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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DO GENERAL - P.2 / Nelson Demille
A FILHA DO GENERAL - P.2 / Nelson Demille

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                                         CAPÍTULO VINTE E UM

 

Bethany Hill é o bairro chique de Fort Hadley, embora consideravelmente mais pequeno. Compõe-se de uma trintena de casas de estilo colonial distribuídas por quarenta hectares de castanheiros, faias e outras árvores de grandes dimensões. Aqui os pinheiros marcavam uma ausência específica. Todas as casas datam dos anos vinte e trinta, de uma época em que os oficiais eram cavalheiros e pensavam morar na base e não em qualquer outro sítio.

 

 

 

 

Os tempos mudam e os oficiais multiplicaram-se a ponto de o Exército já não saber que lhes fazer, tanto mais que não está em condições de dar uma casa, um cavalo e um criado a cada um deles. Contudo, os mais graduados ainda beneficiam destas casas, se o quiserem, e o coronel Fowler considerara, sem dúvida, uma boa política instalar-se na colina, até porque a mulher dele também devia ter preferido esta solução. Não que Midland seja um bastião de preconceitos sulistas em relação aos negros - a proximidade da base contribuiu para os apagar ao longo dos anos -, mas Bethany Hill, a que, por vezes, chamam o “gueto dos coronéis” oferece, sem dúvida, uma vida social mais confortável do que as residências semelhantes na cidade.

A única desvantagem residia na sua proximidade das carreiras de tiro, que se situavam a uns meros quilómetros, pois nas noites de manobras o vento Sul decerto arrastaria o barulho dos disparos até lá. Contudo, para alguns dos da velha guarda da infantaria, corresponderia a uma canção de embalar.

Cynthia vestira um camiseiro de seda verde, uma saia bege e, supostamente roupa interior lavada.

- Estás muito bonita esta manhã - comentei.

- Obrigada. E quanto tempo serei obrigada a ver-te com esse fato azul?

- Considera-o como o uniforme da semana. A maquilhagem não conseguiu disfarçar-te as olheiras - acrescentei.

- Só precisaria de uma noite bem dormida e de uns anos a menos.

- Estás de mau humor?

- Sim, lamento - desculpou-se, pousando a mão num joelho. - Não vivemos as melhores circunstâncias para renovar uma amizade.

- Não, mas a reaproximação verificou-se mesmo assim.

A casa do coronel era um enorme edifício de tijolo, com a clássica porta Verde, relva verde e persianas verdes. No acesso estavam estacionados uma carrinha Ford e um jipe Cherokee. Os oficiais superiores não possuem normalmente carros americanos, mas nunca é uma má escolha.

Estacionámos na rua e saímos do Mustang de Cynthia. A esta hora da manhã ainda estava fresco, mas o sol já lançava os seus primeiros raios e anunciava-se um daqueles dias bem quentes.

A caminho da casa, observei a Cynthia:

- Os coronéis que estão à espera das suas estrelas de general, como Fowler e Kent, detestam os problemas que possam obstruir-lhes as carreiras.

- Cada problema é mais um degrau - ripostou Cynthia.

- Às vezes, basta algo sem importância. Kent, por exemplo, está acabado. Eram sete horas em ponto quando bati à porta verde.

Uma bonita mulher negra, com um elegante e fresco vestido de Verão, veio abrir, esboçou um sorriso de circunstância e, sem dar tempo a que nos apresentássemos, exclamou:

- Oh! Miss Sunhill e Mister Brenner, não é verdade?

- Exacto minha senhora.

Depois de um instante de embaraço, indicou-nos o caminho até um salão

- Tem uma bela casa - elogiou Cynthia.

- Obrigada - agradeceu.

- Conhecia bem Ann Campbell? - indagou Cynthia.

- Oh... não... não muito bem.

Uma resposta curiosa. Por que motivo a mulher do adjunto do general Campbell não conhecia bem a filha deste? Será que a senhora Fowler negligenciaria os compromissos sociais inerentes à mulher de um coronel?

- Já viu a senhora Campbell desde a tragédia? - perguntei.

- Não... Fiquei demasiado... perturbada.

“Mas não tanto como a mãe da vítima! Tratava-se de uma visita de condolências que já deveria ter sido feita!”

Preparava-me para mais uma pergunta, mas chegámos ao nosso destino: um terraço nas traseiras da casa. O coronel Fowler falava ao telefone. Já estava fardado, com a camisa abotoada e a gravata, e só o casaco aguardava nas costas de uma cadeira. Fez sinal para que nos sentássemos, em duas cadeiras de vime, numa pequena mesa, diante dele.

O Exército constitui indubitavelmente o último bastião da estrita observância da delicadeza e códigos sociais, reunidos, para vossa informação, num manual de seiscentas páginas para uso dos oficiais, em que se explica tudo sobre a vida e como viver. Esse o motivo por que, quando há um pequeno desvio, começamos a interrogar-nos.

A senhora Fowler murmurou uma desculpa entre dentes e desapareceu, enquanto respondia ao seu interlocutor:

- Compreendo, sir. Vou informá-los. Desligou e cumprimentou-nos:

- Bom dia.

- Bom dia, coronel.

- Café?

- De bom grado.

Serviu-nos duas chávenas e indicou o açucareiro, depois do que começou sem preâmbulos:

- Encontrei muito pouca discriminação no Exército e posso afirmar, em nome de outras minorias, que os conceitos de raça e religião não interferem na evolução nem em qualquer outro aspecto da vida militar. Pode haver sentimentos racistas entre o pessoal recrutado, mas a discriminação está ausente do sistema.

Sem saber muito bem que rumo tomaria a conversa, limitei-me a pôr um torrão de açúcar no café.

- Já foi vítima de discriminação com base no seu sexo? - perguntou a Cynthia.

- Talvez... sim, algumas vezes - anuiu ela depois de uma leve hesitação.

- Foi incomodada?

- Sim.

- Foi alvo de boatos, insinuações ou mentiras?

- Talvez... uma vez que eu saiba.

- Está, portanto, consciente de que eu, na qualidade de negro, tive menos problemas do que você como branca - disse o coronel com um aceno de cabeça.

- Sei que o Exército é menos tolerante com as mulheres do que com os homens. Mas também o resto do mundo o é. Onde pretende chegar, coronel?

- A uma única conclusão, Miss Sunhill: Ann Campbell não teve a vida facilitada aqui em Fort Hadley. Se fosse homem, o filho do general, por exemplo, e tivesse combatido no Golfo, Panamá ou Granada, seria idolatrada por todos. Em vez disso, corria o boato generalizado de que se deitava com toda a gente, desculpe a linguagem.

- E se, após regressar coberto de glória, fosse para a cama com todas as mulheres da base, não teria de pagar nem mais uma bebida na messe comentei.

- Exacto - concordou o coronel Fowler, desviando o olhar na minha direcção. - Há uma diferença de tratamento entre os homens e as mulheres, que não aceitaríamos se se tratasse de um problema racial. Este o motivo por que, caso tenha informações negativas sobre o comportamento sexual de Ann Campbell, gostaria de as ouvir, quer sejam ou não verdadeiras.

- De momento, não posso revelar as fontes - redargui. - O meu único interesse quanto à conduta sexual da vítima reside na forma como se teria relacionado ou não com o seu assassino. Longe de mim querer estar ao corrente de qualquer aspecto da sua vida sexual que pudesse lançar alguma luz licenciosa Quanto à sua violação e homicídio na carreira de tiro.

Ela não fora, de facto, violada, mas não estava disposto a divulgar cópias grátis da autópsia.

- Estou convencido de que assim é, Brenner, e não ponho em causa a sua ética profissional. Contudo, terá toda a vantagem em manter essa sua maneira de pensar, não permitindo que o seu inquérito se transforme numa caça às bruxas.

- Ouça, coronel: entendo perfeitamente o seu desgosto e o da família da vítima, mas não se trata de boatos nem de insinuações, como sugeriu, mas de actos comprovados. Ann Campbell não tinha apenas uma vida sexual activa, o que neste exército de homens era da sua conta, além disso conduzia-a A uma forma perigosa. Podemos passar a manhã a discutir as questões de segregação e desigualdade, mas quando ouço dizer que a filha de um general se deitava com quase todos os oficiais casados da base penso em suspeitos e não em títulos de tablóides. As palavras “rameira” e “puta” não constam do meu vocabulário de detective, embora o mesmo não aconteça relativamente a “chantagem” e “móbil”. Será que me faço entender, coronel?

Tudo indicava que sim, pois Fowler baixou a cabeça, concordando com as minhas palavras ou talvez seguindo qualquer linha de raciocínio pessoal.

- Se fizer qualquer prisão, pode garantir-me que, no seu relatório, só constará um mínimo de informação? - perguntou.

Quase desejava falar-lhe do antro de delícias sexuais de Ann Campbell e de como decidira minimizar os danos.

- As provas existentes na casa da vítima podiam e deviam ter ficado à disposição do chefe de polícia Yardley. Contudo, Miss Sunhill e eu achámos prudente subtrair à curiosidade pública tudo o que, na casa de uma jovem oficial, celibatária e bonita, pudesse ser embaraçoso para a família e o Exército. Os actos dizem mais que as palavras, é a única garantia que posso dar-lhe.

- Sinto-me muito satisfeito convosco - declarou inesperadamente. Informei-me a vosso respeito e recolhi os maiores elogios. Consideramos um privilégio que os tenham encarregado deste caso.

Era, no mínimo, incongruente, mas mesmo assim respondi:

- Amabilidade sua. Voltou a servir-nos café.

- Tem, portanto, um suspeito importante, o coronel Moore.

- Exacto.

- Porque suspeita dele?

- Porque temos provas de que esteve no local do crime.

- Compreendo... mas nenhuma de que foi ele o assassino?

- Não, pode ter lá ido antes ou depois da hora do crime.

- Não tem provas da presença de outra pessoa?

- Nenhuma prova conclusiva.

- O que o torna o suspeito mais provável? Nestas circunstâncias, sim.

- Se ele não confessar, vão culpá-lo?

- Num caso destes, apenas posso recomendar a culpabilidade. A decisão final será tomada em Washington.

- Tenho a impressão de que o seu relatório e essa recomendação chegarão.

- Assim deveria ser, pois mais ninguém tem a mínima ideia do que aconteceu. Devo informá-lo, sir - acrescentei -, que estes boatos sobre as relações de Ann Campbell com alguns oficiais podem incluir pessoas como o procurador-geral e outras que talvez não sejam tão objectivas e imparciais quanto o deveriam num caso destes. Detesto estar a semear a desconfiança, mas limito-me a preveni-lo do que ouvi.

- De quem?

- Não posso dizer-lhe, mas sei-o de fonte segura e suponho que está ciente da amplitude do problema. Não me parece que possa varrer a sua própria casa, pois a vassoura está suja, só Miss Sunhill e eu podemos fazê-lo.

- Bom, a propósito - disse o coronel com um aceno de cabeça -, estava ao telefone com o general Campbell quando chegaram. Há novidades.

“Desconfio das novidades”, pensei.

- Sim?

- O Ministério da Justiça reuniu com o seu superior, o coronel Hellmann, o promotor-geral da justiça militar e outras pessoas implicadas, tendo decidido convocar o FBI para este caso.

“Merda!”

- Sendo assim, já não tenho poder para minimizar os danos. O senhor e todos os que usam farda decerto o sabem.

- Sim, algumas pessoas estão inquietas e nem todos os elementos do Pentágono estão a par das precauções exigidas por este tipo de situação. Acederam, pois, sem grandes exigências, mas obtiveram um acordo.

Nem eu ou Cynthia nos demos ao trabalho de perguntar qual era, mas o coronel informou-nos:

- Vocês ficarão à frente do caso até amanhã ao meio-dia. Se até lá não fizerem qualquer detenção nem indicarem culpabilidades, o inquérito ser-vos-á retirado. Manter-se-ão, contudo, ao dispor do FBI para consulta.

- Percebo.

- Neste mesmo momento, está a constituir-se uma equipa, em Atlanta, que engloba agentes do FBI, representantes da justiça militar, membros do gabinete do ministro da Justiça e oficiais superiores da CID de Falis Church.

- Espero que todos tenham de ficar nas instalações dos oficiais de passagem.

- Não desejamos esta intervenção e suponho que vocês também não declarou o coronel com um sorriso forçado. - Mas, se pensarem bem, verão que era inevitável.

- Não é todos os dias que um capitão do Exército é assassinado, coronel interferiu Cynthia -, só que este uso de meios parece-me um tanto exagerado.

- Esse ponto foi focado, mas a realidade é a de que se verificou a violação de uma mulher e ela era a filha do general Campbell. A justiça é igual para todos, mas uns têm mais direitos do que outros - acrescentou.

- Dou-me conta de que nada tem a ver com esta decisão, coronel disse -, mas devia falar ao general e tentar que fosse anulada ou, pelo menos, modificada.

- Já o fiz, e foi dessa maneira que obtivemos o acordo. Cerca das vinte e três horas de hoje, Miss Sunhill e você foram afastados, mas o general Campbell e o coronel Hellmann negociaram um prolongamento, pois achava que está prestes a ser feita uma prisão. Se tiverem boas provas e fortes suspeitas quanto ao coronel Moore, deviam prendê-lo. Têm luz verde, se acharem que Precisam.

Reflecti um momento. O coronel Moore parecia o candidato mais apropriado para servir de bode expiatório. E porque não? Independentemente das provas, era um lunático que efectuava trabalhos estranhos em segredo; segundo Kent, o general Campbell desaprovava as suas relações com a filha, não tinha condecorações nem medalhas e ninguém gostava dele, nem sequer a Polícia Militar. Tratava-se de um homem que avançaria para a forca com o rosto enterrado num livro de Nietzsche.

- Bom, se ainda disponho de trinta horas, não vou precipitar-me - dirigi-me ao coronel Fowler.

- O que o impede de actuar com base nas provas que tem? - ripostou ele, parecendo um tanto desapontado.

- São insuficientes, coronel.

- Tudo me levava a pensar o contrário.

- Foi o coronel Kent quem o informou?

- Sim... além de que ouvi da sua boca que tem a prova da presença dele no local do crime.

- É verdade, mas ainda há problemas colocados pelas horas, o móbil e a natureza do próprio crime. Tenho bons motivos para pensar que o coronel Moore desempenhou um papel nos acontecimentos, embora não possa afirmar que agiu sozinho, ou mesmo com malícia, nem acusá-lo de homicídio em primeiro grau. Preciso de aprofundar a questão antes de o prender e entregar nas mãos da justiça.

- Percebo. Acha que ele confessará?

- Só se saberá quando fizer a pergunta ao interessado.

- E quando pensa fazê-la?

- Por norma, costumo aguardar que o suspeito e eu estejamos prontos para esse tipo de conversa. Neste caso, não esperarei para lá do tempo que nos foi concedido.

- Como quiser. Precisa da ajuda da CID da base?

- Fui informado de que o major Bowes também era amante da vítima.

- Não passam de boatos.

- É verdade. Mas se eu... não, se o senhor apelar à palavra dele, como oficial, é muito provável que lhe diga a verdade. De qualquer maneira, dado não podermos ter certezas e uma vez que o boato existe, acho preferível que o major se mantenha afastado deste caso e também não quero colaborar com os que se encontram sob as suas ordens.

- Compreendo o seu ponto de vista, Brenner, mas uma vaga acusação, até mesmo uma confissão de envolvimento sexual com a vítima, não deve implicar automaticamente a exclusão do major Bowes da investigação.

- Na minha opinião, deve e acho mesmo que o coloca na segunda ou terceira posição na lista de suspeitos, enquanto eu não conhecer o seu álibi, ou a ausência do mesmo. Aliás, meu coronel, já que abordamos o assunto e se já terminou, posso passar ao interrogatório?

Fowler serviu-se de mais um café com uma mão perfeitamente segura. O Sol erguera-se por detrás das árvores e a sombra espalhava-se pelo terraço. O meu estômago ressentia-se do excesso de café e a minha mente não estava tão alerta como deveria. Deitei um olhar de relance para Cynthia, que parecia bem melhor forma do que eu, mas, dada a brevidade do prazo que nos concediam, havia que optar entre o sono, o sexo, a comida e o trabalho. Plano B.

- Posso convidá-lo para tomar o pequeno-almoço? - inquiriu Fowler.

- Não, obrigado, coronel.

- Dispare - incitou, de olhos fixos em mim.

Obedeci à ordem e comecei:

Teve relações sexuais com Ann Campbell?

- Não.

- Conhece alguma pessoa nessa situação?

- O coronel Kent respondeu-lhe na afirmativa e não vou mencionar mais nomes, pois essa atitude corresponde, aparentemente, a colocá-los na sua lista de suspeitos.

- Muito bem, vamos directos à lista. Conhece alguém que pudesse ter uma razão para a matar?

- Não.

- Sabia que o ajudante-de-campo do general Campbell, o tenente Elby, estava apaixonado por ela?

- Sim, mas isso nada tem de extraordinário nem era estúpido da parte dele interessar-se pela filha do seu superior. Eram ambos celibatários, jovens e oficiais, é o tipo de situação que habitualmente termina em casamento. Devo dizer que o tenente tem os tomates no sítio - acrescentou.

- De acordo, mas será que ela correspondia?

O coronel reflectiu uns momentos antes de responder:

- Ela jamais reagia ao interesse de um homem. Provocava-o e depois punha ponto final quando lhe apetecia.

- Essa declaração é um pouco surpreendente vinda de si, coronel!

- Por favor, Brenner. Nada disto é novidade agora para si. Não preciso de defender a reputação dela aos seus olhos. Essa mulher era... céus, nem sei que palavra utilizar... mais do que uma sedutora, pois provocava e passava à acção... e também não era uma puta vulgar... Ajude-me - pediu, procurando Cynthia com o olhar.

- Penso que não há uma palavra que a defina - reagiu Cynthia - à excepção, talvez, de vingadora.

- Vingadora?

- Ela não era vítima de boatos como o coronel, no início, tentou sugerir prosseguiu Cynthia - nem promíscua no sentido convencional do termo, nem tão-pouco ninfomaníaca. Na verdade, servia-se dos encantos e do corpo para levar a cabo uma vingança e o senhor está a par disso.

Este juízo crítico desagradou aparentemente a Fowler. Eu suspeitava de que Kent lhe transmitira somente uma versão resumida da nossa conversa, tendo omitido parte dos comentários, segundo os quais o comportamento sexual de Ann Campbell tinha um objectivo preciso, a saber, ridicularizar o pai.

- Ela odiava o Exército - comentou o coronel a Cynthia.

- Ela odiava o pai - retorquiu esta.

Fowler pareceu, pela primeira vez, pouco à-vontade. Tratava-se de um homem experiente, com defesas de longa data, mas Cynthia acabava de pôr o dedo na ferida.

- O general amava sinceramente a filha - garantiu Fowler. - Peço-vos que acreditem. Contudo, ela desenvolvera um ódio irracional e obsessivo para com ele. Na verdade, falei do assunto com um psicólogo do exterior e, mesmo analisando a situação à distância, diagnosticou um leve distúrbio de personalidade.

- Não tão leve assim, segundo os dados que recolhemos - contrariou Cynthia.

- Bom. Vá-se lá saber quem essa gente pretende implicar. Não acompanhei todas as suas explicações, mas tudo acaba por desembocar no facto de que as filhas de homens com uma personalidade forte, que tentam seguir as pegadas do pai, saem frustradas e põem em dúvida o seu próprio valor. Depois, e para preservarem o ego, dedicam-se a algo que fazem bem, uma actividade muito diferente da do pai, que não as colocará numa competição directa com ele, mas algo que a sociedade considera importante. Segundo este psicólogo, muitas delas dedicam-se a actividades sociais, ao ensino, professorado ou outras profissões altruístas. Incluindo a psicologia - acrescentou Fowler, depois de uma pausa.

- A guerra psicológica não é propriamente uma actividade altruísta comentei.

- Não, e é nesse ponto que a análise se afasta da norma. Este psicólogo disse-me que quando estes filhos ou filhas se mantêm no sector de actividade do pai é muitas vezes para melhor o atingirem. Não podem fazer-lhe concorrência, não podem ou não querem ser independentes e conservam-se, assim, na proximidade do objecto do seu ódio, desencadeando uma espécie de guerrilha surda, que pode ir de pequenas irritações a sabotagens de grande envergadura. - Meditou uns instantes e retomou a palavra: - Agem desta forma, porque é a sua única maneira de se vingarem... sim, como disse Miss Sunhill, vingarem-se das injustiças de que se julgam vítimas. No caso de Ann Campbell, a sua situação prestava-se especialmente a esta atitude. O pai não podia despedi-la e ela criou um poder pessoal na base. Os filhos e filhas que se opõem aos pais, sempre segundo este psicólogo, vão para a cama com toda a gente, bebem, jogam e adoptam todo o tipo de comportamento anti-social susceptível de afectar a figura autoritária no seu mundo. Ann, talvez devido aos seus conhecimentos de psicologia, foi um pouco mais longe e procurou seduzir os homens que rodeavam o seu alvo. - Fowler debruçou-se sobre a mesa e prosseguiu: - Espero que entendam que a atitude de Ann era irracional e nada tinha a ver com o comportamento do pai para com ela. Todos temos inimigos imaginários e, quando se trata dos progenitores, não há amor ou carinho capaz de superar o ódio enraizado na mente do filho. Ela era uma mulher profundamente perturbada, que necessitava de cuidados, os quais não lhe foram prodigalizados. Na verdade, esse safado do Moore ateava-lhe o rancor para satisfazer os seus próprios distúrbios doentios e penso até que o divertia ver onde conseguiria ir.

Nenhum de nós pronunciou uma palavra durante um longo minuto e depois Cynthia aventurou-se:

- Porque não tomou o general medidas drásticas? Não é ele o homem que comandou as nossas forças no Eufrates?

- Isso era fácil para ele - ripostou Fowler. - Ann Campbell não era, contudo, assim tão fácil de manipular. Na verdade, o general pensou num certo tipo de actuação, há um ano. Todavia, e segundo o especialista que consultei na altura, se ele tivesse interferido mediante, por exemplo, a transferência do coronel Moore, ou ordenando que Ann se submetesse a uma terapia, o que lhe era possível como comandante, a situação poderia ter piorado. O general aceitou, pois, este conselho e deixou que as coisas seguissem o seu caminho.

- E a carreira do general também se ressentiria, caso tivesse metido Moore e a filha na ordem, admitindo dessa maneira que havia um problema - observei.

- Tratava-se de uma situação muito delicada - redarguiu Fowler. A senhora Campbell... a mãe de Ann, achava que tudo acabaria por se resolver se se deixasse que a filha desse livre curso ao seu rancor. Era esse, pois, o status quo. No entanto, há uma semana o general decidira actuar. Mas... bom, foi tarde de mais.

- E o que pensava ele fazer? - indaguei.

- Ignoro se o facto de lhe responder adiantará algo quanto a este inquérito - hesitou o coronel.

- Diga, e deixe-me a decisão.

Bom... de acordo. Há uns dias, o general fez um ultimato à filha, dando-lhe a escolher entre várias possibilidades. A primeira: demitir-se do cargo. A segunda: manter as funções na escola e seguir uma terapia decidida pelo general, com ou sem internamento. A terceira: se recusasse estas duas soluções, o general encarregaria o procurador-geral de investigar a sua má conduta e levá-la-ia diante de um tribunal marcial.

Acenei com a cabeça, pois tinha a sensação de que, se este ultimato correspondesse à verdade, precipitara os acontecimentos ocorridos na carreira de tiro número seis.

- Como reagiu ela? - interessei-me.

- Disse ao pai que lhe daria uma resposta no espaço de dois dias, mas não o pôde fazer, foi assassinada.

- Talvez tivesse sido essa a resposta - aventurei.

- O que pretende sugerir? - surpreendeu-se Fowler.

- Reflicta, coronel.

- Na sua opinião, o coronel Moore ajudou-a a encenar qualquer tipo de macabro suicídio?

- Talvez. Não existe qualquer circunstância especial no passado que possa explicar este ódio de Ann Campbell em relação ao pai?

- Como, por exemplo?

- Como... uma rivalidade afectiva mãe-filha, esse tipo de coisas.

Fowler fitou-me como se eu tivesse acabado de cometer um atentado à moral e aos bons costumes e adoptou um tom glacial ao responder-me:

- Não percebo onde quer chegar, Brenner, e aconselho-o a que nem mo tente explicar.

- Correcto, coronel.

- É tudo?

- Receio bem que não. E a situação tende a piorar. Afirma que não teve relações sexuais com a vítima. Porquê?

- Como assim, porquê?

- Porque ela não lho propôs ou, em caso afirmativo, recusou?

O coronel olhou de relance para a porta, como que para ter a certeza de que a mulher não os ouvia.

- Nunca me fez tal proposta.

- Entendo. Porque é negro ou por saber que de nada valia tentar?

- Acho que... Ela saiu com alguns oficiais negros. Aqui, em Fort Hadley esse motivo não existia. Diria antes que ela sabia... - afirmou, sorrindo pela primeira vez - que eu era incorruptível. Ou, então, achava-me feio - acrescentou, sem largar o sorriso.

- Mas não é, coronel - arguiu Cynthia - e, mesmo que o fosse, tal não a teria detido. Suspeito de que ela se ofereceu, mas que o senhor recusou por lealdade para com a sua mulher, o seu superior ou a sua ética moral. A partir desse momento, tornou-se o seu segundo inimigo figadal.

- Nunca tive uma conversa destas em toda a minha vida - explodiu finalmente Fowler.

- Também se calhar nunca esteve envolvido numa investigação de homicídio - argumentei.

- Não, é verdade, e, se fizessem essa detenção, a investigação terminaria.

- Nem pensar, prosseguiria até ao tribunal marcial. Não cometo muitos erros, coronel, mas, quando julgo ter-me enganado, sou capaz de todos os esforços para dar o braço a torcer.

- Muito louvável da sua parte, Brenner, mas talvez o coronel Moore possa solucionar as suas dúvidas.

- Pode tentar, mas dará a sua versão dos acontecimentos e eu gosto de ter as de todos, a fim de poder proceder a uma melhor avaliação das balelas.

- Como quiser.

- Ann Campbell tinha irmãos ou irmãs? - inquiriu subitamente Cynthia.

- Um irmão.

- O que pode contar-nos a seu respeito?

- Vive na Costa Ocidental, num lugar com um nome espanhol. Não me lembro qual.

- Não é militar?

- Não. Ele...exerceu muitas profissões.

- Percebo. Conhece-o?

- Sim, vem muitas vezes a casa nas férias.

- Acha que tem problemas idênticos aos vividos pela irmã?

- Em certa medida... mas optou por se distanciar da família. É a forma como lida com a situação. Durante a Guerra do Golfo, por exemplo, quando uma estação californiana de televisão quis entrevistá-lo, não o encontrou.

- Diria que é desligado dos pais?

- Desligado? Não... apenas independente. Quando está em casa, todos parecem felizes com a sua presença e ficam tristes na altura da partida.

- Quais eram as relações entre os dois irmãos?

- Óptimas, tanto quanto me foi dado ver. Ann Campbell mostrava-se muito tolerante.

- Relativamente... ao quê? Ao seu estilo de vida?

- Sim. John Campbell, é esse o nome dele, é homossexual.

- Entendo. E o general aceitava o facto?

- Creio que sim - respondeu Fowler depois de ligeira hesitação. - John Campbell foi sempre muito discreto. Nunca trouxe nenhum dos seus amigos a casa dos pais, vestia-se de forma muito clássica, etc. Creio que, caso o general não estivesse tão ocupado com os problemas que a filha lhe dava, se teria mostrado menos indulgente para com o filho. No entanto e comparativamente a Ann, John é um cidadão comum.

- Compreendo - prosseguiu Cynthia. - Acha que o general Campbell empurrou a filha para uma carreira tradicionalmente masculina - refiro-me a West Point e ao Exército - para compensar a falta de interesse que o filho demonstrava por essa carreira?

- É a opinião geral, só que na vida as coisas não são assim tão simples. Na verdade, Ann ingressou com entusiasmo em West Point, era lá que queria estar e era muito boa aluna. Prosseguiu carreira depois dos quatro anos de serviço obrigatório. Não, não me parece que o general a empurrasse ou forçasse, ou lhe tivesse retirado o seu afecto, caso ela se recusasse a ir para West Point. Foi isto o que este psicólogo sugeriu, mas estava longe da verdade. Recordo-me de que Ann Campbell era uma verdadeira maria-rapaz, uma candidata perfeita para a carreira militar. Pretendia, de facto, continuar a tradição. O avô paterno também havia sido militar de carreira.

- Mas o senhor declarou que ela odiava o Exército - recordou-lhe Cynthia.

- Sim... é verdade, mas, como vincou, era o pai que ela odiava.

- A sua afirmação estava, portanto, errada.

- Bom...

Torna-se sempre interessante apanhar uma mentira, ainda que pequena, num interrogatório. Coloca o suspeito ou a testemunha na defensiva, que é o seu lugar.

O coronel Fowler apressou-se a corrigir:

- Ela começou por gostar do Exército, mas não posso afirmar que sentisse

o mesmo nos últimos tempos. Acumulara demasiado rancor e tinha outros Motivos para ficar ao serviço.

- Agora, parece-me claro - assentiu Cynthia. - Pode dar-nos uma ideia das relações entre Ann Campbell e a mãe?

Fowler reflectiu uns momentos, antes de responder:

- Eram bastante boas. Contrariamente à opinião de algumas pessoas, a Senhora Campbell é uma mulher de forte personalidade, mas escolheu adaptar-se às exigências impostas pela carreira do marido, às suas várias colocações pelo mundo, incluindo aquelas em que não podia acompanhá-lo, à necessidade de receber pessoas que lhe eram indiferentes e tudo o resto. Utilizo o termo “escolheu”, porque é de uma escolha que se trata. A senhora Campbell pertence à velha escola e respeitará, até ao final, o compromisso que assumiu, ao casar-se, ou, se mudar de opinião, afastar-se-á. Não é o tipo de mulher que passe o tempo a chorar e a lamentar-se, como muitas mulheres deste tempo.

- Fixou Cynthia demoradamente e prosseguiu: - Jamais deixará ficar mal o marido mediante uma conduta errónea, aceitará o melhor e o pior, levará a sério o seu papel de mulher e companheira e não irá vender apartamentos na cidade para afirmar a sua independência. Não usa as condecorações do marido mas sabe que ele lhas deve, em parte, à sua ajuda, presença e lealdade ao longo dos anos. Perguntou-me quais eram as relações de Ann com a mãe e falei-lhe das relações da Senhora Campbell com o marido, mas pode deduzir a resposta do que lhe contei.

- Sim, é verdade - anuí. - E alguma vez Ann tentou modificar a atitude ou a filosofia da mãe?

- Acho que no início, sim. Contudo, esta deve ter-lhe dito que se ocupasse dos problemas dela e não se metesse na sua vida conjugal.

- Bom conselho - aprovou Cynthia. - Mas isso não prejudicou as suas relações?

- As relações mãe-filha não são o meu forte. Venho de uma família de quatro rapazes e eu próprio tenho três filhos. Não possuo uma grande experiência das mulheres em geral e nunca observei de perto os laços entre mãe e filha. Todavia, sei que ir às compras, jogar ténis ou organizar recepções eram coisas que não as ligava. Contudo, jantavam sozinhas de vez em quando. Chega-lhe?

Cynthia acenou com a cabeça e fez mais uma pergunta:

- A senhora Fowler conhecia bem Ann Campbell?

- Bastante bem. Faz parte das suas obrigações sociais.

- E sem dúvida que a sua mulher conhece bem a senhora Campbell. Talvez pudesse, nesse caso, interrogá-la sobre este assunto das relações mãe-filha.

- Ela está muito perturbada, como deve ter reparado - disse o coronel, após uma segunda hesitação. - Portanto e a menos que insista, pedirei que aguarde uns dias.

- Podemos falar-lhe? Ou faz tenção de sair daqui para se recompor do choque sofrido? - interessou-se Cynthia.

- Na qualidade de civil, pode ir e vir como lhe apetecer, se é que eu soube ler nas entrelinhas.

- Compreendeu-me perfeitamente, coronel. Não quero esperar. Gostaria de lhe falar hoje. Como sabe, não disponho de um longo prazo.

O coronel suspirou. Esticávamos, obviamente, mais a corda do que esperara e não estava habituado a uma tal pressão por parte de subalternos. Creio que a nossa roupa civil o ajudava a engolir em seco e o impedia de nos expulsar. É esse o motivo que leva a CID a aconselhar o uso de traje civil para os assuntos mais melindrosos.

- Verei se estará disponível esta tarde - anuiu finalmente.

- Obrigada - agradeceu Cynthia. - Talvez seja preferível responder às nossas perguntas do que às do FBI.

Fowler indicou com um aceno de cabeça que compreendera a mensagem.

- Para que conste do relatório, coronel - interferi, retomando o curso do meu interrogatório -, pode indicar-me onde esteve na noite do homicídio de Ann Campbell?

- Supus que era a primeira pergunta que me faria - sorriu. - Bom, onde estive? Trabalhei até às dezanove e depois fui a uma festa de despedida de um oficial, no grill da messe. Saí bastante cedo e regressei a minha casa por volta das vinte e duas. Pus em ordem uns papéis, fiz alguns telefonemas e eu e a minha mulher deitámo-nos mais ou menos às vinte e três horas.

Seria estúpido perguntar-lhe se a senhora Fowler podia confirmar estas palavras, e em vez disso inquiri:

- Nada se passou de anormal durante a noite?

- Não.

- A que horas acordou?

- Às seis da manhã.

- E depois?

- Tomei um duche, vesti-me e cheguei às sete e meia ao meu gabinete, que é onde devia estar neste momento.

- E telefonou para casa de Ann por volta das oito, deixando uma mensagem no atendedor.

- Exacto. O general ligou-me de casa e pediu-me que o fizesse.

- Não queria ser ele a fazê-lo?

- Estava aborrecido e sabia que a senhora Campbell se sentia desapontada. Pediu-me, pois, que me encarregasse do telefonema.

- Compreendo. Todavia, chegámos a casa de Ann Campbell antes das oito e a mensagem já se encontrava no atendedor.

Seguiu-se um minuto de silêncio e naquele espaço de tempo o coronel teria de decidir se eu estava a fazer bluff, o que não era o caso, ou se tinha uma história melhor. Fitou-me sem desviar os olhos e disse:

- Bom, nesse caso enganei-me nas horas. Devo ter telefonado mais cedo. A que horas chegaram a casa dela?

- Terei de consultar os meus apontamentos. Posso partir do princípio de que não lhe telefonou antes das sete para a avisar de que estava atrasada para o Pequeno-almoço às sete?

- Seria uma suposição lógica, Brenner, embora já me tenha acontecido falar-lhe antes para a avisar desse tipo de compromisso.

- Mas nessa ocasião disse-lhe: “Ann, devia passar na casa do general esta manhã.” Depois citou o pequeno-almoço e acrescentou: “Está, sem dúvida, a dormir.” Portanto, se ela devia sair do serviço, digamos, às sete horas e o coronel telefonou, por exemplo, às sete e meia, não devia ter chegado há muito, nem estaria a dormir.

- É verdade... Suponho que as minhas ideias não estavam muito claras. Devo ter-me esquecido de que ela estivera de serviço e pretendia dizer que ainda não acordara.

- Mas falou disso na mensagem. A frase era: “Devia passar na casa do general depois de sair de serviço.”

- Eu disse isso?

- Sim.

- Nesse caso, atribua o facto a um erro de cálculo da hora. Posso ter telefonado às sete e meia. Apenas sei que a contactei logo a seguir a ter falado com o general. Aparentemente, Ann combinara estar em casa dos pais às sete hora a que devia, por norma, ser substituída pelo oficial de turno, mas podia como aconteceu muitas vezes, ter saído mais cedo, deixando o sargento de serviço à espera do oficial. Isso levanta-lhe algum problema, Brenner?

- Nenhum.

“Para mim nenhum, mas para si, sim, coronel.” Prossegui:

- Dado que Ann Campbell e o pai não estavam no auge de um bom relacionamento, porque aceitou ela ir tomar o pequeno-almoço com ele?

- De vez em quando, faziam algumas refeições juntos. Como lhe disse, ela visitava frequentemente a mãe.

- O objectivo deste pequeno-almoço não seria o de que Ann Campbell desse uma resposta ao ultimato do pai?

- Sim, é possível - anuiu Fowler, após uns instantes de reflexão.

- Não o surpreende que a tenham encontrado morta apenas umas horas antes de dar a resposta ao ultimato? Acha que pode haver qualquer relação?

- Não. Parece-me mera coincidência.

- Não acredito em coincidências. Permita-me que lhe faça uma pergunta, coronel: o ultimato do pai não exigia nada mais da filha?

- Como, por exemplo?

- Nomes, nomes dos oficiais da base com quem ela fora para a cama. O general não tencionaria fazer uma limpeza?

- É possível, só que Ann Campbell não ligava a boatos e teria tido o maior prazer em confessar a verdade ao pai.

- Mas os oficiais casados com quem ela se deitara certamente ligariam e não sentiriam esse prazer.

- Claro que eles não quereriam que se soubesse. Contudo, a maioria, para não dizer todos, sabiam que não podiam contar com a sua discrição. Sabe, Brenner, os homens casados possuem, regra geral, sentimentos ambivalentes face às suas aventuras sexuais. - Deitou um olhar de relance a Cynthia e prosseguiu: - Por um lado, têm um medo horrível de que a mulher ou a família descubram, ou mesmo alguns amigos e superiores. Por outro, sentem-se orgulhosos dos seus feitos e vão ao ponto de se vangloriar das suas conquistas. Tratando-se da bonita filha do superior, só dificilmente guardam segredo. Acredite que todos passámos por isso.

- Claro que sim, coronel - sorri. - Só que as palavras são uma coisa e as fotografias, listas e provas outra diferente. O que pretendo dizer é que alguns dos seus amantes podem ter sabido, talvez pela boca da própria Ann Campbell, que o general estava farto e pretendia que a filha lhe desse uma lista pormenorizada. Por isso, alguém pode ter decidido que chegara a altura de apagar as provas, de se livrar de Ann Campbell.

- Também me ocorreu essa ideia - disse Fowler, acenando com a cabeça. - Na verdade, nunca fui de opinião de que ela tivesse sido morta por um desconhecido. Mas pode explicar-me por que motivo alguém que quisesse calá-la o faria desta maneira, chamando assim a atenção para a natureza sexual do crime e do comportamento da vítima? “Boa pergunta.”

- Talvez se tratasse de uma capa para ocultar o verdadeiro motivo do crime - argumentei. - O criminoso precisava de matá-la, mas adicionou o elemento violação para baralhar os investigadores. Já me passaram pela mão dois casos de maridos que mataram as mulheres por este processo, a fim de fazerem crer que tinha sido o acto de um desconhecido.

- Esta é a sua área de investigação e não a minha - comentou Fowler.

Entendo o seu ponto de vista, mas acha que há muitos homens capazes de assassinarem uma mulher apenas para a impedirem de falar? É muito menos arriscado defrontar um tribunal marcial por conduta inadequada a um militar do que por um homicídio.

- Concordo, coronel, mas nós somos pessoas racionais. No mundo irracional, vale tudo, inclusive o crime, para evitar a desonra e a humilhação. Consta do manual.

- Também essa é a sua área.

- Pense, contudo, em quem dos amantes de Ann Campbell seria capaz de cometer um crime para escapar à desonra, divórcio, tribunal marcial e afastamento do Exército.

- Tanto quanto sei Brenner, o seu suspeito número um, o coronel Moore, não estava envolvido sexualmente com ela, não tendo, pois, um motivo óbvio para a impedir de falar. Contudo, talvez existissem muitas outras razões para querer matá-la e violá-la. Deveria aprofundar os seus motivos, se é apenas por isso que não o prende.

- Claro que também estou a seguir essa pista, coronel. Gosto de conduzir as minhas investigações como os generais as suas campanhas: ataque em várias frentes, uma simulação, um avanço para testar o terreno, um assalto em massa, uma brecha na linha de combate e depois cerca-se o inimigo. “Cerquem-nos e esmaguem-nos.”

O seu sorriso um pouco amargo não me surpreendeu.

- É a melhor forma de gastar recursos e. perder a iniciativa. Passe imediatamente ao massacre, Brenner, e deixe as grandes teorias para o quadro preto da sala de aulas.

- Talvez tenha razão, coronel. Quando entrou nessa manhã ao serviço cruzou-se por acaso com o sargento Saint-John?

- Não. Ouvi dizer mais tarde que um cabo da guarda estava, por assim dizer, à frente do forte quando o oficial chegou, o que agitou os ânimos. O cabo Aplicou que o sargento se ausentara há várias horas, não voltara a aparecer e ignorava totalmente onde poderia encontrá-lo ou ao oficial que estivera de serviço. Contudo, na altura eu não sabia nada disso, pois ninguém me informara, e o major Sanders resolveu chamar os polícias militares, que declararam ter Saint-John sob custódia, embora sem explicarem o motivo. Tive conhecimento desta situação mais ou menos às nove horas. Informei imediatamente o general e ele ordenou-me que procedesse a averiguações.

- E ninguém pensou em perguntar para onde se ausentara Ann Campbell?

- Não... analisados em retrospectiva, os factos ajustam-se. Todavia, nesse momento, pensei apenas que ela abandonara o posto antes da hora prevista delegando responsabilidades no sargento, que aproveitara para entregar as dele no cabo, a fim de ir... talvez espiar a mulher a casa. É muito frequente: os homens convencem-se de que as esposas os enganam quando estão de serviço e escapam-se para ir dar uma vista de olhos. é um problema específico da vida militar.

- Sim, tive dois casos de homicídio e um de mutilação que começaram assim.

- Então, compreende. Foi a primeira ideia que me ocorreu. Disse para mim próprio que Saint-John fora preso pelos polícias militares e impedido de regressar ao quartel-general. Não tentei aprofundar, pois tudo indicava que a “deserção” do sargento se encontrava ligada à saída antecipada de Ann Campbell e que o assunto se resolveria por si. Ninguém iria imaginar que a aparente prisão de Saint-John se relacionava com o desenrolar dos factos, tal como se vieram a descobrir.

Pareceu-me lógico, só que, analisada em mais pormenor, esta versão apresentava pontos fracos.

- Afirmou que na véspera tinha trabalhado até tarde no quartel-general lembrei-lhe.

- Exacto.

- Encontrou-se com a vítima quando ela se apresentou ao serviço?

- Não, o meu gabinete fica no primeiro andar, ao lado do do general, e o oficial e o sargento da guarda ocupam a sala grande dos serviços administrativos, no segundo andar. Recebem a agenda de serviço e quaisquer ordens especiais e escolhem uma secretária, onde ficam durante a noite. Não costumo cruzar-me com oficiais de serviço. Satisfeito, Brenner?

- Faz sentido, mas só me darei por esclarecido depois de uma verificação. É este o meu trabalho, coronel, e tem de ser feito assim.

- Decerto tem alguma flexibilidade, Brenner.

- Pouca. Um centímetro à esquerda, um centímetro à direita. Se for mais além do que isso, arrisco-me a cair nas garras do meu patrão, o coronel Hellmann, que faz puré dos subordinados receosos de fazerem perguntas aos oficiais superiores.

- Não me diga!

- É essa a triste realidade.

- Bom. Informá-lo-ei de que realizou um trabalho excelente e não demonstrou qualquer tipo de receio.

- Obrigado, coronel.

- Gosta do que faz?

- Habitualmente, sim, mas hoje, não. Nem ontem.

- Então, temos, pelo menos, um ponto em comum.

- Assim o espero.

O silêncio pairou novamente. O meu café arrefecera, mas era-me indiferente. Por fim, decidi-me a retomar a palavra:

- Pode arranjar-me uma entrevista para hoje com a senhora Campbell?

- Farei o possível.

- Se ela corresponde ao retrato que me traçou da mulher de um militar, decerto compreenderá a urgência. Também gostaríamos de falar com o general acrescentei.

- Ocupar-me-ei do assunto. Onde posso contactar-vos?

- Temo que andemos numa roda viva pela base. Deixe mensagem no gabinete do comandante. E onde poderei encontrá-lo?

- No quartel-general.

- Já foram tomadas disposições para o funeral?

- Sim, o corpo ficará exposto na capela depois do recolher desta noite. O serviço fúnebre ocorrerá às onze horas de amanhã, na capela, e depois o corpo será transportado num cortejo até Saint-Jordan para a cerimónia do adeus. Em seguida, será colocado a bordo de um avião para ser enterrado no jazigo de família dos Campbell, no Michigan.

- Percebo.

Os militares de carreira confiam geralmente ao Exército um testamento, que na maioria das vezes também contém instruções para o funeral, e inquiri, portanto, ao coronel Fowler:

- Era esse o desejo da defunta?

- Essa pergunta enquadra-se na sua investigação?

- Suponho que a data do testamento e das instruções referentes ao enterro pode ser, de facto, importante para este inquérito.

- O testamento e as últimas vontades de Ann Campbell datam da semana anterior à sua partida para o Golfo, o que parece normal. Para sua informação, ela pediu que a enterrassem no jazigo de família e o único beneficiário do testamento é o seu irmão John.

- Obrigado. Mostrou-se muito cooperante, coronel, o que lhe agradecemos.

“Embora tenha tentado deitar-nos um bocado de poeira para os olhos”, pensei.

Os oficiais superiores são os primeiros a sentarem-se e a levantarem-se. Esperei, portanto, que ele se apercebesse de que eu terminara e desse sinal da despedida, mas em vez disso perguntou-me:

- Encontrou alguma coisa na casa dela que lhe possa prejudicar a reputação ou do pessoal da base?

- Como, por exemplo? - ripostei, sentindo chegada a minha vez de contornar a questão.

- Bom... um diário, fotografias, cartas, uma lista das suas conquistas. Sabe perfeitamente a que me refiro.

- Tenho uma tia solteirona que podia ter passado uma semana sozinha na casa de Ann Campbell sem se sentir chocada com nada, nem sequer com a música.

O que era verdade, pois a minha tia Jean, dotada de uma curiosidade lendária, não tinha uma boa noção do espaço.

Fowler levantou-se e logo o imitámos.

- Nesse caso escapou-lhe algo - garantiu. - Ann Campbell anotava tudo. A sua formação de psicóloga assim o exigia e o seu desejo de corrupção não se contentaria indubitavelmente com vagas recordações de camas de motel ou passagens pelo gabinete de uns e outros a horas tardias. Procure bem

- Assim farei, coronel.

Devo confessar que em nada me agradava este tipo de comentários sobre Ann Campbell, vindos de Kent ou Fowler. Era óbvio que ela se tornara aos meus olhos mais do que a vítima de um crime. Acabaria provavelmente por descobrir quem a matara, mas alguém tinha de conseguir explicar o porquê da sua conduta e explicá-lo a pessoas como Fowler, Kent e todos os outros. A vida de Ann não precisava de desculpas ou piedade, mas de uma explicação racional e talvez a punição dos culpados.

O coronel acompanhou-nos à porta e à saída apertou-nos a mão.

- A propósito - observei. - Nunca encontrámos o anel de West Point de Ann Campbell. Ela costumava usá-lo?

- Nunca reparei - respondeu após reflectir um momento.

- Tinha uma marca mais clara no dedo onde devia estar o anel.

- Então é porque o usava, suponho.

- Se fosse general, gostava de o ter como adjunto, coronel - disse-lhe.

- Se fosse general, Brenner, precisaria de mim nesse lugar. Bom dia. A porta verde fechou-se nas nossas costas e descemos o acesso até à rua.

- Estamos sempre no limite do grande segredo de Ann e do pai - observou Cynthia - e depois esbarramos num muro.

- É verdade - anuí, embora consciente da incongruência da metáfora.

- Mas sabemos que há um segredo e que todos os discursos sobre os sentimentos de injustiça imaginária e ódio irracional frente ao pai não passam de tretas. Pelo menos, a meu ver.

- Para mim também - apoiou Cynthia, abrindo a porta do lado dela. Deslizei para o banco dos passageiros e prossegui:

- A mulher do coronel Fowler tinha um ar... estás a ver o ar?

- Estou.

- Quanto ao coronel, melhor faria em trocar de relógio.

- Sem dúvida.

 

 

                                     CAPÍTULO VINTE E DOIS

 

Pequeno-almoço ou Escola de Operações Especiais? - perguntou Cynthia.

- Escola de Operações. Vamos comer o coronel Moore ao pequeno almoço.

Todas as casas de Bethany Hill têm à entrada do acesso uma tabuleta com letras pretas, indicando o nome dos ocupantes. À distância de cinco casas da do coronel Fowler, li “Coronel e Mrs. Kent.” Indiquei-a e comentei para Cynthia:

- Pergunto a mim próprio onde estará Kent daqui a um mês?

- Espero que não seja na prisão de Leavenworth. Sinto pena dele.

- São as pessoas que constróem a sua infelicidade.

- Podias mostrar um pouco mais de compaixão, Paul.

- De acordo. Dada a corrupção aqui vigente, vamos assistir a uma série de demissões repentinas, reformas antecipadas e transferências, talvez alguns divórcios, mas, com um pouco de sorte, serão evitados os julgamentos em tribunal marcial. Seria preciso uma ala inteira em Leavenworth só para os amantes de Ann Campbell. Estás a imaginar o quadro? Duas ou três dezenas de ex-oficiais às voltas nas celas...

- Por amor de Deus, Paul!

- Tens razão, desculpa.

Tínhamos deixado Bethany Hill para nos misturarmos no trânsito matinal da base: automóveis particulares, camiões de transporte de tropas, jipes e carros de serviço, soldados marchando ou correndo em formação, milhares de homens e mulheres a caminho das suas funções, um formigueiro semelhante e em tudo diferente ao de uma cidadezinha, às oito da manhã. O dia-a-dia numa guarnição secundária em época de paz é monótono, mas, em tempo de guerra, a vida em Fort Hadley é cem vezes preferível à da frente de batalha.

- Algumas pessoas não têm a noção do tempo. Quase engoli a sequência de acontecimentos do coronel Fowler, que estava bastante próxima da realidade.

- Na verdade, acho que ele fez o telefonema muito mais cedo.

- Pensa bem nas implicações do que estás a dizer, Paul.

- Estou a dizer que ele já sabia que ela estava morta e fez o telefonema para fazer acreditar que ainda a julgava viva e atrasada para o encontro. Só não tinha previsto que chegássemos tão cedo a casa dela.

- É uma explicação. Mas como sabia ele que Ann estava morta?

- Há três respostas: ou lhe disseram, ou descobriu o corpo ou ele próprio a matou.

- Não a matou - ripostou Cynthia.

- Gostas mesmo do tipo - comentei, fitando-a.

- Gosto sim, e não é um criminoso.

- Todos o somos, Cynthia.

- Não é verdade.

- Contudo, o móbil dele é visível.

- Sim, proteger o general e livrar a base de um agente corruptor.

- É o tipo de móbil altruísta - observei, com um aceno de cabeça - que pode levar ao crime numa pessoa como o coronel Fowler. Mas talvez existisse uma razão mais pessoal.

- Talvez - concordou Cynthia, metendo pelo caminho que levava à Escola de Operações.

Se não tivéssemos apanhado o coronel Moore com esta prova dos cabelos encaracolados, colocaria o coronel Fowler à cabeça da lista de suspeitos com base neste telefonema, para nem falar da expressão do rosto da mulher dele.

- Sem dúvida. Até onde pensas ir quanto a Moore?

- Até ao limite.

- Não achas que chegou a altura de lhe falar do cabelo, das impressões digitais e das marcas de pneus?

- Não necessariamente. Custou-nos bastante a chegar lá. Agora, quero que seja ele a enterrar-se um pouco mais.

Cynthia passou junto a uma tabuleta que dizia “Proibida a entrada a estranhos ao serviço.” Não havia guarita, mas avistei um carro da Polícia Militar a pouca distância.

Estacionámos diante do edifício das Operações Psicológicas, junto à placa onde se lia: “Estacionamento reservado.” Avistei o Ford Fairlane cinzento que pertencia supostamente ao coronel Moore.

Entrámos no edifício, onde um sargento vigiava o átrio deserto, atrás de uma secretária.

- Posso ajudá-los?

- Conduza-nos ao gabinete do coronel Moore - respondi, depois de lhe mostrar o meu cartão do CID.

- Vou preveni-lo, chefe.

Detesto esta designação familiar que por vezes se utiliza a nível de subalternos.

- Acho que não me compreendeu bem, jovem. Leve-nos ao gabinete dele.

- Muito bem, sir. Sigam-me.

Percorremos um corredor interminável de paredes de cimento, pintadas num tom verde-cinza. O chão era também de cimento sem mosaicos e de um tom acinzentado. Havia portas de aço a espaços de três metros e meio que davam para gabinetes onde avistei tenentes e capitães, todos indubitavelmente psicólogos, debruçados sobre secretárias de tampo metálico.

- Esquece Nietzsche - comentei para Cynthia. - É mais Kafka. O sargento deitou-me um olhar de lado, mas conservou-se em silêncio.

- Há quanto tempo chegou o coronel? - perguntei-lhe. -- Há uns dez minutos.

- É dele o Ford Fairlane cinzento que está estacionado em frente?

- É, sir. É por causa do homicídio Campbell?

- Por uma multa de estacionamento não é de certeza.

- Claro, sir.

- Onde fica o gabinete do capitão Campbell?

- A direita do do coronel Moore. Está vazio - especificou. Tínhamos chegado ao fundo do corredor que desembocava numa porta fechada com a indicação de “Coronel Moore.”

- Devo anunciá-los? -perguntou o sargento.

- Não. É tudo.

- Eu... - hesitou.

- Sim?

- Espero de todo o coração que descubra o tipo que fez isto - concluiu, girando sobre os calcanhares e afastando-se em sentido contrário.

A última porta à direita estava fechada e a placa indicava “Capitão Campbell.” Cynthia abriu a porta e entrámos.

De facto, o gabinete estava vazio, com excepção de um ramo de flores no chão, sem qualquer cartão.

Voltámos ao corredor e percorremos os poucos passos que nos separavam da porta do gabinete de Moore. Bati e ele respondeu:

- Entre. Entre.

Obedecemos. O coronel estava debruçado sobre a secretária e não ergueu os olhos. O gabinete era amplo, mas tão sinistro como os outros por onde havíamos passado. Continha ficheiros encostados à parede da direita, uma mesa pequena de reuniões junto à parede da esquerda e, num canto, um bengaleiro onde ele pendurara o casaco. Uma ventoinha agitava o ar, revolvendo papéis pregados nos placares. Ao lado da secretária de Moore via-se o símbolo absoluto de reconhecimento do seu estatuto pelo governo: uma trituradora de papel.

- O que é...? - inquiriu, endireitando-se. - Oh... - exclamou, olhando em volta surpreendido, como que a interrogar-se como tínhamos chegado ali.

- Pedimos desculpa de aparecer de improviso, coronel, mas estávamos Perto. Podemos sentar-nos?

- Sim, claro - anuiu, indicando-nos duas cadeiras em frente da secretária. - Mas gostaria que da próxima vez marcassem uma entrevista.

- Claro, sir. Da próxima vez marcamos um encontro no gabinete do Comandante da Polícia Militar.

- É só informarem-me.

À semelhança de muitos cientistas e intelectuais, Moore parecia impermeável às subtilezas da organização do mundo que o rodeava. Acho que não compreenderia, mesmo que o tivesse informado: “Da próxima vez, encontramo-nos na prisão da base.”

- Em que posso ajudá-los?

- Bom - comecei -, gostaria que me garantisse novamente que estava na sua casa na noite da tragédia.

- Fiquei lá das sete da tarde às sete da manhã, quando saí para ir trabalhar.

Era mais ou menos a hora a que Cynthia e eu chegáramos a Victory Gardens, e perguntei:

- Vive só?

- Sim.

- Alguém pode confirmar que estava em sua casa?

- Não.

- Telefonou para o quartel-general às vinte e três horas e falou com Ann Campbell, não é verdade?

- Correcto.

- A conversa relacionou-se com o trabalho?

- Precisamente.

- Voltou a telefonar, mais ou menos ao meio-dia, para casa dela e deixou uma mensagem no atendedor.

- Sim.

- Mas já tentara contactá-la e constatara que o telefone estava avariado.

- É verdade.

- Porque pretendia falar-lhe?

- Explico isso na mensagem: os polícias militares tinham aparecido e haviam-lhe esvaziado o gabinete. Interpus-me porque alguns dossiês eram confidenciais, mas eles não me deram ouvidos. O Exército funciona como um estado policial - acrescentou. - Sabe que nem sequer precisam de um mandado de busca?

- Se estas fossem as instalações da IBM, coronel, os guardas encarregues da segurança poderiam fazer o mesmo desde que tivessem ordem de um quadro superior da firma. Tudo e toda a gente estão sob a alçada do Tio Sam. Possui alguns direitos constitucionais em caso de investigação criminal, mas aconselho-o a que não os utilize, excepto se o algemar para o levar preso. Nesse caso, todos zelaremos, inclusive eu, para que os seus direitos sejam respeitados. Está, pois, disposto a colaborar esta manhã, coronel?

- Não, só à força e sob protesto.

- Perfeito.

Passeei os olhos pelo que me rodeava. Na última prateleira do armário metálico aberto encontrava-se um estojo de toilette, donde provinha indubitavelmente a escova de cabelos. Interroguei-me sobre se Moore dera pela sua falta.

Examinei disfarçadamente o receptáculo da trituradora de papel, mas estava vazio, o que pendia a seu favor. Moore não era estúpido, nem o tipo de professor bem-intencionado e distraído. Tinha, como já mencionei, um ar um tanto sinistro e ardiloso e emanava uma certa despreocupação arrogante, por isso não me surpreenderia por aí além ter descoberto um martelo e estacas em cima da secretária.

- Brenner? Tenho muito que fazer esta manhã.

- Afirmou que nos daria alguns esclarecimentos psicológicos quanto à personalidade de Ann Campbell.

- O que desejam saber?

- Em primeiro lugar, porque é que ela odiava o pai? Fitou-me longamente e observou:

- Vejo que aprendeu duas ou três coisas desde a nossa última entrevista.

- Correcto, sir. Miss Sunhill e eu andamos por aí a falar com as pessoas e cada uma revela-nos um pequeno pormenor; depois, voltamos a interrogá-las e, ao fim de alguns dias, sabemos o que perguntar e a quem. E, passo a passo, vamos distinguindo os maus dos bons e prendemos os maus. é simples, por comparação à guerra psicológica.

- E modesto de mais,

- Porque odiava ela o pai?

Respirou fundo, recostou-se na cadeira e respondeu:

- Deixe-me começar por explicar que acho que o general Campbell sofre de um distúrbio de personalidade designado por “neurose obsessiva compulsiva”. Ou seja, só pensa nele, é dominador, não tolera críticas e é um perfeccionista, incapaz de demonstrar afecto, mas extremamente competente e eficaz.

- Descreveu noventa por cento dos generais do Exército. E que mais?

- Ann Campbell não era muito diferente, o que é normal dado o parentesco que os unia. Duas personalidades semelhantes evoluem e desenvolvem-se sob o mesmo tecto, por um lado, um homem de uma certa idade, o pai, por outro, uma mulher mais jovem, a filha. Estão reunidas as condições para que haja problemas.

- Trata-se assim de um problema que remonta à sua infância infeliz.

- Não propriamente. De início, tudo caminha sobre rodas. Ann revia-se no pai, gostava da imagem que ele lhe dava, e o general reconhecia-se na filha com a mesma satisfação. Na verdade, Ann descreveu-me uma infância feliz, marcada por uma relação muito positiva com o pai.

- Em seguida tudo se deteriorou?

- Sim, é inevitável. Na infância, a criança pretende conquistar a aprovação do pai e este não se sente ameaçado na sua posição dominadora e vê no rebento uma projecção de si próprio. Contudo, na adolescência, começam a detectar um no outro traços de personalidade que lhes desagradam. O mais curioso reside em que se trata das suas próprias características, mas as pessoas jamais são objectivas no que lhes diz respeito. Adoptam, pois, uma posição de rivalidade e põem-se a formular críticas mútuas. Dado que nenhum deles as tolera e ambos são indubitavelmente empreendedores e competentes, surgem as chispas.

- Estamos a falar em geral ou mais exactamente dos Campbell, pai e filha? - inquiri.

Hesitou, segundo julgo, devido ao hábito de longa data quanto a revelar informações a coberto do sigilo profissional.

- Falo em geral e cabe-lhe tirar conclusões - respondeu por fim.

- Bom. Se Miss Sunhill e eu lhe fazemos perguntas específicas e nos responde em termos gerais, corremos o risco de nos perdermos. Somos um tanto tapados.

- Não é essa a minha opinião, nem conseguirão fazer-me acreditar nisso.

- De acordo. Voltemos ao ponto de partida - retorqui. - Informaram-nos que Ann se sentia em competição com o pai, que se apercebeu de que não podia entrar em concorrência no seio do Exército e que, em vez de tentar valorizar-se noutro âmbito, desencadeou uma campanha de sabotagem contra ele.

- Quem lhes deu essa informação?

- Alguém que a recebeu de um psicólogo.

- Pois bem, esse psicólogo está enganado. Uma personalidade obsessiva e compulsiva acredita sempre na possibilidade da competição e enfrenta a figura dominadora.

- Não era essa, portanto, a causa do ódio de Ann Campbell pelo pai? O confronto não os incomodava.

- De forma alguma. Esse ódio profundo nasceu de uma traição.

- Uma traição?

- Sim. Ann Campbell jamais teria desenvolvido um ódio irracional pelo pai devido à rivalidade, ciúme ou complexo de inferioridade. Apesar de uma concorrência crescente entre ambos, que pode, aliás, ser uma situação muito positiva, ela amava-o sinceramente até ao momento em que ele a traiu de forma tão absoluta e traumatizante que quase a destruiu. O homem que ela amava, que admirava e em quem confiava acima de todos os outros atraiçoou-a e despedaçou-lhe o coração. Estou a ser suficientemente específico? - acrescentou.

Decorridos uns segundos de silêncio, Cynthia inclinou-se para a frente e inquiriu:

- Atraiçoou-a como?

Moore limitou-se a fitar-nos, sem dar resposta.

- Ele violou-a? - insistiu Cynthia. Moore abanou a cabeça.

- Então?

- Pouco importa a natureza exacta da traição - respondeu ele finalmente. - Neste caso, apenas interessa que foi total e imperdoável.

- Deixe-se de tretas, coronel. Diga o que é que ele lhe fez.

Moore pareceu um tanto surpreendido, depois recompôs-se e respondeu:

- Não sei.

- Sabe, todavia, que não se tratou de violação nem incesto - vincou Cynthia.

- Sim, porque ela me disse. Mas quando falava comigo e evocava este facto, designava-o apenas por “traição”.

- Talvez ele se tenha muito simplesmente esquecido de lhe comprar um presente de aniversário - sugeri num tom sarcástico.

O coronel Moore pareceu contrariado e era, afinal, esse o meu objectivo.

- Não, Brenner - ripostou. - Trata-se, por regra, de algo menos fútil. Espero, contudo, que esteja à altura de compreender que quando uma pessoa em quem se depositou todo o amor e confiança nos trai de maneira grave e premeditada... não me refiro a esquecimento ou negligência, como sugeriu, mas a um acto profundamente egoísta e calculado, é impossível perdoar. O exemplo clássico é o da esposa que ama e idolatra o marido e descobre que ele mantém uma ligação apaixonada com outra mulher.

Cynthia e eu meditámos nestas palavras por momentos e suponho que nos ocorreram recordações pessoais. Ante o nosso mutismo, Moore retomou a palavra:

- Eis um outro exemplo mais relevante para o caso em questão: uma adolescente, ou jovem adulta, ama e venera o pai. Um belo dia surpreende uma conversa e ouve-o dizer a um dos amigos ou sócios: “Jane é uma rapariga muito estranha, muito caseira e sempre atrás de mim. Fantasia sobre rapazes, mas nunca a convidam porque é desajeitada e muito tímida. Gostava de que ela saísse de vez em quando ou se tornasse independente e encontrasse casa própria.” Isso não chegaria para destruir uma filha que adorava o pai, não podia despedaçar-lhe o coração? - concluiu, fitando-nos com um olhar perscrutador.

“Sem a menor dúvida. Só de o ouvir falar vieram-me as lágrimas aos olhos e não sou uma pessoa sensível”, ironizei em pensamento.

- Acha que se passou algo do género? - perguntei.

- Talvez.

- Mas não o sabe. Porque razão ela não lhe contou?

- Na maioria das vezes, a pessoa prefere fugir, porque a confissão da verdade levaria a uma apreciação ou conselho do terapeuta, o que desagrada ao interessado. O paciente sabe que a traição pode parecer menos terrível a um interlocutor objectivo, embora possa ser muito grave por qualquer padrão convencional, à semelhança do incesto. Creio que não se tratava disso, mas era algo de intrínsecamente terrível.

Acenei com a cabeça, como se estivesse a segui-lo de fio a pavio, mas a pergunta mantinha-se e acabei por fazê-la:

- Tem uma ideia do que foi?

- Não e não preciso de conhecer o que o pai lhe fez, basta-me saber que lhe causou forte trauma, que foi um grave atentado à confiança e que alterou irremediavelmente a relação entre ambos.

Foi em vão que tentei aplicar os meus princípios pessoais a esta declaração. Na minha profissão é necessário saber quem, o quê, onde, quando, como, porquê. Talvez Moore soubesse quando. Por conseguinte, indaguei:

- Quando é que isso aconteceu?

- Há uns dez anos - respondeu.

- Há dez anos, ela encontrava-se em West Point.

- De facto, sucedeu quando Ann estava no segundo ano.

- Entendo.

- E quando começou ela a.procurar vingar-se? Não foi logo - interferiu Cynthia.

- Não, não foi logo. Atravessou as fases habituais de choque, recusa, depressão e, por fim, revolta. Só há seis anos decidiu vingar-se, em vez de tentar adaptar-se à situação. Tornou-se, na verdade, bastante instável e depois obcecada com a teoria de que apenas a vingança poderia recompor as coisas.

- E quem lhe meteu essa ideia na cabeça? - inquiri. - O senhor ou Friedrich Nietzsche?

- Recuso assumir qualquer responsabilidade pela sua campanha contra o pai. Limitei-me ao meu papel de profissional, que era escutá-la.

- Nesse caso, para ela seria o mesmo que falar com um canário - observou Cynthia. - Não tentou dissuadi-la com os seus conselhos?

- Claro que sim. De um ponto de vista clínico, Ann não escolhera o caminho indicado e foi o que lhe disse, mas nunca a encorajei, como você acabou de sugerir.

- Se esta campanha de vingança tivesse sido dirigida contra si, estou certo de que se mostraria um pouco mais persuasivo - opinei.

Ele fulminou-me com o olhar antes de ripostar:

- Entenda, por favor, que, por vezes, o paciente não deseja inicialmente procurar a cura mediante um processo terapêutico, mas apenas acalentar a raiva, a fim de pagar ao outro na mesma moeda: traíste-me, vou trair-te. Seduziste a minha mulher, vou seduzir a tua. Na maior parte das vezes, não é realista nem possível alguém vingar-se mediante um acto idêntico ao de que se foi alvo, todavia, em certas situações, isso é possível. A psicologia convencional defenderá que não é saudável, mas o indivíduo comum sabe que a vingança pode ser terapêutica. O problema reside em que esse acto não é mentalmente benéfico para o que o executa e se torna assim o perseguidor.

- Entendo-o perfeitamente, coronel, mas pergunto a mim próprio porque insiste em expressar-se em termos clínicos e generalizados. É essa a sua forma de se distanciar desta tragédia? A sua maneira de se esquivar a responsabilidades pessoais?

Não admito essa sua implicação de que nada tentei para a ajudar ou que encorajei o seu comportamento - ripostou, picado.

- Quer o admita ou não, alguns estão convencidos de que assim é informei-o.

- O que espera de... - arguiu com um encolher de ombros, acrescentando em seguida: - O meu trabalho, a minha pessoa, esta escola e as minhas relações com Ann Campbell nunca foram apreciadas nem compreendidas nesta base.

- Já tive ensejo de o observar. Visionei algumas das cassetes de Ann Campbell, sabe, e penso que, no vosso sector, ambos desempenhavam uma função vital. Contudo, talvez estivessem a meter-se por caminhos um tanto inquietantes.

- Todas as nossas actividades são supervisadas ao mais alto nível.

- Ainda bem que mo diz. No entanto, acho que Ann Campbell se apropriou de uma parte para a testar no seu próprio campo de batalha.

Moore absteve-se de comentários.

- Sabe por que conservava ela arquivos das sessões de terapia com criminosos? Autores de abuso sexual?

- Ignorava - respondeu, após uns momentos de reflexão. - Contudo, a ser verdade, fazia-o por mero interesse pessoal. Quase todos os psicólogos daqui têm um projecto ou uma pesquisa em curso fora do seu trabalho pessoal, o qual se encontra frequentemente ligado à elaboração de uma tese.

- Tem a sua lógica.

- Que sentimentos lhe provocava o facto de saber que ela tinha relações sexuais com múltiplos parceiros? - interessou-se Cynthia.

- Bom... eu... Quem lhe disse isso? - acabou por dizer, após uma certa hesitação.

- Toda a gente, menos o senhor - respondeu Cynthia.

- Nunca me perguntou.

- Estou a fazê-lo agora. Que sentimentos lhe provocava o facto de ela se meter com homens que não lhe interessavam apenas para atingir o pai?

Ele tossicou e depois respondeu:

- Bom... Não me parecia sensato, sobretudo devido aos motivos que a levavam a agir assim.

- Tinha ciúmes?

- Claro que não. Eu...

- Sentia-se traído? - interrompeu-o Cynthia.

- É óbvio que não. Tínhamos uma relação de mútua estima e confiança, intelectual e platónica.

Desejava perguntar-lhe se isso lhe dava o direito de a amarrar nua ao solo, mas tinha de saber porquê. Na realidade, achava que o sabia. Além da necessidade de descobrir o criminoso, apercebia-me, à luz das palavras de Moore sobre a traição, de que a vida e o sofrimento de Ann Campbell necessitavam de ser compreendidos.

Disparei um tiro no escuro e arrisquei:

- Creio saber que quando esteve com Ann Campbell no Golfo lhe propôs uma ofensiva psicológica chamada Operação Louca.

- Não estou autorizado a falar sobre o assunto.

- Ann Campbell acreditava no poder do sexo como um meio de atingir os objectivos pretendidos, não é verdade?

- Sim, acreditava.

- Como lhe disse, visionei as cassetes das suas conferências e vejo qual foi a sua formação. Todavia, e embora não negue o poder do sexo, vejo-o como uma força positiva, uma expressão de amor e bem-estar. Tudo indica que Ann inverteu o sentido, certo?

- O sexo em si não é bom nem mau - replicou Moore, fugindo à sua maneira. - Contudo, é verdade que algumas pessoas, sobretudo as mulheres, se servem dele como um instrumento para atingir os seus objectivos.

- Concordas? - dirigi-me a Cynthia.

Ela parecia um tanto irritada, embora eu ignorasse porquê. No entanto, respondeu:

- Admito que algumas se utilizam por vezes do sexo como de uma arma, mas é um comportamento inaceitável. No caso de Ann Campbell, talvez ela o encarasse como a única arma de que dispunha contra a injustiça ou o seu sentimento de impotência. Creio, coronel Moore, que, sabendo isso, era seu dever moral, sem falar do de oficial e superior, tentar pará-la.

- Não estava em posição de parar o que quer que fosse - replicou Moore, fitando-a.

- Porque não? - contrapôs Cynthia. - É um oficial ou um lacaio? Era ou não amigo dela? Dado não estar rendido aos seus encantos, decerto poderia tê-la chamado à razão. Ou será que as suas experiências sexuais se revelavam interessantes de um ponto de vista clínico? Será que se sentia excitado por esta multiplicidade de parceiros sexuais?

- Nego-me a responder ou falar com esta mulher - decidiu Moore, olhando-me.

- Só pode defender-se com a Quinta Emenda - informei-o -, se lhe lermos os seus direitos como acusado, o que não tenho intenção de fazer. Deixaremos, contudo, a pergunta em branco e prometo-lhe que Miss Sunhill se esforçará doravante por formular as suas perguntas num estilo que não considere insubordinação.

Aparentemente, Moore não viu qualquer vantagem em continuar a mostrar-se indignado e limitou-se a acenar com a cabeça, recostando-se na cadeira. A linguagem corporal indicava: “Nem sequer o meu desprezo merecem. Disparem.”

Cynthia recuperou a calma e prosseguiu num tom de onde desaparecera toda a agressividade:

- Quando teria Ann Campbell dado a sua vingança por consumada?

- Infelizmente só ela o sabia - respondeu o coronel Moore num tom de voz sem timbre e profissional. - Parece que o que estava a fazer não a satisfazia e o próprio general era parte do problema. Trata-se de um homem incapaz de se considerar atingido - acrescentou com um esgar - e ainda mais incapaz de admitir a derrota e erguer a bandeira branca. Nunca, tanto quanto sei, pediu um cessar fogo, continuando a metáfora militar, nem propôs conversações de paz. Considerava aparentemente que o quer que lhe tivesse feito era anulado pela atitude dele.

- Por outras palavras - concluiu Cynthia - eram teimosos de mais para negociarem. Ele nunca lhe pediu desculpa pela traição.

- Bom, em certa medida, mas é fácil adivinhar o tipo de desculpa que se arranca a um homem como ele.

- Só é pena que tantos inocentes tenham sido atingidos pelo seu desentendimento - lamentou Cynthia.

- Na vida como na guerra - redarguiu Moore com uma perspicácia inesperada. - Sempre foi assim.

“Realmente”, pensei, ou, parafraseando Platão: “Só os mortos vêem o fim de uma guerra.”

- Quando saiu de casa na manhã do crime - dirigiu-se Cynthia a Moore - reparou que o carro de Ann Campbell não estava diante da casa dela?

Reflectiu uns momentos.

- Talvez, inconscientemente - respondeu.

- Não costuma, por regra, prestar atenção?

- Não.

- Então, nunca sabe se a sua subordinada, vizinha e amiga ainda está em casa ou já saiu para o trabalho?

- Na maioria das vezes, sei.

- Aconteceu alguma vez irem juntos?

- Sim.

- Sabia que Ann Campbell combinara ir tomar o pequeno-almoço com os pais nessa manhã?

- Não... bom, sim, agora que fala nisso. Ela tinha-me dito.

- Qual era a finalidade deste encontro?

- A finalidade?

- Os Campbell tinham por hábito encontrarem-se pelo simples prazer de se verem?

- Não creio.

- Segundo parece, coronel, o general Campbell fizera um ultimato à filha quanto ao seu comportamento e ela devia dar uma resposta nesse pequeno-almoço. Correcto?

Foi a primeira vez que Moore se mostrou pouco à vontade, interrogando-se talvez sobre o que sabíamos e através de quem.

- Correcto? - repetiu Cynthia.

- Eu... ela disse-me realmente que o pai queria resolver este problema.

Cynthia voltara a irritar-se e só com dificuldade controlava a dureza da voz:

- Ela pô-lo ou não ao corrente dos factos, coronel? Utilizou ou não as palavras “ultimato”, “tribunal marcial”, “terapia imposta” e “demissão”? Confiou ou não em si? Pediu-lhe ou não conselho?

Moore mostrava-se visivelmente contrariado ante o tom adoptado por Cynthia, mas sobretudo enervado ante a pergunta, que tocara, sem dúvida, em algo que o assustava. Acabou, obviamente, por se convencer de que não sabíamos o suficiente para o apanhar em falta, pois vincou:

- Disse-vos tudo o que sabia. Ela nunca me falou na proposta do pai, nem me pediu conselho. Expliquei-vos que, na qualidade de terapeuta, a ouvia, fazendo o mínimo de perguntas e só a aconselhando quando me pedia.

- Não acredito que um homem pudesse mostrar-se tão reservado com uma mulher que conhecia há seis anos.

- Então, nada compreende de terapia, Miss Sunhill. Dei-lhe conselhos referentes à carreira, missões e coisas no género, e mesmo a minha opinião pessoal sobre o local de habitação, férias, etc. Contudo, nunca abordávamos as questões familiares, excepto nas sessões de terapia, e estas entrevistas eram compartimentadas e nunca interferiam no trabalho ou tempo de lazer. Era um acordo firmado, que nunca transgredimos. Os médicos não gostam de que os amigos os consultem no campo de golfe e os advogados não dão conselhos jurídicos nos bares. Os terapeutas agem da mesma forma.

- Obrigada pela informação, coronel - retorquiu Cynthia - e vejo que reflectiu na pergunta. Devo concluir que a defunta nunca teve oportunidade de marcar uma sessão consigo para discutir este ultimato e o prazo imposto pelo pai?

- Exacto.

- Portanto, depois de todos estes anos, no momento em que toda esta tristeza, sofrimento e raiva estavam prestes a terminar, os dois encontravam-se demasiado ocupados para discutir o assunto?

- Foi a própria Ann quem resolveu não me falar disso. Tínhamos, porém, combinado encontrar-nos ontem à tarde, depois da entrevista com o pai.

- Não acredito em si, coronel - ripostou Cynthia. - Acho que existe uma ligação entre o ultimato do general e o que aconteceu a Ann e que o senhor sabe perfeitamente qual é essa ligação.

- Não admito que me acusem de mentiroso! - protestou o coronel, levantando-se.

Cynthia imitou-o e, de olhos pregados nos do interlocutor, redarguiu

- Já sabíamos que é um mentiroso!

O que era verdade! Descobríramos que Moore estivera na carreira de tiro seis com Ann Campbell e acho que ele se deu conta do facto nesse momento. Como nos atreveríamos, se assim não fosse, a insultar um homem com a sua patente? Contudo, quase tínhamos transposto a ombreira e havia que ficar ali. Levantei-me igualmente e declarei:

- Obrigado por nos ter dispensado o seu tempo, coronel. É inútil apresentar queixa ao coronel Kent, basta um relatório generalizado. Vou colocar um polícia militar à sua porta e se tentar destruir documentos ou levar alguma coisa daqui, será preso e guardado à vista na base.

O homem tremia, mas eu ignorava se era de medo ou raiva, o que, aliás, pouco me interessava.

- Vou denunciar-vos a ambos - declarou.

- Não o faria, se estivesse no seu lugar. Somos a sua última esperança de evitar a corda... ou um pelotão de fuzilamento? Tenho de me certificar. Os fuzilamentos são demasiado raros para que me recorde. De qualquer maneira, não me pressione, sabe o que quero dizer. Bom dia, coronel.

Deixámo-lo a meditar sobre as opções que lhe restavam, que não incluíam irritar-me.

 

 

                                    CAPÍTULO VINTE E TRÊS

 

Cynthia estacionou o carro junto ao gabinete do comandante da Polícia Militar, a uns metros do meu Blazer e perto de três carrinhas da imprensa e de um grupo de pessoas, obviamente jornalistas. Devíamos corresponder à descrição fornecida pelos detectives de serviço, pois mal nos avistaram atacaram-nos como um bando de gafanhotos. Fort Hadley é uma base aberta e torna-se impossível afastar os contribuintes, o que, aliás, ninguém deseja. Contudo, dispensaria perfeitamente esta invasão.

O primeiro jornalista a abordar-nos, novo, bem vestido e penteado, brandia um microfone, enquanto os outros se contentavam com canetas e blocos de apontamentos. Tive consciência das câmaras apontadas na nossa direcção. O tipo bem penteado perguntou-me, colocando-me o microfone debaixo do nariz:

- É o agente Brenner?

- Não, sou o responsável pela máquina da Coca-Cola. Continuámos a andar, mas a multidão cercou-nos, impedindo o acesso à entrada.

- É a agente Sunhill? -inquiriu uma jornalista a Cynthia.

- Não, venho com o indivíduo da máquina de Coca-Cola.

Contudo, não se deixaram enganar e foram fazendo perguntas até chegarmos finalmente aos degraus do edifício, guardado por dois imponentes polícias militares munidos de M-16. Transpus os degraus e virei-me para a turba, que não podia avançar mais.

- Bom dia - saudei.

Os jornalistas calaram-se e tomei consciência de três câmaras de televisão e de uma dúzia de fotógrafos, disparando flaches.

- A investigação da morte do oficial Ann Campbell prossegue o seu curso anunciei. - Temos várias pistas, mas nenhum suspeito. Foram mobilizados todos os recursos de Fort Hadley, da Divisão de Investigação Criminal e da polícia local. Trabalhamos em estreita colaboração e faremos uma conferência de imprensa muito em breve.

“Treta!”, acrescentei para comigo.

Desencadeou-se um chorrilho de perguntas e ouvi algumas: “é verdade que ela foi violada?” - “Parece que alguém a encontrou amarrada e nua?” “foi estrangulada?” - “Quem acha que o fez?” - “Não é a segunda violação numa semana?”, e esta particularmente interessante: “Já interrogou o namorado, o filho do chefe da polícia?”, e por aí fora.

- Responderemos a todas as vossas perguntas na conferência de imprensa. Entrei no edifício, seguido de perto por Cynthia, e quase esbarrámos no coronel Kent, que tinha um ar desesperado e nervoso.

- Não consigo enxotá-los - queixou-se.

- Nem pode. É o que me agrada neste país.

- Eles devem manter-se no centro da base, mas Beaumont também está incluído e tive de destacar uma dúzia dos meus homens para lá. Não podem ir até às carreiras de tiro, nem a Jordan Field, mas não param de meter o nariz por todo o lado.

- Talvez tenham mais sorte do que nós.

- Não me agrada nada. Alguma novidade? - inquiriu.

- Falámos com o coronel Fowler e o coronel Moore. Gostaria que colocasse dois polícias militares no gabinete deste último e que não o largassem de vista. Não deve usar a trituradora, nem levar nada do gabinete.

- Muito bem, encarrego-me disso. Vai prendê-lo?

- Estamos a tentar que nos faça um retrato psicológico da vítima - respondi.

- A quem pode isso interessar?

- A Miss Sunhill e a mim - elucidei.

- Porquê? Qual a relação com o coronel Moore?

- Bom, quanto mais sei, menos motivos vejo para que ele quisesse matar a sua protegida. Por outro lado, apercebo-me de que outras pessoas poderiam ter sólidas razões para o fazer.

- Até certo ponto compreendo a sua maneira de agir e não sou o único

- redarguiu Kent com um suspiro exasperado. - Está, porém, a ultrapassar as marcas. E, se não prender agora Moore e se ele for o assassino e o FBI o detiver, fará figura de idiota.

- Eu sei, Bill. Mas, se o prender e ele estiver inocente, ainda farei pior figura.

- Mostre tomates, que raio!

- Vá-se lixar!

- Ei! Está a dirigir-se a um oficial superior!

- Vá-se lixar, coronel!

Girei sobre os calcanhares e dirigi-me ao nosso gabinete, seguido de Cynthia, mas não de Kent, onde nos esperava uma pilha de mensagens telefónicas, outra de relatórios da equipa forense e do médico legista e montes de papéis com o ar de notas internas para “ler e assinar”, metade das quais não me dizia respeito. O Exército pode lixar as folhas de pagamento, mandar-nos a mobília para o Alasca e a família para o Japão, perder o fio às férias, mas a partir do momento em que estamos numa missão temporária, sob uma falsa identidade e num gabinete por empréstimo, somos bombardeados com inúmeros e insípidos memorandos.

- Não foi algo muito agradável - comentou Cynthia.

- Ao dizer que me faltavam tomates? Não, não foi.

- Claro que não, mas referia-me a teres dito: “Vá-se lixar!”.

- Não há problema! - garanti, folheando as mensagens telefónicas.

- Bom, mas Kent fez algo de errado, não? - inquiriu Cynthia, após um prolongado silêncio.

- Claro, e ele sabe.

- Mesmo assim... exageraste. De qualquer maneira, precisamos dele por mais que tenha metido a pata na poça.

- Não me compadeço muito de um oficial que quebrou um compromisso.

- Excepto se se chamar Ann Campbell. Não fiz comentários.

- O que me dizes a um café e donuts?

- Boa ideia.

Cyntia carregou no botão do intercomunicador e chamou a especialista Baker.

Sentei-me e abri o dossiê clínico de Ann Campbell. Era extremamente fino para tantos anos de serviço, o que me levou a concluir que ela preferia médicos civis. Havia, porém, um relatório ginecológico referente ao seu estado físico quando ingressou em West Point. O médico anotara: “H. imperforatus.” Mostrei o documento a Cynthia e perguntei:

- Isto significa que o hímen está intacto?

- Sim, intacto e sem abertura. Não é uma prova absoluta de virgindade, mas pode concluir-se que nada de grandes dimensões o penetrou.

- Podemos, assim, eliminar a violação do pai, quando ela era criança.

- Sim, mas tal não exclui outro tipo de abusos sexuais. Todavia, as palavras do coronel Moore tinham um toque de verdade - acrescentou. O que quer que o pai lhe tenha feito ocorreu no seu segundo ano em West Point, e duvido de que ele tenha violado a filha de vinte anos na academia militar... mas é interessante o facto de ela ainda ser virgem quando ingressou lá. Há outros relatórios ginecológicos?

Procurei, mas não encontrei mais nenhum.

- Curiosamente, não - respondi. - Devia consultar médicos particulares, sempre que possível.

- É provável. Não passaria tantos anos sem ir a um ginecologista... Após uns momentos de reflexão, retomou a palavra:

- Porque será que estou convencida de que o que quer que lhe aconteceu em West Point foi sexual?

- Porque é lógico. Olho por olho...

- Sabemos que teve algo a ver com o pai... talvez a lançasse nos braços de um oficial superior, ou...

- Estamos a aproximar-nos, mas esperemos para saber mais. Lê o relatório do psiquiatra na última página - incitei, entregando-lhe o dossiê clínico.

Nesse momento entrou a especialista Baker e apresentei-a a Cynthia, mas elas já se conheciam.

- O que acha? -perguntei a Baker.

- Desculpe, sir?

- Quem é o culpado?

Ela encolheu os ombros.

- Um namorado ou um estranho? - dirigiu-se-lhe Cynthia, interrompendo a leitura do dossiê.

Ela reflectiu uns momentos antes de responder:

- Um namorado, tinha um monte deles - acrescentou.

- A sério? - retorqui. - Alguém da Polícia Militar ou da base lhe pediu que desse qualquer informação sobre este caso?

- Sim, sir.

- Quem?

- Passei o dia todo de ontem e a manhã de hoje a atender telefonemas para ambos e as pessoas não param de fazer perguntas. Um tal coronel Moore, o patrão da vítima, o coronel Fowler, que é adjunto do general, o major Bowes, chefe da CID, comandante da polícia Yardley, de Midland, e um montão de outras pessoas, inclusive jornalistas. Anotei tudo.

- E todos curiosos?

- Exacto, sir, mas respondi que deviam dirigir-se a qualquer dos dois.

- Excelente. Mas, diga-me, alguém do gabinete do comandante da Polícia Militar lhe disse algo que devamos saber?

Miss Baker compreendeu o que eu pretendia dela, concentrou-se e acabou por dizer:

- Correm boatos, rumores e coisas que podem ou não ser verdade.

- Sim, já me dei conta, Baker. As suas revelações são altamente secretas e garanto-lhe não só o anonimato, mas a transferência para qualquer sítio do mundo onde pretenda ir. Havai, Japão, Alemanha, Califórnia. É só dizer. De acordo?

- Sim, sir.

- Fale-me primeiro do coronel Kent. O que se diz?

- Bom... - pigarreou. - Sempre correram boatos de que o coronel Kent e Ann Campbell...

- Podiam. Isso já sabemos. Que mais?

- Bom... é isso.

- Há quanto tempo está aqui?

- Uns meses.

- Acha que ele estava apaixonado por ela?

- Ninguém sabe - respondeu com um encolher de ombros. - Ou seja... era impossível dizer porque ambos se mostravam sempre muito distantes quando estavam juntos, mas sentia-se que havia algo entre os dois.

- Ela vinha aqui ao gabinete dele?

- De vez em quando, geralmente durante o dia. À noite, era o contrário. As patrulhas viam o carro dele a dirigir-se à Escola de Operações Especiais e mandavam mensagens do género: “O Aluado Seis a caminho da Queridinha Um.” Era uma espécie de piada e o coronel Kent decerto as escutava no rádio e sabia que lhe era dirigida e a Ann Campbell, mas os autores nunca se identificavam e disfarçavam a voz, portanto nada podia fazer. De qualquer maneira, jamais teria agido, pois tal só contribuiria para aumentar os boatos. É impossível ocultar muita coisa numa base pequena. Os polícias militares vêem tudo o que se passa, mas, se não for ilegal nem contra o regulamento, deixam andar, sobretudo tratando-se de oficiais superiores.

Fizera bem em perguntar e ainda não acabara:

- Sabia que Ann Campbell era o oficial de serviço na base na noite do crime, Baker?

- Sim.

- O coronel Kent costumava trabalhar até tarde nessas noites?

- Bom... é o que corre.

- Sabe se o coronel esteve aqui na noite em que ela foi assassinada?

- Esteve. Não que eu visse, mas, segundo consta, ele saiu do gabinete mais ou menos às dezoito horas e voltou às vinte e uma. Trabalhou até por volta da meia-noite e depois foi-se embora. O pessoal que estava de vigia viu-o seguir no carro de serviço ao longo da base e tomar a direcção de Bethany Hill, onde vive.

- Percebo. E era do conhecimento comum que a senhora Kent estava ausente?

- Sim, sir. Todos sabiam.

- Presumo que uma patrulha passa pelo menos uma vez por noite em Bethany Hill.

- Correcto, sir. Pelo menos uma vez.

- E quais foram os comentários nessa noite sobre o Aluado Seis?

- Bom... Nada de visitas e o carro dele não saiu do acesso a noite toda. Contudo, poderia ter levado o automóvel particular sem que ninguém se apercebesse.

“Ou o carro da mulher, embora eu não tivesse visto nenhum no acesso, quando por lá passei esta manhã”, pensei. Havia, contudo, uma garagem nas traseiras da casa e perguntei a Baker:

- Compreende o teor destas perguntas?

- Oh, sim.

- Não deve servir para alimentar as conversas de corredor.

- Não, sir.

- Muito bem. Obrigado. Agora, mande trazerem-nos café e donuts, ou algo do género.

Ela saiu e pairou um leve silêncio entre nós, após o que Cynthia comentou;

- Foi boa ideia.

- Obrigado, mas não se deve confiar muito nos boatos que circulam pelos gabinetes.

- Trata-se, ainda assim, do quartel-general da Polícia Militar.

- Exacto. Compreendes, portanto, a minha irritação com Kent. Esse idiota tornou-se motivo de chacota entre o próprio pessoal.

- É o que constato.

- Pode-se obviamente esquecer a moralidade. Só que nunca, nunca se deve brincar em serviço. As pessoas troçam.

- Imagino o que devem ter gozado nas nossas costas em Bruxelas e Falis Church.

- Sem dúvida.

- É muito embaraçoso!

- Claro, e espero que te tenha servido de lição.

- O que estavas a tentar provar com Baker? - sorriu depois, fixando-me

- Que todo o mundo goza à custa de Kent?

Encolhi os ombros e ela prosseguiu:

- São uns oito ou nove quilómetros entre Bethany Hill e a carreira de tiro seis. Kent podia percorrer a estrada em menos de dez minutos, até mesmo fazendo os últimos quilómetros sem luz, pois a noite estava clara.

- Já tinha pensado nisso, e, carregando no acelerador, podia levar pouco mais de dez minutos de Beaumont House à carreira de tiro.

- Uma reflexão a ter em conta - concordou e acenou com a cabeça, indicando o dossiê clínico que tinha na frente. - O que te inspira esse relatório de psiquiatria?

- Ann Campbell sofrera qualquer trauma e não falou com ninguém. E tu? O que achas?

- O mesmo. Este relatório não é muito explícito, mas inclinar-me-ia a afirmar que ela não sofria de stresse ou esgotamento, mas que, na origem do seu problema, se encontrava um evento específico que a traumatizou e a levou, por qualquer motivo, a odiar o pai. Por outras palavras, este não estava ao seu lado quando tal evento, qualquer que tenha sido, aconteceu. Encaixa-se?

- Assim parece.

Pensei uns momentos e retomei a palavra:

- Não consigo afastar a ideia de que teve algo a ver com o sexo e com um tipo que tinha mais uma ou duas estrelas do que o pai; e que este recuou, convencendo a filha a imitá-lo.

- Algo do género.

- Precisamos de acesso aos seus dossiês de West Point, mas não me surpreenderia se nada se encontrasse que confirmasse as afirmações de Moore.

O café chegou num grande tabuleiro metálico da messe, acompanhado de donuts num prato de plástico, frios e cheios de gordura. Fiz-lhes, porém, as devidas honras, acompanhado de Cynthia, com quem continuei a falar.

O telefone tocara insistentemente, mas Miss Baker, ou qualquer outra pessoa, respondera às chamadas. Contudo, desta vez, quando voltou a tocar, ela anunciou pelo intercomunicador:

- Coronel Hellmann.

- Eu atendo - decidi, premindo o botão do altifalante, para que Cynthia também pudesse ouvir e dizendo ao microfone:

- Brenner e Sunhill, coronel.

- Só se fala de vocês por estes lados - disse Karl naquele tom alegre que sempre me desconcerta.

- Ah, sim?

- Verdade. Como estão?

- Muito bem, coronel - respondeu Cynthia.

- Bom. Recebi algumas queixas a vosso respeito.

- Então, ficou a saber que fazemos o nosso trabalho - redargui.

- Sei que começam a incomodar alguns, o que indica, por vezes, a vossa eficácia. Contudo, telefonei para os informar, no caso de não o saberem, que lhes vão retirar o caso.

- Nós sabemos, coronel.

- Fiz o que me era possível para que ficasse nas mãos da CID, mas o FBI tem muito mais influência do que eu.

- De qualquer maneira, estamos quase a resolver o caso - garanti-lhe.

- Ah, sim? Espero que o façam nos próximos quinze minutos, pois o FBI pôs-se em acção e os seus agentes já chegaram a Fort Hadley.

- Devem deixar-nos o caminho livre até amanhã ao meio-dia.

- É suposto, mas talvez encontrem alguns deles pelo caminho.

- Tenho a impressão de que se sente aliviado por se ver livre disto,

- O que o faz pensar isso, Brenner?

- O seu tom de voz, sir. Parece feliz.

- Também deveriam estar - retorquiu, depois de uma pausa. - Nada pode resultar de bom deste caso, nem para vocês, nem para a CID.

- Não é um factor que determine a minha escolha, quando aceito um caso. Tratava-se, sem dúvida, de uma afirmação falsa, pelo menos em relação a alguns. E, contudo, verdade que por vezes se aceita um caso por dever ou por nos sentirmos pessoalmente ligados ou apenas por desejarmos apanhar um criminoso especialmente corrupto.

- Vou resolver este caso e sairemos engrandecidos e cobertos de glória prometi a Karl.

- Bom. Considero-o à altura do seu optimismo, Paul, sinceramente. Por outro lado, são grandes os riscos de descrédito e desonra. O FBI expulsou-nos acrescentou. - Esses idiotas querem este caso.

- Também os dois imbecis que estão a falar-lhe.

- A equipa forense comunicou-me que vocês têm um suspeito - afirmou, mudando de assunto. - Um tal coronel Moore.

- Temos um indivíduo que esteve no local do crime. É, de facto, um suspeito.

- Mas não o prenderam.

- Não, sir.

- Eles querem que o façam.

- Eles, quem?

- Sabe perfeitamente. Bom, façam o que quiserem. Nunca interfiro.

- Raramente!

- Outros suspeitos?

- Não.

Um silêncio e depois:

- Sugere no seu relatório, Miss Sunhill, que a violação pode ter sido um acto consensual.

- Exacto, sir.

- Tal significaria que o criminoso era um amigo, não é verdade?

- Sim, coronel.

- Mas não o superior dela, o coronel Moore, que tudo indica ter estado no local do crime?

Cynthia olhou-me de soslaio e respondeu:

- Tornou-se tudo muito complexo, coronel. Ann Campbell tinha muitos namorados, se é que me entende.

- Sim, ouvi dizer. As coisas não estão nada fáceis, pois não? - acrescentou, inesperadamente.

- Nada, coronel.

- Ainda não contactou com o major Bowes, Paul - observou Hellmann.

- Não, coronel, porque Bowes faz parte das pessoas implicadas. É apenas um boato, mas talvez fosse boa ideia chamá-lo a Falis Church para uma pequena conversa.

- Percebo - disse e calou-se um momento. - Não convinha muito à CID, não é verdade? - acrescentou.

- Não.

- Vai tentar reduzir ao mínimo os prejuízos?

- Não - ripostei. - Não é esse o meu trabalho. Julgo tê-lo prevenido de que se tratava de um caso delicado - vinquei com alguma satisfação.

- Só me preocupa a reputação dos meus oficiais - retorquiu, após uma nova pausa.

- Então, mande Bowes para longe daqui.

- De acordo. Pode enviar-me um relatório por faxe antes das dezoito horas?

- Não, coronel, acabaram-se os relatórios. Estamos muito ocupados a tentar descobrir um criminoso. Iremos apresentar-lhe um de viva voz, mal nos afastem daqui.

- Entendido. Há alguma coisa que possamos fazer por vocês?

- Há, sir - respondeu Cynthia. - Algumas das nossas informações parecem indicar que Ann Campbell e o pai tiveram um grave conflito quando ela estava no segundo ano, em West Point, e é possível que o incidente em questão se relacione com este caso. Talvez que o que aconteceu se tenha sabido, pelo menos na Academia Militar ou na comunidade civil das redondezas.

- Muito bem. Vou pôr imediatamente pessoal a investigar o assunto. Arquivos da academia, imprensa local, testemunhas da altura e farei consultas dos Registos de Investigação Criminal de Baltimore. De acordo?

- Sem dúvida, sir. Há que actuar rapidamente - lembrou-lhe Cynthia.

- Andamos um pouco em torno de questões muito importantes, Karl retorqui -, mas temos eventualmente de chegar ao fundo. Refiro-me ao general.

- Entendido, façam o que têm a fazer. Contem com o meu apoio.

- Não quer servir-me de escudo? - perguntei, depois de mais um silêncio.

- Vou já, se quiser.

Depois de uma troca de olhares com Cynthia, recusei:

- Agradeço-lhe a oferta, Karl, mas se se encarregar de canalizar os serviços dos rapazes do Pentágono, já lhe ficaremos muito gratos.

- Farei o que puder.

- Obrigado.

- Estão a dar-se bem juntos? - inquiriu.

Nenhum de nós respondeu de imediato, mas depois Cynthia pronunciou-se:

- Muito bem.

- Perfeito, nada melhor do que um pouco de tensão para unir uma equipa.

- Diz-lhe que me pediste desculpas por Bruxelas e reconheceste que a culpa foi tua - dirigi-me a Cynthia, de maneira a que Karl pudesse ouvir.

- É verdade, coronel - confirmou para o microfone, esboçando um sorriso.

- Tomei nota. Telefonarei assim que possível para vos comunicar as informações que conseguir reunir.

- Óptimo.

- Mas, no que se refere ao tráfico de armas, devo dizer que não estou nada satisfeito com a forma como conduziu o assunto.

- Nesse caso, só tem de fazer apelo ao FBI.

- Estou com o seu dossiê na minha frente, Paul - disse, demorando um pouco a responder. - Tem mais de vinte anos de carreira atrás de si.

- Se já me é difícil viver com o ordenado, como me arranjaria com metade?

- Preocupo-me consigo. Detesto perder bons elementos, mas sinto que está cansado. Quer um cargo administrativo aqui, em Falis Church?

- A trabalharmos sob o mesmo tecto?

- Compete-lhe decidir. Estou aqui, se desejar falar-me. Boa sorte. Pousou o auscultador e desliguei o microfone, constatando:

- Quase parecia humano.

- Está preocupado, Paul!

- E com bom motivo!

 

 

                                 CAPÍTULO VINTE E QUATRO

 

Dedicámos a hora seguinte a analisar os documentos acumulados em cima da secretária e a fazer telefonemas, com o objectivo, entre outros, de tentar que o coronel Fowler nos arranjasse entrevistas com a mulher, com a senhora Campbell e com o general.

Telefonei a Grace Dixon, a nossa perita em informática, que chegara de avião de Falis Church e estava em Jordan Field a dissecar os ficheiros do computador de Ann Campbell.

- Que tal, Grace?

- Até agora, muito bem. Alguns dos ficheiros estavam protegidos com um código. Descobri finalmente uma lista de palavras-chave entre os seus objectos pessoais, dentro de um livro de culinária, e estou a decifrar uma série de coisas.

Fiz sinal a Cynthia para que pegasse no outro auscultador e perguntei a Grace:

- De que tipo?

- Cartas pessoais, uma lista de nomes e números de telefone, mas o mais importante é um diário, matéria escaldante, Paul. Nomes, datas, lugares, práticas sexuais e preferências. Suponho que é isso que procurava.

- Acho que sim. Dê-me alguns nomes, Grace.

- Um momento... Não desligue... Aqui está... tenente Peter Elby... coronel William Kent... major Ted Bowes...

Leu-me uma boa vintena de nomes, entre os quais o do procurador-geral, o coronel Michael Weems, do médico da base, o capitão Frank Swick, e até mesmo o do capelão, o major Arnold Eames, bem como outros que eu desconhecia, mas todos militares e, sem dúvida, membros do pessoal próximo ou afastado do general.

Grace continuou:

- Wes Yardley, Burt Yardley...

- Burt?

- Sim, aparentemente, ela tinha um fraco por esta família. Troquei um olhar com Cynthia e disse a Grace:

- Muito bem... Não encontrou o nome de Fowler?

- Ainda não.

- Charles Moore?

- Sim... Mas parece ser só alguém com quem tem simples sessões. Na minha opinião, um psiquiatra. Este diário reporta-se há dois anos. Começa com as palavras: “Apresentação ao serviço na base do papá. Operação Cavalo de Tróia...” Isto é realmente louco, Paul.

- Dê-me um exemplo.

- Vou ler-lhe uma parte... Das últimas páginas. Estou a ler directamente do ecrã: “14 de Agosto. Convidei o novo oficial de operações do papá, o coronel Sam Davis, a passar pela minha casa para tomarmos uma bebida e nos conhecermos. Sam tem uns cinquenta anos, é um pouco forte mas bem parecido, casado e pai de filhos crescidos, um dos quais ainda mora em casa dele, em Bethany Hill. Parece ser um bom chefe de família e a mulher, Sarah, que conheci na festa de recepção dos novos oficiais, é encantadora. Sam chegou a minha casa às dezanove horas, tomámos algumas bebidas no salão, depois pus uma música suave e convidei-o a aprender um novo passo de dança. Estava nervoso, mas o álcool que bebera deu-lhe coragem. Tinha o uniforme verde de Verão. Eu pusera um vestido leve, de algodão branco, sem sutiã, e estava descalça. Minutos depois, beijámo-nos e ele teve... ele teve...”

- Grace?

“Uma erecção.”

- Ah! Só isso!

Grace é uma mulher madura, uma mãe de família sem histórias, funcionária civil da CID, e o seu trabalho resume-se habitualmente a investigar números e entradas de dinheiro duvidosas. Esta missão representava uma verdadeira dádiva aos seus olhos. Ou talvez não.

- Continue.

- Bom... Onde é que eu ia?

- Na erecção.

- Oh, sim. “...e rocei-a como que por acaso com os dedos. Então, ele tomou a iniciativa e baixou-me as alças do vestido. Despi-me totalmente e continuámos a dançar, eu de cuecas. Sam oscilava entre o êxtase e o medo, mas peguei-lhe na mão e levei-o para a cave. Com bebidas incluídas, toda a sedução levou menos de vinte minutos. Introduzi-o na minha câmara secreta, tirei as cuecas...”

- Ainda está aí, Grace?

- Sim... Deus do céu... será verdade ou imaginação?

- Começou como uma aventura e terminou como um sonho.

- Ela leva todos estes homens para a cave. Tem ali uma sala equipada com objectos sexuais...

- Ah, sim? Continue.

- Vejamos... - Retomou a leitura do ecrã. - “Pus música a tocar, depois ajoelhei-me e desapertei-lhe a braguilha. O tipo estava tão duro que receei que se viesse só de lhe tocar. Convidei-o a fazer-me o que quisesse e disse que olhasse em volta para ver o que lhe interessava. Estava tão ansioso que só se Preocupava em despir as calças, mas disse-lhe que queria que continuasse vestido, que me tratasse como uma escrava, me desse ordens, me prendesse com as correias, mas para ele era a primeira vez e não estava disposto a satisfazer-me os desejos. Por fim, inclinou-me sobre a cama e, com as calças descidas penetrou-me na vagina por trás. Veio-se dois segundos depois.” É a sua respiração que ouço através da linha? - perguntou Grace.

- Não. É a de Cynthia. - garanti-lhe. - Acabou?

- Não. Ainda escreveu isto: “Despi-o e tomámos duche juntos. Ele estava ansioso por se ir embora e não parava de se desculpar por se ter vindo tão depressa. Deitei-o em cima da cama, pus-lhe uma máscara de porco e tirei duas fotografias a cores. Dei-lhe uma, trocámos uns gracejos e, embora ele fosse demasiado delicado para me pedir a outra, senti que estava muito pouco à-vontade. Disse-lhe que gostaria de vê-lo outra vez, o que seria o nosso pequeno segredo. Voltou a vestir-se e acompanhei-o à porta. Eu continuava nua. Ele estava em pânico, como se o aterrorizasse a ideia de ser visto a sair da minha casa, e decerto não iria logo para casa naquele estado, com o coração a saltar-lhe do peito e as pernas a tremer. Acabou por me dizer que não queria voltar a ver-me e gostaria de recuperar a outra foto. Passei então à cena das lágrimas; consolou-me, beijou-me e tive de lhe limpar o batom do rosto. Foi-se embora. Vi-o, através da janela, a correr para o carro e olhando por cima do ombro. A próxima vez, vou pedir-lhe que me traga uma caixa de garrafas de vinho e veremos se consegue correr assim tão depressa com as mãos ocupadas.”

- Isto só pode ser inventado - comentou Grace.

- Não deve mencionar uma única palavra a quem quer que seja, Grace, não imprima nada e não deixe escapar essas palavras-chave nem sob tortura. Entendido?

- Entendido.

Pensei uns momentos e mudei de ideias:

- Correcção. Imprima alguns dos encontros com Burt Yardley, meta-os num envelope fechado e faça-mos chegar aqui o mais rapidamente possível.

- Entendido - disse, acrescentando depois num tom surpreso: - Há aqui mencionados nestes termos uns trinta homens num espaço de dois anos. Será que todas as mulheres solteiras o fazem?

- Como hei-de saber?

- E as descrições destes encontros... Deus do céu, ela tem, enfim, tinha, um problema com os homens. Quero dizer, pede-lhes que a humilhem, mas é ela quem conduz o jogo e os leva a fazer figura de idiotas.

- Nesse ponto estava certa - comentei. - Procure os relatos mais recentes sobre o coronel Weems e o major Bowes e diga-me se são do mesmo calibre.

- De acordo... espere... Aqui está Weems, trinta e um de Julho deste ano. Quer que lho leia?

- Não, já tive a minha dose. E Bowes?

- Sim... quatro de Agosto deste ano... uau! Este tipo é doido. Quem e ele?

- O representante local da CID.

- Oh... não!

- Sim, mas nem uma palavra. Até breve, Grace. Desliguei e mantivemo-nos uns instantes em silêncio.

- Céus! - exclamei por fim. - Se eu fosse um coronel casado, o novo chefe de operações do general, e a bela filha do dito general me convidasse para uma bebida...

- Sim?

- Fugiria a toda a velocidade.

- Em que sentido? Sorri e comentei:

- É possível que ele não tenha aguentado mais de vinte minutos?

- Sabes, Paul, a minha experiência no campo das violações ensinou-me que alguns homens dificilmente controlam os seus impulsos. Vocês deviam pensar mais com o cérebro do que com a outra cabeça.

- Uma pila tesa não tem consciência, Cynthia. No caso de Sam Harris, não culpes a vítima - acrescentou.

- Tens razão, mas acho que também ela foi vítima. O sexo não foi o motor.

- Não. O motor foi a Operação Cavalo de Tróia. Reflecti uns momentos e acrescentei:

- Bom. Podemos partir do princípio de que Burt Yardley conhece a existência do país das delícias.

- Provavelmente - concordou Cynthia. - Duvido, porém, de que ela lá tenha levado Wes Yardley.

- De acordo, ele era o namorado. Não tinha verdadeiro poder na ou fora da base, não é casado e, portanto, não podia ser comprometido nem chantageado. Interrogo-me, porém, sobre se Wes sabia que o pai andava a comer do mesmo pote de mel.

- Tens uma maneira de falar, Paul!

- Nesse momento, Miss Baker veio anunciar-nos:

- O chefe da polícia Yardley e o agente Yardley pedem para lhe falar.

- Dir-lhe-ei quando estiver preparado para os receber - respondi.

- Muito bem, sir.

- Alguém do pessoal da CID virá trazer um envelope a qualquer momento. Traga-mo assim que chegar.

- Muito bem, sir - anuiu, indo-se embora.

- Teremos de arranjar uma forma de interrogar Burt e Wes em separado disse a Cynthia.

- Claro.

- Tenho de ir ver um colega à prisão - declarei, levantando-me.

Saí e tive de percorrer um labirinto de corredores até chegar às celas. Fui encontrar Dalbert Elkins no mesmo sítio onde o fechara. Estava deitado no catre, a ler uma revista de caça e de pesca. Não lhe tinham dado um uniforme e continuava de calções, T-shirt e sandálias.

- Bom dia, Dalbert.

Ele ergueu os olhos, soergueu-se e depois pôs-se de pé.

- Oh... olá... - Estão a tratar-te bem, pá?

- Sim.

- Sim, sir.

- Sim, sir.

- Redigiste a confissão?

Acenou com a cabeça, parecia menos assustado, mas mais abatido. À semelhança da maioria dos meus colegas da CID, costumo visitar as pessoas que prendo. Fica-se assim com a certeza de que os polícias militares não os violam, o que infelizmente acontece de vez em quando. Verifica-se se as famílias estão bem, se eles têm algum dinheiro, papel de carta e selos e dá-se-lhes atenção. Em resposta a todas estas perguntas, Elkins garantiu-me que não o maltratavam e tinha tudo o que precisava.

- Queres ficar aqui ou ser transferido para outra prisão? - perguntei-lhe

- Aqui.

- Noutra prisão, podes jogar basebol.

- Aqui.

- Estás a colaborar com os tipos da CID?

- Sim, sir.

- Queres um advogado?

- Bem...

- Tens o direito de ser representado por um advogado. Podes ter um advogado militar gratuitamente ou contratar os serviços de um civil.

- Bom... o que acha?

- Acho que, se contratares um advogado, não ficarei nada satisfeito.

- Certo, sir.

- Sentes-te o maior dos safados e um idiota?

- Sim, sir.

- Vais emendar-te.

- Sim, sir.

- Na verdade, sou o agente Brenner, o sargento White era apenas uma brincadeira. Se precisares do que quer que seja, ou a tua família quiser contactar com alguém, pede para falares com Brenner. E se alguém te chatear, diz que eu zelo pelos teus interesses. De acordo?

- Sim, sir... obrigado.

- Não ficarei muito tempo por aqui, mas arranjarei um outro tipo da CID para zelar por ti. Tentarei fazer com que saias daqui e te ponham na caserna, mas desde já te previno, Dalbert, que se fugires, vou atrás de ti e mato-te. Entendido?

- Entendido, sir. Se me tirar daqui, porto-me na linha. Juro.

- Senão, mato-te. Juro.

- Sim, sir.

Voltei ao meu gabinete, onde Cynthia se encontrava mergulhada na leitura do dossiê pessoal de Ann Campbell. Telefonei à CID local e atendeu-me um tal capitão Anders. Falei-lhe do caso Elkins e recomendei-lhe que fosse levado para a caserna. Anders hesitou, mas acabou por aceitar na condição de que eu assinasse um mandado de libertação. Anuí e pedi que me passasse ao major Bowes.

Enquanto esperava, dizia para mim próprio: “Porque me arrisco sempre pelos que meto na prisão? Tenho de descobrir outro trabalho, algo menos excitante.”

Enquanto rabiscava o mandado, soou uma voz do outro lado do fio:

- Fala Bowes.

- Bom dia, major.

- O que se passa, Brenner?

Nunca me avistara com o meu interlocutor nem trabalhara com ele, e só sabia que comandava a CID e constava de algumas passagens escabrosas do diário de Ann Campbell.

- Brenner?

- Sim, major! Apenas queria entrar em contacto consigo.

- Em que posso ajudá-lo?

- Suponho que está aborrecido por eu ter pedido que se mantenha afastado deste caso.

- E supõe bem.

- Na verdade, foi o coronel Kent quem decidiu apelar aos serviços de um investigador de fora.

“E já devia estar arrependido.”

- Esse tipo de decisão não é do âmbito do coronel Kent, e podia ter-me feito um telefonema de cortesia.

- Tenho estado muito ocupado, major. O telefone funciona nos dois sentidos, sabe?

- Atenção às palavras.

- Como está a senhora Bowes?

- O quê?

- É casado, major?

Seguiu-se um silêncio e depois:

- A que propósito vem essa pergunta?

- É uma pergunta oficial, enquadrada numa investigação de homicídio. Peço-lhe que responda.

Mais um silêncio e por fim:

- Sim, sou casado.

- A senhora Bowes está a par do seu caso com Ann Campbell?

- Mas que raio...

Cynthia ergueu os olhos da leitura.

- Tenho provas, major - disse a Bowes - de que mantinha uma ligação com Ann Campbell, provas de que ia visitá-la a casa e tinha relações sexuais de natureza ilícita na cave da casa dela, que se entregava a actos que constituem uma violação do Código Geral de Justiça Militar e são contrárias às leis vigentes neste estado.

Ignorava, de facto, o que preconizavam as leis da Georgia na matéria e também os jogos sexuais de Bowes e Ann Campbell, mas que importância tinha? Há casos em que se atira o barro à parede e pega.

Cynthia agarrou no auscultador e escutou, mas Bowes tinha-se calado.

Deixei pesar o silêncio e ele acabou por se decidir:

- Acho que devíamos encontrar-nos.

- Estou muito sobrecarregado, major. Alguém de Falis Church vai telefonar-lhe, se é que já não o fez. Tenha uma mala feita. Bom dia.

- Espere! Devíamos falar no assunto. Quem sabe disto? Posso explicar

- Explicar as fotos que encontrei na cave da casa dela?

- Eu... eu não tenho nada a ver com essas fotos...

- A máscara não lhe escondia a pila nem o traseiro. Quer que peça à sua mulher que o identifique nelas?

- Não me ameace.

- É um agente, céus!, e um militar! O que lhe passou pela cabeça?

- Lixei tudo - respondeu depois de uma leve hesitação.

- Não tenha dúvida.

- Pode encobrir-me?

- Sugiro que escreva uma confissão completa e coloque o seu destino nas mãos dos patrões de Falis Church. Faça um pouco de bluffe. ameace tornar o assunto público. Tente negociar, aceite a reforma e desapareça.

- Certo. Obrigado por coisa nenhuma.

- Ei, não fui eu que me deitei com a filha do general!

- Não lhe teria resistido.

- Para mim, major, trabalho é trabalho e conhaque é conhaque.

- Depende do conhaque.

- Valeu a pena?

- Oh, sem dúvida! - riu. - Um destes dias conto-lhe.

- Lerei no diário dela. Bom dia, major. Cynthia pousou o auscultador e insurgiu-se:

- Não precisavas de ser tão duro com ele, Paul. Estes homens não cometeram nenhum crime.

- Não, mas são uns imbecis, e estou farto de imbecis.

- Penso que tens ciúmes.

- Guarda as tuas opiniões para ti.

- Muito bem, sir.

- Lamento, estou apenas cansado - desculpei-me, massajando as fontes.

- Queres falar agora com os Yardley pai e filho?

- Não, que se lixem. Deixemo-los um pouco mais a secar.

Voltei a pegar no auscultador, liguei para o gabinete do procurador-geral e pedi para falar com o coronel Weems. Passaram-me o secretário, que quis saber qual era o assunto.

- Diga ao coronel que é sobre o crime.

- Muito bem, sir.

- Sê delicado - advertiu Cynthia, pegando no outro auscultador.

- é o agente encarregado do inquérito? - perguntou o coronel Weens ao atender.

- Sim, coronel.

- Bom. Recebi ordens para elaborar uma acusação contra o coronel Moore e preciso de algumas informações.

- A minha primeira informação, coronel, é que sou eu quem decide a culpabilidade do coronel Moore.

- Desculpe, Brenner, mas recebi instruções do Pentágono.

- Até podia tê-las recebido do fantasma de Douglas Mac Arthur. O seu nome está muito ligado ao da vítima.

- Desculpe?

- É casado, coronel?

- Sim...

- E quer manter esse estado?

- De que está a falar?

- Tenho informações de que mantinha relações sexuais com a vítima e infringiu o Código Geral de Justiça Militar, artigo cento e vinte e três: cópula contranatura. E ainda o artigo cento e trinta e três, comportamento indigno de um militar, mais o artigo cento e trinta e quatro, actividades contrárias à ordem e à disciplina e conduta de molde a desacreditar as forças armadas. E então, senhor procurador-geral.

- É falso.

- Sabe como se reconhece um advogado que mente? Não? Os lábios mexem.

Não gostou da piada e deu-mo a entender:

- É bom que tenha provas sólidas para fazer uma tal acusação - replicou.

Falara agora como um bom advogado e ripostei:

- Sabe como se chama a trezentos advogados no fundo do oceano? prossegui. - Não? Um bom começo.

- Brenner...

- Perdeu o sono por causa daquela divisão na cave? Pois, descobri-a e tenho imagens suas numa videocassete.

- Eu nunca...

- E fotos a cores.

- Eu...

- E o diário dela.

- Oh...

- Ouça, coronel, pessoalmente pouco me interessa, mas não pode ser em simultâneo juiz e parte neste caso. Não agrave a sua situação. Telefone ou, melhor ainda, apanhe o avião para Washington e peça que o libertem da sua função. Redija um acto de acusação contra si próprio e, entretanto, delegue responsabilidades em alguém que tenha conseguido manter a pila dentro das calças. Tenho uma ideia melhor ainda. Quem é a mulher de patente mais elevada aí?

- Uhmm... o major Goodwin...

- Está encarregada do caso Campbell.

- Não pode dar-me ordens...

- Se fosse possível baixar de posto os coronéis, seria soldado raso amanhã de manhã. De qualquer maneira, no próximo mês andará à procura de emprego numa pequena firma ou será o advogado de serviço em Leavenworth. Não resista, negoceie a sua saída enquanto é tempo. Pode ser chamado como testemunha.

- Testemunha de quê?

- Vou meditar no assunto. Bom dia.

- Já fizeste infelizes que cheguem por hoje? - inquiriu Cynthia, pousando o auscultador.

- Desejei-lhes um bom dia.

- Ultrapassaste um pouco os limites, Paul. Estou consciente de que tens as cartas mais altas...

- Quero agarrar esta base pelos tomates.

- Sim, mas abusas da tua autoridade.

- Mas não do meu poder.

- Calma, não é nada de pessoal.

- De acordo... Sinto-me apenas furioso. O que é, afinal, este código de oficiais? Jurámos cumprir o nosso dever, manter-nos fiéis ao mais alto nível de moralidade, integridade, ética e honra. E agora temos consciência de que uns trinta indivíduos se estiveram nas tintas. Porquê?

- Um traseiro de mulher.

- Certo - concordei, sem conseguir suster uma risada. - Um traseiro, mas era um belo traseiro.

- Também não somos anjos.

- Nunca faltámos ao dever.

- Trata-se de um caso de homicídio e não de inquérito de bons costumes. Cada coisa a seu tempo.

- Correcto. Manda entrar os palhaços.

- Chame os... senhores da polícia - pediu Cynthia a Miss Baker pelo intercomunicador.

- Com certeza.

- Agora, acalma-te - disse-me Cynthia.

- Não estou furioso com esses tipos. São civis. A porta abriu-se e Miss Baker anunciou:

- Chefe da polícia Yardley e agente Yardley.

Cynthia e eu levantámo-nos quando os Yardley entraram, fardados. Burt Yardley foi directo ao assunto:

- Detesto que me façam esperar, mas deixemos isso de lado. Olhou em volta e presenteou-nos com o comentário:

- As minhas celas são mais espaçosas e confortáveis do que isto.

- Também as nossas - ripostei. - Mostro-lhe uma. Ele riu e redarguiu:

- Este é o meu filho Wes. Wes, apresento-te Miss Sunhill e o agente Brenner.

Wes Yardley era um homem alto e extremamente magro, com cerca de vinte e cinco anos e cabelos compridos puxados para trás, que lhe teriam causado alguns problemas na maioria das forças policiais, excepto na de que fazia parte. Em vez de nos estender a mão, levou-a ao chapéu de cowboy, esboçando um aceno de cabeça a Cynthia.

No Sul, os homens não costumam tirar o chapéu dentro de casa quando estão na presença de inferiores ou iguais, segurá-lo na mão corresponde a reconhecer a superioridade social do interlocutor. Este hábito remonta à época das plantações, dos grandes senhores, dos escravos, da escumalha branca, das boas e más famílias. É algo que me ultrapassa, mas o Exército também tem regras rígidas e, portanto, respeito os usos locais. Na ausência de uma quantidade suficiente de lugares, ficámos todos de pé.

- Tenho todas as suas coisas empacotadas no meu gabinete - dirigiu-se-me Burt Yardley. - Pode ir buscá-las quando quiser.

- É muito amável da sua parte.

Wes esboçou um esgar e senti vontade de lhe dar um soco no rosto ossudo. Era do género hiperactivo, incapaz de se conservar sossegado no mesmo sítio.

- Trouxe consigo os objectos que são propriedade do Estado? - perguntei a Burt.

- Sem dúvida, não quero problemas com o governo. Entreguei-os à rapariguita quando cheguei. Digamos que é um acto de boa vontade da minha parte, Paul. Posso tratá-lo por Paul?

- Claro, Burt.

- Perfeito. E estou disposto a deixá-lo entrar na casa da vítima.

- Sinto-me encantado, Burt.

- Bom. Queria interrogar o meu filho a propósito deste caso, não é verdade? - prosseguiu e virou-se para Wes: - Diz-lhes tudo o que sabes sobre aquela rapariga.

- Era uma mulher e um oficial do Exército dos EUA - interferiu Cynthia. Miss Baker é igualmente uma mulher e um soldado.

- Desculpe, minha senhora - disse Burt com uma ligeira vénia e levando a mão ao chapéu.

Apetecia-me dar uma lição a estes dois brutos, só que não dispunha de tempo. Entretanto, Wes pôs-se a debitar o seu chorrilho de aldrabices:

- Bom. Encontrava-me de vez em quando com Ann, mas visitava igualmente outras mulheres e ela recebia outros homens, nenhum de nós levava esta ligação muito a sério. Na noite em que a mataram, eu estive de patrulha em North Midland, no turno da meia-noite às oito da manhã. Fui visto por uma dúzia de pessoas, incluindo o meu colega e os tipos do posto de gasolina. É tudo o que tenho a dizer.

- Obrigado, agente Yardley.

Ninguém falou durante uns segundos e depois Cynthia perguntou a Wes:

- Sente-se perturbado com a morte de Ann Campbell?

- Sim, minha senhora - respondeu, após uns momentos de reflexão.

- Quer que lhe arranje um calmante ou algo do género? - propus-lhe.

- Esqueci-me de te dizer que este tipo é um brincalhão - interferiu Burt, olhando para o filho.

- Gostaria de falar consigo a sós - dirigi-me a Burt.

- Pode dizer o que quiser diante do meu filho.

- Nem tudo, chefe.

Mediu-me uns instantes e acabou por decidir:

- Bom... Vou deixar-te só com esta jovem, Wes. Vê lá como te portas, pois ela não conhece os teus poderes de sedução.

E depois deste brilhante comentário saí com Burt e descobri uma sala de entrevistas vazia. Sentámo-nos nas cabeceiras de uma comprida mesa e o chefe da polícia resmungou:

- Estes malditos jornalistas são uns abelhudos do diabo. Começam a fazer perguntas sobre estes boatos de que a filha do general andava por aí com todos. Está a ver?

Não me recordava de uma única pergunta do género por parte da imprensa, mas respondi:

- De qualquer maneira, os representantes da ordem não são obrigados a satisfazer a curiosidade da imprensa.

- Claro que não. Dou-me bem com o general e longe de mim querer que se pusessem a falar da filha depois de ela estar morta.

- Porque não vai directo ao assunto em vez de andar às voltas?

- Bom. Tenho a impressão de que vai correr por aí que a CID me passou a perna e, quando apanharem o tipo, a minha organização ficará por baixo.

Embora a sua sintaxe me desagradasse, tranquilizei-o:

- Pode ter a certeza, chefe, de que o seu departamento terá os louros que merece.

- É isso que receio - riu. - Precisamos de envolver-nos neste assunto.

- Entenda-se com o FBI. Eles ficarão à frente do caso a partir de amanhã.

- A sério?

- Sim.

- Muito bem. Entretanto, irá escrever um belo relatório, declarando que a polícia de Midland lhe prestou uma óptima colaboração.

- Porquê?

- Porquê? Porque fala em confiscar-me os meus dossiês, porque estes malditos jornalistas andam a fazer perguntas sobre o envolvimento do meu filho com a vítima, porque você começa a fazer-me passar por um perfeito imbecil, devido ao facto de eu ignorar tudo e porque precisa de mim. Quero que me ponha em dia.

O homem estava visivelmente aborrecido e não podia, de facto, censurá-lo. Existem estranhas relações simbióticas entre as bases militares e as comunidades civis, sobretudo no Sul. No seu pior, essas relações assemelham-se às de um exército de ocupação em território ocupado; no melhor, os locais aceitam a base como se fosse uma grande fábrica de automóveis que tivesse vindo inplantar-se na região - só que as grandes fábricas não têm legislação autónoma. De qualquer maneira, e dentro de um espírito de colaboração, prometi a Burt Yardley:

- Apresentá-lo-ei ao responsável do FBI, quando o conhecer, e faço-lhe um elogio fantástico quanto ao seu zelo e eficácia.

- É muito gentil da sua parte, Paul, mas quero que o faça por escrito. Bill Kent também o fará. Porque não o chamamos aqui para organizar essa tal reunião de que falava a sua assistente?

- Não tenho tempo para participar em reuniões neste momento, chefe mas não se preocupe, pois estará extremamente envolvido na continuação do inquérito.

- Porque terei a sensação de que está a enganar-me, Paul?

- Não sei.

- Vou dizer-lhe: porque não acredita nem por um minuto que eu tenha algo que lhe interesse e não dá nada de graça. Contudo, acho que tenho o que lhe falta para concluir o seu inquérito.

- A sério?

- A sério. Descobri na casa da vítima algumas provas que lhe escaparam, amigo. Só que precisaremos de um enorme trabalho para decifrar tudo.

- Refere-se à divisão secreta da cave?

Arregalou os olhos e manteve-se silencioso uns segundos, só depois retomando o seu discurso:

- E porque deixou toda aquela porcaria lá?

- Achava-o demasiado estúpido para que a descobrisse.

- Quem é, afinal, o mais estúpido? - troçou.

- Mas não deixei tudo, trouxemos alguns sacos de fotografias e videocassetes.

Era mentira, mas devia tê-lo feito e, ao ver que Burt Yardley me fitava demoradamente, apercebi-me de quanto a possibilidade lhe desagradava.

- Mas que rapaz esperto! - reconheceu por fim.

- Sou mesmo.

- E onde está todo esse material?

- Na minha caravana. Passou-lhe despercebido.

- Deixe-se de baboseiras, rapaz. Não há nada na sua caravana.

- E porque lhe interessa tanto onde pus essas coisas?

- Porque são da minha conta.

- Mentira.

- Há uns idiotas - retorquiu, pigarreando - que vão ter muito que explicar quando eu recolher as impressões digitais dessa divisão e compararmos fotografias e videocassetes com os seus corpos nus.

- Exacto. Inclusive as suas - redargui.

Fitou-me e não desviei o olhar, depois do que admitiu:

- Não sei fazer bluff.

- Sabe, chefe, creio que havia mais entre Ann e Wes do que ele quer admitir. Talvez não fossem o par mais feliz do planeta, mas mesmo assim saíram juntos durante dois anos e, tanto quanto sei, estavam muito agarrados. Portanto, a minha pergunta é esta: o seu filho sabe que ia para a cama com a namorada dele?

A resposta do chefe da polícia tardava e, a fim de preencher o silêncio, acrescentei:

- E será que a senhora Yardley sabe que andava com a filha do general? Responda. Não gostaria de jantar à sua mesa, hoje.

Uma vez que o seu mutismo se prolongava, retomei o discurso:

- Não descobriu aquela divisão por acaso, mesmo que o tenha dito a Wes. Talvez o seu filho soubesse que a amiguinha se deitava com um e com outro, mas quando a fodia era no quarto dela, pois, se tivesse visto aquela cena da cave, abandoná-la-ia como qualquer homem saudável e equilibrado do Sul. Você, pelo contrário, estava a par de tudo, mas nunca contou ao seu filho porque Ann Campbell o desaconselhou vivamente a que o fizesse. Ela gostava de Wes, só ia consigo para a cama porque tinha influência e podia facilitar-lhe as coisas na cidade, se fosse necessário - continuei. - Para ela não passava de um objecto, uma espécie de garantia extra, e deve ter-lhe prestado alguns serviços de vez em quando. Esse o motivo por que entre si e Wes existe algo mais do que um simples parentesco. Ann Campbell adicionava excitação e risco à sua vida. Um dia, ela disse-lhe que podia assaltar-lhe a cave e levar tudo, porque tinha cópias das fotografias e das cassetes noutros sítios. Não seria muito difícil identificar esse seu gordo traseiro nas fotografias. Pôs-se, então, a pensar na sua mulher, no seu filho, nos seus outros filhos, na sua posição social, no pastor e nos serviços religiosos de domingo, nos seus trinta anos de carreira para chegar onde está, e um dia resolveu livrar-se desta bomba com retardador. Correcto? - perguntei, fitando-o bem nos olhos.

Em vez de empalidecer, o rosto de Yardley adquirira um tom púrpura

- Não fui suficientemente estúpido para me deixar fotografar.

- Tem a certeza? E quem lhe disse que a sua voz não foi gravada?

- Não chega,

- É suficiente para lhe manchar o nome.

Estávamos frente a frente, como dois jogadores de xadrez, tentando antecipar os movimentos do adversário. Yardley esboçou um aceno de cabeça, fitou-me sem desviar o olhar e depois confessou:

- Houve, de facto, uma ou duas vezes em que senti vontade de a estrangular.

- Verdade?

- Mas não podia matar uma mulher por uma estupidez que eu cometera.

- O espírito cavalheiresco não morreu.

- Sim... Seja como for, estava em Atlanta na noite em que se deu o crime. Tenho montes de testemunhas.

- Muito bem. Falarei com elas.

- Fale, se não recear o ridículo.

- Não sou eu que tenho um móbil para este crime.

De facto, não achava que Burt Yardley fosse o assassino, mas as pessoas tornam-se muito cooperativas quando se lhes diz que há que verificar os seus álibis. E embaraçoso e propicia confidências. É um truque dos polícias e que tem efeitos fantásticos sobre as pessoas com tendência para se mostrarem reservadas e esquivas.

- Pode meter os seus móbiles onde lhe apetecer, mas talvez me interessasse saber o que tem sobre a vítima e a meu respeito.

- Ah, sim? Talvez tenha uma foto sua na cama dela.

- Impossível.

- Então, como soube que passeou o seu cu nesta divisão?

- É mesmo aí que está o âmago da questão, certo? - retorquiu, afastando a cadeira para trás, como que disposto a sair. - Está a fazer bluffe, não tenho tempo a perder.

Nesse momento bateram à porta e Miss Baker entrou, estendeu-me um envelope fechado e saiu. Abri-o e retirei uma dúzia de folhas dactilografadas. Sem qualquer preâmbulo que amortizasse o choque, peguei numa delas ao acaso e pus-me a ler:

“Vinte e dois de Abril. Burt Yardley apareceu cerca das vinte e uma. Tinha de acabar uns relatórios, mas ele queria ir até lá abaixo. Graças a Deus que só lhe dá uma vez por mês. Lá em baixo, ordenou-me que me despisse e acho que faz o mesmo a todas as mulheres que passam pelo seu gabinete, mesmo as de bom porte. Tirei, pois, as roupas e ficou a observar-me, de mãos nas ancas. Depois, ordenou-me que me virasse, inclinasse e afastasse as coxas. Meteu-me o dedo no eu a pretexto de procurar droga, veneno, ou uma mensagem secreta, e a seguir forçou-me a deitar na cama para uma busca vaginal e...”

- Basta, rapaz.

- Lembra-lhe qualquer coisa, chefe? - inquiri, erguendo os olhos do papel.

- Não... não propriamente. Onde arranjou isso? - quis saber.

- No computador dela.

- Não é uma prova admissível.

- Já foi aceite.

- Pode tratar-se de fantasias de uma mulher que não está no seu perfeito juízo.

- Talvez. Vou entregar estes documentos à presidência do Tribunal Militar e ao procurador-geral da Georgia, que pedirão a opinião de especialistas. Talvez seja inocentado.

- Do quê? Mesmo que tudo seja verdade até à última vírgula, não infringi nenhuma lei.

- Não sou muito versado nas leis deste estado, quanto à sodomia, mas acho que quebrou as suas juras conjugais.

- Deixe-se de tretas, rapaz. É um homem, comporte-se e reflicta como tal. É homossexual ou quê? É casado?

Continuei a examinar as folhas com uma expressão impassível.

- Deus do céu, Burt... Serviu-se de uma lanterna de bolso para a examinar... e também da sua matraca... e do revólver? Exagera. Verifico que tem uma espécie de fetichismo pelos instrumentos compridos e duros. Só que não estou a ver que o seu próprio instrumento fique teso ou grande...

- Fique atento ao seu traseiro, rapaz, pois não o pouparei mal ponha um pé fora desta base - garantiu, levantando-se.

Dirigiu-se à porta, mas sabia que não ia a parte alguma e nem prestei atenção. De facto, deu meia volta, agarrou na cadeira que estava ao meu lado, virou-a e sentou-se, inclinando-se na minha direcção. Ignoro o que a cadeira virada ao contrário simboliza, mas não é decerto a calma e descontracção. Talvez uma atitude defensiva, talvez agressiva, mas, de qualquer maneira, incomodativa. Fui, pois, sentar-me em cima da secretária.

- Muito bem, Burt. Só espero que me informe acerca de todas as provas que recolheu na casa.

- Nem pensar.

- Nesse caso, enviarei cópias deste diário a todos os assinantes da lista telefónica de Midland.

- E nesse caso mato-o. Chegávamos, finalmente, a assuntos sérios.

- As minhas provas contra as suas.

- Nunca na vida. Tenho provas suficientes para fazer rolar quase todas as cabeças desta base. Quer que isso aconteça?

- Só tem fotografias de indivíduos com máscaras. Eu tenho o diário.

- Tenho uma bela colecção de impressões digitais recolhidas na cave. Basta distribuí-las ao FBI e ao Exército.

- O conteúdo da cave ainda lá está?

- Problema meu.

- O que diria a um incêndio? Começaremos pelas interessantes descrições das suas perversões sexuais. Nem precisará de fósforo.

- Posso confiar em si?

- Dou-lhe a minha palavra de oficial.

- Sim?

- E eu posso confiar em si?

- Não, mas não quero que vá abrir a boca diante da minha mulher e do meu filho.

Aproximei-me da janela e olhei lá para fora. Os jornalistas não tinham arredado pé, mas um cordão da Polícia Militar mantinha-os a cinquenta metros do edifício, para que as pessoas pudessem entrar e sair à vontade. Pensei no acordo que estava prestes a fechar com Yardley. A destruição de provas podia valer-me alguns anos atrás das grades, mas, por outro lado, arruinar vidas não faz parte do meu trabalho. Virei-me e aproximei-me de Yardley.

- Negócio fechado - disse.

Ele selou o acordo com um aperto de mão e eu insisti:

- Atirará tudo para um camião do lixo, incluindo os móveis, lençóis, alcatifa, videocassetes, fotos, chicotes e correntes, e deitará tudo na incineradora da cidade.

- Quando?

- Depois de eu prender o culpado.

- E isso será?

- Em breve.

- Ah, sim? Quer falar-me disso?

- Não.

- Negociar consigo é como bater uma punheta com papel vegetal.

- Obrigado - agradeci, estendendo-lhe as folhas de papel. - Quando fizermos a fogueira, apagarei isto do computador. Pode verificar.

- Agora está a dar-me lustro. Bom, confio em si porque é um oficial e um cavalheiro, mas, se me lixar, mato-o, tão certo como dois e dois serem quatro.

- Compreendo e prometo-lhe outro tanto. Durma bem esta noite. Há muito que não deve conseguir. Está quase a chegar ao fim.

Saímos para o corredor e voltámos ao gabinete. Pelo caminho, disse-lhe:

- Mande entregar as minhas coisas nas instalações dos oficiais de passagem, combinado, Burt?

- Conte comigo, amigo.

Cynthia e Wes interromperam a conversa quando entrámos.

- Incomodamos? - riu Burt.

Cynthia dirigiu-lhe um olhar duro.

Wes pôs-se de pé e chegou à porta em duas passadas. Fitou os papéis que o pai tinha na mão e perguntou:

- O que é isso?

- Uma papelada que tenho de ler - respondeu, ao mesmo tempo que olhava para Cynthia e levava a mão ao chapéu. - É sempre um prazer. Mantenha-me ao corrente - acrescentou na minha direcção.

Foi-se embora com o filho.

- Viste Miss Baker? - quis saber Cynthia.

- Vi.

- Pornô?

- Burt ficou um tanto embaraçado - respondi, ao mesmo tempo que lhe contava o essencial da nossa conversa, terminando: - As fotos comprometedoras e todos os objectos do antro de Ann Campbell vão desaparecer, mas quanto menos souberes do assunto, melhor.

- Não armes em protector, Paul. Detesto isso.

- Faria o mesmo por qualquer outro oficial. Um dia, podes ter de responder sob juramento e não precisarás de mentir.

- Discutiremos o assunto noutra altura. Entretanto, Wes Yardley parece menos macho do que o ar dá a entender.

- É frequente.

- Exacto. Está sinceramente perturbado com a morte de Ann Campbell. Virou Midland de pernas para o ar, a fim de tentar descobrir quem é o criminoso.

- Ficaste com a impressão de que a considerava como sua propriedade pessoal?

- Mais ou menos. Perguntei-lhe se a autorizava a sair com outros homens e ele respondeu que apenas para jantar, tomar uma bebida e recepções oficiais na base. Nunca quis acompanhá-la a tais recepções, mas permitia-lhe esse tipo de mundanidades com esses idiotas dos oficiais. Estou a citá-lo.

- Ora aí está um homem que pensa como eu.

- Mas não se pode andar sempre atrás de alguém e cada um é como cada qual.

- Correcto. Ele não tinha, portanto, ideia de que ela fazia carreira por Processos não tradicionais.

- Duvido muito.

- E se tivesse descoberto que o pai andava a comer do mesmo pote de mel, ficaria desagradado..

- No mínimo.

- Bom, bom. Nunca tive tanta gente presa pelos tomates.

- Não deixes que te suba à cabeça.

- Não há perigo. Limito-me a fazer o meu trabalho.

- Queres uma sanduíche?

- Vais buscar?

- Sim - acedeu e levantou-se. - Preciso de apanhar ar. Vou dar um salto à messe.

- Cheeseburger, batatas fritas e uma Coca-Cola.

- Podias dar um jeito a isto na minha ausência. E saiu.

Chamei Miss Baker pelo intercomunicador e ela apresentou-se. Entreguei-lhe o mandado que tinha redigido sobre Dalbert Elkins e pedi-lhe que o dactilografasse.

- Seria capaz de me recomendar para a escola da CID?

- Não é tão divertido quanto parece, Baker.

- Sonho em fazer investigações criminais.

- Porquê?

- É excitante.

- Porque não fala no assunto a Miss Sunhill?

- Foi o que fiz ontem. Ela disse-me que era divertido e apaixonante, que se viajava muito e se conhecia pessoas interessantes.

- Exacto. E depois há que prendê-las.

- Disse-me que o conheceu em Bruxelas. Parece romântico. Não respondi.

- Contou-me que foi nomeada para uma missão de longa duração no Panamá, quando isto acabar.

- Pode trazer-me um café?

- Sim, sir.

- É tudo.

Baker eclipsou-se.

“Panamá!”

 

 

                               CAPÍTULO VINTE E CINCO

 

O coronel Fowler telefonou faltava um quarto para as cinco da tarde. Atendi e fiz sinal a Cynthia que escutasse na outra linha.

- A minha mulher recebê-los-á em nossa casa às dezassete e trinta, a senhora Campbell às dezoito em Beaumont e o general espera-os no seu gabinete do quartel-general da base às dezoito e trinta em ponto - anunciou.

- Torna as entrevistas muito limitadas - comentei.

- Limitadas em tempo.

- É ao que me refiro.

- As três pessoas que quer interrogar encontram-se sob pressão, Brenner.

- Também eu. Mesmo assim, obrigado.

- Por acaso ocorreu-lhe que pode perturbar as pessoas?

- Ligeiramente.

- O funeral é, como lhe disse, amanhã de manhã. Sugiro que você e Miss Sunhill apresentem o relatório ao FBI, assistam ao funeral, se quiserem, e depois se vão embora. A investigação prosseguirá calmamente sem a vossa presença e o criminoso será apresentado à justiça a devido tempo. Não é uma corrida contra-relógio.

- Não era até esses idiotas de Washington decidirem em contrário.

- Desde o começo deste caso, você lançou-se à carga, como o general Grant assaltou Richmond, sem qualquer consideração pelo protocolo e as sensibilidades das outras pessoas.

- Foi assim que ele tomou a cidade, coronel.

- E por isso ainda hoje o detestam.

- Exacto. Sabia desde o início que este caso me seria retirado e à CID, coronel. O Pentágono e a Casa Branca agiram de forma politicamente correcta e Deus abençoe o domínio dos civis sobre os militares. Contudo, restam-me cerca de vinte horas e vou utilizá-las à minha maneira.

- Como quiser.

- Pode estar certo de que resolverei este caso sem prejudicar o Exército, mas não conte que o FBI ou o Departamento do procurador-geral se dêem a esse trabalho.

- Sem comentários.

- Faz bem.

- Passando agora a outra questão, o seu pedido de esvaziar o gabinete do coronel Moore chegou ao Pentágono e foi recusado por razões de segurança.

- Uma excelente razão, sir. Só estranho que em Washington estejam tão impacientes para que eu prenda o coronel e não me dêem licença para examinar os seus dossiês.

- É o que acontece quando se pede permissão, e sabe-o bem.

- Tem razão, é a última vez que optarei pela via hierárquica.

- Problema seu. Contudo, o Pentágono especificou que, se prender o coronel Moore, lhe enviarão alguém com a competência e capacidade necessárias para o ajudar a examinar os dossiês numa base selectiva. Não se trata, porém, de andar à pesca, deve saber o que quer.

- Sim, já ouvi essa canção antes. Se soubesse o que procurava, provavelmente não necessitaria de o fazer.

- É o máximo que me é permitido. Que latitude tem?

- Trinta e cinco graus a norte. - Ao ver que ele não se ria, acrescentei:

- É segredo.

- De acordo, passarei por cima. Entretanto, a Escola de Operações Psicológicas vai mandar uma equipa a Jordan Field para recolher o conteúdo do gabinete de Ann Campbell e devolvê-lo à escola. O senhor e o coronel Kent não serão acusados de crime pela remoção do conteúdo, mas podem contar com uma censura nos vossos dossiês. Têm de respeitar as leis, como toda a gente vincou.

- É geralmente o que faço, quando as conheço.

- Não se confiscam dossiês classificados de secretos sem uma autorização.

- Alguém está a tentar levantar-me obstáculos, coronel.

- Não só isso, como também lixá-lo. Porquê?

- Não sei.

- Andou a investigar o período em que Ann Campbell esteve em West Point, não é verdade?

- Sim. Mostrei-me demasiado curioso?

- Possivelmente.

Olhei de relance para Cynthia e inquiri:

- Pode explicar-me porquê, coronel?

- Nada sei, excepto que me perguntaram se sabia porque andava a indagar.

- Quem perguntou?

- Não posso responder, mas atingiu um alvo, Brenner.

- Tenho a sensação de que está a tentar ajudar-me, coronel.

- Pensando bem, Miss Sunhill e você são, sem dúvida, as pessoas mais indicadas para se encarregarem deste caso. No entanto, como não o resolveram a tempo, estou a aconselhar-vos a que se protejam. Não façam ondas, aconselhou.

- Miss Sunhill e eu não somos criminosos, mas sim investigadores criminais.

- A reprimenda foi um tiro de aviso. O próximo será para matar.

- Muito bem, só que serei eu a disparar.

- Você é doido de todo. Precisamos de mais pessoas assim. Certifique-se de que a sua parceira sabe o que a espera - acrescentou.

- Nem eu estou muito certo.

- Eu tão pouco, mas não há dúvida de que fez a pergunta errada relativamente a West Point. Bom dia.

Desligou.

- Deus do céu! - exclamei, olhando para Cynthia.

- Acertámos em cheio na pergunta sobre West Point - observou ela.

- Tudo me leva a crer que sim.

Telefonei para Jordan Field e mandei chamar Grace.

- Grace. Acabo de saber que a Escola de Operações Psicológicas vai mandar uma equipa para reclamar os dossiês de Ann Campbell, incluindo o computador.

- Eu sei. Já chegaram. - Raios!

- Não há problema. Depois da nossa conversa, passei tudo para disquete. Estão neste momento a levar o computador, mas não me parece que alguém consiga encontrar as palavras-chave de acesso aos ficheiros que nos interessam.

- Boa jogada, Grace. Quais são?

- Há três: uma para as cartas pessoais, outra para a lista dos namorados, os seus nomes, moradas e números de telefone, e outra ainda para o diário. A chave para as cartas é: “notas sujas”, para os nomes, moradas e números de telefone dos namorados é “amigos do papá” e para o diário é “cavalo de Tróia”.

- Óptimo... Guarde bem essa disquete.

- Tenho-a junto ao coração.

- Perfeito, durma com ela esta noite. Falamos mais tarde. Desliguei, marquei o número de Falis Church e pus-me em contacto com Karl, a quem declarei sem preâmbulos:

- Constou-me que o meu inquérito sobre West Point irritou, perturbou ou assustou algumas pessoas.

- Quem lhe disse isso?

- A pergunta é: o que descobriu?

- Nada.

- É importante - repliquei.

- Estou a fazer o possível.

- Diga-me o que fez.

- Não tenho de lhe dar contas, Brenner.

- Correcto, mas pedi-lhe que se servisse dos seus recursos para me conseguir uma informação.

- Telefono-lhe quando souber qualquer coisa.

Cynthia empurrou na minha direcção um papel onde escrevera: “Sob escutas” e acenei com a cabeça, pois Karl parecia realmente estranho.

- Arranjaram-lhe problemas? - perguntei.

- Bateram-me com todas as portas na cara - respondeu, após uns segundos de hesitação. - Garantiram-me que não precisava dessa informação.

- Entendido. Obrigado por ter tentado.

- Voltaremos a ver-nos aqui, amanhã ou depois de amanhã.

- Perfeito. Dado já não estar ocupado com o meu inquérito, talvez possa conseguir, para mim e Miss Sunhill, umas férias de um mês e arranjar-nos um bilhete de avião para um sítio à minha escolha.

- Nada agradará mais ao Pentágono.

- E mande retirar a merda dessa reprimenda do meu dossiê! - acrescentei, desligando em seguida.

- Mas o que se passa, afinal, com mil raios? - quis saber Cynthia.

- Creio que abrimos a caixa de Pandora, donde tirámos uma lata de vermes para os lançar num ninho de vespas.

- Podes repetir?

Não o fiz, mas resumi a situação:

- Fomos expulsos... mas acho que podemos continuar por nossa conta acrescentei, depois de pensar uns segundos.

- Suponho que não temos outra alternativa, o que não me impede de gostar de saber o que aconteceu em West Point.

- Karl garantiu-nos que não é importante para o caso. Cynthia calou-se e depois confessou:

- Karl desilude-me. Nunca me passaria pela cabeça que ele fosse recuar numa investigação criminal como esta.

- Nem eu.

Ficámos a conversar uns minutos, interrogando-nos sobre a direcção a tomar para esclarecer o inquérito de West Point.

- Vamos a Bethany Hill - decidi, consultando o relógio.

Quando nos levantámos para sair, bateram à porta e Miss Baker entrou com um papel na mão. Sentou-se à minha secretária e examinou o papel.

- Sente-se, Baker - convidei num tom sarcástico.

Ela ergueu a cabeça na nossa direcção e informou com voz segura:

- Sou, na verdade, o sargento Kiefer, da CID. Há dois meses que me encontro aqui na clandestinidade, a mando do coronel Hellmann. Tenho andado a investigar acusações de actividade suspeita na secção de material, nada de importante e longe de se relacionar com o coronel Kent e esta história. Hellmann pediu-me que me fizesse nomear vossa secretária. É tudo.

- Fala a sério? - surpreendeu-se Cynthia. - Tem andado a espiar-nos para o Karl?

- Não se trata de os espiar, mas de os ajudar. Fazemos isso muitas vezes.

- É verdade - anuí. -Mas não me agrada.

Miss Baker, aliás o sargento Kiefer, tentou acalmar-me:

- Compreendo-o, mas este caso é explosivo e o coronel Hellmann estava preocupado.

- O coronel espiou-nos.

Em vez de ripostar, explicou-nos:

- Nos dois meses que aqui passei, ouvi circular os boatos, de que os pus ao corrente, relativos ao coronel Kent e a Ann Campbell. Tudo isso é verdade, mas não o denunciei, porque me desagrada fazer isso às pessoas. Não detectei qualquer falha no seu cumprimento do dever e apenas dispunha de boatos de corredor. Contudo, agora dou-me conta de que talvez seja importante.

- Importante sem dúvida - aprovou Cynthia -, mas apenas uma prova da sua estupidez.

Miss Kiefer encolheu os ombros e estendeu-me uma folha de papel.

- Acabei de receber há minutos um telefonema de Falis Church. Devia identificar-me perante ambos e ficar de vigia ao faxe. Eis o que recebi.

Examinei o faxe, que me era dirigido e a Cynthia, via Kiefer, e meramente para uso visual. Li em voz alta:

- “Relativamente ao inquérito de West Point, como vos disse ao telefone, todos os dossiês estão selados ou não existem, todas as perguntas verbais ficaram sem resposta. Telefonei, porém, a um membro da CID reformado que se encontrava lá durante o período em questão. O fulano só aceitou falar sob anonimato e comunicou-me o seguinte: entre o seu primeiro e o segundo ano em West Point, durante o Verão, o cadete Campbell foi hospitalizado umas semanas numa clínica particular. Oficialmente, tivera um acidente, durante os exercícios nocturnos, na reserva militar de Camp Buckner. O meu informador afirma que o general Campbell voou da Alemanha no dia seguinte ao do acidente. Eis a história como ele a reconstituiu com base nos boatos recolhidos: em Agosto, por ocasião de um treino de reconhecimento, os cadetes deviam efectuar patrulhas nocturnas nos bosques e, por acidente ou propositadamente, Ann Campbell foi separada do resto do grupo e viu-se com cinco ou seis homens, entre os quais elementos de uma divisão aerotransportada, que participavam no treino. Todos usavam pinturas de camuflagem, estava escuro, etc. Estes homens atiraram-se a Ann Campbell, despiram-na e prenderam-na com estacas, depois do que a violaram, cada um à vez. O que se passou em seguida não está muito clarificado. Presume-se que a ameaçaram, caso os denunciasse, e depois desamarraram-na e fugiram. Ela foi dada como desaparecida até ao alvorecer, altura em que a encontraram, desgrenhada e à beira do histerismo, próximo do acampamento. Transportaram-na para o Hospital Militar Keller, onde a trataram de ferimentos ligeiros, nódoas negras, stresse, etc. Os relatórios clínicos não registaram sevícias sexuais. Quando o general Campbell chegou, foi transferida para uma clínica particular. Não houve qualquer acusação ou sanção, o caso foi abafado para bem da instituição e o cadete Campbell apresentou-se normalmente no recomeço das aulas, em Setembro. Consta que o general pressionou a filha para que não desse seguimento ao caso, tendo ele próprio obedecido, indubitavelmente, a instruções superiores. Destruam esta mensagem e o vestígio do seu envio por faxe. Boa sorte Hellmann.”

Passei o faxe a Cynthia, que comentou:

- Agora tudo faz sentido, não?

Acenei com a cabeça.

- Sabem quem a matou? - perguntou-nos Kiefer.

- Não, mas acho que é fácil descobrir o que estava ela a fazer na carreira de tiro.

Cynthia colocou a mensagem de Karl na trituradora e dirigiu-se a Kiefer:

- Queria, então, vir a ser detective?

Kiefer pareceu um pouco confusa, mas rectificou:

- A especialista Baker é que queria.

- De momento, a especialista Baker pode continuar a desempenhar as suas funções de secretária. Não precisamos de mais detectives.

- Sim - anuiu esta última, voltando a assumir a pele do seu suposto cargo. - Contudo, manterei os olhos bem abertos.

- Perfeito.

- Informe o coronel Kent - disse a Kiefer - que eu quero que ele fique restrito à base e se mantenha à disposição até novas ordens.

- Muito bem, sir.

Cynthia e eu saímos pelas traseiras do edifício e chegámos ao parque de estacionamento sem sermos incomodados pelos jornalistas.

- É a minha vez de conduzir - declarei, ao mesmo tempo que procurava as chaves e entrávamos no meu Blazer. - Enquanto seguíamos para Bethany Hill, constatei: -Karl é um filho da mãe, mas um filho da mãe simpático.

- Apesar do anjo-da-guarda que nos arranjou - sorriu ela. - Acreditas mesmo nisso?

- É uma questão de conhecer o terreno, Cynthia. Sempre tive a sensação de que já a tinha visto em qualquer lado. Havia qualquer coisa que soava a falso na sua atitude.

- Deixa-te de tretas, Paul, foste tão enganado quanto eu. Preciso mudar de trabalho, deus do céu.

- O que é isso do Panamá? - inquiri, fitando-a, e os nossos olhares cruzaram-se.

- Pedi uma missão de longa duração fora do território dos EUA para me afastar do meu futuro ex-marido.

- Boa ideia! - exclamei e mudei logo de assunto: - Esta questão de West Point é, então, verdadeira dinamite.

- Sim, não consigo acreditar que um pai aceite abafar um caso... bom, se se pensar bem a fundo... quero dizer, há muita tensão em West Point desde que há lá mulheres. É inacreditável o que se passa. Além disso, o general tinha de pensar na sua carreira e, sem dúvida, também na reputação da filha. Mas não lhe fez nenhum favor.

- De facto, não.

- Quando uma mulher oculta uma agressão sexual, ou quando é obrigada a fazê-lo, acaba por pagar mais tarde ou mais cedo.

- Ou obriga os outros a pagar - vinquei.

- Exacto. Por vezes, as duas coisas. O que aconteceu na carreira de tiro número seis foi uma reconstituição da violação de West Point, não é verdade?

- Temo bem que sim.

- Só que, desta vez, alguém a matou.

- Exacto.

- O pai dela?

- Esperemos pelas últimas informações para reconstituirmos o crime do princípio ao fim.

Cynthia manteve um prolongado silêncio e depois perguntou-me:

- Sabes quem a matou?

- Sei quem não a matou.

- Deixa-te de enigmas, Paul.

- Tens um suspeito?

- Tenho vários.

- Prepara um caso contra eles e elaboramos os processos esta noite.

- Parece-me bem. Espero que possamos enforcar alguém ao romper do dia.

 

 

                                   CAPÍTULO VINTE E SEIS

 

Chegámos a casa dos Fowler, em Bethany Hill, e tocámos à campainha. Foi a senhora Fowler quem veio abrir. Parecia menos nervosa que de manhã. Conduziu-nos à sala e ofereceu-nos uma bebida. Ante a nossa recusa, sentou-se num sofá e nós nos maples.

Cynthia e eu tínhamos discutido uma linha de interrogatório e resolvido que seria ela a tomar a direcção das operações. Assim, conversou com a dona da casa sobre a vida na base, o Exército, e por aí fora. Quando sentiu que a outra estava descontraída, disse-lhe:

- Creia que o nosso único objectivo consiste em zelar para que se faça justiça. Não estamos aqui para arruinar reputações, mas para descobrir um criminoso e certificar-nos de que homens e mulheres inocentes não sejam erradamente acusados.

A senhora Fowler esboçou um aceno de cabeça.

- Sabe, com certeza, que Ann Campbell mantinha relações sexuais com muitos homens desta base. Quero garantir-lhe, antes de mais, que, em todas as provas que reunimos, o nome do seu marido nunca aparece ligado ao dela.

Voltou a acenar, desta vez, segundo me pareceu, com mais vigor.

- Compreendemos a posição do coronel Fowler, enquanto adjunto do general Campbell - prosseguiu Cynthia - e, segundo presumo, seu amigo. Apreciamos a honestidade do seu marido e a sua boa vontade ao deixar que lhe falássemos. Estou certa de que lhe disse para ser tão franca connosco quanto ele o foi, e nós consigo.

Mais um aceno de cabeça, agora tímido, e Cynthia continuou a andar às voltas, evitando as perguntas demasiado directas, fazendo afirmações positivas, cheia de compaixão e firmeza, como se deve mostrar frente às testemunhas civis, que depõem voluntariamente. Ela estava, sem dúvida, a agir muito melhor do que eu o teria feito, mas, chegado o momento de passar às coisas sérias, perguntou:

- Estava em sua casa na noite do crime?

- Sim.

- O seu marido regressou da messe mais ou menos às vinte e duas horas.

- Exacto.

- Foram-se deitar por volta das vinte e três?

- Acho que sim.

- Entre um quarto para as três e as três foram acordados por alguém que tocava à campainha. - Reinou o silêncio e Cynthia prosseguiu: - O seu marido desceu as escadas e foi abrir. Voltou ao quarto, disse-lhe que era o general e tinha de ir tratar de um assunto urgente. O seu marido vestiu-se e pediu-lhe que fizesse o mesmo. É isso? - Novo silêncio. - E saiu com ele - insistiu a minha parceira - Julgo que calça o trinta e oito. Estou certa?

- Sim. Vestimo-nos os dois e saímos - confirmou a senhora Fowler. Ninguém falou durante uns segundos e depois Cynthia retomou a palavra:

- Vestiram-se os dois e saíram. O general ficou à vossa espera?

- Sim.

- Estava acompanhado da senhora Campbell?

- Não.

- Portanto, ele acompanhou o seu marido à carreira de tiro seis. Correcto?

- Sim. O meu marido explicou-me que o general lhe dissera que a filha estava nua e pediu-me que levasse um roupão. Acrescentou que Ann Campbell estava amarrada e levou uma faca, para que eu cortasse as cordas.

- Seguiram, assim, pela estrada das carreiras de tiro e percorreram o último quilómetro de faróis apagados.

- Sim. O meu marido não queria chamar a atenção da sentinela. Disse que havia um posto da guarda perto.

- Pararam junto do jipe, segundo as instruções recebidas do general. Que horas eram?

- ... Mais ou menos três e meia.

- Saiu então do carro e...

- Avistei uma forma na carreira de tiro. O meu marido disse-me que fosse até lá, a desamarrasse e lhe vestisse o roupão. E que o chamasse, caso precisasse de ajuda. - A senhora Fowler fez uma pausa e acrescentou: - Recomendou-me que a esbofeteasse, se ela recusasse colaborar. Estava furioso.

- Compreende-se - apoiou Cynthia. - Dirigiu-se, pois, à carreira de tiro.

- Sim. Quando ia a meio caminho, o meu marido decidiu seguir-me. Penso que ele temia a reacção de Ann, receava que ela se tornasse violenta.

- E aproximou-se de Ann Campbell. Disse alguma coisa?

- Sim, chamei-a. Mas ela... ela não respondeu. Aproximei-me e... ajoelhei-me. Ela tinha os olhos abertos, mas... gritei... o meu marido correu até junto de mim...

A senhora Fowler tapou o rosto com as mãos e começou a chorar. Cynthia, que estava preparada para esta eventualidade, levantou-se de um salto, foi sentar-se junto dela, rodeou-lhe os ombros com o braço e estendeu-lhe um lenço.

Decorridos uns minutos, disse-lhe:

- Obrigada, não vamos incomodá-la mais. Encontraremos o caminho Para a saída.

E encontrámos, entrámos no carro e quando arrancámos, comentei:

- Às vezes, um tiro no escuro acerta em cheio no alvo.

- Mas não foi propriamente um tiro no escuro - ripostou Cynthia. - Quero dizer, agora tudo faz sentido, é lógico, dado o que sabemos dos factos e o que conhecemos das pessoas.

- Certo. Fizeste um bom trabalho.

- Obrigada, mas limitei-me a seguir as tuas directivas.

Sim, lá isso foi - admiti simplesmente, uma vez que correspondia à verdade.

- Acho que não me agrada a falsa modéstia nem a humildade nos homens.

- Óptimo, então, estás no campo certo - retorqui. - Achas que Fowler aconselhou a mulher a contar a verdade ou foi ela a tomar a iniciativa?

Depois de uns segundos de reflexão, Cynthia respondeu:

- Na minha opinião, o coronel sabe que estamos a par dos pontos a, b e c e disse à mulher que respondesse, se a interrogássemos sobre o ponto x e nos revelasse, em simultâneo, y e z, a fim de sossegar a consciência.

- Sem dúvida. E ela é assim testemunha de que Ann Campbell estava morta quando chegaram lá e não foi o marido que a matou.

- Correcto. Aliás, acredito nela e tenho a certeza de que não foi ele o assassino.

Rolávamos em silêncio, absortos nos nossos pensamentos, e chegámos a Beaumont um pouco antes da hora, mas resolvemos deixar o protocolo de lado e dirigimo-nos à porta principal, onde um polícia militar verificou as identificações e tocou à campainha por nós.

Como que por um desígnio do destino, foi o jovem e elegante tenente Elby a abrir a porta.

- Chegaram dez minutos antes - observou.

O jovem Elby usava as insígnias dos oficiais de infantaria e embora não tivesse condecorações indicativas de que estivera debaixo de fogo, era meu superior e havia que o reconhecer.

- Podemos voltar um pouco mais tarde ou talvez conversar uns instantes consigo - disse-lhe.

O tenente mandou-nos entrar com um gesto afável e conduziu-nos até à sala de espera, que já conhecíamos. Antes mesmo de me sentar, dirigi-me a Cynthia:

- Não querias refrescar-te um pouco?

- O quê? Ah... sim.

- Há uma casa de banho à esquerda da entrada - indicou Elby, de dedo erguido.

Obrigada - agradeceu Cynthia, desaparecendo.

- Soube que costumava sair com Ann Campbell, tenente - declarei. virando-me para Elby.

- É verdade - assentiu, depois de me perscrutar atentamente.

- Estava a par de que ela fazia o mesmo com Wes Yardley? Acenou com a cabeça e verifiquei pela sua expressão que esta recordação ainda lhe era dolorosa. Não me era difícil compreendê-lo... um jovem e distinto oficial, obrigado a partilhar a filha do patrão com um civil pouco recomendável, sem nada de distinto.

- Amava-a? - quis saber.

- Não vou responder.

- Já respondeu. Tinha intenções sérias?

- Porque está a fazer-me todas essas perguntas? Tanto quanto sei, veio falar com a senhora Campbell.

- Chegámos cedo de mais. Encontrava-se, portanto, ao corrente da relação de Ann com Wes Yardley. Chegou-lhe algum boato de que ela saía também com oficiais casados da base?

- O que está para aí a dizer?

Acho que ele desconhecia estes boatos, e também que ignorava a existência do antro na cave.

- O general aprovava a sua relação com a filha?

- Sim. Sou obrigado a responder?

- Há três dias não era e podia ter-me mandado passear. Contudo, neste momento, sim, é obrigado a responder. Próxima pergunta: a senhora Campbell aprovava esta relação?

- Sim.

- Falava de casamento com Ann Campbell?

- Sim. Falávamos

- Prossiga, tenente.

- Bom... Eu sabia que ela andava envolvida com esse tal Yardley, e sentia-me... aborrecido... mas não era só isso... ela disse-me... que queria ter a certeza de que os pais estavam de acordo e que, quando o pai desse a sua bênção, anunciaríamos o noivado.

- Percebo. Alguma vez discutiu este assunto com o general, de homem para homem?

- Sim, há umas semanas. Ele pareceu feliz com a ideia, mas aconselhou-me a reflectir durante um mês. Disse-me que a filha era uma jovem muito determinada.

- Percebo. E depois recebeu recentemente ordem de transferência para os confins do mundo.

- Sim... Guatemala - anuiu, fitando-me com uma expressão surpreendida.

Quase soltei uma gargalhada, mas contive-me. Embora fosse meu superior pela patente, tinha idade para ser meu filho. Pus-lhe a mão no ombro.

- Decerto teria feito a felicidade de Ann Campbell, tenente - garanti -, mas tal não estava previsto. Foi apanhado num confronto de forças entre o general e Ann Campbell e para eles não passou de um peão que se desloca no tabuleiro. Deve estar, aliás, de certa maneira, consciente desta realidade. Prossiga a carreira e a vida, tenente, e da próxima vez que pensar em casamento tome duas aspirinas, deite-se num quarto escuro e espere que passe.

Infelizmente, Cynthia regressou nesse momento e deitou-me um olhar irritado.

O tenente Elby parecia agitado, zangado, mas fizera-se luz no seu cérebro.

- A senhora Campbell irá recebê-los agora - anunciou, consultando o relógio.

Percorremos o corredor atrás de Elby, que nos conduziu até um vasto salão de estilo vitoriano.

A mulher do general levantou-se à nossa entrada. Usava um vestido negro, muito simples, e ao aproximar-me fiquei impressionado pela semelhança com a filha. Com perto de sessenta anos, a beleza cedera lugar ao charme e ainda demoraria uns dez anos antes que as pessoas começassem a referir-se-lhe com aquela expressão neutra e assexuada de “uma mulher encanradora”.

Cynthia foi a primeira a avançar, estendeu-lhe a mão e apresentou-lhe os pêsames. Segui-lhe o exemplo.

- Sentem-se, por favor - convidou a senhora Campbell, indicando-nos um sofá próximo da janela.

Instalou-se na nossa frente. Estávamos separados por uma mesinha redonda, onde se viam algumas garrafas e copos. Ela estava a tomar chá, mas ofereceu:

- Querem um cálice de xerez ou de porto?

Pela minha parte, de bom grado teria aceite uma bebida alcoólica, mas nenhuma daquelas. Cynthia aceitou um cálice de xerez.

Constatei, surpreendido, que a senhora Campbell tinha sotaque do Sul. Depois lembrei-me de que a vira uma vez na televisão, quando da Guerra do Golfo, e me maravilhara com o casal perfeito que formavam: um intratável general do Middle West e uma dama culta do Sul.

Cynthia começou por falar de banalidades e a dona da casa, apesar do seu desgosto, deu-lhe réplica. Contou-nos, assim, que era natural da Carolina do Sul e filha de um oficial do Exército. June - era o seu nome - representava, aos meus olhos, o que o Sul tem de melhor para oferecer. Era delicada, encantadora, graciosa, e acrescentarei, com base no que o coronel Fowler dissera a seu respeito, leal e arreigada aos seus princípios.

Tinha consciência de que os ponteiros do relógio avançavam, mas Cynthia não parecia com pressa de passar à parte mais desagradável da conversa. Presumi que achava o momento mal escolhido, ou perdera a coragem. Não a censurava e foi então que a ouvi declarar:

- Presumo que a senhora Fowler, ou talvez o coronel, lhe telefonou antes da nossa chegada.

“Boa jogada, Cynthia”, pensei.

A senhora Campbell pousou a chávena de chá e respondeu no mesmo tom cortês que utilizava desde o início da conversa:

- Foi a esposa do coronel Fowler. Ainda bem que ela teve oportunidade de lhes falar. Estava deveras perturbada e agora sente-se muito melhor.

- Sim. Acontece com muita frequência - explicou Cynthia. - Sabe, minha senhora, ocupo-me sobretudo de casos de agressão sexual e, quando me ponho a interrogar pessoas que sei terem algo a confessar-me, sinto até que ponto se encontram tensas. é como se tivessem um nó na garganta, mas, se uma delas começa a falar, tudo se desenrola.

Era a sua forma de explicar que, quando a lei do silêncio se quebra, toda a gente se apressa a ir testemunhar. É muito melhor do que ser suspeito.

- Segundo o que me contou a senhora Fowler - prosseguiu Cynthia - e de acordo com as informações que o meu colega e eu recolhemos de outras fontes, parece que o general recebeu um telefonema de Ann ao alvorecer, pedindo-lhe que fosse ter com ela à carreira de tiro, para discutir algo. É verdade?

Mais um tiro no escuro ou, prestando homenagem a Cynthia, um golpe de génio.

- O telefone vermelho, que está ao lado da nossa cama, tocou mais ou menos às duas menos um quarto. O general atendeu logo, acordei e observei-o enquanto escutava. Não pronunciou uma só palavra, desligou, levantou-se e começou a vestir-se. Nunca lhe pergunto o teor dos telefonemas, mas diz-me sempre onde vai e quando espera regressar. Desde que estamos em Fort Hadley - prosseguiu com um sorriso que deixou de receber chamadas a meio da noite, mas na Europa, quando o telefone tocava, saltava da cama, agarrava num saco de viagem, já preparado, e apanhava o avião para Washington, a fronteira da Alemanha Oriental ou sabe-se lá para onde. Contudo, dizia-me sempre... - Desta vez, limitou-se a informar-me que voltaria dali a uma ou duas horas. Vestiu-se à civil e saiu. Fiquei a vê-lo afastar-se e reparei que levava o meu carro.

- Qual é o seu carro, minha senhora?

- Um Buick.

Cynthia acenou com a cabeça e retomou a palavra:

- Depois, por volta das quatro ou quatro e meia da manhã, o general regressou e contou-lhe o que acontecera.

O olhar de June Campbell perdeu toda a expressão, deparou-se-me, pela primeira vez, o rosto de uma mãe cansada e destruída, e avaliei o desgaste acumulado ao longo dos anos. A mãe e a esposa nunca haviam aceite o que o pai e o marido haviam imposto à filha ao longo dos anos em nome das aparências, da carreira e da imagem pública. Contudo, acabara por se resignar.

- O seu marido chegou por volta das quatro e meia... - repetiu Cynthia.

- Sim... Eu estava à espera dele aqui, nesta sala. Quando entrou, soube que a minha filha estava morta. É tudo o que sei - acrescentou, levantando-se. - Agora que a carreira do meu marido está a chegar ao fim, apenas nos resta a esperança de que descubram quem o fez. Depois, poderemos seguir em paz connosco próprios.

Pusemo-nos igualmente de pé e Cynthia garantiu:

- Estamos a dar o nosso melhor. E agradecemos que tenha superado o seu desgosto para nos receber.

Disse-lhe que não valia a pena acompanhar-nos e, ao chegarmos ao carro, comentei:

- A carreira do general terminou há dez anos, no hospital militar de West Point. Só que demorou alguns anos para chegar a essa tomada de consciência.

- Sim, não só traiu a filha, como a mulher e a ele próprio. Entrámos no Blazer e afastei-me da Beaumont House.

 

 

                                       CAPÍTULO VINTE E SETE

 

- De que falaste com o tenente Elby? - perguntou-me Cynthia no caminho.

- De amor e casamento.

- Sim. Surpreendi algumas palavras edificantes.

- Bom... ele é novo de mais para se estabilizar. Tinha pedido Ann Campbell em casamento.

- Casar com ela não seria propriamente o que eu chamaria estabilizar-se.

- Exacto.

Pus Cynthia ao corrente da minha breve conversa com Elby e concluí:

- E agora o pobre diabo vai ser expedido para a Guatemala. É essa a realidade, como na mitologia grega, quando um mortal tem conhecimento carnal de uma deusa. Enlouquece, é transformado em animal ou numa estátua ou então banido para a Guatemala ou o seu equivalente olímpico.

- Uma idiotice sexista.

- Se assim o queres. De qualquer maneira, tenho a impressão de que as relações no seio da família Campbell eram demasiado patológicas para que o amor e a felicidade pudessem desabrochar, e mal do que ficasse preso nas malhas do seu infortúnio.

- Achas que eles viviam em harmonia antes de ela ter sido violada em West Point?

- Bom... segundo o coronel Moore, sim. Pode imaginar-se que assim fosse. E, a propósito de imagens, estou a pensar naquele álbum que encontrámos na casa de Ann... Se pensares nas fotografias antes e depois da violação, que ocorreu, no Verão, entre o seu primeiro e o segundo ano em West Point, constatas uma diferença.

- Sim, quase se pode detectar a olho nu a tragédia de uma família, se se souber o que se procura. Os homens que a violaram à vez - acrescentou - passaram um bom momento e a vida deles retomou o curso habitual. Não voltaram a pensar no drama que deixavam atrás das costas.

- Eu sei. Observamos sempre os mesmos efeitos depois de um acto de violência, mas, por regra, conseguimos que seja feita justiça. Neste caso, ninguém chamou a polícia.

- Nesse momento, não. Contudo, agora estamos nós aqui. Como pensas lidar com o general Campbell? - indagou.

- Gostaria de lhe dar um bom abanão. Acho, porém, que já pagou caro pelo seu erro. Não sei... é difícil. Actuemos por instinto. Ele é, apesar de tudo, um general.

- Certo.

O estacionamento do quartel-general estava quase vazio, viam-se apenas alguns veículos, incluindo o carro de serviço verde-azeitona do general, e também um jipe. Na medida em que não eram autorizados, senão a título excepcional, no quartel-general, deduzi que o que se encontrava no hangar de Jordan Field fora substituído.

Cynthia e eu estávamos no parque de estacionamento à direita do quartel-general, e pensei em voz alta:

- Ela saiu por aquela porta por volta da uma da manhã, meteu-se no jipe e foi desafiar os fantasmas do passado.

- E os fantasmas levaram a melhor.

Demos a volta até à frente do edifício do quartel-general. O sombrio edifício de tijolo de dois andares assemelhava-se vagamente às escolas dos anos trinta, com excepção de que o acesso até à entrada estava ladeado de canhões de cento e cinquenta milímetros, dispostos, com flores, numa ornamentação involuntariamente irónica. No relvado, havia também antigas peças de artilharia, ilustrando as várias épocas.

Transpusemos a porta principal e um jovem soldado uniformizado levantou-se da secretária quando nos aproximámos. Disse-lhe que tínhamos uma entrevista com o general. Após proceder à devida verificação, indicou-nos um comprido corredor que desaparecia nas profundezas do edifício.

Acompanhado de Cynthia, percorri o deserto corredor forrado de azulejos.

- Nunca prendi um general - comentei. - Estou certamente mais nervoso do que ele.

- Não foi ele, Paul - retorquiu, olhando-me de relance.

- Como sabes?

- Não consigo imaginá-lo a assassinar a filha e, se não consigo, é porque ele não o fez.

- Não me recordo de ter lido isso no manual.

- Bom. De qualquer maneira, não me parece que tenhas autorização para prender um general. Consulta o manual.

Desembocámos num outro hall, também este deserto. Mesmo na nossa frente, havia uma porta fechada com uma placa de cobre onde se lia. “General de divisão Joseph I. Campbell.”

Bati à porta, que foi aberta por um tenente com uma chapa de identificação com o nome de Bollinger.

- Boa tarde. Sou a ajudante-de-campo do general - cumprimentou. Apertámos as mãos e ela conduziu-nos até uma pequena divisão que lhe servia de gabinete. O tenente Bollinger devia andar pelos trinta e cinco anos, robusta e simpática.

- É a primeira vez, desde a companheira de Ike, que encontro uma ajudante-de-campo de um general - surpreendi-me.

- É raro - admitiu com um sorriso. - O outro ajudante-de-campo do general é um homem, o tenente Elby.

- Sim, já o conhecemos.

Ocorreu-me que, se o tenente Elby era um peão no jogo a que se entregavam pai e filha, esse não era decerto o caso do tenente Bollinger. Ann não poderia seduzi-la e os seus poucos encantos decerto tranquilizariam a senhora Campbell. Incorruptível em último grau.

Escoltou-nos até uma espécie de antecâmara e informou:

- O general está disposto a conceder-vos o tempo de que necessitarem, mas peço-vos que compreendam... bom, que acabou de sofrer um profundo desgosto.

- Com certeza - sossegou-a Cynthia.

Percebi também que a entrevista fora programada para depois das horas de serviço, quando o pessoal já não poderia estar presente para ver e ouvir, caso a conversa desse para o torto.

O tenente Bollinger bateu a uma porta de madeira de carvalho, abriu-a e anunciou os agentes Brenner e Sunhill. Depois, afastou-se para nos dar passagem.

O general avançou ao nosso encontro, trocámos uma breve continência e apertos de mão. Depois, indicou-nos um conjunto de cadeiras estofadas e sentámo-nos. Os generais, como todos os oficiais superiores, dispõem, no gabinete, de uma variedade de lugares correspondendo a uma hierarquia, mas também podem deixar os visitantes em sentido ou, por uma questão de boa vontade, em posição de descanso, mas de pé.

Contudo, Cynthia e eu recebíamos mais indícios de consideração do que o exigia a nossa patente, e isso devia relacionar-se com o facto de termos ouvido as confissões de duas esposas culpadas de infracções, a saber: obstrução à lei e conspiração. No entanto, talvez nos achasse simpáticos.

- Querem tomar uma bebida? - sugeriu.

- Não, obrigado, sir.

Mas a verdade é que o canhão disparara e tinha-se arriado a bandeira, o que, no Exército, corresponde à campainha do jantar tocando para os cães de Pavlov.

Como ninguém falou durante um ou dois minutos, olhei à minha volta. As paredes, pintadas de branco, estavam decoradas com molduras de carvalho, a mesma madeira de que era feito o mobiliário e o chão, coberto por um tapete oriental vermelho, sem dúvida trazido do estrangeiro.

Não existiam prateleiras a abarrotar de troféus de guerra, recordações ou diplomas emoldurados, mas, numa mesinha a um canto, coberta com uma espécie de capa azul, via-se um sabre embainhado, um boné azul e outros objectos.

- São as coisas do meu pai - explicou o general, ao dar-se conta do meu olhar. - Era coronel de cavalaria nos anos vinte.

- Estive no Primeiro Batalhão da Oitava Divisão de Cavalaria, no Vietname.

- A sério? Era o regimento do meu pai, que se bateu contra os índios, embora isso tivesse sido antes do seu tempo.

Por conseguinte, sempre tínhamos algo em comum. Bom, quase. A nossa conversa de velhos combatentes devia aborrecer Cynthia, mas este tipo de aliança masculina constitui um bom preâmbulo antes de se passar ao ataque.

- Então, nem sempre foi detective? - inquiriu o general Campbell.

- Não, general. Costumava trabalhar honestamente.

- Distinções? Condecorações? - interessou-se com um sorriso.

- Enumerei-as e aprovou com um aceno de cabeça. Acho que estava muito mais disposto a aceitar o que tinha a dizer-lhe agora que me sabia um ex-combatente do Vietname. Se necessário, ter-lhe-ia mentido neste ponto, na medida em que o posso fazer para saber a verdade. Uma testemunha também pode, aliás, desde que não se encontre sob juramento, tal como um suspeito cem o direito de se abster de declarações que possam ser usadas contra ele. Por vezes, o problema reside em saber quem é quem.

O general fitou Cynthia sem desejar excluí-la da nossa conversa e interrogou-a, por sua vez, sobre o seu passado militar e as suas origens familiares. As respostas dela forneceram-me dois ou três elementos, se é que falava verdade. Reparei que os generais, e por vezes os coronéis, interrogam o pessoal e oficiais de patente inferior sobre a sua carreira militar, raízes civis e formação. Ignoro se realmente os interessa ou se se trata apenas de qualquer método, importado do Japão, que lhes ensinam na Academia Militar. Seja como for, há que entrar no jogo, mesmo quando se está disposto a orientar a conversa para a questão da actividade criminal.

Dado o tempo de que dispúnhamos, a conversa alongou-se durante uns bons quinze minutos. Por fim, o general pronunciou-se:

- Julgo saber que falaram com a senhora Fowler e com a minha mulher.

Sabem, portanto, algo do que se passou naquela noite.

- Sim, meu general - aquiesci. - Mas, para lhe ser totalmente franco, já estávamos de posse de grande parte dos dados antes de falarmos com ambas.

- A sério? Fico impressionado. Constato que a formação dos agentes da CID é de facto excelente.

- Temos realmente uma boa experiência, general, embora este caso nos tenha levantado problemas específicos.

- Não duvido. Sabem quem matou a minha filha?

- Não, general.

- Não foi o coronel Moore? -perguntou, fitando-me atentamente.

- Talvez.

- Vejo que não estão aqui para responder às minhas perguntas.

- Não, general.

- Então, por onde desejariam começar este interrogatório?

- Penso que o mais simples para todos seria que nos contasse, antes do mais, o que se passou na noite em questão, a começar pelo telefonema da uma e quarenta e cinto. Poderei interrompê-lo quando necessitar que esclareça qualquer ponto.

- De acordo - redarguiu com um aceno de cabeça. - Estava a dormir quando o telefone da minha mesa-de-cabeceira tocou. Atendi, mas não obtive resposta. Depois, ouviu-se uma espécie de clique, a que se seguiu a voz da minha filha. Percebi logo que se tratava de uma gravação.

Aquiesci. Havia telefones nas torres de controlo das carreiras de tiro, mas de noite não funcionavam. Ann Campbell e Charles Moore tinham obviamente um telemóvel com gravador.

O general prosseguiu:

- A mensagem... a mensagem gravada dizia: “Pai, é a Ann. Preciso falar-te, é muito urgente. Vem ter comigo à carreira de tiro número seis no máximo até às duas e um quarto.” Dizia que, se eu não aparecesse, se mataria. - acrescentou o general.

- Pedia-lhe que fosse acompanhado da senhora Campbell? - interferi. Ele brindou-nos com um olhar hesitante, interrogando-se sobre o que sabíamos, pensando talvez que havíamos descoberto esta gravação.

- Pedia sim, mas eu não tinha essa intenção.

- Muito bem. Fazia alguma ideia do que ela tinha a dizer-lhe de tão importante para o levar a sair da cama e ir até à carreira de tiro?

- Não... eu... Ann, como certamente o sabem, sofria de perturbações emocionais.

- Sim, general, mas alguém nos confiou que lhe tinha imposto um ultimato e um prazo. Ela devia dar-lhe a resposta ao pequeno-almoço, nessa manhã.

- É verdade. O seu comportamento tornou-se insuportável. Disse-lhe que tinha de mudar ou ir-se embora.

- Portanto, quando ouviu a voz dela àquela hora, percebeu que não se tratava de uma crise passageira, mas que estava em causa o seu ultimato.

- Sim, sem dúvida.

- Porque acha que ela se lhe dirigiu através de uma mensagem gravada?

- Para evitar discussões, suponho. Eu mostrava-me sempre muito firme, mas, dado não poder discutir com uma mensagem, fiz o que qualquer pai faria e dirigi-me ao local indicado.

- Sim. Como veio a concluir-se mais tarde, a sua filha já estava na carreira de tiro e telefonou-lhe de um telemóvel. Ela saíra, na verdade, do quartel-general à uma hora da manhã. Interrogou-se sobre o que a levara a escolher este terreno de manobras, afastado de tudo? Porque não esperara muito simplesmente pelo pequeno-almoço para lhe dar a resposta?

- Não - respondeu, abanando a cabeça.

Bom, talvez o ignorasse, mas soube a partir do momento em que a viu. Tomei consciência de que estava sinceramente perturbado e tinha dificuldade em controlar-se. Seria, porém, capaz de se aguentar por mais que o espicaçasse e dar-nos-ia provas consolidadas por factos. Nunca nos revelaria voluntariamente a verdade que levara a filha a expor-se-lhe nua e amarrada.

- Ann falou na hipótese de se matar, caso o general não aparecesse - retorqui. - Acha que podia ter pensado em matá-lo, se aparecesse? - O general não respondeu. - Foi armado? - insisti.

- Não fazia ideia do que me esperava - confirmou, com um aceno de cabeça.

“Aposto que não, e foi esse o motivo por que não levou a senhora Campbell.”

- Vestiu-se, portanto, à civil, pegou numa arma, levou o carro da sua mulher e dirigiu-se à carreira de tiro seis, de faróis ligados. A que horas chegou ao seu destino?

- Oh... mais ou menos às duas e um quarto, a hora que ela indicara.

- Bom. Parou, desligou os faróis e...

O general deixou que o silêncio se apoderasse das minhas conjecturas por expressar e depois pronunciou-se:

- Saí do carro e dirigi-me ao jipe, mas ela não estava lá. Fiquei preocupado chamei-a, mas não obtive resposta. Voltei a chamá-la e dessa vez respondeu, segui pela carreira de tiro ao encontro da sua voz e vi-a no chão, enfim, vi uma figura no chão, pensei que era ela e que talvez estivesse ferida. Avancei precipitadamente... ela estava nua... fiquei chocado, confuso... não sei o que lhe dizer, mas ela estava viva e nada mais me interessava. Aproximei-me, perguntei-lhe se estava bem, ela respondeu que sim... debrucei-me... sabe bem que não é fácil falar de tudo isto.

- Sim, general, e também não é fácil para nós. Não se trata de comparar os meus sentimentos com a sua dor, mas acho que posso igualmente falar em nome de Miss Sunhill se lhe disser que durante esta investigação acabámos por... gostar da sua filha. - Bom, de qualquer maneira falava por mim. Os detectives - prossegui - sentem um certo afecto pelas vítimas de homicídio, mesmo que nunca as tenham visto. Este é um caso invulgar, na medida em que visionámos cassetes das prelecções da sua filha e creio que gostaria de a ter conhecido... mas conte-nos o que se seguiu.

O general estava novamente a perder o fio à meada. Envolveu-nos um silêncio embaraçoso, enquanto ele respirava fundo. Depois, pigarreou e retomou a descrição:

- Tentei desamarrá-la... era muito embaraçoso... quero dizer para ela e para mim... mas não consegui desatar os nós, nem arrancar as estacas. Esforcei-me ao máximo... mas quem quer que as tenha enterrado fê-lo bem fundo e apertou os nós... Disse-lhe que me esperasse... dirigi-me ao carro e ao jipe, mas não encontrei nada com que cortar as cordas... portanto, voltei até junto dela e disse-lhe... disse-lhe... que ia pedir uma faca ao coronel Fowler... Bethany Hill fica a menos de dez minutos da carreira de tiro... Em retrospectiva, acho que devia... oh, não sei o que devia ter feito.

Acenei de novo com a cabeça e prossegui:

- Enquanto tentava desatá-la, decerto lhe falou.

- Pouco.

- Mas perguntou-lhe, sem dúvida, quem lhe fizera aquilo?

- Não...

- Disse-lhe certamente algo do género: “Quem te fez isto, Ann?”

- Oh... sim, claro. Mas ela não sabia.

- Na verdade, não queria dizer.

- É verdade, não queria dizer - anuiu o general, fitando-me bem de frente. Talvez você o saiba.

- Voltou, pois, a partir rumo a Bethany Hill.

- Correcto. E pedi ajuda ao coronel Fowler.

- Sabia que havia um guarda no depósito de munições, a menos de um quilómetro de distância?

- Não conheço a disposição de todos os postos de guarda desta base. De qualquer maneira, duvido de que fosse capaz de lá ir pedir auxílio - acrescentou. - Não suportaria que um jovem visse a minha filha naquela situação

- Na realidade, era uma mulher, mas isso não interessa. O que me intriga é porque deu meia volta sem acender os faróis e porque percorreu várias centenas de metros sem luzes.

Deve ter-se interrogado como conhecia eu este dado e depois concluiu que provavelmente tinha falado com a sentinela.

- Para ser franco, não queria chamar as atenções - respondeu finalmente

- E porquê?

- Coloque-se na minha posição. Se tivesse acabado de deixar a sua filha nua e amarrada ao solo, quereria mais alguém implicado? Apenas pensava em ir pedir ajuda ao coronel e à senhora Fowler. Não desejava obviamente que este incidente se tornasse público.

- Mas era mais do que um incidente, sir, era um crime, não era? Quero dizer, deve ter pensado que ela fora molestada por qualquer louco ou vários? Porque queria silenciar o facto?

- Para não a embaraçar, suponho.

- As vítimas de violação não têm motivo para se sentirem embaraçadas - interferiu Cynthia.

- Mas a verdade é que se sentem - ripostou o general.

- Ela indicou-lhe por qualquer meio que desejava ficar na posição em que se encontrava enquanto ia buscar o coronel e a senhora Fowler?

- Não, mas achei que era o melhor que podia fazer.

- Ela devia sentir-se aterrorizada com a ideia de que os violadores pudessem voltar durante a sua ausência, não? - inquiriu Cynthia.

- Não... ou talvez sim. Disse-me que me despachasse. Ouçam, se estão a tentar dizer que não agi bem, têm indubitavelmente razão. Devia ter-me esforçado mais por desamarrá-la, ou colocar-lhe o meu revólver na mão para que se defendesse enquanto me ausentava, talvez devesse ter disparado para o ar, a fim de alertar os polícias militares, ou esperar ao lado dela que passasse algum carro. Não vos parece que pensei em tudo isto uma centena de vezes? Se estão a questionar o meu comportamento, repito que têm toda a razão, mas não duvidem do meu grau de preocupação.

- Não é essa a minha intenção, general - vincou Cynthia. - Apenas procuro compreender o que se passou.

Ele ia a responder, mas optou pelo silêncio.

- Dirigiu-se, por conseguinte a casa dos Fowler, explicou-lhes a situação e eles regressaram à carreira de tiro, a fim de prestarem ajuda à sua filha.

- Correcto. A senhora Fowler trouxera um roupão e uma faca para cortar as cordas.

- Não viu as roupas da sua filha no local?

- Não.

- Não lhe ocorreu tapá-la com a sua camisa?

- Não... Não tinha as ideias muito claras.

E era este o homem que, como tenente-coronel, conduzira um batalhão de infantaria no assalto à cidade de Quang Tri e libertara uma companhia de fuzileiros americanos que ficara cercada na antiga cidadela francesa. E não soubera como prestar socorro à filha! Não fizera obviamente tenção de lhe prestar ajuda e conforto. Eu estava furibundo.

- Porque não acompanhou os Fowler, general? - perguntei em seguida.

- Não precisavam de mim. Apenas a senhora Fowler podia fazer qualquer coisa, mas o coronel foi também, na eventualidade de surgir qualquer problema.

- Que tipo de problema?

- Bom, no caso de a pessoa que a pusera naquele estado ainda se encontrar por perto.

- Então porque deixou a sua filha sozinha, nua e amarrada, se receava essa hipótese?

- Só me ocorreu quando já quase havia chegado a casa dos Fowler. Devo lembrar que o percurso até casa deles demora menos de dez minutos.

- Sim, mas a viagem de volta, acordá-los, esperar que se vestissem e regressar deve ter demorado no mínimo meia hora. Depois de os acordar e pedir-lhes ajuda, a reacção natural de qualquer pessoa, sobretudo a de um pai, um comandante militar, seria voltar rapidamente ao local e defendê-lo enquanto aguardava reforços, utilizando uma expressão militar.

- Está a pôr em causa a minha decisão ou os meus motivos, Brenner?

- A sua decisão teria sido excelente, caso os motivos fossem puros. Acho, portanto, que estou a pô-los em causa.

Por regra nunca se faz isso a um general, mas a situação nada tinha de normal.

- Suponho que ambos sabem mais do que aparentam - observou o general com um aceno de cabeça. - São muito espertos, apercebi-me disso desde o início. Porque não me dizem, portanto, quais eram os meus motivos?

Desta vez, foi Cynthia a responder: ... - Queria assustá-la um pouco.

A Abrira-se uma brecha, continuando a usar a terminologia militar, e Cynthia aproveitou para se infiltrar.

- Na verdade, general, sabia que a sua filha não era vítima de um violador, que não fora agredida enquanto estava à sua espera. Com a ajuda de um cúmplice, telefonara-lhe e transmitira-lhe a mensagem com o único objectivo de se lhe apresentar, e à senhora Campbell, naquela posição. É a única explicação lógica para o desenrolar dos factos, o único motivo capaz de justificar que a tenha deixado só, que tenha ido pedir ajuda aos Fowler e ficasse em casa deles à espera de que lhe trouxessem a sua filha e o jipe, e resolvesse ocultar todo o incidente até agora.

O general conservava-se imóvel, imerso nos seus pensamentos, talvez ocupado com as perspectivas que se lhe ofereciam, a vida, o erro que cometera Aquela noite e o que praticara há dez anos. Por fim, retomou a palavra:

- A minha carreira terminou. Escrevi uma carta de demissão, que enviarei amanhã, depois do funeral da minha filha. Apenas me interrogo sobre o que precisam de saber para descobrir o assassino, o que estou preparado para vos revelar e ao mundo, e se vale realmente a pena manchar a memória dela. Sei que é uma atitude egocêntrica, mas tenho de pensar na minha mulher, no meu filho e também no Exército... Não sou um cidadão qualquer - acrescentou. - A minha conduta é o reflexo da profissão que tenho e o desgosto que sinto pode afectar o moral dos meus oficiais.

Apeteceu-me responder-lhe que o moral dos oficiais de Fort Hadley já andava muito por baixo, que eles só esperavam o golpe de misericórdia, que ele não era realmente um cidadão qualquer e que podia ser esperado ser tratado à sua altura; que, sim, mostrara-se muito egocêntrico e que a reputação da filha não era a nossa maior preocupação, que me cabia julgar o que precisava de saber para desmascarar o assassino e que, por último e não menos importante, a sua carreira estava realmente a chegar ao final.

Mas, em vez disto, disse-lhe:

- Compreendo que não alertasse a Polícia Militar. De facto, general, tratava-se até então de um assunto privado e confesso-lhe que agiria da mesma forma. Compreendo também que tenha recorrido à ajuda dos Fowler, e também nesse ponto procederia assim. Mas, quando eles lhe comunicaram que a sua filha estava morta, não tinha o direito de os envolver numa conspiração de silêncio, nem tão-pouco à sua mulher. E não tinha igualmente o direito, general, de nos complicar o trabalho, a Miss Sunhill e a mim, dando-nos pistas falsas.

Ele aquiesceu com um aceno de cabeça e retorquiu:

- Tem toda a razão. Assumo inteira responsabilidade.

- Devo informá-lo, sir, de que se tornou culpado de delitos punidos pelo Código Geral de Justiça Militar - acrescentei, depois de tomar fôlego.

Ele voltou a esboçar um aceno de cabeça.

- Sim, eu sei - replicou. - Vou pedir-vos um favor - acrescentou com um olhar dirigido a ambos.

- Sim?

- Queria que fizessem o possível por manterem os Fowler afastados de tudo isto.

Já esperava este pedido e preparara a minha resposta muito antes de o general a formular. Olhei para Cynthia, depois para ele e declarei:

- Não posso agravar este delito cometendo eu próprio um.

Na verdade, já me comprometera ao fechar um acordo com Burt Yardley, mas, a nossa combinação em nada se relacionava com a base. Neste caso, era diferente.

- Os Fowler encontraram o corpo, general, e não comunicaram a ocorrência.

- Comunicaram, a mim.

- A minha posição difere um pouco da do meu colega - interferiu Cynthia - e, embora os detectives não costumem habitualmente manifestar o seu desacordo em público, acho que podemos manter os Fowler afastados deste assunto. De facto, o coronel informou-o do crime e o general respondeu-lhe que preveniria o coronel Kent. Contudo, encontrava-se em estado de choque.

Acabrunhado pelo desgosto, bem como a senhora Campbell, e o corpo foi descoberto antes que tivesse tempo de telefonar para o comandante da Polícia Militar. Ainda há uns pormenores a esclarecer, mas não me parece que a justiça ficasse mais bem servida com a incriminação dos Fowler.

O general perscrutou demoradamente o rosto de Cynthia e depois acenou com a cabeça.

Não me sentia satisfeito, mas aliviado. No fundo, Fowler era o único oficial que demonstrara alguma integridade em todo este caso e não se deixara tentar pelos encantos perversos da filha do general. Nem eu possuía essa força de carácter e respeitava um homem dotado dessa capacidade. Todavia, nada é gratuito e também Cynthia tinha essa consciência, pois dirigiu-se ao general:

- Contudo, gostaria que nos explicasse o que de facto se passou e porquê.

Campbell recostou-se na cadeira e esboçou um aceno de cabeça.

- Entendido. A história começou, de facto, há dez anos... faz este mês 10 anos, em West Point.

 

 

                                   CAPÍTULO VINTE E OITO

 

O general Campbell relatou-nos o que se passara em Campo Buckner, o campo de treino de West Point, mas, quanto à violação, não sabia mais do que nós, ou provavelmente as autoridades. Apenas que, ao visitar a filha no hospital militar, a encontrara traumatizada, histérica e humilhada pelo que lhe acontecera. Contou-nos que Ann se lhe agarrara a soluçar e lhe pedira que a levasse para casa.

Foi ao ponto de nos revelar que ela lhe dissera que era virgem e que os violadores troçaram. Tinham-lhe arrancado a roupa e haviam-na amarrado ao chão com estacas. Um deles pusera-lhe uma corda à volta do pescoço enquanto a violava, ameaçando estrangulá-la se contasse a alguém o que se passara,

Nem eu nem Cynthia, julgo, esperávamos que o general nos confidenciasse pormenores tão íntimos. Ele sabia que este incidente apenas tinha uma remota ligação com o crime e não forneceria qualquer pista que pudesse levar-nos ao assassino. Todavia, queria falar e escutámo-lo.

Fiquei com a impressão, embora ele não abordasse directamente o assunto, de que a filha esperava que ele zelasse por que fosse feita justiça e que, ante uma violação tão brutal, os autores seriam expulsos da Academia Militar e levados a tribunal.

Era o mínimo que podia esperar uma jovem que se aplicara a preencher as expectativas do pai, que enfrentara o rigor do quotidiano em West Point e sofrera uma agressão criminosa.

Aparentemente, não era assim tão simples. Primeiro, havia a questão de o cadete Campbell se encontrar sozinha com cinco homens, no bosque, à noite. Como se isolara do resto da patrulha, composta por quarenta homens? Por acidente? De propósito? Em segundo lugar, Ann Campbell não conseguia identificar os agressores, pois não só usavam pinturas de camuflagem, como tinham o rosto oculto por redes contra os mosquitos. Estava tão escuro que nem mesmo distinguiu os uniformes e era incapaz de afirmar com segurança se se tratava de outros cadetes de West Point ou de soldados da divisão aerotransportada. Nessa noite, havia ao todo perto de mil homens e mulheres em manobras e as hipóteses de reconhecer os cinco atacantes eram praticamente nulas, segundo as informações prestadas ao general Campbell.

Todavia, isto não era inteiramente verdade, segundo Cynthia e eu sabíamos. Podia estreitar-se o campo de possibilidades, mediante um método de eliminação. Ao sentir o cerco a fechar-se, seria inevitável que um dos agressores acabasse por dar com a língua nos dentes, a fim de escapar a uma série de anos na prisão. E havia ainda exames do sémen, de saliva, os testes capilares, as impressões digitais e todos os restantes sortilégios da ciência forense. Na verdade, as violações colectivas eram mais fáceis de detectar do que as individuais. Eu sabia-o, Cynthia também, e suspeitava fortemente de que igualmente o general não ignoraria essas hipóteses.

O verdadeiro problema não residia em identificar os culpados; mas tratar de cadetes ou de soldados. A questão não se situava na área da ciência política, antes no domínio das relações públicas.

Basicamente tudo se resumia a que cinco pénis erectos haviam atacado a mesma vagina e o ataque, que tinha por objectivo o hímen imperforatus de Ann Campbell, podia destruir a reputação do Exército e da Academia Militar dos EUA. Era essa a época em que se vivia: a violação não era um acto sexual - o sexo pode satisfazer-se sem restrições - mas sim um acto de violência, um atentado à ordem e à disciplina militares, uma afronta ao código de honra de West Point, um veto a uma instituição mista, contra as mulheres no Exército e contra o princípio de que estas mulheres podiam coabitar com os homens no coração dos bosques de Buckner ou na atmosfera hostil dos campos de batalha.

O domínio exclusivamente masculino de West Point fora invadido por seres que tinham de se agachar para mijar, segundo as palavras do coronel da messe. Nas salas de aula, ao longo do ano, era suportável, mas nas quentes noites de Verão, os homens cediam ao instinto ancestral.

Os exercícios no terreno, como me recordava perfeitamente, eram um apelo às armas, à guerra, à coragem, uma imitação dos ritos primitivos de passagem à virilidade. Quando fiz o treino, não havia mulheres nas profundezas dos bosques, caso contrário, teria sentido pena e temido por elas.

Contudo, os manda-chuva de Washington e do Pentágono tinham ouvido falar e apoiado a reivindicação de igualdade, que era justificada, necessária, premente. As mentalidades e comportamentos haviam, sem dúvida, mudado desde os meus tempos de jovem a preparar-se para a Guerra do Vietname, mas a evolução não é uniforme e o movimento rumo à igualdade não avança à mesma velocidade em todos os sectores da vida nacional. Há falhas no sistema, bolsas de resistência, reacções primitivas - e fora isso que acontecera numa noite de Agosto, há dez anos. O comandante de West Point não declarara que era possível abandonar uma centena de mulheres no bosque com um milhar de soldados num exercício de manobras nocturno sem que elas fossem violadas, e também não ia anunciar que uma fora menos afortunada.

Por conseguinte, os dirigentes de Washington, do Pentágono e da Academia Militar tinham chamado o general Campbell à razão e, à medida que ele nos expunha os seus argumentos, pareciam-nos muito lógicos. Mais valia calar e deixar impune uma violação do que abalar os alicerces de West Point, pôr em causa uma academia mista, lançar suspeitas sobre um milhar de homens inocentes que não haviam participado no crime dessa noite. Ao general, restava convencer a filha de que era preferível para ela, para West Point, para o Exército, para a nação e para a causa da igualdade esquecer o incidente.

Ministraram um medicamento a Ann Campbell para a impedir de engravidar, submeteram-na a uma infinidade de testes de despistagem de doenças sexualmente transmissíveis, a mãe veio de avião da Alemanha e trouxe-lhe a sua boneca favorita, os cortes e nódoas negras foram tratados e os interessados sustiveram a respiração.

O pai mostrou-se convincente e a mãe não tanto assim. Ann confiou no pai, pois, aos vinte anos, e embora tivesse viajado por todo o país, conservava-se a menina do papá e queria agradar-lhe. Esqueceu tudo. Contudo, mais tarde, recordou-se e era esse o motivo por que todos nos encontrávamos ali sentados no gabinete do general, naquela tarde.

Era esta, pois, a triste história de Ann Campbell. A voz do general enfraquecia de vez em quando, enrouquecia, falhava-lhe. Ouvi Cynthia fungar por várias vezes e mentiria se não confessasse que sentia um nó na garganta.

O general levantou-se, mas fez-nos sinal para que ficássemos sentados.

- Desculpem-me um momento - pediu.

Desapareceu atrás de uma porta. Por melodramático que agora possa parecer, quase esperei ouvir o som de um tiro.

- Compreendo o que o levou a agir assim - disse Cynthia, de olhos pregados na porta -, mas, como mulher, sinto-me revoltada.

- Sou homem e também me sinto revoltado, Cynthia. Há cinco homens algures que conservam a recordação de uma noite bem passada e nós estamos aqui para reparar os danos. Cinco homens, que, se eram todos cadetes, obtiveram o diploma e tornaram-se oficiais e cavalheiros. Eram colegas de Ann e viam-na, sem dúvida, todos os dias. Indirecta, ou talvez directamente, são culpados pela morte dela e responsáveis pelo seu estado mental.

- E se eram soldados - completou Cynthia - regressaram à base, gabando-se de terem fodido uma puta de West Point.

- Exacto. E ficaram-se por aí.

O general Campbell regressou e sentou-se. Depois de uns momentos de silêncio, retomou a palavra:

- Como vêem, só tive o que mereci, mas foi Ann quem pagou o preço da minha traição. Nos meses seguintes, a jovem franca, calorosa e. simpática que ela era transformou-se numa mulher fechada, silenciosa e desconfiada. Terminou o curso em West Point com notas brilhantes, ficou entre as primeiras, e prosseguiu estudos superiores. Contudo, a nossa relação não voltou a ser a mesma. Devia ter pensado nas consequências da minha atitude. Perdi a minha filha a partir do momento em que ela deixou de confiar em mim - acrescentou. - Faz-me bem falar disto, sabe? - suspirou.

- Sim, general.

- Está ao corrente da sua vida desregrada, mas os especialistas explicaram-me todo o processo. Ela não procurava apenas corromper as pessoas que me rodeavam ou embaraçar-me. Dizia-me: “Não fizeste caso da minha castidade, do meu voto de permanecer virgem até casar, portanto o que ofereço a todos os homens que aparecem é algo a que não dás valor. Deixa-te, assim, de prelecções.”

Contentei-me em esboçar um aceno de cabeça, sem poder nem querer fazer comentários, e o general continuou:

- Os anos passaram e ela chegou aqui. É claro que não foi por acaso. Um elemento do Pentágono, um daqueles que estivera intimamente ligado à decisão de West Point, quase me impôs que escolhesse entre duas alternativas.

A primeira: retirar-me, para que Ann também se visse obrigada a afastar-se, ou entendesse a inutilidade da sua conduta, pois receavam pedir-lhe que se demitisse, dado que ela tinha o Exército nas mãos, embora não pudesse mencionar nomes. A segunda alternativa consistia em aceitar o comando sem prestígio de Fort Hadley, onde se encontrava a filial da Escola de Operações Psicológicas, o que seria uma colocação natural para ela e me permitiria vigiá-la de perto. optei pela segunda solução, embora pudesse ter-me reformado normalmente depois do sucesso no Golfo e de todos os meus anos de serviço. Contudo, um dia, ela dissera-me que, se aceitasse uma nomeação para a Casa Branca ou qualquer cargo político, divulgaria a nossa história. Na verdade, era um refém da minha própria filha e apenas me restavam duas soluções: aceitar este comando ou regressar à vida civil.

“Esse o motivo por que o general se mostrava tão pouco interessado em desempenhar um cargo político ou um lugar à sombra da presidência”, pensei. “Tal como tudo o mais nada do que se via e do que se ouvia nesta base correspondia à realidade.”

Percorreu o gabinete com o olhar, como se o visse pela primeira vez, ou talvez pela última, e disse:

- Decidi, portanto, vir para aqui para tentar rectificar o meu erro e o dos meus superiores, muitos dos quais ainda se encontram no activo, outros são figuras públicas e cujos nomes indubitavelmente conhece... Fez uma pausa e prosseguiu:

- Não estou a censurá-los pela pressão a que me submeteram. Agiram mal, mas a decisão final pertencia-me. Pensei que cedia em nome de razões justas e válidas, por Ann e o Exército, mas, em última análise, vendi a minha filha no meu próprio interesse. Um ano depois do incidente, obtive a minha segunda estrela - acrescentou.

Correndo o risco de parecer sentencioso, comentei:

- É responsável por tudo o que os seus subordinados fazem ou deixam de fazer, general, mas neste caso os seus superiores atraiçoaram-no, não tinham o direito de pedir-lhe uma coisa dessas.

- Eu sei e eles também. Todos aqueles homens cheios de talento, experiência e inteligência, reunidos clandestinamente num motel dos arredores de Nova Iorque a meio da noite, como criminosos, a fim de tomarem uma decisão desonrosa e estúpida! Somos, porém, humanos e erramos. Contudo, se fôssemos verdadeiramente os homens honrados e dignos que dizíamos ser, teríamos voltado atrás quanto a essa decisão, custasse o que custasse.

Não podia estar mais de acordo e ele sabia. Remeti-me, assim, ao silêncio sobre essa questão e disse:

- Portanto, ao longo de dois anos, defrontou-se com a sua filha num combate singular.

- Sim - anuiu com um sorriso amargo -, e de nada serviu. Era a guerra e ela estava mais bem preparada. Tinha a justiça a seu favor e vencia-me sempre, ao passo que eu apenas lhe propunha tréguas. Pensava que, se ela ganhasse, aceitaria as minhas desculpas. Sentia-me desesperado pelo mal que ela causava a si própria e à mãe. Deixara de me preocupar comigo, mas apenas com os homens de quem ela se servia. Por outro lado - acrescentou - sentia-me feliz por a ter ao meu lado, mau grado as circunstâncias.

Cynthia e eu mantinhamo-nos sentados em silêncio, a ouvi-lo retomar fôlego. Campbell envelhecera visivelmente dez anos nos últimos dias e provavelmente outro tanto desde que estava em Fort Hadley. Constatei, estupefacto, que o homem que regressara do Golfo coberto de glória não era o mesmo. “Estranho como os reis, imperadores e generais podem sucumbir às querelas domésticas, soçobrar devido à raiva demente de uma mulher enganada. No meio da sofisticação e complexa diversidade do mundo em que vivemos, esquecemos este princípio básico: há, antes do mais, que preservar a harmonia no lar e jamais trair o sangue do nosso sangue.”

- Conte-nos o episódio da carreira de tiro seis e depois deixamo-lo em paz, general - pedi.

- Bom... quando a vi deitada por terra - começou, esboçando um aceno de concordância - eu... pensei sinceramente que fora atacada... depois, ela chamou-me e disse: “É esta a resposta ao teu maldito ultimato.”

- Não compreendi logo ao que se referia - prosseguiu - e depois lembrei-me do que lhe tinham feito em West Point. Perguntou-me onde estava a mãe e respondi-lhe que a minha mulher não sabia de nada. Chamou-me cobarde e disse: “Vês o que me fizeram? Vês?” E sim... vi... se era esse o seu objectivo, conseguiu-o.

- E o que lhe respondeu, general?

- Eu... falei-lhe... “Ann não precisavas de montar todo este cenário”, mas ela estava louca de raiva, acho que perdera toda a sanidade. Gritou-me que me aproximasse, que visse bem tudo o que lhe haviam feito, o que ela sofrera. Continuou assim durante algum tempo e depois disse-me que, dado ter-lhe dado várias possibilidades à escolha, também ela me proporia algumas soluções.

O general fez uma pausa, antes de prosseguir:

- Disse-me que tinha uma corda à volta do pescoço... que podia estrangulá-la, se quisesse... ou abafar este incidente como fizera ao anterior... ou desamarrá-la e levá-la dali... até Beaumont... para junto da mãe. Disse que também podia deixá-la ali, esperar que os polícias militares, os guardas ou quaisquer outros a encontrassem e que lhes contaria tudo. Cabia-me escolher.

- Tentou desamarrá-la, como nos disse ter feito? - indagou Cynthia.

- Não, fui incapaz. Não me aproximei dela... não tentei desamarrá-la-- conservei-me perto do carro e depois... explodi, a raiva acumulada ao longo de todos estes anos passados a tentar remediar a situação levou a melhor... Gritei-lhe que me estava nas tintas para o que lhe acontecera há dez anos... disse-lhe que ia deixá-la ali, que esperasse que os guardas ou o primeiro pelotão que se apresentasse na carreira de tiro a encontrassem e...

Parou a meio da frase e baixou os olhos.

- Disse-lhe também que já não me podia magoar mais. Então, pôs-se a debitar aquela treta de Nietzsche. “O que te magoa é a minha força, o que não me destrói torna-me mais forte”, e por aí fora. Respondi-lhe que as suas únicas armas eram a minha patente e posição, que ia demitir-me e que ela destruíra todos os meus sentimentos, que levara a vingança até às últimas consequèncias.

O general encheu um copo de água e bebeu, depois do que continuou:

- Ela disse: “Muito bem, perfeito... qualquer outro vai encontrar-me... nunca me ajudaste.” E pôs-se a chorar, a chorar, mas acho que a ouvi murmurar: “Papá...”

Pôs-se de pé.

- Por favor... Não consigo...

Cynthia e eu imitámo-lo.

- Obrigado, general.

Dirigimo-nos à porta com o objectivo de desaparecermos antes que rompesse em lágrimas, e um certo receio invadiu-me, fazendo-me virar.

- Uma outra morte na família de nada serviria - disse-lhe. - Não seria digno, mas um acto de cobardia.

Contudo, ele estava de costas e nem sequer sei se me ouviu.

 

 

                                     CAPÍTULO VINTE E NOVE

 

A uma centena de metros do parque de estacionamento, abrandei e parei na beira da estrada. Invadira-me uma espécie de reacção retardada à entrevista e sentia-me a tremer.

- Bom, agora sabemos por que razão o laboratório encontrou vestígios de lágrimas secas nas faces dela - comentei.

- Sinto-me agoniada - declarou Cynthia.

- Preciso de uma bebida.

- Não, temos de levar isto até ao fim - contrariou com um suspiro. Onde está Moore?

- É bom que se encontre algures na base - retorqui, metendo a mudança do Blazer e seguindo pela estrada, rumo à Escola de Operações Psicológicas.

No caminho, Cynthia murmurou, como se falasse para si própria:

- No fundo, desta vez o general não abandonou a filha como o fez em West Point. Deixou-a na carreira de tiro num acesso de raiva, mas, algures, na estrada apercebeu-se de que esta era a última oportunidade para ambos. Reflectiu uns momentos e prosseguiu: - Pensou, sem dúvida, em dar meia volta e depois concluiu que lhe faltava uma série de coisas: uma faca para cortar a corda, roupas, a presença de uma mulher. Estes pequenos pormenores, que dominam o nosso consciente, levaram a melhor sobre o choque e a perturbação, e ele dirigiu-se a Bethany Hill em busca do único homem em quem podia confiar nesta base. - Fez uma pausa e observou ainda: - Interrogo-me sobre se, ao chegarem, os Fowler não terão julgado que o general a assassinara.

- É possível que a ideia lhes tenha ocorrido, mas quando regressaram a casa e lhe anunciaram que ela estava morta... decerto leram o choque e a descrença estampados no seu rosto.

- Será que... deviam ter cortado as cordas e removido o corpo? - indagou Cynthia.

- Não, o coronel Fowler sabia que tal só iria piorar a situação. E estou certo de que, com a sua experiência de soldado, se apercebeu imediatamente de que ela estava morta e bem morta. Quanto às suspeitas que teriam podido pairar sobre ele, deve ter abençoado o momento em que o general ou a sua própria mulher tinham sugerido que esta viesse.

- Sim, caso Fowler estivesse sozinho, ver-se-ia em maus lençóis.

Pensei uns momentos e fiz o resumo da situação:

- Sabemos agora que, além da vítima, estiveram quatro pessoas no local: o coronel Moore, o general, o coronel e a senhora Fowler. E, na nossa opinião, nenhum deles é o criminoso. Há, portanto, que pensar na intervenção de uma quinta pessoa durante aquela meia hora crítica em que pôde agir, que é obviamente quem a matou - acrescentei.

- Talvez devêssemos ter perguntado ao general se ele sabia quem poderia ter passado por lá durante aquela meia hora - alvitrou Cynthia.

- Acho que ele pensa que foi Moore. Se tivesse uma outra pessoa em mente, dir-nos-ia. Não me parece que ache que Moore pudesse ser apenas cúmplice e não o assassino. Mas não arranjei coragem para o pressionar mais.

- Eu sei. Detesto interrogar a família da vítima. Fico sempre muito emocionada...

- Portaste-te à altura, eu também e o general igualmente. Chegámos à Escola de Operações Psicológicas, mas o carro de Moore não se encontrava no lugar de estacionamento habitual. Dei a volta ao edifício passando pela messe, mas não avistei o Ford cinzento.

- Se aquele safado abandonou a base - resmunguei entre dentes -, moo-lhe o cu num passador.

Um jipe da Polícia Militar aproximou-se e reconheci o nosso velho amigo, o cabo Stroud, no lugar do passageiro.

- Procura o coronel Moore, chefe?

- Ele mesmo.

- Foi falar com o meu comandante para lhe ser retirada a detenção domiciliária.

- Obrigado - agradeci, dando meia volta e dirigindo-me ao centro da Base. - Vou pregá-lo na parede pela pele do cu - acrescentei para Cynthia.

- E o passador?

- Vou usá-lo também.

Os jornalistas não haviam abandonado o seu posto junto ao gabinete do comandante da Polícia Militar. Estacionei diante da entrada principal, saí do carro e subi os degraus, acompanhado por Cynthia. Entrámos no edifício e seguimos directamente para o gabinete de Kent. A secretária informou-me de que o coronel estava em reunião.

- Com o coronel Moore?

- Sim.

Abri a porta. Havia três pessoas no gabinete: Kent, o coronel Moore e um homem de uniforme com as divisas de capitão.

- Muito gosto em ver-vos - saudou Kent.

O terceiro homem levantou-se e verifiquei pelas insígnias que se tratava de um elemento da justiça militar, um advogado. O indivíduo, de nome Collins segundo a chapa de identificação, indagou:

- É o agente Brenner?

- Sou eu que faço as perguntas, capitão.

- Está bem - concordou. - O coronel Moore pediu para ser representado por um advogado, portanto, tudo o que tiver a dizer-lhe...

- Dir-lhe-ei.

Moore continuava sentado diante da secretária de Kent e mantinha deliberadamente os olhos baixos.

- Está preso. Siga-me - ordenei-lhe.

O capitão Collins fez um sinal de cabeça ao seu cliente para que ficasse sentado e dirigiu-se-me:

- Qual é a acusação?

- Conduta indigna de um oficial e cavalheiro.

- Oh, por favor, isso é uma infantilidade e...

- Mais o artigo cento e trinta e quatro, incúria e negligência, etc. Mais entrave à justiça, cumplicidade e falsos testemunhos. Quanto a si, capitão, encontra-se abrangido pelo artigo noventa e oito, ou seja, desrespeito das regras de procedimento.

- Como se atreve?

- Tem dois pares de algemas prontos? - perguntei a Kent.

- Há algumas considerações de ordem legal, Paul - respondeu o coronel com uma expressão preocupada. - Não pode prender... bom, poder pode, mas estou no meio de uma conversa com um suspeito e o seu advogado...

- O coronel Moore não é suspeito do crime, portanto, não há motivo para uma conversa e, se fosse esse o caso, era a mim que competia a conversa e não a si, coronel.

- Com os diabos, Brenner. Está a ir longe de mais...

- Vou levar o meu prisioneiro, coronel. Acrescentei, dirigindo-me a Moore:

- Levante-se.

Ele obedeceu, sem olhar para o advogado.

- Acompanhe-me.

Cynthia e eu saímos do gabinete de Kent, com o pobre coronel Moore a reboque, e escoltámo-lo ao longo dos corredores até às celas, na sua maioria sem ocupantes. A que ficava ao lado da de Dalbert Elkins estava aberta. Dei um leve empurrão a Moore, para que entrasse, e fechei a porta.

Dalbert fitou o novo “colega” e depois olhou-me surpreendido.

- É um coronel, chefe! - exclamou. Ignorei o comentário e disse a Moore:

- As acusações que pesam sobre si são as que lhe enumerei ainda agora. Tem o direito de ficar calado e escolher um advogado.

Moore acedeu por fim a falar, a fim de me recordar:

- Já tenho um advogado. Acabou de ameaçar que o prendia.

- Exacto, e tudo o que disser pode ser usado contra si num tribunal marcial.

- Ignoro quem a matou. Já o acusei de o ter feito?

- Não... mas...

Dalbert Elkins seguia o diálogo de perto.

- Não aceite um advogado, coronel - aconselhou através das grades. Ele ficará furioso.

Moore deitou-lhe um olhar de relance e voltou a prestar-me atenção.

- O coronel Kent informou-me de que me encontrava sob detenção na Base e, portanto, só me restava pedir a ajuda de um advogado - disse.

- Agora, está ainda em piores condições do que sob prisão domiciliária. Vai ficar guardado à vista.

- Vão libertar-me, vou para a caserna. Obrigado, chefe - agradeceu Dalbert.

Ignorei-o e continuei a dirigir-me a Moore:

- Possuo a prova formal de que se encontrava no local do crime, coronel. Temos acusações bastantes para o condenar a dez ou vinte anos de prisão.

Moore recuou um passo, como se lhe tivesse batido, e deixou-se cair pesadamente em cima do catre.

- Não... nada fiz de mal. Fiz o que ela me pediu, é tudo...

- O que lhe sugeriu!

- Não! A ideia foi dela!

- Estava perfeitamente a par do que o pai lhe fez em West Point!

- Só soube há uma semana... quando ele lhe lançou o ultimato.

Elkins olhou para Cynthia e perguntou:

- O que foi?

- Cala o bico - ordenei-lhe.

- Certo, sir.

- Quero que saia do Exército - dirigi-me a Moore - e talvez o deixe afastar-se de forma honrosa. Depende da sua cooperação.

- Estou disposto a cooperar...

- Quero lá saber que esteja ou não, coronel. Vai cooperar e despedir o seu advogado.

Elkins ia a interferir, depois pensou melhor e optou pelo silêncio.

Moore esboçou um aceno de concordância.

- O que tinha vestido na carreira de tiro número seis?

- O meu uniforme. Achámos preferível na eventualidade de encontrar polícias militares...

- Esses sapatos?

- Sim.

- Tire-os.

Hesitou e depois obedeceu.

- Dê-mos.

Estendeu-mos por entre as grades.

- Virei vê-lo mais tarde, coronel - disse-lhe, após o que perguntei, virando-me para Elkins: - Como vais?

- Bem, sir - respondeu, levantando-se. - Deixam-me sair amanhã, de manhã.

- Bom. Se fugires, és um homem morto.

- Sim, sir.

Afastei-me das celas, seguido de Cynthia.

- Quem é o outro tipo? - perguntou-me.

- É o causador da minha presença em Fort Hadley.

Expliquei-lhe brevemente o caso e depois entrei no gabinete do sargento de serviço. Identifiquei-me e disse-lhe:

- Acabo de prender um tal coronel Moore. Reviste-o e esta noite dê-lhe apenas água. Nada de livros.

- Prendeu um oficial? - surpreendeu-se o sargento, de olhos arregalados

- Ele só tem permissão de consultar um advogado amanhã. Avisá-lo-ei

- Correcto, sir.

Pousei os sapatos de Moore em cima da secretária do sargento e ordenei:

- Ponha-lhes uma etiqueta e mande entregá-los no hangar três, em Jordan Field.

- Muito bem, sir.

Quando íamos a chegar ao nosso gabinete, Cynthia observou:

- Ignorava que fazias tenção de o prender.

- Também eu, até ver o advogado. Bom. Toda a gente queria que eu o prendesse.

- Sim, mas por crime. Não se põe um oficial superior numa prisão vulgar.

- É um costume idiota. Se for para Leavenworth, será um bom treino. Além disso, as pessoas soltam a língua após terem estado numa cela.

- É verdade, sobretudo depois de uma revista a pente fino e de uma boa dieta. O regulamento estipula que ele tem, pelo menos, direito a pão e água. Todas as vinte e quatro horas. A propósito, há dois dias que não como uma refeição de jeito.

- Vais ser censurado oficialmente pela forma como trataste do caso.

- É o que menos me preocupa neste momento.

Ao chegarmos ao gabinete, verifiquei as mensagens telefónicas. Além das da imprensa, havia muito poucas. Já ninguém queria falar-me. Contudo, encontrei uma do major Bowes, da CID, que se dizia consternado, outra do coronel Weems, do gabinete do procurador-geral, igualmente preocupado, e mais uma do coronel Hellmann, muito ansioso. Telefonei a este último para casa, em Falis Church, e a mulher informou-me logo que ele estava a jantar.

- Olá, Karl.

- Olá, Paul - respondeu com a sua voz jovial.

- Obrigado pelo faxe - agradeci.

- Nem uma palavra sobre isso. Uma única.

- Entendido. Conversámos com o general, com a senhora Campbell e também com a senhora Fowler. Cynthia e eu podemos reconstituir quase tudo, desde que Ann Campbell jantou frango na messe até entrar ao serviço e se meter no jipe para dar a volta pelos postos da guarda, incluindo o momento do homicídio e o que se lhe seguiu.

- Perfeito. Quem a matou?

- Ainda não sabemos.

- Percebo. E amanhã, ao meio-dia, já saberão?

- Está previsto.

- Seria bom que o caso fosse resolvido pela CID.

- Claro, sir. Aspiro a uma promoção e a um aumento.

- Não terá nenhuma das duas coisas. Contudo, mandarei retirar aquela reprimenda do dossiê, como delicadamente me pediu.

- Fantástico, maravilhoso. Pode substituí-la por outra. Detive o coronel Moore, encarcerei-o na prisão da base, revistei-o a pente fino e pu-lo a água.

- Talvez pudesse ter-se limitado à prisão domiciliária na base, Brenner.

- Assim fiz, mas ele escapuliu-se e recorreu a um advogado.

- Tem esse direito.

- Sem dúvida. Na verdade, prendi-o diante do advogado e quase prendi o advogado por obstrução à lei.

- Percebo. Sob que acusação?

- Tentativa de ocultar um crime, conduta indigna e por aí fora. Não quer discutir tudo isto por telefone, certo?

- Não. Mande-me um relatório por faxe.

- Nada de relatórios. Excepto se o sargento Kiefer se encarregar de o fazer.

- Oh, sim. Espero que se tenha mostrado eficaz.

- Ignorávamos que éramos três.

- Agora sabem. Telefonei-lhe porque o comandante da CID de Fort Hadley contactou Falis Church. Está bastante contrariado.

Mantive-me em silêncio.

- É o major Bowes. Recorda-se dele?

- Nunca nos encontrámos.

- De qualquer maneira, não pára de fazer todo o tipo de ameaças.

- Nesta base, Karl, há cerca de trinta oficiais, na grande maioria casados, que foram para a cama com a defunta, nem o capelão escapou. Todos vão ameaçar, suplicar, implorar, bajular...

- Trinta?

- Pelo menos. Nem contámos bem.

- Trinta?. O que lhes passou pela cabeça?

- Deve ser da água. Felizmente que não a bebo.

Cynthia susteve uma risada, mas Karl ouviu-a e perguntou:

- Miss Sunhill está aí?

- Sim, coronel. Acaba de pegar no auscultador.

- Como sabe que trinta oficiais foram para a cama com a vítima?

- Encontrámos um diário, sir - respondeu Cynthia. - Na verdade, um ficheiro que Grace conseguiu tirar do computador de Ann Campbell. A maioria faz parte do pessoal do general - acrescentou.

Ante o silêncio do outro lado da linha, retomei a palavra:

- Acho que podemos controlar a situação, se for esse o desejo do Pentágono. Sugiro a transferência dos mesmos para postos diferentes, seguida de demissões escalonadas que não chamem a atenção. Contudo, o problema não é meu.

O mesmo silêncio.

- O general está disposto a apresentar a sua amanhã, depois do funeral da filha - interferiu Cynthia.

- Chego esta noite de avião - decidiu Karl.

- Porque não espera até amanhã? - redargui. - Prevê-se uma tempestade por estas bandas, ventos fortes...

- De acordo. Mais alguma coisa?

- Não, sir.

- Voltaremos a falar amanhã.

- Anseio por isso. Bom jantar. Desligou e fizemos o mesmo.

- Acho que ele gosta de ti - comentou Cynthia.

- É isso o que receio. Que tal uma bebida?

- Ainda não - respondeu, premindo o botão do intercomunicador para chamar Miss Kiefer.

Esta apareceu, trazendo a sua cadeira, e, agora que nos encontrávamos numa posição de igualdade, sentou-se.

- Que tal, amigos? - inquiriu.

- Perfeito - respondeu Cynthia. - Obrigada por se ter mantido por perto.

- É onde se processa a acção.

- Bom. Gostaria que consultasse todos os relatórios das patrulhas na noite do crime. Escute as gravações das comunicações por rádio, examine o registo do sargento de guarda e interrogue os polícias militares que estavam de serviço, mas seja discreta. Sabe o que procuramos. Até logo.

- Correcto - observou Kiefer com um aceno de cabeça. - Carros e pessoas que se encontravam onde não deviam depois da meia-noite. Boa ideia.

- Na verdade, inspirei-me nessa história do aluado seis. Trata-se de pormenores com importância. Até logo.

Deixámos Kiefer no nosso gabinete e, no corredor, dirigi-me a Cynthia:

- Talvez seja uma pista.

- Espero bem. Não temos muito mais.

- Uma bebida?

- Acho que devias ir falar com o coronel Kent. Trataste-o com muita dureza. Espero-te na porta da frente. Convida-o para beber um copo connosco. De acordo, Paul?

Fitei-a e os nossos olhares cruzaram-se por momentos. O tom de voz e a sua atitude davam a entender que pretendia algo mais de Kent do que a sua boa vontade.

- De acordo - respondi, dirigindo-me ao seu gabinete, enquanto Cynthia prosseguia até ao átrio.

Avancei devagar, com um espírito mais lesto do que as minhas pernas. O coronel William Kent: um móbil, a oportunidade e o desejo de executar o gesto fatal, uma vincada declaração de inocência e um fraco álibi.

A perspectiva depende da posição que se ocupa, ou, para expressar tudo mais simplesmente, vêem-se as coisas de forma diferente segundo o lugar donde as observamos, e eu não me encontrava no sítio certo. Mantivera uma exagerada proximidade em relação a William Kent, por isso, precisava de recuar e encarar o indivíduo sob outro ângulo.

Há dois dias que o pensamento me espicaçava, mas não conseguia decidir-me a expressá-lo por palavras, nem sequer a formulá-lo. Kent tinha-me convidado a ocupar-me do caso, o que me pusera num dado estado de espírito, e era o meu único aliado em Fort Hadley. Todos os outros eram suspeitos, testemunhas, oficiais comprometidos ou, de certa forma, vítimas. Kent confessara tardiamente que também estava comprometido, mas só quando pensara que eu podia vir a saber algo sobre Ann Campbell e ele, e talvez receasse que Cynthia e eu tivéssemos descoberto a câmara secreta. Na verdade, e reflectindo mais a fundo, Burtt Yardley dissera provavelmente ao coronel que a porta da divisão estava selada e suspeitava de que fora eu a fazê-lo. O conteúdo parecia intacto quando lá entrara, mas nem ele ou Kent podiam ter certezas quanto ao que eu descobrira ou levara comigo. i Burt Yardley, um vivido safado, fingira surpresa ante o meu conhecimento da divisão, mas sabia que Ann Campbell nunca a selaria e suspeitava de que eu o fizera. Por isso, passara esta informação a Kent e este decidira confessar a sua conduta sexual, mas sem fazer alusão à câmara secreta. Agora, o conteúdo da mesma encontrava-se nas mãos de Yardley e eu ignorava qual deles agarrava o outro pelos tomates. Contudo, se um deles a matara, o outro não o sabia. Lembrava-me de como Kent tentara dissuadir-me de ir revistar a casa da vítima e, se tal atitude era compreensível no momento, pois tratava-se de uma acção ilegal, agora dizia de mim para mim que Kent tivera intenção de telefonar a Yardley ao alvorecer, ou tentara telefonar-lhe antes ou depois de me contactar para lhe dizer algo como: “Ann Campbell foi assassinada na base-chefe. Deve conseguir um mandado e ir a casa dela para recolher as provas.” E Yardley saberia quais as provas a recolher e destruir sem demora, só que, segundo as suas próprias declarações, fora retardado em Atlanta e Kent vira-se num impasse.

Eu chegara, por conseguinte, em primeiro lugar e o coronel tivera de fazer outro tipo de telefonema a Yardley, para Atlanta, a fim de lhe explicar a situação. Depois, ambos haviam feito figas, esperando que a câmara secreta não fosse descoberta. Cynthia e eu albergáramos a mesma esperança, ignorando que o chefe da polícia de Midland e o comandante da polícia de Ford Hadley a haviam frequentado.

Kent demorara igualmente a prevenir o general e a mulher, o que, podendo ser uma reacção humana perfeitamente normal - o receio natural de ser portador de más novas -, constituía uma surpreendente falta de profissionalismo da sua parte. Contudo, se Kent tivesse assassinado a filha do general, eu compreenderia melhor as suas reticências quanto ao cumprimento do dever. Kent não avisara Bowes porque sabia que também o major provara as delícias do antro secreto e não queria que ele fosse até lá e recolhesse provas. Por outro lado, não podia deslocar-se pessoalmente ao local porque, se fosse ele o assassino, tinha interesse em manter-se no seu posto, a fim de esperar pelo telefonema dos seus homens quando encontrassem o corpo. Quase imaginava a cena... quase. Kent, por qualquer razão que me escapava, encontrava-se na carreira de tiro seis ou perto. Ignorava como, ou se sabia l? que ali se passava, mas imaginava-o depois de Campbell se ter afastado: alto, Imponente, sem dúvida fardado, dirigindo-se, após a partida do general, até junto do corpo nu e amarrado de Ann Campbell. Pára, os olhares cruzam-se e ele apercebe-se de que o destino lhe oferece uma oportunidade única, pois ela queria arrastar todos na queda. A solução apresentava-se sob a forma da corda que Ann já tinha à volta do pescoço.

Pode ou não ter sabido o que representava este cenário, pode ou não ter escutado a conversa dela com o pai e, se não fosse esse o caso, acreditasse talvez numa entrevista amorosa com outro homem, o que lhe provocara um ataque de ciúmes e de raiva. De qualquer maneira, decerto haviam falado e era bem possível que Ann Campbell tivesse pronunciado as palavras erradas no momento errado, ou talvez essas palavras não tivessem tido a menor importância: Kent estava farto. O local apresentava vestígios da passagem de outras pessoas e ele retomaria as suas funções oficiais dali a umas horas, pelo que os indícios reveladores da sua presença nada teriam de anormal ou de surpreendente. Tratava-se de um polícia capaz de pesar todos estes elementos rapidamente: um crime perfeito e, mais do que isso, necessário. Bastava-lhe ajoelhar-se e apertar a corda. Mas teria coragem? Seria assim tão frio e insensível? Ou ficara cego de paixão e raiva?

O que sabia eu deste homem que apenas vira talvez uma dúzia de vezes nos últimos dez anos? Rebuscava na memória, mas a minha única certeza era a de que ele sempre se preocupara muito com as falsas aparências. No entanto, tinha perfeita consciência da sua reputação de polícia íntegro, que nunca se permitia comentários ou piadas sexuais e se mostrava duro para com os subordinados que não estavam à altura das suas exigências de conduta e integridade. Depois, sucumbira aos encantos de Ann Campbell e, segundo o sargento Kiefer, Kent sabia que estava a perder credibilidade e que não se chega a general indo para a cama com a filha de um deles.

Era ainda possível que algures, nos recônditos da sua mente, soubesse que algumas pessoas na base, e alguns dos seus subordinados, se interrogariam sobre se fora ele a fazê-lo, se o principal zelador pela ordem de Fort Hadley não teria afinal resolvido o seu problema, juntamente com o de trinta oficiais superiores. O cidadão comum pode sentir aversão por um criminoso, mas este inspira temor e respeito, sobretudo quando paira a ideia de que não agiu assim tão mal.

Mas, posto isto, e embora todas estas especulações e deduções fossem lógicas e se encaixassem nos factos, será que transformavam o coronel William Kent, comandante da Polícia Militar de Fort Hadley, em suspeito no homicídio de Ann Campbell? No meio de todos os outros homens e talvez mulheres da base que tinham um móbil - vingança, ciúme, ocultação de um crime, recusa de humilhação e infortúnio, ou mesmo loucura assassina - porquê Kent? E, mesmo que fosse ele, como conseguiria eu prová-lo? Nos raros casos em que o autor de um crime pode ser um dos agentes envolvidos nas investigações, surge sempre um sério problema.

Hesitei um momento diante da porta do gabinete de Kent e depois bati.

 

 

                                               CAPÍTULO TRINTA

 

Dirigíamo-nos em silêncio para a messe dos oficiais, quando perguntei a Cynthia:

- O que te leva a crer que foi Kent?

- O instinto.

- O instinto é o que o arrastou para as coxas de Ann Campbell. Mas porque achas que a matou?

- Não posso fazer essa afirmação, Paul. Contudo, eliminámos outros suspeitos. Os Yardley têm álibis indestrutíveis, sabemos qual foi o papel desempenhado pelo coronel Moore, os Fowler podem testemunhar um pelo outro e, na minha opinião, tanto o general como a mulher estão inocentes. O sargento Saint-John e o soldado Casey, que encontraram o corpo, não são suspeitos prováveis, nem tão-pouco nenhuma das outras pessoas que interrogámos ou de quem ouvimos falar.

- Mas também há o major Bowles, o coronel Weems, o tenente Elby, o capelão, o médico e os outros trinta oficiais que tinham um motivo. E ainda as mulheres deles, se se pensar bem. É uma possibilidade.

- Exacto. Não falando já de qualquer outra pessoa cuja existência ignoramos, mas era preciso que tivesse vontade de matar e encontrasse a ocasião.

- Correcto. Não dispomos, infelizmente, de tempo para interrogar todos os homens citados no seu diário, e tremo ante a ideia de que o FBI se possa encarregar disso, pois escreverão um relatório de duzentas páginas sobre cada um. Kent é um suspeito plausível, mas não quero que se torne um bode expiatório, como ele - e algumas pessoas aqui - tentaram fazer do coronel Moore.

- Entendo o teu ponto de vista, mas apercebi-me subitamente de que Kent correspondia à imagem do homem que procuramos.

- Quando?

- Não sei. No duche.

- Passemos adiante.

- Achas que virá tomar uma bebida connosco?

- Mostrou-se muito vago. Contudo, se for ele o assassino, virá, nunca falhou até agora. Os homicidas querem sempre estar próximo, ver, ouvir, tentar manipular a investigação. Os mais inteligentes não são assim tão óbvios, e não vou dizer que, só porque tomou um copo connosco, seja Kent o assassino. Contudo, se não aparecer, estou disposto a apostar o meu dinheiro em como está inocente.

- Compreendo.

Durante os meus anos na CID, conseguira escapar a todos os seminários de gestão do pessoal prescritos pelo Ministério do Exército, sessões de sensibilização, conferências sobre as relações entre sexos e raças, etc, e talvez fosse esse o motivo dos meus problemas de adaptação ao Exército novo. Assisti, por outro lado, a uma série de cursos de formação para comando, que ensinam tudo o que há a saber sobre relações humanas: respeitar subordinados e superiores, nunca pedir a alguém para fazer algo de que não se fosse capaz, ganhar respeito sem o pedir, dispensar elogios sempre que merecidos. Dentro deste espírito, disse a Cynthia:

- Fizeste um bom trabalho, mostraste espírito de iniciativa, de avaliação, de actuação nos momentos difíceis. És muito profissional, competente e eficaz. É um prazer trabalhar contigo.

- O que é isso? Uma mensagem gravada?

- Não, eu...

- Nem um grama de sentimento, Paul. Completamente neutro. Fala com o coração, se é que o tens.

- Estás a ser dura - ripostei, entrando no parque de estacionamento da messe. - Isso é tendencioso.

- Diz também que me amas.

- Já o disse o ano passado. Quantas vezes...

- Diz!

- Amo-te.

- Óptimo.

Saiu do carro, bateu com a porta e afastou-se. Fui atrás dela, alcancei-a e não trocámos nem mais uma palavra durante os últimos metros. Descobri uma mesa livre a um canto e consultei o meu relógio, que indicava pouco mais de vinte horas.

A sala de jantar estava a abarrotar, mas o bar apresentava-se vazio, agora que a hora do aperitivo findara. O novo Exército desaprova oficialmente este hábito, mas as messes beneficiam de uma certa independência e algumas delas ainda mantêm a antiga e honrosa tradição que consiste em venderem uísque durante uma ou duas horas, fraca compensação por se aguentarem coisas que nenhum civil - à excepção de qualquer emigrado de uma ditadura militar suportaria. O Exército tem, porém, os seus lados bons, embora venham a diminuir de dia para dia. Uma empregada aproximou-se e Cynthia mandou vir um bourbon com Coca-Cola e eu um uísque e uma cerveja, para começar.

- Estou desidratado - observei. - Faz um calor dos diabos, aqui!

- Desde esta manhã que transpiras como um porco - concordou com um sorriso. - Precisas de um bom duche.

- Temos tempo?

- Na condição de o tomarmos juntos.

- Não será tarefa fácil!

As nossas bebidas chegaram e fizemos um brinde.

- A Ann Campbell! - disse Cynthia. - Daremos o nosso melhor por ela.

Bebemos.

- Este caso está a irritar-me - confessei. - Será por causa da natureza do caso ou porque estou velho e cansado?

- É pela primeira das razões, Paul, porque é mais do que um crime, é uma tragédia humana.

- Há outros tipos de tragédia! Todos estamos sempre a um passo delas.

- Exacto. Quando encontrarmos o criminoso, não haverá motivo para festejar, será antes outra tragédia. Alguém que a conhecia e talvez a amasse.

- Como Kent.

- Sim. Não consigo tirar da cabeça uma frase que li algures e de que me lembro sempre que interrogo uma mulher que foi violada. É mais ou menos isto: “A morte não é nada, comparada com a vergonha.”

Penso que é disso que se trata neste caso, a começar pela humilhação suportada por Ann Campbell em West Point. Pensa bem, Paul. Ensinam os oficiais a serem orgulhosos, seguros, a manterem a cabeça erguida. Pessoas como ela enquadram-se neste tipo de personalidade e convergem para West Point ou sítios idênticos, e quando se dá um acontecimento deste género, uma violação, uma humilhação, não aguentam. Não se dobram, como o faria a maior parte das pessoas, mantém antes a cabeça erguida até se irem abaixo.

- É verdade - concordei com um aceno de cabeça.

- Apanham os bocados e continuam, mas jamais serão as mesmas. Numa palavra, qualquer mulher fica marcada para toda a vida depois de uma violação brutal, mas uma pessoa como Ann Campbell é incapaz de cicatrizar por dentro.

- Alguns pensam que a vingança é a única cura para a vergonha e a humilhação.

- Correcto. Dá mais um passo e pensa no oficial médio. Foi seduzido por Ann Campbell em menos de vinte minutos, incluindo as bebidas, conduzido até um antro sexual e encorajado ou obrigado a entregar-se a algumas perversões. Depois, a determinada altura, ela manda-o embora ou pede-lhe que infrinja as regras. Fica prisioneiro de uma série de emoções, a começar por uma certa vaidade masculina devido à sua conquista, mas, se for casado e levar a sério todos esses valores do seu cargo de oficial, envergonha-se. A maioria dos homens nada sente de especial após um acto sexual consentido - prosseguiu -, mas alguns, os oficiais, os membros do clero, os pilares da comunidade, experimentam escrúpulos. Voltamos, assim a “a morte não é nada, comparada com a vergonha”, ou a desonra, em termos de contexto militar. Tal pode aplicar-se a Ann Campbell, ao general e a todos os que desejaram estar mortos ou que ela o estivesse. É esse o motivo por que estou convencida de que foi alguém que ela conhecia, alguém para quem o homicídio era uma forma de pôr cobro à vergonha e desonra da vítima, bem como à do assassino. Kent, que é oficial e um polícia inflexível, ilustra esta teoria na perfeição.

Voltei a concordar com um aceno de cabeça. Imaginara um esquema idêntico, embora sob uma outra perspectiva. Era, porém, interessante constatar que ambos traçáramos um perfil do assassino que podia corresponder ao de Kent.

- Kent - repeti. - Kent...

- Falando do lobo...

O coronel entrou, algumas cabeças viraram-se à sua passagem e foi mimoseado com olhares de relance: o crime sensação, ainda em todas as bocas, fazia dele o homem do dia. Viu-nos e avançou ao nosso encontro.

Levantei-me, imitado por Cynthia. Embora pudesse dar-lhe um pontapé no eu em privado, manifestei-lhe o respeito que lhe era devido em público.

Sentou-se e nós também. Uma empregada de mesa apareceu imediatamente e Kent mandou vir bebidas para nós e um gim tónico para ele.

- Por minha conta - disse.

Conversámos um bocado. Falámos do stresse de toda a situação, da alteração de humores, das noites de insónia, de toda essa treta. Mau grado a nossa expressão calma e a banalidade das palavras, Kent era um profissional e adivinhou aquele jogo do gato e do rato, ou talvez a forma como estava a ser encostado à parede.

- Vão ficar algum tempo depois do funeral para informar o FBI? - inquiriu.

- Acho que é isso que esperam de nós - respondi. - Mas gostaria de me ir embora amanhã à noite.

Abanou a cabeça e sorriu-nos.

- Vocês os dois entendem-se bem? - inquiriu. - Ou trata-se de uma pergunta indiscreta?

Cynthia devolveu-lhe o sorriso.

- Estamos a reatar uma velha amizade - elucidou.

- Ah, bom. Onde se conheceram?

- Em Bruxelas.

- Uma bela cidade.

E por aí fora. Contudo, de vez em quando, fazia uma pergunta displicente, do género:

- Portanto, Moore não é decididamente o assassino?

- Nada é definitivo - comentou Cynthia -, mas achamos que não. É assustador pensar como estivemos próximo de acusar um inocente.

- Se ele for inocente. Na vossa opinião, ele amarrou-a e afastou-se?

- Exacto - confirmei. - Não podemos revelar o motivo, mas conhecemo-lo.

- Nesse caso, é cúmplice.

- Não legalmente - redargui. - Tratava-se de algo muito diferente.

- Estranho. A vossa especialista em informática encontrou o que procurava?

- Acho que sim. Infelizmente para alguns, Ann Campbell deixou uma espécie de diário erótico nos seus ficheiros.

- Oh, céus... também consto dele?

- Acho que sim, Bill. Tal como mais trinta oficiais.

- Meu Deus... Sabia que ela tinha muitos... mas não tantos... Sinto-me um idiota. Não podemos classificar esse diário?

- Como altamente confidencial, por exemplo? - sorri. - Apresente-me uma razão de segurança de Estado e verei o que posso fazer. De qualquer maneira, a decisão pertence ao procurador-geral ou ao ministro da Justiça, ou aos dois. Contudo, tem companhia bastante neste dossiê para que não tema ser o único em causa.

- Claro, mas sou um polícia.

- Neste diário constam indivíduos com muito mais poder e prestígio do que você.

- Tanto melhor. E Fowler?

- Nada posso dizer. Sabia que Burt Yardley também está incluído?

- A sério?... Deus do céu...

- Como vê, tem mais pontos em comum com Burt do que julgava. Conhece-o bem?

- As nossas relações são meramente profissionais. Assistimos às reuniões mensais do G-5.

Contudo, se eu tivesse reflectido melhor acerca do caso, chegaria à conclusão de que haviam tido bastantes ocasiões para se encontrarem - o chefe da polícia e o comandante da Polícia Militar - para urdir as combinações necessárias quanto a uma mútua protecção.

- Algum de vocês foi à capela? - inquiriu Kent.

- Não - respondeu Cynthia. - Acho que vamos esperar até à cerimónia de amanhã. Vai até lá esta noite?

- Claro que sim - anuiu, consultando o relógio. - Era um dos seus amantes.

- A capela é bastante espaçosa? - inquiri.

Rimos ambos, mas tratava-se de uma piada ordinária, que me valeu um olhar severo de Cynthia.

- A senhora Kent ainda está no Ohio? - indaguei.

- Está.

- Até quando?

- Oh... mais uns dias.

- É longe, de carro. A menos que tenha voado.

- Voou - replicou, olhando-me. - Na vassoura - retorquiu com um sorriso forçado.

Devolvi-lho e perguntei:

- Será que o seu afastamento se encontra ligado aos boatos que correm sobre si e Ann Campbell?

- Em certa medida... sim. Estamos a tentar resolver o problema, mas ela não sabe de nada, apenas faz suposições. Não são casados, mas talvez compreendam.

- Eu fui e Cynthia é.

- Ah, sim? - retorquiu, virando-se na sua direcção. - Com um militar?

- Sim, ele está no Fort Benning.

- Uma vida dura.

E por aí adiante, extremamente simpático. Dois agentes da CID e um oficial superior, o comandante da Polícia Militar, tomavam uma bebida e falavam sobre a vida, o amor, o trabalho, com a questão do homicídio pelo meio. Trata-se de uma técnica de interrogatório interessante e que se revela muito eficaz em situações apropriadas, como esta. Chamo-lhe a “sanduíche de crime”, uma fatia de pão, uma fatia de carne, outra de queijo, uma folha de alface, um pouco de sangue, molho de tomate, mais sangue e assim por adiante.

Contudo, Bill Kent não era um suspeito vulgar e eu tinha a nítida impressão de que ele estava a par do que se passava e sabia que nós sabíamos que ele sabia. Portanto, tudo se tornou uma espécie de bailado, uma charada, e a certa altura os nossos olhares cruzaram-se. Ambos deixámos de ter dúvidas.

Nesta altura, quando um suspeito se apercebe de que desconfiam dele, gera-se um mal-estar geral e o tipo adopta um comportamento exageradamente desenvolto, para tentar mostrar que está à vontade. Também há momentos em que, respondendo a uma lógica oposta e perversa, se torna fanfarrão. Na verdade, Kent disse-nos:

- Ainda bem que vos pedi que se encarregassem deste caso. Tinha quase a certeza de que Bowes andava envolvido com ela, mas não queria dizê-lo na eventualidade de me ter enganado. Na sua equipa, ele não tem especialistas em homicídio e acabariam por nos mandar alguém de Falis Church como vocês, ou chamado logo o FBI. Por isso, fiquei satisfeito com a vossa presença. Já trabalhámos juntos antes - acrescentou, fitando-me - e sabia que estaria à altura... Só têm até amanhã ao meio-dia, não é verdade? Sabem uma coisa? Acho que vão resolvê-lo antes desse prazo - concluiu.

O silêncio pairou durante um minuto em que brincámos com as palhas das bebidas e os guardanapos. Cynthia e eu interrogávamo-nos sobre se teríamos um assassino sentado à mesa, Bill Kent reflectia, no mínimo, no final da sua carreira e talvez se debatesse com a questão de se deveria revelar-nos qualquer facto que nos permitisse sair daqui antes do dia seguinte, ao meio-dia.

As pessoas precisam, por vezes, de ser encorajadas. Propus-lhe num tom de voz que ele, sem dúvida, entenderia:

- Quer andar um pouco a pé, Bill? Ou também podemos voltar ao seu gabinete, para termos uma conversa.

- Tenho de ir embora - recusou, abanando a cabeça e pondo-se em pé.

- Bom... Espero que esses carniceiros da morgue a tenham deixado em estado de poder ser vista no caixão. Gostaria de revê-la... Não tenho fotografias. As ligações extraconjugais não são propícias à acumulação de recordações concluiu, forçando um sorriso.

Contudo, havia uma sala cheia delas. Cynthia e eu também nos levantámos e tomei a palavra:

- Tente arranjar um desses cartazes de recrutamento, antes que todos tenham a mesma ideia. Peça de coleccionador.

- Porque não?

- Obrigado pelas bebidas - agradeci. Deu meia volta e foi-se embora.

Sentámo-nos novamente, Cynthia ficou a vê-lo afastar-se e murmurou, como se falasse consigo:

- Ele tinha motivos para estar perturbado com o fim da carreira, o facto de cair em desgraça, os problemas conjugais e a morte de um ente querido. Talvez fosse isso o que vimos, ou então... matou-a.

- É difícil interpretar o seu comportamento devido a tudo por que passou - concordei, pensativo. - Todavia, a sua expressão não engana... os olhos têm uma linguagem própria, a do coração e da alma. Expressam amor, tristeza, ódio, inocência e culpabilidade. Falam verdade, mesmo quando a pessoa mente.

- Sem dúvida - anuiu Cynthia.

Instalou-se o silêncio, que ela acabou por romper:

- Então?

Olhei-a e ela aguentou sem desviar o rosto, como que testando o que eu acabara de dizer, e, sem pronunciarmos uma palavra, concordámos em que Bill Kent era o nosso homem.

 

 

                                         CAPÍTULO TRINTA E UM

 

Abdicámos de jantar e seguimos na direcção das carreiras de tiro, rumo a Jordan Field. Como Kent havia assinalado, a estrada encontrava-se sob a vigilância da Polícia Militar e tivemos de parar para nos identificarmos. À entrada, fomos obrigados a fazê-lo novamente e outra vez à porta do hangar três. O Exército gostava de manter os jornalistas na sala das conferências de imprensa, onde achava que deviam estar, mas eles gostam de andar de um lado para o outro. Há séculos que esta divergência de opinião existe: o Exército invoca razões de segurança, a imprensa os seus privilégios tradicionais e legítimos, mas, nas últimas décadas, aquele tem levado a melhor devido à lição recebida no Vietname.

As minhas experiências pessoais com a imprensa começaram exactamente no Vietname, onde um jornalista me colocou um microfone debaixo do nariz, enquanto ambos nos mantínhamos pregados ao chão devido ao fogo inimigo. A câmara continuou a filmar e o jornalista perguntou-me: “O que aconteceu?” Achava que a situação não deixava dúvidas, mas, dado ser um jovem idiota, respondi: “Uma metralhadora do inimigo tem-nos debaixo de mira.” “E o que vão fazer?”, inquiriu o tipo. “Deixá-lo e ao cameraman aqui.” E apressei-me a fugir, esperando que o atirador inimigo centrasse o fogo nos cavalheiros da imprensa. Esse noticiário filmado encontrava-se algures num arquivo, guardado para a posteridade, e não voltei a ver os dois fulanos.

O hangar estava praticamente deserto. A maioria do pessoal forense regressara a Fort Gillem ou partira para outras missões, levando o equipamento. Contudo, meia dúzia de peritos ainda se mantinha no local para dactilografar os relatórios e efectuar as últimas análises.

Os móveis de Ann Campbell continuavam ali, bem como o jipe e o BMW, mas a secretária desaparecera. Avistei Grace Dixon sentada diante de um computador portátil IBM e bocejando.

Ergueu os olhos quando nos aproximámos e declarou:

- Requisitei outro computador. Estou a seleccionar os ficheiros, a ler as cartas e o diário, mas sem imprimir nada, como me indicou. Recebeu o que lhe mandei sobre Yardley?

- Sim, obrigado.

- Tudo isto é extremamente pornô. Adoro - comentou Grace.

- Tome um duche frio esta noite, Grace.

- Estou colada ao assento - riu, agitando o farto traseiro na cadeira.

- Onde vai ficar esta noite? - perguntou Cynthia.

- Num quarto de hóspedes, na base. Dormirei com a disquete e sem homens, prometo. O capelão da base está citado no diário - acrescentou. - Já nada é sagrado?

Senti-me tentado a responder que dormir com uma deusa constituía em si um sacramento, mas não me pareceu que nenhuma das duas senhoras apreciasse o comentário.

- Pode imprimir todas as passagens em que aparece o nome do coronel William Kent? - indaguei a Grace.

- Claro, já o vi citado e vou procurar. Qual é a sua função ou título, caso surja assim?

- É o comandante da Polícia Militar. Bill para os conhecidos.

- Óptimo. Quer que imprima tudo onde o nome dele aparece, não é verdade?

- Exacto. é igualmente possível que o FBI chegue esta noite ou amanhã de manhã, o mais tardar, e a Polícia Militar não os impedirá de entrarem por aquela porta, mas, se vir qualquer deles, tire a disquete e finja que está a dactilografar um relatório. De acordo?

- Certo. Mas, se tiverem um mandado de busca ou algo do género? Torna-se sempre mais fácil lidar com os militares, pois eles limitam-se a seguir ordens. Os civis precisam sempre de explicações e fazem demasiadas perguntas.

- Está apenas a dactilografar relatórios e ponto final, Grace. Esconda a disquete consigo e, se quiserem espreitar por baixo do vestido, esbofeteie-os.

- Mesmo que sejam giros? - riu.

Algo excitara obviamente a libido desta mulher.

- É muito importante que apenas nós os três tenhamos conhecimento desta literatura, Grace.

- Entendido.

- Cal Seiver já se foi embora? - perguntei.

- Não. Está ali a tirar uma soneca - respondeu.

Grace voltara a dedicar-se ao teclado. Não conheço muito sobre computadores, nem tão-pouco me interessa. Contudo, as pessoas como ela, que são ases de informática, comportam-se de forma algo estranha. Parecem incapazes de se afastar do ecrã; permanecem horas a fio, falando sozinhas, escrevendo, murmurando, praguejando, guinchando de prazer e provavelmente dispensam sexo, sono e comida durante longos períodos. Por isso, arrastei Cynthia comigo, sem sequer me despedir de Grace, mas antes coloquei um quadro preto à frente dela, a fim de fazer com que passasse desapercebida a alguém que entrasse. Momentos depois, encontrámos Cal Seiver profundamente adormecido numa cama de campanha e acordei-o. Ele levantou-se a cambalear, atordoado e confuso. Concedi-lhe uns segundos, antes de perguntar:

- Encontraste algo de novo e interessante?

- Não. Estamos apenas a pôr tudo em ordem.

- Tens as impressões digitais e as pegadas do coronel Kent?

- Claro.

- Encontraste as suas impressões digitais no local do crime? No jipe, nas latrinas ou no saco de mão dela?

- Não - esclareceu, após uns momentos de reflexão -, mas há vestígios de solas de botas por todo o lado. Recolhi os dele para os identificar.

- Recebeste os sapatos do coronel Moore?

- Sim, sim. Comparei-os com os moldes que tínhamos na nossa posse. Conduzem directamente ao corpo e depois regressam à estrada.

- Tiveste tempo de traçar um diagrama?

- Claro.

Levou-nos até junto de um placar onde estava afixado um mapa, de um metro por dois, do local do crime, o qual abrangia um troço de estrada, o jipe estacionado da vítima, o começo das bancadas e, do outro lado da estrada, uma parte da carreira de tiro, que incluía alguns alvos e uma silhueta de braços e pernas afastados, tornada assexuada sob o lápis do artista.

As pegadas encontravam-se assinaladas com tachas de cor. Na base do mapa, uma legenda referenciava os donos das pegadas e alfinetes de cabeça preta indicavam as não identificadas ou pouco nítidas. Pequenas setas assinalavam a direcção dos passos e havia notas indicativas de se eram frescas, antigas, modificadas pela chuva e outros pormenores do género.

Sempre que uma pegada se sobrepunha a outra, a mais recente tinha direito a um alfinete mais comprido e várias notas e explicações tentavam clarificar um pouco o caos. Mais tarde, este esquema seria metido no banco de dados de um computador capaz de proporcionar uma versão mais realista, fazendo, se necessário, com que as pegadas se sucedessem como se um fantasma passeasse no cenário. Também era possível eliminar algumas ou acrescentar outras, como se quisesse, mas de momento tinha de contentar-me com a minha experiência, a de Cynthia e a de Cal Seiver.

- Na verdade, ainda não analisámos isto - disse Seiver. - É mais da vossa competência.

- Exacto. Lembro-me de que é o que diz o manual.

- Temos de dar um toque a tudo isto para o FBI - declarou. - Há muitas por identificar, incluindo o facto de não ter as tuas pegadas.

- A esta hora os meus sapatos estão provavelmente no hotel.

- Quando as pessoas tardam a fornecê-las, acabo por desconfiar.

- Vai-te lixar, Cal.

- Bom, o coronel Moore está indicado a amarelo - disse.

- É Kent quem nos interessa. Silêncio.

- Kent?

- Sim - respondi, consultando a legenda e vendo que a sua cor era o azul.

Perscrutámos o diagrama e, na tranquilidade do hangar, apenas se ouvia a impressora, debitando papel.

- Fala - incitei Cal.

- De acordo.

Seiver iniciou a prelecção e, das suas palavras, tornou-se claro que o coronel William Kent estivera junto ao corpo pelo menos três vezes.

- Estão a ver? - elucidou. - Aqui, ele avança da estrada até ao corpo, pára muito perto, ajoelha-se ou agacha-se porque, ao partir no sentido inverso, as pegadas descrevem uma rotação, e depois, provavelmente, levanta-se e volta à estrada. Esta foi possivelmente a primeira vez, quando se dirigiu até lá abaixo com o polícia militar que encontrou o corpo... Aqui está a pegada dela... a de Casey, está assinalada a verde. A segunda vez é quando regressou convosco.

Cynthia vinha com os ténis, e tem a cor branca.

Achou forma de me chamar uma vez mais a atenção, ao observar:

- Tu, estás assinalado a negro. Vou marcar-te com alfinetes de cabeça rosa, quando tiver os teus sapatos. Mas, de momento, não posso diferenciar-te de...

- De acordo, entendi. E quando foi a terceira vez que ele se aproximou do corpo?

- Deu uma volta depois da minha chegada - respondeu Cal com um encolher de ombros -, mas nessa altura já o chão estava tapado com um oleado. Imagino que tenha ido ver o corpo por várias vezes antes de vocês chegarem, pois as pegadas denunciam três trajectos, da estrada ao corpo. Contudo, é difícil ter a certeza, pois nenhum dos trilhos está completo. Há uma acumulação de pegadas e temos terra mole e dura e erva.

- Correcto.

Examinámos os alfinetes, as setas e as notas.

- Também estiveram aqui um homem e uma mulher com calçado de civis - disse-lhe. - Poderia arranjar-te os sapatos deles, mas é Kent quem me interessa. Penso que ele apareceu mais cedo, sem dúvida de uniforme, com as mesmas botas que tinha mais tarde, algures entre as duas e quarenta e cinco e as três e meia.

Cal Seiver reflectiu uns momentos e depois pronunciou-se:

- Mas o corpo só foi encontrado... a que horas?... Às quatro, pelo sargento de serviço.

Não respondi e Seiver coçou a careca enquanto observava o diagrama.

- Bom... é possível... Quer dizer, há qualquer coisa de estranho... estas são as pegadas das botas de Saint-John, cor de laranja. Sem dúvida, pois tinha uma pastilha elástica colada à sola, que deixou marca. Portanto, aqui temos as do sargento, as quais parecem sobrepostas às que julgamos pertencer ao coronel Kent, que calçava botas novas, com uma sola muito limpa. Portanto... se Saint-John esteve lá às quatro horas e o coronel Kent só chegou depois de ter sido prevenido pela Polícia Militar... digamos, quando?... um pouco depois das cinco, a pegada do Saint-John não pode encontrar-se por baixo da de Kent, não faz sentido. Mas têm de compreender que, embora nos seja possível identificar a maioria das pegadas quando o terreno a tal se presta - na neve, na lama, terra mole, etc. - não são tão determinantes como as impressões digitais. E neste caso, em que temos algumas bastante nítidas, somos incapazes de afirmar com segurança qual delas é anterior à outra.

- Mas, segundo as indicações existentes, são as pegadas de Saint-John que se sobrepõem as de Kent.

- Bom. Trata-se de lucubrações da técnica, talvez seja um erro. Provavelmente assim foi, agora que as observo de mais perto. O sargento chegou primeiro e, portanto, não podia ter caminhado sobre as de Kent... a menos que... Achas que o coronel esteve no local antes de o outro ter descoberto o corpo?

- Penso que sim - respondi. - Mas nem uma palavra a quem quer que seja.

- Só posso dar informações a vocês os dois ou diante de um tribunal marcial.

- Correcto.

- Gostaria de ver os moldes que foram feitos no local - interferiu Cynthia, adicionando uma pitada de sal.

- Não há problema.

Cal examinou algumas folhas dactilografadas que estavam pregadas no placar, retirou-as e levou-nos até um canto do hangar, onde cerca de uma centena de moldes de pegadas, que poderiam ter pertencido aos habitantes de Pompeia em fuga, se encontravam alinhados no chão, numerados com caneta de feltro preta. Cal encontrou o que procurava, colocou-o em cima de uma mesa e eu acendi o candeeiro de halogéneo que estava sobre essa mesa.

Todos fitámos os moldes durante uns segundos e depois Cal pronunciou-se:

- Bom. Esta pegada é de Saint-John quando avançou para o corpo, a pequena marca na ponta indica a direcção. E depois temos esta do coronel Kent, caminhando também para o corpo.

Observei as duas, sobrepostas, e o lado esquerdo da bota do mesmo lado de Kent cobria parte da bota direita do sargento - a menos que fosse o contrário. Era esse o âmago da questão. Calei-me, Cynthia imitou-me e por fim Cal retomou a palavra:

- Bom... Estão a ver esta marca? É a pastilha elástica que Saint-John tinha na sola, mas não foi tocada pela bota de Kent ou vice-versa. Temos, portanto, duas botas militares do mesmo fabrico, com a mesma sola, e as pegadas foram deixadas com algumas horas de intervalo... com marcas que se entrecruzam e misturam...

- É preciso um caçador experiente para decifrar o enigma?

- Não acredito que consiga.

- Porque assinalaram Kent com um alfinete mais curto?

- Ignoro. Não sou perito na matéria.

- Onde está o perito?

- Foi-se embora. Mas esperem, deixem-me tentar.

Modificou a orientação do candeeiro, depois apagou e observou o molde à luz fraca que provinha do tecto do hangar. Pegou em seguida numa lanterna de bolso e experimentou diversos ângulos e distâncias. Cynthia e eu também observávamos, pois este tipo de exame não obedecia a uma ciência exacta, mas aproximava-se mais do bom senso. De facto, tornava-se quase impossível afirmar com certeza qual das pegadas fora feita em primeiro lugar.

Cynthia passou o dedo na intersecção das duas. No caso de solas lisas é possível detectar qual a marca mais profunda e, mesmo assim, nada prova que seja anterior, pois as pessoas têm maneiras de andar e pesos diferentes. Contudo, essa é por regra a primeira, pois comprime a terra, a neve ou a lama e a seguinte, feita no solo já comprimido, não se enterra tanto, a menos que a pessoa seja um monte de banha.

- A pegada de Saint-John está ligeiramente mais acima do que a de Kent - anunciou Cynthia.

- Pelo que me foi dado avaliar, o coronel deve pesar uns cem quilos - disse Cal. - E o sargento?

- Praticamente o mesmo - respondi.

- Na verdade - prosseguiu Cal -, tudo depende da forma como andam. Por comparação às outras pegadas do diagrama e tendo em consideração de que são na totalidade planas, nenhum deles ia a correr, diria mesmo que caminhavam devagar. Portanto, se as pegadas de Kent são mais fundas, pode supor-se que sejam anteriores e que Saint-John caminhou, mais tarde, sobre as de Kent. Mas tudo isto não passa de mera suposição. Não enviaria ninguém para a forca com base nesta única prova - acrescentou.

- Não, mas podemos pregar-lhe um susto de morte.

- Sem dúvida.

- Podes conseguir que o perito volte aqui esta noite?

- Não - respondeu Cal, abanando a cabeça. - Foi destacado numa missão para a base de Oakland. Posso mandar vir qualquer outro de helicóptero.

- Quero que seja o mesmo. Envia este molde de avião para Oakland, a fim de que ele o analise novamente. Não lhe digas qual foi a sua primeira conclusão. De acordo? Nesta altura, já a terá esquecido, dado que examinou mais de uma centena de moldes.

- Entendido. Veremos se o resultado será o mesmo. Deixa o assunto comigo. Se necessário, usaremos um vôo comercial de Atlanta para San Francisco. Eu próprio poderei ir.

- Nem penses, meu velho. Preciso de ti aqui em Fort Hadley.

- Merda.

- Tens razão. E agora ouve-me: quero que os militares de Gillem especialistas em pegadas comecem a trabalhar na carreira de tiro logo ao nascer do dia. Devem procurar todas as que são do coronel Kent. Manda-os verificar ao longo da estrada, na carreira de tiro, novamente à volta do corpo e próximo das latrinas. Quero um outro diagrama que mostre apenas as pegadas do coronel. Melhor ainda, mete os dados no computador. é preciso ter tudo pronto antes de amanhã de manhã. Certo?

- Tentaremos - prometeu. - Estás seguro de ti? - acrescentou depois de uma ligeira hesitação.

Esbocei um leve aceno de cabeça, o que lhe bastou para fazer sair a sua equipa da cama e pô-la a trabalhar.

- É possível que o FBI apareça ainda esta noite ou amanhã muito cedo, Cal. O caso vai passar para as mãos deles a partir do meio-dia, mas não antes.

- Entendi a mensagem.

- Combina um sinal de aviso com os polícias militares e previne Grace para que ela esconda a disquete em que está a trabalhar.

- Sem problema.

- Obrigado. Fizeste um bom trabalho.

Regressei com Cynthia até junto de Grace Dixon, que se ocupava a empilhar devidamente uma série de folhas impressas em cima da secretária.

- Aqui está a última - anunciou. - São todos os excertos do diário relativos a Bill Kent, William Kent, Kent, etc.

- Óptimo.

Folheei a pilha de papéis, cerca de quarenta páginas, algumas delas com vários excertos. O mais antigo remontava ao mês de Junho de há dois anos e a mais recente era da semana passada.

- Eles viam-se muito - constatou Cynthia. Confirmei com um aceno de cabeça e disse:

- Mais uma vez obrigado, Grace. Porque não coloca a disquete no esconderijo e vai dormir um pouco?

- Sinto-me bem. Você, pelo contrário, está com um aspecto horrível,

- Até amanhã.

Com as páginas dactilografadas debaixo do braço atravessei o hangar, seguido de Cynthia, e saímos pela pequena porta. Estava uma daquelas noites calmas e húmidas em que o próprio odor dos pinheiros só se sentia de muito perto.

- Um duche? - propus.

- Não - respondeu Cynthia. - O gabinete do comandante da polícia. O coronel Moore e Miss Baker-Kiefer, lembras-te deles?

Entrámos no meu Blazer e o relógio do painel indicava vinte e duas horas e trinta e cinco minutos. Restavam-nos menos de catorze horas para resolver o caso. Cynthia detectou o meu olhar e comentou:

- Os tipos do FBI devem estar a bocejar e a contar as horas, mas de manhã estarão todos por aqui.

- Claro - concordei e arrancámos. - Pouco me interessa que recebam os louros por resolver este caso, passo-lhes o facho e eles que se entendam. Quanto mais nos aproximarmos do criminoso, menos terão de remexer na lama. Vou pô-los na pista de Kent e espero que tudo fique por aí.

- É uma grande bondade da tua parte deixar que sejam eles a concluir. A tua carreira aproxima-se do final, mas, no meu caso, uma pequena parcela de glória viria mesmo a calhar.

- Somos militares - retorqui. - Contentamo-nos em obedecer às ordens, e tu recebes as minhas.

- Muito bem, sir - anuiu, ficando amuada por um minuto, após o que retomou a palavra:

- O FBI é um mestre no jogo da comunicação, Paul. Comparativamente à sua agência de relações públicas, o serviço de imprensa do Exército parece um quiosque de gare. Temos de ir até ao fim, mesmo que tal signifique encostar uma arma à cabeça de Kent e ameaçar fazer saltar-lhe os miolos, se ele não assinar uma confissão.

- Céus! Mas que tom peremptório!

- Isto é importante, Paul, e tens razão ao afirmar que não convém que o FBI remexa muito na lama. Eles comunicariam o conteúdo deste diário a todos os jornais da região e fingiriam, além do mais, que haviam sido eles a encontrar a disquete e a descodificá-la. Esses tipos são eficazes, mas sem escrúpulos, quase como tu.

- Obrigado.

- E estão-se nas tintas para o Exército. A propósito de Nietzsche, a filosofia do FBI é: “Tudo o que prejudica a imagem dos outros serviços ou instituições, melhora a nossa.” Portanto, temos de resolver este caso até ao meio-dia.

- Muito bem. Quem é o assassino?

- Kent.

- Sem sombra de dúvida?

- Nenhuma. O que achas?

- Gosto do tipo - respondi com um encolher de ombros.

- Quanto a mim, nem me agrada nem me desagrada - retorquiu com um aceno de cabeça.

“É curioso como os homens e as mulheres têm, por vezes, opiniões tão diferentes sobre a mesma pessoa”, pensei. “Da última vez que concordei com uma mulher sobre as qualidades de um tipo, ela era a minha e fugiu com ele.”

- O que te desagrada em Kent?

- Enganou a mulher.

Fazia sentido e acrescentei:

- Talvez seja igualmente um criminoso. É um pormenor, mas tem a sua importância.

- Poupa-me ao sarcasmo. Se ele matou Ann Campbell, fê-lo sob um impulso de momento. Enganou constantemente a mulher durante dois anos, facto que denota grande fraqueza de carácter.

- De acordo.

Conduzi o carro ao longo da comprida e sombria estrada, que desembocava no pinhal. Avistava à distância as luzes de Bethany Hill e interroguei-me sobre o que estaria a passar-se nas casas dos Fowler e dos Kent.

- Não gostaria de estar lá esta noite - comentei.

- Que confusão! - exclamou Cynthia. - Vim a Fort Hadley por causa de uma violação e acabei envolvida nas implicações de uma outra ocorrida há dez anos.

- O crime leva ao crime - vinquei.

- É verdade. Sabias que uma vítima de violação tem estatisticamente mais dez oportunidades de ser de novo violada do que uma mulher que nunca o foi?

- Ignorava.

- Mas ninguém consegue explicar porquê, nem existe qualquer denominador comum, como a profissão, idade ou meio. Contudo, basta que aconteça uma vez para que acresça o risco de uma nova agressão. É absurdo e inquietante, como se qualquer diabo por aí encarnasse...

- Assustador! - concordei.

Não tinha esse tipo de experiência relativamente a homicídios - só se morre uma vez. Cynthia pôs-se a falar da sua profissão, dos momentos deprimentes por que passava e que haviam provavelmente influenciado o fracasso do seu casamento.

Sentia, sem dúvida, necessidade de desabafar, de curar feridas antes do próximo caso. Contudo, fica sempre um resíduo do anterior e assemelha-se a uma toxina espiritual, que nos afecta de ano para ano. Trata-se, porém, de um trabalho a cumprir e algumas pessoas decidem fazê-lo, outras não e mais algumas concluem de que precisam dedicar-se a outra coisa. Forma-se uma espécie de calo no coração, mas, por vezes, há algo que penetra as defesas e fica-se novamente frágil.

Cynthia continuou a falar e apercebi-me de que não se referia somente a ela, ao seu casamento ou ao seu emprego, mas também a mim, a nós os dois.

- Devia pedir que me destacassem... para outros cargos - redarguiu

- Como, por exemplo?

- A banda militar - sugeriu com uma gargalhada. - Dantes tocava flauta. Tocas algum instrumento?

- Só a rádio. Então, e o Panamá?

- Vamos para onde nos mandam - respondeu com um encolher de ombros. - Não sei... Ainda está tudo no ar.

Era suposto que eu dissesse algo, propusesse uma alternativa, mas não era tão confiante e decidido na minha vida privada como na minha vida profissional. Quando uma mulher fala em “compromisso”, peço uma aspirina, se me fala em “amor” ponho-me a milhas.

No entanto, tudo isto com Cynthia era real, pois resistira ao tempo. Pensara nela e faltara-me a sua presença durante um ano, mas agora que a tinha aqui começava a sentir pânico. Não tencionava, porém, deitar tudo a perder e, portanto, disse-lhe:

- Ainda tenho aquela herdade próximo de Falis Church. Podias vê-la.

- Gostaria muito.

- Óptimo.

- Quando?

Acho que... depois de amanhã. Quando voltarmos ao quartel-general. Podes passar lá o fim-de-semana, ou mais tempo, se quiseres.

- Esperam-me em Fort Benning na segunda-feira.

- Porquê?

- Advogados, documentos. Vou divorciar-me na Georgia e casei-me em Virgínia. Devia haver uma lei comum para pessoas como nós.

- Boa ideia.

- Tenho de estar no Panamá no fim do mês. Gostaria de ficar divorciada antes, senão tenho de esperar mais seis meses, se estiver ausente do país.

- Exacto. Recebi os meus documentos de divórcio em plena guerra, através de correio entregue por helicóptero.

- A sério?

- Sim, com uma carta referente às mensalidades do carro e literatura de propaganda de um grupo pacifista de São Francisco. Há dias em que é melhor não sair da cama. De facto, nem cama tinha, mas podia ser pior.

- E melhor também. Vamos passar um bom fim-de-semana.

- Anseio por isso.

 

 

                            CAPÍTULO TRINTA E DOIS

 

Voltámos às instalações da Polícia Militar. Como os jornalistas haviam debandado, estacionei numa zona proibida junto à estrada e, sem me esquecer do diário de Ann Campbell, entrei no edifício, acompanhado de Cynthia.

- Interrogaremos primeiro o coronel Moore - decretei. - Depois veremos o que o sargento Kiefer descobriu.

Quando nos dirigíamos às celas, Cynthia comentou:

- É difícil imaginar que um homem com tais funções possa ser um criminoso.

- É mesmo e resulta numa estranha confusão do protocolo com os processos de actuação.

- O que pensas daquela pegada?

- É o único elemento de que dispomos.

Ela reflectiu uns momentos e depois prosseguiu o raciocínio:

- Temos, portanto, um móbil e a oportunidade, embora ainda não esteja certa quanto ao perfil psicológico do nosso criminoso, nem quanto à sua determinação. Faltam-nos provas... Contudo, depois daquela bebida que tomámos com ele, acho que a nossa intuição está correcta.

- Óptimo, diz isso ao FBI.

Pedi ao sargento de guarda que nos acompanhasse e ele levou-nos à cela de Moore, que estava sentado no catre, todo vestido, apenas tirara os sapatos. Dalbert Elkins aproximara a cadeira das barras entre as duas celas e inundava o coronel com uma catadupa de palavras, que ele escutava atentamente, a menos que tivesse caído numa espécie de transe cataléptico.

Levantaram-se os dois ao verem-nos aproximar. Elkins esboçou um sorriso ao ver-me, mas Moore parecia apreensivo e tinha a roupa toda amarrotada.

- Tudo combinado para amanhã, chefe? -perguntou Elkins. - Não há problemas?

- Nenhum.

- A minha mulher encarregou-me de lhe agradecer.

- Ah sim? Mas ela recomendou-me que te mantivesse aqui. Elkins desatou a rir.

- Pode soltar o coronel, por favor? - dirigi-me ao sargento.

- Muito bem, sir - respondeu este, abrindo a cela de Moore e acrescentando:

- Algemas?

- Sim, por favor.

O polícia militar rugiu:

- Mãos para a frente!

Moore estendeu os punhos cerrados e o sargento colocou-lhe as algemas.

Depois, e sem uma palavra, percorremos o longo corredor ladeado por celas, na sua maioria vazias. Moore, de peúgas, avançava sem ruído. Há poucos lugares na Terra tão sinistros como uma prisão e poucas cenas tão desoladoras como um preso algemado. Por isso, apesar de todas as suas tentativas de evasão pela intelectualidade, Moore reagia mal a este momento, o que era o objectivo da operação.

Fizemo-lo entrar numa sala de interrogatório e o sargento deixou-nos.

- Sente-se - ordenei a Moore, que obedeceu.

Instalei-me, com Cynthia, numa mesa diante dele e iniciei a conversa nestes termos:

- Tinha-lhe dito que da próxima vez que falássemos seria aqui.

Não me respondeu, mostrava-se assustado, abatido e furioso, embora fizesse um esforço para se controlar, dado saber que o mau humor de nada lhe serviria.

- Se já nos tivesse contado tudo o que sabe, na primeira vez, não estaria aqui - prossegui. Novo silêncio.

- Sabe o que mais irrita os detectives? As testemunhas que lhes fazem perder energia e um tempo precioso ao tentarem armar-se em espertos.

Espicacei-o um pouco verbalmente, garantindo-lhe que me enojava, que ele era um insulto ao seu uniforme, patente e profissão, perante o país, Deus, a raça humana e o universo, mas manteve-se calado durante o meu discurso, embora não me parecesse que quisesse exercer o direito que lhe era concedido pela Quinta Emenda, talvez porque compreendera que era isso que eu pretendia.

Entretanto, Cynthia ausentara-se, levando consigo as folhas do diário, e quase não assistiu à prelecção. Reapareceu cinco minutos depois sem as folhas, mas trazendo um tabuleiro de plástico com um copo de leite e um donut.

Os olhos de Moore fixaram-se na comida e deixou de me prestar atenção.

- Trouxe-lhe isto - declarou Cynthia, ao mesmo tempo que pousava o tabuleiro ao seu alcance - e pedi ao sargento que lhe tirasse as algemas. Passará por aqui, mal tenha um momento.

- Posso comer mesmo assim - garantiu-lhe Moore.

- O regulamento proíbe que se obrigue um preso a comer com correntes, algemas, etc. - informou-o Cynthia.

- Não está a obrigar-me. É de minha inteira vontade...

- Lamento. Terá de esperar pelo sargento.

Moore não tirava os olhos do donut, que, na minha opinião, era o primeiro por que demonstrava interesse. Retomei a palavra:

- Bom. Voltemos ao assunto. E desta vez não tente enganar-nos. Só para lhe dar uma ideia da merda em que está metido, vou dizer-lhe o que já sabemos por intermédio do laboratório. Queremos apenas que nos forneça os pormenores em falta. Antes do mais, você e Ann Campbell planearam isto durante pelo menos uma semana a seguir ao ultimato do pai. Ignoro qual dos dois teve a ideia de reconstituir a violação de West Point... - Neste ponto observei-o, a fim de detectar como reagia e só depois prossegui: - ... mas foi uma ideia perversa. Telefonou-lhe, pois, para o quartel-general, combinaram as horas, dirigiu-se à carreira de tiro número cinco, atravessou-a e foi estacionar atrás das bancadas. Saiu do carro, levando consigo as estacas, corda, um martelo, um telemóvel e talvez um gravador. Chegou às latrinas da carreira de tiro seis pelo caminho interior e provavelmente voltou a telefonar-lhe dali para se certificar de que ela saíra do quartel-general.

Gastei os dez minutos seguintes a reconstituir-lhe os acontecimentos da noite, baseando-me nas provas forenses, conjecturas e suposições. Moore parecia simultaneamente impressionado, surpreendido e cada vez mais descoroçoado.

- Telefonou para casa do general - continuei - e quando ele atendeu, Ann passou a mensagem gravada. Foi então que, conscientes de terem vinte minutos, ambos se puseram a reconstituir o cenário. Ela despiu-se no jipe ou um pouco mais longe, na eventualidade de alguém poder passar e meteu as coisas dela no saco de lixo que deixou no veículo. Correcto?

- Sim.

- Ela não tirou o relógio.

- Não, queria ter a noção do tempo. Conseguia ver o mostrador do relógio e achava que lhe daria mais calma, enquanto aguardava os pais.

“Estranho”, pensei. Contudo, muito menos estranho do que a cena que se me apresentara na primeira vez em que a avistei nua, amarrada, de pernas e braços abertos e tendo o relógio como único ornamento. Percorrera um longo caminho desde aquela manhã em que julgara estar diante da obra de um violador homicida. Na verdade, o crime processara-se por várias fases, por etapas, a sua génese datava de há dez anos e o que eu vira não era o que as aparências davam a entender, mas sim o resultado de uma noite bizarra, que poderia haver terminado de maneira diferente.

- A propósito, reparou se ela tinha o seu anel de West Point? - indaguei a Moore.

- Tinha, sim - respondeu, sem hesitar -, era uma ligação simbólica com à primeira violação. O nome dela estava obviamente gravado no interior e Ann tencionava dá-lo ao pai como uma espécie de presente, uma forma de lhe dizer que as más recordações a que o mesmo se ligava estavam agora na posse dele e não queria mais nada com elas.

- Entendo...

“Deus do céu!”, pensei. “Tratava-se de uma mulher invulgar, embora um pouco perturbada.” E ocorreu-me subitamente que no fundo devia haver qualquer fenómeno psicossexual entre pai e filha, que Moore se apercebera disso e que talvez todos os Campbell tivessem essa consciência.

Troquei um olhar com Cynthia e algo me disse que ela tinha a mesma sensação. Contudo, e retomando o fio à meada, disse a Moore:

- Depois, avançaram os dois até à carreira de tiro, escolheram um sítio junto ao alvo fixo mais próximo, a uns cinquenta metros da estrada, e ela deitou-se e apartou os braços e as pernas. Que tal ser-se tomado por um eunuco? acrescentei, perscrutando a reacção.

Os olhos de Moore brilharam de raiva, mas conseguiu dominar-se e respondeu:

- Nunca abusei sexualmente de nenhuma das minhas doentes. Por bizarra que esta terapia possa parecer-lhe, destinava-se a ajudá-la, a servir de catarse para as duas partes interessadas. Não era suposto que eu devesse ter relações sexuais com a minha paciente, nem violá-la estando ela amarrada.

- Você é um tipo dos diabos, um modelo de ética profissional, mas não esteja para aí a querer que eu engula essas tretas. Só quero saber o que aconteceu depois de ter atado o último nó. Sou todo ouvidos.

- Bom... Falámos um pouco e ela agradeceu-me o facto de ter corrido tantos riscos para a ajudar a concretizar o plano...

- Deixe-se desses auto-elogios, coronel. Prossiga.

- Voltei ao jipe - obedeceu com um fundo suspiro ’-- e peguei no saco de plástico com a roupa, assim como na minha pasta, que usara para transportar as estacas e a corda e agora só continha o martelo. Depois dirigi-me às latrinas, por detrás das bancadas, e fiquei à espera.

- A espera de quê ou de quem?

- Dos pais dela, claro. Ela receava que qualquer outra pessoa aparecesse primeiro e avistasse o jipe. Portanto, pediu-me que ficasse até eles chegarem.

- E o que devia fazer se uma outra pessoa aparecesse primeiro? Enfiar a cabeça na sanita?

Cynthia bombardeou-me com pontapés por baixo da mesa e assumiu a condução do interrogatório, repetindo a pergunta num tom amável:

- O que devia fazer, coronel?

O olhar oscilou um pouco entre ela e o donut e depois explicou:

- Tinha o revólver dela no saco, mas... não sei exactamente o que devia fazer. Contudo, se alguém a tivesse descoberto antes dos pais, estava pronto a defendê-la, se necessário.

- Muito bem. E foi nesse momento que se serviu da latrina?

- Sim... - anuiu Moore, parecendo um tanto surpreendido. - Precisei de a usar.

- Estava tão assustado que teria feito nas calças, não? - observei. - Depois, lavou as mãos como um bom soldado, certo?

Fulminou-me com o olhar e dirigiu-se a Cynthia:

- Estava atrás das latrinas quando avistei os faróis na estrada. O veículo parou e, quando a porta do condutor se abriu, avistei o general. De qualquer maneira, estava lua cheia e reconheci o carro da senhora Campbell, mas não a vi. Receei que o general não viesse com a mulher - acrescentou.

- Porquê?

- É que... sem ela a situação podia complicar-se. Nunca julguei que o general fosse capaz de se debruçar sobre a filha... Tinha a certeza de que, se se encontrassem sós, haveria chispas.

Cynthia fitou-o demoradamente e perguntou:

- Assistiu à conversa entre o general e a filha?

- Não.

- Porquê?

- Era o que tínhamos decidido. Mal me certifiquei de que era ele atirei o saco com a roupa para o telhado das latrinas e retomei o caminho no sentido inverso. O meu carro estava a uns cinco minutos a pé e, como ignorava quanto tempo duraria a conversa entre ambos, queria regressar à base o mais rapidamente possível.

- E avistou qualquer outro veículo na estrada, quando voltou? - indagou Cynthia.

- Não.

Após uma troca de olhares entre nós, dirigi-me a Moore:

- Reflicta bem, coronel. Não viu faróis em qualquer das direcções?

- Não, era essa a minha preocupação. Não queria ser visto - redarguiu.

- E não viu ninguém a pé?

- Não.

- Viu ou ouviu alguma coisa quando estava na carreira de tiro cinco ou seis? Ou próximo das latrinas, do jipe, no caminho?

- Não - insistiu, abanando a cabeça.

- Portanto, depois de se ter ido embora, alguém a matou.

- Sim, deixei-a com vida.

- Quem acha que a matou?

- O general, claro! - exclamou, fitando-me estupefacto. - Julguei que o soubesse!

- O que o leva a fazer essa afirmação?

- Sabe muito bem o que se passou e que o meu papel apenas consistiu em ajudá-la a recriar o cenário da violação para que os pais o vissem. Ele apareceu - vi-o com os meus próprios olhos - e um pouco mais tarde encontraram-na estrangulada. Quem mais o poderia ter feito?

- O que esperava ela dos pais? - perguntou Cynthia. - O que lhe disse a esse respeito?

Moore reflectiu uns momentos antes de responder:

- Bom... acho que pretendia que eles... Ela não sabia muito bem como iriam lidar com a situação, mas admitia que a tirassem dali, por mais que lhes custasse. Estava convencida de que não a deixariam assim, que seriam obrigados a confrontá-la, a confrontarem-se com a sua nudez, a sua vergonha e humilhação, a desfazerem fisicamente as suas amarras e, na mesma altura, a libertarem-se todos psicologicamente. Entendem? - indagou, erguendo os olhos.

- Sim, compreendo a teoria - garantiu Cynthia.

- Tudo isto me parece um absurdo - interferi.

- Se a senhora Campbell estivesse presente, talvez resultasse - redarguiu Moore. - Não teria, decerto, findado num drama.

- A nível dos psicólogos, os planos mais bem organizados acabam sempre por falhar.

Ignorou o comentário e virou o rosto suplicante para Cynthia:

- Pode, pelo menos, passar-me esse copo de leite? Tenho uma sede horrível.

- Claro - anuiu Cynthia, colocando-lhe o copo entre as mãos algemadas. Moore segurou-o, esvaziou-o de um trago e pousou-o, e todos nos mantivemos em silêncio, enquanto ele saboreava o leite, como se se tratasse do xerez de que tanto gostava.

- Alguma vez Ann lhe deu a entender que o pai podia aparecer sozinho, enraivecer-se e matá-la? - retomou Cynthia.

- Não! - apressou-se a responder Moore. - Nesse caso, nunca teria concordado com o plano.

Esbocei um aceno de cabeça para mim próprio, mas ignorava se era verdade ou não, só duas pessoas o sabiam. Uma delas estava morta, a outra, o nosso interlocutor, mentiria para mitigar responsabilidades. O próprio general sabia, obviamente, quais os sentimentos que experimentara no momento em que a filha lhe lançara o desafio, contudo, seria incapaz de os formular, muito menos a mim. De certa maneira, isso já não interessava.

- Alguma vez lhe ocorreu ou a Ann Campbell - indagou Cynthia que o general não viesse preparado para a libertar? Não me refiro ao âmbito psicológico, mas a ferramenta de que pudesse necessitar para arrancar as estacas?

- Sim, ela ponderou tal hipótese - admitiu Moore. - Na verdade, eu enterrei uma baioneta na terra... encontraram-na, não?

- Onde estava? - perguntou Cynthia.

- Bom... entre as pernas dela... Os homens que a violaram em West Point tinham colocado uma perto... da sua vagina, antes de a libertarem, ameaçando-a de que devia calar-se.

- Entendo... - murmurou Cynthia com um aceno de cabeça.

Moore prosseguiu a narração:

- É óbvio que ela queria chocá-lo, chocar os dois. Seriam obrigados a desenterrar a baioneta para cortar as cordas e tinha a certeza de que ele a cobriria com o casaco ou a camisa. Eu deixara o seu sutiã por perto e as cuecas à volta do pescoço, como certamente as encontraram. Foi assim que a abandonaram nos bosques em West Point. Tinham-lhe atirado a roupa para perto e ela teve de a procurar no escuro. Contudo, neste caso, queria que os pais a acompanhassem até ao jipe. Tencionava dizer ao general onde se encontrava a sua roupa, no telhado das latrinas, para que fossem buscá-la. Deixara o saco no jipe, juntamente com as chaves, e ter-se-ia vestido e retomado o serviço no quartel-general, como se nada se houvesse passado. Em seguida, tomaria o pequeno-almoço com os pais, como previsto, e nessa altura confrontariam a decisão definitiva.

Cynthia voltou a esboçar um aceno de concordância e perguntou:

- Ela acalentava muitas esperanças relativamente a este pequeno-almoço?

- Acho que sim - respondeu Moore depois de pensar um momento - mas isso dependia naturalmente da forma como os pais reagissem à reconstituição do cenário da violação. Afinal, a senhora Campbell não apareceu, porém acho que Ann sabia que quaisquer que fossem os demónios que libertasse essa noite, qualquer que fosse a reacção do pai, nada podia piorar. Os tratamentos de choque são de alto risco, mas, quando já nada se tem a perder, quando se tocou no fundo, há que pôr tudo em jogo e esperar o melhor.

Cynthia voltou a acenar com a cabeça, como vem indicado no método de interrogatório do manual. “Mostre-se positivo, afirmativo, não dê ao suspeito a impressão de crítica, cepticismo ou incredulidade. Limite-se a acenar com a cabeça, como um psiquiatra numa sessão de terapia.” Talvez Moore reconhecesse a técnica, mas no seu actual estado mental e físico apenas desejava um sorriso, uma aprovação, e a permissão de comer aquele estúpido donut.

- Ela disse-lhe porque é que esperava tanto deste confronto? - inquiriu Cynthia. - Porquê precisamente nesta altura, passados tantos anos?

- Bom... Ela estava finalmente disposta a perdoar, preparada para aceitar tudo, prometer tudo para resolver a situação, pois sentia-se cansada da guerra antes mesmo de se dirigir à carreira de tiro. Mostrava-se optimista, feliz e quase calma pela primeira vez desde que a conhecia...

Suspirou, fitou-nos e acrescentou:

- Sei o que pensam de mim e não vos levo a mal, mas eu apenas queria o bem dela. Ann também me seduzira de uma outra forma e prestei-me a uma ajuda que sabia... pouco ortodoxa. Se tivessem testemunhado todo o seu entusiasmo, a sua impaciência quase pueril... estava nervosa, assustada, mas tão esperançada por ver o fim de um longo pesadelo... Claro que sabia que as feridas que infligira a si própria e aos outros não cicatrizariam assim, de um dia para o outro, só porque dissera aos pais: “Amo-vos e perdoo-vos, se me perdoarem”. Contudo, acreditava em tudo isto e acabou por me levar a acreditar também... Errou, porém, os cálculos... subestimou a cólera do pai... ela, que se julgava tão próxima de voltar a ser feliz... Até ensaiava permanentemente as palavras que lhes diria nessa noite... e ao pequeno-almoço...

Então, produziu-se o mais inesperado dos fenómenos: duas lágrimas rolaram pelas faces de Moore, que ocultou o rosto entre as mãos.

Cynthia levantou-se, pôs-lhe a mão no ombro e depois fez-me sinal para que a seguisse. No corredor, disse-me:

- Deixa-o ir embora, Paul.

- Nem pensar.

- Já fizeste o teu interrogatório. Deixa-o sair para poder assistir ao funeral. Retomaremos o caso dele amanhã, ou depois. Não fugirá.

- De acordo - concordei com um encolher de ombros. - Estou a ficar fraco, céus!

Fui falar com o sargento de guarda, preenchi um formulário de libertação e assinei, apesar de detestar esses formulários. Depois, fui juntar-me a Cynthia, que me esperava no corredor.

- Está livre, mas sob detenção na base - anunciei-lhe.

- Fizeste o que devias.

- Não estou assim tão certo.

- Paul... a raiva não vai mudar nada do que aconteceu e a vingança não trará justiça. É a lição que deves tirar de tudo isto. Ann Campbell não soube fazê-lo, mas o seu drama deve, pelo menos, servir de exemplo.

- Obrigado.

De volta ao nosso gabinete, sentei-me à secretária e partilhei as folhas do diário com Cynthia. Antes de iniciar a leitura, inquiri, surpreendido:

- O que aconteceu à baioneta?

- Não sei. Se o general não se aproximou da filha, não a viu e, portanto, ignorava que podia libertá-la. Ele contou-nos duas versões da história: segundo uma delas, tentou soltá-la puxando as estacas e, na outra, foi incapaz de se aproximar.

- Correcto. Portanto, a outra pessoa a pisar o cenário, digamos que foi Kent, viu a baioneta e tinha a mesma opção. Depois, apareceram os Fowler, que traziam uma faca... mas ela já estava morta. Seguiu-se o sargento Saint-John, a Casey... Como saber? O interessante é que alguém desenterrou a baioneta e ficou com ela... -- Meditei um instante e prossegui: - Se aceitarmos a segunda versão do general, a de que nunca se aproximou da filha, então, não podia ser ele. O assassino não tinha qualquer razão para levar a baioneta, nem tão-pouco Saint-John ou Casey.

- Estás a implicar que foi levada pelos Fowler?

- Estou a dizer que quando os Fowler encontraram Ann morta e se aperceberam de que o meio de a libertar estava ali, entre as pernas dela, tiveram consciência de que o general lhes mentira, de que ele não tentara libertá-la, como estou certo de que lhes disse. Que, na verdade, como Campbell nos contou na verdadeira e segunda versão, se mantivera à distância e discutira com a filha. Assim, quando os Fowler viram a baioneta, compreenderam que o general tinha podido libertá-la e não o fez. Resultado: ela estava morta. Não quiseram dizer-lhe, nem que ele o soubesse pelos relatórios oficiais e, por conseguinte, agarraram na baioneta e descartaram-se dela, foi mais um serviço que lhe prestaram, mas não a nós.

Cynthia reflectiu uns momentos e concordou:

- Sim, é provavelmente o que aconteceu. E o anel de West Point? acrescentou, interrogando-me com o olhar.

- Ultrapassa-me por completo.

- Mais uma vez os Fowler?

- É possível. Outro favor, embora este não o perceba, ou talvez o assassino o tenha levado como uma recordação sentimental. Não consigo imaginar um gesto tão macabro por parte de Casey ou Saint-John, mas nunca se sabe do que as pessoas são capazes diante de um cadáver. Ou então o general aproximou-se mais da filha do que deu a entender, pegou na baioneta, tomou em consideração libertá-la, depois mudou de opinião, tirou-lhe o anel, achando que ela desonrava o uniforme, e afastou-se. Na estrada, arrependeu-se e dirigiu-se a casa dos Fowler. Quem sabe? E quem se preocupa a este ponto?

- Eu. Preciso de compreender o que leva as pessoas a agir, o que se passa no seu íntimo, é importante, Paul, é o que faz da nossa profissão mais do que Vem no manual. Desejas transformares-te num Karl Hellmann?

- Por vezes, sim - respondi, esboçando um sorriso.

- Então, nunca serás capaz de determinar um motivo ou de separar os bons dos maus.

- Parece-me bem.

- Estás a irritar-me.

- Falando de motivos, do bem e do mal, de paixão, de ciúme e de ódio, vejamos o que contém esta brilhante obra.

A leitura revelou-nos as preferências sexuais de William Kent, mas, mais importante ainda, descobri que ele se estava a tornar cada vez mais problemático para Ann Campbell.

- Vou ler-te as notas do mês passado - disse a Cynthia e assim o fiz: “Bill está novamente a tornar-se possessivo. Julguei que o problema estivesse resolvido, mas apareceu aqui esta noite, quando Ted Bowes ainda não saíra. Tomaram uma bebida juntos no salão, mas Bill maltratou-o e insultou-o. Ted acabou por se ir embora e Bill e eu discutimos. Disse-me que está disposto a deixar a mulher e a demitir-se, se lhe prometer viver, casar-me com ele ou algo do género. Sabe por que motivo eu faço o que faço com ele e os outros homens, mas quer que tudo se torne mais sério entre nós. Pressiona-me e digo-lhe que se deixe disso. Esta noite nem mesmo quer sexo, apenas conversar. Deixo-o falar, mas as suas palavras não me agradam. Por que razão querem alguns homens armar-se em cavaleiros de armadura reluzente? Não preciso de um cavaleiro, sou eu o meu próprio cavaleiro, o meu dragão, e tenho a minha fortaleza, todos os outros são meros objectos. Bill não é muito perspicaz, não compreende e nem sequer tento explicar-lhe. Disse-lhe que reflectiria na sua proposta, mas que, entretanto, gostaria que só aparecesse com entrevista marcada. Ficou doido, esbofeteou-me, depois arrancou-me a roupa e violou-me na alcatifa do salão. Quando tudo acabou, pareceu acalmar e foi-se embora, de rosto fechado. Dou-me conta de que pode ser perigoso, mas é-me indiferente. Na verdade, é o único, com excepção de Wes, que me ameaçou ou bateu, e é somente isso o que torna Bill Kent interessante.”

Ergui o rosto e troquei um olhar com Cynthia. Kent era um homem perigoso, nada é pior do que alguém que conhece a luxúria, a perversão, e fica obcecado. Dispunha-me a retomar a leitura em voz alta quando bateram à porta e esta se abriu. Esperava ver entrar o sargento Kiefer, mas era o coronel Kent. Interroguei-me sobre há quanto tempo se encontraria atrás da porta.

 

 

                             CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

 

Reuni as folhas e meti-as à pressa num dossiê. Kent conservou-se no mesmo lugar, sem uma palavra, e nem sequer tirou o boné. Por norma destapa-se a cabeça, excepto quando se está armado. Uma regra interessante, que provavelmente se relaciona com o facto de se ficar com as mãos livres para pegar na arma, ou serve para dar a entender aos outros que se tem uma, o que era o caso de Kent.

Também eu e Cynthia tínhamos as nossas, mas estavam escondidas e não usávamos bonés que nos denunciassem.

O gabinete encontrava-se na penumbra, somente iluminado por dois candeeiros de secretária, e do meu lugar mal divisava as feições de Kent. Pareceu-me, no entanto, preocupado, acabrunhado, e lembrei-me de que fora à capela ver o corpo. Expressou-se num tom calmo, quase inaudível:

- O que anda a especialista Baker a farejar por aí?

- Não anda a farejar, mas a reunir uns elementos que lhe pedi - respondi, pondo-me em pé.

- Sou eu quem manda aqui. Sempre que precisarem de qualquer coisa, é comigo que devem falar.

“Claro que sim”, pensei. “Só que neste caso os elementos se relacionavam com o comandante.”

-Trata-se de pormenores administrativos sem importância, coronel, - justifiquei-me.

- Neste edifício, tudo é importante.

- Excepto os cartões de livre estacionamento e circulação.

- Porque precisariam deles?

- É um processo de rotina. Para saber que veículos se encontravam onde...

- Eu sei disso. E também querem os registos da patrulha da Polícia Militar, o do sargento de serviço e gravações das transmissões de rádio durante a noite. Andam à procura de qualquer veículo em particular?

“Sim, do seu”. Mas respondi:

- Não. Onde está Baker?

- Dispensei-a das suas funções e proibi-lhe a entrada no edifício.

- Percebo, mas peço-lhe oficialmente que cancele essa ordem.

- Nomeei outra secretária. Não estou disposto a tolerar qualquer infracção às regras de segurança, seja qual for o motivo. Ela infringiu as normas e talvez mesmo a lei. Amanhã, comunicarei o facto ao procurador-geral.

- Está no seu pleno direito, embora eu ache que o coronel Weems tem outras coisas com que se preocupar neste momento.

Compreendendo, sem dúvida, ao que eu fazia alusão, Kent replicou:

- O Código Geral da Justiça Militar não depende de um só indivíduo e todos aqui se encontram por ele abrangidos incluindo vocês os dois.

- Sem dúvida. Assumo a inteira responsabilidade dos actos de Baker. Cynthia levantou-se e interferiu:

- Na verdade, a responsável sou eu, coronel. Fui eu quem deu essas ordens a Baker.

- Bastava que me tivesse falado primeiro - retorquiu Kent, fulminando-a com o olhar.

Após ter tomado a ofensiva, prosseguiu o ataque, embora aparentemente sem grande entusiasmo, e dirigiu-se-me:

- Não me pronunciei quando meteu o coronel Moore na prisão, mas vou redigir um relatório sobre a forma como o tratou. Não é assim que se procede com os oficiais.

Kent referia-se visivelmente ao futuro e a sua queixa nada tinha a ver com o coronel Moore.

- Os oficiais também não costumam comportar-se como ele o fez. Abusou da patente, da profissão e das funções.

- Todavia, podia ter-se contentado com a detenção domiciliária até o inquérito seguir o seu curso e as acusações contra ele serem ou não mantidas.

- Sabe, coronel, pessoalmente acho que quanto mais alto se está, maior é a queda. Quando os jovens cometem idiotices por ignorância, falta de maturidade ou arrebatamento, atira-se-lhes com o regulamento, por isso acho que, quando um oficial maduro pisa o risco, devia fazer-se dele um exemplo.

- Mas a patente comporta alguns privilégios, entre os quais o de que um superior não deve ser detido, Brenner.

- Quando se infringe a lei, a pena deve ser proporcional à patente, ao cargo e ao conhecimento das leis. Os direitos e os privilégios de um oficial acarretam uma pesada responsabilidade e qualquer infracção da disciplina ou dos deveres deve traduzir-se por uma punição de gravidade proporcional.

“Estou a falar de si, Bill, e devia saber isso.”

- O passado de um soldado também tem de ser tomado em conta - retorquiu. - Se uma pessoa cumpriu honrosamente as suas funções durante vinte anos, como é o caso do coronel Moore, deve ser tratado com respeito. Cabe ao tribunal marcial decidir qual o seu castigo, se é que há motivo para tal.

Observei-o demoradamente antes de responder:

- Na minha opinião, um oficial que beneficiou de privilégios especiais e prestou juramento tem o dever de confessar os seus crimes e evitar aos magistrados do tribunal marcial a penosa tarefa de se reunirem para um julgamento público. Na verdade, agrada-me a antiga tradição de um oficial que se empala na própria espada, mas, dado já ninguém ter tomates para o fazer, acho que quem cometeu um crime capital ou se desonrou e ao uniforme que usa devia, pelo menos, considerar a hipótese de rebentar com os miolos.

- Acho que você é louco - opinou Kent.

- Sem dúvida, talvez devesse mesmo consultar um psiquiatra. Charlie Moore seria capaz de me arrumar as ideias. Decerto lhe agradará saber que assinei a sua ordem de libertação e a esta hora deve andar pela base à procura de um sítio onde dormir. Vá às instalações da Escola de Operações Psicológicas, se quiser verificar. A propósito, ele pensa que o general matou a própria filha, mas eu sei que não é verdade. Quem a assassinou terá de decidir se permitirá que Moore dê parte das suas suspeitas ao FBI e elas pendam sobre a cabeça de um homem basicamente íntegro, a menos que resolva redimir a sua honra e confessar?

Kent susteve o meu olhar e redarguiu:

- Acho que quem a matou não julga que cometeu um crime. Você adora falar de honra, antigos costumes e dos direitos e deveres dos oficiais. Bom... apostaria que o criminoso não vê qualquer motivo para submeter à justiça militar este acto de honra e justiça pessoal. Eis uma outra perspectiva da sua filosofia.

- Exacto. Infelizmente, vivemos numa época em que os meus sentimentos pessoais são tão inaceitáveis quanto os seus. Há mais de dez anos que investigo homicídios, coronel, e também o senhor já assistiu a um bom número deles. Na maioria dos casos, o criminoso encontra justificação para o seu acto e os júris civis mostram, aliás, tendência para aceitarem cada vez mais esta teoria. De qualquer maneira, se acha que assim foi, falta explicar as razões.

Parecia que tínhamos passado subitamente do geral ao particular, mas tudo dependia, sem dúvida, da interpretação.

Kent fitou-me, depois pousou o olhar em Cynthia e declarou:

- Acabo de vir da capela. Não sou um católico praticante, mas disse uma oração por ela. Estava com uma expressão muito calma. Suponho que o mérito também pertence ao agente funerário, mas gostava de acreditar que a sua alma se libertou e o espírito reencontrou a felicidade...

Girou sobre os calcanhares e afastou-se, deixando-nos no silêncio do gabinete.

- Agora sabemos onde residem a angústia e os tormentos de Ann Campbell - comentou finalmente Cynthia.

- É verdade.

- Achas que Kent confessará?

- Não sei, tudo depende do vencedor da batalha que ele vai travar até ao romper do dia.

- Não acredito no suicídio, Paul, e nem sequer tinhas o direito de lho mencionar.

- Essa ideia é um grande conforto - ripostei com um encolher de ombros. - Permitiu que muita gente superasse pesadelos.

- Que disparate.

- Nada disso. Nietzsche.

- Perverso. Vamos à procura de Baker - decidiu, levantando-se.

- Kiefer - corrigi.

Levantei-me também, agarrei no dossiê com as folhas do diário e saí do gabinete atrás de Cynthia. Lá fora, nos degraus do edifício da Polícia Militar, avistei ondas de calor que riscavam a noite ao longe. Corria uma brisa.

- Vem aí uma tempestade.

- Típico da Georgia - comentou Cynthia, acrescentando: - Se tivesse rebentado há duas noites...

- Claro, mas sobretudo se os homens não violassem as mulheres, se as instituições não tentassem encobrir o seu umbigo institucional, se os pais e os filhos se compreendessem e o sabor da vingança não fosse tão doce, se a monogamia constituísse um imperativo biológico e se todos tratassem os outros como gostariam de ser tratados, ficaríamos no desemprego e as celas serviriam para guardar cães de caça.

Cynthia enfiou o braço no meu e descemos os degraus até ao Blazer. Os primeiros pingos de chuva caíram quando íamos a entrar no carro e Cynthia inquietou-se:

- Como vamos contactar Kiefer?

- É ela que nos encontrará.

- Onde?

- Onde é lógico, nos nossos quartos - respondi, ligando o motor, metendo a primeira e acendendo as luzes.

A chuva tornou-se mais forte e pus os limpa-pára-brisas a funcionar. Percorremos em silêncio as ruas quase desertas da base. O meu relógio indicava dez para a meia-noite, mas, embora fosse tarde e pouco tivesse dormido na noite anterior, sentia-me bem. Minutos depois, parei no estacionamento das instalações dos oficiais de passagem e foi nesse momento que o céu decidiu abrir as portas e esvaziar um dilúvio tão violento que mal ouvi o som da minha voz, gritando a Cynthia:

- Queres que te leve de carro até à porta?

- Não - respondeu no mesmo tom. - Queres que te leve a ti?

As mulheres modernas têm uma grande qualidade: não se derretem sob a chuva. Na verdade, o meu fato parecia bem mais caro do que a roupa dela e estive prestes a aceitar, mas, depois de termos esperado um minuto que a chuva abrandasse, enfrentámo-la corajosamente.

O parque de estacionamento ficara já inundado e quando chegámos à porta, a uns cinquenta metros, estávamos ensopados, mas, pelo meu lado, o duche serviu para me tonificar.

Na entrada, o recepcionista, um jovem cabo, informou-me:

- Um polícia de Midland veio deixar a sua bagagem.

- Perfeito - agradeci, enquanto sacudia a chuva e pensava que o meu colega Burt cumprira a palavra. - Onde está? No meu quarto? Tudo desembalado, passado a ferro e pendurado?

- Não, sir. Está aí no chão.

- Quantas estrelas tem este hotel, cabo?

- Com mais uma chegaríamos ao zero.

- Entendido. Mensagens?

- Duas - respondeu, estendendo-me os respectivos papéis.

Eram de Kiefer e de Seiver. Fui buscar a minha bagagem, composta de duas malas, uma mochila do Exército e um saco para uma noite. Cynthia ofereceu-se para me ajudar, pegou numa das malas e no saco e começámos a subir a escada interior. Uns minutos depois, chegámos ao meu quarto e deixámos cair a bagagem no chão.

Cynthia retomou fôlego e disse:

- Vou mudar de roupa. Respondes tu a essas mensagens?

- Sim.

Atirei o casaco ensopado para cima de uma cadeira, sentei-me na cama e descalcei os sapatos, enquanto marcava o número de telefone deixado por Kiefer.

- Companhia quinhentos e quarenta e cinco da Polícia Militar, recepcionista - atendeu uma voz de mulher.

- Coronel Hellmann - anunciei entre o riso e o sério. - Posso falar com a especialista Baker, por favor?

- Um momento, sir.

Cynthia desaparecera e, por conseguinte, desembaracei-me da camisa molhada, da gravata e depois das calças e das peúgas, enquanto segurava o auscultador na cova do ombro. Baker-Kiefer optara por viver na caserna, uma escolha propícia ao anonimato mas não ao conforto. A recepcionista fora procurá-la, pois o Exército tinha preferido esta solução a instalar telefones nos dormitórios.

Um estalido na linha antecedeu a voz da minha interlocutora.

- Especialista Baker.

- Pode falar?

- Não, mas telefono-lhe de uma cabina pública, assim que apanhar uma livre. Está no hotel?

- Sim.

Desliguei e sentei-me no chão para abrir as minhas malas à procura de um roupão. Aquele cabrão do Yardley misturara tudo, a roupa suja, os sapatos e lâminas de barbear.

- Filho da mãe!

- Quem?

Olhei por cima do ombro e apercebi-me de que Cynthia voltara ao quarto. Estava vestida com um quimono de seda e secava o cabelo.

- Estou à procura do meu roupão.

- Espera aí. Vamos pôr um pouco de ordem nisto tudo.

E juntando o gesto à palavra, começou a separar as coisas e a pendurá-las. As mulheres revelam extrema habilidade quando se trata de roupa. Observando-as, dir-se-ia fácil, mas, pelo meu lado, nem um par de calças consigo pendurar direito.

Sentia-me um pouco idiota, em cuecas e a vasculhar o chão, mas por fim descobri o roupão metido dentro da mochila. Mal o tinha enfiado, quando o telefone tocou.

- É Kiefer - informei Cynthia.

- Aqui Brenner - respondi, pegando no auscultador.

Mas não era Kiefer e sim Cal Seiver.

- Observei os esboços até quase ficar sem vista, Paul, e estudei os moldes das pegadas até quase arranjar uma hérnia, mas não consigo encontrar mais nenhum índice comprovativo de que o coronel Kent esteve no local antes da hora a que diz tê-lo feito. Uma vez sabermos o que procuramos, pensei que podia enviar uma equipa para voltar a fazer recolhas de pegadas amanhã, mas esta chuva apagou tudo.

- Deixaste os toldos e o pavilhão montado?

- Não. Devia tê-lo feito, mas o coronel Kent disse que se encarregaria da segurança e cobriria toda a zona com oleados. Contudo, passei por lá há pouco e não vi nenhuma lona e nem um único guarda. A área do crime está irrecuperável, inutilizada.

- Entendido.

- Lamento.

- Não é grave. Mandaste o molde para Oakland?

- Sim. De helicóptero até Gillem e de lá descobrirão um vôo militar para a costa oeste. Saberei notícias de manhã.

- Perfeito.

- Ainda queres que chame os especialistas em pegadas?

- O que achas?

- Que o terreno é um vasto campo de lama.

- De acordo, esquece. Mesmo assim tivemos sorte. Onde está a Grace?

- Colada ao ecrã. Encarregou-me de te informar de que descobriu uma carta da vítima à senhora William Kent... Continuas interessado no coronel, certo?

- Sim. O que diz essa carta?

- Basicamente, que o coronel não queria contentar-se com uma amizade platónica e se a senhora Kent quereria ter a bondade de falar com o marido antes que ela, Ann Campbell, se visse obrigada a apresentar uma queixa oficial. E sugeria ao casal que utilizasse os serviços de um conselheiro conjugal. Não gostaria que a minha mulher recebesse uma carta assim - acrescentou.

- De quando está datada?

- Espera.

Observei Cynthia, que separava roupa interior dos artigos de toilette. “Aquele safado do Yardley.”

- Dez de Agosto - informou Cal, regressando à linha.

Fora há onze dias e calculei que a mulher de Kent tivesse abandonado Bethany Hill mal recebera a carta, a qual havia sido, obviamente, escrita como resultado da visita inesperada de Kent a Ann Campbell, para já nem falar na sua atitude de expulsar o namorado dessa noite, violando-a em seguida. Ann decidira, pois, tomar medidas em relação ao coronel, sem se aperceber de que caminhava em terreno minado e de que a sua carta serviria de detonador.

- Preciso de uma cópia disso. Guarda-ma - disse a Cal.

- Combinado. Além disso, três cavalheiros do FBI chegaram meia hora depois de teres saído.

- Mostraram-se simpáticos?

- Muito. Não se pouparam a elogios quanto à reconstituição do cenário e felicitaram-me ao verem todas aquelas impressões digitais. Passaram tudo a pente fino e chatearam-me durante bem uma hora. Entretanto, Grace dormia numa cama de campanha. Um dos tipos pôs-se a mexer no computador, mas a disquete estava com ela. Disseram que voltariam com uma equipa forense - acrescentou.

- Certo. Entrega-lhes tudo amanhã ao meio-dia. Mais alguma coisa?

- Não. É tarde, chove, está mau tempo para ir até ao bosque e sinto-me demasiado cansado para dançar.

- Entendido. Tenta contactar esse teu especialista em Oakland. A solução do caso depende de quem caminhou sobre as pegadas de quem. Telefono-te amanhã.

Desliguei e pus Cynthia a par da nossa conversa, enquanto a ajudava a arrumar as minhas coisas.

Por diversas vezes tive ensejo de apreciar a presença de companhia feminina na minha casa, que é muito agradável quando não dura muito. Dividem-se em duas categorias: as organizadas e as desarrumadas, havendo provavelmente uma terceira, as mandonas, que querem governar tudo e todos, mas nunca me calhou nenhuma. Curiosamente, não tenho preferência por nenhuma das duas primeiras, desde que não tentem escolher-me a roupa. Todas as mulheres são basicamente mães e enfermeiras e os homens doentes mentais em potência. Tudo corre bem, se cada um desempenhar o papel designado pelo destino, mas nunca é assim, é o paraíso durante seis ou sete meses e depois cada um descobre o que não suporta no outro. Rebobina-se, então, o filme da mudança e arrumação das coisas até a porta bater.

Enquanto dobrava o último par de peúgas, Cynthia perguntou-me:

- Quem te lava e passa a roupa a ferro?

- Tenho uma espécie de empregada doméstica. Uma camponesa que fica de olho nas minhas coisas sempre que me ausento.

- És do género enrascado?

- Sim, no que se refere à roupa, louça e costura, mas consigo, por outro lado, desmontar e voltar a montar uma metralhadora em três minutos, de olhos vendados.

- Também eu.

- Óptimo. Tenho uma em casa que está a precisar de limpeza.

O telefone tocou e fiz sinal a Cynthia para que atendesse. Era Kiefer. Dirigi-me à casa de banho e sequei o cabelo com uma toalha. Cynthia arrumara todos os meus objectos de toilette. Penteei-me, lavei os dentes e despi as cuecas por baixo do roupão. A nudez sob um roupão faz parte das grandes volúpias do mundo.

Deitei as cuecas no saco de roupa suja e voltei ao quarto. Cynthia estava sentada na beira da cama, com o auscultador junto ao ouvido, as pernas cruzadas e massajando o pé com a mão que tinha livre. Notei, de passagem, que tem umas belas pernas.

Ergueu os olhos, sorriu-me e disse ao telefone:

- Okay, obrigada. Bom trabalho.

Depois desligou e levantou-se.

- Kiefer encontrou uma pista interessante. A senhora Kent conduz, segundo parece, um jipe preto Cherokee e é conhecida no circuito de rádio pela Bat Woman e o jipe pelo Batmobile. Kiefer ouviu uma mensagem que se referia ao Batmobile. Um polícia militar de patrulha anunciou pela rádio: “Atenção a todos. Batmobile com aluado seis parado no estacionamento da biblioteca. Cabeças levantadas.” Trata-se de um desses sinais combinados para indicar a presença de um oficial na proximidade. Ora, na eventualidade de nunca teres reparado, a biblioteca situa-se em frente do quartel-general.

- Certo. À que horas foi essa mensagem?

- À meia-noite e meia, e perto da uma hora. Ann Campbell saiu do quartel-general, meteu-se no jipe e dirigiu-se à carreira de tiro. O que fazia Kent no carro da mulher, do outro lado da rua? - perguntou Cynthia.

- O que fazem todos os enamorados. Observava a janela iluminada.

- Talvez não tivesse boas intenções.

- É possível. Talvez estivesse apenas a decidir se havia de entrar e dizer “olá” ou se aguardava que Saint-John saísse ou se esperava que o objecto do seu desejo fizesse o mesmo, o que aconteceu.

Cynthia cruzou as pernas por baixo do corpo, na posição de lótus. Nunca compreendi como podem as pessoas sentar-se assim. Instalei-me na única cadeira, que estava em frente da cama, e reparei que ela não tirara as cuecas. Ajustou recatadamente o quimono ao corpo.

- Se a minha mulher recebesse uma carta semelhante da minha namorada - retorqui -, ficaria danado e manter-me-ia à distância. Por Outro lado, se ela se tivesse ido embora por causa da carta e a minha namorada trabalhasse até tarde, não resistiria à tentação de a contactar.

- Até parece que já viveste uma sensação idêntica.

- Todos passámos por elas.

- Eu não, excepto em Bruxelas. Havia aquele tipo... e não perdia uma ocasião de me meter no seu caminho até ao dia em que o idiota finalmente compreendeu.

- O tipo tinha provavelmente compreendido muito antes do que pensas, mas tu cheiravas a problemas à distância.

- Sem comentários.

Meditou uns instantes - acho que a posição de lótus convida à reflexão

- e acrescentou:

- É óbvio que ele a seguiu.

- Sem dúvida. No entanto, pode tê-la confrontado primeiro no estacionamento do quartel-general. Não sabemos.

- Mas pode tê-la perseguido sem que ela se apercebesse?

- Ia no carro da mulher.

- Achas que Ann conhecia o carro da senhora Kent?

- As amiguinhas conhecem sempre os carros das mulheres dos amantes, mas nesta base há jipes Cherokee em número suficiente para transportarem um batalhão, portanto, deixa de se prestar atenção. Aliás, também os Fowler têm um, embora o deles seja vermelho.

- Mesmo assim, Paul, até onde podia ter ido Kent atrás dela pela carreira de tiro sem lhe chamar a atenção com os faróis?

- Não muito longe, mas o bastante.

Levantei-me, procurei num dos bolsos laterais do meu saco e descobri um marcador. Havia um grande pedaço de parede branca entre as janelas e pus-me a desenhar.

- Okay. A estrada afasta-se da base rumo ao sul e termina num beco sem saída na última carreira de tiro, a seis, a uns quinze quilómetros. Só há dois desvios - o primeiro, aqui, é a General Pershing Road, que segue para a esquerda; o segundo, um quilómetro e meio mais à frente, a estrada de Jordan Field, para a direita - indiquei, desenhando o croquis na parede. - Bom. Ele segue-a a uma distância normal, de faróis acesos, não a vê virar na General Pershing e continua. Ela também não volta em Jordan Field, mas ele vê-se obrigado a fazê-lo para evitar suspeitas. Entendido?

- Até aqui.

- Mete, pois, por Jordan Field e Ann respira de alívio ao olhar pelo retrovisor, mas Kent sabe que ela só poderá sair da estrada das carreiras de tiro se der meia volta, certo?

Cynthia observou o meu desenho na parede e concordou com um aceno de cabeça.

- Parece lógico - disse. - E o que faz ele, então? Segue-a de luzes apagadas? A pé? Espera?

- Vejamos... O que faria eu no lugar dele? Está uma noite de lua cheia, mesmo sem luzes o carro é visível a umas centenas de metros e há também o fruído do motor, as luzes do interior e até mesmo as dos travões, que podem ver-se de determinados ângulos. Para maior segurança, mais vale ir a pé ou a correr. Coloca o Cherokee com a tracção às quatro rodas e estaciona-o entre os pinheiros no cruzamento da Jordan Field com a estrada das carreiras de tiro. Sai e vai a pé por esta última.

- Mera suposição.

- Em parte é uma questão de intuição e dedução e, por outro lado, a solução lógica para um problema deste género. Todos frequentámos as mesmas escolas e participámos em exercícios nocturnos. Há que ter em conta a missão, as condições meteorológicas, as distâncias, o tempo, a segurança, e saber, por exemplo, quando manter o transporte motorizado e quando meter pés ao caminho.

- De acordo. Ele abandona, portanto, o carro e segue em passo de marcha ou de corrida.

- Nesta altura deve ser cerca de uma e meia, e Moore já está no local, à espera de Ann. Até aqui, pelo menos, temos certezas. O general Campbell ainda não recebeu o telefonema. Kent apressa-se ao longo da estrada, de olhos fixos nos faróis do jipe. Contudo, ela desliga subitamente as luzes, pois chegou à carreira de tiro e encontrou o coronel Moore. Coloco um xis a assinalar a carreira de tiro número seis.

Cynthia continuava sentada na cama, sem se mostrar impressionada com a minha cartografia.

- O que se passa na cabeça de Bill Kent neste momento? Quais são as suas intenções?

- Bom... Sente curiosidade em saber o que é que faz ela ali sozinha, embora admita que pode estar apenas a efectuar a ronda até ao último posto da guarda. Se assim for, esperará que volte e confrontá-la-á na estrada. Experimentou o sabor da violação há uns dias e talvez pense em repeti-la.

- Ela está armada.

- Também Kent. Contudo, mesmo nesta época de relações modernas, não convém ameaçar a eleita do coração com uma arma, sobretudo se ela está igualmente armada. Talvez ele apenas queira falar.

- Talvez, mas não me agradaria nada encontrar um ex-amante numa estrada deserta, à noite. Passava-lhe com o carro por cima.

- Não me esquecerei. Só que ele desconhece a linha de raciocínio das mulheres, ignora o efeito que pode provocar ser-se seguida e depois detida no caminho. Apenas sabe que são amantes, o que conta muito aos seus olhos. A mulher está fora da cidade e ele é fogoso e obstinado. Quer falar, quer fazer amor com ela a qualquer preço. É o que se chama um tipo sexualmente obcecado.

- Avança, pois, pela estrada sombria e deserta, à procura do jipe dela.

- Sim, e também o atormenta a ideia de que ela foi ali para um encontro sexual. Não seria de admirar por parte de Ann Campbell e o coração de Bill Kent ameaça saltar-lhe do peito ante a perspectiva de a surpreender com um amante. Está louco de ciúme. Consegues imaginar?

- Se o dizes.

- Bom. Agora são quase duas e um quarto. Moore fez o telefonema gravado ao general Campbell, amarrou Ann e aguarda a chegada daquele junto às latrinas. Bill Kent está por sua própria conta e risco, segue à letra o manual e sabe que, numa estrada plana, conseguirá avistar os faróis de um veículo pelo menos a um quilómetro. Um carro a uma velocidade de sessenta quilómetros à hora alcançá-lo-ia em menos de um minuto, excepto se lhe visse primeiro as luzes. Portanto, olha por cima do ombro de trinta em trinta segundos. Às duas e um quarto avista faróis atrás dele e deita-se na vala da estrada, até o carro passar.

- Pensa que é o amante dela.

- Provavelmente. Impelido por uma espécie de perversidade, gostaria de apanhá-la em flagrante delito, pois deu-lhe gozo expulsar o major Bowes de casa de Ann e violá-la em seguida. Na sua cegueira emocional está convencido de que ela se deixará subjugar pela sua virilidade agressiva, a sua armadura reluzente de cavaleiro que dizima os dragões para a salvar. Certo?

- Não é uma espécie rara - concordou Cynthia. - Metade dos violadores que interrogo afirmam que a vítima gostou, mas nunca houve uma mulher que o confirmasse.

- Correcto. Contudo, e em abono de Bill Kent, lembra-te de que Ann Campbell nunca tentou desenganá-lo.

- De acordo. No entanto, a carta que esta mandou à mulher dele devia tê-lo levado a compreender que ela já não o queria. Mas sim, convenhamos que é tão louco como Ann era. Ele avista, portanto, o carro a ultrapassá-lo.

- Por volta das duas e um quarto, de faróis acesos, que são os detectados por Mary Robbins. Moore percorrera os dois últimos quilómetros sem luzes e Ann também, mas não o general. O veículo deste passa e Kent soergue-se e apoia-se num dos joelhos. Pode ou não ter reconhecido o carro da senhora Campbell.

- Temos, por conseguinte, dois oficiais superiores, Kent e Campbell, escapulidos, a meio da noite, nos carros das respectivas mulheres - comentou Cynthia.

- Se todos na base conhecessem o teu carro de serviço e te baptizassem com um belo nome de código nas ondas de rádio, também certamente escolherias um transporte alternativo.

- Ou ficasse em casa. Por conseguinte, agora Kent acelera o passo. Moore segue pelo caminho interior, mete-se no carro estacionado na carreira de tiro cinco e segue rumo à base, mas sem se cruzar com Kent.

- Não. Ou Kent já ultrapassara a carreira de tiro cinco ou avistou os faróis do carro de Moore e voltou a mergulhar na vala. Nesta altura, ele já imagina que a amante despacha uma série de amantes, à velocidade de um de quarto em quarto de hora, ou então sente-se confuso e inclino-me mais para esta hipótese.

- Confuso ou não, pensa o pior - redarguiu Cynthia. - Não acha nem por um minuto que pode estar a cumprir a sua missão, que talvez corra perigo ou que os dois veículos não se relacionam com ela. Está convencido de que Ann organizou um bacanal. É a tua opinião?

- Sem dúvida. Sou um homem como os outros, penso mais com os tomates do que com a cabeça.

- De acordo, entendido - riu Cynthia. - Continua. Afundei-me na cadeira e deixei-me arrastar pelo pensamento.

- Bom... é exactamente aqui que se torna difícil saber o que aconteceu. Kent vira na curva entre as carreiras de tiro cinco e seis e o luar mostra-lhe dois veículos estacionados na estrada: o jipe e o Buick que viu passar há um instante. Sabemos que nesta altura o confronto entre pai e filha está em curso ou chegou ao fim.

- De qualquer maneira, Kent não avançou - opinou Cynthia.

- Sim. Temos a certeza de que não irrompeu pelo meio da cena, nem descobriu que o Buick era do general. Observou à distância, digamos a duzentos, trezentos metros, e talvez tenha ouvido pedaços da conversa, pois o vento soprava do sul. Contudo, decidiu não fazer figura de idiota, enfrentando outro homem, possivelmente armado.

- Ou então o encontro entre pai e filha terminara e o general já estava de volta ao carro.

- É bem possível. O carro de Campbell toma, pois, a direcção de Kent, de faróis apagados, e este mergulha outra vez na vala. É a única versão plausível, pois nem Moore nem o general avistaram outros carros.

- E depois de o carro do general passar por ele, Bill Kent levanta-se e aproxima-se do jipe de Ann Campbell.

- Isso. Caminha muito depressa, talvez de arma em punho, disposto a tudo: violação, romance, reconciliação ou crime.

Ficámos sentados uns momentos, ela na cama e eu na cadeira, ouvindo a chuva a cair lá fora. Interrogava-me e, estou certo de que também Cynthia, se não teríamos armado o laço a um inocente. Contudo, mesmo que faltassem alguns pormenores ao nosso raciocínio, o próprio indivíduo dissera-nos, ou tinha-nos dado a entender, que era ele o assassino. O tom de voz, a postura, os olhos não enganavam, e também havia deixado antever que ela o merecia e que jamais conseguiríamos provar a sua culpabilidade. Errara duplamente.

Cynthia abandonou a posição de lótus, pôs-se a balançar as pernas na beira da cama e retomou a palavra:

- Kent encontra Ann Campbell amarrada na carreira de tiro, sem dúvida ainda a chorar, e não consegue perceber se foi violada ou se apenas espera o próximo encontro.

- Bom... quem pode afirmá-lo com segurança? Mas avança indubitavelmente até junto dela, como indicou Cal Seiver, ajoelha-se e ela não fica nada feliz com a sua presença.

- Está apavorada.

- Bom... Ann não é desse género, mas encontra-se, em desvantagem. Ele diz algo e ela também, pois julgando que o pai a abandonou, pode ter-se disposto a uma longa espera dado que sabe que o camião com os soldados para o novo turno de sentinelas não passará antes das sete horas. Reflecte e acha que será uma vingança à altura da segunda traição do pai, a filha do general encontrada nua por vinte guardas.

- Sabe, contudo, que, se o pai se der conta deste risco - aquiesceu Cynthia -, decerto voltará para evitar esta triste eventualidade. Em qualquer dos casos, não deseja a presença de Kent.

- Sem dúvida, pois ele está a interferir com o seu cenário. Kent avista a baioneta enterrada no solo, partindo do princípio de que o general não a arrancou, e oferece-se para a libertar, ou melhor, dá-se conta de que, na situação actual, Ann não pode escapar-se à conversa que quer ter com ela. Pergunta-lhe o que se passa ou pede-lhe que case com ele, quem sabe? Instaura-se a discussão e Ann que, tantas vezes se viu amarrada aos postes da cama na cave, está mais irritada e impaciente do que assustada ou pouco à vontade. Ignoramos o que disseram, o que aconteceu.

- É verdade, mas conhecemos o final da discussão.

- Exacto. Ele pode ter apertado a corda para a obrigar a escutá-lo, pode mesmo tê-la excitado sexualmente enquanto a asfixiava, um truque que ela lhe ensinara... só que, em determinado momento, continuou a apertar e não parou.

Continuámos sentados mais um minuto, tentando reconstituir a cena, até que Cynthia se levantou e disse:

- Deve ter sido mais ou menos o que aconteceu. Depois, regressou à estrada, tomou consciência do que fizera e correu como um louco até ao jipe. Pode mesmo tê-lo alcançado antes de os Fowler saírem. Afastou-se a toda a velocidade e chegou a Bethany Hill no momento em que os Fowler deixavam a casa, talvez se tenham chegado a cruzar. Estacionou o jipe da mulher na garagem, entrou em casa, lavou-se, mudou de roupa e esperou o telefonema dos seus homens. Interrogo-me sobre se conseguiu dormir - acrescentou.

- Isso não sei, mas, quando o vi, horas mais tarde, parecia calmo, embora, agora que penso no assunto, se mostrasse um pouco ausente. Desligou-se do crime, como o fazem todos os criminosos nas horas seguintes ao seu acto, mas a realidade voltou a atormentá-lo.

- Podemos provar a nossa teoria?

- Não.

- Então, o que fazemos?

- Confrontamo-lo, chegou a altura.

- Ele vai negar tudo e teremos de procurar trabalho como civis.

- Provavelmente. E sabes que mais? Talvez estejamos enganados.

Cynthia pôs-se a passear de um lado para o outro, travando uma dura luta consigo própria. De súbito, parou e disse:

- E que tal se descobríssemos o local onde estacionou o carro?

- Os primeiros raios de sol despontam às cinco e meia. Queres que te chame ou te faça cócegas para acordares?

Ela ignorou o comentário e prosseguiu:

- As marcas dos pneus já terão sido apagadas pela chuva, mas, se quebrou ramos, veremos onde escondeu o jipe.

- Certo. Ficaremos com algumas dúvidas dissipadas, mas ainda restarão muitas e precisamos de algo mais do que uma forte suposição.

- Talvez encontremos arbustos ou caruma debaixo do veículo e seja possível comparar com a vegetação destruída - insistiu ela.

- Seria uma possibilidade se o tipo fosse estúpido, o que não é o caso. O jipe está tão limpo como se esperasse uma inspecção geral.

- Raios!

- Só nos resta confrontá-lo e temos de fazê-lo no momento psicológico oportuno... amanhã, depois do funeral. É a nossa última e única hipótese de obtermos uma confissão.

- Se tiver de falar é nesse momento que o fará - concordou Cynthia com um aceno de cabeça. - Se quiser acalmar a consciência, é a nós que se confiará e não ao FBI.

- Sem dúvida.

- E agora vamos dormir.

Pegou no auscultador e pediu ao recepcionista que nos acordasse às quatro horas, o que me deixaria três horas de sono, caso adormecesse nos próximos dez segundos. Ocorreu-me, porém, uma outra ideia.

- Vamos tomar um duche e poupar tempo.

- Bom...

Má resposta. Como dizia o meu pai: “As mulheres controlam setenta por cento da riqueza deste país e cem por cento do gozo.” Cynthia e eu estávamos um pouco tímidos, o que, segundo julgo, se passa sempre que os ex-amantes fazem mais uma tentativa, e toda aquela conversa de violação não era propícia ao romantismo. Quer dizer, sem música, sem velas nem champanhe... Aqui só havia o fantasma de Ann Campbell, a ideia de um criminoso adormecido na sua cama de Bethany Hill e duas pessoas exaustas, longe de casa.

- Talvez não seja o momento mais indicado - suspirei.

- Não, não é, esperemos circunstâncias mais propícias. Este fim-de-semana, na tua casa. Ficaremos contentes por termos esperado.

“Claro, não podia ficar mais feliz por esperar!”. Contudo, não me apetecia discutir, nem estava na minha melhor forma para seduzir, portanto, bocejei e puxei para trás a roupa da cama.

- Bon soir, como dizíamos em Bruxelas.

- Boa noite...

Dirigiu-se à porta da casa de banho e, como da última vez, virou-se para trás.

- Pelo menos, há algo de agradável em perspectiva - comentou.

- Claro.

Apaguei a luz, despi o roupão e enfiei-me, nu, na cama. Ouvi a água do duche a correr na casa de banho, o tamborilar da chuva lá fora e um casal rindo no corredor.

Não ouvi o telefone tocar às quatro horas.

 

 

                           CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

 

Cynthia estava vestida, o sol entrava pela janela e cheirava-me a café. Ela sentou-se na beira da cama. Soergui-me e estendeu-me um copo de plástico.

- Têm máquinas de café lá em baixo.

- Que horas são? - perguntei.

- Passa um pouco das sete.

- Sete?

Ia a saltar da cama quando me lembrei de que estava nu.

- Porque não me acordaste?

- Quantas pessoas são necessárias para examinar um arbusto quebrado?

- Foste até lá? Descobriste algo?

- Sim, um veículo penetrou sem dúvida nos bosques junto a Jordan Field, a cinquenta metros das carreiras de tiro, e deixou trilhos. As marcas dos pneus desapareceram, mas há ramos quebrados e o tronco de um dos pinheiros mostra uma arranhadela recente.

Bebi o café, tentando aclarar ideias. Cynthia, vestida com calças de ganga azuis e um pólo branco, proporcionava uma imagem agradável.

- Uma arranhadela recente?

- Sim. Dirigi-me, portanto, a Jordan Field e acordei o pobre Cal. Trouxe-o com um dos ajudantes até ao local e eles retiraram a parte da árvore atingida.

- E?

- Regressámos ao hangar e, com o auxílio de uma lupa, detectámos manchas de pintura. Cal mandou a amostra de madeira para Fort Gillem. Disse-lhe que suspeitávamos de que se tratava de um jipe Cherokee preto e ele garante que podem confirmá-lo junto do fabricante ou através das amostras de tinta de carroceria que possuem em armazém.

- Perfeito. E verificaremos a existência de uma arranhadela no jipe da senhora Kent.

- Assim espero. Teremos, então, a prova que nos falta para apoiar a tua reconstituição dos movimentos de Kent.

- Exacto. - Bocejei e pigarreei, acrescentando depois: - Infelizmente, se a pintura pertencer a um jipe Cherokee preto, tal só provará que a árvore foi riscada por um veículo desses. Mesmo assim, solidifica a minha ideia.

- E a minha.

Acabei de beber o café e pousei o copo na mesa-de-cabeceira.

- Queria acordar. Tentaste despertar-me?

- Não, estavas profundamente adormecido.

- Bem... tanto pior. Bom trabalho.

- Obrigada. Aproveitei para levar os teus sapatos a Cal Seiver. Ele comparou as tuas pegadas com os moldes desconhecidos e conseguiu localizá-las no seu mapa.

- Obrigado. Sou suspeito?

- Ainda não, mas Cal precisava identificar as tuas pegadas.

- Engraxaste as minhas botas?

Ela fez ouvidos moucos e prosseguiu:

- Cal recebeu um programa informático de Fort Gillem e está a instalá-lo no computador do hangar para que defina todas as pegadas identificadas e as que não o foram. Expus-lhe a nossa versão dos factos de uma ponta à outra...

- Levantou-se e dirigiu-se à janela. - A chuva parou, o sol brilha. Bom para as colheitas, bom para o funeral.

Reparei numa folha de papel que estava em cima da cama e peguei-lhe. Era a cópia da carta que Ann Campbell escrevera à mulher de Kent. Começava assim: “Cara senhora Kent. Escrevo-lhe para a informar da atitude do seu marido para comigo.” e terminava deste modo: “Embora respeite o seu marido profissionalmente, não tenho por ele qualquer interesse pessoal. Sugiro que ele procure um conselheiro conjugal, só ou consigo, que peça uma transferência ou, pelo menos, uma licença. Só me preocupa a sua carreira, a sua reputação, a minha, e quero evitar a todo o custo qualquer situação um pouco ambígua na base que o meu pai comanda. Cordialmente, Ann Campbell.”

- “Qualquer situação um pouco ambígua na base que o meu pai comanda”, repeti em voz alta.

Quase soltei uma gargalhada e Cynthia virou-se e acrescentou:

- Coragem não lhe faltava. Há que reconhecer. Atirei a carta para cima da mesa-de-cabeceira.

- Aposto que Kent viu o original e perdeu a cabeça. Diz-me, Cal já teve notícias do especialista de Oakland?

- Ainda não.

- Okay. Agora, vou fazer como o Sol e levantar-me. Só que estou nu. Cynthia atirou-me o roupão e virou-se, encostando o nariz à janela. Saí da cama, vesti o roupão e dirigi-me à casa de banho. Lavei o rosto e ensaboei-o. O telefone tocou no meu quarto e Cynthia atendeu. O barulho da água a correr impedia-me de ouvir, mas um minuto depois ela meteu a cabeça pela porta, enquanto me barbeava, e anunciou:

- Era Karl.

- O que queria?

- Saber se se tinha enganado no quarto.

- Oh!

- Ele está em Atlanta. Chegará aqui às dez horas.

- Telefona a avisá-lo de que estão previstos tornados.

- Já vem a caminho.

- Perfeito!

Acabei de me barbear, comecei a escovar os dentes e Cynthia regressou ao meu quarto. No momento em que abri o duche, ouvi o telefone a tocar no quarto dela, mas julguei que não o ouviria porque estava no meu telefone. Decidi, pois, atender, julgando tratar-se de algo oficial e importante.

- Está?

- Quem fala? -perguntou uma voz de homem.

- E daí? - retorqui.

- Fala o major Sholte. O que está a fazer no quarto da minha mulher?

Boa pergunta. Podia ter respondido que a recepção se enganara no quarto, podia ter dito muitas coisas, mas saiu-me:

- Basicamente, o que fazia em Bruxelas.

- O quê? Quem, com um raio... Brenner? Estou a falar com o Brenner?

- Às suas ordens, major.

- Filho da mãe, é um homem morto, Brenner. Sabia? Um homem morto.

- Teve a sua oportunidade em Bruxelas. A sorte não bate à porta duas vezes.

- Safado!

- Miss Sunhill não está aqui. Quer deixar recado?

- Onde está ela?

- No duche.

- Filho da mãe!

Por que razão este tipo se mostrava tão irritado, se encontravam prestes a divorciar-se e ele tinha uma amante? Bom, os homens são estranhos e julgam-se sempre donos das mulheres, mesmo quando estão a separar-se, não é assim? Não, havia algo que não soava bem e tive a nítida impressão de que acabara de cometer uma gafe monumental.

- Vou esquartejar-lhe o rabo, Brenner - informou-me o major.

- Não está a divorciar-se de Cynthia? - inquiri.

- Que história é essa de divórcio? Passe-me essa cabra.

- Separação judicial?

- Passe-ma já!

- Não desligue.

Pousei o telefone em cima da cama, pensativo. Por vezes a vida prega-nos partidas, depois o céu desanuvia-se, renasce o optimismo, o coração fica mais leve e a seguir alguém nos tira o tapete de debaixo dos pés e tudo volta ao mesmo. Voltei a pegar no auscultador e retomei a palavra:

- Vou dizer-lhe que lhe telefone.

- É melhor para si que lho diga, seu filho da puta...

Desliguei e voltei à casa de banho comum. Despi o roupão e meti-me debaixo do duche.

Cynthia apareceu à porta e berrou acima do ruído da água:

- Telefonei para a Escola de Operações Psicológicas e confirmei que Moore passou lá a noite. Deixei-lhe um recado para que viesse ter connosco ao gabinete do comandante da polícia dentro de uma hora. Fiz bem?

- Muito bem.

- Tirei o teu uniforme do roupeiro. Temos de nos apresentar fardados no funeral.

- Obrigado.

- Vou vestir-me.

- De acordo.

Através do vidro, vi-a atravessar a casa de banho e entrar no seu quarto. Quando a porta se fechou, saí do duche.

Às oito horas seguíamos no meu Chevy Blazer para o edifício da Polícia Militar, fardados a rigor.

- Estás preocupado com alguma coisa? - perguntou Cynthia.

- Não.

Bebi mais uma chávena de café no nosso gabinete e passei em revista as mensagens e memorandos. Moore apareceu à hora indicada, com um ar um pouco desarranjado, mas também fardado a rigor - conseguira até arranjar um par de sapatos decentes. Cynthia convidou-o a sentar-se e eu fui direito ao assunto:

- Temos bons motivos para suspeitar de que o coronel Kent assassinou Ann Campbell, coronel. - Pareceu estupefacto e conservou-se silencioso. Parece-lhe plausível? - insisti.

Reflectiu demoradamente e respondeu:

- Ele estava a tornar-se incómodo, mas...

- O que lhe disse Ann a esse respeito?

- Bom... que ele lhe telefonava a toda a hora, lhe escrevia cartas, aparecia de imprevisto em casa dela e no gabinete...

- Na noite em que foi assassinada, quando lhe telefonou para o quartel-general, ela disse-lhe que Kent tinha ido vê-la ou lhe telefonara?

Voltou a pensar uns momentos, antes de responder:

- Na verdade, contou-me que nessa noite não levaria o BMW, como estava previsto, mas um todo-o-terreno. Explicou-me que Bill Kent voltara a importuná-la e que passaria mais despercebida num jipe, que queria que ele visse o carro dela estacionado no quartel-general durante toda a noite, o que apresentava um problema, pois ela tinha um telefone fixo no carro e eu um telemóvel. De facto, fazíamos tenção de nos mantermos em contacto enquanto ela estivesse na carreira de tiro, mas não era assim tão importante. Ela foi no jipe e juntámo-nos à hora marcada.

Foi a vez de Cynthia lhe perguntar:

- Falou-lhe de Kent quando se encontraram?

- Não...

- Disse-lhe que fora seguida?

- Não... bom, disse-me que vira um carro atrás dela, mas que virara em Jordan Field e achava que estava tudo bem. Foi então que fiz o telefonema ao general do meu telemóvel.

- Depois, dirigiu-se à carreira de tiro? - prosseguiu Cynthia.

- Sim.

- Terminados os seus preparativos, esperou atrás das latrinas para se assegurar de que tudo corria como previsto.

- Sim.

- Ocorreu-lhe que o coronel Kent pudesse aparecer? Ele hesitou.

- Suponho que de passagem. Ele perseguia-a a toda a hora.

- E nunca achou que ele pudesse tê-la seguido e morto?

- Bom... agora que me fala nisso...

- É um arguto detective, coronel - ironizei. Pareceu desconcertado e redarguiu:

- Julguei que fosse o general... Na verdade, não sabia o que pensar. Quando ouvi dizer que ela fora assassinada a minha primeira ideia foi a de que o pai a tinha morto... e depois ocorreu-me que o general simplesmente a abandonara, e que uma outra pessoa... qualquer maníaco... aparecera no local... mas nunca pensei em Kent...

- Porquê? - inquiri.

- Ele... é o comandante da polícia... é casado... amava-a... mas, sim, agora, que fala nisso tudo se encaixa. De um ponto de vista psicológico, tornou-se obsessivo e irracional, Ann já não conseguia controlá-lo.

- Ela criara um monstro - vinquei.

- Sim.

- E dera-se conta disso?

- Até certo ponto. Não estava, porém, habituada a lidar com homens que escapavam à sua alçada. Com excepção do pai e talvez de Wes Yardley. Analisando em retrospectiva, não prestou atenção suficiente a Bill Kent, menosprezou-o.

- Não reconheceu os sintomas da neurose... O coronel manteve-se em silêncio.

- Bom... Agora quero que volte ao seu gabinete e escreva isso tudo disse-lhe.

- Escrever o quê?

- Tudo, um relato completo do seu envolvimento neste caso e entregue-mo na capela, depois do ofício fúnebre. Dispõe de quase duas horas, despache-se, e nem uma palavra a quem quer que seja.

O coronel Moore levantou-se e saiu, parecendo uma sombra do homem que eu conhecera ainda há pouco tempo.

- Este caso parecia complicado, todos trabalhámos no duro e tínhamos a resposta mesmo debaixo do nariz - comentou Cynthia.

- Por isso era tão difícil vê-la.

Cynthia falou algum tempo de futilidades que se perderam nos meus silêncios, mas não desviou o olhar um único momento.

Para desanuviar o ambiente, levantei o auscultador e telefonei ao coronel Fowler para o quartel-general. Atendeu de imediato e disse-lhe:

- Gostaria que destruísse os sapatos que o senhor e a sua mulher calcaram durante a ida à carreira de tiro, coronel. E, em segundo lugar, que conjugasse a sua versão com a do general Campbell, isto é, que nunca foram à carreira de tiro. Em terceiro lugar, meta a senhora Fowler num carro ou num avião, mal o funeral termine.

- Fico-lhe muito reconhecido, mas é meu dever admitir o papel que desempenhei neste caso.

- O seu comandante pede-lhe que não o faça e o desejo de um general é uma ordem.

- Uma ordem ilegal.

- Preste um favor a todos, a si próprio, à sua mulher, à sua família, ao Exército, a mim, aos Campbell, esquecendo a sua intervenção. Pense nisso.

- Pensarei.

- Uma pergunta: levou o anel dela de West Point?

- Não.

- Havia uma baioneta enterrada no solo quando lá chegou?

- Não no solo. A pega estava metida na vagina dela.

- Entendo.

- Tirei-a e fi-la desaparecer.

- Onde?

- Deitei-a ao rio Chickasaw. Presumo que gostaria de ter recolhido as impressões digitais.

- Sim, de facto - respondi, embora sabendo que Kent jamais deixaria uma única.

- Peço desculpa. Foi uma reacção visceral.

- Muito frequente por estes lados.

- Mas que embrulhada, Brenner.

- Acontece ao melhor.

- A mim, não. Pelo menos, até ela chegar aqui, há dois anos. Mas sabem que mais? A culpa foi nossa e não dela.

- Concordo - retorqui. - Talvez ainda prenda o culpado esta tarde.

- Quem é?

- Não posso revelar. Até já, na capela.

- Entendido.

Desliguei. Quando se pensa que já se teve merda que chegue para um dia, há sempre alguém disposto a dar mais uma ajuda. Neste caso tratou-se de um major da Polícia Militar chamado Doyle. Entrou no gabinete, fitou Cynthia e dirigiu-me a palavra:

- O senhor assinou uma ordem de libertação para um tal sargento Dalbert Elkins. Correcto?

- Sim.

- Arranjámos-lhe alojamento na caserna da Polícia Militar.

- Óptimo. “E o que é que tenho eu a ver com isso”?, pensei.

- Segundo as regras de liberdade condicional sob que se encontra, tem de se apresentar na sala da guarda de três em três horas.

- Parece-me razoável.

- Não o fez. Faltou logo na primeira apresentação, às oito horas.

- O quê?

- E ninguém voltou a vê-lo.

Cynthia fitou-me e desviou de imediato o olhar.

- Emitimos um mandado de prisão formal e prevenimos a polícia de Midlland, a do distrito e a do estado da Georgia - informou-me Doyle. - O comandante da CID, o major Bowes, exige um relatório completo sobre este assunto - acrescentou, brindando-me com um sorriso antipático. - Deitou tudo a perder! - exclamou.

Deu meia volta sobre os calcanhares e foi-se embora.

Permaneci de olhos fixos no vazio e por fim Cynthia retomou a palavra:

- Aconteceu-me uma vez. - Não lhe respondi e ela continuou: - Mas só uma, o que não chega para se rotular todos os outros de cínicos.

Sem desejar perder a oportunidade, achei oportuno falar-lhe do telefonema do marido, mas foi também este o momento escolhido por Karl Hellmann para fazer a sua entrada.

Cynthia e eu levantámo-nos quando o enorme indivíduo entrou no exíguo gabinete. Baixou a cabeça com um ar solene, olhou em volta e depois apertou-nos a mão. Dado Cynthia ser a pessoa de patente menos elevada, ofereci-lhe a Cadeira dela, atrás de uma das secretárias, e ela foi sentar-se na das “visitas”, enquanto eu ocupava o lugar atrás da outra secretária.

Hellmann vestia o uniforme verde de gala igual ao nosso e pousou o boné em cima da secretária.

Tal como eu, Karl pertencera à infantaria e ambos tínhamos servido no Vietname mais ou menos na mesma altura. Os nossos uniformes ostentavam basicamente as mesmas condecorações e medalhas, incluindo a Estrela de bronze e a ambicionada insígnia dos Combatentes de Infantaria. Dado sermos produtos da mesma cepa e ambos de meia-idade, dispensamos habitualmente algumas das formalidades, mas nessa manhã ele não estava muito nessa onda, parecia muito mais inclinado a cortesias e protocolos.

- Café, coronel? - perguntei.

- Não, obrigado.

Karl é um homem bem-parecido com uma cabeleira leonina já um pouco grisalha, um maxilar firme e olhos azuis. Contudo, as mulheres não o acham sexy por causa, sem dúvida, do seu ar rígido e formal, mas à parte isso é um profissional.

Depois de uma breve troca de gracejos, Karl disse-me com o seu leve sotaque:

- Se bem entendo, a nossa testemunha-vedeta no caso do tráfico de armas transformou-se em fugitivo.

- Sim, coronel.

- Lembra-se do motivo que o levou a libertá-lo?

- Neste momento, não, sir.

- Interrogamo-nos sobre o que leva um homem a quem foi oferecida Imunidade a cometer mais um delito e fugir.

- É verdade.

- Explicou-lhe que beneficiava de imunidade?

- Sim, coronel, mas, ao que parece, não fui muito claro.

- Lidar com mentecaptos, é um problema, Paul. Atribui-se a um perfeito idiota uma inteligência e uma lógica iguais à nossa e ele deixa-nos ficar mal. Este homem está assustado, é ignorante e um escravo dos seus instintos. A porta da prisão entreabre-se e ele foge, é compreensível.

- Julguei que o havia tranquilizado e conquistado a sua confiança - pigarreei.

- Claro que julgou, era o que ele queria que pensasse quando estava do outro lado das grades. São espertos à maneira deles.

- Sim, coronel.

- Da próxima vez, talvez me consulte antes de soltar um preso culpado de alta traição.

- Ele era, na verdade, uma testemunha. Karl inclinou-se na minha direcção e afirmou:

- Ele não tinha a puta de uma ideia quanto a essa diferença. Meteu-o dentro, soltou-o e ele deu aos pedais.

- Sim, coronel.

- O artigo noventa e seis do Código Geral da Justiça Militar refere-se à libertação inoportuna de um preso, intencional ou não. Está metido num sarilho.

- Sim, coronel.

- Agora, ponha-me a par das últimas novidades por aqui - pediu, recostando-se na cadeira.

Bom, para começar não consegui ir para a cama com Cynthia, ela mentiu-me a propósito do marido, sinto-me aniquilado e atormentado, não consigo deixar de pensar em Ann Campbell, o comandante da polícia, que tem o gabinete duas portas mais adiante, talvez seja o assassino, o idiota do Dalbert pôs-se a milhas e este não é decididamente o meu dia.

- Talvez você esteja disposta a dar-me uma palavra - disse Hellmann, virando-se para Cynthia.

- Sim, coronel.

Cynthia começou por informá-lo acerca dos resultados do laboratório, passando às descobertas de Grace Dixon, aos dois Yardley e ao desafortunado envolvimento do major Bowes,, do coronel Weems e dos outros oficiais superiores.

Depois, fez-lhe um resumo das nossas conversas com o general Campbell e a mulher, com o coronel Fowler e a mulher e com o coronel Moore. Pessoalmente quase não a escutava, mas reparei que não fez qualquer alusão ao envolvimento dos Fowlers, nem ao antro secreto de Ann Campbell, e tão-pouco pronunciou o nome de Bill Kent. Era exactamente como eu teria apresentado a questão e senti-me impressionado com o muito que ela aprendera nos últimos dois dias.

- Como vê, trata-se de uma história de vingança, de uma experiência perversa da guerra psicológica, tudo em ligação com o que aconteceu em West Point há dez anos - concluiu.

Karl acenou com a cabeça e, depois de reflectir um momento, Cynthia fez referência a Nietzsche, no contexto da filosofia pessoal de Ann Campbell. O coronel manifestou grande interesse e apercebi-me de que ela estava a gostar da audiência.

Hellmann, recostado na cadeira, ponderava, com as pontas dos dedos unidas, como um grande sábio prestes a revelar o sentido oculto da vida, e Cynthia aproveitou para acrescentar:

- Paul fez um trabalho fantástico e aprendi muito com ele.

O coronel conservou-se imóvel durante um minuto e ocorreu-me que o grande sábio não tinha a merda de uma pista, enquanto Cynthia tentava em vão fitar-me, já que eu desviava o olhar. Karl retomou finalmente a palavra:

- Nietzsche. Sim, na vingança e no amor, a mulher é mais cruel do que o homem.

- Está a citar Nietzsche, coronel, ou trata-se da sua opinião pessoal? Brindou-me com um olhar glacial e dirigiu-se a Cynthia:

- Perfeito, expôs motivos, corrupção em massa e pesados segredos por estes lados.

- Obrigada, sir.

Fitou-me, consultou o relógio e perguntou:

- Não acham que devíamos ir andando para a capela?

- Sim, coronel.

Levantou-se e seguimos-lhe o exemplo. Pegámos nos bonés e pusemo-nos a caminho.

Entrámos no meu Blazer e Karl ocupou o lugar de honra, no banco de trás. Enquanto rolávamos rumo à capela, decidiu-se a perguntar:

- Sabem quem é o culpado?

- Julgo que sim - respondi.

- Quer fazer o favor de me pôr ao corrente das suas suspeitas?

“O que pode isso interessar-lhe?”

- Temos algumas provas materiais, testemunhos e resultados de laboratório que apontam para o coronel Kent.

Olhei pelo retrovisor, que me proporcionou a primeira alegria do dia ao reflectir a expressão surpreendida de Karl.

- O comandante da Polícia Militar - precisei. Karl recompôs-se e indagou:

- Estão preparados para fazer uma acusação formal?

“Bem jogado, Karl.”

- Não - respondi. - Vou entregar o dossiê ao FBI.

- Porquê?

- Precisa de alguma pesquisa e desenvolvimento.

- Diga-me o que sabem.

Parei no parque de estacionamento, diante da capela, um grande edifício de tijolo de estilo georgiano, perfeitamente adaptado para casamentos, funerais, missa dominical e orações solitárias dos soldados antes de partirem para a frente de combate. Saímos do Blazer e ficámos sob o sol quente. O parque estava quase cheio e alguns começaram a arrumar os carros à berma da estrada ou sobre a relva.

Cynthia tirou da mala uma folha de papel, que estendeu a Karl.

- Estava no computador de Ann Campbell - indicou. - É uma carta para a mulher de Kent.

Karl leu-a, acenou com a cabeça e devolveu-a a Cynthia.

- Sim. Compreendo a raiva e a humilhação que Kent sentiu quando a mulher recebeu esta carta. Mas bastaria para o levar a matar?

Neste preciso momento o comandante da Polícia Militar passou junto a nós e saudou-nos com a mão.

- É este o coronel Kent - anunciou Cynthia. Karl ficou a vê-lo entrar na capela e observou:

- Não me parece perturbado.

- Começa a vacilar - disse Cynthia. - Acho que está prestes a convencer-se de que teve razão no que fez e a dizer-nos isso mesmo.

- Sim - concordou Karl. - É esse o grande segredo desta profissão: nunca confrontar o criminoso com a problemática do mal e do bem, mas dar-lhe a oportunidade de expor os seus motivos. Que outras provas têm? - dirigiu-se a Cynthia.

Ela forneceu-lhe um breve apanhado do conteúdo do diário, da pegada crítica, do jipe no pinheiral e das nossas conversas com o suspeito, terminando com estas palavras:

- O coronel tinha motivo, oportunidade de agir e talvez vontade de passar à execução, pelo menos naquele momento. Não é um criminoso, mas é um polícia e, por consequência, familiarizado com o homicídio. Beneficiava, além disso, de uma cobertura quase perfeita na medida em que, estando ligado ao inquérito, podia orientar e manipular as provas, deixando por exemplo que o cenário do crime se degradasse. Contudo, o seu álibi relativo à altura do crime é fraco, quase inexistente, o que se verifica frequentemente nos crimes deste tipo.

Hellman aprovava com a cabeça, enquanto Cynthia falava. Depois, o grande sábio emitiu a sua opinião:

- Se tiverem razão e puderem prová-lo, conseguirão resolver este caso antes que ele engula todos os intervenientes. Contudo, se erraram, serão vocês as vítimas e haverá muitas vidas destruídas com o desenrolar do inquérito.

- É por isso que trabalhámos dia e noite, coronel - disse Cynthia -, mas agora o caso está a fugir-nos por entre os dedos... Paul tem razão em não querer formular uma acusação oficial - acrescentou, fitando-me. - Ninguém tem a ganhar, nem nós, o senhor, a CID ou o Exército.

Karl estudou mentalmente o tabuleiro de xadrez e virou-se para mim.

- Acho-o invulgarmente calmo - comentou.

- Nada tenho a dizer, coronel - repliquei.

- Está preocupado com a fuga do seu preso?

- Era uma testemunha. Não, não estou.

- Desde esta manhã que mostra essa cara - interferiu Cynthia. - Antes da sua chegada.

Sorriu-me, mas a minha expressão fechada desvaneceu-lhe o sorriso. Apetecia-me estar longe de Fort Hadley, longe dos raios ardentes do sol, longe da Georgia, incomunicável.

- Não arranjaremos lugar - declarei, começando a andar na direcção da capela.

Karl e Cynthia seguiram-me.

- Devia dar-lhe uma última oportunidade de confessar - observou o primeiro.

- A Paul? - gracejou ela.

- Não, Miss Sunhill. Ao coronel Kent.

- Pensámos nisso.

- As pessoas confessam os crimes mais hediondos, se soubermos conduzi-las da forma certa. Os criminosos que mataram um ente querido transportam um pesado fardo, que precisam de partilhar com alguém, pois, contrariamente aos assassinos profissionais, não têm sócios nem confidentes. Estão isolados sem ninguém a quem possam contar o maior segredo das suas vidas.

- Tem toda a razão, sir - aprovou Cynthia.

- Acha que foi por simples maquiavelismo que o coronel Kent a encarregou e a Paul do inquérito sobre este crime? Não. Tratava-se do desejo inconsciente de ser desmascarado.

Assim falava Karl Hellmann, dizendo coisas que eu já sabia, preocupado em incitar-nos a obter a confissão do suspeito, que, embora profissionalmente arruinado, era um oficial superior investido de poderes e longe de ter esgotado os seus recursos. Imaginei-me a tentar demonstrar a culpabilidade do coronel William Kent diante de sete oficiais de olhares de aço e à espera de me devorarem ao almoço. Contudo, e apesar da minha prudência, estava decidido a tentar o golpe, e também a fazer esperar Karl até que ele me desse a ordem de confrontar Kent.

Olhei para a capela e dei-me conta de que as cerimónias que acompanhavam a chegada do caixão haviam terminado; a guarda de honra não se encontrava nos degraus e o antigo cadafalso, requisitado ao museu para a ocasião, estava vazio.

Segundo uma circular que lera no gabinete, os media limitavam-se a um punhado de jornalistas da imprensa escrita e os únicos fotógrafos presentes pertenciam ao Gabinete de Imprensa do Exército. A nota assinada pelo coronel Fowler aconselhava a que não se entrasse em discurso directo com os jornalistas.

Subimos os degraus e entrámos no nartece, onde uma dezena de homens e mulheres conversavam de pé, no tom sussurrado próprio da circunstância. Assinámos o livro de condolências e mergulhei na penumbra da capela, não mais fresca do que no exterior e onde uma multidão se comprimia nos bancos. Não era obrigatório assistir às exéquias da filha do comandante da base, mas só um anormal faltaria.

Na verdade, a capela, que só tinha espaço para quinhentas ou seiscentas pessoas, não podia acolher todos os oficiais de Fort Hadley, as respectivas mulheres e mais os dignitários civis de Midland, mas tinha a certeza de que alguns deles já estariam a dirigir-se a Jordan Field para a última homenagem.

O órgão tocava em surdina no coro por cima de nós. Parámos no meio da nave central, hesitando em aproximar-nos do caixão, que se encontrava aos pés do altar-mor. Por fim, iniciei a longa marcha, seguido de Karl e Cynthia. Estaquei junto ao caixão semiaberto e tapado com a bandeira e contemplei a morta.

Ann Campbell denotava uma expressão calma, como dissera Kent. A cabeça repousava numa almofada de cetim rosa e os cabelos formavam uma auréola à volta do rosto. Reparei que estava mais maquilhada em morta do que provavelmente em vida.

Tinham-na vestido com o uniforme branco que os oficiais usam em ocasiões de grande cerimónia e disse para mim próprio que era uma escolha apropriada, o casaco branco de galões dourados sobre uma camisa de folhos imaculada, dando-lhe um ar quase virginal. Ostentava as medalhas do lado esquerdo e mantinha as mãos cruzadas sobre o sabre de West Point, na ausência de uma cruz ou rosário de acordo com a respectiva religião. A bainha do sabre desaparecia sob a metade fechada do caixão.

Era, de facto, inesquecível todo o espectáculo oferecido pelo belo rosto orlado de cabelos louros, os galões dourados, o cobre e o aço do sabre, e o branco leitoso do uniforme sobre o cetim rosa que forrava o caixão.

Apreendi tudo isto nuns meros cinco segundos depois do que, como bom católico, fiz o sinal-da-cruz, dei a volta ao caixão e segui pela nave central no sentido contrário.

Avistei os Campbell nas duas primeiras filas, à direita: o general, a mulher, o filho, que reconheci do álbum folheado na casa de Ann, e mais alguns membros da família, jovens e velhos, todos de luto cerrado ou com a braçadeira negra que ainda se usa no Exército.

Evitei olhá-los e prossegui caminho num passo lento, para permitir que a minha escolta me apanhasse.

Descobrimos três lugares juntos no mesmo banco já ocupado pelo major Bowes, que identifiquei pela chapa, e por uma mulher que devia ser a senhora Bowes. O major esboçou um cumprimento de cabeça ao coronel Hellmann, que ignorou este adúltero. A mulher era muito atraente, o que provava, se necessário, como os homens são uns asnos chapados.

Embora tivesse acabado de observar os restos mortais de uma jovem, senti-me um pouco melhor, como é vulgar nas pessoas que comparam a sua posição com a de outras menos afortunadas, por exemplo com graves problemas profissionais, como Bowes, suspeitos de crime, como Kent, doentes, moribundos ou mortos.

O capelão, major Eames, subiu ao púlpito apenas com o uniforme verde e sem as vestes eclesiásticas. Fez-se um silêncio imediato e ele começou:

- Caros irmãos, estamos aqui reunidos na casa de Deus para nos despedirmos da nossa irmã Ann Campbell.

Alguns romperam em soluços.

Inclinei-me para Karl e murmurei-lhe ao ouvido:

- O capelão também a fodeu.

Desta vez, Karl deixou pender o maxilar. Ainda nada estava perdido.

 

 

                           CAPÍTULO TRINTA E CINCO

 

A cerimónia desenrolou-se com a maior simplicidade, numa sucessão de orações, música de órgão e alguns hinos. Os oficiais superiores são, obviamente, assíduos frequentadores da igreja, mas mostram-se parcimoniosos em matéria de ritual. É uma atitude mais segura, neutra e sem história, como a maioria das suas carreiras.

A vantagem reside em que, nos casamentos e funerais, podem escolher-se os aspectos mais gratificantes da liturgia apropriada e abreviar a celebração. Posso afirmar por experiência que uma missa fúnebre católica pode ser suficientemente longa e árdua para fatigar alguns dos militares mais velhos.

De qualquer maneira, no momento previsto para esse efeito, o coronel Fowler subiu ao púlpito, a fim de pronunciar a elegia.

Começou por saudar os presentes, a família, os amigos, os oficiais, os colegas e os dignitários de Midland. Em seguida declarou:

- Na nossa profissão, mais do que em qualquer outra, os homens e as mulheres encontram-se expostos, desde muito jovens, a uma morte prematura. Não nos habituamos à morte, nunca aprendemos a encará-la com indiferença, amamos, pelo contrário, a vida, pois sabemos que a carreira militar comporta riscos que aceitamos. Quando prestamos juramento, ficamos conscientes de que podemos ser chamados a arriscar a vida em defesa da pátria. Ann Campbell, que tinha a patente de capitão, estava consciente disso quando recebeu o seu diploma da Academia Militar, quando partiu para o Golfo e ainda, numa altura em que todos estavam seguros e confortáveis em casa, quando se ofereceu como voluntária para garantir a calma e a segurança em Fort Hadley. Foi um acto totalmente voluntário, sem que as suas funções a tal a obrigassem. Contudo, tratava-se do tipo de opção que Ann Campbell fazia sem que lho pedissem.

Escutei-o, dizendo para mim próprio que, se não estivesse tão bem informado, engoliria este discurso. Aqui estava uma jovem mulher enérgica, que assumiu voluntariamente um serviço nocturno, tomou a iniciativa de fazer a ronda pelos postos da guarda e fora assassinada no cumprimento do dever. Que tristeza! Não era nada assim que as coisas se haviam passado, mas a verdade era ainda mais triste.

O coronel Fowler prosseguiu:

- Ocorre-me à memória um versículo de Isaías, o onze do capítulo vinte e um: “Vigia, onde está a noite?” Ele repete: “Vigia, onde está a noite?” E o vigia responde: “Vem aí a manhã.” Não somos todos vigias? É esta a nossa vocação de soldados, vigiar eternamente, dia e noite, a fim de que todos os outros possam dormir em paz até ao dia em que Deus nos chame ao Seu Reino e deixe de ser necessário vigiar ou temer a noite.

Fowler era dono de uma voz profunda e impecável, e podia ter sido indubitavelmente um pregador ou um político, se não estivesse tão obcecado com o bem e o mal.

Não sou um ouvinte modelo, o meu espírito tem tendência a dispersar-se, o que aconteceu, transportando-me até ao caixão aberto de Ann Campbell, ao seu rosto, ao sabre, às mãos cruzadas sobre o punho da arma. E surgiu-me, repentinamente, o pormenor que me escapara: alguém lhe enfiara um anel de West Point no dedo. Mas seria realmente o dela? E, nesse caso, quem lho devolvera? Fowler? O general Campbell? O coronel Moore? O coronel Kent? Donde vinha? E, aliás, que importância tinha agora?

O coronel Fowler continuava a discursar e voltei a prestar atenção.

- Conheci Ann quando ela era uma menina, uma menina muito precoce e alegre...

Sorriu e ouviram-se risos abafados na assistência, depois do que compôs novamente a sua expressão séria e retomou:

- Uma bonita menina, não só fisicamente como no interior, uma criança muito bem dotada. E todos nós, que a conhecemos e amámos...

Apesar do seu sangue-frio, Fowler comoveu-se com estas palavras de duplo sentido, mas emitiu apenas um suspiro imperceptível, só detectado pelos que a haviam conhecido intimamente e amado em plenitude...

- ...todos lhe sentiremos a falta.

A assistência rompera em lágrimas e compreendia agora por que motivo os Campbell o tinham encarregado de pronunciar o elogio fúnebre, além de ser havia também de assinalar que ele pertencia à curta lista dos oficiais que não haviam dormido com ela. Contudo, eu estava a ser cínico: o discurso de Fowler era pungente, a defunta fora vítima de uma morte injusta e prematura e o meu moral estava abaixo de zero.

O coronel Fowler omitiu as circunstâncias específicas da morte de Ann, mas declarou:

- No calão militar moderno, o campo de batalha é descrito como um ambiente hostil, o que corresponde, indubitavelmente, à verdade. Contudo, se se chamar campo de batalha a todos os sítios onde um soldado serve e opera, podemos dizer que Ann morreu em batalha.

Passeou os olhos pela multidão e concluiu:

- É justo que a recordemos não como vítima, mas como um bom soldado que morreu no cumprimento do dever. É assim que te lembraremos, Ann - acrescentou, fixando o olhar no caixão.

Fowler desceu do púlpito, parou junto do caixão, fez a continência e regressou ao seu lugar.

O órgão fez-se ouvir e o serviço fúnebre prolongou-se uns minutos mais. O capelão-mor Eames recitou o salmo vinte e três, o favorito de toda a gente, e abençoou a multidão, despedindo-a com um “Vão em paz.” O organista tocou Rock of Ages e todos se puseram de pé.

“Uma bela cerimónia, como se diz de todos os serviços fúnebres”, pensei.

Os oito membros do cortejo de honra levantaram dos bancos e alinharam-se na frente do caixão, enquanto os seis portadores ocupavam as suas posições de cada lado do mesmo. Reparei que eram todos tenentes, escolhidos talvez por causa da sua juventude e vigor ou devido à ausência de relações com a vítima. O próprio Elby, que tivera intenções honrosas, fora impedido de transportar o caixão.

O cortejo de honra, certamente escolhido entre as amigas pessoais da defunta, era por isso constituído por pessoas de absoluta integridade e incluía a outra ajudante-de-campo do general. A ideia de um cortejo de honra inteiramente feminino poderia parecer oportuna, só que, sabendo-se o motivo de exclusão dos oficiais superiores masculinos, corria que o general conseguira finalmente afastar a filha de amigos demasiado íntimos.

As oito mulheres desfilaram para a saída e entretanto os seis transportadores do caixão fecharam-no, taparam-no com a bandeira americana e ergueram-no.

O capelão-mor seguia na frente, os Campbell iam atrás e todos os que, nos bancos, se encontravam de uniforme, fizeram a habitual continência.

O capelão conduziu o grupo até à entrada, onde o cortejo de honra fez também a continência. Nessa altura, a assistência dirigiu-se à saída.

Lá fora, sob o sol da canícula, os transportadores do caixão depositaram-no no velho estrado, que foi por sua vez içado para um jipe.

No relvado diante da capela, tinham-se reunido os veículos da escolta: carros de serviço e minibuses para levar a família, os músicos, a guarda de honra e o porta-estandarte. Todos os soldados têm direito a ser enterrados num cemitério nacional, com todas as honras, mas apenas se é digno de toda esta azáfama quando se morre em combate. Contudo, se há uma guerra, muitos dos mortos ficam onde caíram, ou, como no caso do Vietname, repatriam-nos de avião para os cemitérios das cidades natais. De qualquer maneira, quer se seja general ou soldado, nunca se é privado dos vinte e um tiros de canhão.

As pessoas movimentavam-se dos braços de umas para as outras, conversavam e dirigiam palavras de conforto aos Campbell.

Detectei alguns jornalistas que procuravam alguém para entrevistar, enquanto os fotógrafos do Exército actuavam discretamente, de longe. Os relatos da imprensa tinham-se mantido até então vagos e imprecisos, sem, no entanto, deixarem de aludir a factos que na minha opinião dispensavam publicidade.

Avistei, junto dos Campbell, o jovem que identificara através do álbum de fotografias como sendo o seu filho John, mas, de qualquer forma, tê-lo-ia reconhecido. Era alto, bem-parecido, tinha os olhos, o cabelo e o queixo dos Campbell e parecia um pouco perdido, mantendo-se à parte do clã. Dirigi-me até junto dele e apresentei-me:

- Agente Brenner. Estou encarregado do inquérito sobre a morte da sua irmã.

Apresentei-lhe condolências e ficámos um pouco a falar de tudo e de nada.

Parecia simpático, bem falante, com modos francos e. inteligentes, da fibra de que se fazem os oficiais. Contudo, escolhera um outro caminho quer por não pretender seguir as pisadas do pai, quer por achar que o seu espírito independente poderia constituir um entrave. Talvez estivesse certo em qualquer das hipóteses, só que, à semelhança de muitos filhos de influentes e poderosos, ainda não encontrara o seu lugar no mundo.

John era muito parecido com a irmã e o meu único objectivo, ao abordá-lo, não era apresentar-lhe condolências.

- Conhece o coronel Kent? - perguntei-lhe.

- O nome parece-me familiar - respondeu, franzindo as sobrancelhas.

- Acho que o devo ter visto em recepções.

- Era um grande amigo de Ann. Gostava de lho apresentar.

- Claro.

Kent estava próximo, a falar com alguns dos seus oficiais, incluindo o meu delicado, embora recente, amigo, o major Doyle. Interrompi a conversa e dirigi-me a Kent:

- Coronel Kent, permita que lhe apresente o irmão de Ann, John? Apertaram a mão e este último confirmou:

- Sim, já nos tínhamos encontrado algumas vezes. Obrigado por ter vindo.

Sem saber o que responder, Kent desviou o olhar na minha direcção.

- Além de ser um amigo de Ann - disse ainda ao irmão de Ann - o coronel Kent participou activamente no inquérito.

Obrigado - agradeceu John. - Sei que estão a fazer tudo ao vosso alcance.

Kent acenou com a cabeça e eu, desculpando-me, deixei-os a conversar.

Talvez possa criticar-se a ideia de apresentar o suposto assassino ao irmão da vítima durante o funeral, todavia, se no amor e na guerra tudo é permitido, deixem-me dizer que também não há escrúpulos numa investigação de homicídio.

Sentia obviamente que Kent estava à beira de ceder e tudo o que pudesse fazer para o incitar ao grande salto para o abismo era justo e honroso.

A multidão começava a dispersar e dirigia-se aos carros. Reparei nos Yardley, pai e filho, acompanhados de uma mulher que se lhes assemelhava o suficiente para poder ser família - era provavelmente mulher de Burt - e de uma parente por certo não muito distante, pois suspeitava de que a árvore genealógica da família Yardley não devia ter muitas ramificações.

Entre outras personalidades civis encontravam-se o presidente da câmara e a família, mas o grosso da multidão era formado pelos oficiais e as mulheres, embora algumas delas tivessem optado pela ausência. Não se via pessoal sem categoria de oficial, com excepção do sargento-ajudante da base, que neste género de cerimónia representava tradicionalmente todos os soldados e sargentos, homens e mulheres, não porque fossem à partida excluídos, mas porque o seu número oferecia um problema logístico. Basicamente não há convívio entre oficiais e subalternos, nem em vida nem na morte.

Descobri Karl a dar uma reprimenda a Bowes, o futuro ex-comandante da CID. O major, de calcanhares unidos, abanava vigorosamente a cabeça, como um boneco de corda. Karl não é o tipo de indivíduo capaz de despedir alguém em véspera de Natal, no aniversário ou no casamento da pessoa em causa, mas poderia encarar essa hipótese num funeral.

Cynthia conversava com os Fowler e os Campbell e apreciei-a na medida em que, pelo meu lado, tenho tendência para esquivar-me a este tipo de situação, que me incomoda.

E já que fazia um inventário dos amantes famosos, detectei também o coronel Weems, o procurador da Justiça Militar, sem a mulher, e o jovem tenente Elby, totalmente desorientado, que tentava mostrar um ar triste e digno, sem deixar de estar atento a todos os galões dourados à sua volta.

Um pouco mais longe, avistei o sargento Kiefer, vestida com o uniforme apropriado para a ocasião, e fui cumprimentá-la pela descoberta que fizera do Batmobile. Parecia alegre, malgrado as circunstâncias, e suspeitei de que era sempre assim. Dado necessitar de um pouco de ânimo ao meu ego, flertei descaradamente com ela, que achou os meus avanços divertidos e interessantes, pelo que fizemos planos para tomarmos uma bebida num dos próximos dias.

- Temos de ir - ouvi a voz de Cynthia, que me tocou no ombro.

Despedi-me de Kiefer e dirigi-me ao parque de estacionamento.

O coronel Karl Hellmann juntou-se-nos e apareceu também Moore, que andava obviamente à minha procura com um monte de papéis na mão. Apresentei-o a Karl, que ignorou a mão que o outro lhe estendia e o brindou com um olhar que não gostaria que me fosse dirigido.

Contudo, Moore não tinha educação bastante para se sentir atingido.

- Aqui tem o relatório que me pediu - declarou.

Peguei-lhe e, seguindo o exemplo do meu superior, abstive-me de lhe agradecer.

- Mantenha-se à minha disposição, não fale com o FBI nem com o coronel Kent - limitei-me a dizer.

Meti-me no meu Blazer e liguei o motor. Karl e Cynthia subiram quando o ar condicionado começou a funcionar e segui pela estrada de Jordan Field atrás de uma longa fila de carros. Preveni Karl:

- Prometi a imunidade a Moore, se ele aceitasse cooperar.

- Esta semana distribuiu mais imunidades do que um juiz - comentou Karl.

“Vá-se lixar, Karl.”

- Foi uma bela cerimónia - extasiou-se Cynthia.

- Tem a certeza quanto ao capelão? - inquiriu Karl.

- Absoluta, sir.

- Toda a gente por aqui sabe uns dos outros?

- Mais ou menos, ela não era discreta.

- Temos mesmo de falar no assunto nesta altura? - perguntou Cynthia.

- O nosso superior tem o direito de se informar nesta ou em qualquer outra altura - ripostei.

Ela desviou os olhos, sem responder. Examinei Karl pelo retrovisor e apercebi-me de que ficara um tanto surpreendido com a minha brusquidão. Retomei a palavra:

- O anel de West Point da vítima, que tinha desaparecido, estava novamente no seu dedo.

- A sério? Talvez fosse um substituto.

- É possível.

Cynthia fitou-me sem proferir palavra. Passámos junto a Beaumont House, passámos depois pela Escola de Operações Psicológicas e vimo-nos na estrada das carreiras de tiro.

Era meio-dia e o sol estava tão quente que nuvens de vapor se erguiam do asfalto.

- A CID está oficialmente afastada deste caso a partir de agora.

- A minha presença aqui dá-nos mais uma hora e posso conseguir outra. “Sorte a nossa”, pensei.

- Perfeito - exclamei sem qualquer entusiasmo.

Virei na estrada de Jordan Field seguindo a longa fila de veículos e franqueámos a guarita junto à qual dois infelizes polícias militares enfrentavam o ardor do sol, a fim de saudarem o interminável desfile.

Outros orientavam os carros na direcção dos vastos espaços acimentados em frente dos hangares. Continuei às voltas até avistar o carro de serviço de Kent, arrumado junto do hangar número três. Estacionei próximo e juntámo-nos à multidão reunida no sítio que lhes fora indicado. A Força Aérea pusera um avião ao dispor para que o corpo fosse transportado até ao Michigan e um enorme C-130 que já se encontrava na pista.

Como suspeitara, todos os que não haviam assistido ao serviço fúnebre na capela tinham vindo até Jordan Field. Via-se uma centena de soldados e graduados de uniforme, alguns curiosos de Midland e das redondezas, além de associações de antigos combatentes, vindos da cidade, e os restantes quatrocentos oficiais de Fort Hadley, com as esposas.

Quando toda a gente ocupou os devidos lugares, incluindo os familiares, os músicos e a guarda de honra, o tambor iniciou um toque de marcha lento e surdo e os seis transportadores do caixão surgiram entre os dois hangares e empurraram o carro, onde ele assentava, até debaixo da fuselagem do avião. Os militares fizeram a continência e os civis levaram a mão ao coração. O caixão permaneceu na mancha de sombra, sob a cauda do avião, o tambor silenciou-se e todos baixaram os braços.

Estava um calor abrasador e nem um sopro agitava as bandeiras. A breve cerimónia prosseguiu.

As mulheres que iam no grupo dos familiares pegaram nas pontas da bandeira que cobria o caixão, ergueram-na à altura da cintura e não a largaram, enquanto o capelão anunciava:

- Rezemos... - Terminada a oração, entoou: - Concedei o repouso eterno à vossa serva, Senhor, e recebei-a na Vossa luz eterna. Ámen.

Os sete elementos da guarda de honra ergueram as armas e dispararam três salvas, cujo eco ainda ressoava, quando o clarim, próximo do caixão, anunciou o final da cerimónia. Gosto do seu som e da tradição que reza que o último toque, “ouvido” por um soldado seja tocado junto ao seu túmulo para assinalar o começo do derradeiro e grande sono, e lembrar à assistência que, tal como o dia se segue à noite, a vida que se apaga despertará no dia da Ressurreição.

Os elementos do cortejo de honra dobraram a bandeira e estenderam-na ao capelão, que a entregou à senhora Campbell, a qual mantinha uma postura de grande dignidade. Trocaram umas palavras enquanto todos se mantinham imóveis.

Reconheci os membros da família, os Fowler e Bollinger, o ajudante-de-campo do general, e apercebi-me também subitamente de que o caixão desaparecera. Tinham-no metido no compartimento sob a fuselagem do avião, enquanto eu observava os movimentos da multidão.

E, de súbito, os quatro reactores começaram a trabalhar com um ruído ensurdecedor. O general saudou os que o rodeavam, agarrou no braço da mulher e John Campbell deu-lhe o outro braço, após o que se afastaram na direcção da escada do avião. Por momentos, julguei que iam subir para dizerem um último adeus à filha e irmã, mas depois compreendi que haviam escolhido aquele momento para abandonarem Fort Hadley e o Exército. Recolheram a escada, a porta fechou-se e o enorme avião pôs-se em marcha depois de um sinal do controlador de terra.

A partida precipitada dos Campbell a bordo do mesmo avião que transportava o corpo da filha para Michigan apanhou todos de surpresa. Contudo, após uma reflexão - e parecia que todos a haviam feito em simultâneo -, fora a melhor solução para eles, a base e o Exército.

Todos os olhares convergiram na direcção do C-130, que avançou pela pista, ganhou velocidade e se ergueu no ar, primeiro sobre a linha verde dos pinheiros e depois recortando-se no céu azul. Como se fosse este o sinal por que todos aguardavam, a multidão dispersou-se e o pelotão, a banda, os transportadores do caixão e alguns outros desfilaram em formação até aos autocarros que os esperavam.

O ruído de motores ecoou nas minhas costas, dei meia volta e dirigi-me ao estacionamento escoltado por Karl e Cynthia, que levou um lenço aos olhos.

- Não me sinto muito bem - confessou.

- Vai sentar-te um bocado no carro com o ar condicionado ligado - disse, estendendo-lhe as chaves. - Encontramo-nos no hangar três, quando estiveres melhor.

- Não, tudo bem - recusou, dando-me o braço. Enquanto caminhávamos os três, Karl declarou:

- Vou pedir-lhe que ataque, Paul. Não nos resta tempo nem alternativa.

- É verdade que não temos tempo, mas eu tenho alternativa.

- Preciso dar-lhe uma ordem?

- Não pode ordenar-me que faça algo errado de um ponto de vista táctico e arrisque obstruir a investigação do FBI.

- Na verdade, não. Acha que é um momento incorrecto para confrontar Kent?

- Não.

- Então?

- Eu encarrego-me disso - interferiu Cynthia. - No hangar, é isso? acrescentou, interrogando-me com o olhar.

Não respondi.

- Bravo - aprovou Karl. - Brenner e eu esperamo-la no carro.

- Muito bem. Eu faço-o - ripostei, achando que já dera bastantes largas ao meu mau humor. - De qualquer maneira, estou metido na merda até ao pescoço.

Cynthia fez um sinal com o queixo e avistei Kent, que se dirigia ao carro com dois dos seus ajudantes.

- Vem ter comigo dentro de dez minutos - indiquei a Cynthia. Surgi por detrás de Kent e bati-lhe no ombro.

Ele virou-se e os nossos olhares cruzaram-se.

- Posso falar-lhe a sós, coronel? - perguntei finalmente.

- Claro - respondeu, após ligeira hesitação.

Mandou embora os dois subordinados e ficámos sozinhos sobre o asfalto quente, no meio dos carros.

- Está muito calor, vamos até ao hangar - propus.

Caminhámos lado a lado, como se fôssemos colegas, agentes de uma mesma missão, e suponho que, no fim de contas, o éramos.

 

 

                             CAPÍTULO TRINTA E SEIS

 

Fazia um pouco mais de fresco no hangar, onde reinava um silêncio impressionante.

Passei com Kent junto ao BMW de Ann Campbell e continuámos até à área da reconstituição da casa dela. Indiquei-lhe um maple do gabinete e o coronel sentou-se.

Cal Seiver, com farda de gala, acabara sem dúvida de voltar da cerimónia. Puxei-o de lado e disse-lhe:

- Manda sair todos, com excepção de Grace. Quero que ela imprima as partes do diário que nos interessam - esclareci, inclinando a cabeça na direcção de Kent. - Depois pode ir-se embora, mas quero que deixe a disquete aqui.

- Entendido.

- Tiveste notícias de Oakland, do teu perito em pegadas?

- Sim, mas diz que não pode ter certeza de nada. Contudo, a ter de pronunciar-se, diria que a pegada do coronel é anterior à de Saint-John.

- Muito bem. E as manchas de tinta na árvore?

- Enviei o bocado de madeira para Gillem, de helicóptero, há umas horas. Na opinião deles, a pintura é preta e corresponde à usada pela Chrysler nos seus modelos de jipe. A propósito, onde está?

- Provavelmente na garagem do Kent, que vive em Bethany Hill. Porque é que não mandas alguém até lá para fotografar a arranhadela no jipe e retirar uma amostra de tinta para comparação?

- Posso fazê-lo?

- Porque não?

- Preciso de uma ordem escrita do superior imediato do coronel.

- O seu superior imediato demitiu-se e acaba de se meter num avião para Michigan. Contudo, deu-me luz verde. Não te armes em civil comigo, Cal. Estamos no Exército.

- Okay.

- Podes mostrar-nos no ecrã, a Kent e a mim, os diagramas das tuas pegadas?

- Claro.

- Perfeito. As pegadas do coronel são indubitavelmente anteriores.

- Compreendido. É, então, o golpe final? - acrescentou, com um olhar de relance para Kent, que me esperava.

- Talvez.

- Se achas que é ele, vai a fundo.

- Claro. E se for ele a pôr-me as algemas e a prender-me, vais visitar-me?

- Não, tenho de voltar para Gillem. Mas escrever-te-ei.

- Obrigado. Diz, então, aos polícias militares que estão lá fora para impedirem a entrada ao FBI durante a minha presença aqui.

- Combinado. Boa sorte - desejou, dando-me uma forte palmada no ombro e afastando-se.

Juntei-me a Kent e sentei-me noutro maple.

- Estamos apenas a unir umas pontas soltas antes da chegada do FBI comuniquei-lhe.

Ele aquiesceu e comentou:

- Pareceu-me perceber que a sua testemunha no caso de tráfico de armas bateu a asa.

- Às vezes ganha-se, outras perde-se.

- E neste caso?

- É o fio da navalha. Está a terminar o prazo, o FBI impacienta-se, há um único suspeito.

- Quem é ele?

Levantei-me e despi o casaco, exibindo o meu coldre com a Glock de nove milímetros. Kent imitou-me e expôs à luz do dia o seu coldre com uma arma de trinta e oito milímetros, uma atitude do tipo: mostras-me a tua arma e eu mostro-te a minha. Resolvida esta questão, voltámos a sentar-nos, alargámos os nós das gravatas e ele repetiu:

- Quem é o suspeito?

- É disso precisamente que queria falar-lhe. Só estamos à espera de Cynthia.

- De acordo.

Passeei os olhos pelo hangar. Os últimos membros da equipa forense estavam de partida e avistei Grace a imprimir, diante do computador.

A porta de serviço permanecia fechada. Cynthia dava tempo ao tempo. Apesar do meu ressentimento actual ela merecia assistir ao último assalto, qualquer que fosse o resultado. Sabia que Karl se manteria à distância, não por qualquer preocupação especial de se proteger no caso de as coisas correrem mal, mas por uma questão de respeito por mim e pelo meu trabalho - ele nunca retirava qualquer crédito aos investigadores em campo. Por outro lado, não lida bem com o fracasso, sobretudo se é o dos outros.

- Ainda bem que tudo acabou - congratulou-se Kent.

- Todos estamos contentes.

- Porque quis que eu conhecesse John Campbell?

- Julguei que gostasse de lhe dirigir algumas palavras reconfortantes. Kent deixou passar o comentário. Depois reparei que o frigorífico que fora de Ann Campbell estava ligado a uma extensão e, ao inspeccionar o seu conteúdo, verifiquei que estava cheio de cerveja e de outras bebidas. Peguei em três latas de Coors e ofereci uma a Kent.

Depois de uns goles, ele comentou:

- Está fora do inquérito, certo?

- Concederam-me mais algum tempo.

- Tanto melhor para si. A CID paga horas extraordinárias?

- Claro que sim. A dobrar depois da vigésima quinta e a triplicar ao domingo.

- Tenho toneladas de trabalho à minha espera no gabinete - declarou com um sorriso.

- Não demorará muito.

Encolheu os ombros e acabou de beber a cerveja. Estendi-lhe outra, que ele abriu.

- Não sabia que os Campbell partiam neste avião - confessou.

- Também me apanharam de surpresa, mas foi uma atitude inteligente.

- Ele está acabado. Poderia vir a ser vice-presidente ou mesmo presidente dos Estados Unidos. Talvez viéssemos a ter novamente um general à frente do país.

- Não sei nada de política.

Vi que Grace pousava a disquete na mesa e depois se levantava. Fez-me um sinal e dirigiu-se à saída. Cal colocou o seu programa gráfico no computador e deitou-se ao trabalho.

- Que estão eles a fazer?

- A tentarem identificar o culpado.

- E o FBI?

- Sem dúvida atrás da porta à espera da hora marcada.

- Não me agrada trabalhar com eles - declarou Kent. - Não nos compreendem.

- Pois não, só que nenhum deles dormiu com a vítima.

A porta abriu-se finalmente para dar passagem a Cynthia. Ela entrou no gabinete e saudou Kent. Fui buscar-lhe uma Coca-Cola ao frigorífico e trouxe mais uma cerveja para o coronel. Este começou a mostrar sinais de inquietação quando todos se sentaram.

- Foi algo muito triste - pronunciou-se Cynthia. - Era jovem... Senti-me péssima pelos pais e pelo irmão.

Kent absteve-se de comentários.

- Bill - comecei. - Nós encontrámos umas coisas que, na nossa opinião, precisam de alguns esclarecimentos.

Ele bebeu mais um gole da cerveja.

- Antes do mais, esta carta - disse Cynthia, tirando-a da mala e estendendo-a a Kent.

Ele leu-a, ou melhor, examinou-a com o olhar, pois sem dúvida a sabia de cor, depois do que a devolveu a Cynthia, que continuou:

- Imagino como terá ficado perturbado. Aqui estava uma mulher que se entregava a toda a base e a única pessoa que gostava dela sinceramente é a que se vê em sarilhos.

Kent bebeu um longo gole, parecendo cada vez mais nervoso.

- O que a leva a pensar que eu gostava dela sinceramente? - inquiriu, por fim.

- Pura intuição - respondeu Cynthia. - Creio que lhe tinha afecto, mas que ela estava demasiado absorta com o seu ego e demasiado perturbada para que pudesse ter em conta os seus sentimentos.

Um agente incumbido de uma investigação de homicídio tem obviamente de falar mal da vítima na presença do principal suspeito. O assassino não quer ouvir dizer que matou um anjo de virtudes, uma filha de Deus, segundo a descrição que Fowler fizera de Ann Campbell. Não se elimina pura e simplesmente a questão do bem e do mal, como propusera Karl, mas apenas se encara o assunto sob uma outra perspectiva, sugerindo ao suspeito que o seu gesto foi compreensível.

Contudo, Bill Kent nada tinha de estúpido, sabia perfeitamente onde queríamos chegar e, portanto, calou-se. Cynthia prosseguiu:

- Também estamos de posse dos extractos do diário dela sobre todos os encontros sexuais que tiveram.

- Estão ali, no computador - acrescentei.

Cynthia levantou-se e regressou com as folhas impressas. Sentou-se à mesa do café, diante de Kent, e pôs-se a ler. As descrições eram indubitavelmente explícitas, mas desprovidas de erotismo. Tratava-se de uma espécie de relatórios clínicos, sem referência a amor ou emoção, como se esperaria num diário íntimo, ou seja, simples exposições do acto sexual. Era decerto embaraçoso para Bill Kent, mas também a prova de que Ann Campbell o colocava na mesma categoria de um vibrador. O rosto expressava uma raiva crescente, a mais incontrolável das reacções humanas e a que leva invariavelmente à autodestruição.

- Não sou obrigado a ouvir isto! - exclamou ele, levantando-se.

- Mas deveria - aconselhei-o. - Sente-se, por favor. Precisamos da sua presença.

Pareceu hesitar entre ficar ou ir embora, mas tudo não passava de uma farsa. O facto mais crucial da sua vida acontecia aqui e agora e, se se fosse embora, ver-se-ia privado dele. Por isso, voltou a sentar-se com fingida relutância.

Cynthia retomou a leitura, como se nada se tivesse passado, e descobriu um extracto particularmente licencioso:

- “Depois de ter resistido muito tempo, Bill começa a tornar-se adepto da asfixia sexual. O seu maior gozo reside em pendurar-se de um espigão na parede, enquanto lhe faço um broche. Contudo, também gosta de me amarrar à cama, como esta noite, e apertar-me a corda à volta do pescoço, enquanto me masturba com o vibrador. Foi-se aperfeiçoando e provoca-me intensos e múltiplos orgasmos...”

Cynthia fixou Kent por um momento e pôs-se a folhear os papéis, mas o coronel já não parecia irritado, embaraçado ou incomodado. Mostrava, na verdade, uma expressão ausente, como que absorto na recordação desses dias felizes ou na expectativa de um futuro desolador.

Cynthia leu, então, a última passagem, a que Grace nos dera a conhecer ao telefone:

- “Bill está novamente a mostrar-se possessivo. Julguei que havíamos resolvido o problema. Apareceu esta noite, quando Bowles estava cá e nem sequer ainda tínhamos descido. Tomaram uma bebida no salão e Bill maltratou-o e insultou-o. Ted acabou por se ir embora e Bill e eu discutimos. Diz que está disposto a deixar a mulher e a demitir-se, se eu prometer viver ou casar-me com ele. Sabe porque faço tudo isto, com ele e os outros homens, mas quer que entre nós tudo seja mais sério. Insiste e digo-lhe que pare. Esta noite, nem mesmo quer sexo, só falar, mas não me agrada a sua conversa. Por que razão alguns homens acham que têm de ser cavaleiros de armadura reluzente? Ignoro o que fazer de um tipo assim, sou o meu próprio cavaleiro, o meu próprio dragão, e tenho a minha fortaleza particular, todos os outros não passam de objectos. Bill não é muito perspicaz, não me compreende e, portanto, nem tento explicar-lhe. Disse-lhe que reflectiria na sua proposta, mas que gostaria que só aparecesse com entrevista marcada. Ficou doido de raiva, esbofeteou-me, rasgou-me a roupa e violou-me na alcatifa da sala. Depois, pareceu acalmar-se e foi-se embora, com uma expressão sombria. Dou-me conta de que pode ser perigoso, mas é-me indiferente. Na verdade, é o único, com excepção de Wes, que me ameaçou ou bateu, e apenas isso o torna interessante.” Cynthia pousou as folhas e instaurou-se um pesado silêncio.

- Violou-a realmente na alcatifa da sala? - perguntei a Kent, com um aceno de cabeça para a divisão ao lado.

O coronel não respondeu à pergunta, o que não o impediu de comentar:

- Se a sua intenção é humilhar-me, está a fazer um bom trabalho.

- A minha intenção é descobrir quem matou Ann Campbell e, o que não é menos importante, compreender porquê.

- Acham que eu... que estou a ocultar qualquer coisa?

- Sim. É o que achamos.

Peguei no comando da televisão e liguei o aparelho e o vídeo. O rosto de Ann Campbell surgiu no meio de uma conferência.

- Importa-se? - dirigi-me a Kent. - Esta mulher fascina-me, como acho que o fascinou e aos outros. Preciso de vê-la de vez em quando. é uma ajuda.

Ann Campbell estava a falar:

- “A questão moral reside em utilizar a psicologia, que é por norma uma ciência para apaziguar o sofrimento, como uma arma de guerra” - Ann Campbell tirou o microfone da secretária e avançou para a câmara, sentando-se na beira do estrado e balouçando as pernas. - “Agora, já consigo ver-vos melhor.”

Fitei Kent, que mantinha os olhos fixos no ecrã, e, a julgar os seus sentimentos pelos meus, concluí que desejava que ela estivesse viva e nesta mesma divisão para que pudesse falar-lhe e tocar-lhe.

Ann Campbell prosseguia o discurso sobre a moralidade das operações psicológicas e sobre os desejos, necessidades e medos dos seres humanos em geral:

- “A psicologia é uma arma suave e não um canhão de cento e cinquenta milímetros, mas aniquilam-se mais batalhões do inimigo com folhetos e slôganes radiofónicos do que com bombas. Não vale a pena matar pessoas quando é possível dobrá-las à nossa vontade. Dá muito mais prazer ver um inimigo ajoelhar-se na nossa frente do que matá-lo.”

Desliguei o televisor e comentei:

- Ela tinha uma boa presença, não é verdade, Bill? O tipo de pessoa que capta a atenção dos sentidos e da mente. Gostaria de tê-la conhecido.

- Não, não gostaria - garantiu Kent.

- Porque não?

- Ela era... diabólica - respondeu, soltando um profundo suspiro.

- Diabólica?

- Sim... era uma dessas mulheres que não se encontra frequentemente... uma daquelas que todos desejam, simples, franca e aparentemente meiga... mas que nos enganou a todos. Não respeitava nada nem ninguém, parecia a rapariga com quem todos os homens sonham, mas era completamente perversa.

- Começamos a dar-nos conta disso. Pode fornecer-nos mais elementos? Então, nos dez minutos seguintes ele pôs-nos a par das suas opiniões sobre Ann Campbell, por vezes reflexos da realidade, outras não. Cynthia foi buscar-lhe mais uma cerveja.

Na verdade, Bill Kent elaborava uma indiciação moral, à semelhança dos caçadores de bruxas de há trezentos anos. Ela era uma encarnação do mal que se apoderava da mente e dos corpos dos homens, fazia feitiços, fingia adorar Deus e cumpria as suas funções de dia, mas convivia com as forças do mal à noite.

- Nestas cassetes podem ver como parecia simpática e encantadora com os homens, mas leiam as páginas do diário, leiam-nas, e verão como Ann era realmente. Já contei que se tornara uma fanática de Nietzsche, do homem e do super-homem, do Anti-cristo e de toda essa treta... - Retomou fôlego e prosseguiu: - Ia visitar os homens aos seus gabinetes durante a noite, fazia sexo com eles e no dia seguinte era como se não existissem.

Cynthia e eu escutávamo-lo, pontuando as palavras com acenos de cabeça. Quando um presumível assassino critica a vítima, ou não foi ele ou esforça-se por justificar o motivo do crime.

Apercebendo-se de que estava a ir longe de mais, Kent moderou o discurso. Contudo, neste cenário reconstituído do gabinete de Ann Campbell, acho que se lhe dirigia tanto como a nós e julgo também que a imagem, reforçada pela cassete, se lhe desenhava na mente. Cynthia e eu havíamos preparado o terreno e, embora um pouco alterado pelas quatro cervejas que bebera, estava consciente da verdade.

- Vou mostrar-lhe uma coisa - disse, levantando-me.

Levámo-lo até ao outro extremo do hangar, onde Cal Seiver se sentava diante do computador.

- O coronel Kent gostaria de ver os teus gráficos, Cal.

- De acordo.

Cal fez aparecer no ecrã um diagrama do local do crime, incluindo a carreira de tiro, as bancadas e o alvo, mas sem os contornos do corpo da vítima, e explicou:

- É mais ou menos uma e meia. O jipe da vítima aparece... - e um rectângulo correspondente a um veículo visto de cima surgiu à direita, deslocando-se para a esquerda. - Pára e a vítima desce. - Em vez de uma silhueta feminina, o ecrã mostrou somente duas pegadas, junto ao jipe. - O coronel Moore aproxima-se, vindo das latrinas... - Duas pegadas amarelas apareceram, vindas de cima, dirigiram-se para o jipe e pararam. - Falam os dois, ela tira tudo, incluindo os sapatos e as meias... Claro que não assistimos à cena, mas vemo-los a sair da estrada e a entrarem na carreira de tiro... ela corresponde ao vermelho e ele ao amarelo... lado a lado... Recolhemos as pegadas dela aqui e ali e extrapolámos o resto. Os traços intermitentes são os que acrescentámos por dedução. O mesmo para ele, de acordo?

- De acordo? - repeti com um olhar de relance para Kent. Ele fixava o ecrã e Seiver prosseguiu:

- Bom. Param junto ao alvo e ela deita-se no chão... - uma figura feminina a vermelho, de braços e pernas estendidas, surgiu no ecrã, junto ao alvo.

- As pegadas da vítima desaparecem obviamente a partir de agora, mas, depois de a ter amarrado, o coronel Moore afasta-se e podemos ver onde os passos se demarcaram em sentido inverso e regressaram ao jipe. Os vossos cães detectaram o cheiro dele na relva, coronel, entre a estrada e as latrinas.

- Este é o tipo de demonstração visual que impressiona muito os tribunais marciais - comentei.

Kent manteve-se em silêncio e Seiver prosseguiu:

- As duas horas e dezassete minutos chega o general Campbell no carro da mulher.

Fitei Kent, que não parecia mais surpreendido por esta revelação do que pela da presença e pelo papel desempenhado pelo coronel Moore.

- É sempre difícil conseguir que um general entregue as botas ou sapatos que usou no local do crime, mas suspeito de que ele somente avançou uns metros pela carreira de tiro e não se aproximou do corpo. Muito bem. Falam os dois, mas, em seguida, Campbell volta a partir no carro.

- Está a seguir? - perguntei a Kent.

Ele voltou a fitar-me sem pronunciar palavra.

- O que pretendemos dizer-lhe - pressionou Cynthia - é que nem o coronel Moore nem o general Campbell mataram Ann. Ela organizara todo este elaborado cenário com uma precisão militar a fim de montar uma espécie de armadilha psicológica ao pai. Não se ia encontrar com um amante, como alguns de nós julgávamos, e tão-pouco foi atacada por um maníaco. Queria apenas reaproximar-se do pai, que lhe fizera um ultimato.

Kent limitou-se a fixar o ecrã, sem pedir explicações. No entanto, Cynthia forneceu-as:

- Ela sofreu uma violação colectiva quando era cadete em West Point e o pai forçou-a a calar-se depois de se entender com os chefões para abafar a questão. Sabia?

O coronel fixou o olhar em Cynthia, mas não deu qualquer sinal de compreender uma palavra do que ela dizia.

- Ela recriou a cena de agressão de que foi vítima em West Point a fim de chocar e humilhar o pai - insistiu ela.

Será que Kent tinha necessidade de ouvir tudo isto? Ignorava, mas, na actual situação, talvez não lhe fizesse nada mal.

- Achou que ela estava ali para satisfazer qualquer fantasia sexual? - perguntei. Não me deu resposta. - Como a de se fazer violar por uma série de homens? - insisti.

- Conhecendo-a, é o que toda a gente pensou - respondeu, por fim.

- Sim, também pensámos isso, depois de termos descoberto aquela divisão da cave. Calculo que também foi essa a sua ideia quando a viu amarrada, admitiu logo que se tratava de mais uma das suas encenações. E era, na verdade, só que não fez a leitura certa.

Silêncio.

- Continua - incitei Cal.

- De acordo. Portanto, o general afasta-se e depois aparecem estas pegadas... são as suas, coronel. As azuis...

- Não - rectificou Kent. - As minhas só aparecem depois da chegada ao local de Saint-John e do soldado Casey.

- Não, coronel - ripostou Cal. - As suas aparecem antes. Veja bem... há uma sobreposição com as do sargento e o molde confirma que a sua é mais antiga. Assim encontrava-se no local antes dele, sem sombra de dúvida.

- Na verdade, Bill, quando você lá chegou depois de o general se ter afastado - reiterei - Ann ainda estava viva. Então, Campbell foi buscar o coronel Fowler e a mulher, mas, na volta, encontraram-na já morta.

Kent nem sequer pestanejou.

- O jipe Cherokee da sua mulher - prossegui - foi localizado por um dos seus homens cerca das três horas, parado no estacionamento da biblioteca, diante do quartel-general, consigo ao volante. Também o viram - menti - a conduzir rumo às carreiras de tiro. Virou na bifurcação de Jordan Field e escondeu o carro nos arbustos. Deixou marcas de pneus e embateu numa árvore. Comparámos as marcas da tinta com o jipe e vimos a arranhadela na pintura. Encontrámos igualmente as suas pegadas - voltei a mentir - no fosso ao longo da carreira de tiro, as quais indicam um avanço para o local do crime. Deseja uma reconstituição de todos os acontecimentos da noite, coronel?

Ele abanou a cabeça.

- Dada a acumulação de provas - arrisquei -, incluindo a existência de um móbil, os extractos do diário, a carta à sua mulher, as suas relações sexuais e a obsessão sexual pela vítima, sem mencionar os resultados do laboratório, vejo-me forçado a pedir-lhe que se submeta ao detector de mentiras.

Não estávamos de facto preparados para tal, mas o que contava era a intenção.

- Se recusar - acrescentei -, serei obrigado a prendê-lo e a pedir a alguém do Pentágono que lhe dê ordens para se submeter ao teste.

Kent virou costas, foi sentar-se na sala ao lado e eu troquei um olhar de entendimento com Cynthia e Cal, após o que o seguimos.

Sentado no braço de um maple, Kent manteve-se de olhos fixos na alcatifa, testemunha da sua violação.

- Conhece obviamente os seus direitos como acusado - repliquei. Não o insultarei, portanto, com a leitura dos mesmos, mas receio ver-me obrigado a confiscar-lhe a arma e a pôr-lhe algemas.

Ergueu os olhos na minha direcção, sem pronunciar palavra.

- Não vou encarcerá-lo no edifício do comando da Polícia Militar, pois tal significaria uma humilhação gratuita, contudo, vou conduzi-lo à prisão da base para cumprimento das formalidades. Pode dar-me a sua arma? - acrescentei.

Ele sabia obviamente que tudo chegara ao fim, mas, à semelhança de um animal engaiolado, ainda fez uma derradeira tentativa.

- Nunca conseguirá provar nada disso - redarguiu. - E, quando comparecer diante de um tribunal marcial, zelarei para que o acusem de negligência profissional.

- Claro, coronel, está no seu direito - retorqui. - E, se não for considerado culpado, pode agir contra nós. No entanto, a sua conduta sexual não deixa dúvidas. Talvez o isentem da acusação de crime, mas pode contar com uns bons quinze anos em Leavenworth por falta aos deveres, comportamento condenável, obstrução ao inquérito, sodomia, violação e outros delitos passíveis de infracção dos artigos prescritos pelo Código Geral de Justiça Militar.

- Não está a jogar muito limpo, pois não? - perguntou Kent, parecendo meditar sobre esta afirmação.

- Como assim?

- Revelei-lhe voluntariamente a natureza das minhas relações com Ann para o ajudar a descobrir o assassino e agora acusa-me de uma má conduta sexual e todo o tipo de crimes, manipulando os outros indícios numa tentativa de provar que a matei.

- Pare com essa comédia, Bill.

- Pare você. Se quer saber, cheguei lá realmente antes de Saint-John, mas ela já estava morta. Na minha opinião, foram Fowler e o general os criminosos.

- Garanto-lhe que está a seguir o caminho errado, Bill - retorqui, pousando-lhe a mão no ombro. - Seja um homem, um oficial e um cavalheiro... seja um agente, céus! Nem sequer deveria pedir-lhe que se submetesse a um detector de mentiras, mas apenas que me contasse a verdade sem apelar a esse recurso, sem lhe mostrar as provas, sem me ver obrigado a passar dias e dias a interrogá-lo. Não dificulte as coisas.

Fitou-me e apercebi-me de que estava à beira de romper em lágrimas. Olhou para Cynthia, a fim de verificar se ela reparara nisso, o que, segundo penso, era importante para ele.

- Sabemos que foi você o criminoso, Bill - prossegui - e você também o sabe, além de que conhecemos o motivo. Há toda uma série de circunstâncias atenuantes, Deus do céu! Não consigo pôr-me na sua frente, fitá-lo bem nos olhos e dizer: “Ela não o merecia.”

Contudo, Ann realmente não o merecia, mas, tal como se dá ao condenado à morte a refeição que desejar, estamos prontos a dizer-lhe tudo o que ele quiser ouvir.

Kent conteve as lágrimas e tentou parecer irritado.

- Ela merecia-o! - gritou. - Era uma cabra, uma puta, destruiu a minha vida e o meu casamento...

- Eu sei, mas agora tem oportunidade de colocar tudo na devida ordem em relação ao Exército, à sua família, aos Campbell e a si próprio.

Desta vez, grossas lágrimas correram-lhe pelas faces, e eu sabia que ele preferia morrer a chorar na minha presença, e na de Cynthia e Cal Seiver, que observavam a cena do outro lado do hangar. Kent conseguiu articular:

- Não posso pôr ordem no que quer que seja, é tarde de mais.

- Sim, pode, claro que sim, e sabe como. Não perca esta ocasião. Não se exponha à desonra juntamente com todos os outros. Ainda está na sua mão, faça o seu dever de oficial e cavalheiro.

Kent levantou-se devagar e limpou os olhos e o nariz com as mãos.

- Entregue-me a sua arma, por favor - pedi.

- As algemas não, Paul - pediu, mergulhando o olhar no meu.

- Lamento, mas tenho de o fazer. O regulamento.

- Sou um oficial, céus! Se quer que me comporte como tal, trate-me como um deles!

- Comece por mostrar que o é. Arranja-me umas algemas - pedi a Cal.

Kent tirou do coldre a sua arma especial e gritou:

- De acordo! De acordo! Vejam isto!

Encostou o revólver à têmpora direita e premiu o gatilho.

 

 

                               CAPÍTULO TRINTA E SETE

 

A vista humana consegue diferenciar quinze ou dezasseis tonalidades de cinzento, mas a análise por computador de uma pegada distingue duzentas e cinquenta e seis, o que é uma quantidade notável. Contudo, mais notável ainda é a mente humana, capaz de distinguir um número infindo de sombras emocionais, psicológicas e morais, desde a mais negra à mais alva. Nunca encontrei os extremos, mas detectei muitas tonalidades intermédias.

A natureza dos seres humanos não é mais constante ou definitiva em termos de cor do que um camaleão.

Os habitantes de Fort Hadley não eram piores nem melhores do que aqueles com que me cruzara em muitas outras bases por todo o mundo. Contudo, Ann Campbell saía, sem dúvida, do lugar-comum e tentei imaginar-me a conversar com ela caso houvesse sido indigitado para investigar o que se passava em Fort Hadley. Julgo que compreenderia não estar perante uma mera sedutora, mas sim de uma personalidade única e plena de riqueza e energia, e penso também que lhe podia ter mostrado que o sofrimento dos outros não a tornava mais forte, apenas aumentava a infelicidade dos que a rodeavam.

Assim, não me parece que ela tivesse acabado como Bill Kent, embora não afaste essa possibilidade e, por isso, me abstenho de o julgar. O coronel julgou-se a ele próprio, viu aquilo em que se tornara e teve medo de descobrir em si uma outra personalidade sob a capa de uma mente rígida e ordenada.

O hangar fora invadido pelos polícias militares, os homens do FBI, uma equipa médica e todo o pessoal forense que ainda se encontrava em Fort Hadley e estava prestes a partir.

- Quando levarem o corpo - disse a Cal -, manda limpar o mobiliário e o conteúdo da casa e manda tudo para os Campbell, no Michigan. Eles ficarão contentes por receberem as coisas da filha.

- De acordo - acedeu e acrescentou: - Detesto dizer isto, mas poupou muitos problemas a toda a gente, menos a mim.

- Era um bom soldado.

Rodei sobre os calcanhares e atravessei o hangar. Passei junto a um agente do FBI, que tentava desesperadamente chamar-me a atenção, e saí para o sol quente.

Karl e Cynthia conversavam junto a uma ambulância. Quando me dirigia ao meu Blazer, Karl aproximou-se e interpelou-me:

- Não posso considerar-me satisfeito com este resultado. - Mantive-me em silêncio. - Cynthia parece ser de opinião de que você sabia que ele chegaria a este ponto.

- Nem tudo o que corre mal é culpa minha, Karl.

- Ninguém está a censurá-lo.

- Iria jurar.

- Mesmo assim, talvez tivesse podido prever o gesto e tirar-lhe a arma...

- Para ser totalmente sincero, coronel, não só o previ como o encorajei. Fiz um trabalho de merda e estão os dois cientes disso.

Não podia dar-me razão, pois tudo isto estava longe de ser o que ele queria ouvir ou saber, e não vinha no manual. Contudo, quase todos os exércitos do mundo há muito que mantinham a tradição do suicídio oferecido aos oficiais como redenção da desonra, só que isso nunca acontecera nos EUA, além de que caiu em desuso praticamente em todo o lado.

No entanto, a ideia permanece no subconsciente de todos os oficiais, que se encontram ligados por atitudes comuns e sentimentos de honra exacerbados. Se me fosse dado optar entre enfrentar um tribunal marcial sob acusação de violação, homicídio e desvio sexual ou servir-me de uma arma de calibre trinta e oito, penso que escolheria o caminho mais fácil. Não conseguia, porém, imaginar-me na situação de Bill Kent, tal como ele não o conseguiria há uns meses atrás.

Karl dizia-me qualquer coisa, mas não o escutava. Por fim, ouvi-lhe as últimas palavras:

- A Cynthia sente-se muito nervosa. Ainda está a tremer.

- Ossos do ofício.

De facto, não é todos os dias que alguém rebenta os miolos na nossa frente. Kent devia ter pedido desculpa e ido até à casa de banho dos homens para o fazer. Em vez disso, espalhara sangue e miolos por todo o lado e Cynthia ainda apanhara com bocados no rosto.

- Já me aconteceu o mesmo no Vietname - disse a Karl. - Numa das vezes, fui mesmo atingido por uma cabeça. O sabão lava tudo - acrescentei.

- Não lhe acho graça nenhuma, Brenner - redarguiu Hellmann, parecendo irritado.

- Posso ir-me embora?

- Faça favor.

Virei costas, abri a porta do carro e disse-lhe:

- Peço-lhe que informe Miss Sunhill de que o marido telefonou esta manhã e quer que ela lhe ligue.

Subi para o Blazer e arranquei.

Minutos depois, estava no meu quarto. Tirei o uniforme e reparei numa mancha de sangue na camisa. Despi-me, lavei as mãos e a cara e optei por um fato desportivo. Deitei um último olhar ao quarto e levei as bagagens para baixo.

Na recepção, paguei a conta com um pequeno acréscimo de lavandaria, embora fosse também obrigado a pagar os estragos feitos na parede. Depois, enviar-me-iam a factura - adoro o Exército. O recepcionista ajudou-me a meter a bagagem no carro e perguntou-me:

- Resolveu o caso?

- Sim.

- Quem a matou?

- Toda a gente - respondi, atirando as malas para o porta-bagagens, que fechei, e instalando-me atrás do volante.

- Miss Sunhill também se vai embora? - quis saber o recepcionista.

- Não sei.

- Quer deixar uma morada para onde se enviar o correio?

- Não, ninguém sabe que estava aqui, foi uma breve passagem. Arranquei, atravessei a base, segui para norte e meti por Victory Drive. Passei diante da casa de Ann Campbell e dirigi-me à auto-estrada. Pus uma cassete de Willie Nelson e recostei-me no banco, atento ao caminho. Chegaria à Virgínia antes do amanhecer e poderia meter-me num avião militar na base aérea de Andrews. Pouco importava o destino, desde que saísse do território dos EUA.

A minha carreira no Exército chegara ao fim e estava tudo bem. Já o sabia antes mesmo de chegar a Fort Hadley. Não sentia pena, hesitação ou amargura. Damos o nosso melhor e, quando nos tornamos incapazes ou inúteis, vamos embora, só os menos perspicazes esperam que corram com eles. Nada de ressentimentos, a missão sobrepõe-se a tudo, condiciona tudo e todos, assim consta do manual.

Suponho que deveria ter dito uma palavra a Cynthia antes de partir, mas que importância tinha, afinal? A vida militar é transitória, as pessoas vão e vêm e todas as relações, por mais íntimas e intensas, são apenas temporárias. Nunca se diz adeus, mas “até à vista”.

Contudo, desta vez afastava-me mesmo. Chegara a altura de pousar a espada e a armadura, que começavam a enferrujar um pouco, já para evitar dizer que me pesavam. Ingressara no Exército no auge da guerra fria e de um conflito sangrento no Sudeste asiático. Tinha cumprido o meu dever, sacrificado ao serviço nacional mais do que os dois anos exigidos e atravessado duas décadas tumultuosas. O país mudara, o mundo mudara, e o Exército fazia descer o pano, o que significava: “Obrigado por tudo, ganhámos, por favor não se esqueça de apagar a luz quando sair.”

Perfeito, era a ordem natural das coisas. Não era suposto que a guerra se prolongasse eternamente, embora por vezes assim o parecesse, e não era crível que desse emprego a homens e mulheres durante uma vida inteira sem lhes dar perspectivas de carreira.

À bandeira americana estava a ser descida por todo o mundo e em todas as bases do país e as unidades de combate a ser dissolvidas. Talvez acabassem por fechar o quartel-general da NATO em Bruxelas. Uma nova era começava e sentia-me feliz por poder testemunhá-la e ainda mais por não ter de participar nela.

Julgo que a minha geração se formou e moldou através de eventos que deixaram de ser relevantes, e talvez os nossos valores e opiniões também já não o sejam. Por conseguinte, mesmo que nos restem forças para lutar, tornámo-nos anacronismos, como Cynthia o sugeriu. Bom trabalho, obrigado, metade do salário e boa sorte.

Vinte anos correspondem, porém, a muita experiência e muitos bons momentos. Se pudesse voltar atrás, não mudaria uma vírgula, foi interessante.

Willie Nelson cantava Georgia on My Mind e troquei a cassete por uma de Buddy Holly.

Gosto de conduzir, sobretudo quando abandono um lugar que não me agrada, embora sempre que nos afastamos de um sítio nos desloquemos, em princípio, para outro. Contudo, apenas encaro a perspectiva da partida.

Um carro da polícia surgiu no meu espelho retrovisor. Olhei para o velocímetro, mas só ia a dez quilómetros a mais do que o limite, o que, na Georgia, significa que se está a impedir o trânsito.

O idiota colocou a luz vermelha de aviso e fez-me sinal para que parasse. Encostei e fiquei a aguardar.

O agente saiu do carro e aproximou-se da minha janela. Baixei o vidro, reconheci a insígnia de Midland e observei:

- Está um tanto longe de casa, não?

- Os seus documentos, por favor. Mostrei-lhos e declarou:

- Vamos desviar-nos na próxima saída e quero que me siga até Midland.

- Porquê?

- Ignoro. Recebi esta ordem pela rádio.

- Do chefe Yardley?

- Ele mesmo, sir.

- E se me recusar?

- Terei de o algemar. Escolha.

- Há mais alguma opção?

- Não, sir.

- Muito bem - anuí.

Retomei a auto-estrada acompanhado de perto pelo agente, demos a volta e vi-me rumo a sul, na direcção de Midland.

Metemos por uma saída a ocidente da cidade e segui-o até à central de reciclagem da cidade, a que outrora se chamava simplesmente lixeira.

O carro parou junto à incineradora. Imitei-o e saí.

Burt Yardley vigiava a descarga de um camião. Aproximei-me e fiquei a ver o antro secreto de Ann Campbell a desaparecer no meio das chamas.

Yardley, que folheava um molho de fotografias, mal me olhou, mas disse:

- Dê uma olhada, meu. Está a ver este grande cu? É o meu. E agora veja este pequeno e bem feito. A quem acha que pertence? - Atirou uma série de fotos para o braseiro depois do que agarrou num monte de videocassetes que tinha aos pés, votando-as à mesma sorte. - Julguei que tínhamos um encontro. Passou-lhe pela cabeça que eu iria fazer tudo isto sozinho? Pegue nalguma dessa merda, meu.

Ajudei-o, por conseguinte, a atirar peças de mobiliário, vibradores e roupa interior para a transportadora.

- Cumpri a minha palavra. Não confia em mim, pois não?

- Claro que sim. É polícia.

- Certo. Que semana lixada! Sabe uma coisa? Chorei durante o funeral.

- Não notei.

- Chorei por dentro, e não era o único. Responda-me: destruiu tudo o que estava no computador?

- Eu próprio queimei a disquete.

- Ah, sim? Não resta nenhuma daquelas merdas?

- Não. Todos estão novamente limpos.

- Até à próxima - riu, atirando uma máscara preta para as chamas. Deus nos proteja. Agora, vamos poder dormir em paz. Até ela - acrescentou.

Mantive-me em silêncio.

- Lamento o que aconteceu ao Bill - observou.

- Também eu.

- Talvez os dois estejam a falar neste momento lá em cima, nos portões do céu. Ou noutro sítio qualquer.

- Acha mesmo, chefe?

- Mais ou menos - respondeu, olhando em volta. Tirou uma fotografia do bolso, observou-a e estendeu-ma.

- Uma recordação - disse.

Era um nu integral, tirado de frente, de Ann Campbell, saltando na cama da cave, com o cabelo solto, os braços e as pernas afastadas e um enorme sorriso nos lábios.

- Era uma mulher e pêras - comentou Yardley - mas nunca entendi o que lhe ia na cabeça. E você?

- Também não, embora ache que ela nos ensinou mais sobre nós próprios do que desejaríamos saber.

Atirei a foto para junto das outras e dirigi-me de volta ao carro.

- Tome cuidado - gritou Yardley.

- Você também, chefe. Saudações ao seu rebento.

Quando eu ia a abrir a porta do carro, Yardley chamou-me de novo:

- Quase me esquecia. Foi a sua amiga quem me disse que você iria para norte.

Ouvi-o, apoiado ao capô do carro.

- Encarregou-me de lhe dizer que está à sua espera na estrada.

- Obrigado - agradeci, entrando no Blazer e afastando-me da lixeira.

Retomei a direcção da auto-estrada através de um caminho ladeado de armazéns e fábricas, uma paisagem sórdida e em total sintonia com o meu estado de espírito.

No caminho, um Mustang vermelho apanhou-me e continuou atrás de mim. Entrámos juntos na estrada e manteve-se na minha peugada muito depois da saída que deveria conduzir a Fort Benning.

Encostei e Cynthia fez outro tanto. Saímos dos carros, com uns trinta metros a separar-nos. Ela estava vestida com calças de ganga azuis, uma T-shirt branca e ténis, e ocorreu-me que não éramos da mesma geração.

- Passaste o desvio - observei.

- Mais vale do que perder uma oportunidade.

- Mentiste-me.

- Sim... Mas o que terias feito se te dissesse que ainda estava a viver com ele, mas pensava seriamente em acabar tudo?

- Respondia-te que viesses ver-me depois do divórcio.

- Estás a ver? És demasiado passivo.

- Não roubo as mulheres dos outros.

Um carro com atrelado passou por nós e não ouvi a resposta dela.

- O quê?

- Foi o que fizeste em Bruxelas.

- Nunca ouvi falar.

- A capital da Bélgica.

- E o Panamá?

- Disse-o a Kiefer para te obrigar a tomares uma atitude.

- Mentiste uma vez mais.

- E daí?

Um polícia de trânsito estacionou entre nós e saiu do carro. Levou a mão ao boné numa saudação a Cynthia e perguntou:

- Está tudo bem, minha senhora?

- Não. Este tipo é um cretino.

- Qual é o seu problema? - inquiriu, fitando-me.

- Ela vem a seguir-me.

O agente virou-se de novo para Cynthia, que lhe disse:

- O que pensa de um homem que passa três dias com uma mulher e se vai embora, sem se despedir?

- Bom... é muito grosseiro...

- Nunca lhe toquei. Só partilhámos uma casa de banho.

- Ah... nesse caso...

- Convidou-me a passar o fim-de-semana na casa dele, na Virgínia, e nem se deu ao trabalho de me dar o telefone ou a morada.

- É verdade? - quis saber o polícia, olhando-me.

- Descobri que ela ainda é casada.

- O tipo de problema que se dispensa - retorquiu o agente com um aceno de cabeça.

- Não acha que um homem deve lutar pelo que deseja?

- Claro que sim.

- Também o marido pensa o mesmo. Tentou matar-me - repliquei eu.

- Nesse caso, há que ser prudente - recomendou o polícia.

- Eu não tenho medo dele - vangloriou-se Cynthia. - Vou a Fort Benning dizer-lhe que está tudo acabado.

- Então, tenha cuidado - aconselhou de novo o agente.

- Obrigue-o a dar-me o número de telefone.

- Bom... quer dizer... Porque não lhe dá o número de telefone para podermos sair deste sol horrível? - dirigiu-se-me.

- De acordo. Tem uma caneta?

O agente tirou um bloco e uma caneta do bolso e ditei-lhe o meu número de telefone e a minha morada. Ele arrancou a página, que entregou a Cynthia.

- Aqui tem - disse. - Agora, entrem os dois nos carros e voltem à vossa vida, sim?

Meti-me no meu Blazer e Cynthia no Mustang.

- Sábado - gritou-me ela.

Acenei-lhe, arranquei para norte e vi pelo retrovisor que ela, após uma inversão de marcha ilegal, atravessava o separador central, afastando-se na direcção do desvio para Fort Benning.

Passivo? Paul Brenner, o tigre de Falis Church, passivo? Afastei-me para a direita, virei o volante todo para a esquerda e imitei-a, passando para a outra faixa com um chiar de pneus e seguindo na direcção do sul.

“Veremos quem é passivo!”

Apanhei-a na auto-estrada que conduzia até Fort Benning para nunca mais a deixar.

 

 

                                                                  Nelson Demille

 

 

                      

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