certa tristeza-. No entanto, a pessoas tendem com excessiva freqüência a supor que uma casa de jogo proporciona grande quantidade de dinheiro a seus proprietários.

-Devo entender que não é assim, miss Grantham?

-Em absoluto.

Voltou-se para olhá-la, dizendo com uma brusquidão que era surpreendente:

-Tem dívidas, miss Grantham?

Isto a pegou de surpresa, e durante um momento guardou silêncio. Ato seguido, disse com dignidade:

-O que o leva a me fazer semelhante pergunta, senhor?

-Não está negando -assinalou ele.

-Não tenho por que lhe dar uma resposta.

-Deveria ter dissipado suas dúvidas no início informando-lhe de que não ignoro inteiramente sua situação -disse ele.

Ela o olhou com surpresa.

-Não posso imaginar como pode ter conhecimento de minha situação!

-Você (ou deveria dizer sua encantadora tia?) está em dívida com lord Ormskirk.

-Imagino que ele lhe contou -disse ela envergonhada.

-Ao contrário. Foi meu jovem primo.

-Disse-lhe Adrian? -exclamou-. Deve estar equivocado! Adrian não está a par dos assuntos entre lord Ormskirk e minha tia.

Atirou das rédeas para que os cavalos se pusessem a passo. Considerava-a uma atriz notável, mas irritava-lhe sua aparente candidez, e disse com um tom zonbeteiro:

-É você que se engana, miss Grantham. Mablethorpe estava aparentemente muito bem informado.

-Quem lhe disse? -perguntou ela.

Ele arqueou as sobrancelhas.

-Teria preferido que continuasse ignorando sua dívida para lord Ormskirk? Bem; agradeço-lhe.

-Preferiria que não chegasse aos ouvidos de ninguém! -disse furiosa-. Devo entender que Ormskirk confiou este segredo a seu primo? Confesso que o acho incrível.

-Não, compreendi que seu amigo, o senhor Kennet, foi a fonte de informação de meu primo.

Ela mordeu o lábio, e guardou silêncio durante uns instantes, muito desconcertada. Quando falou de novo, o fez com uma rapidez fingida.

-E bem! Se é assim não consigo ver por que você deveria se interessar pelo assunto, senhor de Ravenscar.

-Eu poderia tirá-la de seus apuros.

Por um instante teve um sentimento de espanto, temendo que estivesse a ponto de lhe fazer uma proposta desonesta, e apertou as mãos com força sobre seu regaço. Não era a primeira vez que tinha sido objeto de tais propostas. Estava consciente de que sua situação no estabelecimento de sua tia a expunha a tais ataques, e nunca tinha permitido a si mesma levá-los muito a sério. Preferia esquivar-se com um riso e uma piada, mas surpreendeu a si mesma desejando fervorosamente que o senhor de Ravenscar não fora igual aos outros homens. Então recordou o brilho severo que tinha visto em seus olhos, e ficou tão certa de que o motivo não era amoroso, que se atreveu a perguntar:

-Por que?

-Que gostaria que respondesse? -perguntou-. Faria todo o possível para agradá-la, mas na verdade é que não gosto de ficar dando voltas.

Neste ponto, estava bastante confusa, e disse com um tom tão brusco quanto o seu:

-Não creio que o compreenda! Vimos-nos pela primeira vez ontem à noite, e não pensei por nenhum momento que... em resumo, imaginei que você não sentia uma grande simpatia por mim!

No entanto, hoje propõe me tirar do que chama meus apuros!

-Com certas condições, miss Grantham.

-Sim? E quais condições são essas?

-Sem dúvida você as conhece tão bem como eu -disse-. Não obstante não tenho nenhum inconveniente em ser mais explícito, madame. Estou disposto a recompensá-la amplamente por qualquer desengano que possa sofrer como conseqüência da sua renúncia a todas as pretensões à mão e ao coração de meu primo.

Tinha estado tão acostumada a considerar o amor que lhe professava Mablethorpe como um disparate que esta declaração tão direta produziu nela um efeito de surpresa. Durante uns instantes foi incapaz de falar. Um tumulto de sensações se amontoavam em seu peito, e uma confusão de pensamentos agitava-se em sua mente. Debatia-se entre a mais profunda decepção e um desejo irrefreável de esbofetear o senhor de Ravenscar, para assegurar-lhe sem contemplação que preferia ficar solteira toda sua vida a se casar com seu primo, e, após lhe dar sua opinião sobre suas maneiras, moral, e estupidez abismal, exigir que detivesse a carruagem para descer. Uma vontade enorme de desfazer-se em lágrimas acompanhava estas aspirações mais violentas e imediatamente resolveu dar o troco ao senhor de Ravenscar da forma mais vingativa que estivesse ao seu alcance, e decidiu, de uma forma totalmente irracional, demonstrar que era tão má como ele a considerava, ou inclusive pior. Renunciar a suas aspirações, como ele tinha a insolência de chamar, à mão e ao coração de lord Mablethorpe não era um bom caminho para se vingar dele.

Deu-se conta de que teria que se abster do prazer de esbofeteá-lo. Sobrepondo à sensação de sufocação que sentia, disse, com um considerável autodomínio:

-Rogo-lhe que me diga que considera você uma recompensa generosa, senhor de Ravenscar.

-Digamos cinco mil libras, madame?

Soltou uma risada bastante forçada.

-Verdadeiramente, temo que está tentando debochar de mim!

-Fixa um preço muito alto -disse ele, com aspereza.

-Certamente. Seu primo sente por mim um grande afeto.

-Meu primo, miss Grantham, é menor de idade.

-Oh, mas não por muito tempo! -disse ela-. Não tenho pressa; posso permitir-me ao luxo de esperar dois meses, asseguro-lhe.

-Muito bem -disse-. Não tenho intenção de pechinchar com você, madame. Lhe darei exatamente o dobro dessa quantidadepara que abandone meu primo.

Ela se recostou na carriola, muito satisfeita de si mesma e com um sorriso forçado. O senhor de Ravenscar viu o sorriso, mas não percebeu o ameaçador brilho que tinha nos olhos da dama.

-Isso é uma miséria, senhor de Ravenscar -disse ela com suavidade.

-Por favor, miss Grantham, isso não lhe servirá de nada! Não conseguirá me tirar nem um penny a mais, portanto não percamos o tempo em regatar!

-Mas, pense! -disse miss Grantham, alisando por cima das mãos suas luvas amarelas-. Arrebataria-me inesperadamente uma fortuna e um título!

-Asseguro-lhe, madame, que não existe a mínima possibilidade de que você desfrute dessa fortuna e desse título em particular! -disse Ravenscar em tom ameaçador.

-Meu querido senhor, menospreza minha inteligência, creia-me! -disse miss Grantham, fustigando-o com doçura-. Você não me teria oferecido dinheiro se tivesse sido possível separar a Adrian de mim se valendo de outros meios. Está em meu poder. Ou não?

-Se recusar minhas condições, cedo se dará conta de seu engano -disse Ravenscar, com uma voz endurecida pela ira.

-Que disparate! -disse miss Grantham com serenidade-. Suplico-lhe que seja razoável! Estou persuadida de que não pode me considerar tão tola para permitir que um casamento tão vantajoso me escape das mãos pela ridícula soma de dez mil libras!

-Quantos anos você tem? -perguntou ele.

-Vinte e cinco, senhor de Ravenscar.

-Faria bem em aceitar minha oferta. O casamento com um rapaz que acaba de sair da proteção de seu tutor só lhe acarretaria desgraças. Pense bem, miss Grantham! A adoração juvenil que Adrian lhe professa não durará muito, lhe asseguro!

-É muito provável -reconheceu ela-. Mas não prevejo que diminua nos próximos dois meses. Verá, me esforçarei tanto em manter vivo seu interesse!

Teve a satisfação de comprovar que tinha conseguido enfurecê-lo. Sua expressão endureceu-se, seu olhar pareceu a miss Grantham francamente homicida, e perguntou-se se em algum dia encontrariam seu corpo num rincão apartado do parque.

-Permita-me que lhe seja franco, miss Grantham, já que assim o deseja. Não me deterei ante nada para impedir que meu primo se case com uma mulher de sua condição!

Isto a sobressaltou; mas recobrou a suficiente serenidade para replicar com mordacidade:

-Magnífico discurso, senhor de Ravenscar! De fato, não há nada que possa fazer.

-Já veremos, madame!

Ela bocejou.

-Não é justo, seja razoável! Peço que me diga o que será de mim, se prescindo de seu primo sem pensar duas vezes. Decidi que já é hora de ter uma posição respeitável na sociedade.

-E quanto a sua respeitabilidade, madame -disse Ravenscar ameaçador-, tenho entendido que Ormskirk tem planos para seu futuro que servirão perfeitamente as suas aspirações!

De novo sentiu uma vontade incontrolável de esbofeteá-lo, e só com um grande esforço conseguiu se reprimir. Ela contestou dissimulando com dificuldade um tremor que revelava sua indignação:

-Penso que até você compreenderá, que a amável proposição de lord Ormskirk não é nada comparada com a petição de seu primo. Verdadeiramente, desejo converter-me em lady Mablethorpe.

-Não o duvido! -disse asperamente-. Por Deus que se estivesse em minha mão faria que as mulheres de sua laia fossem atadas a uma carreta e flageladas!

-Deus meu, que violento você é! -surpreendeu-se-. E tudo porque desejo me converter numa pessoa respeitável! Sem dúvida desempenharei o papel de mulher de Adrian à perfeição.

-Uma mulher saída de uma casa de jogo! -exclamou-. Uma das filhas do Faraó ! Esquece você que tive a ocasião de observá-la em seu próprio ambiente! Pensa que ficarei de braços cruzados enquanto esse jovenzinho imprudente arruína sua vida se casando com você? Aprenderá a conhecer-me melhor!

Ela se encolheu de ombros.

-Estamos nos desentendendo, senhor de Ravenscar. Seria conveniente que aprendesse a me conhecer melhor.

-Que Deus me livre! -disse ele com raiva-. Já pude averiguar o suficiente esta manhã para me convencer de que nada poderia arruinar mais meu primo que o fato de se encontrar atado a você!

-E só está disposto a me oferecer dez mil libras para salvar a seu primo de seu horrível destino?

-perguntou.

Ele lhe dirigiu um olhar crítico, como se estivesse calculando sua coragem.

-Seria interessante saber que cifra você estima conveniente, miss Grantham.

Fez como se refletisse.

-Não o sei. Para você este assunto é tão importante, que eu seria muito tonta se aceitasse menos de vinte mil.

Ele fez girar aos cavalos e estes começaram a trotar.

-E por que se contenta com isso? -perguntou com uma gargalhada seca.

-Realmente, suponho que não o farei -disse miss Grantham cordialmente-. Meu preço aumentará à medida que aproxime-se o aniversário de Adrian.

Ele conduziu em silêncio por um tempo, com um olhar fixo no caminho.

-Que bonitos estão as árvores, com as folhas mudando de cor! -observou miss Grantham, com um tom comovedor.

Não prestou nenhuma atenção a esta observação irônica, mas se voltou para olhá-la de novo.

-Se comprometo-me a pagar-lhe vinte mil libras, renunciará a meu primo? -perguntou bruscamente.

Miss Grantham inclinou a cabeça para um lado.

-Devo admitir que a cifra de vinte mil libras é muito tentadora -disse-. E no entanto...

-acrescentou indecisa-. Não, acho que prefiro me casar com Adrian.

-Se arrependerá de sua decisão, madame -disse, deixando cair suas mãos e permitindo que os tordilhos acelerassem sua marcha.

-Oh, confio que não! Apesar de tudo, Adrian é um jovem sumamente gentil, e me divertirá ser sua mulher, e ter uma quantidade considerável de dinheiro para meus caprichos. Espero -acrescentou cortesmente- que você seja um dos nossos primeiros convidados em Mablethorpe. Então poderá comprovar que me converti, como pretendo, numa grande senhora.

Ele não se dignou contestar, pois após uma pausa reflexiva, ela disse raivosamente:

-Claro está que terei que fazer muitas reformas em Mablethorpe antes de que possa receber visitas. Tenho entendido que ali tudo é terrivelmente antiquado. E também na casa de Londres!

Mas tenho grande apreço pela decoração, e tenho esperanças de conseguir algo bastante aceitável.

O senhor de Ravenscar fez um gesto depreciativo como único sinal de que tinha ouvido esta declaração.

-Tenho intenções de estabelecer uma banca de Faraó própria -continuou miss Grantham-. Sem dúvida será muito seleta: só os sócios serão admitidos. Para triunfar neste tipo de coisas é preciso ter uma posição social considerável, e isso me pode proporcionar Adrian. Aposto a que num ano minhas partidas de cartas farão furor!

-Madame, se pensa que me vai obrigar a aumentar a quantia mediante estas revelações, está perdendo o tempo! -disse Ravenscar-. Seus planos para o futuro não me surpreendem em absoluto. -Atirou das rédeas para que os cavalos diminuíssem a marcha, já que se aproximavam das portas do parque-. Teve a oportunidade de enriquecer, e considerou oportuno recusá-la.

Retiro minha oferta.

Ela se surpreendeu, mas se esforçou em dissimulá-lo.

-Bem, agora fala como um homem razoável! -disse-. Na realidade, aceita o inevitável.

Atravessaram as portas do parque e dirigiram-se para o leste, rodando rapidamente com uma desconsideração para os viajantes que provocou a ira de dois criados de quadra, um cocheiro e um honorável idoso que foi bastante imprudente para tentar atravessar a rua no momento em que se aproximava o carro.

-Não -disse Ravenscar-. Uma vez mais equivocou-se em seus cálculos, miss Grantham. Preferiu me enfrentar. E verá como não é nada agradável. Permita-me que lhe diga que fiz minha oferta de má vontade! Vai contra meus princípios enriquecer às harpias! -Olhou-a de soslaio enquanto falava, e pôde apreciar tal olhada de indignação em seus olhos que ficou desconcertado por um momento. Mas ao franzir o cenho com uma sombra de dúvida, as longas pestanas de miss Grantham ocultaram seus olhos, e começou a rir.

O trajeto de regresso a Saint James's Square decorreu em silêncio. Quando a carruagem se deteve ante sua porta, miss Grantham retirou a manta que cobria seus joelhos, e disse com uma amabilidade fingida:

-Foi um passeio sumamente agradável, senhor de Ravenscar. Tenho que lhe agradecer por me ter oferecido a oportunidade de o conhecer melhor. Acho que ambos aprendemos algo esta manhã.

-Pode descer sem minha ajuda? -perguntou ele com brusquidão-. Não posso deixar soltos aos cavalos.

-Sem dúvida -respondeu ela, descendo com agilidade do elevado da carruagem-. Adeus? ou melhor au revoir?

Ele levou a mão ao chapéu.

- Au revoir, madame! -disse, e continuou seu caminho.

Silas Wantage abriu-lhe a porta da casa a miss Grantham e dirigiu um olhar ao seu semblante perturbado, dizendo afetuosamente:

-Miss Deb, o que aconteceu agora para que tenha tido um de seus ataques de raiva?

-Não tenho um ataque de raiva! -replicou Deborah furiosa-. E se vir lord Mablethorpe, diga-lhe que o receberei!

-Ainda bem -disse Wantage-. Porque já veio uma vez, e estava disposto a voltar de novo. Não vi nada semelhante em toda minha porca vida!

-Gostaria que não empregasse esses termos tão odiosamente vulgares! -disse Deborah.

-Não tem um ataque de raiva, certo! -disse o senhor Wantage com um gesto de desaprovação-. E

isso que a conheço desde que estava no berço! Sua tia disse que o sinhozinho vem para casa de licença. Que contesta a isso?

No entanto, miss Grantham não tinha nada que dizer. Sentia um grande afeto por seu irmão, mas naquele momento as ofensas do senhor de Ravenscar ocupavam sua mente até o extremo de não poder pensar em nada mais. Subiu rapidamente a escada até a salinha que empregavam como gabinete. Lady Bellingham estava ali respondendo à correspondência sobre uma mesa de esbeltas patas que tinha junto à janela. Alçou o olhar quando sua sobrinha entrou na sala, e exclamou:

-Ah, querida, já voltaste! Conta-me em seguida se... -interrompeu a frase ao encontrar-se com o olhar turbulento de sua sobrinha-. Oh, Deus meu! -disse com consternação -. Que aconteceu?

Miss Grantham desatou os cordões de sua touca com um puxão brusco, e arrojou-a sobre uma cadeira.

-É o homem mais abjeto, grosseiro, estúpido e horrendo do mundo! Oh, mas me vingarei disso!

Farei que se arrependa de sua ousadia! Não terei nenhuma piedade dele! Terá que se arrastar ante mim! Oh, estou tão furiosa!

-Sim, querida, já vejo -disse sua tia timidamente-. Te... fez a corte?

-A corte! -exclamou miss Grantham-. Certamente que não! Suas intenções não iam por esse caminho! Fixa-te bem, tia Lizzie, sou uma harpia! As mulheres da minha laia deveriam ser atadas a uma carreta e flageladas!

-Céus! Perdeu esse homem o juízo? -perguntou lady Bellingham.

-Em absoluto! É somente estúpido, grosseiro e totalmente desprezível! Odeio-o! Espero não ter que voltar a vê-lo jamais!

-Mas o que fez? -perguntou lady Bellingham, totalmente confusa.

Miss Grantham rangeu seus brancos dentes.

-Veio resgatar seu querido primo das minhas redes! Por isso me convidou para passear com ele!

Para insultar-me!

-Oh, querida, tu pensaste que talvez fosse essa a razão de sua presença! -disse com tristeza sua tia.

Miss Grantham não prestou atenção a esta interrupção.

-Como então Deb Grantham não é suficientemente boa para se casar com lord Mablethorpe! O

fato de casar-se comigo supõe sua ruína! Oh, sinto vontade de gritar ante semelhante humilhação!

Lady Bellingham contemplou-a com vacilação.

-Mas tu disseste exatamente o mesmo, querida. Recordo-me perfeitamente...

-Isso não significa nada! -disse miss Grantham-. Ele não tinha nenhum direito de dizê-lo!

Lady Bellingham esteve totalmente de acordo com isso, e após observar como sua sobrinha percorria desesperadamente a sala de um extremo a outro durante alguns minutos, se atreveu a perguntaro que tinha sucedido em decorrência do passeio. Miss Grantham parou bruscamente e respondeu com voz trêmula:

-Tentou subornar-me!

-Tentou subornar-te para que não te casasses com Adrian? -perguntou sua tia-. Mas que idéia tão estranha, quando precisamente não tinhas a menor intenção de fazê-lo! Que lhe terá feito pensar isto?

-Asseguro-lhe que não sei, e além disso, não me importa nem um pouco! -replicou Deborah, mentindo-. Teve o descaramento de oferecer-me cinco mil libras se abandonava minhas pretensões... minhas pretensões!, de conseguir a mão e o coração de Adrian!

Lady Bellingham, em cujo rosto tinha começado a se insinuar uma expressão de esperança, se viu defraudada, e exclamou:

-Cinco mil! Deb, devo confessar que o considero muito mesquinho por sua vez!

-Eu respondi que temia que tentava me enganar -relatou miss Grantham com satisfação.

-Bem, sem dúvida não poderia ter ocorrido nada melhor, querida! Confesso que nunca imaginei que fosse tão ruim!

-Então -prosseguiu miss Grantham- disse que dobraria a cifra.

Lady Bellingham deixou cair sua bolsa.

-Dez mil! -exclamou com voz desmaiada-. Não, não te preocupes por minhas finanças, Deb: não tem nenhuma importância! Qual foi tua resposta?

-Respondi-lhe que era uma miséria! -contestou miss Grantham.

Sua tia olhou-a com incredulidade.

-Uma miséria? Realmente o consideraria uma miséria, querida?

-Assim é. Manifestei que não permitiria que Adrian se fosse das minhas mãos simplesmente por dez mil libras. Não pode imaginar como desfrutei dizendo isto, tia Lizzie!

-Sim, querida, mas... achas que foi prudente?

-Bah! Rogo-lhe que me diga o que ele pode fazer -respondeu miss Grantham com ironia-. Como é lógico, se pôs de tão mau humor como eu, e não fez nenhum esforço por ocultá-lo. Alegrei-me enormemente ao vê-lo tão enfurecido! Disse, a respeito de Ormskirk, que... Oh, gostaria de ser um homem para poder desafiar-lhe, e atravessá-lo de lado a lado várias vezes!

Lady Bellingham, que parecia bastante aturdida, sugeriu debilmente que não se podia atravessar um homem várias vezes.

-Ao menos, acho que não -acrescentou-. Claro está que nunca presenciei um duelo, mas sempre há padrinhos, e seguramente a impediriam.

-Ninguém me impediria! -declarou miss Grantham com ânsias de vingança-. Gostaria de fazê-lo em picadinho!

-Deus meu, não posso imaginar de onde tiras essas idéias tão impróprias de uma senhorita!

-suspirou sua tia-. Confio que não manifestasses tuas intenções.

-Não, lhe dei a entender que desempenharia à perfeição o papel de mulher de Adrian. Isto lhe enfureceu sobremaneira. Pensei por um momento que era capaz de me estrangular. No entanto, não o fez. Perguntou-me qual era meu preço.

O rosto de lady Bellingham mostrou um sinal de esperança.

-E daí respondeste a isso?

-Que seria muito tonta se aceitasse menos de vinte mil!

-Menos de... Querida, onde estão meus sais? Não me encontro nada bem! Vinte mil! Isso é uma fortuna! Deve ter pensado que tinhas perdido o juízo!

-Provavelmente, mas respondeu que me daria vinte mil se renunciasse a Adrian.

Lady Bellingham afundou-se no cadeirão, aspirando os sais.

-E então -concluiu miss Grantham, recordando com satisfação-, comuniquei-lhe que preferia me casar com Adrian.

Um gemido procedente de sua tia obrigou-a a contemplar a afligida dama.

-Preferes Mablethorpe a vinte mil libras? -perguntou sua senhoria com voz trêmula-. Mas se asseguraste-me que não aceitarias sua oferta!

-É claro que não o farei! -exclamou miss Grantham com impaciência-. A não ser que case-me com ele num ataque de ira -acrescentou, sem poder reprimir um sorriso.

-Deb, ou estás louca, ou estou eu! -afirmou lady Bellingham, deixando seus sais-. Oh, não era para pensar duas vezes! Teríamos ficado livres de todas as nossas preocupações! Faz soar a campainha; preciso que me tragam o amoníaco!

Deborah olhou-a atônita.

-Tia Lizzie! Não me diga que pôde pensar por um único instante que permitiria que esse ser odioso me comprasse! -brandiu com respiração entrecortada.

-Kit teria podido pagar sua transferência! Sem mencionar a hipoteca! -lamentou-se sua senhoria.

-Como pode pensar que Kit seria capaz de conseguir seu transferido com... dinheiro sujo...

Preferiria abandonar o exército!

-Mas, querida, estou certa de que não há por que chamá-lo assim, com um nome tão desagradável! Apesar de tudo, não estás interessada pelo jovem Mablethorpe!

-Tia, você não toleraria que eu me deixasse subornar!

-Não, se tratasse de um suborno vulgar, querida Deb! Claro que não! Mas vinte mil? Oh, isso já não posso assegurar!

-Nunca fui objeto de semelhante ofensa! -exclamou Deborah com veemência.

-Não podes considerar semelhante soma como uma ofensa! -objetou sua senhoria-. Se não fosses tão impulsiva! Pensa no pobre Kit! Vai vir a casa de licença, e diz que se apaixonou. Teve alguma vez desgraça semelhante? É muito cômodo falar de ofensas, mas devemos ser práticos, Deb!

Pagamos setenta libras por ervilhas frescas, e você enquanto isso recusa vinte mil libras! E o resultado de tudo isto será que cairás nas mãos de Ormskirk! Já o vejo vir! O único consolo que encontro é que provavelmente morrerei antes que aconteça, porque noto que se aproxima um de meus ataques de espasmos.

Fechou os olhos enquanto falava, resignando-se aparentemente com o seu fim próximo. Miss Grantham manifestou provocativamente:

-Não o sinto em absoluto. Se arrependerá de ter se atrevido a me considerar a classe de pessoa capaz de estender uma armadilha a um inocente rapaz para que se case comigo!

Esta afirmação fez que lady Bellingham abrisse os olhos do novo, e objetasse com um tom confundido:

-Mas contaste que tinhas dito que ias casar com ele!

-Disse a Ravenscar. Isso não significa nada!

-Mas não concebo como pode deixar de se formar essa opinião de ti se disseste que o farias.

-Sim, e também o informei que instalaria minha própria banca de Faraó quando me convertesse em lady Mablethorpe -assentiu miss Grantham se deleitando com estas lembranças-. E que mudaria tudo em Mablethorpe. Parecia desejar me bater!

Lady Bellingham olhou-a com assombro.

-Deb, não me diga que foi tão vulgar!

-Sim, fui. Tão vulgar como pude, e daqui a pouco o serei mais ainda!

-Mas por que razão? -perguntou sua senhoria, elevando a voz.

Miss Grantham engoliu saliva, se ruborizou e murmurou com uma voz infantil:

-Para dar-lhe uma lição!

Lady Bellingham se recostou de novo.

-É inútil dar lições as pessoas. Ademais, não me ocorre o que pode aprender desse comportamento! Espero, queridíssima menina, que não tenhas perdido o juízo! Não consigo imaginar como podes agir de forma tão estranha!

-É para castigá-lo -respondeu miss Grantham, irritada-. Não gostará em de absoluto quando chegue a seus ouvidos a notícia de que Adrian vai se casar comigo. Suponho que tentará impedi-lo por todos os meios a seu alcance.

-Oferecendo-te mais dinheiro? -perguntou lady Bellingham, recobrando o otimismo.

-Ainda que oferecesse-me cem mil libras, as atiraria à cara! -afirmou miss Grantham.

-Deb -disse sua tia com seriedade-, é um sacrilégio falar assim! Que... que, vai ser de mim, criatura sem coração? Não esqueça essa odiosa fatura de Priddy's, e a palha de trigo, e o novo birlocho!

-Já o sei, tia Lizzie -contestou Deborah, cheia de culpa-. Mas verdadeiramente seria incapaz de fazê-lo!

-Terás que te casar com Mablethorpe -suspirou lady Bellingham com desespero.

-Não, não o farei.

-A cabeça dá-me voltas! -lamentou-se sua tia, levando as mãos à cabeça-. Primeiro dizes que Ravenscar se arrependerá quando se inteire de que vais casar com Mablethorpe e agora me asseguras que não estás disposta a se casar com ele!

-Fingirei que vou casar com ele -explicou miss Grantham-. É claro que no final não o farei!

-Bem! -exclamou lady Bellingham-. Que procedimento mais ignóbil! Asseguro que seria totalmente horrível de dar ao pobre rapaz esse golpe baixo!

Miss Grantham sentiu-se culpada e começou a retorcer os laços de seu vestido.

-Sim, mas suponho que não o incomodará, tia Lizzie. Seguramente se alegrará de ter se livrado de mim daqui a pouco, porque há muitas chances de que se apaixone por outra pessoa, e asseguro que não penso ser amável com ele! E em qualquer caso -acrescentou num momento de arrebatamento- bem que o merece, por ter um primo tão odioso!


Capítulo VI


Quando lord Mablethorpe foi admitido na casa de Saint James's Square ficou quase tão surpreendido como satisfeito ao comprovar que miss Grantham tinha uma disposição de ânimo das mais favoráveis. Estava tão acostumado que não lhe levasse a sério e que debochasse da adoração que lhe professava, que mal pôde dar crédito aos seus ouvidos quando, em resposta a suas habituais declarações de amor eterno, permitiu tomar sua mão e cobrir de beijos apaixonados sua delicada mão.

-Oh, minha preciosa Deb, querida! Se concordasse em casar comigo! -suspirou com embaraço.

Ela acariciou suavemente seu cabelo curto e encaracolado.

-É possível que o faça, Adrian.

Naquele momento a paixão comoveu-o e tomou-a entre seus braços.

-Deb! Deb!, não estarás caçoando? É sério?

Ela colocou as mãos contra seu peito, para lhe manter a certa distância. Era tão jovem e tão facilmente vulnerável, que sentiu que o remorço invadia seu coração, e provavelmente teria renunciado a este procedimento de castigar o seu primo se não tivesse recordado que Ravenscar tinha vaticinado que sua paixão juvenil não seria duradoura. Seu conhecimento dos jovenzinhos dava-lhe razões para achar que isto era verdadeiro; e inclusive perguntava-se se isto duraria mais de dois meses. Por este motivo, permitiu que a beijasse, o que fez com bastante torpeza, e deu-lhe a entender que era totalmente sincera.

Naquele momento ele começou a traçar planos para o futuro. E entre eles estava o projeto de realizar um casamento secreto imediatamente. Deborah precisou de algum tempo para convencê-

lo que semelhante comportamento clandestino estava fora de lugar. Ele encontrou um sem número de argumentos que apoiavam seu plano, mas em pouco tempo teve que renunciar a eles, já que eram ofensivos a sua futura mulher. Esta idéia, uma vez alojada em sua mente, surtiu um efeito imediato. Decidiu que sua conduta não colocaria perante o seu círculo algo que envergonhasse miss Grantham. Ao mesmo tempo, continuou suplicando a Deborah que lhe permitisse anunciar seu compromisso nas páginas da London Gazette, e só a duras penas ela pôde impedir que se precipitasse a anunciar a notícia naquele instante. Miss Grantham opunha-se totalmente a isso. Observou que, como era menor de idade, sua mãe tinha a autoridade necessária para desmentir a notícia no número seguinte. Ele concordou que isto não era conveniente, e não teve mais remédio que reconhecer que lady Mablethorpe provavelmente recorreria a essa medida drástica e tão humilhante. Mas acreditou oportuno comunicar a sua família o casamento iminente, e suplicou a Deborah que lhe autorizasse fazê-lo. Esta pensou por um momento em negar, mas a suspeita de que lady Mablethorpe tinha sido a causa da odiosa conduta do senhor de Ravenscar a induziu a ceder. Disse que Adrian podia comunicá-lo a sua mãe, mas com a maior reserva.

-Suponho que terás muitos de problemas -observou ela- e você não desejaria me expor a algo desse gênero, não é assim?

É claro que não! Era o que menos desejava. Ela tinha razão, como sempre.

-Só que, Deb, gostaria de contar a Max. Não terás nada que objetar?

-Em absoluto! -contestou Deborah, com excessiva insistência-. Ficaria encantaria que o comunicasse!

-Maravilhoso! -exclamou, levando a mão de miss Grantham aos lábios-. Já sabia que não se importaria que Max soubesse! Na realidade, sabe o que sinto por você. Esse Max é um tipo formidável! Sempre me tira de apuros, e não me passa sermões como meu tio. Sempre lhe conto minhas coisas.

-Oh! -exclamou miss Grantham.

-Lhe agradará muitíssimo - assegurou sua senhoria-. Na realidade é meu melhor amigo. É um dos administradores de minha fortuna, sabe?

-Não me diga.

-Sim, e essa foi uma das razões pelas quais falei de você querida. Bom, pensei que poderia convencê-lo a que explicasse tudo a minha mãe, mas se negou. Zanguei-me muitíssimo com ele nesse momento, mas suponho que estava certo. Contestei que não o acreditava capaz de me abandonar, mas me assegurou que não estava disposto a fazê-lo. Como vê tudo vai sair às mil maravilhas!

-Então disse isso? -comentou miss Grantham com um estranho tom-. Vá!

Os risonhos olhos azuis de sua senhoria contemplaram-na com um olhar tão límpido e inocente que teve que fazer um esforço para não dizer o que tinha em mente.

-Por que fala com esse tom, Deb? Talvez Max não seja do teu agrado?

Miss Grantham teve que fazer um grande esforço para se controlar. Teria tido muito gosto em relatar a lord Mablethorpe as ofensas que tinha tido que suportar. Isto destruiria para sempre a confiança cega que Adrian tinha depositado em seu primo, e eliminaria qualquer possível influência de Ravenscar sobre o rapaz. Se sentia afeto por Adrian, como parecia, isto inclusive poderia fazê-lo sofrer como merecia. Desgraçadamente, era claro que também entristeceria Adrian. Miss Grantham decidiu, com indubitável estoicismo por sua vez, manter suas relações com o senhor de Ravenscar em segredo. Afirmou que até o momento não tinha tido a oportunidade de conhecê-lo bem.

-Logo o conhecerás melhor -prometeu Adrian-. Também conhecerás a Arabella, é sua meia-irmã.

Chega hoje a Londres, e Max vai acompanhá-la ao baile que se celebrará manhã nos jardins de Vauxhall. Confesso que Max é um caso perdido e se nega a ir a esse tipo de festas como todo mundo!

-Um baile! -exclamou Deborah, tomando uma nova decisão-. Oh, quanto gostaria de ir!

-Verdade? Fala sério, Deb? -insistiu Mablethorpe com veemência-. Não lhe pedi porque sempre se negou a ir a qualquer lugar comigo. Mas o que mais gostaria neste mundo é ser seu acompanhante!

Poderíamos ir de barca desde Westminster. Reservarei um palco em Vauxhall, e passaremos uma noite deliciosa!

A idéia de miss Grantham para que Lucius Kennet e alguma outra dama se unissem a eles já não provocou tanto entusiasmo, mas, ao se dar conta de que não seria decoroso que sua adorada Deborah fosse vista sozinha em sua companhia, concordou de boa vontade, e pouco tempo foi fazer todos os preparativos para garantir o sucesso da noite.

Miss Grantham fez também certos preparativos, e o primeiro deles consistiu em se dirigir a Bond Street para comprar umas fitas encarnadas, e um chapéu tão chamativo como os que sua tia usava.

Imaginou que um traje de pastora e listas verdes e brancas enfeitado com fitas encarnadas constituiria um espetáculo extremamente vulgar. Se isso não bastasse para produzir o efeito desejado, seu chapéu, composto de um pedaço de renda, vários laços, e as três plumas mais vistosas e espetadas que se podia imaginar, não deixaria de conseguir seu propósito.

Lucius Kennet não voltou a Saint James's Square até altas horas da noite. Quando por fim apareceu na sala de jogo, miss Grantham, que estava perto de de onde se davam as cartas na mesa de Faraó , percorreu o salão para saudá-lo, e imediatamente se retirou com ele.

-Lucius -perguntou com impaciência- conhece a alguma viúva vulgar?

Este soltou uma gargalhada.

-Claro que sim. Por que precisas dela, querida?

-Bom, não tem que ser uma viúva -observou Deborah-. Mas pensei que, como minha tia disse que era uma pena que tratasses com tantas viúvas vulgares... O caso é que amanhã vou a Vauxhall com Mablethorpe, e vou precisar tua ajuda. E a da viúva também, claro está.

Como era de esperar, Lucius Kennet não deixou de pedir uma explicação deste pedido. Miss Grantham, que sempre costumava lhe confiar todos seus problemas, conduziu-o então ao salão contiguo, e lhe expôs com brevidade os acontecimentos do dia. Quando teve conhecimento de sua negativa a aceitar as vinte mil libras, assobiou, mas tinha um vivo senso de humor, e a vingança que tinha urdido pareceu tão sugestiva que declarou que não a culpava por tela preferido ao vil metal.

Prometeu que iria ao palco de Mablethorpe com uma viúva que reunisse as condições requeridas, e se foi, rindo entre dentes, a se reunir com um grupo de cavalheiros que tinham sentado ao redor de uma mesa, para testar sua sorte.

Enquanto isso, o senhor de Ravenscar tinha partido feito uma fúria, com uma vontade de vingança tão firme como a de miss Grantham. O fato de que o contrariassem era para ele uma nova experiência, já que, devido à morte de seu pai quando ainda era muito jovem, dispôs da fortuna dos Ravenscar, e tinha estado acostumado durante muito tempo a fazer o que queria. De fato, estava habituado à adulação e ao servilismo mais descarados, duas coisas que desprezava; e já que tanto seu madrasta como sua tia tinham podido comprovar por experiência que tinha vontade própria, nenhuma das duas tinha tentado com verdadeira insistência influir em suas decisões.

Portanto, o fato de que uma garota procedente de uma casa de jogo o humilhasse era algo que não tinha previsto, e, em conseqüência, nunca tinha pensado nos meios para contra-atracar. A atitude intransigente adotada por miss Grantham o tinha surpreendido tanto como irritado; seu orgulho, ofendido a princípio pela necessidade de subornar semelhante criatura, tinha recebido agora uma ferida da qual demoraria a se recuperar. A opinião que merecia a dama era tão desfavorável como a que ela tinha dele; e tinha o firme propósito de resgatar Adrian de suas redes sem que ela conseguisse um único centavo.

Mas ainda que o impulsivo caráter do senhor de Ravenscar fosse violento, não era menos irrepreensível, já que era, como supôs miss Grantham desde o primeiro momento, um homem sensato, ainda que um pouco teimoso. Após recordar com severidade os pormenores de seu encontro com Deborah, viu-se obrigado a reconhecer que seu comportamento não só era inesperado, mas inexplicável. O desgosto provocado por não ter conseguido seus propósitos, e a certeza, num momento de arrebatamento, de que nenhuma quantia seria demasiadamente alta para tirar Adrian de semelhante confusão, o tinham movido a fazer sua oferta final. Mas, no mesmo momento que a fez, arrependeu-se, já que vinte mil libras era uma cifra astronômica, e ao senhor de Ravenscar desagradava que o trapaceassem tanto quanto lhe contrariassem. Mas a importância da soma deveria ter feito ao menos que miss Grantham vacilasse. Sem dúvida, tinha agido como se a levasse em consideração, mas estava convencido de que simplesmente fingia. Ela não tinha a menor intenção de renunciar a Adrian.

Após ter observado seu comportamento com seu primo, Ravenscar estava totalmente convencido de que não sentia o mínimo amor por ele. Só podia supor que se tinha empenhado em conseguir um título, e uma boa posição na alta sociedade. Teve que admitir que não tinha formado este conceito dela em seu primeiro encontro. Refletindo, reconheceu que em conjunto tinha causado uma agradável impressão. Seu olhar era franco, e seu comportamento muito cortês e natural, o que contrastava com os modos que tinha adotado durante seu passeio. O senhor de Ravenscar recordou o brilho de ira que tinha visto em seus olhos, e de novo franziu o cenho. Se as circunstâncias tivessem sido diferentes, se atreveria a imaginar que estava enfurecida. No entanto, a situação que tinha em casa de sua tia, a tirania que exercia sobre um rapaz recém saído da escola, e sua relação com um libertino tão notório como Ormskirk, descartavam esta possibilidade. Chegou à conclusão de que suas atitudes não eram nada claras, e prometeu a si mesmo que frustraria seus projetos. Mas enquanto criava seus planos, uma leve suspeita perturbava sua mente, e em pouco tempo foi aumentada por uma apressada visita de lord Mablethorpe.

Sua senhoria apresentou-se pela segunda vez nessa mesma manhã, menos de uma hora após o regresso de Ravenscar, depois de ter ido até Kensington com os tordilhos. Quando soube que seu primo se encontrava na biblioteca, não esperou para ser anunciado, mas abordou Ravenscar intempestivamente, dizendo com veemência enquanto entrava na habitação.

-Max! sinto muito, estou certo de que não se importará! Acho que não poderei ir com você a Vauxhall manhã!

-Muito bem -respondeu Ravenscar-. Tome uma copo de Madeira!

-Bom, realmente tenho que partir! Entretanto, talvez... Temos que fazer um brindis, Max!

Ravenscar serviu dois copos de vinho.

-Trata-se de algo importante? Quer que tragam o Borgonha?

Adrian riu-se.

-Não, gosto do seu Madeira. Devo comunicar que neste mesmo instante acabo de chegar de Saint James's Square.

Ravenscar fez uma pequena pausa antes de tomar seu copo, e lançou um olhar rápido e penetrante a seu primo.

-Realmente!

-Sim, e por isso vim imediatamente. Precisava vê-lo!

Ravenscar se ergueu de repente e voltou-se para olhar sua senhoria.

-Sim?

-Max, por fim aceitou! -exclamou Adrian com alegria-. Disse que se casará comigo tão logo seja maior de idade!

Ravenscar fixou o olhar no jovem e no rosto que tinha a sua frente, com uma expressão de surpresa.

-Não disse mais nada?

-Deus meu! Isso é todo o que eu desejava ouvir. As coisas que diz! Ela disse que não seria prudente anunciar o compromisso, mas não se opôs a que contasse a você, e a minha mãe, é claro.

-Oh, então não se opôs a isso? Você disse claramente que me contaria?

-Sim, é claro, e respondeu que podia contar com sua permissão para fazê-lo. Max, sou o homem mais feliz do mundo! E essa é a razão por que não posso ir com você a Vauxhall. Estava certo de que compreenderias! Deb tem muita vontade em ir, e eu devo acompanhá-la. Vou reservar um palco e o jantar. Mas primeiro devemos brindar pelo meu compromisso!

Ravenscar alçou o copo.

-Brindo por sua felicidade no futuro -disse.

Adrian bebeu rapidamente o vinho e deixou o copo.

-Bom, devo ir! Suponho que o verei dentro de um par de dias.

-Sem dúvida em Vauxhall. Aceitarias um conselho?

-Sabe que sempre o fiz! -observou Adrian detendo-se com a mão ma maçaneta da porta e voltando-se.

-Não diga nada disto a sua mãe!

-Oh; já é demasiado tarde! Já o fiz! É claro não gosta da idéia, mas espera quando conhecer Deb!

Logo mudará de opinião.

Felizmente, tinha pressa em partir, e não esperou o suficiente para ver a expressão que tinha no rosto de seu primo. Um olhar de cepticismo desdenhoso dava ao senhor de Ravenscar um aspecto um tanto triste, e sem dúvida teria inquietado a seu confiante primo. Mas este partiu despreocupadamente ignorando os pensamentos de Ravenscar, sendo sua única preocupação realizar todos os preparativos para que miss Grantham se divertisse na noite seguinte.

Deixou a seu primo invadido por um tumulto de emoções. A cólera que tinha desencadeado miss Grantham ao ter contra atacado tão rapidamente e a ira ante a imprudência desta ao ter incitado Adrian para que lhe informasse de seu compromisso, entravam em conflito com a leve suspeita que começava a invadir sua mente. Poderia ser que Deborah tentasse obter uma quantidade maior: mas era possível que esperasse conseguir uma soma mais alta que a que lhe tinha oferecido? Ao refletir sobre isto, recordou que em seu primeiro encontro ela tinha provocado o rico senhor de Ravenscar. Miss Grantham tinha estado presente quando apostou uma soma desorbitada; talvez imaginasse que o afeto que ele sentia por Adrian o obrigaria a desembolsar uma fortuna para salvá-

lo. Cedo perceberia que estava equivocada! Mas não tinha informado a Adrian de seu passeio pelo parque essa mesma manhã. Era incapaz de encontrar um motivo que explicasse esta bondade.

Adrian, num ataque de fúria momentâneo, indubitavelmente teria sido capaz de fazer qualquer coisa em defesa da dama. Não tinha nada a temer contando tudo a Adrian, e sem dúvida ela o sabia. Que diabos estava tramando essa meretriz? Poderia ter eliminado inesperadamente qualquer influência que tivesse sobre Adrian e, inexplicavelmente, se tinha abstido de fazê-lo. O

senhor de Ravenscar começou, para o seu pesar, a sentir-se interessado pelo funcionamento da mente de miss Grantham.

Ao saber que Adrian tinha informado a sua tia de que Deborah tinha aceitado sua mão, Ravenscar se preparou para a inevitável reação. Antes que tivesse finalizado no dia, a carruagem brazonada de lady Mablethorpe se deteve em Grosvenor Square, e sua senhoria, com sua imponente figura ataviada de seda púrpura brilhante e enormes plumas, exigiu ser anunciada ao seu sobrinho.

Sua visita coincidiu justamente com a chegada a Tunbridge Wells da senhora e a senhorita de Ravenscar, e ao entrar na casa encontrou-se num vestíbulo invadido por carteiras de viagem, malas e caixas de papelão, que vários criados apressados tentavam retirar com a maior rapidez possível.

Contrariou-se ao comprovar que sua visita era inoportuna, mas, após vacilar um instante, decidiu ficar, e rogou ao mordomo que anunciasse sua chegada à senhora de Ravenscar.

Um instante depois foi cinvidada a subir ao salão, onde pôde ver a seu cunhada recostada num sofá de cetim, aspirando seus sais, e com uma copo de ratafía com água sobre a pequena mesa junto a ela. Falando animadamente com o senhor de Ravenscar junto à janela, sua sobrinha, Arabella, era uma bonita figura, vestida com um traje floreado enfeitado com profusão de fitas, e com um delicado lenço ao redor do pescoço.

A senhorita de Ravenscar parecia pouco com sua mãe, cuja beleza clássica oferecia uma grande palidez e traços pouco expressivos. A senhorita de Ravenscar era morena e pequena, com o rosto mais vivo e travesso que se possa imaginar. Era quase tão morena como seu meio-irmão e bem mais bonita. A curva de seus lábios era encantadora; seus olhos aveluadados brilhavam enquanto falava; e duas covinhas escondiam-se nas dobras de sua boca. Quando viu a sua tia, correu para saudá-la, exclamando:

-Oh, querida tia Selina, estou feliz de voltar a vê-la! Oh, queridíssima tia, confesso que nunca vi um gorro tão horrível! Dá-lhe um aspecto tão temível! Não sei como meu primo permite que use uma coisa tão horrível!

-Arabella, querida! -a repreendeu a senhora de Ravenscar com voz apagada.

Porém o alegre sorriso e o carinhoso abraço de Arabella fizeram desaparecer tudo o que pudesse ter de ofensivo a sua impertinente observação. Lady Mablethorpe deu-lhe umas batidinhas afetuosas, dizendo-lhe que era uma garota muito travessa e se dirigiu ao sofá para beijar a pálida face de sua cunhada. Em seu íntimo, pensou que Olivia podia ter se levantado para lhe dar as boas-vindas, mas não fez nenhum comentário, observando simplesmente que sentia encontrá-la tão abatida.

-Foi a viagem -explicou a senhora de Ravenscar, lamentando-se debilmente-. Já disse a Max que tem que ordenar que revisem as molas da carruagem. Pensei que o vaivém me destroçaria. Rogo que me perdoes por recebê-la sentada no sofá, mas, como sabes o menor esforço me esgota, minha querida Selina. Senta por favor! Que ruidosa está a cidade! Não sei se meus nervos serão capazes do resistir! Já estou afetada por toda esta agitação.

Lady Mablethorpe tinha pouca paciência para semelhante insipidez, mas era uma mulher cortês, e durante alguns minutos escutou, dando evidentes mostras de simpatia, uma descrição dos muitos e variados males que tinham afetado sua cunhada desde seu último encontro.

Arabella interrompeu em pouco tempo os lamentos de sua mãe, exclamando:

-Oh, mamãe, já sabes que não vou permitir que Londres lhe seja demasiadamente cansativa desta vez! Estou tão contenta por estar aqui de novo! Estou disposta a ir a todos os bailes, e festas, e bailes de máscaras, e teatros, e... Oh, a tudo! E sabe que tínhamos combinado que me acompanharia aos melhores armazéns para escolher os tecidos dos meus novos vestidos, já que asseguro que não tenho nada para vestir, e não existe ninguém que tenha tanto bom gosto como você, querida!

A senhora de Ravenscar sorriu ligeiramente, mas respondeu que temia que o esforço afetasse sua saúde.

-Bem, se isso ocorre, Arabella já sabe que pode contar comigo -afirmou lady Mablethorpe com ânimo-. Nada me agradaria mais que me ocupar com menina um pouco. Com freqüência me entristece não ter uma filha.

Isto não era totalmente verdadeiro, mas fez que Arabella a abraçasse com força e a chamasse de queridíssima tia. Lady Mablethorpe convenceu-se plenamente de que seria uma verdadeira lástima que esta encantadora criatura não se convertesse em sua nora.

Este pensamento fez que voltasse a sua mente o objetivo de sua visita, e lançou um olhar tão significativo a Ravenscar que dificilmente pôde passar despercebido. Apesar disso, este se esforçou em simular que não tinha percebido a silenciosa mensagem que lhe tinha sido transmitida, e sua senhoria se viu obrigada a pedir que permitisse falar a sozinha com ele.

-Certamente -respondeu ele-. Faria-me o favor de descer comigo à biblioteca, madame?

Ela aceitou este convite, formulada sem excessiva cordialidade e pediu desculpas à senhora de Ravenscar, prometendo que a visitaria de novo quando estivesse instalada.

Ravenscar conduziu-a ao andar de abaixo, e introduziu sua tia na biblioteca. Esta mal esperou a que ele tivesse fechado a porta para comentar:

-Não me teria atrevido a falar por nada no mundo deste assunto diante de minha querida menina!

Mas aconteceu algo horrível, Max!

-Já o sei -respondeu ele-. Miss Grantham concordou em a casar com Adrian.

-Você disse que iria ver essa mulher, Max!

-Assim o fiz.

-Mas não conseguiu nada! Eu depositei toda a minha confiança em você! Nunca me senti tão humilhada!

-Sinto muito, madame. Meus esforços em seu favor foram até agora totalmente inúteis. Miss Grantham nega-se a aceitar dinheiro.

-Santo Deus! -exclamou sua senhoria, deixando-se cair na cadeira mais próxima-. Então estamos irremediavelmente perdidos! Que posso fazer?

-Não se me ocorre nada que você possa fazer a respeito. É mais conveniente que deixe tudo em minhas mãos. Estou decidido que Adrian não leve a essa mulher ao altar.

Lady Mablethorpe estremeceu-se.

-É horrível?

-É uma rameira desavergonhada -bradou o senhor de Ravenscar com desprezo.

-Realmente, Max! Nunca tive dúvidas! Sempre soube que era uma criatura odiosa. Diga-me como é ela! É bela, ou é Adrian, que em sua insensatez, assim imagina?

-Não, é singularmente bela -respondeu Ravenscar.

-Uma beleza vulgar, suponho? É uma ordinária horrivelmente pintada?

-Não. Não se pinta. Tenho que admitir que não me pareceu ordinária em nosso primeiro encontro.

Tem um trato agradável; suas maneiras são um tanto atrevidas, mas nunca chocantes; tem uma bonita voz, e seu aspecto e seu porte são bastante distintos. No que se refere às aparências, não destoará em absoluto.

-Perdeste o juízo? -exclamou com surpresa sua tia.

-Não. Não o fiz. Precisei, no que se refere às aparências. Mas sob este aspecto, nada desagradável, oculta-se uma harpia.

-Que o céu tenha pena de meu pobre filho! -gemeu lady Mablethorpe.

-Espero que o céu assim o faça; eu de minha parte o farei sem dúvida. Deixe que eu me entenda com ela, madame! Inclusive ainda que veja-me obrigado a seqüestrar Adrian, não permitirei que seja apanhado em suas redes!

Ela pareceu considerar as vantagens desta proposta, e não lhe desgradou em absoluto.

-Acha que daria bom resultado? -perguntou.

-Não.

-Então de que serve pensar em semelhante possibilidade? -perguntou contrariada.

-Não estava pensando nela. Antes preferiria seqüestrar a garota.

-Max! -exclamou sua tia, enquanto uma inquietante suspeita invadia sua mente-. Não me diga que ficou cativado pelo seu odioso feitiço!

-Madame, pode estar perfeitamente tranqüila em relação a isso - assegurou ele com aspereza-.

Não recordo ter conhecido a uma mulher que me fosse tão desagradável!

Isto a tranqüilizou um pouco, mas perguntou:

-Acha que está decidida a se casar com meu pobre filho?

-Não estou certo. É possível que esteja tentando amedrontarnos para que lhe ofereçamos mais dinheiro. O aniversário de Adrian está muito próximo, e ela sabe. Sua decisão de se fazer conhecida demonstra-o.

-Nos veremos obrigados a lhe dar o que pedir -suspirou lady Mablethorpe com resignação.

-Já lhe ofereci vinte mil libras -contestou ele com brusquidão.

O semblante de lady Mablethorpe mudou de cor.

-Vinte mil! Está louco? Nosso patrimônio não pode fazer frente a isso!

-Não há por que alarmar-se! -observou ele com ironia-. Não estava disposto a empenhar a fortuna de Adrian.

Ela o olhou boquiaberta.

-Bem, confesso Max, que nunca pensei que fosse tão generoso! Asseguro que estou muito agradecida, mas...

-Não tem por que me agradecer -a interrompeu-. Ela recusou.

-Deve de ter perdido o juízo!

-Não sei, mas sem dúvida não sabe quem vai enfrentar!

Lady Mablethorpe moveu-se com nervosismo na cadeira.

-Gostaria de ter a oportunidade de conhecer essa mulher.

-Terá se nos acompanhar manhã a Vauxhall. Adrian vai levá-la, ao baile -disse ele, sorrindo.

-Mostrando-se com ele diante de todo mundo! -exclamou ela com indignação.

-Assim é. Ou diante de mim. Não estou certo.

Lady Mablethorpe levantou-se com um olhar decidido.

-Bem, irei com você. Suponho que Olivia se alegrará de que vá em seu lugar. É possível que meu deslumbrado filho se dê conta de seu erro ao ver sua mãe quando estiver de braços com essa criatura!

-Espero que assim seja-respondeu Ravenscar-. No entanto, não apostaria nem um penny.


Capítulo VII


Quando lady Bellingham viu a sua sobrinha na noite seguinte, esteve a ponto de desamaiar. Só foi capaz de olhá-la fixamente com uma expressão de espanto, sem articular palavra.

Miss Grantham tinha entrado em seu quarto para pedir seu ruge, e alguns sinais. O vestido vive bergére sempre tinha causado grande efeito, já que suas faixas verdes tinham quase uma polegada de largura, mas até que sua dona o enfeitasse com fitas encarnadas, tinha sido bastante discreto.

«Era surpreendente», pensou a pobre lady Bellingham, «como parecia diferente pelo simples fato de ter acrescentado algumas jardas de passamaria!» Mas até esses horríveis laços eram insignificantes comparados com a monstruosidade que Deborah tinha decidido colocar sobre seu elaborado penteado. Atônita, lady Bellingham contemplou com incredulidade as três altas plumas que se erguiam sobre um leito de tule, passamaria e renda.

-Tia Lizzie, se não se importar, gostaria que me prestasse suas granadas -lhe pediu miss Grantham suavemente.

Ao fim lady Bellingham pôde contestar.

-Granadas? Com esse vestido? Não podes pô-las! Deb, pelo amor de Deus!

-São justamente o que preciso -observou Deborah, se dirigindo à penteadeira e abrindo a caixa de jóias que tinha em cima dela-. Já verá!

Lady Bellingham tampou os olhos.

-Não quero ver! -exclamou-. Pareces... pareces uma horrível criatura do mundo do circo!

-Sim, eu acho o mesmo -replicou sua sobrinha, aparentemente satisfeita-. Oh, mas olhe, tia! Nada poderia ser mais vulgar!

Lady Bellingham permitiu-se lançar um olhar furtivo as granadas que enfeitavam, brilhantes, o pescoço e as orelhas de Deborah, e gemeu:

-Não pode sair com esse aspecto tão ridículo! Rogo-lhe, Deb, tira esse chapéu tão horroroso!

-Por nada desse mundo! -opôs-se Deborah, pondo um par de pulseiras-. Mas devo maquilar-me um pouco, e pôr algum sinal.

-Já não se usam os sinais! -queixou-se sua tia-. Oh, Deb, que estás tramando? Por favor, por que empoou o cabelo? Parece que tens trinta anos pelo menos! Por Deus, criatura, se faz questão em pôr um sinal, que pelo menos seja discreto, e não essa coisa tão grande e tão vulgar!

Miss Grantham soltou uma gargalhada, e saiu para contemplar-se no espelho.

-Querida tia Lizzie, assegurei-lhe que me tinha proposto a ser vulgar! Tenho um aspecto incrível!

-Deb - suplicou sua tia agoniada- ao menos faça pelo pobre Mablethorpe! Como pode ser tão descortês e sair em sua companhia com esse aspecto tão estranho? Provavelmente desejará que a terra o engula!

-Suponho que não notará nada de estranho -comentou miss Grantham com otimismo-. E se o fizer, não terá nenhuma importância.

A paixão cega de lord Mablethorpe era tal que poderia se ter esperado que não percebesse qualquer defeito no vestido de sua adorada Deborah, mas não era suficientemente cego, para que lhe passasse despercebido o assombroso chapéu. Desde o início, não teve outro remédio que se fixar nele, já que dificultava a entrada de miss Grantham na carruagem que os conduziria a Westminster. Esta se viu obrigada a inclinar a cabeça ao máximo para passar pela porta, e quando se acomodou no assento, pôde ver que as plumas chegavam até o teto da carruagem. Lord Mablethorpe dirigiu-lhes um olhar de desaprovação, mas era demasiado educado para fazer nenhum comentário a respeito.

Alugaram umas embarcações em Westminster para cruzar o rio e a fim de que tudo fosse do agrado de miss Grantham e a excursão causasse o efeito desejado, sua senhoria dispôs, fazendo demonstrando uma grande generosidade, de uma barca com músicos acompanhado. Esta mostra

de extravagância juvenil comoveu miss Grantham, mas esta não pôde evitar de achá-lo um tanto ridículo.

Cedo atingiram os jardins de Vauxhall, que estavam muito em moda naquele momento. Era uma magnífica tarde de outono, mas ainda tinha luz suficiente, os passeios e veredas estavam já iluminados por grande número de lanternas e de lustres que resplandeciam em inumeráveis balões dourados. Lord Mablethorpe conduziu miss Grantham para o centro do jardim de onde, num espaço de grandes dimensões, tinham sido disposto um número de palcos, ou de pequenas cabines para tomar um refresco, em dois largos semicírculos. As cabines ofereciam um aspecto festivo, já que estavam iluminadas e enfeitadas com alegres pinturas. Uma orquestra estava tocando no centro da explanada, e os casais iam e vinham saudando seus conhecidos e reunindo-se a eles, ou para desfilar seus elegantes trajes. Numa grande rotunda próxima estava-se celebrando um baile, e tinham anunciado que mais tarde teria lugar uma exibição de fogos de artifícios.

Quando atingiram a cabines que Mablethorpe tinha alugado para essa noite, viram que o senhor Kennet e sua gentil acompanhante já tinham chegado, e estavam flertando com verdadeiro descaramento. Bastou uma única olhada em miss Grantham para perceber que a senhora Patch era justamente o que precisava. Esta era uma loura fornida de idade incerta, com um rosto muito maquilado, uma voz singularmente queixosa e um riso que sobressaltou Mablethorpe. O senhor Kennet chamava-a Clara, e parecia estar em termos de grande familiaridade com ela. Estava aspirando rapé de sua mão gorducha quando Deborah e seu acompanhante se reuniram a eles, e ao se voltar para dar as boas-vindas aos recém chegados, piscou os olhos atrevidamente para Deborah.

A senhora Patch, ao ser apresentada a Adrian, tratou-o com uma adulação tão exagerada, que foi sumamente repugnante para Deborah. Apesar de sua senhoria se desconcertar momentaneamente devido à companhia com quem se encontrava, era demasiado cortês para manifestá-lo, e no mesmo instante tentou se adaptar ao que a senhora Patch considerava um comportamento agradável. Conseguiu-o a tal ponto que conseguiu que ela ocultasse seu fingido rubor por trás do leque, e o golpeasse travessamente com ele, confessando que era o ser mais engraçado do mundo.

Enquanto acontecia esta cena tão ridícula, Deborah perguntou com espanto a Kennet:

-Deus meu, Lucius, de onde tirou semelhante criatura?

Ele lhe retirou a capa dos ombros.

-Como, não é o que disse que querias, querida? E eu que pensei que tinha acertado!

Ela não pôde reprimir um sorriso.

-Realmente, é insuperável! Mas que ignóbeis somos expondo o rapaz a tanta vulgaridade!

O senhor Kennet, que tinha tido tempo de observar o vestido de miss Grantham em todo seu esplendor, emitiu um de seus vulgares assobios, a contemplando com admiração.

-Falando de vulgaridade, céus...

Ela conteve o riso.

-Eu sei, eu sei! A pobre tia Lizzie está desesperada! Diga-me, Ravenscar veio? Viste-o?

-Não, mas poderemos observá-lo quanto quisermos, e ele a nós. Que Deus tenha piedade dele!

Tenho estado rondando pelas cabines, e encontrei seu cartão na porta daquele palco. Estou certo que não lhe escapará nenhum detalhe.

-Muito bem! -observou Deborah, dirigindo-se à entrada da cabine.

As faixas verdes, que lord Mablethorpe agora contemplava pela primeira vez, eram das mais chocantes, e fizeram que quase empalidecesse. Não estava bastante familiarizado com as sutilezas da moda feminina para pensar que o vestido de sua querida Deborah fosse vulgar, mas desejou que tivesse escolhido uma combinação de cores mais discreta que verde berrante e encarnado. Pensou também que não lhe favorecia o cabelo empoado. Fazia-lhe parecer mais velha, quase uma uma estranha; e quanto ao grande sinal que se destacava junto à boca, não gostava em de absoluto.

Com relação às plumas de seu chapéu, supôs vagamente que deviam ser a última moda, mas não pôde deixar de desejar que tivesse usado um penteado singelo, como costumava fazer.

Perguntou-lhe se gostaria de ir ao pavilhão dançar, mas ela se recusou, dizendo que era bem mais divertido observar a multidão que desfilava em frente a sua cabine. Portanto, Mablethorpe puxou uma cadeira para que se sentasse, e se colocou perto dela, enquanto Lucius Kennet levava a senhora Patch para passear pelo jardim, e ver os jatos de água.

Um número considerável de pessoas conhecidas percorria os jardins, e miss Grantham não demorou em reconhecer à maioria dos clientes habituais do estabelecimento de sua tia. Os palcos começaram a encher-se e, ao pouco tempo, no contiguo ao de Ravenscar, pôde observar sir James Filey, vistosamente vestido com uma jaqueta de brocado vermelho, inclinado sobre uma cadeira na qual estava sentada uma criatura atemorizada, de suaves cabelos dourados e olhos aveludados, apertando com força um leque entre suas mãos enluvadas.

A menina, que era uma formosura, como bem pôde observar miss Grantham, teria quando muito dezoito ou dezenove anos, e o espetáculo que oferecia um libertino da idade e a experiência de Filey olhando-a cobiçoso, fez com que miss Grantham desejasse com toda sua alma poder esbofeteá-lo e o enviar o mais longe possível. Tinha uma dama de aspecto imponente na cabine, que parecia contemplar com aprovação os avanços de Filey; um homem aparentemente irritado que franzia a boca com displicência, e que poderia ser seu marido; uma jovem, irmã da linda criatura, na opinião de miss Grantham; e um homem maduro e corpulento com um rosto insípido, que parecia muito satisfeito de si mesmo.

Miss Grantham chamou a atenção de lord Mablethorpe sobre este grupo, e perguntou-lhe se conhecia à garota. Ele respondeu que não, mas após contemplar à dama, exclamou:

-Oh, deve ser uma das Laxton! A velha bruxa é lady Laxton! E também está seu marido. Suponho que a outra dama deva ser a filha mais velha. No ano passado casou-se com um ricaço decrépito.

Ouvi minha mãe comentar que lady Laxton não se importa de casar suas filhas com quem seja, contanto que tenha dinheiro. São tão pobres como ratos de igreja. Conheço um pouco aos dois filhos. Acho que têm cinco filhas.

-Certamente é uma cruz para qualquer mãe, mas espero que não se proponha casar essa pobre menina com Filey. Olhe como que a pequena está assustada! Gostaria de estar em seu lugar! É

demasiado cândida para ele!

Ele riu.

-Sim! Você o mandaria rapidamente passear! Teus desplantes são proverbiais!

Enquanto falava, abriu-se a porta que conduzia ao palco de Ravenscar, e viu que nele entrava sua mãe, seguida de perto por Arabella e Ravenscar. Exclamou:

-Deus meu! Aí está minha mãe! Não sabia que viria! Não me comentou nada ao respeito. Suponho que tia Olivia terá tido outra vez os espasmos, e se negou a vir. Olhe; Deb! Essa é Arabella: Pequena malandra!

Saudou o grupo com a mão, e tentou atrair sua atenção, mas, ainda que Ravenscar o visse, e correspondesse a saudação, lady Mablethorpe estava muito ocupada indicando a um dos garções onde tinha de colocar sua cadeira e quando tinha que servir o jantar, para notá-lo. Mas Arabella viu seu primo, e ao momento lançou-lhe um beijo. Miss Grantham pensou que Arabella era uma jovenzinha bastante doce, e se maravilhou de que Adrian se tivesse enrabichado por uma mulher cinco anos mais velha que ele, quando uma prima tão encantadora e desejável estava à disposição; sem dúvida, para que se apaixonasse por ela.

Adrian voltou-se.

-Deb, quero levá-la ao palco para que conheça minha mãe! Por favor, venha!

-Com muito gosto -contestou Deborah levantando-se da cadeira e alisando sua larga saia.

Enquanto isso, o senhor de Ravenscar tinha podido desfrutar apenas rapidamente o espetáculo que oferecia. No entanto, tinha sido suficiente para que seu chapéu lhe chamasse tremendaente a atenção, mas só quando a viu se aproximar de sua cabine pelo braço de Adrian, pôde adquirir plena consciência da atroz combinação que formavam as listas verdes, os laços encarnados e as granadas vermelhas. Não era um homem que se preocupasse com a moda feminina mas lhe foi extremamente chocante a diferença entre o aspecto que oferecia essa noite e o das duas ocasiões anteriores. De fato, a tinha considerado uma mulher elegante, por isso ficou atônito ante a extravagância de seu traje. Ao recordar que tinha dito a sua tia que miss Grantham não era vulgar, tocou-lhe o braço, comunicando com certa aspereza:

-É conveniente que se disponha a conhecer a sua futura nora. Adrian vem com ela para o nosso palco neste instante.

Lady Mablethorpe voltou-se imediatamente, e se sobressaltou, consternada, ao contemplar semelhante espetáculo. Só teve tempo de lançar um olhar fulminante em direção ao seu sobrinho antes que Adrian se inclinasse sobre a entrada do palco para saudar Arabella, dizendo:

-Alegro-me tanto de vê-la de novo! Tinha a intenção de fazer uma visita a Grosvenor Square esta manhã, mas não foi possível. Mamãe, não sabia que virias esta noite! Trouxe Deb para que a conhecesse!

A ofendida dama fez uma leve inclinação de cabeça, e manifestou com voz gélida que se alegrava em conhecer miss Grantham. Esta, para grande surpresa por parte de seu noivo, soltou uma risada forçada, e ocultou o rosto, pronunciando um discurso memorável.

-Oh, vamos, madame... perdão, sua senhoria! Certamente é tremendamente condescendente ao dizer isso! Confesso que estou tremendo como um pudim por estar aqui em frente a minha futura mamãe! Mas Adrian empenhou-se em que viesse falar com você, e eu me disse... bom, pensei, se não há mais remédio, mais vale passar o mau momento agora mesmo, porque, como se diz, eu sempre estive disposta a aceitar meu destino! Então já está! Estou certa que apesar de tudo seremos grandes amigas.

-É claro! -respondeu lady Mablethorpe friamente.

-Oh, sim, madame! Estava certa de que era um ogro, e me tremiam as pernas quando Adrian me disse que estava aqui. Mas juro e perjuro que quanto a vi soube que a apreciaria como a minha própria mãe! E depois, a amabilidade com a que disse que estava encantada em me conhecer... Ai, nunca imaginei que uma pessoa de tão alta linhagem pudesse ser tão compreensiva comigo!

O senhor de Ravenscar esboçou um sorriso. Nada superava a aversão que sentia por miss Grantham, mas não lhe faltava senso do humor e teve que fazer um verdadeiro esforço para não rir. Se seu propósito era convencer lady Mablethorpe de que nenhum valor era demasiado alto com para resgatar seu filho de suas garras, se saía muito bem, já que uma expressão de profundo desagrado apareceu no rosto severo de sua senhoria, que se esforçava por todos os meios em responder com cortesia.

Enquanto isso, Arabella contemplava miss Grantham com grande surpresa.

-Valha-me Deus! Vai casar-se com Adrian? -exclamou, com essa espontaneidade que sempre deplorada por sua mãe-. Ninguém me tinha dito nem uma palavra do assunto.

Miss Grantham recordou o uso que fazia a senhora Patch do leque, e abriu o seu, ocultando-se por trás dele.

-Oh, que vergonha, miss Ravenscar! Por favor, não me faça ruborizar!

-Mas vai fazê-lo, ou não? -perguntou Arabella.

-Menina, já está bem! -exclamou sua tia.

-Claro que vai casar comigo -manifestou Adrian com resolução-. Não deseja que sejamos felizes?

-Sim, certamente! -respondeu Arabella, dirigindo um olhar receoso à miss Grantham-. Desejo que sejam muito felizes!

-Adrian! -disse sua mãe com gravidade-. Gostaria de falar com miss Grantham. Rogo-lhe que vá dançar com sua prima enquanto ela se senta aqui comigo durante meia hora.

Lord Mablethorpe, esperando fervorosamente que o nervosismo fosse a causa do estranho comportamento de miss Grantham ao ser apresentada a sua mãe, e que este cedo desaparecesse quando as duas damas se conhecessem melhor, aceitou de boa vontade a sugestão, e disse que acompanharia miss Grantham até a entrada da cabine. Esta, com uma risada, comentou que achava absurdo dar toda a volta até a porta, quando era perfeitamente capaz, com a ajuda de Adrian, de saltar o muro da parte da frente. No entanto, afirmou que se veria obrigada a se comportar corretamente, já que ia se converter em viscondessa, e concordou em entrar pela porta da cabine.

Quando por fim entrou de forma ortodoxa, o senhor de Ravenscar abandonou a cabine. Não demoraria muito tempo antes que a enfrentasse de novo, e sem dúvida desfrutaria fazê-lo, mas não estava disposto a interferir nos planos que sua tia pudesse ter em mente para derrotar essa descarada.

Voltou ao palco uns minutos antes que Adrian regressasse com Arabella. Bastou-lhe com um olhar às duas damas para compreender que miss Grantham não tinha sofrido nenhuma derrota. Lady Mablethorpe estava totalmente derrotada, e dirigiu a seu sobrinho um patético olhar de súplica.

Tinha-se visto obrigada a suportar a meia hora mais enervante de sua vida. Tinha feito um sermão a miss Grantham para mostrar-lhe a diferença de classes que existia entre Adrian e ela, e como se sentiria incômoda na alta sociedade. Mas, aparentemente, tinha errado em seu admirável propósito. A jovem tinha contestado com a maior rapidez, e a franqueza mais chocante, a todas as perguntas que lhe tinha dirigido. Durante toda a entrevista, tinha ignorado as claras manifestações de desaprovação que emitira. Tinha dado mostras de grande volubilidade, de descaramento, e de uma horrível vulgaridade; tinha confessado sua paixão pelo jogo em suas mais diversas formas; descreveu com todo detalhe as impressões de várias corridas de cavalos que tinha assistido e manifestou seu desejo de abrir uma banca de Faraó seleta em Brook Street. Não contente com isto, tinha olhado com descaramento a vários dandis, e tinha declarado ter grande familiaridade com três dos libertinos mais conhecidos da cidade. Foi um verdadeiro pesadelo para sua senhoria e esta saudou a chegada de seu sobrinho com profundo alívio. Miss Grantham assegurou-lhe que lady Mablethorpe e ela eram agora grandes amigas.

Ravenscar recebeu esta notícia com um gesto de assombro, sorriu levemente, e voltou-se para fazer um comentário banal a sua tia. A seguir, voltaram Adrian e Arabella ao palco, e os dois grupos separaram-se.

-Como te atreveste a dizer que não era vulgar! -foi a única coisa que pôde observar sua senhoria a princípio; com um tom de amarga reprovação.

-Disse-lhe a verdade. Não era vulgar quando a conheci. Sem dúvida seu comportamento desta noite foi fingido.

-Fingido! Por que, santo Deus, se deseja obter meu consentimento para o casamento?

-Me atreveria a afirmar que não deseja tal coisa. Com toda segurança tem intenção de nos obrigar a aumentar a soma.

-Qualquer que seja que nos peça, teremos de lhe entregar -exclamou sua senhoria, com grande agitação.

-Nego-me! -contestou o senhor de Ravenscar-. Oh, não se alarme, querida tia! Não permitirei que se case com Adrian!

-Como terá sido capaz?! -Estremeceu-se-. Olha-a! Olha que mulher tão horrível está em sua companhia.

Arabella, que seguia a conversa com grande interesse, observou:

-Bom, é verdade que foi extremamente vulgar, tia Selina, mas não posso deixar de sentir certa simpatia por ela, porque tinha um olhar muito vivo, e Adrian me confiou que nunca esteve tão contida, por isso talvez não seja tão má apesar de tudo!

-Contida! -exclamou lady Mablethorpe-. Não me deu essa impressão! Acha-a contida agora mesmo?

Neste momento miss Grantham encontrava-se sentada em seu próprio palco, e ria-se sem comedimento de algum gracejo de Lucius Kennet. Seu perturbado pretendente ria-se, mas sem nenhuma convicção. Sua paixão impedia-lhe admitir que ela pudesse se equivocar, mas desejou com todas suas forças que não risse com tanta força e que não flertasse dessa forma com seu leque. Com a preciosa ajuda de Kennet e da senhora Patch, miss Grantham conseguiu atrair a atenção de todo mundo, de maneira que ele se alegrou muito quando terminaram o jantar, escolhido com todo cuidado, e pôde propor um passeio pelos jardins.

Miss Grantham, que estava totalmente esgotada, concordou de boa vontade, e seu comportamento foi tão encantador, que não demorou muito tempo antes que ele esquecesse sua conduta anterior. Imaginou que tinha sido tudo produto da tensão e do nervosismo ao ser apresentada a sua mãe, e não prestou mais atenção ao assunto. Se abstraísse os laços encarnados e o monstruoso chapéu, Deborah voltava a ser a mesma de sempre, e Mablethorpe passou meia hora agradável em sua companhia, passeando com ela pelos numerosos caminhos dos jardins, e lhe declarando seu amor apaixonado.

Já tinha escurecido, e as luzes coloridas sobressaiam sobre o céu escuro. Lord Mablethorpe encontrou um assento num caminho afastado, e persuadiu Deborah para que se sentasse um momento. Começou a descrever-lhe sua casa, declarando timidamente que desejava que o campo não fosse muito monótono; e acabava de pedir-lhe que o acompanhasse um dia a Mablethorpe, que se encontrava a pequena distância de Londres, quando foi interrompido por um soluço.

Deixou a frase sem concluir, olhando ao seu redor, mas não pôde ver a ninguém.

-Pensei que tinha ouvido a alguém chorando disse a miss Grantham-. Não ouviu nada?

Não tinha ouvido, mas, enquanto lhe respondia, pôde ouvir de novo um gemido, cuja origem parecia estar próxima.

-Acha que é preferível que partamos? -sussurrou sua senhoria, alarmado.

-Partir? Certamente que não! Alguém se encontra em apuros! -replicou miss Grantham levantando-se e esquadrinhando o caminho.

Outro profundo soluço chegou a seus ouvidos. Parecia proceder de um dos pequenos abrigos que estavam espalhados pelo parque. Miss Grantham dirigiu-se a este e entrou, destacando sua esbelta silueta nas luzes que tinha por trás dela. Sua chegada provocou um suspiro de sobressalto, seguido de um silêncio sepulcral.

-Há alguém aqui? -perguntou, tentando ver na escuridão-. Posso ajudar em algo?

Uma vozo assustada contestou:

-Por favor, parta!

Naquele momento a vista de miss Grantham tinha se acostumado à escuridão, e pôde distinguir uma forma difusa, encolhida numa cadeira junto à parede do fundo. Dirigiu-se, para a figura difusa, e disse com amabilidade:

-Mas, querida, não posso ir e a abandonar tão abatida. Vamos, não posso lhe servir de consolo?

Produziu-se um momento de tensa vacilação; depois, a voz exclamou desconsoladamente:

-Ninguém me pode ajudar! Gostaria de estar morta!

-Deus meu, é tão grave? -perguntou miss Grantham, sentando-se junto à pálida figura, e atraindo-a para si-. Não vai me dizer do que se trata?

Em vez de satisfazer sua curiosidade, a figura apoiou a cabeça em seu ombro e começou a chorar.

Enquanto miss Grantham tentava proporcionar algum consolo ao seu infortúnio, lord Mablethorpe tinha desprendido uma das lanternas coloridas, situadas fora do abrigo, e entrou com ela. Sua luz rosada iluminou a figura que estava nos braços de miss Grantham, um rosto agoniado se voltou para sua senhoria e este pôde ver que pertencia à graciosa menina que tinham visto no palco de lord Laxton.

-Você deve ser miss Laxton! -exclamou.

Miss Laxton tinha a rara sorte de que as lágrimas não a enfeiavam. Brilhavam sobre seus cílios, e inundavam seus olhos azuis, mas não deixaram suas impressões sobre sua delicada tez, e não avermelhavam a ponta de seu fino nariz. Ela sussurrou, com voz entrecortada:

-Sim, sou Phoebe Laxton. Quem é você?

-Sou Mablethorpe -respondeu sua senhoria, pousando a lanterna encima de uma singela mesa, e aproximou-se a ela-. Conheço um pouco seus irmãos. Rogo-lhe que nos diga como podemos a ajudar.

Os lábios de miss Laxton estremeceram, e de novo seus olhos encheram-se de lágrimas. Ocultou seu rosto.

-Não podem me ajudar. Ninguém pode! Sinto realmente causar preocupações! Pensei que ninguém me encontraria aqui.

-Não chore! -disse miss Grantham-. Talvez fugisse de sir James Filey?

Miss Laxton pareceu surpreendida, e balbuciou:

-Oh, como o adivinhou?

-Nosso palco está em frente ao seu, querida. Vi como se inclinava sobre sua cadeira, e pensei que não lhe agradava nada tê-lo tão perto.

Miss Laxton estremeceu e levou o lenço aos lábios.

-Queria portar-me bem! -conseguiu dizer por fim-. Asseguro-lhe que sim! Mas é tão odioso! E

quando me levou para passear pelos jardins, eu... eu decidi que cumpriria com meu dever. Mas quando pediu minha mão e... me beijou, eu não pude suportá-lo, e fugi! Oh, que posso fazer?

-Está claro é que não se casará com Filey! -afirmou lord Mablethorpe, indignado.

-Não me entendem -suspirou miss Laxton com tristeza-. Somos mais três em casa, e mamãe... e mamãe, compreendem, me obrigará a isso!

-Ninguém pode obrigá-la a se casar contra a sua vontade - assegurou miss Grantham-. O única coisa que tem que fazer, querida, é se manter firme!

No momento em que falava, se deu conta de que ainda que tivesse uma grande doçura no lindo semblante de miss Laxton, não tinha a mínima decisão. Era evidente que Phoebe Laxton era uma criatura dócil, a quem se podia dominar facilmente, ainda mais se fosse intimidada.

-Você não conhece a minha mamãe - assegurou Phoebe, ingenuamente-. Se zangará tanto, e não posso suportar que as pessoas se zanguem comigo! Até papai diz que é minha obrigação.

Compreenda, sir James é muito rico, e oferecerá um dote extremamente generoso e... só que, me dá medo, e quando me beijou me dei conta de que não seria capaz de fazê-lo!

Lord Mablethorpe sentou-se a seu lado, e tomou sua mão.

-Certamente que não! Mas não tem a ninguém que esteja do seu lado?

A mão de Phoebe tremeu levemente na sua, mas não a retirou.

-Só minha tia Honoraria, mas vive bem longe, e além disso é uma inválida e não poderia vir a Londres. Papai tem-lhe bastante respeito, e ela lhe escreveu, mas... as cartas não . causam muita impressão. Pensei que se pudesse fugir para casa de minha tia, ela me ocultaria de papai e mamãe, ou encontraria algum meio de impedir. Mas depois dei-me conta de que não tenho dinheiro, e tudo me pareceu irremediável, e... por isso me pus a chorar.

O olhar de Adrian e Deborah cruzaram-se acima de sua cabeça.

-Deb, não poderíamos...? É horrível imaginar semelhante criatura unida a esse desalmado!

A mão de Phoebe estremeceu na sua.

-Oh, estão dispostos a ajudar-me? Pensei que ninguém poderia fazê-lo! -manifestou com voz entrecortada.

-Se voltar com sua família estará perdida! -assinalou, Adrian.

-Sim, temo que assim seja -admitiu miss Grantham-. Confesso que gostaria de atrapalhar os planos de Filey.

-Temos que afastá-la daqui -disse Adrian com decisão. Inclinou-se sobre a cabeça loura-. Estará a salvo com miss Grantham. Ela cuidará de você, e planejaremos para enviá-la a casa de sua tia.

Miss Laxton se ergueu, e em seu rosto apareceu um ligeiro rubor.

-Oh, é verdade que irão me ocultar? Nunca pensei que alguém pudesse se preocupar por minha sorte! Que bondosos são vocês! São tão amáveis!

Adrian também se ruborizou, dizendo em baixa voz:

-Nada disso! Qualquer um ficaria encantado de poder lhe fazer um favor! Pode confiar plenamente que nós cuidaremos de você. Prometo-lhe que Filey não voltará a incomodá-la!

-Sinto-me tão segura com você -suspirou miss Laxton olhando-o com adoração.

Miss Grantham, absorta em seus pensamentos durante alguns minutos, tomou nesse momento uma decisão, e exclamou com voz risonha:

-Bem, já está decidido! Virá para casa comigo, querida, e lá decidiremos o que for mais conveniente. Adrian, acha que poderemos sair de aqui desapercebidas?

Ele lhe dirigiu pu afetuoso olhar de agradecimento.

-És única, Deb! Estava certo de que não te negarias! Confia em mim; as tirarei pela porta mais próxima!

Era evidente que seu aspecto resoluto tinha impressionado favoravelmente miss Laxton.

Considerava-o um enviado do céu, e parecia satisfeita de confiar-lhe sua sorte. No entanto, miss Grantham teve que fazer os preparativos para a fuga, e o fez dando instruções a sua senhoria para que regressasse ao palco e recolhesse sua capa, comunicando ao senhor Kennet e a senhora Patch que tinha uma enxaqueca, e que voltava para casa imediatamente.

Enquanto ele cumpria a missão encomendada, as duas damas permaneceram no abrigo; miss Laxton bastante aturdida por este inesperado resgate, e miss Grantham fazendo planos que possivelmente teriam surpreendido, ainda que não desagradavelmente, a sua acompanhante se esta tivesse tido conhecimento deles.

Adrian regressou em pouco tempo com a capa de miss Grantham e seu próprio casaco. Deborah envolveu miss Laxton com a capa, que lhe ficava muito grande, e colocou capuz sobre seus cabelos louros. Ela, por sua vez, concordou em pôr o casaco, informando a sua senhoria de que ser um cavalheiro andante acarretava certas servidões. Ato seguido, dirigiram-se à saída do parque, sem tropeçar com nenhum conhecido, cruzaram o rio até Westminster em uma barca, e ali tomaram um carro de aluguel que os conduziu sãos e salvos a Saint James's Square. Ali sua senhoria separou-se delas, prometendo, não obstante, que faria uma visita a manhã seguinte a primeira hora. Beijou a mão de ambas ao pé das escadas primeiramente, e miss Laxton disse timidamente que não sabia como lhe agradecer por sua amabilidade. Miss Grantham, que em seu íntimo achava que se tudo tivesse dependido de sua senhoria, miss Laxton teria ficado no abrigo chorando amargamente, enquanto ele, alarmado, fugiria com cautela, esperou pacientemente que finalizasse esta comovedora despedida, e não chamou à porta até que sua senhoria se despedisse pela última vez.

Silas Wantage, ao abrir a porta a sua ama, contemplou com surpresa à figura encapuzada que a acompanhava, e dirigiu um olhar inquisitivo a Deborah.

-Bem, que aconteceu? -perguntou.

-Trouxe a uma amiga para casa, Silas. Há muitos convidados esta noite?

-Uns quantos. Não me diga que está fazendo das suas outra vez, miss Deb, porque me nego a acreditar!

-Isso agora não importa! -exclamou miss Grantham, esboçando um sorriso-. É conveniente que ninguém saiba que estou em casa. Não tenho intenção de descer aos salões esta noite. Diga a Betty que vá ao meu quarto imediatamente! Venha, querida! Subiremos pela escada de serviço, e ninguém poderá nos ver. Oh, Silas, lembre-se! Quando voltei a casa não tinha ninguém comigo!

-Absolutamente ninguém -repetiu Wantage com fidelidade-. Não descansará até que a metam no cárcere, mas asseguro que não penso terminar meus dias ali, e falo sério. Que vai se fazer! Vá, senhorita, e confie no velho Silas.

Ato seguido, miss Grantham acompanhou sua convidada ao seu quarto, no segundo andar, pela escada de serviço, e em pouco tempo chegou sua criada, que levava uma candela na qual acendeu as velas. Apesar de a garota ficar um pouco surpreendida ao descobrir que a visita inesperada não trazia consigo nem uma carteira de noite, escutou sem reclamar da complicada história que lhe relatou sua ama a respeito de baús, pacotes, e um cocheiro sem escrúpulos, e não fez nenhuma objeção quando lhe pediu, a altas horas da noite, que preparasse o quarto de visitas, e que colocasse o esquentador entre os lençóis.

Enquanto isso, miss Laxton tinha tirado o casaco, e tentava arrumar seus cabelos despenteados.

Quando Betty abandonou o quarto, se voltou, dizendo impulsivamente:

-Querida senhora, sei que estou lhe ocasionando muitos incômodos, e que não deveria estar aqui, mas estou tão agradecida!

-Que disparatada criatura! -disse miss Grantham-. Faz tempo que tenho que saldar com Filey uma conta pendente. Mas não sei se foi acertado trazê-la a esta casa. Talvez devesse ter explicado que minha tia celebra, digamos, partidas de cartas.

A reação de miss Laxton não correspondeu a suas expectativas, já que pareceu considerar este detalhe como algo romântico, em vez de se lamentar por ele. Fez muitas perguntas a respeito do estabelecimento, e confessou com um pouco de inveja que ela também teria gostado de presidir uma mesa de E.Ou. Nunca tinha encontrado nada desse estilo, segundo explicou. Sua vida tinha sido muito monótona, compartilhando uma professora terrivelmente severa com suas irmãs, e completamente dominada por sua mãe. Opinou que não faria mal papel numa casa de jogo, já que era muito aficionada às cartas, e com freqüência tinha jogado durante horas e horas a loteria e ao quatrilho. Era verdadeiro que não sabia jogar o Faraó , mas falou com esperança que cedo aprenderia. No entanto, a notícia de que sir James Filey era um cliente assíduo do estabelecimento de lady Bellingham, a induziu a abandonar a idéia de oferecer seus serviços nos salões de jogo.

Miss Grantham, que enquanto isso tinha estado buscando algo em seu armário, voltou-se, levando sobre o braço uma de suas próprios camisolas.

-Temo que fique muito grande -disse-, mas terá que se conformar com elapor esta noite. Amanhã me ocuparei de conseguir alguma roupa.

-Oh, não tinha pensado nisso! -exclamou Phoebe-. Só tenho o que estou vestindo e como vou viajar até Gales em vestido de festa? Deus meu, vou ser um incômodo para você, senhora! Mas sem dúvida minha tia a recompensará, lhe prometo!

-Gostaria que me chamasse Deb -disse miss Grantham-. E quanto à viagem a Gales, tenho estado pensando, e acho que me ocorreu algo melhor ainda.

-De que se trata? -perguntou Phoebe sentando-se à beira da cama, e juntando as mãos em sua regaço-. Estou disposta a fazer tudo o que você e lord Mablethorpe considerem oportuno.

-Bom, parece-me -disse miss Grantham- que se for para casa de sua tia, é muito provável que seu pai vá buscá-la. Seria muito melhor que não soubesse onde estás. Amanhã pela manhã lhe escreveremos uma carta. Nela explicará que não deseja se casar com sir James...

-Mas se já o sabe.

-Muito bem, lho recordarás de novo. Dirás que fugiu para a casa de uns amigos que vão levá-la ao campo, e que não voltarás até que tenha colocado um anúncio no Morning Post, dando a entender que não te obrigará a casar com sir James.

Phoebe pareceu vacilar.

-Sim, mas meu papai é tão obstinado que suponho que não o fará.

-Que disparate! Se não consegue te encontrar, e sem dúvida não o conseguirá, não terá mais remédio que fazê-lo.

-Se zangará muito -disse Phoebe com um estremecimento.

-Não. Ficará contente de que voltes para casa. Além disso, não ficaria igualmente zangado se você fosse para casa de tua tia?

-Sim, certamente! Você acredita que teria sido melhor que não tivesse fugido de casa? Tudo foi tão precipitado que não tive quase tempo para pensar, e agora me dou conta de que faça o que fizer se zangarão comigo, além disso, não tenho amigos; portanto, onde vou?

-A nenhum lugar, tonta! Ficará aqui comigo até que teus pais cedam, ou até que lord Mablethorpe e eu tenhamos pensado o que vamos fazer com você.

-Oh! -disse Phoebe dando um suspiro-. É verdade! E talvez depois poderia virar uma professora, ou atriz, ou algo pelo estilo, e não voltar para casa nunca, nunca mais!

-Com relação a isso -respondeu miss Grantham diplomaticamente- teremos que consultar lord Mablethorpe.

-Oh, sim! Ele saberá o que tenho que fazer! -assentiu Phoebe confiadamente.

Miss Grantham, que não tinha tanta fé no critério de sua senhoria, decidiu em seu íntimo que lhe daria as instruções necessárias, e acompanhou miss Laxton ao quarto de hóspedes, a ajudou a se despir, e a se vestir cuidadosamente.


Capítulo VIII


Quando lady Bellingham, que se encontrava na cama saboreando uma caneca de chocolate, foi informada na manhã seguinte por sua sobrinha de que tinha trazido para casa uma convidada, se interessou logicamente pela identidade de sua hóspede. Ao saber que se tratava da honorável Phoebe Laxton em pessoa, e que sua visita se prolongaria indefinidamente, posou a caneca e o prato, contemplando Deborah com verdadeira preocupação.

-Deb, querida, encontras-te bem? -perguntou com ansiedade-. Nunca me tinhas contado que conhecesse os Laxton, além disso, não me explicou por que um de seus membros desejaria ficar aqui, quando têm uma magnífica casa própria.

-Não conheço aos Laxton -respondeu miss Grantham, com um olhar vivo-. Não tinha visto na minha vida essa criatura até ontem. Devo informar-lhe que a estou ajudando a fugir de uma escandalosa perseguição.

-Deus meu, como se não tivéssemos suficientes problemas! -gemeu sua tia-. Asseguro que não entendo nem uma palavra do que está me contando, criatura desnaturada!

Deborah riu-se, e sentando-se junto à cama, relatou os acontecimentos da noite anterior. Sua senhoria ficou horrorizada, e respondeu-lhe que era pouco menos que uma seqüestradora. A seguir, suplicou que considerasse o risco que corria ao ofender não só a um homem da posição social de Filey, mas também aos pais de miss Laxton, e manifestou a certeza de que tinha perdido o juízo.

-Além disso, Deb, que vamos fazer com a garota se seus pais não cederem? -perguntou razoavelmente.

Miss Grantham, com um olhar malicioso, afirmou:

-Bom, querida tia, já fiz meus planos para o futuro de Phoebe.

Lady Bellingham contemplou-a com desassossego.

-Quando vejo esse olhar em seus olhos, sei positivamente que meteu alguma ideia maluca na cabeça! Que explicação vou dar a lady Laxton, se vem perguntar por sua filha?

-Minha querida tia Lizzie, estou certa de que lady Laxton não pensará em vir precisamente a esta casa para buscar a sua filha! A propósito, enquanto fique conosco, seu nome será miss Smith, pois talvez os criados não guardem a devida discrecão.

-Sim, mas quanto tempo vai ficar aqui conosco? -perguntou sua senhoria-. Não lhe ocorre outra coisa que encher a casa de convidados quando nem sequer temos dinheiro suficiente para pagar a fatura do carvão! E além disso, o pobre Kit chega na semana que vem! Vamos arruinar-nos! E devo informar-lhe que Ormskirk esteve aqui ontem à noite, e quando me perguntou onde estavas, asseguro que não soube o que responder! Mas suponho que adivinhou, porque comentou com certa brusquidão que, como podia observar, Mablethorpe também tinha se ausentado. Deus meu, que grande confusão nos metemos, querida, e você ainda torna mais difícil com estes disparates a respeito de miss Laxton, e não precisamos recordar que enfureceste Ravenscar, além de se comportar tão espantosamente em Vauxhall; garanto que me envergonho de ser responsável por você! Mas, onde está a garota em questão?

Miss Grantham ofereceu-se para trazer Phoebe para que a conhecesse. Lady Bellingham afirmou que não tinha nenhum desejo de vê-la, mas que, como se via obrigada a alojá-la durante o resto de sua vida, como sem dúvida teria de fazer, supunha que era conveniente conhecê-la. Portanto, miss Laxton foi conduzida ao quarto de sua anfitriã, sua pequena figura envolvida numa bata de Deborah, e lady Bellingham disse a sua sobrinha que, apesar de que não entender absolutamente nada, seria conveniente que pusesse o chapéu imediatamente, e saísse para comprar alguma roupa para a pobre criatura. E quanto a Filey, se pensava que se ia ficar de braços cruzados enquanto ele devorava semelhante manjar, lady Bellingham manifestou que em alguma ocasião lhe diria com muito prazer três ou quatro coisas, porque estava certa de que era um ser desagradável e desalmado, e desde o primeiro dia não lhe tinha inspirado nenhuma confiança.

Miss Grantham compreendeu, graças a estas afirmações, que sua tia tinha se resignado a acolher este novo e inesperado membro em sua família, por isso beijou a face da sofrida dama, e partiu para encher o armário de Phoebe. Ao meio dia Phoebe, vestida com um traje de musselina azul claro, pôde por fim abandonar a solidão de seu quarto; e quando chegou lord Mablethorpe para fazer a visita prometida, ela se encontrava sentada com Deborah no pequeno gabinete situado na entreplanta.

Lord Mablethorpe aprovou com entusiasmo o plano de Deborah de que Phoebe permanecesse em Saint James's Square, e não pôde deixar de se sentir muito comovido pela confiança que esta tinha depositado em seu julgamento. Fazia com que se sentisse mais velho e responsável, e quando assimilou todas as sugestões de sua querida Deborah, começou a pensar que estas lhe tinham ocorrido. Ajudou-as a redigir uma carta adequada para lord e lady Laxton, que depois Phoebe copiou com sua melhor letra, exclamando que daria qualquer coisa por ver a cara deles quando a recebessem. Ao imaginar a cena, soltou uma risada. Depois, sua senhoria perguntou se era verdade que o honorável Arnold Laxton tinha se arruinado em Epsom, e miss Laxton respondeu que assim era, acrescentando que, desgraçadamente, Arnold sempre apostava em cavalos que caíam, ou rompiam uma pata, e que esta era a razão porque era tão importante que ela encontrasse um bom partido. Com este intercâmbio de impressões, estabeleceram uma longa conversa e, já que ambos procediam do mesmo ambiente e conheciam mais ou menos às mesmas pessoas, não passou muito tempo antes de que se tivessem tornado excelentes amigos, criticando cruelmente a seus familiares, o que provocou sua hilaridade.

Lady Bellingham, ao entrar um pouco depois na sala e visto como sua sobrinha estava tranqüilamente cozendo junto à janela, enquanto lord Mablethorpe e miss Laxton, sentados no sofá, faziam confidencias, se alarmou. Aproveitou a primeira oportunidade para advertir a sua sobrinha que se não agisse com precaução, não só perderia Mablethorpe, mas também as vinte mil libras que tinha recusado tão precipitadamente.

-Bom, não tenho nenhum interesse por Mablethorpe -disse miss Grantham com uma tranqüilidade exasperante-. Acho que seria maravilhoso deixasse de me amar se apaixonasse por Phoebe.

-Seria maravilhoso se tivéssemos vinte mil libras -observou lady Bellingham judiciosamente-. Mas como estamos cheias de dívidas, é uma catástrofe! Querida, tenho estado tentando fazer as contas, e faça o que fizer, não posso modificar o resultado! No ano passado perdemos sete mil libras por dívidas não pagas!

-É muito provável -observou miss Grantham-. Isso aconteceu por permitir que as pessoas apostem a crédito na mesa de Faraó . Sempre estive convencida de que não deveríamos fazê-lo.

-É tudo tão difícil! -suspirou sua senhoria-. Compreendo totalmente quão embaraçosa é a sua situação, Deb, mas se Ravenscar fizesse sua oferta de novo, o que considero muito provável, e se você se comportou tão mal como me disseste, não achas que poderias...?

-Não -respondeu miss Grantham com decisão-. Não aceitaria nem um penny desse homem por nada no mundo! Ademais, assegurou-me que retirava definitivamente sua oferta, e estou certa de que falava seriamente. Acho que tentará derrotar-me por outros meios.

-Santo Deus! -exclamou sua senhoria estupefata-. Nem diga isso, querida! Parece estar disposto a nos arruinar! Seria um inimigo extremamente perigoso!

-Eu também posso ser perigosa -replicou miss Grantham-. Cedo terá ocasião de comprová-lo! Faça o que fizer, o contra-ataque será pior ainda.

Lady Bellingham gemeu, e dirigiu-se com passo vacilante a sua penteadeira para recobrar os ânimos, aspirando amoníaco e água. Sua mão tremeu de forma lastimosa enquanto jogava umas gotas em seu copo, e de novo observou que não tinha a menor dúvida de que sua sobrinha estava louca.

-Aguarda-nos um horrível destino! -anunciou-. Ofende a Deus ao empenhar-se em desperdiçar todas as oportunidades que se apresentam! E vou dizer-te algo mais, Deb, ainda que suponho que não se importará da mesma forma que antes. Todo mundo sabe que Ormskirk está tendo problemas. Beverley contou-me ontem à noite esteve jogando alto durante estes últimos meses, e que tinha tido cartas ruins cinco noites em cada sete. Além disso, não preciso que te diga o insucesso que teve o seu maldito cavalo em Newmarket! Aposto a que executará essa hipoteca, já que, como sabe, seus bens estão afetados. Apesar disto, tua única preocupação consiste em contrariar Ravenscar! Em vez de esforçar-te em granjear suas simpatias, converte-o em nosso inimigo!

-Granjear a simpatia desse homem! -exclamou miss Grantham, enriquecendo de ira-. Prefiro morrer de fome.

-Muito bem, querida, asseguro que não quero me intrometer em teus assuntos, mas eu não quero morrer de fome! -afirmou sua senhoria com indignação.

-Não o permitirei. Se as coisas chegassem a esse extremo, eu chegaria... chegaria a um acordo com Ormskirk! Faria qualquer coisa para não dever nada a Ravenscar.

-Bom, se estás disposta a fazer o que quer que seja, mais te valeria mandar à filha dos Laxton para sua casa, e não deixar que Mablethorpe te escape das mãos.

-Oh, pobre Adrian! Não! -exclamou miss Grantham no mesmo instante.

Lady Bellingham deixou-se cair sobre uma cadeira e fechou os olhos.

-Vai-te! - suplicou debilmente-. Vou desmaiar de uma hora para outra.

Miss Grantham riu.

-Oh, pelo menos ocorrem-me uma dúzia de meios de salvar-nos! Lucius comentou no outro dia que estava considerando a idéia de ir a Hannover, e tentar a fortuna ali. Que lhe parece fecharmos o estabelecimento e fugir com ele?

-Agora sim que vou desmaiar! -respondeu lady Bellingham, plenamente convencida.

-Ainda que eu não abandone Inglaterra até que tenha ajustado as contas com o senhor de Ravenscar -acrescentou miss Grantham com olhos brilhantes-. Gostaria de saber qual vai ser sua próxima jogada!

-Oxalá soubesse, isso a faria reagir de uma vez! -assegurou-lhe sua tia-. Suponho que a mim causaria a morte, mas a você isso não importa!

No entanto, se lady Bellingham tivesse tido conhecimento das atividades do senhor de Ravenscar durante aquela manhã, não teria achado nenhum motivo para aflição. Este tinha ido ao clube White's.

Era membro de vários clubs, mas, como todo mundo sabia, Brook's era seu favorito por isso seu aparecimento no White's provocou certa surpresa. O porteiro comentou que quase se tinha convertido num estranho, e um conhecido com quem se encontrou na escada exclamou:

-Como, Ravenscar, não me diga que por fim abandonou o Brook's! Pensávamos que nos tinhas esquecido por completo!

-Não, não de todo -contestou Ravenscar-. Quem está lá encima?

-Oh, o grupo de sempre -respondeu seu amigo com jovialidade-. A propósito, devo comunicar-lhe que as apostas se estão empatadas para tua corrida! Beverley viu correr os cavalos de Filey, e assegura que andam que é uma maravilha.

-Sim, isso eu ouvi -observou Ravenscar, imperturbável.

Subiu as escadas e dirigiu-se à sala que dava para a rua. Ali encontrou reunidos vários amigos, mas, após permanecer alguns minutos em sua companhia, encaminhou-se para a janela, onde estava sentado Ormskirk, folheando o Morning Pós.

Ormskirk deixou de lado o jornal.

-Com então decidiu não abandonar o clube! -observou-. Se me permite fazer uma pergunta, que resultados deram até o momento os seus planos para resgatar o seu ingênuo primo?

-Por agora, a dama leva vantagem -respondeu Ravenscar.

-Ah! -exclamou sua senhoria, esfregando suavemente seu monóculo-. De certa forma, suspeito que seus esforços não se viram coroados pelo sucesso. Pergunto-me se estou certo ao supor que a dama estava ontem em companhia de seu primo.

-Assim é. Estiveram juntos em Vauxhall.

Sua senhoria adotou um aspecto pensativo.

-Em Vauxhall? Parece um lugar bastante público, não é assim? Qualquer um poderia supor que a sorte está lançada.

-Não se preocupe! Tenho muitos motivos para pensar que miss Grantham não está disposta a se casar com meu primo. A menos que me equivoque, está tentando conseguir mais dinheiro.

Ormskirk suspirou.

-Mas que sórdido! -objetou-. Espero que não tenha superestimado sua capacidade de...

persuasão, meu querido amigo.

-Simplesmente porque a sorte não me favoreceu num primeiro momento, não me dou por vencido

-respondeu Ravenscar.

-Estou certo de que você é um jogador bem equilibrado -assentiu Ormskirk sorrindo.

-A propósito, falando de jogo -disse Ravenscar-. Quando você tem a intenção de me permitir medir minha habilidade com a sua no jogo, que, confesso, considero que domino à perfeição?

-À perfeição? -murmurou Ormskirk, arqueando as sobrancelhas-. Talvez refira-se ao Piquet, meu querido Ravenscar?

-Sim, claro -reconheceu Ravenscar-. Você me lançou um discreto desafio outra noite. Devo confessar que provocou tanto a minha curiosidade como o meu amor próprio. Pensei que não tinha ninguém que me igualasse, mas acho que você não tem a mesma opinião, milord.

-Assim é -suspirou sua senhoria-. Não costumo desprezar minha própria habilidade.

-Venha a jantar em casa, e assim poderemos descobrir qual dos dois encontrou quem o derrote!

Ormskirk não respondeu de imediato. Ainda se podia observar um sorriso enfastiado em seus lábios, ainda que fosse um tanto forçado. Continuou polindo o monóculo com seu lenço de renda, com um olhar velado.

-Não? -perguntou Ravenscar, com um tom algo zombador.

Ormskirk alçou o olhar e contemplou-o com seu monóculo.

-Meu querido Ravenscar! Meu queridíssimo Ravenscar! Nunca recuso um desafio. Meçamos nossas forças sem demora! Mas, se não me falta a memória, convidei-o a vir a minha casa. Conceda-me a honra de me acompanhar esta noite, rogo-lhe!

O senhor de Ravenscar aceitou o convite, ficou uns quantos minutos conversando, e em pouco tempo retirou-se, totalmente satisfeito com os resultados de sua visita ao clube.

Jantou tête à tête com sua senhoria, já que sua apagada irmã tinha ido a jantar na casa de uns amigos, segundo explicou sua senhoria. Ravenscar supôs que ela tinha recebido ordens de ausentar-se, já todos sabiam que não recebia por parte de seu irmão mais que um tratamento extremamente descortês. O jantar foi bom, e o vinho excelente. O senhor de Ravenscar, bebendo tranqüilamente em companhia de seu anfitrião, alegrou-se de ser um bom bebedor. Quase poderia assegurar que Ormskirk estava tentando embebedá-lo um pouco, já que tinha grande interesse em manter sempre cheio o copo de seu convidado.

Uma mesa de jogo tinha sido colocada num acolhedor salão no térreo da casa. Tinha vários baralhos novos à mão, e em pouco tempo apareceu o mordomo na sala com uma bandeja cheia de garrafas e garrafas, que deixou sobre uma mesinha. Lord Ormskirk ordenou-lhe que aproximasse um candelabro à mesa de jogo, e, sorrindo, fez um gesto, convidando o senhor de Ravenscar para que se sentasse.

-Que apostas deseja fixar, meu querido Ravenscar? -perguntou, abrindo dois dos baralhos que tinha junto a ele, e começando a embaralhar as cartas.

-Me é indiferente -contestou Ravenscar-. Fico satisfeito com as que você determinar, milord.

Lady Bellingham estava correta quando disse que sua senhoria tinha tido grandes perdas nas últimas semanas. Tinha tido uma maré de azar que o tinha acompanhado inclusive nas corridas, e tinha perdido grandes quantias. Ravenscar não podia tê-lo desafiado num pior momento, mas sua senhoria não era dos que se voltam atrás, sobretudo levando em conta que sentia uma profunda antipatia por seu adversário. Foi precisamente esta aversão, unida a sua temeridade no jogo, que o moveu a responder:

-Digamos, uma libra o ponto?

-Sim, por que não -contestou Ravenscar.

Ormskirk passou-lhe o baralho; cortou para decidir de quem era a mão, e a perdeu.

-Espero que não seja um mau presságio! -sorriu Ormskirk.

-Certamente. Espero que não.

A partida começou com tranqüilidade, já que não surgiram durante algum tempo mãos altas, e cada um estava mais interessado na forma de jogar de seu rival do que em marcar pontos.

Ormskirk ganhou a partida, mas a sorte favorecia a ambos por igual, e o jogo parecia consistir unicamente em conseguir os cem pontos tranqüilamente. Ormskirk opinou que Ravenscar era um jogador excessivamente precavido: precisamente era esta a impressão que Ravenscar tinha se esforçado em lhe causar.

Quando tinha decorrido uma hora, sua senhoria, jogando uma olhar de avaliação ao adversário quw tinha a seu lado, se deu conta que Ravenscar se punha na frente lentamente. Era um jogador demasiado bom para não se dar conta de que tinha topado com um perigoso adversário, e pôde reconhecer em seu jovem rival uma combinação de um faro para as cartas e de um maior grau de impertubável cautela. Lord Ormskirk, que sempre jogava para conseguir a máxima pontuação, não podia com freqüência vencer a mão já que não conservava as cartas baixas; uma e outra vez, Ravenscar, que jogava com maior precaução, sacrificou suas possibilidades de pontuar para roubar o naipe que sua senhoria estava seguro de conseguir.

Psicologicamente, Ravenscar tinha vantagem sobre seu adversário. Apesar de tentar, como todo bom jogador, não pensar em suas perdas, Ormskirk se deu conta amargamente de seu nervosismo e, ainda mais amargamente, se fixou na tranqüilidade impertubável de Ravenscar. Não tinha nenhuma importância para um homem de sua fortuna, pensou Ormskirk, se perdia ou ganhava; amaldiçoou o dia que Ravenscar o tinha convidado para este encontro, precisamente quando sua própria situação era tão caótica. A idéia de que se encontrava em apuros, e de que poderia se arruinar se a partida desta noite lhe causava muitas perdas, afetou desfavoravelmente seus nervos e, portanto, sua habilidade. Estava plenamente consciente de que seu desespero fazia com que seu raciocínio diminuísse; permitiu que Ravenscar ganhasse todas as vazas devido a uma negligencia, e se levantou para se servir de um pouco de brandy.

Sob o olhar de Ravenscar dirigiu-se, vacilante para ele e depois pousou sobre as cartas que estava embaralhando.

-Brandy? -perguntou sua senhoria, sustentando a garrafa.

Ravenscar afastou um pouco seu copo.

-Não, obrigado.

-Não deveria ter ganho todas as vazas -observou Ormskirk com brusquidão.

-Não.

-Devo estar destreinado -comentou Ormskirk rindo-se com fingida despreocupação-. É

imperdoável ter cometido um erro tão estúpido! Não espero que se repita.

Ravenscar sorriu.

-Não. Acho que estas coisas não costumam acontecer duas vezes numa mesma noite. É sua vez, milord.

Ormskirk sentou-se de novo, e prosseguiu a partida. Numa ocasião entrou o mordomo na sala para avivar o fogo. Seu senhor, cuja atenção se distraiu por um momento por causa dos seus movimentos levantou o olhar, e exclamou com aspereza:

-Isso é tudo! Não precisarei mias dos seus serviços!

Lá fora, na praça, passava de vez em quando uma carruagem com estrépito pela calçada de pedras, e se podia ouvir os criados que conversavam com os seleiros; mas à medida que decorreu a noite, o ruído da rua cessou, e só se ouvia a voz do vigilante de vez em quando, apregoava a hora.

-Uma hora! Tudo calmo!

A noite não era precisamente muito calma para sua senhoria, que estava se endividando cada vez mais com Ravenscar. Sob sua maquiagem, seu fino rosto estava pálido, e tinha adquirido um aspecto tenso sob a luz das velas. Agora estava certo de que sua má sorte continuava; tinha tido más cartas nas últimas duas horas. Só um tolo teria se empenhado em prosseguir, e isso era precisamente o que ele tinha estado fazendo, esperando que mudasse a sorte em cada partida, jogando tudo pelo grande coup que, irritantemente, nunca chegava.

Uma lenha meia consumida caiu na lareira, e ali ardeu fumegando.

-Com isto, é um total de mil quinhentos pontos a meu favor -disse Ravenscar, somando a última partida. Levantou-se e dirigiu-se à lareira para recolher a lenha-. Teve muito azar: suas cartas foram péssimas até o último momento.

-Joga melhor que eu -observou sua senhoria com um sorriso forçado-. Não posso prosseguir.

-Que disparate! Siga jogando, milord; suas cartas foram melhores no final. Certamente que logo poderá se recuperar.

-O faria com muito gosto, asseguro -disse Ormskirk-. Mas, desgraçadamente, meus bens estão afetados.

-É tão má a sua situação? -perguntou Ravenscar com certa ironia.

-Outra hora como esta última, e certamente o seria -respondeu Ormskirk com franqueza-. Não jogo se não posso pagar.

Ravenscar voltou à mesa e sentou-se, passando as cartas de uma mão para outra com despreocupação.

-Se decidir dar por finalizada a partida, aceitarei com muito prazer. Mas você tem em seu poder certas promissórias que ficaria muito feliz em comprar.

Ormskirk franziu suas finas sobrancelhas.

-Sim?

Ravenscar levantou o olhar, contemplando-o fixamente com seus severos olhos cinzas.

-Certas letras -precisou-. Quantas tem? Qual é o seu valor?

-Deus meu! -disse Ormskirk em voz baixa. Acomodou-se em sua cadeira sorrindo-. E como chegou você a ter conhecimento de sua existência?

-Você mesmo me falou delas quando passeamos juntos desde Saint James's Square na outra noite.

-Deveras? Tinha esquecido.

Guardaram silêncio. O olhar de Ormskirk era impenetrável; de uma de suas brancas mãos pendia seu monóculo, que balançava de um lado a outro extremo de sua fita. O senhor de Ravenscar continuou embaralhando as cartas.

-Tenho algumas letras de lady Bellingham -disse por fim sua senhoria-. No entanto, minha integridade obriga a dizer-lhe que seu valor real não coincide com seu valor nominal.

-Qual é?

-Mil quinhentas -respondeu sua senhoria.

-Estou disposto a comprá-las por essa cifra.

Ormskirk contemplou-o com seu monóculo.

-Ah, sim! -exclamou-. Mas acho que não desejo vendê-las, meu querido Ravenscar.

-No entanto, lhe conviria fazê-lo.

-Deveras! Posso saber por quê?

-Falando sem rodeios, milord, já que seus preconceitos morais o impedem de utilizar as letras em questão para atingir seus fins, imagino que lhe seria muito cômodo que as passassem para as minhas mãos. As empregarei para livrar meu primo desta confusão. Uma vez que tenha conseguido, suponho que miss Grantham não continuará recusando sua oferta.

-Tem muita razão no que diz -reconheceu sua senhoria- e não obstante, meu querido Ravenscar, resisto a me desfazer delas!

-Nesse caso, seria conveniente que nos despedíssemos -respondeu Ravenscar, pondo-se de pé.

Ormskirk vacilou, contemplando as cartas espalhadas pela mesa. Era um jogador até a medula, e incomodava-o terminar assim a noite. Sua má sorte não podia durar para sempre; talvez fosse mudar de uma hora para outra: realmente, tinha tido melhores cartas na última partida, como tinha observado Ravenscar. Além disso, lhe era insuportável a idéia de ter que reconhecer a supremacia de Ravenscar. Poucas coisas lhe causariam maior satisfação que mudar a presente situação. Talvez pudesse fazê-lo. Levantou a mão.

-Espere! Apesar de tudo, por que não?

Levantou-se, pegou um candelabro e acercou-se da escrivaninha, situado num extremo da sala.

Posando-o ali, buscou em seu bolso uma chave, e abriu a fechadura de uma das gavetas da mesa.

Tirou um pequeno maço de papéis, e levou-o à mesa, jogando-o em cima das cartas espalhadas.

-Aqui tem -disse-. Que sorte que seja menos escrupuloso que eu!

Ravenscar tomou os papéis, e meteu-os no grande bolso de seu abrigo.

-Muito afortunado -assentiu-. Agora está de posse de mil quinhentas libras, milord. Deseja continuar a partida?

Ormskirk arqueou as sobrancelhas com ironia.

-Não seria melhor que as contasse? Verá que ao todo são seis, de diferentes quantias.

-Confio em sua palavra -respondeu Ravenscar-. Prosseguimos?

-É claro! -manifestou Ormskirk, sentando-se de novo-. É possível que esta... transação tenha mudado minha sorte.

-Muito possível -assentiu Ravenscar, cortando o baralho.

Na partida seguinte, deu a impressão de que a sorte realmente estava a favor de sua senhoria.

Jogou com cautela durante um tempo, depois se aventurou um pouco, perdeu uma importante partida, voltou a encher seu copo, e esqueceu-se de tudo, menos de sua obsessão por vencer Ravenscar. A medida que os vapores do brandy invadiram sua mente, excitando-a, ainda que sem chegar a embriaguez, deixou de ter em conta a relação das perdas.

Eram três em ponto quando Ravenscar disse:

-Está tarde. Segundo meus cálculos, deve-me quatro mil libras, milord.

-Quatro mil -repetiu Ormskirk desconcertado. Olhou a Ravenscar, com um olhar inexpressivo, perguntando-se qual de seus cavalos se veria obrigado a vender, perfeitamente consciente de que, ainda que vendesse todos, não poderia saldar todas as suas dívidas. Maquinalmente abriu sua delicada caixa de rapé de Sèvres, e tomou uma pitada-. Terá que me conceder algum tempo -disse, envergonhado por ter que pronunciar estas palavras.

-Certamente! -contestou Ravenscar. Uma das velas estava gotejando; apagou-a-. Ou talvez prefira que lhe compre a hipoteca sobre a casa de lady Bellingham -acrescentou impassível.

Por um momento Ormskirk olhou-lhe fixamente. Seus olhos adquiriram uma expressão receosa.

Perguntou com um tom cortante em sua voz uniforme:

-Que está tramando, Ravenscar?

-Já lhe disse.

-A hipoteca é no valor de cinco mil libras: pode ser que valha algo mais que quatro mil.

-Suponho que não há nenhuma necessidade de pechinchar pelo preço. Lhe darei cinco mil por ela.

-Parece sentir um carinho desmesurado por seu jovem primo -observou Ormskirk, com sarcasmo.

Ravenscar encolheu-se de ombros.

-De certa forma, sou responsável pelo rapaz.

-É emocionante encontrar semelhante sentimento de dever em nossos dias. De toda forma, me parece que está pagando um preço muito alto por sua salvação, meu querido Ravenscar!

-Equivoca-se: ajo no interesse de lady Mablethorpe.

-Sabe -assinalou Ormskirk com maciez- que tenho uma idéia sumamente estranha na cabeça? Não posso deixar de pensar que tem outras razões para adquirir este domínio sobre Deb Grantham.

-Não se trata de amor, se é isso ao que se refere, milord.

-Deveras? Nesse caso, do que se trata?

Os olhos de Ravenscar brilharam.

-De uma forte aversão a que me derrotem num confronto.

Ormskirk olhou-o fixamente durante uns instantes, fechou a tampa de sua caixa de rapé, dando-lhe um golpezinho seco com um de seus finos dedos. Soltou uma gargalhada; levantou-se de sua cadeira, e uma vez mais dirigiu-se a sua escrivaninha.

-Apesar de tudo, por que não? -disse com despreocupação. Abriu a gaveta, tirou desta um documento dobrado, e jogou-o para seu convidado-. Tome-a! Agora tem tudo o que desejava, não é assim? Suponho que se empenhou para obtê-la desde o início. Não me considere pouco amável se lhe digo que espero que algum dia seja derrotado, meu querido Ravenscar: lhe faria tanto bem!


Capítulo IX

Tendo mandado a carta a seus pais por meio do correio, não restava outra coisa que fazer a miss Phoebe Laxton que aguardar a resposta e examinar os anúncios do Morning Pós. Não apareceu nenhum indício da rendição de seus pais, mas isto, como assinalou miss Grantham, não era surpreendente, já que os Laxton levariam a cabo primeiro uma investigação entre seus conhecidos.

Na noite seguinte a sua fuga, Phoebe comunicou-lhe que sir James Filey estava no salão amarelo jogando Faraó, e que se encontrava com um maldito humor. Miss Laxton, que estava aconchegada no gabinete de lady Bellingham, envolvida numa novela da biblioteca ambulante, riu, respondendo que não lhe importava Mem um pouco, e que desejava fervorosamente ficar durante o resto de sua vida em Saint James's Square. Mas, tendo em conta os desejos de sua tia, miss Grantham tomou certas medidas para impedir que assim fosse, por isso desceu de novo aos salões, e sugeriu suavemente a lord Mablethorpe que subisse para fazer companhia à pobre garota durante um momento, para que esta não morresse de tédio. Sua senhoria, sempre disposto a cumprir os desejos de Deb, se retirou em sigilo, a fim de passar uma agradável noite, jogando o cribbage com Phoebe. Entre cada partida, engrandeceu as virtudes de Deborah, e miss Laxton concordou com ele em afirmar que era uma mulher maravilhosa, acrescentando que não estranhava nem um pouco que estivesse decidido a se casar com ela. Assombrou-se ao ouvir que sua mãe tinha se oposto ao casamento, e mostrou tanto compreensão que sua senhoria não demorou muito tempo em abrir-se com ela. Quando a conversa se centrou no futuro de miss Laxton, lord Mablethorpe se sentiu um tanto embaraçado, já que não lhe ocorria nenhuma sugestão do que fazer no caso de seus pais se obstinarem em manter sua atitude. Não obstante, fez questão de três pontos: sob nenhuma hipótese se casaria com sir James, nem solicitaria um posto de professora, nem se dedicaria às mesas. Phoebe manifestou que não o faria, se ele não julgava oportuno, já que sabia que tinha mais experiência do que ela, e desejava se guiar pelo seu critério. Sua senhoria era consciente da necessidade que alguma pessoa bem intencionada tomasse Phoebe sob sua proteção, e a protegesse dos embates do mundo, mas, apesar de seus esforços, foi incapaz de pensar na pessoa apropriada para desempenhar este trabalho. Resolveu pedir a Deborah sua opinião a respeito.

Enquanto isso, assegurou a Phoebe, que, durante o tempo que ele continuasse sendo responsável pelo seu bem-estar, não tinha nada a temer de Filey, nem na realidade de qualquer outra pessoa.

Miss Laxton, contemplando-o com olhos emocionados, respondeu que desde o primeiro momento tinha sabido que se encontrava em boas mãos.

Era de esperar que lord e lady Laxton não tornasse público o desaparecimento, e como Deborah não se movia de seu ambiente, não tinha meios de saber qual tinha sido sua reação ao receber o cortês ultimato de sua filha. Lady Mablethorpe conhecia à família, mas, como única resposta às perguntas formuladas por seu filho, observou que sempre tinha considerado Augusta Laxton como uma mulher odiosa, de caráter despótico e temperamento cobiçoso, e que não podia conceber como esperava conseguir um bom partido para suas filhas. Quando ele perguntou se costumava freqüentar a casa dos Laxton, respondeu que nunca os visitava se não fosse inevitável.

Lady Bellingham disse que, apesar de esperar qualquer loucura por parte de sua sobrinha, desejava saber o que fariam com a garota se seus pais não colocassem o esperado anúncio no Morning Pós.

-Pois a garota não pode passar o resto de seus dias em reclusão -acrescentou, convencida de que não lhe prestava a mínima atenção-. Estou certa que lhe é muito prejudicial sair para passear com o rosto oculto, e só ao anoitecer; além disso, a não ser que Augusta Laxton tenha mudado desde que a conheci, provavelmente se alegrará por ter se livrado de uma de suas filhas, e não fará a menor tentativa para descobrir seu paradeiro.

-Bem, espero que assim seja -afirmou Deborah-. Meu único temor é que tenha avisado aos oficiais de justiça para que encontrem a Phoebe.

Esta insinuação foi tão horrível a Lady Bellingham, que se sentou inesperadamente numa cadeira.

-Querida, não diga isso! Deus meu, que fizeste? Pense no escândalo que se produziria se viesse a polícia a esta casa! Nos colocaria na prisão!

-Querida tia, não há nenhuma possibilidade de que isto aconteça. A ninguém ocorreria me relacionar com Phoebe e, sem dúvida, Adrian está acima de toda suspeita.

Mas esta idéia, uma vez insinuada na mente de lady Bellingham, arraigou-se ali com tanta força, que provavelmente teria provocado os temidos espasmos, se sua atenção não tivesse sido desviada para um perigo mais iminente.

Na manhã seguinte, o correio trouxe a Deborah uma breve nota do senhor de Ravenscar.

Entregaram-na enquanto tomava o café da manhã com sua tia e sua protegida. A letra, muito clara e firme, não lhe era familiar, e também não reconheceu o brasão. Virou-a com curiosidade, rasgou o selo, e despregou a carta.

Estava comendo uma rabanada com manteiga quando leu a carta e, ao engasgar repentinamente, provocou o alarme de sua tia. Emitiu uma exclamação apressada, engoliu a migalha, que estava presa na garganta, e começou a tossir. Recuperou-se graças às vigorosas palmadas que lhe deu sua tia nas costas, e como já tinha se dado conta de que não era conveniente revelar o conteúdo da carta na presença de miss Laxton, manteve-a oculta em seu regaço durante o resto da refeição.

Lady Bellingham deu-se conta de que estava muito silenciosa, e pôde ver que tinha uma expressão de ira em seus olhos, e que suas faces tinham se ruborizado sem motivo. Isto produziu um efeito de abatimento em sua tia, já que os sintomas lhe eram familiares.


-Querida, espero deveras que não tenha recebido más notícias -manifestou com nervosismo.

-Más notícias? -repetiu Deborah, sobressaltando-se-. Oh, santo Deus, não! Nada disso!

Esta afirmação não tranqüilizou em absoluto a lady Bellingham, que permaneceu nervosa até que, em pouco tempo, Phoebe se retirou da mesa. Quando tinha fechado a porta, sua senhoria contemplou o semblante fechado de Deborah, e perguntou:

-De que se trata? Se não queres que desmaie, me conte agora mesmo! Talvez os Laxton descobriram o paradeiro da garota?

-Esta delicada carta -assinalou Deborah, furiosa- não é dos Laxton. É do senhor de Ravenscar.

-Não me diga, querida! -exclamou sua senhoria, recuperando-se no mesmo instante-. Bem, não acredita, querida Deb, que desta vez deveria chegar a um acordo com ele? Qual é sua oferta?

-Equivoca-se; não me oferece nada. Ao contrario, ameaça-me!

-Ameaça-te? -exclamou sua tia-. Santo Deus, criatura, com que?

-O senhor de Ravenscar -disse Deborah, incapaz de conter sua ira- pede-me que o permita informar que adquiriu, adquiriu!, certas letras assinadas por você, e uma hipoteca sobre esta casa.

-Que? -gritou lady Bellingham-. É impossível que as tenha adquirido! Estão em mãos de Ormskirk!

Sabes que é assim! Deve ser um truque para assustá-la!

-Não, não é, e não estou assustada em absoluto! -manifestou Deborah com indignação-.

Obteve-as de Ormskirk; ao menos isso está claro.

-Não posso acreditar! Estou convencida que Ormskirk nunca se desfaria delas!

-Você disse que sua situação econômica era muito precária, tia Lizzie - recordou Deborah-. Se Ravenscar ofereceu-se para comprá-las, suponho que terá concordado com muito gosto.

-Em minha vida nunca vi semelhante perfídia! -declarou sua senhoria-. Isto é o cúmulo! Além disso, se já não está de posse das letras, que esperanças pode ter Ormskirk de te persuadir, querida?

Miss Grantham refletiu, franzindo o cenho.

-Suponho que pensou que não tinha nenhuma esperança de conseguir -disse por fim-. Acha que estou a ponto de casar-me com Adrian, sem dúvida essa é a razão.

-Vou ficar louca! -exclamou lady Bellingham, levando as mãos à cabeça e arriando-se na cadeira -.

Nada poderia ser mais catastrófico! Agora perdeste a ambos com tuas intrigas! Asseguro-lhe que não me sei como podes ser tão inconsciente, Deb. Tens que te casar com Adrian agora mesmo!

-Que disparate! Não é maior de idade. Além disso, não tenho a menor intenção de me casar com ele.

-Não! No entanto, estás intrigando para que se case com a filha dos Laxton! É tão imprudente de tua parte, que prefiro não pensar! Mas se Ravenscar tem essas horríveis letras em seu poder, só sobra uma solução (ao menos que queiras perder a Adrian para sempre): casar-te com ele em segredo sem perda de tempo! Já sei que dirás que este gênero de casamento não é apropriado, mas não se pode remediar! Nossa situação é desesperada!

-Tenho que me apoderar delas -resolveu Deborah, que não tinha prestado muita atenção a esta declaração.

-Apoderar-se de que? -perguntou sua senhoria.

-Das letras e da hipoteca. De que mais?

-Quer dizer que te comprometerás a renunciar a Adrian? -perguntou lady Bellingham-. Reconheço que pode ser uma solução, mas acho que seria preferível que se casasse com ele.

-Ravenscar e lady Mablethorpe fariam anular o casamento se cometesse semelhante estupidez.

Oh, pensa que me tem entre a espada e a parede, mas já lhe demonstrarei quem sou eu!

-Não, não demonstrará mais nada, Deb. Te suplico! -implorou sua tia com agitação-. Já vês o que nos está acontecendo por tentar demonstrar essas coisas! Se apenas fosses um pouco mais razoável!

-Razoável! Lutarei até o fim! -exclamou miss Grantham-. E primeiramente o que tenho que fazer é tirar essas letras de suas mãos!

-Não podes! -declarou lady Bellingham, desesperada-. Que diz em sua carta?

-Que terá muito gosto em as devolver em troca da liberdade de seu primo! Como se atreve a me insultar dessa forma? Oh, nunca o perdoarei!

-Diz que as devolverá? Bem, tem que reconhecer, querida, que é muito generoso de sua parte.

Sem dúvida, não é tanto como vinte mil libras, mas seria um alívio que desaparecessem algumas de nossas dívidas!

-E que se me nego a abandonar Adrian, levará a você a julgamento -acrescentou miss Grantham.

Lady Bellingham gemeu.

-Que canalha! Não posso lhe pagar! Suponho que quer que lhe peça de joelhos, mas não o farei!

Nego-me!

-Pedir-lhe de joelhos? -exclamou Deborah-. Certamente que não! Não falaria mais com você se o fizesse!

-Provavelmente, ninguém voltará a me falar... ao menos alguém que me interesse, já que estarei no cárcere, e ali acabarei meus dias. Oh, Deb, como pode ser tão cruel?

Miss Grantham abraçou a afligida dama.

-Não sou cruel, querida, asseguro que não, e não a meterão no cárcere! Não é a você a quem quer castigar esse homem odioso, mas a mim! Acha que vai assustar-me com isto, mas ainda me sobram recursos. Verá! Recuperarei essas letras e não renunciarei a Adrian... na realidade, sim, mas Ravenscar não o saberá até que reconheça que o venci... e...

-Não o faças! - suplicou sua tia-. Não agüento mais! Em poucas palavras, se propõem a arrastar-nos à ruína! Acho que Ravenscar, além de ser o homem mais desagradável do mundo, é o mais estranho! Se tiver intenção de levar-me aos tribunais, por que não me diz? Isto não tem nada que ver contigo!

-Oh, escreveu a mim porque o enfureci tanto que quer se vingar! Estou certa que não tem nada contra você, tia; peço que não se aflija! Tudo isto é por rancor e maldade! Mas lhe darei uma lição!

Já que não encontrou uma forma de persuadir sua sobrinha para que abandonasse esta decisão, lady Bellingham renunciou a qualquer tentativa de a tornar mais razoável, e com passo vacilante se afastou para passar uma triste manhã tentando descobrir algum erro na fatura da costureira, e convencer Mortimer de que os restos das velas empregadas nos salões poderiam ser aproveitas para iluminar a cozinha. Como não conseguiu nenhum destes objetivos, seu humor não experimentou a mais leve melhoria, e sem dúvida teria piorado muitíssimo se tivesse tido a oportunidade de conhecer os planos de sua sobrinha. No entanto, esta os ocultou prudentemente, o que a fez sair para dar seu costumeiro passeio pelo parque, totalmente alheia ao que se estava tramando nas suas costas.

Durante algum tempo, Deborah foi incapaz de pensar numa resposta adequada à última jogada do senhor de Ravenscar. Na realidade, parecia que nunca encontraria uma solução, mas estava tão decidida a enfrentá-lo, que não lhe ocorreu nem por um momento a idéia de se render. O

momento de comunicar-lhe que não tinha a menor intenção de se casar com seu primo chegaria somente quando o tivesse derrotado. Então, miss Grantham poderia dar-se o prazer de ser magnânima. Ceder ante seu dinheiro ou suas ameaças seria um comportamento tão indigno, que não podia considerá-lo nem por um momento.

Depois de imaginar com prazer todas as coisas desagradáveis que gostaria de fazer ao senhor de Ravenscar, mas que desgraçadamente as circunstâncias a impediam de levar a cabo, sua mente abandonou com decisão estas prazerosas quimeras, e se concentrou no problema com maior seriedade. Antes que tivesse decorrido muito tempo, urdiu um estratagema tão diabólico que quase lhe cortou a respiração. Apoiou o queixo entre suas mãos, absorta em seu plano, e foi surpreendida neste estado por Lucius Kennet, que passou por ali ao meio dia para ver como estava.

-Por minha fé, que nova diabrura estará tramando, querida? -perguntou o senhor Kennet, contemplando-a com um olhar de cumplicidade.

Deborah se sobressaltou.

-Lucius, é justamente a pessoa que preciso! Tens que me ajudar!


-Como não, claro que o farei! -respondeu Kennet rapidamente.

-E Silas também -decidiu miss Grantham-. Lucius, não se importaria de correr um pequeno risco?

-Minha espada está a seu serviço, Deb!

-Oh, não! Não tem nada que ver com espadas... ao menos, espero que não! Só quero que seqüestre o senhor de Ravenscar.

-Isso é tudo? Que tolice! E o que farei com ele depois de tê-lo seqüestrado? -contestou rindo.

-Quero que o encerres no porão -respondeu miss Grantham cruelmente.

-Que porão? -perguntou Kennet.

-O da casa, é claro. A porta tem um ferrolho muito resistente, e não é nada úmido... ainda que realmente, isso não tenha importância, e, de todas maneira, estará amarrado.

-Teu plano é fantástico, querida, mas, que fará com ele quando o tiver no porão, e por que diabos queres que esteja ali?

-Oh, claro, tu não sabes o que ele fez! Lê isto! -exclamou Deborah, entregando-lhe a carta do senhor de Ravenscar.

Lucius leu-a com assombro.

-Esse cão velho! -exclamou.

-Velho? Não é velho! -disse Deborah, algo contrariada.

-Não me referia a Ravenscar, mas a Ormskirk!

-Oh, ele! Bem, sim, realmente é um canalha por lhe ter jogado este fardo sobre à pobre tia Lizzie, mas, apesar de tudo, ele não tem nada que ver com isto.

-Como Ravenscar soube que ele tinha as letras? -perguntou Kennet.

Deborah olhou-lhe, franzindo o cenho de repente.

-Sim, como o soube? Não tinha pensado nisso! Suponho que fez todo o possível por descobrir! Que truque tão vil! Mas se arrependerá! Prometo!

-Me atreveria a jurar que assim será. Talvez penses em casar com o jovenzinho, apesar de tudo, querida?

-Não, certamente que não!

Ele moveu a cabeça com tristeza.

-Não te compreendo, Deb; dou-lhe minha palavra! Se não tens intenção de casar com Mablethorpe, por que não o dizes, pelo amor de Deus, e põem fim a tudo isto?

-Lucius, estava convencida de que você me compreenderia! -assegurou Deborah com um tom de reprovação-. Talvez pense que vou me render com submissão? Não sabe que termos empregou comigo! Insultou-me, e agora se atreve a me ameaçar, e nada... nada me levaria a render-me perante ele! Como? Por acaso me ameaça dessa forma, e vou me submeter a semelhante trato?

Não me darei por vencida! O derrotarei ainda que tenha que morrer na tentativa!

-Se colocas assim, querida, não me atrevo a contradizê-la. Não nego que seja um miserável, e merece que o prenda no porão! Mas me atreveria a afirmar, pelo pouco que o vi, que é tremendamente obstinado. Tens intenção de retê-lo no porão até que entregue as letras? Acho que pode ser um problema para você durante muito tempo.

-Já pensei nisso -respondeu Deborah com orgulho-. Imagino que não ficará no porão mais que algumas horas. Lucius, ele mesmo se meteu na boca do lobo! Quero que o seqüestres na quarta-feira a noite!

-Na quarta-feira? -repetiu ele, consternado-. Não, por Deus, não podes fazê-lo, Deb! Sua corrida vai acontecer na quinta-feira!

-Exatamente! -assentiu Deborah-. Pode estar certo de que fará o que quer que seja antes de perder a corrida por abandono.

-Por minha fé, querida, no caso de que não nos assassinar, nos meterá a nós dois na prisão!

-exclamou Kennet, amedrontado-. E além disso, em sã consciência não poderia culpá-lo.

Isto fez que miss Grantham guardasse silêncio por um momento, mas após refletir, disse:

-Não acho que nos assassine, Lucius, e certamente estou certa de que não nos mandará prender; é demasiado orgulhoso para reconhecer perante o mundo que uma das filhas do Faraó lhe derrotou, e dessa forma! Não, não tomará represálias, e depois, quando estiver doído em seu orgulho, lhe comunicarei que podia ter se poupado do inconveniente, já que não me casaria com seu primo, ainda que tivesse que ficar solteira pelo resto dos meus dias!

-Estive pensando -sugeriu Kennet lentamente- que enquanto o tivermos preso no porão, Deb, poderias lhe tirar de passagem as vinte mil libras.

Deborah se ruborizou.

-Não farei nada disso! Como se atreve a pensar que eu seria capaz de aceitar seu repugnante dinheiro, e menos ainda de obrigá-lo a que me desse?

-Apesar de tudo, querida -contestou Kennet razoavelmente-, não achas inconveniente em obrigá-

lo a entregar a hipoteca, e isso vale nada menos que cinco mil libras, sem levar em conta as letras.

-Isso -assinalou Deborah com dignidade -é diferente. A outra coisa... seria uma miserável! Como pôde pensar nisso?

Kennet sorriu de má vontade.

-És demasiado quixotesca. No entanto, é você. Bom, como vamos seqüestrar ao dândi em questão?

-Pensei que certamente você se encarregaria de planejar tudo -respondeu miss Grantham com esperança-. Silas te ajudará, e imagino que os dois seriam capazes de dominá-lo.

-Ah, isso não será nenhuma dificuldade! Mas, querida, não esperara que me introduza em sua casa, ou que o deixe sem sentido no meio da rua?

No rosto de Deborah surgiu uma expressão de inquietação.

-Não quero que lhe cause dano. Ao menos, não muito. Não poderia capturá-lo à noite, quando sair de seu clube, ou algo pelo estilo?

O senhor Kennet fez um gesto de desaprovação.

-É muito arriscado, Deb. Não podemos errar o golpe. Estava pensando que poderias lhe escrever, marcando um encontro em algum lugar tranqüilo, e eu iria à reunião em seu lugar.

A cansativa consciência de miss Grantham interveio uma vez mais.

-Não! -exclamou, indignada-. Não o vencerei me valendo de um truque tão baixo! Além disso, ele pensa que sou uma mulher desprezível que faria qualquer coisa, por mais vil que seja, e não é assim! Temos que buscar outra solução.

O senhor Kennet olhou-a de relance, com uma expressão crítica.

-Ah, bom! -observou com prudência-. É melhor que deixe o assunto em minhas mãos. Suponho que já me ocorrerá algo.

-E o que devo fazer com esta odiosa carta? -perguntou Deborah, contemplando-a com uma expressão de ira-. Gostaria de escrever-lhe para mandá-lo ao diabo, mas suponho que isso estragaria tudo. Não deve suspeitar nada até a quarta-feira. Não sei o que responder!

-De-me uma pena! -disse Kennet-. Será melhor que responda em seu lugar. Deve ganhar tempo, querida.

-Por que você responderia? -perguntou Deborah com desconfiança-. Está tramando algo, Lucius?

-De modo algum! -assegurou, mentindo com descaramento-. Pode vigiar-me enquanto escrevo-a, e você mesma a selará. É preferível que o cavalheiro veja que o consideras tão desprezível que não te dignas a respondê-lo em pessoa. Além disso, terias que suplicar um pouco, querida, e você nunca se rebaixaria a isso. Eu escreverei em terceira pessoa.

-Que vais dizer? -perguntou Deborah, trazendo-lhe papel e uma pena, apesar de tudo não estava muito convencida.

Ele tomou o papel, e molhou a pena no tinteiro.

-Que lhe parece isto? -perguntou, e começou a escrever com letra fluída, lendo em voz alta enquanto o fazia. «Miss Grantham está muito agradecida ao senhor de Ravenscar por sua carta, e comunica-lhe que lhe causou grande assombro que um cavalheiro...», sublinhemos esta palavra, Deb!, «... dirija-se a uma mulher indefesa em semelhantes termos.»

-Não sou uma mulher indefesa! -objetou Deborah.

-Silêncio! «Está plenamente convencida de que o senhor de Ravenscar não tem nenhuma intenção de levar a cabo sua bárbara ameaça, já que lady Bellingham não fez nada para granjeasse sua inimizade. Miss Grantham acredita sinceramente que podem chegar a um acordo, e suplica que comunique-lhe a resposta a esta sugestão quando for conveniente ao senhor de Ravenscar...», e também sublinharemos isto, para que pense que estás assustada, Deb. Que acha?

-Suponho que seja bastante apropriado -opinou Deborah, com certa insatisfação-. Mas me desagrada ter que implorar sua clemência!

O senhor Kennet espalhou um pouco de areia sobre a carta, releu-a, dobrou, pegando um biscoito.

-Cedo poderás vingar dele, querida, mas até a quarta-feira não deve suspeitar de nada, ou caso contrário, todos os nossos magníficos planos virão por água a baixo.

-Muito bem, a envie! -exclamou Deborah.


Capítulo X

Quando o senhor de Ravenscar recebeu a carta do senhor Kennet, sua reação foi a que Lucius tinha previsto. Ravenscar não se surpreendeu ao comprovar que miss Grantham dava mostras de debilidade. Tinha contado que sua concisa mensagem a atemorizaria, e se dispôs a seguir exercendo pressão sobre ela, redigindo de novo uma breve nota.

«O senhor de Ravenscar apresenta seus respeitos a miss Grantham, e deseja informar-lhe de que, se não estiver disposta a chegar a um acordo, se vê obrigado a solicitar que tome uma decisão nos próximos três dias, já que no final deste prazo considerará que tem plena liberdade para tomar certas medidas que sem dúvida colocariam miss Grantham numa situação muito embaraçosa, apesar de desagradar-lhe fazer isto a uma mulher, indefesa ou não.»

-Sabia! -exclamou miss Grantham com indignação, quando leu esta mensagem hostil-. Disse que não queria que me chamasses de mulher indefesa! Estava certa que debocharia de mim!

-Não debochará durante muito tempo -prometeu Lucius Kennet.

-Já me encarregarei de que assim seja! -assegurou-lhe miss Grantham furiosa-. A única coisa que tens que fazer é trazê-lo na quarta-feira a noite.

-O farei, querida, não se preocupe!

-Sim, mas tens alguma idéia de como vais conseguir?

-Deixa em minhas mãos: disso eu me encarrego.

Não ficou muito satisfeita com esta resposta, mas não teve mais remédio que aceitar, já que ele respondeu com uma risada quando lhe suplicou que dissesse em que consistia seu plano, e simplesmente impôs a condição de que a vítima não sofresse nenhum dano grave.

-Não é que me importe -precisou-. Por mim poderias matá-lo, mas sem dúvida nos causaria problemas, e isso não convém!

O senhor Kennet estava de acordo que não podiam se meter em apuros, e se retirou para escrever outra carta ao senhor de Ravenscar, com a mesma letra fluída. Mas não tinha nenhuma intenção de mostrá-la a miss Grantham, pois, como diz o refrão, o que os olhos não vêem, o coração não sente.

Enquanto isso, Deborah se resignou a aguardar a chegada da noite de quarta-feira, e abrigar esperanças de uma horrível vingança. Não esperava receber mais notícias do senhor de Ravenscar, e portanto se assombrou ao ver, quando olhou pela janela no dia seguinte, que se detinha em frente a casa uma carruagem com o brasão do senhor de Ravenscar na porta. Enquanto contemplava-o, o lacaio desceu para abrir a porta, e baixou a escada. Mas a figura que desceu da carruagem não era a do senhor de Ravenscar. Deborah pôde reconhecer a esbelta silueta de Arabella Ravenscar, pelo qual esteve a ponto de desmaiar de assombro.

Miss Ravenscar subiu rapidamente as escadas até a porta principal, e entregou seu cartão. Silas Wantage o entregou a sua senhora, sussurrando que suspeitava que se tratasse de uma armadilha, e sugeriu que o permitisse despedir à jovem. No entanto, Deborah sentiu uma grande curiosidade em conhecer os motivos que tinham levado Arabella a fazer esta visita, e ordenou a seu criado que conduzisse miss Ravenscar ao andar de acima.

Uns minutos mais tarde, Arabella foi anunciada na sala; tinha um aspecto adorável com um vestido de musselina e rendas com um cinto de gaze rosa, uma jaqueta de seda, e um encantador chapéu amarrado sob seu queixo com laços rosas. Deteve-se na soleira, contemplando a dona da casa com a cabeça levemente inclinada para um lado, como um pássaro, pensou Deborah. Seus grandes olhos castanhos tinham uma expressão entre vacilante e maliciosa.

Miss Grantham, que também tinha um aspecto encantador, com um vestido verde claro e com seus cabelos penteados com simplicidade, se aproximou para saudar sua visita, esquecendo por um momento que em certa ocasião tinha se apresentado perante miss Ravenscar com uma aparência extremamente vulgar.

A expressão de dúvida desapareceu do rosto de Arabella. Dirigiu-se a Deborah apressadamente, e pegou-a pela mão, exclamando:

-Tinha razão! Estava certa de que me agradaria! Certamente, você portou-se muito mal! Mas disse a minha tia que tinha um olhar tão alegre que não podia evitar sentir simpatia por você! Importasse que tenha vindo vê-la sem minha mamãe? Não gosta de sair, e além disso, está contra você, como todos os demais! Mas Adrian assegurou-me que você não se comportava assim normalmente, e decidi a vir para comprová-lo por mim mesma.

Deborah se ruborizou dizendo:

-Não deveria ter vindo, miss Ravenscar. Estou convencida de que seu irmão não desejaria que visitasse esta casa.

-Oh, bah! E quem se importa com Max? -manifestou sua irmã desdenhosamente-. E de qualquer maneira, não saberá. E se você vai converter-se em minha prima, não pode fazer nenhuma objeção que a visite. Devo confessar-lhe que me alegro muito de que vá se casar com Adrian.

-Verdade? -perguntou Deborah surpreendida. Conduziu a Arabella ao sofá-. Não imagino por que deveria se sentir assim!

-Bem, alegro-me agora, porque sinto simpatia por você -respondeu Arabella, sentando e se voltando para Deborah com um agradável gesto de confiança-. Também me alegrava antes, já que mamãe e a tia Selina tinham feito uns planos estúpidos para me casar com Adrian, o que nenhum dos dois deseja em absoluto. É claro, não teriam podido nos persuadir, porque decidimos faz muito tempo que não nos casaríamos, mas não pode imaginar o aobrrecimento que é quando as pessoas fazem semelhantes planos sem nos levar em conta!

-Seu irmão também aprovava este casamento?

-Suponho que sim, ainda que nunca me falasse nada a respeito; a única coisa que me disse a respeito de minha vida é que sou demasiado jovem e inconseqüente para pensar nessas coisas, o que me parece absurdo. Mas de todas as formas não me importa o que Max possa dizer. Casarei com quem eu quiser e quando eu quiser! Já estive a ponto de fugir várias vezes para me casar.

Deborah não pôde reprimir uma gargalhada.

-Muda de opinião com tanta freqüência, miss Ravenscar?

-Sim. Não é horrível? -suspirou Arabella, movendo a cabeça-. Tenho ficado apaixonada uma centena de vezes! E o estranho é que a cada vez que acontece, estou sinceramente convencida de que será para sempre. Mas, de uma ou outra forma, nunca é assim. Este é o motivo pelo qual mamãe me trouxe a Londres. Está muito mal de saúde, e lhe causo muitos aborrecimentos. Decidiu que Max deveria se ocupar de mim, e logicamente eu aceitei muito feliz, porque gosto de estar em Londres, e ir a festas. Na realidade, era justamente o que esperava que acontecesse!

-Não espera, suponho, que seu irmão a vigie com grande ciúme.

-Oh, não! -exclamou Arabella jovialmente-. Max é um encanto, e nunca é excessivamente severo!

É claro, não gosta que o contrariem, mas nos damos muito bem, asseguro.

-Temo que se zangaria muito se soubesse que veio me visitar.

-Max nunca se zanga comigo -respondeu miss Ravenscar confiadamente-. Além disso, por que se importaria? Você é encantadora!

Miss Grantham se ruborizou.

-Obrigado! Apesar disso, peço que não lhe diga que esteve aqui. Sem dúvida, já terá se dado conta de que ele sente por mim uma grande antipatia.

-Sim, certamente, mas não posso imaginar por que! Pensei que o faria mudar de opinião se lhe dissesse que tem um conceito equivocado de você.

-Não, não! -exclamou Deborah no mesmo instante-. Suplico que não o faça! Pode lhe parecer estranho, mas tenho minhas razões para desejar que ele não saiba desta visita!

-Bom, então não direi nem uma palavra a respeito dela -concordou Arabella-. Na realidade, suponho que é preferível que não o faça, porque, como lhe tem uma de suas estúpidas antipatias, não se dignará a escutar ninguém. Mas por que se comportou dessa forma tão chocante em Vauxhall? Conte-me, por favor! Foi tão engraçado!

Miss Grantham, compreendendo que era impossível justificar sua conduta em Vauxhall, murmurou vagamente que tinha certas razões que no momento preferia manter em segredo. Arabella mostrou curiosidade pelo misterioso assunto, mas sua boa educação impediu-a de insistir. Ao contrário, comentou que conhecia um certo senhor Grantham, e perguntou se era parente de Deborah.

-Conheci-o numa festa em Tunbridge Wells -precisou-. Está no XIV de Infantaria.

-Deveras? -exclamou Deborah-. Então conheceu meu irmão. Tem muita amizade com ele?

-Oh, dancei várias vezes com ele! -respondeu Arabella despreocupadamente-. Tunbridge Wells era terrivelmente monótono até que para ali destinaram o XIV de Infantaria!

A chegada de Lucius Kennet interrompeu sua conversa. Este, informado por Silas Wantage da identidade da visita, tinha subido para satisfazer sua curiosidade e contemplar à garota com seus próprios olhos.

A Deborah não agradou muito que entrasse na sala. Como se podia deduzir de suas cândidas revelações, Arabella era uma jovem muito romântica, e o senhor Kennet, além de ser muito encantador, tinha um grande atrativo para as damas. Viu-se obrigada a apresentá-lo a Arabella, mas dirigiu-lhe um olhar fulminante enquanto fazia-o, à que ele respondeu com um suave sorriso.

Sentou-se em frente ao sofá e começou a conversar com as damas. Seus modos eram muito agradáveis, e seu trato muito cortês e desembaraçado, enquanto o sorriso que se insinuava em seus olhos já tinha causado a perdição de mais de uma dama. No entanto, miss Grantham tranqüilizou-se ao observar que seu comportamento para sua convidada era absolutamente correto, tratando-a, inclusive, de uma forma que beirava no paternalismo.

Mas apesar disto, Deborah sentiu verdadeiro alívio quando Arabella se levantou para partir. Não considerava Lucius Kennet o acompanhante apropriado para uma jovem que ainda não tinha completado os dezenove anos e temia que sua experiência, os divertidos episódios que contava, e o ambiente cosmopolita que o rodeava, exercessem um efeito prejudicial sobre miss Ravenscar.

Quando Arabella exclamou que estava certa de que ela tinha tido uma existência muito romântica, e expressou seu desejo de se converter numa viajante, Deborah observou de forma desalentadora que a vida boêmia não era nada romântica, mas terrivelmente tediosa.

-Oh, me encantaria ser uma jogadora, e viajar, e ter todo tipo de aventuras! -manifestou Arabella, pondo de novo as luvas-. Tenho que partir, mas rogo que me permita vir de novo visitá-la, minha querida miss Grantham! Prometo-lhe que não direi nem uma palavra a Max nem a mamãe.

Mas, apesar de que miss Grantham ter pensado em muitas formas de castigar o senhor de Ravenscar, não estava disposta a introduzir a sua irmã no mundo do jogo, e lhe comunicou que não permitiria que visitasse sua casa enquanto sua família continuasse tendo uma má opinião de seus ocupantes.

-Não seria correto, querida -acrescentou, lhe dando umas palmadinhas na mão-. Tem que fazer o que sua mamãe... e seu irmão considerem oportuno.

Arabella fungou.

-Oh, que entediante, não pensei que você fosse assim! Mas previno-a de que, quando estiver casada com Adrian, a irei visitar com muita freqüência!

-Ah! -observou Deborah, com um sorriso nos lábios-. Isso é outra coisa!

Logo a seguir, Arabella partiu; o senhor Kennet acompanhou-a a carruagem, confessando-lhe que sentia muito não ter a ocasião de vê-la novamente em Saint James's Square, já que tinha tido a estranha impressão, ao entrar na sala, de que o sol tinha saído.

-Fez num dia muito ensolarado -respondeu Arabella com ingenuidade.

-No entanto, o salão está orientado para o norte -recordou-lhe o senhor Kennet-. Não sei explicá-

lo!

Arabella sorriu.

-Certamente, é muito estranho -concordou, com fingida inocência.

-Não costuma passear no parque por acaso? -perguntou Kennet.

-A verdade é que às vezes vou! -respondeu Arabella-. Pela manhã, com minha criada-. Fez uma pausa, e acrescentou com audácia-. Uma garota muito discreta!

Kennet continuava sustentando as delicadas mãos de Arabella entre as suas e, dando-lhe um beliscão num dedo, observou, rindo:

-Miss Ravenscar, é você o demoniozinho mais bonito que vi na minha vida! Seria muito estranho que não nos encontrássemos por acaso no parque um dia destes.

-Oh, você vai também passear ali? -perguntou Arabella com ingenuidade-. Então, certamente nos encontraremos... um dia destes!

Retirou a mão, e o senhor Kennet riu-se, fazendo-lhe aceno ao condutor para que partisse.

Enquanto isso, o senhor de Ravenscar, que felizmente não tinha conhecimento das andanças de sua irmã, tinha recebido outra carta procedente de Saint James's Square, escrita com a mesma letra fluída da anterior, apesar do conteúdo revelar uma maior perturbação. Dava a entender que tinham surgido complicações imprevistas, e insinuava vagamente a esperança de se chegar a um acordo, ainda que seu autor expressava o desejo de ter um encontro com ele, para lhe fazer ver como a situação era embaraçosa. O senhor Kennet, tomando a liberdade de escrever em nome de miss Grantham, manifestou que era de vital importância que lady Bellingham soubesse nem destes contatos, nem das futuras negociações, e rogava ao senhor de Ravenscar que tivesse a amabilidade de enviar sua resposta ao 66 de Jermyn Street, em nome do senhor Kennet.

O senhor de Ravenscar não pareceu perceber as misteriosas insinuações da carta, e julgou desnecessário discutir seu ultimato, por isso respondeu à carta, tal como se tinham pedido. Em resposta a esta, recebeu uma patética nota cujo conteúdo dava a entender que era lady Bellingham, e não miss Grantham, a principal responsável pela conspiração para agarrar lord Mablethorpe; e revelava um temor à lady Bellingham por parte de miss Grantham que teria surpreendido a ambas, se tivessem tido a ocasião de ler esta assombrosa carta. Finalmente, suplicava que tivesse a bondade de se reunir com miss Grantham no parque na quarta-feira ao anoitecer, onde se comprometia a lhe expor a situação com todos os detalhes, e fazer todo o possível para atender a seus desejos.

Como quase não conhecia lady Bellingham, o senhor de Ravenscar não considerou absurda a possibilidade de que miss Grantham estivesse sendo acuada por sua tia. Inclusive sentiu certa satisfação, já que não lhe desagradava a idéia de ver miss Grantham de novo. Portanto, o senhor Kennet recebeu no dia seguinte, de acordo com suas previsões, uma breve nota do senhor de Ravenscar, comunicando-lhe que iria à reunião.

Silas Wantage, ao conhecer o sucesso do estratagema, que contava com toda sua aprovação, murmurou que o senhor Kennet podia deixar o resto em suas mãos.

-Mas, bom homem, Ravenscar não é precisamente um janota! -exclamou Kennet com impaciência-. Costuma lutar com Mendoza!

-Assim é um bom boxeador -observou Silas-. Quando entrou aqui outra noite, o soube desde o primeiro momento. Bom, não teria nenhum inconveniente em medir minhas forças com ele. Não recordo ter tido uma boa briga já faz muito tempo.

-Quero que fique claro, Silas, que não se trata de um acontecimento esportivo! -precisou Kennet-.

Miss Deborah quer que lhe entreguemos Ravenscar são e salvo. Não haverá briga.

Esta decisão pareceu contrariar Wantage, que moveu a cabeça com desaprovação ao saber que o senhor Kennet tinha planejado deixar à vítima inconsciente de uma vez. Mas quando ele foi alertado que uma briga repentina no parque, inclusive ao anoitecer e num lugar afastado, chamaria sem dúvida a atenção, concordou, e prometeu ajudar Kennet a realizar a missão com o menor escândalo possível.

A chegada do senhor Cristopher Grantham, na quarta-feira pela tarde, cujo aspecto era magnífico, vestido com seu uniforme escarlate, conseguiu afastar a lady Bellingham de suas preocupações.

Kit Grantham era três anos mais novo que sua irmã. Era um jovem de aspecto agradável, mais louro que Deborah, e com um olhar menos vivo. Já que sua indulgente tia tinha-lhe consentido todos os seus caprichos, era um tanto malcriado, e não costumava levar em conta os desejos dos demais, mas este egoísmo era mais um produto de seu inconsciência que de um mau caráter; e geralmente gozava de popularidade, já que seu trato era correto, era um bom ginete, e seu caráter generoso levava-o a gastar grandes somas de dinheiro no tipo de diversões apreciadas por seus amigos do regimento.

Tinha decorrido mais de um ano desde que esteve em Londres de licença na última vez, por isso sua tia e sua irmã estavam encantadas de o ver de novo, o acharam muito mudado, devido ao tempo decorrido. Cobriram-no de todo tipo de atenções, falando de suas virtudes como oficial. Ele se alegrava de estar de novo com elas, beijou a ambas afetuosamente, e respondeu o melhor que pôde as suas irritantes perguntas. Mas quando Deborah lhe perguntou se era feliz no exército, e se estava satisfeito com os outros oficiais do regimento, recordou seu problema mais agudamente, e imediatamente observou que seria conveniente que mudasse para a um regimento de cavalaria.

Deborah respondeu no momento deveria renunciar a essa idéia, já que originaria um gasto excessivo.

-Oh, não custaria mais de oitocentas libras, e provavelmente menos se contamos com a gratificação que receberei ao me mudar! -assegurou-lhe Kit-. Tenho minhas razões para desejar fazer parte de um regimento melhor. Deb, se soubesse quão pouco distinto é um regimento de infantaria! Pense por um momento como ficaria bem o uniforme de hussardo em teu único irmão!

No entanto, miss Grantham não fez caso destas piadas, e replicou:

-Kit, asseguro-te que é impossível! A pobre tia Lizzie teve muitas perdas ultimamente, e estou certa de que você não iria querer lhe acarretar mais gastos.

-Oh não! Mas estou convencido de que se recuperará de novo, madame! Não gostaria de ver-me vestido com um casaco de pele e galões de prata?

-Sim, mas não sei como consegui-las, querido -respondeu lady Bellingham, com grande aflição-.

Não pode imaginar o ônus que esta casa é para mim! E se não fosse pouco, agora... -Interrompeu a frase, ao receber um olhar de advertência de sua sobrinha, e acrescentou apressadamente-: Mas mais vale não dizer nada a este respeito! Falaremos mais tarde, Kit.

-Mas se vivem com toda a riqueza! -observou ele, olhando ao redor atenciosamente-. Nunca na minha vida vi nada semelhante. O mobiliário desta casa deve custar uma fortuna!

-Precisamente, é disso que se trata -respondeu sua tia-. Custou uma fortuna, e não é que já tenhamos pago tudo, já que ninguém pode pagar faturas como as que essa gente odiosa me importuna sem parar; mas o caso é que hoje em dia todo mundo quer jogar a crédito, e te asseguro que a situação é tão catastrófica, que uma aposta de vinte guinéus constitui uma exceção! E a mesa de E.Ou. não dá os bons resultados como esperávamos, além de destoar com o ambiente que tento ter em meu estabelecimento.

-Uma mesa de E.Ou.! -repetiu ele com assombro-. Querida tia, não me diga que tem isso aqui!

-Por que não? -perguntou sua irmã com certa brusquidão-. Isto é uma casa de jogo, Kit.

Ele se moveu com impaciência em seu sofá, e começou a recordar as reuniões privadas.

-Oh, mandamos convites, mas não negamos a entrada a ninguém que tenha alguns guinéus para apostar nas mesas! -precisou Deborah.

Evidentemente, esta observação não foi do agrado de Kit Grantham, mas como tinha um pouco de medo de sua irmã, não fez nenhum comentário até que esta saiu da sala. Então voltou-se para lady Bellingham, e pediu-lhe que explicasse os motivos que a tinham levado a mudar a natureza de suas reuniões.

Lady Bellingham e Deborah tinham acordado não informar a Kit da hipoteca sobre a casa, ou das ameaças por parte de Ravenscar de as levar a julgamento, mas sua senhoria lhe revelou todo o resto, sem passar por alto a incrível fatura das ervilhas, ou a estadia de Phoebe Laxton. Kit não saía de seu assombro, e experimentou certa dificuldade em compreender com clareza a relação dos fatos. Seu sentido da honra, ofendido a princípio ao descobrir que as seletas reuniões de sua tia tinham piorado notavelmente, recebeu um golpe ainda maior quando soube que tinham tentado subornar a sua irmã para que abandonasse suas pretensões ao título e à fortuna de lord Mablethorpe; mas acrescentou com sinceridade que, se tinham permitido transformar os salões que, em espaço de um ano, se tinham convertido em pouco mais que uma casa de apostas, não ficava surpreso, e que não podia culpar a família de Mablethorpe por se opor a semelhante união.

Lady Bellingham começou a chorar, e não pensou nem por um momento em lembrá-lo que fora o seu próprio modo de vida que tinha sido uma das principais causas para que se tivesse visto obrigada a converter seu lar numa casa de jogoAo contrário, respondeu que se encontravam numa situação muito embaraçosa, mas que não sabiam como obter o dinheiro para pagar aos comerciantes. Em quanto a Deb, se tivesse alguma forma de convencê-la para que se casasse com Mablethorpe, o que não a teria prejudicado em absoluto, mas, ao contrário, a teria beneficiado notavelmente.

-Deves saber que conheceu Deb na mesa de Faraó , e ainda que seja um pouco jovem para ela, seria um casamento magnífico!

-Não posso imaginar que razões ela tem para recusar uma proposta tão conveniente! -exclamou o senhor Grantham-. Especialmente agora, quando me faz tanta falta que minha irmã tivesse uma elevada posição social! No entanto, ainda não está a par disto, e suponho que mudará de opinião quando lhe contar.

-Que vais lhe contar, querido? -perguntou sua tia, enxugando suas lágrimas-. Asseguro que não está disposta a escutar a ninguém! Verdadeiramente, acho que perdeu a razão!

O senhor Grantham se ruborizou e, gaguejando, disse com certa perturbação:

-A verdade, senhora, é que vou a... isto é, espero... acho que tenho razões para pensar que... que...

em resumo, tia, tenho esperanças de casar-me daqui a pouco tempo. Recordará que já mencionei o assunto numa carta.

-Oh, sim! -recordou sua senhoria, suspirando-. Mas Deb afirma que ainda não podes pensar em casamento, e verdadeiramente, Kit, és muito jovem para considerar esta possibilidade!

-Deb é uma intrometida! -respondeu Kit, ofendido-. Como ela nunca se apaixonou, eu também não posso estar! Mas se pudesse vê-la, tia!

-Mas se a vejo! -protestou sua senhoria-. Em que estás pensando, Kit?

-Não me referia a Deb! Trata-se de Arabella! -precisou o senhor Grantham; pronunciando seu nome com fervor.

-Oh! -exclamou sua tia-. Mas vai sair-te bem mais cara a vida de casado que a de solteiro, querido. Não pode fazer nem idéia do custo que é a manutenção de uma casa! Imagina! Setenta libras de ervilhas!

-Bem, quanto a isso -observou o senhor Grantham, ruborizando-se ainda mais -, Arabella é uma rica herdeira. Não é que tenha intenção de viver a custa de sua fortuna, e esta é uma das razões por que gostaria de pedir a mudança, senhora; mas procede de uma de melhores famílias, e meu futuro depende da aprovação de seu tutor! Seria maravilhoso que Deb se convertesse em lady Mablethorpe! Pense por um momento como é importante para mim!

-Certamente, querido, mas não conseguirá nunca persuadi-la -respondeu sua tia com tristeza-.

Também é muito importante para mim.

-E ao contrário -prosseguiu o senhor Grantham, muito ofendido –encontro-me nesta casa que se converteu em pouco menos que uma sala de apostas! Que desgraça! Realmente, acho que você deveria ter tido mais cuidado, madame.

Semelhante dureza produziu um efeito muito desalentador em lady Bellingham, mas pensou que Kit não tinha compreendido quão desesperadora era sua situação. Tentou, timidamente, fazer-lhe compreender como era difícil para uma viúva, acostumada ao luxo e com dois sobrinhos a seu cargo, viver com rendimentos reduzidos, mas como ele parecia estar absorto em seus próprios problemas, provavelmente não esteve atento a esta declaração. Kit aproveitou uma pausa na longa explicação de sua tia para brindar-lhe com uma descrição dos múltiplos encantos de sua amada Arabella, e manifestou a certeza de que se algo se interpusesse entre ele e a dama em questão, não seria capaz de suportar a vida, pois não teria mais remédio que dar um tiro nos miolos, e acabar com tudo de uma vez.

Lady Bellingham ficou horrorizada ao ouvir tais propósitos na boca de seu sobrinho, e suplicou que tivesse consideração por sua tia, cujos nervos estavam totalmente desfeitos. Quando sua irmã teve notícias desta conversa, respondeu simplesmente que já tinha se visto obrigada a ouvir os mesmos disparates de lord Mablethorpe, que, nesse preciso instante, se estava apaixonando por Phoebe tão rápido como lhe era possível.

-Mas Kit é tão impulsivo! -suspirou lady Bellingham-. Verdadeiramente seria magnífico que se casasse com uma rica herdeira, querida, e sinto deveras que o que eu fiz seja um impedimento para ele.

-Como se atreveu Kit a lhe dizer isso? -exclamou Deborah-. Em toda a minha vida nunca vi semelhante ingratidão! Se falar-me dessa forma, direi o que penso de suas tolices! E quanto a casar-se com uma rica herdeira, bah! Não chegará a nada com ela, madame, já que antes já esteve apaixonado uma dúzia de vezes, e sem dúvida se apaixonará outras tantas mais. Como se chama a garota?

-Oh, não o sei! Não me disse e eu estava demasiado aturdida para lhe perguntar! Querida, não lhe agradou em absoluto que nos ocupássemos de uma casa de jogo, e não me atrevo a pensar qual será sua reação se souber da hipoteca, e das intenções que tem esse homem odioso de me levar a julgamento!

-Não tem por que se preocupar tia, não acontecerá nenhum julgamento.

Tinha uma nota de decisão na voz de Deborah, já que lhe tinham trazido uma nota procedente da residência do senhor Kennet recordando-lhe que preparasse o porão para receber um convidado.

Tinha uma fé cega em Kennet, e estava totalmente segura de que conseguiria entregar-lhe o seu pior inimigo ao anoitecer. Essa mesma noite lady Bellingham ia receber a um número considerável de convidados em seus salões, e a única preocupação de miss Grantham consistia em saber como fariam Kennet e Silas para introduzir seu prisioneiro no porão sem chamar a atenção. Como não lhe ocorreu nenhuma forma de os ajudar, e imaginou que já teriam considerado este problema, o afastou de sua mente com sensatez, e subiu para mudar seu vestido verde por um traje de noite de brocado amarelo escuro.

Enquanto isso, lady Bellingham tinha apresentado seu sobrinho a miss Laxton, advertindo-lhe antes que não devia informar a ninguém de sua presença na casa. Sua irmã já o tinha posto a par das circunstâncias que tinham motivado a chegada de Phoebe a Saint James's Square, e ainda que tendesse a considerar que Deb tinha cometido uma imprudência ao se meter num assunto que não lhe dizia respeito, não permaneceu insensível ante a mirada desvalida que havia nos belos olhos castanhos de Phoebe, nem ante seu aspecto frágil, e em pouco tempo começou a pensar que Deborah tinha agido de uma forma muito razoável.

Quase não teve ocasião de falar em particular com Deborah antes que esta subisse para mudar de traje, mas conseguiu vê-la a sozinha por uns instantes quando descia de novo ao salão de jantar, e lhe rogou que lhe dissesse se era verdade que tinha recusado uma proposta de casamento muito vantajosa. Ela respondeu com toda sinceridade que não era, mas quando viu como se iluminou o rosto de seu irmão, acrescentou que não estava disposta a se casar com Mablethorpe, apesar de não desejar naquele momento que conhecessem suas intenções.

-Que estranha você é! -exclamou Kit-. Por que não quer casar com ele? Não poderias aspirar a uma oferta mais vantajosa! Tenho entendido que herdará uma fortuna considerável e, segundo minha tia, é muito amável. Não entendo como podes ter algo a objetar!

-Não estou apaixonada por ele -respondeu Deborah, acrescentando com um sorriso um tanto insolente-: Estou convencida de que ao menos poderás compreender isso!

Ele suspirou.

-Sim, claro que compreendo, mas nossas circunstâncias são diferentes. Você não ama a outra pessoa, não é assim?

-É claro que não, mas espero não ser muito velha para poder me apaixonar ainda.

Ele a contemplou com certa inquietude.

-Minha tia mencionou um tal lord Ormskirk, Deb. Não pude compreender muito bem ao que se referia. Já sabes que não para de falar! Mas pareceu-me... Sem rodeios, não tens a intenção de fazer nada desonesto?

-Não, não! -assegurou-lhe-. Não há nada que temer ao respeito!

-Estava certo de que não podia ser! No entanto, tudo mudou tanto aqui?! Mas posso confiar em você!

-Espero que assim seja. Mas posso eu confiar em você, Kit? Surpreendeu-me que tenha anunciado a intenção de se casar!

Ele se riu, pegando em seu braço.

-Sempre estás caçoando! Verás quando a conheceres! Então compreenderás! É a criatura mais bonita e graciosa que possas imaginar, e tem um rosto tão adorável! Um caráter tão agradável e encantador! Mas não tenho nenhuma possibilidade de que me deixem me casar com ela, sobretudo tendo em conta que minha tia permitiu que sua casa se convertesse num antro de jogadores! Em toda a minha vida nunca me senti tão ofendido!

-Se não te agrada, permita-me que o aconselhe a não gastar tanto! -replicou Deborah com franqueza-. Apesar de tudo, você mais do que ninguém não pode julgar tia Lizzie! Não acha que ela dirige uma casa de jogo por gosto.

Ele pareceu envergonhado, e acrescentou baixinho que não tinha nem idéia de que as coisas tivessem chegado a esse extremo.

-Suponho que terá sido Lucius o que lhe meteu essas idéias na cabeça. Estranha-me que tenha convencido a você para que se prestasses a isso!

-Meu querido Kit, Lucius não tem essas atenções para conosco! Não podia permitir que minha tia lutasse sem ajuda. Além disso, tens que ter em conta que considera-me uma atração nos salões.

-Como é capaz de dizer essas coisas? Asseguro-te que me dá vontade de abandonar o exército!

Não gosto em absoluto que minha irmã tenha que receber a um bando de jogadores! Onde está Lucius? O verei esta noite?

-Sem dúvida -respondeu Deborah, dizendo para si mesma que Lucius Kennet já deveria estar a caminho de casa, e desejando fervorosamente que não tivesse fracassado em sua missão.


Capítulo XI

O senhor de Ravenscar foi à reunião no parque sem companhia e a pé, tal como tinha previsto Kennet ao escolher um lugar de reunião próximo a sua casa, numa das pequenas veredas um tanto afastadas do passeio principal. Sabia que Ravenscar, no caso de não conduzir ele mesmo, ou caminharia, ou tomaria um carro de aluguel, e não era provável que saísse em sua carruagem a essas horas. Ele mesmo tinha alugado um veículo coberto, cujo proprietário, um ex boxeador de aspecto sinistro, gozava da confiança de Silas. Por cinco guinéus estava disposto, segundo afirmou despreocupadamente, a participar num assassinato, e estava encantado de ajudá-los, já que, tratando-se só de um seqüestro, constituía para ele um trabalho sem importância. Mordeu as moedas de ouro que lhe entregaram, e disse que gostava de tratar com indivíduos honrados.

Comprometeu-se a ter pronta a carruagem no parque, e guardar o mais absoluto sigilo sobre suas atividades.

O senhor de Ravenscar viu a carruagem enquanto atravessava o caminho que conduzia ao caminho onde esperava se encontrar com miss Grantham, e supôs que fosse sua. Já estava anoitecendo, e o parque estava quase deserto. Não podia imaginar por que razão Deborah tinha escolhido um lugar tão afastado, e uma hora tão avançada. Não teria se surpreendido que se tratasse de uma artimanha, e estava disposto a enfrentar a todas as armas femininas, incluindo lágrimas, lisonjas, súplicas e desmaios. Com toda certeza, ela tinha esperanças de abrandá-lo; pensou, sorrindo com cinismo, que tinha se arrependido de sua negativa de aceitar sua generosa oferta de vinte mil libras, e decidiu que qualquer tentativa por parte de miss Grantham de persuadi-lo para que repetisse sua oferta, ou inclusive a metade da soma, seria inútil. Poderia dar-se por contente se conseguir de volta a hipoteca e as letras.

O caminho que trilhava era delimitado por maciços de flores, e ficava oculto depois de uma fila de árvores, o que, unido à falta de luz, tornava-o tão escuro que não se podia ver a poucos metros de distância. Um banco, onde miss Grantham tinha citado, podia ser visto ao longe, junto a um maciço de arbustos em flor. Não tinha ninguém à vista. Ravenscar deteve-se, franzindo o cenho, e de repente invadiu-lhe uma suspeita. Já não estava na moda levar espada, e só trazia sua bengala. O

pressentimento de que o espreitava um perigo fez que a segurasse com força, mas antes que compreendesse que miss Grantham não tinha vindo ao encontro, surgiu Silas Wantage de improviso por trás de um arbusto , armado de um porrete, e se lançou sobre ele.

Ravenscar pôde esquivar o golpe dirigido a sua cabeça graças a sua rapidez de reflexos. O golpe errou, e ele se afastou de um salto, brandindo sua bengala de forma a estocá-lo. Estava muito escuro para que pudesse reconhecer Wantage; a princípio pensou que se tratava de um assalto.

Quando Wantage se lançou sobre ele de novo, lhe deu com a bengala, um golpe, tão certeiro no cotovelo, que Silas baixou o braço e soltou um gemido de dor. Neste momento, Ravenscar aproveitou a oportunidade que se oferecia; soltou sua bengala, e deu-lhe um direto na mandíbula.

Atingiu Silas, mas por ter estado em um ring por dez anos; recuperou-se em seguida, deixando de lado seu porrete, e defendeu-se como um pugilista experimentado.

-Adiante! -exclamou com voz rouca, satisfeito de ter de usar as mãos apesar de tudo.

O senhor de Ravenscar dispôs-se a golpear Silas de novo, mas Lucius Kennet, impaciente para pôr fim ao assunto, e temendo que, de uma hora para outra, fossem surpreendidos por um guarda ou algum transeunte, saiu de seu esconderijo por trás de Ravenscar, deixando-o inconsciente de uma vez antes que pudesse se dar conta de que enfrentava dois adversários, em vez de um.

O senhor de Ravenscar caiu no mesmo instante. Silas Wantage exclamou furioso:

-Não deveria ter feito isso! Golpeando-lhe pelas costas e estragando a melhor briga que tive em muitos anos! Foi um golpe traiçoeiro, senhor Kennet, e não gosto dessas coisas!

-Não fique aí falando, estúpido! -sussurrou Kennet, ajoelhando-se junto ao corpo inerte-.

Recobrará o sentido num momento! Ajude-me a amarrá-lo!

Silas sacou relutante dois pedaços de corda, e começou a atar os tornozelos do senhor de Ravenscar com um deles, enquanto Kennet amarrava suas mãos por trás de suas costas, e lhe amordaçava com um lenço e um cachecol.

-Não tinha lhe dito que era um boxeador excelente -afirmou Silas-. Viu o direito que me soltou na mandíbula? Ah, não é nenhum fanático! Asseguro-lhe que iria golpeá-lo. E então vem você e o deixa inconsciente antes que pudesse lhe dar uma boa surra!

-Acho que lhe teria dado uma surra em você! -replicou Kennet, assegurando-se de que sua vítima estava bem atada-. Pegue-o pelas pernas, e eu o levarei pelos ombros. Antes que recobre o sentido estará escondido na carruagem.

-Não nego que seja rápido -admitiu Silas, levantando o senhor de Ravenscar do solo-. Mas não gosto nem um pouco atacar à traição um adversário tão bom, senhor Kennet.

Quando chegaram ao carro com o corpo do senhor de Ravenscar estavam sem fôlego, e extremamente satisfeitos de poder abandonar seu pesado ônus no assento traseiro, já que o senhor de Ravenscar não era precisamente uma pluma.

A carruagem já tinha abandonado o parque e circulava com estrondo pelas ruas de pedras quando o senhor de Ravenscar se moveu e abriu os olhos. No princípio só sentiu uma dor aguda e que a cabeça lhe dava voltas, e a seguir se deu conta de que estava amarrado. Fez uma tentativa desesperada por desatar suas mãos.

-Ah, fique tranqüilo! - sussurrou Kennet ao ouvido-. Não sofrerá nenhum dano se for razoável, senhor de Ravenscar.

O senhor de Ravenscar estava aturdido e confuso, mas pôde reconhecer a voz. De repente, invadiu-lhe um sentimento de raiva: raiva ante a perfídia de miss Grantham, raiva por ter sido tão imprudente para cair em semelhante armadilha.

Pôde ouvir outra voz, mais rouca, na escuridão da carruagem:

-Derrubaram-lhe a traição -se desculpou-. Eu não tive nada a ver com isso, já que não sou desses que atacam a um sujeito pelas costas; nunca em minha vida o fiz, especialmente em quem se defende tão bem como você, senhor, e que é tão rápido. Mas não deveria ter molestado miss Deb, é tudo o que tenho a dizer.

O senhor de Ravenscar não reconheceu sua voz, mas pela linguagem empregada deduziu que estava em companhia de um boxeador. Fechou os olhos, tentado afastar o atordoamento, e recobrar a lucidez.

Quando a carruagem se deteve em frente à casa de lady Bellingham, já estava o suficientemente escuro para que os autores do seqüestro pudessem baixar a escada do pátio com seu prisioneiro, sem chamar a atenção nem de um homem que se afastava em direção a Pall Mall, nem de dois cocheiros que esperavam em frente a uma casa situada a pouca distância. O porão da residência de lady Bellingham era muito grande e escuro, e suficientemente espaçoso para se parecer mais com um labirinto do que a área de serviços de uma mansão de luxo. A bodega destinada a alojar por algum tempo o senhor de Ravenscar encontrava-se no final de um corredor isolado, e continha, além de alguns armários, quase todas as malas e os baús de lady Bellingham, grande quantidade de bolsas de viagem, amontoadas contra a parede, e uma cadeira, que miss Grantham, com consideração, tinha colocado ali.

Sentaram-no na cadeira dando mostras de exaustão. Silas Wantage examinou-o atenciosamente com uma lanterna que tinha pego da mesa junto à porta do pátio, chegando à conclusão de que assim estava seguro. O senhor Kennet dirigiu à vítima um sorriso tão arrogante que fez que o senhor de Ravenscar desejasse com toda sua alma ter as mãos livres só por um instante.

-Acho que Deb ganhou o segundo assalto, senhor de Ravenscar. No entanto, não se preocupe, já que não tem intenção de retê-lo aqui durante muito tempo! O deixaremos só um momento. Me atreveria a assegurar que quer refletir a respeito de sua situação.

-Sim, seria conveniente que informássemos a miss Deb que o trouxemos são e salvo -afirmou Silas.

Ambos abandonaram a seguir a bodega, levando a lanterna com eles, e, trancando a grande porta, deixaram o senhor de Ravenscar na escuridão para que refletisse.

No andar superior, o jantar tinha terminado, mas ainda não tinha chegado aos salões nenhum dos convidados. O senhor Kennet fez seu aparecimento no gabinete do mezanino, onde as três damas estavam sentadas com Kit Grantham, e dirigiu um assovio imperceptível a Deborah antes que Deborah tivesse a oportunidade de falar sozinha com ele, mas, após ter saudado Kit, e conversado com ele animadamente durante certo tempo, lady Bellingham recordou que lhe tinha parecido na noite anterior que a mesa de E.Ou. não funcionava bem, e rogou ao senhor Kennet que a examinasse. Ao sair da sala em companhia de lady Bellingham passou perto da cadeira de miss Grantham e, sorrindo, deixou cair uma grande chave de ferro sobre seu regaço. No mesmo instante, ela a tampou com um lenço, se debatendo entre um sentimento de culpa e de triunfo, e em pouco tempo, pedindo desculpas, abandonou a sala.

Encontrou a Silas na entrada, disposto a abrir a porta aos convidados da noite.

-Silas! Teve... teve algum problema?

-Não -respondeu Wantage-. Não exatamente. Mas reconheço que é um boxeador admirável, e não gostei que Kennet lhe golpeasse com um porrete por trás.

-Deus meu! -exclamou miss Grantham, empalidecendo-. Feriu-o?

-Não, foi um golpe sem importância. Se fosse por mim, deixava-o no lugar, porque me deu um direto justo na mandíbula. Que fazemos agora, miss Deb?

-Tenho que vê-lo -respondeu miss Grantham com firmeza.

-Então, é melhor que a acompanhe, e vá buscar uma lanterna.

-Eu levarei um candelabro. Os criados podem perceber que levo uma lanterna. Mas por favor acompanhe-me, Silas!

-É claro, mas não tem nada a temer, miss Deb: está atado e bem atado.

-Não tenho medo -replicou miss Grantham com frieza.

Foi buscar um candelabro na sala de jantar, e Silas, após dar instruções a um dos camareiros para que vigiasse a porta, guiou miss Grantham pelas íngremes escadas que conduziam ao porão. Tomou a grande chave que ela lhe entregou, e abriu inesperadamente a porta da cela do senhor de Ravenscar. Este, franzindo o cenho, pôde contemplar uma altiva deusa ataviada com uma túnica dourada, sustentando um candelabro cuja luz incidia em sua brilhante cabeleira. Já que não estava de humor para apreciar sua beleza, observou este formoso aparecimento com indiferença.

Miss Grantham exclamou com indignação:

-Não tinha nenhuma necessidade de lhe deixar com essa horrível mordaça! Ninguém poderia ouvi-lo, ainda que gritasse para pedir auxilio! Tire-a imediatamente, Silas!

Wantage sorriu, acercando-se para retirar o lenço e a mordaça. Miss Grantham pôde observar que seu prisioneiro estava um pouco pálido, e um tanto agitado, pelo que disse com certa preocupação.

-Temo que o trataram com brusquidão! Silas, faça o favor de trazer ao senhor de Ravenscar um copo de vinho!

-Que amável é você, madame! -observou o senhor de Ravenscar sarcasticamente.

-Bom, sinto muito que lhe tenham causado algum dano, mas a culpa é sua - respondeu miss Grantham, na defensiva-. Se não se tivesse se portado comigo dessa forma tão desagradável, não teria ordenado que o raptassem. Seu comportamento foi atroz, e foi bem merecido!

De repente lembrou-se com indignação de uma das ofensas que tinha tido que suportar.

-Em certa ocasião, senhor de Ravenscar, fez-me você a honra de dizer que deveriam me açoitar atada a uma carroça! -acrescentou.

-Talvez queira que me retrate? -perguntou-. Vai se decepcionar, bela cortesã!

Miss Grantham enrubesceu de ira, e seus olhos brilharam ameaçadores.

-Como se atreve a me chamar assim? Eu o esbofetearei! -assegurou-lhe.

-Fique a vontade... rameira! -replicou o senhor de Ravenscar.

Ela se dirigiu apressadamente para ele, mas se deteve, lamentando-se de sua impotência, disse:

-Aproveita das circunstâncias. Sabe perfeitamente que não posso esbofeteá-lo tendo as mãos atadas.

-Surpreende-me, madame! Pensei que as mais elementares normas de urbanidade não fossem um obstáculo para você!

-Não tem direito de dizer isso! -exclamou miss Grantham com raiva.

Ele riu com aspereza.

-Deveras? Permita-me que lhe diga que não consigo entendê-la! Conseguiu trazer-me até aqui graças a uma armadilha que, na minha imprudência, nunca imaginei que você se rebaixaria a...!

-Não é verdade! Não lhe armei nenhuma armadilha!

-Neste caso, como você a chamaria? -perguntou Ravenscar com escárnio-. Que me diz daqueles comovedores apelos a minha generosidade, madame? E aquelas patéticas cartas que me escreveu?

-Eu não fiz tal coisa! -replicou-. Não o faria por nada no mundo!

- Você é muito convincente! Mas não vai lhe servir de nada, miss Grantham! Acontece que tenho no bolso sua última mensagem.

-Não entendo a que se refere! -exclamou ela-. Só lhe mandei uma carta na minha vida, e eu mesma não a escrevi, como você bem sabe!

-Como? -perguntou Ravenscar com incredulidade-. Quer me fazer achar que não implorou que me encontrasse com você no parque esta noite, porque queria impedir a todo custa que sua tia se inteirasse de que estava disposta a chegar a um acordo?

Uma expressão de consternação apareceu no rosto de miss Grantham.

-Mostre-me essa carta! -ordenou-lhe com voz sufocada.

-Graças aos seus estratagemas, não posso a atendê-la. Se deseja continuar com esta farsa, pode pegá-la no bolso interior de meu casaco.

Ela vacilou por um instante, e a seguir avançou para ele, metendo a mão em seu bolso.

-Quero vê-la. Se na realidade não me está mentindo...

-Rogo-lhe que não pense que sou como você! -observou Ravenscar.

Ela encontrou a carta, e a tirou. Um olhar ao encabeçamento bastou para confirmar suas suspeitas.

-Oh, Deus meu! Lucius! -exclamou com indignação. Desdobrou a carta e leu o conteúdo com rapidez.

-Infame! -exclamou-. Como se atreveu a fazer algo semelhante? Oh, seria capaz de matá-lo por isto! -Amassou a carta e voltou-se para Ravenscar indignada-. E você! Pensou que eu fosse capaz de escrever esta? este lixo infame? Preferiria morrer! Você é o homem mais odioso e abominável que conheci na minha vida, e se pensa que me rebaixaria a usar de truques tão covardes, é um néscio, além de um insolente e um estúpido, e...

-Quer fazer-me acreditar que as cartas que recebi não foram escritas por você? -interrompeu o senhor de Ravenscar.

-Não me importa o que você possa acreditar! -replicou Deborah ofendida-. É claro que não as escrevi! Não desejava lhe escrever em absoluto, mas Lucius Kennet me convenceu que o permitisse responder a horrível carta que você me enviou! E reconheço que me pediu que lhe preparasse uma armadilha com o pretexto de uma reunião, para assim poder seqüestrá-lo, mas sou incapaz de fazer isso, e assim lhe disse! Oh, nunca recebi semelhante ofensa! Agora compreendo tudo! Essa é a razão por que quis responder sua carta, para que você pensasse que se tratava de minha letra! -De novo se ruborizou; contemplou a Ravenscar com verdadeiro arrependimento e disse-: Sinto-o deveras, e compreendo perfeitamente que esteja furioso comigo. Na verdade é que pedi a Lucius Kennet e a Silas que o seqüestrassem, mas pensei que o fariam sem recorrer a esses truques tão vis! Isso era perfeitamente correto! Não havia objeções, já que eu não teria sido capaz de seqüestrá-lo sozinha.

Apesar do senhor de Ravenscar se encontrar numa posição bastante incômoda, com cordas cortantes ao redor de suas mãos e tornozelos, e que também lhe doía a cabeça, sorriu ao ouvir isto, e não pôde reprimir uma gargalhada.

-Oh, nesse caso não teria havido nenhum inconveniente, miss Grantham!

-Bom, acho que era uma medida muito justa -afirmou ela razoavelmente-. Sinto que lhe tenham armado uma armadilha, mas que vamos fazer? Já não tem remédio.

-Que pensa fazer comigo? -perguntou Ravenscar.

-Não lhe vou causar nenhum dano - assegurou-. De fato, disse a Lucius que não queria que prejudicá-lo mais do que absolutamente necessário, e espero que assim tenha sido.

-Oh, sim, madame! Diverte-me bastante que me golpeiem a cabeça com um porrete! -respondeu ironicamente.

Wantage, que tinha regressado ao porão a tempo para escutar esta observação, comentou:

-Não recordo nada me tenha incomodado tanto em minha vida.

Posou o copo que levava, e se dispôs a abrir uma garrafa empoeirada.

-Trouxe-lhe uma garrafa de um bom Borgonha, miss Deb.

-Sim, é claro -aprovou Deborah-. Se sentirá melhor quando tiver bebido um pouco, senhor de Ravenscar.

-Me sentiria muito melhor se tivesse as mãos desatadas -respondeu ele com aspereza.

-Não pense em desamarrá-lo, miss Deb! -preveniu Silas-. É melhor que esteja bem atado, ou caso contrário terá uma briga no porão, o que sua tia não gostaria nada. Aqui tem, senhor!

O senhor de Ravenscar bebeu o vinho que lhe acercaram aos lábios, e de novo contemplou a miss Grantham de acima a abaixo.

-Bem? -perguntou-. E agora, madame?

-Seria conveniente que se apressasse, senhorita Deb -disse Wantage-. De uma hora para outra terei que voltar à porta, ou entrará qualquer um na casa.

-Não preciso de você, Silas -respondeu Deborah-. Pode retirar-se; eu ficarei com o senhor de Ravenscar para informá-lo de meus propósitos.

Silas pareceu vacilar, mas quando sua ama lhe assegurou que não tinha a menor intenção de libertar o senhor de Ravenscar de suas ataduras, concordou em se retirar, recordando porém que se assegurasse de que a porta estava bem fechada com chave quando saísse do porão.

-Deseja um pouco mais de vinho, senhor? -perguntou Deborah, cumprindo com suas obrigações para seu hóspede.

-Não -respondeu Ravenscar com frieza.

- Você não é precisamente muito educado! -observou Deborah.

-Não estou com humor para ser. Não obstante, se fizer o favor de desatar-me os tornozelos, ficarei agradecido.

Miss Grantham pareceu um pouco preocupada.

-Realmente, temo que você deve estar se sentindo muito incômodo -reconheceu.

-Assim é.

-Bem, não acho que tenha nenhum inconveniente em lhe desatar as pernas -disse, se ajoelhando no solo de pedra para abrir os nós que tinha feito Silas-. Deus meu, estão muito apertados!

-Já me tinha dado conta disso.

Ela o olhou.

-É inútil que se aborreça tanto. Suponho que gostaria de assassinar-me, mas não deveria me ter ameaçado. Permita-me que lhe diga que foi muito pouco cavalheiro por sua vez, e se pensou que me podia amedrontar tão facilmente para que abandonasse seu primo, se dará conta agora quão equivocado estava! Trouxe-o para recuperar a hipoteca e as letras.

Ele soltou uma brusca gargalhada.

-Seus esforços foram em vão, miss Grantham. Não as levo comigo.

-Oh, não! Mas pode escrever uma nota a seus criados ordenando-os que as depositem nas mãos de um mensageiro -assinalou.

Ele dirigiu um olhar com sua cabeça inclinada.

-Garota, não sabe com quem está tratando! Por mim pode trazer os pregos e o poste de tortura!

Não conseguirá nada.

Deborah esforçou-se para desatar o nó.

-Não desejo prejudicá-lo, lhe asseguro. Nenhuma pessoa desta casa lhe causará nenhum dano.

Mas não sairá daqui até que tenha as letras em meu poder.

-Nesse caso, temo que minha estadia neste porão vai ser prolongada.

-Oh, duvido! -respondeu com olhos brilhantes-. Não esqueci, ainda que você talvez o tenha feito, que amanhã vai participar numa corrida importante.

Ele se sobressaltou, reprimindo uma exclamação. Deborah desatou o último nó e levantou-se.

-Espero que se encontre mais a gosto agora -lhe disse amavelmente-. Mas estou convencida de que não permanecerá muito tempo mais neste horrível porão. Um desportista tão conhecido como o senhor de Ravenscar não consentiria que todo mundo comentasse que não se atreveu a competir com seus célebres cavalos contra os animais de tiro de sir James Filey! Sobretudo, após uma aposta tão grande!

-Rameira! -exclamou Ravenscar deliberadamente.

Ela enrubesceu de ira, mas encolheu os ombros.

-Não lhe servirá de nada me insultar dessa forma, senhor de Ravenscar. Expõe-se a perder vinte e cinco mil libras na corrida de manhã.

-Talvez achea que isto me preocupa? -perguntou com aspereza.

-É possível que não muito. Mas estou convencida de que se preocupa muito com sua reputação, e não você estaria disposto a perder por abandono.

-Por mim se pode ir ao diabo! -esbravejou.

- É possível que não tenha refletido detidamente a respeito de sua situação, senhor de Ravenscar.

Ninguém, salvo Lucius Kennet, Silas e eu, conhece seu paradeiro. Se acha que vão resgatá-lo, terá uma desilusão. Não lhe sobra outra solução que aceitar minhas condições.

-Só lhe entregarei as letras quando tiver garantias de que meu primo não tem a menor intenção de se casar com você -declarou o senhor de Ravenscar-. Não encontrará nenhum meio de me obrigar a me render ante uma hárpia como você!

-Estou persuadida de que mudará de opinião quando tiver tido tempo de refletir! Imagine por um momento como sir James ficará insuportável se você não for amanhã à corrida! Não acho que um homem com seu orgulho possa o suportar!

-Prefiro isso a me render ante uma meretriz, madame! -replicou, esticando suas longas pernas e cruzando-as-. Imagino que lhe será extremamente incômodo me reter neste porão por um tempo indefinido, mas a previno de que não tenho a menor intenção de abandoná-lo, a menos que seja eu que imponha as condições.

-Mas não pode perder a corrida assim! -exclamou Deborah com estupor.

-Talvez tenha apostado em mim? -perguntou com escárnio-. Pior para você, garota!

-Não, não o fiz, e me importa pouco que perca ou ganhe -respondeu Deborah-. Não me importa o que você faça, já que é um ser desprezível! Mas é uma loucura, e você o sabe perfeitamente!

-Sou consciente de que se trata efetivamente de uma loucura muito aborrecida! -admitiu, com uma serenidade exasperante.

Ela deu bateu o pé no chão com impaciência.

-Todo mundo debochará de você!

-Farei frente a isso para vê-la no cárcere.

-Não terá esse gosto! -replicou-. Não pense que não considerei essa possibilidade quando ordenei que o raptassem! Pode ser que seja bastante covarde para ameaçar uma mulher com a ruína, mas é demasiado vaidoso para admitir para o mundo que uma mulher o enganou, e o encerrou num porão, e que foi seu prisioneiro!

- Você acredita me conhecer muito bem! -afirmou Ravenscar.

Ela fez um esforço para não pronunciar os insultos que afluíam a sua mente, e pegou o candelabro.

-O deixarei para que reflita -disse com frieza-. Quando tiver considerado sua situação, sem dúvida mudará de parecer.

-Não seja muito otimista, madame! Posso ser quase tão obstinado como você. -Observou-a com ironia, enquanto ela dirigia-se para a porta-. Por que recusou minha primeira oferta? -perguntou de repente.

Ela se voltou, com um olhar altivo.

-Sim! Pensou que poderia subornar-me, não é assim, senhor de Ravenscar? Pensou que bastava me oferecer seu dinheiro para deslumbrar-me! Pois bem, não me deslumbrou, e não aceitaria nem um penny de você por nada no mundo!

-Em tal caso, por que estou aqui? -perguntou.

-A hipoteca e as letras são diferentes -respondeu Deborah com impaciência.

Esta observação divertiu-o.

-Assim parece.

-Além disso, não são minhas, mas de minha tia.

-Então, por que se preocupa por elas?

-Não tenho dúvida de que formou um bom conceito de mim! -exclamou-. Não só sou o tipo de criatura desprezível capaz de lhe armar uma armadilha a um... -interrompeu a frase com certa perturbação, e acrescentou atropeladamente-: mas não vale a pena falar com você, apesar de tudo! Não só me casarei com seu primo quando assim o decidir, mas também me apoderarei da hipoteca, e pode me insultar tanto quanto quiser, porque não me importo!

Ao senhor de Ravenscar, não tinha passado desapercebida a primeira parte de sua declaração, se ergueu, franzindo o cenho.

-Que diabos quer conseguir com tudo isto, miss Grantham? Assim não você é o tipo de criatura desprezível que agarraria um rapaz para que se casasse com ela? Então, pelo amor de Deus, diga-me que...

-É claro que não! -exclamou miss Grantham, esforçando-se desesperadamente para remediar seu deslize-. Em nenhum momento tentei enganar Adrian! Asseguro-lhe que sente verdadeira adoração por mim! Será muito difícil convencê-lo a que renuncie a seus planos.

-Não tenho nenhuma intenção de tentar -respondeu-. Confio que você o faça.

-Não estou disposta a fazê-lo. Desejo converter-me em lady Mablethorpe.

-E para consegui-lo, suponho, adotou os modos de uma prostituta na noite passada em Vauxhall!

Ela mordeu o lábio.

-Oh, o fiz simplesmente para enfurecê-lo! Pensei que lhe faria muito bem ver como pode chegar a se comportar uma harpia!

-Então isso a molestou? -perguntou ele, sorrindo com severidade-. Sigo mantendo que você é uma harpia, miss Grantham.

-Se fosse, teria aceitado sua amável oferta!

-Imagino que tinha a esperança de conseguir mais de vinte mil libras -afirmou ele-. Talvez quisesse me convencer com seu comportamento em Vauxhall de que nenhum preço seria muito alto com o objeitvo de obter a liberdade de meu primo?

Pôde ver como ela empalidecia, e seus olhos cintilavam.

-Se fosse um homem -ameaçou com voz trêmula -o mataria!

-Não há nada que a impeça agora, só tem que pegar uma espada -replicou ele.

Deborah saiu apressadamente do porão, já que a fúria a impedia de falar, batendo a porta, e fechando-a com chave.

A conversa que tinha mantido com o prisioneiro não tinha seguido o curso que ela tinha previsto, e, ainda que pensasse que um período de reflexão faria que o senhor de Ravenscar fosse mais razoável, não pôde evitar sentir certa intranqüilidade. Seu altivo olhar e sua expressão decidida indicavam que se manteria inflexível. Se realmente negava-se a ceder, Deborah se encontraria numa situação sumamente incômoda, já que não só seria impossível tê-lo atado no porão, mas que também resistia ante a idéia de levar a cabo sua ameaça, e impedir que fosse a sua reunião no dia seguinte. Deborah era uma jogadora, por isso não podia sentir mais que horror ante a idéia de que uma aposta fosse ganha por abandono.

Subiu a entrada, onde teve a desventura de se encontrar com sua tia, que tinha descido do salão amarelo para verificar de que tudo estava disposto na sala de jantar.

-Céu santo, Deb! Onde tens estado? -perguntou-. Que a fez descer ao porão? Oh, tens o vestido sujo! Querida, como isso ocorreu?

Deborah viu que tinha uma mancha em seu vestido de brocado, e tentou fazer que esta desaparecesse.

-Não tem importância. Vi-me obrigada a descer à bodega e ajoelhei-me no solo um momento.

Mas não se nota muito.

Lady Bellingham contemplou-a com uma expressão de viva inquietude no rosto.

-Deb, já estás fazendo das tuas! -murmurou com voz abatida-. Faço questão de que me expliques o que estás tramando! Que ocultas no porão? Que eu saiba nunca desceste ali em tua vida!

-Minha querida tia Lizzie, mais vale que não me pergunte! -exclamou Deborah, tentando reprimir um sorriso-. Lhe provocaria um de seus desmaios!

Lady Bellingham afogou um grito, e conduziu-a até a sala de jantar.

-Deb, não deboche de mim, te peço! Estou certa de que fez algo horrível! Não me diga que cometeu um assassinato!

Deborah riu-se.

-Não, não é tão grave assim! Prometo-lhe que tudo sairá bem. Quem veio esta noite?

-Isso não tem importância! Não poderei ficar tranqüila até que saiba que tens estado fazendo!

-Bom, estou muito atarefada tentando recuperar as letras, tia, além da hipoteca -respondeu Deborah.

Esta notícia, em vez de tranqüilizar lady Bellingham, a fez que empalidecer sob a pintura.

-Como? Céus, não me digas que as roubou!

-Nada disso, tia. Mas subamos! Os convidados estarão se perguntando onde você foi.

-Fez que assassinem a Ravenscar, e escondeu seu cadáver no porão! -murmurou sua senhoria, sentando-se inesperadamente numa cadeira-, Isto será nossa ruína! Já o sabia!

-Querida tia, não se trata disso em absoluto! -tranqüilizou Deborah, divertida-. Asseguro-lhe que não está morto!

Lady Bellingham contemplou-a com olhos arregalados.

-Deb! -conseguiu dizer por fim com voz abafada-. Não quere me fazer achar que tens Ravenscar encerrado no porão?

-Sim, querida, mas está vivo.

-Então é verdade que estamos perdidas para sempre! -afirmou sua senhoria, resignando-se ante o inevitável-. O melhor que nos pode acontecer é que te encerrem num manicômio. Que fiz eu para merecer este castigo?

-Mas não compreendeu! Não tem nada que temer! Simplesmente seqüestrei-o, e penso retê-lo até que me entregue essas letras. Então poderemos ficar tranqüilas de novo!

-Como é possível que nunca tenhas estado num manicômio, se pensa que pode ficar tranqüila depois disso! Provavelmente, não acharão que estás louca, e nos meterão no cárcere às duas!

-Não o farão, querida! O senhor de Ravenscar não admitiria ante os demais que ficou em poder de uma filha do Faraó ! Por nada no mundo! As represálias que tome não terão nada que ver com isso.

Deixe tudo em minhas mãos!

Lady Bellingham gemeu.

-Se não me tivesse visto no momento em que subia do porão, não saberia de nada! -insistiu Deborah-. Não pode fazer nada para impedi-lo, porque a chave está em meu bolso, e não tenho a menor intenção de entregá-la a ninguém. Não insista, tia Lizzie! Adrian veio?

-Que importa isso agora? -perguntou sua senhoria com amargura-. Portaste-te tão mau com ele que o pobre rapaz se refugia com Phoebe!

-Isso é precisamente o que desejava que fizesse -afirmou Deborah jovialmente-. Subamos!

Sua senhoria levantou-se, e permitiu que a conduzisse aos salões, mas evidentemente estava presa de uma grande agitação, e não se encontrava com ânimos para ocupar seu posto na mesa de Faraó

, ao redor da qual já se tinham sentado várias pessoas. Em vez disto, vagou sem rumo pela sala com uma expressão perturbada, parando por um momento para contemplar o tabuleiro de E.Ou. , e afastou-se de novo sem saber a onde dirigir seus passos. Miss Grantham, ocultando um sentimento de culpa atrás de seu alegre semblante, esforçou-se por aparentar bom humor, e converteu-se no centro da atração de um jogo de casualidade não demasiadamente sério, no salão menor.


Capítulo XII

Cerca das nove da noite os salões começaram a encher. Sir James Filey chegou com vários amigos para jogar o Faraó , e depois de saudar a dona da casa, perguntou:

-Por acaso não terá visto Ravenscar, lady Bel?

-É claro que não! Por quê? -balbuciou sua senhoria depois de sobressaltar-se.

Filey inspecionou a sala com seu monóculo.

-Tinha entendido que ele havia combinado com Crewe e outros para jantar! Esperaram-no até as oito horas, e finalmente não tiveram mais remédio que se sentar e jantar sem ele. Já vejo que também não está aqui.

-Não, não está aqui! -assegurou lady Bellingham, abanando-se com nervosismo.

-Que estranho! -observou Filey com um leve sorriso de deboche-. Acho que Crewe mandou um recado a sua casa, mas ali não puderam informar de seu paradeiro. Espero que não tenha esquecido do nosso encontro de amanhã.

Lord Mablethorpe que, devido a sua proximidade, tinha podido ouvir este comentário, se acercou da mesa de Faraó , e assegurou:

-Pode estar tranqüilo a este respeito, sir James. Meu primo não faltará ao encontro.

-Talvez você saibe onde está? -perguntou Filey, arqueando as sobrancelhas.

-Não -respondeu Adrian-. Não sei. Mas se você está insinuando que meu primo não comparecerá, tenho muito prazer em tranqüilizá-lo! Nunca faltou a um acontecimento esportivo.

-Quão cega pode chegar a ser a devoção de nossos parentes! -comentou Filey-. Pergunto-me se seu admirável primo sabe que as apostas estão a meu favor. Não foi um pouco precipitado me dar essa vantagem? Acredito recordar que você pensava isso naquele momento, milord.

-Ah, sim? -replicou Adrian-. Devo ter esquecido por um momento o resultado do encontro anterior!

Sir James não deixou de sorrir, com um ar de superioridade que fez Adrian sentir uns desejos infernais de esbofeteá-lo.

-Mas permita-me recordá-lo que desta vez seus tordilhos competem com cavalos muito diferente.

-Certamente, mas estou errado ao pensar que você os vai conduzir? -observou Adrian com fingida ingenuidade.

O rosto de sir James se ensombreceu, mas antes que pudesse responder, miss Grantham, que se tinha reunido a eles, interveio, exclamando:

-Ah, é você, sir James! Asseguro-lhe que pensamos que nos tivesse abandonado! Apetece-lhe provar sua sorte na mesa do Faraó esta noite, ou prefere jogar aos dados? Oh, Adrian, estás aqui!

Se importaria de me trazer o leque? Deixei-o na outra sala, em algum lugar. Que aconteceu com o senhor de Ravenscar, sir James?

-Apenas que, aparentemente, desapareceu, querida. Espero que não nos comuniquem que ficou doente, ou que se viu obrigado a ausentar-se devido a um assunto de vital importância.

-Assim o espero, e não acho que aconteça. Não imagino que motivos têm para pensar isso!

Ele fez um gesto de perplexidade.

-Tenho entendido que saiu de sua casa ao anoitecer, e desde então não se teve notícia dele.

Concordará comigo em pensar que é muito estranho!

-Temo que qualquer esperança que você tenha de ganhar a corrida por abandono do senhor de Ravenscar cedo será desmentida -respondeu miss Grantham depreciativamente.

Ele enrubesceu de ira mas, como as palavras da dama tinham provocado o riso malicioso dos presentes, simplesmente lhe fez uma reverência; e afastou-se.

Lady Bellingham, pressentindo que se ia desmaiar pela tensão, se retirou ao buffet, e pediu ao camareiro que lhe servisse uma copo de clarete. Estava recobrando a calma com ele quando se acercou seu sobrinho, que, nervoso, lhe perguntou ao ouvido:

-Que estão comentando de Ravenscar?

-Não pronuncies esse nome! - suplicou sua senhoria, estremecendo-. Vou desmaiar de uma hora para outra!

-Talvez o conhece? -perguntou ele-. Não tinha a menor idéia! Virá esta noite?

-Pergunte a sua irmã! -exclamou sua senhoria debilmente-. Tive demasiada paciência, e me desinteresso totalmente pelo assunto. Mas, se nos encerrarem no cárcere pelos acontecimentos desta noite, te suplico que não me faças responsável de isso!

-Não entendo! Que ocorre, querida tia? Que tem Deb com o senhor de Ravenscar?

-Encerrou-lhe no porão, e tem a intenção de retê-lo ali -respondeu sua senhoria.

-Que?

-Deus meu, não deveria ter-lhe dito, porque Deb se empenhou em que não soubesses nada sobre a hipoteca, mas asseguro que estou tão aflita que já não sei o que faço! Encerrou-o no porão para recuperar umas odiosas letras que me pertencem, e amanhã o vai acontecer uma corrida na qual tinha que participar. Nos perseguirá até o fim do mundo pelo que fizemos esta noite! Mas, olhe para ela, rindo-se despreocupadamente. Por ela ficaria no porão até o fim de seus dias! Tem a chave no bolso, e declarou que não tem a menor intenção de a entregar a ninguém!

-Deus meu, não me diga! -murmurou o senhor Grantham, dirigindo-se ato seguido com decisão para sua irmã-. Deb! Quero falar sozinho com você! -lhe sussurrou ao ouvido-. Saia um momento ao corredor!

Estas palavras causaram a Deborah uma grande surpresa, mas pediu a Kennet que ocupasse seu posto na mesa de E.Ou., e saiu da sala depois de Kit.

-Que aconteceu, querido? Parece muito incomodado! Talvez tiveste má sorte? Ou descobriu que o vinho não está em boas condições?

-Incomodado! Tenho boas razões para estar! Gostaria que me explicasse o que me contou nossa tia a respeito do senhor de Ravenscar!

-Oxalá vá para o diabo! -exclamou miss Grantham sem nenhum respeito-. Que te contou?

-Que o tinhas encerrado no porão! Não posso acreditar!

-Bom, não queria que você soubesse -respondeu Deborah -mas, apesar de tudo, não é tão grave.

Estou convencida de que acharás muito engraçado, Kit! Ravenscar é primo de lord Mablethorpe, e opõe-se ao nosso casamento. Não podes imaginar as injurias que tive que suportar! Mas isso já não tem importância, e não tenho intenção de me queixar, agora que estou me vingando dele.

Conseguiu apoderar-se de umas letras de nossa tia, e tentou ameaçar-me com elas. Não tive outro remédio que ordenar que o seqüestrassem, e o trouxessem a esta casa. E aqui o temos, bem atado na bodega até que decida me entregar as letras! Não há nenhum motivo de preocupação!

-Nenhum motivo! -repetiu, estupefato-. Sabes o que fizeste? Esperava casar-me precisamente com Arabella Ravenscar!

Deborah contemplou-o por um momento sem dar crédito a seus ouvidos, totalmente atônita, mas em vez de mostrar sinais de arrependimento, quando por fim compreendeu a magnitude desta revelação, começou a rir.

-Oh, não! Oh, Kit, sinto-o deveras, mas de toda maneira, não tinhas nenhuma possibilidade de casar com ela! Ravenscar preferiria vê-la morta!

-Graças as suas loucuras! -exclamou ele, furioso-. Por minha fé, acho que estás louca para valer!

Onde está a chave do porão?

-Em meu bolso, e aí vai ficar.

-De-me agora mesmo! E agora que desculpa vou encontrar? Direi que não estás em teu juízo perfeito. Deus meu, que desgraça!

Ela deixou de rir. Pegou-lhe pelo braço, dizendo em tom grave:

-Não é possível que estejas disposto a me trair!

-Trair! Talvez queira que contribua para que te metam no cárcere? Asseguro que, caso não possa acalmar Ravenscar, acabarás ali; e já que fala de traições, peço que reflita sobre sua própria conduta. Hostilizaste o único homem no mundo por cuja amizade daria uma fortuna! De-me a chave!

-Nem pensar! -respondeu Deborah, retrocedendo-. Como pode ser tão pobre de espírito, Kit?

Talvez Arabella Ravenscar seja mais importante que a tia Lizzie, ou do que eu? Estou certa de que não está disposta a se casar com você!

-E o que você sabe! Vais dar-me a chave?

-Não, não a darei.

-Então, não me sobra mais remédio do que a pegar! -decidiu Kit, lançando-se sobre ela.

Miss Grantham opôs uma desesperada resistência, mas, devido à inferioridade de condições em que se encontrava, logo foi vencida. Ele tirou a chave do bolso de Deb e exclamou apressadamente:

-Espero que a tenha machucado, mas você quem quis! -E desceu correndo para a entrada.

Ela o teria perseguido, para pedir a Silas que o detivesse, mas, ao ouvir vozes no térreo, compreendeu que tinham chegado novos convidados. Apesar de furiosa que estava, não podia armar um escândalo na presença de desconhecidos, por isso não teve mais remédio que voltar ao salão, se esforçando, com um sorriso, simular sua raiva e seu desgosto.

O senhor Grantham também se deteve ao ouvir que tinham chegado novos clientes, e deu meia volta para descer pela escada de serviço. Encontrou no porão com uma criada surpreendida, mas, dizendo-lhe apressadamente que tinha descido ao porão para buscar uma garrafa de vinho especial, prosseguiu seu caminho. Pegou uma lanterna que tinha junto à porta do pátio e, após entrar precipitadamente no depósito de carvão, em vários armários, e num depósito, encontrou uma porta no final do corredor. Meteu a chave na fechadura com nervosismo e, depois de girá-la, abriu inesperadamente a porta, levantando a lanterna para ver melhor.

Seu brilho iluminou o rosto grave do senhor de Ravenscar, que permanecia sentado na cadeira, com as pernas cruzadas, e as mãos atadas às costas.

-Senhor! -balbuciou Kit-. Senhor! É o senhor de Ravenscar?

-Quem diabos é você? -perguntou Ravenscar.

Kit deixou a lanterna em cima de um baú.

-Oh, senhor, não me atrevo a pensar que opinião terá formado de nós! Não encontro palavras para desculpar o que aconteceu! Sou Grantham... o irmão de Deb! Vim logo como soube que... em toda a minha nunca fiquei mais indignado!

-Seu irmão? Oh, sim! Creio recordar que ouvi algo a respeito de você! Veio persuadir-me no lugar de sua irmã? Não conseguirá.

-Não, não! -assegurou Kit-. Não estava sabendo... Nunca teria dado meu consentimento, nem teria permitido que... Sinto de todo coração o ocorrido, senhor, lhe asseguro! Vim colocá-lo em liberdade! Que desonra! Mas não tenho dúvida de que perdoará Deb! É tão teimosa que não há forma de argumentar com ela mas, apesar de seu gênio, não tinha intenção de lhe causar nenhum dano!

Ravenscar, que o tinha estado contemplando com o cenho franzido, interrompeu esta súplica:

-Conhece os motivos que me conduziram a este porão tão incômodo como o diabo?

-Sim? na realidade, não tudo, já que não perdi o tempo em averiguá-lo! Mas isso não tem nenhuma importância, e Deb não tinha direito de seqüestrá-lo desta forma! Não posso imaginar como lhe ocorreu semelhante loucura!

-Quero que isto fique bem claro! -exclamou Ravenscar-. Sua irmã o informou, suponho, de que a insultei de quase todas as formas possíveis?

-Oh, mas quando está furiosa não sabe muito bem o que diz. Asseguro que não lhe dei muita importância!

-Pois realmente, insultei-a -assegurou Ravenscar.

Kit pareceu desconcertado por esta revelação, e não soube o que responder. Depois de uma pausa, gaguejou:

-Suponho que ela o tenha irritado tremendamente. Não entendo muito bem qual é a causa... mas não pode permanecer aqui, isso não resta dúvida! Deus meu, fez que o amarrassem! Agora mesmo o soltarei!

-Não se aproxime! -preveniu Ravenscar, esticando uma perna para mantê-lo a certa distância-.

Que motivos tem para desejar me deixar em liberdade? Teria compreendido se tivesse vindo me arrancar os dentes!

-Não pode imaginar que vou permitir que minha irmã vá... que vá por aí prendendo pessoas, e as metendo num porão! -exclamou Kit-. Na minha vida vi nunca vi nada semelhante! E quando soube que se tratava de você... devo informar-lhe, senhor, de que... de que tenho a honra de conhecer a sua irmã... a senhorita Arabella Ravenscar!

-Oh! -exclamou Ravenscar-. Então você conhece a minha irmã? Por acaso, não estará destinado em Tunbridge Wells?

-Sim -respondeu Kit veementemente-. Conheci-a ali! Tinha pensado fazer-lhe uma visita. Tinha grandes desejos de...

-De obter minha permissão para cortejá-la, suponho.

Kit se ruborizou com timidez.

-Sim, era disso que se tratava! O interessará saber que eu...

-Não me interessa em absoluto! -interrompeu Ravenscar com aspereza-. Não tem nenhuma possibilidade de obter minha permissão para cortejá-la, e se atrever a entrar em minha casa, o expulsarei aos pontapés!

Kit empalideceu ao ouvir esta violenta declaração.

-Não sou responsável por terem lhe trazido aqui! Rogo que me acredite quando digo que não tive nada que ver com tudo isto! Não tive conhecimento disso até pouco tempo atrás! Não pode virar sua ira sobre mim, e sobre Arabella! Realmente...

-Permita-me que o informe, senhor Grantham, de que teria tido mais probabilidades de obter meu consentimento para seu galanteio se tivesse vindo brigar comigo -afirmou Ravenscar friamente-.

Quando minha irmã se casar, o fará com um homem valente! Se tivesse algo de orgulho ou de coragem, verme desprezível, me teria desafiado, em vez de me oferecer a liberdade! Sua irmã vale muitíssimo mais que você! E isso que é uma meretriz!

Kit engoliu saliva, esforçando-se em responder com dignidade:

-Suponho que se dará conta de que não posso golpear um homem amarrado. Se Deb tivesse me informado do ocorrido, a teria defendido, e creio saber como proteger minha própria irmã! Mas o fato de seqüestrá-lo passa de todos os limites! Está furioso, e não me estranha, mas...

-Vá para o diabo! -respondeu Ravenscar.

-Mas... não quer que o solte? -perguntou Kit, totalmente aturdido-. Não terá intenção de passar assim toda a noite!

-O que eu tenha intenção de fazer não é da sua conta! Como obteve essa chave?

-Tirei-a de Deb -titubeou Kit.

-Nesse caso, devolva-a... e a cumprimente de minha parte! E não se esqueça de fechar a porta ao sair! -disse o senhor de Ravenscar.

Kit olhou-o sem acreditar em seus ouvidos, mas, como viu uma expressão tão decidida no rosto do senhor de Ravenscar, pegou a lanterna, e retrocedeu até a porta, fechando-a com chave, tal como lhe tinha ordenado. Parecia que não só Deb tinha enlouquecido, mas também Ravenscar, e, perplexo, não soube o que fazer a seguir. De novo, subiu as escadas lentamente e, já que já não tinha nenhuma razão para guardar a chave de uma cela cujo ocupante se negava a ser liberado, se dirigiu a Deborah, e a puxou pela manga para chamar sua atenção.

Ela, após lhe dirigir um olhar furioso, deu-lhe as costas, mas seu irmão a seguiu ao salão contiguo, dizendo asperamente:

-Toma, podes ficar com isto!

Deborah olhou a chave com surpresa.

-Que significa isto? Arrependeu-se? Continua ali?

-Acho que está louco! -exclamou Kit com aflição-. Tentei deixá-lo em liberdade, mas impediu-me!

Disse-me que fosse para o diabo, que te devolvesse a chave e que, de passagem, te saudasse por parte dele. Não sei o que vou fazer agora! Estragaste tudo!

Deb pegou a chave, quase tão perplexa como ele.

-Disse-te para me devolver? -repetiu-. Não permitiu que o soltasse?

-Já te disse que não! Não sei o que passa. Qualquer diria que está bêbado, mas não é assim!

-Quer enfrentar-se comigo -decidiu Deborah com olhos brilhantes-. E assim será!

Sem perder nem um minuto, desceu de novo ao porão e pegou desta vez uma vela que tinha sobre uma mesa ao pé da escada de serviço, protegendo com a mão sua frágil chama da corrente que tinha no corredor.

O senhor de Ravenscar contemplou-a com um sorriso vacilante quando entrou em sua cela, e se levantou da cadeira.

-Miss Grantham? E agora que?

Ela fechou a porta, permanecendo de costas para ela.

-Por que se negou a que meu irmão o liberasse?

-Porque não quero ter nada que lhe agradecer! Não tem nem uma pitada de coragem.

Deborah suspirou, movendo a cabeça.

-Já o sei, mas o pobre rapaz se encontrava entre a espada e a parede. É um tanto mimado.

-Faz-lhe falta que lhe dêem uma boa surra! -comentou o senhor de Ravenscar-. E certamente a darão se vier fazer a corte a minha irmã!

-Acho que ela não tem a menor intenção de se casar com ele -observou miss Grantham reflexivamente.

-E como você sabe?

-Eu não sei! -exclamou apressadamente-. Simplesmente, Adrian comentou algo a respeito dela.

Mas não vim aqui para falar de sua irmã, e também não de Kit. Refletiu sobre suas intempestivas declarações?

-Se refere a que se estou disposto a lhe devolver essas letras, minha resposta é: não!

-Não acha que vou permitir que parta, simplesmente porque se negou aque Kit o deixasse em liberdade! -respondeu ela, com menosprezo.

-Pensei que não tinha vindo a falar de seu irmão. Esqueça-se desse incidente.

Ela o contemplou vacilante.

- Você tinha uma reunião com o senhor Crewe esta noite para jantar. Amanhã todo mundo saberá que desapareceu. Sir James Filey já começou a fazer insinuações odiosas! Agora está no andar de acima.

-Por mim pode seguir fazendo! -observou Ravenscar com indiferença.

-Se não vai à corrida amanhã, que desculpa inventará que não o ponha em ridículo?

-Não tenho nem a mais leve idéia. Tem alguma sugestão?

-Não, não tenho -respondeu ela, contrariada-. Sei que pensa que não vou cumprir minha promessa, mas o farei!

-Espero que tenha intenção de me trazer uma almofada para passar a noite.

-Pois não. Espero que se ache tremendamente incômodo! -interrompeu-lhe miss Grantham-. Se tivesse coragem suficiente, lhe deixaria morrer de inanição!

-Oh, não se atreve? -perguntou-lhe-. Achava que seu atrevimento? ou seu descaramento, não tinham limites!

-Me dá vontade de dizer a Silas que desça para tirar-lhe essas bravatas! -ameaçou-lhe.

-Não deixe de fazê-lo, se está convencida de que servirá de algo.

-Dou-lhe um prazo em meia hora para decidir-se de uma vez -respondeu Deborah com dureza-.

Mantenha esta postura, se arrependerá!

-Isso é o que veremos. Pode ser que eu me arrependa, mas lhe prometo, garota, que não obterá essas letras.

-Se pegar um resfriado aqui, será por sua culpa -assegurou-lhe ela-. E estou convencida de que o pegará. Não imagina quão úmido pode ser este porão!

-Tenho uma natureza muito resistente. Se pensa ir agora, permita, por favor, me deixar com a vela!

-Por que iria precisar uma vela? -perguntou ela com receio.

-Para afugentar os ratos -respondeu.

Instintivamente deu um olhar ao seu redor.

-Deus meu, há ratos aqui? -perguntou alarmada.

-É claro. Dúzias!

-Que horror! -observou Deborah com um estremecimento-. Lhe deixarei a vela, mas não ache que vou ceder!

-Não o farei assegurou ele.

Miss Grantham retirou-se desconcertada.

No andar superior pôde observar que lord Mablethorpe tinha desaparecido, e supôs que tinha escapulido para conversar com Phoebe no gabinete. Lucius Kennet acercou-se dela, e lhe perguntou baixinho pelo estado do prisioneiro. Ela sussurrou que não estava disposto a se render.

Ao ouvir isto, o senhor Kennet fez um gesto de contrariedade.

-Deverias deixar-me que eu o fizesse ser mais razoável, querida.

-De modo algum. Já complicaste muito as coisas! -respondeu, recordando sua traição-. Como te atreveste enganá-lo, se valendo de meu nome? Disse-te que não o consentiria!

-Ah, Deb, não tenhas tantos escrúpulos! Como o ia seqüestrar, se não armando uma armadilha?

Ela se deu meia volta e partiu para observar a partida de Faraó , simulando determinadamente que as tentativas por parte de sua tia de chamar a atenção tivessem lhe passado despercebidas.

Decorreu a meia hora que tinha outorgado ao senhor de Ravenscar para que tomasse uma decisão definitiva. Ao expirar o prazo, ainda não tinha uma idéia clara da forma de o persuadir se continuasse firme em sua postura. Quando se dirigiu pela terceira vez ao porão, sua tia estava acompanhando seus hóspedes ao primeiro turno do jantar e não pôde deixar de pensar que seu prisioneiro devia ter tanta fome como frio.

Abriu a porta com a chave, entrou, e fechou-a depois dela. O senhor de Ravenscar estava de pé junto à cadeira, apoiado na parede.

-E bem? -perguntou ela, se esforçando por falar num tom decidido.

-Sinto deveras que não tenha enviado o seu criado -comentou Ravenscar- ou o seu amável amigo, o senhor Kennet. Tinha desejos de ver a um deles, ou a ambos. Estava disposto a prendê-los para que passassem a noite aqui, mas suponho que a você não posso a tratar do mesmo modo, apesar do muito que merece!

Ele se tinha endireitado enquanto falava, e se afastou da parede. Antes que miss Grantham, emitindo um grito de surpresa, pudesse reagir, tirou as mãos das costas e, pegando-a pelo braço direito lhe arrebatou tranqüilamente a chave.

-Quem lhe deixou em liberdade? -perguntou, tremendo de raiva-. Quem conseguiu entrar aqui?

Como pôde desatar as mãos?

-Ninguém me deixou escapar. Na realidade, foi você, ao me deixar uma vela.

Ela dirigiu seu olhar rapidamente para suas mãos, proferindo uma exclamação horrorizada.

-Oh, como foi capaz de fazê-lo? Queimou-se de uma forma horrível!

-Certamente mas amanhã irei a corrida, e não obterá as letras -replicou ele.

Ela prestou pouca atenção a isto, preocupada por suas feridas.

-Deve estar sofrendo horrores! -observou, com um sentimento de culpa-. Não teria deixado a vela se tivesse adivinhado o que estava tramando!

-Suponho que não. Não se moleste em sentir compaixão por mim! Mas arranjarei sozinho. Agora subiremos ao andar superior, miss Grantham, para pôr fim aos temores de sir James Filey. A menos, claro está, que prefira ficar aqui.

-Deus dos céus, não me encerre com os ratos! - suplicou miss Grantham, dando sinais de debilidade pela primeira vez-. Ademais, não pode entrar nos salões assim! É muito provável que morra se não curar as mãos! Suba comigo imediatamente! Lhe darei uma pomada muito boa, farei um curativo nas mãos, e verei se Kit tem uns punhos para que coloque no lugar destes! Deus meu, como lhe terá ocorrido semelhante loucura! Não poderá conduzir manhã!

-Oh, não a aconselho que aposte contra mim! -respondeu ele com um sorriso-. Vai tratar de minhas queimaduras?

-É claro! Não imaginará que vou permitir que me faça responsável se perde a corrida? -exclamou com indignação.

-Deu-me a impressão de que era isso precisamente o que queria conseguir.

-Bem, pois estava equivocado. Nunca pensei que pudesse ser tão teimoso!

-Por conseguinte, tinha pensado deixar-me em liberdade?

-Sim? não! Não o sei! É preferível que suba pela escada de serviço. Pode-se arranjar no quarto de meu irmão, enquanto vou buscar a pomada e umas ataduras. Oxalá não o tivesse conhecido jamais!

É um grosseiro, e um estúpido! Ninguém me importunou tanto em minha vida!

-Permita-me devolver-lhe o elogio! -respondeu ele, acompanhando-a pelo corredor.

-Farei que se arrependa de ter tido a ousadia de me enfrentar! -murmurou, voltando a cabeça um momento-. Me casarei com seu primo, e o arruinarei!

-Suponho que o fará por rancor -observou ele com ironia.

-Cale-se! Quer que os criados nos surpreendam?

-Me é totalmente indiferente.

-Pois a mim não! -respondeu ela.

Ravenscar riu-se, mas permaneceu em silêncio até que chegaram ao quarto de Kit, situado no terceiro andar. Ele ficou ali com a vela, enquanto Deborah foi buscar pomadas e ataduras. Quando voltou, pôde observar que tinha tirado a jaqueta, e que tirara seus punhos chamuscados, além de arranjar a gravata e de pentear seu curto cabelo encaracolado.

No dorso das mãos tinha queimaduras de certa importância, pois estremeceu quando miss Grantham a untou com pomada.

-Está bem machucado! -disse-. Estou tendo cuidado para que não doa!

-E por que deveria se importar? -perguntou ele, lhe dando a razão.

Deborah começou a atar mão direita.

-Encontra-se melhor agora?

-Muito melhor.

-Se eu fosse um homem, não se livraria tão facilmente!

-Suponho que não. E também não o faria se você tivesse um homem que a defendesse.

-Não tem por que debochar de Kit! Estou de acordo com você em que é uma loucura que se tenha apaixonado por sua irmã, mas não pôde fazer nada para impedir! Dê-me a outra mão!

Ele a estendeu.

- Você é uma mulher fora do comum, miss Grantham.

-Agradeço-lhe o elogio, mas já é hora para que deixe de falar a meu respeito! -replicou ela com mordacidade.

-Descarada, desavergonhada -prosseguiu Ravenscar com um sorriso nos lábios-. Harpia.

-E também rameira! -recordou-lhe miss Grantham com raiva.

-Peço-lhe desculpas por isso.

-Por favor, não se incomode! Me é indiferente o que pense de mim. -Abriu uma das gavetas da cômoda e, tirando uns punhos de renda, começou a prendê-los com destreza às mangas-. Já está!

Se baixar um pouco, não verão tanto os curativos. Deixei-lhe livres os dedos.

-Obrigado -disse ele, pondo o casaco de novo.

-Se permite-me que lhe dê um conselho, vá para casa e se meta na cama!

-Não o farei. Vou jogar o Faraó .

-Não desejo vê-lo em minha casa! -exclamou miss Grantham.

-Esta casa não é sua. Estou certo de que sua tia deseja com toda sua alma me ver na mesa de Faraó

. Pois bem, seus desejos vão se realizar.

-Não posso impedi-lo de cometer semelhante imprudência, ainda que o quisesse fazer, o que não é o caso -observou miss Grantham-. Se faz tanta questão em permanecer aqui, mais vale descer para jantar, pois suponho que estará faminto.

-Sua amabilidade me oprime -replicou Ravenscar-. Reconheço que tinha contado com que, ao menos, teria um pedaço de pão e uma jarra de água em minha cela... até que soube, claro está, que tinha pensado me deixar morrer de inanição.

Miss Grantham mordeu o lábio.

-Me encantaria deixá-lo morrer de fome -respondeu desafiante-. E permita-me informar, senhor de Ravenscar, de que Lucius Kennet está lá embaixo e, se pensa armar uma confusão em minha casa, farei que o joguem imediatamente! Não terá nenhuma chance, já que não está apenas Silas, os dois camareiros, e o mordomo de minha tia, mas também meu irmão!

-É muito agradável -observou ele -, mas temo que exagera minha força. Não precisaria de tanta gente para me jogar da casa.

-Em qualquer caso -continuou miss Grantham, sem prestar atenção a esta observação-, se precisa enfrentar alguém, tem de ser a mim, e não Lucius. Ele simplesmente cumpriu meus desejos!

Acercou-se à porta e abriu-a.

-Se já terminou, lhe mostrarei o caminho de saída pela escada de serviço, para que ninguém saiba que esteve aqui.

-Pensa em tudo, miss Grantham. Sairei pela porta traseira, e entrarei de novo pela principal, e de passagem recolherei a bengala e o chapéu, que esquecemos em minha cela.

Ela não fez nenhuma objeção a isto, acompanhando-o a seguir pela escada de serviço. Quando estava a ponto de abrir a porta, lhe invadiu uma dúvida, e perguntou bruscamente:

-Como conseguiu saber que Ormskirk tinha a hipoteca e as letras?

-Ele disse -respondeu Ravenscar, impassível.

Ela o contemplou com assombro.

-Ele lhe disse? É o ser mais infame... Vá! Sempre senti uma grande antipatia por ele mas reconheço que nunca me ocorreu pensar que era capaz de cometer semelhante perfídia!

-Sempre sentiu antipatia por ele? -repetiu Ravenscar, com uma expressão de surpresa.

Ela o olhou nos olhos com ira:

-Sim! -respondeu-. Ainda que creia-me, senhor de Ravenscar não tanta como sinto por você!


Capítulo XIII

Cinco minutos mais tarde, o senhor de Ravenscar chamou à porta principal. Silas Wantage abriu-a, ele entrou na casa com seu ar habitual de firmeza.

Wantage quase engasgou e ficou imóvel contemplando-o com olhos arregalados. O senhor de Ravenscar respondeu a este olhar de incredulidade com um de ironia, mas não deu mostras de reconhecimento. Simplesmente estendeu-lhe a bengala e o chapéu, esperando a que os pegasse.

Wantage por fim recobrou o fala.

-Que me mordam se o entendo! -murmurou.

-Que assim seja -respondeu o senhor de Ravenscar-. Faça o favor de levar a bengala e o chapéu!

Wantage tomou-os, observando com assombro:

-Não sei como conseguiu, mas de todas forma me alegro. Molesta-me ter que atar a um tipo capaz de me dar semelhante soco, senhor!

O senhor de Ravenscar não prestou atenção a esta declaração e, após se olhar no espelho, e ajustar o alfinete de gravata, e baixar os punhos de renda para ocultar as ataduras, atravessou o saguão em direção a sala de jantar. Seu aparecimento provocou um tumulto. A dona da casa, que nesse momento estava bebendo um copo de clarete para se tranqüilizar, se engasgou, e sua cara adquiriu um tom violáceo; o senhor Kennet, que se encontrava junto ao buffet com um prato de salmão na mão, exclamou Deus meu! com assombro, enquanto caía-lhe o garfo; o honorável Berkeley Crewe emitiu uma exclamação, e pediu-lhe que explicasse os motivos que o tinham impedido de ir ao jantar marcado; sir James Filey, na opinião de algumas pessoas que se encontravam ao seu redor, xingou baixinho; e vários dos presentes chamaram Ravenscar para que lhes relatasse o sucedido.

Miss Grantham foi a única que não deu mostras de confusão, saudando seu hóspede com absoluta serenidade.

Ravenscar fez-lhe uma reverência e, observando lady Bellingham, que continuava tossindo, se desculpou, divertido:

-Sinto, Crewe. Sofri um contratempo.

-Mas o que o impediu de vir ao jantar? -perguntou Crewe-. Pensei que tinha esquecido nossa reunião, e mandei aviso a sua casa para recordá-lo. Ali informaram-me de que tinha saído ao anoitecer!

-Na verdade é que tive um acidente sem importância -respondeu Ravenscar, tomando um copo de borgonha que lhe oferecia um camareiro. Quando levou o copo aos lábios, o punho de rendas se moveu, descobrindo as ataduras.

-Deus meu, o que aconteceu com sua mão, Max? -perguntou lord Mablethorpe alarmado.

-Oh, não é nada grave! -respondeu Ravenscar-. Já te disse que tive um leve acidente.

-O atacaram? -inquiriu Crewe-. Trata-se disso?

-Sim, assim é -observou Ravenscar.

-Espero que sua senhoria possa correr manhã! -comentou Filey.

-Assim o espero -respondeu Ravenscar, com um olhar sarcástico.

-Deus meu, Ravenscar, acha que tentaram impedi-lo de conduzir manhã? -exclamou um cavalheiro, usando uma antiquada peruca.

-Suponho que tentava algo pelo estilo -observou Ravenscar, não podendo resistir a tentação de dirigir um olhar a miss Grantham.

-Que diabos quer insinuar com isso, Horley? -perguntou sir James, desafiante.

O cavalheiro da peruca se sobressaltou.

-Só queria dizer que se apostou muito dinheiro nesta corrida, e este tipo de coisas costuma acontecer! Que acha que eu queria dizer?

A perturbação desapareceu do rosto de Filey; pediu desculpas baixinho por ter entendido mal, e saiu precipitadamente da sala, dizendo que desejava provar sua sorte na mesa de Faraó .

-Que passa com Filey? -perguntou Crewe-. De repente tornou-se insuportável!

-Oh, não se inteirou? -perguntou um homem com um casaco a riscas brancas e laranjas-. Sabia que estava louco por se casar com uma das Laxton? Uma garota preciosa, quase uma menina. Pois bem, os Laxton estão tentando por todos os meios manter em segredo, mas o jovem Arnold em pessoa me confiou que a garota fugiu!

-Fugiu? -repetiu Crewe.

-Como se tivesse evaporado! Não a encontram em nenhuma parte! Não me estranha que nosso querido amigo Filey esteja aborrecido!

-Não a culpo -comentou Crewe-. Filey e uma colegial! Maldito seja, é quase um rapto! Mas para onde fugiu?

-Ninguém sabe. Já lhe disse que desapareceu. E o melhor do caso é que os Laxton não se atrevem a dar parte à polícia por temor a que se torne público! Imagine a opinião que se teria deles se soubessem que obrigaram uma menina de sua idade a se casar com um homem da reputação de

Filey!

-Não teriam chegado a esse extremo! -objetou o senhor Horley.

-Ah, não? Não conhece lady Laxton quando há dinheiro no meio! -observou jocosamente o homem do casaco de listas laranjas.

Lady Bellingham, pensando que ia explodir de uma hora para outra, dirigiu a sua sobrinha um olhar de desespero, se perguntando, perplexa, como era possível que um bocado de perdiz a tornasse tão pálida.

-Não temos motivos para supor -observou lord Mablethorpe com precaução- que Filey deseje se casar com uma mulher que mostra semelhante aversão por ele.

-Se pensa assim, é que não conhece Filey! -respondeu Crewe-. Inclusive consideraria um incentivo a mais para o casamento.

Aproveitando que a conversa afastara a atenção dos presentes, Lucius Kennet atravessou a sala até onde estava Deborah, sussurrando-lhe ao ouvido:

-Não me digas que o convenceste a entregar as letras, querida! Fiquei petrificado quando o vi entrar como se não tivesse acontecido nada!

-Não tenho as letras -respondeu ela.

-Como não as tens! Então, por que diabos o pôs em liberdade, Deb?

-Não o fiz. Escapou.

Contemplou-a com receio.

-Não pode ser! Eu mesmo lhe atei as mãos! Estás mentindo, Deb: o soltaste!

-Não é verdade. A única coisa que fez foi me pedir uma vela, e lhe dei, sem suspeitar nem por um instante o que estava tramando! Queimou a corda que tinha ao redor das mãos e quando desci ao porão já tinha as mãos livres. Não pude fazer nada para impedi-lo.

Ele assobiou.

-Tipo esperto! Essa é a razão por que tinha as mãos cobertas! Poderá conduzir?

- Ele diz que sim. Asseguro-te que a mim não importa!

Não tinha vontade de continuar falando sobre o assunto, por isso se afastou, com tão má sorte que foi cair nas mãos de lord Mablethorpe, que a conduziu a um local afastado, para lhe perguntar se tinha ouvido os comentários a respeito do desaparecimento de Phoebe Laxton. Deborah respondeu com brusquidão que não tinham a menor importância, mas Mablethorpe continuou insistindo, e afirmou que o futuro de Phoebe lhe preocupava muito.

Miss Grantham alegrou-se ao ouvir isto mas tinha tido uma noite muito agitada, e não estava disposta a discutir os problemas de Phoebe numa sala cheia de gente. Portanto respondeu-lhe sucintamente, o que fez que lord Mablethorpe se atrevesse, pela primeira vez em sua vida, a criticá-la.

-Todo isso está muito bom, Deb, mas não pode ficar aqui para sempre, e não acho que estejas se preocupando muito por ela -observou sua senhoria com gravidade.

-Tenho outras coisas em que pensar -respondeu Deborah.

-Não o duvido, mas leva em conta que não tem ninguém que decida o que tem de fazer, ou que a cuide!

Miss Grantham surpreendeu-se ao escutar a seu jovem pretendente falar com um tom de serena firmeza que nunca tinha observado nele até esse momento. Pensou que o convívio com miss Laxton tinha conferido a sua senhoria um sentimento de responsabilidade, o que fez que lhe apreciasse ainda mais.

-É difícil saber o que é adequado -disse-. Estava certa de que seus pais cederiam. Ainda é possível que o façam.

Mablethorpe franziu o cenho.

-E ainda assim...! -Fez uma pausa e prosseguiu, depois de um momento de vacilação-: Fez-me certas confidencias, Deb. É provável que a você tenha contado algo mais. Mas pude deduzir pelo pouco que sei, que nunca seria feliz em sua casa. Com esses pais? Se não se casa com Filey, o fará com algum do mesmo estilo. A lady Laxton só interessa o dinheiro. Sentiria-me culpado de ter traído Phoebe se permitíssemos que voltasse. Não é como você: precisa de alguém que a proteja.

Ao ouvir esta ingênua afirmação, miss Grantham esteve a ponto de confessar-lhe que esse era precisamente o sonho dourado de todas as mulheres, mas se absteve, manifestando, ao contrário, que não sabia que medidas tomar. Acrescentou que tinha que subir às salas de jogo, e se retirou, deixando-o mais descontentamento com ela do que nunca imaginou que pudesse estar.

Na realidade, sua senhoria tinha ficado um tanto incomodado com sua dama desde a noite que tinha passado em sua companhia em Vauxhall. Seu comportamento tinha-lhe surpreendido, e, ainda que não tivesse voltado a adotar maneiras tão estranhas, não pôde deixar de se perguntar se repetiria a mesma cena quanto voltasse a se encontrar na alta sociedade.

Além disso, às vezes irritava-lhe a forma que o tratava. Com freqüência tinha pouca paciência com ele, como se sua juventude e inexperiência lhe fossem exasperantes; e tinha adotado o intolerável costume de dar-lhe ordens. Inclusive tinha vindo na sua memória a insistente lembrança de uma professora que tinha tido em sua infância. Não era um tolo, e começou a se dar conta de que, já que miss Grantham era mais velha que ele, podia exercer um domínio que provavelmente o relegaria a um segundo plano em seu casamento. Lord Mablethorpe, graças a seu agradável caráter, gozava da simpatia de todo mundo; era ainda muito jovem, e algo tímido; mas não era um ser sem confiança, e estava atingindo a maturidade a passos largos.

Miss Grantham, plenamente consciente disso, o estava levando com grande habilidade para onde ela queria, se valendo de seu caráter decidido e autoritário para pôr em relevo a doçura e a debilidade de Phoebe Laxton. Sabia que Mablethorpe não deixaria de as comparar; e era previsível que um jovem dominado, ainda que com amabilidade, por uma mulher, agradecesse a admiração e a dependência de outra.

E assim era. A fragilidade de miss Laxton, sua debilidade, e a confiança cega que tinha depositado nele, tinham apelado ao seu cavalheirismo. Desde o primeiro momento, quando ela lhe tinha segurado com força a mão, tinha sentido desejos de a proteger. Tinha-lhe confessado que se encontrava totalmente segura a seu lado e, em pouco tempo, que confiava em seu critério, e tinha pedido seu parecer. Ninguém tinha desejado conhecer a opinião de lord Mablethorpe antes; e já que sua mãe, seu tio Julius e seu primo Max eram pessoas de um temperamento muito forte, nunca se tinha animado a que expusesse seu ponto de vista sobre temas de certa importância.

Portanto, sempre tinham decidido por ele e, apesar de que se aproximava sua maioridade, passaria algum tempo antes de que seus familiares, mais velhos e com mais experiência, chegassem a considerá-lo um adulto responsável. Inclusive Deborah em seus momentos mais carinhosos, comportava-se com ele como o faria com um irmão menor. Ria-se dele, e gostava de suas piadas, mas quase nunca o levava muito a sério.

Ao contrário, miss Laxton tinha dois anos menos que Mablethorpe e não o considerava um jovenzinho adorável que ainda não tinha começado a viver. Para ela, que fugia das garras de um ogro, era como um jovem cavalheiro andante, surgido das páginas de um conto de fadas. Sua experiência parecia-lhe imensa, já que ela não tinha nenhuma. Era elegante, forte e carinhoso.

Dava-lhe conselhos, e oferecia-lhe sua proteção. Portanto, não era surpreendente que miss Laxton se tivesse apaixonado loucamente por ele.

Ela não tinha a menor dúvida a respeito de seus sentimentos; passou algum tempo antes que Mablethorpe se desse conta dos seus, e ainda mais tempo antes de que se atrevesse a admitir ante sim mesmo que, surpreendentemente, tinha deixado de amar a uma mulher e tinha se apaixonado por outra em pouco tempo. Era insuportável pensar que tinha sido capaz de algo semelhante, e tendia a se considerar o mais frívolo e desprezível dos seres. Mas sabia que seu amor por Phoebe era um sentimento totalmente diferente da cega adoração que professava à Deborah. Esta o tinha deslumbrado. Era uma deusa à que tinha que render culto; bela, inteligente e cativante; infinitamente superior a ele. Não tinha essa opinião de Phoebe. Sabia perfeitamente que não era tão formosa como Deborah, nem tão sensata, e que era atraente mais que cativante. Quando Deborah lhe sorria, a vista nublava, e sonhava cometer atos loucos e românticos, como beijar a bainha de seu vestido, ou realizar façanhas heróicas em sua honra; quando Phoebe sorria, não surgiam em sua mente semelhantes imagens, mas sentia um desejo irrefreável de tomá-la em seus braços e a proteger.

Tinha sentido esse desejo ao se despedir dela nessa mesma noite, justo antes de descer à sala de jantar. Parecia abatida e indefesa, e estava atemorizada porque sabia que Filey estava na casa.

Tudo isto o inquietava, e portanto lhe feriu a falta de interesse que tinha demonstrado miss Grantham, e esteve a ponto de se zangar com ela, pela primeira vez em sua vida.

Quando Deborah abandonou a sala, se uniu ao grupo que rodeava seu primo. Crewe tentava averiguar a causa das feridas de Ravenscar, e os demais estavam discutindo a respeito das respectivas virtudes dos cavalos, e das características do trajeto que teriam de percorrer.

Finalmente, tinha-se decidido que o acontecimento se celebraria no trecho compreendido entre Islington e Hatfield, e não em Epsom, como se tinha pensado a princípio. Lord Mablethorpe, atento à conversa, esqueceu durante algum tempo suas preocupações.

-Me encantaria te acompanhar! -exclamou com certa inveja-. Irei à linha de chagada, mas não é o mesmo.

Ravenscar deixou seu copo vazio em cima da mesa.

-Bom, podes acompanhar-me se assim o desejas -respondeu-. Mas tens que se comprometer a me ajudar, e ir anunciando nossa passagem com a trombeta!

O rosto de Mablethorpe adquiriu uma expressão radiante.

-Max! Fala sério? Vais levar-me no lugar do lacaio? Oh, por Júpiter, isto é fantástico!

Crewe riu-se de seu entusiasmo, e começou a caçoar pelas suas costas.

-Max, não deve permitir que ocupe o posto de Welling! Te deterão em todas as barreiras de postagem!

-Não é verdade! -respondeu Mablethorpe com indignação-. Posso ajudá-lo tão bem como qualquer um!

-Estarás tão nervoso que, quando tiveres te lembrado de tocar a cornete para que levantem as barreiras, será demasiado tarde.

-Não! Fui com Max muitas vezes! Sei exatamente o que tenho que fazer!

-Em fim -observou Crewe, movendo a cabeça com resignação- se estás decidido a levar a este franguinho no lugar de Welling, Max, não terei mais remédio que retirar minha aposta, e não se fala mais nisso.

Esta observação chegou a lord Mablethorpe como um peso. Em seu rosto apareceu uma cômica expressão de desolação, e dirigiu a seu primo um olhar de inquietação.

-Max, é melhor que não vá? Peso demasiado?

Já que sua senhoria, apesar de sua estatura, tinha uma constituição quase infantil, esta tímida pergunta provocou a hilaridade dos presentes, o que fez que se encabulasse ainda mais. Não obstante, como estava acostumado às piadas dos amigos de seu primo, não se ofendeu em absoluto, se limitando a anunciar o horrível destino que aguardava Berkeley Crewe, e a manifestar sua intenção de se retirar naquele instante, para estar descansado antes da corrida.

O senhor de Ravenscar julgou esta decisão muito acertada, e sugeriu-lhe que se abstivesse de informar a sua mãe de sua participação na corrida. Lord Mablethorpe exclamou:

-Oh, não, por Deus! Não lhe direi nem uma palavra a respeito! -E retirou-se, sem despedir-se de miss Grantham, pela primeira vez desde que a conheceu.

O senhor de Ravenscar dirigiu-se ao andar superior para jogar Faraó , mas se lady Bellingham alegrou-se de vê-lo ali, dissimulou sua satisfação, contemplando-o com olhos de animal encurralado a cada vez que lhe dirigia um olhar, e encontrando verdadeira dificuldade em se concentrar no jogo. Nunca tinha sentido tanto alívio ao terminar uma partida; e quando por fim todos os convidados tinham abandonado a casa, não lhe sobraram forças para subir a escada até seu quarto, pois caiu exausta num sofá de cetim amarelo e, debilmente, pediu que lhe trouxessem as sais.

-Tranqüilize-se -aconselhou Lucius Kennet, que tinha ficado para falar um momento com Deborah-. E agora, querida, vais me explicar o que estás jogando!

Miss Grantham deteve-se desafiante.

-Já te contei o que aconteceu. Não, não tive a culpa.

-E por que te ocorreu deixar uma vela com Ravenscar?

-Não sabia o que tinha em mente. Como ia adivinhar?

-E para que diabos ele ia querer uma vela, se não era para fazer das suas? A você não enganam tão facilmente, Deb!

-Não gostaria que o deixassem na escuridão -respondeu-. Além disso, disse que tinha ratos.

-Assim é -murmurou lady Bellingham debilmente, abrindo os olhos-. Os criados sempre se estão queixando deles, mas eu não posso fazer nada!

-Vamos, Deb! Achas que Ravenscar é dos que se assustam com um rato?

-A Mortimer dão-lhe pavor -observou lady Bellingham-. Nunca me deixa em paz! Não há nenhuma razão para que a Ravenscar não provoque medo. Oh, vou ficar louca! Contará a todo mundo o que fizeste, querida, e ninguém se atreverá a voltar a esta casa!

-Quem colocou curativos nas mãos de Ravenscar? -perguntou Kennet, olhando Deborah fixamente-. E se queimou a mão, como é possível que os punhos estivessem intactos?

Responda-me!

-Não estavam -respondeu Deborah, ofendida-. Emprestei-lhe uns de Kit. Na verdade, onde se meteu?

Kennet sorriu.

-Suponho que não gostaria da aparência que tomavam os acontecimentos, querida, e desapareceu antes do jantar. Mas não tentes mudar de assunto! Tu mesma cuidou de suas mãos, não é assim?

-E que outra coisa podia fazer? -perguntou-. Quando descobri que estava em liberdade, não pude me opor a ele. Além disso, estava quase decidido a encerrar-me no porão em seu lugar, e não teria podido suportá-lo!

-Deb, Silas estava no saguão, e eu jogando Faraó no andar de cima! O que aconteceu? Permitir que parta da casa com toda tranqüilidade!

-Não sejas ridículo, Lucius! -protestou Deborah-. Como ia armar um escândalo diante de todo mundo? Não havia outra solução e, de qualquer modo, eu não pensava me valer de uma armadilha para capturá-lo. Isso foi idéia sua!

-Querida, permita-me fazer-te uma pergunta: que vais fazer agora para recuperar as letras?

-inquiriu Kennet com cortesia.

-Não sei, mas podes estar certo de que me ocorrerá algo -respondeu Deborah.

-Suspeito -observou Kennet- que estás apaixonada por esse tipo, Deb!

-Eu? -exclamou com voz entrecortada-. Apaixonada por Ravenscar? Perdeste o juízo, Lucius?

Detesto-o! É o mais abominável, o mais odioso, o mais desprezível... oh, como pode dizer esses disparates? Não estou com humor para piadas. Boa noite!

Enquanto dizia isto, saiu precipitadamente do quarto, e esteve a ponto de se chocar com seu irmão na porta. O senhor Grantham, que parecia estar muito sufocado, exclamou:

-Deb! Juraria que o vi, justo no momento em que estava cruzando Piccadilly! Deixaste-o partir, apesar de tudo!

-É muito provável que o tenhas visto -respondeu, furiosa-. Mas não o deixei partir, e não o teria feito por nada no mundo. Além disso, permita-me que te comunique que tem um péssimo conceito de você!

-Que sabes de tudo isto, querido Kit? -perguntou o senhor Kennet, enquanto Deborah saía batendo a porta.

-Sei tudo! E agradeceria, Lucius, que não voltasses a fomentar as loucuras de minha irmã! Se os acontecimentos desta noite não põem fim a todas minhas esperanças, não será a ti precisamente a quem tenha que agradecer!

-Pelo amor do céu, rapaz, a você o que importa?

-Oh, dá-se exatamente a mesma coisa! -observou Kit com amargura-. Simplesmente, estou apaixonado pela irmã de Ravenscar!

O senhor Kennet ficou atônito ao ouvir esta declaração.

-Verdade? E o que tem com tudo isto?

-Como podes ser tão tolo? Que possibilidades tenho de conseguir o consentimento de Ravenscar para o casamento se minha irmã o prendeu no porão?

Lady Bellingham sentiu-se obrigada a defender sua sobrinha, afirmou:

-Fez com toda boa intenção, Kit! Não sabia que querias casar com Arabella Ravenscar!

Kennet contemplou Kit com ironia.

-Assim vais te casar, eh?

-E por que não? -perguntou Kit-. Parece tão estranho que assim seja?

No rosto de Kennet insinuou-se um sorriso.

-Por minha fé, acho que sim! -respondeu.

-Sim! E considero-o tão culpado como Deb! Inclusive mais!

-É possível que nisso tenhas razão -assentiu Kennet, que parecia considerar que a situação era muito divertida.

Lady Bellingham levantou a cabeça da almofada amarela.

-Foi tudo muito desafortunado -observou-. E não posso deixar de pensar que, já que Deb tinha Ravenscar preso no porão... e não é que aprove seu comportamento, isso nunca, de jeito nenhum...

mas já que estava ali, parece-me uma pena tê-lo deixado escapar sem recuperar antes essas horríveis letras! Agora começará a me importunar, e a nos fazer umas acusações horríveis, e não preciso que dizer que isto prosseguirá! Deb tentará dar-lhe outra lição, e tudo acabará mal! Às vezes penso que estaria melhor no cárcere!

Depois de pronunciar estas tristes palavras, retirou-se para seu quarto, para passar uma noite agitada sonhando com faturas de carroceiros, ervilhas, ratos, restos de velas e porões repletos de homens amarrados.

Lord Mablethorpe tinha feito planos para levar miss Grantham e Phoebe ao campo na manhã seguinte. Mas às dez um mensageiro entregou a miss Laxton uma sucinta nota, anunciando uma mudança de última hora nos planos, e prometendo ir a Saint James's Square essa mesma tarde, para informar-lhe o resultado da corrida de carriolas. Phoebe, alarmada ao ler a carta, emitiu uma exclamação, e entregou-a a Deborah, murmurando:

-Oh, pode se matar!

-Matar-se? Que disparate! -respondeu miss Grantham, jogando um olhar à carta-. Asseguro que estou farta desta corrida! Adrian não teve outro assunto em toda esta semana! Graças a Deus, se celebrará por fim e já não se falará mais dela! Como se tivesse tanta importância!

-Aos homens interessam-lhes tanto estas coisas -suspirou miss Laxton-. Oh, espero que Ravenscar derrote sir James! Adrian diz que não tem rival, mas, se os cavalos de sir James são tão bons como se comenta?

Miss Grantham tampou os ouvidos.

-Tu também! –a repreendeu-. Nem uma palavra mais sobre o assunto! Por mim gostaria que quebrasse o pescoço!

-Oh, Deb, não se Adrian vai na carriola com seu primo! -estremeceu Phoebe.

-Na realidade, se Ravenscar é tão bom condutor, não é provável que tenham um acidente -

tranqüilizou miss Grantham.

Phoebe contemplou-a com olhos cheios de assombro.

-É tão valente! -exclamou com admiração-. Gostaria de ser assim, mas, desgraçadamente, não o sou!

-Santo Deus, criatura, que temes? -perguntou miss Grantham com perplexidade.

-Mas, Deb! Adrian!

-Oh! -exclamou miss Grantham despreocupadamente-. Ah, claro, como não, querida!

-Não sei como vamos poder estar tranqüilas até que tenha terminado a corrida -suspirou Phoebe.

-Certamente -assentiu Deborah, decidida a não pensar, mais no assunto.

Isto não lhe custou nenhum esforço, já que estava totalmente absorta em seus próprios problemas; mas era evidente que, por seu intranqüilidade e sua expressão de ansiedade, miss Laxton não podia tirá-la da cabeça. Quando por fim anoiteceu, e considerou que lord Mablethorpe chegaria de uma hora para outra, se mudou para o salão que dava para a rua, e contemplou a praça através dos cortinas de renda que emolduravam a janela. Comunicaram-lhe que o jantar estava servido, quando ainda não tinha vislumbrado a familiar figura de Mablethorpe, pelo qual se viu obrigada a descer, e a simular que comia. Miss Grantham, ao compreender a causa de sua inquietação, recordou-lhe que os participantes ceariam seguramente em Hatsfield e que demorariam um bom tempo para chegar a Londres. Miss Laxton assentiu, mas continuou sem apetite.

O senhor Grantham encontrava-se em sua companhia, mas, como puderam observar, não estava de bom humor. Parecia refletir sobre uma pena oculta, e ainda que isto não afetasse seu apetite, o impediu de tomar parte ativa na conversa. Tinha tentado, com a ajuda da criada de Arabella (que começava a abrigar esperanças de se aposentar num futuro não muito longínquo graças ao dinheiro que tinha recebido dos numerosos pretendentes de sua ama), conseguir um encontro com a volúvel garota. Chegou no ponto do encontro meia hora antes do previsto, e miss Ravenscar atrasou-se outra meia hora. Aparentemente, esta tinha esquecido por completo das promessas de fidelidade eterna que lhe tinha feito uma semana antes em Tunbridge Wells. Não tinha nenhum inconveniente em flertar com ele, e manifestou seu desejo de o ver no baile do Panteón, mas lhe deu a entender que, apesar de tudo, não lhe agradava nem um pouco a idéia de contrair casamento. Kit começou a suspeitar que tinha outro homem em sua vida, e reprovou sua traição.

Miss Ravenscar riu-se maliciosamente, negando-se a responder. A seguir, o senhor Grantham expôs-lhe o atrevido plano que tinha criado para levá-la ao baile de máscaras de Ranelagh na noite seguinte. A idéia de debochar da vigilância a que estava submetida, sob o pretexto de se retirar para cama com uma enxaqueca, e passar uma excitante noite num baile de máscaras com um pretendente secreto era o tipo de aventura que exercia uma grande fascinação sobre Arabella, mas para desgosto de Kit, baixou o olhar com recato, exclamando que não seria correto. No entanto, pelo sorriso furtivo que acreditou ver em seus lábios, Kit suspeitou que já o tinha pensado, e que efetivamente iria ao baile de máscaras, ainda que não em sua companhia. Portanto, não era de estranhar que tivesse voltado para casa de sua tia com a moral no chão.

Essa noite não esperavam receber nenhum convidado. Kit retirou-se para seu quarto quando terminou o jantar, e as três damas dispuseram-se a passar um par de horas no salão amarelo, sentadas tranqüilamente ao redor da lareira. No entanto, lady Bellingham não demorou em se retirar ao seu quarto, se lamentando de que a tensão da última semana a tivesse esgotado; e enquanto miss Laxton simulava estar ocupada com a costura, ainda que na realidade dava muito poucos pontos, miss Grantham olhava distraidamente uma novela, ocupada na realidade em elaborar um plano infalível para recuperar as letras de sua tia, que não pensava em se entregar ao inimigo, mas que, ao contrário, colocasse este numa posição muito indesejada.

Às dez em ponto ouviu-se a campainha que Phoebe tinha estado aguardando com tanta impaciência, o que fez que lhe caísse a costura.

-Tem que ser ele!

Miss Grantham alçou o olhar.

-Não o receberei! -exclamou.

Phoebe contemplou-a, alarmada.

-Deb! Que fez ele para que não queira ver? -balbuciou, empalidecendo.

-Que fez? Oh, referias-te a Mablethorpe!

-Queridíssima Deb, a quem ia me referir se não ele? -perguntou miss Laxton com perplexidade.

Miss Grantham se ruborizou.

-Estava pensando em outra coisa -se desculpou.

Ouviu-se o som de rápidas pisadas que subiam pela escada, e no mesmo instante apareceu lord Mablethorpe na soleira da porta, com um aspecto contido e um tanto desalinhado, e ainda vestido com um capote de cor parda e botas de campanha, salpicadas abundantemente de barro.

-Ganhamos! -anunciou com um olhar radiante.

Phoebe bateu palmas de alegria.

-Estava certa! Estou tão contente! E regressaste são e salvo!

Ele riu.

-São e salvo? É claro! Não vi uma corrida igual em toda minha vida! Foi fantástica! Nunca me diverti tanto! Oh, Deb, importa-te que me apresente com este aspecto? Pensei que não acharias inconveniente. Sabia que estarias impaciente por conhecer o resultado! Posso entrar?

-Como não -respondeu, enquanto recolhia o trabalho de Phoebe, e o dobrava com cuidado-. Já ceaste, ou gostarias de comer algo?


-Oh, não, to agradeço! Ceamos em Hatfield, e acabo de tomar um bocado em casa de Max.

Vimos-nos em apuros um par de vezes... basta apenas que diga que nos tocou ir atrás de um carro de viajantes justamente no trecho mais estreito que existe antes de chegar a Potter's Bar. Por um momento pensei que nos podíamos dar por vencidos, já que Filey foi na frente durante a primeira parte do percurso, e levava vantagem. Mas Max é único! Sabe onde se bifurca a estrada, na indicação para Hadley, onde há um desvio para Holyhead à direita? Oh, claro que não! Pois é um cruzamento muito perigoso, e além disso há muito tráfego na estrada! Enfim, num abrir e fechar de olhos, Max afrouxou as rédeas e os tordilhos saíram disparados! Era nossa única oportunidade; mas nesse momento apareceu uma caleça, que vinha pela estrada de Holyhead, e não exagero em dizer que, ao passar o carro de passageiros, passamos roçando na caleça! Confesso que fechei os olhos, e me dispus a me encomendar ao Senhor!

-Poderias ter-te matado! -exclamou Phoebe.

-Assim é, se tivesse conduzido outro qualquer, mas Max sabe perfeitamente como vão reagir os tordilhos a cada momento.

-Suponho que os cavalos de sir James eram inferiores -observou Deborah, se arrependendo no momento de ter demostrado seu interesse pela corrida.

O radiante rosto de Mablethorpe voltou-se para ela.

-Oh, eu não diria isso! Foi culpa do condutor. Quando chegamos a Islington, o encontramos com animais realmente impressionantes: cabeças pequenas, magníficos pescoços, peito e ancas fortes; uns puro sangue galeses! Formavam um casal perfeito! Mas quando Max viu-os, comentou que iam demasiado sujeitos, e assim era. Pude observar que o criado de Filey achava o mesmo, mas isso é típico de Filey! Sempre acha que tem razão, e é tão teimoso que nunca aceita um conselho!

Enfim, tinha-se reunido uma multidão para ver a saída como pode imaginar, e estavam fazendo muitas apostas. Os profanos apostavam somas muito altas em Filey, já que, para ser sincero, os baios são o mais vistoso que vi até agora; mas os entendidos arriscavam seu dinheiro em Max e, por Júpiter, tinham razão! A coisa começou bem, e Filey se pôs na frente, tal como tinha previsto Max. Ele, ao contrário, esteve retendo aos tordilhos até Barnet, tentando simplesmente não perder Filey de vista. Gostaria muito que tivésseis visto Filey conduzindo seus cavalos pela elevação de Highgate Hill, como se fosse o último trecho da corrida, em vez do primeiro! Nós lhe seguíamos a trote lento, como se fôssemos a passeio. Como era de se prever, Filey não entrou bem na colina, já que a estava subindo em grande velocidade, e um dos cavalos tropeçou ao chegar no cume.

Quando Max viu isto, se deu conta de que o triunfo era nosso. Mas tudo isto aconteceu antes de que nos atrasássemos por culpa do carro de viajantes! Ainda que isso já tenha importado! Depois teve um trecho esplêndido em Finchley Common, e fomos em bom ritmo, já que tinha muito pouco tráfego na estrada. Eu teria passado Filey nesse momento mas Max disse que o faríamos em Barnet. -Sua senhoria riu-se ao recordá-lo-. Precisamente em Barnet! Mas isso é próprio de Max!

Pensei que não o conseguiríamos, já que em Barnet sempre há aglomerações. Filey não sabe o que fazer numa rua cheia de palanquins e de carretas, e era evidente que tinha forçado os cavalos.

Estavam totalmente banhados de suor, e só tínhamos coberto a metade do percurso! Tinha um palanquim de um lado da estrada, e o correio que saía nesse momento do Rede Lion, e um faetón estacionado diante de uma loja. Qualquer um teria assegurado que não tinha espaço para passar!

De qualquer modo, isso é o que devia pensar Filey, já que não tentou ultrapassar a cadeirinha. Max compreendeu que esta era sua oportunidade e, a trote ligeiro, abrimos caminho. Por um momento pensei que chocaríamos com a roda do faetón, mas nem sequer a roçamos. Max leva as rédeas com tanta maciez! Diz que Filey poderia ter estragado a boca aos cavalos... oh esqueci-me de contar...!

Finalmente, Max disse a Filey que fixasse um preço pelos seus cavalos, e o comprou. Filey estava furioso, porque era evidente que Max ao lhe comprar os cavalos, o considerava o único responsável pela derrota. Mas estava tão furioso com eles por ter perdido a corrida, que os teria vendido ao primeiro que passasse por ali! Quando chegaram a Hatfield iam mancando, mas isso é culpa de Filey. Berkeley diz que sempre conduz mal quando compete com Max, porque está tão obcecado em ganhar, e sabe, ainda que não queira reconhecer, que Max lhe dá cem voltas. Em quanto passamos por Potter's Bar pusemos-nos na frente definitivamente.

-Portanto, voltou a ultrapassá-los após Barnet? -observou miss Grantham com brusquidão-. Que ocorreu?

Sua senhoria riu-se.

-Oh, um pouco antes de chegar a Hadley Green! Avisei a Max de que Filey tentava nos ultrapassar, mas me respondeu que por ele podia fazê-lo, já que não queria forçar aos tordilhos nesse trecho.

Só o ultrapassou em Barnet para fazê-lo sofrer. Que homem mais tolo! Max diz que...

-Meu querido Adrian, ao que parece Max disse muitas coisas, mas gostaria que não fizesses uso tão freqüente dessas duas palavras em teu relato! -interrompeu-lhe miss Grantham com um tom cortante.

Sua senhoria se ruborizou, e pareceu tão doído que miss Grantham se arrependeu de suas palavras, e teria pedido desculpas se não tivesse recordado a tempo que parecer agradável não fazia parte de seus planos. Levantou-se, dizendo com indiferença:

-Tenho que falar com Silas um momento. Segue contando o resto da história a Phoebe! Temo que seja uma estúpida, e não me interessam em absoluto nem a condução, nem as corridas de carriolas, nem os cavalos. Não demorarei em voltar, e espero que então sejas capaz de falar de outro assunto!

Lord Mablethorpe levantou-se, e abriu-lhe a porta. Quando tinha saído da sala, Phoebe observou timidamente:

-Não te ofendas! Acho que está preocupada com algo. Estou certa de que não o disse com má intenção! É tão amável, e tão boa!

-Temo que tenha sido muito cansativo -se desculpou-. Na verdade é que me pareceu tão apaixonante... mas para vocês, logicamente, não tem por que o ser!

-Oh, não! -exclamou Phoebe com espontaneidade-. Acho que é a coisa mais apaixonante que ouvi em minha vida! Asseguro-lhe! Por favor, suplico que me contes o final!

Impulsivamente, estendeu-lhe uma mão enquanto falava.

Ele se dirigiu para ela, e a pegou, contemplando-a com um olhar tão doce e apaixonado que lhe deu uma volta no coração.

-Oh, Phoebe, és tão bela! - sussurrou-. Quero-te tanto!


Capítulo XIV

Duas enormes lágrimas brotaram dos olhos de miss Laxton e deslizaram por suas faces.

-Oh, Adrian -murmurou com voz entrecortada.

E ato seguido, caiu em seus braços. Sua senhoria, esquecendo no mesmo instante a corrida e seu compromisso com miss Grantham, beijou Phoebe e, secando-lhe as lágrimas, assegurou que nunca mais voltaria a se sentir desgraçada, ou a ter medo. Mas, de repente, esta reagiu: levantou a cabeça de seu ombro e deixou de abraçá-lo, exclamando com voz afogada:

-Não podemos fazer isto! Deborah!

Sua senhoria não tentou reter a Phoebe. Esta se levantou, reprimindo um soluço, e então os dois jovens se olharam com perturbação, compreendendo que não seriam capazes de escapar a seu destino. Sua senhoria lançou um gemido e ocultou o rosto entre suas mãos.


-Tenho estado cego todo este tempo!

-Oh, não! -exclamou Phoebe, enxugando as lágrimas com um delicado lenço-. É tão bonita, e tão amável e... e... Deus meu!

-Achava que amava-a. Mas não é assim. Estou apaixonado por você, Phoebe! Que podemos fazer?

De novo os olhos de miss Laxton encheram-se de lágrimas.

-Te casarás com ela, e eu me m-meterei num convento, ou algo assim. Logo te e-esquecerás de mim -conseguiu dizer por fim com valentia.

Ao imaginar o triste futuro que os aguardava, Mablethorpe levantou os olhos exclamando com determinação:

-Não!

-E o que vamos fazer, se não? -perguntou Phoebe.

-Não posso me casar com Deb.

Miss Laxton empalideceu.

-Oh, não podes lhe dizer isso!

Invadiu-os um silêncio sepulcral. Sua senhoria levantou-se e começou a percorrer a sala de um extremo a outro.

-Se não lhe disser, seremos desgraçados os três.

-Não, não! Ela nunca o saberá, e você esquecerá do que aconteceu!

-Nunca o esquecerei! -manifestou Adrian com veemência-. Seria incapaz de fingir ante Deb. Não demoraria a adivinhar.

-Mas não podes fazê-lo! Seria horrível! -sussurrou Phoebe.

Sua senhoria estava quase tão pálido como ela.

-Sim, sei-o -admitiu-. Mas ainda não me deu sua palavra de que se casará comigo. Talvez... talvez não tenha essa intenção.

Ela o contemplou com assombro.

-Mas eu acreditava... me disseste que...

-Sim, sim, mas nunca me deu uma resposta definitiva! Quando lhe pedia que se casasse comigo, costumava levar na brincadeira. Além disso... além disso, pareceu-me que tinha mudado seu trato comigo; e também pensei que... Mas a verdade é que nunca estive seguro. Phoebe, achas que sente algo por mim?

-Oh, como não ia sentir? -exclamou Phoebe.

-Pois eu acho que não. Ultimamente tem estado... oh, não irritada exatamente, mas sim...

diferente!

De repente, Phoebe teve uma idéia aterradora.

-Adrian, é possível que suspeite de algo e esteja ciumenta, ou... ou magoada...

Seus olhares cruzaram-se e, armando-se de coragem, sua senhoria manifestou:

-Temos que lhe dizer a verdade.

Phoebe se sobressaltou, e respondeu com agitação:

-Não, não, te suplico! Pensa por um momento o horrível que seria! Acolheu-me em sua casa, e foi tão amável! Como eu poderia separá-lo dela? Prefiro a morte!

Sua senhoria compreendeu que tinha certa razão, mas continuou insistindo.

-Sim, mas você não me separou dela -observou-. Não tínhamos intenção de nos apaixonar! Não pudemos impedi-lo, e estou certo de que compreenderá! Você não tem culpa! Sou eu quem merece um castigo!

Como era de supor, miss Laxton não estava de acordo com ele. Começou a rebater suas afirmações, fazendo-se responsável pelo ocorrido, e encontrando todo tipo de desculpas para sua senhoria. No entanto, ele se negou a aceitar, e, por espaço de uns minutos, mantiveram uma discussão bizantina, que bem poderia ter durado horas, se se sua senhoria não tivesse dado conta de sua inutilidade, e não tivesse posto fim a ela, beijando miss Laxton.

-Oh! -exclamou esta, ocultando o rosto no abrigo de sua senhoria-. Se fazes isto, como vou encontrar forças para cumprir com minha obrigação? Não o faças, Adrian! Oh, por favor, não!

-Portei-me como um velhaco! -disse sua senhoria, sem lhe prestar atenção-. Mas seria ainda pior se me casasse com Deb. Não tenho nenhuma dúvida a respeito disso! Lhe contarei tudo, e apelarei a seu generosidade. Se o compromisso tivesse sido oficial, nos teríamos encontrado ante uma situação irremediável, já que meu senso da honra me teria impedido de voltar atrás, a expondo às fofocas das pessoas. Mas este não é o caso! Os únicos que sabem do compromisso são meu primo e minha mãe. Não posso enganar Deb. Nego-me! Temos de confessar-lhe a verdade sem perda de tempo.

-Acho que vou desmaiar! -afirmou miss Laxton, agarrando-se com força a uma cadeira-. Que pensará de mim?

-E de mim? -perguntou sua senhoria.

Felizmente para ambos, miss Grantham elegeu esse preciso instante para voltar à sala.

-Então, finalizou já a corrida? -perguntou-. Superaste já todos os obstáculos, ou cheguei demasiado cedo?

Miss Laxton voltou o rosto para a lareira. Lord Mablethorpe, cobrando ânimos, manifestou determinadamente:

-Não estivemos falando da corrida, Deb. Há algo que gostaria de dizer-te.

-Não! -sussurrou miss Laxton, envergonhada.

Sua senhoria não fez caso deste débil protesto.

-Não sei que pensarás de mim, Deb. Não encontro palavras para descrever meu comportamento!

-Não; não! O meu! -exclamou miss Laxton.

-Phoebe é inocente -assegurou sua senhoria, defendendo-a. Sei que compreenderás isto, apesar da má opinião que terá de mim! Se tivesse dependido dela, não saberias nunca! Mas eu não posso!

Estou decidido a ser sincero contigo, já que ocultá-lo só acarretaria desgraças!

Miss Grantham, fazendo um esforço por conter o riso, dirigiu-se com passo vacilante para uma cadeira, e sentou-se inesperadamente nela, exclamando tragicamente:

-Oh, céus! Traístes-me!

Sua senhoria retrocedeu; tanto ele como miss Laxton a contemplaram alarmados, e em seus rostos apareceu uma expressão de culpabilidade.

Miss Grantham cobriu o rosto com um lenço, e exclamou, num tom desesperado:

-Miserável!

Sua senhoria engoliu saliva, e tentou defender-se desta acusação.

-Estou consciente de que te parecerei um ser desprezível, e de que não tenho justificativa possível

-disse-. Mas não tinha intenção de fazê-lo: não pude evitá-lo. Deb, acredite! E pensei que era preferível te contar a... a...!

Miss Grantham deu um grito.

-Jogaste com meus sentimentos! -exclamou, ocultando o rosto entre as pregas de seu lenço-.

Deste-me tua palavra de que te casarias comigo, e agora queres me abandonar por outra!

Os olhares agoniados de miss Laxton e de lord Mablethorpe encontraram-se.

-Nunca pensei que seria objeto de tal desprezo! -continuou Deborah-. Oh, como pudeste enganar assim a uma mulher indefesa?

Instintivamente, lord Mablethorpe e miss Laxton deram as mãos para prestar-se um apoio mútuo.

-Oh, não digas isso! -lhe suplicou Phoebe-. Adrian não demorará em me esquecer!

-Não te deixes enganar por ele, infeliz criatura! -preveniu-lhe Deborah-. A abandonará também!

Oh, pensar que entreguei meu pobre coração a um desalmado!

-Deb! -exclamou sua senhoria, horrorizado-. Não é verdade! Equivocas-te! E, além disso, nunca me asseguraste que te casarias comigo! Teria sido diferente se...

-Toda minha vida destroçada! -exclamou miss Grantham com um soluço fingido-. Nunca me recuperarei de isto!

-Deb! -disse sua senhoria com voz firme-. Dou-te minha palavra de que, se não te acalmares agora mesmo, te... te sacudirei!

Miss Grantham levantou a cabeça e secou os olhos.

-Oh, Adrian, que bobo és! -disse-. Não vês que era justamente o que esperava que acontecesse?

Nunca tive a mínima intenção de me casar contigo!

Esta revelação produziu tal efeito em Phoebe, que ficou olhando boquiaberta a sua protetora. Lord Mablethorpe, ao contrário, lançou um suspiro de profundo alívio, e sorriu.

-Sempre fazendo piadas! Tinha o pressentimento de que não tinhas nenhum interesse por mim.

Mas sou consciente de que me portei muito mal contigo.

-Pobre rapaz, temo que no fundo a vítima fosse você. Não se preocupes! Desejo que sejam muito felizes; estou certa de que nasceram um para o outro. Estou orgulhosa de tê-lo conseguido! Agora, a única coisa que temos que fazer é pensar o que faremos a seguir.

Miss Laxton, que por fim tinha saído de seu estupor, abraçou a Deborah, exclamando:

-Que boa és comigo! Sinto-me tão culpada do ocorrido! É verdade não quer casar com ele?

-Sei que é de muito mau gosto da minha parte -admitiu miss Grantham-. Talvez esteja destinada a ficar solteira. Mas não falemos mais de mim; asseguro que me arranjarei perfeitamente. Temos que fazer planos para seu futuro. Imagino que seus pais não verão nenhum inconveniente em que se cases com Adrian.

-Não sou tão rico como Filey. Não tenho nem a metade de sua fortuna -reconheceu sua senhoria com inquietação.

-No entanto, também não é um indigente. Considero-te um bom partido, e estou convencida de que também o fará lord Laxton.

-Meu irmão Arnold contou-me que sir James seria generoso com minha família -observou Phoebe, vacilante-. Não sei qual o motivo, mas acho que papai teve grandes perdas ultimamente, além das dívidas de meus irmãos.

-Eu também me portarei com liberalidade-respondeu sua senhoria decididamente. Uma expressão de inquietação apareceu em seu rosto-. Quando for maior de idade -acrescentou, com voz abatida.

-Que disparate! -exclamou miss Grantham-. Não consideres uma ofensa, Phoebe, mas sou contrária a que se ajude a tua família. Não compreendo por que teria Adrian de se responsabilizar pelas loucuras de teu pai e teus irmãos.

A miss Laxton nunca tinha ocorrido considerar este ponto de vista, mas, ao refletir, concordou totalmente com Deborah.

-Não, certamente! Não seria justo! Não posso permitir. Mas que podemos fazer? A meu pai só interessa o dinheiro!

Lord Mablethorpe considerou, pelo rumo que tomava a conversa, que era preferível que miss Laxton não estivesse presente. Observou que já era muito tarde para fazer planos e encontrar soluções, por isso lhes faria uma visita em Saint James's Square ao dia seguinte, para examinar a situação detidamente. Deborah, captando um olhar significativo em seus olhos, compreendeu no instante a mensagem, e manifestou que considerava esta sugestão muito acertada, já que era hora de Phoebe ir para cama. Ato seguido, deixou só os jovens apaixonados, para que se despedissem com ternura, e não voltou ao salão até que teve que acompanhar a Phoebe ao seu quarto, a entregando aos cuidados da criada.

Encontrou lord Mablethorpe percorrendo a sala de cima a baixo, envolvido em suas preocupações.

Fechou a porta e acercou-se da lareira, sentando-se em frente a ela, e observando com determinação:

-Bem, temos que pensar em algo! Achas que os Laxton não verão com bons olhos o compromisso?

Não posso acreditar!

Apareceu uma expressão de tristeza no semblante de Mablethorpe.

-Temo que não, Deb. Tenho estado fazendo algumas averiguações, e parece que Laxton está praticamente arruinado.

-Assim é. Além disso, os dois irmãos são uns esbanjadores! Comentei com Horley algo a respeito deles, e tive uma impressão muito desfavorável do que me contou. Diga-me, querido: Consideras-te obrigado a manter a família de Phoebe?

-Não -respondeu sua senhoria bruscamente-. Portaram-se muito mal com ela e, quando estivermos casados, não quero ter mais contato com eles além do absolutamente imprescindível.

Poderia fazer algo pela pequena, se Phoebe assim o desejar -acrescentou magnânimo .

-Perfeito! Começava a temer que o tinha colocado numa má situação ao te jogar nos braços de Phoebe. Mas é justamente o que esperava!

-Sim, mas o caso é que, Deb, não é provável que os Laxton levem em conta minha oferta de casamento frente à de Filey. Eu não poderia, ainda que quisesse, ajudar tanto à família como ele.

Para ele não tem nenhuma importância: É quase tão rico como Max!

-É possível, mas se Phoebe negar-se a se casar com Filey, seus pais ficarão encantados em descobrir que tem outro pretendente, cuja posição também não é desprezível.

Lord Mablethorpe não pareceu muito convencido, e começou a passear de novo pela sala. Depois de uma pausa, confessou-lhe com certa vacilação:

-Além disso, há outro problema, Deb. Não te disse antes, mas minha mãe estava empenhada em que me casasse com minha prima. Como sabe, é uma rica herdeira. Não lhe agradará a notícia de que, em vez disto, penso em me casar com Phoebe Laxton. Calculo que a Phoebe não lhe corresponderá mais de três ou quatro mil libras: e não é que isto iria importar a minha mãe, quando deixasse de se ter ilusões a respeito do meu casamento com Arabella, mas sente uma grande antipatia por lady Laxton, e temo que desaprovará o casamento. Não quero dizer com isto que não aceite, quanto tiver conhecido Phoebe, mas... bom, levará algum tempo, porque, quando lhe mete algo na cabeça... Suponho que sabe ao que me refiro! Quando for maior de idade, poderei fazer o que quiser, mas por enquanto, não sei como vou anunciar meu compromisso oficial com Phoebe, se minha mãe se opuser, como o fará provavelmente, ao casamento. Ademais, também estava pensando em Max.

-Que autoridade tem sobre você? -perguntou miss Grantham.

-Não é meu tutor, mas é um dos administradores de minha fortuna, e o caso é que minha mãe costuma seguir seus conselhos, e, apesar de que seja um tipo formidável, temo que não dará sua aprovação, tendo em conta que os Laxton contraíram tantas dívidas. Terá medo de que me sangrem, e não servirá de nada lhe assegurar que não penso permiti-lo, já que continua me considerando um menino, e acha que podem me enganar facilmente.

Deborah guardou silêncio por um instante. Em seu foro íntimo, pensou que tanto lady Mablethorpe como o senhor de Ravenscar sentiriam tal sensação de alívio ao saber que Adrian já não tinha nenhuma intenção de se casar com ela, que não teriam muitos reparos em aceitar o seu casamento com uma jovem de boa família e comportamento irrepreensível; mas não tinha nenhum desejo de que chegasse a ouvidos do senhor de Ravenscar que Adrian tinha escapado de suas redes, antes de ter recuperado as letras de sua tia, e de ter se vingado de seu odioso comportamento. Portanto, perguntou:

-Quer dizer que é preferível que se mantenha o assunto em segredo até tua maioridade?

-Acho que, desta forma, não seria tão desagradável para Phoebe -respondeu -: Eu poderia convencer provavelmente a minha mãe, mas não me atrevo a pensar o que teria que padecer Phoebe em mãos de lady Laxton se não o conseguisse. Estou decidido a pedir sua mão com toda a correção do mundo mas, se me proíbe cortejá-la, me casarei com ela a escondidas, ainda que para o fazer tenha que ir correndo até Gretna Green!

Deborah sorriu.

-Bravo! Enquanto isso, que faremos? Deve ficar aqui comigo, ou é melhor enviá-la a casa de sua tia?

Ao ouvir isto, Mablethorpe se deteve inesperadamente, com uma expressão de júbilo.

-Não tinha pensado em sua tia! Deb, acho que seria conveniente que a fosse visitar em Gales, para pedir seu apoio! Que achas?

-Parece-me um plano excelente. Seguramente poderá ser de grande ajuda. Enquanto isso, Phoebe ficará comigo; podes partir com toda confiança, aqui estará a salvo! Não mencionarás o assunto nem a tua mãe nem a teu primo até que tudo esteja em via de solução.

Mablethorpe tomou as mãos de Deb entre as suas, num gesto de gratidão.

-És maravilhosa, Deb! Não sei o que faríamos sem ti! Amanhã passarei por aqui para discutir o assunto com Phoebe, e para pedir-lhe a direção de sua tia.

Deborah estava totalmente de acordo com ele. A seguir, Adrian despediu-se dela, e partiu a sua casa como um sonâmbulo, tão alheio a considerações práticas, que se esqueceu pensar numa desculpa convincente que explicasse sua longa ausência a sua atormentada mãe. Por causa deste descuido, quando lhe interrogou, não teve mais remédio que confessar a verdade, do que se arrependeu no mesmo instante, já que lady Mablethorpe manifestou sua intenção de ir a Grosvenor Square à manhã seguinte, para dizer ao senhor de Ravenscar o que achava de sua malvada desconsideração, ao expor a seu único filho a todos os perigos das corridas.

Ao dia seguinte, miss Laxton, depois de tomar café, ocupou seu posto de vigilância em frente à janela do salão amarelo para aguardar a chegada de lord Mablethorpe; enquanto, miss Grantham dirigiu-se ao gabinete de sua tia, para interessar-se pelo estado da afligida dama.

A moral de lady Bellingham tinha recebido de novo um duro golpe pela chegada de uma fatura do chapeleiro. Acabava de mostrá-la a Deborah quando chamou à porta seu pajem negro e, pedindo permissão para entrar, entregou a miss Grantham um pacote que levava numa bandeja de prata.

Esta o pegou, reconhecendo no mesmo instante a decidida letra do senhor de Ravenscar, e, ao observar que o tinham trazido em mãos, perguntou ao rapaz se tinha que dar uma resposta. Este respondeu que não, já que o mensageiro já tinha partido, sem aguardar sua resposta.

Ordenou-lhe que se retirasse, e, rasgando o selo, abriu o pacote. Em seu interior encontrou, além de um delgado maço de documentos, o cartão de visita do senhor de Ravenscar, em cuja parte superior pôde apreciar uma breve mensagem.

-«Com minhas sinceras saudações» -leu, contemplando a carta com assombro, incapaz de articular palavra.

Lady Bellingham observou-a com desconfiança.

-De que se trata, querida? -perguntou com desassossego-. De quem é?

Miss Grantham respondeu estupefata.

-É do senhor de Ravenscar.

Lady Bellingham emitiu um gemido, buscando seus sais com desespero.

-Já o esperava! Conta-me o que diz, por pior que seja! Denunciou-nos a todos!

-Não -respondeu miss Grantham-. Não -disse pela segunda vez, entregando o pacote a sua tia, incapaz de falar.

Lady Bellingham tomou-o com verdadeiro receio, mas ao descobrir seu conteúdo, deixou cair os sais da mão, e exclamou:

-Deb! Deb, ele as devolveu!

-Já o sei -respondeu miss Grantham.

-Estão todas aqui dentro! -manifestou sua senhoria, contando-as com mãos trêmulas-. Inclusive a hipoteca, querida! Oh, que sorte! Mas... mas por que o fez? Não me digas que pensou em lhe dar outra de tuas lições!

Miss Grantham moveu a cabeça com lentidão.

-Não sei que motivos teve para fazê-lo, tia.

-Talvez lhe disseste que não te casarias com Mablethorpe, e agora não queres reconhecer? É isso!

-Não é verdade. Ao contrário, informei-o não só de que me casaria com Mablethorpe mas também de que o arruinaria.

-Neste caso, não consigo compreender -observou lady Bellingham deixando o pacote em cima da cômoda-. Não é possível que tenha mal interpretado suas intenções?

-Estou convencida de que não se trata de um engano. E o que podemos fazer agora?

-Fazer, querida? -repetiu sua senhoria-. Bem, acho que deverias lhe escrever uma carta cortês , agradecendo sua generosidade por nos devolver as letras. Reconheço que foi um gesto muito cortês! Nunca pensei que fosse capaz disso, porque, segundo dizem, é terrivelmente teimoso! Mas se me disserem isso novamente, contestarei o seu erro!

Miss Grantham levou as mãos à cabeça.

-Querida tia, não me acredita capaz de aceitar este favor! Nem pensá-lo! Que posso fazer?

Lady Bellingham estremeceu, horrorizada. Pegou o pacote e agarrou-o com força.

-Como não o vais aceitar? -exclamou-. Após o quanto custou lhe tirar estas horríveis letras das mãos? Oh, vou ficar louca!

-Mas era diferente! -manifestou miss Grantham com impaciência-. Nunca pensei que as daria sem exigir nada em troca!

-Mas, querida, tentavas arrebatar-lhe à força! -gemeu sua tia.

-Sim, e o teria feito -assentiu miss Grantham-. Mas é intolerável pensar que terei que lhe agradecer!

-Deb, estas letras são minhas, e a mim não é intolerável! -exclamou sua tia num tom de súplica.

-Coloca-me numa posição muito humilhante! Não seria capaz de levantar a cabeça! Ademais, nem sequer gosta de mim! Você compreenderá que não posso tolerá-lo! Se pelo menos tivesse me portado bem com ele: mas fiz todo o possível por aparecer ante seus olhos como uma criatura odiosa e desprezível!

-Sim, querida, não cabe a menor dúvida, e por isso precisamente me parece tão amável! Suponho que pensará que estás louca, e o terá feito porque lhe inspiras pena.

Este comentário não agradou em absoluto a miss Grantham No mesmo instante exclamou, cheia de raiva:

-Sabe perfeitamente que não estou! Não quero que tenha pena de mim! Não tem motivos para fazê-lo!

-Bom, querida talvez sinta compaixão por mim, e certamente há muitas razões para a sentir!

Miss Grantham levantou-se com um gesto agoniado.

-Temos que lhe pagar!

-Pagar-lhe? -exclamou sua tia, atônita-. Não poderia pagar nem a metade!

-Sim, sim, sempre tivemos intenção de pagar a hipoteca, querida tia! Temos que fazê-lo!

-Estás ofendendo a Deus! -exclamou lady Bellingham pateticamente-. Com todas estas faturas de vinho, e carruagens, e ervilhas, e coisas mais! Asseguro-te, Deb, que é preciso ter mais paciência que Jó para te agüentar!

-Querida tia Lizzie, com um pouco de sorte e umas poupanças, a coisa está feita!

-Já sabes que chegamos à conclusão de que não podíamos gastar menos! Além disso, temos que pensar na transferência de Kit! Suplico-te que reflitas! Se não desejas escrever a Ravenscar, não tenho nenhum inconveniente de fazê-lo em teu lugar.

-De modo algum! Escreverei-lhe eu mesma. Pedirei que venha me ver, e... sim, lhe agradecerei, é claro, mas também direi com toda franqueza que estou disposta a lhe devolver até o último penny.

-Daqui a pouco quererás lhe pagar também os juros! -observou sua senhoria.

-Os juros! Não tinha pensado nisto! Oh, deveríamos pagá-los também? -perguntou miss Grantham com desânimo.

Lady Bellingham levou as mãos à cabeça.

-Deb, estás louca! Não sei o que te passa! Já fizeste bastante ao desperdiçar desconsideradamente vinte mil libras... E prefiro não o recordar, quando penso em todas estas horríveis faturas...! Mas que te negues a aceitar esta horrível escritura de hipoteca, que tens estado tentando conseguir por todos os meios durante uma semana, passas todos os limites! Qualquer um teria pensado que sentirias um grande alívio ao consegui-las tão facilmente! Mas não! Estou convencida de que terias preferido arrancá-las das mãos de Ravenscar pela força!

-Assim é -respondeu miss Grantham com franqueza-. Teria sido preferível! Nesse caso, teria medido minha habilidade contra a sua! Isto? oh, estranha-me que não compreenda que é impossível!

-Não posso compreender, e nunca o farei -manifestou sua tia-. Ao menos, assim espero, mas às vezes me parece que eu também estou ficando louca. Gostaria que me deixasses levá-la ao doutor!

Estou certa de que te deu uma insolação, ou que contraístes uma horrível doença, que faz que pouco a pouco vão diminuindo tuas faculdades mentais.

Antes que Deborah pudesse recusar esta sugestão, se ouviram umas pancadas apressadas na porta; a seguir, apareceu miss Laxton, totalmente pálida.

-Deus meu, criatura, que aconteceu? -exclamou lady Bellingham.

Miss Laxton deu um passo vacilante para Deborah.

-Sir James! -sussurrou debilmente, e desmaiou.

-Oh, céus, se não é por uma coisa é por outra! -gemeu sua senhoria, buscando desesperadamente seus sais-. Desata-lhe os laços! Onde estarão os sais? Por que não aparecem no momento preciso?

Faz soar a campainha! Oh não; o amoníaco está nesse armário! Vou ficar louca! Deverias dar-lhe a cheirar umas plumas queimadas; mas só tenho umas de avestruz em meu melhor chapéu, e realmente... No entanto, pegue-as se quiser! Dou-as de boa vontade!

Deborah, ajoelhada junto ao corpo inerte de miss Laxton, levantou a cabeça para dizer:

-Querida tia, não é necessário! Tenha a amabilidade de trazer um pouco de água, e asseguro que cedo voltará a si! Pobrezinha, pergunto-me o que terá acontecido. Disse que sir James estava aqui?

-Disse sir James, mas não pude ouvir nada mais. Caso seja o culpado do ocorrido, descerei imediatamente e lhe direi o que penso dele! Pode ser que isto seja uma casa de jogo, mas está muito equivocado se acha que pode vir atemorizar a uma criatura indefesa, e lhe farei saber imediatamente.

Deborah tomou o copo de água que lhe tendeu sua tia e aspergiu o rosto de miss Laxton.

-Silêncio! Está voltando a si! Tranqüila, querida! Te encontras melhor agora?

Phoebe abriu os olhos e, por um instante, contemplou a miss Grantham com expressão aturdida.

Mas, ao recordar a causa de sua agitação, estremeceu, e apertou o braço de Deborah com força.

-Oh, não o deixem entrar!

-Não entrará ninguém, se não o desejas, querida! -respondeu miss Grantham com serenidade-.

Não te inquietes! Aqui estás a salvo! Venha, quero que bebas isto, e verás como te recuperas!

Miss Laxton bebeu o remédio obedientemente, e irrompeu em pranto. Lady Bellingham exclamou:

-Pelo amor do céu, criatura, não comeces a chorar agora! Caso sir James esteja nesta casa, o despedirei com facilidade! Sua mãe era uma mulher muito vulgar, e sem nenhuma classe, pelo que não é de estranhar!

Miss Grantham ajudou Phoebe a levantar-se do chão, e a sentar-se num amplo cadeirão.

-Está aqui, Phoebe? -perguntou.

-Não! Oh não, assim espero! Partiu. Suponho que terá ido contar a meu pai. Estou perdida! Que posso fazer? Onde posso ir? Não me atrevo a permanecer aqui nem um minuto mais!

Lady Bellingham suspirou, movendo a cabeça.

-Asseguro-te que não entendo nem uma palavra do que diz! Suponho que na realidade se estará tornando louca também, e não me estranha nem um pouco.

Phoebe pegou debilmente a mão de miss Grantham, e murmurou que não estava louca em absoluto.

-Foi por minha culpa. Cometi uma imprudência! Nunca pensei que... Fui ao salão que dá à rua, para aguardar a chegada de Adrian, e não pensei que ninguém pudesse me ver. Subi as persianas para ver melhor, e ele estava ali!

-Quem estava ali? Onde? -perguntou-lhe lady Bellingham.

-Sir James, na praça, caminhado em direção a Saint James Street!

-Suponho que se dirigiria a White's -observou sua senhoria.

-Mas viu-me! Estou convencida, e reconheceu-me! Não me dei conta a princípio, mas quando olhei em sua direção tinha ficado imóvel, me contemplando com assombro! Quase morri de susto!

Saí correndo, e vim a buscar-te, Deb! Oh, que posso fazer? Não voltarei para casa, me nego, mas sei que papai virá me buscar, e também o fará mamãe, provavelmente!

-Caso Augusta Laxton se atreva a vir a esta casa, verá o que é bom! -manifestou lady Bellingham com uma agressividade inusitada-. Não desejo criticar sua mãe, Phoebe, mas é uma criatura odiosa e interesseira, além de desonesta! Costumava jogar o Faraó em minhas reuniões, quando vivíamos na outra casa, e a surpreendi três vezes roubando! Caso tente entrar à força, não respondo por meus atos!

No entanto, miss Laxton não encontrou nenhum consolo em suas palavras. Estava convencida de que a separariam de seus protetores à força, e a obrigariam a se casar com sir James Filey. Apesar de Deborah se esforçasse por todos os meios em fazê-la compreender que qualquer tentativa da obrigar seria vã, não conseguiu tranqüilizá-la; parecia resignar-se ante o inevitável. Miss Grantham sentiu um grande alívio quando se anunciou a chegada de lord Mablethorpe.

-Peça-lhe que suba! -ordenou-. Incomoda-lhe que entre em seu gabinete, tia?

-Oh não, por mim pode entrar! -exclamou sua senhoria, abandonando, exausta, toda tentativa de tranqüilizar a Phoebe-. Que venha quem seja contanto que faça raciocinar a esta estúpida criatura!

Deb, reconheço que tens uma virtude: pode ser que encerres pessoas no porão, ou que lhes atires milhares de libras à cara como se fosse algo desprezível, mas pelo menos não choras! Não há nada que me seja mais incômodo, quando as coisas já não têm remédio! Se é você, Mablethorpe, entre agora mesmo, e faça algo!

Lord Mablethorpe entrou com certa timidez e algo alarmado. Começou a pedir desculpas por ter entrado no gabinete de lady Bellingham, mas interrompeu-se ao ver a miss Laxton, e precipitou-se para ela, exclamando:

-Deus meu, que aconteceu?

Miss Laxton, que jazia com os olhos fechados, aparentemente à beira de outro desmaio, encontrou forças suficientes para se levantar, e se jogar nos braços de sua senhoria. Então, miss Grantham renunciou a toda tentativa de consolar a sua desgraçada protegida, e se afastou para observar os resultados que obtinha lord Mablethorpe.

-O pouco que podia ter feito essa néscia é advertir a sua filha que a pior coisa que pode fazer é chorar diante de um homem! -sussurrou lady Bellingham irritada-. Não o suportam, e não me estranha em absoluto!

Mas, aparentemente, lord Mablethorpe não tinha nenhum inconveniente em servir de consolador.

Miss Grantham não pôde deixar de admirar sua habilidade para fazer frente a uma situação ante a qual se encontrava totalmente desarmada. Num tempo surpreendentemente curto, miss Laxton deixou de chorar, e inclusive pôde contemplar a sua senhoria com um sorriso trêmulo, desculpando-se por ter se comportado como uma criança. Agora que ele estava ali, disse, se encontrava a salvo.

Então, lord Mablethorpe pediu que lhe explicasse a origem de seu infortúnio. Quando, primeiro Phoebe (de forma ininteligível) e, depois Deborah, lhe relataram o sucedido, apareceu em seu rosto uma expressão decidida, e manifestou, com uma firmeza que Deborah nunca teria esperado:

-Neste caso, está decidido!

Miss Laxton exalou um profundo suspiro, e pegou-lhe a mão.

-Estava certa de que saberias o que fazer!

-Bom, esperemos que assim seja -observou lady Bellingham com certa aspereza-. Se tivesse sabido que a única coisa que desejavas era que alguém dissesse «está decidido», eu mesma a teria dito, já que não custa nenhum trabalho e não significa absolutamente nada!

-Tenho uma solução -respondeu sua senhoria recostando Phoebe no sofá e pondo-se de pé.

-Não me deixes sozinha! - suplicou ela.

Adrian dirigiu-lhe um sorriso cheio de ternura.

-Não me afastarei de teu lado nunca mais, querida.

-Não pode ficar aqui! -interveio lady Bellingham-. Ficaria muito satisfeita que fosses meu hóspede, é claro, mas agora que Kit está em casa, não temos espaço suficiente.

-Não penso permanecer aqui. Vou levar a Phoebe à casa de sua tia, em Gales. Deb, vou precisar tua ajuda!

Miss Grantham não pôde reprimir um sorriso ante este tom tão autoritário.

-Que demônios! Que propõem, insensato?

-Vou casar-me com Phoebe imediatamente, se sua tia der seu consentimento. A levarei a Gales, exporei o caso a sua tia, e...

-E e o que acontecerá se sua tia não der seu consentimento? Acatará a sua decisão, suponho

-perguntou lady Bellingham.

Adrian sorriu.

-Não, não o farei. Mas espero contar com sua aprovação para o casamento. No pior dos casos, levarei uma autorização especial, e nos casaremos. Mas não gostaria de ter que recorrer a um casamento clandestino, e preferiria que se celebrasse com a maior correção possível para que Phoebe não se visse envolvida em nenhum escândalo.

-Muito bem! -observou lady Bellingham com aprovação-. Nunca imaginei que fosse tão sensato, Adrian! Tudo sairá à perfeição. Poderás inserir uma nota no Morning Pós anunciando o casamento de Phoebe na casa de sua tia e, ainda que possa parecer um tanto estranho, será preferível a que se saiba que foi um horrível assunto clandestino. Onde vive tua tia, querida?

Miss Laxton, que tinha achado estas decisões arbitrárias sobre seu futuro muito estimulantes, se levantou, respondendo que sua tia era viúva, e vivia em Welshpool, em Montgomery. Acrescentou que estava convencida de que a dama daria sua aprovação ao seu casamento com Adrian.

-Teremos que sair pela estrada de Holyhead -observou sua senhoria-. Direi a minha mãe que vou passar alguns dias no campo, caçando com uns amigos. Costumo fazê-lo; por isso não levantará suspeitas! Deb, sei que não tenho nenhum direito de pedir-lhe, mas suplico que vá com Phoebe na caleça que penso em alugar! É claro, eu as acompanharei a cavalo.

-Como? Tenho que ir com vocês para manter as aparências? -perguntou Deborah com um sorriso-. E que será de mim no final da viagem?

-Te acompanharei de novo a Londres - prometeu sua senhoria-. Planejei tudo. Uma vez casados, deixarei Phoebe sob a proteção de sua tia, e regressarei a Londres para informar a seus pais e a minha mãe do acontecimento. Quando o tiver feito, e estejam dispostos a receber a Phoebe com toda a atenção e o respeito que merece minha mulher, a trarei a Londres de novo. Depois, suponho que nos mudemos para Mablethorpe.

-Já vejo que decidiste até o último detalhe -manifestou Deborah com admiração-. Mas acho que minha presença na sua viagem de casamento é totalmente desnecessária.

No entanto, miss Laxton pegou-a pela mão naquele instante, suplicando que não a abandonasse; e sua senhoria observou com certa severidade, que sua presença era necessária para que não desse a impressão de que se tratava de uma fuga. Lady Bellingham, considerando provavelmente que a e excitação da aventura poderia fazer sua sobrinha esquecer da hipoteca, animou Deborah para que os acompanhasse. Em conseqüência, miss Grantham acedeu, prometendo que ambas estariam prontas para empreender a viagem em uma hora. A seguir, Mablethorpe abandonou a casa para fazer alguns preparativos. Anunciou-lhes que uma caleça estaria aguardando em frente à porta em uma hora. As duas damas deviam partir nela, e ele se comprometia em alcançá-las a uma poucas milhas de Londres.

Com a confusão dos preparativos, miss Grantham só teve tempo de escrever ao senhor de Ravenscar uma sucinta nota lhe comunicando que tinha recebido sua amável mensagem, e que lhe agradeceria a oportunidade de se encontrar com ele ao voltar do campo, para examinar a situação com maior calma. Acrescentou que esperava estar de volta a Londres em poucos dias, e deu a carta a Silas, pedindo que a entregasse pessoalmente sem perda de tempo.

Miss Laxton passou uma hora angustiosa antes da partida, mas um carro de posta, puxado por quatro cavalos, fez seu aparecimento em frente à porta antes que a chegada de seus enfurecidos pais pudesse frustrar os planos de lord Mablethorpe. Lady Bellingham despediu-se das viajantes, assegurando-lhes que não encontraria nenhuma dificuldade em despistar a Augusta Laxton, ou a qualquer um que se apresentasse; as duas damas subiram-se à caleça; os pontilhões fizeram chasquear os chicotes; a carruagem arrancou bruscamente, precipitando-se pela rua de pedras; e miss Laxton pôde lançar por fim um suspiro de alívio.


Capítulo XV

Lady Bellingham não se viu obrigada a suportar uma visita de lady Laxton, mas, pouco tempo depois que tinha partido o carro de postas de Saint James's Square, lhe entregaram o cartão de visita de lord Laxton.

Lady Bellingham recebeu-o no salão amarelo, e foi bastante perspicaz para se dar conta de que se encontrava ali muito a contragosto. Na realidade, sua senhoria achava que sir James Filey estava equivocado ao supor que tinha visto Phoebe numa das janelas da casa de lady Bellingham, e lhe incomodava muitíssimo que o tivesse enviado a fazer averiguações. Não lhe cabia a menor dúvida de que sua filha não tinha nenhuma relação com lady Bellingham e, em conseqüência, não se surpreendeu em absoluto quando esta reagiu ante suas cautelosas perguntas com um inocente olhar de confusão, pensando que era muito próprio de Augusta mandá-lo para seguir uma pista falsa para o punha em ridículo. Lady Bellingham comentou que, segundo tinha podido comprovar de até aquele momento, sir James tinha mostrado uma predileção desmesurada pela bebida. Supôs que tivesse visto a uma amiga de infância de Deborah, miss Smith quem, efetivamente, tinha sido sua convidada, como bem poderia comprovar sua senhoria, se tivesse se incomodado de interrogar os criados. Estas palavras foram pronunciadas com um tom de sarcasmo que colocou sua senhoria num aperto. Respondeu que não tinha nenhum desejo de submeter os criados a um interrogatório, e que estava plenamente convencido de que tudo tinha sido um mal-entendido. Então, lady Bellingham divertiu-se fazendo-lhe grande número de perguntas indiscretas a respeito do desaparecimento de sua filha, e por isso sentiu um grande alívio ao se retirar tão logo fosse possível. Não obstante, antes de permitir-lhe partir, ela se interessou por sua mulher, e lhe perguntou se continuava sendo tão afortunada no jogo; e, como ele conhecia perfeitamente os motivos pelos quais lady Laxton deixara de receber convites para as reuniões de lady Bellingham, abandonou a casa num estado de considerável perturbação. Augusta, decidiu, podia fazer o que lhe desse vontade, mas ele, por sua vez, se negava a que lhe encomendassem de novo semelhantes tarefas. Era da opinião que sua filha se tinha refugiado em Gales na casa de sua tia; situação que lhe era muito incômoda, já que pensou que se veria obrigado a ir em busca de sua filha. Como isto supunha um encontro com sua temida irmã, e estaria exposto aos ataques de sua língua viperina, o panorama não lhe era nada alentador.

A seguinte visita que recebeu lady Bellingham foi a de Lucius Kennet, que se apresentou ao meio dia para vê-la. Tinha ido avisar-lhe de que tinha uma reunião essa noite, e, portanto, não poderia estar na mesa de Faraó , como costumava. A princípio, a viagem a Gales de Deborah, em companhia de Phoebe e de lord Mablethorpe, resultou-lhe divertido, mas depois causou-lhe uma irritação inusitada num homem de seu jovial temperamento.

-Assim que planejou casar o jovenzinho com a filha dos Laxton? -observou-. Opino que, quando chegar isto a ouvidos de Ravenscar, se terão desbaratado todos nossos planos.

-Oh, tinha me esquecido de dizer-lhe! -exclamou sua senhoria-. Ravenscar devolveu a escritura de hipoteca e as letras! Não supus que pudesse ser tão complacente!

Kennet pareceu contrariado por esta notícia.

-Então o que temos? Tinha o pressentimento de que nosso amigo estava mais enredado por Deborah do que esta poderia suspeitar.

Lady Bellingham suspirou.

-Reconheço que eu pensava o mesmo, e me atreveria a afirmar que assim é. Mas não serve de nada falar com Deb, Lucius! Tomou-lhe uma antipatia tal que nada a faria mudar de opinião!

-Creio, madame, que está apaixonada desse tipo.

-Oh, não, nada de isso! -respondeu sua senhoria-. Não lhe pode nem ver. Isso posso garantir! E se estás pensando que existe a possibilidade de que peça sua mão, o considero demasiadamente orgulhoso para dar esse passo. Se tem algo pelo estilo na cabeça, certamente que suas intenções não terão nada que ver com o casamento!

Kennet foi do mesmo parecer; durante algum tempo, ficou sentado, atirando os dados indolentemente sobre uma mesa próxima. Depois de um momento de reflexão, contemplou a sua senhoria, e perguntou bruscamente:

-Como está de dinheiro, madame?

Ela estremeceu.

-Mais vale que não me perguntes! É claro, ter recuperado a hipoteca foi um alívio, mas quando penso nas vinte mil libras que ofereceu a Deb, te asseguro que me dá vontade de me pôr a chorar!

-Estava pensando o mesmo -comentou ele-. É a galinha dos ovos de ouro, madame, e seria uma verdadeira pena que escapasse das nossas mãos sem ter obtido nenhum benefício.

-Não há nenhuma necessidade de que empregue essa linguagem tão vulgar, Lucius -manifestou sua senhoria, com dignidade-. Mas, no geral, estou de acordo contigo. No entanto, Deb é tão orgulhosa que não aceitará nem um penny de ninguém, por isso podes deixar de te ilusões a respeito das vinte mil libras.

Ele sorriu com certa malícia.

-Talvez sua senhoria deixou de pensar nelas?

-Ninguém -respondeu sua senhoria com gravidade -poderia afastá-las de sua mente num abrir e fechar de olhos, mas asseguro que só se me passa pela cabeça uma ou duas vezes ao dia.

-Se conseguisse apoderar-me do dinheiro, me lembraria de uma velha amiga -observou, com o olhar fixo nos dados.

-Estou certa de que o farias -respondeu sua senhoria, lisonjeada por esta amável observação-. E se eu estivesse de posse dessa soma, também não te esqueceria. Mas Deb está decidida a não aceitar nem um penny do dinheiro de Ravenscar, pelo que não temos mais remédio que pensar em outra coisa.

-Por minha fé, não me esperava isto dela! -exclamou o senhor Kennet-. Parece que vou tomar conta desse assunto.

-Não acho que possas fazer nada -objetou lady Bellingham-. E quando Ravenscar souber que Mablethorpe está unido a Phoebe Laxton para sempre, já não terá nenhum motivo para que nos dê o dinheiro.

-Bom -disse Kennet lentamente, levantando-se e guardando os dados no bolso-. Apesar de tudo, Mablethorpe não é nossa única arma. Que passe um feliz dia, madame.

Kennet retirou-se. Sua senhoria ficou algo perplexa por suas misteriosas observações, ainda que, na realidade, não a impressionaram demasiado.

Enquanto isso, o senhor de Ravenscar tinha recebido a concisa nota de miss Grantham, e leu-a com um sorriso. Era evidente que a tinha pego de surpresa, tal como se tinha proposto; e, assim mesmo, a colocara num aperto. Suspeitou que tinha anunciado sua partida simplesmente para ganhar tempo e poder elaborar uma estratégia. Perguntou-se qual teria sido sua reação e, tendo formado uma idéia bastante exata do caráter da dama, pensou que não o surpreenderia em absoluto que arrojasse as letras em seu rosto sem perda de tempo.

Dobrou a carta, e guardou-a. Os acontecimentos da semana passada tinham-lhe impedido ocupar-se com a devida atenção de sua meia-irmã, mas não lhe tinha passado despercebido sua atitude angelical, da qual tinha aprendido a desconfiar por experiência; portanto, pensou que seria conveniente dedicar-lhe um pouco de seu tempo. Com este propósito, mandou uma nota, convidando-a a dar um passeio com ele pelo parque.

Ao receber esta mensagem, miss Ravenscar desceu à biblioteca, vestida para a ocasião, e olhou-o com verdadeiro receio.

-Por que me vais levar para passear? -perguntou-lhe.

-E por que não o poderia fazer? -respondeu ele, levantando o olhar da carta que estava lendo.

-Não sei -observou Arabella com cautela-. Sempre que a tia Selina convida-me para passear nesse velho birlocho, é porque tem intenção de me fazer um sermão.

-Belle, quando fiz eu algo semelhante? -perguntou ele entre risos.

-Quem me assegura que não estás disposto a começar de uma hora para outra? -respondeu ela, sorrindo.

-Asseguro-te que hoje não. Vais vir comigo, ou não?

-Enfim, tinha intenção de passear hoje pelo parque com minha criada, mas se desejas que te acompanhe, o farei -acedeu miss Ravenscar cortesmente.

Ele a contemplou com um olhar zombeteiro.

-Um encontro, Belle?

Miss Ravenscar exclamou alegremente:

-Oh, Deus meu, não!

-Mentirosa -observou Ravenscar sem dar mostras de enfado.

Esta observação pareceu agradar sua irmã, que soltou uma risada maliciosa.

Ravenscar tinha ordenado que conduzissem seu faetón, puxado por dois esplendidos cavalos baios, até a porta. Sua irmã ficou encantada ao saber que ia passear neste veículo esportivo e, de um pulo subiu nele, suplicando ao senhor de Ravenscar que se apressasse em sair já que podia ocorrer a casualidade de sua mãe olhar pela janela, e dizer certamente que era demasiado arriscado, e não lhe dar permissão para partir, por medo que tivesse um acidente. Ravenscar permaneceu insensível ante esta desvalorização de sua qualidade como condutor, e se dirigiram para o parque. Logo ao chegar, miss Ravenscar lhe pediu que lhe deixasse levar as rédeas. Como ele mesmo a tinha ensinado a conduzir, seu irmão não fez nenhuma objeção, e as entregou. Considerando que tinha chegado o momento propício, lhe perguntou se tinha entregue seu coração ao senhor Grantham, do XIV de Infantaria. Arabella, bastante surpreendida, exclamou:

-Kit Grantham? Deus meu, Max, não! Decorreu muito tempo desde então!

-Sim, certamente -assentiu ele-. Pelo menos dez dias. Conheci o jovem outra noite. Alegro-me de que não penses em casar com ele. Não te convém em absoluto.

-Não. É demasiado jovem para mim -observou Arabella-. Acho que prefiro os homens mais velhos aos jovens. Sem que sejam excessivamente mais velhos, é claro.

O senhor de Ravenscar passou em revista rapidamente algum homem, entre os trinta e os quarenta, que pudesse ter alguma relação com Arabella, mas não encontrou nenhum com estas características. Portanto, aguardou a que lhe desse outra pista.

-Gosto dos homens que têm algo do mundo -continuou Arabella reflexivamente-. São mais interessantes, Max; já sabes ao que me refiro.

O senhor de Ravenscar pensou com tristeza que sabia perfeitamente ao que se referia.

-Certamente, mas esse tipo de homens não se converte em bons maridos para mulheres muito jovens -respondeu ele.

Arabella dirigiu-lhe um olhar cheia de ingenuidade.

-Por que não, Max?

-Porque envelhecem muito depressa -explicou-lhe-. Imagina! Antes que te desses conta, encontrarias o teu marido padecendo de gota, e que, em vez de ter vontade de ir a festas, quereria permanecer em casa, sentado junto à lareira.

Esta observação pareceu causar uma funda impressão em miss Ravenscar.

-Acontece isso com todos? -perguntou, alarmada.

-Com todos -respondeu categoricamente seu irmão.

-Oh! -exclamou miss Ravenscar, e continuou conduzindo em silêncio, refletindo evidentemente sobre esta afirmação. Atraiu sua atenção um birlocho que tinha diante deles, puxado por dois cavalos de cor castanho. E murmurou:

-A tia Selina! Passamos rapidamente, como se não a tivéssemos visto?

-Não, é melhor que não o façamos -respondeu ele-. Adiante-se e pára junto às árvores.

Afrouxou uma das rédeas, tal como lhe tinha ensinado seu irmão, e passou o birlocho com grande habilidade, provocando a admiração de um cavalheiro que conduzia um faetón em sentido contrário.

-Fiz bem, não? -perguntou, com infantil entusiasmo ante sua destreza.

-Muito bem.

Deteve-se junto a umas árvores, e esperou que o birlocho parasse a seu lado. Lady Mablethorpe, levando um chapéu cor de lavanda e plumas espetadas, oferecia um aspecto impressionante.

Assomando à janela, exclamou:

-Querida, é muito perigoso que conduzas esse carro! Não sei como permites, Max!

-Não corre nenhum perigo -respondeu Ravenscar, despreocupadamente.

-Suponho que o mesmo pensavas de Adrian, quando o levaste à corrida! -observou sua senhoria com aspereza.

De repente, um sorriso radiante brilhou no rosto de Ravenscar.

-Pois sim, senhora, foi isso mesmo que pensei!

-Considero odioso de tua parte! Poderia tê-lo matado! Conheço exatamente esse tipo de corridas!

Daqui a pouco quererá participar de uma!

-Não me estranharia nada. Não pode tratá-lo como se fosse um menino toda a vida.

Ela suspirou.

-Não, mas... Enfim, não tem importância! Devo comunicar-te, Max, que tenho esperanças de que certo assunto esteja em franco declive.

-Não me diga! Alegro-me de que assim seja, mas o que a faz pensar?

-Foi caçar na casa de Tom Waring, em Berkshire. Ademais, estava de muito bom humor; estava evidente que se alegrava de partir. Podes imaginar o alívio que sinto!

-Não comentou nada ontem, quando esteve comigo -observou Ravenscar, com certa surpresa.

-Decidiu-o esta manhã. Entendi que se encontrou com Tom em White's, ou em algum lugar pelo estilo, e este lhe convidou.

-Não tinha nem idéia de que Tom estivesse em Londres. Na realidade, pensava que ia permanecer em Berkshire até o mês que vem.

-Suponho que terá vindo para solucionar algum assunto importante. De toda forma, isso não é de nossa incumbência. O importante é que Adrian tenha concordado de sair da cidade durante uns quantos dias. Considero-o um indício francamente alentador!

-Espero que assim seja -respondeu Ravenscar-. Arabella, não devemos reter por mais tempo à tia Selina.

-Não. Certamente! -exclamou Arabella no mesmo instante.

-Quer dizer que não desejas ter parados aos cavalos -manifestou lady Mablethorpe secamente-.

Prossegue no seu caminho, mas te suplico que tenhas cuidado com a menina, Max!

-Como se nunca tivesse levado as rédeas antes! -exclamou Arabella enquanto arrancavam-. Max, referia-se ao compromisso de Adrian com miss Grantham?

-Que eu saiba, não existe tal compromisso.

-Oh, Max, não sejas assim! Contou-mo Adrian em pessoa! Continua minha tia empenhada em não dar sua aprovação?

-Certamente.

-Por causa de seu estranho comportamento em Vauxhall?

-Por isso, e por outras razões.

-Vou confessar-te uma coisa -disse Arabella determinadamente-. Sinto simpatia por ela.

Max voltou-se para olhá-la.

-Ah, sim? Não teria imaginado que tinha dado tempo para você formar essa opinião dela durante os escassos minutos que esteve em sua companhia.

-Na realidade -confessou-lhe miss Ravenscar- estive com ela em outra ocasião. Não te zangues!

-Não estou zangado. Onde te encontraste com ela?

Dirigiu-lhe um olhar entre malicioso e suplicante.

-Queria formar minha própria opinião sobre ela. E fui visitá-la em sua casa.

-Que diabo! -exclamou ele-. E foi agradável?

-Sim, já que não estava nem um pouco vulgar em absoluto! E, tal como te comentei em Vauxhall, tem uns olhos tão alegres!

-Sim, às vezes são -admitiu o senhor de Ravenscar-. Posso perguntar se tens costume de visitá-la?

-Não, porque disse que não seria correto enquanto você e minha tia tivessem essa opinião tão nefasta dela.

-Oh, assim que disse isso?

-Sim, mas assegurei-lhe que a visitaria com freqüência quando estivesse casada com Adrian, e me respondeu que nesse caso não teria nenhum inconveniente.

-Não vai se casar com Adrian.

-Não compreendo por que não poderia fazê-lo. És muito formal, e um antiquado, e estás cheio de preconceitos!

-Sim. Suponho que essa seja sua opinião.

-E é importante que saibas neste preciso instante, Max, que eu não me casaria com Adrian por nada no mundo!

-Nunca pensei que te fosses casar com ele.

-Não? -exclamou-. Estava convencida de que era o que esperavas! Mamãe e a tia Selina o desejam.

-Provavelmente. Se aceitas um conselho, espera um ou dois anos antes de casar.

Ela franziu o cenho.

-Mas ficarei na prateleira! Além disso, acho que gostaria de estar casada.

-Quando pensar durante um mês seguido que gostarias de contrair casamento com o mesmo homem, Belle, me avisa! -observou com um sorriso.

Ela moveu a cabeça.

-Isso de se apaixonar com tanta freqüência é um tanto incômodo, Max. Não obstante, acho que agora sou mais sensata do que antes, e me atreveria a afirmar que daqui a pouco sentarei a cabeça.

Max permaneceu em silêncio durante algum tempo mas, quando chegaram de novo à entrada do parque, pegou as rédeas.

-Já sabes, Belle -lhe advertiu-, que quando fores maior de idade herdarás uma fortuna considerável.

-Sim, sei-o. E penso tirar-lhe o máximo partido -respondeu miss Ravenscar.

-Certamente. Mas tenta não se casar com um homem que também queira desfrutar dela.

Arabella refletiu.

-Isso é horrível, Max.

-Desgraçadamente, assim é a vida.

-Estás insinuando que... que a única coisa que queriam os homens que me pediram em casamento era meu dinheiro?

-Temo que seja assim, Belle.

Miss Ravenscar engoliu saliva.

-Que idéia ruim -objetou timidamente.

-Seria se não houvesse alguns homens a quem tua fortuna lhes importa nem um pouco.

-Homens ricos?

-Não necessariamente.

-Oh! -exclamou Arabella, recobrando a esperança- Mas como saberei, Max?

-Na realidade, há várias formas de sabê-lo, mas posso-te dizer uma que nunca falha. Se encontrares um homem que tente te persuadir para que fujas com ele, podes estar segura de que vai atrás de teu dinheiro. Ao contrário, um homem honrado pediria permissão para visitá-la em Grosvenor Square.

-Mas, Max, todos te têm medo! -protestou Arabella.

-Asseguro-te que um dia encontrarás um homem a quem não inspirarei nenhum temor.

-Sim, mas... é tão respeitável, Max, não é nada apaixonante, nem romântico! Ademais, nem todos quiseram fugir comigo!

-Assim espero! Escuta bem o que te vou dizer, Belle! Isto não é um interrogatório e não tenho intenção de espionar-te, mas suspeito que conheces mais homens que supomos sua mãe e eu.

Antes de cometer uma loucura por um deles, pense por um momento se não terias nenhuma objeção para apresentá-lo a mim, ou a Adrian.

-Se não o considerasse conveniente, seria porque me equivoquei de homem?

-Efetivamente.

-Bem, seguirei teus conselhos - prometeu Arabella com um sorriso-. Será um jogo muito divertido!

Seu irmão conduziu-a a casa, pressentindo que a manhã não tinha sido do todo inútil.

Ceiou em Brook's essa noite, e depois jogou o Faraó na mesa de cinqüenta guinéus. Justo quando se dispunha a se retirar, pouco depois da meia-noite, viu que Ormskirk entrava na sala de jogo, e se acercava a uma das mesas para observar uma partida de dados. Este alçou o olhar no momento em que Ravenscar se levantou, e atravessou a sala para se reunir a ele.

-Achava que suas visitas a Brook's eram tão pouco freqüentes como as minhas a White's -observou Ravenscar.

-Assim é -disse Ormskirk lentamente-. Tenho a suspeita de que você foi a White's a outra noite com o único fim de se encontrar comigo.

Ravenscar arqueou as sobrancelhas.

-Eu -disse Ormskirk, tirando uma poeira de rapé da manga- vim a Brook's com a esperança de achá-lo aqui, meu querido Ravenscar.

-Devo tomá-lo como um elogio?

-Bom, confesso-lhe que minha intenção não era elogiá-lo precisamente -replicou Ormskirk, esboçando com seus finos lábios um desagradável sorriso.

Ravenscar olhou-lhe, franzindo o cenho.

-Como devo interpretar suas palavras, milord?

-Interprete-as como quiser. Sinto deveras não poder lhe felicitá-lo pelo uso que fez de certas letras que lhe vendi. Reconheço que esperava outra coisa de você, meu querido Ravenscar.

-Poderia dizer-me como você tem conhecimento do uso que fiz delas?

Sua senhoria encolheu os ombros.

-Intuição, mera intuição -respondeu com macieza.

-Minha mente deve ser muito obtusa, mas não consigo compreender suas insinuações. Se importaria que prosseguíssemos a conversa na sala contigua?

-Como não -contestou Ormskirk, fazendo uma leve reverência-. Compreendo perfeitamente que, por delicadeza, não esteja disposto a falar da mulher de seu primo em público.

Ravenscar dirigiu-se à porta de um pequeno gabinete, e abriu-a.

-Certamente, resistiria a fazer algo semelhante -respondeu-. No entanto, meu primo não está casado, nem o estará provavelmente durante algum tempo.

-Acha que não? -sorriu Ormskirk.

Ravenscar fechou a porta.

-Não me cabe a menor dúvida.

Ormskirk sacou sua caixa de rapé, e aspirou uma pitada.

-Meu querido Ravenscar, temo que foi vítima de um engano -observou.

Ravenscar ficou imóvel junto à porta, com uma expressão de perplexidade.

-De que engano?

Ormskirk fechou sua caixa de rapé.

-Deduzo que ainda não falou com Stillingfleet, meu querido amigo.

-Não sabia que estivesse em Londres.

-Chegou esta manhã. Tem estado em Hertford.

-E bem?

-Regressou a Londres pela estrada norte -observou Ormskirk, pensativamente.

-Como é de supor. Mas não compreendo que têm que ver seus atos comigo.

-No entanto, já o compreenderá, meu querido Ravenscar, já o compreenderá! Stillingfieet mudou de cavalos na pousada do Homem Verde em Barnar. Quando se dispunha a sair do pátio, teve tempo para contemplar um carro de postas puxado por quatro cavalos, que avançava pela rua nesse preciso instante. Ah, em direção ao norte! Compreende-me agora?

O senhor de Ravenscar estava um pouco pálido e seu semblante tinha adquirido um aspecto severo.

-Continue! -ordenou-lhe com aspereza.

-Chamou-lhe a atenção a aparência de uma das ocupantes do carro. Não conhece Deb Grantham, mas não resta dúvida que se tratava dela, graças à admirável descrição que fez dos encantos da dama! Ia acompanhada de outra jovem... suponho que se trataria de sua crida... e tinha um número considerável de malas atadas à parte posterior da carruagem.

Ravenscar dirigiu-lhe um sorriso altivo.

-É muito provável. Miss Grantham foi a passar uns dias no campo. Estava inteirado de seus planos.

-E também sabia que seu primo tinha a intenção de acompanhá-la? -inquiriu Ormskirk.

-Não!

-Não, eu achava que não -observou Ormskirk com uma maciez exasperante.

-Está falando sério? -perguntou-lhe Ravenscar-. Quer fazer-me acreditar que Mablethorpe estava com miss Grantham?

-Isso -respondeu sua senhoria- é o que me contou Stillingfleet. E tenho entendido que conhece muito bem a seu primo. Comunicou-me que Mablethorpe cavalgava junto à carruagem. Ah, já mencionei que se dirigiam para o norte, não é assim?

-Oh, sim! -exclamou Ravenscar-. Insistiu sobre isso desde o princípio. Pode ser que não seja muito sagaz, mas deduzo que deseja me fazer acreditar que meu primo fugiu com miss Grantham, para se casar em segredo.

-Considero uma dedução muito acertada -murmurou sua senhoria.

-É uma maldita calunia! -exclamou o senhor de Ravenscar.

Sua senhoria arqueou as sobrancelhas com certa arrogância.

-Você deve saber melhor do que eu, cavalheiro.

-É claro! Conheço a Mablethorpe desde que era um menino; e nada me causaria maior assombro que saber que estava implicado em algo tão vulgar como um casamento clandestino. Não é seu estilo, milord, acredite! E permita-me que lhe diga algo mais: acho que miss Grantham tem tão poucas vontade de casar-se com meu primo como de se converter na amante de sua senhoria!

-Qualquer um pensaria que você está em termos de grande familiaridade com a dama -manifestou Ormskirk-. Ou talvez conseguiu enganá-lo também?

-Esforçou-se por todos os meios para conseguir, mas lhe asseguro que não conseguiu seu propósito! -respondeu Ravenscar com um riso sarcástico-. Acho que conheço miss Grantham, apesar do enganado que estive a princípio! Se Stillingfleet viu hoje meu primo junto a seu carro, imagino que a estaria escoltando a casa de seus amigos no campo. Isto, certamente, estaria em concordância com a imagem que tenho dele.

Lord Ormskirk fez um elegante gesto de aceitação.

-Se esta explicação lhe é satisfatória, meu querido Ravenscar, quem sou eu para duvidar dela?

Espero que não tenha uma brusca decepção! Não pense que não admiro a confiança que tem na honradez de seu primo: Não há nada mais longe da verdade! No que me diz respeito, temo que seja um cínico. Sem dúvida o tempo decidirá quem tinha razão.


Capítulo XVI

O senhor de Ravenscar voltou para sua casa um tanto confuso. O relato de lord Ormskirk tinha-lhe inquietado quase tanto como enfurecido, e, ainda que considerasse Mablethorpe incapaz de manchar sua boa reputação, se casando com miss Grantham na clandestinidade, não pôde deixar de recordar a surpresa que lhe tinha causado essa mesma manhã à notícia de que tinha decidido repentinamente passar uns dias no campo, caçando. Ravenscar sabia perfeitamente que seu jovem primo, longe de dar sinais de se recuperar de sua paixão por miss Grantham, tinha freqüentado Saint James's Square com assiduidade na semana passada. Seu comportamento era o de um homem profundamente apaixonado, e Ravenscar estava convencido de que nada era mais contrária às intenções de seu primo, a última vez que o tinha visto, que o se afastar da cidade. No entanto, cabia a possibilidade de que os planos de sua senhoria tivessem sofrido uma modificação pela decisão de miss Grantham de passar uns dias no campo; era verossímil que a tivesse acompanhado a seu destino, antes de partir para Berkshire. Ravenscar tentou por todos os meios se convencer de que esta explicação era satisfatória, para assim pôr fim a suas suspeitas, mas não o conseguiu de todo. Era impossível afastar de sua mente a inquietante idéia de que se tinha desprendido do único meio de dissuasão que tinha sobre miss Grantham. Acreditava ter formado uma opinião acertada do caráter de miss Grantham, mas não pôde deixar de pensar que, apesar de tudo, podia estar equivocado. Custou-lhe tanto aceitar esta possibilidade, que acelerou o passo, empunhando com força sua bengala, com uma expressão ainda mais severa do que o normal.

Sempre lhe tinha sido muito desagradável admitir que tinha cometido um engano; nesta ocasião tinha suas razões para desejar ainda mais fervorosamente não se ver obrigado a reconhecer que sua opinião tinha sido errônea.

Chegou a sua casa pouco depois da uma da madrugada, e recebeu uma surpresa pouco grata ao ser recebido por sua madrasta, envolvida num penteador, e evidentemente presa de uma grande agitação. Não precisou perguntar a razão que a tinha mantido acordada a essas horas, pois não era a primeira vez que acontecia, e inquiriu, antes de que ela pudesse falar.

-E bem, o que fez desta vez?

-Oh, meu querido Max! -gemeu a senhora de Ravenscar-. Devia suspeitar que estava tramando algo quando disse que lhe doía a cabeça!

-É claro! -replicou Ravenscar-. Não está em casa?

-Sua cama está intacta! -anunciou tragicamente-. Entrei em seu quarto faz duas horas, simplesmente para ver se tudo estava bem, já que, como sabe, tenho insônia nesta cidade tão ruidosa... e não me estou queixando, mas assim é! Não estava em seu quarto, e não pude tirar nem uma palavra dessa vil criada que, e disto estou certa, a está encobrindo! A única coisa que faz é chorar, e assegurar que não sabe de nada!

-Seria conveniente que a despedisses - aconselhou Ravenscar, sem compaixão.

-É muito cômodo desinteressar-se do problema, mas se soubesse a quantidade de criadas que tomei a meu serviço para que se ocupassem de Arabella, e a cada vez me inspiram menos confiança! Além disso, de que nos serve isto agora para nos tirar deste problema?

-De nada -respondeu ele-. E não encontraremos nenhuma solução a problemas desta espécie que se apresentem no futuro se não esqueceres tua hipocondria, Olivia, e acompanhares Belle às festas e aos bailes de máscara que tanto almeja. Onde foi esta noite?

-Como quer que o saiba? Não sei como és capaz de ficar aí, me falando dessa forma tão desconsiderada, quando sabe perfeitamente que qualquer coisa altera meus pobres nervos! Não tens sentimentos, e nunca imaginei que me fosses tratar assim, ainda que não me estranha em absoluto, pois saístes a teu pai! E te direi algo mais, Max: se sentisses a menor consideração por mim, ou por tua pobre irmã... e permite-me recordar-te que és seu tutor!... já terias casado faz anos, para proporcionar uma acompanhante que a levasse às festas sem ficar depois prostrada pela agitação durante dias inteiros.

-De todos os argumentos que ouvi em favor do casamento, esse é o que menos me atrai

-manifestou Ravenscar com franqueza-. É melhor que vá para cama, madame estou certo que seus nervos se verão afetados pelos acontecimentos desta noite.

-Durante mais de uma hora tive umas horríveis palpitações; onde se terá metido essa malvada criatura?

-Não tenho nem a mais leve suspeita, e não estou disposto a percorrer todo Londres a sua procura.

Não demorará muito em voltar.

-Se suas travessuras chegassem ao ouvido de alguém, arruinaria todas suas possibilidades de encontrar um bom partido! -lamentou-se a senhora de Ravenscar, dirigindo-se com passo vacilante para a escada.

-Tolices! -manifestou Ravenscar-. Uma rica herdeira sempre tem oportunidade de encontrar um bom marido!

A senhora de Ravenscar observou que desejava com toda sua alma que assim fosse, mas que gostaria que já estivesse casada para assim se retirar a Bath, e desfrutar de sua aprazível tranqüilidade. Subiu ao andar superior, apoiando-se lastimosamente no corrimão da escada, e, após tomar umas gotas de láudano e de empapar seu lenço em água de lavanda, adormeceu.

Miss Ravenscar teve uma grande surpresa quando, ao chamar suavemente à porta, foi recebida por seu irmão irritado, em lugar de sua fiel criado, como tinha esperado.

-Oh! -exclamou, deixando cair sua bolsa-. Que susto deste-me, Max!

-Quem -perguntou Ravenscar- é teu acompanhante?

-Partiu -respondeu Arabella precipitadamente, ao ver que estava a ponto de sair na varanda.

-É melhor! -exclamou Ravenscar-. És um suplício, Arabella! Onde esteve?

-No baile de máscaras de Ranelagh -respondeu Arabella com voz macia-. Tinha muita vontade de ir, e mamãe negou-se a levar-me, e tu disseste que não era nada distinto, assim o que querias que fizesse?

-Ficar em casa -disse Ravenscar com firmeza-. Se não tivers cuidado, Belle, te mandarei a Chamfreys com uma acompanhante terrivelmente severa, para que te vigie!

-Fugiria -respondeu Arabella, sem dar sinais de inquietação ante esta ameaça. Pegou-lhe o braço com doçura-. Não te zangues comigo, queridíssimo Max! Foi tuda uma aventura! E não tirei a máscara nem uma única vez, por isso ninguém o saberá.

-Quem te levou?

-Bom, acho que não te vou a dizer, porque, de toda maneira, não o conhecerás certamente, e se soubesses quem é, te serias desagradável com ele -respondeu Arabella-. Mas vou contar-te uma coisa, Max!

-Ainda por cima terei que ficar agradecido! De que se trata?

-Oh, somente que me lembrei do que me disseste hoje, e tens bastante razão! Pelo menos, estou quase convencida, mas suponho que terei ocasião de comprovar dentro de uns poucos dias.

Ravenscar contemplou-a com receio.

-Que estás tramando? Conta-me agora mesmo, Belle!

Um olhar malicioso apareceu nos olhos de Arabella.

-Não penso em contar! Colocarias tudo a perder! Suspeito que alguém está tentando me enganar, ainda que não esteja muito segura ainda. É muito divertido!

-Oh, Deus meu! -exclamou Ravenscar.

Ela lhe apertou o braço.

-Max, te suplico não ponhas essa cara tão enjoada! Prometo que não farei nada mal. E se for razoável, e não permitir que mamãe me importune, provavelmente te contarei tudo daqui a pouco.

-Imaginas que estou encantado de que escapes para um baile público com um aventureiro!

-observou seu irmão causticamente.

-Na realidade, você é o responsável, já que se negou a me levar -respondeu Arabella, fechando a discussão.

-Vá para cama, sua mal educada! -ordenou-lhe Ravenscar, sem poder resistir às artimanhas de sua irmã-. Oxalá não tivesse que me encarregar de você! Asseguro-te que quando casares, teu marido provavelmente te sacudirá!

Miss Ravenscar deteve-se na escada, voltando-se com uma expressão maliciosa.

-Oh, se isso sucedesse, voltaria correndo para meu querido, amável, antiquado e respeitável irmão! -prometeu-lhe, e ato seguido, desapareceu.

Pela manhã, ao encontrar-se com sua mãe, recebeu seus débeis reproches com docilidade, ainda que não desse mostras de sincero arrependimento. Seu irmão, fora advertir-lhe que se voltasse a escapar de casa a horas intempestivas a enviaria ao campo, não prestou mais atenção na escapada.

Arabella sentiu um grande alívio, já que tinha esperado que pesquisasse o assunto a fundo, e, portanto, experimentou certa surpresa ante seu silêncio. Pensou, enquanto observava-o com dissimulação por sobre da cafeteira, à hora do café da manhã, que parecia preocupado, e ficaria mais surpreendida ainda se tivesse conhecido a causa de seu aborrecimento.

Na realidade, o senhor de Ravenscar estava considerando a idéia de ir a Berkshire, para fazer uma visita rápida a seu amigo Waring. Duas vezes esteve a ponto de ordenar que preparassem a carriola, mas se absteve disso nas duas ocasiões.

-Maldita seja! -disse em voz alta-. Não tenho direito de espiar o garoto!

Decidiu-se por uma solução menos drástica, e apresentou-se em Saint James's Square essa mesma noite. Os salões não estavam muito concorridos, e se notava a ausência de miss Grantham. Tinha várias damas de avançada idade que guardavam uma semelhança notável com aves de rapina; e lady Bellingham, cuja noite tinha começado com a derrota de sir James Filey, estava com um humor beligerante. Como única resposta às perguntas de sir James Filey, tinha começado a mencionar certas verdades relativas à sua pessoa que sir James teria preferido manter ocultas, pelo que saiu da casa feito uma fúria; e sua senhoria, incentivada por esta vitória, foi capaz de enfrentar o senhor de Ravenscar sem nenhum temor. Este chegou uns minutos antes do jantar, e suplicou que lhe concedesse a honra de o acompanhar. Sua senhoria recebeu este convite com receio mas, quando Ravenscar ofereceu-lhe seu braço, aceitou, e desceu a ampla escada em sua companhia, esforçando-se em manter uma aparência serena. Ravenscar buscou-lhe uma cadeira no salão, trouxe-lhe uns pasteis de lagosta e um copo de ponche de champanhe, e sentou-se em frente a ela.

Lady Bellingham, armando-se de coragem, manifestou:

-Alegro-me de ter a ocasião de falar com você, senhor de Ravenscar. Não sei o que lhe terá escrito minha sobrinha a propósito dessas horríveis letras, mas eu, por minha parte, lhe estou muito agradecida por tê-las devolvido.

-Não pense mais nisso, madame, lhe rogo! Quanto tempo miss Grantham pensa permanecer fora de Londres?

-Não o sei com exatidão -respondeu sua senhoria vagamente-. Foi à casa de uns amigos, e nunca se sabe se a persuadirão para que fique mais tempo.

-Em que parte do país está?

-Oh, não sei... isto é, não muito longe! Não acho que conheça o lugar -respondeu sua senhoria de modo cortante-. Está pelo norte.

-Deveras? Certamente terá saudades.

-Sim, certamente! Não poderia desejar ter uma sobrinha melhor! É claro, isso não significa que eu desse meu consentimento para que o encerrasse no porão, e espero que se tenha desculpando por seu comportamento! Mas, no demais, é uma garota magnífica, asseguro-lhe!

-Temo que tenha sido o responsável do ocorrido. Ofendi gravemente miss Grantham.

Lady Bellingham contemplou-o com crescente estima.

-Asseguro-lhe que é muito generoso de sua parte! Verdadeiramente, sentiu-se muito ofendida quando quis lhe dar vinte mil libras, ainda que nunca chegarei a compreender... enfim, isto não vem agora ao caso!

-Imagino -observou, sorrindo- que a manutenção de um local desta categoria deve originar grandes gastos.

-Excessivos! -exclamou sua senhoria, com toda franqueza-. É incrível o que gasto só em velas!

-É rentável? -inquiriu com curiosidade.

-Isso é o pior do caso -lhe confessou sua senhoria-. Pensei que seria quando me mudei de Green Street. Mas nada nos saiu bem desde que chegamos a esta casa.

-Gosta da vida que leva?

-Em absoluto. Estou ficando demasiado velha, suponho, mas, que vamos fazer? Só podemos esperar um golpe de sorte para pôr fim a nossas preocupações. -De repente ocorreu-lhe uma idéia. Deixou o garfo e olhou pensativamente o grave rosto que tinha em frente a ela-. É claro, sei que Deb não aceitaria dinheiro de você. Mas devo informar-lhe de que estou longe da considerar uma esposa pouco apta para seu primo.

-Acho que não concordaríamos nesse aspecto, madame.

-Sim, mas asseguro-lhe que sou muito tolerante -observou lady Bellingham-. Nunca conseguirá dissuadir a Deb. Suponho que se casará com Mablethorpe simplesmente por despeito. -Fez uma pausa para observar o efeito que tinham produzido suas palavras, mas o semblante de Ravenscar só revelou seu atento interesse-. Não ache que não compreendo sua postura -continuou-. Estou certa de que tem muitas razões para desejar que não se celebre o enlace. Poderia ajudar-me. Deb não teria por que se inteirar.

Ele arqueou as sobrancelhas.

-Está me propondo que a suborne para que faça uso de sua autoridade sobre miss Grantham?

-inquiriu-. Não me atreveria a afendê-la de semelhante forma, madame!

-Na minha presente situação, pressionada pelas faturas que afluem a esta casa, não acho que seja o momento apropriado para falar de ofensas -respondeu sua senhoria-. Se concordasse a entregar-me as vinte mil libras que com tanta amabilidade ofereceu a Deb, me comprometerei a impedir que se case com Mablethorpe, se é que posso!

Ele riu, e se levantou.

-Não, acho que não, madame. Apesar de tudo, cabe a possibilidade de que não possa impedi-la; e nesse caso teria jogado fora o dinheiro.

Lady Bellingham suspirou.

-Não o teria jogado fora, nem muito menos -observou com tristeza-. No entanto, não tinha esperanças de que aceitasse.

-Não desespere! Ainda posso perder uma fortuna na mesa de Faraó .

-Assim o espero, mas suponho que, pelo contrário, fará saltar a banca -respondeu sua senhoria com pessimismo.

O senhor de Ravenscar não chegou a tais extremos, mas, decididamente, estava com sorte essa noite, e lady Bellingham sentiu um grande alívio quando, por fim, se levantou da mesa e partiu.

As palavras de lady Bellingham tinham-lhe tranqüilizado de alguma forma, já que era inconcebível que se tivesse oferecido para impedir o casamento de sua sobrinha com Mablethorpe, se esta tivesse estado a caminho de Gretna Green. Tentou afastar o assunto de sua mente, e, ainda que não o conseguisse de todo, ao menos não sentiu tanta preocupação por seu primo. Simplesmente experimentou grandes desejos de ver miss Grantham de novo.

Viu-se obrigado a esperar alguns dias antes de que se realizasse seu desejo. Apesar de ter recebido grande número de cartas e convites, em nenhuma aparecia a letra de miss Grantham. O senhor de Ravenscar adquiriu o costume de examinar sua correspondência com impaciência, e seus criados observaram que, quando lhe entregavam uma nota, costumava pegá-la com maior avidez do que o costume, e, ato seguido, seu semblante, inexplicavelmente, adquiria uma expressão sombria.

Tiraram suas próprias conclusões movendo a cabeça com resignação.

Decorreu uma semana antes que o senhor de Ravenscar recebesse notícias do paradeiro de miss Grantham. Uma tarde, voltando de Kensington, encontrou-se de sopetão com lord Mablethorpe, que cavalgava por Piccadilly na direção contrária. Pelo aspecto de sua senhoria, era evidente que regressava de uma viagem, já que suas botas estavam salpicadas de barro, e seu cavalo, sujo até os joelhos. Viu que se aproximava a carriola de seu primo e lhe saudou com a mão.

Apesar de que tinha uma multidão na rua, Ravenscar deteve aos tordilhos e esperou que Mablethorpe se aproximasse da carriola. Naquele momento, pôde observar que sua senhoria estava radiante de alegria e, com um tom cortante, exclamou:

-Regressaste por fim!

-Sim, neste preciso instante! -respondeu Adrian, sujeitando o cavalo para que não empinasse, ante um vagão de mercadorias que avançava pela rua-. Acabo de entregar Deb em Saint James's Square, e dirigia-me a Brook Street. Não tenho tempo agora para ficar: devo ver minha mãe imediatamente! Oh, Max, sou o homem mais feliz do mundo! Tenho tantas coisas que te contar!

Nunca adivinharás onde estive!

-Informaram-me -respondeu Ravenscar, com uma expressão sombria no rosto- de que te tinhas ido à casa de Tom Waring!

Adrian riu-se, fazendo esforços por tranqüilizar seu inquieto cavalo.

-Já o sei, mas não era verdade! Max, casei-me!

-Casado!

Sem dar-se conta, atirou bruscamente as rédeas, e os tordilhos se sobressaltaram, pelo que sua senhoria se viu obrigado a retroceder, para se afastar de seu caminho.

-Sabia que te ficarias surpreso! -exclamou-. Irei ver-te mais tarde para contar-te! É uma história muito longa, e aqui não é possível falar! Ademais, tenho que ver a minha mãe primeiro! Adeus! O

verei dentro de um momento!

Saudou-lhe com o chicote e prosseguiu seu caminho, o senhor de Ravenscar, totalmente pálido, dirigiu-se sem perda de tempo a Saint James's Square. Ao chegar à casa de lady Bellingham, entregou as rédeas ao lacaio, ordenando-lhe com brevidade:

-Que sigam caminhando! -Ato seguido, baixou-se do pescante de um salto, e a grandes passadas, subiu as escadas que conduziam a casa de lady Bellingham.

Abriu-lhe a porta Silas Wantage, que, com um sorriso, lhe assegurou:

-É verdadeiramente surpreendente que nos visite com tanta freqüência, como se não tivesse ocorrido nada desagradável!

-Peça a miss... -Ravenscar deteve-se. Seu grave rosto adquiriu uma expressão de dureza-. Roguo a miss Grantham que tenha a bondade de me conceder uma entrevista? sozinha! -pediu-lhe.

Wantage dirigiu-lhe um olhar perspicaz e acariciou a barba.

-Sim, mas não estou seguro de que miss Deb receba visitas hoje -objetou.

-Comunique-lhe minha mensagem agora mesmo! -ordenou Ravenscar, furioso.

Wantage ficou atônito ao ouvir isto, mas, aparentemente, decidiu obedecer. Conduziu o senhor de Ravenscar a um pequeno gabinete que tinha num extremo do saguão, e se retirou para comunicar sua mensagem à miss Grantham.

Deborah estava em seu quarto, e acabava de tirar o chapéu e a capa. Quando chamou Silas à porta, estava brindando a sua tia com uma animada descrição de sua viagem; ao saber quem estava embaixo, vacilou, e, ruborizando-se, respondeu:

-Muito bem, descerei agora mesmo.

-Tenha cuidado, miss Deb, porque em minha vida nunca vi um tipo mais furioso que quando abri a porta ao senhor de Ravenscar -lhe advertiu Silas.

-Oh, Deus meu! Suponho que já terá se inteirado de tudo - lamentou miss Grantham-. Tinha a esperança de que não se importasse demasiado!

-Talvez seja melhor que a acompanhe - sugeriu Wantage, que ainda não tinha renunciado à esperança de desfrutar de um assalto com o senhor de Ravenscar.

-Nada disso! Apesar de tudo, não vai me comer!

-Eu não poria a mão no fogo -observou Wantage com voz lúgubre.

Mas Deborah tomou sua advertência uma piada, e ordenou-lhe que se retirasse, se voltando para pentear-se em frente ao espelho, e se arranjar os laços do decote. Anunciou a sua tia que voltaria em seguida e se dirigiu ao gabinete.

O senhor de Ravenscar, que se encontrava de pé, olhando pela janela sacudindo impacientemente suas luvas, voltou-se rapidamente quando entrou, e a contemplou com uma expressão de ira e de amargo desprezo.

-Ah! -exclamou com mordacidade-. Não se mova, madame! Deixe-me que a contemple um momento! Assim me enganou todo o tempo?

-Bom, sim, suponho que lhe menti um pouco - confessou Deborah-. Mas não é tão grave, apesar de tudo!

-Pensei que tinha formado uma opinião equivocada de você! Por Deus, o único engano que cometi foi achar que você tinha um pouco de honradez! -acusou-. É você uma meretriz ignóbil, madame!

Não adote esse ar de inocência ultrajada, lhe rogo! Nem sequer uma rameira do lugar mais abjeto se teria comportado como você! Vim a vê-la agora que sei quão diabólica é! Reconheço que tem um formoso rosto, mas seu coração... se é que o tem... só abriga falsidade!

Deborah ficou atônita, incapaz de articular palavra, enquanto os insultos choviam sobre ela, mas por fim pôde gaguejar, com voz entrecortada:

-Ficou louco? Ainda que tenha lhe mentido, não fiz nada para provocar semelhante ira! Pode ser que Adrian não tenha contraído um casamento brilhante, e reconheço que é um pouco jovem para fundar um lar, mas verá como se dará à perfeição!

-Não, não verei! -replicou ele-. Asseguro-lhe que não atravessarei a soleira de sua casa!

-Oh, que preconceitos mais estúpidos! -exclamou Deborah-. Advirto-o que mais vale que não fale a Adrian desta forma, se preza sua amizade, porque está profundamente apaixonado, e provavelmente o desafiará por não tratar sua mulher com o devido respeito!

-Sua mulher! -exclamou ele com amargura-. Deus meu, sua mulher!

Miss Grantham deu uns passos até o centro da sala.

-Não compreendo qual é a causa de semelhante escárnio -observou-. Está furioso porque foi vítima de um engano, mas Adrian é tão responsável disso como eu. Quem acha que é, para tentar me intimidar desta forma? Não tolero este comportamento! E como se atreva a me insultar de novo, o esbofetearei! Com respeito às letras e a escritura de hipoteca que teve a amabilidade de me enviar, pode ficar com elas, e lhe devolverá até o último centavo!

-Sim! Mablethorpe o fará! -observou com um riso de escárnio-. Agradeço-lhe, madame, mas não as quero! Se Mablethorpe tivesse sabido toda a verdade, acha que se teria casado com você? Está certa?

Miss Grantham ficou petrificada e o sangue fluiu para suas faces quando por fim compreendeu o significado de suas palavras. Seu rubor não passou despercebido a Ravenscar, que exclamou:

-Alegro-me de ver que ainda pode ruborizar-se, madame! Não pensei que fosse possível!

Miss Grantham notou como se aceleravam os batimentos de seu coração; entreabiu as pálpebras; esforçou-se por todos os meios em controlar sua voz trêmula, e por fim pôde perguntar:

-E como, se me permite a pergunta, soube que tinha me casado com Mablethorpe?

-Acabo de encontrar-me com ele, e me disse. Lhe interessará saber, madame, que faz uma semana chegou a meus ouvidos que a tinham visto viajando em direção norte, em companhia de sua criada, e com Mablethorpe a cavalo como escolta. E eu, tolo que sou, resisti em achar que era tão vil para persuadir o rapaz para que fugisse com você! Supus que simplesmente a acompanhava a seu destino para protegê-la durante a viagem! Mas hoje soube toda a verdade. Não devia ser tão confiante para esperar que uma perdida, procedente de uma casa de jogo, se portasse com honradez!

Se miss Grantham tinha ficado vermelha antes, agora, ao contrário, estava branca como a cal.

-Teria que me agradecer por lhe ter aberto os olhos! Mas gostaria de recordar-lhe, senhor de Ravenscar, que assegurei, quando estava em meu poder, que me casaria com seu primo quando me desse vontade!

-Não o esqueci! Também lembro que fez uma predição naquela ocasião que, desgraçadamente, se realizou! Prometeu-me que o arrastaria à ruína! E assim o fez no momento em que permitiu que lhe pusesse a aliança no dedo!

Miss Grantham ocultou rapidamente sua mão esquerda entre as pregas de sua saia.

-Se arrependerá de sua ousadia ao me insultar desta maneira! -ameaçou-lhe-. Não me deterei ante nada para lhe dar o que merece! Em toda a minha vida nunca desejei tanto ser um homem! O

mataria, se pudesse! Me foi desagradável desde o primeiro momento em que o vi! Cheguei a detestá-lo!

-E eu, madame, pensei que tinha chegado a amá-la! -respondeu ele-. Não conhece o significado desta palavra, mas quando tiver desbaratado toda a fortuna de Adrian, como sem dúvida o fará muito cedo, recordará que, se tivesse agido com maior habilidade, teriam sido sua tanto minha fortuna como meu nome! Surpreende-se? Como é possível que não o tenha adivinhado, madame?

É tão hábil, e no entanto não conseguiu caçar a uma peça bem mais rica que Adrian! Bem mais rica, miss Grantham! Meta esta idéia na cabeça, e espero que se arrependa durante o resto de sua vida!

No que a mim respeito, me considero muito afortunado por ter escapado das garras de uma harpia!

Miss Grantham foi incapaz de controlar sua voz trêmula, e viu-se obrigada a apoiar-se no respaldo de uma cadeira para tranqüilizar-se.

-Saia! -exclamou-. Casar-me com você? Preferiria padecer a morte mais horrível que você possa conceber! Não se atreva... não se atreva a voltar a esta casa! Oxalá não volte a vê-lo em toda minha vida!

-Não acho que o deseje tão fervorosamente como eu! -replicou ele, e partiu da sala.

Miss Grantham ficou imóvel durante um minuto, arquejante, enquanto brotavam-lhe lágrimas de raiva nos olhos. Ao ouvir uma batida de porta, voltou a si. Levou a mão aos olhos e saiu precipitadamente da sala, para seu quarto. Lady Bellingham permanecia sentada ali, e ao contemplar o rosto desfeito de sua sobrinha, quase caiu da cadeira.

-Deus meu, querida, que sucedeu? -exclamou.

-Esse homem! -soluçou miss Grantham-. Esse monstro!

-Oh, céus, já tiveste outra briga com o senhor de Ravenscar! -exclamou sua senhoria-. Não me digas que voltaste a encerrá-lo no porão! Não poderia suportar!

-Não entrará nesta casa nunca mais! -manifestou, tremendo de raiva-. Teve o atrevimento de pensar que... o atrevimento de... Oh, vou ficar louca!

-Já o sei, e me preocupa muito -respondeu sua tia-. Que eu saiba, nunca tinhas te comportado desta forma! Que passou?

-Pensou que... oh, sinto-me incapaz de dizê-lo! Assim que isso é o que pensa de mim! Nunca em minha vida fui objeto de semelhante insulto! Arrependo-me de não ter chamado a Silas para que o arrojasse da casa! Se atrever a aparecer por aqui, o farei! Gostaria de meter-lhe em azeite fervendo! Nenhuma vingança seria demasiado terrível e, se tivesse alguma forma de arruiná-lo, o faria com muito gosto!

-Mas, Deb, que fez? -gemeu sua tia.

-Considera-me a criatura mais abjeta da terra! Insultou-me da pior forma que qualquer... oh, saia, tia Lizzie, saia! E não deixe que venham a me incomodar, porque não quero ver ninguém!

Estava tão furiosa que lady Bellingham não fez nenhuma tentativa de argumentar com ela, e saiu com passo vacilante do quarto, pressentindo que seus dias estavam contados. Ao abandonar o quarto, ouviu como girava a chave na fechadura, e baixou a seu gabinete a fim de recuperar as forças bebendo amoníaco com água e caindo no sofá, com o frasco de sais na mão.

No entanto, mal se tinha posto cômoda quando entrou Lucius Kennet no quarto, dizendo jovialmente:

-Disseram-me que Deb regressou. Onde está meu céu?

-Encerrada em seu quarto, e louca de pedra!

Ele a contemplou com uma expressão de surpresa.

-Que diabos! E agora que se passa?

-Não sei. Veio Ravenscar e ela diz que nunca a insultaram dessa forma! Na minha vida nunca a tinha visto tão furiosa! Não podia nem falar!

-Mas que lhe disse esse miserável canalha?

-Não me perguntes, pois não sei, mas temo que lhe terá feito proposições desonestas. Diz que a encantaria jogá-lo em uma caldeira de azeite fervendo. Mas que isto fique claro, Lucius: se a ajudares a fazer algo pelo estilo, não voltas a entrar nesta casa!

-Por minha fé, tenho um castigo muito melhor para o senhor de Ravenscar. Gostaria que avisasse a Deb de minha chegada. Vou dar-lhe uma boa notícia!

-Assegurou-me que não queria ver ninguém, e já sabes como é! Ademais, fechou a porta com chave. Suplico que saias e me deixes em paz! Vai-me explodir a cabeça!

-Ah, vamos, tranqüilize-se, madame! -disse ele-. Irei, e é provável que tenha que ausentar-me durante algum tempo, mas lhe asseguro que estou urdindo uma vingança para o senhor de Ravenscar ainda mais terrível que Deb pudesse imaginar! Pode dizer-lhe de minha parte... ou talvez seja melhor escrever uma nota para levantar-lhe a moral!

-Faz o que tiveres vontade, mas saia! - suplicou sua senhoria fechando os olhos, e apontando debilmente para a porta.


Capítulo XVII

Quando o senhor de Ravenscar entrou com passo raivoso em sua casa, vinte minutos depois de ter abandonado precipitadamente o gabinete de Saint James's Square, continuava enfurecido, como se podia observar por sua expressão furiosa. Seu mordomo, que cometeu a imprudência de fazer um inofensivo comentário a respeito do tempo quando lhe abriu a porta, teve que se retirar para as cozinhas, perplexo ante a violenta reação de seu senhor, e ali comentou com seus colegas que este dava mostras inequívocas de ter sofrido um desengano amoroso.

O senhor de Ravenscar, depois de jogar suas luvas sobre uma cadeira, e seu casaco sobre outra, se encerrou na biblioteca, e ali permaneceu durante uma hora, percorrendo a sala de um extremo a outro, possuído pelas emoções mais violentas e contraditórias que tinha experimentado em toda sua vida. Não pôde decidir contra quem ia dirigir sua ira, se contra si mesmo, ou contra miss Grantham, e estava envolvido neste problema sem importância, quando descobriu que na realidade o principal objeto de sua cólera era Mablethorpe. De repente, ficou consciente de que lhe causaria um grande prazer pegar seu primo pelo pescoço, e o estrangular com suas próprias mãos, para pôr fim a sua vida. Esta revelação enfureceu-o ainda mais, e em seu íntimo, pensou com frieza que tinha se livrado de uma meretriz cobiçosa, cruel e imoral. Mas isto não conseguiu mitigar sua raiva; e, ainda que experimentasse um alívio momentâneo ao fazer em pedaços uma figura de Sèvres que sempre tinha detestado, e que algum cretino tinha tido o atrevimento de colocar sobre a lareira, os efeitos benéficos desta destruição não foram duradouros. Continuou percorrendo a sala de cima a abaixo, debatendo-se entre o impulso de estrangular miss Grantham, e ato seguido jogar seu cadáver aos cães, e o desejo igualmente forte de reservar esta morte a Mablethorpe, e criar um castigo adequado para miss Grantham que, de alguma forma misteriosa, ficaria submetida a sua vontade durante o resto de sua vida.

Como era de esperar, esta ferocidade não foi muito duradoura. Em pouco tempo extinguiu-se, deixando o senhor de Ravenscar num estado de amargo desencanto, e com a convicção de que a vida já não tinha nenhum sentido para ele. Atormentado por estes sentimentos, subiu para trocar-se para o jantar, sem dirigir a palavra ao seu ajudante de quarto (quem, após jogar uma olhadela ao seu semblante, sentiu um grande alívio ante seu silêncio), e prestando tão pouca atenção ao que estava fazendo que não resistiu a pôr uma jaqueta que, na noite anterior, jurou que não usaria nunca mais.

Sua madrasta e Arabella tinham saído para cear, por isso que não se viu obrigado a ausentar-se; e, presidindo a longa mesa do salão em completa solidão, somente provou alguns bocados dos manjares que lhe apresentavam, até que chegou a sobremesa, que recusou, dando mostras de repugnância. A única coisa que tomou sem restrição foi o porto, já que seu mordomo, previdentemente, tinha trazido uma reserva especial da bodega.

O senhor de Ravenscar, totalmente alheio ao que o rodeava, continuava sentado à mesa, com um copo de vinho meio vazio na mão, quando entrou o mordomo com uma mensagem que lhe tinham entregue nesse preciso instante. O senhor de Ravenscar olhou-o com indiferença, mas, ao reconhecer a assinatura de lady Mablethorpe, tomou-o com um gesto de contrariedade. A nota era sucinta e direta. Pedia-lhe que fosse a Brook Street assim que fosse possível.

Não tinha o menor desejo de se enfrentar com sua tia, mas decidiu que era preferível não evitar esta desagradável tarefa, e, após beber de um gole do que sobrara do porto, ordenou ao mordomo que lhe trouxesse o chapéu, a capa e a bengala.

Dirigiu-se a pé a Brook Street, e imediatamente foi conduzido ao salão que tinha no primeiro andar. Sua tia estava esperando-o sentada junto à pequena lareira, num estado de prostração que indicava que já tinha recebido a notícia.

Esperou que se retirasse o criado para exclamar:

-Oh, Max, inteiraste-te do ocorrido?

Ele tinha previsto que sua chegada provocaria uma explosão de ira, então supôs que a fúria de sua senhoria, como a sua própria, se tinha esgotado.

-Sim -respondeu-. Já o sei. Sinto-o, tia.

-Não é culpa sua -disse-. Nunca em minha vida fiquei tão desconcertada!

-Sou o responsável pelo sucedido -observou Ravenscar-. Tive os meios para impedi-lo, e cometi a imprudência de não fazer uso deles.

Ela lhe contemplou com assombro.

-Céu santo, Max, nunca me disse nem uma palavra a respeito! Quer fazer-me acreditar que todo este tempo soubeste quais eram suas intenções?

Ele se acercou à lareira, e, ficando de costas para ela, contemplou a sua tia com uma expressão de perplexidade.

-Não a compreendo, madame. Não estávamos ambos a par do assunto?

-Mas eu não sabia da existência da garota até hoje! -exclamou lady Mablethorpe com assombro.

- Não sabia de sua existência? -repetiu desconcertado-. Por Deus, a quem está se referindo, tia?

-Refiro-me à criatura que, segundo Adrian, se casou com ele! A quem você se referia?

-Criatura! Estou louco, ou está você? -perguntou Ravenscar-. Adrian casou-se com Deborah Grantham!

-Não é verdade! -respondeu sua senhoria-. Casou-se com uma das Laxton!

-Que? -gritou Ravenscar.

Sua tia deu assustou-se.

-Pelo amor de Deus, não grites! Já tive que suportar bastante por hoje! Então, não o sabias! A ti também enganou!

O senhor de Ravenscar foi incapaz de articular qualquer palavra durante algum tempo mas, após um momento de silêncio, conseguiu dizer, esforçando-se por manter a calma:

-Estou totalmente perplexo, madame, rogo que me esclareça! Está certa de ter compreendido o que lhe disse Adrian?

-É claro! Talvez aches que estou brincando? Casou-se com Phoebe Laxton... uma criatura três anos mais jovem que ele. Imagine o espanto! E essa tal miss Grantham foi sua cúmplice! -Lady Mablethorpe se abanou com agitação e acrescentou-: É a coisa mais absurda que ouvi em minha vida! Uns bebês fundando um lar! Ademais, a garota praticamente não tem dote! Oh, não sei o que fazer! Já não o posso impedir, mas é insuportável a idéia de receber a Augusta Laxton com uma aparência de cortesia, quando na realidade não há ninguém que me inspire tanta antipatia! Prefiro não o pensar!

O senhor de Ravenscar tinha ficado totalmente pálido, e interrompeu-a para dizer:

-Tenha a bondade de explicar-se com maior clareza, madame! Isto é uma mistura de incoerências!

Quando Adrian conheceu miss Laxton? Como é possível que se tenha casado com ela?

-Conheceu-a em Vauxhall, quando esteve ali com essa horrível mulher. Parece ser que tinha fugido de sir James Filey, pois seus pais estavam exercendo pressão sobre ela para que se casasse com ele.

Reconheço que fez bem em fugir desse sátiro! Um homem odioso, e se tivesses conhecido a sua mãe! Mas isto agora não vem ao caso! E a Adrian não lhe ocorreu outra coisa que... incentivado, claro está, por essa mulher, ainda que não entenda por que o tenha feito, já que qualquer um teria adivinhado o que aconteceria, se tratando de um garoto tão propenso ao romantismo. Enfim, não ocorreu outra coisa que levar a garota a casa de lady Bellingham, onde a mantiveram oculta, até que, num belo dia, por acaso, Filey a viu olhando pela janela e a reconheceu!

-Deus meu! -exclamou Ravenscar, cada vez mais pálido-. Lembro ter ouvido algo a respeito do desaparecimento da filha dos Laxton! Tem estado em Saint James's Square todo este tempo?

-Sim, apaixonando-se por meu filho! -respondeu sua senhoria acaloradamente-. Na presença da tal miss Grantham! Qualquer um pensaria que é uma tola! Há algo mais previsível de que Adrian se apaixonasse loucamente por uma criatura que o chamava seu salvador, e que o considerava um perfeito sir Galahad, ou como se chame esse cavalheiro que ia pelo mundo resgatando a damas tolas? Oh, imagino perfeitamente! Ainda que, deva reconhecer, Max, que apesar do horrível que é, o casamento lhe fez muito bem! Dá a impressão de que, em poucos dias, adquiriu uma maior maturidade. Se não tivesse ficado tão furiosa, teria soltado uma gargalhada quando me advertiu com severidade que teria que receber sua esposa, e que não consentiria que ninguém fizesse ou dissesse algo que a pudesse afligir! E, sem alterar-se nem um pouco, foi ver lord Laxton! Um rapaz de sua idade! Vá saber o que dirão os Laxton, mas podem se considerar afortunados por ter casado tão bem a sua filha, e farei Augusta saber se atrever-se a... oh, mas, Max, Max, é demasiado jovem para casar-se! Não posso suportá-lo!

O senhor de Ravenscar não prestou nenhuma atenção a isto.

-E o casamento! Não tentará me dizer que Adrian levou a garota a Gretna Green?

-Não, felizmente não esqueceu as mais elementares normas de conduta! Quando Filey descobriu sua presença em casa de lady Bellingham, Phoebe teve tanto medo de que a levassem à força a casa de seus pais, e a obrigassem a se casar com ele, que a única solução, segundo Adrian, consistia em a levar imediatamente. A irmã de Laxton vive em Gales, e, ao que parece, apoiou Phoebe desde o princípio. Adrian meteu Phoebe e a tal miss Grantham num carro que tinha alugado; disse-me que ia à casa de Tom Waring; e empreendeu a viagem a Gales! Com uma autorização especial, Max! Quem teria pensado que Adrian fosse capaz do planejar tudo, como o tolo que é? No fundo sinto-me orgulhosa de ele! O casamento celebrou-se em casa de sua tia, e Adrian comunicou-me que pensa inserir uma menção no Morning Pós!

-Deus meu, Deus meu, o que fiz? -exclamou Ravenscar com desespero. Levantou-se bruscamente e começou a passear pela sala com impaciência, como se não pudesse estar quieto nem um instante.

Sua tia contemplou-o com assombro.

-Não me ocorre que poderias ter feito! Não o culpo, como ias imaginar que algo tão surpreendente fosse ocorrer?

-Não pode imaginar o que fiz! -respondeu Ravenscar voltando a cabeça-. Mas não tem importância! Onde está a noiva?

-Deixou-a em Gales. Asseguro-te que estive a ponto de lhe dar duas bofetadas! Teve a desfaçatez de dizer-me que pensa trazê-la a Londres, mas não o fará até que tenha garantias de que será recebida com o respeito que merece sua esposa!

O senhor de Ravenscar sorriu pela primeira vez desde o encontro com seu primo.

-Excelente! Espero que também vá dizê-lo a mim. Quando me encontrei com ele, vinha dar a você a notícia, e somente me anunciou que se tinha casado e era o homem mais feliz do mundo.

Suponho que receberei uma severa advertência quando o vir.

-Mas que podemos fazer? -perguntou lady Mablethorpe.

-Já não tem remédio, madame. Após tudo podia ter sido muito pior.

-Certamente, se tivesse se casado com essa criatura odiosa, mas irás aconselhar-me que aprove o casamento?

-Indubitavelmente, ao menos que deseje uma ruptura com Adrian -respondeu Ravenscar.

-Oh, Max! -exclamou sua senhoria, secando as lágrimas-. Não acho que possa suportar!

-Compreendo que esteja muito desagradada, madame, mas, apesar do desagradável que possam ser seus pais, a garota é de boa família. O único problema ao que teremos de nos enfrentar, possivelmente, talvez Laxton tente tirar dinheiro de Adrian pela força, mas, de toda forma, não poderá fazê-lo até que seja maior de idade, e espero que até então lhe terei metido um pouco de senso comum na cabeça.

-Isso é precisamente o que lhe disse, mas me prometeu que não está disposto a ser sangrado por um homem que se portou tão mal com sua filha, como o fez Laxton com Phoebe. Acrescentou que provavelmente se ocuparia das pequenas, mas que isso será a única coisa que obterão dele.

A idéia de que seu primo, movido por um sentimento paternal, estivesse disposto a se ocupar das pequenas fez que Ravenscar soltasse uma sonora gargalhada. De repente, sua tia também compreendeu o cômico que era tudo, e começou a rir e a chorar simultaneamente, se sentindo no mesmo instante mais aliviada.

-Diga a Adrian que venha manhã pela manhã a minha casa - pediu Ravenscar-. Tenho que discutir com ele o assunto do dote, e irei depois falar com Laxton. Teremos que consultar Julius, está claro, mas seria preferível que o persuadisse a deixar o assunto em minhas mãos.

Lady Mablethorpe não vacilou em manifestar sua aprovação, observando que Julius era um velho estúpido, que se deixaria enganar por Laxton facilmente.

-Pois a mim não enganará - prometeu Ravenscar, e se despediu dela.

Saiu da casa com a intenção de dirigir-se imediatamente a Saint James's Square mas antes que tivesse chegado ao final da rua, se deteve, recordando que lady Bellingham celebrava uma reunião essa mesma noite. Não teria oportunidade de falar sozinho com miss Grantham, e o que tinha que lhe dizer não podia fazer em público.

Não teve mais remédio que abandonar seus planos e regressar a casa, e, se armando de paciência, se resignou a aguardar até o dia seguinte.

Seu primo apresentou-se quando ainda não tinha terminado o dejejum, e durante a próxima hora não teve mais remédio que escutar a história da fuga, acompanhada de uma descrição embelezada dos numerosos encantos e virtudes da jovem lady Mablethorpe, pela qual pôde imaginar que se tratava de uma criatura bonita, não muito sensata, e, certamente, sem nenhum caráter. Opinou que era a mulher apropriada para Adrian. Ele, pessoalmente, preferia mulheres com mais temperamento.

Quando por fim Adrian terminou de lhe contar tudo, e se discutiu o assunto do dote, era quase meio dia. Adrian, que ao que parece tinha tomado a seus sogros por assalto, e lhes tinha intimidado até que, aturdidos, aceitaram a situação, tinha grande interesse em que seu primo fosse visitar aos Laxton. No entanto, Ravenscar adiou esta missão, dizendo que primeiro teria que consultar seu tio Julius; enviou-lhe ao andar superior para que deleitasse Arabella e a sua mãe com o relato do casamento; e fugiu da casa, dirigindo-se imediatamente a Saint James's Square.

Silas abriu-lhe a porta e, no momento, fechou-lhe o caminho.

-Sinto! -observou sucintamente-. Deram-me ordens de que não o deixe passar, senhor, e mais vale que não insista.

-Entregue meu cartão a miss Grantham -disse Ravenscar- e peça-lhe que me receba, ainda que só por cinco minutos.

-Não o posso fazer -respondeu Silas lastimosamente-. Proibiu terminantemente sua entrada nesta casa, e, se lhe deixar passar, me assassinará.

-Se tentar me impedir o caminho, não será precisamente miss Grantham que lhe assassinará!

-observou Ravenscar.

Apareceu uma expressão de júbilo nos olhos de Wantage.

-Se coloca assim, se prepare, senhor! -respondeu.

O senhor de Ravenscar fez algo mais. Antes que Silas pudesse reagir, lhe deu um golpe na mandíbula, seguido rapidamente de um revés e um golpe que o derrubaram, e, ato seguido, entrou na casa dando um pontapé.

Wantage lançou-se sobre ele, tentando detê-lo, mas seu oponente, pegando-o desprevenido, lhe deu tal soco na cara que ficou atordoado; dirigiu-lhe um golpe ao estômago; tentou golpear Ravenscar no rosto; este lhe deu uma chave; caiu estrondosamente ao solo, onde permaneceu, arfando e sangrando copiosamente pelo nariz.

-Tinha-lhe avisado! -disse Ravenscar, arfante.

Pôde ouvir uma voz glacial procedente do andar superior, que lhe ordenou:

-Tenha a bondade de sair desta casa imediatamente!

O senhor de Ravenscar alçou o olhar e, ao ver a miss Grantham de pé na escada, com uma expressão de fúria contida em seu rosto, subiu os degraus de dois em dois. O olhar de miss Grantham era ameaçador, mas tomou-a pela mão, falando:

-Tenho que falar com você, e ninguém poderá me impedir!

-Pois eu não tenho nada o que falar com você! -replicou miss Grantham-. Como se atreve a golpear meu criado?

-Pode ser que você não tenha nada que me dizer, mas eu sim! -observou Ravenscar-. Se não entra agora mesmo nessa sala, eu a levarei à força!

Silas Wantage, que então já tinha recobrado a respiração, se levantou, levando um lenço ao nariz, e se ofereceu com voz rouca para derrubar o senhor de Ravenscar, ainda que para isso tivesse que empregar toda a manhã.

-Não, não, saia e ponha uma chave na porta! -ordenou-lhe miss Grantham estremecendo. Se tiver algo a me dizer, senhor, faça-o rapidamente, e depois parta, e não volte a aparecer nunca mais!

O senhor de Ravenscar, ainda lhe apertando a mão, abriu a porta do gabinete e disse:

-Vim pedir-lhe perdão, miss Grantham.

Um olhar desdenhoso apareceu em seus olhos.

-Não deveria ter se preocupado, asseguro. A opinião que tiver de mim não me interessa nem um pouco.

-Não tenho desculpa. Não me teria comportado assim com você se não tivesse ficado louco de ciúmes. Eu a amo!

-Sem dúvida, deveria sentir-me lisonjeada, mas, como não posso conceber um maior tormento que estar casada com você, sua declaração me produz asco!

Ele mordeu os lábios.

-Perdoe-me!

-Não lhe perdoarei enquanto estiver viva! Se já disse o que tinha que dizer, peço que parta!

-Estou lhe declarando o meu amor! -exclamou o senhor de Ravenscar, dando um passo para ela.

-Se atrever-se a me pôr a mão em cima outra vez, gritarei! -assegurou-lhe miss Grantham-. Não sei se está pedindo que me case com você, ou que me converta em sua amante, mas o que importa?

-Estou pedindo que se case comigo! -interrompeu Ravenscar.

-Estou muito agradecida -respondeu miss Grantham, esboçando uma genuflexão-, mas nem sequer me tenta a idéia de dissipar uma fortuna como a sua. Conheci muitos homens detestáveis, mas nunca odiei a nenhum como odeio você; creia-me! Confio em que tenha compreendido isto com toda clareza, senhor.

-Sim -respondeu envergonhado-. Não poderia se expressar com maior clareza, madame. Não voltarei molestá-la. Mas suplico que recorde que, agora e sempre, sou seu mais humilde servidor!

Ela não respondeu; Ravenscar fez-lhe uma cortês reverência e retirou-se. Deborah ouviu quando descia as escadas, e até onde estava chegou o eco de sua voz enquanto falava com alguém na entrada, e o som da porta ao se fechar. Só então se sentou numa cadeira extremamente incômoda, e irrompeu em pranto, permanecendo assim durante meia hora; isto a deixou totalmente exausta, e com a certeza de que teria sido preferível não ter nascido.

No decorrer do dia, esta triste convicção aumentou gradualmente. Sua tia estava muito alarmada por sua apatia, e começou a temer por sua saúde, até que uma menção casual sobre o senhor de Ravenscar provocou uma crítica acerba dos modos e da conduta do cavalheiro, e sentiu um grande alívio ao comprovar que sua sobrinha não estava totalmente mergulhada na melancolia.

Aventurou-se a comunicar-lhe a mensagem do senhor Kennet. Miss Grantham recebeu-o com alegria, observando com uma intensidade excessiva que esperava que Lucius arruinasse o senhor de Ravenscar. De repente, a hipoteca veio em sua mente, e no mesmo instante arrebatou a escritura de sua desafortunada tia, fez um pacote com ela e com as letras, e a confiou a um mensageiro para que o levasse a Grosvenor Square. Lady Bellingham esteve a ponto de sucumbir a uma combinação de palpitações, enjôos, e histeria aguda, mas a imediata restituição do pacote impediu que caísse de cama; desta vez, seu conteúdo consistia nos restos de uma escritura e em meia dúzia de letras. Miss Grantham começou a chorar de novo, exaltando com sadismo as excelências dos postes de tortura e as caldeiras de azeite fervendo, e encerrou-se em seu quarto, recusando qualquer tipo de alimento ou consolo.

Não voltou a aparecer até a manhã seguinte. Foi pouco depois do café da manhã ao quarto de sua tia, um tanto pálida, mas aparentemente tranqüila. Beijou lady Bellingham, e se desculpou, dando mostras de arrependimento:

-Sinto deveras ter-lhe causado tantos incômodos, querida tia! Comportei-me como uma tonta, já que o senhor de Ravenscar não merece que me preocupe tanto por ele. O esqueceremos, e viveremos tranqüilas de novo.

Lady Bellingham absteve-se de assinalar-lhe que uma prisão de devedores não era nada tranqüila, e lhe comunicou, ao contrário, que tinham trazido uma carta procedente do domicílio de Lucius Kennet na noite anterior.

Miss Grantham tomou a missiva sem muito interesse, e rasgou o selo. Desdobrou a carta e leu com assombro o conteúdo.

«Não te preocupes, Deb -tinha escrito o senhor Kennet -, no momento que ler esta carta já te terás vingado do senhor de Ravenscar, tal como almejavas. Teu mais humilde servidor conquistou a sua irmãzinha, e conseguiremos de volta as vinte mil libras, ou inclusive mais, para resgatá-la de minhas garras ou meu nome não é Lucius Kennet. Persuadi a criatura para que fuja comigo para Gretna Green, mas não é ali precisamente onde penso levá-la, ao menos que me veja obrigado a isso. Só conheci uma mulher com a quem gostaria de casar-me, e essa és tu, querida!»

«Não te deixes arrastar por teu terno coraçãozinho! Não farei nenhum dano à garota; dou-te minha palavra de que simplesmente a terei como refém. Estou convencido de que Ravenscar pagará o que for para resgatá-la, e que eu mantenha a boca bem fechada.»

Quando acabou de ler atenciosamente a carta, suas faces estavam totalmente pálidas. Perguntou com voz sufocada:

-Por que não se me entregou imediatamente?

-Querida, tinhas-te encerrado em teu quarto, e não pensei que fosse muito importante

-respondeu sua senhoria com certa inquietude-. Acho que trouxeram-na cerca da meia noite. Que diz?

-Não lhe posso dizer! -exclamou miss Grantham-. Lucius fez algo horrível, e não sei quando voltarei! Por favor, diga a Silas que dê instruções para que preparem o carro... não, tomarei um de aluguel! Não há nem um minuto que perder!

-Mas, Deb! -gritou sua tia-. Onde vais?

-A casa do senhor de Ravenscar! -respondeu miss Grantham-. Não posso explicar agora, mas tenho que o ver imediatamente! Por favor, rogo-lhe que não tente me impedir!

Lady Bellingham abriu a boca para dizer algo, a fechou de novo, e se afundou no cadeirão com abatimento, se dando totalmente por vencida.

Vinte minutos mais tarde, um carro de aluguel depositou miss Grantham em frente à casa do senhor de Ravenscar. Um lacaio abriu-lhe a porta, e pediu-lhe, esforçando-se por controlar sua voz, que anunciasse ao senhor de Ravenscar sua visita imediatamente. O lacaio pareceu surpreendido ante este pedido, perguntando-lhe com perplexidade se não era à senhora de Ravenscar quem desejava ver.

-Não, não! -respondeu Deborah-. Tenho que dar uma mensagem urgente ao senhor de Ravenscar!

Diga-lhe que miss Grantham deseja falar um momento com ele!

O lacaio contemplou-a com crescente receio, mas rogou-lhe que entrasse, e a conduziu à biblioteca, dizendo que iria ver se o senhor estava em casa. Quando se retirou, miss Grantham começou a percorrer a sala de um extremo a outro, apertando as mãos desesperadamente, tal como tinha feito o dono da casa na noite anterior.

Em pouco tempo, abriu-se a porta de novo.

-Miss Grantham! -exclamou Ravenscar, sem poder ocultar sua surpresa. Esta se voltou, e ele, ao contemplar sua expressão, perguntou, alarmado-: Deus meu, que aconteceu?

-Viu a sua irmã esta manhã? -inquiriu ela.

-Não. Ainda não se levantou. Esteve num baile, ou algo pelo estilo, até altas horas da madrugada, e se ainda está sob os lençóis.

-Senhor de Ravenscar, acabo de receber esta carta -interrompeu-o, mostrando-lhe a nota do senhor Kennet-. Trouxeram-na, a casa ontem à noite, a última hora, mas não me entregaram até esta manhã! Vim imediatamente... asseguro-lhe que o teria feito ontem à noite se o tivesse sabido!

Por favor, leia agora mesmo! É de vital importância que esteja a par do sucedido sem perda de tempo!

Ele tomou a carta.

-De acordo, mas não quer tomar assento, miss Grantham? Permita-me que lhe ofereça um copo de vinho! Está terrivelmente pálida!

-Não, não quero tomar nada, obrigado! Leia a carta, rogo-lhe! -respondeu, sentando-se inesperadamente no sofá.

Ele a contemplou com verdadeiro desassossego, mas, ao fazer isso ela fez um sinal para que desdobrasse a carta, a abriu, e leu a surpreendente mensagem do senhor Kennet.

Quando terminou de ler a carta, levantou o olhar, e mirou o rosto de miss Grantham, lhe perguntando, estranhado:

-Por que a trouxe, madame?

-Deus meu, não o entende? -exclamou-. Sua irmã fugiu com ele, com o convencimento de que está disposto a se casar com ela! Trata-se de um estratagema para fazer-lhe chantagem! Vim no mesmo instante porque eu sou a responsável! Foi na casa de minha tia onde o conheceu, mas em nenhum momento me passou pela imaginação que... ainda que não tente me justificar! Disse que não me importava o que Lucius pudesse fazer a você! E que esperava que o arruinasse! Mas asseguro-lhe que nunca pretendi fazer-lhe tanto dano! -Deteve-se, tentando controlar sua voz, que tremia lastimosamente-. Não lhe fará nenhum dano -conseguiu dizer-. Não tem tão mau coração! Como vê, não tem intenção de prejudicá-la, mas simplesmente de retê-la como refém.

Tem que confiar em mim! Posso lhe ajudar, e o farei. Silas conhece todos os lugares onde poderia encontrá-la. Você não faça nada. Deixe em minhas mãos! Seria funesto se encontrasse Lucius! O

assunto transcenderia, e, aconteça o que acontecer, ninguém deve conhecer a verdade! Em quando Silas o tiver encontrado, eu me encarregarei do resto. Prometo que Lucius não se atreverá a dizer nem uma palavra a ninguém. Se o fizer, jurarei que está mentindo, e que miss Ravenscar esteve o tempo todo em minha companhia. Mas não falará! Conheço algumas coisas a respeito dele que o arruinariam pelo resto de sua vida se decidisse revelá-las, e assim o farei caso tente lhe fazer chantagem, sob a ameaça de que divulgará a história. Oh, por favor, confie em mim! Sou consciente de que nada disto teria ocorrido se não me tivesse negado a renunciar a Adrian desde o princípio, simplesmente para o contrariar, e agora deve, deve, me permitir que o ajude!

O senhor de Ravenscar, que tinha escutado esta declaração com serenidade notável, deixou a carta do senhor Kennet de um lado, e se sentou junto a miss Grantham, tomando suas mãos tranqüilamente entre as suas com firmeza.

-Deb, querida, não há nenhuma necessidade de que te preocupes dessa forma! Não tremas, minha pobre menina! Arabella não é tão tonta para se deixar enganar por um homem de sua laia!

-Oh, não compreende? -exclamou com desespero-. Pode ser muito atraente para uma garota de sua idade! Ele...

-Coração, quer escutar-me? -disse Ravenscar-. Arabella está lá encima, provavelmente dormindo, e, se não me acreditas, te levarei para que a vejas com teus próprios olhos!

Ela o contemplou, aturdida.

-Está seguro? -murmurou.

-Sim, completamente seguro -respondeu ele-. Ontem à noite contou-me tudo.

-Que se... contou-lhe? -perguntou miss Grantham, sem dar crédito a seus ouvidos.

-Veja -explicou Ravenscar- ela sempre costuma me contar as coisas, e inclusive às vezes segue meus conselhos. Adverti-a que desconfiasse do homem que tentasse persuadi-la de que fugisse com ele, já que se trataria sem dúvida de um caçador de dotes. Possivelmente terás observado que minha irmã é maliciosa. Lamento dizer que lhe pareceu conveniente fazer crer ao senhor Kennet que estava disposta a se casar com ele ontem à noite. Tenho entendido que, após esperar embaixo da chuva durante uma hora no lugar marcado, apareceu um criado, que tinha sido subornado para lhe entregar uma nota, que imagino, lhe terá feito se sentir um idiota.

-Oh, graças a Deus! -sussurrou miss Grantham, começando a chorar pela tensão acumulada.

O senhor de Ravenscar tomou-a no instante entre seus braços e abraçou-a com tanta força que não pôde se separar dele. Após tentá-lo, ainda que não com muito empenho, e de sussurrar um protesto confuso, à que ele não prestou nenhuma atenção, se deixou levar por sua debilidade, e chorou sobre seu ombro. O senhor de Ravenscar permaneceu nisso com grande paciência durante alguns minutos, mas quando Deborah fez algumas observações apagadas e totalmente initeligíveis, lhe ordenou que levantasse a cabeça. Então engoliu saliva de uma forma pouco romântica, aspirou ruidosamente, e buscou desesperadamente seu lenço. O senhor de Ravenscar secou-lhe as faces, pensando, evidentemente, que era incapaz de fazê-lo sozinha. Depois a beijou e, quando tentou falar, o fez de novo com grande brusquidão.

-Oh, não! -protestou Deborah debilmente.

-Silêncio! -disse Ravenscar, beijando-a pela terceira vez.

Miss Grantham cedeu submissamente, desistindo de falar durante um tempo considerável. Quando ao final o fez, tinha tirado o chapéu, e estava presa pela mão do senhor de Ravenscar, com a cabeça apoiada em seu ombro. Apesar disto, lhe assegurou:

-Não podes casar comigo! Sabe-o perfeitamente!

-Minha belíssima idiota! -disse Ravenscar afetuosamente.

Deborah, muito feliz por este tratamento, exclamou:

-Não tens nem idéia da quantidade de dinheiro que devo! Não estás em teu juízo pensar em se casar comigo!

-Não se preocupe, mas sei perfeitamente o que deves!

-Mas pensa no que dirá tua família!

-Não ligo a mínima com o que possam dizer.

-Não podes te casar com uma... uma rameira saída de uma casa de jogo!

O senhor de Ravenscar atraiu-a para si.

-Me casarei com uma rameira saída de uma casa de jogo com a maior pompa e alarde que alguém possa imaginar.

Ela soltou uma risada afogada ao ouvir isto.

-Oh, não, pense em sua irmã!

-Estou pensando nela. Considero-me totalmente incapaz de controlá-la, e espero que você tenha sucesso onde eu falhei. Minha madrasta comunicou-me que tenho a obrigação de me casar; para proporcionar a Arabella uma acompanhante adequada.

Miss Grantham, pegando-lhe da mão, levou-a a face.

-Pode ser que o arruíne - advertiu.

-Tenta-o -replicou Ravenscar.

-Confio em que pagues todas as dívidas de tia Lizzie.

-Estou disposto a fazê-lo.

-E que a retires daquela casa odiosa.

-Também o farei.

-E que te portes bem com meu pobre irmão.

-Tentarei.

-E, é claro, que me deixes pôr uma banca de Faraó por minha conta -acrescentou miss Grantham, com uma voz provocativa.

-Se a vir jogar outra coisa que não seja commerce ou silver loo, a farei amaldiçoar o dia em que nasceu! -observou Ravenscar, beijando-lhe a mão-. Maliciosa!

Deborah soltou um suspiro de satisfação, e abandonou qualquer tentativa de fazê-lo recobrar o juízo.

 

 

                                                                  Georgette Heyer

 

 

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