Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A FLOR DO SAL
Tenho medo da noite. É na noite que tudo acontece, que tudo, sempre, aconteceu. A noite aterroriza-me e fascina-me. A noite dos segredos, dos murmúrios, dos avisos, dos ruídos insólitos, dos silêncios carregados de palavras. A noite dos convites, das surpresas, dos fantasmas, dos sonhos.
A noite da escuridão.
Tentamos contrariar a escuridão com velas, com lanternas, com lâmpadas eléctricas. Mas a noite não gosta. Torna-se cruel.
Se há luar, abro as janelas e deixo que essa luz encantatória inunde a casa e forço-me, toscamente, a escrever sem outra iluminação. Então a noite recompensa-me e inspira-me os melhores pequenos textos que depois, noutra hora, hei-de desenvolver.
De noite tenho medo da minha própria casa. Da casa onde nasci, de que conheço cada palmo, mas que à noite se transfigura e me engana os sentidos.
Se o desejo de escrever é muito forte e não há luar, sento-me no escritório que foi do meu pai e acendo uma única lâmpada que incide directamente no papel. O resto da casa fica na penumbra, as sombras parecem mover-se nos cantos da sala,cheias de pequenos mistérios e dos sussurros dos espíritos da noite.
Quando era criança, fingia que era cega e percorria a casa, descalça, de olhos fechados. O imenso casarão dos meus pais, de olhos fechados. Fixava os móveis em que esbarrava, os objectos que tilintavam à minha passagem de mãos estendidas e passos incertos. Às vezes magoava-me, fazia nódoas negras, dava topadas com o dedão do pé. Mas tinha a obsessão do escuro, pensava, se um dia ficar cega saberei movimentar-me na casa toda e enquanto isso não acontece posso andar por escadas, salas e corredores durante a noite, sem fazer o minimo ruído, como um ladrão, como um fantasma, como um gato.
Até hoje não ceguei, mas adquiri o hábito de não acender as luzes, de visitar a noite todas as noites, vencendo o medo do escuro, recolhendo sinais, memorizando sombras.
Nunca me deito enquanto a madrugada não espreita. Porque não quero ser surpreendida no sono pelos fantasmas que me visitam e me querem desperta, lúcida.
Acorda, Guiomar, dizia o meu pai, nas férias, às nove da manhã. Nunca vi ninguém tão mandrião como esta miúda, e nem sonhava que eu tinha passado a noite a fazer-me de cega enquanto todos dormiam, a descobrir os cantos secretos da casa enorme, acorda Guiomar, e eu tinha dormido três ou quatro horas e andava o dia todo como uma zombie a enroscar-me nos sofás, a pedir ao meu irmão que me protegesse o sono, que afastasse os importunos, que fechasse as portadas das janelas.
Porque o Lourenço sabia. De mim o Lourenço sabia tudo. O meu irmão-gémeo-continuação-de-mim-mesma conhecia a minha - pelos vistos estranha - relação com a noite, sabia que eu era diferente das outras crianças.
Em tempo de aulas desculpava-me junto dos professores quando eu literalmente caía com a cabeça sobre os cadernos, ela tem um problema, tem insónias, não dorme de noite, é uma doença que recebeu da nossa mãe na hora do parto.
A vossa mãe também não dorme de noite?
A nossa mãe não dorme nunca, porque está morta. Morreu para nos pôr no mundo. Podia ter vivido e deixado morrer a Guiomar, que nasceu em segundo lugar, mas ela não quis, e como era de noite a Guiomar ficou acordada a tomar conta da nossa mãe mortinha e a Guiomar nunca mais dormiu de noite, com medo que a nossa mãe morra outra vez. Mas não contem isto ao meu pai que ele apanha fúrias quando se fala no assunto e depois nós é que pagamos.
Os professores ouviam até ao fim todas as loucuras do Lourenço, não só porque ele era sobredotado e nunca se tinha visto uma criança de sete anos com tal inteligência e criatividade, mas também porque o meu pai era o pai mais rico e mais temido de todo o colégio.
O meu pai, além de ser advogado, tinha negócios, nunca percebemos que negócios eram, nunca saía de casa, recebia toda a gente no seu escritório que tinha porta directa para o jardim, tinha e tem, é este mesmo onde estou agora a pôr no papel estas recordações malucas da infância, mais um pretexto para recordar o Lourenço, o meu Lourenço, o meu irmão, o meu maior amor.
Nas raras vezes em que o meu pai ia ao colégio ninguém lhe fazia queixa de mim, ninguém lhe dizia que eu adormecia nas aulas com a cara em cima dos cadernos, davam-me notas que eu não merecia, que não destoassem muito das notas portentosas do meu irmão, com medo que o meu pai, numa das suas fúrias, nos tirasse daquela escola rotulando os professores de incompetentes, e assim as coisas iam andando e consegui
chegar à faculdade, graças às explicações que o Lourenço me dava por fora, de noite, claro, e no maior segredo.
Apesar de sermos gémeos, o meu irmão estava um ano à minha frente, poderia estar dois ou três mas o meu pai nunca deixou, achava um exibicionismo bacoco um puto de catorze anos apto a entrar para a universidade, mas vá lá, compreendeu que o Lourenço se aborrecia mortalmente nas aulas e deixou-o fazer outros cursos, pintura, teatro, culinária, eu sei lá que mais: tudo o que aparecesse e não exigisse os diplomas que ele ainda não tinha, o meu irmão fazia com honra e distinção.
Eu lá seguia a trouxe-mouxe, as minhas únicas habilidades eram o português, a gramática, a leitura e a escrita, no resto era mediana e, mesmo quando podia ser boa aluna, a minha inteligência era obnubilada por aquele sono intransponível e eu ficava-me pelo pouco mais que sofrível.
À noite tudo mudava. Ficava acordadíssima, atenta, perspicaz, a Carminda via-se grega para me meter na cama, mas nem ralhos nem ameaças me convenciam a ficar deitada de olhos fechados à espera de um sono que não viria. Então, assim que ela descia as escadas, eu pegava nos livros que em noites anteriores roubara da biblioteca do meu pai e lia a noite inteira quando não fazia os meus tirocínios para futura cega.
Foi assim que li tudo. Os clássicos, os menos clássicos, os profundos, os menos profundos, os eróticos, os menos eróticos, e de tudo fui formando uma amálgama de conhecimentos, caótica, descontrolada, que me tornou permeável a todas as fantasias e a todas as loucuras.
E Os espíritos vieram mais tarde. Comecei por ouvir os seus murmúrios, por conhecer os seus sinais. Sentia-lhes a presença, pedia-lhes protecção, inspiração e ajuda. Alguns eram anjos, tenho a certeza de que eram anjos, outros, muito raramente, eram demónios, outros, simplesmente, espíritos brincalhões que só queriam rir e divertir-se. Ouvia-lhes as gargalhadinhas infantis quando me esbarrava na mobília, ou me abriam a porta que eu tinha a certeza de ter fechado, ou mudavam de lugar as bonecas antigas da minha colecção.
Lá pelos meus dezasseis anos, quando o meu pai morreu subitamente de ataque cardíaco, continuei a vê-lo à secretária, a esta secretária, nas minhas deambulações nocturnas.
Só a minha mãe, que eu tanto queria conhecer, nunca veio, são, para nós, estranhas as regras do mundo dos espíritos. Mas se ela não vem é porque sabe que isso não ia ser bom para mim, por qualquer razão que desconheço. Morreu para que eu pudesse nascer, que mais posso exigir-lhe.
Só desde a morte do meu pai é que eu consegui pôr os sonos em dia. Posso dormir toda a manhã, santa paciência, cada um tem os seus hábitos, a Carminda, que adormece às dez da noite e há muito deixou de se preocupar com as minhas insónias, tem ordem para me acordar à uma da tarde, já que nunca me deito antes das seis da manhã. Tenho horário de artista, diz ela, e a sorte, diz ela, de não precisar de cumprir horários de trabalho.
Assim é. Sou escritora. É isso que faço para preencher as minhas noites e para aliviar a alma do turbilhão de coisas que me atormentam.
Vivo sozinha com a Carminda neste casarão fora da cidade, se exceptuarmos as empregadas e o jardineiro que, parece, vêm de manhã e eu raramente vejo.
Almoço às quatro da tarde e janto às dez. A Carminda deixa-me a refeição na mesa quando se vai deitar. Adoro comer sossegada, sem tagarelices nem reparos: se comi muito, se comi pouco, se comi fruta, se bebi demais. Porque às vezes, ao jantar, bebo um uísque a mais. Ou um conhaque. Ou um porto velho. Ou um licor. Gosto de variar. Passa pela inspiração, pela cor da bebida, pelo aspecto da garrafa.
É a primeira vez na minha vida que escrevo confissões ou textos autobiográficos. Penso que para isso há um motivo. Só o tempo o dirá. Mas estou a achar divertido escrever sobre coisas intimas, que ninguém sabe, nem a Carminda que é a minha ama e o meu polícia. Não sabe que eu à noite me meto nos copos, porque eu lavo-os e essa é a minha única prenda doméstica. Lavar os copos. Que às vezes (quase sempre) são de cristal porque dá mais prazer beber por eles. Um dia parti um, e fui enterrar os cacos no jardim. A rir-me. A pensar que a Carminda, coitadinha, que pensa que sabe tudo, é afinal tão fácil de enganar.
Depois de ter comido, de ter bebido, de ter lavado e guardado o copo, fico preparada.
Abordo a noite como se penetrasse na floresta dos livros da minha infância. Fico à escuta. Das sombras, dos sons, dos medos, dos silêncios, de mim.
Às vezes sento-me a escrever e toda a noite transcorre macia como veludo negro.
Às vezes deambulo pela casa, chamo o Lourenço, choro, falo alto.
Às vezes fico quieta, à espera.
E então eles vêm. Ou um, ou muitos. Quase sempre espíritos amáveis, uns de passagem, outros costumeiros.
Mas nunca nenhum me tinha atirado assim contra a parede da sala, junto ao retrato a óleo onde o Lourenço e eu pousamos em traje de príncipes da Renascença. O quadro que o meu irmão mandou pintar e onde aparece, segundo ele, a nossa verdadeira identidade.
Nunca nenhum me tinha declarado, agora és minha, estás às minhas ordens. Quero que escrevas a minha história ignorada, que virei contar-te, noite após noite.
E eu, como se recebesse a visitação do Anjo, disse em silêncio, faça-se em mim segundo a tua vontade.
Então ele recuou, sorriu, passou-me os dedos (quentes, estavam quentes) no rosto e disse, o meu nome é Afonso Sanches e sou um navegador de Portugal.
Vejo claramente com os olhos do coração e da inteligência que este mar que aqui vemos há-de ter outra ponta. Nem Deus Nosso Senhor consentia que estas ondas que aqui enrolam para irem tão longe, não encontrassem ao fim de ventos e marés, medos e monstros, almofada de areia onde encostar suas cabeças de espuma e bandos de gaivotas para saudá-las e festejar com gritos a prata de seus peixes.
- E isso a que monta, mestre Afonso?
- Monta que numa aurora subirei num veleiro com um punhado de homens como vós, que não temem raio nem assombração. Homens que no Dia do Juízo queiram pousar os olhos nos olhos de S. Pedro e dizer de cara alevantada, aqui estou eu que não quis outra glória ou louvor que o descobrir mundos que Deus criou para que os achassem. Por isso nos deu estes olhos de ver infinito mar e nos pôs no entendimento a certeza de que ele tem um fim e no coração esta saudade ao contrário, que é a saudade do que ainda não sabemos, do que ainda não vimos, do que ainda não amámos. E isto vos diz Afonso Sanches, pescador de Cascais, praia de Portugal, no ano da graça de 1463.
Isto dito, mestre Afonso recolheu as redes e regressou a casa com o passo desmedido do homem que tem um sonho.
Tomou uma escudela de caldo. Comeu um peixe, frito em bom azeite pingando no pão. Bebeu um pichel de vinho. Deu graças. E abençoou-o Deus com um sono de justo. Sonhou uma nau que era numa casa errante, sulcando a madrugada, à flor do mar.
Afonso Sanches morava sozinho. O pai, pescador como ele, lá se ficara numa das sete vagas da borrasca, e a mãe, sumida de saudade e febre, enterrara-a ele num dia de Natal. A casa era espaçosa e fresca, mas silenciosa como a maré vazia. Em vão Brites Colaça vinha com préstimos de vizinha varrer o chão e mudar a água do cântaro. Em vão lhe temperava o caldo e lhe cerzia a roupa. De Afonso apenas recebia o largo sorriso, o agradecimento sincero e, já que recusava soldada, um lenço de escarlata pela festa de São Miguel.
Manhãzinha saiu Afonso com passo distante e rodeou pela rua da Fonte. Não era segredo a razão deste desvio. Gil Mendo, dito o Mocho, logo lhe mandou do alto do telhado que consertava:
- Há olhos pretos que pensam que são melros e vêm beber à fonte ainda o sol espreita em biquinhos de pés. E Afonso bem lhes arma fisga a que não fujam!
A gargalhada do visado soou na rua toda.
- Atrevido, este Mocho, com boca sabida, dada ao escárnio e ao madrigal.
Mas ali estava ela. Inês Garcia em toda a sua graça. Os olhos mais pretos, mais lindos de toda a costa do mar. Quinze anos, se tanto. A mão na anca redonda, semelhando o pote que descansava na beira da fonte. O seio miudinho, avultando na alvura da camisa. O cabelo escuro escapando da touca, frizadinho de leve, na trança desmanchada que enrodilhava nos dedos morenos. Inês Garcia, a figura de proa da nau dos seus desejos.
Devagar, contrariando a pressa dos sentidos, abeirou-se dela e salvou-a, Nossa Senhora da Assunção te guarde, Inês, o mesmo vos desejo, Afonso Sanches, murmurou ela mais para o cântaro do que para ele, desejando que estivesse cheio, para fugir dali.
Mas não estava. A água corria remançosa para o pote de Maria Gregória, que se encostou traçando os braços sobre as franjas da cinta, a saborear aquele enleio.
Mal os passos de Afonso tinham soado na rua, logo Inês descera as longas pestanas sentindo um cavalo no lugar do coração, que espalhava o sangue no seu galope e lho atirava para a face. Maria, José! Que homem! Tão alto e direito, tão grave! As outras diziam-no velho, aparentava trinta anos... Mas que outro tinha aqueles olhos luminosos, cor de mel e mar, o sorriso inteiro de todos os dentes, a passada segura, as barbas de um castanho fulvo, onduladas de leve, e as mãos limpas e fortes que a faziam tremer não sei de que tremor. Ah, se o pai deixasse! Mas Salvador Garcia guardava a sua única filha para Pêro Pais, senhor de fazenda nas faldas da serra.
- Afonso Sanches, não bebas toda a água da fonte, há mais quem padeça de sede ou serás tu pescador de água doce?
Era o Mocho. E a Gregória, numa risada, pôs o pote à cabeça e abalou com ele para os lados da praia.
Ficaram em silêncio, a ouvir cantar a água para dentro do barro, aquele cantar cheio de ressonâncias e segredos. E por fim, Afonso:
- Se tu quisesses, Inês... Se esperasses por mim levava meu mester de baleeiro para terras dos Açores e juntava por lá com que pudesse vir buscar-te. E casava contigo diante do altar de Nossa Senhora da Assunção que é a mãe dos pescadores.
- Com meu pai, com meu pai, Afonso Sanches. Fale vossa mercê com ele.
Ajeitou a rodilha que lavara e lavara sem razão, torceu-a nas mãos habilidosas, enrolou-a, coroou-se com ela. Afonso pegou devagar no cântaro e, como coisa leve, ergueu-lho sobre a cabeça e ela de súbito desenvolta, protegida pela pose de equilíbrio, apoiou dois dedos de cada mão no barro e sorriu finalmente.
- Se meu pai disser que sim, não me apontarão pecado de desobediência.
Sorriu ainda, querendo mostrar explicitamente que o dever da filha pode igualar o prazer da mulher. E com este sorriso deu mais alento a Afonso Sanches do que com todas as palavras de amor que a sua modéstia lhe defendia.
Foi com uma alegria desusada nos seus modos, sempre tão pousados, que os outros o viram puxar as redes, tirar do seco o barinel, saltar-lhe para dentro, esperar um tempo, sem aspereza, que o Mocho despregasse da Maria Gregória. Esta, que se fazia de mel ao sol nascente, sem ver que o pote, posto de lado descuidoso, vazava na areia, prendia o rapaz com seus dedos de polvo:
- Vem cedo, Mocho. A senhora minha mãe saiu, ainda as estrelas brilhavam, de visita à comadre Bezerra, por lhe mostrar uma marca de roxo que lhe apareceu no alto ventre... vem cedo... Ela só chega depois das trindades...
- Então, Gil Mendo, qual é o que se afoga em água doce? Fazem os robalos cortesia de esperar pela tua rede e as lulas pelo teu anzol?
O Mocho saltou para a embarcação, acenou a Gregória, e em grande algazarra partiu a companha a remos, que não passava nenhuma brisa a pedir vela.
Com bom tempo e mar chão, a faina daquele dia correu boa e farta. Afonso Sanches trabalhava com empenho, a força dos seus músculos torna fácil toda a tarefa, içar vela, puxar rede, rasgar ondas a poder de remos. Mas o pensamento anda-lhe longe dali. Que mistério este de poder o homem ter o corpo num lado e o espírito noutro: naquele sorriso de Inês Garcia que dá vida ao seu projecto, apenas vago, de rumar aos Açores. Fez-se baleeiro como seu pai, mas as baleias parecem agora evitar as costas de Cascais e há novas de que abundam mais para lá do mar, rentinho às Ilhas. Ali. Ali poderia ganhar o pecúlio para voltar, para casar com Inês. Mas se na sua ausência o pai a casava com Pêro Paes? Podia contar com isso. Era mais que certo.
Prendê-la. Prendê-la a ele com laços de carne. Amá-la, torná-la sua, obrigar Salvador Garcia a dar-lha, mesmo de má vontade.
Não. Isso não. Seria sua com a bênção de Deus. E enquanto as redes se enchiam de prata e a vela, agora com bom vento, se enfunava ao sol, Afonso pensava em como falaria em breve a Salvador e lhe daria honradamente suas razões e sua palavra, para que Inês pudesse esperar em castidade o seu regresso, sem que nódoa de lama ou boca de comadre lhe sujasse o nome.
Quando à noitinha recolheu, viu que Brites Colaça lhe preparara a ceia com desvelos de esposa: bolos de farinha e galinha de terreiro. Confiado, abençoou aquela vizinha que com meia dúzia de centis lhe dava tratamento real. E logo ela apareceu como se o não esperasse.
- Afonso Sanches, quão cedo vieste, ainda eu não ceei, vinha espevitar o lume à galinha, a bem dizer mal empregada num homem que ultimamente pouco caso faz de meus comeres...
- Se não ceaste, Brites Colaça, talvez queiras partilhar comigo essa galinha que te deste ao cuidado de preparar... Não é bom um homem cear sempre só, sobretudo quando os pensamentos de sua cabeça o levam tão longe que nem dá fé do que mete na boca.
- Muito me honra o teu convite, mas não quero aborrecer-te com a minha presença, sobretudo desde que me contaram que te não agradam as mulheres...
- Não sei de que falas, Brites Colaça. Mas se puxares aquele escabelo para o pé da mesa, poderás contar-me enquanto saboreamos esta cheirosa galinha.
- Ora, disse Brites, trinchando a ave e servindo-se de uma farta asa, foi a Maria Gregória, filha de Gaspar Gregório, que me contou, que lhe contou o Mocho, que não há mulher nenhuma que encontres de feição a agradar-te. E que a tua cabeça cheia de sonhos te distrai de outros prazeres mais ao jeito de pessoas humanas... como eu... e outras que bebem os ares por ti.
- Não me faças rir com a tua conversa de alcoviteira, mulher. Falemos de outra coisa, de como passam teus sobrinhos, e se melhoraram da morrinha os teus coelhos, e se recebeste novas de Melchior Ventura...
- Já esqueci há muito Melchior Ventura. Como tu muito bem sabes só tenho olhos e suspiros para um homem que por meu mal não gosta de mulheres, e esse é Afonso Sanches, aqui presente.
Afonso riu largamente.
- Come a tua galinha, Brites Colaça, e não fales daquilo que não sabes. Não preciso de provar a ninguém, muito menos a ti, que sou tão homem como qualquer um.
- Pois era a mim que devias prová-lo, Afonso Sanches! Se não queres que espalhe por toda a costa de Cascais a tua incompetência em comércio de amor, e chegue aos ouvidos de Inês Garcia que o homem que a corteja não pode torná-la dona. E se ela não aceitar Pêro Paes, para quem a guarda Salvador, morrerá donzela, com a barriga tão semeada como areia da praia.
Então era isso. Britas Colaça preparava-se para lhe entrar na cama e aí se aninhar como perdiz no choco. Pensou agarrar no remo que lhe adornava o canto da chaminé e corrê-la a golpes de pau. Mas conteve-se. Usou da prudência que tantas vezes o havia de salvar e disse sorrindo:
- Está bem. Podes dizer o que quiseres. Vejo que estás fora do teu espírito. Quem sabe alguma febre, algum desgosto... Sou muito teu amigo, Brites. Tens sido uma boa vizinha, já o eras no tempo de minha mãe e nunca te poderei pagar os favores que te devo. Mas és minha irmã colaça. Quando tua mãe, que Deus guarde, entregou a alma no acto de parir-te, bebeste do leite que me era destinado e sempre me alegrei por tê-lo dividido contigo. Foi com tristeza que te vi desonrada por Melchior Ventura e, se ele voltasse, eu próprio tiraria desforço da feia acção de te desvirgular sem casamento. Mas trazer-te para a minha cama seria incesto aos olhos da Virgem, já que ambos bebemos o leite da mesma mulher e isso nos torna irmãos.
Disse isto com uma tremura de cólera na voz e esperou que Brites a tomaria à conta de emoção. Mas ela tremia mais do que ele ao replicar:
- Com essa má desculpa me rejeitas, sem eu ser do teu sangue. É porque são fundadas as suspeitas que tenho. Não és homem que chegue para ninguém e isso espalharei por todo o povo de Cascais até que Inês Garcia escarneça de ti. Não sabes do que é capaz uma mulher recusada. E bom será que penses no assunto porque eu estarei aqui, na porta ao lado, à tua mercê e não impedirei que te cases com outra se me guardares as migalhas do teu amor.
Ajoelhou e abraçou as pernas de Afonso, que numa enorme aflição lhe rogou que se erguesse e fosse sossegar.
Ela saiu chorando e Afonso sentou-se a comer da galinha a melhor parte.
Ficou a meditar nos sortilégios das mulheres quando querem alcançar seus propósitos e suas ambições, e não entendeu o que podia querer com ele Brites Colaça, que, além de ser sua irmã de leite, sabia bem que ele não tinha fazenda nem nada a que chamasse seu a não ser a casita que seu pai construíra com as próprias mãos e seus aparelhos de pesca. Tinha também parte no barco que era de mais três que, em concórdia, lhe haviam dado a comenda de arrais.
Poderia existir em corpo de mulher tanta luxúria que levasse Brites àqueles modos destemperados, indignos de mulher honrada?
Não cabia talvez a palavra honra tratando-se de Brites pois a perdera nos braços de Melchior Ventura e andara então nas bocas do povo por tão exaltada paixão que não escondia e que a fazia parecer fora de si. Podia agora Afonso pensar, depois dos atrevimentos que mostrara com ele, que talvez Melchior não tivesse sido o único culpado daqueles amores a que minguou a bênção da Santa Madre Igreja.
Teve sorte Brites em não ter ficado de barriga, ou, agora Afonso já acreditava no pior, se tivesse ela entregado nas mãos de alguma tecedeira de anjos, quando Melchior Ventura partira para incertas navegações com destino à baía de Tânger, de má memória, e por aquelas bandas ficara sem dele haver novas, em terra de mouros, vivo ou morto.
Pensou Afonso Sanches precaver-se contra as artimanhas das mulheres, mas o homem põe e Deus dispõe e embora se diga que homem prevenido vale por dois, também se sabe de certeza que não é por muito madrugar que amanhece mais cedo.
Rezou sua oração e foi dormir.
Não, não se trata de escrita involuntária, psicografia ou outro fenómeno do mesmo género. Não escrevo em estado de êxtase ou hipnose, não sou abdusida para um mundo paralelo, não me espanto, no dia seguinte, pelas páginas que produzo. Nada disso. Afonso Sanches, navegador de Portugal do século quinze, materializa-se noite após noite no meu escritório, conta-me um capítulo da sua história e desaparece.
Fica-me no ouvido o seu português renascentista, não tanto nos termos mas na musicalidade da sua fala, e o resto da noite passo a pesquisar a época, os costumes, os trajes, os tecidos, as comidas, as artes de marear.
Não me deixa perguntar-lhe nada. Não colabora comigo. Apenas conta. Os seus amores, os seus sonhos, as suas aventuras, as suas mágoas. É um monólogo pontuado de lágrimas ou de gargalhadas e eu fico simplesmente a ouvi-lo, não consigo mover-me nem para tomar apontamentos como seria necessário. Às vezes distraio-me por causa dos seus deslumbrantes olhos castanhos-esverdeados, como se começassem por ter sido castanhos e aos poucos o mar se tivesse reflectido neles e lhes tivesse dado a sua cor e a sua luz.
É um homem belíssimo, grande, maior que o Lourenço e, no entanto, tão parecido com ele que às vezes penso que o Lourenço morreu realmente e me aparece disfarçado de navegador para brincar comigo, para me mistificar e confundir ainda, como sempre fez nestes anos todos de incerteza, de saudade, de dúvida, de jogo de escondidas, de ausência inexplicável.
Ele partiu enquanto eu estava adormecida, numa manhã em que acordei morta de sede.
Devo esperá-lo? Devo procurá-lo? Quem me indica o caminho?
Éramos tão felizes, tão escandalosamente felizes no meio de todas as pessoas cinzentas que não percebiam nada da nossa felicidade, que por vezes o Lourenço me assustava dizendo que tínhamos de pagar um preço, um tributo aos deuses ciumentos da abundância humana.
Não mostres ao céu a tua cornucópia cheia de frutos, dizia ele. Inventa um sofrimento, uma doença, um desgosto, que te redima da felicidade. Não sabes que é proibido ser feliz?
Mas ele dizia tantas coisas doidas que eu me limitava a dar graças a Deus por não estar doente, por não ter desgostos, por ter o meu irmão.
Um dia tenho de partir para te salvar, dizia com duas lágrimas presas nas pestanas, e eu pensava que ele estava a inventar uma peça de teatro para me divertir, daquela maneira trágica que ele tinha de me levar tantas vezes ao limite da aflição para depois rir de mim, rir comigo, era tudo a fingir, maluca, apanhei-te outra vez, estavas quase a rebentar em soluços, diz lá que não, e eu, aliviada, deixava-me abraçar, pousava a cabeça no seu ombro a esconder as lágrimas e ele dizia-me ao ouvido, vou-te fantasiar da personagem desta peça onde serás a arquiduquesa e mandarás matar os teus amantes até que chegue aquele que trará a resposta ao teu enigma de esfinge, à tua
charada, à tua dúvida, à tua adivinha, ao teu mistério. E eu deixava-me vestir com roupas que ele próprio armava sobre o meu corpo, pentear com os cabelos imensos erguidos no ar dos lados da cabeça, como se não houvesse lei da gravidade, tudo belíssimo, tudo excessivo, tudo alucinado e não podíamos acudir ao chamamento da Carminda para jantar, escondía-mo-nos até ao limite e então também ele se fantasiava de rei do universo ou príncipe das trevas e eu dava-lhe o braço e fazíamos a nossa entrada na sala de jantar com maquilhagens inimagináveis e deixávamos a pobre mulher à beira da apoplexia, Deus nos acuda, nem respeitam a memória do pai.
Inventámos uma língua só nossa, o gemines que era a linguagem dos gémeos, onde surunat queria dizer amo-te, em português ficava piegas mas em gemines era lindo e fácil e possível, era a nossa palavra sagrada e podíamos dizê-la em voz alta, à mesa, na escola, no cinema, na rua, no teatro, no foyer da ópera, no comboio, na praia.
Os nossos colegas achavam-nos completamente doidos, perigosos, assustadores, por isso não tínhamos amigos nem sentíamos falta deles. Tínhamos pretendentes, isso sim. Diziam que éramos magnéticos e, sempre juntos, atraíamos como um duplo íman homens e mulheres de todas as nações, raças e credos. Homens e mulheres que me queriam, homens e mulheres que queriam o Lourenço, homens e mulheres que queriam os dois porque nós éramos um só, indissociáveis como siameses.
Até ao dia em que ele se foi e me deixou mutilada do melhor de mim.
Primeiro esperei, imóvel como uma inválida a quem tivessem arrancado a sua metade, esforçando-me por acreditar numa brincadeira do Lourenço, numa das suas piruetas de funâmbulo, num dos seus passes de ilusionista. Mas logo me
veio à memória a sua teoria sobre a felicidade e o poema de Fernando Pessoa que ele gostava de citar
Os deuses vendem quando dão Compra-se a glória com desgraça Ai dos felizes porque são
Só o que passa
Baste a quem baste o que lhe basta
O bastante de lhe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta
Ter é tardar.
e então entendi que ele tinha ido à procura de algum mal, de algum desgosto, de algum sofrimento, dando-me a entender que eu deveria fazer o mesmo, sem se lembrar que a mim, para sofrer, me bastaria a dor da sua ausência.
Perguntei, numa noite de desespero, ao meu visitante de um outro mundo, porquê eu, porque me escolheste, ao que ele, tenebroso, respondeu, porque sabes ler e escrever, porque sofres de ausência, porque tens mar no nome e porque, também tu, estás em viagem.
Em cada dia que passava tomava forma na mente de Afonso Sanches a ideia da partida. Mas era sobretudo a noite que o levava por mares sem fim, entre o sonho e a insónia, com a cabeça pousada na almofada que para ele enchera Brites Colaça com desperdícios de tecido e lã (dera-lhe duas, com segunda intenção) quando ele se lhe queixara de noites mal dormidas.
De tanto empreender nos mesmos pensamentos parecia-lhe que a sua cabeça deitava ondas de calor que se transmitiam à almofada e tinha de virá-la à procura do lado mais fresco e erguia e agitava as mantas para que o ar corresse e descobria-se, e logo sentia frio, enrolava-se e não tardava que tivesse que virar de novo o coxim da Colaça. Como tinha dois, procurava o que estava frio e depois passava para o lado de baixo, já arrefecido, do primeiro.
Isto fazia-o pensar como seriam as noites a bordo, entre o sal das ondas e a cantiga do vento, enroscado a um canto em uma manta húmida, a ouvir ranger o madeirame, ou com as mãos no leme enfrentando a borrasca, e, de manhã, desfeito de fome e de cansaço, comer o pão que ao fim de três dias, de tão duro, se chamava biscoito, e esperar que, daqui aos Açores, com Deus e a maré e o vento ajudando, não chegasse todo o alimento que de terra levassem a encher-se do temido guzano. Uma coisa era ser pescador, outra navegador de mares desconhecidos e Afonso Sanches, embora não o dissesse a ninguém, sabia que não iria ficar sempre nos Açores, em seu mester de baleeiro, mas que outros horizontes haviam de chamá-lo, a atracção daquele abismo de mais além que nele cantava ecos de viagem, como se o mundo já não fosse ali, na sossegada vila de Cascais, nem tampouco em terras de Santa Maria.
Mais longe, Afonso Sanches, mais longe, dizia-lhe uma voz, e o seu coração de marinheiro era um oceano de sonhos, perdendo-se em terras por achar.
Afonso Sanches sabia que na navegação tudo estava por inventar, mas isso não o desanimava de atingir o seu primeiro objectivo, que eram os Açores e, depois, só Deus sabia onde o levaria o seu sonho.
Ele conhecia a carta marítima, desenhada no final do século treze, a agulha de marear, o astrolábio. Conhecia e contava com a ajuda do céu, representada pela estrada polar, ali posta por Deus para orientar os mareantes.
Sabia que, fazendo rumo a oeste desde a saída do Tejo, dever-se-ia, ao fim de seis dias de mar, avistar a ilha de Jesus Cristo, depois chamada Terceira, por ter sido a terceira a ser povoada, ou pelo menos alguma das outras cinco ilhas a leste do arquipélago. Em boas condições de visibilidade, o cume de Santa Maria, a ilha mais a sul, deveria avistar-se a partir de cinquenta milhas ao largo. Tudo isto seu pai lhe ensinara, mas não lhe bastava saber. Queria vivê-lo, experimentá-lo, aprendê-lo bebendo os ventos e vencendo as ondas, usando a sua arte, o seu engenho, o seu coração de navegador.
Se vais para o mar aprende a rezar, dizia o povo, e o que mais os marinheiros rogavam era que o vento lhes não soprasse enfiado pela proa, o que os faria desviar o rumo e retardar a viagem, indo ter a que mares, a que paragens, a que destino que só Deus sabia.
Era necessário desviar um pouco o rumo para apanhar o vento de lado, bolinar, até que as velas de novo se enchessem como ventres de mulheres prenhas.
Sabia Afonso Sanches mais alguma coisa que lhe martelava no fundo da cabeça e da alma e que era talvez a verdadeira causa das suas insónias:
Desde o tempo da regência do infante D. Pedro, o das sete partidas, que, entre os navegantes portugueses, se suspeitava da existência de terras a ocidente. Tal facto fora confirmado por duas bem sucedidas explorações de Diogo de Teive, escudeiro do infante D. Henrique, que, embora nascido na Madeira, fora nomeado ouvidor de Jácome de Bruges, povoador da Ilha de Jesus Cristo.
Tais expedições, ambas partidas de Angra, tinham-se dado em 1450 e 1452. Esta última prolongou-se por sete meses por paragens de uma extensa terra a noroeste, terra até então ignorada, onde fundeou numa larga baía. Aqui se acolheram para aguada e descanso da tripulação, após difícil e penosa navegação através de gelos flutuantes.
Pareceu-lhes o território deserto de habitantes humanos, embora a flora e a fauna fossem de molde a muito os maravilhar. Rumaram a sul acompanhando de perto a costa, tanto quanto os densos nevoeiros permitiam, até encontrar águas temperadas. Aí depararam com um mar cerrado de bagas que o barco a custo desbravava e a tripulação, temerosa, obrigou-o a regressar, impedindo Diogo de Teive de penetrar na terra achada e ali colocar um padrão português como era seu desejo e empenhamento.
Tudo isto Afonso Sanches sabia, mas um saber que não é de experiências feito não satisfaz uma alma aventureira e empreendedora.
Tentava não sonhar alto de mais: parcelar o seu instinto de viagem. Primeiro os Açores. Agora os Açores. Depois, só Deus, na Sua infinita sabedoria, conhecia o que lhe estava guardado.
Mas antes...
Que homem pode largar os seus dias tranquilos e zarpar, como se não tivesse passado, nem laços, nem amigos, nem casa, nem amores.
Inês Garcia era o vento pela proa que lhe atrasava a viagem. Com meu pai, havia dito. Fale vossa mercê com meu pai. Sabia que ela não era indiferente ao seu amor. Via-se-lhe nos olhos, no rubor da face, no meneio da anca, no requebro, no nervoso das mãos quando lavava e lavava e torcia e retorcia a rodilha para o não fitar. Mas era com Salvador que tinha de ter uma conversa de homem para homem antes que lhe chegassem aos ouvidos as calúnias de Brites Colaça.
Também esta, com quem se cruzava todas as manhãs e todas as noites, lhe perturbava o juízo só com a sua simples presença. Agora optara por um silêncio ofendido. Nada lhe dizia além da salvação. Continuava a limpar-lhe a casa, a lavar-lhe a roupa, a preparar-lhe a ceia, mas afastava-se, assim que o via chegar, com a frase Deus te salve, irmão, pondo na palavra irmão um sarcasmo, uma ironia quezilenta e trocista que deixavam Afonso com desejos de meter-lhe a mão na cara.
Dominou-se sempre. Fingia não perceber, mas dentro de si começava a tomar forma o receio do que aquela mulher lhe pudesse fazer se continuasse a desprezá-la. Intrigar a seu respeito, caluniar a sua virilidade, gabar-se de algum compromisso com ele, ou quem sabe, envenenar-lhe o caldo.
Em uma tarde de muito mar, a tempestade empurrou-os para terra em grande perigo, e Afonso Sanches entrou na Igreja de Nossa Senhora da Assunção para agradecer-lhe ter protegido embarcações e vidas. Depois de rezar suas Salve Reginae seus Pater Noster, suas Gloriae até as pernas lhe ficarem dormentes de tanto se quedar de joelhos, benzeu-se, fez o sinal da cruz e, em vez de sair da igreja, sentou-se a meditar.
E se Brites Colaça não fosse, aos olhos do céu, sua irmã? O pecado seria menos grave mas não deixaria de o ser. A pobre já tinha sido enganada por Melchior Ventura, não merecia tal acto de quem a conhecia desde o berço, e que, a cometê-lo, o faria somente por interesse e sem amor.
Mas não era a própria Brites que, desesperada, se lhe oferecia como fruta no mercado? Não era ela quem, sem exigir casamento, apenas dele pretendia um comércio sigiloso de amor? Seria fácil calá-la hoje mesmo, chegando a casa e convidando-a para a sua cama, fazendo-a jurar segredo, obrigando-a a prometer que não se oporia ao seu casamento com Inês.
Mas como poderia, depois disso, apresentar-se perante a sua amada e, com pureza de corpo e alma, pedir-lhe que fosse sua para sempre com a bênção da Santa Madre Igreja e de Nossa Senhora da Assunção?
Não. Não iria ceder aos enredos da vizinha. Era um homem honrado, e com honra havia de levar avante o seu pedido e o seu compromisso. Decidiu que no dia seguinte havia de procurar Salvador.
À noite Brites bateu-lhe à porta. Era costume entrar sem bater, mas agora fazia-se niquenta, mesureira, e com muitas cerimónias colocou-lhe na mesa uma grande malga com carapaus fritos, ainda quentes, e um grande pão.
Para que não penses que a tua irmãzinha te deixa morrer à míngua, fritei estes peixes que me ofertou Sancho Velho. Venho aconselhar-me contigo, irmão, já que Sancho anda a falar-me em mancebia, pois sabendo que Melchior Ventura me desonrou não quererá entrar comigo na igreja.
Dizia sempre irmã e irmão com uma ironia irritante e ia cortando fatias grossas de pão e colocando os carapaus em cima e servindo o vinho do casco para os picheis de barro e mastigando a comida com gosto.
Era uma bela mulher, de grandes peitos e ancas parideiras, cintura fina e coxa grossa, morena, negros os cabelos e verdes os olhos. Tinha a idade exacta de Afonso, menos, talvez, uma lua, vinte e cinco anos completos, mas, tal como Afonso, davam-lhe mais idade. Supunham-na nos trinta, porque tinha um jeito de mulher vivida. Que era.
Afonso sabia que ela não se ficara só por Melchior Ventura. Este Sancho Velho e outros gabavam-se de ter passado pela sua enxerga. Por que razão a mulher engraçara com ele?
Mostrava-se agradecido pelo peixe, de perfeita fritura, pelo pão, pelo prestimoso serviço, pelos barros lavados. Brites riu, sentou-se em cima da mesa mostrando as pernas como quem não quer nada e disse-lhe que era seu dever de irmã, irmã, cuidar de seu irmão solteiro que o era, coitado dele, por não haver nem vento nem maresia que erguesse o mastro da sua nau.
Saiu com uma gargalhada. E Afonso Sanches constatou com fúria que aquela mulher, com seu odor de fêmea e suas provocações, ia levando a água ao seu moinho e lhe deixara a nau em situação de erguer a vela. Usou a mesma mão que, com gosto, teria coberto Brites de pancada.
No dia seguinte foi ver Salvador Garcia. Acolheu-o este com grande franqueza, mandou servir queijo e vinho e Afonso pensou que a sua partida estava ganha. Mas a conversa não decorreu como esperava.
Disse-lhe Salvador que tinha por ele grande estima e apreço, pois todos o sabiam um homem honrado e de respeito, mestre no seu ofício. Mas quanto a sua filha Inês, estava ela prometida desde menina a Pêro Paes e sendo ele, Salvador, um homem de palavra...
E ali ficou praticando, sobre o tempo, a borrasca da véspera, o vinho novo...
Afonso Sanches ia concordando sem ouvir nada, ferido no seu pobre coração apaixonado, desesperando de que Inês viesse algum dia a ser sua, procurando argumentos para fazer Salvador mudar de ideias. Mas não achou nenhum. Queria sair daquela casa, respirar a maresia, acalmar o coração. Mas o pior estava para vir. Entre cordiais agradecimentos e despedidas, Salvador terminou dizendo:
- Muito me honra o vosso pedido, Afonso Sanches. Mas além de tudo desejo ter netos e compreendereis que não posso casar a minha filha com quem não me garante a continuação da família.
Afonso jurou nesse momento que havia de matar Brites Colaça. Não acreditara que tão prontamente ela cumprisse a ameaça de o caluniar no mais precioso bem que um homem pode ter: a sua virilidade, o seu orgulho de macho.
Foi à taberna onde se encheu de vinho e todos viram que estava transtornado e nem o Mocho se atreveu a lançar-lhe um dos ditos da sua boca dada ao escárnio, tão carregado era o cenho de Afonso Sanches e tão terrível o seu silêncio. Pagou e saiu, sem uma palavra.
Entrou pela porta de Brites com a morte atravessada nos olhos. Agarrou-a à bruta por um braço e pelos cabelos que, no desleixo da intimidade, trazia soltos e lhe chegavam à cintura, e arrastou-a para sua casa cujas paredes jamais haviam assistido a gestos de fúria ou palavras de cólera.
Começou a bater-lhe. Ela caiu entre escabelos, descomposta, assombrada com a violência daquele homem tranquilo. Ao menos sinto as suas mãos, pensou, e não se furtou às pancadas. Não se defendeu, antes arrancou a camisa que usava por casa, e os seios de mamilos negros pareciam fazer frente às investidas do homem.
- Bate-me, se queres. Só de sentir as tuas mãos já enlouqueço, sou tua para que de mim faças o que te aprouver.
Sem qualquer recato, mostrou-lhe as coxas, exibiu-lhe a boca do corpo, provocou-o enquanto ele, desvairado, a espancava, a fazia voar para cima do leito.
Tomou-a por trás e ela era a figura de proa da nau perdida naquele temporal de raiva, tomou-a pela frente como se quisesse despedaçar-lhe as entranhas e afundá-la no abismo do mar.
Quando o vendaval amainou, Brites Colaça soluçava de dor e de prazer.
Afonso Sanches não voltou a desviar o seu caminho pela Rua da Fonte. Não queria ver Inês Garcia, não queria mostrar-lhe o seu coração partido.
Todos estranhavam o seu cenho carregado, o seu silêncio, o seu mau humor, tão contrários ao que sempre fora.
Tirou informações de onde e quando partiria uma caravela para os Açores, esqueceu o sonho de zarpar com os seus companheiros e amigos e decidiu partir sozinho, em busca do próprio destino. Guardou segredo das suas intenções.
Brites Colaça rejubilava. Desdobrava-se em limpezas e comeres, determinada a conquistar o seu homem com todas as artes feiticeiras em que são mestras as mulheres. Sabia que o tinha na mão, inimigo de dia, escravo de noite. Ele continuava
a possuí-la com raiva, com remorso, com desespero. E ela gostava assim. A cama era um campo de batalha. Não se sabia quem era a caça e quem era o caçador. Havia urros de urso ferido e gritos de gata selvagem. Arranhavam-se, mordiam-se, rosnavam. Era a porta do inferno que se abria por onde, cego e surdo, Afonso entrava pelo seu pé à procura do paraíso.
Aceitaram-no como tripulante numa caravela que partia. Aprestou-se para a viagem e disse a Brites Colaça, com quem nunca falava, enquanto mastigava o lombo de porco que ela assara no espeto da lareira:
- Vou para os Açores. Podes ficar com a casa e com todos os meus haveres.
- Demora o tempo que quiseres, minha paixão. Cuidarei de tudo na tua ausência, conservarei o lume aceso, à tua espera.
Afonso Sanches olhou-a com mágoa, com crueza, com desdém e disse, pondo nas palavras a maior frialdade:
- Podes apagar o teu lume, mulher, que eu não volto mais.
Levei meses, talvez anos a aceitar o inaceitável: o Lourenço não volta mais. Talvez se tenha perdido na selva Amazónica, talvez tenha estiolado de sede nos desertos de África, talvez tenha casado com uma chinesa e viva agora na aldeia flutuante de um rio amarelo.
Talvez seja travesti nos bas-fonds de Paris, talvez more no Alaska, alimentando as renas, talvez esteja no Árctico a estudar a desova do salmão.
Talvez seja rei de uma ilha perdida, feiticeiro de uma tribo de canibais.
Ou talvez tenha morrido. Talvez o seu monomotor se despenhasse nos Andes, ou acabasse sordidamente, à facada, num beco escuro de Buenos Aires.
Viajo na imaginação à procura dele, espero uma carta, um recado, um sinal.
Dois meses e seis dias depois da sua partida, acordei subitamente com a certeza de que estaria no Brasil. Não me enganei. Telefonei para um casal amigo do meu pai que o vira, de passagem, dias antes. Estava há duas semanas no Rio de Janeiro e apresentou-lhes uma namorada lindíssima, das melhores famílias de Porto Alegre, para onde pensavam partir dentro de dias.
Tive a certeza de que isto era uma pista que ele me deixava. Equivalia a ter-me escrito um postal.
A nossa mãe era brasileira. Parece que herdei dela esta cabeleira castanha clara, ondulada, indomável e os olhos azuis-crepúsculo, como diz o Lourenço. A minha mãe chamava-se Deusa e sabia de cor todos os poetas. A Carminda conta que ela se vestia de gala para jantar e, em vez de rezar, dizia um poema antes de sentar-se à mesa, e rematava com amen porque acreditava que poesia e oração eram a mesma coisa. O meu pai devia ter por ela uma paixão demencial, porque parece que achava graça a uma originalidade tão contrária à sua maneira de ser, austera, rigorosa, com pouco sentido artístico e nenhum sentido de humor. É a minha mãe que explica o Lourenço, tão diferente do pai, excessivo onde o pai era acanhado, transgressor onde o pai era legalista. E se o pai era, como diz Camões, mais propenso ao furor do que à ternura, o Lourenço é, seguramente, mais propenso à ternura que ao furor.
Estou a tentar explicar as relações do meu pai com os amigos brasileiros da minha mãe, relações que resistiram à morte dela, embora não houvesse muito de comum entre eles. Muitas vezes nos receberam nas férias, e o Lourenço, é claro, lindo e louco, encantava e conquistava todos. Contavam-nos então como nos parecíamos com a nossa mãe quando ela tinha a nossa idade e de como o meu pai, numa das suas viagens de negócios, se tinha apaixonado por ela e criara um forte laço afectivo com todos os que assistiram ao explodir dessa paixão.
Tenho dificuldade em imaginar o meu pai apaixonado. Nunca lhe conhecemos mulher nenhuma e de facto devemos-lhe a gentileza de nos ter poupado a uma madrasta.
O que não seria fácil depois de termos tido uma mãe chamada Deusa, que literalmente endeusámos e provavelmente ficcionámos a partir do que nos contavam a Carminda e os nossos amigos de além-Atlântico. Em compensação, o pai nunca nos falou dela, nunca sequer falou nela e acho que isso dá a medida do seu desgosto.
Então fiquei a saber que o Lourenço devia estar em Porto Alegre, portanto fiz as malas e apanhei o primeiro avião para o Brasil. No Rio tentei obter uma morada em Porto Alegre mas ninguém soube dar-ma. Descobri o nome da família da tal namorada e garantiram-me que eram pessoas da alta sociedade, muito conhecidas porque o pai dela tinha uma rede de hotéis. Telefonei para todos os hotéis da cidade até descobrir um que lhe pertencia e voei para lá. De tentativa em tentativa cheguei a um pequeno apartamento, onde me garantiram que vivia a dita namoradinha de ocasião.
Fui recebida por uma mulher a cheirar a sopa, a quem disse, sou irmã do Lourenço, e ela olhou para mim com a mesma indiferença que se eu tivesse dito, sou bisneta do Matusalém.
Entre, moça. A Nice já vem. Sentei-me numa salinha alegre e florida a tomar um café que não precisei de pedir, a pensar se a amiga do meu irmão se chamava Eunice, Berenice ou Nicette. E de repente decidi ir-me embora porque jamais o Lourenço viveria, mesmo por poucos dias, naquele interior de subúrbio com uma mulher chamada Nicette e uma faxineira a cheirar a sopa.
Já estava de pé quando a Nice chegou. Sim, tinha conhecido o Lourenço no Rio de Janeiro, mas como estava a passar um mau momento de desentendimento com os pais, tinha achado que aquela não era a ocasião propícia para um relacionamento sério.
Ouvi delicadamente os seus terríveis problemas com a família, que tinham a ver com o volume da mesada, as discussões com a golpista da madrasta que lhe tinha sonegado o melhor automóvel e a humilhação de viver num bairro daqueles, só para se esconder dos seguranças do pai que a procuravam incessantemente. Sim, chamava-se Nice, só Nice mesmo, não valia a pena eu ter matado os neurónios à procura de nomes com a terminação ou o sufixo, era Nice que em inglês se dizia naice e, ah, sim, o Lourenço, que homem maravilhoso, tinha ficado no Rio e preparava-se para partir para a Áustria, ou seria Austrália, ou Antárctida, qualquer coisa começada por A, mas não tinha a certeza. Insistiu para que partilhasse com ela a sopa, só de legumes, que a faxineira tinha feito, mas eu tinha um avião para apanhar, passei no hotel do pai dela a buscar a mala e fui para Paris sentar-me no Flore, de onde só me levantava para ir à La Une comprar livros, com a certeza de que, num destes lugares, o Lourenço, mais tarde ou mais cedo, havia de aparecer.
Mas não apareceu.
Comecei então uma peregrinação pelo mundo, dando preferência aos países começados por A, onde punha anúncios nos jornais e fazia apelos pela rádio, até que um dia a coitada de mim se lembrou de que o Lourenço era muito capaz de estar de volta a casa, sem notícias minhas e retornei a estas salas, estes corredores, estes quartos, esta morada tão vazia
dele, onde o silêncio chora o seu nome pelos olhos da noite.
Não voltei a partir. Decidi procurá-lo dentro de mim, viajar
nas lembranças, navegar na saudade.
Resolvi reler os livros que tínhamos lido juntos, e tudo me transportava para ele. Lembro-me, por exemplo, que ao reler Orlando, imaginei o meu irmão, tal como a personagem de Virgínia Woolf imaginava o marido navegador, perdido no oceano, numa balsa, com uma bolacha.
O Lourenço haveria de fartar-se de rir deste meu pensamento, a palavra bolacha tornava a situação hilariante, ri-me sozinha e descobri que ele, mesmo longe e em lugar incerto, não me deixaria cair em depressão.
Pus-me então a escrever. Descobri os mistérios e os prazeres da escrita, a delícia de poder falar do que eu quisesse, de inventar, efabular, criar personagens, fazê-las amar, morrer ou viver até elas se revelarem e começarem a amar, a morrer ou a viver sem me pedir licença, a existir sem a minha vontade, a pecar sem o meu beneplácito.
E foi melhor ainda porque passei a encher as minhas noites e os meus cadernos com pessoas que não conhecia antes, que se desnudavam impudicamente de corpo e alma, que confessavam os seus segredos mais íntimos, que tomavam os rumos mais inesperados.
Quando percebi que não conseguia controlá-las e lhes concedi toda a liberdade que reivindicavam, soube que podia escrever um romance e que esse romance encontraria editor.
Assim foi. E depois desse, escrevi outro e outro, e outro, e os meus livros foram aplaudidos, comentados, editados em vários países, e a minha esperança era que o Lourenço, grande visitador de livrarias os encontrasse, os lesse, e adivinhasse neles o eco do meu amor e da minha saudade.
Assino Guiomar Lourenço porque nós dois somos uma pessoa. O lado feminino e o lado masculino de uma só pessoa, o yin e o yang, Vénus e Marte, o Sol e a Lua de um único ser.
A minha mãe, de facto, só pôs no mundo uma criatura, uma única pessoa, completa e dividida como qualquer ser humano.
Somos duas metades de um fruto perfeito, que vieram ao mundo aparentemente separadas mas destinadas a formar um
todo.
Esse fantástico ser, talvez hermafrodita, chama-se, às vezes, Lourenço Guiomar e, outras vezes, Guiomar Lourenço.
Sangro de amputação, metade de mim. Por isso eu sei que um dia vais voltar.
As expedições de Diogo de Teive, a partir de Angra, suas aventuras e achamentos, não puderam ficar por muito tempo ocultadas. Às ilhas da Madeira e dos Açores acorreram mercadores e aventureiros: estes pela curiosidade do imprevisto, aqueles pelo ganho assegurado.
Quem financiasse expedições a terras desconhecidas e contribuísse para a sua descoberta tornava-se delas donatário, podendo povoá-las e aí praticar livre comércio por concessão régia. Havia também a possibilidade de recorrer ao auxílio de gente armada, fornecida pela Coroa, para subjugar os indígenas das terras achadas, se oferecessem resistência ao estabelecimento dos novos senhores.
Tudo isto andava no espírito dos mais aventureiros e despertava, em uns, sonhos de glória, em outros, de fortuna.
Afonso Sanches não era o mesmo homem desde que Brites Colaça o difamara perante Salvador Garcia. Mas nem glória nem fortuna o moviam: antes o desejo de fugir dali, do corpo ardente de Brites, do olhar puro de Inês. E aquele ideal, cada vez mais vivo, de pousar pés em terras que ninguém, antes dele, pisara ou vira.
Foi com a alma dividida entre a dor e a esperança que rumou aos Açores.
Ainda não havia grandes conhecimentos acerca do regime de ventos, que poderia advir apenas com a experimentação, mas era de consenso geral que os meses ideais para iniciar a viagem eram Março e Abril, e assim zarparam por uma Primavera ainda fria sobre um mar arrepiado de ventos que se adivinhavam favoráveis.
Era a função de Afonso Sanches ser o marinheiro que, no convés, transmitia as ordens do piloto (lá em cima na popa, com uma das três bússolas que havia em cada nau) a quem estivesse ao leme. O piloto e o sota-piloto entenderam que a voz grave, forte e bem timbrada de Afonso evitava enganos por má compreensão das mensagens que o vento, às vezes, tendia a deformar. Boa voz e bons ouvidos eram essenciais para tal mester.
Nesta ocupação passava ora os dias ora as noites, pois se revezava com um companheiro de nome Simão Pires, seu conhecido de longa data.
Nas noites em que folgava enrolava-se na sua manta, sem sair do convés, e ali ficava olhando as estrelas, sentindo-se, aos olhos delas, um pontinho minúsculo perdido no mar, e parecia-lhe coisa de muito assombro que um pontinho minúsculo perdido no meio do mar pudesse ter tantos sonhos, tantos pensamentos contraditórios, tanto amor e tanto ódio, tantas lágrimas e tanto riso, e coragem e medo e certezas e dúvidas, tudo o que fazia dele um homem, e esse era seguramente um grande milagre da omnipotência de Deus Nosso Senhor.
Uma noite, em que deveria estar adormecido mas não estava, por a sua cabeça não sossegar daquelas perguntas sem resposta, enquanto Simão Pires arranhava a garganta em grandes vozes, transmitindo as ordens do piloto lá em cima ao homem do leme lá em baixo, pareceu a Afonso que um vulto todo branco avançava na noite que era de luar.
Mil vezes jurara a si próprio que não temia fantasma nem assombração, mas os pêlos do corpo todos se alevantaram, a boca ficou seca e um nó na goela quase o não deixava respirar.
Afinal tenho medo, conseguiu pensar. Mas logo o coração começou a aquietar-se quando o vulto, aproximando-se, lhe falou com voz de mulher e discurso bem terreno.
- Perdoa-me, marinheiro, se perturbo o teu sono. Mas estou numa triste situação e necessito ajuda.
Afonso Sanches ergueu-se de um salto, compondo a roupa que relaxara e descobrindo-se, pois costumava dormir com o gorro bem enterrado a tapar as orelhas.
- Em que posso servir-vos, senhora?
Todas as caravelas costumavam levar passageiros mas raramente eles se misturavam com a tripulação. Esta donzela devia ter fugido à vigilância do pai ou tio ou irmão que certamente a guardava.
Porque era uma donzela. À luz do luar parecia um anjo, assim vestida de branco, com os cabelos soltos adejando ao vento, muito loira e com uns grandes olhos de que não distinguia bem a cor. Estava ricamente vestida de brocado branco e, por se agasalhar, trazia um pelote da mesma cor, forrado de peles que ela mostrava à medida que caminhava mais para junto dele.
- Não devíeis estar aqui, senhora. Decerto vossos pais irão estranhar a ausência a uma hora tão tardia.
- Viajo com minha mãe, disse ela, que toma à noite as suas gotas que lhe receitou uma mulher de muita virtude que mora na Serra de Sintra, num lugar que ela diz ser de muitos milagres, e vão lá fidalgos para conselhos e curas e ela a todos atende e lhe pagam com bolsas de moedas pelas muitas curas
que alcançam, e assim pode atender os pobres com a mesma sabedoria e virtude sem lhes cobrar um ceitil.
Afonso estava um pouco tonto com a conversa da mulher e pela sua voz que, sem ofensa, lhe fazia lembrar as galinhas da Brites Colaça cacarejando.
- Bom, senhora. Mas agora recolhei-vos. É tarde e os meus superiores não aprovam nenhuma prática com passageiros.
A mulher loura começou a chorar.
- Mas precisamente, eu tenho de desabafar, porque saí do lado da minha mãe com a intenção de me atirar ao mar e é isso que farei se não houver uma alma caridosa que oiça a minha história e o meu desafogo.
«Tinha eu em Lisboa um conversado e o nosso amor era tão forte que todos os dias nos encontrávamos e todos os dias chorávamos na hora da separação, embora nos fôssemos ver no dia seguinte.
«Meu pai é um rico mercador que decidiu alargar seu negócio para além-mar e se fixou nos Açores onde muito progrediu e construiu morada com sobrado e um grande jardim e diz nas suas cartas que a vista de suas janelas é de molde a prender um homem àquelas paragens, e a beleza do mar e as flores que bordam os caminhos e a fala cantada de suas gentes e os pássaros grandes que o olhar alcança no seu voo e se chamam açores...»
Afonso começou a chegar-lhe o sono enquanto desejava que a mulher fosse mais direita ao assunto e o poupasse a tantos pormenores. Mas ela prosseguia, com todos os primores do interior da casa, e os tapetes e as baixelas e os castiçais, e ele só não adormecia com medo de ser apanhado naquela situação a que a mulher entretanto o compelira, reclinado sobre a manta e meio agasalhado com ela e a mulher sentada ao seu lado sobre as peles do seu pelote, falando sem tomar fôlego e relaxando cada vez mais a sua postura que não parecia de fidalga.
Pensou em Brites Colaça e com que artimanhas conseguira enfiar-se na sua cama e temia que esta, de quem nem sabia o nome, tivesse intenções menos honestas e lhe desgraçasse a sua carreira de marinheiro leal.
- Ide agora sossegar, que é tarde, rogou-lhe.
- Mas não compreendeis nada, disse ela à beira das lágrimas. Não é a primeira ocasião em que venho ao convés e já vos tenho visto, tão sério e ocupado em vosso trabalho, um homem de tanto aprumo e olhos tão honestos, que vos escolhi para meu confidente e é para mim um momento de muita paz estar aqui ao vosso lado, sentindo o vosso cheiro de suor e sal, de trabalho e maresia que muito me impressiona os sentimentos.
- Mas então vosso pai, disse Afonso, quase conformado em ouvir-lhe a história da vida, mas querendo fugir daquele atrevimento que lhe parecia despropositado.
- Ah, meu pai! Prometeu-me a um velho fidalgo dos Açores e mandou que minha mãe e eu, que vivíamos tão bem em Lisboa, eu com o meu conversado e tudo, que o era às escondidas, é certo, por ser plebeu... Eu disse a minha mãe, também nós somos plebeus, ainda me lembro da nossa casinha no castelo, quando mais não vestia que blusa de algodão e saia de estamenha e meu pai vendia galinhas aos embarcadiços, mas dali não sei como enriqueceu e rumou aos Açores e agora nos envia brocados e sedas para o nosso atavio e tenho que deixar o homem que amo e que é um honesto tanoeiro, para vir sobre o mar, que me tolhe de pavor, para casar com um fidalgo que nunca vi e me tolhe de repulsa.
- Pois parece-me não haver remédio, não é verdade?
- Há. Há remédio. Mas necessito da vossa ajuda.
- Perdoai, disse Afonso. Mas além de precisar muito de dormir para acordar disposto para o trabalho, não há nada que eu possa fazer por vós, que nem conheço nem sei o nome.
- Ah, perdão, não me apresentei, porque conheço o vosso nome e não me lembrei que não conhecíeis o meu. Sou Josefa Vicente, uma vossa criada e lembrei-me de um estratagema que me pode livrar de casar com o velho.
- Lamento, mas não quero ter parte em vossos enredos.
- Mas é tão simples! Eu atiro-me ao mar e vós salvais-me. E o meu pai, por gratidão, irá dar-me a vós em casamento e com isso todas as honrarias fidalgas em que agora vive e há-de aparelhar-vos uma nau para a viagem dos vossos sonhos...
- Mas o que sabeis vós dos meus sonhos, senhora, se não me conheceis de nenhum lugar.
- Sei tudo, Afonso Sanches. Conversei com Simão Pires, vosso amigo, que vos conhece de Cascais. Sei que pretendeis rumar a terras que esperam achamento e para isso é preciso dinheiro. Esta é a vossa oportunidade de o conseguir.
Afonso Sanches pensou que aquela mulher era, seguramente, o Mafarrico, que vinha tentá-lo como tentara o Senhor Jesus no deserto: prometendo-lhe riquezas e roubando-lhe a alma. Achou melhor não denunciar o seu pensamento. Segurou disfarçadamente na cruz que trazia ao pescoço e disse mentalmente três Glórias e vade retro, mas Josefa Vicente continuava a sorrir-lhe e agora, com o rosto muito perto do seu, ele viu que os seus olhos eram de um incomparável azul, cor das turquesas que lhe fechavam o pelote no colo imaculado.
Mas o seu discorrer parecia alucinado. Se se atirasse ao mar em plena noite seria engolida imediatamente pelas ondas e ninguém poderia salvá-la. Isto mesmo lhe disse, mas ela obstinava-se, eu tenho poderes, dizia, não quero que me julgueis feiticeira ou bruxa, não é isso, é uma força interior que me é dada por Nossa Senhora da Saúde, minha madrinha, que já me salvou da peste quando todos adoeceram à minha volta, vereis como meus pais têm o rosto picado de bexigas, e já me salvou de um fogo que alastrou no castelo e queimou pessoas e casas e embora pegasse na minha roupa não me deixou nem uma marca.
É Satanás, pensava Afonso. É Satanás e atreve-se a evocar Nossa Senhora da Saúde para que eu acredite que se trata apenas de uma donzela em perigo, e espera que me atire à água para salvá-la e quando for deitar-lhe a mão me mostrará o seu verdadeiro rosto e me arrastará, entre frouxos de espuma e fauces de monstros marinhos, para as profundas dos infernos.
- Não, quase gritou. Não quero ter parte nessa loucura. Não quero o dinheiro de vosso pai nem um casamento sem amor. Não é esse o meu destino.
- E qual é o vosso destino? perguntou ela, zombeteira. Já o sabeis?
- Não sei qual é, mas sei qual não é. E não é dar ouvidos a uma donzela que está fora de si e me convida a morrer afogado sem ter sepultura cristã. Ide-vos, que necessito repousar.
- Volto amanhã, disse ela. Mas hoje certamente sentis falta de uma mulher como todos os marinheiros que andam ao largo. E o meu pelote forrado de peles faria um bom colchão para certos jogos que costumava jogar com o meu conversado tanoeiro que me ensinou a dar prazer a um homem.
- Vou chamar Simão Pires para que me ajude a levar-vos daqui sem mais escândula, que vos não aproveita, nem a vós nem a mim.
Ela ergueu-se, sorrindo, e havia depravação no seu sorriso quando disse, eu volto amanhã.
Ao outro dia estava Afonso Sanches de serviço e era Simão Pires que dormia na sua manta. Afonso viu quando ela atravessou o convés, iluminada pela lua que ainda brilhava muito, e teve um arrepio na espinha com a presença maléfica daquela mulher. É o Demónio, pensou. O seu rosto de anjo esconde um mal imenso, uma força infernal. E Afonso nem se achou digno de ser tentado como o Senhor Jesus.
Pensou destruí-la, atirá-la às ondas, mas se estivesse enganado e nada mais houvesse ali que uma mulher má?
Percebeu que não ouvira a ordem do piloto, e fê-lo repetir, o que foi para este razão de muito espanto, mas estava de boa mente e riu da distracção. Concentrou-se no trabalho e nem viu quando ela passou, ou presumiu que passou, outra vez, em sentido contrário.
Ao terceiro dia, tudo aconteceu. O tempo mudou no caminho da lua para o quarto minguante e começou a chover. Estava Simão Pires de serviço e Afonso pensou recolher-se da chuva em lugar onde Josefa Vicente não pudesse achá-lo.
Foi apanhar a manta que estava húmida e dirigiu-se para um emaranhado de cordas que, numa minúscula arrecadação no convés, formava um bom esconderijo. Mas aí deparou com Lúcifer em forma de donzela, que lhe adivinhara os pensamentos e aí se escondera.
- Não tendes escapatória, Afonso Sanches. Enganei minha mãe trocando-lhe as gotas por outras que não fazem dormir. E há-de vir à minha procura e há-de encontrar-me encharcada de água em vossos braços e vós igualmente, que esta chuva que eu pedi aos céus há-de fingir à maravilha que acabaste de me salvar das águas, e assim, sem arriscares a vida, que já vi que muito prezas, farás o papel de herói e meu pai te dará a minha mão.
«Só quero o teu bem, Afonso Sanches, como vês estou a fazer-te rico e tu nem me agradeces!»
Colocou-se em plena chuva, de braços abertos, na sua roupa de brocado, pois não trazia agasalho, e ficou ensopada em poucos minutos.
- E agora prepara-te, que vou saltar!
Correu e, aos gritos de Afonso, surgiram vários marinheiros que o apanharam já com ela nos braços na amurada, a estibordo.
- Ah, meu herói, disse ela. Como conseguiste salvar-me, só com a força dos teus braços, sem vara nem corda! Eu queria morrer mas agora, tudo o que quero é ser tua, belo marinheiro, de que não sei o nome mas que devia chamar-se Salvador!
Fez um tal alarido que apareceu muita gente entre tripulação e passageiros. Minutos depois surgiram o Capitão e a mãe de josefa.
- Que fizeste, minha filha! Nunca acreditei nas tuas loucas ameaças de que te irias lançar ao mar! Deus me perdoe que não tomei em devida conta a tua loucura, não cuidei de proteger-te de ti própria, não levei a sério a tua paixão pelo moço plebeu! Perdoa-me, se puderes, minha amada criança, tão pura e inocente, que teu pai destina, ai de nós, aos braços de um velho fidalgo.
O Capitão ameaçou castigar Afonso Sanches por aparentar ter abusado da moça fidalga, o que exigia pena de morte, mas Josefa jurou que aquele homem honesto mais não fizera que salvá-la. E se ela se sentia agora apaixonada por ele por causa do seu acto, o bom Afonso Sanches nem abrira a boca para lhe dizer fosse que palavra fosse, muito menos alguma inconveniência que atentasse contra o seu pudor de donzela.
Josefa recolheu-se com a mãe, e o Capitão mandou que dessem ao bravo marinheiro uma muda de roupa do seu próprio baú, e uma moeda de ouro, paga da sua coragem.
Afonso tentou recusar, mas logo pensou que não seria prudente, e aceitou.
Nos dias que se seguiram e até ao desembarque, sem mais contrariedades que as que competem à navegação, a donzela salva das águas foi o assunto do dia. O mestre veio falar com Afonso Sanches com alguma ironia.
- Então, arranjaste pretexto para casar com uma herdeira, velhaco. Há quem nasça com o cu virado para a Lua, porque isto foi a sorte que te bateu à porta.
- Não a quero, disse Afonso Sanches, com o seu olhar
mais tenebroso.
- Ai não, que não queres! A moça é linda e rica, e tu um desgraçado que não tens onde cair morto! Vai vender essa a
outro, bufão!
Afonso Sanches, que trouxera para bordo as suas artes de pesca, tinha apanhado, naquela manhã, galhudos, brecas, cações, gorazes e corvinas. Ofereceu todo o peixe ao mestre, que o distribuísse.
- Não a quero, repetiu, e o mestre não soube se ele se referia a Josefa ou à última corvina que lhe entregou.
Afonso Sanches pensou que por nenhum dinheiro do mundo ficaria com uma mulher que cacarejava como uma galinha poedeira. E além disso, se ela tão bem, por ele, mentira aos outros, um dia, por outros, lhe mentiria a ele.
Desde que, estimulada pela história do meu navegador, comecei a tomar estes apontamentos autobiográficos, parece que suporto melhor a solidão e até, de raro em raro, me disponho a encarar a hipótese de sair com uma ou outra companhia.
O meu editor, que se chama Tomás, ultrapassa às vezes o campo profissional para me propor uma amizade que, insensivelmente, comecei a aceitar.
É uma óptima pessoa. Divorciado e sem filhos, sofre, como eu, de ausência, e vive à espera de uma cabriola romântica que lhe traga a mulher de volta, embora ela esteja casada, tenha dois filhos e more em Bruxelas.
Eu sei que estes sonhos impossíveis são concebidos no silêncio, nas noites solitárias, às vezes na escuridão onde nenhum objecto, nenhuma lembrança concreta, nenhum indício nos acorda para a realidade.
É por isso que o Tomás gosta de sair à noite. Nunca se habituou à casa vazia que lhe traz demasiadas recordações e prefere jantar fora ou ir a um espectáculo.
Eu não. É precisamente no mundo do Lourenço que me sinto protegida e, como os apaixonados, vivo no pânico de
que ele chegue quando eu não estiver, ou tenha o telemóvel desligado no teatro ou no cinema quando ele telefonar.
Uma parte de mim sabe que ele não vem nem telefona, outra tem a certeza absoluta de que ele vai ligar, chegar, invadir-me a casa e a vida, tomar conta de tudo, resplandecer.
Um telefonema do Tomás, e eu, vencendo a inércia, o desejo comodista de ficar no meu canto, arrisco o palpite de que talvez o Lourenço não venha esta noite e pronto, pronto, dada a insistência digo que sim.
Arrependo-me imediatamente. Vou ter que ataviar-me como fazem as mulheres que se vestem não só para o seu acompanhante, mas sobretudo para o público que vai vê-las no restaurante, no foyer do teatro. Hesito.
Depois penso como o Lourenço gostava de me ver bem arranjada e entra-me a estúpida e mirabolante suposição de que ele possa aparecer, como o ilusionista que é, em qualquer daqueles lugares.
Faço então uma toilette cuidada ao pormenor. Preto, porque não tenho imaginação para muito mais, um vestido justo sem ombros. Um par de sandálias, última geração, sedutoras. E os meus famosos cabelos, não tão armados como o meu irmão exigia, mas soltos, grandes, um pouco selvagens, efeito para o qual a cosmética inventou um produto infalível.
Estou diante do espelho a maquilhar-me e evoco, inevitavelmente, as loucuras que o Lourenço fazia na minha cara a partir de uma caixa de sombras, lápis, pincéis, eye liners, rímel, blushes, batons. Era um dos nossos jogos preferidos. E depois enfeitava-me os cabelos com estrelas, flores, folhas, plumas, jóias, tudo o que a inspiração do momento lhe ditasse, para fazer de mim a personagem irreal que a sua imaginação perseguia.
Consigo, apesar da referência ser excessiva, travar o meu ímpeto e pintar-me com alguma moderação, mas de forma a valorizar todos os meus traços, a modelar o rosto, a colorir o neutro da pele.
O Tomás nunca me viu assim. Habitualmente, nas nossas reuniões, apareço dejeans, blusinhas camiseiras, cara lavada e os meus incómodos cabelos amarrados atrás com um elástico. Que bonita, que fresquinha, diz ele às vezes.
A Carminda fá-lo esperar no salão e o homem fica em estado de choque quando me vê aparecer. Detecta-se claramente que, enquanto os olhos se extasiam, a cabeça se interroga qual o restaurante que possa aguentar tanta beleza. Porque eu sei que estou linda. O Lourenço ensinou-me a não ser modesta quando se trata de exercer ao máximo o meu dom de deslumbrar.
Trouxe-me flores, mas agora acha-as ridiculamente insuficientes na sua simplicidade e pousa-as na mesinha baixa sem a intenção de mas entregar.
Carminda, chamo. Põe estas flores em água e traz-nos um aperitivo. Vamo-nos sentar um momento a combinar a noite.
O que quero dizer é que o Tomás precisa de tempo para se refazer do susto e encontrar a coragem de levar pelo braço uma mulher que fará virar todas as cabeças. Tenho experiência disto. Quando o Lourenço estava, ríamo-nos os dois com estas reacções, ainda por cima a duplicar, porque a impressão causada por ele não era inferior à provocada por mim. Chegava a ser cansativo. Mas agora não acontece há tanto tempo que volto a sorrir interiormente enquanto penso que este interregno de anos não fez diminuir o meu impacto sobre a libido masculina. A noite correu bem. Aos poucos, o Tomás foi-se adaptando à situação e até, quando me levantei para ir ao toilette retocar o bâton, virei-me para lhe sorrir e descobri-lhe a pose de proprietário, aparentemente desinteressado dos olhares que me seguiam.
A noite correu tão bem e a conversa tão fluida que o Tomás se esqueceu que tinha bilhetes para o teatro, ou talvez não quisesse esconder-me na escuridão da sala, com medo de que eu me recusasse a sair no intervalo. Tinha razão. Não fumo e não encontro motivos para sair nos intervalos.
Com o Lourenço era diferente. Divertíamo-nos a chocar as pessoas, a suscitar paixões e invejas, ele fazia comentários demolidores sobre a peça, baseado em teses que acabava de inventar, citando autores inexistentes, confundindo as pessoas com teorias contraditórias e conclusões incompreensíveis. Era odioso e eu adorava-o.
Tínhamos uma corte que nos seguia e que ele, magnânimo, tolerava, ou dispensava com um gesto impaciente da mão tratada.
Com o Tomás a conversa decorreu amena e atingiu um ponto em que achei prudente introduzir um tema profissional e contei que estava a escrever um novo romance, bem, um pouco diferente dos outros, que conta a história de um navegador português do século quinze, vítima do sonho de um rei. Como é isso, quis saber o Tomás. Ah, não posso dizer mais nada, ele proibiu-me. Ele, quem?
O navegador. Isto é. Eu acho que é ele, ou o seu espírito que me anda a obrigar a escrever este livro, porque efectivamente este marinheiro que me aparece em sonhos, já investiguei, existiu realmente. Mas como o que consegui apurar é muito pouco - uma entrada de nove linhas na enciclopédia - tenho que ficcionar tudo, inventar-lhe amigos e amores, sonhos e decepções, alegrias e mágoas, a par com muita pesquisa, e esse é o complexo trabalho em que estou envolvida.
Já tem título? Podemos anunciar?
Não. Ainda é cedo.
O Tomás ficou sobre brasas. Mas não falei mais no assunto. Como poderia contar-lhe que escrevo este romance a quatro mãos com um fantasma, por quem estou a começar a apaixonar-me, só porque tem as mãos quentes e nos olhos de mel uma gota de mar?
Mais difícil foi o fim da noite. Além da garrafa de tinto que partilhámos, o Tomás bebeu mais uns uísques, alguma coisa o foi tornando de uma euforia que a bebida, só por si, não justificava e ficou incapacitado de guiar o carro, tendo, sobretudo, em linha de conta que eu moro a quarenta quilómetros da cidade.
Se ficássemos num hotel, disse ele, como quem arrisca na roleta a sua ultima ficha.
Acho boa ideia, porque eu também não estou com disposição para conduzir.
Percebi imediatamente que a minha inocente resposta provocara um equívoco. E fiquei pouco à vontade para o desfazer. No hotel ver-se-ia. Com uma coqueteria de que não me julgava capaz deixei que o resto da noite o induzisse em erro, embora nada nas minhas palavras sugerisse más intenções. Nem boas, claro. Fui muito cruel.
No hotel, que ele escolheu de cinco estrelas, propus que tomássemos uma última bebida no bar antes de fazer o registo.
Já muito tarde dirigimo-nos displicentemente à recepção e eu disse, tem dois quartos? Tem aqui dois amigos que beberam um pouco de mais para pegar no carro. Não temos bagagem.
O recepcionista olhou-nos com algum assombro e, recolhendo o sorriso, fez o registo e entregou-nos as chaves.
Será atrevimento pedir-lhe que me explique... começou o Tomás, com os olhos turvos de decepção.
Amanhã, Tomás. Talvez tomarmos o pequeno almoço juntos, que acha? Prefere no quarto ou na sala dos pequenos almoços?
Prefiro no quarto.
Eu também. Não estou propriamente vestida para aparecer em público de manhã. Mando vir para dois, no meu quarto, às dez. É o... 303.
O meu é o 312. Se precisar de alguma coisa...
Só de um banho e de um bom sono. Até amanhã e obrigada pela óptima noite.
Fechei a porta com pena do Tomás. Despi-me, tomei um banho e enrolei-me no roupão do hotel. Sabia evidentemente que não ia dormir. O pequeno almoço às dez era para mim tardíssimo, visto que só dormiria quando chegasse a casa. Mas esforcei-me para que o meu editor pensasse que eu era uma pessoa normal, que dormia e comia como os outros mortais.
Levei a noite a desfiar as razões pelas quais jamais poderia ir para a cama com o Tomás ou com qualquer outro. Parecia-me uma coisa tão mesquinha, tão vulgar, tão sem brilho, tão sem grandeza, tão sem razão de ser... Não conseguia imaginar-me nessa situação.
Tivera casos, evidentemente, mas isso era no tempo do Lourenço, da boémia, do panache, da literatura, dos rituais, das grandes orgias encenadas pelo meu irmão. Tudo se passava num mundo imaginário, louco, excessivo, perverso, sem regras e sem culpas.
Estas lembranças perturbadoras não se compadeciam com situações burguesas e previsíveis, em hoteizinhos de charme, tivessem eles quantas estrelas tivessem.
Não podia explicar nada disto ao Tomás, tão normal, tão pacato, tão boa pessoa, iria só dizer-lhe que não me parecia boa ideia confundir amizade com pequenos casos sem amanhã, correndo o risco de prejudicar as nossas óptimas relações profissionais.
Durante a noite evoquei o meu fantasma, mas ele não veio.
Sentia-me capaz, se ele quisesse, de fazer amor com ele, isso sim, seria uma aventura transgressora, fantástica, digna da irmã gémea do Lourenço.
Oferecer-lhe-ia, ao mesmo tempo, a sensual Brites, a doce Inês, a astuciosa Josefa. Seria todas as mulheres da vida dele, iria descobrir nos seus braços aquelas de que ainda me não falou e contar-lhe-ia, talvez, os meus segredos.
Mas poderia ele compreender-me? Entender este amor maior por um irmão, ele, que achava um pecado sem remissão amar a Brites Colaça só por dela ser irmão-de-leite?
Estava a dormitar, enrolada no roupão, quando o serviço de quartos me bateu à porta.
Pequeno almoço para dois e rosas no tabuleiro.
Liguei para o 312 e o Tomás apareceu fresco como uma folha de alface. Eu tinha acabado de aquilatar no espelho as minhas olheiras, a maquilhagem mal tirada, embora o hotel de charme oferecesse todos os produtos de higiene possíveis, o cabelo que lavara no duche, meio emaranhado, e o astral em baixo.
Resumindo: o Tomás vinha partilhar os croissants com a Cinderela e teve de contentar-se com a abóbora.
Quando Afonso Sanches pôs pé em terra na Ilha Terceira, percebeu logo que a sua vida não ia ser fácil. Ele, que embarcara como um anónimo e assim pretendia manter-se, ficou falado de uma hora para a outra por causa do embuste de Josefa Vicente.
Ia já a escapulir-se do cais quando se viu agarrado por um homem forte, ricamente ataviado, que lhe sorria muito e lhe puxava o gibão, e, logo atrás dele, Josefa e a mãe, dando brados de muita satisfação e comprazimento.
- É ele, é ele, batia palmas a descarada Josefa. É ele, meu pai, o marinheiro que me salvou a vida quando, num momento de loucura, me lancei ao mar.
- Cumpre-me agradecer-lhe tal feito, honrado marinheiro, e dar-vos, na medida das minhas posses, a paga que mereceis.
- Não cabe qualquer paga ao acto natural de um homem de bem, disse Afonso, depois de saudar o desconhecido. Foi uma honra conhecer a vossa família, mas agora, se me permitis, esperam-me outros afazeres, já aprazados quando saí de Lisboa.
Mas já os três Vicentes, Gaspar, Aldonça e Josefa o levavam rodeado e empurrado pela rua, e Afonso, sem querer armar escândula numa terra onde mal acabara de chegar, não teve outro remédio se não o de se deixar conduzir por ruelas e azinhagas até à bela morada de Gaspar Vicente, rico de curta data, e por isso mais luzido que outros.
Ali o esperavam muitos manjares e iguarias sobre uma grande mesa muito bem aparelhada, um carneiro inteiro, dois galos assados, de pé, enfeitados com suas penas, atuns e outros peixes, muitos frutos, sendo um como uma pequena barrica amarela coroada de verde, e quando aberto deitava um sumo abundante e bem cheiroso, que vinha a ser o tal de ananás de que ouvira falar mas nunca vira.
Estavam muitos convivas e Gaspar Vicente não se cansou de lhes apresentar o salvador de sua filha, enquanto esta e a mãe cacarejavam risinhos e segredinhos.
Afonso Sanches perguntava a si próprio como podia ser parte daquela pantomima, ele, um homem sério e avisado, caído no embuste daquelas duas aleivosas. Só queria ver-se longe dali.
Jurava a si próprio que não as deixaria ir mais além nas suas imposturas, pois, não vendo entre os convivas o tal velho noivo prometido, entendeu que só queriam arranjar marido para a filha que, certamente, deixara sua virtude em algum beco do Castelo de São Jorge.
Percebeu que o assunto não seria tocado naquele dia e sobravam-lhe duas soluções: ou zarpava no primeiro barco de pesca para outra ilha, ou, com o perdão de Deus, inventava uma mentira e dizia que era casado e tinha mulher e filhos em Cascais.
Optou pela segunda hipótese, pois de outro modo iriam persegui-lo onde quer que fosse.
Como não tinha onde pousar, desconhecidas que lhe
eram a terra e as gentes, viu-se obrigado a dormir na grande cozinha de Gaspar Vicente, junto ao calor da lareira onde ardia uma montanha de brasas, numa enxerga coberta de boas mantas, e, por mais cansado que estivesse e ansiando por uma boa noite de sono, jurou que se não deixaria adormecer, temendo que Josefa viesse importuná-lo com impudicas intenções.
Mas o calor agradável da cozinha, o almofadado das mantas e o cansaço de tantas noites mal dormidas, uma sim, uma não, no balanço húmido do convés, em breve lhe derribaram a vontade, e dormiu um sono de justo, que o era, até o sol entrar pela grande janela com carícias de luz e cantigas de pássaro.
Ergueu-se de um pulo e, vendo que a porta estava aferrolhada, pensou saltar pela janela mas considerou que, entre a cobardia de fugir e a mentira de dizer-se casado, era mais prudente escolher a mentira.
Assim sendo, foi pela janela aliviar-se no pátio e lavar-se no tanque que ali achou, de água tão fresca e cristalina que lhe deu uma alma nova e ainda lhe passou pela cabeça a boa vida que teria se consentisse em desposar Josefa, mas veio-lhe à memória o seu cacarejar que, somado ao da sogra, faria dele, não um galo numa capoeira mas a minhoca do campo pendurada e sacudida em bicos de galináceas.
Logo após lhe surgiu na memória dos olhos a imagem de Inês Garcia, que não podia atraiçoar, mesmo sabendo que estava prometida a outro. Mas a esperança é a última a morrer e o amor o melhor conselheiro em matéria de casamento. Depois sentiu fome e lembrou-se de Brites Colaça e das papas de aveia que costumava preparar-lhe e percebeu que o seu corpo tinha saudades dela.
Que mistério este, de poder a alma ter saudades de uma mulher e o corpo de outra, pensava Afonso enquanto enrolava a enxerga e dobrava as mantas, não querendo dar, com a sua presença, mais incómodo do que o necessário, e foi quando Josefa entrou na cozinha e lhe deu, cacarejando, a salvação.
Foi o bastante para lembrar a Afonso que não podia casar com ela, porque aquela vozinha aguda e rouca, atravessada por uma gosma, contendia-lhe com os nervos de uma forma que não conseguia explicar e sabia que jamais poderia habituar-se àquele ruído grasnador. Ainda por cima ela falava muito, não dando trégua aos seus pobres ouvidos.
Vinha Josefa, cheia de solicitude, inteirar-se do seu bem-estar, da sua noite, do seu apetite, pois já estava preparada a refeição no que ela chamou a cozinha pequena e contavam que lhes fizesse companhia.
Deparou com uma mesa aparelhada com fartura de viandas e pão e frutos e bolos de farinha e mel e queijo e leite.
Explicou-lhe Gaspar Vicente que os pastos daquelas ilhas eram de invulgar qualidade pelo que as vacas davam um leite de raros predicados, com grandes olhos amarelos de gordura donde se fazia o belo queijo.
Tudo era farto e tentador e, se não fossem as duas mulheres que não se calavam um só instante, talvez Afonso tivesse considerado um remançoso futuro, de barriga cheia e bolsa farta, que lhe mataria os sonhos de incertas navegações.
Assim, restava-lhe a mentira, que foi logo ampliando à medida que o sumo dulcíssimo do ananás lhe escorria dos cantos da boca e os dentes trincavam a polpa amarela:
- Minha esposa lá ficou em cuidados, temendo que o mester de baleeiro, que aqui venho procurar, não seja sustento bastante para mim, para ela e nossos cinco filhos. Tendo em conta que traz outro na barriga e não pode agora, com a prontidão costumada, exercer as suas tarefas de lavadeira, é urgente que eu meta mãos ao trabalho com a maior brevidade.
- Mas, mas, mas, grasnou Josefa. Disse-me Simão Pires que eras solteiro e ainda mais: que ninguém te conhecia mulher, anão ser...
- Simão Pires nada sabe da minha vida. Brincámos juntos em meninos, é certo, mas há anos que não nos víamos, sendo eu um homem de família que não frequento, como ele, tabernas e lupanares.
- Se ele não sabe de vós, como sabeis vós dele, esganiçou-se a velha Aldonça.
- É o que dizem, senhora. Mas tendes razão. Posso estar a levantar um falso testemunho ao contar o que ouvi dizer, como pode ele, sem má intenção, ter-se enganado a meu respeito.
Josefa amuava a um canto, o que foi bom, porque se manteve silenciosa durante muito tempo.
- Confesso-vos, rematou o bravo Gaspar Vicente, que pensava dar-vos, como recompensa do vosso gesto, a mão de minha filha em casamento. E algum terreno onde construíssem a vossa casa e pudessem criar uma dúzia de vacas. Mas assim sendo, e sabendo todos nós que homem não separa o que Deus uniu, recebereis uma bolsa de moedas e falarei com os baleeiros para que vos aceitem na companha, já que é isso que quereis.
- Aceito essa diligência de me arranjardes trabalho na pesca da baleia, mas não o dinheiro, que o não mereço e tenho por princípio que o pão que meto na boca deve ser ganho por mim.
- Assim seja, disse Gaspar, e ofereceu-lhe, na ponta da sua faca, um belo pedaço de vitela assada que Afonso, já plenamente satisfeito, só aceitou para não desfeitear o gentil anfitrião.
Arrependia-se Afonso Sanches de assim enganar homem de tanto carácter e franqueza e começou a vir-lhe a tentação de falar toda a verdade, quando foi salvo pelo cacarejo histérico de Josefa, que em lágrimas e grasnadelas começou a gritar que o amava de um amor desesperado e que não casaria com outro senão com ele, e que não entendia porque estava a ser desprezada sendo a sua formosura reconhecida em toda a alcáçova do Castelo, e que Afonso Sanches estava a enganá-la, porque não era casado mas comprometido com uma rameira de Cascais de quem não tinha filho nenhum.
Teve que ser levada por dois criados para a sua alcova onde ficou, debaixo de chave, até Afonso Sanches já ir longe.
Na rua ainda ouviu os seus gritos. E era como se um bando inteiro de perus se tivesse rebelado contra a faca do cozinheiro.
Não podia acreditar nos meus ouvidos. Hesitara em atender o telemóvel, número desconhecido, não me apetecia aturar ninguém. E agora aquilo. Mar.
Ele é a única pessoa no mundo que me chama Mar. Lembrei-me do dia em que tinha inventado aquele diminutivo, que usava avaramente, só em momentos especiais, momentos únicos que deviam ficar para sempre gravados na minha memória.
Foi na noite dos nossos quinze anos.
Eu estreara o meu primeiro vestido comprido para a festa que nos esperava lá em baixo, nos salões, dezenas de pessoas aborrecidas vestidas de gala, convidados do meu pai e também colegas nossos, alguns deles embasbacados com a magnificência da festa. Mas isso soubemos depois.
O meu vestido era verde-água, de uma seda pesada, tão visivelmente cara que me dava um pouco de vergonha aparecer assim ataviada diante das minhas colegas de todos os dias, habituadas a verem-me de calças e blusas de ganga. Ainda mais com as esmeraldas da mãe nas orelhas, no pescoço, no pulso.
A minha trunfa, domada, porém imensa, emoldurava o rosto ainda de menina onde a maquilhagem da profissional, contratada pelo meu pai, claramente desvendava a mulher.
Lembras-te, Lourenço?
Entraste no meu quarto sem bater, belo como um deus que se tivesse vestido para dançar, quando eu já estava só, livre de modistas e visagistas, de cabeleireiros e manicuras, e diante do espelho ungia de uma gota de perfume a covinha atrás das orelhas, o de dentro dos pulsos, o sulco entre os seios. Aprendia, instintivamente, pequenos gestos que, só por si, me faziam adulta.
Entraste e paraste a dois passos da porta e eu, à procura da tua aprovação, voltei-me para ti, arredondei a imensidão da saia, tentei fazer pose, mas não dominei um risinho infantil que te deu bem a entender que me sentia, uma vez mais, fantasiada, como nas nossas brincadeiras de bailes de máscaras.
Estás vestida de noiva, disseste. E esse é o vestido de noiva mais bonito que alguma vez terás.
Isso é porque não me hei-de casar nunca, prometi.
Vou dar-te um nome de noiva, baptizar-te com toda a água dos oceanos e o teu nome é Mar.
Disseste Mar e foi como se na lareira ardessem madeiras aromáticas, e lá fora fosse de repente Outono com as suas folhas manchadas de sangue, laranja e mostarda, e as camélias tombassem vermelhas a meus pés, e as ondas varressem o tombadilho de todos os barcos, e navios-fantasma surgissem nos horizontes, e bandos de pássaros levantassem voo, e ventos alísios transportassem pétalas, e brocados se desenrolassem por escadarias de palácios, e cavalos brancos galopassem sem sela e sem freio por prados infinitos, e montanhas se cobrissem de neve à luz das madrugadas, e uma lágrima de sal, transmudada em safira, caísse, azul, no meu decote.
- Mar?
- Lourenço? Onde é que estás?
- Sei lá, num lugar qualquer do mundo. Encontro-me contigo amanhã. Em Paris, para jantar, naquele restaurantezinho ao pé da livraria onde costumávamos,
- Eu sei.
- Às sete, hora de Lisboa.
Desligou. Fiquei a olhar para aquele objecto tão pequeno, na cova da minha mão, que me trouxera, Deus sabe de onde, a voz do Lourenço.
Às sete, em Paris. Amanhã. Amanhã. Amanhã.
No avião, não sei porquê, veio-me ainda à ideia aquela festa dos nossos quinze anos que, não fossem os smokings dos homens, pareceria de facto uma festa de casamento, com um jantar sumptuoso, as flores raras, a orquestra incansável, a corbeille dos presentes. O Lourenço e eu parecíamos efectivamente os noivos, sempre juntos e de mãos dadas, e a nossa beleza em duplicado tornava as pessoas sorumbáticas, assustadas, divididas entre o assombro e a inveja.
Dava-nos vontade de rir.
Foi nesse dia que comecei a apreciar o sabor e o efeito das bebidas alcoólicas, já que antes disso o pai não me dava autorização para beber. Gostei de me sentir alegre, um bocadinho eufórica, com vontade de dizer disparates, mas conseguia pensar no meu lindo vestido verde-água, na personagem da noiva que o Lourenço me atribuíra e continha-me, ainda bem, porque imaginei o tempo todo que aquele era o nosso casamento, uma espécie de conto de fadas onde o irmão casava com a irmã por não conseguir encontrar outra mais bela, nem mais perfeita, nem mais inteligente, nem mais sensível, nem digna, sequer da sua altíssima fidalguia.
Acho que ninguém se divertiu tanto como nós. Eu, como não tinha sono à noite, estava brilhante, quase ao nível do meu irmão, e partilhava os seus jogos de palavras, os seus enigmas, i o seu humor cheio de referências que devia encher de tédio os menos preparados e também isso nos fazia rir e confirmar a nossa fama de antipáticos, de cruéis e de loucos.
De madrugada não restava mais ninguém. Agradecemos ao pai a festa maravilhosa e ainda ouvimos um austero sermão sobre a responsabilidade de termos quinze anos. Deu-me um beijo, coisa que raramente fazia, e disse, com uma voz onde pudemos detectar alguma emoção, que eu estava linda e era o fiel retrato da nossa deslumbrante mãe.
Perguntei se devia devolver as esmeraldas e ele disse, claro que não, é o teu presente de anos. E o Lourenço, perguntei. Ele tirou do pulso o seu relógio de ouro e pô-lo no pulso do meu irmão que, julgo, o usará até hoje.
A Carminda já tinha ido desmaiar para o quarto dela quando subimos as escadas e eu pedi ao Lourenço que viesse ajudar-me a despir aquele imenso vestido e a desapertar-me a segurança do colar.
Ele foi.
O vestido caiu-me aos pés como uma onda do mar. O colar, sob os seus dedos ágeis, revelou-se fácil. E ficámos ali os dois a sentir a luz que já se adivinhava por detrás dos cortinados leves, leves, da minha janela e o nosso beijo de boa-noite (ou bom-dia) foi um pouco mais além das carícias que desde o berço trocávamos, e soubemos, tacitamente, que, se tínhamos brincado toda a noite aos noivos e aos casamentos, era mais que natural que -
- Senhores passageiros, dentro de momentos iremos aterrar no aeroporto de Orly. A temperatura é de dezasseis graus...
era mais que natural.
- Esta maleta é sua?
- Sim, sim, obrigada.
Na primeira classe toda a gente nos ajuda, só falta levarem-nos ao colo.
Como não tinha mais bagagem demorei muito pouco a entrar num táxi e a mandar seguir para o nosso hotel preferido, onde tinha marcado um quarto duplo, na certeza de que o Lourenço não tratara de nada.
No táxi, Paris distraiu-me. Pus-me a pensar que tinha ainda tempo de tomar um banho perfumado antes de ir ter ao restaurante. O coração batia-me de saudade e de urgência. Mas queria conseguir a calma suficiente para me arranjar muito bem e chegar ao restaurante um pouco atrasada, fazendo uma entrada teatral, tão ao gosto do Lourenço, que obrigasse a virar todas as cabeças. Aproximar-me da mesa e beijá-lo ao de leve no canto da boca.
Mais que natural.
Mas nada aconteceu como eu esperava.
Eu tinha marcado mesa em nome de Guiomar Lourenço, certa de que o meu irmão é superior a esses pormenores. Nem lhe ocorre que possa não haver, em qualquer restaurante do mundo, a melhor mesa à sua espera, servida especialmente por um batalhão de criados orquestrados pelo maitre em pessoa. Imagina que entra e nem precisa de se identificar, ou que, quando muito, lança com orgulho o seu primeiro nome, como os príncipes, sem essa coisa pequeno-burguesa de ter de se especificar com um apelido, Lourenço apenas, Lourenço príncipe, Lourenço, Rei.
Cheguei e o Lourenço não estava.
Decidi esperá-lo na mesa e não no bar, acotovelada por casais que esperavam a sua vez. Era imprevisível o tempo que me faria esperar.
Pedi um porto seco e começou a desfilar na minha cabeça toda a parafernália das angústias de quem espera uma pessoa amada.
1. Enganei-me no restaurante.
A culpa foi minha. Parti logo do princípio que era aqui, não o deixei dizer nem o nome, nem sequer a rua. Ao lado da livraria, disse ele. Podia estar a referir-se a outra livraria, mas eu não. Muito despachada, disse logo eu sei e ele desligou. Estou aqui a fazer a minha habitual figura de idiota e ele à minha espera noutro lugar.
2. Aconteceu alguma coisa.
Ele não disse que estava algures no mundo? Tinha que apanhar um avião. Perdeu o avião. Ainda vem no avião e não pode usar o telemóvel. O avião foi desviado por terroristas.
3. Enganou-se nas horas.
Esta é mais fácil de suportar. Disse às sete, hora de Lisboa, e pensa que disse às sete, hora de Paris. Esperou por mim uma hora. Como eu cheguei quinze minutos atrasada para fazer farol, ele esperou uma hora e dez e saiu amuado cinco minutos antes de eu chegar. Esperou no bar e não se identificou. Não previu que eu tivesse marcado mesa. Fartou-se de estar ali a acotovelar-se com a plebe, pagou a bebida, mandou guardar um troco generoso e foi-se embora. Para me castigar não telefona.
4. Nunca tencionou encontrar-se comigo.
Esta é a mais horrível de todas, a que mais dói. Ao fim de anos de ausência, passou-lhe pela cabeça ver-me mas reconsiderou e decidiu manter firme a sua decisão de não voltar a ver-me.
Dá como desculpa a si próprio que eu preciso de arejar e que um passeio até Paris só pode fazer-me bem.
5. Fez uma plástica e eu não o reconheço.
Está neste momento a olhar para mim e a gozar a minha angústia para depois vir por detrás da minha cadeira como um ladrão e dizer-me ao ouvido surunat e fazer-me gritar e alarmar todo o restaurante e rir-se imenso da sua perversidade. É uma das formas que o Lourenço tem de me amar: fazer-me partidas horríveis e agarro-me a essa hipótese para não enlouquecer aqui mesmo, sentada à mesa à sua espera, no restaurante ao lado da livraria.
Mas não consigo ater-me a esta possibilidade. Começo a recapitular todas as outras, lugar errado, avião atrasado, terroristas, engano horário, ou tudo junto ou nada disto.
O criado vem perguntar-me mais uma vez se quero encomendar uma entrada, só falta acrescentar para estar entretida, vou dizer que sim e quando levanto os olhos para o homem vejo o Lourenço atrás dele, deixo cair a lista pesadíssima, levanto-me, derrubo o cálice de porto seco na toalha impoluta e caio a soluçar nos braços do Lourenço com grandes riscos para o equilíbrio da minha sábia maquilhagem apesar do rímel ser à prova de lágrimas.
Menos, querida, diz ele. Os autóctones estão a olhar.
Em segundos trocaram a toalha e ele faz-me sentar. Com uma serenidade olímpica pega na lista e põe-se a encomendar com muitas perguntas e detalhes sobre o molho, o tempero, o acompanhamento.
Consulta-me e eu digo a tudo que sim.
Escolhe o vinho. Rejeita a primeira garrafa. Aceita a segunda. E só então, só então, ao fim de anos de ausência, ergue os olhos maravilhosos e pousa-os, dulcíssimos, nos meus.
Ainda não consigo falar.
Estás tão bonita. Sempre foste bonita, mas agora... Tenho lido os teus livros. Cresceste imenso. A minha ausência fez-te bem.
Podias ao menos ter telefonado, arrisco. Fartei-me de ligar para o teu telemóvel, mas
Ah, deitei-o fora, num dia em que me deu a tentação de te falar. Estava em Veneza, atirei-o ao canal.
Não querias mesmo ver-me.
Não queria. És uma tentação grande de mais.
Então?
Não podemos, Guiomar. Tu não tens o sentido do pecado. Quando nascemos fui eu que arquei com o pecado original. Sou eu quem carrega com a culpa.
Que culpa?
Guiomar, por favor.
Que culpa?
Na nossa sociedade, na nossa religião,
Não me venhas falar de religião. Eva concebeu dos próprios filhos. São Gregório, que foi o Papa Gregório VII, era filho de dois gémeos
na nossa cultura!
Nunca te importaste com a nossa cultura para nada. Noutras culturas, tão boas como a nossa, a egípcia, por exemplo, os faraós casavam com as irmãs. E depois?
Queres saber por onde andei?
Faz-me o relato das suas viagens, das suas aventuras, dos seus encontros e desencontros amorosos.
Tens alguma mulher?
És doida. Como é que eu posso? É tudo tão pequeno, tão mesquinho, tão rasteiro. Eu passo pelas mulheres mas não as quero. Começam logo a pensar em maridinhos, filhos, casinha, canteiro de dálias, cão, emprego das nove às cinco, televisão,
queca aos sábados. Sabes que não sou feito para isso e tu és a única pessoa que me percebe.
E levaste este tempo todo a descobrir isso.
Que disparate, Guiomar. Sei isso desde que nasci. Desde que te deitaram no meu berço e, segundo a lenda, a nossa mãe exclamou, tenho um filho lindo dividido em dois!
Que frase, Lourenço. Parece uma maldição.
Ou uma benção, não sei, Guiomar.
E porque é que agora te lembraste, quiseste, enfim, pensaste em ver-me?
Tínhamos acabado de jantar há um bom momento e os nossos uísques estavam já aguados.
Vamos pagar, disse o meu irmão, e tomar outra bebida no
teu hotel.
Pagou e calculo que tenha deixado uma gorjeta à Lourenço porque nos acompanharam com mesuras até à porta.
Instalámo-nos confortavelmente no quarto enorme, ambos já de roupão, e o Lourenço mandou vir champanhe porque não lhe agradou a marca que encontrou no mini-bar. E não havia taças, só flâtes. O Lourenço não bebe por flutes. Não depois de terem, no século dezoito, inventado as taças à medida do peito da rainha Maria Antonieta.
Estou tão feliz por teres querido voltar. Eu já pensava que tinhas morrido e que não te ia ver nunca mais.
Isso nunca podia acontecer, Guiomar. Sabes perfeitamente que, se eu morrer, tu morres no mesmo instante. Somos uma só pessoa. É o meu sangue que flui no teu coração.
Ainda bem que voltaste.
Não voltei. Se quisesse voltar tinha ido para casa, não te fazia vir a Paris.
Mas então...
Acho que não vamos viver muito tempo e queria ver-te.
Se vamos morrer, como tu dizes, no mesmo minuto, ao menos que morramos juntos.
Sim, seguramente. Vai ter que ser assim.
Queres morrer esta noite?
Não, ainda é cedo. Tens um trabalho para acabar, conforme me disseste. Pareces-me entusiasmada com o teu novo romance e é importante que o termines.
O mais certo é que morramos velhinhos, solteiros, malucos.
É o mais certo.
Os olhos do Lourenço enevoaram-se de lágrimas. E como se tudo, na nossa vida, fosse uma fatalidade, começou a beijar-me devagarinho, a envolver-me no seu perfume, a fazer o roupão descair desnudando-me os ombros.
Mar, disse ele
Surunat, disse eu.
Mais que natural, pensei.
Em vão esperou Inês Garcia na Rua da Fonte pelos passos firmes de Afonso Sanches enquanto o cântaro enchia, e o despejava, e o tornava a encher. Ele costumava virar as costas ao sol nascente e a sua sombra chegava antes da sua figura, pondo no coração de Inês um alvoroço que lhe fazia bem e se via nas rosas da sua face.
Mas desde aquela manhã em que fora falar com seu pai, nunca mais Inês pusera os olhos nele.
Queria dizer-lhe que, concordando ele, ela própria falaria com seu pai, lhe pediria que esquecesse a conversa tida com Pêro Paes, que não fora bem uma promessa, mais uma boa intenção de compadres, quando ela era ainda criança. Quem sabe, talvez Pêro Paes tivesse entretanto lançado olhos a outra donzela e lhe conviesse desfazer o compromisso.
Tudo era possível, desde que ela soubesse que Afonso Sanches continuava a querer-lhe bem, apesar da recusa de Salvador Garcia.
Mas a fonte era lugar de encontro de comadres e não tardou que a própria Maria Gregória, que tinha por amiga, começasse a notar a tristeza nos seus olhos pretos e um muxoxo de enfado na sua boca infantil.
- Esquece-o, Inês. Ele tem outra.
Inês não acreditou. Pensou que Maria lhe dizia aquilo para lhe dar razões de queixa e fazê-la esquecer o homem a quem seu pai a negara.
- Não tem, não. É de mim que ele gosta. Mas ficou ofendido com a recusa de meu pai e não quer que se diga que anda a cortejar uma mulher a outro prometida.
- Não te iludas, Inês. É já sabido que se amigou com Brites Colaça, sua vizinha, coisa que muito brada aos céus por serem eles irmãos-de-leite.
Então Inês lembrou-se de que tinha visto Brites Colaça na cozinha de sua casa e tendo perguntado a sua mãe o que fazia ali aquela mulher, a mãe lhe explicara que viera vender um pote de bom azeite e que lho comprara, e já todos o tinham provado no caldo da véspera.
- Que disse ela a meu pai que o fez recusar-me a Afonso Sanches? Que disse ela?
- Brites Colaça não falou com teu pai. Apenas comigo sobre a boa qualidade do seu azeite, que o manda vir dos olivais de Santarém a dorso de burro, e recebeu a sua paga e se foi.
Mas não era verdade. Brites pedira para falar com Salvador Garcia à puridade para lhe dizer que sabia que Afonso Sanches pusera os olhos na sua filha Inês. E que lhe cumpria avisá-lo, por ter em tão boa conta a bondosa donzela, que Afonso não era homem para nela fazer geração.
- Aqui te digo em alta confidencialidade, Salvador Garcia, que por tudo o que há de mais sagrado te posso asseverar que, desde que Melchior Ventura se foi, tenho sido sua amiga e notei que, depois de um susto que apanhou no mar, perdeu a força do seu membro e não mais houve comércio amoroso comigo. Permito-me dizer-te isto porque os homens fizeram de mim dona de pouco respeito, mas o meu coração é puro e não quero ver prejudicada a moça mais linda de Cascais. Pensa certamente Afonso Sanches que a juventude e a donzelice de Inês lhe possam devolver a sua antiga força, que muita era, mas é um risco que terás de correr e o mais certo é ficar a tua casa vazia de descendência.
Deixou o seu veneno e saiu. E quando no dia seguinte Afonso a descadeirou de pancada e a possuiu como nenhum homem jamais a possuíra, tão animal, tão bruto, tão viril, Brites não soube se havia de agradecer aquela inspiração ao céu ou ao inferno.
- Não é verdade, disse Inês. Diz-me o coração que essa mulher entrou aqui por mal. E vede se o azeite não terá peçonha que nos amoleça as entranhas e nos desfaça o entendimento e ao final nos mate.
Estranharam os pais reacção tão descomposta em donzela que era de seu natural mui doce e avisada. Tomaram-na à conta de coita de amor passageira e calores da donzelice, e pensaram apressar o casamento com Pêro Paes.
Mas não tardou que se constasse em toda a vila de Cascais que Afonso Sanches zarpara para os Açores e Inês Garcia fechou-se em sua câmara, não querendo sair nem comer, assentada no poial da janela a ver o mar.
Salvador mandou pelo almocreve que seguia para as bandas da serra um recado a Pêro Paes, que concertassem um encontro na casa de um ou de outro porque chegara a hora de aprazarem as bodas.
Pêro Paes há muito que não via Inês, era ela criança quando ficara no ar esse arranjo entre amigos, surgido entre dois picheis de vinho e ligeiro de mais para poder chamar-se compromisso. Mas ouvira dizer que Inês era casta e formosa e deu-lhe a curiosidade de a ver e talvez, quem sabe, tornar firme a promessa de uma noitada alegre.
Era agora um homem rico e queria ter a certeza de que Salvador, o qual, embora tivesse de seu, não se lhe comparava em abastança, não lhe estava entregando gato por lebre.
Mandou pois dizer pelo almocreve que no domingo lá passaria para cear com o amigo e ver a moça. Pensava libertar Salvador Garcia da sua palavra se a donzela não fosse de molde aagradar-lhe em beleza, modos e palavras. Poderia sempre dizer que o vinho falara por ele e que o tempo apagara da sua memória aquele ténue comprometimento.
Mas quando chegou a casa de Inês e a moça, arrancada à força de sua alcova, se apresentou na sua frente, foi como se um raio lhe caísse na cabeça, no ventre e no coração e ficou em estado de alumbramento por aquela mulher, como se tivesse acabado de beber o filtro mágico da paixão.
Inês não se comportou bem. Não conseguiram arrancar-lhe uma única palavra nem adregaram a que comesse uma migalha de pão.
De manhã tinha pedido um peixe pescado por Afonso Sanches e como lhe disse a mãe que Afonso partira por mares e ventos, jurou que não comeria nada, nem que o rei em pessoa se sentasse à sua mesa.
Ouviu em silêncio o pedido solene que Pêro Paes fez a Salvador, dizendo que pretendia casar com a maior brevidade, não só por causa do compromisso anteriormente assumido, mas porque a beleza de Inês lhe enchia o coração de felicidade e não conseguia imaginar sequer um dia da sua vida sem contemplar aquele rosto, aqueles cabelos de ouro, aqueles olhos de água transparente.
Como os cabelos de Inês eram negros e os olhos da mesma cor, ficaram os pais dela preocupados com a saúde mental do futuro genro, mas ele mais adiante aliviou-os dizendo que os seus cabelos pretos lhe pareciam louros porque a via nimbada de luz e os olhos, de tão negros, se tornavam azuis ao simples bater das pálpebras.
Inês atravessou toda esta barafunda de declarações, distante e serena, como se nada daquilo lhe dissesse respeito e logo que pôde recolheu-se. Ficou no poial da janela, conforme era seu hábito ultimamente, e apesar de já ser noite, esperava que o luar fizesse surgir no horizonte o navio fantasma do seu
desejo.
Pêro Paes começou a ir de visita todos os dias com presentes e palavras doces, fruta da sua quinta, flores do seu jardim, primores da horta.
Mas nem sempre conseguiam que viesse Inês. Deitava-se na cama sem forças, porque não comia a não ser uma colher de sopa, um gole de leite, uma uva. Toda a sua vida era aquela janela sobre o mar, aquele horizonte vazio, aquele cheiro a maresia e a sal que lhe chegava às narinas e era para ela o perfume do homem que amava.
Quando conseguiam trazê-la nunca falava com o noivo e mantinha-se imóvel, de pestanas baixas, como se nada entendesse da sua conversação.
Todos concordaram em adiar as bodas até que melhorasse, pois era como se a alma andasse perdida do corpo e o esteio da vida se tivesse quebrado dentro dela. Emagrecera tanto que a pele, de tão branca, se tornara transparente e as veias azuis se viam claramente a olho nu. Tinha olheiras de um lilás suave e os lábios, tão vermelhos outrora, tinham perdido a cor. Pêro Paes, louco de paixão, não entendia a ausência da noiva, sempre tão distante, mas amava aquela mulher etérea que de dia para dia se transformava em sombra.
À beira da fonte, enquanto enchiam os cântaros, as mulheres contavam, que lhe dissera aquela, que lhe contara a outra, que Pêro Paes morria de ciúmes de Inês e não a deixava sair de casa até que se casassem e ele a enfurnasse na sua moradia da serra onde nunca mais ninguém lhe poria a vista em cima. Murmurava-se que ele temia que Afonso Sanches voltasse e lhe roubasse a sua prometida.
Tinha razão. Porque um dia, na imaginação de Inês, Afonso voltou. Surgiu num lindo veleiro ao luar de Agosto e veio desde o mar, sentado no vento, até à sua janela. E por ela entrou e a tomou nos braços e se deitou com ela e lhe fez um filho e desde essa noite Inês recuperou a alegria. Erguia-se pela manhã, comia, falava, foi ganhando forças e cores e, embora olhasse para Pêro Paes como se o não conhecesse, concordou em se casar pelo Natal.
Estava Salvador Garcia desnorteado com estes sucessos e, longe de acreditar nas melhoras da filha, parecia-lhe, e a sua esposa também, que ela estava cada vez mais fora de si. Embora se alegrassem por vê-la finalmente comer com apetite voraz, achavam de mau agoiro tão estranha mudança que passara da total quietude, como de morta, a uma incansável agitação. Arrumava e desarrumava a casa para arrumá-la de novo. Lavava a roupa e sujava-a e voltava a lavá-la, amassava grandes pães que voltava a amassar depois de lêvedos, deitava-os fora antes de os cozer e recomeçava.
Temia Salvador que, uma vez casada, o marido se enfadasse de tanta loucura e viesse devolvê-la para sua confusão e vergonha. Mas Pêro Paes parecia encantado. Ria como um tolo das doidices da noiva, ficava feliz por vê-la comer a toda a hora como se tivesse escapado da guerra e da famina, e, muito embora o que ela dizia não fizesse sentido, ouvia-a com deleite e dizia que sim para não a contrariar.
Entretanto preparava a casa da serra para receber a sua rainha, como lhe chamava, e jurava-lhe que a faria feliz.
Mas para Inês se sentir feliz não carecia nem de casa, nem de quinta, nem de bens materiais. Estava a viver um sonho maravilhoso, grávida do seu segredo e não do filho que supunha trazer na barriga.
O seu amante imaginário vinha todas as noites, dizia-lhe palavras de amor, contava-lhe histórias de ventos e marés, de naus aventureiras, de terras nunca vistas.
Beijava-a como ela sempre pensara que um dia seria beijada, quando ao pé da fonte olhava aquela boca de dentes brancos e sentia não sei que quebranto, que arrepio, que vertigem e jurava, sem nada dizer, que aquele homem havia de ser seu.
Mostrou-se muito alegre na festa da boda mas a sua noite de núpcias, em que o noivo se revelou muito discreto e delicado, deixou-a completamente indiferente e um pouco infeliz porque compreendeu que Afonso Sanches não viria.
Não veio durante muitos meses. Mas encantava-a sentir crescer a barriga com aquele filho tão desejado, que no devido tempo fremia como um coelho ou um pássaro que ensaiasse o voo.
Quando a criança nasceu rogou ao marido, que lhe fazia todas as vontades, que na pia baptismal lhe pusesse o nome de Pedro Afonso e lhe desse por madrinha Nossa Senhora da Assunção.
Ficou muito calma com a vinda do filho numa madrugada de Setembro. Trazia-o ao peito dia e noite, para que mamasse e se fizesse um homem.
E quando Afonso Sanches voltou a voar e lhe entrou pela janela da sua câmara de casada, numa noite em que Pêro Paes viajara para comprar duas vacas leiteiras com que pensava prevenir o desmame do filho, Inês Garcia pegou na criança, ergueu-a ao alto e disse:
- Pedro Afonso, nasceste de doze meses porque és filhe de um deus. Eis aqui o teu verdadeiro pai.
Tantas coisas interessantes para fazer em Paris e eu metida na cama, com febre, sem a menor vontade de me levantar. Suponho que não se trate de doença nenhuma, apenas uma reacção psicossomática às emoções da véspera.
O Lourenço, claro, também deve estar doente. Mas não está aqui. Quando acordei, já o dia ia alto, tinha desaparecido. Talvez tenha ido comprar aspirina. Que ilusão. Ele não vai à farmácia. Manda ir.
Preocupo-me porque nós ficamos sempre doentes ao mesmo tempo. Seja de que doença for. Até me lembro que um dia escorreguei na cozinha e parti um braço, ao mesmo tempo que ele, no jardim, caía da bicicleta e partia o outro braço. Eu, o direito. Ele, que é canhoto, o esquerdo. Enquanto os ossos colavam ríamo-nos imenso por termos ambos de comer com a mão errada.
Mais pequenos ainda, costumavam sentar-nos lado a lado, na hora da refeição, numa cadeirinha alta de palhinha que o meu pai mandara fazer dupla e, sentando-me eu à direita, comíamos muito encostados sem que os nossos cotovelos interferissem.
Quando partimos os braços trocaram-nos os lugares na mesinha da copa, onde tomávamos o pequeno almoço e o lanche. Nas outras refeições, o meu pai assumia a cabeceira, comigo à direita e o Lourenço à esquerda.
Quando o pai morreu passámos a ocupar as duas cabeceiras da mesa, que era enorme, e achávamos o máximo mandar bilhetinhos um ao outro pela Carminda, ou falar altíssimo, codificando as nossas frases para ela não perceber o que dizíamos. Éramos uns monstros. Não sei como a pobre mulher § resistiu.
Mas agora preocupa-me a doença do Lourenço. Sei o que ele sente, que é o mesmo que eu sinto: dores de cabeça, dores de garganta, dores no corpo, febre, prostração e muita, muita sede. Espero que não tenha apanhado já um avião, sabe-se lá para que misteriosas paragens, mas que reconsidere e volte atrás, quanto mais não seja para saber como estou.
Começo a dormitar e a sonhar repetidamente o mesmo pesadelo: um pássaro enorme, cujo nome é metido na minha cabeça com as batidas de um martelo, albatroz, albatroz, albatroz, a que eu contraponho açor, açor, açor, não, não, não, albatroz, albatroz, e o pássaro segura-me com as garras pelo pescoço, pela garganta e atira-me ao mar, não adianta esconder-me na arrumação dos cabos no convés do Afonso Sanches e chamar por ele porque não está, o pássaro vem, albatroz, albatroz e lança-me num oceano negro e revolto e eu fico gelada, encharcada e agora estou na cama desconhecida do hotel gelada e encharcada, se ao menos alguém me desse outro cobertor, ou eu tivesse coragem de ir buscá-lo, ou sequer de estender a mão e tocar a campainha ou levantar o telefone, mas é esforço de mais, não consigo mover-me e ainda ia ter que falar, não posso falar, e de novo albatroz, albatroz e grito quando duas mãos me seguram os ombros, é Afonso Sanches que se lançou à água para me salvar, também ele gelado e
encharcado, Lourenço, estás doente, vai deitar-te, eu sei como te sentes e ele, a bater os dentes, trouxe uma enfermeira, antibióticos, antipiréticos, pijamas, vamos ficar bem, é só deixar que nos tratem.
Consigo deitar-me de lado para vê-lo entrar na casa de banho com passos incertos e um pijama no ombro, enquanto a enfermeira me faz sair da cama e, com a ajuda de duas empregadas, me muda os lençóis e a seguir desenrola-me do cobertor onde tirito e passa-me no corpo uma toalha molhada em água quente, lava-me, enxuga-me bem com outra toalha aquecida e veste-me um pijama de algodão e sinto-me muito melhor ainda antes de tomar os medicamentos de que o médico (surge agora um médico que estava na casa de banho a ajudar o Lourenço e vem ver-me a garganta) determina a posologia.
Agora sim, estamos deitados em duas enormes camas gémeas e o Lourenço começa a dizer que temos de mudar para uma suíte para a enfermeira poder ficar de noite, mas ela diz que não é preciso, não veio para dormir mas para nos vigiar e dar o antibiótico à hora certa e o sofá serve perfeitamente se quiser encostar-se um bocadinho.
A voz da enfermeira irrita-me. A língua francesa ajuda a que muitas vezes as vozes agudas pareçam mimadas. Chama-me mam'selle e quando diz sim inspira o ar em vez de o expirar, parece um último suspiro, ouais ou ué a meter o ar para dentro, tento não lhe perguntar nada cuja resposta possa ser sim, mas é um jogo mental que me cansa, e volta e meia lá está ela á beira de morrer sufocada, fouais, fouais, tento não adormecer com medo do albatroz albatroz e viro-me para o Lourenço e o Lourenço vira-se para mim e conseguimos sorrir e perguntam-nos o que queremos comer e em coro respondemos - nada.
O Lourenço é formidável. Enquanto eu estava colada à cama, morta de febre, ele conseguiu sair, arranjar um médico, receitas, uma enfermeira que mandou à farmácia. Foi comprar pijamas porque não confiou no critério de escolha da enfermeira, conseguiu, cheio de febre, distinguir o que queria, acertar nas medidas, revolucionar o hotel e vir aterrar na cama ao lado da minha. E ainda dizem que os homens são piegas.
Obrigada, meu querido, obrigada, mas ele já não me ouve. Adormeceu, exausto de tanto esforço.
O médico despede-se, promete voltar amanhã, à mesma hora, não sei que hora é essa mas alguém saberá, dá ordens em voz baixa à enfermeira, ela responde, fouais, ele parte e ficamos num delicioso silêncio, quase me atrevo a adormecer com a esperança de que o albatroz não volte, mas volta, claro, só que agora sei que estou a sonhar, custa menos, posso acordar quando quiser e o Lourenço está aqui.
Este sonho é uma espécie de vício, acontece-me, quando estou doente, carimbar determinada imagem na memória e, mal fecho os olhos, lá vem aquilo repetir as mesmas palavras, às vezes a mesma música, que parece estarem ali escondidas à espera para nos martelar a cabeça, é uma coisa maldosa, obsessiva, que me cansa mais do que a própria doença.
Ponho-me a pensar na coincidência de termos falado em morrer e logo a seguir termos ficado os dois doentes. O Lourenço deve ficar horrorizado só de imaginar que eu podia acreditar que ele escolhesse para nós uma morte tão ridícula, tão pobrezinha, uma gripezita, uma amigdalite, nem pensar.
Para ele, para nós, a morte tem que ser grandiosa, um naufrágio, um incêndio, um ritual, um pacto, uma áspide.
Como nunca, ou raramente, tomamos remédios, o antibiótico teve um efeito fulminante e ao terceiro dia já conseguíamos passear pelo quarto, conversar, comer.
Ainda trocámos umas frases em gemines até nos lembrarmos de que não era preciso. Mademoiselle Fouais não percebia mesmo nada do nosso luso idioma.
Quando o médico nos deu alta andámos a flanar por Paris, livrarias, museus, algumas lojas de roupa, Campos Elíseos para cima e para baixo, compras, restaurantes, para nos desforrarmos daqueles dias perdidos, miseráveis, derrotados e ainda por cima guardados à vista por uma enfermeira que engolia ar para um simples sim.
Esperávamos maldosamente vê-la sufocar, coitada da mulher que nos tratou tão bem, e, quando por fim o Lourenço lhe pagou acrescentando uma generosa gorgeta, ela disse merci a meter o ar para dentro, que ainda é muito mais difícil que ouais, mas as francesas especializam-se desde pequenas nesta inversão da respiração para deixarem os estrangeiros perplexos.
Eu queria ficar eternamente em Paris, parecia-me que estávamos a conseguir recuperar a nossa felicidade de outrora, perdida com todos os anos de ausência do Lourenço, mas começava a ver nos seus olhos aquela inquietação que prenunciava a partida. Aquela luz diferente. Aquele adeus.
Estávamos a tomar uma bebida no bar do hotel depois de um dia cansativo de museus, quando o Lourenço começou a contar-me que tinha sido convidado para colaborar no restauro de uma igrejinha preciosa perdida na Toscânia. O restauro de frescos é uma das especialidades do meu irmão, que ganha fortunas a fazer esse trabalho.
Percebi que estava decidido a partir e perguntei-lhe porque é que não me levava com ele. Podíamos ser tão felizes num país diferente, cada um entregue ao seu trabalho, cada um...
Mas o Lourenço só queria mudar de assunto.
De que é que trata o teu livro? Ainda não me disseste.
Sabes que não posso falar dos livros que tenho em mãos. Já te expliquei isso. Se verbalizo o que me parece que o livro é, ele fica sem alma, passa a ser uma historieta que eu escrevo e não o livro que me escolheu para escrevê-lo. É o livro que deve mandar em mim e não eu nele. E desta vez então...
Desta vez o quê? É uma entidade que vem do outro lado da luz e te conta a história?
Como é que sabes?
O Lourenço ficou em silêncio a trincar uma amêndoa torrada e a olhar-me com olhos sorridentes.
Não pensavas esconder-me uma coisa dessas, pensavas?
Queria contar-te lá em casa. Mostrar-te como tudo se passa.
Porquê lá em casa? O mundo é um lugar pequeno para quem partiu. Aqui ou ali não deve ter grande significado. É a tua energia que conta. Só assim se explica que eu tenha sonhado, ou julgado sonhar, com um marinheiro que está perdido de amores por ti e te conta a sua história. Ia a dizer-te dita as suas memórias mas não é verdade. Ele conta, para que a recontes, a sua vida, ou episódios dela, e tu compões o resto. Foi também por isso que te quis ver. Receei que estivesses um pouco assustada ou possuída por alguma loucura sobrenatural, mas afinal, tirando a amigdalite, acho-te maravilhosa.
E riu-se.
Afinal sabes tudo, não há nada para contar. Só não sei porque é que dizes que ele está perdido de amores por mim. Sou eu que estou a ficar apaixonada por ele, já que não consigo gostar de nenhum comum mortal deste mundo, a não ser...
Fazes amor com ele?
Não, até agora não. Mas previno-te que tem as mãos quentes.
Sabes isso.
Sei. Ele toca-me na cara, no ombro, nas mãos.
Fantástico. Gótico. Barroco.
Segurou nas minhas mãos e ficamos assim muito tempo, de mãos dadas e olhos nos olhos como dois apaixonados, alheios a tudo o que se passava à nossa volta. Leva-me contigo para a Toscânia. Não posso.
Fomos interrompidos pela entrada ruidosa de duas mulheres, tão bonitas, tão vistosas e tão altas que só podiam ser modelos internacionais. Achei que lhes conhecia as caras das capas das revistas de moda. Vinham a rir com aquela segurança de quem pertence a uma raça à parte, descendente de extraterrestres que algum dia se dignaram pousar no terceiro calhau a contar do Sol.
Uma delas viu o Lourenço e parou a dizer alguma coisa à outra que se dirigiu ao balcão a encomendar bebidas.
Prepara-te, disse o Lourenço. Vais ter que levar com a rainha das passerelles e o seu neurónio amestrado. Ela avançou e encarou-me: Ah, então foi por isto que me deixaste. Entre outras coisas, disse o Lourenço. Ela falava francês com sotaque inglês. Se ça sou eu, não se preocupe. Je nesuis quesa sceur. O Lourenço virou-se para mim e falou português. O que é isso de seres só a minha irmã? Ser irmã não é pouca coisa. Ser irmã é muito, é imenso. É alguma coisa que este pinheiro com olhos jamais poderá compreender.
Não, Gin. Ela não é só minha irmã. É a minha irmã gémea nascida do mesmo ventre, no mesmo dia e na mesma hora. Uma coisa transcendente, mas tu não sabes o que quer dizer transcendente.
Tudo o que a outra apreendeu desta exaltação foi que ele a tratara pelo nome de guerra.
Ah, ao menos não te esqueceste do meu nome.
Para dizer a verdade hesitei entre martini e vodka.
Estúpido. Não sabes os estragos que fizeste na minha vida. Além de eu me ter apaixonado por ti, ainda fiquei grávida com todos os inconvenientes que isso acarretou para a minha carreira.
És tão mentirosa. Bonita. Condescendo. Magnífica, silicone à parte, quando estás nua. Mas uma mentirosa profissional. Achas que eu caio nessas trapaças de bairro da lata?
De quê? Bidonville? És doido, tu. Toda a gente me diz que tu és doido.
Eu ria-me. E o Lourenço estava visivelmente divertido. Ela tinha-se sentado à nossa mesa e embora as pernas parecessem não caber em parte nenhuma, a cabeça não ultrapassava a do Lourenço. Tinha o cabelo rapado de forma criativa, uma espécie de relva encarnada que fazia um bordado na cabeça perfeita. Não consegui apreciar a beleza do desenho porque, eu sim, estava num plano um pouco mais baixo. Pensei que não era boa ideia uma mulher com um metro e noventa usar um penteado que só podia ser admirado de cima.
Exactamente. Sou doido. Por isso é que fiz uma vasectomia aos dezasseis anos. Menti na idade e o médico operou-me. Por isso, ma chérie, o pai da criança deve ser o teu vibrador.
Precisas de ser tão mau, Lourenço? Coitada da mulher, a rábula até lhe estava a sair bem.
Qu'est-ce qu'elle dit?
Que lamenta não poder ter sobrinhos.
Champanhe, pediu Lourenço.
Tem preferência de marca?
Não.
Como? estranhei eu.
Veio a garrafa e o Lourenço entregou-a à Gin.
Tiens, Ginette. Vai festejar com a tua amiga.
A outra desenrolou-se, fitou-nos um momento com a garrafa na mão e disse uma coisa estranha, que não soubemos se devíamos atribuir à sua burrice, ao seu mau francês ou a alguma intuição herdada dos seus antepassados de outra galáxia:
- Vocês são tão parecidos que até dá para desconfiar.
Tellement semblables que l'on pourrait se méfier...
Leva-me contigo para a Toscânia.
Não posso. E tu tens que ir para casa. O teu marinheiro
espera-te.
És tu que dizes que ele pode ir ter comigo aonde quiser.
Não ia ser a mesma coisa. Era outro livro. E tu tens a incumbência de escrever esse livro e não outro. Por agora.
São desculpas. O que tu tens é medo de ser feliz.
Não é medo, Guiomar. Vê se percebes. É que não tenho esse direito.
Insistes nisso.
Não insisto, sei.
Acho um crime desprezar a felicidade que nos é oferecida. Temos saúde, dinheiro, amor, liberdade, beleza, o mundo inteiro aqui à mão e temo-nos um ao outro. Mas para ti tudo tem que ser uma fatalidade. Se não temos desgraças, inventamo-las.
A seu tempo elas viriam, mesmo que as não inventássemos.
A vida não é uma tragédia grega.
A nossa é.
Estava tão sério, com os olhos claros de repente sombrios, a boca perfeita entreaberta, como se nela se formasse uma palavra terrível que não chegou a pronunciar. A nossa é, Guiomar. A nossa é.
No dia seguinte, foi levar-me ao aeroporto. Desta vez eu tinha malas e malas e demorei-me no check-in.
Depois viemos de mãos dadas tomar o café da despedida. Em silêncio.
Na hora da partida, beijámo-nos como dois amantes desesperados pela dor da separação.
Ele apanhava outro voo, nessa mesma tarde, para Itália, eu tive a certeza de que não voltaria a vê-lo neste mundo.
No avião, a minha tristeza devia ser visível, porque mimaram ainda mais do que o costume.
E o Lourenço? O que faria ele com a sua tristeza? Tal como eu, tentaria transformá-la em arte.
Tellement semblables que Von poutrait se méfier...
Entre a lembrança dos mamilos negros de Brites Colaça e o sorriso claro de Inês Garcia, viveu Afonso Sanches sem mulher, ano após ano, em terras dos Açores. Na verdade conhecera uma ou outra rameira cujo rosto logo esquecia e cujo nome nem chegava a perceber, posto que só as buscava para ir desenfadar.
Tudo o mais era o seu mester de baleeiro onde desenvolveu, dia após dia, as suas já inatas qualidades de tenacidade, resistência, ânimo e disciplina. O seu sonho de ir mais longe nos mistérios do mundo por achar guardou-o bem guardado no fundo da alma, que lhe não tolhesse disposição ou apoucasse os seus dias de pescador.
Pensava às vezes no muito que se falava entre marinheiros, do tal navegador Diogo de Teive que, de regresso da primeira viagem por mares desconhecidos, fizera achamento das Ilhas Flores e Corvo. Era sabido que, mais tarde, seu filho, João de Teive, contratara aprazamento e doação das mesmas a Fernão Teles de Menezes, fiel companheiro do Infante D. Pedro, tio de El-Rei D. Afonso V. Sabido é que D. Pedro, o das sete partidas do mundo, peregrinou pela Europa e Oriente próximo e sempre com ele seguiu Fernão Teles, até à batalha de Alfarrobeira, o que o fez cair em desgraça junto do rei. Porém, mais tarde, tudo lhe perdoou por tê-lo visto combater arduamente, ombro-a-ombro, com o príncipe D. João, na batalha de Toro.
Este Fernão Teles ganhara fama por ser uma das poucas pessoas interessadas na rota da índia pelo Ocidente. Outra delas era Afonso Sanches, que apenas tinha o sonho onde o outro tinha as posses e os meios.
Sempre que este assunto vinha a lume, ficava Afonso Sanches muito pensativo com desejos de fazer-se ao mar, mormente depois que se constou que Fernão Teles cuidava agora de organizar uma expedição com destino às Sete Cidades, lugar de que sempre se falava com um respeito que denotava algum arreceio.
Contava a lenda que, ao tempo da invasão dos mouros comandados por Tarique, sete bispos teriam fugido de Lisboa à procura de uma ilha afastada onde fundaram sete cidades que cada um governava. Os habitantes eram, ao princípio, a tripulação e alguns familiares que levaram e, para cortar a veleidade de fuga a quem quer que fosse, destruíram os navios. Quando novas naus ali aportavam, deixavam desembarcar os navegantes, que recebiam com muita cópia de gentilezas e entretinham com banquetes regados com o bom vinho que faziam na ilha enquanto as embarcações eram queimadas para obrigá-los a permanecer, e assim iam povoando a sua ilha de muitas e desvairadas gentes.
Que estratagema teria Fernão Teles na ideia para desembarcar na ilha sem que suas naus fossem destruídas, era razão de muita prática entre marinheiros e pescadores e todos davam suas inventadas manhas que mor das vezes faziam rir e outras faziam pensar.
Aos bispos e habitantes das Sete Cidades eram atribuídos tendências e hábitos de índole lusitana e era ponto assente que falavam português. Assim lhes parecia fácil trocar com eles bons propósitos, comerciar, pois teriam certamente falta de muita coisa e quem sabe pô-los sob a protecção da coroa, podendo hastear ali a bandeira d'El-Rei nosso senhor.
Mas tudo isto eram miragens e charlas até ao dia em que chegou à Terceira Álvaro Coelho a mando de Fernão Telles, para recrutar e preparar tripulação entre os habitantes da ilha. Procurava homens que tivessem consciência de mar e do mar largo vivessem.
Afonso Sanches, primeiro pescador de costa e mais tarde baleeiro, participara, neste mester, em diversas companhas em mares distantes, para lá das ilhas açoreanas, onde a baleia era mais rendosa e o cachalote mais combativo, e ascendera já, por mérito de coragem e conhecenças, a mestre da embarcação. Sabia, por experiência, com procela ou calmaria, as manobras essenciais do navio. Conhecia a derrota conveniente consoante a feição de ventos e marés. Aprendera e praticava o regimento do astrolábio e do quadrante.
Assim sendo, concordou Fernão Teles com a escolha de Álvaro Coelho, que indicou Afonso Sanches para piloto responsável da expedição.
Sem saber se era verdade se era sonho, teve Afonso Sanches uma forte emoção que o fez desaparecido durante vários dias, tendo mandado recado a Álvaro Coelho que teria de se ausentar uma semana para pôr em ordem seus afazeres mas que prestes se apresentaria, ao que lhe volveu aquele palavras de muita paz, pois tinham ainda pela frente dois meses de preparativos e de espera pelos melhores ventos.
A verdade é que a Afonso sobrevieram umas febres que o deixaram prostrado e muito afobaram a viúva que lhe alugava quarto em sua casa, e era uma velha de muito respeito que lhe lavava a roupa e lhe fazia a ceia.
Vendo que o seu hóspede se encontrava tão mal, mandou chamar uma sua sobrinha para que o cuidasse, pois já não tinha ela saúde nem idade para noitadas e cabeceiras de doentes. Ofereceu-se contudo para fazer um chá de certa planta que tinha muita virtude em males do bofe e mordida de carraça.
Toda a febre de Afonso Sanches era uma comoção da cabeça e da alma por ver assim tão inesperadamente realizado o anseio por que tanto esperara e de que já não via cabimento.
Ficou a delirar com mares e tempestades e entre ondas ali lhe aparecia Josefa Vicente toda de branco como alma do outro mundo, e por outra parte, quando o mar acalmava, se via em seu quarto de Cascais com Inês Garcia mui silenciosa, cuidando dele com o maior carinho e desvelo de esposa.
Às vezes era Brites Colaça que se apresentava toda nua, com as mamas grandes, querendo estrafegá-lo, e logo um vagalhão do mar rebentava sobre a sua enxerga e ficava todo molhado e lá vinha Inês Garcia mudar-lhe os vestidos, depois de o enxugar carinhosamente com panos de estopa bem secos,
E um dia melhorou um pouco e pôde comprovar que não era Inês Garcia quem lhe trocava os lençóis do leito mas a sobrinha da viúva, que por um momento julgou reconhecer. Depois pensou que estava mesmo fora do seu espírito pois certamente estaria ali há dias a cuidá-lo e só agora tomava consciência de suas feições.
Mas à medida que melhorava descobriu que a sobrinha cuidosa e diligente, de nome Libânia, outra não era senão uma das putas com quem costumava desenfadar.
Pareceu-lhe isto impossível, por ser Libânia tão casta e modesta, sempre de olhos baixos e voz mansa, mas por outro
lado, a desenvoltura com que o lavava e vestia revelava que lhe não era estranha a nudez de um homem de barba na cara.
Era isto para Afonso coisa de muito espanto até que, um dia, a formosa Libânia, com muitos risos da sua linda boca, lhe disse que o tivera três dias desacordado e temera pela sua vida, pois nem os chás virtuosos de sua tia lhe foram de nenhum proveito, mas a quem Deus quer dar vida até água da fonte lhe é mezinha, como diz o povo, e decerto Nosso Senhor o guardava para grandes feitos e glórias pois o curara a poder de caldo de ganso, que as mais das vezes entornava pelas barbas abaixo.
Perguntou-lhe então, trocando a modéstia por um olhar aceso e uma camisa aberta até onde não devia, se não se lembrava dela da casa das putas e dos desenfados que com ela houvera.
Volveu-lhe Afonso Sanches que sim, que se lembrava, mas não adregava a concertar na sua cabeça como podia viúva tão honesta ter sobrinha rameira de porta aberta.
Então Libânia contou-lhe à puridade, entre muitos frouxos de riso, que sua tia fora puta em Lisboa na sua mocidade, mas que rumara aos Açores por casamento acertado por uma alcoviteira que a vendeu a um tabelião, dizendo-a viúva para que o marido não estranhasse seus tampos metidos dentro.
Praticando deste e de outros causos, foi Afonso ganhando amizade a esta Libânia que, estando ele melhor, já podia ir de noite a seu mester e voltava de manhã trazendo-lhe fruta e não poucas vezes o dito ananás de que ele tanto gostava e, querendo Afonso Sanches pagar-lhe, ela ria muito e dizia que o roubara de um mercador que fazia vista grossa sob a promessa de um conchego na hora do lobo.
Aos poucos foi voltando à memória de Afonso a razão daquela febre e que fora a grande comoção que o tomara ao saber que era o escolhido para piloto responsável de uma expedição que ia descobrir a índia por mares a Ocidente e era esta tão formidável notícia que o deixou fora de si, ardendo em febres.
Não queria ele que o julgassem fraco ou cobarde e tomassem sua doença à conta de tibiez, e temessem que se pusesse doente em alto-mar, por isso teve ainda ânimo para mandar o dito recado e tinha agora a certeza de que Libânia se saíra brilhantemente de sua incumbência, pois, segundo lhe contou, com cópia de pormenores, descrevera seus afazeres e fechos de negócios que, por ser Afonso Sanches homem de muita palavra e honradez, não podia deixar ao Deus-dará.
A alegria de Libânia que de tudo ria um riso que lhe vinha de dentro, ajudou à cura do baleeiro, agora navegador, que se afeiçoou a esta nova amiga e lhe vaticinou um bom futuro.
A alegria, disse-lhe ele, é um dom que Deus dá e que muito aprecia que seja posto a render, pois se entorna sobre os outros como água benta e faz bem às almas que dela bebem. Se os chás da tua tia ou os caldos de ganso não tiveram o condão de me curar, a tua alegria salvou a minha vida.
Ficou Libânia tão contente com estas palavras que perguntou a Afonso Sanches se já sentia forças para um desenfado simplesinho, que não carecia canseira nenhuma da parte dele pois ela cuidaria de tudo. E tão bem o consolou que Afonso se sentiu como novo, curado de sua maleita e com vigor bastante para o que desse e viesse, fosse mulher mundanal ou tempestade em alto mar.
Assim sendo, foi apresentar-se a Álvaro Coelho dizendo-se pronto para zarpar, mas ainda muitos dias tinham pela frente para preparar a viagem em todos os seus particulares.
Em primeiro lugar havia que conferir todo o pessoal que iria a bordo, a saber o muito principal capitão e logo abaixo dele o piloto, e logo sota-piloto, e mestre, e contra-mestre, o guardião responsável pelos grumetes, dois trinqueiros que tinham por função cuidar e consertar cordoalha e velas, sessenta marinheiros e setenta grumetes, um clérigo, um escrivão, quatro pagens, um meirinho ou alcaide, um ou dois despenseiros e um ou dois artífices de cada ofício dos necessários a bordo, a saber: cirurgiões, carpinteiros, calafates, tanoeiros e outros.
Embarcariam ainda soldados por arreceio de algum encontro em terras estranhas e o capitão, ao invés do que era hábito, não levaria ninguém de seu séquito por entender que era esta uma expedição aventurosa e não viagem de rotina a terras já achadas.
Cabia ao mestre a governação dos marinheiros e ao piloto tomar todas as decisões da derrota, cartear, fazer roteiros, conferi-los e demarcar a agulha. Tais eram as funções mui principais de Afonso Sanches.
Outra tarefa árdua era a da escolha e armazenagem dos mantimentos. O capitão mandou que todo o navio se conservasse mui limpo de ratos, formigas e sujidades para logo começarem a embarcar azeite, marmeladas e mel; passas e figos; presuntos e queijos; água em vasilhas limpas e que outros víveres como leite, legumes e frutas embarcariam à ultima hora, para que mais tardasse a sua danação. E por fim as vacas vivas, os porcos, os borregos, as galinhas.
Assim foram embarcando todos os apercebimentos necessários, esperando com muita ilusão o dia da partida.
Rezava todas as noites Afonso Sanches a Deus Nosso Senhor para que lhe não escasseasse a saúde, a fortaleza de ânimo, a caridade, a fé e a esperança.
E dedicava uma gloria pater às mulheres da sua vida que o tinham trazido em boa hora até ali: Inês, por ter seu pai Salvador recusado sua pretensão; Brites, por tê-lo obrigado a fugir do pecado de incesto; Josefa, por ter, com seu cacarejar, evitado que caísse em tentação da boa vida de criador de vacas; e Libânia, que o curara com sua alegria e devoção a tempo de poder embarcar como piloto da nau de Álvaro Coelho.
O que Afonso Sanches não sabia é que lá longe, próximo da vila de Cascais, numa casa nas faldas da serra com vista para o mar, Inês Garcia, a visionária, paria, a cada ano, um filho seu.
A alma humana é um lugar estranho. Dentro da minha acontecem, como diria Afonso Sanches, as mais desvairadas coisas e isso inclui as visitas dele. Porque ainda não percebi se ele é uma entidade separada ou se é em mim que tudo acontece e ele é apenas a projecção do meu pensamento. Sinto os seus dedos quentes no meu rosto, vejo quando se zanga, caio de amores por ele quando sorri, mas já quis levá-lo para a minha cama e logo se desfez nas brumas do escritório.
Às vezes digo-lhe que não entendo a sua linguagem, que não conheço o significado de certas palavras, o que me obriga a toda a espécie de consultas e, quando me queixei de que tenho dificuldade em imaginar os Açores sem hortênsias, visto que elas foram trazidas da China e do Japão pelos portugueses, muitos anos mais tarde, enfadou-se comigo e desapareceu.
Detesta que lhe fale daquilo que não conhece por se tratar de um mundo posterior à sua passagem pela terra, e esta falta de curiosidade desespera-me. Apetece-me largar tudo e escrever um romance normal. Mas ele pede-me que não faça isso porque falta contar-me os sucessos mui principais que o levaram a fazer o enorme esforço de atravessar a densidade que nos separa, que eu chamo energética, mas ele desdenha das minhas palavras e declara que não quer argumentar.
Não lhe digo, é claro, que já pesquisei o mui principal da sua história, porque não quero perder o pitoresco da sua narração e tudo o que a rodeia e que tanto me encanta: alegria, mágoa, amores e desamores.
Provavelmente tudo isto é muito natural: todo o escritor dirá que tem alguém dentro de si a contar-lhe uma história, a única diferença está no facto de eu ver, com os meus olhos físicos e não apenas os da alma, o meu interlocutor. De sentir o seu toque na pele, de ouvir a sua respiração, a sua voz e a sua gargalhada. Mas aí, provavelmente, o defeito é meu, que tendo a materializar as minhas imaginações.
A verdade é que, desde que Afonso Sanches me apareceu, nunca mais outras entidades assombraram a minha casa. Diz uma especialista minha conhecida que estarão formando a escada de energia que lhe permite descer. Quanto mais perto da luz menos densa a substância das almas e mais difícil a sua descida. Mas Afonso pareceu-me razoavelmente denso, ainda saudoso de alguns prazeres carnais como a sensação do vento salgado no rosto, as delícias da mesa, as loucuras da cama. Não é ainda muito etéreo, o meu navegador, e acredito que, quando acabar de contar-me a sua história, se tornará mais leve e ascenderá à luz. Só espero que antes disso, quando eu puser um ponto final no nosso livro, junte toda a densidade que lhe for possível e faça amor comigo, que não sou sua irmã colaça e vivo na inquietação do seu cheiro a maresia.
Contei tudo isto ao Lourenço numa das nossas tardes tranquilas de Paris. Ele riu muito, achou que esta era uma daquelas coisas que só me acontecem a mím: por uma vez na vida que desejo outro alguém, esse alguém não consegue densidade energética suficiente para aterrar na minha cama. É hilariante.
Ri-me com ele mas senti-me um pouco vexada. Que qualidades me faltariam para cometer a proeza de prender um fantasma nos meus braços?
Não calculas como é sedutor, disse eu ao Lourenço. Bonito, forte, salgado, parecido contigo. Eu não sou salgado. Não, és doce.
E desejei-o tanto que tive uma tontura e quase desmaiei. O meu irmão deu-me uma estalada meiga e um conhaque. És doida, Guiomar. És tão doida. Que culpa tenho eu se me fazes perder os sentidos. O sentido, querida. O sentido das conveniências, o sentido do razoável, o sentido das convenções.
Tu, entre toda a gente, vens-me falar de convenções? Só quero proteger-te, querida.
Estou a marimbar para tudo isso. Essas são as tuas preocupações, não as minhas. Sê discreta, ao menos.
Claro que sou discreta. Embora não compreenda porquê, sou discreta por ti, tal como no dia em que o Afonso Sanches me quiser, não tenciono ir por aí contar que dei a queca da minha vida com uma alma do outro mundo.
A queca da tua vida? disse ele, a fingir ciúmes. Não mistures. Há coisas tão grandes que não existem palavras que as nomeiem.
Ficámos em silêncio, como às vezes gostamos de ficar, a olharmo-nos nos olhos, a entendermos tudo, a falar em silêncio o que não pode ser posto em palavras, porque não há palavras que o nomeiem. O impronunciável. O sublime. A água das fontes. O sumo dos frutos. O voo das garças. Surunat, disse ele.
- Surunat, respondi.
A tarde caía com uma luz dourada, especial, e cheirava a tília na esplanada tranquila onde terminávamos o chá.
Fiquei a pensar se a eternidade não seria guardar para sempre momentos daqueles. Marcá-los indelevelmente nas nossas memórias e ficar dentro deles pelos séculos dos séculos.
Surgiu-me então uma imagem de felicidade total que eu guardaria, se pudesse escolher, e a eternidade fosse assim.
No pátio das traseiras da nossa casa, a Carminda, o mais parecido com uma mãe que algum dia conhecemos, na cadeira de baloiço, a tricotar as nossas camisolas de jacquard. Ao seu lado, no chão, um cesto cheio de lãs coloridas. E o Lourenço e eu, nos bibes de quadradinhos dos nossos oito anos, a jogar às cinco pedrinhas nos degraus da porta da cozinha. E os lilazes do caramanchão oscilavam com a brisa e choviam sobre nós florinhas minúsculas que tinham o dom divino de nos tornar imortais.
Decidi avançar o sinal em relação ao Tomás, o meu editor-amigo-pretendente, para ver até onde conseguiria levar as coisas.
Começámos a sair com regularidade, jantares, teatro, bailado, mas eu não podia recolher-me tarde porque, desculpava-me, tinha de ir para casa escrever. Como ele muito bem sabia eu escrevia de noite. E esta era a única desculpa que ele não podia recusar, visto estar ansiosamente à espera do livro para o qual já estava a imaginar um lançamento espectacular a bordo da fragata D. Fernando com figuração de marinheiros em guarda-roupa do século quinze.
- Eu não gosto nada destes exibicionismos. Não gosto sequer de lançamentos, de pessoas a comer croquetes e sumo de laranja de pacote, muito doce, muito pegajoso, nota-se nos beijinhos de parabéns que nos dão, e ainda temos de passar pelo constrangimento de ouvir dizer bem de nós.
A única vantagem destes eventos literários é eu perceber subitamente que livro é que escrevi, porque o apresentador, muito mais inteligente e muito mais preparado do que eu, juntou dois e dois e entendeu aquilo que me angustiou durante todo o livro e que foi não saber efectivamente para que servia tudo aquilo, que transcendência haveria nele para além da história, que significado, que ensinamento, que verdade sobre a alma humana poderia conter.
Optei por não explicar nada disto ao Tomás. Via-o tão entusiasmado que achei melhor deixá-lo sonhar, e na altura própria pedir-lhe um encontro discreto numa livraria da minha predilecção, sem croquetes e sem discursos, só um grupo de amigos e uma taça de champanhe.
Mas havia tempo. O meu navegador fazia-se difícil e nem sempre aparecia, ou talvez fosse eu que não estava sempre receptiva, ou concentrada, ou sintonizada com a tal energia necessária.
Forcei-me, pois, a sair de casa, a divertir-me um pouco, a trocar os meus jantares solitários na mesa comprida onde, por ordens minhas, estava sempre posto o talher do Lourenço, por restaurantes sempre barulhentos e comidas bem mais alimentícias do que as que conseguia engolir habitualmente.
Lembro-me de ter, na adolescência, um apetite devorador e de ouvir o Lourenço dizer-me, numa das suas ternas ironias, quem é que vai ser muito gordinha quando for velhinha? E eu respondia, desabrida, eu não, porque nunca hei-de ser velhinha. Deixo isso para ti.
Ele punha aquela melancolia nos olhos e dizia, já sabes que os deuses com quem converso contam-me coisas diferentes, levam-me a imaginar outras formas de ultrapassar a vida sem ter, necessariamente, que atravessar a velhice. Logo se verá.
Porque é que, a propósito de tudo, tens que ter respostas herméticas e labirínticas? Que chato!
Porque quero continuar a ser o teu irmão querido, o teu irmão louco, o teu irmão visionário, o teu irmão perdido. E agora come os legumes e não repitas o arroz.
Estou com o Tomás à mesa do restaurante, a repetir os legumes e a recusar mais arroz. Os filetes estão deliciosos, fofos e quentes, dourados a preceito, com o seu quase imperceptível tempero de alho e limão.
É um restaurante discreto, como eu gosto, onde não se ouvem os passos dos criados nem ruídos de talheres e o fundo musical só se nota prestando atenção. Onde o copo nunca fica vazio e basta um olhar hesitante para o guardanapo para nos trazerem outro, morno, entre pinças.
Se você quisesse, Guiomar, recomeça o Tomás. Se você quisesse, acho que podíamos ser imensamente felizes.
Ó Tomás, desculpe a minha franqueza, mas eu não sei se quero ser imensamente feliz. Acho que esse excesso de felicidade, se é que existe, estupidifica um bocado as pessoas. Se eu fosse imensamente feliz não escrevia nem mais uma linha. Ou então, como o papel ou o ecrã do computador, coitados, aceitam tudo, punha-me a escrever imbecilidades só para manter o meu estatuto de escritora. Entre aspas, claro.
Guiomar, você desconcerta-me. Eu acho que do que a vida trata é da procura da felicidade.
Talvez seja apenas o meu conceito de felicidade que não coincide com o seu, Tomás. Talvez seja só isso, não me leve a mal.
Bom, falemos então de bem-estar. Você sente-se bem sozinha naquele casarão enorme? A sua casa, desculpe que lhe diga, tem aspecto de ter fantasmas.
Todas as casas têm fantasmas, Tomás. Nós é que não os vemos. Mas eles vêem-nos a nós, pode ter a certeza.
De qualquer forma, se nós... resolvêssemos ficar juntos, eu preferia que morássemos no meu apartamento.
Era exactamente o que eu temia. Ele pensa em ajuntamento, concubinato, caso, se calhar casamento, tudo pequenino, apartamentozinho, arranjinho, merdinha de vida muito certinha e chama a isso ser imensamente feliz. Ele não pode imaginar a grandeza de uma coisa diferente.
Fica assim posta de parte aquela hipótese, que cheguei a contemplar, de o levar para a cama, uma vez por outra, sem complicações, sem telefonemas, sem amo-te, sem para sempre.
Como explicar-lhe? Claro que a culpa é minha. Eu é que não sou normal e por isso execro a normalidade. O Tomás é tão boa pessoa, tem tão boas intenções, adorava poder dizer-lhe que caso com ele, que gosto dele, que quero ter filhos dele. Mas não quero.
Vou tentar convencê-lo de que a nossa relação vai ter que ser assim mesmo: amigos com um toque de especiarias, alguns mal-entendidos, um pouco de desejo por resolver.
Porque a grandeza, a paixão, o fogo, o deslumbramento que moram no meu coração só encontram eco numa pequena igreja da Toscânia, entre o cheiro das tintas e o assobio do vento, perante os olhares desmaiados e inquietantes das personagens dos frescos que é preciso restaurar.
No final do Inverno de 1477, tudo estava prestes para a partida. Já nas despedidas recebia Afonso Sanches a alegre Libânia em sua câmara todas as noites, sabendo a mínguajj que havia de passar sobre as ondas.
Mas o homem põe e Deus dispõe. Esperando os ventos i Primavera, ventos muito outros os alcançaram e que foram das más novas de Fernão Teles de Meneses e os sucessos do dia 1 de Abril, na Vila de Alcácer do Sal.
Passava este fidalgo por aquele lugar, onde havia uma feira, e desmontou para procurar a tenda de um conhecido correeiro onde acharia selas e loros de que estava comprador.
Não teve porém tempo de fazer suas mercas, porquanto rebentou uma rixa junto de si e o cavaleiro, vendo que um jovem quase criança era tratado a muitos punhaços e porradas, acusado de ladrão e que o seu roubo era uma laranja, logo tomou mui asinha o partido de defender o jovem, não medindo, na sua nobreza, a qualidade de gentes com quem estava brigando.
Assim, que as coisas se azedaram e um dos agressores pegou numa pedra e com ela lhe deu na cabeça, com o que derrubou o cavaleiro que ficou a jorrar muito sangue da testa, da boca e de seus dois narizes.
Ali o abandonaram, e o pessoal que se tinha juntado logo debandou, não querendo que, vindo o meirinho, os tomassem como testemunhas e foi com grande esforço e sem ajuda que o seu criado o deitou de bruços ao atravessado em cima do cavalo e dali o levou já morto.
Estas más novas deixaram Álvaro Coelho à beira do desespero. Chorou o amigo que assim se finava tão ingloriamente numa rixa de rua e chorou o patrono que assim os deixava, em vésperas da partida, ancorados no cais.
Nada mais triste que um homem que não se faz à vida e que uma nau que não se faz ao mar.
Tocou a descarregar os mantimentos e as vacas e as cabras e os porcos e as galinhas e tudo o que ia cumprir um destino e não cumpriu.
E que dizer dos homens, que todos estavam como se tivessem levado uma punhada no coração e no estômago, tomados de desânimo e tristeza.
Fechou-se Afonso Sanches em seu quarto numa desilusão sem medida e temeu Libânia que lhe desse outra comoção como a de atrasado, com febres e perda dos sentidos, por isso o cuidou de todos os cuidados e o mimou de todos os mimos e o lavou de todas as águas e o purgou de todos os chás. Mas sobretudo, com o seu inabalável optimismo, começou a dizer-lhe que era como se ele tivesse chegado de viagem. E que deviam festejar o ter ele chegado inteiro e de boa saúde, sem temporais, naufrágios ou abordagem de piratas.
Com estas e outras palavras fazia rir Afonso Sanches que não tardou a sair para a companha da baleia enquanto as coisas não se resolviam no tocante à expedição, que, segundo Álvaro Coelho, não estava encerrada mas apenas adiada, pois que iria à Madeira falar com alguém que ele acreditava estar interessado nas rotas do Ocidente.
Era esse alguém o rico mercador João Afonso do Estreito, que ouviu atentamente a Álvaro Coelho e lhe pediu tempo para recolher conselho e parecer junto de seu amigo e vizinho António Leme, navegador.
Surpreendeu-o este com um relato que deixou João Afonso em grande desassossego e desejo de financiar os custos da expedição.
O que lhe contou António Leme e que o deixou mui maravilhado, foi que em uma das suas viagens, achara a dois meses de mar para Ocidente, três ilhas, todas elas habitadas por gentes cor de barro. Que as vira com os seus próprios olhos.
Para grande espanto dos marinheiros apresentavam-se estes gentios na sua natural nudez, ornamentados de garridas plumas. As aves nunca vistas que lhas forneciam, por ali voavam em toda a sua beleza e tudo o que a vista alcançava, entre vegetação e pássaros e flores, parecia mais da matéria dos sonhos que da realidade.
Temeram estar a ser vítimas de alguma miragem e aquela gente nua fazendo grande grita e brandindo lanças para a tripulação, afigurou-se-lhes algum estratagema do maligno barzabum e o medo apoderou-se das suas almas e até dos seus corpos que tremiam como varas verdes.
Desculpou-os António Leme dizendo que se encontravam quase todos doentes e muito cansados, sem forças para encarar inimigos da terra e muito menos do inferno.
Quem sabe eram aqueles propósitos de boas-vindas e não de ameaça, mas o consenso foi de que deveriam fazer-se ao largo, não arriscando o desembarque.
Não são estas decisões que possam ser tomadas de ânimo leve, daí que, entre a anuência de João Afonso do Estreito e o apresto da caravela para a partida mediaram quase três anos, e todos sabemos que em três anos a vontade suprema de Deus Nosso Senhor, para quem a vida dos homens é viagem, faz que muitos sucessos aconteçam, e muitas mudanças e até mortes ou maleitas alterem a face das coisas.
Não foi o caso de Afonso Sanches, que voltou a ser confirmado como piloto e que, depois de três anos de despedidas e boas-vindas da sua amiga Libânia, se por um lado andava feliz e desenfadado, por outro vivia naquela incerteza e arreceio de ser outro o escolhido no caso do projecto ir avante.
Como mestre da nau foi escolhido Vaz Homem, que era parente chegado de Álvaro Martins Homem, donatário da Praia, e como contramestre o flamengo Van der Olm.
Este marinheiro viera da sua pátria instalar-se na enseada das Quatro Ribeiras com mais trinta companheiros, para trabalhar na caça à baleia. O local escolhido, ao norte da ilha, era abrigo seguro para embarcações baleeiras de pequeno curso.
À boa maneira portuguesa foi o seu nome mudado para Dulmo quando o confirmaram para contramestre. E como o seu primeiro nome ninguém tinha língua que chegasse para o pronunciar, sugeriu Álvaro Coelho que fosse trocado para Fernão, em homenagem a Fernão Teles de Menezes, que mesmo morto seguia sendo o pai de toda aquela aventura.
E assim ficou Fernão Dulmo com um nome para a História que ele próprio não tinha língua para pronunciar.
À caravela foi dado o nome de bom agoiro de Nossa Senhora da Guia, para que os guiasse por bons ventos e marés, por mares sem escolhos, livres de borrascas e piratas que todos exconjuravam. Mas, mais que isso, os marinheiros temiam que o mar, que com tanta temeridade e afoiteza iam enfrentar, não tivesse praia ou terra da parte de lá e que ao fim de seguirem, através de mil tormentos, numa ilimitada estrada de água encontrassem o termo do mundo e por ali se despenhassem com estrondo numa imensa catarata, para irem parar ao abismo dos infernos por castigo da ousadia de seguir em frente.
Disto se não arreceava Afonso Sanches, que já nos velhos tempos de Cascais dizia aos seus amigos que o mar tinha de ter duas pontas, pois Deus Nosso Senhor tudo faz com sabedoria e sageza e não daria a nenhum povo a ideia de procurar outros mundos se eles não estivessem lá, à espera de ser achados.
Assim falou com os seus companheiros de viagem e lhes deu a certeza de que o inferno não podia ser a paga da coragem de querer entender melhor esta terra de Nosso Senhor, mas a punição de outros temporais e tormentas que o Mofino constrói na alma pecadora do homem.
Em Maio de 1480, a Nossa Senhora da Guia levantou ferro, com uma tripulação mais leve de apenas vinte e seis homens e com mantimentos para seis meses, assim Nossa Senhora da Assunção e o vento ajudassem.
Na véspera da partida, com Libânia adormecida nos braços e sem conseguir pregar olho, pensou Afonso Sanches na sua terra, nos seus amigos e nas suas mulheres e perguntou ao seu próprio entendimento se voltaria a vê-los algum dia. E não havendo resposta para tão ansiosa demanda, disse as suas orações e adregou de dormir o tempo de um rosário que desfiou em sonhos, para logo se alçar em grande agitação, ainda o sol não pensava mostrar-se, no seu vagaroso passeio pelas estradas do céu.
Em seis meses de mar, pensava Afonso, haveria certamente terra para descobrir ou vislumbrar ou avistar ou mesmo desembarcar, fazer aguada e carregar provisões. Tinha fé que as narrações de António Leme (que muitos tomaram à conta de impostura, para que se não dissesse que fora ao mar e voltara de mãos vazias) tivessem muito de realidade, mesmo sabendo todos que quem conta um conto um ponto lhe acrescenta. Sempre soubera, no fundo do seu coração, que aquelas terras estavam lá. Com elas sonhara, por elas construíra um ideal e um rumo de vida, e chegava o momento de provar, aos outros e a si próprio, que não conjecturara em vão.
E assim, foi com a alma ancorada na fé e o coração fundeado na esperança que viu a terra afastar-se de seus olhos, e Libânia transformar-se numa bonequinha que acenava, e o seu lenço branco desaparecer como um insecto de asas transparentes.
Aí vai Afonso Sanches, aprendiz de ventos e lavrador de névoas, sonhador de mundos e desbravador de oceanos, por sobre um mar tão azul de manhã, tão de prata à tarde, tão negro à noite, verde na onda, branco nas mãos.
Aí vai Afonso Sanches e, durante três semanas de vento em popa, a viagem correu de feição. Os cantares dos marinheiros calavam as vozes temidas das sereias. O mar permitia a pesca a certas horas e não faltava alimento para o corpo. O do espírito era providenciado pela incansável fé do capelão, que não permitia ócio que não fosse logo transformado em orações.
Não fora a saudade que começava a apertar e tudo seriam rosas naquela viagem abençoada por Nosso Senhor. Se havia temor no coração dos homens, guardavam-se bem de o propalar, cobrindo-o com uma alegria às vezes exagerada, ruidosa, mais de bravata que de coragem, mais de basófia que de valentia. Mas é assim que os homens são e era de homens esta insana aventura.
Ao fim de vinte e dois dias começaram as velas a pender, vazias de brisa, e a nau a parar, num mar de azeite.
No primeiro dia fizeram-se grandes limpezas no barco, que os animais vivos que levavam tinham abundantemente sujado. No segundo dia o calor começou a apertar e os homens puxavam gamelotes de água que despejavam sobre cabeça e corpo, numa nudez que ofendia o capelão, que por sua vez os ofendia a eles por nunca se lavar nem lavar suas vestes.
Ao terceiro dia começou a marinhagem a jogar cartas e rebentaram rixas entre os homens, que era preciso sanar. Bem vinha o capelão propor rosários e missas a pedir vento, que já ninguém largava o vício do jogo agora instalado, e só os mais tementes a Deus e ao mar se juntavam a ele para ladainhas sem fim.
Foi pelo quarto dia de calmaria absoluta que Afonso Sanches, parado no convés, encostado à amurada olhando o horizonte, se apercebeu de quão redondo era o oceano e que, mirando à volta, ele fazia uma linha curva, fechada, e dali lhe surgiu outra ideia que muito o maravilhou. E se a terra fosse redonda, assim como uma bola e, seguindo eles sempre em frente, cruzando mares e terras sem nunca perder o rumo, viessem parar ao mesmo lugar? Era uma ideia alucinante, que guardou para si, pois seria grande sacrilégio contrariar os ensinamentos da Santa Madre Igreja que coisa mui diversa lhe ensinara. Mas ficou-lhe aquilo na cabeça e nasceu-lhe uma dúvida que nunca mais o largou.
A norte do lugar onde a caravela permanecia à espera do vento começaram a ser visíveis pequenos relevos na água que a olho nu pareciam bagas mas que poderiam ser animais desconhecidos.
Já tinha ouvido contos sobre seres marinhos de desvairados tamanhos e feitios, desde peixes azuis a porcos sem pernas, mas logo Fernão Dulmo lhes contou que lhe contara um marinheiro da tripulação de António Leme, que numa viagem, em que tinham avistado terra, atravessaram primeiro um estranho mar de bagas a que chamaram propriamente Mar das Bagas. E isto confirmou o mestre Vaz Homem e entenderam todos que poderia estar próxima a terra que lhes era promessa, assim Nosso Senhor quisesse mandar-lhes vento que de feição os levasse.
Ao quinto dia o calor era tanto e o ar tão sufocante que houve que racionar a água e alguns marinheiros caíram doentes. Tentaram-se sangrias e orações, mas nada parecia ajudar. O capelão bradava que a falta de piedade e o vício do jogo eram a causa de todos os males. Exigia que cada marinheiro fosse ouvido em confissão, mas os odores que largava eram de tal modo nauseabundos que aqueles homens rudes, habituados a toda a casta de maus cheiros, não conseguiam sofrê-lo sem se lhes virarem as tripas do avesso. Dois ou três que agarrou com as suas grandes mãos e fez ajoelhar a seus pés no ministério do sacramento da confissão mais não fizeram, não conseguindo falar, que acrescentar às roupas do padre o cheiro dos seus vomitados.
Pela tarde morreu uma vaca cujo leite já secara, em prejuízo acrescentado da sede dos homens e a solução foi esfolá-la, esquartejá-la e assá-la, e isto que teria sido festa em outra qualquer ocasião foi apenas uma passageira alegria. A abundância de comida, pois se entendeu não guardar carne sobrante que com aquele calor em pouco tempo se encheria de vermes, fez os homens gastarem a sua ração de água mais depressa do que o devido.
Afonso Sanches comeu e bebeu com prudência. A sua
preocupação, naquela calmaria, era não perder o norte e cumprir bem o seu mester de piloto, tendo em mente que a derrota os levaria a atravessar o Mar das Bagas, assim o vento, tão pedido e rogado aos céus, viesse fecundar o ventre murcho das velas.
Nossa Senhora da Assunção, rogava ele. Sou o mesmo pescador, pesado de muitos pecados, que em Cascais se ajoelhava aos pés do teu altar a pedir protecção e aclaramento das ideias. Estou agora aqui parado no meio do mar sem poder mais que aguardar a vontade de Deus Nosso Senhor. Por isso te rogo que lhe peças por nós, que aqui estamos como numa prisão a céu aberto, que nos envie ventos favoráveis, os mesmos que ele comanda com seu sopro divino e nos devolva a viagem que este mar de azeite nos roubou.
Um dos doentes entregou a alma, e foi preciso sepultá-lo nas águas, depois de muitas encomendações, sermões e missas, muitas imprecações sobre os pecados dos homens que Deus assim castigava, E que todos haviam de morrer do mesmo modo sepultados naquele mar sem ondas onde os cadáveres desciam como pregos para ficarem debaixo do navio à espera do dia do juízo.
- E bom será que lhes atem pesos, se não querem, até ao nosso último dia, ter por panorama os mortos flutuando ao lado da nau e que os mais resistentes se acautelem pois quem ficar para o fim não terá quem o lance às águas e virão aves do céu para lhes comer os olhos que ninguém fechará.
Este sermão aterrorizou os homens que, de narizes tapados, lá foram conseguindo confessar-se e em boa hora o fizeram porque nessa noite a nau começou a mover-se.
Pela manhã rebentou a tempestade.
Do que me lembro mais, naquele temporal que se abateu sobre a nossa casa, é dos meus pés descalços descendo a escada. Da bainha descosida da minha camisa de noite branca, de baptista de linho, dos meus gritos e dos meus soluços, dos urros do meu pai no escritório e o Lourenço lá em cima, no chão, sem sentidos, coberto de sangue.
Do que me lembro mais é da minha revolta, da minha fúria quando abri a porta do escritório e bati no meu pai que, sentado, com a cabeça sobre a secretária, não reagia nem me dava resposta.
Porquê, pai, porquê, perguntava eu aos berros. Que mal é que o Lourenço te fez para quereres matá-lo.
E do que me lembro mais é da Carminda, branca como uma folha de papel, as mãos a tapar a boca, com um roupão de flanela, a dizer senhor doutor, é preciso chamar a ambulância, o menino não dá acordo de si, ele não fez nada de mal, senhor doutor, é só uma criança sem mãe que precisa de carinho. E está mal, senhor doutor, está mal, eu nem sei se está (e desatou a soluçar) se está morto.
E o meu pai ferrado de culpa, com a cabeça sobre as mãos, de bruços na secretária, sem dar resposta.
Eu sabia que o Lourenço não estava morto, senão também eu estaria morta. Nós sabíamos por instinto, desde o dia em que partimos os braços, desde sempre, quando adoecíamos ao mesmo tempo, que morreríamos também na mesma hora, mesmo que um estivesse aqui e outro nos antípodas.
Nunca tinha tratado o meu pai por tu, mas agora queria exprimir o meu desespero e dizia-lhe odeio-te, mataste o meu irmão e agora não te mexes porque és um cobarde, mas não te rales, eu chamo a ambulância.
E foi quando tive de puxar o fio do telefone debaixo dos braços dele que percebi.
Desde a noite de aniversário dos nossos quinze anos que o Lourenço vinha às vezes, de madrugada, quando eu me deitava, pedir abrigo na minha cama. Era quando estava triste ou tinha frio, ou sentia saudades da mãe que não conhecera. Eu acolhia-o nos braços, meu irmão querido, meu filho, meu menino e enroscava-me toda de encontro ao seu peito e sentia-me tão feliz e agasalhada e logo se evaporava a minha insónia e dormia como um anjo louro e encaracolado.
Quando acordava, muito depois da hora, ele nunca lá estava e eu perguntava-me se teria sonhado. Procurava o seu cheiro nos lençóis, a cova da sua cabeça na almofada.
Às vezes esquecia-se do relógio, dos chinelos. Às vezes eu encontrava, numa dobra do edredão, um botão do seu pijama e guardava-o na mão como um amuleto. Às vezes nada, nem sinal dele.
Mas naquela manhã do temporal, depois de uma noite em que a brisa agitava docemente as cortinas da minha janela francesa, acordei com os berros do meu pai a chamar pelo Lourenço e ele estava adormecido nos meus braços.
Acordou estremunhado quando o meu pai abriu a porta a pontapé e ainda atordoado levantou-se, nu, da minha cama, e nem teve tempo de se equilibrar em pé porque o pai começou a bater-lhe, a dar-lhe murros na cara e na cabeça, a atirá-lo ao chão, a dar-lhe pontapés, a esmurrá-lo no peito, a dizer porco, vou meter-te na cadeia, como é que não respeitas a tua própria
irmã.
E eu a gritar, pai, não aconteceu nada, o Lourenço só estava com frio, e se eu pude partilhar com ele o ventre da nossa mãe, o berço em que nos deitaram à nascença, porque é que não hei-de partilhar com ele a minha cama?
E o meu pai deu-me um bofetão, cala-te, ordinária, e vi que ele voltava a dar pontapés no corpo todo do Lourenço que já estava desmaiado e cheio de sangue na cara e no peito.
Então o meu pai saiu do quarto, desceu os degraus a correr, a gritar que mal fiz eu a Deus para merecer este castigo e fechou-se com estrondo no escritório e enquanto eu descia a escada ouvia os seus urros, como um leão ferido, ou talvez um urso, como se lutasse com uma força invisível. Quando eu consegui abrir a porta estava em silêncio, penso que chorava em silêncio com a cara em cima das mãos e não respondeu às minhas pancadas nem aos meus insultos.
Foi preciso vir a Carminda falar da ambulância e eu tomar a iniciativa de telefonar para perceber que estava morto.
Tinha dezasseis anos. Um pai morto e um irmão moribundo. Uma Carminda em lágrimas. Uma mãe que me deixara à nascença. Mas não era a hora de me deixar abater. Chamei a ambulância, subi para ver o Lourenço, vesti-lhe uma roupa qualquer, arranjei-me. Fiquei a vigiar o meu irmão, a assegurar-me de que estava vivo, a fazer-lhe carinhos, a cantar-lhe canções de embalar.
Foi complicado explicar o que se tinha passado e a única solução foi levarem os dois, embora os paramédicos assegurassem que o meu pai estava morto e que possivelmente não ia poder entrar no hospital.
Quero uma autópsia, disse eu. Quero saber de que morreu. Não pode haver suspeitas sobre o meu irmão, que caiu ao primeiro murro e nada sabe do que se está a passar.
Pedi um quarto particular onde pudesse ficar ao lado do Lourenço dia e noite mas quando, ao terceiro dia, ele saiu do coma, entrei eu em coma e cumpri os meus três dias.
Faltei-lhe quando ele mais precisava de mim porque só quando eu melhorei é que pude contar-lhe o que acontecera.
Entretanto tivemos o discernimento de telefonar para o advogado amigo e colega do meu pai, o doutor Salgueiro Nunes, a quem explicámos tudo em pormenor e que estava presente no nosso quarto quando trouxeram o resultado da autópsia: o meu pai morrera de paragem cardíaca (estou a simplificar as palavras técnicas) e verificou-se que tinha, há muito tempo, uma insuficiência qualquer com um nome esquisito.
O advogado sossegou-nos no respeitante ao funeral, garantiu-nos que trataria de tudo, inclusive da fortuna importante (palavras dele) que acabávamos de herdar. Sendo menores cabia-lhe a ele, como testamenteiro do meu pai, a administração dos bens e do dinheiro.
Dissemos a tudo que sim. Não tínhamos nem saúde nem idade para pôr qualquer objecção e a nossa sorte foi o doutor Salgueiro Nunes ser um homem de bem, de grande seriedade e carácter, se não, provavelmente, estaríamos hoje arruinados.
ele foi extraordinário, cuidou e aumentou a nossa fortuna e continua a ser um grande amigo e conselheiro ao fim destes dezassete anos.
Quero agora voltar atrás para falar um pouco do coma, isto é, forçar-me a falar de um assunto no qual não gosto de me deter, mas mais vale pegar-lhe e escrever sobre ele para ver se o esqueço.
Enquanto o Lourenço esteve desacordado falei com ele, contei-lhe tudo, disse que tinha que voltar porque eu não era capaz de enfrentar sozinha aquela situação. Hoje sei que ele ouviu as minhas palavras e deve ter pensado que era urgente acordar, sob pena de eu cair na mesma situação e ficarmos assim para sempre, pois só cada um de nós poderia acordar o outro. Admirada estava eu, por me manter saudável enquanto o meu irmão parecia morto.
Mas era inevitável a simetria em que os nossos corpos funcionavam: quando, passados três dias, ele começou a acordar, bateu as pestanas e murmurou Mar, eu comecei a sentir-me mal, a experimentar de novo uma terrível dor de cabeça onde, na têmpora, o meu pai me batera e afundei-me numa escuridão total.
O Lourenço pediu que me mantivessem no quarto para poder falar comigo como, tinha a certeza, eu falara com ele. Perguntou quantos dias ficara desacordado, disseram-lhe setenta e oito horas, isto é, três dias e um quarto de dia e ele garantiu aos médicos que o meu coma duraria setenta e oito horas, ao fim das quais eu acordaria bem disposta e sorridente. Eu, depois daquela primeira escuridão, estive num sítio alegre, com muitas árvores e quedas de água, havia cachoeiras mas não me lembro de haver pássaros: era eu que voava de árvore em árvore, cantava e comia cerejas.
Além do murmúrio constante da água, chegava-me o som longínquo da voz do Lourenço, dizendo-me palavras que não consigo reproduzir. Porém estou absolutamente certa de que sem elas não teria voltado, tão agradável era aquele lugar onde o meu corpo sem dores desafiava a lei da gravidade e a minha alma sem culpas se entrelaçava nos ramos das cerejeiras.
Ao fim de setenta e oito horas acordei. Os médicos maravilharam-se com aquela exactidão, mas o Lourenço estava à minha espera de olho no relógio, disse agora e passados alguns minutos eu abri os olhos e senti-me bem, apenas um pouco cansada, como se tivesse voltado de viagem.
No dia seguinte o Lourenço disse-me que já sabia o que tinha acontecido ao nosso pai, que ainda não conhecia o resultado da autópsia, mas que já chamara o doutor Salgueiro Nunes para se ocupar de tudo.
A Carminda contou-nos então, e o advogado confirmou, por que razão o nosso pai, naquele dia fatídico, tinha procurado o Lourenço tão cedo no quarto dele. Queria que o acompanhasse a Lisboa para tratarem da emancipação do Lourenço pois pretendia encarregá-lo de assuntos em que a inteligência superior do filho lhe seria de grande utilidade. Que assuntos eram esses nunca chegaríamos a saber, mas supomos que se prendiam com os tais negócios que o meu pai tinha com homens que entravam no escritório directamente pela porta do jardim.
Ficámos ainda bastante tempo na clínica para onde nos transferiram. Eu tive alta muito antes, mas, como é evidente, fiquei a viver naquele quarto de hospital até o Lourenço estar plenamente em forma. O meu irmão só tem um rim e isso era motivo de preocupação para os médicos. A ele não fazia a mais pequena diferença. Nasceu assim e nem sequer pensava no assunto.
Era a mim que aquilo incomodava. Achava uma injustiça horrível que, de três rins que a gravidez da minha mãe fabricara, a mim tivessem cabido dois, e apenas um ao Lourenço. Eu, que não sou pessoa de me sentir culpada, toda a vida carreguei este peso. Mas o Lourenço diz que a culpa é o pelouro dele, que a recebeu em vez do segundo rim, pois ambas as coisas seria demasiado peso para um recém-nascido. Maluqueiras do Lourenço para me fazer rir.
Não posso dizer que a morte do meu pai nos tenha perturbado excessivamente. Seria até capaz de afirmar que no fundo de cada um de nós havia uma certa sensação de alívio.
O meu pai era extremamente autoritário, eu diria infeliz, e muito distante, embora raramente saísse de casa. Espalhava o terror pelos motivos mais fúteis. A Carminda morria de medo dele e não era raro desfazer-se em lágrimas por causa da sua tirania.
Nós escapávamos ao pavor que tentava infundir-nos pela nossa cumplicidade e pelas artimanhas que o Lourenço inventava para desobedecer sem que isso fosse notado.
Nunca percebemos se gostava de nós ou se, pelo contrário, nos odiava, culpando-nos da morte da única mulher que amou. Inclino-me mais para a segunda hipótese.
Não é, pois, de estranhar que começássemos a fazer planos para a nossa nova situação de donos e senhores da casa, donos e senhores dos horários, donos e senhores das nossas vidas. A Carminda iria estranhar e protestar mas certamente iria ser muito mais feliz.
Nós queríamos que ela se sentisse bem porque gostamos imenso dela, que nos fez as vezes de mãe, de ama e de criada, com aquela dedicação e despojamento das pessoas, cada vez mais raras, que escolhem uma família que não é do seu sangue para servir e amar.
Sabíamos que ficaria connosco para sempre, achávamos mesmo que ela era imortal. Para dizer a verdade, ainda acho. É extremamente activa, tem aquele sono saudável a partir das dez da noite, e nunca esteve doente ou pelo menos nunca se queixou. É um bocado chorona, coitada da Carminda, tem que ter um defeito qualquer.
Ríamos só de pensar no que ela diria quando subvertêssemos as horas das refeições, os ritmos da casa, o horário dos meus sonos. Porque finalmente eu ia poder dormir. Essa era a primeira grande conquista.
Claro que nos propúnhamos introduzir alterações drásticas nas ementas, por mais estranhas que certas combinações de comidas pudessem parecer. Também queríamos poder beber um copo de vinho às refeições e abolir o leite para sempre.
De repente, sentia-me adulta e com poder de decisão. O Lourenço já era adulto há muito tempo e o facto de sermos da mesma idade não nos dava a mesma idade mental nem a mesma idade emocional. Eu era apenas uma miúda investida de plenos poderes.
Já que era isso que o nosso pai queria, o Lourenço achou que devíamos emancipar-nos. Claro que sabíamos perfeitamente que eu não estava incluída nesses planos, mas o que justo é justo, dizia o meu irmão, nascemos no mesmo dia, no mesmo dia atingiremos a maioridade.
Também combinámos salvar o mundo, mas isso ficaria para depois.
Foram tempos felizes, esses longos dias na clínica durante a convalescença do Lourenço. Era comum as enfermeiras virem pedir-nos que ríssemos mais baixo. E creio que as pessoas achavam monstruosa aquela alegria de dois órfãos recentes. Mas nós estávamos habituados a ser vistos como uma espécie de aberração em duplicado e isso só fazia com que nos divertíssemos ainda mais.
Até que chegou o dia de voltar para casa.
Logo à chegada, tudo nos pareceu diferente. Vimos a casa, o jardim, as trepadeiras, o balcão do meu quarto, as janelas do rés-do-chão com as cortinas corridas, mesmo a porta da rua, com olhos novos e diferentes.
O Lourenço, com o seu culto dos rituais, disse-me que esperasse um minuto antes de entrar, foi colher uma rosa para me oferecer e transpusemos a grande porta de batentes dourados, reluzentes em nossa honra, de braço dado, com solenidade e compostura, entoando o Hino à Alegria de Beethoven.
A Carminda benzeu-se e desapareceu nas profundezas da cozinha, a dar ordens.
Percorremos a casa toda, divisão por divisão, corredor por corredor, sala por sala, quarto por quarto, degrau por degrau. Em cima da minha cama perguiçava um gato vadio que logo se escapuliu pela janela aberta da varanda. Mas, à parte este incidente, tudo estava na mais perfeita ordem.
Foi só à noite, quando fiz a minha ronda habitual na escuridão, que vi o meu pai no escritório, caído de bruços sobre a secretária.
Primeiro a chuva, grossa como cordas, que molestava cabeças e ombros de quem a recebia sem agasalho. Logo depois trovoada tão forte, tão rumorosa que estalava os ouvidos, e os relâmpagos que cegavam as vistas. E com isto o vento, tão pedido e rogado, e por fim concedido, todos os ventos do mundo, do céu, da terra e do mar, e do norte e do sul, de ocidente e oriente, mangando da pobre nau, levantando-a nos ares para pousá-la mais adiante, fazendo-a rodopiar como um brinquedo para entreter os anjos.
E por fim o mar. Que mistério aquele, de uma água lisa e morta se erguer de repente, em vagas que tocavam o firmamento e rebentavam com um fragor medonho, fazendo duvidar se seria aquele o Dia do Juízo. E a nau ia e vinha, subia, rodava, elevava-se aos céus e afundava-se em abismos tão cavados que, se alguém tivesse espírito para olhar, de certo por eles podia ver as profundezas do Inferno.
Senhor Jesus, amerceia-te de mim, gritavam os que podiam gritar. Santa Maria Mãe de Deus valei-nos, bradavam os que podiam bradar. E faziam-se promessas e cada um se arrimava ao santo da sua devoção e alguns amarravam-se aos mastros, temendo que os levassem as ondas, ou, se os madeiros quebrassem, os arrastassem à deriva até alguma praia de Nosso Senhor.
O mais que se fazia era tirar água com baldes e gamelotes, que logo voltava em maior quantidade e maior fúria. Vinte homens contra a natureza desatada, vinte míseros homens contra a sanha de Deus.
Dos outros seis, um morrera, três estavam enfermos, o contra-mestre partira uma perna assim que começou o temporal, com um ferro que o vento lhe arremessou.
O outro era o capelão.
Ninguém o viu nem dele teve lembrança naquela aflição que assucedia. Até que apareceu no convés, imenso, imundo, desgrenhado, levantando aos céus o grande crucifixo do altar que lhes fazia as vezes de capela.
- Arrependei-vos de vossos pecados, bradava tentando falar mais alto do que o vento, do que o ensurdecedor turbilhão do mar.
- Cuidai-vos, padre, gritou-lhe Afonso Sanches, ingloriamente agarrado ao leme.
Mas ninguém ouvia ninguém. A tempestade era senhora do mundo, era senhora de tudo, dos ventos, dos mares e dos homens. E a tempestade enfureceu-se contra aquele padre que julgava poder mais do que ela, ali, a afrontá-la de crucifixo em riste como se ela fosse o próprio demo e mandou-lhe um vagalhão gigante que o levou a ele e mais uns poucos de homens que mais tarde se contou serem sete, pela borda fora daquela nau que milagrosamente se conservava inteira, apenas com rachadura na popa.
Que ironia esta do destino, fazer morrer na água a quem tanto dela se arreceava, até para lavar as barbas.
Depois disto, que tardou até quase ser noite, que, a bem dizer, nem se distinguia do dia, por causa das trevas do temporal, começou a amainar.
Afonso Sanches perdera o norte com tanta volta que o furacão fizera dar ao barco. E quando por fim conseguiram escoar a água do convés e o carpinteiro e o calafate acudiram aos mais principais estragos, deitaram-se os homens no chão encharcado do tombadilho e, dando graças, adormeceram.
Ficou Afonso agarrado ao leme e também ele lhe encostou a cabeça e dormiu um sono em que monstros marinhos se erguiam no alto das vagas e escarneciam do seu sonho e da sua temeridade.
Mal o sol se anunciou, na primeira suave claridade, olhou, agradecido, para o horizonte e viu um recorte que não era a roda lisa do mar. Pensou que enlouquecera com a aflição da tormenta e não alertou ninguém. Fez rumo ao que lhe parecia terra de Deus Nosso Senhor que daquela maneira lhe dizia que nenhum bem é fácil de alcançar e só através da provação e da tempestade se pode atingir a bonança.
Ao aproximar-se viu uma praia, lambida pelas águas azuis, que surgia de uma vegetação altíssima toda bordada de flores gigantes cujos coloridos não conseguia ainda distinguir. Mais um pouco depois apercebeu-se de que as flores voavam e teve a certeza de que morrera na tempestade e estava no Paraíso. Ficou parado a pensar que os anjos viriam buscá-lo. Aos poucos, com a luz do sol que nascia, os homens foram acordando. E sem palavras foram chegando à amurada e vendo aquela maravilha falaram em surdina, alumbrados e receosos, temendo que aquela visão fosse ainda um embuste, uma miragem do temporal.
Mas passados os primeiros espantos que lhes tolheram a acção, logo os homens começaram a vitoriar o achamento e alguns, que se gabavam de saber nadar, queriam já saltar para a água quando uma arraia gigante, de medonho tamanho, surgiu nas águas transparentes como a avisá-los dos perigos que podiam esconder-se naquele mar azul e naquela terra de primores. Podia até ser que o barzabum ele mesmo os estivesse a tentar para mais depressa lhes comprar as almas.
Vaz Homem ordenou que ninguém desembarcasse sem que fossem feitas todas as reparações a bordo e, lançando âncora, puseram-se os homens ao trabalho, que muito havia para fazer, desde remendar velas a calafetar rachaduras. Valera-lhes o barco ser de madeira de teca, a mais dura que há e por isso não partiu. Havia também que confirmar os botes que os levariam a terra, pois já se tinha visto morrerem navegadores em botes rotos e afundados, depois de se terem aguentado vivos em caravelas salvas do furor das ondas.
E que tudo correria bem se obedecessem. Via-se a olho nu que haveria fartura de água doce na ilha, se é que o era, pois tanta planta assim não teria podido nascer e crescer sem ela. Havia pois que preparar os barris para a aguada, as cestas para a fruta e algo mais que encontrassem e, havendo habitantes, pudessem comerciar.
Não tinham muito para oferecer porque o pouco que possuíam lá se ficara no temporal. Apenas descobriram, nos poucos haveres do falecido capelão, um baú cheio de rosários e pensaram carregá-los para terra, esperando que ali vivessem tementes a Deus e à Virgem Maria.
Estranharam que ninguém aparecesse a saudar a nau. Ou talvez nunca tivessem visto nenhuma, e, temerosos, estivessem escondidos a espreitar entre a vegetação. Era necessário fazer-lhes entender que vinham em paz, desembarcar desarmados, deixando a nau guarnecida para prevenir qualquer ataque.
Foi esta missão confiada a alguns marinheiros que, supersticiosos, não queriam desembarcar e que mostravam o seu desinteresse seguindo numa discussão sem fim sobre se o mar que a tão duras penas atravessaram, era de bagas ou de ervas ou de sargaços, pois de tudo encontraram na limpeza final do navio. Bagas não havia. Apenas umas tiras compridas, como acastanhadas, que exalavam um forte cheiro a mar. Mas ervas e sargaços cobriam o tombadilho e houve que baldeá-las para a água onde pertenciam.
A propósito da arraia gigante que tinham visto, se falou dos porcos sem pernas e Fernão Dulmo asseverou que esses animais eram avistados na rota do bacalhau e que tinham o corpo coberto de um pelo por demais macio e que a sua carne não se comparava à saborosa carne de porco ou javali do mato. Quanto aos peixes azuis era só debruçarem-se um pouco da amurada para vê-los brincar em cardumes, mui pequenos e festivos, enfeitando as águas, já de si de uma tão linda cor.
Fernão Dulmo tinha a perna partida e foram-lhe feitas umas talas para que pudesse desembarcar, mas ele pediu a Vaz Homem que lhe consentisse ficar a bordo de perna esticada e levantada, que era assim que tinha menos dores.
Contadas as baixas tinham chegado à conclusão que faltavam dez homens dos vinte e seis da tripulação que embarcara, contando com os que morreram de sede e enfermidade do calor, o capelão e os sete bons homens do mar com que Nossa Senhora da Guia pagara o seu tributo à tempestade.
Estavam então dezasseis homens dos quais Fernão Dulm teria de ficar comandando seis, encarregados da defesa da nau.
Desembarcaram nove homens, entre eles Afonso Sanches. Construíram, ali mesmo, na praia de areias brancas, uma padiola que aguentasse com as barricas de água que no interior da ilha corria fresquíssima de inúmeras cachoeiras que salpicavam estrelas para pequenos lagos onde vogavam flores. Aos poucos iriam trazendo e levando e, nesse vai-e-vem, ocupar boa parte do dia, parando para comer frutos sumarentos e deliciosos que pendiam de árvores nunca antes vistas. Assim matavam a sede e a fome e carregaram bastantes para o barco, servindo-se à vontade, visto não encontrarem ser humano algum que lhes travasse a mão. O baú com os rosários ficou abandonado na praia, por inútil.
Antes de o sol se pôr recolheram os homens a bordo. Mas Afonso Sanches pediu a Vaz Homem que tomasse conta da nau, porque tinha saudades de dormir em terra firme e depois de muitos dichotes sobre ser ele um marinheiro de água doce, os outros concordaram, não sem o avisar contra qualquer ataque de habitantes que, lá por não se mostrarem, não significava que não existissem.
Caminhou Afonso Sanches por aquela praia encantada, rente à vegetação, maravilhando-se com a fauna e a flora ali existentes e rindo dos companheiros que não tinham conseguido caçar nenhuma daquelas gloriosas aves, ou porque elas não se deixavam apanhar, ou porque lhes faltou o ânimo perante tanta beleza.
Convencido de que não havia vivalma naquela ilha procurou um lugar aprazível para passar a noite, não sem primeiro ir apanhar um dos rosários do capelão, que se propunha rezar em agradecimento a Nossa Senhora da Assunção que realizara o seu sonho de atingir a outra ponta do mar.
Começou a desfiar as contas e a pensar que, ainda que o surpreendessem, quem sabe, os guerreiros invisíveis da ilha, pela missão cumprida, já podia morrer.
Foi então que a viu, encostada a uma palmeira anã. A pele cor de barro, o sorriso alvo, o corpo sem mancha de cabelo e por único vestido uma dupla volta de esparto cingindo os rins.
Os cabelos negros escorrendo como chuva até às nádegas perfeitas e uma daquelas aves, dignas da gaiola de ouro de um rei, pousada no ombro esquerdo, com a cabeça servindo-lhe de coifa e as penas como um manto azul e verde posto de lado até ao calcanhar.
Afonso caiu de joelhos, sem saber se era deusa ou assombração que assim lhe aparecia, tão sossegada e doce, tão luminosa como o alvorecer de uma manhã de Agosto.
Então ela, sorrindo, ajoelhou à sua frente e com as mãos pequenas sobrepostas no peito, murmurou: ita.
- Ita, balbuciou Afonso.
Ela pegou numa pedra, acariciou-a com a ponta dos dedos e repetiu, ita.
Ita, pedra, disse Afonso. E riram, na primeira cumplicidade daquele amor exótico que ali despontou quando as mãos se tocaram a pretexto da pedra, ita, a pedra, a primeira pedra colocada naquele deslumbramento.
Agora o grande pássaro arrastava a imensa cauda entre a vegetação e Ita, na sua ânsia de comunicar com aquele doce gigante, pegou numa pedra e disse: itú.
Afonso ainda convencido que tudo era milagre, pensou que Ita lhe falara português e lhe perguntava E tu?
- Afonso, disse, mas logo riram como duas crianças enquanto Ita insistiu, mostrando as duas pedras de diversos tamanhos. Ita, que era ela. Itú, pedra grande, que era ele.
E em risos e bonitas palavras que ao ouvido de cada um soavam como notas de música, de repente se fez noite e Ita tirou os nardos que lhe coroavam a fronte e os pôs nos cabelos de Afonso, e nas barbas e atrás das orelhas e lhe foi tirando aquelas roupas que não compreendia e a faziam pasmar e de repente ficou séria e o fixou nos olhos e lhe passou os dedos no sorriso que transformou em sede.
Na cabeça de Afonso repetiu-se o temporal do mar das Ervas, do primeiro golpe de vento à ultima espuma das ondas e soube que chegara a hora de naufragar.
E por perto não se avistavam companheiros, nem capelão, nem vizinhos, nem Brites Colaça, nem Josefa Vicente, nem Inês, nem Libânia, nem Salvador Garcia, nem as suas mãos tropeçavam em anágua, vasquinha ou camisa de linho: somente aquela magnífica nudez como um archote incendiando a noite e nem no pior rodízio do tufão Afonso Sanches sentira vertigem tal e, sem astrolábio nem agulha, se afogou gemendo naquele mar cor de fogo onde vogavam nardos.
Quando acordou com o canto estridente dos pássaros, viu Ita de joelhos, olhando-o, e usando ao pescoço o rosário do capelão que parecia, no seu colo de barro, um colar de conchinhas da praia. Seria certamente blasfémia permitir que o usasse. Mas Afonso Sanches era um pecador, que dormira com a irmã colaça, mentira a Josefa Vicente, conhecera a luxúria nos braços de uma prostituta, e não lhe pareceu aquele pecado dos mais principais. Entendia confusamente que se tratava de um símbolo. Era a sua marca cristã que deixava em terra conquistada e que essa conquista era representada por Ita, pela sua sensualidade inocente, pela sua pele cor de cobre, pelo seu corpo sem velo, pelo seu pássaro real.
Sim, a terra tão sonhada era sua. A mão de Deus, ou do vento, o trouxera até ali. Abraçara-a com os seus braços, fecundara-a com a sua semente, abençoara-a com o seu rosário. E, não fossem ordens expressas da coroa, que à puridade lhe comunicara Álvaro Coelho, ali deixaria um padrão de Portugal. Assim, limitou-se a escrever na areia, para que o vento e as marés a apagassem, a mensagem mais ingénua e mais importante de toda a sua vida:
Afonso Sanches, pescador de Cascais, esteve aqui a vinte e quatro de Junho de mil quatrocentos e oitenta, dia de São João Baptista.
Ali decorreram três dias, de amor e bom entendimento, em que Ita só desaparecia para voltar com comida em grandes pratos de barro, cujo sabor, de tão estranho, parecia delicioso. E frutos. De mil tamanhos e feitios, lindos e sumarentos, que faziam Afonso sentir-se um pouco embriagado. Ou seriam os beijos de Ita, misturados no suco.
Ao terceiro dia, pedindo-lhe em grandes gestos que aguardasse, desapareceu entre a folhagem por longos momentos e voltou acompanhada por uma dezena de nativos. As mulheres eram semelhantes a ela, cabelos negros e nudez total, mas nenhuma tão perfeita. Os homens, igualmente sem roupa, enfeitavam-se com as penas das aves exóticas que ali existiam em tão dilatado número. Eram extremamente amigáveis e Afonso percebeu que lhes causava grande curiosidade a caravela, e que se propunham visitá-la.
Entendendo isto, Afonso decidiu levá-los, mas apenas dois a dois, por recearem uma armadilha. Começou por transportar Ita e um homem, e assim sucessivamente até todos os terem visitado.
Ao ver a perna partida de Fernão Dulmo e os dois doentes que convalesciam ao sol, uma das mulheres entrou em incompreensível diálogo com Ita e esta fez compreender a Afonso que precisavam de ir a terra buscar alguma coisa.
Ele levou-as e aguardou na praia.
Vieram com uma grande panela de comida, muitas ervas desconhecidas e folhas de palmeira. Ataram as ervas à perna do doente, ligaram com as folhas e sorriram muito como a dizer que sararia. Deram a comida a todos e, de outras ervas, fizeram chá para os enfermos. Apontaram as frutas de que já a nau tinha fartura, explicando por gestos que lhes fariam bem.
Mas isso já eles sabiam: todos os que traziam terríveis feridas dentro da boca estavam milagrosamente curados.
Afonso Sanches, na última viagem a terra, ofereceu-lhes o baú do capelão com todos os seus rosários. limitei-me a responder-lhe: sou portuguesa e, como diz Vergílio Ferreira, da minha língua vê-se o mar.
Acho que desta vez me excedi um pouco em pormenores literários em relação ao que o meu querido fantasma me contou. O que vale é que isto são simples apontamentos para depois serem desenvolvidos e contextualizados no respectivo enquadramento histórico. Esse será o livro que o Tomás tanto espera. Por enquanto tenho apenas estes pequenos momentos, os essenciais da vida de Afonso Sanches, que penso aproveitar, mas que, acima de tudo, têm o dom de me fazer encontrar paralelismos com a minha própria vida, ou, provavelmente, é o meu sub-consciente que os força.
O Afonso Sanches fala-me em tempestade e vou logo buscar a maior tempestade que vivi e que se prende, como atrás contei, com a morte do meu pai. Ou não será dessa tempestade que se trata, mas de outra, por acontecer? Com o Lourenço longe, tudo são maus pressentimentos.
Não explico ao Tomás o entrançado que faço aqui neste meu diário porque não posso explicar o envolvimento que existe entre mim e o marinheiro. Ninguém em seu perfeito juízo iria aceitar que o meu ghost-writer tem as mãos quentes e olhos de vivo. Por isso, quando o Tomás me perguntou, curioso e surpreendido, porquê um navegador do século quinze,
Quando acordei naquela tarde, mais cedo que o habitual, embora tivesse estado a escrever até ao nascer do sol, pareceu-me que tinha fome e um particular apetite por frutas tropicais. A Carminda preparou uma mistura de manga, papaia e abacaxi que me deixou um bocadinho enjoada, mas logo a torradinha com pouca manteiga e o delicioso café puseram as coisas no
seu lugar.
Tinha decidido ir a Lisboa procurar o Tomás na editora para debatermos um pouco o livro e, partindo do pressuposto que certamente jantaria com ele, vesti uma roupa intermédia entre as galas da noite e os jeans-t-shirt-rabo-de-cavalo das
reuniões.
Achei-me bem, com um tailleur de calças e casaco e uma blusa de seda natural que ficaria festiva se despisse o casaco no restaurante. Tratei o cabelo, depois do banho, na versão encaracolada, que eu sei que agrada ao Tomás e, por qualquer impulso inconsciente, escolhi uma grande carteira de pele onde coube, além do trivial que as mulheres usam nas bolsas, uma muda de roupa interior, um creme de rosto, um spray de água de colónia e uma escova de dentes. E um livro da minha pesquisa, para o caso de a noite de insónia ser longa. Assim, se bebesse um pouco de mais, não seria obrigada a pegar no carro e o tal hotelzinho de charme era já quase uma segunda casa.
Eram quinze e quarenta quando fiquei pronta. Fiz as contas.
Não era preciso avisar o Tomás. Ia surpreendê-lo no gabinete um pouco antes das quatro e meia. Na mouche.
Certifiquei-me de que o carro tinha gasolina para ir e vir e
arranquei. Ia alegre, e, com um disco de jazz no leitor, a viagem correu sem sobressalto.
Em Lisboa, fui pôr o carro no parque de estacionamento e saí para a superfície mesmo em frente do edifício da editora. Esperei que o sinal vermelho para os carros caísse e acendeu-se o peão verde. Iniciei a travessia da passadeira com um passo seguro. Um carro azul, louco, desgovernado, atropelou-me e partiu-me a bacia.
O meu primeiro pensamento, estendida ali no meio da rua, agarrada à carteira e de olhos nos pombos que cruzavam por cima de mim, foi o que é que, neste momento, terá acontecido ao Lourenço.
Tardei a saber. Depois de toda aquela confusão de povo à minha volta, enquanto eu, o mais calma que pude, ligava ao Tomás das pedras da calçada, e lhe dizia que pedisse uma ambulância, lá me vi por fim levada de Herodes para Pilatos, pois tive de dar entrada num hospital público, para dali ser transferida para uma clínica particular. Queria aquela de há dezassete anos mas disseram-me que já não existia. O Tomás escolheu outra e eu só pensava, meu Deus, o que é que estará a acontecer ao Lourenço.
Fui operada naquele mesmo dia. Fiquei com a perna em tracção para a cabeça do fémur não encostar à zona operada. Ou seja, fizeram-me um furo, de lado a lado, no joelho e ali meteram um ferro donde pendiam duas tiras, às quais, aos pés da cama, estava atado um saco de areia.
Tive a certeza de que ia ficar com uma perna mais comprida que a outra, mas nada me importava desde que me garantissem que não tinha acontecido nada ao Lourenço. Mas tinha.
Dois dias depois da operação, estava eu a dormitar um sono de sobressaltos e analgésicos, quando, ao abrir os olhos, vi dois homens desconhecidos aos pés da minha cama. Falaram italiano e disseram que eram médicos.
Soube imediatamente do que se tratava e soube que o Lourenço estava vivo porque eu também estava viva.
Podem explicar-me o que aconteceu ao meu irmão. Eu falo italiano.
Tinha havido um ligeiro tremor de terra, suficiente para desmantelar o andaime onde o Lourenço trabalhava. Ele caiu e as tábuas caíram-lhe em cima lesionando o seu único rim. Precisava de um transplante e eles vinham saber, sem imaginar que eu estava naquele estado...
Qual estado? Uma anca partida não me impede de dar um rim ao meu irmão. Comecem imediatamente os testes de compatibilidade e vamos embora para Itália. Tenho a certeza absoluta de que sou compatível.
Nunca tinham visto uma decisão tão rápida. Ficaram um pouco perplexos, mas, honra lhes seja feita, não demoraram os procedimentos.
É claro que os meus médicos acharam uma loucura eu viajar naquele estado, mas tudo se resolveu. Com a ajuda do Tomás, da Carminda e do doutor Salgueiro Nunes, fretou-se um jacto particular e a embaixada italiana providenciou uma enfermeira bilingue para me acompanhar e levar todo o processo clínico.
A Carminda e o Tomás resolveram também ir comigo e, trinta horas depois, estávamos a chegar ao hospital de Roma, ainda sem os resultados dos testes, mas baseados na minha fé de que o meu rim, aquele que eu tinha a mais, era indubitavelmente compatível com o do meu irmão. Entretanto, ele vivia ligado a uma máquina, tanto quanto eu, em toda aquela confusão, compreendi.
A maior frustração foi não poder vê-lo à chegada. Como nenhum de nós podia andar, levaram-me directamente, sem passar a espreitá-lo, para a secção de ortopedia da clínica.
Tinham trazido o Lourenço para Roma a pedido dele. Receava que se repetissem os sismos na Toscânia e que, a cada lesão que ele pudesse sofrer, eu tivesse, em Portugal, o seu reflexo. Interrogara-se, tal como eu, que acidente me teria atingido e, quando lhe disseram que ia precisar do transplante do rim, teve a certeza de que os meus rins estavam intactos e que eu correria a oferecer-lhe, aquele ou outro qualquer órgão, ainda que fosse o coração.
Tento esquecer-me da parte desagradável desta aventura. A anestesia, o pós-operatório, as dores. Porque nada disso tem importância a comparar com a troca, a dádiva, a reposição da justiça. Agora sei que trazia aquele bendito rim guardado em mim para oferecê-lo ao Lourenço no momento próprio. Agora estamos verdadeiramente iguais e ele traz consigo uma coisa minha, que é nossa. Algo que ninguém vê e assim é que deve ser.
A Carminda e o Tomás tinham a tarefa de afastar os jornalistas que, à falta de assunto, queriam estampar o nosso caso na imprensa cor-de-rosa. Prometiam capas e reportagens de doze páginas, sem perceberem que só a ideia nos enojava. Que coisa mórbida.
Foi só em plena recuperação (falo dos nossos rins e não da minha bacia, que com as bolandas que levei teve de sofrer segunda operação), foi só quando o Lourenço já dizia as suas piadas subterrâneas e codificadas, que me deixaram mudar para o quarto dele. Fazia sentido que dois irmãos, gémeos ainda
por cima, ligados por aquele laço indissolúvel da doação de um órgão, quisessem convalescer juntos.
Não tardou que o nosso quarto se tornasse o ponto de encontro de médicos e enfermeiros entre turnos, nutricionistas e administrativos. Um dia, a chefe da cozinha veio espreitar. Impacientava-se com as exigências do Lourenço até lhe contarem a nossa história e lhe dizerem que o doente era lindo como um anjo de Raphael. O Lourenço, é claro, envolveu-a com todo o seu charme e simpatia, gabou-lhe os cozinhados e a cor dos olhos, garantiu-lhe que tinha mãos de artista e pediu-lhe um beijo, jurando que não contava ao marido. Buffo, scherzoso, dizia ela, encantada, e a partir daí não se imagina o que passaram a ser as nossas dietas, as nossas sobremesas, os nossos lanchinhos que ela própria trazia, às escondidas da enfermeira-chefe. Chamava-se Giulia e o Lourenço baptizou-a logo de Mamma Giuli e a querida senhora derretia-se e prometia visitar-nos em Lisboa nas primeiras férias do marido. O Lourenço, então, protestava. Como poderiam viver o seu grande romance, com o marido, ciumento e siciliano, a vigiá-los? Teria de a raptar, dizia ele, e ela cozinharia só para ele, vestida de rainha e com trinta escravas descalças para lhe descascarem as
batatas.
Mamma Giuli ria baixinho o risinho rouco da sua asma.
Mamma Giuli tinha sessenta e dois anos.
Ficámos meses em Roma. Eu supunha que ia ter de esperar pelo Lourenço, mas foi o Lourenço que teve de esperar por mim. A fisioterapia eternizava-se e eu adaptava-me com dificuldade às canadianas.
O Tomás e a Carminda, primeiro ele, depois ela, há muito que tinham voltado para Lisboa. O Tomás nem desconfiava que precisamente no dia em que eu decidira passar a noite com ele, o céu tomara outras disposições. Contei isto ao Lourenço que, se não estivesse ainda ligado a uma data de tralha, tubos, fios, sei lá, teria caído da cama abaixo de tanto rir.
E agora, Afonso Sanches? De quantas catástrofes mais pensas fazer-me fiel depositária? Quantos paralelismos irás encontrar entre os teus naufrágios e os meus? Que obstáculos enfrentarás ainda, vindos do céu, dos mares, dos ventos, ou provas de fogo impostas pelo teu capitão, pelo teu rei, pelo teu Deus? Aceitei escrever a tua vida, não aceitei vivê-la. Vê se me poupas, que estou a ficar cansada.
Fico sem resposta, porque sei que não gostas de vir ter comigo fora daquele canto penumbroso do escritório lá de casa, o mesmo onde morreu meu pai por nossa causa, que não por nossa culpa.
Já te contei a minha vida do tempo em que não me conhecias. A de agora penso que poderás vê-la, acompanhá-la, lá desse lugar de energia incerta que às vezes permite que te materializes e outras te deixa distante, feito de sombra e nevoeiro.
Desculpa, pois, se me ponho a falar contigo. Mas já sabes como são terríveis as minhas insónias e aqui, fechada e coxa, não posso movimentar-me nem sair para o jardim a ver o luar. Entretenho-me com os meus pensamentos enquanto o meu irmão, já de perfeita saúde, dorme como um santo na cama destinada ao acompanhante.
Desculpa se te tiro do sossego da ilha onde te deixei na noite anterior à tarde do meu acidente. Se bem me lembro, estavas num lugar paradisíaco onde fazias amor com uma índia a quem ainda ninguém chamava índia, numa ilha da América a que ainda ninguém chamava América, num planeta que muito poucos sabiam que era redondo, gozando um Sol que muito poucos sabiam que era uma estrela e não viajava à volta da Terra.
Desculpa se te decepciono mas é assim que as coisas são, provavelmente já terás tido acesso pelo menos a esse bocadinho de luz ou saberás porventura muito mais do que eu, por isso foges sempre amuado a estes assuntos para não caíres na tentação de me ensinares o muito que eu não sei. Desculpa, marinheiro. Vou tentar dormir. Mas a minha insónia persistiu. Em todos aqueles meses de hospital não consegui mudar os meus hábitos de sono. Durmo muito de dia. Depois da fisioterapia fico arrasada, mas o massagista garante-me que vou ficar impecável, perfecta.
Na sonolência que ainda não me obriga a fechar os olhos, vejo entrar uma enfermeira baixinha que não conheço.
A luz de vigilância permite-me ver que é morena de cabelos muito lisos, pretos, de franja, como uma chinesinha de pele cor de cobre. Traz, numa bacia de barro, uma pasta escura a cheirar a ervas. Não é um cheiro agradável: é acre e tem um toque de bolor. Impõe-me silêncio sem uma única palavra. Levanta-me a roupa da cama, ergue-me a camisa de noite e começa a besuntar-me toda a anca com aquele unguento. Enrola-me em faixas de pano depois de ter acautelado toda a zona untada com folhas de palmeira. Depois observa o meu joelho onde durante muito tempo tive um ferro enfiado para a tracção e aplica-lhe o mesmo tratamento. Depois sorri, um bonito sorriso de dentes perfeitos e sai.
Eu não disse palavra. Deixei-a fazer. As suas mãos eram tão leves, mornas e sábias, os seus gestos tão seguros, o seu rosto tão honesto, que só pude confiar nela e deixá-la executar o que parecia ser um antiquíssimo ritual de cura.
Logo que ela saiu, adormeci. De manhã não havia sinal do tratamento. Nem pasta de ervas, nem ligadura, nem nada.
Deduzi que tivesse vindo tirar tudo e lavar-me enquanto eu dormia. Confiei.
Durante mais duas noites repetiu-se todo o processo. Na terceira noite fez-me virar de barriga para baixo e untou a cicatriz da operação ao rim. Foi nessa posição que adormeci.
Quando acordei pensei contar tudo ao Lourenço. Não sabia qual iria ser a reacção dele. Tanto poderia rir do que ele chamava a minha imaginação desbragada e consolidativa, porque dava forma sólida às coisas que imaginava, como podia ter comigo a conversa mais séria do mundo, citando autores indiscutíveis e pesquisadores científicos.
Decidi esperar uns dias.
Mas nessa manhã levantei-me sem a ajuda das canadianas. No banho, que tomei pela primeira vez sozinha, verifiquei que a feia marca que o ferro fizera no meu joelho não estava lá. E, virando-me de costas para o espelho, numa posição que até aí me era impossível, pareceu-me (e o Lourenço depois confirmou), que a cicatriz tinha desaparecido.
Mais um enigma para a classe médica?
Obrigada, navegador.
Sempre te achei generoso, mas agora sei que foste, sei que és, um dos melhores homens deste planeta, que é redondo, como tu tão bem imaginaste no quarto dia de calma absoluta.
Atravessa um homem metade do mundo a perseguir um sonho. Lança-se às cegas no mar encapelado de todos os perigos e de todas as traições. Abandona amores e amigos e as pedras da sua rua e as paredes da sua casa. Deixa o banco da igreja onde desde criança costumava rezar suas orações, balbuciar suas súplicas e bater no peito suas mea culpas. Despede-se daquele pedacinho de mar que era o seu, com a costumeira paisagem de barcos e baile de gaivotas. E ao fim de tantos deixares, e de tantos chorares, e de tantos despedires, cumpre a sua viagem, dentro de si e em cima das ondas e vai encontrar o paraíso perdido que anda no espírito de todo o vivente desde que se conhece por pessoa.
Pensaria Deus, se não conhecesse tão bem a sua criatura, que dali o homem não arredará pé. Encontrou, está encontrado, achou, está achado, recebeu, está recebido. E ali quererá permanecer para sempre, que o clima é doce, o mar azul, a areia branca, a mata verde, a vida mansa, a fruta embriagadora, a passarada deslumbrosa, as mulheres lindas, nuas e coroadas de flores. E que faz o homem?
Começa por pensar que ali ficará para sempre em remançosa existência, sem querer saber se há outros mundos achados ou por achar, outros frutos provados ou por provar, outras mulheres ofertas ou por oferecer. Pensa que encontrou o seu lugar, ganho a tão duras penas.
E logo no seu inquieto coração nasce esse veneno que se chama saudade, ou esse outro que se chama aventura e já quer o homem partir para a frente ou regressar para trás e já lhe parece o clima quente de mais, a fruta doce de mais, a ave enfeitada de mais, a mulher fácil de mais.
Já à lembrança de Afonso acodem as uvas de Setembro, as geadas de Janeiro, os pardais sem beleza nenhuma, e a fonte, o cântaro, a vasquinha de cote, o colo coberto da sua Inês.
Dói-lhe o que conhece, o que desde a infância conheceu, as procissões, os barcos engalanados, as ruas estreitas, os quintais com couves e dois pés de figueira, os muros de pedras soltas por onde trepam silvas e onde as amoras mais pretas pedem à ganapada que as coma. E a lentidão do pôr-do-sol que, como lhe acontece a ele agora mesmo, parece ter pudor em despedir-se, é como um chamariz silencioso, uma paisagem enfeitiçada de lembranças, a estampa pendurada no fundo da sua cabeça a pedir-lhe que volte.
Na alma de Afonso Sanches misturam-se agora duas saudades, a de além e a de aqui. Mas sete dias não desmancham o que quarenta anos construíram e a hora é de abrir sorrisos, içar velas e dizer adeus.
Rumar à Madeira, assim Deus e os ventos e as marés lho consintam.
agora o senhor do barco. Fernão Dulmo, embora melhorasse muito com as ervas das mulheres da ilha, ainda não se aguenta naquela perna, Vaz Homem, de tanta fruta que comeu, apanhou disenteria e deitou-se ao ar livre, com seu balde de fezes e seu credo na boca.
E foi como se Nosso Senhor lhes dissesse que sossegassem
e não arremetessem ao mar com destempero ou sanha pelo atrasado que lhes fizera, pois aquelas foram ordens suas e que por força têm de sofrer os que querem chegar ao paraíso. E sabendo Ele que até Adão rejeitara, como eles, vida mansa, fartura, e mulher nua, não tinha ilusões de que à primeira picada da saudade morderiam a maçã da incerteza, dos perigos, das doenças, das curiosidades, do desejo de conhecer mais mundo e conhecer melhor esse mesmo mundo e que de nada disso o mar era culpado. Procurassem eles a culpa nos seus corações insatisfeitos que de nada se contentam e tratassem o mar como um amigo, que lhes dava beleza, estrada e peixe.
Assim falou Afonso Sanches com a tripulação no primeiro domingo, em vez de missa e sobre isso rezaram todos muitos pater-noster e actos de contrição. Porque tinham os homens, ao perder terra de vista, começado a imprecar contra um mar, quieto e azul, culpando-o de todos os males passados e do que fizera à nau e dos homens que com ele levara e o muito que a todos fizera devolver as tripas e chorar, pensando que chegara o Dia do Juízo.
Sois como o pequeno pastor que insulta o urso adormecido, mas se ele acorda vai gritar pelo pai, que o salve.
Agradaram-se os homens de suas palavras e rezaram para que não despertasse o urso e pudessem regressar em paz.
Ainda passaram alguns sustos, como um nevoeiro que caiu tão grosso que do meio do convés não se via a amurada e isto em pleno dia, o que fez Afonso lançar âncora para não se esbarrar em barco, ou bicho, ou rocha ou outra má surpresa que o Maligno adregasse de pôr-lhes no caminho.
Apresentaram-se logo os homens para o jogo da batota, mas Afonso Sanches distribuiu-lhes tantas tarefas, justificadas por serem poucos, que para pegarem nas cartas tinham de tirar horas ao sono.
O nevoeiro pousou dois dias e quando alevantou estava uma manhã tão linda, o céu tão sem nuvens e o mar tão azul que os marinheiros voltaram ao mester da navegação com muita alegria e vontade, com seus cantares e altas vozes de escárneos e arremedos que provocavam risadas e respostas prontas.
Demorou a viagem perto de dois meses, ao contrário da ida que levara uma lua, porque desta vez a mão do vento não pegou neles para os colocar muitas milhas adiante, como o menino que brinca com seus tronquinhos a figurar navios e os põe onde muito bem lhe apraz. Tinham sido levados àquele lugar de sonho por mãos de gigantes, talvez meninos gigantes que moram na tempestade e se entretém a brincar com as casquinhas de noz que ali vêem no mar com uns seres pequeninos e irrequietos, e as fazem girar com dois dedos, e lhes despejam águas por cima e os balançam em ondas que eles próprios agitam e sopram depois com toda a força de seus bofes, um de cada vez, fazendo apostas sobre qual deles vai empurrá-los finalmente até uma praia qualquer. Depois aborrecem-se do jogo e, como todas as crianças, vão comer sua janta e dormir sua sesta.
Desembarcaram na Madeira entre a alegria do povo, a aprovação da nobreza e a benção do clero.
Foi grata a Afonso Sanches esta acolhida. Privou, por seu feito, com os muito principais senhores da terra, entre eles um italiano que se dizia navegador, de seu nome Cristóvão Colombo, que se casara, nesse mesmo ano, com uma senhora portuguesa e ali ficara a viver. Esta senhora, de seu nome Filipa Moniz, era filha de Bartolomeu Perestrelo, descobridor e primeiro donatário do Porto Santo.
Folgava muito o tal Colombo com as aventuras que Afonso Sanches tinha para contar e muitas perguntas lhe fazia e ficavam praticando sobre abundantes minúcias da viagem e da navegação. Queria saber se o lugar onde aportaram era ilha ou continente, mas isso não sabia Afonso dizer. Chamava-lhe ilha como lhe podia chamar território, mas alguma coisa lhe dizia, pelos passeios que ali fizera, que a praia corria a toda a volta, como se aquilo fosse um pedaço de terra pousada em cima do mar. Ou talvez estivesse enganado e aquela fosse a ponta de um imenso reino que estendia aos navegantes a mão aberta de uma praia de sonho, por boas-vindas e melhor acolhida.
Nos olhos do homem que isto ouvia brilhava uma espécie de gula, de curiosidade, quem sabe de inveja, mas isso era mui natural em qualquer um que sentisse dentro de si o apelo do mar e o destino de navegador.
Por ser muito bem recebido em várias casas de senhores que reclamavam a sua presença, e a de Vaz Homem e a de Fernão Dulmo, foi Afonso Sanches ficando na ilha da Madeira, até ao dia em que sentiu saudades da alegre Libânia e pensou voltar à Terceira, reunir seus parcos teres e haveres e seguir para o Reino, onde pensava pedir ao rei os meios para organizar uma expedição bem aparelhada e a autorização para, nas novas terras, firmar um padrão de Portugal.
Era este o novo sonho que o embalava agora, depois de ter cumprido o primeiro, que era provar a si próprio e ao mundo que havia terra na outra ponta do mar.
Desembarcou na Terceira em dia enevoado e logo no cais se deparou com duas silhuetas que não lhe pareceram estranhas e, ouvindo seu nome a modos que grasnado, reconheceu Josefa Vicente e sua mãe que, como se nada os tivesse dividido no passado, ali lhe perguntaram, cacarejando, por sua esposa e filhos e se deles tinha novas e como fora sua viagem de que já se constavam maravilhas.
Estava destinado Afonso Sanches a mentir e a ouvir mentiras daquelas mulheres enxertadas em galinhas e lhes contou que sim, que tinha boas novas da família, que as recebera na Madeira de um conterrâneo que adrede o procurara e lhe contara como estavam crescidos seus meninos.
Quanto à viagem, tinham chegado a uma terra deserta onde o sol era azul e a água amarela, onde não havia nem lua nem noite e onde as árvores davam, em vez de frutos, grandes pães de centeio.
Maravilharam-se as mulheres e mentiram de volta, dizendo que estavam no cais à espera do noivo apalavrado de Josefa que vinha de Lisboa para a boda mui luzida que já estava aprazada.
Afonso ficou um pouco tonto com esta troca de mentiras, sem entender que demónio lhe inspirava estas patranhas, a ele, que fazia um ponto de honra de nunca faltar à verdade. Soube depois que Josefa e sua mãe Aldonça vinham esperar todos os barcos na mira de fisgar um marido para a jovem cada vez menos jovem, e que a vários tinham conseguido levar para casa enleando-os com imposturas e banquetes, como lhe tinham feito a ele, mas que todos se tinham habilidosamente esquivado por temerem ficar o resto da vida a ouvir aquelas vozes que eram como vidros partidos ou piados de gralhas.
Bem diverso foi seu encontro com Libânia, que encontrou em seu mester de puta quando meteu a cabeça por seu postigo aberto, e ela se pôs a gritar e a rir, pensando o freguês que lhe dava desmedido gozo.
Afonso riu por sua vez, entendendo tudo, e esperou por ela que não tardou a despachar o outro que, desertadado e feliz, lhe pagou em dobro e se foi, com subido apreço pela própria virilidade.
Estava desalugado o quartinho da tia de Libânia, que lhe guardara os teres e o recebeu com afecto de parenta.
Saída do alcouce, vinha Libânia bem ataviada para honrar seu amigo chegado dos mares e, falando à puridade com sua tia, pediu a Afonso que esperasse em sua alcova que já iriam buscá-lo.
E ele assim fez e ficou arrumando seus pertences enquanto elas se iam para a cozinha a preparar uma ceia a que não faltou um galo de cabidela e papas de aveia temperadas com alho e ervas de funcho. Uma boa pinga do tonel mais antigo, onde o vinho amadurara todo o ano e saía para o pichel bem roxo e espumoso, deu mais graça àqueles comeres, que souberam a Afonso melhor que as iguarias das casas dos ricos que provara no Funchal.
Mais uma vez pensou Afonso Sanches deixar-se tentar pela vida caseira e sossegada que aquelas boas mulheres podiam propiciar-lhe e foi-se desleixando da sua ideia de navegar para Lisboa, dando tempo ao tempo, tempo de quê não sabia, mas seguramente tempo de viver ou algo semelhante, gozando seus louros de descobridor nos braços da sua rameira de estimação.
Por ali ficou mais de um ano, entregando-se a seu mester de baleeiro, lutando com aqueles gigantes dos mares. E não poucas vezes pensou que ficava nas águas e se encomendou a Nossa Senhora da Assunção que o salvou, e aos seus companheiros, e os trouxe de volta a terra firme com o mais difícil
dos troféus.
Era trabalhosa e alegre a vida de Afonso nos Açores, mas uma pequena nuvem pairava em seu entendimento, como a dizer-lhe que o seu coração estava de partida, embora o seu corpo encontrasse tanta razão de folgar, quer na labuta, quer nos amores.
Sabia que, mais mês, menos mês, deveria ir falar com D. Afonso V, e parecia-lhe de bom agoiro que o seu nome fosse o mesmo do rei, embora, na sua ideia mais profunda pensasse que não iria ser bem recebido e talvez nem dessem seus conselheiros conhecimento a sua alteza real das pretensões de um marinheiro plebeu.
Entre o desejo, o receio e a dúvida deixou que se escoasse mais de um ano.
Entretanto, nos reinos de Portugal e dos Algarves muitas e graves coisas sucediam.
Desde a batalha de Toro, em 1 de Março de 1476, começou o povo a dilatar por todas as terras onde havia portugueses, a fama heróica do jovem herdeiro do trono, D. João, que, não só combatera denodadamente com suas tropas ao lado das de seu pai, como, terminada a refrega, se mantivera três dias no campo de batalha como era de uso e costume às tropas vencedoras.
Assim não fez D. Afonso V que abandonou a lide para ir refugiar-se em França junto de seu primo Luis XI, a quem pretendia pedir apoio para o seu plano de conquistar o trono de Castela.
Era precisamente esse trono que estava em litígio na batalha de Toro, por morte do rei Henrique IV, que deixava duas possíveis herdeiras: a irmã do rei, Isabel de Castela e a filha Joana.
Avolumava-se porém a tremenda atoarda que já há muito
ultrapassara os muros de palácio real, de que Henrique, com suas maneiras de dona e seus jovens favoritos, era impotente e teria imposto a sua infeliz esposa (também Joana e irmã de Afonso de Portugal) que tivesse ajuntamento carnal com o valido do rei, Beltrán de la Cueva, que seria o pai da princesa. Ela ganhou por isso o cognome de Beltraneja e, por consequência, o sangue que lhe corria nas veias pelo lado paterno a não habilitava à herança do trono de Castela.
Mas a Beltraneja era sobrinha do rei D. Afonso V, e uma porta aberta para a coroa e o ceptro do reino vizinho.
Pelo abandono do rei de Portugal ficou a batalha inconclusa embora ganha, e Isabel que tinha juntado as suas tropas às de Fernando de Aragão herdou o trono, juntando os reinos de Castela e Aragão pelo seu posterior casamento com Fernando.
O príncipe D. João não descartou o sonho de seu pai de se juntar a Castela e, uma vez casado com sua prima Leonor e pai de um herdeiro, Afonso, imaginou que poderia casar esse filho com uma das filhas dos mais tarde chamados Reis Católicos, mas isso são outros e mui largos contos.
Na sua ida para França deixou Afonso V o regimento do reino a seu filho João que de mui pronto ganhou a estima do povo, mostrando grandes qualidades que lhe reconheciam como herdadas de seu tio D. Pedro, o das sete partidas.
Mostrou ele entender a necessidade de reformas urgentes que apoiassem a classe desfavorecida contra a tirania dos poderosos, de quem veio a ganhar todos os ódios e todas as traições.
Quando, ao fim de dezoito meses, D. Afonso V voltou de França e o filho, ao contrário do que era uso na época, devolveu o regimento ao pai em vez de se obstinar pelo poder, reconheceu o rei que seu filho era homem de grande carácter e capacidade e deixou que ele ficasse à frente dos destinos do reino.
Talvez o velho rei se sentisse doente e cansado de quarenta e dois anos de reinado, porque, em 28 de Agosto de 1481, rendeu a alma ao Criador, depois de ter distribuído poderes e terras pelos fidalgos, ao ponto de D. João ter dito, quando subiu ao trono, meu pai deixou-me rei das estradas de Portugal.
Porém, o povo desse rei que nada tinha a não ser os caminhos do reino entendeu que teria muito mais e que era a amizade do seu rei e a luta que ele havia de travar por mor dele, contra os ricos e os poderosos que lhe envenenavam a existência. Pola lei epola grei foi a sua divisa, sendo a grei esse mesmo povo que tanto dele recebeu, e a lei a que ele próprio fez, quando subiu ao trono e destituiu os fidalgos de suas mordomias.
Mas isso só aconteceu nas cortes que o confirmaram rei de Portugal e dos Algarves nos primeiros dias de Outubro de 1481. O povo em primeiro lugar. Onde já se vira isso antes?
Para que se não diga que o novo rei era só projectos políticos de alargamento do reino por terra e mar, há que dizer que também ele amava como qualquer mortal e embora, como rei que era, tivesse um casamento de conveniência com sua prima Leonor, cunhada do duque de Bragança, o seu maior e mais poderoso inimigo, perdeu-se de amores por Ana Mendonça de quem teve um filho, Jorge, e também isso agradava ao povo que o sentia mais próximo, vendo que na sua altíssima magestade batia um coração igual ao de qualquer plebeu.
Foi por causa deste novo rei e da muita fama de seus fazeres e dizeres que iam chegando à ilha, que Afonso Sanches pensou que seria possível, tendo como recomendação sua viagem
para Ocidente e sua descoberta de novas e desvairadas terras, ser recebido em palácio e demandar sua demanda.
Foi por isso que tardou a tomar a decisão de rumar a Lisboa, a fechar o que ele sabia ser um passo da sua vida a que não tornaria, um porto que ficaria fechado na memória e a que não volveria jamais.
A última baleia que arpoou era já uma saudade, a crista das ondas que lhe empinaram o barco uma despedida de lágrimas salgadas, Libânia nos seus braços era já um custoso apartamento de corpo e alma. Era um querer e não querer, um ir e não ir, uma incerteza contra uma certeza conformada.
Punha-se a meditar no que o futuro lhe traria. Se o rei aceitasse o seu pedido e lhe financiasse a expedição que faria dele, assim Deus ajudasse, um celebrado navegador, o seu futuro seria de glória mas também de muita provação, aflições e desventuras, que não há como o mar para trazer um ror de surpresas medonhas e encontros malditos e nisso não distingue nem nobre nem plebeu que se atreva em cima de uma nau à procura do desconhecido.
De que é vário o mundo já ele um pouco tinha notícia e receava até enfadar quem ouvisse seus relatos de pássaros deslumbrosos e gentes de outras cores e de outras falas, parecendo que mentia em tão desusadas afirmações.
Libânia e a tia é que não se cansavam de o ouvir e sempre estavam perguntando por mais e mais detalhes e se Ita tinha seus peitinhos empinados e se suas vergonhinhas, com serem livres de todo o pêlo, tinham a mesma forma das suas e seu buraquinho no mesmo lugar e seu bago de romã durinho e rosado, e se seu cu servia para o mesmo que o delas e mais isto e mais aquilo e se tinha dentes em sua boca e unhas em seus dedos de pés.
Riam e riam com suas perguntas e batiam palmas de satisfação com suas gargalhadas e queriam, a beber mais um pichel de vinho, que lhes dissesse que carícias lhe fizera e se as fizera bem e já era como oficiais do seu ofício que lhes interessavam as prendas da outra para compará-las com as suas e verem se perigava o seu mester de putas, uma presente e uma passada, se alguém em suas viagens se lembrasse de trazer essas mulheres peladas e tão consoladas em sua nudez.
Afonso Sanches comprazia-se nesta prática de mulheres libertinas que, sem nenhum recato, perguntavam o que mais ninguém teria coragem de lhe perguntar.
Assim se passaram os últimos meses de Afonso Sanches na terceira ilha dos Açores, entre o estretor da baleia e os risos de Libânia e sua bondosa tia, entre o fragor das ondas e o cacarejar de Josefa que continuava a encontrar no cais com sua mãe Aldonça e que sempre lhe perguntavam pela mulher ausente e seus muitos filhos e ele, seguindo fielmente a sua sina de mentir àquelas duas, lá lhes dava notícias com muita cópia de pormenores e que estava de partida para ir vê-los que não aguentava mais de saudades da sua prole.
Isto fazia-o pensar o que iria encontrar em Cascais se acaso o rei lhe negasse provedoria.
Conservaria Brites Colaça o seu fogo da juventude? Estaria Inês casada com Pêro Paes? Teria filhos? Estaria velha? Teria Gil Mendo casado com Maria Gregória? Seria ainda o Mocho, iria ainda ao mar?
E seriam estas perguntas sem resposta, ou estariam as respostas guardadas para o dia do seu regresso?
E a sua casa? Iria encontrá-la de pé, com um renque de malmequeres amarelos junto à porta de entrada e uma galinha a ciscar no terreiro?
Talvez não encontrasse pedra sobre pedra e essa seria a imagem da sua vida se o seu futuro não fosse no mar.
Mas para quê perder tempo nestas dúvidas imaginosas, se o que tem de ser será e o futuro só pertence a Deus Nosso
Senhor.
Uma certeza tinha: chegasse ele com vida e saúde à vila de Cascais, que iria à Igreja de Nossa Senhora da Assunção ajoelhar naquele mesmo banco onde tanto pedira e tanto rezara e tanto agradecera, dar graças mais uma vez por tudo o que de bom e de mau se passara, pelo mundo que conhecera, pelos amigos que encontrara, pelas mulheres que amara e mui principalmente pela vida que vivera.
E assim, inevitavelmente, chegou a hora da partida. Foi à taberna abraçar os amigos e companheiros de companha e guardou as últimas despedidas para a alegre Libânia e sua bondosa tia. Que não foi nomeada neste relato mas será nomeada agora porque o merece, tão amiga foi, e como se parente fosse, quase lhe fez vezes de mãe.
E o seu nome aqui fica registado e é Violante Francília, Nunes de seu falecido marido, que com muita razão a julgou honesta e virtuosa, porque o era, pese embora seu passado de putaria que só a tornou mais compassiva e mais tolerante para os pecados alheios.
E assim se foi Afonso Sanches daquela boa terra onde, tanto quanto ao humano se consente, pôde dizer que foi feliz.
É sabido que as mulheres cozinham para os homens e nós, a Carminda e eu, na nossa rotina anterior aos acidentes, não tínhamos nenhum em casa.
Sendo eu de poucas comidas, contentava-me com um pedaço de frango frio ou uma fatia de carne assada com legumes ou um tomate cortado com mozarela, quem sabe uma salada inventada, de alface, rúcula, melancia e maçã e, à noite, quando muito, uma sopa quente e uma bolacha com queijo.
A Carminda cozinhava para ela e para o pessoal da manhã coisas um bocadinho mais consistentes, e às vezes propunha-me as sobras, pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, arroz de carne, massa guisada, cozido à portuguesa, feijoada à transmontana ou peixe frito com açorda. Eu declinava tudo, salvo dias excepcionais em que perdia a cabeça e aceitava um prato de feijoada com arroz branco para me arrepender logo a seguir. Redimia-me com três dias a comer uma maçã à tarde e uma courgette à noite.
Quando cheguei de Roma com o Lourenço para convalescermos das respectivas cirurgias, ele ficou escandalizado com a indigência da nossa mesa. Podes comer pouco mas não podes
comer mal. E sem desprimor para a Carminda, vamos ter que arranjar um cozinheiro francês.
Tentei explicar-lhe que havia cozinheiros maravilhosos em Portugal, mas ele declarou que preferia roubá-los a restaurantes estrangeiros para não ficar com fama de ladrão de cozinheiros na sua própria terra.
Foi à internet ver o que é que se poderia arranjar e já estava cheio de ideias, quando recebemos carta da Mamma Giuli a contar-nos que o marido, que trabalhava numa construtora, morrera num acidente com uma grua, gorando assim o seu projecto de vir de férias a Portogallo conforme convite expresso do Lourenço.
A carta tinha uma tarja negra da largura de um dedo no envelope e na folha, e percebemos que Mamma Giuli ia fazer um luto italiano de roupa negra e véu.
Ficámos desolados mas o Lourenço achou que nada melhor para uma viúva recente não cair em depressão que uma mudança radical de vida e pareceu-lhe que sim, que conseguiria trazer a genovesa em crepes para a nossa cozinha e fazer dela a chef que nos faltava.
Eu não sei se alguém alguma vez disse que não ao Lourenço mas convenci-me que neste caso ele ia ter uma decepção.
Mas não teve. A Mamma Giuli disse que sim logo à primeira e, não tendo filhos nem netos que a prendessem a Itália, sentiu energia para encarar uma nova vida, uma mudança radical de hábitos, de língua e de país, só porque o amado Lorenzo, o seu anjo de Raphael, o seu menino querido, lho propunha.
Tivemos que preparar psicologicamente a Carminda, que começou por ter um arrufo com aquele discurso característico de já ninguém me dá valor nesta casa, agora que estou velha põem-me de parte, não adianta uma pessoa dedicar-se uma vida inteira, limpar-lhes o rabo e aturar-lhes as maluquices que já me querem substituir por uma estrangeira qualquer que conheceram na Itália.
Mas o Lourenço, melhor do que eu, com muitos beijos e abraços, explicou-lhe que ela não era, nem nunca fora cozinheira mas antes uma mãe que cozinhava para nós e nos cuidava e era verdadeiramente a dona da casa, uma super governanta de plenos poderes, até o de despedir a Mamma Giuli se não lhe agradasse o trabalho dela ou simplesmente o desenho das suas sobrancelhas.
A Carminda ainda refilou por chamarmos mãe à outra, ela sabia que Mamma era mamã, não era nenhuma analfabeta, chorou um bocadinho como era tanto do seu gosto e por fim reconciliou-se com a ideia de ter menos trabalho e poder delegar a cozinha, que se tornava tormentosa com as exigências do Lourenço, nas mãos de uma especialista.
Ainda chorou bastante mais, mas foi só para ganhar os nossos mimos e carinhos e fazer uma reconciliação igual à que ela via nas novelas da televisão, à porta fechada, na sua salinha particular.
Outro drama foram os aposentos da Mamma Giuli que entendíamos deverem ser de muito conforto, a pobre da senhora não lhe bastava ter ficado viúva e ter mudado de país, não haveria agora de se sentir mal acolhida na nossa casa. Preparou-se o seu quarto-sala-casa-de-banho, tendo o cuidado de os escolher uns furos abaixo dos da Carminda que eram um pouco menos do que luxuosos.
Com o jardineiro na sua dupla função de motorista, fomos buscá-la ao aeroporto na data aprazada, e, onde nós esperávamos uma muçulmana de burka surgiu-nos uma viúva elegante, gordinha mas elegante, de saia-casaco preto de boa fazenda, blusinha de seda preta fechada com a fotografia do defunto
montada em alfinete de ouro, cabelo bem arranjado, collants finíssimos e uns sapatinhos italianos de fazer inveja a qualquer portuguesinha bem nascida.
É claro que o reencontro foi de lágrimas. Ainda mal tínhamos estancado as da Carminda, já estávamos a braços com o pranto da viúva recente. Mas isso fazia parte do ritual. E o Lourenço, que adora rituais, fez todo o jogo, usou todas as frases de circunstância, como se dissesse de cor um texto, com os tempos certos e as inflexões vocais adequadas. Foi um sucesso.
A Giuli teve depois ocasião de se deslumbrar com a casa, com os aposentos que lhe reservámos e com a simpatia da Carminda que lhe caiu nos braços como se acabasse de conhecer a irmã separada à nascença.
Ficaram, instantaneamente, amigas de infância. E a forma como riam, um riso de senhoras educadas, com as diferenças linguísticas, era música para os nossos ouvidos.
Seguiu-se a apresentação de Giuli à cozinha, que iria ser o seu reino, e o Lourenço pediu-lhe que fizesse uma lista de todos os objectos, máquinas e artefactos de que sentisse falta. Ela pediu apenas meia dúzia de coisas e considerou o fogão soddisfacente assai.
Passámos então a comer as delícias da Mamma Giuli que, talvez por ter trabalhado numa clínica, sabia dosear os nutrientes e as calorias sem contudo tirar aos pratos que apresentava um delicioso sabor.
Pedimos à Carminda que lhe fosse ensinando a nossa culinária tradicional, a que ela se adaptou admiravelmente, e fez uma fusão magistral das duas gastronomias.
Estou convencida de que tínhamos a melhor cozinheira do mundo e então apresentou-se-nos o problema seguinte: para comida tão requintada era indispensável ter um criado de mesa que a servisse.
O Lourenço começou a achar intolerável que as travessas fossem trazidas pela Carminda, que as colocava em cima da mesa, o que, com a exigência de nos sentarmos nos topos da mesa enorme, se tornava impraticável para nos servirmos. Passávamos o tempo todo a berrar pela Carminda, já que o toque da sineta de prata colocada à minha direita ofenderia a nossa governanta.
Então, é claro, o Lourenço pôs um anúncio para um empregado a quem tencionava ensinar não só o protocolo de servir correctamente à mesa, mas também os segredos do difícil ofício de gentleman's gentleman, ou seja, um criado de quarto discreto e eficiente.
Não acertou com o primeiro, que logo de início, com os nervos, partiu dois pratos do serviço antigo da Vista Alegre, e, talvez também por causa dos nervos ou talvez não, cheirava imperdoavelmente a sovaco. Devia ter tomado um banho especial no dia em que veio responder ao anúncio porque não tínhamos dado por nada, mas logo se verificou a impossibilidade de ter em casa aquele rapaz de glândulas explosivas.
O segundo chamava-se Adelino, era educadíssimo, parecia até de boa família e pediu folga à quarta-feira. Aprendeu num ápice tudo o que havia para aprender ! sobre o guarda-roupa do Lourenço incluindo passar os fatos a ferro e engraxar dúzias de sapatos. O Lourenço achava que ficavam baços com a falta de uso e queria-os, embora os não usasse, engraxados todas as semanas. O Adelino concordava com um sorriso e cumpria.
À mesa era um prazer ser servido por ele. Logo no primeiro dia soube apresentar as travessas pela esquerda e servir o vinho pela direita, retirar os lavabos de prata quando alguma
iguaria pegada com as pontas dos dedos os justificasse e remover as migalhas antes da sobremesa.
Teve ainda que intuir que, sendo o Lourenço canhoto, deveria subverter a etiqueta e apresentar-lhe as travessas pela direita e o vinho pela esquerda, o que deu ao meu irmão um subtil contentamento e o fez cumprimentar o empregado com um senhoril aceno de cabeça.
Perguntei ao Lourenço como é que, na sua condição inalienável de príncipe da Renascença, ele vivia na Toscânia.
Contou-me então que morava num barracão junto à igreja, com um único par de jeans rotos, uns ténis velhos e meia dúzia de t-shirts. E quanto às refeições, traziam-lhe pedaços de pizza num papel engordurado e vinho tinto, sem copo, numa garrafa comunitária. E sentia-se feliz.
- Ser príncipe é isso mesmo, disse ele. Manter a dignidade e a alegria num barracão ou num palácio.
O Adelino e a Mamma Giuli tornaram-se peças fundamentais da nossa casa e até a Carminda rejuvenescia com os seus dois meninos em casa e a vida simplificada e reduzida quase,unicamente ao papel de supervisora da gestão doméstica.
O Lourenço nunca se esquecia de ir à cozinha cumprimentar a strega dei péntole, feiticeira das panelas, como lhe chamava, o que a deixava tão derretida como a manteiga na base dos seus molhos.
O Adelino era também uma conquista absoluta do Lourenço. Um dia abriu-se com ele na penumbra do quarto recém-arrumado, com as vidraças sabiamente desencontradas para que o sol não estragasse a escrivaninha D. José.
Contou que pertencia a uma família de militares da alta burguesia, avô materno general de quem herdara o nome próprio e pai brigadeiro inflexível na sua autoridade. O Lourenço deve ter pensado que conhecia bem a situação de ser filho de pai inflexível na sua autoridade que, por sinal, o atirara para três dias de coma, mas nada disse, apenas sorriu e confirmou a sua compreensão com um aceno afirmativo que deu ao Adelino a coragem de continuar.
Sei que o senhor dom Lourenço vai compreender o que se passou comigo e não me irá certamente penalizar. O senhor é um homem do mundo como nunca conheci outro nem pensei que existisse. Um senhor que anda em casa descalço com calças de ganga e tem quarenta e dois pares de sapatos italianos no armário. Um senhor que vai abraçar a cozinheira a felicitá-la pelo jantar, e que beija a mão à sua maravilhosa irmã e lhe segura a cadeira para ela se sentar à mesa. Um senhor que sabe mandar, sabe perdoar e sabe recompensar. Um senhor que sabe ouvir os seus empregados e tem paciência e coração para compreendê-los.
Já chega, Adelino. Conte-me a sua história.
Pois é, senhor dom Lourenço, o meu pai expulsou-me de casa quando eu, ao fim de anos de sofrimento, assumi a minha homossexualidade. Queriam casar-me com a filha de um casal amigo dos meus pais que me metiam à cara como se ela fosse uma fatia de bolo.
«Apresentavam-na como minha noiva e preparavam-se para marcar a data do casamento quando eu me apaixonei por outra pessoa. Então, num jantar em que estavam reunidos noiva, pais da noiva, os meus pais e o meu avô general com noventa e dois anos, tive que explicar, como nos filmes, que a minha orientação sexual era diversa e que não tinha a menor intenção de casar-me e fazer uma mulher infeliz, muito menos a Rosarinho de quem gostava tanto.
«A cena que se seguiu foi absurda, com o meu pai a bater-me, diante de toda a gente com o stick com que costumava dominar os cavalos, a Rosarinho em prantos, a mãe dela com
uma pataleta do coração, o pai roxo de fúria e a minha mãe com a cabeça baixa e as lágrimas a caírem no sorvete de morango. O avô general adormecera sobre o seu segundo cálice de porto.
«Tal como faria ao cavalo que lhe tivesse mordido as virilidades, o meu pai vergastou-me até à rua onde me deixou com a roupa do corpo e uma imensa sensação de alívio.
«A pessoa por quem me apaixonei é um homem casado sem possibilidade de receber-me e foi quando miraculosamente apareceu este anúncio do senhor dom Lourenço a oferecer uma posição de interno em casa particular, que resolveria todos os meus problemas, que compreendi a oportunidade que a vida me dava de ser eu próprio e acreditei que o lugar era meu. Ainda por cima o senhor concordou com a folga às quartas-feiras, que é quando a mulher do meu namorado dá aulas à noite na faculdade onde é professora. Ele próprio é professor universitário, tem duas filhas e, compreensivelmente, não quer assumir.
«Sou muito feliz agora, com uns patrões maravilhosos, um trabalho que adoro fazer e o meu amigo no dia de folga.
«Este sou eu, patrão, e estou-lhe grato para o resto da vida.
Sou eu que te estou grato por teres confiado em mim e só vou contar a tua história à minha irmã, mas ela, como eu, sabe guardar um segredo. Se precisares de alguma coisa, estamos à tua disposição.
A dedicação do Adelino, como a da Mamma Giuli, não têm limite. Além do mais dão-se optimamente um com o outro. A Giuli acha que ele é o filho que não teve e o Adelino dá-lhe aulas de português.
Com o regresso do meu irmão, a vida cá em casa alterou-se substancialmente. Tive de me adaptar a horários mais regulares, pois concordámos em almoçar às duas e jantar às nove e como é evidente, o Lourenço não me dispensa à mesa. Já consigo adormecer um pouco mais cedo. O meu mareante que, depois de uma grande ausência, aparece agora com assiduidade, continua a vir por volta da uma, está comigo até às três, hora a que se dissolve na penumbra, às vezes no meio de uma frase ou no momento em que julgo que vai responder a uma dúvida minha. Fico a trabalhar mais uma ou duas horas e depois vou dormir sem esperar que o dia nasça como era costume.
O trabalho avança. Não só os esboços de capítulos que tenho registado nesta espécie de diário, mas o livro propriamente dito que espero não tornar muito maçudo com excessiva recorrência a factos históricos e que, no fim, não pareça um manual escolar, mas um romance.
Às vezes, à tarde, quando o Lourenço não desaparece para parte incerta, faço-lhe leituras do que já considero finalizado. Às vezes sugere uma palavra, a mudança de um verbo que faz a diferença, a troca de um nome próprio. Mas os nomes eu não posso trocar porque são os que Afonso Sanches me diz e não quero faltar à lealdade que lhe devo.
O Lourenço concorda e gosta do que ouve. Depois convida-me para sair e vai mostrar-me coisas que descobre nos dias em que pega no carro e some e surge sem avisar.
Às vezes é uma capelinha antiga ou apenas um retábulo numa pequenina igreja de aldeia, ou um enquadramento especial do mar entre pinheiros, ou uma loja de raridades, um alfarrabista ou simplesmente um bar onde, ao fim da tarde, actua um saxofonista solitário. Coisas que nós achamos deslumbrantes e que provavelmente não comovem mais ninguém.
Um dia descobriu, numa terriola onde parou para beber uma cerveja, uma insólita escola de danças de salão. Estava ao balcão quando começou a aperceber-se do som de tangos antigos que ninguém mais ouve, Uno, Caminito, La Cumparsita e perguntou ao empregado donde vinha aquela música. Ah, é a madame Guadalupe, uma senhora estrangeira que vive aqui na aldeia há muitos anos e que tem um salão.
Um salão?
Sim, uma escola. Ensina o pessoal a dançar.
A dançar?
Se o senhor quiser ir ver, eu apresento-o que também sou aluno.
O Lourenço foi e encontrou-se com a Madame Guadalupe. Era uma velha com as bochechas cintilantes de blush e uma grande flor nos cabelos curtos ondulados com as ondas marcadas por travessas vermelhas. Trazia um vestido de seda com rosas estampadas e um xaile de franjas, sapatos de tacão e meias de seda brancas. Teve um flato quando viu o Lourenço.
Desculpe, disse ela com sotaque espanhol. Por um momento pensei... Mas já passou.
Quer dançar comigo? perguntou o Lourenço.
Ela quis. Disse que sim com a cabeça, os olhos cheios de lágrimas e um pequeno esgar da boca mal pintada à laia de sorriso.
O Lourenço deslizou com ela entre os pares tristes, suados depois de um dia de trabalho, que, aos safanões, rodavam pela sala.
Leve como uma pluma, cheirando a perfume barato, de pálpebras descidas mostrando a sombra azul, madame Guadalupe primava em todas as atitudes sensuais do tango, erguendo a perna, inclinando-se para trás, confiante dos braços que a prendiam, mimando o beijo, a volúpia, a entrega, o corpo escravo do desdém do homem.
Os outros pares pararam e ficaram absortos a ver madame Guadalupe deslizar nos braços de um estranho, belo como um deus, que sabia, por instinto, todos os passos do tango argentino.
Quando a música acabou ela ficou abraçada a ele muito tempo, o coraçãozinho a bater como as asas de um pássaro que há muito não voasse.
Cambia el disco, Joel. E vamos a bailar, disse ela, desprendendo-se a custo. Olhou para o seu par e, rejuvenescida, inocente, grata, finalmente sorriu.
Um dia o Lourenço levou-me lá.
Dançou primeiro com ela, depois comigo.
Guapos, disse ela, guapos, quando nos viu abraçados e logo assumiu a sua função de professora, corrigiu a posição do meu pé direito, da minha mão esquerda e ficou a ver-nos dançar.
A voz de Carlos Gardel saía de um disco de vinil e envolvia-nos em todos os cambiantes da sensualidade que não tentámos esconder.
Podia levá-los ao certamen europeu de baile, disse. Así tan guaposy bailando como angeles.
Porque não leva os seus alunos, perguntei. No saben bailar. Não vêm aqui pela dança mas pelo sonho.
Pelo sonho?
Si, elsueno. Tal como eu. Isto não é uma escola, é, como dicen ustedes, uma saudade.
Apertou-me com força ao peito, beijou o Lourenço na boca e desapareceu atrás de uma cortina, porque as lágrimas já eram demais.
Já de saída, reparámos num cartaz meio escondido numa
parede sombria, onde um par dançava o tango. Ela com o cabelo preto todo às ondas apertado num chignon, vestido preto, justo e curto, as pernas perfeitas. Ele, de anca estreitíssima nas calças à boca de sino com rachas a mostrar a bota afiambrada, as mangas de volantes sob o colete, a brilhantina fatal, os olhos de assassino:
GUADALUPE E DOMINGO CALDERàN, EL BRUJO.
Afonso Sanches saíra de Lisboa como tripulante de uma nau cujo nome esquecera e voltava agora como senhor, ocioso dos ofícios do mar. Não resistia a vir para o convés conviver com os marinheiros, vê-los em pleno esforço de içar velas, de baldear o barco, de dar vozes.
Muitas vezes se quedava sonhador junto à amurada, a ver as glórias do sol nascente, a magia dos poentes, a beleza ora verde, ora azul, ora cinzenta do vasto mar. Esse mar que agora conhecia melhor, às vezes pai, às vezes irmão, às vezes inimigo a quem era mister respeitar e pagar tributo.
Desembarcado, andou Afonso Sanches flanando pelas ruas de Lisboa com a sensação poderosa de pisar terra sua, embora nem o pó do caminho lhe pertencesse. Viu muita soma de pessoas diferentes, mouros, judeus, cristãos, negros trazidos de terras de África, e todos andavam em seus afazeres, fossem mercadores, ou compradores ou olhadores ou passeadores como ele próprio.
Viam-se mulheres com quem moços fidalgos acertavam segredos pelas esquinas e outras que passavam, apressadas umas, de olhos baixos, outras mais vagarosas e garridas. Destas, algumas lhe dirigiam palavras desvergonhadamente e outras se metiam nas tendas de ervas mágicas e poções virtuosas, sabe Deus para que maleitas ou feitiçarias.
Tinha Afonso em mente contratar uma caravana ou carroça de mulas que o levasse a Évora, pois era seu mui principal propósito chegar à fala com o rei D. João, cuja fama de defensor da grei e de afeiçoado às navegações lhe abria a certeza de que seria recebido.
Adentrou-se pela rua chamada da Correaria onde muitos mercadores vendiam toda a sorte de arreios e albardas e onde muito certamente iriam aviar-se os donos de carros puxados por bestas cavalares.
Disse-lhe o correeiro, naquele cheiro bom de pele curtida, quando acabou de vender a um fidalgo uma bonita sela que levava as suas armas gravadas no assento, que esperasse que já atenderia a seus propósitos. Houve primeiramente, conforme manda a lei do bom mercador, de praticar um pouco com o rico freguês que se mostrava agradado da sua encomenda tão bem cumprida e pretendia agora ver outros modelos de selas pois talvez lhe aprouvesse encomendar outra para a égua branca de sua esposa com as armas da sua casa igualmente gravadas a fogo. Não a encomendou, mas o tempo que levou de conversa dava para o correeiro já ter a sela pronta e acabada. Por fim se foi, depois de pagar duas moedas que o mercador, nas suas costas, trincou mais por hábito que por desconfiança.
Por fim lá disse a Afonso que um pouco antes de o sol se pôr se juntavam os correeiros e os almocreves na taberna chamada da Queixuda e ali aprazavam viagens e pagamentos.
Isto deixou-lhe o resto do dia livre e andou sem destino até dar consigo junto ao cais, olhando as naus do Tejo e sonhando com as viagens que faria se o rei desse provimento a suas demandas.
Ao fim do dia sentou-se a comer na Taberna da Queixuda uns miúdos de galinha com um pichel de vinho e deram-lhe as saudades do tempero da sua bondosa Violante Francília e atardou o pensamento no sorriso aberto de Libânia e sentiu que não tinha outra família senão elas e que um dia, voltando do mar, seriam horas de casar-se, mesmo velho, com ela ou com outra, porque pela primeira vez sentiu um certo frio na alma, como se de vazio ou desamparo.
Mas logo esqueceu as mágoas quando a taberna se encheu e na sua mesa se assentaram dois almocreves a quem se apresentou como navegador que necessitava ir a Évora ver um velho tio moribundo que só lhe deixaria herança se ele o amparasse na hora do passamento. E com essa urgência facilmente aprazou viagem com um velhote cujo carro puxado a mulas transportava viajantes que não possuíam cavalgadura que sua própria fosse.
Assim ele disse e assim se fez.
Se Lisboa era uma cidade bonita, pensou Afonso Sanches que Évora lhe não ficava atrás. Sem comparação de tamanho e de povo, surgiu-lhe porém tão branca, aconchegada dentro das muralhas, que lhe pareceu que naquele lugar nenhum mal podia acontecer.
Assim se enganam os homens, como havia de comprovar Afonso Sanches um ano mais tarde pelo São João, quando os senhores feudais, descontentes com a protecção que o rei dava ao povo e as regalias que lhes tirava a eles, haviam de atraiçoá-lo, e ali mesmo naquela cidade, seria por ordem de El-Rei decapitado o Duque de Bragança, o maior e mais poderoso fidalgo de Portugal.
Conseguiu Afonso chegar à fala com Antão Faria, secretário do rei, que prometeu dar Uma resposta na manhã seguinte se se apresentasse bem cedo, quando o sol subisse um palmo acima do horizonte.
Foi-se então a passear pela cidade, desceu ao Rossio a ver os mercadores com seus bois e carneiros, e outras tendas de outras miudezas, e subiu à Sé onde entrou para rezar a Nossa Senhora e se encantou com os vitrais que tinha, e suas paredes e arcos com blocos de pedra debruados a branco.
Saindo, à sua mão direita estava o templo de Diana que diziam ter mais de doze séculos e ter sido construído pelos romanos que por estas paragens viveram, em honra de uma deusa a quem, sabe Deus, rezavam, como nós rezamos à Mãe de Jesus, pensou Afonso.
Pousou numa estalagem que lhe pareceu limpa, tendo muito cuidado em verificar se não haveria pulgas, percevejos ou aranhas que o sugassem ou picassem, pois não queria comparecer perante El-Rei coçando-se como cão tinhoso, mas antes com muita dignidade, como futuro capitão dos mares.
Acolheu-o D. João II com uma singeleza que não imaginara possível, assentado a uma mesa cheia de mapas e cartas de navegação, pois, avisado do seu assunto, se preparara para praticar de caminhos marítimos.
Ouviu com muita atenção o relato de Afonso e por fim falou, para lhe dizer que, poucos meses atrás, consentira na visita de um tal genovês, de nome Cristóvão, casado com a filha de Bartolomeu Prestrelo e que por este parentesco o recebera.
Vendo o rei que Afonso gostaria de ter permissão para falar, deu-lha toda, e foi quando o marinheiro lhe explicou que se encontrara com Cristóvão Colombo na Madeira e que este o crivara de perguntas e lhe pedira estas e estas e aquelas minudências sobre a viagem e as derrotas e os achamentos e o aspeito e o clima das terras achadas, e os mares e os ventos e as águas e os peixes e tudo o que Afonso, na sua inocência, lhe relatou exaltado que vinha com suas descobertas, sem desconfiar que o outro, além de bom ouvinte, pretendia filhar sua experiência e usurpar seu feito.
E vendo ele que El-Rei o ouvia atentamente indagou de Antão Faria se lhe era permitido fazer uma pergunta e tendo obtido autorização, tratando-o sua alteza como um igual, o que lhe punha um nó na garganta de comoção e o fez pigarrear para poder falar, perguntou se Colombo fizera, ao menos, menção do seu nome.
- Não, respondeu El-Rei. Mas não te amofines, Afonso Sanches, porque não atendi suas pretensões. Já porque me não agradaram seus modos petulantes de quem tudo sabe, já porque existe um segredo que a ti confiarei sob juramento de o não revelares a ninguém, sujeitando-te, se o fizeres, a pena de morte. Aceitas este trato, Capitão Afonso Sanches?
Afonso vacilou sobre suas pernas, e seu bucho, que não alimentara por lho impedir o atrevimento que em si reconhecia de ter ousado este encontro tão principal, revolveu-se-lhe nas entranhas. Pensou confusamente, enquanto a vista se lhe turvava, que aquele rei era tão raro na sua grandeza que já de menino ganhara o título de príncipe e não de infante como soía antes dele.
E assim, diante daquele príncipe de tanta alteza, pediu a Deus e a Nossa Senhora da Assunção que o não deixassem desacordar em momento tão difícil de sua existência.
Mandou o rei que lhe trouxessem uma cadeira e uma taça com água e um açafate de fruta e Afonso, se aceitou por um momento a cadeira e bebeu a água, não se atreveu a comer a fruta e a mastigá-la perante o rei, por mais que este dissesse que comeria com ele. Foi pois preciso que El-Rei ordenasse que se servisse de uma maçã e retemperasse forças, porque a conversa que ia seguir-se requeria todos os seus espíritos e atenções.
Quando o viu recomposto, mandou El-Rei a Antão Faria que lavrasse um documento que fazia Afonso Sanches Capitão de Mar e dirigindo-se a Afonso desde aí como Capitão Afonso Sanches, perguntou-lhe se estava disposto a jurar segredo sob tão dura condição até que ele próprio, rei de Portugal, lhe levantasse a ordem por poder vir a necessitar do seu honrado testemunho.
Caiu Afonso Sanches de joelhos perante seu rei e beijando-lhe as generosas mãos jurou que não só daria a vida por ele, como guardaria dentro do peito cada palavra que ouvisse de seus reais beiços. E que o mandasse degolar se em seu tempo de vida, curto ou longo, faltasse a este sagrado juramento.
E então o rei ajudou-o a erguer e o abraçou e lhe pediu que se assentasse e o ouvisse à puridade. Mandou sair Antão Faria e falou.
- Há alguns anos, disse o rei, que, vendo com que afoiteza se metem os navegadores portugueses a mares desconhecidos, me surgiu a certeza de que nos cabe a nós, povo entre todos valoroso, descobrir a terra inteira e o mar inteiro. E pensei que tão ingente tarefa, e também a despesa que dela deriva, poderíamos dividi-la com Castela com quem, se tantas vezes pelejamos, outras tantas nos aproximamos com alianças e casamentos que nos fazem parecer um só reino e uma só família. Não anda, pois, longe do meu pensamento criar um laço tão forte que permita aos meus herdeiros reinarem nesses dois mundos como se de um só reino se tratasse.
Ora eu tenho um filho que, por palavras de futuro, casará com uma filha dos reis de Castela e, assim sendo, toda a terra e todo o mar descoberto serão nossos.
Porém, com muita prudência devo agir e já faz três anos que foi assinado um tratado nas Alcáçovas que divide o mundo pelos nossos dois reinos, sendo por isso que uma certa porção de mar está defendida aos navegadores de Fernando e Isabel e outra porção nos está defendida a nós.
Está também nos meus propósitos aperfeiçoar ainda este acordo de forma a dividir o mundo em duas partes iguais, por isso não me é conveniente pôr-me a declarar terras achadas na metade que só quando o herdeiro do meu herdeiro for rei de Portugal a Portugal pertencer .
É preciso saber esperar, que largos dias têm os anos e largos anos têm os reinados e os sucessos do futuro.
E assim me parece, Capitão Afonso Sanches, que as terras a que aportaste na tua maravilhosa viagem pertencem à metade que não será nossa por escolha minha, visto que tenho notícia de outras terras mais a sul que me são por demais convenientes.
Entendo o sacrifício que te peço ao impor-te silêncio sobre o teu achamento e, mais ainda, que dês por enganosas as novas que na Madeira e nas ilhas dos Açores já se espalharam sobre a localização de tais terras descobertas por ti e por teus companheiros.
Já antes de ti um navegador de nome António Leme aportou a local semelhante ou talvez o mesmo, que mo veio relatar, e lhe pedi que dissesse que não tinha desembarcado por oposição da tripulação receosa da grita dos naturais. Assim ele fez, renunciando a maior glória, como agora te peço a ti que renuncies, por fidelidade ao teu rei e ao teu reino.
Esta não é a obra de homens mas de um povo inteiro que ficará na história como o mais corajoso e determinado e sacrificado e leal, em que cada homem se esquece do próprio nome para que o nome de Portugal seja para sempre lembrado.
Caíam lágrimas dos olhos de Afonso Sanches, não pela renúncia que lhe era pedida, mas por pasmar de tanta inteligência e visão do futuro, vislumbrando coisas de tanta monta que aos simples mortais estão defendidas.
- Permiti-me, senhor, disse Afonso quando D. João lhe pediu que falasse. Permiti-me, senhor, dar graças e louvores a Nosso Senhor Jesus por nos dar um tal rei, com tanto coração e tal cabeça. E ante vós renovo a minha jura e vos dou graças por terdes tido a generosidade de desdobrar vossas razões perante mim que sou o mais modesto dos vossos súbditos. Pois só um mui grande rei pode dar tal valor e confiança a tão pequeno vassalo.
Ajoelhou e beijou as vestes daquele príncipe perfeito.
D. João fez que se erguesse e agradeceu-lhe o seu amor e sacrifício. Depois fez entrar Antão Faria e ordenou que a Afonso Sanches, Capitão de Mar, fosse dada uma tença, por carta de padrão, de renda vitalícia, a ser assentada no almoxarifado de Cascais, por serviços mui altos prestados à coroa.
Perguntou-lhe ainda o rei se carecia de moradia ou se outro valor preferia escolher pois queria deixá-lo numa azada situação.
Atreveu-se então o navegador, piloto, baleeiro e Capitão de Mar a pedir um pequeno barco de pesca, pois pensava voltar a Cascais e com seus antigos companheiros e outros mais moços tornar ao seu mester de pescador.
Sorriu D. João deste pedido tão modesto e reconhecendo que abrira o seu coração ao homem certo, ali deu ordem para que tudo fosse tratado a seu contento.
Saiu Afonso Sanches para a rua como se caminhasse sobre nuvens e nunca um homem a quem um sonho acabara de ser desfeito se sentiu tão grato e tão feliz.
Reparou que tinha uma fome de lobo e assentou-se na primeira taberna que adregou a comer umas sopas de pão com borrego perfumadas de poejo, que lhe souberam ainda melhor que a maçã dada pela mão do rei.
Foi pensando em como voltaria à sua terra e procuraria os seus antigos companheiros e poria o seu barco na água e pescaria seus peixes e seria o homem alegre de antigamente embora já lhe pesasse a idade.
Cumprido o sonho, voltaria ao ponto de partida.
E aí um pensamento o assaltou que há muito largara a sua cabeça. O mundo, tal como ele imaginara num dia de calmaria perdido no meio do oceano, era certamente redondo. E o rei sabia-o. Por isso falara em dividi-lo ao meio como uma laranja. Por isso lhe podia pôr medida, porque acabava onde começava.
E tudo, de repente, fazia sentido: a sua própria vida dera, no coração, a volta ao mundo e acabava aonde tinha começado.
Começou a rir com a boca cheia daquele cordeirinho de leite ensopado no molho, e os companheiros de mesa olharam-no de esguelha.
- Que é isso, compadre? Assentou-lhe mal o vinho do compadre Matias?
- Não, amigos. Sou homem do mar e aguento bem com um pichel de vinho, ou dois, ou três. Mas estava a rir no pensamento quando o riso me passou para os beiços, só de saber que vou voltar à minha terra e vou ter um barco a que hei-de pôr um nome. E bebo à vossa saúde e à do nosso rei D. João, que defende os pobres e os ricos não.
A gargalhada tomou conta da taberna do Matias e todos festejaram e Afonso ficou-se a pensar no nome do seu barco que falaria do melhor do mar e do melhor da alma.
O seu barco havia de chamar-se A Flor do Sal.
Iam longe os nossos tempos de loucura, de copos, de charros e de orgias. Agora éramos respeitáveis e, aparte os grandes passeios de carro, não íamos a lugar nenhum. Ficávamos a ler, a conversar, a revisitar os poetas que líamos em voz alta ou simplesmente a ouvir música, de olhos fechados e corações abertos.
Como o meu livro avançava a bom ritmo, o Lourenço achou que devíamos oferecer um jantar ao Tomás, não só para lhe darmos conta do progresso da obra, mas também porque o meu irmão nunca tivera oportunidade de lhe agradecer a sua solicitude nos dias difíceis de Roma. Na verdade mal o conhecera por se encontrar tão doente naquela época e pensou que um jantar era ideal para estreitar um pouco as relações.
Mas não seria um jantar qualquer nem um jantar banal. Nada com o Lourenço é banal.
Decidiu encomendar a um grande costureiro de teatro roupas do século quinze, de príncipes para nós, de camareiro para o Adelino que delirou com a ideia. A Carminda, como era de esperar, recusou liminarmente o que ela chamou de fantochada e, apesar do convite, declarou que jamais se sentaria à mesa mascarada de rainha como o Lourenço pretendia.
Ficava grata por não sair do seu lugar na mesa da copa onde costumava tomar as suas refeições com a Julinha e o Adelino.
A colaboração de Mamma Giuli revelou-se preciosa. Ajudou o meu irmão a adaptar os pratos que ele e eu pesquisámos. Faziam parte da minha bibliografia para a escrita do romance vários livros sobre comidas da época. Mas por fim, achando que não podíamos ter nada inferior a comida de reis, ativemo-nos à ementa do casamento de Afonso, filho de D. João II, com Isabel, filha dos Reis Católicos.
Descobrimos então na crónica de Garcia de Resende que El-Rei ia vestido à francesa, com uma opa roçagante de rica tela de ouro, forrada de arminhos, e em cima uma grande cadeia de pedrarias, e um pelote de brocado, forrado de ricas martas com muitos golpes, e neles ricos firmais de pedrarias e ricas pérolas e uma rica adaga de ouro numa rica cinta, e um chapéu branco com um penacho branco.
O Lourenço decidiu logo passar este texto ao costureiro e pôs-se à procura da rica adaga de ouro numa rica cinta, mas teve de contentar-se com uma de prata que descobriu num antiquário de Londres.
Quanto à comida, seria excessivo seguir a descrição de Garcia de Resende e, com grande pena, teve que abdicar da grande carreta dourada que trazia dois grandes bois assados inteiros com os cornos e mãos e pés dourados e o carro vinha cheio de muitos carneiros assados inteiros com os cornos dourados e vinha tudo posto num cadafalso tão baixo com rodetas por fundo dele, que não se viam, que os bois pareciam vivos e que andavam.
Mas copiou para o Adelino o traje dum moço fidalgo com uma aguilhada na mão picando os bois que parecia que andavam e levavam a carreta e vinha vestido como carreteiro com um pelote e um gibão de veludo branco forrado de brocado, e assim a própria carapuça.
Prescindiu da carapuça, da carreta e dos bois inteiros mas não dos veludos e dos brocados que assentaram de maravilha na pele morena do nosso camareiro.
Em última análise o Lourenço e Mamma Giuli inventaram uma ementa subtil com reminiscências quinhentistas e pouco mais. Eu conhecia os caminhos percorridos até chegarmos àquele porco preto com castanhas que se seguiu ao linguado em molho de frutos silvestres e às perdizes à archeiro-mor e por fim aos pastéis da madre-abadessa e aos rolinhos de ovos em licor de frades, mas para um recém-chegado tudo tinha um toque dos primórdios do Renascimento e de crónicas de reis que antigamente foram.
A mesa, segundo a fantasia do meu irmão, estava posta com uma toalha de brocado amarelo, a cor dos nobres, apanhada aos cantos com festões de flores naturais amarelas brancas e lilazes. Sobre a mesa, entre candelabros, pousavam duas enormes taças (a que Garcia de Resende chama bacios e que eu adapto para taças de estanho) com toda a espécie de frutos frescos que o Lourenço decorou com flores e nozes e amêndoas e castanhas.
Nos espaços colocou romãs abertas cujos bagos se espalhavam pela toalha e quando a Carminda lhe lembrou que as nódoas não saíam, ele explicou que no fim do jantar tanto a toalha como os guardanapos (uma concessão ao século vinte e um) seriam jogados no lixo.
A Carminda benzeu-se e pediu perdão a Deus por tanta loucura e tanto desperdício e jurou que não abriria mais a boca. Mas quando o viu chegar da rua com seis frascos de cristal para onde despejou, às duas e duas, as garrafas de tinto, de branco, de uísque, de porto, de conhaque e de licor, não se conteve que não dissesse, há cá em casa garrafas dessas no armário dos cristais no corredor do primeiro andar. E não percebo esse despejar de vinhos de óptimas marcas, que o convidado nem vai perceber que são raridades com pedigree e medalhas de ouro.
Minha amada Carminda, minha ama, minha dama de honor, minha rainha que recusou o trono. Se o convidado não tiver paladar para perceber que os vinhos são excepcionais, não adianta ser sugestionado pelo rótulo. Isto é para príncipes, não é para novos-ricos. E não queres com certeza que num jantar do século quinze apareçam as marcas, as castas e o nome do vinicultor. E quanto aos cristais do armário do primeiro andar, é claro que fui lá ver. Mas as garrafas são todas diferentes, umas altas, outras baixas, outras gordas, outras magras, como as mulheres. Só há lá duas gémeas, mas são de cristal da Boémia, de cor sanguínea, que não deixa apreciar a beleza e a tonalidade dos vinhos.
E com isto reduziu a Carminda a um silêncio que durou vários dias, mesmo depois de tudo estar terminado, os cristais guardados, as bebidas recuperadas e a toalha no contentor do lixo.
Enquanto preparávamos tudo, eu só dizia, coitado do Tomás, vai morrer de aflição, nunca se viu metido numa alhada destas. Agora é que o desmotivas para sempre da ideia de casar comigo. E ríamos, muito maus como antigamente, divertidíssimos com esta partida tão bem encenada.
O Adelino foi devidamente ensaiado e estava excitadíssimo com o seu papel. A Carminda, já que se recusou a trajar de rainha-mãe, ficou proibida de aparecer. Eu só desceria quando o Tomás tivesse esperado um bom bocado no salão, intrigado com o jovem fantasiado que lhe abrira a porta.
Correu tudo mais ou menos como previsto. O único
problema foi a minha demora, porque quando ia atacar o primeiro degrau tive um ataque de riso tal que o Lourenço teve de me obrigar a voltar ao quarto para retocar a maquilhagem e ver-me bem ao espelho para entrar na personagem e recuperar a dignidade perdida.
Por fim descemos. A roupa pesadíssima dava-nos um andar hierático, verdadeiramente real, e pela mão do mais belo príncipe da Renascença jamais visto, entrámos no salão. O Tomás levantou-se, abismado, pálido, sério, e ficou sem saber como cumprimentar.
Então dirigi-me a ele com o meu melhor sorriso e disse, não se assuste, Tomás, é só uma brincadeira para comemorar o livro que já vai adiantado e não sei se reconhece o meu irmão Lourenço sem os fios e os tubos e o pijama, na sua versão quinhentista.
O Lourenço, como sempre que pretende agradar desdobrou-se em gentilezas, e fazendo uma vénia com o chapéu branco de plumas brancas, fez sentar o Tomás e pediu ao Adelino que servisse o porto seco acompanhado de nozes, amêndoas e passas de uva.
Contou-lhe então que já tinha lido os dezoito primeiros capítulos da minha obra e tinha gostado tanto que decidira dar um jantar em honra do protagonista e, é claro, o editor teria de estar presente.
Como não queria que o navegador quinhentista se sentisse deslocado, mandara fazer não só estes nossos trajes da época mas também um jantar da época, ou, pelo menos, a aproximação possível.
Eu abanava-me com o meu leque de plumas, sentada no meio de um enorme sofá onde, dado o volume descomunal da minha saia, não se poderia sentar mais ninguém.
O Tomás perguntou se teríamos direito à leitura de um ou dois capítulos e o Lourenço disse que sim, mas que isso dependeria da nossa disposição depois do jantar, que ele esperava que nos tornasse eufóricos e menos propensos a temas literários.
Depois de várias hesitações o Tomás perguntou ainda se o protagonista do livro viria sob a forma de um figurante ou actor vestido de marinheiro do século quinze e o Lourenço disse que não.
Então eu afirmei, com a máxima naturalidade, que estaria presente o seu fantasma e que, embora não o víssemos, ele teria o seu lugar na mesa se quisesse partilhar a nossa refeição.
O Tomás riu muito até perceber que nós nem sequer esboçáramos um sorriso e até isso tomou à conta de brincadeira, mas percebia-se uma certa inquietação no brilho excessivo dos olhos.
À mesa posta com quatro lugares, sentámos o Tomás à minha esquerda, pedindo-lhe que não levasse a mal que reservássemos o lugar da direita para o convidado de honra.
O Adelino servia o fantasma, que não estava lá, em segundo lugar, depois o Tomás e por fim o Lourenço. Parecia ser apenas um jogo de mímica mas na hora da sobremesa o Afonso Sanches surgiu de um canto sombrio e, tornado incerto pela luz das velas, sentou-se no lugar que lhe cabia e serviu-se de um pastel da madre-abadessa que, por delicadeza, não comeu.
O Adelino deu um salto para trás e os pastéis desandaram na bandeja de prata mas eu segurei a situação antes que ele e o Tomás fugissem pela porta fora.
Não te assustes, Adelino. É só mais um truque do senhor dom Lourenço. Como tu muito bem sabes, este jantar foi encenado até ao mais ínfimo pormenor.
O Afonso Sanches sorriu-me, na certeza de que só eu
podia vê-lo e eu, talvez por influência do maravilhoso tinto, senti um desejo louco de o levar para a cama e provar a mim mesma que jamais poderia casar-me com o Tomás. Mas ao mesmo tempo lembrei-me das amantes dele, a Brites, a índia, a Libânia, todas tão nuas e fáceis e percebi que eu, com o meu complicadíssimo vestido, jamais conseguiria tirá-lo em tempo útil e soltei uma leve gargalhada que ficou por conta da mistura das bebidas.
A partir daí o Tomás e o Lourenço viram-me sorrir muito para o meu lado direito enquanto o Afonso Sanches me dizia como eu estava linda com aquela roupa e que devia vestir-me sempre assim e que, a partir do dia seguinte, depois de uma razoável ausência, voltaria todas as noites para acabarmos o livro depressa. Eu assentia, em silêncio, enquanto o Lourenço e o Tomás conversaram. Então o meu fantasma levantou-se, deixou a cadeira afastada e o pastel no prato e dissolveu-se na penumbra do canto menos iluminado da sala.
Fiquei grata por aquela visita. Satisfeita por ele ter entendido a intenção daquele jantar e me ter honrado com a sua presença.
O Tomás, embora um pouco constrangido com a encenação excessiva para um único convidado, não poupou elogios àquela festa a três, que ele nunca imaginara possível nem que os convivas fossem trezentos. Sobre o truque do pastel nada disse embora eu tenha detectado um certo constrangimento a partir desse episódio.
O Lourenço disse-me mais tarde que tinha entendido tudo e tentara mantê-lo entretido com muita conversa. E reconheceu que, de facto, ao mandar pôr o lugar do navegador na mesa e ao ensaiar o Adelino para servi-lo, isso equivalia a uma
convocação.
Houve leitura dos primeiros capítulos para quebrar um pouco o gelo que se seguiu ao jantar, com o Adelino, que nunca perdeu a personagem, a servir-nos, dos frascos de cristal, os digestivos.
De repente o sarau esvaziou-se, morreu da sua própria essência de pantomima e depois de alguns minutos de mal estar levantámo-nos os três em silêncio e acompanhámos o Tomás à porta.
Quando ele saiu demos as mãos, dispensámos o Adelino e subimos as escadas.
O Lourenço veio ajudar-me a tirar o vestido e lembrou-me que não era a primeira vez que nos paramentávamos de príncipes da Renascença: o quadro do salão atestava-o. Mas esses fatos eram alugados, não tinham o mesmo simbolismo destas roupas feitas à medida, em honra do meu fantasma preferido.
Decidi deitar-me sem esperar a madrugada, já que o Lourenço se propunha fazer-me companhia.
Confessa que preferias ter aqui o Afonso Sanches, provocou-me, perverso.
Não te atrevas, respondi-lhe. Não te atrevas a comparar um mero desenfado com as maçãs do paraíso.
Eis a Vila de Cascais como se o tempo não tivesse passado, tão sossegada à beira mar, tão familiar e amiga, de portas e janelas abertas ao sol da tarde depois da chuva.
Caíra uma chuva miudinha pela madrugada mas Março é assim mesmo, de manhã Inverno, à tarde Verão, e quando Afonso chegou na carroça do almocreve puxada por uma mula velha já o sol brilhava sobre as casinhas brancas e as floreiras dos pátios.
Foi direito à praia onde estavam varadas algumas embarcações pequenas e no mar, ao longe, branquejavam velas de pescadores. Alguns rapazes brincavam, arremedando rixas, rolando na areia em grande grita e gargalhadas que se dissolviam no estrondo do mar. Uma gaivota perdida, enxotada pelo temporal da véspera, debicava na areia molhada desperdícios de um peixe que secava ao sol.
Sorriu-lhe o coração quando caminhou pelas ruelas da vila e achou tudo tão igual ao que deixara, só as caras de quem lhe dava a salvação não eram as mesmas. E dirigiu-se a casa.
Temia o descaro de Brites Colaça mas desejava que estivesse viva, pois queria abraçá-la como irmã, perdoar-lhe as faltas do passado, dizer-lhe que esquecera o rancor que dela levara ao embarcar para as Ilhas. E havia de perguntar-lhe por Inês, por cuja recordação o seu coração ainda sangrava lá no fundo.
Sabia, por experiência, que não se volta atrás. Que o mar de ontem não é o mar de amanhã. Que todo o mundo e todo o ser vivo é composto de mudança.
E nestes pensamentos o levaram seus passos à porta de sua casa e viu que estava caiada de branco, e tinha uma janela aberta e que aos malmequeres amarelos se juntava agora um grande tufo de malmequeres brancos, e que a pedra do degrau estava esfregada e cantava um canário em uma gaiola encaixada em um prego da parede.
A casa já não é minha, pensou. Aqui moram outras gentes e não irei perturbá-las com a minha intempestiva chegada, que perdi meus direitos com tantos anos de ausência sem dar novas se estava vivo ou morto, e agora que graças a Deus e a El-Rei tenho dinheiro, arranjarei outro lugar onde viver.
E foi quando ia dar meia volta antes que de dentro acudissem a perguntar quem era aquele desconhecido e o que dali demandava, que lhe surgiu a Colaça, com seus negros cabelos enfeitados de branco, seu porte mais volumoso mas ainda altivo e seu riso, onde faltavam dentes, ainda descarado.
- Afonso Sanches, disse. Havia de reconhecer-te nem que viesses pintado de preto e vê como cumpri a minha promessa de manter o fogo aceso para o dia do teu regresso.
Abraçou-o com muitas lágrimas ali mesmo naquele topo de beco, onde duas casinhas gémeas semelhavam a sua condição de irmãos colaços.
Afonso beijou-lhe a testa e perguntou-lhe pela sua saúde e ela queixou-se um pouco dos ossos, que em noites de chuva como fora a última a faziam gemer de tão doridos. Mas a alegria de o ver, dizia ela, curava-a de todas as dores do coração e do corpo.
Fê-lo entrar, e a casa luzia de asseio, o que dizia tudo sobre a devoção de uma mulher que o não esperava.
Riu Afonso Sanches o seu riso mais claro e não se cansava de agradecer a Brites ter curado tão bem de sua fazenda, que pouca era, mas de muita estimação. Gabou-lhe o desvelo e o cuidado, enquanto ela servia da pipa dois picheis de vinho para festejar tanta alegria.
- Queres comer?, perguntou. E Afonso confessou que estalava de fome porque o almocreve tinha comprometimentos e se recusara a parar, comendo o caminho todo de uma grande chouriça que trazia no bolso e não quis oferecer.
Então Brites Colaça foi ao lado e trouxe uma galinha assada que fez lembrar a Afonso outra galinha de outro tempo e com a lembrança de outro tempo se lhe figurou Inês e foi como se ela estivesse ali sentada, comendo a galinha com eles.
- O que foi feito de Inês Garcia?, disse ele, após um longo silêncio onde mais não se ouviu que mastigar.
- Eu sabia, disse Brites mostrando a galinha mastigada na sua boca de poucos dentes, eu sabia que havias de perguntar por essa doida, só não pensei que fosse tão asinha. Quer dizer que nunca a esqueceste.
Como não te esqueci, ia a dizer Afonso, mas arrependeu-se e engoliu a fala com um bom pedaço do peito da ave, não fosse a Brites imaginar outras imaginações.
- Parece natural que a recorde, agora que voltei.
- Pois digo-te, Afonso, que essa mulher há muito que saiu de si e se tornou louca e é assim que todos lhe chamam, Inês a louca. Mas isso não a impediu de casar com Pêro Paes que lhe fez um ror de filhos e lhe deixou ao morrer a sua fazenda que muita é, e uma casa de moradia nas faldas da serra que construiu onde era a outra casa, para albergar a filharada toda e as maluqueiras da mulher. Por isso já vês, Afonso, que se a trazias na ideia desengana-te, pois dali não te vem bem nenhum, que a criatura é perigosa.
Ficou Afonso Sanches pensativo. Como podia a sua doce Inês ter-se tornado uma louca perigosa, era coisa que não conseguia figurar. E tentou imaginá-la velha e desgrenhada, dando gargalhadas à toa e maltratando os filhos. Pobre Inês, às vezes não se entendem os desígnios de Nosso Senhor.
Entrou-lhe uma tristeza que tentou disfarçar, perguntando pelo Mocho se estava vivo, se casara com Maria Gregória, se ainda andava no mar. E a tudo Brites lhe respondeu que sim, e que tinham três filhos, três rapazes que já iam na companha do pai, e soube nesse justo instante Afonso Sanches quem herdaria A Flor do Sal.
Mais animado, recomposto pela bela galinha assada no ponto e pela canja de miúdos, pediu a Brites que se retirasse porque precisava de dormir, moído que vinha por dois dias em cima da carroça do almocreve, desde Lisboa, fora o que penara no regresso de Évora.
Temia a cena que se iria seguir, apavorado com a ideia de enlaçar aquela velha e ter de beijar a sua boca desdentada. Cruel é a natureza com as mulheres pois, sendo da mesma idade, Afonso era um escorreito homem no vigor dos seus quase cinquenta anos e Brites uma sombra da bela fêmea que antes fora.
Mas Brites prontamente acedeu. Entendeu Afonso que ela tinha alguém à sua espera e assim era, pois perguntando-lhe para quem cozinhara aquela saborosa galinha que lhe oferecera, respondeu-lhe Brites que, verdade fosse dita, esperava alguém para a ceia mas, vendo-o chegar da janela, asinha mandara recado ao seu homem daquela noite para que viesse somente para dormir, pois à hora aprazada tinha de se ausentar.
Entendeu Afonso que o seu mester fosse de puta ao que ela prontamente respondeu que uma vez por outra recebia um ou outro homem e se o seu corpo fora de muitos o seu coração era, como ele muito bem sabia, de um só. E que o seu principal mester não era de puta, que a idade já para isso não ajudava, senão de inculcar amores e casamentos e para tanto lhe pagavam.
Sempre tiveste alma de alcoviteira, disse-lhe Afonso rindo, aliviado. O que bem está, pois é ofício de mulher experiente e aí pedes tu meças a qualquer uma.
Despediram-se como irmãos, amigos ou vizinhos e entendeu Afonso Sanches que seria essa a sua ligação, por felicidade, daí avante.
Antes, porém, de partir, Brites afofara-lhe o folhelho do colchão e sacudira-lhe as mantas, e viu-se que o fazia amiúde e certamente as punha ao sol, porque não havia rasto de humidade nem cheiro de bafio. E deste modo dormiu Afonso Sanches o sono dos justos, sem sonhos nem sobressaltos, como quem, depois de correr as sete partidas, volta ao regaço da mãe.
Acordou animado de uma só ideia: falar ao Mocho, fazer com ele um trato de parceria na nova embarcação que não tardaria a chegar, já encomendada em Lisboa, parceria essa em que o Mocho e os filhos entrariam apenas com trabalho, ficando o barco para os rapazes quando eles, por velhos e cansados, se retirassem.
Era para Afonso motivo de muito júbilo poder compensar o seu companheiro de tantos anos a quem, sem aviso, abandonara.
Esperou por ele na praia, já que lhe disseram que Gil Mendo saíra para o mar de madrugada, com os filhos, a aproveitar o bom tempo.
Ele viu quando chegaram, reparou no barco, escurecido de muito mar, a vela remendada, os remos partidos na pá.
O Mocho não o reconheceu logo: temos na cabeça uma imagem e esquecemo-nos que os outros envelhecem tanto como nós. E depois foi a festa. Os abraços, as palmadas nas costas, a surpresa e outra vez a surpresa, e o bom cheiro a sal e a saudade de um tempo para sempre afogado nas ondas.
Orgulhosamente, Gil Mendo apresentou-lhe os rapazes, Nuno, Duarte, e Gil Mendes, e aproveitou Afonso para dizer ao Mocho que haviam de cear essa noite para falarem do futuro deles. Intrigado, o Mocho, que não perdera a sua veia de escarnecer, perguntou-lhe se trazia das arábias ou lá por onde andara, noivas para os seus filhos com rostos cobertos e pés de sandálias.
E rindo muito aprazaram de encontrar-se numa taberna que era nova para Afonso, frequentada por pescadores e homens do mar.
Logo nesse dia sentiu Afonso o peso do juramento feito ao rei, pois a vontade era muita de contar ao Mocho as suas aventuras por mares desconhecidos, dizendo-lhe que cumprira o prometido vinte anos atrás naquela mesma praia. Limitou-se a dizer que navegara por mares a ocidente, mas que um temporal medonho impossível de imaginar nas ondas de Cascais, o fizera voltar à ilha Terceira. E que o oceano era tão largo e as dificuldades tão amargas que a nau de que dispunham não podia vencê-los.
Seria este o seu relato daí avante e a ele teria de afeiçoar-se e garantir que tudo o mais que se contava eram rumores e bazófias de marinheiros.
Perguntando por Maria Gregória, soube que passava bem de saúde, engordara e não perdera a boa disposição.
À ceia o Mocho levou os filhos, já que era deles que se iria falar e Afonso sentiu de novo a tentação de relatar-lhes as suas experiências, vendo aqueles três pares de olhos claros pousados nos seus, vidos de maravilhas de outros mundos.
A oferta, pois de uma oferta se tratava, encheu de alegria e surpresa aquelas quatro almas que sonhavam com um barco novo. Para que se não sentissem ofendidos Afonso afirmou que lhes ficava grato por aceitarem partilhar com ele as fainas da pesca de que andava há tanto tempo arredado.
Isto feito foi dormir, jurando que no dia seguinte iria à igreja agradecer a Nossa Senhora da Assunção o feliz regresso, pois já se sentia culpado de ter adiado essa devoção obrigatória.
Entrou na igreja com o coração cheio de esperança, leve como uma pena, talvez por sentir-se muito outro do que dali partira, talvez por saber que cumprira, com a benção da Santa, a sua missão.
Ajoelhou-se no seu velho banco a rezar de olhos fechados, primeiro as orações de todos, depois as suas próprias, e por fim, como costumava fazer antigamente, a conversar com ela de suas razões e pecados, de suas grandezas e misérias, de suas tentações e desacertos. Pediu forças para cumprir o juramento feito ao rei, rezou por ele, pediu as bênçãos do céu para todos os que andavam no mar.
Àquela hora a igreja estava vazia. Cruzara-se à chegada com duas velhas e não sentira entrar mais ninguém: nem eco de passos, nem balbucios de rezas. Antes assim. Gostava de ficar sozinho com a Senhora da sua devoção.
De olhos fechados, sentindo-se bem na penumbra fresca da igreja, deixou que o pensamento voasse para longe, para as aflições que passara na tempestade, para a protecção que da Senhora recebera nessas mesmas horas e de novo deu graças por estar vivo, e bem, e de regresso a casa.
E de súbito sentiu que a Santa descera do altar e estava na sua frente e abriu os olhos e viu-a vestida de branco, fitando-o a três palmos de distância. Levantou-se de um pulo.
- Senhora, disse. Senhora, que milagre é este que não mereço?
Então ela sorriu, tão linda e pura que parecia que a sua cabeça coberta por um alvo véu irradiava luz e falou assim.
- Afonso Sanches, não te assustes com a minha presença. Há vinte anos que espero este momento pois os encontros que tivemos não foram de molde a podermos trocar quaisquer palavras. Não me reconheces? Sou Inês Garcia, a que te ama.
Ficou Afonso Sanches um largo momento sem fala, vendo naquela mulher, que confundira com Nossa Senhora, uma cópia da outra, a dos encontros na fonte, mas se possível mais bela, mais madura, mais perfeita.
- Inês, murmurou. Como é possível?
- Tenho muito para te contar e disseram-me as vozes que te encontraria aqui e não há ninguém no mundo com quem mais necessite de largamente praticar sobre a minha vida.
- Fala, minha amada, disse Afonso, envolto naquela luz de mistério e fazendo parte do mistério como se uma fada o encantasse.
- Quando partiste casaram-me com Pêro Paes, como bem sabes, e eu em tudo consenti e tu tudo compreendeste e assim o demonstraste quando entraste a voar pela janela e me fizeste o meu primeiro filho. Andei um ano inteiro grávida de ti, ao fim do qual dei à luz a mais bela criança da cristandade.
Os outros sete são de nove meses, mas todos são teus, que a cada ano me visitavas, em noites de lua cheia quando eu me demorava bastante, debruçada em minha ventana, a ver o mar. Vinhas voando assentado no vento, e me levavas para a cama e sem palavras me amavas com paixão e tínhamos ajuntamento como soía e me fazias mais um filho. Assim nasceram todos os oito e nem o meu marido contestou quando lhe contei que só tu eras o pai. Por isso, meu rei, chegou a hora de casares comigo e conheceres os teus meninos, todos tão lindos como flores da altura.
Sorriu o sorriso mais doce que Afonso já vira em toda a sua vida e a sua pele branca, sem rugas, onde os olhos negros falavam de paz, era como seda que apetecia tocar.
Inês não envelhecera, talvez a loucura, que a mantinha na infância, lhe guardasse também a cintura e a face.
Afonso estava deslumbrado com aquela inocência, aquela pureza, aquele amor.
- Casa comigo, repetiu ela, e seremos felizes.
Então Afonso Sanches ajoelhou de novo, fez ajoelhar Inês ao seu lado e, perante Nossa Senhora da Assunção, prometeu que casaria com ela e seria um pai para os oito filhos que tão docemente lhe oferecia.
Ela encostou a cabeça no seu ombro como se estivesse habituada a esse gesto de carinho e disse, nunca mais partas, que o meu amor por ti é maior do que o mar.
Depois da noite gloriosa do jantar quinhentista, o Lourenço começou a dar sinais de querer partir de novo.
Eu fingia não perceber, muito ocupada com o meu livro de que já imprimira duzentas páginas e parecia não ter fim. É claro que não me restringia aos relatos de Afonso Sanches. A minha secretária estava coberta de manuais de História, de livros sobre navegação, de dicionários etimológicos, de estudos sobre costumes, roupas e alimentação no século quinze e ainda romances passados no mar.
Gastava às vezes mais tempo a ler do que a escrever, essa costumava ser a minha ocupação do final da tarde quando o Lourenço não invadia o escritório a declamar poesia ou a ler textos de prosa que o exaltavam, ou a meter no leitor as últimas descobertas em DVD, ou a mostrar-me livros de arte que respigava nas livrarias enquanto eu dormia. Nunca, com o Lourenço, a vida era monótona.
Apavorava-me a ideia de o ver partir. Perguntava-me o que faria da minha vida, da nossa casa, dos nossos novos colaboradores domésticos, a Mamma Giuli, o Adelino, o jardineiro Jerónimo agora polivalente como motorista e encarregado de compras várias, melões de Almeirim, vinhos raros, material eléctrico.
Tinha um filho de doze anos que o ajudava no jardim e que, segundo o Lourenço, tinha mão verde e passou a fazer parte da nossa comitiva. O Lourenço habituou-se a levá-lo nos seus passeios e aproveitava para ensinar-lhe coisas extraordinárias sobre arte, poesia, teatro, música, ópera. Chamava-se Jerónimo como o pai, mas o Lourenço rebaptisou-o de Pablo, vá-se lá saber porquê. Fazia os trabalhos de casa com ele e transformou-o no melhor aluno da escola.
Era uma vida tão boa, tão tranquila, tão sorridente, que um dia o Lourenço entrou de rompante no escritório onde eu escrevia, seriam duas da manhã, e ficou assim, de cócoras no cadeirão onde o meu pai sentava os clandestinos (era assim que chamávamos às visitas dele que não entravam pela porta da frente) a fitar-me daquela forma incomodativa como só ele sabe fazer, com os olhos azuis escuros a adivinharem os meus pensamentos.
Não esperas que eu consiga escrever com esses faróis de inquisidor apontados à minha testa, pois não?
- Não. Estava à espera de te passar um pouco de luz.
- Porque estou apagada, é isso?
- Era faísca que eu queria dizer. Sabes aquele clarão que nos dá de repente na cabeça e a pessoa enxerga.
- Enxerga? Enxerga o quê?
Ainda não te deste conta. Ou melhor, deste mas gostas assim. És a metade comodista do nosso eu.
- Queres mesmo que o Afonso Sanches assista à nossa conversa?
- Ele está aí?
- Está. Estava a contar-me como foi, depois que se casou Com Inês, a louca.
- Posso assistir?
Mas já Afonso se envolvia em bruma, se esfumava no brocado da parede, fazia ranger de leve a porta, só para marcar presença e desaparecia deixando atrás de si um quase insuspeitável rasto de luz azul. Pronto, foi-se embora. Ele não aprecia as nossas conversas. Já me contou que naquele dia, à mesa, se aborreceu de morte.
De morte, tem piada, disse o Lourenço. Ele, ou se aborrece de morte ou não se aborrece de todo. Não tem alternativa.
Tentei não me rir.
Não sei. Mas quando acedermos ao estado dele saberemos. Não vale a pena antecipar.
É uma coisa que terá de acontecer mais dia menos dia, mais menos dia que mais dia.
Eu, então, ri-me.
Não consegues ser feliz, pois não? Ficas logo com vontade de morrer.
É mais ou menos isso. Eu sei, e sei que tu sabes, que nós não podemos envelhecer. Não faria sentido. A nossa história é a história de pessoas novas, bonitas, saudáveis, fortes e lúcidas, não se aplica a velhinhos cheios de mazelas, de reumatismo, a colar a dentadura, a regougar de tosse, a variar da cabeça, a mijar na cama. Estás a ver-nos de fraldas? Não, Guiomar. Não faria sentido.
Eu ria, mas quantas vezes já tinha pensado nisso. Queríamos, como toda a gente, guardar a juventude para sempre, mas sabíamos, eu confusamente, o Lourenço com uma lucidez cruel, que no nosso caso não era só um vão desejo. Os que os deuses amam morrem cedo e claro que nos incluíamos nesse número, arrogantes que éramos na certeza da nossa diferença, da nossa especificidade, da nossa vaidade de nos sabermos escolhidos e amados dos deuses.
Era isso que me vinhas dizer, que não enxergo?
Não. Era que estamos a ficar banais. Triviais. Conjugais.
A transformarmo-nos nos tais velhos mijões e regouguentos. Em senhores de coisas, em vez de senhores de estrelas. Por isso, vou.
Vais aonde, Lourenço? Por amor de Deus.
Não fales em Deus. Nunca falaste em Deus, não precisas agora de vir fazer chantagem com essa abstracção.
Vais aonde, Lourenço?
Não sei. E embora o mundo seja tão pequeno ainda há-de ter algum lugar que não visitei, uma ou outra paisagem que não vi, talvez uma mulher que não amei.
És um presunçoso horrível e eu odeio-te.
Não te ponhas a chorar se não saio directo pela porta dos clandestinos, sem violinices, sem bagagem e sem esperar pelo nascer-do-sol.
Há dias que andas com os olhos cheios de viagem como o Afonso Sanches no princípio da minha história. Só não me digas, como ele disse a Brites Colaça, que posso apagar o fogo porque não voltas mais. Até ele voltou.
Tão diferente, querida. O que o levava a ele era o que não conhecia: o mar, a distância e o desejo de alcançá-lo. O que me leva a mim é o que tão bem conheço: o meu Mar, o meu amor e o meu remorso de senti-lo. Tu sabes. Tenho de partir, tenho de ficar longe de ti. Esta felicidade é boa de mais para não ser um enorme pecado. E isto atormenta-me, tu sabes.
As minhas lágrimas, que tentava engolir, já eram tantas, que a minha garganta deu um nó e não pude dizer nem mais uma palavra. Não fui capaz de mexer-me.
Ele, ao contrário, saltou do cadeirão como um gato e, tal como o Afonso Sanches, envolveu-se na bruma que os meus olhos choravam, esfumou-se no brocado da parede e fez ranger a porta que oscilou um momento. E o ar encheu-se do azul da sua ausência, que eu pressenti que havia de ser para sempre.
A casa ficou de luto. A Carminda e Mamma Giuli cochichavam na cozinha como num velório, o Adelino saía do quarto, que arrumava e limpava com desvelo, a assoar-se e a secar os olhos. O Jerónimo descurou os canteiros e lavava com desdém o meu automóvel, falava com saudade do Aston-Martin que o Lourenço levara.
Aquilo sim, era um carro digno de um rei. Não sei como a menina, irmã de rei, pode guiar aquela panela de pressão.
A panela de pressão, Jerónimo, é um Volkswagen Phaeton, último modelo. Não serve para ti?
Não dizem que isso é o carro do povo? Onde já se viu!
O Pablito vinha às vezes rondar o jardim, entrava muito instado pela Carminda, para lanchar, ficava à espera de notícias que não havia.
Eu escrevia. Decidi que o trabalho era a única panaceia possível.
O Afonso Sanches, que tinha amuado depois da nossa conversa interrompida, resolveu voltar.
Com uma noção do tempo diferente da minha, começou o relato exactamente onde tinha deixado, no seu casamento com Inês.
Contou-me então que, apesar da celeuma que tal notícia havia provocado, e da desaprovação do povo e dos avisos do Mocho e das pragas da Brites, tinha sido imensamente feliz com ela, cuja loucura era tão mansa e risonha que não causava dano nem moléstia. Os filhos, cinco meninas e três rapazes, eram a alegria da casa e aceitaram-no como pai. Lindos como querubins, decerto o céu ajudara Pêro Paes a fazê-los, pois além da boniteza, eram de muito acerto seus ditos e feitos.
Uma noite, deitados na bela cama herdada de seu esposo, perguntara-lhe Inês se amara outras mulheres por esse mundo além. E Afonso respondeu-lhe que sim. E que fizera com elas o que sempre um homem e uma mulher podem fazer, por mais diversas que sejam as palavras de suas falas, a cor de suas peles ou as crenças de seus corações.
Inês não sabia o que era o ciúme. Por isso riu, com a carinha de fada encaixada no pescoço dele, envolvida no seu cheiro de homem, no macio de suas barbas, na solidez suave do seu ombro.
Afonso pensou nas mulheres que tivera, na luxúria tempestuosa da Colaça, na descoberta maravilhada de Ita, no desenfado sábio e alegre de Libânia, e soube que com Inês era diferente.
Era como se alguma coisa muito maior o transportasse fora deste mundo, uma agonia clara, uma doce morte, uma melodia de todas as veias tangida por anjos, que em suas asas os levavam ao céu.
- Inês, minha amada, onde estiveste todos estes anos?
- A deitar-me contigo, a parir os teus filhos, a amá-los e a cuidá-los para que os encontrasses a teu jeito. Foi aí que estive, Afonso Sanches. E a assentar-me no vento para que, mesmo do outro lado do mar, não pudesses esquecer-me jamais. Foi aí que estive, que o amor, de asas abertas, é tão imenso que ninguém o vê. Como Deus, Afonso. Como Deus.
Contou-me Afonso Sanches que, dos filhos o mais velho curou adrede da fazenda dos pais, outro abriu comércio de vinhos, que os tinham de boa qualidade e o mais novo fez-se marinheiro, onde atingiu alto posto por achador de terras novas. E as meninas se casaram com gentis-homens, pessoas de bem, tirante a mais nova que não quis fidalguia e caiu de amores pelo filho mais moço de Gil Mendo, no que agradou muito a ambas as famílias.
De mais coisas quis fazer-me parte, contando-me que ainda de seu tempo se dera a funesta queda de cavalo, em 1491, de D. Afonso, filho do rei, em que estavam depositadas as esperanças do futuro de meio império, e como dela morrera, e com ele o sonho do príncipe perfeito.
Mas a rei que é rei não lhe minga a vontade e, em 1494, se assinou o tratado que dividia o mundo a meio, já depois de, dois anos antes, o listo Cristóvão Colombo ter chegado à Nova Terra a Ocidente.
Morreu o rei D. João, segundo dizia o povo, envenenado por seus inimigos, e por ele Afonso Sanches deitou luto no coração.
Nuno Mendes, o filho mais velho do Mocho, foi nas naus de Vasco da Gama e, em 98, chegou à índia, e disso lhe trouxe notícia tempos passados, quando já as pernas de Afonso vacilavam e os olhos não enxergavam coisa que prestasse.
E dois anos depois trouxe-lhe mapas e boas novas, contando-lhe que Pedro Álvares Cabral chegara a Ocidente, muito mais a sul que Colombo, a terras chamadas de Vera Cruz, e foi quando Afonso Sanches, lembrando a conversa que tivera à puridade com seu amado rei e senhor D. João II, se sentiu parte do mistério, do plano grandioso daquele homem, como se tivesse colocado a sua pequena pedra no mapa infinito da vontade de Deus.
Esta foi a última visita que Afonso Sanches me fez. Parecia-me cada vez mais cansado, como se, ao contar-me a sua vida, a revivesse. E foi já sem forças e como um ectoplasma dissolvendo-se na penumbra do seu canto favorito do escritório, que me contou como os filhos da sua doce Inês, sobreviva, o enterraram na nave da igreja de Nossa Senhora da Assunção em sua dignidade de Capitão de Mar e onde, tal como os seus feitos por razões de Estado não foram revelados, também o seu nome, gravado na lage que o cobria para perpetuar-lhe a memória, foi, com os séculos, pelos pés dos homens apagado.
Trabalhei com ritmo e perseverança, tentando fazer passar para segundo plano a saudade lancinante do meu imprevisível irmão e ao fim de alguns meses tinha o livro pronto.
O Tomás queria fazer uma festa, mas eu tenho horror a triunfalismos antecipados e ficou combinado o lançamento para Outubro, com um pequeno grupo de fiéis e uma taça de
champanhe.
Os meses que se seguiram foram de muita tristeza. Queria avisar o Lourenço que o livro estava entregue na editora, que adoraria ter a ajuda dele para rever as provas, que o queria ao meu lado na festa de apresentação. Mas não consegui contactá-lo e ele não virá. Provavelmente não viria em circunstância alguma. Provavelmente trocou o remorso pela saudade e o pecado pela solidão. Definitivamente. E eu, que não sinto remorso e não conheço o pecado, tenho de contentar-me com a solidão e a saudade.
Que farei, Lourenço? Viverei rodeada de fantasmas, fora e dentro de mim? Ou será que todos existem apenas dentro de mim? Será o Afonso Sanches o fantasma da escrita a que os néscios chamam inspiração e que me habitou todo este tempo apenas para me impelir a escrever?
Não sei as respostas, mas tenho tempo de pensar em tudo isto até que o livro saia, já que estou de pousio, com a alma vaga e o coração suspenso. Depois, quando o romance já for um objecto, com corpo e vida própria, poderei, quem sabe, autorizar-me a congeminar o próximo, que ainda se não perfila em nenhum horizonte da minha imaginação.
No dia da apresentação do livro tudo correu como previsto, à excepção da alegria da autora, que teve de ser fingida.
Senti a presença do Lourenço e isso fez-me olhar para todos os lados como uma doida tomada pelos nervos, numa constante expectativa angustiada.
Nessa noite deitei-me mais cedo que o meu habitual, seriam umas três da manhã e, não sei por que milagre, adormeci imediatamente, com uma sensação de assunto arrumado, de dever cumprido, de viagem prestes a terminar.
De súbito acordei, ou sonhei que acordava e, de olhos fechados como no tempo em que me fazia cega, fiquei muito atenta a todos os estímulos que os outros sentidos captavam. Soube que Afonso Sanches estava presente, provavelmente fora ele que eu pressentiria no auditório onde se realizou o lançamento. Aproximou-se da cama com o seu cheiro a mar, misturado com alfazema e limão, a sua barba macia onde os meus dedos se perderam e tomou o meu corpo como eu sempre soube que um dia o tomaria. Tudo aconteceu como se a cama fosse um barco balançando nas ondas ao pôr-do-sol em gestos lentos que o sono esfarrapava.
De olhos bem cerrados, no êxtase que se seguiu ao amor, murmurei, tão baixinho que só eu pude ouvir, o nome amordaçado em mim, Lourenço, Lourenço, Lourenço, e foi como fogo dentro da minha boca, o sal da regeneração no baptismo, o hálito sumarento da vida. Fiquei ali a saborear a minha saudade, meia laranja privada de ti, sem querer abrir os olhos nunca mais para uma realidade onde não estavas.
Vou ser cega, decidi.
E então, num sussurro ao meu ouvido, soou a palavra sagrada, como um vinho, como um beijo como um voo
Surunat
e eu soube que a minha viagem tinha chegado ao fim, e era ali o porto, o cais, a terra achada no outro lado dos oceanos.
Do fundo abissal da minha alma onde monstros marinhos rastejam no escuro e carcaças de navios afogados se disfarçam de plantas carnívoras, subiu o melhor de mim, o melhor do mar, a brancura incorruptível da flor do sal.
Surunat, disseste. Em sonho, em corpo ou em espírito, estás aqui.
De manhã o Lourenço não estava. Ninguém o vira. A Carminda teve a certeza de que eu estava doente, porque me levantara tão cedo, tão afogueada, tão febril, a perguntar, delirante, pelo meu irmão que ninguém via há meses.
Chamou o médico. Mas quando ele veio eu tinha saído, porque me pareceu indispensável ir a Cascais visitar a jazida de Afonso Sanches e procurar, como ele fazia, alguma paz na nave da igreja de Nossa Senhora da Assunção.
Não sou religiosa, isto é, não professo nenhuma religião particular. Mas o meu misticismo fez-me sentir bem naquele ambientem sereno, naquela luz difusa, naquele silêncio pacificador.
Sentada no banco que, pelas descrições de Afonso Sanches, pensava ser o dele, descobri que também eu sofria as consequências do meu tratado de Tordesilhas: ultrapassara a linha imaginária para além da qual a minha nau, carregada de todos os tesouros da alma, não deveria navegar. O meu rei era o mundo das proibições, das convenções, dos atavismos.
Eu atravessara a linha mas era essencial que o não contasse a ninguém. D. João II, na sua genialidade, inventou um tratado que é uma metáfora das limitações da alma humana.
Entendi a razão por que Afonso Sanches me procurou a mim: o seu ideal de felicidade, tal como o meu, estava para lá do meridiano possível.
Arriscaria eu a cabeça e a vida se não obedecesse ao rei? Certamente que sim.
Olhei em volta e tomei consciência de que esta igreja era bem diferente da que Afonso Sanches conhecera. Do tempo dele seriam os azulejos azuis e brancos que revestem as paredes até um terço de altura, mas não os painéis da vida da Virgem e do Apocalipse. Talvez as pinturas quinhentistas com motivos da vida de Jesus menino atribuídas ao Mestre da Lourinhã, mas não as de Josefa de Óbidos, pintadas no século dezassete.
Olho encantada para o Menino que ostenta a típica cercadura de flores e ponho-me a pensar que talvez Josefa, censurada na época pela sua actividade de pintora, reservada apenas aos homens, se sentisse obrigada a adoçar com rosas os seus quadros para torná-los mais femininos, mais próximos dos bordados, esses sim, próprios da sua condição de mulher.
Também ela, a querer e não querer pisar o risco, também ela a querer ir mais além do que lhe permitiam.
Alguém se sentou ao meu lado. Afonso Sanches, meu amigo, vem cumprimentar-me, ou despedir-se de mim para sempre. Sorri sem olhar. Deixei que agisse à sua maneira, sempre imprevisível.
E foi então que lhe ouvi a voz. Sem aviso, sem prólogo, sem saudação, disse:
Eu Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti. - Era pior que a morte, o que antevi era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura de não poder viver longe de ti...
Não podia ser Afonso Sanches. Não citaria um poeta que nasceu quinhentos anos depois dele: David Mourão-Ferreira, ao meu ouvido, na igreja de Nossa Senhora da Assunção.
E o Lourenço brilhou-me nos olhos que não ergui, ardeu-me nas mãos com que não lhe toquei, e a palavra sagrada, como um fruto, arredondou-se dentro da minha boca, lambeu-a por dentro com o seu sumo e o seu aroma de plenitude,
Surunat.
Não quis olhar. Deixei que me passasse o braço pelos ombros, me apertasse contra ele, me beijasse no rosto muito ao de leve. Percebi que deixara crescer a barba. Uma barba loura, que o fazia mais velho.
Em cada ser humano, disse ele, existe a noção de Bem e de Mal. Mas porque somos as duas metades de um ser, tu não conheces o Mal e eu não conheço o Bem. Para ti tudo é puro, nada é crime. Para ti tudo é natural e belo, doce e inocente. Mas na metade que me coube há uma luta infernal entre o que devo e o que não devo, entre o que posso e o que não posso, entre o que é e o que não é.
Não sei resolver isto. Tu és o meu único amor. Por isso fugi, corri mundo, conheci mulheres, mas nenhuma era a minha meia laranja, a minha alma gémea, o meu paraíso.
Talvez esta seja uma nova maneira de existir. Talvez sejamos mutantes, um único ser partido ao meio que não tem que ir buscar mais longe o seu complementar. Procurei e não encontrei. Só te amo a ti. E esta madrugada, quando te tive nos braços pela última vez, pensei na hipótese de Deus nos ter escolhido como cobaias de uma novíssima humanidade, onde cada um nasce, à partida, acompanhado do par que lhe compete. Talvez sejamos a experiência divina de uma nova, uma única, uma ímpar forma de amar.
Foi então que o olhei e vi que chorava. Nunca, em trinta e cinco anos de vida, o tinha visto chorar.
Irmã, disse, e beijou-me os cabelos. Procurou, com os dedos da mão esquerda, os dedos da minha mão direita. Erguemos essas duas mãos entrelaçadas para rezar, como se fôssemos um só, a um Deus qualquer que nos ouvisse, que nos entendesse, que nos desse uma resposta. Não precisámos de trocar uma palavra, nem mesmo um olhar, para saber. Ambos tivemos a certeza de ter ouvido as palavras mais além.
Senti-me inundada de uma intrigante luz azul, como se Afonso Sanches me sorrisse da sua jazida, pisada e repisada por incontáveis gerações, e dissesse, terminámos a nossa viagem, provámos a flor do sal, chegámos ambos à outra ponta do mar.
Foi nesse instante que decidimos morrer.
Era Outono. Pela primeira vez as folhas mortas do nosso jardim não tinham sido varridas. Gostávamos de as ouvir estalar debaixo dos pés, escolhíamos as mais secas, algumas ficavam presas às solas, aos atacadores dos ténis e era bom caminhar assim abraçados, um pouco arrepiados, eu com a mão metida no bolso do casaco de malha do Lourenço.
Dirigíamo-nos à porta do escritório, mas quando estávamos a chegar dávamos meia volta e percorríamos de novo o jardim, devagar, a aproveitar aquela luz linda do poente.
Por fim, quando se apagou o clarão nos vidros da porta, decidimos entrar porque nos apetecia uma laranja e havia muito a decidir.
A razão por que as folhas não eram varridas há três ou quatro dias, era a viagem que tínhamos oferecido aos nossos amigos Carminda, Mamma Giuli, Adelino, Jerónimo e Pablito, sob pretexto de levarem a nossa genovesa a conhecer Portugal.
Emprestámos-lhes a panela de pressão e, sem limite de gastos, recomendámo-lhes que ficassem pelo menos quinze dias e não perdessem o mais bonito do país.
Foi preciso discutir porque a Carminda conhecia a nossa inépcia nas tarefas domésticas e achava impensável deixar-nos sós. Então o Lourenço garantiu que também nós íamos viajar e que, provavelmente, nem nos encontrariam quando voltassem.
A Carminda e a Mamma Giuli concordaram logo que quinze dias eram de mais para abandonar uma casa daquele tamanho e que no máximo se demorariam dez dias.
Já tinham partido há três, e nós divertíamo-nos a inventar jantares, a dormir em camas por fazer, a ver os progressos do pó em cima dos móveis.
Nada tinha importância a não ser aquela alegria que se apoderara de nós, aquele realce que as pequenas coisas de repente tomavam, como se focadas por um zoom interior: o ruído das folhas secas, o sol reflectido nos vidros, a perfeição dos gomos da laranja.
Ouvíamos música dia e noite, Bach, Mozart, Beethoven e sobretudo óperas que seguíamos de libreto na mão e era como se as notas agudas da Callas fossem verdadeiramente o som dos momentos que estávamos a viver.
Preparámos tudo ao pormenor. Fazer testamento, validá-lo no notário, deixar uma cópia em casa para que a encontrassem.
Deixámos tudo aos nossos amigos.
· Mamma Giuli e ao Adelino uma grande quantia para abrirem um restaurante e para comprarem um apartamento. Isto na sequência da conversa havida, onde, na brincadeira, diziam que haviam de viver como mãe e filho e abrir o melhor restaurante de comida luso-italiana que Lisboa já vira.
Para o Jerónimo o Aston-Martin, que o vendesse ou não, era com ele, e o suficiente para a sua reforma. E os estudos do Pablito, até onde ele quisesse avançar, ficavam garantidos por um fundo em dotações de valor progressivo até aos seus trinta e cinco anos.
À Carminda deixámos tudo o resto, incluindo esta casa. i Ao Tomás deixei todos os meus manuscritos, disquetes e apontamentos, em suma, o meu baú, depois de devidamente expurgado do impublicável. E o Lourenço entendeu deixar-lhe um bom reforço de capital para a editora, a pretexto de querer as minhas obras particularmente bem tratadas. Isto estava feito. Faltava agora o principal. Pusemo-nos rapidamente de acordo sobre o modo de agir, embora os dez dias a que a Carminda nos reduzira fossem manifestamente curtos para o nosso plano.
O Lourenço tinha que ir a Istambul procurar, numa ruazinha misteriosa, os comprimidos mágicos recomendados por uma strega que conhecera na Toscânia, com quem longamente conversara sobre filtros e poções de sedução e morte. Ela dera-lhe, em troca de uma noite de amor, esta preciosa informação. Foi, e trouxe duas cápsulas de hóstia e as recomendações de utilização. A vítima não devia comer nas vinte e quatro horas antecedentes. Dez minutos antes de serem ingeridas deviam desfazer-se num copo de chá verde sem açúcar. Levavam sete minutos a fazer efeito, suave, indolor e definitivo. Não provocavam vómitos nem alucinações se se seguissem as instruções à risca. Recomendava-se deitar a vítima pelo menos dois minutos antes do fim.
Fomos mantendo contacto telefónico com a Carminda porque queríamos que tudo acontecesse poucas horas antes da chegada deles. Uma manhã ligaram de Ponte de Lima e disseram, chegamos hoje, estamos a caminho de casa. Uma sorte não ligarem de Santarém ou de Leiria. Deixavam-nos o dia todo porque, se bem os conhecíamos, haviam de parar para um copioso almoço. E ainda bem, porque o espectáculo que os esperava não se compadecia de estômagos vazios.
Ficámos loucos de excitação.
Começámos por preparar os fatos do jantar quinhentista e ajudámo-nos mutuamente a vesti-los. Para quem apreciava rituais como o Lourenço, este era verdadeiramente o paradigma do ritual.
Uma vez prontos, abraçámo-nos e beijámo-nos pela última vez. A seguir o Lourenço insistiu para que eu me maquilhasse. A ele bastava-lhe a barba loura que o tornava um verdadeiro príncipe.
Depois combinámos onde nos deitaríamos e decidimo-nos pelos grandes sofás da sala, paralelos, com os pés para a lareira, que acendemos.
Na mesa entre os sofás, de que retirámos todos os objectos, deixámos apenas um envelope com a cópia do testamento e um breve bilhete de despedida: Estamos fartos de ser donos de coisas. Resolvemos ser donos de estrelas para toda a eternidade. Obrigado por terem gostado de nós.
À hora aprazada pusemos as pastilhas em chá verde, previamente arrefecido até estar morno, conforme as instruções. Dez minutos depois brindámos à luz de mais além e, sem uma hesitação, bebemos lentamente todo o líquido. Nos sete minutos que restavam tive tempo de lavar os copos, que era a minha única prenda doméstica e de guardá-los como se nunca tivessem servido.
Depois deitámo-nos. O Lourenço ajudou-me com o vestido, para que ficasse bonito e com a roda bem distribuída. Como estátuas jacentes e ao som de um trecho musical de Haendel, deixámo-nos, docemente, adormecer.
Não tardou que nos encontrássemos junto ao tecto pintado, admirando os nossos lindíssimos cadáveres. O Lourenço ainda desceu para compor uma prega da minha saia. A estética acima de tudo.
Quando chegaram, assistimos ao choque, ao espanto, aos choros, aos gritos, aos desmaios. Decidiram telefonar ao Tomás, que os ajudasse a entender e a agir.
O Tomás veio e, branco como cera, murmurou, eu sempre soube que eles não eram normais. O que fez a Carminda saltar-lhe em cima, pobre dela, a tentar defender o indefensável.
Depois seguiram-se coisas muito humanas como chamar o advogado, a polícia com o médico legista que nos levou para uma autópsia de resultado decepcionante. Tudo isso nos fez um pouco de pena, porque toda essa gente estragou a nossa encenação. Mas já nada tinha a menor importância.
A Carminda, a Mamma Giuli e o Adelino deixaram a casa ao fim de poucos dias. Não queriam mais permanecer no que eles consideravam o teatro da tragédia.
Com o tempo, compraram um óptimo apartamento onde vivem os três e abriram o melhor restaurante de comida luso-italiana da zona de Lisboa.
O Jerónimo conservou o carro. O Pablito estudou até ser um investigador de renome, diplomado nos Estados Unidos.
O senhor das quartas-feiras morreu e o Adelino tem agora um novo amigo que adora. É um belo rapaz, com um tipo fino e uma barba loura.
Paulo e Virgínia, Abelardo e Heloísa, Romeu e Julieta, Pedro e Inês, Lourenço e Guiomar.
Ficámos para sempre na nossa casa, leves, livres, alegres, loucos, de novo adolescentes, brincando às escondidas por corredores, escadarias e salões, fazendo jogos entre espírito e matéria, entre a luz e a sombra, entre o céu e a terra.
Sabemos agora, acho que sempre soubemos, que não somos, que nunca fomos, complementares. O homem e a mulher não o são. Nem, no mesmo ser, o lado feminino e o lado masculino se complementam. Antes se penetram de forma inextrincável, e em cada pensamento, em cada sentimento, em cada acto, há a mistura dos dois.
As almas dos seres que se amam não se completam, entrelaçam-se.
Construímos a nossa lenda de complementaridade sobre as últimas palavras da nossa mãe, tive um filho dividido em dois.
Foi o que nos marcou. Tudo o resto foram pretextos para a paixão.
Pela janela do terraço do meu quarto, que se abriu numa noite de temporal, entram as folhas secas do Outono. Um pássaro fez ninho em cima da minha cama.
Este é o limbo da nossa eternidade. Desarrumamos os livros da biblioteca, cantamos canções de embalar, arrepiamos com as nossas gargalhadas quem passa no jardim, expulsamos, com os nossos gemidos e sussurros, os ladrões ou os sem-abrigo que aqui procuram refúgio.
A Carminda pôs a casa à venda, mas ninguém a quer, porque dizem que está assombrada.
EPíLOGO
Uma senhora de meia idade está sentada no seu escritório com porta envidraçada para o jardim. Veste-se de escuro, casaco de malha, blusinha de seda com laço, calças pretas e ténis da mesma cor. Sempre ténis, para passear com o cão a qualquer hora, um bom pretexto para fazer exercício. Mas hoje não. Hoje a manhã está de chuva.
Esta mulher é escritora. Atesta-o a prateleira à sua esquerda, com uma vintena de livros que levam o seu nome. Três ensaios; de resto, tudo romances. A imaginação é o seu forte. E tem sucesso, a avaliar pelos seus muitos leitores (principalmente leitoras), que apreciam o seu estilo um tanto enfeitado, um pouco barroco.
Publicou recentemente o que ela chama uma das suas iluminações. Agora o escritório está arrumado: a bibliografia nas estantes, os apontamentos guardados, ordenado o que é preciso ordenar, desligado o que é preciso desligar. Até à próxima iluminação, diz ela.
Nasceu naquele palacete construído por seu avô paterno e ali cresceu, muito acarinhada por seus pais na sua condição de filha única. Brilhante aluna, fez a sua licenciatura em letras e chegou a dar aulas num colégio particular. Depois passou a dar explicações em casa, onde, por brincadeira, chamavam clandestinos aos alunos que entravam pela porta do jardim: a Carminda não queria ver pegadas adolescentes pela casa toda.
A Carminda é a sua inseparável governanta e amiga. Não fazes ideia que louco que é o meu livro, ri a escritora. Fez-se escritora a tempo inteiro há muito tempo, quando percebeu que os livros a consumiam de tal forma que não sobrava espaço para mais nada.
Não imaginas as maluqueiras que ali escrevi. Tudo a propósito de um navegador que chegou à América doze anos antes do Colombo e a quem D. João II mandou que se calasse. Inventei o resto da vida dele e muitas outras coisas completamente doidas. Não quero que o leias. Não é próprio para ti.
Ó menina! A menina diz sempre isso e eu leio-os todos. Quando não percebo alguma coisa, a menina explica-me e essas são sempre as nossas melhores conversas.
Tens razão, Carminda. Já estamos adultas, não é? Podemos ler tudo. Tu acreditas que enquanto os papás foram vivos eu não lia certas coisas? Não sei, por respeito.
Porque eram pessoas à antiga. Mas olhe que os seus livros daí para a frente... Ele é amores, ele é mortes...
É a vida, Carminda. A vida cá de fora e a vida dentro da minha cabeça, que é muito mais real que a outra...
Sabes o que ando a pensar, Carminda? Podíamos vender este casarão, tão escuro, tão difícil de aquecer no Inverno, e comprar um apartamento para as duas, pequeno, com muito sol... Não dizes nada?
Ó minha querida! Mudar de casa como, se a menina não vê?
A outra volveu-lhe, numa gargalhadinha mansa, gutural, tens toda a razão. Habituei-me aos cantos desta casa desde pequenina, não ia ser capaz de aprender outra, pois não? Claro que não. Maluquice minha.
E se nos fizesses um cházinho?
A Carminda sai, depois de a olhar um momento da porta,
sem expressão.
O cão dá mostras de querer ir à rua. A senhora levanta-se, abre, fica à espera dele encostada à porta envidraçada, a ouvir a chuva, a sentir os cheiros que o jardim lhe oferece.
Faz, consigo própria, uma aposta infantil: quem chega primeiro, o chá ou o cão.
Fica feliz porque ganhou. O cão chega primeiro. É preciso enxugá-lo com uma toalha velha, escondida num lugar certo do armário, porque cheira a pêlo molhado.
O chá vem a seguir e cheira a hortelã. Os biscoitos a erva-doce. A mão da Carminda, que ela segura e beija, cheira a sabonete de limão.
Rosa Lobato de Faria
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