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Era um pequeno e estranho objeto, um crucifixo de madeira, bastante enegrecido pela idade. Olhando-o atentamente, conseguiu enxergar uma espécie de antigo entalhe nele; mas de que tipo ou de que data era impossível saber. Fosse qual fosse o tipo de entalhe, o pingente era uma cruz simples de madeira, e o vigário a aprovava.
— Você realizou um ato cristão esta manhã — disse afetuosamente —, e estou igualmente feliz por ver que optou por usar essa cruz simples... pois deve saber que para mim ela vale muito mais do que qualquer ornamento de ouro ou prata. — Ela não conseguiu deixar de corar de prazer diante de tal elogio. - Mas diga-me, Fanny — continuou ele —, de onde veio isso?
Ela tinha apenas sete anos na ocasião, mas lembrava muito bem. Sua mãe a havia levado à tal casa. Ela supunha ser em Lymington. Não tinha certeza, mas a mãe pareceu ter atravessado alguma coisa.
A velha senhora estava sentada perto do fogo. Pareceu muito velha a Fanny — uns oitenta anos, talvez —, toda envolta em xales, mas com um ar tranqüilo; um belo e amistoso rosto envelhecido e olhos azuis muito brilhantes.
— Traga logo a criança aqui, Mary — disse ela para a mãe de Fanny. Houve um traço de impaciência em sua voz. — Você sabe quem eu sou, menina? — perguntou.
— Não. — Fanny não fazia a mínima idéia. Viu a velha olhar de relance para sua mãe e sacudir a cabeça.
— Eu sou sua avó, menina.
— Minha avó! — Sentiu-se tomada pela emoção. Nunca havia visto tal pessoa. Seu pai era tão velho quando se casou que a mãe dele morreu muito antes de Fanny nascer. Quanto à sua mãe, supunha ter acontecido o mesmo. Virou-se então para ela. — A senhora nunca me disse que eu tinha uma avó. — Falou num tom de censura.
— Pois bem, você tem! — A velha senhora exclamou bruscamente. Depois disso tiveram uma conversa amável. Fanny não conseguia lembrar
muita coisa do que falaram. A avó falou do passado e dos próprios parentes, e de outra família há muito desaparecida. Seus nomes nada significaram para Fanny, embora tivesse mantido uma vaga mas inesquecível impressão de brisa marinha, navios, uma vaga aventura; como se tivesse aberto uma janela escondida e olhado, cheirado, provado um mundo que não havia conhecido anteriormente — e que nunca mais voltaria a conhecer, pois não foi levada novamente para ver a velha senhora. Ficara confinada ao mundo florestal de Albion House por muitos anos depois disso. A casa em Lymington e a avó há muito falecida tinham recuado para o fundo da memória como um único dia da infância passado à beira-mar.
Restava apenas uma evidência tangível daquele encontro. Pouco antes de partirem, a avó havia tirado a pequena cruz do pescoço e entregue a ela.
— Isto é para você, menina — disse ela —, para se lembrar de sua avó. Ela me foi dada pela minha mãe e está na família por não sei quanto tempo. Desde antes da época da Armada espanhola, é o que dizem. — Segurou-lhe a mão. — Se eu lhe der isto, promete guardar?
— Sim, vovó — respondeu. — Prometo.
— Muito bem. Agora dê à sua avó, a quem você nunca tinha visto, um beijo.
— Eu virei novamente, agora que a conheço, e a senhora irá nos visitar — disse Fanny, contente.
— Apenas guarde essa cruz — retrucou a velha senhora.
Ao voltarem para a rua, ela ficou muito surpresa pelo tanto que a mãe parecia furiosa.
— Imagine! Dar para uma criança essa coisa velha e suja—exclamou, olhando com repugnância para a pequena cruz. — Vamos jogar isso fora assim que chegarmos em casa.
— Não! — gritou Fanny, com um ímpeto inesperado. — É minha. Foi a minha avó quem me deu. Eu prometi guardar. Eu prometi.
Escondeu a cruz para que ninguém a roubasse. Um ano depois sua mãe morreu. Quanto à avó, supôs que também tivesse morrido. Não houve mais nenhuma menção a ela em Albion House. Mas Fanny sempre manteve a cruz.
— E quem era sua avó? — quis saber Gilpin.
— Minha mãe era a Srta. Totton, como sabe — explicou Fanny. — Portanto, minha avó deve ter sido a velha Sra. Totton. Sei que ela foi a segunda esposa do Sr. Totton. A primeira, de quem descendem os meus primos Totton, era uma prima dos Burrard. Portanto, devo imaginar que ela era de uma dessas antigas famílias de Lymington que tinham ligação com o mar.
— Indubitavelmente — concordou Gilpin. — Uma dos Button, talvez. — Anuiu. — Sabe, é provável que conste do registro da paróquia de Lymington, se eles se casaram lá.
— Sim, claro. Eu não tinha pensado nisso. Deve constar mesmo. — Sorriu. Você me ajuda a procurar um dia desses?
Anoitecia: as duas figuras vieram separadas, de direções opostas. Ninguém teria imaginado que iriam se encontrar em um local predeterminado.
Charles Louis Mane, conde d’Hector, general, aristocrata, tão valente quanto qualquer um dos lendários Três Mosqueteiros, tomava todo o cuidado ao seguir a Pé a High Street acima, tão à vontade como se estivesse desfrutando uma caminhada ao anoitecer. Seu confiante companheiro descia de modo semelhante por uma alameda na parte dos fundos.
O francês era uma visão elegante. Ao passo que a maioria dos homens usava na época seus próprios cabelos, ele e os colegas refugiados usavam as curtas perucas empoadas da corte francesa. Um casaco e calções de seda completavam suas vestes, como se afirmassem: ”Nós não apenas deploramos a Revolução em nosso país, como até mesmo nos recusamos a reconhecer sua existência.”
O que quer que alguém pensasse do antigo regime monárquico da França, a Revolução Francesa de 1789 havia se transformado em uma questão desesperadamente sangrenta. As experiências iniciais de democracia republicana tinham dado lugar à guilhotina, para a aristocracia e a família real, e mais recentemente, sob o medonho Terror, chegando à execução em massa de milhares de pessoas acusadas de inimigas da Revolução. Os aristocratas e seus seguidores, como a comunidade francesa em Lymington, tinham fugido como puderam. Toda a Europa observava, horrorizada. As potências continentais se prepararam para a guerra. Ninguém sabia aonde podia levar essa agitação além-mar. Mesmo na tranqüila Lymington, onde raramente se tomava conhecimento de algo que não lhe dizia respeito, o conflito francês se tornara real com a presença dos refugiados em seu meio.
Havia em Lymington cerca de uma dúzia de fidalgos como o conde, vários com suas famílias, a maioria hospedada com os melhores mercadores locais. Existiam também três regimentos — quatrocentos soldados no pequeno acampamento da cidade, outros quatrocentos homens da artilharia na maltaria em New Street
mais seiscentos marujos da marinha real francesa aquartelados em edificações de fazendas próximas a Buckland. Essa gente, como não podia deixar de ser, constituía um considerável transtorno para a comunidade mas era tolerada por causa dos galantes oficiais que a comandavam. No dia anterior o conde fizera com que oito desses homens fossem duramente açoitados na esquina de Church Street,
fim de deixar claro aos habitantes de Lymington que a indisciplina não seria tolerada, e todo o quadro de oficiais modificara o seu modo de agir para se tornar mais afável tanto em relação às damas quanto aos seus maridos. Por enquanto! pelo menos, eles ainda eram hóspedes bem-vindos. Mas o conde não tinha ilusões. Bastava uma pisada em falso, e a vida em Lymington poderia se tornar bastante desagradável.
A encomenda que Grockleton lhe entregara pela manhã, portanto, fora de fato aterrorizante. Não a carta da Sra. Grockleton, convidando a ele e a dois colegas oficiais para um jantar na semana seguinte, mas a outra mensagem, enfiada discretamente pelo marido no interior daquela, após tê-la recebido da mão da esposa. Se a mensagem significava o que o francês suspeitava, devia referir-se então a um assunto que precisava ser tratado com todo o cuidado; e foi por isso que por precaução, o conde escolhera um amigo para lhe fazer companhia, como testemunha, naquele encontro secreto à noitinha.
”Não vou ainda falar para nenhum dos outros oficiais, mon ami, explicara. ”Só estou lhe contando porque confio não apenas na sua orientação, como também na sua total discrição.”
Estava quase escuro quando virou para sair da High Street, perto da igreja.
Entre todas as invenções, os construtores ingleses haviam descoberto, no último século ou coisa assim, que nada era tão encantador quanto uma espécie particular de obra de demarcação usada freqüentemente em jardins.
Muro franzido, assim era chamado. Em vez de seguir em linha reta, como um muro comum de tijolos, ele era ondulado, curvando-se para dentro e fora, como uma série de sofás de namoro. Em geral, esses muros eram encontrados nas regiões da Ânglia Oriental; mas por algum motivo — talvez um mestre-de-obras da Ânglia Oriental tivesse ido morar na cidade — havia um grande número deles em Lymington. A maioria era erigida a grande altura; alguns dava para se olhar por cima, outros não. As curvas costumavam ser bastante pronunciadas, tanto que, se dois homens ficassem de pé no interior de uma delas, quem olhasse na direção da extensão do muro não os veria. E foi exatamente por esse motivo que Samuel Grockleton pediu ao conde francês que fosse, ao anoitecer, à alameda que ficava atrás do jardim de sua casa, que era limitado por um muro franzido.
Grockleton esperou silenciosamente, até ouvir a leve batida, feita com uma moeda, do outro lado do muro. Ele tinha desbastado a argamassa entre dois tijolos. Ao retirar o tijolo do lugar, surgiu uma pequena abertura através da qual se podia conversar. Deu uma batida naquele lugar e perguntou:
— É você, conde?
— Sim, mon ami. Vim a seu pedido.
— Foi seguido?
— Não.
— Essa precaução é necessária. Sabe que minha casa está sendo vigiada?
— Isso não me surpreende. É natural, dada a sua posição.
— Mesmo quando vem jantar, não posso me arriscar a ser visto em uma conversa particular com você. As pessoas comentariam.
— Não tenho dúvida.
— Pois bem. Fui instruído a lhe dizer, conde, que o governo de Sua Majestade Britânica precisa de sua ajuda.
Não era bem verdade. Ninguém o instruíra a dizer aquilo, mas, por conhecer muito bem a ineficiência e a corrupção dos canais oficiais, Grockleton decidira
agir por iniciativa própria, sem a aprovação oficial. É claro que, se fosse bem-sucedido, eles aprovariam, o que, no final das contas, daria no mesmo.
— Meu caro amigo, estou a serviço do seu governo.
— Então, conde, deixe-me lhe dizer — começou — exatamente do que preciso.
Não se tratava apenas, como ambos os homens sabiam, de uma questão de contrabandear brandy e outras mercadorias. Nem do imenso comércio ilegal do tráfico de ouro e de informações. O patriotismo de época mais recente ainda não era muito desenvolvido e certamente não o era ao longo da costa meridional. Oficiais da marinha britânica lutavam na esperança de prêmios em dinheiro pelos navios inimigos capturados; seus comandados lutavam porque haviam sido seqüestrados pelos pelotões de recrutamento e levados para o mar. Mesmo um comandante tão amado quanto Nelson não ousava deixar que os seus homens desembarcassem em qualquer porto da Inglaterra — pois se o fizesse nunca mais voltaria a ver a maioria deles. Portanto, os contrabandistas da Inglaterra meridional compravam brandy, comerciavam com ouro e seriam capazes de vender informações a países inimigos? Seriam. E vendiam.
Mas, acima de tudo, para os habitantes da costa de New Forest, o contrabando era uma simples questão de comércio. E eram tão bem organizados, em quadrilhas tão grandes, que nem todos os fiscais aduaneiros montados conseguiriam deter uma de suas grandes caravanas noturnas. Para se fazer isso, seriam necessárias tropas.
E isso já vinha sendo tentado. De tempos em tempos destacamentos de soldados de cavalaria e outros regimentos ficavam aquartelados em Lymington. Havia planos de se construírem novos acampamentos em Christchurch. Os homens da localidade nunca eram recrutados para a cavalaria, é claro; isso seria inútil. Mas, mesmo assim, eles nem sempre tinham muito entusiasmo para enfrentar quadrilhas de contrabandistas. Nos últimos dez anos houvera duas batalhas ferozes. Em cada uma das ocasiões um grande número de soldados de cavalaria tinha sido morto. E, afinal de contas, já que os soldados simpatizavam com os contrabandistas, não se tratava de uma missão muito popular.
— As chances que eu tenho de interceptar o contrabando, usando tropas inglesas — informou Grockleton ao francês —, não são boas.
Mas que tal as tropas francesas? A idéia lhe ocorrera uma semana antes e talvez viesse a se tornar uma tacada de gênio. As tropas francesas não tinham vínculos locais, nenhuma simpatia pelos contrabandistas, nada. Estavam entediadas, à procura de algo para fazer. Havia no total mais de mil homens. E estavam simplesmente ali com a tolerância do governo britânico. Se Grockleton conseguisse executar uma grande interceptação, usando-os, isso não ocasionaria para ele apenas o reconhecimento agradecido do governo; a parte que lhe caberia do saque confiscado somaria uma modesta fortuna. Talvez se tornasse impopular, mas provavelmente poderia se aposentar.
Se, por outro lado, os franceses não quisessem ajudá-lo, ele poderia informar imediatamente a Londres. O rei em pessoa tomaria conhecimento e ficaria seriamente aborrecido.
Tudo isso, sem que fosse necessário dizer, o francês entendia perfeitamente.
— Terá que ser feito sob total sigilo — retrucou depois de ouvir o plano de Grockleton.
— Certamente.
— Não ouso contar aos meus homens antes da ocasião. Um desfile, alguma desculpa para reuni-los armados será necessária, e então...
— É exatamente o que imagino. Posso então contar com a sua colaboração?
— Totalmente. Nem precisava perguntar. Estou às ordens de Sua Majestade Britânica.
— Então, senhor, muito obrigado — agradeceu Grockleton e colocou o tijolo de volta no lugar.
Por um momento ou dois, o conde e o amigo caminharam em silêncio pela alameda.
— Bem, mon ami — disse o conde finalmente —, você ouviu tudo? — O outro confirmou com a cabeça. — Isso, como sabe — prosseguiu —, nos coloca em uma posição difícil. Acha que agi certo?
— Acho. Não teve escolha.
— Alegro-me por você concordar. Não preciso lembrar-lhe que nenhuma palavra a respeito disso deve ser dita.
— Pode confiar em mim.
— Claro. Agora, do mesmo modo como viemos, vamos voltar por caminhos diferentes.
A noite tinha descido sobre Albion House, e, como fizera freqüentemente durante sua jovem vida, Fanny estava sentada na sala de estar na companhia de dois idosos. Na lareira, as achas reduzidas a cinzas produziam apenas um ocasional bruxulear de fogo; as velas projetavam um leve brilho nos painéis de carvalho escuro. Fanny podia ter planos ambiciosos para, um dia, remodelar a casa e
transformá-la em extravagância gótica, mas presentemente a antiga sala de estar pouco tinha mudado desde os dias da boa rainha Bess.
Tudo estava silencioso. Às vezes, ela lia para os idosos, mas naquela noite eles preferiram ficar quietos, sentados em suas cadeiras, desfrutando o silêncio da casa que somente era quebrado pelo suave tiquetaquear do comprido relógio do saguão e, mais ocasionalmente, pelo diminuto farfalhar das cinzas desmoronando na lareira. Finalmente, o pai dela falou:
— Não vejo por que ela deve se dar ao trabalho de ir até Oxford.
O comentário foi recebido em silêncio, durante o qual o relógio ressoou baixinho mais quarenta tique-taques.
— Mas é claro que ela deve — disse sua tia Adelaide.
Fanny sabia muito bem que não devia interromper. Em todo o caso, ainda não. Transcorreram somente vinte tique-taques.
— Quanto tempo vai ficar longe, Fanny? — Uma insinuação de reprimenda, de tristeza, claramente demonstrada.
— Apenas seis dias, papai, incluindo a viagem.
— Bem satisfatório — falou Adelaide com firmeza. — Sentiremos sua falta, mas você está certa em ir ver o seu primo.
— Ela vai ver Oxford. Parece-me uma longa viagem. — Eles tinham voltado ao ponto de partida. Uma cinza encanecida desabou.
Francis Albion tinha oitenta e oito anos. As pessoas diziam que ele ficara tanto tempo vivo para ver a filha crescer, e provavelmente era verdade. Também havia quem dissesse que ele queria ver a filha casada e em segurança. Mas, já que qualquer menção ao assunto parecia enchê-lo de consternação, esse, claramente, não era o caso. E ainda havia aquelas que imaginavam se, tendo se acostumado a ficar vivo por um tempo tão prodigiosamente longo, o Sr. Albion talvez não estivesse fazendo isso por sua própria causa.
O fato era que Francis Albion nunca esperara mesmo ter um filho. Como o último dos descendentes de Peter e Betty Albion, que esperava que o irmão mais velho continuasse a linhagem da família, ele passara perambulando a maior parte de sua vida. Advogado em Londres, representante governamental na França, mercador durante um período na América, ele sempre ganhara o suficiente para viver como um fidalgo, mas nunca o bastante para se casar. Aos quarenta anos, depois que a morte do irmão o deixou como herdeiro da propriedade dos Albion, era um solteiro convicto sem desejo algum de se acomodar. A irmã Adelaide permaneceu sozinha em Albion House por mais vinte anos, antes de ele finalmente retornar para, como afirmou, assumir suas obrigações familiares na Floresta.
Estas não eram tão onerosas, e cuidou para que se tornassem lucrativas para ele. Em pouco tempo, incluíram o cargo de guarda-caça de um dos walks (terrenos florestais), como então passaram a ser chamadas, as pequenas divisões da Floresta. Sua dispensa dessa responsabilidade foi característica. Mesmo pelos benevolentes padrões do século XVIII, a administração de New Forest tornou-se notoriamente negligente. Quando a coroa, em uma de suas ocasionais tentativas de colocar ordem no lugar, instituíra uma delegação real alguns anos antes, os delegados salientaram que o administrador da Floresta não fizera nenhuma prestação de contas em dezoito anos e também notaram, bastante irritados, que, ao inspecionarem o roçado no walk do Sr. Albion, onde supostamente a madeira do rei deveria estar crescendo, descobriram que era usado como um imenso viveiro de coelhos, sem uma única árvore em todo o cercado.
Após garantir aos delegados que algo seria feito, o único comentário que Francis Albion fez para a irmã foi: ”Eu tinha mil coelhos por lá no ano passado e terei mais outros tantos no próximo ano.”
O que então induziu o Sr. Albion, aos sessenta e cinco anos, a casar-se com a Srta. Totton de Lymington, trinta anos mais jovem?
Alguns disseram que foi amor. Outros comentaram que, após a irmã Adelaide ter sofrido um grave resfriado, ocorreu ao Sr. Albion que ela poderia não estar sempre presente para cuidar dele. Fosse qual fosse o motivo, o Sr. Albion propôs casamento, a Srta. Totton aceitou e foi viver em Albion House.
Era estranho mesmo que a Srta. Totton não tivesse se casado bem antes. Tratava-se de uma mulher de aparência agradável, respeitável; e não era pobre. Talvez, quando jovem, tivesse tido um amor frustrado. Fosse qual fosse o motivo, aos trinta e cinco anos ela obviamente decidiu que entrar por casamento para a família Albion, mesmo como enfermeira, era preferível à sua situação de então. Seu meio-irmão, como chefe da família Totton, ficou contente com a ligação com os Albion, e Adelaide pareceu realmente feliz ao ver o irmão casado. Ela manteve a sua própria ala da casa, e as duas mulheres se deram muito bem.
O casamento foi bastante bem-sucedido. A Srta. Totton não esperava muita coisa, mas o casamento pareceu dar a Francis Albion um novo sopro de vida. Mesmo assim, ele ficou um tanto chocado quando, já no seu sexagésimo oitavo ano, a esposa lhe informou que estava grávida.
”Essas coisas acontecem, Francis”, dissera-lhe com um sorriso. Chamaram a criança de Francês, à maneira do pai; e, como era moda na época, ela foi sempre conhecida como Fanny.
Não houve mais filhos. Fanny, portanto, era a herdeira. O velho Sr. Albion estava feliz por ter uma filha, o que lhe carreava alguma agradável admiração em sua idade. A mãe de Fanny estava feliz: não apenas tinha uma filha para amar como o fato de ser a mãe da próxima proprietária de Albion House era algo muito melhor do que ser esposa-enfermeira de um fidalgo idoso. Adelaide estava feliz porque ela também tinha uma criança para amar. O Sr. Totton de Lymington estava encantado, pois agora os seus filhos, da mesma idade, tinham uma prima próxima que era a herdeira de uma das propriedades locais. Ora, até mesmo a própria Fanny estava feliz, por ser rica e amada. E seria assim. Pois tudo o que ela precisava fazer era viver de acordo com o desejo dos outros.
Fanny tinha dez anos quando a mãe morreu. A família ficou abalada não apenas por causa da dor, mas também pela preocupação com o futuro da menina.
— O que faremos agora? — bradou Francis Albion para a irmã.
— Viver um longo tempo — retrucou ela, implacável.
E foi o que fizeram. Fanny não ficou na orfandade; se Francis e Adelaide eram mais como avós, Fanny, não obstante, tinha um lar feliz. Se o pai, ao ficar mais idoso, tornava-se um tanto retraído e queixoso, o espírito jovem dela e a freqüente companhia dos primos Totton superavam facilmente essa influência. E se a tia Adelaide tinha a tendência de se repetir, Fanny conseguia, ao mesmo tempo, desfrutar a inteligência que continuava presente nela, mais aguçada do que nunca.
E havia a Sra. Pride.
Sra. Pride. Por que todas as governantas são conhecidas como senhora, independente de serem ou não casadas? Fanny jamais conhecera uma governanta que não o fosse. Tratava-se de um tratamento respeitoso, um reconhecimento de que, dentro de seus domínios, elas eram as donas da casa. E não havia absolutamente qualquer dúvida sobre quem dirigia Albion House. Era a Sra. Pride.
Tratava-se de uma mulher muito bonita; alta, os cabelos grisalhos presos para trás de modo elegante, tinha um porte altivo; qualquer homem podia adivinhar de imediato que ela tinha um corpo magnífico. O único motivo pelo qual não se casara, com toda a probabilidade, era porque preferia dirigir uma casa senhorial a vida mais árdua que levaria como esposa de um agricultor ou de um pequeno proprietário da floresta, ou até mesmo de um lojista de Lymington.
Era sempre obsequiosa. Se os lençóis precisassem ser trocados, pedia permissão a Adelaide para fazê-lo. Por ocasião da limpeza de primavera, perguntava qual data seria a mais conveniente. Se uma chaminé aparentasse estar prestes a cair. mesmo assim perguntava educadamente a Francis que providências ele gostaria que ela tomasse. Conhecia cada canto e rachadura, cada caibro, cada mantimento cada gasto. A Sra. Pride era, na verdade, a dona de Albion House; os Albion apenas moravam lá.
Para Fanny, tornou-se uma segunda mãe secreta. Durante anos, Fanny não o percebeu. Se ela resolvesse dar um passeio e Fanny fosse junto, a Sra. Pride ficava algum tempo sentada para que a menina pudesse brincar na água do vau. Quando acontecia de ver material de desenho em Lymington, tomava a liberdade de comprá-lo para o caso de Adelaide querer dá-lo para Fanny. Comentou com o vigário, depois da igreja, as façanhas da menina no desenho e, humildemente, deu a entender que deveria haver tutores visitantes na casa que lhe dessem aulas a fim de que ela desenvolvesse também outros talentos — diante disso, o Sr. Gilpin entendeu imediatamente a insinuação e providenciou para que tal fosse feito. E tão disfarçada e eficiente era ela que com quase quinze anos Fanny ainda achava que a Sra. Pride era apenas a amorosa e amigável figura que providenciava para que ela fosse vestida e alimentada, e a pessoa que parecia sempre contente com a pequena acompanhante, quando à tardinha se sentava em sua pequena sala de estar para um bule de chá e alguns deliciosos bolinhos de brandy.
Fanny deu uma olhada em direção ao pai. Ele havia fechado os olhos, depois dos últimos comentários. Era estranho, de certo modo, a debilidade dele, ao se analisar a sua vida. Por vezes, ele ainda lhe contava sobre suas viagens, descrevia os esplendores da corte de Luís XV, ou o movimentado porto de Boston, ou as plantações da Carolina. Ainda recordava cada um dos grandes eventos.
”Lembro da animação em Londres, em quarenta e cinco”, dizia, ”quando os escoceses tentaram marchar para o sul sob a liderança de Bonnie Prince Charlie.” Cada vitória dos britânicos, em alto-mar ou na índia, parecia ter uma história paralela, e, quando Fanny era criança, ele costumava fazer-lhe os relatos com tal nitidez que mesmo sem perceber ela aprendeu com o pai grande parte da história do tempo dele.
Ela ficava triste por ver sua decadência, mas contente por estar ali, ao lado dele, naqueles anos finais.
— Talvez — a voz de tia Adelaide rompeu o silêncio — você conheça um belo jovem em Oxford.
— Talvez. — Fanny deu uma risada. — O Sr. Gilpin me disse hoje que vou acabar me apaixonando por um professor pobre.
— Não creio que isso seja o que uma Srta. Albion faria, não é mesmo, Fanny?
— Não, tia Adelaide. Não creio que seja.
Ela adorava o velho rosto aristocrático da tia. Esperava algum dia ter aquela aparência. Parecia-lhe que Adelaide não tivera uma vida feliz, mas nunca se queixava. Se, por um lado, no sentido prático, a Sra. Pride dirigia a casa, sua tia Adelaide continuava sendo a guardiã da família — na verdade, o anjo da guarda.
Eram noites como aquela, quando o pai cochilava ou tinha se recolhido para dormir, e ela e Adelaide ficavam sozinhas em silêncio, que Fanny mais apreciava A velha casa tão silenciosa; as sombras, como fantasmas familiares, à luz de velas sempre nos mesmos lugares no revestimento das paredes — em tais ocasiões a tia punha-se a falar. E ela começara a fazê-lo agora.
Fanny sorriu. A tia contava repetidamente as mesmas histórias, e ainda assim ela sempre ficava contente em ouvi-las. Provavelmente porque, embora as histórias do pai fossem interessantes, as da tia referiam-se apenas à própria vida dela; pois Adelaide falava de um passado mais distante — sua mãe Betty, a avó Alice, a história da herança dos Albion recuando nos séculos. A herança da própria Fanny. O mais formidável, porém, era que, quando tia Adelaide contava essas coisas, todas elas pareciam ter acontecido ainda ontem.
”Minha mãe nasceu logo depois da Restauração do rei Carlos II”, contava. Isso tinha sido havia mais de cento e trinta anos. Contudo Betty Lisle era uma vivida memória. Adelaide compartilhara aquela casa com ela durante quarenta anos. ”Essa era a cadeira favorita dela, onde você está sentada”, dizia a tia. Ou, durante uma tarde no jardim: ”Eu me lembro quando minha mãe plantou aquela roseira. Era um dia ensolarado, como hoje...” A própria casa parecia também se tornar um ser vivo. ”A camada externa de tijolos da casa foi colocada, quando sua avó era criança, pelo pai dela. Mas ele deixou o madeirame e este antigo revestimento”, acrescentava, com um gesto da cabeça para a parede, ”exatamente como eram na época da rainha Elizabeth. Claro” — e seguia-se uma vivida descrição pessoal da aterradora figura vestida de preto e vermelho — ”que foi daqui deste aposento, em uma noite como esta, que a velha lady Albion saiu para tentar fazer a região se sublevar e se juntar à Armada espanhola.”
Como alguém poderia deixar de se apaixonar pela história de tal família? Mas — eis a verdadeira diferença entre as histórias de tia Adelaide e as do pai dela as de Adelaide eram contadas com um intenso sentimento em relação às pessoas de quem falava. Relatava para Fanny como um havia enfrentado privações ou como outro perdera um filho e se angustiara, de modo que as figuras fantasmagóricas que povoavam a casa se transformavam em amigos cujas alegrias e tristezas eram compartilhadas e a quem, se tal coisa fosse possível, a gente quisesse amparar e confortar.
”Tento manter, para os meus queridos pai e mãe, as coisas como eram
Adelaide gostava de dizer. E, mesmo se resolver acrescentar alguns detalhes góticos, pensava Fanny, eu também continuarei como uma leal guardiã do santuário da família.
Havia apenas uma narrativa, contudo, que costumava comover tia Adelaide até às lágrimas, e era a história de sua avó, Alice Lisle.
Era uma verdadeira ironia o fato de a rebelião de Monmouth e a execução de Alice Lisle terem ocorrido naquela ocasião. Pois, no espaço de três anos depois da tentativa de Monmouth tomar o trono para a causa protestante, o rei Jaime II tinha enfurecido tanto o Parlamento inglês, por causa do estímulo que dava ao catolicismo romano, que os seus membros estavam prestes a derrubá-lo; e quando, naquele instante crucial, a esposa católica do rei, inesperadamente, deu à luz um saudável filho e herdeiro, eles o derrubaram. A Revolução Gloriosa de 1688 encerrou de vez a disputa civil e religiosa que se vinha desenrolando desde que os Stuart subiram ao trono inglês. Foi praticamente sem derramamento de sangue. Os ingleses não queriam um governo católico e fizeram a coisa do seu jeito. Jaime e o filho bebê saíram. E em vez deles assumiram a filha protestante Maria e o marido holandês Guilherme. Se Monmouth fosse vivo, o Parlamento inglês talvez o tivesse escolhido, mas, como tantos Stuart, ele fora fútil e impetuoso. Portanto, ficaram Maria e Guilherme. E depois deles veio a outra filha protestante, Ana. E depois de Ana um neto de uma das irmãs de Carlos I, o protestante rei Jorge I, chefe da Casa de Hanôver, dinastia real britânica de origem germânica, cujo neto Jorge III ainda reinava.
Naquela época os reis governavam através do Parlamento. Nem eles nem os herdeiros tinham permissão para se casar com católicos. Católicos e dissidentes tinham permissão para praticar sua religião, mas não podiam cursar a universidade nem ocupar qualquer cargo público. A Inglaterra do século XVIII podia não ser exatamente o que Alice Lisle teria desejado, mas em grande parte a causa pela qual ela e o marido foram mortos havia triunfado.
Politicamente irônico, mas a tragédia pessoal permanecia, como uma árvore que continuava crescendo, quase a mesma coisa, a despeito das mudanças climáticas anuais. Um século se passara, mas a Floresta não tinha esquecido Alice. E em Albion House ela permanecia como uma memória viva.
Tia Adelaide podia ter nascido vinte anos depois daqueles terríveis acontecimentos, mas ela sabia, pelos pais, parentes como a velha tia Tryphena e gente do lugar como Jim Pride, que estiveram lá na ocasião. Através dos olhos deles e de suas descrições, ela testemunhara a prisão, o vergonhoso julgamento e a execução. Ainda tremia toda vez que passava por Moyles Court ou pelo grande salão em Winchester. Moyles Court não era mais propriedade da família, mas Albion House
sempre fora o verdadeiro lar de Alice, o lugar que ela amara e onde sua presença permanecia.
Entretanto, talvez Alice tivesse sido apagada com o tempo e se juntado às outras sombras projetadas pelas velas noturnas. Se não fosse por Betty.
Durante o primeiro ano que se seguiu à execução da mãe, Betty recolheu-se para Albion House e permaneceu lá, em estado de choque. Quando Peter lhe escreveu, ela respondeu com evasivas; quando foi visitá-la, mandou-o embora. Não conseguia vê-lo. Não sabia bem por que, mas tudo lhe parecia impossível, Peter, porém, perseverou, por longos três anos, até que finalmente ela emergiu da depressão o suficiente para se casar com ele.
O casamento dos dois foi feliz? À medida que envelhecia, Adelaide se perguntava se tinha sido. Nasceram vários filhos, que morreram jovens; seu irmão mais velho, que chegou a se casar, morreu sem deixar herdeiros; depois vieram ela e finalmente Francis. Peter freqüentemente estava distante, em Londres, enquanto Betty permanecia sozinha em Albion House. Aos dez anos, Adelaide percebeu que a mãe devia sentir-se bastante solitária. Poucos anos depois, ainda não tendo completado sessenta anos, Peter morreu em Londres; de excesso de trabalho, disseram. Estava com planos de passar mais tempo no campo.
Depois disso, com Francis sendo enviado para ficar com um vigário de Oxfordshire, com quem estudaria e depois cursaria Direito, Betty foi lentamente se encolhendo para o interior da casa, como um bicho recuando para dentro de sua concha. Saía para visitar vizinhos, é claro, ou para fazer compras em Lymington. Mas a casa tornou-se a sua vida, onde Adelaide lhe fazia companhia, e, enquanto a vida se estendia pelos anos, as sombras da habitação foram aos poucos se juntando e envolvendo-as. A sombra principal era Alice.
”E pensar que eu estava aqui com Peter naquela noite terrível”, dizia Betty as vezes chorando, em uma auto-repreensão. E lembrar que nada poderia ter feito e que talvez também tivesse sido presa, não adiantava. ”Não devíamos ter ido para Moyles Court.” Talvez fosse verdade, mas era inútil. ”Ela só saiu de Londres por causa de Peter.” Também era verdade —Tryphena lhe contara —, mas uma preocupação igualmente inútil, agora.
Adelaide era uma moça sensível e bastante alegre. Sua mente era vigorosa. ouvir essa ladainha, ano após ano, fez com que se criasse em torno dela um senso de tragédia de vida, e a dor da mãe era como uma nuvem.
Com essa nuvem trágica, surgiu uma outra — escura, como a de um trovão, avançando pelo céu. O nome dessa nuvem escura era Penruddock.
Agora não havia nenhum Penruddock na Floresta. Os Penruddock de Hale haviam partido no início do século. Os Penruddock de Compton Chamberlayne continuavam por lá; mas ficavam a mais de cinqüenta e cinco quilômetros de distância, além do horizonte, em outra região. Adelaide não conhecia nenhum Penruddock pessoalmente. Mas sabia o que pensar deles.
”Todos monarquistas, claro”, dizia Betty. ”Mas traiçoeiros. Quando penso o quanto a minha mãe tentou ajudá-los quando estavam encrencados. E foi esse o agradecimento deles.”
A traição dos Furzey nunca tinha sido bem entendida pelos Albion, como o fora pelos Pride. E, mesmo se tivesse, só mereceria um frio desprezo. Mas a crueldade de uma outra família de bem-nascidos era algo bem diferente.
”Esgueirar-se a noite inteira em volta da casa com suas tropas imundas. Tentar arrombar a porta. Deixar os soldados roubarem a roupa de mesa de mamãe. E depois enfiá-la na garupa do cavalo de um dos soldados, vestida apenas com a camisola de dormir. Uma senhora idosa. Vergonhoso!”, bradava Betty, os olhos reluzindo subitamente, com raiva e escárnio. ”Perverso!”
Adelaide via claramente o coronel Penruddock, o seu rosto saturnino e o caráter cruel e vingativo. Tal crime entre famílias jamais poderia ser perdoado; nem, acreditava ela, deveria. ”Essa família”, disse ela, por sua vez, a Fanny, ”é formada por gente perversa, má. Nunca queira ter nada com ela.”
Ela tinha voltado a dizer isso mais uma vez naquela noite, e Fanny lhe assegurara, com um sorriso, que certamente não teria, quando ambas se voltaram, Fanny um pouco alarmada, ao ouvirem um som terrível. Foi uma tosse, uma tosse áspera e sibilante, seguida por um arquejo. Veio do velho Francis Albion. Ele parecia estar pelejando para respirar. Fanny ficou lívida. Levantou-se, correu para o lado dele.
— Devemos mandar chamar o médico? — sussurrou. — Papai parece estar...
— Não, não devemos. — Adelaide não se moveu de sua cadeira.
Francis tinha aberto os olhos, mas o olhar estava dirigido acima da cabeça, de um modo dos mais alarmantes. Ficara pálido. A tosse recomeçou.
— Tia Adelaide — gritou Fanny —, ele está...
— Não, não está — retrucou a tia com uma certa aspereza. — Pare de fingir que está morrendo, Francis — berrou. — Pare imediatamente com isso. — Virou-se mal-humorada para Fanny. — Não percebe, menina, que ele está tentando evitar que você vá a Oxford?
— Tia Adelaide! Que coisa horrível de dizer do pobre papá. — O pai agora ofegava por ar. — Claro que eu não iria se ele não estivesse bem.
— Arre! — exclamou Adelaide. Mas o som medonho continuou.
Isaac Seagull, estalajadeiro do Angel Inn, deixava a úmida brisa brincar em seu rosto enquanto fitava além de Pennington Marshes.
Ele era um homem alto e magro, tão alto quanto Grockleton se se mantivesse ereto. Mas em geral Isaac Seagull ficava de pé com a cabeça redonda inclinada para a frente. Os cabelos, ainda todos negros, eram usados em trança para trás. O rosto, sem queixo, como os seus ancestrais Seagull, costumava ser alegre, mas naquele momento estava sério. Isaac Seagull tinha algo em mente.
O esquema de contrabando em New Forest era algo grande e complexo. Antes de mais nada, havia os navios que forneciam as mercadorias. Eles vinham de vários portos de além-mar, porém os mais movimentados eram os de Dunquerque, que concentrava o tráfego marítimo da Holanda, de Roscoff na Bretanha, e os das ilhas do Canal, Jersey e Guernsey. Os cargueiros principais eram chamados de lugres, que variavam de tamanho, mas eram de amplo e raso calado e de enorme capacidade. Geralmente faziam a travessia em comboios armados. Quando era necessário evitar as parcas embarcações da Aduana enviadas contra eles, os lugres podiam se virar contra o vento e fugir remando ou arremeter em direção à faixa de terra deixada pela maré baixa, onde os navios da receita não conseguiam seguilos. Às vezes os contrabandistas também usavam os velozes clíperes, que conseguiam deixar para trás praticamente qualquer coisa.
O homem encarregado do navio, ou comboio, era o capitão. Mas, quando o carregamento chegava à praia, era recebido por uma imensa caravana que transportava e distribuía as mercadorias. O organizador dessa operação era o homem de terra.
Isaac Seagull era o homem de terra de New Forest.
Mas, por trás do homem de terra do capitão, havia uma outra figura, mais sombria. O homem que fornecia o dinheiro para toda a operação, que podia comprar as mercadorias e pagar por um clíper: o empreendedor. Era o aventureiro.
Quem era ele? Ninguém sabia. Ou, se sabia, nada dizia. O escriturado da paróquia da igreja de Lymington guardava todos os livros; portanto, ele devia saber. Um intendente local recolhia contribuições de fazendeiros ou mercadores que desejassem investir na empreitada; portanto, ele provavelmente sabia. A escala das operações às vezes era tão grande que só podia ser alguém com bolsos muito fundos ou um dos aristocratas locais, um membro da classe alta.
Grockleton acreditava que fosse o Sr. Luttrell. Dono de uma bela residência chamada Eaglehurst, logo depois da propriedade de Cadland do Sr. Drummond, o Sr. Luttrell construíra uma torre, na junção da água do Solent com a enseada de Southampton, que lhe dava a vista de todo o Solent e da ilha de Wight. Que algum tipo de carregamento de brandy ia para a Torre de Luttrell não havia dúvida, mas isso poderia ser apenas uma pequena transação para seu próprio uso. Luttrell seria de fato a figura secreta, o aventureiro por trás de todo o imenso comércio no litoral de New Forest? Afinal, talvez nem fosse mesmo um único fidalgo. Talvez fossem todos eles.
Fossem ou não realmente participantes, duas coisas podiam ser ditas não apenas das classes altas, mas de cada habitante da costa sul da Inglaterra desse período. A primeira era que, aristocrata ou camponês, clérigo, magistrado ou caçador clandestino, todos, no mínimo, eram sabidamente receptadores de mercadoria ilegal. A segunda era que ninguém via coisa alguma. Dois barriletes de brandy podiam ser entregues ao vizinho de porta do magistrado de Lymington, e este não tomaria conhecimento. O púlpito podia estar repleto de garrafas de brandy, mas o vigário conseguia encontrar lugar suficiente para enfiar os pés ao fazer a sua pregação. Trezentos cavalos de carga podiam disparar ao longo da margem do parque de Sua Senhoria; Sua Senhoria nem acordaria. Ora, nem o próprio Sr. Drummond, o banqueiro particular de Sua Majestade, que morava ao lado da Torre de Luttrell, nunca viu nada. Nada mesmo.
Por quê, durante quase um século, as populações inteiras da região meridional da Inglaterra foram alegres coniventes com a infração da lei? Porque não gostavam de pagar impostos? Ninguém gosta. Eram todos criminosos?
Mesmo os mais sensatos legisladores às vezes esquecem que, em grande parte, governo é um comércio como outro qualquer. Toda a população, até o mais humilde habitante de uma cabana, agora tomava chá. A taxa imposta ao chá era tão alta que uma pessoa comum não tinha recursos suficientes para pagar por ela. Portanto, teria de ficar sem chá ou recorrer ao contrabando. Mais por essa razão do que por qualquer outra, o contrabando era visto apenas como algo nada além do que tecnicamente ilegal. Ninguém achava realmente que era errado. A lei, nesse caso, não era levada em conta. Esse tipo de negócio sequer era denominado contrabando. Comércio Livre era o nome pelo qual se conhecia o empreendimento; os comerciantes livres eram contrabandistas.
O caso do brandy e de outras mercadorias embarcadas era semelhante, mas aqui se tinha de levar em conta um fator relacionado. As altas alíquotas impostas serviam para criar uma margem potencial de lucro: houve uma indução para o desenvolvimento do comércio do contrabando.
A solução óbvia, como qualquer um poderia imaginar, era reduzir as alíquotas das taxas de importação. As pessoas comuns teriam o seu chá e o contrabando deixaria de ser lucrativo. E certamente os rendimentos da Aduana aumentariam Mas isso, ao que parece, nunca ocorreu a ninguém — a não ser, é claro, que tivesse ocorrido, mas nem todos os legisladores quisessem acabar com esse comércio.
A estrutura do Comércio Livre era convencional. Os lucros obtidos pelas diferentes mercadorias variavam, mas na melhor delas, o brandy, o artigo mais bemdotado, eram mais ou menos como se segue.
Um barrilete de brandy era vendido no varejo em Londres, com os impostos incluídos, por cerca de trinta e dois shillings. Seu preço de custo na França era a metade disso. Vendê-lo no varejo, com um desconto de cerca de trinta por cento sobre o preço total cobrado, portanto, deixava o comerciante livre com uma margem bruta de lucro por volta dos trinta por cento e a certeza de que venderia o seu estoque imediatamente e em dinheiro vivo. Após pagar o transporte das mercadorias e outras despesas, o lucro dele ficava por volta dos dez por cento de suas vendas; assim, fazendo vários carretos durante um ano, ele poderia obter lucro pelo capital investido.
Graças a Isaac Seagull, o homem de terra, a rede de distribuição era excelente. Nenhuma carga que ficara sob a sua responsabilidade jamais fora interceptada.
Por que então, ao fitar além da restinga, revelava por uma contração na boca que estava preocupado?
O aventureiro tinha grandes planos para o ano seguinte — enormes. Nada podia dar errado. Seu trabalho, como homem de terra, era cuidar para que nada desse errado.
Mas o que poderia dar errado? Em alguma ocasião, no ano seguinte, se as notícias fossem corretas, haveria destacamentos de soldados de cavalaria chegando ao novo acampamento de Christchurch. O que isso significaria? Era cedo demais para se saber quantos viriam, mas seria aconselhável passar com os carregamentos maiores antes da chegada deles.
Havia também os acontecimentos na França para se levar em conta. Até então, a Revolução, a execução do rei, o reino do Terror, tudo desabara sobre Paris. A guerra até mesmo fora declarada. Isso, porém, não impedira que os grandes comerciantes de vinho da França concluíssem ambiciosas transações com o aventureiro. O que era problema do aventureiro, é claro, não dele. Por outro lado, aquilo servia para exercitar a sua mente ágil.
Supondo-se que todos os embarques pudessem ser feitos antes da chegada dos novos soldados de cavalaria, que mais havia para se levar em conta?
Grockleton. Alguns fiscais aduaneiros podiam ser subornados, e em pouco tempo deixavam você saber qual era o jogo deles, mas Grockleton não deixara. Os sentimentos de Isaac eram conflitantes. Deixar-se subornar provavelmente era o caminho mais racional, supunha ele, mas respeitava muito um homem disposto a reagir. Isto é, se ele tivesse essa chance. Mas Grockleton acreditava realmente que tinha uma chance?
Seagull só se lembrava de uma vez em que os homens da Aduana de Lymington obtiveram sucesso, e isso tinha sido cinco anos atrás, pouco antes da chegada de Grockleton. Um grupo desgarrado de comerciantes livres tinha começado a agir nas proximidades de uma caverna conhecida como Ambrose Hole, no vale do rio logo ao norte de Lymington. Ele sabia quem eram, claro, e deixou de usá-los no esquema de contrabando, porque não obedeciam às ordens. Começaram a assaltar as pessoas nos pedágios das estradas; depois mataram várias delas. Todo o mundo já estava farto daquilo. Os comerciantes livres andavam armados, mas raramente recorriam à violência, a não ser que um comboio fosse atacado. Matar não fazia o gênero deles. O magistrado, o prefeito e até ele próprio concordaram que aquilo precisava parar. Seagull, portanto, revelou ao chefe da Aduana onde eles estavam, tropas foram convocadas e a quadrilha foi desbaratada. Encontraram na caverna muitas mercadorias roubadas. E trinta corpos também; jogados dentro de um poço. Ele ficara chocado com aquilo.
Os funcionários da Aduana e as tropas reivindicaram para si o sucesso. Seagull não se importou; aquilo não lhe fez mal algum.
Mas Grockleton continuava por lá. Seagull o tinha colocado sob vigilância total. Ele vinha sendo vigiado a cada hora, pois claramente não podia ser deixado sem controle. Isaac Seagull nunca deixara de levar em conta o perigo: por isso ele era bom no seu serviço.
E agora, ao refletir sobre o problema Grockleton e o que fazer com ele, outro pensamento surgiu em sua mente.
E se Grockleton tivesse um espião? Um dos bons. Alguém dos comerciantes livres. Tratava-se de uma outra possibilidade. Talvez parecesse improvável, mas devia ser levado em conta. Um informante, se apanhado, seria morto, é claro. Isso era algo que os comerciantes livres fariam. Mas ainda assim...
A boca de Isaac Seagull repuxava. Ele pensava.
Nathaniel Furzey gostava de morar com os Pride em Oakley. Eles eram uma família agradável, animada. Ele e Andrew Pride eram amigos leais. O pai de Andrew, além de manter uma pequena manada de bois, tinha um comércio de madeira, comprava-a por um bom preço do guarda-florestal e a revendia. Pilhas de madeira ficavam estocadas à margem do gramado de Oakley.
Nas primeiras semanas em que morou lá, ele se comportou da melhor maneira possível. Mas em pouco tempo sua vivacidade emergiu e desde então envolvera-se em pândegas travessuras.
O fato era que o jovem Nathaniel Furzey de cabelos encaracolados se entediava rapidamente. Os exercícios na escola do Sr. Gilpin eram tão fáceis para ele que costumava terminá-los quando o resto das crianças ainda estava na metade. Às vezes o Sr. Gilpin ia pessoalmente à sala e fazia uma leitura com ele. O vigário, certa ocasião, ficou tentado a lhe ensinar um pouco de latim, mas percebeu que Nathaniel apreendia com tal rapidez que parou rapidamente com os exercícios antes que ele fosse longe demais.
— O que você acha que eu deveria fazer? — perguntara Gilpin a um colega clérigo. — Não estou falando de uma inteligência natural. O jovem Andrew Pride possui muito mais do que qualquer um dos meninos que se poderiam encontrar em Salisbury ou Winchester. Falo de uma ave rara, um erudito nato, um sujeito que poderia passar a vida em Oxford ou Cambridge. — Suspirou. — Arrisco-me a afirmar que sir Harry Burrard ou os Albion pagariam, se eu lhes pedisse para mandá-lo estudar fora... se os pais concordassem, é claro. Mas...
— Você teria que tirá-lo da família, dos amigos, da Floresta — retrucara o amigo. — E se isso não desse certo...
— Ficaria encalhado, como um barco em um banco de areia.
— Creio que sim.
— É mais fácil em uma cidade. Se ele vivesse em Winchester ou Londres... — Gilpin meditou. — Creio que a nação inteira é assim. Árvores crescendo nas profundezas das florestas. Árvores formidáveis deixando cair milhares de bolotas. Uma em um milhão é entalhada e torna-se um excelente móvel. A natureza é um desperdício.
— É verdade, Gilpin. Mas também é a matéria-prima da Inglaterra. Está sempre repleta dela.
E assim o vigário deixou o jovem Nathaniel na pequena escola do vilarejo, depois da qual ele, sem dúvida, cresceria para desfrutar uma tranqüila vida na Floresta. Nesse meio-tempo, seria traquinas.
Um dos principais prazeres que ocupava a sua mente ativa era o de pregar peças. Andrew também gostava delas, mas até mesmo ele às vezes se assombrava com a engenhosidade de algumas das brincadeiras que Nathaniel imaginava. Embora tivesse o mesmo nome dos Furzey de Oakley, em pouco tempo Nathaniel veio a partilhar da opinião que os Pride tinham dos seus vizinhos. Ainda que afastassem da memória a traição que cometeram contra Alice Lisle, parecia aos Pride que Caleb Furzey era meio lento da cabeça. O que intrigava Nathaniel, porém, era a imaginação de Caleb. Pois era repleta de medo e superstição.
"Sempre carrego comigo um pouco de sal", garantia ao menino, "para jogar sobre o ombro." Ele tinha medo de entrar em Burley, "por causa das bruxas". Não ia até a igreja de Minstead porque era mal-assombrada, dizia; e certa vez, por engano, deu uma volta pela igreja de Brockenhurst na direção contrária aos ponteiros do relógio — embora pouca gente da Floresta ligasse para isso — e passou semanas morrendo de medo. E qualquer sinal de agouro deixava-o fora de si. Se visse uma pega solitária imediatamente falava com ela; cautelosamente, dava uma volta para não passar por baixo de escadas; e, se visse um gato preto retinto, sem nenhuma pinta branca, corria para longe dele o mais depressa que podia. "Gato preto: gato de bruxa", afirmava.
Vai daí que Nathaniel encontrou um gato preto. Estava morto, ao se deparar com ele, e não era totalmente preto, pois tinha algum pêlo branco debaixo do queixo. Mas depois que ele descobriu um homem que empalhava animais, e após aplicar uma tintura preta na mancha branca, concluiu que o gato ficou com uma ótima aparência. Então, ele e Andrew Pride entraram em ação.
Não havia um só lugar onde o tal gato preto não aparecesse. Ao caminhar por uma trilha da floresta, Caleb subitamente deparava-se com ele, dava-lhe as costas horrorizado e não via o barbante que o sacudia rapidamente do interior de um arbusto. Com sorte, ele tomava outro caminho, e os meninos conseguiam emboscá-lo também ali. No dia seguinte, ele veria o gato em sua janela. Nathaniel era mesmo um artista. Dias se passavam, Caleb imaginava estar a salvo, mas de repente o gato aparecia em algum lugar novo e improvável para aterrorizá-lo. Em pouco tempo toda a Oakley estava à procura do misterioso felino. Foi o pai de Andrew quem descobriu a verdade, deu umas palmadas nos dois garotos e fez um enterro decente e discreto para o gato empalhado. Nada mais foi dito depois disso, e os dois meninos com certeza nunca souberam que, quando o mercador de madeira contou a história à esposa, em particular, os dois adultos riram até às lágrimas.
Havia, entretanto, outras coisas em Oakley que interessavam a Nathaniel. De Vez em quando, ele via os cavalos de carga dos comerciantes livres em Minstead; mas ninguém podia deixar de perceber uma atividade um pouco maior no litoral perto de Oakley. Várias vezes notou que o pai de Andrew desaparecia durante a noite e voltava ao amanhecer com a aparência feliz, guardava o pônei e jogava um pequeno saco de chá sobre a mesa da cozinha sem dizer uma só palavra.
Certa manhã três fiscais aduaneiros montados chegaram a Oakley e passaram a inspecionar a pilha de madeira de Pride perto do gramado. Pride observava-os sem grande interesse, quando passaram a desmontá-la. Tratava-se de um trabalho árduo; levaram a manhã toda naquilo. Ao meio-dia, Grockleton chegou e viu que eles nada descobriram.
— Espero que os seus funcionários coloquem de volta minha madeira do jeito que estava, Sr. Grockleton — observou Pride.
— Não creio que farão isso, Sr. Pride — rebateu o outro, com igual frieza. Pride e a família empilharam de volta a madeira, depois que os fiscais se foram. Nenhuma palavra foi dita. Era assim que funcionava.
Certo dia, entretanto, Nathaniel encontrou-se com o próprio Grockleton. Foi duas semanas após ele ter sido vacinado contra varíola. Ele e Andrew Pride tinham acabado de sair da escola e em vez de fazerem a volta de costume, passando pela casa do Sr. Gilpin, para retornar a Oakley, os dois foram pelo caminho inverso, em direção à igreja de Boldre.
O destino deles naquele dia era Albion House, onde a tia de Pride era a governanta. Mandaram que Andrew, depois da escola, fizesse uma visita a essa maravilhosa dama, e Nathaniel ficou encantado por ir junto com ele. Tratava-se da casa onde morava a jovem dama que o convencera a tomar a vacina. Também era uma casa enorme, Andrew lhe dissera: uma mansão senhorial. Ele nunca estivera em uma casa assim.
Seguiam pela alameda que dava na igreja, quando ouviram um cavalo atrás deles, viraram-se e viram o alto funcionário graduado da Aduana cavalgando. Ao se emparelhar com os dois, ele olhou para baixo e perguntou, educadamente, aonde iam.
Afora suas mãos tipo garras, Grockleton era capaz de se tornar uma pessoa bastante agradável quando não estava à procura de contrabando. Ao tomar conhecimento que o destino dos dois era Albion House, ele puxou do bolso do casaco uma carta lacrada e pediu com um sorriso:
— Vocês dois gostariam de ganhar dois pence?
— Cada um de nós gostaria, senhor — disse Nathaniel, rápido como um raio. Grockleton hesitou um segundo e depois deu uma risadinha.
— Está bem. Esta é uma carta da minha esposa para o velho Sr. Albion. Podem entregá-la?
— Ah, sim, senhor — gritaram, avidamente, os dois.
- Com isso, me pouparão uma viagem. — Pegou o dinheiro e, ao fazê-lo, observou casualmente: — Mas precisam cuidar para que ela seja entregue imediatamente. Eu suponho que devem saber como entregar uma carta.
— Eu entregaria uma carta em qualquer lugar da Floresta, senhor — falou Nathaniel com firmeza —, por dois pence.
— Ótimo. Aqui estão eles.
Entregou-lhes o dinheiro e ficou observando os garotos se afastarem. Mas, por algum motivo, como se um pensamento lhe ocorresse, Grockleton não foi logo embora, e permaneceu onde estava durante um minuto inteiro, acompanhan-do-os com o olhar. E, quando Nathaniel olhou para trás, viu que Grockleton o fitava de modo particular, mergulhado em pensamentos.
Ora, por quê, perguntou-se, o Sr. Grockleton faria aquilo?
Oxford! Oxford, enfim. Ali estava, diante delas, suas torres e cúpulas elevando-se no ar, em meio à leve neblina matutina que pendia sobre as vastas campinas verdes e o tranqüilo rio que passava pelas faculdades. Oxford à beira do rio Isis, como o Tâmisa era chamado naquele trecho de seu longo percurso. Era inútil fingir que não estavam empolgadas.
— E pensar, Fanny, minha doce e cara amiga — bradou sua prima Louisa —, e pensar que nós quase nunca viajamos!
Como Louisa estava bonita naquele dia, pensou Fanny satisfeita. Ela sempre admirara os cabelos negros de Louisa e os seus brilhantes olhos castanhos, e naquela manhã a prima parecia particularmente animada. Como era agradável, refletiu, que a prima mais chegada fosse também sua melhor amiga.
A viagem delas quase fora cancelada, devido a problemas de saúde. Não os do velho Francis Albion, que fora arrancado com uma reprimenda das portas da morte pela irmã e levado de volta ao seu estado normal, mas, inesperadamente, os da mãe de Louisa, a Sra. Totton, que as acompanharia, mas levara um tombo e torcera a perna tão dolorosamente que achara melhor não viajar. E certamente as duas não teriam conseguido ir, se não fosse pelo Sr. Gilpin.
— Minha esposa acha que tenho ficado muito tempo parado em Boldre — assegurou aos agradecidos Totton, com tanta determinação, como se fosse verdade. — Ela insiste firmemente que eu acompanhe as duas. Lembrem-se que eu já estive em Oxford, e visitar novamente a cidade não será para mim nada além de um prazer.
Com o vigário como acompanhante, não poderia haver dúvida sobre a segurança das moças. "Aliás", como Fanny lembrara a Louisa, "é mesmo uma grande honra para nós viajar com um homem tão eminente." E assim, com a maior das animações, partiram na melhor carruagem dos Albion para Winchester e de lá seguiram em direção ao norte os quase sessenta e cinco quilômetros da velha estrada que levava a Oxford.
Na metade da manhã estavam instalados em uma das melhores hospedarias da cidade, a Blue Boar, em Cornhill, as moças dividindo um quarto, e o Sr. Gilpin em um outro. E pontualmente, ao meio-dia, Edward Totton foi visitá-los.
Após abraçar a irmã e a prima, ele fez uma reverência, expressou os agradecimentos pelo fato de o Sr. Gilpin tê-las acompanhado e, vendo que todos estavam ansiosos para explorar a cidade, sugeriu que fizessem sem demora um passeio.
Que encantadora era a cidade. Com suas largas ruas principais pavimentadas com pedras arredondadas, suas curiosas alamedas medievais e igrejas góticas lado a lado com esplêndidas fachadas neoclássicas, a universidade vinha progredindo ali por mais de cinco séculos. Suas ruas eram movimentadas com todo tipo de pessoas. Mercadores e fazendeiros do entorno da zona rural misturavam-se com clérigos e eruditos pobres, jovens ricos com cabeleiras empoadas, graves professores com becas acadêmicas e visitantes como eles. Ali passaram por um majestoso portão com a guarita de um porteiro, parecida com a entrada de um palácio, e avistaram atrás dele o imenso quadrilátero pavimentado de pedras arredondadas; acolá, descendo um beco, bisbilhotaram um pequeno pátio sombrio, que parecia ter ficado esquecido desde a época em que os monges medievais o utilizaram, quatrocentos anos atrás.
Edward estava contente, e as moças, animadas; mas Fanny não deixou de perceber, admirada, o papel assumido pelo Sr. Gilpin. Ele os acompanhava de um modo bastante sociável, mas falava muito pouco. Ocasionalmente — quando chegaram a Biblioteca Bodleian, por exemplo, ou à perfeição clássica do Sheldonian Theatre, projetado por sir Christopher Wren — ele dava um passo à frente e destacava, com seu tom de voz grave, alguns dos pontos mais admiráveis de cada prédio. Se não fizesse isso, afinal de contas, seria falhar com o seu dever. Ao visitarem a faculdade dele, Queens College, logicamente mostrou-lhes tudo. Mas, fora essas ocasiões, ele preferia se manter na retaguarda, deixando que Edward guiasse o passeio e nem mesmo permitia que um franzido marcasse sua eminente testa quando Edward se equivocava. Aliás, parecia se divertir tanto quanto os demais ao enfiar a cabeça nos antigos recantos e fendas familiares e expressar um admirado "Ah!" ao descobrir que continuavam do mesmo jeito que há cinqüenta anos. Visitaram o portentoso Balliol College, a grandiosa Christchurch, a agradável Oriel e, por volta das três da tarde, chegaram à faculdade de Edward: Merton.
- Quero dizer que estamos na faculdade mais antiga — informou ao grupo.
— Isso é questionável — contestou Gilpin, com uma risadinha.
— A primeira a ser construída, pelo menos — rebateu Edward, com um sorriso. — Em 1264. Temos muito orgulho de nós mesmos. O mestre da faculdade é conhecido como reitor.
A Merton era realmente adorável. Seus quadriláteros não eram largos nem grandiosos, porém mais aconchegantes e sugestivos de sua antigüidade. Sua capela, contudo, era algo realmente imponente, e na extremidade oeste dela havia um grande número de monumentos e memoriais. Pararam diante de um dos mais admiráveis, dedicado a um reitor, Robert Wintle, que morrera décadas antes, e Gilpin começou a falar:
— Um notável erudito. Eu me lembro bem de Robert Wintle... — quando Edward o interrompeu com um brado de contentamento:
— Ah, ei-lo! Eu disse a ele que nos encontraria em Merton.
E, para sua grande surpresa, o Sr. Gilpin e as duas moças viram um homem elegantemente vestido, poucos anos mais velho e algo mais alto do que Edward, com um pálido rosto aristocrático e uma basta cabeleira negra, que era soprada levemente pela brisa. Ao ver Edward, assentiu e sorriu, depois fez uma breve e formal reverência na direção de Gilpin e das jovens damas.
— Eu nada disse, pois não fazia idéia se ele viria — alegou Edward. — Ele não costuma vir — acrescentou. — Este é o Sr. Martell.
As apresentações foram feitas rapidamente, e o Sr. Martell voltou a se curvar, com circunspecta cortesia, para Gilpin e cada uma das moças, embora fosse difícil saber em qual delas ele estava realmente interessado.
— Martell cursava o último ano quando vim para Oxford — explicou Edward. — Foi muito gentil comigo. Costumava falar comigo. — Deu uma risada. — Sabem, ele não fala com qualquer um.
Fanny olhou Martell de relance para ver se ele negava aquilo. Não negou.
— Por acaso é da família Martell de Dorset? — indagou Gilpin.
— Sim, senhor — respondeu Martell. — Mas confesso que nada sei sobre a família Gilpin.
— Minha família é dona de Scaleby Castle, perto de Carlisle — disse Gilpin com firmeza. Fanny nunca o ouvira falar aquilo e olhou para o velho amigo com interesse renovado.
— Realmente, senhor? Deve ter conhecido então lord Laversdale.
— A vida inteira. As terras dele fazem limite com as nossas. — Tendo feito essa observação de um modo indiferente, Gilpin olhou de relance para Fanny e prosseguiu mais afável: — Arrisco afirmar que o senhor deve conhecer a propriedade dos Albion em New Forest.
— Sim, eu a conheço, embora nunca tenha tido o prazer de vê-la — respondeu Martell, novamente com uma leve mesura em direção a Fanny. Desta vez, ela achou, houve um quê de cordialidade em seu gesto, mas talvez pudesse ter sido apenas um truque causado pela luz da capela.
— Vamos lá para fora — sugeriu Edward Totton.
Um dos encantos do Merton College era o seu cenário: suas edificações avançavam para o espaço verde a céu aberto de Merton Field, além do qual, atravessando-se a Broad Walk, ficava a adorável extensão de Christchurch Meadow e o rio.
Eles formavam um grupo aprazível diante daquele cenário arcádico, as duas moças com seus vestidos longos e simples, o Sr. Gilpin com o chapéu clerical, e os dois homens de fraque e calções amarrados nos joelhos e meias de seda listradas. Ao deixarem a universidade, Edward continuava com a sua dissertação, explicando por que o amigo se encontrava na vizinhança, que desportista notável ele fora em Oxford e, aparentemente, também um erudito. Entretanto, ao começarem a travessia de Merton Field, sua provisão de palavreado pareceu temporariamente ter-se esgotado, mas nem Fanny nem Louisa desejavam iniciar uma conversa com o desconhecido, e, como o próprio Sr. Martell não mostrava sinais de querer falar alguma coisa, o Sr. Gilpin adiantou-se, passou a caminhar ao lado de Martell, enquanto os outros três os seguiam, logo atrás, ouvindo.
— Já está se dedicando a alguma carreira, Sr. Martell?— indagou ele.
— Ainda não, senhor.
— Já pensou em alguma?
— Já. Em Oxford pensei em entrar para a Igreja, mas as responsabilidades de minha posição levaram-me a decidir contra.
— Um homem pode ser dono de uma grande propriedade e ser também um clérigo — observou Gilpin. — O meu avô foi.
— Certamente, senhor. Mas logo após eu completar os meus estudos em Oxford, um parente do meu pai faleceu, deixando-me uma enorme propriedade em Kent, além da de Dorset, que será minha com a morte do meu pai. As duas ficam a cerca de cento e sessenta quilômetros de distância uma da outra; a não ser que eu abra mão de uma delas... o que seria trair a confiança depositada em mim— penso que seria impossível, ao mesmo tempo, cumprir os meus deveres como um clérigo. Eu poderia, é claro, assumir um curato perpétuo, mas se o fizesse não haveria sentido em me ordenar.
- Entendo — disse Gilpin.
ALBION PARK
- Penso, talvez — prosseguiu o Sr. Martell —, em entrar para a política.
— Ele está querendo uma cadeira — interrompeu Edward lá de trás. — Eu lhe disse que deveria falar com Harry Burrard. É ele que decide quem serão os representantes de Lymington. — Deu uma risada. — Creio que Martell devia nos representar, Sr. Gilpin. O que o senhor acha?
Mas se o vigário de Boldre tinha a intenção de responder, nunca se saberá, pois Fanny gritou subitamente:
— Oh, olhe, Sr. Gilpin! Uma ruína.
O objeto para o qual apontava era uma pequena ponte sobre o rio, a alguma distância à direita deles. Se não se tratava exatamente de uma ruína, estava certamente em um estado bastante dilapidado, com os seus arcos visivelmente esfacelando-se. A aparência era das mais inseguras.
— Folly Bridge — informou o Sr. Gilpin, que parecia contente com a mudança de assunto. — E então, Edward, sabe me dizer a idade dela? Não? Sr. Martell? Também não. Bem, acredita-se que essa ponte data do final do século XI, pela época do rei Guilherme, o Ruivo. Se for verdade, ela é muito mais velha do que a universidade.
Como a informação foi recebida com consideração, Fanny decidiu que já era adequado se dirigir ao estranho.
— O senhor gosta de ruínas, Sr. Martell? Ele se virou e olhou para ela.
— Estou ciente — inclinou a cabeça momentaneamente em direção a Gilpin —, tendo lido o Observações do Sr. Gilpin, da natureza pitoresca das ruínas; certamente há muito que se admirar, e muito que aprender, em ruínas da antigüidade. Mas devo admitir, Srta. Albion, que prefiro o vigor de uma edificação viva à decadência de seus restos mortais.
— Contudo, há pessoas que constróem ruínas — observou ela.
— Tenho um amigo que fez isso. Mas, mesmo assim, considero ridículo.
— Oh. — Pensando nos próprios planos, ela não pôde deixar de enrubescer. — Por quê?
-— Não gostaria de gastar uma grande soma de dinheiro em objetos inúteis. Não vejo nenhum sentido.
— Ora, senhor — interferiu Gilpin —, seu argumento tem uma fraqueza: Poder-se-ia dizer o mesmo de qualquer obra de arte. Um quadro de uma ruína, então, nem deveria ser pintado.
-— Reconheço como correto o seu argumento, senhor — rebateu Martell —, mas, mesmo assim, ele não me satisfaz. Trata-se, creio eu, de uma questão de gradação. O pintor, não importa o quanto seja importante a sua obra, gasta apenas tempo, tinta e tela. Entretanto, com o custo de uma ruína, mesmo pequena uma pessoa poderia construir vários chalés, que poderiam ser igualmente úteis e agradáveis ao olhar. — Fez uma pausa. Estaria ele, talvez, agredindo por estar sendo obrigado a falar tanto? — E tem algo mais, senhor. Uma mansão é o que é, ou seja, uma casa; um quadro é um quadro. Mas uma ruína construída pretende ser o que não é. Ela é falsa. Os sentimentos e os devaneios que pretende estimular também são falsos.
— Não gosta então da moda gótica nas edificações? — quis saber Fanny.
— Pegar uma boa casa e acrescentar ornamentos góticos para fazê-la parecer o que não é? Certamente não, Srta. Albion. Eu abomino essa moda.
— Ah — exclamou o Sr. Gilpin.
Foram mesmo assim inspecionar a Folly Bridge e caminharam um pouco pela margem do rio. Edward recomeçara a tagarelar. Foi muito agradável. Em seguida o Sr. Gilpin e as duas moças acharam que deviam voltar à Blue Boar Inn para jantar e descansar. Edward e o Sr. Martell os acompanharam até a hospedaria e ficou combinado que Edward voltaria a encontrá-los na manhã seguinte para continuar o passeio por Oxford. O Sr. Martell, ao que parecia, tinha outros compromissos. Para o último dia deles na cidade, entretanto, Edward propôs que deveriam se aventurar até a aldeia de Woodstock e visitar a imensa mansão rural de Blenheim Palace, que ficava em um magnífico parque próximo.
— No momento o duque está viajando — disse Edward —, mas é possível visitar a casa mediante um requerimento, o qual eu já fiz.
— Excelente! — oradou Gilpin. — O duque possui alguns quadros de Rubens que não se deve deixar de ver.
— Martell — perguntou Edward —, você gostaria de nos acompanhar? Como o amigo pareceu hesitar, ele indagou: — Já visitou Blenheim?
— Permaneci lá uma ou duas vezes — respondeu Martell calmamente.
— Oh, Deus, Martell — exclamou Edward, um pouco envergonhado
eu devia ter adivinhado que você conhece o duque. Então, venha conosco, para fazer companhia a essas damas... ou só vai a Blenheim quando o proprietário está lá para recebê-lo?
Para assombro de Fanny, Martell simplesmente sacudiu a cabeça, com um meio sorriso, diante dessa surtida. Pareceu não se importar com a caçoada juvenil de Edward.
— Terei prazer em acompanhá-los — disse, com uma leve reverência; embora Fanny não fosse capaz de adivinhar o que ele realmente queria.
O Sr. Martell deixou-os depois disso, e as duas moças jantaram com Edward e o Sr. Gilpin. Fanny decidiu que aquilo era mesmo preferível, já que as desobrigava da necessidade de conversar com um homem que não parecia ter um grande desejo pela companhia deles. Ainda assim, pediu a opinião do Sr. Gilpin a respeito do amigo de Edward.
— Seu intelecto — disse ele, cauteloso — é consistente, embora talvez rígido demais. Mas precisaria conhecê-lo melhor. — O que, apesar de interessante, não era bem o que ela queria saber.
— Ele é podre de rico — declarou Edward. — Isso eu posso lhes afirmar. Mais tarde, em seu quarto, ela perguntou a Louisa o que ela achava. Sempre gostava de comentar as coisas com Louisa. A prima e ela eram muito íntimas, talvez porque fossem tão diferentes. Ambas tinham um excelente olho e gostavam de pintar; mas, ao passo que Fanny se demorava à procura de um determinado efeito da luz ou do clima na paisagem, Louisa em pouco tempo contentava-se com algumas poucas pinceladas de cor e dizia ter terminado. Ou, às vezes, nas aulas do Sr. Gilpin, ela fazia alguns acréscimos insolentes à cena, e quando o eminente pintor passava por ela, apontava para o tal detalhe e perguntava:
— Gostou do meu coelho, Sr. Gilpin? Ele tem as orelhas caídas.
Mas como isso era feito de uma maneira jovial e estava de acordo com a sua personalidade, ele apenas sorria e dizia:
— Sim, Louisa. — E não se sentia ofendido.
Louisa tinha um talento para a imitação — a que fazia do Sr. Grockleton era digna de elogios —, mas não era nada maldosa. Lia livros, tantos quantos desejava; falava francês o suficiente para divertir os oficiais franceses que se encontravam em Lymington. Com os olhos adoráveis e a bela aparência emoldurada por cabelos negros, Louisa concluíra há tempos que o seu papel como a bonita filha do mercador mais rico de Lymington satisfazia bem as suas aspirações. E, se fosse de seu desejo poder ser mais inteligente ou mais diligente, ela deve ter concluído que isso não era de seu interesse pessoal.
— O que eu acho do Sr. Martell, Fanny? Ora, que é um bom partido, e ele sabe disso.
Tratava-se da pura verdade.
— E quanto ao caráter dele e às suas opiniões?
— Ora, Fanny, mal posso saber. Foi você quem conversou com ele. — Fanny não tinha pensado nisso, mas naquele instante percebeu que de um modo incomum Louisa se mantivera calada quase todo o tempo durante o passeio com o Sr. Martell. —Eu observei apenas uma coisa, Fanny—continuou a bela prima com um sorriso.
- Diga-me o que foi, Louisa.
— Que você gostou dele. — Em seguida Louisa caiu na gargalhada.
— Eu? Oh, não, Louisa. Eu não creio. Por que você acha tal coisa? Louisa, porém, recusou-se a discutir ainda mais o assunto; em vez disso, foi sentar em uma cadeira perto da janela e, pegando um livro, passou a fazer um pequeno desenho na folha de guarda. Manteve-se ocupada com aquilo, recusando-se durante algum tempo a qualquer conversa, enquanto Fanny se preparava para dormir, até que finalmente chamou a prima e, em silêncio, entregou-lhe o livro e deixou que ela visse o desenho sob a luz mortiça.
Tratava-se de um cervo macho no cio: um grande veado-real no urzal de uma floresta crepuscular, a cabeça com a magnífica galhada jogada para trás e prestes a emitir o seu bramido. Tinha uma semelhança muito boa com o animal e era bem detalhado. Com uma única alteração: o rosto era do Sr. Martell.
— Ainda bem que não o veremos amanhã — disse Fanny —, pois eu recearia dar uma risada na frente dele.
Não viram o Sr. Martell, nem mesmo pensaram nele no dia seguinte, que transcorreu de modo agradável. Mas, na manhã do dia posterior, ele estava na porta da hospedaria, vestido com um casaco marrom e calções de montaria que combinavam com um chapéu alto marrom. Enquanto o grupo seguiu na carruagem, ele foi montado em um magnífico baio e explicou que, como fazia um dia excelente e o seu cavalo já estava há dois dias no estábulo, achou melhor proporcionar-lhe um pouco de exercício. Se isso, por um lado, fazia todo sentido, Fanny, por outro, não pôde deixar de imaginar que aquilo também significava que ele seria poupado da necessidade de conversar com eles durante a viagem.
Com o Sr. Martell cavalgando tranqüilamente atrás da carruagem, a viagem, não obstante, transcorreu de modo bem agradável. O Sr. Gilpin tinha uma péssima opinião da região rural de Oxfordshire. "É enfadonha demais. Só consigo descrevê-la", disse ao grupo, "como uma monotonia cultivada." Mas se a paisagem era tristemente carente do pitoresco, sua história tinha bastante emoção, em Woodstock, o Sr. Gilpin lembrou-lhes que era ali que um rei medieval inglês mantinha a sua amante real, a bela Rosamund. A rainha tinha tanto ciúme dessa amante que queria envenená-la. Conta-se que por causa disso o rei construiu um labirinto em volta da casa dela e somente ele conhecia o caminho de entrada. "Uma divertida história, mesmo sendo inverídica", como observou o vigário.
Ele os regalou com essa e outras histórias até chegarem aos portões do parque do grande palácio de Rlenheim.
John Churchill era um sujeito cordial, com apenas a pobre fortuna de um fidalgo rural, na corte do monarca folgazão, com quem dividia uma amante. Mas também era um soldado formidável. Após obter uma série de vitórias para a rainha Ana, foi tornado duque de Marlborough e recompensado, como o eram os generais bem-sucedidos, com uma enorme propriedade. A medida que a carruagem seguia pela estrada, naquela manhã ensolarada, Fanny procurava ansiosa para ver se enxergava a mansão. E em pouco tempo, olhando depois de uma grande curva, ela a viu.
E surgiu como um choque. Sentiu um leve arquejo, uma sensação fria de medo. Ela estava familiarizada com as mansões de New Forest; visitara a grande casa de Wilton, acima de Sarum; mas nunca tinha visto algo parecido.
O vasto palácio clássico de Blenheim, batizado com o nome da mais famosa vitória do duque sobre o rei Luís XIV da França, não pousava na paisagem: espalhava-se por ela como uma cavalaria de pedra no ataque. Seu esplendor barroco ofuscava totalmente qualquer uma das maiores mansões senhoriais inglesas. Não se tratava de uma casa de campo inglesa. Era um palácio europeu, da mesma espécie do Louvre ou de Versalhes, ou da de um dos grandes palácios austríacos que se estendiam pelo horizonte de Viena — por trás de cujas fachadas se podia sentir o espírito de um quase poder oriental, como o dos czares russos ou dos cãs turcos das infindáveis estepes.
Afinal, mesmo na Inglaterra dessa época — quando os retratos dos aristocratas os exibiam em poses de deuses clássicos — o fundador da família Churchill não podia se abrigar como um simples mortal. Das cozinhas para a sala de jantar havia uma distância de quatrocentos metros.
Primeiro fizeram um passeio pela casa. Os salões e galerias em mármore do duque de Marlborough tinham uma altiva grandiosidade que ela nunca vira antes. Aquilo, ela percebeu, era um mundo aristocrata muito distante e além do seu próprio mundo. Sentia-se um tanto estupefata. Percebeu, porém, que o Sr. Martell parecia estar em casa.
— Existe uma relação entre Blenheim e New Forest — lembrou-lhes o Sr. Gilpin. — O último duque de Montagu, cuja família é proprietária de Beaulieu, casou-se com a filha de Marlborough. Portanto, os lordes de Beaulieu agora também são em parte Churchill.
Admiraram as pinturas de Rubens.
— O primeiro retrato de família da Inglaterra — anunciou Gilpin diante de uma delas. Entretanto, diante do quadro da Sagrada Família, declarou peremptoriamente: —E insípido. Possui muito pouco do fulgor do mestre. Exceto, Fanny, você há de concordar, na cabeça da velha senhora. — Mas, apesar de todas as maravilhas do palácio, Fanny não lamentou quando o Sr. Gilpin finalmente os conduziu ao lado de fora para inspecionarem o parque.
O parque de Blenheim era bastante vasto, um dos maiores executados por Capability Brown. Não havia os pequenos confortos como aqueles adotados por Repton: nada de modestas alamedas ou canteiros de flores, mas grandes vastidões através das quais todos os exércitos de Marlborough poderiam ter marchado. Ele parecia dizer que Deus, ao planejar a natureza, teria pretendido apenas fazer um esboço preparatório, a ser organizado e ter sentido através da autoridade de um duque inglês. Assim era o parque de Blenheim, com as suas amplas combinações de riacho e lago, cinturões verdes e infindáveis panoramas a céu aberto, afastando-se em direção a um horizonte conquistado.
— Foi tirada cada vantagem que pudesse acrescentar variedade à grandiosidade — afirmou Gilpin ao iniciarem o passeio.
Todos agora conversavam entre si de um modo mais descontraído. Enquanto caminhava ao lado do Sr. Gilpin, atrás dos outros três, Fanny percebeu que até mesmo Louisa dizia algumas palavras ao Sr. Martell, sem dúvida sobre a paisagem ou o clima; e, se o Sr. Martell não falava muito, pelo menos parecia estar respondendo. Não se podia negar, fosse qual fosse a opinião que se tivesse dele, que o Sr. Martell parecia bem vistoso naquele cenário.
Em um dado momento, quando uma determinada paisagem, habilmente arquitetada por Brown, se abriu diante deles, Gilpin exclamou:
— Aí está. Tão grandioso quanto uma explosão, eu diria, como a arte jamais se mostrou. Pitoresca. Uma cena, Fanny, para você desenhar. Você a faria admiravelmente.
— Desenha, Srta. Albion? — perguntou o Sr. Martell, virando-se para ela.
— Um pouco — respondeu Fanny.
— O senhor desenha, Sr. Martell? — indagou Louisa; mas ele não se voltou na direção dela.
— Muito mal, receio. Mas tenho a maior admiração por quem desenha. E então, olhando diretamente para Fanny, deu um sorriso.
— Minha prima Louisa desenha tão bem quanto eu, Sr. Martell — disse Fanny, com um leve enrubescer.
— Não duvido — falou educadamente, e virou o rosto de volta para retomar a conversa que estava tendo.
Após caminharem mais um pouco, viraram-se para olhar o palácio dos Churchill e, para puxar conversa, ela perguntou qual era origem da família.
- Certamente monarquistas durante a Guerra Civil — disse Gilpin. — Uma família de West Country. Se bem que não uma das mais antigas ou mais nobres, creio.
— Não como a sua, Sr. Martell — declarou Edward, com uma risada. — Ele é normando. Os Martell vieram com Guilherme, o Conquistador, não foi mesmo?
— De fato — retrucou Martell, com um leve sorriso. — Foi o que sempre me disseram.
— Isso mesmo — falou Edward alegremente. — Nenhuma gota de sangue humilde polui as suas veias; nenhum contato com o comércio jamais maculou o seu brasão. Confesse, Martell. É muita bondade sua conversar conosco.
Martell reagiu a isso com um divertido sacudir de cabeça.
Fanny ficou surpresa ao ouvir Edward levantar o assunto daquele modo, pois, como um Totton, uma família que indubitavelmente ainda se dedicava ao comércio, aquilo parecia colocá-lo em desvantagem. Mas, vendo a divertida reação de Martell, ela percebeu que houve uma dose de risco calculado na infantil sinceridade de seu primo. Com a mãe dele, Fanny se deu conta, pertencendo a uma família nobre menos importante, os seus laços com os Burrard — o parentesco mais próximo dele, aliás, com ela mesma, uma Albion — levavam o jovem Edward Totton a se incluir no círculo de parentesco dos bem-nascidos. A referência indireta à própria família mercantil foi, portanto, um sutil convite ao aristocrata para que ele lhe dissesse que isso não tinha importância.
— Eu próprio me espanto, às vezes — declarou Martell finalmente, parecendo bastante pomposo para a ocasião —, por falar mesmo com qualquer um.
Diante disso, Edward arreganhou os dentes e Louisa deu uma risada; e Fanny, verdade seja dita, não pôde evitar de se sentir secretamente contente por ser uma Albion.
A seguir caminharam de volta para a carruagem, as duas moças juntas com o Sr. Gilpin, e Edward e o amigo conversando um com o outro. Todos pareciam bem animados, exceto pelo Sr. Gilpin, que tinha ficado um tanto silencioso.
Antes de entrarem na carruagem, porém, chegou o momento de se despedirem do Sr. Martell, que cavalgaria até uma outra casa nas redondezas.
— Mas não ficaremos distantes por muito tempo — anunciou Edward —, porque o Sr. Martell concordou em ir a Lymington, onde ficará conosco. Muito em breve, disse ele. Está tudo combinado.
Foi, de fato, uma surpresa; embora, Fanny teve de confessar, não inteiramente mal recebida. Afinal de contas, se ele ficasse na casa dos Totton, ela não seria obrigada a encontrá-lo mais do que desejasse.
Então despediram-se dele e viram-no se afastar, e depois voltaram para Oxford para a última refeição antes de partirem com o Sr. Gilpin, a quem não esqueceram, durante o jantar, de agradecer bastante.
Fanny descobriu, ao arrumar suas roupas com a ajuda da criada da hospedaria, que estava com excelente humor.
Por isso foi tomada de surpresa quando Louisa subitamente lhe perguntou:
— Tem certeza, Fanny, de que não gosta do Sr. Martell?
— Eu? Não creio, Louisa. Não mesmo.
— Ah — retrucou Louisa, dando-lhe um olhar meio estranho. — Pois eu gosto.
Puckle partiu logo depois do raiar do dia. Ninguém se importou especialmente com aquilo. Não se perguntava aonde Puckle ia. Ele era um homem de segredos.
Apenas um punhado de homens que trabalhava em Bucklers Hard morava por lá; e, embora houvesse uma aldeia do lado externo do portão que dava para a abadia de Beaulieu, também não havia muitos operários e carpinteiros que se alojassem por lá, pois nem os proprietários de Beaulieu nem os aldeões os queriam.
O motivo era simples. Se um operário vivesse na freguesia de Beaulieu e caísse doente ou ficasse velho, ele se tornaria uma despesa para o Ônus da Pobreza, o que significava que a freguesia, por lei, teria de sustentar a ele, sua viúva e possivelmente até os filhos. Era natural, portanto, que, por toda a Inglaterra, as freguesias fizessem todo o possível para descarregar os seus pobres nas dos vizinhos, às vezes, por exemplo, dando-se ao trabalho de descobrir o distante local de nascimento de uma pessoa pobre para que o ônus pudesse ser imposto lá.
A solução para os operários de Bucklers Hard consistiu na criação de um novo povoamento. Do limite ocidental da propriedade de Beaulieu, ao longo da margem da charneca a céu aberto, surgiram grupos irregulares de cabanas dispersas. Tecnicamente, elas não tinham o direito de estar ali, pois cada lote de terra era, na verdade, posseada da floresta do rei, mas, apesar de ter havido alguns boatos sobre sua remoção, nada foi feito. Como o povoamento ficava ao longo dos limites da propriedade, passou a ser conhecido como Beaulieu Rails (Beirada de Beaulieu), se bem que às vezes fosse chamado de East Boldre (Boldre Leste). Ficava apenas a cerca de três quilômetros do estaleiro; portanto, os operários não precisariam andar muito, se morassem no povoado de Beaulieu.
Mas eles estavam fora da freguesia.
Puckle vivia há muitos anos em Beaulieu Rails, mas de vez em quando ainda ia até o lado ocidental da Floresta, onde vivia a maior parte dos seus parentes; portanto, ao atravessar a charneca naquela manhã de domingo, os vizinhos deduziram que estava indo até lá. Talvez ficassem surpresos, porém, uma vez que, seguindo pela charneca, ele prosseguiu caminhando em direção ao norte, atravessou a floresta, passou por Lyndhurst e mesmo por Minstead. Já era metade da manhã quando margeava a fileira de árvores em direção ao ponto de encontro, que ele havia escolhido por causa da distância que ficava de sua casa e porque dali seria mais fácil recolher-se para o isolamento mais profundo do bosque próximo. Ao se aproximar, notou satisfeito que o local estava deserto.
Não havia mais a árvore de Rufus. Seu tronco oco, enfim, apodrecera e transformara-se em um toco que se desintegrara meio século antes. No seu lugar, entretanto, fora erigida uma pedra para celebrar o sítio histórico. Embora o seu miraculoso verdejar de inverno ainda fosse lembrado por alguns, era a falsa reputação da árvore, como o local da morte do rei Guilherme, o Ruivo, que agora era cultuada em pedra. E isso não era tudo: até mesmo Purkiss e sua carroça haviam agora se tornado um interesse de registro histórico.
Diante da pedra, Puckle parou e olhou em volta. A pouca distância ficavam os dois filhos da velha árvore. Um fora podado, e o outro, não. O olhar experiente de Puckle captou-os de imediato. O carvalho podado não daria madeira boa para navio, porque o processo de poda o tornava fraco para encaixes; mas o outro, percebeu, poderia ser marcado para corte a qualquer momento. E foi de trás dessa árvore que emergiu uma figura, para a qual ele sinalizou com a cabeça.
Grockleton foi pontual.
Puckle aproximou-se e juntou-se ao homem da Aduana debaixo do carvalho, onde ficaram parados lado a lado. Olhou em volta novamente.
— Estamos a sós — informou Grockleton. — Estive vigiando.
— Então, está bem.
Grockleton aguardou um instante para ver se o habitante da Floresta iniciaria a conversa; mas, como parecia que não, ele começou:
— Você acha que pode me ajudar?
— Talvez.
— De que modo?
— Poderia lhe dizer coisas.
— Por que faria isso?
— Tenho os meus motivos.
A cena que Grockleton testemunhara continuava nítida em sua mente. O que aquele sujeito fizera para irritar o estalajadeiro da Angel Inn ele não descobrira, mas claramente fora mais do que uma questão de rixa ou bebedeira. Aliás, naquela ocasião, Puckle parecia bastante tranqüilo e sóbrio. Mas fosse qual fosse o motivo que levou Isaac Seagull a arrastá-lo até a porta da Angel Inn e, literalmente diante de Grockleton, chutá-lo para a High Street, ele nunca esqueceria o olhar que aquele sujeito dera para Seagull, ao se colocar de pé. Não foi raiva de bêbado: tratava-se de puro e imorredouro ódio. Embora fosse fiscal da Aduana, Grockleton nunca recebera um olhar como aquele. E esperava jamais recebê-lo.
Pouco depois cavalgou atrás do homem da Floresta, ao voltar para casa, e, passando por ele em um trecho deserto da alameda, falou baixinho que pagaria bem se houvesse algo que Puckle quisesse lhe dizer. Tratava-se apenas de um palpite, claro, mas era trabalho de um fiscal da Aduana fazer aquele tipo de abordagem.
Não esperava realmente que surgisse algo daquilo; mas dois dias depois Puckle entrou em contato. E agora estavam conversando.
— Que tipo de coisas poderia me dizer? Coisas sobre Isaac Seagull?
Ele não tinha certeza se o estalajadeiro da Angell Inn tinha um envolvimento ativo no contrabando. Em termos gerais, podia-se supor que os donos de todas as estalagens recebiam produtos contrabandeados, mas ele há muito desconfiava que Seagull devia fazer muito mais do que isso.
— Ele é um demônio — disse Puckle amargurado.
— Eu tive a impressão de que vocês dois discutiram.
— Discutimos. — Puckle fez uma pausa. — Mas não foi só isso. — Olhou para baixo. — O senhor ouviu falar do ataque a Ambrose Hole alguns anos atrás?
— Claro. — Embora o ataque à quadrilha de assaltantes tivesse ocorrido pouco antes de sua chegada a Lymington, Grockleton não pôde deixar de saber do ocorrido.
O outro homem então cuspiu no chão, enojado.
— Dois dos mortos eram da minha família. E sabe quem os denunciou? O maldito Isaac Seagull. Ele também sabe que eu sei. — Era esse então o motivo do ódio. Grockleton ouvia com atenção. — Por isso ele me trata como um cão — prosseguiu Puckle, profundamente sentido e amargurado —, porque acha que eu tenho medo dele.
— Você tem medo dele?
Puckle nada disse, como se relutasse em admiti-lo. Seu rosto nodoso lembrava a Grockleton um carvalho mirrado, do mesmo modo que Seagull o fazia pensar em um vistoso lugre com a vela enfunada pela brisa.
— Sim — confirmou, enfim, em voz baixa, o mateiro. — Eu tenho medo. — E, em seguida, olhando nos olhos de Grockleton: — E qualquer homem deveria ter.
Grockleton entendeu. A violência entre os contrabandistas e o pessoal da Aduana era rara, mas podia acontecer. Vez por outra, se estivesse causando muitos problemas, podiam bater na porta e enfiar uma bala na cabeça de um fiscal montado. Sua mão de garra apertou-se, mas não denunciou qualquer outro sinal. Era um homem bastante corajoso.
— O que o senhor deseja? — indagou Puckle.
— Interceptar um grande carregamento. Na praia. Apenas isso.
— O senhor não tem gente suficiente para isso.
— Isso é problema meu. Puckle pareceu pensativo.
— Terá que me pagar muito dinheiro — disse ele.
— Uma parte do que for confiscado. — Ambos sabiam que isso podia ser uma pequena fortuna.
— E pegariam Isaac Seagull?
— Se ele estiver lá, sim.
— Mate-o — disse Puckle baixinho.
— Eles teriam que atirar em nós primeiro.
— Vão atirar. Vou precisar de dinheiro antes. Muito. E de um cavalo veloz. — Percebendo que Grockleton hesitava, continuou: — O que acha que vão fazer comigo, se descobrirem?
— Talvez não descubram.
— Vão descobrir. Eu terei que deixar a Floresta. Ir embora. Para muito longe.
Grockleton tentou imaginar Puckle fora da Floresta. Não era fácil. Havia pessoas que iam embora, claro. Não freqüentemente, mas acontecia. E com muito dinheiro... Ele tentou imaginar Puckle com dinheiro, e também não conseguiu, mas em seguida suspirou para si mesmo. As pessoas mudam quando obtêm uma fortuna, mesmo um homem como aquele. Quem sabia no que ele poderia se tornar, com dinheiro, em um outro lugar? Puckle era misterioso.
— Cinqüenta libras — sugeriu. — O restante depois. Podemos conseguir para que receba a sua parte em Winchester, Londres, onde quiser.
Percebeu que Puckle reagiu e depois tentou disfarçar. A soma o havia impressionado. Ótimo.
— Vai demorar algum tempo — lembrou Puckle. — O senhor sabe disso. Grockleton confirmou com a cabeça. As grandes travessias com contrabando
costumavam ser feitas no inverno, quando as noites eram mais longas.
— Outra coisa—prosseguiu o homem da floresta, demonstrando preocupação — Vou precisar de um meio de avisá-lo. Não posso ser visto em sua companhia.
— Eu sei. Já pensei nisso. Talvez eu tenha uma solução.
— Ah. E qual é ela?
— Um menino — disse Grockleton.
Passaram-se algumas semanas antes que o Sr. Martell fosse a Lymington, mas, ao fazê-lo, escolheu a ocasião com todo o cuidado.
Em uma linda manhã de verão passou pelo pedágio e entrou a cavalo na cidade. Sentia-se otimista. Tinha preferido cavalgar na frente, deixando o criado segui-lo na caleche com seu baú de roupas e a valise de couro. Ao passar pelo portão do pedágio, na entrada do burgo, percebeu que nunca estivera ali.
Não tinha dúvidas de que seria uma visita agradável e também muito interessante. Gostava do jovem Edward Totton. Podiam não ter muito em comum, mas sempre apreciara o espírito alegre do jovem e o fato de Totton não se amedrontar diante dele, como acontecia com muita gente. Aliás, apreciava sua própria reputação de pessoa severa: ela o protegia daqueles que só queriam tirar vantagem dele; divertia-se, porém, quando um sujeito jovem como Totton se recusava a ficar constrangido. Além disso, no caso, era ele quem, na verdade, pretendia utilizar-se de Edward Totton.
O Sr. Wyndham Martell tinha uma posição invejável: não precisava agradar ninguém. Era senhor de uma enorme propriedade, herdeiro de outra, graduado por Oxford e um bom caráter: na sociedade em que vivia não havia ninguém, a não ser que se tratasse de uma pessoa impertinente, que encontrasse uma falha nele. Se tinha modos corteses — e, em sua maneira de certo modo reservada, ele os tinha — era porque desprezaria a si mesmo se agisse de qualquer outro jeito. O único perigo para a sua invejável situação seria se ele fosse um jogador ou um devasso, e Martell, cuja inclinação natural se dirigia aos prazeres do intelecto, era por demais arrogante para ser qualquer uma das duas coisas. Tinha suficiente vaidade pessoal para se apresentar bem; ele concluíra, com bastante sensatez, que seria artificial um homem em sua posição não ter vaidade. Pretendia, para si mesmo e o nome da família, um destaque no mundo e podia se dar ao luxo de fazê-lo a seu próprio modo. Isso queria dizer que decidira entrar na vida pública como aquele fenômeno, tão raro na política de qualquer época, de um homem independente que não podia ser comprado. E se isso se tratasse de algo a ser citado como evidência de que o seu orgulho estava bem acima do costumeiro, pois que assim o fosse.
O verdadeiro motivo pelo qual estava indo visitar o jovem Totton, além do afeto que tinha pelo rapaz, era que Lymington, convenientemente localizado entre duas propriedades, contribuía com dois membros para o Parlamento.
"E acredito que nas próximas eleições", informara ao pai, "é bem provável que eu seja um deles."
Por que o modesto burgo de Lymington tinha dois membros no Parlamento? A resposta mais imediata é que a boa rainha Bess fizera essa concessão poucos anos antes da época da Armada, quando ela precisava de um apoio político extra. Dois membros fornecidos por um lugar tão pequeno agora parecia algo excessivo? Não muito, se levarmos em conta que Old Sarum, o assim chamado burgo de bolso, na deserta colina do castelo acima de Salisbury, contribuía com dois membros — e praticamente não tinha habitante algum.
O sistema eleitoral desenvolvido no burgo de Lymington era característico de muitas cidades da Inglaterra naquela Era da Razão e, é preciso que se diga, tinha os méritos de segurança, conveniência e economia. Aliás, os eleitores o consideravam um modelo para todas as épocas e lugares.
Eleições em alguns burgos, lamentavelmente, não eram tão bem conduzidas. Panfletos indecentes sobre os candidatos provocavam ressentimentos. Havia dispêndio para o suborno de eleitores; havia confusão quando eleitores do outro candidato eram embriagados e depois presos; e podia haver ainda mais confusão quando eram soltos. Mesmo uma democracia limitada, todos os partidos concordavam, era algo perigoso, e nada ficava mais evidente do que a tumultuada embriaguez de uma eleição. Essa questão, contudo, era bem mais ordeira em Lymington.
Os dois membros do Parlamento eram escolhidos pelos burgueses, que eram cerca de quarenta; e esses representantes do burgo, pelo menos em teoria, tinham sido eleitos pelos modestos artesãos e outros prestativos pequenos proprietários do burgo. Quem era eleito para o cargo de burguês? Homens íntegros, homens meritórios, homens confiáveis: amigos do prefeito, ou de quem tivesse a responsabilidade de governar a cidade. Quase sempre os burgueses de Lymington viviam mesmo lá; entretanto a procura de homens bons podia levar a lugares distantes. Vinte anos antes, quando Burrard, o então prefeito, decidiu instituir trinta e nove novos burgueses, escolheu apenas três da própria cidade; sua busca por homens leais levou-o por toda a Inglaterra. Pois bem, ele se deu ao trabalho de descobrir um fidalgo que vivia na Jamaica!
Dificilmente havia disputas entre os burgueses em relação aos membros que deveriam eleger. Até vinte anos antes os Burrard vinham dividindo o controle do burgo com o duque de Bolton, que tinha grandes interesses na região, e houve apenas um ligeiro desacordo, certa vez, sobre se o Sr. Morant, um amigo do duque, devia ou não ganhar uma cadeira em determinada eleição. Mas depois disso quando o duque cedeu o controle total do burgo a Burrard, até mesmo essa possibilidade de desacordo sumiu para a felicidade de todos.
Mas como se conduziam as coisas, poder-se-ia perguntar, quando chegava a eleição? Como burgueses, que podiam morar a mais de trezentos quilômetros de distância — sem falar no cavalheiro da Jamaica — iriam a Lymington para registrar o seu voto? Mesmo isso era providenciado através de um simples expediente. As eleições não eram contestadas. Não havia candidatos rivais. Se havia dois fidalgos concorrendo às duas vagas disponíveis, então o incômodo e a despesa de uma votação tornavam-se obviamente supérfluos. Bastava apenas que um proponente e um suplente comparecessem diante do prefeito no dia estabelecido, e a coisa era feita. Esses acordos eram tão naturais que ficava implícito não haver sequer a necessidade da presença dos candidatos, poupando-lhes, portanto, o que poderia ser uma viagem cansativa.
Por conseguinte, era desse modo, no século XVIII, que se escolhiam os membros de Lymington. Se um método diferente poderia ter produzido representantes melhores, não se sabe; mas, pelo menos, isto é certo: os burgueses, e os Burrard, ficavam completamente satisfeitos.
O pai de Martell preferia que o filho concorresse à cadeira de uma região que tendesse a ser tory, conservadora, uma vez que Lymington, como a maioria das cidades mercantes, era solidamente a favor do partido whig, liberal. Tradicionalmente, o partido tory era a favor do rei, e o whig, a favor do Parlamento pós-1688, o qual, apesar de leal, achava que devia manter em cheque o poder real. Os fidalgos rurais do país costumavam ser tories, e os mercadores, whigs. Mas essas diferenças nem sempre eram verdadeiras. Muitos dos maiores proprietários de terras eram whigs; freqüentemente um partido dependia de alianças familiares. Às vezes o próprio rei preferia um líder whig a. um tory. Os interesses e crenças de «
Harry Burrard, baronete, e dos burgueses fidalgos de Lymington raramente diferiam de modo significativo dos do Sr. Martell.
Aliás, havia apenas duas coisas no comportamento do Sr. Martell, naquela manhã, que pareceriam estranhas a seus contemporâneos. Se Martell queria uma cadeira por Lymington, por que diabos ir até lá, se ele podia facilmente escrever para Burrard ou se encontrar com ele em Londres? Mais estranho ainda, por que a intenção deliberada de Martell ir a Lymington, já que ele sabia — pois fizera uma cuidadosa indagação — que o baronete não estaria na cidade?
Fazer tais perguntas, porém, era não conhecer Wyndham Martell.
Ele sempre foi meticuloso. Em Oxford, diferentemente de muitos moços, preferia trabalhar com bastante afinco. Já tinha feito o mais cuidadoso estudo da propriedade que lhe fora deixada e iniciara uma série de melhorias. Se tivesse se tornado clérigo, não importava quão elevada fosse a sua posição social, ele certamente daria atenção especial ao bem-estar de cada paroquiano. Portanto, se pensava candidatar-se a uma cadeira por Lymington, pretendia primeiro, como um bom general, fazer um meticuloso reconhecimento do local.
Claro, ele sabia ser possível que sir Harry Burrard talvez não gostasse de tal comportamento invasivo. Era bem conhecido o caso de um patrono do burgo, que, temeroso de que um candidato pudesse atrair para si os burgueses que ele controlava, somente concordou em lhe dar uma cadeira com a condição, por escrito, de ele jurar que, uma vez eleito, jamais colocaria os pés na freguesia da qual era representante. Mesmo no século XVIII isso era considerado um pouco extravagante. Mas, sem ir tão longe assim, Burrard talvez não aprovasse a sua bisbilho-tice no burgo, e foi por isso que decidiu fazê-la discretamente, indo visitar o jovem Totton. Uma coisa, porém, era certa: ao final de uma semana ele conheceria muito bem o local para se decidir e desse modo saber se deveria levar sua pretensão adiante.
Nesse meio-tempo, além de Edward, havia duas agradáveis jovens com quem passar o tempo. Louisa Totton era uma moça bem-apessoada e animada. Quanto à Srta. Albion, apesar de não ser tão bonita, ele a achava agradável.
— Você deve admitir — observou calmamente Edward Totton para a irmã, enquanto esperavam o hóspede emergir da casa — que sempre lhe trago o que há de melhor.
O Sr. Wyndham Martell era o terceiro candidato solteiro de qualidade que ele levava à casa no espaço de um ano. O primeiro tinha sido um sujeito jovem — jovem demais, na verdade, mas herdeiro de uma enorme propriedade — que ainda cursava a Oxford com ele. O outro, um moçoilo que ele trouxera com a promessa de levar para assistir às corridas locais, mostrara um forte interesse por Louisa -— tão forte que, quando ficou um pouco embriagado, Edward precisou brigar com ele e pedir-lhe que fosse embora. Mesmo assim, esses tipos de contatos serviram para acrescentar algo ao parco acúmulo de conhecimento que ela tinha da natureza humana e do mundo exterior; e sua postura diante desses contatos — apesar de não ter sido dita em palavras — poderia muito bem ser expressada deste modo: pode continuar a trazê-los.
Martell, porém, era uma outra história. Martell, segundo as palavras do irmão dela, tratava-se de "assunto sério". Ele achava que ela pudesse sentir-se meio temerosa do inflexível proprietário de terras.
— Eu o observei — retrucou ela. — Ele é orgulhoso... afinal de contas, tem muito do que se orgulhar. Mas ele gosta de se entreter.
— E você pretende entretê-lo?
— Não — respondeu-lhe pensativa. — Mas o deixarei supor que poderei fazer isso. — Olhou de relance para a porta da casa. — Aí vem ele.
Martell estava de excelente humor. Não tinha muita certeza de como seria a residência dos Totton, pois nunca estivera hospedado com um membro da classe mercantil provincial. Até então ficara agradavelmente surpreso. A casa era um simpático local, em estilo georgiano, com um extenso passeio em volta e vista para o mar. Tinha o tamanho de uma boa casa de administrador de paróquia, o tipo de moradia que poderia pertencer ao irmão mais novo de um proprietário de terras, a um almirante ou a alguém dessa espécie. A Sra. Totton revelou-se uma bela mulher de sua própria classe, aparentada de muitas famílias que ele conhecia. Quanto ao Sr. Totton, o mercador, ambos tinham tido tempo para apenas uma breve troca de palavras, mas também lhe pareceu igualmente sensível e afável, inteiramente um cavalheiro. Se o jovem Edward Totton tivesse alguma dúvida de que a sua posição na sociedade carecesse de algo, Martell achava que deveria dizer-lhe para não ser tolo e não insultar seus pais.
— Primeiro, faremos um passeio pela cidade — anunciou Edward a Wyndham Martell, ao se juntar a eles. E, por estar fazendo um belo dia, resolveram caminhar.
Fizeram uma lenta caminhada por Lymington e desceram a High Street. Martell admirou as lojas — Swateridge, relojoeiro; Sheppard, armeiro; Wheeler, porcelanas — e os numerosos sinais da prosperidade dos bem-nascidos do local. Insistiu em passar algum tempo na loja do livreiro. Notou a placa de bronze na elegante casa do médico, e que o Sr. St. Barbe, o mercador, tinha até mesmo estabelecido um banco na High Street. Soube que o serviço postal vinha de Londres, quatro vezes por semana, pela rápida estrada com pedágio, chegando a Angel Inn; como também a diligência, como era chamado o coche de muda, que vinha de Southampton — a viagem de vinte e cinco quilômetros feita em apenas duas horas e meia. Ele estava impressionado.
Desceram para o cais, onde havia várias pequenas embarcações atracadas, depois deram a volta pelas salinas, antes de retornarem à casa, com um bom apetite para o jantar.
O Sr. Totton e a esposa mantinham uma excelente mesa. A refeição começou com uma leve sopa de ervilhas com pão, seguida por um prato de peixe; este foi depois retirado, para dar lugar ao prato principal, que consistia em travessas com lombo de boi, peru ao molho de ameixas, guisado de carne de veado e aipo frito. Os homens beberam clarete; Louisa, que em casa costumava tomar vinho de groselha, naquela ocasião acompanhou a mãe no champanhe.
A conversa foi alegre e sociável. A Sra. Totton falou dos antigos veados da floresta, da recente visita do rei, de lugares que ele deveria visitar e contou histórias a respeito deles. Louisa, os enormes olhos, pareceu a Martell, insinuando uma vivacidade contida por trás do recatado semblante, fez um ótimo relato de algumas das peças que deviam ser vistas no teatro e de que modo eram interpretadas.
Edward falou-lhe da pista de corridas que agora existia nos arredores acima de Lyndhurst. "E não há apenas corridas de cavalos, Martell", observou. Um divertido cavalheiro local, ao que parecia, havia instituído uma corrida de bois, na qual ele mesmo montava, e desafiara a todos a competir com ele de modo semelhante.
Ao ser servido o segundo prato — pudim de batata, torrada de anchova, leite adocicado com vinho, pombo ensopado e tortas —, Martell pôde concluir, sensatamente, que a cidade à beira-mar abaixo da antiga floresta era, provavelmente, um dos lugares mais agradáveis de toda a Inglaterra que se podiam avaliar.
A toalha da mesa foi retirada, mas foram servidos geléias, nozes, pirâmides de confeitos e pratos de queijo, e surgiu vinho do Porto para os homens e licor de cereja para as damas, antes que Martell se lembrasse de perguntar por Fanny Albion.
— Minha pobre e querida Fanny — bradou Louisa. — Ela tem, eu afirmo, o temperamento de uma santa.
Havia, aparentemente, pouca probabilidade de que ela fosse aparecer.
— Embora você possa estar com a razão — afirmou Edward —, devemos tentar persuadi-la a sair.
Como uma amiga de toda a vida da tia Adelaide adoecera em Winchester, a intrépida velha senhora, apesar da idade avançada, insistira em embarcar em sua carruagem, viajar para lá e ficar com ela, deixando o velho Sr. Albion aos cuidados de Fanny e da Sra. Pride. Antes de partir, ela dera ordens rigorosas para que o irmão não adoecesse até sua volta — ordens que ele já havia descumprido. E se a sua atual doença permanecia incerta era porque se tratava de algo muito avançado, segundo ele lhes disse, para poder ser identificado. Portanto, Fanny ficava presa em casa com ele, sem poder sair.
— Talvez pudéssemos ir visitar sua prima — propôs Martell.
— Vou sugerir isso — disse Edward —, mas acho que ela vai recusar. Pouco depois as damas se retiraram, e Martell animou-se, diante do vinho do Porto, a questionar o Sr. Totton a respeito dos negócios da cidade. Como esperava, este estava muito bem informado.
- O sal, é claro, tem sido há séculos um dos nossos principais produtos Como em outras cidades, o senhor vai descobrir que grande parte dos maiores mercadores tem vários negócios, e o sal costuma ser um deles. St. Barbe, por exemplo, negocia com secos e molhados, sal e carvão. O carvão, a propósito, alimenta as fornalhas das salinas. O sal, lembre-se, não é usado apenas para preservar peixe e carne; também é um remédio contra o escorbuto... vital para a marinha, portanto... é usado para curtir o couro, na fusão da feitura de vidro, no refino de metais e como esmalte nas olarias.
— Acredito que haja métodos mais baratos de fazer sal do que tirá-lo do mar.
— Sim. A longo prazo, as salinas de Lymington ficarão ameaçadas. Mas isso ainda vai demorar muito.
— O senhor exporta madeira?
— Pouca. Menos do que antes. A marinha e outros construtores navais parecem consumir a maior parte dos recursos locais. O porto, porém, é movimentado. O carvão vem de Newcastle. Há vários mercadores velejando para Londres, Hamburgo, Waterford e Cork, na Irlanda, e até para a Jamaica.
— E as indústrias locais?
— Além das mencionadas, a maioria das freguesias tem argila; portanto, há um grande número de olarias. É por isso que atualmente o senhor vai encontrar belos estábulos feitos de tijolos nesta área. Brockenhurst tem as maiores oficinas. Também há uma fábrica de corda na abadia de Beaulieu. Corda para a marinha, é claro. Algumas pessoas da Floresta também giram em torno de Southampton. Além do porto, existe agora por lá uma grande oficina de fabricação de coches.
— Mas nossa maior esperança para o futuro — interveio Edward com um sorriso — tem tomado uma direção bem diferente. Vamos nos tornar um balneário elegante, uma segunda Bath.
— Ah, sim. — Totton deu uma risada. — Se a Sra. Grockleton conseguir o que deseja. Ainda não conheceu a Sra. Grockleton, não é mesmo, Sr. Martell?
Martell confessou que não.
— Nós iremos tomar chá com ela — informou Edward com uma risadinha. — Amanhã.
A manhã seguinte foi dedicada a uma visita a Hurst Castle. Embora o dia estivesse luminoso, vinha uma brisa fresca através de Pennington Marshes, fazendo com que as pequenas bombas de vento das salinas estalejassem ruidosamente. A casa de banhos da Sra. Beeston, situada na praia próximo a uma das bombas, encontrava-se deserta. No canal entre a fortaleza e a ilha de Wight, as ondas corrediças estavam salpicadas de espuma, as passo que no mar, mais além, as águas eram de um verde agitado. Havia um forte odor de maresia. Louisa, o rosto um pouco ruborizado e úmido pelo borrifo, parecia excepcionalmente bem, enquanto o vento sacudia os seus cabelos negros; e Martell também estava ciente das próprias batidas fortes do coração, ao caminharem rapidamente, rindo juntos, pela erma restinga.
Estavam a meio caminho de volta quando encontraram o conde. Ele caminhava sozinho, com a aparência tristonha.
Martell havia observado a presença das tropas francesas na cidade, e Edward já lhe explicara o que estava havendo. O amigo apresentou o conde a Martell, que se dirigiu a ele em excelente francês, e não demorou muito para que o homem, ao encontrar um colega aristocrata, ficasse ansioso por fazer amizade.
— Você é um de nós — bradou, segurando a mão de Martell com as suas. — Que encantador termos encontrado um ao outro neste local agreste. — Embora não tivesse ficado claro se ele se referia à restinga ou a Lymington. Perguntou pela propriedade de Martell, sua descendência normanda, insistiu que eram parentes, portanto, através da linhagem Martell-St. Cyr, que Martell delicadamente garantiu desconhecer, e indagou se ele gostava de caçar, recebendo uma resposta afirmativa.
— Em casa caçamos javalis — afirmou melancólico. — Eu gostaria, meu amigo, de poder convidá-lo para caçar, mas infelizmente, se eu voltar para o meu país agora — deu de ombros —, cortarão minha cabeça. Você também pesca? — Martell garantiu-lhe que já fizera excelentes pescarias. — Eu também gosto de pescar — disse o conde.
Como isso suscitou apenas uma educada mesura e breve silêncio, Edward interferiu para informar ao francês que iam tomar chá com a Sra. Grockleton e precisavam voltar para casa.
— Uma mulher notável — retrucou o conde. — Então tenho que oferecer um au revoir, meu caro amigo — falou para Martell. — Eu adoro pescar — acrescentou esperançoso, mas os amigos ingleses já estavam se afastando, e ele continuou, tristonho, em direção às bombas de vento próximas do mar.
— Como vê, Sr. Martell — disse a Sra. Grockleton, às três horas daquela tarde, enquanto sobriamente penteados e vestidos tomavam chá na sala de visitas dela —, existem grandes possibilidades para Lymington.
O Sr. Martell assegurou-lhe que achava a cidade admirável.
— Oh, Sr. Martell, é muita gentileza de sua parte, estou certa disso. Ainda há muito a ser feito.
- Sem dúvida, madame, a senhora transformará a paisagem do mesmo modo que Capability Brown criaria um parque.
— Eu, senhor? — Ela quase enrubesceu diante do que percebeu como uma lisonja. — Nada posso fazer, embora espere conseguir incentivar. O que causará a transformação será a condição do lugar, seus habitantes e seus freqüentadores reais. E isso acontecerá. Posso ver claramente.
— O mar é revigorante, madame — afirmou Martell, sem se comprometer.
— O mar? Claro que o mar é revigorante — bradou a Sra. Grockleton.
Mas o senhor viu aquelas horríveis bombas de vento, aquelas fornalhas, aqueles tanques de evaporação? Isso terá que sumir, Sr. Martell. Uma pessoa requintada desejaria se banhar olhando uma bomba de vento?
A pergunta parecia irrespondível; mas, levando-se em conta que os principais mercadores da cidade, incluindo os anfitriões dele, comercializavam com sal, Martell sentiu-se na obrigação de discordar.
— Talvez ainda se possa encontrar um local mais apropriado para banho — sugeriu.
Se a Sra. Grockleton admitiria isso, ele não ficou sabendo, pois naquele instante surgiu o dono da casa.
Martell fora informado sobre o que esperar de Samuel Grockleton e notou que a descrição de Edward tinha sido exata; embora talvez achasse um pouco cruel o amigo se referir ao fiscal aduaneiro como "A Garra". Ele não demorou a se sentar e aceitou o chá oferecido pela esposa, ao mesmo tempo que a criada que auxiliava a Sra. Grockleton tropeçou e derramou na perna dele uma xícara com a bebida quente.
— Cáspite! — gritou a Sra. Grockleton. — Você escaldou o meu pobre marido. Oh, Sr. Grockleton. — Mas o cavalheiro, apesar de estremecer, levantou-se e, com admirável presença de espírito, pegou da mesa um vaso de flores e derramou a água fria na perna. — O que está fazendo, meu caro marido? — reclamou, agora um tanto irritada.
— Esfriando o escaldado — retrucou taciturno e voltou a se sentar. —Acho melhor eu aceitar um pedaço desse bolo de nozes — advertiu.
Martell, que sem dúvida admirou aquele rude bom senso, decidiu envolver imediatamente seu anfitrião em uma conversa e perguntou-lhe francamente se considerava que era muito grande o contrabando na Floresta.
— O mesmo que em Dorset, senhor — respondeu o fiscal aduaneiro.
Já que Martell sabia perfeitamente que de Sarum para oeste, através de toda a Dorset e do West Country, não havia talvez uma única garrafa de brandy sobre a qual se tivesse pago a taxa de importação, contentou-se apenas em concordar com a cabeça.
- Esse comércio pode ser detido? — indagou.
— Em terra, eu diria que não — rebateu Grockleton. — Pela simples razão de que seriam necessários muitos fiscais. Mas algum dia será e haverá uma severa limitação feita pelas patrulhas marítimas. Como ocorre em todos os negócios de nossa nação, senhor, o mar é o ponto fundamental. Nossas forças terrestres normalmente são de pouco uso.
— Navios para interceptar as mercadorias no mar? Eles teriam que ser velozes e bem armados.
— E bem manejados.
— O senhor usaria capitães da marinha?
— Não, senhor. Contrabandistas aposentados.
— Malfeitores no serviço real?
— Sem dúvida. Sempre deu certo antes. Sir Francis Drake e semelhantes a ele, na época da boa rainha Bess, senhor, eram todos piratas.
— Peje-se, Sr. Grockleton — gritou sua mulher. — O que está dizendo?
— Nada mais do que a verdade — retrucou secamente. — Os senhores vão me perdoar — falou, levantando-se —, pois terei que me trocar. — E, com uma reverência, desapareceu.
— Bem — disse a Sra. Grockleton, obviamente desapontada com o marido. — O que vai pensar de nós, Sr. Martell?
Em vez de responder, Martell observou calmamente ter sabido que a academia dela estava tendo um crescente sucesso.
— De fato, Sr. Martell, acredito piamente que está. Louisa, conte ao Sr. Martell sobre a nossa pequena academia.
E, dirigindo os enormes olhos na direção dele, Louisa fez um relato sobre as aulas de arte e outras conquistas escolares da academia, de modo a não elucidá-las completamente nem levá-las muito a sério.
— Em particular — acrescentou a Sra. Grockleton —, eu mesma ensino francês para as moças. Também faço com que leiam bons autores. Ano passado, nós lemos... — Sua memória falhou ao declinar o nome.
— Racine? — sugeriu Louisa.
— Racine, certamente, foi mesmo Racine — e sorriu exultante para a ex-aluna, diante de sua inteligência. — Sem dúvida, fala um excelente francês, não é mesmo, Sr. Martell?
Foi nesse instante que Martell decidiu que já estava farto da Sra. Grockleton. Olhou-a inexpressivo por um momento.
— Vousparlez jrançais, Sr. Martell? O senhor fala francês?
— Eu, madame? Nem uma palavra.
- Ora, pois o senhor me deixa pasma. Na sociedade educada... Mas Edward não disse que o senhor conversou com o conde?
— De fato, madame. Mas não em francês. Conversamos em latim.
— Latim?
— Certamente. A senhora, tenho certeza, ensina às jovens damas a falar latim.
— Ora, não, Sr. Martell, não ensino.
— Lamento ouvir isso. Nos círculos educados... Os horrores da Revolução, Sra. Grockleton, levaram muita gente a ter aversão a essa língua. Na minha opinião, muito em breve será o latim, e apenas o latim, que será falado nas cortes da Europa. Como o era antigamente — acrescentou, com um ar erudito.
— Bem... — Pela primeira vez a Sra. Grockleton pareceu vexada. — Eu não fazia idéia... — começou ela. E então, gradualmente, uma luz foi iluminando o seu largo rosto. Ela levantou um dedo. —A mim me parece, Sr. Martell — falou, com um sorriso malicioso —, a mim me parece que o senhor está caçoando de mim.
— Eu, madame?
— A mim me parece. — Agora havia apenas uma insinuação de alerta em seus olhos, o bastante para fazer até mesmo o aristocrata perceber que a academia não fora construída sem um pouco de cruel astúcia de parte dela. — A mim me parece que estou sendo motivo de troça.
A não ser que quisesse inimigos em Lymington, estava na hora de recuar rapidamente.
— Confesso — disse ele, com um sorriso — que falo alguma coisa de francês, mas desconfio que não seja o suficiente, madame, para impressioná-la; por isso relutei em admitir. Quanto à minha pilhéria a respeito do latim — agora falava sério —, depois dos horrores que acabamos de ver em Paris, eu duvido realmente que o francês continuará sendo a língua eleita pela sociedade.
Isso pareceu resolver. A Sra. Grockleton reproduziu alguns rumores a respeito da sorte da aristocracia francesa, que quase soavam como se dela fizesse parte. Concordaram em que o quanto antes o galante conde e suas tropas leais postadas em Lymington pudessem retornar à França e restaurar a ordem, melhor.
Daí em diante a Sra. Grockleton voltou ao seu elemento. Como todos concordaram calorosamente com a necessidade de um novo teatro, um novo Salão de Reuniões e muito provavelmente novos cidadãos, ela não hesitou em anunciar, quando eles estavam prestes a partir:
— Pretendo em pouco tempo promover um baile no Salão de Reuniões.
E, em virtude de tudo pelo que tinha passado, Martell achou difícil não responder que, se estivesse nas vizinhanças, teria prazer em comparecer — palavras formais que normalmente não o comprometeriam com coisa alguma, se não fosse pelo fato de experimentar uma curiosa e incômoda sensação de que, de algum modo, ela daria um jeito de ele comparecer.
— Bem — suspirou Edward, assim que chegaram à rua —, o que achou dela?
— Pode chamá-la também de "A Garra" — resmungou Martell.
Nenhuma outra menção foi feita a Fanny Albion, nem mesmo no jantar daquela noite.
No dia seguinte, pela manhã, pegaram a carruagem para visitar o Sr. Gilpin, que os recebeu muito cordialmente no vicariato de Boldre. Encontraram-no em sua biblioteca, distraindo-se em passar problemas matemáticos para um menino de cabelos encaracolados de sua escola paroquial, o qual, informou-lhes, tinha por nome Nathaniel Furzey.
O vigário também ficou contente por mostrar a Martell sua biblioteca, que continha alguns excelentes volumes, e deixou que o grupo visse os mais recentes desenhos que fizera de cenas de New Forest.
— De vez em quando, faço pequenos leilões — explicou a Martell —, e homens como sir Harry Burrard pagam preços absurdos por eles, pois sabem que o dinheiro é para favorecer a escola e algumas outras caridades com as quais me envolvo. A vida de um clérigo — lançou um olhar de esguelha para Martell — é bastante recompensadora.
Não havia dúvida de que o vicariato do Sr. Gilpin, que tinha três pavimentos altos e espaçosos, era uma elegante residência para qualquer cavalheiro, e dos jardins dos fundos ele podia exibir uma admirável vista da ilha de Wight. A brisa do dia anterior continuava praticamente a mesma, mas agora as massas de nuvens cinzentas que começavam a passar acima da água do Solent, com seus revestimentos prateados, conferiam à cena uma densidade atmosférica, um contraste de extensões de luz e áreas de escuridão, certamente pitoresca. Foi quando admiravam esse quadro da natureza que Martell resolveu perguntar por Fanny.
— Ela está em Albion House — observou Gilpin. — E isso me faz lembrar — acrescentou pensativo — que tenho algo a dizer a ela. Mas isso pode esperar.
- Olhou para Edward. — Estão pretendendo visitá-la?
Edward, após apenas um segundo de hesitação, respondeu que não tinham certeza se no momento ela desejaria isso.
— Penso que ela deve estar se sentindo muito só — comentou Gilpin, suspirando. Em seguida chamou o menino de cabelos encaracolados: — Nathaniel, você sabe o caminho para Albion House. Corra até lá e pergunte, em meu nome se a Srta. Albion pode receber o Sr. Martell e os primos dela.
Foi trazido um refresco e, respondendo a numerosas perguntas que lhe fizeram sobre a região, ele os entreteve muito bem durante mais de meia hora, até o jovem Nathaniel retornar.
— Ela mandou dizer que sim — avisou.
Não era bem o que ele esperava. Não sabia dizer exatamente por quê: talvez fosse a proximidade das árvores, ao dobrarem no portão para a alameda; ou, possivelmente, as progressivas nuvens cinzentas, que, quando desceram da antiga igreja de Boldre, passaram acima com suas bordas reluzentes, desenhando uma sombra atrás deles. Tudo o que Martell sabia era que à medida que a carruagem se aproximava da curva do estreito passeio o céu acima ficava sem sol, e ele se sentiu estranhamente desanimado e pouco à vontade.
Então viraram a curva e Albion House surgiu à vista.
Era apenas a luz, disse a si mesmo; era apenas o brilho gris pressionando por entre as nuvens que tornava a casa tão sombria. Como parecia velha com seus frontões desnudados; como o círculo verde em volta dela parecia próximo, encurralado pelas árvores. Seu revestimento de tijolos era escuro como uma mancha de sangue. Seu teto enrugado revelava o antigo esqueleto interno de madeira estilo Tudor. As janelas encaravam o exterior de um modo tão inexpressivo que se poderia supor tratar-se de um lugar deserto e habitado atualmente apenas pelos espíritos que permaneceriam lá, ano após ano, enquanto a casa lentamente se transformaria em ruínas, até desabar, e nem mesmo restar a habitação deles.
Chegaram à entrada. Uma mulher alta estava diante da porta.
— A Sra. Pride, a governanta — disse calmamente Edward. Havia, supôs Martell, uma expressão vigilante e aflita nos olhos dela.
Os últimos dias não tinham sido fáceis para Fanny. O pai estivera muito mal. Por várias vezes, ele fora impertinente; numa delas, o que era incomum, até mesmo tivera um acesso de mau gênio. No dia anterior ela havia passado quase o tempo todo no quarto dele, e naquela manhã, embora ele tivesse tomado um pouco de chá, caldo de carne e um cálice de clarete, parecia improvável que fosse deixar a enorme poltrona bergère ao lado da cama, onde estava sentado, enrolado em um xale.
Fora, portanto, um choque para Fanny quando a Sra. Pride viera lhe dizer, meia hora atrás, que os jovens Totton e o Sr. Martell estavam vindo visitá-los.
- Mas não estamos em condições de recebê-los — bradou ela. — Quanto a papai... Oh, Sra. Pride, devia ter me perguntado primeiro. Não devia ter dito para que eles viessem. — Mas depois que a Sra. Pride se desculpou e disse ter suposto que a Srta. Albion desejasse recebê-los, nada mais podia ser feito. —Temos que nos ajeitar da melhor maneira possível — disse ela.
Entretanto, para sua grande surpresa, quando foi contar ao pai sobre os visitantes indesejáveis e prometeu mandá-los embora o mais depressa possível, o velho Sr. Albion pareceu se restabelecer miraculosamente. Apesar de um pouco resmungão, ele insistiu para que ela lhe trouxesse um espelho e uma gravata limpa, tesoura, escova de cabelo, brilhantina. Em pouco tempo, ele estava obrigando todo mundo a correr em todas as direções, e tudo o que Fanny pôde fazer foi escapulir e providenciar alguns preparativos em prol da própria aparência.
Ela estava de pé na escada, olhando para baixo na direção do saguão, quando eles passaram pela porta com a luz cinza por trás. Edward entrou primeiro, depois Louisa, e o Sr. Martell logo atrás dela. Ficaram parados por um instante, antes de percebê-la. Edward olhou em volta e, pouco antes da enorme porta se fechar atrás do grupo, Louisa virou-se um pouco na direção do Sr. Martell para lhe dizer algo, e Fanny viu-a tocar levemente no braço dele.
Como parecia pálida em meio às sombras da escada, pensou Martell, enquanto Fanny avançava em direção a eles. De vestido longo, parecia uma figura fantasmagórica de um drama da antigüidade. Ele percebeu de imediato os sinais de tensão em seu rosto.
Ela os conduziu em silêncio à velha sala de estar revestida de madeira, desculpou-se por não estar mais bem preparada para recebê-los e educadamente indagou sobre a saúde e a família dele. Pareceu, porém, haver um ligeiro constrangimento em seus modos ao fazê-lo, e Martell ficou imaginando que talvez ela tivesse preferido que ele não viesse.
Contudo, dedicaram-se a uma conversação cortês; Louisa fez um animado relato do chá com a Sra. Grockleton, o que provocou um sorriso, se bem que bastante débil, no rosto dela. E quando Louisa fez uma imitação perfeita do Sr. Grockleton ao despejar a água do vaso sobre si mesmo e depois recolocar nele as flores, Fanny também os acompanhou na gargalhada.
— Podia se dedicar ao palco, Srta. Totton — declarou Martell com um en-tretido sacudir de cabeça e um olhar caloroso em direção a Fanny. — Sua prima, Srta. Albion — observou —, é uma companhia bem divertida.
— Estou encantada por você ter descoberto isso — disse Fanny, mas ela parecia cansada.
A conversa frívola, porém, chegou a um final repentino com a entrada na sala do velho Sr. Albion. Com uma das mãos apoiava-se em uma bengala com castão de prata; o outro braço era apoiado pela Sra. Pride. Seus calções de seda, colete e gravata estavam em perfeita ordem; os cabelos brancos como a neve, caprichosamente penteados; a barba de vários dias não fora raspada, mas aparada bem curta. Os olhos, por mais velhos que pudessem ser, eram do mais surpreendente azul que Martell já vira. O casaco pendia frouxo; ele era magro e frágil; mas, ao se mover lentamente através da sala até uma cadeira mais elevada, parecia ter descoberto uma quase impetuosa antiga dignidade com a qual receber seus convidados.
E, como costuma acontecer quando uma pessoa muito idosa se encontra em um aposento, as pessoas se revezaram para falar com ele. Martell, como visitante, foi o primeiro. Após os cumprimentos habituais, que foram muito bem recebidos, ele observou que todos haviam adorado, naquela primavera, a companhia de sua filha em Oxford. Era difícil de se certificar, mas isso não pareceu contentar tanto o velho. Martell então comentou que viera recentemente de Dorset e planejava seguir para Kent, já que esse tipo de informação geográfica normalmente suscitava uma réplica de algum tipo à conversa.
— Dorset? — indagou o Sr. Albion, em seguida aparentando um ar pensativo. — Receio — confessou desapontado — nunca ter gostado muito de lá.
— Colinas altas demais até lá, senhor? — sugeriu Martell.
— Agora não saio mais daqui.
— Soube que viajou pela América — tentou Martell, ainda esperançoso. Os velhos olhos azuis, dirigidos para cima, o encararam aguçados.
— Sim. Exatamente. — O Sr. Albion pareceu meditar algo a respeito, e Martell supôs que devia estar refletindo sobre o assunto. Mas após alguns instantes pareceu que, se ele tivesse feito aquilo, já tinha mudado de idéia, pois em vez disso os seus olhos desviaram-se para Louisa e levantou a bengala com castão de prata, apontando-a. — Muito bonita, não?
— Realmente, senhor.
O Sr. Albion pareceu ter perdido o interesse em Martell, pois voltou a apontar para Louisa.
— Está muito bonita hoje — repetiu, dirigindo-se a ela.
Ela meneou uma cortesia e, sorrindo, tomou isso como uma deixa para ir para o lado dele, ajoelhando-se perto de seu braço.
— Sente-se à vontade aí embaixo? — quis saber o velho.
— Eu sempre me sinto à vontade — disse ela — quando venho falar com o senhor.
Ao ficar claro que a companhia de Martell não tinha mais utilidade para o velho, ele se retirou, enquanto Fanny foi ver se havia alguma coisa de que o pai estivesse precisando.
— Sinto pena da Srta. Albion — murmurou Martell para Edward. — Onde você está planejando irmos amanhã?
— A Beaulieu, se o tempo estiver bom — respondeu Edward.
— Por que não convidamos sua prima para nos acompanhar? — sugeriu Martell. — Deve ser horrível para ela ficar o tempo todo nesta casa com o pai.
Edward concordou e achou que era uma ótima idéia.
— Farei o melhor possível — prometeu.
Depois disso Fanny retornou, e Martell teve a oportunidade de conversar com ela durante vários minutos. De alguma forma ela parecia ter recuperado a antiga jovialidade, e desfrutaram um pouco a agradável intimidade coloquial que haviam vivenciado em Oxford, mas, além de parecer um pouco envelhecida, havia, achou ele, um quê de tristeza, de tragédia mesmo, em sua pessoa, agora que a via no ambiente de seu lar. Ela precisava afastar-se dali, decidiu ele. Alguém precisava salvá-la daquilo. Mas podia muito bem perceber que tal fuga não seria fácil. Talvez a visita a Beaulieu lhe animasse o espírito. Com o canto do olho, viu Edward aproximar-se do ancião. Os modos afáveis do jovem Totton, supôs, resolveriam satisfatoriamente o problema.
— Creio, senhor — dirigiu-se Edward ao Sr. Albion, com um sorriso encantador —, que Louisa e eu podemos lhe rogar, se o tempo estiver bom, que nos permita roubar nossa prima Fanny amanhã durante uma ou duas horas.
— Ah? — O Sr. Albion pareceu um tanto surpreso. — Para quê?
— Pretendemos visitar Beaulieu.
Por um segundo, ou nem mesmo isso, uma minúscula sombra pareceu ter surgido no rosto de Louisa, mas sumiu num instante.
— Ah, sim! — suplicou ela. — Deixe que Fanny vá conosco. Não ficaremos fora, estou certa — declarou —, mais do que a metade do dia. — E deu um sorriso para o Sr. Albion que poderia tê-lo derretido, se ele não tivesse desviado o olhar.
— Beaulieu? — Era como se eles tivessem anunciado a intenção de ir à Escócia. — Beaulieu? Mas é muito longe.
Ninguém quis salientar que ficava a pouco mais de seis quilômetros de onde eles se encontravam, mas Edward, para seu crédito e com uma risada agradável, observou:
— Fica apenas um pouquinho mais longe do que a distância que percorremos hoje para vir ver o senhor. Iremos e voltaremos num piscar de olhos.
O Sr. Albion pareceu em dúvida.
- Com a minha irmã distante e o meu estado de saúde... — Sacudiu a cabeça, enrugando a testa. — Não há mais ninguém para cuidar das coisas...
— O senhor tem a Sra. Pride — afirmou Edward.
Mas essa interferência em seus assuntos domésticos não agradou em nada ao Sr. Albion.
— A Sra. Pride nada tem a ver com isso — disparou.
— Acho — interferiu Fanny delicadamente, sem querer ver o pai perturbado — que será melhor, Edward, eu ficar aqui.
— Aí está — disse o Sr. Albion irritado, mas com um brilho de triunfo nos olhos. — Ela mesma não quer ir.
Aquilo foi tão afrontoso que Martell, nem sempre dado à irritação, não conseguiu manter-se passivamente em silêncio.
— Vai me permitir observar, senhor — falou calma, mas firmemente —, que uma breve excursão só trará benefícios à Srta. Albion.
A intervenção teria causado algum bem? Por um ou dois segundos, foi impossível de dizer, enquanto o Sr. Albion permanecia sentado, a cabeça mergulhada momentaneamente na gravata, em total silêncio. Mas em seguida tudo ficou perfeitamente claro. A cabeça do homem idoso elevou-se em sua haste de tal modo que subitamente parecia um enraivecido peru velho. O pescoço podia ser enrugado, mas os espantosos olhos azuis reluziam.
— E vai me permitir observar, senhor — gritou —, que a saúde de minha filha não é de sua conta. Não me consta, senhor, que o controle desta casa tenha passado para as suas mãos. Pelo que eu saiba, senhor — e elevou a bengala com castão de prata e bateu-a no chão com toda a força, para acentuar cada palavra —, eu... ainda... sou... o... senhor... desta... casa!
— Não tenho dúvida disso, senhor — rebateu Martell, enrubescendo —, e não tive a intenção de ofendê-lo, senhor, mas simplesmente...
O Sr. Albion, entretanto, não tinha mais disposição para ouvir. Estava branco de raiva.
— O senhor me ofende. E será um obséquio a mim, senhor — cuspiu as palavras como se fossem veneno —, se fizer as suas observações em qualquer outro lugar. Será um obséquio a mim, senhor — parecia agora pelejar para se levantar da cadeira, apertando o braço dela com uma das mãos e a bengala com a outra —, se deixar esta casa. - A última palavra foi quase um guincho, pois, incapaz de se levantar, caiu de volta na cadeira com uma tosse ofegante.
Fanny, lívida e obviamente temendo que o pai estivesse prestes a ter uma apoplexia, lançou para Martell um olhar suplicante, e, com alguma hesitação, pois o Sr. Albion podia mesmo estar tendo um ataque e Fanny precisaria de ajuda, ele recuou para o saguão, seguido por Edward e Louisa. Naquele instante a Sra. Pride já havia aparecido miraculosamente e, após examinar o patrão, fez um sinal para os visitantes indicando que estava tudo bem e que podiam ir embora.
Assim que chegaram ao lado de fora, Edward sacudiu a cabeça, divertido.
— Não foi um grande sucesso, receio", como visita.
— Não. — Martell continuava surpreso demais para dizer muita coisa. — Foi a primeira vez — observou secamente com ironia — que me expulsaram da casa de alguém. Mas temo pela pobre Srta. Albion.
— Coitada da minha querida Fanny — disse Louisa. — Virei aqui novamente esta tarde, Edward, com mamãe.
— Excelente, Louisa — falou o irmão, aprovando.
— Dizem que há sangue ruim na família Albion — continuou Louisa tristemente. — Suponho que sim. Pobre Fanny.
Uma hora depois, após ter ajudado o Sr. Albion a ir para o quarto e ficar ao lado de Fanny enquanto ela chorava, a Sra. Pride deu uma escapulida e seguiu caminho em direção à casa do Sr. Gilpin.
O tempo estava perfeito na manhã seguinte, quando Edward e Louisa partiram com o Sr. Martell. Infelizmente, já que a Sra. Totton tinha um compromisso, Louisa não pôde voltar a Albion House para ver a prima, mas enviara uma carta amorosa a Fanny, que o cavalariço entregou naquela mesma tarde; assim, estava com a consciência tranqüila.
Ela se sentia, portanto, bastante alegre, à medida que a carruagem subia lentamente a estrada pavimentada em direção a Lyndhurst, onde pretendiam fazer uma breve parada antes de atravessarem a charneca. O Sr. Martell estava propenso a uma conversa. E, é claro, sentia-se disposto a responder atenciosamente a perguntas. Embora sempre cortês, ela notou que, se o Sr. Martell se interessasse por um assunto, tentava esgotá-lo, pelo menos no que lhe dizia respeito, com tamanha persistência que ela nunca vira antes, mas que, reconhecia para si mesma, era apropriada em um homem.
— Percebo, Sr. Martell — comentou ela numa ocasião —, que o senhor é perseverante em saber as coisas. — E o comentário foi recebido com uma risada.
— Peço desculpas, minha cara Srta. Totton, mas é de minha natureza. Acha tal coisa desagradável?
Ele nunca se dirigira a ela como "cara Srta. Totton" antes, nem lhe perguntara a respeito de seu caráter.
— De modo algum, Sr. Martell — respondeu ela com um sorriso que continha um vestígio de seriedade. — Para falar a verdade, ninguém, em uma conversa, jamais havia me pedido antes para pensar muito. Por isso, quando o senhor lança tal desafio, acho-o do meu agrado.
— Ah — exclamou ele, e pareceu igualmente deleitado e pensativo.
A aldeia de Lyndhurst mudara muito pouco desde a Idade Média. A corte da floresta ainda se reunia lá. A Casa do Rei, um tanto ampliada, com um grande bloco de estábulos do lado oposto e extensos jardins cercados no declive atrás, ainda era essencialmente a residência real e o chalé de caça que sempre fora. Havia as casas de dois fidalgos nas vizinhanças, uma chamada Cuffnells, e a outra Mount-royal; mas as cabanas dispersas de Lyndhurst apenas formavam mesmo uma aldeola. O status do lugar era mais exatamente determinado pela notável igreja, que, para substituir a antiga capela real, fora erigida no terreno mais alto de Lyndhurst, próximo à Casa do Rei, e podia ser vista como um farol num raio de muitos quilômetros em volta.
Pararam apenas brevemente diante da Casa do Rei, antes de irem dar uma olhada na pista de corridas. Tratava-se de algo informal, disposto sobre uma larga faixa do gramado de New Forest, a norte de Lyndhurst. Não havia arquibancadas permanentes; como era costume na época, as pessoas assistiam às corridas de coches e carroças, se quisessem ter uma visão melhor.
— Uma das atrações daqui — explicou Edward — são as corridas de pôneis de New Forest. Você ficaria espantado com a velocidade deles e como são seguros nas passadas. Precisa voltar para assistir a uma corrida, Martell. — E algo na expressão do rosto de Martell revelou a Louisa que ele talvez voltasse.
Partiram então para Beaulieu. A alameda para a velha abadia, que seguia na direção sudeste através da charneca a céu aberto, deixava Lyndhurst logo depois da pista de corridas. Em assim fazendo, passaram por duas das mais curiosas vistas, que imediatamente atraíram a atenção de Martell. A primeira, um grande morro coberto de grama.
— É conhecido — explicou Edward — por Boltons Bench.
Foi o grande magnata de Hampshire, o duque de Bolton, quem, no início do século, resolvera assumir o pequeno outeiro de onde outrora o velho Cola, o Caçador, dirigia suas operações, e elevá-lo, transformando-o no grande morro que dava vista para toda a Lyndhurst. O duque era bastante conhecido por essas alterações radicais na paisagem. Em outro lugar da Floresta, ele tinha aberto, arbitrariamente, um imenso caminho reto através de quilômetros de mata antiga, porque achava que aquilo forneceria um agradável passeio a ele e aos amigos. O que, porém, impressionou Martell ainda mais que a colina fabricada de Bolton foi o grande muro de terra gramado que se estendia pela paisagem para além dela.
— Trata-se de Park Pale — disse Edward. — Era usado antigamente para capturar veados.
A imensa armadilha para veados, de onde outrora Cola, o Caçador, dirigia suas operações, ainda era uma visão espantosa. Bastante aumentada cerca de cinco séculos antes, seu muro de terra percorria a paisagem por pouco mais de três quilômetros, antes de fazer a volta para o interior da mata abaixo de Lyndhurst. Sob a clara luz do sol matinal, a grande ruína deserta podia ser algum cercado pré-histórico de um mundo refinado; entretanto os veados da Floresta continuavam lá, os homens ainda caçavam; somente a estrada com cobrança de pedágio próxima e a igreja nas alturas de Lyndhurst tinham alterado o lugar desde os tempos medievais. E, quem sabe, enquanto fitavam o muro de terra em silêncio, se uma gama clara surgiria por trás do verde da colina de Boltons Bench e sairia correndo pelo terreno a céu aberto?
Foi nesse instante que ouviram um grito de contentamento atrás deles, viraram-se e viram uma pequena sege aberta dando a volta por trás de Bolton's Bench; dentro, a robusta figura do Sr. Gilpin, que acenava alegremente o seu chapéu. Ao lado dele vinha um menino de cabelos encaracolados. E, ao lado do garoto, estava sentada Fanny Albion.
— Oh — exclamou Louisa.
Todos caminharam juntos para o interior da abadia. O Sr. Gilpin estava de excelente humor.
Ficara surpreso com a visita que a Sra. Pride lhe fizera no dia anterior, mas curioso e encantado por fazer algo para ajudar Fanny. Concordou plenamente com ela que a Srta. Albion precisava sair com os primos, principalmente depois do comportamento do velho Francis Albion. Mostrou-lhe, porém, que, se o velho continuasse naquele seu estado de ânimo, provavelmente não seria possível tirar Fanny da casa.
Entretanto, ao mesmo tempo que a Sra. Pride concordava em que aquilo era verdade, também lhe garantiu:
— Há ocasiões em que o Sr. Albion dorme o dia inteiro e nem mesmo perceberia que a Srta. Albion esteve fora.
— A senhora acredita que amanhã poderá ser um dia desses? — indagou o vigário.
- Ele ficou tão agitado esta manhã, senhor, que isso não me surpreenderia
— Eu acredito — observou, divertido, o Sr. Gilpin para a esposa, depois que a Sra. Pride se foi — que ela vai drogá-lo.
— Isso seria apropriado, meu bem? — perguntou a esposa.
— Sim — respondeu o Sr. Gilpin.
Por isso ele partiu alegremente em sua sege de duas rodas. Passando pela escola, no caminho, também apanhou o menino Furzey. Ele sabia que não devia fazer aquilo, mas a criança tinha uma inteligência tão brilhante que era quase impossível resistir à tentação de educá-lo.
Ao chegar a Albion House, encontrou o Sr. Albion mergulhado em um sono profundo e, tentado ainda mais uma vez, enviou uma súplica secreta a Deus para que o sono do velho se tornasse eterno. Fanny, contudo, revelou-se um problema maior. Não era tanto o medo de deixar o pai que a preocupava, mas a perspectiva de se encontrar com o Sr. Martell depois do que achava ter sido uma humilhação para ela no dia anterior.
— Minha cara menina — garantiu o vigário —, não houve humilhação alguma. Embora um tanto injustificado, eu penso que, para um homem da idade dele, o seu pai até que deu uma boa demonstração de vitalidade.
— Mas logo o Sr. Martell ter tido esse tipo de recepção em nossa casa...
— Minha cara Fanny— observou o sagaz Gilpin —, o Sr. Martell tem pessoas que o bajulam aonde quer que vá. Ele deve ter apreciado a mudança. Além do mais — acrescentou —, nem sei ao certo se os seus primos continuarão com a intenção de ir a Beaulieu. Portanto, talvez você tenha apenas a mim e ao jovem Furzey por companhia. Suplico que venha, pois no caminho eu tenho uma carta para entregar em Lyndhurst.
E agora ele insistia em caminhar ao lado dos dois Totton, deixando Fanny e o Sr. Martell seguindo-os logo atrás.
Se Fanny sentia algum constrangimento depois dos acontecimentos do dia anterior, o Sr. Martell foi capaz de dissipá-lo. Na verdade, encarou o assunto como uma grande piada, disse que nunca fora expulso de uma casa, mas que sem dúvida ainda haveria muitas dessas ocasiões no futuro.
— Aliás, Srta. Albion, seu pai lembra muito o meu, se bem que, se pudéssemos colocá-los para lutar um contra o outro, como dois velhos cavaleiros em uma justa, creio que seu pai ganharia.
— É tão bondoso, senhor, pois confesso — reconheceu — que me senti mortificada.
Martell refletiu. Não era da sua mortificação de que se lembrava do dia anterior. Era de sua figura pálida avançando pelo saguão, seu ar de tristeza abissal, até mesmo de tragédia, do próprio desejo dele, talvez não tão percebido naquele momento, de protegê-la. Mas ali estava ela, corada pelo passeio no ar matinal, carne e sangue mornos, demais até. Duas imagens em uma única pessoa, dois aspectos de uma alma: que interessante. Ele veria se conseguiria afastar da mente a sombra trágica.
— Ah — continuou ele, alegremente —, se ao menos conseguíssemos controlar nossos pais. Mas quando brilham, sabe, os olhos do seu pai são notáveis. — Olhou-a de relance, de certo modo esquadrinhando-a. — Como os seus também, Srta. Albion. Tem os magníficos olhos azuis de sua família.
O que ela podia dizer, ou fazer, além de enrubescer? Ele sorriu. Ela nunca o vira tão caloroso.
— Acredito que sua família é muito antiga na Floresta — prosseguiu.
— Afirmo que somos saxões, Sr. Martell, e que tínhamos propriedades na Floresta antes de os normandos chegarem.
— Céus, Srta. Albion, e nós, os normandos, chegamos e as roubamos de vocês? Não admira nos expulsarem de suas casas!
— Eu penso, Sr. Martell — disse rindo —, que vocês vieram e nos conquistaram. — E, sem nenhum significado em especial, ao pronunciar "nos conquistaram", ela levantou a vista e olhou nos olhos dele.
— Ah. — Fitou-a de volta, ao ser também atingido subitamente pela idéia da conquista, e os seus olhares permaneceram fixos um no outro durante vários momentos, até ele, obsequioso, desviar a vista. — Nós, as antigas famílias — disse ele com um quê de intimidade que parecia uma cômoda capa sobre os seus ombros —, talvez vivamos demais no passado. Entretanto... — olhou de uma maneira, na direção dos Totton, que dava a entender que, embora fossem pessoas excelentes, havia coisas que um Martell ou um Albion jamais poderia partilhar com eles —, penso que pertencemos à terra de um modo que outros não pertencem.
— Sim — concordou ela baixinho. Era também como ela se sentia.
— Pois é. — Voltou-se para ela com tal desenvoltura que era como se já a tivesse envolvido com o braço. — Você e eu somos ruínas ou simplesmente pitorescos?
— Eu sou pitoresca, senhor — rebateu ela com firmeza. — Mas, por favor, não me diga que é uma ruína.
— Prometo-lhe — falou delicadamente — que não sou.
O rio de Beaulieu, por ser afetado pelas marés, estava baixo quando atravessaram a ponte que dava para a antiga guarita, e o grande lago à esquerda deles se encontrava quase sem água, os juncos em volta da extensa margem de lama saudando-os com um suave farfalhar ao se aproximarem de lá.
Embora a abadia tivesse há muito se tornado uma ruína, ainda, espantosamente, preservava a sua antiga distinção. Nem tudo estava destruído. A guarita e grande parte do muro que a limitava ainda estavam de pé. A residência do abade fora restaurada e, de certa forma, ampliada e transformada em uma modesta mansão senhorial. O recinto do claustro também permanecia, com o imenso domus dos irmãos leigos ainda se elevando em um dos seus quatro lados. Enquanto a grande igreja monástica tinha sido quase toda desmantelada, o refeitório dos monges, do lado oposto, fora transformado em uma encantadora igreja paroquial. A então herdeira Montagu raramente ia lá, já que conseguira mais um dos brilhantes casamentos para a família, dessa vez com um descendente de Monmouth — pois, ainda que o desafortunado filho natural de Carlos II tivesse perdido a cabeça ao se rebelar em 1685, ele ainda conseguira, graças à esposa, transferir imensas propriedades aos seus descendentes. E estes agora tinham se unido com os de Montagu. A família, porém, tinha um cuidado benevolente com o palácio, e suas pedras cinzentas mantinham seu aspecto de antiga tranqüilidade.
— Quer dizer, Sr. Martell — Louisa voltou-se para eles, assim que passaram pela guarita —, que perdemos Fanny para o senhor? — Lançou para Martell um olharzinho curioso ao falar isso, como se houvesse algo ligeiramente estranho em relação a Fanny, mas ele sorriu e fez que não percebeu.
— Tenho desfrutado a conversa dela tanto quanto desfruto a sua — respondeu amavelmente. — Não quer se juntar a nós? — E, com uma jovem dama segura em cada um de seus braços, ele seguiu para o interior do recinto. Não tinham ido muito longe, quando ele comentou: —A localização desta abadia é aprazível; o ar... — Fez uma pausa. Louisa olhou-o inexpressiva.
—
.. suave e aprazível, pela sua própria presença, diz bem... — continuou Fanny, rindo. E, vendo Louisa ainda confusa, bradou: — Ora, Louisa, isso é de Macbeth, de Shakespeare. Nós o lemos juntas, com a Sra. Grockleton. Só que no original é um castelo e não uma abadia.
— Eu tinha esquecido. — Louisa enrubesceu e franziu a testa, irritada.
— Mas, Sr. Martell, certamente deve lembrar que após fazer essa observação o rei encontra a morte — recordou-lhe Fanny. —Talvez seja melhor tomar cuidado.
— Bem, Srta. Albion — Martell olhou de Fanny para Louisa —, acredito estar em segurança, pois nenhuma de vocês duas me parece a temida lady Macbeth.
— É que ainda não me viu com uma adaga — disse Louisa, com ferocidade zombeteira, tentando recuperar a compostura. Pareceu a Fanny que talvez fosse nela, e não no Sr. Martell, que Louisa gostaria de enfiar a adaga naquele momento e decidiu cuidar para que não houvesse mais constrangimentos para a prima.
Ela estava alerta, portanto, quando, ao chegarem à casa do abade, Martell perguntou casualmente a Louisa que ordem de monges havia habitado o local em tempos passados.
— Ordem? — Louisa deu de ombros. — Eram apenas monges, suponho. — Sem mesmo querer fazê-lo, ela olhou na direção de Fanny.
— Eu não tenho certeza — disse Fanny, cautelosa, embora de fato soubesse perfeitamente bem. — Eles não mantinham muitas ovelhas, Louisa? Devem ter sido cistercienses.
— Então, nesse caso — falou Martell, que não se iludira em nenhum instante com a proteção que ela dera à prima —, devia haver irmãos leigos e granjas?
— Sim — confirmou Fanny. — Ainda restam os grandes celeiros nas proximidades das granjas. — E apontou na direção da granja de St. Leonards. Martell aquiesceu, interessado.
Adiante deles, o Sr. Gilpin tinha parado para fazer anotações sobre algumas árvores que os Montagu haviam plantado em linha reta, diante das quais ele fazia severas críticas para Edward e o jovem Furzey; e estavam à espera de que ele terminasse, quando, perto da guarita, inesperadamente vindo do sul, uma tringa deslizou no céu. Foi uma visão tão adorável que todos pararam para admirar. E o que, perguntou-se Fanny, poderia ter levado Louisa a apontar para a elegante e esbelta ave pernalta e gritar: "Oh, olhem, uma gaivota"?
Por um segundo, Martell e Fanny pensaram que ela devia estar brincando, mas no mesmo instante ambos perceberam que não estava. Fanny abriu a boca para falar alguma coisa, mas achou melhor não o fazer. Ela e Martell se entreolharam. Em seguida — não pretendiam, mas não o conseguiram evitar — os dois caíram na gargalhada. Pior ainda, sem mesmo pensar no que fazia, ao se afastar de Louisa em direção a Fanny, e ela em direção a ele, Martell segurou o seu braço e pressionou-o afetuosamente. E ali ficaram, sob os olhares de Louisa — não havia como disfarçar — partilhando uma pilhéria como um casal de amantes, e à custa dela. O rosto de Louisa se fechou.
— Sr. Gilpin! — Foi sem dúvida providencial o fato de terem sido interrompidos naquele instante por um grito vindo da direção do claustro, ao mesmo tempo que uma figura investia apressadamente. — É, sem dúvida, uma honra. — O Sr. Adams, o cura de Beaulieu, na verdade o clérigo residente já que o homem que oficialmente recebia os proventos nunca aparecia por lá, era o filho mais velho do idoso Sr. Adams, que dirigia o estaleiro em Bucklers Hard. Ao passo que os irmãos tinham se dedicado aos negócios, ele fora educado em Oxford e depois se ordenara. Após Gilpin tê-lo saudado calorosamente e apresentado a todos, o amistoso cura ofereceu-se para conduzi-los pelo local e levá-los imediatamente aos aposentos do abade. — Por motivos que permanecem desconhecidos, hoje em dia nós o chamamos de Palace House — explicou, e foram todos admirar os seus elegantes aposentos abobadados. Martell, sempre educado, dedicava toda a atenção ao clérigo enquanto Fanny se contentava inteiramente em ficar um pouco mais atrás com o jovem Nathaniel Furzey, que evidentemente a considerava sua amiga pessoal.
De lá passaram para o claustro, e o cura guiou-os na direção do antigo refeitório dos monges, que agora servia como sua igreja paroquial. Como Fanny já a conhecia muito bem e Nathaniel estava ficando ligeiramente inquieto, ela lhes disse que esperaria lá fora com o menino, enquanto o grupo estivesse ali dentro. E assim, depois que saíram, ela se viu sozinha com ele no claustro.
Se, no auge da abadia, os claustros sempre foram um local agradável, na ruína haviam adquirido um novo e especial encanto. A parede do norte, com as suas reentrâncias arqueadas, estava mais ou menos intacta. As outras paredes, cobertas de hera, encontravam-se em vários estágios de desmoronamento, restando aqui e ali uma pequena galeria de arcos vazios, como uma tela além da qual os alicerces das antigas edificações, todas cobertas de capim, forneciam um panorama reservado. Sensatamente, portanto, não tendo necessidade de construir uma ruína, os Montagu mandaram fazer um gramado e colocar pequenos canteiros de plantas próximo às paredes esfaceladas e colunas quebradas, e criaram um admirável jardim onde se podia passear e desfrutar da amigável companhia das sombras cistercienses.
Ela deixou Nathaniel correr para lá e para cá, deu uma volta pelo jardim e procurou um lugar para se sentar. As arcadas abrigadas dos carrels dos monges na parede norte pareciam convidativas, protegidas da brisa e colhendo os cálidos raios do sol. Escolheu uma, perto do centro, instalou-se no assento de pedra e descansou as costas na parede atrás. Era mesmo muito agradável. Diante dela, do outro lado do claustro, a grande parede que limitava o antigo refeitório formava um triângulo de pedra contra o céu azul. Os outros continuavam lá dentro. Nenhum som emergia. Nathaniel também tinha sumido em algum lugar. Ela inspirou fundo e fechou os olhos por um momento, sentindo o sol no rosto.
Por que se sentia tão feliz? Achava que sabia. Não era tão tola assim, disse a si mesma, para acreditar que o fato de o Sr. Martell gostar dela — pois tinha certeza que sim — levaria necessariamente a algo mais do que aquilo. O Sr. Martell, não restava dúvida, podia escolher praticamente qualquer moça da Inglaterra. Mas
ainda assim, era agradável sentir que ele admirava as coisas que ela tinha a oferecer, sua família, sua inteligência, seu jeito meigo. Ela nunca lidara antes com homens. Contudo, o primeiro que conhecera, e um dos mais qualificados, visivelmente a valorizava e estava atraído por ela. Isso lhe dava uma sensação de confiança das mais agradáveis. Era por isso, pensou, que estava tão feliz e descontraída.
Nem mesmo aquilo, porém, era tudo. Não, a satisfação que sentia provinha de algo ainda mais simples. Algo que acabara de sentir, ao caminhar e rir ao lado do Sr. Martell, e que ela levou alguns minutos para perceber o que era.
Sentia-se tão à vontade na presença dele. Aquela era a resposta. Nunca se sentira tão à vontade em sua vida. Aquilo lhe dava uma sensação de leveza. A ela lhe pareceu, naquele instante, como se tivesse penetrando em um mundo no qual não havia mais dor.
Sorriu para si mesma e, sem qualquer motivo em particular, tirou para fora a cruz de madeira que costumava usar e sentiu na mão as linhas de seu antigo entalhe. Ficou sentada ali por alguns minutos, desfrutando a paz do ambiente.
Pouco depois Nathaniel voltou e sentou-se satisfeito ao lado dela.
— O que é isso? — quis saber ele, percebendo o pequeno crucifixo de cedro.
— Uma cruz. Foi minha avó quem me deu. É muito antiga, acho. Ele a inspecionou e assentiu solenemente.
— Parece antiga — concordou e recostou-se, ajeitando-se em uma posição mais confortável no assento. Tendo ficado satisfeito, deixou os olhos vagarem em volta dos claustros. —Você gosta daqui? — perguntou e, depois de ela dizer que sim: — Eu também gosto daqui.
Ficaram sentados lado a lado por mais um ou dois minutos antes de Nathaniel apontar para um lugar na parede bem atrás de Fanny, fazendo com que ela se virasse e olhasse. Por um segundo, ela não percebeu o que via, mas logo notou: uma letra "A" que alguém arranhara na pedra. Era bem pequena, bem caprichada e parecia com a escrita gótica, como se tivesse sido entalhada pela mão de um monge muito tempo atrás. Sorriu. Uma letra "A" deixada na pedra, o minúsculo registro de uma vida, desaparecida, bem fundo sob o solo.
— Como ficaria surpreso o monge que a entalhou... se foi mesmo um monge... vendo nós dois sentados agora no claustro dele — observou ela. — E não muito contente, podemos ter certeza — acrescentou com um sorriso.
Era uma pena, portanto, que o irmão Adam não pudesse aparecer para dizer aos seus descendentes que, pelo contrário, ele estava muito contente.
Um minuto depois, o Sr. Gilpin surgiu para lhes dizer que iam dar uma olhada na fábrica de cordas e que depois desceriam até o estaleiro, em Bucklers Hard.
Lenta, lentamente, a grande árvore avançava. Lentamente, os seis possantes cavalos de carga, arreados um atrás do outro, arrastavam as correntes, e a imensa carroça atrás deles rangia e cambaleava sob sua carga. Levavam um carvalho da floresta para o mar.
Puckle suspirou. O que ele tinha feito?
Estava certo, no dia em que se encontrou com Grockleton, em reconhecer o valor do espraiado carvalho próximo à pedra de Rufus. Normalmente, as árvores eram derrubadas no inverno e transportadas no verão, quando o solo ficava duro. Mas, por algum motivo, o Sr. Adams permitira que aquela árvore fosse derrubada mais tarde. E assim, enquanto o seu irmão podado foi deixado para viver mais um ou dois séculos, aquele esplêndido filho do antigo e miraculoso carvalho sentiu os afiados machados brandirem e se abaterem em seu corpo, cortando caminho para o interior de seu âmago de duzentos anos, até finalmente, diante do local onde seu velho pai mágico estivera, tombar, cair e colidir ruidosamente com o musgo e as folhas do solo da floresta. E então, com seus machados e serras, os lenhadores fizeram o seu serviço.
Havia três porções do carvalho abatido. A primeira, as partes pendentes, os galhos laterais e a copa, sem uso para a construção naval, foram rapidamente cortados fora e, juntamente com os gravetos, colocados em uma carroça para servir de lenha para fogueira. Havia depois a parte principal da árvore, o grandioso tronco, cortado em pedaços imensos para serem usados no corpo do navio; e, então, as importantíssimas juntas, conhecidas como joelhos, de onde galhos cresciam do tronco, que formariam os cantos de apoio no interior do navio. Havia ainda uma quarta parte, a casca, que alguns mercadores de madeira retiravam e vendiam para os curtidores. Mas o Sr. Adams jamais permitia que isso fosse feito; portanto, os grandes carvalhos que iam para Buckler's Hard chegavam ainda com a casca.
Então, acorrentada e presa no lugar, a parte principal do enorme tronco, sua parte ampla ou extremidade mais larga na frente, era arrastada através da floresta até o estaleiro, onde iria amadurecer por um ou dois anos, antes de ser utilizada. Para fazer a grande proa e os cadastes de popa de um navio, era necessária uma árvore com uma circunferência de pelo menos três metros. Uma árvore grande como aquela forneceria quatro cargas, ou toneladas, de madeira. Um navio de guerra da marinha utilizava mais de duas mil cargas — cerca de dezesseis hectares de carvalhos. O tempo todo, portanto, os machados dos lenhadores viviam em ação, em uma constante derrubada, enquanto os antigos carvalhos desabavam do dossel, e intermináveis carregamentos de madeira seguiam seu caminho em direção ao mar, como tantos outros córregos que corriam através da Floresta.
Agora a árvore já tinha chegado ao fim de sua viagem por terra, e Puckle, caminhando ao lado do cavalo condutor, olhava para baixo, em direção a Bucklers Hard.
O que ele tinha feito? Por algum motivo, naquela manhã em particular, a terrível percepção desabara sobre ele como uma onda. Enquanto fitava as duas pequenas fileiras de chalés de tijolos vermelhos, seria até capaz de chorar. Ele teria de deixar tudo aquilo; tudo o que amava.
Buckler's Hard havia se tornado o seu lar. Há quantos anos trabalhava ali nos navios de madeira? Por quantos anos descera o rio até o local tranqüilo onde o lugre descarregava toneis do mais fino brandy, e ele levava a preciosa carga para a oficina do sapateiro de Bucklers Hard, de cujo porão secreto saíam garrafa após garrafa para serem transportadas discretamente até as mansões do lado oriental da Floresta? Quantas vezes ele passara perto do Sr. Adams, o mestre, ou de qualquer um de seus outros amigos do estaleiro — ou mesmo, no que se refere a isso, do jovem Sr. Adams, o cura de Beaulieu —, em horas estranhas, e nunca fora notado?
Pois a regra do Sr. Adams era simples. Ele nada via. Nenhum contrabando desembarcava em Buckler's Hard. Se o sapateiro tinha um porão, as mercadorias chegavam e partiam depois que escurecia. Se uma garrafa de um excelente brandy aparecia em sua porta, ele nunca perguntava o motivo. E, desde que essas exigências fossem cumpridas, era espantoso o que ele podia deixar de ver. Toda vez que Puckle chegava atrasado, depois das grandes viagens para o outro lado da Floresta — e às vezes faltava um dia inteiro —, o Sr. Adams sempre podia jurar que ele estivera trabalhando o tempo todo no estaleiro e, conseqüentemente, lhe pagava o devido.
Puckle, o confiável; Puckle entre amigos; Puckle na Floresta. Como poderia ir embora?
Pensava nisso, é claro, e até mesmo dizia a si próprio que era capaz de se livrar daquela. Mas não adiantava. De algumas coisas você consegue se safar, mas não daquilo. Não haveria perdão. Semanas e até meses poderiam passar, mas você pagaria o preço.
Se ao menos ele pudesse voltar atrás. Seria capaz? A imagem da mão tipo garra de Grockleton e do rosto vigilante de Isaac Seagull surgiu diante dele. Não, era tarde demais. Não podia voltar atrás. Separando-se do grupo de transporte, depois que outro homem apareceu para assumir, ele seguiu seu caminho, descendo em direção à rampa. Sempre se sentia melhor quando estava trabalhando nos navios. Pouco antes de chegar lá, notou que o Sr. Adams estava parado diante da casa dele, conversando com um grupo de visitantes.
Embora dois de seus filhos estivessem presente, era o velho Sr. Adams quem fascinava Fanny. Com o seu rosto curtido, a antiquada peruca branca, o andar duro e empertigado, passando dos oitenta anos de idade, ele ainda cavalgava até Londres a fim de conseguir contratos para construir embarcações no estaleiro. Apesar de claramente não gostar de ser interrompido por visitantes, ele era educado o bastante enquanto lhes mostrava o local.
Mas igualmente interessante, Fanny logo descobriu, foi a sutil transformação
do Sr. Martell. Ela o vira como um altivo aristocrata, um homem instruído e
tinha de admitir — uma encantadora companhia e, sem dúvida, amante. Mas, ao serem conduzidos pelo Sr. Adams, ela notou algo mais. Seu corpo alto curvava-se um pouquinho adiante para captar tudo o que o armador dizia; fazia perguntas aguçadas, às quais o velho prontamente respondia com óbvia consideração. Seu belo rosto saturnino mostrava-se concentrado e severo. Tratava-se do rosto de um poderoso dono de terras, o cavaleiro normando que conhecia o seu ramo e esperava ser obedecido. Para surpresa dela, sentiu um leve estremecer percorrer o corpo ao observá-lo. Não havia percebido que ele possuía tal poder.
A construção de uma grande embarcação marítima, no final do século XVIII, era algo notável. Como grande parte da indústria da época, ainda se tratava de um negócio rural, em pequena escala e feito manualmente. Contudo, o pequeno estaleiro nos limites da Floresta era altamente produtivo: do mesmo modo que numerosos navios mercantes, mais de um décimo de todos os navios de guerra construídos para a marinha procediam do estaleiro do rio de Beaulieu.
Levando-os primeiramente a uma imensa construção de madeira em forma de estábulo logo acima das rampas e ao lado da oficina do ferreiro, o Sr. Adams mostrou-lhes um enorme e comprido espaço onde havia desenhada no chão uma série de linhas padronizadas.
— Chamamos isto de celeiro de molde — explicou ele. — Fazemos os desenhos em escala neste chão; depois, os moldes de madeira, e assim podemos conferir a forma de cada centímetro do navio enquanto o construímos.
Depois os conduziu a um enorme buraco de serrar. Dois homens se ocupavam com uma parte de um tronco, que cortavam com uma serra imensa: o que acionava uma extremidade dela estava de pé sobre o tronco, e o segundo, na outra extremidade, dentro do buraco.
— O sujeito que está em cima é o mestre. É ele quem guia a serra — disse o Sr. Adams. — O que está embaixo é o seu ajudante. É ele quem faz o serviço árduo, pois empurra a serra.
— Por que o homem que está no buraco usa um chapéu tão grande? — quis saber louisa.
- Observe e verá — respondeu o Sr. Adams, olhando-a de lado. E quando a enorme serra desceu, o motivo ficou claro, pois uma cascata de serragem caiu sobre a cabeça do pobre homem.
Inspirado, aparentemente, pela mente inflexível e prática do aristocrata a seu lado, o Sr. Adams tornou-se bastante afável. Levou-os a vários lugares onde, individualmente, homens trabalhavam em projetos isolados. Um dava forma a um enorme leme, com uma goiva e um malho; outro fazia buracos em um poste de madeira com um instrumento parecido com um enorme saca-rolhas com dois cabos.
— Ele faz um buraco com a verruma — explicou o armador — e depois ajeita com uma dessas ferramentas. — Apanhou um grande espeto de madeira, do tamanho de seu braço. — Isto é um prego de madeira. Nós os fazemos aqui. Sempre usamos a mesma madeira para fazer os pregos que prendem as tábuas; caso contrário, eles podem afrouxar, e o navio apodrecerá. Alguns são até maiores.
— Não utilizam pregos de ferro nos navios? — perguntou Edward.
— Sim, usamos. — Um pensamento pareceu ocorrer ao velho. — Os senhores passaram pela fábrica de cordas em Beaulieu, acredito eu. Pois bem, os monges, no passado, construíram em Sowley um grande tanque para peixes. Atualmente é usado como oficina metalúrgica. É de lá que vêm os nossos pregos. — Sorriu. — Portanto, até mesmo um mosteiro — claramente quis dizer "até mesmo algo inútil e papista como um mosteiro" — pode mudar com o tempo e servir para algo útil. — E, obviamente encantado com sua reflexão, levou-os para baixo, em direção ao rio.
Havia três embarcações de diferentes tamanhos e etapas de construção nas rampas de lançamento.
Martell olhou para elas, avaliador.
— Suponho que tentam construir um barco menor ao lado de um grande por motivo de economia — observou.
— Exatamente, senhor. É isso mesmo — respondeu o Sr. Adams. — O navio maior — explicou aos demais — usa as madeiras maiores, e o menor, as menores, todas da mesma árvore. Mesmo assim — ponderou para Martell —, há um enorme desperdício de madeira, porque apenas a parte interna das árvores é dura o bastante para ser utilizada. Vendemos tudo o que é possível, mas... — Ficou evidente que qualquer tipo de desperdício era ofensivo para o armador.
— São todos carvalhos de New Forest? — perguntou Fanny.
— Não, Srta. Albion. Essa — apontou para a Floresta em volta — é a nossa principal fornecedora de madeira. Mas vamos mais longe ainda. Os navios não são feitos apenas de carvalho. A quilha é feita de olmo, e as pranchas das paredes do navio são de faia. Para os mastros e vergas, usamos abeto. Venham, deixem que eu lhes mostre.
Na rampa maior havia um enorme navio de guerra quase pronto para lançamento.
— Este é o Cerberus— anunciou o Sr. Adams. —Trinta e dois canhões, quase oitocentas toneladas. Os maiores navios de guerra têm apenas doze metros de comprimento, embora possuam o dobro de tonelagem. Este será lançado ao mar em setembro e rebocado ao longo da costa até Portsmouth, para ser equipado no arsenal de marinha que existe lá. O barco menor, no qual começamos a trabalhar ao mesmo tempo, é um navio mercante, para ser usado no comércio das índias Ocidentais. Ficará pronto ano que vem. O menorzinho, na terceira doca, é uma barcaça de cinqüenta toneladas para a marinha. Como vêem, estamos iniciando a quilha, ao passo que no navio mercante já completamos toda a estrutura.
— Também constróem aqui os grandes navios de guerra? — quis saber Fanny.
— Sim, Srta. Albion, mas só de vez em quando. O maior que construímos foi o Illustrious, cinco anos atrás. Um monstro com setenta e quatro canhões. Para mim, o melhor de todos que já construímos foi um de sessenta e quatro canhões chamado Agamemnon. — Sorriu. — O "Am an Eggs", como os marinheiros o chamam.
— E tentam acompanhar o que acontece com eles depois que deixam o estaleiro?
— Tentamos. O Agamemnon, por exemplo, acaba de ser colocado sob um novo comando. Um capitão chamado Horatio Nelson. — Deu de ombros. — Não posso dizer que já tenha ouvido falar nele. — Olhou em volta. Ninguém também já tinha ouvido. — Bem — continuou —, desejam entrar no Cerberus.
Puckle estava sozinho no espaço entre os conveses. Um momento antes houvera o som de marteladas acima, quando as últimas tábuas do convés superior estavam sendo pregadas; mas agora, por algum motivo, o ruído tinha cessado e o navio ficara em silêncio.
Como ele parecia cavernoso diante do súbito silêncio, com a luz penetrando pelos quadrados vazios das portinholas dos canhões. Nada havia entre os conveses a não ser as eventuais vigas de apoio: nada de divisórias, nada de canhões, nada de acessórios de galé, nada de redes, cordas ou toneis. Todas as coisas, fora o casco vazio do navio, seriam colocadas em Portsmouth. Tudo o que ele conseguia ver era madeira: tombadilho de madeira, paredes de madeira estendendo-se por trinta metros, as fibras das madeiras visíveis sob a luz suave, o odor do madeirame e do piche usado para vedá-lo, pronunciado em suas narinas; e nos cantos, onde as extremidades do tombadilho se encontram com o casco, os suportes angulares feitos com as juntas do carvalho, como se o convés acima de sua cabeça não fosse feito de tábuas, mas de uma copa espraiada de galhos formando camadas naturais dentro do silencioso eco do navio.
Em seguida ouviu passadas, e, descendo a escada do convés superior, surgiu o Sr. Adams com um grupo de visitantes.
Que aparência curiosa tinha aquele sujeito, pensou Martell, com os seus ombros arqueados, os cabelos castanhos desgrenhados e o rosto nodoso. Um por um dos membros do grupo desceu a escada e olhou para ele.
O Sr. Adams veio por último e cumprimentou-o com um lacônico gesto de cabeça.
— O nome deste homem é Puckle — disse-lhes. — Já deve estar conosco há quinze anos.
— Dezessete, senhor — corrigiu Puckle.
— Puckle — riu Edward. — Que nome engraçado.
— Trata-se de um bom e velho nome da Floresta — cortou Fanny imediatamente, achando que o primo estava sendo rude. — Estou certa de que existem os Puckle na Floresta há tanto tempo quanto os Albion. Na maior parte em torno de Burley, não é mesmo? — perguntou para Puckle, com um sorriso amistoso.
— Isso mesmo. — Puckle sabia quem era a jovem Albion, e ela contava com sua aprovação. Ela fazia parte dali.
Os Totton ainda fitavam Puckle com um ar divertido, como se ele fosse uma curiosidade. Martell olhava em volta, observando o modo pelo qual o convés e o casco se juntavam. O Sr. Gilpin, aparentemente, meditava.
— Aqui embaixo. — Fanny hesitou, pois não estava bem certa do que pretendia dizer. — Dá uma sensação estranha. — Olhou para os demais, que não pareciam muito interessados, e depois dirigiu-se ao homem da Floresta. — Sente isso? — perguntou, e, ao ouvir a pergunta, para grande irritação de Fanny, Louisa deu uma risadinha atrás dela.
Porque acabara de sentir a mesma coisa e porque gostava dela, pela primeira vez em sua vida Puckle tentou expressar em palavras uma idéia complexa.
— São as árvores — disse ele, com um gesto de cabeça em direção ao casco. Parou por um instante, imaginando como colocar aquilo em palavras. — Depois que partimos, senhorita, não resta muita coisa. Não depois de um ano ou dois no solo.
- Existe a sua alma imortal, homem — Gilpin interrompeu o seu devaneio para observar firmemente. — Espero que não se esqueça disso.
— Não esquecerei, vigário — concordou Puckle educadamente, embora talvez com não muita convicção. — Só que as árvores — falou para Fanny —, como não têm alma, segundo dizem, quando são cortadas assumem uma nova vida — e gesticulou em volta dele. —Às vezes aqui embaixo — acrescentou, tendo a simples sensação do mistério daquela coisa — eu me sinto como se estivesse dentro de uma árvore. — Sorriu para ela, ansioso, apesar de um pouco constrangido. — É mesmo engraçado. Até tolo, creio; mas um homem como eu não sabe muita coisa.
— Não creio que seja nenhuma tolice — afirmou Fanny, afetuosa. Mas não foi além disso, pois o Sr. Gilpin indicou, raspando a garganta, que ele e o Sr. Adams já estavam fartos, e momentos depois ela se viu outra vez de volta à reluzente luz solar.
— Eu afirmo — bradou Louisa, rindo — que aquele sujeito se parece exatamente com uma árvore. Não acha, Sr. Martell?
— Talvez — concordou com um sorriso.
— Contudo, gostei do que ele disse. — Fanny virou-se esperançosa para o dono de terras.
— Concordo, Srta. Albion — retrucou. —A teologia dele pode ser deficiente, mas esses camponeses têm um tipo de sabedoria própria.
— É difícil de acreditar — insistiu Louisa — que uma criatura como aquela seja um homem. Creio que ele é alguma espécie de ogro ou gnomo. Tenho certeza que vive debaixo do solo.
— Como cristão, não devo concordar — riu Martell. — Por outro lado, entendo o que quer dizer, minha cara Srta. Totton.
Estava na hora de partir. Os Totton, com o Sr. Martell, pegariam a alameda que atravessava Sowley em direção a Lymington; o Sr. Gilpin desejava pegar outra trilha que os levasse através da charneca em direção ao vau acima de Albion House.
Antes de partirem, entretanto, o Sr. Martell aproximou-se de Fanny.
— Minha estada aqui terminará em breve, Srta. Albion — falou baixinho —-
mas confio muito em voltar. Quando eu o fizer, espero encontrá-la aqui e poder visitá-la.
— Sem dúvida, Sr. Martell, embora não possa responder pelo meu pai.
— Posso lhe garantir, Srta. Albion — olhou-a direto nos olhos —, que estou preparado para enfrentar com bravura a ira dele.
Ela baixou a cabeça, para ocultar o prazer que sentia.
Minutos depois, com o jovem Nathaniel aconchegado a seu lado, ela avançava suavemente com o Sr. Gilpin pela charneca agreste, o coração cadenciado com a brisa.
Puckle ficou mais um pouco no navio depois que os visitantes se foram. Embora desprezasse os Totton, ficou contente em conversar com a Srta. Fanny Albion. Gostara de algo nos seus olhos azuis. Mas após sua partida, enquanto olhava tristemente em volta do amplo espaço envolto em madeira, os pensamentos que o andavam perturbando retornaram com uma insistência maior do que anteriormente.
Dali a alguns meses a Srta. Albion ainda estaria na Floresta. Mas ele, onde estaria?
O que ele tinha feito? O que poderia fazer a respeito?
A sege tinha parado diante de Albion House e o Sr. Gilpin acabara de ajudar Fanny a descer, conduzindo-a até a porta, quando se virou casualmente para ela e comentou:
— Há algo que, por acaso, tenho pretendido lhe falar, Fanny. Lembra-se de que conversamos a respeito de sua avó e o casamento dela?
— Ora, sim, é claro — respondeu animada. — Nós íamos fazer uma verificação, não é mesmo?
— De fato. Pouco tempo atrás, eu tive a oportunidade de examinar o registro paroquial de Lymington e tomei a liberdade de remontar ao tempo para ver o que conseguia descobrir.
— E descobriu? — Ela parecia bastante ansiosa.
— Sim. Bem, acho que sim. — Fez uma pausa. — Pode ser que seja uma surpresa, talvez um choque.
— Oh?
— Claro que tais ligações em qualquer família, principalmente da linhagem materna, como sabe, são bastante comuns. Perfeitamente normais. Pode ser que você se surpreenda.
— Por favor, Sr. Gilpin, fale logo.
— Ao que parece, Fanny, esse Sr. Totton, o pai de sua mãe, casou-se em segundas núpcias com uma certa Srta. Seagull de Lymington. A família, como bem sabe, é muito conhecida na cidade.
— Minha avó, a velha senhora que me deu isto — apontou para o crucifixo de madeira preso ao pescoço —, era uma Seagull de nascimento?
- Sim.
— Oh. Não era então de nenhuma família nobre. Nem mesmo de uma família respeitável.
— Estou certo de que ela era respeitável, Fanny; caso contrário, o Sr. Totton seu avô, não a teria desposado.
— Você acha — franziu a testa — que Edward e Louisa sabem disso? Ele forçou um sorriso.
— Sempre achei que agradava aos Totton a ligação deles com os Albion. Isso é tudo o que eles levam em conta.
— Talvez os Seagull...
— Isso foi há muito tempo, Fanny. Creio que deve ter por certo que ninguém, exceto nós dois, sabemos disso. Não é nada, minha menina, eu lhe garanto, de que deva se envergonhar. — Era a primeira vez que ouvia o Sr. Gilpin contar uma mentira óbvia.
— E o que devo fazer?
— Fazer? Nada. Só achei que devia lhe contar...
— Para me poupar de uma descoberta constrangedora, talvez por parte de algum curioso escrivão paroquial. — Aquiesceu. — Obrigada, Sr. Gilpin.
— Tire isso de sua cabeça, Fanny. Não tem nenhuma importância.
— Farei isso. Adeus. E obrigada por me levar a Beaulieu.
Ela não entrou logo em casa, mas ficou olhando a sege se afastar e virar na curva do acesso. Em seguida foi para um dos bancos debaixo das árvores e sentou-se lá, meditando um pouco sobre aquela recente revelação. Ficou imaginando o que o Sr. Martell, sem qualquer mancha em seu brasão aristocrático, pensaria do fato de ela estar ligada, e bem intimamente, aos humildes Seagull de Lymington.
— Tenho grandes esperanças — disse a Sra. Grockleton, bem antes de o verão terminar — de que nossa situação esteja prestes a melhorar. De fato — asseverou
creio que posso dizer, Sr. Grockleton, que nunca estive tão feliz. — Essa alegação encheu o marido de angústia, pois a felicidade da Sra. Grockleton era algo temível de conceber. — E pensar — prosseguiu ela, já que era muito franca a respeito dessas coisas — que devemos agradecer àquela esperta moça Louisa por tudo isso.
Quanto ao Sr. Grockleton, seria humanamente impossível imaginar por que deveria agradecer a Louisa Totton por qualquer coisa em particular, mas, como era por demais sensato para afirmar aquilo, deu à esposa um olhar interrogativo que também parecia de concordância, e ela continuou animada.
- Eu sempre fui levada a crer que foi Louisa quem fez o Sr. Martell se decidir a ter tal interesse em Lymington. Agora, ao que parece, ele conversou com sir Harry Burrard sobre concorrer ao Parlamento.
— Isso pode não ter sido obra de Louisa — observou o Sr. Grockleton.
— Sim, sim, meu caro. Foi. Eu lhe asseguro. E, se alguma prova fosse necessária, Louisa e Edward foram convidados a visitá-lo em seu palácio em Dorset. Vão partir na próxima semana. Eis aí! Estou lhe dizendo, Sr. Grockleton, ele pretende se casar com ela.
— Não seria nada estranho, já que os Totton o convidaram para ficar em sua casa, que ele retribuísse a hospitalidade — lembrou o marido.
— Ora, Sr. Grockleton, não enxerga essas coisas — berrou. — Mas eu sim. E, certamente, deve entender o que isso significa para nós.
— Para nós, Sra. Grockleton? Não creio que entenda.
— Ora, Sr. Grockleton, significa tudo. Nossa cara, cara Louisa, minha protégée favorita, minha pupila mais talentosa, casada com um membro do Parlamento... e notável proprietário de terras... e ligado de todas maneiras concebíveis aos Burrard.
— E os Albion?
— Os Albion? — Olhou-o inexpressiva. — Não vejo a significância dos Albion. São apenas dois velhos e...
— Fanny.
— Fanny, tem razão. Fanny. Pobre moça. Mas, por favor, não desvie o assunto. Fanny não tem nenhuma importância. Com Louisa e o caro Sr. Martell como nossos amigos, pode ter certeza de que estaremos na casa dos Burrard num piscar de olhos. Será tudo — sorriu exultante para ele — tão natural. — Considerava a perspectiva com o espírito de um explorador que finalmente tivesse avistado uma terra lendária. — Da próxima vez que o Sr. Martell vier aqui — disse, pensativa — darei o tal baile, e acredito piamente que os Burrard deverão vir.
— É melhor então que ele venha no outono — murmurou o fiscal aduaneiro, embora sua mulher não o tivesse ouvido.
Ainda que o tivesse ouvido, a Sra. Grockleton não faria idéia do que o marido quis dizer com aquela afirmação enigmática; nem ele gostaria que ela soubesse. Mas foi essa reflexão secreta que o levou, naquele momento, a levantar um assunto que ocupava cada vez mais a sua mente.
— Gostaria de saber se já lhe ocorreu, Sra. Grockleton, que pode chegar uma ocasião em que deveremos pensar em partir de Lymington.
— Partir de Lymington? —Virou-se para olhá-lo e pareceu que os olhos dela demoraram alguns instantes para colocá-lo em foco. - Partir?
- É uma possibilidade.
— Mas fiscais aduaneiros nunca são transferidos, Sr. Grockleton. Veio para ficar aqui.
Era verdade, claro. Em um cargo como o dele não havia a possibilidade de promoção ou transferência. Ficava-se nele até se aposentar.
- É verdade, minha cara. Mas nós podemos optar por uma transferência.
— Mas não o faremos, Sr. Grockleton.
— E se... — prosseguiu, muito cautelosamente —
.. não posso dizer que seja provável, Sra. Grockleton, mas e se ganharmos muito dinheiro?
— Dinheiro? De que fonte, Sr. Grockleton?
— Já lhe falei, minha cara, sobre o meu primo Balthazar? —A pergunta não era sincera, já que ele inventara o tal parente no dia anterior.
— Não creio. Tenho certeza que não. Que nome extraordinário.
— Não — disse ele, calmamente — se se tivesse uma duquesa como mãe. Meu primo Balthazar fez uma grande fortuna nas índias Orientais e recolheu-se para o norte, onde vive em completo isolamento. Ele não tem filhos. Aliás, acredito que sou o seu único parente. Soube que ele sofre de uma enfermidade da qual é provável que não se recupere e penso ser possível que a sua fortuna possa vir para mim.
— Mas, Sr. Grockleton, por que nunca me falou a respeito dele? Precisa ir vê-lo imediatamente.
— Creio que não. Ele sempre teve antipatia pelo meu pai, embora comigo, quando menino, sempre tenha sido bondoso. Um ano atrás escrevi-lhe uma carta. Respondeu-me de volta, muito afetuoso, mas disse com bastante clareza que não desejava receber quaisquer visitas. Sua enfermidade, desconfio, deixou-o com uma péssima aparência. Se ele morrer e se lembrar de mim, como acredito, nossa situação vai se alterar e pretendo me aposentar.
Ele ficou observando-a com todo o cuidado, bastante contente consigo mesmo. Estava claro que ela tinha acreditado nele; e era importante que acreditasse. Pois a última parte de sua afirmação era totalmente verdadeira.
Fora o seu encontro com Puckle que finalmente o fizera decidir-se. Ao ver o óbvio temor do sujeito — e não tinha dúvida de que era bem fundamentado —
mal pôde deixar de imaginar o que os contrabandistas da floresta fariam também com ele, após o grande ataque. Talvez ficassem intimidados; talvez, respeitosos; possivelmente até mesmo se dispersassem. Mas não era tão tolo assim para contar com aquilo. Não, havia meditado, com o passar dos dias e das semanas, o mais provável era que ele, em uma noite escura, fosse emboscado em algum lugar e recebesse um tiro de pistola na cabeça por lhes ter causado tanta inconveniência. Estaria preparado para esperar por isso? Pesando tudo, concluiu que não estava. Ele era corajoso o bastante para atacar os contrabandistas, mas, se saísse vitorioso e recebesse uma pequena fortuna pela sua ação, faria o mesmo que Puckle pretendia. Pegaria os seus ganhos e partiria, daria o fora, se aposentaria. Ninguém o censuraria por isso e, francamente, ele não ligava a mínima se o fizessem. Como não podia contar a verdade à esposa, já que ela era incapaz de guardar um segredo como aquele, ocorreu-lhe inventar o primo Balthazar e a herança como um modo de prepará-la para uma possível mudança de situação. Observava, portanto, o rosto dela com interesse; e, após ela ter refletido por alguns instantes, ele viu o seu sorriso.
— Mas, meu caro esposo, se esse feliz acontecimento se concretizar e ficar de posse de uma fortuna, não haverá nenhum motivo para partirmos de Lymington. Podemos continuar vivendo aqui, só que com um pouco mais de dinheiro e, eu lhe prometo, em grande estilo. Oh, de fato...
Estava claro que a perspectiva de futuros bailes agraciados pelos Burrard, Martell e talvez até mesmo por visitantes reais invadiam a sua mente, um após outro, como cisnes pousando em um rio.
— Ah. — Não era bem aquilo que ele queria. — Mas pense nos lugares que poderemos escolher para viver. Ora — sugeriu astutamente —, poderíamos até mesmo morar em Bath.
— Bath? Eu nunca desejei morar em Bath.
— Mas, Sra. Grockleton. — Olhou-a atônito. — Fala constantemente em Bath. Certamente...
— Não, não, Sr. Grockleton — interrompeu-o. — Eu cito Bath como um modelo para Lymington, mas não tenho vontade de morar lá. Bath já tem dono. Fosse qual fosse a nossa fortuna, não seríamos ninguém em Bath. Ao passo que aqui, com os nossos muitos amigos queridos...
— Os nossos amigos aqui — sugeriu delicadamente — talvez não sejam tão chegados como pensa.
— Eles são tão bons — retrucou bruscamente, com um daqueles rompantes de realismo brutal capaz de desconcertar — quanto qualquer um que eu e você temos a possibilidade de conseguir.
— Bem, minha cara — falou num tom conciliatório —, não há necessidade no momento de levarmos em consideração esse assunto, pois arrisco dizer que talvez o meu primo Balthazar não me deixe coisa alguma.
Mas, se ele achou que aquilo resolveria, enganou-se redondamente, pois agora a mulher já estava irada.
- Eu estou assaz convencida a permanecer aqui, Sr. Grockleton — disse ela com um ar decidido que fez o coração dele gelar. — Inteiramente. — Olhou-o com solenidade. — Eu não me mudarei.
Por um momento fugaz, o Sr. Grockleton imaginou-se sozinho em Londres com a sua fortuna, sem a Sra. Grockleton, e uma expressão de anseio percorreu o seu rosto. Em seguida, emendou-se.
— Como quiser, meu bem — retrucou e preparou-se para ir para a casa da Aduana. —Acha mesmo — perguntou, mudando de assunto — que o Sr. Martell está gostando tanto assim de LouisaTotton?
— Eu os vi juntos, na High Street, no dia anterior à partida dele — respondeu — e observei os seus modos em relação a ela. Ele gosta muito dela. E ela pretende se casar com ele, pode contar com isso. Ela é uma moça esperta e determinada.
— Quer dizer que mulheres determinadas sempre conseguem o que querem? —: perguntou com genuína curiosidade.
— Sim, Sr. Grockleton — respondeu baixinho. — Elas conseguem.
Isaac Seagull raramente era apanhado de surpresa.
O sol de agosto brilhava aprazível na High Street. Como sempre, ele estava parado na porta de entrada da Angel Inn, inspecionando o movimento. Havia um motivo especial para o Sr. Seagull gostar de estar onde estava e nada tinha a ver com o panorama da rua diante de si. Tinha prazer em ficar ali não por causa do que havia à sua frente, mas por causa do que se estendia sob seus pés.
Um túnel. Ele começava na Angel Inn e atravessava a rua até a estalagem menor do lado oposto. De lá, seguia descendo a colina até alcançar a água. Havia outros túneis e galerias saindo dele. Por esse intermédio, Seagull sabia, ele podia transportar mercadorias dos seus barcos para estalagens e esconderijos por toda Lymington sem que nada fosse visto. Quando ficava parado ali onde estava, portanto, e contemplativo batia o pé levemente no chão, ele se sentia como o senhor de algum antigo labirinto repleto de um tesouro secreto.
Nada havia de incomum com os túneis de Lymington. A maioria das cidades litorâneas da Inglaterra meridional os tinha. Christchurch possuía um intrincado labirinto tendo como centro a antiga igreja prioral. Mesmo aldeias cerca de cinqüenta quilômetros da costa nos planaltos calcários próximos a Sarum tinham túneis para esconder contrabando. Na verdade, em uma época em que os homens da receita causavam pouco efeito no comércio dos contrabandistas, alguns desses sistemas de túneis talvez refletissem o gosto do ser humano por passagens subterrâneas e esconderijos mais do que qualquer outra necessidade verdadeira.
Isaac Seagull pensava tranqüilamente em seus planos para os meses que viriam e a utilização a ser dada aos seus túneis, quando percebeu, com o canto do olho, que a Srta. Albion, debaixo de uma sombrinha, vinha caminhando em sua direção. Tal fato dificilmente seria de seu interesse, mas ela dirigiu-se a ele e perguntou se poderiam conversar. Ela tinha, segundo disse, um assunto particular.
Como não havia nenhum lugar mais reservado no interior da estalagem, ele a conduziu através do pátio até um pequeno jardim logo atrás. Não havia ninguém por lá, além deles.
Então, ela baixou a sombrinha, encarou-o com um sorriso curioso e um par de magníficos olhos azuis e indagou:
— Sr. Seagull, o senhor é meu primo?
Isso o surpreendeu deveras.
Ela havia demorado bastante tempo para se decidir a procurá-lo. Desde que o Sr. Gilpin lhe contara sua descoberta no registro paroquial, Fanny tinha pensado muito sobre o assunto. Perguntara ao pai e, após sua volta de Winchester, onde estivera cuidando de uma amiga doente, à tia se eles sabiam algo a respeito da família da mãe; mas ficou claro, diante da falta de interesse no assunto, que não sabiam. No que lhes dizia respeito, a mãe fora uma Totton, o que era bom o suficiente, e se casara com um Albion, a única coisa a seu respeito que realmente interessava; e isso era tudo. Não agradava a Fanny a idéia de ir ela mesma pesquisar o registro paroquial. No mínimo, se quisesse descobrir algo mais sobre o parentesco da mãe, esse poderia ser um processo tedioso e insatisfatório. A coisa mais sensata, indubitavelmente, era seguir o conselho do Sr. Gilpin e esquecer tudo aquilo.
E foi o que ela tentou fazer. Com tia Adelaide de volta, o padrão normal de sua vida foi retomado com tranqüilidade. Ia visitar os primos Totton, mostrar os seus desenhos ao Sr. Gilpin para serem aprovados e, secretamente, esperava que o Sr. Martell voltasse à região e fosse visitá-la em Albion House, pois dessa vez a tia garantiria que fosse dada a ele uma recepção melhor.
Mas não conseguia esquecer. Não totalmente. Ela mesma não sabia por quê. Talvez fosse apenas porque sua curiosidade tivesse sido aguçada ou por querer saber mais sobre a mãe que havia perdido. Mas, sendo honesta consigo mesma, sabia que havia mais do que isso, e a verdade não era muito agradável.
Pois, se tenho mesmo parentesco com essas pessoas, pensava, então sinto vergonha disso. E receio reconhecer os membros de minha própria família. Como posso justificar tal covardia?
Foi nesse estado de espírito que percebeu haver uma pessoa que, com quase toda a certeza, sabia: o pai de Edward e Louisa, o meio-irmão de sua mãe — Sr. Totton. Talvez ela pudesse perguntar a ele. Contudo, uma certa discrição a conteve. Se ele sabia e nunca falara a respeito, talvez tivesse os seus motivos. Vivendo, como ele vivia, praticamente na cidade, o Sr. Totton talvez não fosse grato a ela por lhe fazer falar sobre o parentesco, mesmo de uma meio-irmã, com indivíduos menos respeitáveis. Fosse qual fosse a sua curiosidade a respeito do assunto, ela decidiu não procurá-lo.
Isso só lhe deixava uma outra fonte de informação, potencialmente a mais perigosa de todas: os próprios Seagull. Ainda que houvesse um parentesco, os atuais Seagull o saberiam? Talvez não, ou talvez tivessem optado por manter silêncio. Ou, ainda uma outra probabilidade, era possível que eles e os demais em Lymington soubessem, mas que isso nunca tivesse chegado aos ouvidos dela. O que aconteceria, se os procurasse? Os Seagull a reivindicariam de imediato como sendo um deles, causariam a ela um constrangimento, molestariam os Totton e — chegaria a isso, afinal — abalariam a sua própria posição na sociedade? Seria mesmo insensatez aproximar-se dos Seagull.
Não foi mais além com esse assunto delicado quando um tipo diferente de notícia o tirou, brevemente, de sua cabeça.
— Já soube, Fanny? — A prima Louisa pegara sozinha uma sege e tinha ido até Albion House dar a notícia. — Minha cara, cara Fanny, o que você acha? O Sr. Martell convidou Edward para uma estada com ele em Dorset. E perguntou especialmente se eu também podia ir. Partiremos na próxima semana. Oh, Fanny, me beije — exclamou, encantada. — Estou tão animada.
— Estou certa — Fanny conseguiu esboçar um sorriso — de que será uma visita encantadora.
Ela ficou imaginando, depois que Louisa se foi, se também seria convidada, mas os dias se passaram e não veio nenhum convite. Disse a si mesma que era natural o Sr. Martell retribuir a hospitalidade dos Totton, mas mesmo assim continuou, a despeito do bom senso, a ter esperanças. Talvez, pensou, o Sr. Martell lhe escrevesse ou enviasse um recado. Embora eu não saiba realmente, repreendeu-se, por que ele faria isso. E de qualquer modo ele não o fez, e dez dias depois da visita de Louisa, os dois jovens Totton partiram para Dorset, após o que ela se sentiu muito solitária.
Ficara sentada lá fora, durante três manhãs, depois que Louisa e Edward partiram, tentando ler um livro; e, mesmo sem ter consciência de que o fazia, ela começou a manusear a pequena cruz de madeira que usava, quando repentinamente lhe ocorreu um pensamento. A velha senhora que lhe dera a cruz: como deve ter sido solitária. Minha mãe ia visitá-la?, perguntou-se Fanny. Provavelmente não. Tenho certeza de que fui levada apenas uma vez para vê-la. E por quê? Com quase certeza, porque minha mãe tinha vergonha dela. Nem mesmo quis que eu ficasse com esta cruz de madeira, a única coisa que a velha senhora foi capaz de dar à neta. E aqui estou eu, refletiu, sentindo pena de mim mesma por não ter sido convidada à casa de um homem que mal conheço e que provavelmente já me esqueceu; mas por quantos anos minha avó foi deixada, completamente sozinha, naquela casa em Lymington, sendo-lhe negado o amor e o afeto de uma neta, tudo por causa de uma inútil vaidade. Pela primeira vez na vida Fanny percebeu que a natureza desperdiçava afeto, como o fazia com as bolotas dos carvalhos que caíam no solo da floresta.
— Não me importa o que pensem — murmurou. — Irei a Lymington amanhã.
Isaac Seagull fitou-a com interesse. Entendia perfeitamente a audácia da pergunta dela, ao decidir-se tranqüilamente a atravessar o grande abismo social que os dividia, como uma exploradora sobre uma ponte frágil. Essa tem coragem, pensou o chefe dos contrabandistas. Mesmo assim, foi cauteloso ao responder.
— Nunca a vi como tal, Srta. Albion — disse ele. — Seria algo muito distante, sabe, muito tempo atrás.
— O senhor conheceu minha avó, a velha Sra. Totton?
— Conheci. — Sorriu. — Uma velha dama notável.
— Ela não era uma Srta. Seagull de nascimento?
— Acredito que sim, Srta. Albion. Aliás — admitiu francamente —, ela era prima do meu pai. Não teve irmãos ou irmãs. Aquela linhagem da família se perdeu.
— Exceto por mim.
— Se deseja pensar assim...
— Não me aconselha a isso?
Isaac Seagull olhou na direção da extremidade do pequeno jardim. Seu curioso rosto sem queixo, em estado reflexivo, possuía uma inesperada delicadeza, pensou ela.
— Não acredito, Srta. Albion, que alguém na cidade se lembre que a velha Sra. Totton era da família Seagull. Creio que sou o único que tem conhecimento disso. — Fez uma pausa, aparentemente para uma rápida avaliação. —A senhora teve dezesseis trisavôs, e um desses foi meu bisavô. E também apenas através da mãe de sua mãe. Não. — Sacudiu a cabeça em desagrado. — A senhora é a Srta. Albion, de Albion House, tão certo quanto eu sou o simples Isaac Seagull da Angel Inn. Se eu disser que sou seu parente, Srta. Albion, as pessoas simplesmente vão rir de mim e dizer que estou querendo ser mais do que sou. — E sorriu afetuosamente para ela.
— Mas se minha avó era filha de um Sr. Seagull — persistiu calmamente —, quem foi a mãe dela?
— Não posso dizer que me lembre. Não creio que jamais tenha sabido.
— Mentiroso.
Não era com freqüência que alguém ousava dizer isso a Isaac Seagull. Ele olhou para baixo, em direção aos surpreendentes olhos azuis da moça.
— Não precisa saber disso.
— Preciso.
— Se minha memória não falha — disse com relutância —, ela pode ter sido uma Srta. Puckle.
— Puckle? — Fanny sentiu-se empalidecer. Não pôde evitar. Puckle, aquele sujeito de rosto carvalhoso parecido com um gnomo que ela vira em Buckler’s Hard? Puckle, a família de mateiros e carvoeiros, os camponeses mais humildes da Floresta? Ora, alguns deles, ela ouvira falar, costumavam morar em choupanas. — Um dos Puckle de Burley?
— Ele era fascinado por ela, Srta. Albion. Ela possuía uma rara inteligência. Aprendeu sozinha a ler e escrever, o que, me perdoe, nenhum outro Puckle jamais tinha conseguido, tenho certeza. Meu pai sempre me falava que ela era uma mulher notável em todos os sentidos.
— Entendo. — Ela estava atordoada. Paisagens inteiras subitamente se abriram à sua frente. Na sua imaginação, teve visões de lugares subterrâneos, tocas profundas, raízes retorcidas. Também eram povoadas, com criaturas estranhas, repugnantes, subumanas, como bruxas, que se voltavam para olhá-la ou chegavam perto, reivindicando-a para si. Sentiu um pânico gelado, como se estivesse presa em uma caverna e ouvisse o ruído de morcegos amontoando-se. Ela, Fanny Albion, uma Puckle. Não uma Totton, sequer uma Seagull, mas com o sangue dos mais baixos dos carvoeiros correndo em suas veias. Era horrível demais para considerar.
— Srta. Albion. — Ele a chamava de volta à luz do dia. — Eu posso estar equivocado. Trata-se apenas de coisas que acredito ter escutado quando era criança. — Não estava certo se ela o ouvia. — Isso não faz a mínima diferença — falou delicadamente. Mas tudo o que ela fez foi baixar a cabeça e murmurar um agradecimento; então, partiu.
Poucos minutos depois Isaac Seagull estava de volta ao lugar costumeiro, desfrutando o sol. O segredo da jovem Albion estava seguro com ele. Passara a vida inteira guardando segredos. Mas mesmo assim tinha visto com espanto filosófico o constrangimento dela. Aquele, supôs, era o preço que se pagava por pertencer à gente bem-nascida, que precisava exibir os seus ancestrais como ornamento e estender os seus hectares para todo mundo ver. Um preço muito alto, concluiu; e não foi a primeira vez que o astuto comerciante livre sacudiu a cabeça diante do total compromisso da classe fundiária com a vaidade.
Pessoalmente, ele se sentia à vontade com todas as coisas escuras e subterrâneas. Além do mais, suas fortunas viviam sempre viajando pelo alto-mar bravio.
Fanny estava a meio caminho de descida da High Street quando encontrou a Sra. Grockleton, que a cumprimentou muito calorosamente.
— Já recebeu notícias de sua esperta prima Louisa? — Ela estava simplesmente radiante.
— Não, Sra. Grockleton. Mas não espero receber. A propósito, por que a chama de esperta?
— Ora vamos, minha cara. — A Sra. Grockleton agitou o dedo robusto em direção a ela. — Você e sua prima não devem supor que podem esconder os seus segredos de nós, os mais velhos. — Lançou-lhe um olhar sagaz. — A mim me parece que não vai demorar muito para recebermos notícias daqueles lados.
— Não faço idéia do que está falando.
— Minha cara menina, eu observei o Sr. Martell e Louisa no dia anterior à partida dele. Não conte isso para ela, por favor. Mas estes olhos sabem ver. E realmente ele a convidou para ir a Dorset com o irmão. Apenas os dois. Se não fosse algo sério, devo acreditar que muito provavelmente ele também teria convidado você.
— Não vejo nenhum motivo para isso.
— Ora, Fanny, você é uma boa e leal amiga e não lhe perguntarei mais nada. Mas, minha cara menina, nós duas sabemos que Louisa tenciona se casar com ele, e posso lhe assegurar, conhecendo o mundo como conheço, que acredito que ela vai ser bem-sucedida. — Deu um tapinha na bochecha de Fanny. — Que festejos nós duas poderemos depois fazer com ela, hein?
Não esperou mais nenhum comentário e afastou-se rua acima como uma nave a toda vela em um mar agitado.
Setembro chegou: os dias eram mornos, mas as primeiras folhas douradas dos carvalhos surgiram, indicando a aguda excitação da época do cio que se aproximava. Em Boldre, a escola do Sr. Gilpin recomeçou, e a cada manhã de domingo as tropas de meninas e meninos com seus casacos verdes eram vistas subindo a colina para o outeiro da igreja de Boldre.
Entre eles, estava Nathaniel Furzey. As semanas de verão que ele acabara de passar com a família em Minstead certamente nada tinham feito para diminuir seu apetite por alegres travessuras. Na escola, ele era mais ou menos ordeiro. O Sr. Gilpin lhe dera um livro de álgebra e geometria elementares para ele estudar, já que há muito dominava todas as operações que os outros alunos ainda aprendiam. Também, de certo modo contra a vontade, o vigário concordara em que um dia por semana ele podia ler um livro de história. Mas o resto do tempo ele devia se ater à leitura da Bíblia. ”Pois isso é o bastante, meu jovem”, dissera-lhe o circunspecto vigário, ”para ocupá-lo por toda a sua existência.”
Mesmo assim, o diretor da escola via nele uma provação. O menino brincava curiosos jogos com números em vez dos problemas designados; se lhe ordenavam que aprendesse um texto, ele o fazia, mas depois rearrumava as palavras para fazer rimas tolas. Mais de uma vez foi necessário castigá-lo por pregar peças — e ainda era o início do período letivo. E por causa de suas perguntas, de seu irritante hábito de exigir saber o motivo das coisas em vez de simplesmente aprender o que lhe era ensinado, o diretor teve de se reportar ao vigário: ”A mente dele é ativa demais. Precisa ser reprimida.”
Os Pride, porém, eram mais indulgentes. Se Nathaniel tentava atrair o jovem Andrew para suas traquinagens, sempre havia nelas algo de gracioso que levava à compreensão de Pride, o mercador de madeiras. ”Deixe que eles se metam em encrenca”, dizia para a esposa. ”Eu sempre me meti. Não faz mal nenhum.” E se eles se metiam em uma encrenca para serem castigados, o que eram, Andrew e Nathaniel de algum modo sabiam, apesar de nada jamais ser dito, que os adultos em casa não desaprovavam inteiramente aquelas atividades.
Mas quando certa tarde, depois da escola, Nathaniel falou a Andrew de seu novo plano, até mesmo o jovem Pride ficou apavorado.
— Não pode fazer isso — cochichou. — Não pode mesmo.
— Por que não?
— Porque... bem, é muito difícil. E, além do mais, eu não ousaria.
— Disparate — disse Nathaniel.
Setembro também parecia causar um estranho efeito em tia Adelaide. E surgiu inesperadamente, certa noite, quando ela e Fanny estavam sentadas juntas do modo costumeiro.
As sombras desciam, mas tia Adelaide decidira não acender ainda nenhuma vela e, sentada em sua bergère, estava apenas vagamente visível em meio à penumbra, enquanto o brilho laranja do lado de fora das janelas cessava lentamente. Além do leve tiquetaquear do relógio do saguão, a casa estava silenciosa e parecia que Adelaide tinha adormecido, quando ela falou repentinamente:
— Está na hora de você se casar, Fanny.
— Por quê?
— Porque eu não estarei aqui para sempre. Quero ver você casada antes de eu morrer. Já pensou em alguém?
— Não. — Fanny hesitou apenas um instante. — Creio que não. — E, não tendo nenhum desejo de continuar com aquela conversa naquela ocasião, perguntou por sua vez: — Nunca pensou em se casar, tia Adelaide?
— Talvez. — A velha senhora suspirou. — Era difícil demais. Havia a minha mãe. Eu achava que não devia deixá-la, mas ela viveu muito tempo. Quando morreu, eu tinha mais de quarenta anos. E também havia esta casa. Eu tinha que cuidar dela, como sabe. Fiz por ela e pela família.
— Pela velha Alice também?
— Claro — confirmou e, em seguida, com tal sentimento que Fanny não pôde deixar de se comover, falou: — Como eu poderia deixar de manter Albion House do jeito que eles queriam? E, seja lá com quem se casar, você fará o mesmo, não é, Fanny?
— Sim. — Quantas vezes ela fizera essa promessa? Uma centena, no mínimo. Mas sabia que iria cumpri-la.
— Não se deve desonrar a família, sabe? Quando penso — desabafou, como o fizera mil vezes antes — naquele maldito Penruddock e suas tropas imundas, e na minha pobre e inocente avó, levada a cavalo, no meio da noite, seminua daquele jeito. Na idade dela. Ladrões! Vilões! E Penruddock chamava a si mesmo de coronel, aquele plebeu patife.
Fanny concordou. Era a sua deixa para fazer a tia desviar o assunto.
— Penruddock compareceu ao julgamento, tia Adelaide?
— Claro que compareceu. — Fanny esperava que ela mergulhasse direto no relato do julgamento, como de costume, mas em vez disso ficou em silêncio por longos instantes, e Fanny estava achando que ia ficar ouvindo o tique-taque do relógio, quando Adelaide falou: — Minha avó errou. Sempre achei isso.
— Errou?
— No julgamento. — Balançou a cabeça. — Fraca ou orgulhosa demais. Tola Alice. — De repente, descarregou: — Você nunca deve desistir, menina. Nunca! Deve lutar até o fim. — Fanny mal sabia o que dizer diante disso, mas a tia prosseguiu: — No julgamento, como sabe, ela praticamente nada falou. Até mesmo chegou a dormir. Deixou que o mentiroso do Penruddock e os outros manchassem o nome dela. Deixou que aquele juiz malvado intimidasse a todos para que a condenassem...
— Talvez não houvesse nada que ela pudesse fazer.
— Não! — A tia a contradisse com surpreendente veemência. — Ela devia ter protestado. Devia ter-se levantado e falado ao juiz e à corte dele que era um escárnio. Ela devia tê-los feito ficar envergonhados.
— Eles a teriam retirado do tribunal e sentenciado da mesma forma.
— Provavelmente. Mas era melhor cair lutando. Se algum dia você enfrentar um julgamento, Fanny, prometa-me que vai lutar.
— Sim, tia Adelaide. Se bem que — acrescentou — ache improvável que eu venha a enfrentar um julgamento.
Mas sua tia pareceu não ter ouvido esta última observação. Seus olhos contemplavam fixamente a luz mortiça na janela.
— Já ouviu alguma vez seu pai falar de sir George West, Fanny? — indagou em seguida.
— Uma ou duas vezes. — Ela tentou se lembrar. — Um amigo dele de Londres, creio.
— Uma excelente família antiga. O sobrinho dele, o Sr. Arthur West, acaba de conseguir o arrendamento de Hale. Quando eu for visitar o meu velho amigo, o vigário, em Fordingbridge, que fica perto, irei falar com ele.
— Entendo. — Fanny riu consigo mesma. Evidentemente, seu estratagema para fazer a tia desviar o assunto não fora bem-sucedido. —A senhora acha que o Sr. West é um candidato?
— Trata-se, presumivelmente, de um cavalheiro. O tio lhe deixará parte de sua fortuna, que é enorme. É tudo o que sei, por enquanto.
— Quer dizer que pretende investigá-lo?
— Nós faremos isso, Fanny. Você vai me acompanhar.
Setembro também trouxe o Sr. Martell de volta à Floresta. Dessa vez, veio para ficar com sir Harry Burrard.
Fanny ouvira falar bastante sobre o Sr. Martell e sua enorme propriedade em Dorset desde a volta de Louisa.
— Oh, Fanny, afirmo que fiquei apaixonada pela casa, e você também ficaria— bradou. — Que pena que você não pôde vê-la. A localização é excelente, com grandes colinas de calcário por toda a volta; e ele é o verdadeiro senhor da aldeia, sabe?
— A casa é antiga?
— A parte de trás é muito antiga, e eu diria que é escura e solene. Eu arrisco dizer que colocaria aquilo abaixo. Mas a nova ala tem aposentos amplos, é excelente e tem uma majestosa vista para o parque.
— Parece formidável.
— E a biblioteca, Fanny. Como você teria adorado, se estivesse lá. Tem mais livros, todos ricamente encadernados, do que você jamais viu, e, sobre uma mesa, colocam todos os jornais de Londres, que são enviados especialmente para lá, a fim de que se possa acompanhar o mundo elegante. Juro que passei quase toda uma meia hora lá.
— Alegro-me pelo Sr. Martell ter achado você uma pessoa estudiosa.
— Ah, ele é muito afável em casa, Fanny, eu lhe asseguro. Nem parece um erudito. Nós nos divertimos com todos os tipos de coisas. Ele desenha... muito bem, devo acrescentar... e até mesmo pareceu apreciar os meus tímidos esforços. Ele gostou deste aqui, em particular. — Ela tinha apanhado um pequeno desenho. — Lembra-se do dia em que fomos a Buckler’s Hard?
O desenho, Fanny teve de admitir, era bom. Muito bom. Tratava-se de uma caricatura, é claro, mas captara o motivo, como pareceu aos olhos dela, com bastante perfeição. Era Puckle. Ela o desenhara como um gnomo, metade árvore, metade monstro. Ele parecia grotesco, absurdo, repugnante.
— Não acha que foi um pouco cruel? — perguntou Fanny, estremecendo.
— Fanny, não acha que vou deixar o sujeito ver isto, não é? É apenas para nós mesmas.
— Suponho que isso torne as coisas diferentes. — Mas o que você diria, pensou consigo mesma, se fizesse alguma idéia de que eu, uma Albion, possa ter parentesco com esse camponês? E de que modo então, ficou imaginando, você me desenharia?
Ela também soube através de Louisa que Martell já tinha escrito a sir Harry Burrard sobre a cadeira parlamentar.
No mesmo dia em que o Sr. Martell chegou à residência dos Burrard, Louisa veio lhe contar que ela e Edward haviam sido convidados para jantar lá. ”Pois sir Harry é nosso parente, sabe?” Isso não pareceu surpreender. E como se sabia que o Sr. Martell permaneceria uma semana ou mais, ela supôs que no devido tempo ele a visitaria. Portanto, foi com alguma consternação que ela ouviu tia Adelaide anunciar:
— Vamos para Fordingbridge na terça-feira, Fanny. Meu amigo, o vigário, nos dará abrigo nessa noite. À tardinha, seremos todos convidados para jantar com o Sr. Arthur West.
— Não podemos adiar um pouco? — perguntou Fanny. Era um domingo. E se o Sr. Martell não aparecesse até segunda-feira? Ou aparecesse na terça e, nesse caso, não a encontrasse mais?
— Adiar? Ora, não, Fanny. Já estamos sendo esperadas. Além do mais, deveremos estar de volta quarta-feira à tarde, pois você terá um compromisso nessa noite em Lymington.
— Oh? — Fanny sentiu o coração disparar. — Com os Burrard?
— Os Burrard? Não. Mas acabei de receber esta mensagem, um convite um tanto maçante sem dúvida, mas suponho que, por questão de cortesia, você vai querer ir. — E entregou o convite a Fanny.
A Sra. Grockleton ia promover um baile.
— É perfeito, não percebe, Sr. Grockleton? — Sua esposa trinava como um pássaro. — O Sr. Martell está aqui. Louisa me garantiu que o trará. Além disso, ele sabe que me prometeu e é por demais cavalheiro para faltar à palavra dada.
— Pode ser — disse o Sr. Grockleton, desanimado.
— Com Louisa e o Sr. Martell, que afinal de contas é hóspede deles, não vejo por que deixem de trazer os Burrard. Pense nisso, Sr. Grockleton. — O Sr. Grockleton fez o que pôde para pensar nos Burrard. — O Sr. Gilpin estará presente, é claro — continuou ela. — E ele certamente é um cavalheiro.
— E a Srta. Albion?
— Sim, sim, ela também. — Fanny era uma presa menos interessante, mas, é claro, pertencia a uma família impecável. Aliás, a Sra. Grockleton começava a pensar que, se podia contar com uma Albion, um Martell e os Burrard, talvez fosse capaz de laçar ainda um outro membro na elite local. Um Morant, talvez. —Teremos refrescos, jantar e a orquestra do teatro... eles ficarão encantados, com toda certeza... e tem que haver vinho, champanhe e brandy. Terá que providenciar isso, Sr. Grockleton.
— Sabe que terei que comprar.
— Claro que terá que comprar. De que outro modo conseguiria?
— Está esquecendo — falou secamente — que eu sou o único homem entre Southampton e Christchurch que precisa pagar o preço total. — Mas, se a Sra. Grockleton ouviu a observação, ignorou-a. — Além da presença do Sr. Martell, ou um outro motivo — indagou irritado —, por que fazer tudo em cima da hora? Por que quarta-feira?
A Sra. Grockleton encarou-o com genuíno assombro.
— Ora, Sr. Grockleton, claro que precisa ser quarta-feira — bradou, fazendo um instante de pausa para lhe dar tempo de deduzir por si mesmo. — Quartafeira é dia de lua cheia. - -
A manhã de terça-feira estava clara e brilhante, e tia Adelaide estava de tão bom humor que se poderia pensar que ela tivesse vinte anos a menos. ”Francis”, dissera ao irmão, ”você ficará bem com a Sra. Pride.” E, como se tratava praticamente de uma ordem, o Sr. Albion não discordou. Levando apenas um cocheiro para a condução e uma criada para cuidar das duas, ela e Fanny saíram de manhã cedinho pela trilha através da Floresta até Ringwood, pois de lá havia uma estrada boa que subia para Fordingbridge. ”Deveremos chegar lá”, anunciara tia Adelaide, ”por volta do meio-dia.” E foi com apenas um traço de reprimenda, ao chegarem ao espaço a céu aberto em direção a Wilverley Plain, que ela comentou:
— Você não parece muito contente, Fanny.
Ele não fora. Ele tinha ido, com os Burrard, jantar com os Totton — que podiam, pensou ela, tê-la convidado —, mas ele não fora a Albion House. Talvez, considerando-se a receptividade anterior dele, aquilo não fosse surpreendente; mas, depois do que se disseram ao se separarem, ela esperava pelo menos algum tipo de mensagem. Nada houvera, contudo: nenhuma carta, nenhuma palavra.
— Não, tia Adelaide — respondeu. — Estou muito contente.
Ao chegarem a Wilverley Plain, notaram alguns meninos à distância, mas não ligaram para aquilo.
O problema era o porco. Um porco adulto é uma criatura formidável. Não só é pesado, como ainda consegue se mover com espantosa velocidade. Um arreio foi necessário a fim de conduzi-lo. Depois, havia um outro problema.
— Temos que guardá-lo em algum lugar durante a noite — lembrou Nathaniel. Esse parecia um obstáculo quase insuperável, até que um membro da turma lembrou de um primo que tinha um abrigo em Burley.
Não pegaram a trilha principal, mas se mantiveram a algumas centenas de metros ao norte dela. Em um determinado ponto, a trilha passava por uma velha árvore solitária e nua.
— Aquele é o Homem Nu — disse Nathaniel, e os meninos o fitaram com ar solene. — É onde vamos fazer.
O vigário era um homem alto, magro e grisalho, que as recebeu calorosamente em seu agradável vicariato. Ele parecia encantado com a oportunidade de acompanhá-las a Hale para jantar. O novo arrendatário, assegurou a Adelaide, parecia-lhe todas as maneiras um cavalheiro e alugara o lugar por cinco anos.
— Hale teve vários proprietários e locadores nas últimas décadas — explicou —, e nenhum cuidou bem do local. Mas soube que o Sr. West pretende ajeitar a casa.
Tia Adelaide quis descansar após a viagem, e Fanny teve prazer em deixar que o vigário a levasse para dar uma volta pela cidadezinha de Fordingbridge. Os cinco rios de Sarum, que se estendiam por cerca de treze quilômetros ao norte, já tinham então todos se juntado ao caudal do Avon, e este, com as suas longas ceratofiláceas, formava um aprazível cenário ao passar sob a bela e antiga ponte de pedra. Após ter voltado, a fim de se preparar para a excursão que fariam à tardinha, Fanny conseguiu, pelo menos, demonstrar uma expressão razoavelmente alegre.
Certamente, pensou ela, enquanto a carruagem do vigário galgava lentamente o aclive de Godshill que levava à herdade de Hale, o local tinha as mais encantadoras vistas do vale do Avon. Enquanto subiam o longo acesso para a casa, Fanny podia ver que sua bonita fachada georgiana revelava sinais de descaso; mas, assim que alcançaram a entrada, ficou claro, pelos dois espertos lacaios que surgiram à porta, que o Sr. West pretendia manter-se em alto estilo. E o surgimento do cavalheiro propriamente dito tornou tudo ainda mais claro.
O Sr. Arthur West era um cavalheiro de trinta e cinco anos, cabelos louros, um tanto atarracado, cujos modos vigorosos e másculos revelavam de imediato que, se alguém tivesse uma propriedade que carecesse de um senhor, ele estava equipado de berço e de todos os modos para fazer cumprir as obrigações da criadagem. Sua herança, se não lhe permitiria estabelecer-se como um proprietário de terras na proporção que desejava, era suficiente para que olhasse nos olhos de qualquer herdeira. Ninguém o presumiria um aventureiro. Merecia a herdeira de uma excelente propriedade e pretendia consegui-la; e era exatamente essa autoconfiança que o tornava atraente para muitas mulheres desse tipo. Pelo menos tal mulher reconheceria, se Arthur West fixasse nela os seus olhos azuis, que ele sabia o que queria. E isso, como qualquer mulher mais cedo ou mais tarde descobre, é algo pelo que se deve agradecer.
Em relação a tia Adelaide, ele foi solícito e cortês, o que muito a agradou. Quanto a Fanny, tornou-se imediatamente amável de um modo disfarçado e habilidoso, a fim de que ela percebesse, igualmente, que havia uma simpatia e que, se ela assim o desejasse, ele a conquistaria. Como nunca enfrentara tal tratamento por parte de um homem, ela foi um pouco cautelosa, mas como o comportamento dele era ao mesmo tempo impecável, Fanny pôde explorar a situação em segurança e descobriu que não era desagradável.
— Meu tio me contou muitas histórias sobre o seu pai e as viagens dele, Srta. Albion — disse ele com um leve sorriso. — Ele parece ser um homem dos mais aventureiros.
— Não mais hoje em dia, eu receio, Sr. West.
— Bem. — Olhou-a de um modo amistoso. — Cada idade tem o seu momento. Talvez seja a nossa vez de sermos aventureiros.
— Não dá para ser muito aventureira, talvez, vivendo aqui.
— Não acredito, Srta. Albion. — Lançou-lhe um sorriso quase infantil. — Sempre há aventuras suficientes no campo para satisfazer pessoas boas como nós, não acredita?
— Eu adoro a Floresta — respondeu simplesmente.
— Concordo plenamente com você — retrucou.
Ele entreteve a todos prazenteiramente no grande salão. Enquanto ele conversava brevemente com o vigário, tia Adelaide aproveitou a ocasião para bater levemente no braço de Fanny e cochichar audivelmente que ela achava o anfitrião um homem bastante apto — levando Fanny a perceber perfeitamente o que ela quis dizer: como não possuía nenhuma propriedade para se distrair, o Sr. West talvez fizesse muito bem a Albion House. Ela, porém, foi poupada do constrangimento de ter de responder àquilo, pois o jantar foi anunciado e o Sr. West aproximou-se para conduzir a velha senhora, apoiada em seu braço, à sala de jantar.
O jantar foi excelente. O Sr. West entabulou uma conversa muito agradável. Contou histórias divertidas sobre Londres, fez perguntas, foi amável o bastante para parecer muito interessado nas opiniões, tanto de tia Adelaide quanto de Fanny, sobre os acontecimentos importantes do momento, ficou fascinado em saber sobre a guarnição francesa em Lymington e contente em ouvir qualquer coisa que quisessem lhe contar sobre a vida na Floresta.
Também era cativantemente franco. Pois, quando Fanny comentou que a vida deles era bastante tranqüila, seus olhos azuis lampejaram cordialmente divertidos, e ele retrucou:
— Claro que é, Srta. Albion. Mas acredito que não ache o campo pior por causa disso. Os nossos exércitos combatem e os nossos navios patrulham os mares justamente para salvaguardar essa quietude.
Ficou patente ainda que o Sr. West gostava de corridas de cavalos, caça e pesca. Ao ser servida a sobremesa, o Sr. West propôs que, em vez de os homens ficarem sentados diante de uma garrafa de vinho do Porto, todos se retirassem para a biblioteca; isso visivelmente agradou a tia Adelaide, que disse esperar ser perdoada se ela, por causa da idade, não se demorasse muito.
— Mas gostaria de ver um pouco da casa, Sr. West — solicitou —, pois, por estranho que pareça, ela sempre esteve vazia ou alugada por gente que raramente permanecia aqui, e eu nunca tinha estado aqui.
— Mas é claro — disse o gentil anfitrião levantando-se. — Se desculpar o fato de que ainda não tive tempo de fazer muita coisa pela casa, vamos explorá-la juntos. — E, pegando uma vela e ordenando aos lacaios que trouxessem mais, ele conduziu a todos pelo corredor.
Havia dois aposentos sociais menores, além da biblioteca, no primeiro piso. A decoração era a esperada em uma casa senhorial do período georgiano, mas, de algum modo, desbotada. A mobília melhor fora trazida pelo Sr. West, mas alguns dos quadros e um punhado de antigas tapeçarias tinham vindo com a casa e, evidentemente, datavam do século anterior; portanto, havia no lugar um quê da era jacobita, o que lembrava a Fanny a intimidade mais sombria de Albion House.
Depois que examinaram esses aposentos, pareceu-lhe que estava na hora de ir embora; mas a tia ainda não havia terminado.
— O que há lá em cima? — indagou.
— O patamar, uma pequena galeria e uma sala de estar — respondeu o Sr. West. — E as alcovas, claro. Mas receio que elas ainda mal tenham sido tocadas, e não estão apropriadas para ser vistas.
— Não podemos olhá-las, Sr. West? — quis saber a velha senhora. —Já que me encontro aqui, confesso que estou muito curiosa.
— Como queira. — Ele sorriu. — Se a escada...
— Eu subo escada todos os dias — rebateu —, não é mesmo, Fanny?—E subiram todos, bem devagar, a tia apoiada no braço do Sr. West, dois lacaios portando velas, e o vigário seguindo discretamente Adelaide como uma sombra, um degrau abaixo, para o caso de ela cair. Pararam um momento no patamar, depois o Sr. West foi na frente e abriu a porta de um dos quartos, que cedeu com um leve rangido.
O interior estava escuro como breu, mas, depois que os lacaios entraram com as velas, podiam-se ver formas indistintas: uma cama alta de quatro balaústres com uma velha e pesada cortina em farrapos; o débil brilho de uma cadeira de carvalho encerado, o fantasmagórico tremeluzir da chama de uma vela refletida em um espelho escurecido.
— Acredito mesmo que ninguém tocou nestes quartos durante um século — declarou o Sr. West. O quarto de dormir seguinte era igual, e, ao vê-lo, tia Adelaide anunciou que estava pronta para descer.
Estavam quase chegando ao topo da escada, quando, em um pequeno corredor, a velha senhora avistou um enorme retrato com uma pesada moldura dourada encarando-os, mas cujas feições se encontravam ocultas nas sombras. Vendo-a esquadrinhar a pintura, o Sr. West, obsequioso, fez com que um dos lacaios segurasse a vela mais perto, e, diante da luz, surgiu uma imagem surpreendente.
Tratava-se de um belo homem alto, moreno e saturnino. Fora pintado na altura de três-quartos do corpo, e suas roupas sugeriam que o retrato devia ter um século de idade. Os longos cabelos negros, caindo abaixo dos ombros, eram dele mesmo. A mão repousava sobre o punho de uma pesada espada, e ele os encarava com uma expressão fria, arrogante e de certa forma trágica, como se costumava ver naqueles que desfrutavam a amizade dos Stuart.
— Quem é esse? — perguntou Adelaide.
— Não sei — admitiu o Sr. West. — Estava aqui quando cheguei. — Aproximou-se do quadro com uma vela e investigou a base da moldura. —Tem uma etiqueta — disse ele —, mas é difícil de ler. — Examinou-a atentamente. — Ah — exclamou —, creio que consegui. O cavalheiro é... — pelejou por mais um momento — o coronel Thomas Penruddock.
— Penruddock?
— De Compton... Compton Chamberlayne. Isso significa algo para a senhora? Claro. Os antigos Penruddock de Hale, Fanny deu-se conta, devem ter sido os responsáveis. Mas quem podia imaginar que eles tivessem um retrato de seu parente ou o tivessem deixado para trás daquela maneira? Que infeliz destino havia providenciado aquele horripilante choque para elas?
O efeito sobre tia Adelaide foi terrivelmente visível. A velha senhora ficou lívida e agarrou o corrimão de carvalho, como se fosse cambalear. Deixou escapar um leve gemido e pareceu arquear, enquanto Fanny se postava rapidamente ao seu lado. Mas nunca Fanny ficara tão comovida nem tão orgulhosa da tia, a qual, sem desejar constranger o anfitrião, aprumou-se e corajosamente respondeu:
— O nome me é familiar, Sr. West. Os Penruddock foram proprietários desta casa muito tempo atrás. Agora— prosseguiu, segurando no braço de Fanny— gostaria de descer. Quero lhe agradecer, Sr. West, por uma noite das mais agradáveis.
E assim Fanny levou-a em segurança até o saguão abaixo e só então percebeu que a tia ainda estava tremendo.
Mas quando a carruagem estava sendo trazida, foi a vez da velha Adelaide de olhar aguçado encarar Fanny e perguntar baixinho:
— Você está se sentindo bem, menina? Parece pálida.
— Sim, tia Adelaide, estou bem —- respondeu com um sorriso.
Na verdade, porém, não estava, embora não desejasse revelar o motivo à tia. Pois o retrato do coronel Penruddock lhe parecera bastante familiar; tanto que ela fez de tudo para não arquejar muito alto quando ele surgiu iluminado pela luz da vela.
O porte e o rosto eram os do Sr. Martell. Sem tirar nem pôr.
Caleb Furzey partira de Oakley ao alvorecer da manhã de quarta-feira. A viagem até Ringwood era uma das que fazia mais ou menos a cada mês para ir à feira de lá. Às vezes levava leitões para vender ou carne de veado obtida de forma ilícita. Chegava no meio da manhã, levava o cavalo e a carroça para a estalagem, vagava pela feira e, cedo ou tarde, encontrava-se com um dos Furzey de Ringwood. Ao final da tarde sentava-se na estalagem, bebia e conversava com quem estivesse disposto a fazê-lo. Ao se aproximar o pôr-do-sol, ou mesmo após escurecer, seus primos ou o estalajadeiro o colocavam na carroça, e, enquanto dormia na traseira, o cavalo, que conhecia tão bem o caminho quanto ele, seguia lentamente pela trilha que passava por Burley e por Wilverley Plain e o levava para casa.
Devido ao seu feitio supersticioso e à fama ligeiramente misteriosa de que Burley sempre gozou, Caleb Furzey talvez hesitasse passar por Burley em noite de lua cheia, mas aquele dia, como anunciara orgulhoso aos vizinhos, era uma ocasião especial. Tratava-se do qüinquagésimo aniversário de um dos seus primos de Ringwood. ”E se eu não estiver presente”, afirmara para um surpreso vizinho, ”eles dizem que a festa não será completa.”
Portanto, era com grande expectativa de um aconchego familiar e de uma alegre bebedeira que ele agora atravessava a Floresta. Estava subindo em direção a Wilverley Plain, quando viu a carruagem dos Albion retornar e, ao passar por ela, cumprimentou respeitosamente os seus ocupantes.
O sol vermelho já mergulhara atrás de Beaulieu Heath naquela tardinha, quando Wyndham Martell começou a atravessá-la a cavalo. Tinha acabado de passar duas horas interessantes com o Sr. Drummond de Cadland, mas já estava na hora de voltar. Aliás, chegaria um pouco atrasado ao baile da Sra. Grockleton.
Pelo que soubera, muito pouca gente estaria presente. Enquanto Martell fitava através da Floresta a céu aberto diante de si, ele a via, naturalmente, com os olhos de um bem-nascido. E para os bem-nascidos, embora o povo da Floresta não o percebesse, o conjunto da Floresta era como uma espécie de lago. Havia as famílias Mill e Drummond no leste e várias outras ao longo da costa; no centro, os Morant e os Albion; havia famílias fundiárias ao norte da Floresta e as propriedades rurais no vale do Avon, como a Bisterne, no seu limite oriental. Mas, no tocante ao mundo social deles, as aldeias e os povoados e até mesmo a movimentada cidade de Lymington praticamente não existiam. ”Não há ninguém lá”, diziam, sem o menor senso de impropriedade. Por conseguinte, o desejo da Sra. Grockleton em atrair os membros dessa classe para a sua órbita social não era mero esnobismo, mas um instinto mais primevo; ela queria, simplesmente, existir.
Sua esperança de que os Burrard comparecessem seria frustrada. Quando ela soube que Martell ia visitar o Sr. Drummond de Cadland, enviou-lhe uma mensagem urgente através de Louisa, implorando que trouxesse consigo, se possível, aquele cavalheiro e toda a sua família — uma sugestão que ele ignorou completamente. Mas os Totton iriam, e ele prometera acompanhá-los. Além disso, Fanny Albion também estaria lá.
Por que Wyndham Martell não fora visitar Fanny?
À primeira vista, suas justificativas talvez fossem bastante razoáveis. Ele fora ali para conhecer sir Harry Burrard e desejava colocar-se à disposição do fidalgo. E de fato sir Harry o mantivera bastante ocupado, tanto em conversas com ele quanto em reuniões com outras pessoas importantes do local, como o Sr. Drummond. Era seguramente apropriado cuidar primeiro desses assuntos e decerto seria errado alimentar as esperanças de Fanny com a perspectiva de um encontro que poderia ser procrastinado. Havia, além disso, outro problema. De modo algum estava claro que ele seria bem recebido se fosse a Albion House e não desejava ser expulso de lá uma segunda vez. Não seria sem complicações, portanto, que se encontraria com Fanny.
Mas pelo menos não poderia ter enviado a ela algum tipo de mensagem durante todos aqueles dias em que se encontrava por lá? Poderia, mas não o fez.
A verdade era — e ele sabia perfeitamente disso — que a deixara esperando de propósito.
Gostava dela, certamente. Não, admitiu, gostava muito dela. Era gentil e inteligente. Bem-nascida. Descendia de uma família antiga e era uma modesta herdeira. Se ele se casasse com Fanny, talvez isso não fosse chamado de uma união brilhante, mas, por outro lado, como ouvira por acaso uma semana antes em Londres um jovem comentar invejoso: ”Com duas excelentes propriedades, esse maldito Martell pode se casar com quem quiser e, ainda assim, parecer um herói.”
Se ele garantisse uma das cadeiras parlamentares de Lymington e se casasse com a herdeira da propriedade dos Albion, não tinha dúvidas de que o pai e os amigos diriam que saíra muito bem, e ele não podia negar que essas coisas lhe eram importantes. E se talvez, secretamente, ansiasse por algo mais do que tais prazeres convencionais, supunha que a própria carreira política lhe poderia providenciar isso.
Havia também uma outra coisa que gostava nela. Era modesta e não tentara cativá-lo. Muitas mulheres em Londres tinham tentado fazê-lo; a princípio, fora lisonjeiro, mas logo se tornou um fardo. Não se importava quando algumas moças atrevidas como Louisa Totton tentavam seduzi-lo, pois, fossem quais fossem os defeitos dela, não a achava suficientemente sofisticada para iludi-lo e era divertida. Mas Fanny era um caso totalmente diferente. Fanny tinha um caráter mais simples, mais puro, além de ser mais inteligente.
E estava à sua espera. Se ele a escolhesse — e ainda não tinha certeza se o faria — ela estaria esperando para ser sua. Ele não gostava de competição. Gostava de jogar e ganhar. Mas, em questões de matrimônio, havendo competidores, sempre havia a chance de o coração da mulher ficar dividido. E o Sr. Wyndham Martell queria um coração que pertencesse a ele e somente a ele — do princípio ao fim.
Não ligava para jogos, portanto, em assuntos relacionados ao coração. A não ser, é claro, se fosse ele a dar as cartas. Todo homem sabia que, se uma mulher está esperando por ele, não faz mal fazê-la esperar um pouco mais.
Ela estaria lá naquela noite, no baile da Sra. Grockleton, esperando.
Algumas pessoas talvez pudessem achar que havia plantas em demasia. Mas fora aplicada a máxima infalível: havendo qualquer dúvida sobre o comparecimento ou a qualidade dos convidados, encha o lugar com flores. E, de acordo com o que permitia a estação de setembro, foi isso o que a Sra. Grockleton providenciara. Cada imperfeição estava mascarada por uma rosa têmpora ou um arbusto. Naquela noite, a entrada para o Salão de Reuniões de Lymington podia ser confundida com uma loja de plantas.
”Sr. Grockleton”, declarara ela, enquanto, acompanhada pelo marido e os filhos, inspecionava o cenário verdejante, ”não estou cabendo em mim.” E se uma dama corpulenta metida em um vestido de baile é capaz de dizer que não estava cabendo em si, é porque não estava mesmo. ”Temos refrescos, música, cartas. Estou certa de que fiz o melhor que pude. E os convidados são...” Rateara.
Os convidados eram o que, em termos sociais, podia ser descrito como sortidos. A essência, naturalmente, era formada pelas jovens damas de sua academia. O baile, oficialmente, era para elas. Elas davam a cobertura necessária à Sra. Grockleton. As jovens, seus pais e irmãos eram os participantes, e ela, a diretora em exercício. Se os Burrard viessem e não gostassem da companhia de alguns dos pais presentes, demonstrariam de fato grosseria se fossem descorteses com as jovens damas da escola local ou insultassem a sua diretora. Se ela não conseguisse resistir à tentativa de realizar pequenos ataques sociais além dessa posição de defesa, pelo menos podia se proteger atrás dela.
Um enorme trunfo eram os oficiais franceses. Atraentes, inegavelmente aristocráticos e, sabe Deus — apesar de não haver necessidade de se dizer isso —, felizes até demais por freqüentar qualquer lugar que oferecesse dança e comida de graça, os franceses dançariam com as filhas dos mercadores e falariam com o Sr. Martell como semelhantes. De bom grado, ela recepcionaria uma centena de regimentos naquelas condições. ”Vai mesmo parecer”, dissera ao marido, ”como se Versalhes tivesse vindo esta noite para Lymington.”
Mas, mesmo assim, a não ser que nascesse um romance entre um aristocrata francês e uma das moças, em última instância os franceses seriam peões no grande jogo de relações que ela pretendia executar.
O elegante médico da cidade podia ser apresentado ao Sr. Martell? Certamente que sim. Alguns pais mercadores das moças? Talvez não. O encontro com o qual ela sonhava era o do conhecimento abençoado. Se, digamos, os Burrard viessem, conhecessem uma outra família importante e notassem que esta já era amiga da anfitriã — ora, então, eles a aceitariam também. Desse modo, se o Sr. Martell trouxesse o Sr. Drummond, o Sr. Drummond saberia que ela conhecia os Albion. E, é claro, ela então poderia ir a Cadland e conhecer os Burrard lá...
— Isso são relações, Sr. Grockleton — explicava. — Tudo é uma questão de fazer relações. —Talvez um quarto da enorme energia mental da Sra. Grockleton fosse gasta em sonhar com conhecimentos e relações. — Venha quem vier — disse ela, referindo-se unicamente, é claro, a gente como os Drummond ou os Burrard —, verá que nós, os Totton, os Albion e o Sr. Martell somos todos amigos. Só espero que tudo corra bem.
— E correrá, meu bem — retrucou o marido. O salão principal tinha mesmo uma bela aparência. As mesas de carteado estavam todas dispostas em uma sala lateral. A comida, que fora fornecida pelo Sr. Seagull do Angel Inn, e o vinho e o brandy que o Sr. Seagull também vendera ao fiscal aduaneiro pelo preço total — sem nenhum constrangimento — estavam nos seus lugares. Dentro de meia hora, quando os convidados começariam a chegar, ele tinha certeza de que não deixariam de ficar encantados. — Assim que a música começar a tocar — falou contente — e começar a dança...
A Sra. Grockleton concordou com um gesto da cabeça. Então, a Sra. Grockleton parou. E, em seguida, a Sra. Grockleton emitiu um grito que pareceu mais um guincho.
— Oh, Sr. Grockleton, Sr. Grockleton, o que vamos fazer?
— O que está havendo, meu bem? — bradou alarmado.
— Está havendo tudo. Oh, Sr. Grockleton, eu esqueci a orquestra.
— A orquestra?
— A orquestra. Os músicos. Esqueci de contratá-los. Não temos nenhum. Oh, Sr. Grockleton, como vamos dançar sem música?
O Sr. Grockleton teve de confessar que não sabia. A esposa encarava estranhamente os filhos, como se pudesse transformá-los, como um mágico, em uma porção de rabequistas. Mas como não ocorreu nenhum milagre, voltou-se novamente para o marido.
— Um baile sem música! O que será de nós? — Então ocorreu-lhe um pensamento pior ainda: — E se os Burrard vierem? Depressa, Sr. Grockleton — gritou —, corra até o teatro e veja se os músicos estão lá.
— Mas se houver uma peça...
— Um peça tem apenas palavreado. Eles precisam vir para cá.
— Não há nenhuma peça esta noite, mamãe — berrou uma das crianças.
— Então vá atrás dos músicos. Rápido. Um piano. Sr. Grockleton, traga-me um piano. O Sr. Gilpin vai tocar. Eu sei que ele sabe tocar.
— O Sr. Gilpin talvez não queira...
— Claro que ele vai tocar. Precisa.
E, berrando ordens nervosas, a Sra. Grockleton logo colocou o marido, os filhos, os criados e até mesmo Isaac Seagull para correr em todas as direções possíveis. Vinte minutos depois havia um piano no salão, se bem que meio desafinado. Momentos depois surgiu um violinista com a sua rabeca. Ele não se barbeara naquele dia e talvez tivesse tomado uns dois tragos de bebida, mas disse estar pronto e deu indicações sobre onde podia ser encontrado um colega; e quando a primeira das alunas chegou com o pai, o mercador de carvão, a Sra. Grockleton sentiu-se aliviada, se bem que embaraçada, ao ouvir seu solitário violinista começar a executar, atrás de um vaso de plantas, um animado fandango.
A lua cheia já estava quase no alto quando a carruagem deixou Albion House.
O desejo da Sra. Grockleton de realizar o baile na noite de lua cheia era perfeitamente natural. Na zona rural, se as pessoas tivessem que percorrer vários quilômetros, ao voltar para casa tarde da noite preferiam sempre fazê-lo quando a lua fosse a mais brilhante possível, e os bailes eram marcados desse modo, em ocasiões em que houvesse a melhor possibilidade de o céu estar claro. Embora as estradas da Floresta estivessem livres de criminosos desde o caso Ambrose Hole, as pessoas ainda preferiam ser capazes de enxergar o caminho de casa.
Naquela noite, contudo, Fanny não esperava que voltassem tarde. Em primeiro lugar, ela tinha seus motivos para antecipar uma noite nada agradável. E, em segundo, havia surgido um outro motivo que a tomara completamente de surpresa.
O Sr. Albion decidira ir também.
As duas o encontraram completamente vestido naquela tarde ao chegarem em casa. Ele insistiu terminantemente que iria. Se o velho Francis adquirira subitamente um novo gosto pela vida ou se simplesmente estava zangado por ser deixado sozinho durante dois dias, era difícil saber; mas como tinha repelido todas as tentativas de dissuadi-lo e parecia inclinado a se tornar irritado, nada havia a fazer a não ser levá-lo. A Sra. Pride os acompanharia para o caso de qualquer dificuldade.
Tia Adelaide estava cansada, mas de bom humor. Embora não tivesse contado muita coisa ao irmão — exceto transmitir-lhe as gentis lembranças do Sr. West e afirmar que o novo locatário de Hale era um completo cavalheiro —, a velha senhora já tinha deixado clara a sua opinião para Fanny.
— Ele é bastante adequado — declarou. — Você não acha? — E, depois de Fanny concordar que ele parecia um homem sensível: —Você gosta dele, menina?
— Sinceramente, tia, eu não sei — respondeu. — Eu mal o conheço.
A tia ficou satisfeita em deixar aquilo como estava e não fez mais indagações. Fanny, contudo, podia perceber, pelo modo como a velha senhora ia sentada na carruagem, com um xale envolvendo-a, que tia Adelaide achava que o esforço exigido na travessia da Floresta não tinha sido em vão e que fizera algo pelo futuro da sobrinha.
Em relação aos seus verdadeiros sentimentos, porém, Fanny não sabia mais o que achar. O silêncio do Sr. Martell, saber que ele — pois tinha perguntado à Sra. Pride —, mesmo após a partida dela, não dera notícias e a sinistra semelhança com o retrato de Penruddock fora uma série de duros golpes. Não tinha certeza se desejava que a pobre tia visse o Sr. Martell, pois os olhos de Adelaide, apesar de velhos, não deixariam de perceber a terrível semelhança; e preferia poupá-la de um novo choque.
Já decidira preferir que ele não estivesse presente quando subiram num tropel ruidoso a High Street em direção ao Salão de Reuniões. Minutos depois, ao seguirem lentamente através das plantas em direção ao salão principal, parecia a Fanny que ela nada sentia.
Os Burrard não tinham ido. Mas todos os Totton estavam lá, e o conde e a esposa, além de todos os oficiais franceses. O bando de jovens damas da academia da Sra. Grockleton parecia encantador; e se, talvez, um ou dois de seus pais usassem casacos com um corte um tanto rústico ou mais pó do que o desejado, ou rissem um pouco alto demais, ou abafassem o riso com muita timidez, era preciso ser um vilão de coração insensível para prestar atenção àquilo. O Sr. Gilpin também estava presente, parecendo muito zangado. Do Sr. Martell, nem sinal.
O pai dela e tia Adelaide quiseram se sentar, e Fanny precisou reconhecer que então a Sra. Grockleton teve um comportamento admirável, colocando cadeiras para eles em um canto, trazendo pessoas adequadas, como o médico e a esposa, para conversar com os dois, e providenciando tudo quanto fosse necessário, o que a deixou livre para ir conversar com as amigas. Após cumprimentar os primos, achou que era seu dever, devido à sua posição social, dar uma volta pelos aposentos; e, assim, durante algum tempo, ficou ocupada em ser agradável às várias famílias de Lymington e ao contingente francês para poder notar qualquer outra coisa, mas, uma ou duas vezes, deu uma olhadela em volta e viu que o Sr. Martell ainda não havia chegado. Ficou bastante espantada, portanto, quando a Sra. Grockleton bateu palmas e o marido anunciou circunspecto o início da dança, ao ver o Sr. Gilpin, parecendo nem um pouco contente, sentar-se ao piano e, acompanhado por dois homens ao violino, começar a tocar.
— Um minueto — berrou a Sra. Grockleton. — Venha, Fanny. Venha, Edward, conduzam o minueto.
Fanny e Edward dançavam muito bem. O conde e a esposa postaram-se atrás, os demais oficiais franceses não demoraram a escolher seus pares, e a função transcorreu satisfatoriamente; se bem que, quando Edward cochichou para ela que o Sr. Gilpin estava ao piano porque a Sra. Grockleton se esquecera da orquestra, Fanny precisou se conter para não cair no chão de tanto rir. O minueto foi seguido por várias outras danças. O Sr. Gilpin, então, indicou que precisava ser substituído e levantou-se do piano. Mas os dois rabequistas, para não interromper a festança, atacaram com uma dança campestre por conta própria, e isso levou a maioria das pessoas de Lymington para o salão; e foi uma cena animada, embora não muito elegante, que os olhos do Sr. Martell captaram, quando ele entrou calmamente pela extremidade do salão, no exato momento em que os comes e bebes foram anunciados.
Fanny não o viu de imediato. Com a ajuda de Edward, levou para a tia uma pequena torta de fruta e uma taça de champanhe, que era tudo o que ela queria; mas o velho Francis Albion, que parecia estar divertindo-se enormemente, exigiu um prato com presunto e um pouco de clarete. E não apenas isso, pois deu à filha um olhar um tanto malicioso — o qual Fanny nunca vira em toda a sua vida — e sugeriu que ela trouxesse algumas das moças para conversar com ele. Ficou pasmada com a transformação ocorrida com o velho e, obedientemente, fez o que ele pediu.
Poucos minutos depois, conversando com um dos oficiais franceses, ela subitamente notou uma presença a seu lado e logo percebeu, com um ligeiro tremor, quem era.
— Estava à sua procura, Srta. Albion — disse o Sr. Martell, e, quase de má vontade, ela olhou para cima, em direção ao rosto dele.
O leve arfar que deixou escapar foi involuntário, como também a expressão de horror que deve ter revelado, já que a visão daquilo o fez franzir a testa. Ela, porém, não pôde evitar. Pois a seu lado estava o homem cujo retrato ela vira na noite anterior.
A coisa era estranha. Não se tratava de mera semelhança — uma similaridade de cabelos, feições saturninas ou aparência altiva e bela. Era o próprio homem. De fato, parecia-lhe, só podia supor que naquele momento, em Hale House, a moldura no corredor sombrio estivesse vazia, e o próprio coronel Penruddock tivesse saltado dela, mudado de roupas, e agora se encontrava ao seu lado, alto, moreno, bastante vivo e ameaçador. Fanny deu um passo para trás.
— Há algo errado? — Não admirava ele estar intrigado.
— Não, Sr. Martell, nada.
— Sente-se mal? — Parecia preocupado, mas ela balançou a cabeça. — Eu devia tê-la encontrado antes disto, mas sir Harry me manteve bastante ocupado.
— Não teria mesmo me encontrado, Sr. Martell, nestes dois últimos dias. Estive fora.
— Ah. — Esperou um momento.
— Em uma casa que visitei recentemente, Sr. Martell, vi o retrato de uma pessoa que tem uma espantosa semelhança com o senhor.
— É mesmo? E de quem era esse rosto desagradável, Srta. Albion? Se isso pretendia arrancar um sorriso de Fanny, ela permaneceu séria.
— Um certo coronel Thomas Penruddock, de Compton Chamberlayne. Na época de Carlos II ou um pouco depois.
— O coronel Thomas? — Sua expressão cresceu em interesse. — Diga-me, por favor, onde viu isso?
— Em Hale.
— Não fazia idéia de sua existência. Que sorte extraordinária, Srta. Albion, que o tenha descoberto. Preciso ir lá para vê-lo. — Sorriu. — O coronel Thomas Penruddock era o avô da minha mãe. Meu ancestral. Mas não temos nenhum retrato dele.
— O senhor é um Penruddock?
— Certamente. Os Martell e os Penruddock têm se casado há séculos. Eu sou muitas vezes Penruddock. — Deu um largo sorriso. — Se conseguir um de nós, Srta. Albion, terá ambos.
— Entendo. — Ela se mantinha muito calma. — Houve um problema entre os Penruddock e uma família de nome Lisle, em New Forest.
— Ouvi falar. Os Lisle de Moyles Court, creio... se bem que deva confessar nunca ter sabido dos detalhes. O outro ramo dessa família era mais respeitável, não era mesmo?
— Não saberia dizer.
— Não. Foi há muito tempo, é claro.
Fanny deu uma olhada na direção onde o pai e a tia Adelaide estavam sentados. O Sr. Albion conversava contente com duas jovens damas, mas a tia parecia ter caído no sono. Tanto melhor. Não havia sentido que eles ficassem a par de que havia um Penruddock no recinto.
— Talvez, se o seu pai estiver de melhor humor — disse ele —, eu possa ir visitá-la...
— Creio que é melhor não fazê-lo, Sr. Martell.
— Bem. Haverá um jantar amanhã nos Burrard. Tenho um bilhete comigo, de lady Burrard, convidando-a. Posso dizer a ela...?
— Receio já ter um outro compromisso, Sr. Martell. Por favor, agradeça-lhe em meu nome. Amanhã enviarei uma carta para ela. — De repente, sentiu-se exausta. -— Agora preciso ir cuidar do meu pai — disse.
— Claro. Quando a música recomeçar, vou tirá-la para dançar.
Ela sorriu de modo educado, mas indefinido, e retirou-se para o canto do outro lado, deixando Martell um pouco intrigado. Era evidente que havia sido aberta uma distância entre os dois, mas ele não estava certo do motivo. Seria por tê-la negligenciado durante a sua estada? Haveria um outro motivo? Sem dúvida, a coisa precisava ser corrigida, ele sentiu-se ansioso em fazer isso, e se não fosse a perigosa presença do velho pai dela talvez tivesse ido atrás dela ali mesmo naquele instante. Um momento depois, contudo, Louisa apareceu, e, ao declarar que estava com fome, ele não pôde deixar de acompanhá-la ao bufê. Quase meia hora se passou antes de o som dos violinos indicarem a retomada da dança, e mesmo assim ela não arredou pé.
Foi nesse ponto que alguns dos mais perspicazes convidados presentes ao salão principal começaram a notar que nem tudo corria bem no baile da Sra. Grockleton. Os dois violinistas davam duro, mas um estava ficando bastante vermelho, e o segundo, entre as danças — ou mesmo durante —, parava para beber de uma caneca de estanho com tampa que continha algo diferente de água.
Estavam tocando um pouco desafinados? Faltava uma nota aqui e ali? Seria inapropriado perguntar. O Sr. Grockleton cochichou para a esposa, sugerindo que ele devia retirar a caneca.
— Se você fizer isso — alertou ela —, talvez ele pare de tocar. — E ele a deixou onde estava.
Uma dança campestre seguia a todo o ritmo, se bem que ligeiramente cambaleante, quando o Sr. Martell, finalmente, surgiu e viu Fanny parada, sozinha. Não perdeu tempo em seguir em sua direção, mas ela não o viu se aproximar. Seus olhos estavam em outras coisas.
Tia Adelaide dormia, bem à vontade, descambada na cadeira. Mas o velho Francis Albion mantinha-se em uma condição espantosa. Ela nunca vira nada semelhante. Ele já estava na segunda taça de clarete e muito alegre por causa disso. As damas em geral, das amigas dela da academia à esposa do conde, tinham todas decidido adotá-lo. Havia pelo menos seis sentadas à sua volta e a seus pés, e a julgar pelos brilhantes olhos azuis dele e o estrondo das gargalhadas delas, o velho as estava divertindo por completo. Fanny só fazia balançar a cabeça, admirada, e supunha que, durante os longos anos de viagens do pai, antes de ela ter nascido, ele devia ter tido uma vida social muito mais movimentada do que ela imaginava.
— Talvez pudesse me dar a honra da próxima dança.
Ela virou-se. Já tinha decidido o que fazer, se aquilo acontecesse. Agora precisava colocar em prática.
— Obrigada, Sr. Martell, mas não gostaria de dançar no presente momento. Estou um pouco cansada.
— Lamento. Mas também estou contente pela oportunidade de poder falar com você. Minha estada aqui se encerrará em breve. E retornarei a Dorset.
Ela inclinou a cabeça e sorriu cortesmente. Ao mesmo tempo, olhou em volta do salão, na esperança de, sem ser indelicada com ele, poder interromper a tentativa de Martell de conversar com ela. Avistou o conde e cumprimentou-o com um gesto da cabeça; viu o Sr. Gilpin, mas ele não estava olhando na sua direção.
A interrupção, contudo, surgiu como um sopro repentino, vindo de outra direção, na figura da Sra. Grockleton.
— Ora, Sr. Martell, aí está o senhor. Mas onde está a cara Louisa?
- Acredito, Sra. Grockleton, que ela está...
— Acredita, senhor? Por favor, não me diga que a perdeu. — Teria a Sra. Grockleton tomado uma ou duas taças de champanhe? — O senhor precisa encontrá-la imediatamente. Quanto a esta mocinha — dirigiu-se a Fanny e sacudiu o indicador —, a mim me parece que temos uma interessante notícia sobre a sua visita a um certo cavalheiro em Hale. — Sorriu exultante para Fanny. — Estive conversando com sua tia, senhorita. Ela formou uma opinião muito boa sobre o Sr. West.
— Eu mal conheço o Sr. West, Sra. Grockleton.
— Devia tê-lo trazido com você — berrou a Sra. Grocleton, obviamente para o constrangimento de Fanny. — A mim me parece que o está escondendo.
Como fazer a anfitriã calar a boca Fanny não sabia, mas naquele instante o garboso conde surgiu a seu lado, convidou-a para dançar o minueto que acabara de começar, e, murmurando mentirosamente para o Sr. Martell que já havia prometido ao conde aquela dança, Fanny agradeceu pela chance de fuga.
— Quando esta dança terminar, Srta. Albion — quis saber o francês —, devo devolvê-la à Sra. Grockleton?
— O mais longe possível dela — implorou.
Por mais um quarto de hora Fanny conseguiu evitar o Sr. Martell. Viu-o dançando com Louisa, depois ela procurou refúgio na companhia do Sr. Gilpin, com quem, por mais um pouco, pôde observar em segurança a função.
Infelizmente, agora já era inegável que o baile da Sra. Grockleton não estava indo tão bem. Deveriam ter tirado a caneca do violinista, pois continha uma potente mistura de clarete com brandy, e os dedos dele escorregavam. Sons estranhos começavam a emergir. Algumas pessoas passaram a dar risadinhas. Olhando na direção da entrada, Fanny percebeu Isaac Seagull calmamente parado lá, observando divertido; e ficou imaginando que pensamentos estariam passando pela sua mente cínica. Subitamente ocorreu-lhe que a presença dele, lembrando-lhe os cruéis segredos de sua própria ascendência, não era muito diferente das notas discordantes da música.
— Algo precisa ser feito — murmurou Gilpin. — Se Grockleton não agir, eu terei que fazê-lo. — E, como para instigá-lo, o violino produziu um guincho excruciante que fez com que os dançarinos parassem de repente.
Nesse instante o vigário fez contato visual com Grockleton. Um sinal e um brusco assentir por parte de Gilpin foi o suficiente, e, de boa vontade, o fiscal aduaneiro avançou, bateu palmas, levantou uma das mãos tipo garra e anunciou:
- Damas e cavalheiros, a noite já se faz tarde. Sei disso, por causa de algumas pessoas. Portanto, o Sr. Gilpin concordou amavelmente em nos conceder um... não, sei que é muito generoso, senhor... dois minuetos finais.
O primeiro começou muito bem. Fanny fez par com um dos oficiais franceses. Louisa dançou novamente com o Sr. Martell, mas ela tentou não olhar para os dois. O Sr. Gilpin saía-se admiravelmente ao piano. Só perto do final surgiu o problema.
Os dois rabequistas decidiram que não estavam acabados. Ambos se encontravam agora naquele estado de embriaguez no qual acreditavam estar se divertindo e tomavam como indelicadeza qualquer interferência. Estavam seguros de que o Sr. Gilpin precisava de acompanhamento. Subitamente, portanto, os dançarinos perceberam o som de cordas. Mesmo isso teria passado, já que o Sr. Gilpin sustentava com firmeza a sua melodia, se os outros dois não tivessem chegado à conclusão de que o acompanhamento que faziam não era o suficiente. O vigário precisava ser conduzido. E, assim, os dançarinos tomaram conhecimento do som mais estridente produzido por cordas, um ruído com uma premência cada vez maior, mas que infelizmente não era o da mesma melodia que o vigário de Boldre tocava. De fato, parecia uma dança campestre. Os dançarinos se detiveram. O Sr. Gilpin parou e parecia furioso.
O Sr. Grockleton aproximou-se, tentou falar com os violinistas, que continuavam tocando, esticou o braço para coibir um deles e foi prontamente atingido de leve na cabeça com a rabeca. Pálido de irritação, ele agarrou um dos violinistas e passou a arrastá-lo para fora, ao passo que o outro, que ainda mantinha a sua caneca, esvaziou o seu conteúdo sobre o fiscal aduaneiro e começou a agredi-lo com o seu arco. Poderia até tê-lo machucado, se, repentinamente, com um berro, não tivesse sentido os dedos e as unhas da Sra. Grockleton se fecharem como tenazes em volta de sua orelha, ao mesmo tempo que a dama o puxava, passando por um sorridente Isaac Seagull, pelas plantas e levando-o direto para fora sob o ar da noite.
A boa gente de Lymington gargalhou e aplaudiu, e gargalhou outras vezes, até quase chorar, pois, já que toda a aparência de dignidade havia mesmo desaparecido, essa era provavelmente a coisa mais sensata a ser feita. O Sr. Gilpin, agora consideravelmente irritado, mas sem vontade de ver a noite terminar de forma deselegante, esperou pacientemente, ao piano, alguns momentos, e depois, corajosamente, continuou o minueto, o qual os dançarinos lealmente retomaram e levaram até a conclusão. Mas como os Grockleton agora tinham retornado e o salão ainda era varrido por ondas de gargalhadas, o bom vigário era suficientemente caridoso para fazer o melhor possível a fim de salvar a noite.
Ele lidou admiravelmente com a situação.
— Damas e cavalheiros. — Avançou para o centro do salão. — Nos dias da Roma antiga era costume oferecer aos generais vitoriosos um triunfo, quando eles retornavam. Triunfo semelhante, creio que concordam, é merecido pelo nossos gentis anfitrião e anfitriã. Pois eles expulsaram os bárbaros de nossos portões.
Houve batidas de pés, gritos de ”bravo!” e uma salva de palmas. Fanny, de pé em um dos lados, ouviu uma voz, que sabia ser de Martell, murmurar:
— Bem interpretado, senhor.
— E agora estou ao seu dispor para uma dança final. O que vai ser, Sra. Grockleton?
Não seria verdade afirmar que o salão ficou em silêncio. Por toda a volta, elevaram-se murmúrios abafados por mãos, pelas costas de outros ou por lenços e leques. E a Sra. Grockleton os ouviu. Sorriu do modo mais dissimulado que conseguiu.
— Que seja uma dança campestre — disse ela.
Parecia que todos iam dançar: os aristocratas franceses, os mercadores de carvão locais, o médico, os advogados. Fanny não tinha muita certeza se o Sr. Isaac Seagull também não dançaria. O Sr. Gilpin atacou o piano com a óbvia intenção de lhes dar uns bons cinco minutos de dança.
Mas Fanny não dançou. Ficou parada a um canto, contentando-se em observar, sem ser notada. Procurou por Martell, mas não o viu. Louisa dançava com um jovem francês. Fanny franziu a testa. Então, lentamente, percebeu. Ela ouvira a voz dele atrás de si, pouco antes de a dança começar. Ele devia, portanto, estar agora parado ali. Não ousava olhar para trás, pois ele podia convidá-la para dançar. E ela não desejava fazê-lo. Tinha certeza que não. Mas se ele se encontrava atrás dela, o que estava fazendo? Pretendia conversar? Como, entretanto, poderia conversar com ele, e qual seria o sentido daquilo, já que se importava tão pouco com ela e além do mais tratava-se de um Penruddock? Desejou, se ele estivesse ali atrás, que desaparecesse.
Algo estava acontecendo agora na pista de dança. Um pequeno bando de moças congregava-se, como um redemoinho, em volta de Louisa. Ela falou alguma coisa para o seu par, que deu de ombros e sorriu amavelmente. O redemoinho seguiu para o canto, em direção ao pai de Fanny. Louisa havia se desprendido. Estava indo direto para o velho senhor, dizendo-lhe algo. O Sr. Albion parecia um tanto enrubescido; tia Adelaide, que já estava acordada, também falava, mas evidentemente ele a ignorava. O pai dela levantou-se, ajudado por uma moça de cada lado; as outras guincharam e começaram a aplaudir. Deus do céu, LouisaTotton estava levando o velho senhor para a dança!
E ele dançou: todo rígido, é claro, com Louisa efetivamente mantendo-o de pé. Mas Francis Albion estava executando uma dança campestre. Os outros dançarinos afastaram-se, formaram um círculo, e todos aplaudiam, enquanto um homem muito idoso, que havia anos não saía de casa, dançava no meio deles com uma linda moça, e, se ela não o estivesse sustentando, então ambos pareceriam ainda mais distintos. Fanny ficou na ponta dos pés para assistir, o coração batendo meio temeroso e meio encantado. O pai, com quase noventa anos, dançava diante do mundo inteiro. Louisa ria prazerosa e com genuína admiração. Com um gesto que dizia ”Agora vou lhes mostrar uma coisa”, o velho libertou-se, e, sozinho, obsequiou a todos com uma pequena giga, ao mesmo tempo que o salão irrompia em aplausos; em seguida, voltou-se novamente para Louisa, subitamente com uma lividez mortal, sufocou, buscou ferozmente o colarinho e tombou de bruços no assoalho, enquanto o Sr. Gilpin, sem perceber o que se passava, continuava a. executar mais alguns compassos, até o medonho silêncio alertá-lo a parar.
— Oh, minha cara Srta. Albion.
Ela ouviu a voz do Sr. Martell atrás de si, mas não se virou para olhar, pois correu para a frente, por entre os dançarinos, até o local onde, miraculosamente, os braços fortes da Sra. Pride já levantavam o pequeno e velho cavalheiro. Sem dar uma palavra, ela o carregou em direção à entrada e ao ar fresco, aonde chegaram prontamente o Sr. Gilpin e o médico de Lymington.
Minutos depois, ainda sem saber o resultado da cena, os convidados passaram a recolher seus casacos e capas para ir embora.
E a pobre Sra. Grockleton, tendo passado por tanta coisa naquela noite, só conseguiu dirigir-se impotente ao marido e lastimar:
— Cáspite!
Tinham o porco preparado, a lua estava alta sobre a trilha, no ermo salpicado de tojos de Wilverley Plain, e a carroça que levava Caleb Furzey rolava em direção a eles.
O céu estava claro e atulhado de estrelas; a lua iluminava abaixo com aquela íntima e assustadora urgência que costumava ter quando estava cheia.
Seis meninos esperavam perto da árvore conhecida por Homem Nu. O porco, surpreendentemente, estava quieto, talvez por ter sido bem alimentado. Grunhia um pouco, mas isso era tudo.
A carroça aproximava-se. O cavalo vinha a passo lento. Os pés de Caleb Furzey podiam ser vistos apoiados na lateral. De dentro da parte traseira vazia da carroça seus roncos emergiam exagerados, como por alguma magia do luar.
Nathaniel e Andrew Pride avançaram primeiro. O velho cavalo reconheceu-os e, quando Nathaniel segurou sua cabeça, parou de bom grado.
Soltá-lo dos arreios não foi muito difícil. A tarefa de Andrew era levá-lo através da planície e amarrá-lo a um tronco mirrado atrás de um imenso matagal de tojos, a uma centena de metros dali. O passo seguinte era colocar o porco no lugar do cavalo.
O arreio improvisado que haviam preparado servia muito bem, mas as hastes da carroça eram muito altas. Dois dos garotos tentaram baixá-las, mas não conseguiram.
Mais dois fizeram peso nas hastes. Elas baixaram, mas não o suficiente. O porco não estava gostando da aparência daquilo. Nathaniel segurava-o com firmeza, mas o porco era imenso; se ele fugisse, não haveria como detê-lo. Mas, enquanto se agarrava aos arreios do porco, ouviu um ruído vindo da carroça. Os pés de Caleb se mexiam; o ronco havia cessado.
De repente, a carroça inclinou-se para diante. Ouviram o som de um encontrão. Caleb tinha rolado para a frente.
— Depressa.
Foi serviço de um instante prender os tirantes aos arreios. Nathaniel continuou segurando o porco, acalmando-o, enquanto os demais recuavam. Todos olharam apreensivos em direção à carroça, mas miraculosamente Furzey continuava dormindo.
- Já.
Saíram correndo, mas não foram muito longe. A uma centena de metros dali, Andrew já os esperava.
— Vocês sabem o que fazer — disse Nathaniel ao começar a se despir. E eles fizeram o que tinham sido mandados, indo para os seus lugares. Estava na hora de a diversão começar.
O porco, surpreendentemente, não reagiu por mais um minuto. Então resolveu se mover.
O animal era muito menor que o cavalo, embora pesado e muito forte. A carroça avançou lentamente, porém a sensação de algo não apenas o segurando, mas o seguindo, era desagradável para o porco. Ele grunhiu alto e tentou correr. Novamente, a carroça pareceu contê-lo, como se não estivesse disposta a deixar o bicho escapar de suas garras. O porco não gostou nem um pouco. Soltou um bramido de raiva, chocou-se de um lado para outro com as hastes e novamente guinchou alto.
Na parte de trás, Caleb Furzey franziu a testa em meio ao sono. Abriu os olhos, pestanejou e acordou.
A lua cheia estava bem alta sobre Wilverley Plain. Ao redor dele, uma mágica luz prateada lampejava lugubremente; perto dali, o Homem Nu elevava-se com os braços descobertos esticados, como se pretendesse alcançá-lo e golpeá-lo. Voltou a pestanejar. Que ruído estranho foi aquele que o acordou? Levantou-se e olhou para a frente. O cavalo tinha sumido. Havia uma outra coisa nos tirantes. A tal coisa emitiu um ruído esquisito, que o assustou muito, fazendo-o recuar. A carroça inclinou para trás.
O porco foi levantado do solo. Ele guinchou, berrou, patinhou furiosamente com as patas. E Caleb Furzey soltou um urro de pavor.
Seu cavalo sumira na lua cheia e um porco estava em seu lugar. Cada campônio sabia quem fazia essas coisas — as bruxas e as fadas. Ele tinha sido enfeitiçado! E estava para saltar da carroça, quando se deu conta de uma visão ainda mais aterradora. De um arbusto de tojo para outro, pequenas figuras nuas moviam-se rapidamente, soltando gritos. Estavam por todo lado. Só podiam ser fadas. Ele devia estar louco para ter saído e, entre todos os lugares, passado logo por Burley, em uma noite de lua cheia. Enquanto as figuras corriam, os guinchos do porco aumentavam a uma intensidade apavorante. A carroça jogava furiosamente para trás. Por um terrível e louco instante, Caleb viu o porco, silhuetado contra a lua. Berrou novamente de medo, cobriu o rosto e jogou-se no chão da carroça, que voltou a se inclinar para a frente.
E ali ficou o pobre Caleb Furzey, encaracolado como uma bola, agachado de pavor, durante mais de meia hora, até, após se fazer silêncio por algum tempo, ele finalmente dar uma olhadela.
A lua estava alta. O Homem Nu continuava de pé, com sua atitude ameaçadora; o porco desaparecera, e as fadas, aparentemente, tinham sumido para dentro do solo. Sob o luar prateado de Wilverley Plain, a cerca de duzentos metros de distância, o seu cavalo pastava tranqüilamente.
A quilômetro e meio de distância, Nathaniel dava as instruções finais.
— Nem uma palavra... nem mesmo para os seus irmãos e irmãs. Não esqueçam que, se alguém contar, morreremos todos. — Olhou-os solenemente. —Jurem. — Eles juraram. — Muito bem — disse ele.
Wyndham Martell não conseguia dormir. A enorme casa dos Burrard estava silenciosa; todos já tinham ido há muito tempo para a cama, mas ele continuava em seu quarto, sentado, bem acordado.
O luar inundava através da janela. Disse a si mesmo que era a lua cheia que o impedia de dormir. Talvez. Mas era também a moça.
O velho Francis Albion fora levado para casa. A princípio, o médico achou que ele tinha sofrido uma apoplexia, mas depois concluiu que não. Esperaram uma hora, deram-lhe um pouco de brandy para reanimá-lo e o carregaram para casa, com o bom Sr. Gilpin os acompanhando.
Ainda que sua presença fosse claramente indesejada, mesmo assim Martell ficou à espera e pediu que o estalajadeiro do Angel Inn lhe desse notícias antes de se retirar. Ao sair, avistou Fanny, mas ela não o viu. Parecia apaziguada, mas muito pálida. Não tinha dúvidas de que ela se sentia constrangida por causa de todo o episódio, embora, na opinião dele, não precisasse.
Mas isso o levou a uma outra pergunta. Por que Fanny mudara tão radicalmente em relação a ele? Claro, podia ter estado enganado o tempo todo, e ela nunca estivera mesmo interessada nele. Talvez fosse culpado da simples vaidade de ter suposto o contrário. Mas um homem precisava acreditar em seus instintos, e acreditara que ela gostava dele. Por que aquela frieza repentina? Ele a havia negligenciado? Aos olhos dela, sim. E, tinha de confessar, ela estava com a razão. Mas ele sentia que havia algo mais. Não se podia confiar na palavra da Sra. Grockleton em tais questões, mas sem dúvida o Sr. West existia, talvez pudesse ser considerado um candidato e, portanto, seria um fator. Eu devia ter voltado antes para cá, pensou. Não devia ter demorado tanto. Mas isso seria o bastante para explicar a frieza dela? E o que ele devia fazer?
O quê, aliás, ele queria fazer?
Não adiantava. A lua tornava o sono impossível. Calçou um par de botas, desceu silenciosamente a escada e foi para fora. A noite estava realmente bela. As estrelas sobre a Floresta eram brilhantes como o cristal. Começou a se encaminhar para Beaulieu Heath, sob a luz da lua.
A noite de setembro não era fria. Caminhou bem à vontade ao longo do limite da charneca, passou por Oakley, com os bosques à sua esquerda. Não ia a nenhum lugar em particular. Continuou assim por mais de quilômetro e meio, quando percebeu que a igreja de Boldre não devia estar distante, e, realmente, após seguir pouco tempo por uma trilha, chegou a ela, pousada amistosamente sobre seu outeiro ao luar. Circundou-a, depois notou que não podia estar longe de Albion House. Portanto, desceu a alameda até o vale e pegou a trilha que levava em direção ao norte, sob as árvores, que se encontrava bastante escura, e, ao ouvir o rio chapinhando sobre algumas pedras, penetrou no acesso ainda mais escuro, até, ao emergir na clareira, avistar os antigos frontões fantasmagóricos da casa, aparentemente desperta sob o luar. Avançou cautelosamente, mantendo-se à margem do terreno, sem querer acordar nenhum cachorro ou alertar quaisquer espíritos guardiães que pudesse haver lá em cima, como sentinelas em suas torres de vigia, nas antigas vigas ou nas chaminés do telhado. -
Que quarto seria o dela, ficou imaginando, e onde dormia o velho Francis Albion? Que histórias e segredos guardava a velha casa senhorial? A rejeição de Fanny a ele teria sido causada pela simples indiferença ou a presença de outro amor, uma parte da alma dela, talvez, escondida nessa casa?
Achou que estava sendo extravagante, mas mesmo assim não foi embora. Escolhendo um local de onde tinha uma boa visão das janelas mais prováveis, permaneceu ali, não sabia dizer por quê, por mais ou menos uma hora.
E algum tempo antes do amanhecer, quando a lua ainda projetava compridas sombras sobre o reluzente gramado, ele viu um par de persianas de madeira se abrir e uma janela subir.
Fanny estava no interior, vestida com uma camisola branca. Olhava a cena ao luar. O cabelo caía solto sobre os ombros, e o rosto, tão belo e todavia tão trágico, parecia pálido, fantasmagórico, como o de qualquer espírito. Ela não o viu. Depois de algum tempo, ela voltou a fechar as persianas.
Havia uma onda de frio no ar do entardecer de outubro, quando Puckle chegou a Beaulieu Rails; e, vindo do pardo lusco-fusco enevoado da charneca mais além, o antigo bramido de um veado-nobre anunciava que finalmente a temporada da berra começara.
Puckle estava exausto. Estivera trabalhando o dia todo em Buckler’s Hard. Depois, passara brevemente para ver um amigo na casa de fazenda que fora outrora a Granja St. Leonards. Agora, caminhando ao longo das cabanas dispersadas pela margem da charneca, enquanto a noite caía, estava pronto para cair na cama. Mal havia chegado à porta de sua pequena cabana, quando um ruído fez com que se virasse: o som de um cavalo cavalgando pela trilha em sua direção — um cavalo solitário com seu cavaleiro. Ao se voltar, o instinto lhe disse quem deveria ser.
Mesmo sob aquela tênue luz parda, não havia como confundir o rosto sem queixo e o leve e cínico sorriso de Isaac Seagull, enquanto se aproximava dele.
O homem de terra dos contrabandistas não falou até estar bem perto dele.
— Vou precisar de você em breve — anunciou baixinho. Puckle inspirou fundo.
Chegara a hora.
Não foi pouca a gozação na aldeia de Oakley quando Caleb Furzey contou que tinha sido enfeitiçado.
”Você estava bêbado na ocasião, não se esqueça”, disseram-lhe alegremente. ”Tome mais um trago”, gritaram, ”e nos conte quantas fadas você viu.” Ou: ”Cuidado com o seu cavalo. Ele pode se transformar num porco!”
Furzey, porém, manteve-se obstinado à sua história, e sua descrição do porco e dos duendes em Wilverley Plain era tão nítida que houve algumas pessoas em Oakley quase dispostas a acreditar nele. Somente Pride lançou um ligeiro e preocupado olhar para Nathaniel; mas, se tinha as suas desconfianças, evidentemente concluiu que era melhor não dizer nada. E os dias se passaram, e depois as semanas. E, além de alguns risos abafados e piadas sobre o crédulo foreiro, nada mais digno de nota aconteceu na tranqüila aldeola de New Forest, à margem da charneca de Beaulieu.
Não demorou muito para o Sr. Arthur West ir visitar Albion House. Apareceu, dirigindo ele mesmo uma vistosa sege, explicando que iria ficar um ou dois dias com os Morant, em Brockenhurst. Vestia pesado casaco e chapéu de cocheiro, sorriu amavelmente da piada e aparentava em cada centímetro o vigoroso cavalheiro desportista que era.
Foi recebido com entusiasmo por tia Adelaide, e, já que era sobrinho de um amigo, até mesmo o velho Francis sentiu-se obrigado a ser cortês com ele. Com Fanny, foi amistoso, descontraído e alegre. Não cometeu o erro de fazer qualquer convite que pudesse tirá-la da companhia do pai, mas se contentou em declarar que tinha certeza de que os dois se encontrariam novamente, em breve, em casas de vizinhos dela e que esperava ansioso por essas ocasiões.
Em tudo por tudo, Fanny pensava consigo mesma com um sorriso, ele fazia muito bem o seu jogo. Também percebeu que se sentia agradecida. Com o Sr. West, sabia-se onde se estava. Ele estava ali; era casadouro; fazia-se notar pelas jovens damas da região, e se recebesse uma sugestão de que sua atenção seria bemvinda, avançava, sensivelmente, um passo de cada vez. Eles se encontrariam em um jantar ali, um baile acolá; e, se algo surgisse disso, tanto melhor.
O Sr. West também foi o portador de uma outra pequena notícia.
— Recentemente recebi a visita de um cavalheiro conhecido seu, um amigo dos Totton: o Sr. Martell.
Para seu constrangimento, Fanny sentiu-se empalidecer e, em seguida, enrubescer. Vendo que o Sr. West a encarava surpreso, ela rapidamente explicou:
— O meu pai e o Sr. Martell tiveram uma altercação quando ele veio aqui. Se Francis Albion dera um susto em todo mundo no baile da Sra. Grockleton,
agora certamente ele parecia ter voltado ao normal — o que significava dizer que não se podia ter certeza se ele teria um ataque e cairia morto ali mesmo ou, como o médico confessara ao Sr. Gilpin: ”Ele é capaz de viver até os cem anos.” Uma coisa, pelo menos, era certa: enquanto vivesse, as coisas tinham de ser do seu jeito.
— Martell? Um jovem muito insolente — bradou, sem um pingo de constrangimento.
— Bem, de qualquer modo — disse o Sr. West —, ele estava bem ansioso para ver um dos quadros da casa: o retrato de um ancestral. E devo dizer que, quando o inspecionamos, a coisa me pareceu extraordinária. Era o sósia dele. A senhora viu o retrato — dirigiu-se a tia Adelaide. — O cavalheiro de cabelos negros que vimos no andar de cima, o coronel Penruddock.
— Esse individuozinho é um Penruddock? — bradou Francis, ao mesmo tempo que o rosto de tia Adelaide era como uma máscara.
— Lamento — disse o Sr. West, olhando de um para o outro. — Evidentemente há alguma disputa familiar da qual eu não estou ciente.
— Há, Sr. West — respondeu tia Adelaide, afável —, mas o senhor não teria como saber disso. Seja como for — prosseguiu com um sorriso cortês —, nós não nos damos com os Penruddock.
— Lembrarei disso no futuro — prometeu o Sr. West com uma mesura. Certamente esse passo em falso não causou nenhum dano ao Sr. West aos olhos
de Adelaide, e ela deixou claro, quando ele partiu, que uma nova visita seria bemvinda a qualquer momento.
— Creio que ele é um homem muito agradável — disse Fanny em resposta ao olhar interrogativo da tia; e quando Francis comentou que esperava que o homem não começasse a zumbir em volta da casa como uma mosca, ela garantiu, com um sorriso, que o Sr. West tinha muitos outros lugares aonde ir.
O Sr. West, contudo, não era o único visitante de Albion House. Sempre que tinham uma chance, ou se algum amigo como o Sr. Gilpin as incentivava, muitas pessoas cuidavam para que Fanny não fosse privada de companhia, e nem mesmo Francis Albion podia reclamar se ela saía de vez em quando para um jantar. Um dos mais encantadores desses visitantes era o conde, que algumas vezes ia com a esposa, e outras, sem.
Certa tarde Nathaniel acabara de sair da escola do Sr. Gilpin, quando foi chamado por um sujeito que descia a pé a alameda. Ele não o conhecia, embora imaginasse ser um dos Puckle, a julgar pela sua aparência. Mas quando o homem perguntou se ele queria ganhar seispence, Nathaniel foi todo ouvidos.
- Estive em Albion House, e a Srta. Albion me deu esta carta para ser entregue em Lymington. Não quis dizer não para ela, mas não estou indo para aqueles lados. Aqui estão os seispence que ela me deu, que serão seus, se quiser levá-la até lá. Ela disse que é para um francês.
— Estou vendo. — Nathaniel sabia ler e a letra de Fanny era legível. A carta estava endereçada ao conde. Seispence eram mesmo uma bela quantia. — Eu levo — disse ele. — Agora mesmo.
Uma noite escura de novembro. Sem lua. Ou melhor, um grosso cobertor de nuvens apagava inclusive a luz das estrelas, e, portanto, havia somente o vazio da textura escura como o breu sobre o mar. O leve ruído das pequenas ondas sobre a praia sem forma era a única indicação de que havia algo no vácuo mais além. O clima dos contrabandistas.
Puckle esperava. Estava parado em uma pequena elevação da costa abaixo de Beaulieu Heath. Diante dele, a terra lamacenta estendia-se centenas de metros na maré baixa, cortada por compridas enseadas conhecidas, na região, por lagos. À sua esquerda, a uns quatrocentos metros de distância, ficava o pequeno local de desembarque dos contrabandistas conhecido como Pitts Deep. A mesma distância, à direita, estava Tanners Lane e, mais além, o parque de uma bela propriedade litorânea chamada Pylewell. A terra dos Burrard ficava depois e, uns três quilômetros mais adiante, a cidade de Lymington.
Tratava-se de um local tranqüilo. O fazendeiro da casa de fazenda de Pylewell há muito era suspeito de ser um grande operador do mercado livre. Dizia-se que centenas de toneis de brandy estavam enterrados em Pitts Deep.
Na mão de Puckle havia um lampião. Era um objeto curioso, pois, em vez de uma janelinha, tinha um cano comprido. Quando ele apontava o cano para o mar, cobrindo-o com a mão, e depois retirando-a e voltando a colocá-la, Puckle podia enviar sinais luminosos de orientação, que eram invisíveis para todos, menos para os barcos dos contrabandistas na água. A maré estava subindo.
O plano, como Puckle explicara a Grockleton, era bem simples. Primeiro, quando a maré subisse, os lugres trariam a mercadoria para a praia. Eles a deixariam lá e partiriam. Os cabeças dos comerciantes livres desceriam pela Tanners Lane até a praia e retirariam o contrabando. Esse seria o momento em que Grockleton e suas tropas poderiam cair sobre eles. Tratava-se de um procedimento característico dos contrabandistas, só que, naquela ocasião, a carga era particularmente valiosa: o melhor brandy e enormes quantidades de seda e renda — uma das mais lucrativas viagens já feitas.
- Mais uma hora — observou baixinho para a alta figura a seu lado, tentando parecer calmo. Grockleton assentiu, mas nada disse.
Ele tivera muito trabalho. Mas até então tudo tinha saído de acordo com o plano. O bilhete em nome de Fanny Albion fora uma boa idéia. Usando um outro que ela havia escrito tempos atrás para a esposa dele, foi fácil falsificar uma carta. E o conteúdo nada tinha que causasse comentários, se caísse em mãos erradas: agradecimento por um livro que o conde havia emprestado a ela e lembranças da parte do pai e de Adelaide. O bilhete foi deixado com Puckle. Após deixá-lo com Nathaniel, para ser entregue ao conde, que tinha instruções de informar imediatamente a Grockleton, o contrabandista mandou avisar que um grande carregamento era esperado e que ele e Grockleton precisavam se encontrar novamente, no dia seguinte, na pedra de Rufus.
Os preparativos do contingente militar foram ainda mais cautelosos. Em primeiro lugar, Grockleton não falou a ninguém, nem mesmo à esposa ou aos seus fiscais montados, que havia algo em ação. O coronel conseguira que sessenta de seus melhores soldados fossem transferidos para Buckland. Ao anoitecer, convocou uma revista e, selecionando mais vinte fiscais a cavalo de Buckland, partiu com eles, dividiu-os em pequenos grupos e levou-os, protegidos pela escuridão, para o local de encontro, em um pequeno bosque imediatamente acima de Pitts Deep. Uma dúzia de homens já estava por lá, bem escondidos, observando a praia. As ordens eram rigorosas. Ninguém devia interferir no desembarque das mercadorias nem denunciar sua presença.
”Precisamos pegar os homens de terra com a mão na massa”, Grockleton deixara claro para o conde. O próprio papel deste seria heróico e, decerto, perigoso. No momento em que os vinte cavaleiros saíssem do bosque e se colocassem ao longo da praia para evitar a fuga, e vinte de seus soldados corressem ao longo da linha da caravana de contrabandistas, ele pretendia propor os termos de uma rendição imediata ou, se reagissem, uma devastadora salva de artilharia.
Nada havia a fazer, a não ser esperar. Ele pretendia permanecer com Puckle até os lugres chegarem à praia. Para ter certeza de que este não mudaria de idéia.
Nem mesmo os olhos aguçados de Isaac Seagull conseguiam esquadrinhar aquela escuridão. Ele supervisionava pessoalmente a ação. O carregamento era dos grandes. Atrás dele, duzentos homens e oitenta pôneis esperavam em silêncio em uma comprida e bem ordenada fila.
Cada pônei conseguia carregar um par de barris com laterais achatadas, amarrados juntos sobre o seu lombo. Esses barris eram chamados de ankers, e cada qual continha 8,3 galões imperiais (38 litros). Os homens, em sua maioria, carregavam dois meios ankers, um no peito e o outro nas costas, cada qual pesando cerca de vinte quilos — uma carga pesada, já que tinham pela frente uma caminhada de dezesseis — ou vinte e quatro — quilômetros.
O chá vinha embalado em oleados à prova d’água, conhecidos como dollops. Um pônei era capaz de carregar vários deles. Os fardos de seda também vinham embalados em oleados à prova d’água, mas para eles Seagull imaginara uma forma especial de transporte. Meia dúzia de mulheres altas e fortes estavam paradas logo atrás dele. Usavam vestidos compridos e bastante folgados. Mas, assim que a seda era trazida para a praia, os vestidos eram retirados. Ela era enrolada nos corpos delas, metro a metro, como se estivessem sendo embalsamadas, e, finalmente, quando chegavam ao máximo que podiam carregar e com uma cintura o dobro do que tinham antes, colocavam de volta os vestidos, e seguiam a cavalo ou a pé para os vários mercados compradores. Em um par de dias, duas daquelas mulheres chegariam, uma a Sarum, e outra a Winchester.
Enquanto esperava no escuro, Isaac Seagull sorria consigo mesmo.
Havia muitas rotas a escolher, depois do desembarque das mercadorias nas praias da Floresta. Para o despacho de cargas menores, a Torre de Luttrell, a leste, era útil. Como também o rio de Beaulieu. Certa ocasião achou divertido utilizar a velha fortaleza de Hurst Castle: a Aduana, poucos anos antes, havia colocado um agente por lá, mas Isaac Seagull, com o seu jeito cordial, foi procurá-lo e propôs:
— Quer que eu quebre a sua cabeça ou lhe pague?
— Pague — teria respondido prontamente o sujeito e, apesar de ter informado o ocorrido a Grockleton, desde então passou a cumprir as ordens de Seagull.
Do lado oeste da Floresta, ao longo da costa na língua de terra entre Hurst Castle e Christchurch, havia dois excelentes pontos de desembarque: os estreitos sulcos formados pela água que seguiam em direção à praia, onde uma fileira de cavalos de carga podia esperar sem ser vista. Bunnies, assim eram chamados esses pequenos desfiladeiros: Becton Bunny ficava logo abaixo de Hordle; Chewton Bunny, mais ou menos quilômetro e meio mais para oeste. Chewton era ótimo porque as praias de cada lado continham traiçoeiras areias movediças para conter o pessoal da Aduana. De Chewton, subia-se um quilômetro e meio até a Cat and Fiddle Inn, depois atravessava-se a Floresta e seguia-se subindo a trilha chamada Smuggler’s Road (Estrada dos Contrabandistas) entre Burley e Ringwood. Ali, com bastante regularidade, era instalada a primeira das várias feiras dos comerciantes livres. E da Smugglers Road atingia-se a parte setentrional da Floresta e mais além.
Mas, voltando à floresta oriental, havia também Pitts Deep. Tratava-se, igualmente, de um local vantajoso. Podia-se seguir em direção a leste, contornando Southampton; ou simplesmente passar pela igreja de Boldre e atravessar para o lado ocidental através do vau acima de Albion House, pegando a Smuggler’s Road poucos quilômetros mais adiante. Pitts Deep era bom e menos óbvio. Era por isso que naquele dia um carregamento estava seguindo para lá.
Grockleton estava tenso. Sem perceber, as mãos como garras apertavam o braço de Puckle, fazendo com que este praguejasse baixinho, enquanto o lampião sacudia.
Por mais um momento, o fiscal aduaneiro continuou sem nada enxergar, mas então ele viu: uma luz fraca piscando no meio do mar. Puckle acionou o lampião. Mais duas piscadelas azuis. Duas de Puckle. Em seguida, um longo sinal luminoso azul.
— Estão vindo — disse baixinho o contrabandista. Uma abertura parcial nas nuvens forneceu-lhes um pouco de luz. O suficiente para enxergar o limite da água e as linhas brancas das ondas marulhantes. Grockleton sentiu a pulsação aumentar. O momento de triunfo. Logo isso seria dele.
Ao seu lado, Puckle não sentia emoção alguma. Para ele, sabia, aquele era o ato final que selaria o seu destino.
— Não se preocupe — murmurou Grockleton ao seu lado, pretendendo ser gentil —, vai haver muito para você depois disso. — Mas isso não era verdade. Nada disso era verdade.
Longos momentos se passaram. Então, o som de remos, a duzentos metros de distância, as formas indefinidas de três grandes lugres remando em direção a Pitts Deep.
Grockleton tinha sumido. Depois de uma corrida, abaixou-se atrás da linha do pequeno rochedo e, satisfeito por ver que as mercadorias estavam chegando, estava ansioso por assegurar que as tropas francesas não agissem cedo demais. Tudo tinha de sair exatamente como o planejado. Os três lugres tinham abicado na praia; homens pulavam na água. Um momento depois começaram a descarregar.
Mesmo de onde se encontrava Puckle podia ver que descarregavam uma quantidade prodigiosa. Barris, caixas, fardos — não se podia ver exatamente, mas pareciam formar uma comprida linha escura de mercadorias se estendendo por mais de cinqüenta metros ao longo do litoral. Pitts Deep nunca recebera tal carregamento. Os lugres encerraram o seu trabalho. A rapidez daqueles marinheiros era espantosa. Sob a tênue luz, ele pôde ver um dos lugres afastar-se. Poucos metros depois começou a vir na direção dele. O segundo lugre também já se mexia. Puckle suspirou. Estava na hora de ele também se mexer.
Grockleton esperava pacientemente. Uma hora se passou. Puckle lhe dissera que os comerciantes livres costumavam esperar bastante tempo antes de descer até a praia, para se assegurar de que não havia perigo à vista. As mercadorias no litoral pareciam tão tentadoras que ele ansiava por ir lá embaixo e inspecioná-las; mas sabia que não devia fazê-lo. Havia o risco de denunciar a emboscada.
Os olhos de Grockleton vasculhavam a praia. Puckle tinha recebido ordens para permanecer em seu posto, pois era isso o que fazia normalmente. Ainda havia um risco. Ele podia fazer um sinal alertando os contrabandistas para não se aproximarem. Mas, se o fizesse, mandaria prendê-lo e fazer todo o peso da lei recair sobre ele. Grockleton sorriu impiedoso para si mesmo; nem essa seria a pior conseqüência. Ele poderia se apropriar da carga toda sem o risco de uma luta.
Outra hora se passou. Esticou-se, para tentar ouvir algum som. Finalmente não conseguiu mais agüentar. Movendo-se cautelosamente, recurvado, quase prendendo a respiração, para o caso desse ruído alertar alguém, moveu-se furtivamente até o posto de Puckle. Isso lhe custou dez minutos. Subiu até o pequeno outeiro.
Estava deserto. Esquadrinhou em volta. Talvez o sujeito tivesse deixado o posto para satisfazer uma necessidade fisiológica. Ou, possivelmente, os comerciantes livres estivessem por perto e mandaram que ele descesse. Esquadrinhou em volta, no meio da escuridão. Nenhum movimento. Esperou cinco minutos. Se os contrabandistas estivessem por ali, certamente já teriam aparecido.
Grockleton era um homem paciente. Esperou mais meia hora. O silêncio era total. Puckle devia tê-los alertado. Levantou-se e começou a andar rapidamente. Ao fazer isso, seu pé bateu em algo, provocando um pequeno e pronunciado ruído de colisão, que, pareceu-lhe, teria despertado os mortos. Era um lampião pontudo. Olhou em volta e deu de ombros. Não havia ninguém ali para ouvir.
Caminhou de volta até onde as tropas se encontravam à espera e pediu um lampião. Mantendo-o no alto, desceu em direção ao contrabando. Havia uma quantidade enorme: uma fortuna a seus pés.
Curioso, curvou-se até um dos barris de brandy, para verificar o quanto eram pesados. Deu-lhe um empurrão. O barril rolou. Franziu a testa e tentou levantar o que estava ao lado. O barril cedeu facilmente, ao ser elevado. Estava vazio. Chutou o seguinte a ele. Vazio também. Correu para um dos fardos de chá e desembrulhou o oleado. Palha. Passou a correr pela fila. Chutando ankers, dollofs e. caixas. Vazios, todos vazios.
Então, no meio da noite sobre o litoral da Floresta, Grockleton virou-se para onde a escuridão cobria o abismo e emitiu um urro.
Isaac Seagull observava a longa cavalgada seguir o seu caminho para a Smuggler’s Road. Havia uma profusão de trilhas, desfiladeiros e sulcos para desnortear qualquer fiscal montado da Aduana ou soldado de cavalaria que tentasse encontrar as caravanas dos comerciantes livres em sua viagem para o norte; mas naquela noite não havia cavaleiros à procura de contrabandistas. O contingente da Aduana estava a uma distância segura, do lado oriental da Floresta, para onde habilmente ele os havia despistado.
O desembarque em Chewton Bunny naquela noite fora o mais espetacular momento de sua longa carreira: uma carga prodigiosa. Lamentava pelo fato de ter forçado Puckle a agir como engodo. A angústia do sujeitinho foi de dar pena.
— Quer dizer que terei que ir embora da Floresta?
— Sim.
— E quando poderei voltar?
— Quando eu lhe disser.
A história que inventaram sobre a briga dos dois e o pequeno número de teatro na rua enganaram completamente o fiscal aduaneiro. Puckle já estava agora no mar em segurança. Partira em um dos lugres. Fora bem pago. Regiamente. Não que o dinheiro significasse muito para ele, já que teria de se exilar daquela maneira. Mas uma vez que Seagull soubera que Grockleton pretendia usar a guarnição francesa, ele tivera de fazer algo drástico.
Quando o Sr. Samuel Grockleton desceu a High Street de Lymington, naquela tarde, todos o cumprimentaram muito educadamente. Estavam todos em seus lugares de sempre, exceto Isaac Seagull, que parecia ter-se ausentado.
De um modo estranho, os habitantes de Lymington estavam começando a gostar do Sr. Grockleton. Ele absorvia suas humilhações como homem. Ao descer a rua em direção à casa da Aduana perto do cais, respondia a cada cumprimento e, se não estava exatamente sorrindo, ninguém podia censurá-lo por isso.
Perto do final da rua, ele avistou o conde, que subia, e, dando-lhe um melancólico sorriso, segurou o seu braço com afeto verdadeiro.
— Da próxima vez, mon ami, talvez tenhamos uma melhor sorte.
— Talvez.
- Estarei sempre a seu serviço.
Grockleton anuiu e foi em frente. Já pedira que fosse expedido um mandado de prisão para Puckle. Isso, juntamente com uma descrição completa dele, seria enviado para cada magistrado da região. Podia levar tempo, mas cedo ou tarde Puckle pagaria por aquilo. Enquanto isso, se voltasse a ter uma chance, usaria as tropas francesas para abater cada um dos malditos contrabandistas da Floresta.
Somente um aspecto da questão não lhe ocorrera: ao se propor a usar as tropas francesas, as informações obtidas pelos homens da terra sempre seriam melhores do que as dele.
Como acompanhante, no encontro no muro franzido, naquela noite de primavera, o conde tinha levado o Sr. Isaac Seagull.
O conde sentia um afeto verdadeiro pelo Sr. Grockleton e sua ridícula esposa. Mas não era burro.
Francis Albion sabia, às vezes, que estava se comportando mal e também, ocasionalmente, sentia um pingo de culpa. Mas quando uma pessoa se aproxima do final da vida, não é incomum ela achar justo o fato de seu egoísmo merecer um pouco mais de indulgência. Portanto, se sentia alguma culpa, conseguia suprimi-la.
Em meados de dezembro, apesar de não sair muito, Fanny já tinha encontrado o ubíquo Sr. West em mais três ocasiões. Ela também parecia perturbada e triste. Francis perguntava-se se ela estaria apaixonada pelo cavalheiro. Se Fanny tivesse que se casar, ele supunha que o tal sujeito West não seria uma má escolha. Poderia desistir do aluguel de Hale e ir morar em Albion House. Afinal de contas, desse modo, ele aprenderia a cuidar da propriedade e Fanny não seria levada embora. Portanto, tocou no assunto com ela, em uma manhã de inverno, quando Fanny foi se sentar ao seu lado, enquanto ele descansava no quarto.
— Sente alguma coisa pelo Sr. West, Fanny? — indagou timidamente.
— Eu gosto dele, papai.
— Nada mais?
— Não — respondeu, sacudindo a cabeça, e Francis percebeu que falava sério. — Por quê, papai? Quer que eu me case com ele?
— Ah, não. Não há necessidade.
— Eu sei que tia Adelaide acha que há. E, se eu fosse forçada a isso, não tenho dúvidas de que ele seria um marido agradável. Mas... — Abriu os braços.
— Não, não, minha menina — falou ternamente. — Você precisa consultar o seu coração. — Fez uma pausa. — Não há mais ninguém? Você parece um pouco triste.
- Não há mais ninguém. É apenas o clima.
— Alegro-me em ouvir isso. — Fitou-a atentamente. —Você tem toda uma vida à sua frente, minha menina, e uma herança. Isso parece bastante satisfatório. Não sinto o menor receio de que você permaneça solteira. Mas — sorriu satisfeito — não é necessária a mínima pressa.
— Não deseja me ver casada, papai?
O velho Francis parou um momento antes de responder cautelosamente:
— Não receio por você, Fanny. Confio no seu discernimento. E não gostaria de vê-la casada só para me agradar. Quanto ao resto — deu-lhe o mais doce dos sorrisos —, gostaria de ter você aqui comigo pelo que, você sabe, não será muito tempo. Arrisco dizer que sua tia sobreviverá a mim, mas, se algo acontecer a ela, sabe, eu ficaria muito sozinho. — Fez uma cara bastante triste.
— Você nunca ficará sozinho, papai.
— Promete-me, Fanny, que não irá embora e me deixará sozinho?
— Nunca, papai — prometeu, subitamente comovida. — Eu jamais deixarei o senhor.
Fanny nunca se apaixonara e, portanto, não conhecia essa dor. Havia, além disso, um problema adicional: ela não fazia a mínima idéia de que estava apaixonada.
Se o Sr. Martell surgia em sua mente, como era habitual, tratava-se apenas de uma figura que lhe causava medo e repulsa. Se, de repente, imaginava ter visto sua imagem morena através da vidraça ou, ouvindo cascos de cavalo, virava-se, meio que esperando que fosse ele, ou ficava escutando atentamente sempre que a prima Louisa contava as visitas que fazia aos Burrard, para o caso de ela falar dele, esses eram apenas exemplos, dizia a si mesma, de uma espécie de interesse mórbido, da mesma maneira que alguém é capaz de pensar em uma figura fantasmagórica e ameaçadora de um romance gótico. E pensar que ela quase chegara a se tornar íntima não apenas de um Penruddock, mas da própria imagem do assassino da sua bisavó — pois era isso o que ele realmente era. O que poderia esperar de seus próprios sentimentos, e do sorriso, das insinuações e até da ternura dele? Não sabia; disse a si mesma que não lhe importava. Aquilo tudo era mesmo inútil e sem sentido. Mas, junto com essas reflexões, vinha um outro novo e insidioso pensamento.
Poderia a sua apreciação ser defeituosa? Sangue ruim. Ela tinha sangue ruim, baixo parentesco: ela era maculada. Sua nobreza, sua pretensão a deferências, de certo modo, eram uma fraude. Pelo menos camponeses como Puckle eram honestamente o que eram, ao passo que eu careço até mesmo de uma desculpa para a minha existência, pensava ela. Ainda que o Sr. Martell não fosse um insuportável Penruddock, ele certamente não desejaria me tocar, se soubesse a verdade.
Embora apenas ciente do processo, ela chegou ao Natal com cada vez menos energia. Às vezes ficava sentada a manhã inteira na sala de estar, aparentemente lendo um livro, mas, na verdade, nem mesmo fazendo isso. Se um visitante como o Sr. Gilpin aparecesse, ela conseguia recuperar a vivacidade e parecia ter voltado ao estado normal. No instante em que ele saía, contudo, ela voltava à letargia e ficava olhando pela janela. Se Gilpin a convidasse para um chá, ela concordava em ir; ela pretendia ir; mas, por algum motivo que desconhecia, continuava sentada, incapaz de se mover, até que a Sra. Pride, de pé ao seu lado, segurando o seu casaco, induzisse um daqueles pequenos jorros de energia, levando-a a cumprir o compromisso.
Ela atravessava os seus dias. Fazia tudo o que lhe era exigido. Alguém que não a conhecesse podia admitir que era o clima que a deixava apática. Ninguém podia saber, pois ela não o revelava, que hora após hora sentia não apenas tristeza, mas ainda uma grande e sombria sensação de que tudo era sem sentido.
Pela metade de janeiro, a Sra. Pride e o Sr. Gilpin já estavam seriamente preocupados com ela.
Fanny Albion não era a única coisa a inquietar a mente do vigário naquele mês. Uma preocupação não menor referia-se a uma outra vida ainda mais jovem.
Nathaniel Furzey fora descoberto.
Era inevitável que mais cedo ou mais tarde alguém desse com a língua nos dentes. Por volta da época do Natal, um dos meninos contara à irmã; um outro, à mãe. Em uma semana, já corria por toda a Floresta. Algumas pessoas riram, outras ficaram escandalizadas. Com exceção dos Pride, que ficaram constrangidos, os pais dos demais garotos envolvidos ficaram revoltados. Induzir os filhos a sair furtivamente de suas casas à noite; a correr nus por aí; a brincar com bruxaria. Foram procurar o vigário.
O diretor também foi.
— Isso não pode continuar — disse com franqueza a Gilpin. — O menino é uma péssima influência. Não creio que eu possa continuar, se ele permanecer. Talvez — acrescentou com uma perversidade que vinha acumulando há meses — o senhor tenha ensinado coisas demais a ele.
Era inútil argumentar contra tanta oposição, e Gilpin era por demais sensato para fazê-lo. Nathaniel foi mandado para a casa dos pais em Minstead. Sua carreira na escola de Gilpin se encerrara.
Mas o que fazer a seguir? Era normal que os meninos da escola, aos onze ou doze anos, ou voltassem para casa para trabalhar com os pais, ou se tornassem aprendizes de algum lojista ou artesão. Ao pensar no garoto, porém, Gilpin achava difícil vê-lo adaptado à vida monótona de um artesão qualquer. Podia até prever um lojista atormentado pelas peças que ele pregava e, sem dúvida, expulsar Nathaniel muito antes de haver completado o seu aprendizado. Podia imaginar o menino vagando por Southampton à procura de trabalho, sendo apanhado por algum pelotão de recrutamento da marinha e jogado a bordo de um navio. Naqueles dias, os pelotões de recrutamento estavam agindo com todo o ímpeto. E depois? A marinha era a maior glória da Inglaterra, sua defensiva parede de carvalho. Mas como era a vida desses homens seqüestrados pelos pelotões de recrutamento que trabalhavam nos nobres navios? ”Rum, sodomia e chicote”, resumiu-lhe certa vez um velho marujo. Ele esperava que não fosse tão ruim assim. Entretanto, fosse qual fosse a verdade, não era o que ele queria para Nathaniel Furzey.
Por causa do ativo intelecto e da capacidade de iniciativa do menino, Gilpin achava que podia prever dois possíveis destinos. Um, que recebesse a educação apropriada, talvez cursasse a Oxford como bolsista pobre e, bem provavelmente, acabasse na Igreja. O outro seria permanecer na Floresta, imaginou Gilpin, e tornar-se um contrabandista de primeira linha, e, nesse caso, melhor seria entregá-lo imediatamente como aprendiz de Isaac Seagull. Afinal de contas, já que alguém teria de controlar o contrabando, que fosse uma pessoa inteligente. A ironia dessas suas opções não passou despercebida ao vigário: quando ele comentou o caso com o Sr. Drummond e «Harry Burrard, cada qual dos dignos fidalgos pareceu ver com interesse ambas as alternativas.
A solução, finalmente, veio de alguém praticamente inesperado. O Sr. Totton, o mercador. Ele participara de um jantar com os Burrard e ouvira falar no caso.
— Com tantas crianças para serem educadas — disse a Gilpin, com o seu jeito afável —, eu gostaria de ajudar esse menino, já que o senhor o recomenda. Mas ele parece um pouco insubordinado.
— Ele é entediado, creio eu. Mas o senhor precisa correr o risco.
— Isso — disse Totton contente — é o que fazem os mercadores. Diga-me, a que escola devemos enviá-lo?
— Há uma escola de primeira linha em Winchester — sugeriu Gilpin.
E, como uma boa ação sempre gera outra, poucos dias depois de o jovem Nathaniel ser despachado para Winchester, o Sr. Gilpin resolveu fazer algo em definitivo por Fanny Albion.
- Bath! — bradou a Sra. Grockleton. — Bath! E com Fanny Albion a nosso encargo. Seremos como os pais dela, Sr. Grockleton... in locoparentis. — Pronunciou a frase em latim como se fosse um segredo de Estado. — Imagine. Além do mais — acrescentou sem muito tato —, o senhor nada tem a fazer aqui.
— E os Albion concordam com isso?
— Bem, o velho Sr. Albion, pode estar certo, é contra, como é contra a maioria das coisas. E Fanny está relutante em deixá-lo. Mas o Sr. Gilpin a convenceu a pensar, e, pelo que sei, a Sra. Pride, a governanta, que na verdade é como uma velha babá para ela, também ajudou. E depois o Sr. Gilpin persuadiu a velha Srta. Adelaide. Portanto, penso que a questão está decidida.
— Mesmo com Sr. Albion contra?
— Ora, meu bem, são as mulheres que tomam as decisões naquela casa, não sabe disso?
— Ah — exclamou o Sr. Grockleton. — Então suponho — continuou, após uma pausa, enquanto refletia que aquela era a melhor chance que ele teria de se afastar de Lymington por uns tempos — que é melhor nós irmos a Bath.
— Obrigada, Sr. Grockleton. — A esposa estava exultante. — Eu disse a eles que o senhor sempre vê as coisas ao meu modo.
Partiram duas semanas depois.
— Oh, Fanny, estamos nas alturas — exclamou a Sra. Grockleton ao chegarem —, que é o lugar mais requintado para se estar — acrescentou, para o caso de Fanny não ter entendido. Ficariam seis semanas. Após tal período, era elegante se entediar com Bath, embora houvesse aqueles que, por motivos de saúde ou propensão, vivessem lá o ano todo.
A casa que a Sra. Grockleton conseguira era certamente excelente. Como a maioria das casas de Bath, era formada em parte por um belo terraço georgiano e construída de pedra cor creme.
As casas elevavam-se, nas colinas íngremes, enfileiradas e em seqüência, com elegantes terraços e arcos crescentes, destacando-se no céu acima, e tendo abaixo os vales da cidade, através dos quais o rio da região serpeava por entre rochedos escarpados. Se Deus tivesse perguntado à Sra. Grockleton como ela achava que Ele devia criar o céu, provavelmente Lhe diria: ”Faça-o igual a Bath.” Ela, entretanto, acrescentaria, levando em conta os seus próprios planos: ”Coloque-o à beira-mar.”
Fanny, embora não o dissesse, não gostou tanto assim. A casa, apesar de bem proporcionada, não tinha jardim. Poucas casas em Bath o tinham. E, a não ser por um ou dois parques, que se resumiam praticamente a gramados e canteiros, parecia não haver árvores. Mas quando, delicadamente, observou isso à Sra. Grockleton, a dama, habilmente, contestou-a de imediato.
- Árvores, Fanny? Você não está levando em conta que, num lugar como Bath, todas aquelas folhas só causariam sujeira. E, além do mais — ajuntou, falando a perfeita verdade —, há bosques em profusão nas montanhas em volta, onde, atrevo-me a afirmar, elas parecem assaz elegantes.
A casa era de bom tamanho. Os Grockleton haviam trazido os filhos, mas havia um quarto de crianças para eles no andar superior. Os aposentos sociais principais ficavam no nível acima da rua e tinham vistas esplêndidas da cidade abaixo. Fanny gostava de se sentar por lá e olhá-la daquela perspectiva. Até mesmo tentou desenhá-la. Mas raramente havia tempo para alguém ficar sentado, quando a Sra. Grockleton era a encarregada.
Ela certamente fez com que Fanny mudasse de ares. Desciam até ao Pump Room, onde, perto dos antigos banhos romanos, tomavam-se águas medicinais. No imenso pátio, com uma antiga igreja de abadia gótica fazendo um contraste encantador, homens de casacos azuis com botões dourados aguardavam para transportar as pessoas em liteiras. A Sra. Grockleton insistiu para que, na primeira ocasião, ela e Fanny as utilizassem.
No dia seguinte compareceram a um concerto no Salão de Reuniões. Era espaçoso e muito bonito. Souberam que duas noites depois haveria um baile com entrada paga, ao qual a Sra. Grockleton insistiu que deveriam comparecer.
O dia seguinte foi ocupado quase todo com compras — o que não quer dizer que tenham comprado alguma coisa, mas inspecionaram as lojas elegantes e observaram as pessoas que as freqüentavam.
— Pois é Bath que dá o tom — explicava prestativa a Sra. Grockleton. — Bath é o berço da sociedade educada. Bath é — encantou-se com a idéia repentina — como a nossa academia. Mesmo as moças mais encantadoras, as bem-nascidas que viveram a vida toda no campo, podem se beneficiar de uma visita a Bath.
O baile revelou-se uma ligeira decepção. Se o mundo refinado se encontrava em Bath, ele não havia descido naquela noite para o Salão de Reuniões. Em vez disso, havia uma grande quantidade de viúvas do balneário, inválidos, oficiais mal pagos e ávidos artesãos, que dançaram alegremente a noite toda e com um certo ruído decoroso. Eles encontraram a família de um mercador de Bristol, cujos dois filhos tiraram Fanny para dançar. O mesmo fez um bem agradável major do exército, cujo colarinho do casaco tinha uma aparência ligeiramente sebosa e cujo pano, antes disso, já começara a puir.
— Não precisa ter medo de mim — observou cordialmente para ela. — Estou aqui para conseguir uma viúva rica.
O major, aliás, revelou-se um homem bastante divertido, que lhe contou muita coisa útil sobre a cidade.
- Para pessoas como você, da parte mais alta, há salões de melhor qualidade para freqüentar à noite. Aqui há boa companhia. Mas a classe mais elevada, a elite, não costuma vir ao Salão de Reuniões. A não ser que haja algo que valha a pena ver. Ela promove festas particulares. É a essas festas que você pertence.
De seu modo diferente, a Sra. Grockleton chegou a uma conclusão semelhante.
— Receio — comentou com o marido quando ficaram sozinhos naquela noite — que aquele salão estava repleto de gente como nós.
— Não gosta de se encontrar com gente como nós? — indagou o marido timidamente.
— Se quiséssemos encontrar gente como nós — ponderou sensatamente a Sra. Grockleton —, podíamos poupar o nosso dinheiro e ficar em casa.
Os dias que se sucederam, porém, foram bem agradáveis. Quando estava quente o suficiente pela manhã, levavam as crianças para olhar as vistas, ou caminhar em volta do rio e observar os esplêndidos contrafortes arborizados de Beechen Cliff. Em outro dia saíram da cidade para se maravilhar com o esplendor de Prior Park, de onde a maior parte da pedra para os edifícios da cidade fora transportada por trilhos de ferrovia especialmente construídos, os quais, por se encontrarem em uma longa inclinação, funcionavam através da força da gravidade. A Sra. Grockleton ficou enlevada com aquilo.
A Sra. Grockleton era meticulosa. Logo Fanny percebeu que conhecia a cidade tão bem quanto a maioria dos visitantes: a encantadora Queen Square, o Circo, a elegante ponte Pulteney projetada por Adams, Salões de Reuniões de melhor e pior qualidade, e o Royal Crescent, onde se podia caminhar aos domingos para ser visto. Não existia nenhuma temporada social específica em Bath, pois as pessoas iam para lá o ano inteiro, e sempre havia algum tipo de temporada. No geral, o lugar era bastante agradável, apesar de eles não conhecerem muitas pessoas. Ao final da primeira semana, choveu quase sem parar durante três dias, e Fanny talvez tivesse se sentido um pouco deprimida se não tivesse recebido uma carta adorável de Louisa, contando que ela e o irmão estavam planejando fazer uma breve visita a Bath para desfrutar da companhia deles.
Corria a metade da segunda semana quando ocorreu um pequeno e estranho incidente. Após ter passado uma ou duas horas brincando apaticamente com os filhos dos Grockleton dentro de casa, Fanny desceu sozinha até o centro da cidade. Havia lojas nas ruas em galerias vendendo todo o tipo de luxo, mas sua atenção tinha sido atraída especialmente para uma vitrine em que se expunha uma excelente porcelana de Worcester. O conjunto, decorado com reproduções de paisagens inglesas no estilo clássico, parecia tão de acordo com aquele balneário anglo-romano, que ela decidira voltar lá e observá-lo com atenção quando tivesse algum tempo. E, durante quase meia hora, a apatia que sentia desapareceu quase por completo ao inspecionar uma cena após outra. Afinal, entretanto, saiu de lá e começou a caminhar colina acima.
Tinha percorrido apenas um curto trajeto e chegado a um cruzamento, quando, uns duzentos metros adiante, mais abaixo, na rua à sua direita, ela viu o Sr. Martell. Ele estava desembarcando de uma carruagem. Virou-se, com as costas para ela, e ajudou a descer uma jovem dama elegantemente vestida. Um instante depois entraram juntos em uma enorme casa.
O Sr. Martell. Seu coração falhou uma batida. Com uma dama. Por que não com uma dama? Era mesmo o Sr. Martell? Não tinha de fato visto o rosto dele. Um homem alto, saturnino, cabelos negros. A carruagem, puxada por quatro belos cavalos belamente criados, certamente pertencia a alguém rico e aristocrata. O jeito de andar, a aparência do todo eram extremamente semelhantes aos do Sr. Martell, e ela concluiu que devia ser ele. Mas então refletiu: o Sr. Martell tinha um sósia em um velho retrato; devia haver outros visitantes de Bath que se parecessem com ele.f
Era o Sr. Martell? Sentiu a pulsação se apressar abruptamente. Ela queria tanto saber. Hesitou. O que faria se o encontrasse? Conversariam? Ela falaria com ele? O que ela poderia dizer ao Sr. Martell e a uma bela jovem dama? Se fosse permanecer em Bath, os dois poderiam se encontrar, ou ele ficaria além do horizonte da cidade, mudando-se de uma casa particular para outra, longe de seus olhos?
Visto que ele vive em um mundo muito distante do meu, onde certamente não mais deseja minha companhia; visto que o seu coração, provavelmente, já deve ter uma dona; e visto que, além do mais, ele é um Penruddock, com quem não posso e não desejo ter algo a ver, pensou ela, essas especulações não fazem sentido. A única coisa a fazer é seguir em frente.
Mas não seguiu. Olhando em volta à procura de uma desculpa, encontrou uma vista para admirar e demorou-se por ali vários minutos, para o caso de ele sair. Afinal de contas, talvez ele só tivesse levado a moça em casa. Mas ninguém saiu. A carruagem permanecia onde estava. Após mais um momento começou a andar pela calçada em direção a ela. Estava apenas curiosa, disse a si mesma, apenas isso.
Seu coração, porém, batia mais apressado. E se ele aparecesse agora e topasse com ela? Seria cortês, mas fria com ele. Com certeza o repeliria. Se ainda subsistisse alguma dúvida em sua mente sobre a postura diante dele, seria capaz de suprimi-la. Fortalecida por essa intenção, caminhou fortuitamente em direção às enormes rodas da carruagem.
A porta da casa encontrava-se fechada. O cocheiro estava sentado tranqüilamente, mas atento, em seu posto. Vestia elegante capa e casaco marrom-chocolate. Olhou para cima, em direção a ele, e sorriu.
— Uma bela carruagem esta — disse ela, simpática. — Ele tocou com a mão no chapéu e agradeceu gentilmente. — E a quem ela pertence?
— Ao Sr. Markham, milady — respondeu cortesmente.
— Disse Markham ou Martell?
— Markham, milady. Não conheço nenhum Sr. Martell. O Sr. Markham acabou de entrar na casa.
— Ah. Sei. — Forçou outro sorriso e foi embora. Tinha se passado por tola? Achou que não. Estava aliviada? Achava que talvez. Então por que, ao virar na esquina seguinte, a energia que sentira naqueles últimos minutos pareceu escoar de dentro dela? Os pés, subitamente, pareceram pesados. Mal percebendo o que fazia, sua cabeça pendeu para baixo e os ombros pareceram murchar. Adiante dela, acima da íngreme colina de pedra, o céu, inadvertidamente, tornava-se um cinza mais insípido.
Ao retornar, subiu para se sentar na sala de estar, perto da janela com um livro, e, quando a Sra. Grockleton sugeriu um passeio, ela desculpou-se alegando estar com dor de cabeça. E ali permaneceu durante algumas horas, sem nada fazer, sem nada desejar. À noite, dormiu muito mal.
A curiosidade de Fanny sobre o paradeiro do Sr. Martell foi satisfeita no início da semana seguinte por uma carta de Louisa.
Informava que o Sr. Martell estava sendo esperado, dali a alguns dias, na casa dos Burrard, e por isso ela e Edward tinham decidido não ir vê-la em Bath.
Aliás, Fanny, estou segura de que você ficará contente em saber que depois o Sr. Martell irá a Londres e propôs que Edward e eu viajássemos com ele. Por mais excelentes que sejam as delícias de Bath, estou certa de que não se comparam com as de Londres; portanto, receio não podermos encontrar você e a Sra. Grockleton aí.
Era tudo. Louisa esquecera de perguntar pela saúde dela e sequer parecia lamentar por não poderem estar juntas. Havia algo mais também na carta. A princípio, Fanny não percebeu direito o que era, mas aos poucos, ao fazer uma avaliação, notou a intenção com toda a nitidez. Um sinal de triunfo: a prima lhe dizia claramente que se saíra melhor. Uma frieza: por trás da breve e descartável desculpa por não poder vê-la, Louisa na verdade dizia que tinha coisas mais interessantes a fazer e não se importava se Fanny percebesse.
Fanny, portanto, pensou com tristeza: minha prima e amiga íntima não me ama. Além do pai e de tia Adelaide, alguém a amava? O Sr. Gilpin, talvez, mas o dever dele era amar. Talvez houvesse mesmo pouca coisa nela para ser amada. E o senso de sua inutilidade e a falta de sentido em todas as coisas a abateram de tal modo que a própria vida parecia uma grande e cinzenta onda invernal quebrando e depois recuando sobre uma praia deserta.
O incidente que ocorreu no final de fevereiro na elegante cidade-balneário de Bath foi, poder-se-ia pensar, um acontecimento trivial. Mas na ocasião ele não foi encarado assim. Em poucos dias não havia uma só pessoa em toda a Bath, apesar do fato de ninguém conhecer a infeliz jovem dama em questão, que não tivesse tomado partido. O assunto envolvia tamanha curiosidade porque era difícil de ser explicado. Foram muitas as teorias. Não se pode dizer que todo esse disse-medisse, já que ninguém sequer conhecia a pobre moça, fez bem ou mal a qualquer um. Exceto, talvez, ao empobrecido major, que havia dançado e conversado com ela no Salão de Reuniões. Por causa da intensidade desse conhecimento mais íntimo da pessoa em questão, ele logo se viu muito requisitado, chamado para jantar em casas para as quais nunca fora convidado, com as suas chances de encontrar uma viúva rica aumentadas consideravelmente.
Fanny Albion, enquanto isso, encontrava-se na cadeia.
— A Sra. Pride precisa ir comigo. —Tia Adelaide foi firme e, em tais circunstâncias, nem mesmo o velho Francis era capaz de argumentar; mas fez uma indagação, um tanto queixosa, sobre quem ia cuidar dele. —Você vai ficar com os Gilpin
— disse-lhe a irmã.
O Sr. Gilpin queria, ele mesmo, ir ter com Fanny, mas Adelaide o convenceu de que seria mais útil cuidando do irmão dela.
— Eu não teria paz de espírito deixando-o sem a Sra. Pride — falou para o vigário, e assim o idoso foi transferido para o vicariato, uma solução com a qual ele se mostrou bastante satisfeito. O Sr. Gilpin, por sua vez, contentou-se em redigir uma carta.
Minha cara menina.
- Como e por que surgiu essa questão, mal consigo supor. Nem consigo imaginar que venha jamais a realizar qualquer ato criminoso ou desonesto. Estou rezando por você e peço que lembre — mais do que isso, que você saiba — que está nas mãos de Deus. Confie Nele, e saiba que a Verdade a libertará.
Para Adelaide, ele disse apenas: ”Consiga um bom advogado.”
E então a intrépida velha dama e a Sra. Pride partiram juntas para fazerem a viagem de cento e doze quilômetros até Bath. Seguindo pelas estradas pavimentadas, e fazendo troca de cavalos, poderiam chegar lá em dois dias.
Foi motivo de fúria para a Sra. Grockleton o fato de Fanny ter sido presa, mas todos os esforços da boa senhora foram em vão. Por alguma razão — talvez por causa de algo que ele comera ou pelo simples motivo de o juiz do julgamento estar chegando em breve — o magistrado ordenara que Fanny fosse recolhida à cadeia da cidade. Nem mesmo a ameaça da Sra. Grockleton de mandar os fiscais aduaneiros inspecionarem a casa dele o fez ceder.
Pelo menos, a pequena prisão onde a mantinham fora tornada confortável para ela. Tinha a sua própria cela, comida e tudo de que precisasse. Era tratada com cortesia, pois aqueles que a vigiavam não desejariam desagradar à generosa e ligeiramente amedrontadora Sra. Grockleton, que vivia visitando a prisioneira. O Sr. Grockleton, enquanto isso, já havia contratado os serviços da mais importante firma de advocacia de Bath para defendê-la e o própiio dono do escritório já tinha ido ver Fanny três vezes.
Certamente, portanto, não deveria demorar muito para que aquele lamentável assunto fosse esclarecido, e Fanny, colocada em liberdade. Não deveria. Em cada uma das três ocasiões, porém, o distinto cavalheiro advogado saíra de lá sacudindo a cabeça. ”Não consigo tirar nenhuma declaração dela”, confessou.
Então, finalmente, o Sr. Grockleton foi levado a sugerir à esposa o que lhe passava pela cabeça há algum tempo.
— Suponha que tenha sido mesmo ela — aventou.
A afronta com que isso foi recebido fez a robusta dama ameaçar:
— Se voltar a repetir tal coisa, Sr. Grockleton, dou-lhe um tapa na orelha. Portanto, o Sr. Grockleton nada mais disse. Mas mesmo assim continuou
imaginando a possibilidade.
A loja não era um empório muito grande, mas muito movimentada: botões e laços, fitas, todos os tipos de fina renda. Ali se podiam encontrar damas, costureiras, todo tipo de gente, comprando os pequenos atavios sem os quais em Bath a vida seria praticamente sem sentido.
Tinha sido um dia tedioso e enfadonho, e a tarde já ficava sem luz, como se alguém estivesse fechando as persianas, quando Fanny Albion seguia em direção à saída. Ela estivera algum tempo na loja, vagando indiferente em volta das mesas, examinando cortes de seda e outras quinquilharias refinadas. Não tinha vontade de comprar coisa alguma e só entrara ali porque carecia de energia, ou vontade de subir a colina em direção à casa alugada. A mente estava repleta de melancólicas reflexões. Durante sua perambulação, a bolsa que trazia ao braço se abrira. Após ficar cerca de vinte minutos desse modo, ela se demorara, distraidamente, vários momentos em volta de uma mesa redonda na qual estava exposto um grande número de peças de excelente renda, algumas das quais havia apanhado para ver melhor. Em seguida, fechando calmamente a bolsa, seguiu em direção à porta.
A ajudante da loja, que a estivera observando, correu para interceptá-la no instante em que passava pela porta. Apenas segundos depois, o gerente da loja juntou-se à tal moça. Os dois fizeram com que ela abrisse a bolsa, na qual — não restava dúvida — encontrava-se, caprichosamente dobrada, uma peça de renda no valor de dez shillings. Transeuntes foram chamados para testemunhar. Fanny foi levada de volta para o interior da loja. O inspetor foi chamado.
No meio de tudo isso, notava-se que Fanny parecia atordoada, e nada disse.
— Mas, minha cara menina, o que significa isso?
A despeito da longa viagem, tia Adelaide insistiu para ser levada imediatamente para ver Fanny assim que chegaram à casa dos Grockleton. Agora, parecendo frágil naquele ambiente estranho, mas com rija determinação, a distinta senhora fitou a sobrinha com um olhar penetrante.
Mas nem mesmo isso adiantou de nada, pois Fanny permaneceu sentada, balançando lentamente a cabeça, enquanto a tia e a Sra. Pride observavam.
— O que significa isso, menina? — O longo e árduo esforço de autocontrole de Adelaide já distendera os seus nervos praticamente ao ponto de rompimento; por isso sua pergunta insurgiu-se exasperada até se tornar quase um grito: — O que significa isso de não sabe se fez ou não se fez?
O jantar nos Burrard foi um acontecimento admirável. Os Totton estavam todos lá e o Sr. Martell, que acabara de chegar naquela tarde; também o Sr. Arthur West, que agora era conhecido dos Burrard e sempre um proveitoso acréscimo a qualquer jantar. O primeiro repasto acabara de ser servido, e os convivas examinavam a carne de veado, o pato, o guisado de coelho, a torta de peixe e outros pratos oferecidos, quando o Sr. Martell, após provar o clarete de primeira qualidade, cortesmente indagou a Louisa:
— Tem notícias de sua prima, a Srta. Albion?
Como os presentes ficaram em silêncio e Louisa enrubesceu, foi o próprio sir Harry, à cabeceira, quem civilizadamente interpôs-se:
— Se deseja ajudar a si mesma e a Fanny Albion, Louisa, deve estar preparada para uma resposta melhor do que um enrubescer. Pois devo dizer-lhe, com franqueza, que toda a Floresta está falando a respeito dela, e a notícia já chegou a Londres. — Dirigiu-se a Martell. — Essa pobre moça, senhor, foi acusada de roubar uma peça de renda de uma loja de Bath. Trata-se da coisa mais absurda e despropositadamente imaginada. Ela está sendo mantida em uma prisão comum e será julgada, acredito eu, muito em breve. Como isso não pode ter passado de um mal-entendido, ela, é claro, será inocentada. Sua tia, apesar da idade, foi ter com ela. Trata-se de uma senhora idosa muito corajosa. O pai está com o Sr. Gilpin. — Fixou os olhos em Louisa. — Cada qual nesta mesa, Louisa, e todos os nossos conhecidos estão unidos em defesa de Fanny Albion e lhe daremos as boas-vindas dentro em breve. — Disse isso circunspecto.
— Apoiado — exclamou o Sr. Totton com firmeza.
— Eu gostaria — observou o Sr. Martell, com um profundo franzido na testa
— de oferecer algum tipo de ajuda. Conheço um excelente advogado em Bath.
— Fez uma pausa. — Infelizmente, receio tê-la ofendido de algum modo.
Os Totton e os Burrard entreolharam-se, interrogativos, e o Sr. Totton comentou que não sabia de nenhum motivo para isso. O Sr. Arthur West inclinou-se para diante, prestativo.
- Acredito, se me permite, senhor, poder lhe dizer o motivo. Recorda do retrato do seu bisavô, que foi ver em Hale?
— Claro.
— Com quem o senhor tem uma espantosa semelhança. Talvez não saiba que o velho Sr. Albion e a irmã Adelaide são netos de Alice Lisle, e, aos olhos deles, o senhor é um Penruddock.
O efeito dessa informação entre os convivas foi dramática. Burrard e os Totton olharam para ele espantados.
— O senhor é um Penruddock? — Havia tantos outros itens significativos de informação a respeito de Martell, suas duas propriedades, sua educação, sua boa aparência, seu interesse na Igreja e na política, que de algum modo a questão da família de sua falecida mãe nunca viera a propósito.
- Os Martell e os Penruddock casaram entre si durante séculos. Minha mãe era uma Penruddock — falou, orgulhoso. — Eu desconhecia o parentesco dos Albion com Alice Lisle, mas certamente o coronel Penruddock apenas prendeu uma conhecida desordeira, e o assunto já foi há muito tempo esquecido.
— Não na Floresta. - Harry sacudiu a cabeça. — Os Albion pelo menos vêem o senhor com horror.
— Entendo. — Martell ficou em silêncio. Lembrou-se então de Fanny questionando-o no baile da Sra. Grockleton e sua súbita frieza.
— A velha Srta. Albion, em particular — explicou o Sr. Totton —, encara o assunto de um modo arrebatado. Sua mãe a criou, por assim dizer, sob a sombra de Alice Lisle. Ela nasceu Alice Albion, e Albion House foi o seu verdadeiro lar.
Martell aquiesceu lentamente. A visão que ele teve de Fanny, na primeira vez que fora àquela velha casa sombria, voltou-lhe com toda a nitidez. A impressão que teve, portanto, não fora errônea. Ela era de fato uma figura trágica, presa àquelas duas pessoas idosas em uma casa repleta de lembranças e sombras fantasmagóricas. Mas essa informação também significou algo mais: estava certo, com quase toda a certeza, em achar que ela gostava dele. Foi a descoberta de que ele era um Penruddock que havia feito com que o evitasse e se afastasse.
E a sombra de Alice Lisle que se interpõe entre nós, pensou. Maldita seja. Aquilo era uma heresia. E agora, imaginando a terrível situação dela, uma onda de piedade o envolveu. De que modo devia estar se sentindo ao enfrentar sozinha aquela provação?
— Eu lamento profundamente em saber do apuro pelo qual ela passa — falou em voz baixa, e o jantar prosseguiu, sem mais qualquer menção a esse assunto tão doloroso.
Quando as damas se retiraram, deixando os homens com o vinho do Porto, ele aventurou-se a retomar o assunto com Burrard e Totton.
— É um caso estranho — informou-lhe Burrard. — Gilpin e eu, sem interferirmos, tentamos conseguir uma informação. A loja em questão, por tê-la acusado, não pode voltar atrás. O magistrado insiste em mantê-la presa. Mas o pior de tudo é o próprio estado mental de Fanny. — E explicou brevemente de que modo Gilpin convencera os Grockleton a levar Fanny a Bath. — Durante o verão, ela mergulhou em um profundo estado de melancolia. Ai de mim! Ao que parece, a estada em Bath por enquanto não efetuou nenhuma cura. Ela se encontra totalmente letárgica e nada declara para ajudar a própria causa. E, mesmo para pessoas de nossa classe, Martell, furto é furto. Em particular, não vou esconder de você o que receio por ela. O caso é grave.
Furto: a punição para furto, na Inglaterra do século XVIII, era bastante severa. Sentenças de morte ou deportação para colônias penais eram freqüentes. O valor do objeto roubado raramente importava muito para os tribunais: eram a condição moral do criminoso e o ataque à propriedade que se levava em conta. O furto, do tipo que Fanny estava sendo acusada, era roubo puro e simples, e mesmo pessoas da elite podiam ser severamente punidas por tal delito. Afinal de contas, tratava-se de um exemplo para a sociedade em geral de que a lei era irrestrita.
— Sabe-se por que ela mergulhou em tal estado de melancolia? — arriscou-se Martell a perguntar.
— Não — respondeu Edward Totton. — Creio que foi depois do baile da Sra. Grockleton que ela pareceu ficar retraída. Suponho que o fato de o pai ter dado aquele espetáculo possa ter-lhe causado um constrangimento que considero injustificável. Louisa e eu, acredito, estamos em falta. Não nos demos conta; devíamos ter feito mais por ela na ocasião. Mas não o fizemos e nos sentimos bastante envergonhados.
Logo depois do baile. A melancolia dela, pensou Martell, pode ter tido outra causa. Mas, pensou ele, enquanto iam juntar-se novamente às damas, que diabos podia fazer a respeito? Era difícil imaginar que a família tivesse deixado de obter uma boa orientação legal. Seu envolvimento possivelmente não seria bem-vindo.
Somente uma frase de toda a conversa mantinha-se recorrente, martelando em sua mente: ”Ela se encontra totalmente letárgica e nada declara para ajudar a própria causa.” Ela precisava ser convencida a ajudar a própria causa. O caso era sério demais para ser deixado ao acaso. Ela precisava ajudar a si mesma, de todas as maneiras possíveis.
Os cavalheiros e as damas instalaram-se em duas mesas de cartas, mas Martell não estava com disposição para jogar naquela ocasião, e nem Louisa, ao que parecia; portanto, os dois afastaram-se para o sofá e passaram a conversar.
Não havia dúvida, refletiu Martell, que Louisa era uma jovem muito bonita e divertida. Gostava dela; apreciava sua companhia. Até mesmo, uma ou duas vezes, tinha pensado em algo mais. Uma Totton talvez não fosse bem o seu estilo, mas, em termos gerais, ele podia se casar com quem lhe agradasse. Talvez o choque da notícia sobre Fanny tivesse acrescentado um pouco de ternura ao seu estado de espírito e agora olhava para Louisa com afeto.
— Devo confessar — disse ele — que estou muito abalado por causa da Srta. Albion.
— Todos nós estamos — retrucou ela mansamente.
— Só fico imaginando se não há algo que eu possa fazer. Talvez — continuou, pensando em voz alta —, se Edward fosse vê-la, eu pudesse acompanhá-lo.
Uma leve sombra atravessou o rosto de Louisa.
— Não sei se seria aconselhável o senhor envolver-se com Fanny — observou calmamente. — Nem mesmo estou certa de que no momento ela deseje a companhia de Edward.
— Talvez. Mesmo assim — abanou a cabeça —, desconfio que é justamente de companhia... refiro-me a afeto verdadeiro... que ela precisa.
— Entendo. — Não era necessário o instinto feminino, do qual Louisa era bem dotada, para perceber em que direção os sentimentos de Martell estavam tendendo. — Não é fácil ter certeza — disse ela, prudentemente — de como as coisas ocorreram exatamente. Por esse motivo, talvez devamos ser cautelosos.
— O que está querendo dizer? Seguramente a Srta. Albion não deve ser culpada desse crime.
— Não, Sr. Martell. — Fez uma pausa. — Mesmo assim, a esta distância, não podemos ter nada por certo. Pode ser que haja alguma coisa...
Ele fitou-a, meio admirado, meio curioso. Louisa não era boba. Ela estava tentando insinuar algo. Mas o quê?
— Vou lhe dizer uma coisa, Sr. Martell, se prometer não contar para ninguém.
— Está bem — decidiu. — Não contarei.
— Há um pormenor do qual minha prima pode não estar ciente. Como sabe, acredito, o meu pai e a mãe dela eram irmãos.
— Sei.
— Mas não eram. Ela era meio-irmã dele. E a mãe dela... Bem, a segunda esposa do meu avô veio de uma posição diferente da sociedade. Ela era uma Srta. Seagull. Essa família é da espécie mais baixa: marinheiros, estalajadeiros, contrabandistas. E, mais para trás... — Deu um sorriso cruel. — É melhor nem saber.
— Entendo.
— É por isso talvez que imaginamos... não podemos ter certeza... — Deulhe um sorriso triste e ele ficou encarando-a.
Então ele viu — viu com toda a clareza — que nem ela mesma tinha consciência da incalculável maldade por trás do que acabara lhe dizer.
— Agradeço por ter confiado em mim, Srta. Totton — falou baixinho, e decidiu naquele exato momento que devia ir direto para Bath ao amanhecer do dia seguinte.
Adelaide sacudiu a cabeça. Já estava em Bath havia mais de uma semana, sem sucesso. Em momentos, ela estivera tão perto do limite de suas forças que quase havia concluído não poder mais suportar e decidido voltar para casa. Mas ela já vinha guardando o templo da família havia tanto tempo, tenazmente mantendo-o pela mãe, pelo irmão e pela sobrinha, que não podia abandoná-lo, mesmo que assim o desejasse. Estava tão presa, pregada, cravada à casa dos Albion, que não poderia abandonar Fanny, ainda que o tentasse.
Isso não queria dizer, contudo, que tivesse esperança de sucesso.
— Você será como Alice — bradou amargurada. — Ela não quis se defender: dormiu diante daquele juiz; não fez nenhum protesto. Vai deixar que eles a assassinem também? E não haverá mais nenhum Albion?
Mas Fanny nada disse.
— Você consegue — dirigiu-se, fatigada, à Sra. Pride — dizer algo capaz de persuadi-la?
Por uma semana, a Sra. Pride tinha levado tia Adelaide de um lado para o outro, escutado calada tudo o que se passara na casa dos Grockleton e criado, na medida do possível, uma sensação de consolo com sua presença. Tinha também observado Fanny e tirado suas próprias conclusões. Por isso naquele momento, embora falasse docemente, a mulher da Floresta o fez com firmeza.
— Eu a conheço desde que nasceu, Srta. Fanny — disse-lhe. —Tenho cuidado de você. Sempre foi corajosa e sensível. Mas agora está sendo caçada. — Olhou bem nos olhos de Fanny. — Precisa se salvar. Isso é tudo, realmente. Salve a si mesma ou não restará mais nada.
— Não sei se sou capaz — rebateu Fanny.
— É preciso. Isso é tudo — repetiu a Sra. Pride.
— Precisa lutar, Fanny — exclamou a tia. — Não percebe? Precisa lutar. Não pode desistir. — Encarou Fanny, depois se dirigiu à Sra. Pride. — Creio que já podemos ir. — Levantou-se e pôs-se de pé com dificuldade.
Ao saírem, a Sra. Pride olhou para trás, em direção a Fanny, e os olhos das duas encontraram-se. A mensagem da mulher mais velha era inequívoca: ”Salve-se.”
Depois que elas partiram, Fanny pegou a carta do Sr. Gilpin e a releu, na esperança de que aquilo lhe desse forças, mas em nada ajudou, e voltou a colocá-la de lado. Em seguida fechou os olhos, mas não dormiu.
Salve-se. Se ao menos ela pudesse. Às vezes, quando ninguém estava olhando, ela se enroscava, como um feto, e assim permanecia durante uma hora. Outras vezes ficava sentada, fitando o vazio adiante, incapaz de fazer qualquer coisa. Parecia-lhe não haver nenhuma saída daquele apuro. Sua vida estava encerrada por paredes tão brancas, tão intransponíveis e sufocantes quanto as da prisão. Não havia saída, nenhuma alternativa, nenhum fim.
Entretanto, como ansiava por uma fuga, por alguém que viesse salvá-la. Tia Adelaide não podia fazê-lo. Nem mesmo a Sra. Pride. Disseram para que salvasse a si mesma quando tudo do que ela precisava agora era ser salva e consolada por mais alguém. Mas quem? O Sr. Gilpin, se estivesse ali, talvez pudesse ajudar. Mas afinal ela sabia que ele não conseguiria.
Queria ser perdoada. Por quê, não o sabia. Pela própria existência, talvez. Ansiava que aquele a quem amava viesse e a consolasse e lhe dissesse que a perdoava. Então conseguiria enfrentar qualquer coisa. Mas isso era, do começo ao fim, impossível. Assim, permaneceu, em profundo tormento, onde estava e manteve os olhos fechados para evitar a dor da luz do mundo.
Ela não o viu, portanto, quando ele apareceu na porta.
Quanto tempo demora para que um homem saiba, com toda a certeza, que ama uma mulher?
Wyndham Martell olhou para baixo, em direção à pálida figura sentada em silêncio em sua cela, um mortiço raio de sol através da pequena janela batendo em seu rosto, fazendo com que parecesse etéreo. Pensou na vulnerabilidade dela e em tudo o que sabia agora a seu respeito, e percebeu naquele momento que aquela era a mulher que o destino lhe dera para amar. Depois daquilo, como sabem todos os que já amaram, nada mais havia a ser dito. Sua vida foi decidida. Isso levou, aproximadamente, um segundo.
Então deu um passo à frente, atravessando o vão da porta, e ela olhou para cima, no mais completo estado de espanto. Não se deteve, mas foi direto para Fanny e, quando esta começava a se levantar, fitando-o, ele a tomou nos braços, com um terno sorriso, e disse:
— Eu vim, Fanny, e nunca mais a deixarei.
— Mas... — Ela franziu a testa, em seguida pareceu desesperada. —Você não sabe...
— Eu sei de tudo.
— Não pode ser...
— Sei até mesmo o obscuro segredo de sua avó Seagull e dos antepassados dela, minha querida. — Balançou afetuosamente a cabeça. — Nada importa, desde que eu esteja com você e você esteja comigo. — E, antes que ela conseguisse falar qualquer coisa mais, ela a beijou e apertou-a nos braços.
Fanny começou a tremer, em seguida desmoronou e, abraçada a ele, chorou e chorou, lágrimas quentes que brotaram em uma interminável inundação oscilante. Ele não tentou acalmá-la e deixou que as lágrimas emergissem, abraçando-a firmemente e sussurrando apenas palavras de amor. E assim ficaram, não sabem por quanto tempo.
Nem viram tia Adelaide retornar.
Por um ou dois momentos a velha dama não conseguiu entender o que acontecia, Fanny estava nos braços de um estranho, cujo rosto se encontrava virado para o outro lado. Quem era e por que Fanny estava abraçada com ele, não fazia idéia. Pousou a mão, para se apoiar, no braço da Sra. Pride, que estava logo atrás dela. Vários segundos se passaram antes que a tia falasse.
— Fanny?
Os dois jovens se separaram com um sobressalto. O homem virou-se e olhou na direção dela. Tia Adelaide encarou-o e em seguida ficou lívida.
Se percebeu que era o Sr. Martell ou se, por um momento, supôs que a figura no retrato que vira em Hale tivesse miraculosamente ganhado vida e ela estava olhando para o próprio coronel Penruddock, era difícil de adivinhar; mas, fosse quem fosse, ao olhar para ele, horrorizada, ciciou apenas uma palavra:
— Você!
Ele recuperou rapidamente o controle.
— Srta. Albion, eu sou Wyndham Martell.
Se tia Adelaide o ouviu, optou por ignorar. O rosto estava branco e revelava uma expressão de ira e ódio diferente de qualquer coisa que Fanny já vira. Quando ela falou, foi com um tom de desprezo, que talvez usasse para se dirigir a um ladrão.
— Como ousa vir aqui, seu vilão? Dê o fora!
— Estou ciente, madame, que no passado houve ressentimentos entre sua família e a de minha mãe.
— Fora, senhor.
— Creio que é desnecessário...
— Fora. — Dirigiu-se a Fanny, como se Martell não mais existisse. — O que significa isso? O que está fazendo com esse Penruddock?
Não foi apenas a pergunta fria e furiosa; foi a expressão de mágoa, de profunda decepção, de traição, nos olhos da velha senhora que pareceu terrível para Fanny.
Ela cuidou de mim toda a minha vida, pensou Fanny, confiou em mim, e agora eu fiz isso com ela: a coisa mais terrível que podia fazer — a pior das traições.
— Oh, tia Adelaide — soluçou.
- Talvez — disse-lhe a tia, com uma brandura que foi como uma flecha atravessando o coração dela — você não precise mais de sua família.
— Preciso sim, tia Adelaide. —Virou-se para Martell. — Por favor, vá embora.
Ele olhou de uma para outra.
— Eu virei novamente — disse ele. Fez-se silêncio enquanto ele saía.
— Você deseja — pediu-lhe a tia, ainda friamente — dar-me alguma explicação?
Fanny fez o melhor que pôde. Confessou que alimentara sentimentos por Martell, sem saber de sua ascendência.
— E suponho — acrescentou — que ele também não soubesse da minha. — Explicou como descobrira e que realmente o tinha mandado embora; e que não o tinha visto, desde então, até surgir inesperadamente na cela dela.
— Você o beijou.
— Eu sei. Ele foi terno. Fui subjugada.
— Subjugada — repetiu a tia, amargurada — por um Penruddock.
— Isso não voltará a acontecer.
— Ele pode voltar.
— Eu não o receberei.
A tia olhou-a desconfiada, mas Fanny sacudiu a cabeça.
— Fanny. —Tia Adelaide não falava mais com raiva; o tom de voz era suave. — Receio que, se você voltar a ver esse homem, não poderei mais vê-la. Teremos que nos separar.
— Não, tia Adelaide, por favor, não me deixe. Prometo que não o verei mais. Adelaide suspirou. Dirigiu-se à Sra. Pride.
— Estou cansada. Acho melhor voltarmos. Minha menina. —Abraçou Fanny afetuosamente. — Nós nos veremos novamente amanhã. — E assim, tendo feito tudo o que podia para resguardar a família, a velha dama retirou-se.
Fanny, porém, recebeu uma visita inesperada naquela noite. A Sra. Pride. A prestativa senhora ficou com ela por quase uma hora; durante esse tempo soube exatamente o que se passara entre o Sr. Martell e Fanny e percebeu muito bem qual era a natureza de seu afeto.
— Ele veio me salvar — choramingou a moça —, mas é impossível. Sei que é impossível. Tudo é impossível. — E, embora a abraçasse, deixasse que ela chorasse e a consolasse da melhor maneira que podia, a Sra. Pride não podia negar que aquilo que Fanny dizia era verdade. Enquanto, pensou ela tristemente, a memória de Alice Lisle habitasse Albion House, nenhum Penruddock jamais poderia entrar lá. Não podia ser de outro modo. As lembranças permaneciam na Floresta. Na manhã seguinte o Sr. Martell foi visitá-la, mas por instruções de Fanny ele foi mandado embora. A mesma coisa aconteceu à tarde. No dia seguinte tentou deixar uma carta, mas ela foi recusada.
Houvera tantos alarmes falsos no passado que somente quando o médico teve certeza absoluta de que Francis Albion estava morrendo e que não duraria mais do que um ou dois dias foi que o Sr. Gilpin enviou uma mensagem a Adelaide. A chegada da carta deixou a velha dama em um estado de incerteza. Achava que devia voltar para o lado do irmão, mas não queria abandonar Fanny, principalmente porque a deixava apreensiva a idéia de que ela pudesse receber outra visita do Sr. Martell. Mas depois que Fanny salientou que há três dias não havia sinal do Sr. Martell e renovou a promessa de não entrar em contato com ele, sentiu-se um pouco mais segura.
— Além do mais, como poderia suportar a idéia de que mantive a senhora aqui, o único consolo do meu pai, num momento como esse? — soluçou Fanny. — Vá, eu lhe imploro, e leve o meu amor, para que ele saiba que, se não estou presente em corpo, estou em espírito.
Havia muito de verdade naquilo, e Adelaide concordou em ir. Permanecia, entretanto, a questão dominante do julgamento que se aproximava. Seria apenas dali a dez dias. O melhor advogado disponível já estava pronto e à espera para defendê-la. Mas o estado de ânimo de Fanny parecia incerto. Num dia parecia ter energia para se defender; em outro mergulhava em tal letargia que o advogado, muito justamente, observou:
— Não tenho certeza da impressão que ela causará no tribunal, nem mesmo de que modo responderá às perguntas que lhe forem feitas.
— Não importa o estado de saúde do meu irmão — garantiu-lhe Adelaide —, eu voltarei bem antes do julgamento. Teremos que fazer o melhor possível. Talvez — acrescentou —- eu traga comigo o Sr. Gilpin.
Nesses termos, portanto, tia Adelaide partiu, apoiada pela Sra. Pride, deixando Fanny, por enquanto, sozinha.
Enquanto a carruagem seguia velozmente pela estrada entre Bath e Sarum, a Sra. Pride teve tempo para refletir cuidadosamente sobre o que acontecera nos últimos dias. Tudo o que ela desejava era que pudesse haver uma solução para o terrível dilema em questão.
Em relação a Fanny, não tinha nenhuma confiança. O julgamento, lhe parecia, poderia muito bem ter um resultado negativo, mesmo se ela fizesse uma defesa convincente. O estado de espírito dela e a presença do Sr. Martell criavam um grande problema para o qual não via solução.
No que dizia respeito a tia Adelaide, a Sra. Pride não censurava a velha dama pela opinião que tinha do Sr. Martell. Se os Pride ainda lembravam a traição dos Furzey, como poderia a velha Adelaide perdoar um Penruddock? Em seu lugar, pensou a Sra. Pride, ela sentiria o mesmo. E quanto a encontrá-lo com Fanny daquele jeito... Aquilo quase a matou.
Por vezes seguidas, porém, sua mente retornou à lacrimosa conversa com Fanny. Não tinha dúvidas sobre a condição do coração dela. Desejava que fosse diferente. Mas certamente era esse amor impossível que se encontrava, pelo menos parcialmente, por trás do estado indefeso de Fanny. Chegaram à noitinha a Sarum sem que a Sra. Pride visse uma saída para o dilema.
Pegaram a rota de Southampton para Salisbury, sobre as altas elevações calcárias, com sua vista para a Floresta, e, mais tarde naquele dia, pegaram a estrada pavimentada para Lymington. No final da tarde, quando o dia se encerrava, percorreram a alameda em direção ao vicariato do Sr. Gilpin.
O próprio vigário veio à porta recebê-las, o que fez muito circunspecto, conduzindo Adelaide direto para a sala de visitas, onde pediu que se sentasse. Ao ser questionado pela saúde do irmão, ele fez uma pausa e, em seguida, falou em voz baixa:
— Seu irmão morreu esta manhã pouco antes da alvorada. A morte ocorreu em paz. Estive rezando com ele, depois dormiu um pouco, e em seguida se foi. Eu gostaria de um fim assim para mim mesmo.
Adelaide assentiu lentamente.
— E o funeral?
— Com sua permissão, será amanhã. Podemos adiar, se desejar.
— Não. — Adelaide suspirou. — É melhor assim. Preciso retornar a Bath o mais cedo possível.
— Deseja vê-lo? Está na sala de jantar, todo pronto.
— Sim. — Levantou-se. — Vou vê-lo agora.
O Sr. Gilpin cuidara dos preparativos e os fizera com todo o zelo. Depois que Adelaide passou um momento a sós com o irmão, ele explicou resumidamente o tipo de serviço que sugeriu na igreja de Boldre, onde se encontrava pronta a câmara mortuária da família Albion. Os Totton, os Burrard e outras famílias da região tinham sido informadas e compareceriam, a não ser que Adelaide desejasse o contrário. Ela mesma, acrescentou, seria bem-vinda, se desejasse permanecer no vicariato, mas a isso, com muitos agradecimentos, ela declinou, pois preferia ficar em Albion House. Embora alguns dos criados tivessem tido permissão de retornar às suas casas durante a ausência dela, ainda havia o suficiente por lá para cuidar dela.
— Prometa-me que vai descansar, pelo menos um dia ou dois, antes de retornar a Bath — pediu-lhe. — Terá bastante tempo para isso.
— Prometo. Um dia. Mas depois terei que ir. Não posso deixar Fanny sozinha.
— De acordo. Talvez então no dia seguinte ao funeral eu lhe faça uma visita, pois há certos assuntos relacionados a ele que gostaria de discutir. i
— Claro. —Aliás, ela deixou-lhe claro que estava ansiosa pela sua orientação. Ele viu-a partir em segurança, observando sua carruagem da porta até ela sumir de vista. Só então voltou para dentro, atravessou o saguão e entrou na biblioteca, cuja porta fora mantida fechada durante a visita de Adelaide. Dirigiu-se então à pessoa com quem estivera trancado a maior parte da tarde.
— Depois de amanhã. Eu irei falar com ela. Mas quero que vá comigo. Você também terá que falar com ela.
— O senhor acha prudente?
— Prudente ou não, talvez seja necessário.
— Então irei em sua companhia — disse o Sr. Martell.
O funeral na velha igreja, sobre seu pequeno outeiro, foi uma cerimônia íntima. Os Totton, os vários vizinhos da Floresta, os arrendatários e os criados de Albion House estavam todos presentes. O Sr. Gilpin fez uma celebração curta, mas digna. Aludiu a Fanny em seu breve sermão e nas preces e, ao se despedirem de tia Adelaide, os congregados não deixaram de transmitir suas gentis mensagens.
Ao se encerrar a cerimônia, Adelaide quis voltar sozinha e calmamente para Albion House, e isso foi respeitado; portanto, apenas ela e a Sra. Pride foram levadas pelo caminho até a velha casa de frontão. Após ela se instalar na sala revestida de painéis de carvalho, a Sra. Pride trouxe-lhe chá e deixou-a, a fim de que a velha senhora pudesse cochilar um pouco, antes de fazer uma pequena refeição com presunto e se recolher mais cedo.
O Sr. Gilpin apareceu às onze horas da manhã seguinte, e Adelaide estava pronta para recebê-lo.
Você tinha que admirá-la, pensou a Sra. Pride. Ao se sentar bem ereta, escorada por almofadas em uma enorme bergere na sala de visitas, ela podia ser frágil, mas, a despeito de tudo pelo que passara, continuava bem alerta.
Quando o Sr. Gilpin entrou, a Sra. Pride preparou-se para se retirar, mas Adelaide chamou-a de volta.
— Eu gostaria que a Sra. Pride ficasse — disse a Gilpin. — Não teríamos conseguido enfrentar tudo sem ela.
— Concordo plenamente. — O clérigo sorriu afetuosamente para a governanta.
— Primeiramente, quero lhe falar — começou a velha dama — sobre o caso de Fanny.
Ela descreveu exatamente o estado em que Fanny se encontrava, a sua inabilidade em se defender, a preocupação do advogado, toda aquela questão desoladora. Falou brevemente sobre a generosidade dos Grockleton, mas não mencionou o Sr. Martell. Ao terminar, o Sr. Gilpin dirigiu-se à Sra. Pride e perguntou-lhe se tinha algo a acrescentar.
A Sra. Pride hesitou. O que deveria dizer?
— O relato da Sra. Albion é exato — falou com cautela. — O caso da Srta. Fanny parece grave. Temo por ela.
— Sua falta de vontade em se defender é estranha — comentou Gilpin. — Fico imaginando se é possível a senhora supor que os advogados talvez imaginem que ela... por qualquer que fosse o motivo... tenha apanhado realmente a peça de renda?
— A idéia é absurda — rebateu a tia. O Sr. Gilpin olhou para a Sra. Pride.
— Não sei dizer, senhor, o que eles devem pensar. Não acredito, mesmo agora, que ela jamais tenha tocado nessa questão.
— Ela se encontra evidentemente em um estranho estado mental. Quase, perdoe-me, uma insanidade. Claramente, a minha cara Srta. Albion não parece ser ela mesma.
— Exatamente.
— Contudo — olhou para ela, perscrutando —, qual seria o motivo? Há algo perturbando sua mente ou seu afeto?
— Nada de importante—retrucou Adelaide.
— Eu creio, senhor — falou a Sra. Pride serenamente —, que seu estado emocional está bastante perturbado. — Recebeu um olhar abrupto de Adelaide, mas ela teve de dizer aquilo.
Então teve início a parte mais difícil da missão do Sr. Gilpin. Começou deixando claro para Adelaide o perigo extremo em que, na sua opinião, Fanny se encontrava.
- Ela é uma acusada. Há testemunhas respeitáveis. A posição dela na sociedade, nessas circunstâncias, não a protegerá. Pelo contrário. Como uma questão de honra, os juizes talvez até a sentenciem à deportação para uma colônia penal, para mostrar que não fazem distinções. Coisas assim já aconteceram. — Fez uma pausa para permitir que essa terrível conseqüência fosse absorvida.
Mas ele não tinha avaliado completamente a natureza inflexível da mente de Adelaide.
— Justiça — rebateu ela, com escárnio. — Não me fale em justiça, pois me lembro do que os tribunais fizeram com Alice Lisle.
— Justa ou não — insistiu o vigário —, há esse risco. A senhora certamente concorda que precisamos dar todos os passos possíveis para salvá-la. — A afirmação foi recebida com um curto gesto de anuência. — Creio que devo acompanhála a Bath. Isso seria do seu agrado? — Outro gesto de anuência. — Preciso, porém, adverti-la — prosseguiu — que não acredito que a minha presença necessariamente induza Fanny a se salvar... e ela precisa se salvar. E estou convencido de que a solução encontra-se em outro lugar.
Se Adelaide entendeu o que ele quis dizer, não deu qualquer indicação, a não ser um leve franzir da testa. Gilpin prosseguiu.
Mostrou realmente uma grande sabedoria. Alongou-se — como um cristão poderia ser contra? — na necessidade da reconciliação. Alongou-se sobre o mal das rixas antigas.
— Os pecados dos pais, Srta. Albion, não podem recair sobre os filhos. — Alongou-se, sobretudo, sobre a suprema necessidade de se salvar Fanny. — Eu acredito — disse, de forma penetrante — que sabe do que estou falando.
— Não faço — respondeu Adelaide, invencível — a menor idéia.
— Contudo, madame — outra voz surgiu mansa mas firmemente do vão da porta —, acredito que sabe.
E o Sr. Martell entrou na sala e fez uma reverência. Embora tivesse recebido ordens de Gilpin para esperar na carruagem coberta lá fora, ele havia entrado na casa há algum tempo e escutado tudo em silêncio.
Adelaide ficou pálida, olhou de Martell para Gilpin e depois indagou asperamente:
— O senhor trouxe este vilão aqui?
- Trouxe — confessou Gilpin —, mas estou convencido de que não é nenhum vilão. Aliás, muito pelo contrário.
— Faça-me a gentileza de se retirar, Sr. Gilpin, e leve com o senhor este vilão. — De propósito, voltou a usar a palavra. Os olhos dela pareciam fixos em um ponto distante além da parede. — Percebo, senhor, que hoje em dia até mesmo os clérigos traem a confiança dos seus amigos. Mas minha família está acostumada a lidar com vilões, assassinos e sedutores, mesmo sendo esta a primeira vez que um clérigo os traz para o interior de nossa casa.
— Minha cara Srta. Albion.
— Sugiro que no futuro, Sr. Gilpin, guarde para si mesmo as suas companhias. Não tem permissão para se aproximar de minha sobrinha em Bath. Passe bem.
Se até Gilpin ficou mudo diante disso, Wyndham Martell não.
— Madame — explicou calma e educadamente —, a senhora pode insultar a família de minha mãe o quanto desejar. Se o que diz dela é verdade, eu lamento muito. Se estivesse em meu poder — levantou a mão — cortar esta mão para eliminar qualquer descendência Penruddock, eu o faria de bom grado, se isso salvasse sua sobrinha.
Ela o encarou em silêncio. Talvez ele estivesse fazendo algum progresso.
— Descobri que me pareço com um ancestral sobre quem pouco sei e depois que esse homem é desprezado e abominado pela família da moça a quem o meu afeto já se encontrava entregue totalmente, a qual, sem explicação, rejeitou-o posteriormente por causa disso. Mas cada geração, embora honremos nossos pais e ancestrais, renasce outra vez. Até mesmo a Floresta gera novos carvalhos. Não sou, eu lhe asseguro, o coronel Penruddock e não desejo sê-lo. Eu sou Wyndham Martell. E Fanny não é Alice Lisle.
— Fora!
— Madame, creio que posso convencer a Srta. Albion a se defender. A despeito dos seus sentimentos, nem mesmo me permitiria tentar salvá-la?
Nesse instante, por acaso, o Sr. Gilpin olhou para a Sra. Pride e viu no seu rosto, claro como o dia, que, por tudo que ela sabia de Fanny, também achava que ele podia salvá-la.
- Eu lhe imploro que considere todas as possibilidades de salvar Fanny — interveio.
— Um Penruddock salvar um Albion? Jamais.
— Deus do céu, madame! — vociferou Martell exasperado. — Vai tornar sua sobrinha uma habitante viva de um túmulo.
- Fora!
- A senhora a ama, madame? — voltou a dizer Martell, sem ligar para ela.
— Ou ela é amada apenas como uma escrava deste templo da família?
— Fora!
— Digo-lhe, madame, que amo a Srta. Albion pelo que ela é. Na verdade, pouco me importa neste momento se ela é uma Albion, uma Gilpin ou — de repente, viu-se olhando direto nos olhos da mulher alta e bonita, na verdade não diferente dele mesmo, que, ele percebeu, acompanhava atentamente cada palavra
— uma Pride. Eu a amo, madame, por ela mesma, e pretendo salvá-la com ou sem a sua permissão. Mas o seu auxílio talvez a ajudasse bastante.
— Fora!
A um sinal de Gilpin, o Sr. Martell, agora bastante exaltado, retirou-se com ele, e momentos depois ouviu-se o som da carruagem do clérigo.
Adelaide permaneceu sentada em silêncio durante um longo tempo, enquanto a Sra. Pride rondava atrás dela. Então, finalmente, se para a governanta ou para si mesma, era difícil de saber, falou:
— Se ele salvar Fanny, ela se casará com ele. — Balançou tristemente a cabeça.
— Oh, minha pobre mãe. Pobre Alice. A isso prefiro que ela morra.
Foi naquele momento que a Sra. Pride percebeu o que devia fazer.
Naquela noite Martell e Gilpin estavam sentados, sozinhos, na biblioteca do vigário, discutindo o que fazer.
— Eu quero ir — afirmou Gilpin. — E não tenho dúvida de que Fanny me receberia. Mas restam duas questões. Com a velha senhora tão inflexível, minha presença não iria criar ainda mais confusão? E, além disso, é de você que ela precisa agora, Martell, e não de mim.
— A velha dama não vai me constranger — rebateu Martell. — Partirei assim que amanhecer. Mas, mesmo assim, ainda preciso de permissão para chegar a Fanny. Não posso arrombar a porta da prisão.
— Você levará uma carta minha. Implorarei para que ela o receba. Direi a ela que você fala com minhas bênçãos. Isso pode ajudar.
Gilpin sentou-se para redigir a carta, e Martell passou a ler um livro, quando ouviram o ruído de alguém chegando à porta. Momentos depois, o criado entrou e murmurou algo no ouvido do Sr. Gilpin. Ele levantou-se e foi até o saguão, desaparecendo por uns minutos, até voltar apressado.
— Pegue o seu casaco, Martell — gritou. —Vamos precisar de você. Os cavalos estão sendo selados.
— Aonde vamos? — bradou Martell, enquanto corria para o seu quarto para pegar o casaco e as botas.
— A Albion House. E não há um momento a perder.
Ninguém saberia dizer onde ou como começou, pois todos na casa pareciam dormir profundamente. Tanto que, de fato, somente quando um criado acordou no andar de cima e ouviu um estranho estalido, percebeu que havia algo errado. Assim que emergiu do pequeno quarto, porém, já encontrou o corredor repleto de uma espessa fumaça. Um segundo depois encontrou a Sra. Pride, que obviamente também acabara de acordar, de camisola.
— A casa toda está em chamas — gritou ela. — Depressa, procure todos os criados. A escada dos fundos está livre. Leve todos para o estábulo e verifique se não falta alguém.
— Aonde a senhora vai?
— Buscar a velha senhora. O que mais?
A fumaça já sufocava, quando a Sra. Pride se dirigiu ao patamar principal. Seguiu depressa para o aposento onde Adelaide dormia, entrou e foi até a cama.
Estava vazia.
Olhou rapidamente em volta do quarto. Nada. Tentou o aposento ao lado, mas, encontrando-o também vazio, seguiu para a escada.
O fogo lambia a tapeçaria. No pé da escada, viu as chamas vindo da sala de visitas. Correu para baixo e tentou entrar, mas o calor era intenso demais. Abriu a porta principal e saiu rapidamente.
— Alguém viu a Srta. Albion?
Toda a criadagem estava reunida no estábulo. Não faltava ninguém. Os homens já pegavam baldes, na esperança de fazer uma corrente a partir do rio. Ela viu que isso era inútil, mas não tentou dissuadi-los.
Ninguém tinha visto a velha dama.
— Ela pode ter levantado. E ter saído — sugeriu um.
- Talvez tenha iniciado o incêndio. Caindo sobre um lampião — disse uma criada.
— Ninguém deve entrar — ordenou a Sra. Pride e voltou para perto da casa.
O telhado já começava a fumegar, e as chamas saíam através de algumas janelas superiores. Os habitantes de Boldre, obviamente, viram as chamas, pois havia homens correndo ao longo do acesso. Ela ordenou que eles ajudassem com os baldes. Alguém já tinha ido avisar o vigário.
— Procurem a velha senhora aqui fora — falou para a cozinheira e uma outra mulher. — Pode ser que esteja vagando por aí.
Quando o Sr. Gilpin e Martell chegaram, as chamas já estavam bem acima do telhado, e as cinzas investiam para o alto em direção ao céu da noite escura. O vão da porta, surpreendentemente, ainda dava passagem, mas lá dentro havia apenas uma estranha escuridão bruxuleante.
Todas as buscas por Adelaide se revelaram infrutíferas. Ninguém sabia aonde ela poderia ter ido. Se estivesse na sala, já devia ter sido transformada em cinzas.
— Ela pode ter caído — sugeriu Gilpin. — É possível que ainda esteja viva. — Olhou para Martell. — Bem. Vamos lá?
Mas quando os dois homens desmontaram, a Sra. Pride colocou-se diante deles.
— Esperem — gritou —, os senhores não sabem onde procurar. — E, antes que alguém pudesse detê-la, ela voltou a entrar na casa.
O fogo lambendo em volta da beira do telhado dava uma estranha aparência aos triângulos de pedras lisas do frontão, como se tentassem se desprender do enraivecido calor atrás deles. Chamas irrompiam da metade das janelas. Parecia impossível que alguém ainda pudesse estar vivo naquela fornalha. Mas, um momento depois, a figura alta da Sra. Pride apareceu em uma das janelas, depois sumiu e reapareceu em outra. Em seguida sumiu novamente e, como não reaparecesse, Gilpin e Martell começaram a correr em direção à porta, quando, saindo dela, surgiu a Sra. Pride, encaminhando-se para a noite bruxuleante, carregando nos braços uma frágil carga branca.
Era Adelaide. Não se queimara, mas sua camisola branca estava escurecida e chamuscada. Estava, porém, prostrada. E morta. Aparentemente tinha caído, talvez desmaiado, e morrido asfixiada com a espessa e sufocante fumaça.
Sem um veículo de combate a incêndio, não havia qualquer possibilidade de se salvar Albion House. O incêndio era de grandes proporções, e a enorme estrutura estilo Tudor da casa queimou lentamente, e algumas das enormes madeiras de carvalho, apesar de carbonizadas por fora, não queimaram totalmente. No início da madrugada, o lugar era uma grande casca vermelha e, ao raiar do dia, uma ruína incandescente. Albion House havia tombado. Acabado. E com ela, os seus dois habitantes, Francis e Adelaide, a guardiã da casa, tinham saído de cena.
Não passou despercebido ao bondoso Sr. Gilpin naquela noite que o acidente deixara Fanny livre, se ela quisesse, para consentir que fosse salva pelo Sr. Martell, e, recordando o dia em que o sono profundo de Francis Albion permitira que ele levasse Fanny a Beaulieu, o vigário, pouco depois da meia-noite, lançou um olhar indagador para a Sra. Pride.
Mas o rosto da Sra. Pride nada deixava transparecer com o seu nobre perfil iluminado pelo fogo reluzente, e o vigário, sabiamente, lembrou que na Floresta as coisas nem sempre são o que parecem.
A sala do tribunal estava em silêncio. Naquela manhã havia três casos de furto diante do juiz. Os acusados, cada qual sentado em um banco com um inspetor ao lado vigiando-o, teriam de observar, enquanto um após outro fosse à frente para ser julgado.
Primeiro foi a vez de um rapaz que assaltara um cavalheiro idoso e o aliviara de seu dinheiro e do relógio de ouro. Ele tinha um grande volume de cabelos pretos encaracolados e, quando menino, devia se parecer com Nathaniel Furzey. Mas, se fora outrora um garoto levado, agora havia poucos vestígios disso. Olhava para a frente, insensível e indefeso. O júri não demorou muito para considerá-lo culpado. Foi sentenciado à forca.
A pobre moça de dezesseis anos, que roubara um presunto cozido para alimentar a família, pegou uma pena mais leve. Cabelos louros, olhos azuis, quem a observava percebia que ela poderia ser tão bela quanto uma das jovens damas da Sra. Grockleton, se não tivesse passado três meses em uma cela imunda com apenas um mingau ralo e um pedaço de pão para se alimentar. Era uma pena enforcála. Portanto, foi simplesmente condenada a quatorze anos de deportação para a Austrália.
Tratava-se de casos rotineiros. Apesar de trágicos para as famílias dos condenados, não eram especialmente interessantes.
Mas o caso de uma jovem dama acusada de furtar uma peça de renda era bem diferente. O fundo da sala estava apinhado. Os jurados pareciam muito interessados. Os advogados, com suas capas e perucas negras, a observavam com curiosidade. O próprio juiz, enfim, deixou de parecer entediado.
Se o caso atraía o interesse deles, e a jovem dama, a curiosidade de todos, isso não impressionou tanto quando o juiz perguntou à acusada quem a representava e a jovem respondeu calmamente:
— Se aprouver a Vossa Graça, eu não usarei advogado. Pretendo defender a mim mesma.
Isso foi recebido com um murmúrio que correu por todo o aposento. Agora ela tinha mesmo atraído toda a atenção deles.
Pois, para quem vira Fanny Albion uma semana antes, a mudança pela qual tinha passado era notável. Trajava um simples vestido branco, cuja cintura alta, que estava na moda, dava a quem o usava um ar todo particular de castidade. Entretanto, um vislumbre no debruado de renda, na faixa de cetim e nos sapatos de seda revelavam que aquela Srta. Albion, embora modesta, era obviamente rica. E se, sob o vestido, pendia um crucifixo de madeira que outrora pertencera a uma camponesa, ninguém além de Fanny e do Sr. Gilpin sabia que se encontrava ali.
Ela estava tranqüila e confiante ao ser levada ao seu lugar, e quando a acusação foi lida e lhe perguntaram como se declarava, a resposta foi dada em um tom de voz claro e firme:
— Inocente.
Uma olhada em volta do tribunal revelou-lhe que estava bem amparada. Os Grockleton encontravam-se lá. O Sr. Gilpin, que lhe recomendara a dizer a verdade do modo mais simples, estava sentado ao lado deles. ”Precisa salvar a si mesma, Srta. Fanny, depois de tudo o que aconteceu. Agora tem a própria vida para viver.” Mas foi uma pessoa, sorrindo-lhe, que a pedira em casamento — foi Wyndham Martell quem, finalmente, a fizera prometer lutar, depois que lhe implorou: ”Faça isso, querida Fanny, por mim.”
O caso da acusação era simples. Primeiro, a assistente da loja foi chamada. Declarou que observou a ré por algum tempo, viu sua bolsa aberta, viu-a examinar a renda e deixar cair uma peça dentro da bolsa, que depois fechou antes de se encaminhar rapidamente para a saída da loja. Descreveu como correu atrás da ladra, deteve-a do lado de fora, e, na frente do gerente, a renda foi encontrada no interior da bolsa de Fanny.
— O que disse a ré diante do flagrante?
— Nada.
O tribunal foi tomado por um burburinho durante um momento, mas o juiz pediu silêncio e disse a Fanny que ela podia interrogar a testemunha.
— Não tenho perguntas, milord.
O que significava aquilo? As pessoas se entreolharam.
O gerente foi chamado. Confirmou os fatos. Novamente foi oferecida a chance de Fanny interrogá-lo. Ela eximiu-se.
Uma mulher, que havia presenciado o flagrante, deu seu testemunho. Fanny, mais uma vez, nada contestou. O Sr. Grockleton parecia preocupado, e sua esposa estava prestes a saltar do assento. Os lábios da Sra. Pride estavam franzidos.
— Chamo a ré, a Srta. Albion — anunciou o advogado de acusação.
Ele era um homem baixote e rechonchudo. As pontas de seu colarinho engomado de advogado moviam-se para a frente e para trás, diante do grosso e carnudo pescoço, quando ele falava.
— Poderia, por favor, Srta. Albion, contar ao tribunal o que aconteceu na tarde em questão?
— Certamente. — Ela falou circunspecta e claramente. — Eu andei pela loja, exatamente como foi afirmado no tribunal.
— Sua bolsa estava aberta?
— Eu não estava ciente disso, mas não tenho motivos para duvidar que estivesse.
— A senhora foi até a mesa onde estavam expostas as rendas? E nega que tenha apanhado uma peça, jogado na bolsa e seguido para a porta?
— Não nego isso.
— Não nega?
— Não.
— A senhora roubou a renda?
— Evidentemente.
— A mesma peça de renda que foi encontrada em sua bolsa, do lado de fora da loja, do modo como foi descrito pelo gerente e pela testemunha?
— Exatamente.
O advogado pareceu um tanto intrigado. Olhou para o juiz e deu de ombros.
— Milord, membros do júri, eis aí, da própria boca da ré. Ela furtou a renda. A acusação encerra.
Voltou para o seu lugar e murmurou algo para o assistente sobre a tolice de mulheres tentarem se defender sem a ajuda de advogados e ficou esperando a defesa, depois de o juiz determinar que Fanny podia começar.
O tribunal estava em silêncio total quando Fanny ficou diante de todos.
— Tenho apenas uma testemunha para depor, milorde — declarou ela. — O Sr. Gilpin.
O Sr. Gilpin instalou-se no banco das testemunhas com grande dignidade; confirmou que era o vigário de Boldre, detentor de vários graus acadêmicos, autor de algumas obras respeitadas e que conhecera Fanny e sua família toda a sua vida. Solicitado a explicar a posição social dela, explicou que Fanny era a herdeira da propriedade dos Albion e que tinha uma fortuna considerável. Fanny perguntou-lhe se ele tinha conhecimento de que ela alguma vez tivesse ficado sem dinheiro para gastar, e a resposta foi não.
Solicitado a descrever o caráter dela, ele o fez de um modo justo, explicando a natureza de sua vida razoavelmente tranqüila e da dedicação ao pai e à tia. Como, perguntou-lhe, ela tivera a chance de ir a Bath? Ele mesmo, contou à corte, precisou combinar com os Grockleton para poderem tirá-la de casa, para uma mudança de ares. Na sua opinião, ela havia passado tempo demais reclusa, com dois idosos, em Albion House.
— Como descreveria o meu estado mental nessa ocasião?
— Melancólico, apático, abstraído.
— Quando soube que eu tinha sido acusada de furto, ficou surpreso?
— Atônito. Não podia acreditar.
— Por quê?
— Porque, conhecendo-a como conheço, a idéia de que você pudesse roubar alguma coisa era inconcebível.
— Não tenho mais perguntas.
O querelante quicou e rolou em direção ao vigário.
— Diga-me, senhor, quando a ré afirmou que furtara uma peça de renda, acreditou nela?
— Certamente. Nunca soube que ela tivesse mentido em toda a sua vida.
— Portanto, ela furtou. Não tenho mais perguntas. O juiz olhou para Fanny. Agora cabia a ela.
— Tenho permissão para me dirigir à corte em meu próprio favor, milorde?
— Pois não.
Ela curvou a cabeça e virou-se na direção dos jurados.
Os dose membros do júri a observavam atentamente. Eram, na maioria, mercadores, além de dois fazendeiros locais, um escriturário e dois artesãos. Sua solidariedade natural estava com o lojista. Lamentavam pela jovem dama, mas não viam como podia ser inocente.
— Cavalheiros do júri — começou Fanny —, talvez lhes tenha parecido estranho eu não procurar contradizer nenhuma palavra das evidências apresentadas contra mim. — Eles nada disseram, mas estava claro que sim. — Nem mesmo tentei sugerir que a assistente da loja cometera um engano. — Fez uma pausa. — E por que eu o faria? Trata-se de pessoas boas e honestas. Elas lhes contaram o que viram. Por que não deveriam acreditar nelas? Eu acredito.
Ela fitava os jurados e os jurados a fitavam. Eles não tinham certeza aonde aquilo levaria, mas escutavam atentamente.
— Cavalheiros do júri, peço agora que considerem minha situação. Os senhores ouviram o Sr. Gilpin, um clérigo da mais alta reputação, falar do meu caráter. Eu jamais roubei qualquer coisa em minha vida. Também ouviram sobre minha fortuna. Mesmo se eu tivesse tendência para uma vida criminosa, e Deus sabe que não tenho, há qualquer motivo para que eu não pague por uma peça de renda? Minha fortuna é grande. Isso não faz sentido.
Mais uma vez fez uma pausa, para que aquilo pudesse ser absorvido.
— Peço agora que recordem o testemunho sobre o que ocorreu quando fui flagrada do lado de fora da loja. Ao que parece, eu nada disse. Nem uma só palavra. Por quê? — Olhou no rosto de cada um. — Senhores, foi porque eu fiquei estarrecida. Pessoas honestas disseram-me que eu havia pegado uma peça de renda. A prova estava diante dos meus olhos. Não podia negar. Não supunha que elas estivessem mentindo. E não estavam. Eu tinha apanhado a renda. Digo agora que eu a apanhei. Mas fiquei tão estarrecida que não soube o que dizer. E lhes digo, com toda a sinceridade, que não sei como responder pelos meus atos desde então. Por isso peço que acreditem: eu não sabia que o tinha feito. Cavalheiros, não faço nenhum desmentido, simplesmente lhes digo que não tive consciência de ter jogado a tal renda na minha bolsa. Nunca tinha ficado tão estarrecida em toda a minha vida.
Olhou para o juiz e, em seguida, de volta para o júri.
— Como isso é possível? Não sei. É verdade, como afirmou o Sr. Gilpin, que, na ocasião, eu estava aflita. Lembro-me que naquela tarde minha mente estava mais voltada para o meu querido pai, que andava indisposto. Pensava se devia ir embora de Bath, para ficar com ele, pois tinha a forte intuição de que ele podia estar perto do fim... uma intuição, que infelizmente, se concretizou. Foi com a cabeça repleta desses pensamentos que fiquei vagando, um tanto distraída, pela loja. Nem mesmo me lembro de ter olhado a renda, mas suponho que, com a mente completamente alheia, devo tê-la colocado na bolsa. Talvez, em minha abstração, tenha achado que estivesse em outro lugar, em casa, talvez. Pois bem, cavalheiros. — A voz dela elevou-se. — Como, sob que influência, e qual o possível motivo para eu furtar uma peça de renda de que não preciso? Por que eu, herdeira de uma grande propriedade, dedicada à minha família e a preservar o seu bom nome, de repente arriscaria tudo por um crime que eu não tinha nenhuma razão para cometer?
Inspirou fundo antes de prosseguir.
— Cavalheiros, foram-me oferecidos os melhores advogados para me defender e pensei em usá-los. Eles certamente teriam tentado lançar uma dúvida sobre o motivo, a veracidade, a confiabilidade da boa gente que me acusa. Durante algum tempo, antes deste julgamento, fui mantida em uma prisão comum. Perdi o meu bom nome, o meu pai, a minha tia, e até mesmo a casa da minha família. Deus parecia disposto a tirar tudo de mim. — Falava então com tanto sentimento que por um momento pareceu que seria incapaz de continuar. — Mas esse terrível período por que passei me convenceu de uma coisa. Que eu devia comparecer diante dos senhores e dizer nada mais do que a simples verdade. Coloco-me inteiramente à mercê de sua sabedoria e sua misericórdia. — Virou-se. — Milorde, nada mais tenho a dizer.
O júri não demorou muito tempo. Até mesmo o lojista estava inclinado a acreditar nela. Qual foi o veredicto do júri?
— Inocente, milorde.
Ela estava livre. Contudo, ao deixar o tribunal na companhia de seus caros amigos, Fanny não exultava. Do lado de fora da porta, parada ao lado de um inspetor, ela viu a pobre moça que ia ser deportada e parou um momento.
— Lamento pelo que fizeram com você.
— Estou viva — respondeu a jovem, dando de ombros. — Lá não poderá ser pior para mim do que é aqui.
— Mas sua família...
— Quero vê-la pelas costas. Nunca fez nada por mim.
— Eu podia estar lhe fazendo companhia — comentou Fanny baixinho.
— Você? Uma dama? Não me faça rir. De qualquer modo, deixariam você em liberdade.
— Não seja impertinente — disse Gilpin, sem aspereza.
Mas mesmo assim Fanny ainda se virou para trás e deu um olhar compassivo para a moça.
O casamento da Srta. Fanny Albion com o Sr. Wyndham Martell ocorreu no final da primavera daquele ano. Houve alguma incerteza sobre onde seriam realizados os festejos, mas a questão foi resolvida para a satisfação de todos depois que o Sr. Gilpin ofereceu o seu vicariato, onde, de qualquer modo, ela estava hospedada. O Sr. Totton, como o parente mais próximo, a conduziu ao altar, Edward foi o padrinho, e Louisa, a primeira dama-de-honra. Se os Totton acharam que haveria um certo comedimento dos convidados em relação a eles, por causa do noivo e da noiva, não houve sinal disso naquele dia; depois que todos cumprimentaram Louisa, disseram o quanto ela estava bonita e opinaram que também não demoraria muito para encontrar um marido.
Três dias antes do casamento Fanny recebeu um convidado inesperado. Ele apareceu na porta do vicariato segurando um presente, e, apesar de um pouco nervoso, ela percebeu que não podia recusar-se a recebê-lo, o que fez na sala de visitas.
O Sr. Isaac Seagull estava naquele dia caprichosamente vestido, metido em um elegante casaco azul, meias de seda e uma gravata bem engomada. Com uma ligeira reverência e um curioso sorriso, entregou-lhe o presente, que se tratava de uma magnífica salva de prata. Fanny recebeu-a e agradeceu, mas não pôde deixar de corar um pouquinho, já que não achara adequado convidá-lo para o casamento.
Adivinhando os pensamentos dela, o proprietário do Angel Inn, com o cínico rosto sem queixo, deu-lhe um sorriso.
— Eu não viria ao casamento, mesmo se tivesse me convidado — falou com desenvoltura.
— Ah.
Ela olhou através da janela para o gramado, que ainda estava bastante desmazelado depois das chuvas da primavera.
— O Sr. Martell sabe a respeito de nosso parentesco.
— Pode ser. Mas mesmo assim não é necessário falar a respeito dele. Não há nada de errado com segredos — observou o homem que vivia envolvido neles.
— O Sr. Martell não se encontra no momento. Estou certa de que ele teria prazer em apertar sua mão.
— Bem — afirmou o homem de terra dos contrabandistas, com uma ironia que passou despercebida a Fanny —, arrisco dizer que terei o prazer de apertar a mão dele qualquer dia desses.
Em seguida partiu. E meia hora depois o Sr. Gilpin, com um sorriso sem graça, encontrou uma garrafa do melhor brandy do lado de fora da porta dos fundos de sua casa.
— Estavam todos lá, Sr. Grockleton, percebeu? Os Morant, os Burrard e não sei mais quem de Dorset.
Depois do seu próprio casamento — e usou bastante bom senso ao dizê-lo —, a Sra. Grockleton declarou que aquele fora o dia mais feliz de sua vida de que conseguia se lembrar. E nada, nada podia se comparar ao momento em que Fanny e Wyndham Martell, parados ao lado dela, chamaram sir Harry Burrard, que se aproximou sorrindo, e a noiva anunciara com a mais simples cordialidade: ”Sra. Grockleton, estou certa de que conhece sir Harry Burrard. A Sra. Grockleton”, sorriu, ”é nossa cara amiga.” Isso, apesar de ela mal perceber, era tudo o que a Sra. Grockleton havia esperado, digamos, por toda a sua vida.
Para os demais, contudo, o acontecimento mais notável do dia foi quando o Sr. Martell fez o seu discurso.
— Sei que muitos de vocês devem estar imaginando — declarou — se é minha intenção levar da Floresta a última dos Albion. Posso lhes assegurar que não é. Embora os nossos interesses estejam em Dorset e Kent, e em Londres também, é nossa intenção construir aqui uma nova casa para substituir Albion House. — Não ficaria, porém, no antigo local arborizado da antiga casa, mas em uma enorme área a céu aberto ao sul de Oakley, onde ele pretendia assentar um parque com vista para o mar. A planta de uma bela mansão clássica já fora projetada. — E para deixar claro que nas nossas novas gerações não esqueceremos as antigas — declarou com alegria —, decidimos chamá-lo de Albion Park.
1804
Estava tudo pronto em Bucklers Hard naquela quente tarde de julho.
Os últimos três dias tinham sido especialmente agitados. Cerca de duzentos homens a mais haviam chegado dos estaleiros de Portsmouth para ajudar no lançamento. Aparelhadores, eram chamados. Estavam todos acampados em volta do estaleiro.
O lançamento no dia seguinte seria um dos mais impressionantes já realizados ali. De duzentas a trezentas pessoas iriam assistir. A elite também estaria lá, e todo tipo de gente importante de Londres. Pois no dia seguinte seria lançado o Swiftsure.
Tratava-se apenas da terceira vez na história do estaleiro que construíam um enorme navio de setenta e quatro canhões. Mesmo o Agamemnon tivera apenas sessenta e quatro. Com mil setecentas e vinte e quatro toneladas, o navio elevava-se acima da doca. Os Adams receberam mais de trinta e cinco mil libras para construí-lo.
Os negócios tinham ido bem para Bucklers Hard. Com a idade de noventa e nove anos, o velho Henry Adams ainda podia ser visto pelo estaleiro, mas os seus dois filhos comandavam tudo naquela época. Nos últimos três anos haviam construído três navios mercantes de grande cabotagem e um queche; três brigues de dezesseis canhões, duas fragatas de trinta e seis, das quais a segunda, Euryalus, fora construída junto com o Swiftsure, o poderoso navio de setenta e quatro. Outros três brigues, vinte canhões cada, já se encontravam em produção. Aliás, o estaleiro estava tão sobrecarregado de serviço que os Adams viviam constantemente atrasando os prazos, e os lucros não eram o que deveriam ser. Mesmo assim, o término do possante Swiftsure era motivo de celebração.
Puckle certamente pretendia festejar. Vinha trabalhando no Swiftsure desde que a quilha fora montada.
Tinham sido longos anos, os anos de exílio antes disso. Estivera muito ocupado. Isaac Seagull fizera uma discreta insinuação ao velho Sr. Adams; o Sr. Adams falara com um amigo dos estaleiros em Deptford, no Tâmisa, nos arredores de Londres. E, mais ou menos um mês após ter fugido pelo mar, Puckle, o contrabandista, encontrava-se patrioticamente empregado, construindo navios novamente para a marinha de Sua Majestade.
A marinha precisava de embarcações como nunca antes. Desde a chegada dele a Londres, a Inglaterra estivera em guerra, ou perto disso, com a França. Da Revolução surgira um formidável militar, Napoleão Bonaparte, um segundo Júlio César, que se tornara o senhor da França e que provavelmente pretendia ser também o senhor do mundo. Seus exércitos revolucionários o estavam varrendo todo. Na Inglaterra, somente o resoluto ministro William Pitt e os grandes navios de carvalho da marinha britânica se mantinham implacáveis, em seu caminho.
Foram anos difíceis. A guerra, as péssimas colheitas, o bloqueio francês, tudo atingiu a economia britânica. O preço do pão subiu violentamente. Havia revoltas esporádicas. Puckle, trabalhando arduamente em Deptford, ganhava o suficiente para a sua subsistência; mas, embora pudesse seguir rio acima até o movimentado porto de Londres, ou vagar pelas altas colinas e pelos abundantes bosques de Kent, sentia falta do solo macio e turfoso, das trilhas de cascalho, dos carvalhos e da charneca da Floresta. Ansiava por retornar. Esperou seis anos.
Não foi o primo fictício do Sr. Grockleton, mas um tio de sua esposa, de uma rica família de mercadores de Bristol, quem deixou uma modesta herança que permitiu ao Sr. Grockleton se aposentar. Foi com alguma surpresa, porém, que os muitos amigos dela, que incluíam até mesmo — mais ou menos — os Burrard, souberam que a Sra. Grockleton não pretendia, afinal de contas, permanecer em Lymington. Sua academia prosperava. Nada menos do que quatro moças da elite fundiária freqüentavam algumas de suas classes. O baile anual que então realizava para as jovens tornou-se um acontecimento bastante aprazível, no qual somente as mais importantes famílias de mercadores, como osTotton e os St. Barbe, eram vistas em companhia dos bem-nascidos. O Sr. Grockleton, que jamais interceptara um só barril de brandy, sabia-se, bebia, um tanto sem graça, as ocasionais garrafas deixadas à sua porta por ordem de Isaac Seagull, o qual passara a gostar muito dele. Por que então eles queriam se mudar?
O fato era que, embora ela fosse educada e complacente demais para revelar, Lymington havia frustrado a Sra. Grockleton. Aliás, a Floresta. ”São aqueles tanques de sal”, dizia tristemente. Pois os tanques de evaporação, as pequenas bombas de vento e as fornalhas continuavam lá. É verdade que recentemente haviam sido construídas uma ou duas casas muito agradáveis em Lymington, com vista para o mar. Um capitão e dois almirantes dignificaram o local, com a promessa de que viriam outros: e almirantes, a despeito de sua ferocidade, eram muito respeitáveis.
Mesmo assim, ainda faltava algo à cidade. Talvez os franceses. Em 1795, a maioria já tinha partido para campanhas contra os revolucionários na França. Haviam desembarcado lá, à força, lutado bravamente mas em vão. A expedição não fora muito bem sustentada pelo governo britânico. Poucos dos corajosos franceses retornaram. Tudo que restava para Lymington lembrar da permanência deles eram uma ou duas viúvas aristocráticas, um grande número de moças da região que tinham se casado, ou simplesmente se apaixonado pelas tropas francesas, e o inevitável número de filhos ilegítimos, todos eles provavelmente às expensas da freguesia.
Não, não era o suficiente. Com seus tanques de sal e contrabandistas, Lymington, apesar de boa o bastante, nunca seria um lugar requintado.
Mas e a própria posição dela? Não era amiga de Fanny e Wyndham Martell? E de Louisa, a cara Louisa, que se casara com o Sr. Arthur West? Não era ela, se não uma convidada constante para o jantar, pelo menos uma amistosa conhecida dos Burrard, dos Morant e até mesmo do Sr. Drummond de Cadland? Era, e esse era justamente o problema. Ela tinha alcançado o seu objetivo. O inimigo fora subjugado. Ela os enfrentara e eles eram mortais. Talvez essas boas pessoas ficassem surpresas se soubessem disso, mas, pelo menos em sua espaçosa mente, a Sra. Grockleton já as tinha ultrapassado. A Floresta não era mais grande o bastante para contê-la.
Portanto, os Grockleton foram para Bath.
E, com a aposentadoria e a partida dos Grockleton, a área ficou livre para a volta de Puckle.
Tudo fora feito na surdina. Isaac Seagull providenciou tudo. Sua velha cabana estava pronta para ele. Como também o seu emprego. E, por alguma magia da Floresta, quando voltou para o estaleiro, podia-se pensar que ninguém sequer percebera que ele havia sumido.
E, aliás, ele descobriu um outro aprazível desdobramento após sua chegada. A imensa árvore que ele ajudara a transportar através da Floresta desde a pedra de Rufus também estava lá, no mesmo lugar, à espera para acolhê-lo. Tão largas e notáveis eram as suas madeiras que o Sr. Adams as havia guardado no estaleiro até haver um navio digno delas. Esse navio era o Swiftsure. Desse modo, a abelota da mágica árvore, que verdejava no inverno, foi usada e se tornou parte de um dos melhores navios de Nelson.
Isso fora quatro anos antes, quando a construção do Swiftsure havia apenas começado, e ele estivera trabalhando nele desde então. O lançamento, no dia seguinte, portanto, de um certo modo estranho parecia-lhe uma espécie de confirmação. Tinha voltado para casa e trazido ao mundo um formidável navio. Pelo menos, teria, no dia seguinte, depois do lançamento.
O lançamento de um grande navio é algo complexo e arriscado. Em essência, é necessário transferir o enorme peso da embarcação dos cepos da quilha, sobre os quais foi construído, para uma rampa, através da qual deve deslizar em segurança e entrar na água.
Há dias Puckle andara ajudando os homens na construção da rampa. Tratava-se de trilhos feitos de olmo e, como tinham de levá-los até debaixo da água, a maior parte da obra era executada na maré baixa. Era um serviço enlameado.
O trabalho de transferir o enorme peso do navio tinha de ser feito com o máximo cuidado. Durante a construção, o navio ficara sobre os suportes da quilha, feitos de olmo, que tinham cerca de um metro e meio de altura, e colocados distantes uns dos outros nessa mesma medida. Do lado de fora, em volta do casco, altos postes de madeira, entre dez e doze metros de altura, como mastros de um navio, serviam de andaimes. A partir de baixo, o mais próximo da água, os aparelhadores agiram rapidamente, enfiando enormes cunhas de madeira para levantar o navio dos cepos e depois colocá-lo sobre suportes de madeira que o guiariam abaixo para os trilhos. Tratava-se de uma demorada operação e exigia grande perícia. Se o navio desse uma guinada, podia rachar na lateral. Se o ângulo da rampa fosse pequeno, ele podia não se lançar à água. Se fosse muito grande, ele podia ir muito depressa para a água, seguir adernando e encalhar nos bancos de lama do outro lado do rio. Tais coisas já tinham acontecido. Se tudo corresse bem, porém, a subida da maré por baixo da popa elevaria o navio dos cepos, as cunhas que o sustentavam seriam retiradas e, lentamente, com cabos de arrasto, ele deslizaria suavemente para o rio de Beaulieu, primeiro a popa, para ser rebocado, correnteza abaixo, até o Solent.
Puckle andava em volta do navio. Ele adorava o perfil da imensa quilha e a habilidade manual que fora empregada nela. A parte interna da quilha fora feita com divisões utilizando-se olmo. Por fora dela, havia uma outra quilha externa de carvalho. Quando os navios desciam os trilhos da rampa, ou se, depois, encalhassem, era essa quilha externa que agüentava o atrito, protegendo a quilha interna de algum dano.
Ele ficaria no estaleiro naquela noite, pois, antes de o navio ser lançado, ainda havia um serviço vital a ser feito.
A ocasião normal de lançamento de uma embarcação em Buckler’s Hard era uma hora antes da maré alta. Na maré mais baixa, portanto, que naquela noite ocorreria pouco antes do amanhecer, grupos de operários desceriam para engraxar os trilhos com uma mistura de sebo derretido e sabão. Puckle pedira para ser um deles. Não perderia por nada aqueles últimos preparativos que antecederiam a alvorada.
Naquela noite, a lua estava em quarto crescente, e o céu, repleto de estrelas. Em Albion Park, a clara e clássica fachada da casa fitava, além do brilho tênue da amplidão de seus gramados, o suave declive do cinturão de pequenos campos e bosques que mergulhavam, como em um alegre sonho, nas águas do Solent. Mais além, claramente visível ao luar, o longo perfil da ilha de Wight postava-se como um dócil guardião.
Naquela bela e pacífica casa, todos dormiam. Os cinco filhos de Fanny e Wyndham Martell dormiam contentes na ala dos quartos das crianças. A Sra. Pride, agora já um pouco idosa, mas ainda no controle de tudo — nem uma mosca se mexia naquela casa sem a sua permissão —, dormia tranqüilamente. Toda a família seria levada para se juntar às mais de cem carruagens que chegariam para assistir ao lançamento do Swiftsure pela manhã.
Todos dormiam. Ou quase todos.
O Sr. Wyndham Martell não estava dormindo. Ele acordara uma hora antes, por um ruído emitido pela esposa, e agora estava sentado, observando-a preocupado.
Nas últimas semanas ela dera para falar enquanto dormia. Ele não sabia por quê. Ela fizera aquilo antes, em pequenos surtos, que duravam uma ou duas semanas e depois cessavam, como se fossem intrincadas ondas ocultas em sua mente que ele desconhecia. Às vezes conseguia entender alguma coisa. Murmurava sobre a tia, a Sra. Pride, Alice Lisle. Também houve conversas que pareciam ser com Isaac Seagull. O Sr. Gilpin também era o receptor de algumas de suas confidências. Mas houve um sonho dela que pareceu lhe causar uma aflição em particular; agitou-se, virou-se na cama e depois gritou. Naquela noite ela tivera o mesmo sonho.
Wyndham Martell amava muito a esposa. Queria ajudá-la, mas não sabia o que fazer. A maior parte do palavreado dela não fazia sentido. Mesmo quando ficava aflita nem sempre era possível entender os gemidos e os gritos que emitia. E pela manhã, ao acordar, ela ria para ele, amorosamente, e estava perfeitamente bem.
Naquela noite, porém, ele achou ter entendido um pouco mais.
Wyndham Martell levantou-se e caminhou até a janela. A noite estava cálida. Além do parque, ele podia ver o litoral e, passando pela língua de terra de Hurst Castle, o mar aberto mais além. Sorriu consigo mesmo: aquele era o território de Isaac Seagull, o contrabandista. O primo de sua esposa. Lembrava-se bem da noite em que Louisa lhe contara aquilo e como a maldade dela fizera com que sentisse pena de Fanny. Talvez, pensou ironicamente, tenha sido a revelação daquele segredo sombrio que o atraíra à esposa que amava.
Talvez todo mundo, refletiu, guardasse dentro de si segredos dos quais nem mesmo tivesse consciência.
Então, porque amava a esposa e todos os segredos dela, saiu silenciosamente do quarto, desceu para a sua biblioteca privativa e, sentando-se à escrivaninha, pegou um pedaço de papel. Ia escrever uma carta para a esposa.
Ficou parado um instante, enquanto pensava com todo o cuidado, e então começou.
Minha querida esposa,
Cada um de nós tem segredos, e, portanto, existe algo que também preciso confessar.
Foi uma longa carta. O dia estava quase raiando quando ele a terminou e lacrou.
Em Bucklers Hard, Puckle ocupava-se com o seu trabalho. A maré estava baixa. Escorregando feliz na beira lamacenta do rio, ele agitava o pesado pedaço de couro ensopado no trilho de madeira. Acima dele, o escuro vulto do Swiftsure assomava como um amigo sob as estrelas que sumiam. Do outro lado do rio de Beaulieu, um pássaro começou a cantar de repente, e, olhando em direção ao oriente, Puckle viu o primeiro e tênue vestígio da luz da alvorada.
O Swiftsure seria lançado naquele dia. Ao olhar para cima, em direção à enorme embarcação, embora não soubesse se expressar em palavras, Puckle refletiu, mais uma vez, sobre o modo pelo qual, naquele imenso navio de madeira, as árvores haviam se convertido em uma segunda e talvez igualmente gloriosa vida. E o seu coração se encheu de alegria por saber que a própria Floresta, com todos os seus segredos e muitas maravilhas, deslizaria daquela maneira pelos trilhos e se juntaria ao mar sem fim.
Pride da Floresta
1868
Estação ferroviária de Brockenhurst: um dia ensolarado de julho. A locomotiva a vapor de chaminé alta tinha um brilho de cobre brunido, como uma cobra que acabara de soltar a pele, ao sibilar e fumegar na plataforma. Atrás dela, uma fila de atarracados vagões marrons, as vidraças esfregadas e os latões das janelas polidos por guardas elegantemente uniformizados, estava à espera para receber os passageiros, que seriam levados, com um orgulhoso chocalhar e a uma velocidade de cinqüenta quilômetros, pelos cento e doze de distância até Londres.
A linha da London and South-Western Railway era algo notável, um símbolo de tudo o que havia de melhor na nova era industrial. Mais ou menos uma década antes ela fora estendida em direção oeste, através da Floresta, até Ringwood e descendo até Dorset. Mas como compensação à Floresta por aquela intromissão, o diretor da linha, o Sr. Castleman, concordara em seguir uma rota tortuosa que causasse o menor dano possível à mata, e por isso a sua linha era conhecida como Castlemans Corkscrew (Saca-rolhas de Castleman). Em Brockenhurst, onde os currais de gado e de pôneis eram limítrofes à estação, as locomotivas também faziam escala para se abastecer de mais água.
As duas figuras que caminhavam ao longo da plataforma formavam um curioso contraste. O homem mais velho, quase sessenta anos, era em cada centímetro um cavalheiro vitoriano. Como o dia estava quente, não usava uma sobrecasaca sobre a túnica cinza. Seu colarinho de ponta virada era envolvido por uma gravata amarrada com um laço frouxo. Levava uma bengala de castão de prata. A alta cartola preta tinha sido esfregada até brilhar; não havia uma só mancha de poeira em suas calças. Quanto aos sapatos, o menino encarregado das botas cuspira e engraxara tão bem antes do raiar do dia, que produziram pequenos clarões quando foram colhidos pela luz do sol. Rosto corado, olhos azuis, cabelos brancos e um comprido bigode pendente, o coronel Godwin Albion ficaria feliz em saber que se parecia com Cola, o Caçador, seu ancestral saxônico, e, com toda a probabilidade, concordaria com este na maioria dos assuntos importantes.
Se o coronel Albion tinha ao menos uma fração de nervosismo em relação ao que o aguardava, não deixava transparecer na ocasião mais do que deixara uma dezena de anos antes quando liderou seus soldados em uma batalha na Guerra da Criméia. Se conseguiu enfrentar os russos, lembrou a si próprio, então podia certamente enfrentar uma Comissão Seleta de seus colegas conterrâneos, ainda que fossem todos eles pares do reino. Encolheu os ombros, portanto, e seguiu adiante corajosamente.
A figura ao seu lado, cerca de dez anos mais jovem, também exibia sua elegância, de um modo diferente. Estava vestido com a melhor roupa de domingo — uma sobrecasaca um tanto informe feita de material resistente. Na cabeça, um chapéu de aba larga de homem do campo. As botas, de acordo com as instruções expressas do coronel, brilhavam. Como a maioria dos trabalhadores, ele não via sentido no intenso polimento que os bem-nascidos e os militares davam às suas botas, já que elas iam mesmo se encher de poeira novamente. A barba estava caprichosamente penteada, e sua esposa continuava a escovar o seu casaco até o coronel chegar para apanhá-lo. Mas enquanto o Sr. Pride, arrendatário de uma pequena propriedade em Oakley, caminhava alegremente com passadas largas e um modo de andar levemente saltitante ao lado do seu senhorio, provavelmente estava menos preocupado do que o coronel em relação à perspectiva à sua frente.
Além do mais, se o coronel queria que ele fizesse isso, então, no que dizia respeito a Pride, era motivo suficiente. Ele conhecera o coronel toda a sua vida, e os pais dele também. Além de ser o seu senhorio, o coronel era um homem em quem se podia confiar. Quando, poucos anos atrás, o coronel formara um time local de críquete para jogar no gramado de Oakley e Pride revelara uma incontestável aptidão como marcador de pontos, havia se criado um vínculo a mais entre eles, que, tanto quanto o permitiam as classes sociais, quase podia ser chamado de amizade.
Apenas uma nuvem escurecia o horizonte dele. Seu filho George. Os dois mal tinham se falado naqueles últimos anos. Até três dias atrás, quando o rapaz apareceu implorando-lhe para que não fosse, receoso de perder seu emprego. Seu rosto entristecia quando pensava naquilo; não queria arruinar o filho.
”Então você não devia ter ido trabalhar para Cumberbatch”, dissera ele friamente. E partira com o coronel.
Ele nunca estivera em Londres. Havia lido a respeito. Tal como o pai Andrew, antes dele, freqüentara a escolinha fundada por Gilpin e era muito interessado em jornais. Mas essa seria sua primeira vez na capital; portanto, o dia era sem dúvida uma aventura. O fato de estar prestes a enfrentar um grupo de pares do reino nada significava em particular para ele. Supunha que seriam como couteiros fidalgos. E, de qualquer modo, se eles fossem demônios encarnados ou um coro de anjos, ele sabia quem ele mesmo era. Era Pride da Floresta. Isso era o suficiente para ele.
O coronel, porém, com uma diferença de pensamento mais sutil, não lamentou quando, ao seguirem pela plataforma, enxergou outra figura de cartola, com uma farta barba castanha, aguardando na entrada do vagão da primeira classe. Pois, embora o colega dono de terras, o senhor da grande propriedade de Beaulieu, tivesse um pouco mais da metade de sua idade, era filho de um duque, o que não era pouca coisa na Inglaterra vitoriana.
— Meu caro coronel. — O aristocrata tirou o chapéu e até mesmo fez um meio sinal de cabeça para Pride.
— Meu caro lord Henry.
— Estamos aqui, creio eu — sorriu-lhes o lord Henry —, para salvar New Forest.
No ano de 1851, o décimo quinto do reinado da rainha Vitória, os membros do Parlamento inglês aprovaram uma lei que provocou a maior mudança em New Forest desde os dias de Guilherme, o Conquistador.
Eles decidiram matar todos os veados.
Ninguém sabia exatamente quantos veados havia: certamente, sete mil; talvez mais de dez. Veados-nobres machos e fêmeas, cervos e cervas, gamos e gamas, corços e corças — todos deviam morrer. A Lei de Supressão dos Cervídeos foi o nome pelo qual a medida ficou conhecida.
Claro que por séculos, como uma fazenda de veados, New Forest tivera alguma justificativa econômica. Os veados recolhidos a cada ano iam para antigos funcionários ou donos de terras cujas propriedades ficavam na área. Aliás, calculava-se que cada veado morto custava à Coroa a astronômica quantia de cem libras! A Floresta era um anacronismo, seus empregos, uma sinecura, e os adoráveis veados para nada serviam. Mas não era por isso que todos deveriam morrer.
Morreriam para dar lugar a mais árvores.
Desde as primeiras podas dos tempos medievais, a Coroa tinha interesse nas árvores da Floresta. Quando o monarca folgazão Carlos II começara suas plantações, dera início a uma abordagem mais organizada em relação à questão da madeira; mas a primeira vez que o Parlamento se voltou para o assunto foi através de uma lei de 1698, quando se decidiu estabelecer cercados para o desenvolvimento da madeira. Rebanhos — de veados, gado e pôneis — ficariam contidos até os rebentos das árvores estarem crescidos o bastante para não serem comidos por eles. Então, o cercado seria aberto novamente, para os rebanhos pastarem na vegetação rasteira, e um novo cercado feito mais adiante. Mas, apesar de terem sido feitos alguns cercados com carvalhos e faias, o negócio não foi adiante. Aliás, a maioria dos carvalhos derrubados para os navios da marinha em Buckler’s Hard vinha da Floresta a céu aberto, e não das plantações. Os antigos bosques e charnecas medievais permaneciam os mesmos como sempre foram.
Isso tudo não era um chocante desperdício? O Império Britânico expandia-se, a Revolução Industrial introduzira um mundo moderno de vapor e aço. No ano de 1851, a Grande Feira de Londres, com o seu imenso Palácio de Cristal, feito de ferro e vidro, atraía trens lotados de ávidos visitantes de toda a Inglaterra para ver os resultados do progresso industrial em escala mundial. Na zona rural, máquinas agrícolas chegavam à terra; um novo e enorme programa de cercados havia dividido os antigos esbanjadores campos comunais e terras desertas comuns em eficientes unidades particulares. As pessoas foram expulsas da terra, logicamente, mas havia empregos para elas nas florescentes cidades manufatureiras. Claro que estava na hora de criar plantações metódicas nas regiões incultas e não reformadas da Floresta.
Em 1848, os membros da Comissão Seleta da Câmara dos Comuns investigou a Floresta. Ficaram chocados com o que encontraram: funcionários pagos para não fazer nada; os encarregados das matas vendendo madeira em benefício próprio; venalidade, criminalidade. Em suma, o lugar continuava como vinha sendo durante os últimos novecentos anos. Concluíram que era necessária, imediatamente, uma reforma.
Prosseguiram com uma lógica que só podia causar admiração. Os veados, como não serviam para nada, tinham de sair. Mas se a Coroa não criaria mais os veados, ela então teria de ser compensada. Quaisquer vozes em protesto, alegando que ao se livrar dos veados a Coroa estaria na verdade poupando a si mesma de uma perda, foram sufocadas. A compensação foi fixada em mais de cinco mil hectares e meio de terra a serem cercados para mata — isso, além dos cerca de dois mil e quinhentos designados, apesar de nem todos tomados, pela antiga lei de 1698. Finalmente, para deixar muito bem claro os novos interesses da Corte, os comunais que partilhavam a Floresta ficariam sob o controle do Office of Woods (Ministério das Matas). Não houve consulta à população. No breve período antes da apre-
PRIDE DA FLORESTA
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sentação da proposta e da legislação, os cinco maiores proprietários de terras da Floresta conseguiram reduzir os novos cercados propostos para quatro mil hectares. Em seguida a medida foi aprovada rapidamente.
Logo depois o dia-a-dia da administração da Floresta foi colocado nas mãos de um novo delegado superintendente. Seu nome era Cumberbatch.
Teria ele se equivocado em trazer Pride? Não havia muita gente na Floresta que ligasse para o Ministério das Matas, mas a aversão de Pride por Cumberbatch era lendária. Por outro lado, ele poderia ser uma excelente testemunha. O melhor tipo de pequeno proprietário que a Floresta tinha a oferecer. Era um risco, claro, mas ele treinara cuidadosamente seu arrendatário.
Desde que ele contivesse o seu gênio.
A presença de lord Henry, ao contrário, era profundamente tranqüilizadora. Não apenas era uma ajuda a elevada posição de lordHenry, mas, como proprietário de Beaulieu e também como membro do Parlamento com assento na Câmara dos Comuns, ele tinha uma real influência em Westminster.
De certo modo, refletiu Albion, a situação deles era semelhante. Quando Wyndham Martell morreu, ele havia divido as suas posses entre os três filhos: a antiga propriedade de Dorset foi para o mais velho, a terra em Kent para o segundo, e a menor, em New Forest, originalmente de Fanny, foi para Godwin, que adotara o sobrenome da mãe, em vez do do pai, por achá-lo mais de acordo para o dono da antiga herança Albion. Se as posses de Wyndham Martell tinham sido grandes, as do duque eram vastas. Apesar de ser um descendente dos reis Stuart, através do desditoso Monmouth, como também um Montagu, grande parte de sua ascendência vinha da aristocracia escocesa. Suas terras, ao norte e ao sul dos limites da Floresta, totalizavam dezenas de milhares de hectares. Para ele, foi uma questão de pequena monta doar, ao segundo filho, três mil hectares da propriedade de Beaulieu como presente de casamento; mas foi uma questão de grande monta para New Forest. Pois, embora o duque e sua família sempre tivessem sido bons senhores de Beaulieu por intermédio de seus administradores, não era a mesma coisa ter um proprietário residente; visto que agora lord Henry — como filho de um duque, o título de lorde foi acrescido a seu nome como cortesia — colocara em prática o projeto de reconstruir a abadia em ruínas, transformando-a em residência da família, e estava desenvolvendo um grande interesse pelo lugar.
Estava na hora de embarcar no trem. O coronel tinha dado a Pride uma passagem para o vagão da segunda classe. Em companhia de Henry, preparou-se para subir no da primeira classe, e assim que colocou o pé no vão da porta uma voz
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EDWARD RUTHERFURD
chamou-o de mais abaixo, da plataforma, fazendo com que se virasse e quase perdesse o equilíbrio.
— Cuidado — disse a voz bem-disposta. — O senhor quase caiu.
O dono da voz, que agora vinha com um andar tranqüilo e oscilante em direção a eles, estava na casa dos vinte anos. Vestia um folgado casaco de veludo e um largo chapéu de feltro. Debaixo do braço carregava uma bolsa a tiracolo. Esses atributos, juntamente com o pequeno cavanhaque pontudo e os longos cabelos louros encaracolados que atingiam os ombros, sugeriam que o jovem cavalheiro era alguma espécie de artista.
— Está indo para Londres? — perguntou ele amavelmente.
O coronel não respondeu, mas o queixo retesou-se e a mão ficou cerrada, como se ele estivesse prestes a cortar um russo com o seu sabre.
— Eu estou indo para ver alguns quadros — continuou o jovem, e, em seguida, olhando para lora Henry: — Já fomos apresentados?
Então, como se fosse apenas para deter o seu fluxo de fúria, o coronel Albion virou-se para encarar o jovem.
— Nada tenho a lhe dizer, senhor — rosnou. — Passar bem! — E arremessou-se adiante para o interior do vagão, como se este fosse uma bateria russa.
— Como lhe convier — disse o rapaz alegremente e dirigiu-se a uma outra porta. A locomotiva lá na frente, sem dúvida solidária com o coronel, descarregou uma forte baforada de vapor.
Somente algum tempo depois, quando a locomotiva bufava com um intenso chocalhar em direção aos arredores de Southampton, lord Henry aventurou-se a indagar:
— Quem é aquele jovem?
E o pobre Albion enterrou o rosto nas mãos e, por entre dentes trincados, informou-o:
— Aquele, senhor, é o meu genro.
— Ah. — Lord Henry não fez mais perguntas. Já ouvira falar em Minimus Furzey.
Não demorou muito para Albion perceber o jogo deles. A Sala da Comissão estava apinhada. Cumberbatch e seus amigos, os donos de terras da Floresta, estavam todos presentes; e, sentados atrás de uma comprida mesa diante deles, havia dez homens, todos lordes da lei ou pares do reino. Percebeu o jogo deles pelo modo como o olhavam.
O coronel Albion sempre sentira orgulho pelo fato de ser descendente de duas das mais antigas famílias do sul da Inglaterra. Não era arrogante por causa disso, mas havia uma satisfação em saber que ninguém, nem os mais poderosos do país, podia lhe dizer que não era um fidalgo ou que ele não pertencia à elite. Também tinha orgulho pelo fato de, embora pudesse ter adquirido a sua capitania, ter avançado até o posto de coronel inteiramente por méritos próprios. Sua posição social entre os bem-nascidos da Floresta era tão sólida quanto um castelo sobre uma rocha.
Mas os aristocratas que agora o encaravam eram de um tipo diferente. Suas famílias podiam não ser tão antigas, mas eles não se importavam. Suas propriedades eram maiores; pertenciam àquele clube seleto que governava o país. E para eles — eram corteses demais para dizê-lo, mas via-se nos seus olhos — ele era apenas um fidalgo rural com as faces coradas.
— Coronel Albion, o senhor é ou não é um comissário governamental da Lei de Supressão dos Cervídeos?
— Sou.
Havia treze comissários cujo trabalho era supervisionar a aplicação da Lei de Supressão dos Cervídeos e em particular aprovar quaisquer novos cercados. Três eram do Ministério das Matas, inclusive Cumberbatch, e depois vinham os quatro couteiros escolhidos pelo governo, embora o seu poder fosse apenas uma sombra do que fora nos tempos medievais. O restante eram cavalheiros ou comunais que mantinham direitos de propriedade pública na Floresta. Albion, com extensos direitos e numerosos arrendatários, era um membro natural para fazer parte da Comissão.
— E por que, coronel, na sua opinião, tem havido tanta oposição à Coroa? Oposição? Claro que tinha havido oposição: cercas quebradas, plantações
jovens incendiadas. Era o modo pelo qual os habitantes mais pobres da Floresta mostravam como se sentiam, e, francamente, ele não os censurava. Cumberbatch talvez quisesse caracterizar aquilo como uma rebelião contra o monarca, ele não ia deixá-lo fazer aquilo impunemente.
— Tem havido oposição ao Ministério das Matas — disse ele calmamente —, mas os comunais de New Forest, como eu, são ingleses leais e sempre desfrutaram de proteção especial da Coroa. Até recentemente — acrescentou. - „
— Coronel, o senhor poderia resumir quais, no seu ponto de vista, têm sido as causas do descontentamento que domina a Floresta desde a Lei de Supressão dos Cervídeos?
— Certamente. — Ele podia ser apenas um rude soldado ou um fidalgo rural, talvez lhe faltasse a educação que o pai Wyndham usufruíra em Oxford, mas o depoimento dado pelo coronel Godwin Albion à Comissão da Câmara dos Lordes teria deixado seu pai orgulhoso. Foi conciso, preciso e elegante. — Meu depoimento divide-se em duas partes — explicou. — O primeiro é político, e o segundo, material.
Foi um relato melancólico.
Por que, o coronel costumava se perguntar, tinham escolhido Cumberbatch? Ele era jovem demais, apenas no começo dos seus vinte anos, quando chegou lá. Parecia e comportava-se como um pugilista no ringue. Nada sabia sobre a Floresta e importava-se menos ainda. E, logo de início, atacara a gente da Floresta com a vingança.
Seu primeiro assalto tinha sido absurdo. Na época em que a Floresta conseguia uma vigorosa preservação dos veados, os comunais mantinham os seus rebanhos fora da Floresta durante o mês do resguardo, quando os veados davam à luz, e por todo o ”heyning” de inverno, como eram chamados os meses frios, durante os quais o alimento era escasso. Não que essas regras viessem sendo cumpridas durante décadas. A suposição generalizada era a de que, uma vez que pagavam, isso lhes dava o direito de pastagem pelo ano todo. E, com o desaparecimento dos veados, não fazia mais sentido mesmo aplicar-se essas leis medievais. Assim que chegou, Cumberbatch tentou manter os rebanhos fora da Floresta durante esses meses. Tratava-se de um atrito despropositado, o qual, se prosseguisse, arruinaria a maioria dos comunais.
Aquilo, porém, fora apenas o começo. A seguir, fizeram um novo registro dos direitos comuns — em essência, uma atualização do antigo registro de 1670 —, mas com uma grande diferença. Praticamente cada direito comum concedido, desde as grandes concessões, como as da propriedade dos Albion, àquelas do menor dos pequenos proprietários, estava sendo contestado pela Coroa.
— Vossas graças, isso só poderia levar uma pessoa sensata a concluir que a intenção era destruir os comunais. Só as custas legais os aniquilariam. Contudo, mesmo isso foi suplantado por outra questão.
A despeito do fato de a Lei de Supressão dos Cervídeos ter provocado mudanças radicais, muita gente ainda esperava que houvesse alterações mais drásticas. O raciocínio era simples: se o Ministério das Matas e os comunais não conseguiam entrar em um acordo sobre como compartilhar a Floresta, por que então não dividir o lugar de uma vez por todas? Os comunais ficariam com as suas terras, o Ministério das Matas com seus cercados, e nunca mais precisariam importunar um ao outro — o grande problema era garantir para que um lado não ficasse com todas as melhores terras à custa do outro.
— Refiro-me, é claro — prosseguiu Albion —, à famosa carta do Sr. Cumberbatch.
Famosa. Infame. Talvez tenha sido injusto que tal documento — uma carta particular, para os seus superiores, indicando os locais mais vantajosos para eles tomarem — se tivesse tornado público. Mas em 1854 foi publicada num relatório sobre a Floresta, e todo mundo a leu. A questão proposta pelo jovem delegado superintendente foi inteligente e brutal. Já que havia uma boa chance de a Floresta acabar sendo dividida, argumentou ele, o Ministério das Matas deveria fazer os seus cercados, o mais rápido possível, em todas as melhores terras. Com essas terras, para todos os efeitos práticos, retiradas da equação, as futuras porções dos comunais estariam destinadas a valer muito menos.
— Nada, durante os últimos vinte anos, tinha causado tanto descontentamento — frisou Albion. — Foi dito aos comunais, sem a menor dúvida, que é a intenção da Coroa destruí-los. Essa, Vossas Graças, é a política atual da Floresta.
Eles se importavam? Era difícil saber.
— Chego agora à ameaça material. — Olhou-os com severidade. — Vossas Graças precisam entender o problema principal. As árvores crescem melhor nas terras mais férteis, e é nelas também onde há o melhor pasto. Portanto, o cultivador de árvores e o fazendeiro comunal querem ambos as mesmas partes da Floresta. Em segundo lugar, costuma-se supor que, após a terra ser cercada para cultivo de árvores e estas atingirem uma determinada altura, pode-se voltar a abrir o cercado para a pastagem. Isso não é verdade. Com os métodos atuais de cultivo, as árvores crescem tão juntas que resta pouca cobertura de solo abaixo delas. Os novos cercados são perdidos, por gerações, para o pasto. Inevitavelmente, portanto, os cultivadores de árvores procuram destituir os fazendeiros de suas melhores terras por um período infinito.
— Disse ”procuram destituir”, coronel. Isso não supõe uma agressividade por parte do Ministério das Matas em relação às pretensões deles?
— Não se trata de suposição. Tenho incontestável prova material de que isso é altamente agressivo. Essa é a minha questão. Primeiro, disseram-lhes com freqüência que iam cercar partes de seus hectares e reabrir os cercados posteriormente... o que acabei de explicar que não funciona... e depois cercaram novamente o mesmo montante. Não creio que a Lei permita isso, mas, se for o caso, os cercados evidentemente acabarão por dominar a maior parte da Floresta.
”Mais de imediato, contudo, eles têm feito algo bastante inteligente — prosseguiu. — Disseram que ainda têm autorização para fazer cercados, baseados na antiga legislação de 1698, que nunca foi cumprida. Com isso, acrescentaram esses aos quatro mil hectares permitidos pela Lei e acabaram vários milhares a mais. — Deu um olhar de viés para Suas Graças. — Vossas Graças, pode ser que isso seja legal. Mas permitam-me mostrar-lhes a astúcia da coisa. Os senhores recordam que, com base na Lei de Supressão dos Cervídeos, ficou estabelecido que nenhum cercado podia ter menos do que cento e vinte hectares. Isso era exatamente para evitar que o Ministério das Matas escolhesse pequenas porções das melhores terras por toda a Floresta. Mas, ao afirmar que iam lançar mão das quotas não utilizadas da legislação, habilmente contornaram a intenção do Parlamento. Eis uma lista dos cercados. Eu os convido a passar uma vista nelas.
Ele fizera o seu serviço com todo o cuidado. A lista mostrava exatamente o que dissera: uma vintena de hectares aqui, uma centena ali, duzentos mais adiante — tudo na melhor terra existente.
— E isso não é tudo — continuou o coronel. — Chegamos agora aos cercados feitos com base na Lei. Cerca de mil e seiscentos dos quatro mil hectares já foram utilizados até agora. Individualmente, cada cercado deve ter no mínimo cento e vinte, como devem se lembrar. A Lei foi obedecida? Claro que foi. E quero lhes mostrar de que modo. Fiz alguns mapas. Trata-se de algo que nós, velhos soldados, aprendemos a fazer — ajuntou, espirituosamente. —Talvez os senhores queiram apreciá-los.
Ao olharem os mapas, algumas de Suas Graças sequer conseguiram conter um sorriso. Os novos cercados até podiam ter cento e vinte hectares, mas as formas eram fantásticas. Aqui, um comprido braço ao longo de uma rica pastagem; ali, uma grande curva para evitar um pedaço de terra de solo pobre. Um dos cercados tinha a forma de um imenso ”C”.
— Vossas Graças — falou divertido o bom coronel —, estamos todos sendo tomados por idiotas.
Ano após ano aquilo vinha sendo feito. Cumberbatch e seus homens, com sanção legal, roubavam a melhor terra dos comunais, silenciosa mas sistematicamente. Nada havia que alguém pudesse fazer. Até dois anos antes.
A reunião que precipitara a crise tinha acontecido depois que os comissários, que havia anos não se reuniam, foram convocados repentinamente e informados, sem qualquer consulta ou advertência, para aprovar cercados que incluíssem o restante de toda a terra permitida pela Lei. Dois mil e quatrocentos hectares: a maior apropriação de terras jamais tentada. Quando manifestaram seu choque, Cumberbatch disse-lhes que seriam destituídos da Comissão.
Chegara a hora de lutar. Em poucas semanas, os maiores proprietários de terras da Floresta encontraram-se e formaram uma sociedade — a Associação de New Forest. O coronel ingressou, é claro. E também um dos couteiros, um Sr. Eyre, cuja família possuía extensas terras no norte da Floresta. Outras famílias, como os Drummond, os Compton de Minstead, e os senhores da antiga propriedade de Bisterne estavam prontos para defender suas heranças. Sir Henry, que possuía a maior propriedade de todas, era um membro-chave. Houve também uma adesão muito bem-vinda aos seus quadros: um certo Sr. Esdaile, que cerca de dezoito anos antes comprara uma terra na antiga e sombria aldeia de Burley — um recém-chegado em termos de Floresta, portanto —, mas cujo conhecimento jurídico tornava-o inestimável. Preparou-se uma petição. O Ministério das Matas foi forçado a parar. E agora ali estavam eles, no próprio augusto cenário da Câmara dos Lordes, lutando pela Floresta.
— Coronel Albion. — Outro par do reino, mais jovem do que os demais, dirigiu-se a ele. — Posso lhe perguntar se os seus colegas comissários, fora os três do Ministério das Matas, também se opõem a esses cercados?
Albion encarou-o circunspecto. Ele sabia o que significava aquilo. Grockleton. Maldito homem. Por que o magistrado de Southampton resolvera envolver-se com os assuntos da Floresta ele não sabia ao certo, mas alguns anos atrás ele havia comprado quarenta hectares com direitos de propriedade pública e entrou para a Comissão. Ele e o delegado superintendente pareciam concordar em tudo. Pelo que se conseguiu descobrir, Grockleton queria ver toda a Floresta como uma imensa plantação comercial, sem quaisquer humanos nela.
— Não saberia dizer — respondeu o coronel com tranqüilidade. — Segundo acredito, a maioria se opõe; mas não cabe a mim falar por eles.
— Entendo. O senhor apresentou a queixa em nome dos comunais em geral, não foi? E de quem são esses direitos, em termos gerais, de cerca de mil?
— Os direitos de propriedade pública variam. Acredito que haja bem mais de mil residências com direitos de um tipo ou de outro.
— Entretanto — o jovem nobre tinha agora um cintilar de triunfo nos olhos —, não são os membros da Associação de New Forest, os principais donos de terras, como o senhor, que têm mais a perder ou ganhar nisso?
Era isso: o coronel viu claramente como o dia. Cumberbatch e Grockleton haviam se aproximado daquele jovem par do reino. Pois era sempre essa a linha adotada pelo Ministério das Matas: se você se opunha a ele, então devia estar fazendo isso por interesse próprio. Ele sorriu docemente.
— Muito pelo contrário. — Viu a testa do jovem par do reino enrugar. — Saiba o senhor — prosseguiu mansamente — que, enquanto for verdade o fato de eu poder alugar um hectare com direitos comunais por muito mais valor do que um sem esses direitos, isso não irá me arruinar. E se um dia a Floresta perder sua integridade e for dividida... disafforestedé o termo técnico, como deve saber... nós, os grandes proprietários de terras, provavelmente receberemos uma justa compensação. Mas o povinho, sem a imensa Floresta a céu aberto, ficará arruinado. E, falando por mim mesmo, não quero ver isso acontecer. — Fez uma pausa. — Claro — acrescentou, como se um pensamento tivesse acabado de lhe ocorrer —, pode haver proprietários que pensem o contrário. Meu colega comissário, o Sr. Grockleton, por exemplo, tem terras e alguns arrendatários. Se ele se importa com a sorte deles, eu não saberia dizer. — A estocada atingiu em cheio. Mas o jovem nobre ainda não estava derrotado.
— Os pequenos proprietários e arrendatários da Floresta, coronel, não formam uma população bem assentada? O que pretendo dizer é que o senhor não poderia chamá-los de fazendeiros ou pequenos proprietários estáveis, poderia?
Ele devia ter adivinhado o que viria pela frente. Mais cedo ou mais tarde, toda vez que falava com forasteiros, aquilo sempre surgia. As classes fundiárias sempre tiveram uma clara opinião sobre os camponeses. Os bons camponeses viviam nas terras a céu aberto e tiravam o chapéu para você. Mas, ao chegar à região montanhosa, cuidado. E, na escura floresta, bandoleiros viviam lá; caçadores clandestinos; carvoeiros e latoeiros. Quem sabia de que tipo de gente descendiam aqueles plebeus de New Forest? Deveriam os legítimos interesses da Coroa ser contidos por uma população de vagabundos indolentes?
— Sugiro que Vossa Graça julgue por si mesmo — rebateu Albion amistosamente, sorrindo. — Pois a próxima pessoa a quem irá entrevistar é um deles. Meu arrendatário, o Sr. Pride.
Por fora, o coronel sorriu; por dentro, fez uma oração. Agora descobriria se estivera certo em correr o risco. Até então Pride não tinha se tornado abusivo e enfraquecido o caso deles. Sabe Deus o quanto ele lhe falara com franqueza, e Pride havia prometido ser ponderado.
O outro problema era o jovem George, o filho de Pride.
Pessoalmente, Albion não censurava George Pride por ter conseguido um emprego no Ministério das Matas. Outros haviam feito o mesmo. Um emprego é um emprego. George tinha uma jovem família em que pensar. Mas o Pride mais velho pensava diferente. Jurou nunca perdoá-lo; e, desde que George passara a trabalhar para Cumberbatch, seu pai não falava com ele. A lealdade era um fator de união familiar na Floresta, e aquela ruptura era uma questão triste e séria.
Se Cumberbatch entendia tudo isso, era outra história. Pelo que dizia respeito ao delegado superintendente, o pai de um de seus empregados ia testemunhar contra ele, e não estava nada contente. Não podia demitir George por causa disso, mas o rapaz ficaria sob suspeita. Albion lamentava muito, mas, se necessário, já decidira, ele sacrificaria George Pride por um bem maior. Se o Pride mais velho não perdesse a cabeça, seria uma vigorosa testemunha.
Seria mesmo?
Olharam com interesse para Pride quando se pôs de pé e foi gentilmente convidado a sentar-se diante deles. Sentou-se todo empertigado. Até o jovem par do reino não pôde deixar de notar que o Sr. Pride tinha uma aparência bastante respeitável. O presidente da mesa dirigiu-se a ele de forma afável.
— Em que lugar o senhor mora?
— Em Oakley.
— Há quanto tempo está lá?
— Sempre.
— Sempre? — O presidente sorriu. — Não pode ter estado sempre lá, Sr. Pride, mas creio que quer dizer durante toda a sua vida, não?
— Quis dizer que minha família sempre esteve lá, Vossa Graça. Isto é — franziu a testa —, nem sempre, mas antes do rei Guilherme.
— Refere-se ao rei Guilherme IV, antecessor da nossa atual rainha, ou talvez ao rei Guilherme III?
— Não, senhor, refiro-me ao rei Guilherme, o Conquistador, que fez a Floresta.
O presidente da mesa, parecendo algo admirado, olhou de relance para o coronel Albion, que sorria e confirmava com a cabeça.
— O senhor tem uma pequena propriedade de quantos hectares?
— Eram três e meio. Agora tenho cinco. Os três e meio são arrendados ao coronel, e o resto eu comprei como domínio absoluto.
— O senhor tem família?
— Doze filhos, senhor. Louvado seja Deus.
— O senhor consegue sustentar uma família com doze filhos com esses poucos hectares?
— Na Floresta, senhor, costumamos achar três hectares e meio um bom tamanho. Pode-se trabalhar sem despender um centavo com ajudantes. Obtenho um lucro, dependendo do ano, de quarenta a cinqüenta libras. — Não era nenhuma fortuna, mas propiciava uma vida decente para um pequeno fazendeiro.
— O que faz neles?
— A maior parte de minha comuna é de pasto, no qual produzo forragem. Também tenho uma faixa de terra onde cultivo repolho, legumes, raízes...
— Nabos.
— Sim. E também aveia.
— De que consta o seu rebanho?
— Tenho cinco vacas leiteiras, duas bezerras e dois novilhos. O leite e a manteiga vendemos em Lymington. Quanto aos porcos, mantenho três porcas para dar cria. Elas produzem de duas a três vezes por ano. E também temos vários pôneis. As fêmeas para cria ficam soltas o ano inteiro na Floresta.
— Ouvi dizer que a vaca de New Forest tem virtudes especiais. O senhor poderia descrevê-las?
— São principalmente malhadas na aparência, Vossa Graça. Bem pequenas, mas resistentes. Conseguem viver na charneca, alimentando-se de urzes, se necessário. São boas leiteiras. Os fazendeiros dos montes calcários, de lugares como Sarum, descem a Ringwood para comprar o nosso gado. Fazem cruzamento com o deles, e lá em cima, com as pastagens mais férteis, as mestiças produzem grandes quantidades de leite.
— O senhor pasta o seu rebanho na Floresta?
— Não poderia mantê-los de outro modo. Eu precisaria de muitos hectares a mais.
— Não conseguiria manter sua família sem os direitos comuns?
— Não conseguiria. Há uma outra coisa, além disso. Sabe, senhor, é a questão das crianças. Tenho dois filhos crescidos. Um deles mora comigo e trabalha como lavrador. Mas ele também tem pouco menos de um hectare no qual cria animais usando a Floresta. Desse modo, duplica os seus ganhos. Dentro de poucos anos isso permitirá que ele estabeleça a sua própria pequena propriedade e crie uma família.
— O senhor também tem direitos de turfeira?
— Tenho. Esse, e o de recolher madeira na Floresta, é como aqueço a minha cabana.
— Sem esses direitos...?
— Passaríamos frio.
— Como esses direitos comuns foram afetados pela Lei de Supressão dos Cervídeos?
— De várias maneiras. Em primeiro lugar, a própria ausência de veados reduziu o pasto para o meu rebanho.
— Como assim? Se os veados não estão se alimentando, deve sobrar para os outros animais.
— Foi o que eu pensei também, senhor, mas aconteceu o contrário. Os relvados, onde se encontra a melhor grama, ficaram cobertos com a vegetação rasteira que os veados costumavam comer. Eu fiquei surpreso, mas estão desse modo.
— E o que mais?
— Creio que o Sr. Cumberbatch disse que não podemos soltar o nosso gado no inverno, o que costumávamos fazer quando os veados estavam lá. Isso tem sido imposto apenas parcialmente. Se for o caso, não sei como vou me atar.
— E os cercados?
— Alguns comunais agora têm que tocar os rebanhos por quilômetros para encontrar uma pastagem. As melhores já foram tomadas. Os cercados, quando reabrirem, fornecerão muito pouco para o gado comer, e os drenos abertos para as plantações são um perigo para os animais.
— Então, teme pelo seu futuro?
— Temo. i
Os membros da Comissão ficaram em silêncio. O pequeno proprietário os tinha impressionado. Não se tratava de um furtivo predador das matas, mas de um fazendeiro livre, uma espécie que eles sabiam vagamente recuar aos antigos dias da história da ilha, antes mesmo de os senhores feudais dominarem a terra. Apenas o jovem par do reino pareceu disposto a testar Pride um pouco mais. Cumberbatch passara-lhe um bilhete.
— Sr. Pride — fitou solícito o homem da floresta —, sei que tem havido descontentamento em relação aos cercados. Aliás, até mesmo as cercas de alguns foram derrubadas. Outros foram incendiados. Não é isso?
— Sim, ouvi falar.
— Suponho que até então foi a única maneira pela qual os comunais conseguiram transmitir o que sentem. O senhor não concorda?
Era uma armadilha. O coronel Albion olhou intensamente para Pride, tentando fazer um contato visual. Pride olhava fixamente para a parede atrás da Comissão.
— Eu não saberia dizer, Vossa Graça.
— O senhor não sentiria alguma simpatia por eles?
— Creio que sentiria pena de qualquer homem que tivesse sido privado de seu rebanho — afirmou Pride calmamente. — Mas, é claro, ele não deveria infringir a lei. Não apoio isso.
— Então o senhor não faria tal coisa?
Pride olhou impassível para o nobre. Se ele sentia raiva ou desprezo, não havia nenhum vestígio em sua face.
— Eu nunca infringi a lei em toda a minha vida — disse circunspecto. Muito bem, homem, pensou Albion. Olhou para o jovem par do reino, para
ver se ele havia encerrado. Ainda não, ao que parecia.
— Sr. Pride, parece que o senhor se opõe bastante ao Ministério das Matas. Entretanto, tem um filho mais velho, não é mesmo? Um certo George Pride. Podia nos dizer de quem ele é empregado?
— Sim, senhor. Ele é empregado do Sr. Cumberbatch.
— Do Ministério das Matas, portanto? — O jovem exibiu um ar triunfante. Tinha enredado aquele camponês. — Se o Ministério das Matas é um tal monstro, por que seu filho trabalha lá? Ele está associado ao inimigo?
Albion prendeu a respiração. Ele previra muitas coisas, mas não aquilo. Não podia imaginar que num ambiente como aquele alguém se rebaixasse a atormentar o pequeno proprietário por causa do filho. Era bem possível que o jovem nobre não tivesse entendido a pergunta que lhe pediram para fazer. Albion olhou na direção de Cumberbatch. Aquele porco.
Viu o pêlo se eriçar na nuca de Pride. Meu Deus, era o fósforo aceso que ia explodir o barril de pólvora. Ficou tenso, mordeu o lábio.
Pride deu uma leve risada e sacudiu a cabeça.
— Ora, ora. Suponho que um jovem arruma trabalho onde pode, Vossa Graça. Não acha? Quanto ao Sr. Cumberbatch, ele não é meu inimigo. — Girou a cabeça para olhar o delegado superintendente e deu-lhe um sorriso de florestal. — Pelo menos, não no presente. É claro que — virou na direção do jovem par do reino — se o Sr. Cumberbatch fizer tantos cercados que venham a me arruinar e os meus filhos tiverem que ir para um abrigo de pobres, o senhor pode dizer que ele vai se tornar meu inimigo, queira eu ou não. Eu só vim aqui, Vossa Graça, esperando que os senhores pudessem ajudar para que o Sr. Cumberbatch e eu pudéssemos continuar amigos.
Até mesmo o presidente da mesa abriu um largo sorriso, e o jovem nobre, elegantemente, admitiu a derrota.
— Creio — disse o presidente — que conhecemos o Pride da Floresta. Talvez este seja o momento apropriado para suspender a sessão.
A mulher de cabelos brancos esperava nervosa no interior da grande igreja vazia sobre o outeiro. Ela não havia contado ao marido sobre aquele encontro.
Depois que o Sr. Arthur West casou-se com Louisa Totton, eles tiveram dois meninos e quatro meninas; os meninos foram criados para abrir caminho no mundo; as meninas, para obedecer — primeiro aos pais, depois aos maridos. Quando Mary West se casou com Godwin Albion, ficou bem claro que ela deveria obedecer-lhe, e foi o que sempre fez. Para ela, portanto, não era algo sem importância ter um encontro secreto na igreja de Lyndhurst; e, principalmente, porque o homem com quem ia se encontrar tinha a perigosa reputação como o Sr. Minimus Furzey.
As mulheres estavam sempre perdoando Minimus. Elas tinham sido toda a vida dele. Minimus, o menor, o último filho de uma enorme família, o caçula, aquele que podia se safar de coisas das quais os irmãos e irmãs jamais conseguiam. Era tão encantador que as mulheres conseguiam perdoá-lo por qualquer coisa. Os homens, principalmente os maridos, nem sempre perdoavam Minimus. Nem os pais.
Sua família não ficou chocada quando ele se tornou um pintor. Eles eram talentosos. O avô Nathaniel fizera Direito e tornara-se advogado em Southampton. Seu pai também seguiu a profissão jurídica, mas se formou em Londres e prosperou. O irmão mais velho era cirurgião, e o outro, professor. Duas das irmãs tinham se casado com homens ricos, na cidade, e eram elas que forneciam a Minimus a modesta renda que lhe permitia seguir os seus pendores sem quaisquer preocupações financeiras.
Três anos antes Minimus tinha ido à Floresta e decidido que gostava dela. Não era o primeiro pintor de sua época a fazer isso. Assim como Gilpin, que no século anterior escreveu sobre a beleza pitoresca da Floresta, numerosos pintores e escritores vieram visitá-la em anos recentes. O escritor capitão Marryat, cujo irmão comprara uma casa na antiga rota de contrabando conhecida como Chewton Glen, já havia até mesmo, vinte anos antes, imortalizado aquela área no seu The Children ofthe New Forest.
— É o jogo de luz na charneca ou a beleza dos carvalhos que traz artistas como você para cá? — perguntara certa vez uma dama entusiasmada a Minimus.
— Ambos, mas principalmente a estrada de ferro — respondera ele.
O fato de a Floresta estar repleta de Furzey, que indubitavelmente eram seus parentes, não constrangia e nem mesmo interessava Minimus. Ele tinha uma inocente imprudência no que se referia a todas as questões sociais. Não que ignorasse as convenções sociais: apenas fazia uma vaga idéia de sua existência. Se algo lhe parecia agradável, Minimus costumava fazê-lo, e sentia uma surpresa genuína quando as pessoas se zangavam. Isso incluía o seu relacionamento com as mulheres.
Minimus não tinha intenção de seduzir mulheres. Achava-as agradáveis. Se elas ficavam encantadas com a sua inocência juvenil; se elas o achavam poético e l
queriam ser maternais com ele; ou se ele, talvez, se sentisse subitamente atraído por uma bela jovem: para Minimus isso tudo eram maravilhas da natureza. Mal parava para pensar se eram damas ou lavradoras, casadas ou solteiras, experientes ou inocentes. Todas as coisas, para Minimus, eram maravilhosas. Não entendia mesmo por que o mundo inteiro não funcionava desse modo despreocupado.
Privilegiou o lado ocidental da Floresta, no qual encontrou para si uma pequena e agradável cabana próximo a Fordingbridge, a qual se dedicara com prazer a mobiliar. As paredes estavam cobertas com suas pinturas e aquarelas; um anexo que construiu continha um estúdio já repleto de espécimes de plantas e insetos, nos quais tinha um interesse erudito. Mas a posse que lhe dava mais prazer estava no quarto de dormir no andar de cima.
Ele a encontrara certo dia, ao fazer uma caminhada perto de Burley. Notou uma velha cabana, seriamente danificada por um incêndio, a qual um grupo de homens preparava-se para demolir. Sempre curioso, entrou lá. No andar de cima, exposta ao tempo, coberta de cinzas e caibros carbonizados, viu a forma de uma cama quebrada. Quebrada, mas não destruída. O maciço carvalho escuro sobrevivera ao fogo. Limpando as cinzas, notou que o móvel rústico era entalhado magnificamente. E, depois que os homens a levaram para baixo, a seu pedido, Minimus percebeu que havia topado com um tesouro. Esquilos e cobras, veados e pôneis, a coisa estava viva com cada um dos animais da Floresta.
”Isso precisa ser preservado”, tinha declarado, e, por alguns shillings, pagou por ela e pelo carreto até sua cabana, onde a restaurou para uso próprio. E assim a cama de Puckle encontrou um novo lar.
A Sra. Albion já o esperava na igreja há algum tempo. Mas sabia muito bem que não seria contrariada. Minimus sempre se atrasava. No espaço cavernoso, com a luz cálida filtrando-se através das janelas intensamente coloridas, ela teve tempo para refletir por que sua filha Beatrice decidira se casar com Minimus Furzey. Ele era quase dez anos mais novo do que Beatrice. E ela teve de enfrentar a ressentida ira do pai.
— Ela só o quer porque acha que nunca vai conseguir um marido — esbravejou o coronel Albion.
— Ela já tem quase trinta e cinco anos — salientou delicadamente a Sra. Albion.
— O homem é um aventureiro vulgar.
Não se podia esperar que o fato de Minimus ser da mesma família de alguns dos seus mais humildes arrendatários agradasse a Albion, embora fosse um bondoso senhorio. Perturbava a ordem das coisas. Sem uma ocupação apropriada, nem mesmo uma renda exceto a caridade das irmãs, não se podia negar que ele era um aventureiro.
Contudo, a Sra. Albion sabia perfeitamente bem que Minimus não se casara por esse motivo. O montante de dinheiro que o marido dela iria legar a Beatrice era bastante modesto, e o fato de ele ter-se recusado a fazê-lo nada havia significado para Minimus. A desconfiança dela era que Furzey tivera muito menos interesse em se casar com Beatrice do que ela em se casar com ele.
”O maldito sujeito apenas vê nela uma governanta de graça”, o coronel murmurara certa vez, e a Sra. Albion desconfiava que isso não devia estar longe da verdade. De fato, os dois viviam de um modo extraordinário, com apenas uma mulher, que vinha de fora, para cozinhar e fazer a limpeza. Mesmo o mais insignificante lojista tinha uma ou duas criadas morando em casa.
Mas o que, perguntava-se, Beatrice tinha visto nele? Como se em resposta à sua pergunta, a porta da igreja abriu-se e, com a luz dourada atrás de si, surgiu Minimus Furzey.
— A senhora está sozinha, não está? — indagou, enquanto fechava a porta.
— Estou. Completamente. — Ela sorriu e, apenas por um instante, precisou conter uma tola palpitação de seu próprio coração enquanto ele se aproximava.
Ele olhou em volta da igreja.
— Lugar estranho para um encontro. — Sua voz musical causou um breve eco, que rapidamente se desfez no envolvente silêncio. —A senhora gosta dela?
A nova igreja, que havia substituído a estrutura do século XVIII na colina de Lyndhurst, era uma edificação vitoriana de tijolos vermelhos, alta e decorada, com uma torre. A torre acabara de ficar pronta e agora elevava-se, como um monumento ao orgulho comercial e à respeitabilidade da época, acima dos carvalhos da antiga herdade real no coração da Floresta.
— Não tenho certeza. — Ela não queria afirmar ou negar, para o caso de ele não aprovar.
— Hmmm. As janelas são lindas, não acha? —As duas que ele indicou, uma na extremidade leste, a outra no transepto, eram realmente impressionantes. Tinham sido projetadas por Burne-Jones, o pintor da corrente pré-rafaelista que visitara a. Floresta em anos recentes. Com suas enormes formas audaciosas, eram realmente admiráveis. — Aquelas duas figuras — apontou para a janela do transepto — foram feitas na verdade, como sabe, por Rossetti, e não por BurneJones.
— Ah. — Olhou para elas. — Suponho que deve conhecer pessoalmente todos esses artistas.
— Por acaso, conheço. Por quê?
— Deve ser... — Ela ia dizer ”muito interessante”, mas, como isso soava banal, conteve-se.
A luz da janela do transepto banhava os seus cabelos louros.
— Adoro os afrescos — disse ele com um sorriso.
A enorme pintura The Wise anãFoolish Virgins de Leighton, amigo de Rossetti, dominava parte do interior. O bispo ficara preocupado com o fato de as imagens dos pré-rafaelistas serem ”papistas e ornamentais” demais, mas mesmo assim foram admitidas. E os dois ficam parados debaixo das virgens sábia e tola, admirando ambas.
— Pedi que viesse aqui — disse a Sra. Albion — para lhe falar sobre Beatrice. — Inspirou fundo. — Há algo que eu quero que faça.
Bognor Grockleton sentia-se bem-disposto. Ao passar a mão tipo garra sobre o pálido rosto bem escanhoado para enxugar as gotas de suor, sorriu contente.
Para gostar de Bognor Grockleton — ele recebeu o nome da estação de veraneio à beira-mar onde seus pais gostavam de passar férias — era necessário entender que ele tinha boas intenções. Talvez houvesse nele algo de missionário ou talvez se tratasse de um legado genético de sua avó, que, após deixar Lymington, passara por uma formidável era de ouro em Bath; mas, fosse o que fosse que impelia Bognor Grockleton implacavelmente adiante, ele sempre agia com a crença de que o mundo estava ali para ser aperfeiçoado. Poucas pessoas na era vitoriana teriam discordado dele.
Ele vinha tentando aperfeiçoar a Floresta desde que chegara lá. Era natural que logo encontrasse um aliado no delegado superintendente. Os dois homens, aliás, eram muito diferentes. Já para Cumberbatch, a Floresta era uma fonte de matéria-prima, como uma mina de carvão ou uma cascalheira. As pessoas da Floresta eram um estorvo. Se ele pudesse acorrentá-las, como escravos em galés, ou removê-las, como os veados, provavelmente o faria. Já para Grockleton, os habitantes da Floresta precisavam ser ajudados. Muitos deles moravam em pequenas cabanas miseráveis, com meio a um hectare. Era primitivo. Mesmo os mais aquinhoados, como os Pride de Oakley, só conseguiam viver modestamente porque tinham a Floresta à disposição, e isso era um terrível desperdício de recursos. Assim que a Floresta fosse viável economicamente, haveria trabalho para muitos deles na produção de madeira. Algumas poucas fazendas maiores, em volta dos limites da Floresta, sobreviveriam sem dúvida. As fábricas e os empreendimentos crescendo em Southampton e nas cidades mercantis locais, como Fordingbridge e Ringwood, absorveriam o resto. O novo mundo produtivo ia ser muito melhor. Uma vez que o povo da Floresta visse isso, entenderia.
A visita à Câmara dos Lordes em Londres fora interessante, mas, embora a Comissão Seleta ainda não se tivesse pronunciado, ele não tinha a menor dúvida do resultado. As plantações continuariam. Tinham de continuar. Isso era progresso.
Ele havia ficado contente quando Cumberbatch lhe ofereceu o jovem George Pride como guia naquela tarde. Se o velho Pride representava o passado, o filho George era o futuro. O emprego que este conseguira era muito bom. Os guardacaças e os subguarda-caças não eram mais necessários, agora que os veados tinham ido embora, mas havia vários cargos, conhecidos como guardas-florestais, para cuidar das plantações, que vinham junto com uma cabana para morar. O jovem George podia trabalhar para Cumberbatch, mas vivia na Floresta e era bem pago.
”Ele ficará muito ansioso para agradar você”, observara Cumberbatch com um sorriso cruel. Depois que voltou de Londres, o delegado superintendente chamara George ao seu gabinete e alertara-o abruptamente: ”Você pode não ser capaz de controlar seu pai, mas não me agradou vê-lo na Comissão. Vou ficar de olho em você”, dissera-lhe. ”Um movimento em falso, qualquer insinuação de deslealdade, e você estará fora.”
Por isso, quando Grockleton se aproximou do local de encontro, viu o jovem praticamente em posição de sentido. Só isso teria produzido nele uma predisposição em relação a George; mas, mesmo sem esse tipo de recepção, ele provavelmente teria ficado com uma prazerosa disposição de ânimo.
Porque eles estavam se encontrando no Cercado de Grockleton.
Era ótimo ter um prédio ou uma rua com o seu nome. Mas quando aquele cercado tinha sido feito, poucos anos antes, e Cumberbatch anunciara que teria o nome dele, Grockleton percebeu, maravilhado, que se tratava de algo mais: todo um bosque, um destaque nos mapas para as gerações futuras. O Cercado de Grockleton: era o seu maior orgulho e alegria.
Ficava na área central da Floresta, a oeste de Lymington. Cobria cerca de cento e vinte hectares. O melhor de tudo, porém, no que dizia respeito a Grockleton, era a madeira com a qual fora plantada. Pois o Cercado de Grockleton era quase todo somente de pinheiro da Escócia.
Há meio século vinham plantando pés de abetos na Floresta. Em geral, eram usados como uma espécie de semeadura ama-seca para proteger os carvalhos ou faias jovens, já que eram os carvalhos e as faias de que a marinha realmente precisava. Ou costumava precisar. Afinal, navios de madeira estavam cedendo lugar a navios de ferro. Bucklers Hard não produzia mais navios; seus agradáveis estaleiros estavam todos cobertos de capim, e suas cabanas, alugadas para artesãos e operários.
Desde 1851, as novas plantações passaram a conter uma diferente mistura de árvores. Os carvalhos e as faias, de crescimento lento e repleto de folhas, cujas madeiras eram duras, cediam lugar a madeiras mais macias e de crescimento e faturamento rápido, como o pinheiro da Escócia e outras coníferas. Apesar de recente, esse processo já havia iniciado uma sutil mudança na característica da Floresta. O antigo e suave padrão de arvoredo de carvalhos e charneca estava sendo interrompido pelas linhas retas enfileiradas como militares das plantações de abetos, de um verde-escuro durante todo o inverno. Mais adiante, os pinheiros espalhavam-se, crescendo aqui e ali na charneca a céu aberto, ou mesmo fazendo brotar rebentos raquíticos nos ácidos pântanos.
Mas o que agradava a Grockleton mais do que tudo em sua plantação era a sua extraordinária eficiência.
— Veja como estão plantadas bem próximas umas das outras, Pride — comentou, satisfeito. As árvores ficavam tão juntas que se podia constantemente sofrer o atrito de suas agulhas, caso se tentasse caminhar entre elas. — Toda a boa qualidade do solo vai para elas. Não há desperdício. —A grama e a vegetação rasteira entre os carvalhos dispersos sempre pareceram um esbanjamento para Grockleton. As plantações de faia eram melhores: o solo sob os bosques de faias, na maioria, tinham musgo. Mas debaixo dos abetos não havia luz nem espaço. Nada crescia, nem mesmo grama ou musgo. Era sem vida. — É essa a utilidade da plantação de pinheiros, Pride — explicou ao guarda-florestal. — Um grande aproveitamento.
— Sim, senhor — disse George.
Seguiram pela trilha através da plantação e admiraram a sua formidável uniformidade. Quando, finalmente, o comissário se satisfez, anunciou que desejava dar uma volta pelo lado norte da Floresta. E assim, levando os cavalos pela charneca a céu aberto, seguiram em direção ao norte.
George Pride era um rapaz de aparência agradável. O rosto jovem e bem barbeado era emoldurado por uma leve orla de barba, que descia do limite do maxilar até debaixo do queixo. Parecia receptivo e ávido. Aquela era uma boa oportunidade para educá-lo, e Grockleton não deixou de usá-la.
— Você vai perceber que sou muito franco, Pride — explicou. — E gosto de quem é franco comigo.
— Sim, senhor — disse George.
— O Ministério das Matas — comentou Grockleton, ao descerem uma faixa de terreno alto em direção ao riacho conhecido como Dockens Water — está realizando um grande melhoramento na Floresta.
— Sim, senhor — disse George.
— Alegro-me por você concordar — observou Grockleton.
Mas muitos não concordavam. O estado das estradas da Floresta era um exemplo característico. Quando as antigas estradas com cobrança de pedágio começaram a ficar em mau estado, por volta de meados do século, em geral eram os conselhos das freguesias locais, em grande parte da Inglaterra, que assumiam a responsabilidade de consertá-las. Mas as aldeias de New Forest cooperavam? De jeito nenhum. E, quando pessoas como ele mesmo e o cavalheiro do Ministério das Matas protestaram, o que foi que a gente da Floresta respondeu? ”Se o Ministério das Matas quer estradas, que o Ministério das Matas pague por elas. Nós não precisamos delas.” O que se podia fazer com essa gente?
— Todos nós devemos avançar com o tempo, Pride.
Vadearam o riacho. Adiante, elevava-se o longo aclive coberto de urzes, no alto do qual ficava a grande amplidão da charneca a céu aberto conhecida como Fritham Pride. Aqui e ali Grockleton enxergava vacas pastando, e, ao chegarem à planície, ele havia contado uma dúzia de pôneis. Suspirou. Os comunais e seus rebanhos: homens como o pai de George eram tão apegados àqueles animais inúteis. As vacas ele conseguia entender, mas não pareciam valer a pena manter os pequenos pôneis robustos. Na mesma época da Lei de Remoção dos Cervídeos, o marido da rainha, o príncipe Alberto, emprestara um garanhão árabe para algumas sessões de reprodução com as éguas locais. Às vezes podia-se ver agora um vestígio árabe em alguns dos pôneis, mas a experiência não rendera muita coisa. O amigo dele, Cumberbatch, por algum motivo, havia se interessado pelos pôneis e introduzido algumas éguas novas vindas de outros lugares. Mas os bichos atarracados continuavam parecendo feios para Grockleton.
— Sabe, Pride, não devemos censurar homens como o seu pai por quererem manter os seus rebanhos da Floresta — falou com delicadeza. — Trata-se de um tipo de vida que precisa acabar, mas devemos ter paciência.
— Sim, senhor — disse George.
— Há novas plantações planejadas para cá, creio eu—continuou Grockleton. — Quero que me mostre onde.
— Sim, senhor — disse George. — Por aqui.
Não restava dúvida, concluiu Minimus Furzey: o norte da Floresta era um outro mundo. Havia determinados pontos favoráveis, é claro, nos extensos terrenos.” abaixo de Lyndhurst, dos quais se desfrutavam lindas vistas. Mas, uma vez que se seguisse caminho para o norte, subisse o alto morro acima de Lyndhurst, passasse por Minstead e escalasse a alta ladeira até Castle Malwood, percebia-se que se havia chegado ao largo cume que se estendia para oeste logo depois de atravessar Ringwood. Abaixo do cume, em planos descendentes, a Floresta meridional se espalhava; mas acima, em um imenso triângulo noroeste, um alto planalto revestido de urzes estirava-se por todo o caminho, umas duas dezenas de quilômetros, passando por Fordingbridge e subindo até Hale.
Esse era o chapadão que Minimus Furzey adorava. Lá em cima, no seu silêncio etéreo sob a amplitude do céu, um imenso panorama abria-se além das margens do platô: para leste, até as baixadas de Wessex; em direção oeste, para as colinas azuis de Dorset; e ao norte, até os montes calcários de Sarum ondulando-se para longe como um mar. Era um local alto, desabitado, pardo e roxo, uma terra no céu, um mundo à parte.
Naquela tarde, como costumava fazer, Minimus escolhera um lugar agradável em terreno alto para se sentar e desenhar. Ele e Beatrice haviam saído juntos da cabana deles, e ela continuara através da alta charneca, enquanto ele ficara sentado, trabalhando.
Fazia um tempo deliciosamente quente. A seus pés, Minimus notou as brilhantes costas cor de esmeralda dos pequeninos insetos da Floresta conhecidos como cicindela. Através das urzes e dos tojos, ele podia ouvir uma toutinegra de Dartford, o estalido de uma alvéloa e os suaves sons de uma ou duas outras aves da charneca. Não permaneceu, porém, por muito tempo sozinho.
O solitário carroção cigano, que descera lentamente a trilha, vindo da direção oeste, não era uma visão incomum. Ninguém tinha certeza de quando os ciganos surgiram pela primeira vez na Floresta. Alguns diziam que recuava ao tempo da Armada Espanhola; outros, que apareceram mais tarde. Mas, fosse como fosse, esse estranho povo oriental que errava por toda a Europa era um acréscimo colorido à paisagem da Floresta. Com seus carroções pintados com cores vivas e parelhas de cavalos, faziam a travessia perto de Fordingbridge e depois seguiam as antigas trilhas pré-históricas ao longo das serras abaixo de Sarum, em direção às feiras de cavalos em West Country.
Minimus costumava conversar com os ciganos de passagem. Certa vez tinha viajado com eles durante vários dias, deixando para Beatrice apenas um bilhete informando aonde estava indo. Voltou com um punhado de desenhos e um rico vocabulário de palavras ciganas, e por isso, quando conversava agora com eles, somente ele e os ciganos sabiam o que estava sendo dito.
Estava envolvido em uma conversa com o cigano e a cigana, quando percebeu Grockleton e Pride se aproximando.
Grockleton não gostava de Minimus Furzey. Era uma das poucas coisas sobre as quais ele e o coronel Albion conseguiam concordar. No caso de Grockleton, não havia um motivo específico para essa antipatia: era algo mais instintivo. Furzey, parecia-lhe, representava a desordem. Era uma pena que esse artista desintegrador tivesse resolvido desenhar justamente no local que ele pretendia inspecionar, mas certamente não deixaria que isso o impedisse. Lançou um olhar frio para Furzey e os ciganos, desmontou e passou a caminhar.
O local que Minimus havia selecionado ficava na borda de uma elevação que pendia para um pântano no declive abaixo. Depois dele, a menos de meio quilômetro de distância, fora feita recentemente uma plantação de pinheiros da Escócia na charneca, os rebentos ainda na altura dos joelhos. Após inspecionar a plantação, Grockleton caminhou de volta e ficou fitando pensativo o declive abaixo.
— Compre um buquê, senhor. Flores para a sua esposa.
Ele girou o corpo. A cigana tinha ido para trás dele. Percebeu que ela tinha no braço uma pequena cesta com flores e que as havia amarrado em pequenos ramalhetes com tufos de urze roxa. Ele olhou para ela. As flores, pensou, tinham sido provavelmente furtadas do jardim de alguém. O povo da Floresta parecia tolerar aquilo, mas, no que lhe dizia respeito, era roubo. Quanto à urze, deveria com certeza haver uma lei para impedir que essa gente miserável a colhesse.
— Que se danem as suas flores — falou, irritado.
— É melhor comprá-las — gritou Furzey. — Saiba que terá má sorte se não o fizer.
— Quando eu precisar de seus conselhos, eu os pedirei — retrucou bruscamente. Voltou-se para George Pride, que, constrangido, estava parado um pouco mais distante. — Expulse essa gente daqui, Pride.
— Sim, senhor — disse Pride.
— Compre uma flor, senhor — insistiu a mulher. Ela fez isso só para irritálo, Grockleton tinha certeza.
As tentativas de Pride para afastar a mulher não foram muitas, mas ela recuou de volta para onde estava Furzey, que falou algo, fazendo com que os ciganos caíssem na gargalhada. Em seguida subiram no carroção e foram embora. Grockleton sabia que depois disso deveria ter ignorado Furzey completamente, mas o fatigante pensamento sobre o que o sujeito devia ter dito aos ciganos o afligia. Após observar a paisagem por mais um ou dois minutos, portanto, encaminhou-se até onde o pintor trabalhava, deu uma olhada em seu desenho e comentou: -1, — Nada mau — e continuou um pouco mais até onde uma moita de samambaia havia sido amassada, formando uma pequena plataforma, de cima da qual ele poderia observar o cenário decentemente. Minimus deu-lhe uma olhadela e continuou desenhando. Após um momento, olhou para cima.
— Você sabe onde está pisando? — perguntou. Grockleton fitou-o inexpressivo.
— É o ninho de um gavião-pombo. O povo da Floresta o chama de tartanhãoazul.
— Não consigo entender o que isso tem de interesse.
— Eles são visitantes. São muito raros. Às vezes passam anos sem aparecer. Este é um dos poucos lugares na Inglaterra onde são vistos. Poderíamos dizer que são um dos tesouros da Floresta.
— Tesouros para você, Furzey — rebateu Grockleton. — Não é para mais ninguém. — E bastante contente por ver Minimus dar de ombros com irritação, ele chutou os restos do ninho e voltou a caminhar pela borda do declive. — Por outro lado, quero lhe dizer — comentou ao passar pelo artista — que há algo de útil que podemos fazer com este lugar. — Parou um instante para sorrir. — Podemos fazer uma plantação.
— Aqui? Iriam estragar este local.
— Não seja tolo, Furzey. Não há nada aqui além do seu maldito ninho de pássaro. —Assentiu para si mesmo, satisfeito. — Podemos fazê-la ao longo desta elevação e descendo pela encosta. Calculo uns cento e vinte hectares.
— Não é bom plantar na encosta — disse Minimus contrariado. — É um pântano.
Grockleton encarou-o. Não restava dúvida que Furzey podia ser mesmo muito irritante.
— O pântano fica no final do declive, Furzey — salientou. — A água desce pela encosta e penetra no pântano que fica no fundo. Sabe, qualquer idiota pode ver isso. — Sacudiu a cabeça. — Eu sei que não deseja a plantação, Furzey, mas, se quiser inventar objeções, não deveria pensar em algo mais inteligente?
— É um pântano — insistiu Furzey.
— Não, não é! — Grockleton bradou de repente. Começou a caminhar encosta abaixo. — É uma encosta, Furzey — gritou de lá, propositadamente, as palavras, como se fossem para uma criança imbecil. — E uma encosta não... — Entretanto, não conseguiu terminar a frase. Em vez disso soltou um berro, como se, de repente, sumisse até a altura da cintura.
Há vários tipos de pântanos em New Forest. Nas partes mais baixas da região meridional, onde os vales são amplos e rasos, os grandes pântanos turfosos, que tiram a umidade dos suaves declives da Floresta, estendem-se por centenas de metros. Alguns têm pés de amieiro, ao longo da linha de escoamento da água. Grama roxa de charneca, murta de pântano, samambaias, tufos de junça e juncos crescem ali. As margens são flanqueadas por musgo. Mesmo após séculos sendo retirada, a turfa nesses pântanos costuma ter um metro e meio de profundidade, às vezes até mais.
Nos íngremes e estreitos canais da parte setentrional da Floresta, há pântanos menores. Mas é acima, nas altas e extensas serras do norte, que ocorre um tipo diferente e inesperado de pântano. São os degraus de lama.
Aliás, sua formação é bastante lógica. À medida que a água se infiltra para baixo, através do cascalho dos altos socalcos, costuma encontrar uma camada de barro. Infiltrando-se para os lados, mina o cascalho acima e cria uma saliência, e abre, inclusive, um fosso dentro dessa saliência, através do qual escoa para o vale abaixo, onde, se a drenagem é escassa, se forma um pântano. Por toda a parte principal da encosta, uma cobertura de musgos e tufos de grama roxa de charneca indica que ali há uma charneca úmida. Mas em direção ao cume, onde a umidade é drenada com mais rapidez, a cobertura de grama simples pode levar o incauto a supor que a encosta é seca. E a saliência? Os séculos a encheram de turfa aquosa e a revestiram com vegetação. Parece um plano nivelado da encosta, mas na verdade é um pântano profundo. Trata-se do degrau de lama. E Grockleton tinha acabado de pisar num deles.
— Eu avisei — disse Minimus, divertido.
Foi lamentável, ao escalar de volta a encosta, molhado e sujo, Grockleton deparar-se com Beatrice retornando de sua perambulação. Ela usava um chapéu de palha. Olhou abaixo para ele, os olhos azuis preocupados.
— Pobre homem. Eu fiz isso certa vez.
Ele ficou agradecido. Mesmo Furzey, percebeu, teve a decência de não rir.
Mas George Pride estava às gargalhadas. Não pretendia, mas não conseguiu evitar. Agora ele mordia os lábios, mas o corpo estremecia.
Grockleton olhou para ele. Se o jovem guarda-florestal não tivesse sido respeitoso durante toda a tarde, talvez ele não se importasse tanto. Mas ao vê-lo gargalhar, Grockleton não pôde deixar de se perguntar se George não estivera zombando dele secretamente desde que se encontraram. Essa maldita gente da Floresta é toda igual. Ele falaria com Cumberbatch a respeito.
Foi pouco tempo depois de seu casamento que Beatrice começou a tingir os cabelos. Às vezes tingia-os de preto, e Minimus a chamava de seu corvo. Com o corpo esbelto e pálido e os seios fartos — Minimus dizia que eram voluptuosos —, ela logo descobriu que se deitasse na cama esculpida, com os cabelos negros caídos sobre os seios, aquilo o excitava sobremaneira.
Às vezes tingia-o de ruivo, e o ondulava, para parecer uma esplêndida figura de uma pintura pré-rafaelista. Seu rosto tinha uma forte mas clássica estrutura óssea, e, portanto, conseguia levar a cabo essas transformações com bons resultados. As mudanças não eram meramente decorativas; havia mágica nelas. Também um pouco de astúcia. Quando Furzey não estava em casa, ela às vezes despia-se e ensaiava posturas diante do espelho. Da mesma forma, é claro, voltava a ser a filha de cabelos louros de um proprietário de terras, o que ela era originalmente, e Minimus também gostava.
A atitude de seus pais sobre o seu modo de vida, pelo que sabiam em relação a isso, contrastava radicalmente. Certa vez, quando o pai a viu descendo a High Street de Lyndhurst em sua direção com os cabelos repletos de vistosos cachos encarnados, comentou que ela parecia uma prostituta e recusou-se a falar com a filha. A Sra. Albion, embora não pudesse aprovar, era mais curiosa e perguntou à filha por que ela se comportava daquele jeito.
— Minimus gosta de variar. — Beatrice devia igualmente ter acrescentado que também gostava muito daquelas transformações, mas não o fez.
— Às vezes eu receio — a mãe arriscou-se a dizer — que esse amor à variedade possa... — Deixou o pensamento incompleto.
— Estender-se a outras mulheres? — Beatrice olhou com ar sério para a mãe. — Ele é mais jovem do que eu, claro. — Sorriu e encolheu ligeiramente os ombros. — É um risco, mamãe. Eu sempre soube disso. — Fez uma pausa, manuseando o crucifixo enegrecido que sua avó Fanny lhe dera. — Eu o divirto, sabe? Tenho alguma instrução. -—Embora tivesse tido pouca instrução formal, Beatrice sempre fora uma leitora voraz da biblioteca de Albion Park. Muitos jovens a achariam excessivamente inteligente. — Ele diz que eu tenho talento.
Uma das coisas que originalmente a tinham feito sentir atração por Furzey foi o interesse dele pela sua mente. Em vez de elogiar desmedidamente as suas inofensivas aquarelas, como a sua querida mãe o fazia, ele mostrou-lhe, disfarçadamente, como melhorá-las. Se Beatrice escrevia um poema, ele falava sobre outros poetas, lia suas obras para ela, fornecia-lhe novos padrões através dos quais julgar a si mesma. Às vezes poetas e pintores iam visitá-los, e todos saíam juntos para perambular ou desenhar ao ar livre. Vez por outra pegavam o trem até Londres, visitavam estúdios, galerias ou freqüentavam palestras. Para Beatrice, todas essas coisas eram novas e maravilhosas.
E, o mais surpreendente de tudo, ele fizera com que ela abrisse os olhos para a Floresta. Ela a amava, tinha vivido lá toda a sua vida, mas até então nunca a conhecera de verdade. Observando o solo, inspecionando um galho caído ou errando por um pântano de baixada, ele soltava um grito e, de repente, ela via uma libélula voando, um escaravelho ou alguma outra criatura minúscula à qual ela nunca pensara antes em prestar atenção.
”A Floresta, sabe, é um paraíso para os naturalistas”, dizia-lhe. ”Aqui há mais espécies de insetos do que em qualquer outro lugar da Europa.”
Às vezes, saíam com redes para caçar borboletas. No passado, ela tinha visto pessoas fazendo isso e as achara um tanto cômicas. Mas agora, quando levavam os seus espécimes para casa, eles os montavam e os catalogavam, e, ao ver comunicações em revistas naturalistas, com alguns comentários do seu marido, passou a perceber que aquilo era uma pesquisa científica a ser levada a sério.
Se ela tinha esperado muitos anos e delicadamente rejeitado vários pretendentes convencionais antes de encontrar Furzey, também era provavelmente verdade que Beatrice foi a primeira mulher que ele conheceu com capacidade e disposição para ser a companheira de sua vida. Seus amigos ficavam impressionados com ela; ele apreciava bastante isso. Os dois eram mesmo muito felizes juntos.
— E filhos? — quisera saber recentemente a Sra. Albion. Surpreendia-a o fato de ainda não haver filhos.
— Minimus e eu não nos importamos de esperar um pouco. Como sabe, há modos de evitá-los.
— Ah.
— Mas já andei pensando... Creio que talvez em breve. Vamos ver.
— Você devia — disse-lhe a mãe. — Você devia. — E foi, na verdade, a perspectiva de ter netos que levara a Sra. Albion a procurar ter um encontro com Minimus na igreja de Lyndhurst. Os dois filhos dela estavam no exterior; um deles, na índia; nenhum ainda tinha se casado. Desde que Beatrice se casara, raramente ia a Albion Park, e Furzey não tinha permissão de botar os pés lá. Não podia suportar a idéia de a chegada de um neto ser recebida em tal situação. Além do mais, tinha certeza, Beatrice precisaria de dinheiro.
Suas tentativas apaziguadoras até então não tinham adiantado. O coronel Albion era irredutível. Não queria ver Furzey. Beatrice não havia feito qualquer esforço desde que soube que o marido não ligava a mínima para o fato de se encontrar ou não com Albion. A única esperança era o próprio Furzey tentar uma aproximação. Uma carta: séria, respeitosa, até mesmo humilde. Se ele não se desculpasse por ter-se casado com Beatrice, que pelo menos mostrasse a adequada gratidão e um senso de humildade diante do sacrifício feito por Beatrice ao se casar com ele. Devia pedir uma reconciliação para o próprio bem dela e de algum filho. Tudo isso e algo mais. Não se tratava do tipo de carta em que Furzey era muito bom. Mas foi isso, na igreja de Lyndhurst, o que a Sra. Albion implorou que ele fizesse.
Ela mesma ditou a maior parte. Retirou os comentários irônicos dele, seu humor, as referências ao aperfeiçoamento da educação de Beatrice. Observou-o redigir a carta e levou-a embora antes que ele pudesse acrescentar qualquer coisa a mais.
E, espantosamente, deu certo. Sem muito bom humor, e depois de a esposa destacar algumas passagens respeitosas na carta das quais ela se orgulhava particularmente, o coronel, de má vontade, concordou que Beatrice e o pintor fossem jantar lá.
O jantar transcorreu surpreendentemente bem. Não há nada como o infortúnio para aproximar as pessoas, e aconteceu que o dia do jantar também trouxe a má notícia da decisão da Câmara dos Lordes. Suas Graças tinham concluído, não irracionalmente, que, como havia duas partes interessadas, o Ministério das Matas e os comunais, cujos interesses eram diametralmente opostos, a única solução a longo prazo era dividir a Floresta entre elas. Concordaram que os comunais deviam ser tratados com justiça e que não devia ser permitido a Cumberbatch e seu pessoal roubar todas as melhores terras.
— Mas na prática é isso que vai acontecer — observou Albion, desanimado. — Não estou certo se nem mesmo Pride sobreviverá.
— Se entendi direito — Minimus era respeitoso, comportando-se da melhor maneira possível —, esse relatório da Comissão Seleta não é restritivo.
— É verdade. Trata-se apenas de uma opinião. Mas ela tem peso — explicou Albion. — O governo talvez não tenha tempo de preparar uma legislação para a Floresta durante um ou dois anos, mas quando o fizer certamente seguirá a orientação da Comissão.
— Então precisamos reagir — disse Minimus.
Isso mereceu um sorriso da Sra. Albion e um resmungo de aprovação do coronel. Mas Minimus saiu-se ainda melhor com a sua sugestão seguinte.
— Eu me recuso a acreditar — observou — que sejamos intimidados por gente que pisa em degraus de lama. — E relatou o recente incidente acontecido com Grockleton.
O coronel ficou encantado com a história.
— Quer dizer que ele foi mesmo caminhando para lá? — perguntou, incrédulo.
— Juro que foi — disse Minimus com um sorriso. — Eu me comportei de acordo. Avisei-o. Disse-lhe que era pântano. Mas não me deu ouvidos. Afundou direto, até as axilas!
A refeição depois disso tornou-se bastante alegre, e foi quase com bom humor que, após tomarem o vinho do Porto, o coronel Albion conduziu Minimus ao seu gabinete para uma conversa em particular.
O gabinete do coronel Albion expressava perfeitamente o homem; e também dizia muito sobre a situação de New Forest. Nas prateleiras viam-se as obras habituais sobre genealogia e história da região, as pedras fundamentais e os alicerces do mundo da elite. Havia, encadernados, os Relatórios Parlamentares sobre a New Forest do século XVIII, uma prateleira de pergaminhos com o inventário da propriedade dos Albion e vários volumes de minutas da Corte dos Couteiros-reais, que há dez anos ele pegara emprestado e se esquecera de devolver. Havia também obras literárias. Uma coleção de romances de Jane Austen estava alojada ao lado das obras do Sr. Gilpin, não tanto pelo seu mérito literário, mas porque a autora vivera na mesma região. Da mesma forma, dado a ele por um parente que possuía a propriedade de Arnewood, onde se passava a história, existia um exemplar do Children ofthe New Forest, de Marryat, cujos numerosos erros técnicos em relação à Floresta estavam caprichosamente sublinhados e anotados pelo próprio punho do coronel.
Pendurado perto da porta, num resplandecente escarlate, estava o casaco de caça do coronel. Havia na ocasião dois tipos de caça dominantes em New Forest. A da raposa e a dos veados. Estes últimos, a despeito da Lei de Remoção dos Cervídeos, ainda eram encontrados na área. Como lembrança dos tempos da Floresta medieval dos veados, eles tinham conseguido permissão real para usar, em seus botões, a antiga insígnia do Lorde Administrador. O coronel Albion, descendente de Cola, o Caçador, caçava ambos.
Sobre uma mesa encontrava-se um estojo contendo um par de pistolas. Pois os dois tipos de caçadas não eram os únicos esportes que vicejavam na Floresta. A área vinha se tornando cada vez mais abastecida de caça. Desde a remoção dos veados, as antigas casas de campo dos guarda-caças haviam se tornado supérfluas. Cumberbatch logo percebeu que elas podiam ser reativadas e alugadas como casas de tiro. Um intenso fluxo de cavalheiros desportistas, na ocasião, tomava o trem até a Floresta com essa intenção. Melhor ainda, na opinião de Albion, eram as oportunidades de caça a aves silvestres sobre as restingas pelas margens do Solent.
Podia parecer estranho o fato de Albion guardar esses objetos, que na realidade pertenciam ao seu quarto de vestir e à sala de armas, em um lugar onde fazia o seu trabalho de escrita. Mas sua mulher devia estar certa em achar que eles o confortavam com a idéia de um prazer futuro, enquanto ele cuidava de todas as cartas que odiava escrever.
Enquanto Albion remexia em alguns papéis sobre a escrivaninha, Minimus avistou, sobre uma poltrona de couro, o livro de caça no qual o coronel registrava o resultado de seu tiroteio e começou a passar suas páginas.
Minimus tinha bebido apenas um pouco de vinho do Porto: o suficiente para pensar que sua situação em relação ao coronel Albion transcorria de um modo mais amistoso do que era realmente o caso. Não lhe ocorreu, portanto, que ainda teria de ser cuidadoso.
— Meu Deus — exclamou.
— O que foi? — O coronel levantou a vista.
— Estou vendo o que o senhor andou matando. É estarrecedor. — O registro do coronel era certamente algo de que qualquer caçador de sua época se orgulharia. Sua bolsa de caçador, no ano anterior, contendo os costumeiros narcejas, gansos, patos e maçaricos, incluía: cisne selvagem, 6 arrabios, 4 tarambolas e ostreiro. — É um massacre por atacado — disse Minimus. — Mais alguns anos disso, e não restará mais nenhuma caça. O senhor sabe quantos ostreiros ainda existem nas ilhas britânicas?
— Não — respondeu o coronel. — Não sei.
— Nem eu. Mas não são muitos. — Minimus suspirou. — Sabe, o senhor terá que ser impedido, se continuar desse jeito — falou de um modo amigável.
— Deduzo que o senhor não é um desportista — disse o coronel por entre os dentes trincados.
— Sou mais naturalista — respondeu Minimus. — A propósito — virou o rosto em direção a Albion —, agora que estamos nos relacionando melhor, o senhor se importaria se eu dissesse algo sobre salvar a Floresta?
O coronel indicou que estava ouvindo.
— O senhor está fazendo tudo errado — afirmou Minimus, contente. — Sabe — continuou —, se quer influenciar o governo, precisa ter a opinião pública do seu lado. Esse é o segredo.
— Opinião pública? — Como muitos de sua classe, o ponto de vista do coronel Albion sobre questões políticas não era tão consistente quanto ele supunha. Diante de comunais como Pride, com uma reclamação concreta, ficava do seu lado. Se lesse em um jornal um relato sobre o mesmo assunto relacionado, em termos gerais, à queixa de Pride, mesmo uma opinião moderada, mas que parecesse ser a opinião pública, para Albion isso pareceria revolução, e ele passava a desconfiar.
— Exatamente. O que o público sabe sobre a Floresta? Só o que as pessoas conseguem ver do trem. Sua beleza, seu estado selvagem, sua natureza intocada. Não entendem por que Pride precisa pastar as vacas dele, embora eu ouse dizer que gostam do aspecto disso. Mas as pessoas entendem se o senhor diz que Pride e a herança que ele representa estão sendo tiradas delas. Porque a Floresta pertence a elas, compreenda. A Floresta pertence ao público.
Se, durante o início desse discurso, Albion demonstrara um vislumbre de interesse, essa afirmação final eliminou-o por completo.
— Não, ela não pertence ao público! — Ele olhou ameaçador para Minimus, e então, com um esforço de autocontrole: — Para ser exato, ela pertence à Coroa e aos comunais.
— Mas o público vem aqui, não percebe? Não são apenas os cavalheiros que pegam o trem para vir caçar. Pessoas comuns estão começando a viajar. Lojistas de Southampton ou Londres; até mesmo trabalhadores, operários qualificados e suas famílias. Atualmente, já começaram a visitar a Floresta.
O coronel Albion notara esse gotejar de povo vindo da estação de Brockenhurst, perambulando pelos amplos espaços abertos de Balmer Lawn e remando nos riachos cascalhemos. Não sabia ao certo o que achar dessa gente. Sabia que ele e Pride amavam a Floresta e caminhavam prazerosamente por ela todos os dias. Se algumas crianças das ruas cinzentas de Londres viessem brincar nos riachos, como sempre o fizeram as crianças da Floresta, ele não poderia censurá-las. Achava que não haveria nenhum mal, desde que não viessem muitas delas.
— Essas pessoas são a opinião pública? — rosnou, duvidoso.
— Elas votam, muitas delas. Aceitam idéias dos líderes da opinião pública. No que dizia respeito a Albion, ali na Floresta ele era um líder da opinião
pública, mas não achava que era isso que Furzey queria dizer.
— E quem são esses líderes? — indagou soturno.
— Escritores, artistas, palestrantes, cientistas — respondeu Minimus. — Gente que escreve nos jornais.
— Gente como você? — perguntou Albion, ainda mais sombriamente.
— Exatamente — rebateu Minimus, contente. — O senhor precisa de um abaixo-assinado, de cartas de artistas para os jornais. As novas plantações estão arruinando a paisagem. E também há os naturalistas. Todos eles lhe dirão que a Floresta é única. Há todos os tipos de espécies aqui que não são encontradas em nenhum outro lugar. Poderíamos criar um clamor na imprensa, nas universidades. Os políticos têm pavor dessas coisas. Seja como for — concluiu —, se o senhor quer salvar a Floresta, aceite o meu conselho. Eu posso ajudar. Estou do seu lado — acrescentou, encorajador.
A idéia de ter Minimus do seu lado não pareceu trazer muita felicidade ao coronel Albion.
— Obrigado pelo conselho — disse secamente. E, lembrando os apelos da esposa, inspirou fundo e dirigiu-se ao genro do modo mais gentil que pôde. — Existe um outro assunto, Minimus — forçou-se a pronunciar o nome — que, creio, precisamos discutir. Trata-se da questão do dinheiro.
— É mesmo? Eu não tenho nenhum, como sabe — rebateu Minimus.
— Eu sei — confirmou o coronel.
— Nós nos arrumamos. Vendi alguns quadros ano passado. Estou escrevendo um livro. Isso pode conseguir alguma coisa.
— Um livro. Sobre o quê?
— Besouros.
O coronel respirava com intensidade.
— Para o caso de sua morte — indagou esperançoso —, fez alguma reserva para Beatrice? Sabe o que será dela?
— Ela pode lançar mão dos meus quadros e das minhas coleções. Penso que teria que voltar para a sua casa. O senhor a aceitaria de volta, não?
— Já imaginou como vocês viveriam se tivessem filhos?
— Filhos? Beatrice os quer, sabe? — Deu um sorriso vago. — Suponho que eles acabam aparecendo, não é mesmo?
— Eles também precisarão de dinheiro. Há as despesas.
— Talvez — disse Minimus vacilante — eu possa pedir ao meu pai. Mas não sei se ele ajudaria. Ele acha que eu devia estar empregado.
O coronel Albion não conhecia o Sr. Furzey, o advogado, mas sentiu pena dele. Como era possível, pensou, que aquele jovem irresponsável ousasse dizerlhe como estabelecer bases para questões da Floresta?
— Como iria educá-los?
— Ah, isso eu sei. Beatrice e eu pretendemos educá-los em casa.
— Filhos? — Filhas, é claro, podiam ser educadas em casa, mas filhos eram uma outra questão. Algumas famílias aristocratas ainda contratavam tutores, mas aquilo era praticamente impossível ali.
— Bem, nós certamente não gostaríamos de enviá-los para nenhum desses novos internatos — afirmou Minimus.
Havia internatos na Inglaterra desde a Idade Média. Poucos, como Eton e Winchester, até mesmo vinham sendo freqüentados pela aristocracia desde o século XVIII. Mas o gosto das classes mais ricas de mandar os filhos embora para tais instituições era um fenômeno recente, e esses estabelecimentos estavam surgindo por toda a parte.
— São lugares terríveis — prosseguiu Minimus. — Embotam o intelecto, destroem a sensibilidade. Sabia que chicoteiam os meninos e os forçam à prática de jogos? O senhor iria para um lugar desses?
O coronel Albion olhou-o estupefacto.
— Eu fui para Eton — respondeu friamente.
— Ah, aí está — afirmou Minimus.
— Este não é o modo — disse Albion, com uma fúria crescente — como desejo ver minha filha vivendo, senhor.
Minimus encarou-o genuinamente surpreso.
— Claro que não é — falou. — Mas se ela se casou comigo — olhou em volta do aposento, para os livros de genealogia e o casaco de caça do coronel —, suponho que foi porque queria se afastar de tudo isto. O senhor não acha?
Essa observação, que provavelmente era verdadeira, em nada melhorou os ânimos de Albion. Ele a ignorou.
— Quando o senhor induziu — deu à palavra uma ênfase ultrajante — minha filha ao casamento, por acaso lhe ocorreu levar em conta o bem-estar dela?
Até mesmo Minimus percebeu que agora estava sendo insultado.
— Foi ela, na verdade, quem quis se casar — observou. — Ela tem idade suficiente para saber o que quer. Afinal de contas — acrescentou —, ela poderia ter ido apenas morar comigo. Eu sugeri isso.
— Está me dizendo, senhor -— o coronel começava a ficar muito vermelho —, que pretendia seduzir minha filha e persuadi-la a viverem juntos, em pecado?
— Mas eu me casei com ela -— retrucou Minimus, lamentoso. — Não há necessidade de ficar tão irritado. — Sacudiu a cabeça. — Muita gente que eu conheço vive com uma amante,
— Gente? — A voz de Albion elevou-se para um outro nível. — Gente como o senhor. Artistas. — Ele teria dito ”leprosos”. — E essa gente também tem filhos?
— Claro que tem — bradou Minimus. — Eu sempre disse a Beatrice que ela não precisava ter se casado comigo para ter filhos.
Foi demais. O coronel Albion já estava da cor do seu casaco de caça. Ofegou.
— Seu vilão! — gritou. -— Seu... — começou a procurar a palavra — .. seu grande... — procurou e, finalmente, achou: — .. seu cafajeste
1874
George Pride era dedicado aos seus cercados. Eram três sob sua responsabilidade.
O trabalho de guarda-florestal era agradável. Ele precisava cuidar das cercas e manter os drenos. Isso era fácil demais. Mais interessante era administrar os bosques propriamente ditos, supervisionar o corte, o replante e o retalhe da madeira. Ele também era encarregado de fornecer as aparas e as copas para os comunais com direito de coleta, de cortar torrões de turfa nos pântanos turfosos e samambaias da área.
Cada guarda-florestal também recebia quinze shillings por semana e uma cabana com um curral no qual podia guardar um pônei. Tinha direito ao pasto de uma vaca na Floresta durante o ano inteiro, uma concessão de feno para leito do animal, como também de turfa para a sua fogueira.
Na ocasião, havia doze guardas-florestais na Floresta. Os cercados de George Pride ficavam todos em terreno alto, cerca de cinco quilômetros a leste de Fordingbridge. Era uma área linda e deserta. A três quilômetros para leste, encarapitada em uma elevação arborizada, no meio do nada, ficava a aldeola de Fritham. Os antigos comerciantes livres costumavam subir até lá, vindos da Smuggler’s Road, de acordo com os habitantes mais antigos. Mas a atuação da Guarda Costeira eliminara de vez esse excelente ramo do comércio, muito antes de George nascer, e agora Fritham era um lugar bastante cumpridor das leis. À parte isso, para onde se olhasse, era um adorável ermo a céu aberto.
Os cercados de Pride eram encantadores. As plantações de coníferas, claro, não tinham muita vida, mas os cercados mistos de carvalhos, faias e castanheiros eram belos locais. Com os animais que pastavam contidos do lado de fora, ficavam, em maio, acarpetados de campainhas-azuis. Aquilégias, violetas e prímulas cresciam ali. Em um local, George tinha até mesmo lírios-do-vale.
Ele tinha um orgulho todo particular de suas cercas — tanto das dos cercados quanto da que havia em volta de sua cabana. Ele quisera o melhor e por isso fora a Burley contratar Berty Puckle.
As cercas de Berty Puckle não eram como as de ninguém mais. Para início de conversa, ele preparava as tábuas de modo adequado.
”Tem gente”, Puckle costumava dizer, ”que pega a madeira em serrarias, onde foram serralhadas.” Esta última palavra, sua versão pessoal para ”serradas”, era pronunciada com um tom de profundo nojo. O modo de se preparar uma tábua, explicava, era pegar um pedaço de madeira e dividi-lo cuidadosamente com uma cunha e um martelo. Trabalhando desse modo, delicadamente, seguindo as fibras, o carpinteiro habilidoso podia produzir tábuas da espessura de uma hóstia e conseguir muito mais da madeira do que seria capaz qualquer sujeito desajeitado com um serrote. E as tábuas durariam para sempre. ”O natural é melhor”, dizia ele. ”Demora mais, dura mais.”
Sua grande especialidade eram portões. ”Acho que tive a idéia quando eu era criança”, contou certa vez a George. ”Em Buckler’s Hard. Meu avô ainda trabalhava lá, embora meu pai já tivesse se mudado de volta para Burley. Ele era um velho na época. A gente costumava ir visitá-lo, e me lembro de ter visto os joelhos de carvalho que usavam nos navios, como juntas de paredes para apoiar os conveses. Eles são tão fortes, sabe, que não se consegue quebrá-los. Foi isso que me deu a idéia, acho.”
Em seus portões, Berty Puckle usava a forquilha de uma árvore para formar a vertical e a diagonal. Depois, ajustava outras peças de madeira, encaixando-as e pregando-as com cavilhas de madeira ou ferro, até o portão resultante parecer mais como uma vegetação natural do que um objeto feito manualmente. Às vezes até mesmo pegava um complicado pedaço nodoso e construía em volta disso. Podia-se identificar um portão de Berty Puckle na Floresta a cem metros de distância. George Pride tinha quinze deles.
No entanto, eram também os cercados, suas cercas e portões que davam a George Pride a sua única preocupação séria. Pois havia o outro lado do trabalho de um guarda-florestal: tinha de vigiá-los.
E eles costumavam ser atacados.
Após o revés sofrido na Câmara dos Lordes, a Floresta tivera um pouco de sorte. Um membro do Parlamento, chamado professor Fawcett, que havia se interessado pela área, conseguiu aprovar uma Resolução que detinha todos os cercados posteriores ou a derrubada de árvores antigas, até ser regulamentada a nova legislação da Floresta. O governo era agora liderado pelo liberal Sr. Gladstone, que hesitava em atacar os comunais. Portanto, foi dada uma trégua à Floresta. Mas ninguém sabia por quanto tempo. E se, por um lado, homens como o coronel Albion e lord Henry estavam se preparando para a batalha seguinte no Parlamento, o povo da Floresta, por outro, dava indícios de seus sentimentos.
Incendiava as plantações e roubava as cercas.
Nesses anos de incerteza, com o odiado Ministério das Matas temporariamente sob controle, não era de surpreender que a gente da Floresta executasse alguns incêndios satisfatórios. Cumberbatch inclusive contratara alguns homens a mais como policiais — não, é claro, que isso causasse o mínimo efeito.
— Não estamos nos metendo no seu caminho, estamos, George? — comentou com ele alegremente um habitante da Floresta certo dia, em Lyndhurst.
— Não. E, por favor, não façam isso — disse George.
— Eu não me preocuparia com isso, George, se fosse você — retrucou o outro. — Pode dormir tranqüilo à noite.
”Não sei mesmo o que fazer, se eles vierem”, confessou George à sua mulher. ”Mas não deixarei que destruam os meus cercados.”
À parte essas preocupações, porém, tinham sido anos felizes. Sua família crescia. Gilbert, o filho mais velho, já estava com dez anos. Quando observava o menino voltar contente, após capturar lebres ou descer correndo por um dos córregos da Floresta, revivia a própria infância, e isso lhe dava uma profunda satisfação.
Tinha, então, quatro filhos, mas eram os mais velhos, Gilbert e Dorothy, que costumava levar em suas perambulações. Às vezes seguiam os riachos cor de âmbar e caminhavam ao longo dos gramados aonde os pôneis iam para evitar as moscas
— defender-se, como chamava a gente da Floresta. Viam um martim-pescador sair disparado ou observavam a pequena truta da Floresta, e ele ensinava aos filhos tudo o que conhecia sobre a sabedoria popular da Floresta.
Se via a si mesmo em Gilbert, não sabia ao certo com quem Dorothy se parecia. Tinha os mesmos traços da esposa, mas o corpo rijo parecia mais com os dos altos Pride. Os olhos dela eram de um azul-escuro quase roxo. Ao observá-la ajudar a mãe em casa, assando bolos e pães ou preparando geléia de maça no outono, ele ria para si mesmo, imaginando que boa esposa ela daria, algum dia, para um homem sortudo. Além disso, ela também corria como um gamo. Gilbert não conseguia alcançá-la. George tinha mais orgulho dela do que podia imaginar.
Foi em um dia de verão, quando ela tinha nove anos, que ele fez uma pequena descoberta sobre os próprios sentimentos que o deixou envergonhado.
De algum modo, um veado havia entrado em um dos cercados, e, de acordo com a permissão que tinha, matou-o com um tiro. Depois que ele e a mulher o esfolaram e o retalharam, levou os pernis até Fritham, onde o estalajadeiro da Royal Oak — a única estalagem num raio de quilômetros naquelas bandas da Floresta
— havia concordado em defumá-los para ele. Após defumada, a carne do veado seria embrulhada em musselina pela mulher de George e pendurada na ampla chaminé da cabana, onde as moscas não a atacariam.
Ele tinha seguido, levando o pônei, para apanhá-la em Fritham em um dia ensolarado de agosto, levando consigo a filha. Lá, tomou um pouco de sidra, trocou algumas palavras com o estalajadeiro da Royal Oak e depois, tendo carregado o pônei, iniciou, todo contente, o caminho de volta para casa. Dorothy ia dançando sob o sol. Os pernis defumados do veado sacolejavam nos flancos do pônei. Passaram por um afloramento pedregoso onde cresciam alguns tojos, e ele a viu correndo por ali como um animal selvagem. Isso o fez rir.
Ao ouvir o grito dela, pensou que tinha caído sobre algum tojo e chamou-a de volta, continuando a caminhar ao lado do pônei. Ouviu-a gritar novamente e parou.
— Foi uma cobra — berrou ela. Uma víbora. Na Floresta, havia inofensivas cobras-de-campim, mas também
víboras. , } „„,
— Era grande?
Ela confirmou com a cabeça e apontou para um buraco no chão a poucos metros de distância. A cobra já tinha desaparecido.
Apontou para o local na perna. Já estava começando a inchar. Ele podia ver as marcas deixadas pelas presas da criatura. A picada de uma víbora grande pode ser um caso sério para uma criança pequena. Ele apalpou atrás da faca que sempre carregava.
— Sente-se — ordenou. — Está vendo o pônei? Ela assentiu.
— Olhe para ele — disse. — Não tire os olhos dele.
Ela fez o que ele lhe ordenara. Ele cortou. Ela se retesou bruscamente, mas não chorou. Ele cortou novamente. Então, chupou e cuspiu, e voltou a chupar. Pôde sentir o gosto da peçonha, um sabor acentuado e ruim.
Continuou durante um quarto de hora. Ela tremia como uma folha, mas não abria a boca. Depois, colocou-a no pônei e levou-a para casa.
Foi durante o caminho de volta que ele percebeu que a amava mais do que aos outros filhos.
Um úmido dia de fevereiro: a Sra. Albion, em uma estreita e pequena carruagem, deslizava pela alameda abaixo que passava por Brook, levando o seu embrulho secreto para casa. Estava ansiosa para chegar em casa antes de o trem do marido entrar fumegando em Brockenhurst.
As janelas da carruagem estavam embaciadas, e ela abriu uma delas para ver lá fora.
Havia ocasiões, no inverno, em que toda a Floresta parecia ter-se transformado em água. Uma neblina cerrada envolvia as árvores, grudando-se aos troncos cobertos de hera dos antigos carvalhos, infiltrando-se pelos intervalos dos galhos caídos, umedecendo as toras abatidas. O chão da Floresta estava ensopado. Enormes poças cobriam os caminhos e o tapete de grama e folhas transformava tudo em uma lama turfosa mole e marrom. Acima, abaixo, em todas as direções, uma umidade penetrante parecia disposta a mergulhar na alma. A Floresta costumava ser assim nos meses de apogeu do antigo inverno.
Ela tinha saído para ir ver os netos. O coronel Albion e Minimus não voltaram a se encontrar depois daquela conversa que tiveram. O rompimento não foi exatamente formal. Se alguém mencionava o coronel perto de Minimus, ele apenas dava de ombros e dizia: ”Ele grita comigo.” Se alguém fosse imprudente o bastante para falar de Minimus perto do coronel, este nada dizia, mas seu rosto começava a ficar perigosamente vermelho. Talvez Minimus, às vezes, se sentisse um pouco aborrecido com o afastamento entre os dois; Albion, talvez, um pouco triste. Mas continuavam sem se encontrar. E não havia dinheiro.
Aliás, havia pouco dinheiro. A Sra. Albion era bastante habilidosa em juntar pequenas quantidades de sua mesada — o suficiente para comprar roupas e pagar uma criada —, que dava à filha em suas visitas clandestinas à pequena cabana nas proximidades de Fordingbridge. Não que o marido a tivesse proibido de ir lá, mas, sensatamente, escondia dele as visitas que fazia. Se o coronel Albion visse a filha na rua, o que raramente acontecia, ele a cumprimentava com um frio gesto de cabeça, mas não parava para conversar. Ele nunca vira nenhum dos dois netos, que, desde então, tinham nascido. ”Eles estão sendo criados pagãos sem Deus, nas mais ordinárias companhias”, afirmava desanimado. Era verdade, e chocava bastante a Sra. Albion o fato de que nem o menino nem a menina de Beatrice tivessem sido batizados. ”Sem dúvida”, concluía o coronel, ”levarão a vida deles desse modo. Não há nada que possa ser feito.” Ele fora procurar o advogado da família. Os Furzey, ao melhor estilo da época, foram deserdados. Desde então, o filho mais velho do coronel tinha se casado. Já tivera um filho. O futuro da família estava ali. A maioria dos homens de sua classe teria feito o mesmo. Era assim que as famílias sobreviviam.
Os filhos de Beatrice eram louros e bonitos. Inteligentes. Aliás, porque os pais se interessavam muito por esse tipo de coisa, eles estavam aprendendo a ler e a escrever mais cedo do que a maioria. Se, por um lado, eles viviam na Floresta, de acordo com o marido dela, como pagãos sem Deus, por outro pareciam prosperar nesse modo de vida.
Mas a residência dos Furzey era uma bagunça. Não havia como negar. No dia anterior, a criada que haviam empregado não agüentou mais e foi embora. Não havia babá nem criada, apenas uma caridosa moça de um orfanato de Sarum, que trabalhava na pequena cozinha. Beatrice perguntava o que fazer. Portanto, a Sra. Albion ficou bastante contente com a sugestão dela de que Dorothy, a filha de George Pride, podia ajudá-los.
Beatrice conhecia muito bem o guarda-florestal. A filha já estava com doze ou treze anos. ”Eu irei até lá amanhã”, dissera para a mãe. Por vir da casa dos Pride, a Sra. Albion não tinha dúvidas de que ela era uma menina equilibrada e seria uma boa influência para os netos.
Mas a verdadeira missão da Sra. Albion naquele dia era mais tortuosa. Ela nunca desistira de levar de volta os Furzey para o seio da família, mas sabia que essa teria de ser uma campanha demorada e organizada com todo o cuidado. Sua estratégia daquele dia implicava dois atos de deliberada trapaça. O primeiro envolveu um pedido ao primo Totton, o filho do seu tio Edward, que vivia em Londres. Ele concordara, e ela trazia consigo a carta dele. O segundo era o conteúdo do embrulho em papel pardo que jazia ao seu lado no assento da carruagem.
O coronel Albion estava com um ar preocupado, naquela tarde, ao voltar para casa. O dia, em Londres, fora mais cheio de acontecimentos do que ele esperava, e, assim que chegou a Albion Park, apressou-se em dar a notícia à esposa.
— Gladstone renunciou! O governo caiu. — A notícia era mesmo séria. Não que ele se importasse tanto assim com Gladstone; mas as implicações
mpara a Floresta eram importantes.
— Não há dúvida, ao que parece, que ele perderia a eleição — informou o coronel. — Isso, como sabe, significa que perdemos nossa proteção.
Tratava-se de uma questão técnica, constitucional, mas muito importante. A Resolução da Câmara dos Comuns, que proibira novos cercados, era mantida apenas pelo atual Parlamento. Quando os Comuns voltassem a se reunir, após as eleições, poderia haver um novo Parlamento.
— Pode ter certeza de que o Ministério das Matas também sabe disso — falou tristonho. — Devemos esperar pelo pior.
Não que a Floresta tivesse ficado inativa. Os proprietários de terras da Associação de New Forest estiveram preparando o caso deles com assiduidade. Outro grupo, uma Aliança dos Comunais, representando os mais humildes, também tinha começado a agitar.
— Iremos combater — declarou o coronel.
Somente depois que ele jantou, a esposa entregou-lhe a carta e o embrulho.
— Olhe — disse ela — o que o meu primo Totton nos enviou. Foi muita gentileza dele. — A carta anunciava que o primo dela tinha visto um quadro em uma galeria. Como não estava assinado, não sabia quem era o pintor, mas com certeza a cena reproduzida era de New Forest. E ele achava que o casal gostaria de tê-la.
O coronel Albion resmungou. Não costumava ter muito interesse em pinturas, mas, por cortesia a Totton, examinou-a.
— Parece uma vista de Castle Malwood — anunciou. — É a igreja de Minstead. — O fato de conseguir identificar o local despertou o seu interesse. Examinou-a com mais cuidado. O quadro mostrava um pôr-de-sol deverão. Após um ou dois instantes, sorriu. — É exatamente como parece — disse ele. — A luz. Ela brilha exatamente desse modo.
— Estou feliz por ter gostado.
— Gostei. É realmente danado de bom. Foi muita gentileza de Totton. Eu mesmo escreverei para ele.
— Eu estava imaginando onde pendurá-lo. — Fez uma pausa. — Podia ficar bem em um dos quartos, creio eu. — Fez outra pausa.
— Colocarei no meu gabinete — afirmou o coronel. — A não ser que você prefira um outro lugar.
— O seu gabinete. Por que não, Godwin? Estou contente por você querer colocá-lo lá.
Embora não o soubesse, o coronel Albion acabara de ver o seu primeiro Minimus Furzey.
O coronel Albion estava certo sobre a eleição. Gladstone perdeu. Março viu um novo Parlamento. Em questão de semanas, Cumberbatch e seu pessoal estavam derrubando árvores. George Pride foi obrigado a ver um antigo carvalho tombar, perto da pedra de Rufus.
”Ele fez isso apenas para afirmar seu ponto de vista”, disse ele, triste, para a mulher.
Os seus cercados estavam bem ordenados. Um, em particular, tinha a previsão de ser retalhado aquele ano; portanto, quando Cumberbatch o chamou e exigiu uma lista da madeira a ser obtida, ele foi capaz de satisfazê-lo com facilidade.
— Muito bem, Pride — falou o delegado superintendente, com um enérgico gesto afirmativo de cabeça. — Em breve, deveremos lhe dar uma nova plantação para cuidar. O Sr. Grockleton sugeriu a drenagem de alguns pântanos para plantarmos ali.
— Sim, senhor — disse George.
Fora isso, a primavera transcorreu sem incidentes. A jovem Dorothy ficava contente em ir para a casa dos Furzey. ”É um tipo de lugar esquisito”, contou ao pai dela. Mas os Furzey eram bondosos com ela, e Dorothy gostava das crianças. ”Num certo sentido, elas são criadas exatamente como as crianças da Floresta”, informou.
De Beatrice, ela gostava. ”Vê-se que ela é uma dama, papai. Mas devo dizer que não vive como uma delas.” Minimus achava engraçado, porém estranho. ”Mas é espantoso o que ele sabe.” O próprio George costumava se perguntar como o artista tinha conseguido casar-se com a filha do proprietário de terras. A Floresta inteira sabia que os dois não se falavam.
”É bem pior do que eu e o meu pai”, dizia ele, pois, embora os dois Pride evitassem um ao outro, não se recusavam a conversar, se, por acaso, se encontrassem.
A primavera transformou-se em verão, e a Floresta permanecia tranqüila.
Eles se encontraram à meia-noite, em Nomansland, o povoado mais remoto no limite setentrional da Floresta. Sob a luz das estrelas e da lua em quarto crescente, seguiram cavalgando os seus pôneis, passando por Fritham, como um comboio de carga dos contrabandistas dos velhos tempos. Eram cerca de uma dúzia, todos bons homens da Floresta, liderados pelo sujeito grandalhão que havia falado com George em Lyndhurst.
Ao chegarem aos cercados de George, pararam e cortaram um pouco de tojo e samambaia seca e fizeram uma pequena fogueira. Tinham algumas tochas cobertas de piche. Em vários pontos, ao longo da cerca, acumularam matéria seca, que queimava fácil.
— Creio que faremos um belo fogo por aqui — comentou o sujeito corpulento.
— E os portões? — quis saber um dos homens.
— Berty Puckle faz excelentes portões — rebateu o grandalhão. — Não vai querer queimá-los. Isso seria um crime. — Alegrou-se com a sua piada. — Não que fosse um crime. — Soltou uma gargalhada. — Seria um crime se fossem queimados, não acha, John? — Surgiram várias risadas no meio da escuridão. — É melhor levarmos alguns dos portões. Eles podem vir a ser úteis.
Poucos minutos depois, vários dos portões menores tinham sido removidos de seus lugares.
— Muito bem, vamos começar — gritou o homem grande, e os demais, portando tochas, passaram a acender as fogueiras.
Já tinham queimado tranqüilamente quase meio quilômetro de cercas, quando George Pride apareceu. Carregava uma arma. Houve berros e algazarra.
— Aí vem ele. Vem vindo confusão. Oooa, George! Mas George não estava sorrindo.
Nem o grandalhão.
— Eu pensei ter dito para você ficar na cama — gritou ele. George nada disse.
— Vá para casa, George — bradaram várias vozes. — Não queremos lhe fazer mal.
Mas George apenas balançou a cabeça.
— Parem com isso — berrou.
— O que vai fazer, George? — perguntou o homenzarrão com sua voz possante. — Vai atirar em mim?
— Não. Vou atirar no seu pônei. Seguiu-se uma pausa.
— Não seja burro, rapaz — disse uma voz.
— Se eu atirar em vários pôneis — gritou George —, vocês não apenas voltarão a pé para casa. Terão que explicar para o delegado superintendente como os seus pôneis vieram parar aqui.
— Pode errar e acertar em mim, George — falou outra voz no meio da escuridão.
— Tem razão — afirmou George.
— Não estou nada contente, George — disse o grandão.
— Eu não achava que ficaria — retrucou George.
Então, eles foram embora, George arrancou as cercas incendiadas, e, por um milagre, perdeu apenas algumas árvores.
— E quem eram eles? — exigiu Cumberbatch na manhã seguinte.
— Eles saíram cavalgando — explicou George.
— Nós sabemos quem é o líder da quadrilha, Pride. Você deve tê-lo visto. Tudo o que tem a fazer é confirmar quem era ele.
— Não posso, Sr. Cumberbatch — respondeu, olhando-o diretamente nos olhos. — Isso seria mentir, pois eu não o vi. Eles fugiram, assim que viram a minha arma.
— Está mentindo.
— Não, senhor.
Cumberbatch olhou-o intrigado. George Pride seria um florestal tão leal assim? Se estivesse do lado dos incendiários, podia fingir estar dormindo durante todo o episódio, até eles irem embora. Mas obviamente não o fez.
— Você tem uma hora para mudar de idéia — afirmou, e fez um gesto, dispensando-o.
Uma hora depois, George falou a mesma coisa, e Cumberbatch mandou-o ir para casa.
”Você não podia ter dado apenas um dos nomes?”, perguntara a mulher dele. Mas, mesmo a ela, ele nada disse. O risco era grande demais.
Não podia dizer, nem mesmo a ela, que uma das vozes que ouviu na escuridão era do pai dele.
No dia seguinte George Pride foi demitido.
1875
A Comissão Seleta da Câmara dos Comuns, reunida no verão de 1875, fez a mais completa investigação da administração da Floresta desde que Guilherme, o Conquistador, a estabelecera. Durante onze dias tomaram depoimentos: de Esdaile e Eyre, do professor Fawcett, de Cumberbatch e de uma porção de outros. O presidente da Comissão, o Sr. W. H. Smith, fora dono de papelaria e vendedor de livros, e, já tendo feito fortuna, entrou para a política e revelou-se também um notável estadista. Era justo e franco. Se o governo pretendia criar uma legislação para New Forest, a comissão queria se certificar de que ele tivesse uma boa orientação. No que dizia respeito ao maior benefício público.
Foi notável — o coronel Albion teve de admitir — o que acontecera no ano anterior. Quando Esdaile e Sir Henry o convenceram da necessidade de conseguir apoio popular, ele foi obedientemente ao seu clube em Londres e conversou com todo tipo de pessoas como ele mesmo, que escreveram algumas cartas de grande valor para The Times. E estas haviam feito algum bem. Mas ele não estava preparado para o clamor público vindo de outras fontes. Enquanto o Sr. Esdaile cuidava da causa legal dos comunais, foi o proprietário do norte da Floresta, o Sr. Eyre, quem se mostrou brilhante em conduzir aquele novo apoio popular. Cientistas, artistas, naturalistas: os jornais foram bombardeados com cartas. ”Onde diabos você acha essas pessoas?”, perguntara cordialmente. ”Onde quer que eu as encontre”, respondera o Sr. Eyre. ”São essas pessoas, sabe, que formam a opinião pública. Nós precisamos delas mais do que tudo.” ”Ah”, exprimiu o coronel.
E agora tinham começado as audiências da Comissão. Embora Albion não fosse prestar nenhum testemunho, lord Henry conseguiu que ele participasse. Era uma sensação estranha acompanhar um processo parecido com o que ele testemunhara sete anos antes, quando fora a Londres com Pride.
Recentemente tinha havido uma grande mudança na família Pride, e ele ficara feliz em vê-la. Depois que o jovem George foi demitido por Cumberbatch, ao que parecia, ele e o pai haviam se reconciliado. Albion dera a George uma cabana para ele se arrumar e o empregara na propriedade. Mas, embora estivesse contente com o fato de a família Pride estar reunida, o incidente da demissão tinha feito com que o coronel se tornasse mais determinado do que nunca a ver bem-sucedidos os seus esforços de salvar a Floresta.
Dessa vez, ele tinha uma companhia diferente. Por algum motivo, sua esposa insistira em ir com ele.
Em geral, a companhia dela lhe agradava, mas no quinto dia de audiências irritou-se, quando, por causa de umas compras desnecessárias, a esposa fez com que ele chegasse atrasado. Ao chegarem à Sala da Comissão, esta já estava lotada, e tiveram de se sentar nos fundos. Ele nem mesmo ficou sabendo quem ia depor naquele dia.
Por isso foi apanhado totalmente de surpresa ao ouvir o Sr. W. H. Smith dirigir-se à testemunha seguinte.
— Sr. Furzey, pelo que sei é um artista de New Forest.
O coronel Albion quis ir embora. Nem mesmo a mão da esposa, pressionando seu braço, o teria contido, se não fosse o fato de, ao se levantar naquele momento, poder causar uma constrangedora comoção. Ele, portanto, permaneceu sentado, aturdido e furioso, enquanto Minimus prestava o seu depoimento.
— O senhor acredita, Sr. Furzey, que New Forest é uma área de interesse particular para artistas?
— Sem dúvida. Eu gostaria de chamar a atenção dos senhores para o recente abaixo-assinado, firmado não apenas por mim, como também por alguns dos mais eminentes membros da Royal Academy.
O abaixo-assinado obtivera uma enorme publicidade. Muitos dos maiores nomes da arte britânica eram de opinião que New Forest, pelas suas belezas naturais, era superior até mesmo à Região dos Lagos.
— Há um estado selvagem romântico na Floresta, um senso de natureza primitiva intocada, sem par no sul da Inglaterra — ele ouviu Furzey dizer. — O jogo de luz é extraordinário sobre os antigos bosques de carvalhos.
O coronel observava. Seria possível Furzey sair-se bem com esse tipo de conversa floreada diante de uma Comissão Seleta do Parlamento Britânico? Contudo, vários membros aquiesciam.
— Eu também gostaria de mencionar a extraordinária fonte de recursos que a Floresta representa para os naturalistas — prosseguiu Minimus. — Os senhores podem não estar a par, mas as seguintes espécies...
O coronel Albion ouvia atônito. Moscas, insetos, lucanos, nomes em inglês e em latim que ele desconhecia, faziam parte da lista que Furzey desfiava e que devia estar matando de tédio os cavalheiros. Entretanto, mais uma vez, vários deles pareciam impressionados. E, assim, a coisa prosseguiu. Opiniões que o confundiam, uma terminologia que ele entendia apenas vagamente. Minimus estava em seu elemento. Então veio o epílogo.
— Essa área extraordinária é um tesouro nacional sem igual. Digo nacional porque, embora historicamente tenha sido uma floresta de caça da Coroa, atualmente é uma fonte de inspiração, de estudo e recreação para as pessoas. E precisa ser salva para elas.
Minimus encerrou. A Comissão fez uma breve pausa. As pessoas começaram a se retirar. Enquanto o coronel Albion permanecia sentado em seu lugar, sem saber o que pensar, o Sr. Eyre aproximou-se dele, sorrindo.
— Que argumentação robusta — comentou. — Exatamente do que precisávamos, não concorda?
Albion continuava aturdido, enquanto sua esposa o levava Regent Street acima, no final do dia. O Sr. Eyre e lord Henry haviam providenciado uma recepção por lá, e, embora o local escolhido fosse um no qual ele não se sentiria à vontade, o coronel achou que seria descortesia não comparecer.
Não havia dúvida de que a mostra de arte de New Forest que o Sr. Eyre organizara na galeria da Regent Street tinha sido uma idéia inteligente e atraíra a atenção favorável dos jornais. Pinturas de animais e paisagens sempre foram muito apreciadas na Inglaterra, e desde que a rainha Vitória tornara elegante o cenário silvestre da Escócia, praticamente qualquer paisagem contendo charneca ou um veado tinha um mercado certo.
Com a melhor boa vontade que conseguiu reunir, portanto, o coronel deixou-se levar para o interior.
Já havia uma multidão dentro da galeria quando entraram. Felizmente, pelo que Albion pôde observar, a maioria não era de artistas, ao contrário, aparentava gente respeitável. Não demorou muito para ele se encontrar envolvido em uma conversação bem razoável com um almirante reformado de Lymington, em companhia de quem, no ano anterior, ele matara um grande número de patos. E sentiu-se consideravelmente animado quando os seus olhos, por acaso, foram atraídos para um pequeno quadro com a cena de um pôr-do-sol, visto a partir de Castle Malwood, mostrando abaixo a igreja de Minstead.
— É algo adorável — observou. —Tenho um exatamente igual. Não sei quem é o pintor.
O almirante também não sabia. Mas nesse instante sir Henry havia se juntado a eles e, após dar uma olhada no quadro, encarou intrigado Albion.
— Meu caro amigo — disse afetuosamente —, você tem razão de gostar dele, pois é realmente uma pintura muito boa, de um excelente artista. É de autoria de Minimus Furzey.
O New Forest Act de 1877 determinou a forma de New Forest para as gerações vindouras. As determinações da Lei, acatando o relatório da Comissão de W. H. Smith, não podiam ser mais decisivas para os comunais. O Ministério das Matas não teria mais nenhuma cessão de terras. Ele teria que proteger, e não derrubar, as antigas árvores da Floresta. Os comunais, pelo pagamento de suas taxas habituais, tiveram explicitado o seu direito de pastagem na Floresta durante o ano inteiro.
Mas o verdadeiro golpe de mestre veio através de uma determinação idealizada pela própria comissão de W. H. Smith.
A antiga ordem dos couteiros, que administrara a Floresta medieval através de suas cortes em Swainmote, teria uma nova vida, em uma nova forma. Subordinados a um Couteiro Oficial, indicado pela Coroa, seus proprietários de terras locais seriam eleitos couteiros pelos comunais e habitantes da Floresta. Eles controlariam a Floresta. Seriam eles agora que fariam as leis secundárias, administrariam as pastagens, recolheriam as taxas, instalariam os tribunais e, acima de tudo, protegeriam os interesses dos comunais. Se o Ministério das Matas se comportasse mal na Floresta, teria de responder aos couteiros. Tratava-se de uma inversão total. O Ministério das Matas teria, por assim dizer, de ficar confinado aos seus próprios cercados.
O Sr. Cumberbatch, ao saber da notícia, deixou a Floresta e nunca mais voltou.
Em uma festa comemorativa dada por lord Henry em Beaulieu, o coronel Albion, circunspecto, se bem que hesitante, apertou a mão oferecida pelo genro Minimus e declarou:
— Nós vencemos.
1925
Foi a esposa de Jack, Sally, a nora de George Pride, quem convenceu o velho homem a falar. Ele ainda era a mesma figura magra e empertigada que ela sempre conhecera, mas estava com oitenta e três anos.
— Depois que o senhor se for — lembrou-lhe —, quem vai se recordar de tudo isso?
A família de Sally originava-se de Minstead. Ela era enfermeira formada e muito boa em anotar as coisas. Por isso, em 1925, George Pride todas as tardes se sentava na cadeira de madeira que adorava, em sua pequena cabana em Oakley, e falava durante uma hora ou duas, até se cansar.
Sally ficou bastante surpresa, depois que começou, como em pouco tempo enchia de anotações os cadernos que havia comprado. De fato, no início da quinta tarde, ela já tinha usado dois, quando ele chegou ao ponto que realmente a interessava.
”O seu Jack foi o último dos nossos filhos a nascer. Creio que sabíamos que seria o último. Isso foi no verão de 1880. E três dias depois fui chamado a Lyndhurst. A Casa da Rainha, ao lado da Corte dos Couteiros, é um tipo de prédio bem impressionante, e você pode imaginar como eu ficava um pouco nervoso nas poucas vezes em que entrei lá, e aquela era a primeira ocasião em que me encontraria com o delegado superintendente que assumiu depois de Cumberbatch. Mas, podem dizer o que quiserem dele, o Sr. Lascelles era um cavalheiro. Alto, do tipo desportista, e muito educado. Olhou para mim, como se me medisse de cima a baixo, e falou:
— Já soube de tudo a seu respeito, Pride. As coisas boas e as ruins. — Ele sorriu ao dizer isso. — Meu antecessor o demitiu. Gostaria de ter o seu emprego de volta?
Como pode imaginar, eu quase desabei no chão. Mas achei melhor ser cuidadoso, e respondi: -
— Posso lhe dar minha resposta na segunda-feira, senhor?
— Sim, pode — disse ele, e me retirei.
A primeira coisa que eu fiz foi ir a Albion Park, falar com o coronel. Afinal, ele era o meu empregador e tinha feito tudo por mim. E também era um dos couteiros da nova Corte dos Couteiros. Então, eu lhe disse: -
— O Sr. Lascelles acaba de me oferecer o meu emprego de volta no Ministério das Matas.
— Foi mesmo? — disse o coronel. — Volte aqui no domingo à tarde e veremos o que fazer a respeito.
Foi quando ele me ofereceu o emprego de posteiro.
O serviço de posteiro é bem parecido com o de hoje. Você era encarregado de todo o rebanho na sua parte da Floresta. Basicamente, era um trabalho feito a cavalo, verificando o gado e os pôneis. Às vezes você ajudava a recolher as taxas e as concessões fixadas. O salário era melhor do que o do outro emprego: sessenta libras anuais. Você tinha que arrumar a sua própria cabana.
— Mas eu o ajudo a comprar uma — disse o coronel.
Acima de tudo, significava uma opção. Eu podia trabalhar para os couteiros ou para o Ministério das Matas. Esses eram os dois lados, na ocasião, em New Forest. Ainda são e acredito que sempre serão. Eu tive que escolher de que lado estava.
Portanto, eu disse sim ao coronel Albion, e não ao Sr. Lascelles.
Meu pedaço de terra era a parte setentrional da Floresta. Fiquei feliz em voltar para lá. A cabana que conseguimos ficava em Fritham. Foi lá que Jack se criou quase desde o nascimento.
Éramos muito felizes por lá. Eu tinha um bom cavalo e saía todos os dias para cavalgar. Na época, eu tinha me livrado da barba e deixei crescer um longo bigode. Dizem que eu parecia bem vistoso. Eu levava o meu filho Gilbert no pônei dele, pois imaginava que aquele era o tipo de trabalho que ele também gostaria de ter um dia. Ele conseguia reconhecer melhor do que eu se uma vaca estava ficando doente, e eu o mandava avisar o dono dela. Ele tinha mais ou menos dezesseis anos e era de grande ajuda para mim.
Mas foi Dorothy a melhor de todos eles. Os Furzey tinham sido muito bons, durante os anos após eu perder o meu emprego com Cumberbatch. Eles a mantinham em sua casa e pagavam para ela, o que era uma ajuda e tanto para nós. E, além de ser uma boa prática para ela, eles lhe ensinaram bastantes coisas. Ela lia muito mais livros do que as outras meninas. Todos os anos, ela fazia uma pintura minha e da minha esposa... eram realmente adoráveis... como presente de Natal. Nós pendurávamos na parede. Tínhamos muito orgulho dela. E digo mesmo que ela era uma moça linda, alta e esguia, com longos cabelos negros. Era formidável cuidando de uma casa, uma segunda mãe para as crianças, tanto que, quando nos mudamos para Fritham, a minha esposa ficou muito contente em tê-la por lá. Achávamos que ela poderia escolher quem quisesse, na Floresta, como marido.
Ela resolveu trabalhar em casa, como muitas moças faziam, pegando roupa para lavar. Apanhava nas aldeias próximas. Mas, cada semana ou duas, ela ia pegar a dos Furzey. Quando Jack fez dois anos, ela já tinha mais serviço do que conseguia dar conta. Às vezes passava horas fora de casa, fazendo entregas. Devia ter uns vinte anos na ocasião.
Você já subiu até o lago de Eyeworth? Eu me lembro quando Eyeworth era uma linda casinha de campo de guarda-caça. São apenas oitocentos metros de caminhada, como sabe, de Fritham. Mas o Ministério das Matas vendeu-a... para um homem que queria fabricar pólvora lá. Dá para imaginar uma coisa dessas? Uma fábrica de pólvora bem no meio da Floresta? Mas é assim que age o Ministério das Matas a seu favor. Pois bem, uma empresa alemã comprou-a. Tornou-se a Fábrica de Pólvora Schultze, e ela transformou o lago em um pequeno reservatório de água para a fábrica. Havia uma porção de depósitos por lá, mas felizmente a maioria ficava oculta pela mata. Mas a fábrica fez notar sua presença de outras maneiras.
Os resíduos que escorriam daquele lugar! Escuros e sulfurosos. Fedorentos. E eles escoavam para o riacho Latchmore, que passava pelo local, e os carregava por quilômetros, em direção oeste, através da charneca. Parte do meu trabalho como posteiro era cuidar para que o gado ficasse longe desse riacho, pois, se bebesse daquela água, ficava doente. Uma ou duas vacas morreram.
Eu passava a cavalo por Eyeworth, em uma tarde de verão, cerca de dois anos depois que chegamos a Fritham, quando vi Dorothy, com a aparência muito pálida. Pude perceber que ela estava à minha espera.
— Preciso falar com o senhor, papai — disse ela. Perguntei se não podíamos conversar em casa, mas ela balançou a cabeça e falou: — Não posso ir para casa.
Portanto, desmontei e ficamos parados perto daquele riacho fedorento. Então, ela me disse que ia ter um filho.
Como pode imaginar, fiquei muito surpreso, pois não sabia nada a respeito de qualquer rapaz. E pensei comigo mesmo: espero que pelo menos seja um homem bom. E, depois, pensei: espero que ele não trabalhe para o Ministério das Matas.
— Ah — disse eu. — Então, acho que você vai ter que se casar. — Mas ela voltou a sacudir a cabeça. — Se você quiser, posso conversar com o tal rapaz — voltei a dizer, às vezes, sabe como é, eles precisam de um pouco de persuasão.
— Não é um rapaz — disse ela. — E ele é casado.
— Ah — falei.
— Não sei o que fazer, papai. Foi por isso que vim procurar o senhor. Não posso encarar mamãe — disse ela.
É engraçado ela ter me procurado, e não à mãe dela. Então me lembrei daquele dia em que ela foi picada pela cobra. Pois, na ocasião, não estávamos muito longe do local onde aconteceu. Acho que foi por isso que aquilo me veio à cabeça.
— É melhor você me dizer quem foi — falei. — Pelo menos, ele poderá ajudar você.
— Não acredito que ele possa, papai — disse ela. Não queria me dizer quem foi, mas conversei com ela por algum tempo e, no final, deu de ombros e falou: — Afinal, não faz mesmo muita diferença.
Então me revelou que foi o Sr. Minimus Furzey.”
George parou. Por um momento, Sally duvidou que ele fosse continuar. Então percebeu que ele estava chorando. Não emitia nenhum som, apenas um leve estremecer de seus largos ombros.
Sally esperou.
— Acho que foi tolice minha tê-la deixado ir para lá — observou, finalmente. — Eu não devia ter confiado nele, não é mesmo?
— Não sei, George — respondeu Sally.
Ele permaneceu calado por mais uns instantes.
”No dia seguinte fui falar com o Sr. Furzey. Eu estava muito aborrecido, como pode imaginar. Na verdade, me sentia traído. Mas quando cheguei na cabana deles, fui muito educado. Perguntei se podia ter uma conversa particular com ele. Então ele saiu, parecendo um pouco constrangido. E quando chegamos ao pequeno jardim, onde ninguém podia nos ouvir, eu lhe falei o que sabia e perguntei o que ele ia fazer a respeito. E sabe o que ele disse?
— Oh, meu Deus — disse ele. — Eu vivo fazendo isso. — E apenas balançou a cabeça. — Como sabe, eu não tenho dinheiro.
Eu não estava certo do que ia fazer naquele instante. Mas nesse momento a Sra. Furzey saiu, sorriu amavelmente para mim e percebi que ela não fazia a menor idéia do que estava acontecendo.
— O que houve? — perguntou para mim. — Há algo que eu possa fazer por você?
— Nada demais — respondi. — Eu só queria perguntar uma coisa ao Sr. Furzey sobre um ninho de pássaro que encontrei. — Eu estava muito aborrecido por causa de Dorothy, mas quando vi a Sra. Furzey daquela maneira, também senti pena dela.
— Quem bom — disse ela. — Ele sabe mais do que qualquer um sobre a vida silvestre da Floresta.
— Bem — Furzey cortou rapidamente —, falaremos mais sobre isso, Pride. Me dê um ou dois dias. — E porque eu não queria falar nada na frente da Sra. Furzey, fui embora. Mas, é claro, não tive mais notícias dele. Ele era desse jeito. Pode-se dizer que ele era mesmo um demônio, mas realmente não havia muita coisa que se pudesse fazer a respeito.
Foi minha esposa que me convenceu a procurar o coronel. Esperei uma semana antes de contar para ela. Ela ficou muito aborrecida. E foi para cima de Dorothy. Ela não mediu as palavras, o que talvez tenha sido lamentável.
Eu não estava certo se devia procurar o coronel. Sabe Deus que nada disso tinha sido culpa dele. E era preciso ser cauteloso, não é mesmo? O coronel era um couteiro, e os couteiros me empregavam. Não é muito boa idéia constranger o patrão da gente. Mas a minha esposa insistiu tanto comigo que acabei indo até Albion Park.
Fiquei muito constrangido, mas apenas expliquei o que aconteceu do modo mais simples que consegui e disse que ainda estava esperando o Sr. Minimus Furzey me dizer alguma coisa.
O coronel ficou tão vermelho que receei que ele fosse ter um ataque do coração.
— Você fez muito bem — disse ele — em vir falar comigo. — Fiquei contente por ele ter falado isso. — Esse homem — ele tremia de raiva — devia ser açoitado — Então, ficou calado por uns instantes. — Minha filha sabe?
— Não, senhor — respondi. E não pretendo contar para ela.
— Ótimo. Eu lhe agradeço por isso, Pride. — Ele sacudiu a cabeça. — Lamento muito pela sua filha. Essa não é a primeira vez. — Ficou pensativo, depois começou a. falar: — Suponho que você tem certeza de que... — mas deteve-se e bateu com o punho na escrivaninha. — Não, não, claro que foi ele, maldito seja. Pride — falou —, deixe comigo. Alguma coisa será feita. — Olhou para mim. — Não quero que isso se espalhe. Pode conseguir isso? - Sim, senhor — respondi.
E, realmente, uma semana depois Furzey apareceu para falar comigo, parecendo bastante acanhado, e me deu dez libras, com a promessa de mais quando o bebê nascesse. Arrisco dizer que o dinheiro veio do coronel.
— Nós vamos cuidar da criança — falou para mim. — Eu lhe prometo isso. Ela terá todo o necessário.
Então Dorothy ficou em casa e teve o bebê. Eu preferiria que a gente estivesse na cabana de guarda-florestal daquela época, em vez de Fritham, pois lá ninguém nos veria. Mas nada podia ser feito a respeito. Coisas assim acontecem na Floresta, do mesmo modo que em qualquer outro lugar, eu sei, mas era uma vergonha para todos nós, é claro. Nunca falamos coisa alguma sobre o pai. O que os outros pensaram, eu não sei.
O bebê era uma menina. Uma coisinha linda, devo dizer. Mas viveu apenas seis semanas. Pegou uma febre. Dorothy chorou durante dias.
Uns dois meses depois do nascimento, fui chamado a Albion Park, dessa vez para falar com a Sra. Albion.
— Você conhece os Hargreaves de Cuffnells? — perguntou-me ela.
Eu sabia que Cuffnells era uma bela casa nos arredores de Lyndhurst, mas nunca tinha entrado lá. A família Hargreaves a comprara anos antes, e recentemente o jovem Sr. Hargreaves tinha-se casado com uma Srta. Alice Liddell. Ela ainda anda por aí hoje em dia, mas, como sabe, foi a Alice que aparece em Alice no país das maravilhas.
— Eles são muito amigos nossos — prosseguiu a Sra. Albion. — E têm um emprego para uma moça trabalhar como criada do jovem Sr. Hargreaves. Aliás — ela deu um sorriso —, creio que em pouco tempo poderá ser uma babá. Tive uma longa conversa com eles, dois dias atrás, e estive pensando se a sua Dorothy não estaria interessada. Trata-se de um excelente emprego e, é claro, terei prazer em recomendá-la. Você poderia perguntar a ela?
Bem, você pode imaginar o que eu sentia ao voltar para casa. Era mesmo um emprego respeitável. Um novo começo para Dorothy.
Quando cheguei em casa, percebi que todos pareciam meio tristes, mas anunciei:
— Tenho uma notícia que vai alegrar vocês.
— Não acredito que vá — rebateu minha esposa. E então me falou: — Dorothy sumiu.
Ela tinha ido embora. Não sabíamos por quê. Nem mesmo para onde. E ficamos sem saber por um mês, até que chegou uma carta de Londres. Sem endereço do remetente. Apenas para dizer que ela sentia muito e que não voltaria.
Não pudemos fazer nada. O coronel contratou um homem para tentar localizála para nós, mas não adiantou. E foi o fim de Dorothy, no que nos dizia respeito.”
Ele olhou para baixo, em direção às mãos, e depois para a janela.
— Não consigo mais falar por hoje — disse George Pride.
”O seu Jack tinha apenas cinco anos, mal era uma criancinha, como dizemos, quando apareceu nos jornais — começou George no dia seguinte. Foi até a cômoda e retirou um velho envelope pardo recheado de papéis e lentamente desdobrou um amarelado recorte de jornal. —Também foi manchete.
Foi em um ano do qual me lembro bem. Tivemos um inverno muito frio. Foi o ano em que lord Henry recebeu o título de Lord Montagu de Beaulieu, por causa de tudo o que ele tinha feito pela Floresta. Os comunais ficaram muito contentes.
Era um sinal dos tempos, suponho, o fato de pessoas comuns se aposentarem e irem viver no litoral. Nós as víamos por toda a parte, desde Hordle e ao longo de Christchurch: pequenas vilas de tijolos, na maioria meio separadas umas das outras, brotando como cogumelos. Mas a área maior de construções ficava mais para oeste, além de Christchurch.
Quando eu era jovem, Bournemouth era apenas uma aldeia de pescadores a poucas milhas a oeste de Christchurch. Charneca a céu aberto por toda a volta. Mas então tornou-se uma cidadezinha, e por essa ocasião já havia casas, hotéis e pensões espalhando-se por todo o litoral.
A antiga linha ferroviária, Castleman’s Corkscrew, ia de Brockenhurst até Ringwood, quilômetros interior a dentro desde o mar. Então passaram a querer uma linha litorânea, através de Christchurch e para Bournemouth, Uma idéia excelente, pensou-se. Agora o Sr. Grockleton tinha algo novo com que se entusiasmar: era um dos diretores dessa linha férrea.
Muitos jovens da Floresta foram trabalhar nela. Mas eu não fiquei nada feliz quando Gilbert me disse que ia para lá. Eu o estivera treinando para ser um posteiro.
O problema era que na ocasião não havia muitos empregos disponíveis na Floresta, e ele queria ganhar algum dinheiro.
— Será apenas por um ou dois anos — ele me disse. — A linha terá mesmo que ficar pronta.
Uma semana depois de Gilbert ser contratado, recebi a visita do Sr. Minimus Furzey. Não era costume ele ir à minha casa, como pode imaginar.
— Não deixe seu filho trabalhar na linha de Grockleton — alertou. — Não é segura. Eles são loucos por tentarem fazê-la ali. Basta observar a geologia.
Bem, eu não estava muito disposto a ouvir coisa alguma de Furzey, depois do que ele tinha feito com a gente. Por isso, falei:
— Não creio que o senhor saiba mais do que os engenheiros da Linha Férrea Londres e Sudoeste.
Afinal, gostassem dele ou não, o Sr. Grockleton era um magistrado e um homem importante. Não se podia imaginar que ele iniciaria uma coisa grande como aquela sem saber o que estava fazendo.
— Aquilo é argila e cascalho de aluvião — disse Furzey. — Toda a Floresta corre por cima disso — ou coisa parecida.
Eu não sabia do que ele estava falando, por isso não dei ouvidos. E Gilbert foi trabalhar lá.
Não demoramos para descobrir o que Furzey queria dizer. De início, as escavações para a linha pareceram fáceis. Seguindo de Brockenhurst através de Sway, era tudo areia e cascalho, o que é difícil remover. Durante o primeiro ano, mais ou menos, eles ficaram contentes com eles mesmos. Mas na Floresta as coisas nem sempre são o que parecem.
Sabe como é numa praia, onde você pode sentar na areia e ela parece estar seca? Mas qualquer criança, com um balde e uma pá para cavar, logo descobre que é tudo molhado por baixo, e a areia úmida escorre e não fica parada. Acontece que a parte sul da Floresta era parecida com isso. Havia pequenos córregos descendo de Sway... a gente podia vê-los... mas, por baixo, uma enorme infiltração, a água filtrava-se através da argila e do cascalho. Toda vez que faziam um corte e tentavam construir uma encosta, tudo desabava novamente. Várias pessoas se machucaram. Minas de melaço era como chamavam essas coisas, pois a argila tinha cor de ouro e escorria como o melaço. Em pouco tempo, a obra estava com meses de atraso. Apenas Grockleton parecia não se importar.
— Vai dar certo — dizia para eles. — É o caminho para o futuro.
Suponho que a terra da Floresta não achava a mesma coisa. Mas, finalmente, parecia que as coisas estavam se ajeitando. A linha por Arnewood e Sway, onde tinha havido o pior problema, estava devidamente assentada. As encostas dos cortes pareciam sólidas.
E, para festejar, o Sr. Grockleton anunciou que haveria um piquenique na charneca ao lado da linha. Creio que ele achava que seria bom para o moral, como chamavam.
Ele fez o tal piquenique no maior estilo. Havia uma orquestra de metais, mesas com tortas e bolos, muito mais do que você conseguia comer. Cerveja e sidra. Era como uma feira, e ele também tinha escolhido uma adorável tarde quente de agosto. Todo tipo de pessoas foram convidadas: as famílias dos operários da linha; gente de Lymington e Sway, e até de Christchurch. O coronel e a Sra. Albion foram, e os Furzey também.
De certo modo, deve ter parecido muito estranho... duas ou três centenas de pessoas, com uma orquestra de metais, sentadas em volta de uma linha férrea semiacabada, debaixo do sol forte, no meio de uma charneca. Havia até uma visão mais estranha ainda a nos fazer companhia.
Você já notou que, quando uma pessoa ganha uma porção de dinheiro, costuma ficar meio esquisita? Pois havia um homem assim, que se aposentara e morava em Sway. A paixão dele era por concreto. Talvez, acho eu, ele fosse um pouco parecido com o Sr. Grockleton. Tudo em que ele botava as mãos, queria cobrir com concreto. E ele estava construindo uma torre de concreto. Uma coisa imensa... ainda hoje, você consegue vê-la a uma distância de quilômetros. Dizem que ele queria ser colocado no topo dela, depois que morresse. Na ocasião, estava construída pela metade, e nunca vou me esquecer dela, apontando para o céu azul, não mais do que uns oitocentos metros de onde a gente estava naquele dia, como um grande pilar quebrado.
As pessoas estavam muito alegres. Mesmo Grockleton, que era uma pessoa severa, fazia o melhor possível para ser amistoso. Organizou brincadeiras para as crianças; e, quando fizemos uma corrida, e Furzey organizou um cabo-de-guerra, ele também participou.”
“Era de tardinha, e os Albion e algumas pessoas de Christchurch já começavam a ir embora, quando percebi que Jack tinha sumido.
Ele era então um menino adorável, com cabelos negros e olhos brilhantes. Sempre subindo nas coisas, mas você não conseguia deixar de adorá-lo, pois era tão alegre e tão corajoso.
Eu sabia que ele não podia estar muito longe. Havia encontrado um outro menino um pouco mais velho... uma grande atração para ele, é claro... chamado Alfie Seagull, de Lymington, e os dois estiveram brincando juntos; portanto, eu tinha certeza de que, se achássemos um, acharíamos o outro. E não demorou muito para alguém encontrar o pequeno garoto Seagull brincando perto do corte da estrada de ferro.
— Jack está com você? — gritou minha esposa, ele fez que sim com a cabeça, apontou para baixo do corte, e achamos que estava tudo bem.
ASra. Furzey, então, veio falar com a gente. Ela era uma pessoa com quem gostávamos de encontrar e tivemos uma conversa agradável. Notei, pelo canto do olho, que Furzey estava caminhando ao longo da margem do corte, um pouco mais distante. Fazendo uma inspeção, pensei comigo. Mas não dei muita atenção a isso.
E, quando o vi correndo, não acreditei... e eu já tinha visto muita coisa... que jamais veria um homem correr com tanta velocidade quanto ele, na ocasião. Acredito mesmo que corria mais depressa do que um veado. E não sei como ele sabia o que ia acontecer. De qualquer modo, ele correu até o lugar onde Alfie Seagull estava parado, e, assim que chegou lá, ouvimos o ruído.
A gente acha que, quando há muita terra e pedra em movimento, se ouve algum tipo de chocalhar ou rugido. E, talvez, em alguns deslizamentos de terra, a gente ouça. Mas, de onde a gente estava, quando o corte cedeu, tudo o que ouvimos foi uma espécie de silvo.
Furzey correu direto por cima da borda. Não parou, foi direto por cima. Ele deve ter descido junto com o deslizamento, enquanto este se movia. E, de algum lugar antes do fundo, ele escavou o nosso Jack e continuou correndo, carregando-o. Acho que o peso de todo aquele cascalho, argila e pedras deve tê-lo alcançado e soterrado a poucos metros da base. Ele deve então ter levantado Jack e o jogado para a frente, quando foi derrubado.
Momentos depois, quando chegamos ao local, Jack estava machucado e sangrando, mas tinha escapado do deslizamento, que com certeza o teria soterrado.
Conseguimos ver as mãos de Furzey. Mas precisamos tirá-lo do meio da terra com todo o cuidado, pois logo percebemos que as duas pernas dele tinham sido seriamente fraturadas. Creio que deve tê-las girado, quando jogou Jack para a frente.
Portanto, o seu Jack teve a vida salva, o que o levou a sair nos jornais. E Furzey também foi muito mencionado, e devo dizer que mereceu.
Ele não voltou a andar direito depois disso. A gente não podia deixar de sentir pena dele. Passava a maior parte do tempo em uma cadeira com cobertura provida de rodinhas, embora fosse notável o modo pelo qual se movimentava. Em todo o caso, minha esposa ia de vez em quando à casa dele levar-lhe um dos bolos que fazia. Eu suponho que, aos olhos dela, podia-se dizer que ele havia se redimido.”
”Sempre achei estranho — disse George Pride no dia seguinte —, considerando-se que aquilo quase o matou, que a coisa de que Jack gostava mais do que tudo era ir para a linha do trem. — Sally percebeu que os traços de seu rosto pareceram endurecer, e as suas velhas mãos apertaram os braços de sua cadeira.
Havia uma porção de pequenas pontes para gado, por cima das linhas da ferrovia da Floresta, para os animais passarem, e ele ensinou o seu pônei a não ter medo quando as locomotivas estivessem embaixo. Ele vivia passando por uma dessas pontes.
Talvez um incidente tivesse realmente nos alertado sobre o que estava para vir.
O Ministério das Matas nunca superou a vitória dos comunais, e, embora cortês, o Sr. Lascelles, sempre que podia, nunca perdia uma oportunidade para minar os couteiros; e pode ter certeza de que os couteiros não esmoreciam. Nós vivíamos o tempo todo vigilantes para que esse pessoal não plantasse árvores onde não devia... o que eles faziam... ou desordenar a Floresta de um modo geral. Hoje em dia chamam o Ministério das Matas de Comissão Florestal, não é mesmo? Mas é exatamente a mesma coisa, e me arrisco a afirmar que sempre será.
Certa manhã, eu estava me preparando para sair com Jack, quando Gilbert chegou cavalgando. Na ocasião, ele tinha acabado de se tornar um posteiro.
— É melhor o senhor vir comigo — disse ele. E então fomos os três a um lugar perto da nova linha férrea, onde havia um adorável gramado no qual os pôneis gostavam de ficar na sombra.
Normalmente, quando a árvore é cortada, é levada para uma serraria em algum lugar apropriado. A serragem e as lascas fazem uma terrível sujeira e estragam qualquer pasto. Mas ali, ao lado do gramado, havia uma hedionda máquina de serra, com um motor a vapor, vomitando fumaça, e serragem sendo soprada por todo o gramado.
— Quem disse que vocês podiam fazer isso? — interpelamos.
— O Sr. Lascelles — respondeu o capataz.
Ficamos furiosos. Mas, sem que percebêssemos, o jovem Jack tinha feito a volta, indo para o outro lado da máquina, para averiguar como ela funcionava. E no dia seguinte lá estava ele novamente, segundo soubemos. E foi assim durante semanas depois disso.
Os couteiros moveram uma ação contra a máquina. O caso se arrastou por anos não porque a máquina de serrar fosse tão importante assim, mas para mostrar quem é que mandava na Floresta. No final, chegou-se a um impasse. Mas o jovem Jack não ligou para isso.”
Jack nunca lhe falara sobre isso. Sally ouviu com interesse. Nunca se dera conta da amargura que havia sido criada entre o seu marido e o pai dele. Mas agora podia vê-la no rosto de George. Sua mandíbula estava contraída.
— Apesar de eu ter proibido — continuou —, ele saía sorrateiramente para ir brincar com aquela coisa infernal, e toda vez que Lascelles se encontrava comigo, cumprimentava-me e dizia:
— Pelo menos o seu filho gosta de nós, Pride.
Tudo mecânico: foi durante esses anos que começaram a fazer manobras militares na Floresta. Para os militares, não passavam de terras desoladas, é claro. Nós estávamos sempre pondo as coisas em ordem, depois que passavam. O gado morria. Mas Jack ligava? Nem um pouco. Só queria ficar por ali vendo como as armas funcionavam e também disparando-as, quando os soldados deixavam.
Por mais que eu o amasse, devo confessar que, quando estava com dezoito anos, não tinha mais controle sobre ele. Por isso suponho que tenha sido inevitável que, no tempo devido, nos afastássemos um do outro.
Certo dia saímos para cavalgar, ele e eu, passando por Lyndhurst. Tínhamos acabado de chegar ao antigo parque cercado onde os veados costumavam ser capturados, quando de repente, seguindo pela alameda de Beaulieu, um veículo dos mais espantosos veio em nossa direção. Era uma espécie de carrocinha de metal; fazia um ruído de chocalhar dos mais horríveis e saía fumaça da parte de trás dele. Eu tinha lido sobre carros a motor, é claro, e visto uma fotografia, mas aquela era a primeira vez que víamos um na Floresta. E foi uma experiência das mais desagradáveis também.
Tratava-se do Honorável John Montagu, o filho de /orafMontagu, que dirigia a tal geringonça, e fiquei muito triste em saber que o pai dele lhe permitia fazer aquilo. Mas Jack, é desnecessário dizer, achou aquilo maravilhoso.
— Esse é o futuro, papai. Esse é o futuro — exclamou.
E foi essa conversa sobre o futuro, ao voltarmos para casa, naquele dia, que me levou a levantar a questão sobre o próprio futuro dele.”
George levantou-se da cadeira e foi até a janela. Lá fora, as varas que sustentavam as suas vagens favoritas pareceram ocupar-lhe a atenção por alguns momentos. Então, sacudiu a cabeça quase raivosamente e virou-se.
— Você precisa entender que, por volta da virada do século, New Forest atravessava um período que poderíamos chamar de sucesso. Muitos fazendeiros e proprietários de terras da Inglaterra tinham sido seriamente afetados, e mesmo arruinados, por causa dos grãos mais baratos que vinham da América. Mas havia uma grande demanda por laticínios. Portanto, os pequenos proprietários de New Forest estavam se saindo muito bem. Os pôneis alcançavam bons preços. Alguns iam para as minas de carvão, como pôneis de carga para o interior dos túneis... eles são atarracados, como sabe; e outros, talvez lamentavelmente, iam para Flandres, para o mercado de carne de cavalo. Também havia trabalho para empregar as novas pessoas que estavam indo viver em lugares como Lymington. O preço da terra subia, e muita gente ganhava muito dinheiro vendendo lotes para edificações. Em tudo por tudo, a vida na Floresta não era ruim.
Eu já tinha trabalhado muitos anos como posteiro. E poupado um pouco. Me pareceu uma boa idéia iniciar Jack como um pequeno proprietário, coisa que eu estava em condições de fazer. Então fiz a minha oferta.
— Obrigado, mas não quero — disse ele, sem mais nem menos.
— Ah? — falei. — E quais são os seus planos, Jack?
— Vou ser um maquinista nas estradas de ferro — respondeu. Não fiquei nada contente, como pode imaginar.
— Bem — disse eu —, suponho que você vai morar por Brockenhurst — já que ficava perto da estação ferroviária.
— Vou deixar a Floresta — anunciou, sacudindo a cabeça.
— Deixar a Floresta? Aonde você iria?
— Southampton, creio. Ou Londres. — Deu-me aquele seu sorriso compassivo, e eu não gostei. — Não quero passar a vida inteira olhando para o traseiro de uma vaca. É maçante. i
Então argumentei com ele. E me disse coisas nas quais não quero pensar e que não têm mais importância. Mas uma coisa que ele disse ficará para sempre na minha lembrança:
— Em pouco tempo, papai, nem mesmo vamos precisar mais de cavalos. Achei que ele tinha enlouquecido.”
George sentou-se pesadamente e fechou os olhos. E soltou um suspiro.
— Então ele nos deixou e foi para Southampton. Teve que trabalhar na ferrovia alguns anos antes de conseguir o que desejava. Mas conseguiu dirigir locomotivas.
”Ele também, por estranho que pareça, tornou-se muito bem relacionado com o Honorável John Montagu.
Quando foi construída a ferrovia que atravessa a parte norte da propriedade de Beaulieu, foi feita uma barganha. A linha podia passar por ali, mas tiveram que colocar uma pequena estação bem no meio da charneca a céu aberto. Se Sua Graça quisesse um trem para ele e seus convidados, um sinal avisava o maquinista, e o trem fazia uma escala para ele. Quando fazia pouco tempo que Jack já andava conduzindo o trem, ele viu o sinal. Portanto, ele parou; mas, para sua surpresa, o Honorável John Montagu subiu e avisou:
— Vou viajar a seu lado, se não se importa. — Ele era um homem que gostava muito de máquinas e um hábil motorista. Você pode ter certeza de que Jack não perdeu oportunidade para pedir se, em troca, poderia olhar o carro a motor de Montagu. E, na vez seguinte que vimos Jack, ele já tinha aprendido tudo sobre o carro a motor. Quanto ao trem, quando ele passava, nunca se tinha certeza se era um Pride ou um Montagu que o dirigia.
Dez anos depois Jack se mudou de Southampton para um pouco mais acima da linha. Ele ainda nos escrevia uma carta de vez em quando, mas não o víamos muito.
E não foi mesmo surpresa para nós que, quando veio a Grande Guerra, Jack tinha ficado louco para se incorporar a uma unidade motorizada. Apresentou-se imediatamente como voluntário. Em pouco tempo estava dirigindo um veículo perto àofront. Suas cartas eram detalhadas. Claro que nenhum de nós percebia o que estava acontecendo exatamente, e muito menos o que ia acontecer lá nofronf, e suponho que de algum modo sentíamos que, se ele estava dentro de uma espécie de veículo blindado, devia estar mais seguro. Receio dizer que ele estava mais seguro do que qualquer um daqueles pobres rapazes nas trincheiras. Mas não era segurança suficiente.”
Ele limpou a garganta. ”Bem, recebemos o telegrama avisando que ele tinha sido ferido. Dizia que era grave e que esperássemos. E esperar foi o que fizemos. E, é claro, quando finalmente ele voltou... você se recorda, Sally... ficamos chocados. A idéia de que jamais voltasse a ser algo próximo ao normal, muito menos de casar e ter uma família... bem, não havia restado muita coisa do seu rosto, e não se podia dizer que tivéssemos muitas esperanças. Mas ele estava vivo.”
Ah, sim, Sally lembrava. O pobre inválido despedaçado que levaram para o hospital de Southampton, onde ela era enfermeira. Nem mesmo os médicos achavam que tinham muita coisa a fazer por ele. Nem as outras enfermeiras.
Mas ela tinha. E também provou isso. Sozinha, fez com que ele se curasse. Depois, casou-se com ele. Ela sorriu. Tinha merecido a sua felicidade.
Mas era George quem falava agora.
”— Sabe, papai, eu ouvi quando eles falaram — ele me disse certa vez. — Ouvi o oficial, o jovem capitão Totton se aproximar. Era um bom oficial. Perdeu uma perna. Ele veio mancando, para saber de mim. E a enfermeira... nunca soube como ela era, é claro, mas soava bonito, se é que me entende... ela lhe disse: Receio que ele esteja indo. E ele perguntou:Mas por quê? E ela disse:Não creio que ele queira viver Então ela cochichou alguma coisa, e ele fez: Ah ”Então seguiu-se uma longa pausa, e eu o ouvi chegar mais perto, tiquetaqueando a muleta, e disse bem alto para mim: Ora, vamos, isso não é possível. Sei que é difícil, mas você tem que lutar. Não desista Eu não fiz nenhum sinal, papai. Isto é, eu sabia que ele estava fazendo o melhor que podia. Pense na Inglaterra disse ele. Mas, por mais que tentasse, aquilo não parecia fazer nenhum bem. Se pensava na Inglaterra, apenas pensava em mim mesmo dirigindo o meu trem, e, é claro, eu sabia que não poderia fazer mais isso. Portanto, fiquei deitado ali e pensei: Bem, então é isso mesmo. Se eu morrer, não vai fazer diferença
”Aí, cerca de uma hora depois, ouvi uma espécie de farfalhar perto da cama. E, mesmo com todos os meus curativos e todo aquele desinfetante, consegui sentir o cheiro de algo, lama e suor, suponho, que não era desagradável de todo. Então ouvi uma voz. O seu nome é Jack Pride? perguntou a voz. Bem, se não é, pode morrer e vai ficar tudo bem. Acabo de chegar, e o meu nome é Alfie Seagull. Mas, se por acaso é o Jack Pride que imagino, eu vi você quase ser soterrado por cascalho, num corte de linha férrea. E, então, é você?’
”E eu tentei fazer algum tipo de sinal. Ah, então é você mesmo disse ele. Não pode morrer aqui falou. Caramba! Já esqueceu quem é? Você é um Pride da Floresta É engraçado, mas aí eu me lembrei da nossa cabana, da mata e de como a gente costumava cavalgar juntos de manhã bem cedinho; e quando pensei nessas coisas, de algum modo isso me deu forças, papai, e aqui estou eu.”
— Creio que é bobagem — disse George —, mas fiquei muito contente quando ele me disse isso.
ABRIL 2000
Manhã de domingo. Dottie Pride mal chegara ao Albion Park Hotel na noite anterior, mas já sentia a familiar excitação nervosa. Havia toda uma semana pela frente — uma semana durante a qual ela teria de preparar a matéria e encontrar um gancho. Tempo bastante. Mas essa era a etapa durante a qual ela sempre começava a entrar em pânico.
Decidiu visitar primeiro Beaulieu. Iria lá no sábado fazer as tomadas, mas queria antes dar uma olhada sozinha no local. Talvez isso lhe desse alguma idéia. Era uma viagem de carro de apenas dez minutos, mesmo com o limite de sessenta e cinco quilômetros de velocidade, que era imposto para proteger os pôneis e os veados.
Ela ficou impressionada. Se por um lado as residências senhoriais da Inglaterra necessitavam de turistas para sua manutenção, o atual lord Montagu havia demonstrado uma considerável perspicácia. Aproveitando desde o início o interesse do pai pelos primeiros carros a motor, ele havia criado o Museu do Motor em Beaulieu e tornara-o uma grande instituição nacional. Dottie não tinha nenhum interesse particular por coisas mecânicas, mas passou uma fascinante meia hora observando Daimlers vitorianos, Rolls-Royces eduardianos e até mesmo carros mais recentes, da década de 1950. Ao deixar o museu e caminhar a curta distância até a abadia propriamente dita, porém, a era mecânica pareceu se desvanecer discretamente, e ela penetrou na tranqüila paz do mundo medieval.
Era tudo muito bem-feito. Depois da casa, atravessou uma exposição sobre a vida monástica, no imenso domus onde os irmãos leigos moravam quando não estavam nas granjas. E, ao sair para os claustros em ruínas, quase pôde ver os monges cistercienses, cuidando silenciosamente dos seus afazeres em meio às pedras cinzentas. Em um dos carrels, onde eles costumavam se sentar, notou com desagrado que algum vândalo havia entalhado a letra ”A”.
Beaulieu abriria o documentário, e a ocasião era perfeita. Lord Montagu tinha escolhido o 24 de abril, o Domingo de Páscoa, para marcar o nongentésimo aniversário do assassinato do rei Guilherme Rufus ocorrido em New Forest. Ele havia organizado um grande torneio de arco-e-flecha em Beaulieu, com o ator Robert Hardy, que também era uma autoridade mundial em arco medieval, abrindo os trabalhos. Lord Montagu ia atuar — esse era o termo medieval para o patrono de tal evento — como Lorde Supremo. Um dia colorido, repleto de pompa. Excelente material televisivo.
Com uma surpresa histórica. Um proeminente historiador local, o Sr. Arthur Lloyd, mostrara, além de qualquer dúvida, que a morte de Rufus fora registrada na época como tendo ocorrido em Througham, na faixa litorânea abaixo de Beaulieu. A famosa Pedra de Rufus, um dos locais turísticos mais conhecidos da Inglaterra, estava na verdade em lugar errado.
E depois disso? Ela passou o resto do dia dirigindo pela Floresta. Primeiro, foi a Buckler’s Hard. Agora havia um museu marítimo em suas ribanceiras cobertas de capim. Tinha um modelo do estaleiro, como devia ter sido durante a época da construção de um dos navios de Nelson, o Swiftsure, que atraiu sua atenção. Notou que partes dos grandes Mulberry Harbours usados para os desembarques no Dia D, na Segunda Guerra Mundial, também tinham sido construídos no rio de Beaulieu. Material bem interessante.
A leste de Beaulieu ficavam Exbury Gardens e Lepe Country Park. Ao longo da margem da Floresta, do lado de Southampton, havia um centro natural e uma fazenda-modelo. Um pouco mais ao norte, ela encontrou um parque de lazer, com brinquedos para crianças. A mensagem era clara. A New Forest moderna tinha se equipado de modo bastante profissional para atrair um grande número de visitantes. Não se tratava apenas de uma atração para as grandes operadoras. Quando, à tarde, Dottie dirigiu através do pequeno e sombrio enclave de Burley, descobriu que a aldeia tinha um movimentado comércio, por causa de sua fama envolvendo a bruxaria, com pelo menos três lojas que vendiam todo tipo de quinquilharias de bruxas. Turismo e recreação: era esse o futuro da antiga reserva de caça do rei?
A manhã de segunda-feira era luminosa. Dottie estava muito entusiasmada ao seguir o seu caminho pela íngreme curva da rua principal de Lyndhurst. À sua esquerda, a alta torre vitoriana da igreja elevava-se em um céu azul-pálido de primavera.
Quando ela telefonou para o Museu de New Forest, não apenas lhe disseram que poderia participar do encontro daquela manhã, como também se ofereceram para mandar alguém recebê-la. ”Não se preocupe”, dissera a voz ao telefone. ”Nós a encontraremos.”
Ao chegar ao topo da rua, ela viu por quê. A Casa da Rainha, a antiga casa de campo e herdade real, era uma simpática edificação de tijolos vermelhos. Do lado de fora e ao lado da porta, um grupo de cerca de vinte pessoas já estava reunido à espera. Era óbvio, pelo modo como conversavam, que todos se conheciam. Ela era a única estranha. Olhou em volta.
— Você é Dottie Pride? — perguntou uma voz atrás dela.
— Sou. — Virou-se. Uma mão foi estendida. Um cumprimento com a cabeça. Um sorriso. Ele disse como se chamava? Se disse, ela não percebeu.
Tudo o que ela sabia era que estava olhando para o homem mais bonito que já vira em toda a sua vida. Era alto e magro. Aparência celta. Talvez fosse irlandês. Seu cabelo caía em cachos sobre os ombros. Com o rosto pálido e sensível, parecia com os retratos dos poetas metafísicos do século XVII. Os olhos castanhos eram suaves, notavelmente inteligentes. Vestia um casaco de couro marrom.
— Já podemos ir — disse ele, divertido. — A porta está aberta.
A Sala dos Couteiros Reais era um grande aposento retangular. Na extremidade mais afastada, um alto tablado percorria toda a largura do salão, como a bancada de um magistrado, com o brasão real na parede nua atrás. Nas paredes em volta, cabeças e galhadas de veados e balcões com vitrines. Em um lugar de honra, era exibido o antigo estribo pelo qual os cães teriam que passar para não ser ”regulamentados”. O chão era tomado por bancos de madeira, exceto no espaço à frente, onde havia uma mesa e um banco de testemunhas. Antigas vigas de carvalho atravessavam o teto. Dottie, de certo modo aturdida, sentou-se no fundo, tentando não olhar fixamente para o seu acompanhante.
— A Corte dos Couteiros se reúne na terceira segunda-feira de cada mês, dez meses por ano — murmurou ele. — O Couteiro Oficial é nomeado; há alguns representantes oficiais, e o resto é eleito. Eles têm que defender os direitos comunais.
— Esta é a corte criada em 1877, em substituição à antiga corte medieval? — Ela tinha feito o dever de casa. Ficou imaginando se isso o deixaria impressionado.
— Modificada uma ou duas vezes, mas, basicamente, sim. Aí vêm eles.
Os couteiros começaram a entrar. Ele fez um breve resumo sobre cada um, à medida que chegavam. Dois tinham publicado livros sobre NewForest. O Couteiro Oficial era um proeminente proprietário de terras. A maioria tinha raízes na Floresta que recuavam a séculos. Havia oito presentes no tablado naquela manhã. Diante deles, com uniformes verdes, postaram-se dois posteiros. O Posteiro-Chefe, próximo ao banco das testemunhas, anunciou:
— Ouçam! Ouçam! Ouçam! Para todas as espécies de pessoas que tenham quaisquer representações a fazer, ou assunto ou coisas a ver com esta Corte de Couteiros. Que elas se apresentem e serão ouvidas.
Ela estava de volta, Dottie pensou, à Idade Média.
Um breve relatório foi lido. Em seguida veio a lista de pôneis atropelados por carros: um registro melancólico em todas as reuniões. Quando a sessão foi aberta ao recinto, uma sucessão de pessoas subiu ao banco das testemunhas para dar seus depoimentos, conhecidos como representações. A cada vez, seu acompanhante murmurava-lhe uma explicação no ouvido. Um homem, de rosto largo e cabelos louros, veio reclamar do lixo de uma área de acampamento próxima. ”Esse é Reg Furzey. Pequeno proprietário.” Um outro homem, com uma curiosa face nodosa, que lhe parecia ter sido retirada de um carvalho, veio reclamar de uma nova propriedade cuja cerca estava avançando pelos limites da Floresta. ”Ron Puckle. Vende mobília para jardins em Burley.” O jovem acompanhante sorriu. ”É engraçado, quando se pensa nisso”, cochichou. ”Durante séculos, as antigas famílias da Floresta viviam o tempo todo avançando ilegalmente os limites da Floresta; agora vivem o tempo todo cuidando para que ninguém mais faça isso!” Ao final de cada representação, o Couteiro Oficial levantava-se educadamente, agradecia à pessoa em questão e prometia levar em conta a sua opinião. Alguns dos assuntos relacionavam-se às atividades da Comissão Florestal em vista de regulamentos locais e eram técnicos demais para Dottie acompanhar. Mas o sentido da reunião ficou bem claro: aquele era o velho coração da Floresta. E os comunais com os seus couteiros estavam resolvidos a proteger a sua antiga personalidade.
Já era perto do meio-dia quando deixaram a corte. O compromisso seguinte dela era no museu, no início da tarde, e pareceu-lhe que seu acompanhante se preparava para ir embora. Ficou imaginando o que poderia fazer para mantê-lo junto a si.
— Preciso ir ver o Cercado de Grockleton — disse ela. — Você podia me mostrar onde fica?
— Ah. Está bem. — Ele pareceu surpreso. — Suponho que sim. Você terá que andar um bocado.
— Tudo bem. A propósito, como foi mesmo que você disse que se chama?
— Peter. Peter Pride.
— Pride?
Ela nunca andara antes tão depressa. Achava que, se parasse, ele simplesmente continuaria seguindo pelo caminho, mas ela não pretendia descobrir. Felizmente, porém, ele parava com freqüência para lhe mostrar algum líquen, ou besouro esquisito debaixo de um tronco, ou alguma plantinha, coisas que tornaram aquela antiga área um paraíso ecológico para um naturalista capacitado. Em um determinado ponto, ao chegarem a uma charneca a céu aberto, ela percebeu que os pés de azevinho em um morro próximo formavam uma curiosa silhueta contra o céu.
— São vazios na parte de baixo, como cogumelos — observou ela.
— É o limite do pasto — explicou ele. — Os pôneis e os veados comem as folhas até onde conseguem alcançar. — E ela percebeu que a maioria das árvores que conseguia ver tinham aquela característica. À distância, isso lhes dava um efeito mágico, flutuante.
E, desse modo, as aulas prosseguiram. Se ela nem sempre conseguia entender a informação científica com a qual ele constantemente a atacava, pelo menos captava o sentido geral do assunto. Em seguida, observava sua forma alta e atlética voltar a caminhar a passos largos adiante dela.
Ele era um ecologista por formação, mas também um historiador. E culto. De modo impressionante. Ela ficou imaginando quantos anos ele teria. Estava na casa dos vinte, provavelmente uns vinte e cinco anos. Talvez um ou dois anos mais jovem do que ela, porém não mais do que isso. Imaginava se ele era comprometido.
Ele achou curioso o nome dela.
— Eu sou apenas um deles — explicou. — Mas há Pride por toda a Floresta. Você tem certeza que a sua família não veio daqui?
Quando era mocinha, seu pai lhe dissera que ela lembrava a avó Dorothy dele e por isso lhe dera esse nome. Também descobrira, mais recentemente, através dele, que a avó do pai não havia se casado. ”Ela levou uma vida singular”, o pai lhe contara. ”Viveu durante anos com um professor de arte. Depois, com um outro. Ela parecia ter um talento especial para atrair pintores. O primeiro lhe deixou uma porção de quadros que acabaram se tornando muito valiosos. Quem foi o pai dele, o meu próprio pai nunca soube. Mas, afinal, adotou o sobrenome dela, que era Pride.”
— Minha avó nasceu Dorothy Pride — disse ela. — Mas era de Londres. Peter assentiu rapidamente e não insistiu no assunto.
Ele ficou curioso em saber por que ela queria ver o Cercado de Grockleton. Depois que ela explicou que seu chefe, John Grockleton, tinha ligação com a Floresta, ele achou muito engraçado.
— Grockleton era um comissário do odiado Ministério das Matas — explicou. — Construiu uma ferrovia que deixou muita gente ferida. Não é um nome popular por aqui.
— Ah. — Ela precisaria pensar em algo diferente para dizer ao chefe.
— Chegamos — anunciou alegremente, poucos minutos depois. — O Cercado de Grockleton.
A plantação, apesar de ter sido colhida várias vezes, era quase igual ao que fora um século atrás. O contorno de coníferas parecia não ter fim. Embaixo das árvores, no pouco espaço que havia, tudo era escuro, silencioso, morto.
— Vamos embora — disse ela.
De volta a Lyndhurst, chegaram alguns minutos mais cedo ao Museu de New Forest e aproveitaram para fazer um rápido passeio pelas mostras. Cada faceta da vida da Floresta, de um famoso capturador de cobras recente a um detalhado diagrama de como construir uma fogueira para carvão, tudo era abrangido. Ao subirem a escada, para a biblioteca, ela estava ávida para fazer algumas perguntas.
A figura que se levantou de trás da grande mesa central revelou-se um homem baixinho de barba branca, com um rosto afável e cintilantes olhos azuis observadores. Peter Pride já havia explicado que, embora o homem mais velho tivesse um jeito tranqüilo, ele era a discreta força propulsora que impelia em grande parte o museu da Floresta.
Imediatamente deu as boas-vindas a Dottie, apresentou-a a várias pessoas amistosas que lá trabalhavam e explicou que o local também era mantido por uma equipe de voluntários que trabalhava diariamente.
— Esta é a Sra. Totton. — Indicou uma senhora de ar distinto, que devia ter sido uma loura estonteante na juventude. — Ela está de serviço hoje. — Ele deu um sorriso estimulante para Dottie.
— O que deseja saber?
Dottie havia se preparado cuidadosamente para aquele encontro e este se mostrou produtivo.
A Floresta estava enfrentando uma crise?, perguntou ela.
— Os desafios dos séculos XX e XXI são novos, mas, como seria de esperar, são desenvolvimentos do passado — respondeu, cauteloso, o historiador. — O motivo dos protestos e incêndios é bastante simples. Os comunais só não estão passando por dificuldades, como fazendeiros, por causa dos preços terríveis do gado, dos porcos e dos pôneis. Os recém-chegados, de fora, estão pagando um preço tão alto pelos currais de pôneis que o valor da terra está ficando além do alcance dos fazendeiros. Acima de tudo, eles acham que o mundo moderno, Comissão Florestal, governo local, governo central, simplesmente os despreza. Entretanto, eles são na verdade a Floresta. E também há a degradação do antigo meio ambiente da Floresta: campistas descuidados e turistas em geral.
— Milhares de carros? — sugeriu ela.
— Sim. Mas noventa por cento das pessoas motorizadas não se afastam mais do que quinze metros da estrada. O novo fluxo de bicicletas pode vir a causar danos maiores. É o que veremos.
A caminho do Cercado de Grockleton, Dottie notara um ciclista solitário seguindo por entre as árvores, revolvendo o solo à medida que ia passando. Ela anuiu. Ele sorriu pesaroso.
— Sem dúvida, queremos os turistas por causa da renda que propiciam, mas não pelo dano que causam. Esse é um outro assunto importante, é claro. — Mas há um terceiro perigo a longo prazo... que poderia ser chamado de a grande ameaça do novo século.
— Construções.
— Exatamente. O grande aumento da necessidade de moradias e a existência de uma imensa área praticamente intocada pelo incremento imobiliário. Algumas pessoas acreditam que devíamos proteger a Floresta, transformando-a em um parque nacional, o que dificultaria enormemente o desenvolvimento; outras, especialmente os comunais, temem que isso possa anular o poder dos couteiros, os quais, nos últimos cento e cinqüenta anos, têm sido a única proteção deles. — Voltou a sorrir. — Podemos discutir alguns desses temas.
Foi o que fizeram durante algum tempo. E ajudaram Dottie a fazer uma lista de pessoas com quem ela devia conversar.
— Posso me incluir nessa lista? — perguntou a Sra. Totton. Um leve gesto afirmativo com a cabeça do afável historiador indicou a Dottie que ela devia aceitar. — Ótimo — disse a senhora. — Venha para o chá na sexta-feira. Chegue um pouquinho antes; digamos, às quatro.
— Se quiser mesmo sentir o que são os comunais — interrompeu Peter Pride —, devia ir a um leilão de pôneis. Haverá um nesta quinta-feira.
— Isso parece pitoresco. Talvez a gente filme. — Olhou para Peter Pride. — Você vai estar lá?
— Posso estar. Isso a ajudaria em algo?
— Certamente — respondeu ela.
Logo depois de se encerrar o encontro e ela estar prestes a sair, Dottie parou para fazer uma última pergunta.
— A propósito — falou —, as pessoas associam New Forest à bruxaria. O senhor acha que há bruxaria por aqui?
O gentil historiador deu de ombros. A Sra. Totton sorriu e disse não acreditar. Peter Pride sacudiu a cabeça e disse que era um disparate.
— Só estava curiosa — justificou-se Dottie.
A equipe de filmagem estava agitada. Uma cena como aquela era um desafio para ser aproveitado. Os dois dias anteriores tinham sido movimentados, mas ela ficara ansiosa pela quinta-feira.
O leilão de pôneis, na antiga estação ferroviária particular de lord Montagu, na estrada de Beaulieu, era sempre um evento animado. Deixando Lyndhurst pelo Park Pale, o parque cercado, seguiram de carro para sudeste, através do campo aberto, uns cinco quilômetros em direção de Beaulieu até a elevação da ponte sobre a linha férrea anunciar que haviam chegado ao local. E, ao passarem pela ponte, imediatamente à esquerda deles, lá estava: uma arena rodeada com estacas de madeira e currais ao lado.
Os caminhões e baias com cavalos começaram a chegar cedo. Além das costumeiras tendas com comida e bebida, havia uma barraca negociando arreios e selas, e outra vendendo botas. Mas isso era apenas nas imediações. A arena de vendas era o ponto central das atividades, e logo os currais estavam repletos de pôneis.
E de gente. Gente da Floresta. Peter Pride já se encontrava lá, quando eles chegaram, e aproximou-se sorrindo.
— Hoje vocês vão ver a verdadeira Floresta — comentou. — Os leilões de pôneis, as perambulações dos pôneis... que é quando eles levam os animais para cada área da Floresta e os observam... e a corrida de cavalos do ”Boxing Day”, o primeiro dia após o Natal, quando se presenteiam os criados: esses são os verdadeiros eventos da Floresta.
— E como esse pessoal se sente em relação à nossa presença aqui? — indagou Dottie.
— Desconfiado. — Ele deu de ombros. — Você não ficaria?
Agora estavam todos chegando: camponeses com gorros de pano, cabelos desgrenhados e suíças; mulheres vestidas com todos os tipos de trajes típicos e protegidas dos chuviscos de primavera; crianças com botas de borracha de cores berrantes. As arquibancadas em volta da arena estavam apinhadas. Crianças, de pé nos parapeitos, inspecionavam os pôneis. De repente, o leiloeiro assumiu o seu lugar ao lado da arena, deu umas pancadinhas no microfone e começaram as vendas.
Normalmente os pôneis eram levados à arena de um em um ou em duplas. As descrições do leiloeiro eram breves, e os lances, rápidos. Os animais giravam, enquanto os homem os alisavam, agitavam as mãos e gritavam, para controlá-los. Dottie observou, com interesse, que era possível se ver um traço de excelência árabe naqueles robustos pôneis selvagens. Mas nem todos eram oriundos da Floresta. Algumas éguas pequenas e bonitas também foram levadas à arena.
A equipe de filmagem estava contente. Nem precisava de Dottie. Provavelmente haveria muito material para ser utilizado. Peter Pride, ao lado dela, agora lhe dava informações genéricas.
— Aquele ali é Toby Pride. Ao lado dele, está Philip Furzey. Aquele é James Furzey, e bem ali estão John Pride e seu primo Eddie Pride. Aquele é Ron Puckle. Você o viu na Corte dos Couteiros. E Reg Furzey, lembra? Ali está Wilfrid Seagull, que é meio trapaceiro. Aquele é o meu primo Mark Pride. E...
— Pare — pediu ela. — Já entendi.
O interessante, ela notou, era que, ao olhar em volta da arena, via-se talvez uma meia dúzia de marcantes traços físicos em todos esses primos. Um Pride podia não parecer necessariamente com um outro, mas o Furzey ao lado deste obviamente era seu parente.
— Nós somos como os veados — disse Peter. — Circulamos pela Floresta para procriar. Talvez seja por isso que não temos todos três olhos.
— Vocês permitem a entrada de forasteiros? Isto é, de verdade, na Floresta?
Ele apontou para o outro lado do círculo, onde se encontrava uma moça loura muito bonita de aparência eslava. Os pôneis dela tinham acabado de entrar na arena.
— Eles vieram de fora. — Indicou um homem de cabelos louros, em um curral com um dos Pride. — Eles levam a sério os direitos comunais. Agora fazem parte da Floresta.
Dottie olhou para a moça. Ela era mesmo de uma beleza estonteante. De repente, sentiu um absurdo ataque de ciúmes.
Peter, ao mesmo tempo, sacudia a cabeça solidário, enquanto a linda moça do lado oposto parecia furiosa. Os lances pelos seus pôneis eram absurdamente baixos.
— Mal darão para pagar o transporte e os honorários — suspirou ele. —Algo terá que ser feito.
Observaram por mais meia hora. Depois Dottie resolveu que precisava de algo para beber. Ao seguirem em direção à van que vendia refrigerantes, ele virou-se solícito para ela.
— A propósito — falou —, andei dando uma checada. Por volta de 1880 havia uma jovem na minha família chamada Dorothy Pride. Ela foi para Londres.
Igual a muitas mansões georgianas, Albion Parle, de uma forma bastante natural, havia-se transformado em hotel. A sala de jantar era elegante, e foi preciso muito convencimento para que Peter Pride, finalmente, concordasse em ir jantar com ela naquela noite. Além do prazer de voltar a vê-lo outra vez, Dottie também estava contente pela chance de discutir algumas coisas. Ela havia entrevistado cerca de uma dúzia de pessoas desde segunda-feira: historiadores locais, gente da Comissão Florestal, os proprietários da Livraria Nova Floresta, que conheciam cada um dos livros já publicados sobre o local; comunais, couteiros, residentes comuns — todos tinham uma opinião sobre a Floresta. Mas agora precisava começar a filtrar as informações para ver o tipo de abordagem que queria fazer.
Primeiramente, conversaram sobre assuntos gerais. Ela descobriu que ambos gostavam do mesmo tipo de música. Ele era um ótimo jogador de xadrez. Isso não a surpreendeu. Ela preferia baralho, mas, tudo bem. Esporte? Caminhada. Ele sorriu.
— Você tem que gostar de andar. É uma Pride.
Concordaram com o fato de que uma Dorothy Pride deixar a Floresta e uma outra aparecer em Londres não provava muita coisa.
— Se ela tivesse se casado — explicou Dottie —, pelo menos teríamos os nomes dos pais na certidão de casamento. Mas ela não se casou.
— Não importa. — Deu-lhe um sorriso encantador. —A gente pode adotar você. — Ela achou aquilo muito legal.
Em resposta às perguntas dela, Peter foi bastante útil.
— Por que todo mundo odeia a Comissão Florestal?
— Força do hábito. Não esqueça que ela substituiu o antigo Ministério das Matas, o inimigo natural dos comunais.
A Floresta se transformaria em uma série de terríveis áreas de coníferas, como o Cercado de Grockleton?
— Não. Aliás, após anos de coníferas, a Comissão Florestal atualmente está plantando um cruzamento de folhas largas com coníferas e assumindo uma abordagem bem criativa em termos ecológicos. — Forçou um sorriso. — Mas ninguém é perfeito, é claro.
Mas foi quando ela o levou para o assunto ecologia, no sentido mais amplo, que os olhos dele brilharam e seu pensamento pareceu levantar vôo.
— Por que New Forest é tão importante ecologicamente? — perguntou avidamente para ela. — Por que contém mais invertebrados — sorriu — do que qualquer outro sistema ecológico da Europa? Por que temos todos esses pântanos maravilhosos? Tal diversidade de habitantes incólumes? Tais ecótonos altamente incomuns? Isto é, as zonas de transição onde duas comunidades se misturam. Ali, sempre se tem o maior número de espécies. — Fitou-a. — E então, por quê?
— Diga você — pediu sorrindo.
— Porque, nove séculos atrás, um rei normando criou uma grande reserva de caça, e, por sorte da história, as matas permaneceram em seu estado natural, os pântanos não foram drenados. Ecologia é história.
Olhou-a triunfante.
— E, é claro, se o homem não tivesse vindo para cá, a Floresta estaria no seu estado verdadeiramente perfeito.
— Isso não existe. O homem faz parte da equação natural, juntamente com todas as demais criaturas de Deus. Pense nisso. Por que a biomassa da Floresta é pobre no nível do solo? Porque os pôneis e os veados comem toda ela. Estranhamente, porém, isso leva a uma diversidade de espécies. Vamos tirá-las de lá? Provavelmente, deviam estar ali antes de o homem chegar à área. Não existe isso de sistema perfeito. Apenas um sistema em equilíbrio. E mesmo esse equilíbrio está em movimento. Deixados em paz, as populações animais, matas, todos os sistemas naturais morrem e se regeneram em ritmos variados. Sempre que se tenta impor uma ordem estática à natureza, isso não dá certo. Todo o sistema muda assim mesmo. Costumava haver quatro Needles no extremo da ilha de Wight. Agora, existem três. O mar acabou varrendo uma no século XVIII. Afinal de contas, toda a paisagem mudou completamente desde o final da Era Glacial, e isso foi apenas dez mil anos atrás. Menos, aliás.
— Um pé de carvalho vive um período de quatrocentos anos. Os períodos de vida de um ser humano são sempre curtos demais. Portanto, nós nos equivocamos, e nem pela metade entendemos de fato o processo natural.
— E qual é a sua expectativa para a Floresta?
— A procura de um equilíbrio. Mas agora a natureza encontrará um bem melhor. — Olhou diretamente nos olhos dela. — Creio que viver é isso. Não acha?
Dottie Pride ficou em silêncio por uns instantes.
— Você vai estar em Beaulieu no domingo? — perguntou.
Ela não queria ir ao chá da Sra. Totton. Era sexta-feira. Os últimos cinco dias tinham lhe dado tanto em que pensar que a única coisa que desejava agora era repassar as suas anotações e fazer planos. Havia dedicado a manhã a isso e feito um bom progresso. Já tinha uma abertura de peso, mas estava faltando alguma coisa. Não conseguia saber o que era — aquele ingrediente mágico que na cabeça dela chamava de ”a história”. Com Dottie, isso sempre surgia ao final do processo e até então sempre acontecia a tempo. Somente. E teria de acontecer no sábado. Não queria mesmo ir ao chá da Sra. Totton.
A Sra. Totton morava em um encantador chalé de paredes caiadas, com um jardim murado e um pequeno pomar nos fundos. O chalé estava engastado no pequeno e exuberante vale perto do local onde o rio era atravessado pela ponte de Boldre.
— E, como está fazendo um lindo dia, nós poderíamos caminhar pela ponte e subir até a igreja de Boldre — anunciou ela ao receber Dottie na porta.
A igreja, sobre o outeiro arborizado, era uma simpática edificação. Seu entorno arborizado e escuro não parecia sinistro, mas, pensou Dottie, dava a sensação de bastante antigo. Havia nas paredes várias placas recordando membros das velhas famílias da Floresta, e uma em particular chamou-lhe a atenção.
Era dedicada a Francês Martell, nascida Albion, de Albion Park; e, bastante incomum, também lembrava a sua dedicada governanta e fiel amiga — eram estas as palavras — Jane Pride.
— Albion Park. É o nome do hotel onde estou hospedada—observou Dottie.
— E também a casa onde eu nasci — informou sua anfitriã. — Eu era uma Albion, antes de me casar com Richard Totton. — Deu um sorriso. — A maior parte das grandes residências da Floresta agora são hotéis. — No caminho de volta, ela sugeriu: — Se quiser, posso lhe contar a história de Fanny Albion. Ela foi julgada em Bath por ter furtado uma peça de renda.
Havia outra convidada para o chá. Uma agradável mulher na casa dos cinqüenta anos chamada Imogen Furzey, a qual a Sra. Totton apresentou como ”uma de minhas primas”. Dottie deduziu corretamente que, no mundo da Sra. Totton, um primo podia ser alguém com um parentesco que vinha de muitas gerações, mas não perguntou por detalhes.
— Ela é artista, e eu achei que você gostaria de conhecê-la — informou confiante a Sra. Totton, daquele jeito que as pessoas têm por certo o fato de que quem está envolvido com a mídia, de algum modo, deve fazer parte do mundo artístico.
Imogen Furzey era pintora.
— Isso é de família — explicou. — Meu pai era escultor. E o avô dele foi um conhecido artista de New Forest chamado Minimus Furzey.
Dottie decidiu que gostava de Imogen Furzey. Ela se vestia de maneira excêntrica, mas com elegância simples. O guarda-pó que trazia, evidentemente, fora desenhado por ela mesma. E, provavelmente, a pulseira de prata que usava. Em volta do pescoço, de um cordão de prata combinando com a pulseira, pendia um pequeno e curioso crucifixo preto.
— Um bem de família — justificou ela, quando Dottie chamou a atenção para aquilo. — Creio que deve ser extremamente antigo, mas não sei qual é a sua origem.
O chá foi agradável. E acabou tornando-se útil. Tanto a Sra. Totton quanto Imogen Furzey lhe contaram uma enorme quantidade de coisas sobre a Floresta e pareceram contentes em fazê-lo.
— A única coisa que nos intriga — comentou a Sra. Totton ao terminarem de tomar o chá — é o fato de você, com um nome como Pride, não estar ligada de algum modo à Floresta.
Dottie contou a conversa que tivera com Peter Pride sobre o mesmo assunto e o seu resultado inconclusivo.
— Houve aqui uma Dorothy Pride, que foi para Londres, e uma Dorothy Pride em Londres. Mas se eram a mesma pessoa não há como saber.
A Sra. Totton ficou pensativa depois disso.
— Anos atrás, quando vendemos Albion Park, meu irmão e eu remexemos na papelada do velho coronel Albion. Foi há muito tempo, mas creio que havia neles alguma coisa a respeito de uma jovem Pride, que fugiu para Londres. — Olhou de relance para Dottie. — Você estaria interessada em dar uma olhada?
Dottie hesitou. Ela precisava retomar o seu trabalho. Mas, por outro lado...
— Se não for muito incômodo...
— Não, é até fácil. — Sorriu. — Isto é, se todos esses papéis estiverem onde eu acho que estão. Imogen querida, é muito pesada para mim, mas no meu depósito você verá que uma das caixas tem a etiqueta ”Coronel Albion”. Talvez vocês duas consigam trazê-la até aqui.
O depósito do chalé da Sra. Totton acabou se tornando uma solução cuidadosamente arquitetada para o problema que muita gente de sua classe enfrentou ao se mudar de enormes casas campestres para outras menores: o que fazer com o volume de documentos familiares, quadros e outros registros do passado que não cabiam em um chalé? A solução dela foi construir um grande depósito. Nas paredes estavam os enormes quadros dos carrancudos familiares, que teriam soterrado os cômodos do chalé. Arrumados caprichosamente pelo falecido irmão dela, em prateleiras, estavam cerca de vinte malas, todas com etiquetas, contendo a papelada e as lembranças desse ou daquele ancestral. Havia armações com espadas, velhos caniços de pesca, chibatas e chicotes de montaria, e vários armários com uniformes, trajes de montaria, vestidos rendados e outros ornamentos, tudo devidamente protegido com naftalina. Tratava-se de uma casa com um tesouro de família. Encontraram com facilidade a mala de couro e conseguiram arrastá-la pelo corredor até a sala de visitas. Abriram-na.
O coronel odiava escrever cartas, mas fizera uma cópia de quase todas elas, e o registro não apenas da correspondência que entrava, como também da que saía, era praticamente completo. Para um homem que detestava papelada, tratava-se de uma façanha louvável. As cartas não estavam ordenadas cronologicamente, mas por assunto, cada lote enfiado em um envelope, ou envolvido por uma folha de papel protetor e caprichosamente rotulado com a firme caligrafia do coronel.
Vasculharam todos os lotes à procura de algo marcado com ”Pride”. Não havia.
— Oh, céus — exclamou a Sra. Totton. — Eu devo ter me lembrado errado.
— Não importa — disse Dottie. — Foi muita bondade sua se preocupar com isso.
Passaram a guardar as cartas.
— Olhem — disse Imogen, levantando um pacote. Estava escrito ”Furzey, Minimus”, e, sob o nome, o coronel riscara uma linha curta e furiosa. — Posso?
— Claro.
Havia um certo número de cartas, na maioria breves. Uma, porém, era mais longa. Começava cortesmente: ”Senhor, pode ser que seja do seu interesse saber que o agente que eu contratei, cerca de dois anos atrás, forneceu-me recentemente uma resposta.”
— O que será que significa isso? — perguntou-se Imogen em voz alta. Avançou a carta, para mais adiante, e. exclamou: — Ah! — Leu um pouco mais. — Dottie — disse ela, segurando-lhe o braço —, creio que a encontramos.
A jovem Prídefoi localizada. Ela está viva e passa bem. Por isso, suponho, devemos dar graças a Deus. Ela está vivendo, em pecado, com uma pessoa que diz ser artista, e de nenhuma reputação moral. Uma pessoa, eu diria, portanto, muito parecida com o senhor mesmo. •• • -
Foi oferecido a ela um incentivo para voltar aos seus pais, ou, pelo menos, deixar que eles soubessem que ela está viva. Isso, ela recusou-se terminantemente afazer, se porque decaiu e se acostumou a uma vida de pecado ou se por vergonha, eu não sei dizer. Diante dessas circunstâncias, creio ser melhor nada dizer aos pais dela.
Talvez queira refletir sobre esse fato, senhor, já que é o senhor, e apenas o senhor, o único responsável pela ruína de Dorothy Pride.
Eu digo que talvez o senhor devesse refletir sobre esse fato, em vez de dizer que deve refletir, se não soubesse que não é de seu caráter tirar quaisquer conclusões morais diante de quaisquer circunstâncias.
Posso apenas concluir, garantindo ao senhor que, de minha parte, tenho descoberto, a cada ano que se passa, que sinto, pelo seu caráter, repulsa e nojo crescentes.
— Creio que essa deve ser a sua bisavó, Dottie.
— Só pode ser. Morando com um artista.
— E o meu bisavô... Lamento muito.
— Bem, nós a encontramos — anunciou a Sra. Totton. — Foi muito tempo atrás. Mas, de qualquer modo, bem-vinda ao lar, Dottie. Pelo menos, podemos dizer isso. — Consultou o relógio sobre o console da lareira. — Minhas caras, está quase na hora de um drinque.
Mas Dottie desculpou-se. Precisava da noite para trabalhar. Agradeceu às duas e preparou-se para ir embora.
— Quer ajuda para colocar a papelada de volta no depósito? — perguntou.
— Não, acho que vou passar uma vista neles esta noite — informou a Sra. Totton. —Talvez—sorriu—no futuro a gente veja você mais vezes aqui na Floresta.
— Talvez.
O trabalho durante a noite correu bem. O volume de material que ela havia reunido começara a ser separado e, depois, combinado em novas formas. Esse, normalmente, era o prelúdio para conseguir a sua história.
Era estranho aquilo da avó dela com Minimus Furzey. Tinha pouca dúvida de que encontrara Dorothy Pride e, portanto, as suas próprias raízes. Uma ou duas vezes, quase pegou o telefone, para contar a Peter Pride, mas se forçou a não fazer isso. Podia contar a ele no domingo, se aparecesse.
Ele era primo dela — muito distante, é claro.
Naquela noite, a Sra. Totton estava sentada sozinha em casa, em estado de graça. Tinha sido um dia excelente. Ela gostava da jovem Pride. E a descoberta da família dela tinha sido uma dádiva dos céus. Ter alguma ligação com a Floresta, para a Sra. Totton, era a maior dádiva que alguém poderia almejar.
Leu um livro durante algum tempo. Cochilou por, talvez, meia hora, e depois, colocando uma cadeira perto da mala que estava no chão, vasculhou preguiçosamente mais algumas das cartas do coronel Albion. Muitas referiam-se a assuntos de rotina relacionados à propriedade; algumas diziam respeito às disputas dos couteiros com o Ministério das Matas. Depois das cartas dirigidas a Furzey, nenhuma delas parecia tão emocionante. Talvez ela não estivesse no clima.
Tinha acabado de colocar os pacotes de volta e ia fechar a tampa, quando um fino envelope se destacou do resto. Parecia ser um envelope isolado sem nenhuma correspondência acompanhando-o. Nele, com a caligrafia do coronel, estava escrita uma única palavra: ”Mamãe?”
Agora curiosa, ela pegou o envelope e abriu-o. Havia apenas uma folha de papel em seu interior, totalmente escrita de ambos os lados, com uma bela caligrafia, um tanto acadêmica, que certamente não era a do coronel Albion.
”Minha queridíssima esposa”, começava, ”cada um de nós tem segredos, e agora há algo que eu também devo confessar.”
Se se tratava de uma confissão, era uma bastante estranha. Parecia que a esposa do redator da carta, a quem ele obviamente amava, andara tendo pesadelos, gritando coisas durante a noite. E, pelo que deduziu, ela era culpada, ou acreditava ser, de um grande crime. Outros, parecia, haviam sofrido deportação, ou mesmo morte, por esse crime. Mas ela ficara livre.
Porque ela mentiu. A culpa, o remorso, no meio da noite, a visitavam em seus sonhos. Ela, obviamente, agonizava com aquilo que não podia compartilhar com ninguém, nem mesmo com o marido. Desperta, nenhuma palavra era dita. Os pesadelos, ao que parecia, desapareciam durante meses e depois retornavam.
Mas o que tinha o marido dela a confessar? Em primeiro lugar, talvez, que havia escutado, às escondidas, essas confidências. Aparentemente, ele ainda estava indeciso sobre se devia ou não falar para ela. Em seguida, vinha uma parte mais premente. Ele a conhecia muito bem, disse, para ter qualquer dúvida sobre sua bondade. Como esposa, mãe e senhora das propriedades deles, não havia quaisquer pensamentos ou intenções maldosas em sua alma.
Teria ela roubado mesmo a tal peça de renda, perguntava, ou seria possível que tivesse apenas imaginado aquilo? Ele não sabia. O crime em si, mesmo se tivesse havido, nunca mereceria o castigo previsto; e ela, por si mesma, pela sua bondade, há muito já havia merecido o perdão.
Talvez, minha querida Fanny, eu seja capaz de convencê-la dessas coisas. Talvez esses terríveis pesadelos terminem. Mas desejo, em todo o caso, deixar esta carta para você ler depois que eu for embora..
Pois eu também tenho uma confissão igual a lhe fazer. Quando fui procurá-la em Bath e implorei para que salvasse a si mesma, e lhe disse que sabia que não era culpada daquele crime, minha amada esposa, eu menti. Eu não sabia. Mas desejava, acima de tudo, que fosse a minha esposa, culpada ou inocente. E, mesmo agora, embora não creia que esteja destinada a qualquer lugar a não ser o Reino Celestial de Nosso Senhor, eu lhe digo sinceramente que, ainda que fosse lançada nas chamas do Inferno, eu a seguiria até lá, mesmo ao maior dos buracos sem fundo, e afaria milhares vezes, com prazer.
Seu amado marido, Wyndham.
— Ora — murmurou a Sra. Totton. — Ora.
Dottie Pride acordou antes do amanhecer. A coisa tinha surgido. Ela podia sentir. Ia ter a sua história naquele dia.
Não conseguiu mais dormir. Levantou-se, vestiu uma roupa e, descendo as escadas fracamente iluminadas do Albion Park, saiu pela enorme porta da frente. Esmigalhava com os pés o cascalho que revestia o acesso para carros. Ligeiramente constrangida por achar que poderia acordar os outros hóspedes, caminhou pela beira do gramado até alcançar o portão.
Fazia muito frio, mas ela não se importava. Por nenhum motivo em particular que pudesse perceber, vagou pela alameda até Oakley. A aldeia estava adormecida. Não se movimentava ainda vivalma. Foi ao campo onde a área de arremesso de críquete já tinha sido isolada com uma cerca. Apenas o vislumbrava em meio à escuridão.
Oakley. Se ela era uma Pride, percebeu subitamente, tinha voltado para casa. Caminhou pela grama úmida de orvalho, até o limite da charneca. Os sapatos estavam ensopados. Não se importava. Inspirou fundo, sentindo o cheiro de turfa e urzes. Percebeu-se arrepiar por um momento.
Uma noite de primavera cinza-escura ainda se estendia no céu como um cobertor. Havia uma quietude, como se toda a New Forest esperasse que algo acontecesse no silêncio que antecedia a alvorada. Olhou em direção à charneca de Beaulieu.
Então, de repente, uma cotovia começou a cantar no escuro.
Edward Rutherfurd
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