Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DO PAPA - P.2 / Luís Miguel Rocha
A FILHA DO PAPA - P.2 / Luís Miguel Rocha

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

- Só podes estar a brincar com a minha cara - vociferou Gennaro Cavalcanti.

- Porque dizes isso? - escusou-se Guillermo, envergando uma expressão ingénua.

- Larga isso, pá - dissdee apontando para o telemóvel. - Estás preocupado se o marido já chegou a casa? Olha para esta merda!

Gennaro apontou para o corpo de Bertram que já estava em cima de uma maca, dentro de um saco para cadáveres, fechado até ao peito, deixando ver apenas o rosto branco acinzentado e as marcas da morte na testa.

- Quando é que me dás os outros dois? - atirou Guillermo, prevendo o efeito esta pergunta.

Gennaro rosnou de impaciência.

- Mais um padre morto, e depois de pousares a merda do telemóvel é essa a primeira pergunta que fazes?

 

 

 

O apartamento de Bertram na Via Tuscolana estava cheio de pessoas, certamente muitas mais do que o padre recebera em casa desde que ali morava. Paramédicos, o delegado do Instituto de Medicina Legal, agentes do departamento forense da Polizia di Stato que, com luvas e máquinas fotográficas, inspeccionavam o apartamento. Pelas janelas, entravam os reflexos azuis e vermelhos dos sinais luminosos dos carros da polícia e da ambulância que estavam estacionados em baixo, na rua. Alguns moradores haviam saído para o exterior para ver o que se passava, outros tentavam descortiná-lo a uma distância segura, das janelas ou varandas dos seus apartamentos. Pelo sim, pelo não, Gennaro mandara instalar um perímetro de segurança, para afastar os olhares curiosos. Perguntaram ao jovem agente fardado, que assegurava que ninguém não autorizado invadia o perímetro, qual o motivo do aparato. A resposta espalhou-se rapidamente pelas redondezas, elevando-se às varandas e janelas dos andares cimeiros. Omicidio. A pergunta seguinte versava sobre a identidade da vítima, mas essa não fora respondida por não ser do conhecimento do prestável agente.

Não se sabia precisar muito bem quando chegaram os repórteres ávidos por saber quem tinha sido assassinado barbaramente na tranquilidade do lar, na Via Tuscolana. Em poucos minutos, os gravadores, as câmaras, os microfones, os telemóveis e, no caso dos revivalistas da velha guarda jornalística, os blocos de notas começaram a registar as palavras padre e Vaticano e Santa Sé e os murmúrios depressa passaram a intrigas e a conspirações.

Lá em cima, Gennaro Cavalcanti fitava o preocupado Guillermo Tomasini com olhos de raiva.

- Não vais ver nenhum dos teus corpos antes de isto estar muito bem resolvido. Podes ligar ao Comte e dizer-lhe isso.

- Não foi isso que o Amadeo lhe disse.

- O que ele combinou com o vosso amigo Amadeo foi há um cadáver atrás. Três é diferente de dois.

- Já identificaram o que ficou com a cabeça desfeita? - atirou Guillermo na tentativa de mudar de assunto.

Gennaro fez que não com a cabeça.

- E vocês não deram pela falta de nenhum papa-hóstias?

Guillermo não dignou aquela pergunta com uma resposta. Gennaro pegou num dos braços do homem da Igreja e puxou-o para um canto menos movimentado do apartamento de Bertram.

- Ficaste irritado por termos chegado primeiro? Não é costume, pois não? - perguntou Gennaro com uma expressão de sacana estampada no rosto. - Ainda por cima, duas vezes seguidas.

- O que queres dizer com isso, Cavalcanti?

- Achas que sou algum idiota? Estás habituado a chegar às cenas do crime primeiro, quando o corpo ainda está quente, o cabrão do Girolamo faz o que bem entende, retira o que lhe apetece e depois chama-nos, quando chama.

- És doente, Cavalcanti.

- Desta vez, uma chamada traiu-vos. Tu e o Comte têm uma toupeira na vossa equipa.

Guillermo odiava Gennaro. Felizmente, raros eram os momentos em que tinha de lidar com ele. A verdade é que seria mau sinal se fossem muitos. Muito mau. Esse papel era o de Girolamo. No início, antes de Guillermo chefiar o serviço de espionagem que Gennaro ignorava, tratavam-se com cortesia. A maior parte das mortes que ocorriam na Santa Sé, ou em território que beneficiasse do mesmo estatuto de extraterritorialidade, eram suicídios. O Vaticano estava entre os estados com a taxa mais alta per capita.

Um suicídio não requeria grande esforço, apenas formalidades burocráticas. Ainda que, nessas alturas, Guillermo tivesse detectado em Cavalcanti uma propensão para imaginar um pouco mais do que realmente acontecera, com alguma razão, ou toda, em alguns casos, nunca houve motivos para quezílias nem nada que abalasse a relação cordata.

O verniz estalara em Maio de 1998 quando o comandante da Guarda Suíça e esposa foram assassinados a tiro e um cabo se suicidara sem pistola, como costumava dizer Cavalcanti, entre a ironia e a hipocrisia. O grande culpado fora o sacana do Girolamo que, juntamente com Guillermo, dificultou a investigação ao máximo ou, melhor explicado, não facilitou em nada o trabalho de Cavalcanti. Até o expulsaram do apartamento do comandante da Guarda Suíça onde o crime ocorrera. O resultado das investigações tornado público pelo assessor de imprensa do Vaticano, Navarro-Valls, na mesma noite do crime, foi que o cabo Cédric Tornay perdeu a cabeça por lhe ter sido recusada uma medalha de mérito e decidiu ir ao apartamento do novo comandante da Guarda, Alois Estermann, nomeado nesse mesmo dia, e matou-o a ele e à esposa, suicidando-se em seguida. A verdade sobre o que acontecera naquele apartamento fora muito diferente.

- Quem é o gajo? - perguntou Cavalcanti intempestivamente, enquanto a maca era levada por dois paramédicos, com o corpo dentro do saco já completamente fechado, a caminho de uma mesa de autópsias para que os preceitos científicos confirmassem o que se via a olho nu.

- Adolf Bertram.

Um padre alemão - informou Guillermo. - Amanhã faço chegar-te tudo sobre ele e o trabalho que fazia para o Santo Padre.

- Desta vez, não cortes as partes picantes - atirou o inspector que não perdia uma oportunidade para provocar. - Em que é que ele estava a trabalhar?

- Nada de mais - adiantou Guillermo. - A fazer pesquisa para a Positio de um candidato qualquer à canonização. Ele trabalhava na Congregação para a Causa dos Santos. Gennaro observou a divisão. Estavam no hall de entrada do apartamento.

Não havia uma pinga de sangue em lado nenhum. Não havia qualquer vestígio dos tiros nem dos invólucros. Um trabalho limpo...

- O que é que te parece? - perguntou Guillermo.

- Se não estiveres a gozar com a minha cara, parece-me que estamos perante o trabalho de um profissional. Mas isso tu percebeste assim que aqui entraste. No entanto há uma coisa que me intriga.

- O quê? – perguntou Guillermo fingindo-se interessado.

- O corpo estava coberto com um lençol. Um profissional não espeta dois tiros à queima-roupa para depois o tapar com um lençol. É demasiado cristão.

- E o que é que sugeres?

- Diz-me tu.

Guillermo ignorou-o e deu uma vista de olhos ao apartamento. Não convinha mencionar a visita que os seus homens e os jornalistas haviam feito naquela noite. Gennaro vigiava-o com um olhar perscrutador. Estava cada dia mais insuportável. Odiava ter de lidar com ele. Quantas vezes iria pensar nisso nessa noite? Precisava de falar com Davide com urgência. Ligara-lhe há pouco tempo sem sucesso. O seu telemóvel soou nesse preciso momento.

Era Davide. Raios. Que timing. Decidiu não atender, não era o momento propício. Carregou no botão que silenciava o aparelho e tornou a guardá-lo.

- Não atendes? - perguntou Gennaro descaradamente, sem pinta de vergonha. - Queres privacidade?

Guillermo ficou encavacado. Cavalcanti não o ia largar tão cedo. A sugestão de privacidade era, obviamente, troça. Decidiu voltar a pegar no telemóvel e atender mas Davide já tinha desligado. Carregou no botão para devolver a chamada. Levou o aparelho ao ouvido e deu dois passos para se afastar de Cavalcanti mas este aproximou -se, simulando estar a ver uma agenda que pertencia ao defunto Bertram. Sacana. Davide atendeu assim que ouviu o primeiro toque.

- Ele está contigo? - Pausa. - E os jornalistas? - Nova pausa. - Esperem por mim. Não o deixes sair daí. Não lhe faças nada. A morada que ele deu era de um descampado. Faz o que for preciso para o reteres.

Ignorou o insulto de Davide e desligou. Trataria disso mais tarde. Os homens de Comte precisavam de um correctivo. Preferiu concentrar-se nas boas notícias. Rafael estava sob controlo, pelo menos por agora.

- Problemas? - perguntou Cavalcanti por trás dele.

- Nada de especial.

- Se precisares de falar podes contar comigo - ironizou o outro, colocando uma mão em cima do ombro de Guillermo.

Um agente chamou por Cavalcanti, que virou as costas ao homem do Vaticano mas não deixou de ouvir um murmúrio insultuoso, repleto de raiva. O inspector sorriu de satisfação.

- Que temos? - perguntou ao agente. - Já temos a identificação de quem fez as chamadas de emergência?

Cochicharam durante uns minutos até Cavalcanti ter sido interrompido pelo seu próprio telemóvel. Escutou durante breves segundos e depois atirou-o cheio de raiva, contra uma das paredes do hall, desmontando-se em várias peças. Pararam todos uns segundos e logo voltaram aos seus afazeres. Eram normais estes repentes no inspector.

- Apanha-me isso, se faz favor - pediu ao agente em voz contida. Tentava acalmar-se rapidamente.

- Será que ainda funciona?

- Funciona. É de guerra.

Deixou o agente aproximou-se novamente do homem do Vaticano.

- Más notícias? - perguntou o outro.

- Recebemos um novo alerta na central.

Guillermo engoliu em seco.

- O que aconteceu?

- Anda. Hoje passas a noite comigo - comunicou o homem da polícia italiana. - E prepara-te que vai ser longa.

- Mas o que aconteceu? - insistiu Guillermo.

- Um massacre. Um raio de um massacre.

 

Abriu os olhos e não viu nada. Escuro. Breu. Tornou a fechá-los e a abri-los novamente. Nada. Trevas. Depois, apercebeu-se de uma nesga de luz, muito ténue, um fio fino que provinha daquilo que parecia uma janela.

Levantou-se, a custo, com as pernas a baquearem, e dirigiu-se para a fonte de luz escassa, pé ante pé, lentamente. Mesmo assim, o pé direito embateu em algo mole e tropeçou. Praguejou mentalmente e levou a mão à nuca.

Doía. Massajou-a por uns instantes. Não sabia dizer se simplesmente começara a doer ou se já doía antes e só se dera conta naquele momento.

Sentia também uma ligeira tontura e náuseas. Levantou-se com esforço, novamente e caminhou para a janela com passadas prudentes e cautelosas. Abriu-a e afastou as portadas com um toque brusco para deixar passar a luz dos candeeiros que iluminavam a praça, lá fora. O ar frio inundou a divisão e a luz artificial conquistou algum espaço, escasso, às sombras.

Tropeçara num corpo que estava estendido no chão e a sensação foi estranha. Não era a primeira vez que via um cadáver. Não seria a última. Já não sentia nada mas desta vez... Sarah, pensou. Onde está a Sarah? Procurou um interruptor e encontrou-o, do outro lado do corpo, na parede oposta, colado à parede, a meia altura. Passou por cima dele; era um homem, de barriga para baixo, não respirava. Estava morto. Acendeu a luz e analisou a cena. Cinco corpos estavam espalhados no gabinete. Sentiu os nervos invadirem-lhe o corpo. Nada conveniente. Tentou identificar as vítimas. Aquele em quem tropeçara fora Davide, o colega da Gendarmaria Vaticana. Virou-o de barriga para cima e viu o buraco na testa, quase sem sangramento. Morte instantânea. Nem se apercebera do que lhe acontecera. Identificou os outros dois colegas, mais jovens, que acompanhavam Davide. Um era Arturo, não se lembrava do nome do outro, se é que alguma vez o soubera. Faltavam dois e engoliu em seco com a respiração a acelerar. Calma. Calma. Chamou a si toda a frieza que conseguiu e identificou-os. Um era o malogrado Duválio, o relator, que se manteve preso à cadeira, inclinado para trás, mas fora, como era sua vontade, ao encontro do Criador. Por estranho que pudesse parecer, aos olhos de Deus, segundo a Igreja Católica, era melhor ter partido nestas circunstâncias funestas, enviado por outrem, do que por motu próprio, o maior dos pecados que se podia cometer.

E havia o outro corpo, o do jornalista norte-americano John Scott. Coitado. A vida interrompida num ápice, assim Deus o permitisse e algum homem quisesse que assim fosse. Olhou em redor, à procura. Não encontrou mais ninguém. Sarah. Onde está a Sarah?

Abriu a porta do gabinete e saiu, deixando a luz dispersar pelo corredor escuro. Nada. Ninguém. Por um lado sentia alívio por não a ter visto entre as vítimas, por outro a apreensão adensava-se dentro de si. Aquilo era um trabalho impecável de um atirador profissional implacável. Cinco tiros. Cinco corpos. Nem mais um. Não havia vestígios de disparos falhados nem invólucros perdidos. Precisava de pensar e agir rapidamente. Não tinha muito tempo.

Havia uma pergunta que o afrontava como uma lâmina afiada cravada no peito. Cinco mortos espalhados pela sala dos relatores do Palácio das Congregações. Cinco. Mas porque não seis ou sete? Porque é que ele e Sarah teriam sido poupados? Sentiu um arrepio na espinha. No caso de Sarah ter tido o mesmo fim noutro local, porque não ele? A resposta estava mesmo à frente dos seus olhos, num post-it cor-de-rosa, colado num pequeno espelho ao lado de um crucifixo com Cristo resignado ao sofrimento, a cabeça tombada para o lado direito, à espera do Pai ou da morte, ou dos dois.

Descolou-o do vidro e gelou ao lê-lo. Estava ciente que havia dois lados, dois reversos da mesma moeda, mas imaginava que estivesse uns passos à frente. Estava enganado.

Quem escreve estas vidas só pode querer o mal de todos, cogitou para si mesmo, revoltado.

Guardou o post-it no bolso da camisa, pegou na sua Beretta que Arturo guardara e saiu para o corredor. Havia ainda muita história para contar, muitas palavras para escrever, para bem ou mal de todos. Percorrera aquele corredor muitas vezes, e conhecia bem o local, o que lhe permitiu seguir às apalpadelas. Cegou com o clarão forte de duas lanternas que se acenderam naquele momento e tentou escudar a luz com as mãos.

- Pare, imediatamente - ouviu-se uma voz forte ordenar. - Deite-se no chão.

Rafael resistiu. Deu dois passos atrás para avaliar as opções de fuga.

A janela aberta do gabinete era uma hipótese mas não estava em condições físicas para tal. De momento, não tinha como fugir.

- Deite-se no chão, de barriga para baixo, ou vai deitar-se a mal com um tiro no bucho - insistiu a voz.

Rafael obedeceu. Um recuo estratégico. Logo se veria o que fazer a seguir. Um homem de cabelo grisalho apareceu-lhe à frente e exibiu-lhe um distintivo dourado.

- Inspector Gennaro Cavalcanti. Polizia di Stato.

 

Sarah não sabia dizer há quanto tempo tinha sido levada. O capuz que lhe fora enfiado na cabeça, ainda dentro do gabinete, depois de ter assistido a uma cena traumatizante, não lhe foi retirado até ao término do percurso.

Se lhe pedissem para descrever a cena não saberia. Estava a olhar para Rafael, caído no chão, desmaiado da pancada que o tal Davide lhe dera na cabeça e a deixara tão aflita, quando viu o homem mais velho tombar à sua frente. Levantou os olhos para tentar perceber o que se estava a passar mas já os outros dois que acompanhavam Davide também tinham caído, com um buraco na testa cada um. Nem sequer ouvira os disparos da arma.

Depois parou tudo. Era um homem de cabeça coberta. Duválio e John Scott fitavam-no em choque e... Ele acercou-se dela, olhos compassivos, como se estivesse a dizer-lhe que tinha muita pena que ela tivesse assistido àquilo. Não pronunciou uma palavra, apenas lhe tapou a cabeça com o capuz e não viu mais nada. Só escuridão. Indicou-lhe o caminho agarrando-a com uma mão terna e saíram do gabinete. Ouviu ruídos antes de sair do gabinete mas não conseguiu entender. Estava em pânico mas depois passou-lhe... ou não. Não sabia. Não compreendia o que se estava a passar.

Temeu por Rafael, por John, pelo relator. Ouviu quando ele desligou o interruptor do gabinete e fechou a porta. Não se ouviu mais nada a não ser os passos deles a fazer ranger o soalho. A mão terna guiou-a até ao carro onde seguiam e depois dera por si a pensar quando tinham começado os problemas e quem os criara.

O primeiro culpado foi o padrinho, Valdemar Firenzi, que há seis anos a arrastara para onde ela nunca sonhara ir, e a envolveu numa teia de problemas com a CIA, a Santa Sé e uma loja maçónica proscrita que a levara ao segundo culpado, talvez primeiro também, JC, o espião que tudo via e sabia como um ser omnipotente, ou talvez não, caso contrário já a teria tirado daquele carro. Rafael também era culpado, de uma maneira ou de outra. Há pouco mais de seis meses tivera uma arma apontada à nuca e, nesta noite, tudo voltava a acontecer.

Ninguém falou durante toda a viagem, nem mesmo durante a transferência para outra viatura que lhe pareceu ser uma carrinha. O assento era mais duro e andava aos solavancos fazendo com que tudo se tornasse desconfortável. Estava com medo mas aprendera a controlar-se. Antes de Firenzi e JC e Rafael, nunca constatara como uma pessoa pode sujeitar outra a provações tão odiosas, muitas vezes letais. Sabia que existiam mas era sempre algo que aparecia nas notícias, ou que ela própria escreveria para informar o público, algo longínquo, quase um universo paralelo que não a afectava minimamente. Estava apenas no papel ou numa imagem. Não feria. As coisas mudaram e ela percebeu que a maioria das pessoas não passa de peões nas mãos de alguns poderosos apenas preocupados com o seu bem-estar e com a conquista de mais poder.

O homem que conduzia era um profissional. Ceifara três vidas humanas, a sangue frio, antes que elas pudessem reagir. Provavelmente, matara também o tal Bertram na Via Tuscolana. Como estaria Rafael? E John? E o pobre relator? Que lhes acontecera? Porque não os matara a todos?

As palmas das mãos estavam suadas por causa dos nervos e sentia arrepios frios ou de calor intenso, alternada ou simultaneamente, não sabia dizer.

Tentava acalmar-se. Já não era a primeira vez que passava por uma situação semelhante mas o desconhecido era sempre obscuro e carecia de conforto para a alma e para o corpo. Às vezes sentia tremores e não conseguia controlá-los por muito que tentasse. Isto vai passar, tentava convencer-se.

Isto vai passar.

A certa altura a carrinha abrandou e entrou num caminho com piso em mau estado. Andaram aos solavancos durante tempo que não soubera precisar, até que pararam. Ouviu o ronco do motor desligar e uma série de estalidos de arrefecimento. Estava alerta a todos os sons. A porta do condutor abriu-se e Sarah sentiu um aperto no peito e um calafrio. Os tremores atacaram com mais vigor e tentou sustê-los, sem sucesso. O pânico impregnava-se nas veias e alastrava-se ao corpo inteiro. Deu um salto de susto quando sentiu a porta lateral deslizar. Uma mão terna puxou-a para fora do carro, com a delicadeza possível dadas as circunstâncias, e encaminhou-a sem qualquer imposição exagerada. Apetecia-lhe tirar o capuz, mas as mãos estavam presas atrás das costas com uma abraçadeira de plástico. Não conseguia escutar a respiração do seu raptor, nem sequer os seus passos. Apenas a mão meiga que a guiava pelos ombros e o latir do coração nos ouvidos e no peito.

Foi conduzida às cegas, desceu alguns degraus desajeitadamente, sempre com uma mão a guiá-la sem nunca pronunciar uma palavra. Cheirava a humidade. Estava a descer para o subsolo e sentiu-se ainda mais nervosa.

Para onde estaria a ser levada? Pouco depois parou e sentiu as mãos soltarem-se. Silêncio total. Hesitou durante uns instantes a tentar escutar alguma coisa, um ruído, um sussurro. De início não conseguiu escutar nada mas depois sentiu-o muito fraco, frágil, depois mais forte: a respiração de alguém. Seria do raptor? Levou as mãos à cabeça e arrancou o capuz.

Levou algum tempo a habituar-se à luz diminuta. Devia ser uma cave, mas mais parecia uma cela. Era estreita e tinha uma cama encostada a uma das paredes. No lado oposto, uma sanita. A porta fechou-se nesse momento. Olhou em redor e viu-o pela primeira vez, sentado na beira da cama, a fitá-la timidamente, o medo exasperado impresso na face e os braços a envolvê-lo num abraço apudorado. Tinha a roupa preta dobrada, em cima de uma cadeira aos pés da cama, e vestia apenas roupa interior.

- Quem... quem... é a senhora? - perguntou a medo, mal conseguindo olhá-la nos olhos.

Sarah também tinha o coração acelerado e os nervos à flor da pele. Nem uma pista, uma palavra, uma satisfação. Não fazia ideia onde estava, aquele lugar encerrava fora de si todas as respostas e não deixava entender nada por dentro. Do coração de Roma para uma cela em nenhures. Naquele momento, ouviu-se um raspar na parte de baixo da porta. Foi uma portinhola que se abriu e deixou entrar um tabuleiro com comida quente, água e bolachas. Havia uma boa notícia, aparentemente quem quer que estivesse por detrás daquilo, pelo menos para já, não pretendia que passassem fome. Pensou novamente em Rafael e onde estaria e só depois reflectiu na pergunta do jovem que permanecia sentado, na beira da cama, a fitá-la com um esgar de pânico e curiosidade. Que raio estava a acontecer?

- O meu nome é Sarah - acabou por responder. Ainda esteve para inventar um nome mas acabou por decidir que seria disparatado.

- E o que está aqui a fazer, Sarah?

A jornalista aproximou-se do jovem e sentou-se ao lado dele, exibindo um sorriso tímido.

- Não faço ideia - confessou. - E tu como te chamas?

O jovem não sabia se haveria de dizer ou não. Por outro lado, dificilmente estaria ali sem que fosse conhecida a sua identificação. Há mais de vinte e quatro horas que não falava com ninguém. Não havia qualquer resposta para as suas perguntas. Também era certo que nunca se atrevera a fazê-las. A portinhola abaixo da porta abrira-se quatro vezes desde que ali entrara para deixar comida e água. De todas as vezes não perguntara nada.

Tinha vontade de fazê-lo mas o pânico travava-lhe todos os movimentos do corpo.

- O... o meu nome é... Niklas.

 

Não mostrou o post-it a ninguém até Gennaro o mandar revistar. O falcão romano não deixava pontas soltas, especialmente quando se tratava de agentes do Vaticano.

- É mesmo necessário? - protestou Guillermo que não via com bons olhos semelhante humilhação.

- Agora ainda mais - asseverou Gennaro, guardando o distintivo no bolso.

Estavam no corredor, já de luzes acesas, enquanto uma parafernália de agentes se acotovelava no interior do gabinete a processar a hedionda cena do crime.

Um agente fez a revista a Rafael que não resultou em nada de muito implicativo. Dinheiro em notas, cerca de seiscentos euros, um cartão de crédito preto sem qualquer identificação, apenas os dezasseis algarismos, gravados em relevo dourado, que permitiam fazer as transacções, uma Beretta com cabo de madeira, ilegal no estado italiano.

- Não estamos em Itália - informou Rafael.

-Este edifício beneficia do estatuto de extraterritorialidade - atestou Guillermo, que lançava um olhar desconfiado a Rafael.

- Tecnicamente, estás a cometer uma ilegalidade, Cavalcanti.

A extraterritorialidade significava que aquele edifício, no coração de Itália, era independente de Itália e beneficiava do mesmo estatuto do Estado Cidade do Vaticano.

- De qualquer forma, vamos ficar com ela - informou Gennaro com uma expressão sardónica. - Para nossa segurança... Tecnicamente.

O agente recolheu-a. Tirou o carregador de munições para verificar o seu estado. Não fora usada. A revista prosseguiu.

- A sério, Cavalcanti - protestou Guillermo com veemência. - Isto é indecente e ridículo. Não podes fazer isto. O Comte vai-te crucificar.

Gennaro Cavalcanti olhou em redor para as dezenas de técnicos forenses e paramédicos que se apressavam num caos ordenado a analisar a cena do crime, a mesma que o inspector chamara de massacre.

- Achas ridículo? Olha à tua volta. - Fez um gesto com a mão a mostrar os cinco cadáveres com um tiro certeiro na testa. - Já viste quanto dinheiro estão os cidadãos italianos a gastar hoje convosco? Cinco mortos nesta sala e um lá em baixo na portaria.

Não me lixes, Cavalcanti. Morre gente todos os dias.

- Ah, para ti isso não é importante. Sabes quantas horas de trabalho isto vai custar a cada contribuinte italiano? E nada disto é nosso.

- Então porque não se vão embora? - sugeriu Guillermo.

Cavalcanti fitou-o com uma expressão fulminante.

- Cospes para o ar porque não pagas impostos, meu sacana. - Apontou para Rafael. - Ele é a única pessoa que sobreviveu a isto. Logo, é o principal suspeito.

O agente estendeu a Beretta, já dentro de um saco de provas, a Cavalcanti.

- Não parece ter sido usada recentemente, inspector - indicou o subalterno depois de uma análise superficial. - Mas teremos a certeza depois de analisada.

Cavalcanti ficou na posse da prova e fitou Guillermo com uma postura provocatória. Assistiu à conclusão da revista. Um lenço feminino.

- Gostaria de ficar com ele - pediu Rafael.

- Logo se verá - respondeu Cavalcanti.

O post-it foi encontrado a seguir. Um papel cor-de-rosa, quadrangular, com rabiscos em italiano. O agente entregou o pequeno bilhete a Gennaro Cavalcanti, depois de o ter colocado dentro de outro saco de provas para posterior análise laboratorial, como fizera com o lenço de Sarah. O inspector leu-o, curioso. Enquanto juntava as palavras fazia pausas para fitar Rafael e Guillermo.

Até quando vamos andar ao jogo do gato e do rato? Levamos a mulher para o estimularmos a proceder da forma mais correcta, no caso de o rapaz não ser suficiente, o que duvidamos, padre Rafael.

Temos mais uma surpresa esta noite.

- Isto não é o procedimento normal, Cavalcanti - atacou Guillermo numa última tentativa de protesto que, seguramente, sairia gorada. - Devias deixar os meus homens processar a cena do crime primeiro. Cavalcanti sorriu, sarcasticamente.

- Estes que estão aqui mortos? Não me parecem em condições de investigar o que quer que seja. - Denotava-se algum prazer na voz do inspector italiano. Depois empregou um tom sério. - Quem são eles?

Guillermo mostrou-se apreensivo.

- A sério, Tomasini? Não sabes quem são? Raios te partam. Vens falar-me de indecência? Tem vergonha, meu facínora.

O homem do Vaticano engoliu em seco e baixou a cabeça.

- São três agentes da Gendarmaria Vaticana, um relator e um jornalista americano - disse Rafael com uma voz arrastada devido à moedeira que ainda sentia na nuca.

A revista terminou e o agente deixou Rafael em paz.

- Trata das identificações - ordenou Gennaro Cavalcanti, enquanto colocava uma mão no ombro de Rafael. - Venha sentar-se.

Encaminharam-se para o interior do gabinete de onde já tinham sido retirados três corpos. Restavam ainda John Scott e Duválio. As malogradas vítimas das atitudes dos homens em nome de Deus, em breve seriam levadas dali, tal como os outros, dentro dos sacos fechados.

Gennaro Cavalcanti arrastou uma cadeira que estava na sala e bateu com a mão no assento.

- Sente-se aqui, padre. - Era mais uma ordem que um pedido.

Rafael viu um dos agentes tirar o dossiê castanho das mãos do jornalista americano. Este apertara-o contra o peito até ao fim, como uma garantia de vida que nunca foi. Um trabalho muito bem feito. O terceiro nos últimos dias, sempre pelo mesmo autor, sem erros.

- O que é que se passou aqui? - lançou Cavalcanti, de rajada.

- Ei, não há procedimentos legais a ter em conta? - contrapôs Guillermo irritado. - Vais interrogá-lo assim? Ele tem direito a um advogado, sabes?

- Isto é apenas uma conversa entre amigos. Não é, padre... ? Relembre-me o seu nome.

- Rafael.

- Não é, padre Rafael? - completou o inspector.

Rafael anuiu com a cabeça.

- Porque é que não ligas ao tal advogado enquanto eu converso com o teu homem? Ou chama o Comte. Isto vai ser rápido - sugeriu o romano.

- Pode começar por nos dizer o que veio aqui fazer.

Guillermo não arredou pé. Em todo o caso, telefonou para Comte, mantendo-se atento a tudo o que era dito. Toda a situação era surreal, nunca tinha passado por tal descontrolo. Não podia deixar que Rafael revelasse a Gennaro mais do que lhe era permitido. Pisavam areias movediças que podiam engoli-los a todos a qualquer momento.

- Vim encontrar-me com o relator - acabou por dizer Rafael. As preocupações dele eram outras, precisava de despachar aquilo depressa e só tinha uma hipótese.

- O tal Duválio, correcto? - perguntou Cavalcanti, olhando para o seu bloco de notas preto que tinha na mão.

- Exacto.

Rafael perdeu algum tempo a explicar o que era um relator, o que fazia o colégio, sem entrar em pormenores sobre o candidato à santidade católica que agitava o habitual marasmo daquela congregação.

- Não faziam nada de importante, portanto - atirou Cavalcanti em jeito de provocação. - E o que é que tinha para falar com este relator que não podia esperar por horas mais apropriadas, como por exemplo, amanhã durante o dia?

Guillermo tentou chamar a atenção de Rafael. Obviamente que os seus homens estavam mais que preparados para lidar com este género de situações, porém, convinha não esquecer que este fiel operacional da Santa Aliança tinha razões para duvidar a quem devia lealdade.

- O jornalista tinha um assunto para falar com o relator acerca de um candidato americano à beatificação e o voo de regresso dele aos Estados Unidos era logo pela manhã. Só podia ser hoje e não foi possível ser a horas mais convenientes - mentiu descaradamente o padre Rafael. Sabia que Cavalcanti tentaria confirmar todas aquelas informações mas, entretanto, ficaria também irritado e era isso que Rafael pretendia.

- Ena, tão prestáveis que vocês são. Ao ponto de abrirem portas de madrugada só para ajudar um jornalista - declarou Cavalcanti mais para si mesmo do que para os dois homens do Vaticano. - Faz-me lembrar a vossa simpatia para comigo em 1998.

- Apenas cumpro ordens - afirmou Rafael, com uma voz segura e confiante.

- Fingindo que acredito nisso, como se chamava o tal candidato a beato?

Rafael não tardou dois segundos a responder.

- O arcebispo Fulton Sheen.

Cavalcanti rabiscou o nome no seu bloco de notas.

- Continuando a fingir que acredito nessa historieta, há uma coisa que me chama a atenção...

Rafael sabia muito bem que o inspector era um falcão da velha guarda, arguto, matreiro, que, dificilmente, seria enganado, a não ser que quisesse.

Guillermo e ele aguardavam que Cavalcanti lhes dissesse o que o inquietava.

- O azorrague e aquele cinto pendurado no lustre - disse, apontando para o enorme candeeiro, pejado de cristais, que pendia do tecto. Guillermo reparou nele pela primeira vez. Rafael olhou também para a fita de couro preta com espanto.

- Que tem? - perguntou.

- Porque é que está ali? Alguém cometeu algum crime?

- Só reparei nele agora - mentiu Rafael.

Gennaro sorriu.

- E não lhe pareceu estranho o relator ter despido as calças?

Rafael tentou disfarçar o desconforto. Nada lhe escapava. Estava a perder o confronto. Precisava de reagir rápido mas o agente que o revistou acercou-se de Cavalcanti.

- Está um monte de jornalistas lá fora, inspector.

- A Raffaella que trate disso.

- E qual é a nossa versão? - pergunta o agente.

- A verdade - afirmou Cavalcanti, sem tirar os olhos de Rafael. - Toda a verdade, sem omitir nada.

- Não - balbuciou Guillermo com uma nota de desespero na voz.

- Não? - inquiriu Cavalcanti, impávido e sereno e com uma nota de ironia na voz. - Não podemos dizer que assassinaram dois relatores, quatro agentes da Gendarmaria Vaticana, um padre há trinta horas e um indivíduo ainda por identificar? Ah! Já me esquecia. E um jornalista do The New York Times que estava no local errado, à hora errada, para fazer uma entrevista às quatro da manhã que vocês autorizaram. Não podemos dizer isso?

Guillermo arrastou uma cadeira e sentou-se de frente para Cavalcanti.

- O que é que pretendes? Diz de uma vez.

- Que deixes de fazer de mim parvo. Quero a verdade. Deita tudo cá para fora.

Guillermo sentia-se encostado à parede, completamente imerso em terreno hostil sem expectativas de fuga. Gennaro Cavalcanti, inspector da Polizia di Stato, era um grande sacana.

Tinha de lhe dar qualquer coisa para o distrair.

- Muito bem - assentiu finalmente o homem do Vaticano.

Cavalcanti levantou a mão vara o agente.

Diz à Rafaella que não há comentários. Pela porta do cavalo que faça chegar a esses lacraus um boato sobre um pretenso ataque terrorista ou um crime passional. Mais nada, entendido?

O agente anuiu com a cabeça e antes de atender ao ordenado segredou algo ao ouvido do inspector.

Cavalcanti fitou os dois homens. O tempo urgia. Não estava para levar com mais lérias criadas pela imaginação fértil dos representantes da Igreja.

Eram todos uns aldrabões... ou quase todos. Talvez apenas um escapasse.

- Vocês são uns mentirosos de merda. O senhor é o único suspeito, padre Rafael, o único sobrevivente, não restou mais ninguém... até prova em contrário.

- Olha o respeito, Cavalcanti - protestou Guillermo. A situação estava a precipitar-se novamente a olhos vistos.

- Tens razão - acatou o inspector. Olhou em volta e chamou até si um agente.

- Leva-o - ordenou, referindo-se a Rafael.

- Cavalcanti - insurgiu-se Guillermo.

- Tens toda a razão, Tomasini. É melhor seguir as vias legais - disse o outro.

- Mas...

O agente algemou Rafael e encaminhou-o para o exterior.

- O Amadeo vai saber disto, Cavalcanti - advertiu Guillermo. - E o Santo Padre também.

Gennaro Cavalcanti levantou-se da cadeira e sorriu.

- Espero bem que sim, Tomasini. Espero bem que sim.

 

- Lucarelli?

- Monsenhor Stephano Lucarelli.

- E quem é?

- Esperava que vossa Excelência Reverendíssima me explicasse. Afinal, a ordem partiu deste gabinete e está assinada por si.

Giorgio, o belo, levantou-se da cadeira e fitou o homem que estava sentado à sua frente. De que raio estava Comte a acusá-lo? O sujeito parecia cansado. Não era, de todo, normal que um encontro destes ocorresse de madrugada, mas aquela noite estava a ser muito diferente das outras.

- Chegou uma ordem ao retiro das irmãs da Santa Cruz, em Trento.

Foi por telefone, e a prioresa garantiu que quem falou se apresentou com o nome de vossa Excelência Reverendíssima. Reservou todo o terceiro andar para esse tal Stephano Lucarelli.

Giorgio virou-lhe as costas e deambulou pelo seu gabinete. Na verdade era o do Papa, pois ele tinha apenas uma pequena sala, ali perto, que dividia com mais três colegas. O seu trabalho era feito ao lado do Santo Padre, a todas as horas que ele necessitasse, o resto era feito em silêncio, como neste caso, sem o conhecimento do herdeiro de Pedro. Poupá-lo-ia a tudo o que pudesse. O Papa Bento já tinha muito com que se preocupar, todos os dias, a todas as horas, a vida inteira.

- Continua.

- Tudo foi cumprido conforme o pedido de vossa Excelência Reverendíssima - continuou o inspector enfatizando o substantivo. - O monsenhor ficou quatro noites, deixou o retiro entre a madrugada e a alvorada do quinto dia, ou seja ontem de manhã, terça-feira. Não há testemunhos. Gostou tanto do trabalho da freira que o serviu que pediu a Vossa Excelência para a trazer com ele. Pedido que Vossa Excelência Reverendíssima concedeu, obviamente. - Notava-se alguma ironia na voz. - A ordem seguiu do seu email.

- Do meu?

Girolamo anuiu com a cabeça.

Giorgio contornou a secretária e regressou ao seu lugar ou, melhor dizendo, ao lugar do Santo Padre, que ele apenas ocupava por conveniência.

Ligou o monitor do computador, usou o rato e dedilhou um conjunto de comandos no teclado para obter acesso à conta de email. Procurou entre as mensagens enviadas e encontrou, na manhã do dia anterior, às nove e vinte e sete, o pedido, em benefício do monsenhor Stephano Lucarelli, dos serviços da irmã Bernarda, de 23 anos. Assinava o documento electrónico a Excelência Reverendíssima Giorgio em nome da vontade do Santo Padre.

- Como é que isto é possível? Como é que acederam à minha conta de email e enviaram esta mensagem? E de onde? Quem é a irmã Bernarda?

- perguntou Giorgio, perplexo.

Girolamo pegou num bloco de notas pequeno e folheou-o à procura da resposta.

- Uma freira da ordem de Santa Cruz. Fez os votos perpétuos há um mês. Oriunda de uma família suíça. O pai trabalha na banca de investimento. O nome de baptismo dela é Mia Gustaffsen.

- E o que descobriste sobre esse Lucarelli?

Girolamo fechou o bloco de notas e voltou a guardá-lo no bolso de dentro do casaco preto.

- Nada. Tanto quanto sei não existe ninguém com esse nome.

Giorgio franziu o sobrolho.

- Não há nenhum padre com esse nome?

- Nem nenhum padre, nem nenhum leigo. Não existe ninguém com esse nome.

Giorgio respirou fundo e levou as mãos à cabeça. Mirou o relógio.

Eram quatro e meia da manhã. As últimas noites estavam a ser muito difíceis. O que dormia não era suficiente para recuperar dos dias com tantos afazeres. Nesta noite ainda não fora ao quarto nem para um breve momento de descanso.

- Para que é que ele levou a freira?

O homem da Gendarmaria encolheu os ombros. Não sabia. Este episódio tinha contornos muito estranhos. Para além disso, o envolvimento do nome do secretário pessoal do Papa em toda esta história não era agradável nem desejável.

- Isto não pode sair desta sala, Comte.

- Bem sei... A não ser que já tenha saído.

Giorgio levantou a cabeça, espantado. Que quereria o polícia dizer com aquilo?

- As paredes têm ouvidos e estas até enviam emails - explicou Girolamo.

O secretário do Papa olhou em redor para as paredes, os armários, os frescos, as tapeçarias, os objectos decorativos, uma arca enorme com motivos renascentistas, mandada fazer pelo Papa Júlio II, que se dizia ter os originais do Pentateuco no seu interior mas que nunca ninguém se dignara verificar. Será que estavam a ser escutados?

Girolamo sorriu.

- Descanse, Excelência Reverendíssima. Eu já verifiquei os apartamentos papais. Estão limpos.

Giorgio sentiu-se um idiota mas disfarçou com altivez.

- Tens a certeza?

- Absoluta. Podemos falar à vontade.

Giorgio já tinha delineado uma lista de suspeitos onde Tarcisio, o Cardeal Secretário de Estado, figurava no topo, seguido por Giovanni Angelo e Dominique François, todos com agenda própria e muito interessados no mal-estar do Papa quer fisicamente quer aos olhos dos fiéis, o Tomasini e, a fechar, o próprio Comte. O Papa Bento, sabia-se, já não era uma figura benquista pelos fiéis por natureza, não porque fosse pior que João Paulo Il, mas porque não era João Paulo lI. Nunca teria o carisma do Papa polaco, tão-pouco reinaria tantos anos e, não fossem as primeiras razões suficientes, não tinha a personalidade de Wojtyla. Era diferente em tudo, talvez fosse isso, a imagem intransponível que deu a esta Igreja Católica Apostólica Romana a sua longevidade. Giorgio conhecia bem os meandros daquele palácio. Conhecia as motivações e, em parte, as agendas escondidas. Eram três, só naquele palácio, sem contar com os outros edifícios em território Vaticano, os que ambicionavam ocupar o trono de Bento.

E para dois deles, o limite de idade estava quase a chegar. Se Bento não morresse antes de eles completarem os 80 anos de idade, nunca seriam Papas. Seria isso motivo suficiente para matar? O tempo di-lo-ia.

- Alguma teoria? - perguntou Giorgio, voltando a baixar a cabeça. Já não conseguia pensar.

- Porque não vai descansar um pouco e depois voltamos a falar, Excelência? - sugeriu Girolamo com uma ponta de sarcasmo.

Giorgio recusou com um gesto veemente com a cabeça. Não podia. Havia muita coisa em jogo.

- Será que a freira foi levada pelas mesmas pessoas que levaram o padre Niklas? - inquiriu Giorgio. Precisavam de chegar a algum lado.

- E não fizeram um pedido de resgate? Não creio. Acima de tudo porque nós não sabemos quem ela é.

- Pois. Mas necessitamos de saber. Faz um levantamento de tudo o que conseguires sobre ela. Alguma coisa deve haver.

O polícia levantou-se.

- Com certeza, Excelência.

- Precisamos de algum fio condutor nesta história.

- E se não existir?

Giorgio mirou Girolamo. Apesar de não confiar nele precisava dos seus serviços. Tinha um olhar clínico sobre os acontecimentos e uma mente mordaz, justamente o que necessitava. O Vaticano era um verdadeiro ninho de víboras onde prevalecia, literalmente, a vontade do mais forte. O Papa andava cansado, frágil, a desvanecer-se a cada dia que passava, restando somente a memória do seu vigor, daquele que outrora fora chamado de Panzerkardinal. Pior que esse declínio, próprio da idade e do fardo do cargo, era a alienação consentida do Santo Padre, uma conformação consciente que custava a Giorgio assistir.

- Como assim?

- E se os dois acontecimentos não tiverem nada a ver um com o outro?

Se forem dois assuntos separados? Se o caso da irmã Bernarda e do tal Lucarelli não tiver nada que ver com o rapto do Niklas e da moeda de troca?

Giorgio cogitou sobre as palavras de Girolamo. Claro que ele podia ter razão e nada ligar um e outro caso. Não o verbalizou, mas sabia que os dois estavam relacionados.

- Eu vou ter de ir ver o que se passa com o meu pessoal. Têm sido dias loucos. E o Tomasini não me tem deixado em paz - informou Girolamo.

- Compreendo. Não tem sido fácil, de facto. Eu também tenho de fazer uma visita.

Bateram levemente na porta, uma pancada ténue, medrosa, que parecia não querer incomodar.

Giorgio levantou -se.

- Sim? Entre.

A porta entreabriu-se para deixar entrar a medo o franzino assistente do Secretário de Estado a quem Giorgio fizera passar um mau bocado algum tempo antes.

- Que se passa, Theo? - quis saber o secretário do Santo Padre.

- O Cardeal Secretário de Estado solicita a presença do intendente com urgência no Secretariado, Excelência - informou o jovem, de cabeça baixa e mãos unidas.

- Porquê? Algum desenvolvimento no caso do Niklas? - perguntou Girolamo.

Theo fez que não com a cabeça.

- Não, Excelência. Aconteceu uma tragédia.

 

Tarcisio persignou-se e, enquanto se ajoelhava, beijou a cruz de ouro que lhe pendia à altura do peito. Uniu as palmas das mãos, apoiou gentilmente a cabeça nelas e fechou os olhos.

Todos os filhos de Deus mereciam uma prece para que fossem acolhidos pelo Pai, o supremo juiz dos actos, que haveria de decidir sobre o destino de todos.

Os paramédicos que transportavam os corpos aguardavam, com as macas alinhadas umas ao lado das outras, observando o cardeal genuflectido, em sinal de respeito.

Três dos corpos já tinham sido encaminhados para as ambulâncias mas o Secretário pediu que os fossem buscar, trazendo também o agente que tinha perecido na portaria. O ritual dizia respeito a todos, Deus não virava as costas a nenhum dos Seus filhos.

Ninguém se atrevia a fazer o mais pequeno barulho. O segundo homem mais importante do Ocidente, cujo ministério influenciava a vida de mil e duzentos milhões de fiéis, o primeiro, atrever-se-iam a dizer alguns mais temerários, estava mesmo ali na frente dos agentes da polícia italiana a beneficiar da sua ligação privilegiada com o Altíssimo.

Gennaro Cavalcanti observava a cena com desdém, um cigarro na boca com mais cinza que tabaco, a pender periclitantemente. Guillermo também imitara o cardeal, ajoelhando-se, assim como meia dúzia de prelados e alguns agentes sob a alçada de Cavalcanti, mais sensíveis ao mundo do além.

Davide, Arturo, um outro agente de quem não se sabia o nome, Duválio, John Scott e o agente da portaria. Todos chamados à presença do Senhor. A oração levou cerca de dez minutos, silenciosos, um sibilo mudo de rogo em favor das almas que haviam desencarnado.

Cavalcanti consultou o relógio, irritado com a inconveniência do ritual, e depois o seu olhar foi aliciado pela nova presença que assomara ao fundo do corredor com passos rápidos e firmes e se acercava da sala dos relatores. Era o último homem que Cavalcanti queria ver, por muitas razões, ligadas ao passado, e também pelo que significaria em termos de investigação dali para a frente. Sabia que ele viria, mais cedo ou mais tarde. Sentiu irritação e resignação, mas talvez a segunda não se tivesse instalado completamente pois acenou para um dos agentes se aproximar.

- Já levaram todas as provas? - sussurrou ao ouvido dele.

- Ainda não, inspector. Faltam algumas.

Cavalcanti matutou rapidamente e ciciou para o agente, o mais próximo possível da orelha.

- Vamos perder a jurisdição. Levem tudo o que puderem, sem dar nas vistas.

O agente acorreu a cumprir a ordem, com a maior discrição possível.

Murmurou alguma coisa aos outros agentes que se mantiveram nos seus lugares para não levantar suspeitas.

Gennaro Cavalcanti continuou a fitar o recém-chegado, descaradamente, facto que não passou despercebido, ainda que o visado não se tenha mostrado minimamente incomodado.

Tarcisio persignou-se novamente e foi ajudado a levantar-se por dois assistentes, um em cada braço. Quase dois metros de corpo, a dever muito pouco tempo aos 80 anos. Olhou em redor e, à porta da sala dos relatores, encontrou quem procurava. Bastou um gesto com a cabeça, uma permissão divina para o recém-chegado avançar com o distintivo acima da cabeça para que todos vissem.

- O meu nome é Girolamo Comte. Sou Intendente da Gendarmaria Vaticana. Estão em território soberano da Santa Sé. Agradeço que parem imediatamente o vosso trabalho e abandonem o local.

A voz era firme, sem margem para qualquer dúvida, avessa a desafios e contestações. Parecia um detective dos anos setenta do século XX, a quem nem faltava a gabardina creme.

Os técnicos forenses e os paramédicos da Polizia di Stato olharam para Cavalcanti à espera de orientação.

Girolamo avançou para o inspector.

- Que ideia foi a tua? - atirou o homem do Vaticano. - Agora invades território soberano sem autorização?

Cavalcanti encolheu os ombros.

- Foi uma gentileza do estado italiano. Apenas adiantámos trabalho ­ respondeu o inspector, carregado de cinismo.

- As normas legais não foram cumpridas. Podia prender-vos a todos.

Cavalcanti juntou as mãos e esticou-as na direcção do intendente como que num pedido para ser algemado.

- Prende-nos. Terei todo o gosto em conhecer as catacumbas. Têm espaço para todos?

Girolamo respirou fundo. Cavalcanti era intratável.

- Manda sair a tua gente.

- Claro.

Cavalcanti fez um gesto com a mão para que os seus homens dispersassem. Os doze técnicos e paramédicos começaram a sair da sala dos relatores. Um dos paramédicos começou a empurrar uma das macas para fora da sala mas Girolamo pousou uma mão possante na extremidade oposta travando-lhe a marcha.

- Os corpos ficam. - Era uma ordem sem direito a apelação.

Gennaro Cavalcanti deixou cair o cigarro em cima da alcatifa e pisou­o com o pé, manchando o tom carmesim com um pouco de fuligem negra.

Os agentes de Cavalcanti saíram da sala do colégio dos relatores e percorreram o corredor em direcção aos elevadores e à escadaria. No lugar deles ficaram os agentes de Girolamo.

- Queres que chame o Inspectorado? - perguntou Cavalcanti, referindo-se aos agentes da Polizia di Stato que asseguravam a ligação entre a República Italiana e o Estado Cidade do Vaticano, e tinham mesmo um gabinete no edifício da Gendarmaria.

- Se considerar que serão necessários, eu mesmo tratarei disso - respondeu o outro com uma nota de desprezo na voz.

Os dois homens odiavam-se. Não era sequer necessário conhecê-los para se perceber isso. Porém, ambos o sabiam e conviviam bem com isso. Não tinham idade para esconder sentimentos, muito menos para dissimulações.

- Muito bem. Sinto-me como se estivesse novamente em 1998 - atirou o inspector.

Girolamo fitou-o como se estivesse em cima de um altar e a razão nunca lhe fugisse.

- Os teus superiores vão ter conhecimento disto. Vamos apresentar uma queixa formal. - Depois virou-lhe as costas. - Boa noite, Cavalcanti.

O inspector italiano caminhou para o exterior da sala do colégio dos relatores e cuspiu para o chão, atitude vista com repulsa por quem testemunhou.

- Fico à espera da devolução das marcas – disse antes de sair. Vão-se lixar..., pensou para si mesmo, abandonando o local.

Girolamo Comte foi muito rápido a tomar conta da situação. Indicou aos seus homens que recolhessem todas as provas que os agentes italianos haviam embalado. Seguramente, o falcão matreiro havia levado algumas com ele, para não falar das provas fotográficas que nunca veria, pois Cavalcanti certificar-se-ia disso. Importar-se-ia com isso mais tarde. Acercou­se de Guillermo.

- Como é que permitiste que isto acontecesse? - perguntou com ar reprovador.

- Tu e os teus homens é que não estavam no sítio certo à hora certa...como sempre.

- Tenho três mortos que comprovam que estávamos no sítio certo à hora certa... Ele não tinha jurisdição.

- Nem eu - argumentou Guillermo. - Não existo, lembras-te?

- Nota-se.

O Cardeal Secretário de Estado aproximou-se dos dois homens.

- Eminência.

- Comte, que tragédia - balbuciou o piemontês com os olhos marejados e a voz embargada. - Já chamaste o Federico? - perguntou, referindo­se ao porta-voz do Vaticano.

O intendente anuiu com a cabeça.

- Deve estar a chegar. O que fazemos com os corpos, Eminência?

Tarcisio observou os sacos em cima das macas como se os estivesse a ver pela primeira vez. A sua expressão manteve-se introspectiva como se estivesse a procurar mentalmente uma solução ou, quiçá, a aguardar pela ajuda divina do Criador.

- É meu dever lembrar a sua Eminência que nestes casos de crime violento a autópsia é imperativa - notificou Girolamo.

Tarcisio saiu momentaneamente da sua letargia para fitar o intendente.

- Eu é que decido o que é imperativo ou não.

Um outro caso invadiu-lhe a memória, ocorrido meses antes, no próprio Palácio Apostólico, poucos pisos abaixo dos apartamentos papais, na Sala das Relíquias. Ursino, o padre que chefiava o departamento mais sui generis do mundo, fora assassinado. Dessa vez, conseguira debelar a situação. Nada se soubera na comunicação social. Este caso era diferente. Não havia como fugir da exposição pública. Requeria uma política de comunicação muito bem feita, com informação e desinformação, Os abutres já se acotovelavam à espera do exclusivo.

- Vamos enterrar os cinco corpos no cemitério de Montesanto... sem autópsia.

Girolamo assentiu. O Cardeal Secretário de Estado havia decidido e a ordem seria cumprida.

Um dos homens de Comte acercou-se dele e entregou-lhe um dossiê castanho.

- Era isto que procurava, senhor intendente? A PS ainda não a tinha processado como prova.

Girolamo pegou no dossiê. Era mesmo aquilo que queriam. Pelo menos alguma coisa correra bem. O dossiê já não seria problema para ninguém.

- O relator era brasileiro. O que vamos dizer à família, Eminência? ­ perguntou o intendente, guardando o dossiê para o analisar mais tarde.

Tarcisio respirou fundo. Precisava de Federico, de cabeça fria, para esboçar a versão oficial. Ele, melhor que ninguém, saberia como proceder, Estava mais do que habituado a apagar incêndios.

- Pois. Deixe-me pensar - desculpou-se o piemontês aparentando alguma desorientação.

- E o jornalista! - acrescentou Guillerrno.

Tarcisio não respondeu. Estava a pensar. Era uma situação difícil. Grave.

Não se tratava apenas de um padre ou guardas suíços, cenários fáceis de conter, independentemente dos teóricos da conspiração que em tudo viam crimes hediondos e disputas de poder. Tinha de medir bem as opções.

- Eminência - chamou Girolamo. - Eminência.

- O jornalista tem de ser autopsiado - ouviu-se a voz de Federico dizer.

O porta-voz acabara de chegar. Trazia um sorriso estampado no rosto que foi prontamente substituído por uma expressão pesarosa em sinal de respeito para com os defuntos que haviam partido para a Casa do Pai. Benzeu-se e beijou a própria mão no fim do rito. O piemontês despertou do entorpecimento apático com a chegada do porta-voz.

- Achas mesmo necessário?

- Tem de ser. Se não a fizermos aqui, fá-la-ão nos Estados Unidos. Temos de evitá-lo. Fazemo-la nós e depois enviamos o corpo para a família num caixão de chumbo selado para evitar surpresas. Assim não corremos riscos.

O Cardeal Secretário de Estado assentiu com a cabeça. Estava de acordo. O porta-voz tinha toda a razão. Era deste pragmatismo jesuíta que necessitava.

- E quanto ao relator brasileiro, padre? - perguntou Girolamo.

- Enviamos uma carta à família onde manifestamos a vontade dele em ser sepultado na Santa Sé. Eu mesmo trato disso. Pagamos a viagem à família para assistir à cerimónia fúnebre. Seria... - Federico deixou a frase suspensa no ar, o que deixou os outros três intrigados, e baixou o tom de voz para um sussurro. - Seria importante se o próprio Santo Padre realizasse os ritos fúnebres.

Tarcisio baixou o olhar. As relações entre o Secretariado e o Papa estavam a passar por uma fase turbulenta de mais para que se oferecesse para lhe pedir fosse o que fosse.

- Se me permitem, falarei com o secretário de sua Santidade para apresentar o pedido - sugeriu Girolamo.

O piemontês respirou de alívio.

- Excelente - congratulou-se o porta-voz, esfregando as mãos.

Alguns instantes de silêncio rodearam os quatro homens que evitaram entreolhar-se.

- Como está o outro assunto? - quis saber Federico.

- O prazo termina às oito da manhã - informou Guillermo, intimidado.

Aquele assunto já lhe dizia respeito.

- E já temos a moeda de troca? - perguntou Tarcisio.

Guillermo sentiu-se irrequieto.

- Tivemos um contratempo.

Girolamo lançou-lhe um olhar reprovador.

- Isto não é nenhum contratempo. Isto é o descalabro total.

- E onde estavas para evitar o descalabro? - atirou Guillermo, dando um passo em frente.

Os dois homens tinham um historial antigo de quezílias e disputas. Ambos conviviam com a sensação que estavam acima um do outro e que eram os preferidos do Santo Padre. Pareciam dois miúdos mimados à procura de atenção.

- Senhores - chamou o porta-voz jesuíta. - Acalmem-se. Têm tempo para resolver as vossas diferenças em privado. Estão na presença de sua Eminência. Respeito, por favor. Bom, tenho de ir dizer qualquer coisa à imprensa - acrescentou Federico, cheio de vigor.

- E qual vai ser a nossa versão? - perguntou Girolamo.

O porta-voz sorriu.

- Não existe a nossa versão - indicou, com ênfase no pronome possessivo. - Existe apenas a verdade oficial do Vaticano. E quando a Santa Sé se pronuncia não há necessidade de procurar outra versão.

- Deixo isso nas tuas mãos - pronunciou Tarcisio com uma voz fatigada. - Reunião no Secretariado às seis e quinze da manhã para fazermos um ponto da situação.

- Muito bem Eminência - disse Federico.

O Cardeal Secretário de Estado levantou um dedo.

- Isto é para todos. Para o menino de recados do Santo Padre também.

O piemontês encaminhou-se para o exterior da sala dos relatores, acompanhado pelos invisíveis assistentes e voltou-se antes de sair.

- Resolva-me o problema... Custe o que custar - disse para Guillermo antes de sair.

O porta-voz pretendia saber mais sobre o assunto Anna P.

- O que falta para resolver o problema da mulher?

- Pergunte ao homem dos serviços de informação porque é que ainda não sabemos dela - disse Girolamo em jeito de admoestação.

O porta-voz encarou Guillermo à espera de explicações e este, por sua vez, olhava com desdém para o intendente.

- O homem encarregado de a encontrar... - começou Guillermo, ocorrendo-lhe depois o teatro que Cavalcanti armara.

- O que tem?

Guillermo saiu a correr.

- Foi detido - disse antes de desaparecer pela porta.

A polícia italiana montara um perímetro de segurança com cerca de quinhentos metros. Na verdade, o termo mais correcto seria barreira jornalística, pois era efectivamente essa a função.

Gennaro Cavalcanti desceu até ao exterior em compassos lestos e perscrutou a praça como um falcão em busca da presa. Tinha de estar por ali. Só faltava localizá-la. Encontrou o agente que procurava junto a uma viatura descaracterizada, a falar com outro colega. Despediram-se e o agente entrou para o lugar do condutor. Em segundos, Cavalcanti alcançou a viatura, abriu a porta e olhou para o interior. Além do condutor, havia outro agente no banco de passageiro da frente.

- Saiam.

Os agentes olharam-no incrédulos. Cavalcanti tirou um molho de chaves do bolso e deu-o ao agente que estava no volante.

- Levem o meu carro. Eu levo este.

- Mas... Inspector - tartamudeou o agente.

- Anda. Não penses. Faz o que te digo - disse Cavalcanti, que começava a ficar irritado.

Os agentes saíram do carro e ficaram especados a vê-lo arrancar a grande velocidade e desaparecer de vista quando dobrou a esquina. Um deles segurava um molho de chaves na mão.

Instantes depois, um afogueado Guillermo Tomasini desceu à rua. A maioria dos agentes já se tinha ido embora, excepto os que controlavam o perímetro, e de Cavalcanti nem sinal. Acercou-se de alguns agentes que ainda permaneciam ali.

- Onde está o inspector Cavalcanti? - perguntou, ainda a recuperar o fôlego, libertando fiapos de vapor para o frio da noite.

- Acabou de sair - respondeu um dos agentes.

- E o detido?

Os agentes continuavam a olhar para o local onde tinham deixado de ver o carro que o inspector levara.

- Foi com ele.

Guillermo esmurrou o ar, revoltado, enquanto os agentes recuperavam a compostura e procuravam o carro do inspector. O homem do Vaticano consultou o relógio. Eram cinco e meia da manhã.

- Raios.

 

A casa era muito grande. Um palácio, mas sem a arquitectura habitual.

Era composta por patamares que se colavam ao declive da colina. Jacopo contou cinco até chegar a um conjunto de portas trancadas que não conseguiu abrir. Sentiu sede e procurou a cozinha, tarefa árdua numa casa tão grande com corredores em praticamente todas as direcções e portas por todo o lado.

Jacopo sorriu quando viu, pregadas nas paredes, placas com indicações.

Numa delas leu a palavra Cucina, justamente o que procurava, por baixo de outra que dizia Gallerie 1, 2, 3, e Bagno, indicando as respectivas direcções. Seguiu as instruções e subiu dois patamares, até encontrar outra placa que indicava que virasse à direita, ao fundo, outra à esquerda, e desembocou numa enorme cozinha, decorada com bom gosto, segundo a sua despretensiosa opinião.

Abriu o frigorífico gigante, mais alto e mais largo que Jacopo, e tirou uma garrafa de água grande. Não se perdeu a coscuvilhar os itens que se aconchegavam nas várias prateleiras de vidro. Procurou um copo na parte de cima dos armários.

Deitou água no copo e voltou a guardar a garrafa no frigorífico. Bebeu o líquido gelado de uma assentada e depois lembrou-se que fora extemporâneo guardar a garrafa. Repetiu os gestos anteriores e bebeu mais um pouco.

- Isso são nervos ou ansiedade? - ouviu uma voz feminina perguntar atrás de si.

Jacopo quase se engasgou com o susto e acabou por cuspir alguma água.

- Desculpe se o assustei.

Jacopo virou-se e viu uma mulher baixa, loira, com as marcas do tempo impressas no rosto formoso. Emanava uma calma ascética, quase como um anjo a pairar sobre o soalho de mármore. A voz era angélica, suave.

- Não faz mal. Eu é que lhe devo desculpas. Não devia andar a fazer barulho a esta hora.

A senhora aproximou-se dele.

- Nesta casa não se ouve nada. Escute - Levou uma mão à orelha como se quisesse estar atenta a algum ruído particular.

Jacopo manteve-se atento mas não conseguia ouvir nada. Nada de nada.

- Consegue escutar? – continuou ela, baixando a voz para um sussurro.

- Silêncio sepulcral. Esta casa é um túmulo. Além disso, tenho o sono estragado há muitos anos, senhor... - Deixou a frase suspensa no ar, propositadamente, para que o historiador se apresentasse.

- Jacopo Sebastiani - completou ele que, sem saber muito bem porquê, num acto involuntário, beijou a mão enrugada da senhora.

- Anna. Anna Lehnert.

Jacopo estremeceu ao ouvir o apelido, ainda que os seus aguçados ouvidos de historiador esperassem outro ainda mais sonante.

- Encantado, Anna Lehnert.

Anna exibiu um sorriso tímido.

- Tem um nome muito musical - elogiou a senhora ou, pelo menos, era essa a sua intenção. - O que o traz por aqui a esta hora da noite?

- A sede - brincou Jacopo. Não estava interessado em falar de coisas sérias, não por enquanto. - Temos um amigo em comum - acrescentou.

Anna baixou o olhar e envergou uma expressão pesarosa. O brilho plácido esvaneceu-se.

- Só tenho um amigo - confessou com mágoa.

- Estaremos a falar do mesmo? Do padre Rafael Santini?

Anna envergou uma expressão incomodada e esboçou um meio sorriso.

- Padre não, por favor. Para mim ele é o Rafa.

Rafa?, cogitou Jacopo. Nunca imaginaria que alguém trataria o frio Rafael daquela forma tão reducente. Rafa era nome de um miúdo rebelde que não bebia o leite e fazia birra para comer.

Anna serviu-se de água também. Pegou num copo e encheu-o até meio.

Depois tirou uma pequena caixa de plástico do bolso do roupão. Eram medicamentos. Tirou três e levou-os à boca. A água encarregou-se de os fazer chegar ao destino. Sorriu novamente.

Jacopo lançou-lhe um olhar condescendente.

- Eu tomo seis por dia. Isto já não funciona sem artifícios. É um para diluir o sangue, outro para o engrossar, mais um para o fazer circular e outros para reparar o mal que os primeiros fazem - disse o historiador com um sorriso.

Ficaram sem assunto e um silêncio sepulcral tomou conta do espaço e do tempo, sem temor do embaraço que o historiador sentia, muito mais que Anna.

- Há algum problema com o Rafa?

A senhora estava angustiada. Ele costumava ligar-lhe todos os dias, religiosamente, e nesse dia não o fizera. Não devia estar muito enganada. Os sentidos premonitórios não a enganavam, quase como uma mãe que conhecia telepaticamente o estado do seu filho, ainda que não fosse esse o caso. A ligação que os unia era muito forte. Temia pelo seu Rafa. Não desejava que algo de mal lhe acontecesse, apesar de tudo.

- Não. Ele está bem. Ainda há umas horas falei com ele - tranquilizou-a Jacopo. Na verdade não dissera nenhuma mentira, apesar de não estar cem por cento seguro do bem-estar do amigo.

Anna virou-lhe as costas, cismática. Talvez tivesse denotado alguma insegurança na voz do historiador.

- Sabe, estou demasiado habituada à rotina. Sempre tive horários definidos para tudo. Hora de comer, de descansar de ler, de aprender. Até enquanto criança os meus passos foram sempre medidos pela minha mãe... e pelo meu pai, de certa forma. - Os olhos marejaram-se-lhe. - Havia muitas limitações para uma criança que vivia dentro do Vaticano.

Jacopo engoliu em seco e sentiu-se enrubescer. Ainda bem que ela estava de costas para ele. Porque estaria ela a contar-lhe aquilo?

- Sempre fui muito controlada. Acabei por me habituar. A rotina faz parte de mim, tal como as minhas constantes insónias. Deve ser a minha punição nesta vida. Vivê-la num estado permanente de vigília.

- O Rafael está bem, Anna - disse Jacopo com mais confiança.

Ela continuava de costas para o historiador, que não a viu esboçar um sorriso frágil.

- Em breve o saberemos, não é? - hesitou. - Mas o que eu queria dizer é que o senhor é uma ameaça à minha rotina.

Jacopo manteve-se quedo e mudo, sem saber como reagir àquela confissão tão franca. Depois tentou dizer alguma coisa mas balbuciou.

- Eu... Eu...

- Não se justifique, Jacopo. Por favor. O senhor não tem culpa nenhuma.

Perdoe-me a minha sinceridade. Estou habituada à solidão. A ter longos monólogos comigo. Os telefonemas do Rafa são a melhor parte dos meus dias. Sinto-me no céu quando ele arranja tempo para me visitar. Não consigo desfazer o sorriso quando sei que ele vem visitar-me.

- Voltou a sorrir, imaginando o que sentia quando isso acontecia. - Sou um bicho-do-mato, Jacopo. Foi isso que fizeram de mim. Não é todos os dias que recebo visitas. Perdoe-me.

Jacopo acercou-se de Anna.

- Não causarei qualquer alteração à sua rotina. Prometo que eu e a minha esposa seremos invisíveis - garantiu com um sorriso infantil, apesar de saber que era mentira.

- Não me estou a queixar, Jacopo. - Baixou a cabeça. - A minha vida foi sempre obedecer... sem contestar.

Jacopo queria abraçá-la mas conteve o gesto. Não sabia como ela responderia ao toque. Por fim, decidiu avançar. Primeiro pousou -lhe uma mão terna no ombro e depois abraçou-a quando ela se virou para ele com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto.

Não foi só o sono que lhe estragaram, pensou o historiador.

Naquele momento, apercebeu-se de uma luz vermelha que piscava intermitente, junto à ombreira da porta. O sinal de chamada na porta de entrada.

- Chegou mais alguém? - perguntou Jacopo, ainda que soubesse a resposta.

Depois de alguns segundos a luz apagou-se.

Anna olhou para o sinal e depois para o historiador.

- Mais visitas.

Jacopo engoliu em seco e sentiu os pelos eriçarem-se com o calafrio de medo que o percorreu. Quem acabara de chegar?

 

O Alfa Romeo acelerou ao longo da Via della Conciliazione, deixando para trás a Praça de São Pedro e o Palácio das Congregações, os corpos e as mortes trágicas. Não havia trânsito àquela hora, o que facilitava em muito a condução de Gennaro Cavalcanti. Desrespeitou todos os sinais vermelhos que encontrou e atravessou a ponte Príncipe Amedeo di Savoia Aosta rumando à Piazza della Chiesa Nuova.

Rafael manteve-se em silêncio no banco de trás, as mãos algemadas e presas a uma barra de ferro que saía das costas do banco da frente. Olhava para o exterior, para as ruas da cidade adormecida, polvilhada, aqui e ali, de mendigos enrolados em cobertores que se encostavam num sono aos patamares das portas, e de equipas de limpeza que preparavam a cidade para o novo dia que em breve nasceria, para milhares de romanos e turistas de todo o mundo.

- Sois peritos no jogo do empata - protestou Gennaro Cavalcanti sem tirar os olhos da estrada.

- Assim sempre tens uma desculpa para te chateares.

- Agora chamas-te Santini? - perguntou o inspector, estendendo a mão para trás até sentir os dedos de Rafael, que recolheu o pequeno objecto.

- É o meu nome.

Instantes depois, ele libertou-se do jugo das algemas e saltou para o banco livre da frente.

- Quando te conheci chamavas-te Ivan.

- Não era o meu nome.

- Achas que perceberam alguma coisa?

Rafael fez que não com a cabeça.

- Estão mais preocupados com outros assuntos. - O padre estendeu a mão.

- Quero o meu lenço.

- O que é que se passou ali? - perguntou Cavalcanti enquanto o tirava do bolso e o devolvia ao seu dono.

Rafael guardou no bolso o lenço e começou a contar sumariamente o que presenciara, sem mentir nem omitir. Cavalcanti era um velho conhecido. Não se podiam considerar amigos, sabiam até muito pouco da vida pessoal de cada um, mas confiavam um no outro. Ivan, o nome de Rafael quando se conheceram, fora o seu contacto privilegiado dentro do território inimigo do Vaticano há alguns anos. Desde 1998 e do célebre caso dos guardas suíços assassinados. Rafael não escondera nada ao, à época, por castigo, chefe interino do Inspectorado de Segurança Pública para a Cidade do Vaticano. Cavalcanti também se dispunha a ajudá-lo sempre que era necessário, se tal não conferisse uma ilegalidade, obviamente. Embora Rafael não se prendesse a essas minudências, o inspector gostava do pragmatismo e da sinceridade do padre e admirava-o por procurar a sua própria posição dentro daquele ninho de víboras. Rafael servia a Igreja não tinha dúvidas sobre isso, mas, acima de tudo, prezava a verdade, custasse o que custasse a quem custasse.

- Sabes quem está por detrás disto tudo? - quis saber Cavalcanti.

Rafael encolheu os ombros.

- Desconfio.

- Conta-me.

E Rafael contou as suas desconfianças sem revelar a identidade de quem suspeitava. Não podia contar tudo. Havia coisas que era melhor guardar.

Algumas porque ainda careciam de confirmação, outras porque não queria que Cavalcanti as soubesse, pelo menos enquanto não fosse necessário.

- E o embaixador já sabe? - perguntou o inspector.

Rafael fez que não com a cabeça.

- E a mulher?

- Chama-se Sarah.

- Não. A outra.

- Chama-se Anna - corrigiu Rafael, que não conseguia expulsar Sarah do pensamento.

Esperava que ela estivesse bem, dadas as circunstâncias.

- E tu sabes onde ela está. - Cavalcanti não estava a perguntar. - Temos de calcular muito bem o nosso próximo passo.

Cavalcanti tirou os olhos da estrada e focou-os em Rafael.

- Por que razão me avisaste do homicídio em Sant'Andrea e na Tuscolana?

- Não te avisei.

- Engana-me que eu gosto - proferiu o inspector com um sorriso matreiro. - De qualquer maneira, há uma coisa que não percebo.

Rafael esperou que o polícia concluísse.

- Se te puseram a dormir no palácio, como é que conseguiste avisar a central do que tinha acontecido?

Rafael olhou para Cavalcanti, intrigado.

- Não consegui. Eu não avisei ninguém. Não te avisei do que aconteceu em Sant'Andrea, na Tuscolana e muito menos no palácio das congregações. Se tivesse sido eu, dizia-te. Quando recuperei os sentidos levei logo contigo.

Cavalcanti pegou no rádio do carro que estava preso a um fixador e levou-o à boca.

- Atenção, Central. Daqui Cavalcanti, 08745.

Uma voz roufenha e metálica invadiu o habitáculo através do aparelho.

- 08745, daqui central.

- Quero que me façam chegar a identidade de quem deu o alerta sobre os episódios de Sant’Andrea, Via Tuscolana e número 10 da Piazza Papa Pio XII. Urgente.

- 08745, em processamento.

Cavalcanti pousou o aparelho no fixador de onde o tinha tirado. Rafael respirou fundo.

- Quem será a toupeira que nos avisa antes de informar o Comte? ­ perguntou Cavalcanti, mais para ele mesmo do que para Rafael, que encolheu os ombros. - E agora?

- A Gendarmaria Vaticana já tomou conta do caso - declarou Rafael em jeito informativo, ainda que Cavalcanti conhecesse muito bem o procedimento.

- O cabrão do Comte.

- A versão oficial deve estar a ser transmitida pelo porta-voz, o Federico. Nunca será alterada. O Comte vai usar a tua brincadeira no Palácio das Congregações para te sacar a investigação da Tuscolana e de Sant’Andrea della Valle.

Cavalcanti mostrou-lhe a mão com o dedo do meio alçado num gesto obsceno. Depois aumentou o volume do rádio do carro onde já se ouvia a voz de Federico a explicar os terríveis acontecimentos daquela noite.

- Vai ter sorte - resmungou o inspector.

- Ah, e claro, vai tratar-te da saúde logo pela manhã. A tua conduta foi reprovável - proferiu Rafael, na tentativa gorada de imitar o intendente.

- Com isso posso eu bem.

Escutaram as palavras de Federico que saiam metálicas pelas colunas do carro.

... O Santo Padre foi arredado do seu sono pacífico com uma triste notícia. Os seus dilectos irmãos haviam-se matado uns aos outros. A tragédia ocorreu na Sala do Colégio dos Relatores da Congregação para a Causa dos Santos, do Palácio das Congregações, e nada está a ser deixado ao acaso pelos investigadores que continuam a trabalhar afincadamente para a solução deste crime hediondo...

- Sanado este caso - prosseguiu Rafael-, vão virar-se para nós. Cavalcanti passou a língua pelos lábios para humedecê-los.

- Temos de desaparecer por umas horas. Fazes ideia de qual deve ser o próximo passo?

- O teu devia ser ir para casa.

Cavalcanti sorriu.

- Querias. Estás detido, lembras-te?

Rafael ficou em silêncio durante alguns instantes.

- Há quatro relatores. Bertram, morto. Duválio, morto. Domenico, morto.

- Domenico? Quem é o Domenico?

- Aquele que vocês não conseguiram identificar na Basílica de Sant’Andrea.

Que filhos da puta - praguejou Cavalcanti, irritado.

- Sempre a sonegarem informação. Disseste quatro. Falta um.

- Falta o chefe deles. O Gumpel... Ainda está vivo.

Cavalcanti sentiu a adrenalina a percorrer-lhe as veias e espalhar-se rapidamente pelo corpo.

- De que estás à espera para me dares a morada desse tal Gumpel, Santini?

 

O Francês gostava de poder ter longas conversas com alguém cujo conhecimento admirasse, infelizmente sofria de uma limitação física que impedia a realização desse desejo. O cliente talvez se revelasse um excelente conversador mas, infelizmente, não teria como comprová-lo. As únicas conversas decentes a que se podia dar ao luxo aconteciam consigo mesmo. Por vezes, embarcava em grandes debates filosóficos mentais com mais do que um interveniente, nos quais usava os argumentos de Diógenes ou de Antístenes sobre a virtude de ser melhor revelada e não pela teoria, e mergulhava na introspecção durante horas. Somente os filósofos, poetas e escritores tinham capacidade para realmente desafiar o mundo, os sentidos e as sociedades. Os demais eram ovelhinhas que seguiam em rebanho quem mais habilmente as soubesse levar.

O cliente ficara incomodado com o que fizera no Palácio das Congregações. Devia tê-lo informado da presença dos três agentes da Gendarmaria Vaticana e não eliminá-los pura e simplesmente. Ele tinha meios para os afastar do palácio. Por vezes, o Francês tinha de improvisar e cabia ao cliente ser claro para evitar mal entendidos. Enfim, um mal menor e três mortes extra que não teriam um custo adicional.

O Francês não seguia ninguém, a não ser os livros, em lazer, e os censurados, em trabalho. Os livros eram a sua perdição. Consultou o temporizador e bufou de impaciência. Faltava pouco para o final do prazo que lhe haviam encomendado. No que a ele dizia respeito tudo estaria terminado antes da hora estipulada, mesmo contando com a imponderabilidade humana. O pior de tudo era a espera. Os malditos segundos que se tornavam em minutos e que, apesar de implacáveis, teimavam em demorar-se. O tempo era uma ilusão, sabia-o, mas não deixava de o torturar. O tempo existe apenas por uma única razão: para que as coisas não aconteçam todas de uma vez.

O seu método, se o cliente lhe tivesse perguntado, seria diferente. Não havia necessidade de andar de um lado para o outro, para cima e para baixo, largando lastro e gotejando rasto, ainda que ele, como profissional, deixasse marcas mínimas da sua passagem, apenas a morte. Quando revelou ao cliente que podia fazer... o trabalho todo de uma vez num mesmo espaço essa opção foi liminarmente recusada como se o que sugerira fosse idiota.

Devia cumprir o plano. Os locais e a ordem seriam indicados por ele, sem margem para mal entendidos. Niklas era o primeiro, peça crucial do plano. Aproveitar-se-ia a mesma ocasião para eliminar o primeiro relator, o Domenico. Era provável que tivesse de se livrar do tutor do miúdo, um alemão íntegro, como todos os outros, mas que seria um dano colateral perfeitamente aceitável e cujo nome não precisava de saber. Seguir-se-ia mais um relator, o Bertram, onde fosse possível, depois o brasileiro, nas mesmas condições. Era importante que os prazos não fossem ultrapassados mas que o guião fosse seguido.

Teve de improvisar ao longo do caminho, estava preparado para fazê­lo, ainda que odiasse o imprevisto, mas as coisas tiveram um desfecho positivo. Todos os planos humanos são sujeitos a uma revisão implacável por parte da Natureza ou do Destino, conforme preferirem chamar aos poderes que governam o Universo. Censurados os três relatores, o trabalho seguinte era especial. Um trabalho de artesão que requeria talento e sangue-frio. Um serviço poético para aquecer a noite fria e de muito trabalho. Relembrou as palavras do cliente, que lhe invadiram a mente, enquanto delineava meticulosamente o plano ao Francês. Cuidado com a reacção deles. Tendem a disparar em todas as direcções quando são atacados de uma forma tão incisiva e persistente. Era um alerta pertinente, não fosse esse o seu estado natural.

Estava na morada certa. Deixou-se ficar dentro do carro, em silêncio, e abriu o livro. Percorreu algumas linhas com o dedo como se buscasse um trecho específico que gostaria de reler.

Quando os homens já não crêem em Deus, isso não se deve ao facto de já não acreditarem em mais nada, mas sim ao facto de acreditarem em tudo.

O pior de tudo era a espera, a não ser quando lia e deixava os maus sentimentos serem consumidos pelo embalar das palavras.

 

Matteo Bonfiglioli sentia uma dor no estômago e um ardor que lhe causava náuseas.

- Acalme-se - proferiu o velho, sentado na poltrona, com as mãos apoiadas na bengala. - Isso não faz nada bem à sua úlcera.

Matteo desistira de tentar perceber como é que aquele avozinho tinha conhecimento da sua úlcera. Era óbvio que ele estava muito bem informado, talvez de mais, e não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso.

A mulher voltou a entrar na sala para ir buscar o tabuleiro com o bule e as chávenas de chá que haviam sido servidas há algumas horas. Há pouco tinha passado um pouco de pomada no pé dé Matteo, que havia sido queimado pelo chá. As mãos gentis afagaram-lhe a pele.

- Deixe ficar isso, Mia - ordenou o velho com alguma rouquidão na voz.

- Sente-se um pouco connosco. Desfrute da nossa companhia.

Mia ficou encabulada, sem saber como reagir. Era demasiado desajeitada para confraternizar. Já não o fazia há tanto tempo que tinha quase a certeza que esquecera o protocolo a aplicar nestas ocasiões.

- Vá. Largue o tabuleiro. Ele não vai a lado nenhum. Além disso, a Mia não está connosco para nos servir. O nosso anfitrião tem empregados para esse efeito. Sente-se -insistiu.

A freira acedeu ao pedido do idoso porque lhe pareceu uma ordem.

Nem lhe passava pela cabeça contrariá-lo. Dois passos tímidos até à poltrona ao lado dele, esticou bem a saia cinzenta para baixo e sentou-se, quase se afundando no assento. Limitou-se a observar a sala, sem nada dizer, não ignorando o facto de que Matteo não tirava os olhos dela. Ele estava agastado, preocupado, com receio, o que era perfeitamente natural, mas aquele olhar com que a brindava, e que ela fazia por ignorar, significava mais do que à primeira vista parecia.

Não estava mais ninguém na sala. O segurança do velho devia estar noutra divisão. Passou pela cabeça do veronês atirar-se novamente ao velho.

Não levaria um minuto a manietá-lo mas, seguramente, o gorila apareceria antes disso, como um espectro do além, pronto para repor a normalidade. No fim do processo, Matteo teria, provavelmente, mais algumas nódoas negras. Era melhor não arriscar.

- Como é que foi a adaptação à vida no convento? - perguntou o velho, o único impulsor de conversação presente na sala.

Mia não estava à espera daquela pergunta. Continuava a olhar para a sala. Estantes repletas de livros, alguns visivelmente muito antigos, quadros de artistas que desconhecia pendurados nas paredes, envoltos em molduras douradas ou cinza, e passe-partouts com fotografias de pessoas que não viviam naquela casa.

- Não vivo, propriamente, num convento - respondeu com simpatia.

- Sirvo o Senhor num retiro para religiosos, é um pouco diferente.

- E esse senhor a quem serve paga-lhe bem?

Por momentos ninguém disse nada. Mia não queria crer no que acabara de ouvir e Matteo arrepiou-se com a falta de sensibilidade do velho.

- Estou a brincar - esclareceu JC com uma gargalhada que o fez tossir e perder o fôlego.

Os outros dois sorriram mais por simpatia do que por verdadeira vontade de rir.

- O senhor não é crente? - perguntou a irmã Bernarda, nascida Mia.

O velho fez que não com a cabeça.

- Quando se vive o que eu vivi e se testemunha o que eu testemunhei, só se pode concluir que Deus não existe ou está de férias - respondeu com veemência.

- Já tinha ouvido alguém dizer algo do género.

- Pois. O que não falta no mundo são idiotas, e esses tanto faz que sejam crentes ou não.

JC encostou a bengala ao braço do sofá e recostou-se. Parecia cansado.

A respiração era audível, um apelo por ar que lhe alimentasse os pulmões.

- Não acredito em alguém que tem gosto em ver-nos envolvidos em lutas, a matar-nos uns aos outros, a competir ferozmente para sobreviver e, no fim disso tudo, como se não bastasse, dá o prémio depois da morte, no além. É um absurdo sem pés nem cabeça. E não pense que perco o sono a pensar nas criancinhas que passam fome em África ou no trabalho infantil na Ásia. Não é obra de nenhum deus mas sim do Homem. Todos sofrem à sua maneira, só que uns fazem-no em cima de uma cama, aconchegados por cobertores, enquanto outros estão à chuva e ao frio. Não se iludam, a única coisa que, verdadeiramente, impera neste mundo, é, como Darwin bem disse, a lei do mais forte. Os outros ou cumprem ou morrem. O mundo é, na realidade, muito simples.

Matteo e Mia escutavam a fria dissertação do velho sem saberem o que pensar. Por um lado, parecia um relato suportado por uma experiência vívida, mas por outro recusavam-se a aceitar tanto pessimismo.

- Acredita mesmo nisso? Parece-me que a maioria contraria essa lei.

JC sorriu.

- Sabe porque é que a maioria tenta contrariar a lei do mais forte?

Nenhum dos dois respondeu.

- Porque há um pequeno factor que tem um efeito catalisador muito poderoso e que nós, os mais fortes, providenciamos.

Deixou a ideia ficar em suspenso sem dizer logo do que se tratava, para acicatar a curiosidade. Fora bem-sucedido a avaliar pelas expressões inquiridoras de ambos.

- Esse factor chama-se esperança.

Matteo e Mia olharam para ele como se não tivessem compreendido.

- A esperança é o verdadeiro poder do mundo. A esperança em sair da pobreza, em subir na vida, em sair da aldeia e ter sucesso na cidade, em enriquecer, no amor. Basta dar-lhes a ilusão de que não são iguais aos outros e podem triunfar, e tudo funciona calma e normalmente, sem agitações, sem se magoarem uns aos outros. Apenas e só porque todos querem ser os mais importantes da sua rua.

- Eu não quero ser a mais importante - contrariou a irmã.

- Mas a Mia não conta. Virou as costas à vida. Desistiu. Olhe que aqui o Matteo é um bom partido. Vai bem embalado na sua ascensão... enquanto deixarmos, claro.

Matteo engoliu em seco. Mais uma achega à sua vida privada. Mia corou com a ofensa.

- Que quer dizer com desisti?

- Há muitas maneiras de ajudar o próximo e servir o seu senhor, como diz. Dentro de um convento ou de um retiro, onde se segue uma regra segura e estabelecida há muitos séculos, não é uma delas. A Mia e as suas irmãs não estão a servir ninguém. Estão apenas a salvo do mundo, dos perigos... e das tentações.

Aquele velho era demasiado seguro de si, e cáustico, para ela encetar uma discussão com ele.

- Em suma, há quem mande e quem obedeça. A Mia obedece, o Matteo manda - acrescentou JC, divertido com a situação.

No fundo, não acreditava em nada do que dizia. Já vivera tempo suficiente para saber que tudo se resumia a três pontos essenciais: nascer, viver e morrer. O que unia esses pontos eram os intervalos onde se tentava sobreviver a todo o custo.

- Porque é que estamos aqui? - perguntou Matteo, farto de estar cativo sem saber porquê.

- Porque os mais fortes assim decidiram - respondeu o velho, piscando um olho e esboçando um meio sorriso cínico.

- O que me vai acontecer? - não tinha a certeza de querer ouvir a resposta.

- O que tiver de acontecer. Não se preocupe, Matteo. Eu não lhe vou fazer nenhum mal, desde que cumpra as minhas ordens.

Matteo sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Que raio quereria o velho dizer com aquilo? Respostas. Precisava de respostas.

O gorila entrou na sala nesse momento, a mancar de uma perna.

- Já acordou - limitou-se a dizer numa voz seca e pouco amistosa.

JC levantou-se com um esforço tremendo, apoiando as duas mãos na bengala e firmando-a o melhor possível no chão. Mia prontificou-se a ajudá-lo, içando o peso pluma do velho pelo braço, com brandura.

- Obrigado, minha querida - agradeceu, recuperando o fôlego, e depois olhou para o manco.

- Vamos então dar uma palavrinha ao nosso anfitrião.

JC saiu da sala, auxiliado pelo gorila que funcionava como um substituto da bengala.

Um silêncio constrangedor instalou-se entre os dois desconhecidos que restavam, o veronês e a suíça. Mia entrelaçava as mãos no colo, nervosa.

Matteo levantou-se da sua cadeira e sentou-se na poltrona que o velho abandonara, ao lado da freira.

- Pode contar-me o que se está a passar? - perguntou num tom sussurrante.

Era um pedido de auxílio, de socorro, muito mais que uma simples pergunta. Os olhos brilhavam marejados, como se tudo dependesse da resposta dela.

- Eu não sei de nada. Apenas que estão ao serviço do monsenhor Lucarelli.

- Quem é esse?

- Não conhece?

Matteo fez que não com a cabeça.

- Ele ficou de vir cá ter.

Relembrou a noite, não sabia dizer se longínqua ou não, em que um desconhecido lhe entrara em casa. Sentiu o mesmo pânico que na altura.

Seria aquele monsenhor? Mas o desconhecido não tinha cara de padre, se bem que os rostos não revelem os ofícios.

- Não aguento mais isto.

- Tenha calma - sugeriu Mia, oferecendo-lhe a mão num gesto reflexo.

Deixaram-se ficar assim. As mãos a tocarem-se, olhos nos olhos. Mia não podia contar-lhe a verdade. Não podia. Seria demasiado duro para ele. Roma necessitava de uma oblação de vez em quando, assim lhe tinham dito, e Roma nunca errou, nem errava e jamais erraria. Matteo seria essa oferenda, para o bem da Igreja Católica Apostólica Romana e, por consequência lógica, de Deus Pai Todo-Poderoso.

O veronês levantou-se. Estava saturado, doíam-lhe a cabeça e os ossos.

Precisava de respirar ar puro, fresco, andar um pouco pela rua, sem rumo nem destino. Não aguentava mais estar preso.

- Quem mais é que está cá?

- Não sei. Não vi mais ninguém.

Matteo caminhou em direcção ao corredor por onde o velho e o manco tinham ido e observou. Nada. Estava escuro, excepto uma luz ténue ao fundo.

- Vou ver.

- É melhor não - arguiu Mia.

- Venha também - disse ele antes de desaparecer no corredor.

Mia sentiu a pulsação a acelerar. Levantou-se e seguiu o belo guia turístico veronês. Não pretendia imiscuir-se em assuntos que não lhe diziam respeito e tinha medo. Alcançou-o em poucos passos. Tentaram não fazer barulho. Avançaram devagar até chegarem à única porta aberta de onde provinha a luz que vertia para o corredor. Espreitaram para o interior do quarto, mesmo a tempo de ver o manco dar uma bofetada no rosto adormecido de um homem idoso que estava deitado na cama.

- Acorda - disse o gorila de forma bruta.

O velho deitado abriu os olhos a custo.

- Quem... Quem são os senhores?

Foi a vez de JC se debruçar sobre ele.

- Quem nós somos não importa. O importante é quem o senhor é, meu caro padre Gumpel.

 

Não se lembrava da última noite em que dormira em paz, tranquilamente, feliz consigo e com a vida. Talvez isso não acontecesse desde os seus 15 anos, já lá iam 29.

Não se queixava da infância. Fora muito feliz, era a lembrança que guardava com mais apego, numa esperança tenaz de voltar a sentir a mesma felicidade que a envolvera em criança. Um apego genuíno à vida, acicatado por uma curiosidade inata de querer saber mais, de querer saber tudo...

Até ao dia daquela fatídica revelação que a prostrou com brusquidão.

A curiosidade cessara abruptamente. Não queria saber mais nada. Mais nada. Tantos planos, tantas sensações, tantos amores para sentir... Chegou a culpar Deus, os santos, o Papa, os pais. Chegou a culpar a mãe biológica pelo simples facto de existir. Ninguém merecia. Ela não merecia.

Sentia que a vida se sobrepusera à sua vontade com tamanha frialdade, impondo-lhe escolhas que não eram suas, decidindo em seu nome, minando-lhe todos os planos. Odiava-a.

Cresceu amargurada, dorida, farta de si mesma, de tudo, de ter de cumprir as vontades dos outros e nunca as suas. Esteve para acabar com aquilo várias vezes. Pulsos cortados. Comprimidos. Trinta, quarenta, sessenta, tantos quantos estivessem na caixa. Engoliu-os em várias dessas noites de insónia, que eram iguais a todas as outras, há quase três décadas. Arrependia-se mal passavam da garganta e iniciavam a inexorável descida pelo esófago, com a sentença gravada pela primeira vontade. Quando o arrependimento chegava, um pouco mais tarde, corria a puxar o vómito tenaz, recuperador, salvador. E quando isso não resultava acordava o irmão, Pedro, que partilhava com ela a triste sina das impostas vontades. Atarantado, levava­a ao hospital, aflito, a rogar-lhe que lhe prometesse que não voltaria a fazê-lo. Ela não se lembrava se dizia alguma coisa nessas alturas que acalmasse o espírito angustiado do irmão.

No hospital, aconteceu em todas as vezes, era levada para uma área privada, longe de olhares maledicentes e intriguistas, onde lhe lavavam o estômago dos comprimidos letais. O homem com cabeção branco a sobressair da gola da camisa aparecia sempre no fim da limpeza e ajoelhava-se durante longos minutos aos pés da cama, mãos coladas uma à outra, cabeça baixa, olhos cerrados, lábios a sibilar em silêncio palavras da salvação. Por vezes, via o irmão a trocar palavras breves com ele. O padre colocava-lhe uma mão no ombro para o aquietar e saía do quarto sem nunca lhe dirigir um cumprimento nem qualquer outra saudação. Ele já tinha falado tudo com ela.

Estava habituada às sentinelas que lhe velavam a porta de entrada do apartamento, sempre do lado de fora, sem pretensão de importunarem, mas fazendo-o apenas pelo facto de estarem presentes. Eram sempre dois, vestidos de fato preto e camisa branca, o traje do ofício, gravata a condizer com a cor do fato, postura profissional. No início, tentou escutá-los, ouvir o que diziam um ao outro, encostando o ouvido do lado de dentro da porta.

Nada. Não conseguia ouvir nada. Não acreditava que passassem tantas horas em silêncio. Era inumano. Seguramente falavam, a porta é que devia ser à prova de som. Revezavam-se três vezes ao longo de cada dia. Dinheiro não era problema, ela sabia-o. Podiam ser seis ou doze seguranças, não fazia diferença. Deixou de se importar. Mesmo quando saía sabia que algum deles estaria na sua peugada a uma distância segura. Deixou de se importar... com tudo.

Os dias eram longos, assim como as noites. O irmão trabalhava, ela não.

Vivia os minutos, as horas, os dias, um de cada vez, lembrando-se de todos os momentos passados.

Esta noite não era diferente, não tinha de ser. O sono cutucava-a a espaços, acanhado, receoso, sem querer tomá-la completamente e arrastá-la para os braços de Orfeu. Depois de um primeiro sono muito leve, manteve-se acordada, com as mantas a aquecerem-lhe o corpo mas impotentes para lhe aquecerem a alma.

Pareceu ouvir uma batida leve, ao longe, mas logo decidiu que seria a mente a irritá-la com sons imaginários. Voltou a ouvir a batida com mais vigor na porta de entrada. Uma, duas, três, quatro vezes.

Levantou-se, calçou os chinelos e dirigiu-se lentamente para lá. Olhou para a porta do quarto do irmão. Estava entreaberta, como de costume.

Acercou-se e olhou para o interior onde viu Pedro a dormir profundamente.

Ele não escutara as batidas. Pelo menos um deles fora abençoado com um sono pesado.

Voltaram a bater, com mais força. Um, dois, três, quatro. Dirigiu-se para a porta e espreitou pelo óculo. Não conseguiu ver ninguém. Apenas a parede oposta, iluminada por uma luz alvacenta.

Abriu a porta e viu-o. Magro, com um olhar frio e um sorriso nos lábios. Os seguranças também ali estavam. Um caído no chão, de barriga para cima, inanimado, o outro sentado, encostado à parede, com o olhar vítreo e um buraco na testa de onde escorria um fio de sangue.

Ela fitou o homem, em pânico, uma sensação que desconhecera até àquele momento. Observou-lhe as mãos. Numa delas segurava uma arma, na outra, um bloco de post-its verde.

 

O sol ainda não tinha nascido, mas já havia algum trânsito na Piazza dei Cinquecento. Roma preparava-se para um novo dia, igual aos anteriores, tendo aquela praça como peça central ou não se localizasse ali a maior estação da capital, Termini, que ligava a cidade ao país inteiro e ao resto do continente europeu. Muitos usavam-na para se deslocarem para o seu local de trabalho, outros para viagens de lazer. Termini era uma das principais portas de entrada e saída terrestres da capital italiana. A gigantesca estação tinha mais de duas dezenas de linhas e era ainda servida por duas linhas de metro, uma central de autocarros de longo curso e outra para os que serviam a cidade.

Aquela praça era o coração da mobilidade romana, e Cavalcanti, seguindo as instruções monocórdicas de Rafael, contornou­a para seguir pela Viale Enrico de Nicola, um pouco mais à frente.

Onde é? - perguntou o inspector, atento aos números das entradas dos edifícios.

- Segue em frente - disse Rafael. - Contorna a Piazza dell'Indipendenza e continua.

Cavalcanti seguiu as instruções e entrou, um pouco mais à frente, na Via San Martino della Battaglia.

- E agora?

Rafael apontou para um palácio do lado de Cavalcanti.

- É ali no número 4.

Cavalcanti parou o carro em segunda fila e olhou para o padre com uma expressão irritada.

- Estás a gozar com a minha cara e com a do povo italiano?

Rafael não respondeu. Limitou-se a abrir a porta do carro e a sair, deixando o outro sem resposta. O inspector também não perdeu tempo. Saiu do carro e seguiu na esteira do padre que já tinha atravessado a rua para o outro lado.

- O que é que vais fazer? - quis saber o polícia.

O inspector ultrapassou-o e colocou-se à frente dele para o impedir de continuar em direcção ao edifício.

- Pára e explica-me. Sou de compreensão lenta mas estamos nisto juntos. Ou fazes isto comigo ou posso dificultar-te muito a vida. A escolha é tua - abriu o casaco para mostrar a arma que trazia dentro do coldre de Rafael parou e olhou para trás. Tinha pressa. Não queria perder tempo a dar satisfações mas Cavalcanti tinha razão. Era um aliado. Não podia torná­lo num oponente. Já tinha bastantes.

- Temos de equilibrar a balança. Eles têm alguém muito importante para mim. - Custou-lhe admiti-lo em voz alta.

- E qual é a vantagem em meter estes gajos ao barulho? - perguntou Cavalcanti, apontando para o edifício. Não estava a perceber.

- Eles vão acabar por saber, mais cedo ou mais tarde. Eu prefiro que seja já e por mim.

Que raio de ideia. Não fazia sentido nenhum.

Rafael contornou o inspector e colocou-lhe uma mão no ombro ao passar por ele.

- Anda. Já vais perceber. Confia em mim.

O inspector ficou a olhar para o padre.

- Confio em ti? Eu nem em mim confio. E o Gumpel? - quis saber o polícia.

- Está descansado. O Gumpel está controlado.

Cavalcanti resignou-se e seguiu até à porta de entrada. Isto é o que dá meter-me com gente da Igreja. Acercaram-se da grande porta castanha, a águia cravada por cima, na fachada do palácio, vigilante. Não havia câmaras à vista. A única que havia estava no intercomunicador em que Rafael pressionou para chamar a atenção de quem quer que estivesse de serviço àquela hora.

- Espero mesmo que saibas o que estás a fazer, Santini - advertiu o inspector uma última vez. - Caso contrário tomo conta do caso... de vez -ameaçou.

Uma voz sonolenta e impaciente fez-se ouvir pelo aparelho colado à parede.

- Que desejam? - perguntou em alemão.

- Boa noite - cumprimentou Rafael na mesma língua, debruçado sobre o intercomunicador. - Peço desculpa pela hora inconveniente mas tenho uma mensagem urgente para o embaixador.

- Da parte de quem?

- Padre Rafael Santini.

O aparelho ficou em silêncio durante uns instantes e pouco depois emitiu nova mensagem.

- Para qualquer assunto, deve dirigir-se à Embaixada da Alemanha para a Santa Sé, em horário de expediente, que fica na Via di Villa Sacchetti- indicou a voz maquinalmente.

A primeira abordagem não funcionara. Teria de experimentar uma segunda.

- Não está a perceber. Eu trago uma mensagem urgente para o embaixador da Alemanha para a República Italiana. É uma mensagem do Santo Padre.

Não levou muitos segundos até que um agente da Bundespolizei abrisse a porta e os deixasse entrar.

Como era natural nestas situações, quiseram que eles deixassem à entrada todos os aparelhos de comunicação e instrumentos letais, como a arma do inspector Cavalcanti. Podiam entrar, sim, mas de bolsos vazios. A hora era imprópria, as intenções desconhecidas, ainda que o mesmo lhes fosse solicitado se a hora fosse conveniente e as razões da visita conhecidas.

- A arma pode ficar, mas o telemóvel não. Somos muito amigos - zombou Cavalcanti para o agente alemão que lhe pedira o aparelho.

O agente pegou no auscultador de um telefone que estava pregado à parede e disse umas quantas palavras em alemão. Devia estar a informar que o inspector não queria deixar o telemóvel. Pouco depois, voltou a colocá-lo no gancho.

- Podem levar os telemóveis.

Subiram as escadas até um salão imponente no primeiro andar e foram avisados pelo agente de serviço que o embaixador viria em seguida. Dois homens, vestidos de negro, encostaram-se a uma das paredes, vigilantes, certamente com a intenção de intimidar os visitantes. Rafael e Cavalcanti não se sentiam minimamente incomodados com isso. Era normal. Fariam o mesmo se fossem eles os anfitriões. Era preciso não esquecer que ali, naquele edifício, naquele salão, estavam na Alemanha e não em Itália. Os dois italianos sabiam que os outros pertenciam ao BND, o serviço de informação alemão. Ambos se mantiveram em silêncio porque, primeiro, não tinham nada para dizer e, segundo, se o tivessem não o diriam ali onde as paredes tinham, literalmente, ouvidos. Os dois gorilas tinham auriculares transparentes que desciam pela parte de trás do pescoço e se enfiavam por dentro do casaco.

Cavalcanti limitou-se a observar o salão com um olho nos rapazes do BND.

Havia duas entradas para o salão, na mesma parede, uma em cada extremidade; seis sofás espalhados pela divisão; uma lareira enorme usada, simplesmente, como decoração, ao lado dos matulões da secreta; e quadros, vários quadros. O inspector italiano não tinha cultura suficiente nem interesse em classificá-los. Apenas os admirava sem saber que se tratava de um Sohn, um Füger, dois Nauen e dois Quaglio. Não saberia dizer tão­pouco se eram originais ou não. Tinha outros interesses e preocupações.

Conhecia muito bem o exercício que estavam a fazer. Os quatro homens mediam-se o melhor que podiam. Enquanto esperavam, sob vigilância, alguém, numa outra divisão do edifício, estava a recolher o máximo de informações possível sobre eles. Rafael decerto teria um cadastro impecável, o Vaticano encarregara-se disso, e o de Cavalcanti falava por si. Havia, no entanto, uma possível desvantagem. Tanto o seu superior como os de Rafael já sabiam onde eles estavam.

Um dos gorilas levou a mão à boca e disse algumas palavras.

- O embaixador vem a caminho - sussurrou Rafael. - O badameco já lhe deu indicação.

Um minuto depois entrou no salão um homem alto e loiro, olhos azuis, porte imponente a condizer com a posição que tinha e o fato que usava, rosto fechado de quem se levantou contra a vontade, o que era perfeitamente compreensível e nenhum dos dois homens responsáveis pelo encurtamento do seu sono censuraria. Vinha acompanhado por uma mulher mais nova, também loira, que vestia um conjunto de saia-casaco em tons de azul e collants de seda. Cavalcanti captou a beleza dela e olhou-lhe para os dedos à procura de um anel de compromisso.

- Bom dia, meus senhores - cumprimentou com uma voz áspera, num italiano bastante arranhado pelo alemão. - A que se deve esta visita tão inusitada?

- Bom dia, senhor embaixador - respondeu Rafael, em alemão. - Lamento a hora tão inoportuna mas a mensagem que trazemos não podia esperar.

- Que mensagem é que o Santo Padre poderá ter para mim? Tenho um colega no corpo diplomático que trata de todos os assuntos ligados à Santa Sé. Estou certo que ele não verá com bons olhos esta ingerência nos seus assuntos. - Notava-se alguma exasperação na voz do diplomata alemão.

- Não vais falar em alemão, pois não? É que... Baldei-me às aulas todas na escola - intrometeu -se Cavalcanti, a olhar para Rafael.

- O embaixador alemão para a Santa Sé será contactado no momento oportuno e se tal for necessário - prosseguiu Rafael, em italiano. - Duvido que o seja. E não se trata de uma ingerência. É um assunto que lhe diz respeito pessoalmente. Estava atento a todos os pormenores do embaixador. Os trejeitos, as palavras, os olhares, a respiração. Os gorilas continuavam encostados à parede, junto à lareira, inexpressivos. O embaixador aguardava que Rafael prosseguisse.

- Sejamos breves, então. Transmita-me a mensagem, padre Rafael.

A assistente abriu o bloco de notas e preparou-se para iniciar a transcrição da mensagem ipsis verbis. Rafael olhou para ela com um ligeiro sorriso malévolo. Cavalcanti também sorriu ao detectar-lhe o aro dourado no dedo anelar.

- Não creio que queira isto registado, senhor embaixador - avisou o padre.

O homem levantou o olhar e os calcanhares para ganhar ainda mais altura.

- Isso compete-me a mim decidir.

Rafael já sabia que seria aquela a resposta. Bastante explícita para que não restassem dúvidas sobre quem mandava. Podia não parecer, mas ali não estavam em Roma mas em Berlim.

- O seu filho Niklas foi raptado há cerca de trinta e cinco horas - atirou o padre a seco, como um tiro à queima-roupa, pleno de intenção.

A assistente ficou a olhar para Rafael sem que a caneta registasse uma só palavra. Não queria acreditar no que acabara de ouvir. O embaixador olhou para ela e para os seguranças encostados à parede.

- Deixem-nos.

A assistente fechou o bloco de notas, rodou sobre si mesma, e saiu dali para fora, sob o olhar atento de Cavalcanti. Não queria ouvir mais nada.

Cabeças rolariam seguramente. Os dois gorilas também saíram sem rodeios nem hesitações. O embaixador caminhou para a entrada mais à direita e fechou as portas, depois fez o mesmo com a outra.

Coitado, disse Rafael a si próprio. Acharia ele mesmo que estava a coibir outros de ouvirem o que se diria dentro daquele salão? Que crente. O BND devia ter todas as divisões do edifício minadas com microfones como era a sua obrigação. O acesso á informação começava por ouvir os que estavam dentro de casa, lição número um de qualquer agência de serviços secretos do mundo.

- Quem foi? - perguntou depois de se certificar que não havia mais nada aberto.

- Não sabemos.

O alemão começou a andar de um lado para o outro, exasperado, arrastou uma cadeira, sentou-se e respirou fundo. Instantes depois levantou-se e recomeçou a deambular pelo salão.

- Como é que isso aconteceu? - perguntou, finalmente.

- Ainda não sabemos.

- E o resgate? Nós não somos ricos. - Levou uma mão à cabeça e depois olhou para Rafael como se, de repente, tivesse começado a raciocinar. ­

O senhor disse trinta e cinco horas?

Rafael anuiu com a cabeça.

Cavalcanti deu um passo vigoroso em frente.

- Devo informar que a Polizia di Stato foi informada sobre este rapto há pouco menos de uma hora e não recebeu qualquer pedido de ajuda por parte da Santa Sé.

O embaixador ouviu as palavras do inspector e desviou a cabeça para Rafael com uma expressão circunspecta.

- Levaram trinta e cinco horas a chegar aqui?

Rafael nem tempo teve de censurar Cavalcanti. Não fora à embaixada alemã para tratar de minudências nem discutir culpas, a razão era outra.

- Não era suposto que os senhores fossem informados. Nem antes nem agora - respondeu Rafael.

O embaixador engoliu em seco.

- Não disse que vinha em nome do Santo Padre?

- Era a única forma de me receber. Peço desculpa. O Santo Padre nem sonha que estou aqui. O tempo para o resgate termina às oito horas da manhã. Se depender do Vaticano, o Niklas não será resgatado.

O embaixador acelerou a cadência dos passos. Ficou ainda mais nervoso.

- Como pode ser isso? Então e onde está o amor ao próximo?

Cavalcanti deu outro passo em frente.

- Sente-se, por favor, senhor embaixador - pediu o inspector. Na verdade, tantos passos de um lado para o outro estavam a irritá-lo.

- Como é que tudo aconteceu? Quero saber tudo - exigiu, sentando-se e levantando-se logo em seguida como se a cadeira tivesse uma mola.

- Esperem. Não vou conseguir poupar a minha esposa a isto, pois não?

Rafael e Cavalcanti fizeram que não com as cabeças.

O embaixador fechou os olhos e respirou fundo. Depois saiu do salão por uma das portas e deixou-os a sós.

- Ficou abalado - disse Cavalcanti.

- Tu também ficarias.

 

Esta noite, pela hora terceira da madrugada, o Santo Padre foi arredado do seu sono pacífico com uma triste notícia. Os seus dilectos irmãos haviam­se matado uns aos outros. A tragédia ocorreu na Sala do Colégio dos Relatores da Congregação para a Causa dos Santos, do Palácio das Congregações, e nada está a ser deixado ao acaso pelos investigadores que continuam a trabalhar afincadamente para a solução deste crime hediondo. Foram seis as vítimas mortais e o Santo Padre dirigiu-se, prontamente, à capela privada para rezar pelas suas almas. Quatro gendarmes, um relator e um jornalista estão entre as vítimas. As identidades serão tornadas públicas assim que as respectivas famílias forem informadas. Isso deve ser respeitado.

A descrição do que aconteceu não é fácil de comunicar mas é ordem do Santo Padre que nada se omita para que se evitem mal-entendidos e teses fantasiosas. Os motivos do crime foram passionais. O jornalista, inconscientemente, impulsionou este trágico final, ignorando que também o vitimaria. Estando a efectuar uma investigação livre em Roma sobre o trabalho do Colégio de Relatores, com as devidas autorizações do Vaticano, imiscuiu-se em assuntos privados de um dos relatores e desvendou uma relação ilícita que este mantinha com a esposa de um dos gendarmes. Não serão fornecidos mais dados sobre a senhora em questão que está, neste momento, em estado de choque e a receber acompanhamento psicológico. Compreenderão que não será fácil lidar com tal realidade e a perda do marido nestas circunstâncias. Num acto tresloucado, o gendarme atirou sobre o relator e o jornalista, e os colegas que o acompanharam tentaram dominá-lo mas sem sucesso. Fora de si, atirou sobre eles também e, no fim, acabou por colocar um ponto final à sua própria vida.

Seguindo a política de transparência preconizada pelo Santo Padre, coloco-vos também ao corrente de outras três vítimas mortais dos actos tresloucados deste gendarme, noutros locais da cidade, na sua busca pela verdade que o jornalista, sem querer, desenterrou. Foram dois relatores e um padre, um dos crimes ocorreu na Via Tuscolana e o outro na Basilica de Sant'Andrea della Vale. Como disse anteriormente, os investigadores estão ainda a processar os locais do crime. Não é um trabalho fácil, pois envolve irmãos nossos, mas, não duvidem, será feito com todo o profissionalismo. Haverá lugar a outro comunicado de imprensa ao meio-dia. De qualquer maneira, estou disponível para responder a qualquer dúvida que possam ter.

Federico leu o conteúdo da sua comunicação ao Cardeal Secretário de Estado, ao chefe da espionagem, Guillermo Tomasini, e ao intendente da Gendarmaria Vaticana, Girolamo Comte. Escutaram-no atentamente. A partir do momento em que aquele texto fora lido aos jornalistas, alguns minutos antes, não se podia voltar atrás. Todos tinham de estar sincronizados com a versão oficial do Vaticano. Não havia necessidade de procurar outras. O jesuíta fora hábil na história que engendrara para a opinião pública. Sabia que não podiam evitar o escândalo. Estava fora de controlo.

Mas a sua política de informação e desinformação era tão hábil que, apesar da dúvida, era sempre a história mais consistente. Os jornalistas iriam apontar incoerências, escritores haveriam de publicar livros, nos dois casos com boas intenções, mas todos esbarrariam na mesma parede de pedra, alta, espessa, dura, que não deixava ver a verdade. Essa ficaria, para sempre, do lado de dentro, escondida.

- Um jornalista intrometido, apanhado pela própria história que tentava investigar. Parece- me muito bem - elogiou Girolamo.

- É irónico - adjectivou Guillermo.

- E poético - sugeriu o porta-voz.

- E verdadeiro - argumentou Tarcisio na tentativa de aliviar o peso da consciência.

A verdade era que os desígnios de Deus pouparam-no ao fardo de mais um cadáver, em nome Dele, para preservar o bom nome da Santa Madre Igreja. Sim, ele dera uma ordem que não fora cumprida por diversas razões, mas o desfecho, esse, fora o que pretendera desde a malfadada reunião da manhã anterior com o jornalista norte-americano.

- Informaram as autoridades americanas? - quis saber o piemontês, desviando os pensamentos que lhe atacavam a mente com dardos de culpa velados.

- Já estão a par da situação - informou Girolamo, o líder máximo da investigação, para todos os efeitos. - Tomei a liberdade de convidá-los para assistir à autópsia. Terão também acesso a todo o processo da Gendarmaria, no final da investigação.

- Excelente - congratulou-o o porta-voz, que via conformidade entre o comunicado e as palavras de Girolamo.

- Também informei as autoridades brasileiras. Não colocaram qualquer entrave ao desejo de o relator ser enterrado no Vaticano. Celebrar-se-á uma missa em memória do padre Duválio, na Igreja de São Bernardo alie Terme, em data ainda a definir. Provavelmente amanhã. Convinha que enviásse­mos um representante - comunicou Girolamo.

Estava, manifestamente, a mostrar trabalho, ao contrário dos outros, como sugeria a sua expressão sardónica para Guillermo, a quem essa não passou indiferente. Irei eu em nome do Santo Padre – declarou Tarcisio com firmeza.

Finalmente, alguma coisa se compunha. As mentes lúcidas de Federico e de Comte aliviavam um pouco o ambiente, porém, ainda havia problemas.

- Isso é perfeito - elogiou o porta-voz. - Estamos em perfeita sincronia. Isso é importante.

Era altura de passar ao ponto seguinte da ordem de trabalhos. O mais difícil, contra um inimigo invisível, com demasiado poder.

- Antes de passarmos ao ponto crucial desta reunião - começou o Secretário voltando-se para Girolamo -, quero todas as entradas do Estado, os palácios da cidade, as residências, cobertas pelo estatuto de extraterritorialidade, com segurança reforçada. Não podemos facilitar. O que aconteceu hoje não pode voltar a acontecer. Nunca mais.

Girolamo assentiu com a cabeça.

- Será feito, Eminência.

Tarcisio entrelaçou as mãos em cima da secretária e suspirou pesadamente.

- E agora o problema Anna P. Temos de fazer alguma coisa rapidamente.

- Olhou para Guillermo. - Não preciso de vos lembrar o efeito devastador que se abaterá sobre nós se vier a público qualquer menção a essa senhora.

- Concentrou o olhar no porta-voz. - Nem a melhor versão oficial que possas engendrar nos livrará de um escândalo com proporções inimagináveis.

- A moeda de troca é apenas uma parte do problema, Eminência - acrescentou Girolamo. - Não podemos esquecer o padre Niklas e tudo o que ele representa.

- O padre Niklas não é problema nosso – acabou por dizer Tarcisio, peremptório. – Poderá muito bem ser mais uma vítima deste inimigo sórdido que não olha a meios para nos derrotar. Mas convinha tratarmos do problema da mulher. Ela não pode ser usada como moeda de troca. Tem de desaparecer do mapa... definitivamente.

- O Rafael foi detido pelo Cavalcanti. Precisamos de localizá-lo - sugeriu Guillermo.

- Mas o sacana do Cavalcanti não nos deixará chegar perto dele - contrapôs o homem da Gendarmaria.

- O Cavalcanti não vai dormir à porta da cela. Eu sei quem contactar - afiançou Guillermo.

- Trata disso, o mais depressa possível - ordenou Tarcisio.

Guillermo pegou no telemóvel e saiu do gabinete por uns momentos.

- Porque é que encomendei esta tarefa ao Rafaelí - recriminou-se o Cardeal Secretário de Estado, passando as mãos pelo rosto cansado.

- Porque sabia que ele cumpriria - alvitrou o porta-voz com um sorriso incentivador.

Tarcisio reflectiu nas palavras do porta-voz. Talvez tivesse razão. Rafael era leal, sobretudo às suas convicções. Ninguém podia acusá-lo de incoerência. Rememorou as palavras que proferira quando lhe encomendou a missão de resguardar a filha daquele que nem se atrevia a nomear.

Nunca divulgues a localização dela a ninguém. A não ser que o Santo Padre ta peça, pessoalmente. Guarda-a para ti. Eu não quero saber e mais ninguém à face da terra tem o direito de o saber. Sorriu levemente.

- Lá isso é verdade - corroborou por fim. - Um servidor tão fiel às vezes não é assim tão bom - proferiu, saindo da sua letargia. - Bom, mas independentemente dos problemas que possamos ter com o embaixador alemão, não podemos trocar a mulher pelo rapaz. Isso não pode acontecer.

- O embaixador alemão não nos poderá responsabilizar. Além disso, podemos sempre culpar alguém - argumentou Federico.

- Vamos aguardar pelo Tomasini. Espero que traga boas notícias. Girolamo avançou para a secretária de mogno e pousou um dossiê castanho.

- É melhor guardar isto no Torreão Nicolau V, Eminência.

Tarcisio arregalou os olhos. Aquele era o dossiê onde John Scott guardava os seus segredos. Felizmente tinham conseguido recuperá-lo. Aquele dossiê nas mãos erradas seria mais um escândalo. Abriu-o, ávido por alguma informação nova.

- Será que conseguimos descobrir a identidade de quem forneceu estas provas ao jornalista?

- Permite-me, Eminência? - pediu Girolamo, estendendo a mão.

O Cardeal Secretário de Estado entregou o dossiê a Girolamo que começou imediatamente a analisar os vários documentos. Extractos de movimentos bancários, fundos, fundações, requisições, depósitos, créditos, autorizações de transferência, de levantamentos, um sem número de cópias de faxes enviados e recebidos de instituições bancárias europeias, norte-americanas... Nada que mencionasse quem forneceu ao norte-americano aquela informação sensível, até que...

- Não pode ser! - balbuciou o intendente.

- O que foi? - quis saber Tarcisio.

- Que grande cabrão - praguejou Girolamo, esquecido do local onde estava. - Mil perdões, Eminência - pediu, quando se apercebeu da falta cometida, com o rosto enrubescido pela vergonha.

- Que se passa, Comte? Desembucha.

Guillermo regressou ao gabinete, guardando o telemóvel no bolso, e com uma expressão austera.

- Não trago boas notícias, Eminência.

Tarcisio desviou o olhar para o homem da espionagem e respirou fundo.

Guillermo encostou-se à porta e baixou a cabeça envergonhado.

- O Cavalcanti não levou o Rafael para San Vitale.

- Para onde o levou, então? - perguntou o porta-voz, curioso.

- Estão os dois na Via San Martino della Bataglia. Na Embaixada da Alemanha.

- O quê?

- O que é que eles foram lá fazer?

Ninguém respondeu. Aquele desenvolvimento era imprevisto. Que ideia passara pela cabeça de Rafael? O silêncio fora subitamente interrompido pelo toque estridente do telefone em cima da secretária.

- Sim? - proferiu Tarcisio quando atendeu. O seu rosto fechou-se, intensificando as rugas que lhe cobriam a face. - Dá-me um minuto. - Olhou para os presentes. - Tenho o embaixador em linha.

- Que desastre – deixou escapar o porta-voz, pensando nas consequências que aquele acto teria na opinião pública.

- Teríamos de lidar com essa situação, mais cedo ou mais tarde - avançou Girolamo, como se não fosse tão mau como isso.

- O Tomasini tem de colocar uma rédea aos seus homens - admoestou Tarcisio.

- Vou para lá - disse o homem da informação. - E não regresso sem ele.

Guillermo saiu do gabinete sem sequer se despedir como mandava o protocolo, mas ninguém se importou com isso. Era tempo de agir.

Tarcisio voltou a suspirar e levou o telefone ao ouvido.

- Vou enfrentar o pai irado e ver o que posso fazer para suster esta trapalhada.

- Diga-lhe que é importante manter este assunto em segredo - interpôs o porta-voz, remando a favor de uma posição mais favorável para si.

Antes de carregar no botão, o Cardeal desviou a atenção para Girolamo Comte. Não esquecera o assunto anterior.

- O que é que descobriste?

Girolamo tinha as mãos atrás das costas, apreensivo.

- Quem passou a informação ao jornalista.

Os outros dois homens arregalaram os olhos.

- Quem foi?

Girolamo olhou para um e para outro, incisivamente.

- Foi o secretário do Papa. O monsenhor Giorgio.

 

O embaixador tardou a regressar ao salão. Cavalcanti suspirava ao olhar para Rafael, que se mantinha sereno.

- Disseste que ia perceber tudo mas ainda não consegui perceber nada - proferiu o inspector como se estivesse a falar de outra coisa qualquer.

Rafael não comentou.

- Achas que o embaixador não acreditou em nós? - alvitrou o inspector.

- Tu acreditavas?

- Eu não - respondeu, fazendo um meneio negativo para acentuar a resposta.

- Não se deve recriminar ninguém por querer ter a certeza.

Cavalcanti fez uma expressão de desdém com a boca.

- Achas que foi ligar para o teu chefe ou para o meu?

- Para o meu - alvitrou Rafael.

- Gostava de saber o que vai nessa cabeça - cuspiu o inspector ao mesmo tempo que consultava o relógio. - A esta hora já todos sabem onde estamos.

- O que é que aconteceu ao meu filho? - ouviu-se uma voz feminina desesperada perguntar. - Onde é que ele está?

A embaixatriz entrou no salão, escancarando as portas, e correu para eles.

- Ele está bem - adiantou Cavalcanti, verificando se o embaixador vinha atrás dela.

As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto belo mas esmaecido. Os cabelos loiros estavam ainda emaranhados do descanso nocturno. Deixou-se cair no chão em desespero. O inspector avançou para ela e amparou-a.

- Tenha calma - disse-lhe o inspector. - Vai correr tudo bem.

A mulher levantou a cabeça e fitou Rafael, que acabou por desviar o olhar dela. Parecia que emanava ódio dos olhos, um ódio de morte.

- O que é que aconteceu ao meu filho?

Rafael agachou-se para ficar mais perto dela.

- Nada... para já. E vamos fazer com que nada de mal lhe aconteça.

O desespero tomava conta da embaixatriz. Alguns cabelos colavam-se ao rosto molhado pelas lágrimas de dor. O seu filho não. O seu bem mais precioso, aquilo que mais amava, tratado como saco de trapos, como objecto de negócio.

Quanto é que eles querem? Pagamos o que for preciso.

- Não querem dinheiro - retorquiu Cavalcanti.

A embaixatriz, lavada em lágrimas, arregalou os olhos, admirada.

- O que é querem, então?

Cavalcanti olhou para Rafael com ar inquisitivo. Podia dizer ou não?

O inspector acercou-se dela pronto para lançar o isco da sedução.

- Levante-se, minha senhora. Venha sentar-se, por favor.

Não esperou que ela acedesse ao pedido. Pegou nela, magra e leve como uma pluma, e sentou-a. Aquela aliança no dedo anelar exercia sobre ele um feitiço mortal. Não era, obviamente, o momento certo para qualquer tipo de investi da, no entanto nada impedia que a sedução começasse, branda, como uma música de fundo, presente mas invisível. Fez-lhe uma carícia ligeira na palma da mão com os dedos. Ele era um traste e sabia-o.

- O seu marido vai demorar? - quis saber o inspector, enquanto apartava do rosto dela os cabelos que se haviam colado.

Ela voltou a olhar para Rafael com a mesma expressão de ódio.

- A culpa disto é toda tua, não é? - atirou a embaixatriz.

Desta vez Rafael não desviou o olhar.

- É provável - confessou.

As lágrimas escorriam-lhe em torrente pelo rosto abaixo.

- Vá. Acalme-se - pediu o inspector, oferecendo-lhe um lenço de papel.

- O que é que fizeste, Rafael? O que é que fizeste ao meu filho?

- Não fiz nada, Nicole.

Cavalcanti ficou surpreso com a proximidade dos dois.

- Vocês... conhecem-se?

- Quando o Niklas me disse que queria ser padre foi como se me tivesse esfaqueado - confidenciou Nicole num desabafo embargado. - Como era possível? Padre? Estava a brincar comigo? Pensei que era Deus a vingar-se de mim. Eu mereço, Rafael. Não mereço?

- Deus não se vinga de ninguém - limitou -se a dizer o padre.

- O que é que se passa aqui? - perguntou Cavalcanti, confuso.

- Deus é perverso. Gosta de nos espezinhar, de nos ver a sofrer. Não bastava o Niklas querer seguir o teu... o teu... caminho. Não era suficiente. Tinhas de colocar a vida dele em perigo, não é Rafael? O que fizeste comigo não bastou?

Cavalcanti olhava para um e para outro, perplexo. Que raio de conversa era aquela? Parecia um discussão entre...

- Não era suficiente teres-me destruído! Também tens de fazer o mesmo com o teu filho? - acusou a embaixatriz, com uma última lágrima a soltar­se dos olhos marejados.

Cavalcanti largou as carícias e as seduções invisíveis e olhou para Rafael, chocado.

-Ah?

 

- Quem poderá ser a esta hora?

- Não faço ideia. Nada disto é normal- balbuciou Anna com o coração aos pulos.

Guardou a garrafa de água no frigorífico, colocou os dois copos na banca, para depois a empregada lavar durante o dia, e saiu da cozinha.

- Venha - disse para Jacopo, que a seguiu sem saber muito bem porquê.

Saíram para o corredor coberto por uma luz minguada, parca, mas mais que suficiente para verem onde estavam. Anna seguia à frente, devagar, os passos controlados pela idade, e Jacopo atrás, atento, com os nervos em franja a quererem saltar do corpo para se refugiarem no perigo. Percorreram o corredor sem que o historiador conseguisse detectar em que direcção seguiam, estava completamente perdido no meio daquele labirinto de cimento armado. Alguns metros mais à frente, Anna virou à esquerda e parou junto a uma porta metálica e muito pesada que parecia estar a guardar um cofre.

Ao lado, na parede, havia um teclado alfanumérico. Ela pressionou algumas teclas e a porta abriu-se para trás com um bafo mecânico. Lá dentro estava escuro, viam-se apenas cinco monitores que mostravam as áreas comuns do edifício, bem como imagens do exterior.

- Estamos numa das salas de segurança. Temos três. Se alguma coisa acontecer poderemos refugiar-nos aqui - esclareceu com tristeza na voz.

- Ensinaram-me isto há muito tempo.

Jacopo decidiu amenizar um pouco o ambiente soltando um sorriso, ainda que por dentro estivesse nervoso. A sala estava vazia. Concentraram-se nos cinco monitores. As imagens mudavam ao fim de alguns segundos, mostrando outra área da enorme casa, interior ou exterior, segundo uma ordem pré-estabelecida pelo computador central. Ao fim de alguns instantes apareceu a imagem que desejavam ver, do átrio da entrada, onde o guarda que recebera Jacopo e Norma falava com um homem alto.

- Isto não tem som? - perguntou o historiador, à procura de algum manípulo que lhe permitisse ouvir o que estavam a dizer na recepção.

- Não sei.

Jacopo não conseguiu encontrar nada que desse som ao que viam nos monitores. Continuaram a olhar para o écran até a imagem mudar para a sala da piscina coberta. A imagem do átrio tornou a aparecer, segundos... mais tarde, noutro monitor. Jacopo viu o segurança encaminhar o homem para o interior. Estremeceu quando o reconheceu. Estava todo vestido de negro e a qualidade da imagem não deixava entrever o cabeção branco que, certamente, envergava na gola da camisa. O que é que ele estava ali a fazer?

- Quem será? - perguntou Anna intrigada.

Jacopo não respondeu de imediato. Continuou a magicar nas intenções do recém-chegado e como ele conseguira obter a morada. Rafael não mencionara nada sobre aquilo. Alguma coisa não estava bem. Será que o Rafael perdera o controlo da situação?

Jacopo viu-os passar as portas de segurança da entrada e dirigirem-se para uma sala ampla com três sofás grandes, em couro, um enorme ecrã de televisão, uma mesa de bilhar propícia para momentos de lazer que, provavelmente, nunca aconteceram.

Jacopo e Anna continuaram a assistir a todos os passos dele pelos monitores, satisfazendo alguma da curiosidade. O segurança deixou o homem na sala e saiu. As câmaras mostrariam para onde ele se dirigia mas a mulher e o historiador preferiram manter-se atentos ao recém-chegado que permaneceu de pé, sem saber o que fazer às mãos. Parecia nervoso, desconfortável.

- O que acha que ele veio aqui fazer? - perguntou Anna sem tirar os olhos das imagens dos monitores que continuavam a saltitar pelas divisões da casa.

- Não sei mas não deve ser para falar comigo - respondeu Jacopo, apontando para o monitor onde se via o segurança a bater a uma porta. - Quem é que dorme ali?

Anna olhou para o local que Jacopo apontava e sorriu com um ligeiro tremor nas mãos.

- A casa pode ser muito grande, senhor Jacopo Sebastiani, mas tem poucas pessoas. Aquele é o meu quarto.

Para bom entende dor meia palavra basta. Anna olhou durante uns segundos para o historiador, respirou fundo, recompôs o roupão e saiu para o corredor. Não havia necessidade de deixar o segurança à espera em vão.

Encaminhou-se para o quarto, no seu passo trôpego, e sentiu a presença reconfortante do Jacopo, atrás de si. Ao fundo do corredor, viraram à esquerda e avistaram o segurança quase de imediato.

- Que se passa, Gustav? Andas à minha procura?

O segurança olhou para os dois com alguma surpresa. Não se tinha apercebido de deambulações na casa, o que não abonava muito a favor da sua vigilância.

- Sim, senhora. Tem uma visita para si.

- E não pode esperar pela manhã? O horário é inconveniente, não te parece?

- É urgente, senhora. Peço desculpa - disse, baixando a cabeça como se a culpa fosse sua.

Anna fitou Jacopo que estava ao seu lado com uma expressão inquisitiva e depois voltou a desviar o olhar para Gustav.

- Vamos.

Não valia a pena colocar entraves ao inevitável. Anna sabia que apenas conseguiria atrasar as coisas. Pela manhã, ou quando decidisse recebê-lo, o homem ainda estaria na sala à sua espera. Por outro lado, agregado à apreensão, sentia um misto de curiosidade e vontade de perceber o que se estava a passar naquela noite tão diferente de todas as outras fastidiosas que viveu. Sabia que assim seria, mas não com tantas imponderabilidades. Gustav ficou à porta quando chegaram à sala e deixou-os entrar, antes de regressar para retomar o seu posto na cabine do átrio.

O homem estava de costas quando eles entraram, e os passos suaves de Anna e Jacopo não os denunciaram. Só um ligeiro pigarreio do historiador chamou a atenção da visita que instantaneamente se virou para eles.

O cabeção branco, na gola da camisa, acusava a função. Cravou os olhos em Jacopo e não disfarçou o espanto.

- Doutor Sebastiani, que bom vê-lo - disse com uma voz fatigada.

O padre acercou-se de Anna e pegou-lhe na mão com gentileza, como se estivesse a tocar em algo frágil ou divino que não quisesse estragar ou conspurcar. Antes de lhe beijar a mão, de olhos fechados, ajoelhou-se, uma lágrima escapou-se da pálpebra e desceu timidamente pelo belo rosto.

- Oh! Senhor - balbuciou Anna, sem perceber a razão para tanto enleio.

- Perdoe-me o adiantado da hora - escusou-se o prelado. - Mas o padre Rafael pediu-me para vir ter consigo.

- O Rafael? - perguntou Jacopo, admirado. Não lhe tinha dito nada.

Que estranho.

- Sim - respondeu o homem.

A visita não largava a mão de Anna, nem desviava o olhar dela, ao ponto de a fazer sentir-se constrangida.

- Não temos muito tempo - advertiu o prelado. - Mas tenho tantas perguntas para lhe fazer. Tantas, tantas. Nunca pensei conhecer pessoalmente a filha do Papa.

Anna combateu o constrangimento com um sorriso e tirou a sua mão da do desconhecido.

- Quem é o senhor? - perguntou por fim, desconfiada.

Ele levou uma mão à testa.

- Peço desculpa pela minha falta de educação. Onde é que tenho a cabeça? Como é possível não me ter apresentado? O meu nome é Giorgio.

Sou o secretário de Sua Santidade.

 

Nenhum deles disse nada durante muito tempo. Não saberiam dizer se seria da comoção ou, simplesmente, da falta de assunto que, por norma, se instala nestas situações. Apesar de não ser uma novidade para ela, o cárcere, fosse por razões legais ou desconhecidas, como era o caso, não lhe conseguia evitar uma sensação claustrofóbica. A ideia da porta trancada e de a chave que a abria não estar nas suas mãos lançava-a num desconforto vertiginoso, ao qual se podia adicionar a fadiga extrema causada pela excitação do momento e pela doença de que ainda estava a recuperar. Sentia-se combalida, magoada, com frio e preocupada. A imagem de Rafael não lhe saía da cabeça, e não saber se ele estava bem perturbava-a para além do suportável. Tinha os olhos marejados pelas lágrimas que a sufocavam silenciosamente e um aperto no peito por temer o pior. O rapaz levantou-se da cama onde estava sentado e começou a vestir-se. Não queria estar em roupa interior na presença de uma desconhecida, apesar das circunstâncias e do calor.

- A senhora está bem? - perguntou, preocupado.

Sarah sorriu timidamente para disfarçar o mal-estar e os maus pensamentos.

- Estou. E tu?

Niklas suspirou.

- Não sei.

Sarah compreendia-o muito bem. A indefinição do futuro, o desconhecido, o descontrolo absoluto sobre a própria vida eram sensações que ela conhecia muito bem e de que também não gostava.

- O que é que a senhora faz? - perguntou o jovem padre para fazer conversa.

- Chama-me Sarah - disse a jornalista, a quem o termo lhe fazia lembrar uma pessoa mais velha.

Niklas pigarreou nervoso.

- O que é que a Sarah faz?

- Sou jornalista - respondeu, e depois apontou para a cabeça coberta com um lenço. - Mas não tenho estado em funções.

Niklas rangeu os dentes no que parecia um tique nervoso. Vestira as calças e estava a abotoar a camisa.

- Lamento. Não deve ser fácil.

- O pior já passou.

Obviamente que a jornalista referia-se à doença e não ao resto.

- Ainda bem.

- Tu és padre, não és?

Niklas fez que sim com a cabeça. Já vestido, encostou-se à parede e desceu por ela até se sentar no chão frio de cimento. Queria tomar um banho quente e deitar-se na cama do dormitório do Collegium Germanicum e dormir até sarar as feridas do corpo e da alma, até esquecer tudo o que viu na basílica, apagar da mente os contornos do rosto e os olhos frios do carrasco de Luka e do outro padre. Pensou na mãe e se ela teria sido informada do que lhe tinha acontecido. Esperava que não. Implorou, mentalmente, a Deus que a poupasse a tal sofrimento.

- E gostas? - perguntou Sarah, interrompendo a cadência de pensamentos que acometera o rapaz.

- De quê?

- De ser padre.

Niklas encolheu os ombros. Ainda não tinha uma resposta concreta àquela pergunta. Na verdade, era isso que procurava. Não disse nada a Sarah, mas relembrou o olhar triste da mãe quando lhe comunicou a sua decisão de enveredar pela vida eclesiástica. Queres vingar-te de mimi, perguntou­lhe chorosa. Ele ouviu-lhe os soluços e as lamentações quando ela pensava estar sozinha em casa, se podiam chamar casa aos diferentes paláciosque percorriam por todo o mundo, à sombra da brilhante carreira diplomática do pai. Manila, Cairo, Berna, Roma. Ouviu-lhe outras coisas muito antes. Uma embaixatriz passava muito tempo sozinha, a remoer os dias.

Não sabia se tinha sido uma crise de solidão ou se fora planeado, mas, numa tarde de chuva, no apartamento de Munique, numa das longas ausências paternas em nome da pátria, ela contou-lhe. As palavras ficaram­lhe gravadas na mente, jactantes, imutáveis, inapagáveis, transcrições fiéis do que ela lhe transmitira com uma voz ciciante, poucos dias depois de ele ter feito 14 anos.

O seu nome era Rafael. Ele era padre. Eram novos. Aconteceu. Não se arrependia, de maneira nenhuma. Niklas fora o melhor que lhe tinha acontecido na vida. Era uma relação impossível. Klaus assumiu-o como se fosse dele. Nunca quis saber quem era o pai e ela nunca quis dizer-lhe. Era melhor assim. Aconteceu. Para todos os efeitos só tinha um pai. O Klaus.

O único que sempre tivera e continuaria a ter.

Queres vingar-te de mim?, foi o que ela perguntou com as lágrimas a escorrerem em catadupa, inundando o rosto, anos mais tarde, quando foi a vez de Niklas lhe contar a opção eclesiástica. Talvez. Pensava agora para si mesmo, ali, rodeado pelas quatro paredes sem janelas, uma lâmpada fraca que iluminava a divisão que partilhava com aquela mulher doente. Se calhar fora mesmo por vingança.

- Gosto - acabou por dizer. - Deus coloca-nos à prova a todos e temos de estar sempre prontos para O seguir para onde Ele desejar.

Sarah não disse nada. Aquelas palavras soaram-lhe vazias de conteúdo, como as que se proferiam para se parecer parecer inteligente ou para se patentear uma verdade maior, inatingível por alguns, como ela. Niklas era demasiado novo para criar aquelas patranhas, mas tinha a idade certa para crer nelas.

Ou então era ela que estava amarga e revoltada. Tinha razões para isso e aquele dia estava a ser longo de mais. Queria adormecer para o fazer chegar ao fim de vez, e nada a impedia de o fazer a não ser a ansiedade, os nervos, a dor. Eram duas vítimas naquela masmorra de paredes imundas.

Perguntou-se como estaria John e sentiu náuseas.

- Conheces alguma Anna P.? - perguntou Sarah, do nada.

Niklas olhou para ela, surpreso. A que propósito surgira aquela pergunta?

- Anna P.?

- Sim. Anna P. Já ouviste falar? E Mandi, conheces? - acrescentou.

Niklas desconhecia aqueles nomes. Será que ela estava a fazer uma investigação jornalística e fora apanhada a mexer onde não devia? Antes de Sarah chegar, pensara nas razões por que aquilo lhe estava a acontecer. Desbravou mentalmente todos aqueles que conhecia e não conseguiu encontrar outro motivo para o rapto a não ser o facto de ser filho do embaixador da Alemanha. Fez que não com a cabeça para responder à pergunta dela.

- A Sarah conhece-as? - questionou, decidido a tentar perceber o que ela sabia.

-Não.

- Quem são elas?

- Não importa.

NíkIas fitou-a com ar inquisitivo.

- Já ouviste falar do padre Duválio, do Colégio de Relatores? - Nova pergunta de Sarah.

- Padre Duválio? Nunca ouvi falar.

Niklas levantou-se muito depressa com os olhos a brilhar.

- Sabe se ele está bem? - quis saber o rapaz, ávido de noticias. Será que também fora vítima como os outros padres?

- E porque não haveria de estar? - tornou a mentir, relembrando o cinto no lustre e o corpo a debater-se pela vida. Até para ela foi aflitivo ver.

- Quando fui raptado mataram dois padres - explicou, tentanto não rever mentalmente a cena. - Um era o meu tutor, o padre Luka. Não cheguei a saber o nome do outro. Mas se esse padre que refere está bem...

- A última vez que o vi estava óptimo.

- E isso foi há muito tempo?

- Não. Vi-o há poucas horas - respondeu Sarah sem revelar como tinham sido interrompidos no Palácio das Congregações pelo homem encapuzado que a trouxera para aquele lugar.

O rapaz ficou calado a olhar para ela como se estivesse a avaliá-la. Gravou na memória os três nomes que a jornalista perguntara. Anna, Mandi e padre Duválio. Não sabia quem eram, mas na condição em que estava todas as informações eram importantes.

- Conhece muitos padres? - quis saber Niklas, apalpando terreno.

- Alguns. Porquê?

O rapaz engoliu em seco mas decidiu arriscar.

- Conhece o padre Rafael Santini? - atirou.

- Claro que conheço. Ele estava comigo quando visitámos o padre Duválio. De onde é que o conheces?

Niklas engasgou-se mal ouviu a resposta e teve que se debater por ar.

Sarah afligiu-se ao vê-lo daquela maneira mas não sabia o que fazer para ajudá-lo. Aos poucos, Niklas recompôs-se e recuperou o fôlego.

- Estás bem?

- Es... estou - respondeu o rapaz ainda com alguma dificuldade em falar.

Aquela mulher não só conhecia o pai dele como estivera com ele.

Niklas não o conhecia pessoalmente. Nunca o vira. Tentara várias vezes, mas ele acabara sempre por escapar como se o estivesse a evitar. Os desígnios de Deus eram insondáveis. O chavão servia para se convencer a si mesmo dos destinos desencontrados entre filho e pai.

Chegou a ir à paróquia onde ele era titular, numa aldeia a pouco mais de uma hora de Roma. Não o encontrou. Foi recebido pelo padre substituto e informado que raramente o padre Rafael se deslocava à paróquia.

Afazeres inadiáveis ocupavam-no em Roma, quase exclusivamente, há cerca de cinco anos, o que tornava, na prática, o substituto em titular. O padre, muito simpático e disponível, não sabia que trabalhos fazia Rafael.

Era muito recatado e falava pouco sobre a sua vida ou, pensando bem, sobre o que quer que fosse. A última vez que lá fora tinha sido há mais de um ano e demorara-se poucos dias. Havia quem dissesse, confidenciou ele, que o padre Rafael era íntimo do Santo Padre mas, perguntado sobre isso pelo substituto, o titular disse-lhe que nunca tivera o privilégio de o conhecer. De qualquer forma, a sua vida era um mistério. Mais um ingrediente a acrescentar, pensou Niklas na altura. Rafael era um homem misterioso. E a jornalista dizia que o conhecia.

- Como é que conhece o padre Rafael?

Sarah suspirou.

- É complicado.

- Sabe onde posso encontrá-lo? - perguntou, a tentar esconder a sofreguidão da pergunta.

A jornalista encolheu os ombros.

- O Rafael não é um padre como os outros; como tu.

O que quereria a mulher dizer com aquilo? Para além da perfeitamente escalonada hierarquia católica, onde figuravam o Papa, os cardeais, os arcebispos, os bispos e os padres, um padre era um padre. Uns poderiam ter mais responsabilidades administrativas, outros pastorais, mas não deixavam de ser padres, aos serviço do Pai, do Filho e da comunidade.

- O que é que quer dizer com isso?

Sarah não sabia como responder. Talvez tivesse falado de mais. Não era suposto que meros padres tivessem conhecimento de outros que agiam na sombra para que eles pudessem cumprir os seus deveres com tranquilidade.

Só espero que esteja tudo bem com ele, pensou depois.

- Digamos que ele é um padre mais vocacionado para o serviço administrativo do que para o pastoral - explicou, evasiva.

Nesse preciso momento, interrompendo a conversa, a porta emitiu uns estalidos e ambos sentiram o coração disparar. Encostaram-se o mais que puderam à parede oposta e fixaram os olhos na tenebrosa abertura que os separava da liberdade. Abriu-se durante o tempo necessário para deixar entrar outra pessoa e logo se voltou a fechar com um estrondo seco. Sentiram a fechadura a trancar como uma sentença. Não conseguiram sequer ver o rosto da sentinela.

O novo elemento aninhou-se junto à porta, tremia e soluçava timidamente, como se não quisesse importunar.

Sarah e Niklas não sabiam muito bem o que fazer nem o que dizer. Aos poucos conseguiram perceber que se tratava de uma mulher. Sarah aproximou-se dela, agachou-se e colocou-lhe uma mão terna nas costas.

- Tenha calma. Isto vai passar.

Niklas, mais desconfiado, acabou por se aproximar também. Os soluços da mulher intensificaram-se e fizeram-no agachar-se.

- Não chore. Deus dá o fardo mas também dá a força para o suportar.

Sarah lançou-lhe um olhar reprovador. Será que aquilo resultava com as outras pessoas?

- Deus abandonou-me há muito tempo - disse a mulher com veemência.

Sarah usou os seus dedos para lhe limpar as lágrimas do rosto.

- Ninguém nos vai fazer mal - mentiu para a tranquilizar. Não fazia ideia se lhes iam fazer mal ou não. - Como é que se chama?

A mulher acalmou e fitou-os aos dois com atenção pela primeira vez.

- O meu nome... - balbuciou - O meu nome é Mandi.

 

 

                                       TEMPUS FUGIT

 

Fechei os olhos a demasiadas coisas durante

demasiado tempo. Sinto que uma força lenta

e subtil está a tomar conta da minha mente.

Madre Pasqualina

Santa Sé Junho de 1983

A vida é feita de decisões. Esquerda, direita, avançar, recuar, aceitar, recusar, fazer, não fazer... Escolhas permanentes, a todos os instantes, algumas banais, insignificantes, outras importantes que requerem maior reflexão, e aquelas que ninguém controla e vão surgindo pelo caminho, como... viver ou morrer, matar ou ser morto.

Os tiros que lhe ecoavam nos ouvidos quase o ensurdeciam. Primeiro, segundo, terceiro… Ligeira pausa, alguns segundos, confusão, visão turva …

Quarto, quinto… Foi empurrado para trás com uma força sobre-humana… sexto. Seguiu-se um silêncio cavado, sepulcral, quase tétrico, como se o tempo tivesse parado. Não sabe dizer quando é que as pessoas começaram a gritar, tão-pouco quando começou a dor pungente que lhe percorreu as entranhas, do abdómen ao coração. Sentiu alguns pares de mãos a ampará-lo, o carro a acelerar pela praça, milhares de pessoas a acotovelarem-se e, depois, nada...

Há dois anos, quando isto aconteceu, acordara seis horas mais tarde, no hospital Gemelli, combalido, cheio de dores, com prognóstico reservado. Naquele dia acordara a suar, na cama do seu quarto nos apartamentos papais.

Era um sonho recorrente. Quase conseguia sentir a dor e o sabor ácido na boca, uma mistura de sangue e metal. De vez em quando sentia uma pontada nas cicatrizes que marcavam os pontos de entrada das balas. Uma recordação que jamais o largaria.

Ansiava pelo dia em que deixasse de reviver aquele momento traumático.

O som dos tiros, os gritos, a dor... o atirador. Disseram-lhe que os disparos ocorreram a metro e meio de distância mas nunca o viu. Nem a arma. Lembra-se de lhe terem dado a ler algumas reportagens jornalísticas sobre o caso, semanas depois, e de lhe mostrarem fotografias dos serviços secretos. Um vulto vestido de negro no meio da multidão, braço erguido acima da turba a apontar para ele. Uma foto de frente e outra de perfil nas instalações da polícia. Um rosto frígido, sem vida, sem credo, sem Deus. Livra-me disto, Maria pediu, antes de se levantar da cama. Ainda era de noite. O primeiro sonho do primeiro sono. A Mãe de Deus não o desampararia. Ajoelhou-se junto à cama, persignou-se, uniu as mãos e começou a rezar.

- Mãe do Céu, dá-me paz, dá-me força para aguentar a tarefa que me entregaste. Jamais desistirei mas só Te peço que me alivies um pouco o pesado fardo, de tempos a tempos...

O monólogo durou uma hora, mais minuto, menos minuto. Habituou-se a falar com Ela desde que... aquilo acontecera, há dois anos. Tranquilizava-o. Estava ciente de que o protegeria de qualquer intempérie. Depois da prece entregou-se novamente a um sono calmo, sem sonhos, reparador.

Acordou às seis e meia, refeito, pronto para defrontar o dia cheio que, certamente, o esperava. Um Papa não tinha tempos mortos, nunca. Além dos afazeres espirituais, esperavam-no os políticos, os pastorais e os burocráticos.

Estes últimos davam mais trabalho que os outros todos juntos. Geria uma instituição bimilenar, dispersa por todos os pontos do globo, que necessitava da sua atenção, diariamente.

Ele já o aguardava sentado na cadeira, ao lado da cama, olhar vigilante.

- Bom dia, Stan - cumprimentou com um sorriso. - Dormiste bem?

- Muito bem, Santidade. Obrigado por perguntar - respondeu Stanislaw.

- Voltámos a ter sonhos indesejados.

Era uma constatação e não uma pergunta. Wojtyla nada disse. O seu secretário conhecia-o melhor que qualquer outra pessoa.

- Hão-de passar com a graça de Deus - acrescentou Stanislaw.

-Ámen.

Os dois homens não disseram mais nada. O secretário já mandara preparar o banho para o Santo Padre e o pequeno-almoço estava a ser confeccionado. Algumas dezenas de pessoas, entre freiras, frades, padres e leigos empenhavam-se todos os dias para que Wojtyla tivesse todo o conforto que desejasse. Não era um Papa exigente e vivia sempre preocupado com quem o servia.

Depois do atentado, o Santo Padre tornara-se mais circunspecto e desconfiado, também um pouco receoso. Uma reacção natural em quem só não perdeu a vida por intervenção divina. Mesmo dois anos volvidos, não conseguia deixar de se perguntar todos os Domingos, sempre que se abeirava da janela do seu gabinete para saudar os fiéis que se aglomeravam na Praça de São Pedro, se seria nesse dia que um tiro, disparado por algum irmão menos iluminado, o levaria para junto do Senhor. Por muito que encobrisse, o medo continuava dentro de si. Poucos o conseguiam ver mas estava lá. É preciso dar tempo ao tempo. Diziam-lhe os mais chegados. Stanislaw, Casaroli, Konig. É preciso deixar passar algum tempo. Mas o seu ofício não esperava pelo tempo que era preciso dar, não se importava com os seus temores. Exigia que desse tudo de si ao mundo, sempre. - São os desígnios de Deus - proferiu Stanislaw quando Wojtyla saiu do banho.

Ninguém o conhecia melhor.

- Vamos trabalhar? São esses os desígnios de Deus para hoje - observou o Sumo Pontífice bem-disposto, seguindo depois para o gabinete ao lado do quarto. O sol forte que inundava Roma antecedia o Verão que se aproximava. Em breve assentaria o quartel-general em Castelo Gandolfo, até Outubro. Essa mudança de ares far-lhe-ia bem, ainda que Castelo Gandolfo distasse apenas cerca de vinte quilómetros de Roma.

O polaco gostava de dar uma vista de olhos na agenda antes da missa na capela privada.

- Dia cheio - constatou sem esboçar qualquer reacção.

- Na verdade - começou Stanislaw, timidamente -,foi tudo adiado para data a definir, Lolek.

Wojtyla gostava quando o fiel amigo o tratava pelo diminutivo afectuoso mas, neste caso, antevia problemas.

- O que se passa? - perguntou com uma expressão de preocupação.

- O Cardeal Secretário de Estado Casaroli deve estar a chegar para o informar - declarou Stanislaw. Wojtyla ficou ainda mais alerta. Por norma, reunia com o Cardeal Secretário de Estado semanalmente e nessa semana já tinham reunido.

- Qual é o assunto? - insistiu.

Stanislaw estava visivelmente incomodado. Não queria contar... ou não podia.

- Lolek... - começou o seu fiel secretário.

- O assunto é a Anna - ouviu-se uma voz dizer da porta . Era o vigoroso Agostino Casaroli que acabava de entrar.

Wojtyla afundou-se no seu cadeirão e deixou o seu pensamento vaguear para bem longe enquanto olhava fixamente para o tampo escuro da secretária.

Anna? Outra vez, pensou.

Muitas mulheres detiveram imenso poder no Vaticano ao longo dos séculos. Se a maioria foi ofuscada pelo poder papal masculino, poucas houve que conseguiram quebrar essa, aparente, barreira intransponível e foram capazes de decidir os destinos da Santa Sé mesmo não ocupando o cargo oficialmente por impedimento de género. Mulheres como a Marôzia, a Donna Olimpia e a Virgo Potens. O sexo frágil sempre foi muito mais forte do que aparentava, e o sexo sempre teve um poder descomunal.

- Está bem, Santidade? - quis saber Stanislaw, preocupado.

- Ficarei melhor quando desembucharem. O que tem Anna?

Casaroli saiu do gabinete e voltou a entrar, acompanhado por um outro homem. Fechou a porta do gabinete e acercou-se de Wojtyla. O desconhecido estava visivelmente ansioso. Segurava o chapéu borsalino com ambas mãos junto ao ventre.

O Papa levantou-se e o homem abaixou-se quase com a cabeça a tocar no chão.

- Levanta-te - ordenou Wojtyla com aspereza. Não suportava aquele género de submissão.

O homem alçou-se atabalhoadamente. Não era todos os dias que se apresentava perante o Sumo Pontífice.

- Este é o Ercole - informou Casaroli.

- Sei quem é - disse Wojtyla.

O homem estava ruborizado. Não fazia ideia que o Papa o conhecia.

- O irmão da Anna - disse o Papa.

- Exactamente - confirmou Stanislaw.

- E agora que sabemos muito bem quem é, podem dizer-me o que se passa, afinal?

Casaroli fixou os olhos escuros e agudos em Ercole que baixou o seu olhar envergonhado, concentrando-se no chão.

- Conta tudo, Ercole.

- Santo... Pa... Padre - começou Ercole, nervoso -, eu... eu... Como sabe, sou irmão da Anna e... e... e...

Casaroli colocou uma mão sobre o ombro de Ercole.

- A Anna teve uma filha - disse o Cardeal Secretário de Estado, de rompante.

- O quê? - O polaco estava chocado. Voltou a sentar-se, abatido. Colocou as mãos a tapar a cara e respirou fundo. - A idade dela ainda permite?

Quando foi isso?

- Há quinze anos - respondeu Casaroli.

Wojtyla levantou o rosto para os três homens.

- Isto é alguma espécie de brincadeira?

Ercole não conseguia fitar o Santo Padre nos olhos e não disse nada.

- É uma história complicada. Em resumo, a Anna teve uma filha, um dos nossos cardeais lidou com a situação e não deu conhecimento ao Santo Padre...

- Lidou com a situação? - interrompeu Wojtyla.

- Arranjou uma família de acolhimento para a criança - esclareceu o Cardeal Secretário de Estado.

- Quem tratou disso?

- O Ameleto. O Papa Montini nunca soube disso. Wojtyla suspirou. A Anna teve um filho.

- Como é que ele pode ter feito uma coisa dessas? - protestou.

- Não o censuro - objectou Casaroli. - Se eu pudesse também te pouparia. O Amleto fez o que achou melhor - arguiu.

- A Anna é um assunto extremamente importante. Ele não devia ter procedido dessa forma - censurou o polaco.

Casaroli fixou as mãos na secretária e encarou Wojtyla.

- O que está feito está feito. Bem ou mal, está feito.

Ninguém disse nada durante alguns momentos. Wojtyla virou as costas aos presentes e acercou-se da janela. Lá fora, um belo dia de sol destoava do seu estado de espírito. Tentou serenar e organizar as ideias.

- A Anna teve uma filha há quinze anos. As autoridades da época lidaram com isso da maneira que consideraram melhor. Qual é o problema, então?

- perguntou o Papa sem se voltar para os outros homens. Casaroli virou-se para Ercole. Tinha de ser ele a explicar. O homem continuava a segurar o chapéu com ambas as mãos.

O Cardeal Secretário de Estado arrastou uma cadeira e obrigou-o a sentar-se.

- Acalma-te e conta tudo ao Santo Padre. - Colocou-lhe a mão no ombro novamente, como que a dar-lhe apoio.

Ercole manteve o silêncio durante alguns instantes. O Papa continuava de costas para eles. Assim talvez fosse mais fácil.

- Conhecem a minha irmã. Sabem como ela é impulsiva - justificou-se Ercole. – contrariando todas as directrizes que o cardeal Cicognani impôs há quinze anos, ela… -o Papa virou-se atento. Ercole estremeceu. – ela contou toda a verdade à filha.

O Papa voltou a sentar-se no cadeirão. Coçou os lábios com o indicador enquanto raciocinava.

- Tens a certeza disso? - perguntou a Ercole.

O homem abanou a cabeça afirmativamente. Estava envergonhado.

Casaroli fixou o olhar no Papa, com uma expressão indagadora. Era um homem enérgico, caloroso e pragmático.

- A questão agora é: o que fazemos?

- Mandem chamar o padre Comte imediatamente - ordenou o Papa.

Decisões. A vida é feita de decisões.

 

- Como é que nos descobriu? - perguntou Jacopo, que ainda não se convencera com a explicação de Giorgio, o belo.

- Já lhe disse, doutor Sebastiani - explicou o outro, calmamente. - Foi o nosso amigo Rafael quem me falou deste local e me pediu que cá viesse.

- Onde é que ele está? - inquiriu o historiador numa postura que mais parecia um interrogatório.

- Não sei. Sabe como o nosso amigo consegue ser evasivo - respondeu o secretário do Papa, piscando um olho a Jacopo.

O historiador calou-se, embora continuasse desconfiado. Esperava que Rafael estivesse bem.

- Está convencido, doutor Sebastiani?

O silêncio do historiador era, em si, um consentimento. Por agora.

Aquela gente da Igreja não era de confiar.

Anna continuava nervosa, inquieta. Aquelas visitas nocturnas perturbavam o tédio rotineiro a que se conformara desde há muitos anos. Ela aceitara-o, sem contestar, resignada. Entregou-se a ele, à frustração de uma vida sem história, sem registo, nem ambição, sem sonhos que pudesse acalentar, sem prole... que pudesse ter por perto.

Habituara-se a ser uma personagem, como todas elas, com um papel que não podia despir. Anna Lehnert desaparecera. Anna Pacelli nunca existira.

Giorgio virou-se para ela com um olhar terno, amistoso, como se estivesse diante de um parente que acabara de descobrir ou perante uma artista que admirava. Parecia um menino, ninguém diria que já passara os 50 anos.

- Há quanto tempo vive aqui? - quis saber o secretário, sem desfazer o sorriso idiota.

Anna podia dizer-lhe o tempo que ali passara até ao ínfimo milésimo de segundo. Nenhum cativo esquece a duração da pena, mesmo que seja perpétua, sem hipótese de apelo a uma liberdade condicional. Optou, no entanto, por arredondar.

- Há cerca de dez anos.

- E antes de vir para esta bela casa, onde vivia?

- O secretário do Papa não ia facilitar-lhe a vida. Fá-la-ia recuar a momentos que ela não queria reviver, nem sequer mentalmente. Lembrou -se de Rafael e de como ele tentou o mesmo, quando se conheceram. A diferença é que o seu Rafa não insistiu quando viu que era demasiado doloroso recordar. Naquela noite seria diferente. O presente nunca deixava o passado afastar-se, trazia-o sempre na peugada, denunciado pelas memórias. Era impossível esquecê-lo ou apagá-lo por muito que se tentasse e acabava sempre por apanhá-lo e tornar-se nele, mais cedo ou mais tarde, vingativo, catártico, implacável.

- Antes de conhecer o Rafael, vivia noutra casa - respondeu

- Onde?

- Aqui perto.

Giorgio sorriu. Era típico de Rafael manter o statu quo, manteve-a, assim, mesmo nas barbas dos inimigos, tão perto que não a conseguiam ver por estar mesmo debaixo dos olhos. Ele apercebeu-se do desconforto dela, mas aquela mulher guardava tanta coisa que ele desejava saber. Focou intensamente o seu olhar e deu-lhe a mão novamente.

- Pode falar-me sobre os seus pais?

Os olhos de Anna marejaram-se, A história dos pais era intensa e trágica, ignorada pelos olhares reprovadores do mundo que perscrutavam os corredores e os gabinetes, espiavam por detrás dos quadros e se escondiam nos nichos das estátuas em busca de sangue para saciarem a sede de maledicência.

O passado, sempre ele, no encalço dos que queriam, simplesmente, esquecer.

Giorgio acariciou-lhe o cabelo loiro alvacento que herdara, seguramente, da mãe alemã.

- O senhor conhece-os melhor que eu - respondeu Arma, evasiva.

­ Pelo menos o meu pai. Deve tê-lo estudado.

Giorgio fez um trejeito negativo com a cabeça que recebeu o apoio imprevisto de Jacopo.

- A Igreja sempre foi muito eficaz a varrer os incómodos para onde não possam ser vistos - disse o historiador, como se fosse necessário explicar.

Anna era a prova viva desse fenómeno.

- É verdade. O seu pai é um assunto muito sensível no Vaticano. E... a sua mãe... - Giorgio não sabia muito bem como dizê-lo. - É como se nunca tivesse pisado o Palácio. Na verdade, é como se nunca tivesse existido.

- Ó, mas ela existiu - evidenciou Anna com veemência. - A sua passagem pelo Vaticano foi inesquecível. É certo que muitas pessoas nunca a conheceram, nem nunca a viram. Ela fazia por que assim fosse. Os meus pais fizeram o maior sacrifício de todos. Amaram-se em silêncio. Mas está sepultada lá, no cemitério de Montesanto.

Anna levantou-se, a custo, prontamente amparada por Giorgio assim que se apercebeu das suas intenções. Caminhou para uma mesa de canto, pequena, com um telefone pousado no tampo e pegou no auscultador. Poucos segundos depois, alguém atendeu do outro lado.

- Bom dia, Gustav. Traga-me, por favor, a caixa que está no meu quarto, debaixo da cama.

Aguardou que o segurança dissesse alguma coisa.

- Exactamente. Na sala, sim.

Pousou o auscultador e voltou ao lugar que tinha deixado no sofá. Respirou fundo e viajou até ao passado.

- Os meus pais conheceram-se em 1917, na Suíça. Como é do conhecimento público, a minha mãe depois foi servi-lo na nunciatura de Munique.

Foi em Dezembro, e a outrora mais bela cidade do mundo estava arruinada pela guerra. Milhares dos seus jovens jamais regressariam dos campos de batalha. À espera da minha mãe estava um palácio decrépito de dois andares, com dezassete divisões.

Pasqualina, aos 23 anos, foi colocada a chefiar um assessor, um cozinheiro, um mordomo, um motorista, duas freiras mais velhas encarregues da limpeza e um faz-tudo. Achou logo desde o início que era pessoal a mais, tanta gente desajudava mais do que trabalhava. A sua postura era muito firme e severa. Queria tudo limpo, a brilhar, e mostrava como se fazia. Era tão exigente que, três meses depois da sua chegada, os outros serviçais apresentaram uma exigência ao núncio. "Ou ela vai embora ou vamos nós”.

Pacelli tentou conciliar as duas partes e Pasqualina em vez de ceder, sugeriu ser ela a cozinhar e a limpar. Se não queriam fazer como ela dizia, ela própria o faria, e Pacelli aceitou.

Em pleno pós-guerra e com muitos assuntos para tratar entre os povos beligerantes, Pacelli passou alguns meses fora da nunciatura. Quando regressou não queria crer no que encontrara. Um palácio digno de seu nome, limpo, faustoso, imaculado.

A saúde de Pacelli era frágil e era Pasqualina quem tratava dele. Ministrava-lhe os medicamentos, preparava-lhe os caldos e por vezes dava-lhos na boca. A freira controlava tudo o que se passava nos bastidores do palácio e cuidava do bem-estar do núncio. Nenhum problema lhe chegava, a não ser que fosse político ou diplomático ou a interminável burocracia de Roma.

Em Fevereiro de 1919, Munique assistia à turba comunista que se alastrava à Europa depois do sucesso no derrube do regime czarista da Rússia. Um mar de mortos espalhava-se pelas ruas. Os diplomatas há muito que haviam regressado aos seus países, excepto Pacelli que, apesar de se recusar a sair, pediu ao seu pessoal que abandonasse as instalações e procurasse segurança. Pasqualina recusou-se a abandonar o núncio, assim como o motorista, o assessor e o faz-tudo.

Pacelli andava, perigosamente, pelas ruas, arriscando-se, tentando ajudar os desesperados e os refugiados, coordenando a ajuda humanitária. Nem sequer escondia a cruz que trazia ao peito. Os bolcheviques instigaram uma campanha de ódio contra ele e em Abril invadiram a nunciatura. Entraram no edifício a disparar para o ar, com rancor estampado nos rostos.

Pacelli desceu do seu gabinete, que ficava no primeiro andar, e enfrentou a turba bolchevique.

Têm de sair daqui imediatamente, ordenou, sem elevar a voz. Esta casa não pertence ao governo da Baviera mas à Santa Sé. O seu estatuto é inviolável pelas leis internacionais.

Os bolcheviques riram na cara de Pacelli.

Leis internacionais? Quais leis? Saimos quando nos mostrar a sala secreta onde guarda o dinheiro e a comida, disse um deles.

Eu não tenho nem dinheiro, nem comida. Sabem muito bem que dei tudo o que tinha aos refugiados que os senhores provocaram.

O líder acercou-se de Pacelli e apontou-lhe a arma, bem em cima da cruz que trazia ao peito. O núncio protegeu a cruz com a mão, em jeito de desafio.

Saiam todos daqui. Rua daqui para fora. Já, gritou Pasqualina com um olhar enfurecido.

Um silêncio pesado surgiu entre o grupo durante uns longos momentos e depois o líder bolchevique virou costas.

Vamos embora.

- Impressionante - comentou Jacopo que, assim como Giorgio, ouvia com muita atenção o relato de Anna.

- Era uma época muito sensível - disse Anna. - Ainda voltaram a incomodá-los antes de o movimento se extinguir. Uma vez tentaram apreender o carro oficial, mas sem sucesso, e noutra tentaram barricá-los na rua. O meu pai saiu do carro e começou a rezar, e a turba escutou-o em silêncio.

- Isso aconteceu mesmo? - perguntou Giorgio.

Anna fez que sim com a cabeça.

- Aquilo uniu-os muito - continuou Anna. - Ele começou a chamá-la todas as noites ao gabinete para discutir assuntos sensíveis do Vaticano. Claro que Pacelli não devia fazê-lo, mas tinha uma relação bastante cúmplice. Ele confiava nela tão cegamente que confessava-lhe os seus medos, os dilemas, as discordâncias silenciosas. Um dia chamou-a à garagem para ela ver a encomenda que tinha chegado. Era uma mota com sidecar.

Ambos adoravam a velocidade. Às vezes pediam ao motorista que acelerasse muito para além do que devia só para se deliciarem com a velocidade.

Pacelli pediu-lhe que providenciasse um instrutor para ensiná-lo a conduzir o veículo. Ela olhou para ele, ofendida.

Vim de uma quinta onde trabalhei com os rapazes e não com as raparigas. Posso, muito bem, ensiná-lo, Excelência.

Pacelli olhou para ela com uma expressão desconfortável mas acedeu à freira, como sempre, e, nessa mesma noite, saíram, para o céu nocturno, com os capacetes enfiados na cabeça, prontos para desafiar as estradas. Em pouco tempo Pacelli tornou-se um ás na mota e chegaram a sair durante o dia e a fazer piqueniques à beira rio, ficando a conversar até ao pôr-do­sol, e por vezes até mais tarde. Depois chegou 1925 e mudaram-se para Berlim, e os passeios acabaram. Berlim fervilhava de acontecimentos políticos, e os diplomatas eram uma peça crucial nesse mundo em que a informação era centralizada nas embaixadas. Pacelli começou a dar grandes festas e jantares a todos os ministros e corpos diplomáticos dos outros países presentes na capital. Celebridades, artistas, todos marcavam presença nesses banquetes que ele organizava, com Pasqualina a coordenar tudo, obviamente. Consideravam-no o diplomata mais bem informado da Alemanha, muito devido a esse trabalho de confraternização.

Em finais de 1928 e início de 1929, ele passou muito tempo em contacto com Roma. Gasparri, o Secretário de Estado de Pio XI, e o irmão tratavam, no maior dos segredos, do acordo com Mussolini. O dilema era evidente. Por um lado, não se pretendia fazer qualquer acordo com o ditador, por outro, o Vaticano estava completamente falido e necessitava desse Tratado. Explanava as suas dúvidas todas as noites, no seu gabinete, quando a chamava e lhe contava os pormenores. Tinham contratado um banqueiro muito competente chamado Bernardino Nogara para administrar todo o dinheiro de Deus que o Tratado proviesse, e aplicá-lo sabiamente para que uma situação de falência não ocorresse novamente. Pasqualina era totalmente contra. Desde quando os homens da Igreja se vendiam ao dinheiro? No dia 11 de Fevereiro de 1929, a data da assinatura do Tratado de Latrão, Pasqualina chorou e disse em alto e bom som a vergonha que sentia. Pacelli tivera de ser firme e de afirmar a sua autoridade para que Pasqualina se remetesse ao seu lugar. Todas as exigências da Igreja tinham sido aceites pelo Duce. Mas como em todas as concordatas, também tinha havido cedências por parte da Igreja. Para Pasqualina era inaceitável o reconhecimento do fascismo que o tratado implicou e a tentação fácil do dinheiro. Fora um contrato de compra e venda, e não um tratado. Pacelli chegou a falar de modo ofensivo para Pasqualina. Que percebia ela de política? Que percebia ela de diplomacia e de acordos bilaterais? Nada. Era uma simples freira que tratava da lida da casa.

Pacelli deixou de a convidar para ir ao seu gabinete todas as noites e ela dedicou-se aos seus afazeres domésticos como lhe competia. Limpar o que estava limpo, polir o que estava polido, cozinhar com o mesmo carinho de sempre para anúncio.

Para atenuar as coisas, já que Pacelli sabia muito bem quando colocava o pé em ramo verde, ele mandou vir a mata de Munique e convidou-a para passear. Recomeçaram os passeios nocturnos, os piqueniques a meio da tarde, os sorrisos, a velocidade, as conversas. Uma noite, perto do final do ano de 1929, o telefonema chegou. Era de Roma. Gasparri informara que o Papa ordenara a transferência de Pacelli para junto de si. Iria ser ordenado cardeal e substituí-lo no Secretariado. A viagem de regresso estava marcada para Dezembro e terminaria com mais de uma década por terras germânicas. Seria o fim da relação cúmplice entre Pacelli e Pasqualina.

Continuaram os passeios de mata à noite, mesmo quando o frio se instalou de vez. Estavam cientes que aquele ritual ia terminar... para sempre. Numa dessas saídas nocturnas aconteceu. Talvez ela tenha tomado a iniciativa, roubando-lhe um beijo e depois outro, enquanto ele ainda enfrentava a estupefacção. Os sentidos acabaram por vencer a razão e deixaram-se levar pelos desejos do corpo.

Experimentaram sensações novas que não julgavam possíveis e, ao ver a expressão dela, a mente de Pacelli ofereceu-lhe a imagem da estátua do Êxtase de Santa Teresa, de Bernini, que vira algumas vezes na Igreja de Santa Maria della Victtoria, em Roma. Aqueles breves instantes em que simplesmente desligaram os pensamentos e foram arrebatados pelas sensações, foram únicos e irrepetíveis. Depois disso não trocaram uma única palavra durante dias. Ambos acossados pela culpa, orando em dobro para colmatar a terrível falha. Os passeios terminaram. As reuniões nocturnas no gabinete também. Pareciam dois estranhos obrigados a conviver nos mesmos espaços. Embrenharam-se nos seus trabalhos incessantemente até as pratas ficarem gastas de tanto serem limpas e os papéis coçados de tanto serem lidos.

Quando as desculpas acabaram, foi Pasqualina quem quebrou o silêncio e entrou no gabinete dele. Pediu para que a levasse para Roma. Ele respondeu com um rotundo nem pensar. Ela haveria de repetir o pedido mais vezes, por carta e telefone, até que deixou de pedir. Os primeiros sintomas apareceram e ela retirou-se para Rorschach onde passou os restantes meses da gravidez. O desaparecimento dela preocupou-o tanto que fez o seu amigo monsenhor Spellman andar à procura dela pela Alemanha e pela Suíça, sem sucesso. Até que no dia do nascimento ele apareceu em Rorschach. Pasqualina sempre foi uma mulher bem preparada e conhecia Pacelli bem de mais. Conseguiu ocultar dele a gravidez e o parto. O, na altura, Cardeal Secretário de Estado, nunca soube que fora pai de uma menina chamada Anna. Pasqualina manteve-a em Munique até aos 2 anos e depois entregou-a a uma família de funcionários do Vaticano que a tratou como se fosse dela.

Gustav chegou nesse momento com uma caixa em couro preto.

- Ah! Obrigada, Gustav - agradeceu Anna. - Podes deixá-la aqui – apontou para a mesa do centro.

Gustav pousou-a e saiu da sala. Anna abriu a caixa que revelou um conjunto de cadernos, todos iguais, e retirou um.

- O que é isso? - perguntou Jacopo.

- Os diários da minha mãe.

Giorgio debruçou-se sobre a caixa e foi retirando alguns. Tinham uma etiqueta que mencionava as datas da primeira e da última entradas.

Os dois homens mantiveram-se em silêncio, absortos, hipnotizados pelo relato de Anna, que tanto passara, em nome dos homens que se diziam ao serviço de Deus, e que acabava de lhes mostrar aquela colecção de documentos preciosos.

- Como é que a sua mãe conseguiu ocultá-la dele? - quis saber Jacopo.

Não entendia como tinha sido possível.

- Não faria essa pergunta se tivesse conhecido a minha mãe. Era uma força da Natureza. Ela não estava no Secretariado por ser amiga, nem confidente do Papa, nem governanta dos apartamentos papais. Estava lá porque era uma mulher com muito valor, à altura de qualquer dos homens com quem trabalhou.

- Tenho muita pena que não tenha podido viver com a sua mãe - disse Giorgio, continuando a remexer nos cadernos da caixa.

- Nunca me deixaram passar fome nem frio - disse a filha do Papa, com um sorriso tímido. Nem viver a vida em liberdade, pensou. - Mas sei que fui como que uma ovelha negra que não devia ter nascido. Era... Sou demasiado incómoda.

- A Anna não foi a única a dar a vida dessa forma pela Igreja - explicou Jacopo, como se esse fardo, dividido por vários, custasse menos. - A irmã Bernardette viveu cativa na Congregação das Irmãs da Caridade de Nevers, depois das aparições. A irmã Lúcia também. Viveram sempre controladas, em todos os passos, a vida inteira.

- Não é a mesma coisa - refutou Anna sem qualquer ponta de arrogância, apenas uma simples discordância natural. - A Nossa Senhora não me apareceu. Às outras também não, pensou Jacopo, Anna estava triste. Ainda havia lágrimas a cair-lhe pelo rosto. Sabia muito bem o que o historiador queria dizer. Não era a única a dar a vida pela Igreja. Infelizmente. Se pudesse voltar atrás, faria algumas coisas diferentes. Pelo menos uma.

- Falta um caderno - constatou o secretário pontifício, que continuava a mexer na caixa.

- Sempre faltou.

- Nunca considerou a vida religiosa? - perguntou Giorgio.

- Não, meu filho. - Nem pensar, disse para si mesma. - A Igreja nunca me atraiu. Sempre preferi os outros apelos da vida. O casamento, o trabalho, a maternidade. Teria seguido esse caminho. - Suspirou de frustração.

Giorgio baixou o olhar como se se sentisse responsável por tudo o que acontecera a Anna. Lamentava profundamente que ela não pudesse ter desfrutado da vida. Ele optara por servir o Criador, a vida encarregara-se de o conduzir a um cardeal alemão que se tornou Papa. Aceitara-o e cumpria com esses requisitos, porém, estava ciente que era a sua vontade que prevalecia. Ninguém o impediria se ele quisesse desistir naquele momento, largar a vida eclesiástica e fazer outra coisa diferente com ela. Anna nunca teve essa possibilidade. Tudo lhe foi imposto, ignorando as suas vontades.

- Tenho muita pena - desculpou-se novamente o monsenhor, pegando em seguida nas mãos dela. - Lamento que tenha tido de sacrificar todos os seus sonhos em nome da Igreja.

- Não lamente, filho. Eu não sacrifiquei todos os meus sonhos. Consegui conquistar o mais importante de todos - confessou Arma, ainda que as palavras lhe fizessem doer o coração. - Tive uma filha linda.

Os dois homens entreolharam-se pasmados e voltaram a fitar Anna.

- O quê?

 

- Comecem a explicar-se - pediu Cavalcanti em jeito de ordem. - Rápido. Então o... filho do... então... que raio - tartamudeou, ainda confuso.

- Eu disse-te que ias perceber - atestou Rafael com ironia.

Os três continuavam no salão. Nicole sentada na cadeira que Cavalcanti providenciara, Rafael de pé e o inspector ora erecto ora com as mãos nos joelhos, incrédulo com o que acabara de descobrir. Sentia-se aturdido, como se - tivesse levado uma pancada na nuca. Ainda não havia sinal do embaixador.

Nicole fitava Rafael com uma expressão que misturava o ódio, o desespero e outra coisa qualquer. Não se importava com mais nada a não ser o seu filho, Niklas. Nem Klaus era importante; esse tornara-se num mero conhecido com quem partilhava a cama há muito tempo. Nunca pensou rever aquele padre abjecto e, ainda por cima, mensageiro de más notícias.

O passado ficara para trás. Tentara esquecê-lo usando o simples artifício da não recordação, como se não lembrar apagasse o que acontecera.

- E agora? Quais são as nossas opções? - perguntou com a voz chorosa.

- Alto lá - interrompeu Cavalcanti. - Não me vão deixar no escuro. -

Olhou para o padre. - Explicas-te, por favor?

- Já percebeste tudo. O Niklas é meu filho. Aconteceu - disse, sem desviar o olhar da embaixatriz. - Eu tinha acabado de ser colocado em Munique, a Nicole estava a terminar o curso na Ludwig-Maximilians, e aconteceu.

- Aconteceu? - repetiu Cavalcanti com cinismo. - E como é que o senhor padre acabou na cama com a senhora embaixatriz? Ou foi uma imaculada concepção?

Nicole baixou o olhar e mais lágrimas escorreram pelo rosto. Acabou por fechar os olhos como se tal aplacasse a mágoa que lhe enchia o peito.

- És suficientemente adulto para saber como se fazem essas coisas. Não vou entrar em pormenores. A Nicole foi uma vítima da minha... inexperiência.

- A palavra que procuras é pulhice, penso eu - contrapôs o inspector. – Quebraste o voto de celibato antes ou depois de lhe contares que eras casado com Nosso Senhor da Mula Ruça?

Rafael engoliu em seco mas não desviou o olhar de Nicole. Esta abriu os olhos nesse momento para testemunhar aquela resposta.

- Antes - respondeu lacónico.

- És tão cabrão como todos nós, Santini. Deus isto, Deus aquilo, lições de moral para aqui e para acolá, e acabam por ser todos a mesma merda.

Rafael não respondeu. Não adiantava argumentar com Cavalcanti. O inspector estava lançado e, além disso, tinha alguma razão, se não na forma, no conteúdo. Pensou em Sarah e em Niklas e em como estariam.

- Não importa quem é que tem a culpa do quê - acabou por dizer Nicole, com os olhos vermelhos do choro, tentando recompor-se o melhor possível. - O que é que podemos fazer pelo meu filho?

- Exactamente - ouviu-se a voz do embaixador dizer. - É preciso tomar providências, o prazo está a terminar. Klaus entrou no salão, seguido por dois agentes fardados da Bundespolizei e os dois homens do BND que se voltaram a encostar à parede, ao lado da lareira. Nicole fitou o marido que se dirigiu para ela e a abraçou.

- Calma, querida. Tudo se resolverá. Vamos ultrapassar isto - disse o embaixador, olhando para Rafael.

Lá fora, despontava uma ténue claridade que, em breve, revelaria os primeiros lampejos solares. O movimento rodoviário já parecia o do sol alto, com carros, carrinhas, motocicletas, autocarros, camiões a percorrerem a congestionada rua, nos dois sentidos. Roma podia parecer caótica mas não era. Apenas sofria do mal latino, cujo feitio extrapolava a península e se espalhava pelo Sul do continente, de querer levar o carro até à porta do destino e não conceber sequer outra solução.

- Falei com o Secretário de Estado - revelou o embaixador com um ar austero.

- Confirmou o que lhe transmiti?

- Confirmou e confidenciou ainda que o senhor padre é uma peça chave neste caso e tem colocado entraves à sua resolução - acrescentou o embaixador fitando-o irado.

Nicole levantou-se e fitou Rafael, enfurecida.

- O que é que queres dizer com isso?

- Que só o senhor padre pode fornecer o resgate e não manifestou vontade em fazê-lo.

Rafael sorriu. Aquela resposta por parte do Cardeal Secretário de Estado não era de admirar. Não ocuparia o lugar se não tivesse aquela capacidade inata de tornar verdade inteira apenas o parcial. Era certo que Rafael não colaborara, pelo menos na parte que era do conhecimento do piemontês, mas sabia muito bem que também não era intenção deles colaborar com os raptores. Sim, o Secretariado queria a Anna, mas não para negociar.

Acabariam com ela. Os inescrupulosos terroristas que cativaram Niklas podiam barafustar e tornar público o seu objectivo, mas a Santa Sé nunca poderia entregar aquilo que não existia. Anna Lehnert na mão deles nunca seria moeda de troca, deixaria de existir, pura e simplesmente. Claro que o Cardeal Secretário de Estado ocultou essa parte ao embaixador.

- O que é que o meu marido está a insinuar? – perguntou Nicole a Rafael, com uma atitude ameaçadora.

- Sim, o que é que o senhor embaixador quer dizer? - Foi a vez de Cavalcanti perguntar, completamente confuso com tudo o que estava a acontecer naquele salão.

- Quer dizer que não fez as perguntas certas e obteve as informações que lhe entenderam dar, completamente fora de contexto - respondeu Rafael, enigmaticamente. - É verdade que eu tenho acesso ao resgate. Trata-se de uma pessoa, caso estejam interessados em saber e o Secretário de Estado não tenha providenciado esse pormenor ao senhor embaixador ­ continuou, enfatizando a função de Klaus. - É verdade que tenho acesso exclusivo à moeda de troca, mais ninguém tem e assim se irá manter.

- Até quando, Rafael? - perguntou Nicole, desesperada, o olhar marejado a clamar por piedade. - Até quando vais brincar com a vida do meu filho?

O padre fez um trejeito negativo com a cabeça como se os presentes não soubessem o que estavam a dizer. E não sabiam.

- O que Sua Eminência, porventura, se terá esquecido de mencionar é que nem ele, nem o Secretariado que chefia pretendem negociar. Eles querem saber a localização da moeda de troca para a eliminarem.

- Defina eliminarem - pediu o embaixador, intrigado.

- Matá-la, assassiná-la, aniquilá-la, tirá-la do mapa... escolha qualquer uma.

- E o que ganham com isso?

Rafael respirou fundo. Para prosseguir aquela conversa teria de enveredar por caminhos que não podia seguir estando na presença de Cavalcanti, que apenas sabia da missa a metade.

- Eliminando a moeda de troca, deixa de existir o que trocar - explicou o padre evasivo. - Deixa de haver o que negociar.

- Compreendi, mas por que razão fariam isso? - quis saber o embaixador, nitidamente descrente naquela versão que o padre lhe apresentava.

Rafael optou por ser mais contundente, medindo, contudo, o que podia dizer... para bem de todos.

- Se alguém desconhecido se dá ao trabalho de raptar um padre, não importa qual, e, em troca da libertação, não exige dinheiro, mas antes uma outra pessoa, é porque ela é importante, certo?

- E quem é essa pessoa? - perguntou Nicole cada vez mais nervosa e com o coração apertado.

- Chama-se Anna - indicou o inspector romano.

- E o que torna essa Anna tão especial ao ponto de raptarem o meu filho para a poderem ter em seu poder? - perguntou o embaixador.

- Não precisam de saber por que razão, mas é importante, garanto-vos. - Mais directo não podia ser, ainda que pouco explícito.

O embaixador consultou o relógio e suspirou. O tempo urgia e o seu tiquetaque sentenciava a vida de Niklas, o seu filho.

- Falta pouco mais de uma hora para o fim do prazo que os raptores estabeleceram. É tempo de agir e não de conversar.

- Concordo - assentiu Rafael.

Klaus fez um gesto com a cabeça aos dois elementos da Bundespolizei que se acercaram de Rafael, um pela frente, outro por trás.

- Por favor, não resista, padre Rafael - pediu o embaixador, ainda que parecesse uma ordem.

Rafael não resistiu. Em poucos segundos, estava manietado com as mãos atrás das costas.

- O que é que os senhores pensam que estão a fazer? - inquiriu Cavalcanti, que não podia permitir aquilo.

- Estamos em território alemão, inspector - explicou o embaixador.

­ As suas leis não se aplicam aqui. - Virou-se para Rafael. - Está a chegar, a qualquer momento, um representante da Santa Sé e, depois, o senhor padre irá connosco buscar o resgate... a bem ou a mal.

O som do toque de um telemóvel começou a soar, abafado por algum bolso onde estava enfiado. Parecia destoar da solenidade do salão, como se um Sohn, um Füger, dois Nauen e dois Quaglio não tivessem de testemunhar tal alarvidade sonora, e também da tensão que toldava o ambiente.

Depressa perceberam que o som estridente provinha do bolso do casaco do padre, que era o único que não tinha as mãos livres para atender. Foi o embaixador quem, sem cerimónias, tirou o aparelho do bolso de Rafael e atendeu, como se a chamada fosse para ele.

- Quem fala? - perguntou em italiano, e fez uma pausa para escutar.

- O padre Rafael não pode atender neste momento. O meu nome é Klaus.

Posso perguntar o que deseja dele? - Nova pausa, esta mais longa. – JA. JA.

In Ordnung - disse em alemão, exasperado. - Só um momento.

Tirou o aparelho do ouvido e pressionou umas teclas à procura do alta-voz. Quando o encontrou, aproximou-o do padre.

- O padre Rafael pode ouvi-lo neste momento. Faça favor de falar. - Baixou a voz. - É um tal Pedro.

- Padre. Padre!? - A voz evidenciava ansiedade e desespero.

- Sim, Pedro. Estou a ouvir-te. O que se passa?

- Eles... eles levaram-na.

Rafael fechou os olhos. Não era aquilo que ele queria ouvir.

- Eles quem, Pedro?

- Não... não sei. Ouvi a porta a fechar-se e levantei-me e... a Mandi tinha desaparecido.

- Os seguranças? - perguntou, antevendo a resposta.

Pedro não respondeu logo como se tivesse medo do que teria de proferir.

- Os seguranças, Pedro?

- Mor... mortos.

- Quantos são?

- Ah? - Não entendera a pergunta.

- Quantos seguranças estão mortos?

- Todos. São dois. E agora, padre?

- Escuta o que te vou dizer, Pedro. Acalma-te. A polícia italiana estará aí daqui a pouco. Não chames ninguém da Gendarmaria do Vaticano, entendido?

Silêncio do outro lado da linha.

- Percebeste o que te acabei de dizer, Pedro?

A voz de Pedro mostrava que ele continuava alarmado e em pânico.

- Sim. Não chamar a Gendarmaria do Vaticano e esperar pela polícia.

- Isso. Estou com o inspector da polícia e ele vaI ja enviar alguém para a Via della Traspontina.

Ao ouvir as palavras de Rafael, Cavalcanti pegou imediatamente no seu telemóvel. Mais duas mortes e, desta vez, o Vaticano não podia interferir.

Não havia extraterritorialidade na morada que Rafael mencionara, apesar de ficar bem perto da porta de Santa Anna.

- Deixaram um bilhete para si - informou Pedro com a voz embargada pelo excesso de preocupação.

Rafael olhou ao redor inseguro. Tinha de arriscar.

- Podes ler-mo?

- Já temos a filha, só falta a mãe, padre Rafael. Praça de São Pedro, junto ao Obelisco do Vaticano. Oito horas - leu Pedro, entrecortando palavras com os nervos e os tremores. - O que quer dizer isto?

- Acalma-te - pediu o padre. - Espera pela polícia. Eles saberão o que fazer.

- E quanto à Mandi? - quis saber, desesperado.

- Não te preocupes, Pedro. Eu trato do assunto - respondeu, como se não estivesse algemado nem detido no salão da embaixada da Alemanha em Roma.

 

Niklas sentou-se na cama que estava encostada a uma das paredes da cela. Só tinha a armação e o colchão, não tinha lençóis, pois sabiam os mais experimentados profissionais da área que não se podia dar aos cativos nenhuma hipótese de evasão, nem sequer para o além. O espaço era pequeno para os três prisioneiros, proporcionando, pelo menos no jovem padre, uma desconfortável sensação claustrofóbica. As gotículas que se colavam à testa e aos ombros denunciavam os suores frios que sentia, misturados com os calafrios nervosos, a ansiedade e o medo.

Mandi? Esse era um os nomes e que a jornalista lhe falara. Anna e Mandi. E também dissera que conhecia o pai que ele procurava há anos e nunca conseguira encontrar.

Mandi continuava sentada no chão, abatida, com medo de tudo e de todos. Sarah confortava-a o melhor que podia.

- Venha sentar-se na cama - sugeriu a jornalista com uma voz terna e, ao mesmo tempo, decidida. Não estava ali para lhe fazer mal e era bom que ela o soubesse. - É mais confortável que o chão frio, apesar de tudo.

Mandi observou a cama e a pequena cela, durante alguns instantes. A luz fraca da lâmpada imunda que pendia do tecto provia iluminação suficiente para que nada ficasse imerso pela penumbra. Quem seriam aqueles dois? Seriam vítimas da mesma maldade que lhe tinham feito? Por que razão partilhavam o cativeiro com ela? Se bem que, na sua realidade, aquela fosse apenas mais uma forma de prisão, ligeiramente diferente daquela a que estava habituada, há vinte e nove anos, só por ter escutado um telefonema...

Decidiu aceitar a sugestão de Sarah e sentar-se na cama, ao lado do rapaz nervoso e de olhar desconfiado que partilhava a cela com elas.

- O seu nome é mesmo Mandi? - perguntou o rapaz, como se a pergunta queimasse e tivesse de se livrar dela rapidamente.

A recém-chegada fez que sim com a cabeça.

Sarah observou-a com discrição, para não levantar suspeitas infundadas. Aparentava ser mais velha do que ela, talvez na casa dos 40 anos, rugas de sofrimento marcadas no rosto. Arrepiou-se com o olhar amargurado da mulher. Parecia o de quem há muito perdera a vontade de viver e apenas se limitava a aguardar a sua hora, que podia ser naquela noite ou noutra qualquer.

- Sabe porque está aqui? – perguntou o padre.

Mandi voltou a responder com um aceno de cabeça.

- Vocês sabem?

Niklas respondeu da mesma forma que ela, com um meneio ausente, de um lado para outro, um não.

- Acho que é por sua causa - contrapôs Sarah. Não era hora para rodeios nem hipocrisias.

Mandi olhou -a com espanto estampado no rosto.

- Por minha causa? - não podia crer. Que queria aquela mulher dizer com aquilo?

- Sim. Por sua causa. Já ouviu falar em Pio XlI, em Pasqualina, em Anna P?

Niklas estranhou que Sarah estivesse sempre a repetir aqueles nomes.

Anna, Mandi, e agora Pasqualina e Pio XII. Que teria o Santo Padre a ver com esta história e porque é que a jornalista insistia tanto?

- Não sabemos o que vão fazer connosco, mas o mais provável é que nos matem. Eu não quero morrer sem saber porquê - disse Sarah.

- Quem é que vos contou da Anna? - perguntou Mandi, com uma voz sumida. A mulher tinha razão. Quanto mais soubessem melhor. Também queria compreender o que se estava a passar, e calados não iriam a lado nenhum.

- Um padre no Colégio dos Relatores da Congregação para a Causa dos Santos - confidenciou Sarah.

- Continuam com a ideia de canonizar Pio XII, não é? - perguntou Mandi. - Isto é tudo por causa disso. Porque é que não desistem dessa ideia de uma vez por todas?

- Porquê? - quis saber Niklas.

Mandi não respondeu logo. Manteve-se com uma postura pensativa como se estivesse a ponderar os prós e os contras de dizer o que o coração queria gritar ao mundo, deitar para fora todos os segredos que fora obrigada a guardar durante quase trinta anos, prescindindo dos sonhos, dos amores, da vida.

- A Anna é a minha mãe biológica - explicou Mandi. - O Eugenio e a Josefina, que vocês conhecem como Pio XII e como Pasqualina, eram os meus... avós maternos.

Sarah e Niklas ficaram pasmados a olhar para Mandi, incrédulos. As suas mentes balbuciavam perguntas que não conseguiram verbalizar, tal o espanto que a revelação lhes provocou. Era algo que nunca lhes tinha passado pela cabeça. Um Papa e uma freira, que viveram na primeira metade do século XX, tiveram um filho? Sarah só se conseguia lembrar de Alexandre VI, o Papa Bórgia, pai de três rapazes e uma rapariga, com a diferença que os tivera antes do papado, ainda que isso não o desculpasse. Niklas conseguia acrescentar um Júlio II, um Paulo III, entre outros que não importava nomear mas... Pio XII? Nunca imaginara tal cenário. Entendia que se esta história caísse nas mãos erradas seria um descalabro. A já muito maculada imagem de Pio XII nunca recuperaria deste escândalo, mas continuava a não conseguir perceber o que é que ele tinha a ver com isso.

Foi a vez de Sarah se sentar, ao lado de Mandi, afogueada, com as bochechas coradas pelo calor que sentira de repente.

- Por que razão usou a expressão mãe biológica?

Mandi encolheu os ombros.

- É uma história muito complicada.

- Posso presumir que não foi a Anna quem a criou?

- É a sina das mulheres da minha família - confidenciou Mandi, resignada. - Nunca puderam criar as filhas. Foram sempre obrigadas a vê-las à distância, sem lhes poder tocar, sem as poder abraçar e beijar. - Os olhos marejaram-se-lhe. - Sem uma carícia ou um sorriso. Foi por isso que não tive filhos.

Revelava uma amargura colada às palavras, uma revolta interior, uma frustração velada. Uma resignação forçada. Mandi não era uma mulher, era um escombro, uma réstia de vida que nunca chegara a ser.

- As mulheres da minha família sempre viveram vidas de servidão e penitência. Cumpriram penas perpétuas sem acusação nem julgamento, condenadas pelo simples facto de existirem. Custaria menos matar-nos à nascença, digo eu - proferiu Mandi com uma expressão ausente como se estivesse a contar uma história que não era a dela, a buscar memórias que não lhe pertenciam. - Como se essa punição não bastasse, Deus abençoou­as com vidas longas. A minha avó viveu 89 anos. A minha mãe vai fazer 82. Eu nunca estive doente. Até aos 15 anos tive pai e mãe perfeitamente normais até que... a minha vida acabou - disse com muito pesar.

- O que é que isso quer dizer? – perguntou Sarah.

- Que descobriu a verdade - explicou Niklas com um olhar condescendente.

Niklas entendia muito bem o que Mandi passara. Talvez por isso lhe tivesse dado a mão num gesto fraternal. Viver uma realidade que não passava de uma encenação para depois descobrir que a família, que tinha como valor assegurado, não era aquilo em que sempre acreditara. O pai não era o verdadeiro pai. Para Mandi fora ainda pior. Nem o pai nem a mãe que conhecera lhe pertenciam. Eram apenas boas pessoas a desempenhar um papel que lhes tinha sido pedido.

- E quem eram eles? - perguntou Sarah.

Mandi respirou fundo.

- Por incrível que possa parecer, a minha avó foi engenhosa e conseguiu esconder do meu avô a filha que tiveram, mesmo debaixo das barbas dele. Apesar de todo o amor que sentia por ele, sabia que ninguém no seio da Igreja aceitaria. Por isso entregou-a a um casal de funcionários do Vaticano. Assim, tê-Ia-ia sempre debaixo de olho. Foi criada com os filhos deles como se fosse mais uma. O meu avô chegou a vê-la e a falar com ela. - Sorriu ao imaginar a cena. - Ambos desconhecendo quem realmente eram.

Quando a minha mãe engravidou quis manter o segredo, mas o irmão adoptivo dela, o Ercole, soube e não ficou calado. - Mandi ficou em silêncio durante alguns momentos. - O Cardeal Secretário de Estado da altura decidiu afastar a minha mãe de Roma e manteve-me sob a tutela de Ercole, que foi o meu pai até aos 15 anos. Não desejo a ninguém o que os meus tios adoptivos passaram também.

- O que é que aconteceu aos 15 anos? - quis saber Sarah. Mandi não respondeu logo. Reviu primeiro a cena, na sua própria cabeça, que há vinte e nove anos mudara a sua vida para sempre, a chegada extemporânea a casa da escola de música, a perspectiva de um part-time a vender produtos de beleza de uma marca conceituada, o silêncio das divisões vazias de gente e depois os gritos abafados. Buscou-os lentamente, pé ante pé, cada vez mais audíveis. Provinham do corredor e eram do pai que berrava para o telefone. Faremos como ordenou o Cardeal Secretário de Estado. Viu o pai levantar uma mão e bater com ela na parede, encolerizado. Não voltes a proferir isso em voz alta. A Mandi nunca poderá saber quem são os pais dela, ouviste? Nunca.

O coração apertou-se-lhe no peito com a aflição quando ouviu o pai pronunciar aquelas palavras. O resto ruiu quando se viu a dar um passo em frente e revelar a sua presença. O pai fitou-a incrédulo sem conseguir esconder a inquietação que sentia.

- A curiosidade levou a melhor e acabei por exigir respostas para as quais não estava preparada - confessou Mandi.

Aquela que conhecia como a tia Anna, uma mulher azeda que raramente aparecia, a não ser em algumas visitas fugazes nas ceias de Natal e com quem mal falara, afinal não era tia nenhuma. Era... a sua mãe. Que tumulto aquela revelação causou na sua mente.

- A minha vida nunca mais foi a mesma.

Niklas não podia crer naquilo que ouvira. Aqueles nomes que Sarah mencionara tinham agora espessura, aquele depoimento tornava reais as pessoas que antes não passava de meros nomes. Sarah colocou o braço ao redor dos ombros de Mandi num abraço fraterno e sentido. Deixou cair uma lágrima dos olhos chorosos que denunciavam que o que ouvira não lhe fora indiferente, tocara-lhe no âmago. Estava na presença de uma das três mulheres que se haviam sacrificado em nome de... Deus? Jesus? Homens? Nem ela compreendia a quem servia aquela oblação com mais de oitenta anos, e que tantas vítimas fez pelo caminho. Para quê? Perguntava-se. De certa forma, e salvas as devidas comparações, em nada equiparáveis às de Mandi e da mãe e da avó, Sarah também era uma vítima desta Igreja egoísta e oportunista, disposta a tudo em nome da sobrevivência. Há seis anos que não fazia mais nada a não ser esquivar-se às balas.

Desde Jesus e a ligação Dele à Igreja Católica, com fraca comprovação histórica e que muitos tentavam desmascarar, passando pela morte do Papa João Paulo I e até ao Papa João Paulo II, muitas eram as histórias mal contadas. Agora era a vez de sofrer na pele por algo que Pio XII, de quem sabia muito pouco, fizera há muito tempo. Desejava sinceramente não voltar a ser apanhada num turbilhão como aquele em que se encontrava. Infelizmente, os cordéis com que a Igreja embrulhava os seus problemas rebentavam sempre do lado mais fraco. Queria culpar alguém. Pensou em Rafael, mas, por ele, ela estaria a caminho de Londres, quiçá já na cama em Chelsea. Quando é que teria um momento de paz?

Todos estavam entregues aos seus pensamentos e às suas dores quando um estalido na porta lhes chamou a atenção. O medo tomou conta deles e a cada estalido da fechadura a ansiedade aumentava, provocando-lhes calafrios e suores frios. De repente o ruído cessou e nada aconteceu. Ficaram em suspenso, sem fazer retomar o torvelinho ruidoso dos pensamentos em que se tinham afundado antes do primeiro estalido. Passaram uns instantes. Uma eternidade. A aflição manteve-os alerta, preparados para o pior... Até que a porta se abriu.

 

- Ele não está no Vaticano - avisou Girolamo, agastado. - Solicitou um carro à garagem há cerca de uma hora e meia, logo depois de ter reunido comigo.

- Quem foi o motorista designado? - perguntou o Cardeal Secretário de Estado com uma expressão esperançosa.

- O monsenhor dispensou motorista. Saiu pela porta da Sant'Anna às cinco e meia.

- Raios! - o piemontês bateu com o punho na sua própria coxa. - Onde é que ele terá ido?

- Dei a matricula da viatura aos colegas da Polizia Stradale. Se alguém a encontrar saberemos.

O carro seguia o trânsito matinal, ordeiramente. Os vidros fumados não deixavam entrever os quatro passageiros que o ocupavam, mais o motorista, que vestia um uniforme cinzento-escuro, e seguia em direcção à morada indicada. O calculismo era apanágio da Santa Sé desde há séculos. Se a ocasião fosse outra, o Cardeal Secretário de Estado teria solicitado às autoridades italianas um grupo de escolta para abrir caminho pelas congestionadas vias romanas, mas o tempo escasseava e era necessário anonimato, daí que a escolta se resumisse a apenas uma viatura que seguia atrás com quatro guardas suíços, atentos a qualquer movimento.

Poder-se-ia pensar que tal protecção era desnecessária, mas o Secretário de Estado não podia nunca sair sem ela, por razões de segurança e assédio jornalístico. Curiosamente, o Vaticano era vítima permanente de um grupo de fotógrafos, estrategicamente colocados em todas as portas de acesso ao Estado, e que fotografavam quem entrava e saía. Quando o alvo da objectiva era relevante seguiam-no em motos para conhecer o destino. O nome desses fotógrafos habilidosos que pairavam sobre as presas, segundo a Santa Sé, era Vaticano Papparazzi. Talvez por terem deixado o pequeno Estado muito cedo, ninguém testemunhou a saída do Mercedes e do Volvo que seguia logo atrás.

Tarcisio consultou o relógio de ouro que trazia no pulso. O tempo urgia. O prazo estava a terminar. Pouco mais de uma hora e tanta coisa fora do controlo.

- Porque é que o Rafael fez isto? - perguntou Tarcisio, consumido.

­ Não havia necessidade.

- Provavelmente criou laços de afecto com a mulher - sugeriu Federico, que também seguia no banco de trás. - Tem de haver uma explicação.

O Cardeal Secretário inclinou-se para a frente, para Guillermo, que ocupava o banco da frente, ao lado do motorista.

- Isso é possível, Tomasini?

- Possível é, Eminência. Provável? Não. Os meus homens cumprem ordens. Se o Rafael não o fez alguma razão o levou a isso.

- Os teus homens cumprem ordens - repetiu Girolamo com sarcasmo.

­ Se não fosse por esse cumprimento dos teus homens, não estávamos aqui. Falhou duas ordens directas. Trazer-nos a moeda de troca e tratar do jornalista.

Guillermo virou-se para trás, à procura dos olhos do Secretário.

- Não sei o que aconteceu. Mas ele tem muitas razões para não confiar em nós. Além disso, acho que não conhecemos a história toda. Há muita coisa que nos está a escapar.

- O que queres dizer com isso? - perguntou Federico.

- É uma questão de análise. Nos últimos dois dias sofremos ataques incisivos, possivelmente planeados até ao mínimo detalhe. Eliminaram três relatores que, por coincidência, se desejarmos acreditar nisso, estavam a trabalhar no mesmo assunto.

- Alguém sabe alguma coisa do Gumpel? - interrompeu o Secretário que, de súbito, se lembrara do chefe dos relatores.

- Não atendeu nenhuma das nossas chamadas - informou Girolamo.

- E não está em nenhum dos endereços que lhe conhecemos. Só se estiver em algum não registado.

Tarcisio e Federico respiraram fundo. Os danos ainda estavam a acontecer. Faltava pouco tempo para o final do prazo e ninguém era capaz de saber o que aconteceria quando este chegasse. Se Rafael tivesse colaborado um pouco, não tinham com o que se preocupar. Lidariam apenas com o trágico desaparecimento de um jovem padre alemão, filho de um diplomata. Talvez até conseguissem inculpar o embaixador. Mas para isso era premente que a moeda de troca deixasse de o ser e... desaparecesse de uma vez por todas.

- Acham que o Gumpel também...

Tarcisio deixou a pergunta em suspenso à espera que alguém respondesse.

- Acho que se alguma coisa aconteceu com o padre Gumpel, sabê-lo-emos muito em breve. Eles têm sido expeditos a informar toda a gente das suas acções - referiu o intendente da Gendarmaria.

- E depois, do nada, temos o rapto do padre Niklas - continuou Guillermo como se não tivesse sido interrompido. - Filho do embaixador alemão; mas que ligação tem ele com os outros? - Parecia estar a falar mais para si do que para os restantes passageiros do carro, como se estivesse a analisar os acontecimentos em voz alta.

- Era acólito do padre Luka - explicou Girolamo. - Provavelmente tinha acesso a informação privilegiada.

- Pois - concordou Federico.

Guillermo fez que não com a cabeça numa postura pensativa e voltou a olhar para a frente.

- Então por que motivo não o mataram também? É isso que não percebo.

A viatura virou para a Via Maria Adelaide e depois seguiu pela Viale del Muro Torto até chegar ao Corso D'Italia. O trânsito aumentava a cada minuto que passava ou não fosse Roma uma cidade que acordava cedo.

- Qual é a complicação, Tomasini? É muito simples. Raptaram o rapaz para ter ascendência sobre nós. Mas em breve vão descobrir que não negociamos com terroristas - argumentou Girolamo.

O homem da espionagem não respondeu logo. Ordenava as informações mentalmente como se estivesse a montar um puzzle ao qual faltavam peças.

- Todos os raptos são iguais. Há um alvo que é aprisionado para ser trocado por alguma coisa.

- Não precisas de me explicar as regras do...

- Há sempre um prazo - prosseguiu Guillermo, ignorando a intromissão extemporânea do intendente. - E até que esse prazo expire os raptores mantêm-se quietos, à espera. Não é o que se está a passar aqui.

- Explica-te, Tomasini - pediu Tarcisio, visivelmente intrigado com a observação de Guillermo.

Guillermo tornou a virar-se para trás.

- Este caso foi sempre unilateral. Eles entraram em contacto connosco mas nós não temos forma de lhes responder. O resgate chegou ao Secretariado há dois dias, através de um post-it que encontrámos colado num confessionário da Basílica de Sant'Andrea. Mataram duas pessoas. Não era necessário fazer mais nada. Isso foi mais do que suficiente para percebermos que estavam a falar a sério. Independentemente da nossa reacção, eles continuaram. Bertram, Duválio… Como se uma coisa não dependesse da outra. Um, o rapto para entregarmos a moeda de troca. Dois, uma eliminação planeada dos relatores.

Os três homens do banco de trás escutaram as palavras de Guillermo com atenção. Para Federico e o Cardeal Secretário de Estado, a tese do homem da espionagem fazia sentido.

- Precisamos de encontrar o Gumpel - disse Tarcisio, com firmeza, para Girolamo. Virou-se para Federico. - Temos de analisar o trabalho dos relatores. O que quer que eles tenham feito chateou alguém.

- Ao ponto de os matar - acrescentou o porta-voz.

- Eles nunca demonstraram qualquer preocupação em relação ao resgate - declarou Guillermo.

- Como assim?

- Limitaram-se a deixar bilhetes nos locais do crime. Primeiro, na basílica. Depois, Arturo ligou-me antes de se ter ido juntar a Davide e disse­me que também havia um na Via Tuscolana. O Rafael tinha um no Palácio das Congregações... Em nenhum momento se preocuparam em saber se a mensagem tinha chegado ao nosso conhecimento.

- E o que é que concluis disso? - perguntou Girolamo em jeito provocador.

- Posso estar enganado, mas acho que as mensagens nunca foram para nós.

- Estás doido? Deixaram uma pilha de mortos espalhados pela cidade - contestou o intendente. - Isto é um ataque à Igreja.

O Secretário matutava nas posições opostas dos seus homens, a tentar decidir-se sobre quem estaria correcto. O carro meteu pela Viale del Castro Preto rio e a seguir guinou à direita e parou alguns metros mais à frente.

Tinham chegado ao destino. As portas abriram -se mas ninguém saiu.

- O Girolamo tem razão. Estamos a ser atacados.

Guillermo saiu do carro e olhou para o relógio. Eram sete horas.

- Daqui a uma hora veremos - murmurou.

O intendente pegou no telemóvel, premiu algumas teclas e afastou-se do grupo, enquanto levou o aparelho ao ouvido. Poucos segundos depois a chamada completou-se.

- Preciso que encontrem o secretário do Papa - murmurou em voz baixa.

- Sim, o Giorgio. - Uma pausa para o interlocutor responder à ordem.

- Quando o apanharem, tragam-no até mim.

 

- Já chegaram, senhor embaixador - comunicou em alemão um dos homens do BND encostados à parede ao lado da lareira e do Füger, numa voz maquinal.

- Encaminhem-nos aqui para o salão, imediatamente - ordenou Klaus, acercando-se de Rafael.

O homem da secreta levou a mão à boca e disse qualquer coisa em voz baixa, inaudível, para o microfone que tinha debaixo da manga do casaco.

- Agora nós, senhor padre - disse o embaixador. - Não vou perder tempo a discutir o telefonema que recebeu. Só me importa o meu filho Niklas. Vou explicar-lhe, sem rodeios, o que vai acontecer. Vamos escoltá-lo, pessoalmente, ao endereço onde está essa pessoa que os raptores exigiram e vamos levá-la à Praça de São Pedro, sem manobras de diversão nem conspirações. Vamos cumprir à risca o pedido de resgate.

Klaus esperava uma resposta mas Rafael não a deu. Era uma forma de retribuir as algemas que, tão gentilmente, lhe prendiam as mãos atrás das costas, como se fosse um criminoso recluso à espera de julgamento pelos seus crimes. Não te vingarás, diria Deus como um mandamento, mas Rafael não pertencia à classe divina. Espalhava a Sua palavra, era certo, mas não preconizava a perfeição. Antes pelo contrário.

- Entendeu tudo o que eu disse? - perguntou o embaixador com a sua voz tonitruante que disfarçava o receio da resposta.

- Perfeitamente.

- Vais fazer isso, Rafael? - perguntou Nicole, com os olhos inchados do choro. - Vais fazer isso pelo Niklas?

Rafael esboçou um curto sorriso cordial.

- Não - respondeu o padre sem desfazer o sorriso nos lábios.

A voz de Rafael confundiu-se com a de Girolamo, que acabava de entrar no salão, ao lado do Cardeal Secretário de Estado, do porta-voz do Vaticano e de Guillermo, e dissera exactamente a mesma coisa.

O embaixador encaminhou-se para receber o número dois da Igreja Católica Apostólica Romana, número um, segundo mentes mais ousadas, e inclinou-se para beijar o anel na mão que Tarcisio estendeu.

- Eminência. Não o esperava - confidenciou Klaus, completamente surpreendido pela presença do cardeal. Não imaginara que o representante fosse tão alta figura.

- Não podemos deixar os nossos filhos nas horas más. Isso não é cristão e muito menos católico.

Nicole levantou-se da cadeira onde estava e prostrou-se aos pés do piemontês numa atitude de total abnegação.

- Salve o meu filho, por favor, Eminência. Salve o meu filho - repetiu a embaixatriz, desesperada.

O Cardeal abaixou-se o máximo que os ossos permitiram e afagou-lhe os cabelos loiros.

- É para isso que aqui estamos, minha filha - proferiu numa voz baixa e apaziguadora, muito segura do que dizia.

Nicole levantou-se e começou a beijar-lhe incessantemente a mão onde tinha o anel, até que ele a afastou, o mais gentilmente possível.

O Cardeal consultou o seu relógio e olhou em redor para os presentes naquele salão faustoso e, ao mesmo tempo, aconchegante.

- Temos menos de uma hora para o fim do prazo. Há vidas humanas em risco. - Virou-se para Girolamo. - Este é o intendente da Gendarmaria Vaticana, Girolamo Comte. A partir daqui é ele que lidera as operações.

- Muito bem, Eminência. Meus senhores, temos um prazo apertado para cumprir. - Acercou-se ameaçadoramente de Rafael e fitou-o nos olhos.

- Mas vamos cumpri-lo.

- Alto lá - interrompeu Cavalcanti, que não conseguiu conter mais o silêncio, especialmente na frente dos recém -chegados. - Estamos em território alemão. Se o embaixador entregar essa soberania, terá de o fazer a mim. Rafael é meu detido.

Girolamo ficou especado a olhar para o inspector italiano e depois para o embaixador.

- Não vão agora prender-se com burocracias nem jurisdições, pois não?

É o meu filho - disse Nicole irritada.

- Calma, querida - pediu Klaus, abraçando-a. - Eu não entreguei a soberania alemã a ninguém. Nem o podia fazer, ela é intransmissível. Simplesmente pedi colaboração às autoridades da Santa Sé. E assim será.

Cavalcanti sentiu-se encurralado. Estavam todos feitos uns com os outros. Mais uma vez fora entalado pelos papa-hóstias, como ele lhes chamava. Vários vitupérios se seguiram na catadupa de adjectivos e predicados mentais que passaram pela cabeça do inspector indignado, mas não disse nenhum em voz alta.

Para Girolamo aquelas palavras eram mais que suficientes.

- Compreendido, senhor embaixador. - Virou-se para Cavalcanti com um ar sobranceiro. - Para além disso, a detenção do padre Rafael resultou de uma ilegalidade, portanto... - Para bom entende dor não havia necessidade de dar mais instruções.

- O que é que vão fazer? - perguntou Nicole com o coração nas mãos.

- Nós tratamos de tudo. O padre Rafael vai levar-nos ao endereço da moeda de troca e depois seguimos para o local indicado pelos raptores. A partir daí esperaremos por novas instruções. Faremos tudo com muita calma para não colocarmos a vida do seu filho em risco. Pode ficar tranquila. Tem a minha palavra.

- Quero que os meus agentes vos acompanhem.

- Não há necessidade - arguiu Girolamo.

- Insisto - declarou o embaixador, irredutível. - Quero alguém da embaixada sempre convosco. Uma parceria é assim que funciona.

Girolamo fitou o Cardeal Secretário de Estado, que fez um meneio quase imperceptível com a cabeça em jeito de aceitação.

- Perfeitamente, senhor embaixador - acedeu Girolamo. - O Federico é o porta-voz do Vaticano. As comunicações, se as houver, vão passar todas por ele e só por ele.

O embaixador concordou. Para ele também era importante que nada daquilo vertesse para a opinião pública ou, no caso de ser inevitável, que o fosse por alguém perfeitamente habituado e o fizesse sem causar grandes danos.

- Estamos prontos, meus senhores? - perguntou Girolamo.

- Eu também vou convosco - informou Cavalcanti. - Chamemos-lhe uma parceria entre as polícias alemã, italiana e da Santa Sé.

- Impensável, Cavalcanti - recusou o intendente.

- Vocês é que sabem - disse o inspector com um ar inocente. - Assim que puserem o pé na rua os vossos coiros serão todos meus e acreditem que posso fazer com eles o que eu quiser.

- Posso ligar ao Amadeo - ameaçou Girolamo, impaciente. Aquele inspector irritava-o sobremaneira. - De certeza que ele te acaba com as manias.

- Até que ele chegue ou eu lhe atenda o telefone via levar bem mais de uma hora - respondeu Cavalcanti em desafio.

Girolamo respirou fundo. Eram tantos entraves ao que era fácil.

- Não há tempo a perder, Comte. Leva o inspector contigo - interpôs o Cardeal Secretário de Estado. - Eu ficarei com o senhor embaixador e a senhora embaixatriz à espera. - Acercou-se de Rafael com uma postura conciliadora. - Juízo, Rafael. Não te pedimos que colabores connosco, apenas que faças o que está correcto aos olhos de Deus.

O toque de um telemóvel chamou a atenção dos presentes até Cavalcanti se afastar do grupo, levar a mão ao bolso e depois atendê-lo.

- Para onde vamos, Rafael? - perguntou Girolamo, disfarçando o melhor possível a ansiedade que sentia.

- Tirem-me as algemas - pediu o padre com uma voz séria.

Durante uns instantes, avaliaram o pedido, em silêncio, apenas com comprometedoras trocas de olhares. O Cardeal para o embaixador, o embaixador para intendente, o intendente para o Cardeal...

- Tirem -lhe as algemas, por favor - ordenou Girolamo, como se tivesse obtido alguma autorização telepática.

Os agentes da Bundespolizei procuraram a aceitação do embaixador que foi concedida com um simples meneio. Segundos depois, Rafael esfregava os pulsos libertos.

- O meu telemóvel - pediu autoritariamente.

O embaixador hesitou mas acabou por lhe entregar o aparelho. Era o padre quem distribuía as cartas e, pior que tudo, ele tinha noção disso.

Rafael foi rápido a premir nos botões que fariam a chamada chegar ao destino. Faltavam quarenta e cinco minutos para o final do prazo. Mesmo em cima da hora. Não tardou a que a ligação se completasse e o destinatário a atendesse do outro lado.

- Bom dia. Só um momento. - Voltou a premir duas teclas e levou o telemóvel novamente ao ouvido. Aguardou uns instantes sem dizer nada.

- Bom dia. Atenção. A moeda de troca tem de estar na Praça de São Pedro, junto ao Obelisco do Vaticano, às oito da manhã. Entendido?

Rafael escutou a resposta do outro lado e, satisfeito, desligou.

- Vamos para São Pedro - informou o padre, por fim.

- Podes seguir - disse Girolamo, com um gesto de mão a pedir a Rafael que fosse à frente.

Nicole atravessou-se no caminho do padre e levou-lhe a mão ao rosto.

- Traz-me o Niklas, Rafael - implorou já sem chorar e numa voz sussurrante.

- Não depende de mim, Nicole - explicou o padre. - Mas tudo farei para o trazer para os teus braços com vida.

Os três homens saíram com Cavalcanti, ainda ao telefone, atrás deles, e os agentes da Bundespolizei a fechar o grupo.

O salão ficou mergulhado num silêncio profundo, quebrado apenas pelo Cardeal Secretário de Estado que se ajoelhou a custo e juntou as mãos com um terço que pendia dos dedos.

- Vamos rezar pelo vosso filho.

Na escadaria, Cavalcanti recuperou o atraso e alcançou Rafael, afogueado.

- Já temos informações sobre a ligação para a central. Não sabemos quem ligou, mas sabemos de onde foi feita a chamada - disse o inspector em voz baixa, com um sorriso de triunfo. - Não vais acreditar.

Rafael não olhou para ele. Não havia tempo a perder... e não podia haver falhas.

- Eu também sei de onde ligaram -limitou-se a responder. - E quem fez a chamada.

 

Os dois homens não sabiam o que dizer. Eram revelações a mais, se tal pressuposto existia. Como se não bastasse estarem na presença da filha de um Papa e de uma freira, situação já por si desconcertante, Anna também tinha descendência.

- Se me permite, como é que isso aconteceu? - perguntou Giorgio, o belo, que logo que acabou de proferir as palavras se apercebeu da estranha questão.

- Bem o senhor é um homem da Igreja mas de certo saberá como acontecem estas coisas.

- A pergunta não foi feliz. Não se sinta obrigada a responder-me. Peço desculpa pela intromissão - desculpou-se o monsenhor.

Anna não respondeu logo. Procurava as palavras certas para explicar o que acontecera. Havia muitas formas de o dizer, mas só uma era verdadeira.

- Não se tratou apenas do cumprimento de um sonho. Foi também um grito de revolta... e um acto de puro egoísmo - começou por dizer, como se estivesse a falar para ela mesma, sem plateia, a confessar os pecados e os arrependimentos.

- O que quer dizer com isso?

Anna parecia hipnotizada, distante, no seu próprio mundo, a rever a sua história, como se estivesse perante o Altíssimo, à espera do Julgamento.

- Procriar não é apenas um direito. Ter um filho exige uma enorme responsabilidade. Deus, ou quem quer que tenha criado este mundo, deu-nos inteligência. E devíamos servir-nos dela para pesar os prós e os contras de ter um filho. Será que temos os meios financeiros, psicológicos, pessoais e familiares necessários para ter um filho? Não importa como estará a nossa situação daqui a cinco ou dez anos, temos apenas em conta a altura em que vamos conceber o nosso filho. Será que teremos como providenciar-lhe tudo aquilo de que necessita ou vamos ter de o colocar a trabalhar para nós mal comece a andar?

Os dois homens escutavam-na embasbacados. Nunca tinham ouvido aquele género de discurso sobre a maternidade.

- O amor é muito importante mas não mata a fome. - As lágrimas escorriam-lhe em torrente. Esperei muito tempo. Quase até ao limite. Pensar que depois o meu ventre secaria e seria o fim deixava-me angustiada.

Para mim era como morrer. - Sorriu por entre lágrimas. - Claro que a nossa mente consegue sempre convencer-nos que aquilo que sabemos estar errado afinal está correcto. Não adiantava a mãe ter sofrido uma vida inteira em silêncio, reprimindo o amor e o desejo de ser mãe para que nada de mal sucedesse.

- Durante muito tempo pensei que ela apenas o fizera por ele. Somente para lhe preservar a imagem ascética. Mais tarde entendi que o fizera pelos dois. A forma como aquela senhora vestida de freira olhava para mim quando me via fazia sentir-me especial. Coitada. Ela pensava que eu não sabia.

- E quem lhe contou? - quis saber Giorgio.

- Um grande amigo da minha família adoptiva. O cardeal Spellman.

- O cardeal Spellman? O arcebispo de Nova Iorque?

- Esse mesmo. Visitou-me muitas vezes e escrevia-me. Dizia-me sempre que eu era uma mulher muito especial. Sinceramente eu não percebia porquê. Quando o meu pai morreu eu chorei muito sem razão aparente.

Uns dias depois do funeral ele contou-me. No início foi um choque muito grande. Senti-me enganada, atraiçoada. Na altura, lembrei-me que quando eu tinha 16 anos a minha família adoptiva foi recebida em audiência pelo Papa, o meu pai. Fiquei muito alegre e ao mesmo tempo muito nervosa.

Quando o vi senti-me como se estivesse a olhar para um santo. Muito magro e alto, uma voz cristalina e doce, tão bondoso. Nunca tinha ouvido ninguém falar assim tão bem. Tocou-nos a todos. E a minha mãe estava alguns metros ao lado dele, a observar-me com um enorme sorriso. Vi-lhe os olhos marejados. Ele acariciou-me o cabelo e perguntou-me se cumpria as minhas orações diárias com um sorriso ao mesmo tempo franco e melancólico. Ele carregava a Humanidade nos ombros. Se eu soubesse que ele era meu pai... Ninguém tinha o direito de me esconder isso durante tanto tempo.

- E o que aconteceu depois? - quis saber Jacopo.

- Algumas semanas depois da morte do Papa, em 1958, o cardeal Spellman foi buscar-me. Toda a situação me parecia estranha, mas ele disse-me que não podia continuar ali. Era demasiado perigoso. Providenciara um lugar seguro. Nessa altura começou a minha pena... até hoje.

- E onde ficava esse lugar?

- Já lhe disse. Perto daqui.

- E de onde vinha o perigo? - indagou Giorgio.

- Não sei. Ele disse apenas que a minha mãe já não podia zelar pela minha segurança. Seria ele a fazê-lo a partir daquele momento. Era preciso afastar-me dos abutres esfaimados. Havia muitos à espera. Eu disse que só ia se pudesse falar com a minha mãe.

- E o cardeal Spellman aceitou?

Anna fez um meneio afirmativo. Encontraram-se algumas semanas depois. Pasqualina estava muito nervosa. Foi Anna quem a tranquilizou, e confidenciou-lhe que o segredo que o cardeal americano lhe transmitira ficaria a salvo no silêncio. A freira sorriu e abraçou-a. Conversaram muito, durante horas, e Pasqualina explicou-lhe que não poderia comentar aquilo com ninguém. Queria muito vê-la regularmente mas Spellman não autorizou alegando que era demasiado perigoso.

- Sabiam que a minha mãe foi expulsa do Palácio Apostólico no dia do funeral do meu pai?

- Seguramente não quis ficar - alegou Giorgio.

Anna olhou para ele com bonomia.

- Foi expulsa - afiançou.

Anna procurou entre os cadernos que estavam no interior do baú e tirou um deles. Folheou-o e quando encontrou o que procurava entregou-o ao secretário pontifício. Giorgio leu a passagem que ela lhe indicou. Falava do funeral de Pio XII e de como não pudera velar o corpo dele. Foi autorizada apenas a assistir às exéquias fúnebres, conjuntamente com todos os serviçais, por detrás de uma coluna atrás do baldaquino da Basílica de São Pedro.

Nesse mesmo dia foi ordenada a sua saída com todos os seus haveres, a Gretel, o pintassilgo do defunto Papa, e uma pequena gratificação. Quando acabou de ler, o secretário do Papa percebeu que Anna tinha razão.

- O cardeal Spellman colocou um padre a tomar conta de mim, dia e noite. O Edoardo. Acabámos por envolver-nos. Não foi nada previsto. Apaixonámo-nos. Há coisas na vida que acontecem pura e simplesmente. Ocultámos a nossa relação do cardeal Spellman e quando engravidei vivemos momentos muito difíceis. Edoardo não aguentou e contou ao cardeal o que acontecera, e foi transferido. Nunca mais o vi e ainda hoje não sei para onde ele foi. - Baixou a cabeça com uma expressão amargurada. - Também nunca me voltou a contactar. O irónico da situação é que o cardeal Spellman acabou por morrer em Nova Iorque, no final de 1967. A minha querida Mandi nasceu em 1968. Ele nunca saberia se o Edoardo não lhe tivesse contado.

Talvez ele próprio não conseguisse lidar com a culpa. Tiraram-me a minha filha ao fim de seis meses. Veio outro padre substituir o Edoardo. Chamava-se Giovanni. Giovanni Comte. Coitado. Preocupava-se muito comigo.

E eu gostava muito dele.

- Esse padre não foi o que morreu atropelado em Verona? - perguntou o secretário papal.

- Foi. Em 1983. A morte dele deixou-me devastada. Tão inesperada e fortuita. Fez-me muita falta. Nesse mesmo ano liguei para o meu irmão adoptivo a exigir-lhe que queria ver a minha Mandi. Que ela merecia saber a verdade. Ele exaltou-se e ela escutou a história toda. Poucos dias depois trouxeram-na para viver comigo. Mais um dano colateral.

- E como foi essa convivência?

- Muito difícil no início. Éramos duas estranhas que partilhavam consanguinidade. Quase duas companheiras de quarto. Nos primeiros 15 anos da vida dela eu não passava da tia que visitava o irmão na véspera de Natal e nem sequer ficava para o almoço do dia seguinte. Ela odiava-me. Eu representava o fim de todos os sonhos. O meu irmão falara com o Papa e ele entendeu que era necessário que a Mandi fosse colocada num local seguro para seu próprio bem. O Giovanni foi uma grande ajuda na nossa convivência porque era a única pessoa com quem ela falava. Mas ele foi-se poucas semanas depois e ficámos apenas eu e ela. Vieram mais padres mas nunca ficavam muito tempo. Acabámos por nos conhecer e criámos laços de cumplicidade. Acho que durante alguns anos fomos mesmo mãe e filha.

Só nos tínhamos a nós. Mas a Mandi queria muito viver, sair daquela casa enorme, tirar as grilhetas invisíveis e sonhar. Um dia fugiu.

- Fugiu? - repetiu Giorgio em jeito de pergunta, incrédulo.

- Sim. Quando fez 30 anos. Claro que foi apanhada ao fim de poucos dias. Foi o Rafa que a encontrou. Levou-a para Roma mas não me disse para onde, e depois transferiu-me para aqui. A fuga dela foi vista no Vaticano como potencialmente perigosa, e encarregaram o Rafa de fazer com que a fuga não se repetisse.

- E continua sem saber onde é que ela está?

- O Rafa nunca me disse - respondeu entre lágrimas.

O pranto de Anna encheu a sala e emocionou Jacopo, que sentia um nó sufocante na garganta. Naquela noite escutara um ínfimo testemunho das misérias que arrasavam o mundo.

- A culpa é toda minha. Um filho não é um direito. - Manteve-se em silêncio durante uns segundos. - O meu sentimento em relação ao que fiz é muito ambíguo. Por um lado, não tenho dúvida que foi a melhor coisa que me aconteceu em oitenta e dois anos de vida. Por outro, nunca o devia ter feito. - Calou-se novamente, pensativa. - Odiou-me durante muito tempo. Não a censuro.

- E... porque as separaram? - perguntou Giorgio, a medo, não querendo perturbá-la ainda mais.

Anna encolheu os ombros.

- O Rafa deve ter achado que era o melhor. Ela nunca foi feliz aqui e ele sempre foi um bom coração. Explicou-lhe as condições. Ela aceitou-as...

Nunca mais a vi. Perdi-a - disse, resignada pelas areias do tempo. - Espero não morrer sem a voltar a ver.

- A senhora está aqui presa? - perguntou Jacopo.

Reparou na segurança da casa mal chegou, não havia como não reparar. Seguranças, câmaras, sinais intermitentes, mas pensava que era para defender os moradores de hipotéticos ataques exteriores, e não que se tratava, de certa forma, de uma prisão luxuosa.

Anna confirmou com um meneio de cabeça.

- Mas porquê? - perguntou Giorgio.

- Porque é difícil para a filha de um Papa comportar-se em sociedade.

Por... castigo... porque é mais seguro assim para o Vaticano. Sempre fui uma espécie de ovelha negra... nunca devia ter nascido - confidenciou enquanto apontava para o baú. - Quero que fique com os diários e que através deles conheça a minha mãe, monsenhor Giorgio.

O secretário do Papa ficou sem resposta. Jacopo fitou a caixa, incrédulo com a oferta. Aquilo era o sonho de qualquer historiador. O relato de uma época na primeira pessoa, a voz de uma protagonista da história, era esplêndido.

O segurança bateu à porta timidamente e avançou devagar.

- Desculpem a interrupção.

- Que se passa, Gustav? - perguntou Anna, ansiosa.

- Já ligou?

- Quis saber Giorgio, levantando-se.

- Já, Excelência. Chegou na hora.

- Quem é que ligou? - questionou Anna, olhando desorientada para

Giorgío e o segurança. - Chegou a hora de quê?

 

O relator estava encostado à cabeceira da cama, com as pernas cobertas pelos cobertores, o cabelo desgrenhado, a testa preenchida com gotículas de suor, uma expressão desorientada, à procura da noção do que se estava a passar.

Aquela posição trazia a JC memórias que estavam afundadas no seu baú mental. Tinham passado mais de três décadas, trinta e quatro anos, para ser preciso, desde que vira um outro homem, também da Igreja, encostado a uma cabeceira da cama, com a cabe a a ender ara o lado direito, como Cristo. A diferença era que esse que coabitava nas suas memórias era um Papa estava morto. Os papéis que lhe colocara na mão e os óculos no rosto haviam de atazaná-lo para sempre, um grave erro de cálculo, que fazia com que aquela noite longínqua nunca o largasse. Não existiam crimes perfeitos nem mortes plácidas. Em nenhum cenário o pontífice largaria o corpo sem deixar cair os papéis que tinha na mão, e os óculos... foram o pior.

Essas memórias faziam-no sentir-se como um principiante, que deixava pistas em tudo o que tocava, como se quisesse anunciar ao mundo o mal que lhe fizera. Ele não usava óculos para ler. A lógica não beneficiava quem trabalhava neste ofício. Parecia um grito de culpa como se aquele crime não pudesse passar incólume. Mas passou. Foi o crime perfeito. Um homem era muito mais do que as suas falhas.

O manco pegou no copo de água que estava na mesa-de-cabeceira e chegou-o aos lábios do padre Gumpel.

- Beba - ordenou JC.

Gumpel, ainda desorientado, bebeu um pouco de água e ficou a olhar para eles sem dizer nada.

JC olhou para o manco.

- Deixa-nos. Mantém-te atento ao perímetro.

O manco fez um meneio de submissão ao velho e encaminhou-se para a porta do quarto. Não havia dúvidas de quem mandava ali. A idade era um posto. JC virou-se para Gumpel e sentou-se numa cadeira ao seu lado.

- A freira e o rapaz estão aqui no corredor - avisou o manco, a mirá-los com uma expressão ameaçadora.

- Deixa-os estar – disse o velho com um sorriso. – eu tomo conta deles.

O padre mexeu-se na cama.

- Quem são os senhores? O que querem de mim? - perguntou, incomodado.

- Não vamos a lado nenhum com essas perguntas, padre Gumpel. Isto não é uma conversa, é um interrogatório. Quem faz as perguntas aqui sou eu.

O padre não sabia o que dizer. As palavras daquele idoso que estava sentado ao seu lado eram cáusticas, embora também estivessem carregadas de muito sarcasmo. Era como se não levasse nada a sério. Tinham entrado em sua casa há alguns dias, não sabia dizer quantos. Dois, talvez três ou mais.

Não sabia como entraram, apenas que já estavam no interior quando ele chegou, vindo de Roma, na esperança de ter alguns dias de descanso. Não tinha como defender-se. Os relatores eram meros servidores da cúria, pastores da história da humanidade, das pessoas e da Igreja. Faziam os santos, se se quisesse explicar de um modo simples, descomplexado da realidade.

Não necessitavam de segurança. Ou, pelo menos, assim pensava... até que isto aconteceu.

- Não lhe parece que as mulheres deviam ter mais relevância na estrutura política da Igreja? - perguntou o velho.

-Ah?

- Esqueça. Elas já a têm - proferiu JC com cinismo e acidez, a olhar para uma parede. - Antes pelo contrário.

Ajeitou-se na cadeira e fitou o padre.

- Esta noite foi muito profícua em acontecimentos, sabia?

Gumpel ficou à espera que aquele homem sentado junto à cama, com as mãos em cima da bengala, e de quem ele desconhecia o nome, continuasse.

- Segundo as minhas fontes, e são muitas - vangloriou-se - o meu caro padre ficou sem auxiliares.

Gumpel sentiu um nó na garganta e engoliu em seco, sentiu os pêlos eriçarem e o suor a descer das têmporas.

- O que... que quer dizer com isso?

- Os seus relatores. Mortos... Os três - esclareceu, como se de uma sentença se tratasse.

Gumpel fechou os olhos. Que tragédia. Pior. Que sacrilégio. O trabalho daqueles homens era sagrado. Eles tinham a tarefa, cujo fardo era insondável, de tornar divino o humano, de fazer o efémero intemporal. Aqueles homens estavam à sua responsabilidade e tinham morrido por culpa sua.

Levou as mãos ao rosto, conturbado pelo choque da notícia que fora dada de supetão.

- Porquê? - acabou por perguntar quando se recompôs.

- Essa era a minha próxima pergunta. Em que é que os seus homens estavam a trabalhar?

- Numa positio sobre... sobre... - Gumpel estava hesitante, não sabia se deveria continuar.

JC suspirou de impaciência.

- É impressionante como o mundo pode estar a ruir à vossa volta que mantêm sempre a guarda levantada – repreendeu JC. – Eu sei muito bem em que é que os seus homens estavam a trabalhar. Não estava onde estou se não soubesse o que se passa ao meu redor. Formulei mal a pergunta. Esse trabalho era motivo suficiente para que eles fossem assassinados?

- Eu não sei... - respondeu Gumpel, baixando a cabeça.

- Não me esconda nada, meu caro. Aquilo que eu não sei, acabo sempre por descobrir... de uma forma ou de outra.

- Quem me garante que não foi o senhor quem os matou? - perguntou o relator, a medo, mas em tom desafiador.

- Não tenho que lhe dar garantias de nada. O juiz aqui sou eu. Por outro lado, se tivesse sido eu a fazer o que diz, provavelmente teria as minhas razões e não lhe estaria a perguntar que razões eram essas. Seria estranho.

Além disso porque é que eu os mataria?

Gumpel deixou-se ficar calado por uns instantes a magicar nas palavras do velho. Domenico, Bertram e Duválio, mortos. Misteriosos eram os desígnios do Senhor, mas às vezes não percebê-los era frustrante.

- Vai matar-me?

- Essa decisão ainda não foi tomada. Quando eu tiver novidades sobre isso prometo que será o primeiro a saber - respingou, com um sorriso cínico. - E quanto aos seus colaboradores?

O relator respirou fundo. Estava moído das horas e horas que havia passado na cama nos últimos dias.

- Depois de cinquenta anos a investigar a vida de Eugenio Pacelli, o Papa Pio XII, de boa memória, chegámos à conclusão que não podíamos elaborar uma recomendação ao Santo Padre para que o processo de canonização avançasse para o estádio seguinte. O padre Duválio – persignou-se ao pronunciar o nome do relator - fez descobertas importantes que o impediam.

- Não me diga que o anti-semitismo dele vos convenceu, finalmente.

Gumpel lançou-lhe um olhar enfurecido.

- Pio XII foi o mais semita dos Papas, depois de Pedro.

JC enfrentou o fito do relator para deixar bem claro que naquele quarto só ele tinha direito à indignação.

- Não é comigo que tem de se preocupar. Vai ter muito trabalho a convencer o mundo disso.

Gumpel sabia que JC dizia a verdade. O problema era mesmo esse, convencer a opinião pública de que tudo em que acreditava até ali não correspondia à verdade. Tarefa descomunal e ingrata, difícil de concretizar. O mundo podia ser muito pequeno tecnologicamente mas era imenso na mesquinhez.

- Estou perfeitamente ao corrente da Operação do Assento 12 -lançou JC.

- Ouviu falar dela? Existiu mesmo? - perguntou Gumpel com os olhos arregalados. Nunca nenhum leigo mencionara aquela alegada operação do KGB. A maioria não acreditava sequer que ela tivesse existido.

- Conheci o Ivan Agayants, o director do serviço de desinformação do KGB, e o Nikita Khrushchev, que a autorizou. O lema da operação era "Os mortos não se podem defender". O seu Papa Pio era um fervoroso anti­comunista e, como tal, essa operação foi criada para denegri-lo em todo o Ocidente. Usaram espiões romenos disfarçados de padres para penetrar no Vaticano e fotocopiarem os arquivos, mas não encontraram nada de relevante. Mesmo assim prosseguiram com a operação para retratá-lo como Papa nazi. Missão cumprida, parece-me.

- Quem é o senhor? - perguntou novamente Gumpel, espantado.

O silêncio manteve a resposta inicial.

JC voltou a ajeitar-se na cadeira e Gumpel tossiu, quase ficando sem ar. Alguns instantes depois acalmou e os dois homens fitaram-se outra vez. JC à espera, Gumpel visivelmente intrigado.

- Então porque é que não podem recomendar o Papa Pio XII para a beatificação? - relembrou o velho, que nada esquecia.

O relator sentiu-se incomodado com a pergunta. Baixou o olhar. Aquela posição podia ter motivado os homicídios dos seus colaboradores. Magna heresia.

- Porque deparámo-nos com problemas que impediam essa recomendação. Algo que os fiéis jamais aceitariam e que, acrescentado à sua já débil imagem devido à Operação Assento 12, seria o fim de Pio XII. - Depois calou-se como se tivesse deixado a frase a meio e o interlocutor aguardou.

- Dito isto, embora não fosse nosso desejo conspurcar ainda mais a memória do Santo Padre, pois sabemos quão grandioso ele foi durante a Segunda Guerra Mundial, ficámos de pés e mãos atados.

JC soltou um assobio para o ar como se tivesse ficado impressionado com o que ouvira.

- Quer dizer que iam tornar público o resultado da investigação? Não podiam guardar segredo?

- Gumpel lançou-lhe um olhar ofendido.

A Congregação para a Causa dos Santos é um organismo seríssimo. Lida com relatos, testemunhos, documentos, informações das mais variadas fontes, Não é sua função limpar a história para beneficiar os seus intentos, por mais importante que o candidato possa ser.

JC soltou um novo assobio.

- Quase que estou tentado a acreditar em si.

- É a verdade - afiançou Gumpel, com as veias a sobressaírem no pescoço da veemência com que proferia as palavras.

- Claro que é, senhor padre. Claro que é - disse o outro com desfaçatez. - O Papa afinal não era santo nenhum. Não se pode dizer que seja uma novidade. A quem não interessará essa revelação?

Gumpel voltou a tossir. JC deu-lhe um lenço de papel e esperou que ele recuperasse.

- Obrigado - agradeceu o relator. - Não faço ideia.

- Não suspeita de ninguém? Quem tem a ganhar com a não divulgação dessa nova informação?

Gumpel não queria pensar nisso. Manteve-se em silêncio. O seu trabalho não consistia em ver as consequências ou os ganhos do que quer que fosse. Estava ciente do bem que um beato ou um santo podia fazer a uma comunidade. Vira-o muitas vezes. Pequenas aldeias ou vilas que se tinham desenvolvido para além do inimaginável apenas porque os investigadores do seu gabinete, no Palácio das Congregações, tinham encontrado a santidade num dos seus membros. A fé movia montanhas e também as arrasava para construir templos e cidades novas ao seu redor. Sim, a congregação para a Causa dos Santos, mudara o Ocidente, sempre o fizera desde os tempos mais recônditos e olvidados. Sob os auspícios da sua validade e sacralidade, espalhava a crença por todos os cantos do mundo católico, fortalecia a economia de povoados, outrora vergados pela pobreza, levava-lhes a esperança. Os romeiros e os peregrinos tratavam do resto. Devido a essa influência que sabiam ter, o trabalho do Colégio era continuamente escrutinado, inspeccionado, revisto, moroso, lento para que não houvesse erros. Interpretavam os escolhidos de Deus na terra. Não tinham qualquer margem para equívocos. Quem mais perdia com a recomendação negativa era a própria Igreja.

- Não tenho qualquer suspeita - mentiu Gumpel.

- Não lhe parece que o assunto Pio XII é tão sensível que a Santa Sé não quer piorar ainda mais as coisas? - sugeriu JC.

- É possível.

- Ao ponto de preferir sacrificar os seus investigadores para que nada disso venha a ser conhecido?

Gumpel percebeu para onde o JC o queria levar. O homem era muito ardiloso.

- Nunca. Isso é impensável - retorquiu. - Será uma nova Operação Assento 12?

JC lançou uma gargalhada.

- O KGB já não existe e a Guerra Fria tem outro nome.

O manco voltou a entrar no quarto com o telemóvel na mão, guardou-o, e dirigiu-se a Te para lhe cochichar algo ao ouvido.

- Tá? Ajuda-me a levantar.

O manco amparou Te, que se levantou com esforço.

- Hora de ir embora, meu caro padre Gumpel.

O relator engoliu em seco. Que lhe aconteceria?

- Matteo. Mia - chamou TC

OS dois entraram no quarto, intimidados como dois miúdos traquinas que se tinham portado mal.

- Vamos sair.

O guia e a freira sentiram a apreensão avolumar-se. O sol já brilhava para lá da janela anunciando o novo dia e, de súbito, as regras mudavam.

- Que cena tão bonita - disse Te com um sorriso, ao observá-los.

Nenhum deles se tinha apercebido mas estavam de mãos dadas como se quisessem enfrentar o medo juntos.

JC acercou-se do relator e fitou-o com ar sério.

- Deixo-lhe um recado. Não é meu mas é como se fosse. Não quero saber o que descobriu, vá verificar novamente. Depois de rever tudo, faça a recomendação ao Santo Padre. Um homem é muito mais do que as suas falhas. Se alguma vez mencionar este encontro a alguém, o meu querido amigo far-lhe-á uma visita - disse, apontando para o manco. - Mas dessa vez não será para lhe desejar bom dia.

O homem encaminhou-se para a saída do quarto, enquanto o manco e os outros dois saiam à sua frente.

- Tenha um bom dia, padre Gumpel – disse JC antes de sair.

 

Nada era mais poderoso que o medo. Com certeza haveria quem discordasse. Uns diriam que nada era mais poderoso que a esperança, outros ainda defenderiam que nada superava o perdão. Ignoravam essas pessoas que estariam todas mortas, mais cedo ou mais tarde. Censuradas pela vida que não poupava ninguém, muito menos os fracos e os bondosos.

O Francês rodou a chave na fechadura da porta muito lentamente. Sabia perfeitamente que efeito provocava a aquele gesto tortuoso nas mentes de quem estava no interior da cela. Uma volta, duas voltas, três voltas. Depois, deixou-se ficar quieto uns segundos sem fazer nada. Não era sua pretensão torturá-los, apenas mantê-los submissos e amedrontados. Além disso, um deles estava, nitidamente, a recuperar de uma doença e ele não era monstro nenhum. Esperou mais uns segundos e empurrou a porta. Entrou na cela e encontrou-os todos juntos, sentados na cama com o medo espelhado no rosto. O efeito pretendido fora alcançado. Atirou-lhes os três capuzes que trazia na mão e esperou que os colocassem na cabeça.

Não foi necessário usar o rapaz como exemplo para ilustrar o que queria.

A jornalista foi a primeira a cobrir a cabeça com o tecido negro. Seguiu-se a outra mulher e o rapaz, por último, o pânico a comprimir-lhe o rosto antes de o tapar. O breu era a única visão partilhada pelos três reféns.

O Francês aproximou-se deles com passos silenciosos. Puxou um por um para que se levantassem e prendeu-lhes as mãos atrás das costas com uma abraçadeira de plástico. Nenhum deles era uma ameaça para si, mas o seguro morrera de velho por precaver-se sempre e não só de vez em quando.

Conduziu-os para o exterior com passos cuidadosos e enfiou-os na parte de trás da carrinha. Para os três reféns era uma viagem às profundezas do desconhecido. Só o condutor, a quem nunca tinham ouvido a voz, é que saberia o destino deles. O Francês gostava desta sensação de poder. A vida de outrem nas suas mãos, enquanto ignoravam que havia quem pudesse mais do que ele. Quem pagava, mandava. Olhou para o relógio e viu o temporizador recuar, implacavelmente, para o zero. Faltavam pouco mais de quinze minutos para o fim do prazo. Os camiões ouviam-se a espaços pequenos, uns atrás dos outros, a chegarem para descarregar ou a partirem para levar produtos para outro destino.

Nenhum parava naquele armazém, aparentemente abandonado, mas com uma carrinha velha à porta. O Francês já tinha desmontado um dos mecanismos e dispersado as várias peças pelos vários contentores de lixo nas redondezas. Fora do conjunto não significavam nada a não ser lixo. Apenas uma mão cheia de pessoas em todo o mundo, se tanto, saberiam a que pertencia uma sem ver as outras, e o que se podia fazer com elas.

Entrou para o lugar do condutor e sentou-se. Verificou se os bilhetes estavam no bolso interior do casaco. Estavam. Os passaportes também.

Consultou novamente o temporizador. Faltavam dez minutos para o fim do prazo e para deixar Roma. Só faltava mais uma morte. O pior de tudo era a espera.

 

Há horas para tudo. Para acordar, trabalhar, orar, divertir, descansar...

Tudo é cronometrado até ao mais ínfimo milésimo, desde a entrada no local de emprego até ao início da sessão de cinema, da exposição, das refeições, ao horário dos transportes que não esperam por quem não está e partem sempre no horário certo, nem que estejam vazios. O tempo comanda quem dele depende. O tempo dá-o Deus, dirão uns; porém, na realidade, Ele não pode dar aquilo que não criou. O tempo dá-o o Homem.

O Mercedes avançava a grande velocidade pela Via Nazionale. Sinais de luzes indicavam aos outros condutores que se afastassem e o motorista accionava uma sirene sempre que alguém não cedia a passagem. Ao seu lado ia Cavalcanti, que o autorizara a usar o sinal de emergência e, atrás, Guillermo e Girolamo cercavam Rafael que ia no meio, impávido e sereno.

Ninguém falou durante grande parte do trajecto, atentos ao tiquetaque do relógio que se aproximava das oito da manhã, a hora das decisões, da resolução dos impasses. Os constrangimentos, da incerteza dos acontecimentos e das companhias, dominavam o interior do veículo, pesando o ambiente e manipulando os silêncios a bel-prazer, Apenas um dos passageiros era capaz de constranger o próprio constrangimento e quebrar o silêncio gélido.

- Qual é o plano? - perguntou Cavalcanti, com malícia.

- Deixas-nos tratar de tudo e observas - proferiu Girolamo. - Não te metas, Cavalcanti.

- Entendido - acatou o inspector com um falso tom conciliador. - E se der para o torto?

- Não vai dar para o torto. Seguimos as instruções dos raptores, fazemos a troca e levamos imediatamente o padre Niklas para a embaixada.

- É isso que vamos fazer? - perguntou Guillermo, disfarçando a surpresa. Pensava que a ideia era eliminar a moeda de troca mas compreendia que não se pudesse dizê-lo na frente do polícia.

Girolamo lançou um olhar letal ao homem da espionagem. Quaisquer que fossem os planos reais, Cavalcanti não seria envolvido. Para além disso, e dada a corrente situação, graças às contra-investidas do padre Rafael, com certeza teriam de recorrer à improvisação.

- Dito assim parece fácil - disse o inspector, cuja experiência lhe dizia que não devia acreditar numa só palavra dita pelo intendente.

- Se seguirem o plano, exactamente como eu disser, vai ser - garantiu Girolamo.

Cavalcanti virou-se para trás e focou-se em Rafael, sentado no meio, calado, absorto, como se nada daquilo fosse com ele.

- Que achas, Rafael? Vai ser como ele diz?

O padre encolheu os ombros. Não estava interessado no que nenhum deles tinha para dizer. O painel do tabliê do carro mostrava que estavam a escassos minutos da hora H. Jogara as cartas que tinha em seu poder o melhor que sabia, e naquele momento não podia fazer mais nada a não ser esperar que tudo tivesse o melhor desfecho. O Cardeal Secretário de Estado diria que estava nas mãos de Deus. Pois que assim fosse.

Cavalcanti olhou para o intendente e sorriu maliciosamente.

- Não faças planos para a vida para não estragares os planos que a vida fez para ti.

Girolamo desviou o olhar do inspector e concentrou-se na estrada. Deixaram a Via del Plebiscito e entraram no Corso Vittorio Emanuele lI. Faltavam poucos quilómetros para o destino.

- Espero que a tua gente não falhe, Rafael - ameaçou Girolamo, ainda que parecesse mais um desabafo devido à tensão que reinava no carro.

­ Está muita coisa em jogo.

Os segundos tiquetaqueavam mentalmente nas cabeças de todos, uns a seguir aos outros. Um, dois, três, quatro, cinco, numa cadência infinita, imparável, insensível aos desejos humanos. O motorista abrandou ao atravessar a ponte Vittorio Emanuele II por causa do semáforo vermelho à entrada da Via Pio X e ligou o pisca esquerdo. Os estalidos sonoros matraqueavam o ar, reforçando os tiquetaques do relógio.

Rafael manteve-se em silêncio, ignorando o olhar perscrutador de Girolamo. Não tinha nada para dizer. Ninguém falharia do seu lado, mas isso não augurava um desfecho agradável para nenhuma das partes. O intendente queria Anna e Niklas mortos. Ver-se-ia se, entretanto, não mudaria de ideias.

O Mercedes entrou na Via della Conciliazione, o Obelisco do Vaticano ao fundo, dominado pela fachada da Basílica de São Pedro. Estacionaram junto à praça de táxis da Piazza Papa Pio XII, em frente a São Pedro. O carro da embaixada alemã com os dois agentes da Bundespolizei fez uma travagem brusca mesmo por trás do Mercedes. Um agente da polícia, de meia-idade, usou um apito para chamar a atenção do motorista, e com maus modos mandou-o sair dali imediatamente.

Cavalcanti abriu a porta do condutor logo de seguida e o polícia de trânsito aproximou-se deles.

- Não podem estacionar nesta zona - acenou com um bloco preto. - Ponham-se a andar antes que eu vos multe.

Cavalcanti mostrou o distintivo e um olhar feroz.

- Os carros vão ficar aqui e você vai tomar conta deles – ordenou, com impaciência.

- Com certeza, inspector - acatou o polícia, com inquietação.

- E faça o favor de ser mais simpático para os cidadãos. São eles que nos pagam. Nunca se esqueça disso.

- Com certeza, inspector - voltou a acatar o polícia, baixando a cabeça envergonhado.

Os outros ocupantes do veículo, à excepção do motorista, saíram para a rua e atravessaram a estrada a correr, entrando na praça do lado da colunata direita, com os agentes alemães a fechar o grupo.

- E agora? - perguntou Guillermo, a olhar em redor.

- Vamos para o obelisco, como instruído - disse Girolamo.

- Já está na hora? - perguntou o chefe da espionagem.

- Falta um minuto - sentenciou Cavalcanti. - Eh! Pá! Devíamos chegar atrasados. Não é nada latino chegar a horas, e parece mal.

Guillermo e Girolamo fitaram-no com uma expressão reprovadora. Acabara de dizer um enorme disparate. O inspector era imune a esse género de olhares. O ofício e a vida haviam-se encarregado de vaciná-lo contra eles e alcançara aquela idade em que nada do que os outros pensavam importava minimamente. Afugentara de si o bicho papão da sociedade reprovadora há muitos anos. Na verdade, dissera aquilo para mexer com os nervos dos homens do Vaticano, amostras de polícias que se julgavam acima do comum dos mortais, como ele, só porque eram esquizofrénicos o suficiente para se julgarem privilegiados de Deus, quando, na realidade, se Ele existisse, não diferenciaria uns dos outros.

Àquela hora, a praça já estava cheia de turistas e peregrinos que deambulavam de um lado para o outro admirando as maravilhas arquitectónicas do espaço. Outros ciciavam orações ao bom Deus, na esperança que Ele tivesse tempo para socorrê-los. A fila de visitantes interessados em contemplar os tesouros preciosos da basílica já se avolumava junto às máquinas de raios X, onde tudo tinha de ser escrutinado. Os quatro homens chegaram junto da cerca circular que protegia o obelisco do assédio dos curiosos. Guillermo consultou o relógio. Estavam a bater as oito horas e os sinos da basílica confirmaram com o badalo a anunciar a hora. Terminara o prazo que os raptores haviam dado.

Olharam em redor à procura de alguém suspeito. Podia ser qualquer um. Quem vê caras não vê intenções nem suspeições. As mentes perversas têm rostos exactamente iguais a todos os outros.

Girolamo pegou no braço de Rafael e afastou-o dos outros dois, antes de se aproximar do ouvido do padre.

- Espero que esta não seja mais uma das tuas patranhas, Rafael - ameaçou o intendente. - Onde é que ela está?

- Deve estar a chegar - respondeu o padre, lançando-lhe um sorriso cínico. - Relaxa. Isto está quase a acabar.

Rafael sentiu um cano duro colar-lhe o casaco ao fundo das costas. Era a arma de Girolamo.

- Espero que não inventes nada senão isto não vai acabar bem para ti - ameaçou o intendente com um sussurro nervoso. - Quando ela chegar deixa tudo comigo.

- E agora? - voltou a perguntar Guillermo, alerta.

Os três homens olharam para Rafael à espera de uma resposta.

- Agora esperamos.

 

- Pater Noster, qui es in caelis, sanctificetur nomem tuum. Adveniat regnum tuum. Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra - orou Tarcisio.

O embaixador, a embaixatriz e o porta-voz continuaram a oração em alemão, com afinco, a tentarem alhear-se das horas e com os pensamentos apenas na salvação de Niklas, que esperavam ver entrar na embaixada são e salvo.

O Cardeal Secretário de Estado, ajoelhado, passou à conta seguinte e iniciou uma nova ronda de Ave Marias.

- Ave Maria, gratia plena Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Iesus.

Os outros concluíram em alemão. Os homens do BND mantiveram -se encostados à parede sem pronunciar uma única palavra, apenas a observar a cena surre aI. Nunca tinham visto o embaixador a rezar. Sabiam-no católico, mas não com aquele fervor, agarrado às palavras rituais de contacto com Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra. Talvez situações extraordinárias pedissem um acréscimo na crença e na oração. Afinal de contas, um filho era um filho. Ninguém exigia mais devoção.

Tarcisio comandava a oração, de olhos fechados, com a mão que segurava o rosário sobre eles, mantendo a cadência dos versos que proferia na língua morta que ele provava bem viva. Klaus estava ajoelhado ao lado do Cardeal, com as mãos unidas em prece. Nicole era a única que não repetia os versos em voz alta, ainda que os gritasse mentalmente na esperança que Deus a ouvisse e intercedesse por ela.

Cumpriram o ritual repetindo cada mistério, e se Nicole esperava ficar mais aliviada com a oração, desenganou-se quando se aproximaram do final e sentiu um aperto no peito, quase a sufocá-la, a ansiedade de não saber se o futuro imediato lhe reservava um filho vivo ou morto.

Persignaram-se, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e levantaram os joelhos do tapete. Klaus ajudou Tarcisio a içar os dois metros de corpo com quase 80 anos de idade, e recompuseram os trajes.

- Ainda não há notícias? - perguntou Nicole com o coração de mãe nas mãos.

- Calma, querida. Eles avisam - tentou confortar o marido, abraçando-a.

- Está nas mãos de Deus. Vamos confiar – tranquilizou Tarcisio, que na verdade, esperava que estivesse em mãos mais terrenas, como as de Girolamo Comte.

Num mundo perfeito, salvar-se-iam o rapaz e a moeda de troca. Porém, naquelas circunstâncias tão ignominiosas, provocadas por um inimigo invisível e sem escrúpulos, sem qualquer respeito pela vida humana nem pela santidade da Igreja, era melhor que a mulher saísse de cena. Se isso custasse a vida do filho do embaixador, pois que assim fosse. Deus acolhê-lo­ia nos Seus braços e nada lhe faltaria, pois Ele sabia sempre o que fazia, por muito tortuosas que fossem as Suas linhas.

- Pode providenciar-me um copo de água? - pediu o Cardeal Secretário de Estado.

- Claro - disse o embaixador, fazendo um meneio com a cabeça para os homens do BND.

Um deles levou a mão com o microfone à boca e fez o pedido via rádio, depois voltou à posição inicial, inamovível, como uma sentinela.

- Ainda não há notícias do meu filho? - voltou a perguntar Nicole, desesperada.

Tarcisio olhou para Federico, o responsável pelas comunicações com o grupo que saíra, à procura da resposta. O porta-voz olhou para o relógio e depois para a embaixatriz.

- São oito horas - informou com a voz tensa. - Acabou o prazo.

 

De vez em quando, Roma exigia um sacrifício em nome de Deus, para expiar os pecados do mundo, como o Filho, consubstancial ao Pai, fizera há dois mil anos. A diferença entre esse acto de salvação e os que se lhe seguiram era que Cristo fora quase caso único na aceitação voluntária da entrega da vida para acolher a morte. A maioria dos outros sacrificados nunca vira com tão bons olhos que os pregos lhe furassem a carne, literal ou metaforicamente, como o cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo.

As mãos suadas tremiam com a urgência do medo da morte. Caminhavam devagar, com passos trôpegos e nervosos, as palavras intimidadoras impressas na mente e repetidas incessantemente ao ouvido, através do auricular.

- Entrem na praça e sigam em direcção à colunata mais próxima do Palácio Apostólico - ordenou a voz metálica que saía do minúsculo aparelho.

Apetecia-lhe dar meia volta e fugir dali para fora, refugiar-se na entranha escura de uma gruta nas montanhas e nunca mais sair de lá. O mundo humano era demasiado perigoso para se viver nele. Porém, sabia que não o faria, por muito que o pânico o gritasse na adrenalina frenética que lhe percorria o corpo. Em vez disso Mia optou por dar a mão a Matteo, que olhava para todos os lados em desespero.

- Vamos fugir - murmurou o guia turístico em voz baixa.

Mia colocou um dedo à frente dos lábios a pedir silêncio e chegou-se ao ouvido dele.

- Não ouviste o que o JC disse? - perguntou num cicio, tentando não ser ouvida.

Matteo relembrou as palavras frígidas do velho, quando ainda estavam no carro. JC seguia com eles no banco de trás, quando rumavam sem saber para onde. Matteo estava apreensivo. Sempre estivera. O pé onde lhe caíra o chá quente protestava com um latejo constante e incomodativo. À medida que o carro rolava em direcção ao desconhecido sentia um nó avolumar-se na garganta e sufocá-lo, lentamente, como se estivesse a ser torturado pelo seu próprio corpo. JC transmitira-lhes o que tinham de fazer. Simples: dirigir-se a um local específico na Praça de São Pedro. O resto seria transmitido electronicamente. O manco, que seguia no banco de passageiro da frente, virou-se para trás, e passou uma espécie de botão preto e um telemóvel a Mia. Depois veio a advertência.

- Coloque o auricular no ouvido - ordenou Jc.

Mia observou o pequeno objecto antes de o enfiar no ouvido e segurou o telemóvel que o manco lhe entregou.

- Está a ouvir-me bem? - perguntou JC, para testar o aparelho.

Mia escutou-o dentro do ouvido ao mesmo tempo que o ouvia à sua frente, de viva voz.

- Sim.

- Se por acaso estiverem a pensar em fugir... - sugeriu JC com uma postura séria. - Pensem duas vezes.

O manco tirou uma arma do coldre de ombro e mostrou-a. Retirou-lhe o carregador, cheio de munições, e voltou a fixá-lo no cabo. Destravou-a e apontou-a a um e a outro, que fitavam o cano com os olhos arregalados.

- Garanto-vos que ele é mesmo muito bom com aquele instrumento.

Desviem-se um milímetro do que vos irei ordenar e terão oportunidade de o comprovar.

Nenhum deles estava interessado em levar um tiro e, apesar de a vontade de fugir ser muita, tentando vencer os nervos caminharam ordeiramente em direcção à colunata do lado direito e entraram na praça, passando por turistas que deambulavam, entregues às suas vidas sem perigo.

- Vamos morrer na mesma - proferiu Matteo.

- Não sabes isso.

- Claro que sei.

- Confia em mim, Matteo - disse-lhe ela, mirando-o nos olhos, enquanto os passos maquinais os levavam contra a vontade. - Confia em Deus.

- Os pombinhos deixem a conversa para depois - disse JC ao ouvido de Mia, através do auricular. - Estão a ver a fonte do lado do Palácio Apostólico? Dirijam-se até lá.

- E depois? - perguntou Mia.

- Calma. Não tenhas pressa, filha - respondeu JC, recuperando o tom doce e melodioso.

Mia, a única que ouvia as instruções de JC, guiou Matteo até ao local especificado. As palpitações aumentavam e começavam a latejar nos ouvidos como tambores que rufavam cada vez mais rápido e mais alto a anunciar o que estava para vir, o que quer fosse, seguramente mau.

- Parem - ordenou a voz de JC

Mia puxou o braço de Matteo e ambos cumpriram o mandado. Estavam junto à fonte. Imensas pessoas caminhavam para todos os lados, completamente alheias àquele casal que podia muito bem ser de amigos, ainda que aparentasse mais do que isso.

- Deixe ficar o Matteo nesse lugar, enquanto a Mia vai fazer exactamente o que lhe vou dizer - disse JC pausadamente.

Mia escutou as ordens do velho e olhou para o veronês.

- Vais ficar aqui - comunicou, aflita. - Promete-me que não sais daqui.

Matteo não respondeu.

- Promete-me, Matteo – pediu quase como uma suplica. A mesma resposta.

Mia acercou-se do guia turístico e encostou os seus lábios aos dele, selando um beijo urgente e apaixonado. Trocaram um olhar durante uns instantes como. se se estivessem a ver pela última vez.

- Prometo - acabou por dizer Matteo.

Mia afagou-lhe o rosto e o cabelo, sem tirar os olhos dele, e deu-lhe outro beijo antes de se afastar.

- Que bonito - zombou JC quando Mia se afastou de Matteo.

A freira, que ainda o era, ignorou as palavras do velho e seguiu na direcção que lhe fora ordenada. Um grupo de irmãs brasileiras, filhas da bem­aventurada Virgem Maria, acotovelava-se à frente dela, impedindo-lhe a passagem. Tinham vindo a Roma para ver o Papa, queriam entrar nas quatro basílicas papais e rejubilar com os momentos de oração na Capela de São Sebastião, em São Pedro, onde pensavam que jazia o beato João Paulo II. Só depois de todo esse programa cumprido regressariam à mãe pátria no Brasil e prosseguiriam com a missão de ajudar o próximo e servir a Deus. Mia contornou-as a custo, pois era um grupo grande e desorganizado, pouco experimentado nestas peregrinações intercontinentais. Deu mais alguns passos em frente e viu-os, junto ao obelisco, como JC dissera.

Eram seis homens. Reconheceu imediatamente um deles e sentiu um calafrio na espinha. Era o monsenhor Lucarelli, o mesmo que servira em Trento, no retiro das irmãs da Santa Cruz, e que lhe apontou uma arma à nuca e a obrigou a seguir com ele para Verona onde a deixou com aquelas pessoas que agora a obrigavam a fazer o que não queria... a sentir o que não desejava. Reconheceu outro dos homens de uma das fotografias que estavam pregadas no placar no escritório do quarto onde o monsenhor se hospedou, no retiro. "Observar tudo, não dizer nada" era o lema da ordem. Hesitou por uns instantes e depois avançou, comprimindo os nervos e o medo, e esforçou-se para conseguir desenhar nos lábios um sorriso confiante. Quando chegou junto deles, à excepção de Lucarelli que lhe sorriu, nenhum dos outros lhe prestou atenção. Pigarreou para aclarar a voz, não queria que ela falhasse naquele momento.

- Quem é o padre Rafael? - perguntou timidamente.

Três homens rodearam-na de imediato. Lucarelli deixou-se ficar onde estava e os outros dois mantiveram-se atentos mas sem reacção.

- Quem é a senhora? - perguntou Girolamo, com uma expressão ameaçadora, ainda atrás do monsenhor Lucarelli.

- Quem é o padre Rafael? - perguntou novamente, como se não tivesse ouvido o intendente da Gendarmaria.

- Sou eu - respondeu aquele que ela conhecia como Lucarelli.

Mia entregou-lhe o telemóvel e ele levou-o ao ouvido. Escutou o interlocutor durante uns segundos e depois estendeu-o para Girolamo.

- É para ti.

 

O intendente olhou para Rafael surpreso. Quem seria aquela mulher?

E por que raio é que a chamada era para ele? Pegou no telemóvel num gesto reflexo mas a verdade é que não queria levar o aparelho ao ouvido, não queria saber quem estava do outro lado da linha invisível, ainda que a curiosidade fosse muito grande. Sentia-se fora do contexto, excluído da história principal, e essa falta de controlo causava-lhe uma insegurança a que não estava habituado.

- Para mim? Porquê? Quem é? - perguntou, a pressionar ainda mais a Beretta contra as cestas de Rafael.

- São eles?

O padre fez que não com a cabeça.

- Atende. É o Piccolo.

Girolamo esbugalhou os olhos ao ouvir o nome que Rafael proferira.

- Quem?

- Que raio se está a passar aqui? - intrometeu-se Guillermo, que não estava a perceber nada.

- Ele devia atender - disse Rafael num falso tom de preocupação.

- Há vidas em perigo.

Girolamo levou o telemóvel ao ouvido, contrafeito, e engrossou a voz para conferir mais autoridade.

- Girolamo Comte. Intendente da Gendarmaria Vaticana - apresentou-se num tom grave. - Com quem estou a falar?

- Bom dia, meu caro intendente. Escusava de se apresentar. Sei muito bem quem o senhor é - disse a voz num tom animado e cordial.

- Mas eu não sei quem é o senhor - devolveu Girolamo com maus modos.

- Não imagina o desgosto que acabou de me dar. Não se diz uma coisa dessas a um velho conhecido. Magoa - declarou a voz, com descaramento.

- Mas, enfim, adiante. Estou a olhar para um papel. Sabe o que está escrito nele?

- Como é que posso saber? - respingou o intendente com impaciência. - O que é que isto tem a ver com a moeda de troca?

- Moeda de troca. Que nome tão poético. Já lá vamos, intendente. Seja paciente - respondeu a voz. - O papel para onde estou a olhar tem muito a ver consigo.

- Duvido- contrapôs o homem do Vaticano com indelicadeza.

- É um extracto bancário do Istituto per le Opere di Religione. Se tivermos em conta que vocês dizem que aquilo não é um banco, não percebo porque é que se parece tanto com um.

Girolamo engoliu em seco.

- Este extracto refere-se ao nobre Pondo Giulietta per i bambini non protetti. Fundo Julieta para as crianças desprotegidas. Os movimentos são pequenos, mensais, sempre no mesmo dia... E depois temos um de três milhões na semana passada...

- Onde é que pretende chegar com tudo isso? - interrompeu Girolamo, incomodado, ainda que fizesse uma ideia das reais intenções daquela lengalenga toda.

- Eu acho que o meu caro intendente sabe onde quero chegar. Não sabe?

Girolamo não respondeu, mas a sua respiração estava alterada. O mundo ruía aos seus pés. O plano era tão simples. Trocar a Anna pelo filho do embaixador nada mais. Ele trataria do resto. Os relatores tinham sido eliminados, não havia mais nenhum entrave à beatificação do Santo Padre Pio XII. A sua imagem sairia mais fortalecida e imaculada do que nunca e nada impediria que se restaurasse a memória de Pasqualina, a servidora mais fiel que passara pelos corredores do Vaticano. Ela fora mais um dos sacrifícios que Roma exigia de vez em quando para expiar os pecados do mundo. Ela, como Cristo, fizera-o de boa vontade e sem lamentos.

- Intendente, está aí? - perguntou a voz, interrompendo a cadência de pensamentos dispersos de Girolamo. - A sua estimada esposa nunca lhe perguntou o que vai fazer todos os meses, religiosamente, a Verona, há mais de trinta anos?

Girolamo sentiu-se como se estivesse a ser esfaqueado lentamente, com a lâmina a perfurar a carne e a rodar sobre si mesma para tornar a dor mais lancinante. A quem pertenceria aquela voz e como poderia saber aquelas coisas?

- Presumo que não - continuou a voz. - O emprego no Vaticano cobre toda e qualquer viagem e vamos ser claros, um filho com outra mulher não é o primeiro pensamento que vem à cabeça nestas ocasiões.

- Eu nunca tive nenhum filho com outra mulher - contrariou o intendente.

- Perdoe-me. Eu disse filho? Queria obviamente dizer sobrinho - corrigiu a voz com um cinismo perturbador. - Ando tão distraído ultimamente.

Girolamo sentiu um arrepio perpassar-lhe a coluna.

- Parece recorrente que padres, bispos, até Papas tenham filhos - prosseguiu a voz com sarcasmo.

- Escutem o que eu prego e não olhem para o que eu faço, deve ser o vosso lema. O seu irmão seguiu-o à risca.

- Não insulte a memória do meu irmão - recriminou Girolamo, irado, com as veias a sobressaírem-lhe no pescoço enrubescido, ainda que falasse num tom baixo para que mais ninguém o ouvisse.

- Ele não está entre nós para se defender.

- Cá entre nós, ele andava em muito más companhias.

- O que é que quer dizer com isso?

- Era muito amigo daquela madre que era muito próxima de Pio XII.

Mas a pior companhia era mesmo o Papa Luciani, o Piccolo. Foi isso que Girolamo estava prestes a perder as estribeiras.

- Ele morreu atropelado - explicou o intendente, como se aquele argumento bastasse para encerrar a questão.

- Eu sei. Atropelamento e fuga em Verona, em 1983. Quem é que acha que ia a conduzir o carro?

Girolamo ficou transtornado com aquela revelação.

- Ouça, seu filho da puta, quem é que você pensa que é? Quando eu o encontrar...

- Deixe-se estar onde está, intendente. Mesmo refugiado atrás do padre Rafael, posso matá-lo quando bem entender... como fiz com o seu irmão - sentenciou a voz.

Girolamo sentiu-se desorientado e olhou em redor, sem sair do sítio. A praça estava cheia de peregrinos e turistas, simples curiosos que desejavam admirar a amplitude de todo o conjunto. O abraço fraterno da praça, o olhar bondoso da basílica, em frente, e, do lado direito, como um guarda, o Palácio Apostólico onde tudo se decidia. A voz estava na praça, ou muito perto, e estava a vê-lo. Era uma manobra arriscada mas engenhosa. Um local amplo, repleto de pessoas. Podia ser qualquer um. Se bem que o homem falava com calma, pausadamente, sem som ambiente, sem a pressão de poder ser descoberto. Um grupo de polacos começara a entoar um cântico junto a uma das fontes e nada disso se ouvia pelo telemóvel. Claro que havia maneiras de silenciar esses sons, electronicamente. Outra opção era escolher um local de onde se pudesse observar a praça em segurança, enquanto outro elemento vigiava mais de perto, sem levantar suspeitas. Procurou olhares suspeitos, vigias disfarçados de turistas - tarefa muito difícil. Girolamo sabia que eles eram profissionais. A voz falava com ele num local remoto, seguro, e a restante equipa, que podia muito bem ser só apenas mais um elemento, controlava os movimentos deles na praça, junto ao obelisco bimilenar. Não devia estar muito errado. Era o que ele faria se estivesse na mesma posição.

- Vamos acabar com isto - pronunciou Girolamo em tom de ameaça.

- Querem o padre Niklas? Onde está a moeda de troca? Tragam-na agora ou o filho do embaixador morre.

Guillermo e Cavalcanti fitaram o intendente, surpresos. O que é que ele queria dizer com aquilo? Que raio? Girolamo parecia desorientado. Tinha o rosto suado e a voz tensa.

- O que é que se está a passar aqui? - perguntou Cavalcanti, levando a mão ao coldre de ombro que estava dentro do casaco.

Rafael levantou a mão e exibiu uma expressão séria para o inspector.

Era melhor que ninguém se precipitasse. Cavalcanti desistiu do gesto. Esperava que o padre soubesse o que estava a fazer.

- Eu sabia que não me tinhas contado a história toda - resmungou o inspector, desiludido com Rafael. - Onde está a tal moeda de troca?

Rafael sorriu.

- Bem longe.

 

O carro avançava rapidamente pela A24. Ninguém falou durante toda a viagem.

Giorgio, o belo, carregou no acelerador enquanto deixava a casa grande de Torano para trás. Só ele sabia para onde iam e ninguém se atreveu a perguntar-lhe. Todos tinham muitas questões que queriam ver esclarecidas, especialmente Jacopo, mas não queria fazê-las à frente de Norma.

Sempre a poupara a todas as questões profissionais e pretendia continuar a fazê-lo. O monsenhor era secretário pessoal do Santo Padre, a primeira pessoa que ele via quando acordava e a última pessoa de quem se despedia à noite antes do descanso. Certamente as acções dele não acarretariam nada de maligno, se bem que o historiador sabia muito bem o que acontecia àqueles que enfrentavam a Igreja.

Apanharam um pouco de chuva na auto-estrada e um acidente entre dois pesados de mercadorias que atrasou a viagem em cerca de vinte minutos, criando algum constrangimento durante o pára e arranca.

Muito se tinha dito durante a noite. Revelações, segredos, confirmações.

Histórias de vidas presentes e passadas, memórias funestas que torturavam quem as vivia. Três gerações sofridas, avó, mãe e filha, famílias postiças que acobertavam os frutos do pecado, se é que o eram aos olhos do bom Deus.

Depois de passarem o local do acidente, onde um dos camiões tinha galgado o separador central e cortava as vias centrais nos dois sentidos, misturaram-se no fluxo que levava a Roma, já bastante denso ainda que tal não impedisse uma circulação rápida.

Norma estava a leste de tudo. Jacopo acordara-a a meio da noite, no apartamento deles na Via Britannia, para levá-la para aquela casa enorme no meio do nada, pedido expresso e urgente de Rafael, e depois voltara a acordá-la, quando já dormia o seu profundo segundo sono, para mais uma viagem não se sabia com que destino. Como se não bastasse, deixaram o carro da família em Torano para acompanhar aquele belo espécime do género masculino, porém comprometido com o Criador, e a velhota airosa sentada ao seu lado que sorria com condescendência sempre que Norma olhava para ela. A esposa do historiador tinha pouco de idiota. Reconhecia um sorriso nervoso quando o via. Ali havia marosca da grossa e ninguém lhe queria contar o que se estava a passar. Nem o marido, nem o padre bonitão, nem a senhora de idade. Estavam todos comprometidos uns com os outros e deixavam-na de fora de propósito como se não fosse pessoa digna de guardar segredos. O marido haver-lhe-ia de contar quando chegassem a casa... a bem ou a mal.

O toque de um telemóvel soou quando passavam na Piazza di Porta Maggiore. O monsenhor atendeu e escutou durante uns segundos o que lhe foi transmitido, e depois desligou.

Jacopo apercebeu-se da mudança de velocidade e da condução mais agressiva como se, de repente, houvesse um sentido de urgência ainda mais premente.

- Está tudo bem, Excelência?

Giorgio respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça sem tirar os olhos da estrada.

Minutos depois entraram na cidade e o assistente encostou junto a uma praça de táxis. Parecia alvoroçado.

- Aqui já apanho um táxi - avisou o monsenhor, abrindo a porta e saindo do carro.

- Como assim? - perguntou Jacopo, saindo também.

Giorgio abriu a mala do carro e retirou uma pasta que abriu para mostrar ao historiador.

- Aqui dentro tem um passaporte diplomático e um cartão de crédito de empresa. - Puxou de uns cartões com as mãos a tremer.

- Isto são códigos de acesso a uma conta numerada de um banco em Frankfurt.

Levante o dinheiro todo. O Rafael explicou-lhe o resto?

- Sim. Ele disse-me o que tenho de fazer. Levá-la a Frankfurt - disse Jacopo.

- Exactamente. Entregue-lhe o dinheiro e depois pode regressar. É uma quantia mais que suficiente para duas vidas.

- Mas ela já não é livre há tanto tempo. Saberá o que fazer?

- Certamente saberá. Esta também é a vontade do Santo Padre. Fique com os diários da Pasqualina. Quando os tiver estudado, diga-me para eu os recolher.

Jacopo resignou-se. Fosse feita a vontade do sucessor de Pedro. Lavaria as suas mãos como Pôncio Pilatos.

Giorgio abriu a porta de trás do carro, do lado onde estava Anna.

- Foi um prazer incomensurável conhecê-la, Anna - disse em tom de despedida. - A minha viagem termina aqui. A vossa vai continuar por mais uns largos quilómetros. O doutor Sebastiani tem todas as instruções.

- Obrigada, meu querido - agradeceu Anna com uma lágrima a soltar-se do olho. - Espero... - começou a dizer mas depois não continuou.

- Em meu nome pessoal, do Santo Padre e do padre Rafael, desejo-lhe as maiores felicidades.

Anna estava comovida e não disse mais nada.

Giorgio fez um meneio com a cabeça para cumprimentar Norma e fechou a porta.

- Tenho uma pergunta para lhe fazer – disse Jacopo, baixando a voz, antes de entrar no carro e empreender a longa viagem. – Se está em contacto tão directo com o Rafael, porque é que ele não me disse nada? E para que me chamou ao seu gabinete a meio da noite? Poupava-me uma viagem a Veneza.

O secretário pontifício sorriu.

- O padre Rafael disse-me para jamais revelar o seu paradeiro a quem quer que fosse. Só o doutor Sebastiani é que devia alertá-lo se alguma coisa corresse mal, como correu. Seria essa a senha dele, digamos assim. - Acercou-se do ouvido do historiador e envergou um tom cúmplice. - O monsenhor Lucarelli não foi ao norte apenas por razões profissionais.

Jacopo manteve-se pensativo a processar as palavras do belo Giorgio.

Aquela menção ao monsenhor Lucarelli era mais que suficiente. Tanto secretismo. Tantas intrigas escondidas em fundos falsos com objectivos próprios e motivos insondáveis. Tanta maldade em nome de Deus. Estava farto.

- Fomos todos peões nas mãos do Rafael, doutor - explicou o secretário.

Havia ainda muita coisa que não compreendia, mas não competia a Giorgio elucidá-lo. Levaria a filha do Papa para fora do país como solicitado. Fora esse o favor que Rafael lhe pedira. Ela adoptaria a nova identidade que o passaporte lhe concedia e teria dinheiro suficiente para viver bem o resto da vida. Anna merecia esse gesto. A liberdade era inerente ao ser humano e ela fora privada desse direito fundamental. Fora um sacrifício de Deus durante demasiado tempo.

- E o que faço ao carro?

- Deixe-o em Frankfurt. Eu trato de o recuperar. Não conte a ninguém o que ouviu esta noite nem o que o Rafael lhe pediu para fazer – proferiu Giorgio.

Jacopo não respondeu. O silêncio era, em si, uma resposta.

- Está tudo bem com o Rafael, Excelência? - quis saber Jacopo.

Giorgio franziu o sobrolho. Não lhe queria contar.

- O nosso amigo liga-lhe logo que possível, caso contrário eu mesmo lhe telefono.

Jacopo entrou no carro para o lugar do condutor e esperou que Norma passasse para o banco da frente. A viagem seria longa, cansativa, exasperante, um último sacrifício em nome Dele. E bastava. Ele que se governasse, sem mais oferendas.

Giorgio ficou a ver o carro partir até o perder de vista. Anna Lehnert desaparecera. Anna Pacelli nunca existira. Queria sorrir mas não conseguia.

O telefonema que recebera deixara-o aflito. Enfiou-se no banco de trás do táxi e deu a morada ao taxista.

Espero que te safes, Rafael.

 

- Onde está a moeda de troca? - voltou a perguntar Girolamo para o telemóvel, visivelmente transtornado. - Traga-ma já ou mando matar o filho do embaixador.

- Com certeza, meu caro intendente - concordou a voz num jeito submisso. - Vire-se na direcção da fonte à sua esquerda.

Girolamo estava de costas para o obelisco e para a basílica, junto à barreira circular que o protegia dos transeuntes, e virou-se na direcção indicada pela voz. A fonte, a poucos metros dali, estava seca, mas rodeada por peregrinos e turistas que vagueavam ou simplesmente se deixavam estar a admirar o espectáculo visual que a praça oferecia daquele ângulo. Ao fundo, numa das extremidades da colunata, a fila de visitantes que tinham de passar pelo escrutínio do raio X para poderem ter acesso ao interior da basílica era cada vez maior. Todo o cuidado era pouco e a basílica, o templo mais importante do mundo católico, tinha de ser mantida fora do alcance das mentes indiferentes ao valor sagrado da vida humana e do seu património.

- Siga o traço no chão que liga a fonte ao obelisco - continuou a voz.

- Vai encontrar alguns discos. Um deles é o do centro da colunata.

Girolamo sabia a que discos a voz masculina se referia. A praça elíptica não consistia somente numa obra arquitectónica e de engenharia. Era também uma obra matemática. Poucos turistas o sabiam mas se se fixassem naquele disco e olhassem daquele ponto para a colunata, o gigantesco braço composto por fileiras de quatro colunas dóricas, umas atrás das outras, escondia, magicamente, as três colunas traseiras e dava a ilusão de óptica de existir apenas uma fileira frontal. Bastava dar um passo ao lado para desfazer essa ilusão que Bernini criara.

- A moeda de troca está em cima desse disco - anunciou a voz.

Girolamo seguiu a linha com o olhar e encontrou o disco e a moeda. O coração partiu-se-lhe ao ver o sobrinho Matteo com os olhos medrosos centrados nele. O olhar era igual ao do pai. Desde que Rafael pronunciara o nome Piccolo que sentira o solo desfazer-se por debaixo de si.

- Está a ver a testa do seu sobrinho? - perguntou a voz.

Girolamo fez que sim com a cabeça, sem responder oralmente, sem responder oralmente.

- Está a ver a testa do seu sobrinho? – repetiu a voz num tom gélido.

- Sim. Estou.

- Faça o que tiver a fazer para libertar o jovem Niklas ou verá abrir-se um buraco na testa do seu sobrinho como aconteceu com os relatores.

Tem sessenta segundos.

Girolamo olhou em redor. Afastou-se de Rafael e dos outros dois, tentando vislumbrar o carrasco de Matteo, mas era uma tarefa inglória, ingrata... impossível. Cavalcanti e Guillermo avançaram para ele mas Rafael barrou-Lhes a passagem.

- Deixem-no em paz. Tem uma decisão difícil para tomar - explicou o padre.

Cavalcanti lançou um olhar fulminante a Rafael.

- Vais ter muito que explicar, senhor padre.

Girolamo continuava desorientado. A respiração estava alterada. Levou as mãos ao rosto e aos olhos. O suor misturava-se com as lágrimas dos segredos revelados. Sentia-se um farrapo fracassado. Falhara ao irmão... falhara a Anna.

- Só tens quarenta e cinco segundos, Comte - informou Rafael.

- Eu... eu... sou apenas um peão.

O intendente queria correr em direcção ao sobrinho, salvá-lo de tudo aquilo que estava a acontecer. Alertá-Io para o perigo que corria. Era uma vítima, desde que nascera.

Quarenta segundos. O mais certo era que os matassem aos dois se ele tentasse socorrer Matteo. Estava tudo perdido.

Trinta segundos. Matteo não o conhecia. Girolamo não o via desde criança, desde os tempos em que ia levar o dinheiro a Úrsula, todos os meses, e o via brincar na sala ou no quarto. Agora que o conseguia ver bem, ali a algumas dezenas de metros, conseguia aperceber-se das semelhanças fisionómicas com o irmão que falecera há trinta anos.

Vinte segundos. Matteo não podia continuar a pagar pelos erros dos outros. Já o fizera demasiadas vezes. Pagara um preço muito alto por ser filho de quem era.

Dez segundos. Mirou mais uma vez o rapaz já homem que vencera pelos próprios meios na bela Verona de Romeu e Julieta.

Cinco segundos. Tirou o telemóvel do bolso e fez a chamada.

Rafael disfarçou o sorriso e o alívio que sentiu por ver Girolamo ligar para quem devia, para acabar com aquela situação. Pensou em Sarah e em como ansiava vê-la novamente sã e salva. Girolamo desligou e voltou a guardar o aparelho no bolso.

- E agora? - perguntou o intendente para o outro telefone.

- Queremos ver o jovem padre, obviamente.

Rafael e Girolamo olhavam para todos os lados. Os agentes alemães também. Os turistas enchiam a praça mas os olhos deles estavam treinados para descortinar alvos no meio das multidões.

- Onde é que eles estão, Comte? - perguntou Rafael, impaciente.

O intendente nada disse. Sabia o que estava em jogo. Voltou a mirar que mal imaginava o que estava a acontecer, ainda que o medo estivesse bem estampado no seu rosto.

- estão ali – disse Rafael assim que os viu passar a abertura das grades que separava o Vaticano de Itália, pelo lado da Via Paolo VI.

Girolamo dirigiu o olhar na mesma direcção que Rafael e viu o filho do embaixador e Sarah correrem apressados em direcção a eles.

- Que mais pretende de mim? - perguntou o intendente para o telemóvel.

- Desejo-lhe os bons dias - cumprimentou com menosprezo.

- Isto não vai ficar assim - advertiu o intendente.

- Vai sim - retrucou a voz. - A não ser que queira que eu revele ao seu sobrinho quem era o pai e que toda a sua infância e adolescência foram pagas por um fundo criado pelo Piccolo e com o conhecimento de João Paulo II e Bento XVI. E que usou três milhões de euros desse dinheiro para pagar a um assassino profissional. Entretanto, passe o telefone a Mia, por favor.

Girolamo fitou Mia com desdém e ela sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Ela segurou o telemóvel na mão.

- Olá, novamente, minha querida. Faça o favor de levar o Matteo para bem longe daí - disse a voz no auricular.

Mia engoliu em seco, nervosa.

- E levo-o para onde?

Mia ouviu a gargalhada rouca do outro lado da linha.

- Leve-o para onde desejar, filha. Espero que não seja para um convento.

Seria um desperdício para ambos.

Mia não queria acreditar no que acabara de ouvir. Sentia o peito mais leve e um alívio enorme. Sorriu para Matteo e encaminhou-se para ele. Depois pensou se não seria JC a iludi-la antes do golpe fatal, e olhou em redor atemorizada, mas continuou na direcção do veronês. Rafael viu o rosto de Sarah, cansada, a poucos metros dele. Os olhos encontraram-se e comunicaram em silêncio. Estavam bem. Sarah não conteve a vontade de o abraçar e ele correspondeu.

Niklas juntou-se ao grupo, ainda muito confuso. Só faltava Mandi.

Quando foram libertados da carrinha deram-lhes um post-it branco que Sarah entregou a Rafael depois de o abraçar.

Sigam até ao obelisco. Não falem com ninguém até chegarem lá, ou serão punidos. A Mandi fica comigo. Tenho outros planos para ela. Cumprimentos ao padre Rafael. Bravo. Muito bem jogado. Espero que nos voltemos a encontrar.

O segundo gesto de Sarah foi dar-lhe um estalo.

- Quando é que isto termina? Não podemos viver em paz?

Niklas não tirava os olhos de Rafael, como se estivesse petrificado. Finalmente, chegava à presença daquele que o gerara. Imaginara aquela cena inúmeras vezes na sua cabeça, milhares e milhares de repetições mentais, nenhuma igual à que acabava de acontecer. A vida real surpreendia sempre. Rafael concedeu-lhe apenas um olhar indiferente. Mais nada. Os agentes da Bundespolizei rodearam o rapaz, um falava-lhe em alemão, sem que ele prestasse atenção, enquanto o outro levou um telemóvel ao ouvido para informar o embaixador.

O padre olhou para o intendente que contemplava Mia e Matteo, junto a uma das fontes. Beijavam-se. O pior tinha passado. Só faltava tratar de Girolamo.

- Não foi assim tão difícil, pois não? - ironizou Rafael, aproximando-se do intendente.

- Vocês têm muita coisa para explicar - disse Cavalcanti com maus modos.

- É verdade - disse Guillermo, espantado por concordar com o inspector. - Que raio se passou aqui? Onde está a moeda de troca?

- Longe - repetiu Rafael, sem desviar o olhar de Girolamo.

O intendente fez um sorriso hipócrita.

- Ainda não percebeste nada, pois não? Eu sou apenas um peão.

- Peão ou não, o refém foi libertado.

O resto aconteceu muito rapidamente. Não se ouviu o silvo do disparo, apenas os gritos de turistas ingleses que viram Girolamo cair de costas desamparado. As pessoas juntaram-se imediatamente em redor do homem que desconheciam ser o intendente da Gendarmaria. Rafael debruçou-se sobre ele. Tinha sido alvejado no peito.

- Afastem estas pessoas - ordenou. - Chamem uma ambulância - gritou. - Calma, Comte. A ajuda vem a caminho.

Os agentes que estavam na praça acorreram ao local do crime, junto ao obelisco, e afastaram as pessoas.

- Fechem a praça – proferiu Guilhermo com autoridade.

Mais agentes aproximaram-se vindos de todos os lados para ajudar a lidar com a situação. Começaram a esvaziar a praça rapidamente, afastando peregrinos, turistas e curiosos que entretanto se acercavam do local. As pessoas que estavam dentro da basílica foram impedidas de sair até ordem em contrário.

- Manda fechar o trânsito na Piazza Papa Pio XII, Via della Conciliazione, Via Paolo VI, Largo del Colonnato e Via di Porta Angélica - pediu Guillermo a Cavalcanti. - O mais rápido possível.

O inspector considerou o pedido do homem da espionagem durante uns instantes e depois contactou a central.

Rafael não largou Girolamo, que estava muito queixoso mas consciente.

- Bastava cumprires uma ordem - acusou o intendente. - Uma ordem simples.

- Sabes que nunca iria enviar uma inocente para a morte - explicou Rafael, com condescendência.

- A ideia nunca foi matá-la. Não percebeste nada, pois não? Eu estou do lado da Anna. És um cabrão, Rafael. Mereces morrer como eu. Sabes demais.

Um esgar de dor percorreu o peito de Girolamo e fê-lo dar um esticão.

- A ambulância está a chegar - confortou-o o padre quando já se ouviam as estridentes sirenes ao longe.

- Os segredos morrem connosco - retrucou entre espasmos.

Daquela vez o som foi mais audível e a confusão maior. Parecia o estalido de um foguete de artifício. O último acto consciente de um moribundo condenado antes de cair no coma. Rafael levantou-se e deu uns passos incertos em direcção a Sarah antes de cair no seu colo.

Cavalcanti olhou para Girolamo e viu-lhe a Beretta na mão tombada.

Tirou a sua do coldre e avançou para o intendente com a arma em riste, pronta para disparar à mínima ameaça. Pontapeou a Beretta de Girolamo para longe sem que o intendente reagisse. Debruçou-se sobre ele e colocou-lhe dois dedos no pescoço à procura da pulsação. Esperou uns segundos. Estava morto. Disparara a arma antes do último suspiro. Se Deus existisse era bom que lhe batesse a porta do céu na cara e o recambiasse para o caldeirão do inferno.

Sarah abraçava Rafael, que tinha a cabeça em cima do colo dela. Ela chorava e gritava, inconsolável. Nem um momento de paz. O tiro acertara no abdómen. A camisa estava empapada de sangue.

- Peçam ajuda - gritou a jornalista para todos e ninguém, desesperada.

- Peçam ajuda!

Niklas aninhou-se junto dela com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Não esperava ter uma reacção dessas por quem o rejeitara. Não merecia um instante de mágoa nem de dor, só desprezo, mas Niklas não conseguia. Havia qualquer coisa nele que o fazia admirá-lo. A tal aura misteriosa, um instinto protector invisível. Mas nada o preparara para o ver assim, jazido, inanimado, quase morto. Os agentes da Bundespolizei agarraram em Niklas e arrastaram-no em direcção ao carro. Ordens do embaixador.

- Ele é o meu pai - berrou para eles como se verbalizá-lo o tornasse mais verdadeiro. - Deixem-me. Ele é o meu pai.

Mia assistia com Matteo a tudo aquilo da grade que separava Itália da Santa Sé. Podiam ter sido eles as vítimas. Aquela mulher desesperada com a cabeça do monsenhor Lucarelli no regaço podia ser ela a chorar o corpo do veronês. Agentes da polícia começaram a afastar as pessoas da grade.

Tinham de recuar para lá da Piazza Papa Pio XII, bem longe daquele cenário. As autoridades não queriam proporcionar mais espectáculo. Centenas de pessoas cumpriram a ordem, abandonando o local ordeiramente. A visita tão desejada ao centro do mundo católico teria de ser adiada.

- Aquele homem - proferiu Matteo num estado pensativo.

- Qual?

- Aquele que levou o segundo tiro.

- O monsenhor Lucarelli.

- Foi ele que me arrastou de casa.

- Eu sei. Também foi ele quem me tirou do retiro - explicou Mia.

Não percebia os estranhos desígnios Dele. Por um lado, nunca teve tanto medo na vida, e viu coisas terríveis que jamais imaginara nos seus piores pesadelos. Por outro, conhecera aquele rapaz que estava ao seu lado e...não sabia com que novas sensações lidava. Sentia uma sensação boa, borboletas que a arrastavam para um estado... Bem, como dizer, de amor?

O tossir de JC ao ouvido retirou-a do torpor cogitativo em que entrara.

Mia sentiu um arrepio de medo.

- Porque é que o senhor fez isto? - quis saber a freira quando entrava na Via della Conciliazione com Matteo ao seu lado.

JC deu uma gargalhada alta que a fez levar a mão à orelha. O sentido de humor dele era esquisito.

- Não fui, minha querida Mia. Pode desfazer-se do auricular e é melhor que saiam daí rapidamente – disse num tom sério - Fomos todos enganados.

 

Sentiu dor, muita dor, apreensão, ansiedade, medo que se misturou com uma dose gigantesca de raiva e fúria. Passou os primeiros dias à porta dos cuidados intensivos, no hospital. Os agentes da Gendarmaria tinham ordens para não deixar entrar ninguém e ela não foi autorizada a vê-lo. Perguntou aos médicos sobre o seu estado e eles tentaram tranquilizá-la, mas forneceram-lhe informações escassas. Dormiu em cima dos bancos e comeu pouco. Sarah não queria deixar Rafael, ainda que não pudesse vê-lo.

Ao terceiro dia chegou um clérigo muito bonito e os agentes da Gendarmaria concederam-lhe acesso ao interior da área de cuidados intensivos, onde teve de vestir uma bata e uma máscara. Quando ele saiu Sarah dirigiu-se a ele.

- Desculpe. Viu o Rafael?

- O padre Rafael? Sim, vi. Quem é a senhora? - perguntou cordialmente.

- Chamo-me Sarah. Sou amiga de...

- Sei quem é. Eu sou o Giorgio, secretário do Santo Padre. Ele está sedado. Os médicos fizeram tudo o que podiam. Agora é com ele. Vou incluí-lo nas minhas orações. - Colocou-lhe uma mão terna no ombro.

­ Ele é forte. Vai recuperar.

As lágrimas escorriam pelo rosto da jornalista. Era bom ouvir aquelas palavras ao fim de três dias sem notícias. Giorgio deu-lhe um abraço antes de sair, comprometendo-se a dar-lhe notícias todos os dias.

- Vá para casa. Descanse. Coma alguma coisa. Eu mantenho-a informada.

Sarah não saiu da policlínica que tantas vezes visitara para ser tratada do seu mal. Também Rafael, se Deus existisse, haveria de ter desfecho igual ao seu. O problema é que ela não acreditava Nele. Talvez essa descrença fosse pecado e Ele a castigasse, mas ela não conseguia crer num Deus castigador. De qualquer maneira, deu por si na capela da policlínica, ajoelhada no genuflexório, perante a figura de Cristo, as mãos juntas numa prece pela salvação daquele que amava. Nem sabia o que dizer-lhe. Como se falava com Deus? Era preciso argumentar sobre as virtudes e os escassos defeitos, as boas acções e qualidades, em detrimento do menor número de pecados? E depois ele pesaria os prós e os contras e tomaria a decisão favorável ou não, segundo esses critérios? Desistiu de rezar. Não sabia, não acreditava.

No quinto dia viu chegar uma mulher loira ao piso dos cuidados intensivos com Niklas. Quando o jovem padre a viu acercou-se dela.

- Esta é a Sarah, mãe.

A mulher cumprimentou-a com um sorriso amarelo e apresentou-se.

- Muito prazer. Nicole. Sabe alguma coisa do Rafael?

- Está estacionário.

Nicole lançou um olhar preocupado ao filho.

- Tens a certeza que é isso que queres?

Niklas respondeu afirmativamente com um meneio com a cabeça.

Depois de Nicole falar com os médicos, o filho entrou na área de cuidados intensivos onde também ele iria vestir uma bata e colocar uma máscara para não contaminar a zona esterilizada.

Nicole sentou-se ao lado de Sarah. Ficaram em silêncio durante alguns minutos que mais pareceram horas.

- A senhora é familiar do Rafael? - perguntou a embaixatriz.

- Apenas amiga.

- Ele sempre foi tão frio e seco que nunca imaginei que fosse capaz de fazer amigos.

Sarah soltou uma gargalhada que contagiou Nicole. Era verdade. À excepção do físico, não tinha nada que, supostamente, cativasse. Ou talvez isso em si fosse cativante. Tinha uma aura misteriosa, nunca se sabia o que ele pensava, tinha uma agenda só dele e, como se não bastasse, era padre.

- O Niklas disse-me que é filho do Rafael - Iançou Sarah.

Durante os primeiros dias Sarah não pensou nisso, guardou-o no baú mental onde se coleccionam as informações inócuas ou não prioritárias.

Depois lembrou-se e a primeira coisa que fez foi pensar que sonhara. Não podia ser verdade. Esta visita trouxera-lhe a confirmação.

Nicole ficou calada e não respondeu logo.

- É verdade. Éramos novos, acreditávamos que podíamos mudar o mundo. Ninguém pode mudar nada. Acabamos sempre por nos vergar às vontades do que já foi determinado - disse, resignada. - Não bastava o Niklas querer conhecê-lo. Ainda quis ser padre.

Foi a vez de Nicole dar uma gargalhada gutural que Sarah acompanhou apenas por simpatia. A embaixatriz não ria porque tinha graça, ria para não chorar. Todos os homens da sua vida a feriam de uma maneira ou de outra.

Niklas saiu da área de cuidados intensivos poucos instantes depois, visivelmente consternado. Os olhos vermelhos mostravam as marcas do choro compulsivo.

- Está sedado - revelou. - Não sabem ainda quando o acordarão.

Nicole abraçou o filho.

- Anda. Vamos embora. Voltas noutro dia.

A embaixatriz encaminhou-se para a saída mas depois fez um afago no cabelo do filho e voltou para trás para se dirigir a Sara.

- Fuja enquanto é tempo e não olhe para trás Sarah. A Igreja impede-os de amar - proferiu a mulher em jeito de aviso. – ele vai magoá-la.

Sarah engoliu as palavras de Nicole em silêncio enquanto a viu sair abraçada ao filho entristecido. Pareciam lâminas afiadas que lhe perfuravam o coração e lhe vazavam a esperança. Sentiu-se uma idiota à espera do amor.

Chorou como se Rafael tivesse sucumbido aos ferimentos e regressou ao hotel nesse mesmo dia. Adeus, Rafael.

 

A mente levara-o para muitos locais conhecidos e desconhecidos, mundos novos e antigos, memórias dos que ainda estavam vivos e dos que já haviam partido. Imerso no desvario, ampliou os devaneios sem parar de deambular pelos cantos e recantos esconsos dos palácios e jardins, nos nichos que envolviam as estátuas conspiradoras que guardavam os segredos e as intrigas de quem passava e se julgava a salvo de ouvidos conjuradores.

Pelo meio encontrou a mãe, ou assim lhe pareceu. Nunca a conhecera. Na infância passara por muitos orfanatos, tutores e famílias de acolhimento, muitas mães ou nenhuma, conforme a perspectiva, mas sentia que aquela era ela, aquela que pegava nele ao colo e lhe sorria no jardim como se não houvesse mais mundo a não ser aquele bebé, só ele, o centro de tudo, como uma mãe consegue fazer, a única, a verdadeira. Teve conversas com mortos que o visitaram, vestidos com o último traje com que os vira em vida.

Pensou que o vinham buscar e escoltá-lo, em cortejo de honra, até à cova do inferno, mas apenas queriam conversar, passar algum do tempo eterno com ele. Passou também muitas tardes deitado ao sol na praia, embalado pelo som das ondas, enquanto alguém passava a correr e o sujava com grãos de areia e depois ria à gargalhada. Levantava a cabeça para ver quem era mas o sol cegava-o e impedia-o de descobrir de quem se tratava. Quando é que teremos paz? Ouviu perguntar do nada, do vazio, pergunta muitas vezes repetida, tantas que se sentia bombardeado, perseguido por aquela voz que, a qualquer altura do dia ou da noite, na praia ou quando discutia efusivamente com um dos mortos de visita, lhe perturbava o raciocínio. Quando é que teremos um momento de paz? Chegou a gritar para que se calasse, correu atrás dela apesar de não saber de onde vinha, procurou até à exaustão sem nunca a encontrar. Apenas um lenço que esvoaçava ao vento. Sentia um ardor na parte abdominal que às vezes doía intensamente e chegava a sangrar. Tentava estancar a ferida com tudo o que tinha à mão mas sem sucesso, até que, finalmente, acordou. Quando é que teremos paz, Rafael?

Rafael levou algum tempo a habituar-se à claridade do quarto e mais ainda a aperceber-se da presença dele. Um agente uniformizado da Gendarmaria Vaticana estava sentado numa cadeira virada para a cama. Seguramente havia outro agente do lado de fora da porta. O mais cero é que tivesse avisado via rádio que ele acordara, mal abrira o primeiro olho.

Rafael sentia-se fraco como nunca antes se sentira, um ardor incomodativo na zona abdominal, que estava tapada com gaze em toda a extensão, intensificava-se quando se mexia. Tinha um cateter vascular numa das mãos e um dreno na barriga. Os médicos falaram da sorte que teve e de como uns centímetros ao lado provocariam outro desfecho menos feliz. A mão de Deus sempre desviava as balas, ainda que infelizmente não as evitasse.

As primeiras visitas chegaram ao final da manhã e trouxeram os rostos austeros e severos de Tarcisio, Federico e Guillermo. O piemontês não perdeu tempo a impor a sua condição. Persignou-se, beijou a cruz de ouro que trazia ao peito e, numa manifestação de poder, estendeu a mão anelada para que Rafael a beijasse. Era bom que se esclarecessem os papéis novamente e que não houvesse dúvidas sobre quem devia vassalagem a quem.

O agente da Gendarmaria que vigiava o recluso foi convidado a sair do quarto, assim como o assistente do Cardeal Secretário de Estado depois de arrastar a cadeira para junto do paciente para Tarcisio se sentar.

- Está em condições de me explicar o que aconteceu? - perguntou Tarcisio depois de se sentar.

Rafael tentou puxar-se para cima para encostar a cabeça na cabeceira da cama e não parecer tão combalido nem vulnerável, mas perante tanta dor desistiu.

- O Tomasini poderá esclarecê-lo melhor que eu. Testemunhou tudo e não levou um tiro - respondeu Rafael com azedume, a voz a sair-lhe muito rouca.

Tarcisio olhou para o chefe da espionagem.

- Não estou a falar do que aconteceu na praça. Esse lamentável episódio já foi visto e revisto de todos os ângulos - disse o piemontês, que também falava com alguma acidez. - Refiro-me a tudo. Ao que parece o Rafael estava muito mais bem informado que todos nós, e presumo que se esqueceu de reportar alguns factos ao seu superior.

- Quando é que tomaste conhecimento que o Comte planeava raptar o filho do embaixador e eliminar os relatores? - reforçou Guillermo, apesar de saber que Rafael entendera muito bem, à primeira.

Rafael levou uma mão aos olhos e esfregou-os como se o esforço para recordar fosse muito grande.

- Mais ou menos na mesma altura em que soube que o irmão dele deixara um filho em Verona e um fundo no IOR, tutelado por Comte, para acautelar o futuro do rapaz.

- E isso foi quando?

- Há cerca de três semanas.

Tarcisio inclinou-se para a frente e pousou as mãos sobre a cama.

- E quem lhe contou?

Rafael hesitou antes de responder, ou pelo menos assim pareceu ao Cardeal Secretário de Estado. Podia estar apenas a organizar as ideias. Afinal, tinha acordado há poucas horas de um sono profundo de vários dias em que passara por diferentes estados de saúde. Optou por dizer apenas uma parte da verdade para variar.

- O secretário pontifício.

- O Giorgio?

Os três homens entreolharam-se surpresos. O secretário do Papa era demasiado oblíquo e imiscuía-se em assuntos que não lhe diziam respeito.

Desde que Bento assumira funções que ele cuidava de todos os dossiês que diziam respeito ao Santo Padre, por vezes invadindo territórios que, legalmente, pertenciam à esfera do Secretariado ou da Cúria, e descurando todas as formalidades entre departamentos. Tarcisio não gostava dele e esta revelação só lhe dava mais motivos.

- Alguém tem de travar esse homem - disse Federico, que também desconfiava dos métodos escusas e dúbios do belo secretário pontifício.

- Porque é que o Comte cometeu este acto hediondo? - quis saber o Cardeal Secretário de Estado.

Rafael sorriu. Essa era fácil de responder.

- Terá de lhe perguntar a ele.

- Não sejas impertinente, Rafael- atalhou Guillermo num tom conciliador. - Colabora, por favor. É melhor para ti.

O padre franziu o sobrolho. O problema de Guillermo era a sua postura subserviente. Claro que isso fazia dele o homem certo para chefiar a Santa Aliança e, simultaneamente, o mais perigoso. Para Guillermo Tomasini a razão estava sempre com a Igreja Católica Apostólica Romana, com todas as suas inúmeras virtudes e escassos defeitos. Era um executante, um cumpridor, e não um inquiridor. A sua lealdade conhecia somente um dos lados e desprezava totalmente o contexto e, por consequência, a verdade. Aquele reparo final, É melhor para ti, era a prova viva dessa atitude. Rafael conhecia-os a todos bem demais, esse era o problema.

- Não me venhas dizer o que é melhor para mim -desafiou.

- Estamos na presença de um homem que está morto para a opinião pública - esclareceu Federico com uma ameaça velada. - Apenas queremos saber o máximo de informações possível para tentarmos estancar esta desgraça. O que é que levou o Comte a rebelar-se? Tantas mortes em nome de quê?

Rafael fez um aceno negativo com a cabeça. Eles não tinham percebido nada... ou não queriam perceber.

- Não foi em nome de quê, mas de quem. Qual é o denominador comum de todos os crimes?

Os homens levaram algum tempo a pensar, trocando olhares comprometidos entre si. A resposta não era difícil mas ninguém a queria dizer em voz alta. O último Papa de cunho imperial tornara-se num arquétipo insofismável de inconveniência. No Vaticano sempre tinham sido profícuos a varrer para debaixo do tapete as inconveniências. O que distava do olhar, não lembrava à mente nem ao coração. Era como se nunca tivesse existido.

O problema é que a história nunca deixava esquecer nada.

- O Santo Padre Pio XII - respondeu o Cardeal Secretário de Estado, dando voz ao que ninguém mais queria pronunciar.

- Mas Pacelli deixou-nos em 1958. Como poderia ele influenciar o que se passou, tanto tempo depois da sua morte? - questionou Federico.

- Sabem qual ia ser a recomendação da Positio do padre Gumpel? - contrapôs Rafael.

Nenhum sabia. A Positio seria transmitida directamente ao Papa e não ao Secretariado. Seriam informados a posteriori, depois de o Santo Padre tomar a decisão. Informação - a pedra preciosa do novo mundo. Fulcral para saber o estado dos aliados e dos inimigos, dos neutrais e dos ambíguos; quem a tem controla o desenrolar dos acontecimentos.

- A recomendação era negativa - anunciou Rafael.

Todos imaginavam que o desfecho seria esse mas, por outro lado, mantinham a esperança que a Congregação para a Causa dos Santos, no fim, sustivesse o superior interesse da Igreja e varresse para debaixo do tapete aspectos menos abonatórios do candidato Eugenio Pacelli.

- Mesmo assim. O Comte mandou matar três pessoas, a sangue frio ­ disse Federico. - Porque não tentou matar o Gumpel também?

- Tentou. Só que não sabia onde ele estava.

A lógica era inimiga do ofício e, a maior parte das vezes, para se esconder algo o melhor é colocá-lo debaixo das barbas dos acossadores. Gumpel tinha apenas um endereço no seu registo pessoal: o Vaticano. Mas costumava pernoitar numa villa, afecta aos membros da congregação, propriedade do Estado católico, nos arredores de Roma, onde podia continuar as suas leituras de trabalho. Nunca ninguém se lembrou de procurá-lo nessa morada, como Rafael previra.

- Mas o que liga Girolamo a Pio XII? - quis saber Guillermo.

- O irmão - explicou o padre, com a voz cada vez mais sumida.

- Qual irmão? - perguntou Federico.

- aquele que morreu? – perguntou Gulhermo.

-Sim. O padre Geovanni Comte. Designado pelo cardeal Cicognani como vigilante da moeda de troca a partir de 1968.

- Foi o que morreu atropelado, não foi? - perguntou Federico.

- Mas essa história tem trinta anos. Para além disso, o padre Comte não conheceu o Papa Pacelli - apontou o piemontês.

- Mas conheceu a filha dele. E teve um filho com uma das empregadas da casa em 1981.

- O quê? Que história tão rocambolesca - reprovou Tarcisio. - De repente os padres desataram todos a ter filhos?

- Não fica por aqui - prosseguiu Rafael, cada vez mais fraco, lembrando-se que ele próprio não fora um exemplo de castidade. - Girolamo, na altura, era agente da Gendarmaria e ajudou o irmão a livrar-se do filho.

- De que maneira? - inquiriu Federico, intrigado.

- Providenciando uma família de acolhimento em Verona. O rapaz não assentou arraiais em nenhum lado. Anos mais tarde, Girolamo contratou uma pessoa a tempo inteiro para ficar com ele.

- Com que dinheiro? O salário na Gendarmaria não é alto.

- Com dois fundos do IOR.

- E quem financiava esses fundos?

- Um cardeal veneziano chamado Albino Luciani, mais conhecido pelo nome de João Paulo I. Usaram a sua alcunha, Piccolo, como pseudónimo para um dos fundos do IOR. A Fundação Donato e o Fundo Julieta para as crianças desprotegidas continuam a ser financiados pelas obras de caridade que ele criou. Ao contrário do que se diz, não é lavagem de dinheiro. Nunca foi. É dinheiro limpo, de pessoas que querem ajudar. Por isso é que o titular da fundação Donato continua a ser o Piccolo, que já morreu há 34 anos, e o titular do Fundo Julieta é sempre o Papa em funções.

Os três homens entreolharam-se, num silêncio cúmplice.

- O padre Comte morreu atropelado em 1983 - afirmou o Cardeal Secretário de Estado, como se estivesse a fazer um ponto da situação.

­ Continuamos sem perceber porque é que o intendente fez isto.

- O padre Comte morreu assassinado. Atropelamento e fuga.

- Tolice - atirou Federico.

- Como queiram. Morreu porque assistiu ao homicídio de dois Papas e guardava um grande segredo de outro. Era um homem de confiança que sabia de mais.

- Que diz? - irritou-se Tarcisio.

- O Papa Paulo VI foi envenenado ao longo do ano de 78 e sabemos muito bem o que aconteceu com o Papa Luciani - continuou Rafael. - O padre Comte serviu os dois e sabia quem tinha acesso a ambos os Papas.

- Isto é de doidos - reprovou o Cardeal Secretário de Estado. - E porque é que ele queria a mulher?

- Que mulher?

- A moeda de troca.

- Não sei de quem está a falar, Eminência - respondeu o padre, com uma expressão séria.

- Mas... ainda há pouco falou dela. Está a sentir-se bem?

- Não é altura para brincadeiras, Rafael - confrontou Guillermo. - Não te livras de nós sem nos entregares a Anna Pacelli ou a Anna Lehnert, como lhe preferires chamar.

- Como é que se pode entregar alguém que não existe? - perguntou a voz de Giorgio, o belo, que acabara de entrar no quarto e ouvira a última parte do diálogo.

Os outros desviaram o olhar para a porta e viram o monsenhor entrar com um sorriso nos lábios.

- Estão a brincar connosco? - perguntou Tarcisio, indignado.

- Claro que não, Eminência - garantiu Giorgio. - Nunca existiu ninguém com o nome Anna Lehnert ou Anna Pacelli. Consequentemente, não podemos entregar alguém que não existe.

Tarcisio levantou-se, agastado. Era demasiada petulância do secretário pessoal do Papa. Não ia permanecer ali mais tempo para ser humilhado nem zombado por um garoto.

- Meus senhores, quero que se dirijam ao meu gabinete, mal o Rafael tenha alta, com um relatório completo da situação, sem evasões nem artimanhas. As suas melhoras - desejou a Rafael. - Muito boa tarde.

Giorgio deixou-se ficar no quarto a olhar a rua pela janela, enquanto o Cardeal Secretário de Estado se arrastava para fora do quarto, seguido pelos outros dois. A Policlínica Gemelli era o hospital de eleição para membros da Igreja onde os próprios Papas eram tratados quando a gravidade impunha uma deslocação a uma unidade hospitalar. O monsenhor não se virou assim que ficaram a sós. Continuou a fitar a vida da cidade, ainda que os seus pensamentos o distraíssem do que se passava lá fora.

- O Tarcisio fez a pergunat certa – acabou por confessar Giorgio, derrotando o silêncio.

- Qual?

- Porque é que o Comte queria a Anna?

 

Giorgio não repetiu a pergunta, mas Rafaellevou algum tempo a responder. O que é que o Comte pretendia, afinal? Sentia-se cada vez mais fraco e as palavras saíam-lhe com mais dificuldade.

- Não tive oportunidade de lhe perguntar - respondeu por fim. - Talvez a quisesse matar. A Mandi apareceu?

Giorgio fez que não com a cabeça.

- Talvez quisesse eliminar todos os vestígios que pudessem prejudicar a imagem de Pacelli.

- Mas porquê? - questionou Giorgio.

Rafael não sabia responder.

Giorgio respirou fundo na tentativa de desanuviar um semblante carregado.

- Se eu soubesse que ia ser tão trágico não te tinha arrastado para isto.

- Não me arrastou. Talvez tenha sido o contrário.

- Como é que o padre Duválio encontrou o teste de ADN e o diário? - perguntou o secretário do Papa, mais para si mesmo do que para Rafael.

- Alguém lhos deu. Aquilo não estava no arquivo como ele disse.

- Como podes ter tanta certeza?

- Porque eu é que mandei fazer o teste há muitos anos, e sei onde ele estava, e também já tinha visto o diário - explicou Rafael sem acrescentar as dúvidas que o atormentavam.

Giorgio colocou as mãos atrás das costas como um polícia a conjecturar pistas e provas, e a montar um puzzle mental.

- Eu não devia ter arrastado o jornalista americano para isto - desabafou Giorgio. - Não devia ter dito nada ao Timothy. Uma morte gratuita.

Culpa minha.

- Não se culpe. Quem é que podia imaginar o plano louco do Comte?

Sabíamos que ele pretendia raptar a Anna, mas nunca imaginámos que ele ia eliminar um colégio de relatores.

- Eu sei, mas...

- O nosso objectivo com o jornalista era dissuadir o Comte - interrompeu Rafael, analisando os factos com frieza. - Infelizmente não resultou.

Ele perseguiu-nos a todos. Só parou quando ameaçámos matar o sobrinho e mesmo assim tentou matar-me… Não pare de ir buscar o dinheiro a Veneza. Esse dinheiro está a ser bem utilizado.

Giorgio virou-se para Rafael e aproximou-se da cama.

- O Gumpel vai fazer uma recomendação positiva para a beatificação - confidenciou o assistente pontifício, intrigado. - Soube que essa recente mudança de decisão tem dedo teu. Porquê?

Rafael tentou ajeitar-se na cama. Tinha dores e estava muito cansado.

Optaria pela resposta mais simples, a verdade.

- Alguém me disse um dia que um homem não é apenas as suas falhas.

O amor não escolhe lugar nem posto. Não devia, seguramente, ser ele a causa do entrave de um processo de canonização. Seria uma total contradição.

A dor começou a ser tão forte que a respiração se alterou e se tornou ofegante. Giorgio chamou os enfermeiros. Gentilmente, pediram ao monsenhor para sair. Giorgio, apreensivo, deu a mão em jeito de despedida a um Rafael trémulo e arquejante, que suava e se contorcia. Este agarrou a mão do assistente e puxou-o para mais perto. Giorgio debruçou-se sobre ele.

- O lenço? Onde está o lenço? - murmurou entredentes, com tremores pelo corpo inteiro em plena alucinação.

- De que é que estás a falar, Rafael?

- Saia, por favor, Excelência - voltou a pedir um dos enfermeiros. – O paciente precisa de descansar.

- A Anna está livre como tu querias - sussurrou o secretário pontifício antes de o deixar. Sabia que o padre haveria de gostar de saber.

O sedativo fê-lo adormecer em poucos minutos. Voltou a sonhar com mortos e cenas de praia. A voz, sempre ela a perturbar-lhe as conversas ao sol o lenço a esvoaçar ao vento. Quando é que teremos paz? Quando acordou tinha uma visita do mundo dos vivos.

- És um cabrão - praguejou Cavalcanti, sentado numa cadeira com as pernas esticadas e pousadas na cama de Rafael. - Preferiste deixar-me de fora, levaste um tiro. Foi muito bem feito. Se me tivesses informado não estavas nessa cama.

Rafael sorriu. Talvez o inspector tivesse razão. Só Deus podia saber.

- Desculpa. Não devia ter-te deixado de fora. Foi um erro de cálculo.

- Isso é defeito de fabrico. Tudo o que vem dos lados de São Pedro vem avariado. - Sorriu com condescendência. - Parece que escapaste por pouco.

O padre sentia-se tão fraco que ainda não fazia ideia se tinha escapado ou não, mas não disse nada.

- Porque é que fomos à embaixada? Para veres a tua ex?

- Não. Para equilibrar a balança - respondeu Rafael. - Os alemães refrearam o Cardeal Secretário de Estado e tiraram espaço ao Comte.

Cavalcanti levantou-se e encaminhou-se para a porta.

- Vê se te pões bom. Tenho de ir. Os contribuintes não me pagam para andar a fazer visitas a hospitais de ricos.

- Os contribuintes não fazem ideia como e onde é que vocês gastam o dinheiro deles - retorquiu Rafael, com parca energia para provocar.

- Pois não. Mas nós fazemos. - Abriu a porta. - Ah! Já me esquecia!

Aquele relator, o brasileiro.

- O Duválio? Que tem?

- Ele conhecia a tal Anna. Captámos vários telefonemas dele para um endereço oculto.

- Endereço oculto?

- Tu sabes o que eu quero dizer. Um endereço registado num nome fictício. Neste caso, uma empresa. Pertence ao Vaticano. Nem sei para que te estou a dizer isto. Deves ter sido tu a criá-lo. Seja como for, achei que devias saber. - Deu um passo teatral e ficou sob a ombreira. - Ah! Há ainda outra coisa. Esse Duválio falava também com o intendente.

- O Comte?

- Sim. Depois de falar com a Anna, ligava sempre para ele.

Aquelas informações deixaram Rafael intrigado. A Anna comunicava com o mundo exterior? A casa tinha seguranças a cobrir todo o perímetro e as comunicações eram controladas. Rafael era, supostamente, o único que lhe ligava.

- Como é que descobriste isso?

- Estás a subestimar-me? Tenho as minhas fontes. Não és só tu que guardas os teus trunfos. Fui a Torano, claro.

A dor voltara em força mas Rafael esforçou-se por aguentar. Precisava de ouvir aquele relato do inspector italiano.

- Fazer o quê? - perguntou com esforço.

- Inspeccionar o tal endereço oculto que estás a fazer de conta que não conheces e que o Comte não conseguiu descobrir. Interroguei os seguranças. Um deles disse que um relator da Congregação para a Causa dos Santos os contactou e exigiu falar com a Anna, e afirmou que estava a ligar em nome do Papa. Para a próxima que for ao banco pedir um crédito vou fazê-lo em nome do Papa, para ver se mo dão.

- Maas como é que ele soube o endereço dela?

- Não faço ideia. Talvez da mesma maneira como eu o descobri. - Encaminhou-se para a porta. - Até à próxima, padre Rafael ou Ivan ou lá qual é o teu nome. Espero que não haja próxima.

Cavalcanti saiu mas voltou a entrar.

- Ah! Já me esquecia. Aqui tens o teu amuleto. A última vez que te vi ainda não estavas consciente e só falavas dele. - Entregou-lhe o lenço de Sarah. - Não quero que te falte nada. Ainda dizes que não sou teu amigo.

Rafael ficou a pensar em tudo aquilo. Os pormenores. Sempre eles a fazerem a diferença. A ténue fronteira entre a certeza e o mal-entendido. A figura débil de uma velhinha inofensiva, simpática, que aliciava com doces e comidas que cozinhava para os seguranças. Quantas vezes Anna lhe dissera que fora ela quem cozinhara o jantar ou o almoço, expressamente para ele, quando Rafael a ia visitar? Adocicava as bocas e as mentes dos seguranças com palavras carinhosas e deliciosos preparos gastronómicos. Anna era uma sedutora e Rafael fora envolvido, como os outros, na sua teia de ternura. Ele próprio providenciara a liberdade dela porque achara que sofrera demasiado. Fui uma espécie de ovelha negra. Não devia ter nascido, lamentara-se ela mais de uma vez. Se eu não existisse, a luta da minha mãe pela canonização dele já teria terminado há muito tempo.

Rafael pensava que eram meros desabafos sem fundamento. Lamentos de quem tinha muito tempo para dar azo aos pensamentos e às frustrações. Nos bastidores, manipulava tudo e todos com sorrisos de velha tonta e distraída, rendida ao seu destino.

 

Passaram-se cinco dias e cinco noites e ainda não conseguia desfazer o sorriso infantil dos lábios. Sentia-se uma criança a quem a vida e a família ainda não tinham destruí do os sonhos. Apenas lhe faltava o tempo para alcançar tudo o que ainda queria realizar mas não era hora de se lamentar com minudências. Teria o tempo que tivesse e aproveitaria cada segundo como se fosse o último. Havia muito mundo para conhecer.

Pediu um cafelatte, sem açúcar, e pousou a bolsa na cadeira ao lado da sua. Folheou o Berliner Zeitung e levou a chávena à boca para sorver um pouco do líquido quente que lhe aqueceria o corpo. O movimento do estabelecimento àquela hora da manhã, era incessante com pessoas constantemente a entrar, a sair, a pedir bebidas quentes e frias, doces e salgados, crianças a berrar, a sorrir, a chorar, a correr por entre as mesas, a sonora máquina de café sempre a trabalhar para satisfazer os desejos dos clientes, garrafas a saltar para cima do balcão, empregados a deambular pelas mesas com tabuleiros carregados de comida e a gritarem para a cozinha os pedidos mais especiais, mas nada disso a incomodava. A vida acontecia à sua frente e não num mundo imaginário que se obrigara a criar. Não havia nada mais belo. Alguns clientes esperavam pela hora do comboio que os levaria para outro destino, outros, como ela, esperavam pelo que lhes traria alguém.

Atentou numa pequena notícia nas páginas internacionais que mencionava a morte do intendente da Gendarmaria Vaticana, Girolamo Comte.

Coitado do intendente. Era uma peça fundamental para a conquista da sua liberdade mas, simultaneamente, um dano colateral. Ele queria honrar a memória do irmão e tratar dela, mas Anna queria apenas sair da casa grande. Ela conhecera-o alguns anos antes da morte do irmão dele, quando GiroIam o era apenas um agente novato e ingénuo, ainda a dar os primeiros passos na Gendarmaria. Quando o irmão Giovanni teve o filho, ela e Girolamo ajudaram-no a resolver a questão. Um padre como ele, próximo do Santo Padre e em plena ascensão, não podia ter a mancha da paternidade no currículo. Quando Giovanni morreu daquela maneira trágica e imprevista, foi ela quem ajudou Girolamo e lhe sugeriu que arranjasse alguém que tomasse conta do Matteo. Deixaram de se ver quando o Rafa apareceu e a mudou de morada. Quando leu no Corriere della Sera que o Colégio de Relatores estava a tratar do caso do seu pai, viu uma oportunidade. Enviou o teste de ADN e, mais tarde, o diário para convencer o relator de que falava verdade sobre a sua identidade. O relator, o jovem Duválio, não queria crer. Infelizmente, ao contrário da sua intenção, aqueles documentos tiveram um efeito nocivo. O Colégio ia emitir um parecer negativo à beatificação do pai. Não foi difícil convencer o jovem padre Duválio a intermediar entre ela e o intendente. A memória do Papa Pio XII estava em perigo. Era preciso fazer alguma coisa em nome daquilo que muitos antes de Girolamo, como o seu próprio irmão, o sempre fiel Giovanni Comte, haviam feito para deter as conspirações contra o Santo Padre. Através de Duválio, tudo se tornou possível. Infelizmente, nenhum deles poderia sobreviver pois ambos tinham instintos protectores demasiado vincados.

Ela queria ser livre, sem que ninguém soubesse onde ela estava.

Segundo o padre Federico, o porta-voz do Vaticano, o intendente foi assassinado em plena Praça de São Pedro, juntamente com um padre não identificado, naquilo que foi o culminar de uma série de crimes que tragicamente ensombraram a família vaticana. O intendente estava envolvido numa conspiração para matar o Papa Bento XVI e foi impedido por esse herói desconhecido que faleceu durante a operação.

Anna sentiu um arrepio perpassar-lhe o corpo e pensou no seu Rafael se seria ele esse padre não identificado. Tossiu e deixou escapar uma lágrima que limpou com um lenço, antes de fechar o jornal e pousá-lo na mesa.

Rafa, Girolamo e Duválio pertenciam a uma outra vida que já não era a dela. Devia um agradecimento a Rafael. Tornara-lhe as coisas muito mais fáceis do que planeara. Ele era uma pérola que entrara na sua vida, há dez anos, e lhe dera esperança. Aquele seu último acto fora uma bênção. Devia-lhe a liberdade ainda que o seu empreendimento com Duválio e Comte tivesse resultado no mesmo desfecho, independentemente do que acabou por acontecer.

Pensou na mãe e no pai com carinho. Teria tempo para palmilhar as ruas e visitar os espaços que eles frequentaram enamorados, em silêncio, calando os sentimentos e os desejos a maior parte das vezes, há muitas vidas, no início do século XX. Dar-se-ia a essa lembrança e depois avançaria. O caminho devia ser sempre para a frente, sem olhar para trás... com uma única excepção.

Dali tinha visão privilegiada para a plataforma onde chegaria o comboio. Os altifalantes começaram a anunciar a chegada da composição e o coração de Anna acelerou com a ansiedade. Viu o comboio entrar na plataforma e abrandar até à imobilização total. As portas abriram -se mal as carruagens pararam e uma multidão de pessoas saiu para a plataforma, cada uma agarrada aos seus bens e compenetrada nos afazeres que a trazia a Berlim, alheia ao que se passava ao seu redor. Anna fincou as mãos na mesa quando a viu e comprimiu a respiração que teimava em querer alterar-se por causa do nervosismo. Ela caminhava desorientada, no meio da turba, perdida nos seus pensamentos, o olhar ferido pelos anos sem sonhos. Mesmo que ela ainda não o soubesse, tudo isso ia terminar ali mesmo, naquela estacão, naquele momento. Os olhos de Anna marejaram-se com lágrimas de emoção e felicidade. Deu por si a levantar-se e a caminhar com passos trémulos para a saída do café, em direcção a Mandi.

O Francês vinha ao lado dela, com óculos de sol e uma mochila. Já tinha visto Anna. Estava no local combinado. Ninguém proferiu uma única palavra. Não era possível. Apenas lágrimas e um longo abraço entre as mulheres, a mais nova ainda desorientada e confusa, completamente atónita mas feliz por ver aquela que a trouxera ao mundo. Há muito que a perdoara por esse infeliz acto egoísta. Havia muito para conversar.

Anna tirou o embrulho da bolsa e entregou-o ao Francês. Depois seguiu com Mandi para o exterior da estação, sem olhar para trás, sem um agradecimento. Não havia necessidade. Afinal, tratava-se apenas de uma relação comercial. Um rapto e seis mortes, o resto fora oferta da casa. A vida começava aos 82 anos.

O Francês entrou no café e sentou-se numa mesa de canto que estava vazia. O desfecho fora ligeiramente diferente daquele que estava planeado.

O cliente acabou por libertar-se do seu cativeiro de outra maneira. Seria mais fácil se ele tivesse simplesmente ido a Torano libertá-lo, apesar da segurança apertada, mas tal sugestão foi liminarmente recusada. Aquele contrato era mais do que uma libertação, acima de tudo era preciso repor a imagem histórica de uma pessoa querida e muito importante para o cliente.

Missão cumprida.

Abriu o embrulho com muito cuidado para não estragar o conteúdo e olhou para o interior, sem retirar o envólucro completamente. Cheirou e deixou-se entrar naquele mundo. A felicidade não residia não na posse, nem na fortuna, mas na alma. Lê-lo-ia com cuidado e recuperaria as partes danificadas se fosse caso disso, mas havia mais livros para perseguir.

Começaria ali mesmo, em Berlim, a visitar alfarrabistas, coleccionadores, a aliviá-los do espólio e do catálogo. Afinal, estava três milhões de euros mais rico. Todos os homens tinham a sua perdição. Depois rumaria a casa, aos seus livros, à sua colecção... Até ao próximo cliente. O desaparecido Inventio Fortunata era finalmente seu.

 

Anna vencera. O nome do seu pai estava limpo e ela nunca existira.

Rafael fora um dos intervenientes principais nesse desfecho. O cansaço levara-o para monólogos à beira mar e deambulações pela casa grande de Torano, à procura de Anna. Ele bem gritava o nome dela mas apenas ouvia uma gargalhada longínqua de menina traquina. Corria atrás da gargalhada, desesperado, irritado, mas ela esvanecia-se cada vez mais. Depois ouviu aquela pergunta atrás dele. Quando é que teremos paz? Desta vez encontrou-a sentada numa cadeira. Era o trono pontifício da Basílica de São Pedro que ela ocupava, trajada com as vestes pontifícias, as mãos pousadas nos braços da majestosa cátedra, em pose imperial. Estendeu-lhe a mão para que ele beijasse o annulus piscatoris. Era Sarah, e sorriu para ele. Quando é que teremos paz?

- Sarah! - gritou ele quando acordou novamente no quarto.

- Lamento desiludi-lo - ouviu uma voz responder. - Mas não sou a Sarah.

Rafael tentou orientar-se. Quantas horas dormira? Quanto tempo havia passado? O quarto estava escuro. Apenas a luz de um candeeiro de pé que estava num dos cantos. Conseguiu ver JC e o manco, o mais velho sentado, o mais novo de pé, como um segurança de prontidão.

- O que é que está aqui a fazer? - perguntou Rafael, suado e dorido dos vários dias acamado.

- Isso é lá maneira de receber um aliado - protestou JC com sarcasmo que depois foi substituído por uma expressão séria. - Tem de fazer melhor os trabalhos de casa na próxima vez.

- Eu sei - concordou o padre, resignado.

- A velhota levou a melhor. Gosto quando um plano é bem executado - aplaudiu durante uns instantes. - Se bem entendi, ela quis livrar-se dos detractores do pai e, ao mesmo tempo, recuperar a liberdade. Contou com um relator e um cúmplice para a primeira fase e consigo para a segunda.

- Eu nunca estive envolvido - afiançou Rafael.

- Eu acho que esteve. Pode nem sequer ter tido conhecimento desse envolvimento mas foi um dos principais intervenientes. O que, por si, abrilhanta ainda mais o plano. - JC fitou o manco. - Sou um admirador desta mulher. – Voltou a olhar para o padre. – Porque é que o intendente raptou o jovem padre alemão?

Rafael ficou retesado com a pergunta e não respondeu.

- Passo a explicar-lhe aquilo que o senhor sabe perfeitamente mas não quer revelar. Compreendo-o. Não seria motivo de orgulho para mim também, se estivesse na sua posição. Permita-me que lhe diga que o padre Rafael foi um idiota... Duplamente idiota. O jovem padre alemão foi raptado porque era seu filho biológico. Isto, só por si, é um ingrediente para uma bela telenovela. Mas impõe-se uma questão. Como é que ela sabia disso?

Quer responder?

Rafael baixou o olhar.

- Porque eu lhe confidenciei esse facto.

- Porque o senhor lhe confidenciou esse facto - repetiu JC, satisfeito por fazer valer o seu ponto de vista. - Vê como foi um interveniente? Mas o meu caro não fez tudo mal. O sistema de segurança que montou em Torano funcionou. Daí que tivessem de engendrar o plano de rapto para a tirarem de lá. O intendente queria apenas que ela fosse livre. Também ele foi usado. Mas ele estava apenas a cumprir uma promessa a um familiar que tinha morrido há muito. E o Rafael estava a cumprir o quê, quando lhe facilitou ainda mais a vida? Libertou-a.

- Já percebi que fui manipulado - disse o padre, irritado. - Foi para se regozijar com isso que veio aqui?

- Também - respondeu JC, que nunca deixava de dizer as coisas por simpatia. - Falta a cereja em cima do bolo. O Matteo Bonfiglioli.

Rafael fechou os olhos. Ainda faltava esse pormenor. Um plano engendrado ao mais ínfimo detalhe que o fez pensar o tempo todo que estava à frente dos seus adversários quando, afinal, nem sabia quem eles eram.

- Fomos raptá-lo porque surgiu no horizonte uma ameaça de que o intendente estava a planear um atentado contra altos interesses do Vaticano.

Agimos bem - prosseguiu JC. - Permita-me que lhe pergunte quem o informou dessa ameaça?

- O secretário pontifício. O Giorgio.

- Exactamente. E quem o informou a ele?

- Fonte segura - respondeu Rafael, o que era o mesmo que dizer que não fazia ideia de quem fora.

- Fonte segura. Claro. O meu caro não sabe quem foi mas eu digo-lhe.

- Aguardou uns instantes para promover o mistério. JC adorava manter uma plateia agarrada. - Foi o coitado do relator brasileiro. E com quem é que ele falava ao telefone?

- Já percebi - respondeu rispidamente Rafael, dando a entender que era suficiente.

- A fonte de tudo foi a Anna. Confidenciou a Duválio o segredo de Rafael sobre um filho que andava à sua procura, falou-lhe da sua dedicação a Sarah, e contou-lhe sobre Mandi. E ele forneceu todos esses ingredientes a Girolamo, mais a imploração de liberdade dela, talvez entre lágrimas. O intendente sabia onde morava Mandi, a filha de Anna, visto que a segurança dela estava a cargo da Gendarmaria. O brasileiro tinha acesso privilegiado ao arquivo, à biblioteca, ao IOR, por ser investigador da congregação. Depois lançou a informação sobre Matteo, sobrinho secreto de Girolamo, e os planos de se livrar dos relatores. Tudo fazia sentido.

O facto de Rafael ter intercedido para libertá-la com a ajuda de Giorgio e Jacopo foi um bónus para ela. Deve tê-los julgado a todos uns idiotas.

JC fez uma pausa após a explicação, saboreando a mestria de todo aquele plano.

- Sou um homem de inúmeros recursos, padre Rafael, como muito bem sabe. Esse factor permitiu-me localizar a nossa amiga Anna, que anda agora a passear com a filha pela Europa.

Rafael escutou aquelas palavras com toda a atenção. Pela primeira vez, desde que fora internado, sentia-se melhor, mais forte, sem tantas dores.

- Só lhe vou fazer esta oferta uma vez - explicou JC, para que não houvesse dúvidas. - Deseja que lhes faça uma visita?

Rafael fez que não com a cabeça.

- Deixe-as viver o que lhes resta.

O manco ajudou JC a levantar-se.

- Muito bem. Não foi um prazer trabalhar consigo, padre - - despediu-se.

- Ainda falta terminar o trabalho - disse Rafael.

JC sorriu.

- Eu sei. Não se preocupe com isso agora.

O velho saiu amparado pela bengala e pelo manco. Rafael cogitou durante uns instantes em tudo aquilo que Anna fizera e pensou em Sarah e onde estaria. Sentia... sentia... Não sabia muito bem descrever a sensação.

Queria vê-Ia. Precisava de a ver. Agarrou o lenço com força e levou ao nariz. Fechou os olhos e inspirou. Quando é que teriam paz?

JC enfiou a cabeça de novo no quarto e Rafael afastou o lenço do nariz.

- Pergunto-me se ela o enganou mesmo ou se o Rafael simplesmente se deixou enganar.

Depois saiu de vez.

 

Sarah dormiu dois dias seguidos depois de esgotar as lágrimas. Não viu nem falou com ninguém, desligou o telemóvel e proibiu que lhe transferissem chamadas, informou que não queria receber visitas. Limitou-se a dormir, dormir, dormir. Quando acordou, pediu que lhe servissem o jantar no quarto. Vincenzo fez questão de lho levar pessoalmente e de lho servir. Não trocaram nenhuma palavra, mas certificou-se que Sarah comia tudo. Depois pegou no tabuleiro e saiu, fazendo-lhe apenas um afago no cabelo. Foi assim nas refeições seguintes.

A decisão de regressar a Londres surgiu naturalmente. Nada mais a prendia a Roma apenas uma despedida. O passado não se devia renegar. Fazê-lo acabava por magoar outras gerações, porque ele sempre esperava, a espreita, para atacar o presente numa qualquer esquina do futuro. A Igreja sofria porque o renegava e depois acabava por ser apanhada nas malhas que ela própria criara para olvidar.

Chegou à policlínica a meio da tarde. Seria uma visita rápida, mesmo a tempo de apanhar o avião de regresso a terras de sua majestade, no início da noite. Os guardas já não estavam lá para a impedirem de entrar no quarto, mas encontrou a cama vazia e Jacopo à janela a mirar o exterior.

- O que está aqui a fazer, doutor Sebastiani? Onde está o Rafael?

O historiador virou-se para Sarah, consternado, com lágrimas a escorrerem -lhe pela cara.

- Ó Sarah! - proferiu Jacopo, avançando para ela e abraçando-a. - Ele deixou-nos. Sarah sentiu um aperto no peito e os olhos marejaram-se.

- O que quer dizer com isso?

- Ontem vim vê-lo. Parecia em franca recuperação. Hoje, quando cheguei, deram-me a notícia.

Sarah já chorava copiosamente.

- Que notícia, Jacopo? - perguntou a jornalista, que necessitava de ouvir a confirmação da boca do historiador.

- O Rafael morreu, Sarah. Morreu.

Jacopo chorava compulsivamente a perda do amigo para quem nem sempre fora bom. Ninguém o era em todos os momentos. A amizade devia residir mais nos actos do que na lembrança, mas nem sempre podia ser assim.

Que diria Norma quando soubesse da notícia?

- Mas como? - quis saber Sarah por entre soluços.

- Uma infecção generalizada. Sucumbiu aos ferimentos. Foi o que os médicos disseram.

Sarah olhou para a cama, a coberta branca esticada sobre o colchão, sem saber o que sentir. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto e a caírem no chão. Não podia crer. Não. Não pode ser. Não pode ser! Sentou-se na beira da cama a chorar e a mesa-de-cabeceira chamou-lhe a atenção. O lenço. O seu lenço estava lá pousado, imaculadamente dobrado. Sarah pegou nele e levou-o ao rosto. Ele guardara-o. Tentou sentir alguma réstia de perfume do padre que tanto amava e a deixara. Não era justo. O Rafael não. Sarah saiu do hospital a correr. Deus vingara-se da sua descrença. Era tão vil como os homens que geriam a Sua Igreja.

Percorreu as ruas da cidade que até há alguns dias palmilhara com Rafael ao seu lado. Afastara o espectro da doença que a assombrara e seria essa a sua recordação dele. Os seis meses em que viveram juntos. Brincaram, passearam, como marido e mulher, como casal apaixonado que não podiam ser. Compreendia agora, à distância, porque é que nunca se tinham perdido num beijo ou numa noite de prazer. Nicole nunca conhecera verdadeiramente Rafael. Tinha apenas a imagem de um homem que a magoara há mais de vinte anos. Sarah conhecera o homem que não a queria magoar. Por isso nunca lhe deu uma razão, uma ilusão, foi sempre bastante claro e correcto, ela é que nunca o quis entender. Vivia uma ilusão e uma frustração criada por si. Ele fizera tudo para não contribuir para isso.

A ausência dele ia fazê-la sofrer mas seria essa a recordação que guardaria. O homem que a amou ao ponto de não a querer magoar. Amou-a ao ponto de a proteger de si mesmo.

O deambular levou-a ao hotel para ir buscar a mala· que deixara na recepção, e pediu um táxi para a levar ao aeroporto.

Riccardo, o recepcionista, entregou-lhe também um envelope.

- Chegou isto para si, Sarah.

A jornalista ficou intrigada e afastou-se um pouco do balcão para abrir o envelope longe de olhares alheios. Tirou um pequeno objecto preto e um cartão.

Isto é um auricular. Por favor, coloque-o no ouvido.

Sarah sentiu um novo calafrio. Já passara por aquilo anteriormente e, sinceramente, não estava com paciência para jogos, mas cumpriu a ordem que acabara de ler.

- Boa tarde, Sarah - cumprimentou a voz de JC.

- Boa tarde. O que é que deseja? - perguntou ainda com a voz embargada.

- Queria dar-lhe as minhas condolências pela sua perda. Mas a vida continua e temos muito que fazer.

- Eu não vou fazer mais nada - afiançou Sarah. - Hoje encerrou-se um ciclo. Não vou voltar a colaborar e espero não tornar a ouvi-lo. O JC acabou com o Rafael.

- Oh! Sinto-me tão ofendido, Sarah. Depois de tudo o que fiz por si - respondeu com uma expressão de falsa ofensa. - A Sarah vai fazer mais uma viagem e livra-se de mim de vez.

- Vou fazer uma viagem, é verdade, mas é para casa – disse a jornalista ignorando JC.

- Está um carro à sua espera à porta do hotel - informou JC num tom muito sério.

Sarah olhou para a porta giratória e viu um Mercedes negro de vidros fumados, estacionado no exterior, com o motor ligado.

- Não estou a brincar - continuou JC. - A Sarah vai entrar no carro e ele vai levá-la ao aeroporto de Fiumicino. Procure o voo da Alitalia com destino ao Rio de Janeiro. É só fazer o check-in,

Sarah sentiu-se perdida. As lágrimas regressaram. Ele não ia deixá-la em paz.

- Promete-me que depois posso voltar para casa?

- Depois fará o que bem entender, Sarah. Tem a minha palavra. Poderá passar férias na praia ou regressar a Londres. A Sarah merece ter alguma paz.

A jornalista reflectiu uns segundos. Não teria hipótese. Iria ao Rio de Janeiro.

- E depois?

- Dirija-se ao hotel Copacabana Palace, quarto 509. O seu contacto estará lá e tratará do resto.

- OK - acedeu Sarah, agarrando o lenço que trouxera do hospital com mais força. - Vou ao Rio e depois regresso a Londres.

- Vai ao Rio e depois regressará a Londres - repetiu JC, - Faça boa viagem e divirtam-se.

- Espere. Como se chama o meu contacto?

- Ah! É verdade. Esqueci desse detalhe - disse JC com um sorriso sarcástico. - O nome do seu contacto é Lucarelli. Stephano Lucarelli.

 

 

Breve nota do autor sobre Pio XII

 

É inevitável deixar uma menção sobre Pio XII, um dos grandes papas do século XX. Nunca foi nazi, muito menos anti-semita. O seu melhor amigo de infância era judeu e frequentou os Sabat da família dele. A encíclica assinada por Pio XI em 1937, Mit Brennender Sorge, foi elaborada na sua totalidade por Eugenio Pacelli, na altura Secretário de Estado do Vaticano.

O historiador inglês Sir Martin Gilbert declara no seu livro sobre a 2ª Guerra Mundial que, de 1933 a 1939, Pacelli enviou para a Alemanha cinquenta e cinco protestos denunciando os actos grotescos das forças nazis, as violações constantes à Concordata de 1933 e perseguições com base na raça. Em Nuremberga, durante os julgamentos, soube-se que Hitler empilhava os protestos na sua secretária e fazia anedotas sobre eles. Mais: ao contrário do que se pensa, enquanto Legado Papal, Pacelli denunciou o nazismo em Lourdes, Lisieux, Paris e Budapeste. Já durante a Guerra, há relatos de padres polacos que instavam o Papa a manter a imparcialidade, caso contrário sofreriam todos.

O Doutor Peter Gumpel é um dos maiores estudiosos de Pio XII. A sua investigação, baseada em entrevistas e na leitura de mais de 100 mil páginas de documentos, atesta os dilemas e as dúvidas de Pio XII, assim como a gestão inteligente dos acontecimentos e uma preocupação genuína pelas pessoas. "Estou totalmente convencido de que ele era um santo", afirmou.

- E não foi o único. Inúmeras individualidades, desde diplomatas a chefes de Estado, artistas e simples fiéis, declararam que quando privavam com o Papa sentiam que estavam na presença de uma força divina, de um santo, tal era a energia que sentiam emanar de Pio. Descreveram a sua voz cristalina, o toque meigo, a constante atenção ao bem-estar de quem o rodeava.

A Operação Assento 12 que JC menciona no livro existiu realmente e, ao que parece, cinquenta e cinco anos depois da morte de Pio XII continua a cumprir o seu objectivo.

Tenho um apreço profundo pela Anna e pela Mandi, a quem pude libertar na ficção, mas que fazem parte dos sacrifícios que Roma exige, de tempos a tempos, para expiar os pecados do mundo. Testemunharam os meus dilemas enquanto escrevia e não escrevia esta história, as dúvidas e os conflitos interiores. Tiveram sempre uma palavra de incentivo e até os silêncios calculados me ajudaram a percorrer este caminho difícil entre a criação literária e a história.

Sinto uma enorme admiração e devoção por Piccolo, o Papa Luciani, que ainda hoje influencia o mundo com as suas obras em defesa das crianças desprotegidas e que também devia ser canonizado.

Agradecimentos

Há sempre muitas pessoas a quem agradecer quando se escreve um livro, pelos mais variados motivos. Este A Filha do Papa não é excepção e ainda bem.

Comecemos pelos anónimos: quero agradecer aos agentes da Polizia di Stato que me deram a conhecer essa difícil convivência com os seus colegas da Gendarmaria do Vaticano. Muito obrigado. Também não posso deixar de mencionar aqueles que me ajudaram a compreender como funciona esse mundo da criação de santos. Não os posso identificar, por razões óbvias, mas as informações que me deram foram preciosas; em ambos os casos usei-as livremente, portanto, qualquer erro será sempre meu e nunca deles. Obrigado também a eles.

As frases "Existe apenas a versão oficial do Vaticano" e "Quando a Santa Sé se pronuncia não há necessidade de procurar outra versão:' não são da minha autoria, mas são demasiado fortes para as ignorar.

Uma vénia aos agentes invisíveis que são os meus olhos e ouvidos dentro dos altos muros do Vaticano.

Estou imensamente agradecido às minhas agentes Maru de Montserrat e Jennifer Hogue e a toda a equipa da International Editors que, a partir de Barcelona, vão conquistando o mundo. O apoio que me dão é fundamental e, graças a elas, posso dedicar-me apenas à escrita. Os meus sucessos são delas também.

Uma nota de gratidão para a galáctica equipa da Porto Editora: à Cláudia Gomes, por acreditar em mim, ao Rui Costa, por carregar tudo às costas, à Alexandra Carreira e ao Flávio Sobral, por me orientarem os dias, ao Rui Couceiro, cuja lucidez e inteligência são um bálsamo para os autores, ao Orlando Almeida, que lê cada palavra que escrevo e que, seguramente, deixa o texto mais rico com as suas sugestões perspicazes. Quero também deixar uma palavra de apreço a todos os comerciais da Porto Editora que preencheram as horas que passei na estrada com histórias, experiências e muito profissionalismo e simpatia.

Este livro também não existiria sem a investigação da Roberta, a quem deixo um fraterno obrigado por ter partilhado comigo o fruto de um trabalho de vários anos.

Ao escritor Eric Frattini agradeço as longas horas de bom humor e investigação a que nos entregámos.

Aos escritores Luís Costa Pires e Carlos Almeida, pelas longas conversas via Skype que, apesar de não fazerem qualquer sentido para eles, faziam todo o sentido para mim, o meu muito obrigado, amigos.

A Vincenzo Di Martino, outro amigo do peito, que sempre me proporciona e aos meus amigos a mais confortável das estadas em Roma, e à sua esposa Erina, um profundo agradecimento. Tomei a liberdade de pedir à Sarah que contracenasse contigo como era teu desejo. Espero que tenhas gostado.

A César Ribeiro quero agradecer a amizade e a explicação desse misterioso e apaixonante mundo dos livros antigos e desaparecidos. Obrigado por partilhares essa paixão comigo. Quiçá não nascerá um novo livro dos escombros desses mistérios.

Há outras pessoas que foram importantíssimas na elaboração deste livro, mesmo que não tenham dado por isso. O meu muito obrigado a Ricardo Silveira, Pedro Abreu, João Paulo Sacadura, Diogo Beja, Alejandro Peláez Vargas, ao gang da Conceição da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a saber: Conceição Morais Mendes, Ana Freitas, José Braga, Sérgio Bastos e Francisco Pereira.

Não posso deixar também de mencionar Luísa Lourenço, Sofia Teixeira, Giusva Branca, Raffaele Mortelliti, Luís Santos, Margarida Mateus, Mónica Almeida, Pedro Assis Cadavez, Ricardo Afonso, Nuno Miguel Faria, Vera Oliveira...

Quero deixar um abraço fraterno ao Hugo e à Sandra Lima, e à Maria e à Ana Rita. Bem como à Lara Leite e à Rosa Queiroz. Ao Thomas Lanoé e à Keila e à Denise Beltrame, que são os verdadeiros aventureiros, deixo um ai e um abraço de gratidão por fazerem parte da minha vida.

Aos meus pais, José e Maria, à minha irmã, Ana Cristina e ao meu irmão, Nuno Tiago, ao meu cunhado, Jorge Alexandre, e aos meus sobrinhos, Mariana e Alexandre, beijos e abraços muito fortes.

A fechar, um agradecimento público à Condessa. As outras palavras digo-lhe todos os dias.

E, finalmente, agradeço a todos os meus leitores espalhados pelo mundo.

Obrigado pelo estímulo que me dão nas cartas, nos emails, nas conversas, nas leituras. Isto é tudo para vocês.

 

 

                                                                  Luís Miguel Rocha

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades