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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FONTE REENCONTRADA / Cecile Aubry
A FONTE REENCONTRADA / Cecile Aubry

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A FONTE REENCONTRADA

 

Dormiam isolados no meio das filas de cadeiras vazias, a rapariga com a cabeça sobre o ombro do rapaz. O ”Jumbo” a jacto voava quase vazio desde Adis Abeba, apenas com uma centena de passageiros a bordo, e eles tinham aproveitado para se instalarem comodamente, com as costas das cadeiras viradas para baixo e o material de reportagem amontoado em cima duma cadeira ao pé deles.

 

Desde a Etiópia, tinham sobrevoado, sem acordar, o Sudão e o Egipto, o Mediterrâneo e uma ponta do pé da Itália. Ao passarem sobre a Córsega, continuavam a dormir. Não haviam aberto os olhos senão para engolir a refeição, depois beijaram-se e adormeceram. Passaram sobre Nice. E Lião. Dormiam ainda quando anunciaram a aproximação de Paris.

 

Uma hospedeira pousou a mão no braço do rapaz:

 

”É preciso apertar os cintos de segurança e preencher as vossas fichas disse ela.

 

Hum?”, resmungou David, de olhos piscos.

 

O movimento que fez para se endireitar acordou Prisca, e, de repente, ele pensou: o regresso a Paris... Diabo! Não tinham tido tempo de falar nisso durante esses dez dias. Nem vontade. Sentiam-se felizes, o instante que passava bastava-lhes, e o trabalho, as deslocações, a falta de sono, tinham-nos esgotado. O futuro? Tinham a eternidade à sua frente. Para quê falar do futuro? Amavam-se, os problemas que os esperavam eram apenas acessórios. Aliás, no fundo, que problemas?

 

David desatou a rir. Prisca não lhe perguntou porquê, sorria. Tinham aprendido o que é a felicidade, eis tudo.

 

”Acho que trabalhámos bem”, disse David.

 

Prisca acenou com a cabeça. Traziam dos seus dez dias a certeza de quererem viver juntos, trinta rolos de
película impressionada e com que encher três colunas de um jornal... Isso valia bem algumas insolações e os círculos arroxeados sob os olhos. Prisca sacudiu os cabelos para os fazer voltar ao seu lugar.

 

”Como vais explicar as tuas notas de despesa?

 

Elas não são exageradas disse David, procurando os números dos passaportes a fim de encher as fichas.

 

Achas? Tudo a dobrar, a viagem, a alimentação, os hotéis... Pensam que partiste só.,

 

Se a minha reportagem for boa, não haverá nenhum problema.

 

E se for menos boa?”

 

David lançou a Prisca um olhar vagamente inquieto e depois encolheu os ombros.

 

”Depois se vê”, disse ele.

 

Meteu as fichas nos passaportes, o avião aterrava.

 

”Achas que está alguém à nossa espera no aeroporto? perguntou Prisca.

 

Bertrand, talvez.”

 

Era Véronique, sempre tão delgada, vestida com gosto e de ânimo um pouco inflamado:

 

”Parabéns!”, disse ela. ”O papá esteve quase a ter um ataque.”

 

Acedeu em beijar a irmã, saudando David apenas com um ”olá!” glacial. Então, explicou: ”eles” tinham voltado de Saint-Malo assim que receberam a extraordinária notícia dessa viagem insensata através dum país impossível. Imediatamente, ela própria, Véronique, pedira à Air France um prolongamento da licença, o que não fora fácil de conseguir, dados os programas de voo previstos nesse fim de mês de Agosto. Como se uma hospedeira do ar pudesse dispor do seu tempo! Mas era preciso ficar e manter o moral dos pais!

 

Eles estavam à espera de Prisca no Poleiro. A mamã preparava um suculento jantar na previsão da tempestade que não deixaria de estalar entre o marido e a filha mais nova; contava com o gratin de lagostins que o papá adora para o fazer acolher essa filha querida sem ser a murro. Havia mesmo champanhe. David não estava convidado.
Desculpavam-se: os assuntos de família resolvem-se em família. Tudo isso parecia talvez um pouco retrógrado à primeira vista; era preciso, contudo, compreender que os Juvets, pai e mãe o pai sobretudo, admitiam dificilmente a fuga para a Etiópia. Ponto final.

 

Véronique, tendo despejado duma vez a vaga brutal das censuras, acalmou-se e perguntou se ”isso” tinha corrido bem.

 

”Não correu mal”, respondeu David com um sorriso encantado e com uma gentileza que espantou Prisca, dado que o privavam dos lagostins e do champanhe em represália duma falta que ele não cometera. Isso teria de ser esclarecido de forma mais ou menos vigorosa em casa. Mais tarde.

 

Valia mais calar-se para viver em paz os últimos minutos de felicidade. Com a mão na de David, Prisca deixou-se arrastar para a saída.

 

”E as bagagens? perguntou Véronique.

 

Não temos bagagem”, respondeu a irmã, perfeita de desenvoltura.

 

O material de reportagem, completo, estojos, sacos e sacolas, estava pendurado aos ombros de David. Onde estava a sua escova de dentes? Ele trazia também o saco de Prisca, que não continha depois da busca feita nos armários do Poleiro senão o estritamente necessário, do género estojo de toilette, slips e camisolas. O amor não se embaraça com pormenores.

 

Véronique lançou um olhar crítico para o aspecto desarranjado da irmã mais nova, para as suas jeans, cuja cor se tornara indefinível, para a camisa amarrotada e para as socas, que deixavam uma auréola duvidosa em volta dos pés nus de David...

 

”Não havia banheiras na Etiópia?

 

Havia, muito confortáveis, mas não tivemos tempo de nos servir delas disse, Prisca em tom altivo. Demasiado trabalho”, acrescentou, para pôr termo aos comentários pouco corteses.

 

A mais velha das manas Juvet desatou finalmente a rir e, com o entusiasmo, saltou ao pescoço de David.

 

”Meu pobre velho!” exclamou, derretida qualquer espécie de gelo entre eles, ”não é culpa tua se a minha
irmã é doida. Não te inquietes por causa dos pais, tudo se arranjará.”

 

Ele não se inquietava lá muito, se bem que sentisse um desejo louco de levar Prisca fosse para onde fosse, excepto para casa dela, em Montmartre.

 

”Vou levar-te a casa do teu amigo Bertrand disse-lhe Véronique, combinei com ele. Efectivamente, a mulher dele voltou ontem de férias com a menina, a Cécile, e o irmãozinho.

 

O irmãozinho? perguntou David, de ar aturdido.

 

O irmão de Valerie, a mulher de Bertrand; tu estás na Lua?

 

Eu não sabia que ela tinha um irmão.

 

Tem dez anos e chama-se François explicou Véronique, de ar encantado. Almocei hoje em casa deles, foi muito agradável.

 

E eu onde é que eu vou dormir? inquietou-se David.

 

Isso... disse Véronique é problema teu.” Mas não era dela. Ela dirigia-se com passo seguro

 

para o parque de estacionamento, onde os esperava o Austin.

 

”Podias ao menos perguntar a nossa opinião gritou Prisca. Tu decides, tu organizas, tu mandas... Quem te disse que David quer instalar-se em casa de Bertrand e porque é preciso que eu vá para casa? Primeiro que tudo, como é que soubeste que nós regressávamos hoje? Foi ainda Bertrand?

 

Com certeza. Assim que ele teve a notícia pela agência, telefonou lá para casa. Nós calculávamos que David não te abandonaria na Etiópia para voltar só, e é por isso que estou aqui. O amigo Bertrand é um tipo bastante discreto e pensou que o que nós teríamos para dizer não lhe dizia respeito. Desolada por contrariar os vossos projectos. Vocês tinham alguns?”

 

David e Prisca olharam-se... Projectos? Um monte deles. Mas não muito concretizados. Ninguém insistiu. Imaginando já o momento da separação, Prisca devorava com um olhar trágico o seu bem-amado, enquanto ele arrumava as longas pernas e os aparelhos no assento de trás do minúsculo carro.


Apesar da extensão do percurso entre Roissy e o 13. bairro de Paris, o instante temido chegou demasiado depressa. David lá conseguiu sair do carro com os seus aparelhos e Véronique viu a irmã desfazer-se em lágrimas nos braços dele. Mergulhou então no estudo atento da ponta dos dedos, para os deixar beijar-se até perderem a respiração.

 

A noite caíra e com a rua deserta os adeuses eternizavam-se. Véronique impacientou-se:

 

”Vocês vêem-se amanhã, meus queridos, têm a vida inteira à vossa frente.”

 

Era o mesmo que gemer diante dum bloco de mármore. Eles tremiam nas suas roupas demasiado leves para uma última noite de Agosto, mas nada podia desalojá-los dos poucos centímetros de passeio que ocupavam.

 

Achavam à última hora tantas coisas para se dizerem, urgentes, certamente! Parecia que durante os dez dias que tinham passado juntos não tinham trocado três frases. Tudo isto acabou por uma fuga inesperada para a entrada B ao fundo do pátio.

 

”Eh! berrou Véronique.

 

Eu subo para dar as boas-noites”, gritou Prisca, enquanto fugia em companhia do amor da sua vida, cujos aparelhos lhe batiam no flanco. ”São só dois minutos!”

 

Ou dois séculos! Véronique, que conseguira alcançar a irmã em corrida, pintou-lhe de maneira patética o retrato dos pais, lavados em lágrimas, contando os segundos de atraso diante do fogão, onde ressequia o carneiro tão ternamente entremeado de dentes de alho, enquanto o gratin de lagostins passava, no forno, ao estado de carvão.

 

”Tu não podes fazer isso à mamã! Pensa no merengue gelado que corre gota a gota no frigorífico sobre a prateleira dos tomates... David, diz-lhe que ela não tem coração.”

 

Mas como Prisca tinha coração até de mais, os adeuses dilacerantes ameaçaram recomeçar.

 

”Tenho fome, piedade!”, clamou Véronique, com a voz trémula de emoção, o que desencadeou a hilaridade
daqueles dois pássaros da felicidade, tão frescos os dois, apesar da sua fadiga e das suas jeans imundas.

 

David sentiu o vazio quando Véronique arrebatou Prisca para o Austin e depois se escorou ao volante do pequeno carro, que descolou do passeio como um cabrito-montês que salta uma fenda.

 

Com uma vitalidade igual, ela roncou de impaciência nos sinais vermelhos, galgou os verdes, passou nos laranjas, trepou finalmente a Rue Lepic e estacionou em sobressalto na Rue Gabrielle.

 

Aí, sem fôlego, estacou, com a traseira a bater num Peugeot e o narizito de pequinês sob o pára-choques dum camião. Lugar ideal para se encontrar no dia seguinte com um farol e dois piscas a menos.

 

Que importa! Véronique, orgulhosa do seu virtuosismo, atirou as chaves para a mala e, com a mesma satisfação, agarrou a mão da irmã. As duas raparigas retomavam posse da ”sua” rua. A mais velha puxando a outra, que parecia navegar na bruma etérea dos sonhos.

 

Passaram pela mercearia, de taipais corridos, e cruzaram-se com o velho senhor que passeava o cão, um e outro fazendo parte da paisagem das noites de Verão, assim como o gato da leiteira, o pintor do sobis e os pedintes da escada que trepa até à Butte.

 

Quase nada mudara desde a época em que eram bebés. Sempre houvera gatos, pintores, um velhote e mendigos nesta rua-aldeia onde era bom viver, e foi isso talvez o que fez sorrir as duas raparigas sob o revérbero quando Véronique carregou na campainha para abrir a porta verde-escura do seu prédio.

 

As porteiras rareiam em Paris desde que as substituíram pelo mecanismo frio dos intercomunicadores. Mas, aqui, ela existia, imutável, desde há, completar-se-iam em breve, vinte anos, e tendo prazer em dizer tanto aos mais antigos como aos mais novos dos seus locatários que tinha olho. E é verdade que apareceu à porta de vidro do seu cubículo, com o rosto penetrante exprimindo uma ternura desconfiada.

 

”Boa noite, meninas!”

 

A sua voz aguda colara as duas raparigas à beira da escada; ela continuou:

 

”Há um telegrama para ti, Véronique, ia levá-lo lá acima.

 

Obrigada, Sr.a Peuchet.”

 

Eram algumas palavras ternas enviadas duma escala em Taiti. Véronique pensou com um aperto no coração na acessibilidade das gentes taitianas... Não é fácil estar-se noiva dum comandante de bordo quando se é hospedeira de bordo. Noiva? Nem isso. Ainda não. Jacques Launay aborrecia-se sem ela. E ela então! Um e outro trabalhavam nas linhas de grande curso, mas, bem entendido, nunca o fazendo em conjunto, como conseguirem fazer coincidir as suas folgas? Todavia, por esse lado, a porteira parecia tranquila. Era a outra que ela observava:

 

”Tu é que não tens bom aspecto.”

 

Que teria ela de se meter?! O ter visto nascer Prisca não desculpava aquelas familiaridades. Quem a teria posto ao corrente? Teria ela descoberto o postal mandado para Saint-Malo? Prisca tentou recordar-se das palavras rabiscadas à pressa no aeroporto precisamente antes da” partida: ”David e eu partimos para uma pequena viagem à Etiópia, não será muito longa e estamos muito felizes. Beijos, até breve.”

 

”A tua mãe não me quis contar, mas eu bem vi que ela estava preocupada e o teu pai também. Não é verdade, Véronique? Até porque eles encurtaram as férias. Fiquei espantada quando os vi voltar antes do fim do mês. Nota que eu disse-lhes que, se tu estavas feliz, isso era o principal...”

 

Um risinho cúmplice sublinhou a confidência.

 

”É aquele altarrão louro que eu vi outro dia?

 

É, sim, Sr.A Peuchet replicou Prisca com uma calma anunciadora de tempestades.

 

Ah! disse a porteira com ar guloso, um belo rapaz, minha pequena. E depois parece gentil e capaz. Que é que ele faz?”

 

Prisca debruçou-se para o ouvido ávido que se estendia para ela:

 

”Você saberá isso pelo jornal”, murmurou ela.

 

As duas irmãs desataram a rir. Deixando a porteira à espera do pior, escalaram a escada tão cobiçada dos promotores com a mania das renovações que adoram surripiar as belas balaustradas de ferro forjado para as vender em qualquer parte, tudo isto na louvável intenção de dar ao cimento armado o cunho do antigo, substituindo o velho oscilante pelas sólidas barras prefabricadas. A escada dos Juvets, tendo resistido ao ataque, tremia sob os pés, mas continuava a conduzir com uma graça intacta até ao Poleiro.

 

Um pequeno patamar, uma boa e velha porta de molduras, três toques de campainha anunciadores, uma volta de chave na fechadura... O pássaro fugido estava de novo no ninho, caindo nos braços da mãe, que recuperava, suspirando de satisfação, a mais nova da sua ninhada. Marguerite Juvet, fiel à táctica que lhe valera vinte e cinco anos de felicidade, arvorava o mais terno dos sorrisos num rosto encantado:

 

”Minha querida! Como tens bom aspecto!”

 

Ela juntava a uma silhueta que se mantinha juvenil, apesar dos seus quarenta e oito anos, um carácter amável, um espírito positivo e imensas capacidades de amor conjugal ou maternal, conjunto que engendrava naturalmente a tolerância.

 

”Mamã! Oh!, mamã, se tu soubesses! titubeou Prisca, que de repente se sentiu mais comovida do que queria e com a cabeça escondida no refúgio dum ombro.

 

Sim, sim murmurou a mãe, dando-lhe pancadinhas nas costas para a acalmar. Não és a primeira a apaixonar-se. Mas, na verdade, partir como uma louca para a Etiópia...”

 

Tranquilizada por aquele lado, Véronique lançou um olhar ao pai. Este acendia o cachimbo com a visível intenção de fingir indiferença, mas que não enganava ninguém.

 

O apartamento cheirava bem a lagostins e a carneiro assado. A mesa redonda, posta com todo o requinte, brilhava com os seus cristais e os talheres de prata postos ao lado dos pratos de porcelana de Limoges reservados para as grandes ocasiões. Um ramo de rosas na jarra, geralmente posta fora do alcance do gato, encontrava-se em cima da mesa baixa. Mas Paul Juvet manifestava a sua desaprovação, com os pés metidos nas pantufas e alardeando o seu desdém pelo luxo do ambiente, que não se justificava.

 

Achava que devia manter o seu papel de pai ofendido que recusa a demissão. Por isso acolhia com olhar frio o espectáculo, apesar de tudo encantador, da esposa rodeando com o braço a cintura da filha mais nova, e a mais velha brincando com o gato, aliás tão carrancudo como o dono.

 

”Paul!”, exclamou Marguerite, ”olha como ela está bonita, toda bronzeada!...”

 

Depois disto, deixou as feras frente a frente para se ir ocupar da cozinha em companhia de Véronique, que não pretendia ficar sozinha a arbitrar a contenda. Como Prisca nunca fora de dominar, esperava-se o pior. Paul Juvet mediu a filha de alto a baixo. Esperava um remorso, pelo menos um pesar, e talvez algumas] lágrimas, mas os adoráveis olhos de mar sorriam, límpidos, o que o exasperou. ”Viva, papá! lançou ela com a descontracção que dá uma consciência tranquila. Minha filha, lamento ter de te dizer... Já não nos beijamos?” Beijaram-se. Logo a seguir, Prisca lançou-se para a escada que levava aos quartos.

 

”Onde é que vais? trovejou o pai. Tenho de te falar.

 

Não tenho o direito de ir lavar as mãos?” Véronique trazia o gelo. Serviu ao pai um uísque

 

preparado exactamente como ele gostava, o que não o descontraiu. Continuava tão fechado como uma ostra e igualmente tão mudo. Nunca Véronique o vira assim. Apressou-se a juntar-se à mãe.

 

”Se visses a cara que o papá tem! cochichou ela. Parece que vai morder.

 

Está com ciúmes disse a Sr.A Juvet batendo o molho de vinagre no fundo da saladeira.

 

Com ciúmes! repetiu Véronique, espantada. De David?”

 

Marguerite Juvet encolheu os ombros. Estava convencida de que tinha tocado com o dedo na ferida.

 

”Com ciúmes e chocado. O teu pai tem o espírito aberto para as filhas dos outros, mas não para as dele. Se pudesse trazer-vos sempre atreladas a ele, creio que o faria de boa vontade. Prisca, sobretudo, parece que continua sempre a ser um bebé.

 

A quem o dizes!”, disse Véronique.

 

Teve um sorriso e foi ver se havia uma oportunidade de acalmar o pai. Este ligara a televisão, para cujo programa olhava, provavelmente sem ver.

 

”A que hora jantamos?”, perguntou ele, em tom arrogante. ”Vai dizer à tua irmã que...”

 

Lá em cima, uma porta bateu; seguiu-se uma cavalgada pela escada abaixo e a voz estridente de Prisca anunciou que estava pronta.

 

”Tomei um duche”, disse ela, ”sinto-me melhor.”

 

Estava fresca, toda janota numas calças verde-água e uma camisola a condizer que lhe ficava muito bem. Os cabelos ainda húmidos do shampooing pareciam mais escuros: cor de castanha-da-índia, um pouco ruivos, caíam-Lhe pelos ombros. O seu olhar cinzento-esverdeado, tão parecido com o do pai, exprimia um bom humor que nada podia perturbar; sentia-se feliz e bela. Desligou a televisão, chamou a mãe e deixou-se cair nos joelhos do pai como nos bons velhos tempos. Deitando-lhe os braços em volta do pescoço, pespegou-lhe na cara um beijo muito mais caloroso que o de há pouco.

 

”Amo-o! exclamou. Amo o David, não és capaz de compreender isso?

 

Isso não é razão para te comportares como uma...

 

Paul! cortou energicamente Marguerite, que entrava com o assado mesmo nessa altura. Vai buscar o champanhe, Véronique.”

 

Mas não se trava o curso dum furacão. Prisca, que se levantou de repente dos joelhos do pai, tomou o aspecto rebarbativo duma fortaleza e fixou sem amenidade o autor dos seus dias.

 

”Ridículo! deixou ela escapar.

 

É a mim que te diriges?”, perguntou Paul Juvet, notando o assado, mas incapaz de lhe apreciar o cheiro.

 

”Começou!”, pensou Véronique, esperando o que se seguiria.

 

”Tu decides ficar em Paris quando nós partimos para férias. A tua mãe e eu recebemos em Saint-Malo uma carta incompreensível anunciando-nos uma expedição aos Pirenéus à procura dum rapaz que conheceste vagamente na tua infância. Menos de quinze dias depois, corres na companhia dele para a Etiópia, o que ele nem sequer te pedira. Persegue-lo, atiras-te-lhe à cara é pelo menos assim que eu interpretei as coisas, segundo o que me contou Véronique, e eu é que sou ridículo por achar isto assombroso, para não dizer indecente e escandaloso?

 

Ora aí está! As grandes tiradas!... São os teus princípios é que são escandalosos, papá. É indecente enterrar as pessoas sob um amontoado de velhos preconceitos retrógrados, é espantoso que um pai não se regozije com a felicidade da sua filha.

 

Queres uma bofetada?”

 

Ameaça inútil, Paul Juvet nunca fora capaz de dar uma única que fosse, sobretudo às filhas.

 

”A minha experiência foi boa continuou Prisca sem o menor receio, a mamã e tu deviam estar encantados.

 

Encantados parece-me excessivo”, comentou Marguerite Juvet com uma voz suave, e Véronique não pôde deixar de sorrir.

 

Mas era preciso não contar com a irmãzita para se dar por vencida.

 

”Amo David”, repetiu ela, ”e tinha necessidade de lho provar. Não me obriguem a fazer uma lengalenga disto até ao fim do jantar.”

 

O pai fixava nela um olhar de médico à cabeceira dum doente incurável:

 

”Como queres que um homem sinta o menor respeito por ti quando és tu que o persegues?

 

E porque teria eu o menor respeito por esse homem se fosse ele quem me tivesse perseguido?”

 

Um clarão divertido passou nos olhos de Paul Juvet. O humor retomava os seus direitos, Véronique suspirou de alívio, Marguerite Juvet experimentou a satisfação dum navegador cuja barca acaba de franquear um cabo perigoso com mau tempo. A rolha da garrafa de champanhe saltou no meio da acalmia.

 

O pai e a filha reencontraram o tom habitual das suas discussões, defendendo um as suas ideias, atirando-as a outra para trás das costas, jogo de contradições que, exercitando-lhes o espírito, no fundo, os encantava. Os merengues gelados estavam na conta ideal.

 

Como o champanhe ajudasse, Paul Juvet começou a encarar o futuro da filha sob um ângulo menos pessimista, enquanto Véronique, esquecendo o seu regime, se empaturrava de sobremesa e a mãe vivia na euforia as alegrias simples duma família unida. Tudo ia pois pelo melhor quando Prisca perguntou:

 

”Papá, tu, que estás no ramo imobiliário, não podias arranjar-nos um pequeno estúdio agradável e não muito

 

caro?

 

É possível. Quando é que vocês querem casar-se?

 

Nós nem falámos nisso, isso não tem importância.

 

Pelo contrário, isso tem muita importância.

 

Papá, não recomecemos! Eu não vou obrigar David a casar comigo apenas porque saltei para o mesmo avião que ele há dez dias. Preciso dele para ser feliz, mas tenho orgulho de mais para me impor. Não tenciono obrigá-lo a enforcar-se.

 

Não pensas que vocês vão viver juntos sem se casarem.

 

Lamento, papá, eu sou maior.

 

Maior ou não, hás-de comportar-te correctamente.

 

Não tenho contas a dar-te e vou viver a minha vida como eu entendo, passarei sem o teu consentimento.

 

Nesse caso, passarás também sem voltar a esta casa, a chorar, quando o teu David te mandar passear.”

 

Houve um silêncio. Depois, de repente, Prisca levantou-se, agarrou no saco que pusera em cima duma cadeira quando entrara e dirigiu-se para a porta. Foi tão rápido que a mãe ficou muda.

 

Véronique saltara.

 

”Tu estás doida? Onde é que vais?

 

Que pergunta!”

 

A porta bateu, Véronique teve de a abrir e precipitar-se para a escada:

 

”Prisca! Não há lugar para ti em casa de Bertrand.

 

Espero que haja. Diz à mamã que a beijo e ao meu pai que nunca o teria julgado capaz de me pôr na rua.

 

Mas, francamente, ele não te... Prisca, pára de correr, escuta-me, isto parece uma história de doidos! Ele não te pôs na rua.”

 

Dez minutos mais tarde, Véronique voltava só. ”Era preciso um colete de forças para a segurar”, afirmou ela, ”e impedi-la de ir ter com o seu David.”

 

Parecia esgotada. Marguerite Juvet lançou ao marido, um olhar desprovido de doçura:

 

”Julgava que eras inteligente”, disse ela.

 

Era a coisa mais desagradável que ela lhe dissera em vinte e cinco anos.

 

Não era a primeira vez, de há um mês para cá, que Prisca agia sob um impulso repentino, mas nunca tivera de manifestar o seu espírito de independência à hora em que já não havia nem metro nem táxis. Verificava que uma rapariga bonita num passeio produz um efeito que lembra a prática da mais velha profissão do mundo e lamentou não ter pedido emprestadas a Véronique as chaves do Austin.

 

Abordada no deserto da Rue Caulaincourt por um indivíduo duvidoso que lhe dirigia infâmias, começava a sentir pânico quando surgiu no horizonte um táxi, para o qual se precipitou.

 

Dada a direcção, começou a inquietar-se com o curso que tomavam os acontecimentos, pois talvez não manifestassem uma alegria delirante ao vê-la chegar inesperadamente, lá, na Rue Pissaro, à uma hora da manhã. Conhecia Bertrand e por aí esperava que tudo corresse bem, mas a mulher dele?...

 

Prisca esteve quase a ordenar que o táxi desse meia volta, para voltar para casa. Depois pensou que viver com David como entendia necessitava de grandes meios e deixou-o seguir. Parou pois, como o combinado, em frente do n.s l da Rue Pissaro era o destino... um pouco provocado, é certo! Mas, pensando no lado aflitivo duma existência sem riscos, Prisca sentiu-se dotada duma coragem nova e varreu com um sorriso arrependido inquietações e saudades da vida calma que ia deixar atrás de si; pagou, deixando uma gratificação que encantou o motorista, e correu para a entrada B ao fundo do pátio.

 

Nunca pusera os pés em casa de Bertrand, mas sabia por David que ele habitava no último andar. Tendo reparado no nome do jornalista na caixa do correio, viu que se tratava do sétimo esquerdo. Alegrou-se com a indicação, porque não pensara que pudesse ter de escolher entre várias portas, e teria sido capaz de passar a noite no patamar a ter de acordar os vizinhos, se se enganasse na campainha: Prisca aliava a um carácter aventureiro uma timidez de que não se desembaraçava facilmente.

 

Em resumo, tomou o ascensor, sobressaltando-se com o barulho da porta a fechar-se, e deixou-se içar até acima. Saiu no meio da escuridão, procurou o botão da campainha, depois, com gesto enérgico, apesar do medo que sentia, tocou para o esquerdo.

 

O barulho que a campainha fez pareceu-lhe horrível e o tempo que esperou desmesurado. Um bebé começou a gritar.

 

Finalmente, a porta abriu-se e Prisca viu em frente dela uma pessoa baixinha, de cabelos curtos e negros, frisados como os dum anjo, vestida com um roupão cor de laranja, que lhe perguntou, em tom agressivo, que é que ela queria, acrescentando, sem esperar pela resposta, que não eram horas para se vir perturbar as pessoas e que ela devia ter-se enganado na porta. Bertrand apareceu felizmente atrás dela, de pijama, com o bebé, que ele tentava em vão acalmar.

 

”Prisca!”, exclamou ele. ”Que é que te aconteceu?”

 

A pequena personagem de ares bélicos mudou imediatamente de maneiras:

 

”Você podia ter dito logo que era Prisca! Tomei-a por uma dessas malucas que chegam a qualquer hora aqui em frente e que se enganam na porta. Entre, entre, David não está, mas...

 

David não está?

 

Penso que ele não deve tardar. Mas não fique aí à entrada com esse ar desolado.”

 

A jovem baixinha, toda sorridente mas sempre autoritária, puxou Prisca para a fazer transpor a entrada. Bertrand fechou a porta. O bebé, que já não chorava, abria uns olhos húmidos, grandes como discos, estendendo as mãos possessivas para os grandes cabelos castanho-dourados, brilhantes da lavagem recente. A mãe apoderou-se dele.

 

”Valerie, a minha mulher apresentou Bertrand, e Cécile, a minha filha.

 

Lamento... Se eu tivesse sabido balbuciou

 

Prisca...Vim acordá-los.

 

não tem importância disse Bertrand. Anda

 

sentar-te, eu vou telefonar a David, para o prevenir.

 

não, não, eu... vou-me já embora exclamou

 

Prisca, de ar precipitado, eu vinha apenas dizer bom dia porque...”

 

Bertrand e Valerie esperavam uma continuação que não vinha.

 

”Eu... eu andava a passear por aí”, acabou ela, abatida.

 

Os outros dois desataram a rir e Cécile, encantada, agitou-se nos braços da mãe, abrindo muito a boquinha rosada. Prisca tentou sorrir.

 

”Bom!”, disse Bertrand, pegando-lhe no braço.

 

Arrastou-a para um divã-cama e obrigou-a a sentar-se.

 

”Conta lá! As coisas correram mal em casa dos teus pais?”

 

Prisca lançou-lhe um olhar inquieto antes de confessar:

 

”Estou zangada com o meu pai. Não verdadeiramente zangada, mas...

 

Mas saíste de casa rematou Bertrand com ar compreensivo.

 

Foi isso.

 

Eu tinha-te dito, ela é uma pessoa impulsiva”, comentou o amigo de David, dirigindo-se à mulher.

 

Ele tinha bons olhos dourados de cão de caça, que sorriam sob as sobrancelhas eriçadas, um nariz arrebitado e algumas borbulhas.

 

”Apareces mesmo em boa altura, porque David começava a acusar uma depressão. Duas horas sem ti era de mais para ele; um pouco mais e corria a ir-te buscar a Montmartre. Então Valerie mandou-o para a rua, aconselhando-o a correr a pé até Neuilly, para se descontrair ao pé da mãe. Mesmo assim, resolveu levar a moto. Imagina que começava a andar por aí às voltas como um demente, pretendendo que as convenções burguesas têm qualquer coisa de sádico e que não se devia ser maltratado quando se está apaixonado. Metia os pés pelas mãoss mas, em resumo, isso queria dizer que, em sua opinião tu mereces um casamento na Madeleine e um palacete particular na Avenue Foch. Creio que, se não conseguir oferecer-te isso, se suicida... A menos que aceites a metade do divã dele na nossa casa”, sugeriu Valerie com voz calma. Prisca saltou-lhe ao pescoço, o tratamento por tu e o convite vinham mesmo na altura para lhe levantar o moral. O bebé deu um grito estridente, sinal de alegria intensa, e apoderou-se dos cabelos há tanto tempo cobiçados.

 

”Ai!”, soltou Prisca.

 

Demorou um momento para conseguir abrir os pequenos punhos, e o resultado obtido provocou novos gritos, furiosos desta vez.

 

”É mesmo o retrato da mãe disse Bertrand; ela consegue sempre o que quer, pela força até, se for preciso. Farias bem, Prisca, em te transformar em bonzo, de cabeça rapada, senão ela vai escalpar-te... Querida, tens a certeza de que ela não tem fome?

 

Eu tenho aqui o que é preciso”, declarou uma voz pastosa.

 

Vinha duma porta entreaberta, onde surgia a cabeça hirsuta dum rapazinho e metade duma banana estendida na extremidade dum braço.

 

”O meu sobrinho apresentou Bertrand. Quando não está a dormir, está a comer; é o que se chama uma criança que se alimenta bem.

 

Estou desolada por o ter acordado murmurou Prisca. Desculpem-me.

 

Ora! disse o garoto, isso não tem importância, o frigorífico está cheio.”

 

Apareceu completamente, de ar circunspecto: ”Quem é essa?

 

Uma amiga disse Valerie. Não se fala com a boca cheia e não se diz quem é essa.

 

Que é que se diz?

 

Nada, vai-te deitar.

 

Posso dizer-lhe boa noite?

 

Podes, mas depressa.”

 

Pôs o resto da banana debaixo do nariz do bebé, que se torceu a rir, agarrando-o, e estendeu a Prisca uma mão peganhenta.

 

”Viva! Eu chamo-me François.

 

E eu, Prisca.

 

Ah! exclamou o rapazinho, tu é que és a

 

mulher do tipo alto louro?

 

Hum...”, disse Prisca.

 

Valerie apressou-se a agarrar na mão do irmão, suplicando-lhe que a ajudasse a deitar o bebé, ao que ele acedeu com condescendência. Desapareceram, ouviram-se risos atrás da porta, à mistura com os gritinhos do bebé.

 

Bertrand levantou-se foi até uma arca de madeira, onde tirou uma garrafa de uísque e dois copos.

 

”Vamos festejar!”, disse ele.

 

Prisca bebeu uma golada e sentiu-se muito melhor. Pensou que Valerie tinha bom gosto e disse-o. As paredes brancas, o tecido cor de laranja, as cortinas sarapintadas, onde havia losangos do mesmo tom, a coberta da cama em patchwork, agradavam-lhe, essas cores casavam-se bem, era alegre. Ficou varada de admiração diante da biblioteca, que cobria completamente uma parede e onde cada coisa encontrava o seu lugar, desde a aparelhagem estereofónica, com as colunas e os discos, a televisão, uma imensidade de livros de todos os tamanhos, até uma maqueta de barco, fotografias, recordações de viagens, nas várias divisões das prateleiras.

 

Não podia ser mais engenhoso e bonito. Modesto, Bertrand declarou que eram eles próprios que faziam as coisas, e como Valerie regressava, sem o irmão nem a filha, explicou que tinham arranjado sozinhos aquele apartamento. À parte os móveis, tudo fora feito pelas suas mãos e tinham passado aí os domingos, os dias de festa e as férias no primeiro ano do seu casamento. Quanto aos móveis, não havia senão uma grande mesa de madeira tosca rodeada de cadeiras de palha, alguns pufos e o divã.

 

No entanto, esta nudez parecia confortável e mesmo acolhedora.

 

”E isto?”, perguntou Prisca. ”Esta coisa esplêndida, que é?”

 

Apontava o braço para um mecanismo bizarro cujas rodagens complicadas giravam, multiplicadas pela iluminação, povoando de sombras geométricas e movediças um canto da sala.

 

”O ventre dum relógio que encontrei no celeiro dos meus pais na Normandia explicou Bertrand. A madeira estava podre, o vidro quebrado, não tinha ponteiros nem pêndulo; então Valerie teve a ideia de o mergulhar em petróleo, desmontámo-lo, areámo-lo, tornámos a montá-lo, armei o mecanismo sobre uma base e pronto: não ficou mau, pois não? Estou contente que isto te agrade, porque é aqui que vais dormir.

 

Creio que o David está aí”, disse Valerie.

 

A porta do elevador batera. Houve um ruído de chave na fechadura e ”o altarrão louro” apareceu na entrada. Ficou imóvel, esquecendo-se de fechar a porta, depois, de repente, correu para Prisca, que se lançava nos seus braços.

 

”Bom disse Valerie, vamos deixá-los. A casa de banho está livre. Nada de barulho, principalmente por causa do François e do bebé. Se tiveres necessidade de qualquer coisa, procura no meu armário, Prisca. David sabe onde é que está. Boa noite.

 

Mas... objectou David, espantado.

 

Cala-te! cortou Bertrand. Ela veio oferecer-te um presente, nada mais. Até amanhã.

 

Até amanhã”, murmurou Prisca.

 

Agora tudo parecia simples. Mas David olhava-a com estupefacção.

 

”Tu ficas aqui?

 

Fico. Isso aborrece-te? E.... os teus pais?

 

Acabou-se. Quero dizer: expliquei-lhes que ia viver contigo. Como está a tua mãe?”

 

Ele foi sentar-se no divã, com os cotovelos apoiados nos joelhos, tão amável como uma parede de betão.

 

Ӄ o diabo! disse ele.

 

Encantador acolhimento!”, replicou Prisca.

 

Sentia-se desorientada e infeliz, mas mais depressa se deixaria matar do que mostrá-lo. Agarrou no saco e dirigiu-se para a porta, perguntando a si própria para onde iria se por acaso David não a retivesse. Ele continuava sem reagir e ela sentiu vontade de o morder. Tudo ia acabar essa noite, estupidamente, e ela não conseguia saber porquê. Ou, melhor, as coisas eram até demasiado evidentes: ele já não a amava. Talvez nem nunca a tivesse amado.

 

Mas, no segundo em que ela abriu a porta, ele estava junto dela e o mundo virou-se. A esperança voltou com a certeza de que ele a amava. Prisca ergueu para David uns olhos confiantes e esperou, serena, que ele lhe batesse, que a beijasse ou que se explicasse.

 

”Tu não compreendes que estás louca?”

 

Ela pediu-lhe que baixasse o tom por causa das crianças e dos vizinhos, o que o acalmou. Ele tornou a fechar a porta. Prisca sentiu-se mergulhar na felicidade quando ele a tomou nos braços para a levar até ao divã, onde a deitou sem doçura:

 

”Sabes o que precisavas?

 

Grande bruto!”, gritou Prisca, dando um salto. Batera com a cabeça na parede, mas, pressentindo o cheiro da vitória, sentia-se em plena forma. Os olhos de David, cor de lazulite, tinham reencontrado o brilho das noites etíopes. Dito isto, ele não desarmava:

 

”Tu estás a ver-nos aos dois, sem um vintém, vivendo à custa do Bertrand?

 

Porquê à custa do Bertrand? Alguns dias, talvez, mas depois havemos de nos arranjar. Tu tens uma profissão, não tens senão de a defender. E eu hei-de arranjar trabalho.

 

E os teus estudos?

 

Que estudos?

 

A tua Medicina.

 

Mudei de opinião, tenho outros projectos.

 

Quais?

 

Escuta, David, tu és jornalista, não és polícia. Deixa lá o interrogatório.

 

Previno-te de que a minha mãe está quase tão na penúria como nós. Se estavas a contar com ela para nos ajudar, desiste. Os teus pais também, suponho.

 

Isso é verdade.

 

Ao ponto em que as coisas chegaram, eu é que devia ajudar a minha mãe. A profissão de actriz, quando as coisas não caminham bem, não é lá muito agradável. É em vão que ela se chama Clara Verneuil: só faz dobragens, e não muitas. Vai ter de mudar de apartamento. Falámos disso esta noite. É desastroso!

 

Eu vou vê-la afirmou Prisca, hei-de levantar-lhe o moral. David...

 

Que é?

 

Vamos discutir toda a noite o dinheiro de que necessitamos para sermos felizes?

 

Não, se continuares a olhar-me com esses olhos...”, murmurou David.

 

Sorria. Então, refugiada nos seus braços, Prisca cochichou as palavras loucas que ele gostava e mais nada contou para ele além da ternura desvairada das suas carícias.

 

O dia ia nascer quando eles adormeceram, acalmados, deslumbrados com uma felicidade reencontrada que julgavam única e sem limites. Amavam-se, o infinito tinha um sentido.

 

Quando Prisca despertou, encontrou um penteador verde-maçã espalhado aos pés, uma chávena de café já frio numa bandeja colocada perto dela, mas de David nem sombra.

 

Inquieta com as horas que deviam ser, saltou da cama, viu que estava nua e cobriu-se com o penteador antes de correr a puxar as cortinas, aos losangos multicores. O Sol brilhava por cima dos prédios defronte, num céu azul sem nuvens.

 

Vendo as duas portas fechadas, Prisca compreendeu que tinham feito tudo para a deixar dormir em paz; este excesso de gentileza enterneceu-a, mas aborreceu-a. Tinha horror a ser tratada como um objecto frágil. O lado mulher-criança, o ai-jesus da casa, exasperava-a; não queria ser nem inútil, nem estar a mais. Tendo juntado à pressa o vestuário e as ideias, concluiu que era tempo de entrar em actividade. Precipitou-se para a casa de banho, cuja porta ia fechar quando apareceu François, que a impediu de a fechar com um pé firme.

 

”Bom dia!”, disse ele. ”Levantas-te todos os dias às onze e meia?”

 

Prisca jurou que se levantava habitualmente de madrugada e sentiu que ficaria com complexos naquela casa se esse garoto continuasse a observá-la com um olhar de desprezo tão desencorajador. Era capaz de fazer qualquer pessoa mergulhar na confusão.

 

Comunicou-lhe que David não parava de bocejar nessa manhã, mas que mesmo assim partira cedo para a agência com Bertrand e que Valerie ia sempre pôr Cécile no infantário antes de se dirigir à Radiodifusão, onde trabalhava. Esta nomenclatura das actividades de cada um fez subir ao cúmulo o mal-estar de Prisca.

 

”E tu, ficas em casa? perguntou ela.

 

Fiquei por tua causa.

 

Foi muito gentil.

 

Não foi gentil, obrigaram-me. Valerie disse-me que antes de ir para casa do meu colega tinha de esperar que tu acordasses. E sem fazer barulho.”

 

Humilhante atenção, que Prisca teria bem dispensado. Imaginá-la-iam débil ao ponto de se sentir perdida num apartamento vazio ou tratá-la-iam como a um bebé de mama? ”Podes ir para casa do teu colega”, sugeriu ela, armada do seu mais encantador sorriso.

 

François lançou-lhe outro, esplêndido.

 

”Não precisas de nada, tens a certeza?

 

Não preciso de nada, obrigada, François. Creio que saberei desembaraçar-me sozinha.”

 

O sorriso de François alargou-se:

 

”De acordo!”, disse ele.

 

Prisca mergulhou o olhar nas costas rechonchudas que corriam para a porta. Mas uma travagem cortou o impulso.

 

”As chaves recomendou François, virando-se; se saíres, mete-as na caixa do correio.

 

Entendido. O teu colega mora longe?

 

No prédio em frente. Adeus.

 

Passa um bom dia, François. Almoças em casa do teu amigo?

 

Almoço. Não te preocupes. Pronto, vou-me embora. Não te esqueças de fechar o gás, se te servires dele. Não está ninguém em casa antes das sete horas, hoje. Sobretudo, não te esqueças das chaves.

 

Prometido.”

 

Desta vez, agitou a mão e caminhou, sem se voltar, até à porta da entrada, que bateu atrás dele.

 

Prisca voltou para a casa de banho, onde, mais do que em qualquer outra parte, se sentiu a mais. Tudo, aqui, marcava a intimidade de Bertrand e Valerie, a presença de Cécile e de François. Eles não precisavam de ninguém, David e ela só podiam incomodá-los, era preciso não se instalarem lá. Prisca passou-se pelo duche, depois arrumou, limpou; ao menos, que fosse útil em qualquer coisa. Mas isso não remediava fosse o que fosse. Tinha de encontrar um emprego, era preciso partir com David, instalarem-se em qualquer parte, sozinhos.

 

Vestiu-se rapidamente, bebeu o café frio, arrumou a sala onde dormira. Passava em revista as profissões que podia exercer para já: baby-sitter, empregada doméstica, vendedora? Para que se servirá precisamente quando se fez apenas o curso do liceu?... Pensou na sua amiga Nicole. Esta sempre conseguira arranjar as coisas para não estar a cargo de ninguém. Prisca teve vontade de lhe telefonar; certamente que ela teria alguma ideia, já lhe arranjara uma solução, uma vez. Mas Nicole trabalhava num armazém de calçado e detestava que lhe telefonassem para lá, por causa do patrão, que levava isso a mal; e ela não voltava para casa antes da noite.

 

O desejo de dar uma telefonadela para o Poleiro surgiu a Prisca de tal modo que resolveu fazer a chamada. Se o pai respondesse, desligava.

 

Foi a mãe, adorável como de costume e tão descontraída como se nada se tivesse passado: trabalho de alta escola, pernas de aço, mão de veludo. Ela sempre soubera juntar as suas poldras tresmalhadas... confiança, paciência, nada de chicote.

 

”Como te sentes, minha querida? Dormiste bem? Foi gentil da tua parte teres telefonado.

 

O papá já voltou da repartição?

 

Ainda não. Ele ficaria encantado por te ver. Ontem à noite tivemos uma pequena discussão e esta manhã outra antes de ele sair. (Prisca imaginou o que podia ter sido!) Não te inquietes... Véronique telefonou para casa dos teus amigos para te dizer adeus, mas parece que tu ainda estavas a dormir. Ela está em Orly, agora. A casa, sem vocês as duas, parece vazia; davas-nos um grande prazer se viesses cá almoçar. Se fosse possível, bem entendido... O David está junto de ti?”

 

Adivinhando a suspeita de embaraço no outro extremo do fio, Prisca não pôde deixar de sorrir. ”Não respondeu ela.

 

É pena! exclamou a voz, a partir daí ainda mais natural e onde se percebia o alívio. Dir-lhe-ias para te acompanhar. Espero que ele goste de peixe. Arranjei uns linguados magníficos no mercado. Em todo o caso, se estiveres só, não hesites, vem depressa.”

 

Admirável diplomacia maternal! Encadear as contradições de forma tão subtil revelava classe. Prisca desatou a rir ao telefone, era demasiado belo, o zoo Juvet reconstituído, o armistício. Do outro lado houve um suspiro satisfeito, nada mais. Era o modesto triunfo:

 

”Então, vens?

 

Vou já, mamã...

 

Vens?

 

Não tenho nada para vestir. Se me pudesses arranjar...

 

Tratas tu mesma disso, minha querida. Até já. Não aborreças o teu pai chegando à hora da sobremesa; despacha-te e trata de ser gentil, ele está de bom humor.”

 

Marguerite desligou. Conseguira o que queria, pacificara o marido, achara o pretexto da mala para reter a filha o mais tempo possível, havia calças para passar a ferro e camisas para lavar, o que iria levar toda a tarde...

 

Prisca pousou o telefone. Precioso instrumento! Apetecia-lhe chorar de alegria. A mãe dissera-lhe o que esperava: terminada a complicação. Teve vontade de gritar ”Papá!” através do apartamento e fê-lo. Tanto pior. Aquilo soava de maneira ridícula... Querido e velho pai, com os seus princípios, o seu cachimbo, o seu humor, as suas pantufas e as suas pernas um pouco pesadas à noite! Prisca não podia deixar de sentir a sua ternura, não é assim tão fácil arrancar as raízes.

 

Fechou a porta do apartamento, desprezou o ascensor, desceu a correr os sete andares, atirou as chaves para a caixa do correio e correu para o metro.

 

De facto, Paul Juvet estava ainda à defesa, Prisca apercebeu-se disso rapidamente. Fingia aceitar o que não podia evitar, mas sem demonstrar um entusiasmo excessivo, e a atmosfera do Poleiro revelou-se menos descontraída do que Marguerite esperara. Pensou que era altura de dar o grande golpe...

 

Falava-se da chuva e do bom tempo por alturas dos linguados quando ela lançou o ataque:

 

”Lembras-te da Rue Chantal, meu querido?”

 

Paul esteve quase a estrangulá-la. Lançando um olhar oblíquo a Prisca, quis deter a corrente. Demasiado tarde. Nada podia deter já Marguerite:

 

”O meu pai ficaria louco, se tivesse sabido”, continuou ela.

 

Teve um sorriso. Prisca, farejando tanto o escândalo como a delicada táctica, prestava atenção. Evitou olhar o pai, que espumava, literalmente, e esperou o que devia seguir-se:

 

”Nós éramos tão hipócritas nessa altura, escondendo o que fazíamos... Nos nossos dias, as raparigas são mais francas, e eu acho que elas têm razão. Recordas-te como eu mentia? Inventava os pretextos mais extravagantes para ter uma oportunidade para ir ter contigo a esse quartinho que tu habitavas. No entanto, ele era bem feio! Verdadeiramente horrível. Aquele quebra-luz de franjas prateadas, que horror!”

 

Paul fez um ar ofendido.

 

”É a primeira vez que me falas disso. Devias ter-me dito que o achavas horrível, e eu tê-lo-ia deitado para o lixo.

 

Verdade?... (Marguerite sorria.) Não importa o quebra-luz, nós éramos felizes. Podia ter acabado mal; há sempre um risco quando nos apaixonamos, ninguém pode ter a certeza que isso vai durar... Admitamos que eu tive a sorte ou um bom instinto e nunca lamentei ter sido um pouco louca na minha juventude por tua causa. Aliás, quanto mais penso, mais chego à conclusão de que não era louca, eu sabia o que fazia. O amor não é tão cego como se julga. Eu escolhera-te e fiz tudo para te conservar... O que fará em breve vinte e cinco anos de conquista quotidiana, dás bem conta disso? No fim de contas, tenho o direito de estar orgulhosa, pois não nos saímos assim tão mal. Que é que pensas?

 

Penso disse Paul com uma voz onde se adivinhava mal se falhava de furor ou de emoção, penso que, se não tivesse casado contigo há vinte e cinco anos, o fazia hoje. Mas achas que era absolutamente necessário fazer essa confidência à frente da pequena?

 

A pequena! repetiu Marguerite, sorrindo e virando-se para a filha. Ela já não é uma pequena... Escolheste David, não é verdade, minha querida?, como eu escolhi o teu pai. Decidiste fazer a tua vida com ele. Pelo menos, tentar.”

 

Prisca acenou com a cabeça:

 

”Sim, e não mudarei disse ela. Para mim, David é o único homem do mundo. Ele existe. Cada vez que o olho, que ele me fala, pergunto a mim mesma por que milagre pude ter uma sorte dessas.”

 

Um suspiro paterno pontuou este excesso de ênfase ou de entusiasmo e Prisca esteve quase a reencontrar uma boa parte da sua agressividade. Marguerite, imperturbável, continuou:

 

”Se na verdade escolheste David, o futuro depende de ti. Não tenho conselhos a dar-te. O teu pai também não. As histórias de amor parecem-se, mas a forma de as fazer durar é que não, e, finalmente, a felicidade é sempre uma história de amor que dura. Recorda-te de que cada coisa se ganha, nada é fácil. Será preciso aprender... Ao princípio, isso vai-te parecer complicado... Vais ver. É um negócio entre David e tu.

 

O negócio duma vida resmungou Paul Juvet. Não um golpe do acaso. Enfim... Espero-o.”

 

Olhou a filha e Prisca sentiu os olhos embaciarem-se de ternura, não sabendo já o que dizer. Gostaria de os beijar aos dois e sobretudo acabar com aquilo, deixar de os ver preocupados por causa dela...

 

”Irei para a Faculdade”, disse ela de repente. ”Tirarei Medicina.”

 

Atirou um olhar ao pai, cujo bigode se alongava por cima dum sorriso céptico.

 

”Vou, pois afirmou ela, eu cá me arranjarei, sei que queres que eu vá. E eu também, aliás.

 

Tu não podes trabalhar nessa atmosfera... comunitária.

 

Posso. Não sei quem mo impediria... Excepto talvez a impressão de ser uma espécie de parasita. Eu não queria viver à custa do Bertrand e da Valerie, já basta invadi-los; desejo bem que isto não dure muito tempo.

 

Espero que David ganhe dinheiro suficiente para nos alimentarmos ambos, é esse o único problema.

 

Se é uma questão de alimentação disse Paul

 

Juvet, tentarei melhorar o cardápio.”

 

Reencontrara o sorriso divertido que Prisca adorava e o olhar dos dias bons; ela saltou-lhe ao pescoço.

 

”Obrigada”, murmurou ela.

 

O pai presenteou-a com uma boa palmada na parte mais carnuda da sua pessoa:

 

”Quando te fazemos o que queres, temos todas as qualidades, não é assim?”

 

Os olhos cinzento-esverdeados brilhavam, felizes.

 

”Dito isto”, Paul Juvet suspirou, de ar resignado, ”teria sido mais simples se ficasses aqui. Mas como sempre foste mais teimosa do que um burro, não tenho nenhuma esperança de te convencer. Diz ao teu David que será bem recebido nesta casa quando quiser cá vir, mas que saiba que eu aceito dar-lhe a minha filha em casamento, mas não lha empresto. Sou contra a vossa maneira de viver. A tua mãe bem te pode fazer as confidências que quiser, mas será obrigada a reconhecer que oito dias depois de a ter conhecido eu quis casar com ela. O teu avô é que não queria, não era como eu.”

 

Prisca desatou a rir:

 

”Eu direi ao avô que ele não tinha razão.

 

Ele sabe-o, isso já foi provado!”

 

Finalmente, tornavam a conhecer-se, divertidos com uma mudança de disposição que partilhavam. Semelhantes um ao outro, definitivamente reconciliados, brincaram até ao fim da refeição, discutindo como de costume e afirmando os seus pontos de vista com uma igual obstinação. Mas a agressividade da véspera já não existia, pai e filha tinham voltado a encontrar o equilíbrio. Quando chegou o momento de regressar à repartição, Paul Juvet proclamou que a filha tinha um carácter detestável, dizendo em aparte que ela não era parva nenhuma, o que lhe satisfazia o orgulho paternal, e sentiu-se tranquilo.

 

”No fim de contas”, disse ele, ”casar sem se conhecerem é uma estupidez que tens toda a razão de evitar, e acho bastante sensato da tua parte, não te precipitares sobre esse rapaz para o obrigar a pôr a corda ao pescoço.”

 

Antes de Prisca voltar a si da surpresa, ele partira.

 

”Então essa mala...”, disse a Sr.a Juvet. ”Espero que estejas livre esta tarde, porque as tuas calças cor-de-rosa não estão passadas, tenho de coser o fecho eclair da tua saia azul-marinha e preciso bem duma hora para acabar a tua camisola de malha. Penso que queres levá-la.”

 

E enquanto ia preparando e fazendo as cpisas, teria tempo de falar! Prisca agarrou a mãe nos braços, chorando e rindo, de tal modo estava contente por ter adivinhado: Marguerite retê-la-ia até ter ouvido e dito tudo.

 

Às sete e meia da noite, não antes, Prisca corria para o pequeno Austin que Véronique tivera a bondade de lhe deixar. Levava a mala cheia na mão e a camisola de malha pelas costas.

 

O elevador da Rue Pissaro o que tinha de bom era que avisava quando ia a caminho.

 

Mal ela batera à porta do sétimo andar, logo David surgiu no patamar. Parecia num estado de excitação semelhante ao das crianças nos dias de festa quando se anuncia a grande prenda da tômbola; os seus olhos, dum azul ainda mais azul do que habitualmente, reflectiam um belo estado de excitação, onde se misturavam a ansiedade e a alegria.

 

”Julguei que nunca mais vinhas! Perguntava a mim próprio onde estarias, estive quase a telefonar para tua casa.

 

Podias fazê-lo! Estás convidado para jantar lá em casa amanhã.

 

Amanhã, meu amor, jantarei num Boeingl”

 

A palavra soando como um grito de vitória, ele fez girar Prisca nos braços, beijou-a fogosamente, agarrou na mala e levou tudo para o apartamento. Causava vertigens com os seus gritos selvagens: Bertrand disse-lhe, enquanto procurava os óculos de gatas na alcatifa e François, agarrado às costas dele como uma sanguessuga, berrava que ele devia ”escoicear, ou não era jogo, não era nada”.

 

O bebé, sentado no chão, agitou subitamente uma armação de óculos, a que faltava já uma haste e uma lente, e Valerie, com as estreitas ancas metidas numas calças vermelhas, mergulhou a tempo em direcção à filha, sobre a qual o pai e o tio ameaçavam rolar. Carregada com a sua progenitura e sorrindo a Prisca, levou um dedo à testa:

 

”É isto há uma hora”, disse ela. ”Estão com uma crise de juventude.”

 

Vendo no horizonte os cabelos que a partir desse momento se tornaram no objecto único da sua cobiça, Cécile deu o seu grito sioux, abandonando os óculos, e atirou-se do colo da sua minúscula mãe na intenção provável de ir cair em voo planado nessa massa movediça castanho-dourada. David, dotado, felizmente, de reflexos rápidos, evitou a queda e o escalpe apanhando-a no ar, de tal modo que Valerie lhe lançou um olhar reconhecido, e recuperou o seu bem, que levou aos gritos para a cozinha, onde o jantar estava a aquecer.

 

François, de olhar atento à ideia dos possíveis restos no fundo da caçarola, abandonou o cavalo para seguir atrás da irmã.

 

”Já é a terceira vez que os colo! gemeu Bertrand observando os despojos dos seus óculos.

 

Os Estados Unidos, estás a ver, meu bem?”, continuou David, aparentemente sem a menor relação.

 

Prisca sugeriu-lhe que se explicasse, mas parecia impossível obter dele um discurso coerente.

 

”Com a Tia Leslie, para mais! Mesmo assim, ela é a mais importante na casa, hem, Bertrand!

 

Indecente felizardo!

 

Ai!”, berrou David, a quem Prisca acabava de vibrar um pontapé nas canelas para tentar acalmá-lo.

 

Mas isso teve apenas um resultado, o de provocar saltos só com uma perna através da sala, até David se deixar cair, rindo loucamente, sobre o divã.

 

”Há notícias boas!”, disse Bertrand.

 

Prisca bem desconfiava disso, mas gostava bem de saber quais.

 

”Viste o teu patrão? perguntou ela. Ele está contente com a reportagem? Correu tudo bem?

 

Nem podes sabê-lo”, soluçou David.

 

Evidentemente que ela não podia. Apressava-se a empregar de novo os meios enérgicos, a fim de obter os esclarecimentos necessários, quando David recuperou o fôlego, agarrou no copo de cerveja que lhe estendia Bertrand e, com os olhos cheios de lágrimas de tanto rir, acabou por gemer:

 

”Tira os socos, que eu já te digo tudo!” Finalmente, começou a explicar.

 

”Quando chegámos à agência, Bertrand e eu, ele não estava lá.

 

Quem? O teu patrão?

 

Sim, minha querida. Se quiseres que eu te conte, não te faças pateta.

 

E tu tenta ser claro gritou Prisca, rindo. abrevia os pormenores. Estou sobre brasas.

 

Bom. Ele não estava lá, mas chegou depois.

 

Era capaz de adivinhar isso. E então?

 

Abria uma boca dos diabos, pois sofre de insónias.

 

Como tu.

 

Perdão! Para mim, ontem à noite, era um caso excepcional... Em conclusão, não deve ser certamente a mulher que o impede de dormir, ou então, em minha opinião, o tipo é masochista. Se tu o visses!...

 

Já chega de parvoíces! Abrevia, torno a dizer-te.

 

Ele fez-me sinal para entrar no gabinete, fechei a porta atrás de mim e fiquei de pé, com as minhas fotografias debaixo do braço, num sobrescrito. Ele tinha o ar dum tigre. Sabes, nada do género terno... Estendeu a mão, deposito-lhe nela o sobrescrito. Tira as fotografias, olha, mira-me de soslaio, continua a olhar. Chega à última, volta o embrulho e recomeça pela primeira.

 

”É tudo?, pergunta-me. Francamente, eu até tremia. Respondi-lhe que tinha dez vezes aquilo em negativos, mas que não pudera revelar tudo lá na Etiópia, e tirei das algibeiras os rolos de película, todos numa molhada, os quais rolaram pela secretária dele.

 

”Escolheste as melhores, disse-me. Não, senhor, foi ao acaso. Verdade? Sim, senhor, juro. Ele tinha um ar um pouco espantado. Chamou o tipo do laboratório, deu-lhe os nove ou dez rolos que tinham ficado por revelar.

 

”Depois pediu-me as notas de despesa. Aí regateou. Então falei-lhe de ti, Prisca, sem cerimónia. Com estes tipos, vale mais ser franco. E depois dei-lhe o meu texto. Ele não estava com ar de muitos amigos, as notas de despesa estavam-lhe lá atravessadas.

 

”Começou por percorrer o meu bazar. Em seguida foi ao ponto de partida e leu tudo. Seriamente. Eu continuava de pé. Acabou por me dizer: Senta-te. Não tinha sequer erguido o nariz da minha prosa. Quando chegou ao fim, olhou para mim. Depois abriu uma gaveta e tirou um contrato. Sabes o que é? Disse-lhe que sim. Então, assina.

 

”E pronto. Agora, faço oficialmente parte da agência OROP. Tenho um ordenado fixo por mês, mais as ajudas, se tiver trabalho. E como o patrão não quer os repórteres para não fazerem nada, manda-me amanhã para os Estados Unidos, porque quer material sobre a seita Moon. Para começar. Belo assunto! Eu sei que já se disseram muitas coisas sobre isso, mas tenho a certeza de que há ainda pontos de vista para descobrir.

 

”E sabes quem é que ele me dá como redactora? Leslie Brown, uma americana, uma rapariga a quem paga os olhos da cara porque é uma campeã e ele foi buscar à Europa n. 1. Antes, trabalhava na Jours de France. Mas não interessa quem é Leslie Brown! Pode-se ter confiança nela para se ser bem sucedido, e isso é o que interessa. Aposto que ela vai descascar o assunto até ao osso.

 

E ela é... simpática?”, perguntou Prisca. Tinha a impressão bizarra de que o estômago se enrolava sem razão.

 

No fundo, estava à espera que David lhe propusesse partir também. Desde há bocado que estava à espera disso, era assim que interpretava aquela alegria. Enganara-se, pronto. Acontece que se adivinha ao contrário, que nos alegramos com aquilo que não existe. Todavia, aquela viagem à Etiópia... Ele parecia tê-la esquecido e ela não tinha vontade de lha lembrar. Não sentia já a menor alegria. O seu prazer estava estragado como uma gota de fel estraga o gosto do frango todo. Leslie Brown!...

 

”Bof! disse David, ela é um pouco má-língua... Normal, ela sabe o que vale.

 

Ela tem sobretudo tendência acrescentou Bertrand para tomar os homens por cretinos. Tem tido êxito sem precisar deles e faz-lhes notar isso quando lhe apetece. É o seu lado chato.

 

O género intelectual Movimento de Libertação das Mulheres de quem começa a envelhecer? sugeriu Prisca, sentindo um certo contentamento em dar uma arranhadela.

 

Não começa nada a envelhecer rectificou David. Anda pelos trinta, creio eu. Para dizer a verdade, o género de mulher cuja idade não tem importância. O que tem é a maneira como ela escreve e a sua personalidade... Uma mulher danada.

 

Casada?

 

Não, evidentemente.

 

Porquê evidentemente?

 

Se a conhecesses disse David, não farias essa pergunta.”

 

Bertrand sorriu e Prisca julgou que devia classificar Leslie Brown na categoria das mulheres feias. Ela sentiu, em todo o caso, prazer em alinhá-la entre aquelas que desprezam por princípio os homens novos e belos, raça de que David fazia incontestavelmente parte.

 

Ela olhou-o.

 

Existem mulheres que detestam os homens jovens e belos? O pânico apoderou-se dela, ao mesmo tempo que lhe vinha à memória um certo discursozinho da mãe, mesmo daquela tarde, e que de repente lhe pareceu duma sabedoria cuja profundidade não suspeitara sequer. Marguerite, enquanto regulava o termostato do ferro eléctrico e se apressava a cuidar duma prega das calças cor-de-rosa compradas recentemente no Lothard, dissera-lhe: ”Minha querida, o êxito dum casal está baseado no amor e na tolerância, mas a tolerância tem limites, isto é um grande princípio. Quanto menos se deixa um homem levar livremente a sua vida, melhor. Compreendes o que quero dizer? Nunca se sabe o que pode acontecer, é preciso estar vigilante...”

 

David mergulhava um olhar terno no que Prisca erguia para ele.

 

”Estou contente disse ela. Verdadeiramente contente por ti. Quanto tempo durará essa reportagem?

 

Uma semana, penso eu. Depende do que Leslie descobrir lá. Se ficarmos um pouco mais, não ficas aborrecida? Nesta profissão não se pode caminhar de cronometro na mão.

 

Com certeza”, disse Prisca.

 

Bertrand observava-a. Viu-a adorável e calma, sentada na beira do divã, mais suave do que nunca, observando o seu David com um sorriso feliz. Que espécie de fogo germinava lá dentro? Bertrand notou as faces um pouco rosadas em demasia, o ligeiro tremer das mãos...

 

Piscou-lhe um olho.

 

Havia tanta gentileza nessa forma de querer tranquilizar Prisca que ela mordeu os lábios para reter uma estúpida vontade de chorar. Caro Bertrand, tão capaz de tudo adivinhar. Mas David... David nunca compreendia nada.

 

”Tu não vês que ela morre de vontade de partir?”, disse de repente Bertrand, não se contendo mais. ”Não terias podido arranjar isso com o patrão? Enfim... tentar, ao menos.”

 

David fez um ar espantado. Agarrou Prisca pelos ombros:

 

”É verdade? Que bruto que eu sou, que nem sequer pensei que isso te interessava.”

 

Ela teve um riso que soava a falso:

 

”Claro que gostava. Não te incomodei muito na Etiópia, pois não?

 

Até me ajudaste muito. Mas desta vez...” David deitou a Bertrand um olhar de pânico:

 

”Tu conheces a Leslie, imagina com que cara ela ficava se eu lhe anunciasse que partia com a minha mulher! Aconselhava-me a tornar-me manga-de-alpaca e a desistir do jornalismo. E depois... sei lá o quê!, há problemas de dinheiro, a viagem aos Estados Unidos é cara, não estou a ver como é que nós...

 

Eu pedia emprestado ao meu pai e pagava eu a viagem interrompeu Prisca; creio que tínhamos podido arranjar tudo, mas paciência. Desaparece com a tua fera e sobretudo não fales de mim dizendo minha mulher. Ainda o não sou e alegro-me com isso.

 

Ora vamos lá! exclamou David, estás a fazer-me uma cena! E porquê? Queres dizer-me porquê? Porque eu parto por uma semana na minha profissão. Mas, Prisca, toda a vida será assim entre nós... Minha querida, que é que te deu? Tu não és palerma a ponto de ter ciúmes de Leslie Brown. Eu estou louco de alegria por trabalhar com ela, mas como mulher ela é-me completamente indiferente, juro-te.”

 

Quis tomar Prisca nos braços, mas ela levantou-se:

 

”Vou ajudar a Valerie a preparar o jantar”, disse ela.

 

Desapareceu na cozinha.

 

Bertrand carregou no botão do aparelho estereofónico e a Ária de Bach invadiu o apartamento.

 

”Pára com isso”, gritou David, ”aborrece-me.”

 

Bertrand contentou-se em encolher os ombros, pôs os óculos, que conseguira finalmente arranjar, e depois bocejou.

 

”Ao princípio, Valerie tinha as mesmas reacções”, disse ele.

 

David exasperava-se:

 

”Digo-te que Prisca é uma maçã... É verdade, desde que viemos da Etiópia que isto não pára: passamos a vida a dizer coisas desagradáveis um ao outro.

 

Idiota! disse Bertrand.

 

De acordo resmungou David, eu sei que exagero. Mas ela tem um génio!”

 

Na cozinha, Prisca mexia os ovos para a omeleta.

 

”Tu conheces a Leslie Brown?”, perguntou ela.

 

Valerie, que tentava que a filha engolisse a décima quinta colher de sopa, parou no meio duma careta particularmente conseguida.

 

”Leslie Brown?... Sim, porquê? Não a conheço propriamente, via-a na agência umas duas ou três vezes.

 

Que aspecto tem ela?

 

O de uma rapariga em quem se repara. O estilo descontraído, como todas as americanas, o ar inteligente, um pouco para o grande, muita classe. Tem qualquer coisa da Jane Fonda... É o mesmo tipo de mulher.

 

Jane Fonda! repetiu Prisca, batendo os ovos a ponto de ficar com cãibras.

 

Prisca! Atenção à tigela, olha que tenho grande estimação nela.”

 

A tigela, salva com destreza, foi cair em cima da mesa e Prisca numa cadeira junto de François, que contemplava os ovos batidos espalhados numa poça à roda do seu prato de puré.

 

”Não te sentes bem?”, perguntou ele, inquieto.

 

Valerie, de colher no ar, inclinava-se para ela:

 

”Que é que tu tens? Queres-te deitar um pouco? Sentes-te doente? Não me digas que...

 

Não, não, não! gritou Prisca, repentinamente furiosa. Não estou à espera de nenhum bebé, não estou doente, não tenho nada, quero lá saber que ele parta com a sua Jane Fonda.

 

Oh! disse Valerie, tomando finalmente consciência da sua gaffe. Se eu tenho sabido... David não me dissera que partia com a Leslie Brown, falava apenas dos Estados Unidos, tartamudeava de tal maneira que eu não percebi nada. Sabes... eu sou tão baixinha que as mulheres altas me fazem um efeito terrível até quando atiram para o feio. Na realidade, Leslie não tem nada de sedutor. Dizia-te que ela se parece com Jane Fonda, mas na verdade só de longe, de muito, muito longe, e é até um pouco desengraçada. A bem dizer, até será mesmo desagradável, estás a ver, uns dentes de cavalo, uns olhos escuros muito vulgares...

 

Não te canses mais interrompeu Prisca. És muito gentil, mas isso não serve de nada. Aliás, que Leslie seja linda ou feia, não devia na realidade ter importância. Eu tenho reacções idiotas, adorava estar no lugar dessa Leslie, e é tudo. Guardei uma tal recordação daquela viagem à Etiópia... Seria maravilhoso se David e eu pudéssemos trabalhar juntos.

 

Gostavas de ser jornalista?

 

Gostava de participar no que David faz.”

 

Valerie descobria uma Prisca que não imaginara. Ficara com a primeira impressão de quando lhe abrira a porta: uma rapariga encantadora, cuja timidez tinha qualquer coisa de enternecedor. Agora sabia que essa delicadeza escondia um sílex. Isso foi um prazer, não gostava de gente mole.

 

”David tem sorte por ter sido contratado pela OROP continuou Prisca, parte com a melhor redactora da agência e eu ainda acho motivo para não me sentir, feliz. É uma vergonha. Estou furiosa comigo... Desculpa-me por causa dos ovos. Tens outros?

 

Não te inquietes, há presunto.

 

Felizmente!” disse François, escavando um túnel no castelo de puré que tinha erguido.

 

Levantou o nariz da sua construção para observar Prisca, depois olhou a irmã, encolheu os ombros e, pressionando o garfo, esmagou o castelo.

 

”Bof!”, exclamou ele.

 

Conclusão pessoal e bastante vaga, mas que obteve o seu efeito: Prisca e Valerie desataram a rir. François sentiu-se aliviado. Como Cécile reclamasse a sua papa. Valerie estendeu-lhe a décima sexta colher de sopa e, como David aparecesse à porta, Prisca refugiou-se-lhe nos braços.

 

”Ah!, assim mesmo!”, murmurou ele.

 

Incidente fechado. Felicidade perfeita.

 

Todavia, Prisca dormiu mal nessa noite.

 

Resolvida a dar uma olhadela a essa Leslie Brown, que tinha esperanças de encontrar, Prisca levantou-se antes de toda a gente, arranjou-se, preparou o pequeno-almoço chocolate para François, café para os outros, tudo isto tão discretamente que não acordou ninguém.

 

Decidira aceitar o inevitável com bom humor, mas deixar, se possível, um gosto amargo no coração de David no momento da separação e, em todo o caso, não o deixar até à partida dele.

 

Começava o dia com o espírito do conquistador ao qual uma só batalha tem de dar a vitória: hoje mais do que nunca, era importante seduzir David.

 

Isto era nela uma prova de humildade, esquecia-se que seduzido estava ele há muito tempo!

 

Em conclusão, ele podia partir! Mas não sem desgosto.

 

Ontem à noite sentia-se ansioso por deixá-la, ou pelo menos não se preocupava muito com isso: ela pertencia-lhe, ela esperaria. O amor cimento armado... no sentido único, certamente. Fiel Penélope votada à paciência enquanto o seu amado Ulisses corria à aventura, devia extinguir-se enquanto ele brilhava. Ele não esperava menos dela e partia sem inquietações. Esta confiança, que Prisca rotulava de indiferença, parecia-lhe vexante. Ela teria gostado de ver David mais preocupado, menos seguro dela, embora não tivesse nada a recear. Esta alfinetada de amor-próprio cujo lado mesquinho lhe escapava causava-lhe um sofrimento. Tão grande ou maior do que a alegria de David ao anunciar-lhe uma viagem que faria sem ela. Que ele se apaixonasse pela sua profissão, era muito natural, mas Prisca revelava-se demasiado exclusivista para não detestar uma paixão de David que, dessa vez, não podia partilhar.

 

E depois... Leslie Brown tomava na sua imaginação enormes proporções, a beleza, a qualidade da personagem, tinham crescido toda a noite, embora o seu conjunto continuasse no estado de ponto de interrogação.

 

Extenuada, desolada, mas pronta para o ataque, Prisca não passava dum saco de nós, um emaranhado de contradições, e era neste estado que ia partir para a guerra do dia.

 

Esperou que o despertador tocasse no quarto de Bertrand e Valerie, bateu à porta e entrou, com uma bandeja nos braços. Esta maneira de os surpreender parecia-lhe um bom começo e uma compensação necessária ao sono prolongado da véspera.

 

Fez a sua entrada em força:

 

”Bom dia aos dois!”, exclamou ela.

 

Estava resplandecente de alegria. Descobriu dois pares de olhos pasmados e umas cabeças desgrenhadas num amontoado de lençóis amarrotados, rapidamente erguidos para cima, para esconder uma juvenil nudeza.

 

”Oh!, Prisca”, murmurou Valerie com o lençol puxado até ao queixo, ”isto não nos acontecia desde a nossa viagem de núpcias!”

 

Dar-se-lhe-iam quinze anos quando ela sorria daquele modo: parecia uma criança inocente. Bertrand tacteava, como de costume, à procura dos óculos. Quando os encontrou, suspirou de felicidade. A bandeja foi colocada em cima dos seus joelhos.

 

”Serviço de hotel de primeira! comentou ele, com os olhos encantados por trás das suas lupas de míope.

 

O café com leite servido na cama por uma divina criada ladina rosada como um bombom! Ela não esqueceu nada.

 

Nem o leite, nem o açúcar, nem o doce. Onde é que arranjaste os croissants!

 

Numa caixa. Pu-los no forno. Fiz mal? Estavam guardados para domingo?

 

Para os dias de festa, minha querida, e hoje é um deles. Vamos aumentar-te no fim do mês, não é verdade, Valerie? Sobretudo, não te vás embora. Senta-te.”

 

Valerie estendeu o braço para uma camisa que estava no chão, cobriu-se com ela e abotoou-se convenientemente.

 

Cécile soltou um vagido no fundo do berço. Prisca foi buscá-la para a entregar, quente, mas um pouco húmida, aos pais, que se derreteram em diversas onomatopeias, cada uma mais deliciosamente mimalha do que a outra, enquanto François aparecia nu como um verme.

 

”Que é que se passa?”, perguntou ele, esquecendo todo o pudor. ”Alguém faz anos?”

 

Como a resposta tardasse em vir e a atenção geral ficasse suspensa dos gorgolejos satisfeitos de Cécile, a quem faziam cócegas da cabeça aos pés, surripiou um croissant e depois, como lhe cheirasse a chocolate, correu para a cozinha, gritando:

 

”Mesmo assim, bom dia!”

 

Ao que Valerie lhe respondeu que o melhor que ele fazia era ir vestir os calções. Prisca sentou-se na borda da cama.

 

”Não me deixarei levar”, declarou ela.

 

Surpreendente afirmação, que deixou os outros dois parados. Valerie pensou que o grande amor de David tinha sequência nas ideias e Bertrand que ela devia ser uma maçadora, se não fosse tão bonita. Mas o seu aspecto de menina-flor sentada muito direita na beira do colchão, com uma vaga de cabelos ruivos que enquadravam um rosto pálido, convidou-o à indulgência.

 

”Leslie Brown, outra vez?”, suspirou ele, de ar compungido.

 

Voltando para o tecto um olhar de desculpa, acrescentou:

 

”Se eu ta apresentasse, achas que seria melhor?

 

Ia pedir-to. Espero que ela esteja hoje na agência.

 

Não sei. Talvez. Mas se acompanhares o David ao aeroporto, vais vê-la. Posso dar-te um conselho?”

 

Adivinhando o que ia seguir-se, e que só faria aumentar ou os seus complexos ou a sua raiva, Prisca encolheu os ombros. Já não podia mais. Passada a sua crise de energia, via-se ridícula, tristemente retrógrada. De nervos crispados, deitou um olhar desolado a Bertrand, que continuou sem piedade:

 

”Nada mais estúpido e menos sedutor do que uma mulher ciumenta! Tu conseguiste êxito na tua entrada, mas vais-te abaixo logo no primeiro acto. Horrível. Se visses a tua cara! Felizmente que David está a dormir.

 

Farias bem em pôr de lado esses teus ares de vítima e sobretudo, sobretudo, Prisca, escuta-me bem não te lembres de exibir esses modos de menina maltratada diante da leoa da Leslie, isso abre-lhe o apetite.

 

Pah!”, disse Prisca, depreciativa.

 

Acrescentou uma injúria grosseira. Brotando dos seus lábios delicados, causava espanto: uma tempestade no deserto. Valerie rebentou a rir e Bertrand julgou que podia bater forte, tinha a defesa em frente:” ”Bom, reduzamos as dimensões”, disse ele. ”Não é uma leoa, é uma gata. Ela adora os ratos, não mata, mas fere. Para se divertir. Cuidado com os idiotas que se deixam comer, pois come-os todos duma vez. Mas se encontrar uma pantera, salta para o telhado, pois não é doida... Imaginas o David a partir em reportagem e a saltar para a cama desse género de devoradora na primeira ocasião? E mesmo que o fizesse...”

 

Um sinistro gorgolejo anunciou que Valerie, furiosa, se engasgara com uma dentada do croissant, que lhe ficara atravessado na garganta.

 

”Deixa-me acabar! atirou Bertrand antes dela conseguir dizer uma palavra. Estás a ouvir-me, Prisca?

 

Não faço outra coisa.

 

Posso ir até ao fim?

 

No ponto a que chegaste!...

 

Mesmo que ele o fizesse repetiu Bertrand, imperturbável, não havia que fazer disso uma tragédia. Tu apaixonaste-te por um homem que agrada às mulheres, minha pequena, e Leslie adora as aventuras. Mas que é que isso te interessa, se é a ti que o David ama? Deixa de nos envenenar com os teus estados de alma de principiante. Se fizeres de cordeiro imolado, sobretudo hoje, vais-te abaixo no segundo acto. Compreendido?

 

Grande bruto! explodiu Valerie, que conseguira finalmente engolir o croissant, não vês em que estado a estás a pôr?

 

Tanto pior para ela obstinou-se Bertrand, ela irrita-me com as suas depressões. Se ela não suporta as verdades, está vencida de antemão. Leslie... olha que grande coisa! Toda a agência passou por isso.

 

Bravo pela franqueza”, soluçou Valerie, atingida no coração.

 

Bertrand tomou um ar modesto, o que lhe valeu um olhar horrorizado da mulher, seguido dum chorrilho de injúrias, que ele suportou sem se comover.

 

”Toda a agência confessou ele, excepto David e eu. David é demasiado belo para que a conquista duma Leslie Brown o lisonjeie e eu demasiado míope para ver outra coisa além de ti.

 

Eu divorcio-me! declarou Valerie num tom inquietante.

 

Como quiseres! continuou Bertrand, com um sorriso angélico nos lábios. Mas arriscas-te a ter de esperar muito porque eu não pretendo que me deixes tão cedo. Tive muita dificuldade em te encontrar.

 

Imbecil!” gritou Valerie, retendo o riso, que rebentou de repente, arrastando o do marido.

 

A bandeja oscilava perigosamente sobre os seus joelhos e ambos fixavam um no outro, por cima do corpo rechonchudo da filha, um olhar que eliminava o resto do mundo.

 

Foi este o momento que David escolheu para fazer a sua entrada, bocejando até deslocar o queixo, de pés nus, com umas jeans e uma camisola, o azul dos olhos ainda perturbado pelo sono e mostrando um ar de bom humor que teve o dom de despertar como se isso fosse preciso, as inquietações de Prisca.

 

Ela achava-o mais do que nunca atraente, o que, no momento presente, não lhe causou nenhum prazer. Imaginava Leslie Brown descobrindo-o sob o seu aspecto matinal num desses confortáveis quartos de hotel que ela nunca conheceria. Em Nova Iorque, Washington ou em qualquer outra parte. A inquietação tornava-se angústia; sentiu vontade de agredir e, à maneira de acolhimento, atirou a David, da forma menos amável:

 

”Há café na cozinha. Eu já almocei.”

 

David pousou nela um olhar perplexo:

 

”Não obstante, bom dia”, disse ele.

 

Inclinou-se para a beijar com a visível intenção de evitar uma cena, zaragata ou explicações. Louvável prova de boa vontade e até de indulgente ternura, que, em vez de comover Prisca, a transformou num tigre. E afastou-se.

 

”Bom”, disse David.

 

O seu bom humor desaparecera.

 

”Elas estão odiosas, esta manhã”, comentou Bertrand.

 

Segurava a mão de Valerie, que não se mexeu quando ele lha apertou um pouco. Tratava-se antes de mais nada de acalmar os outros dois.

 

David encolheu os ombros. Fez cócegas no queixo de Cécile. Ela desatou a rir quando ele a agarrou, declarando que ia ocupar-se dela.

 

”Obrigada, David”, disse Valerie.

 

Bertrand mexia com ar aflito o açúcar no fundo da chávena e Prisca enrolava uma ponta da toalha com uma absurda aplicação.

 

David desapareceu; Valerie pousou uma mão sobre a de Prisca e sorriu. Prisca sentiu os olhos a arder. Estúpida! Estúpida a ponto de estragar minutos num dia que tinha tanto valor... E Valerie compreendia. Valerie compreendia tudo. Tão bem!

 

”É sempre quando se quer ser extraordinário que se está menos em forma”, murmurou ela. ”Creio que a isso se chama o amor. Preocupamo-nos de mais e isso faz mal.”

 

A colher girava na chávena de Bertrand. E Valerie continuava, um pouco para si própria, um pouco para Prisca:

 

”Eles são tão diferentes de nós... Não podem pôr-se no nosso lugar. Quando os agredimos, eles não sabem que temos ao mesmo tempo vontade de lhes saltar ao pescoço. Se os aborrecemos, pensam noutra coisa, fogem. É a força deles. No entanto, são frágeis, sabes?, eles também. Uns garotos. David, por exemplo... tenho a certeza de que está encantado por ter ocasião de se pavonear nos Estados Unidos ao lado de uma mulher como Leslie, mas esquece o que isso tem de desagradável para ti. E é capaz de pôr Cécile de enxuto, de lhe dar banho, de brincar com ela durante horas, atento, cuidadoso, pensando em tudo... Devias ir vê-lo ocupar-se do bebé, é aí que se descobre a que ponto se pode ser paciente e gentil. E quando ele fala de ti, Prisca, sabes o que diz?... Eu não te conhecia e perguntei-lhe um dia com quem te parecias tu. Ele procurou as palavras, que não encontrava. Por fim, disse: Ela existe e eu podia nunca a ter encontrado. Sonhei com estas palavras durante dias e dias. Era tão belo! Era profundo... Ao lado daquilo, as pequenas coisas como essa viagem com Leslie Brown não têm a mínima importância, acredita-me.”

 

David acabava de pôr o bebé na cadeirinha. Ergueu-se quando viu Prisca entrar. Ela ficou imóvel, presente nesse olhar que pousava nele. Uma prenda que ele recebia. O amor. O verdadeiro amor.

 

François, apesar da sua pouca idade, não podia enganar-se, reconhecia a felicidade, que traduziu à sua maneira:

 

”O tempo está bonito, esta manhã,” disse ele, olhando-os, ”faz fome!”

 

Nunca Prisca e David se tinham sentido mais próximos um do outro do que nesse instante. Olhavam a sorrir o garoto, todo lambuzado, que se empaturrava de croissants molhados no chocolate, enquanto ao pé dele, na cadeirinha alta, o bebé agitava os braços, gritando a sua impaciência.

 

”Ela reclama o seu sumo de laranja”, disse David.

 

E foi espremer a laranja.

 

Não sabiam como ocupar François até à reabertura das aulas; ele estava cansado do amigo que morava em frente e resmungava que deviam tê-lo deixado em Montpellier, com os pais, em vez de o terem mandado para Paris. Valerie repetia-lhe que a mãe precisava de descanso, depois da operação a que acabara de se sujeitar... Nada a fazer, François contestava, pró-forma.

 

Bertrand, como tinha uma entrevista pelas dez horas em Saclay, no Centro de Pesquisa, levou o seu velho Peugeot em vez da sua habitai moto. Tinha de conduzir Cécile ao infantário, Valerie à Radiodifusão e o pequeno cunhado recalcitrante a casa dos primos de Herblay Era preciso ir lá buscá-lo à tarde, e isso era o único inconveniente, a não ser que o deixassem lá até ao dia seguinte.

 

Prisca deixou o Austin na Rue Pissaro para ter o prazer de montar a moto atrás de David. Acompanhou-o à agência. Não tinha a intenção de lá ficar, pois Leslie já não a inquietava. Mas David insistiu, disse que tudo faria para ter tempo livre e que, em todo o caso, almoçariam juntos. Queria apresentá-la ao ”patrão”, mostrar-lhe o laboratório, dar-lhe a conhecer as pessoas com quem trabalhava... incluindo Leslie Brown, se lá estivesse.

 

Aliás, no caso de ela se aborrecer, podia ir ver Nicole ao armazém, que ficava perto da agência, ou ir visitar Renaud, o jovem fugitivo da Rue Buci que David e ela tinham feito regressar ao aprisco depois daquela expedição aos Pirenéus...

 

Havia apenas um mês e como isso parecia já tão longe!


O David exaltado de Saint-Malo, o David barbudo que Prisca procurava e encontrara na montanha... Era o passado. Mesmo a viagem à Etiópia.

 

A vida, a verdadeira, corria em frente, e os braços de Prisca apertavam a cintura do David de hoje. Ela pensava na partida, nessa noite, no dia seguinte, quando estivesse só.

 

Nada fácil encontrar um lugar, mesmo para uma moto, no Quartier de 1Odéon! Andaram uns bons momentos às voltas antes de poderem arrumar a Kawa 950. E depois, de mãos dadas, subiram a Rue Mazarine, atravessaram o cruzamento de Buci e foram dar à Rue de

1Ancienne-Comédie, em frente da agência OROP.

 

Prisca reconhecia o local: viera aí uma vez, no tempo, ainda recente, em que tentava encontrar o David mítico da sua infância.

 

”Sobes, minha gaivota, ou vais ver a Nicole?

 

Subo.”

 

Perguntara um dia a David em que é que podia parecer-se com uma gaivota. Ele respondera:

 

”Em nada. Mas adoro as gaivotas.”

 

Tinha ele quinze anos...

 

Sorrindo a essa recordação, Prisca subia a escada quando David lhe pousou um braço no ombro; então, ela recordou um outro instante desse mês de Agosto de há oito anos... David caminhava na praia, grave ele era-o frequentemente, fechado nos seus pensamentos, que pareciam a Prisca demasiado sérios para que ousasse perturbar-lhes o curso. Esforçando-se por caminhar com o mesmo passo que ele, seguia calada. Mas ela só tinha dez anos e, como perdia terreno, ele esperava-a. Do mesmo modo que hoje, ele deixara que o seu braço lhe pesasse sobre o ombro. Depois dissera:

 

”A ti nunca te esquecerei. E, quando fores mais velha, falarei contigo.”

 

Ela já era mais velha... ele mantinha a promessa, ele dissera: ”Amo-te.”

 

Tinham chegado ao segundo andar, onde uma placa de cobre anunciava:

 

OROP

Agência de Imprensa

 

Prisca voltou a encontrar-se no átrio, com o cartaz de 1930 pendurado na parede, o aspecto antiquado dos soalhos encerados, das molduras do tecto, a secretária velhota a contrastar com o telex e com o computador. ultramoderno, que devia representar uma fortuna.

 

David dirigiu-se para uma porta atrás da qual se ouvia um barulho de máquina de escrever. Quando a abriu, Prisca reconheceu a jovem secretária de óculos cujo aspecto rebarbativo lhe tirara, da primeira vez, toda a vontade de prosseguir a visita. Se Bertrand que ela conhecera nesse dia- não tivesse vindo em seu auxílio, talvez nunca tivesse encontrado David.

 

”Como vai isso, Joèlle?”, atirou David.

 

Bertrand tinha razão, ele agradava às mulheres: o sorriso da rapariga de óculos bem o provava. Ela devorava-o com os olhos. A ele só.

 

”Conheces Prisca?

 

Hum... conheço”, disse Joèlle.

 

Estendeu a mão, que Prisca apertou sem entusiasmo.

 

O atravancamento dessa secretária tinha alguma coisa de estupidificante. Há que aceitar que uma agência noticiosa pode contentar-se com locais daquele género e funcionar convenientemente, pois, segundo David, a OROP recebia, filtrava, redigia e expedia uma enorme quantidade de informações.

 

”Vou ver o patrão, disse ele.

 

Ainda não chegou.”

 

Os dedos de Joèlle galopavam sobre o teclado da máquina; ela não perdia tempo. ”Eficaz e dinâmica!”, pensou Prisca. Na OROP empregava-se pessoal qualificado... David, agora, enquadrava-o, e ela sentiu uma lufada de orgulho por ele.

 

”Ontem, ele estava dum humor dos diabos”, continuava a jovem secretária sem cessar de bater nas teclas. ”Tive de trabalhar para ele até às tantas. E depois disso mandou-me embora sem sequer me oferecer uma bebida.”

 

Ela não erguia os olhos da máquina.

 

”Mas ele estava muito meiguinho quando eu saí! espantou-se David.

 

Asseguro-te que dez minutos depois disso já o não estava... deixou-se levar pelo amigo Cohen, que conseguiu vender um exclusivo sobre o Líbano e teve o desplante de lhe telefonar para lho dizer. Estás a ver a ”pinha” do patrão! Julguei que ele ia explodir. E, como é costume nestes casos, quem pagou as favas fui eu! Prendeu-me aqui até às nove horas e, se me deixasse ir na cantiga, tinha continuado toda a noite.”

 

E desatou a rir, o que provava que não lhe queria mal por isso.

 

”Vai ao laboratório, o Jérôme revelou as tuas chapas. É preciso que digas o que queres para o teu trabalho sobre a Etiópia... Ora diz lá, David, que é que fizeste ao patrão? Ele deu-te rédeas! Tu és o único tipo que ele deixa tranquilo na escolha das fotografias, meu felizardo! Aproveita, porque não dura muito. As meiguices do grande Lulu, não acredito nelas.”

 

A voz trocista de Joêlle e a sua forma de se exprimir divertiam Prisca. Esta rapariga era bastante simpática, no fundo. Em todo o caso, cheia de vitalidade e de naturalidade.

 

Um rapaz alto e magro atravessou a sala num pé-de-vento.

 

”Viva!”, disse ele.

 

Antes de desaparecer, lançou a Prisca um olhar que não deixava dúvidas sobre a sua apreciação.

 

”Que bruto, este Michel!”, exclamou Joêlle, com ar vexado.

 

Com um gesto furioso, meteu um papel químico entre duas folhas. David fixava nela um olhar sorridente.

 

”Sim, sim, podes chuchar”, esganiçou-se a activa Joêlle, regulando a margem antes de retomar a dança dos dedos, ”eu acreditei nele, nesse Michel. É verdade! Estava doido por mim... Mesmo assim... que bruto!”

 

Era divertida, se bem que abusasse do calão. David desatou a rir. Depois agarrou a mão de Prisca e arrastou-a para essa porta atrás da qual o ”bruto” se evaporara.

 

Um corredor deserto iluminado por lâmpadas amarelas, no chão de linóleo... Sinistro.

 

”Vade retro, agência OROP!”, disse David, adivinhando a impressão de Prisca.

 

Não lhe deixava a mão.

 

”A gente habitua-se. Os arranjos ultramodernos cortam-me a respiração, tenho horror ao ar clínico. Tu não?”

 

Prisca não ousou dizer que um toque de pintura não teria feito mal ao corredor. David amava demasiado a sua agência. Ela continuou a segui-lo num dédalo que os conduziu, de curvas em ramificações, até uma porta envidraçada. As instalações da OROP eram muito mais vastas do que o que Prisca imaginara.

 

David abriu a porta dum laboratório. Tubos de néon davam uma luz crua, que cegava quando se saía da penumbra; era laçado, impecável. Um homem de bata branca debruçava-se sobre uma mesa com tampo de vidro fosco. De lente no olho, enquadrava com lápis branco umas fotografias coloridas, que olhava à transparência.

 

”Cais mesmo na altura”, disse ele ao ver David, embora o seu olhar se prendesse a Prisca.

 

Ele sorriu.

 

”Mas que belo camarão! Não me ralava nada de o apanhar com o meu camaroeiro.”

 

As homenagens masculinas nunca fizeram mal a uma rapariga. Pensando que não escolhera mal essa manhã quando resolvera pôr esse conjunto de algodão cor-de-rosa que lhe ficava bem, Prisca ofereceu sem reserva o encanto do seu olhar cor de água do mar. O homem de bata branca pousou a lente. O seu sorriso descobria um pré-molar de ouro e os seus olhos brilhavam de gentileza.

 

”É proibido pescá-la Jérôme! disse David. Pesquei-a primeiro.

 

Fizeste bem em avisar!”, gracejou o técnico. Limpou a mão à bata e depois estendeu-a.

 

”Bom dia, menina.”

 

David agarrou a lente, inclinou-se por sua vez sobre o vidro fosco. Eram as fotografias da Etiópia, que lembravam a Prisca um instante cuja riqueza e pormenores ela tão bem podia contar. Apaixonara-se por esse trabalho, no qual tivera a impressão de participar. Acreditara-se  útil e, durante dois dias, sentira a plenitude dum acordo completo com David.

 

Partilhara a sua fadiga, o seu nervosismo, a sua vontade de conseguir essa reportagem, custasse o que custasse. Trabalhar em conjunto é entusiasmante, tivera consciência disso a cada minuto; adorara ir, com David, até ao fim das suas possibilidades. Parecia-lhe que nenhum obstáculo era capaz de os deter e que os dois estavam a criar uma obra.

 

Amargamente, lamentou não poder recomeçar.

 

David viu-a desamparada ao pé da janela, fixando sem ver um pátio exíguo enquadrado em muros cegos que nenhum raio de sol conseguia iluminar. Pensou que ela estava aborrecida.

 

”Se voltasses para o escritório? Podias conversar com Joelle enquanto esperavas por mim. Ou então vai ver Nicole, eu ainda tenho de me demorar um pouco aqui com o Jérôme.”

 

Nem uma palavra sobre o seu trabalho em comum. Esquecia que, muitas vezes, ela lhe sugerira ângulos, assuntos, ideias. Ela tomava notas, redigiam em conjunto, sempre que tivessem um momento para isso, o que seduzira o ”patrão”.

 

Talvez ela se deixasse embalar por ilusões e não tivesse servido para nada. Sozinho, ele teria feito a mesma coisa. Mesmo assim...

 

”O laboratório”, disse Jérôme a sorrir, ”ainda vá durante uns momentos, mas, quando se não está dentro do assunto, não tem nada de interessante.”

 

É isso. Ela não estava dentro do assunto. Enviou-lhes um sorriso que nada tinha de alegre e dirigiu-se para a porta.

 

”Vais ter comigo ao armazém de calçado?”, perguntou ela.

 

David contentou-se em dizer que sim sem erguer o nariz das fotografias e foi Jérôme que respondeu ao pequeno gesto de adeus que ela lhes fez.

 

Ela voltou a encontrar o dédalo, que lhe pareceu ainda mais escuro. Era preciso virar, empurrar portas... enganou-se e foi esbarrar nos lavabos com um rapaz magro que lhe atirou uma olhadela gulosa de colecionador.

 

Um belo sítio para manifestar a sua admiração! Ela murmurou um ”perdão”, ao qual ele respondeu:

 

”Mas... por quem é!”

 

Dando meia volta, esteve quase a chocar com uma mulher jovem que a seguiu com o olhar e depois atirou ao comprido rapaz um simpático ”Olá!” mesclado dum sotaque anglo-saxão.

 

Prisca teve a certeza de que acabava de encontrar Leslie Brown. Tudo correspondia à ideia que fazia dela; uma rapariga alta, de dentes de carnívora num rosto sem pintura, um ar saudável. Uma pessoa sólida. Bela, incontestavelmente.

 

A voz era grave, com esse acento que lhe dava um certo encanto: uma mistura de sensualidade e de frescura. Prisca ouviu-a perguntar:

 

”Quem é?

 

A namorada do David”, respondeu Michel. Prisca lamentou ter vindo.

 

”Era precisamente a ele que eu queria ver continuou a americana.

 

Está no laboratório, creio.”

 

Prisca afastou-se, com o pânico no coração.

 

Voltou a encontrar o escritório atravancado e finalmente Joélle, no vestíbulo, diante do computador, que estava a funcionar. Perdido o aspecto rebarbativo com que acolhia os desconhecidos, a secretária fez-lhe um gesto amigável.

 

”Ciao!”, atirou-lhe ela amavelmente quando a viu atravessar a sala sem parar.

 

Era o momento de a interrogar e de obter uma nova versão das qualidades de Leslie Brown, embora, com um olhar, tivesse podido formar dela uma opinião. Mas no momento em que Prisca se decidia a ficar, com risco de sofrer mais um pouco, a porta da entrada bateu no seu nariz com uma força tal que a parede tremeu. Um homenzinho de pescoço de touro acabava de entrar. Pareceu ignorar a presença da secretária, assim como a nova cara que descobria, e foi direito ao gabinete, cuja porta bateu também.

 

”O patrão”, disse Joélle.

 

Esta presença transformou-a. Desaparecida a zombaria, mostrava-se submissa. Uma voz imperativa soou no intercomunicador:

 

”O dossier Portugal, se faz favor.”

 

”Não está de bom humor”, murmurou Joélle.

 

Devia detectar isso pelo tom! Precipitou-se para um ficheiro. Prisca, que não tinha nada a ver com os humores do ”patrão”, foi-se embora.

 

Descia tranquilamente a escada e ia apenas no patamar do primeiro andar quando ouviu uma cavalgada atrás de si, enquanto ao mesmo tempo gritavam o seu nome... Joélle vinha direita a ela, de respiração apressada:

 

”O patrão quer conhecer-te.”

 

E como Prisca, assombrada, se mantivesse parada:

 

”Mexe-te, sobe, eu vou explicar-te.”

 

Empurrando Prisca para a incitar a subir mais depressa, precipitou a explicação.

 

”...Quando cheguei ao escritório com o dossier Portugal, ele tinha um ar que parecia que me queria comer: Quem é essa garota de cor-de-rosa que ia a sair? E eu respondo-lhe: Uma amiga de David Wilson. Compreendes, é delicado, eu não sabia muito bem o que havia de lhe dizer, porque as notas de despesa da reportagem na Etiópia ficaram-lhe atravessadas... Despacha-te, ele tem horror a esperar!”

 

Prisca fez um esforço para não escorregar na escada. Não estava lá muito tranquila. Joélle puxou-a pela mão. Ela adoptava o tratamento por tu como se os aborrecimentos que esperavam ”a amiga de David” no gabinete do patrão fizessem dela uma verdadeira colega.

 

”Compreendes, este tipo vasculha tudo”, cochichou ela junto da porta. ”Não foi preciso fazer-lhe um desenho, há pelo menos dez grandes planos teus no material fotográfico que David trouxe. Não havia ele de te reconhecer! Ele disse-me: Vá-ma buscar. Só o que eu tinha de fazer era correr atrás de ti. Mas não te inquietes, não há o menor risco para David, nada de cerimónias. Vamos, despacha-te!”

 

Assim prevenida, Prisca achou-se catapultada numa grande sala de alcatifa castanha tão agradável como um salão. Uma enorme secretária estava carregada de pilhas de dossiers e atrás dela encontrava-se o homenzinho de pescoço de touro. Estava ao telefone e tomava notas.

 

Prisca teve a impressão de ser invisível.

 

Duas poltronas estendiam-lhe os braços, mas ela não ousou sentar-se e ficou à espera, esforçando-se por nada ouvir. Por discrição. Como não o conseguia, acabou por saber que se tratava dum problema fiscal relativo à agência, o que, certamente, lhe era completamente indiferente.

 

A conversa ameaçava eternizar-se e Prisca, que estava a, criar raízes, decidiu-se a utilizar o extremo do braço da poltrona precisamente no instante em que o urso que tinha à sua frente desligava o telefone, ao mesmo tempo que dizia:

 

”Sente-se.”

 

Perturbada, ela lançou-lhe um olhar inquieto e ficou sentada, muito direita. Desta vez, ele olhava-a. Da cabeça aos pés e longamente, com a expressão amável dum buldogue que é perturbado na sua casota. Como David dizia, ele não era do género meigo. Método de intimidação, pensou Prisca. Sentia-se num banho de vapor. Estaria assim tanto calor?... Cruzou as mãos húmidas num joelho, que tremia. Como é que David dissera que se chamava esse director da agência OROP? Lucien Misrahin, ou Misnahin? Aliás, isso não tinha a mínima importância.

 

”Então?...”, perguntou ele. ”Que pensa da Etiópia?”

 

Perdido por cem, perdido por mil, e também para não parecer imbecil, Prisca atirou-se. Conhecia o assunto.

 

Ao princípio, as palavras saíam com dificuldade da sua garganta apertada, parecendo uma aluna aplicada a recitar uma lição mal compreendida. Mas pouco a pouco, liberta do receio, e evitando olhar o buldogue, que continuava inexpressivo, entusiasmou-se. Adorava falar dessa viagem. Esquecendo a quem se dirigia, confiou desordenadamente a sua visão da Etiópia. Chegava tudo em desordem: a política, os assuntos sociais, o homem da rua, as mulheres, as crianças, as cidades, as aldeias, o campo, o passado e o futuro... tal como ela os via. Isto levou tempo. Mas ele deixou-a falar.

 

Por várias vezes, a voz de Joèlle anunciou no intercomunicador uma comunicação ou um nome, o que interrompia a onda. De cada vez, excepto uma, o buldogue ladrou que estava ocupado. Chamaria mais tarde...

 

Esta prova de interesse fez supor a Prisca que ele poderia humanizar-se. Talvez estivesse divertido, por se deixar chafurdar nesse discurso sem dizer uma palavra. Aqui, ela pretendia ir além da realidade porque, na verdade, ele manifestava mal a sua alegria.

 

Teve um choque quando se apercebeu de que ele sorria. O facto de ter adivinhado cortava-lhe de repente a inspiração e ficou muda.

 

”Não está mal”, resmungou ele. ”Bastante primário, como ponto de vista. Muitas imagens, demasiadas ideias gerais, mas aceitável.”

 

Julgamento severo. Um pouco vexada, a aluna classificada sem indulgência ela julgara que era original continuava a não dizer nada.

 

”Que idade tem você?

 

Dezoito anos.”

 

Ele tinha cinquenta. Todavia, quando sorria, tudo mudava. Joêlle teria dito que ele tinha uma ”bela cachola”! Nariz grosso, olhos dum castanho vulgar, os cabelos crespos e grisalhos, o corpo atarracado, era no entanto bastante feio. Mas também forte como um búfalo. Uma verdadeira força da natureza. Além disso, Prisca continuava a pensar que ele poderia mostrar-se alegre noutras circunstâncias... a menos que a sua hilaridade não ultrapassasse o estádio em que ela estava.

 

”O seu nome?... É preciso perguntar-lhe tudo.” Um segundo de hesitação e Prisca atirou-se de cabeça: ”Eu sou a mulher de David Wilson.

 

Deixe de dizer disparates. Ele não se casou. Você é amante dele.”

 

Prisca encaixou o golpe sem pensar em acusar essa falta de educação, mas a palavra que ele acabava de pronunciar essa verdade chocava-a. Sentiu que corava. Detestou o homem que tinha à sua frente.

 

Isto pareceu pô-lo de bom humor. Levantou-se, foi até um local na parede que escondia uma espécie de bar e um frigorífico.

 

”Quer beber alguma coisa?... Uma coca-cola? Na sua idade, você deve gostar disso.”

 

Era o que teria escolhido, mas tinha sobretudo era vontade de se ir embora. Mas ele não lhe perguntou a sua opinião sobre esse ponto: preparava os copos, os cubos de gelo. Serviu-se dum uísque... às dez horas da manhã, que estômago! Estendeu a Prisca a sua coca-cola e sentou-se ao pé dela. Seria aquilo um trabalho de aproximação? Prisca perguntou a si própria corno mandá-lo para o diabo sem prejudicar David. ”Então, qual é o seu nome?

 

Prisca Juvet.”

 

Ela adoptara o tom seco e a atitude atenciosa do porco-espinho levou-a à defensiva. Que ele não pensasse em se aproveitar da situação.

 

Ele desatou a rir. Olhem bem! Ele sabia rir.

 

”Que mulherzinha engraçada!”, disse ele.

 

Ele tinha na verdade o ar de quem se estava a divertir. Mas logo no instante a seguir, arrogante, perguntou:

 

”Foi você quem escreveu o texto?

 

Que texto?

 

Não esteja a fazer de parva, que você não o é.” Foi buscar as folhas fotocopiadas à secretária.

 

Ӄ o seu estilo.

 

Não, é o de David.

 

Você participou.

 

Muito pouco.

 

Muito. Não me venha aborrecer com os vossos grandes sentimentos. Seja franca, é tudo o que lhe peço. Que é que faz na vida, à parte a sua paixão por David?

 

Medicina. Enfim... vou começar.

 

Estude jornalismo e eu emprego-a aqui. À experiência. Tenho necessidade de raparigas como você. Não é de todo inútil que uma redactora seja bonita.”

 

Prisca aceitou o cumprimento sem desprazer, embora isso não tivesse o ar de o ser, mas antes um reconhecimento. Ele teria dito da mesma maneira: ”É preciso que a carne seja tenra”, ou então: ”Gosto que os legumes sejam frescos.” Ele ilustrava o seu pensamento:

 

”Conhece Leslie Brown?

 

Creio que sim.

 

Porquê esse creio?

 

Encontrei... nos lavabos... uma mulher com sotaque americano.

 

Ela tem êxito porque tem talento, mas também porque é bela... Você achou-a bela?”

 

Prisca esboçou uma careta:

 

”Escapatória. Mas já não muito jovem.”

 

Desta vez, o riso do urso explodiu, enorme. Arrastada num furacão, Prisca sorriu. ”O grande Lulu” começava a parecer-lhe simpático. Ele retomava o fôlego:

 

”Inteligente, má e bonita! Bravo, minha pequena, é de ter esperanças. Devia tomar uma opção sobre você.”

 

Palavras para fazerem sonhar! Contanto que ele não mudasse de opinião. Como toda a mulher que sente o momento em que pode esperar a vitória, Prisca reuniu o seu material de combate. Por outras palavras, um olhar deliciosamente cândido:

 

”Estou muito interessada pela seita Moon”, disse ela.

 

O urso atirou-lhe um olhar divertido:

 

”Não”, disse ele.

 

Caindo do seu Olimpo, Prisca omitiu as suas pretensões. Sobretudo porque ele insistia:

 

”É Leslie Brown quem vai partir com David desta vez Ele precisa duma jornalista e não duma principiante.”

 

Prisca sorveu um golo gelado, que lhe fez bem. Eis pelo menos um ponto conquistado: não se apanham ursos com uma rede como as borboletas.

 

A voz de Joêlle chamou no intercomunicador:

 

”Sr. Misrahin!... Chamam-no da Bélgica.”

 

Ele devia achar que o recreio já durara de mais e aceitou a comunicação. Quando desligou, readquirira o seu aspecto de buldogue que fora perturbado:

 

”Corra a estudar a sua Medicina ou outra coisa qualquer e deixe o David cumprir a sua profissão. É possível que ele vá longe se nada o perturbar. Percebe o que eu quero dizer?”

 

Ela compreendia e era duro. Houve, felizmente, um certo calor no olhar do patrão quando acrescentou:

 

”Isso não a impede de brincar aos namorados e de o fazer feliz. Mas não o meta numa redoma. Certo?”

 

Com um piparote, ergueu o queixo de Prisca, que se obstinava em olhar a biqueira dos sapatos.

 

”Olhe para mim quando eu falo consigo... E não julgue que sou algum bruto. Gosto das pessoas que têm qualquer coisa lá dentro e você é dessas. Apreciei a sua maneira de partir para a Etiópia.”

 

O olhar estupefacto de Prisca fê-lo sorrir:

 

”Sim, sim!... Bertrand é um rapaz discreto, mas o que se passa em minha casa interessa-me. Por isso, foi preciso fazer-me algumas confidências pois ele estava ao corrente, senão eu punha-o na rua. E é tudo... A sua expedição aos Pirenéus, a Etiópia, eu sei tudo. Sabia tudo antes de você entrar no meu escritório, incluindo o seu nome e a sua idade, mas queria conhecê-la... Não lamento ter pago as despesas suplementares duma reportagem para a qual eu enviei um fotógrafo apenas, já que o resultado foi bom. Mas atenção ao David, é preciso não abusar... Pus outros na rua por menos. Está compreendido?”

 

Ele teve esta expressão de gentileza que o rejuvenescia.

 

”E agora safe-se. E não esqueça... você pode vir visitar-me quando tiver um diploma na mão. Aqui há lugar para jornalistas, não para amadores. Se preferir fazer a sua Medicina, boa sorte. E no caso de ter necessidade dum conselho, a porta está aberta... Estamos de acordo, Prisca?”

 

Ela gaguejou... Esse homem possuía o poder de despertar a amizade, ela sentia-a por ele, e isso tinha qualquer coisa de reconfortante.

 

”Obrigada...”, murmurou ela.

 

Atravessou o gabinete sem se virar. Estava-lhe reconhecida por ter sido claro. Ele metia-se na vida privada de David... isso provava, em suma, que se interessava por ele.

 

”Inacreditável!”, exclamou Joèlle ao ver aparecer Prisca. ”Foi amor à primeira vista! Ele nunca esteve com ninguém tanto tempo no gabinete.”

 

Ela perscrutava os olhos cor de mar com tanta admiração como curiosidade. Mas Prisca tinha a sua conta de emoção e pouca vontade de falar.

 

”David ainda está no laboratório? perguntou ela.

 

Creio que sim. Ou então está no gabinete de Leslie Brown. Queres que o chame?

 

Não... Diz-lhe, quando o vires, que pode ir ter comigo a casa à hora do almoço. Quer dizer, em casa do Bertrand.

 

De acordo... (Joèlle parecia intrigada.) Vais preparar-lhe a mala?

 

Vou, vou. Adeus!

 

Até breve!”

 

Precisava de calma, Prisca queria reflectir. Não iria ver a sua amiga Nicole. Caminhou um bom momento, depois tomou o metro para voltar para a Rue Pissaro.

 

Retirar as chaves da caixa do correio, que continuava aberta, não foi nada difícil... Engraçado esconderijo!

 

Abria a porta do apartamento, quando ouviu tocar o telefone.

 

Era David, um pouco nervoso:

 

”Que foi que te deu? Já são dez vezes que ligo para aí... Porque te foste embora? Que é que o patrão te contou? Desconfia dele, vira as pessoas como se fossem crepes. Almoças comigo? Vou buscar-te? Que é que tu tens, meu amor?”

 

Estava transtornado. Precisamente o que Prisca desejava de manhã.

 

Desejava tanto que ele se inquietasse por causa dela... Chegara ao máximo do seu desejo, nada mais faltava atingir.

 

”...Leslie decidira que nós iríamos comer qualquer coisa juntos, mas tanto melhor, eu despacho-a num instante. Dentro dum quarto de hora, estou aí.

 

Ouve! gritou Prisca para o impedir de desligar.

 

Que é?

 

Nós podíamos almoçar os três...

 

Essa agora! Isso não te aborrece?

 

Claro que não.

 

Bom... vou buscar-te e levo-te a um restaurantezinho chique, na Rue Guisarde. O. K.?

 

O.K.! Um beijo...

 

Adoro-te, minha gaivota. Estás contente?

 

Naturalmente que estou contente. Vem depressa.” Prisca imaginou-o correndo para a moto... Amavam-se, ela estava feliz.

 

A partir de Orly foi o dilúvio. Uma tempestade de Verão, violenta, com a água fustigando em jactos atrás, das rodas dos carros, acumulando-se em poças no betão da auto-estrada, caindo com uma força tal que os limpa-pára-brisas se agitavam em vão, impotentes para lutar contra as torrentes; não se via mais nada em frente senão a luz confusa dos faróis.

 

Prisca não tem nenhuma razão para mergulhar às cegas nessa chuva torrencial. Nada, nem ninguém a espera. O mundo está deserto, a vida já não tem sabor, essa noite será horrível, amanhã é apenas uma perspectiva de aborrecimento: David partiu.

 

Fazer apelo à razão? Sim, isso parecia simples. Alguns dias de ausência, alguns dias apenas, uns parênteses na felicidade, umas reticências de suspensão...

 

Não é nada, mas é impossível de suportar.

 

O universo fechado do carro, a escuridão, o roncar do motor, o bater da chuva, favoreciam o remoinho de pensamentos onde tudo se mistura. O caleidoscópio desse dia que cada instante ia roubando um pouco desfila; hoje era a conta em sentido contrário antes da partida de David...

 

No restaurante na cave da Rue Guisarde eles estavam bem; David debruçava-se para ela para murmurar ao seu ouvido que a amava, sorria, vivia perto dela. Porque é que Prisca não conseguia esquecer que nessa noite voltaria sozinha de Orly? Que mania de estragar tudo!

 

Não há muito tempo que fizera o mesmo percurso com Véronique. Quando fora isso?... No dia 1 de Agosto. David não era mais do que uma recordação um pouco brumosa, que apenas a passagem de Clara Verneuil no vestíbulo do aeroporto fizera vir à superfície. Tão pouco tempo passara! Apenas um mês. Como é que tão depressa pode acontecer não se poder passar sem a presença duma pessoa?

 

Hibernar. Dormir enquanto esperava. Dormir até que ele voltasse...

 

Mais um imbecil que a ultrapassa como um bruto!

 

Viver contigo, David... Estás a imaginar-te já muito velho e eu cheia de rugas? Uma eternidade de vida atrás de nós. E morrer juntos, oh, sim, isso, sobretudo! No mesmo dia, no mesmo minuto. Morrer de amor aos cem anos. E nada de reumatismos! Nós seremos jovens com cem anos, meu amor. Nunca teremos deixado de nos amar.

 

A pior prova vivo-a agora: tu partiste e eu fico. A pior prova, David: pensar em ti quando tu não estás.

 

Que bandidos estes tipos que se julgam em Montlhéry com um tempo destes! Se me encontrares viva quando voltares, será uma sorte! Verdadeiros assassinos, digo-te eu! Passam rente a nós, cegam-nos... Todavia, eu tenho carta e fiz dezoito anos há quatro meses, vou a 90, estou no meu direito, nada pode acontecer-me... Devia guiar mais vezes, não me sinto à vontade. Porque é que aquele tem de me atirar com os faróis? Que passe, grande bruto, quem é que o impede?!

 

Há pouco, em sentido contrário, eras tu quem conduzia... A noite ainda não chegara, mal chovia, estava um tempo pesado. Eu estava alegre. Notaste? Não parava de falar. Pensarás tu em mim no teu avião? Fiz o que pude para estar alegre, mas tinha vontade de gritar. Gostava tanto de ter ido contigo, David! Não teria deixado de to repetir se não tivesse sido essa estranha conversa com o teu patrão... Intriga-te o que ele me disse, não é verdade? Não te contarei nada. Nunca saberás nada. Cumpre a tua profissão, David, cumpre-a bem...

 

Foi gentil da parte de Leslie ter insistido em tomar um táxi. Quis deixar-nos sós. Uma rapariga delicada. Compreensiva, pelo menos. Uma devoradora, talvez, mas nem inconsciente, nem vulgar. Foi bom termos almoçado juntos. Era preferível conhecê-la.

 

Os modos dela quando chegou com o seu saco de rede e o seu vestido indiano! Só uma americana era capaz de caminhar assim. Dir-se-ia que o universo lhe pertence.

 

Ela conhecia a dona do restaurante... ela conhece toda a gente. E depois aquela maneira de se alimentar! Sumo de laranja e um bife com pimenta. A mamã perderia os sentidos se aquilo se passasse à frente dela. Ou talvez não. No fundo, a mamã é a criatura mais tolerante que existe, respeita as pessoas. Se toda a gente fosse como ela, a agência OROP estaria falida, pois nada haveria para contar: o Paraíso na Terra.

 

Leslie também tem ideias largas e exprime-se bem,., admiro-a. Gostei muito do que ela disse da tua mãe, achei tudo certo e bonito:

 

”Clara Verneuil viveu como se ceifa um campo de trigo, mas, em vez de armazenar o grão, atirou-o aos pássaros.”

 

Generoso, mas imprudente... Não acredito que Leslie deite o seu trigo aos pássaros. Apesar de tudo, uma pessoa de bem. Não um cordeiro, evidentemente. Se ela quisesse, engolia-o todo só de uma vez. Com o teu ar de vencer todos, és tão ingénuo... Não sei porque é que penso que ela te deixará em paz. Ela até é capaz de te pôr no teu lugar se por acaso armasses em conquistador. É o género de rapariga para se tornar cúmplice doutra contra um homem. Não tem a menor indulgência pelos homens, notaste? Ela tem razão, eles também não têm nenhuma pelas mulheres, excepto quando as amam. E enquanto as amam.

 

Amas-me, David?

 

Não sei o que ela pensa de mim. Isso nada muda, acho-a espantosa: um velho filósofo na pele duma bonita mulher. Por um momento, pareceste aborrecido. Acusaste-a de fazer racismo anti-homens; então ela disse:

 

”Certamente que não! Adoro-os. Mas porque é que nos reduzem à escravidão quando nós lhes concedemos o poder? Se uma mulher mantém a sua liberdade o que é o meu caso, tem o direito de adorar os homens, mas não um homem.”

 

Ela tem um riso extraordinário, as pessoas olhavam para ela... Para mim também, quando eu entrei contigo, mas depois, pronto, acabava. Ao passo que ela! Quanto mais se olha para ela, mais nos admira. Numa mesa, um tipo contemplava-a ardorosamente... Nada agradável para a mulher dele. Tu, David, nunca olhas para uma rapariga quando estás comigo. É gentil... Ou então, na verdade, elas não têm mesmo nenhum interesse para ti.

 

Oh!, David! Meu David... Como imaginar que eu podia não te ter encontrado!

 

Que dizia Leslie a propósito do amor e do telefone? Ela era de tal modo engraçada!

 

”Ou se espera a campainha e ela não toca, ou se receia que ele toque enquanto não se está lá. Nos dois casos anda-se em pânico e já não se presta para nada. Conclusão: se o amor da tua vida se ausenta, corta o fio do telefone, é indispensável. E dorme em paz.”

 

E é verdade! Dentro de sete horas estarás em Nova Iorque, e tu prometeste telefonar-me para casa do Bertrand...

 

Amo-te por ti, David. Amo-te para além de mim.

 

Outra fórmula de Leslie, ela fazia colecção delas:

 

”O amor é altruísta. Mas, sob essa forma, nunca o encontramos.”

 

Aí, ela enganava-se. Ela nunca amou como eu te amo... Diabos me levem se eu encontro a porta Champerret! Devo ter-me enganado ao entrar na estrada da periferia. Que horas são? Onze horas. Que horas serão em Nova Iorque? É preciso que eu meta isto na cabeça. Seis horas a mais ou a menos?

 

Tantas horas a matar antes que me telefones! Há telefones no aeroporto, não há? Esperarás para estar instalado no teu hotel?... Preciso de ti, David, todos os segundos contam, não percas tempo.

 

Recordas-te do proverbiozinho russo que Leslie citou? Acho-o muito belo:

 

”Não quero que caminhem na minha alma com sapatos sujos.”

 

Engraxa bem os teus sapatos, David. No minuto em que vires o primeiro telefone americano, deita-te a ele e marca o número de Bertrand. Esta noite não dormirei, David...

 

Juro-te, David, a pior prova para uma mulher, é ver o único homem que conta no mundo voar para os Estados Unidos em companhia duma devoradora.

 

O teu querido ”patrão” pode bem contar-me tudo o que quiser, que eu detesto Leslie Brown e sou incapaz do amor altruísta. David! Encontrei-te, guardo-te. Bater-me-ei, se for preciso.

 

Esta estrada irá ou não dar a algum lado?

 

Toda a gente dorme na Rue Pissaro, é quase meia-noite. Prisca deita-se vestida em cima do divã e não acende qualquer luz...

 

Pensa de novo nessa visão fugitiva no vestíbulo de Orly, há um mês... Uma mulher com uma capelina branca cujas grandes abas escureciam um rosto que uma cicatriz deforma. O perfil faz lembrar o de David... Elegante, um tailleur bem cortado, a cabeça erguida, um belo andar. Que dissera Prisca a Véronique?

 

”O estilo velha pega americana.”

 

Ela não reconhecera Clara Verneuil. Porque pensara numa americana? O aspecto cuidado em excesso, talvez. Uma certa rigidez também. Passados os quarenta anos, as americanas vivem como umas condenadas: o regime, o cabeleireiro, a cinta, a maquilhagem.

 

Que diferença com a Clara que Prisca acabava de descobrir hoje... Se David tivesse tido a delicadeza de a prevenir da sua visita, talvez ela tivesse querido mostrar-se fiel à sua imagem, aquela que oferece ao declínio da sua carreira. O ídolo atrás da sua máscara. Sábia sofisticação que faz a ilusão, como o belo prédio do Boulevard Maurice-Barrès, com a sua alcatifa vermelha na escada e o elevador de madeira envernizada, como o apartamento tão claro, impecavelmente ordenado. A pobreza ainda não se via. Orgulhosa Clara.

 

”Asseguro-te”, dissera David, ”ela gostará de te conhecer.”

 

Ele bebera o suficiente dum bom Tavel, para acalmar, e ao pagar a conta, que passaria para as despesas generosas do ”grande Lulu”, metera na algibeira a factura e Depois arrastara Leslie Brown e Prisca para essa bela escada de pedra que levava à superfície.

 

Eles produziam o seu efeito, todos três, enquanto trePavam até à Rue Guisarde. Atraíam os olhares.

 

”É porque nós representamos espécimes de humanidade excepcionais”, dissera Leslie, que não se deixa sufocar pela modéstia. ”Logo três juntos na rua, é muito raro. Creio que vale mais separarmo-nos, senão isto torna-se insustentável. A beleza é tão difícil de assumir como uma borbulha no nariz.”

 

O seu sotaque ajudava e o ar sério com que dizia aquilo! Era de morrer a rir...

 

Depois de Leslie partir, David pegou na mão de Prisca:

 

”Se fôssemos ver a minha mãe?”

 

Surpreenderam-na no meio dos trabalhos domésticos, que, por medida de economia necessária, ela própria fazia. Ela teria preferido escondê-lo por pudor, Prisca adivinhou-o. Sem dúvida, Clara desejava esconder a sua verdade, assim como essa cicatriz demasiado visível no seu rosto sem pintura. Há crueldade em penetrar numa intimidade. Sob o louro da tinta, na raiz dos cabelos, via-se o branco.

 

Prisca achou-a enternecedora, assim. Gostou da Clara secreta tão perto da derrocada como aquela a quem o orgulho servia de máscara. Clara possuía espírito e talento suficientes para conseguir sem dificuldade espantá-la e ela deixou-se seduzir... Clara tão brilhante, quando o queria, e apesar de tudo tão atraente ainda.

 

Não se podia fazer outra coisa senão sair dali conquistado por Clara Verneuil.

 

”Mas porque é que ela não representa mais?”, perguntou Prisca no elevador. ”Ela é fantástica.”

 

Transbordava de entusiasmo. David parecia feliz:

 

”Tu fizeste-lhe bem, ela quis agradar-te. Foste o seu público, ela conseguiu-o!

 

Ela tê-lo-ia conseguido doutros.

 

Vai dizer isso aos produtores de cinema, aos directores dos teatros. São uns idiotas. Para eles, ela está liquidada. É só isso é que eles vêem.

 

E o seu talento?

 

Era preciso um muito astuto que aceitasse acreditar nisso. Enquanto espera, vai vendendo os móveis e as jóias para continuar a oferecer duas dúzias de rosas quando a convidam para jantar; ela já não tem mais nada.”

 

O trigo aos pássaros... Maravilhosa Clara!

 

Prisca acende a luz e deita um olhar ao relógio de pulso. Uma hora da manhã, quase. Ainda seis horas de espera. Podia tentar dormir um pouco. Despe-se, deita-se...

 

Desperta-a um barulho na cozinha. Já é dia! Um horrível sentimento de abandono obriga-a a correr até Bertrand, que prepara o café:

 

”O David...

 

Que há com o David?

 

Ele devia telefonar ao chegar a Nova Iorque.

 

Felizmente que não o fez, o animal, teria acordado toda a gente.”

 

Inútil explicar que não teria acordado ninguém, pois que... Em resumo, ele não telefonara e, aliás, Prisca não tinha a mão sobre o aparelho às seis da manhã.

 

Que horas são? Sete e meia. Há aviões que caem, às vezes acontece. Desvios... porque não um desvio? Isso estava a tornar-se habitual. Não se podia ouvir a rádio? Bertrand encolhe os ombros.

 

Uma campainha, mesmo quando se está à espera dela, surpreende sempre. São oito horas. Prisca assistia com olhar triste ao banho de Cécile e chegou mesmo a tempo de arrancar o aparelho das mãos de Bertrand:

 

”É ele! Só pode ser ele.”

 

É o primo de Herblay: pergunta quando vão buscar o François.

 

Dez minutos mais tarde, toca de novo e dessa vez... David! De consciência tranquila, certamente. Ouve-se como se estivesse a dois passos. Isso não impede que Prisca berre, ele está tão longe!

 

”Tu tinhas dito...

 

Sim, minha querida, mas preferi esperar. É sádico acordar pessoas que têm um bebé; sobretudo se por acaso o bebé estiver a dormir. Estás bem, minha gaivota?

 

Não! grita Prisca. Enfim, estou... Oh! David, conta. Onde estás tu?

 

Num hotel da 5.a Avenida. Muito chique. Mas não vou ter ocasião para me aproveitar disso. Vamos partir, vamos correr atrás de Moon e da sua seita. Leslie tem uma mentalidade de cão de caça, mal tive tempo de ver os arranha-céus, estou estafado. Não penso senão em ti, meu amor. Sabes que horas são aqui? Duas horas da manhã. Devia estar a dormir, pois ela impediu-me de o fazer durante toda a viagem, falava-me de ti... Isto é, eu é que falava, mas vem a dar na mesma. Ela diz que tu és um puro produto da velha Europa, o que tem o ar de ser um cumprimento.

 

Nesse caso, hás-de agradecer-lhe. Onde é que vocês vão?

 

Não sei. A qualquer parte no Texas, no caso de Moon estar na sua casa de campo. Se Leslie funcionar a este ritmo, ignoro como farei para te telefonar. Entre um avião e uma sanduíche, talvez. Que é que resolveste para hoje, meu amor querido? Pensei que estarias melhor em casa dos teus pais, menos só durante o dia.”

 

A mulher no lar, pequena coisa abandonada... Imaginaria ele que ela iria esperar por ele a fazer tricô? ”Alo... Prisca?

 

Estou a ouvir-te. Vou-me inscrever na Faculdade e procurar emprego.

 

Mas já que o teu pai...

 

Não tenho a mínima razão para gastar o dinheiro dele, se puder fazer de outro modo, sobretudo enquanto espero o recomeço das aulas.”

 

Um riso na extremidade do fio e a voz alegre de David: ”Vais vender sapatos com a tua amiga Nicole?” O tom sugere que Prisca não é capaz de fazer mais nada. O que provavelmente é exacto, mas nem todas as verdades se devem dizer. E ele ainda acrescenta: ”Agora, a propósito, não te deixes levar, tem juízo.

 

Eu não sou parva replica Prisca, feroz, não me deixo levar por inadvertência.”

 

Novo riso em Nova Iorque, seguido dum cacarejo encantado:

 

”Além dum produto da velha Europa, és uma urtiga, meu amor.

 

Porquê? Pico?

 

Em certo sentido. E és indestrutível... Tenho de desligar, querida, senão arruino o Lulu.

 

Tu apresentas uma nota de despesa à tua agência por uma comunicação comigo?

 

Quer dizer...

 

Não és nada como a tua mãe, David, tu guardas o trigo!

 

Que engraçadinha!”

 

Ela ofendera-o. Sete horas e meia de voo em ”Jumbo” a jacto e depois de vinte e quatro horas sem dormir... Para que servem as lições de Lucien Misrahin?

 

”David!

 

Diz.

 

Trabalha bem, aproveita a tua viagem. Amo-te.

 

De certeza?

 

Como uma louca! Completamente... Não sirvo para nada e até a dormir penso em ti. Sonhei que tinhas entrado para a seita Moon.

 

Isso foi um pesadelo!

 

Horrível. Beijo-te, David. Se soubesses como te amo!

 

E eu então! Vou tentar enviar essa reportagem, minha gaivota, e não vai demorar muito. Saudades para toda a gente. Até breve. Amo-te de mais; não se poderiam encontrar outras palavras para o dizer? É de tal modo enorme!

 

David...

 

Prisca, meu amor... Desliga, ou o meu ordenado não vai chegar. Sabes muito bem que eu era capaz de tudo para te sustentar, mas...

 

Ninguém te pede que me sustentes. (Ela ri ou chora, já nem sabe.) Desliga tu, David, que eu não posso.

 

Bom. Amo-te. Até amanhã. 5, 4, 3, 2, 1, vou desligar. Minha gaivota, tu és a única no mundo.”

 

Desligara. Ela também, depois do sinal. Bertrand reaparecia e Valerie atrás dele, com Cécile, toda reluzente e vestida com alguns centímetros quadrados de pique branco que moldavam o seu ventrezinho arredondado. Muito sexy. As lágrimas correm, Prisca deixa-se cair sobre a cadeira junto do telefone. Valerie bate-lhe nas costas, Bertrand abre muito os olhos estupefactos atrás das lentes e Cécile vira-se para os cabelos, tanto mais atraentes quanto mais estremecem ao ritmo dos soluços.

 

”Isso é nervoso disse Valerie, já passa.

 

Óptimo! disse Bertrand. E se eu fosse buscar um copo de água?”

 

Prisca corre para a cozinha, molha a cara debaixo da torneira do lava-louças. Ainda alguns soluços e pronto; os seus olhos, que limpa com o pano-receita (o da caldeirada de peixe), brilham com um novo clarão:

 

”Se vocês precisarem de mim para ir buscar o François...”

 

Assim é muito melhor. Os outros seguiram-lhe o exemplo; nos braços de Valerie, o peso-pesado vestido de pique branco paira. Eles têm um ar aliviado. Primeiro porque é bastante útil que Prisca vá buscar François a Herblay (mas não antes dessa noite), por outro lado, se ela pudesse ir levar Cécile ao infantário...

 

Valerie vai de moto com Bertrand. Uma festa. Isso não lhe acontece muitas vezes desde que Cécile nasceu, e todavia adora fazê-lo. De capacete, apressada, feliz, veio-lhe a inspiração no momento em que Prisca, no passeio em frente, tentava manter no carrinho o bebé, decidido a não ficar lá, e percebeu que ela não era dotada para brincar às baby-sitters.

 

”Vem ter comigo à Radiodifusão”, grita Valerie; ”assim terás com que te ocupar. Não leves o teu carro, que não há sítio para estacionar. Entrada B, Rue de Boulainvilliers, sobes ao quarto andar. A minha repartição tem o número 4637, não te esqueces? Se te perderes, pergunta por Pierre Morin, emissão Escolha você mesmo. De acordo?”

 

Não ouve a resposta. Bertrand arrancou, levando a sua mini-esposa, que o telefonema de Nova Iorque e a consequente crise de nervos atrasaram.

 

Porque não dar uma volta pela Radiodifusão? Boa ideia, Prisca nunca lá pusera os pés. Irá se conseguir amarrar esse bebé ao carrinho. De cada vez que mete um braço na correia, sai o outro. Bom. Está amarrado. Pobre Cécile! Talvez um brinquedito lhe levantasse o moral! É um estirão dali ao metro, na Rue Wagram, nos arredores do qual se encontra o infantário.

 

Divertido brincar às mães! Cécile palra ”Ba, ba, ba, ba, ba...”, atirando com regularidade a sua roca para a valeta, para ter o prazer de ver Prisca apanhá-la. À quinta vez, guarda-se a roca, é lógico, mas isso provoca uma tempestade... o que atrai o olhar desconfiado duma velha senhora. Está quase a meter-se: porque está a fazer o bebé chorar? Por pura crueldade? Prisca torna a dar a roca. Num segundo, os berros e os soluços convulsivos cessam; baba, ranho e lágrimas secam, óptimo. Mas a roca descreve uma bela parábola antes de ir cair outra vez na valeta. Desejando que a sólida constituição de Cécile resista aos micróbios, Prisca apanha a roca, limpa-a e entrega-lha. Começa a perguntar a si própria se para se ser feliz é necessário procriar... Cécile, vitoriosa, torce-se a rir.

 

No infantário, Prisca desembaraça-se da sua torcionária, que bate as palmas com satisfação e depois se deixa levar sem o menor grito para um parque, atrás de cujas grades a aprisionam, sentada no chão, o que em nada vem perturbar o seu bom humor.

 

”É uma adorável menina”, diz a empregada da recepção, de bata branca, ”muito boazinha.”

 

Deve haver no cérebro dos bebés maturidade suficiente para que, ao detectarem a fraqueza ou a experiência, adaptem o seu comportamento a uma ou a outra. Freud teria pensado nisto?

 

Devia ter conhecido Cécile.


É divertido explorar as instalações da Radiodifusão, pois anda-se às voltas. É fácil de encontrar a repartição que se procura, com a condição de não nos enganarmos no andar, que foi o que aconteceu a Prisca. Julgando que estava no quarto, percorreu o terceiro. Se tivesse continuado, isso teria representado uma bela prova desportiva, pois esse edifício é, como se sabe, de tamanho respeitável. Os corredores têm a vantagem de conduzir o visitante ao ponto de partida, não se arriscando este assim a perder-se, mas é tão demorado e de tal modo pitoresco que, geralmente, ele começa uma nova volta sem se dar por isso. Tudo se parece. Os andares, os elevadores, as portas das repartições. Elegante uniformidade.

 

Prisca, notando o seu erro, procurou uma escada, que acabou por descobrir sem muita dificuldade aliás com intervalos regulares, e foi dar ao andar exacto, mas não à secção devida.

 

O corredor, idêntico ao do terceiro, levou-a a reflectir: devia começar a volta para a direita ou para a esquerda? Num e noutro caso, acabaria por ir dar ao número de Valerie; o pior era saber ao fim de quantos quilómetros. Em resumo, não era dotada nem para se ocupar de bebés, nem para andar naquela colmeia aparentemente deserta, a julgar pelos corredores periféricos. Nas repartições devia ser diferente.

 

De vez em quando, alguém saía duma delas, homem ou mulher. Prisca começou a alegrar-se com a sua opção pela esquerda, pois os algarismos iam a decrescer, e calculou que não teria mais de cinquenta portas para passar até atingir o 4637. Mesmo assim, uma bela corrida. Alongou o passo.

 

Entre as pessoas que encontrava, ninguém ia tão longe. Saíam dum alvéolo para entrar noutro, ou então paravam diante dos elevadores, que nenhum botão se decidia a fazer parar no andar que queriam, apesar da sua multiplicidade. Curioso. E depois Prisca ouvia pouco barulho, quando esperava encontrar a Radiodifusão barulhenta de conversas, de idas e vindas. Uma multidão. Pois bem, nada disso, tudo era calmo. Pelo menos, para o visitante.

 

Um pouco decepcionada, chegou à porta na qual estava escrito o número procurado, com o nome de Valerie e o de outra pessoa, o que arrefeceu o seu entusiasmo. Pouco importava; bateu. Uma voz respondeu-lhe que entrasse; obedeceu e o olhar cintilante de Valerie acolheu-a atrás duma grande máquina de escrever eléctrica que ainda parecia maior pelo facto de Valerie ser tão pequena. Ela desaparecia, tinha quase o queixo à altura das teclas. Mas o que tinha grande era o coração: que sorriso!

 

”Afinal, sempre vieste!

 

Perdi-me.”

 

A outra rapariga, esta loura, estava instalada atrás duma segunda máquina, em contraluz, diante duma janela envidraçada que dava para o Sena, e comia biscoitos. Estendeu o cartucho:

 

”É servida?”

 

Eram de chocolate, excelentes.

 

”Apresento-te Catherine disse Valerie. Como é que te perdeste? Tinha-te dito entrada B. Estamos a vinte metros dos elevadores, virando à direita. Aliás, está indicado.

 

Ah, está? Onde?

 

Na parede.

 

Quando nunca se cá veio disse Catherine, isso não parece assim tão evidente.”

 

Por causa dos biscoitos de chocolate e por essa forma de desculpar a sua estupidez, Prisca enviou-lhe um olhar reconhecido. Valerie apontava uma cadeira com o braço:

 

”Senta-te.

 

Não vou demorar-me muito, não quero impedi-las de trabalhar disse Prisca, sentando-se.

 

Não incomodas ninguém. Espera a emissão. Vais divertir-te. O directo é sempre interessante... Já assististe à gravação duma emissão de rádio?

 

Não, nunca.

 

Então, fica. Vou apresentar-te ao Pierre Morin. Tenho a certeza de que vais achá-lo simpático.”

 

Prisca pensou que faria melhor em procurar um emprego, como anunciara a David, mas a atmosfera daquela repartição agradava-lhe. Uma planta verde enfeitava um canto da janela; sobre a secretária de Catherine via-se um grande ramo de margaridas. Havia engenhocas por toda a parte...

 

”A tua filha está no infantário”, disse Prisca, com ar satisfeito.

 

Valerie desatou a rir:

 

”Assim o espero! Suponho que não a abandonaste na valeta!... Não te aborreceu muito durante o caminho?

 

Nada mesmo, ela é um amor.”

 

Valerie engoliu a mentira como se fosse mel. O motor da máquina ronronava; ela batia um pouco menos depressa do que a secretária da OROP.

 

”De que consta o teu trabalho? perguntou Prisca.

 

Ocupo-me do correio explicou Valerie; há toneladas dele! Confirmo as entrevistas, convoco pelo telefone, organizo as deslocações. Catherine faz mais ou menos a mesma coisa e, além disso, contabilidade.

 

E Pierre Morin?

 

Está na base de tudo. Ele é que idealiza a emissão, a prepara, a apresenta ao microfone, tudo isto com a ajuda da sua assistente, Annick Marceau. Eles têm um trabalhão doido. Estás a ver, uma hora quotidiana em directo é violento. Tem um ar de improviso quando se escuta, mas tudo é organizado com muito tempo de antecipação.

 

Qual é o princípio da emissão?

 

Escolhe-se um convidado e à volta dele, com as pessoas que ele tem vontade de conhecer, a música que ele quer ouvir, os seus gostos, os seus passatempos, o o que ele lê, o que ele deseja, constrói-se tudo. Nunca ouviste Escolha você mesmo?

 

Uma vez ou duas. A mamã ouve-o regularmente, aprecia-o muito.

 

Sim, ele agrada disse Catherine, de boca cheia. Cada vez há mais gente que o ouve... Annick está atrasada, que é que lhe teria acontecido, Valerie? Ela tinha de me trazer o plano de hoje para eu o passar à máquina. Sabes de quem é que estamos à espera, hoje?

 

Não disse Valerie. Annick foi esperar a pequena a Orly com Pierre.”

 

Que pequena? Para Prisca, aquilo tornava-se obscuro.

 

”A convidada de hoje é uma garota de doze anos”, explicou Valerie, ”vai ser adorável. Chama-se Sophie e vem de Grenoble. É uma apaixonada da natureza. Ela queria conhecer tudo o que se faz de melhor em matéria de exploradores, de navegadores, de ecologistas e de zoologistas. Deu-nos um trabalhão! À Annick sobretudo. Foi ela quem se ocupou das escolhas de Sophie. Foi preciso ir ter com Eric Tabarly, estás a ver? Ele está em Newport, foi prático! Haroun Tazieff está em Guadalupe a ocupar-se dos vulcões que podem entrar em actividade e Paul-Emile Victor prepara a sua próxima expedição ao Pólo Norte, impossível agarrá-lo. Tremenda Sophie! Ela não faz as coisas por menos, pretende o melhor. Que horas são? Dez horas... Ela deve estar a chegar dum momento para o outro com Annick e Pierre.”

 

Chegou um quarto de hora mais tarde, só com Pierre Morin, que a levou para o seu gabinete antes de aparecer no de Catherine e Valerie, às quais o seu estado nervoso pareceu inquietá-las.

 

”Annick deixou-me sozinho”, disse ele.

 

A julgar pela cara das duas raparigas, aquilo era tão inesperado como catastrófico.

 

”Assim mesmo, no último minuto. Chamou-me a casa dela às oito horas para me anunciar que não iria buscar a pequena ao aeroporto.

 

Está doente?

 

Nem isso. Parece que se passa qualquer coisa que perturba a sua existência. O marido engana-a, ou vai deixá-la, não sei, partiu esta noite, ela já não sabia o que dizia, falava de divórcio, chorava, em qualquer caso, não estará aqui às onze horas, e eu não sei que contactos é que ela fez. Ignoro o que teremos na emissão de hoje. Esta manhã, eu ocupava-me da de amanhã. Que chatice! Vai haver um destes banzés! Sobretudo com esta fedelha! Ela quer Tabarly, Tazieff e Paul-Emile Victor, não desiste. Quem sabe que é que Annick foi procurar para os substituir?... Estou saturado! Precisávamos era do Roger Frison-Roche.

 

Impossível, está no Canadá.

 

M!”

 

A palavra que tanto se profere cortou o ar e Pierre Morin enxugou a testa. Prisca pensou que ele se parecia um pouco com um dos seus primos: trinta e cinco anos, cabelos negros ondulados caindo em anéis em volta do rosto um pouco bolachudo e, naquele momento, muito vermelho.

 

”Escuta, Pierre, não te enerves, ainda temos uma hora, vamos sair-nos bem... Olha, apresento-te uma amiga.”

 

Valerie pronunciou o nome de Prisca. Pierre Morin não lhe prestou a menor atenção, pois devia estar habituado a encontrar ”camaradas” que se arrastavam pelo gabinete das suas secretárias, ou então eram os problemas do dia que o preocupavam demasiado para que se inquietasse com esse género de intrusão. Resmungou um ”bom dia” indiferente e depois virou-se para Catherine, que mordia a borracha do lápis, com ar aflito.

 

”Annick não lhe falou de nada? Todavia, ela contactou algumas pessoas, hoje.

 

Com certeza disse Catherine, mas não nos pôs ao corrente de nada. Há três dias que mal a vemos; eu pensava que ela tinha entrevistas no exterior.”

 

Pierre Morin encolheu os ombros. ”Ela está em plena tragédia conjugal.

 

É triste”, murmurou Catherine.

 

Havia gentileza na voz dela e Pierre Morin acalmou-se.

 

”Vou ver se ela deixou algumas notas na secretária dela disse ele.

 

Eu já vou ter contigo prometeu Valerie. E mantém o moral, que vais ver que vais fazer uma boa emissão.

 

Oh! Com certeza! exasperou-se Pierre Morin. Pode-se sempre meter música para tapar as falhas.”

 

Saiu batendo com a porta. Prisca sentia-se verdadeiramente a mais, de boa vontade teria tomado o mesmo caminho, mas Valerie aproximava-se dela:

 

”Queres prestar-nos um serviço?

 

Que é que eu posso fazer?” Valerie baixou a voz:

 

”A miúda deve estar aborrecida. Se fosses capaz de lhe ir fazer companhia... Conta-lhe seja o que for, A Bela Adormecida no Bosque, mas aguenta-a durante uma hora. Eu, aqui com a emissão, não vou ter um segundo e Catherine também não.

 

Bom disse Prisca. Eu vou lá.”

 

Estava escrito que passaria o dia a cuidar de crianças. À noite seria François...

 

Sophie esperava com calma, numa cadeira, que se dignassem lembrar-se da sua existência. Ergueu para Prisca um olhar intrigado, mas donde o sorriso estava ausente.

 

”Você faz parte da emissão? perguntou ela com uma voz alta e segura.

 

Não respondeu Prisca, medindo as possibilidades que tinha de ser agradável a essa pessoazinha delicada mas determinada. Vim ver uma amiga e vou assistir à gravação, por curiosidade.

 

Julgava que você era Annick Gickel continuou Sophie. Ela telefonou-me várias vezes e durante muito tempo, mas eu só conhecia a voz dela. Aliás, a sua não se parece nada.”

 

Achando que A Bela Adormecida não teria o menor sucesso, Prisca procurou outra inspiração para preencher o silêncio.

 

”É bonito, Grenoble? perguntou ela. Nunca lá fui.

 

É uma grande cidade rodeada de montanhas, como deve saber. É melhor eu não dizer mais nada agora, porque vou ter de falar da minha cidade durante a emissão. Não vale a pena você ouvir duas vezes a mesma coisa, não acha?

 

É justo!”, disse Prisca, espantada com esse belo à-vontade.

 

Procurou outra coisa:

 

”Gostou da sua viagem de avião?

 

Pode tratar-me por tu, sabe?”

 

Prisca tossicou. Aquela criança intimidava-a. ”Foi a primeira vez que andaste de avião?

 

Foi disse Sophie, mas isso não me interessou nada, porque havia nuvens que escondiam o solo. Voar de avião agrada-lhe, a si?”

 

Eis que a garota a reconduzia até David... Prisca esqueceu Sophie, o seu colo grácil, a sua única trança caída pelas costas abaixo e o seu à-vontade. O Jumbo levava-a... Junto dela estava sentado um jovem fotógrafo, cujo ombro rijo ela sentia quando lhe encostava a cabeça e que tinha uns olhos muito azuis.

 

”Dir-se-ia que você pensa numa bela viagem”, declarou a voz infantil a seu lado.

 

Prisca sorriu e voltou a si.

 

”Fui à Etiópia disse ela. Não há muito tempo que de lá voltei.

 

Desculpe-me, mas não sou muito forte em geografia confessou Sophie. Onde fica a Etiópia?

 

Na África. Entre o Sudão e o mar Vermelho. A capital chama-se Adis Abeba. O país é o mais belo que se possa imaginar...”

 

Sem se dar conta, Prisca usava o tom que teria empregado para dizer as belas palavras que começam um conto de fadas: ”Era uma vez... a Etiópia. E David. A Bela dormiu cem anos e quando o Príncipe a acordou...”

 

Sophie tinha uns lindos olhos cor de avelã que nunca sorriam. Sonhavam, o que é melhor.

 

Era uma vez... montanhas na Etiópia, tão altas que os seus cumes se perdem no céu. E lagos tão grandes que se perdem no mar. E também campos desenhados em riscas, empoleirados em altos planaltos de basalto. E ainda aldeias onde os pastores sopram em flautas com o pescoço descoberto em corola, como flores na extremidade do seu caule, enquanto empurram os seus rebanhos duma pastagem para outra.

 

Era uma vez, na Etiópia, David. Ele conduzia como um selvagem o carro que tinham alugado. Queria ver tudo. Teria escalado os vulcões, se tivesse podido, se tivesse tido tempo. Teria trepado ao cimo das chaminés, teria vencido até aquela que culmina a quatro mil e seiscentos e vinte metros... Tinha-se contentado em olhá-la, procurando a mão de Prisca, que ele trazia de volta todos os dias, moída, para uma casa para dormir. Pouco importava qual e em que aldeia ele ia dar. Nunca existira aldeia mais bela no mundo...

 

Tinham ido, sem se preocuparem com as suas vidas, misturar-se com os combatentes da Eritreia. Caminhavam com eles, bebiam e comiam juntos. E, quando os seus pés doloridos já não podiam aguentá-los, iam dormir.

 

”E os desertos? E os rios?”, perguntou Sophie. ”Há grandes rios na Etiópia? Conte, por favor... Gosto de todos os países da Terra.”

 

Então era preciso que Prisca contasse:

 

”Há grandes rios. Um deles chama-se o Takazzé, que quer dizer O Terrível. Desce com os seus afluentes dos montes do Lasta. Mas o principal é o Nilo Azul, que tem origem no lago Tana. Escavam profundos vales na montanha e enormes canhões. Gargantas cujo fundo não se vê. A do Takazzé tem aproximadamente mil metros de profundidade e a do Nilo Azul um quilómetro e meio. És capaz de imaginar?

 

Viu-as? Viu tudo isso?

 

Vi o Nilo Azul, as suas gargantas e os seus canhões; e a Rift Valley, com os seus grandes lagos, e vi também o lago Rodolfo, junto do qual algumas escavações permitiram trazer à luz vestígios de esqueletos humanos. Homens capazes de talhar pedra, de fabricar utensílios. Homens que viveram dois milhões de anos antes de nós. Homens sobre a Terra, Sophie, há dois milhões de anos!

 

Homens tão velhos como os desertos?”

 

Às vezes, as histórias verdadeiras têm o dom de fazer sonhar como os contos. Prisca sorriu à criança maravilhada que a escutava.

 

”Como os desertos não sei”, disse ela, ”não sei a idade deles. Mas sei os seus nomes. Chamam-se: deserto da Núbia, bacia do Alto Nilo, planície de Danakil e dos Somalis...”

 

São onze horas menos um quarto quando Valerie e Pierre Morin (com os nervos em pior estado que há pouco) vêm buscar Sophie para a conduzir ao estúdio de gravação.

 

Morin, agarrando a mão da sua convidada, enfia pelo corredor. Valerie trota atrás dele, arrastando Prisca para a aventura.

 

”Acabaram por pôr um bocado de ordem naquela confusão cochichou ela, quase a correr. Neste ofício acaba-se sempre por arranjar as coisas.

 

Shopie sempre terá os seus exploradores e os seus navegadores? perguntou Prisca, adoptando o mesmo tom.

 

Não aqueles que ela queria, certamente, mas... pessoas interessantes.”

 

Sophie não é, porém, dessa opinião. Sentiu-se bastante feliz por conhecer o emigrante biologista que ensinava na Faculdade de Ciências, mas o jovem cabeludo e barbudo que dera que falar ao publicar as suas impressões do Katmandu depois duma viagem ao Nepal desagradou-lhe. Não o disse de maneira explícita; no entanto, é... demasiado evidente.

 

Pierre Morin apressa-se a isolá-la num canto do estúdio para lhe fazer uma ligeira admoestação, o que lhe valeu um olhar severo:

 

”A vossa emissão chama-se Escolha você mesmo e afinal não se pode escolher nada”, disse Sophie.

 

Pierre explica que é impossível reunir à volta duma mesa, em Paris, no mesmo dia e a uma hora precisa, pessoas que se encontram ocupadíssimas nos Estados Unidos, em Guadalupe ou no Pólo Norte.

 

”De acordo”, replica Sophie, ”mas então não vale a pena fazer a emissão.”

 

Uma vez provada a lógica do seu raciocínio, parece determinada a calar-se.

 

Desvario. Morin parecia prestes a explodir; Valerie substitui-o. Julga-se obrigada a fazer a voz ternamente fútil que usa para acalmar as crises de Cécile, tentando ser convincente: Sophie não podia interessar-se pelas pessoas competentes convidadas por sua causa? O biologista, o explorador do Nepal, o casal apaixonante que volta da China... a China, vejam lá! Não é cativante para qualquer pessoa que a sua vocação a leve às grandes expedições?

 

”Sê gentil, queridinha. Uma menina bonita não devia...”

 

Sophie enerva-se. Porque lhe falam como se fosse um bebé? Ela mandou a Annick Marceau a lista das perguntas. Claro que lá não dizia que mais nenhuma pessoa além de Tabarly, Tazieff ou Paul-Emile Victor podia responder a elas. Se eles não estavam ali...

 

”Nós arranjaremos outras perguntas”, disse Pierre Morlin (ele tem um ar K. O). ”Eu vou-te ajudar.”

 

Mas isso não anima Sophie, pelo contrário. Considerando-se lesada, sente-se desmoralizada. Valerie atira a Prisca um olhar inquieto: no seu assento, atrás do vidro, o técnico faz sinal de que está quase na hora. Um cronometro conta os segundos. Fecham-se as portas e a luz vermelha acende-se.

 

”O encanto das crianças numa emissão de rádio! resmunga Morin entre dentes. Annick pagar-me-á.

 

O quê”, inquire Sophie.

 

Empurram-na para a mesa redonda à volta da qual estão reunidos os outros, sentado cada um à frente dum microfone. Abatida, Sophie deixa falar. Apenas demonstra uma desaprovação delicada. Em Grenoble não se é selvagem. Mas quando não se tem nada para dizer, as pessoas calam-se. Isso é categórico.

 

E depois, de repente, o seu rosto ilumina-se. Acaba de ver Prisca, até então discretamente escondida num canto. Sorri-lhe (pela primeira vez). Clarão do olhar cor de avelã encantado com o reencontro. Prisca riposta com um piscar de olhos, maneira de encorajar o gladiador que entra na arena. Os leões não a comerão. Não há razão para isso.

 

Sophie desata a rir. Ei-las cúmplices, gostam uma da outra. De longe. Diabo!... Prisca, que veio sentar-se encostada à parede, onde uma fila de cadeiras parecia colocada de propósito para acolher os espectadores, vê Sophie apontar com o braço para ela. Não percebe o que ela diz, mas Pierre Morin aproxima-se em grandes passadas. Inclina-se, agarra-lhe no braço... Tem a mão húmida e a testa a escorrer.

 

”Ela quere-a na emissão, pretende que você tem qualquer coisa para dizer. De que se trata?

 

Da Etiópia, suponho. Eu voltei há pouco de lá e falei-lhe disso.”

 

Morin abre a boca, parece um peixe fora de água. Isto dura apenas um segundo; ele retoma o fôlego:

 

”Vamos lá então para a Etiópia, eu corro o risco.”

 

Arrasta Prisca, que não tem sequer tempo para se insurgir. Puxa-a para a mesa redonda e para os microfones. Na pista! Como no circo. O grande salto... mas sem preparação.

 

”Não sou capaz”, murmura Prisca, aterrada à ideia do pavor que já sente; ”é pior do que no escritório de Misrahin.”

 

Morin parece conter-se para manter a calma:

 

”Eu ajudo-a, seja o que for que você disser. Não fale de mais, não corte a palavra a ninguém. Qual é o seu nome?”

 

Valerie disse-lho há pouco, mas, certamente, ele esqueceu-o. Pronta a contestar com mais energia, Prisca encontra o olhar trágico de Valerie, que lhe designa com o queixo Sophie, finalmente alegre, e que se mostrava em plena forma. Sentada no seu lugar diante do microfone, ela espia a eleita do seu coração. Faz-lhe sinal para se sentar ao pé dela; Pierre Morin regula o microfone. Uma experiência de voz, depressa...

 

”Tratamo-nos por tu, hem!”, esclarece Sophie. ”Mesmo porque tu és muito jovem. Como te chamas?”

 

Prisca repete o seu nome: Isto soa um pouco trémulo.

 

”O Nilo Azul, hem! Os canhões... tu vais falar disso. Não te inquietes, eu faço-te as perguntas e tu respondes. Não esqueças os bocados de ossos dos homens de há dois milhões de anos. E depois esse rapaz, esse David... Quem era? O teu noivo? Tu vais dizer porque é que estavas lá e tu...

 

Chut!”, disse Morin.

 

Não pode fazer mais nada senão aceitar o desafio, os microfones estão ligados. Top: 11 horas. Flash de informação... Façam o vosso jogo! Concentram-se. Prisca reconhece a voz do jornalista que lê o texto, descobre o seu rosto. Julgava-o mais novo, não o imaginava já grisalho.

 

Atenção! Música. O genérico da emissão. Silêncio na sala; Prisca sustém a respiração... Os dados foram lançados, já nada os pode fazer parar. Vai ser preciso entrar no jogo, isso contrai o estômago.

 

Inexorável! A voz de Pierre Morin:

 

”Escolha você mesmo... Ao microfone, Pierre Morin. A nossa convidada de hoje, Sophie Lagrange. Bom dia, Sophie...

 

Bom dia! (É alegre, é claro, não treme.)

 

Ela tem doze anos, uma vocação de exploradora, habita em Grenoble. Fala-nos um pouco da tua cidade, Sophie...”

 

Começara! Morin estava nervoso há pouco? Impossível acreditá-lo: fala com facilidade, com calma. Guia Sophie, as perguntas, as respostas, encadeiam-se. Três minutos mais cedo não se sabia onde se estava, vivia-se o pânico e a confusão. Agora tudo rola sobre rodas, nada de hesitações; ordem, método, precisamente o que faz a improvisação... Uma metamorfose.

 

Prisca vê Valerie. Está do outro lado da cabina, com os técnicos. De vez em quando faz um sinal a Morin, e eles compreendem-se perfeitamente. Ele observa o cronometro, dirige o debate, faz as perguntas, que se acrescentam às de Sophie. Corta quando é preciso. Ela está nas suas mãos. Os outros também! Que profissão! Prisca, deslumbrada, já não pensa no seu medo, nem em si própria. Escuta os outros.

 

O biologista é delicioso. Esse velho senhor, incontestavelmente um sábio, possui uma ingenuidade e uma frescura de coração que lhe valem um sucesso junto de Sophie. Travam um bom diálogo, e Morin não os interrompe. Mas ele sabota o barbudo-cabeludo. Este não vale nada, Sophie tinha razão. Um pouco de Katmandu, mas não demasiado; lá, ele só viu a droga.

 

Passemos ao casal vindo da China... Morin conduz o jogo, ultrapassando um pouco Sophie. O biologista mete-se na conversa, tudo corre bem, é vivo, é interessante. Prisca, apaixonada, continua a escutar. Sobressalta-se quando Morin, abrupto, se vira para ela:

 

”Prisca Juvet. Uma desconhecida para os nossos ouvintes. Uma rapariga muito jovem a quem a aventura esperava na Etiópia...”

 

E continua. Dir-se-ia que preparou a entrevista, que conhece Prisca há muito. Que talento! Ele provoca, insiste, pára, admoesta, e Sophie mete-se na conversa, à vontade. Prisca também, depois de alguns segundos de pânico, como no gabinete de Misrahin.

 

Ela repara que, ao fim de alguns minutos, Morin a deixa falar. Ele está tranquilo, ela não precisa de ajuda. Joga-se ao pingue-pongue nessa emissão; ele só lá está para apanhar as bolas e animar a partida. Inútil. Era melhor reter as duas poldrinhas lançadas a galope para a meta final.

 

Prisca conta como David e ela julgando descobrir a nascente do Nilo Azul, tinham ido dar ao poço dum aldeão. Sophie rejubila. Interrompe:

 

”E então, que é que o etíope disse?

 

Tirou-nos de lá. E deu-nos de comer, porque, de beber, não era preciso!”

 

O biologista rebentou de riso. Prisca, lançada, já não pára. Umas atrás das outras, as anedotas desfilam, toda a gente se diverte no estúdio. Até Morin, que deita um olhar ao cronometro. Só mais dois minutos. Que pena! Ele estava desconfiado e não tinha razão, as duas garotas faziam furor.

 

Valerie, atrás da cabina, ergue o polegar. Morin abana a cabeça, sorrindo. Mas há que chegar ao fim:

 

”Uma bela aventura para si, Prisca Juvet, e para nós a alegria de descobrir uma futura romancista, talvez... Vai escrever o relato dessa viagem?

 

Oh! disse Prisca, não tenho necessidade de escrever o que nunca esquecerei.”

 

”E tem o sentido das respostas certas!”, pensa Pierre Morin. Com um gesto, indica que terminou. A música do genérico do final vai para o ar sobre a sua voz, agora neutra.

 

”Foi Escolha você mesmo, hoje com Sophie Lagrange, nossa convidada do dia, que escolheu para responder às suas perguntas o professor Henri May, Frederic Labru, de regresso do Nepal, Claude e Danièle Mercier, autores de Un regard sur la Chine, e Prisca Juvet, repórter na Etiópia. (Ouvir isto faz uma estranha impressão.) Ao microfone, Pierre Morin, que vos diz até amanhã.”

 

Um último gesto faz desaparecer a luz vermelha: microfones desligados. Toda a gente fala ao mesmo tempo, comenta-se, diz-se adeus, beija-se Sophie. Valerie, que se escapa da cabina dos técnicos, vem cair nos braços de Prisca.

 

”Tu és for-mi-dá-vel, minha aventureira. Espantosa! Bravo!”

 

Logo a seguir, cai nos de Pierre Morin, risonho e descontraído:

 

”Estás a ver! Eu tinha a certeza: uma boa emissão.

 

A voz da garota saiu bem?

 

Perfeita. Tivemos cinco telefonemas durante a emissão para a felicitar. Incluindo os pais. Mas isso é natural. Sophie, tu és uma autêntica menina-prodígio. Anda cá para te dar um beijo!”

 

Têm ambas a mesma altura. Prisca compreende repentinamente que acaba de falar na rádio... Isto causa-lhe um tal efeito que, ao apertar a mão do professor May para lhe dizer adeus lhe chamou ”menina”. Ele sabe reconhecer a timidez e está pronto a admitir tudo da parte duma tão encantadora jovem, mas mesmo assim era... inesperado. Prisca gagueja uma desculpa, ele um cumprimento. Não se saberia a quem atribuir a palma do embaraço.

 

E ele parte, encantado.

 

O jovem casal do ”Olhar sobre a China” partiu rapidamente. Apenas o barbudo-cabeludo se incrusta: Frederic... Gira à volta de Prisca como um urso em volta duma colmeia. Atenção, que se pode picar; para engolir o mel é preciso ser hábil. E ele não o é.

 

”Deseja que a acompanhe? Tenho o meu carro lá em baixo.

 

Ela não vai sair, nós almoçamos juntas!”, atira Valerie com um sotaque de Montpellier que as emoções da manhã tornam evidente.

 

Posto a andar o barbudo Frederic, ficam entre amigos, com Catherine, que veio ter com a equipa. Desembarcam os cinco no restaurante fronteiro, em fila indiana. A trança de Sophie salta de entusiasmo.

 

Mas Morin não consegue libertar-se da sua preocupação.

 

1 Alusão ao título do livro atrás citado, Un regard sur Ia Chme. (N. do T.)
A ausência da sua assistente. Receia que os problemas de hoje se renovem amanhã. Valerie, apesar da sua boa vontade, do que ele lhe está muito reconhecido, não pode fazer ao mesmo tempo o trabalho dela e o de Annick. Morin continua preocupado durante toda a refeição. Ao café, acaba por dizer:

 

”É preciso substituí-la. Isto não pode continuar assim.

 

Ela vai voltar, tenho a certeza”, diz Catherine. ”Annick não é o género de rapariga para abandonar tudo. Ela sabe que nos ia deixar em apuros.”

 

Outro problema, e não dos menores: Sophie. Que se vai fazer dela nessa tarde, enquanto se espera que apanhe o avião? Estava combinado que Annick se ocuparia disso.

 

”Se é apenas isso”, propõe Prisca, ”eu posso resolver o problema... e com muito prazer.”

 

Os olhos cor de avelã refulgiram à palavra ”prazer”, a trança perde a sua fita e Sophie fica coberta até à cintura duma onda de cabelos macios e leves...

 

”Zut”, diz ela.

 

Mas é lindo. E Prisca oferece-lhe um motivo de sonho;

 

”Subiremos à Torre Eiffel, vamos explorar a Notre-Dame, vamos passear de barco no Sena e ficaremos muito cansadas. De acordo? A que horas é o teu avião?

 

Às 19.40 responde Valerie. O bilhete está na malinha, acabo de lho dar. Trata de não o perder.

 

Não te inquietes. Eu acompanho-a a Orly e depois irei buscar o François a Herblay. Está bem assim?

 

Tu és uma pérola!

 

Uma pérola”, repete Pierre Morin, cobrindo Prisca com um olhar perplexo.

 

Quando deixaram o restaurante, ele decide-se: ”Não a aborreceria voltar amanhã? Quero dizer... trabalhar connosco durante alguns dias. Enfim... até ao regresso de Annick. Bem entendido que não seria de graça... Catherine arranjará isso. Não é verdade, Catherine? Ela é a rainha do orçamento. Não será talvez muito, mas... Valerie teve esta ideia, segredou-me isto ao ouvido depois da emissão. Confesso que hesitava. O que nós fazemos na rádio não é uma brincadeira. Enfim, em resumo!, se você for capaz de atender os telefonemas, de ir visitar as pessoas, de dar a réplica para certas emissões... Isto diz-lhe alguma coisa?”

 

O destino tem destes golpes! Golpes de sorte, certamente.

 

”Eu... eu não sei se sou capaz de...

 

Então, sim ou não?

 

É sim, e de que maneira!

 

Previno-a de que não será repousante.

 

Para um trabalho destes, que me diverte e me interessa, não me importo de estar de serviço durante doze horas. Ou mais, se quiser.

 

Hum!... mais ou menos.

 

E é inútil pagar-me.

 

Ah!faz Pierre Morin de dedo erguido, em sinal de ameaça. Nunca deve dizer isso: olhe que se aproveitam logo.”

 

Ele tem um sorriso, que Prisca acha luminoso, e de repente, ela beija-o. Depois Valerie e Catherine são beijadas também.

 

”Obrigada”, diz ela.

 

Agarrando a mão de Sophie, ela foge. Dançaria na rua se tivesse coragem. Saltaria, misturando os cabelos de Sophie com os seus.

 

E por um instante esquece... David.

 

Prisca estava estafada ao voltar à noite para casa de Bertrand e Valerie, com François. A emissão da manhã, as emoções, a tarde desportiva atrás da infatigável Sophie, que queria ver tudo num Paris superlotado num 19 de Setembro, a asfixia dos atravancamentos durante essa corrida para Orly para apanhar um avião que tinha muitas possibilidades de se perder (teria sido justo!) depois, Sophie já a bordo, a corrida louca em sentido inverso para não chegar demasiado tarde a Herblay no cabo do mundo!, a apanha dum François excitado como uma pulga (tinha ouvido a emissão em casa dos primos e, ao descobrir Prisca segundo ele, célebre daí em diante, não esgotava os superlativos nem as perguntas), tudo aquilo a deixara de gatas. E sentia a cabeça prestes a estalar, os pés doridos, as ideais vagas.

 

No momento em que tocou no sétimo andar, eram dez horas da noite, sentiu uma vontade irresistível de se atirar para cima duma cama com os ouvidos tapados e o seu anjo da guarda como único vizinho.

 

Mas, no instante em que a porta se abriu, esqueceu a fadiga. Bertrand brandia uma garrafa de champanhe:

 

”Vamos festejar, minha linda! Não pude ouvir, mas Valerie contou-me. Parece que estiveste genial, e eu creio no que ela diz.”

 

A espuma saía pelo gargalo, Valerie deixou-a escorrer para os copos, estendeu um a Prisca, rindo:

 

”Atenção, Bertrand, estás a entornar tudo...

 

Também quero!”, gritou François, que fora esquecido.

 

Valerie esborrachou-lhe um beijo no nariz e deu-lhe um dedo de champanhe.

 

Que recepção! É bom verificar que os amigos nos amam. A refeição ia ser servida não na cozinha, como de costume, mas na grande mesa de madeira rústica da sala. Pratos cor de terracota sobre napperons vermelhos, um grande ramo de dálias amarelas cor de laranja e cor de fogo numa jarra de cerâmica azul...

 

”A tua mãe telefonou disse Bertrand, tens de ligar para lá, está entusiasmada com a tua exibição. E também Misrahin, que...

 

E David...

 

Não. Pelo menos, desde que estamos em casa. Não achas que és um pouco exigente? Telefonou esta manhã.

 

É verdade murmurou Prisca. Ele disse que amanhã...

 

Pronto! cortou Valerie. Amanhã! Senta-te, deves estar a morrer de fome. Quanto a ti, François, suponho que já jantaste.

 

Já, mas quero recomeçar, come-se mal em casa dos primos; serviram-nos massa com presunto, depois queijo, depois um bolo, depois...”

 

Um sorvedouro. Tirando sem cerimónia bocados de torta da travessa, ia contando como o mais velho dos primos, ao rodar o botão da rádio, esbarrara com a voz de Pierre Morin. François, certamente, não deixara passar uma tão bela ocasião de proclamar que se tratava da emissão da sua irmã. Por isso, tinham-no ouvido até ao fim, sendo assim que...

 

”Ora diz lá, Prisca, tens outras histórias para contar? Engraçada, aquela do poço! E depois, quando David...

 

Deixa-a em paz disse Valerie, ela está fatigada.

 

Isso dizes tu! Depois de tudo o que ela fez na Etiópia, não é um dia em Paris que pode fatigá-la.”

 

Impossível emudecê-lo; era melhor mandá-lo para a cama, que foi o que Valerie fez assim que ele declarou oh, milagre!que já não tinha fome.

 

Prisca ligou para a mãe. Foi o pai quem apareceu do outro lado do fio.

 

”Então, minha querida, parece que dás que falar nas antenas! Andas então a contar a tua vida? Muito discreto! Eu já não tenho coragem de aparecer na minha repartição, toda a gente me pergunta notícias de David.

 

Não foi há muito tempo!

 

Desde esta tarde. Foi então que eu soube os teus altos feitos na Etiópia. Em casa abreviaras um pouco, parece-me. Porque não nos preveniste de que participavas nessa emissão? A tua mãe contou-me tudo depois, mas, egoísta como é, nem sequer pensou em me telefonar na altura.

 

Não me teria ouvido, não durou muito tempo.

 

O suficiente para se tornar notado. A porteira não fala doutra coisa. Está tão orgulhosa de te ter visto nascer que afixou o teu nome na porta: Prisca Juvet, quinto andar. Que é que pensas disto? E está a preparar o vestido para o casamento. Na realidade, eu gostava muito que isso acontecesse um dia.

 

Paciência, papá.

 

Não tenho outra coisa. Manda-me cá o David, tenho duas palavras a dizer-lhe. Como é que esse animal passa?

 

Está a fazer uma reportagem nos Estados Unidos.

 

Minha pobre querida! Abandonada!

 

E triste.

 

Volta para casa.

 

Isso não mudava fosse o que fosse.

 

Meu Deus, como as raparigas apaixonadas são idiotas! Vou passar à tua mãe, ou ela estrangula-me. Além do mais, ela quer absolutamente convencer-me de que eu contribuí para pôr no mundo um génio. Boa noite, minha querida. Um beijo.

 

Mando-te um também, papá. Olá, mamã...” Ambas estavam felizes. E de tal modo espantadas que

 

Prisca acabou por perguntar a si mesma como é que uma aventura tão extraordinária pudera acontecer-lhe. Não supunha um tal barulho por uma simples emissão de rádio.

 

”Tenho uma imensidade de coisas para te dizer, mamã, mas não te zangues comigo se não te for ver. Eu conto-te mais tarde. Vou-me despachar, porque estamos a jantar.

 

Mas diz-me ao menos...

 

Uma tarefa na rádio, mamã. Precisamente para essa emissão. Não posso explicar-te em dois minutos, vou aí uma noite destas.

 

Quando?

 

Não sei. Compreendes, estou sempre à espera dum telefonema de David, ou de noite, ou de manhã muito cedo, por isso... Escuta, mamã, estou estoirada de cansaço, vou-te deixar. Muitos beijinhos, muitos. Boa noite, dorme bem.”

 

Ufa! Era um pouco cruel desligar tão depressa, mas Prisca não tinha vontade nenhuma de falar durante uma hora, nem de responder a nenhuma pergunta.

 

Voltou para a mesa diante duma enorme fatia de assado. Um verdadeiro banquete. Desculpou-se:

 

”Quando penso que vocês esperaram por mim até às dez horas!”

 

Valerie encolheu os ombros.

 

”Não digas parvoíces e come. Se soubesses o que te espera amanhã! Vais precisar de forças.

 

E pensa no patrão replicou Bertrand. Ele tem horror que não se apreciem as suas atenções, sobretudo porque elas são raras. Creio que, por causa de David, vale mais que estejas em boas relações com ele.

 

Eu estou em muito boas relações com ele.” Prisca pensava nesse longo momento no escritório da

 

OROP. David não tinha nada a recear, Misrahin era um amigo.

 

”Ele falou da emissão continuou Bertrand. Escutou-a no carro. Parece que o divertiu, creio que lhe deste no goto. Se lhe agradares de mais, isso deve tornar-se aborrecido.

 

Tu não compreendes o teu patrão disse Prisca. Ele não é um perseguidor de saias, nem um bruto, é um tipo que sabe o que quer. Gosto muito dele.”

 

Mas no dia seguinte esqueceu-se de lhe telefonar.

 

De manhã fora preciso instalar-se. Sozinha no gabinete de Annick Marceau, Prisca ter-se-ia sentido completamente perdida, pelo menos era essa a opinião de Valerie, que transportara uma secretária do gabinete de Pierre Morin para o seu. Com papel, um marcador de feltro e um telefone, considerou perfeita a instalação. A dificuldade era mexer-se.

 

Depois, Catherine entregou a Prisca o programa das emissões para os dez dias seguintes.


”À esquerda explicou ela tens os nomes dos convidados. Em frente, a lista das pessoas que eles escolheram, e na última coluna, algumas substituições para as pessoas que não consigamos trazer aqui... Isto parece complicado, mas não há nada mais simples: o nome das pessoas que aceitam participar na emissão está enquadrado a vermelho. Tu não te ocupas dessas, já está tratado, entrevistas e tudo. Os nomes simplesmente sublinhados representam algumas pessoas contactadas, mas cujo acordo não está confirmado. Aqui tu telefonas, insistes, desembaraças-te, para os decidir. Os nomes cortados são os das pessoas que se recusaram ou não estão livres. Deves substituí-los por outros. Submetes as tuas ideias a Morin, falas delas com ele... Bom, aqueles que não estiverem nem enquadrados, nem cortados, nem sublinhados, são os que ainda não conseguimos contactar. Aí tudo está para fazer. Esses são contigo.

 

Começas pelo mais urgente interveio Valerie, e continuas. Catherine e eu fornecemos-te os números de telefone, nós é que temos de os procurar. Compreendeste?... Para hoje, não há problema, tudo está em ordem. Mas amanhã há um osso. A convidada é uma mãe de família que sonhava ser actriz. Tenho um certo receio do que se irá passar. No entanto, podemos ter confiança em Pierre, ele viu-a e disse-me que ela é uma pessoa como deve ser. No caso de ser uma nulidade, ele falará por ela. Ela queria Michèle Morgan, Annie Girardot e Brigitte Bar dot. Apenas isto!... Terá a Morgan. Maravilhoso, não achas? Mas a Girardot está no estrangeiro a filmar e a Bardot não está livre. Por sorte, Annick obteve o acordo de Isabel Adjani. Essa vem. Isso também é sensacional. Mas quem se vai pôr ao lado delas? Morin esperava Jeanne Moreau, mas não consegue.

 

Porque não Clara Verneuil?”, sugeriu Prisca. Valerie pareceu perturbada:

 

”Desde há muito que perdeu terreno... Entre a Morgan e a Adjani, seria um pouco fraco.

 

Ela sabe que se pode ter sido estrela, possuir talento e não ser contratada teimou Prisca. Porque é que se há-de sempre apresentar ao público pessoas em pleno sucesso? Aquelas que falham por vezes também têm interesse.

 

Escuta argumentou Valerie, não sabendo como fazer para não ferir Prisca, Clara Verneuil é a mãe de David e eu compreendo-te, tens vontade de lhe agradar. Mas a sua pessoa, com essa história do acidente de carro, tem um lado desolador. Não creio que Morin concorde.”

 

Um frio passara pelo gabinete.

 

”Põe-te no seu lugar continuava Valerie com a maior doçura possível. Ele não quer que a sua emissão seja sinistra. Aliás, creio que seria cruel obrigar Clara Verneuil a patentear as suas infelicidades entre a Morgan e a Adjani.

 

Ela não patentearia as suas desgraças, seria apaixonante.

 

Já ninguém se interessa por ela, o público esqueceu-a, insistiu Valerie, obrigada a ser dura.

 

Pois bem cortou Prisca, é altura de o público se recordar.”

 

Catherine lançara a Valerie um olhar inquieto; se aquilo começava assim, perdia-se tempo, em vez de se ganhar. A nova colaboradora principiante revelava-se menos manobrável e mais obstinada do que o que tinham pensado. Morin que julgasse. Desinteressando-se da questão, Catherine voltou a mergulhar nas suas contas.

 

Era mais ou menos a hora em que Prisca devia telefonar para Misrahin. Mas ela tinha outras preocupações em mente. Morin chegou e ela correu logo para ele para lhe falar de Clara Verneuil. Ele caiu das nuvens. Essa ideia nunca lhe teria vindo à cabeça. E foi resolutamente contra. E Clara, julgada sem contemplação, foi rejeitada.

 

Prisca, combativa, voltou à carga. Como isso se passasse às dez horas e vinte e cinco, precisamente no momento em que chegava o convidado do dia um velho livreiro de sessenta anos apaixonado pela música e, nos minutos seguintes, fosse preciso receber as pessoas da sua escolha, não das mais pequenas: Yehudi Menuhin, a pianista Yvonne Loriard, a harpista Lily Laskire, o flautista Michel Debost, Morin, exasperado por causa da sua assistente de ocasião, mais sanguessuga do que o permitido, deixou escapar uma aceitação sem vontade. Falha de entusiasmo, mas que bastou para que Prisca se lançasse ao telefone e chamasse Clara Verneuil.

 

Não esperava ser acolhida com cumprimentos que, na sua opinião, ultrapassavam muito a verdade. Clara ouvira a emissão da véspera.

 

”Ouço-a regularmente”, disse ela, ”acho o princípio adoptado por Pierre Morin absolutamente original. As pessoas que os seus convidados escolhem são de qualidade e têm sempre interesse. Mas ontem houve tanta frescura por causa dessa garota!... Adorável.

 

”E você, minha querida, apreciei imenso o seu humor, o seu talento. Bravo. Quase descobri David através de si. Falou dele com uma tal alegria! Delicioso de gentileza, de simplicidade. Muito encanto. Tentei encontrá-la para a felicitar, mas não sabia como fazer, telefonei para a agência OROP para conseguir o número desse jovem jornalista em casa de quem você está, mas não quiseram dar-mo.”

 

Idiota da Joêlle, com o seu respeito pelas regras! E esse bruto do David que não tivera sequer a ideia de dar à mãe o número do telefone do Bertrand! Prisca estava furiosa. Desfez-se em desculpas, em agradecimentos, e concluiu, com um tacto que os seus sentimentos lhe ditavam isto é, a sua ternura, pedindo a Clara Verneuil, que ela sabia, infelizmente, absolutamente disponível, se por acaso estaria livre no dia seguinte, das onze ao meio-dia, e se queria aceitar participar na emissão.

 

”Pierre Morin insiste”, disse ela. ”Estou encarregada de lhe dizer quanto ele lamenta só a convidar no último momento, mas a sua assistente acaba de o abandonar e ele está fora de si. Eu estou a tentar ajudá-lo.”

 

Ouviu um riso no fim do fio, depois a voz que um excesso de cigarros enrouquecia um pouco:

 

”Ele contratou-a, não?

 

Mais ou menos isso disse Prisca, sorrindo também. Por um tempo indeterminado... Se calhar, não dura mais do que um dia. Não consigo imaginar como tive uma sorte destas.

 

Eu imagino muito bem disse Clara. E obrigada por ter pensado em mim. Eu irei.”

 

Ela não era parva. As mentiras não tinham conseguido cegá-la. Prisca sentiu por isso por ela um pouco mais de admiração.

 

”Quer que vá buscá-la? É preciso estar no estúdio pelas dez e meia, no edifício da Radiodifusão.

 

Tomarei um táxi, Prisca. Eu ainda tenho meios, por muito que David lhe tenha contado.”

 

Brincava. Parecia feliz, já reconfortada à ideia do público que a escutaria amanhã. Estava precavida como, no outro dia, em casa dela, quando desejava agradar a Prisca. A pequena chama reacendia-se, aquela que dá aos actores o seu fulgor.

 

Prisca indicou-lhe o número do estúdio, o andar, a entrada, depois voltou para junto de Valerie na cabina dos técnicos. Catherine estava lá, ela também, com os olhos cheios do espectáculo. Vigiava a mesa redonda eriçada de microfones, em volta da qual tagarelavam com Pierre Morin o velho livreiro e os prestigiosos intérpretes que ele escolhera. Dir-se-ia que contemplava peixes raros atrás do vidro dum aquário; fazia-o com fervor.

 

”Ela adora a música”, cochichou Valerie ao ouvido de Prisca. ”Por nada no mundo teria perdido aquilo...”

 

Catherine tinha razão. Escutar Yehudi Menuhin a falar de música era quase tão prodigioso como ouvi-lo tocar. E quando Lily Laskine dedilha uma frase na sua harpa, a pequena secretária continua sentada na sua cadeira, mas o seu espírito voa...

 

Depois de almoço fora preciso trabalhar para uma estudante de Medicina, convidada para uma das emissões, a quem os índios da América, ou, melhor, o que deles restava, preocupavam. Ela queria encontrar-se com historiadores, escritores especialistas ou peritos nestes assuntos. Não mencionara nomes, deixava livre a escolha, o que tornava o trabalho de Prisca ainda mais difícil.

 

Valerie auxiliou-a:

 

”Acaba de aparecer um livro que se chama LHomme d’Amerique. Já não me recordo do nome do autor... Jean Berger, parece-me.”

 

Encontrar as coordenadas desse autor, tentar localizá-lo e não conseguir, atacar outras pistas pelo lado dos editores, telefonar para as informações e até para a Embaixada  dos Estados Unidos, levou a tarde toda. Mas prisca, muito orgulhosa, conseguira seleccionar para a emissão três pessoas de origem índia que viviam em Paris, dois escritores e um historiador, sem contar Jean Berger, a quem telefonaria no dia seguinte de manhã.

 

Faltava ocupar-se da emissão seguinte, muito mal preenchida. Nenhum nome estava enquadrado.

 

Às seis horas menos cinco, Catherine atou um lenço sob o queixo e deu as boas-noites a toda a gente, indo montar a sua Solex para voltar para casa. Valerie ainda tentou telefonar mais uma vez para Annick Marceau, mas sempre sem resultado. Ninguém respondia.

 

Era para ficar perplexo:

 

”Pergunto a mim própria o que fez ela dos filhos, pois tem três muito pequenitos.

 

Em casa da avó, se tiverem uma sugeriu Prisca.

 

Tens razão! Ela deve tê-los levado para a Bretanha, para casa dos pais. Se ao menos tivesse o número do telefone! Gostava de saber notícias.

 

Eu também”, disse Prisca.

 

Porque se Annick não estivesse na Bretanha e se amanhã ela voltasse ao serviço...

 

”Parece-me que anotei esse número em qualquer parte.”

 

Valerie abria gavetas, tirava registos; lá encontrou o que procurava na terceira. Boa ocasião para proclamar as suas qualidades:

 

”Ordem e memória! Máxima querida do meu professor de Matemática do terceiro ano.”

 

Ligou para a Bretanha. Annick estava lá, num triste estado, junto da mãe. Era inútil contar com ela antes de, pelo menos, oito dias.

 

Esta notícia teria sido boa para Prisca se não tivesse tido a impressão de se aproveitar das desgraças dos outros.

 

”Espero que ela não arranje nenhuma depressão indignou-se Valerie, quando desligou. Pobre Annick, não devia ter casado com aquele homem.

 

Eles estão casados há muito tempo?

 

Há quatro anos. E ela adora-o.

 

Talvez tudo se arranje, quero dizer... talvez o marido volte.”

 

Valerie acenou com a cabeça:

 

”Talvez. Desejo que assim seja, por causa das crianças. Mas Annick nunca será feliz. Desde que a conheço que ela tem problemas com o marido. Ele é de tal modo femeeiro! Os tipos assim são impossíveis. As mulheres deviam fugir deles, mas acabam sempre por cair na armadilha. Quanto mais eles mentem, mais elas acreditam neles. Mas não falemos de coisas tristes. Tens trabalho para uma semana, Prisca, o que vai dar até quinta-feiraí Em minha opinião, deve dar mesmo até à segunda-feira a seguir. Estás contente?... Não faças essa cara! O que acontece à Annick não é por tua culpa. É preciso ir a correr buscar a Cécile, está na hora. Vens?

 

A Annick saía ao mesmo tempo que tu?

 

Não, ficava sempre até muito tarde. Tinha sempre qualquer coisa para acertar com Pierre.

 

Eu também queria falar com ele. Por causa da emissão de segunda-feira, sabes... os índios.”

 

Valerie deu um suspiro,

 

”E se David telefonar?...”

 

Prisca percebeu que mal tinha pensado nele durante esse dia. E agora, que lho lembravam, voltava com uma força!

 

”Então?”, perguntou Valerie. ”Vens?”

 

Prisca abanou a cabeça:

 

”Não posso. Preciso de ver Pierre, senão na segunda-feira será uma trapalhada.”

 

Valerie desatou a rir.

 

”Absolutamente integrada ao fim dum dia! Muito bem... Pierre está no seu gabinete todas as noites até às oito horas. Um hábito que apanhou porque, de tarde, tem entrevistas no exterior. E mesmo quando não as tem...

 

Trabalha até às oito horas concluiu Prisca,

 

Pois.

 

Então, também eu.”

 

Valerie fez um ar divertido. Talvez troçasse desse excesso de zelo... Beijou Prisca e deixou o gabinete. Ia buscar Cécile e, na volta, faria provavelmente algumas compras. Abastecer-se, em seguida preparar a refeição, enquanto Bertrand se ocupava do bebé; e Prisca, ao pensar  nisso, disse mais uma vez para si própria que não servia senão para lhes dar trabalho. Decidiu então ajudar à lida da casa todas as manhãs muito cedo, sem querer saber do barulho do aspirador. E fosse qual fosse a quantia que lhe pagassem na Radiodifusão, estava decidida a fazer-lhes oferta dela. Tinham de a aceitar.

 

Tomadas estas resoluções, foi bater à porta do gabinete ao lado.

 

Pierre Morin pareceu contente por a ver.

 

”Muito bem”, disse ele.

 

Como Valerie. Era esta a maneira deles mostrarem que não desprezavam de maneira nenhuma a sua colaboração?

 

Trabalhara umas duas horas com Pierre Morin sem notar que o tempo passava. Tivera ideias a propósito de certas emissões e falara-lhe delas. Tinham assim analisado os nomes enquadrados ou sublinhados. E outros ainda, aqueles que apresentavam problemas. Clara Verneuil voltara à baila e, se bem que Pierre a quisesse escamotear, Prisca mantivera-se na sua. Depois tinham estudado os dias seguintes. Morin explicava, Prisca registava as directivas.

 

”Marque entrevista com as pessoas que seleccionou e vá ter com elas. Marque as três que achar preferíveis, escolha você.”

 

Chegou o momento de se separarem; Pierre ainda acrescentara:

 

”Não se esqueça de dizer à Catherine que precisei de si até às oito horas.

 

Porquê?

 

Porque são duas horas extraordinárias que têm de lhe pagar.

 

Pagam-lhe horas extraordinárias a si?” Morin sorrira:

 

”Não é o seu caso. Preocupe-se consigo e não dê brindes desnecessários. Até amanhã, Prisca. Agradeço-lhe por nos ter resolvido o problema. Você desembaraçou-se muito bem.”

 

Tinham-se deixado satisfeitos um com o outro e nem por sombras Prisca se lembrava de Misrahin. Se até David se esfumava...

 

Mas Bertrand recordou-lhe com energia o ”patrão” assim que ela chegou a casa:

 

”Ele estava furioso. Tu serias, segundo a opinião dele, uma pequena galdéria e não valia a pena as pessoas preocuparem-se contigo.

 

Ele disse-te isso a ti?” Prisca parecia estupefacta.

 

”Não, à Joélle, quando se foi embora esta tarde. Segundo ela, ele está com ciúmes de Pierre Morin. Louco de raiva por ele te ter deitado a mão antes dele. Sente que tudo te correrá bem e não quer que lhe fujas.

 

Que imaginação! Joélle gosta de fazer romances.

 

Não é tanto assim. Ela tem razão, o patrão interessa-se por ti, isso é visível.”

 

Prisca ria-se daquilo e do resto ao mesmo tempo, porque, fulminante, o pensamento de David voltara-lhe. Continuava pasmada, contemplando o rosto de David diante dela, nítido como uma aparição. Agitou-se, suspirou...

 

”Ele ainda não telefonou?”

 

Não telefonara. Não houve telefonema de David nessa noite. Na véspera também não. E isso era impossível de suportar.

 

Prisca levou muito tempo a adormecer. Não podia deixar de imaginar Leslie Brown e... porque não? Porque não Leslie Brown e David? Há homens que vão e nunca mais voltam. Há amores que morrem.

 

O barulho do aspirador às sete horas da manhã, à maneira de despertador, provou, se isso fosse necessário, que Prisca não brincava com as suas determinações. Ninguém a pôde impedir de limpar a alcatifa, o soalho, os ladrilhos, até ao último centímetro quadrado. Nada de trabalho atamancado: as cadeiras, a mesa grande, o divã, passaram dum lado da sala de estar para outro; tudo foi retirado do seu lugar e lá reposto.

 

Às oito horas teve finalmente o prazer de ouvir o gracioso pairar de Cécile e os comentários irreverentes de François:

 

”Tu acharias divertido engolir a tua fatia de pão com manteiga com poeira por cima?

 

Tu não tinhas nada que te pôr de barriga para baixo

 

em cima da cama.

 

Era para te mostrar justamente que havia poeira.”

 

Instalado no centro da sala, Bertrand avaliava o resultado:

 

”Ruidoso”, disse ele, ”mas... eficaz.”

 

E Valerie estendeu a Prisca uma chávena de café.

 

Depois, Bertrand foi-se embora, com o capacete debaixo do braço e as duas máquinas fotográficas penduradas ao ombro. Para Valerie e Prisca, o infantário, o parque de estacionamento da Radiodifusão, o escritório. Como na véspera. Já era a rotina.

 

Prisca não estava alegre.

 

”Não telefonou ontem à noite. Nem esta manhã. Não compreendo, tinha dito que o faria.”

 

Valerie tentou explicar:

 

”Tu és demasiado impaciente. E tens falta de confiança em David. Se ele não telefona, é porque não pode, aí está. Quando Bertrand vai para fora, eu não passo o o meu tempo a imaginá-lo nos braços de outra mulher, espero-o, simplesmente. Sem histórias.

 

Sim, mas...”

 

Valerie adivinhou o que Prisca pensava: ”De acordo disse ela. David é um bonito rapaz. Muito mais belo do que Bertrand e anda a passear com uma certa Leslie Brown, que é também muito bonita. E isso é uma razão para que eles se conduzam, um e outro, duma maneira sórdida? Eu devia gravar um disco para não me cansar a repetir-te sempre a mesma coisa!

 

Tens razão. Estou doente de ciúmes. É idiota.” Caminhavam ao longo do corredor que conduzia ao gabinete.

 

”O amor tem sempre um ressaibo de cicuta”, concluiu Valerie, ”mesmo quando é simples, como para Bertrand e eu.”

 

Com um pequeno gesto com a mão, afastou as grandes considerações e notou que ”tudo aquilo” tinha falta de originalidade. O seu sotaque mediterrânico e o seu sorriso faziam dela um ser alegre acontecesse o que acontecesse.

 

”Pensa noutra coisa, vá! Repisam-se as mesmas ideias, e todas as vezes que um homem e uma mulher se encontram é diferente. Passarinhos pousados num tronco, eis o que eles são. Prontos a voarem juntos ou cada um para seu lado. Devia colar-se-lhes as patas para os manter! tranquilos,.. Ora diz lá: abres a porta ou ficamos aqui! especadas em frente dela até à noite?” Catherine recebeu-as, de ar tranquilo, falando duma catástrofe. Naquele serviço tudo era, em princípio, catastrófico ou urgente:

 

”O convidado de amanhã não recebeu o bilhete de comboio. Não pode vir a pé de Estrasburgo e acaba de se desligar. Um regateador. Todavia, eu mandei o bilhete há dez dias. Que é que lhe aconteceu?”

 

Enigma a resolver. Valerie agarrou no telefone para ligar para a agência de viagens. Prisca deitou mão do seu para convencer o recalcitrante de amanhã que não o haviam esquecido, que tinha o seu lugar no comboio... Contactos, delicadezas... um trabalho de formiga. Pelas dez horas e um quarto recordou-se de Misrahin, finalmente.

 

Ligou para a OROP. Joêlle acolheu-a como a uma velha conhecida:

 

”Cais mesmo na altura: acabo de receber um telefonema de Leslie Brown, tenho notícias fresquinhas do David. Tem-las tido também?

 

Não! gritou Prisca. Ele telefonou ao chegar a Nova Iorque. Mas a partir daí não. Dizes que Leslie Brown... Que horas eram lá?

 

Que importância tem isso para ti?

 

Gostava de saber porque telefona ela a meio da noite.

 

Espera, deixa-me pensar... Eles estão nos arredores de Raseburg, no Orégão, o lado oeste; ora devem ser nove horas de diferença a menos, logo, mais ou menos uma hora da manhã.

 

E que é que eles faziam à uma hora da manhã? guinchou Prisca, perturbada. Estavam nalguma boíte?

 

Não, instalaram-se numa comunidade da seita Moon para estudar o assunto. Entraram no jogo. Leslie esperou que toda a gente estivesse a dormir para vir telefonar dum posto de gasolina. Torcia-se a rir porque há já três espíritos puros que olham David com olhos de pescada cozida. Não o largam, o que prova que ainda não estão atingidos pela doutrina, não planam ainda acima do corpo! Parece que são horríveis, pesadelos ambulantes. Pobre David. Leslie diz que ele anda com uma cara enjoada. Esta reportagem aborrece-o.

 

Quando é que eles voltam?

 

Mistério. Eles têm de ver Moon, é imperativo, e até agora ele recusou-se a recebê-los. Creio que, um dia destes, eles vão cair em cima dele de surpresa... Querias falar com o patrão?

 

Sim, se ele estiver.

 

Está numa reunião. Posso ligar para ti depois?” Prisca deu o número do seu telefone na Radiodifusão. ”Vais recomeçar a contar a tua salgalhada noutra

 

emissão?”, indagou Joélle, estupefacta.

 

Prisca teve de lhe explicar em que consistia o seu trabalho. Estava farta de repetir a mesma coisa a toda a gente. Valerie fez-lhe sinal para que se apressasse, eram horas de se dirigir ao estúdio.

 

Michèle Morgan foi a primeira a chegar; todos se precipitaram para o seu redor, incluindo os técnicos. Prisca, feita estátua, não se mexia. Era a primeira vez que via de tão perto uma vedeta daquela envergadura. O encanto que a voz de Michèle Morgan tinha sempre a emocionara, mas agora descobria a simplicidade da personagem, a sua gentileza tão tranquilamente natural.

 

”Chegou a Clara Verneuil”, disse-lhe Valerie ao ouvido. ”Ocupa-te tu dela.”

 

Com uma espécie de espanto, acrescentou:

 

”Continua muito bela.”

 

E era verdade que continuava. Elegante, sobretudo. Dessa elegância verdadeira que mal se dá por ela. Residia nisso a sua perfeição. Cuidada até ao menor pormenor, Clara aparecia sob a forma que hoje desejava; toda a sua pessoa, incluindo o discreto perfume, o sorriso, o andar, o proclamavam:

 

”Vêem, tinham-se enganado. Eu ainda existo.”

 

Prisca precipitou-se. Mas, no mesmo instante, faziam-lhe sinal atrás da cabina.

 

”Vá, minha filha”, disse Clara Verneuil. ”Não se preocupe por minha causa, eu não me perco.”

 

Não se perderia, com efeito. Morin cumprimentava-a. Michèle Morgan levantara-se.

 

”Como vais, Clara?”

 

Beijaram-se. Prisca não pensava que elas pudessem conhecer-se e, no entanto, nada era mais previsível.

 

Tranquilizada, correu a tomar das mãos do técnico o telefone que ele lhe estendia. Era Joélle.

 

”Vou-te pôr em contacto com o patrão.”

 

Ele estava de bom humor, mas lacónico, como o são os homens de negócios que estão sempre apressados. Prisca qualificou Joélle de mitomaníaca: ele nunca devia ter pronunciado as palavras que ela pretendia ter-lhe ouvido dizer e que repetira a Bertrand. Ele brincava:

 

”As minhas felicitações, cara repórter na Etiópia e futura escritora! O êxito espreita-a e isso vai mais depressa do que eu pensava. Venha ter comigo às quatro horas, falaremos disso.

 

O pior é que às quatro horas...

 

Você não está livre. Quando é que está?

 

Nunca. Quero dizer: nunca antes das oito, porque...

 

Você trabalha com Pierre Morin, eu sei.

 

Amanhã de manhã, muito cedo, posso arranjar...

 

Mas eu não. Suponho que está livre para jantar...

 

Com certeza respondeu Prisca, apanhada de surpresa. Mas...

 

Esteja tranquila, não lhe estou a preparar nenhuma cilada. Minha mulher e eu jantamos no Maxim’s com uns amigos. Quer vir connosco? Mando-lhe o carro às oito e meia. Onde é que você estará?”

 

Prisca perdera a respiração:

 

”No n.s l da Rue Pissaro gaguejou ela. Eu habito em casa de...

 

Eu digo ao motorista que espere à porta. Esteja a horas. De vestido comprido, o mais comprido que tiver. Nada de blue jeans.”

 

E desligou.

 

Do outro lado da cabina, Prisca viu Pierre Morin receber a encantadora Isabelle Adjani. Valerie espreitou à porta da cabina:

 

”Adormeceste? Que é que tens? O nosso convidado está atrasado. É sempre assim, as vedetas estão a horas e os zés-ninguéns fazem-se esperar.”

 

Ela estava enervada... A ”zé-ninguém” chegou. Encantadora, aliás, e pedindo a toda a gente que a desculpasse: o mais velho dos filhos tinha entalado um dedo numa porta, fora preciso levá-lo à farmácia... felizmente, não era grave. Valerie, acalmada, foi ocupar o seu posto na cabina, em frente de Pierre Morin. Eram onze horas menos dez minutos: o vermelho...

 

Prisca fixava o orgulhoso perfil de Clara... Inclinou-se para Valerie:

 

”Maxim’s... o que é precisamente? cochichou ela.

 

Um restaurante muito snobe. Porquê?

 

Fui convidada para ir lá esta noite.” Valerie fixou nela um olhar espantado.

 

”De vestido comprido”, acrescentou Prisca. ”E eu não o tenho.”

 

Respondendo à ferocidade polida das perguntas, Clara Verneuil assestava respostas cuja ironia, ao mesmo tempo divertida e séria, surpreende Pierre Morin. Por isso, ele não hesita em levar essa entrevista para além das convenções habituais.

 

Clara, vulnerável, faz ponto de honra em conter as suas emoções. Dotada dessa maleabilidade de espírito especial que se chama humor, ela sabe aligeirar o retrato que faz de si própria e nunca se baixa a lamentar-se.

 

A sua franqueza seduz os auditores; os telefonemas que se multiplicam à medida que a emissão avança vêm prová-lo.

 

Testemunhos de simpatia, gentileza daqueles que lamentam já não ver nos écrans uma actriz de quem gostam. Prisca anota tudo, recebe as mensagens, promete transmiti-las. Não está descontente de fazer notar a Valerie que basta pouca coisa para acordar a memória do público: Clara não está esquecida.

 

Assim que acaba a emissão, a convidada do dia, apressada para voltar para o pé do filho, escapa-se. Retida ao telefone por uma admiradora insistente de Michèle Morgan e depois por um entusiasta de Isabelle Adjani, Prisca esforça-se por os convencer de que ambas acabam de partir. Por fim, pode ir ter com Clara ao estúdio. Ouve-a dizer a Pierre Morin:

 

”Você foi duro.

 

Era a provocação”, confessa ele, sorrindo.

 

Parece satisfeito e tem razão. Clara sabe-o. Sem ele, talvez ela tivesse ficado nas banalidades. Ele inclina-se para aflorar com os lábios uma mão que não se lhe furta.

 

”Bravo”, disse ele.

 

É mais do que um vago cumprimento. Ele sorri a Prisca, maneira de confessar que ela tinha razão, e, arrastando Valerie, abandona o estúdio... Prisca não sabe como exprimir o seu entusiasmo, inunda Clara de superlativos que a fazem sorrir.

 

”Estou contente por não a ter decepcionado”, disse ela. ”David não me teria perdoado. Tem notícias dele?”

 

Prisca conta o que sabe, acaba por falar de Misrahin e termina pelo convite da noite no Maxim’s:

 

”Não tive coragem de recusar; aliás, ele nem me deu tempo... Aquele homem intimida-me.”

 

Ao falar dele, ela toma consciência disso.

 

”Penso nota gentilmente Clara que não lhe seria difícil intimidá-lo a ele, por sua vez... Uma sexta-feira no Maxim’s... é preciso vestir-se a rigor.

 

Foi o que ele me disse. Tenho uma saia comprida, mas é de algodão estampado com o folho em baixo.

 

E o corpo?

 

Costumo usá-lo com uma camisola de praia.

 

Certamente que é encantador, mas não o indicado para o Maxim’s.”

 

Entregue às suas preocupações, Prisca não se dá conta do curioso espectáculo que elas representam, Clara e ela, sentadas numas cadeiras em frente dos microfones no estúdio deserto e discutindo trapos sem pensar em partir. Quando toma consciência disso, é quase meio-dia e meia hora.

 

”Se dispõe dum momento”, propôs Clara, ”venha a minha casa, encontrará talvez o traje que lhe convém para esta noite. O guarda-roupa duma actriz faz metade do seu talento”, acrescenta ela a sorrir.

 

No carro, conta a sua primeira noite no Maxim’s, há... vinte e cinco anos. A sua maneira de descrever o chefe de mesa inclinando-se para lhe sugerir em voz baixa que não escolhesse o ”galo Brillat-Savarin” depois do ”linguado Marguery”, porque se tratava de dois pratos à base de creme, fez Prisca desatar a rir.

 

”Também eu estava na companhia dum homem que me intimidava”, sonha Clara. ”O meu primeiro empresário, Edward Wilson.”

 

E acrescenta depois duns momentos:

 

”O pai de David.”

 

 

Prisca sabia, certamente, que Edward Wilson, agora já de idade e definitivamente estabelecido em Londres, fora empresário e o marido de Clara Verneuil. No momento do seu divórcio, David não era mais do que um bebé. Porque é que Clara teve esse tom estranho? Adivinhava-se nele uma saudade. Era pela juventude já demasiado longínqua ou por um amor que não durara? Prisca pensou nas perguntas que fará a Clara Verneuil quando se conhecerem melhor... Por agora tratava-se de arranjar lugar para estacionar o Austin no Boulevard Maurice Barres, o que aliás não era nada fácil.

 

Parecia um armazém! Nunca Prisca teria imaginado que uma só pessoa pudesse dispor de um vestuário tão completo. Os armários, abertos para trás no corredor, mostram, cuidadosamente alinhados, tapados com coberturas, uma profusão de cores, de tecidos, bordados de toda a espécie, pedrarias, pérolas e lantejoulas.

 

”Guardei-os”, disse Clara, ”porque cada um desses vestidos representa uma recordação. Os mais antigos datam da minha juventude, era neles que eu pensava para si. Olhe...”

 

Duma das coberturas, Clara tira organdis, rendas, musselinas de seda.

 

”A moda actual está no retro, não é verdade? As pessoas vestem-se como lhes apetece, sobretudo à noite.

 

Esse tecido murmura Prisca, tocando a musselina, que maravilha! E estes bordados!

 

É um vestido do Carven. Experimente-o... Eu chamava-lhe Gata Borralheira, antigamente... Não acha que parece feito de espuma?”

 

Um vestido de contos de fadas, um canteiro de pérolas que se diria atiradas ao acaso sobre a transparência da musselina, um vestido mágico, tão vaporoso, tão delicado... Febril, Prisca tira pela cabeça a camisola de gola alta, despe a saia e surge nua, ou quase.

 

”Desculpe-me”, disse ela, agarrando as pérolas e a musselina para se vestir.


Clara teve oportunidade de entrever as longas pernas, a curva suave das ancas, os seios redondos, pequenos. A juventude é emocionante, e Clara sorriu-lhe:

 

”Você fica a nadar lá dentro, queridinha.

 

Não! desola-se Prisca. A cintura é demasiado estreita.

 

De maneira nenhuma. Você é mais delgada do que eu nunca fui. Vire-se.”

 

Clara abotoa os colchetes do gorgorão e puxa o fecho éclair.

 

”Demasiado grande, pelo contrário”, disse ela. ”Venha...”

 

Segura a mão de Prisca e condu-la ao quarto, à frente do espelho.

 

”Que é que acha?

 

Adoro-o! O vestido mais lindo que jamais vi.

 

Que não verá em mais ninguém afirma Clara, contente por provocar um tal deslumbramento. Quem é que o poderia arranjar para esta noite? Nunca fui forte em costura.

 

Não se inquiete, a minha mãe fará isso muito bem.” Prisca vira-se em frente do espelho, admirando o corte hábil das pontas de musselina, que, sobrepondo-se, evocam com efeito véus... lindos véus que, ao voarem, deixassem as pernas nuas! Os tons vão do malva muito pálido ao violeta; misturados com o nácar das pérolas, dir-se-ia uma bruma. Um dos véus, dobrado na altura dos rins, intriga-a.

 

”Isso pode servir de charpa ou de capuz”, disse Clara.

 

É leve, transparente, agitando-se ao menor sopro.

 

”E os sapatos... tem-nos? São precisos uns muito delicados, no tom do vestido.”

 

Prisca, aflita, pensa nas socas, no par de botas... De repente, vem-lhe a inspiração:

 

”A minha irmã, Véronique, tem uns sapatinhos de verniz preto que se atacam por cima do tornozelo. Servirão?

 

Não está mal. Nesse caso, precisa duma malinha preta. E gostava que levantasse os cabelos. Ou então penteie-os numa trança enrolada na nuca...”

 

Estavam no ensaio de penteados quando Prisca olha as horas: uma e vinte e cinco. Dentro de trinta e cinco minutos tem de estar na Rue du Roide-Sicile, onde tem uma entrevista com o primeiro dos seus índios, um estudante, e ainda tem de passar pelo Poleiro...

 

”Mas você não almoçou exclama Clara; eu vou preparar qualquer coisa.

 

Impossível, não tenho tempo!”, replica Prisca, com a musselina voando à sua volta.

 

O vestido cai-lhe aos pés; envergadas de novo a saia e a camisola, ela salta ao pescoço de Clara:

 

”Obrigada!”

 

E corre. O vestido de musselina é apenas um embrulho de trapos debaixo do seu braço.

 

Chega arquejante ao quinto andar da escada tão bela e tão insegura, prime o botão da campainha até ao fundo. A mãe abre, beijam-se.

 

”Minha querida! Que boa surpresa!

 

Venho só de passagem, não tenho tempo para te explicar, é preciso que me arranjes este vestido para esta noite. Sou obrigada a partir já, mamã.”

 

Uma mão firme retém-na:

 

”Como é que queres que eu faça o menor retoque neste vestido se não o provas?”

 

Adeus entrevista, impossível estar à hora. Não há forma de prevenir o índio, pois ele não tem telefone. Não se pode contactar com ele senão por intermédio dum amigo, amigo que só está em casa à noite... Prisca, resignada, fecha a porta. O pai ainda está em casa, saboreando o seu café. O gato ronrona. A atmosfera do Poleiro, imutável, enternece-lhe o coração. É bom viver ali, respira-se um odor a cozinha e a ferro de engomar, a cera e a alfazema. Como recusar o prato cheio que se apresenta, como não responder às perguntas?...

 

São duas e um quarto, o índio está à espera há quinze minutos (ou já não está à espera), Paul Juvet acaba de bater com a porta como todos os dias à mesma hora quando volta para a repartição. Finalmente, vão poder ocupar-se do vestido. Mas não é assim tão simples! Prisca tira a camisola pela cabeça, na rouparia e ao alcance da caixa da costura, quando Marguerite Juvet sente necessidade de se informar:

 

”É para um baile de máscaras?

 

Não, um jantar no Maxim’s.

 

No Maxim’s?!...

 

Sim.

 

Com quem?

 

Fui convidada pelo patrão de David, o director da agência de imprensa.”

 

A Sr.a Juvet perscruta o olhar da filha. Mau sinal. ”Mamã, peço-te, é impossível ficar toda a tarde contigo.

 

Pode-se saber porque é que esse senhor se permite convidar-te para jantar?

 

Porque ele ia lá com a mulher e uns amigos!

 

Com a mulher e com uns amigos?

 

Sim, mamã. Não estejas a brincar aos ecos e não imagines sempre que eu estou no caminho da perdição. Este convite é normal.

 

Achas?

 

Acho!”

 

A prova não avança.

 

”Não compreendo porquê...

 

Mamã, suplico-te, trata do vestido.

 

Quero lá saber do vestido! Não deixarei que faças um disparate que toda a vida lamentarás. E se esta noite não houver nem mulher nem amigos?... David ficaria encantado por saber que enquanto ele trabalha nos Estados Unidos tu andas a mostrar-te em companhia do director da sua agência... Telefona à OROP. Estás com gripe, ou outra coisa qualquer, uma dor de dentes. Se esse senhor te quiser ver, que te marque um encontro no seu escritório. Vocês, os desta geração, são assombrosos, não desconfiam de nada.”

 

Ela está furiosa. É preciso um bom bocado para se acalmar. Consente finalmente em lançar um olhar para o vestido.

 

”O corpo tem de ser todo arranjado, não posso cortar o bordado, seria um crime.”

 

Inventaria não importa o quê para sabotar o jantar no Maxim’s e Prisca está cada vez mais interessada nele. Ela teima:

 

”Eu vou levar esse vestido esta noite.

 

Com um corpete que não se fecha... Para que isso ficasse perfeito era preciso...

 

Atamanca, isso não tem importância.

 

Tenho horror a atamancar.

 

Eu sei, mas peço-te.

 

Bem, vou arranjar o melhor que puder. A que horas vens tu?

 

Não sei... lá para o fim do dia.

 

São já...

 

Nem me fales nisso!”

 

Três horas... A saia e a camisola, a fuga, o ziguezaguear nos atravancamentos, a corrida até ao escritório. Prisca chega sem fôlego, de cabelos em desalinho. Catherine acolhe-a com a sua calma habitual: ”Não foste à entrevista...

 

Não! Como é que sabes?

 

O índio telefonou, é um tipo inteligente. E extraordinariamente simpático... Disse que podia esperar, então a Valerie foi lá.”

 

Obrigada, Valerie!

 

”Enquanto te substitui, o trabalho dela não se faz.”

 

É evidente.

 

”Isto não era a sério.”

 

Para causar complexos não há como Catherine, a não ser François, talvez. Prisca, desorientada, mergulha com um ardor decuplicado nas chamadas telefónicas. O lápis vermelho funciona, sublinhando os nomes.

 

Valerie volta encantada com o estudante: de índio tem apenas o bisavô, mas fala correctamente o francês e é encantador. Um nome a enquadrar; ela convidara-o, ele virá segunda-feira. Às seis horas, Morin, louco de alegria, anuncia que obteve para uma das suas emissões o acordo de Françoise Sagan. A autora de Dês bleus à l’âme sedu-lo.

 

Prisca fecha-se no seu gabinete, preparando o programa diário, e às sete e dez aproveita a ocasião para se escapar, visto que ele lho propõe.

 

”Boa noite!”, exclama ele.

 

Que seja boa ou má, o tempo urge. O motor do Austin ronca até Montmartre, Prisca recupera o vestido impecavelmente arranjado e passado a ferro, leva os sapatos de Véronique, uma carteirinha de seda negra que descobre na cómoda e, pondo termo aos conselhos de prudência com que a mãe a inunda, lança-se para a Rue Pissaro, onde encontra Bertrand, Valerie, François e Cécile, que se preparam para saborear em família o doce repouso duma noite tranquila.

 

Não tendo mais do que uma hora para tomar um duche, vestir-se e pentear-se, Prisca está em pânico.

 

Ao sair da casa de banho, encontra Valerie pasmada de admiração diante do vestido e François pasmado de horror:

 

”Porque é que não cortaram a direito em baixo? Está tudo desfilado!

 

Desfiado, emenda Valerie. Bertrand, duvidoso, inquieta-se:

 

”Eu não tinha coragem de sair com uma rapariga com uma coisa destas vestida.

 

Porquê?

 

Toda a gente vai olhar para ti.”

 

Argumento que podia encantar outras, mas que gela Prisca. Deixa-se cair sobre o divã e já não sabe o que fazer. Na parede, o maquinismo do velho relógio conta os segundos. ”Gata Borralheira” jaz no chão.

 

”Veste-o”, aconselha Valerie; ”eu depois dou-te a minha opinião.”

 

Convidados a sair Bertrand e François, Prisca desembaraça-se do penteador verde, enfia a musselina. Valerie recua três passos...

 

”Anda um pouco...”

 

Prisca obedece, de ar inquieto.

 

”...Precioso decide Valerie, não é espalhafatoso. Em minha opinião, não tens de ter complexos, é muito bonito, podes levá-lo. Despacha-te, são oito e vinte. Devias pôr os cabelos para cima.

 

Precisamente o que me disse Clara... Ou então uma trança enrolada na nuca.

 

Boa ideia. Vou-te fazer uma.”

 

A escova, os rolos, os ganchos, o secador, em frente do espelho da casa de banho... Valerie trabalha. ”Antes de me casar, queria ser cabeleireira.”

 

Prisca tem os olhos pregados no relógio. ”Tenho de me ir embora, está na hora.

 

Um minuto.”

 

Às nove menos vinte está pronta e corre para a porta sem perder tempo a dar uma olhadela pelo espelho.

 

O carro aguarda-a em baixo, com o motorista. Este abre-lhe a porta... Terá sido ensinado com soberba ou estará de mau humor? Ele não diz uma palavra durante o percurso.

 

O groom do Maxim’s, agora. Inclina-se, estende uma mão enluvada para ajudar Prisca a sair do carro. Nunca ela fora acolhida daquela maneira. Mas vê-se num vidro e espanta-se; apesar da opinião de Valerie, acha-se ridiculamente ataviada, demasiado diferente de si própria.

 

Lá fora já a olhavam; cá dentro é pior. Que significam esses olhares? Espantam-se que ela esteja só ou o seu traje parece grotesco? Gostaria de se ir embora. Alguns casais param no vestiário; ela não tem capa nem casaco de peles para deixar a guardar e passa. Onde ir? Como se comportar? As outras mulheres estão à vontade. Ela não. Que faria Leslie Brown em semelhante caso?... Leslie perguntaria, sem hesitar, onde encontrar as pessoas que a esperam.

 

Este pensamento põe um pouco de ordem nas ideias de Prisca. Pautando a sua atitude pela de Clara Verneuil ao chegar ao estúdio, dirige-se, de cabeça erguida, para a intimidante personagem que parece estar ali para acolher a elegante clientela da casa e informa-o com uma voz, aliás, pouco firme que tem uma entrevista com o Sr. e a Sr.a Lucien Misrahin. Com grande espanto seu, o enfatuado personagem não se mostrou de maneira nenhuma admirado.

 

”Eles pedem-lhe que vá ter com eles ao bar, menina respondeu ele, inclinando-se.

 

Sempre em frente”, acrescenta a voz amável dum cliente.

 

Deve ter notado a hesitação de Prisca, que olha a sorrir. Aponta uma escada. Tem cabelos grisalhos, olhos claros, um à-vontade de sedutor inveterado. Sentindo-se mais embaraçada do que nunca, Prisca afecta desenvoltura e sobe sem se virar.

 

Vê Misrahin assim que entra no bar. Ele também a reconhece e vem ao seu encontro.

 

”Boa noite...”

 

O seu olhar mede-a e Prisca não está tranquila. Parece surpreendido, mas isso dura apenas um segundo:

 

”Você está encantadora.”

 

Ufa! Prisca estava à espera que ele dissesse o contrário. Ele tem sempre aquela maneira de realçar uma evidência, em vez de fazer um cumprimento; a sua atitude é todavia diferente daquela que tivera no gabinete da OROP, mais mundana, menos rude.

 

”O motorista estava a horas?

 

Estava, absolutamente. Peço desculpa pelo meu atraso, mas...

 

A quem pediu esse vestido emprestado?” Como é que ele adivinhara?

 

”A Clara Verneuil, Não...

 

É muito bonito e fica-lhe muito bem. O penteado também... Torna-a mais velha. Você parece quase uma mulher.”

 

Ela tem um sorriso. ”Inesperado, mas muito elegante. Estava com tanto medo de parecer ridícula... disse Prisca.

 

Pois bem, não tenha esse receio. Venha... a minha mulher não suporta ficar dez segundos sozinha a uma mesa, os nossos amigos ainda não chegaram.”

 

Marguerite Juvet sentir-se-ia tranquila ao ouvir esta apresentação? A mão de Misrahin roça nas costas de Prisca quando a convida a passar à sua frente. Esse gesto tem gentileza e uma certa doçura, ele continua perfeitamente discreto.

 

Alguns olhares seguem-nos, um deles espera-os; uns olhos de cílios negros que deviam ter sido muito belos, mas cuja expressão é fria ou vaga, como a das pessoas que se aborrecem. Morena, muito pequena, bastante forte, a esposa do urso acolhe Prisca com um sorriso convencional, com uma fria polidez. Ela também a mediu com o olhar. O julgamento parece desfavorável e a atitude exprime um desinteresse total. Prisca, como se fosse transparente, já não existe. É como dizer claramente: ”O meu marido age como bem lhe parece; convida quem ele quer, eu não sou para aí chamada.”

 

Ela vira-se para ele:

 

”Tens a certeza de que os Lemonnier não se enganaram no dia? Devias telefonar-lhes.

 

Não é preciso. Eles aí estão.”

 

Para os receber, o olhar da Sr.a Misrahin revive, a voz toma calor. É tão rebuscado, tão flagrante, que Prisca, fica muda no momento das apresentações. Má forma de cair em graça, ela parece desagradável ou estúpida. De qualquer modo, a Sr.a Lemonnier parece partilhar a opinião da amiga: ninguém de importância. Que diabo faz esta rapariga entre nós?

 

Isto lê-se-lhe no rosto.

 

O marido esforça-se amavelmente para encontrar um assunto de conversa:

 

”Você é jornalista, trabalha na OROP?

 

Não disse Prisca, eu...”

 

A sua explanação pára ali porque o barman toma os comandos. Depois as duas mulheres falam uma com a outra, têm o ar de íntimas. Os dois homens também. Prisca, eliminada, bebe a pequenos goles o seu sumo de tomate sob o olhar divertido de Misrahin, que a observa de vez em quando.

 

”Esta jovem”, disse ele de repente, ”é uma das minhas esperanças. Tem talento.”

 

Prisca, espantada repara que os olhares dos outros três convergem para ela. Invisível um instante antes, torna-se o ponto de mira. Foi o momento que a Sr.a Misrahin escolheu para propor que fossem para a mesa.

 

No fim da refeição, durante a qual Prisca, de novo transparente, não teve quase ocasião de dizer outra coisa além do seu gosto por pato com laranja, e enquanto contemplava os casais que começavam a afluir à pista de dança, Misrahin debruça-se para ela:

 

”Quer dançar?”

 

Sobressaltou-se. Ninguém lhe dirigia a palavra já há um bom bocado, nem sequer o urso, e ia-se habituando a uma semi-sonolência, de olhar vago e de espírito ausente... perto de David.

 

”Quero”, disse ela.

 

Misrahin está sorridente, mesmo alegre. Levanta-se, estende a mão a Prisca.

 

”Estás a perturbar toda a gente, Louis”, diz secamente a esposa.

 

Isto em nada diminui o bom humor do urso, que arrasta Prisca.

 

Na pista, ao som dum slow a que tem horror, ela sugere que tem a impressão de desagradar aos amigos, e à mulher dele ainda mais, e que se sente desolada com isso.

 

O riso enorme de Misrahin estala, com terror de Prisca, que vê as caras virarem-se para ele.

 

”Completamente inconsciente! acaba ele por articular.

 

Em que sou eu inconsciente?

 

Em tudo. É esse o seu encanto.

 

Que quer dizer?

 

Que você é adorável.”

 

Depois disto calou-se, tem o ar encantado. Por um pouco, o riso terrível ia perturbar outra vez a atmosfera compassada da sexta-feira no Maxim’s. Mas não, o mau tempo já lá vai, eis o urso sério:

 

”Quando você tiver cinquenta anos, ou mais, compreenderá que é muito desagradável ver aparecer à sua frente uma rapariga radiosa de dezoito anos. Compreendido? Quanto ao meu amigo Lemonnier, sonha fazer-lhe a corte, mas é obrigado, por consideração pela mulher e para evitar uma cena, a comportar-se como um malcriado.”

 

Prisca farejava qualquer coisa desse género, mas daí a ouvi-la tão claramente expressa vai uma grande diferença. Está chocada.

 

”O Senhor não devia ter-me convidado.

 

Reconheço que não. Mas desejava-o muito. Você distraiu-me.

 

Mas nós não chegámos a trocar três frases.

 

Não interessa.”

 

Ele dança bem para um urso, com uma certa busca na cadência dos passos, o sentido do compasso, e a sua maneira firme de dirigir o par é agradável. Quando a música se transforma em rock, ela espera que Misrahin não dance mais. Nada disso, continua. Dança-o como se dançava antigamente o boogie-boogie. Desportivo! Prisca vira, torna a virar, a musselina voa. Ele não se fatiga, é ele que se entusiasma, dança com vontade. Boa técnica. Divertido, em resumo. A pista esvazia-se a pouco e pouco, o ritmo demasiado rápido fatiga as pessoas, o Maxim’s não é um ginásio.

 

Prisca descontrai-se finalmente. Adora dançar e dão-lhe oportunidade para o fazer. Faz algumas figuras difíceis, porque não! Duas voltas no ritmo, tão vivas que o vestido se enrola em volta das pernas, uns passinhos, uma pirueta... a música é boa. A trança desmancha-se, os cabelos soltos voam como a musselina. Nunca em desequilíbrio, Misrahin sabe acompanhar, a sua mão não perde a de Prisca.

 

De repente, percebe que a sua mesa está vazia: os Lemonnier dirigem-se para a porta com a Sr.a Misrahin.

 

”Eh!”, exclama Prisca no meio duma pirueta que um eficiente impulso acaba de ocasionar. ”Eles vão-se embora!”

 

Empregou o tom que teria empregado para falar a alguém da sua idade.

 

”Eles esperam responde a voz ligeiramente ofegante de Misrahin, acabemos a dança.

 

De maneira nenhuma.”

 

Prisca parou imediatamente. A cabeça anda-lhe um pouco à roda. Põe os cabelos em ordem... sacudindo-os. Como fazer de outro modo? Misrahin olha-a, contente. Divertido, sobretudo. Prisca manda-lhe o S. O. S. com os seus olhos de mar:

 

”Vamos, peço-lhe.”

 

Ele obedece.

 

”Que pena”, disse ele, ”não dançava assim desde a minha juventude.”

 

De novo a sua mão roça as costas húmidas, a musselina está pegada, Prisca sente correr o suor pelos rins e ao longo da nuca, debaixo dos cabelos. Detesta aquilo, deve estar muito vermelha. O rosto do urso, em todo o caso, está quase carmesim; ele enxuga a testa com um lencinho de seda.

 

No vestiário, a Sr.a Misrahin recupera uma estola de visão turmalina que o Sr. Lemonnier, atento, coloca sobre os seus ombros, embora isto não o impeça de lançar a Prisca um olhar deslumbrado. O da esposa é depreciativo e a Sr.a Misrahin, mais gelada do que nunca, mostra uma calma de mau augúrio.

 

”Excelente exibição”, disse ela, ”nós apreciámos, deviam continuar. Deixo-te o carro, Lucien; Colette e Jean acompanham-me.”

 

O rosto de Misrahin endureceu, mas ele não disse nada, esboça um encolher de ombros. Segurando a mão que lhe estende a Sr.a Lemonnier, leva-a aos lábios com gentileza, muito natural:

 

”Boa noite, Colette, até breve.”

 

As duas mulheres atiram a Prisca os seus sorrisos de convenção. O da Sr.a Misrahin é ligeiramente cortês:

 

”Boa noite...”

 

E é tudo. Metendo o braço no da amiga, afasta-se na sua companhia. Jean Lemonnier inclina-se:

 

”Encantado por a ter conhecido, menina.”

 

Uma fórmula. Mas não desprovida de galanteria quanto à maneira como se serviu dela. Depois, dirigindo-se a Misrahin, é caloroso, dir-se-ia que o felicita, e o urso, de conivência, parece reter com grande dificuldade o seu famoso riso.

 

Prisca sentiu-se pouco à vontade toda a noite, mas agora ainda é pior: sente-se humilhada. Tudo aquilo se está a tornar muito desagradável. O orgulho torna-a agressiva.

 

”Vou-me embora disse ela, abrupta, enquanto Lemonnier se afasta. Vou tomar um táxi.

 

Nunca! exclama Misrahin. Vou acompanhada... Não trouxe nada de abafo?

 

Não.

 

Vai apanhar frio.”

 

Quer lá ela saber disso. O principal é desaparecer, reencontrar a calma da Rue Pissaro, a gentileza simples, o amor tranquilo de Bertrand e Valerie. Eles com certeza que já estão a dormir. Não passeiam na atmosfera insalubre das pessoas de sociedade de coração gelado.

 

Misrahin compreendeu, não é desprovido de sensibilidade. Faz sinal ao groom:

 

”O meu carro, se faz favor.”

 

Escrevinha um cheque para pagar a conta que lhe apresentam. Prisca espera.

 

”Desculpe”, disse ele.

 

A sua delicadeza está cheia de respeito.

 

No carro, fala do trabalho de Prisca, da emissão que ouviu. Não tenta nenhum gesto que possa chocar.”

 

Quando o motorista pára, ele próprio abre a porta, apressa-se a dar a volta ao carro para ajudar Prisca a sair. Atravessa o pátio com ela, acompanha-a até ao vestíbulo da entrada B. Aí inclina-se, é protocolar. Mas quando diz: ”Peço-lhe perdão, esta noite era indigna de si”, há na voz dele, na sua expressão, uma frescura, quase uma emoção. Abre a porta do elevador, fecha-a depois de Prisca entrar a afasta-se, muito depressa.

 

Ela não pensa nas chaves senão quando chega lá acima; esquecera-se delas. Torna a descer, procura na caixa do correio, onde as encontra... Valerie pensa em tudo! Torna a subir, entra no apartamento com a maior discrição possível. ”A Gata Borralheira” cai a seus pés num murmúrio de pérolas.

 

Nua, Prisca vai na ponta dos pés até à casa de banho e aí, durante muito tempo, deixa correr a água em cima de si, sobre os cabelos. Lavar-se daquela falsidade, daquelas palavras, daqueles olhares. Do último, sobretudo, em baixo, junto do elevador... um olhar enternecido, demasiado sincero.

 

Oh, David!, em que vespeiro me fui eu meter?

 

Prisca despertou ao som de Trois morceaux en forme de poire, de Erik Satie, o que em nada se parecia com uma fanfarra, mas Valerie, de joelhos na alcatifa e debruçada para o seu ouvido, sacudia-a docemente:

 

”Então, como é que se passou aquilo ontem à noite?

 

Mal. Nunca mais me tornes a falar nisso. Que horas são?

 

Nove horas informou Valerie. Deixei-te dormir o mais que pôde ser, mas é preciso estar lá para a emissão... Voltaste tarde?

 

Não olhei para o relógio”, respondeu Prisca, agarrando o roupão verde.

 

Salta por cima do vestido de ”Gata Borralheira” amontoado no chão: ”O Bertrand já saiu?

 

Não, está a brincar com a filha. Ao sábado não vai à OROP, é dia de descanso. Prometeu ao François uma partida de jaquet.”

 

Valerie apanhava a musselina perlada, que estendeu com carinho nas costas duma cadeira:

 

”Diz lá... parece que as coisas não correram bem.

 

Bof!”, foi a única resposta de Prisca, com a voz ainda entaramelada do sono.

 

Arrastou-se para a cozinha. O café preparado para ela esperava-a. François também, com o nariz dentro do chocolate.

 

”Viva! gritou ele. Tiveste sucesso com o teu andrajo?

 

Deixa-me em paz.”

 

François, acolhido com maus modos, tornou a mergulhar na sua caneca.

 

”Não estás de bom humor”, observou com justiça e sem rancor.

 

Soprava o chocolate demasiado quente, espalhando-o um pouco por toda a parte.

 

”Hoje não arrumaste a casa?

 

Não! Não faria mais nada até ao regresso de David. Queria lá saber da lida da casa!

 

A campainha soou de novo, destruindo o equilíbrio tão delicadamente harmonioso da música de Erik Satie. Prisca ouviu, sem se dignar incomodar-se, a voz de Valerie, depois a sua corrida à procura da bolsa... um fornecedor qualquer a quem queria dar uma gratificação, sem dúvida. A porta da entrada bateu.

 

”Prisca!”, chamou Valerie. ”Anda cá, são para ti estas flores!...”

 

Um ramo enorme de rosas de caules altos, uns botões mal abertos de pétalas baças amarelas... com o nome de Misrahin num cartão.

 

”Deita isso para o lixo disse Prisca.

 

Ah, não! exclamou Valerie, feroz, são belas de mais.”

 

Depois, o seu olhar cruzando-se com o de Prisca, mudou de tom:

 

”As coisas passaram-se assim tão mal?”, perguntou ela.

 

Prisca encolheu os ombros:

 

”Nada de grave. Aborrece-me, é tudo.

 

Ele foi...

 

Não. não, foi muito correcto.

 

Então que é que lhe censuras?”

 

Prisca bem tentou responder, mas, perante a dificuldade de se exprimir, não disse nada. Valerie observa-a:

 

”Por acaso...”, murmurou ela por fim.

 

Não acabou. Um momento após, sorriu:

 

”Já estava à espera disso, tu estavas demasiado bonita, ontem à noite.

 

Estavas à espera de quê?

 

De que ele se apaixonasse.” Prisca deitou-lhe um olhar furioso: ”Nada de disparates, peço-te. Ele...

 

Tu agradas-lhe cortou Valerie e ele não se comporta como um selvagem. Para esse género de homens, chamo a isso estar apaixonado.”

 

Contemplavam-se por cima das rosas. ”Zut! resmungou Prisca.

 

Sim continuou Valerie, é aborrecido, mas não ao ponto de fazer disso um drama. Bom!... Vou pedir uma jarra à vizinha, porque não tenho nenhuma bastante grande. Despacha-te a vestir-te, que estamos atrasadas.”

 

Ao correr para a porta, foi chocar com o marido, que entrava:

 

”Céus! Limparam as roseiras de Bagatelle? Cos diabos!”, acrescentou ao ler o nome no cartão.

 

O seu olhar de míope procurou o de Prisca:

 

”No teu lugar”, disse ele, ”para o próximo convite, faria um penteado à Pauline Carton e punha as jeans da minha avó.”

 

Prisca desatou a rir e sentiu-se melhor.

 

Sentia-se absolutamente em forma no estúdio, precisamente antes da emissão. Tudo estava em ordem, Morin de bom humor, não muito nervoso, as pessoas tinham vindo à porta, perfeito. O convidado de Estrasburgo, o recalcitrante, chegara a tempo e revelava-se um erudito curioso de tudo, apaixonado pela pintura. Prisca telefonara a Clara Verneuil para lhe dar notícias e agradecer-lhe por ter resolvido a situação emprestando-lhe o vestido. O pesadelo Maxim’s ia-se apagando. Os telefonemas do público, como de costume, sucederam-se assim que Morin e o seu convidado começaram a fazer falar as celebridades presentes, neste caso pintores. Prisca respondia com a maior amabilidade possível, pensando em David fechado, em companhia de Leslie Brown, no seu covil de fanáticos... Roseburg! Aquilo fazia-lhe lembrar o quê? Ainda lá estaria?

 

David, David, David... volta. Quero viver contigo, e não flutuar ao nível das aventuras nesta horrível solidão.

 

”Eh!”, cochichou Valerie, ”está o telefone a tocar!”

 

Prisca agarrou o telefone mais uma vez.

 

”Está?

 

Prisca?”

 

Não fora preciso mais para lhe reconhecer a voz. O pesadelo, ressuscitado num segundo, povoava de sombras a cabina dos técnicos. Prisca devia ter estampada no rosto a situação, porque Valerie aproximou-se:

 

”É ele?”, cochichou ela.

 

Um abanar de cabeça e uns olhos trágicos responderam-lhe, enquanto Prisca, friamente polida, agradecia as flores e afirmava estar muito pouco disponível à hora da difusão de ”Escolha você mesmo”.

 

”Já suspeitava, mas era a única forma de a encontrar”, respondeu a voz grave, e aliás muito bela, do urso.

 

Queria convidar Prisca para jantar. Valerie, com o auscultador colado ao ouvido, fez grandes sinais de negação. Prisca recusou. O urso insistiu. Empregava argumentos aos quais era difícil resistir:

 

”Falaremos de David, tenho projectos para ele.”

 

Valerie acenou com a cabeça:

 

”Que bruta!”, cochichou ela.

 

Aquilo continuava.

 

”Desliga”, aconselhou ela, ”ou aceita. Não podes proceder doutra maneira.”

 

Como não podia desligar sem comprometer a carreira de David, Prisca aceitou. Quando pousou o telefone, a mão tremia-lhe.

 

”Isto é chantagem!”, exclamou, esquecendo-se de respeitar o tom discreto que os técnicos desejavam.

 

Um deles, apesar dos auscultadores, virou-se.

 

”Chut!”, fez ele.

 

À tarde, Prisca tinha entrevistas por todo o Paris. Os ”índios” primeiro. Falou com dois. Morin encarregara-a também de ir visitar várias pessoas que se propunham como convidadas: ”Você depois diz-me o que pensa delas.”

 

Cumpriu o seu trabalho com paixão. Era preciso esquecer Misrahin. Mas à noite, pelas sete horas, quando voltou à Rue Pissaro, apercebeu-se de que não tinha senão pensado nele, ou, antes, no problema que ele representava.

 

O conselho de Bertrand! Aliás, não teria tido necessidade dele para pensar nisso. Amarrou os cabelos da maneira menos favorável e pediu emprestada a Valerie as jeans que usava em casa. Estavam curtas, largas atrás e a desfiarem-se em baixo. Para não esquecer nada, vasculhou num armário de Bertrand e descobriu uma velha camisola de lã cinzenta com que se vestiu, sem se preocupar com o comentário de François:

 

”Estás francamente feia!”

 

Este vitupério não serviu de nada... Misrahin esperava-a em baixo no carro. Desatou a rir no seu riso... de urso assim que a viu e declarou-a ”cómica”. Segundo ele, parecia ter doze anos.

 

Ela agradava-lhe fosse sob que forma fosse, isso era por de mais evidente.

 

Todavia, Prisca voltou encantada com essa noite e absolutamente tranquilizada. Reencontrara o Misrahin do escritório da OROP. Um amigo. Ele levara-a a uma aldeia dos Yvelines, em Senlisse, e Prisca adorara a estalagem do Gros Marronnier, o seu jardim tranquilo, a vista sobre o campanário duma igrejinha do século xII toda coberta de ardósias. O urso revelara-se mais culto do que ela julgava. Falava de música, de livros... Prisca escutava-o com prazer, mas esperava, não sem impaciência, que ele chegasse a David. O que aconteceu à sobremesa, quando, com o auxílio do vinho e da boa comida, e da simpatia também, ela estava pronta a apreciar tudo o que ele dissesse:

 

”Tenho a intenção de o mandar à U. R. S. S. A reportagem de que eu tenho necessidade é importante. Se ele se desembaraçar bem, será uma promoção para ele.”

 

Mais uma viagem que David faria sem ela... Prisca, lembrando-se da lição no escritório, tentara parecer feliz. E depois permitira-se fazer-lhe confidências, dizia de David tudo e nada: o seu carácter, as recordações que guardava dele durante esse mês de Agosto da sua infância em Saint-Malo.

 

E continuava durante a viagem de regresso a Paris, feliz de pronunciar esse nome... David. Ele surgia sem cessar. E Misrahin deixava Prisca falar, não a interrompia.

 

Sim, decididamente, no Maxim’s tudo fora um erro; o Misrahin intratável da OROP, o companheiro atento do Gros Marronnier, merecia que se interessassem por ele.

 

”Nada estúpido, o grande Lulu!”, comentou Bertrand quando, no domingo de manhã, ela contou o seu serão em frente das rosas que se desfolhavam. ”Ele manda David à Rússia, o mais tempo possível capta-lhe a confiança, e durante esse tempo brinca aos são-bernardos junto da noiva lacrimosa e... solitária.”

 

Prisca não pensara nisso! Com a alma outra vez torturada e com a cabeça cheia de problemas, parte para ir almoçar a casa dos pais, como lhes prometera.

 

Marguerite Juvet esmerara-se: uma refeição de fazer empalidecer Raymond Oliver ou quem quer que fosse. Uma delícia. E o vinho! Um château-margaux de 1969 do fundo da cave que Paul Juvet acariciava com a língua, aspirando-o a cada golada. A sobremesa? Uma mousse de chocolate com amêndoas sobre merengues, uma leveza, apesar das doze gemas de ovos e do meio quilo de manteiga.

 

”Estás tão magra!”, dizia Marguerite Juvet a cada colherada que Prisca engolia.

 

Era bom. Bom sobretudo estar ali, olhada, adorada, interrogada, protegida. Prisca teve quase vontade de contar tudo. Mas contentara-se em responder, quando a mãe lhe perguntara como decorrera o seu jantar no Maxim’s:

 

”Bem.”

 

Nem o pai nem a mãe podiam compreender eles, que se amavam como no primeiro dia desde há vinte e cinco anos um casal do género de Misrahin. Pela primeira vez na sua vida, Prisca pensou que os pais, apesar da sua idade, possuíam uma ingenuidade que ela própria perdera.

 

Às duas horas, bebiam café, tocou o telefone. Dessa vez, Prisca pensou: como é que Misrahin descobrira o número do Poleiro?

 

”Na verdade, não era difícil, você ontem dissera-me que almoçava em casa dos seus pais, bem como que eles moravam na Rue Gabrielle. Juvet, Rue Gabrielle... bastava ir à lista. Ouça-me, minha amiguinha, tenho bilhetes para um espectáculo de ballet nos jardins do Louvre. Suponho que você gosta de dança...”

 

Prisca jurou que prometera passar a tarde com os pais.

 

”Nesse caso, levo-a a ver a projecção privada de um filme que tenho absolutamente interesse em ver. Aliás, você também. É preciso que esteja bem informada, se quiser tornar-se uma boa jornalista. Apresentá-la-ei às pessoas do cinema. Excelente para si. Eu passo pela Rue Gabrielle, estarei aí às seis horas. Até logo, minha amiguinha.”

 

Desligou. Sempre a mesma táctica, não tinha meio de se defender. Prisca perdia a alegria de viver.

 

”Quem era? perguntou a voz do pai.

 

Nada, respondeu ela. Um amigo.”

 

Para quê levantar problemas? Ela tinha de se livrar sozinha da incómoda situação em que se metera, e pronto.

 

Às seis menos cinco, desceu. Levava sobre uma blusa-camiseiro branca um vestido de malha azul-marinho. Um grande cinto apertava-lhe a cintura. Fora a mãe quem lhe fizera aquele vestido e ela gostava dele. Tanto pior se aquilo não era próprio para a projecção privada. Quanto aos cabelos, deixara-os caídos.

 

Misrahin acolheu-a sorridente:

 

”Mais uma metamorfose! Desta vez, passeio uma colegial.”

 

A colegial teve vontade de lhe dizer claramente que era passeada à força, o que não lhe agradava. Entretanto, chegaram a uma sala de projecção dos Campos Elísios, onde Misrahin a apresentou, com efeito, a uma quantidade de pessoas, cujos nomes ia esquecendo à medida que os ouvia, apesar do desejo que tinha de os fixar para proveito de Clara Verneuil. Porque, se alguém pudesse estar interessado em produtores e realizadores, era ela.

 

A atmosfera do Maxim’s, embora de outro género, ressurgia: Prisca sentia-se anódina e inútil. Verdade que não estava transparente, pelo contrário, ocupavam-se muito dela. Tomá-la-iam por uma estrelinha ou pela amiga querida de Misrahin? Nos dois casos, isso desagradava-lhe. Não compreendeu nada do filme, de tal modo pensava no meio de se despedir à inglesa, sem se indispor com o urso (ele começava a dar-lhe a impressão dum tigre!), o que estava agora certa disso poria fim ao contrato de David na agência OROP. David prevenira-a, sem saber até que ponto isso poderia ser importante: ”Se leres atentamente os artigos do contrato, notas que, em resumo, a agência tem todos os direitos e nenhumas obrigações, ou quase nenhumas. Por outras palavras, eu estou contratado, mas o grande Lulu pode pôr-me na rua quando quiser.”

 

Prisca, por isso, ficou até ao fim da projecção. Depois do que Misrahin propôs irem jantar.,

 

”Não tenho fome”, disse Prisca.

 

Mas o tigre manteve-se indomável:

 

”Coma só uma salada, se quiser, e eu acompanho-a cedo a casa.”

 

Levou-a aos Vaux de Cernay. Premeditação evidente, pois até uma mesa estava reservada para ele no Vieux Moulin. Prisca não apreciou nem a ribeira, nem a cascata, nem o encanto da velha casa transformada em restaurante. Que o local fosse romântico era-lhe completamente indiferente e até desagradável. Lembrando-se do comentário de Bertrand a propósito da reportagem de David na U. R. S. S., detestou Misrahin.

 

Ele arrancava-lhe as palavras uma a uma, ela não sentia vontade de falar. Conduziu a conversa sozinho até à lagosta grelhada que encomendara:

 

”Sabe que fiquei em Paris por sua causa? Não tive coragem de a convidar a passar o fim-de-semana em Ponchartrain.”

 

(Em companhia da mulher? Isso ter-lhe-ia dado um destes prazeres!)

 

”Passei a manhã de sábado no meu gabinete no OROP, encomendei flores... perguntava a mim próprio se lhe havia de telefonar... Você não tem razão de se obstinar em mostrar-se irascível esta noite. Tenho uma certa dose de lucidez, você sabe que eu podia ser à vontade seu pai e que estou consciente disso. Nada tem a recear, desejo apenas a sua presença... Vou ter direito a um sorriso?”

 

Tinha tanto menos esse direito porque acabava de pousar a mão sobre a de Prisca, que a retirou. O urso transformado em tigre, e dos mais encarniçados, agarrou-lhe o pulso.

 

”Não seja tola, vamos lá.”

 

Prisca lançou-lhe um olhar furioso. Ele largou-lhe o pulso... A lagosta abandonada no prato recordou a Prisca o enjoo que sentira há pouco quando o chefe de mesa trouxera esse animal vivo num cesto, no meio de outros. Que costume tão sádico! Também trarão o boi pelo seu pé antes de servir um bife?

 

”Em que pensa? perguntou Misrahin.

 

Em David.”

 

Não era exacto, dessa vez, mas tinha vontade de o dizer. E agora, que pronunciara o seu nome, ele estava lá, muito perto dela, agarrando essa mão que Misrahin sujara. Ela limpou-a: um reflexo.

 

”Ele não gostaria do que se está a passar aqui esta noite disse ela.

 

É provável reconheceu Misrahin. Mas ele não está aqui para ver e você não tem razão nenhuma para se precipitar em confidências quando ele voltar, não é verdade? É preciso crescer um pouco, Prisca: a confissão não é obrigatória. Quer tornar-se igual a Leslie Brown e trabalhar com David?”

 

Ela deitou-lhe um olhar selvagem:

 

”Não por qualquer preço.”

 

Já não estavam com meias palavras, nem com mentiras diplomáticas. Misrahin debruçou-se para ela, os seus olhos tinham um brilho que ela nunca lhes vira, mas ela sabia o que aquilo significava. Ele falava baixo, duramente:

 

”O seu David está-se nas tintas para si, neste momento. Está nos Estados Unidos com uma mulher esplêndida que ele não abandona, que ele vê viver... Nenhum homem digno desse nome resiste a isso. Julga que ele pensa em si quando...”

 

A bofetada partiu, tão feroz como um murro, escandalosa. As pessoas nas mesas vizinhas olhavam espantadas. Algumas riam. Então Prisca compreendeu o que acabava de fazer. Julgou que corria, mas caminhava direita à porta com a impressão de flutuar. Era outra pessoa. Uma estranha agia em vez dela, como nos sonhos ou nos pesadelos.

 

Assim que chegou à estrada, começou a correr. Dessa vez, sabia que corria. Ouviu um carro arrancar. Atirou-se para uma vala. A Lua, no seu terceiro quarto, iluminava a noite; ela reconheceu o BMW de Misrahin, que passsava como um furacão, muito perto dela. Procurava-a.

 

Ela meteu-se pelos bosques. Torcia os tornozelos, mas continuava a andar ao longo da estrada à distância. Viu o BMW, que rolava lentamente. Os faróis iluminavam as bermas. Prisca adivinhou o busto maciço de Misrahin, viu-o virar a cabeça, olhar pelo retrovisor. Continuava à procura. Deixou-o afastar-se e recomeçou a andar.

 

Sabia que estava em perigo: uma rapariga sozinha na estrada às dez horas da noite... A boleia. Não tinha outra solução. Notícias mais ou menos trágicas desfilavam na sua memória, mas continuava sempre com a impressão de ser outra pessoa, que aquilo estava a acontecer não a ela, mas a outra.

 

Viu uma placa que indicava a direcção de Paris e ficou ali. Esperou espiando o BMW. Era o que ela mais receava: ver reaparecer Misrahin, ouvir a sua voz.

 

Um camião parou e Prisca, aliviada, trepou para junto do motorista. Ele parecia um pouco espantado.

 

”Tive uma avaria no carro disse ela.

 

Podia ter telefonado a pedir um reboque, estava perto dos Vaux, lá há muitos botequins.

 

Não trago dinheiro comigo.

 

Ah! E o motorista, cheio de simpatia, acrescentou: Na sua idade nunca se pensa em avarias, hem? Os carros, é preciso é que eles andem! Levo-a então a Paris?

 

Sim, se faz favor.

 

Porta de Orleães, serve?

 

Serve, serve. Obrigada.”

 

Na porta de Orleães tomou um táxi. Às onze e meia chegava à Rue Pissaro.

 

Bertrand e Valerie estavam deitados, mas não dormiam; conversavam nos braços um do outro quando Prisca bateu à porta do quarto deles.

 

”Entra!”, gritou-lhe Valerie.

 

Mas, assim que a viu, mudou de tom:

 

”Que é que tens? Que é que te aconteceu outra vez?”

 

Saltou da cama, aproximou-se, segurou o braço de Prisca.

 

”Senta-te... Que é que te dói? Meu Deus, que cara! E os pés cheios de lama... Prisca! Fala, ao menos!”

 

Bertrand tornara a pôr os óculos. Também ele se levantara, dava pancadinhas nas costas de Prisca. Era o seu ar desvairado que inquietava; ela parecia em estado de choque, dir-se-ia uma sonâmbula.

 

”Fala um pouco, vamos, isso vai fazer-te bem. Vá, conta.

 

Dei uma bofetada a Misrahin em pleno restaurante... Que é que se faz num caso destes?

 

Bebe-se um uísque”, disse Bertrand sem um segundo de hesitação.

 

Correu a buscar um, voltou com uma garrafa e um copo, que encheu.

 

”Bebe de seguida, que ficas melhor.”

 

Ela bebeu duma vez metade do copo. Depois o que faltava. E de repente desatou a soluçar... ondas de lágrimas, uma vaga.

 

”Creio que precisas de outro disse Bertrand.

 

O que ela precisa decidiu Valerie é de se ir deitar.”

 

Despiram-na, deitaram-na em cima da cama deles... Ela deixava-os fazer tudo como se fosse um bebé e soluçava. Valerie arranjou as almofadas, puxou o lençol, a colcha, dobrou...

 

”Vou preparar outro agora? perguntou Bertrand, de copo pronto.

 

Não vale a pena, ela está a dormir.” Apagaram a luz, saíram nos bicos dos pés e foram

 

enrolar-se sobre o divã. Em relação à cama, era bastante duro e um pouco estreito.

 

”Olha que esta!”, murmurou Bertrand, ”pespegar uma estalada no grande Lulu!”

 

Valerie suspirou, fatalista, e apagou o candeeiro.

 

Às seis e meia da manhã já ela estava junto de Prisca, que continuava a dormir. Valerie apalpou-lhe a testa, depois o pulso. Normal. Bastava um bom café... ia prepará-lo. A não ser que um comprimido de aspirina...

 

Preparou-o também com um copo de água, para o que desse e viesse.

 

Prisca acordou com os olhos inchados e a cabeça dorida. Tinha dores por toda a parte: na cabeça, nos tornozelos, nas mãos, que as silvas do bosque tinham arranhado. Engoliu a aspirina. Depois o café. E contou. Quando ela disse, em conclusão, com uma ênfase desesperada: ”Arruinei a carreira de David...”, recomeçou a soluçar.

 

”Cala-te ordenou Valerie.

 

Sim, acrescentou Bertrand, sentado junto dela, cala-te. Chorar não soluciona coisa nenhuma.”

 

As fungadelas cessaram. Tudo aquilo se passava na cama, no quarto cuja porta se fechara. François fora excluído, Cécile também. Para grandes males, grandes remédios. O conselho de guerra.

 

”Se ele te procurava”, disse Valerie, ”é porque não estava assim muito zangado.”

 

Lógico. Bertrand acenou com a cabeça.

 

”Devias telefonar-lhe a pedir desculpa”, aconselhou ele; ”dizes-lhe que tiveste uma crise de nervos, isso acontece.”

 

Prisca, espantada, olhava-o: telefonar a Misrahin? Depois de ter visto a cara dele, onde os cinco dedos da sua mão estavam marcados e com a maneira como ele sorrira? Impossível.

 

”Escreve-lhe umas palavras”, sugeriu Valerie.

 

Experimentou-se imediatamente: ”Senhor, peço-lhe que aceite...”, ou ainda: ”Senhor, queira desculpar o movimento de mau génio que...” À sexta fórmula, viu-se que nenhuma convinha.

 

”Se ele estiver verdadeiramente furioso, isso não servirá de nada disse Valerie; se não estiver, ficará à espera que lhe caias nos braços.

 

O quê?”, rugiu Prisca. Abandonaram a ideia da carta.

 

”Eu vejo a cara que ele tem; logo à noite digo-te”, prometeu Bertrand.

 

Era absolutamente preciso vestir-se e partir para o emprego.

 

Prisca passou o pior dia da sua vida. Imaginava a todo o instante David a ouvi-la contar-lhe esse jantar, a ida ao Maxim’s e tudo o mais. Era impossível que não lhe dissesse tudo. Compreenderia ele? E se ele aproveitasse para confessar... Leslie Brown? Não! Isso, Prisca não suportaria. Era o fim, o fim irremediável, a lama, a vergonha, o horror, o caos:

 

”Deixo-te, David.

 

Calha bem, já não pretendo nada de ti.”

 

Dava largas à imaginação e isso tornava-se atroz à medida que o tempo se escoava. Todavia, ia fazendo o seu trabalho, serrando os dentes. Só Valerie detectava o estado em que ela estava... Elas nem falavam no assunto.

 

A emissão decorreu bem com o estudante e os índios. A tarde pareceu laboriosa, flutuava no pesadelo. Ao fim do dia, Morin convocou Prisca para o seu gabinete:

 

”Você está fatigada?

 

Não, não. Sinto-me bem.”

 

Pierre Morin não era homem para se deixar emocionar por um ar cansado; entrou imediatamente na questão.

 

”Ouça, Prisca, eu vou montar em breve uma série de emissões de televisão. Já assinei a convenção literária e tenho o acordo de produção. Proponho-lhe que apresente a sua candidatura como animadora. Já falei de si, mas era preciso que você fizesse um teste filmado nos próximos dias. Se for aceite, deixar-lhe-ei inteira liberdade para conduzir essas emissões como entender; eu não aparecerei no écran. É pois importante para si. Resta saber se decide tirar a sua Medicina ou continuar nesta profissão.”

 

Noutras circunstâncias, Prisca teria saltado ao pescoço de Pierre Morin para lhe agradecer. Mas começava a desconfiar dos seus impulsos. Perguntou-lhe quando começariam essas emissões.

 

”Dentro de duas semanas. A série está prevista para seis meses, durante os quais você não poderia sair de Paris, bem entendido.”

 

Prisca reflectiu. A Medicina atraía-a. O jornalismo também. Agora a rádio, a televisão... Como saber qual escolher?

 

E David?... Que futuro lhe reservava David? Devia manter-se disponível ou pensar apenas nela? Havia conveniência em aceitar as probabilidades que se apresentavam?

 

”Posso esperar alguns dias antes de lhe dar a resposta? perguntou ela.

 

Com certeza respondeu Morin. Reflicta, mas não leve muito tempo. De qualquer modo, nada a impede de fazer o ensaio, não é verdade? Você tem uma entrevista nos Buttes-Chaumont.

 

Quando?

 

Depois da amanhã, da parte da tarde. Eu irei consigo. Vão maquilhá-la e penteá-la lá mesmo. É preciso levar várias espécies de trajes, de acordo? Trate de estar em forma, até lá deite-se cedo.”

 

Em forma!... David não telefonava, deixando-a debater-se sozinha. David tão longe, enquanto tudo desabava. David de que Prisca não sabia nada. David de tal modo feliz por ter assinado um contrato bom para rasgar, à maneira de acolhimento, quando voltasse.

 

Nessa noite e no dia seguinte, Prisca viveu no terrível caldo salobro das incertezas misturado de esperança.

 

Nenhumas notícias de Misrahin. Segundo Bertrand, ele comportava-se normalmente e não manifestava para com ele nenhuma agressividade particular. Todavia, ele devia adivinhar que o seu repórter estava ao corrente da bofetada e do resto. Afectava indiferença. Como saber o que ele pensava? Prisca não se decidia a fazer o esforço dum telefonema, nem sequer para saber de David.

 

Terça-feira, já. David partira há uma semana: Prisca não tinha ouvido uma só vez o som da sua voz.

 

Voltou da Radiodifusão, terça-feira à noite, mais desamparada do que na véspera. Estacionou o Austin de qualquer modo diante do n.9 l da Rue Pissaro; nunca havia lugar nesse bairro, mas nos outros também não. Voltou com passo arrastado para essa rua calma, acariciando de passagem a moto de David arrumada à esquina há uma semana.

 

Atravessou o pátio e entrou no elevador sem procurar as chaves na caixa do correio: Bertrand e Valerie esperavam-na, como de costume, a essa hora. Deixou-se levar na gaiola oscilante que estremecia em cada patamar até ao sétimo, onde parou em sobressalto. Prisca abriu as portas de correr aquelas que nos caem sempre na mão se não tomarmos cuidado quando se abre a grade para o patamar e então...

 

Então?

 

Então o céu teve uma cor, a terra um gosto, a vida um sentido: David abria os braços.

 

”Minha gaivota!

 

Meu amor...”

 

A sufocação! A ressurreição! A loucura de alegria, a felicidade única, a verdadeira: David. Ele magoava-a, puxava-lhe os cabelos na sua impaciência, bejando-a fosse onde fosse, na boca, no nariz, nos olhos... e ria.

 

David!

 

Ele arrebatava Prisca, batia com a porta com o pé, rodopiava na sala de estar com essa delicadeza pesada que se colava a ele, apertada, tão bela de repente! Ele afogava a sua alma nesse rosto, nesses olhos deslumbrados que pareciam duas poças de água do mar numa doce madrugada num dia de sol. Misturando os seus cabelos, casando o âmbar com o ouro, embriagando-se com o próprio odor, ele sentia-se enlouquecer, maravilhando-se com ela e ela com ele...

 

As duas metades dum mesmo fruto.

 

Prisca ouvia David explicar... o quê? Ela não compreendia nada. Era a música dessa voz que a encantava, como o pequeno sinalzinho escuro sob o lóbulo da orelha, o fino sulco já marcado ao canto dos lábios, o queixo, onde os pêlos cresciam mais duros e mais depressa do que noutro sítio qualquer. Uma paisagem... Ela descobria de novo o perfume dessa pele, espantada da sua doçura, reencontrava a juventude, a emocionante beleza desse corpo. David...

 

”Querida, estás a ouvir-me? Acabámos por encontrar Moon na Califórnia! Depois foi preciso correr para Nova Iorque, encontrarmo-nos com umas pessoas lá e saltar para o avião; foi por isso que não pude telefonar-te Estás zangada?”

 

Isso agora já não tinha a mínima importância, desde que ele estava ali.

 

”David... É preciso que te diga...

 

Eu sei! Bertrand e Valerie contaram-me.”

 

Ao deparar-se-lhe o olhar espantado de Prisca, Bertrand ergueu por cima dos óculos umas sobrancelhas cheias de inocência:

 

”Disse-lhe que tu trabalhavas na rádio, na emissão de Pierre Morin. Porquê? Não querias?”

 

Prisca recuperou a respiração, mas não a coragem das confissões. Voltou-se para Valerie, que teimava em esfregar uma pequena nódoa na almofada, enquanto falava com François, dizendo-lhe que era absolutamente obrigatório ir ter com o amigo (agora, que ele voltava sempre sozinho).

 

”Valerie...

 

Que é?”

 

O tom era alto de mais e espantado. Com um laivo de ingenuidade.

 

”Queres que vos sirva de beber, talvez”, continuou Valerie, precipitando-se para os copos. Prisca cortou o seu entusiasmo: ”Conta-lhe.”

 

No silêncio, ouviu-se Valerie aclarar a garganta ”Ah...”, disse ela. E somente um instante depois: ”Tudo?

 

Tudo.”

 

Bertrand limpava os óculos, de ar ausente. O olhar de David errou de um para outro, depois fixou-se em Prisca, que empalidecia a olhos vistos. Ele franziu as sobrancelhas:

 

”Digam qualquer coisa, finalmente! Que é que se passa?

 

Passa-se respondeu calmamente Bertrand que Misrahin é um porco.

 

Já o suspeitava! exclamou David. Pensei nisso durante oito dias, não deixava de pensar nisso.”

 

Apertava o braço de Prisca até lhe fazer doer: ”Envenenou-te, hem? Fez-te a corte? Ele... Vou-lhe partir a trom...

 

Não vale a pena, Prisca já lha partiu, pois é esse o problema.

 

Tu queres dizer... articulou David com uma certa dificuldade.

 

Que ela lhe pespegou uma bofetada que quase lhe deslocou o maxilar concluiu Bertrand.

 

David! gritou Prisca num grito que era ao mesmo tempo um gemido e um uivo, lançando-se nos braços abertos para a receber. Ele vai rasgar o teu contrato, pôr-te na rua...”

 

Apesar dos seus soluços, que tornavam tudo incompreensível, percebeu-se:

 

”E... foi... por... minha culpa!”

 

O dilúvio e o desespero. Mas David apertava-a tão ternamente contra ele que Prisca se espantou e imediatamente se acalmou; estupefacta, apercebeu-se de que ele sorria.

 

”Isso não é assim tão grave disse ele. Esse crápula do Misrahin não é o único no mundo; de qualquer modo, eu ter-me-ia despedido. Precisamente, queria falar-te disso...

 

Tens outras propostas?”, perguntou Bertrand, oferecendo a Prisca um uísque, que ela recusou.

 

Domingo à noite bebera o suficiente para toda a semana; e foi preparar um sumo de laranja. David agarrava no uísque, parecia contente:

 

”Tenho disse ele, tenho outras propostas. A Universal Press Agency, conheces?

 

Não mo digas! exclamou Bertrand. Eles querem contratar-te?

 

Querem disse David, de ar satisfeito, graças à Leslie; posso assinar o contrato quando quiser.

 

Graças a Leslie!”, repetiu Prisca. As lágrimas estavam longe.

 

”Ela conhece toda a gente nessa agência, trabalhou lá continuava David; então apresentou-me e recomendou-me. Eles fazem contratos de três anos. A mim, isso agrada-me. Que é que pensas, Prisca? Tiravas lá Medicina, um diploma nos Estados Unidos é válido em França. Podíamo-nos informar.

 

Não tenho a sorte, como tu, de falar o inglês tão bem como o francês resmungou Prisca.

 

Aprendias depressa. Casamo-nos antes de partir e...”

 

Era a primeira vez que ele falava de casamento. Prisca gostava de se ter sentido mais feliz por isso. ”David...

 

Que é?

 

Que se passou entre Leslie e tu?”

 

Ela estava de pé junto de Valerie, encostada à estante, longe dele. Ele aproximou-se, fixou o seu olhar nos olhos erguidos para ele.

 

”Nada disse ele.

 

Juras?”

 

Ele hesitou um segundo... um segundo demasiado prolongado. ”Não significa nada para mim”, afirmou ele. ”Para ela também não, aliás.”

 

Mas qualquer coisa acabava de se quebrar. Prisca não pestanejara, olhava-o.

 

”Podes partir para os Estados Unidos”, disse ela, sem erguer o tom, ”eu não te acompanharei. Acabou tudo entre nós.”

 

Saiu da sala; Valerie correu atrás dela. David não se mexera. Lentamente, fazia girar o copo na mão, e Bertrand, que o olhava, viu os seus lábios tremer.

 

”Cretino!”, murmurou ele.

 

David continuava imóvel.

 

”Uma noite... sabes.”

 

A sua voz era átona, já não tinha vida.

 

”Isso teve tão pouca importância...

 

Para Prisca tem. Não podias calar-te?” David sacudiu a cabeça:

 

”Não podia viver com ela escondendo-lhe este género de coisas. Ela devia compreender... Não foi nada.”

 

Bertrand suspirou ruidosamente e partiu à procura de Prisca. Encontrou-a no quarto, em volta do armário, a fazer a mala. Valerie tentava em vão impedi-la:

 

”Como reacção, não é nada inteligente. Tomar a sério uma parvoíce daquelas!”

 

Prisca lançou-lhe um olhar duro:

 

”Suportarias tu que Bertrand fosse incapaz de passar oito dias longe de ti sem te enganar? É isto o amor?

 

O amor tentou Bertrand é compreender o outro quando ele não tem razão. Deixa a tua mala em paz. Anda comigo.

 

Não.”

 

Três toques de campainha anunciaram o regresso de François. Valerie correu a abrir. Prisca ouviu a voz aguda do garoto saudar David, depois o seu comentário, gritado como habitualmente:

 

”Que é que tens? Algum mosquito num olho? Tens os olhos encarnados.

 

Recorda-te de Misrahin murmurava Bertrand, sentado em cima da cama, junto da mala. Tu podias ter recusado o convite para o Maxim’s. A verdade é que tinhas vontade de lá ir. Sabias que agradavas ao patrão, as mulheres sabem sempre essas coisas por instinto, mas foste à mesma. Achas que isso foi muito correcto? Tens o direito de desprezar o David, mas juro-te que ele podia fazer-te o mesmo. Simplesmente, ele ama-te. Nunca lhe viria à ideia de te julgar mal, é o outro que ele considera responsável. Notaste? Ele não hesita. Para ele, o crápula é Misrahin. Aqui entre nós, vou dizer-te o que penso: tu ajudaste bem.

 

Não é verdade!”, exclamou Prisca.

 

Deitando a Valerie, que voltava, um olhar desvairado, ela precipitou-se para a sala de estar; François entrava nesse instante a esfregar a perna:

 

”Ela é maluca, ou quê? Quase me ia deitando ao chão! Felizmente que estava lá o David, que a apanhou nos braços, senão ela caía em cima da compoteira.

 

Ufa! disse Bertrand, agarrando a cintura estreita da esposa. Nunca procedi de tão má-fé, foi duro.”

 

Desatou a rir, beijando Valerie, que sorria.

 

”Ajuda-me a arrumar as coisas dela”, disse ela.

 

A mala esvaziada reencontrou o seu lugar por cima do armário.

 

David e Prisca, desvairados, pediam-se mutuamente perdão...

 

No dia seguinte, David não pôs os pés na OROP, recusava-se a encontrar Misrahin. Acompanhou Prisca à Radiodifusão, assistiu à emissão e almoçou no pequeno restaurante com toda a equipa. À tarde, foi ver a mãe, enquanto Prisca, sob a direcção de Pierre Morin, rodava o seu teste num estúdio de Buttes-Chaumont.

 

À noite, Bertrand trouxe a David um cheque com a assinatura de Misrahin. Incluía o ordenado dum mês previsto no contrato, o reembolso das despesas da viagem à Etiópia, uma soma bastante choruda em pagamento dessa mesma reportagem e a indemnização combinada em caso de despedimento; era acompanhado duma nota agradecendo a David os seus serviços e libertando-o de qualquer compromisso em relação à agência OROP.

 

”Correcto fez notar Bertrand.

 

Se não tivesse tanta necessidade de dinheiro, devolvia-lhe o cheque.

 

Vale mais guardá-lo”, aconselhou Valerie, cujo espírito positivo nunca falhava.

 

Prisca acabava de concluir a sua semana, pois entrara em funções na quarta-feira anterior. Reclamara dinheiro líquido, o que Catherine lhe concedera, e as notas, na sua totalidade, tinham ido sub-repticiamente parar à gaveta da cozinha que servia de mealheiro. Como tinha previsto.

 

Bertrand contou que Misrahin se fechara no gabinete com Leslie Brown, com o seu texto, os seus rolos de película e a gravação duma entrevista do Sr. Moon na sua casa da Califórnia. Nem uma palavra sobre David, excepto quando chamara Joêlle para lhe ditar a carta. Ele dissera:

 

”Restituo-lhe a liberdade.”

 

Em resumo, ele votava ao desprezo, não havia mais que fazer o mesmo.

 

Mas David perdia o seu tempo, enquanto Prisca trabalhava, e isso não o satisfazia. Bastara um dia para ele o achar demasiado longo. Falou de novo da Universal Press Agency...

 

De ar tão fechado como uma ostra, Prisca continuava evasiva. Embirrara com essa agência americana, povoada dos amigos de Leslie Brown.

 

A quinta-feira passou-se como a véspera, muito depressa para Prisca, mergulhada no trabalho, fastidiosa para David. Deu a volta pelas agências ninguém tinha necessidade dum repórter fotográfico para já. Voltou às seis horas. Estava aborrecido.

 

”Porque é que Pierre Morin te retém até tão tarde?”, perguntou ele quando pelas oito e meia Prisca voltou à Rue Pissaro. ”Mal te vejo; tu não és obrigada a fazer todos os dias horas extraordinárias.”

 

Sexta-feira, ao fim da tarde, Morin anunciou a Prisca que acabava de tomar conhecimento do resultado dos testes. Eram excelentes. A direcção da TF l, de acordo com ele, propunha-lhe um contrato estável.

 

”Vai ser preciso tomar uma decisão”, disse ele.

 

Prisca sentiu verdadeiramente vontade de aceitar, sobretudo quando Morin lhe explicou o princípio das emissões e o estilo que ele desejava obter. Já não se tratava para ela duma experiência, duma substituição de alguns dias; ofereciam-lhe o meio de começar uma carreira numa profissão que a apaixonaria, tinha a certeza disso...

 

Falou disso a David e notou que os seus projectos não lhe agradavam muito.

 

”Nem se tem tempo de viver nessas profissões disse ele. Quanto mais êxito tiveres, e eu desejo que o tenhas, mais terás de trabalhar.

 

É a mesma coisa que com um jornalista.

 

Está bem. Mas imagina um casal vivendo os dois cada um para seu lado, com horários impossíveis, viagens e férias que não coincidem, como é que queres que eles sejam felizes? A mulher deve conservar uma certa disponibilidade.

 

Porquê especialmente a mulher?

 

É normal que ela se fatigue menos do que o homem.”

 

Prisca franziu o sobrolho. Era obstinada e adoptou o tom das discussões com o pai: a contestação.

 

”Acho fantástico uma pessoa fatigar-se por causa duma profissão de que se gosta. Não vejo porque é que as mulheres hão-de ser privadas dessa alegria, sejam quais forem as consequências que daí provenham. Adoro o que faço neste momento. Sinto que gostaria ainda mais de me ocupar dessas emissões de televisão. Quanto mais responsabilidades tivesse, mais feliz seria. Isto deve ser uma questão de carácter: quero cá saber de horários impossíveis e de resto, desde que o meu trabalho me apaixona.”

 

A conversa tornou-se agressiva, o que se repetiu várias vezes entre David e Prisca. Chegavam a ultrapassar o seu pensamento, a chocarem-se voluntariamente. Domingo, por exemplo.

 

David tomara a moto e levara Prisca ao acaso para o campo. Tinham feito um piquenique para os lados de Dourdan, na orla dum bosque. O vale desenrolava as suas curvas segundo o capricho do ribeiro franjado de salgueiros. Uma manada de charolesas passava e por vezes uma das belas vacas brancas descia pesadamente até à água, que bebia com lentidão. Uma calma excessiva, apenas suportável quando se recordava a colmeia zumbidora do estúdio, os enervamentos do escritório. Aqui a paixão parecia uma coisa impossível e dormir a única finalidade da vida.

 

Prisca deixou-se cair para trás na erva espessa. David?... Estaria a dormir? Virou a cabeça para ele. Não estava a dormir; os olhos muito abertos, observava gravemente três pequenas nuvens brancas e redondas que se pavoneavam lá no alto, por cima deles, num azul que evocava essas bolas que Prisca se recordava de ter atirado para o lavadouro da avó da Bretanha num dia de barreia.

 

E, de repente, David disse:

 

”É preciso tomares uma decisão, sabes muito bem.”

 

Como Pierre Morin. Precisamente o que gelava Prisca: a escolha. Ela teria querido tudo. David feliz e essa profissão de que ela tanto gostava.

 

”Quanto a mim”, disse ainda David sem a olhar, ”creio que se impõe que parta.”

 

Então, ele não lhe deixava escolher. Ele devia ter razão, ninguém podia censurar-lhe seguir a sua carreira como entendesse. Mas Prisca tinha vontade de fazer eco com ele: ”Creio que se impõe que eu fique.”

 

Mas não disse nada... Um pouco mais tarde, beijaram-se à claridade do belo Verão, e ela esqueceu. Mas, ao cair do dia, ela disse, tão bruscamente que ela própria se espantou:

 

”Vou aceitar esta série de emissões, David. Se partires, irei ter contigo depois dentro de seis meses.”

 

Ele olhou-a e muito tempo depois, com uma curiosa doçura:

 

”Muito bem. Eu vou partir.”

 

Levou pouco tempo a organizar tudo. Telefonou no dia seguinte ao director da Universal Press Agency e, tendo o seu acordo, reservou um lugar de avião para quarta-feira à noite, 15 de Setembro. Precipitava a partida, Prisca sabia-o. Durante esses poucos dias não tinham sido felizes senão por instantes, quando a despreocupação voltava, como na Etiópia.

 

Pode-se envelhecer àquele ponto em oito dias? A sua viagem aos Estados Unidos mudara David e a sua ausência, essa semana de experiências que ela conhecera sem ele, mudavam a vida de Prisca.

 

Já não tinham a mesma candura.


Na quarta-feira de manhã, quando Prisca acordou, David ainda dormia. Prisca olhou-o... Ele ia partir nessa noite. Nada pudera fazê-lo mudar de opinião. Ela tocou com a ponta dos dedos a desordem dos cabelos, deslocou uma madeixa que se encaracolava sobre a orelha, em forma de vírgula. As sobrancelhas, louras também, mais carregadas, franjavam de sombra a olheira azulada no côncavo do nariz. Parecia tão jovem quando dormia...

 

”David!”, murmurou ela. Ela acariciava-lhe a face, os lábios entreabertos.

 

”David... amo-te, tu sabes.”

 

Ele abanou a cabeça sem abrir os olhos.

 

”Sim”, murmurou ela.

 

Ele teve um sorrisinho muito leve e mordeu o dedo que passava sobre a sua boca.

 

”Não disse ele.

 

E se eu partisse contigo?”

 

Somente então ele abriu os olhos. Ela estava tão perto e ele ainda tão adormecido que via dela uma imagem turva. Ergueu-se nos cotovelos para a ver melhor. E, como se isso não fosse suficiente, ergueu-se completamente, sentado bem direito, a confusão dos cabelos cobrindo-lhe a testa, até às sobrancelhas. Esboçou outro sorriso que não pedia mais do que ser feliz.

 

Então Prisca desatou a rir. Enroscada no peito nu de David, cujos braços se fechavam sobre ela, disse:

 

”Eu vou, se quiseres.”

 

Ele saltou contra a parede no voo dos cabelos, único traje que o revestia: David erguera-se, parecia Neptuno saindo da água, só lhe faltava o tridente.

 

”Estás a troçar de mim?

 

Não, reflecti. Tu ressonaste esta noite, acordaste-me, e então comecei a reflectir.

 

Eu nunca ressono!

 

Sim, ressonaste. Tinhas a cabeça na almofada e ressonavas, juro-te. Disse para mim mesma que nunca poderia viver seis meses sem ti... Haverá possibilidades de arranjar outro lugar no avião desta noite?

 

Vou-te inscrever na lista de espera. O visto não é problema, eu conseguirei, eu... Oh, Prisca! Estive quase a enlouquecer desde domingo. Cheguei a julgar...

 

Terás três anos na América para me dizeres o que julgaste, meu querido, mas agora despacha-te, tenho tantas coisas a fazer até à noite...”

 

Prevenir Pierre Morin, ir ver os pais, Clara Verneuil, dizer adeus a todas as pessoas, fazer as malas. Nada disto foi simples.

 

Pierre Morin estava catastrófico, e além disso, furioso.

 

”Você meteu-me numa embrulhada! Podia ao menos esperar pelo regresso de Annick. Não há dúvida, enganei-me a seu respeito.”

 

E a cara de Catherine, a de Valerie!... Prisca tinha vontade de chorar.

 

No Poleiro ainda foi pior:

 

”Recomeças? Estás louca? Definitivamente louca?... Não levas essa mala, proíbo-te.”

 

Do lado da mãe, então, foi:

 

”Escreverás, minha querida, telefonarás, não é verdade? Lá parece que se come mal... Pensa em te abafar, os invernos são terríveis em Nova Iorque. Voltarás nas férias, promete-lo?... Queres levar a tua gabardine? E as Levis vermelhas, passo-tas!”

 

Em casa de Clara Verneuil, a calma:

 

”Boa sorte, minha querida, seja feliz...”

 

Ela sabia o que era o amor. Como os pássaros, ele tem asas. Asas para voar.

 

Às quatro e meia, Prisca fechara as duas malas. David enervava-se:

 

”Despachas-te ou quê?

 

Ainda temos três horas à nossa frente.

 

Disse-te que estás na lista de espera; se queres ter uma probabilidade de tomar esse avião...”

 

Bertrand esperava em baixo no seu velho Peugeot para os conduzir a Roissy, já levara para baixo a mala de David. Valerie escapara-se do escritório, deixando Catherine sozinha e aturdida com toda aquela barafunda. François, que vinha da escola (entrara há três dias), quase que ia abaixo sob o peso de Cécile, que fora buscar ao infantário para essa ocasião excepcional. Ele gritou:

 

”Não te esqueças do meu tomahawk, Prisca. Prometeste-mo.”

 

David, carregado com as duas malas de Prisca, empurrava-a no patim da porta.

 

”Não te esqueceste dos documentos?

 

Que documentos?

 

Eu disse-te: uma certidão de idade, os certificados de vacina... Sei lá o que é que é preciso para as pessoas se casarem lá!”

 

Prisca apoiava-se, cambaleante, no meio do patamar, em frente do elevador que descia vazio... -

 

”Casar-se?

 

Evidentemente, casar-se! Tu não vais dizer que não, pois não?”

 

E no carro, depois do adeus a Valerie, que agitava o braço e corria no passeio, gritando que mandassem um telegrama quando chegassem, esse olhar de David, terno, tão maravilhosamente feliz:

 

”Pronto, minha gaivota! Outra vez o avião, como para a Etiópia.

 

E se não houver lugar para mim?

 

Há. Eu tratei das coisas com um indivíduo da Cook.”

 

Iam ambos sentados atrás. Bertrand conduzia depressa numa estrada contudo atravancada. Em frente deles, Roissy, um avião a tomar e no fim da viagem... não um fim, um ponto de interrogação.

 

Prisca voltou-se. Um último olhar a Paris, que guardava as suas esperanças, mas não a sua alegria! Essa levava-a ela consigo. David! Docemente, ele diz:

 

”Nos Estados Unidos, sabes, também há produtores de televisão e de rádio...”

 

Prisca sorri-lhe:

 

”Ajudas-me?”

 

Ele acenou com a cabeça:

 

”Desta vez partimos juntos...”

 

                                                                                            Cecile Aubry

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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