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"[... ] Segundo a vontade do defunto, o enterro realizar-se-á numa estrita intimidade familiar. "
Era o que se pudera ler na rubrica "Vida mundana" das gazetas regionais, e Geneviève perguntava a si própria se seria decente assistir até ao fim às exéquias de seu "pai". Porque, afinal, seria ele seu pai?
Faria ela, naquela cerimónia, papel de filha legítima, ou de intrusa, de estranha?
Poucas pessoas se agrupavam naquele cemitério soalheiro, cujas árvores estremeciam à brisa que vinha do lago, dominado por um fundo de montanhas verdejantes. Em volta da linda viúva encontravam-se algumas pessoas um tanto idosas, parentes afastados, sem dúvida, porque a sua tristeza parecia ser apenas convencional. Só um homem, muito belo, chamava as atenções. Aquele que Geneviève vira na tarde em que.
E depois havia Geneviève, uma jovem aparentemente petrificada, mas cujo cérebro fervia, cujas pestanas retinham lágrimas que nada, talvez, a autorizava a derramar.
Desde sempre que invejara as crianças educadas por um casal. Faltara- lhe a ternura dum pai. Se a madrinha, a Sr. Lebrun, aquela a quem chamava Mamie, se esforçava afectuosamente por desempenhar junto dela o papel de mãe adoptiva, havia muito tempo, a verdade é que o Sr. Lebrun já não existia. Geneviève não conhecera um homem forte e jovial, um pouco brusco ou um pouco implicante, para a levantar do chão, a atirar ao ar, a apanhar de novo; para fingir lançá-la pela janela como um embrulho, causando-lhe assim medos deliciosos antes de lhe dar saborosos beijos nas faces, a fim de a ouvir gritar: "Mais, papá, mais! "
E depois, um dia da semana anterior, alguém viera dizer-lhe que talvez tivesse um pai, o Sr. Richard Lagrange, e que ele queria falar-lhe. Mas quando chegara a sua casa, tão emocionada que até tremia, ele acabava de fechar para sempre os olhos.
Ela tinha a impressão, ali, naquele cenário de jardim florido que era apesar de tudo o dum cemitério, de não viver senão o prolongamento daquele dia tão recente.
O padre recitava as últimas orações, abençoava a cova aberta, enquanto a rapariga prosseguia naquela espécie de sonho que acompanhara, na igreja, o canto desolado do órgão.
Um sonho que começara, todavia, por um episódio tão banal.
Como todas as manhãs, Geneviève e a sua amiga Monique -uma enfermeira e a outra secretária mé dica no Serviço de Saúde da Infância de Genebra - tinham saído de casa da Sr. á Lebrun, onde Monique estava hospedada, na pequena cidade de Saint- Julien, junto da fronteira suíça. As duas raparigas dirigiam-se para o trabalho no velho carro de Monique, Rosalie, um 2 cv que andava mais por hábito e que estava ornamentado com uma caterva de flores.
No Serviço de Saúde esperava- as a rotina quotidiana: o interno, um simpático rapaz; o Dr. Terrier, um bonzão; famílias, nem todas francófonas; garotos, intimidados ou demasiado atrevidos. No intervalo do almoço, elas tinham-se instalado no mesmo canto do pequeno restaurante. Segundo o costume, a conversa tinha como assunto o trabalho, os médicos, as crianças, quando, de repente, houvera a intervenção daquele vizinho de mesa, pedindo desculpa pela sua indiscri ção:
"Desculpem-me, meninas. Estou a ouvi-las falar do Serviço de Saúde. A minha curiosidade é de ordem profissional: faço inquéritos. "
Com cerca de quarenta anos, um rosto amável, um fato claro, muito correcto, modos reservados. As raparigas não têm razão para ficar melindradas. O desconhecido estende o seu cartão. Explica:
"A casa que me emprega foi encarregada de fazer um repertório das diferentes profissões geralmente reservadas às mulheres. Ora as meninas são enfermeiras, se bem compreendi. Se preferem, posso passar pelo Serviço, mas parece-me que o inquérito seria mais agradável aqui, enquanto se almoça...
- De acordo - aprova Monique. - Que quer saber?
-Primeiro, para as nossas estatísticas, os vossos nomes, data e lugar de nascimento.
- Monique Labry, nascida em Grenoble a 4 de Julho de 1951.
- E a menina?
- Geneviève Lagrange.
- Nascida em. "
Geneviève não se abre tão facilmente como a amiga, sobretudo quando tem a impressão de que estão a forçá-la. Aliás, sempre considerou aquele género de questionário como uma forma de inquisição. Por isso não pode deixar de encolher levemente os ombros, enquanto Monique explica que ambas são francesas e vivem em Saint-Julien, em casa da madrinha da sua amiga.
O homem de fato claro aborda em seguida o essencial do seu interrogatório: que razão as levou a es colherem aquela profissão?
É para Geneviève que se vira. Mais uma vez é Monique quem responde:
"A profissão é cansativa, mas, pelo menos, temos a impressão de sermos úteis.
- Que estudos fizeram?
Segurando na mão esquerda um bloco, ele permanece imóvel, com o lápis na mão direita, sorrindo para Geneviève, que replica com um pouco de impaciência:
"Estudos de enfermagem, evidentemente.
- Com o apoio dos vossos pais? Da vossa família? " Geneviève morde os lábios. É na verdade o género de perguntas que detesta! Quantas vezes na vida lhas terão feito? Sente sempre a mesma humilhação, a mesma amargura, ao pronunciar as mesmas frases:
"Eu não tenho pais. Não tenho familia. " Mas desta vez não pode deixar de acrescentar: "Essas informações são muito úteis para o seu inquérito? "
O homem poderia ficar vexado. Se ficou, não o mostra, voltando-se para Monique para precisar:
"São perguntas-tipo. As meninas são ambas de Saint-Julien?
- Eu sou. Quanto à minha amiga Geneviève.
-Fui para lá muito nova", interrompe esta. Ele anota, anota. Com lentidão, um pouco de embaraço, dir-se-ia, como se tivesse vontade de fazer outras perguntas e receasse o enervamento da mais loura, que é também a mais arisca. Finalmente, toma a resolução de pôr fim à conversa:
"Vêem algum futuro na vossa profissão?
- Enfermeira-chefe - diz Monique a rir -, se a sorte nos acompanhar.
- Obrigado, meninas. Mil vezes obrigado. Queiram desculpar-me, peço- vos, por as ter importunado.
Cumprimenta, volta para o seu lugar na mesa próxima, paga a conta e vai-se embora. Geneviève solta um suspiro de alívio. O seu olhar mostra- se inquieto, desconfiado.
"Tipo esquisito", observa ela. "Nem sequer nos perguntou o montante do nosso ordenado. Parece-me suspeita, a sua história de inquérito. "
Seguira-se o retomar do trabalho: os médicos, as famílias, os garotos, o autocarro, porque, nessa noite, Monique fazia horas extraordinárias.
Em Saint-Julien, a Sr. á Lebrun, depois de ter fechado a porta da sua lojinha de "confecções elegantes", retirara-se para o apartamento contíguo, para preparar o jantar. Depois do afectuoso beijo do regresso; seguido de considerações sobre as diversas vantagens dum fogão eléctrico, Geneviève admirou-se:
"Queres trocar o fogão?
- Quer dizer. estou tentada. Recebi esta tarde a visita dum representante. Deu-me prospectos e mostrou-me estatísticas.
-Estatísticas? Decididamente, é o dia das novidades! Afinal, como era ele?
-Alto, bem-educado, com um fato de seda crua, quase branco. É bonito, mas suja-se muito. Quanto a ser convincente. Ficou durante uma boa hora a conversar, dado que só tive duas clientes durante esse tempo. Falava-se de tudo! Olha! Dir-se-ia que lhe interessava muito saber que eu tenho uma filha adoptiva. Mas tu tens um semblante esquisito! Que se passa? Conhece-lo?
-Um homem com os sinais do teu fez-nos hoje, também, montes de perguntas estranhas, ao meio-dia.
Sou eu então que lhe interesso? No entanto, não tenho nada de extraordinário!
- Vamos, não armes em modesta", disse a Sr. A Lebrun sorrindo. " Sabes bem que és bonita. "
Na cozinha está pendurado um espelho. Geneviève mira-se, diverte-se a fazer de vesga.
No fundo, é verdade que é bonita: cabelos com manchas de castanho-claro e louro-veneziano, quase ruivos, olhos sempre um pouco tristes, uma boca fresca. Nada mal, nada mal, Mas para quem? A sua única experiência do amor saldou-se com um desgosto. Se aquele homem de fato cru imagina que, perseguindo-a sob pretextos parvos, vai conseguir um encontro...
Às oito horas, Monique regressara a casa. E, durante todo o serão, as três mulheres tinham-se perdido em conjecturas sobre a identidade daquele desconhecido, as suas verdadeiras atribuições, os objectivos da sua curiosa atitude.
Em breve, no entanto, serão informadas. A expectativa terá sido breve. O homem chama-se Adrien Le Tort. É detective particular.
Ao deixar a Sr. Lebrun, Adrien Le Tort dirigiu-se a Annecy, a uma luxuosa propriedade habitada por um riquíssimo canadiano, Richard Lagrange. O capitão Lagrange foi gravemente ferido durante a guerra da Coreia. Valetudinário desde então, vive com a esposa, Viviane, quinze anos mais nova do que ele.
O bem adestrado criado de quarto que abre ao detective a magnífica porta do vestíbulo hesita visi velmente em o introduzir:
"Não sei se o senhor poderá recebê-lo. O seu estado agravou-se. "
Mas uma mulher muito bela, que não parece ter ainda quarenta anos, embora os tenha ultrapassado largamente, segundo o que Adrien Le Tort sabe, desce a imponente escadaria na companhia dum médico. Reconduz este até aos degraus da entrada sem notar o recém-chegado. O criado de quarto tem de a alertar:
"Minha senhora, este senhor quer falar com o patrão. Diz que tem um encontro marcado. "
Viviane Lagrange volta-se para medir o importuno com assombro:
"Não é possível, senhor! O médico proíbe toda e qualquer visita. "
Muito à velha moda de França, o detective inclina-se profundamente.
"Queira desculpar-me a insistência, minha senhora, mas o Sr. Richard Lagrange está à minha espera. Queira ter a bondade de lhe mostrar este cartão. "
Os soberbos olhos castanhos, de olhar apático, pálpebras um pouco pesadas de mais, resvalam pelo cartão com um ar de surpresa. Os lábios crisparam-se levemente:
"Detective particular? Espere no salão. Não sei. Vou perguntar ao meu marido.
Uns instantes mais tarde, é uma enfermeira que desce do quarto do doente e faz sinal a Adrien:
"O senhor pode subir. "
Apesar das janelas completamente abertas sobre o reflexo do lago, flutuam no quarto do doente persistentes cheiros de produtos farmacêuticos. Adrien Le Tort, mais acostumado todavia a frequentar pessoas com "problemas" do que felizes deste mundo não pode deixar de ficar impressionado por aquela forma masculina, alta e direita, de ombros largos, feita para o ar livre, para o livre jogo dos músculos. Richard Lagrange empertiga-se, rígido, contra o espaldar da cadeira de rodas. Tem os cabelos cortados curto. Começam a ficar grisalhos nas têmporas. As feições talhadas a machado, tal como os olhos cinzento- escuros, exprimem uma vontade indomável. Aquele homem deve sofrer um martírio, mas Le Tort ficaria espantado se lhe dissessem que dos seus lábios pálidos se escapa por vezes um queixume.
No momento em que ele entrou no quarto, a Sr. Lagrange esboçou o gesto discreto de sair. O marido reteve-a com uma voz que é a do comando:
"Não, Viviane, quero que assista a esta conversa. Seja bem-vindo, Sr. Le Tort. O seu inquérito deu resultado?
- Um momento - disse Viviane, com voz implorante. -Pede-me que fique, Richard, mas não pode, em nome de... por simples consideração por mim, sua mulher há tantos anos, confiar-me de que género de investigação se trata? Para se atormentar assim, no estado de fadiga em que está, tem de ser muito grave. Por isso talvez eu tenha o direito de saber. "
Olha para ela, ele, o homem que se sabe condenado, o homem que não liga muita importância à vida porque está cansado do seu suplício. Olha para a esposa com uma certa ternura, muita indulgência e pena.
"Tem razão, Viviane. É portanto consigo que vou falar em primeiro lugar.
" Eu não evoco muitas vezes o meu primeiro casamento. Teria sido feliz se, ao fim de uns meses de paz. Você sabe que eu fazia parte das forças canadianas da O. T. A. N. em França. Acantonado em Orleães, foi lá que conheci Gilberte, que a amei e casei com ela. Mas tive de partir para a Coreia, onde acabava de rebentar a guerra. Fui gravemente ferido, feito prisioneiro, dado como desaparecido. Anunciaram a minha morte. Estava eliminado do mundo dos vivos.
"Foi só três anos mais tarde que fui repatriado para o Canadá. O primeiro papel que me entregaram foi uma carta expedida do hospital de Cosne-sur-Loire, informando-me da morte de Gilberte. Essa carta esperava-me havia mais de dois anos.
- Richard - gemeu Viviane -, tudo isso é atrozmente triste. Mas porque é que. que relação tem isso com um detective?
-Vai sabê-lo rapidamente. Há seis meses, um dos meus velhos companheiros de armas assistiu a uma reunião dos veteranos da Coreia. Encontrou lá outro camarada que fora, como nós, acantonado em Orleães. Esse pediu notícias minhas e de Gilberte, cuja morte ignorava. E a criança, acrescentou ele. Porque a minha mulher, a última vez que esse homem, o comandante Vignon, a vira, estava grávida. Eu sempre o ignorara... "
Richard Lagrange faz uma careta, morde o lábio inferior, crispa as grandes mãos nos braços da cadeira. Enfrenta uma nova crise, apesar da injecção que a enfermeira lhe deu antes de chamar Adrien Le Tort.
O detective toma então o fio do seu relato dirigindo-se a Viviane:
"Foi a esse propósito que o Sr. Lagrange se pôs em contacto comigo, em Paris, minha senhora, e me encarregou de procurar o rasto dessa criança. Pode ter a certeza de que não foi fácil. Finalmente, encontrei em Brouges o registo de nascimento, feito por uma certa Thérèse Dupré, duma pequena Geneviève Lagrange, filha de Richard e Gilberte Lagrange, nascida a 22 de Fevereiro de 1951. Existem em França muitas Geneviève Lagrange e eu segui diversas pistas. Após várias diligências, estou agora em posição de afirmar que a única que pode ser filha do seu marido
é a Geneviève Lagrange que vive em Saint-Julien, a trinta quilómetros daqui. "
Richard acalmou, mas franze as sobrancelhas: "Ainda não chegou a uma certeza?
- Ela parece ter a idade que a sua filha teria. Mas os que vivem com ela parecem estranhamente ignorar-lhe os pais e o local de nascimento. Note que eu não quis fazer perguntas muito concretas, nem a ela própria, nem à Sr. á Lebrun, sua madrinha. Uma mulher que a recolheu, a educou, em casa de quem ela ainda vive.
- Porquê todas essas reticências?
- O senhor é muito rico, Sr. Lagrange. A sua fortuna é tentadora e pode dar ideias. por exemplo de preparar as coisas de maneira a provar aquilo que, talvez, não seja verdade.
-Deformação profissional, Sr. Le Tort! Há neste mundo pessoas honestas. Volte a falar com a Sr. Lebrun e obtenha certezas. "
O tom de Richard é peremptório. Despede-se. Le Tort não tem mais remédio senão cumprimentá- lo, eclipsar-se, pôr-se em busca o mais cedo possível das certezas pedidas. O Sr. Lagrange é um cliente que exige em troca do seu dinheiro e depressa. Não deve ser um doente cómodo. Como é de lamentar, aquela mulher ainda nova e tão bonita, amimada sem dúvida, mas que deve viver na sombra dum senhor.
Assim que ficam sós, Richard volta-se para Viviane:
"Não pense, Viviane, que eu quis esconder-Lhe o que quer que seja. Tudo até ao presente, neste caso, eram apenas vagas suposições. Eu esperava.
-Mesmo assim, fez questão de vir instalar-se em França, em Annecy, assim que supôs uma pista, e isso em prejuízo da sua saúde - sublinha Viviane.
-A minha saúde tem menos importância para mim do que a esperança de encontrar Geneviève. Não tenho muito tempo à minha frente. Oh! não protesto. Sei bem o que digo. "
O rosto tão móvel de Viviane exprime uma angústia que não é fingida. Além disso, há uma ideia que a atormenta:
"Como é que Gilberte, à beira da morte, não tomou disposições, não deixou sequer cartas, não confiou aos seus parentes uma mensagem, a não sei quem.
- Gilberte não tinha parentes. E não esqueça que eu passava por morto. Mais tarde, quando soube a notícia, não havia para mim hipótese de viajar. Só se soube a minha direcção no Canadá por uma carta minha que Gilberte conservara consigo. Ela repousa no cemitério de Cosne-sur- Loire. Se eu pudesse lá ir. Mas quero primeiro encontrar a nossa filha. E.
Batem à porta. É Henri Castel, o belo Castel, o homem de confiança de Richard Lagrange, o administrador da sua fortuna, que veio com ele do Quebeque.
Richard falou de mais hoje. Cansado de se endireitar e de simular, aperta a mão de Castel ao mesmo tempo que lhe pede que o deixe em paz:
"Preciso de estar só. A minha mulher contar-Lhe-á os acontecimentos desta manhã. Podem obrigar-me a decisões rápidas.
-Estou, como sempre, à sua inteira disposição. " Em baixo, no grande salão, Viviane conta a Henri a história de Gilberte e de Geneviève. Fora do quarto do marido torna-se outra mulher, mais descontraída, um pouco coquete, com dez anos menos às costas. Uma mulher que se parece mais com a actriz que era na época do seu casamento.
Henri Castel escuta-a com uma sombra de ironia no olhar. Um olhar que sabe aveludado, acariciador. Declara, num tom cómico:
"Nadamos em pleno mistério, em pleno melodrama! Escute a história da pequenita perdida, reencontrada por. milagre ao fim de vinte anos! "
Depois, num tom natural:
"É um aborrecimento para si, Viviane. Você não parece dar-se conta disso! "
Viviane sente-se um pouco magoada.
"Aquilo de que me dou conta, mais do que nunca, é de que Richard só amou verdadeiramente uma única mulher na sua vida: Gilberte. Eu não soube substituí-la. Como se sentiria feliz em conhecer a filha! " Henri Castel lança o seu olhar irresistível e assenta uma longa mão possessiva no ombro de Viviane, que, imperceptivelmente, estremece:
"Você há-de ser sempre a mesma, minha cara, desinteressada até à inocência. Se o seu marido encontrar a filha, a sua situação arrisca-se a mudar completamente. Eu, seu braço direito, não sei sequer se ele fez testamento. Tem de se defender, Viviane! Esteja tranquila, eu ajudá-la-ei com todas as minhas forças!
- Eu sei, Henri, e agradeço- Lhe. ", murmura a futura viúva.
De pé naquele cemitério embalsamado de rosas e de cravos, Geneviève ignorava as complicações produzidas pela sua intrusão na vida de Richard Lagrange, de Viviane e até de Castel. Mas lembrava-se, com uma acuidade singular, de episódios vividos desde o seu encontro com o "investigador", cuja verdadeira profissão soubera rapidamente.
O seu trabalho quotidiano prosseguira primeiro com o desfile habitual das crianças. Com uma vigilância incansável, assinalava uma dilatação de estômago, um começo de escoliose, uma fraqueza dos brônquios. Dirigia-se às escolas, contactava com os pais, com os professores, procurando detectar as dificuldades familiares, de que tantos garotos sofriam as consequências.
E, durante esse tempo, Adrien Le Tort tornava a falar com a Sr. Lebrun, muito excitada por saber que aquele homem não era representante duma firma de electrodomésticos, mas que vinha para lhe falar de Geneviève Lagrange, sua afilhada.
E contava:
"Tudo o que posso dizer-lhe, senhor, é que Geneviève fora confiada a um casal Vandenberghe, que ficara com ela apenas por algum tempo. Ninguém a reclamava. Então, o meu pobre Roger e eu ficámos contentes por recolher essa rapariguinha, que, sem nós, teria ido para a Assistência Pública. Que alegria para ela se encontrasse a família! Nessa época, nós tínhamos no entanto feito buscas na região. Sem poder obter a mínima indicação!
-Esses Vandenberghe, ainda vivem na Côte-d'Or? - perguntava Le Tort.
-Ele, penso que sim, mas a Sr. á Vandenberghe morreu. Eles tinham recebido a guarda desse bebé das mãos duma mulher que trabalhara durante uns meses na sua estalagem, antes de desaparecer sem deixar a morada. Não era a mãe de Geneviève, em todo o caso. Essa mulher era demasiado idosa. "
O detective concluíra:
"Creio que vou falar com esse Vandenberghe. Mas nem uma palavra à sua afilhada! Arriscar-se-ia a ficar desiludida. "
Esconder uma conversa a Geneviève? A Sr. á Lebrun não fora capaz disso durante mais duma hora, recomendando-Lhe:
"Não te suba isso à cabeça, sobretudo! Ainda não se tem a certeza de nada. "
Nessa noite, Geneviève não pudera dormir um só instante. Revivia o seu terrível desgosto de criança, quando soubera que os Lebrun não eram os seus pais verdadeiros. Agora nascia aquela esperança de conhecer seu pai. Mas deveria ela abandonar a Mamie, porque o Sr. Lagrange era um homem rico? Não, nunca! Todavia, se esse pai a amasse, se eles se prendessem um ao outro? Vamos, nada era certo. Nada, nada, nada! Sem dúvida que ficaria para sempre como filha de pai e de mãe quase incógnitos.
No dia seguinte, no entanto, o detective entregava-se à penosa entrevista com o velho Sr. Vanden berghe, no seu asilo em Savigny, na Côte-d'Or.
"Está tão longe, tão longe, tudo isso", repete o antigo estalajadeiro. "A minha pobre memória, compreende. "
Mas, como Adriane espicaça aquela memória que fraqueja, o velho acaba por se lembrar, incompleta mente, esporadicamente:
"Ela era tão engraçada, a pequena, tão alegre. sempre sorridente. E tão completamente abandonada. Teríamos ficado com ela, mas a minha mulher já estava muito doente. Os Lebrun tinham-se hospedado, um Verão, no nosso hotel. Pediram-no-la. Então. Dela só conhecíamos um nome: Geneviève Lagrange.
-E o nome da mulher que vo-la tinha confiado? Não era Thérèse Dupré? - insinua Le Tort.
- Creio que sim. Já não sei. Foi há tanto tempo! " Magra colheita de informações para levar aos La grange. No entanto, a Sr. a Lebrun confiou ao detective uma pequena fotografia da rapariga. Assim que entra na sua posse, Richard Lagrange contempla-a avidamente:
"É a minha filha, Sr. Le Tort! ", afirma ele. "parece-se demasiado com a mãe para que eu possa enganar-me. Agora cabe-lhe a si estabelecer a prova formal. "
Está bastante aborrecido, Le Tort. Uma outra investigação chama-o aos Estados Unidos, por três semanas. Isso desagrada ao doente autoritário, que se irrita e lhe declara secamente:
"Então dispenso os seus serviços. Vou contratar outro detective. Quanto lhe devo?
- Lamento, senhor. Enviar-lhe-ei o montante dos meus honorários e da minha nota de despesas. "
Viviane, ao entrar no quarto donde Le Tort acaba de sair, encontra o marido vibrando de cólera, com a respiração difícil, mal dissimulando a sua dor. Mais uma crise. Grave. Muito depressa, a enfermeira, a injecção.
Nos dias que se seguem à partida do detective Richard é presa da febre. Assim que fica só, absorve-se na contemplação duma fotografia amarelecida de Gilberte, tirada no tempo dos seus amores. Quando Viviane volta para o pé dele, esconde a preciosa imagem na algibeira do roupão. Porque é que havia de duvidar? Porque é que havia de hesitar? O seu ins tinto manda-lhe precipitar as coisas. Geneviève é o retrato de Gilberte: o mesmo rosto redondo, os mesmos olhos, a mesma testa, a mesma boca, pequena e tão carnuda.
"Eu quero falar com Geneviève, faço questão disso! ", anuncia ele por fim à mulher. "Que ela venha aqui amanhã. Peça a Castel que a convoque, assim como ao meu notário, o Dr. Montigny! "
Viviane inclina lentamente a cabeça, depois levanta
os olhos para o doente e pergunta com tristeza: " "Você gostou muito de Gilberte, não é verdade?
Alguma vez deixou de pensar nela?
- Perdoe-me, Viviane, mas ela era a minha juventude. Nesse tempo, eu não arrastava um lamentável corpo de inválido. Telefone depressa a Castel. "
O escritório de Castel fica no centro. Ele trabalha ali com a sua secretária, Fabienne, muito mais jovem do que Viviane e tão íntima com o patrão. Castel não tem segredos para ela, ou muito poucos. Um, apesar de tudo: o interesse muito particular que tem pela futura viúva do riquíssimo canadiano.
Acabada a comunicação, desligado o aparelho, ele resmunga:
"Que maçada! Lagrange exige falar com a filha. Enfim, com a sua filha. Uma parecença nunca cons tituiu uma prova! Quanto ao processo! paupérrimo!
-Em que é que o aborrece que Lagrange tenha uma filha?
-Não arme em idiota! Lagrange não vai já durar muito. Se a mulher herda, tudo está certo. Eu conti nuarei a gerir os seus negócios. Mas se for a filha. Pois bem, vou chamá-la, já que tenho de o fazer. "
A rapariga, essa, fica um pouco surpreendida por receber um telefonema insistente do procurador de Richard Lagrange. Marca-Lhe uma entrevista para o dia seguinte às seis horas, nos arredores de Annecy. Ela lá irá! E se esse Richard Lagrange fosse na verdade seu pai?
As faces de Geneviève coraram, o seu coração bate com mais força. Não estava tão emocionada quando se ia encontrar com Jean-Luc, o seu noivo, que voltou com a palavra atrás. Jean-Luc, que ela teve a infelicidade de amar.
Quanto ao notário, o Dr. Montigny, Castel vai ter com ele ao seu escritório. Traz o processo respeitante à filiação de Geneviève e repara na sua pouca espessura. O Dr. Montigny não é muito falador. Quando Castel fala de "últimas vontades" encolhe-se, com uma dignidade temperada dum certo espírito, por detrás da barricada do segredo profissional.
"O testamento do Sr. Lagrange? O Sr. Lagrange ainda não morreu, que eu saiba! Só em tempo e lugar próprios respondo às perguntas que me são feitas por um terceiro. "
Geneviève, entretanto, tenta afastar a obsessão que zumbe à sua volta como uma vespa, absorvendo-se ainda mais no trabalho que tanto ama.
"Richard Lagrange é meu pai? Sabê-lo-ei talvez esta tarde. Mas afinal de contas, se o é, isso em nada alterará a minha vida. A minha vida é ajudar todos estes garotos a resolver os seus problemas de saúde. Como o pequeno Paul Sahel, entre outros. Os pais nunca responderam à nossa convocação. Torna-se estranha, essa recusa. "
Um caso muito especial, bastante perturbador mesmo, o daquele rapaz, filho de crioulos recentemente imigrados em Genebra. Durante uma visita médica, Geneviève descobriu no corpo da criança manchas insólitas, no peito, no ventre, nas pernas. Ele afirma não ter caído e nunca briga, di-lo a sua professora. Então? Pancadas? Os pais parecem ser boas pessoas, disse ainda a mestra. Mas porque é que esses Sahel não respondem quando se tenta contactar com eles?
Ela está preocupada, Geneviève. Por isso a decisão do Dr. Terrier alivia-a quando lhe ordena:
"Peça à sua amiga Monique que a acompanhe de carro a casa dos Sahel. Temos em absoluto de falar com eles. "
A família Sahel vive num dos bairros mais populosos da cidade, num prédio bastante miserável. Os Sahel, aliás, não estão em casa. É uma vizinha que se põe à janela, a limpar as mãos ao avental, que informa Geneviève.
"Não vale a pena esperar por eles. Essa gente não tem horas! O pequeno Paul, conheço-o. Às vezes fico com ele. O que posso dizer é que não são más pessoas. "
Nada está portanto esclarecido sobre o "caso Sahel", enquanto na sumptuosa vivenda de Annecy Richard está cada vez pior. Não só o médico proíbe as visitas, mas fala em chamar uma ambulância, em o mandar para uma clínica. O coração fraqueja. Viviane e Castel são da mesma opinião: tem de se anular aquelas entrevistas insensatas na hora presente, impedir Geneviève de se apresentar.
Geneviève, Geneviève. No seu leito de dor, Richard controla quanto pode as palpitações do coração agitado. Num murmúrio, pergunta no entanto:
"Ela ainda não chegou?
- Não, Richard - responde Viviane. - Suplico-lhe, acalme-se! O médico recomendou.
-Não me fale dos médicos. Há muito tempo que não acredito neles. Só espero por. Geneviève. "
A sua última palavra, o seu último suspiro, o seu último entusiasmo.
Nesse mesmo instante, as duas raparigas chegam diante da bela porta de ferro forjado, no carro de Robert, o jovem garagista noivo de Monique – porque Rosalie se recusou a arrancar. Geneviève tem as pernas fracas, a garganta estrangulada. Monique tenta brincar e empurra-a em direcção à casa:
"Não temos assim tanta pressa, mas se ficares para dormir previne- nos! "
O criado de quarto abre a porta. Um homem ainda jovem recebe Geneviève no vestíbulo:
"A menina Lagrange? Henri Castel, procurador do Sr. Lagrange. Fui eu que lhe telefonei... Acabo de tentar pôr-me em contacto consigo, mas já tinha saído. Estou desolado. O Sr. Lagrange está muito mal. Não poderá recebê-la. "
Muito mal. Vai então morrer, o homem que é talvez seu pai. Com que é que ela tinha sonhado, como a rapariguinha de outrora? Com um homem forte e jovial, que a levantaria nos braços? "Todos os sonhos são loucos. " O tempo da infância já passou.
Uma mulher desce a escada, a correr, despenteada. Com ar desvairado, chama:
"Henri! Henri! "
Terá visto Geneviève? Não nesse momento, porque se atira, a soluçar, sem nenhuma espécie de complexo, contra o ombro de Henri Castel:
"Henri, creio que... acabou!
Como não Lhe prestam atenção, Geneviève dirige-se para a escada e sobe-a lentamente, degrau após degrau.
a única visão que terá tido de seu pai: um homem estendido, de feições enérgicas, quase duras, que a morte adoça pouco a pouco. Não houve ainda tempo de fazer a toilette fúnebre, de cruzar as mãos sobre o peito silencioso. Uma enfermeira e uma criada agitam-se no compartimento vizinho:
"Dá-me o grande lençol bordado. Como é que vamos vesti-lo?
-Vamos perguntar à senhora. Pobre senhor, já não sofre! Pode dizer-se que é uma libertação! "
As duas mulheres voltam para o quarto, olham para Geneviève com surpresa. Ela está fascinada pelas mãos inertes, mas não ousa inclinar-se para as beijar. Beijam-se as mãos dum desconhecido? Mesmo que aquele homem fosse seu pai, era aquilo que ficaria para ela: os restos mortais dum desconhecido. Esboça um sinal da Cruz e vai-se embora.
A escada e o vestíbulo estão desertos. A noite desce sobre o jardim, onde o carro a espera. A Monique e Robert diz apenas, com uma voz neutra:
"Morreu. Vamo-nos embora. "
Essa morte, o médico, chamado de urgência, só pode confirmá-la. Para com Viviane mostra-se cheio de emoção.
"Eu sei, minha senhora, com que admirável dedicação tratou do seu marido. Eu próprio fiz o que pude. Mas ai, sem êxito! O nosso doente não nos ajudou nada. Certamente recusava a vida limitada que tentávamos conservar-lhe. Teremos o direito de Lho censurar? Mas a senhora, em todo o caso. "
Ele diz a verdade. Viviane não terá nada a censurar-se a respeito do marido. Admirava-o apaixona damente, àquele homem, àquele carvalho fulminado. Tinha-o amado, àquele ser olímpico, dotado a seus olhos dum poder sobrenatural.
Retirado o médico, vigiado Richard por duas religiosas, Viviane deixa-se convencer por Castel a voltar ao salão. O cenário lembra-lhe a visão fugidia dum rosto de rapariga que só podia ser Geneviève, a que Richard invocou como sua última esperança.
"Henri, era a pequena Lagrange, não é verdade? Porque é que não ficou?
- Suponho que compreendeu que o seu lugar não era aqui.
-Mas, Henri, a vontade de Richard... " Castel segura-a pelos ombros e olha-a no fundo dos olhos. A sua voz murmurante fortalece-se, como a dum adulto que, falando a uma criança, renuncia a " "armar ao sentimento" para se apoiar na razão:
"Viviane, a sua dor é grande. Você possui uma alma leal, e para si a vontade dum morto reveste o carácter mais sagrado. Compreendo isso. Mas Richard, não tenha dúvidas, teria esperado por provas para estender os braços a essa rapariga que ninguém sabe donde vem! Essas provas, procurá-las-emos. Encontrá-las-emos, se existirem. Mais tarde. Já não há pressa. Presentemente, minha cara amiga, é só em si que é preciso pensar. "
Viviane chora sinceramente o marido. Mas foi actriz. Embora sem outro talento para além da beleza, criou há muitos anos, junto de Richard, uma personagem de heroína, de modelo de dedicação conjugal. Não vai, dum momento para o outro, abdicar dessa atitude, para se lançar, de mãos abertas, sobre a herança. Acontece que o actor, a actriz, entre autenticamente na pele do seu papel. É o que se passa naquele momento.
De boa-fé, compadece-se:
"Essa pobre criança! Esperar por um pai e só o encontrar para saber da sua morte! Seria desumano abandoná-la à solidão, à pobreza. "
Castel não pode deixar de sorrir.
"Viviane, Viviane! Essa rapariga nem está só, nem é miserável. Mesmo assim, devemos ter pena dela, concordo, ainda que menos do que de você, que destruiu a sua carreira e sacrificou os mais belos anos da sua vida para tratar um homem doente! E você, amiga, não fica só daqui por diante? Repouse, descontraia-se. Eu vou ocupar-me de tudo. Não tem confiança em mim?
-Oh! sim, Henri, plena confiança. A sua presença, a sua amizade, são para mim uma grande consolação. Que faria eu sem si? "
Geneviève não tem um Castel para a reconfortar. Para ela, a mesma vida continua. O Serviço de Saúde, as escolas e os alunos. As consultas diárias. E aquelas manchas inexplicáveis que subsistem no corpo do pequeno Paul Sahel.
Impossível apanhar os pais. Monique acha que ela se preocupa demasiado com aquele garoto. Muito mais do que eles, sem dúvida! Mas Geneviève não quer condenar já os Sahel. Pessoas que estão longe do seu país, num universo diferente, têm de desconfiar de tudo e de todos.
Pela segunda vez, depois das horas de trabalho, pede à amiga que a leve com Rosalie ao triste arrabalde que as raparigas conhecem já.
Finalmente, eles encontram- se lá, os dois. Rostos magros, ossudos, olhos cheios de nostalgia, mãos rudes.
São limpos, muito educados, sem nenhuma espécie de subserviência. A habitação minúscula está bem tratada.
"Não pudemos levar-lhe Paul - disse Sahel com uma voz cheia de sotaque. - Trabalhamos. Perde-se tempo com a papelada das repartições. Quanto às manchas no corpo, não é a primeira vez que isso acontece, mas não Lhe dói em parte nenhuma.
-Neste momento, onde é que ele está?
- No campo, em casa de amigos. Estava um pouco fatigado. Quando voltar, na segunda-feira, vamos fazer o possível por lho levar. "
A proposta é demasiado vaga para que Geneviève se contente com ela. Após um instante de embaraçoso silêncio, faz uma contraproposta:
"Se isso lhes causa transtorno, eu própria virei buscá-lo.
-Encantados, está bem! Digamos ao meio-dia. Deixamo-lo em casa da vizinha. O que lhe podemos dizer, a minha mulher e eu, é que nunca lhe batemos. "
Geneviève está intimamente convencida disso. "Acredito, Sr. Sahel. Aquelas manchas têm seguramente outra causa. É para descobrir essa causa que temos de examinar o seu pequeno no Serviço de Saúde. "
É na noite do mesmo dia que a Sr. á Lebrun mostra a Geneviève e a Monique um artigo no jornal local:
O Sr. Richard lagrange, proprietário de imensas florestas e terrenos agrícolas no Quebeque, instalado há pouco na nossa cidade, faleceu ontem, após uma prolongada doença que provocou sofrimentos corajosamente suportados...
"Falam de Viviane e até de Geneviève", sublinha a Sr. Lebrun.
Ele teria vindo para este país com a esperança de encontrar uma filha do primeiro casamento, antes do seu segundo casamento com Viviane Brézol, que teve a sua hora de notoriedade e, por amor dele, renunciou ao palco. "
A notícia necrológica continuava com a indicação do dia e da hora do funeral: dois dias depois, às quatro horas, cerimónia religiosa. Vinha em seguida a última menção:
Segundo a vontade do defunto, o enterro realizar-se-á numa estrita intimidade familiar.
Agora, tudo estava de facto acabado. O organi zador do funeral guiava a viúva por uma álea um pouco afastada da cova.
Depois virava-se para Geneviève:
"Menina, se é da família... "
Bruscamente arrancada ao seu sonho, ela sacudiu a cabeça e afastou-se, sozinha.
Várias pessoas a tinham olhado, com curiosidade, provavelmente por causa da notícia do jornal. Mas sobretudo, duma maneira um pouco mais insistente, e sem simpatia, Henri Castel.
A vida continuava. A vida continua sempre. "Os cemitérios", disse um sábio, "estão cheios de pessoas indispensáveis. "
As revessas causadas pela morte de Richard Lagrange só faziam chegar as suas ondas em volta do pequeníssimo número de pessoas directamente interessadas na questão da herança. Em volta de Viviane e de Castel (sobretudo), que a dita questão apaixonava, em volta de Geneviève, que pouco se importava com isso, mais absorvida por um problema de ordem sentimental.
Outra pessoa se preocupava também, todavia: o Dr. Montigny, o notário de Richard, cujo papel ia ser preponderante. Um homem amável, esse notário mundano, tão rico de consciência como de habilidade profissional. E depois, até agora, não era o Dr. Montigny o único que conhecia as últimas vontades do seu riquíssimo cliente?
Aquele processo Lagrange prendia-lhe toda a atenção. Conhecedor das reacções humanas, o notário previa lutas em água turva e talvez até brigas, o que não deixava de lhe agradar. Estava pronto a enfrentá-las. Por isso, a esposa e o filho raras vezes o tinham visto tão excitado e tão avaro de confidências.
É verdade que não o via muitas vezes, ao seu filho Bernard, que acabava de chegar dos confins da África, onde começara a exercer a sua profissão de médico. Menos uma profissão do que um apostolado, podia dizer-se. O jovem médico não corria o risco de enriquecer ao instalar-se, com um pequeno grupo de colegas e de enfermeiras, num hospital do mato, para aí salvar da doença e da morte seres que se encontravam entre os mais miseráveis. Questão de vocação. o Dr. Montigny pai compreendera-o.
Durante muitos anos, Geneviève perguntara a si mesma quem poderiam ser os seus pais. Não punha a si própria a obsidiante interrogação agora mais do que no passado: "Esse homem, esse Richard Lagrange, seria o meu pai? "
Sabê-lo-ia alguma vez?
A Sr. á Lebrun, Monique e Robert, cada um segundo o seu temperamento, esforçavam-se por a arrancar ao seu triste desejo de solidão. Mas a Sr. Lebrun conhecia-a demasiado bem para pensar em "sacudi- la", como faziam os outros.
Delicada e discreta, Geneviève sempre tivera ten dência para se fechar em si própria, desde o dia em que soubera que vivia à margem dos lares estruturados: o pai, a mãe, os filhos, o estado civil sem mistério, a hereditariedade sem problemas. As emoções dos últimos dias não eram de molde a torná-la mais expansiva, mais dinâmica, fora do seu trabalho quotidiano - esse trabalho ao qual dedicava o melhor da sua alma e da sua energia.
No domingo que se seguira ao funeral, a jovem saíra de casa da madrinha, sem dizer aonde ia, e a Sr. á Lebrun não lho perguntara. Tinha a esse respeito uma vaga ideia.
Mas Monique, que acordara tarde, quase se zangou.
"É mesmo dela! Nós podíamos tê-la levado a almoçar numa tasca formidável, à beira do lago.
-Não a forces, Monique!
- É um ponto de vista! Enfim, se ela vier dentro de pouco tempo e Robert já tiver vindo buscar-me, faça favor de Lhe dar a direcção deste restaurante. "
Geneviève não iria ter com os amigos nesse dia. A sua obsessão conduzia-a ao cemitério onde Richard repousava.
Teria sido incapaz de determinar, há quanto tempo estava ali, diante da sepultura, de pé, imóvel, com as mãos juntas, os lábios cerrados numa muda oração, quando ouviu passos atrás de si. Sem que tivesse pensado em voltar-se, os passos aproximaram-se, fazendo ranger o saibro da álea.
Uma voz muito meiga pronunciou:
"A Menina Lagrange?
-Sim, minha senhora. Bom dia. Como vê, eu vim. Eu. eu peço- Lhe desculpa. "
Viviane Lagrange não parecia nada chocada com a presença de Geneviève, mas as duas mulheres não sabiam o que dizer uma à outra. Viviane inclinou-se, depôs o ramo do seu jardim que segurava na mão. Depois olhou para Geneviève e declarou com a mesma voz inexpressiva, sem qualquer hostilidade, como para quebrar aquele silêncio:
" Eu sou a mulher. enfim, a viúva, de Richard.
- Já a tinha reconhecido, minha senhora.
- Quando a vi, lá em casa, nem sequer pude falar-lhe. Estava tão transtornada. Porque é que saiu tão depressa? "
A rapariga não respondeu. Viviane suspirou, indicou a pedra:
"É uma sepultura provisória. Vou tratar de mandar fazer um jazigo. Pensei. Richard ficaria contente. em trasladar para lá o corpo da sua mãe. "
Os lábios de Geneviève entreabriram-se. Murmurou:
"A minha mãe. Talvez que não fosse a minha
mãe. "
O olhar de Viviane pormenorizou-lhe todas as feições do rosto. Teve um meio sorriso infinitamente melancólico:
"Oh! sim, Geneviève. Encontrei a fotografia dela numa algibeira do roupão do meu marido. Não permite qualquer dúvida. Teria muito prazer em lha mostrar.
-Oh! minha senhora, seria muito amável da sua parte.
-Aceite portanto esta proposta com toda a simplicidade. Eu gostaria de falar do meu marido. Sobretudo consigo, Geneviève. Autoriza-me a chamar-Lhe assim?
- Com certeza.
- Venha. O meu carro está aqui. "
Ao fim dum breve trajecto, Geneviève viu de novo a casa que a morte visitara, o parque bem tratado, a porta soberba, o vestíbulo onde fora recebida por aquele homem bastante pretensioso que se chamava Henri Castel. Lançou um demorado olhar à escada que subira, a fim de examinar, pela primeira e última vez, as feições daquele que, talvez.
Viviane fê-la sentar-se num salãozinho e, com uma mão que tremia, estendeu-lhe a fotografia. Geneviève teve a perturbadora impressão de se ver a si própria, vestida e penteada à moda de há vinte anos atrás. Era como se lhe revelassem a sua imagem duma vida anterior.
"Pobre Richard - pronunciou sonhadoramente Viviane -, as pessoas julgavam-no duro, intratável. Oh! nunca comigo. No que me dizia respeito, ele era a cortesia personificada. Se lhe acontecia zangar-se, tinha desculpa, porque nunca deixava de sofrer por causa daquela terrível ferida.
-Uma ferida de guerra, disseram-me, que o deixara enfermo?
-Recebera uma bala na coluna vertebral e não puderam extraí-la. Por isso, arrastava a vida da cadeira para o sofá-cama. Mas subsistia nele uma tal vontade. "
No olhar triste da rapariga acendia-se uma centelha. Nunca teria ousado imaginar que lhe falariam de Richard Lagrange naquele tom de intimidade, nem que aquela mulher desconhecida lhe ofereceria o partilhar as suas dolorosas recordações. Se aquele homem, realmente, fora seu pai, ela só poderia conhecê-lo um pouco, dali por diante, através de Viviane.
Descontraiu-se, respirou mais livremente, surpreendeu-se a perguntar:
"Como é que se encontraram?
- Ele estava à frente de obras de caridade, de fundações para os doentes. Eu tinha vindo recitar uns poemas por ocasião duma festa de beneficência. Nessa época, eu era actriz.
-Soube isso pelo jornal, com efeito. " Viviane suspirou. "Tudo isso vai já tão longe! Richard fascinou-me. Quanto a mim, creio que o diverti. Não, mais do que isso. Ele sentiu-me desarmada, receando a vida, uma vida de que ele próprio não esperava grande coisa já. Dir-lhe- ão que casei com ele pelo dinheiro. Não é verdade, porque, nessa época, as florestas não tinham ainda adquirido aquele valor fabuloso. Nós estabelecemos uma espécie de pacto que nunca traímos, nem um, nem outro. Eu só queria amá-lo. Sentia-o sempre na defensiva. Bem vê, houvera a sua mãe. Gene viève, esta fotografia dela, dou-lha. "
As lágrimas subiram aos olhos da rapariga. Meteu na carteira a imagem inesperada, limpou os olhos, perguntou de novo:
"Como é que puderam perder-se, quando se amavam tanto? "
Sem se fazer rogada, Viviane explicou: "Richard foi dado como desaparecido, quase logo a seguir ao seu desembarque na Coreia. Não se esqueça de que ele era militar de carreira. Toda a gente o julgava morto. A esposa também, sem dúvida. Salvaram-no quase contra sua vontade. Eu imagino que há recordações que são como feridas. Não se deve mexer muito nelas. Encontrámo-nos. Eu não soube fazer-lhe esquecer Gilberte, mas ele deixou de falar nela. Quando decidiu bruscamente vir instalar-se aqui, eu não lhe fiz perguntas: ele detestava isso. Agora, Geneviève, sei que era por sua causa. Todavia, você não era ainda senão uma simples pista entre outras... "
A porta abriu-se de repente. Para entrar, Henri Castel já não tinha necessidade de se fazer anunciar. À vista de Geneviève, franziram-se-lhe as sobrancelhas. A tempestade revelou-se logo no seu olhar negro.
"Henri", começou Viviane com um certo embaraço, "já conhece a filha de Richard? "
Castel mordeu os lábios, cumprimentou, mas não pôde deixar de pôr as coisas a claro:
"Conheço a Menina Geneviève Lagrange. Permita-me, por enquanto, que mantenha a diferença. " Geneviève levantou-se. O encanto quebrara-se. Acabava de conversar com a viúva de Richard como com uma amiga sincera. A chegada daquele homem lembrava- lhe que ficava na dúvida, que havia o direito de a julgar como uma intrusa, uma intrigante. O seu orgulho revoltava-se.
Viviane protestou, no entanto:
"Henri, como é que você pode negar.
- Cara Viviane - declarou ele sem olhar para Geneviève-, você deixa falar o coração, e isso é muito natural, mas eu sou um homem de negócios, que só deve tomar como base as certezas.
- Permita-me que me retire - murmurou Geneviève com voz sufocada.
- Não - disse Viviane. - Insisto para que almoce connosco!
-Tenho muita pena, minha senhora, mas a minha madrinha ficaria preocupada.
-Telefone-lhe. Não, a sério? Mas voltaremos a ver-nos, Geneviève, e muitas vezes, esse é o meu desejo. "
Viviane pegou na jovem pelo braço para a acompanhar até à porta do vestíbulo. Geneviève perguntou a si mesma se deveria estender a mão a Castel. Ele previu o movimento que ela não ousava esboçar e, com um calor imprevisto, fez um esforço de conciliação.
"Menina, apesar do que possa pensar, eu não sou seu inimigo", afirmou- lhe, inclinando-se.
No jardim, apercebeu-se de que se esquecera das luvas. Maquinalmente, deu meia volta, reentrou na casa, tornou a atravessar o vestíbulo. Mas, através da porta do salãozinho que Viviane deixara entreaberta,
auscultou trechos de diálogo:
"Está certo - dizia Castel -, eu não fui amável para com ela, mas era preciso, minha cara. Para seu bem.
-Para seu bem?
- Eu informei-me a seu respeito. "
A voz de Castel era sonora, a de Viviane quase desfalecida. Geneviève ouviu, todavia:
" Tenho a certeza. uma rapariga séria.
-Certamente. A sua intuição, como sempre, não a enganou. Mas é por ela! Volto a repetir-lho. Até agora viveu, não na penúria, mas numa situação medíocre. Por muito desinteressada que seja, não pode deixar de pensar na fortuna de Lagrange, que a si pertence agora. Imagine a reacção dela se se souber que Lagrange não era seu pai, ou se ela não puder provar nada, o que vem a dar exactamente no mesmo. "
De novo a voz muito fraca de Viviane: "Aconteça o que acontecer, decidi dar-lhe uma quantia importante.
-Como é impulsiva, Viviane! Mas tudo será feito como desejar. Estas últimas palavras, pronunciadas em voz muito alta e com ênfase chegaram aos ouvidos de Geneviève quando saía a porta e se encontrava no jardim. "Fico sem as luvas. Paciência! Não eram novas. E mesmo que fossem. "
Não teve coragem de ir almoçar a casa, a Saint- Julien. Ler-lhe-iam a preocupação no rosto. Moni que enchê-la-ia de perguntas e sacudi-la-ia, "para seu bem". Robert julgar-se-ia obrigado a contar histórias engraçadas, "para seu bem". Quantas pessoas queriam então o seu bem! Onde estava ele, esse bem? Se ao menos ela própria o soubesse! Só a madrinha tinha o tacto de se calar, mas suspirava que cortava o coração, o que não se mostrava muito mais famoso como resultado. Geneviève passeou sem objectivo e almoçou finalmente uma sanduíche num bar. Como tinha começado a chover, tomou um autocarro e foi para casa.
"Até que enfim, chegaste! " Monique e o noivo acabavam de voltar do restaurante.
A pequena tasca formidável revelara-se o reino da roubalheira.
"Ainda bem que não foste ter connosco! -disse Monique. -Robert teria ficado teso por três meses em vez de dois.
- Não é esse o caso - protestou Robert dignamente -, mas esta chuva desmoralizou-nos, para além do facto de estarmos preocupados contigo. A tal ponto
que, por momentos, pergunto a mim mesmo se é com Monique que vou casar ou com as irmãs siamesas Monique e Geneviève!
- E agora, que é que vamos fazer? Uma partida de bisca? ", propôs a Sr. á Lebrun.
Instalaram-se os quatro em volta duma mesa de jogo. A Sr. á Lebrun distribuiu as cartas. Mas Geneviève esforçava-se em vão por se interessar por aquelas que tinha na mão. Não conseguiu, perdeu todas as oportunidades e acabou por provocar as censuras de Robert:
"Minha pequena Geneviève, compreende-se que estejas noutro lugar e não connosco. Mas de que te serve arreliares-te? Isso não te vai restituir o teu pai, se era ele. Por outro lado, é tentador, o dinheiro, mas – não fui eu o primeiro a dizê-lo- nem sempre traz a felicidade. "
Ela atirou todas as cartas para cima da mesa e levantou a cabeça: "Eu não penso no dinheiro, Robert. Estou-me completamente nas tintas. Mesmo que me oferecessem a
herança, creio que recusaria. "
Monique protestou:
"Isso exige reflexão, apesar de tudo! "
Geneviève cruzou as mãos sobre a mesa. Já não foi
capaz de disfarçar a expressão do seu tormento.
"Preciso duma certeza! Vejam se me compreendem. Permitem-me agora esperar uma resposta à pergunta que faço a mim mesma desde sempre. Pois bem! Essa resposta, quero conhecê-la.
- Minha pobre filha - suspirou a Sr. á Lebrun -, como queres tu...
-Não sei, Mamie, mas irei até ao fim.
- Ao fim de quê? - perguntou Robert. - Talvez que não haja nada, no fim.
-De qualquer modo, algumas imagens e uma história, que virá a ser a minha.
- E se não conseguires saber? - disse Monique num tom desiludido.
- Pelo menos, tento. Além disso, aconteça o que acontecer, não hei-de morrer por isso, não é verdade, Mamie? Não seremos menos felizes tu e eu.
-Com certeza, minha filhinha. "
O fim do dia foi triste, apesar dos esforços de todos. E uma vez mais Geneviève se pôs a pensar no seu trabalho como num refúgio.
No dia seguinte, tal como fora combinado, foi buscar o pequeno Sahel para o levar ao Serviço de Saúde. Dois médicos estavam à espera deles, o Dr. Terrier, chefe de serviço, e um dermatologista, o Dr. Armand. Paul abria muito os seus olhos negros, um pouco assus tados, mas corajosos.
"Não tenhas medo - disse o Dr. Terrier -, não te fazemos mal.
- Eu não tenho medo.
- Despe-te.
- Mais? "
Era para Geneviève que levantava a cabeça. Desde o dia em que a conhecera, em que ela lhe falara tão simpaticamente, tão maternalmente, olhava para ela como para uma irmã crescida, mas também como para uma grande sábia, mais sábia do que todos os médicos do mundo.
"Sim, Paul, tem de ser. Se o doutor vai tratar as tuas manchas, tem de as ver primeiro.
-Oh! é só para lhe fazer a vontade. "
A criança, ajudada por Geneviève, começou a despir-se. O corpo e a roupa estavam limpos, mas as manchas espalhadas pelo peito, pelo ventre e pelas pernas tinham-se multiplicado. Os dois médicos e a enfermeira trocaram olhares entendidos.
"Isto dói-te, quando se carrega?
-Não, nem por sombras. Não sei onde apanhei
isto. "
O Dr. Terrier gracejou:
"Ora vê lá, tens direito a dois médicos. Espero que
te sintas orgulhoso!
- Oh! oh! passava bem sem eles!
- É necessário - disse o Dr. Armand - proceder a uma série de análises. Menina Lagrange, queira ter a bondade de tratar da admissão dele no hospital durante um ou dois dias. "
Nos olhos muito vivos do pequeno Paul passou essa snmbra de decepção que testemunha a tristeza duma criança perante a traição dum adulto de quem gosta.
Levantou a cabeça para Geneviève:
"Tinha-me dito que era só durante a tarde...
- Eu própria julgava, Paul, mas o Dr. Armand. que é um especialista, prefere que fiques aqui um
pouco mais de tempo.
-De toda a maneira, mentiu-me. Eu prefiro voltar para casa!
- Não te reteremos à força, mas seria comigo que ralhariam. Queres causar-me aborrecimentos? "
O pequeno pensou e concluiu:
"Isso não, você é muito boazinha!
- Então, vem comigo. Vou levar-te para um bonito
quarto só para ti.
-Fica lá comigo?
-Que ideia, Paul! Tu és muito crescido. Só se faz isso com os bebés, os medrosos, aqueles que choram.
- Está bem. Eu não tenho medo de nada. Mas vai ver-me muitas vezes, não?
-Prometo-te, juro-te. Olha, até cuspo no chão, embora seja proibido. "
Quando Geneviève voltou do hospital, o Dr. Terrier perguntou-lhe como decorrera a hospitalização:
"Ele não pôs muitas dificuldades?
-Nenhuma. Eu aconcheguei- lhe a roupa, beijei-o. Até parecia estar contente. Naquela idade.
-Oh! você domestica as crianças como outros domesticam os animais ferozes. "
Geneviève sorriu. Depois apressou-se a anunciar: "O Dr. Armand é da minha opinião. Nada prova que se trate de pancadas, apesar daquelas manchas inexplicáveis. "
Terrier abanou a cabeça.
"Veremos depois. Agora vai ajudar-me a preparar uns apontamentos. "
No fim da tarde, quando Geneviève voltou para casa da madrinha, a Sr. Lebrun precipitou-se ao seu encontro, visivelmente emocionada.
"Minha querida! alguém telefonou para ti. Quérem falar-te o mais depressa possível.
-Quem era, Mamie? "
Por momentos, supôs que se tratasse de Henri Castel, o homem que ela tinha menos vontade de encontrar, sobretudo depois da conversa ouvida na véspera, de surpresa.
Mas a Sr. Lebrun recomeçava:
"Esse telefonema provinha do Dr. Montigny, o notário do teu. enfim, de Richard Lagrange. Sabes, Montigny, aquele que tem um filho médico lá nos Negros. Ouviste falar nele?
-Do notário, sim. Do filho, não.
- Um belo rapaz. Quando era pequeno, já. " Geneviève encolheu levemente os ombros. Já não ouvia. Era mesmo a altura de lhe falarem dum belo rapaz!
Bernard Montigny tirou do prato do gira-discos o disco que acabava de chegar ao fim. Estendendo o seu enorme corpo, levantou-se da funda poltrona, deu uns passos no quarto e perguntou a si mesmo em que ocuparia o dia.
Durante meses de cansaço e de calor, sonhara com aquelas férias em Annecy, imaginando a sua feliz ociosidade, sob a fresca brisa do lago, sem dedicar um único pensamento às misérias da África. Agora, que estava ali, confessava a si mesmo que se aborrecia. Naquela terra, que era a sua, já não se sentia com pletamente à vontade. Sem dúvida esquecera que, em casa dum notário, se falava sobretudo de dinheiro. O género de assunto que, após dois anos de mato, se lhe tornara o mais estranho, se não o mais detestável.
O jovem acabou por se decidir pelo Clube Náutico. Talvez que encontrasse um ou outro dos seus antigos camaradas. Em geral, também lá se achava um grupo de bonitas raparigas. Bernard não se considerava um santo e sem dúvida que se teria recusado a admitir que o que lhe faltava em Annecy era a sensação de ser útil a alguém ou para alguma coisa. "Deformação profissional", teria dito o Dr. Montigny pai.
Um luxuoso carro parava diante do cartório no momento em que Bernard saía de lá. Dele descia um casal, que não conhecia: uma mulher morena e bonita, elegantemente vestida de luto, acompanhada por um homem igualmente moreno, de tez muito bronzeada. Recém-chegados à região, provavelmente.
Um praticante introduziu Viviane Lagrange e Henri Castel no escritório do Dr. Montigny. Depois de lhes ter pedido que se sentassem em frente dele, com gestos cautelosos e metódicos, o notário estendeu alguns papéis em cima da secretária.
Foi a Castél que se dirigiu:
"O meu caro senhor fez-me perguntas pelo telefone. Na qualidade de representante do Sr. Richard Lagrange, estou hoje em posição de lhe responder. "
Viviane pareceu ficar espantada. Castel não lhe falara daquele telefonema. Mas para que se atormentar? Não lhe repetira ele dez vezes, desde a morte de Richard, que agia, e sempre agiria, como defensor dos seus interesses?
Quebrando um breve silêncio, o Dr. Montigny recomeçava:
"Tenho aqui uma carta do falecido Sr. Lagrange, assinada por ele há dois meses. Ela constitui, de certo modo, um codicilo ao testamento que tinha já redigido:
Eu, abaixo assinado, Richard Lagrange, confirmo uo Dr. Montigny que o encarrego de liquidar a minha herança tendo em conta os direitos da minha filha, se a sua existência vier a ser provada. Em consequência. Feito em Annecy, em.
"Esta carta faz portanto de mim, como o desejava expressamente o Sr. Lagrange, seu testamenteiro. "
Viviane descruzou e tornou a cruzar as longas pernas, cujo contorno era valorizado pelo fino nylon. Olhou alternadamente para o Dr. Montigny e para Castel.
"Não compreendo muito bem. Que é que isso significa, no que me diz respeito pessoalmente?
- muito claro, minha senhora: que a fortuna do seu marido não poderá ser atribuída enquanto não tiver sido esclarecida a filiação, actualmente presumível, da Menina Geneviève Lagrange, domiciliada em Saint-Julien-en-Genevois. "
Viviane sentiu como que uma corrente de ar frio entre os ombros. Os lábios tremeram-lhe:
"Então, eu já não tenho nada? "
O notário ergueu as sobrancelhas. Fez o sorriso nem carne nem peixe com que as pessoas graves se divertem por vezes a temperar as notícias desagradáveis:
"Não vamos tão depressa, minha senhora! Na pior das hipóteses, ficar-lhe-ia o usufruto dos bens do Sr. Lagrange, enquanto. Mas o Sr. Castel, que conhece a lei, explicar-lhe-á tudo isso tão bem como eu. Melhor até, sem dúvida.
- Doutor - interveio Castel, dominando a sua irritação-, posso agora fazer-lhe uma das perguntas que me preocupam?
- Dentro dos limites já definidos, caro senhor.
- A quem compete estabelecer a prova dessa filiação?
À Menina Geneviève Lagrange, bem entendido. Tal como Lhe compete a si provar, sendo caso disso, que ela não é filha do Sr. Lagrange. "
Foi a vez de Viviane intervir, com uma vivacidade que parecia de perfeita boa- fé:
"Doutor, eu não tenho a mínima intenção de lutar contra essa rapariga. Pelo contrário, se puder ajudá- la, esforçar-me-ei por isso, pode ter a certeza!
-Uma tal decisão só a honra, minha senhora. É essa também a opinião do Sr. Castel? "
Seria muito maldoso aquele que tivesse percebido um certo tom de ironia na voz do notário. E, todavia, ele lá estava. Castel dirigiu a Viviane um olhar misto de respeito e indulgência:
"Eu represento doravante as vontades da Sr. Lagrange, mesmo que elas nem sempre coincidam com os seus interesses", aprovou ele em tom neutro.
O telefone interno anunciava um cliente apressado. O Dr. Montigny respondeu: "Sim, dentro dum momento. Já terminei. " Castel fez sinal a Viviane para se levantar. O notário fez outro tanto, inclinou-se, pronunciou em tom distraído:
"Pois então, tudo está perfeito... "
E, perante a crispação dos lábios de Viviane, acrescentou:
"Vou convocar a Menina Lagrange logo que seja possível. Quanto mais cedo este assunto estiver resolvido.
- Mais uma pergunta, doutor, se faz favor - disse então Castel, enquanto o notário se inclinava sobre a mão de Viviane. -A sua posição neste caso qual é?
Um sorriso muito leve alegrou o rosto impassível. "As minhas funções nunca fazem de mim senão um árbitro, caro senhor. Tenho de tratar duma herança e não que a atribuir. As minhas homenagens, cara senhora. Até à vista, caro senhor. "
Os visitantes voltaram para o carro debaixo dum sol resplandecente. Castel conduziu nervosamente até à propriedade. Viviane não dizia nada.
Assim que chegou ao seu jardim, estendeu-se numa cadeira de lona, tirou as meias, desabotoou dois botões do camiseiro, com o desejo intenso de tomar um verdadeiro banho de sol, de ir nadar no lago, de passear; de reviver, enfim! Seria isso próprio, duma viúva tão recente? Ele tinha razão, Henri, quando dizia que ela sacrificara os mais belos anos da sua juventude a um doente. Com compensações, por certo, mas agora não podiam exigir-lhe demasiado.
Desembaraçado do seu casaco, Castel sentara-se a seu lado, mantendo um silêncio irritado. De repente, saltou como se um mosquito o tivesse picado, pôs-se a andar para trás e para diante. E rebentou:
"Ele tinha feito o testamento! Sem nunca nos falar dele. Não, Viviane, nem mesmo a si, sua mulher, sua enfermeira de todos os instantes! Que negligência da sua parte! Você devia tê- lo vigiado melhor.
Ela olhou para ele com um certo espanto: "Vigiá-lo? Henri, você diz cada coisa! Não se vigiava Richard como a uma criança, como a úm velho, como a um tonto! Ele conseguia sempre fazer o que queria. Além disso, você bem sabe, eu não percebo nada de questões de dinheiro.
-É esse o seu drama, minha pobre amiga. Um drama que apenas começa. "
Tiveram um e outro um movimento de cansaço. "Fatiga-me", deplorava Viviane. "O drama, não posso mais com ele! Queria que me deixassem viver tranquila, sem notário, sem contas, sem diligências aborrecidas, sem todos esses problemas de dinheiro. " "Ela é demasiado estúpida", dizia Castel para consigo. Uma vez mais, experimentava a sensação do mestre-escola que se obstina em fazer entrar uma lição no cérebro blindado duma má aluna.
Procurando mostrar-se calmo, ele prosseguiu: "Viviane, você está habituada a um certo modo de vida. Nunca foi obrigada a fazer contas. Se tivesse sido preciso, eu tê-lo-ia feito por si, aliás.
- Só há é que continuar - disse ela, espreguiçando-se.
- Sim, mas quando há muito menos, Viviane. " Ela dirigiu-lhe um olhar aborrecido:
"Você vai abandonar-me porque vou ter menos dinheiro? "
"Inconsciente! ", pensou ele, ao mesmo tempo que respondia com calor.
"Abandoná-la? Nunca. Lutarei até ao fim. Geneviève ainda não provou que é filha de Richard.
-Se for verdade, que poderá você contra isso? " Ele interrompeu o seu vaivém, acendeu um cigarro e colocou-se diante dela:
"Viviane, você foi pobre? "
Sem qualquer embaraço, ela respondeu-lhe: "Oh! sim. Quando conheci Richard, vivia daquilo que ganhava no teatro. Como muitas vezes não representava, não ganhava grande coisa. As digressões, os pequenos hotéis, as sanduíches muito mais vezes do que os jantares de gala. Como isso vai longe! Já mal me lembro.
- Era capaz de recomeçar?
-Não há razão para isso. O notário falou do usufruto, não é verdade?
-O usufruto da terça, Viviane! Você não terá já nem esta casa, nem os seus criados, nem o seu carro. Todo este luxo que a rodeia não passará duma recordação. "
Decididamente teimosa, ela apenas sorriu: "Desde momento que se tenha o necessário, pode dispensar-se o luxo. O sol é de toda a gente", concluiu com serenidade.
Henri Castel apertava os punhos. Como convencer aquela parvinha: uma mulher desinteressada?
Olhando à sua volta, viu surgir dois aliados, um provindo da casa, outro do fundo do parque. O primeiro era o criado de quarto, que trazia uma bandeja carregada de bebidas frescas; o segundo, o jardineiro, que acabava de colher um ramo de rosas.
Viviane endireitou-se um pouco, respirou o perfume das rosas, declarou que bebia de boa vontade um "americano" bem gelado. Henri Castel doseou ele próprio a bebida. Depois abanou a cabeça:
"Cara Viviane, você ainda está aqui em sua casa. Aproveite. Conte comigo para que ninguém a expulse de cá. "
Ela absorveu umas goladas, inclinou a cabeça para trás, penetrou-se da doçura de viver. Mal deu por que Castel a deixava. Para se ocupar das coisas dela, evidentemente. Que amor de rapaz! Sonhou com aqueles sombrios anos que evocavam há pouco: o tempo das digressões, dos alojamentos modestos, das promiscuidades, dos amores desiludidos.
O criado de quarto aproximou-se:
"O Sr. Castel janta com a senhora?
-Acho que sim.
-A senhora aprova a ementa? "
Estendia-Lhe um papel, ao qual ela nem sequer lançou os olhos. Bem entendido, aprovava. À ideia de que poderia ainda vir a cozinhar, como outrora, e tão mal, esboçou uma careta de desagrado.
A conversa devia recomeçar à noite, no salão, diante dos copos de uísque. Castel estava mais descontraído, quase sorridente, bastante satisfeito por a ter deixado amadurecer ideias entre as delícias da sua habitação e por ter recordado, graças a ele, os seus tempos de miséria.
Todavia, ela ainda não abdicava.
"Como é que essa rapariga poderia encontrar provas que Richard e aquele detective não foram capazesde descobrir? ", perguntou de repente ao seu companheiro.
Este esboçou um sorriso:
"Retoma finalmente a confiança? Fico feliz com isso, Viviane. Mas já ela objectava:
"Você não me convenceu totalmente. Mesmo que os seus argumentos estejam certos e me comovam enormemente, acho, em consciência, que devemos ajudá-la.
-Você é decididamente incorrigível, minha cara!
-Tenho medo. Creio que dormiria mal se cometesse uma má acção.
-Quem Lhe fala duma má acção? Eu não sou menos escrupuloso do que você. "
Viviane corou ligeiramente. Queria mal a si mesma por ter dito aquilo, por ter chocado inadvertidamente a sensibilidade de Henri. Muito depressa, corrigiu-se:
"Eu queria dizer apenas que o que importa é fixarmo-nos, saber com que contar. Porque é que você não há-de fazer uma investígação pelo seu lado? "
Castel fez-se rogado:
"Não tenho a certeza de que a minha intervenção directa agrade ao Dr. Montigny.
-Oh! Henri, eu tenho a impressão de que ele o tem em grande consideração. A última vez que veio falar com o meu marido, vocês conversaram muito um com o outro. Tem, desde esse dia, qualquer coisa contra ele?
-Sim, minha cara Viviane; precisamente isto: ele acabava de saber a história da filha e não nos deixou suspeitar de coisa nenhuma.
- Henri, eu julgava que o segredo profissional.
-Ninguém lhe pedia que o traísse. Mas podia ter-nos prevenido. Vamos, vamos, derramemos uma lágrima sobre o passado e tentemos com todas as nossas forças salvaguardar o futuro. É certo que se eu conseguisse fazer adiantar a investigação, Geneviève Lagrange mo agradeceria. Parece-me bom, aliás, que essa jovem nos considere como amigos. "
Viviane aprovou com calor:
"Eu não preciso de me esforçar para Lhe testemunhar amizade. Ela é tão encantadora, Henri! "
Castel quis assentar ideias:
"Encantadora, absolutamente encantadora, com efeito. Mas se eu me encarregar dessa investigação, a conduzir à minha vontade. tem de ser em seu nome, expressamente designado por si, direi mesmo: a seu pedido. Fale você mesma nisso ao Dr. Montigny. E com isto, cara Viviane, vou deixá-la.
- Não janta comigo? Julgava.
- Eu, minha bela amiga, penso na sua reputação. A minha assiduidade junto de si acabaria por dar que falar. As pessoas são tão más por vezes!
O que havia de maravilhoso em Henri era a sua delicadeza. A reputação de Viviane, por exemplo, ele pensava nisso em seu lugar. Nem por um minuto ela imaginava que ele pudesse ter um fraquinho, aquele homem tão forte e tão seguro, por uma secretária chamada Fabienne.
Insistiu:
"Fique, Henri! Para o jantar, falaram-me de filetes de perca. Como é que diriam mal de nós? Toda a gente sabe que, desde há muitos anos, você foi o colaborador mais íntimo do meu marido, que você veio connosco do Quebeque. Vamos, fique! Esta casa é tão grande, tão vazia! "
Castel inclinou-se. Tanto pior para Fabienne. "Nunca soube resistir-lhe. Bem entendido, Viviane, eu não a abandono. "
Depois de ter pedido ao Dr. Terrier licença para se ausentar, uma vez mais, por razões pessoais, Geneviève tomou o autocarro com destino a Annecy, onde o notário lhe marcara um encontro.
Um praticante mandou-a entrar para a sala de espera:
" Se quiser ter paciência por uns instantes. O Dr. Montigny foi obrigado a ir com urgência a casa dum cliente imobilizado. Não tardará, com certeza. Tem aí revistas. "
Geneviève sentou-se, abriu distraidamente uma revista. O homem eclipsou-se, entrou no gabinete do patrão, assegurou-se num olhar de que nenhum outro praticante, nenhum criado, estava à vista, e pegou no telefone. A comunicação foi breve:
"Sr. Castel, tal como me pediu, informo-o de que ela está aqui. "
Na outra extremidade do fio, Castel sentia uma cólera surda, de que a sua secretária pagava as favas. Fabienne teimava em lhe objectar que não compreendia o seu zelo para com Viviane Lagrange e ele mal se continha para lhe declarar que ela era tão estúpida como a pessoa em questão. O que teria constituído, da sua parte, uma injúria grave.
No instante preciso em que ele preferia, todavia, exclamar: "Fique sabendo que não sou homem para renunciar assim tão facilmente a um objectivo que fixei a mim próprio! A partida não se anuncia muito mal, e eu tenho cartas na manga! Mas sou obrigado a seguir os acontecimentos de muito perto e, se possível, precedê-los! ", outro homem fazia a sua aparição na sala de espera do cartório, onde Geneviève se aborrecia.
Um rapaz alto, na verdade muito alto, musculado, ágil e bronzeado como um campeão de atletismo. Cabelos louros dum comprimento razoável, olhos dum azul espantoso. A sua voz estava cheia de sol e de risos quando perguntou:
"Menina Lagrange?
-Sim", respondeu ela, esboçando o movimento de se levantar.
Seria o próprio notário? Seguramente que não. Era demasiado jovem e demasiado bonito. Os notários não têm aquele físico.
"Apresento-me - disse ele, inclinando-se com uma alegre ironia, como se tudo o que eram mundanidades, formalidades, lhe inspirasse um irreprimível gozo. Bernard Montigny.
- Ah! o filho de.
-Sim, o Montigny filho, como se diz no sítio. Temos de ser filhos de alguém! "
Teria ele pensado que acabava de cometer um deslize? Pouco provável. Geneviève preferiu supor que ele ignorava o caso Lagrange. Bem depressa ele continuou, sem ter a preocupação de tomar um ar sério:
"O meu pai encarregou-me de a receber. Oh! só provisoriamente, o que é pena. Foi chamado ao cen tro da cidade, mas voltará em breve.
-Está bem, agradeço- Lhe. "
Não lhe faltava mais nada! Chegara a Annecy preocupada. Naquela sala, fora incapaz de ligar duas ideias entre si, de compreender uma linha do artigo daquela revista política, ou mesmo de se divertir com
os desenhos humorísticos. Os cartazes de publicidade, para si, tinham perdido todo o sentido. E de repente, aquele rapaz alto, os seus olhos azuis, o seu sorriso.
Onde estava? Parecia-Lhe que penetrava noutro mundo, que nada subsistia já do seu tranquilo universozinho: o apartamento da Mamie, o Serviço de Saúde, o quarto de Paul Sahel, Monique e Robert, a recordação de Jean-Luc, aquela cicatriz, aquela amargura que julgava incurávél.
O quarto de hora bateu no relógio que ornava a chaminé, entre dois castiçais de bronze.
"Posso oferecer-lhe uma bebida? - perguntou Bernard Montigny.
- Não, obrigada. Muito obrigada.
Estranho, sem dúvida, mas tinha a impressão de que acabava de beber. Sentia-se um pouco tonta.
"Um cigarro?
- Não fumo.
-Não tem então nenhum defeito? "
Foi como um jacto de água fria. Com ele, tudo era fácil. Sem ter vontade disso, desatou a rir:
"Parece que o maior defeito consiste em não ter nenhum.
- Não é bem essa a minha opinião. Você vem de Genebra? De autocarro? Mudanças? "
Geneviève começava a retomar o sangue-frio. "Não me vai fazer crer que isso lhe interessa a esse ponto - gracejou ela.
-Interessa, sim! Eu venho raramente a França, à Europa. A mínima informação sobre os serviços de autocarros entre a França e a Suíça apaixona-me-afirmava ele quase sério.
-Vive fora da Europa?
-Na África negra. Não sabia? Todavia, navegamos no mesmo barco. Eu sou médico. Você está no serviço do Dr. Terrier, não é? Obtive estas informações por intermédio do meu pai.
- É exacto.
-Um tipo espantoso, Terrier! Encontrei-o num
congresso. Prometera-lhe ir visitá-lo um destes dias.
Sei agora que vai ser em breve. "
Que teria ela respondido se um rumor significativo
não se tivesse feito ouvir no vestíbulo e se o dono da
casa não tivesse entrado na sala?
O Dr. Montigny pai inclinou-se:
"Desculpe-me, menina. Nós também temos as nossas urgências. O médico, o notário, o padre. Quer
seguir-me ao meu gabinete? O meu filho portou- se
bem? Obrigado, Bernard - disse ele, muito jovial.
- Obrigado, pai - retorquiu o rapagão. - Se só tens este género de missão a confiar-me, entro como
praticante para o teu serviço! "
No silêncio abafado do gabinete, Geneviève ouviu
através dum nevoeiro a exposição do Dr. Montigny.
Só recobrou a sua plena lucidez quando ele concluiu:
"Resumamos. A única prova oficial que existe é a
declaração de nascimento efectuado por essa Thérèse
Dupré. Prova que nasceu uma filha de Gilberte Lagrange, mas não que essa filha é você. Precisamos
portanto absolutamente do testemunho da Sr. Dupré,
sem o que...
-Não a encontrou?
-Ainda não. A primeira coisa que Adrien Le
Tort fez foi, no entanto, mandar pôr um anúncio de
procura. Sem resultado, até agora: Temos de insistir,
menina!
- Mas como?
-Para empreender uma investigação, é preciso dispor dos meios necessários. Imagino que você não os tem.
-Evidentemente que não! "
Fez-se um silêncio. O notário concentrava-se. Sem bem saber porquê, Geneviève confiava nele. Todavia, não se parecia com o filho. Aquele Bernard parecia-se com alguém, aliás? Certos seres parecem surgidos dum no man's land, sem ligações com o passado. Bernard era ele, ninguém mais. Geneviève fez um esforço para o afastar do seu pensamento e concentrou a atenção no que o Dr. Montigny ia dizer. Adivinhava que seria muito importante.
"Eis o que lhe proponho. Dirigir-nos-emos ao, Sr. Le Tort. Consegui localizá-lo nos Estados Unidos. Volta dentro de quinze dias e entregar- se-á imediatamente ao trabalho.
- Mas. as despesas, que eu não posso supurtar... "
O notário considerou a sua jovem cliente com bondade.
"Na qualidade de testamenteiro do falecido Sr. Richard Lagrange, parece-me justo adiantar-Lhe os honorários que Le Tort lhe pedir. Está de acordo?
-Oh! Agradeço-lhe muito, doutor.
-Não faço mais do que o meu dever, menina. Direi mesmo: exerço a minha profissão. "
Ela ia abrir a boca para renovar a expressão do seu reconhecimento quando a campainha do telefone a impediu de o fazer. O notário levantava o auscultador:
" Dá-me licença? "
Às primeiras palavras, mostrou-se desagradavelmente surpreendido:
" Os meus respeitos, minha senhora. Sim. A Menina Lagrange está aqui. No meu escritório, sim, cara senhora. Ele deseja. Pois bem, minha senhora, ficamos à sua espera. Os meus respeitos. "
Tendo desligado, hesitou antes de explicar a Geneviève:
"Era a Sr. Richard Lagrange. Envia-nos o Sr. Castel, que é o seu procurador, depois de o ter sido do seu defunto marido. Nada a objectar a isso. Conhece-o?
- Vi-o em casa dela. Não foi lá muito amável. Arrependeu-se logo de ter feito esta confidência. Não se confiam a um notário as nossas impressões pessoais. São necessários dados precisos, realidades, factos. Todavia, o Dr. Montigny não pareceu impressionado.
Abanou a cabeça, sorrindo:
"A menina deve ter alterado muitos planos, segundo creio. Mas o Sr. Castel é bom jogador. Por ordem formal da Sr. á Lagrange, ao que parece, pretende vir em seu auxílio.
- Em meu auxílio? Não vejo como.
-Ele próprio lho explicará. "
Seguiu-se um silêncio um pouco constrangido. Geneviève não ousava confessar a antipatia que Henri Castel lhe inspirava. O notário estava consciente de já ter falado de mais. Trataram portanto de banalidades, até ao momento em que Castel chegou, muito descontraído.
Sem tergiversar, anunciou:
"O meu projecto, caro doutor, consiste em recomeçar a investigação desde o princípio.
- Devo dizer-lhe - cortou o notário - que os nossos projectos, os da Menina Lagrange e os meus, eram um pouco diferentes. Aprecio Adrien Le Tort e tenho plena confiança nele, o que não significa que desconfie de si. Mas, dada a sua profissão, Le Tort tem a seu favor a experiência, astúcias que você ignora. Em resumo, nós tínhamos muito empenho em que ele levasse a bom termo a investigação que já começara. "
Castel assentiu com a cabeça.
"Tem absoluta razão. Mas Le Tort arrisca-se a ser retido por muito tempo na América e nós estamos todos desejosos duma solução rápida, não é? A Sr. Lagrange encarregou-me portanto, sob reserva do seu acordo, de efectuar certas buscas, que foram apenas encetadas. Quando o Sr. Le Tort regressar, fica completamente entendido que eu me apagarei perante ele. Só espero, modestamente, poder comunicar-lhe informações úteis. "
Geneviève olhou para o Dr. Montigny. Se ele fosse Pôncio Pilatos, com uma bacia à sua disposição, teria lavado as mãos.
"A decisão pertence-lhe, menina", concluiu ele.
Ela atirou, ao acaso:
"Aceito.
- Obrigado pela sua confiança - apressou-se a declarar Castel. - Repito que falo unicamente em nome da Sr. Lagrange, que deseja, como já sabe, que a sua filiação seja confirmada. A fortuna do. do seu pai não lhe interessa absolutamente nada. A Sr. Lagrange é uma mulher totalmente desprendida de considerações mesquinhas. O pouco que lhe ficar chegar-lhe-á amplamente.
-Agradeça-lhe em meu nome", disse Geneviève com a voz própria duma rapariguinha ajuizada.
Castel levantou-se. Estava tudo dito de momento. Não lhe era possível permanecer naquele escritório. Todavia, ele bem teria querido não deixar Geneviève Lagcange frente a frente com Montigny. Resignou-se por fim a sair, sem que a rapariga o seguisse.
"Fiz mal, não é verdade? ", perguntou ela ao notário. Não devia ter aceitado que ele se meta na investigação? Mas qual o meio de o impedir? "
O Dr. Montigny parecia contrariado. Se ao menus as pessoas daquela profissão exprimissem francamente o seu pensamento! Ele contentava-se com cruzar as mãos em cima de papéis. Que papéis? O desenvolvimento do caso, para Geneviève, era difícil de seguir. O notário falou por fim:
"Menina", disse ele, com solenidade, "a minha posição não pode deixar de ser estritamente neutra. Mas digamos que a minha profissão me coloca raramente em presença de pessoas desinteressadas. "
Semelhante quadro da humanidade desconcertava, desvairava quase, a rapariga. Como é que se podia viver desconfiando de toda a gente? Ela não se lembrava de ter encontrado à sua volta um desejo consciente de prejudicar outrem. Até mesmo Viviane Lagrange Lhe oferecera a sua amizade, o seu apoio. Confiou ao notário esse pensamento reconfortante:
"Encontrei a Sr. Lagrange no cemitério. Levou-me a sua casa, ofereceu-me uma fotografia daquela que é talvez a minha mãe. Deu-me a impressão de querer sinceramente ajudar-me. "
O Dr. Montigny levantava- se:
"Eu não duvido da sinceridade da Sr. Lagrange. Repito-lhe que sou neutro, mas, afinal de contas, pode ser-se neutro e estar atento... De qualquer forma, pô-la-ei regularmente ao corrente do andamento da investigação", afirmou ele.
Geneviève esquecera-se das horas. Uma olhadela deitada ao relógio estilo Império da chaminé revelou-lhe que acabava de perder o autocarro para Saint-Julien.
Teria de esperar muito tempo pelo próximo. O Dr. Montigny seguira-lhe o olhar e adivinhara a sua preocupação.
"Vamos arranjar isso", prometeu-lhe ele, após o que saiu para o vestíbulo e gritou, junto da escada, de cabeça levantada:
"Bernard, estás aí? Tenho mais uma missão a confiar-te. "
As compridas pernas de Bernard desceram os degraus a correr. Sorriu a Geneviève, com cordialidade, como a uma boa camarada.
"Meu pobre rapaz", começou o pai, "vais ser obrigado a sacrificar-te. A Menina Lagrange perdeu o autocarro. O tempo duma pessoa que trabalha é precioso, sobretudo quando acaba de passar por emoções consideráveis. Podias ter a bondade de a levar a Saint- Julien? "
O largo riso de Bernard soou sob o elevado tecto, repercutido pelas grandes janelas envidraçadas:
"Que é que um filho não faria pelo papá? O seu motorista, menina, está às suas ordens. "
No carro, não falaram logo. Todavia, Geneviève sentia-se estranhamente à vontade junto dele. Notou que ele seguia lentamente, a uma velocidade de passeio. Ao primeiro sinal vermelho, viraram-se um para o outro e sorriram. Uma corrente de intimidade acabava de se estabelecer entre eles.
"Você não se dá conta - disse Bernard - de que me aparece de repente como a encarnação da Providência! As senhoras que a minha mãe recebe só sabem jogar o brídege e dizer mal do próximo. As filhas não valem muito mais. Os meus amigos saíram da região ou estão casados, transformados em paizinhos de pantufas.
-Quer fazer-me acreditar que não conhece mais ninguém em Annecy?
-Acabo de chegar depois duma longa ausência em que os amigos me riscaram da sua existência.
-Você não deve ser daqueles que se esquecem facilmente, todavia. "
Geneviève só tardiamente pensou em corar por ter pronunciado aquela frase. Bernard replicava já, gracejando:
"Eu também sou da sua opinião! Todas essas pessoas são umas ingratas. Eu pago-lhes com o mesmo desprezo e nunca mais tornarei a estar com elas. Isso é-me completamente indiferente, aliás, agora, que a conheço. "
Geneviève, afinal, corara, tanto mais que Bernard tomava por desvios, na estrada, mas não nas palavras. A conversa resvalava para um caminho perigoso. Pelo menos para ela, para a sua tranquilidade. Num lampejo, evocou o rosto penalizado de Jean-Luc quando Lhe confessara. "O meu pai não consente no nosso casamento. Oh! não te censura nada, a ti. É por causa da tua origem desconhecida. Ufa! prefiro ter-to dito francamente, Geneviève! Isto atormentava-me, havia semanas. Detestava a ideia de te magoar, mas, com preendes, como dependo do meu pai. "
Ela julgou fugir ao perigo falando da sua profissão, citou vários casos duvidosos, referiu o do pequeno Paul Sahel. Bernard deixou logo de ser um miúdo crescido que se diverte para retomar uma expressão de médico atento, grave, apaixonado:
"Descreva-me essas manchas de maneira mais precisa. Que outros sintomas, de ordem geral?
Ela disse tudo o que sabia. Pouca coisa, em suma. Ele reflectiu durante uns instantes:
"Creio poder ajudá-la a determinar o mal.
- Palavra? - exclamou ela. - Nesse caso, venha depressa. Nós estamos. quer o dizer, os dois médicos estão indecisos. Hesitam em se pronunciar. E eu gosto muito dessa criança, que me tomou afeição.
- Como a compreendo! "
Ele ria de novo. Recomeçou a brincar ao parar o carro diante da porta da Sr. Lebrun.
"E se eu a levasse para outro lado?
- Não quer deixar-me sair? - perguntou-lhe Geneviève no mesmo tom. -Entre antes um momento, apresento-o à minha madrinha e à minha amiga Monique. Ela também trabalha no Serviço de Saúde. Uma rapariga muito bonita. Mas noiva, tenho o dever de o prevenir. "
O jovem tornou-se sério outra vez.
"Desolado! Tenho um encontro em Talloires. Não se pode prever tudo, não é? Reservo o convite para outro dia.
- Vai pensar no pequeno Sahel?
- Nele e em si. Até à vista! "
Com a mão na maçaneta da porta, ela viu o carro arrancar e afastar-se. Curioso dia, mais fértil em emoções do que o Dr. Montigny pai poderia pensar.
A porta abriu-se sem que ela tivesse de fazer girar a maçaneta. Monique estava na sua frente, toda sorrisos:
"Vi-o pela janela. É muito giro! Quem é?
- O Dr. Montigny. O filho do notário. Conhece o Dr. Terrier e disse-me que...
A Sr. Lebrun vinha a sair da cozinha. Interrompeu-a:
"O que mais me interessa é o que o notário disse.
-O Sr. Castel, o procurador do Sr. Lagrange, vai retomar a investigação desde o começo. "
O rosto bondoso da Sr. Lebrun carregou-se:
"Não é possível! Não me agrada nada esse homem, embora não o conheça.
- É só enquanto o detective não chega.
- Prefiro isso. Ainda bem. Um homem muito bem educado, esse. Eu teria acabado por comprar o seu fogão eléctrico, se ele o tivesse vendido!
- Fala-nos do teu doutor - insistia Monique. Vais apresentar-mo? "
Geneviève sorriu, bastante contente:
"Terei em breve oportunidade para isso, visto que ele deve vir sem demora a Genebra, para falar com o nosso chefe e ver o pequeno Sahel.
- Creio que, em toda a minha vida, nunca vi um rapaz tão bem constituído. Quando saiu do carro para te ir abrir a porta, perguntei a mim mesma como é que ele cabia lá dentro. As pernas dele nunca mais tinham fim. E ainda por cima proporcionado! Ombros, um porte de cabeça. - apreciava Monique.
-Diz lá então, tu! E Robert?
- Robert? O meu coração é seu, mas não sou cega. Já estás invejosa?
-Não digas asneiras. Quando é que se janta? Eu cá tenho fome! Geneviève animava-se finalmente. A Sr. Lebrun olhou para ela com um misto de alegria e de Confusa preocupação. Desde o dia da morte de Richard Lagrange, era a primeira vez que Geneviève declarava que tinha fome.
Contanto que aquele.
Bernard não fazia promessas no ar. Dois dias mais tarde, apresentava-se no Serviço de Saúde. Na ante câmara encontrou um interno e três múlheres: uma secretária, duas enfermeiras. E nada de Geneviève. Por discrição, não foi por ela que perguntou, mas pelo
Dr. Terrier, esperando no entanto ver de novo a rapariga e provocar outra vez o radioso sorriso que se abria num rosto tão melancólico. Olhos tristes, como o crepúsculo, um sorriso cheio de esperança, como a aurora, tal era a imagem que conservava das suas breves entrevistas.
O interno indicou-Lhe a porta do gabinete onde encontraria o Dr. Terrier.
Assim que o viu, Monique revelou às enfermeiras, Françoise e Isabelle, a identidade do visitante:
"O Dr. Montigny, filho do notário de Annecy. Trabalha na áfrica negra.
- Caramba! - disse Françoise. - Por uma vez que se vê um médico giro, só está cá de passagem!
-Ele é um tipo jeitoso, hem?
- Ah! quanto a isso, não há dúvida. " Geneviève vinha a chegar duma inspecção de escola. Monique saltou-lhe ao pescoço para lhe segredar:
"Ele está cá, com o chefe! Eu não tinha visto, no outro dia, que ele tinha os olhos tão azuis. Aliás, só lhe conhecia as costas, mas de frente é ainda mais formidável!
- De quem é que estás a falar? - perguntou Geneviève, que, tendo já compreendido, corara até à raiz dos cabelos.
-Como se o não adivinhasses!
-Está bem, sim, adivinho. E então?
-É espantoso como o caso do pequeno Sahel dá a impressão de o entusiasmar!
-Minha pobre filha, tu és idiota... " concluiu Geneviève, tentando recuperar o sangue-frio.
No gabinete de Terrier, entretanto, os dois homens tinham em breve feito o reconhecimento um do outro:
"Tenho inveja de si, Montigny - dizia Terrier. Teria de boa vontade ficado consigo em África.
-Porque partiu então?
-O clima, a minha mulher, os meus filhos. Deixo isso aos mais novos do que eu. Aqui também somos úteis, mas tanta papelada chega a desanimar. Eu tenho a impressão, por vezes, de não passar de um escrevente. "
Bernard Montigny tentou em breve orientar a conversa.
"Não diminua os seus méritos! A Menina Lagrange contou-me todas as preocupações que você tem, a amplitude da sua obra de descoberta. "
Terrier mostrou-se feliz por falar da sua assistente: "Eu preocupo-me, evidentemente, mas não mais do que ela, cujo salário não está à altura da dedicação. Uma rapariga notável, indispensável até nos nossos serviços. Uma inteligência penetrante, ao mesmo tempo concisa e aberta. É raro, sobretudo na sua idade. Nunca tive, desde que trabalha comigo, de lhe fazer uma censura, nem mesmo uma crítica. E ela acha isso natural, sem uma migalha de pretensão. Fico-me por aqui, porque você pensaria que estou apaixonado! Conta ficar muito tempo em Annecy?
- Não sei. Em princípio, espero uma nova nomeação, para um hospital mais importante, dotado de instalações mais modernas. Hei-de ver. De momento, confesso-lhe. é estúpido dizê-lo, aborreço-me!
O Dr. Terrier foi sacudido por um riso mudo:
"Bem o reconheço, Montigny. Mas é fácil de solucionar! Nós temos uma falta enorme de pediatras. Pode conceder-nos umas horas de consulta, todas as semanas ou todos os dias?
- Com certeza, caro amigo! - aquiesceu Bernard com solicitude.
- Naturalmente, precisará duma assistente. "
Calou-se, com um brilho de ironia nos olhos, e propôs:
"Geneviève Lagrange, por exemplo?
-Oh! sim. Você afirma-me que ela é tão notável... "
Terrier sentiu vontade de se divertir um pouco:
"Espere! Vou primeiro perguntar-lhe se ela aceitaria trabalhar consigo. "
Bernard acendeu, um pouco nervosamente, um cigarro, enquanto o Dr. Terrier se inclinava para o intercomunicador:
" Geneviève Lagrange está aí? Bem. Mande-ma, por favor. " Um momento depois, ela entrou, toda corada e com os olhos a brilharem.
"Devo apresentá-los? - inquiriu o Dr. Terrier.
- Não - disse Bernard. - Já nos conhecemos. Bom dia, menina. Visto que vamos trabalhar juntos, posso chamar-Lhe Geneviève? Em África, sabe, temos uma certa intimidade... "
Ela ficou petrificada: "Trabalhar consigo, doutor? " Foi Terrier quem respondeu: "O Dr. Montigny consente em nos prestar a sua valiosa colaboração. Quer secundá-lo? A menos que veja nisso um sério inconveniente.
-Oh! eu, não.
- Ele também não. Então, tudo está perfeito.
- Começarei - disse Bernard - por examinar o caso desse pequeno Sahel, de que Geneviève me falou. As doenças tropicais são, evidentemente, a minha especialidade. "
Terrier estendeu-lhe a mão.
"O hospital está às suas ordens. Obrigado, Montigny. Agora, peço-Lhe que me desculpe, porque estou à espera dum telefonema de Londres. Confio-o à sua nova enfermeira. "
Saíram juntos para o corredor e olharam-se sem nada dizerem, talvez porque uma vaga demasiado im petuosa de palavras se lhes acumulava nos lábios. Mas Monique catapultou-se para fora do seu gabinete e, agarrando no braço da amiga, segredou-Lhe:
"Tinhas dito que mo apresentavas. É para quando?
- Oh! perdoa-me - disse Geneviève, brutalmente arrancada ao seu silêncio feliz. - O Dr. Montigny, Monique Labry, a minha melhor amiga.
- Vivo com ela em casa da madrinha - precisou Monique com prontidão. -Vi-o no outro dia pela ja nela, quando a acompanhou. O seu carro é um seis cilindros?
- O quê? Eu. Sim. Pertencia ao meu pai. Eu não sou muito forte em mecânica, devo confessá- lo! "
Volúvel, Monique continuava:
"Não é como Robert. Imagine, ele é garagista! " Bernard sentia-se um pouco perdido. Aquela melhor amiga tão impetuosa, aquele Robert desconhecido, os carros, a mecânica.
Virou-se para Geneviève:
"São horas do almoço. Se quiser...
- Muito bem! - exclamou Monique. - Conhecemos um restaurantezinho, muito perto daqui, nada caro. Vamos lá quase todos os dias. "
Ele suspirou, olhou para Geneviève penalizado. Pela primeira vez, talvez, ela considerava Monique um pouco incómoda e um tanto vulgar, apesar da sua gentileza e da sua boa vontade. Por isso, fez eco ao suspiro discreto de Bernard, que se resignava a concluir:
"Pois bem, viva o pequeno restaurante nada caro. Convido-as às duas. "
Tomaram lugar lado a lado no banco de couro vermelho um pouco deteriorado, Bernard sentou-se numa cadeira em frente delas. Uns minutos mais tarde, Françoise e Isabelle fizeram igualmente a sua entrada, mas fingiram não os ver e escolheram uma mesa do outro lado da sala.
Monique tocou no cotovelo de Geneviève, murmurando:
"Elas estão a espiar-nos! Sempre te tenho dito que Françoise é uma fedúcia, invejosa de ti no trabalho e na vida. Sem o aparentar, deve estar furiosa por termos saído com o doutor.
-Isso não tem importância, deixa-as falar", replicou Geneviève, cada vez mais atrapalhada.
Livre de complexos, Monique insistia:
"Tens razão. Elas podem falar, nós estamo-nos nas tintas! Vejamos esta lista. Diga lá, doutor, deve gostar de experimentar uma comida diferente da de lá. Que é que se come na sua região?
-Sobretudo conservas, e confesso que é cansativo - explicou Bernard.
-Nem um pequeno gafanhoto ao natural para trincar? Eu julgava.
- Palavra que nunca me serviram isso.
-É pena! Deve fazer um barulho giro quando se mastiga. Para mim, um bife com batatas fritas. "
Geneviève e Bernard olhavam um para o outro, consternados. É possível que se goste duma amiga como duma irmã e que se amaldiçoe a mesma por momentos?
Inconsciente do ambiente de mal-estar, que gerava, Monique continuava, incansavelmente:
"Combinou-se um passeio ao campo para domingo, não é verdade, Geneviève? Você não poderia vir con nosco?
- Não tenho a certeza de estar livre.
-O Robert também vai. Achá- lo-á muito simpático. É o meu noivo. Oh! não vá pensar em coisas! Um verdadeiro noivo. Vamos casar. Faça os possíveis por se libertar. Não? Não é possível? Com os olhos baixos sobre o prato, Geneviève teria preferido morrer a juntar as suas súplicas àquelas, generosamente inspiradas, mas que pesavam uma tonelada. A querida Monique, a quem Mamie chamava "Sua Majestade a Gaffe! " Bernard compreendeu que ela estava a sofrer? Cedeu ao seu próprio desejo?
Geneviève levantou a cabeça quando o ouviu responder:
"No fundo, porque não, se desejam a minha companhia? "
Semelhante aceitação teve como efeito imediato excitar mais ainda a inspiração de Monique:
"Geneviève, sabes que dentro de duas semanas vamos ter direito a três dias de férias. Se as aproveitássemos para irmos um pouco mais longe? A gente embrutece em Saint-Julien, não é assim? "
Geneviève desaprovou com a cabeça; os olhos tinham-se-lhe enevoado!
"Espanejar-te-ás sem mim - disse ela. - Esses feriados vão permitir-me ir a Cosne-sur-Loire, onde a minha mãe está enterrada. Irei também a Orleães.
- A Orleães? Fazer o quê? Não tens ninguém em Orleães. "
Geneviève olhou para Bernard bem de frente, sem falsa vergonha, até mesmo com um certo ar de desafio. E explicou:
"Foi lá que os meus pais se conheceram, se eu sou na verdade filha de Richard e de Gilberte Lagrange. A minha mãe, que era órfã e muito pobre, trabalhava lá, nessa época, como criada num hotel. O dono ainda é vivo. Gostaria que ele me contasse o que sabe dela.
- O meu pai fala pouco desse assunto - disse Bernard. -Todavia, deixou escapar que a sua mãe era muito bonita e que você é tal e qual a cara dela.
- Parece... Mas isso constitui uma simples presunção, não uma prova. "
A refeição terminou em silêncio, para Geneviève e Bernard. Monique espreitava as atitudes e gestos das duas enfermeiras, os seus face a face, ao mesmo tempo que lhes chamava espias. Irritada, Geneviève acabou por pôr uma mão no braço da amiga:
"Peço-te, não te preocupes com elas! Tu censura-las por serem más. O doutor vai pensar que és tu que o és. Não acredite nisso, doutor. Monique é a bondade em pessoa! Quanto às outras duas...
- E quanto a esta - interrompeu Monique -, é Santa Genoveva na cova dos leões. A sua única pena seria não ser gorda bastante para que os leões matassem a fome! "
À tarde, no quarto do pequeno Sahel, no hospital, Bernard e Geneviève não estiveram sozinhos, mas a atmosfera era mesmo assim mais recolhida. À cabeceira da criança, entre o Dr. Armand e uma enfermeira de cabelos grisalhos e passos abafados, Geneviève entregou a Bernard os resultados das análises. Ele estudou-os minuciosamente.
O dermatólógo declarava:
"Concluí que se trata duma doença parasitária, mas qual? Está em condições de me esclarecer?
-Assim espero, meu caro confrade. A Menina Lagrange indicou-me o caminho quando me disse que a família voltara há pouco de África. Trata-se, na minha opinião, duma doença tropical, sem gravidade excessiva, a filianose.
-Já tinha ouvido falar dela, sem contudo ter encontrado nenhum caso.
- Vão mandar-me para casa? - perguntou a voz fraca da criança.
- Em breve, meu amor, em breve.
-Agradeço-lhe, Sr. Doutor. Toda a gente, aqui, foi boa para mim.
-Espera um pouco para me agradeceres. Vai ser preciso fazer uma série de injecções. Depois, não terás senão de engolir comprimidos. Dentro de três semanas, vais correr como um coelho. "
Geneviève beijou Paul. Saiu do hospital com Bernard e, lentamente, dirigiram- se para o Serviço de Saúde.
"Oxalá - disse Bernard - que o Dr. Armand não tenha ficado aborrecido com a minha intervenção.
Podia-se, efectivamente, à primeira vista, pensar em sinais de pancadas.
-Ele não está nada ressentido. Pelo contrário!
É um homem notável. O que importava para ele era saber, tratar, curar - afirmou Geneviève.
- Saber, na Europa, era difícil. Na África ai! Os casos de filianose são extraordinariamente numerosos.
E se só houvesse esse género de doença!
-Você tem uma linda profissão. "
Ele pegara-Lhe no braço para a fazer atravessar uma
rua. Ao chegarem ao passeio do lado oposto, esqueceu-se de lho largar. Ela deixava-se guiar, com a respiração um pouco difícil, os lábios entreabertos. Na
defensiva, todavia. Bernard Montigny, como Jean-Luc,
tinha um pai, uma família. O seu grande medo do amor nunca mais a abandonaria, então?
"Uma linda profissão - aprovou ele. - Sim, é verdade, e eu gosto dela, embora nos sintamos por vezes muito longe e muito sós. Mas você também, Geneviève, tem uma bela profissão.
- Oh! eu. não tem comparação.
-Nos seus serviços enchem-na de elogios! Não pensara em tirar o curso de Medicina?
- Desejei-o com todas as minhas forças, depois do liceu. Mas os estudos eram demorados, dispendiosos. A minha madrinha já teve bastante dificuldade em me fazer chegar até aqui.
-Agora, que vai ser rica, muito rica, quem a impedirá de retomar o seu projecto? "
Ela parou, com o olhar abrangendo o lago e as montanhas, como se descobrisse de repente a maravilhosa paisagem:
"Eu não ousava pensar nisso. Tal como acontece com muitas outras coisas, Bernard. Seria magnífico! Demasiado. "
Prosseguiram na sua caminhada lenta pelo cais, entre o azul do céu e o da água. A voz de Bernard mal se ouviu entre os gritos selvagens das gaivotas:
"Há lugar para si, em África... " murmurava ele.
Tinham saído de Annecy de manhã muito cedo. Henri Castel conduzia depressa, com o olhar fixo na fita da estrada, os dentes cerrados. Nascido em Paris, mas tendo vivido dez anos no Quebeque, com várias estadas nos Estados Unidos, para onde a sua ambição o atraía, aquele homem, que não conhecia da Europa senão a capital da França e uma pequena parte da Suíça, não se interessava absolutamente nada pelos sumptuosos campos que atravessavam. Não tivera um olhar nem para as colinas do Ain, nem para as vinhas da Borgonha.
A jovem que estava sentada a seu lado conseguira com grande dificuldade que ele parasse para almoçar numa pequena tasca, quando o roteiro lhe lançava aos olhos dezenas de restaurantes com estrelas ou, pelo menos, pousadas razoáveis, com adega bem fornecida.
Eu prevenira-a, no entanto - dissera-lhe ele -, de que nós não partíamos em excursão, de que não se tratava duma viagem turística.
-Mesmo assim, é uma bela região! Há montes de catedrais, de abadias.
-Apaixonada por arqueologia, Fabienne? Primeira novidade. Há-de visitá-las para a outra vez. "
Em Burges encontrou um lugar para arrumar o carro próximo da catedral. Cada vez mais irritado, dignou-se virar-se para a sua companheira:
"Se quer satisfazer a sua fome de arte, chegou o momento! Recomendo-lhe especialmente os vitrais.
Há também o Palácio Jacques-Coeur, o Museu do Berry. Terminados os meus afazeres, se não a encontrar no carro, previno-a, parto sem você.
- Quanto tempo pensa que vai estar ocupado?
-Não faço a mínima ideia. Mas há excelentes comboios. Só tem de se informar na estação.
-Está bem! Está bem! Vou dar uma volta pela catedral e regresso para esperar por si. "
Ele já não a ouvia. Batendo com a porta, afastava-se em direcção à Câmara Municipal.
A pessoa que vinha procurar naquela cidade, para ele, não era mais do que um nome: Thérèse Dupré.
E quem sabe se morrera? Quem sabe se não perseguia um fantasma?
Dum funcionário do registo civil obteve licença para consultar registos que datavam de mais de vinte anos.
"Já nos pediram essa informação, a propósito dessa Sr. A Dupré - recordou o homenzinho, de bata cinzenta.
-Adrien Le Tort, suponho? Há uma coisa que não compreendo. Você diz-me que Thérèse Dupré era desconhecida em Burges. Como é que puderam aceitar a sua declaração oficial como testemunha dum nascimento? "
O empregado encolheu os ombros:
"O outro senhor, provavelmente seu colega, fez-me a mesma pergunta. Eu trabalho aqui há vinte e dois anos. Nesse momento havia uma substituta. Ela registou o nascimento sem pensar em verificar a morada que lhe deram. Não tinha qualquer razão para desconfiar da Sr. Dupré. Quando o secretário da Câmara viu que a morada era falsa, informou a polícia.
Nessa época, fizeram-se buscas.
-E não deram resultado?
- É de crer que não.
-Não tentaram saber o que acontecera à mãe e à criança? "
O homem fez um gesto de ignorância. Fora há muito tempo, não lhe interessava. Castel resignou- se.
"Na sua opinião, não há qualquer hipótese de deitar a mão a Thérèse Dupré?
-Eu não sou detective, hem? Aqui, isso espantar-me-ia. Se ela escondia o seu domicílio, talvez se tenha escondido a ela mesma. Vinte anos, veja bem! Há, a bem dizer, prescrição. E, além disso, pode ter morrido. Acontece a toda a gente.
- A toda a gente, sem dúvida. "
Foi ter com Fabienne. Ela voltava ao carro com uma disposição ainda mais insuportável.
"Já? Mal tive tempo de ter uma vista de conjunto. É pior que um rally. Vamos já embora? Para ir aonde?
-A Cosne-sur-Loire. Estrada directa, por Sancerre.
- Há bom vinho, por essas bandas. Talvez pudéssemos. "
Castel interrompeu-a com secura:
"Para mais tarde, a comida e a bebida, se tivermos tempo. A pista Thérèse Dupré está queimada. Si gamos a de Gilberte Lagrange. "
Sem um olhar para as amáveis colinas de Sancerre, ele chegou à pequena Subprefeitura do Nièvre, informou-se sobre o hospital e encontrou um lugar para o carro mesmo em frente. Dessa vez, Fabienne não se cansou a interrogá-lo sobre a duração da nova pausa. Encostou a cabeça para trás e fingiu dormitar.
Castel pediu para falar à enfermeira-chefe. Por ali também já Le Tort passara.
"Não posso - disse a enfermeira- responder-Lhe senão o que respondi ao senhor que solicitou de nós a mesma informação. A Sr. Lagrange deu entrada neste hospital a 13 de Março de 1951 e morreu no dia seguinte.
-De que morreu?
- De septicemia.
-Não houve inquérito?
- Isso não sei! Há vinte anos! Já não há ninguém do pessoal dessa época. O senhor tem de. compreender!
- Ela acabava de dar à luz. Há-de concordar que é extraordinário!
- Mas se eu lhe digo que não sei nada! Não posso estar a inventar! A ficha diz "septicemia". Uma desconhecida, um marido estrangeiro e dado como desaparecido, sem família. Ela não tinha ninguém junto de si. Ninguém perguntava por ela. O que é que o senhor quer. Lastimo muito. "
Inclinou-se sobre os papéis. A conversa terminara. Fabienne, que não estava a dormir, viu Henri sair do hospital. Desceu do carro, foi ao seu encontro para lhe propor:
"Vamos desentorpecer um pouco as pernas? Não são nada feios, estes dois braços do Loire. Eu sei que você não gosta de perguntas, mas. encontrou alguma coisa? "
Castel não escondeu o seu desapontamento: "Absolutamente nada. O vácuo. Toda a gente me repete a mesma coisa: Vinte anos, é muito tempo. Como se eu não soubesse! "
Fabienne tentou acalmá-lo:
"Em suma, se não se encontrar nada, é melhor para si?
-Le Tort passou antes de mim. Sem dúvida que há-de tornar a passar. Dá-me ideia que é um tipo cabeçudo. Se não encontrar nada, é bom. Isso não invalida que todas estas pessoas não pecavam por excesso de curiosidade.
-Não sabiam que Gilberte Lagrange era mulher dum milionário, evidentemente!
-Ela própria também não sabia. Nem o marido. Ignorava o valor das suas florestas, a extensão da sua fortuna. "
Para caminhar ao longo dos cais, Fabienne tomara o braço de Henri Castel. Em breve còmeçou a bocejar.
"Estou exausta. Voltamos esta noite para Annecy?
-Ainda não. Tenho de arranjar qualquer coisa para contar a Viviane. Não sei o quê. Mas faço disso questão de honra. Porque se ri, Fabienne?
- A sua honra. " repetiu a jovem.
Procurou no entanto ajudar o companheiro. "Vejamos. Você disse-me que Gilberte morrera no dia seguinte ao da sua chegada ao hospital.
- Sim. E depois?
- Deve ter chegado moribunda, num estado desesperado. Não está a ver o que quero dizer? "
Castel abanou a cabeça. Fabienne, com a sua carinha tensa pela reflexão, arriscou uma hipótese:
"Uma moribunda não vai a pé para dar entrada no hospital. Transportam-na numa ambulância, que é conduzida por um motorista, há enfermeiros. "
Ele parou e olhou para ela fixamente. Pela primeira vez depois da partida, foi recompensada com um sorriso:
"Você é mais esperta do que eu pensava! Mas isso virá ainda a dar no mesmo. Ao fim de vinte anos, essas pessoas não se vão lembrar de nada. "
Fabienne consolidou a sua posição propondo: "Pode-se sempre tentar. Eu não tenho pressa de regressar a casa... Não tenho ninguém à minha espera, em Annecy. "
Ele não acusou a alusão a Viviane. Já estava a deitar os olhos a um café onde poderia consultar a lista dos telefones. As primeiras tentativas falharam.
"Não temos sorte! -suspirou após a visita às duas companhias de ambulâncias da cidade. - A profissão de condutor de ambulâncias dá dinheiro, nesta terra! Reformam-se todos ao fim de uns anos para irem plantar couves.
- Ou, antes, cultivar as suas vinhas - rectificou Fabienne. - Vamos ter talvez mais sorte com os táxis. "
Eram horas de jantar. O primeiro motorista consultado estava sentado com a mulher e o filho diante dum prato de caracóis. Um casal jovem. Castel considerou inútil fazer perguntas. Todavia, interrogou o homem por causa daquele famoso "ponto de honra".
"Sim - respondeu este -, conduzo táxis, mas só há cinco anos. Tomei o lugar do meu pai.
- O seu pai não se lembrará de ter levado ao hospital uma senhora nova muito doente?
-O meu pai? Morreu. "
A mulher interveio:
"Bem sabes que o teu pai, minucioso como era, anotava tudo nos seus cadernos. Há pilhas deles, lá em cima, no sótão! Até porque, um destes dias, teremos de nos desembaraçar disso. atrai os ratos. "
Castel, que começava a ficar cansado, endireitou-se e de repente, animado duma nova energia, disse:
"Fazia-me um grande favor se me encontrasse um caderno de 1951. "
O motorista hesitava, não se mexia. "Não, mas está a ver o trabalhão? "
Castel sorriu ao pequeno que fazia bolinhas de miolo de pão e bombardeava com elas as orelhas dum grande cão de pastor que estava a dormir. Tirou a carteira da algibeira e da carteira uma nota:
" Para o seu pequeno. Ele deve ter um mealheiro.
- Oh! só para lhe ser agradável", disse o homem, que se levantou da mesa e caminhou para a escada.
Uns minutos mais tarde, voltava com um caderno cheio de pó, molhava o dedo, virava as folhas.
"Primeiro trimestre de 1951 a 13 de Março, foi o que disse? Oh! os preços! Quando vemos isto agora. Nesse dia, três corridas. Uma à estação, uma até Saint-Amand. Esse, bem o conheço, é o Bourier, o tipo do Café du Commerce. E depois alguém para ir buscar a Sancerre, estrada de Orleães. para o hospital, é isto mesmo, se é tudo o que procura. Porque não deve pedir- me mais. "
Nessa noite, Fabienne teve direito a um excelente jantar, copiosamente regado com vinho da região duma boa colheita.
No dia seguinte, de manhã, recomeçaram a investigação. No hotel não sabiam nada. Nem em diversas casas da estrada de Orleães, a que bateram sucessivamente. Uma mulher bastante idosa pareceu no entanto um pouco mais faladora do que os outros, mas não melhor informada. Pelo menos, disse-lhes que nascera na terra e nunca de lá saíra.
Com uma pequena réstia de esperança, Castel expôs-Lhe o que o trazia:
"Nós procuramos o rasto duma mulher que teria vivido nesta rua, há vinte e um anos. Uma mulher nova, chamada Gilberte Lagrange. "
A mulher de cabelos grisalhos piscou os olhos por detrás dos óculos, franziu o nariz, deu visivelmente tratos aos miolos e finalmente declarou:
"Nunca ouvi esse nome.
-Paciência! Mesmo assim, obrigado, minha senhora. Vamos continuar.
- Não vale a pena bater a todas as portas. Aqui, eu conheço as pessoas há sessenta e cinco anos! "
Castel, que dava já meia volta para voltar ao carro, perguntou, por descargo de consciência:
"E uma Thérèse Dupré, também não lhe diz nada? " Imediatamente a mulher saiu da casa, com um brilho de interesse no olhar:
"Conheci muito bem uma Thérèse nesta rua, mas chamava-se Puidoux, e não Dupré.
-Ela não vivia com uma mulher nova?
- Agora, que me faz pensar nisso. Sim, uma mulher nova, grávida, doente, sempre triste.
- É isso mesmo! - exclamou Castel. - Onde é que elas habitavam?
- Na casa das gelosias castanhas, a cinquenta metros. Que é que lhes queria?
- É a propósito duma herança.
- Ah! estava a pensar. é que elas já lá não estão, há muito tempo. Há... Sei lá, talvez, sim, uns vinte anos. "
Castel agradeceu e agarrou no braço de Fabienne. "Vamos lá mesmo assim", disse ele, caminhando alegremente para a casa de gelosias cor de chocolate.
Foram recebidos por um casal à volta dos cinquenta, pacífico, de fala lenta e pesada. Mais uma vez Castel pronunciou os nomes de Thérèse e de Gilberte. Os esposos consultaram-se com o olhar:
"Sabes alguma coisa a respeito dessas senhoras? interrogou o marido.
- Não - disse a mulher. - Lembro-me apenas do nome da Sr. Puidoux. Na ocasião em que ela vendeu. Foi há muito tempo! Nós tínhamos lido um anúncio no jornal. Viemos. O sítio agradou-nos, e ficámos.
-Viu certamente Thérèse Puidoux, pelo menos
para a assinatura da escritura de venda.
-Nem isso. O senhor da agência tinha uma procuração."
Castel fez um gesto de irritação:
"Pode dar-me a direcção dessa agência?
-Faliram pouco tempo depois. Desapareceram!
Foi chato para as pessoas a quem deviam alguma coisa.
A nós, nada, felizmente.
-Peço desculpa se sou indiscreto, mas podia ter
a bondade de me mostrar essa escritura? Gostaria de
verificar um pormenor. "
Pela segunda vez, os donos da casa mostraram-se
um pouco desconfiados. Que queria aquele desconhecido? Ele tranquilizou-os:
"Longe de mim criar-vos aborrecimentos. Os senhores não têm nada a ver com o assunto que me
preocupa. Trata-se apenas dessa Puidoux. Uma história de herança...
- Ah! bom. "
Duma velha caixa de bolachas, guardada no fundo
duma gaveta, o homem tirou um maço de papéis cuidadosamente dobrados e classificados. Estendeu a escritura de venda a Castel, que a percorreu rapidamente
com a vista: "Entre o Sr. Dudoyer, Victor, duma parte,
e a Sr. Puidoux, Thérèse, da outra parte... " E entregou-o imediatamente.
"Agradeço-lhe muito. Desculpe-me o incómodo. "
Com Fabienne, voltou para o carro.
"Talvez sejam apenas coincidências - disse ela.
-Coincidências muito curiosas.
-Porque é que Thérèse se chamava ora Puidoux,
ora Dupré?
- Puidoux para actos notariais e Dupré quando declarou a criança. Era preciso poder perguntar-lho. Isso não será fácil. Enfim.
O resultado era insignificante. Depois de tantos esforços, o investigador levava muito poucos elementos novos para depositar aos pés de Viviane.
De Viviane, que se aborrecia imenso na ausência de Henri Castel.
No pequeno universo do Serviço de Saúde da Infância foi um acontecimento a aparição de Bernard Montigny, não já como visitante meteórico, mas como médico, colaborador de Terrier.
Orgulhoso e contente com aquela aquisição, o Dr. Terrier apresentou-o ao interno e às enfermeiras que ainda não o conheciam. Isabelle de Gaudry e Françoise Vannier foram para ele todas sorrisos. A ponto de Monique, que ficara só com Geneviève por uns momentos, olhar para a amiga, não sem preocupação:
"Ele agrada, o filho do notário! Eu compreendo. Mas tu, minha filha. tenho de te ensinar como é que se conserva um homem. Se não zelares os teus interesses, atenção. Aliás, já conheces a minha opinião sobre ele. Se Robert não existisse e tu não fosses minha amiga. "
Geneviève protestou:
"Mas, Monique, não há nada, absolutamente nada, entre o Dr. Montigny e eu! Que andas a imaginar?
- Atreves-te a dizer que não pensas nele?
- Não sei. Ainda não. Mas o que é certo é que deixei completamente de pensar em Jean-Luc.
-Bom começo. Estás no bom caminho. " Bernard voltou para o gabinete de consulta. Monique eclipsou- se para o seu escritório. Ouviu-se imediatamente o tiquetaque da máquina de escrever, ritmando a canção em voga que ela trauteava. Com um ar de intensa satisfação, o Dr. Montigny enfiava a bata branca que trouxera "Deve mandá-las fazer por medida", pensou Geneviève, considerando o comprimento dos braços dele, a largura dos ombros.
"Então, Geneviève - disse ele alegremente -, vamos começar? Estou convencido de que, você mais do que eu, vamos fazer um belo trabalho.
-Também o creio, doutor. "
Com as mangas da bata só meio enfiadas, sacudia-as como as dum pierrô:
"Já não quer chamar-me pelo meu nome próprio? Está zangada?
-Serviço é serviço, doutor! Fora do trabalho, veremos. Mando entrar o primeiro destes senhores? "
Riram ambos, sem razão precisa, talvez só com a perspectiva do "belo trabalho" que iam realizar juntos. A enfermeira abriu a porta ao primeiro dos "senhores", que era, aliás, uma rapariga. E o dia passou com uma espantosa rapidez.
"É um excelente médico, este Bernard", resumiu Geneviève a Monique quando à noite as duas raparigas voltavam a Saint-Julien no 2 cv.
"Causar-me-ias admiração se me dissesses o contrário. Do lado Lagrange, não há novidades?
- Não, Castel ainda não voltou.
-Ele foi com Viviane?
- Oh, não. Mas, afinal de contas, eu não sei nada. Porque é que me perguntas isso?
-Também não sei nada. Às vezes temos estas ideias. "
Não. Viviane não fora. Talvez tivesse aceitado a viagem se Castel lho tivesse proposto, mas ele continuava a respeitar estritamente as conveniências.
No casarão onde, dali por diante, ela não sabia como ocupar tantos criados, Viviane sentia cada vez mais cruelmente o vazio causado pela morte de Richard. E, ao mesmo tempo, pela primeira vez havia quinze dias, ousava pensar em iniciativas, encarar projectos. Para mais tarde, evidentemente, quando soubesse com o que contar a respeito de Geneviève e meLhor definisse a sua própria situação financeira.
Recém-vinda de além dos mares, amarrada à cabeceira dum marido doente, Viviane Lagrange não tivera ainda tempo de contrair muitas relações em Annecy. Sem dúvida que gostava de agradar, e até de seduzir, mas sentia também a necessidade de conversas bem femininas. Adorava falar da moda, interessar-se por aquilo que as pessoas sérias qualificam de "frivolidades". Alma pequena, cérebro pequeno, aspirava menos a grandes amores do que a afeições tranquilas. A duma amiga sincera, por exemplo.
Geneviève.
Foi a pensar em Geneviève que, nesse dia, se meteu no seu carro, um elegantíssimo descapotável que causava já sensação nas ruas de Annecy. Foi ainda mais notado em Saint- Julien-en-Genevois.
Viviane parou-o diante da loja de pronto a vestir da Sr. á Lebrun. Examinou a montra, onde vestidos, túnicas e camiseiros estavam dispostos com gosto, depois entrou. A Sr. á Lebrun veio logo. Como é que não havia de reconhecê-la? A sua fotografia aparecera no grande quotidiano regional no dia a seguir ao da morte de Richard Lagrange.
"A Sr. Lebrun? - perguntou Viviane com um sorriso.
-Sim, minha senhora.
-Viviane Lagrange. Estou encantada por a conhecer. Geneviève falou-lhe de mim?
-Com certeza! A senhora recebeu-a tão amavelmente.
- De si, ela falou-me em termos tão calorosos que não pude resistir ao desejo de a conhecer. "
A Sr. Lebrun estava um pouco perturbada pela cordialidade de Viviane. Viviane exagerava. Aquela visita teria apenas como razão a simpatia? Toda aquela história de filiação e de herança estava tão embrulhada, tão inquietante!
Muito à vontade, no entanto, Viviane examinava um vestido, apalpava a seda dum camiseiro, verificava o número duma medida.
Volúvel, explicava:
"Conto, aliás, tornar-me sua cliente. Estou de luto carregado, evidentemente, mas, nos nossos dias, o luto trazemo-lo no coração, não é? O preto não me fica bem. O preto e branco dá o ar de senhora idosa. Dê-me ideias. Qualquer coisa de bastante sóbrio e, ao mesmo tempo, moderno. Geneviève não está cá? "
A Sr. Lebrun apresentou um fato e inspeccionou a rua.
"Quer experimentar este? Geneviève deve regressar a casa dum minuto para o outro. Ah! olhe, ei-la com... enfim, quero dizer que não vem no 2 cv da amiga Monique. "
Bernard Montigny trazia Geneviève do Serviço de Saúde. Viviane, que começava a desabotoar o vestido para vestir um duas-peças lilás e branco, precipitou-se para o gabinete de provas.
"Desta vez -dizia Geneviève a Bernard à entrada da porta-, quer que o apresente à minha madrinha?
- Ficarei encantado.
- Ela está na loja. Entremos! Tanto mais que não vejo nenhuma cliente. "
Mas mal teve tempo de efectuar as apresentações. A Sr. Lebrun interrompeu-a:
"Temos a visita da Sr. Lagrange! "
Viviane saiu do gabinete e tomou as mãos da rapariga:
"Querida Geneviève, que alegria em tornar a vê-la! Trouxe-lhe as suas luvas, que esqueçera. Receava que tivesse ficado ofendida, no outro dia, com o Sr. Castel.
-Não, nem por sombras, minha senhora. Agradeço-lhe a sua visita e as luvas. "
Ia apresentar Bernard. Viviane previu a sua intenção e estendeu ao jovem doutor uma linda mão, que ele beijou:
"Não é por acaso o filho de Montigny? Ralhe-lhe da minha parte. Porque é que ele nunca o levou a minha casa? Devia estar orgulhoso de si.
- Espero que esteja. Mas acabo de chegar dos confins da áfrica. - acudiu Bernard.
- Isso deixa de ser uma desculpa, a partir de hoje. Eu contava pedir a. Geneviève e à madrinha que fossem minhas convidadas, esta noite, no restaurante. Aceita vir connosco? "
O jovem ficou de repente com um ar embaraçado: " Impossível. Já. já prometi.
-Você vai ter decididamente muita necessidade de perdão! E se eu o convidar, uma destas noites, com os seus pais, virá? - insistiu Viviane.
-Certamente, minha senhora, com prazer", afirmou ele inclinando-se.
Geneviève e ele olharam-se, um pouco contrariados. Tinham projectado passar o serão juntos. Por isso, Bernard despediu-se rapidamente. Assim que se afastou, Viviane desfez-se em felicitações:
"Que rapaz encantador! Percebe-se logo que é um homem fino. Trabalha com ele? Como deve ser agradável "
Geneviève não conseguia acompanhá-la.
Houve um silêncio que Viviane quebrou alegremente:
"Pois bem, vou raptá-las! É inútil mudarem de fato. Seremos só nós as três.
-Apenas o tempo de fechar a loja e sou toda sua - concordou a Sr. Lebrun, evitando os olhos de Geneviève. - Quer passar por este corredor, que conduz à casa? Ficará melhor no salão para me esperar durante cinco minutos. "
Pronunciara a palavra "salão" com ênfase. Geneviève precedeu a visitante e, com um rápido pontapé, mandou para debaixo duma arca os pantufos de feltro destinados a proteger o encerado. Mas, apesar das recomendações de Viviane, a Sr. á Lebrun reapareceu, uns instantes mais tarde, ataviada dos pés à cabeça, com trajo de domingo.
A refeição, comida num restaurante muito bom, foi excelente. Pelas vinte e três horas, Viviane levou a casa as suas convidadas. Quando lhe agradeciam, fez questão de lhes afirmar:
"Fui eu, sim, asseguro-lhes que fui eu quem passou convosco uma magnífica noite! Tão preciosa para a pobre mulher sem filhos que eu sou! Você é uma rapariga muito distinta, Geneviève. Como o seu pai a teria amado! Não tome esse ar céptico. Juro-lhe que a teria amado. Temos de tornar a ver-nos em breve. "
Geneviève teve um impulso:
"Quando quiser, minha senhora...
-E a si, cara Sr. á Lebrun, reservo-lhe a promessa de passar a ser sua cliente", lembrou Viviane exactamente antes de se afastar.
Quando ficaram sós, um pouco atordoadas, no salãozinho com poltronas revestidas de protecções, a Sr. á Lebrun comentou o menu do jantar como se não tivesse mais nada para dizer. Geneviève ficou primeiro silenciosa, depois sorriu:
"Se eu ficar rica, espero poder muitas vezes convidar-te para um restaurante como aquele, Mamie."
A madrinha virou-se bruscamente para ela e olhou-a nos olhos:
"Tu nunca me disseste francamente o que pensavas da Sr. Lagrange.
- muito simpática, não é?
- Sem dúvida. Mas pergunto a mim própria. porque é que ela se interessa assim por nós, sem razão?
-Há uma razão, Mamie. Eu talvez seja sua enteada.
-Nesse caso, devia mas era detestar-te! " Geneviève suspirou com cansaço:
"Vamos deitar-nos, Mamie. Se começamos a falar desse dinheiro e daqueles que lhe gravitam à volta, não dormiremos em toda a noite. Até agora, esforcei-me por aceitar os outros sem pensamentos reservados. "
A Sr. Lebrun não pôde deixar de observar: " Isso não te deu grande resultado com Jean-Luc.
-Paciência. Jurei a mim própria, nessa altura, continuar a ter confiança, apesar dessa experiência infeliz. Com ou sem dinheiro, não alterarei a minha linha de conduta. "
A Sr. Lebrun ia replicar que o dinheiro tinha o poder de alterar muitas coisas, quando o telefone tocou.
"A estas horas! É com certeza para ti, Geneviève", exclamou a Sr. Lebrun.
Era para ela, com efeito. Geneviève contentou-se com responder: "Vou já", e voltou-se, muito pálida, de repente:
"O pequeno Paul tem quarenta graus de febre! Vou chamar Bernard. "
O Dr. Montigny acabava justamente de regressar a casa, depois dum jantar maçador, seguido dum brídege. Como não jogava, pedira licença para se retirar, alegando:
"Eu sou um madrugador! "
O que Lhe valera, da parte da mãe, um olhar muito desaprovador:
"Tirar férias para trabalhar! E na Suíça, como se eles não tivessem médicos suficientes! Para o meu filho, a medicina acaba por ser uma mania! "
Após a chamada de Geneviève, saltou para o carro e foi buscar a jovem enfermeira. Depois seguiram juntos para casa dos Sahel, a quem tinham restituído o rapazinho na véspera, mais cedo do que estava previsto.
A criança já se queixava, havia uma hora, de fortes dores no ventre. A testa escorria-lhe em suor. Bernard não teve necessidade de o examinar durante muito tempo para diagnosticar o mal:
"Crise de apendicite fulminante. Vamos levá-lo para o hospital imediatamente. "
A tremerem de medo, os pais hesitavam. A Sr. Sahel murmurou com desconfiança:
"Não lhe vão dar mais injecções, pois não? Pensávamos que era isso que o tinha tornado mais doente, ao pequeno.
- Não há qualquer relação - afirmou Bernard. Embrulhem-no num cobertor. Temos de agir depressa. Se quiserem, levamos-vos com ele. "
Havia lugar para toda a gente no carro. Bernard levantou a criança, que soluçava, e, quando Geneviève se sentou, colocou-lha em cima dos joelhos. Os pais estavam instalados atrás, com a sua tez morena tornada cor de cinza. Conservavam-se de mãos juntas, não ousando dizer uma palavra. Bernard pegou no volante e arrancou a toda a velocidade.
À chegada, os Sahel suplicaram a Geneviève que ficasse com eles na sala de espera do hospital. Ela depressa os tranquilizou: o seu papel não era dar assistência a um cirurgião. Mas pôs-se a andar de trás para a frente durante todo o tempo da operação.
Abatido, resignado, como os que estão, desde sempre, habituados à desgraça, o casal comprimia-se a tremer, num banco, com o busto rígido, o olhar fixo, incapaz de chorar.
A porta que os fascinava abriu-se por fim com violento empurrão de Bernard.
"Tudo se passou às mil maravilhas! ", anunciou ele. "Foi mesmo a tempo! "
Com alívio, Geneviève beijou a Sr. Sahel. Esta juntou as mãos:
"Não podemos beijar o pequeno, doutor?
-Não, está a dormir. Venham vê-lo amanhã de manhã, ao despertar. Agora, vou levá-los a casa. "
Só tiveram forças para agradecer quando Bernard os deixou diante do prédio. O doutor acompanhou em seguida Geneviève. De cansaço, ela vacilou ao sair do carro. Ele segurou-a pelo braço.
"Um café fazia-nos bem aos dois, não. Mas deve estar tudo fechado a esta hora!
- Entre. Tenho ainda energia para ferver a água", afirmou Geneviève.
Uma chávena de café forte reconfortou-os em breve a um e a outro.
"Que alívio que foi encontrá-lo em casa de seus pais! -disse ela de repente.
-Confesse que duvidou um pouco do meu diagnóstico? O estado desse doentinho considerado quase curado e que tão de repente piorava.
-Não, não duvidei de si.
- Dentro de pouco tempo, esse jovem Paul Sahel já não precisará de nós. ", disse, Bernard, quase com pena.
A jovem sorriu-lhe:
" Encontraremos outros!
-Geneviève, gosto de trabalhar consigo.
-Eu também, Bernard. "
Um pouco contristada, mas resoluta, ela continuou: "Diga-me, quer mesmo que no domingo vamos passear os quatro?
-Naturalmente. Porquê esse quer mesmo? " Tinham bebido o café o mais simplesmente possível, na cozinha da Sr. á Lebrun. Geneviève olhou em volta, corou imperceptivelmente:
"Eu fui a sua casa e agora vejo-o aqui. É tão pouco. o mesmo género de existência! Você deve sentir-se mais à vontade com a Sr. Lagrange do que com raparigas como eu, ou como a minha amiga Monique. Você está mais habituado a... "
Bernard serviu-se duma segunda chávena de café, bebeu-a dum trago e levantou-se:
"Geneviève, eu estou sobretudo habituado ao mato, a cabanas que não têm qualquer semelhança com o castelo da Sr. Lagrange e a uma população miserável que não inspira outro sentimento senão uma dolorosa piedade. Compreende isso?
- Compreendo, Bernard. E também sinto um pouco de inveja de si.
-Então, torno a dizer-lho, há lá lugar para você.
Tal como ele, ela levantara- se. Estavam muito perto um do outro. Qualquer coisa de indefinível se insinuava entre eles, um misto de atracção, de receio confuso e de esperança, com uma espécie de vergonha dos entusiasmos. Se Bernard tivesse tomado Geneviève nos braços, ela não se teria defendido. Ele não o fez, no entanto, e contentou-se com apertar-lhe as duas mãos, murmurando:
"Até amanhã, Geneviève. "
Ela viu-o sair da casa, tornar a entrar no carro, arrancar. Estava demasiado cansada para pensar, para lastimar não ter sido estreitada por aqueles braços compridos.
O tempo estava muito bonito, no domingo seguinte, para o piquenique na montanha.
A excursão teria sido totalmente bem sucedida se Monique, sempre tão desastrada como bem intencionada, não tivesse metido na cabeça fazer de vigilante de Geneviève, um pouco à maneira de certas mães abusivas, que, à força de elogiarem a filha com o fim de a valorizarem, desencorajam o candidato eventual.
Foi só no fim do dia que Bernard e Geneviève puderam encontrar-se a sós, sem que Monique a isso os tivesse convidado com um gesto protector e aquele olhar cúmplice que exasperava a amiga.
Bernard ajudou Geneviève a sentar-se numa pedra coberta de líquen. Ela apanhou uma erva e mordis cou-a nervosamente, enquanto ele ficava de pé, imerso sob fundo de céu. Acendeu um cigarro, contemplando a paisagem.
"Que ar que se respira! - disse ele. - Que silêncio! Creio que nunca mais poderei habituar-me a viver numa cidade. Todo aquele barulho! Lá, no meu país selvagem, ainda existem sons, e cada um exprime qualquer coisa: uma alegria, uma dor, um drama. Os sons da vida, enfim. Na cidade, é a barulheira que não mudará, que continuará a ser o que é: incuravelmente vã.
- Eu também não gosto das cidades. Mas, quando se exerce a minha profissão, onde é que se encontra trabalho? "
O coração de Geneviève começou a bater. Esperou que uma vez mais ele lhe falasse da áfrica. Mas ele calou-se. O silêncio que os envolvia pareceu subitamente hostil à rapariga. Ao fim dum momento, Bernard inclinou-se e agarrou-a pelos ombros. Era apenas, no entanto, para a levar a pôr-se de pé.
"Vamos ter com os outros", disse ele. "Monique deve perguntar a si mesma se nos perdemos. "
A essa mesma hora, colhendo flores no seu jardim, Viviane soltava um grito de alegria à aparição de Castel.
"Henri! Julgava que você partira para sempre! Que longa que foi a sua ausência! "
Muito seguro de si, Castel interrogava:
" Será que você se aborreceu?
- Você é cínico! Mas, confesso, não tem graça nenhuma estar constantemente sozinha. "
Com um suspiro, ele começou a contar:
"Pelo meu lado, não me diverti, durante esta viagem. Nenhum resultado, ou quase. Tive uns momentos de esperança ao situar a casa em que, há vinte anos, vivia essa Thérèse Puidoux, ou Dupré. A casa foi vendida, justamente nessa época. Mas de Thérèse ninguém sabe nada. E não há outros meios de procura. Então, para que serve continuar uma investigação que não traz qualquer resultado?
- Toma uma bebida?
- De boa vontade. "
Viviane parecia contrariada.
"Que pena que você não tenha conseguido essas provas que procuramos! Geneviève é tão simpática! Convidei-a recentemente para jantar com a madrinha. Uma boa mulher, cheia de mérito. "
O rosto de Castel carregou- se:
"E suponho que você a tratou como se fosse sua enteada. Eu conheço o seu bom coração. Pois bem, fez mal, deixe-me dizer-Lhe. Ela pode tirar partido disso para comprovar a sua filiação. "
Viviane teimou:
"Para mim, Henri, isso nada altera. Tenciono respeitar as últimas vontades de Richard. "
Castel chegara todo sorridente, sedutor, certo de convencer facilmente Viviane a abandonar as suas quimeras. Encontrava-a tal como a deixara, com a sua estúpida pieguice e a sua obstinação choramingas. "Isso nada altera. " Podia alguém proferir uma tal burrice? Ela era ainda mais enervante do que Fabienne.
"As últimas vontades de Richard! ", troçou ele entre os dentes cerrados. "Que é que você recebeu dele, senão as suas vontades? Agora está morto. Você está livre. É bonita. O dinheiro dele é seu. Você merece-o mais do que essa rapariga, não será assim? E mesmo que ela seja na verdade filha de Richard: conheceu-o, amou-o, tratou dele, sacrificou-se por ele? Acho monstruosa a injustiça do seu marido para consigo. Aliás, que faria dessa fortuna uma rapariga que não tem nem o hábito, nem, sem dúvida, o gosto para isso? Para se libertar dos seus escrúpulos; faça-lhe presente duma soma importante. Servir-lhe-á de dote! Depois, não pense mais nisso. Se quiser, eu fixarei a soma, tomarei disposições. "
Visivelmente aliviada, Viviane voltou a sorrir.
"Oh, obrigada, Henri, obrigada! Eu não percebo nada, bem sabe, de questões de dinheiro. Sobretudo aqui, em França. Quanto Lhe havia de oferecer?
-Não há pressa. Tenho primeiro de falar com o Dr. Montigny.
- Mais histórias de notário, de papéis. Peço-lhe, falemos de outra coisa, Henri! ", acabou por concluir Viviane com a sua expressão mais irresistível.
Na montanha, entretanto, Bernard inclinava-se sobre um ferido. Não um ferido grave, mas mesmo assim.
Alpinista experimentado, desejoso de brilhar aos olhos das duas raparigas, Robert escorregara numa pedra lisa cuja ascensão não teria custado nada a uma criança de doze anos. É assim que se dão os "acidentes estúpidos". Foi necessário que Bernard o segurasse para. o levar até ao terreiro onde tinham deixado os carros, e Monique pegou no volante do de Robert, o infeliz que sofria no seu amor-próprio tanto como na perna a sangrar e já inchada.
No instante em que chegavam a casa da Sr. Lebrun, um garoto saltou da bicicleta e correu para Geneviève:
"Esta manhã - contava ele -, houve um senhor que bateu à porta. Eu ia a passar. Como não respondiam, ele perguntou-me por si...
- Eu tinha saído, com efeito - - disse a Sr. Lebrun, que abria a porta.
- Como era ele? - perguntou Geneviève, que pensava vagamente em Henri Castel.
- O carro dele era um Landrover! ", afirmou o garoto.
As três mulheres olharam-se, espantadas, atrapalhadas. Sob o rosado do rosto de Geneviève surgiu uma ligeira palidez.
"Um tipo muito alto, que fumava cachimbo", acrescentou o rapaz com desembaraço. "Não lhe perguntei o nome. Ele disse que voltaria. "
Geneviève fora sincera ao afirmar que já não gostava de Jean-Luc, que já não sofria por causa dele. Agora, que estava certa de tornar a vê-lo, nesse dia ou no dia seguinte, interrogava-se, todavia. Porque não existia mais ninguém, na região, que conduzisse um Landrover e fumasse cachimbo. Era ele, decerto que viera bater à porta da casa da Sr. á Lebrun e se informara a seu respeito junto do rapazinho.
Que sentiria ela quando o tivesse na sua frente? Pensa-se: "Já não gosto dele" quando um amor deixou de ser uma obsessão e já não provoca súbitas crises de lágrimas, à noite ou de manhã, quando o tempo está muito bonito ou quando chove. Despreocupadamente, corre-se então para um novo caminho, cede-se a outra atracção, cria-se um novo entusiasmo. E depois encontramo-nos em presença do passado; que se torna presente.
Que faria ela se Jean-Luc lhe dissesse: "Eu continuo a amar-te, Geneviève"?
Na terça-feira seguinte, ele aguardava-a à saída do Serviço de Saúde. Ela olhou para ele sem surpresa, espantada, apenas, por não se sentir terrivelmente emocionada. Ele retirou o cachimbo da boca e não soube senão murmurar:
"Geneviève!
- Foste tu que vieste no domingo a Saint-Julien? perguntou ela, sem achar nada melhor.
- Sim, fui eu. Queria falar contigo, explicar-te. Ela interrompeu-o:
"Para quê recomeçar? Há seis meses, saíste de Genebra depois de me teres explicado o essencial: não podias casar comigo por causa dos teus pais. Não vejo o que possas ter hoje mais para me dizer. "
Jean-Luc olhou-a bem de frente:
-"Sim, Geneviève, tenho de falar contigo. Há factos novos. Se não estás livre agora, queres combinar para esta noite? "
Ela observava com uma certa preocupação a saída do pessoal. Para se desembaraçar do jovem, aquiesceu:
"Pois sim. Esta noite!
-Eu venho esperar-te aqui. Vamos jantar juntos. " Imediata e decididamente, ela voltou-lhe as costas. Bernard vinha a chegar, acompanhado de Monique loquaz e gesticulante, como de costume.
"Onde é que estavas? - perguntou Monique. Estou a morrer de fome. O chefe faz por ser o último.
- Almocemos depressa - disse Bernard. - Temos trabalho atrasado. "
Monique encolheu os ombros:
"Mais um que vai na peugada do paizinho Terrier. Um mouro de trabalho, pobres de nós! E umas mouras de trabalho, forçosamente! Ah! não há dúvida de que fazia cá muita falta! "
Almoçaram a toda a pressa no restaurantezinho habitual, como camaradas, como iguais, não falando senão de episódios de serviço. Chegara a vez de Geneviève ter desejado uns segundos de conversa a sós com Monique. Bernard não Lhes deu ocasião para isso. Para voltarem ao Serviço de Saúde, ele pegou em cada uma delas pelo braço.
À tarde, à hora da saída, Monique surpreendeu Geneviève no vestiário quando ela tentava esquivar-se antes de toda a gente:
"Que mosca te mordeu? Vais apagar algum fogo, não?
-Não, mas o Jean-Luc está à minha espera. Deixa-me safar! "
As sobrancelhas de Monique curvaram-se em sinal de reprovação.
"Jean-Luc! Então era ele, no domingo? Porque é que esse nos vem chatear? Porque é que aceitaste encontrar-te com ele? E Bernard, que é que vais fazer a esse respeito?
- Como é que podes comparar.
-Lembra-te da tartaruga que corria com duas lebres ao mesmo tempo. Há uma fábula que fala disso. Tu talvez não corras, mas abusam de ti, minha querida filha. "
Geneviève não teve tempo de replicar. Bernard juntava-se-lhes, desembaraçava-se da bata e, muito alegre, virava-se para ela.
"Quer que a leve a Saint-Julien? Monique, deixa-me raptar a sua amiga?
- Oh! eu - exclamou Monique - permito tudo o que quiserem, mas. temos compras a fazer.
- Posso esperar por si, Geneviève? - insistiu Bernard.
- Podemos demorar-nos um bocado", alegou Geneviève com um sorriso de pena.
Visivelmente decepcionado, Bernard limitou-se a suspirar. Era a primeira vez que a rapariga lhe opunha aquele género de recusa, e por um motivo fútil, ainda por cima.
"Está bem", disse ele, até amanhã! "
Contristada, Geneviève viu-o partir sem ela. Se algumas dúvidas restassem, sabia agora com que con tar. Não, Jean-Luc já não representava nada para ela.
Monique puxou-a pela manga:
"Hás-de reparar que te estendi a bóia. Entre nós, aconteça o que acontecer, haverá sempre a união sagrada. Mas não estou de acordo! Tu também não, provavelmente? Tens de saber o que queres, apesar de tudo.
- Sei sobretudo o que não quero: recomeçar com Jean-Luc. Encontro-me com ele esta noite pela última vez - afirmou Geneviève.
-Então está bem. Que esperas para ires ter com ele?
- Que Bernard se vá realmente embora. " Monique ficou indignada.
"Geneviève! Mentir não é o teu género.
-Não lhe vou seguramente mentir se, um dia, ele se decidir a falar-me doutra coisa para além do trabalho. Contar-lhe-ei o meu amor por Jean-Luc, as minhas ilusões, o nosso rompimento. Mas. ele não há maneira de se decidir", concluiu Geneviève ao deixar a amiga.
"É verdade que nos conhecemos há muito pouco tempo", recapitulava ela ao atravessar a rua para se dirigir ao Landrover de Jean-Luc. "A primeira vez que o encontrei, todavia, na sala de espera do pai, parecia muito excitado. A partir daí, mostra-se tão reservado, em palavras ou gestos, embora os olhos o traiam por vezes. Mas não posso acreditar que ele só tenha procurado manter comigo uma aventurazinha de férias. Estas férias, ele tem uma forma tão pessoal, tão séria, de as empregar. Porque é que eu tenho sempre de esperar? Esperar para saber se sou filha de Richard Lagrange, para saber se Bernard gosta de mim. Enfim! Primeira decisão: afastar Jean-Luc. Que vingança, quando afinal, há seis meses... "
Ele apressou-se a abrir-lhe a porta.
"Receava que não quisesses já encontrar-te comigo - disse, ajudando-a a instalar-se no carro. - À hora do almoço foste duma frieza que me gelou o coração.
-Pensavas que te ia saltar ao pescoço?
- Não, Geneviève. Tu estás ressentida comigo e eu mereço-o, mas. Falaremos de tudo isso à mesa, naquele restaurante à beira do lago, como outrora. O mesmo; isso não te aborrece?
Ela absteve-se de encolher os ombros.
"Jantamos onde tu quiseres. Não eras sempre tu que tomavas todas as iniciativas? "
A conversa prometia não correr bem. Jean-Luc redobrou de atenções. Quando se sentaram no terraço que dominava o lago, ele quis saber novidades sobre a Sr. Lebrun e Monique, frisando mesmo: "querida" Monique, em tom quase enternecido.
Geneviève admirou-se:
"Monique? Parecias não gostar muito dela.
- Tinha uns certos ciúmes da tua afeição por ela. E estava surpreendido. Vocês são tão diferentes uma da outra!
- Nós somos amigas de sempre, do mèsmo meio, vivendo a mesma vida - insistiu Geneviève.
- Isso não impede que sejas mais inteligente, mais intuitiva é mais fina. Não protestes. Bem o sabes. "
O rostinho redondo e liso de Geneviève não se descontraiu.
"Cortesia por cortesia, como vão os teus pais? "
Antes de responder, ele mandou vir aperitivos, depois apoiou os cotovelos em cima da mesa, cruzou as mãos debaixo do queixo. E explicou:
"Eu já não estou a trabalhar nos negócios do meu pai. Era isso que queria comunicar-te, sobretudo. Separei-me dele há três meses. O que não foi cómodo, ao princípio. O paternal tem montes de relações. Imagino que se serviu delas para me afastar de muitos outros empregos. Mas eu aguentei. "
Orgulhosamente, levantava a cabeça. Geneviève teve um sorriso céptico:
"Jean-Luc, dás-me já uma notícia incrível! Tu, um filho tão respeitoso, tão submisso! "
Nos seus olhos castanhos, ela leu uma contrição de bom augúrio.
"Não poderias fazer um esforço para me perdoar? ", perguntou ele subitamente, constrangido.
Ela olhou para ele atentamente: maciço, forte, todo músculos, de sobrancelhas espessas, boca voluntariosa.
"É difícil", suspirou ela, desviando os olhos para a água azul. "Tu dás fisicamente uma impressão de força. Tens mais de vinte e cinco anos. E, todavia, tornaste-te manso como um cordeiro quando os teus pais te mostraram que não concordavam com o nosso casamento. Despediste-me com. sim, Jean- Luc, com grosseria. E agora vens dizer-me. Eu já não sei quem tu és realmente, Jean-Luc. "
O silêncio reinava de novo entre eles quando o criado se aproximou para tomar nota do que queriam para o jantar. Jean-Luc continuou assim que ele se retirou:
"O meu pai queria mandar- me para a Alemanha, para uma das suas sucursais. Em caso de recusa da minha parte, ameaçava cortar-me a mesada. Que teria eu para te oferecer, Geneviève? Sem situação, sem dinheiro.
- Conhecias-me mal se supunhas que o dinheiro tinha assim tanta importância para mim! Tu nunca
tiveste falta dele. Por isso, considera-lo indispensável. Ou mesmo mais ainda, primordial! "
Encetaram o primeiro prato, Geneviève comendo sem apetite, Jean-Luc não dando mostras de ter muito mais do que ela. Depois, bruscamente, ele pousou o talher e agarrou nas mãos da jovem:
"Eu rompi com todas essas ideias preconcebidas! Por ti, Geneviève, porque não conseguia esquecer-te. Continuo a gostar de ti, bem vês. Acabei por desencantar um emprego, não muito bem pago, mas onde ganho decentemente a minha vida. O suficiente para te pedir que a partilhes comigo. Sou senhor das minhas decisões. Por isso, já nada nos separa, não é verdade? Diz-mo depressa. "
Com suavidade, mas com firmeza, Geneviève retirou-lhe as mãos. E explicava:
"Não, Jean-Luc. Eu mudei depois da tua partida. Não só preciso de amar, mas também de admirar o homem que amo. Antigamente, não sabia isso.
-E não queres sequer deixar-me uma hipótese?
- Para quê. "
Foram essas mesmas palavras que ela lhe repetiu quando ele a conduziu a casa, depois dum serão humilhante para ele, penoso para ela. Para quê voltarem a ver-se, com efeito, uma vez que não tinham mais nada para dizer um ao outro?
Monique e a Sr. Lebrun tinham jantado sozinhas, discreteando sobre o tema da reaparição de Jean-Luc, dos seus motivos, das suas possíveis consequências. Monique não se acalmava:
"Não compreendo que Geneviève tenha aceitado esta entrevista", começou ela. "É demasiado fácil, após meio ano, ver que não se pode passar sem uma rapariga, depois de se ter calcado a mesma aos pés, porque o papá e a mamã não a julgavam dum meio bastante distinto! Todavia, ela, neste intervalo. "
Depois interrompeu-se e bateu na testa: "Mas sim, evidentemente, a Sr. Lebrun! No espaço de umas semanas, nem sequer de alguns meses, Geneviève mudou de meio! E Jean-Luc soube que a sua antiga noiva recuperara o pai. Um pai riquíssimo! Portanto, não se fala mais nisso, avança-se com o pé direito e em frente! Contanto que Geneviève não se deixe levar por esse.
- Eu tenho confiança nela - cortou a Sr. Lebrun.
-A senhora é como ela: não conhecem os homens! "
A Sr. Lébrun preparava-se para lhe perguntar maliciosamente quantos homens conhecera ela além de Robert, para falar deles com uma tal experiência, quando Monique levantou a cortina da cozinha e viu Geneviève, que se despedia de Jean- Luc. Os adeus não pareciam duma ternura transbordante. Monique recomeçou os seus comentários:
"Estou a vê-los! A noite dos reencontros não se prolongou até horas indevidas. Tanto melhor para nós e para alguém mais! Jean-Luc já entrou no carro. Está a acender o cachimbo. Geneviève não olha para trás. Já aí vem! "
E assim que Geneviève abriu a porta:
"Então, conta lá! "
A rapariga parecia sobretudo cansada.
"Não tenho nada para contar. O meu coração nem sequer bateu. Emoção, nostalgia: vácuo.
-Mas ele, que é que te disse? "
Geneviève abafou um bocejo.
"Boa noite, Mamie, boa noite, Monique. Tenho sono e vou deitar-me. Fica para amanhã o epílogo do romance Geneviève-Jean-Luc. Uma história patva, sem fim feliz. Para ela não era mais do que um serão perdido, visto que não o passara com Bernard. Alegrou-se, todavia, por não adormecer demasiado depressa. Agora, que riscara o passado, entregava-se totalmente à esperança.
Mas nem ela, nem Monique, nem a madrinha, se tinham apercebido, no decurso do exame de conjunto dos acontecimentos daquela noite, no fim de contas, sem importância de maior, dum facto relevante: as ruas de Genebra tinham olhos e ouvidos. os de Françoise Vannier entre outros, a mais invejosa entre as colegas das duas raparigas.
Françoise, na manhã do dia seguinte, esperou portanto com impaciência a chegada do Dr. Montigny. E quando a sua elevada figura encheu a sala de juventude, de alegria de viver, a enfermeira apressou- se a perguntar, num tom divertido, dirigindo-se a uma das camaradas:
"Sabes quem regressou a Genebra? Dou-te um doce! Jean-Luc Martel, o antigo noivo de Geneviève Lagrange! Tinham um encontro ontem à noite. Aquela Geneviève, afinal de contas. Nenhum homem lhe resiste. Jean-Luc e ela formam um lindo par, aliás! "
Tendo lançado o veneno, Françoise não pôde resistir à tentação de perscrutar a expressão de Bernard. Impassível, o jovem médico cumprimentou as duas enfermeiras e dirigiu-se para a sala de consultas, onde devia encontrar Geneviève. O seu trabalho comum decorreu, como habitualmente, em plena harmonia. Mas, à hora da refeição, ele anunciou que almoçava com os pais.
"Não faças disso um drama - disse Monique, considerando o rosto entristecido da amiga. - Talvez haja em casa dele uma festa de família.
- A família. mais uma vez! ", não pôde deixar de suspirar Geneviève.
Na antecâmara do cartório de Montigny, Henri Castel não tinha outro remédio senão corresponder ao sorriso dissimulado do praticante Trébout, que ele subornava para ser posto ao corrente dos eventuais progressos do caso Lagrange.
"Eu vou ver", disse o homem em voz muito alta, depois de lhe ter segredado um obrigado obsequioso, "se o Dr. Montigny pode recebê-lo. "
Fórmula convencional, pois Henri Castel tinha uma entrevista marcada.
Depois de lhe ter estendido uma mão imperceptivelmente reticente, o notário informou-se dos resultados da sua viagem. Castel esperava da sua parte um ar pouco amável. O Dr. Montigny apresentou um rasgado sorriso:
"Bravo! Mas porque é que parou quando seguia uma pista tão boa?
-Que podia eu fazer mais? Cheguei a um beco sem saída. Thérèse Puidoux desapareceu completamente.
-Não seja tão modesto. Graças a si, soubemos o seu verdadeiro nome e o local onde morava. Para um amador, o senhor parece particularmente dotado. Essa ideia do táxi, por exemplo, foi um verdadeiro rasgo de génio. "
Henri Castel aceitou com satisfação o elogio destinado a Fabienne:
"O doutor é demasiado generoso.
-Eis um cumprimento que não me fazem muitas vezes. Mas falemos a sério. Espero firmemente que essas novas informações sejam duma grande utilidade para o Sr. Adrien Le Tort. "
Castel sentiu um choque. Não se ousaria dizer que o notário não esperava pelo resultado das suas palavras. Ele registou a furtiva expressão de estupefacção, de desdita, que se lia subitamente no semblante do seu visitante. Castel deixou cair o isqueiro, apanhou-o entre os pés, depois endireitou-se, impassível:
"O doutor tem intenção de pedir a Le Tort que retome essa investigação?
-Bem entendido. Confesse que seria pena abandonar a partida quando, talvez, estejamos muito perto do fim.
-O doutor é que é o juiz. Todavia, essas diligências acabarão por custar muito dinheiro, e, se resultarem inúteis. "
O Dr. Montigny sorriu com jovialidade: "Inúteis, porquê? Porque você ainda não conseguiu desencantar Thérèse Puidoux? Vamos, caro senhor, não me faça acreditar que esse. semi-revés feriu em si um amor-próprio de detective!
-Por certo que não, doutor. Não me prestarei a esse ridículo. Mas o sorriso do notário desapareceu como por encanto:
"O senhor acaba de fazer alusão ao custo dessa investigação - disse ele com um tom de ligeiro desdém na voz. -Tenha a certeza de que não deito o dinheiro do Sr. Lagrange pela janela fora. Porque ele não é ainda da Sr. Lagrange.
- Não serei eu a contradizê- lo - admitiu Henri com uma grande afectação de respeito. -Mas há, todavia, consideráveis probabilidades para que venha a ser. "
Ele achara oportuno acompanhar com um suspiro aquela reflexão fatalista. Foi ao suspiro que o Dr. Montigny replicou:
"O senhor desencoraja-se depressa. O quê! Teve todo esse trabalho, fez essa viagem, solitário, sem nenhum atractivo, para nada? No qqe me diz respeito, não me resigno assim tão facilmente. "
O resto da frase pronunciou-o de pé, convidando Castel a sair:
" Tenho a certeza, aliás, de que a Sr. Lagrange apreciará como é devido a minha consciência profissional. Vou acompanhá-lo. A Sr. Lagrange faz muita questão de que Geneviève seja reconhecida como filha de seu marido.
- Bem entendido. Até à vista, doutor. " Mas o notário continuava:
"Se não fosse isso, porque é que ela o havia de mandar a Cosne, a Sancerre, a Burges? Dá provas dum nobre desinteresse. Eu não esperava outra coisa dela. E como é você que a aconselha, cabe-lhe uma parte da honra. Até breve, portanto, caro senhor. Obrigado, obrigado por ela.
- Pela Sr. Lagrange?
-E por Geneviève. "
Henri Castel, ao voltar ao escritório, bateu com a porta do seu gabinete. Fabienne, que escrevia cartas à máquina, sobressaltou-se:
"Cos diabos! Que é que há mais? Um contratempo?
-Esse notário atira-me Le Tort às canelas. Ah! pode orgulhar-se de ter gozado à minha custa! Eu fingi que não percebia. Armei em parvo. Mas hei-de vingar-me, Fabienne!
- E como? "
Ele pareceu não a ouvir:
"Entretanto, tenho de dar um salto a Paris. Não me demoro mais do que vinte e quatro horas. Vou de avião.
-A Paris? Sem mim? "
Castel dispensou-se de responder. Saiu como entrara: precipitadamente.
No regresso desse voo rápido trouxe a Viviane não só as últimas notícias recebidas do Dr. Montigny, mas um dossier muito volumoso contendo um inventário completo e pormenorizado da fortuna de Lagrange.
Ela folheou-o distraidamente, com aborrecimento: "Henri, tudo isto é chinês para mim! "
Ao vê-la rir, ele rangeu os dentes. Ela comentava com a sua voz de menina teimosa, que tanto exasperava Castel:
"Quanto ao chinês, acabaria por traduzi-lo. Sou muito dotada para as línguas! Mas na escola tinha sempre zero em Aritmética. "
A mão de Castel crispou-se sobre o dossier que ela acabava de fechar:
"Viviane, todos estes números que a aborrecem determinam a sua fortuna. Diga o que disser o Dr. Montigny, em breve ela será sua. Faça um esforço para tentar compreender!
-Para quê, visto que o sei junto de mim? " Como ele se calava, ela olhou-o, chocada com a sua expressão quase trágica.
Ele acabou por murmurar:
"Eu nem sempre estarei aqui, Viviane.
-Porquê? Meu Deus! Você está doente?
-Não, Viviane, estou bem. Mas o trabalho que o seu marido me tinha confiado consistia em converter os seus bens em valores facilmente negociáveis, em investimentos seguros. Ele pensava que isso seria mais cómodo para si. ou para a sua suposta filha. Essa tarefa está terminada. Eu já não posso aceitar dinheiro de si. O Dr. Montigny ficará encantado de salvaguardar os seus interesses. Viviane Lagrange ficou transtornada:
"Henri, suplico-lhe, continue como no passado! " Com a cabeça, ele fez sinal que não.
"Henri, você parece não ter confiança nesse notário.
-Tenho plena confiança na sua honestidade. Só Lhe censuro não tomar devidamente o seu partido. verdade que. "
De novo tomou aquele ar "belo tenebroso" que impressionava Viviane, porque lhe lembrava o seu passado de actriz.
". que ele não tem as mesmas razões que eu acrescentou- para querer a todo custo, Viviane, ci seu conforto, a sua felicidade. "
Baixara a cabeça. Tornou a levantá-la, com os olhos meigos:
"Você sabe quais são essas razões, não é verdade? Não, não, não diga nada. Não agóra. Compreenda apenas, Viviane, porque é que eu desejo afastar-me. Quando Richard estava entre nós, eu tinha a coragem de me calar. Essa coragem, já não a tenho. Se ficasse, seria você a pedir-me que partisse. "
Através das vidraças do salão, o olhar de Viviane perdeu-se nos confins do parque. Nos papéis que ela desempenhara outrora, como reagia a heroína a uma declaração tão velada, tão delicada? Não se recordando disso, ficou-se com o seu instinto e não foi pior:
"É demasiado cedo, Henri, para que eu possa responder às palavras. que você me dirá talvez um dia. Mas peço-lhe, suplico-lhe que fique. como meu conselheiro, meu amigo. "
Ele levantou-se para beijar uma mão um pouco trémula.
"Eu respeito-a, Viviane, e sou-lhe inteiramente dedicado. Hoje, amanhã, como ontem. Visto
que me pede, então ficarei. "
Desde a sua última conversa com o Dr. Montigny, parecia a Castel que a espada de Dâmocles, personificada no detective Adrien Le Tort, estava suspensa constantemente sobre a sua cabeça. Por isso continuava a subornar o praticante Trébout. Útil precaução. Porque era ele que o notário encarregara de telefonar regularmente para o escritório do polícia, para se informar sobre o seu regresso da América.
Trébout não o fazia, naturalmente, alegando uma ausência prolongada, a ponto de o notário acabar por lhe ordenar que mandasse um telegrama redigido: "Contactar assim que chegue cartório Montigny em Annecy. "
"Não sei onde desencantou você esse praticante. Tem cara de ser falso como Judas", observou uma vez a mulher quando se sentava à mesa. "Oh! o que estou eu a dizer! Você vai, mais uma vez, troçar de mim, da minha intuição feminina, evidentemente. "
Bernard suportava mal as eternas escaramuças entre o pai e a mãe, que datavam da sua infância. O ambiente carregado daquele lar não fora estranho à sua decisão de seguir uma carreira além dos mares.
O jovem médico sentia a falta, contudo, dos seus almoços rápidos com Geneviève, sem quebra da atmosfera do trabalho, mas com alguma coisa mais. Desde que a frase de Françoise Vannier revelara a existência dum Jean-Luc na vida da sua enfermeira, ele evitava, fora do Serviço de Saúde, incomodá-la com a sua presença. Ou almoçava sozinho, a correr, ou percorria a toda a brida a distância que separa Genebra de Annecy, para ser agradável ao pai.
Nessa noite, todavia, não poderia fugir a jantar com Geneviève na pequena habitação dos Sahel, em honra da cura de Paul. Aquelas bondosas criaturas tinham insistido de tal forma para lhe fazerem saborear um cuscuz autêntico.
Geneviève esforçava-se por não Lhe deixar perceber que sofria profundamente com a sua mudança de atitude. Claro que ele não era menos atencioso para ela ou para os seus amigos, passando todos os dias a substituir o penso de Robert, ainda imobilizado. Mas ela perdia agora a esperança de tornar a ouvir as palavras ternas que em certos momentos ele tivera debaixo da língua, jurá-lo-ia.
"Lembra-se? ", perguntou-lhe ela enquanto subia a escada íngreme dos Sahel. "Há dez dias, neste mesmo lugar, não nos mostrávamos muito corajosos! "
A Sr. Sahel fizera todos os possíveis. O cuscuz estava saboroso, o vinho era de boa qualidade. O marido ofereceu a Bernard uma caixa de pequenos charutos:
"São da nossa terra. Comprei-os a árabes que trabalham na mesma obra que eu. Finalmente, entendo-me bem com eles. Não teria pensado isso, quando tivemos de partir, logo a seguir ao nascimento do pequeno. Oh! não é que se esteja mal aqui, mas não vale a Argélia. O senhor está lá mais para baixo, na África. Consegue habituar-se à Europa?
- Nem por isso. "
Sahel, geralmente taciturno e que só bebia em circunstâncias excepcionais, mostrava-se bastante falador, enquanto Bernard - Geneviève bem o sentia - se forçava por mostrar uma certa animação. A conversa recaiu sobre Paul, que fora criado na Suíça, onde não conheceria os problemas paternos.
"Dentro de dois dias", afirmou Bernard, "pode levantar-se. Eu passarei a vê-lo antes, para ter a certeza. "
O pai teve um sorriso comovido:
"Estragaram-no no hospital. O senhor e a sua, enfim, esta menina.
- Diego - disse a Sr. Sahel -, devias cantar-nos qualquer coisa.
- Se isso não aborrecer estes senhores... ", disse Diego Sahel pegando na viola.
Cantou com uma bela voz grave e com emoção uma ária espanhola, depois uma canção de inspiração argelina. Ao som da música, Paul acordou e pediu logo
a Geneviève que viesse beijá-lo. Ela correu à sua cabeceira, apertou-o nos braços, prometeu-lhe levá-lo um dia a passear no lago. Gostava muito daquela criança.
Para ela, ele estava ligado a caras recordações... Recordações que ela talvez fizesse melhor em arquivar na gaveta das relíquias.
Durante o trajecto da volta, apenas se sentou no carro, ela pôs-se a cantarolar a melodia espanhola.
E Bernard fez-lhe um elogio que ela não merecia. Habitualmente clara, cristalina, a sua voz nessa noite estava rouca de preocupação. Porque é que Bernard mudara? Eles que, nos primeiros dias, achavam as horas demasiado curtas, porque é que procuravam agora as palavras? E para que banalidades.
"O Paul - disse finalmente Bernard - gosta muito de si. Aliás, todas as crianças gostam de si, já o verifiquei.
-Na minha profissão, é melhor assim. Paul é muito afectivo.
-Tem um sorriso muito bonito.
-Os pais são muito simpáticos.
-O cuscuz estava saboroso! "
Os adeus foram igualmente lacónicos ao chegarem diante da casa da Sr. Lebrun.
"Até amanhã, Geneviève.
-Até amanhã, Bernard. "
O carro tornou a partir imediatamente. Bernard não parara o motor e Geneviève entrou em casa, tomada de pânico. Perdia a cabeça ao pensar que teria de viver aquela noite, o dia seguinte, muitas outras noites e muitos outros dias, e que talvez chegasse a uma velhice extrema, sem ser amada por Bernard...
Nada funcionava já direito na sua pobre cabeça.
A essa hora, no entanto, o telefone tocava em casa do Dr. Montigny pai, que estava prestes a deitar-se:
"Queira desculpar-me, doutor -começava Adrien Le Tort -, por o incomodar tão tarde, mas encontrei o seu telegrama em cima da secretária, há justamente cinco minutos. É a respeito do caso Lagrange? Bem.
Posso estar em Annecy amanhã... De acordo?
-Vou pedir ao meu filho que nos traga Geneviève Lagrange. É muito fácil, eles trabalham juntos", anunciou o notário.
Esse dia seguinte não foi portanto tão aborrecido como Geneviève receava.
Quando ela chegou ao cartório, conduzida por Bernard, o notário e o detective tinham já tido tempo de fazer o ponto da situação:
"A notícia da mudança de nome dessa Thérèse é importante - achara Le Tort -, sobretudo se considerarmos o desejo do Sr. Castel de não nos ver provar a filiação de Geneviève!
- Conhece Henri Castel? - perguntou o notário com interesse.
-Só o vi uma vez. Na minha, profissão, julga-se depressa e prevê-se o pior. Contudo é sempre ele que chega. Vou voltar a Orleães. Tenho boas esperanças de lá encontrar enfim qualquer coisa, embora. vinte anos seja muito tempo. Vou também mandar pôr um novo anúncio de procura, mas em nome de Thérèse Puidoux. "
Estavam a bater à porta. A cara de fuinha do praticante Trébout espreitou no vão da porta. Anunciava:
"A Menina Lagrange.
- Mande-a entrar. "
Pago para escutar às portas, o praticante ouviu: "Bom dia, menina. Conhece o Sr. Le Tort?
-Lembro-me muito bem dele. Bom dia, senhor. " O Dr. Montigny explicava:
"Desejava que falasse com ele o mais cedo possível. Foi por isso que reservei a minha tarde. Que conta fazer, Sr. Le Tort?
-Voltar a Orleães. Ao local onde se encontra sem dúvida a chave do enigma. "
Geneviève esboçou um pálido sorriso:
"Eu também lá vou. Tenho direito a uns dias de férias. Sentir-me-ei feliz por conhecer os sítios onde a minha mãe viveu.
-Vamos então juntos, menina", propunha imediatamente Le Tort. "Ficarei encantado de fazer essa viagem na sua companhia. Se aceitar, vou buscá-la a casa às oito horas. Não se esqueça de que eu conheço o caminho. "
Trébout deixou o seu posto de escuta para se apressar a telefonar a Castel assim que o detective saiu do cartório ao volante do seu carro, enquanto Bernard Montigny ajudava Geneviève a instalar-se no seu. Ela resumiu-lhe em poucas palavras a conversa:
"Vai-se embora amanhã? Com esse Le Tort? - espantou-se Bernard.
- Sim, Bernard. Creio já ter-lhe falado nisso. Quero ir rezar sobre o túmulo de minha mãe. "
Bernard parecia perplexo. Pensou demoradamente antes de responder:
"Arrisca-se a perturbar o Sr. Le Tort na sua investigação. E ele não terá tempo para se ocupar de si. Se eu ousasse... Propunha-lhe também levá-la a Orleães.
- Você?
-Porque não havia de ser eu, Geneviève? Eu também estou de férias. Serei um motorista assim tão inábil que você não tenha confiança em mim?
- Oh! sim, tenho confiança.
- Nesse caso, vou telefonar ao Sr. Le Tort para lhe dizer que não precisa de se incomodar. Entendido então: amanhã de manhã, às oito horas. "
Geneviève voltou dessa vez a casa da madrinha num estado de exaltação que siderou tanto a Sr. Lebrun como Monique e Robert, convidado para jantar.
Radiante, anunciava-lhes:
"Vou amanhã a Orleães, com Bernard!
-Por todo o dia?
-Melhor do que isso! Por dois ou três dias, talvez mais.
- Eu tenho ideias desempoeiradas - declarou a Sr. Lebrun. - É preciso vivermos com o nosso tempo.
Apesar de tudo, não acho isso muito conveniente.
- Adrien Le Tort também vai - lembrou Geneviève, cujo entusiasmo começava a diminuir.
- Esse... - disse Monique. - Se não se me partisse o coração deixar o meu Robert com a sua perna ferida...
- Ias? - disse Robert. - Para segurar a candeia?
- Não, para proteger simplesmente a minha amiga contra a sedução do outro. Quanto mais penso nisso, mais digo a mim mesma que isso se impõe.
Tal como Geneviève, Robert não manifestava o mínimo entusiasmo.
"E eu, então, que é que seria de mim?
- Isso pode arranjar-se facilmente - interveio a Sr. Lebrun. -Eu não pretendo substituir Monique, mas ofereço-me para Lhe servir de mãe, caro Robert.
- Perfeito! - gritou Monique. - Queres que vá contigo, Geneviève? Bernard talvez não fique encantado, mas eu terei a consciência do dever cumprido. "
Não havia outro remédio senão inclinar-se. No dia seguinte, de manhã, Bernard não formulou qualquer objecção quando Geneviève lhe comunicou que Monique os acompanhava. Calmamente, arrumou as bagagens das duas raparigas na mala do carro. De pois, Geneviève sentou-se ao pé dele, Monique no assento de trás.
"Já a previno", disse ele, "de que andaremos muito depressa. Temos o encontro com o Sr. Le Tort no Hôtel du Centre, dirigido por um tal Sr. Rousseau. Foi nesse hotel, Geneviève, que a sua mãe trabalhou. "
Durante o trajecto, Monique tagarelou ou cantou quase todo o tempo, o que os dispensou de falar. Pa raram só para almoçar e chegaram a Orlães ao começo da tarde. O detective acabava também de chegar.
"Queira pedir ao Sr. Rousseau que desça", disse Le Tort à criada que se ocupava das bagagens.
Geneviève olhava em volta, sonhadora:
"Foi aqui que a minha mãe viveu? Sinto-me feliz por ter vindo. O dono do hotel não se fez esperar. Le Tort indicou-lhe Geneviève:
"A filha de Gilberte.
Oh! não duvido - foi a resposta do velho. - Parecem-se como duas gotas de água.
- Infelizmente - acrescentou Le Tort -, isso não constitui um testemunho admitido pela justiça. Temos de encontrar melhor. "
Muito nervoso, o detective virou-se para Geneviève.
"Tenho de a deixar, menina. Vou imediatamente para Sancerre. É lá que acaba a pista do Sr. Castel e eu espero ter mais sorte do que ele. Mas voltaremos a ver-nos em breve. "
O hoteleiro retirava três chaves do quadro da recepção:
"Para o senhor, o 5. Para a menina, o 3. Quanto a si, Menina Lagrange, julgo dar-lhe prazer destinando-lhe o quarto que era o de Gilberte. Talvez seja menos confortável que os outros.
-Dar-me-á muito prazer. "
O velho acompanhou a rapariga ao quarto. Não, não era luxuoso. Depois de se ter mirado no espelho da cómoda estreita, Geneviève sentou- se na cama com alçados de cobre e pediu ao Sr. Rousseau que tomasse lugar no único assento que havia.
"Agora, se faz favor, fale-me dos meus pais. "
O que o Sr. Rousseau queria era falar de Gilberte, mas explicou que tinha também de se ocupar do jantar. Com um sorriso paternal, aceitou que Geneviève o seguisse até à cozinha e, enquanto remexia os molhos, sonhou em voz alta. Contava:
"Por muito que se diga, o tempo dos Americanos é que era bom! É verdade que faziam subir os preços, que eram um pouco barulhentos, por vezes. Mas simpáticos, no conjunto. A sua mamã, olhe! Aí está uma que sabia dar-se ao respeito. Com ela nenhum teria ousado atrever-se. Entretanto, chegou o seu pai. Vou-lhe mostrar a mesa dele. "
Ela seguiu-o à sala de jantar, onde, maquinalment, ele endireitou alguns talheres:
"Era aquela, no canto à esquerda. Ele entrara, uma noite, por acaso. Voltou depois todos os dias, por causa de Gilberte. Ela percebeu logo que aquele. E eu creio que soube antes deles mesmos que iriam até ao casamento. "
Abriu a porta doutra sala, maior mas sem móveis: "Foi ali que se realizou o copo-d'água. Que linda festa! O capitão Lagrange alugara um apartamento, não longe. Revíamo-los a ambos como clientes. Depois, o imóvel foi destruído. Construíram outro mais acima. O Sr. Le Tort não encontrou lá nada. Se me dá licença, volto à cozinha.
"Como ela chorou, pobrezinha", continuou ele diante do fogão, "quando o capitão foi chamado à Coreia! Nós éramos os seus melhores amigos. O ter-se tornado esposa dum capitão não a fizera orgulhosa.
Fui eu que tive de lhe dizer que o seu pai fora dado como desaparecido. Pensávamos que ela ia perder o juízo com o desgosto. E depois, um dia, partiu sem dizer para onde ia. Como se parece com ela... "
Geneviève estava muito comovida.
"Agradeço-lhe muito, Sr. Rousseau. Graças a si, a minha mãe já não é para mim totalmente desconhecida. Amanhã, quando for junto da sua sepultura,
poderei pelo menos imaginá-la viva. "
Quando Geneviève entrou no cemitério de Cosne-sur-Loire, no dia seguinte, Bernard e Monique caminhavam discretamente atrás dela. A jovem desejara recolher-se por um bocado, mas em breve se sentiu muda e gelada. "A presença dos mortos não se encontra nos cemitérios", pensou, "mas nos lugares onde eles viveram e amaram. " A mãe estava infinitamente mais próxima dela no hotel do Sr. Rousseau.
Uma hora depois, enquanto o trio almoçava numa pousada à borda-d'água, Geneviève levantou uns olhos implorantes para Bernard:
"Complicar-lhe-ia o trajecto se, ao voltar para Saint-Julien, passássemos por Lamotte-Beuvron? A minha mãe nasceu nessa aldeia.
-Estou ao seu dispor, Geneviève, para a ajudar a fazer toda a peregrinação. "
O tempo estava delicioso, convidava a passear.
Quando Monique, que fizera honras à refeição copiosa
e a um vinho particularmente capitoso, pediu licença para fazer, antes de retomarem a estrada, uma pequena sesta sob as árvores, os seus companheiros encorajaram-na a isso vivamente. Estavam sós por um
momento, sem serem forçados por um horário, nem importunados por quem quer que fosse. Lentamente, caminharam ao longo da margem, Geneviève murmurou uns agradecimentos:
"Como você é bom, Bernard, por me ter acompanhado nesta viagem melancólica. Os meus pobres pais. Tanta felicidade destruída. Ele evitava olhar para ela enquanto aconselhava: "Para eles, Geneviève, para a sua mãe, só há uma coisa que você pode: ser você própria feliz, em nome deles vingar-se do destino.
- Eu não sou infeliz. "
Então ele parou e virou-se para ela, mas sem se aproximar demasiado. Depois, os olhos deles prenderam-se uns aos outros, os de Bernard ansiosos, os de Geneviève cheios ao mesmo tempo de receio e de esperança. E, sem preâmbulo, ele perguntou:
"É verdade o que ouvi dizer no Serviço de Saúde? Oh! sem que escutasse às portas. é verdade que você teve um noivo?
-É verdade. Não o escondo.
-E que esse noivo voltou?
-É verdade também. Eu ter-lho-ia dito, Bernard, mas..."
Bernard mordia os lábios. Geneviève não pôde deixar de soltar um gritinho:
"Estará você um pouco ciumento? "
Em tom cansado, subitamente, ele confessou: "Um pouco, não, Geneviève, muito ciumento. Transfigurada, volúvel, ela apressou-se a explicar: "Ele já não conta para mim! Só acedi a estar com ele para lhe significar o despedimento definitivo! Você está muito ciumento! maravilhoso, Bernardo! Como estou contente! "
Tão contente que esboçou realmente um passo de dança, o que podia apresentar certos perigos, na extremidade da margem dum rio desprovido de protecções.
Como o pé lhe escorregasse na erva húmida, a dançarina caiu.
Mais emoção do que dor. O rio não era fundo, apenas um pouco frio, como todos os rios em que há trutas. Outro que não fosse Bernard ter-se- ia contentado com estender uma mão socorredora. Surpreendido com um tal incidente num tal momento, Bernard atirou-se à água para retirar a imprudente, risonha mas transida.
"Geneviève, minha pobre querida, está a tremer, está a tiritar! "
A escorrer tanto como ela, ele não podia pretender aquecê-la apertando-a contra si. Foi todavia o que fez, dando-lhe o beijo por que ela aspirava havia muitos dias, muitas semanas, e que acabava por duvidar se algum dia receberia. Cada um deles, nos lábios do outro, bebeu um pouco de água do rio, uma água mais entontecedora que os vinhos mais generosos do Loire e da Borgonha juntos.
Separaram-se por fim e examinaram-se sem indulgência.
"Estamos lindos! ", concluiu Geneviève.
Despertada pelas suas exclamações, Monique acudiu. Espantou-se com o seu aspecto de náufragos, mas sobretudo por os ouvir rir com tanta satisfação. Eles não perderam tempo com explicações.
"Eu caí à água - disse Geneviève. - E Bernard.
-Mergulhou em teu socorro. Estou a ver! Decididamente, assim que te deixo. "
Riam ainda ao mudarem de fato e ao friccionarem-se um ao outro, vigorosamente, para dominarem os espirros. Após isso, o trio retomou a estrada em direcção a Lamotte-Beuvron, a localidade cujo nome Geneviève aprendera recentemente. Sabia que era preciso perguntar pela casa Diligent.
À entrada da aldeia, quando Bernard bateu à porta da primeira casa para se informar, uma velha passou a cabeça por uma das janelas do rés-do-chão. Estremeceu ao encarar com Geneviève e, virando logo as costas, disse-lhes por cima do ombro:
"Não é aqui. Batam ao lado. "
Na casa contígua foi também uma mulher idosa que os recebeu, mas muito mais amavelmente.
Sim, conhecera Gilberte.
". Visto que era a minha própria sobrinha, filha da minha irmã! Foi aqui que a criei, depois da morte dos avós. Só me tinha a mim na aldeia.
-Pode falar-me dela? ", implorou Geneviève. A mulher hesitou um momento:
" Não é assim tão fácil. ora essa! Isso não data de ontem. Não é que ela fosse difícil de suportar. Uma boa aluna na escola, muitas vezes a primeira, mas sonhadora. A professora queria que ela continuasse os estudos. Em casa não éramos ricos. Disse-me que ela casou com um homem abastado?
-Ela não o sabia, nesse momento - interveio Geneviève.
-Oh! Ela sabia o que queria. Por exemplo, eu achava que ela tinha feito melhor se ficasse aqui. Temos de convir que você não estaria aí e não teria o ar duma menina! "
Geneviève protestou:
"Eu não sou uma menina.
-Sim, com certeza. Então deve ter o dinheiro do seu papá? Espero que sim, que Gilberte não tivesse tido tantos aborrecimentos para nada. Quer um dos livros que ela lia? Eu tenho maus olhos, não posso ler.
- Ficava-lhe muito agradecida, minha senhora. "
A mulher, que era, em suma, tia-avó de Geneviève, abriu um armário e tirou de lá dois volumes cheios de pó:
"L'Éducation sentimentale. pronunciou ela com dificuldade. Se isto puder interessar-lhe. E se ficar rica, um dia, faça os possíveis por pensar em mim! Pelo que me resta.
-Prometo-lho. Até à vista, minha senhora. " De lágrimas nos olhos, desiludida, não sabendo que mais dizer àquela mulher, Geneviève virou-se para Bernard. Ele teve para ela um pequeno sorriso consolador. Depois, sem uma palavra, dirigiram-se para o carro. Tinham de regressar.
Avisado pelo praticante Trébout das actividades comuns de Adrien Le Tort e de Geneviève Lagrange, Henri Castel, à mesma hora, disfarçava o seu nervosismo jogando o golfe com Viviane. Ele próprio a encorajara a viver de novo ao ar livre, a "tornar-se outra vez uma mulher".
Terminado o percurso, pegou-Lhe no braço, encaminhou-a para fora do terreno, para junto dum pequeno lago, e convidou-a a mirar-se na água tranquila.
- Olhe para si, Viviane - começou ele com aquela voz que os actores classificam de violoncelo e cujas modulações sabem graduar. -Há anos que você esqueceu que é bela, fascinante. Em breve, apaixonados fervorosos dir-lhe-ão e torná-lo-ão a dizer. Lembrar-se-á de mim?
- Como pode duvidar disso? - respondeu ela, dando a impressão de se dirigir à imagem de Henri, tão próxima da sua no espelho de água. -É verdade, junto de Richard eu esquecia-me de que tinha um rosto. Não pensava em si senão como um amigo. Tinha a impressão de que você me julgava parva, também - concluiu ela, perspicaz por excepção.
-A gente defende-se dos seus sentimentos como pode. Agora, finalmente, tenho o direito de falar. " continuava Castel, decidido à grande cartada.
Mas Viviane, nesse dia, sentia igualmente o prazer de se fazer rogada.
"Não, Henri, é ainda muito cedo. Deixe-me habituar à ideia de que um dia, talvez, possa refazer a minha vida.
- Comigo?
- Isso é um pedido de casamento?
-Você aceitava-o, Viviane? Dá-me um pouco de esperança?
- Repito-lhe que é muito cedo. "
Castel escondeu o seu despeito. Mas o golfe, subitamente, deixou de lhe interessar.
"Vamos para casa? ", perguntou ele.
Tal como acabava de fazer Bernard Montigny a centenas de quilómetros.
Adrien Le Tort, esse, estava absorvido por conversas dum género totalmente diferente. Depois de ter falado com os Dudoyer, compradores vinte anos atrás da casa de Thérèse, ele tivera a ideia de entrevistar a vizinha, uma velha camponesa curvada por dezenas de anos de apanha de legumes. As mesmas perguntas, sempre: Thérèse Puidoux, Gilberte.
A velha lembrava-se:
"A pequena metia dó, meu senhor. Grávida até aos dentes, sempre triste. E não era a Thérèse que devia levantar-Lhe o moral! Ela não era para brincadeiras, a Thérèse. Se a tivesse conhecido.
-Eu gostaria de conhecê-la, justamente! Como é que ela tratava Gilberte?
-Quanto a isso, muito bem. Era todo o tempo: Gilu, descansa, Gilu, não apanhes frio. " E depois, um dia, desapareceram. Veio um táxi buscá-las, com a criança.
- A criança?
-Ela acabava de dar à luz. A Thérèse voltou a buscar as suas coisas uns dias mais tarde. É tudo.
-Essa partida precipitada não lhe pareceu estranha?
- Pensei. sei lá! que a pequena tinha vindo dar à luz aqui e que voltava para casa. E, depois, isso foi há vinte anos! ainda formidável que eu me lembre. "
De volta a Orleães, Le Tort ficou desapontado por não encontrar Geneviève no Hôtel du Centre.
"Foi à terra natal da mãe", disse-lhe o Sr. RousI seau.
O detective não deixou por isso de continuar as suas investigações:
"Não me admira. Fui eu que Lhe dei o nome. Diga-me, Sr. Rousseau, a jovem Gilberte nunca lhe falara da sua velha amiga, Thérèse Puidoux, que a tratava por tu, que lhe chamava Gilu?
-Nunca. Palavra de honra!
-Então é porque Gilberte a conhecera antes de vir para Orleães. Onde trabalhava ela antes?
-Em parte nenhuma. O meu hotel foi o seu pri meiro emprego. Acabava de chegar da aldeia. -Então, dá-me licença, Sr. Rousseau? Tenho um telefonema a fazer. "
Adrien Le Tort chamou o seu amigo, o comissário Dutour.
"Bom dia, Benoit. Daqui fala Le Tort. Podes saber-me se uma tal Thérèse Puidoux. não, não é Dupré, justamente. nasceu em Lamotte-Beuvron?
E que é feito dela? E ainda se lá vive actualmente? Tratarás disso amanhã? Obrigado, amigo! Sim, fico ainda por aqui. "
De noite, já tarde, Bernard deixou as duas raparigas diante da casa da Sr. Lebrun, e Monique teve o tacto imprevisto de livrar os amigos da sua presença enquanto se despediam.
"Geneviève", disse então Bernard, "nós não avançámos muito, mas esta foi a mais inesquecível viagem que fiz em toda a minha vida. Espero que façamos juntos muitas outras. Creio também que teria gostado da sua mãe, e não apenas porque você se parece com ela. "
A voz de Geneviève tremeu:
"Obrigada por ela. E por mim.
-Se eu for um dia buscá-la, para a levar para mais longe, para os confins da África, você seguir-me- á? - concluiu ele.
-Segui-lo-ei até ao fim do mundo. "
Mas, sem esperar pelo fim do mundo, Bernard tomava Geneviève nos braços, apertava-a contra o peito, beijava-a apaixonadamente.
"Até que enfim! ", disse Monique à Sr. Lebrun ao observá-los pela janela e deixando cair a cortina.
No Serviço de Saúde, no dia seguinte, uma desagradável surpresa esperava Geneviève. O Dr. Terrier, pela primeira vez, tinha uma séria censura a dirigir-lhe. Como pudera ela, antes da sua partida para aquela curta viagem, deixar de lhe fazer chegar às mãos os relatórios semanais?
A jovem enfermeira ficou interdita, não percebendo o que se passara. Esses relatórios pusera-os ela em cima da secretária do chefe. Afirmou-Lho, invocando o testemunho de Monique. Mas o chefe, de humor irascível nessa manhã, não lhe aceitou a defesa:
"Ou você os encontra, ou torna a fazê-los! E quero-os antes de amanhã à noite - ordenou ele.
- Eu ajudo-te - segredou-lhe Monique. - Mas tenho cá uma ideia... "
No dia seguinte, ao meio-dia, Monique não encontrara nada e Geneviève não tivera um minuto para realizar a sua tarefa. Ia a sair com a intenção de engolir só uma sanduíche quando um toque de klaxon a fez voltar-se. Viviane espreitava-a ao volante do seu carro, com um rasgado sorriso nos lábios.
"Venho buscá-la para almoçar, Geneviève.
-Agradeço-lhe muito, minha senhora mas tenho um trabalho urgente, e não me é possível hoje demorar-me.
-Não a vou prender por muito tempo. Tenho de falar consigo. "
Escolheram o restaurante mais próximo, e Viviane recomendou urgência no serviço. A viúva de Richard Lagrange, no entanto, não entrou imediatamente no essencial da sua confidência.
"O meu mais caro desejo, Geneviève, é que sejamos amigas. Não pense em mim como numa madrasta e chame-me Viviane, quer?
- Não quero outra coisa, minha senhora... hum!
Viviane. "
Os grandes olhos escuros de Viviane tornaram-se húmidos enquanto prosseguia:
"Eu gostei muito do seu pai. Nenhum outro homem contou na minha vida. Mas perdi-o, ai! e sinto-me muito só, desamparada. Richard absorvia o meu tempo e os meus pensamentos. Por isso, que vazio em volta de mim, agora! Se eu não fosse capaz de o suportar, querer-me-ia mal por isso, Geneviève?
Surpreendida, Geneviève olhou atentamente para a linda viúva:
"Não compreendo muito bem, minha se... Viviane.
-Se eu desejasse pôr fim a esta solidão, um dia, dentro de uns meses, dentro de um ano, por exemplo, ou mesmo antes, nos Estados Unidos, em que não se observa prazo prolongado. Sou muitos anos mais velha do que você. O que resta de juventude a uma mulher da minha idade passa tão depressa. ", rema tou ela, requebrando-se.
Geneviève não respondeu. Aquelas confidências apanhavam-na desprevenida. Dificilmente se habituava a que Viviane a tratasse como amiga íntima.
Esta decidiu-se por fim:
"Numa palavra, penso em voltar a casar-me. Mas tenho medo de que esse projecto lhe desagrade. de que ache que esqueço muito depressa o seu pai. "
Geneviève teve um gesto espontâneo de negação: "Com que direito a julgaria eu? Primeiro, não tenho ainda provas de que o seu marido tenha sido o meu pai. Depois, tendo-o tratado durante anos com uma dedicação total, está autorizada, penso-o sinceramente, a pensar presementente na sua própria felicidade. "
Viviane pareceu aliviada dum grande peso. Disse baixinho:
"Você conhece o Sr. Castel. É ele que quer casar comigo. "
Geneviève desviou o olhar. A ela, tão benevolente, que não acreditava no mal, aquele homem só inspirava desconfiança.
Comovida como uma rapariga, Viviane defendeu- o: "Bem sei, Geneviève, que ele não deve ter-lhe parecido muito amável! Os homens de negócios são dum natural suspeitoso. Mas está pronto a ajudá-la. Ele também, vai ver, se tornará seu amigo. "
Geneviève não lhe respondeu que duvidava disso, nem que, no fundo, as suas histórias sentimentais a deixavam indiferente; naquele momento, no que ela estava preocupada era com o desaparecimento dos seus relatórios. Com esforço, pronunciou algumas frases vagas e corteses. Viviane protestou uma vez mais o seu afecto por ela e a refeição terminou.
Sem dúvida que Monique se privara de almoçar porque esperava por Geneviève no seu escritório, com olhar atento, brandindo um grande sobrescrito:
"A papelada - gritou -, já a tenho!
-O quê? Onde a encontraste?
-No escritório de Françoise.
-Porque teria ela feito isso?
-Não fazes uma pequena ideia?
-Nenhuma. Mas que importância tem isso? O chefe está cá? Bom, vou- lhos levar. "
O Dr. Terrier encontrava-se no seu gabinete, conferenciando com Bernard a propósito do estado de anemia duma criança. Ela pediu-lhes desculpa de os interromper e estendeu o sobrescrito ao chefe.
"Então, Geneviève", disse ele. "Que se passou? "
Ela tentou explicar:
"Alguém, não sei quem, deve ter tido necessidade de consultar os relatórios e, em seguida, esqueceu-se de os tornar a pôr no seu lugar. "
Sob o olhar penetrante de Bernard, as faces tinham-se-lhe ruborizado. Eclipsou-se com receio de ter de formular uma hipótese diferente.
Monique, no entanto, não era dotada da mesma magnanimidade. Por isso; mal saiu do gabinete de Terrier, Bernard foi informado da identidade da culpada.
"Malvadez premeditada! ", afirmou Monique. "E porquê? Se quiser saber, pergunte-lho, caro doutor! "
Um excelente detective, aquele Le Tort; o Dr. Montigny pai julgara-o bem. O que Castel, Fabienne, Bernard e Geneviève reunidos não tinham nem conseguido, nem sequer pensado encontrar, ele encontrou-o.
O seu amigo, o comissário Dutour, de Orleães, começara todavia por Lhe dirigir censuras:
"Enfim, Adrien, há dois meses que me fazes procurar uma Thérèse Dupré! Não podias dizer-me mais cedo que se tratava da Sr. Puidoux? Pois bem, ela vive em Lamotte- Beuvron.
-Formidável! És um ás.
- Nada mais simples quando se tem um verdadeiro nome. Porque é que ela assinou Dupré na declaração de nascimento de Geneviève Lagrange?
- Isso, bem o queria eu saber.
- Falsificação e utilização da mesma. que vais tu descobrir mais? Coragem, meu velho!
- Justamente, é muito antigo tudo isto - suspirava Le Tort.
- Thérèse Puidoux. Isso lembra-me ainda assim qualquer coisa. Mas o quê? ", resmungava o comissário Dutour.
Munido daquelas escassas informações, Le Tort dirigiu-se a Lamotte-Beuvron. Encontrou facilmente a casa de Thérèse. Esta não era nem mais nem menos do que a velha que ficara sobressaltada ao ver Geneviève e lhe indicara a casa Diligent. Como na véspera, ao ouvir bater à porta, ela contentou-se com aparecer à janela.
"A Sr. A Thérèse Puidoux? - perguntou o detective.
-Que é que lhe quer?
-É a senhora. Não o negue. Não terei qualquer dificuldade em me certificar disso.
-Bom! Então, que é que me quer? "
Le Tort tornou-se amável:
"Para lhe dizer o que tenho a dizer, cara senhora, estávamos melhor lá dentro. "
Ela mandou-o entrar, contrariada, de cabeça baixa, lábios cerrados sobre o maxilar desdentado. Imediatamente, ele interrogou-a, sem violência, habilmente, insidiosamente.
Às primeiras perguntas, ela só replicou com um encolher de ombros, depois tentou invocar circunstâncias atenuantes:
"O que eu fiz foi por piedade para com Gilberte! , Ela escrevera-me após a notícia da morte do marido.
Era-lhe muito penoso ficar em Orleães, onde fora feliz. Então eu disse-lhe que viesse para minha casa,
em Sancerre. Ela pagava-me uma mensalidade, mas eu queria sobretudo prestar-lhe um serviço. "
Adrien tornou-se ainda mais amável:
"Eu acredito em si, cara Sr. á Puidoux. Mas confesse que em tudo isso a sua atitude foi estranha. Porquê, por exemplo, ter declarado essa criança sob um nome falso?
- O senhor não me vai arranjar sarilhos?
-Seguramente que não, se me disser a verdade.
-Gilberte foi tomada de dores de repente. Não tive tempo de chamar um médico. Fui portanto eu que lhe assisti.
- A senhora não era parteira?
-Fora-o, noutros tempos, mas estava privada do direito de exercer. Histórias antigas, vamos. Então, não tinha interesse nenhum em que isso se soubesse.
- E depois?
- Tivemos azar. Gilberte caiu doente. Eu não ousei mandar vir o médico logo. Quando a levei ao hospital, era tarde de mais. Morreu no dia seguinte. Eu fiz as malas e saí da terra.
-Com a criança? "
A velha abespinhou-se:
-Naturalmente. Não era assim tão má para a deixar para trás -ou para a confiar à Assistência.
-Que fez dela?
-Eu não podia ocupar-me dela. Dei-a a pessoas boas.
- Que pessoas e onde? Terá de testemunhar isso.
-Terei? Não tenho vontade nenhuma de tornar a falar dessas histórias. As pessoas, esqueci-lhes o nome. Era na Bélgica, perto de Antuérpia.
- Na Bélgica? Que fazia a senhora na Bélgica?
- Pois bem, é muito simples. Escondia-me. "
Le Tort insistia:
"Nunca conheceu o casal Vandenberghe? Nunca foi a Savigny? "
Thérèse abanou a cabeça.
"E de que vivia a senhora?
- Tinha umas economias. Mas para que serve isso, todas essas perguntas?
-Talvez para nada; infelizmente. "
Talvez.
No Serviço de Saúde, o Dr. Montigny, aproveitando uma ausência de Geneviève, acusava de má camaradagem uma Françoise primeiro rebelde, depois contrita, mas não arrependida.
"Porque é que você pregou à sua colega essa grande partida? Porque é que a detesta? "
Cansada de negar a evidência, Françoise pôs-se a chorar:
"Estava farta de ver que só ela conta aqui. O chefe adora-a. E o senhor. ama-a! "
A voz de Bernard tornou-se mais meiga, quase indulgente:
"Você espera que acções como essa possam alterar alguma coisa?
-Em certos casos, doutor, não se pensa.
-Mais valia pensar. Evita aborrecimentos.
-O senhor tem intenção de mos causar?
-Não, Françoise, e Geneviève também não. Ela não falou de nada ao Dr. Terrier. "
As lágrimas de Françoise secaram logo. Mas foi com raiva que não pôde deixar de prosseguir:
"Naturalmente, Geneviève pode permitir-se tudo, até ter bom coração.
-Já não preciso de si, Françoise, disse Bernard sem elevar a voz.
Depois de a enfermeira sair, ele consultou o relógio. Geneviève não tardaria. Era uma hora sem muito que fazer, calma. Bernard acendeu um cigarro e sonhou diante da janela. A chegada da jovem não o arrancou a esse sonho: ela não era mais do que a sua encantadora realidade. Avançou ao seu encontro, beijou-lhe ternamente as mãos.
"Querida, quer jantar comigo esta noite?
- Com prazer!
- Mas em Annecy, em casa de meus pais.
-Talvez com um pouco menos de prazer. E eles, acha que vão ficar encantados?
-O meu pai tem por si uma grande simpatia. A minha mãe ficará contente de a conhecer. "
Ela esboçou um gesto de cepticismo, mas não tiveram mais tempo para concluir. O desfile das crianças começava. Introduziam a primeira.
À noite, no caminho, ela parou em Saint-Julien para prevenir a madrinha e mudar de vestuário. Na estrada de Annecy, falaram do assunto em curso, de Richard. O braço de Bernard, passado à volta dos ombros dela, comunicava a Geneviève uma tranquilidade e uma fé sem limites. Desde a queda no rio, ela acostumara-se a abrir-lhe o coração sem nenhuma sombra de reticências.
"Receio - disse ela - ter de pensar sempre Richard Lagrange' - em vez de meu pai'. Só sinto por ele uma curiosidade cerimoniosa e distante. É... é triste, Bernard.
-A sua mãe quis-lhe muito.
-Imagino que devia sobretudo admirá-lo. A minha mãe era a pastora que casou com o filho do rei. Quando jovem, ele devia ser muito belo. Talvez tivesse coisas demasiadas a seu favor. Eu estou do lado dos pobres e dos fracos. Sou filha de Gilberte. "
O braço de Bernard apertava-a mais:
"Você não me dá nada a impressão de ser fraca.
-Não o sou na minha profissão, nem na vida de todos os dias. E, todavia, o facto é este; sinto-me atraída pelos fracos. "
Com prejuízo da condução, Bernard virava para Geneviève um rosto zombeteiro:
"Devo tomar isso para mim?
-Você é diferente. Tenho necessidade de o sentir sólido, sem falhas e sem defeitos.
- A perfeição, não é? Ela não é deste mundo e eu não tenho pretensões. É pena! Deve ser fácil desilu di-la e difícil obter o seu perdão, Geneviève... "
Sim, sem dúvida, mas ela afirmava:
Hei-de ter sempre para si tesouros de indulgência. Para que serviria o amor se não déssemos tudo de nós mesmos? "
A ideia de fazer penetrar Geneviève na intimidade da sua família atormentava Bernard desde o regresso da peregrinação sentimental. Temendo a oposição da mãe, ele apanhara-a manhosamente telefonando-lhe mesmo à hora do almoço:
"Vai dar um jantar esta noite? Mande pôr um talher a mais, vou levar Geneviève Lagrange. "
Assim, foram eles os últimos a chegar, logo atrás de dois casais bastante pretensiosos, pelo menos quanto às mulheres, porque os homens ficaram derretidos quando viram a esbelta silhueta, a cabeleira loura e o fresco rosto daquela enfermeirazinha desconhecida umas semanas antes e de que toda a gente falava, agora, em Annecy.
O Dr. Montigny pai mostrou-se muito cortês, quase afectuoso, enquanto a Sr. Montigny se julgava obrigada a estabelecer uma certa cambiante na maneira de a apresentar aos seus convidados: "A Menina La grange, a enfermeira que trabalha com o meu filho. "
Os ritos do aperitivo e da passagem à mesa desenrolaram-se sem grandes choques. Mas, durante o jantar, Geneviève teve a impressão de que toda a conversa voava por cima dela deliberadamente. Sentia-se uma estranha. Dir-se-ia que as três mulheres tinham jurado a si mesmas isolá-la na sua posição de intrusa, evocando exclusivamente clãs mundanos que ela ignorava.
"Você nunca assistiu às recepções da baronesa de Changy? Nunca ouviu falar dela? A sério? "
A princípio, o notário e o filho tinham tentado reagir, pôr Geneviève em relevo. Tiveram de renunciar a isso. Como nada era susceptível de suster o falatório daquelas mexeriqueiras, mais valia deixar correr.
A sobremesa acabava de ser servida quando o criado de quarto murmurou discretamente ao ouvido do dono da casa:
"O Sr. Le Tort está ao telefone. Insiste para falar com o senhor. "
Quando o notário, desculpando-se, se levantou, a mulher reagiu com a sua impertinência costumada:
"Quando será que o deixam sossegado, meu pobre amigo?
-Nunca, receio bem", disse ele, lançando-lhe um olhar de saturação.
À hora do café, no salão, ele aproximou-se de Geneviève:
"O nosso detective tem novidades. Vem amanhã, pelo meio-dia, ao meu cartório. Quer encontrar-se consigo", segredou-lhe ele.
Bernard não se fez rogado quando Geneviève lhe pediu que a conduzisse a casa. No momento em que se despedia rapidamente, os convidados dos Montigny não puderam deixar de notar a sua distinção natural, a sua dignidade, a sua simpatia. Seria ela na verdade filha de...
Durante o trajecto, Bernard evitou sublinhar o ambiente falaz daquela noite. Preferiu evocar o encontro do dia seguinte:
"Que necessidade tinha Le Tort de fazer tanto mistério? Podia ter dito ao meu pai. "
Mas Geneviève interrompeu-o com argumentos que provavam que não deixara de pensar nesse assunto:
"O inquérito desse senhor é- me indiferente, Bernard", afirmou-lhe ela; "encontrei uma família e isso é que era importante para mim. Encontrei a minha mãe, sou filha de Gilberte, repito-lho. Mesmo esta noite. Sobretudo esta noite. Você compreende-me? "
Antes de fazer girar a chave de contacto, Bernard encolheu os seus robustos ombros num gesto desolado de impotência.
Ele tentou explicar:
"A atitude da minha mãe para consigo chocou-me, bem sabe, Geneviève. Mas não devemos querer-lhe muito mal por isso. Num casal que se entende mal, ninguém tem toda a razão ou toda a culpa. A mamã não é muito feliz. Refugia-se numa vida mundana que não tem qualquer consistência.
- Não lhe quero mal por isso - assegurou Geneviève, com uma amargura que a surpreendeu a ela própria. -Não sou capaz de querer mal a ninguém. Mas uma anterior experiência demonstrou-me que uma rapariga como eu dificilmente era aceite no vosso meio. "
Bernard pôs o motor em andamento. De olhos fixos nas luzes da cidade, com um movimento de impaciência, pediu:
"Suplico-lhe, Geneviève, não falemos desse Jean-Luc! "
Há instantes na vida em que sentimos o desejo imperioso de nos torturarmos a nós próprios e de torturarmos o ser que amamos.
"Porquê? ", retorquiu vivamente Geneviève. "Ele também era de muito boas famílias. Foi a sua que me obrigou a pensar nele, porque Jean-Luc tinha a certeza, como você, de que com um pouco de boa vontade, de tolerância de parte a parte, tudo acabaria por se compor. "
Bernard carregou com tanta força no acelerador que Geneviève se sentiu tomada de vertigem. O carro bateu contra a borda dum passeio e quase chocou com um camião que estava parado. Depois, o jovem respirou profundamente e recobrou o sangue-frio.
Em sinal de tréguas, fez pesar a mão direita sobre a nuca da sua passageira, tão tépida sob a massa fulva dos cabelos.
"Não me compare com ele", replicou por fim. "Eu fiz a minha vida como quis. A minha vida não é em Annecy, no clã mundano dos meus pais. Creio ter-lho dito já. "
Geneviève permanecia muito lúcida:
"Não se engane a si próprio! Você gosta muito da sua mãe.
-É exacto. Mas não me sinto na obrigação de lhe sacrificar a minha felicidade. Quanto a si, não a sacrificarei a ninguém. Fique sabendo que, se você irrita a minha mãe isso aconteceria igualmente com qualquer rapariga que lhe quisesse tirar o filho. e interessasse o marido. Porque o meu pai gosta muito de si, Geneviève. "
Ela esboçou na sombra um sorriso cheio de amargura:
"Ele é bom para mim, reconheço-o. Talvez porque, agora, não me julga muito perigosa. "
Ele sentia-a rígida, tensa. A nuca que acariciava não cedia à sua mão. Nenhum estremecimento a ani mava.
"Eu julgava-a indulgente. Que ideia severa, quase feroz, você faz dos seus semelhantes! "
Resolvida a ir até ao fim, ela continuava: "Não dos meus semelhantes, não dos meus irmãos, mas do espírito de certas casas em que não se tem o direito de entrar senão na ponta dos pés e de preferência pela porta de serviço.
- Geneviève! Geneviève! Você diz tudo o que Lhe vem à cabeça.
-Talvez. Perdoe-me, Bernard, se sou injusta. Aliás, eu não falava senão de Geneviève, enfermeira no Serviço de Saúde. A Menina Lagrange, a hipotética filha de Richard, será muito bem recebida em sua casa, não é, para lá ouvir a comunicação do Sr. Adrien Le Tort? Que irá ele anunciar? "
No dia seguinte, no cartório do notário, Geneviève não esperava a conclusão do detective. O Dr. Montigny também não. Ambos se entreolharam, consternados. Adrien Le Tort repetia:
"Não fui bem sucedido na minha missão, doutor! O Sr. Lagrange contratara-me para encontrar a filha. Acho que consegui isso. Mas contratara-me igualmente para provar indubitavelmente a sua filiação. E aí choco com um obstáculo.
- Considera-se batido? "
Le Tort levantou a cabeça:
"A falar a verdade, não. Tenho fama de falhar poucas vezes. É por isso que vêm procurar-me de tão longe, até mesmo do Canadá, como o Sr. Lagrange. E essa fama, quero conservá-la! "
Virou-se para Geneviève:
"Por outro lado, menina, desejo pagar a minha dívida para consigo. Sim, sim, uma dívida! Perturbei a sua tranquilidade, quando a menina não pedia nada a ninguém. Fiz cintilar aos seus olhos uma herança mirabolante. Além disso, agi duma maneira sem dúvida pouco hábil. O tempo e o Sr. Lagrange exigiam de mim uma tal pressa. "
Geneviève suspirou:
"Não lhe quero mal por isso. A herança, nem por isso acreditava muito nela. Mas sinto-me agora mais órfã do que nunca. Toda a gente me afirmava que me parecia com Gilberte.
-Uma parecença extraordinária, que basta para
me convencer na minha qualidade de homem. Mas o detective. "
Bateram. Era o praticante Trébout, anunciando
outro cliente. Le Tort encarou-o sem lhe encontrar o olhar. O notário despediu o empregado, ordenando-lhe que não voltasse a incomodá-lo, e o seu interlocutor retomou a frase começada:
"O detective exige provas, bem entendido. Apesar
de tudo! Não acharia estranho que duas rapariguinhas da mesma idade, com os mesmos nomes e os mesmos apelidos, tenham sido entregues a duas pessoas diferentes, exactamente na mesma época?
- Inverosímil, mas possível - objectou Montigny. - O acaso.
- Se o acaso governasse o mundo, eu arriscava-me a morrer de fome. "
Montigny insinuou:
"Teríamos portanto de admitir que Thérèse mentiu, visto que, pelo seu lado, Vandenberghe é categórico.
-Ela já mentiu uma vez.
-Tinha desculpas, ou, antes, razões. Descoberta,
arriscava-se a ser presa. Hoje, qual seria o seu interesse?
- Ela é velha. A memória pode traí-la. Porque não confrontá-la com o velho Vandenberghe? Se ele não a reconhecer. "
Adrien Le Tort percorria o compartimento a grandes passadas. Ouviu um leve ruído atrás da porta. Abrindo-a de repente, descobriu Trébout, que avançou o seu bicudo nariz:
"Sr. Doutor, venho lembrar-Lhe que a Sr. Puisatier. "
Montigny franziu as espessas sobrancelhas:
"Já Lhe disse que não me incomodasse! Sr. Le Tort, se Vandenberghe não reconhecer essa mulher?
-Então, confessar-me-ei batido, mas nunca antes.
- Autorizo-o, portanto, a fazer essa diligência.
-Eu fá-la-ia de qualquer maneira, mesmo que fosse por minha conta própria.
- E eu desejo-Lhe que tenha êxito", concluiu mais baixo o notário.
Ao sair do cartório, Geneviève e o detective encontraram mais uma vez, na verdade muito perto da porta, o inevitável Trébout. Le Tort não fez comentários, Geneviève nem sequer o notou.
Aquelas sessões no notário punham-lhe à prova os nervos; mas Bernard esperava-a na rua, ao volante do carro. A uma velocidade de passeio, tomou a estrada de Genebra, enquanto ela o punha ao corrente dos últimos acontecimentos e da diligência projectada por Le Tort.
"A última diligência antes da vitória - afirmou-lhe ele com a sua voz tranquilizadora. - Não se desencoraje.
-Isso não será para mim uma vitória. Vivi mais de vinte anos sem essa fortuna Lagrange. Teria continuado a viver sem ela.
- Esquece que foi graças a essa herança que nos conhecemos, minha querida? - lembrou Bernard.
-Isso é o mais importante. Viver sem dinheiro era possível. Sem si. pergunto a mim mesma como faria agora - confessou ela com simplicidade.
-Só mais dois dias de paciência. "
Muito grave, muito sincera, ela revelava: "Eu sou capaz de todas as paciências, desde que você exista, que você esteja junto de mim, que eu acredite no seu amor. Você, Bernard, você, e uma cabana em África. "
Embora fosse mais ágil do que a maior parte dos pensionistas do asilo, o velho Vandenberghe fazia- se caro:
"Ir a Lamotte-Beuvron consigo. Oh, diabo, isso não é lá muito perto! E eu já não sou novo. "
Le Tort tornou-se ainda mais insinuante: "Não tem vontade de tornar a ver a sua Geneviève?
- Oh! sim, ela era muito engraçada. E deve estar crescida, agora.
-Até me disseram que não tardaria a casar-se. Seja franco, Sr. Vandenberghe: se ela o convidasse para o casamento, o senhor ia?
-Quanto a isso, não digo que não.
-Dançaria como um rapaz, até. aposto!
- Os jovens não dançam já; saracoteiam-se. Mas mesmo assim, quem é que me assegura que essa tal Thérèse é a minha? Talvez que eu nunca tenha visto essa. "
Le Tort teve úm gesto evasivo:
"Então seria o fim das esperanças de Geneviève. É portanto indispensável que venha comigo. Vale a pena tentar. Prometo-lhe que não demorará muito.
- Oh! o tempo, não é o que me falta, agora, que não tenho já nada que fazer.
-E no caminho paparemos um almoço formidável. De acordo?
- De acordo! Ainda tenho bõm estômago! "
Para obedecer ao telefonema imperativo do detective, Geneviève pedira, uma vez mais, um dia de dispensa no Serviço de Saúde. Mas de má vontade. Todas aquelas diligências, aquelas entrevistas, tornavam-se cansativas, por fim. Se a madrinha não a tivesse forçado a tomar o comboio, não se teria mexido.
Na estação de Lamotte-Beuvron, o detective esperava-a com o velho Vandenberghe. Confiadamente, o velho estalajadeiro abriu-lhe os braços. Ela subiu para junto dele no carro de Le Tort e dirigiram-se para a residência de Thérèse Puidoux.
Oencontro efectuou-se o mais naturalmente possível. Thérèse mandou-os entrar. E Vandenberghe atacou imediatamente:
"Você reconhece-me? "
A velha examinava-o, com os seus olhinhos encarquilhados.
"Você não mudou assim tanto. A sua senhora como vai?
- Já não a tenho, a minha pobre Thérèse!
-Ela já não era muito forte, há vinte anos. "
Adrien tomou então a palavra:
"Sr. Puidoux, a senhora disse-me que não conhecia nem o Sr. Vandenberghe nem a mulher.
-Eu, eu disse-Lhe isso? Não me lembro. "
Bateram de novo à porta, Thérèse Puidoux fez um movimento de impaciência. No compartimento entrava uma camponesa muito à vontade, a falar alto:
"Tem o meu remédio?
- Tenho - disse Thérèse, atrapalhada -, mas não pode voltar mais tarde? Estou com visitas, como vê.
-Estou com pressa! Onde é que está esse boião?
- Tome, aqui está - disse Thérèse, cada vez mais embaraçada, tirando de cima do aparador um velho frasco de mostarda. -Aplique-lhe a pomada sobre os rins e conserve-a quente. Agora, vá-se embora.
- Quanto é que lhe devo?
- Falamos depois. "
Empurrou para a porta a camponesa munida du seu unguento miraculoso e voltou para junto das visitas, com as maçãs do rosto escarlates:
"Eu presto pequenos serviços como este, de tempos a tempos", explicou ela, "mas não pensem que exerço. "
Le Tort, dessa vez, fulminou-a com o olhar: "Também não devemos pensar que você conheceu o Sr. e a Sr. Vandenberghe na Bélgica, perto de Antuérpia, tal como pretendia?
- Quanto a isso - disse o velho -, lembra-se com certeza, Thérèse? Você trabalhou em minha casa, no meu hotel, o Galo de Ouro, e não era na Bélgica.
-Talvez sim, talvez não. Como também trabalhei na Bélgica, devo ter confundido. "
Adrien Le Tort não tirava os olhos de Thérèse Puidoux. Insistiu:
"Seja como for, reconhece ter entregue a Menina Lagrange, aqui presente, ao casal Vándenberghe? "
A velha teimou:
"Quanto à menina aqui presente, não sei nada a seu respeito! Confiei-lhes um bebé, é verdade.
-Um bebé que era uma rapariga e se chamava precisamente Geneviève Lagrange? Que estranha coincidência! ", ironizou o detective.
Levantou-se, afastou a cadeira:
"Creio que o caso foi esclarecido. Do resto encarrego-me eu. Será convocada para ir a Annecy testemunhar. A sua viagem ser-lhe-á paga, bem como todas as despesas. Não se queixe. Eu podia agir doutra maneira. "
Thérèse desatou a soluçar e Geneviève lançou a Le Tort um olhar de censura. Porque é que ele era tão duro para com a amiga de Gilberte, uma pobre mulher que fizera o que pudera?
Aproximou-se de Thérèse, pôs-lhe a mão no braço. Eu não tenho culpa de nada! ", gemeu a antiga parteira. "Se a menina é a filha de Gilberte, pois bem, sempre lhe digo, a sua mamã já não tinha vontade de viver. Julgava que o seu papá morrera. Já não tinha gosto por nada. Agora, que chatices é que tudo isso me vai causar? Ah! palavra, até se perde a vontade de ser boa com as pessoas. "
A entrevista prolongara-se já demasiadamente. Geneviève foi a última a sair, afirmando à velha que ninguém pensava em lhe criar dificuldades. Mas Thérèse encolheu os ombros, lançando ao detective um olhar assassino.
Do restaurante onde almoçaram, Geneviève telefonou à madrinha:
"Mamie, já está! O Sr. Vandenberghe reconheceu Thérèse! "
Voltou à mesa, onde o reformado, já reanimado por um aperitivo, se mostrava contente por ter de ir a Annecy servir de testemunha.
"Eu começo a habituar-me às viagens, sabe? E, além disso, vou gostar de tornar a ver a Sr. Lebrun.
- Você acredita - perguntava Le Tort - nas explicações da Sr. Puidoux?
- Não muito, mas. isso já não tem importância, não é verdade?
Depois do telefonema de Geneviève, era também essa a opinião da Sr. Lebrun, que achava seu dever comunicar a todas as clientes daquele dia que a prova formal da filiação de Geneviève estava finalmente feita. A afilhada ia receber os seus dólares canadianos.
Dólares ou não, assim que regressou a Saint-Julien, Geneviève não teve outras preocupações senão ir ter com Bernard. Falhou todavia nas suas tentativas repetidas, no cartório, como no Serviço de Saúde, como no hospital. Semelhante inacessibilidade do ser amado causava-lhe uma intolerável sensação de frio. Sem ele, o seu universo despovoava-se de repente. Ela sentia uma necessidade doida de Bernard, dos seus olhos, da sua voz, do seu calor.
Mas ia vê-lo no dia seguinte. No Serviço de Saúde, como habitualmente. E depois à noite. E, um dia, nunca mais se separariam. Para adormecer, repetia a si mesma estas frases, como uma ladainha.
No dia seguinte, à hora que devia ser a do almoço, o Dr. Montigny pai tentava esquecer as suas preocupações profissionais e a tristeza da sua vida conjugal jogando ao ténis no campo do seu clube.
Depressa cansado, foi dessedentar-se ao bar. Foi uma surpresa para ele encontrar lá Viviane e Castel. Vamos! A viúva de Richard Lagrange já estava a consolar-se. O "homem de confiança" não perdera tempo.
"O doutor tinha-nos escondido que era um grande desportista! ", apressou-se a declarar-lhe Viviane, com a sua graça estudada. "Tem de se defrontar com o Sr. Castel. "
O notário teve um sorriso um pouco malicioso: "O Sr. Castel é certamente forte de mais para mim! A minha mulher acha que eu já não tenho idade para jogar o golfe. E, ao menos uma vez, tenho vontade de lhe seguir o conselho. "
Depois, pondo de lado a cortesia, decidiu abordar os assuntos sérios:
"A propósito -continuou ele, recolhendo o copo do bar-, tentei encontrá-lo no seu escritório, caro
senhor. Foi a sua secretária quem me respondeu. Com uma voz encantadora, e...
- Alguma novidade? - interrompeu Castel.
-Novidade e muito interessante! Já não se pode negar que Geneviève seja a filha de Richard Lagrange. Passe portanto pelo meu cartório, eu depois lhe explico. "
Imediatamente saltou uma pergunta:
"Ela deu-Lhe parte das suas intenções? " O notário deu-se ao luxo de observar demoradamente, sem responder, o rosto endurecido de Henri Castel, depois do que acabou por dizer, no tom mais negligente:
"Não, caro senhor. Não, ela ainda não me deu parte de nada. Aliás, a minha tarefa está terminada, ou quase, enquanto a sua vai começar. O senhor, tenho a certeza, já preparou as contas da sua gestão dessa fortuna Lagrange.
-Bem entendido, meu caro doutor.
-Estou à sua disposição para as rever consigo. Mas não aqui, evidentemente! Os meus cumprimentos, minha senhora. Até breve, senhor! "
Afastou-se, com andar desenvolto, deixando o par com os seus cockteils e com os seus novos problemas.
Viviane, como sempre, mostrava-se boa jogadora: "Estou contente por essa pequena Geneviève. Ela é tão gentil, tão simpática. "
Aquele eterno refrão, aquela eterna estupidez. Para o diabo as mulheres demasiado bem intencionadas! Henri Castel exasperava-se.
"Sem dúvida que lhe vai ser menos simpática no dia em que se tratar da divisão da sua fortuna, Viviane.
- O dinheiro não me interessa. Já lho disse. "
Ele suspirou ruidosamente. Mas, num quadro semelhante, podia ter um ataque de raiva?
"Esperemos que aconteça o mesmo com a sua encantadora enteada", escarneceu ele. "Vou pôr-me, o mais depressa possível, em contacto com ela. "
Viviane preocupou-se:
"Que ela não vá supor, sobretudo, que lhe reclamo seja o que for, Henri!
- Não tenha receio, Viviane; lembrar-me-ei de que as vontades do seu querido esposo são para si palavra de Evangelho. "
Antes do fim da tarde, Castel decidira-se a ir ter com Geneviève ao Serviço de Saúde. Geneviève estava cada vez mais nervosa, porque Bernard não aparecera. Por isso, todos os perigos imagináveis e inimagináveis Lhe passavam pela cabeça: doença, acidente, sem omitir o mais terrível, o esquecimento, a falta de amor.
Castel começou por se desculpar.
"Menina, estou desolado por a incomodar no seu local de trabalho, mas desejava uns minutos de conversa. Concede-me o privilégio de a conduzir a Saint-Julien?"
Ela passeava à sua volta um olhar de aflição. Nada de Bernard à vista. À falta de um pretexto, sem dizer nada, seguiu Castel e entrou no carro.
"O Dr. Montigny", atacou ele sem preâmbulo, "deu-me a grande novidade. Permita-me que lhe apresente todas as minhas felicitações. "
Ela levantou para ele o seu olhar desconfiado:
"Sem pensamentos reservados, desta vez, espero? " Desejoso de tomar vantagem, Castel prosseguia no seu timbre mais aveludado, mais confidencial:
"A menina atrapalha-me, evocando assim o nosso primeiro encontro. Nessa época, há já muitas semanas, a sua filiação não estava confirmada. Posso observar-lhe que, na medida dos meus fracos meios, contribuí para a descoberta das provas.
-Agradeça a Viviane da minha parte, peço-lhe. " Ele teve um ligeiro sobressalto. Não havia gratidão pessoal? Aquela rapariga recalcitrante conduzia-se, para com ele, com uma deplorável injustiça. Mas ele sabia dominar-se, pôr-se no seu lugar:
"É verdade - conveio ele. - Não fiz mais do que executar as suas ordens. Mas é dela, precisamente, que queria falar-lhe. Tomo os seus interesses muito a peito e.
- Com efeito - disse Geneviève com um sorriso levemente irónico. - Viviane anunciou-me os seus projectos. ou antes, os vossos projectos comuns.
- Fez mal! - cortou Castel. - É um pouco prematuro. exacto, no entanto, que a admiro infinitamente. Ela tratou o seu pai com uma tal dedicação, uma tal abnegação.
- Bem sei!
-Quando soube da existência desse testamento que a espoliava, não teve uma palavra de azedume - insistia habilmente Castel.
-Viviane não está espoliada, que eu saiba. Porque é que diz isso?
- O usufruto da terça. Sem dúvida que isso representa para si uma soma astronómica. Mas receio muito que, para ela, seja insuficiente, com os hábitos de luxo que o seu pai lhe proporcionara. Ela não tem nem a sua idade, nem a sua faculdade de adaptação. "
Geneviève recolheu-se por uns instantes. O tom adulador de Henri Castel desagradava-lhe. Não a predispunha a favor de Viviane Lagrange.
"Eu não tive tempo de pensar nisso - reconheceu ela. -Tudo foi demasiado rápido.
-Perdoe-me que insista, menina, para que tenha a bondade de pensar nisso seriamente, com generosidade. Se o seu pai tivesse vivido mais tempo, teria, não tenha dúvidas, posto ao abrigo de necessidades a mulher que se sacrificara por ele. "
Estavam a chegar a Saint- Julien. Diante da casa da Sr. á Lebrun, Castel não pôde deixar de defender a sua própria causa;
"Vai herdar uma grande fortuna, menina. Eu geri-a até agora gozando da absoluta confiança do seu saudoso pai. Se tiver, um dia, necessidade dos meus serviços, porei todo o meu zelo à sua disposição. Como recordação dele, em homenagem à memória do homem admirável cujo sangue corre nas suas veias. "
Era bem dito, nobre e digno, mas Geneviève continuava a ser alérgica à sedução de Castel. Da Sr. Le brun, de Monique, só podia esperar veementes censuras contra, o adversário tenebroso, o inimigo número um. Aliás, e com toda a urgência, só a opinião razoável e imparcial de Bernard lhe importava. Mas onde estava ele, Bernard? Porque é que, em todo o dia, não lhe dera sinais de vida?
Assim que regressou a casa, sentindo-a à beira da depressão, Monique aconselhou-a:
"Vai a casa dele! Pede para lhe falares. Invoca uma razão de serviço. Eu empresto-te Rosalie!
- No meu tempo - objectava prudentemente a Sr. aLebrun-, as raparigas não se atiravam ao pescoço dos rapazes.
-Ela não está a atirar-se- lhe ao pescoço", corrigiu Monique. "Que vá dar-lhe informações do dia no Serviço de Saúde, ou que queira absolutamente dizer duas palavras de agradecimento a Montigny, é normal essa diligência, não acha? "
Normal, talvez, mas não urgente. Mas Geneviève não se sentia com forças, com a certeza, com a serenidade necessárias para passar mais uma noite sem ver Bernard, sem o ouvir, sem respirar o mesmo ar que ele. Só para contemplar a sua casa, a luz a brilhar talvez na sua janela, teria ido a pé a Annecy.
O 2 cv permitia-lhe mesmo assim chegar lá mais rapidamente. Conduziu sem saber muito bem como e abandonou o carro com as pernas moles, para ir bater à porta do cartório.
"O Sr. Bernard não está - informou-a a criada.
-O Dr. Montigny poderá receber-me?
-Também não está. Só a senhora. Posso ir preveni-la.
-Não a incomode. Não vale a pena. "
Preparava-se para retroceder quando na escada ressoaram passos mesmo por detrás dela. Uma voz amável, feminina, interpelava-a:
"Menina Lagrange! Não se vá embora tão depressa! Eu sei que vou substituir muito mal o meu marido, o meu filho, sobretudo. mas ficaria encantada de a ajudar, se tivesse, por exemplo, uma mensagem para transmitir a um ou a outro. "
"Pronto! ", disse Geneviève para consigo. "Porque é que não dei ouvidos à Mamie? " Gaguejou:
"Não, minha senhora: Nada de importante. Passei por aqui. Eu. agradeço-lhe muito. "
A Sr. Montigny sorria muito descontraída. Parecia mesmo tão alegre que Geneviève sentiu vir de longe as frases que iam feri-la.
"Acredite que lamento infinitamente. É a noite de brídege do meu marido. Quanto a Bernard, anda muito ocupado há dois dias. E neste momento encontra-se no aeroporto de Cointrin. "
Fez uma pausa e o sorriso acentuou-se-lhe, enquanto espreitava a expressão de Geneviève, ao prosseguir:
"Pois, foi esperar Claudine Nodier. Não a conhece?
-Não, minha senhora. "
A mãe de Bernard fez um gestozinho frívolo, familiar.
"Que parva que sou! Não há nenhuma razão para que a conheça. Claudine é por assim dizer a noiva dele. Não é ainda oficial, mas em breve. Então, na verdade, não há nenhum recado para o meu filho?
-Não, não. Adeus, minha senhora. "
Claudine Nodier, Claudine Nodier, quatro sílabas
estranhas, quatro pancadas por segundo, aceleradas como os ruídos de rodas dum comboio que aumenta de velocidade. Claudine Nodier, Claudine Nodier. Quatro golpes por cada pancada do coração. Isto não quer dizer nada, é absurdo. Claudine Nodier. Não tem mais significado do que "Abracadabra" ou "Ams tram gram. " Até dava vontade de rir se não magoasse tanto.
Geneviève sai a cambalear da casa de Montigny, não sabendo já onde deixou Rosalie, o 2 cv de Monique. Rosalie não é tão bonito, tão capitoso, tão cruel como "Claudine". Porque há uma Claudine na vida de Bernard. Uma Claudine que é a noiva dele. É essa Claudine que ele há-de levar para, África. Não Geneviève. Geneviève já não é nada. Geneviève morreu.
Não! Se tivesse morrido, não sofreria. Gilberte Lagrange já não sofre. Nem Richard. Estão muito tranquilos debaixo das suas lousas funerárias. Ou noutro sítio. Pode saber-se? Geneviève já não acredita em nada. É neste momento que vai pensar na imortalidade? Nunca teve mãe. Nem Gilberte, nem qualquer outra. Uma mãe, quando morre, sobe ao céu e protege a sua filhinha. "A mim, ninguém me protege. Eu imaginava que havia Bernard e estou só, só no mundo. Como é que se faz para viver? É muito difícil. É muito duro. Já não tenho forças. Bernard não me ama. Bernard ama uma Claudine que é sua noiva, que será sua mulher, que ele levará para áfrica. Um carrossel de morte gira-lhe na cabeça. Subitamente, Geneviève vê que está sentada ao volante do carro de Monique. Quem é que a levou para ali? Terá enlouquecido? Mas um pensamento coerente insinua-se na sua pobre cabeça. Um pensamento frio e feio. Quando Bernard voltar de Cointrin com a sua Claudine Nodier, não deve encontrá-la ali, a dois passos da sua casa, caída naquele banco, com a cabeça tombada para trás, pálpebras fechadas sobre lágrimas escaldantes que não se decidem a correr. É preciso que ela abra os olhos, que ponha aquele motor em andamento. Onde está a chave de contacto? E o acelerador?
Um ronco. O carro parte. Vai esmagar-se contra o quê? "Vamos, minha filha, um pouco de calma, de presença de espírito. Não tens o direito de inutilizar a Rosalie de Monique. " Os reflexos ainda funcionam, à falta de melhor. Geneviève continua em frente, mas na direcção oposta a Saint-Julien, para Aix-les-Bains, para Chambéry, para qualquer sítio.
Em Cointrin, o vestíbulo da aerogare é um formigueiro de pessoas que partem, que chegam ou que esperam.
Claudine vai ficar muito contente por tornar a vê-lo, meu caro Bernard", diz ao Dr. Montigny o homem corpulento e vulgar que é o Sr. Nodier. "Na última carta, ela queixava-se de que você a tinha deixado sem notícias desde o seu regresso a Annecy. "
Bernard mostrou-se bastante atrapalhado. Contrariado, explicou:
"Tenho estado muito ocupado. Dou consultas, em Genebra.
- A sua mãe contou-me isso. Que ideia esquisita! " Mas uma voz supraterrestre anunciava em breve: "O avião vindo de Nova Iorque vai aterrar. " Uns minutos mais tarde, uma soberba rapariga morena lançava um sonoro "Olá! " a seu pai e atirava-se para os braços de Bernard, muito menos apressado, quase mesmo reticente, a ponto de ela recuar um pouco para o olhar, a rir:
"Dir-se-ia que estás envergonhado de me beijar diante do papá!
- Nem por sombras. "
Claudine franziu imperceptivelmente as sobrancelhas fortemente arqueadas e passou para os braços do pai.
"A mamã não veio?
-Está a superintender na confecção do jantar, persuadida de que não comeste nada de bom durante toda a tua estada na América. "
Entraram rapidamente no carro dos Nodier, conduzido por um motorista fardado. Na sua luxuosa pro priedade, a mãe de Claudine esperava-os sem perder de vista as diversas operações da cozinheira. A gastronomia, para a Sr. á Nodier, constituía o essencial da felicidade acessível neste desprezível mundo. Por isso, por diversas vezes no decurso do jantar, assim que a conversa desanimava, recitava à filha uma receita de cozinha que Claudine não ouvia:
"Para poderes fazer, quando estiverem casados, bons pratinhos a este querido Bernard. "
Teve oportunidade de Lhe dar um bom número delas nessa noite, porque Bernard, visivelmente, en contrava-se muito distante dos seus anfitriões. Demasiado esperta para não o sentir, Claudine começou por brincar com ele amavelmente:
"Onde é que estás? No teu mato africano? "
Ele sobressaltou-se:
"Não, que ideia!
-Não é que eu tenha alguma coisa contra o teu mato. Ele inspirava- te lindas cartas. Annecy serve-te menos bem. Porque é que não me escreves há eternidades? "
Ele respondeu em voz breve:
"Torno-me útil, em Genebra, como pediatra.
-Estou a ver o que é: não podes passar sem o teu trabalho. E então as férias? A propósito, se tens vontade de exercer na América, eu tenho um amigo, médico em Nova Iorque, que promete arranjar-te uma licença de trabalho. Eu disse-lhe que ficarias encantado, que não tinhas qualquer intenção de te enterrares em Annecy. Quanto à África, espero bem que nunca mais lá voltes. "
A jovem não perguntava. Afirmava.
"Falemos a sério, meus filhos", disse o Sr. Nodier. "O Dr. Térouard deseja retirar-se. Eu posso preparar financeiramente as coisas para que ele Lhe passe a clientela, Bernard. Deixar-Lhe-ia também a sua casa de campo. É muito bonita, bem situada. Vale a pena pensar nisso. "
Bernard aquiescia frouxamente. Claudine não teve dificuldade em compreender que ele estava pouco disposto a pensar nisso. Depois, cedo, tendo apenas respeitado a mais estrita cortesia, ele levantou-se para se despedir.
Claudine não emitira qualquer protesto na presença dos pais. Mas acompanhou-o à porta do jardim para perguntar com uma secura que mal lhe disfarçava a preocupação:
"Que é que há, Bernard? Eu desejava imenso que o papá e a mamã não me fizessem muitas perguntas.
- Não tenho nada, garanto- te.
-Vamos lá! Tu eras mais terno, antigamente. Oh! não te peço que te constranjas. Escuta, Bernard, eu alcancei muito êxito em Nova Iorque. Divertia-me lá muito. Nada me obrigava a voltar a Annecy. Nada, a não ser o pensamento de te encontrar. Por isso, esperava uma recepção um pouco mais. calorosa. "
Ele evitava olhar para ela, virando a cabeça para a direita, depois para a esquerda, como os prisioneiros que procuram uma saída para fugirem. Não encontrou outra senão um clássico pretexto:
"Perdoa-me, Claudine, mas esta noite tenho umas terríveis dores de cabeça. Pensava que tu própria estarias fatigada, depois desse longo voo. "
Claudine tornou-se muito irónica:
"É preciso muito mais para me fatigar. Eu estou numa forma espantosa. Olha! Se me pedisses para ir dançar contigo, corria. Não, não, sossega, não quero dar cabo de ti. Vemo-nos amanhã? Vens ter comigo ao Clube Hípico?
- Certamente.
- A menos que daqui até lá - concluiu ela com um certo ar de desafio - a tua dor de cabeça se tenha tornado absolutamente intolerável. "
Como poderia deixar de a beijar? Ele deu o beijo sem convicção: Ela recebeu-o sem entusiasmo.
Quando Bernard chegou a casa, o pai levantou os olhos do dossier que estava a ler, a mãe da mesa de jogo onde fizera uma paciência.
A Sr. Montigny exclamou: "Já? Voltaste muito cedo. "
Bernard gracejou:
"Decididamente, as mães nunca estão contentes. Não há muito tempo, censuravas-me por vir muito tarde. "
Ele parecia totalmente liberto da sua dor de cabeça. Estava-o sobretudo dum último escrúpulo: "Quando voltar a ver Claudine, quem sabe se o antigo desejo, a paixoneta da minha juventude, não desperta? " Agora, já sabia.
A Sr. Montigny agitava-se, baralhava as cartas da paciência a que se entregara.
"Como está Claudine? - perguntou ela. -Muito bem. Geneviève Lagrange telefonou?
-Qual é a relação? Eu estava a pedir-te que nos falasses de Claudine.
-Não há nenhuma relação, concordo.
- Não telefonou.
- Nesse caso, vou chamá-la. "
A Sr. Montigny foi sensível ao endurecimento da voz do filho. Seguiu-o com os olhos enquanto ele caminhava para o aparelho, marcava o número da Sr. Lebrun em Saint-Julien, depois dialogava com Monique:
"Posso falar com Geneviève? O quê? Levou Rosalie para. Está a demorar-se? Vocês estão preocupadas? Obrigado, Monique. "
Voltou para junto da mãe, com os olhos azuis carregados de censuras, os maxilares crispados:
" Mamã.
- Nunca me deixas acabar as minhas frases - afirmou ela com uma bela inconsciência. -Ela não telefonou, veio! Nem o teu pai nem tu estavam aqui. Quem a teria recebido senão eu?
-Que lhe disseste?
-Querias que a tua mãe lhe mentisse? Nunca menti, não é agora que vou começar.
-Por outras palavras, falaste-lhe de Claudine.
- Perfeitamente!
-E estás contente contigo? " Ela virou-se para o marido:
"Meu amigo, pode pedir ao seu filho que me poupe às suas insolências? Não, já tenho a certeza de que vai tomar o seu partido. "
Preparava-se uma cena, para coroar aquela penosa noite. Bernard saiu do compartimento batendo com a porta. Uns segundos mais tarde, o seu carro arrancava.
Numa pousada de estrada, Geneviève estava sentada a uma mesa, tendo diante de si uma chávena de café forte. Bebia em pequenos goles, quase gota a gota. Aquela expressão de estrangulamento. Da mesa vizinha da sua, um camionista observava- a com um olhar cheio de solicitude, sem equívoco, amigável e até paternal.
De repente, decidiu-se:
"Um café, não está mal. Um pouco de tinto, seria melhor. Olhe, aquele, é carrascão. Mando vir um copo para si? "
Ela abanou a cabeça:
"Não, obrigada.
-Há momentos em que isto faz bem. A menina tem aborrecimentos, não é? O seu namorado faz-lhe patifarias? Vamos, isso há-de compor-se, minha filha, linda como é. "
Aquilo era dito tão simplesmente, com uma tal gentileza, que ela se esforçou por sorrir, não conseguindo senão uma pobre careta molhada de lágrimas. Por um instante, teve vontade de aceitar o copo de tinto, de se confiar àquele bondoso homem, de chorar contra o seu blusão de couro manchado de óleo. Mas não contou nada, engoliu o café até ao fim e contentou-se com agradecer ao camionista com um segundo sorriso, mais magoado ainda do que o primeiro. Tanto mais que ele teimava:
"Isso há-de compor-se! ", repetia ele. Mesmo que haja outra rapariga à vista, não vai durar. Há-de voltar para si! Em todo o caso, no seu lugar, regressava a casa e deitava-me. Não é estar murcha amanhã que lhe vai restituir o seu querido. "
Ela levantou-se, procurou no saco, pôs o dinheiro em cima da mesa. O camionista teve um gesto de protesto:
"Não, guarde isso. Esta noite é a minha vez. " O terceiro sorriso de Geneviève foi um pouco menos desolado.
"Obrigada - disse ela. - Boa viagem!
-O mesmo para si! "
Diante da pousada, Rosalie esperava. Geneviève escolheu dessa vez a direcção de Saint-Julien. Escolhia também retomar de manhã a sua vida de todos os dias.
A vida de todos os dias.
Françoise não deixou de notar no dia seguinte a palidez e as olheiras nos olhos da colega:
"Tu andas a dormir mal, ia jurar. Devias tomar um sonífero à noite, antes de te deitares. Olha, recomendo-te o. "
Bernard vinha a entrar. Precipitou-se para a sua assistente:
"Geneviève, venha! É importante. Era preciso que... "
Mas, calmamente, ela indicou-lhe Françoise: "Lastimo, doutor, esperam-me no hospital. Ia justamente pedir à Menina Vannier que me substituísse junto de si.
-Vai voltar, sem dúvida, à hora do almoço?
- Seguramente que não, doutor. Tenho de fazer todo o dia. "
Ela evitava-o, como ele previra. O Dr. Montigny não teve outro recurso senão pôr-se ao trabalho. Mas soubera da intenção do pai de mandar chamar ao cartório, no começo do mês seguinte, Thérèse Puidoux, Vandenberghe, a Sr. Lebrun e, evidentemente, Geneviève. À falta dum pretexto melhor, esperava poder falar dessa reunião, com a esperança de que, um pouco mais tarde, a jovem lhe permitisse explicar-se demoradamente.
Um pouco mais tarde. Quando? Já não sabia, não muito orgulhoso, naquele momento do seu personagem.
Não menos avisado por Trébout daquela confrontação, Henri Castel fizera irrupção em casa de Viviane:
Encontrara-a a declamar em frente do espelho:
Filho impetuoso do meu ressentimento
Que a minha dor seduzida beija cegamente... "
Ao vê-lo, misturou com mão negligente uma porção de fotografias de teatro espalhadas à sua volta:
"Que é feito de si, Henri?
-Trabalho, cara amiga. Constrange-me ter de Lhe dizer que, depois da minha chegada a França, arranjei outros clientes além do seu marido, primeiro, e de você, em seguida. Desprezei-os um pouco. Tenho de me ocupar deles. Que estava a declamar, e muito bem sinceramente?
- O papel de Emilie, em Cinna.
-Do grande Corneille! Tem alguma relação com os seus problemas?
-Não exactamente, mas dizia para comigo que talvez, visto que Geneviève vai herdar do pai, eu pudesse retomar a minha profissão de actriz. Não me teria saído muito mal outrora, se o director do grupo não tivesse partido com a caixa, durante uma digressão ao Canadá.
-Não tenha pena! Estaria ainda agora à procura de trabalho em Paris ou na província. Graças a Deus, foi obrigada a ficar em Monreal e lá encontrou Lagrange.
-Você vê aonde isso me levou. Terá sido melhor?
Castel foi categórico:
"Apesar do pior, pode contar com a generosidade de Geneviève. Hei-de explicar-lhe tudo isso. Hoje não, tenho de a deixar.
- Outra vez. "
Ele empertigou-se:
"Como a sua amizade me comove! De momento, vou a Paris. É lá que nos instalaremos em breve. Se deseja retomar a sua profissão, será num teatro que lhe pertença. Tenho grandes projectos para si, dignos de si. "
Foi-se como tinha vindo, precipitadamente. Viviane viu-o partir, pensativa, e retomou os seus exercícios de dicção:
Você toma na minha alma um império demasiudo poderoso.
Ao sair do Serviço de Saúde, Bernard dirigira-se ao Clube Hípico. Caracolava agora ao lado de Clau dine. Procurando agradar-lhe, observou:
"Montas ainda melhor do que antigamente, sabes? " Ela olhou para ele, com o queixo levantado: "Será que me reconheces, subitamente, de novo, qualidades?
-Tens muitas! Quase todas. E um único defeito: um pouco de orgulho a mais.
-Se o tivesse, não suportaria um segundo a tua atitude para comigo, Bernard. "
Ele tentou defender-se com um riso sem alegria. Claudine, essa, não ria.
"No fundo - replicou ela, com uma gravidade inesperada-, como todos os amigos de infância, nós conhecemo-nos muito mal. Só temos em comum recordações episódicas. Lembro-me da marca da tua primeira bicicleta, mas ignoro se te apaixonaste pela tua professora de Ginástica. De facto, sei que sim, mas nunca mo disseste. Posso confessar-to agora, eu morria de ciúmes!
-Eu tinha onze anos, doze no máximo. " Os seus cavalos iam a passo, lado a lado. Claudin continuou:
"Por uma vez na ninha existência, estive de acordo com os meus pais. Tínhamos decidido que casaria contigo. Não sei se ouse perguntar-te: lembras-te?
- Certamente. - disse Bernard, cada vez menos à vontade. - Mas, por minha vez, gostaria muito de te pedir que me fales nisso mais tarde. Queres? Foi magnífica esta hora de equitação, mas tenho de voltar ao Serviço de Saúde de Genebra, compreendes. "
Impaciente, Claudine rangeu os dentes: "Oh! o teu trabalho, a tua vocação, o teu apostolado! Acabarás por me levar a odiá-los, quando nunca esperei sobrepor-me a eles. Nem sequer o desejava. Mesmo assim, teria sido elegante da tua parte consagrares-me uma pequena parte das tuas férias, não achas?
- Claudine - protestou Bernard sem convicção -, não me tinham informado da data exacta do teu regresso. -Serás tu cobarde e de má-fé, como todos os homens? " Deu uma chicotada para espevitar o andamento do cavalo. "Pois bem, vai lá para o teu Serviço de Saúde, e adeus! " Foi o que ele fez, não sem concordar intimamente que Claudine tinha razão. Cobarde e de má-fé, acabava de o ser. E Geneviève que se fiava na sua força tranquila, na sua solidez sem desfalecimento. Um rapaz apanhado entre duas raparigas desilude-as bem muitas vezes a uma e à outra. Acalmada a sua brusca irritação por uma longa galopada, Claudine saiu do Clube Hípico, meteu-se no carrinho desportivo e dirigiu-se à propriedade dos Montigny. Encontrou a futura sogra no jardim, ocupada a colher rosas.
Claudine admirou sinceramente o ramo que ela acabava de reunir.
"As minhas rosas não são feias - suspirou a Sr. Montigny -, mas, a acreditar em Viviane Lagrange, são banais ao lado das dela. Como essa mulher me enerva!
- Viviane Lagrange?
-Ainda não lhe falaram dela? Isso vai acontecer... É verdade que esses Lagranges compraram a propriedade dos Marjoz depois da sua partida para a América. Grande fortuna canadiana. O marido morreu, a mulher... Vou pedir a Virginie que nos sirva o chá no terraço... Então, esteve com o meu filho?
Ele voltou louco de felicidade", afirmou ela irreflectidamente.
Claudine fixou nela o seu olhar franco e ousado.
No desejo de parecer jovem, a Sr. Montigny pedira-lhe há muito tempo que a chamasse pelo nome.
"Não, Jeanne", respondeu ela, "Bernard não estava nada louco. Sobretudo comigo. Se ele me amou alguma vez um pouco, sinto que já não me ama. Seria essa Viviane Lagrange que o tornou tão distante? "
Tinham tomado lugar no terraço. A criada trazia o chá e bolos. Jeanne Montigny protestou com veemência:
"Viviane? Oh! não, embora ela seja... mais jovem do que eu. Não, não, não é ela.
-Portanto, há outra mulher. Mas quem? "
Jeanne Montigny baixou a voz. Nunca eram demasiadas as precauções tomadas em relação aos criados modernos, que não eram "dedicados" como os de outrora.
"Eu não Lhe peço que tenha coragem. Um pouco de paciência bastará. Trata-se de Geneviève Lagrange;
a enteada de Viviane. Uma história complicada. Vou explicar-lhe. Ela é enfermeira em Genebra, no serviço do Dr. Terrier.
- É por causa dela que Bernard trabalha lá?
- Sim. Não, antes ao contrário. Bernard conheceu-a quando começou a trabalhar lá. Onde tenho eu a cabeça? Claudine, também não é isso. O meu marido tem em seu poder o dossier duma herança a favor de Geneviève. Apresentou-os um dia. Em suma, não se preocupe. Eu conheço o meu Bernard. Deve estar já a procurar desembaraçar-se dessa rapariga. Tudo vai entrar depressa na ordem. "
Claudine, revoltada, esticou o pescoço, endireitou a cabeça:
"E, segundo a sua opinião, a ordem é o nosso casamento? Eu não quero isso. Quero um marido que me ame!
-Eu disse outra coisa? Bernard ama-a, Claudine. Não há comparação possível entre si e a pequena Lagrange. Mas você estava longe, Geneviève estava perto. Enfim, você vai compor isso, Claudine, janta connosco. Bernard ficará muito contente de a encontrar aqui! "
Mesmo duvidando, Claudine aceitou o convite. Desportiva em todos os seus actos, era daquelas que sabem o que querem, experimentam a sua sorte, não fazem jeitos. E, ao contrário de Bernard, estava segura, depois do seu regresso, de que o amava infinitamente mais do que "bem". A ausência reserva surpresas.
Geneviève só apareceu no Serviço de Saúde à tarde. Bernard arrastou-a para o carro contra sua vontade, depois seguiu lentamente ao longo do lago Lemano. Quando tentou defender-se, ela fez-lhe compreender que era inútil:
"Nunca lhe perdoarei o ter-me mentido como o fez!
-Não lhe menti, Geneviève.
-Não estava já noivo quando nos encontrámos? " Honestamente, ele explicava:
"Eu nunca fui verdadeiramente noivo de Claudine Nodier. As nossas famílias estão muito ligadas. Brincávamos juntos quando éramos pequenos. Claudine, muito independente, não tinha pressa nenhuma de se enforcar. Não era senão uma espécie de projecto vago, a longo prazo. Um projecto de pais que se excitam com os bens, com a cifra dum dote.
-Em suma, vocês deixavam-se levar sem reagir, ela e você?
-Porque não, Geneviève? Eu não amava Claudine com paixão, mas não nego certos entusiasmos da nossa adolescência. Enfim, conheci-a a si. Descobri imediatamente a diferença entre uma rapariga que nos agrada e uma rapariga que se ama. Esteja tranquila, eu serei leal para com Claudine. Somente, dê-me um pouco de tempo. Ela só regressou ontem.
-Você vai falar-lhe de mim, seja. Porque é que não me falou dela mais cedo?
-Geneviève, se eu lhe tivesse dito: Tenho outra rapariga na minha vida, você ter-me-ia escutado? Você própria tinha-me falado de Jean-Luc?
-Não é a mesma coisa, Bernard. Eu não tinha a certeza. de que você me amava. Você, desde o princípio, sábe muito bem que eu o amo. Não sou exuberante como Monique, por exemplo, que diz sempre tudo o que pensa. Mas sou muito simples, muito directa, para saber esconder um sentimento profundo.
-Então, com a mesma simplicidade, duma maneira igualmente directa, eu torno a dizer-lhe: Geneviève, amo-a.
-Posso acreditar em si? "
Ela já não tinha coragem para duvidar. Bernard tornou-se insistente:
"Suplico-lhe! Tem de me acreditar. Parece-me que há séculos que isto não me acontecia. "
Claudine esperou-o em vão, entre o Dr. Montigny e a mulher, tão atrapalhados um como o outro. Ela invocou mesmo o pretexto duma dor de cabeça para se retirar cedo, visto que a diplomacia não era o seu forte.
Assim, fora-se embora havia mais de uma hora quando Bernard entrou em casa, depois de ter deixado Geneviève de passagem. Reconciliados? Nem mais uma sombra no seu amor? Ainda não. Ao deixá-lo Geneviève declarara- lhe:
"Tornaremos a falar de amor quando você estiver completamente livre, Bernard. "
No rés-do-chão, tudo estava às escuras. Bernard, como no tempo do liceu, subiu a escada em bicos de pés. Quando chegou ao patamar do primeiro andar, abriu-se uma porta, a do quarto da mãe. Esta apareceu, de cara besuntada com um creme de beleza anti-rugas. Bernard endireitou- se, determinado, quase agressivo.
"Desta vez, vais dizer-me que venho muito tarde, não?
- Não. Só que tu não fizeste caso de Claudine. Ela jantou connosco e esperou pelo teu regresso com uma impaciência.
-Desolado. Não me tinhas prevenido de que ela jantava cá.
-Onde é que podia apanhar-te no fim do dia? Não ia descer ao ponto de telefonar para casa da Sr. Lebrun!
- Descer? Exageras!
-Digo o que entendo e vou continuar! " Ambos tinham elevado o tom de voz. O Dr. Montigny, por sua vez, saiu do quarto em roupão.
"Não acham que é um pouco tarde para falarem tão alto? Bernard, a tua mãe tem razão: estás a tornar-te demasiado insolente. "
O jovem médico cerrou os dentes. Ao fim dum momento, controlou-se:
"Desculpa a insolência, mamã. Mas devo prevenir-te de que não me casarei com Claudine.
-Encontraste melhor, talvez? Não vais fazer-me acreditar que se trata da pequena Lagrange.
- Sim, precisamente!
-Insensato! Lucien, diga qualquer coisa! Bernard quer casar com a filha de.
-Dum riquíssimo canadiano, minha querida Jeanne.
Ter-se-iam apostado em pô-la fora de si? Eis que o pai também se metia no assunto, com o seu temperamento frio, o seu sorriso sarcástico. Bernard impôs a si mesmo permanecer calmo, quando a indignação o revoltava:
"Papá, espero que não estejas a pensar aquilo que tens o ar de estar a dizer.
Eu? Eu nunca penso, bem sabes! A tua mãe pensa por nós três. "
Jeanne Montigny encolheu os ombros e voltou majestosamente para o quarto. O notário bateu no omhro do filho:
"Não armes em idiota! Eu empreguei, muito simplesmente, o único género de argumento susceptível de a convencer. E, com isto, dorme bem, meu filho. "
O argumento firmou-se rapidamente no espírito de Jeanne Montigny. Empurrando a porta que fazia comunicação entre os dois quartos, veio sentar-se na borda da cama do marido:
Lucien, ele é na verdade riquíssimo?
- Não sabia?
-Exagera-se com tanta frequência!
-Neste caso, penso que a vox populi está muito aquém da verdade.
-Richard Lagrange era mais rico do que os Nodier?
-Sensivelmente, minha cara amiga. "
Ela examinou as unhas lacadas de rosa framboesa, mordiscou uma pelinha e sonhou em voz alta:
Se os boatos que correm são exactos. e são-no, como todos os boatos desagradáveis. Nodier teria começado a fazer fortuna durante a guerra, vendendo sucata aos Alemães num carrinho de mão que ele pró prio empurrava. Você não diz nada? Mas essa fortuna existe, não é verdade? Ele tem altas relações políticas. A filha foi educada no colégio religioso mais conceituado de Annecy. Você está a dormir?
-Estou a tentar, cara Jeanne. Boa noite! ", concluiu o notário, saturado.
Os pais de Claudine Nodier tinham-lhe igualmente desejado uma boa noite. Ela beijara-os a sorrir, mas agora, no seu quarto, chorava.
Era a primeira vez que derramava lágrimas desde a sua infância de menina mimada, estragada, com as mínimas vontades sempre satisfeitas. Ela pudera acreditar, por um momento, que só o seu orgulho estava ferido. Sabia agora que sofria no coração, esse coração que nunca batera por nenhum outro senão por Bernard. Porque o amava ainda mais de que à sua liberdade, afastara tantos pretendentes, recusara tantos casamentos que teriam feito dela uma das mulheres mais em foco da região.
Dormiu mal, sacudida ao despertar por uma nova crise de lágrimas. Antes de descer e se sentar à mesa com os pais para o pequeno-almoço, banhou abundantemente o rosto, sem que conseguisse disfarçar diante de um pai que adorava a sua filha única.
"Acabo de telefonar ao Dr. Térouard, está com pressa de se ir instalar no Sul, o que faz que eu possa adquirir a sua casa de campo por um preço interessante... ", começava ele quando parou de repente:
"Mas. tu choraste, tu! Quem ousou fazer-te chorar? "
Com ele era inútil negar. Claudine amaldiçoou a sua fraqueza, mas tinha de responder. Fê-lo num tom negligente, como se só se tratasse duma ligeira preocupação.
"Creio que Bernard tem uma aventura, neste momento. É talvez mesquinho, mas isso causa-me um pouco de mágoa. "
O gordo Nodier teve uma reacção jovial: "Ora! um homem é um homem, meu amor. Está a despedir- se da vida de solteiro. "
Claudine teve para ele um olhar de ternura indulgente, imperceptivelmente desdenhosa:
"A vida de solteiro, papá, e a sua despedida, são costumes do teu tempo, mas não do nosso. Bernard está-se nas tintas para a clientela e para a casa de campo do Dr. Térouard. Eu também, aliás. Gosto de Bernard. Segui-lo-ei até ao lugar onde ele quiser viver. Mas quererá ele ir para qualquer lugar comigo? "
De novo as lágrimas Lhe perlavam os olhos. A voz enrouquecia-se-Lhe. Os lábios tremiam-Lhe. Nodier deu um murro na mesa:
"Não faltava mais nada senão que ele não te quisesse! Vou dizer-lhe duas palavras, ao teu amiguinho! Nodier a meter-se num assunto tão delicado com a sua grande falta de tacto, seria uma catástrofe. Claudine suplicou:
"Papá, não te metas! Se eu tiver oportunidade de o reconquistar, prefiro aproveitá-la sozinha.
-Uma oportunidade? Mas tu és mil vezes mais bonita e mais esperta do que essa rapariga! "
Claudine ficou estupefacta:
"Ah, bom, tu também estás ao corrente? Como é agradável! "
Nodier arrancou o guardanapo atado à volta do pescoço, atirou-o para cima da mesa e levantou-se:
"Tenho de ir ao escritório. Mas deixa-me dizer-te. esse medicozinho que não vale um caracol.
- Oh papá!
-Ainda por cima o defendes! "
Claudine defendia o seu amor, a sua própria concepção de felicidade. Reflectiu durante o banho, enquanto se penteava, enquanto se pintava com um cuidado particular, depois ao volante do seu carro, na estrada de Genebra. Encontrava-se na melhor das disposições quando penetrou nos escritórios do Serviço de Saúde. Foi Monique quem a recebeu. Sem amabilidade.
"O Dr. Montigny? Não trata adultos. Qual o motivo da visita?
- Pessoal.
-Tem de esperar pelo fim da consulta. Pode demorar.
-Espero. Posso fumar?
-Não é desejável. "
Claudine voltou a pôr na carteira o maço de cigarros americanos que de lá tirara, assim como um isqueiro de ouro. Sem ter sido convidada para isso por Monique, sentou-se numa cadeira, num canto, e não se mexeu mais.
Duas horas mais tarde, ao meio-dia, Bernard, Geneviève, Françoise e Isabelle saíram do gabinete de consulta. Em frente de Claudine, Bernard ficou interdito. Ela encarou Genevieve.
"Apresenta-nos", disse de repente, muito alegre. "Eu tinha vontade de conhecer o sítio onde trabalhas. "
Ele resignou-se:
"Claudine Nodier. Geneviève Lagrange.
- Esqueces-te de dizer - precisou Claudine - que sou tua noiva. Penso ser importante. "
Geneviève só reagiu com uma minúscula crispação dos lábios. Os olhos de Monique lançaram chispas. Françoise desfez-se em amabilidades para com Claudine:
" Estou tão contente por a conhecer. Fala-se tanto de si, aqui. "
Monique beliscou-lhe o braço e pronunciou a meia voz:
"Tu és naturalmente má, ou é uma doença que apanhaste quando eras pequena?
-Permitem-me que lhes roube o doutor? ", dizia Claudine pegando no braço de Bernard, com um gesto possessivo e sem réplica.
Arrastava-o lá para fora. Françóise e Isabelle seguiram-nos rindo de gozo. Geneviève e Monique ficaram sós.
"Ela é bonita, não é? - observou Geneviève. Não creio, todavia, que sejam feitos um para o outro. Pobre Bernard! Não foi lá muito corajoso.
-Que querias tu que ele fizesse? Uma cena? Um escândalo? Em público, diante destas duas horríveis criaturas? É demasiado bem-educado para isso. Mas, de certo modo, vês, gosto mais do género de Robert. Esse ter-lhe-ia dado uma boa bofetada. "
De manhã, Bernard prevenira Geneviève de que não viria à tarde, porque o reclamavam no hospital e depois numa clínica particular para uma consulta sobre um caso duvidoso. Sem acrescentar, todavia, que tivera de prometer a Claudine sair com ela à noite. Seria uma oportunidade para resolver uma situação que se tornara insustentável.
"Falarei no restaurante", decidira ele.
Não falou, no entanto, pela simples razão de que Claudine discorreu sem interrupção: "Na América, em Nova Iorque, na Florida, no Connecticut. " Ele resolveu-se então a falar na boite aonde a ia levar em seguida.
Ela trazia um vestido de sonho, duma elegância inútil naquele night-club quase vazio. Estava demasiado bonita e demasiado alegre. Uma vedeta de cinema em exibição. Bastante humana, todavia, para renunciar subitamente a representar:
"Meu pobre Bernard, tens o ar de quem está perdido. Sem dúvida que já não estás habituado ao que se chama a vida airada. Reconheço que é bastante triste, no fundo - concluiu ela.
- É verdade, já não estou habituado. Na África, sabes.
-Tu gostavas de dançar, antigamente.
-É. verdade, Claudine. Dancemos. "
Uma dança perfeita, ao som duma excelente orquestra: Uma demonstração. Um número. Voltaram para a mesa, tão desunidos como anteriormente.
"Champanhe?
-Se quiseres, Bernard. Sabes que te achei muito imponente, de bata branca, no meio de todas as tuas enfermeiras? Eu estava intimidada.
- Isso espanta-me em ti. Não tinhas ar disso.
-É verdade, todavia. Vocês formavam um bloco. Eu sentia-me uma estranha. Aquela pequena La grange, que não dizia uma palavra, é ela que vai herdar uma grande fortuna?
- Com efeito.
-Então, vai deixar de trabalhar? Acabada, para ela, essa carreira tão monótona, tão austera?
Bernard abanou a cabeça:
"Ela gosta da sua profissão, onde granjeou enorme êxito; porque é que havia de a deixar? Não a imagine ociosa.
- Isso é piada para mim?
-Porque dizes isso? Censurei-te alguma coisa?
Claudine bebeu uma taça de champanhe, depois cruzou as mãos em cima da mesa. Soltou um grande suspiro e replicou:
"Não, eu não tenho profissão, não fiz estudos, excepto os duma menina rica destinada a não fazer nada senão agradar aos homens, fazer sala com as mulheres, vigiar discretamente a ama que há-de criar os seus filhos. culpa minha? O meu pai, a minha mãe, não falemos neles. Mas tu, Bernard, pensaste em me dar o empurrão que teria feito de mim outra coisa para além duma patetinha superficial? Aquilo que eu sou, aquilo que parecia agradar-te outrora.
- Claudine - começou ele gravemente -, tenho de te dizer. "
A hora da verdade chegava. Assustada, Claudine agarrou na mão de Bernard:
"Não; agora, não! Esta noite, não! Concede-me um período de paz, de ilusão. Vem, Bernard, vem dançar outra vez. Lembras-te, é o blue de que gostavas tanto, há. já não sei. Quando julgava que amavas, quando isso me parecia natural, quando não sabia que era feliz. "
Foi ela que o arrastou para a pista. "Falo amanhã", pensou ele.
Dessa vez, dava-se conta de que ela sofria muito mais do que supusera Claudine desesperada por causa dum grande amor! Ele não considerara essa possibilidade, Bernard.
Os dias passavam. Bernard continuava calado. Geneviève não queria aborrecê-lo interrogando-o cons tantemente. Mas a qualidade da sua felicidade diminuía. O facto de Bernard se mostrar cada vez mais enamorado, cada vez mais exigente, não a tranquilizava completamente. Quando ele estava junto dela, as suas dúvidas afastavam-se, deixavam-na em paz. Assim que se afastava, ela receava a influência da família dele, de Claudine, dos Nodier.
A alegria de Monique, cuja data de casamento se aproximava, aumentava ainda mais a sua melancolia. O vestido de noiva, a Sr. Lebrun queria executá-lo ela mesma, segundo o modelo duma casa categorizada.
Num domingo de manhã, durante uma das provas, o telefone tocou. Na extremidade do fio, Viviane Lagrange pedia para falar com Geneviève.
"Minha querida filha", anunciava a voz arrulhadora de Viviane, "dou esta tarde em minha casa uma espécie de garden-party... Oh, não é uma grande recepção. Seria impróprio, não é verdade, quando a minha viuvez está ainda tão fresca! Trata-se, muito simplesmente, duma reunião de pessoas influentes de Annecy, com fins de caridade. Sim, desejo fundar uma obra, ocupar-me das crianças pobres. Não será você quem me vai censurar. Portanto, gostava que fosse dos nossos. Posso contar com a sua participação? "
Geneviève hesitava:
"É que, Viviane. não estou habituada a mundanidades.
- Repito-lhe que se trata apenas de beneficência" insistia a sua interlocutora, como se não admitisse sequer a eventualidade duma recusa.
Geneviève resignou-se a aceitar. A Sr. Lebrun aprovava-a:
"Vais conviver com outras pessoas. Faz-te bem. " Monique descia do seu quarto, de vestido branco eriçado de alfinetes. Quando ouviu falar duma visita a Annecy, espontaneamente, ofereceu Rosalie.
"É com Bernard que vais encontrar-te?
-Não, fui convidada para uma recepção em casa de Viviane.
-Com um pouco de sorte, ele talvez lá esteja.
-Vou lá, portanto. Vocês é que quiseram, as duas. Empresta-me um vestido da loja, Mamie? "
Quando Geneviève franqueou o portão do jardim da bela moradia, ficou admirada com a quantidade e a sumptuosidade dos carros arrumados no parque. Até mesmo um Rolls lá se encontrava. A pobre Rosalie ia fazer triste figura ao lado daqueles esplendores. Por um instante, teve vontade de arrepiar caminho. "Vou ficar tão deslocada como ela. Se desse meia volta? "
Demasiado tarde. Henri Castel aproximava-se com um sorriso conquistador. Ajudou-a a sair do carro, conservou a mão dela na sua e arrastou-a para o meio do grupo dos convidados, anunciando:
"Eis a rainha da festa! "
Viviane correu ao seu encontro, prendeu-lhe os braços à volta do pescoço:
"Que alegria em a ver, Geneviève querida! Vou apresentá-la. Mas já conhece o Sr. e a Sr. Montigny, o Dr. Montigny. O Sr. Ernest Nodier, a Sr. Nodier, a menina Claudine Nodier. Geneviève Lagrange, a minha enteada. "
Geneviève cumprimentou, apertou mãos mais ou menos alegremente estendidas. Sobressaltou-se ao ver Jean- Luc. Uma verdadeira armadilha, aquela recepção de caridade. Agora era a voz de Castel que soava, mais adocicada do que nunca:
"Sem dúvida que é inútil apresentar-lhe Jean-Luc Martel. Também já o conhece. "
Ela não previra aquele encontro. Nem tão-pouco a solicitude dos pais de Jean- Luc a precipitarem-se ao seu encontro:
"Encantados de a conhecermos. O nosso filho falou-nos tantas vezes de si. É mais encantadora ainda do que imaginávamos. "
Ela ter-se-ia desviado da família Martel se, nesse momento, Claudine não se tivesse ostensivamente aproximado de Bernard, colando-se a ele, rindo muito alto.
"Bernard, oferece-me uma taça de champanhe! Quero beber pelo nosso amor! "
"O nosso amor". As palavras atingiam Geneviève como pedradas. Num impulso, saltou a distância que a separava de Jean-Luc, um pouco confuso com a reviravolta exagerada de seus pais. E, ela também, agarrou- se-lhe a um ombro:
"Vem, Jean-Luc, vem passear para o roseiral", suplicou.
Ele não podia deixar de obedecer, adivinhando que estava apenas a servir de instrumento para uma vingança muito feminina. Assim que se afastaram, Geneviève largou o ombro que tomara como apoio. A sua voz desceu vários tons, fez-se amarga:
"Os teus pais tornaram-se muito amáveis de repente, mas eu não tenho ilusões.
-E eu, Geneviève, se tivesse ficado com um pouco de esperança, saberia neste minuto que a atitude deles a estragou irremediavelmente. Deixei fugir a sorte. Agora, aliás, tu és muito rica. "
Geneviève esboçou um sorriso desiludido: "É no meu dinheiro que estás a pensar? Outro mal-entendido! O dinheiro, não me interessa; mas fica um pouco comigo."
Ele voltou-se. A alguns passos atrás deles, Claudine falava para Bernard, que nem sequer fazia o esforço de parecer escutá-la, visivelmente atormentado.
"É verdade - prosseguiu Jean-Luc com tristeza - que tenho um papel a desempenhar nesta comédia. Se isso pode ajudar-te.
- Tu estavas ao corrente, como toda a gente? Que fosso de víboras!
Jean-Luc protestou:
"Eu não sabia de nada, quando cheguei. Causou-lhes uma grande alegria o informarem-me, porque o vosso trio é o tema de todas as conversas! Aceito o lugar de segundo-violino. Mas permito-me fazer-te, apesar de tudo, uma pergunta: minha pequena Geneviève, estás certa de que, nesta casa, só te querem bem?
-Que mal poderiam fazer-me?
-Farias mal em evitar o combate. "
De novo ele se voltou. Bernard e Claudine, tendo obliquado numa álea adjacente, dirigiam-se para o bufete. Jean-Luc apoderou-se gentilmente do braço da sua companheira.
"Vamos ter, também, com essas famílias Montigny-Nodier. Todos estão a olhar para nós. Pois bem, ver-nos-ão de mais perto! "
Não havia sombra de rancor na sua voz. Geneviève levantou os olhos para ele. No lugar do homem que amara via um bom rapaz; no fundo, um amigo quase fraterno.
"Porque é que", interrogou ela com uma súbita brandura, "não falaste e agiste sempre como fazes hoje? "
Ele encolheu os ombros.
"Ora. É por vezes quando têm a causa perdida que os cobardes são capazes de se transformar em heróis", gracejou ele.
Caminhando para o bufete, o par tornou-se o alvo de todas as atenções. Sob o olhar incendiário da esposa, o Dr. Montigny destacou-se do grupo.
"Posso oferecer-lhe alguma coisa, Geneviève?
- Com certeza. Um sumo de frutas, se faz favor. " A Sr. á Montigny não era a única a manifestar o seu mau humor. O gordo Nodier escumava. Afastados, eles confiaram um ao outro a sua prodigiosa indignação.
"Viviane teria podido abster-se", começou a Sr. Montigny, "de convidar esta Geneviève ao mesmo tempo que nós. Coloca-nos numa situação impossível."
Nodier reforçou:
"Que direi eu! E o seu marido tem necessidade de se exibir com ela? Não, mas olhe para os seus salamaleques. No entanto, há aqui bastante pessoal para encher os copos dos convidados! "
A cólera de Jeanne Montigny mudou subitamente de direcção. Como muitas esposas, atribuía-se o direito de criticar o marido, sem o conceder a outros, sobretudo de forma nenhuma ao rústico que era Ernest Nodier.
"O meu marido exibe-se? Pois bem, o senhor é ousado! Não se pode dizer que ele se exiba na acepção da palavra. Geneviève é sua cliente, uma grande cliente. Ele tem o dever de ser bem-educado. "
Nodier, agora, mal se continha:
"Eu sou igualmente um grande cliente, Jeanne. A senhora também não devia esquecer as minhas relações políticas. Montigny é conselheiro geral, mas se quer apresentar-se às eleições senatoriais... "
Aquela lengalenga, aquela ameaça velada, ouvira-a já de mais. Subitamente, ficou irritada:
"O senhor fatiga-me com as suas relações políticas! Entenda-se com ele! "
Castel aproximara-se oportunamente de Claudine. Bernard aproveitou para mudar de campo e intrometer-se entre Geneviève e seu pai, o qual deu dois passos atrás.
" Boa tarde, Geneviève. "
Geneviève olhou-o bem de frente.
"Creio que já nos cumprimentámos...
-Ainda não, na verdade. Não me apresenta esse senhor?
-Porque não? Jean-Luc Martel, o Dr. Montigny. " Os dois homens apertaram a mão. Espectáculo que fez reinar em volta deles um profundo silêncio, em breve dominado pela voz de Jean-Luc.
"Doutor, fui informado por Geneviève do lugar que o senhor tomou na vida dela. Permita-me que o felicite sinceramente e que me despeça. "
Virou-se em seguida para Geneviève:
"Suponho que não tornaremos a ver-nos. Eu não teria coragem e você não teria vontade que isso se desse. Desejo-lhe, portanto, que seja muito feliz. "
Depois, dirigindo-se aos pais:
"Vamo-nos embora? Façam como quiserem. Eu, em todo o caso, vou. "
E enfim, muito amavelmente, a Viviane: "Perdoe-me, cara senhora. Agradeço-lhe o seu encantador convite."
De má vontade, os pais Martel seguiram o filho até ao carro da família, enquanto Viviane ficava estupefacta com aquela brusca despedida.
Bernard lançou a Geneviève um olhar de descontentamento:
"Eu ignorava que Jean-Luc Martel conhecia a Sr. Lagrange. A menos que...
-Que eu própria o tenha convidado? Não, Bernard. Não tornara a vê-lo desde a noite do nosso rompimento. De qualquer maneira, teria você o direito de me censurar?
-Não sabia que ia encontrá-la aqui.
-Se tivesse sabido, teria vindo com a Menina Nodier? "
Bernard fez um gesto de impotência:
"Geneviève, já lhe expus a situação. É-me difícil precipitar as coisas. "
Falavam em voz contida, sem tomarem em conta que toda a gente olhava para eles, excepto talvez Claudine, sempre monopolizada por Castel. Picado por Jeanne Montigny, Ernest Nodier voltava-se para o notário:
"O senhor tolera este escândalo? "
O pai de Bernard mostrou um ar admirado:
"Caro amigo, o senhor emprega palavras muito contundentes!
-Emprego as palavras que me agradam, quando o senhor deixa o seu filho fazer a corte a essa donzela diante da noiva, minha filha, ainda por cima! "
O tom do notário tornou-se muito frio:
"Caro amigo, o meu filho é maior. Há muito tempo que não me arrogo o direito de o admoestar. Bernard assume sozinho as suas responsabilidades. "
Ernest Nodier ruborizava-se, inchava. Parecia ter engordado uns quilos quando declarou:
"Doutor, os meus negócios caminham muito bem, o senhor sabe-o melhor do que ninguém, visto que há anos lhe confiei os meus interesses. Alguns dos meus amigos admiram-se de que seja um notário de província a ocupar-se de assuntos tão importantes como os meus. Eu respondo-lhes que entre a família desse notário e a minha existe um projecto de aliança.
Mas se esse projecto caísse por terra.
-Eu teria muito prazer em o recomendar a vários dos meus confrades parisienses! -concluiu Montigny.
- Além disso, as minhas relações políticas...
- Jeanne! - chamou dessa vez o notário -, tenho que fazer, vamo-nos embora. "
Voltou de imediato e decididamente as costas a Nodier e inclinou-se diante de Geneviève:
"Fico penalizado comigo próprio por lhe roubar o meu filho, mas ele é o nosso motorista, porque eu detesto conduzir.
-Até amanhã, Geneviève", disse Bernard, que acrescentou em voz muito mais baixa: "Peço-lhe uma vez mais, tenha confiança em mim... "
Saudações, apertos de mão. Era uma debandada quase geral. Falara-se muito mais de questões de amor e de escândalos do que da obra de caridade de Viiviane.
No momento de partir com os pais, Claudine reconsiderou:
"Eu ainda fico um pouco", confiou ela ao pai. "Estou a divertir-me muito. Só tens de me mandar o carro com o motorista. "
Estupefacto, Nodier troçou:
"Estás a divertir-te? Mas que sorte! "
Deixando-o perplexo, caminhou em direcção a Geneviève, que também se preparava para entrar no 2 cv.
"Sou eu que a faço fugir?
- De forma nenhuma.
- Gostaria de conversar consigo. Sabe que a invejo um pouco por trabalhar com Bernard? Vê-o com mais frequência do que eu. Estavam a falar de medicina, há pouco? "
Geneviève levantou a cabeça. Jean-Luc aconselhara-a a não fugir ao combate. Ela aceitou sustentar o desafio.
"Não só de medicina - respondeu ela.
- Você sabe, no entanto, que estamos noivos?
-Disseram-no, mas não vejo qual o interesse que nós teríamos, uma e outra, em falar de Bernard Montigny. Não tenho a intenção de lho disputar. Se ele lhe deu a sua palavra, não sou eu quem vai pedir-lhe que a retire - afirmou gravemente Geneviève.
- Duvida disso?
-A menos que você tenha a bondade de me esclarecer sobre esse ponto. "
Claudine esperava defrontar-se com uma rival humilde e submissa, desesperada, suplicante. Falhara. Girou sobre os calcanhares e desceu a álea, com o seu passo ágil, longo, ao encontro do carro paterno. Geneviève dissera adeus a Viviane e a Castel. Sem mais tardar, pôs Rosalie em andamento.
Tendo ficado só com Castel no jardim despovoado, diante do bufete desguarnecido, Viviane observava com um ar de desilusão:
"Toda a gente me felicitou pelo êxito desta recepção. Mas eu tenho mais a impressão de que foi um falhanço. Bem lhe dissera, Henri. Tão próximo a ter ficado viúva, isso pode ter chocado as pessoas. E você vai abandonar-me também! "
Castel tornou-se misterioso:
"Urgência absoluta! Um longo caminho a percorrer. Estarei de volta amanhã. É por si, Viviane, ainda por si. Quando se trata de a ajudar, nada me desanima, nada me cansa. Você há-de aperceber-se disso e há-de agradecer-me.
- Agradeço-lhe, Henri, agradecer-lhe-ei sempre... ", afirmou-lhe ela com ardor.
Ele já partira. Nada é mais triste do que os vestígios dum bufete. Viviane teve vontade de chorar. Seria aquele o seu destino? Estaria ela votada à solidão?
Em casa dos Montigny não era uma cena conjugal que se revelava, mas uma troca mais subtil de flechas envenenadas:
"Caro Lucien, persisto em considerar que você me tratou muito insolentemente. Note que já estou habituada a isso! Mas nunca, até agora, em plena reunião mundana, você me fizera suportar assim o seu mau humor... Que podem ter pensado os Nodier? ", lamentava-se Jeanne Montigny.
Após um silêncio, acrescentou:
"Serei eu uma idiota quando digo que aquele garden-party tinha um aspecto curioso? "
O marido, dessa vez, aprovou-a:
"Mais do que curioso! Uma pequena obra-prima de perversidade, devida à fecunda imaginação do Sr. Henri Castel. Ele trava o seu combate na retaguarda. Mas como espera ganhar?
-Custa-lhe muito, Lucien, exprimir-se com clareza?
-Não me faça acreditar, inteligente como é, que não compreendeu: aquela recepção tinha como fim afastar Geneviève de Bernard e ao mesmo tempo de mim. Castel julga os outros por si. Pensa seguramente que, se eu defendo com tanto vigor os interesses de Geneviève Lagrange, é porque cobiço os seus milhões de dólares para o meu filho. Aqui está. "
Jeanne Montigny encolheu os ombros: "Ridículo! Claudine Nodier também tem dinheiro.
- A propósito, porque é que você tem tanto interesse no casamento de Bernard com ela?
- Tenho, tenho. porque Claudine é uma boa rapariga e é um assunto combinado há muito tempo.
-Um assunto combinado. São as palavras adequadas. Combinado por si, cara Jeanne.
- Mas foi você que me recomendou que fosse amável com os Nodier, não foi? "
Lucien Montigny foi peremptório:
"Pois bem, desligo-a dessa obrigação. Achei inadmissível a chantagem de Ernest Nodier. É-me indiferente, no fundo, ter ou não lugar no Senado! Prefiro ter tempo para jogar ténis e golfe. Que o fiquem a saber.
A Sr. Montigny fitou curiosamente o marido: "Agora é a minha vez de lhe perguntar: você aceitaria o casamento do seu filho com essa enfermeirazita, mesmo que, em definitivo, ela não herdasse de Richard Lagrange? "
Decerto, não foi unicamente no desejo de lançar azeite no fogo da querela que o Dr. Montigny respondeu, com o olhar de repente, sério:
"Eu não posso deixar de desejar para Bernard uma esposa como Geneviève, com ou sem fortuna. O que ela é não o deve a ninguém. "
A esposa pareceu ficar consternada: "Está a pensar no que diz? Di-lo por maldade?
Sem renunciar à sua gravidade e até com um movimento de amabilidade para com a esposa, o Dr. Montigny continuou:
"Tudo o que deve contar para nós, Jeanne, é a felicidade de Bernard. Eu acho Geneviève mais feita para ele do que Claudine. "
A mão do marido demorava-se afectuosamente no braço dela. Tocada por aquele gesto pouco frequente, Jeanne Montigny suspirou:
"Talvez tenha razão, meu amigo. O que causa o desastre de tantos casais é estarem mal irmanados.
Em casa dos Nodier, o industrial cozia a sua raiva tomando nota dos balanços. Só se interrompia de vez em quando para exclamar ruidosamente: "Estou farto de todos estes números! O mais ínfimo dos operários goza o seu domingo!
- Porque é que trabalhas tanto, papá? - interrogou friamente Claudine. -Ninguém te obriga a isso.
- Sim, tu.
- Eu não vejo muito bem para que é que isso me serve.
-O facto é que o teu noivo faz o que lhe apetece!
- O meu noivo. Nós damos-lhe esse título sem lhe pedir a opinião reconheceu ela.
- Se esse garoto voltasse com a palavra atrás.
-É sobretudo a da mãe. Nesse caso, papá, vingavas-te dele?
-Dele não, mas do pai! Podia enterrá-lo, o seu lugar de senador! "
Claudine suspirou, partilhada entre o desgosto e a cólera. Depois explodiu:
"Assim, isto é um beco sem saída! Ernest Nodier a favor ou contra Lucien Montigny. Mas Bernard e eu, que representamos nós naquilo que chamas este negócio? Peço-te, papá, não te metas mais no assunto. Para viver, Geneviève Lagrange desembaraça-se sozinha. Deixa- me portanto desembaraçar-me também sozinha no domínio do meu coração. "
No gabinete do notário, quatro pessoas: Geneviève, a Sr. Lebrun, Thérèse Puidoux e Vandenberghe, que o praticante Trébout acabava de introduzir. De todos, era Geneviève quem se sentia menos intimidada. Lembrava-se de ter ficado muito mais emocionada com o seu bacharelato.
O Dr. Montigny acolheu-os com a sua incomparável cortesia, convidou- os a tomarem lugar à volta da secretária, ele próprio se sentou, pôs os óculos. E começou:
"Como sabem, estão aqui para que possa ser firmado o documento de reconhecimento da Menina Geneviève Lagrange. Para tanto, procederemos por três etapas. A Sr. Henriette Lebrun, aqui presente, testemunhará que o Sr. Émile Vandenberghe lhe confiou, em Novembro de 1952, uma menina chamada Geneviève Lagrange, que é aquela, precisamente, que temos na nossa frente. O Sr. Vandénberghe testemunhará que a Sr. á Thérèse Puidoux lhe confiara essa criança em Julho de 1951. Finalmente, a Sr. Thérèse Puidoux testemunhará que essa criança era aquela que a Sr. Gilberte Lagrange dera à luz. Estamos de acordo? "
O homem e as duas mulheres inclinaram a cabeça. Geneviève só podia ouvir, esperar. Aquela sessão era importante para ela, mas o seu espírito viajava todavia do gabinete do Dr. Montigny até às margens do lago, muito próximas. Bernard dissera-lhe na véspera:
"Amanhã vou convidar Claudine para um encontro. O último. Quando a deixar, serei inteiramente livre. "
A Sr. Lebrun, Thérèse Puidoux e Vandenberghe assinaram sem hesitação as fórmulas preparadas pelo Dr. Montigny. O notário levantou-se para marcar a solenidade daquele minuto:
"A Menina Lagrange está portanto oficialmente reconhecida como filha legítima de Richard e de Gilberte Lagrange. Hei-de convocá-la frequentemente para a pôr ao corrente da herança do seu pai. Cabe-lhe agora de direito, com excepção do usufruto da terça. Mas voltaremos a falar nisso. "
" Depois mudou de tom para acrescentar: "Estou contente por si, Geneviève. As minhas felicitações. "
Ela apertou-lhe demoradamente a mão: "Doutor, nunca lhe agradecerei suficientemente o que fez por mim.
-Foi um prazer. Foi Bernard que a trouxe?
- Não, doutor. Ele tinha. que fazer. " Na antecâmara, ela voltou-se para ele: "Eu convidei as minhas três testemunhas para almoçar no restaurante. Ousarei pedir-lhe que venha connosco?
- Fico desolado, minha querida filha. Já estou con vidado para outro almoço, que será certamente muito menos agradável. Mas o dever.
-Tenho pena, doutor. Marquei uma mesa no Chapon Fin.
- Excelente escolha. É bom saber! - acrescentou ele com malícia-, no caso de alguém querer ir ter consigo."
A Sr. Lebrun e Vandenberghe tinham partido à frente. Desfiavam recordações de vinte anos e que pareciam rejuvenescê-los. Mas Thérèse Puidoux, essa, dava sinais inquietantes de excitação.
Geneviève perguntou-lhe se se sentia doente. Ela abanou a cabeça, parou e, de repente, pôs uma mão ressequida sobre a manga de Geneviève. Com a outra amarrotava a blusa.
"Trago aqui uma coisa que me sufoca", murmurou ela. "Trata-se da sua mamã. Vou dar-lhe um desgosto. Vai querer-me mal por isso, mas, compreende, tenho de me aliviar, sem o que rebentaria. Pronto. Tenho de lhe dizer. "
Claudine não tinha fome. Em vez de almoçar, preferira um passeio pelo lago no barco de Bernard Em fato de banho, um minúsculo duas-peças, estava muito atraente. Bernard sublinhou-o e ela fingiu espantar-se:
"Isso é a expressão dum pesar ou dum remorso?
- As duas coisas, receio. Escuta, Claudine. " Ela inclinou-se para trás, com os olhos fechados: "Quando um homem pede a uma mulher que o escute, é sempre porque tem intenção de lhe dizer coisas tristes para ela. Na outra noite, já tentaste. Eu disse que não. Desde então, não páras de girar em volta dessa coisa que me vai fazer sofrer. Demora mais um pouco, sim? Deixa-me como estou, entre o céu e a água. Muito em breve tocarei terra. Domina durante uma curta hora a tua sede de situações claras. - pediu ela.
- Como quiseres, Claudine. "
Ela abriu os olhos, olhou para o céu, para as montanhas, para o sulco de espuma do barco. Havia outras velas no lago, grandes pássaros brancos, vermelhos ou ocres, de asas graciosamente abertas.
"Fala-me da tua vida em áfrica. Gostas dela?
- Apaixona-me.
-Portanto, vais voltar para lá. Sozinho?
- Claudine!
-Perdoa-me. Eu propus um jogo e sou eu a infringir-lhe as regras. Deve ser dura a vida desses países, para uma mulher, não?
-Isso depende da mulher, Claudine.
- É exacto. É preciso que ela seja corajosa, criada com dureza, e sobretudo que ame com bastante intensidade para sacrificar a sua vida anterior. Nota, essa vida anterior, às vezes, julgamos que não poderemos passar sem ela. Mas, de repente, verificamos que a atiraríamos de boa vontade ao ar se alguém que amamos no-lo pedisse... Diz-me ainda: a América, na verdade, não te interessa?
-De modo nenhum. "
Ela endireitou-se. A sua expressão mudara. A amorosa vencida reencontrava a soberba duma desportiva que perdeu um jogo, mas que nunca perderá a partida.
"Estou desolada, Bernard, mas não te acompanharei a África. "
Ele abriu a boca. Ela não lhe deu tempo de falar: ". Primeiro, não quero ir viver tão longe dos meus pais, sobretudo do meu pai. Não atrai simpatias, mas gosto muito dele. Farei viagens, mas de curta duração, a países civilizados. Que queres, eu cá não tenho gosto do sacrifício. Nunca serei senão uma menina mimada. Mais vale sabê-lo. Voltamos, agora? "
Bernard considerava-a com olhos a trasbordar de reconhecimento.
"Tu és uma rapariga catita, Claudine. Agradeço-te. Gosto muito de ti, e admiro-te, podes acreditá-lo...
Os lábios carnudos esticaram- se num sorriso cheio de amargura e de ironia:
"Que mais há? É excessivo! Eu ter-me-ia contentado com menos. Do que tu precisas, meu pequeno Bernard, é duma mulher que possa ajudar- te na tua profissão, a quem a solidão a dois não meta medo. Olha, por exemplo: Geneviève Lagrange não seria uma boa ideia? "
O barco aproximava-se da margem. Claudine enfiou rapidamente o vestido de praia e saltou em terra.
"Adeus, Bernard. Sem rancor? "
Durante muito tempo, ele reteve as mãos dela: "Sem rancor. Adeus, Claudine! Repito-te que és uma rapariga catita. Mereces uma grande felicidade, que eu não teria sabido dar-te. "
Cada um tomou o seu carro. Com a mão fizeram o gesto de adeus um ao outro e afastaram-se em direcções opostas.
Bernard correu a casa. O pai acabava de voltar depois de um breve almoço de negócios. Sem tergiversar, perguntou:
"Papá, viste Geneviève, esta manhã? Voltou para casa? Para o Serviço de Saúde? Onde pensas que eu poderia encontrá-la, neste instante?
- Ela levou as testemunhas a almoçar ao Chapon Fin. Suponho que ainda não devem estar na sobremesa.
-Correrei para lá. Papá, mamã, como sou feliz! Claudine e eu desligámo-nos!
Jeanne estava preparada para aquele rompimento. Estendeu a face ao beijo do filho:
"Se achas que é melhor para ti, meu pequeno, tu és o único juiz. Até logo! "
Ele correu para o restaurante, onde Vandenberghe, totalmente restabelecido, discorria por quatro, felizmente! Lívida, Geneviève respondia-lhe por vezes, sempre com monossílabos. Thérèse parecia paralisada e a Sr. Lebrun interrogava ansiosamente com o olhar o rosto da afilhada.
Bernard saltou para junto deles como um diabo a sair duma caixa.
"Geneviève! Venha até ao jardim. Um instante, apenas! Espero que os seus amigos me desculparão. "
Não esperou sequer o estar fora da sala para exclamar:
"Terminado, Geneviève. Estou livre! "
No jardim, envolveu-a com os seus enormes braços, mas ela lutava por se libertar e ele notou-lhe o aspecto transtornado.
"Que tem? Geneviève, minha querida... "
Ela só precisava daquela palavra para dar livre curso aos soluços que lhe obstruíam a garganta desde o seu aparte com Thérèse Puidoux. Explicar-se, todavia, dizer tudo a Bernard, não, não podia. Ainda não.
Sem lhe adivinhar a natureza, ele respeitou o tormento secreto:
"Trata-se de nós dois? - perguntou ternamente.
-Não, não é de nós dois, Bernard.
- Então, perdoou-me?
- Sim, Bernard.
-E quer ser minha mulher?
- Sim, Bernard.
-Nesse caso, não chore mais, querida. "
Ele sorriu para a forçar a sorrir.
"Oh! eu creio saber o que a preocupa. Pensa que estou a dirigir o meu pedido a uma rica herdeira?
Mas não, Geneviève querida, é à minha enfermeira do Serviço de Saúde de Genebra! Só a ela... "
Longe de se descontrair, ela gemeu:
"Suplico-lhe, não me fale desse dinheiro!
- Não compreendo. Que importância pode ele ter entre nós? Eu não veria qualquer inconveniente em que você fizesse dom dele a uma obra, Geneviève.
Assim, nunca mais se falaria nisso. E você seguir-me-ia a África, sem complexos, com o coração leve. "
Dum segundo para o outro, ela acalmou:
"Sim, Bernard, vou segui-lo a África. De momento vou limpar os olhos e ter com os outros. "
Ele perguntou ainda:
"Quer-me à sua mesa? Ou só nos vemos daqui a bocado, ou esta noite?
- Não antes de amanhã, no casamento de Monique. Daqui até lá, faça-me o favor de me deixar
recolher-me, de não me fazer perguntas. "
Perplexo, mas radiante, Bernard afirmou:
"Não compreendo a sua angústia, quando este é para mim um dia tão importante... Mas comprometo-me a fazer-lhe até ao fim da minha existência todos os favores que desejar. Até amanhã, Geneviève.
Até amanhã, meu amor. "
Depois foi-se embora, penalizado, sem atravessar o restaurante.
Geneviève assoou-se, empoou o rosto e voltou à mesa, onde se servia o café. Vandenberghe virou para ela o rosto iluminado:
"Que é que ele te queria, esse belo rapaz?
-Pedir-me em casamento.
- Tu aceitaste, espero?
-Sim, Sr. Vandenberghe.
-Então, ri um pouco, vá? Tu eras mais engraçada quando eras pequena. Foi a tua Mamie que te tornou assim tão complicada? Essa boa Henriette, a propósito, convidou-me para uma estada em casa dela como quem diria, de férias. Eu estou de acordo. Sinto-me rejuvenescido de vinte anos desde que experimentei viajar e levar vida airada! Entre nós, esta casa de reformados de Savigny é sinistra. Só velhos! Não é ainda para a minha idade. "
Thérèse, essa, estava com pressa de deixar Annecy, de voltar a Lamotte-Beuvron. Eles acompanharam-na à estação. Quando Geneviève a beijou, ela virou a cabeça. As suas faces secas tinham-se ruborizado.
De regresso a Saint-Julien, a Sr. Lebrun apressou-se a perguntar à afilhada:
"Que é que há, Geneviève? Que se passou? Berrnard? Não, tu mudaste de cara entre o cartório e o
restaurante e Bernard não estava lá. "
Geneviève hesitou um minuto. Era uma dilaceração para ela destruir, não apenas no seu próprio coração, mas aos olhos da sua segunda mãe, a imagem ideal de Gilberte Lagrange. Todavia, não se pode conservar eternamente enterrado em nós próprios um tão doloroso segredo. Não! não se podia, tal como dissera Thérèse. Thérèse... porque é que essa verdade pesava tanto na sua consciência? Quem a teria suposto tão escrupulosa em matéria de verdade?
"Mamie", começou ela, "não, não é Bernard, com efeito. Ele ama-me. Pediu-me na verdade em casamento. É inteiramente desinteressado. Mas Thérèse disse-me que eu não sou... que a minha mãe, enfim, que Richard Lagrange não é o meu pai. Quando ele partiu para a Coreia, eles já estavam separados. Foi por isso que ela foi esconder-se em casa de Thérèse Puidoux. Não queria que se soubesse do seu estado.
O reflexo da Sr. Lebrun foi o da incredulidade, da recusa:
Tu não vais acreditar numa coisa semelhante, em contradição formal com tudo o que se sabe da tue mãe. As afirmações do Sr. Rousseau, por outro lado... "
Geneviève continuava oprimida.
"Porque é que Thérèse havia de mentir?
- Eu não vejo, mas não se pode saber... "
Não tiveram possibilidade de continuar. Monique vinha a entrar de repente, acompanhada daquele que, no dia seguinte, seria o seu marido. Já não havia tempo de terminar a conversa sobre o caso Lagrange.
Na manhã do casamento, a Sr. Lebrun, ajudada pela tia de Monique, certificou-se da perfeição da vaporosa toilette branca, ajustou o véu, depois deixou a noiva na companhia da sua única parente.
Geneviève pusera já o seu vestido turquesa de dama de honor. À madrinha, que a contemplava, dedicou um lindo sorriso corajoso.
"Estás encantadora! - exclamou a Sr. Lebrun. Ele tem sorte, o teu Bernard. Como é que dormiste?
Não muito mal, mas sobretudo pensei.
-Eu também, minha filha! Para concluir que a história dessa Thérèse é perfeitamente inverosímil. "
Geneviève abanou a sua cabeça loura:
"Eu não sou da tua opinião. Isso explicaria muitas coisas: toda essa sombra que rodeia o meu nascimento.
Seja como for, não me cabe julgar as acções da minha
mãe, duma pobre morta. Mas lamento que Thérèse tenha achado bem declarar-me no registo civil como filha legítima de Richard Lagrange... Isso, sim!
- De qualquer maneira, a lei é a lei. Tu não nascias fora do casamento. Quanto a Thérèse, olho para ela como uma espécie de bruxa! Traz o azar consigo", afirmou a Sr. Lebrun.
Geneviève teve um luminoso sorriso:
"É o passado, Mamie! O meu futuro é Bernard.
- Vais dizer-Lhe?
-Sim, mas mais tarde. Desçamos. Tenho a impressão de que há muita gente lá em baixo. "
Era, com efeito, de casa da Sr. Lebrun que o pequeno cortejo, composto por Monique e a tia, por Robert e sua família, por alguns amigos íntimos, entre os quais Bernard, devia dirigir-se ao registo civil e à igreja. à hora marcada, agruparam-se em vários carros. Bernard fez entrar Geneviève no seu. Antes de o pôr em andamento, beijou-a demoradamente e informou-se:
"Querida, não mudou de opinião, desde ontem? Eu também não. Reparo que as marcas das suas lágrimas se apagaram. Está mais adorável do que nunca. Que é que tinha? Eu dei voltas ao miolo durante a noite.
-Eu hei-de dizer-lhe tudo, Bernard! Não quero ter segredos para si. Mas tenho de tomar uma decisão. Sozinha. Será a última que vou tomar dessa maneira. "
As duas cerimónias, civil e religiosa, decorreram sem incidentes. O júbilo da noiva alegrava os olhares e, se Robert exteriorizava menos o seu, não era por isso menos feliz.
Seguiu-se um almoço, no melhor hotel de Saint-Julien, prolongado até à hora em que se abriu o baile. Enquanto velhos e novos se animavam, o Dr. Terrier aproximou-se de Bernard e de Geneviève:
"Perdoem-me se sou indiscreto, mas certos rumores muito agradáveis chegaram até mim. Quando será a vossa vez? "
Bernard corou ligeiramente:
"Queira desculpar-me, caro e eminente confrade.
Desejava ter sido o primeiro a dar-lhe essa novidade, mas, visto que me faz a pergunta, responder-lhe-ei com igual simplicidade: muito em breve. O mais cedo possível... "
O casamento fora no sábado. Dois dias mais tarde, Henri Castel encontrou no seu escritório uma Fabienne crispada, de muito mau humor.
"Isto não pode durar mais - começou ela. - Estou farta! Esperei por si durante todo o dia de ontem. Que belo domingo! E esta manhã, naturalmente, vai anunciar-me que vai buscar essa pessoa para a levar ao notário. Ela não pode então deslocar-se sozinha? Não a julgava tão velha!
- Fabienne! - gritou Henri. Já lhe disse.
-Sim, bem sei. Que não tenho razão para ser ciumenta. Pois bem, é mais forte do que eu; apesar de tudo, sou-o. "
Ele tentou contemporizar:
"Suplico-lhe! Já tenho bastantes problemas neste momento. Se você me complicar mais a existência. "
Fabienne não tinha vontade de se calar. Havia perto de quarenta e oito horas que ruminava as suas queixas. Por isso, continuou:
"Eu conheço uma parte dos seus problemas. Os outros, calculo-os e metem-me medo. Então, digo-o hoje, lucidamente, friamente: esqueçamos Viviane e essa herança, que, aliás, já não é dela. Vamo-nos embora, os dois, e casemo-nos depressa. "
Ela mostrava-se lúcida, por certo, mas a frieza estava para além das suas possibilidades. Dera guarida, muito realmente, havia seis meses, ao encanto de Henri. Ele acalentara-a com demasiadas promessas.
A voz de Castel suavizou-se. Pôs no ombro de Fabienne uma mão conciliadora:
" Meu amor, eu bem queria esquecer tudo. Isso não me é possível. Partir, também não, ai! Ainda não. Acredite em mim. Prometo- lhe que, dentro de algum tempo. "
Mas Fabienne estava decidida:
"Não, Henri. Jurei a mim própria não mais me contentar com vagos projectos para data incerta. Tem de escolher entre ela e mim, imediatamente. Pelo menos, dê-me uma garantia. Se sair deste escritório para ir ter com ela, juro que já cá não estarei à hora a que voltar. E as minhas promessas, cumpro-as! "
Ele teve um momento de confusão, esboçou mesmo um gesto em direcção ao telefone. Depois deixou cair a mão:
"Não posso, Fabienne.
- Como quiser. Adeus, Henri "
Estava já a abrir um armário, a reunir metodicamente os seus objectos pessoais. Castel consultou o relógio, hesitou ainda um momento, depois tirou à pressa um dossier dum classificador e saiu. Escolhera Viviane.
Uns instantes mais tarde, batia-lhe à porta.
"Cá está você, meu caro Henri", disse-lhe ela com indolência, dando-lhe a mão a beijar. "Como é pontual! Adiantado mesmo... "
Quase solene, ele anunciava-lhe:
"Antes de ir ao notário, queria ter consigo uma conversa séria. "
Como se o lamentasse, Viviane protestou:
"Nós nunca temos conversas fúteis!
- Esta é particular... Viviane, a reunião na qual vamos participar dentro de minutos no cartório do Dr. Montigny é contrária às nossas esperanças. Estou desolado por si. Pela minha parte, sinto-me quase alegre. Aquele dinheiro podia impor entre você e eu uma distância intransponível.
-Oh! Henri, como pode pensar isso? A ideia de que você seja interesseiro nunca me passou pela cabeça.
- Teria passado por outras cabeças... Em resumo, a questão já não se põe e é sem pensamentos reservados que posso perguntar-lhe, hoje, que você está arruinada: Viviane, quer ser minha mulher?
-Já lhe respondi, Henri. "
Castel sentíu prazer em insistir:
"Preciso duma certeza. "
Ela encostou-se a ele, muito feminina, muito gata, como uma jovem actriz muito enamorada no terceiro acto, próximo do desfecho.
Algures dentro de casa, um relógio bateu três quartos de hora depois das dez. Viviane estava predisposta para uma grande cena de ternura. Henri só lhe deu um beijo na fonte, junto à raiz dos cabelos negros:
"Não nos atrasemos, Viviane. Temos toda a vida à nossa frente para dizermos e provarmos o nosso amor um pelo outro. "
Durante o caminho, ele não descerrou os lábios. Fabienne devia estar a ultimar os preparativos de retirada.
Quando Viviane Lagrange e Henri Castel chegaram, Geneviève encontrava-se já no gabinete do notário. O Dr. Montigny levantou-se:
"Os meus respeitos, cara senhora. Como vai, caro senhor? Vamos tentar em conjunto liquidar muito rapidamente este assunto. Resolvido, está-o, em suma, pela vontade do Sr. Lagrange, visto que a filha dele,
aqui presente, está formalmente reconhecida como sua legítima herdeira. Mas se tem alguma objecção a apresentar, cara senhora, tem de o fazer agora.
-Não tenho qualquer objecção a formular", declarou Viviane com dignidade. "Sempre disse que respeitaria a vontade do meu marido. "
Nesse momento, como uma rapariguinha nos bancos da escola primária, Geneviève levantou o dedo:
"Eu, doutor, tenho uma objecção a formular! Desejo renunciar à totalidade dos meus direitos no que
respeita à herança do Sr. Richard Lagrange", anunciou ela com uma voz inexpressiva.
Onotário deixou de respirar. Viviane esbugalhou
uns olhos espantados, enquanto o clarão de triunfo que cintilou no olhar de Castel se extinguia instantaneamente. Ele tomou o ar mais surpreendido de todos.
E pela primeira vez, talvez, no decurso da sua longa carreira, o Dr. Montigny gaguejou:
"A totalidade... Menina... Permita-me que me espante... Parecia tão desejosa de obter as provas da sua filiação... que...
-E estava-o, doutor", disse ela com voz firme. "Era isso, unicamente isso, que contava para mim. Graças a si, e continuo a agradecer-lho, conseguiu-se. Quanto ao resto, quereria mal a mim mesma se privasse a Sr. Lagrange de bens que lhe pertencem de direito. Desejo portanto que redija todos os documentos necessários. De momento, só lhe peço licença para me retirar. Cumprimentou os três e caminhou para a porta. Viviane precipitou- se para ela.
"Geneviève, querida filha! Eu não posso aceitar...
-Sim, Viviane, aceite! Repito-lhe que é normal. " Assim que ela ficou de costas, Castel renunciou à sua expressão de espanto:
"Quanto a mim, doutor, peço-lhe que se apresse. Eu gostaria o mais rapidamente possível de prestar as minhas contas à Sr. á Lagrange. "
As pálpebras do notário franziram-se. Os seus olhos não eram mais do que duas fendas brilhantes, de olhar impenetrável:
"Esse dinheiro, Sr. Castel, parece queimar-lhe os dedos. E não só a si. Imagine que eu não desejo senão uma coisa, também: ver essa herança liquidada.
- Não caio em mim! - afirmava Viviane. - Asseguro-lhe que não caio em mim.
-Há-de habituar-se, minha senhora. "
Tendo ficado só, após a saída dos seus visitantes, embora a manhã não estivesse ainda muito avançada, o notário renunciou ao exame doutro dossier urgente. Pensativo, acendeu um cigarro e saiu para o jardim.
A esposa estava a tratar das roseiras. Levantou a cabeça:
"Você, cá fora, a esta hora? Está doente?
-Um pouco desanimado, é tudo. Os Lagrange, Castel e companhia acabam de sair do meu gabinete. Geneviève renunciou à herança. Jeanne Montigny ficou muda durante vários segundos.
"Não é possível! A que propósito? - inquiriu ela finalmente.
- Uma patetice! Pretende não querer privar a madrasta duma fortuna à qual ela tem direito. - Você chama a isso uma patetice! Decididamente,
essa pequena tem muita classe. Bernard não esperara por ela?
-Tinha uma consulta em Genebra. "
Os seus olhares encontraram-se por cima das últi mas rosas da estação. Jeanne Montigny sorriu ao marido, depois encorajou-se até ao riso:
"Você vai dar gritos, mas eu estou a ler no seu pensamento, Lucien.
- Vamos lá!
-Sim! Você diz a si próprio que, estando Geneviève sem fortuna, eu estou menos disposta que nunca a querê-la como nora.
- Primeiramente, eu não grito. Em segundo lugar, ficaria encantado se não tivesse razão. Vá! " Com uma lentidão não habitual, Jeanne Montigny replicou:
"Eu não estava contra Geneviève, mas estava a favor de Claudine. Visto que esse casamento não deve realizar-se, faço a promessa solene de me mostrar
para com a futura mulher de meu filho, infinitamente mais amável do que fui até agora.
-Isso não será difícil! Mas não tenhamos pressa.
- Ele gosta dela, isso é bem visível. Eu começo a pensar que ela o merece. Se toda a gente está satisfeita, porque é que eu não havia de estar? - acabou ela por concluir.
-É com certeza você que fala assim, Jeanne? "
Ela olhou para o marido como não o fizera havia meses. ou anos, antes de lhe confiar:
"Talvez que eu tenha mudado muito. Talvez que você me conheça mal. Por vezes, conhecemo-nos mal a nós próprios. Talvez seja a convivência diária com estas rosas que me leva a enternecer-me perante tudo o que há de belo na vida. E em primeiro lugar, Lucien, o amor. Você não troça de mim, Lucien? Foi sem sombra de ironia que ele se inclinou sobre a mão dela que segurava a tesoura e só pronunciou duas palavras:
" Obrigado, Jeanne. "
Ao sair do cartório do notário, Geneviève dirigira-se directamente a Genebra, onde encontrou Bernard em plena consulta. Não esperou que ele a interrogasse para lhe dar a notícia entre dois exames de crianças.
"Acabo de renunciar à herança, a favor de Viviane Lagrange. "
Bernard não ficou com ar consternado, mas simplesmente surpreendido.
"Querida, você sabe a que ponto essa fortuna me era indiferente. É Geneviève que amo e não a herança. Mas porquê essa decisão? "
A vóz do Dr. Terrier ressoou de repente no intercomunicador:
"Geneviève! Venha imediatamente, Geneviève! A substituta de Monique sente-se completamente perdida. Preciso da sua ajuda. Montigny, vou roubar-lha por um momento. Não me mate! Em troca, mando-Lhe Isabelle. "
Não havia muita gente nesse dia, no Serviço de Saúde. E era pequena a distância entre Genebra e Saint-Julien. Assim que viu uma possibilidade, Bernard dirigiu-se a casa da Sr. Lebrun. Um pouco aturdida, esta viu-o entrar sozinho na sua loja. Ficou preocupada com isso:
"Geneviève não está consigo? E também não está aqui. Não há novidades, espero?
-Não há novidades, mas tenho umas palavras a dizer-Lhe, sem testemunhas, quer dizer, muito rapidamente. Geneviève renunciou à sua herança, não é verdade?
-Eu sei. Comunicou-mo esta manhã.
-O dinheiro, estou-me nas tintas para ele pessoalmente, mas ela falava em consagrá-lo à fundação dum hospital para crianças, em África. E, para que ela abandone esse projecto deve ter tido um motivo grave. Não lhe peço que traia um segredo, mas que me indique como posso ajudá-la. Suplico-lhe. Sinto- a tão transtornada! "
A Sr. Lebrun pensava. Ele tinha razão. Só ele era capaz de ajudar Geneviève. Respondeu com uma voz que demonstrava a sua grande afeição:
"Contente-se com amá-la, Bernard. Geneviève tem momentos difíceis a passar, mas, graças a si, é e será muito feliz. Oh! meu Deus, digo-lhe isso quando, em rigor da verdade, oficialmente ainda nada sei", concluiu ela um pouco confusa.
Ele sorriu, abriu-lhe os braços, beijou-a: "É verdade, cara Sr. Lebrun, cara Mamie, que não Lhe pedi oficialmente a mão de Geneviève. Concede-ma?
- De boa vontade, Bernard. Já gosto muito de si, visto que a minha pequenina o ama.
- E não me vai querer muito mal por a levar para longe de si?
-Só a felicidade dela é que conta.
-Obrigado, Mamie, cem vezes obrigado! Vou ter com ela num ápice.
Partiu, alegre como rapazote que ainda era, e que seria, sem dúvida, em certos momentos durante a vida
inteira. A Sr. Lebrun seguiu com os olhos o carro que arrancava, depois pegou no telefone.
Com muita rapidez, ligou com Paris.
" do eseritório do Sr. Adrien Le Tort? É o próprio? Bom dia, caro senhor. Aqui a Sr. Lebrun, a madrinha de Geneviève. Tenho necessidade urgente de falar consigo e é-me difícil ir a Paris. Pode vir a Genebra? Não, impossível explicar-me ao telefone.
Amanhã às onze horas, no aeroporto? Entendido, espero-o lá.
No dia seguinte, a Sr. Lebrun encarregou Vandenberghe, instalado como um paxá no quarto deixado livre por Monique, de desculpar-lhe a ausência junto das suas clientes e tomou o autocarro para Genebra.
Após a chegada do detective, sentados ambos no bar do aeroporto, ela contou-lhe por miúdos a revelação de Thérèse e a reacção de Geneviève.
"Escrupulosa como é", concluiu ela, "a pequena disse para consigo que ficando com o dinheiro cometia uma acção de escroque Se for verdade, podemos compreendê-la. Mas será verdade? Essa Thérèse Puidoux sempre me pareceu uma desequilibrada... "
Le Tort reflectiu por bastante tempo.
"A menos - replicou ele por fim - que ela seja mais astuta do que a senhora e eu. A ela não é o desinteresse que a aflige... Confesso-lhe que passaria muito bem sem tornar a ver essa velha bruxa. Mas, contudo, como é preciso...
-Vai? Obrigada! Mas não fale nisso a Geneviève. Sou eu quem pagará as despesas", propôs ela espon taneamente.
O detective já estava a levantar-se. E assegurou- lhe:
"Não se preocupe com isso, Sr. Lebrun! Nas minhas investigações pratico o "tudo compreendido" e ainda não mandei a minha nota de honorários ao Dr. Montigny. Tenho a impressão de que voltaremos a ver-nos em breve! "
Esperar, esperar sempre.
Uma vez mais, a Sr. Lebrun esperava notícias de Adrien Le Tort. Mas isso pesava-lhe menos do que no começo da investigação, visto que, de qualquer maneira, Geneviève era feliz. No sábado seguinte, Bernard levá-la-ia a escolher o anel ao melhor joalheiro de Annecy. À noite, jantariam em casa dos Montigny. Pequena festa de família muito íntima, enquanto não chegava a do casamento, que o seria igualmente. Nem Geneviève nem Bernard estavam interessados no ajuntamento de convidados indiferentes, sarcásticos ou mesmo hostis.
Era um belo Outono que começava, propício aos passeios. Cansados dos restaurantes, os dois apaixonados piquenicaram um dia à beira do lago. Enquanto bebiam o café, contido numa garrafa-termo, Bernard olhou para Geneviève nos olhos. E, sem preâmbulo, anunciou:
"Recebi uma carta do Gabão. Tardei em falar-lhe nisso, porque já não sabia, tinha medo. Esperam por nós lá. Dentro de dois meses, no máximo. "
O rosto de Geneviève iluminou-se:
"Nós? Eles também me querem? Como me sinto feliz!
-Diga antes que a aceitam com um entusiasmo delirante! Os voluntários são muito raros.
- De que tinha medo, então?
- Da dureza daquela vida, para si.
-Como não havia de a achar magnífica, desde que você vai estar comigo? "
Bernard insistiu:
"Não vai ter saudades das suas montanhas, do seu ar fresco, dos seus pinheiros, de Mamie, de Monique?
-Primeiro, tê-lo-ei a si! E, depois, terei outras montanhas, outras crianças para salvar. Que sejam negras ou brancas, amo-as a todas. E um dia teremos as nossas. "
Bernard aproximou-se de Geneviève:
" Minha querida, minha queridinha. Amo-a. Como a amo! Venha já para os meus braços. "
Ela aconchegou-se nos braços dele, ofereceu-lhe a boca para um demorado beijo. Após isso, sonhou, com o olhar distante e em voz alta:
"Mamie, Monique... A Mamie vai-se aborrecer, sem dúvida, mas hei-de escrever-lhe muitas vezes, cartas intermináveis. Ela é tão boa que não cessa de me repetir: Não te preocupes senão com a tua felicidade. Agora é a tua vez. Doravante, eu viverei através de ti, de Bernard, do vosso lar, dos vossos filhos. Monique? Eu tinha necessidade dela como ela tinha necessidade de mim. Éramos muito diferentes uma da outra e desta forma completávamo-nos. Mas agora ela tem Robert e eu tenho-o a si. É assim quando se ama, Bernard. Parece que a primeira juventude, as afeições, os arrebatamentos do coração, tudo isso não era mais do que um prelúdio doutra coisa que se esperava desde sempre. Eu esperava por si. Você está aqui. A nossa vida em comum imagino-a sem grande receio... "
Ele agarrou-lhe no queixo para a obrigar, de novo, a virar-se para ele:
"Talvez não lhe tenha dito até que ponto ela será rude, essa vida. É uma luta perpétua contra a solidão, o desânimo, a incompreensão. E por vezes, sentimo-nos tomados de pânico. Geneviève, todos passámos por isso. Mesmo os missionários, mesmo as freiras.
-Você continuou e volta para lá. Se eu fraquejar, você há-de comunicar-me a sua força. "
Apertou-a outra vez nos braços, tão intensamente que não eram senão um único ser, vibrando de amor, animado da fé que derruba montanhas. Um segredo entre eles tornava-se sacrilégio. Com o olhar mergulhado no dele, Geneviève confessou subitamente:
"Bernard. a minha mãe conheceu outro homem, na sua curta existência. Vivia separada de Richard Lagrange, antes de ele partir para a Coreia. Eu não sou filha de Richard Lagrange.
- Que me está a dizer? "
Ela colocou um dedo sobre os lábios do noivo.
"Não a julgue. Peço-lhe. Você teve uma vida protegida. Eu também, graças à Mamie. Quem sabe o que teria feito se tivesse sido uma pobre rapariga como ela? Seria feliz com o marido? O que os outros chamavam a sua felicidade escondia talvez um grande desgosto? Nunca o saberemos, Bernard. Nunca.
-E foi por isso que você renunciou à herança? Eu creio que teria agido da mesma maneira. Segundo o pouco que soube da sua mãe, aquilo que acaba de me dizer espanta-me, mas nada nos impedirá, a si e a mim, de respeitar a sua memória. "
Beijou-a uma vez mais, com o mesmo ardor.
"Agora, minha querida, voltemos ao Serviço de Saúde. Tenho de comunicar a Terrier a nossa partida muito próxima. "
Terrier recebeu-os juntos e Bernard pediu-lhe que servisse de testemunha a Geneviève por ocasião do seu casamento, que seria celebrado muito rapidamente.
"Porque, com a sua licença, eu queria levar Geneviève a viajar: a Itália, Veneza, Florença. O itinerário clássico", precisou ele alegremente.
Terrier fazia que sim com a cabeça:
"Uma viagem pequena antes da grande? Perfeito, perfeito. Apesar de tudo, meu caro Montigny, você é cruel para comigo. Não só me deixa, mas priva-me da melhor das minhas enfermeiras. Você, eu bem sabia que não era entre nós senão um colaborador passageiro, mas Geneviève tinha um contrato que a liga ainda ao Serviço de Saúde por dois anos. Que é que eu fiz dele? Olhe, ei-lo", concluiu exibindo-o.
Os rostos dos jovens ensombraram-se. Geneviève esquecera-o completamente. Agora o papel expunha-se-lhe diante dos olhos, devidamente assinado com o seu nome.
Terrier deixou-os na expectativa durante uns segundos, depois desatou a rir:
"Não se aflijam, meus filhos! Este contrato, vou rasgá-lo. Vocês estão muito contentes com a ideia de me deixarem. E depois, estou tão certo de que vão fazer um bom trabalho por lá. Cada vez que vierem à Europa, pensem no vosso velho amigo. Monique e Robert voltaram em breve da sua viagem de núpcias. Monique admirou demoradamente o diamante que a amiga trazia no dedo anelar esquerdo e ficou encantada por saber que a Sr. Montigny "adorava" a futura nora, "adorava" a Sr. Lebrun, "adorava" tudo o que dizia respeito ao casamento do filho e achava mesmo antecipadamente os seus futuros netos "adoráveis". Já se tinha fixado a data da cerimónia.
"Antes desse grande dia - lembrara o notáriotemos outro encontro. Continua decidida, Geneviève, a assinar esse acto de renúncia?
- Continuo, doutor.
- Como tem razão! - suspirara Jeanne Montigny. - A fortuna é um fardo que. "
A isso replicara a Sr. Lebrun com muita justeza: "Oh! sabe, os fardos, há-os mais ou menos pesados... "
Parecia alegre, a Sr. Lebrun, não só porque Geneviève ia casar segundo o coração, mas porque Adrien Le Tort lhe telefonara:
"Lá estarei. "
Geneviève não sabia de nada quando chegou ao cartório, três minutos depois de Viviane e Castel.
"Leia você mesma este documento, Geneviève, disse o notário estendendo-lhe a fórmula preparada. "Assinará em seguida a sua renúncia e a Sr. Lagrange a sua aceitação. "
Geneviève pegava no documento com uma mão que não tremia, quando ruídos desacostumados se fizeram ouvir atrás da porta do escritório, os duma luta.
A porta foi empurrada com violência e Adrien Le Tort apareceu, com a gravata um pouco à banda, uma mecha de cabelos e cair-lhe na testa:
"Desculpe-me, doutor, esta intromissão, mas um dos seus praticantes pretendia impedir-me a entrada no seu gabinete - declarou ele.
- Eu ordenara que não nos incomodassem - disse o notário, descontente, não sabendo a quem dar razão.
-Mas é indispensável que o incomode! Vai compreender porquê, doutor, e neste mesmo instante."
Atrás dele via-se a silhueta pálida de Thérèse Puidoux, seguida de perto por um homem que Le Tort se apressou a apresentar:
"Comissário Benoit Dutour, de Orleães. " Estupefactos, todos escutaram o que o detective tinha para lhes dizer.
Voltara a falar com Thérèse em Lamotte-Beuvron, em companhia do amigo.
"O comissário", dissera-Lhe ele, "tinha muito desejo de a conhecer. As suas falhas de memória e os seus escrúpulos súbitos causaram-lhe muito interesse. "
Imediatamente ela se voltara para ele:
"Que é que isso significa?
- Que você mentiu mais duma vez, Thérèse. Você nunca foi para a Bélgica, mas, sobretudo, Gilberte Lagrange nunca lhe fez a confissão que você transmitiu à filha. O Sr. Rousseau é categórico: não houve a mínima nuvem no entendimento e na felicidade de Gilberte e de Richard, até à partida deste último para a Coreia. Gilberte era séria e adorava o marido. Entre essa partida e o nascimento de Geneviève passaram exactamente oito meses. A sua história é portanto falsa, inteiramente arquitectada para servir uma má causa. "
A velha ainda tentara negar.
"Como é que sabe isso?
-Ora aí está! Admite que a contou!
-Eu não admito absolutamente nada. "
O comissário tomara a palavra:
"Você não poderá por muito tempo evitar fazê-lo. Nós estabeleceremos a prova das visitas que recebeu. Tem de justificar a origem das somas importantes que depositou num banco. Se chegarmos a isso, é que, primeiro, você terá sido inculpada de falso testemunho, de cumplicidade em desvio de herança, além de alguns antigos delitos que virão à superfície. Não valerá mais explicar-nos tudo agora? "
Thérèse baixara a cabeça. A sua boca de lábios finos contraíra-se:
"Sim, é verdade. Confesso. Menti. "
No cartório do notário, ela repetia as mesmas palavras, em presença de Geneviève, de Viviane e de Castel, cujo rosto empalidecia.
A jovem balbuciou:
"Mas porquê, Thérèse? Porquê?
-Faria melhor em perguntar para quem, menina - disse Le Tort. Vamos, Thérèse, por conta de quem executou você esse espantoso trabalho? "
Sem responder, com um breve movimento do queixo, a velha indicou Castel. Ele pôs-se de pé e escarneceu:
"Que engraçado! Astuciosamente inventado! Você desilude-me, Le Tort. Então não se apercebeu de que esta mulher é tonta? "
Thérèse aceitava ser tratada de tudo, mas não de tonta. Por isso, empertigou-se:
"Mas que lindas maneiras! Se eu fosse aquilo que o senhor pretende, ter-me-ia dado tanto dinheiro? Até porque é verdade que ele está no banco! Antes disso eu nunca tivera uma conta aberta. Pagavam-me em dinheiro. Mas quantias como estas não se podem guardar em casa. Nos tempos que correm há tantos ladrões. "
Castel objectou:
"Não lhe assinei cheque, que saiba! Tanto melhor para si, se tem dinheiro para colocar, mas nada prova que ele provenha de mim! Lembro- lhe que a sua palavra foi muitas vezes desmentida, enquanto a minha...
- O senhor é prudente, Castel - interrompeu o detective. -Prudente e hábil. Infelizmente para si, tem cúmplices. Uma corrente só é sólida pela resistência do seu elo mais fraco. Esse elo acaba de quebrar: chama-se Trébout. "
O comissário caminhou para a porta. Dois polícias seguravam cada um por um ombro o praticante com cara de rato. Benoit Dutour empurrou-o à sua frente, até ao meio da sala:
"Ele tentou fugir, mas a casa estava guardada e não pôde ir muito longe Só até ao portão do jardim. Trébout, você nega ter espiado o Dr. Montigny por conta do Sr. Castel, em troca de remuneração?
- Não nego - gemeu o praticante.
-Reconhece ter servido de emissário ao Sr. Castel junto da Sr. Puidoux? Sr. Puidoux, isto é exacto?
- É tão certo como dois e dois serem quatro. "
Adrien Le Tort desafiou Castel com o olhar: "A sua obstinação, Castel, merecia melhores resultados. Foi você que ensinou a Thérèse essa história a
propósito de Gilberte. Você sabia poder contar com a nobreza de alma da filha. "
Voltou-se desdenhosamente para Trébout, completamente abatido:
"Você sabe muito mal escutar às portas, Sr. Tré bout! Isso deu-nos a ideia de inquirir sobre o seu passado. O senhor saiu de Paris, há cinco anos, depois duma série de pequenas vigarices. Castel também sofreu contrariedades da mesma espécie. Nessa época, ele beneficiara duma declaração de improcedência. Que não espere, no caso presente, a mesma sorte. "
Até esse momento, Viviane Lagrange não dissera palavra. De mãos juntas, tomou uma pose de suplicante e olhou sucessivamente para todos os assistentes:
"Têm de perdoar a Henri", disse ela com voz patética. "Eu juro que ignorava tudo da sua culposa actividade, mas ele só procedia dessa maneira por amor de mim! Eu não quero um tostão dessa fortuna! Reembolsarei as somas indevidamente gastas! Geneviève, você, que vai ser feliz com o homem que ama, compreenda e desculpe estes desvarios! "
Os olhos fixavam-se-lhe em Castel como para lhe perguntar: "Representei bem? " Mas só obteve dele um seco pedido: "Não agrave a situação tornando-me ridí culo! "
Dessa vez, ela perdia tudo: o dinheiro, a esperança de refazer uma carreira, a estima por um homem que quase amara. Sentiu-se de repente à beira da velhice.
"E as suas contas, Castel? ", perguntou o notário. Bruscamente, o homem de confiança optou pela atitude cínica, menos humilhante do que o abatimento:
"Receio que a herdeira da fortuna Lagrange sofra algumas decepções. A Bolsa esteve flutuante, desde a nossa instalação em França. Ai de mim! Perdi nisso muito. Com os seus ares de grande homem de negócios, o infeliz Richard descansava em mim. Viviane? Uma boa rapariga, crédula. Eu fazia dela o que queria. Mas essa Geneviève, que chegava de improviso, tendo como futuro sogro um notário mais desconfiado do que é normal.
- Não o era ainda o suficiente - interrompeu Montigny. -Que vai fazer deste homem, comissário?
-Vou levá-lo, com Trébout. A Sr. Puidoux está livre. Uma vez mais será chamada a testemunhar. Naturalmente que restituirá o dinheiro. Aconselho-a a ser razoável e a agradecer ao céu por se ter safado de apuros tão facilmente. "
No gabinete do notário ficaram apenas Geneviève, Viviane e Le Tort, que se despediu com a sensação do dever cumprido e dos honorários generosamente remunerados.
Com a cabeça entre as mãos, Viviane soluçava tão perdidamente que Geneviève se aproximou dela e lhe pôs sobre os cabelos uma mão compassiva.
"Eu não Lhe quero nenhum mal, Viviane. Não tenho nada a censurar- Lhe. A senhora amou o meu pai. Tratou-o com dedicação. O que se passou independentemente de si não pode manchar o passado. As vontades de Richard Lagrange serão integralmente respeitadas. Receberá portanto a sua parte.
-Você é um anjo, Geneviève.
Ela levantou a cabeça. Os olhos cheios de lágrimas encontraram o sorriso da enteada.
"Peço-lhe mais um favor. O de me convidar para o seu casamento. Ser-me-ia muito agradável fazer nele as vezes de Richard. Isso provar-me-ia, além do mais, que não me detesta muito.
-Nunca, na minha vida, detestei ninguém. Está prometido, Viviane. Irá. Junto da minha querida Mamie, figurará comho membro da minha família. Não há assim muitos, sabe. "
Um carro parava diante do portão do jardim. O Dr. Montigny voltou-se, viu o filho, fez-lhe sinal para entrar. Bernard ficou surpreendido perante o espectáculo que Viviane Lagrange oferecia, com os cabelos em desordem e limpando os olhos.
"Posso fazer alguma coisa por si, minha senhora? Levá-la a casa, talvez?
-Obrigada, tenho ainda o meu carro. "
Esforçou-se por ficar em condições de lhes dizer adeus. Espontaneamente, Geneviève beijou-a.
"Ufa! ", disse o Dr. Montigny pai assim que ela desapareceu. "Nunca mais esquecerei a herança de Richard Lagrange! "
Em poucas frases, fez a Bernard o relato dos acontecimentos da manhã. Geneviève abraçou-se ao noivo.
"Ainda assim, espero - disse ela - que o Sr. Henri Castel não tenha delapidado completamente a fortuna de meu pai e que me reste o dinheiro suficiente para realizar o nosso sonho, Bernard! Um belo equipamento moderno para esse hospital do Gabão. Edifícios novos. e que mais?
-Fique tranquila, minha querida, encontraremos facilmente emprego para ele. Desde o começo que lho repito: Geneviève, confie em mim! -replicou, rindo, o jovem médico.
- Não vos demoro mais, meus filhos - disse então o notário afectuosamente. - A minha querida esposa gostaria que almoçássemos juntos, mas acho que a Sr. Lebrun tem direito sem demora às boas notícias...
Oh! não boas para toda a gente, evidentemente, mas abster-me-ei de lamentar Castel e Trébout. Quanto a Viviane, essa inocente, não tinha defesa. De resto, imagino-os mais desejosos de estarem sós do que de festejarem em família, não é? Olha, Bernard, tenho uma ideia. Vou levar a tua mãe a almoçar em Talloires.
- Como dois namorados? Obrigado por ela, papá: " Bernard e Geneviève foram os primeiros a sair.
No carro, ela teve um instante de melancolia: "A minha pobre mamã! Até ao fim, tentaram fazer-lhe mal. "
Bernard envolveu-Lhe ternamente os ombros com o braço direito para lhe lembrar:
"E até ao fim, minha querida, tu amaste-a. Em breve estaremos muito longe. De lá, todas estas pessoas nos parecerão pequenas, pouco maiores do que micróbios, e sem nenhuma espécie de importância,
verás. De momento, aonde vamos? Primeiro a casa da Mamie? E depois? "
Geneviève sorriu-lhe, tranquilizada:
"Aonde quiseres. A partir de hoje, até ao fim do mundo, se é lá que me convidas para uma refeição de
gafanhotos! Lembras-te de Monique, no primeiro dia em que vieste ao Serviço de Saúde?
-Isso foi ontem. Vivamos amanhã. Toda a vida. Geneviève, toda a vida nos espera.
- Toda a vida, Bernard, juntos. "
Ela aconchegou-se contra ele. Fazia um pouco de vento. O lago enrugava- se em lâminas de prata sob o sol em declínio de Setembro. Um outro sol mais ardente os esperava, noutro lugar. Lá onde vastos espaços estariam à medida das suas esperanças.
Claude Romarin
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