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A FORTALEZA DO DRAGÃO / Denise Flaibam
A FORTALEZA DO DRAGÃO / Denise Flaibam

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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HAVIA ALGO QUE INQUIETAVA o homem solitário. Algo perverso e incomum nas tão conhecidas brumas. Tal situação o colocava em uma posição perturbadora: não deveria sentir medo, deveria? A névoa o venerava, conviviam em harmonia desde que aquele Reino lhe fora imposto. Era uma serva, nada mais. Por algum motivo desconhecido, naquela noite, as brumas estavam agitadas. Algo as deixava apreensivas.
Diferente de seres inferiores, como os humanos, o Mago conseguiu entender o que os sussurros insistentes diziam. Não eram simples vozes transportadas pelo vento, mas almas milenares dispostas a cooperar a seu favor. Almas que, naquele momento, desejavam transmitir-lhe um recado.
Passos ribombaram pelo silêncio daquele extenso corredor, despertando o solitário admirador das brumas – elas encobriam tudo naquela noite, deixando o ambiente tão mais belo, tão mais misterioso. E ele gostava de mistérios. Gostava de tentar desvendá-los. Gostava da maneira como se intrincavam uns nos outros, tornando tudo mais complexo.
O que era Warthia senão um eterno mistério?
O homem encarou aquele que interrompeu sua meditação, seus olhos dourados capturando os do visitante. Eram íris de prata pura, como se ali tivesse sido derramado o metal abençoado pelos Deuses.
– Por que a interrupção? – O solitário indagou.
– Sinto muito, meu pai, mas elas chegaram. – O rapaz explicou cuidadosamente, temendo alguma reação negativa do homem. Em seu rosto havia frieza, da maneira exata que ele havia aprendido a manter perto do criador.
– Ótimo. – Contrariando as expectativas do rapaz, o homem sorriu. Era o sorriso sem emoção, deformado graças à horrível cicatriz em seu rosto.
Ele rapidamente se afastou da varanda, caminhando até o filho. O rapaz esperou que seu pai passasse, curvando-se numa reverência respeitosa, e depois tratou de segui-lo.
O caminho até o salão foi marcado pelo som de seus passos, suaves e apressados, e de suas respirações. O rapaz estava ansioso, mas tentava se conter em respeito ao pai.
– Lembre-se, Luke... – o homem voltou-se para seu filho, colocando em seus olhos dourados toda a intensidade que faltava em sua voz. – preciso que coopere com qualquer coisa. Honre o sangue que corre em suas veias. Esse acordo é essencial.
– Como quiser, meu pai. – o rapaz assentiu, adiantando-se para abrir as portas. Do outro lado, em um grande salão sombrio, ele anunciou a chegada de seu criador. – Recebam Maltrus Tytos, nosso sábio monarca. Governante do Reino das Brumas e Senhor do Sul! – O Rei não usava qualquer indicação de sua origem, como a nomeação de quem eram seu irmão ou mesmo seu pai; a grandeza vinha de si mesmo. Ele renegava os que o haviam abandonado naquele longínquo canto do continente.
Apenas cinco figuras ousaram não se curvar, mas Maltrus já esperava aquela reação. Passou por seu filho e pelos lordes da Corte, pouco se importando com eles, e parou bem em frente aos insolentes. Três mulheres, vestidas de negro e vermelho, e dois Amaldiçoados.
Uma das mulheres exibia um sorriso suave, quase imperceptível, e seu olhar carregava a marca das sombras que habitava sua alma.
– Majestade. – A voz suave dela chegou aos seus ouvidos ao mesmo tempo em que ela se curvou. Suas acompanhantes imitaram seu gesto, mostrando que fariam tudo que ela fizesse.
– Fico feliz em ver que sua Rainha aceitou conversar. – Maltrus disse austeramente, observando as mulheres à sua frente. A única que tinha sua total atenção era a líder, a mesma que carregava o sorriso, e os olhos dela exibiram curiosidade.
– Por que minha senhora recusaria uma oferta tão tentadora? Ela sabe que precisa de aliados, e quem melhor do que vossa majestade?
– Ela é prudente em suas escolhas – Maltrus comentou. – E sua Rainha tem algum recado em resposta ao meu pedido?
– Certamente. – A mulher acenou. Uma das acompanhantes tirou uma adaga da bolsa, mas o Rei não recuou. Tinha conhecimento de seus estranhos rituais.
Delicadamente, a lâmina prateada foi em direção ao ombro nu da líder, rasgando a carne para que um desenho fosse marcado ali. Enquanto cortava a mulher, a acompanhante sussurrou coisas na língua profana; linguagem do submundo de Warthia. Palavras que Maltrus conhecia bem.
– Nio vani came, Sharowfox. – O Rei terminou a frase junto com a mulher, dando boas-vindas àquela que ele tanto esperava. Recuou quando avistou as brumas invadindo o salão.
As nuvens brancas adquiriram formas de braços e mãos,
cujas garras cravaram-se no chão enquanto arrastavam na direção dos presentes. Mesmo calmo, o Rei sentiu o temor aumentando em seu coração. Aquilo era poder demais para ser ignorado.
O branco daquela névoa transformou-se lentamente num tom escuro, tão denso quanto o manto da noite. As brumas escorregaram pelo chão, assustando os presentes naquela sala, suas formas transmutando-se conforme se aproximavam mais e mais daquelas que as convocaram. Os braços de ébano contornaram a figura imóvel da líder, que recebeu o abraço da névoa negra com um sorriso de euforia.
Seus olhos, antes azuis, foram totalmente engolidos pela cor das Trevas, e avaliaram o Rei com curiosidade contida. A possessão era um poder exclusivo das Feiticeiras. Um poder absolutamente temido.
Sharowfox, sorrindo atrás do rosto de sua filha, disse:
– O acordo está feito. Você é um aliado das Trevas. Agora serve a mim.

 


 


Observando o encantador nascer do Sol, o jovem Mago conseguiu esquecer um pouco da preocupação que dominara sua mente minutos antes.

Por ter sido construída bem no começo das cadeias montanhosas daquele Reino, a Fortaleza era rocha pura. A titânica arquitetura contava com pináculos altos, de tetos quadrados, e torres espalhadas em meio ao palácio central. Pilares cilíndricos estavam por toda a parte, sustentando o teto.

A figura solitária encontrava-se parada bem no fim da varanda, apoiando-se na mureta de proteção. Por mais que o deserto parecesse traiçoeiro e monótono aos olhos dos viajantes, quem ali vivia sabia a beleza natural que ele ostentava. Suas dunas gigantescas podiam confundir aqueles que não conseguiam se locomover na região inóspita, mas levavam quem desviava de suas armadilhas a oásis paradisíacos. Precisava-se, no mínimo, de um ótimo guia para se situar nas maravilhas do Reino Árido, e raramente viajantes o tinham.

O silêncio, habitado apenas por pensamentos disformes, foi substituído pelo som de passos. O solitário virou-se para observar o visitante inesperado, encontrando o par de olhos azuis que conhecia havia tantos anos.

Theodore, aquele que o tirava do momento de sossego, adiantou-se, curvando-se em respeito ao governante.

Jon era o mais jovem dos Quatro Reis – irmão legítimo de Demetrius e Red e meio-irmão do bastardo Maltrus. Warthia conhecia as histórias sobre sua bravura, seu senso de lealdade e também que, além de Demetrius, Jon comandava a frente da guarda real – no caso do Reino Árido, era o líder da tropa de arqueiros mais famosa daquele mundo.

Jon fora levado ao trono quando tinha apenas dez anos, na época em que seu irmão decidiu dividir Warthia. Ficou incumbido de governar o Oeste, a terra mais traiçoeira dos Quatro Reinos. Em seu âmago, o jovem Mago considerava o Sul muito pior, mas jamais comentou tal fato perto de Maltrus.

Como líder, deveria cuidar para que seu povo tivesse do melhor, e desde sempre buscou cumprir dignamente esse dever. Era adorado pelas famílias que viviam nos vilarejos dali.

Jon Tytos, o destemido, era como o chamavam. Um Rei que lutava pela honra de seu povo.

Momentos antes, tivera o sono interrompido por conta de um sonho estranho envolvendo as Trevas. Para maior assombro, o rosto dela viera até sua mente. Mas não podia ser real, ela não podia estar naquelas redondezas.

O Rei havia pedido a Theodore para investigar o tal susto, e agora ele trazia as notícias:

– Majestade, os patrulheiros relataram que suas suspeitas eram verdadeiras. Os Escorpiões mudaram seu rumo regular, dirigiram-se para localidades próximas daqui. – Jon aguardou, apreensão fincando rugas em sua testa. – A escolhida está em perigo, posso sentir. – O rosto de Theodore assumiu uma expressão sombria, preocupação tomando seus olhos.

– Chame a Tropa, vamos partir.

Jon estacou depois de dizer aquilo. Repentinamente, um flash estalou em sua mente. Um rápido contato mental tentado por alguém; magia antiga. Pânico e desespero foram passados para ele por esse laço, além da imagem de um gigantesco monstro de aparência mortífera.

Jon correu até seus aposentos, vestindo sua capa de viagem e amarrando a aljava de flechas às suas costas – foi rápido, assim como seus soldados. Aqueles arqueiros, em especial, deviam estar preparados para missões urgentes. Tratava-se de um grupo seleto e apto aos desafios que se estendiam cada vez que partiam para o traiçoeiro Deserto.

Os corcéis – trazidos do Sul enquanto ainda filhotes – eram os mais rápidos de toda Warthia. Diziam que um cavalo daqueles corria com a velocidade do vento e que podiam cavalgar em qualquer terreno sem nenhum empecilho. Jon se orgulhava de tê-los escolhido para participar das viagens, pois horas se tornavam minutos enquanto eles cavalgavam pelas dunas. E economizar tempo era o que eles mais precisavam agora.

Preparados, os soldados já aguardavam seu Rei, vestidos apropriadamente para a ocasião – não sabiam que missão era aquela, apenas que se mostrava urgente. Tudo o que lhes fora informado é que sua coragem seria mais do que necessária.

– Meu senhor... – Theodore, veloz e habilidoso, alcançou seu Rei na corrida pelo pátio. – O Deserto deve responder a esse ataque? – Ele pediu sua permissão com ansiedade no olhar. Jon entendeu o que Theodore quis dizer, e acenou positivamente.

Mídria responderia ao chamado de seu controlador.

A viagem começaria dos portões do Castelo.

Seu destino ficava a alguns quilômetros do palácio, curiosa e assustadoramente tão perto.

Jon acelerou o passo quando enxergou seu corcel negro e nele montou rapidamente, virando-se para seus homens.

– Sei que essa missão parece arriscada, mas peço que confiem em mim e fiquem com seus arcos preparados. As bestas estão atacando.

Os portões de ferro tombaram com força no chão, dando passagem para os furiosos corcéis cruzarem sua proteção – os muros daquela fortaleza eram muito altos, e as torres sentinelas nele instaladas tocavam as nuvens. O Sol lançava seus raios para todos os lados, e não havia sinal de nuvens pelo céu anil. Era um clima perfeito para os monstros, pensou Jon, enquanto amarrava um pano preto ao redor da cabeça, deixando só seus olhos expostos.

O Rei tentou, então, uma tática que não usava há mais de um ano. Não sabia se funcionaria, mas sabia que ela permitiria sua tentativa se estivesse desperta. Só rezou aos Deuses para que não fosse tarde demais.

Enquanto seu corcel guiava-se sozinho, seguindo Theodore pela estreita passagem aberta no meio da montanha, Jon fechou os olhos e focalizou sua mente numa única criatura. Lembrou-se do dia em que tal técnica lhe fora ensinada.

Ele era muito mais jovem na época, mas sedento por sabedoria, e recebeu aquela informação como uma dádiva. Lembrava-se também do sorriso no rosto belo de quem lhe ensinara. Seria impossível esquecer a maneira com que os olhos azuis da criatura havia se iluminado ao fitá-lo. Fora um dos momentos mais marcantes de sua vida.

Demorou um segundo para que recebesse algo além da imagem formada por sua própria imaginação. Era apenas o eco de uma voz em meio à escuridão repentina de sua mente.

Ajude-nos.
Por que aquela desconhecida estava em sua cabeça, quando a procurada era a ondina? Por curiosidade, Jon deixou a barreira cair e tentou contatar aquela voz que ele nunca havia ouvido.
Quem é você?
Eles estão atacando. Não conseguimos fugir! Tem que nos ajudar, por favor! Ývela está morrendo.

Capítulo 1

Dias antes...

SERAFINE NUNCA SE SENTIRA tão exausta quanto naquele momento. Seus músculos tinham cãibras por estar tanto tempo sentada e suas pernas pediam por alguns minutos de descanso, mas Jarek, seu guardião, se mostrava determinado a cruzar a fronteira antes do anoitecer. Ele era a criatura mais teimosa daquele mundo, sem dúvida alguma. Mesmo Ývela e Guillian, seus outros guardiões, haviam dito que parar um pouco seria bom. Jarek, claro, contrariara aquele diálogo, retrucando que a melhor alternativa seria deixar o Reino das Florestas para trás o mais rápido que pudessem.

Fazia cinco dias desde sua partida de Líriel. Cinco dias desde que deixara a cidade mística dos elfos. Tinha kaily, que significava liberdade na língua comum. Não tanta quanto desejava, na verdade.

A menina estava presa ao seu destino.

Quanto maior a distância que cobriam do Castelo das Quatro Luas, maior a saudade que invadia o coração de Serafine – cada boa lembrança de sua temporada lá estaria eternamente guardada em sua memória. Ela jamais esqueceria aqueles que a haviam ajudado e as novas amizades que havia conquistado. Ývela, aliás, já havia se comunicado telepaticamente com Lonel – lorde elfo do palácio protegido – e informado como andava a viagem deles.

Serafine tinha uma excelente palavra para definir a jornada até aquele momento: cansativa.

Quanto mais andavam, mais longínquo parecia o Deserto. A paisagem repleta de árvores estava se tornando enjoativa, pois não havia qualquer civilização em seu trajeto. Jarek tomara um atalho, seguindo pelo caminho próximo à cadeia de montanhas – as mesmas que, se atravessadas por corajosos, levavam às Terras Desconhecidas.

Vez ou outra, Serafine se viu pensando sobre o que diriam os moradores de sua antiga casa, Vila do Sol, se soubessem das aventuras que vivera desde o ataque cometido pela matilha de Sanzur. Sobre a fuga de Águas Claras, seu encontro com a Fênix, o patrono dos Deuses e a batalha durante a invasão de Amaldiçoados à cidade dos elfos. Perguntou-se sobre o que haveria acontecido à traidora que passara a Lonel e aos outros a informação errada sobre o acampamento dos lobos, resultando assim num massacre em Líriel. Desejou imensamente que ela pagasse pelo que tinha feito.

Tanta coisa havia ocorrido em apenas dois meses, levando sua vida a um pandemônio completo. E ainda havia aquela profecia, ditando seu destino, e a incerteza do que o futuro lhe revelaria.

Por dias, porém, a calmaria persistiu em sua viagem. Quando tinha chance de dialogar com um de seus acompanhantes, estava cansada demais para puxar assunto.

Era frustrante, mas Serafine não podia reclamar – Jarek apressava as coisas para que chegassem logo ao Reino Árido, de modo a encontrar o Segundo Mestre.

Durante seus turnos de vigia, a morena sentava-se em um tronco de árvore ou escalava uma. Geralmente meditava, excluindo qualquer preocupação e concentrando-se no nada, e em outras vezes vasculhava as páginas dos livros que trouxera consigo, como aquele com o Sol elaborado na capa. O conteúdo estendia-lhe informações de mão beijada, mas nenhuma delas era compreensível. Mesmo depois de tantas aulas a respeito da Língua Antiga, Serafine via os símbolos com intensa incompreensão.

Relaxar era uma bela maneira de conectar suas forças à energia natural que pulsava ao seu redor. Os elementos a abraçavam e fortificavam, acalmando seu espírito.

Também tinha que aturar sua mente vagando em devaneios deveras constrangedores como, por exemplo, pensar em Jarek. Quando estava de vigia, pegava-se observando o corpo adormecido do guerreiro tempo demais.

Quanto mais tempo passava ao lado dele, mais sentia a atração crescer.

Jarek, ao contrário dela, não demonstrava nada. Serafine já estava acostumada com as atitudes rígidas do guerreiro, mas quando observava atentamente, percebia o muro que ele criara em seu próprio coração. Os olhares de Ývela ou Guillian sempre vinham carregados de emoções, o de Jarek raramente evidenciava algo que o comprometesse.

Serafine se deixava levar pelos curtos diálogos trocados com ele, sempre carregados de humor e sagacidade, e aproveitava para lançar um ou outro olhar curioso quando Jarek a encarava. Nada comprometedor, só agia como sempre agira na presença dele. Jarek fazia o mesmo: arqueava uma sobrancelha, abria o sorriso mordaz e desviava a atenção.

Quando se viu perdida em pensamentos sobre os ocorridos nos últimos dias, Serafine quase não reparou no fim da floresta. Era estranho, depois de ficar tanto tempo cercada por vegetação, mas a fronteira estava próxima.

Bem ao fundo, a quantidade de árvores ia diminuindo até que passaram pela última delas e viram-se num espaço vazio. As sombras não se faziam mais presentes e o crepúsculo podia ser avistado se mirassem o Oeste.

Serafine aproveitou a parada súbita que eles fizeram para vagar seu olhar na paisagem à sua frente: começava com colinas cobertas por um pouco de grama, formando sequências de montes por alguns quilômetros. Mais à frente, até a linha do horizonte, ela conseguiu avistar altas dunas de areia branca refletindo os últimos raios de Sol.

O Deserto de Mídria podia ser visto a partir de um substancial declínio de terra, carregando mistérios em suas traiçoeiras estradas desconhecidas. Serafine ficou aliviada por Jarek e Ývela saberem se virar naquela região, pois tinha consciência de que se perderia facilmente em meio aos montes arenosos.

– Acho que agora podemos descansar um pouco. – Ela ouviu Ývela comentar. Não havia irritação em sua voz, mas cansaço pela última discussão com Jarek.

– Por que enrolar tanto?

– Jarek, nós já cruzamos a fronteira! – exaltou a guardiã. – Podemos aproveitar as últimas árvores, procurar água para nos lavarmos. Devemos estar descansados quando alcançarmos aquele deserto.

– Ótimo, montamos acampamento aqui. – Resmungou Jarek.

– Tem um pequeno rio seguindo naquela direção – Ývela disse, virando-se para a direita. Apontou e aguardou. Jarek cruzou os braços e armou sua expressão mais indignada, sabendo o que viria a seguir. – Vá até lá, está bem?

– Por que eu sempre saio marchando por ai? – Ralhou ele, portando-se como uma verdadeira criança.

– Porque você é quem sempre começa as discussões, portanto é justo que nos dê um pouco de sossego. – Ývela retrucou, sorrindo vitoriosa.

– Acho sua argumentação ofensiva, ondina.

– Não discuta com a criança, Ývi. Eu vou. – Serafine pegou os cantis de água e os potes que haviam trazido e se afastou sem deixar que Jarek comentasse algo. Notou a expressão incrédula e ofendida do guerreiro e escondeu o sorriso.

Ouviu uma risadinha de diversão vinda de Guillian e lhe lançou uma piscadela rápida.

Embrenhou-se novamente na floresta, deixando de enxergar a fronteira após alguns minutos de caminhada.

As fronteiras haviam sido perfeitamente calculadas, marcando exatamente onde começava o Grande Deserto ou onde acabava o Reino montanhoso. Serafine ficou curiosa quanto ao Sul, mas ninguém ali avisou sobre o que ela poderia esperar do Reino das Brumas – os viajantes que por lá haviam passado comentavam, quando ela ainda vivia em Vila do Sol, quão recheada de assombrosas histórias era aquela terra.

O som de água corrente chegou aos seus ouvidos antes de avistar o rio – sendo controladora da Água, tinha tantos poderes quanto uma elemental. Por isso, guiou-se habilmente, percebendo também algumas vozes delicadas das entidades presentes no rio. Era estranho, mas Serafine já tinha se acostumado. Sua conexão com o mundo dos elementos ia além da compreensão de qualquer criatura.

O rio era largo e fundo. A água límpida que provinha da nascente em Líriel acalmou os ânimos exaltados da garota. Não conseguia impedir que o cansaço se tornasse irritação, ainda mais com a pressão que vinha sofrendo.

Sua missão de destruir uma antiga fonte de poder, chamada Cílion, para impedir que Sharowfox se tornasse indestrutível, se aproximava. O combate com a Feiticeira se daria depois disso, provavelmente, mas Serafine não se sentia confiante. Talvez, com o domínio dos quatro elementos, seu espírito ficasse poderoso o suficiente. Porque, afinal de contas, era dele que provinha toda a sua força.

Ela não se iludiria ao pensar que tinha algum poder, porque não era verdade. Tinha força de vontade e um pouco de coragem, apenas isso. O espírito tinha um papel muito maior naquela história.

Ajoelhou-se em frente ao lago e encheu os cantis de água, além dos dois potes grandes que usavam para abastecer os cantis – um grande rio, chamado de Turvo, cortava o Deserto, mas Ývela dissera que eles demorariam a alcançar algum afluente dele. Por sorte, a ondina tinha um poder surpreendente que seria muito útil naquela viagem: Ývela conseguia invocar água, de modo que, mesmo de uma gota, a ondina faria surgir um rio. A magia era exaustiva, mas, em caso de necessidade, seria usada. Ývela não poderia, contudo, ensiná-la a Serafine, pois tomaria muito tempo e forças que precisavam guardar para a jornada.

Depois de ter recolhido a quantidade necessária de água, Serafine afundou as mãos no rio e jogou um punhado em seu rosto – estava quente e, mesmo com o vento incessante enquanto seu corcel cavalgava, ela sentia mais e mais calor. Não queria pensar em seu estado ao viajar pelo Deserto.

Ouviu passos e ergueu o olhar alerta para encontrar Jarek caminhado em sua direção. Respirou fundo e voltou sua atenção para a água, nem um pouco inclinada a puxar conversa.

Infelizmente para ela, Jarek não precisava de convites para iniciar um diálogo.

– Mais calma, princesa?

– Posso parecer calma, mas em minha mente já o matei três vezes. – Ela retrucou num sussurro. Jarek gargalhou sonoramente.

– Ah... Tão calma quanto encantadora.

– Por que não vai infernar outra pessoa?

– Porque, de todos que conheço, você é a que mais me diverte.

– O que está fazendo aqui, afinal?

– No momento? Tirando a roupa.

Serafine virou bruscamente para ele, estupefata pela ousadia. Encontrou-o a despir o colete de proteção, um sorriso bem humorado enfeitando seus lábios.

Ela já o havia visto sem camisa, mas antes não se permitia atrair por ele. O tronco era todo definido por músculos bem trabalhados, tendo cicatrizes largas e marcantes desenhadas na pele bronzeada.

– Gosta do que vê? – Serafine fugiu dos devaneios e virou de costas, cruzando os braços. Jarek soltou outra gargalhada alta em resposta.

Serafine ouviu a movimentação dele na direção contrária e, espiando, assistiu o moreno saltar dentro do lago – ele escolheu uma área mais funda para o mergulho, emergindo segundos após o impacto com a água.

– Não vai se lavar? – O cabelo longo e encharcado estava todo desalinhado, cobrindo seu rosto. Serafine arqueou as sobrancelhas pela pergunta, indignando-se.

– Eu não vou me lavar com você ai de plateia!

– Uma pena. – Jarek sorriu, afundando para arrumar a cabeleira bagunçada. Serafine observou, quando ele emergiu de novo, como as sombras das árvores ao redor projetavam-se perfeitamente em seu corpo, marcando os olhos azuis escuros mais intensamente do que o normal.

Jarek, nadando até onde Serafine se encontrava ajoelhada, balançou a cabeça, e gotículas de água voaram até a morena, respingando em seu rosto.

– Ei!

– Eu nem molhei você. – Ele replicou.

– Minimamente, mas molhou.

– Isto... – ele parou alguns segundos. Serafine franziu o cenho, tentando entender a mensagem que ele passava. O guerreiro estava perigosamente próximo, mas seu sorriso predatório a confundiu. – é molhar você. – Jarek agarrou a morena pelos pulsos e a puxou para a água. Serafine emergiu em um emaranhado de fúria e fios de cabelo desalinhados.

– Jarek! – guinchou. – Qual é o seu problema? – Ignorou a proximidade com ele, dando braçadas para colocar uma boa distância entre seus corpos.

– Além do calor? Eu tenho alguns problemas com o governo, nunca fui um sujeito muito honesto. – Ele boiou onde estava, parecendo tão relaxado quanto um fazendeiro depois da época de colheita.

Serafine aproveitou a distração dele para realizar uma travessura. Murmurou as palavras mágicas para invocar a água e assistiu um redemoinho silencioso e relativamente alto erguendo-se atrás do guerreiro. Jarek estava tão absorto que nem reparou nas ondas suaves que balançaram seu corpo.

Em um segundo, os poderes de Serafine haviam correspondido ao seu pedido silencioso – o redemoinho transformou-se numa bolha de água que, sorrateiramente, soltou-se sobre o guerreiro. Jarek afundou e emergiu no susto, causando um ataque de risos em Serafine.

Antes, ela precisava de concentração excessiva para acessar seus poderes. Após a invasão dos lobos a Líriel, porém, se tornara fácil controlar a água. Não ficava exausta e nem tinha mais dores de cabeça – o que era curioso, pois, antigamente, sempre que invocava seus poderes, o fantasma de Mahiry costumava aparecer.

– Engraçadinha. – Ele resmungou, esfregando os olhos.

– Valeu a pena. – Ela replicou.

Jarek grunhiu qualquer coisa sobre ela ser uma “princesa fresca” e nadou para longe. Quando viu que ele estava há bons metros de distância, Serafine afundou o rosto e aproveitou os sussurros calmos das entidades ao seu redor para relaxar. Ficou assim por mais uns segundos e preparou-se para emergir, quando uma pontada suave e repentina, bem atrás de seus olhos, a fez ofegar, perdendo o fôlego que segurava.

Ela fechou os olhos, mas nenhuma imagem se formou. Suave e rápido, aquele choque espalhou-se por sua mente e então uma voz reverberou em sua cabeça:

– Apresse-se, criança. O tempo está correndo.

A voz era de um homem e, apesar de estar severa e rouca, transmitia paz. Sem querer, Serafine lembrou-se do Primeiro Mestre, morto em batalha. A sensação que sempre tivera ao conversar com ele era a mesma que sentia agora.

– Quem é você?

– Sou aquele que irá lhe ensinar o domínio da segunda força. – E então a voz sumiu, deixando-a sozinha com seus próprios pensamentos. Serafine viu-se piscando insistentemente, ofegando e tossindo para recuperar o ar perdido. Jarek, com os cabelos desalinhados e o rosto preocupado, a havia levado até a margem.

– Eu estou bem! – Serafine exclamou de repente, surpreendida pela proximidade com o guerreiro. Ela conseguiu enxergar, sem ter que usar sua visão apurada, as gotículas de água caindo dos cílios longos e escuros dele.

Jarek não pareceu incomodado. Ele afastou-se, ficando próximo o suficiente para conversar.

– O que houve?

– Nada.

– Mentirosa.

– Não foi nada demais. – Exaltou hesitante.

– Você quase se afogou. – Jarek rebateu. Serafine deu-se por vencida, lançando a ele um olhar zangado.

– Uma voz falou comigo.

– Sua amiga morta? – Ele não era nem um pouco sutil.

– Não, não foi Mahiry. Eu com certeza estaria mal se a tivesse visto – ela disse. – Foi um homem, eu acho. Ele me disse que iria me ensinar o domínio da segunda força...

Jarek se afastou e pegou seu colete. Sem vesti-lo, puxou Serafine pelo braço, suavemente, para a surpresa dela, e começou a arrastá-la para longe dali. Ela teve tempo de pegar as coisas, mas depois correu na direção em que haviam vindo.

– O que aconteceu?

– Precisamos partir. – Ele falou. Sua voz estava carregada e um pouco altiva, do jeito que ele usava quando estava preocupado. – Agora.


Capítulo 2

Devaneios ao Vento

 


SERAFINE E SEUS GUARDIÕES haviam acabado de passar pelas colinas que separavam o Reino das Florestas do Árido. Estavam, definitivamente, em Mídria.

O território dominado pelas intermináveis dunas se estendia ao que parecia além do horizonte, cobrindo quilômetros com a areia branca.

Ývela havia dito que, durante a noite, o calor intenso era substituído pelo frio arrasador – o que não deixou Serafine nada aliviada. A queda brusca de temperatura parecia tão ruim quanto a mais elevada dela.

O céu estava pouco iluminado, devido à Lua nova, mas as estrelas pintavam o manto de ébano com suas brilhantes silhuetas, deixando a noite mais acolhedora.

No momento, ainda estavam no início do Deserto – mais à frente, deveriam andar com cautela. Os corcéis do Sul haviam sido treinados para andar sobre qualquer terreno, mas precaução nunca era demais.

Pelo que fora explicado a Serafine, deveriam chegar a um lugar conhecido como Fortaleza do Dragão, pois era lá que Ývela acreditava estar o Segundo Mestre. Tal fortaleza localizava-se numa cadeia de montanhas no extremo oeste do Reino. Se seguissem o caminho sugerido pela ondina, demorariam pouco mais de uma semana para alcançar a região – isso sem contar qualquer contratempo oferecido pelo Deserto.

Haviam se passado três horas desde que Serafine fora arrastada por Jarek, logo depois daquela estranha comunicação com a voz em sua cabeça. Seu guardião conversou rapidamente com Ývela e Guillian e os dois imediatamente assentiram quanto à partida.

Era ou não era o seu Segundo Mestre falando pelo laço? Tal pergunta rondou a mente de Serafine. Não houve tempo, no entanto, para que tivesse sua resposta. Restou a ela matutar sobre o ocorrido, buscando sozinha uma maneira de explicar o acontecimento. O domínio da segunda força, a voz havia dito. Isso só podia significar a magia elemental.

– Poderíamos seguir pela trilha próxima ao mar. – Serafine ouviu Ývela dizer, momentos mais tarde. Ela conversava com Jarek, seguindo á frente do grupo. – É seguro e certamente encontraríamos a cadeia de montanhas com rapidez. Devemos priorizar a rapidez.

– Sabe que eu não vou por aquele caminho em hipótese alguma, Ývi. Os bárbaros e piratas gostam da região nessa época do ano. – Jarek tentou soar convincente, mas Serafine encontrou temor na voz dele.

– Eu sei, mas poderíamos contar com as águas para nos guiar. – Havia uma espécie de batalha verbal entre os dois. Ambos conversavam tão baixo que, se não fosse à audição apurada de Serafine, não estariam sendo ouvidos. – O centro do Deserto é perigoso demais.

– É o caminho mais curto. As dunas confundem as pessoas, mas eu cresci nessas terras, sei que lugares evitar. – Jarek argumentou. Serafine surpreendeu-se ao ouvir tal revelação, já que ele nunca falava em seu passado. – Entendo que você não queira passar por ali, mas nós encontraremos a direção com facilidade.

– Se sentirmos alguma presença estranha, nós voltamos.

– Certo.

A cavalgada se tornou calma se comparada à constante correria desde a partida do Castelo élfico. Os corcéis – embora preparados para aquela jornada – logo começaram a demonstrar exaustão. Jarek notou que Darius não pisava mais firme no chão e fez um sinal para que parassem. Serafine não soube distinguir onde estavam.

Era frustrante não identificar o que, pouco tempo atrás, se mostrara uma imensa e inacabável floresta. As árvores titânicas haviam sido deixadas para trás, engolidas pelo Deserto.

Serafine desmontou de seu corcel quando Jarek também o fez. O guerreiro e Guillian dividiram-se para cuidar dos cavalos. Ývela se ofereceu para o primeiro turno de vigia, sentando-se no topo de uma das dunas.

Depois de montado o acampamento, Jarek preparou uma fogueira e deitou-se num canto, caindo no sono quase que instantaneamente. Depois de longos minutos, mesmo sabendo que precisava dormir, Serafine desistiu do descanso. Resolveu então juntar-se à sua guardiã.

– Ei. – Ývela exclamou ao vê-la acordada. O ronco alto de Guillian denunciava que ele não estava em situação diferente da de Jarek.

– Importa-se? – Ývela deu de ombros, voltando a encarar a paisagem. Ali, tudo o que Serafine capturou com o olhar foram os montes de areia dividindo-se em espaços maiores e menores. Não havia mais nada para observar. Nenhum animal, planta ou construção.

Por causa disso, a morena viu-se pensando sobre o que faziam viajantes desacompanhados que caíam nas garras do Deserto. Enquanto trabalhara na estalagem de sua mãe, ouvira conversas daqueles que já haviam caminhado por aquelas terras – eles temiam retornar ao traiçoeiro Reino do Oeste. Por mais que a terra fosse exótica, com vilas repletas de especiarias valiosas, correr o risco de vida para alcançar a civilização não era uma opção agradável.

– É um lugar incrível, não acha? – Ývela comentou. Havia em sua voz um tom sonhador, enquanto os olhos azuis admiravam as infinitas dunas encobertas pela noite.

– Visualmente sim. O clima é que não é muito agradável. – Serafine resmungou, fazendo sua guardiã rir.

– Depois de um tempo você se acostuma. – A loira garantiu, fechando os olhos quando a brisa gélida passou por elas. Serafine arrepiou-se, desejando poder voltar ao clima ameno do Reino do Norte. Seu pai costumava brincar que Serafine devia ter nascido naquelas terras. Agora que as via, a morena discordava completamente.

– Quantas vezes você já veio para cá?

– Três. – Ývela pareceu pensativa, deixando sua mente vagar por memórias que só ela conhecia. Serafine ficou curiosa, ponderando se perguntar sobre as viagens da ondina seria uma invasão muito descarada de privacidade. – Uma delas foi só de passagem, pois tive que viajar até o Sul. Outra foi quando fui atacada pelos bárbaros – apesar do cenho franzido, ela conseguiu sorrir. Serafine se lembrava bem da história sobre o salvamento realizado por um garoto que libertara a ondina e mais uma boa quantidade de prisioneiras dos vendedores de escravos. – A última foi como convidada de um velho amigo.

– E você já visitou a tal Fortaleza do Dragão?

– Oh, sim – ela animou-se. – É uma construção magnífica, você vai adorar aquele lugar! Tem corredores enormes e torres tão altas quanto às do Castelo das Quatro Luas, mas toda a sua arquitetura tem o estilo desta região. Há estátuas de dragões por todos os cantos. Sua história é a mais instigante, mas acho melhor que outra pessoa lhe conte... – ela sorriu. – O Castelo é todo moldado em rocha. É uma ótima maneira de se camuflar das bestas.

– E nós devemos temer essas bestas? – Serafine inquiriu num fio de voz.

– Não, apesar de eu não garantir que não encontremos nenhuma. – A ondina suspirou, voltando seu olhar austero para a morena. Serafine viu naqueles grandes olhos azuis a preocupação de antes, de quando ouvira a conversa entre seus guardiões. – O Deserto é traiçoeiro, portanto, resolvemos seguir por um caminho que Jarek acha seguro. Ele conhece bem aquela região, podemos ficar sossegados.

Serafine assentiu, tentando esconder o temor. Depois que desvendara a magia presente naquele mundo, viera a descobrir sobre os muitos monstros que o habitavam. Onde havia Luz havia Trevas, e as Trevas tinham um poder imensurável.

– Você está cansada, Serafine. – comentou Ývela, tirando a morena de seus devaneios. – Não consegue dormir?

– Achei que estivesse exausta por causa da viagem, mas não sinto sono. – Serafine explicou. Horas atrás, estava a ponto de desmaiar em cima do corcel. Agora, apesar da mesma sensação, não conseguia fechar os olhos.

– É normal se sentir assim. Há tanta coisa passando pela sua cabeça... – Ývela sorriu compreensiva. – Jarek me contou sobre a sua visão, quando estavam na floresta.

– Não foi uma visão. Eu só ouvi uma voz.

– Qualquer contato psíquico é chamado de visão. É um dom muito raro e difícil de ser adquirido. – a ondina explicou. – Eu tenho um pouco desse poder, portanto, consigo estabelecer contato com aqueles que aprendem a técnica comigo. Você, pelo contrário, escuta todos que encontrarem sua mente. Nunca teve algum sonho estranho, onde você conversava com alguém e achava ser real?

– Não que eu me lembre. – Serafine mentiu.

Ela já tivera um pesadelo, muitas semanas antes, onde conversava com uma voz arrepiante, mas não quis comentar aquilo com sua guardiã.

– Então não vai demorar a acontecer. Essa voz que você ouviu era de um homem, certo? Seu segundo Mestre. – Serafine anuiu, aliviada por ter pensado sobre aquilo também. Sentiu-se mais confortável por saber que um servo da Luz a havia procurado.

– Por que isso deixou Jarek tão desesperado para sairmos dali?

– Se o segundo Mestre a está procurando, significa que estamos demorando demais. Ele não deveria entrar em contato, a não ser que houvesse urgência. – Ývela explicou, deixando seu rosto assumir uma expressão pensativa. – Mas não acho que devamos ficar alarmadas, por enquanto. A viagem está prosseguindo como calculamos. Em alguns dias estaremos na Fortaleza. – Ela sorriu.

– Parece cansada, Ývela, durma um pouco. – Serafine sugeriu. A ondina se reteve, erguendo os grandes olhos azuis para ela. – Não estou com sono.

– Tem certeza?

– Claro. Eu tenho que ser útil de vez em quando. – Ela riu ao fim. Ývela ergueu-se, relutante, e avisou que estaria bem próxima caso fosse necessária.

Serafine apoiou-se melhor no monte de areia, abraçando o próprio corpo quando o vento gelado soprou por ali. Pensou em como seria treinar com o novo Mestre, que, mesmo sem querer, era comparado ao falecido Haius, ou qual seria o próximo elemento a lhe ser ensinado. Também passou por sua cabeça o tamanho da dificuldade para aprender a dominá-lo, já que a Água havia se mostrado uma bela complicação.

Lonel lhe dissera que, assim que visse o Reino do Oeste, saberia qual a segunda força a ser controlada; tudo que ela via ali era areia. Branca e límpida, cobrindo cada centímetro daquele espaço.

Subitamente, como um estalar de dedos, a resposta chegou. Serafine sorriu, enterrando a mão ao seu lado – a segunda força elemental era a Terra.


***


Serafine esfregou os olhos com força, tentando mantê-los abertos. A madrugada já ia alta, mas até então a garota não tivera vontade de se deitar. Deixou que seus guardiões, aparentemente tão cansados, desfrutassem do sono que haviam conquistado. Mas então as horas passaram e a exaustão chegou, e Serafine viu-se com dificuldades de manter a consciência.

Um movimento à sua esquerda a assustou, mas se acalmou ao ver Jarek.

– O que faz acordado? – Ela indagou.

– Se o seu nível de sono estiver igual ao de mau humor, imagino que você esteja prestes a desmaiar. – Jarek replicou com um sorriso. Serafine não reagiu à brincadeira. – Oh, acho que acertei. – O guerreiro brincou.

Quando Jarek se sentou ao seu lado, Serafine fez menção de se levantar, mas então se lembrou do comentário dele durante a viagem, sobre ter crescido naquela região, e achou interessante tentar questionar:

– Posso perguntar uma coisa?

– Depende. – Ele arqueou uma sobrancelha. A escuridão ao redor deles, misturada ao brilho das estrelas no céu, lançava curiosas sombras sobre suas feições.

– Ouvi sua conversa com Ývela... E você mencionou ter crescido neste Reino. – Ela tentou esconder o tom curioso, mas o sorrisinho dele dizia que a pergunta havia sido mal recebida. Serafine engoliu em seco, não pretendendo ser intrometida demais, mas algo a impulsionou a continuar desvendando. Não sabia nada sobre o seu passado... Gostaria de conhecer um pouco sobre ele.

Jarek pareceu notar o olhar indeciso da garota, pois suspirou e acenou positivamente com a cabeça.

– Sim, eu cresci aqui. Fui criado no extremo oeste de Warthia, em uma pequena vila construída pelo meu povo. Era tudo muito simples e um pouco complicado, mas estava com a minha família... Então estava ótimo.

– Seus pais... Ainda estão vivos? – Ela mordeu o lábio inferior, repreendendo-se por tamanha intromissão, mas, para sua surpresa, Jarek estava inclinado a responder perguntas naquela noite.

– Minha mãe sim. Meu pai... – ele hesitou. – Na verdade, não sei. Não os vejo há mais de um ano.

– Sinto muito. – Ela sussurrou com sinceridade. Uma centelha de surpresa brilhou nos olhos dele, mas apagou-se com a mesma rapidez com que surgiu.

– Não tem porque sentir. – Jarek deu de ombros.

– Mas eu sinto. – Serafine colocou num tom determinado. O azul dos olhos de Jarek pareceu escurecer, como se um sentimento profundo tomasse conta deles; a garota não notou. Estava com o queixo apoiado nos joelhos, observando o horizonte. – Eu também não sei o que houve com a minha mãe, afinal. – Jarek suspirou, observando o perfil da garota atentamente.

– Se quer minha opinião...? Não acho que a mataram. – o guerreiro havia se aproximado um pouco, buscando o olhar dela. – Devem tê-la capturado, provavelmente a mantém cativa.

– Não acho que isso seja melhor do que a morte. – Ela fechou os olhos, tentando evitar que o medo dominasse o seu coração.

– Eu talvez tenha dito isso da maneira errada. – Jarek coçou a nuca. A expressão desajeitada dele quase fez a menina rir. – O que quero dizer é que ela está viva em algum lugar por ai. É uma certeza que você deve manter para se sentir melhor, confie em mim. – Jarek tirou um instante para armar sua expressão curiosa. – Sua mãe, como se chama?

– Mégara. – Serafine sorriu suavemente.

– Mégara é um nome muito bonito. – A menina entendeu a estratégia de Jarek, tentando desviar seus pensamentos anuviados pela dor para algo menos preocupante. – Ela deve ser uma mulher incrível.

– Por que supõe isso?

– Porque criou você. – Ela acabou caindo na risada.

– Galanteios a esta hora da noite, Jarek?

– Estou tentando te fazer sorrir. – Serafine desconcertou-se com o olhar dele; havia perturbadora intensidade ali, algo mais profundo do que Jarek ocasionalmente se deixava expressar. – Gosto do seu sorriso, princesa. – Ele apertou seu queixo com rapidez e delicadeza.

Subitamente, a garota se deu conta da proximidade em que se encontravam e afastou-se enquanto se punha de pé. Jarek pareceu se recuperar de um choque, pois aprumou a postura.

– Obrigada pelas palavras de consolo. E... Pelo sorriso. – ele baixou o rosto. – Hã... Boa noite. – Serafine sussurrou depois do silêncio desconfortável, descendo a duna de areia. Não ficou a tempo de ver o sorriso de canto enfeitar os lábios do guerreiro.

– Boa noite, princesa.


Capítulo 3

Ilusão

 


SERAFINE ESTAVA FICANDO INDECISA quanto a odiar mais o dia ou à noite. Tudo porque, desde que havia presenciado a ascensão do impiedoso Sol no horizonte, sentiu-se esgotada pelo calor insuportável. Quanto mais avançavam para dentro do Grande Deserto, mais impossível ficava aguentar horas debaixo dos raios solares.

Já fazia quatro dias desde a passagem para o Reino Árido.

Serafine esperou, conforme avançavam, conseguir vislumbrar as cadeias montanhosas descritas por Ývela, mas não havia nada além de dunas e mais dunas. As pegadas na areia desapareciam depois de poucos segundos, sopradas pela brisa fraca. Seu rastro não podia mais ser encontrado. Não havia como voltar.

As noites eram tão atormentadoras e monótonas quanto os dias. Os quatro se revezavam em turnos de vigias, onde – nas vezes de Serafine – ela ficava apenas rezando para que encontrassem logo a inalcançável Fortaleza.

A morena não voltou a ter qualquer visão com seu Segundo Mestre, mas sentiu-se mais e mais desesperada para que algo de extraordinário os tirasse daquele ritual diário repetitivo.

O que mais amedrontava todos naquela viagem era o estoque de comida e, principalmente, de água. Por mais que fossem cuidadosos e racionalizassem o que haviam encontrado na floresta, com os cavalos bebendo bastante para manter as energias, os indícios de escassez começavam a aparecer.

Serafine nunca sentira tanta sede na vida, mas tentava não se dar ao luxo de beber quando via o esforço dos seus guardiões. Eles só faziam duas refeições ao dia – uma ao amanhecer, quando o clima estava mais ameno, e outra ao anoitecer. Durante as horas restantes, deviam aguentar firme.

Foi no quinto dia, quando estavam sentados para a segunda refeição, que Ývela realizou a mágica da qual Serafine ouvira falar.

A ondina andara muito fraca naqueles dias, com a respiração sempre ofegante e os olhos amuados. Ela chegou a ter vertigens durante a tarde, mas recusou-se a parar. Dizia que não podiam perder tempo.

Tal encantamento, feito por criaturas aquáticas poderosas, criava água a partir de um pouco que estivesse por perto. Serafine, estupefata, viu quando Ývela invocou o elemento e transformou a pouca quantidade em uma exorbitante o suficiente para encher, além dos potes, também seus cantis.

A ondina murmurou algumas palavras mágicas durante o encantamento e a água flutuou em pleno ar, esticando como se fosse feita de um material flexível.

– Incrível. – Serafine pensou alto, observando o modo como as espirais azuladas na pele clara da guardiã brilharam conforme ela sussurrava as palavras estranhas.

Quando o feitiço acabou, Ývela foi sustentada por Jarek, pois seu corpo desfaleceu onde estava. Serafine adiantou-se até eles, assustada pela súbita perda de energia dela, mas Jarek a deteve.

– Ela está bem, só precisa descansar. – A morena reparou em como a voz dele não denotava a certeza que queria exibir, mas assentiu, afastando-se para lhes conceder espaço.

Jarek ajeitou a pequena ondina num amontoado de cobertores, descansando a cabeça dela sobre um travesseiro improvisado. O guerreiro pegou um cantil com água e despejou uma grande quantidade na boca da loira. Por sorte, Serafine viu quando a pele castigada adquiriu a cor clara original, transpondo aquela aparência doentia que vinha cobrindo o rosto alegre de Ývela. Quanto mais adentravam o Deserto, mais sua energia se esvaia.

O sorriso não era mais o mesmo, nem o olhar. Tudo nela parecia frágil, apesar de restar a determinação para que prosseguissem com a jornada. Serafine sentiu-se culpada por estar causando aquilo na guardiã, mesmo que indiretamente, já que aquela jornada era uma obrigação imposta a eles. Talvez devessem ter seguido pelo mar, assim a água estaria disponível para melhorar a saúde da ondina.

Serafine escalou uma das dunas arenosas e sentou-se bem no topo para assumir o primeiro turno de vigia. Depois de desatar o nó que prendia um turbante á sua cabeça, Serafine deixou seus cabelos bagunçados caírem por suas costas.

– Importa-se? – Serafine virou-se para Guillian, que subiu a encosta da alta duna com um pouco de dificuldade. Os Atyubrus não eram muito abeis em terrenos como aquele, por mais que suas escaladas fossem executadas com destreza. O pelo branco do felpudo guerreiro estava empoeirado, mas o brilho em seus grandes olhos azuis continuava o mesmo: exorbitantemente confiante.

– Está sem sono?

– Um pouco. Na verdade, há dias que não venho dormindo direito. – Serafine achou o comentário curioso, visto que os roncos de Guillian pareciam ressoar por Mídria. – O Deserto não é o melhor lugar para se cair num sono pesado. Nunca se sabe o que está espreitando por ai.

Serafine olhou em volta, onde a escuridão da noite ocultava qualquer criatura que resolvesse atacá-los.

– Queria que chegássemos logo à Fortaleza. – a garota confessou num tom ansioso. – Quanto mais andamos, mais distante o castelo parece.

– O Deserto prega peças nos viajantes, Serafine, acostume-se. Quando olhar ao redor, vai achar que está dando voltas e voltas na mesma região, apesar de estar andando quilômetros à frente. – Guillian instintivamente olhou para baixo deles, onde Jarek terminava de acender uma pequena fogueira. – Temos sorte por Jarek nos acompanhar, ele é perito nessa área.

– Ele me disse que cresceu por aqui. – Serafine comentou. Guillian assentiu pensativo.

– O rapaz sabe para onde estamos indo, confio em suas decisões. – o orelhudo franziu as sobrancelhas. – Acho que a preocupação com Ývela está tomando sua atenção. Uma ondina não suporta esse tipo de clima por muito tempo, não é de sua natureza.

– Espere ai... – Serafine arqueou as sobrancelhas. – Está dizendo que o tempo dela está contado?

– Eu temo afirmar que sim.

– Por que estamos aqui parados então? Devemos prosseguir viagem! – Serafine exclamou com indignação. Guillian, ligeiramente surpreso, balançou a cabeça para ela, tentando reprimir o surto da garota.

– É perigoso viajar durante a noite, milady, você ouviu isso.

– Ývela está morrendo! Ninguém me disse isso. Prefiro me arriscar a ficar sentada sem fazer nada.

– É o melhor que você tem a fazer agora. – A voz de Jarek chegou tão próxima que assustou a garota. Ela virou-se para o guerreiro, que acabava de subir a duna, e lançou um olhar irritado. – Não me olhe assim! Estou fazendo tudo que eu posso. Foi ela quem quis usar magia, estaria melhor se não o fizesse.

– Não podemos ficar aqui. Ývela me disse que enxergaríamos as montanhas em alguns dias, por que elas ainda parecem tão distantes?

– É isso que eu quero saber. – Jarek confessou exausto. Serafine notou que havia olheiras profundas debaixo daqueles olhos escuros misteriosos. Sua voz denotava quão preocupado ele estava por arcar com toda a responsabilidade daquela viagem. – Algo está errado.

– Eu posso usar a pedra. – Serafine sugeriu. – Aquela que Lonel me deu. Ele disse que ajudaria em momentos de necessidade...

– Não! – Jarek exaltou, usando um de seus olhares autoritários. Por mais acostumada que estivesse com eles, o guerreiro ainda conseguia fazê-la hesitar. – Esse fragmento tiraria toda a sua energia, deixaria você esgotada por semanas.

– Mas é a única maneira de ajudar a Ývi. – Serafine rebateu, tentando ignorar o temor pela revelação. Aquele fragmento minúsculo iria causar-lhe tudo aquilo? O que faria quando ficasse frente a frente com Cílion?

– Vamos prosseguir viagem por mais dois dias, é o que eu calculo para alcançarmos o afluente do rio Turvo. E nem pense em tocar naquela pedra. – Jarek encerrou o assunto, descendo o morro logo depois de falar. Serafine seguiu-o com o olhar, notando que o guerreiro parou para observar Ývela. Ele estava tão frustrado quanto ela; descontar sua ira em discussões não iria ajudar.

– Durma um pouco, Serafine, eu fico de vigia. – Guillian sugeriu, empurrando-a com delicadeza. Resignada, a garota assentiu, e desceu aquela duna aos tropeções. Deitou-se sobre um travesseiro improvisado, suficientemente próxima da fogueira para não passar frio. Fechou os olhos, lutando contra a ansiedade para pegar no sono.

O sonho veio rápido como um estalar de dedos.

Estava parada em um lugar vazio e o céu sobre sua cabeça estava escuro. Foi com pânico que ela notou a semelhança com um pesadelo antigo, e consciente de que uma voz sinistra logo iria aparecer, Serafine tentou fugir daquela ilusão. Nada que fez, porém, surtiu efeito.

Caminhando pela área desolada, a garota buscou por uma saída. Tentou se concentrar, como havia feito no encantamento do Mestre tempos atrás, mas não funcionou. Foi quando a tremedeira no chão começou, tirando completamente o equilíbrio da garota – o céu rachou lentamente, um enorme domo de vidro lascando-se em milhares de pedaços. Cobrindo o rosto com as mãos, Serafine sentiu a aterrorizante dor dos ferimentos provocados pelos cacos, como se brasa tocasse sua pele. O céu coloriu-se em fogo e fumaça.

Ao seu redor, silhuetas brancas começaram a surgir; fantasmas.

A morena enxergou Mahiry em meio a eles, suas feições doces moldadas em melancolia. Com crescente dor, ela avistou o pai, e um soluço escapou de seus lábios. Não o havia visto antes. Acreditava que ele encontrara paz; tola ilusão.

Então uma gargalhada rasgou o silêncio com seu timbre sinistro. Serafine arrepiou-se, lembrando-se da sensação de quando tivera o pesadelo na floresta; não havia fuga daquela presença.

– Serafine...

– Vá embora!

– Como poderia, se nós somos tão próximas? – Havia ligeiro humor na voz, tirando sarro do desespero da garota.

– Eu não a conheço!

– Você conhece, só não sabe disso. Agora que seu espírito foi abençoado pelos Deuses, o fim dos tempos está começando. Liberte-me, Serafine, e a deixarei viver!

– Não!

– Então queime com a minha fúria!

Os fantasmas dispararam em sua direção, sufocando-a, ao mesmo tempo em que o teto do mundo despencava sobre sua cabeça.

Gritando estridentemente, ainda sentindo as dores pinicando seu corpo, Serafine acordou, e encontrou os olhares assustados de seus guardiões.

– O que houve? – Jarek inquiriu. O céu, a garota notou, estava claro, e o Sol despontava no horizonte.

Ela tirou um instante para recuperar o fôlego, mantendo os olhos arregalados fixos nos preocupados do guardião.

– Foi um pesadelo. – Serafine sussurrou.

– Eu pude perceber isso.

– Nada para preocupá-los. – ela deu de ombros, ignorando o tom rude do guerreiro. Não o encarou quando se levantou, ainda que sentisse o olhar intenso dele em busca de uma resposta. – Vocês já tomaram café?

– Sim. – A voz de Ývela a surpreendeu. Estava fraca e rouca, diferente do tom animado e sempre altivo da guardiã. Olhando-a bem, Serafine reparou nos círculos pretos em volta de seus grandes olhos azuis e também em sua magreza absurda. O Deserto roubava suas forças.

– Podemos partir então, estou sem fome. – Serafine concluiu dirigindo-se até seu corcel. Jarek, porém, a segurou pelo braço, trazendo seu corpo para perto do dele. O olhar do guerreiro a surpreendeu, trazendo nervosismo ao seu coração.

– Com o que você sonhou? – O timbre grave da voz dele veio carregado de ansiedade.

– Nada com o que se preocupar agora. Acredite em mim. – Usou um tom suave. Jarek relutou, mas libertou-a depois de alguns instantes.

Serafine repetiu para si mesma que aquela aflição era mesmo inútil. Sentiu-se estúpida por recusar um diálogo, mas, por algum motivo, não queria contar sobre o pesadelo. Algo dentro dela a forçava a permanecer calada.

Desmontaram acampamento em poucos minutos, começando a cavalgada silenciosa. Jarek ia à frente, com Ývela e Guillian logo atrás. Serafine ficou por último na fila, agradecendo por não sentir os olhos de ninguém às suas costas – sabia que seus guardiões estavam curiosos, mas não contaria a eles sobre seu sonho. Era algo que precisava guardar para si mesma por um tempo.


***


O tempo passou numa lentidão aterradora. Não havia nuvens no céu, só o Sol reinando absoluto.

Foi subitamente, horas depois de sua partida, que Ývela avistou algo. Mesmo fraca e um pouco desnorteada, a ondina exclamou surpresa, chamando a atenção de Jarek quase que imediatamente.

Serafine desviou-se da fila, incitando seu corcel a alcançar o lado de sua guardiã eufórica. Com um pouco de esforço da vista cansada, Serafine se animou: bem ao fundo, correndo entre as dunas, estava um largo rio de águas turvas. Olhar para aquilo pareceu-lhe, por alguns instantes, contemplar o paraíso.

– Ývela, espere... – Jarek, o único pouco animado com aquela visão, tentou argumentar, mas Ývela já havia ordenado que seu corcel avançasse. O próprio cavalo não reclamou e – como todos os corcéis do mundo sobrenatural – exclamou de felicidade enquanto disparava naquela direção. Guillian e seu pônei fizeram o mesmo, deixando poeira para trás.

– O que foi? – Serafine sentiu a hesitação no guerreiro.

Jarek não moveu um músculo, o olhar rígido no rio ao longe.

– Não sei... Não se parece com uma miragem, mas de alguma maneira isso não é... Normal.

– O que quer dizer? O rio estar ali é fora do comum? – Serafine inquiriu.

– Não, há um rio no Deserto, mas nós não seguíamos diretamente para ele. Iríamos por uma trilha e ela levaria até um afluente. Não o Turvo. – Ao finalizar a frase, Jarek virou-se para sua acompanhante. Havia algo no olhar dele que denotava temor, como se estar ali trouxesse uma sensação ruim.

– Talvez tenhamos pegado outra trilha. – Serafine tentou argumentar, mesmo sabendo que o comentário não era válido. Jarek conhecia aquelas terras, saberia se estivessem no caminho errado. E, pelo modo como ele estava preocupado, aquele não era o melhor lugar para se estar.

– Talvez... – Ele não quis alarmar a garota, ela notou isso. Serafine sabia que todas as possibilidades daquele erro passavam pela cabeça dele; Jarek não aceitava errar. Se haviam chegado ao rio, poderiam estar longe das montanhas – o que explicaria a demora em avistá-las.

– Vamos até lá. – Serafine tirou-o dos devaneios, deixando que os corcéis desesperados cavalgassem com rapidez até as águas. A garota deu uma boa olhada na região, procurando por qualquer sinal de emboscada. Tudo o que encontrou foram montes e montes de areia branca.

O rio que cortava o Deserto era a única variação na paisagem, estendendo-se infinitamente para os dois lados. As águas eram uma encruzilhada, confundindo ainda mais os viajantes.

Guillian estava na margem, os pés flutuando dentro da água – o raso era suficiente para ele nadar, mas o Atyubru não parecia tão desesperado quanto Ývela.

A ondina se encontrava suficientemente longe, mergulhando e voltando à superfície com o típico sorriso animado no rosto – sua palidez havia desaparecido por completo, assim como as queimaduras no rosto, deixando-a novamente com a aparência saudável.

– Serafine, venha! A água está uma delícia! – Ývela gritou eufórica, dando braçadas até o raso. Serafine desmontou de seu corcel, que rapidamente aproximou-se do rio para beber, e ficou parada observando a calma margem.

Havia, de fato, algo de estranho com aquelas águas. Estavam silenciosas demais – desde que aprendera a controlar o primeiro elemento, passara a escutar constantes sussurros ecoando por superfícies de rios e córregos.

Naquele rio, porém, só havia silêncio.

Serafine apurou os ouvidos, pensando que talvez o calor a estivesse desconcentrando, mas nenhum som sobrenatural chegou.

Ývela notou sua inquietação.

– O que houve?

– O rio... Está quieto demais. – A morena disse, ajoelhando-se na beirada. Baixou a mão até que se encostasse à água e, concentrando sua mente para avivar os poderes do espírito, tentou fazer qualquer coisa surgir. Nem mesmo um pequeno redemoinho se manifestou, como se suas energias não fossem suficientes para aquela tarefa. A vibração em seu braço estava presente, o que indicava que o espírito respondia ao seu pedido. No rio, nada mudou.

Subitamente, Serafine recebeu um choque, arfando enquanto se afastava das águas. Jarek, que acabara de lavar o rosto, analisou sua ação e, inquieto, também se afastou do rio.

– O que foi? – Guillian perguntou, olhando da morena para as águas. Ývela ainda não havia saído dali, mas assistiu ao susto de sua protegida com preocupação.

– Isso não é um rio, Ývela. Saia já daí! – Serafine gritou, engolindo em seco pela sensação de pânico que a assolou. – É uma armadilha!

Ývela gritou ao ser agarrada por alguma coisa submersa e, para o assombro de todos ali, o rio desapareceu. As águas transformaram-se em camadas e mais camadas de areia branca, como sempre deveria ter sido.

E, levantando-se de baixo dessas areias, ocultos por esconderijos bem planejados, estavam imensas bestas do Deserto prontas para atacar.


Capítulo 4

O Ataque dos Escorpiões

 


SE ANTES OS AMALDIÇOADOS lhe pareciam medonhos, Serafine acabara de mudar de opinião. Instantes decorreram para que seus olhos capturassem todas as imagens daquele ardil.

As bestas que surgiam de debaixo da terra, escavando a areia branca com suas enormes garras, não eram só predadores do Deserto. Eram crias do mal.

Ývela já havia lhe contado histórias sobre tais criaturas. Eram os Escorpiões Gigantes, monstros que vagavam por Mídria em buscas de presas desprevenidas. Se você não cruzasse o território deles, estaria seguro. Mas agora que as Trevas os controlavam, não havia para onde fugir.

O maior deles sustentava Ývela por uma das garras, mantendo o corpo da ondina a uma distância assustadoramente alta.

O físico daqueles monstros era idêntico ao dos escorpiões pequenos – que Serafine já tivera a infelicidade de ver algumas vezes. Corpo alongado, quatro pares de pernas, duas pinças dianteiras e, ao fim de uma longa cauda encurvada, o ferrão perigoso e afiado carregando o veneno mortal. A carcaça da besta tinha a cobertura resistente que era, inclusive, usada para moldar os coletes que os viajantes usavam naquele momento. Diferente dos escorpiões normais, os Gigantes tinham uma estrutura rígida e dura como rocha. Fora dito a Serafine quão forte era aquela espécie de couro, capaz de aguentar o impacto de uma lança, o que lhe pareceu momentaneamente calmante. Estava bem protegida, pelo menos. O pesar era que aqueles monstros também estavam.

De colorações semelhantes às claras do Deserto, eles facilmente se ocultavam debaixo das dunas. Serafine avistou, em meio à ferocidade dos rostos monstruosos, os diversos olhos escuros surpreendentemente conscientes; aquelas bestas sabiam o que estavam fazendo. As Trevas guiavam seus movimentos.

A garota contou sete deles, dispostos em V a partir do primeiro – alguns estavam emergindo de dunas mais distantes.

Se não fosse Jarek para afastá-la dali, teria sido agarrada pelo mesmo que capturou Ývela. A pinça cortou o ar, produzindo um som oco ao fechar-se no espaço vazio. O berro gutural da besta chegou aos ouvidos de Serafine, e ela viu-se correndo com Jarek e Guillian.

Tentando pensar racionalmente, Serafine reviu as opções além daquela fuga inútil – não demoraria muito até as bestas os alcançarem. Não havia água alguma que pudesse invocar, mas sentiu a força do espírito vibrando em suas veias – só rezou para que nenhum fantasma resolvesse aparecer.

– Os olhos deles são vulneráveis! – Jarek gritou em meio à correria trôpega. – Mire ali. A prata pode matá-los. – Uma das bestas saltou na frente deles, bloqueando sua fuga com o corpo enorme. O ferrão virou-se para Jarek, fúria assassina vibrando no olhar da criatura.

Com raiva, Serafine aproveitou a distração do monstro e mirou uma flecha nele. Sua precisão foi certeira – ela agradeceu mentalmente a Jarek pelas aulas de arquearia -, e disparou num dos olhos, fazendo o monstro urrar pela dor. Jarek correu até a garota, com Guillian em seu encalço, e puxou-a longe a tempo de não ser esmagada pelo escorpião que se debatia. Os outros estavam perigosamente próximos agora, mas hesitavam na hora do ataque. Pareciam esperar o momento certo de dar o bote. Pareciam esperar uma ordem.

O líder que mantinha Ývela presa avançou na direção de Jarek; o guerreiro, no entanto, foi mais rápido. Desviou-se do ataque, fugindo do ferrão, e saltou alguns metros para cima até alcançar a besta.

Apoiado na cauda, Jarek saltou novamente no ar a tempo de alcançar o ferrão – com a espada agora em mãos, o guerreiro girou a lâmina contra a cauda do escorpião, decepando a ponta afiada. A besta balançou o corpo freneticamente, lançando Jarek longe – o guerreiro caiu de pé, com a graça de um felino, e lançou a espada que carregava nas costas contra os olhos de um segundo escorpião.

Foi quando os outros avançaram.

Serafine viu o líder dos monstros enfurecer-se, mas seu grito só saiu quando ele lançou Ývela no ar. A ondina, débil pelo tempo em que ficou presa, pareceu uma boneca. A criatura a agarrou com a pinça, e Serafine pôde ouvir o barulho alto e arrepiante de algo rachando. O som ecoou longe, assim como o grito agonizante que se seguiu.

Ývela estava sustentada pelas coxas, com o resto do corpo virado de ponta cabeça. Seus olhos estavam arregalados e o rosto adquirira uma assombrosa cor vermelha. As pernas haviam sido quebradas quando a pinça a segurou, seus ossos triturados como se não passassem de finos galhos de uma árvore. A criatura pareceu ter errado a mira, pois alguns instantes a menos e teria quebrado a espinha da ondina ao meio.

Serafine correu na direção do monstro, desviando-se de outros dois pelo caminho. Eles perderam o interesse na morena, seguindo diretamente para Guillian – o Atyubru já estava armado e pronto para enfrentá-los.

Serafine colocou-se frente a frente com o líder, e então lançou uma de suas flechas; ela ricocheteou, acertando um pedaço da carcaça. Serafine agachou-se e se deixou deslizar pela inclinação da duna, escorregando por baixo do corpo do monstro. Pegou uma das flechas, sem utilizar o arco, e a cravou numa parte do abdome desprotegido. Aliviada, a morena arrastou a flecha pela carne dele e rolou para longe a tempo de ver seu imenso corpo tombar na areia.

Quando ele caiu, Ývela foi solta e despencou duna abaixo. Serafine correu até ela, rezando para que os escorpiões não as procurassem, e conseguiu resgatá-la sem nenhuma interrupção.

A ondina estava desmaiada, com o rosto marcado por suor e pela areia, sua respiração saindo entrecortada. Os maiores ossos de suas pernas haviam sido estilhaçados e o negro hematoma do aperto mostrou-se visível por causa dos rasgos na calça. Os batimentos cardíacos da loira estavam assustadoramente fracos.

– Ývela, acorde, por favor! – Serafine implorou, sem saber o que fazer. Não conhecia qualquer prática medicinal quando se tratava de ossos quebrados e temeu fazer alguma coisa que fragilizasse ainda mais sua amiga. Precisava ajudar Jarek e Guillian, mas não podia deixar a ondina sozinha. Ývela ofegou de repente – sob as pálpebras, seus olhos estavam se revirando.

– Jon. – O nome escapou dos lábios trêmulos da ondina, e isso deu uma ideia a Serafine.

Ela se lembrou de uma coisa que Ývela havia lhe dito dias antes, numa das noites em que ficaram de vigia. Havia sido rápido, numa das trocas de turno, quando a ondina reparou no nervosismo exposto em seu rosto. Com um de seus sorrisos simpáticos, a loira murmurou: quando precisar de ajuda, concentre seus poderes e chame por Jon. Ele irá responder.

E então Serafine o fez. Da mesma maneira como aprendera com o Mestre, deixou a concentração fluir por sua mente, afastando-se do pandemônio daquela batalha. Por míseros segundos, esqueceu-se de Jarek e Guillian, sozinhos no meio do combate, rezando aos Deuses para que eles aguentassem firme. Sabia que tinha instantes até que um dos monstros a encontrasse, mas precisava tentar.

Quando a calmaria se instaurou em sua consciência, Serafine sussurrou para si mesma, implorando para que seus poderes encontrassem o tal Jon: Ajude-nos. Ajude-nos, por favor...

Alguém respondeu. Primeiro a voz pareceu distante, como o fim de um eco: Quem é você? Serafine alarmou-se, mas não demorou a prosseguir, rezando para que aquele desconhecido oferecesse ajuda: Eles estão atacando. Não conseguimos fugir! Tem que nos ajudar, por favor! Ývela está morrendo.

Foi neste momento que uma figura estranhamente humana emergiu do chão. Serafine ergueu o arco e armou uma flecha, mas ficou paralisada por alguns instantes. Seu espírito vibrou quase eufórico, o que a deixou curiosa...

Um homem feito de areia?

No topo da duna, no lado contrário ao soldado inanimado, um dos escorpiões encontrou Serafine. Chiando, com uma flecha cravada num dos olhos, a besta se recordou de quem a feriu – escorregando pela areia, meio cambaleante, o monstro foi descendo na direção dela.

Serafine carregou o corpo da Ondina e correu o máximo que pode – talvez fosse apenas impressão sua, mas as forças de seu espírito estavam reanimando-se. O ar estava menos pesado, a vibração das Trevas, menos sufocante. O homem de terra retardou a corrida do escorpião, engolfando-o numa nuvem de areia.

Serafine tropeçou em sua corrida ao observar a cena, mas sustentou Ývela para que as duas não caíssem. O Deserto não facilitou sua fuga, e foi por isso que outro monstro conseguiu alcançá-la, lançando a pinça em seu lado, acertando-a em cheio.

Serafine rolou por uma descida íngreme juntamente a Ývela. Engoliu areia, além de provavelmente ter quebrado algumas costelas no impacto com a pinça do escorpião, mas se manteve firme ao levantar.

Os olhos da morena capturaram a movimentação atrás de si e ela se viu desesperada. Estavam cercando-a para matá-la. Não havia saída. Jarek e Guillian estavam longe demais – Ývela e ela estavam condenadas.

Porém, a forma que se ergueu em meio à areia não era a que ela esperava: novamente, um gigantesco guerreiro moldado em terra. A armadura parecia ser tão forte quanto à carcaça do escorpião e a espada, resistente como mármore.

O monstro chiou ao ver o novo guerreiro de areia e avançou relutante contra ele, esquecendo-se de Serafine.

A garota arrastou Ývela longe, livrando-se de quase ser pisoteada por aqueles que se enfrentavam, e cogitou fugir. Infelizmente, não estava em condições de correr.

Os oponentes mergulharam numa luta violenta, onde o escorpião lançou inutilmente seu ferrão contra o guerreiro de areia. O monstro frustrou-se pelas inúteis tentativas de ataque, enquanto que o soldado apenas aguardava. A espada em suas mãos lançou-se contra o corpo do escorpião e o barulho lembrou o de uma lâmina acertando uma rocha. Era impossível de se quebrar, mas com o tempo foi fraquejando – mesmo aquela carcaça não resistiria para sempre. Sangue verde jorrou do primeiro ferimento no corpo do monstro.

A respiração de Ývela foi ficando mais fraca e Serafine cada vez mais tensa. Não havia nada que pudesse fazer pela ondina. Colocou sua guardiã numa posição confortável e então buscou ajuda no topo da duna, mas nada encontrou.

O Deserto havia engolido o resto da batalha, escondendo dela o caminho até seus outros guardiões. Jarek e Guillian estavam sozinhos com os outros monstros. Só um milagre poderia salvá-los.

Serafine fitou o fim do duelo entre o escorpião e o homem de areia e deixou-se ter esperança. Uma vez que a carcaça foi quebrada, o homem de areia pôde destruí-lo. A cabeça da besta foi arrancada e o corpo despedaçado.

O soldado ergueu a cabeça sem face para Serafine e depois despencou, voltando a ser o monte de areia original.

Silêncio substituiu os sons de batalha, extinguindo os gritos guturais dos escorpiões. Serafine sentiu-se estranhamente inquieta quando voltou até sua guardiã, como se algo ainda a mantivesse alerta; talvez o ataque não tivesse terminado. Talvez fosse apenas um começo.

Não foi surpresa quando suas suposições se mostraram verdadeiras. Ela teve tempo de carregar Ývela até o topo do monte de areia e de lá enxergou uma cena assustadora: os pedaços do escorpião há pouco aniquilado começaram a se unir. Depois de ele ter ficado intacto, sua sombra também se ergueu.

Primeiro era apenas uma forma sombria, mas em segundos assumiu o físico de outro Escorpião Gigante. A criatura criada a partir da sombra encarou Serafine, que se retesou por alguns instantes. Só podia um pesadelo: dois daqueles monstros onde só deveria haver um.

Os escorpiões começaram a marchar, mas não chegaram até seu destino.

Zunindo enquanto cruzavam o céu, dezenas de flechas com suas pontas prateadas em chamas cortaram o ar para atravessar a carcaça dos monstros.

Os escorpiões cambalearam e, em alguns segundos, estavam no chão. As flechas espetadas em seus corpos produziram fumaça de uma coloração negra, chiando alto contra a carne – como quando os Lobisomens eram feridos pelo metal –, e o fogo os queimou. Fogo vivo, que tinha brilho arroxeado, como se fizesse parte de um feitiço.

Assombrada, Serafine encarou a cena com os olhos arregalados. Segurando firmemente Ývela, ela ouviu vozes se aproximando e então figuras montadas em corcéis imponentes surgiram ao alcance de sua visão.

Um deles adiantou-se e, estupefata, Serafine viu que ele não montava um cavalo, apesar das quatro patas debaixo de um corpo equino. Ele era metade cavalo. O tronco humano vestia um colete parecido com o que ela usava e o rosto estava coberto por um pano – apenas seus olhos, de um profundo tom azulado, ficavam visíveis.

Havia um centauro bem a sua frente, e foi ele quem lhe estendeu a mão depois que Ývela foi içada por um homem. Serafine nem se deu conta de que estava nas costas da criatura até que se viu vagando pelo Deserto. A paisagem era a mesma, mas a corrida deixou dezenas de dunas para trás – e também o local onde ocorrera o ataque.

Ývela era carregada por um dos viajantes. Segura e – Serafine rezou para que sua suposição fosse verdadeira – ainda viva. Foi com alívio que ela também encontrou os olhares de Jarek e Guillian, ambos acompanhando outros cavaleiros. Sua mente, entorpecida pelos acontecimentos recentes, não prestou atenção à paisagem ao seu redor durante o tempo que se seguiu. Quilômetros à frente, depois de longos minutos na companhia daqueles velozes corcéis, havia um local que antes lhe pareceu tão distante.

Escondida por dunas e mais dunas de areia e pela espiral de uma miragem, lá estava a cadeia de montanhas do Oeste. Serafine viria a descobrir que a magia de Mídria escondia suas montanhas daqueles que não deveriam encontrá-la.

Os picos erguiam-se em alturas e larguras diferentes e as rochas acinzentadas destacavam-se em contraste com a cor pura do Deserto.

Cravado no meio daquelas montanhas havia um grande castelo de pedra.

Tão grande quanto magnífica, Serafine estava para conhecer a Fortaleza do Dragão.


Capítulo 5

A Fortaleza do Dragão

 


A CADEIA DE MONTANHAS se estendia para os dois lados e, Serafine acreditava, para trás também. Logo o chão arenoso se tornou menos ondulado, e eles começaram a passar por rochas largas.

Os corcéis cavalgavam com uma precisão minuciosa entre as primeiras montanhas – elas eram pequenas, se comparadas as que habitavam a parte de trás da cadeia. Havia caminhos pelos quais puderam seguir. O silêncio ali nos corredores era sepulcral – sendo cortado naquele momento pelo eco dos trotes. Logo estavam passando por uma estrada estreita, onde cabiam apenas dois cavaleiros lado a lado, rumo à fortificação construída num dos grandes montes. Havia um vale extenso antes dela e, então, a subida gigantesca desde o pé da montanha.

Assim que alcançaram o vale, Serafine pode contemplar tanto a Fortaleza do Dragão quanto a vila antes dela.

O Castelo estava no topo de uma montanha feita de rochas escuras. Serafine finalmente entendeu o porquê do nome Fortaleza: a construção ficava em um lugar inalcançável, protegido pelo Deserto à frente e pelas montanhas atrás.

A cidadezinha daquele vale fora construída sobre o terreno pedregoso, com casas de tamanhos semelhantes. Eram relativamente pequenas, se comparadas à monstruosidade da montanha logo atrás. Havia alguns comércios e as pessoas que andavam por ali pararam ao ver o grupo passar. Serafine encarou rostos de diversos tons de pele e expressões variadas.

O caminho os levou até a base da montanha, onde havia um túnel largo.

A iluminação daquele lugar era precária, com tochas dispostas em espaços distantes. Saíram da escuridão para a área descoberta e ali encontraram uma alta torre de vigia. Os guardas – depois de conversarem com o líder daquela tropa – acenaram para o grupo passar, dando permissão para que continuassem. Logo haviam alcançado a segunda torre de vigia. A vista que tinham daquela altura era paradisíaca. Por mais inóspita que parecesse a região, sua beleza natural era fascinante.

Eles finalmente alcançaram a entrada da Fortaleza – a torre tinha uma grande bandeira vermelha no topo. Passaram pelos portões de ferro e adentraram o pátio central. O líder do grupo já havia desaparecido – Serafine se lembrou de que era ele quem carregava Ývela, e a garota desesperou-se, rezando aos Deuses que ele tivesse chegado a tempo.

A praça, Serafine reparou, não era tão sofisticada quanto o pátio do Castelo das Quatro Luas. Dali ela tinha visão de boa parte da Fortaleza: torres espalhadas por todos os lados, com o topo reto e fechado. As janelas eram largas e altas, com vitrais coloridos e diversificados.

Estátuas de dragões podiam ser vistas em todas as torres. Eram imponentes e ligeiramente assustadoras. Serafine se lembrou dos livros que lera, sobre as descrições feitas a respeito daquelas criaturas gigantescas, e achou as estátuas iguais ao que tinha imaginado – cauda longa, corpo forte com asas de morcego nas costas, feições de um lagarto muito furioso, chifres na cabeça e espinhos pela extensão do pescoço.

Serafine imaginou como seria conhecer um dragão de verdade, quando estes ainda habitavam Warthia. Como seria ficar frente a frente com uma fera tão imponente.

Um muro alto circundava toda a Fortaleza. As rochas da própria montanha sustentavam-no assim como sustentavam a estrutura toda.

Outra coisa que veio a surpreender Serafine foi a árvore no centro da praça principal, chamada de Ancestral. Seu tronco – de prováveis dez metros de largura – ostentava uma coloração avermelhada fortíssima. Além da altura descomunal, a coloração branca de suas folhas embasbacava. Contrastavam perfeitamente com a cor escarlate do tronco, lançando pálidas manchas pelos galhos em que se amontoavam.

A maior construção daquele Castelo era onde Serafine imaginava estar o salão do trono. Ficava no extremo sul, lugar que ela só visitou mais tarde – o telhado, o único ali com telhas escuras, era sustentado por diversos pilares largos. Havia entalhes nas pedras, desenhos contornados por tintas coloridas. Quatro grandes vitrais ficavam em meio aos pilares, e Serafine precisaria erguer muito sua cabeça para enxergar até o fim deles.

Os desenhos nesses vitrais eram tão coloridos quantos os outros, mas mais detalhistas: cada um representava um elemento. Laranja para o fogo, ilustrado por um dragão negro de olhos escarlates; azul para a água, representada por uma sereia belíssima; branco para o ar, onde havia uma linda fada de cristal e, por fim, vermelho para a terra, onde se podia avistar a árvore do pátio retratada com precisão.

Logo que parou no pátio, Serafine se viu forçada a descer e aguardar. Jarek e Guillian, para sua surpresa, não haviam sido levados até ali – deviam ter acompanhado Ývela, muito provavelmente.

À sua frente, alguns metros distante do pátio, estava a

entrada para o palácio – eram portas de madeira clara. O entalhe ficava bem no centro e se dividia quando ela era aberta. Era um Sol, diferente daquele que Serafine vira dias antes num livro. Um desenho simples, na verdade, e mais rústico. Os raios seguiam um padrão – um deles reto e o outro retorcido em um longo nó, assim respectivamente.

Serafine imaginou ser uma espécie de símbolo ali na Fortaleza, além do dragão – ao olhar a bandeira vermelha pendurada naquela primeira torre, tremulando com a brisa, ela avistou a criatura alada em um dos lados e aquele mesmo Sol no outro.

A garota se viu rodeada por soldados, todos alheios à sua presença. Exceto por um.

O centauro comunicou-se antes que ela o fizesse:

– O Rei espera que se sinta bem-vinda. Ele a receberá mais tarde. Está cuidando da saúde de sua acompanhante no momento. – A voz dele era rouca e grave e surpreendentemente familiar.

– Quero ver minha amiga.

– Não pode.

– Muito bem, e meus outros acompanhantes? Aquele guerreiro alto? Ou o Atyubru? – Ela indagou com desconfiança. Havia algo sendo escondido, mas o que?

O centauro não esboçou reação.

– Eles estão se recuperando. Sugiro que faça o mesmo. – Ele fez um sinal com a mão, pedindo que alguém se aproximasse, e três garotas apareceram.

Serafine contemplou a menina à frente. Era magra e muito alta – mais do que Serafine. Tinha um sorriso de covinhas e pele branca, mas não tanto quanto a de Ývela – em um Reino como aquele, ser branca como a ondina devia ser um feito impossível. Os cabelos longos caíam lisos, com leves ondulações, até sua cintura – eram castanhos, num tom bem escuro, e emolduravam o rosto de boneca lindamente. As sobrancelhas eram grossas e arqueadas.

Ela usava vestes inusitadas que, na opinião de Serafine, eram ousadas demais.

O vestido azul descia até seus joelhos em um tecido fino, semelhante à seda. Sem mangas e com fendas nas duas laterais, ele ficava solto no corpo, preso apenas por um cinto grosso amarrado a sua cintura. Os lados de seu corpo estavam expostos e o caimento do vestido demarcava a silhueta dela; Serafine reparou, com um pouco de assombro, que as acompanhantes de Benídia também se vestiam assim. Aparentemente, as pessoas ali no Oeste usavam muitas cores e pouco pudor.

– Muito prazer, senhorita, sou Benídia, sobrinha de Lady Ylla. – aquilo devia significar algo importante ali, Serafine pensou. – Pediram-me que a acompanhasse pelo castelo. – a garota disse, ainda com aquele sorriso simpático. Tinha um sotaque bem forte, uma combinação de elegância e rapidez na hora de falar. Serafine tentou não ser rude, mas estava desconfiada demais para não lhe lançar um olhar hesitante. – Ah, por favor, não se preocupe com seus amigos. Eles estão bem! – Ela exclamou convicta. Serafine não acreditou.

– Muito prazer, Benídia, me chamo Serafine. – Ela virou-se para se apresentar ao centauro, mas ele já havia saído dali. Surpresa, já que a ação ocorrera de maneira silenciosa, ela contemplou Benídia.

– Parece cansada. – Benídia comentou. – Vou acompanhá-la até seus aposentos. Nadie e Lem – Serafine percebeu que aqueles eram os nomes das outras duas garotas, provavelmente servas do castelo. – irão preparar seu banho para que possa tratar desses ferimentos antes de seu encontro com sua majestade.

– Vou me encontrar com o Rei?

– Ah sim. Vossa Graça convocou o conselho para recebê-la. Parece que você é muito importante aqui, Serafine.


***


Ývela piscou os olhos com dificuldade. Havia em sua memória algo envolvendo uma dor lancinante e um apagão.

Resquícios do ataque de Escorpiões Gigantes piscaram atrás de suas pálpebras, e esse choque a fez despertar por completo.

Estava deitada em uma cama macia, e aproveitar o conforto que não sentia há dias a fez relaxar por mais alguns instantes. Apoiou as mãos no colchão fofo e se sentou com dificuldade. Frustrada, afastou o lençol que a cobria para examinar a gravidade dos ferimentos, e se surpreendeu ao ver os hematomas quase desaparecidos. Suas pernas já podiam se mover sem dificuldade, ainda que o esforço trouxesse dor.

Estava sendo curada por magia.

Avistou um espelho apoiado em frente à cama e moveu-se até lá para observar seu reflexo.

Um rosto abatido e frágil a encarou de volta. Olheiras fundas contornavam seus olhos, cujo brilho sempre chamativo se mostrou opaco. Os cabelos estavam uma bagunça, emaranhados, ainda que limpos. Alguém a havia banhado.

Ela usava uma túnica leve, branca, que evidenciava ainda mais sua palidez e magreza doentia.

Havia fraqueza no reflexo e, consequentemente, nela mesma. Ývela envergonhou-se por estar tão abatida. Amargurou-se por pensar que se deixara levar facilmente por uma armadilha tão tola.

Foi nesse instante que a porta se abriu. Do lado de fora, dois soldados montavam guarda nas laterais da entrada.

A loira congelou diante da figura que se aproximou. Ele estava sereno, concentrado, mas ficou surpreso por vê-la de pé. Seu rosto escondeu muito bem outras emoções – ainda que seus olhos o delatassem. Sempre o delatavam.

A ondina, no entanto, mal conseguiu controlar a própria respiração, tamanha ansiedade.

– Você deveria ficar deitada, o tratamento ainda não acabou. – A voz dele era suave, o sotaque delineando suas palavras. Ývela experimentou as palavras arrastando-se por sua pele, uma sensação familiar que tanto sentiu falta.

– Você me salvou. – As palavras escaparam da boca dela antes que as contivesse. O visitante pareceu achar o comentário curioso.

– Achou que eu não a salvaria?

– Não. Não depois... De tudo. – Referia-se à traição. Ele sabia; havia mágoa em seu olhar.

As sobrancelhas dele cingiram-se levemente, no que Ývela mordeu o lábio pelas palavras rudes. Como poderia duvidar dele?

– Ývela... Sabe que eu daria a minha vida por você. – E ali estava, aquele carinho, aquele tom preocupado, as coisas que ela imaginou terem sido extintas após sua traição. A ondina respirou fundo, deixando-se ser abraçada pela doçura que ele trazia. – Precisa descansar agora. – Ditou, aproximando-se. Ývela caminhou por meio segundo antes de fraquejar, mas ele estava ali para ajudá-la. Foi erguida em seu colo, sendo colocada com cuidado sobre os lençóis macios.

– Jon, eu... – Olhos azuis fixaram-se nos negros tão familiares, e houve um instante para as emoções fluírem entre os dois. Jon pareceu ansioso, desesperado para que ela falasse logo. Ývela, no entanto, disse algo muito simples: – Obrigada. – O sorriso que se ergueu no rosto dele foi genuíno.

– Não tem porque agradecer, Ývi. Agora descanse. – os dedos dele passearam por alguns fios de seu cabelo, e a carícia foi confortadora. – Restaurei a fratura em seus ossos, mas o incomodo vai continuar se eu não conseguir finalizar o feitiço. Sabe que nunca fui muito bom com encantos de cura. – Ele disse com embaraço. Ývela abriu um sorriso largo, as lembranças chicoteando sua mente enevoada.

– Você sempre foi um Mago excelente, Jon. Mas é humilde demais para admitir – Ela replicou. O sorriso tremeu no rosto dele, mas havia melancolia em seu olhar. Ývela sentiu seu coração apertar-se por causa daquilo.

– O feitiço tem mais dois processos antes de curá-la por completo. – O Mago explicou cuidadosamente. Com respeito e timidez, Jon conduziu suas mãos pela extensão dos ferimentos cicatrizados, contornando os hematomas que castigavam a pele dela em uma carícia suave. Seus dedos emitiam uma luz arroxeada sutil e discreta, o início de um encantamento. Ývela viu-se prendendo a respiração. – Está pronta? Pode doer um pouco.

Ela mordeu o lábio inferior, lembrando-se da agonia a que fora conduzida durante o ataque. Sem coragem para demonstrar mais fraqueza do que sua aparência já exibia, a ondina não respondeu ao Rei.

Jon, no entanto, era bom em interpretá-la. Com palavras solidárias, passou sua mão pelos olhos dela, colocando-a de volta ao mundo dos sonhos.


***


O caminho até seu quarto não foi silencioso e muito menos calmo como Serafine desejou. Benídia estava ávida por explicar cada detalhe dos corredores que cruzavam. A mente de Serafine divagou longe dali.

Ela temia por Ývela e pelos outros, e temia mais ainda por não poder vê-los – por que não a haviam esperado? O que havia de errado em conversar com seus guardiões?

Foi levada por um largo corredor assim que cruzaram as portas. O hall de entrada não era nada espalhafatoso. As tapeçarias nas paredes exibiam diversos brasões com símbolos variados, provavelmente das famílias nobres que viviam na Corte – Serafine havia lido uma vez que cada um dos quatro Reis tinha direito a quatro lordes em seu Conselho, de modo que somente os mais confiáveis eram convidados a viver em seu palácio.

Fora aqueles objetos, estandartes e armaduras podiam ser vistos vez ou outra.

Subiram quatro lances de escadas em ziguezague – cada um com vinte degraus, para maior agonia das dores de Serafine – e então entraram num extenso corredor. Andaram por poucos metros até uma curva, onde depois se viu uma enorme quantidade de portas. Serafine foi guiada até a segunda delas. As servas adiantaram-se para abrir as cortinas e preparar o banho, como foi dito que fariam, e isso deu tempo de Serafine observar o quarto.

O interior era belíssimo, simples e aconchegante. A cama estava coberta por um lençol de seda azul e os diversos travesseiros pareciam à Serafine extremamente confortáveis. No fim do cômodo havia uma janela alta, sem vitral, mas com vista para a descida da montanha. O Deserto também podia ser vislumbrado ao longe, como se não passasse de uma paisagem imaginária – era estranho pensar que até pouco tempo atrás estivera condenada a vagar por aquelas dunas traiçoeiras.

– Há vestidos no guarda-roupa e panos limpos ao lado da banheira. Os sais para o banho já foram colocados. São ervas encantadas, vão ajudar com os ferimentos... – as servas assentiram quanto a isso e se afastaram, deixando que Benídia prosseguisse: – Mandarei chamá-la quando o Rei estiver à sua espera. – E então se retirou, sem dar a chance de Serafine fazer alguma pergunta.

Inquieta, a garota resolveu render-se a um demorado banho na enorme banheira de bronze. Lavou os cabelos – mal tratados e bastantes sujos de areia – e penteou-os até livrar-se de todos os nós. Para sua surpresa, a dor em seus machucados realmente desapareceu quanto mergulhou na água gelada, e nem mesmo as costelas que ela imaginou estarem quebradas continuaram a doer.

Quando terminou, secou-se e procurou por alguma veste adequada. Encontrou uma peça simples e confortável dentro do guarda-roupa dentre tantas grandiosas, cheias de cores.

O vestido escolhido acabava um pouco acima dos joelhos e não tinha mangas. As laterais dele eram recortadas, como no vestido de Benídia, e a cinta amarrada ao quadril encobriu os lados de sua peça íntima.

Serafine cogitou a hipótese de usar uma peça menos aberta, mas não encontrou qualquer vestido que fugisse daqueles padrões. As espirais que marcavam sua pele estavam tão absurdamente expostas que a menina temeu ser alvo de ofensas; seria considerada uma aberração ali também?

Jogou-se na cama, lutando para ignorar aquela questão, e pegou no sono antes que pudesse imaginar. Tamanho era seu cansaço que nem do sonho se lembrou quando foi acordada. A serva sacudiu seu braço e causou-lhe um ligeiro susto. Serafine sorriu cordialmente, lembrando-se de ser simpática.

– Vim chamar-lhe, senhorita, pois o Rei a espera.


Capítulo 6

Traidores

 


A MORENA VIU-SE guiada até o enorme salão do trono, o mesmo circundado por vitrais coloridos, onde ela encontrou o tal conselho reunido. Diferente do que imaginou, nenhum dos presentes a encarou com aversão ou curiosidade – estavam impassíveis e sérios.

O chão era de pedra escura e reluzente, e havia nele o entalhe de um Sol dourado, o mesmo avistado mais cedo na bandeira da torre de vigia. As pessoas da Corte estavam sentadas em um semicírculo, quatro cadeiras elegantes dispostas de cada lado do grande trono. Havia três homens e uma mulher, cujo olhar pareceu solitário. Ela, curiosamente, foi a mais simpática, direcionando um sorriso a Serafine quando a viu entrar. Ficar frente a frente com tantas pessoas era perturbador, a garota pensou.

O trono era o objeto mais peculiar da sala, e também o mais belo: de pedra, havia sido moldado contra a parede. Os braços da grande cadeira rochosa eram cobertos por veludo vermelho, assim como o assento. Sobre ele, havia a estátua de um imponente dragão. As asas de morcego estavam abertas e sombreavam quem ali se sentava. O rosto reptiliano tinha rubis para representar os olhos vermelhos. A boca estava aberta num grito eterno, e os detalhes que o faziam tão assustadoramente reais hipnotizaram Serafine pelo tempo em que o observou. Esperou que logo o dragão se movesse, tamanha perfeição com que fora entalhado.

Foi enquanto Serafine o observava que um dos homens – o que estava na cadeira à direita do trono – ergueu-se. Tinha pele negra, cabeleira comprida, barba longa e barriga redonda feita um barril. Usou sua voz alta e potente para falar:

– O Conselho de Mídria foi convocado pelo Rei Jon Tytos, governante supremo do Reino Árido e comandante da Tropa de Arqueiros. Recebam agora sua majestade! – Ele fez um gesto para as portas pelas quais Serafine entrara e então os soldados a abriram, dando espaço para um homem passar.

Ao pensar no Rei descrito pelo homem barbudo, ela sem querer imaginou alguém muito mais velho. Quando idealizou o governante, nunca passou pela sua cabeça que Jon pudesse ser tão... Bonito.

Ele era alto e tinha um corpo atlético. Não parecia ter mais do que trinta anos. Os braços eram definidos, mas não chegava a ser tão musculoso quanto seus soldados. Na opinião de Serafine, ele parecia mais ágil do que forte.

O rosto tinha feições elegantes e bastante atrativas. O queixo estava circundado pela barba bem aparada e os lábios curvavam-se suavemente num sorriso acolhedor. Os olhos eram tão negros quanto o céu em uma noite sem estrelas. Os cabelos castanhos lisos e arrumados caiam até os ombros.

Ele vestia calças e botas escuras e uma camisa solta, de tecido leve para aguentar o calor daquele Reino.

Jon sentou-se no trono logo que o alcançou, cumprimentando seus lordes com poucas palavras.

Ele estava tenso, Serafine reparou. Algo em seus olhos escuros transpareceu preocupação.

– Agradeço por sua presença aqui. – O Rei disse formalmente. Tinha sotaque, antes também notado em Benídia. As palavras eram rápidas e bem pronunciadas.

Ele virou-se para Serafine, cruzando as mãos e apoiando-as debaixo do queixo numa expressão pensativa e um tanto curiosa. Para alívio da garota, o sorriso no rosto do Rei expurgava qualquer emoção negativa.

– Serafine, estou certo?

– Sim, majestade.

– Foi você quem procurou por minha ajuda durante o ataque dos Escorpiões, não foi? – Ela recordou-se de contatar a mente dele em meio à batalha. Era surpreendente saber que aquele com quem falara era o Rei. Não imaginava como Ývela o conhecia. – Foi uma grande sorte ter conseguido me chamar, já que poucos realizam esse tipo de magia.

– Uma amiga me ensinou. – Serafine explicou. Notou o interesse que brilhou nos olhos do Rei, mas permaneceu quieta até ele se manifestar novamente.

– Muito bem, Serafine, talvez queira saber o motivo de ter sido chamada aqui. – Jon retesou-se, assumindo uma expressão mais séria. O sorriso desapareceu de seu rosto, substituído pelo olhar questionador. – Sabe quem a acompanhava naquela viagem?

– Meus amigos, majestade. Jarek Hargon e Ývela. E também Guillian, do povo Atyubru.

– Sim, eu me encontrei com o guerreiro da floresta. – Jon assentiu, sorrindo brevemente. – Mas refiro-me ao fato de você realmente conhecer aqueles outros dois que a acompanham nessa jornada. Sabe quem eles são?

– Ývela é uma ondina e Jarek um guerreiro. – Serafine colocou as palavras cuidadosamente, usando de um tom curioso.

– E se eu lhe dissesse que eles são meus prisioneiros?

– Seus prisioneiros? – o respeito para com o Rei ficou de lado. – Por que os prendeu? Ývela está ferida!

– Não é por qualquer coisa que tenham feito agora, Serafine. – Jon disse com calma, ignorando o olhar furioso da garota sobre si. Os guardas ficaram tensos, mas Serafine não se importou. – É por uma coisa que eles fizeram há um bom tempo atrás. Principalmente Ývela. – Amargura denotou-se em sua voz.

– O que foi que Ývela fez para se tornar prisioneira? – Serafine rebateu. – Jarek é impulsivo, sei bem disso... Mas dai a ser um criminoso?

– A situação é muito mais complicada do que qualquer ação que ele tenha feito. – Jon disse. O enigma naquela frase despertou a curiosidade da garota, mas ela continuou a encarar o Rei com ferocidade. – Talvez queira ouvir a história de seus amigos.

As portas foram abertas e Serafine cingiu o cenho ao colocar os olhos em seus três guardiões. Guillian vinha sozinho, apesar de olhar furioso sobre um dos soldados que arrastava os outros dois.

Ývela estava pálida e fraca, e era auxiliada por um guarda, enquanto Jarek era empurrado pelo outro. Seus dois guardiões estavam com algemas de ferro nos pulsos. Vestiam trajes limpos e estavam com os ferimentos curados – principalmente a ondina que, apesar de ter tido os ossos de suas pernas estraçalhados, andava como se nada tivesse acontecido.

– Jarek Hargon e Ývela, do Reino das Águas, foram convocados ao Conselho de Mídria para que sua sentença seja decidida. – Jon disse em alto e bom som, sua voz cortando o silêncio que se instaurara ali. Logo depois disso, o velho barbudo ergueu-se e exclamou:

– Ývela, você é acusada de traição por tramar a fuga de um perigoso prisioneiro do Reino Árido. Jarek Hargon é acusado pelo sangue que carrega em suas veias. Sua família é proibida de pisar em terras reais e você fez mesmo assim. De acordo com a Lei, isso o condena à morte.

– Espera ai! – Serafine bradou indignada, colocando-se à frente de Jarek e Ývela.

– Fique fora disso. – Ouviu Jarek ralhar, mas não lhe deu ouvidos.

– Quero saber o motivo das acusações. – Exigiu, tentando soar imponente e convincente em frente a todos aqueles lordes. O mais velho olhou para o Rei, que assentiu enquanto encarava os prisioneiros.

– Permissão para que os prisioneiros falem. – Jon acenou para que os guardas deixassem os dois passar. Ývela ofegou um pouco, mas foi ela quem discursou. Jarek estava estranhamente quieto, Serafine percebeu, quase como se não quisesse questionar sua sentença.

– Majestade – Ývela continuou apoiada em um dos guardas, mas seus olhos estavam totalmente vidrados nos do Rei. Jon a encarou com a mesma intensidade, ansioso por suas palavras. – Sei que cometi um crime imperdoável ao ficar na Fortaleza, fingir-me de amiga e fugir com um prisioneiro, mas o motivo para tal ato foi e ainda é muito importante.

– Com certeza está apaixonada pelo Sturian! – Um dos lordes exclamou; ele era alto e magro. O rosto de feições felinas curvado numa expressão desgostosa. – Por que mais fugiria daqui para viajar com um procurado pelos Quatro Reinos?

– Não é isso! – Ývela retrucou raivosa. Ela fuzilou o lorde com o olhar e depois se voltou desesperada para o Rei. – A profecia estava certa, majestade, sabe disso! Sei que sentiu isso! É por isso que eu precisei resgatar Jarek. Ele foi escolhido como um dos guardiões.

– Não é possível. – Foi a mulher simpática, sentada bem no fim do semicírculo, quem exclamou. Ela tinha idade avançada e cabelos louro-esbranquiçados, mas os olhos verdes estavam atentos a tudo. – Como a profecia poderia se cumprir se não há indícios de que a Feiticeira retornou?

Guillian resolveu deixar a postura polida de lado e avançou até estar ao lado de Serafine. Estufando o peito, o Atyubru retrucou:

– Ela ainda não retornou.

– Então é tudo mentira. – O lorde magro retrucou.

– Não é mentira! – Ývela frustrou-se. – Nós três fomos escolhidos para guiar o espírito abençoado pelos Deuses, de modo que a Pedra Cílion possa ser destruída e Sharowfox derrotada.

– Mentiras! – outro lorde exclamou. – Matem-nos. Mate a traidora e o rapaz de sangue-sujo, é tudo que eles merecem!

– Não! – foi à voz de Serafine que se destacou ali, alta e imponente. – Não é mentira.

– E quem é você, afinal de contas? – O lorde magro resmungou, mas havia algo em seu olhar que indicava a hesitação.

– Quem sou eu? Você nunca prestou atenção em nada a respeito da profecia? – Serafine não escondeu a indignação. Jon lançou a ela um olhar sucinto, pedindo, silenciosamente, que mantivesse a calma. – Eu sou a escolhida. – Respirando fundo, a menina deu um passo á frente. Gostaria que os presentes ali no recinto tivessem ouvido falar sobre os símbolos que marcavam o corpo da esperança de Warthia, mas, pelo visto, nenhum deles o fizera.

– Recebi o toque dos Deuses em meu espírito. As Trevas estão ressurgindo e os elfos foram pegos de surpresa pelo poder delas, portanto, por favor, não cometam o mesmo erro. Ývela diz a verdade: ela e os outros são meus guardiões, e precisam ficar comigo até o fim. Eu devo exterminar a ameaça de Warthia. Não me importo com o que meus guardiões fizeram, mas não deixarei que toquem neles. – A conhecida vibração passou por seu braço e ela sentiu que o espírito compartilhava de sua ira. O ar ao seu redor mudou, mas ela não estava atenta. Foi algo involuntário de sua parte, uma força que vinha do fundo de seu coração.

– Acalme-se, Serafine. – A voz austera de alguém chegou aos seus ouvidos. A morena expirou, notando que todos ali a olhavam estupefatos. A interrupção foi suficiente para impedir que qualquer alma condenada aparecesse, mas ela sentiu a súbita mudança nos ares, como se o Sol tivesse se escondido por alguns instantes. Por uma das janelas visualizou nuvens negras desaparecendo lentamente do céu. – Não queremos um dilúvio na Fortaleza.

Ela virou-se para o dono da voz, encontrando o rosto do centauro que a salvara mais cedo – os olhos azuis eram os mesmos, mas agora ele não escondia a face com o pano. Ela viu sobrancelhas espessas, cabelos curtos e escuros um pouco emaranhados, e barba rala. Também viu o rosto de uma criatura surpreendentemente familiar:

– Você – ela arfou. – é o centauro de anos atrás! Você visitou Vila do Sol!

– O destino é glorioso, não acha? – ele disse simplesmente, abrindo um sorriso caloroso. – Ela fala a verdade, majestade. – ele então se virou para o Rei. – Serafine é a escolhida, e seus guardiões não podem ser mortos. A profecia depende deles para ser cumprida.


Capítulo 7

Revelação no Conselho

 


- MAJESTADE, ELES SALVARAM A minha vida... – Serafine virou-se para Jon, ignorando momentaneamente a sensação de choque por ter reencontrado o centauro. – Não deve punir Ývela por ter feito a coisa certa. E Jarek é o guerreiro mais nobre que já conheci. Não sei por que a família dele é considerada traidora, mas posso garantir que ele não é. – Ela recordou-se brevemente de uma visão antiga, em Líriel, onde Ývela e Jarek estavam conversando. Durante o diálogo, ele alegara ser um traidor. – Por favor, permita que eles fiquem livres.

– Eu não posso agir contra a lei, Serafine. – Jon explicou com um sincero pesar nas palavras. – Sei que você é a escolhida e que eles estão destinados a guiá-las, mas o crime cometido por eles é...

– Inaceitável. – o centauro respondeu, mas havia algo em seu olhar que despertou Jon. Ele encarou-o com curiosidade. – O senhor é soberano dessas terras, majestade, e pode pedir que seu Conselho vote contra a punição. Se todos aqui decidirem que Ývela é inocente, ela pode ficar livre. O Grande Rei lhe deu esse livre arbítrio.

– E quanto a Jarek? – Serafine indagou.

– A questão com ele é muito mais complicada...

– A questão comigo... – Jarek manifestou-se, quebrando o silêncio que havia mantido durante aquele tempo todo. Serafine viu algo estranho no olhar sempre determinado do guerreiro: ele estava com medo. Murmurou as palavras com cautela, mantendo os olhos sempre no chão. – É que meus antepassados cometeram a maior traição de toda a história warthiana. Por isso meu sangue é amaldiçoado. – Ela arregalou os olhos quando constatou a verdade.

– Os Sturian traíram a confiança do Grande Mago na época em que Sharowfox vivia – Jon narrou calmamente. – Eram conhecidos por sua força e velocidade, considerados os mais ágeis guerreiros de todos os tempos; descendentes dos elfos, da mesma maneira como os Magos, mas herdaram força acima da sabedoria. – Jarek franziu os lábios, contendo-se para não insultar o Rei pela maneira como zombara. – Eles juraram permanecer ao lado do Rei na batalha, garantiram que suas espadas serviriam somente ao exército da Luz, mas não honraram seu juramento. Abandonaram meu antepassado em plena guerra para lutar ao lado de Sharowfox.

– Dizem que a bravura com que eles defenderam as Trevas chegou a ser assustadora. – O lorde barbudo comentou.

– Quando a Feiticeira perdeu, buscaram por piedade. Meu ancestral não aceitou, e lançou sobre eles uma terrível maldição: qualquer Sturian vivo seria caçado como traidor até o fim dos tempos; a raça estava proibida de pisar em terras warthianas. Os guerreiros que descumprissem qualquer uma das nossas Leis sagradas se tornariam monstros sanguinários como aqueles que abandonaram a Luz. Lobisomens existem até hoje, fortificados pelas sombras, o que prova que os Sturian ainda deturpam as regras.

– Jarek nunca o fez. – Serafine retrucou.

– Não significa que esteja livre da maldição.

– Não pode condená-lo por um erro cometido tanto tempo atrás! Seu ancestral puniu aqueles que o traíram, nada mais justo, mas por que destruir gerações com isso?

– Ele queria prevenir uma possível traição futura. – o lorde barbudo exaltou altivo, tentando soar convincente. Serafine bufou. – O sangue deles é sujo e suas atitudes são indignas de confiança.

– Eu confiei minha vida à Jarek – ela rebateu, encarando cada um dos presentes na sala. Nenhum deles estava convencido, mas isso não parou seu discurso. – e ele me salvou inúmeras vezes. Não me importa se isso é apenas a tarefa dele como guardião, Jarek provou ser um homem de caráter e honra. Se fosse realmente mal como aqueles que um dia traíram Warthia, por que não matar aquela que está destinada a destruir Sharowfox? Ele jurou que me protegeria e está fazendo isso.

– Serafine, fique fora disso. – Jarek murmurou, postando-se atrás dela. Havia secura em suas palavras. Ele tentou ordenar aquilo com convicção, mas não funcionou. – Vão prendê-la se tentar me defender.

– Não vão me prender. Sou a escolhida. – havia força na voz de Serafine. Mesmo Jarek ficou surpreso por sua reação. – Estou destinada a salvar a vida de todos vocês, mas lhes digo agora: não vou a lugar nenhum se não libertarem Jarek e Ývela desse castigo. Eles não serão mortos ou não haverá Warthia para que nós vivamos. Preciso dos meus três guardiões e não partirei nessa jornada sem eles. Os Deuses bem sabem disso.

A ameaça surtiu efeito imediato, já que os lordes arfaram e começaram a exasperar-se. Ývela a encarou com assombro, enquanto Guillian era puro orgulho. Jarek foi indecifrável, como

sempre, ainda que seu olhar delatasse um pouco de gratidão.

Na corte, no entanto, Jon foi o único que continuou quieto, fitando Serafine com uma curiosidade inabalável. Havia algo no olhar do Rei que enalteceu Serafine, como se ela soubesse o que ele estava prestes a dizer.

– Já basta! – Jon exclamou, mas a confusão continuou entre os lordes exaltados.

– Meu soberano, esta garota é insana! Se fosse realmente a escolhida, jamais faria tal ameaça.

– Eu devo à Jarek minha vida, por que não faria? – Serafine retrucou, cruzando os braços em frente ao peito. Era uma pose extremamente desafiadora, principalmente pela expressão provocativa em seu rosto.

– Meus senhores, peço que se acalmem. – Jon soou tranquilo em meio ao pandemônio de vozes. – Jamais tomaria uma decisão sem suas opiniões, portanto gostaria que expressassem suas respostas à minha pergunta: Ývela e Jarek merecem esse perdão? Serafine já argumentou sobre tal fato, então é de vocês a segunda voz.

– Majestade... – a mulher solitária ergueu-se, e logo Serafine saberia que ela era Ylla, a tia de Benídia. – Acho que a menina está certa nos dois casos. Ývela fez algo pelo bem de Warthia e não merece ser punida. Quanto à maldição criada por seu antepassado... É mais do que mutável num momento como esse. Jarek pode estar condenado, mas não foi vítima da maldição, portanto, seu coração ainda é nobre. E todos sabem que são os Deuses quem escolhem os guardiões... Não devemos ir contra a palavra divina.

– Lady Ylla está correta. – O mais quieto dos lordes ali presentes ergueu-se, deixando sua voz rouca ecoar pelo salão. Era Lorde Frai, um guerreiro veterano que tinha o respeito de todos os outros ali. O rosto aparentava cansaço, mas sua pose era rígida. – Nesse caso, e somente nesse, podemos reconsiderar. Ývela pode receber o perdão e, por mim, Jarek também. Contanto que fiquemos de olho nele, nada sairá do controle. O Sturian está sozinho, não cometeria qualquer loucura.

– Eu discordo! – O moreno barbudo, que se chamava Octus, exclamou com indignação. Ele encarou Ylla e Frai de maneira irritada, como se esperasse outra atitude deles. – Nunca na história de Warthia houve piedade com essa raça imunda! – ele lançou a Jarek um olhar cortante, mas o guerreiro continuou a fitar o chão. – A menina deve se contentar com dois guardiões, pois eu permito que a ondina fique livre. O Sturian deve permanecer em nossos calabouços.

– Acredito que tanto Ývela quanto Jarek cometeram crimes terríveis contra o nosso Reino. – o lorde magro, chamado Klaus, manifestou-se. – As atitudes da ondina, por mais dignas que tenham sido, violaram a confiança que depositamos nela. Se ela for perdoada, deverá ser vigiada vinte e quatro horas por dia... Quanto a Jarek, não há o que se dizer. A lei é rígida e soberana, e seu irmão com certeza a trataria com a devida importância. – Jon continuou impassível, mas Serafine notou a tensão escondida em sua expressão.

– Não acredito que está falando isso, Klaus! Sua majestade sabe muito bem como tratar a lei aqui neste Reino. Estamos em boas mãos desde que o Grande Rei o escolheu para governar. – Lorde Frai rebateu abismado.

– Parem! – A voz altiva do centauro ribombou pelo salão e todos assumiram poses rígidas novamente. Serafine reparou na troca de olhares hostis entre Frai e Klaus, mas voltou sua atenção para o Rei.

– Muito bem – Jon ergueu-se e todos os lordes o imitaram. Ývela prendeu a respiração, como se estivesse desesperada por uma resposta. – O Conselho votou e a maioria escolheu pela libertação de Ývela. Assim será feito. Quanto a Jarek... Eu considerarei sua ameaça, Serafine, como uma medida desesperada, e aceitarei seu pedido. Mas você também aceitará o meu. Deixarei que Ývela e Jarek fiquem livres em minha Fortaleza. Peço-lhe que, em troca, treine juntamente com os outros membros na Tropa de Arqueiros que eu estou reunindo. O que significa que, enquanto você for minha convidada, será também minha guerreira. Será um soldado do Reino Árido.

– Com todo o respeito, majestade, mas o senhor enlouqueceu? – Guillian exultou. Jon sorriu abertamente.

– Ela vai salvar o mundo, não vai? Imagino que precisemos de uma guerreira para isso.

Serafine arregalou os olhos.

Queria ser capaz de lutar sem precisar de proteção. Por mais que seus treinamentos com Jarek e Ývela surtissem efeito, não era tão específico quanto aquele que o Rei lhe oferecia: a oportunidade de exercitar suas habilidades com os melhores arqueiros de Warthia.

Jon aguardou a reação da garota. Sua resposta foi uma só:

– Está bem, majestade. Eu treinarei com a tropa. Vou me tornar uma arqueira.


Capítulo 8

Terror ao Sul

 


LUKE CONTEMPLOU A GARRAFA de hidromel, agora com o conteúdo pela metade. Seus dedos escorregaram da borda da mesa até a faca cravada na bancada de madeira velha, enquanto seus olhos prateados passeavam por rostos desconhecidos. Havia prostitutas, fazendeiros das redondezas e alguns viajantes – ele sabia que eram viajantes por causa dos olhares amedrontados; ninguém que pisava no Sul pela primeira vez via aquele Reino como algo fascinante.

O barman aproximou-se do príncipe e perguntou se ele desejava algo mais. Pela maneira educada e exagerada com que o homem disse aquilo, curvando-se e referindo-se a ele como “alteza”, os presentes passaram a observar o rapaz.

Irritado por ter seu disfarce arruinado, ele removeu o capuz de sua cabeça e deixou o rosto conhecido e o cabelo claro expostos para quem quisesse ver. Lançou um olhar irado ao barman e este se retirou, indo atender outro freguês.

– Alteza. – Ele suspirou ao ouvir a voz do atendente. O homem devia querer pedir algum favor, pela maneira com que encarava o príncipe. O povo do Sul estava sempre desesperado por ajuda. Luke não os culpava. O Reino das Brumas era um lugar esquecido até por seu Rei.

Luke encarou a faca que trouxera consigo, uma arma belíssima e bem trabalhada, cuja lâmina de prata fora outrora usada pelo pai para castigá-lo por uma pergunta inoportuna.

No passado, vencido pela curiosidade, o rapaz havia indagado o porquê da morte horrenda inferida a mãe, e fora espancado por causa daquela questão. A cicatriz que marcava seu rosto era a lembrança infame de que ele não deveria, jamais, tocar naquele assunto.

Sua mãe era uma traidora. Ela serviu a Luz. E é por isso que está morta.

Ele deixou algumas moedas no balcão e se afastou, vestindo o capuz novamente. A peça cinzenta esvoaçou atrás dele quando Luke pisou do lado de fora. O vento gelado açoitou a pequena vila, mas o príncipe não sentiu frio. Caminhando com calma, ele olhou para frente, avistando os contornos da gigantesca fortaleza de gelo... E então viu um cavaleiro aproximando-se pela estrada real, o corcel negro galopando contra o vento.

– Alteza! – o soldado exclamou. – Seu pai exige sua presença no palácio. – Luke respirou fundo e assentiu. Apressadamente, alcançou seu próprio cavalo e montou nele, cavalgando enquanto se questionava sobre o porquê de seu pai querê-lo presente na execução.


***


Maltrus encarou o cadáver. Não havia compaixão no rosto do monarca, mesmo com os gritos desesperados da mãe tão próximos de si. Quando a raiva agia, selvageria o assolava.

Ele precisava culpar alguém pela falha. Precisava que alguma alma sofresse eternamente pelo tormento que o preenchia. Precisava lançar mão de toda a sua crueldade a algum inocente.

Naquela noite, havia sido o filho de uma das escravas.

O plano havia falhado. Sanzur e seus incompetentes servos haviam guiado as Feiticeiras até Mídria, de modo que as mulheres enfeitiçassem os Escorpiões Gigantes. Elas criaram uma consistente miragem no local onde Serafine deveria passar com o trio de guardiões, para então serem direcionados até a armadilha. O guerreiro Sturian de fato conhecia o Deserto, mas fora facilmente confundido pelo feitiço. A mente havia sido ludibriada.

Os traiçoeiros Escorpiões não esperavam, porém, pela aparição de Jon e sua tropa de arqueiros. Nem mesmo Maltrus contava com a heroica aparição do meio-irmão, e ficou raivoso ao descobrir a falha. As Feiticeiras ficaram ainda mais iradas, contudo, graças ao acordo feito com Sharowfox, não puderam ferir o Rei. Maltrus ainda tinha uma dívida, ainda devia capturar Serafine... Mas não antes de descontar sua ira em alguém.

Diferente dos outros Reinos, a escravidão ainda era aceita no Sul. Os bárbaros vendiam crianças e mulheres capturadas em suas incursões para homens ricos do Reino das Brumas. Maltrus não se importava com quem quer que o servisse, pois não havia consideração em seu coração. Muitos duvidavam que o temido Rei até tivesse um; diziam que mesmo com o amor dado por seu pai, ele odiara viver como um bastardo. Depois de ter queimado sua esposa viva, nada mais surpreendia seus súditos.

Os lamentos da mulher foram abafados quando Maltrus se levantou, descendo os degraus à sua frente até encará-la de perto. Nada na dor da mãe trazia pena ao cruel Rei, e talvez por isso ela tenha parado de chorar. Encará-lo de perto fez com que o rosto da mulher congelasse de medo.

Com um gesto, Maltrus mandou que os guardas a arrastassem para fora dali. Desesperada e implorando, ela debateu-se quando os soldados a agarraram. Maltrus pareceu se divertir um pouco, achando graça no desespero dela, e murmurou com sua voz rouca:

– Por que eu deveria salvá-la? Até a pouco estava gritando que seu filho era tudo que tinha... Não o tem mais, não precisa viver.

– Vossa Graça, por favor, eu ainda posso servi-lo! – a mulher esganiçou exaltada em pânico. Maltrus franziu as sobrancelhas, levemente curioso. – Eu cuidei de sua filha desde que ela nasceu!

– E por causa disso acha que merece piedade? – Maltrus exclamou. – Ia tirar sua vida com clemência, escrava, mas por ter sido ingrata a ponto de me cobrar por seus serviços... Levem-na para os calabouços!

– Não, majestade, por...

– Pai. – Maltrus e todos os outros presentes naquele salão do trono voltaram-se para o príncipe. Até mesmo as hóspedes do Castelo, sempre tão desinteressadas, mostraram-se curiosas. A líder delas olhou para o príncipe com intensidade, os olhos azuis brilhando ansiosos. – Peço-lhe clemência para com essa mulher.

O jovem adiantou-se até seu criador, ajoelhando-se em frente à Maltrus. Luke não ousou encarar a faceta furiosa do pai, sabendo que sua atitude estava sendo muito mal vista, portanto, abaixou a cabeça. Maltrus conhecia o filho bem demais, mas conseguiu ficar estupefato com tal atitude. Os olhos dourados continham chamas de ira.

– Luke... Erga-se. – a voz de Maltrus saiu cortante, arrepiando aqueles que conheciam o temperamento do Rei. – Explique sua atitude.

– Esta mulher criou minha irmã desde seu nascimento. O maior de todos os castigos já lhe foi dado: ela viu seu filho morrer. Foi o suficiente. – Luke murmurou com cautela, tentando escolher palavras que não provocassem ainda mais o Rei. Maltrus mantinha o rosto impassível, mas o olhar exibia o descontrole assolando sua mente. – Ao menos a deixe ter uma morte limpa.

Maltrus não esboçou reação, enquanto que o filho mantinha-se o mais firme que podia. Ficar frente a frente com o Rei, ainda mais contrapondo suas ordens, era uma atitude insana. Luke, porém, sempre tentava. Como quando desafiara o pai, indagando sobre a morte de sua mãe... Ou quando defendera sua irmã, impedindo que ela fosse espancada por algum deslize.

Foi então que, para a sorte dele, outra pessoa colocou-se á seu favor:

– Meu pai... – A princesa disse suavemente, mantendo-se no lugar onde estava. Seus olhos, verdes como a grama, exibiam temor. Ela sabia muito bem o quanto o Rei odiava que se pronunciasse. Além disso, Maltrus não permitia que a menina pisasse nos degraus próximos do trono. Ele considerava aquele lugar digno apenas dos homens com sangue Tytos. – Deixe que minha serva morra sem maior sofrimento. Deixe-a reencontrar o filho no outro mundo.

Maltrus surpreendeu a todos com seu pronunciamento:

– Muito bem. – Luke sentiu algo errado naquelas palavras. – Nayara? – Maltrus voltou-se para a líder das Feiticeiras, que os olhou com curiosidade e deleite. – Peça por uma sentença e ela será cumprida. Considere isso um presente para sua Rainha.

Nayara ergueu-se, o vestido cintilante arrastando atrás de seu corpo, e deslizou até onde estava Luke. Parando bem ao lado dele, ficou na ponta dos pés para alcançar seus ombros, e escorregou os lábios frios pela pele gelada do pescoço dele. Quando alcançou a orelha do rapaz, sussurrou com sua voz rouca:

– Quero que o fogo derreta a alma dela.

Naquele momento, Luke estava sendo testado.

Maltrus e Nayara mantinham seus olhares cravados em sua figura, e o rapaz lutou consigo mesmo para não hesitar ou demonstrar fraqueza. Ele havia agido erroneamente ao replicar ao pai. Agora precisaria provar que sabia seu lado naquela guerra.

Engolindo em seco, ele viu quando os guardas obrigaram a mulher a se ajoelhar. Ela chorou e esperneou, mas não conseguiu se soltar. Se Luke se recusasse ou mesmo hesitasse, Maltrus cuidaria para que fosse castigado.

O príncipe acenou positivamente, e Nayara riu.

Com poucas palavras, uma pequena chama escarlate espalhou-se pelos dedos da Feiticeira, que estendeu a mão para Luke. Hesitante, ele aceitou o poder que lhe era passado, sentindo os ares mudando ao seu redor – aquele elemento estava deturpado pelas Trevas. Não havia nada de puro no fogo que segurava. Nada que o ligasse a natureza.

O príncipe respirou fundo, tentando reunir coragem para realizar o que estava para fazer... Jamais havia tirado uma vida.

O pai queria uma prova de que tinham o mesmo sangue.

De que Luke podia aguentar uma cena daquelas com o olhar desumano que o Rei possuía. Maltrus queria uma prova de que o filho não era fraco.

O Rei observou enquanto seu primogênito parava em frente à mulher e ignorava os lamentos proferidos por ela. Os ombros do rapaz estavam tensos, e a mão que sustentava a chama criada pelas Trevas parecia trêmula. O rosto, porém, era uma máscara de rigidez.

– Mate-a, meu filho.

Luke encarou o pai de soslaio uma última vez, procurando nele qualquer demonstração de emoção – se ao menos Maltrus estivesse ansioso ou preocupado... Nada. Não havia nada.

– Deixe que as sombras consumam a alma dela. – Nayara estava bem ao seu lado, a mão deslizando pelo braço que sustentava o fogo. Sem aguentar mais, Luke enterrou as chamas no peito da mulher.

O fogo alastrou-se num instante por todo o corpo dela, e não houve chance de ela proferir um grito ou um pedido de socorro. As Trevas engoliram a mulher numa explosão de ébano e seu corpo desapareceu em pleno ar, arrastado para o horror do mundo sombrio.

Maltrus sorriu. Ele adiantou-se até o filho, abraçando-o pelos ombros com falso orgulho. O rapaz não esboçou reação, mas ouviu o sussurro do pai:

– As Feiticeiras precisam saber que estão lidando com pessoas confiáveis. Elas agora podem ordenar uma morte a você, pois ela será cumprida. – Maltrus afastou-se do filho, armando uma expressão severa. Encarou agora as três convidadas, principalmente a líder, cujo interesse excessivo no príncipe ficava cada vez mais evidente. Os olhos azuis dela jamais se desviaram de Luke, mesmo quando o Rei lhe dirigiu a palavra. – O primeiro dos planos falhou, mas sei que o próximo funcionará.

– O que deseja que eu faça, meu pai? – Luke murmurou resignado, mantendo no rosto uma máscara fria. Se seu pai desejava um príncipe sem emoções, o teria.

– Primeiro, meu príncipe... – Nayara cortou-o. Ela era baixa, curvilínea e dona de um olhar felino. Os lábios volumosos curvaram-se num sorriso maldoso, enquanto os olhos cristalinos brilhavam com a maldade de sua alma. Caindo como uma auréola negra ao redor de seu rosto de pele pálida, havia a cabeleira cacheada belíssima. – Preciso que faça um juramento. Seu pai se certificará de que sua jornada seja breve...

– Irá partir em uma viagem. – Maltrus anunciou. Luke o encarou com um crescente espanto, já que nunca antes havia viajado para longe da fortaleza de gelo. – Certa Corte precisa receber a visita do império do Sul. Ficarei agradecido se transportar uma importante mensagem até o seu querido tio Jon.

Maltrus voltou-se para Nayara, abrindo um sorriso deformado por causa das cicatrizes em seu rosto.

– Minha senhora... Talvez seja hora de fazer aquele juramento de sangue.


Capítulo 9

Tropa de Arqueiros

 


SUA GUARDIÃ BEM LHE avisara sobre os intensos exercícios pelos quais os arqueiros tinham que passar; já fazia mais de uma semana desde que Serafine aceitara treinar com a Tropa, e isso também incluía seus treinos com o Mestre Theodore – que, por sorte, se comparado a Haius, era bem mais tranquilo.

Porque sim, Theodore era seu Mestre, o controlador da Terra que a ajudaria a dominar aquele elemento. Fora ele quem a contatara dias atrás, assim como fora ele quem enviara os soldados de areia para salvá-la durante o ataque dos Escorpiões.

Apesar de Jon ter aceitado libertar Ývela e Jarek, o único guardião que Serafine frequentemente via era Guillian – o felpudo estava muito animado com seus exercícios de arco e flecha e os assistia todos os dias. Seus outros guardiões passeavam por diversos lugares da Fortaleza, exceto aqueles que possuíam qualquer tipo de armamento. Como se eles fossem se rebelar de repente e sair matando todo mundo por ai!

No dia seguinte àquela reunião com o Conselho, Serafine foi levada por Benídia até um dos andares inferiores, e ficou embasbacada com o salão que lhe foi apresentado.

Era gigantesco, provavelmente ocupando o subterrâneo todo da Fortaleza. Havia divisões dentro do espaço para todos os tipos de treino com o armamento, e todos eram encantados por uma poderosa magia.

Bonecos feitos de materiais diferentes simulavam inimigos, enquanto os soldados tinham que ultrapassar obstáculos para lutar com eles. Os inimigos tinham níveis de dificuldade diferentes; os mais fáceis eram feitos de pano e os mais difíceis, de metal. Serafine observou boquiaberta enquanto arqueiros corriam pela paisagem artificial criada por meio de uma ilusão, lutando contra uma besta que se assemelhava a um minotauro.

Ao chegar ao salão, Serafine encontrou os seus companheiros de treino, além de Jon, que era responsável pelos novos grupos. Ele estava concentrado, com os olhos fechados, tomando conta das paisagens mágicas.

Soldados em níveis avançados ficavam em áreas de treinos mais intensos, longe dos novatos.

Serafine conheceu um elfo chamado Drack – que não era simpático e nem rude, limitando-se a sempre cumprimentá-la com um aceno rápido. Havia mais vinte indivíduos, incluindo um meio-gigante chamado Ozera – apenas um deles, no entanto, chamou sua atenção; Percival era seu nome.

O menino tinha quatorze anos de idade e fora aceito para treinar na Tropa pela determinação que mostrara em convencer o Rei. Ele havia perdido a família e passara a viver no Castelo a pedido de seu tio-avô, lorde Frai.

Percival tinha uma estatura incomum à sua idade; era alto como uma árvore, e extremamente magricela. O sorriso de lábios finos era infantil, mas ele raramente o usava – permanecia sempre com uma expressão séria, tentando manter a pose de durão. O cabelo preto caía sobre o rosto num corte bagunçado e encobria os olhos grandes e azuis. Serafine achou-o adorável por ficar sempre tão tímido em sua presença.

Ele era diferente dos garotos da sua idade. Enquanto outros pensavam em se divertir, ele desejava servir á pátria. O menino dissera à Serafine que, no futuro, queria ser o melhor arqueiro que Warthia já havia conhecido.

Os exercícios começaram naquela manhã como em todas as outras. Seguiam uma série completa para testar todos os pontos positivos dos guerreiros – equilíbrio, velocidade e pontaria. Eles treinaram o alcance de sua força e Jon os colocou sob uma ilusão para testar sua destreza; ninguém se saiu muito bem, apenas Serafine foi rápida o suficiente para escapar da primeira armadilha. Não pegaram em um arco e muito menos numa flecha. Jon dissera-lhes que primeiro deveriam melhorar os outros detalhes para que pudessem se armar.

Pela tarde, ainda no primeiro dia, Serafine foi dispensada.

Theodore queria começar seu treinamento. Jon os acompanhou e ficou sentado num canto, observando com curiosidade.

Diferente de como fora com Haius, o centauro não iniciou a aula explicando-lhe sobre a filosofia por trás daquela magia – ele queria ver do que Serafine era capaz.

Levou-a até um pátio ao fundo do castelo e pediu que ela invocasse seus poderes para tentar erguer uma rocha – que fazia parte do elemento Terra, portanto, deveria ser facilmente alcançável -, mas a garota não conseguiu fazê-lo.

– Sua alma já foi tocada pela Fênix, não vejo por que deveria convocar o mensageiro dos Deuses novamente. – ponderou o centauro, enchendo Serafine de curiosidade. – Por mais que a magia corra por seu corpo, algo a impede de fluir.

– Achei que já estivesse próxima do Segundo Elemento, agora que finalizei os aprendizados do primeiro. – Serafine comentou. – Ývela disse que você conseguiu me contatar naquela visão porque já esperava por mim. Talvez... – Ela hesitou. – Talvez meu espírito não esteja preparado para o elemento.

– Ou talvez lhe falte a palavra correta. – Murmurou ele, soando misterioso.

Serafine lembrou-se de quando libertara o Primeiro Mestre: de Jarek procurando em seu braço um desenho e logo depois dizendo a palavra na língua antiga. Talvez esse fosse o enigma. Seu corpo estava não só repleto de desenhos, mas também de símbolos representando a língua antiga.

Terra deveria estar em algum lugar.

Mas como saber qual era correta? Serafine aprendera a ler algumas palavras, mas muitos dos entalhes em sua pele lhe eram desconhecidos – passando os olhos por seu braço esquerdo, repentinamente, algo chamou sua atenção. No pulso havia um pequeno amontoado de símbolos desenhado entre algumas flores. A palavra pareceu brilhar aos seus olhos, como se estivesse aguardando para ser descoberta: Lay.

– Lay... – Um sorriso iluminou o rosto de Theodore quando ele viu o que a menção podia fazer. Serafine sentiu a conhecida vibração em seu espírito fluindo por seu corpo, mas com mais força no braço esquerdo, e a mente concentrou-se na magia à sua frente.

Ela ergueu a mão e uma rocha acompanhou o movimento, assim como todas as pedras que havia ao seu redor. Jon saltou do banco quando este levitou. O Rei ficou embasbacado pela demonstração de poder da garota.

E foi no mesmo instante que aconteceu – aquela terrível enxaqueca, a dor avassaladora atrás de seus olhos, o mal estar esquisito. Serafine perdeu o controle e as pedras rolaram pelo chão. Seus olhos se fecharam quando o latejar agonizante alastrou-se por sua cabeça.

Foi mais forte do que da última vez, só que Serafine não ousou abrir os olhos para ver o que havia ao seu redor. Podia sentir uma presença estranha, como quando Mahiry surgira. Ela não sabia se era a melhor amiga morta voltando para assombrá-la, mas não quis descobrir.

Também não foi como da última vez que a dor passou.

A presença de um Mago naquela Fortaleza foi o que espantou a alma penada para longe. Quando o fantasma se foi, a dor diminuiu e logo desapareceu. Serafine encarou Jon, que havia se dirigido até ela, e então ele lhe explicou:

– Magos lidam com magia branca, ao contrário das Feiticeiras. – havia um sorriso acolhedor no rosto do monarca, algo que trouxe tranquilidade aos pensamentos de Serafine. – O poder delas é tirado de espíritos, bons ou maus, e o nosso os espanta. Preciso fortalecer a barreira mágica ao redor do Castelo. Peço desculpas por meu deslize... Farei o feitiço ainda esta noite para que fique livre das almas.

Em seguida, Jon pediu que ela fechasse os olhos. Ele colocou a mão sobre a testa da garota, e ela imediatamente sentiu pressão atrás dos olhos, como se alguém a estivesse forçando a fechá-los. Ouviu-o murmurar algo em um tom controlado e logo se sentiu relaxar. Se tivesse continuado com os olhos fechados, certamente teria caído no sono, mas Jon a ajudou a se levantar.

– Espero que funcione, por enquanto. – ele sorriu como se pedisse desculpas. – Costumava consultar certos encantamentos de cura em meus livros; estou enferrujado com magia de restauração.

– Majestade... – Serafine o parou. – Tempos atrás, encontrei um livro na biblioteca de Líriel. Lonel me disse tratar-se de um objeto antigo onde cada Mago escreveu sobre seus conhecimentos... Também disse que era raro encontrar uma obra como aquela. – Jon arqueou as sobrancelhas enquanto a ouvia falar. – Eu poderia mostrar-lhe depois? Tentaria entender como ele foi parar em minhas mãos?

Jon assentiu, sem dizer mais nada. Ele trocou olhares com Theodore e então se despediu, alegando que tinha assuntos a tratar na Corte.

Serafine sentiu-se estranhamente calma depois daquilo, como se tivesse passado o dia deitada numa cama macia. O que quer que fosse aquele feitiço, havia funcionado para tirar-lhe ao menos a ansiedade ao invocar os poderes.

Ao encarar Theodore, ele disse a mesma coisa que haviam dito antes: por ser poderoso e estar totalmente ligado à natureza, o espírito tendia a ver almas que vagavam pelas outras dimensões daquele mundo mágico. O porquê da ligação? O centauro não sabia explicar.

Serafine então prosseguiu o treinamento com seu Mestre. Ficou surpresa ao notar que o feitiço de Jon realmente funcionara. Quando voltou a invocar seus poderes, nenhuma dor alastrou-se por sua cabeça. Theodore não quis sobrecarregá-la num primeiro treinamento, no entanto, por isso a fez sentar e relaxar e experimentar exatamente a mesma meditação tediosa que Haius a fazia encarar de vez em quando. Serafine perdeu a concentração dezenas de vezes seguidas por causa dos nervos.

Naquele mesmo dia, pouco depois do jantar, Jon apareceu na porta de seu quarto. Serafine o recebeu com surpresa.

– Majestade?

– Gostaria de convidá-la para uma caminhada, Serafine. – ela aceitou prontamente. – Se possível, poderia trazer o livro que mencionou mais cedo? – Ele ofereceu seu braço cordialmente. Serafine pegou a obra em cima da cabeceira de sua cama e aceitou o braço, confusa. Deixou-se ser guiada pelo Rei pelos corredores da imensa Fortaleza, até que alcançaram um jardim próximo ao seu quarto.

– O que está achando daqui, Serafine? O Oeste a recebeu bem? – Jon sorriu com simpatia.

– Sim, majestade. É um Reino bastante diferente e... Encantador. – Ela mediu as palavras, visto que ainda não havia se acostumado o suficiente com aquele lugar tão árido. Jon pareceu notar, por isso riu.

– Imagino que o clima a incomode um pouco? É a maior reclamação que temos de viajantes que passam por aqui... Fora, é claro, das bestas do Deserto. – Ele crispou os lábios, e foi a vez de Serafine sorrir.

– Um problema aqui e outro ali... Num todo, é um lugar agradável.

– Conhece a história desta Fortaleza?

– Não, majestade. – Serafine se lembrou de uma noite no Deserto, quando Ývela não lhe contara sobre o castelo, dizendo que deixaria outra pessoa fazer isso. A morena imaginou se tratar de Jon.

– Vou resumi-la para não tomar muito seu tempo, pois imagino que esteja cansada depois de tantos treinos. – Jon usou uma expressão atenciosa. – Este castelo foi construído pouco depois da derrota de Sharowfox. Foi um presente para meu antepassado, Neo. O nome desta obra é bastante peculiar, pois foi dada em homenagem à criatura que o ergueu.

– Um... Dragão construiu este palácio? – Jon riu da reação da garota.

– Um Elemental do fogo, Serafine. Sim, um dragão, mas também um homem. O corpo de um monstro, mas a alma de um humano. – o Rei olhou para o jardim onde se encontravam. – Aquele foi o último dragão a habitar estas terras.

– Ele tinha um nome?

– Orion era como o chamavam. Foi um grande guerreiro, muito fiel ao meu ancestral. – Jon sorriu suavemente. – E muito grato também. Neo aceitou este presente, mas o batizou homenageando a raça daquele que o havia construído...

– E o que houve com esse dragão? Morreu?

– Ninguém sabe, na verdade... Dizem que ele resolveu explorar outros mundos. Fundiu-se tão profundamente com sua magia elemental que se transformou numa fera completa, sem a consciência humana. Perdeu-se nos confins desta terra. – o Mago deu de ombros. – Lendas a respeito de seu destino é que não faltam. Histórias que sempre serão contadas.

Serafine assentiu. Sua atenção foi para o livro que trazia em mãos, e Jon finalmente o notou. A garota lhe entregou a obra e explicou-lhe como a havia encontrado na cidade dos elfos. Jon ouviu tudo com as sobrancelhas cingidas, concentrado, e ficou quieto quando a história acabou.

– Gostaria de pedir para me ceder este livro por um tempo, Serafine... Quero estudá-lo com calma e entender o motivo de ele ter aparecido para você lá em Líriel. Uma obra destas tem um valor histórico incalculável para minha família.

– Claro, majestade, o livro é seu! Lonel me disse que eu encontraria as respostas sobre ele aqui no Oeste. – Ele sorriu e acenou positivamente em seguida.

– Talvez eu consiga decifrar os encantamentos presentes nesta obra. Só peço-lhe paciência.

Serafine imediatamente anuiu, imaginando que aquele objeto era mais importante para o Mago do que para ela.

E Jon não lhe falou sobre o livro por um bom tempo.

Os dias passaram-se rapidamente, e a exaustão foi o que mais se fez presente. Apesar do cansaço, Serafine começou a se mostrar uma arqueira excelente.

Seus companheiros de treino costumavam chamá-la de Olhos de Águia, tamanha a precisão em seus tiros.

No primeiro fim de semana de Serafine naquele Castelo, Jon propôs que os aprendizes da Tropa fossem treinar do lado de fora. Escolheram praticar numa enorme varanda, com vista para o vale debaixo da montanha. Jon encantou alvos para voarem ao seu redor, e os aprendizes deviam acertar o maior número que pudessem. As flechas não tinham pontas para impedir que algum acidente acontecesse.

– Não desperdiçaremos muitas flechas? – Indagou Serafine. Havia curiosidade em sua voz, por isso ela não entendeu quando seus companheiros gargalharam. Jon, sorrindo, limitou-se a questionar de volta:

– Nunca ouviu a história dos arqueiros daqui, não é?

– Eu já ouvi sobre sua força e mira, e também que são os melhores no que fazem. – Deu de ombros.

– Ser arqueiro aqui no Oeste é mais do que se tornar um simples soldado – foi Percival quem falou. Jon encarou o garoto com um misto de orgulho e humor, cruzando os braços enquanto o menino narrava. – A preparação é excessiva para que nos tornemos os melhores atiradores, para que possamos proteger as vilas com toda a nossa força. Quando um arqueiro termina o treinamento, é realizada uma cerimônia onde ele recebe a flecha mestra.

– E o que seria essa flecha mestra?

– A flecha mestra é um objeto mágico de absoluta importância. – foi Jon quem respondeu, colocando-se ao lado de Percival. O menino não reclamou por ter sua história interrompida. – Todo arqueiro ganha o direito de portar em sua aljava uma flecha encantada, feita em madeira muito rara. A árvore milenar que a doa fica em nossos jardins, na entrada de nossa Fortaleza. Certamente já a viu. A flecha é então construída e serve para um único fim: fazer com que a aljava nunca fique vazia. Enquanto a mestra estiver ali, as flechas nunca se esgotarão.

– A árvore a doa? – Serafine repetiu levemente incrédula.

– Todos os seres têm consciência, Serafine, a Ancestral não é exceção. – disse o Rei. – A nossa árvore é considerada uma das mais antigas de Warthia e, quando chega a hora de realizar a cerimônia, nos cede alguns galhos para que sejam feitas as flechas. É o próprio Theodore quem as molda. A magia presente na madeira repõe qualquer falta que se faça dentro da aljava. Por isso, apenas os melhores podem ingressar nessa Tropa. Essas flechas pertencem aos mais dignos.

– E eu mereço portá-la? Por que você confiou em mim, não confiou?

– Serafine, seu coração é mais do que digno. – Jon sorriu confortante. – Todos aqui são dotados de bons espíritos... Tocados pelos Deuses ou não. Cada um salvará Warthia à sua maneira.


***


Serafine iria treinar com Drack naquela tarde, já que eles sempre faziam duplas, mas ficou completamente surpresa ao encontrar um rosto conhecido na varanda.

A presença de Guillian já era usual, mas a criatura discutindo com ele, nem tanto. Ývela sorriu para ela, exibindo a animação que tanto lhe faltara no Deserto. O cabelo claro caía sobre os ombros em uma trança elaborada e se enfeitava com algumas penas. O rosto jovial estava saudável e ela já andava normalmente. O vestido azul turquesa evidenciava ainda mais seus grandes olhos claros, cuja cor vibrante pareceu mais intensa naquele momento.

– Ývi! O que faz aqui? – Serafine exclamou com animação. Sua guardiã nunca estivera presente em seus treinos. Elas costumavam se encontrar somente durante as refeições, já que Ývela tinha uma área restrita para ficar no resto do tempo.

– Jon permitiu que eu viesse. Seus lordes não se preocupam mais comigo. O problema deles é com Jarek, infelizmente... – Ela suspirou, assumindo uma expressão penosa. Serafine sentiu-se mal pelo guerreiro.

– O pobre rapaz está sofrendo pelo retorno a sua casa. – Guillian comentou. Suas orelhas baixas indicavam seu humor deprimido. – Ninguém deveria se sentir assim. – Serafine bem sabia que o Atyubru conhecia aquela sensação, por isso apoiou a mão sobre a pata dele.

– Jarek vai ficar bem. Ele tem a nós. – A morena sorriu, sendo retribuída pelos guardiões.

Eles ficaram quietos quando viram Jon se aproximando. Serafine estranhou a reação de Ývela, até então relaxada, para uma postura mais tensa. Ela sorriu, no entanto. Um sorriso que Serafine não se lembrava de ter visto até então.

– Não sente dores, Ývela? – Jon indagou.

– Não, majestade. Estou perfeitamente bem, graças a sua ajuda. – Ele meneou a cabeça e, depois de demorar um olhar intenso sobre a ondina, retirou-se dali. Serafine notou que Ývela o acompanhou com extrema atenção, as bochechas coradas, e então questionou:

– Vocês se conhecem há mais tempo, isso é bem óbvio, mas que troca de olhares foi essa?

Guillian pigarreou pela indiscrição da morena. Ela não se importou.

– Nós nos conhecemos há muito tempo, Serafine. – Disse a ondina, desviando o olhar para a sua protegida. Serafine conseguia controlar-se quando estava curiosa, mas a ansiedade para ouvir aquela história era evidente. – A mais tempo do que você pode imaginar. Jon e eu somos grandes amigos graças a...

Sua narrativa foi repentinamente interrompida pelo soar de trombetas. Vinha de longe, o que significava a chegada de visitantes.

Eles não eram esperados naquele momento, já que Jon ergueu-se subitamente de onde estivera sentado e disparou para uma das portas. Serafine ergueu os olhos, vendo que seus companheiros de treino estavam tão confusos quanto ela. Theodore trotou até o trio, sendo o único ali a entender alguma coisa, e se pronunciou:

– O Rei encerrou este treinamento pela chegada de alguns convidados. Se quiserem me acompanhar, acho que ele agradeceria a presença de seus conhecidos nas apresentações.

– Apresentações? – Serafine virou-se para Ývela, pouco compreendendo o que ele dissera.

– Sua majestade geralmente recebe convidados importantes no salão do trono. Se forem apresentados ao Conselho de Mídria, são mais ilustres ainda. O que aparentemente é o caso aqui. – Ývela explicou, apressando-se com Guillian e sua protegida para seguir o centauro.

Em passos apressados, logo alcançavam o enorme recinto. Jon estava de pé em frente ao seu trono e os quatro lordes dispostos em suas respectivas cadeiras.

Benídia estava ali também – junto com outras jovens do Castelo -, parada no canto esquerdo. Serafine acompanhou Theodore, seus guardiões e os aprendizes até o canto direito, procurando por Jarek – o guerreiro não fora convidado para aquela apresentação. Provavelmente temiam que houvesse represália quanto à liberdade do Sturian.

Um dos guardas adiantou-se até a porta. Jon observou aquilo atentamente, e havia algo em seu olhar que despertou a curiosidade em Serafine. Ele pareceu aflito, quase cauteloso.

Quando as grandes portas de madeira foram abertas, Serafine desviou a atenção do Rei para os visitantes. Ouviu Ývela ao seu lado arfar de surpresa e quis questionar o porquê daquilo, mas o silêncio no salão não a deixou abrir a boca.

A morena tentou encontrar nos recém-chegados alguma coisa que chamasse a atenção, mas, com exceção da vestimenta, que era totalmente inadequada para o clima quente do Oeste, eles lhe pareceram normais.

Apenas um dentre todos foi alvo de sua avaliação por um tempo maior – de alguma maneira, ela sentiu uma energia estranha circundando-o. Era raro Serafine sentir aquilo, mas havia algo naquele estranho que atraiu sua curiosidade.

Era quase como se pudesse sentir o poder rondando-o, como uma aura. A garota não sabia dizer se só ela estava sentindo aquela força, pois era evidente que a surpresa dominou todos ao seu redor.

O rapaz que despertara a atenção de Serafine subitamente a encarou. Havia homens a sua frente e eles se apresentaram primeiro ao Rei, dando alguns instantes para que o jovem observasse a morena.

– Lordes do Conselho de Mídria. Majestade... Eu vos apresento Luke Tytos, filho do sábio Rei Maltrus, herdeiro do trono do Sul – Um dos soldados anunciou, erguendo a voz para que ela ribombasse por todo o salão.


Capítulo 10

O Príncipe de Gelo

 


O PRÍNCIPE DO SUL cumprimentou o Rei com formalidade e simpatia, mantendo o gélido olhar de prata sobre Serafine.

Ela não conseguiu ouvir o diálogo, mas Jon mostrou-se amigável ao sorrir e assentir. O que quer que estivessem conversando deixou o clima menos tenso. O silêncio no salão foi lentamente quebrado, pois o monarca se adiantou até seus lordes para apresentá-los aos recém-chegados.

Luke era, aos olhos de Serafine, um jovem belo, perturbador e enigmático. Diferente de Jarek, que tinha toda aquela pose de guerreiro rude e selvagem, ou mesmo de Jon, que se mostrou elegante e gentil, o príncipe do Sul parecia um verdadeiro mistério. Nada em seu olhar mostrava sua verdadeira personalidade, e Serafine imaginou que ele não era do tipo de falar muito.

O olhar, aliás, era gélido.

Devia ter em torno de dezesseis a dezessete anos. Era mais baixo que o Rei e mais alto que Serafine. Ele não parecia forte, seu corpo era magro debaixo daquela roupa preta, mas havia força em seu olhar.

Era sufocante ver como ele não parecia sentir calor, assim como qualquer outro visitante do Sul que o acompanhava. A blusa do príncipe era bem fechada, e marcava o tronco levemente forte do rapaz. Um longo casaco negro caía até seus joelhos, e a gola estava erguida ao redor do pescoço.

O rosto tinha feições finas e agradáveis. Seu cabelo bagunçado e espetado era de um loiro claro, quase pálido. Os lábios curvavam-se em um sorriso discreto, o tipo casual e pouco simpático. Os olhos eram surpreendentemente brilhantes, de coloração prateada perigosamente bela. Havia sombras escuras sob eles, como se o príncipe não dormisse há dias.

Ele fazia Serafine pensar no inverno. A lembrava dos ventos e brisas gélidos que a estação trazia. Ele era, definitivamente, um príncipe de gelo.

No canto direito do rosto dele podia-se enxergar uma tênue linha branca. Uma cicatriz fina descia por sua pálpebra e terminava na maça do rosto, marcando a pele branca. Apesar daquela marca, Serafine pensou, o rosto dele não era deformado. A face austera possuía feições belas, desde o contorno da mandíbula até o longo comprimento dos cílios grossos.

– O que acha que os nobres do Sul vieram fazer aqui? – Ouviu Drack, com a voz suave feito uma pluma, questionar Theodore.

– Eu realmente não sei. – O centauro respondeu, mantendo o olhar fixo na conversa do Rei com o príncipe. Vincos de preocupação podiam ser vistos em sua testa. – Jon esperava pela visita de seu sobrinho, mas só para a festa do Era dos Magos... É estranho recebê-los aqui quase um mês antes.

– Que festa é essa? – Serafine intrometeu-se, dando alguns passos para ficar próxima do centauro.

– É a comemoração que todos os Reinos fazem para celebrar a derrota de Sharowfox. – ele respondeu com um tom curioso, como se fosse à coisa mais óbvia do mundo. – De onde você vem não se comemora isso?

– Minha vila era muito distante de comemorações como essa. – Serafine deu de ombros. Estava acostumada ao ceticismo de Vila do Sol, ao fato de que eles excluíam qualquer coisa que remetesse ao mundo mágico, o que provavelmente incluía festas em louvor aos Magos.

– Os Reinos costumavam comemorar juntos, mas há anos que isso não acontece. – Theodore suspirou. – Imaginei que a visita do príncipe fosse pela festa, mas, pelo visto, Maltrus ainda não quer comemorá-la com os irmãos. Foi ele quem parou com as visitas, há quase dezoito anos...

– Talvez ele tenha seus motivos... – Serafine argumentou, pouco acreditando em suas palavras. Ouvira histórias sobre a solidão do Rei do Sul, e agora acreditava que eram verdades.

– Talvez. – Theodore encerrou a conversa bem a tempo, pois Jon acompanhou o príncipe para cumprimentá-los. Ývela ficou bem ao lado de Serafine, e a mesma notou certa tensão na ondina.

Jon apresentou o príncipe à Tropa de Arqueiros que vinha treinando, passando pelos membros com rapidez – o Rei não parecia à vontade com aquelas apresentações, Serafine notou, e ele quase se esqueceu de Ývela. Foi Luke quem notou a loira, colocando em seu rosto uma expressão surpresa. Ele a cumprimentou como todas as outras damas da corte, segurando sua mão e beijando suavemente as costas desta.

– Uma ondina nessas terras? – As palavras eram contidas e o tom grave de sua voz veio carregado de um sotaque desconhecido. Deixava as palavras mais elegantes e também mais precisas. Serafine não pode deixar de reparar como seu jeito de falar era bonito.

– Ývela deixou o Reino das Águas há muitos anos, Luke. – Jon adiantou-se até Serafine para livrar Ývela de qualquer questionamento. – Esta é Serafine, minha convidada. – Disse o Rei, indicando-a para o rapaz. Luke encarou-a com fascínio e curiosidade.

– Muito prazer. – Ele disse com calma. Segurando a mão de Serafine, ele depositou ali um beijo rápido. Os lábios dele eram gelados, assim como suas mãos, e causaram arrepios no braço da garota. Uma estranha e forte energia vibrou ao seu redor durante aqueles instantes. Ela ficou confusa, então só conseguiu responder:

– Igualmente.

– Suas marcas... – tanto Theodore quanto Ývela e Guillian estacaram com aquele comentário. Luke cingiu as sobrancelhas, passeando os olhos claros pelo rosto da morena. – São muito belas, se me permite dizer.

– Obrigada. – Serafine agarrou-se à tensão. Não confiava nos recém-chegados e não sabia o quanto eles conhecia sobre a Profecia. Pelo pouco interesse no rosto dos outros, não achou precisar se preocupar tanto. – São... De família. – ela mentiu, recebendo um aceno sutil de Guillian. Nenhum deles parecia querer dividir a verdade com os desconhecidos.

Luke ergueu um sorriso sutil.

– Imaginei que fossem.

Quando o príncipe se retirou para conversar com o Rei – e todos os membros do Conselho os acompanharam – o restante dos presentes foi dispensado para retornar às suas tarefas. Theodore lançou um olhar cauteloso a sua aprendiz e então acompanhou os outros.

Guillian se despediu para contar a Jarek tudo que tinha acontecido ali e Ývela resolveu visitar o jardim, gesticulando para Serafine segui-la.

Havia árvores ali, espécies pequenas e com pouquíssimas folhas, além de arbustos repletos de folhas estranhas e canteiros com flores ainda mais esquisitas.

A ondina olhou ao redor com encanto, como se tudo ali fizesse parte de uma recordação magnífica. Serafine, por outro lado, divagou sobre as sensações que tivera lá no salão, como quando sentira uma estranha força vinda do príncipe. Por que fora tão afetada?

Mistérios, Serafine pensou. Mais e mais mistérios.

– É um lugar maravilhoso, não acha? – Ývela indagou de repente, surpreendendo a morena. Serafine observou a paisagem a sua volta, sem saber o que responder. Por um lado, a vegetação exótica deixava todo o ambiente monótono daquele Castelo mais bonito, mas o clima abafado e seco tirava seu fascínio pela região. Se lhe perguntasse, Serafine diria preferir o Norte.

– É quente demais. – confessou, fazendo a ondina rir. – Desde que entramos naquele Deserto você vem enaltecendo esse lugar, mesmo depois de quase morrer. – Serafine comentou.

– Eu me apaixonei por essas terras há vinte anos, para ser bem precisa. – a loira sorriu ao ver o espanto no rosto da protegida. – Se esquece de que eu sou imortal, não é?

– É meio assustador pensar assim, na verdade. – a morena comentou com sinceridade. – Você parece mais nova do que eu e está por ai há séculos...

– Três séculos, desde que nasci. – o queixo de Serafine caiu. – Quando abandonei o Reino das Águas, a Profecia de Mídria já existia há algum tempo, e eu já tinha muitos anos de vida. Vaguei por este vasto continente, ciente de que tinha um dever para com ele, conhecendo sozinha cada perigo que as diferentes áreas de Warthia oferecia... Encontrei Lonel e fui convidada a ficar com os elfos, aguardando o nascimento da criança escolhida. A Ordem da Chama Eterna pronunciou-se quanto a minha aceitação para sua futura guardiã na época em que Demetrius, o primeiro filho legítimo do Rei, nasceu.

– Sabe... Seria menos assombroso se você não citasse datas. – Serafine brincou, sorrindo sem graça para a ondina. Ývela sorriu compreensiva.

– O tempo passa diferente para cada criatura neste mundo, Serafine. Os Magos só envelhecem depois dos oitenta. Guillian pode viver mais de cem anos, se não se meter em nenhum problema. – ela sorriu para o horizonte. – Não há em mim tanta idade quanto há em você, porque uma vida eterna não é suficiente para desvendar tudo que existe neste mundo. – Serafine não podia discordar do comentário sábio.

– Pois bem, depois disso, eu saí em viagem, esperando que Lonel logo encontrasse o outro guardião. Estava presente no Norte quando Demetrius anunciou que dividiria os Reinos, e vi de longe quando ele coroou seu irmão bastardo para governar o Sul. O povo se revoltou por causa disso.

– Acha que estavam certos?

– Não sei... Mas algo estranho sempre emanou dele. – Serafine pensou em Luke e na sensação que ele lhe causara. Talvez aquilo fosse de família.

– Foi por isso que ficou estranha quando viu o príncipe? – Serafine indagou repentinamente.

– Mais por Luke ser quem é, na verdade. Quando fui ao Sul numa viagem para visitar a toca das sereias, haviam se passado uns quatro anos desde a coroação, e fiquei surpresa em saber que o Rei Maltrus me conhecia. Ele sabia que eu tinha fugido do Reino das Águas e procurava para me entregar à Rainha de lá... Talvez pelo fato de eu ser valiosa para ela... Fugi, buscando refúgio com minhas amigas sereias, desesperada para cruzar a fronteira. Não sei se ainda sou procurada, mas o olhar de Luke trouxe á tona o medo de antes. – sorriu suavemente, sem graça, e então se voltou para Serafine com um olhar questionador. – Lembra-se da história que contei em Líriel? Sobre o menino que me salvou dos vendedores de escravo?

– Sim.

– Isso foi há vinte anos, pouco depois da minha fuga do Sul. O meu salvador, na época, tinha quinze anos. Permaneci no Oeste a seu pedido durante muitos meses e então recebi uma notícia vinda do Norte: Lonel sonhara com o bebê. Havia enviado Guillian, o Atyubru escolhido como segundo guardião, para proteger a mãe. E precisava que eu voltasse.

– Minha mãe? Minha verdadeira mãe? Você a conheceu?!

– Sim – Ývela pareceu pouco à vontade por tocar naquele assunto, principalmente ao ver o olhar temeroso de Serafine.

Por mais que a morena ignorasse a sua origem, ouvir a menção daquela que lhe dera a vida causou estranha curiosidade. Se ao menos pudesse saber quem ela era... Saber sua origem, sobre seu pai, se tinha avós ou até irmãos... Talvez alguém pudesse lhe explicar sobre o porquê de seu destino.

– Guillian cuidou para que ela ficasse protegida. Depois do seu nascimento, soubemos pouco de sua mãe. – Houve um momento de hesitação, como se Ývela ponderasse o que dizia. Serafine não sabia se ela estava escondendo alguma coisa, mas havia incerteza nos olhos da ondina.

– Então Guillian conviveu com ela?

– Serafine...

– Ývela, eu sei que nunca me interessei por meu passado, mas há pistas nele. Coisas que me explicarão porque fui escolhida para livrar Warthia das Trevas. Pode ser que minha mãe saiba disso...

Se havia qualquer possibilidade em conhecer a mulher que lhe dera vida, havia a possibilidade de desvendar os mistérios que a cercavam.

Ývela suspirou, fazendo um aceno para Serafine. Não era um assentimento, mas ela também não a repreendia pela escolha.

– Peça a Guillian, mas não o pressione. Ele não pode contar muito sobre essa parte de sua história. – Serafine assentiu, deixando a ansiedade para obter tais respostas desaparecer de sua mente; memorizou as perguntas, tentando torná-las simples, de modo a não incomodar o felpudo. Ela conhecia Guillian o suficiente para saber que ele só lhe contaria se fosse a hora certa.

– Você nunca mais encontrou aquele garoto que a salvou? – Serafine disparou repentinamente, pegando Ývela de surpresa. Ela cingiu as sobrancelhas, mas logo entendeu a quem a morena se referia.

– Nós nos tornamos grandes amigos. – ela piscou divertidamente, deixando a frase pairar no ar. Fixou o olhar no horizonte à sua esquerda, enquanto Serafine crispava os lábios por ter recebido uma resposta tão vaga. Talvez Ývela não quisesse tocar no assunto. – Acredito que logo o jantar será servido, e eu estou morrendo de fome. Você vem?

– Vou trocar de roupa antes. – Serafine respondeu, acenando enquanto via a ondina se afastar.

Logicamente que Serafine não pensava em trocar suas roupas. Precisava encontrar o guerreiro orelhudo. Queria respostas.

Sendo assim, apressou-se na direção dos corredores, ansiosa, e foi ai que seus sentidos desvaneceram e todo o mundo ao seu redor escureceu.


Capítulo 11

A dama no calabouço

 


A PRIMEIRA COISA QUE sentiu foi o frio entorpecendo seus músculos. Seus olhos ainda estavam fechados, mas o toque gélido era tão palpável quanto o chão duro em que estava deitada. Havia também outra sensação, que não vinha dos arredores, mas sim de si mesma – paralisante, mas mais suave que o medo. Uma leve apreensão.

Suas pernas estavam rígidas, como se os músculos não respondessem à sua vontade de levantar. Ela abriu os olhos lentamente, temendo o que vislumbraria, mas foi pega de surpresa ao se deparar com um ambiente inóspito e depressivo.

Estava trancafiada numa cela.

As grades à sua frente fixavam-se no chão e no teto, com paredes ao redor restringindo-a a um espaço estreito. Não havia qualquer iluminação decente ali, com exceção de uma mínima janela bem no topo de uma das paredes – a vista era do céu alaranjado pelo crepúsculo, mas de onde estava deitada, nada mais via.

Estranhos sons de lamentos chegavam aos seus ouvidos. Choros agudos vindos de outra cela, gemidos de dor ecoando junto com os lúgubres pedidos de socorro. Havia demasiado sofrimento naquele lugar.

Grunhindo, ela ficou surpresa ao descobrir que sua voz não mais existia – qualquer ruído que tentasse extrair não chegava aos seus ouvidos. O dom da fala lhe fora tirado.

Por sorte, ainda podia ver, ainda que o lugar estivesse tomado por escuridão.

Foram sons que a despertaram daquele torpor agonizante em que se encontrava; esqueceu-se que perdera a voz e preocupou-se com os passos ecoando em sua direção.

Duas figuras pararam em frente ao local de seu confinamento, mas seus rostos eram meras sombras pela falta de luz. Serafine tentou se levantar, mas suas pernas fraquejaram e a fizeram cair novamente. Ao menos suas mãos respondiam – ela rastejou até o fim da cela, encostando-se á fria parede de pedra.

Por um momento, encarou as próprias mãos – as palmas estavam machucadas, com sangue seco em diversos ferimentos – mas foram às costas que lhe chamaram atenção. A pele morena estava marcada por desenhos, como estava acostumada, mas os arabescos não eram perolados. As espirais tinham uma coloração vermelha viva, cor de sangue, o que causou seu espanto. Seus desenhos nunca haviam adquirido tal tom, apesar de alguns terem mudado ao treinar o controle da água.

– O que há de errado com ela? – Serafine ergueu os olhos para os visitantes, tentando lembrar se já havia ouvido tal pessoa falar. Nada lhe vinha à mente. – Não parece a mesma. – Se pudesse falar, os teria interrogado sobre o motivo de sua prisão. Alguma coisa naquela história parecia estranha: ela não devia estar ali. Não havia cometido nenhum crime.

– Há, de fato, algo errado com ela... – o outro presente disse. Tinha uma voz afiada. Delineava as palavras quando as murmurava, de maneira a torná-las claras e precisas. – Alguém está habitando a sua consciência. – ele deu um passo à frente, colocando-se rente às barras de ferro que a mantinham presa. – Volte, Ravenne.

Serafine sentiu estranho choque passar por seu corpo ao ouvir aquele nome e então, subitamente, ofegou. O mundo ao seu redor foi tomado pela escuridão, mas logo se acendeu numa explosão de luz.


***


Havia um candelabro no teto.

Depois de se sentar no colchão macio, diferente do chão duro de antes, Serafine encontrou os rostos preocupados de Jarek e Guillian. As memórias do sonho não pareceram claras, e poucos eram os detalhes que retornaram à sua mente. Ela se lembrava, no entanto, de uma cena enquanto dividia-se entre o real e o inconsciente: um par de olhos prateados mirando-a preocupados e alguém a carregando por um corredor bem iluminado.

– Por que eu sempre estou por perto quando você desmaia? – Jarek inquiriu de maneira divertida. O olhar ainda mantinha-se intenso, do mesmo jeito que ele sempre exibia quando estava apreensivo. Serafine viu em Guillian rugas de preocupação, por isso tentou soar sossegada.

– Porque você é meu guardião. – Replicou, fazendo menção a se levantar. Por algum motivo estranho, suas pernas fraquejaram.

– Na verdade, foi o príncipe Luke quem a encontrou – Guillian corrigiu o guerreiro, recebendo dele um olhar nada gentil. – Jarek e eu estávamos indo para o salão de refeições quando o vimos, e então a trouxemos aqui. – Serafine encaixou a cena dos olhos prateados em seu salvamento, e sentiu-se encabulada por ter sido encontrada naquele estado pelo príncipe.

– E aqui é exatamente onde? – Ela perguntou. Olhando ao seu redor, reconheceu os detalhes de um quarto, mas era muito mais simples do que o que lhe fora dado.

– Meus aposentos. – Jarek fez uma reverência exagerada ao indicar o cômodo, caminhando até a janela. Tinha vista para o rochedo abaixo deles, completamente menos apreciável do que a dos outros quartos.

– Por quanto tempo fiquei desacordada?

– Uns dez minutos, talvez um pouco mais... Você estava respirando e seus olhos mexiam-se debaixo das pálpebras, o que significava um sonho. Tentamos acordá-la, mas não funcionou. – Guillian explicou. – Jarek achou prudente que a deixássemos despertar por conta própria. Estava prestes a procurar por Ývela quando você acordou.

– Por que você não dorme no mesmo corredor que a gente? – Ela inquiriu à Jarek.

– Porque eu sou um Sturian. Ter um quarto ao invés de uma cama de pedra é a maior mordomia que posso receber. – ele sorriu. Nos olhos, Serafine enxergou o que ele tentou esconder: amargura. – Da última vez que estive aqui, a melhor coisa que recebi foi um pouco de comida.

– Sinto muito. – Serafine disse com sinceridade. Jarek arqueou as sobrancelhas em surpresa.

A garota então encarou Guillian, e o Atyubru engasgou pela pergunta seguinte:

– Você conheceu minha mãe? – Serafine continuou a olhá-lo, aguardando até o fim da reação exagerada.

– Por que pergunta isso tão subitamente, milady?

– Porque Ývela me contou sobre ela... Ao menos um pouco sobre ela. – Serafine explicou, tentando soar convincente para receber a resposta. Guillian não demonstrou estar disposto a falar, mas a ouviu mesmo assim. – Ela disse que você ajudou minha mãe a encontrar um lugar seguro quando estava grávida e eu pensei que, se conseguisse alguma informação... Talvez descobrisse por que eu fui escolhida.

Guillian fitou Jarek demoradamente. Havia naquela troca de olhares mais palavras do que um diálogo poderia expressar. Serafine aguardou, tentando entender o que se passava entre eles. O suspiro de Jarek foi resignado.

– Não sou eu quem vai explicar isso, milady, sinto muito. – o orelhudo disse, soando realmente entristecido. Jarek observou a cena atentamente, e Serafine não deixou aquilo passar. – Prometi a ela que a deixaria se revelar quando fosse a hora certa. Pelo visto, ainda não é.

– E se ela estiver morta? – A morena retrucou impaciente.

– Ela não está morta. – Foi Jarek quem respondeu.

– E como você sabe?

– Eu a conheço.

– E fez a promessa de não me contar quem ela é também?

– Não. – Serafine prendeu a respiração. – Mas não vou contar. Se Guillian acha o pedido dela certo, não sou eu quem vai atrapalhá-lo.

– Será que é tão difícil entender o quanto isso poderia me ajudar? Se eu soubesse quem eu realmente sou... De onde eu realmente vim... Talvez toda essa maluquice de ser a escolhida fizesse sentido! – Exclamou, mas nenhum dos dois se manifestou. Infelizmente para ela, ninguém ali concordava com seus termos, e ficar raivosa não ajudaria em nada. Soltou um longo suspiro, mas assentiu. – Tudo bem, eu... Eu posso esperar.

– Sei que lhe parece injusto agora, Serafine, mas há certas verdades que devem vir na hora certa. Às vezes, a ignorância é uma benção. – Guillian segurou sua mão, apertando-a com firmeza entre as suas patas felpudas. – Agora, acho melhor acompanhá-la até seus aposentos. Pedirei que alguém leve algo para você comer.

– Eu vou com ela. – Disse Jarek.

– Certo. – Guillian armou uma expressão desconfiada para o guerreiro, tentando parecer ameaçador. Serafine nunca lhe diria, mas o Atyubru ficava incrivelmente fofo daquela maneira. – Nada de discussões ou brigas, ou os dois vão se ver comigo.

– Sim, senhor. – Jarek disse com escárnio, exagerando uma continência, o que só serviu para deixar o felpudo ainda mais cabreiro. O guerreiro adiantou-se até a porta e já estava no corredor quando Serafine o acompanhou. Em passos apressados, ela o alcançou, parando ao ver o porquê de o moreno ter estacado.

Dois soldados armados com arcos e dezenas de flechas, usando armaduras completas, os aguardavam. Eram aqueles mesmos guardas que seguiam Jarek para cima e para baixo, por ordem dos lordes.

Serafine bufou, adiantando-se em passos firmes para falar com aqueles brutamontes. Jarek fez menção de pará-la, mas não a alcançou a tempo.

– Com licença, senhores, mas eu preciso de privacidade para conversar com ele. – Indicou Jarek, que apresentou uma expressão mista de incredulidade e tensão. Ele não queria que ela discutisse com os soldados, mas Serafine tentou mesmo assim.

– Nossas ordens são de acompanhá-lo, não importa com quem ele esteja. – Um dos guardas disse. Ele não estava realmente atento à morena.

– Talvez não tenham sido informados, mas sabem quem eu sou?

– Serafine. – Jarek disse entre dentes. Colocou-se de costas para os guardas enquanto falava com ela. Na verdade, enquanto ralhava com ela. – Pare com isso.

– Parar com o que?

– Pare de interferir. Você já se meteu em encrencas demais me defendendo naquele Conselho. – ele suspirou. – Os lordes que me queriam preso estão de olho em você. Se continuar a desafiá-los assim, vão mandar soldados para escoltá-la também.

– Ha! Eles não ousariam. – crispou os lábios. – Não é justo o que estão fazendo com você. Jon lhe garantiu liberdade e isso...

– É liberdade, Serafine. Será que você não entende? – ele a encarou com um sorriso. A garota observou os guardas, mas Jarek segurou seu queixo com cuidado e trouxe sua atenção de volta. – Você conseguiu convencê-los a deixar um Sturian livre! Eu estou andando pela Fortaleza, posso comer no mesmo salão que vocês... Isso é mais do que qualquer outro conseguiria para mim.

– E você acha suficiente? – Desta vez, Jarek riu, misturando a graça que sentia da situação com a indignação pela pergunta de Serafine.

– Eu acho mais que suficiente. Não tente desafiar os lordes por mim, você já fez demais. – Ele finalizou a conversa com um sorriso de canto, voltando-se para os soldados. Eles mantinham os olhos fixos no Sturian.

Jarek começou a caminhar, o que incitou Serafine a fazê-lo também – os soldados vinham logo atrás, portando-se como sombras. Sombras perigosas. Serafine os encarou o tempo todo, tentando intimidá-los com o olhar, mas eles nunca desviaram os olhos do guerreiro.

– Você queria conversar comigo?

– Eu queria perguntar uma coisa, na verdade. – Ela respirou fundo.

– Se eu gostei do seu vestido novo? Caiu muito bem em você, princesa. – Jarek brincou, mas havia grande sinceridade em sua fala. Serafine crispou os lábios, ciente do pouco pano que cobria seu corpo, e ignorou quando Jarek desceu os olhos por sua silhueta, arrastando chamas pela pele dela.

– Pare com isso.

– Só estou admirando a vista.

– Jarek. – Serafine revirou os olhos. – Como eles descobriram quem você é? Digo... Que você é um Sturian?

– Ah, isso. – ele assentiu com um aceno e então indicou o braço direito. Desatou o nó daquele tecido escuro que sempre envolvia seu antebraço e parou para que ela vislumbrasse o que marcava como traidor. – Todo Sturian tem essa marca. Recebemos aos dez anos, meninas e meninos. Antigamente, representava o poder que corre por nosso sangue; o fogo combate as sombras. – Jarek suspirou. – Costumava haver muita honra nessas palavras. Agora, não mais.

– Posso? – Ela indagou polidamente, pedindo para se aproximar. Ele deu de ombros.

Serafine parou ao lado do guerreiro e examinou seu antebraço, dedilhando curiosamente a marca. Jarek sorriu ao ver o fascínio nos olhos da menina, mas não permitiu que ela notasse o gesto.

A tatuagem de um dragão envolto em fogo coloria-se em vermelho escarlate sobre a pele dele. Vinha desde o cotovelo, marcado com minuciosa precisão, e terminava sobre as costas de sua mão – a cabeça do dragão possuía um focinho fino e longo e os olhos eram buracos negros. A fera não tinha asas, só um corpo esguio entalhado como o de uma serpente. As labaredas que o rodeavam eram tão bem desenhadas que pareciam reais.

Ali estava... O símbolo do povo de Jarek. A marca dos Amaldiçoados.


Capítulo 12

Gratidão

 


SERAFINE HAVIA ACABADO DE entrar naquele salão quando foi surpreendida por Ývela. A ondina correu ao seu encontro, ansiosa por obter notícias depois de descobrir sobre o desmaio. Jarek fizera questão de avisar sua guardiã, pelo visto. Depois que Serafine foi levada aos seus aposentos, uma serva desconhecida veio servi-la – Benídia estava passando muito mal, pelo que a serviçal lhe informou, e Lady Ylla estava no quarto desde cedo cuidando da garota.

Serafine tranquilizou sua guardiã, dizendo que havia sido um mal estar temporário. A memória estava enevoada e pouca coisa lhe vinha à mente quando pensava na visão... O que fora aquilo exatamente? E quem era Ravenne?

Balançou a cabeça, afastando as perguntas de sua mente. Ficar pensando nelas só a deixaria mais confusa.

Observou a mesa que usavam para as refeições. Era uma superfície extensa, que geralmente recebia menos pessoas do que comportava – naquela noite, porém, os viajantes do Sul enchiam o salão. Serafine ficou surpresa ao ver que sua costumeira cadeira ainda estava lá, mas havia alguém no lugar onde Ývela se sentava. A ondina a incitou a ir, enquanto ela mesma ocupava um lugar bem distante do antigo. Hesitante, Serafine estacou atrás do assento, cogitando a hipótese de se afastar.

Luke, que havia tomado o lugar de sua guardiã, virou o rosto para ela. Inicialmente surpreso, foi cordial ao se levantar até que ela se sentasse. Serafine viu-se em meio aos nobres do Sul e não pode deixar de reparar quão quietos e recatados eles eram, se comparados aos moradores do Oeste.

– A senhorita melhorou. – Serafine não escondeu o espanto quando Luke comentou aquilo. O príncipe a olhava com curiosidade e nada além disso. – Fico feliz por vê-la bem. – Luke fez um aceno com a cabeça, sorrindo suavemente. Seus olhos encontraram os de um dos lordes que o acompanhava e o sorriso desapareceu de seu rosto.

Serafine o observou com interesse sutil, tentando desvendar como o príncipe conseguia sorrir tão sinceramente para, no momento seguinte, esconder-se atrás de um muro gélido.

–... E há também aquele grão estranho que importamos do Leste, é bom para a produção de pães... – a garota ouviu lorde Frai exaltar aquilo e acabou voltando-se para ele. – Só aquelas terras conseguem produzi-los, o que é um tormento, considerando-se os impostos que sua majestade, Red, impõe em qualquer venda que seu Reino faça para nós. Ah, senhorita Serafine! A senhorita veio do Leste, não veio? – Lorde Frai exclamou repentinamente, fazendo com que todos os presentes olhassem para a morena. Ela ficou um pouco encabulada, mas fez um aceno afirmativo. – Terra estranha aquela, se me permite dizer. Tem tantas belezas, mas é esquecida pelos moradores... Como era a recepção dos estranhos lá, minha querida?

Ela recordou-se de sua Vila e da receptividade que tinham com viajantes humanos, mas também se lembrou do nojo e raiva contidos nos moradores quando vislumbraram o centauro... Antes, talvez, outros seres tivessem sido igualmente mal tratados.

– Eu nunca viajei pelo Leste, para ser sincera. – Tentou escolher direito as palavras, ciente de que todos ali prestavam atenção ao diálogo. – Minha vila era muito simples e pouco procurada por viajantes, então eu...

– Como se chamava?

– Vila do Sol. – Serafine sentiu o clima pesar por sua resposta. A reputação de sua antiga casa era mais famosa do que imaginara. Lorde Frai foi rápido ao continuar a conversa, livrando-a de certo constrangimento.

– Lugar famoso esse... Muitos já ouvimos falar. Você era bem tratada lá? – Ela entendeu a indireta. Os desenhos em seu corpo eram mais do que prova de sua anormalidade, de modo que a fama do vilarejo provocava tais dúvidas: como Serafine podia ter vivido tanto tempo lá sem sofrer qualquer represália por não ser humana?

– Eles não sabiam sobre mim... Ou sobre minha família... – Ela pigarreou e acrescentou rapidamente, lembrando-se da mentira usada para Luke. O príncipe, por outro lado, a encarava com curiosidade. Serafine desviou o olhar, se sentindo pouco confortável.

Lembrou-se de ter dito a ele sobre suas marcas. Mentira a respeito delas. Será que o príncipe havia se lembrado disso agora? Estaria ele percebendo que Serafine não herdara aqueles símbolos da sua família?

A conversa tomou um rumo diferente, e os animados lordes do Oeste começaram a dialogar sobre a comemoração que ocorreria futuramente. Serafine não imaginava como seria aquela festa, mas a ansiedade deles era evidente.

Foi naquele momento, após comentar sobre seu passado, que algo lhe ocorreu. Será que Theodore sabia sobre a verdade ao encontrá-la lá em Vila do Sol? Quando deu a Serafine aquele pingente verde? Os outros que a conheciam tiveram de manter segredo pelo bem da Profecia... Teria o centauro feito o mesmo? Se tivesse sido avisada antes, Serafine poderia ter abandonado os pais e assim ter salvado uma vila inteira do massacre. Poderia ter salvado seus pais.

Ela buscou Theodore, mas o centauro não se encontrava no salão. Era ridículo perceber que nunca havia cogitado aquela pergunta; por que esperar tanto para levá-la?

Ela observou os rostos distraídos na mesa e encontrou bem ao fundo do salão o breve vislumbre de uma silhueta. Pedindo licença aos lordes, mas sem ser notada graças à concentração deles nas conversas, afastou sua cadeira e marchou para a saída do recinto – o manto da noite já cobria o céu, mas a Lua não se fazia presente. Luke havia saído dali antes que ela notasse, levando consigo aquele olhar enigmático.

O caminho, iluminado por diversas tochas, seguia por um corredor largo e descoberto, com um muro alto protegendo sua lateral. À sua frente, distante o suficiente para que não passasse de um vulto, Serafine podia ver a capa escura do príncipe esvoaçando enquanto ele caminhava. Os passos eram rápidos e precisos e o único som que chegava aos ouvidos de sua seguidora era o do farfalhar produzido pelo tecido da roupa.

Quando Luke virou num corredor qualquer, Serafine apressou-se para não perdê-lo de vista – algo a estava deixando inquieta; seu instinto a mandava segui-lo.

Tomada pelo choque, não encontrou o rapaz ao virar naquele corredor. Aquela estranha inquietação ainda a dominava, o que impulsionou suas pernas a continuarem se movimentando. Se havia algo que a deixava ansiosa, Serafine relutava em desistir até descobrir o motivo.

A primeira coisa que viu foi que aquele corredor a levava até um pequeno pátio descoberto, pouco iluminado e sem qualquer decoração. A garota enxergou duas silhuetas marcadas pelo brilho alaranjado de uma das poucas tochas dispostas num pilar.

Luke estava de frente para Serafine, mas não a havia visto – ela estava segura, escondida pelas sombras – e sua acompanhante encontrava-se de costas para a bisbilhoteira; era alta e magra, com os cabelos escuros presos em uma elaborada trança. O rapaz acabara de colocar um lindo colar no pescoço da garota, que antes parecera um pouco avoada, como se estivesse sonolenta, e então ela subitamente assumiu uma postura rígida.

Serafine reconheceu sua voz quando se concentrou na conversa deles:

– Não devia ter saído assim. – era Benídia, com toda certeza, mas portava-se menos carinhosa do que antes. Sua voz apresentava cautela. Não estava doente, ao contrário ao que a serva havia dito à Serafine. – Se souberem que você...

– Ninguém vai saber de nada. – o príncipe retrucou daquela maneira calma e controlada. – Eu trouxe o colar, não era o que queria?

– Claro que era. A pedra é perfeita. – Benídia replicou com falsa emoção. Serafine franziu o cenho, tentando entender o que se passava naquele momento.

Ficou relativamente surpresa ao ver o príncipe envolvendo o corpo magro de Benídia com seus braços, enquanto seus rostos encontravam-se em um beijo. A garota abraçava o rapaz possessivamente, e podia-se notar que o beijo era demasiado intenso. Os olhos prateados do príncipe estavam ocultos por suas pálpebras baixas, mas ele as abriu repentinamente – Serafine estava suficientemente afastada das sombras para ser vista, porém não se demorou.

Andando para trás, ela disparou pelo corredor, já que não havia nada para se investigar naquele beijo. Mas havia algo de estranho naquele príncipe, e Serafine descobriria o que era.

Estava tão distraída com seus pensamentos que não notou uma figura enorme cruzando seu caminho. Esbarrou em Theodore, que quase a derrubou, mas foi rapidamente sustentada por ele.

– Está tudo bem? – Havia diversão na voz do centauro.

– Sim, eu só estava pensando... – Serafine sorriu sem graça, desculpando-se logo depois. – O que faz por aqui?

– É o horário que eu rondo essa parte do Castelo. Sou o chefe da guarda do Rei, esqueceu-se?

– Ah sim... Importa-se de ter companhia?

– Algum motivo especial?

– Talvez. – Começaram a caminhar por aquele corredor. Os olhos do centauro estavam fixos além do muro, enquanto Serafine fitava seus próprios pés. – Quando foi para Vila do Sol anos atrás... Foi intencional? Quero dizer... Você sabia sobre mim?

– Eu tinha conhecimento do seu paradeiro por causa de sua mãe. – Theodore explicou. Em sua testa, vincos enrugaram-se enquanto ele ponderava as palavras. Serafine arregalou os olhos; seria possível que todos conheciam sua mãe, menos ela? – Você precisava saber que não estava sozinha nesse mundo, então arrisquei, mesmo conhecendo a reputação de sua vila. – Ele sorriu.

Serafine tinha medo, quando pequena, que as histórias fantásticas fossem falsas. Que os Magos não existissem, e nem as criaturas de que ouvira falar. Ver o centauro, no entanto, expurgou tais pensamentos.

– Mas minhas marcas estavam cobertas, como sabia me achar?

– Sua aura é poderosa, menina. Seu primeiro Mestre nunca lhe disse isso?

– Ele chegou a duvidar de mim. – Serafine pensou amargurada.

– Então ele estava te testando. Para seus Mestres, nunca haverá dúvida de quem você é.

– E você não se importou com o tratamento da Vila? As pessoas foram más.

– Ver que minha aprendiz estava viva e segura me deixou aliviado. Seus pais eram pessoas bondosas e cuidaram de você até à hora certa...

– E por que aquela era a hora certa? Por que não vieram me buscar antes?

– Poderosa magia cerca a alma de toda criatura neste mundo, Serafine. No seu caso, até completar dezoito anos, você tinha os poderes guardados em uma parte inalcançável de seu espírito. Os Sturian, por exemplo, assumem controle de toda a sua força aos dez anos. Os centauros, aos doze. Até lá, somos inúteis a qualquer tentativa de treinamento.

– Então os Lobisomens só me encontraram por causa da data?

– A maioria de nós, seus protetores, sabia que o espírito havia renascido numa criança, mas sua mãe a escondeu bem. Uma Vila cética, totalmente habitada por humanos, longe o suficiente de qualquer cidade mágica. Foi difícil para as Trevas encontrarem-na, ainda mais com a proteção divina que seu espírito tem. Por sorte, quando o fizeram, seus guardiões também o haviam feito. Guillian era o único que sabia de seu paradeiro. Ývela e Jarek só puderam interferir quando seu aniversário estava próximo, pois foi quando o Atyubru revelou-lhes a localização da Vila. O baixinho havia se comprometido a um juramento de sangue para com sua mãe... Antes disso, não haveria como provar que você era de fato mágica. Com exceção das suas marcas, seus poderes não haviam despertado.

– Quer dizer que até meus dezoito anos eu era normal?

– Sua força estava adormecida, por assim dizer. – ele sorriu um pouco, parecendo achar graça da pergunta. – Não sei por que usar esse termo... Anormal. Você e eu somos tão normais quanto qualquer outra criatura viva... Temos alma, podemos expressar nossos sentimentos. Os únicos que deveriam ser considerados anormais são aqueles que escolheram as Trevas. Aqueles cuja bondade foi corrompida em busca do poder.

Serafine encabulou-se pela afirmação e por seus comentários tolos. Era difícil, no entanto, livrar-se de antigos hábitos; livrar-se da influência de Vila do Sol.

– É complicado, menina, mas logo fará todo o sentido. Você está caminhando entre as criaturas mágicas há pouco tempo, sendo que viveu numa cidade onde qualquer diferença era vítima de preconceito. Logo começará a compreender os mistérios de Warthia.

– Theodore? Aquela pedra que você me deu no dia em que visitou minha vila... – Serafine murmurou, lembrando-se do colar pendurado sobre a cabeceira de sua cama. – Há algo de especial nela? – O centauro sorriu brevemente, mantendo o olhar fixo na paisagem ao longe.

– É um amuleto de proteção.

– Obrigada. – Ela disse de repente. Theodore a encarou com curiosidade, arqueando uma sobrancelha.

– Pelo que?

– Por ter me mostrado, tantos anos atrás, que eu não estava sozinha.


***


Serafine estacou quando seus olhos repousaram no príncipe de gelo. Ela voltava de mais um dia de treinamento e ficou surpresa em encontrá-lo ali.

O crepúsculo alaranjado coloria o horizonte, e o reflexo dos últimos raios solares criava uma aura sobre a palidez que era Luke. Ele havia tirado o casaco, expondo uma camisa larga de mangas compridas, de coloração tão negra quanto o resto de suas roupas.

Serafine notou que Luke aprumara os ombros, para, logo depois, ver-se alvo dos seus olhos prateados. A morena encabulou-se por tê-lo espionado e tencionou ir embora, mas algo na expressão do menino, algo nas linhas de seu rosto tão cansado e sério a incitou a ficar.

– Não está com calor, alteza? – Foi a pergunta que escapou. Serafine arregalou os olhos para si mesma. Sua idiota, que tipo de pergunta foi essa? Luke, no entanto, não se importou. Ele esperou que Serafine parasse ao seu lado para responder, mirando os olhos no horizonte.

– Não sinto calor.

– Isso é algo... Restrito às pessoas que vêm do Sul? – Curiosidade estampou o rosto da garota, enquanto que Luke dividia-se entre a surpresa e o humor.

– Imagino que sim. – ele armou uma expressão misteriosa. – Diz a lenda que o inverno congelou as almas dos sulistas. – Serafine avaliou o olhar dele e acabou rindo. O fantasma de um sorriso dançou para se erguer no rosto do príncipe.

– Eu não tive chance de agradecê-lo.

– Pelo que?

– Por ter me levado até meus guardiões, depois do meu desmaio. – Luke anuiu ao lembrar-se, o rosto tomado pela seriedade novamente.

– Não fiz mais do que o meu dever, senhorita. – Serafine sorriu frente à educação do príncipe, e surpreendeu-se ao vê-lo encabular-se. Luke desviou o olhar, voltando-se para o horizonte, mas o nervosismo em sua postura ficou evidente.

– Não precisa ficar com vergonha. – Resolveu arriscar. Luke arregalou os olhos.

– Não estou com vergonha.

– Seu sorriso desapareceu. – a morena explicou. – Se me permite dizer, alteza, deveria fazer mais isso. – Serafine procurou os olhos dele, encontrando ali uma espécie de emoção que mesclava fascínio e choque; como se Luke raramente recebesse elogios. – Tem um belo sorriso.

Sem querer, ele respondeu ao seu comentário com o dito sorriso. Foi um leve curvar de lábios, rápido e discreto, que resultou em covinhas nas suas bochechas magras. Um gesto que significava muito mais do que qualquer outra expressão dele.

Serafine observou a doce fragilidade nas linhas daquele rosto a sua frente. Quis entender por que a encontrara, por que Luke, aparentemente tão rígido, havia baixado os muros que encobriam seu olhar, mas ele a impediu. Luke aprumou os ombros e meneou a cabeça respeitosamente, curvando-se numa reverência discreta.

– Obrigado por esta conversa, milady. – Apesar de o sorriso ter sumido, Serafine ficou grata pela escuridão ter desaparecido dos olhos dele.

E então ele partiu, silencioso como uma sombra, e a garota ficou para trás, cultivando maior curiosidade sobre o príncipe de gelo.


Capítulo 13

Marcas do Passado

 


ÝVELA NUNCA TINHA SE sentido tão estranha quanto naquele momento; a impressão de que seu sonho não havia sido um simples sonho ainda atormentava sua mente. Enquanto suas pernas moviam-se sem destino pelos corredores daquela Fortaleza, a ondina sentiu incerteza sobre o futuro.

Não devia criar preocupações, mas não podia evitar. Era uma parte de sua consciência que sua mãe adoraria ver abalada. Ela ainda devia culpar a ondina pelo caos que se instalara no Reino das Águas desde sua fuga. Ývela podia vivenciar os acontecimentos ligando-se à mente de alguma de suas irmãs, mas o fazia muito raramente. Aquele poder era um tormento quando fugia de controle. Ývela via-se transportada à mente de uma conhecida e era obrigada a ouvir sobre a decadência de sua terra natal.

Assim como Warthia, as Águas também sofriam com a constante vigília das Trevas. Qualquer barreira caída ou muro destruído possibilitavam a entrada dos monstros marinhos, todos sempre controlados pelas impiedosas sombras. As criaturas aquáticas conseguiam impedi-los, mas toda aquela segurança tinha um limite. E havia coisas piores do que simples monstros.

Ývela havia deixado o Reino quando eles ainda tinham controle, mas, há alguns anos, a situação vinha invertendo-se em favor das Trevas. Se Sharowfox retornasse do Abismo, as coisas fugiriam do controle.

Por isso Ývela tinha que continuar naquela jornada. Precisava permanecer ao lado de Serafine.

Era curioso, e causava-lhe um sorriso amargo, pensar que seus parentes a tomaram por traidora quando escolhera fazer a coisa certa.

Parou num jardim enfeitado pelo belo chafariz de bronze, cuja fonte desaguava num pequeno e lindo lago. Apoiando-se no muro de proteção, a ondina deixou seu olhar vagar pela imensidão inóspita de Mídria.

Lembranças das vezes que havia percorrido aqueles sinuosos caminhos voltaram à sua mente, mas seus devaneios foram interrompidos pelo som de passos.

Ela não precisou virar para saber quem estava ali. Era interessante como conseguia reconhecer detalhes dele sem nem ao menos encará-lo; como o modo firme de seu caminhar ou o cheiro daquele perfume exótico do Oeste. Ela conseguia delinear em sua mente os traços fortes e austeros de seu rosto e, no mesmo instante em que se recordou do tom grave de sua voz, ele falou:

– Você voltou ou estou sonhando de novo? – A ondina prendeu a respiração, ignorando o calafrio que percorreu sua espinha ao ouvi-lo dizer aquilo.

– Eu realmente voltei. – Ela ergueu seus olhos para ele, mas Jon observava o horizonte.

– Ainda parece um sonho. – ele retrucou num sussurro. – Por que gosta de ficar sozinha sempre que vem aqui? – Ývela sorriu.

– Nem eu consigo explicar – Jon parou ao seu lado. – O Deserto sempre me deixou estranha...

– Você não fica estranha, fica misteriosa. – ele desviou a atenção da paisagem, fixando o olhar na ondina. Ela hesitou, sem conseguir encarar aqueles intensos olhos negros. – Da última vez que nos vimos, você me deu uma pancada violenta na cabeça.

– Não era minha intenção machucá-lo. – ela crispou os lábios. – Precisava fugir com Jarek ou todos os planos feitos por Lonel teriam falhado. Você não me deu escolha...

– Eu deveria ter suspeitado. Você perguntou muito sobre os calabouços, e ninguém tem tanto interesse neles. – Jon sorriu amargamente, com o olhar vagando além daquele momento.

Com o pretexto de uma visita a Jon, Ývela infiltrara-se na Fortaleza como uma amiga e fugira como inimiga. Ela e Jarek enfrentaram maus bocados para escapar, tendo que derrubar boa parte da guarda e também lutar com o próprio Rei.

Ývela suspirou, fechando os olhos por alguns momentos, e então se voltou para Jon. Com hesitação, estendeu a mão até a dele, entrelaçando seus dedos com timidez.

Jon era tão familiar quanto o toque das águas. Os olhos, tão calorosos e doces, não faziam jus à posição de monarca que pendia em seus ombros. Aquele era o homem mais paciente e gentil que ela já havia conhecido e, em pouco tempo, havia se tornado um grande amigo.

Ela sentiu o peito se apertar ao murmurar para si mesma a palavra “amigo”... Ývela havia mudado com o tempo que passara em terra, mas detalhes de sua raça ainda assombravam sua mente. O fato de as ondinas não sentirem emoções humanas como a paixão, por exemplo. Aprendera a conviver com os sentimentos terrestres, turbilhões emotivos tão perturbadores, mas quando se tratava de Jon... Ývela não sabia definir o que havia em seu coração.

– Sinto muito por aquilo, Jon. – os dedos longos do Rei curvaram-se sobre os seus e Ývela sorriu. – Ainda não tinha encontrado uma oportunidade para me desculpar. Como amiga, não como súdita. Doeu ter que traí-lo... Minha honra sempre me foi muito importante, mas eu tinha um dever a cumprir.

– Eu compreendo, Ývi. – a simples menção de seu apelido a fez sorrir. – Foi estranho ter de lutar contra você. Na verdade, vê-la empunhando uma espada contra mim foi assustador. Depois que você fugiu, foi horrível ter que mandar procurá-la por traição. É um alívio saber que essa traição ocorreu por uma boa causa.

– Nunca pensei que, em todos esses anos de amizade, ouviria você falando bem de uma traição. – Ývela brincou, fazendo toda a faceta séria de Jon esvair-se. A ondina se aproximou mais, rodeando o braço dele com as mãos. Encostou a testa ali, deixando-se relaxar. Jon pareceu tenso debaixo de seu toque, mas por fim a trouxe para perto, escapando das mãos dela para apertá-la num abraço. – Estava me lembrando do dia que nos conhecemos... – ela comentou casualmente. – Sabe que foi um dos dias mais emocionantes de toda a minha vida?

Ývela se recordava tão bem do incidente.

Os bárbaros a arrastaram pelas ruas da cidade e algemaram-na a duas outras garotas. Todas jovens e belas. Ývela estava com raiva por ter sido pega tão desprevenida e fraca. Maldita hora em que foi se aventurar pelo Deserto ao fugir do Sul!

O povo da cidade não se importava com os leilões, com exceção daqueles que desejavam comprar escravas – homens velhos e novos, cheios de riqueza. Todos ansiavam pela “mercadoria” trazida por aqueles bárbaros; eles sabiam escolher bem quem capturar. As mais desejáveis eram as escolhidas. Ývela, considerada a mais bela ali, grunhira e tentara se livrar do aperto, mas não conseguira se soltar. Ela foi a terceira a subir no palco, arrastada por dois grandalhões, e pode vislumbrar os olhares hipnotizados dos homens – as ondinas tinham uma beleza sobrenatural, tal como as sereias, e era difícil encontrar alguém como Ývela naquele mundo.

Quando os lances começaram a ser feitos, algo surpreendente aconteceu... Das sombras de um beco, um rapaz coberto por uma capa negra saltou sobre a multidão de compradores. Ele portava um arco longo e as flechas acertavam os alvos com impressionante destreza. O menino lançou uma faca na algema que prendia as pernas de Ývela, mas não a libertou por completo. Ele foi chutado por um dos vendedores e logo se viu encurralado pelos grandalhões.

Ývela pensou rápido e saltou sobre aquele que tinha as chaves. Com um golpe carregado de força, ela virou seu pescoço num ângulo torto e ouviu o som que indicava a sua morte. Depois, a ondina soltou as algemas que prendiam seus pulsos e então lançou as chaves para uma das garotas. Enquanto elas se libertavam, ela avançou até os bárbaros que atacavam o seu salvador – arrancando deles duas espadas, golpeou-os com agilidade, usando sua rapidez e pouca altura para desviar quando eles tentaram revidar.

O rapaz conseguiu escapar de um estrangulamento e, mesmo ferido, colocou-se ao lado da ondina. Derrotados, os poucos bandidos restantes fugiram amedrontados. A ondina adiantou-se para agradecer seu salvador, mas a praça foi invadida por cavaleiros. Ela viu-se na mira de diversas flechas, mas o rapaz pediu que se afastassem. Ele tirou a capa que o escondia, expondo o rosto belo, dono de olhos negros curiosos e encantadores.

– Majestade... – Ývela murmurou para Jon ali na varanda, lembrando-se perfeitamente das palavras proferidas por um dos cavaleiros. – Seu irmão vai nos degolar quando souber de sua fuga.

Jon baixou a cabeça, mas o sorriso que iluminou seu rosto pode ser vislumbrado pela ondina. Ele se lembrava do fim daquela tarde, pois convidara Ývela a permanecer na Fortaleza durante o tempo que julgasse necessário. Jon fora atencioso e receptivo, passando diversas horas de seu dia na companhia da hóspede. Um laço rápido e poderoso se criou entre eles, o que manteve Ývela no Castelo por mais de um ano.

Jon era um garoto curioso e sempre perguntava sobre os lugares em que Ývela havia ido. Também lhe contou sobre suas próprias viagens, como quando morou no Castelo de Tytos ou quando viajou com o meio-irmão Maltrus para o Sul, tantos anos antes. Nessa época, Ývela o ensinou a contatá-la através das visões.

– Foi o meu maior feito. – Jon brincou. – Eu era irracional na época, agi de acordo com o meu coração. Ver escravas sendo vendidas no meu Reino me encheu de raiva, e então parti para a luta. Hoje em dia eu seria tolo o bastante para tentar conversar com eles.

– Não seria tolo por tentar outras opções além da violência – Ývela replicou, franzindo o cenho para ele. Jon estava pensativo, pelo que pode notar, e hesitava ao encará-la. – Você tem um coração nobre, Jon. Vi isso no dia em que o conheci. É um dos seres mais bondosos que já viveu em Warthia.

– Eu gostaria de poder fazer mais além de ficar sentado naquele trono. – ele confessou. – Aquele assunto com o Sturian me deixou confuso, e então eu a vi quase ser condenada à morte por um ato de bondade. Essas Leis... Gostaria de ter o poder para mudá-las. Tudo o que tenho feito é errar em minhas decisões; se não fossem os outros à minha volta me questionando, com certeza teria destruído muitas vidas.

– Jon...

– Ývela, eu a teria condenado se meu Conselho tivesse decidido assim. – Jon se afastou, passeando a mão pelos cabelos em um gesto frustrado. – E teria condenado Jarek, que não tem culpa de ter nascido num berço traidor. Demetrius diz que eu tenho o dom de fazer escolhas certas, mas por que todas elas me perturbam tanto? Fico dividido entre o dever e a honra, e sempre escolho o lado errado.

– Eu errei muito também... Quando posso, tento escutar meu coração. Você escuta, por isso intercedeu por nós. Por isso é o Rei mais benevolente de Warthia. Suas sentenças só são rígidas quando precisam ser.

– Senti-me culpado ao tentar condená-la.

– Jon, esse sempre foi seu problema: você se prende a pensamentos que o machucam. – Ela adiantou-se até ele, tocando seu rosto para que a encarasse. O olhar desesperado e confuso de Jon estilhaçou seu coração.

O trono havia sido imposto a ele aos dez anos de idade, e Jon crescera dedicando-se unicamente a tarefa de se preocupar com um Reino. Era muito duro exigir tanto de alguém, por mais que fosse seu dever. Muitas vezes, parecia que ele estava prestes a desmoronar.

– Não fixe sua mente naquilo que o frustra, isso o enfraquece. Você é forte, é justo e é correto. Sei que faz escolhas erradas, mas todos nós fazemos. Até o coração erra às vezes. Você agiu como deveria, era o correto a se fazer.

– Mas não era o que meu coração dizia. – Jon ergueu o olhar, prendendo-o aos claros de Ývela. A ondina engoliu em seco, tomada por um estranho nervosismo pela intensidade naquelas íris tão arrebatadoras. – Eu ouvi meu coração no dia em que a salvei daqueles vendedores, mas o ignorei quando ele disse que sua coragem em reaparecer aqui tinha a ver com algo importante. Você só salvou aquele guerreiro pelo bem de Warthia e eu... Quase não dei importância. Isso vem me remoendo desde o julgamento, então... Perdoe-me Ývi.

– Não há o que perdoar. – murmurou, afastando-se ao ver a mais pura mágoa passando pelo olhar do Rei. – Eu sei por que você sente tanta preocupação e culpa quando estou perto... – ela hesitou. – Esses sentimentos bagunçam sua mente. É por isso que ondinas não sentem como os terrestres. – Ývela engoliu em seco. – O amor confunde.

Jon estava paralisado em surpresa.

– Você sempre foi muito protetor e atencioso, nunca pedindo nada em troca de qualquer coisa que me fazia. Sorria de maneira tão diferente que me fez pensar se havia algo de estranho na nossa amizade. E então houve aquela noite... Antes da minha fuga com Jarek.

“Há algo diferente a respeito de você, Ývi. Algo que me faz tão bem. Não sei o que era minha vida antes de conhecê-la. Agradeço aos Deuses pelo momento em que a colocaram em meu caminho.” A voz dele ressoou em sua mente, revivendo a memória marcante. Ývela lembrou-se do rosto dele sob a luz das tochas, da esperança que havia em seu olhar. Lembrou-se de ter abraçado Jon pouco antes de ir para a cama, e da maneira como o coração dele bateu acelerado contra o seu peito; lembrou-se de ter passado mal durante a madrugada, pois estava prestes a trai-lo.

– E é tudo o que tem a dizer? – ele indagou. – Ývela, eu a amo desde que a vi pela primeira vez. Estava naquele beco, esperando pelo melhor momento para atacar aqueles vendedores, e então eles trouxeram a menina loira, dos olhos grandes e brilhantes... Eu perdi a fala quando a vi, talvez pela sua beleza ou pela sua força. E quando você aceitou permanecer no Castelo e eu pude conhecê-la melhor, entender sua personalidade... Vi-me perdidamente arrebatado. Então você partiu... E eu só voltei a encontrá-la dezenove anos depois. Passei semanas observando o Deserto, ansioso para vê-la cruzar aqueles portões novamente. Você prometeu o seu retorno a um garoto e só me visitou quando eu já era um homem.

– Jon, eu...

– E então você me traiu. – ele estava mais próximo agora, mas não menos hesitante. Ývela podia ouvir o coração dele batendo com força contra o peito, como naquela noite. – Não percebeu quando me declarei naquela noite, mas eu não me importava. Tinha a sua amizade e companhia, o que mais importava? Até que a vi naquele calabouço, ajudando o Sturian. Dever ou coração, eu me perguntei? Você me disse que Reis tomam atitudes sensatas sempre que podem e várias vezes cometem erros, como qualquer outra criatura, mas e as falhas que tive com meu coração? Sou tão Rei quando Mago, e Magos também amam. E então você me diz que sempre suspeitou e nunca tentou conversar, nem sequer uma palavra...

– Jon, eu não sei me apaixonar! – ela exclamou frustrada, lágrimas brilhando em seus olhos. – Eu sou uma ondina, e ondinas não sentem paixão como as outras criaturas! Criamos laços de amizade, de ódio, até de amor... Mas nunca o amor apaixonado. Eu entendo o amor por um amigo, por um familiar... Mas o amor que atormenta? Aquele que tira seu sono e só o faz pensar na pessoa? Minha raça se livrou dele. Eu já lhe contei essa história! – usou de frustração. – E há a maldição, a tormenta que minha mãe lançou sobre minha raça. Amantes serão destruídos. Eu contei tudo isso para que ficasse longe. Por que não entende? – Exaltou. Indignava-se por estar tão confusa. Como podia sentir tantas coisas e ao mesmo tempo nenhuma?

– E eu nunca acreditei nisso. – Jon suspirou, recuperando a calma. – Eu vejo em seus olhos o quanto você é diferente. Você vive entre os terrestres há muitos anos, Ývela, e eu a conheço o suficiente para saber que algo mudou dentro de você. Algo que você reluta em aceitar, mas que está ai. Usa a maldição como desculpa porque tem medo de enfrentar a verdade. Por isso eu esperei tanto... Porque tenho esperanças de que você perceba que me ama. – Ele sussurrou ao fim, como se confessasse alguma coisa que o atormentava há tempos.

– Jon, por favor, pare com isso. – ela implorou. – Você sofre por me amar, e nada mais me fere do que isso. Você é meu amigo, um grande amigo, e está... – Ývela arfou ao ser interrompida; Jon não a deixou continuar.

O Rei, já próximo o suficiente da ondina, segurou o rosto dela entre as mãos e a beijou. O toque suave e diferente, possibilitando que sentisse todo o amor de Jon.

O beijo foi simples, no começo. Ele a manteve livre para negar o toque dele, para interromper quando quisesse. Seus lábios se uniram e, de repente, se afastaram. O olhar de Jon a questionou; ferido, ansioso.

Ývela arfou quando ele se afastou, como se o ar lhe tivesse sido tirado. Como se estivesse na água, mas não soubesse nadar. Então se adiantou até o Mago e segurou o seu rosto, trazendo-o para si.

Jon entreabriu seus lábios, e Ývela pensou que desmoronaria contra ele, tamanha ansiedade.

A ondina sabia o quanto o magoaria se prosseguisse com aquela mentira – não queria enganá-lo, porque não sabia o que sentia. Seu coração de fato não funcionava da mesma maneira como quando vivia no Reino das Águas, frio e sem sentimentos, mas não respondia a qualquer tentativa sua de compreensão. Tudo o que ela sabia era que Jon não podia ser iludido.

Quando ele aprofundou o beijo, no entanto, algo dentro dela se quebrou. Ývela segurou o rosto dele com mais forças e deliciou-se com o gosto dele invadindo sua boca. Seu corpo encaixou-se ao do monarca, aproveitando seu calor, e ninguém poderia negar que seus contornos haviam sido feitos um para o outro.

Cuidadosamente, Ývela deixou que o beijo fosse finalizado – por mais ansioso que Jon estivesse, havia em seus movimentos um zelo minucioso. Ele não a apertava, mas a mantinha presa em seus braços confortavelmente. Seus lábios agiam exigentes, mas lentos e cautelosos.

Ao notar que ela relaxara, o Rei se afastou, apenas para encontrar o olhar de tristeza da ondina. O rosto dele era uma máscara ávida, ainda mais pelo modo descompassado que seu coração batia. Diferente da pose que ele adotava sempre, seu controle fora completamente perdido.

– Jon. – Ývela escondeu o rosto em seu peito, abraçando-o com força. Jon retribuiu o gesto de maneira trêmula, ainda abalado pela própria ousadia. Qualquer fala sua, no entanto, foi cortada pela exclamação de um soldado que acabara de chegar:

– Majestade, perdoe-me a interrupção, mas sua presença foi solicitada no Conselho! – Ele viera correndo e exibia em seu rosto um choque sem tamanho.

– O que houve? – Jon colocou-se à frente de Ývela, assumindo uma postura rígida e protetora. A ondina ofegou, perdida com a separação de seus corpos; era uma sensação forte, como se algo importante tivesse sido arrancado de si.

O calor de Jon havia desaparecido. Ele agora era só um Rei.

– Vilas foram atacadas, majestade. Os lordes temem que tenham sido os Sturian.


Capítulo 14

Caos ao Leste

 


A CARAVANA QUE ACOMPANHAVA o Grande Rei Demetrius jamais imaginaria ter sua viagem interrompida. O infortúnio, porém, acabou por acontecer.

Desde sua partida do Castelo de Tytos, eles marchavam por estradas conhecidas e seguras. A fronteira do Norte com o Leste havia sido cruzada mais de uma semana depois da partida do palácio, já que eles mantinham um ritmo calmo de viagem. Demetrius tinha pressa, mas a quantidade de pessoas e soldados que o acompanhava era significativa para que agissem com cautela. Demorara um longo tempo para que tudo fosse devidamente planejado, pois seus generais temiam viajar por certas estradas agora que as notícias haviam se confirmado.

E era nisso que o Grande Rei pensava durante a marcha numa das tardes.

Montado em seu corcel, rodeado por soldados da guarda real, ele devaneava sobre os temores de seus antepassados se tornando realidade.

Desde que a Profecia de Mídria havia se mostrado verdadeira, suas noites de sono enfrentavam tormentas, pois a preocupação com aquele mundo o dominava mais do que qualquer outro assunto. Quando Lonel, o velho elfo guardião de Líriel, detentor das sábias palavras proféticas, apareceu em seu Castelo anos atrás, Demetrius sabia que as notícias não vinham para sua alegria.

E ali estava ele, marchando na direção Leste, em busca de uma reunião com seu irmão Red, o Rei das Montanhas.

Sabia que o tempo era crucial para aquela conversa, pois tinha conhecimento da personalidade que o governante do Leste ostentava: Red só oferecia apoio se recebesse algo em troca. Por mais que tais atitudes fossem frias e mesquinhas, faziam parte da sua política de governo e nada que Demetrius dissesse o faria mudá-la. Apesar de ser o Rei dos Reis, havia leis que não podia ser desfeitas – certo livre-arbítrio dado a seus irmãos em seus respectivos Reinos era uma delas. Demetrius confiava em seus julgamentos e aceitaria qualquer decisão tomada por Red. Rezava, porém, para que ele fosse justo.

Os dias que passara aguardando o início da viagem foram atormentadores. Informantes vinham de diversos cantos do continente, trazendo notícias cada vez piores. As Trevas estavam se movimentando como víboras em um ninho, reunindo forças em algum lugar longe o bastante dos olhos do Grande Rei de Warthia. O Sul estava tomado por escuridão.

Sharowfox regressava, isso Demetrius podia sentir. Seus sonhos estavam inundados por sombras. O Abismo – a quarta dimensão de seu mundo, responsável por receber almas vis e sem salvação – não conseguira prender completamente a Feiticeira.

A Profecia provava isso. Demetrius a ouvira inteira diversas vezes, e temia pela alma escolhida para destruir Sharowfox. A esperança de todos estava depositada num desconhecido, em alguém que precisaria sacrificar muitas coisas para a salvação do mundo.

Demetrius fechou os olhos com força, pensando em todas as alternativas possíveis para conter as Trevas antes que elas avançassem ao campo de batalha.

Para isso, contaria com o apoio dos irmãos – o Leste tinha guerreiros fortes, que se juntariam a frente de batalha com os outros soldados. Warthia dependia de cada soldado em campo, cada alma solidária para defender a Luz. Sharowfox ainda estava fraca, sim, mas seu exército crescia numa velocidade assustadora.

Ela logo convocaria criaturas mais temíveis que os Amaldiçoados. Leviatãs esquecidos pelo tempo, jogados nas profundas valas do oceano. Criaturas derrotadas, mas não destruídas, que aguardavam pelo momento de sua vingança. Tal como a Feiticeira.

– Atrapalho seus pensamentos, meu filho? – a voz suave de sua mãe o tirou daqueles pensamentos tortuosos, e Demetrius negou com um leve sorriso. – Estamos nos aproximando de uma das cidades, pelo que seu capitão me disse. Pretende parar para falar com seu povo?

– Não sei. – o Rei suspirou, pensativo. – A urgência de minha reunião supera qualquer discurso para um vilarejo.

– As pessoas estão preocupadas. Vila do Sol foi só a primeira de muitas catástrofes. Nenhuma delas será esquecida facilmente. – A Rainha explicou, utilizando um daqueles olhares controlados e persuasivos. Demetrius assentiu, sentindo a consciência pesar lentamente. As Trevas haviam arrastado caos por várias cidades e vilas, em todos os Reinos. Deixaram sua trilha de destruição, a marca das sombras. – Sei que lhe parece um atraso, mas faria bem para eles.

– Pensarei sobre seu pedido. – Demetrius lançou à mãe um olhar beirando ao humor. – A senhora sempre testa minha capacidade de negar às suas súplicas.

– Seu coração é bom, por isso é um Rei tão prestativo. Tem amor por seu povo, teme por eles. Parar um pouco naquela cidade o fará sentir melhor.

– Tempos de crise pedem a presença de um líder ao lado do seu povo. – Demetrius recitou a fala de seu pai, sentindo a mãe tocar seu ombro. Mesmo o Grande Rei precisava de apoio. Ele nada podia fazer, por enquanto, além de despejar palavras encorajadoras aos seus súditos e buscar auxílio dos irmãos.

– Red fará a coisa certa, assim como Jon. Até Maltrus verá como dar-lhe apoio é necessário. – Havia um tom mais afiado na voz da Rainha ao mencionar o bastardo, mas Demetrius estava acostumado. Depois de tantos anos, ver o olhar frio e descontente dela sempre que o Rei do Sul era mencionado se tornara algo regular.

– Vossa Graça! – A voz de um de seus soldados fez Demetrius enrijecer. Olhando na direção apontada pelo braço do guerreiro, ele avistou aquilo que o havia assombrado. – Há um incêndio.

– Capitão, traga sua guarda! – Demetrius exclamou imediatamente, fazendo seu corcel virar na direção contrária à que seguiam. – Mantenha a caravana em movimento, proteja nosso grupo. Continue em frente, a cidade não deve estar longe.

– Vossa Graça... – a voz do capitão chegou-lhe carregada de apreensão. – A direção da cidade é aquela. A fumaça vem de lá. – Demetrius estacou em choque, mas não demorou a gritar:

– Marchem! Os outros ficam e protegem os civis. Leve-os para um lugar seguro até o nosso retorno! – Demetrius virou-se para a mãe.

– Tome cuidado. – Ela sussurrou, e então o Rei partiu.

A cavalgada seguiu pelo campo aberto, com vegetações aqui e ali. Como as dunas do Grande Deserto, elevações de terra faziam-se presentes no terreno. A região era cheia de pedras e pequenas montanhas, tornando o caminho mais tortuoso.

A fumaça que cortava o céu anil era escura e irregular, vinda de diversos pontos. O que quer que tivesse causado aquele incêndio ainda estava lá, pois gritos desesperados podiam ser ouvidos quando os guerreiros aproximaram-se da cidade. Gritos que ressoavam ao vento, trazidos aos ouvidos de um Rei ansioso.

Demetrius parou ao lado de seus soldados na beira de uma enorme encosta, vislumbrando o pandemônio assombroso lá embaixo: pessoas corriam para todos os lados, buscando abrigo das labaredas gigantescas e destruidoras que encobriam suas casas.

O cheiro do incêndio podia ser sentido mesmo de longe, e não pareceu ao Rei nada natural.

Algo vibrava em meio às chamas, como uma força obscura, e ele logo soube que eram as Trevas as causadoras daquele desastre. A energia delas estava tão poderosa que lhe causou súbita fraqueza. Sombras escondiam-se entre as incandescentes chamas e o fogo queimava como se estivesse vivo. Havia uma Feiticeira ali, Demetrius percebeu.

– Fiquem atentos! – O capitão da guarda berrou, e então os soldados avançaram com seus cavalos encosta abaixo. Demetrius liderou-os, optando pelo arco e flecha no início do combate. Havia sido ele a ensinar seu irmão Jon todas as astutas habilidades sobre aquela arquearia. No passado, costumavam comparar seu olhar ao de uma águia.

Ele conseguiu abater diversos lobos à distância, lançando flechas certeiras na direção das criaturas. As pontas de prata reluziam às cores avermelhadas do incêndio.

Os soldados dividiram-se, avançando para diferentes lugares da vila, enquanto o Rei seguiu para o centro. Demetrius viu o capitão de sua guarda lançar um olhar preocupado, mas prosseguiu pela rua mesmo assim.

Avistou um enorme monstro ao longe, bem na entrada de uma praça, e por breves instantes sentiu seu coração ribombar em terror. Ouvira histórias contando sobre a Serpente, mas nunca pensou em ficar frente a frente com a tal fera.

A asquerosa criatura tinha escamas amarelas e dentes afiados, prontos para estraçalhar qualquer um que se colocasse à sua frente. De sua imensa e serpenteante cauda pingava um mortífero veneno. Os olhos, que no momento refletiam o brilho incandescente das chamas ao seu redor, cravaram-se na figura do monarca assim que ele se aproximou, e a besta esqueceu-se daqueles que destroçava.

– Demetriusssss...

O Rei não sabia que o monstro tinha capacidade para falar, mas não se demorou em choque – desmontou de seu corcel, desviando-se quando algumas flechas tentaram acertá-lo. As sombras o deixavam fraco e debilitado, mas ele não pararia. Diferente dele, aquele que atirava não teve a mesma sorte, pego de surpresa por uma saraivada vinda de alguns soldados reais.

Demetrius invocou todo o seu poder, estranhando a fraqueza em sua energia, e raios dispararam de suas mãos. Os estalos destroçaram paredes e iluminaram o ambiente com uma pálida luz. O chiado que se seguiu depois que Demetrius os lançou foi suficiente para acalmar o seu coração, mas logo que viu a Serpente intacta, perdeu a pontada de esperança. Magia não funcionava com ela, ou aquele choque a teria matado.

A enorme besta avançou em direção ao Rei e tentou inutilmente cravar seu ferrão nele. Demetrius avistou uma escadaria à frente, que lavava ao terraço de uma casa e avançou para lá. A Serpente, parecendo prever seus movimentos, saltou à sua frente, destruindo a escada com um só golpe.

Demetrius frustrou-se, pegando algumas flechas e disparando-as contra o pescoço da enorme besta. Invocou magia nelas e suas pontas flamejantes cravaram-se contra o couro da Serpente. Ela grunhiu, soltando urros guturais enquanto se contorcia pela prata e pelo fogo, e então jogou sua cauda contra o Rei.

Ele desviou habilmente, saltando para trás. Estava para murmurar outro encantamento quando alguém entrou em seu caminho.

O Lobisomem ruivo carregava o corpo inerte de uma mulher, o pescoço da pobre vítima totalmente destroçado, e abriu um sorriso lambuzado de sangue para Demetrius. O monstro largou-a e atacou o Rei.

Demetrius sabia que usar seus poderes agora poderia ser uma ótima opção, mas tinha que ficar atento aos movimentos do lobo. Distrair-se com um encantamento não ajudaria em sua sobrevivência. Com sorte, ele conseguiu sussurrar duas simples palavras e então chamas azuis ergueram-se na lâmina de sua espada.

O Lobisomem ruivo rosnou, dando um passo incerto, os olhos cegos pelo fogo mágico, e por causa disso recebeu um golpe num dos braços. Esperto, porém, o monstro usou o bracelete de bronze para bloquear o segundo ataque. Demetrius entendeu sua intenção e saltou para o lado quando ele tentou arranhá-lo.

A Serpente saltou para tentar abater o Rei, aproveitando sua distração.

– Não! – O Lobisomem ruivo gritou para o monstro. Cauteloso e desconfiado, com o olhar atento aos dois monstros que tentavam matá-lo, Demetrius fez exatamente aquilo que o monstro queria. – O Rei vive!

A Serpente sibilou e, com assustadora agilidade, usou a cabeça para acertar Demetrius. O Rei, que tinha se concentrado

na defesa de dois ataques frontais do lobo ruivo, acabou lançado contra uma das casas. Não houve tempo de usar qualquer feitiço; Demetrius nem teve forças para isso.

A fraqueza de antes aumentou subitamente. Todo o vacilo de energia de antes se multiplicou, e a Feiticeira conduzindo o incêndio drenou sua energia. Parte da casa desmoronou sobre o corpo débil do monarca.

Ele então viu quando os olhos escuros do Lobisomem o fitaram de cima e o sorriso sujo de sangue abriu-se naquele rosto feroz. O Amaldiçoado ergueu o Rei pelo colarinho da roupa, o suficiente para que seus olhos ficassem no mesmo nível.

– Sharowfox manda um recado para o Grande Rei – o lobo acertou seu rosto com um poderoso soco, lançando o corpo ferido pelo impacto em direção ao chão. – As Trevas vão reinar. – Demetrius resistiu à dor mais alguns instantes, o bastante para ver a cidade arder em chamas e para estender uma súbita preocupação em relação aos seus soldados.

E então tudo foi tragado pela escuridão.


Capítulo 15

Grupo de Busca

 


SERAFINE HAVIA SIDO CHAMADA a uma importante reunião do Conselho de Mídria. Seus olhos percorreram o extenso cômodo, encontrando rostos familiares e alguns desconhecidos. Os lordes do Sul e do Oeste estavam próximos ao Rei Jon. Ele parecia aflito e pensativo, sentado em seu trono com o rosto apoiado numa das mãos. Ývela estava no outro canto, distante do monarca e dos membros do Conselho, mas parecia tão preocupada quanto eles. Theodore e Guillian a acompanhavam, assim como todos os outros da Tropa de Arqueiros.

A morena estava em seu quarto quando um dos guardas apareceu requisitando a sua presença no salão. Foi acompanhada por dois soldados, que marchavam num ritmo uniforme e curiosamente veloz, obrigando-a a correr para não ficar para trás.

– Serafine! – ela virou-se para sua guardiã, que havia notado sua chegada. – Você encontrou com Jarek?

– Não, eu não o vi hoje. – Não o via há bons dias, já que ele estava sempre sob os olhares atentos de seus soldados. Theodore havia lhe dito que Jarek sentava durante horas em um dos jardins, apenas observando a paisagem inóspita do Deserto. Serafine sentia-se mal por ele, mesmo que Jarek alegasse estar tendo regalias das quais não desfrutaria sem a sua interferência.

– Por quê?

– O Rei precisa falar com ele. – Theodore explicou, postando-se ao lado da ondina. Ývela ergueu o rosto para ele, apreensiva, enquanto Guillian se mostrava contido, como se não quisesse transpassar muitas emoções. Tal fato despertou a curiosidade de Serafine, e ela arqueou as sobrancelhas em sinal de inquietação. Prevendo o questionamento, o centauro adiantou-se: – Houve uma série de ataques em nossas vilas. Em pelo menos três delas. O informante chegou algumas horas atrás, fraco e debilitado, e disse que era obra dos Sturian.

– Os Sturian? O povo todo?

– Pelo que ele descreveu, um dos clãs dividiu-se para atacar e saquear certas regiões. Estão pegando tudo o que podem e fugindo para seu esconderijo. Jon precisa de uma informação que só Jarek pode ter...

– Ele quer saber onde fica esse esconderijo. – Serafine concluiu pensativa, olhando discretamente para o Rei.

– Jon mandou um grupo de busca há algumas horas, quer que tragam informações da situação em que se encontram as vilas saqueadas – disse o centauro, também encarando seu Rei. – Ele está muito apreensivo. Não é agradável lidar com este caos. Se os Sturian estão atacando, significa que temos de responder ofensivamente.

– O que? – Serafine assustou-se.

– Ele vai tentar usar a diplomacia, claro, por isso quer partir o quanto antes para uma das vilas não atacadas. Acreditamos que seja um dos próximos alvos... – o centauro hesitou. – Porém, se a diplomacia não funcionar...

– Jon não vai dialogar com eles. – Serafine replicou, sabendo muito bem que palavras usar na frase seguinte. – Vai condená-los. É o que o Conselho iria querer. Jarek foi uma exceção, mas os outros não vão ter a mesma sorte.

– Ninguém sabe o que se passa na cabeça do Rei agora. – Theodore respondeu suavemente, mantendo o olhar firme sobre o de Serafine. – O que quer que ele decida, será cumprido.

Ela suspirou, pensando em algo para replicar sobre a situação. Os Sturian estavam saqueando, o que não era um bom sinal, mas eles não haviam matado ninguém... Até onde Serafine sabia. Theodore teria lhe dito se um massacre houvesse acontecido; talvez a fome desesperasse aquele povo. Talvez estivessem miseráveis. Eram tão necessitados quanto qualquer outra criatura de Warthia, afinal, mas dependiam de sua própria sagacidade para sobreviver. E viver no Deserto, sendo caçados como criminosos, não lhes deixava alternativas honrosas.

As portas do salão abriram-se de repente, e Serafine virou-se para a figura séria e inquieta de Jarek. O guerreiro imediatamente a encarou, questionando-a com o olhar. Não o comunicaram sobre o ataque, ela pensou, o que seria pior. Jarek reagiria mal pelo pedido de Jon, principalmente por ser o último informado.

Os soldados empurraram o guerreiro, parando-o à frente do trono. Serafine adiantou-se até lá, mas foi detida por Guillian – o Atyubru indicou Jon, que acabara de se levantar.

– Jarek... – Jon começou, depois de esperar que os presentes ficassem em silêncio. – O que venho lhe pedir agora é complicado. Só quero que saiba que, dependendo de sua resposta, minha confiança em você pode aumentar. – Ele parou, esperando que o guerreiro dissesse alguma coisa. Jarek arqueou as sobrancelhas, e Serafine reconheceu aquela expressão como a mais desconfiada que ele podia ostentar.

– Majestade?

– Seu povo atacou diversas vilas em meu Reino. – Jon usou um tom mais rígido. Por mais que seu olhar não demonstrasse aquilo, o Rei estava com raiva por ter que lidar com aquela situação. – Mandei um grupo de busca para averiguar os estragos naqueles vilarejos, e, pessoalmente, viajarei para uma das regiões não atacadas para tentar capturar esse clã infrator. Você pode impedir que isso aconteça... – ele suspirou. – Preciso que me informe a localização de seu esconderijo.

– Como é? – O tom de Jarek foi cortante, seu olhar exaltava incredulidade. Serafine conseguia ver a tensão nos ombros do guerreiro, e os soldados que o vigiavam imediatamente se aproximaram.

– Eu precisaria visitar o acampamento para fazer um acordo... Não lhe garanto que omitiria a localização daquele esconderijo, mas faria um juramento de que meus irmãos jamais viriam a descobrir sobre ele. – Jon soava sincero, mas Jarek não acreditou em suas palavras.

– Você iria até lá sozinho?

– Se for o melhor a fazer, sim. – O Rei deu de ombros, mas seus lordes imediatamente retesaram-se.

– Majestade, isso é insano! Vai confiar na palavra de um Sturian? – Lorde Klaus, o magro e sempre resmungão, exclamou. Serafine fitou o nobre com uma crescente raiva, indignada com a falta de fé dele. – O Conselho não aprovaria sua viagem até tal acampamento, mesmo que o traidor dissesse a verdade. E por que ele diria, afinal? O Sturian tem lealdade com o povo dele, e o verme não os trairia em troca da confiança de um governante leal a Lei.

– O nome dele é Jarek! – Serafine explodiu. Todos se viraram surpresos para ela. – Não me importa o sangue que corre em suas veias, ele é meu guardião. – acrescentou com uma expressão furiosa, aproximando-se do trono. – Trate-o com o devido respeito.

– Não me lembro de tê-la convocada a esta conversa. – Klaus retrucou suavemente.

– Não vou ficar calada enquanto você trata Jarek deste jeito! – A morena rugiu.

– Basta! – Jon ergueu a voz, colocando-se entre Klaus e Serafine. Apesar do olhar ferino no rosto do lorde, foi o do Rei quem fez a garota se intimidar. – Jarek, o que me diz?

– Não posso. – alguns dos presentes arfaram, parecendo surpresos. Lorde Klaus rolou os olhos, indicando já ter esperado por aquilo. – Eu prezo por sua confiança, e agradeceria se a tivesse, mas o senhor me pede para trair meu povo. Eu não poderia.

– Compreendo. – Jon assentiu; se estava decepcionado, escondeu perfeitamente. Serafine viu-o fazer um ligeiro aceno para um dos soldados, e o servo retirou-se do salão. – Muito bem, então, essa reunião pode ser...

– Desculpe-me majestade... – todos se voltaram para o dono da exclamação, cuja voz vinha carregada por um forte sotaque. Um dos viajantes do Sul, o velho homem encurvado que acompanhava o príncipe Luke, dirigia-se à Corte: – mas acho que algo não se encaixa aqui.

– Lorde Hammel? – Jon soou curioso, mas havia cautela em sua voz. Serafine notou um rápido olhar trocado entre ele e Theodore, e então o centauro aproximou-se do trono.

– Um Sturian solto por esses corredores como um de nós. – o lorde respondeu carregado de escárnio, lançando à Jarek um olhar de nojo. Ele voltou-se para Serafine logo depois, enquanto a garota se aproximava protetoramente de Jarek, e disse questionador: – Um Sturian que tem amigos, inclusive. Amigos que não são de seu próprio povo... Interação entre traidores e pessoas livres não é permitida pela Lei de seu antepassado.

– Eu bem conheço a Lei de meu antepassado. – o Rei rebateu altivamente, exibindo uma crescente irritação. – Jarek foi julgado como uma exceção.

– O cumprimento da Lei não permite exceções, majestade. – Havia uma fagulha de diversão nos olhos claros daquele lorde, como se ele estivesse feliz. – Jarek nasceu condenado, assim como os outros.

– Meu Conselho e eu decidimos por livrá-lo da sentença. O guerreiro salvou a vida de alguém muito importante para nós e, como recompensa, ganhou a liberdade. – Jon replicou com calma, mantendo o controle em suas palavras. Serafine sabia o quanto o Rei estava sustentando suas emoções naquele momento, e tinha certeza de que, no lugar dele, já estaria estrangulando aquele petulante.

– Imagino que o Rei dos Reis tenha sido informado sobre isso. – uma sobrancelha branca ergueu-se na expressão mordaz daquele velho. – Como alterou a Lei em favor de um traidor, seu irmão deve saber disso...

– Eu convocarei Demetrius quando chegar à hora. Agora lidamos com outra crise.

– Ah, sim. O ataque liderado por outro Sturian. – o lorde franziu o cenho para Jarek, encarando-o como a uma aberração. – Espero que os outros não sejam tratados com tanto respeito quanto este traidor...

– Ele não é um traidor! – Serafine esbravejou. O lorde respondeu com um arregalar de olhos, ultrajado por sua reação. Se ela tivesse reparado, veria Jarek baixando o rosto para esconder o riso. – Parem de tratá-lo como um criminoso! E se o senhor vier com a teoria de que o sangue dele é pertencente aos traidores vou fazer uma fogueira e o senhor estará nela!

– Serafine! – Theodore exultou. – Tenha respeito. – A morena continuou encarando Hammel.

– O Rei Maltrus vai gostar de saber sobre isso.

– É uma ameaça, Hammel? – Jon questionou o lorde, mantendo o olhar fixo ao do príncipe. Luke sustentou rigidamente, sem exibir qualquer mudança de humor, e então respondeu pelo velho:

– Nós não fazemos ameaças. – O príncipe lançou um olhar gélido para Jarek e, consequentemente, para Serafine. Ela permaneceu firme em seu lugar, mas sentiu que aqueles olhos prateados perturbavam-se por mais coisas do que pela simples frieza exibida. Lembrou-se do rapaz gentil com quem havia conversado na varanda e sentiu falta daquela aura. – Contudo, seria bom que repensasse suas expectativas com essa raça, majestade. Eles jamais serão dignos de confiança. Por mais que possam lhe parecer heróis, há um vestígio de vilania em suas veias.

O príncipe suspirou e então se retirou dali, fazendo uma breve reverência para o Rei.

– Senhor! – o soldado que há pouco correra para fora do salão retornou ofegante, mas exaltado. – Recebemos uma mensagem da Cidade Miragem. A região é a mais próxima à última atacada e não há proteção alguma. Eles temem que os traidores apareçam para saquear.

– Preparem os corcéis. – Jon exclamou, ignorando o silêncio que se instalara no salão. Ele virou-se para Serafine, e também para Jarek, e murmurou: – Estejam prontos para a viagem.


Capítulo 16

Instinto

 


DE UMA MANEIRA CONFUSA, Serafine pressentia que aquela viagem reservava algo inesperado. Os ares estavam mudando.

Ela não quis alarmar ninguém, mas algo realmente a incomodava. Tentou manter a concentração unicamente no som da pedra passando pela lâmina da faca que afiava, até que Guillian se aproximou. No rosto havia uma de suas expressões curiosas:

– O que se passa, milady?

– Não é nada demais. – Mentiu, sorrindo fracamente para o felpudo. Viu Guillian crispar os lábios, mas concentrou-se na finalização do serviço que fazia. Depois de embainhar a faca ao seu cinto, dirigiu-se até a aljava cheia de flechas ali perto e amarrou-a as costas.

– Serafine, assim toma-me por tolo. – O Atyubru replicou suavemente, lançando um olhar investigador. – A senhorita está preocupada com alguma coisa! Pode falar, confie em mim.

– A questão é que nem eu mesma sei o que me preocupa. – ela respondeu francamente. Frustrava-se ao constatar o quanto

aquilo soava estranho. – É apenas uma intuição, algo sem importância.

– Suas intuições podem ser tudo, menos sem importância. – Guillian sorriu, fazendo-a sorrir de volta. Foi então que uma figura solitária aproximou-se da dupla. O Atyubru imediatamente assumiu a pose rígida, levando discretamente a mão a uma longa faca embainhada em seu cinto.

Serafine sentiu uma brisa fria, porém aconchegante, passando por eles, e estranhou, visto que ali onde estavam tal fenômeno da natureza era impossível.

– Príncipe Luke, o que o traz aqui?

Os olhos prateados do rapaz estavam fixos nos de Serafine, intensos e cautelosos, e ele continuou a encará-la enquanto respondia ao orelhudo:

– Irei com vocês até Cidade Miragem. Meu pai requisita minha presença no Sul. Assuntos urgentes.

– É uma pena. – Serafine fingiu a expressão descontente, recebendo do príncipe um olhar curioso. Ainda estava com raiva pela postura dele durante o Conselho. – Jon achou que você e sua comitiva ficariam aqui até a importante comemoração à derrota de Sharowfox.

– Como a senhorita mesma disse, é uma pena. – Seus olhos, por mais transparentes que fossem, eram rígidos. Serafine havia uma vez meditado sobre como Jarek tinha um olhar enigmático, mas agora lhe parecia que o príncipe do Sul ganhava do guerreiro.

– E como está o Sul, alteza? – Guillian despertou Serafine daqueles pensamentos, indagando ao príncipe com simplicidade. Luke não pareceu se importar com a pergunta, exibindo um sorriso suave enquanto respondia:

– O mesmo Reino frio e cheio de neve de sempre. – Havia um ligeiro toque de humor em sua voz. Serafine encarou-o de soslaio, fingindo concentrar-se no teste da rigidez em seu arco para ouvir o diálogo. – Pelo que ouvi dos Atyubrus, vocês não são muito chegados ao inverno.

– De fato, nobre garoto, apesar de todo esse pelo servir mais do que para apenas me embelezar. – O felpudo riu um pouco.

O príncipe virou-se repentinamente para a entrada da sala, onde um dos lordes acabara de chegar, acompanhado por um grande grupo de pessoas.

– Se me dão licença. – ele se curvou ligeiramente para os dois. – Ah, Serafine, se me permite dizer... Adoraria vê-la sorrindo uma última vez antes de partir. Espero que não me olhe tão seriamente no nosso próximo encontro. – E partiu dali rapidamente, deixando para trás a sombra de um sorriso.

Serafine notou que Guillian desviou o olhar assim que o encarou:

– O que?

– O príncipe deseja rever o seu sorriso... – Ele brincou, e Serafine sentiu rubor subindo à sua face.

– Oh, cale a boca, seu orelhudo. – Retrucou.

– Achei que a troca de carinhos neste grupo sempre me incluísse. – Serafine e Guillian voltaram-se para Jarek, que os encarava divertidamente. A expressão fria dele havia sumido desde a reunião no salão do Conselho, substituída por aquela mordaz tão característica. Os soldados que costumavam vigiá-lo ainda estavam ali perto, atentos a seus movimentos.

– Serafine acaba de receber um flerte e está me insultando por ter comentado tal fato. – Guillian disse casualmente. As sobrancelhas de Jarek ergueram-se enquanto ele avaliava a garota. Serafine podia estar ficando louca, mas pareceu notar certo incômodo no guerreiro. Um sorrisinho convencido ergueu-se no rosto dela em resposta a isso.

– Um flerte, é? – ele cruzou os braços. – O príncipe encantado roubou seu coração?

– Por quê? Você está com ciúme, por acaso? – Jarek riu com falso humor.

– Eu não tenho porque ter ciúme de um frangote como ele.

– Se quer minha sinceridade, Luke é um rapaz muito atraente...

Guillian pigarreou, interrompendo a troca de farpas:

– Vai viajar conosco, rapaz?

– Jon me quer nessa expedição, acha que eu posso mudar de ideia e delatar meus familiares. – Jarek deu de ombros, sem se mostrar afetado.

Ývela os cumprimentou em seguida, aproximando-se calmamente. Assim como Jon, Serafine notou, a ondina tentava esconder melancolia com expressões falsas. Diferente do Rei, no entanto, a loira tinha quem se preocupasse por ela.

– Ei baixinha. – Jarek ergueu seu sorriso animado. – Por que a cara amarrada?

– Cansaço, só isso. – ela respondeu com um olhar condescendente. – Acho que todos estamos passando por isso.

– Uns mais do que outros. – Serafine se aproximou, ansiosa por tirá-la daquele torpor depressivo. – Sabe que pode contar conosco, não é, Ývi?

– Estamos divididos por causa desta maldita corte, mas ainda somos um time. – Guillian usou seu tom mais exaltado. – Certo? – Jarek e Serafine trocaram um rápido olhar perturbado, mesclando intensidade a ele. Mesmo o sorriso de Ývela foi falso; dentre todos ali, o Atyubru era, de fato, o menos atingido pelas circunstâncias ao seu redor, mas não o menos abalado.

Eles não tiveram coragem de derrubar a animação do felpudo, por isso retrucaram com teatral bom humor:

– É, somos um belo quarteto desajustado. – Serafine passou o braço pelos ombros de Ývela, arrancando risos da loira.

– Somos o quarteto desajustado mais sexy por aqui. – Jarek replicou.

– Ah, retiro o que eu disse... – Serafine crispou os lábios.

– Sobre o que?

– Sobre sermos um quarteto. O ego do Jarek vale por outra pessoa. – Mesmo Jarek não se impediu de rir.

Serafine viu-se agradecendo silenciosamente pela presença dos três. Sem eles, não conseguiria lidar com todo o caos ao seu redor. Jarek baixou o olhar para a morena, e houve um instante em que compartilharam o mais espontâneo dos sorrisos.

O Rei apareceu no salão em seguida, interrompendo a descontração, e explicou como prosseguiriam viagem. A comemoração da Cidade Miragem seria o momento perfeito caso os Sturian de fato fossem aparecer – Jon havia mandado grupos de soldados para outras duas aldeias restantes, de modo a prevenir se o plano falhasse. Ele ordenou que os presentes que o acompanhassem até os portões, e que esperassem em seus respectivos corcéis.

– Achei que Theodore fosse ficar.

– Eu sou o capitão da guarda, menina. – o centauro respondeu subitamente, surpreendendo-a. Ela virou-se para ele, vendo-o se aproximar. – Por mais que essa viagem não me agrade, devo permanecer ao lado do Rei.

– Você acha que vamos conseguir surpreender os Sturian? – ela indagou baixinho, tomando cuidado para que Jarek não ouvisse suas palavras. – Acha que eles não suspeitam de nada?

– Não posso afirmar isso. – O centauro encarou o guerreiro mais à frente; Jarek conversava com Guillian, mas era quase certo que ele estava atento às palavras trocadas entre os dois. – São um povo astuto, esses Amaldiçoados.

Serafine não gostou do tom usado por Theodore que, mesmo tentando soar impassível, havia ofendido propositalmente seu guardião.

Jarek era, afinal de contas, um dos Amaldiçoados. Ele mesmo não negava isso, então por que relutar tanto? Por que ela sentia uma piedade excessiva por ele, e também por sua família?

Em frente aos grandes portões de entrada, Serafine vislumbrou Benídia segurando as rédeas de um altivo corcel branco.

– Os soldados desistiram da busca por seus corcéis. – Benídia disse com pesar, parecendo verdadeiramente triste. – Para onde quer que eles tenham fugido durante o ataque dos Escorpiões, não foi perto o suficiente para serem encontrados.

Serafine assentiu, tentando não se abalar ao lembrar-se de Darius e dos outros. Eram simpáticos, se fosse medir o grau de conhecimento que tinha sobre cavalos falantes, e ela rezou aos Deuses para que tivessem encontrado um lugar seguro para ficar.

– Faça uma boa viagem, senhoria. E aproveite a festa.

– Obrigada, Benídia. – Serafine sorriu. – Ei, bonito colar.

Benídia hesitou. Serafine sorriu divertidamente, tentando transpassar que não havia problema. Tudo bem se Benídia queria se envolver com Luke. Quem era ela para ditar alguma coisa?

Depois que a garota se retirou, Serafine aguardou ao lado dos membros da Tropa de Arqueiros. Eram desconhecidos, soldados já formados e preparados para combate; seus companheiros de treino ficariam no castelo. Ela viu Luke, um pouco afastado, trocando olhares intensos com Benídia. Diferente da última vez, no entanto, desviou a atenção antes de ser invasiva demais.

Ela sobressaltou-se quando o barulho dos portões sendo baixados ecoou por ali. As correntes arrastaram-se pelo chão, e então as portas de ferro gigantescas tombaram, deixando a passagem livre.

Jon partiu primeiro, seguido por soldados de sua guarda.

Foi durante a descida pela encosta da montanha que Serafine sentiu novamente aquela estranha sensação. Estava mais forte, quase como um aviso de que algo os aguardava naquela curta viagem.

A única certeza que Serafine tinha era de que logo descobriria o que é que a atormentava tanto.


Capítulo 17

Cidade Miragem

 


O SOL HAVIA SE posto há um tempo, mas o clima mudou tão bruscamente que pegou Serafine desprevenida. Os corcéis cavalgavam velozmente, trazendo mais frio àqueles que viajavam em direção à Cidade Miragem.

Foi quando subiram a enorme duna de areia que Serafine avistou, bem ao longe na paisagem, luzes indicando a presença de um grande povoado – e em muito aquele espaço lhe lembrou de Vila do Sol. Diferente de sua antiga morada, no entanto, aquela cidade recebia diversos visitantes excêntricos. Serafine avistou caravanas vindas dos quatro cantos do Deserto, com tochas iluminando seu caminho pela vastidão das dunas, todas em direção aos grandes portões.

Um muro alto fora erguido ao redor da área ocupada. Todas as vilas e cidades localizadas no Deserto contavam com essa proteção, já que as tempestades de areia eram devastadoras para os despreparados. Torres de vigia marcavam espaços regulares na extensão do muro, contando com um grande número de soldados.

Os portões foram baixados quando Jon apresentou-se aos guardas. Serafine percorreu os olhos pelos detalhes da cidade, que agora em nada lhe lembravam a sua antiga casa: as casas eram muito baixas, feitas de barro e pedras, e não havia qualquer vegetação além de arbustos secos.

Serafine achou curioso olhar para os lados e encontrar uma variedade tão grande de criaturas mágicas; viu olhares dos mais variados, como algumas mulheres cujas íris eram idênticas as de um felino, homens com três olhos no rosto e outros com apenas um.

A caravana parou numa rua larga, e uma mulher saiu de uma das casas. Serafine agradeceu por estar distante, pois sua reação imediata ao olhá-la foi de choque. Mesmo depois de tantas semanas convivendo com seres sobrenaturais, ainda podia ser surpreendida ao ver uma figura como aquela.

A mulher que tanto a chocara era alta e magra, tão magra que a carne em seu rosto enterrava-se nas bochechas. Tinha lábios grossos e largos, que se abriram num sorriso quando o silêncio se instaurou; os olhos, porém, jamais se abririam. Três rasgos cruzavam sua face, cicatrizes de um acidente passado que marcaram para sempre sua pele. O machucado descia diagonalmente sobre seus olhos, marcando a bochecha também.

Nos braços podiam-se avistar diversas marcas apagadas, símbolos e palavras em uma língua desconhecida, desenhos vermelhos desbotados.

O cabelo da mulher era escarlate e caía em diversas tranças até seus ombros, mas bastou uma boa olhada para Serafine perceber que não eram de fato tranças... Serpentes vivas moviam-se em sua cabeça, presas como se fossem mechas de cabelo.

– Deuses... – Serafine sussurrou embasbacada. Temia por Jon, que não parecia ligar para o fato de a mulher ter cobras no cabelo. O Rei adiantou-se até ela e depositou um beijo em sua testa, sorrindo quando ela começou a conversar.

– Aquela é Sibila, uma das criaturas mais antigas deste mundo. – Ývela postou-se ao lado de sua protegida e também estava impassível à estranheza da mulher. – Ela nasceu uma Feiticeira, mas fugiu antes de completar o ritual de iniciação. Foi vítima da maldição de suas irmãs e, quando tentou usar essa tormenta a seu favor, acabou castigada por um antigo Rei.

– Que maldição?

– As cobras davam-lhe poder para petrificar qualquer criatura que olhasse em seus olhos, mas, ao deixar de servir como torturadora do tal monarca, o mesmo mandou castigá-la. Jogou-a nas Catacumbas, deixando-a para ser morta pelos monstros que lá vivem.

– Como ela está viva?

– Fugiu. Foi uma das poucas. Os condenados às Catacumbas nunca vivem para contar história, mas ela conseguiu. – Ývela sorriu sutilmente. Serafine sentiu-se curiosa em relação às Catacumbas, mas não precisou perguntar: – É uma arena, onde escravos são usados para divertir a população. Fica no Sul. – Ývela crispou os lábios ao dizer aquilo e voltou-se para Sibila: – A história dela é muito trágica, pobrezinha... Amou um homem quando, como Feiticeira, deveria manter o coração intocável. O Rei, o homem a quem deu seu coração, um ancestral dos quatro que agora governam, viu nela maior utilidade viva do que morta... Era a torturadora favorita dele. Sibila me disse que, por um tempo, acreditou ter encontrado a felicidade. Depois que fugiu das irmãs, pensou ter achado paz. Mas as torturas a esgotavam, e ela se voltou contra o homem que amava. Então ele a condenou.

– Parece bem... Trágico.

– Sibila superou. Ela não se deixa abalar pelo passado... – Ývela comentou. – Oh, e se ela começar a falar coisas sem sentido, ignore-a. Da última vez que a vi, Sibila profetizava frases estranhas no meio de uma conversa civilizada.

– Ývela! – Sibila exclamou docemente quando elas se aproximaram. As cobras em sua cabeça silvaram de maneira suave. Serafine não entendeu como a mulher conseguiu identificar Ývela sem vê-la, e ficou curiosa quanto a isso. – Fico feliz que esteja bem, faz anos que não vinha aqui! – Ývela abraçou a mulher e Serafine arregalou os olhos, abismada com a coragem da guardiã.

– É muito bom reencontrá-la. – Ývela sorriu com carinho quando se afastou da velha amiga. Serafine desviou a atenção enquanto os viajantes desmontavam de seus cavalos e adiantavam-se até a casa de onde Sibila havia saído. Era uma estalagem, percebeu. Não tão alta quanto a que sua mãe tinha em Vila do Sol, mas suficientemente espaçosa para receber todas aquelas pessoas.

– Oh, sinto uma presença... – Sibila murmurou repentinamente, voltando o rosto na direção de Serafine. Ela estacou, temendo encarar muito aquela face mutilada, principalmente por Sibila estar tão séria. – Você tem uma alma muito poderosa, jovem desconhecida. Força antiga emana de seu coração. Esperei muito tempo para conhecê-la!

– Esta é Serafine. – Ývela adiantou-se, tentando conter as explicações. Serafine achou curioso o fato de Sibila ter esperado para conhecê-la; a mulher tinha conhecimentos sobre a Profecia, então? – Se não se importar, explicarei tudo lá dentro. – os olhos da ondina passearam apreensivos pelos presentes. – É uma longa história.

– Que falta de educação a minha! – o sorriso voltou ao rosto ferido da mulher, que fez um sinal para que o restante dos hóspedes entrasse ali. – Vão encontrar quartos aconchegantes para acolhê-los depois dessa cansativa viagem, meus senhores.

O interior da estalagem era confortável, Serafine reparou,

e incrivelmente simples. Um labirinto de corredores cheios de portas estendia-se para todos os lados, e dentro dos quartos havia três camas suficientemente grandes.

Serafine foi levada até o cômodo que dividiria com seus

guardiões. Guillian, assim que se deitou, caiu no sono e começou a resmungar sobre serpentes assustadoras – apesar de o felpudo ter reforçado a afirmação de que iria permanecer acordado para a segurança de todos ali presentes.

Jarek ficou ali também, como guardião da escolhida, mas os soldados que o escoltavam montaram guarda do lado de fora. Serafine não tentou conversar com ele; Jarek estava sombrio demais. Ela fechou os olhos, ansiosa pelo descanso, e caiu no sono em seguida.

Foram raios de sol, horas depois, que a fizeram despertar. Bocejando longamente, a garota notou que as camas ao seu lado estavam vazias. Ela dirigiu-se para fora, onde acabou esbarrando com Ývela.

– Ah, boa tarde!

– Boa tarde? – Serafine repetiu surpresa.

– Já passa do meio-dia, dorminhoca. – a ondina riu da expressão de sua amiga, aproveitando para indicar uma porta ao fundo do corredor. – Tem um lavatório lá, fique a vontade. A água da bica está gelada.

Serafine demorou no banho, aproveitando para relaxar com a água fria. Depois que se vestiu, prendeu os cabelos numa longa trança e saiu à procura dos outros. Encontrou sua guardiã parada em frente à estalagem junto a Guillian. Havia soldados por todos os lados.

– Para onde vamos?

– Andar por ai. – Ývela respondeu dando de ombros. – Jon pediu que ficássemos de olho em qualquer coisa suspeita, e Jarek foi proibido de se afastar da estalagem. Os lordes temem que ele vá sinalizar para os Sturian ou qualquer coisa do tipo – A loira rolou os olhos.

– Como eu identifico um Sturian, aliás? – Serafine arqueou as sobrancelhas. – Ah, a tatuagem... – Ela mesma se respondeu, lembrando-se da marca que todos os indivíduos daquela raça possuíam.

– Em um lugar público eles provavelmente a esconderiam, assim como Jarek faz – Guillian explicou. – É só ficar atenta.

Ela não achava justo denunciar um deles, a menos que ele estivesse cometendo algum crime. Portanto, prestou pouca atenção as pessoas excêntricas ao seu redor.

Eles percorreram alguns quarteirões até alcançar a praça central. Alimentos, sementes, roupas, joias e tudo mais que se podia imaginar estavam pendurados em diversas barracas de madeira, e comerciantes gritavam em estranhos dialetos o preço de suas mercadorias.

As pessoas vestiam cores berrantes e roupas absolutamente esquisitas. Serafine observou tudo com extrema curiosidade, ansiosa por memorizar cada detalhe daquele povo tão distinto. Depois dos elfos, quietos em suas vestes claras e seus olhares milenares, dos Atyubrus, felpudos e fofos e perigosos, e dos humanos na corte, encontrar o povo de um novo Reino foi fascinante.

Mulheres e homens com peles de cores variadas passavam por ela, sorrindo, cumprimentando-a em línguas e sotaques diferentes. Algumas usavam roupas demais, chegando até a cobrir seus rostos, e outras usavam quase nada. Era curioso encontrar tanta cultura. Curioso, para uma garota que viveu todos aqueles anos escondida numa vila pacata, observar tanta vida em um lugar como aquele.

– A colheita deve ter sido excepcionalmente boa neste ano. – Serafine ouviu Guillian comentar.

– Por quê? – Ela indagou.

– Porque os comerciantes de outras cidades só vêm para cá se souberem que a riqueza de Miragem aumentou consideravelmente. – Ývela respondeu pelo Atyubru, que havia parado numa das barracas para observar algumas facas. – É a barganha que acontece entre os habitantes do Oeste: as sementes são trocadas por ouro ou por alimentos, roupas e joias. A festa da colheita acontece todo o ano para que o povo das outras vilas tenha a chance de usufruir de coisas que só Miragem pode oferecer.

– Como adagas incrivelmente bem trabalhadas. – Guillian exaltou animado, virando-se para as garotas com uma belíssima arma em mãos. – Olhe só o cabo desta aqui! É feito do osso de um Felino das Sombras; raríssimo! Apesar de poder muito bem se tratar de um simples osso de bovino, só que muito mais enfeitado. Situação complicada...

– Meu pequeno senhor, essa raridade é verdadeira! E uma pechincha. – O comerciante adiantou-se até o felpudo, e então os dois prosseguiram numa discussão sobre os preços. Distraída, Serafine percorreu aquela praça com o olhar.

Foi naquele momento que ela avistou o homem solitário e aparentemente pacífico a algumas tendas de distância. Por um momento, os olhos do estranho brilharam, oscilando da cor escura para uma vermelha vibrante. Serafine continuou encarando-o, e estava tão concentrada que se assustou quando Ývela a chamou. Ela virou-se para a ondina, e então o homem sumiu.

– Está tudo bem? – Guillian indagou preocupado.

– Eu acho que encontrei um Sturian... – Ela respondeu, lançando aos dois um olhar indeciso. Qualquer resposta que se seguiria foi abafada por um burburinho entre a multidão. As pessoas começaram a se mover numa determinada direção, surpresas e temerosas, e os três seguiram o fluxo, encontrando uma cena aterradora no centro da praça.

Dois soldados sustentavam um homem pelos braços, e sua cabeça pendia para frente – ele estava vivo, Serafine percebeu aliviada. O príncipe Luke tinha uma espada em mãos, e a lâmina mantinha-se próxima ao pescoço do capturado. O nobre rapaz estava rígido e não movia sequer um músculo; os olhos prateados tão fixos em seu alvo que nada parecia ser capaz de distraí-lo.

– Chamem o Rei! – um dos soldados gritou. – Capturamos um Sturian! – Então Serafine viu, no braço do homem, tiras de um tecido escuro rasgadas, expondo a tatuagem vibrante de um dragão.


Capítulo 18

A Festa da Colheita

 


SENTADA AO LADO DE Jarek, Serafine o encarava com crescente preocupação. Os gritos do Sturian capturado haviam cessado minutos atrás, mas a sensação de que ele ainda estava sendo torturado pairava no ar.

Depois que Jon chegara à praça, os soldados haviam movido o prisioneiro para a estalagem de Sibila, e ela lhes cedera o porão para o interrogatório. Fora Theodore o responsável por tentar arrancar as respostas do homem, encontrado furtando diversos sacos de semente para os Amaldiçoados. Jon queria saber onde eles estavam escondidos, e Serafine se assustara ao notar o tom de voz ameaçador usado pelo Rei ao proferir as palavras: Faça-o falar.

Jarek estacara no corredor ao ver o prisioneiro de sua raça ser arrastado pela estalagem, e ficara ainda mais chocado quando os gritos começaram a soar no andar debaixo. Serafine estremeceu ao imaginar o tipo de tortura pela qual o homem estava passando, e ficou ainda mais assustada ao pensar que era Theodore, seu Mestre, quem o estava ferindo.

Seu guardião se sentou do lado de fora e apoiou os cotovelos nos joelhos, enterrando a cabeça entre as mãos. Talvez quisesse abafar os sons de grito ou fingir que tudo aquilo não estava acontecendo, Serafine não teve coragem de perguntar. Mas não se impediu de tocar o ombro dele em determinado momento.

Levaram alguns longos e silenciosos minutos após o fim dos gritos para que o alçapão fosse aberto e Theodore saísse de lá. O rosto do centauro era puro descontentamento, e não foram necessárias palavras para que Jon entendesse o que se passava. O prisioneiro não queria falar.

– O que faremos, majestade? – Um dos lordes indagou. Jon fechou os olhos com força, a expressão fraca tomada por doentia exaustão, e então mandou que todos fossem para seus aposentos. Dali a algumas horas a festa iria começar e ele queria armar um cerco para impedir qualquer emboscada. A presença do Sturian o faria redobrar a busca nos arredores da cidade.

– Jarek – Serafine chamou o guardião, preocupada. – Você acha... Que sua família está aqui? – O olhar desamparado dele respondeu seu questionamento, e Serafine pôs-se a temer as horas seguintes.

Mais tarde, ela se encontrava deitada na cama do quarto, totalmente encoberta pela escuridão, pensando em diversas alternativas para ajudar o prisioneiro.

Quando vira o Sturian na praça, ele não parecera nada ameaçador. Depois que o ouviu jurando pelos Deuses não ter cometido crime algum, seu coração enchera-se de pena. O príncipe o havia encontrado roubando, mas só ele havia visto tal ato. O homem alegava estar negociando com os comerciantes, uma barganha de acordo com a lei. Segundo ele, seu povo não vinha cometendo saques em nenhuma aldeia, só negociações. Mas as pessoas das outras vilas juraram tê-los visto roubando e matando. Então por que Serafine estava tão confusa? Por que tinha ficado tão agonizado ao ver o homem – que, segundo os oficiais, era um criminoso – sendo torturado para revelar o segredo? O que a incomodava tanto?

Suas considerações foram atrapalhadas quando Ývela adentrou o quarto, o rosto pálido e os olhos grandes abalados pela tortura que presenciara.

– Como o Jarek está? – Serafine perguntou de imediato.

– Quieto. Abalado. Não quer conversar. O de sempre. – Ývela sorriu fracamente. – Jon me pediu para voltar ao quarto. Eu não aguentava mais ver Jarek naquele estado.

– O Rei permitirá a ida dele até a festa?

– Possivelmente. Jarek impressionou os lordes ao não mover um músculo para ajudar o capturado. Talvez o usem de isca; aparentemente, o capturado conhecia Jarek. – Ývela suspirou pesadamente, deitando no colchão macio atrás de si. Seus olhos estavam fixos no teto quando murmurou: – O príncipe não tinha piedade no olhar quando capturou o homem, você percebeu? Seus olhos eram como lâminas prateadas...

– Ele sempre me pareceu perturbado. – Serafine comentou distraidamente. Onde estava o príncipe com o sorriso carinhoso?

Quando Sibila apareceu na porta de seu quarto mais tarde, avisando-as de que a festa iria começar dali alguns minutos, Serafine ergueu-se para se aprontar. Soltou os cabelos e colocou um daqueles vestidos abertos e desconfortáveis do Oeste. Ao passar pela porta, encontrou uma figura solitária do lado de fora da estalagem – Luke estava parado ali, os olhos prateados divagando em algum pensamento profundo. Assim que a viu, um sorriso educado delineou seu belo rosto.

Serafine não demonstrou qualquer sinal de nervosismo – ela sabia, porém, que seu olhar entregaria tudo. Ao contrário de seu guardião ou mesmo do príncipe, ela não tinha aquela capacidade de esconder emoções.

Quando avistou Jarek, acompanhado pelos dois soldados que sempre o escoltavam, tentou transpassar para ele algo além de um sorriso acolhedor. O guerreiro a encarou intensamente e então concentrou seu olhar no chão.

Era a segunda vez que Serafine o via daquela maneira, incapaz de sustentar uma troca de olhares, e a sensação foi ruim como antes. Jarek era sempre tão forte, tão determinado... Aquela situação o estava destruindo.

A caminhada até o local da festa foi silenciosa – Sibila guiava o grupo e era a única capaz de soltar algumas palavras vez ou outra. Logo, a música começou a ficar alta, assim como risos altos e conversas animadas.

A praça estava toda enfeitada, completamente diferente daquela que Serafine visitara pela tarde. Era assustador perceber o quanto àquela festa lhe lembrava de seu último aniversário, portanto, o calafrio que percorreu sua espinha foi compreensível. Procurou por qualquer sinal de lobos nas sombras, mas nada encontrou.

Os cantos iluminados exibiam fartura de comidas, bebidas e alegria. Os habitantes dançavam numa grande roda. A árvore central, a única vegetação naquela praça toda composta por pedras, estava seca. Serafine observou os músicos carregando instrumentos curiosos, entoando em alto e bom som uma canção animada. O verso seguinte trouxe á ela uma antiga lembrança:


E então vieram os gigantes leviatãs

E a tudo tentaram destruir

Porém com medo da fúria divina

Puseram-se a fugir.


Quando Serafine era pequena, sua mãe costumava cantar aquela canção para que dormisse. Era um relato antigo sobre a primeira batalha ocorrida em Warthia, muito antes da Era dos Magos. Uma batalha em que os combatentes não eram apenas seguidores da Luz ou das Trevas... Onde gigantes adormecidos haviam sido trazidos para fora de suas prisões e exércitos de mortos marcharam sobre a terra para tentar destronar os Deuses.

Jon seguiu por entre as barracas, cumprimentando as pessoas que o reverenciavam, e a exaustão que antes era exibida em seu rosto foi substituída por um sorriso sincero.

– Viu algo estranho? – Serafine perguntou à Ývela, mas a ondina encarava Jon com um sorriso frágil, desatenta à sua protegida. – Ývi!

– Oh, sinto muito! – rubor subiu às suas bochechas magras. Serafine riu suavemente, achando curiosa a reação dela. Aquele olhar no rosto de Ývela... A maneira como ela observava o Rei... Havia emoção demais para ser ignorada. A ondina pareceu notar a avaliação de Serafine, por isso puxou um assunto desconexo: – O que acha de dançarmos?

– Eu não danço bem.

– Precisamos nos distrair um pouco. – A ondina replicou, aproveitando a troca de música para arranjar um par.

Ela puxou Serafine para o meio dos dançarinos, e a garota só teve tempo de lançar à sua guardiã um olhar furioso antes de ser escolhida por uma garotinha. Segurando suas mãos, a menininha a guiou entre a roda de dança, balançando a cabeça e saltitando no ritmo da música.

Mesmo com a mente concentrada na busca pelos Sturian, Serafine sentiu um sorriso involuntário crescer em seu rosto ao começar a dançar. A culpa a dominou por breves instantes, mas um pouco de diversão não poderia lhe fazer mal.

Havia tempos que a garota precisava daquela descontração. Havia tempos que sua mente buscava por algum escape.

Serafine aproveitou aqueles momentos apenas para esquecer-se de tudo à sua volta, do caos e do medo, da insegurança e da confusão... Ela se deixou levar.

Depois de trocar de par várias vezes, mas antes que tivesse tempo de prosseguir a próxima dança, ela vislumbrou algo e paralisou quando entendeu o que lhe chamara a atenção.

Os acontecimentos decorreram de maneira rápida, e seu grito ecoou junto de outro mais agudo.

Um homem sustentava a garotinha com quem Serafine acabara de dançar pelo pescoço. Tinha uma faca contra a garganta dela e parecia assustadoramente insano.

– Os Amaldiçoados mandaram uma lembrança! – ele grunhiu. – A era da Luz está chegando ao fim. – No instante seguinte, a menina jazia no chão, um talho cortando sua garganta de um lado ao outro. Gritos agoniados encheram as multidões e mesmo os soldados estacaram sem saber como reagir. O homem saltou num banco e em seguida no teto de uma barraca, para depois alcançar o telhado de uma das casas e desaparecer na rua de trás.

Um Sturian havia matado um inocente. E acabara de condenar sua alma para sempre.


Capítulo 19

A Lei é a Lei

 


SERAFINE NÃO SOUBE DIZER quanto tempo decorrera entre o desaparecimento do Sturian atrás de uma das casas e o tumulto de soldados começar. O corpo da garotinha morta já tinha sido amparado, ao mesmo tempo em que o Rei assumia um tom rígido e carregado de fúria ao gritar: Capturem-no! Tragam-no vivo!

Theodore não deixou que Jon participasse da busca, no entanto. Com a ameaça eminente, ele ordenou que soldados protegessem seu monarca.

Enquanto os guardas avançavam por diversos becos e ruelas, dispersando-se em grupos de busca, Serafine correu até Ývela.

– Pelos Deuses, por que ele fez isso? – Serafine exclamou.

– Temos que ir, precisamos achá-lo!

– Onde está Jarek? – Serafine estacou por breves instantes, deixando seu olhar percorrer o espaço para tentar encontrá-lo. Quando Ývela a puxou novamente, soube que o guerreiro não estava mais ali.

– Os soldados receberam ordens para tirá-lo daqui, não

sei para onde foi. – a ondina tentou transparecer calma, mas havia em seu olhar uma grande onda de preocupação. – Essa história me parece estranha demais...

– O assassinato ou o recado carinhoso sobre a Luz? – A voz de Guillian as alcançou, e as duas ergueram o rosto para encontrar o Atyubru de pé sobre uma grande quantidade de caixas velhas. Com uma pirueta ágil, ele saltou à frente das garotas, desembainhando a pequena faca, para depois apontá-la para um dos becos. – Posso afirmar que o rapaz foi por ali, então queiram me seguir, senhoritas.

Enquanto ele saltitava velozmente na minúscula viela entre as casas, Serafine deixou sua mente concentrar-se na estranha percepção que a incomodara desde a partida do castelo. Ela se lembrava de que, em Líriel, emoções ruins significavam a presença de criaturas das Trevas.

Seriam os Sturian tais seres? Parecia a única explicação razoável para aquilo que tanto a confundia, então por que não se convencia completamente? E por que nunca sentira aquilo em relação a Jarek?

Talvez ainda tivesse fé de que os Amaldiçoados fossem como seu guardião... Estava tentando confiar em almas desconhecidas, utilizando-se de razões sentimentais. Apesar de acreditar no equilíbrio entre Sombras e Luz, no entanto, vinha se decepcionando ao notar quão mais numerosa podia ser a força obscura.

– Por que paramos? – Ouviu Ývela dizer, e então voltou a si.

– Sinto um cheiro estranho... – O felpudo retrucou, erguendo o rosto para o alto. Ele arquejou de repente, apontando a faca em uma direção. – Ali!

Serafine também viu, no telhado, a algumas casas de distância, uma figura iluminada pela luz da Lua. O sorriso sádico ainda se fazia presente no rosto que ela jamais esqueceria.

O homem ouviu o grito de Guillian e, enquanto o Atyubru e Ývela adiantavam-se para alcançá-lo por chão, prosseguiu sua corrida pelo alto.

Eles viram quando o Sturian saltou uma grande distância, com a suavidade de um pássaro voando pelo ar, e então voltou a correr. Foram breves instantes, mas Serafine quase pode ver Jarek realizando aqueles movimentos.

Quando viravam numa esquina, o Sturian desapareceu em pleno ar. A junção das casas era próxima demais para ele ter saltado, e a altura era suficiente para que os três enxergassem seus movimentos, o que não explicava o seu sumiço. Serafine franziu o cenho, enquanto Guillian e Ývela continuavam a correr – o felpudo tinha certeza de que era um truque, qualquer coisa envolvendo as Trevas, mas Serafine não estava certa disso.

Algo em seu subconsciente a mandava ficar.

E qual foi a sua surpresa quando, ao virar para o lado, deparou-se com o homem alguns metros á frente, no mesmo nível que ela.

O sorriso mordaz ainda estava em seu rosto, e ele estava incitando-a a alcançá-lo. Serafine crispou os lábios, estendendo a mão na direção da faca em seu cinto, e o homem seguiu o olhar. Ele balançou a cabeça negativamente e com diversão, para depois correr na direção contrária, deixando uma nuvem de poeira para trás.

– Ývela! Por aqui! – Serafine berrou, acelerando sua corrida para não perdê-lo de vista. Logo, mais passos ecoaram pela rua, e ela sabia que seus guardiões estavam em seu encalço. Podia avistar o vulto do homem, movimentando-se tão rápido quanto o vento gelado que soprava pelas largas ruas de Miragem.

Ela invocou o espírito e seu braço esquerdo estremeceu pela resposta ao chamado.

Quando o homem virou outra esquina, já distante do centro da cidade, Serafine temeu que fosse tarde demais. Com suas forças despertadas, a morena deu um salto no ar e aterrissou com o punho em riste. Quando sua mão entrou em contato com o chão, uma onda de estremecimento seguiu-se a sua frente, estilhaçando a terra como se fosse um domo de vidro. O homem arregalou os olhos quando o tremor se aproximou dele.

Metros á sua frente, bem rente ao muro da cidade, estava uma solitária construção.

O homem havia parado nas sombras, deixando o rosto suficientemente exposto à luz da Lua, e então o sorriso que se abriu em seu rosto pareceu á Serafine quase bestial. Ele saltou no instante em que o chão tremeu debaixo dele. E desapareceu em pleno ar.

Serafine não teve tempo de agir. No momento em que ele sumiu, engolido pelas sombras, uma menina saiu de dentro da construção, assustada pelo fraco tremor de terra.

Soldados começaram a sair do beco pelo qual Serafine viera, e a garotinha congelou em pânico.

Outras pessoas apareceram atrás dela, mas notava-se que não eram suficientes para enfrentar a guarda real. Theodore avançou, pigarreando alto, o som ecoando em meio ao silêncio sepulcral do momento, e flechas e lanças foram miradas nas figuras encurraladas.

No braço de todos eles estavam expostas as tatuagens de dragão que Jarek escondera com tanto afinco. Provas de que eram descendentes dos traidores.

– Em nome do Reino Árido, o seu povo está condenado à prisão por descumprir a Lei que os condena ao exílio. – os soldados adiantaram-se até os prisioneiros. – Escoltem-nos até o Rei. – Theodore ordenou, baixando um olhar sucinto para sua aprendiz. Serafine não soube exatamente como reagir, mas repulsa a tomou quando os guardas passaram a arrastar aqueles que resistiam. Quando um deles puxou uma garota pelos cabelos, Serafine avançou furiosa.

– Não. – Theodore a interceptou. – Eles são criminosos. A Lei é a Lei.

Ela encarou seu Mestre em choque, e se afastou dele em seguida. Marchou atrás dos soldados com a mente longe dali, incapaz de lidar com a confusão da cena a sua frente.

Na praça, uma multidão estava reunida em volta do Rei. Quando os Sturian começaram a chegar, Serafine viu Jon retesando-se e encarando seus lordes com ansiedade. Quase como se não soubesse como agir. As pessoas da cidade começaram a gritar ofensas e jogar coisas nos prisioneiros, e ninguém tentou impedi-los.

Serafine engoliu em seco, passando pelas pessoas para se aproximar de Jon. Havia tanta coisa errada naquela cena que ela podia sentir o espírito se revirando em sua consciência.

Uma mulher colocou-se a frente do grupo capturado. Serafine a observou, impressionada como seu olhar exibia calmaria em relação à situação em que seu povo se encontrava. Sua postura desprendia poder.

Ela tinha pele bronzeada e rosto austero, com o peso de talvez cinquenta anos em suas costas. Os lábios cerrados numa linha reta mostravam tensão, e o modo como arqueava as sobrancelhas exibia preocupação. Os cabelos acobreados eram fartos, compridos e estavam soltos sobre seus ombros.

Apesar de tudo, foram seus olhos que capturaram a atenção de Serafine. As íris azuis eram escuras, tão escuras que pareciam púrpuras, e denotavam mistérios inimagináveis. Eram idênticas às de alguém que a garota bem conhecia.

Os olhos de Jarek.

Quando foi exigido à mulher que se apresentasse ao conselho real, ela o fez com determinação na voz:

– Eu sou Leyona Hargon, esposa do líder de meu clã e governante temporária dos Sturian. Como tal, ofereço nossa redenção. – ela suspirou pesadamente, erguendo aqueles olhos marcantes para o Rei. – Só peço à sua majestade que tenha clemência com nossas crianças. Não os coloque em celas ou os condene à morte. São apenas almas jovens, não tem... – A multidão vaiou.

– Calada! Sua apresentação foi feita, o Rei cumprirá com seu dever. – Lorde Klaus quem exaltou aquilo, pomposo e frio como sempre. – As crianças são tão amaldiçoadas quanto você. – Desta vez, a multidão uivou eufórica.

– Vossa Graça, por favor... – Outra mulher, que carregava um bebê rechonchudo, implorou ao Rei, colocando-se de joelhos perante Jon. Ele arqueou as sobrancelhas, perturbado por aquela imagem. Serafine mirou as pessoas ao seu redor, mas não encontrou piedade em seus olhares. – Não machuque nossas crianças, eu lhe imploro.

– Jon... – A voz de Ývela soou suave e calma, e ganhou total atenção do monarca. – Não precisa prender as crianças, elas...

– Besteira! – Klaus retrucou indignado. – Vai livrá-los da sentença que seu ancestral determinou só por clemência? Eles virão a se tornar monstros um dia, meu soberano, pense com clareza! Só porque salvou aquele indivíduo – ele apontou para trás. – não precisa livrar os outros. Eles não são bons!

Quando o lorde apontou para o solitário guerreiro em meio à multidão, Serafine reparou em sua presença. Jarek, porém, só tinha olhos para uma pessoa, e ela o encarava com igual descrença.

A líder dos Sturian, Leyona, deu um passo em falso quando viu Jarek, e então seus olhos se arregalaram. Ela levou as mãos à boca quando o guerreiro se aproximou, flanqueado por dois soldados.

A cena decorreu de maneira muito rápida, e mesmo Serafine não soube explicar como conseguiu agir. Leyona correu até o rapaz, ansiosa. Os soldados viram aquilo como ameaça – já que Jarek encontrava-se perto demais do Rei – e miraram as flechas contra ela. Serafine sentiu a conhecida vibração passar pela extensão de seu braço e os ares á sua volta mudaram. O chão estremeceu no momento em que a mulher abraçou Jarek, e todos ao seu redor sentiram o espírito despertar. Os disparos feitos pelos arqueiros mudaram de direção e cravaram contra paredes, barracas e telhados.

A terra tremeu por toda a Cidade Miragem.

Gritos e exclamações de confusão se seguiram enquanto o povo se desesperava pelo fenômeno incomum. O comando obedecido pelo elemento foi imediato, como se seu espírito o dominasse por completo.

Theodore sustentou o Rei de pé, mas encarou fixamente para Serafine, assim como todos os outros presentes. Havia um pouco de orgulho no rosto do centauro, ainda que ela não tivesse olhos para ele.

– Ela não vai fazer mal ao Rei! – Serafine exaltou aos guardas caídos. Olhares assustados foram a resposta a isso. Serafine mantinha a atenção sobre a expressão grata de Leyona, que se mantinha de pé graças ao abraço de Jarek. – Ela só queria abraçar o filho! – A escolhida gritou para que todos ouvissem, estarrecida pela reação das pessoas ao seu redor. Era assim então. Era assim que os excluídos eram tratados.

Não houve tempo para reações, no entanto. Uma dor terrível dominou sua cabeça, e Serafine caiu de joelhos aos berros. Já imaginava que aquilo iria acontecer, mas foi tão veloz que nem lhe deu chance de se preparar. O feitiço feito pelo Rei não funcionava mais.

Jon lhe dissera que, com o tempo, aquela barreira protetora em sua mente iria enfraquecer, e Serafine grunhiria de raiva se pudesse. A proteção tinha que ter se esgotado exatamente naquele momento?!

Todo o seu mundo foi engolido por uma agonia sem fim, e ela já não conseguia distinguir pesadelo de realidade. Alguém a sustentou, mas Serafine não ousou abrir os olhos. Podia sentir a presença deles. Sentia o frio emanando das almas, esperando ao seu redor para aterrorizá-la. Sabia que eram mais do que um.

Dezenas. Talvez centenas.

Os fantasmas estavam ali, e ela nada podia fazer para espantá-los.

– Serafine... – Mahiry. Não, ela não. De novo não. A dor se tornou mais forte ao mesmo tempo em que Serafine desfalecia.

Então alguém tocou sua cabeça e a agonia se foi. Ela sabia que Jon estava ali, mas mesmo assim demorou a conseguir abrir os olhos – ou talvez tenha sido rápido, o torpor de dor tirara-lhe a razão -, quando o fez, a garota encontrou medo para onde quer que olhasse.

Aqueles que conheciam seus poderes estavam preocupados, e aqueles que a haviam acabado de conhecer – ou mesmo os lordes do Sul, que desconheciam o fato de ela ser a escolhida – demoravam-se em expressões de horror.

Toda a Cidade Miragem a observava como se ela fosse aquilo que tanto temia. Uma aberração.

– O que... Quem é você? – Foi o irritante lorde do Sul, Hammel, quem exclamou. Serafine se viu erguida por Jon e recebeu o apoio dele. A morena engoliu em seco, pronta para não se deixar abalar, mas outra voz respondeu por ela:

– Ela é a escolhida. – Serafine encarou Luke, encontrando fascínio naqueles olhos claros. – A esperança de Warthia. – Ele lhe fez um aceno respeitoso com a cabeça e foi imitado por seus lordes. Serafine sorriu suavemente, surpreendida pela atitude dele, mas, principalmente, por seu olhar.

As pessoas ao seu redor soltaram exclamações de alívio e de satisfação, mas ainda pareciam assustadas. Com medo do desconhecido.


Capítulo 20

Ponderações

 


A CIDADE MIRAGEM ESTAVA envolta no silêncio sepulcral. A praça, cujo pátio cheio de rachaduras precisaria de uma bela reforma, estava vazia, as luzes das casas apagadas, e o único barulho perceptível além das respirações dos soldados era o do vento soprando ao seu redor.

A alvorada se aproximava, mas não trazia a mesma sensação boa do dia anterior; o povo estava rancoroso. Eles queriam vingança. O assassino havia desaparecido, mas o resto do clã Sturian ainda estava ali. Se não podiam culpar um dos seus por aquele terrível incidente, então todos pagariam por descumprir a Lei.

Serafine abraçou os próprios braços quando uma brisa gelada passou por ali. O vento persistiu por longos instantes, de maneira nada natural. Fraca dor vibrava em sua cabeça, preocupando os pensamentos da morena.

Ela estava parada na esquina da estalagem, involuntariamente a espera da aparição de alguma alma penada. O susto que tomou, porém, foi causado por um vivo.

– Atrapalho seus pensamentos? – Ela virou-se para o príncipe.

– Não. – Respondeu secamente. Franziu os lábios ao vê-lo rir, como se Luke não ligasse para o seu mau humor. – Quer me dizer alguma coisa ou vai ficar parado ai, alteza?

– Perdão por ser inconveniente. – ele fez uma mesura. – Só queria dizer que fiquei impressionado com a demonstração de seus poderes mais cedo. – Luke comentou, e quando Serafine o encarou, notou que os olhos do príncipe estavam fixos no céu. As estrelas marcavam o manto negro da noite com seu brilho, e era o mesmo brilho dos olhos dele. – As pessoas reagiram mal a eles.

– E como deveriam ter reagido? – Ela rebateu.

– Maravilhados, talvez. Foi um pouco assustador sentir o chão tremer daquele jeito, mas vê-la fazer isso... Foi fascinante. – Serafine apertou os lábios, sem conseguir acreditar no príncipe. Uma pessoa impressionada contra centenas amedrontadas. Não havia equilíbrio ali. – Desde que a vi me perguntei se esses desenhos em sua pele eram, de fato, aqueles que marcavam a esperança. Senti-me um completo tolo ao duvidar que você fosse mesmo a escolhida. – Soou acanhando, usando pela primeira vez de um sorriso tímido. – Tem que desculpar o povo, senhorita. Poucos têm conhecimento a respeito da Profecia.

– Não há o que desculpar em relação a isso. – Ela replicou amargamente. Luke anuiu pouco convencido.

– Agora me diga, por favor... Como foi?

– Como foi o que?

– Descobrir que era a escolhida.

– Foi estranho. – ela deu de ombros. – Só descobri mesmo quando me encontrei com a Fênix.

– E ela é como nas histórias? – Os olhos prateados fixaram-se nos dela, e Serafine notou certa ansiedade em seu olhar.

– Minha Vila não tinha muitos livros sobre lendas divinas. O pouco que eu conhecia de nossa religião era o que minha mãe contava.

– Uma criatura nascida do fogo, com o olhar tão intenso quanto à cor de suas penas flamejantes. Dizem que os Deuses falam por meio dela. – Luke sussurrou tudo com paixão, e as palavras soaram tão emocionadas que trouxeram à Serafine lembranças de seu encontro com a gigantesca ave de fogo.

– Ela irradia uma espécie de calor aconchegante, como o abraço de um familiar ou o sorriso de um amigo. E emana poder, muito poder.

– Acho que eu tenho direito a uma pergunta. – Serafine replicou, ousando naquele momento em que estavam sozinhos. Viu Luke arquear as sobrancelhas e esperou que ele retrucasse qualquer coisa, mas ficou surpresa ao ver que ele concordara. – Não me julgue mal ou excepcionalmente atrevida, mas por que viajou até o Oeste, alteza?

– Luke. – Ele replicou.

– Como disse?

– Me chame de Luke, por favor. – o príncipe apertou um pouco os lábios, ponderando sobre responder aquele questionamento. – Quanto à resposta para sua pergunta... Meu pai ordenou que eu tratasse de alguns assuntos políticos com meu tio, referentes a um acordo importante. – Ela recordou-se da noite em que presenciara o beijo entre o príncipe e Benídia e questionou-se quanto à política incluída naquele gesto, mas achou imprudente perguntar a ele qualquer coisa pessoal.

– Me disseram que os Reinos não mais comemoram juntos a Era dos Magos. – ele assentiu. – Por quê?

– Não sei lhe responder isso, se quer minha sinceridade. Os Reis talvez pensem de maneiras muito diferentes, por isso a dificuldade em se aproximarem tanto.

– Talvez. – Ela assentiu.

Notou que Luke ainda a encarava com crescente intensidade e sentiu-se encafifada:

– Por que está me olhando? – O príncipe pareceu perder o chão. Arregalou os olhos e virou o rosto, mas não conseguiu impedir que a menina visse suas bochechas avermelhadas.

– Desculpe.

Serafine arqueou as sobrancelhas.

– Eu... Eu só... – o rapaz balbuciou. – A senhorita é muito bonita, Serafine. – Ela agradeceu o elogio com um sorriso curioso.

– Ai está o sorriso que eu queria rever.

No momento seguinte, pessoas começaram a sair da estalagem. A comitiva do Sul passou por eles, adiantando-se até o celeiro onde todos os cavalos estavam repousando. Serafine notou aquilo e não precisou perguntar para receber a resposta.

– Estamos de partida.

– Já?

– O Sul nos espera. – Ele pareceu triste ao dizer aquilo.

– Desejo-lhes uma boa viagem então. – sem saber direito como se portar, Serafine estendeu a mão. O príncipe sorriu.

– Gostaria de lhe dar um conselho, Serafine. – Ele deu um passo à frente, encurtando consideravelmente a distância entre eles, e olhou ao redor, como se temesse estarem sendo observados. A garota ficou surpresa, principalmente quando o príncipe aproximou seu rosto para sussurrar de encontro a sua orelha: – Preste atenção às suas visões. Ouça atentamente o que elas têm a dizer. Costumam ser muito reveladoras, ainda que intrincadas por enigmas. – ele afastou-se e depositou um beijo suave na mão dela. – E... Sinto muito. – O pedido de desculpas a deixou confusa, principalmente pela melancolia na voz dele. Luke pigarreou. – Por não poder ficar mais. – Algo dizia a Serafine que o fim daquela frase não condizia com o início dela. – Espero revê-la em breve.

Luke afastou-se, adiantando-se até sua comitiva; enquanto assistia ao príncipe se retirando, notou que a outrora persistente brisa fria sumiu com ele. Serafine ficou sozinha por poucos instantes, até que uma figura correu em sua direção:

– Oh, milady, aí está você! Gostaria de requisitar sua companhia para encontrarmos certa ondina fujona, preciso da ajuda de Ývela. Jarek perdeu o controle.

– O que quer dizer? – Serafine retesou-se, esquecendo-se de tudo à sua volta.

– O rapaz foi detido pelos soldados. Dizem que ele espancou alguns ao vê-los maltratando sua família. – A morena suspirou pesadamente, mas sua voz mostrou determinação.

– Eu vou falar com ele. Não precisa chamar a Ývi.

***

Ývela estava sentada num canto bem afastado, tentando inutilmente ignorar a dor que assolava sua consciência.

Tinha bom senso quando se tratava de entender emoções, ainda que as suas ainda se embaralhassem o tempo todo. Nada podia fazer a não ser tentar escapar daquele fluxo de energia tão forte. E era ali, na solidão, que ela procurava por paz. A paz, porém, não lhe vinha.

Ela rezou aos Deuses para que não houvesse um banho de sangue. Para que Jon conseguisse ignorar a Lei e dar um jeito de salvar aqueles pobres indivíduos condenados.

No instante em que pensou em Jon, alguém apareceu para perturbar sua quietude, mas a figura inesperada a deixou mais curiosa do que brava:

– Importa-se?

– Não. – ela sorriu para Sibila, apesar de saber que a mulher não podia ver seu sorriso. – A comitiva do Sul já partiu?

– Despediram-se há pouco. O príncipe de gelo estava ansioso. – a voz sussurrante da mulher poderia assustar qualquer desconhecido, mas Ývela estava acostumada a ela. – Sinto que algo a perturba, minha amiga... Seu coração bate descompassado.

– São medos de alguém que nada pode fazer a não ser fugir. – ela respirou profundamente. – Sou inútil em discussões como a que se segue entre o Rei e seus lordes. Só posso rezar aos Deuses para que eles ajudem Jon a tomar a melhor decisão.

– E não seria você a melhor decisão? – Ývela voltou-se para o rosto impassível da mulher, e notou a indireta naquelas palavras.

– Jon não iria querer meus conselhos, Sibila. Ele é um Rei e, como tal, precisa que os nobres à sua volta o ajudem a decidir. É assim que funciona o Conselho. – A ondina retrucou.

– Um Rei também precisa do conselho daqueles que dominam seu coração. – Sibila sorriu com certa sagacidade.

– Além do mais... – Ývela prosseguiu, fazendo o possível para não se abalar com aquela afirmação. – Estou me mantendo o mais afastada que posso.

– Por que tem medo?

– Não sei.

– Você teme pensar no assunto, então teme mais ainda entendê-lo. – Sibila murmurou com sua voz rouca, e as serpentes em sua cabeça silvaram baixo. – Um coração clama por outro, mas esse outro ignora seu chamado. Ývela, querida... Você precisa escutá-lo.

– O que eu preciso é entender meu coração, e isso jamais vai acontecer. Ondinas não sentem como os humanos. – a loira bufou frustrada, fechando os olhos para ignorar o turbilhão de sentimentos que sempre a abalava ao falar sobre aquilo. Ela mentia para si mesma quando fingia não entender o que sentia pelo Rei. – Eu passei tanto tempo longe de meu povo que me apeguei aos humanos, mas não posso ser como eles. Não posso. Estou dividida entre dois mundos sem saber a qual pertenço.

– Seu coração sabe qual é o seu verdadeiro lugar. – o rosto mutilado da mulher voltou-se para a ondina. – Pode não ouvi-lo tão bem ainda, querida, e temo que o faça tarde demais. Sua alma confunde seus entendimentos, mas ouça com atenção: se não deixar a razão de lado, vai se ferir. Deve escolher logo, pois o Mago não pode esperá-la para sempre.

– Essa não é uma história de amor, Sibila. – Ela ergueu-se de onde estava, abanando as vestes para limpar a poeira. Em seu rosto, havia a mais fria das expressões. Mesmo os olhos, sempre brilhantes, escureceram-se. – Minha mãe deixou isso bem claro para mim. Você conhece a história, sabe sobre a minha maldição! Além do mais, tenho uma missão a cumprir...

– Pensa que a maldição a persegue. – Sibila sorriu mais ainda, para desgosto da ondina. – Mas só vai descobrir se experimentar. Vocês dois enfrentariam essa tormenta juntos, e nem o caos de milênios poderia impedi-los de se amarem.

Ývela suspirou.

– Experimente o desconhecido, ondina. Jon precisa de você, e você precisa dele. Uma guerra está para vir, e quando ela começar, amores serão destruídos. Não fique na eterna dúvida do que poderia ter acontecido se mudasse o rumo de suas escolhas.

Ývela ergueu os olhos para o céu, buscando algum sinal dos Deuses. Buscando algum sinal que iluminasse seu caminho, que a ajudasse em sua escolha. Ela sabia que antes da comemoração pela Era dos Magos, Jon precisaria de sua resposta. Só não sabia se estava pronta para decidir.


Capítulo 21

O conto do Lobisomem

 


O LUGAR ESTAVA UM completo breu, e Serafine teve dificuldades em se movimentar por ali. Aos tropeços, a garota prosseguiu sua caminhada, imaginando o quanto aquele corredor era extenso. Os soldados que montavam guarda do lado de fora haviam relutado em permitir sua entrada, mas Guillian foi sábio e astuto o bastante ao enganá-los, dando a Serafine chance de se esquivar sem que fosse vista.

Uma tocha foi roubada, mas não servia para iluminar todos os detalhes do terreno arenoso e irregular sob seus pés.

Segundo Guillian, Jarek havia perdido a razão ao ver o destino que tivera sua família. Ele fora obrigado a assistir sua irmã pequena sendo arrastada até uma cela estreita, como um animal selvagem, e a mãe lutando para que a menina não sofresse tanto. A situação não favoreceu em nada as emoções de Jarek, e não foi surpreendente saber que ele tinha se descontrolado. O guerreiro fora contido, mas Serafine ouviu quando um dos vigias lá fora murmurou sobre a medonha fúria nos olhos do Sturian, sobre como ele arrancou as correntes que um dos guardas usava para enjaular os prisioneiros e as usou contra os soldados.

Serafine, porém, não via nada de errado nas atitudes de Jarek. O tratamento que os prisioneiros estavam recebendo era digno de criaturas vis. Não foram eles a cometer o horrendo assassinato na praça. Eles não eram criminosos.

– Jarek? – Ela arriscou. O Sturian se manteve em silêncio, talvez ignorando a presença dela ou tentando não ter um colapso nervoso novamente. Serafine suspirou alto, o suficiente para deixar exposta sua impaciência. Deu alguns passos à frente e a luz alaranjada da tocha tocou numa figura ajoelhada. – Importa-se de conversarmos?

– Vá embora. – Jarek estava curvado, com o cabelo encobrindo o rosto. A camisa estava em farrapos pela luta contra os soldados. Serafine vislumbrou correntes de ferro presas à parede, suas algemas envolvendo os pulsos de Jarek com força o suficiente para machucar sua pele, e choque moldou sua expressão.

– Por que você está preso?

– Os lordes exigiram isso. Depois que perdi o controle, acabei rendido como meus familiares.

– Mas... – Ela mordeu o lábio com força, resistindo a lançar algum xingamento. Caminhou lentamente na direção do guerreiro, e parou o mais próximo que ousou. Não sabia se Jarek ainda estava instável, e tinha certeza de que, se ele quisesse, aquelas correntes não impediriam uma fuga.

– Com medo de chegar muito perto, princesa?

– Não estou com medo. – Ela retrucou, parando a frente dele para provar sua afirmação. Jarek não ergueu o rosto para encará-la, mas a tensão em seus ombros ficou evidente. Serafine apoiou a tocha num canto da parede e se ajoelhou para que seus olhos ficassem no mesmo nível. Ele se esquivou.

– Vá embora.

– Não.

– Pelo amor dos Deuses, Serafine, saia daqui.

– Eu sinto muito pelo que aconteceu – ela murmurou com sinceridade. – Não pretendia encontrar sua família... Eu só queria pegar aquele assassino. Sei que os outros não têm culpa de nada, sei que não mereciam estar presos. Sua mãe, ela... Foi muito corajosa. – A garota não sabia exatamente o que mais falar para acalmar o guerreiro, mas ao vê-lo erguer o rosto para encará-la, a esperança dominou sua mente. – Ývela disse que o Rei não quer condená-los à morte. Ao menos não todos. As crianças estão a salvo por enquanto, até mesmo sua mãe tem uma chance. Os soldados me garantiram que...

– E você acredita neles? – Ela ficou sem fala, notando a aspereza na voz dele. – Serafine, a primeira pessoa que eles vão matar é a minha mãe! Ela é a líder, é quem trouxe os Amaldiçoados para a cidade.

– Mas não fizeram mal algum...

– Um deles fez, o que significa que todos pagarão. – O moreno rebateu, mas mostrou-se surpreso quando Serafine ralhou:

– A consciência daqueles lordes tem que pesar em algum momento! Eles não podem matar tanta gente! São inocentes. – ela hesitou. – Ao menos até onde sabemos. E as crianças? Vão arrancar suas cabeças também? O único assassino é aquele homem e ele fugiu! Não faz sentido condenar a maioria pelo crime de um só. – cobriu o rosto com as mãos para esconder a frustração. – O que podemos fazer para ajudá-los? – ergueu o olhar para o guerreiro, encontrando um sorriso carinhoso em seu rosto. – Por que está me olhando assim?

– Não somos mais do que almas condenadas a destinos cruéis, princesa. – Jarek se aproximou, segurando suas mãos. – E você, Serafine... Sempre querendo ajudar aqueles que não podem ser ajudados.

– Eu luto pelo que acho justo. E acho justo lutar por você e pelo seu povo.

– O meu clã é um dos mais procurados nos Quatro Reinos. Os nobres do Oeste conhecem as histórias; se tivessem encontrado meu pai, o teriam matado no mesmo instante.

– Por quê? – Serafine procurou algo além de hostilidade naqueles olhos escuros. A luminosidade fraca produzia no semblante de Jarek uma emoção muito mais profunda, longe de qualquer outra que ele já havia demonstrado. – O que seu clã fez de tão ruim?

– Que tal se eu lhe contasse uma história, Serafine? O conto de um Lobisomem – a voz dele estava rouca. – Vou lhe explicar porque o meu clã é tão odiado em toda Warthia, e talvez com esse exemplo você entenda porque nos querem mortos.

– Nós, os Sturian, nunca tivemos um verdadeiro lar. Éramos nômades e, desde que a caçada foi ordenada, pouco depois da derrota de Sharowfox, mudanças foram feitas para a sobrevivência. Meus antepassados precisavam ficar longe das sedes do governo, pois o exílio era parte de sua punição... Quem, no entanto, ousaria sair desse mundo? Quem ousaria se aventurar oceano afora? Meu clã decidiu continuar no Oeste, buscando viagens longas e que despistassem qualquer caçador vagando pelo Deserto. Tudo deu certo no passar dos séculos. Membros eram mortos, mas a maioria resistiu.

Serafine imaginou que tipo de expectativa era aquela, a de viver fugindo, e sentiu-se ainda mais mal por eles.

– Meu pai ao assumir a liderança muito jovem, e se casou com a minha mãe, que abandonou a defesa do grupo para tomar o posto de matriarca. Eles então tiveram o primeiro filho.

Ao notar que Jarek não se detivera em nome, e muito menos comunicara ser o primogênito, Serafine surpreendeu-se.

– Dez anos depois ela teve a mim. Foi meu irmão quem me ensinou a lutar como o mais bravo dos guerreiros. Eu queria ser forte como ele. Ele era meu herói, Serafine. – Jarek sorriu tristemente. – Sanzur era meu herói.

A menção àquele nome fez Serafine arfar. A morena não soube o que dizer, nem mesmo como reagir, tamanho seu choque. Sanzur era irmão de Jarek?! Quase que como um flash, uma antiga memória voltou à sua mente: o bracelete de bronze agarrado ao braço de um monstro alto e ruivo. Um bracelete que lhe parecera tão familiar... Só agora conseguia comparar ao do seu guardião.

Era evidente que o desenho no de Jarek era diferente, mas a semelhança foi aterradora. Tudo fazia sentido agora. Até mesmo o fato de Sanzur estar sempre tão determinado a exterminar Jarek, e vice-versa.

Jarek assistiu ao seu reconhecimento, e anuiu ao pavor nos olhos da garota.

– Sanzur era outra pessoa naquela época. Era o nosso melhor guerreiro, o filho mais amado, o irmão mais querido... – Jarek cruzou as mãos, tensão evidente em sua postura. – Mesmo jovem, Sanzur agia com honra, como todo Sturian deveria fazer. Assisti orgulhoso quando ele recebeu a marca de nosso povo, e também o bracelete de bronze que o indicava como herdeiro ao trono do clã, e alguns anos depois, aconteceu o mesmo comigo. – Serafine instintivamente olhou para o adorno no braço do guerreiro, vendo o bronze refletir à luz da tocha. – Sanzur o melhor em tudo que fazia. Quando olhavam em seus olhos, diziam ver um futuro grande líder. Só que, diferente do esperado, ele não queria dar ao clã a paz que tanto desejavam. Queria continuar vagando por aquelas terras, buscando aterrorizar aqueles que violassem nosso território. Perdi a conta de quantos soldados reais ele impediu de se aproximar.

– Mas... a Lei. – Serafine replicou.

– A morte só deturpa a Lei da vida quando é causada a uma alma inocente. Não houve qualquer Sturian que, em batalha, ao derramar sangue, fosse afetado pela maldição. O que deu a meu irmão a chance de guerrear sem medo. – Jarek explicou. – Qual foi sua surpresa quando nossa mãe afirmou estar novamente grávida. As mulheres do grupo votaram em permanecermos naquele acampamento durante o tempo necessário para que o bebê nascesse, e assim elas também poderiam criar suas famílias em paz. Uma vila bem protegida havia sido edificada naquele local e dificilmente seríamos encontrados por qualquer guarda real. Durante os nove meses que se seguiram, meu irmão se afastou de nossa família, preferindo a solidão à nossa companhia. Foi naquela mesma vila que minhas irmãs nasceram.

“As gêmeas, Bree e Mynna, eram recém-nascidas frágeis e muito delicadas. Meu pai temeu por elas e decidiu que ficaríamos ali por mais algum tempo. Sanzur foi o único que votou por partirmos. – uma risada amarga nasceu dos lábios de Jarek, mas morreu logo em seguida. – Sanzur queria vingança, queria uma vida de mercenário; queria usar a guerra a favor de seus interesses mesquinhos, tudo isso para escapar da maldição... Mas as sombras já haviam começado a conquistá-lo. Só fui tolo demais por não tentar impedi-lo enquanto era tempo.”.

“Anos passaram-se em paz. Quando soldados se aproximavam demais do acampamento, alguns voluntários fugiam para atraí-los até outro lugar. Meu irmão, é claro, optava por lutar com eles sozinho... Então houve uma garota em nossa vila. Era uma escrava fugitiva do Sul. Conquistou o coração de meu irmão, finalmente tirando-o daquela solidão agonizante... – Jarek suspirou pesadamente. – Tive esperança, Serafine, de que Sanzur se aquietasse. De que deixasse aquela absurda vingança de lado e aceitasse a paz. Por algum tempo, a convivência dele com a garota pareceu surtir efeito as minhas preces. Ela era a luz que faltava a Sanzur.”.

“Nessa época, minhas irmãs completaram seis anos. Houve um horrível incidente envolvendo a garota, a que meu irmão amava. Bree e ela foram muito longe do acampamento, por uma peça que minha irmã quis pregar na moça. Soldados as encontraram, e a garota escondeu minha irmã para salvá-la. Executaram-na ao encontrarem a marca de escravidão em sua pele, mas não antes de torturá-la, por ela também ter a marca do meu povo. E Sanzur não pôde fazer nada para salvá-la. Quando a encontrou, já era tarde demais. Ver Bree ali, viva, enquanto o amor de sua vida estava morto... Eu deveria ter notado que, desde aquele dia, algo irreversível aconteceu. Foi depois disso que Sanzur partiu, sem deixar maiores explicações, alegando que tentaria encontrar um dos outros clãs...”.

As mãos de Jarek tremiam suavemente. Serafine cobriu-as com as próprias, tentando passar-lhe conforto. O olhar dele sobre o seu foi absolutamente grato.

– Comemorávamos a Era dos Magos numa noite, meses depois; as crianças estavam lá fora, brincando, e eu deveria estar tomando conta delas. Um minuto de distração foi o necessário para uma catástrofe se seguir. Gritos agudos cortaram a nossa alegria, e se afastaram conforme proferidos. Corri em sua direção, surpreso por não encontrar as crianças lá fora... Minha mãe gritava, incentivando quem quer que clamasse por ajuda a continuar indicando seu paradeiro... E então cheguei ao local do massacre. Corpos pequenos e frágeis espalhados por todos os lados, pescoços quebrados e sangue manchando o chão. Uma única criança estava viva em meio àquilo tudo, abraçada ao corpo de uma garota com o rosto idêntico ao seu...

“Nas sombras, bem ao fundo da vila, onde as rochas altas poderiam facilmente esconder seus semblantes, dezenas de olhos brilhantes nos encaravam de volta. Havia um único homem entre eles, com um sorriso sádico marcando o início de sua maldição. Sanzur ainda ostentava o bracelete de nosso clã. Havia traído o sangue que corria em suas veias. Meu irmão havia guiado os Lobisomens até ali.”.

- Corri atrás dele, Serafine. Mesmo ciente dos riscos, fui até ele, furioso. Sanzur me derrotou sem esforço. – Jarek afastou uma das mãos sem prestar muita atenção e tocou uma cicatriz na lateral do tronco. Serafine a observou debaixo da luz da tocha e imaginou ter sido um ferimento horrendo. – Ele me deixou viver para, no futuro, ter um oponente à altura. Ele me disse que “se ficar do lado da Luz trouxera tanta dor, então as Trevas o ajudariam na retribuição.”. – Jarek suspirou. – Eu jurei matá-lo. – prosseguiu; dessa vez mantendo seus olhos escuros fixos aos assustados de Serafine. – Jurei que o encontraria e o exterminaria. Eu havia falhado com minhas irmãs e não falharia com ele. As Trevas o haviam dominado, e eu o livraria disso. Salvaria o verdadeiro Sanzur.

– A notícia do massacre se espalhou pelos quatro cantos do continente, e mesmo os Reis ficaram sabendo do novo Amaldiçoado que havia integrado a matilha dos Lobisomens. Foi meu pai quem me incentivou a partir para vingar a morte de minha irmã. Notícias vindas de alguns piratas do Sul diziam que Sanzur era o comandante da maior matilha de Amaldiçoados. Eles serviam ás Trevas e passavam por vilarejos cometendo crimes atrozes. Viajei por muito tempo, mas só pelo Oeste e pelo Sul. Sanzur não se arriscaria tão longe. Ele se aquietou, no entanto. Sumiu depois de alguns meses de ataque, agindo como o silêncio que procede uma grande tempestade. Eu estava no Oeste, retornando para meu acampamento, quando fui capturado por soldados reais. – ele bufou e só então desviou o olhar, fitando novamente o chão.

– Não teve notícias da sua família desde então?

– Nem mesmo em Líriel. Tentei contatá-los, mas nunca consegui. Permaneci na cidade sagrada depois que a Ordem me aceitou como seu guardião, e fui ensinado pelos mestres élficos. Magia foi passada a mim, e quero usá-la para me vingar de Sanzur.

– Magia?

– Uma em especial. – ele sorriu. – O fogo combate as sombras, esse sempre foi o lema do meu clã. Lonel pareceu achar adequado resgatar isso de meu passado.

– Está me dizendo que pode controlar o fogo?

– Só posso usá-lo a meu favor. Não tenho poder dentro de mim suficiente para controlar um incêndio. Posso, no entanto, passar por ele se me ferir, ou criar fogo suficiente para me manter vivo em situações de risco. Os Sturian têm magia nas veias, afinal. – Serafine arregalou os olhos com a lembrança de quando Jarek passara pelas chamas para tirá-la de dentro da floresta, durante o ataque em Líriel.

Ela o encarou profundamente, encarou o medo em seu olhar e o desespero em sua postura. Jarek estava quebrando lentamente, o escudo de força ruindo frente ao pavor de ver a família sofrer, e Serafine queria ajudá-lo. Queria seu guardião imbatível de volta. Queria abraçá-lo, com medo que ele se perdesse no temor.

– Obrigada. – Foi tudo que ela conseguiu sussurrar, apertando com mais força a mão dele. Surpresa cruzou os olhos escuros do moreno, e ela prosseguiu: – Eu não sei se já parei para lhe agradecer devidamente. Agora que sei tudo que passou, talvez minhas atitudes tenham sido inapropriadas... Você continua sendo muito rude e teimoso, mas tem um coração puramente nobre. Não negue. – ela exclamou antes que ele pudesse replicar. – Sinto muito por tudo que você passou, e também sua família. Vou fazer o que puder para aliviar a sentença.

Jarek retribuiu o aperto na mão dela, e por um breve momento, Serafine sentiu o clima tenso dissipar-se. O guerreiro esticou o tronco, aproximando seus corpos, e usou a mão livre para afastar alguns fios de cabelo que caiam sobre o rosto dela.

– Obrigado por ter vindo até aqui, Serafine.

Ele não sorriu, e muito menos a garota. O coração dela ribombou mais forte contra seu peito. O toque quente sobre a pele de seu rosto a fez fervilhar, e Serafine acompanhou o movimento da mão de Jarek por seu maxilar, subindo pela bochecha e descansando no canto de sua face. Os olhos dele, minuciosos, descansaram sobre os lábios dela, e uma ansiedade notável evidenciou-se ali.

Assim como da primeira vez em que o vira, ela desejou poder mergulhar na imensidão daquele olhar tão enigmático.

Jarek abriu a boca para falar algo, mas desistiu. Serafine estava tão próxima que podia sentir a respiração dele contra seu rosto.

Inconscientemente, a garota o beijou. De leve, sutilmente, e então Jarek se inclinou, cobrindo a boca dela com a sua, o toque macio e acalentador.

Ele arrastou calor por sua pele, abrasador e viciante. Os dedos da menina contornaram o rosto dele, passeando por suas feições fortes. Jarek embrenhou as mãos no cabelo dela, enlaçando sua nuca, trazendo-a para si. O beijo foi forte e cuidadoso, mas rápido demais para ser aproveitado.

A porta ao fundo do extenso corredor abriu-se. Jarek afastou Serafine com delicadeza, colocando-se a frente dela.

– Viemos buscá-lo. – o soldado fez uma pausa, cingindo as sobrancelhas ao notar Serafine ali. Ela ergueu o queixo, desafiando-o. – Um dos seus será executado na Vila do Sol Poente. – A mesma localizava-se aos pés da Fortaleza do Dragão. Serafine dissipou as emoções que a haviam dominado e encarou Jarek, que tinha uma expressão de pânico.

– Quem? – ela indagou por ele. – Quem vai ser executado?

– Um dos anciãos. – o soldado deu de ombros, como se pouco se importasse. – O povo precisa de justiça e, não tendo o assassino entre nós, pareceu sensato escolher outro condenado.

Serafine queria brigar com ele. Queria socar seu rosto contra a parede e gritar com os lordes e com Jon por aquela injustiça. Mas o alívio no suspiro de Jarek a acalmou. Ao menos Leyona estava a salvo, por enquanto. A execução não poderia ser alterada, mas algo continuava a lhe dizer que era errado.

O espírito estava se manifestando sobre aquela situação. E foi então que Serafine tomou sua decisão. Tentar ajudar os Sturian, porém, iria se mostrar mais difícil do que ela imaginava.


Capítulo 22

Consciência Perturbada

 


ELA NÃO CONFIAVA NAQUELA decisão. Não confiava nos olhares. E principalmente, não confiava na sentença.

Quando Serafine saiu da estalagem e presenciou a estarrecedora cena em que o homem condenado à morte se debatia e implorava por misericórdia, o mal estar voltou até ela. Um pouco zonza pela força com que a dolorosa pontada espalhou-se por sua cabeça, e, mantendo uma das mãos apoiada na parede, ela voltou a encarar o Sturian.

O homem estava amarrado pelos pulsos e pelas mãos, com correntes pesadas e grossas que dificilmente poderiam ser quebradas. A comitiva do Rei já estava preparada para a partida.

A viagem duraria muito mais do que antes, e por isso precisavam partir o quanto antes – o calor e a luz do Sol ajudariam a manter os prisioneiros mais fracos.

O curioso, naquele momento, era a presença de outra figura silenciosa num dos cantos; Sibila viajaria com eles.

Haviam lhe dito que ela desejava estar presente na execução. O Rei, como grande amigo da mulher, assentira quanto a seu pedido.

– Uma situação complicada essa. – Serafine ouviu Guillian comentar e, ao encarar o felpudo, notou seu olhar desaprovador. – Os lordes não têm clemência nem com as crianças, pobrezinhas...

Serafine fitou as ditas crianças, e se arrependeu profundamente por ter feito aquilo: as amarras ao redor de seus pulsos finos eram cordas grossas, já que as algemas não caberiam, e além dos tornozelos, enrolavam-se em seus ombros e cintura.

– Jon...

– Ele não votou contra. – Foi Ývela quem murmurou. Sua expressão era dura e o olhar melancólico. – O conselho chegou à conclusão de que o tratamento deve ser igual para todas as idades.

Serafine franziu o cenho, controlando a própria língua. Seu âmago gritava em raiva.

Ao encarar o Rei, ficou ainda mais tentada a exaltar tudo o que estava sentindo. Jon montava seu corcel e a aparência doentia se alastrava por sua postura. O rosto estava abatido, mas ele mantinha o olhar firme. Um olhar que nada lembrava aquele atencioso que ela havia encarado dias atrás. O que há de errado com você, Jon?

Quando Jarek apareceu, com o rosto tomado por uma sombra arrepiante, Serafine temeu que ele perdesse novamente o controle. Dois soldados fortes e altos o escoltavam e mantinham seus olhos presos aos movimentos do guerreiro, prontos para impedir qualquer ação sua. Ela viu Jarek erguer o rosto para Leyona, e a mulher sorriu para o filho. O guerreiro recusou o corcel que lhe era oferecido e adiantou-se até a fila de presos, estendendo os pulsos para que recebessem uma amarra também.

– O que ele está fazendo? – Serafine exclamou estarrecida.

– O mesmo que sua família. – Guillian respondeu. – Aceitando o tratamento.

– Mas ele não é um criminoso, não pode ser preso. – ela replicou em completa indignação. Ao notar o olhar questionador do Atyubru, porém, compreendeu o que se passava. – Nenhum deles é.

Depois que todos os prisioneiros foram presos, o Rei despediu-se da multidão com breves acenos e incitou seu corcel a seguir o caminho. Os lordes partiram logo atrás, mas Serafine recusou-se a viajar no mesmo ritmo. Ela desceu do cavalo e pôs-se a caminhar ao lado deles, fuzilando com o olhar o soldado que tentou impedi-la.

Jarek encarou a morena com curiosidade, mas não teve o olhar respondido. Serafine estava perturbada pela confusão em sua mente e pela dor exposta ao seu redor. Ela encarou Mynna, esforçando-se para não demonstrar fraqueza, e compadeceu-se:

– Ei. – a menina lanceou um olhar irritado em sua direção; tão semelhante ao Jarek. – Você é Mynna, certo?

– Sou.

– Me disseram que você é uma grande guerreira. – As crianças perto dela anuíram, parecendo se esquecer de sua condição por alguns instantes.

– Ela já quebrou o nariz de um menino mais velho. – Um garotinho sussurrou. Serafine arregalou os olhos teatralmente.

– Você não parece tão forte para alguém desse tamanho. – Serafine brincou. Mynna aprumou os ombros.

– Sou muito forte. A força do meu povo vem do nosso espírito. – Explicou sucintamente. Serafine mostrou-se impressionada; ela ergueu os olhos para Jarek, que assistia a cena com uma expressão bem humorada.

– É mais forte que o seu irmão?

– Claro que sou! – Mynna não exibiu dúvida. – Você é amiga dele?

– Da minha parte, sim. – Serafine sorriu divertidamente. Ouviu Jarek rir, mas não teve coragem de encará-lo novamente; lembrou-se do beijo e do toque caloroso dele e lutou para não encabular-se.

– Essas marcas no seu corpo... Elas representam alguma coisa?

– Ela é a escolhida, querida. – Leyona, que acompanhava a cena com um olhar sereno, sussurrou para a filha. Serafine envergonhou-se ao ser alvo de tantos olhares repentinamente ansiosos. – Nossa futura salvadora.

– Ela podia nos salvar agora, não é? – Mynna retrucou. O coração de Serafine se apertou. – Podia nos ajudar a fugir daqui.

– Ela não pode. A luta dela é muito maior que a nossa. – Leyona abraçou os ombros da filha, sorrindo para Serafine. – Ela vai salvar o mundo.

Como poderia salvar o mundo se não conseguia salvar almas inocentes de um destino horrível? Serafine pensou sombriamente.

– Acho que você é forte o suficiente pra isso. – Mynna comentou casualmente. Serafine mostrou-se surpresa. – Para... Sabe? Salvar o mundo. – A morena sorriu, querendo dizer-lhe qualquer coisa animadora, mas um grupo maior de soldados se aproximou, ordenando que se afastasse dos prisioneiros.

Jarek encarou Serafine com compaixão, notando a raiva que aflorava dela.

A viagem prosseguiu em meio ao calor infernal daquele vasto terreno desértico. A vista que tinham das intermináveis dunas lembraram a Serafine sua primeira viagem por ali, ainda que soubesse quão próximos estavam da Fortaleza.

Os corcéis do Rei, de seus lordes e de alguns soldados da comitiva estavam tão à frente do grupo que em certos momentos eram obrigados a parar para que os prisioneiros não se perdessem.

As vertigens causadas pelos fortes raios de Sol começavam a parecer mais eminentes conforme o caminho era percorrido. Serafine passou todo o percurso com a mente avoada, mas consciente dos lamentos das crianças obrigadas a caminhar sem descanso, e também das mães que viam seus filhos sofrendo tanto.

Quanto mais tempo se passava, mais aqueles sons se tornavam insuportáveis. Serafine sentia a cabeça latejar e, para sua infelicidade, não tinha consigo qualquer poção para aliviar a agonia. Não conseguiria alcançar Jon para pedir-lhe ajuda, e tampouco o faria. Estava com raiva pela frieza com que ele vinha tratando aquele assunto.

Serafine sentiu que aquela cena estava mexendo com seu espírito de uma maneira avassaladora, e temeu perder o controle. Temeu que seus poderes despertassem e, com isso, acabasse cometendo alguma loucura.

O Sol se aproximava da linha do horizonte quando as montanhas ficaram evidentes ao fundo da paisagem. O Rei e sua comitiva já haviam partido na direção da fenda entre as montanhas menores. Serafine sentiu seu coração se comprimir ao ouvir os murmúrios de desespero do homem prestes a ser executado. Por que eles permitiam aquela injustiça? Por que não caçar o verdadeiro culpado, em vez de condenar outro a morte? Ela fechou os olhos por alguns instantes. Estava agora em uma terrível encruzilhada, onde os caminhos a levavam a uma incerta escuridão.

Sua consciência clamava por justiça, mas que justiça era essa?


Capítulo 23

A Execução

 


A GAROTA ESTAVA QUIETA, parada num canto afastado da multidão. Ao seu lado estavam dois de seus guardiões, igualmente silenciosos e sérios. O Rei estava próximo dos lordes, e todos aguardavam enquanto o condenado era trazido. O povo havia se reunido quando o monarca anunciou sua chegada, e o longo discurso proferido por ele elevou a população. Eles também desejaram a morte do Sturian.

– Gostaria de poder visitá-los com um sorriso no rosto, mas a verdade é que há pesar em meu coração. A decisão de tirar uma vida nunca é fácil, mas depois da atrocidade cometida, pareceu-nos justo que vocês tivessem justiça. – Serafine cingiu as sobrancelhas ao ouvi-lo dizer aquilo. – Como dita nossa antiga Lei, o povo Sturian está banido das terras reais, e devem vagar no exílio. Estavam eles, porém, em Cidade Miragem e, por causa do assassino, encontramos todo o seu clã. Suas sentenças serão anunciadas aqui assim como para o todo o Reino assim que o Conselho se reunir na Fortaleza, mas, até lá, a única que de fato será proferida é a de hoje: eu, Jon Tytos, Rei das Terras Áridas, condeno o assassino à morte! – A população o ovacionou com palmas, como se aquilo se tratasse de uma celebração. Se Jon se perturbou com aquilo, não deixou transparecer; seu rosto era uma máscara de rígida frieza.

Serafine ficou boquiaberta, mas ninguém pareceu surpreso. Jon não podia dizer que aquele era um homem inocente. O povo queria sangue pelo assassinato, e eles teriam. Não precisavam saber que o homem a ser morto não era o responsável pela atrocidade.

No centro da praça havia espaço para que um palanque de madeira fosse erguido. Era nele que o condenado deveria ficar de pé, com os olhos vendados, para que um único arqueiro disparasse uma flecha. Ela era sempre mirada no coração do prisioneiro, como no passado havia sido feito com traidores do Primeiro Mago. O coração era perfurado e, no mundo dos mortos, o assassino carregaria para sempre a marca de sua traição. Mas ele não era o assassino. Ele era inocente.

As pessoas agora aguardavam silenciosas, pouco incomodadas com a vista tão ampla de uma morte brutal. O seu Rei o havia julgado, então os Deuses concordavam com isso.

Enquanto o palco era montado, Serafine sentia a dor em sua cabeça aumentar de maneira torturante.

Não havia avisado aos seus guardiões sobre ela, mesmo sabendo que deveria, pois algo a mantinha quieta. Uma força que nem ela conseguia controlar a dominava lentamente, sem deixar evidência de que a garota estava sucumbindo. Se Serafine estivesse totalmente consciente, perceberia a maneira como seu coração acelerou, ou como seus olhos focavam cada detalhe de maneira nítida.

O espírito estava despertando.


***


Jarek estava parado ao lado de sua irmã, a assustada e séria Mynna.

A menina, mesmo consciente do que aconteceria e dos assustadores soldados se aproximando, assumiu uma postura defensiva.

Seu irmão mais velho reconheceu aquele instinto dela, assim como reconheceu o medo. Ela era só uma criança. Estava perdida em meio à dureza das leis.

Naquele momento, todos os membros do seu grupo, da sua família, se preocupavam com outra coisa. Mesmo sua mãe, ainda que abraçada à pequena menina, assistia o palco sendo montado. Soldados reais circundavam os prisioneiros, imaginando que a execução daquele criminoso pudesse ser usada como pretexto para uma fuga.

Jarek era o único atento aos demais detalhes, como olhares incertos e desconfiados trocados pelos soldados e a maneira com que a população encarava os Amaldiçoados. Todos exibiam temor e asco.

O guerreiro até chegava a compreendê-los, pois as histórias espalhadas pelas más línguas condenavam toda e qualquer boa ação realizada por um Sturian, mas não se impediu de odiá-las. Odiava a situação pela qual sua família estava passando. Odiava ter de baixar a cabeça e aceitar a sentença proferida a inocentes.

Leyona ainda tinha fé no Rei, por mais que o seu Conselho fosse formado por temerosos aos Sturian.

Jarek não podia afirmar que haveria piedade com seu povo; ele mesmo só estava livre por ser um guardião. Melhor... Só estava livre pelo intermédio de sua protegida. Se tivesse sido capturado em qualquer outro momento da vida, teria ocorrido como no passado – prisão e provável execução. O guerreiro bem se lembrava de antes... O haviam tratado como um verme, alguém que não merecia viver.

Mais de uma vez precisara de ajuda para livrar-se daquela maldita Lei. Ývela o havia libertado, e depois Serafine o havia salvado. Um sorriso cruzou seu rosto por breves instantes, onde o guerreiro se deu conta de que, sem aquelas duas garotas, não estaria ali.

Ele então se lembrou da promessa feita por Serafine sobre ajudar o seu povo, e sua memória contribuiu ao relembrá-lo da intensidade presente no olhar da garota. Jarek se lembrou da suavidade de sua pele, do rápido beijo que trocaram. Lembrou-se de como aqueles olhos grandes de cor quase dourada haviam sido consumidos por um brilho de determinação. Curiosamente, a maneira como eles se acenderam pareceu a Jarek diferente do modo com que aquela teimosa costumava encará-lo.

Foi como se emoções muito profundas a tivessem dominado. Como se a alma de Serafine tivesse sido abraçada por um turbilhão de fortes sensações, sensações essas que ela jamais havia exposto antes. Agora que ele parava para pensar, parecia-lhe errado. E seu guardião temeu isso.

Ele voltou-se para Serafine. Ela estava quieta, com o rosto tomado por uma expressão séria, mas tudo em que Jarek se concentrou foi o olhar. E quando ele percebeu a semelhança com a sua lembrança, talvez já fosse tarde demais.

Gritos de desespero anunciaram que os soldados estavam arrastando o condenado até o palco. A multidão abriu caminho, dificultando a visão de Jarek.

Serafine continuou imóvel, com os olhos fixos no horizonte. Jarek franziu o cenho ao ver que ela movia os lábios; estava murmurando algo.

Nesse momento, a brisa, até então suave, começou a ficar forte. Por mais que as pessoas estivessem atentas à cena, logo notariam a mudança nos ares.

Jarek sabia bem o que estava para acontecer. O espírito estava despertando.


***


Um grito alto cortou o silêncio no instante em que o arqueiro disparou, e a flecha errou o alvo. O condenado tombou no chão, gritando em dor pelo ombro perfurado.

O vento rugiu e o chão tremeu, respondendo a outro grito som estridente. Todos se viraram para a figura que o proferira, e avistaram a escolhida repentinamente ensandecida.


***


Jarek desvencilhou-se dos soldados, aproveitando o caos que causado pela fúria da natureza ao seu redor. Com rapidez, avançou até Serafine. Ela, por sua vez, cambaleava na direção do condenado, repetindo ensandecida “Não o matem!”.

Ele precisava alcançar Serafine antes que seus olhos assumissem aquela coloração pálida. Se o espírito chegasse a dominá-la por completo, ninguém poderia impedir uma catástrofe.

Enquanto Jarek corria até a protegida e as pessoas davam passagem para a garota louca, o pôr-do-sol desapareceu.

Nuvens escuras cobriram o céu ao mesmo tempo em que fortes trovões ribombaram ao fundo. Jarek encarou aquele espetáculo da natureza com assombro.

Ele alcançou Serafine antes que ela subisse no palanque, ao mesmo tempo em que o arqueiro dirigia-se ao condenado, com a segunda flecha preparada para o disparo. Jarek assistiu ao desespero do Sturian enquanto se arrastava, numa vã tentativa de fugir; Serafine lutou contra seu aperto, usando de sua força sobre-humana para esmurrar seu guardião.

– Não o mate! – Ela gritou.

Outras duas mãos ajudaram Jarek a conter a garota. Sibila, a mulher dos cabelos de cobra, colocou-se á frente da escolhida e segurou seu rosto. Seus dedos apertavam-se contra o rosto de Serafine, tentando mantê-la quieta.

– Não o deixe fazer isso! – A voz que vinha da morena não era a mesma de sempre, e seus gritos misturavam-se ao ribombar alto dos trovões. – Ele é inocente! É uma armadilha! – Jarek arrastou os olhos até o soldado, que encarava Serafine como quem contemplava uma louca. Míseros segundos decorreram entre os gritos dela e o segundo tiro, e então o Sturian foi morto, a flecha atravessando seu peito.

– Não! – O chão tremeu violentamente e a tempestade assumiu ares perigosos, acompanhando o rugido de desespero de sua controladora.

Jarek e Sibila não conseguiram conter a garota, que se esquivou quando o chão debaixo deles vacilou. As pessoas gritaram e tentaram se arrastar para longe, desnorteadas pelos tremores.

Uma só pessoa permaneceu de pé.

Serafine voltou-se para ela como no dia em que confrontara o avatar de Sharowfox; havia fúria em seus olhos, e um brilho pálido começava a colorir as íris de ouro.

– Serafine! – a voz de Jon ficou mais forte em meio à tempestade. – Pare!

Em resposta a ele, uma chuva torrencial começou a cair sobre eles, encharcando-os em questão de segundos. Os dedos de Serafine trilharam a água e ela acompanhou seus movimentos, respondendo à dominadora. Jarek viu Jon hesitar, mas então suas mãos se coloriram em um tom arroxeado, e a magia respondeu ao Mago.

O Sturian raramente temia alguma coisa, por mais que ela parecesse absurda. Jarek gostava de zombar daquilo que sempre amedrontava os outros; costumavam dizer que a sua bravura excedia os limites da razão.

Ultimamente, o medo pela família o dominava. Agora, porém, o medo por Serafine sobrepujou qualquer outra emoção.

Como tanta coragem cabia em uma pessoa rodeada por um destino amedrontador? Serafine aceitara ser a escolhida. Aceitara o fardo que viria a carregar até o fim de tudo. E Jarek sabia, mais do que ninguém, o quanto aquilo iria perturbá-la.

Então o guerreiro, que nunca demonstrava medo, deixou-se devastar por ele. Aquela não era Serafine. Não a sua Serafine. A única coisa que se passava em sua cabeça naquele instante era poder livrá-la do que a controlava, poder libertá-la daquela insana explosão de poder.

– Para trás. – a voz do espírito se ergueu sobre a da garota. – Você está cometendo um erro, Mago.

– Não vou deixá-la machucar ninguém. – Do céu, raios estalaram até Jon, e ele os recebeu de braços abertos. Jarek puxou Sibila para longe, debilmente, por causa do leve tremor no chão debaixo deles, e a cobriu com seu corpo quando o Mago os direcionou até Serafine.

A chuva ao redor dela desapareceu e um casulo de energia branca ergueu-se ao seu redor. O impacto do feitiço foi forte, fazendo-a vacilar, mas não chegou a tocá-la. Só a enfureceu mais.

Serafine ergueu os braços e a água respondeu – cristais afiados congelaram em meio à chuva que caía e ela os mirou na direção do Rei. Jon pareceu impressionado, mas não com medo. Estendeu uma das mãos a sua frente e sussurrou alguma coisa, e então o mesmo casulo de energia que existia ao redor da garota cobriu o Mago.

Os pedaços de gelo estilhaçaram ao tocar nele, explodindo em todas as direções. Jarek não sabia se ficava impressionado com aquela luta ou se buscava abrigo, tal como os moradores da vila pareciam ter feito.

– Guardião! – Sibila esbravejou sobre o som da chuva e dos trovões. – Precisamos alcançar a escolhida!

Ótima hora para fazer isso, Jarek pensou. Com dificuldade, os dois puseram-se de pé. Serafine não estava muito longe, mas, debaixo do espírito, parecia distante por milhares de vidas.

Jon os avistou e pareceu entender o que Sibila estava fazendo. Ele ergueu uma esfera de luz sobre a palma da mão e fez um sinal para que cobrissem os olhos. Quando a luz explodiu, Serafine gritou desnorteada e a conexão com o espírito estremeceu. Foi a chance de Sibila alcançá-la.

Jarek abraçou a escolhida por trás, prendendo seus braços. O corpo dela estava fervendo debaixo do seu e, se não fosse o medo e a adrenalina, ele a teria soltado imediatamente. Sibila parou a sua frente, segurando o rosto de Serafine entre suas mãos, e começou a murmurar coisas na língua antiga. Conforme ela recitava aquilo, Jarek sentiu Serafine tremendo debaixo dos seus braços.

Ele implorou aos Deuses para que aquilo acabasse. Implorou para que eles devolvessem à sua protegida o controle, para que ela recobrasse a consciência. Mais do que qualquer coisa, implorou aos Deuses para que a livrassem do terrível fardo.

– Serafine... Controle sua ira.

Sibila sussurrou com rouca profundidade:

– Enfrente o espírito, recupere o controle. Você deve voltar...

A reação foi lenta, mas toda a resistência do espírito parou conforme Sibila falou com ela. O casulo protetor ficou menos intenso e de repente se extinguiu. A tempestade diminuiu lentamente, abrasada pelas palavras mágicas de Sibila. Por fim, de repente, as pernas da garota perderam as forças. Jarek a impediu de desabar.

Diferente de antes, Serafine não desmaiou. Embora fraca, ela conseguiu erguer o rosto trêmulo e fitar o céu. Jarek sabia que, caso a encarasse, veria seus olhos novamente sãos.

A ventania cessou subitamente, assim como os trovões. A chuva e as sombrias nuvens desapareceram do céu. Os moradores, refugiados em becos e em casas, saíram aos poucos, estarrecidos. O cenário ao seu redor parecia o do fim dos tempos. Telhados foram arrancados pela força do vento, o palco para a execução havia sido arrastado longe. O chão era uma colcha de retalhos, estraçalhado pelo terremoto.

Jon, ainda de pé, encarou Serafine com profundo alívio. O Mago estava encharcado da cabeça aos pés, mas a expressão doentia havia sido substituída por uma inflada em poder. Jarek temeu olhar nos olhos do Mago mais do que por alguns instantes, tamanha força que ele emanava.

Foram poucos minutos, Jarek reparou. Poucos minutos entre o primeiro tiro e o descontrole de Serafine, mas pareceu-lhe que o tempo havia parado.

– O que houve? – O coração dele se apertou ao ouvir aquele murmúrio amedrontado. Os olhos dourados de Serafine brilharam em lágrimas contidas. Lágrimas de pânico.

– Tire-a daqui, guerreiro.

Ývela correu até eles e Guillian a acompanhou. Estavam estarrecidos e despreparados para o que haviam vivenciado, mas foram ajudá-la. Jarek não pensou duas vezes antes de obedecer à Sibila.

Ele ergueu Serafine nos braços, enquanto Ývela e Guillian dispersavam o povo para os lados, e seguiu para qualquer canto afastado daqueles olhares curiosos, murmurando para a garota: “tudo ficará bem, eu prometo.”.


Capítulo 24

Reunião das Sombras

 


LUKE SE MANTEVE AFASTADO da multidão, encostado a uma alta pilastra. Seus olhos, brilhantes como lâminas de prata, fixavam-se numa única figura ao fundo do grande salão.

O Rei havia reunido todos os seus súditos para um importante anúncio. Criaturas de diversos cantos do Sul vieram ao seu chamado, ansiosos para saber as novidades que tanto motivavam seu governante; Luke havia chegado rapidamente da viagem ao Oeste – com uma pequena ajuda das Sombras. Com asco, ele recordava-se da maneira como fora abraçado pela escuridão.

Agora, estava parado naquele canto, longe o suficiente para que visse seu pai e ele não o visse, esperando o pronunciamento. O rapaz desejava retornar para seu quarto e tirar uma longa noite de descanso. Mas não, não podia fazer isso. Provavelmente sonharia com ela. Sonharia com seu sorriso caloroso e com a absurda intensidade de seus olhos dourados. Oh Deuses, pensou o príncipe, por que a colocaram em meu caminho neste momento?

No mesmo instante em que pensou aquilo, uma figura postou-se ao seu lado, tão silenciosa quanto uma brisa. Luke sentiu-se abraçado pela Feiticeira.

– Fico feliz que esteja aqui. – Nayara sussurrou contra sua pele, delineando as palavras com sedução. – Seu pai ficará satisfeito com seu desempenho nessa missão.

– Espero que sim.

– Eu o verei mais tarde... – Nayara avisou, segurando o queixo dele para que a encarasse. O aperto era possessivo e seus olhos azuis queimavam de desejo. – Meu príncipe. – E então o beijou, um beijo furioso, como o que Luke havia sentido dias atrás. Ele se lembrava de que, mesmo em um lugar completamente diferente, Nayara conseguira se mostrar intensa.

A Feiticeira se afastou, usando o sorriso malicioso, e andou na direção do corredor escuro, deixando para trás os sons de tecido farfalhando pelo chão.

Luke voltou a observar a reunião, fingindo ignorar a sensação sufocante que crescia em seu coração. Algo grandioso estava por vir. A maneira imponente com que seu pai agia sentado no grande trono – uma magnífica obra esculpida em gelo, com entalhes finamente trabalhados ao redor do assento – o perturbava.

Foi com ansiedade que ele viu o Rei finalmente erguer-se, silenciando os burburinhos que vinham da multidão. Os olhos do monarca dispersaram-se por diversos rostos e, então, ele encontrou Luke. O príncipe engoliu em seco, mas alívio o dominou quando viu o aceno positivo de seu pai – ele havia cumprido sua missão corretamente. O Rei estava satisfeito.

– Senhores! – gritou Maltrus, com sua voz rouca ribombando pelas paredes. – Devem estar se perguntando por que o convite foi feito... – Ele se calou, correndo os olhos pela multidão silenciosa, deleitando-se com sua curiosidade.

– Por que, meu soberano, convoca-nos aqui?

– Tenho um acordo a lhes propor! Um acordo que acarretará em grandiosas mudanças. – Maltrus explicou. – As sombras marcham em nossa direção carregando todo o seu poderio. O exército de Sharowfox, nossa Rainha, responderá ao meu chamado.

Luke estava concentrado nas palavras do pai e não percebeu uma figura silenciosa movendo-se em sua direção; quando sua irmã o puxou de lado, colocando-o contra a pilastra, ofegou de susto.

– O que houve? – Ele indagou num sussurro, consciente da voz autoritária do pai enquanto discursava aos visitantes. A princesa exibia em sua face uma expressão suave, mas seus olhos verdes brilhavam em desespero. – O que aconteceu?

– Você precisa vir comigo.

Elyna era seu nome. Era irmã de Luke apenas por parte do pai, já que a mãe do príncipe havia sido assassinada quando Maltrus descobriu sua verdadeira origem; uma criatura abençoada pela Luz não podia viver ali.

Elyna era uma flor em meio a um mar de espinhos. Tinha doçura e classe e um senso de bondade que contrastava com o Reino e as condições em que viviam. Seu rosto era de toda uma delicadeza agradável e o sorriso transpassava calmaria. Era muito apegada ao irmão por ele tê-la protegido tanto desde pequena e fazia o possível para ajudá-lo sempre que podia. Eram solidários um ao outro e comumente enfrentavam a tormenta de Maltrus juntos.

Luke assentiu quanto ao pedido para segui-la. Curiosamente, observou as vestes formais da irmã, muito mais finas do que as que ela costumava usar – o vestido de veludo com mangas compridas, adaptado ao clima congelante daquele Reino, caía lindamente sobre o corpo magro. O contraste da cor escarlate contra a pele pálida a deixava mais bela, principalmente se contasse a cascata de madeixas negras caindo sobre seus ombros. Os olhos verdejantes recaíram sobre as íris prateadas do príncipe com seriedade.

– Por que está vestida desse jeito? – Luke indagou.

– Papai me obrigou. Disse que eu deveria me arrumar para encontrar seus aliados. – Franziu os lábios rosados. – Além do mais, tenho quase certeza de que ele vai... Apresentar-me a alguns pretendentes. – Apesar do tom sério, Luke sabia o quanto ela odiara. – Tive que me arrumar.

– Você está muito bonita.

– Ouvi conversas de que nosso pai também pretende casá-lo. – Se a intenção da resposta era o choque, com certeza surtira efeito. – Ah, sinto muito!

– Eu já esperava – Luke confessou. – Ele me quer no trono, e quer ao meu lado alguém de sua confiança. Jamais deixaria que escolhesse minha esposa. – O príncipe suspirou pesadamente, reparando que os corredores pelos quais estavam seguindo acabariam levando-os para o lado de fora.

– Nunca achei que se importaria... – Elyna comentou, parecendo um pouco arrependida das palavras. Seus olhos, da cor de pedras preciosas, exibiam ligeira melancolia. – Não me leve a mal, Luke, mas você nunca se apaixonou. Ao menos não que eu saiba.

– É verdade. – Ele anuiu. O rosto dela voltou à sua mente, e todas as suas terminações nervosas responderam á lembrança. – Talvez nosso pai tenha razão sobre casar-me com uma desconhecida... Ele sempre nos explicou as complicações do amor.

Olhos dourados voltaram a perturbá-lo.

Teria o destino sido tão cruel consigo? Já não bastavam suas outras preocupações, agora seu coração viria a atrapalhá-lo também?

– Para onde está me levando? – Luke perguntou, situando-se num dos locais mais longínquos do Castelo.

A Fortaleza de Gelo estava cada vez mais assombrosa, pois as Trevas se faziam presentes desde a chegada das Feiticeiras.

– Papai não pode descobrir que sabemos disso. – Elyna sussurrou ao parar em frente a uma porta. A passagem levava ao Jardim Sul, o mesmo onde se localizava o labirinto de pedra.

A neve cobria cada centímetro da paisagem lá fora, um manto branco espalhado até o fim do labirinto de pedras.

O que mais chamou a atenção do príncipe foi a escuridão marchando ao fundo, com vozes ecoando um grito de guerra. Aquele exército vinha de terras afastadas; vinha se juntar às sombras. Sobre eles, no céu, uma figura draconiana, moldada em Trevas, voava para o castelo de gelo.

Luke arregalou os olhos enquanto encarava a irmã, que, no momento, anuía ao seu choque, e então se desesperou. O fim de Warthia estava marcado para começar.


Capítulo 25

A Protetora do Segredo

 


SERAFINE SENTIA-SE IMERSA num furacão. Seu corpo estava fraco, um peso sufocante pressionava sua cabeça e seus olhos não aguentavam ficar abertos. Porém, a voz de alguém a trazia para a consciência. Voz que, no momento de cansaço, soava incrivelmente irritante.

– Querida, já passou. – Era Sibila, Serafine constatou. – O espírito está descansando novamente, levante-se.

– Não consigo.

– O que há de errado com ela? – Outra voz conhecida, vinda de longe, chegou aos seus ouvidos. Ývela, talvez?

– O cansaço depois de uma convocação é muito forte – Sibila explicou. – Mas precisamos mantê-la acordada.

– Milady... Pode me ouvir? Abra os olhos, seja forte!

– Não. – Serafine retrucou. Subitamente, o que fez com que arregalasse os olhos, seu tronco foi erguido e então alguém a manteve sentada. A garota conseguiu avistar Jarek logo atrás de si, segurando-a para que continuasse naquela posição. – Solte-me.

– Desculpe, princesa, tenho outras ordens.

– Bem... – Sibila começou a falar, e um sorriso discreto surgiu em seu rosto. – Essa não é a melhor maneira, mas, por enquanto, é suficiente.

– Eu não me lembro de nada! – Serafine exclamou com frustração. – Foi como um desmaio, eu não tinha consciência do que estava fazendo...

– Isso já aconteceu antes. – Foi Ývela quem falou. A ondina estava afastada, encostada contra a porta do cômodo em que se encontravam. Uma rápida olhada ao redor já mostrou a precariedade do ambiente, mas Serafine tinha mais com que se preocupar. O cansaço estava se tornando insuportável. – Lá em Líriel, quando ela enfrentou Sharowfox.

– É o espírito. – Sibila explicou. – Vocês todos sabem o poder que se esconde dentro dessa alma, e essa passagem de tempo só serve para fortalecê-lo. Quanto mais força Serafine absorve, mais o espírito ganha controle.

– Você sabe demais sobre o espírito para uma simples moradora de Cidade Miragem. – Jarek replicou com desconfiança.

– Mas é claro que sei! Estava com Lonel no dia em que a profecia foi feita. – Ela virou o rosto para Serafine, e a garota foi imediatamente bombardeada por uma antiga lembrança: quando estivera em Líriel, assistindo, pelas lembranças gravadas no livro, ao dia em que a profecia fora recitada, havia uma estranha mulher na presença do elfo. Uma mulher com um curioso turbante vermelho na cabeça. Serafine podia afirmar, chocada, que aquele mesmo penteado era feito de cobras vivas. – Eu estava presente em diversos outros dias importantes para esse mundo. Viajei por Warthia durante muito tempo antes de me instalar em Miragem. Depois que escapei do Sul, quis visitar esse continente sobre outra perspectiva... Meu olhar interior. A sensitividade que toda alma, humana ou não, possui em seu coração.

– Ótimo, muito poético, mas ainda não explicou sobre sua situação a par da profecia. – Jarek retrucou.

– Eu era muito conhecida por minhas profecias, idolatrada por um poderoso monarca e por minhas irmãs antes dele. Ajudei Lonel a transcrever as sagradas palavras e também a identificá-las. Sou uma protetora.

– O que é um protetor?

– Protetores foram escolhidos para guardar as palavras da Profecia em cantos diferentes do continente. Lonel, como profeta, vagou até Líriel e lá ficou. As outras almas esconderam-se, temendo que a descoberta de todas as palavras divinas pudessem prejudicar o futuro da escolhida. Sei que outro de nós ainda vive, mas está bem longe de nosso alcance.

– Mas eu ouvi a Profecia toda. – Serafine replicou, mas algo em seu âmago lhe ditou que não, não tinha ouvido. Lembrou-se da visão e do silêncio repentino que se abateu ao seu redor, apesar de Lonel ter continuado a falar. Como uma canção intrincada de enigmas, muitos escondidos para o seu bem, o elfo havia lhe dito. – Eu não ouvi a Profecia toda? Vocês esconderam alguma coisa de mim? De novo?!

– Serafine, querida, não pode culpá-los. – Sibila soou calma, ao contrário de Serafine. – É para o bem de toda Warthia que alguns trechos fiquem escondidos. Eu só pude memorizar alguns deles, enquanto os outros me foram tirados da memória.

– Por quê? – Serafine ralhou.

– Porque uma Profecia com tamanha importância não podia ser tratada com desmazelo. – Theodore, até então silencioso na entrada do cômodo, explicou. – Ninguém tem culpa de que apenas parte da Profecia lhe foi revelada; essa mesma parte foi escolhida por ser a mais importante. Sua mente estava confusa, e receber a informação toda não seria aconselhável...

– Isso não é justo! Eu sou a escolhida, não sou? Deveria conhecer o futuro que os Deuses escolheram para mim!

– Não é para ser justo, é para ser cauteloso. – Ývela adiantou-se, tentando suavizar a raiva que se tornava aparente nos olhos da protegida. – Serafine, você está sob muita pressão. Seu espírito, seus poderes, tudo isso somado ao fato da responsabilidade que você carrega... Mesmo antes de você nascer, os protetores estavam pensando no seu bem. Não podiam colocar todas as previsões divinas sobre seus ombros.

– Diga-me o que sabe. – a morena virou-se para Sibila, imediatamente assumindo uma postura rígida. – Quero saber as palavras que lhe foram destinadas. Diga-me o que ainda não sei sobre a Profecia.

– Não é assim que funciona. – Sibila franziu os lábios. – Devo meditar e me conectar aos Deuses antes... Se eu lhe disser, quebrarei meu juramento de sangue e a punição seria severa.

– Será que todos neste mundo fizeram um juramento de sangue que os impedem de me contar qualquer coisa? – A morena exaltou. O silêncio a respondeu. – Então me deixe convocar os Deuses... Talvez eu possa... – Serafine começou a exaltar, mas o cansaço voltou a derrubá-la.

– Vá com calma, princesa. – Jarek a segurou. – Seria bom se pudéssemos convocá-los sempre, mas a coisa toda é complicada. Você vai ter que esperar.

Serafine encarou Theodore, esperando que o Mestre lhe apresentasse uma proposta mais animadora, mas o centauro apenas anuiu à afirmação do guerreiro, e ela suspirou pesadamente. Foi então que Sibila colocou-se próxima de seu rosto, com as serpentes vermelhas dançando contra a sua pele.

– O que está fazendo? – Serafine exaltou em choque.

– Queria comprovar uma coisa.

– O que?

– Que sua essência não se perdeu.

– Que minha essência... Do que está falando?!

– Quanto mais forte for o espírito, mais perigoso se torna para seu portador. Seus olhos são a janela da sua alma. Quando o espírito ainda está acordado, há um resquício de prata em suas pupilas. Queria me certificar de que tudo estava bem.

– Ela está consciente? – Jon apareceu no recinto, e um sorriso cansado ergueu-se em seu rosto ao encarar Serafine. – Fico feliz que esteja melhor.

– Muito obrigada, majestade. – seu sorriso saiu fraco, constrangida por ter agido tão insanamente na presença do monarca. – Sinto muito por tudo. Eu perdi o controle.

– Não há nada que se desculpar. – Jon deu de ombros. – Eu é que preciso pedir desculpas por ter respondido ao seu descontrole daquele jeito. Só precisei me assegurar que...

– Tudo bem. – Serafine sorriu. – Eu entendo.

– A população foi controlada. Eles sabem quem você é e entendem que tenha se perturbado.

Serafine quase podia ouvir os sussurros que se espalhavam pela multidão, longe dos ouvidos do Rei: aberração.

– Serafine, gostaria de examinar sua mente, mas preciso de sua permissão. – Sibila sussurrou. A garota hesitou, mas depois de um olhar encorajador de seus guardiões, acenou positivamente.

A mulher esticou as mãos e espalmou-as rente ao seu rosto. Sua voz, normalmente amedrontadora, ficou mais suave. Serafine estremeceu, apoiando-se na cama, e sentiu quando Jarek cobriu a sua mão com a dele. Fechou os olhos, buscando relaxar.

– Curioso... Há algo em sua consciência. Alguém colocou um feitiço muito antigo e poderoso nela. É como um fio de prata, que a liga aos sonhos... Mas a está ligando a alguém.

Foi então que Serafine se viu numa situação semelhante a uma mais antiga, quando sua mente fora engolida por uma visão. Quando deu por si, não estava mais no próprio corpo, mas sim aprisionada num medonho calabouço, observando tudo por outros olhos.


Capítulo 26

Marca das Sombras

 


TUDO ALI EXALAVA UMA espécie de frio sobrenatural. Não como normalmente costumava se sentir ao entrar em um ambiente gelado; a sensação congelante vinha do medo. Serafine sabia que não era exatamente ela a sentir aquilo, pois reconheceu a cela onde estivera tempos atrás, mas o temor era tão real, tão palpável, que foi impossível ignorá-lo.

Ela daria qualquer coisa para fugir daquele calabouço sombrio e de suas paredes afiadas.

– Serafi... – Dentro da mente da mulher, cujo nome Ravenne voltou a sua memória, Serafine se surpreendeu com o contato. A voz dela estava rouca e aguda, e falhava como se o esforço de falar a ferisse. – Eles... Conv... – E então um acesso de tosse a fez parar, no que passos se aproximando da cela a calaram definitivamente.

Uma figura parou próxima às grades. Sua silhueta era esguia, mas estava escuro demais para ver seu rosto.

O recém-chegado entrou na cela, no que Ravenne tentou se esquivar. Agarrando-a pelos punhos, que estavam presos numa pesada corrente, ele a arrastou até a saída. A pedra áspera raspava sua pele, e Serafine sentia a dor daqueles ferimentos.

Enquanto passavam por entre as outras celas, Serafine avistou diversos rostos contra as grades enferrujadas. Havia ali todos os tipos de prisioneiros; desde os monstros até os mais simples humanos, fadados a permanecer naquele lugar assombroso por sabiam Deuses lá quanto tempo. Serafine precisava descobrir que lugar era aquele.

Os olhos de Ravenne fixaram-se repentinamente numa determinada cela, e seu corpo retesou-se – seria aquilo um aviso? Serafine observou aquele local escuro e sujo e notou que dentro dele havia uma mulher. Ela estava de costas e os ombros curvavam-se para frente numa postura derrotada. A prisioneira a encarou de soslaio, o rosto coberto por sangue seco e hematomas violentos.

Grímena.

Serafine arfou mentalmente, e teria arregalado os olhos se tivesse controle sobre eles. Grímena estava viva!

A garota desejou falar com ela, dizer que tentaria salvá-la, que descobriria onde estavam para voltar por ela, mas sua voz não lhe pertencia. Logo, o guarda havia prosseguido sua caminhada, distanciando-a da idosa.

Ravenne prendeu a respiração ao vislumbrar a porta que a levaria ao seu destino final, e Serafine temeu tanto quanto ela – tentou libertar-se daquela prisão mental, mas não conseguiu.

Dentro do local, os prisioneiros estavam presos de maneira a não conseguirem fugir ou sequer cogitar a ideia. Serafine agradeceu a Ravenne por ter desviado o olhar, já que apenas os gemidos e gritos de terror congelaram a sua espinha. A sensação de entrar naquela sala era muito pior do que ter ficado presa a cela.

O centro do salão de tortura era um círculo, onde se encontrava uma tábua vertical cheia de amarras. O esguio homem amarrou ali a prisioneira, atando suas mãos em duas tiras de couro cheias de espinhos. Se a mulher forçasse os pulsos, elas lhe perfurariam a carne. Seus tornozelos também passaram por aquilo, e uma coleira de ferro foi presa ao seu pescoço.

Serafine começou a debater-se naquela mente, desesperada para fugir antes que a tortura começasse, mas nada funcionou. Esperava que Sibila encontrasse algum sentido na cena que se seguia.

Serafine sentia que o medo da mulher nada tinha a ver com a tortura. Havia marcas em seu corpo que provavam ter passado por aquela experiência diversas vezes.

– Serafine. – A voz de Ravenne saiu menos aguda, mas notava-se seu esforço descomunal. – Não tenho... Tempo. A Fortaleza não é... Segura. – Ravenne engasgou.

Passos ecoaram assustadoramente alto, vindos do mesmo corredor pelo qual haviam passado. A prisioneira ergueu o rosto e os guardas ao seu redor imediatamente cessaram as torturas.

Serafine sentiu o desespero da mulher crescer. Concentrou seu olhar no mesmo ponto que lhe era oferecido: uma silhueta surgiu ali. A pessoa usava uma longa capa preta que se misturava facilmente ao breu de onde viera.

O coração de Ravenne acelerou drasticamente e Serafine viu-se engolfada numa tempestade de emoções variadas: ódio, aversão e ansiedade.

– Ravenne. Os planos andam conforme o esperado. Quis visitá-la para deixá-la ciente disso.

– Não! – Ravenne arfou. – Não é... Possível... Que tenham... Alcançado os... Muros...

– É claro que é possível, imunda! – Ele gritou de volta. As sombras ao seu redor moveram-se junto a sua raiva, tornando o ambiente mais pavoroso. – Detalhes foram mudados, mas minha Rainha ficará satisfeita ao ver que agi como esperado.

– Sua Rainha... Vai descartá-lo... Quando conseguir aquilo... Que quer. – Ravenne cuspiu no chão. – Você é um mero peão.

– Acha mesmo que não tomei as devidas precauções? Jogar os jogos das sombras não é para amadores. Você agiu como a tola que é... Embalada pela pureza de um coração que deveria servir à escuridão. Eu sei como me portar. Tudo o que desejo logo será meu, e ninguém poderá me deter. – Ele se aproximou da mulher, com passos precisos e firmes. Ravenne estremeceu, finalmente temendo o que estava por vir.

O homem ergueu a mão e seus dedos rodearam-se por uma aura avermelhada.

– O que... Vai...? – Ravenne exclamou, forçando os pulsos e o pescoço para tentar escapar. Serafine viu o ambiente piscar, como se a ligação estivesse sendo quebrada.

– Não sei como você conseguiu alcançar a escolhida, mas achei prudente deixar um recadinho... Presentearei a preciosa Serafine com uma nova marca.

Ravenne gritou ao mesmo tempo em que Serafine, ambas tomadas pela dor quando o homem espalmou a mão sobre seu peito. A prisão em que Serafine fora colocada explodiu em agonia, de repente. De volta ao seu corpo, encontrou assombro nas pessoas ao seu redor.

Serafine gemeu quando crescente dor alastrou-se por seu peito. Colocou mão sobre o local onde o ferimento, mas não havia nada ali. Nenhuma nova marca, como prometido pelo torturador.

Ývela adiantou-se para ajudá-la, mas foi interrompida por Sibila:

– Majestade. – A mulher com cabelos de cobra virou-se para Jon, parecendo desesperada. – Preciso convocar as divindades o mais rápido possível. As sombras a marcaram.


Capítulo 27

Conselhos

 


A FLECHA ZUNIU AO acertar o alvo. Serafine não titubeou ao alcançar outra na aljava presa às suas costas, encaixando-a firmemente a corda do arco. Puxou-a e relaxou o corpo, disparando-a na mesma direção que a primeira. A ponta de prata perfurou a primeira flecha, cravando-se dentro dela com precisão. A terceira flecha fez o mesmo, e a quarta só não repetiu o processo porque palmas distraíram a atiradora.

Serafine virou o rosto para a figura descontraída de Theodore. Seu Mestre não parecia arrependido por tê-la atrapalhado, mas humildemente pediu desculpas.

O centauro se aproximou e desviou o olhar para a aprendiz.

Desde que havia voltado, Serafine mostrava-se cada vez mais distante. A única pessoa que sempre podia ser vista em sua companhia era Sibila, com quem Serafine constantemente conversava.

Os preparativos para o Ritual de Invocação vinham sendo feitos às pressas, ganhando até dos afazeres para o festival da Era dos Magos. Pelo que a garota entendera, Sibila usaria outra maneira para se comunicar com os Deuses.

Jon ordenara que seus serviçais cumprissem todo o necessário para o ritual. Ele também se certificara de fortificar a segurança ao redor do palácio, visto que Serafine recebera um alerta da misteriosa mulher; ali não era seguro.

As sombras a marcaram. Tais palavras continuavam a assombrar Serafine. Pesadelos agora atormentavam suas noites. Sensações ruins acompanhavam seus dias.

– A hora está chegando. – O centauro disse. Serafine assentiu. – Está preparada?

– Tenho que estar.

– Os Deuses vão auxiliá-la, criança, precisa ter fé.

– Estou cansada de ter fé, Theodore. – Ela sorriu fracamente. – Eu quero respostas ou um caminho pelo qual seguir. Essa missão me foi dada ás cegas, e quanto mais eu me aprofundo nos mistérios que a cercam, mais eu me sinto perdida. Minha mente anda tão trilhada por enigmas quanto um labirinto, e eu só quero entender por que.

– Vai dar tudo certo. – Theodore colocou a mão sobre seu ombro e dirigiu-lhe um sorriso sincero. – Você é forte, menina. – os olhos de Theodore se mostraram bondosos naquele momento. – Não digo isso como seu Mestre, mas como seu amigo. Há muita força em seu coração, e não só em seu espírito. Não deixe que o medo a derrube, derrube-o em resposta! Mostre por que os Deuses a escolheram como nossa salvadora.

Honrada pela confiança e fé dele, Serafine desejou respondê-lo à altura. Foram interrompidos em seguida, pois Sibila ficou visível pela iluminação das tochas, e o silvo de suas serpentes ecoou pelo pátio.

– Sinto muito, Theodore, mas Serafine deve vir comigo. O ritual vai começar. – A morena encarou seu Mestre uma última vez, com cautela em seu olhar, e então seguiu Sibila pelos imensos corredores do castelo.


Capítulo 28

Benção dos Deuses

 


SERAFINE ESTRANHOU ENCONTRAR O salão tão vazio. Além de seus guardiões, de seu Mestre e do Rei, não havia nem mesmo soldados no recinto. Recebeu um sorriso acolhedor de Ývela, apesar de a ondina apresentar uma expressão preocupada. Guillian e Theodore não lhe direcionaram sorrisos, mas havia em seus olhares um carinho confortável. Jarek encarou-a longamente, usando de cautela e ansiedade.

Sibila guiou a garota até o centro do recinto. Ali havia um círculo desenhado em vermelho no chão, com quatro velas dispondo-se na direção dos quatro pontos cardeais. Estavam apagadas e a única iluminação provinha dos raios lunares.

– Fique dentro do círculo, querida. – Sibila orientou, parando a frente dela.

– O que você vai fazer?

– Como você deve saber, o ritual realizado na cidade dos elfos só foi possível pela presença da Lua Azul, o astro da divindade Ímani. A questão é que há outros três Deuses e eles também recebem suas respectivas homenagens. Estamos na noite de Adalas, patrona da Guerra e dos Guerreiros, a deusa cultuada aqui no Oeste. – ela voltou seu rosto para o Rei, que estava atento às palavras da mulher. – Estou certa, majestade?

– Sim. – Jon havia arqueado uma sobrancelha, os olhos escuros cintilando à luz pálida da lua. – Temos Adalas como senhora do Oeste, mas não sabia nada sobre um ritual em sua homenagem.

– Isso é porque foi esquecido há muito tempo. Adalas era erraticamente ligada à violência e, por isso, os rituais em seu nome foram tornando-se cada vez mais cruéis, ao ponto de serem proibidos. Apenas os warthianos mais antigos têm conhecimento sobre o verdadeiro ritual para uma divindade... As jovens almas sempre acabam fazendo tudo errado. – A mulher suspirou como isso pesasse-lhe a alma. Serafine lembrou-se do equívoco em Águas Claras, quando Ývela e Jarek acreditaram no falso rito em homenagem à Ímani.

– E o que eu precisarei fazer?

– Precisa rezar.

– Rezar?

– Sim. Se Adalas achar sensato estabelecer contato, deixarei a porta aberta para que você a encontre.

– Vai deixar uma porta aberta para os Deuses? – Serafine repetiu bobamente, mas Sibila foi compreensiva ao sorrir.

– Uma porta espiritual. Se a Fênix achar prudente, guiará você até seu encontro.

– Ótimo. – Serafine engoliu em seco.

– Jarek, pode acender as velas, por favor? – Sibila virou-se para o guerreiro que, com um aceno fraco, dirigiu-se até o primeiro ponto. Quando Jarek alcançou Serafine, ergueu os olhos escuros para ela. A cor deles vibrava pela luz bruxuleante. O Sturian sorriu com suavidade, tentando tranquilizá-la.

O guerreiro encostou a chama ao pavio da vela do Oeste e aguardou, parando ao lado de Sibila. Ela adotou um tom de voz profundo e murmurou:

– Santa guardiã, envia-me tua coragem. Envia-me teu destemor. Envia-me tua força. Proteja da fraqueza o meu coração. – Serafine fechou os olhos e rogou silenciosamente. Rogou para que tanto Adalas quanto os outros Deuses atendessem seu pedido e viessem dar-lhe uma luz, qualquer que fosse. Ela necessitava daquilo. Precisava de sua ajuda.

Jarek acendeu a vela do Sul, de coloração esbranquiçada, e Sibila pediu à amorosa deusa Ímani que acolhesse o coração de uma filha perdida. À vela verde do Leste, ao deus Argon, foi inquirida racionalidade para desbravar aqueles mistérios. E à vela azul do Norte foi direcionada a prece para Thron, rogando por apoio ao espírito dominado pela incerteza.

Serafine sentiu, ainda com os olhos fechados, o ar à sua volta mudar. O cheiro provindo das velas era suave, como se uma brisa soprasse sobre um jardim cheio de flores. A garota sentiu curiosas sensações, como se folhas macias roçassem em seus pés descalços. Como se estivesse sendo transportada para outro lugar, um lugar onde o contato com a natureza era mágico.

Abriu os olhos lentamente, surpreendendo-se ao encontrar-se num outro ambiente. O salão e as pessoas nele haviam desaparecido e agora seus pés tocavam o chão coberto por grama. O céu estava colorido como costumava ficar durante o amanhecer. Ao olhar para frente, a garota avistou uma conhecida figura flamejante que, diferente da primeira vez, não lhe causou espanto.

A Fênix irradiava confiança. Suas penas em chamas vibravam, assim como seus grandes e intensos olhos. A criatura pousou na grama alguns metros à frente de Serafine estudou-a demoradamente.

– Você mudou. – As vozes soaram em harmonia.

Serafine assentiu suavemente, os olhos nunca se desviando da figura em chamas.

– Eu passei por muita coisa desde nosso último encontro.

– E estamos orgulhosos, criança. Seu coração se mostrou tão poderoso quanto o espírito despertado em seu âmago.

Serafine suspirou, exausta.

– Você buscava por auxílio e para isso nós viemos. Seu coração clama por explicações, disso nós sabemos, assim como também entendemos a confusão que se alastra em sua mente. A jornada que você tem para seguir é complexa, criança, e repleta de mistérios. Alguns que podem lhe ser revelados e outros que devem ser descobertos. – A Fênix parou um instante para deixar que a garota absorvesse suas palavras. Quando notou que Serafine nada tinha a questionar, prosseguiu: – O que as pessoas ao seu redor mais vêm lhe pedindo é paciência, e sabemos o quanto isso a atormenta. Sua fé é grande, principalmente em relação àqueles que a rodeiam, portanto, fique agradecida por tê-los. Quando lhe disserem para esperar, espere. Eles sabem o que é melhor para você, foram instruídos para isso. Nem tudo pode ser dito no momento em que deseja, pois o futuro incerto é melhor do que o conhecido.

Serafine não sabia exatamente como pedir aquilo aos Deuses, até porque eles estavam afirmando que alguns segredos deveriam ser mantidos. Não havia maneira mais sutil de levantar suas questões. Ela precisava aproveitar aquela oportunidade, seu destino dependia daquilo.

– Deseja falar? Pense com cautela. Há um equilíbrio a ser considerado.

– Quero entender por que me sinto tão desnorteada ao invocar meus poderes? Por que é tão fácil perder o controle quando o espírito desperta? E os fantasmas, por que me perseguem? Há uma ligação entre tudo isso?

Houve alguns instantes de hesitação por parte dela, enquanto que a ave de fogo permanecia impassível.

– Sim. Tudo está ligado... Essas almas que vagam pelo mundo estão em busca de uma salvação, alguém que os guie para o caminho certo. Seu espírito é o mais poderoso dentre todos os outros em Warthia, portanto, eles se ligam a sua força em busca de um auxílio. Ligam-se de tal modo que sempre aparecem ao sentir seus poderes despertando, pois é com o espírito que eles se comunicam. Ele é uma entidade poderosa, tal como qualquer outra criatura neste mundo. Você aprenderá a controlá-lo com o tempo. – Serafine acenou positivamente, sentindo-se mais aliviada. Ao menos as almas não buscavam por ela, mas sim pela alma que carregava seus poderes. Parecia um ponto positivo. – Entendemos o quanto sofre com a aparição desses fantasmas indesejados, ainda que, com o tempo, vá entender a importância deles. Para ajudar-lhe, decidimos dar-lhe uma benção. Uma dádiva que fará com que suas dores desapareçam sempre que encontrar um espírito.

– Podem fazer isso?

– Sim, mas essa magia não durará para sempre. Seu espírito pode precisar do auxílio das outras almas, então não poderemos interferir.

– Eu aceito essa dádiva.

Forçou-se a fechar os olhos quando a Fênix inflou-se em chamas, e então tudo voltou ao normal. O rápido calor que se alastrara ao seu redor desapareceu, restando apenas a confortável sensação de bem estar.

Serafine ergueu seus olhos para a ave, que maneou com a cabeça ao notar a dúvida em seu olhar.

– Devemos dar-lhe um último recado antes que volte. – a mensageira murmurou com cautela, sua voz denotando preocupação. – Sibila estava dizendo a verdade: você corre perigo. As Trevas irão tentá-la, criança. Nossa benção irá livrá-la dos infortúnios em consequência pela marca colocada em sua alma, mas não podemos tirá-la. O espírito fará isso sozinho. – Antes que Serafine pudesse perguntar sobre a marca, a paisagem ao seu redor piscou. – Seja forte e resista ao poder oferecido. O lado negro pode ser forte, mas a bondade supera qualquer coisa. – a ave aguardou alguns momentos e então murmurou: - Tenha cuidado, preciosa Esperança.

E então tudo se reduziu à escuridão e Serafine voltou ao mundo real. Sibila estava parada ao seu lado, os lábios formando uma rígida linha em sua expressão intrincada. Jarek permaneceu de pé, mas notava-se a tensão em seus ombros. Serafine perdeu o controle das pernas e ajoelhou-se com força no chão. O Sturian adiantou-se para ajudá-la.

– E então... – Ouviu Sibila dizer. – Encontrou algo para ajudar-lhe?

– Sim... Os Deuses me deram sua benção.


Capítulo 29

Prova de Confiança

 


JAREK ESTAVA PARADO NA varanda. Encostado ao muro de proteção, ele perdia-se em pensamentos, a mente enevoada por desespero.

A presença de Serafine, no entanto, era marcante o suficiente para ser notada. Jarek fingiu divagar, mas estava plenamente consciente da companhia.

Serafine não procurava por ele há bons dias. Jarek também a deixara para trás; não por escolha, mas pela falta dela. Antes, passava o dia todo sob os olhares desconfiados e perigosos dos soldados, mas ultimamente vinha vagando solitário – o Rei e seus lordes haviam aumentando a segurança nos calabouços, graças à quantidade significativa de prisioneiros. O fardo fora tirado dos ombros de Jarek para ser jogado sobre os de sua família.

Jarek manteve os punhos cerrados sobre o muro a sua frente. Seu corpo estava rígido em tensão e os olhos queimavam em ira. Avistou Serafine, hesitante e cautelosa, encostada a pilastra, os olhos avaliando-o com um interesse preocupado. Direcionou a ela um olhar rápido, não desejando prender-se muito tempo, pois tinha ciência que aquelas íris douradas eram capazes de roubar sua atenção.

Não só as íris, afinal. O rosto dela, esculpido em feições finas e tão belas; o corpo curvilíneo tão perigosamente exposto por aqueles vestidos do Oeste – os Deuses sabiam como Jarek estava fascinado desde que a vira com uma daquelas peças, há tantas semanas...

– Boa noite, princesa. – deixou claro, em seu tom, que não estava de bom humor. – O que faz aqui? – Serafine prosseguiu impassível.

– Vim ver se queria companhia. – ela deu de ombros. – Mas, principalmente, ver se estava tudo bem. Ývela está muito preocupada com você. Achei que talvez pudesse tentar tirá-lo desses pensamentos por alguns minutos.

– Já tirou. – Ele resmungou com um sorriso amargo. Serafine rolou os olhos.

– Você está preocupando sua amiga, não ouviu?

– Por acaso eu te preocupo também? – O guerreiro rebateu, finalmente prendendo os olhos dela aos seus. Ela hesitou.

– Sim. Você é meu amigo, sabe disso.

Jarek virou-se para ficar de frente com ela. Ambos embrenharam-se em seus olhares, o Sturian profundamente perdido no mar de ouro que eram as íris dela. Serafine percorreu o rosto do guerreiro com curiosidade e a ação foi notada por ele.

– O que foi? – Jarek indagou.

– Nada.

– Não minta.

– Você parece diferente – ela confessou. – Não quer mesmo conversar?

– Não. – Jarek baixou o olhar para a paisagem ao fundo e colocou-se de lado. Serafine ignorou aquela barreira criada por ele e deu um passo à frente, de modo a tocar o seu braço. Jarek não esboçou reação, mas a carranca em seu rosto foi suavizada pelo gesto. Serafine conduziu estranha sensação de calmaria pelo coração dele, e Jarek repreendeu-se por se deixar relaxar sob o toque dela. – Vá embora.

– É a prisão de sua família, não é?

– Eu disse: vá embora.

– Pare com isso! Eu estou tentando ajudar! – Ela esbravejou.

– Eu não quero a sua ajuda. – Jarek rebateu com acidez.

– Pode tentar passar essa pose de guerreiro frio e sem sentimentos, mas sei que você os tem. Pode escondê-los muito bem ai dentro – ela cutucou o peito dele com o dedo indicador, usando da brusquidão para prosseguir a fala. Jarek estreitou os olhos. – mas não os mantém tão bem guardados assim.

– Ah é? E como você entende meus sentimentos? É alguma especialista agora? – Faiscou os olhos para cima dos dela, deixando o tom perigoso e sombrio.

– Eu sei como é ver sua família sofrer.

Jarek não conseguiu retrucar. Sua expressão vagou da surpresa para o mais puro arrependimento. Serafine virou o rosto para longe de Jarek e apoiou as mãos no muro a sua frente.

O Sturian reuniu todo o controle que tinha para não socar o próprio rosto. Vê-la vulnerável, da mesma maneira como quando a vira fora de controle, trazia-lhe o mais puro temor. Não queria ser o responsável por causar-lhe dor; gostava de tirá-la do sério, mas não aquilo.

Parou ao lado da garota e segurou seu ombro, colocando-a de frente para si. Depois, segurou seu rosto, obrigando-a a encará-lo.

– Desculpe, princesa.

– Lembra quando conversamos no Deserto? Quando falei... Sobre a minha mãe? – ela indagou num sussurro. – Eu tento bloquear esses pensamentos, Jarek, mas ultimamente eles estão tão presentes em minha consciência. Não pense que eu não o entendo. Vejo a agonia em seu olhar, mais clara do que para qualquer outro que o encare. Eu não quero que continue passando por isso.

– Você é a última pessoa em quem eu deveria descontar minha frustração. Fui mal-educado. – Jarek a viu respirar fundo, os olhos mirando o horizonte, e então um sorriso recortou a expressão sombria da garota.

– Oh, você quer dizer desde que nos conhecemos? – Ele ficou aliviado ao vê-la quebrando a tensão do momento, os olhos antes debulhados em lágrimas agora firmes novamente.

– Certas vezes você mereceu. – Jarek retrucou com humor.

– Quis dizer que mereci o tempo todo?

– Sinto muito por ter sido rude o tempo todo desde que nos conhecemos. Melhorou?

– Você falou tudo muito rápido, acho que não consegui ouvir. – Ela tentou conter a gargalhada, mas acabou sendo em vão. Jarek maneou a cabeça, usando um sorriso mordaz.

– Eu estou colocando minhas mais sinceras desculpas ao seu dispor e é dessa maneira que me trata, princesa? Achei que odiasse pessoas rudes.

– Eu não odeio. Só tenho vontade de socá-las.

– Se me socar ficaremos quites? – Serafine se afastou surpresa.

– Você nunca me deixaria socá-lo.

– Vá em frente. – ele ergueu as mãos em sinal de rendição, deixando no rosto uma expressão solene. Serafine continuou parada com um sorriso incrédulo. Jarek fingiu impaciência após os instantes de silêncio. – Veja bem, se quiser deixar tudo assim mesmo podemos ir...

E então ela fez algo inesperado. Ao invés de erguer o punho para acertar um soco em seu rosto, Serafine o abraçou. Ela encostou seu rosto à curva do pescoço dele e murmurou, com um sorriso enfeitando seu rosto:

– Abraços são mais amigáveis. – A respiração dela fez cócegas contra a sua pele, e a sensação foi maravilhosa. Jarek riu, circundando a cintura da garota.

– Me abraçou para se aproveitar de mim, não foi, princesa? Sei que sou irresistível.

Serafine piscou surpresa pelo sorriso bem humorado e repentino dele. Era a vez de o guerreiro usar de humor. A vez dele de fugir. Fugir do desejo de roubar o fôlego dela para si; da ânsia em abraçá-la contra uma daquelas paredes e beijá-la até que ambos não aguentassem mais...

– Sua prepotência ainda vai matá-lo. – A garota o empurrou com suavidade.

– Ótimo. Vou aproveitar o tempo que me resta para beber uma taça de vinho. – piscou um olho. Serafine riu. – Pode me acompanhar se quiser.

– Ande logo, Jarek, estou aqui para lhe fazer um favor.

– Que favor seria esse?

– Venha comigo. – E ela lhe deu as costas. Jarek seguiu seus primeiros passos com o olhar, contornando a silhueta dela com o olhar. Acompanhou o movimento da saia de seu vestido conforme Serafine se movia graciosamente e enfim deu-se por vencido; respirando fundo, o guerreiro a alcançou com rapidez.


***


Os guardas foram enganados facilmente. Bastou Serafine utilizar uma expressão séria, o tom de voz autoritário e a desculpa de que se eles ousassem desafiar suas ordens teriam de se entender com o chefe da Guarda Real, e Jarek e ela estavam caminhando para dentro dos calabouços.

O Sturian entendeu o que significava reforçar a segurança, pois encontrou muitos soldados fortemente armados espalhando-se pelos cantos da entrada daquela prisão.

Ele recordou-se de sua última visita àquele horrendo local. As paredes de rocha pura, intrincadas e afiadas onde um túnel estreito fora construído, trouxeram a sua mente lembranças de quando fora capturado e jogado numa das celas dali. Os degraus da escada eram de mármore e pareciam escorregadios, por isso Serafine desceu com mais cuidado. Os olhos da garota acompanhavam ansiosamente o soldado que portava a tocha.

– Os Sturian, certo? – O guarda indagou.

– Sim.

– Siga até o último piso.

Ele parou de andar assim que alcançaram o primeiro, onde havia tochas suficientes para iluminar as celas vazias. Jarek não viu nada de horripilante, mas, ao encarar o caminho que deveriam seguir, lembrou-se dos horrores de sua prisão. Os calabouços da Fortaleza do Dragão não eram exatamente um lugar agradável para se visitar.

– Vá mais rápido. – Jarek incitou Serafine.

– Fique quieto. – Ela respondeu, olhando para o alto com medo de que o soldado os tivesse ouvido. Ao encontrar apenas a escuridão, voltou a caminhar.

Ela havia colocado em Jarek um feitiço recentemente aprendido com seu Mestre; consistia em dar-lhe uma camuflagem mágica, de modo que, se o guerreiro permanecesse próximo a uma paisagem, ela conseguiria imitá-la em seu corpo.

Jarek estava logo atrás dela, completamente invisível contra a rocha escura da parede ao seu lado. Assim que chegaram ao corredor desejado, Jarek correu na direção das celas. Pega de surpresa, a concentração de Serafine perdeu-se. O Sturian materializou-se em pleno ar, distante por consideráveis metros.

Ele esquadrinhou as celas com o olhar minucioso, procurando sua família. Quando alcançou a última delas, despencou de joelhos em frente às grades, puxando alguém pelas mãos. Leyona recebeu o filho no melhor abraço permitido, o rosto suavizado em grande calmaria.

Jarek respirou fundo, deixando que a mãe acariciasse seu rosto e seus cabelos, cuidadosa e terna como sempre. Leyona beijou seu rosto repetidas vezes e afastou-o para observá-lo, murmurando como se orgulhava de vê-lo protegendo a escolhida. Dizendo como estava aliviada por Jarek não estar preso.

– Seu cabelo está comprido de novo. – Ela comentou.

– É. – Jarek rolou os olhos. – Gosto assim.

– Fica ótimo em você. Bem parecido com o seu pai.

– Ela de novo, Jarek? – Outra voz dentro da cela indagou. Jarek ergueu um largo sorriso para a irmã.

A menina tinha em torno de doze anos e era bastante alta para a idade. Possuía grandes olhos azuis e um longo cabelo escuro, preso numa trança bagunçada. Seu olhar estava desconfiado para cima de Serafine, e mesmo quando a morena sorriu, a pequena prosseguiu séria.

– É minha amiga, lembra-se? – Jarek respondeu bem humorado.

– Achei que fosse sua nova namorada, quando veio conversar com a gente no outro dia. – a menininha comentou num tom afiado. – Mas ela não parece fazer seu tipo.

– Ah é? – Serafine franziu os lábios. – E qual seria o tipo dele? – Lançou um olhar incisivo para Jarek, cujo sorriso só se alargava.

– Uma moça mais velha, com certeza. – a garotinha a avaliava como se Serafine fosse um espécime nunca antes vista naquele mundo. – E essas marcas no seu corpo são meio esquisitas.

– Mynna, pare com isso. – Jarek resmungou. – As marcas dela são lindas. – Ficou satisfeito ao ver Serafine surpreendida, mas não a encarou de volta. Leyona direcionou a Jarek o seu olhar curioso, no que ele respondeu com um sorriso.

– Eu só estava comentando.

– Não temos tempo para picuinhas, minha visita aqui é curta. – Jarek aproximou-se das grades para ficar cara a cara com a garota. – Senti sua falta, pirralha. – Ela o abraçou, com o rosto outrora desafiador moldado numa expressão de melancolia.

– Por que está fazendo isso por nós? – Leyona perguntou. Jarek encarou Serafine, que pareceu perdida quanto à resposta. Havia decisão na postura dela, a certeza de que estava lutando por algo que considerava correto; Jarek não poderia estar mais agradecido.

– Eu... – Serafine pigarreou. – Eu não acho que tenham sido vocês a cometer aqueles crimes. – expôs com sinceridade. – Meu coração diz que vocês são inocentes.

– Eu agradeço por seu apoio. – o sorriso de Leyona foi genuíno. – Não fomos nós que atacamos as vilas. Não sei quem o fez ou porque colocou a culpa em nosso clã, mas garanto que estávamos bem longe de lá. Preparava-nos para ir embora, deixar a civilização novamente quando houve a confusão. Em meio à bagunça do galpão e o terremoto, não entendemos bem o que estava acontecendo, mas então os guardas chegaram e... Não houve tempo de escapar.

Jarek e Serafine entreolharam-se.

– Mãe, nosso tempo aqui é curto. – o guerreiro segurou as mãos da mulher entre as suas. – Onde está meu pai? O que houve desde que eu parti? – Sombras caíram sobre o olhar da mulher, os dedos entrelaçados aos do filho relaxando em fraqueza.

– Ele desapareceu, Jarek. Depois da sua partida, Kórmon também se foi. Prometeu que voltaria logo, disse que investigaria seu paradeiro, e me deixou no comando. – Leyona suspirou pesadamente. – Nunca mais tive notícias dele. Nem mesmo Nicolau e seus rastreadores foram capazes de encontrar alguma pista.

Jarek engoliu em seco, mirando o vazio. Seu pai era forte, um Sturian poderoso e competente, bastante centrado. Mesmo depois da morte de Bree e da comoção trágica diluída entre o clã, ele foi capaz de instaurar a ordem. Quando permitiu que Jarek partisse, quando ordenou que vingasse sua irmã morta, que consertasse o erro que havia cometido, Kórmon Hargon havia exultado força, transmitindo isso ao filho. Jarek prometeu a si mesmo que seria o homem a trazer paz a sua família; pelo visto, seu desaparecimento resultara na partida do pai. Agora, precisava lutar para salvar o que restara de sua linhagem... Precisava fazer alguma coisa para tirar Leyona e Mynna dali.

Uma agitação lá em cima despertou a atenção de Serafine e ela imediatamente voltou-se para Jarek.

– Preciso fazer o feitiço novamente.

Jarek não se despediu da família. Lançou a Mynna e Leyona um olhar puro, carregado de amor. Deixou despencar todas as muralhas que erguera em volta de seu coração e usou daquele sentimento com intensidade ao observar sua família; ao voltar-se para Serafine, encontrou-a desamparada a analisá-lo. Ele desejou dizer algo a ela, mas estava desolado pela despedida, mal encontrando palavras para si mesmo.

Quando saíram dos calabouços, e depois de caminhar por vários corredores para despistar os soldados, Jarek distanciou-se de Serafine. Todo o controle que vinha mantendo esvaiu-se e o guerreiro precisou apoiar as costas contra a parede para não desmoronar.

Ela estacou ao avistar seu guardião. O olhar dele estava espantosamente melancólico, assim como a expressão em seu rosto. O guerreiro afundou o rosto nas mãos, indignado por sua fraqueza. Despenteou os cabelos em um gesto desesperado no momento em que Serafine se ajoelhou ao seu lado.

A garota tocou seu ombro com afeto e ele se perdeu. Estremeceu sob o toque dela, mas não a afastou. Em vez disso, se recostou à Serafine, o rosto escondido contra o ombro dela, aspirando seu perfume, obrigando-se a manter a mente no lugar. Serafine o rodeou com os braços, recebendo-o num abraço confortante. Os olhos dele estavam fechados com força numa luta silenciosa.

– Eles vão morrer. Todos vão morrer e eu não posso fazer nada. – Sussurrou. Havia lágrimas em seus olhos; Serafine ficou desamparada.

– Ei, olhe para mim. Vai ficar tudo bem. Eu prometi que ia ajudá-los, não prometi? Vou fazer tudo o que puder para isso.

– Serafine, não. – ela despencou na tristeza dele. – Oh, que merda. Você não deveria... Me ver assim. – Ele esfregou o rosto, constrangido.

– Chorar não o torna fraco. – ele hesitou um instante, imensamente grato. – Não precisa ter medo; eu vou ajudar.

– Serafine, você não pode fazer nada. Minha mãe já aceitou seu destino, preciso que você aceite por ela também.

– Eu? E quanto a você? Aceitou o destino dela, Jarek?

Não, ele não havia aceitado. E ficou claro o suficiente para que Serafine percebesse isso.


Capítulo 30

As Sombras ascendem

 


ELA ESTAVA COMEÇANDO A se cansar da brusquidão com que as coisas ocorriam por ali.

Serafine repousava em seu quarto naquela manhã quando Benídia apareceu ofegante, anunciando que o Conselho exigia sua presença. Sem lhe dar a menor chance de fazer perguntas, a jovem havia desaparecido corredor afora, deixando Serafine com a maior cara de confusão.

Agora, ela se encontrava no salão do Trono, onde os quatro lordes discutiam avidamente.

O Reino das Águas, o mesmo de onde Ývela viera, estava sob ataque.

As notícias trazidas não eram nada boas, mas pouco lhe foi informado – Serafine sabia que os exércitos não aguentariam muito tempo, mas não entendia o que queria derrubá-los. Theodore fora breve e direto, pedindo que ela ficasse num canto até que a confusão terminasse.

Observando atentamente os presentes, Serafine cravou o olhar na figura da ondina. A pequena loira estava parada em frente ao Trono, o rosto tomado por uma expressão melancólica. A postura indicava o pesar, assim como o brilho em seus olhos.

Serafine ousou se aproximar, mas Jarek a deteve. O guerreiro estava ali pela primeira vez, talvez por ser próximo de Ývela. Guillian estava ao lado dele, observando tudo com curiosidade contida.

– Deixe-os resolver essa crise, pare de interferir. – Jarek sorriu suavemente. – Vai acabar presa por afogar algum lorde.

– Ou enterrar vivo. – ela replicou. – Eles bem que merecem.

– Lorde Klaus seria bem útil debaixo de dez palmos de terra. – Guillian concordou animado. – Podemos dar um jeito nisso.

– O Amaldiçoado tem razão. – Sibila, silenciosa e medonha como sempre, parou ao lado de Jarek. Serafine teria rido da expressão dele ao encarar as cobras se não fosse à tensão do momento. – Deixe que a apaziguem essa discussão tola. Ývela logo vai tomar as rédeas da situação como a poderosa governante que ela é.

– Governante?

– Ela é filha da Rainha das Águas. – Guillian explicou. – Uma princesa.

– E por que ela nunca me disse? – Choque estampou o rosto da morena. Ela encarou a ondina, ainda englobada em seu próprio desespero, e tentou enxergar nela uma linha de nobreza. Assim como ocorrera com Jon, não avistou imediatamente, mas estava lá... A maneira como ela permanecia calma em situações de risco, o modo como agia com grande carisma, o olhar confortante. A força surpreendente e o poder e bondade imensuráveis.

– Porque não havia motivo e, principalmente, por causa de sua fuga. Quando ela abandonou o Reino, abandonou também a coroa. – Jarek encarou a ondina, mas não havia em seu olhar a mesma pena que havia no de Serafine.

– Três guardiões e nenhum deles têm a ficha limpa. – Guillian brincou. – Que belos protetores nós somos.

– Ao menos temos a sua beleza para deixar tudo mais agradável. – Jarek replicou, recebendo um olhar enfezado do orelhudo.

– O que acha que vai acontecer? – Serafine, ansiosa por causa da sua guardiã, indagou aos dois.

– O Rei não pode mandar auxílio para as Águas. O povo de lá é mais preparado para o tipo de desafio que enfrenta e, por mais que haja feitiços e equipamentos, os terrestres não seriam tão capazes.

– E eles estão nessa discussão toda por causa disso?

– Não. Foi por causa do sonho que o Rei teve. – Sibila respondeu. As serpentes em sua cabeça soltaram altos silvos, como se aquele assunto as perturbasse. – Ele viu as sombras, viu um trono sucumbindo a elas. Temos conhecimento de que alguns dos exércitos sombrios estão em marcha, mas não sabemos exatamente para onde. O monarca está temeroso quanto a isso.

Serafine avistou Jon parado ao lado de Theodore, o rosto mais abatido do que ultimamente e olheiras profundas circulavam seus olhos. Aqueles dois assuntos pesavam em seus ombros, isso era evidente.

– Ývela não poderia voltar para seu Reino? Para ajudar?

– Não! – Sibila, Guillian e Jarek disseram ao mesmo tempo. Serafine hesitou, encarando-os com surpresa. – Ela fez um juramento de sangue para protegê-la.

– O juramento não pode ser desfeito?

– Só um sacrifício devastador poderia fazê-lo, o que, acredito, não acontecerá.

Serafine encarou sua guardiã uma última vez antes que Jon tomasse a palavra:

– Senhores, por favor, ordem!

– Majestade, a prova de que precisávamos está em seu sonho e nesta mensagem! Os leviatãs, as sombras, tudo relacionado à Feiticeira está voltando. Devemos tomar atitudes mais drásticas; o acordo precisa ser feito e as execuções dos Sturian cumpridas. Não há espaço para piedade. – Serafine entendeu o que o lorde quis dizer com sentenças, mas o tal acordo lhe passou despercebido. Jon não pareceu gostar daquela proposta.

A garota encarou Jarek pelo canto do olho, esperando encontrá-lo num torpor de ira, mas o guerreiro estava assustadoramente calmo.

– E o que deseja que façamos após cumprir essas exigências? Quer que marchemos em direção ao desconhecido?

– Precisamos formar logo a Tropa de Arqueiros, para começar. – Klaus exaltou. – Treinar uma quantidade maior de soldados também seria uma bela escolha. Quanto mais guardas para distribuir pelas vilas de nosso Reino, melhor.

– A Tropa não está completamente preparada...

– Não é necessário um curso completo para este grupo, majestade. – lorde Octus colocou-se na conversa. – O senhor mesmo nos disse o quanto tinham de potencial. Deixe que eles guarneçam nossos muros, principalmente a nossa fortaleza. Quando lorde Hammel chegar, aceite a mão de sua filha e receba o exército que ele lhe oferece. – Serafine não escondeu sua incredulidade quanto a aquilo. Jon iria se casar com a filha daquele lorde? Mas e quanto a Ývela?! Aqueles olhares não podiam ser pouca coisa. – Deixe que fiquemos preparados para essa guerra certa.

– E os leviatãs? – Ývela ergueu a voz, lançando ao lorde um olhar afiado. – Acha que as muralhas vão detê-los?

– Não estamos nos preocupando com isso ainda, menina...

– Não me trate por menina, vivi mais do que seus ancestrais! – ela retrucou enfurecida. – Estou preocupada com um caso muito maior. Se os leviatãs se erguerem e se unirem a Sharowfox, o caos dominará este mundo!

– E o que podemos fazer? Mandar nossos homens para proteger o seu Reino? – Klaus cingiu as sobrancelhas para ela. – Se nem seus exércitos são capazes de detê-los, o que espera de nós?

– Os exércitos de minha mãe vêm mantendo as bestas acuadas há centenas de anos! – Ývela esbravejou. – A Rainha está morrendo, e por isso as Águas estão perdendo território. Se continuarmos de braços cruzados não vai haver oceano para deter aqueles monstros.

– O que sugere então, princesa? – Todos se voltaram para Jon, que se encontrava sentado no Trono. Seus olhos pareciam frios e a voz era de uma rouquidão sombria. – Que eu esqueça as responsabilidades com meu Reino e deixe que meu exército parta para proteger o seu? Entendo perfeitamente que os leviatãs são perigosos para Warthia, mas não posso mover céus e terras para realizar a tarefa que foi incumbida a vocês. Você mesma me falou o quanto é importante que eu me sacrifique pelo Oeste.

– Fale com seu irmão. – Ývela murmurou. De repente, ela recuou o humor enaltecido para algo próximo da melancolia, como se não quisesse encarar Jon. Como se falar com ele causasse dor. – Peça ao Rei Maltrus que convoque os subordinados dele; há elementais da Água rebeldes e fugitivos que buscaram abrigo no Sul. Muitos deles. Mesmo o mínimo pode fazer a diferença em meu Reino. Minha mãe provavelmente acabará pedindo ajuda aos Gigantes, mas até lá...

– Posso convencer lorde Hammel a falar com Maltrus, mas ele não costuma atender aos pedidos vindos de mim. Meu meio-irmão raramente ouve Demetrius, que é seu soberano... – Jon suspirou pesadamente, voltando-se para Theodore. – Alguma previsão para a chegada dos sulistas?

– Não temos certeza, majestade, mas creio que próximo à noite da celebração.

– Muito bem então. Lidaremos com a questão de seu Reino mais tarde, princesa. – Jon dirigiu-se friamente à Ývela, de uma maneira que Serafine nunca antes havia visto.

– Agora, quanto aos prisioneiros... – Klaus denotou prazer ao trazer o assunto à tona. Ele encarou Serafine enquanto falava, usando um sorriso de escárnio. A morena cerrou os punhos com força, lutando consigo mesma para manter a expressão impassível. A vontade de esmagar o rosto dele contra o chão de mármore era grande, mas não daria àquele maldito lorde mesquinho a chance de vê-la irritada. Precisava manter a calma, como Jarek estava fazendo.

– Acho que chegou a hora de escoltá-los para a morte, majestade. – Foi, para a surpresa de Serafine, lorde Frai quem disse aquilo. O velho estava sentado em sua cadeira, a mais solene das expressões colocada em seu rosto. – Já perdemos tempo demais com esses Amaldiçoados; seu destino é certo, não há o que possamos fazer.

– Diria que a melhor ocasião para o cumprimento das sentenças é na comemoração à Era dos Magos. Teremos visitantes e uma plateia imensa para ver que o senhor, Vossa Graça, não é benevolente com aqueles que traem a Luz. – Lorde Octus murmurou pomposo. Serafine viu Jarek apertar o maxilar.

– Têm razão, meus senhores. – Jon assentiu impassível. – Mande preparar tudo para que a líder deles seja executada durante a festa. Acho que será uma prova de confiança para lorde Hammel. Eu não... Quero pensar nisso. Deixo a tarefa em suas mãos.

– Como desejar, meu soberano. – Klaus exaltou com um largo sorriso no rosto.

Serafine continuava a encarar o Rei enquanto os lordes discutiam sobre a festa. Algo na maneira como Jon falara lhe pareceu estranhamente errado. Antes, havia visto no monarca um coração justo e bondoso, mas agora ele agia como se tivesse se transformado num bloco de gelo. Sem emoções, a voz branda, lidando com um assunto assombroso como aquele sem dar muito da preocupação. Parecia influenciado. Estava assustadoramente fora de si.


***


– Com sono? – Serafine resmungou qualquer coisa em resposta a Percival, ainda perturbada pelo horário. Tinha se disciplinado a acordar antes do próprio Sol, mas não encontrava facilidade em se acostumar com aquilo. Estava exausta pelos pesadelos, pelas preocupações e pelos próprios treinos, mas queria ficar mais forte; queria ser digna do arco e das flechas que viria a usar.

– Por que você não vai tirar uma soneca, pirralho? – Retrucou depois de outro bocejo. Percival riu do mau humor da garota, prostrando-se a frente dela; Serafine sentou-se, varrendo o ambiente de treino com o olhar. Os soldados já estavam despertos, preparando-se para a vigia ou para os exercícios que Jon viria a ministrar. E ela ali, lutando contra o cansaço.

Guillian a acompanhava naquela manhã, e estava praticando alongamentos e exercícios enquanto a aguardava para o treino. O Atyubru era a imagem da animação, e, Deuses eternos, estava cedo demais para tanta euforia.

Serafine ajustou a firmeza das botas e pôs-se a alongar os músculos; as calças que usava eram maleáveis e soltas. O colete, fazendo jus às peças bizarras do Oeste, era apertado e curto. Nos primeiros dias, Serafine havia se sentido exposta com aquela peça, mas as outras mulheres que participavam do treinamento exibiam a mesma vestimenta; a cultura do Oeste sempre viria a surpreender a menina, isso era fato.

As manoplas e braçadeiras impediam impactos, assim como o material rígido de suas botas.

Serafine correu como costumava correr em Líriel, preparando os músculos das pernas para os exercícios pesados que viriam depois. Testou seu equilíbrio em disputas contra Percival e Guillian, e praticou arquearia enquanto Jon não dava as caras por ali.

Duas horas depois e os soldados já começavam a deixar o recinto; tinham coisas importantes a fazer e, aparentemente, seu líder também.

Serafine soltou um muxoxo decepcionado. Esperava pelo Rei para ensiná-la novas técnicas de combate. Percival exibiu igual tristeza. Guillian não se desanimou e pôs-se a treinar com um bastão, nocauteando um boneco de pano diversas vezes seguidas.

Serafine e Percival, os mais jovens por ali, pararam para observar a disputa entre os soldados que restaram. Era um tipo de luta sofisticado, bastante conhecido ali no Reino Árido.

A morena cravou sua atenção na leveza e rapidez dos movimentos deles, na maneira precisa com que golpeavam e se esquivavam, e chegou à conclusão de que precisava equiparar-se a eles. Se fosse capaz de imitar seus movimentos, seria capaz de lutar sem armas em mãos. Ficaria mais forte.

– Ei, que tal? – Gesticulou para os soldados, que agora se retiravam, e para Percival. O menino deu de ombros.

– Não me culpe se eu chutar seu traseiro. – Ele se gabou.

Serafine riu descrente, e aproveitou a distração dele para irritá-lo. Ergueu o pé e deu um chute fraco, empurrando Percival contra o chão.

– Ei!

– Que covardia, princesa, nocauteando o adversário pelas costas. – Surpresa, ela virou-se para Jarek, que vinha caminhando em sua direção. Ele trazia as mãos nos bolsos e a postura relaxada.

– O que faz aqui?

– Vim treinar. Eu faço muito isso, agora que não tenho mais a escolta armada. – o Sturian gesticulou para a solidão ao redor deles. – É melhor quando não tem ninguém por perto. – Serafine encontrou sombras no olhar dele; é melhor quando ninguém está por perto para odiá-lo por sua maldição. Ela pensou tristemente.

– Chegou a tempo de me ver ganhando da escolhida. – Serafine gostaria de abraçar Percival pelo tom descontraído que ele usou. A morena apoiou as mãos na cintura, encarando-o de cima.

– Que tal uma aposta, rapaz? – Guillian havia se sentado para observar a disputa, e o Jarek o acompanhou. – Acho que a nossa protegida vai se sair melhor.

– Aposto no pirralho. – Serafine encarou Jarek como se tivesse sido ofendida. Ele ergueu os ombros. – O que? Uma criança vencendo a escolhida parece divertido. – Jarek sorriu para ela.

– Sabe as regras, não é? Você está sempre dormindo quando o Rei as cita. – Percival provocou. Serafine aprumou a postura, usando seu olhar mais amedrontador.

– Não vou cair nessa, Percy. Não vai me tirar do sério. – Serafine avançou. O menino caiu após receber o estalo do pontapé. Ele gemeu, apesar da pouca força, e franziu as sobrancelhas na direção da oponente. – Ah, desculpe, você estava dizendo algo sobre me derrotar?

– Pontapés só funcionam quando executados precisamente, sua majestade já nos alertou disso. Você me pegou desprevenido, um inimigo não cairia nessa.

– Blá, blá. – ela escondeu a frustração, ciente de que ele estava certo. Não tinha sido leve, tinha sido brusca. Nunca conseguiria lutar como aqueles soldados se continuasse assim.

Percival avançou com a leveza que Serafine vinha invejando, mas houve tempo para que a garota escapasse de seu alcance. A sequência de socos dele acertou seus antebraços, protegidos pelas braçadeiras, e os ecos dos impactos ressoaram pelo salão. Ele era forte, mas ainda era uma criança; quando se tratava de luta corpo a corpo, Percival tinha poucas chances. Mesmo contra Serafine, que desenvolvia pouca habilidade para aquela arte.

Serafine deu um tapa na mão do menino quando ele já apresentava exaustão, e abaixou-se, arrastando um dos pés por trás de seus tornozelos. Percival caiu sentado, emburrando a expressão.

– Você trapaceou de novo! Não é justo.

Ela ficou de pé a frente dele, triunfante, apenas para receber a rasteira de volta.

Deitada sobre o chão, Serafine deixou-se gargalhar. Ela nunca teria a leveza necessária para lutar como os soldados.

A morena ergueu os olhos quando a luz foi ocultada por Jarek. Ele parecia curioso; havia a sombra de um sorriso no rosto do guerreiro, algo que Serafine vinha sentindo falta. Ela arqueou a sobrancelha, incitando-o a falar.

– O que?

– Bela luta, para uma amadora. – A provocação dele a fez franzir a boca. Serafine sentou-se, lançando a Percival o seu olhar mais entediado. Guillian os observava com o riso preso nos lábios.

– Você me chama de amadora porque não tem coragem de lutar comigo.

– Como é? – Jarek exultou teatralmente ofendido.

– Da última vez, lá em Líriel, eu derrubei você, lembra? E foi um belo tombo. – A morena armou seu sorriso vitorioso, erguendo-se para estender alguma moral a sua postura. Sendo Jarek tão mais alto, não serviu de muita coisa.

– Não estou me recordando. – ele mentiu. – Ser brusca não é lutar como os moradores do Oeste, princesa. E, aliás, estávamos falando da sua tentativa de luta de minutos atrás.

– Ei! – Percival replicou.

– A culpa foi dela, baixinho, relaxe.

– Ei! – Serafine imitou o garoto. – A culpa foi minha?

– Postura errada, movimentos errados, força errada. Tudo errado.

– Não tinha nada de errado comigo.

– Quer tentar a sorte de novo, princesa?

– E por que você é o especialista agora?

– Eu cresci aqui, lembra? Sou especialista nisso. – Jarek riu abertamente.

– Isso vai ser divertido. – Guillian bateu as patas, animado. – Aposto no Jarek.

– Não é justo, eu quero apostar nele também. – Percival resmungou.

– Sua falta de fé em mim é perturbadora. – Serafine retrucou, alongando os braços. – Vocês vão ver só.

Ela cingiu as sobrancelhas quando ouviu Jarek rir.

Assistiu seu guardião livrar-se das botas que usava, assim como da camisa; maldito seja, resmungou mentalmente, lutando para ignorar a beleza do Sturian. Jarek aprumou os ombros, avaliando a silhueta da garota de baixo a cima.

Correu os olhos pelo tronco de Jarek, fingindo-se pouco interessada; fingiu que não estava atraída pela força e sensualidade que ele desprendia. Fingiu tolamente, porque sabia que não conseguiria enganar aquele par de olhos azuis.

– O que? Quer que eu tire a roupa para lutar, por acaso? – Ela guinchou indignada.

– Não seria má ideia. – o sorriso dele foi puramente malicioso. – Mas, infelizmente, não é necessário. Você está muito bonita nessas vestes, princesa.

– Idiota.

Jarek alongou o corpo, piscando marotamente na direção dela. Serafine enrijeceu a postura, tentando focar na lembrança da luta assistida anteriormente. Tentou ignorar a aproximação do guerreiro, lenta e discretamente, como um felino cercando sua presa.

– O primeiro que cair ao chão perde? – Ela incitou. Jarek anuiu.

Você consegue derrotá-lo, mantenha a calma. Preveja seus movimentos. Seja rápida. Lembrou-se que, em Líriel, recebera auxílio para derrubar seu guardião. E fique fora disso, espírito, ordenou por fim.

– Com medo de se aproximar?

– Não estou com medo.

– Você parece um pouco perturbada. – Ele a examinava abertamente, e Serafine, de fato, estava incomodada. – Com medo de perder ou com medo de admitir que se sente atraída por mim? – Ele sussurrou.

– Me poupe do seu ego a essa hora da manhã, por favor.

– Estou apenas citando fatos.

– Está citando baboseiras.

Arregalou os olhos quando Jarek tentou acertá-la. O movimento dele veio rápido e preciso, mas com leveza. Serafine esquivou-se com a graciosidade de um Escorpião Gigante, caindo ao chão para impedi-lo de tocá-la. Rolou e pôs-se de pé, armando sua máscara de fúria; Jarek não podia estar mais relaxado.

– Isso não valeu.

– Você caiu.

– Eu pulei. Não é como se você tivesse me derrubado.

– Está bem. – ele assentiu, voltando aos passos do início. – A melhor de três, então. – O Sturian sorriu provocador.

– Vamos lá, Jarek, eu quero meu dinheiro! – Guillian incitou.

Serafine o conhecia o bastante para entender sua estratégia. Jarek tinha suas explosões de fúria e adrenalina, mas podia trabalhar como uma sombra; quieto, leve e mortífero. Ela avaliou a postura relaxada do guerreiro, encontrando ínfimas indicações de que ele estava prestes a atacá-la. A tensão nos ombros, a posição dos pés, o pequeno franzido entre seus olhos.

Quando Jarek avançou para o golpe, a garota o interceptou. Escapou para o lado e prendeu o punho dele no ar, colocando força para mantê-lo assim. Arregalou os olhos em surpresa pelo reflexo, mas não demorou a reagir, erguendo o primeiro golpe que lhe veio à cabeça. Jarek sorriu, segurando o joelho dela antes que ela o chutasse no meio das pernas.

– Golpe baixo, princesa. – Ele brincou. Em seguida, a empurrou para o chão. Serafine caiu de costas contra o tapete, grunhindo pela incompetência.

– Alguém está com problemas. – Percival brincou lá de longe. A morena controlou-se para não retrucar qualquer ofensa. Ignorando Jarek, que estendia a mão para ajudá-la, pôs-se de pé sozinha.

– O que estou fazendo de errado? Que droga, não consigo. – Serafine retrucou rabugenta. – Eu vejo sua concentração, vi como os soldados estavam lutando, mas não dá. Não... Não sem a ajuda do espírito. – A menina bufou.

Jarek coçou o queixo, avaliando-a com diversão.

– O espírito age através de você. Ele te ajuda. – ela grunhiu com crescente irritação. – Serafine, preste atenção: o espírito é você. Está se esforçando tanto para ser invencível, para desenvolver as melhores habilidades de luta, quando está tudo ai. – o guerreiro sorriu. – Por que diabos a chamam de Olhos de Águia? Porque você é a melhor nisso. Você é a nossa esperança. E, sinceramente, está exigindo demais de si mesma.

– Mas...

– Sim, eu sei, você quer ficar mais forte. Mas ser forte nem sempre significa ser boa em tudo. Pelos Deuses, princesa, quem dera ter metade do poder que você tem. E não digo pelo espírito, mas pela sua determinação.

Serafine mordeu o lábio.

– Você já tem a graciosidade, mas não a usa na hora da luta porque não é parte de você. Precisa de energia, precisa ser movida pela adrenalina, você é feroz. Não tente imitar os soldados ou mesmo a mim; crie seu próprio método. Em Líriel, você e o espírito me derrubaram, e eu nunca tinha visto alguém lutar daquele jeito. A força está ai, só precisa parar de tentar acessá-la da maneira errada. Seja impulsiva. Você é ótima nisso. – Jarek piscou.

– O Rei nos alertou de que poucos são capazes de batalhar como aqueles lutadores. – Percival comentou, aproximando-se timidamente. – Ele sempre a elogia pelos disparos e pela sua rapidez. Não precisa imitar aqueles guerreiros para ser poderosa.

– Milady, se me permite dizer... Você começou esses treinos há pouco tempo. Não tem por que exigir tanto de si mesma. – Guillian comentou. – Para uma iniciante, você já é muito poderosa.

O espírito. O espírito sempre será poderoso, não importa o que eu faça.

Serafine suspirou pesadamente.

– Ei. Lembre-se do que eu disse, está bem? O poder é seu, aprenda a usá-lo. – ela ergueu os olhos para Jarek. O guerreiro estava logo a sua frente, contornado pelas sombras daquela sala. Exibia silencioso apoio, tão próximo que o calor de seu corpo a rodeava. – E vamos lá. Ainda não decidimos o vencedor da disputa.


Capítulo 31

O Trecho Oculto

 


SERAFINE SENTOU-SE NO banco de pedra com a ansiedade e a surpresa crescendo em seu coração. Sibila ficou parada um pouco distante, o rosto impassível enquanto murmurava uma prece silenciosa. Estava pedindo auxílio aos Deuses.

A mulher sentou-se ao lado dela finalmente, os braços cruzados sobre o peito.

– Como colocar as palavras da melhor maneira?

– Apenas diga-as.

– Deve estar ciente de que eu só sei uma parte. Lonel tinha o maior trecho, e também o mais esclarecedor. Outro guardião dessas palavras ainda vive, mas ninguém conhece a sua localização. Há séculos ele vagou para longe dessas terras, desaparecendo após cumprir seu dever com o Primeiro Mago. Ele a encontrará quando for a hora certa.

Serafine anuiu, tentando controlar o desespero.

– Seu Espírito tocado pela bondade Divina... Provará da dor e do pecado para realizar a sagrada Sina. – Sibila começou a murmurar, a voz rouca carregada de intensidade. – Um caminho guiado por aquele Liberto, disciplinado pelo Salvador, tocado pelo Herói e ensinado pelo Adormecido.

Se a mulher pudesse ver Serafine, certamente encontraria a mais pura confusão em seu olhar.

Aquelas palavras reverberaram por sua mente durante os instantes seguintes, tão ou mais intensas do que quando foram pronunciadas, mas nada nelas fazia sentido à garota. Ela iria cair nas dores e no pecado para realizar aquela jornada? Já não havia sofrido demais até ali?

Seu coração apertou-se com medo do que estava por vir. Aquelas palavras que tanto a haviam enchido de curiosidade pareceram destruir suas esperanças.

– Algo a declarar? – Ela indagou.

– Tudo o que sei é que Liberto, Salvador, Herói e Adormecido referem-se aos seus Quatro Mestres. – Serafine anuiu. Libertara Haius de sua prisão na outra dimensão, e Theodore era, definitivamente, seu salvador. E quanto aos outros? – Não posso tentar interpretar o resto, sinto muito. Ajudei Lonel com a primeira parte para que guiasse o início de sua jornada, mas os outros trechos foram escondidos com este propósito: você, e apenas você, deve decifrá-los. – As serpentes em sua cabeça silvaram em acordo.

Bastou isso para que Serafine colocasse sua cabeça para funcionar. Depois de despedir-se de Sibila, a garota dirigiu-se até um dos jardins do Castelo e passou a pensar, deixando-se andar aleatoriamente pelo espaço.

As palavras continuaram a ecoar por sua mente e a sensação esquisita acompanhou os ecos. Um estranho tipo de frio acometia seus músculos, deixando-a inquieta. Como se não só sua mente, mas seu espírito estivesse consternado com aquela revelação. Como se as peças do enigma que era seu futuro começassem a se encaixar, criando um labirinto de maiores mistérios.

Já embaralhada em meio àquela charada desesperadora, Serafine viu-se distraída quando uma figura conhecida se aproximou:

– Vai criar um buraco no chão se continuar andando desse jeito, princesa. – Jarek sorriu descontraído. – Está se sentindo bem? – Ele parecia abatido, como se não dormisse direito há dias.

– Não exatamente. – Serafine deu de ombros. O guerreiro se sentou, no rosto uma máscara curiosa, mas a garota não falou.

– Sabe... Conheço uma pessoa que sempre puxa conversa quando outra não está bem. – Jarek murmurou ao acaso, lançando mão de um sorriso divertido. – Acho que posso imitá-la dessa vez.

– Não quero conversar.

– Ah, engraçado. Eu tentei negar deste modo, mas ela não foi embora – ele zombou. – Posso ser convincente. – Abriu um sorriso malicioso.

– Não vai me convencer dessa vez. – Algo no tom de voz sério dela o deixou desconfiado. O moreno parou á sua frente, os olhos intensos sobre os dela.

– Vamos lá, desabafe. Prometo manter seus segredos a salvo. – Ergueu as mãos em sinal de rendição. Ela mordeu o lábio, mas por fim negou.

– Não posso.

– É tão secreto assim que você não pode nem conversar com um amigo? – a expressão usada por ele quase a fez sorrir. – Algo relacionado ao seu espírito?

– Sim. – ela deixou escapar. – Tem algo errado, Jarek. – Seu tom escapou mais desesperado do que ela desejava.

– Com o que exatamente?

– Comigo. – Serafine estreitou o olhar, escapando da expressão consternada dele. – E não sei se quero descobrir o que é.

– É uma situação complexa essa que a envolve, princesa.

– Estou ficando louca, não estou? – A máscara no rosto do guardião caiu de bom humor para melancólica preocupação. Quase semelhante a que ele usava ao observar sua família.

– Não, não está. – A certeza na voz dele fez seu coração acelerar. – Você só está com medo, o que é absolutamente compreensível. – Ele suspirou pesadamente. Baixou o rosto para procurar o olhar dela, mas não fingiu um sorriso, e ela encontrou conforto no guerreiro como nunca antes. – Não precisa ficar com medo, princesa. Sabe que não está sozinha.

– Obrigada. – Estendeu a mão até alcançar a dele. A pele áspera e quente contra a sua a deixou ansiosa.

Serafine achou que ele fosse se afastar, mas Jarek retribuiu o gesto com rapidez, apertando seus dedos ternamente.

– Se precisar de ajuda, pode contar comigo, está bem? Sou uma ótima companhia. – A garota riu abertamente.

– E narcisista até o fim dos tempos.

– Não foi um elogio muito gentil.

– Não receberá elogios meus enquanto cultivar esse ego infinito. – Ela agradeceu aos Deuses por ter conseguido desviar de assunto.

– Ah é? Por acaso consegue negar que me acha belo, forte e extremamente atraente?

– Eu nunca disse que você é feio. – Ele arqueou as sobrancelhas, impressionado pela sinceridade.

– E aposto como não nega que gostou daquele nosso beijo. – Jarek sorriu brincalhão.

– Aquilo não foi um beijo! – Ela rebateu.

– Tem razão. Eu poderia fazer bem mais do que aquilo. Posso te mostrar um beijo de verdade qualquer hora dessas, princesa. – ele se afastou, o sorriso ainda se fazendo presente. –

Você ainda vai assumir que me ama.

– Que eu... O que? – ela esbravejou. – Vá embora daqui! – Ralhou.

– Não vai sentir minha falta? – o olhar de Serafine foi amedrontador, mas Jarek apenas riu. – Nos vemos mais tarde então...

– Vá para o Abismo de uma vez, homem!

Jarek tirou um instante para observá-la, parecendo indeciso.

– Você vai ficar bem? – Indagou.

– Vá logo, antes que eu chute seu traseiro. – Serafine ralhou com bom humor.

A garota sentiu imensa confusão e ansiedade ao constatar que tudo dito por ele era verdade. Estava apaixonada por aquele arrogante.


***


– Hoje você vai lutar comigo. – Serafine parou o alongamento para encarar Jon. O Rei, tão exausto e fraco nos últimos tempos, parecia surpreendentemente saudável naquela manhã. Ele vestia as roupas de treino e uma expressão amigável.

– Desculpe, majestade, não sei se entendi bem... – a morena arriscou. O Sol mal despontara no horizonte, e tal horário, quando livre da prática de arquearia, era usado para seu aprendizado no controle da Terra.

Terra, que se mostrava o elemento com o qual Serafine construía maior afinidade. Era o elemento da força, da determinação, detalhes que condiziam tão perfeitamente com a personalidade da garota.

Theodore estava orgulhoso pela sua evolução no domínio.

Com o passar das semanas, ficou claro que Serafine dominaria a Terra por completo em pouco tempo. O elemento era a extensão da garota, a resposta aos seus trejeitos e pensamentos. Depois dos tremores descontrolados naquela rápida viagem, Theodore quis que sua aprendiz se dedicasse totalmente a entender aquela força da natureza.

Jon encarou o centauro e os dois trocaram um sorriso cúmplice.

– Se tenho direito de opinar, devo deixar claro que não me parece uma situação justa. – Serafine argumentou. Ela temia lutar contra Jon por causa do ocorrido na Vila do Sol Poente, mas ele não parecia perturbado por isso.

– Não vou trapacear e nem usar magia demais, Serafine. Theodore só me pediu para vir aqui para testar quão avançada você está nesse controle.

A morena lanceou um olhar indignado ao Mestre.

– Traidor!

– Você está em perfeita sincronia com o elemento, minha jovem. Não há nada demais em treinar com um combatente que use outros feitiços de ataque. – até porque, futuramente, viria a enfrentar Feiticeiras, Serafine pensou temerosa. Lembrou-se da outra parte da profecia que lhe fora revelada e lembrou-se da marca sombria que ainda habitava seu âmago. Havia tanto a perturbá-la.

Lutar com Jon não era uma ideia ruim. O espírito já o havia enfrentado, era a vez dela.

O pátio estava vazio e os soldados da ronda já haviam passado por ali. Se sofresse alguma humilhação por parte do Rei – o que ela acreditava piamente, dado os históricos de combate dele -, não viria a sofrer por fofocas.

“Jon e muito bom com feitiços de bloqueio. Também tem exímio domínio em ataques rápidos e precisos, como os disparos de uma flecha.”. Theodore havia lhe dito após uma pergunta curiosa da garota. Ele pode invocar raios e criar esferas de luz poderosas.

Theodore, diferente de Haius, a treinava com base nos ensinamentos de um guerreiro. Atacava e a ensinava a atacar, bloqueava e a ensinava a bloquear, conduzia Serafine aos caminhos da ofensiva; ele tentou, por pouco tempo, também guiá-la com lições pacíficas, mais voltadas para entender a essência do elemento, mas Serafine recusou-se àquilo. Sentia a Terra vibrando ao seu redor com a facilidade de um piscar de olhos, e o espírito respondia aquilo com o controle quase total sobre aquela força.

Ela precisava ficar mais forte. Precisava saber o que fazer caso outra batalha surgisse em seu caminho. Precisava, mais do que tudo, ser a escolhida.

O poder vinha do espírito, mas a determinação pertencia a Serafine. Queria mostrar, a todos que a observassem, que era digna do título de esperança de Warthia.

Jon não seria exceção.

Ele, acima de muitos, era alguém que Serafine gostaria de surpreender. Podia conviver e tê-lo como amigo, mas o jovem Mago era um Tytos. Pertencia não só a realeza, como a um dos quatro tronos. Tinha, em suas veias, sangue do mais nobre e poderoso. Ultimamente, estava tão sério e compenetrado nos problemas da corte que só o fato de tirar alguns minutos para testá-la conquistou sua total atenção. Ela iria surpreendê-lo.

Não negativamente, como ocorrera na vila, mas de um jeito positivo. Faria o Rei ficar impressionado.

Quando Jon fez seu primeiro ataque, Serafine ficou grata pela resposta rápida e controlada do espírito. A explosão de luz lançada por ele passou na lateral de seu corpo conforme se esquivava, extinguindo-se no ar para não danificar o pátio atrás deles.

Jon acenou, mas não parou.

Ele avançou até a garota, erguendo um escudo de energia quando Serafine levitou duas rochas do chão, lançando-as fracamente contra o monarca. Jon não recebeu o impacto, mas lançou sua ofensiva no instante seguinte.

Serafine abaixou-se para escapar da segunda explosão de luz, frustrada quando sua vista foi ofuscada pela proximidade com o feitiço. Não se deixando parar, a menina deu uma cambalhota, aproveitando o movimento para acertar o pulso contra o chão. Jon arregalou os olhos quando uma onda de pedras se ergueu em resposta ao soco, seguindo até ele, e não foi capaz de se esquivar do tombo.

A garota não o deixou tomar fôlego. Ergueu a outra mão e invocou a água, sorrindo levemente pela resposta rápida do elemento. Antigamente, teria levado tanto tempo a encontrar a conexão entre eles, e agora estava ali, dominando-o por completo.

A serpente criada a partir de uma fonte esgueirou-se até o Rei, e Jon a contra-atacou com um estalo de eletricidade. Os fios elétricos explodiram o encantamento de Serafine, mas não antes que ela o dissipasse em um jato de água. Jon recebeu o esguicho e ficou desnorteado por ele.

Serafine bateu um dos pés contra o chão, sentindo a vibração do elemento arrepiar sua pele, e um casulo de pedra ergueu-se ao redor do Rei caído. Jon arregalou os olhos pela rápida sucessão de ataques e pela óbvia derrota, saudando-a com um sorriso.

– Ora, ora, Theodore... – depois que se livrou da prisão de rochas, ele caminhou até a garota, absolutamente maravilhado. – Acho que nem mesmo você dominou a Terra com tanta destreza e rapidez. Serafine é a melhor dominadora que já vi!

– Os elementos respondem a ela com uma facilidade louvável. – o centauro comentou. Serafine baixou o rosto, sorrindo orgulhosa. – Mais algumas semanas e não sei mais o que poderei ensinar a esta menina. – mais algumas semanas, e dominaria a Terra por completo. Curiosamente, a sensação a amedrontou. A rotina e o conforto com aquele elemento lhe pareciam essenciais demais para se deixar para trás.

– Espero poder participar de mais lutas com você, Serafine. – Jon massageou um dos ombros. – Só espero estar mais preparado da próxima vez. – Algo dizia à garota que o Rei não havia usado nem metade da sua força naquela luta, mas o fato de tê-lo derrotado em tão pouco tempo ecoou na sua expressão vitoriosa logo que Jon se foi. Theodore revirou os olhos para Serafine, não gostando nem um pouco da postura exibida.

– Eu sou a melhor dominadora que ele já viu. – Repetiu zombeteira, cruzando os braços em uma postura bem humorada.

– Muito bem, melhor dominadora, mexa esse traseiro e arrume a bagunça, ainda temos muito que treinar.


Capítulo 32

A Dama da Lua

 


SERAFINE ENCAROU ÝVELA NUM misto de compaixão e ansiedade. A ondina, porém, só tinha olhos para a cena que ocorria à frente delas.

Faltava cerca de quatro dias para a realização da festa em louvor a Era dos Magos e a comitiva do Sul havia finalmente chegado.

Era início da tarde quando as trombetas soaram lá fora, tirando todos os presentes do meio de uma refeição. Ývela empalidecera e assumira uma postura rígida ao se aproximar do portão. Ela estava perturbada, o olhar outrora controlado desaparecido de suas feições; restava agora uma máscara de frieza. Era quase a mesma usada por Jon nas últimas semanas.

Guillian, com quem Serafine mais vinha mantendo contato desde que o treino com sua Tropa fora intensificado, estava parado ao lado das duas. Seus olhos azuis percorriam toda a área ao seu redor, as orelhas abanando-se em sinal de desconfiança.

Jon estava parado mais à frente, aguardando a comitiva. Serafine crispou os lábios ao se dar conta de que veria novamente o rosto irritante de lorde Hammel. Ela não sentira falta dele e de seu ar pomposo, que tanto lhe lembravam das atitudes de Klaus. Mas era Hammel quem oferecia ao Oeste um exército, caso a proposta de casamento fosse aceita. E o Rei parecia inclinado a fazê-lo.

Serafine ouvira relatos da marcha de exércitos sombrios, sobre a reunião estabelecida por eles em algum canto de Warthia. Jon havia sonhado com isso e continuava a sonhar.

O Rei temia por seu povo e também temia por aquele Reino. Por mais que o Oeste fosse uma fortaleza natural, aquele canto tinha suas fraquezas. Podia auxiliar tanto a eles quanto aos inimigos. As montanhas seriam proteções para os invasores caso conseguissem atravessar o Deserto; Deserto esse que podia ser facilmente dominado por criaturas sombrias, visto que os próprios Escorpiões Gigantes, servidores das Trevas, já atuavam por lá.

Foi a abertura dos portões de ferro que atraíram a atenção de Serafine, até então perdida em pensamentos.

A cavalaria passou por ali primeiro, carregando estandartes e lanças afiadas. Logo depois deles, lorde Hammel, com seus ombros encurvados e sua expressão envelhecida, montava um pomposo corcel de pelos avermelhados. A capa em suas costas era cor de sangue e os tecidos que usava eram dos mais finos existentes; seu olhar afiado recaía sobre o Rei.

Foi então que, montada num lindo corcel, tão branco quanto à neve, a prometida de Jon apareceu. Serafine encarou Ývela, que tinha se retesado no lugar em que estava, e sentiu algo rondando o olhar da ondina. Ciúme?

O que quer que fosse, era suficientemente intenso para que os grandes olhos de Ývela exibissem descaradamente.

A garota que acabara de chegar não devia ter mais de vinte anos. Possuía um rosto fino e de traços delicados, mas diferente da ondina, aquela moça não seria jovem eternamente.

Os olhos que esquadrinharam o local eram negros como o ébano, fazendo com que fosse impossível encontrar a pupila em meio a toda aquela escuridão. Sua pele era levemente corada e os cabelos avermelhados caíam até sua cintura em grandes e volumosos cachos. Tinha um nariz pequeno e lábios finos, e as sobrancelhas arqueadas pareciam arrogantes.

– É a Dama da Lua. – Ývela sussurrou quase que para si mesma, mas despertou a curiosidade em sua protegida. – Uma das mais belas donzelas do Sul, e também uma das mais cobiçadas. Jon deve se sentir honrado.

– Aquele nariz é pequeno demais para seu rosto. – Guillian comentou em menosprezo, mas estava claro que servia apenas para melhorar o humor da ondina.

– Está tudo bem, Ývi? – Serafine tocou seu ombro com afeto.

– Sim. – a loira suspirou alto, recobrando o controle. Seus olhos continuavam a arder em chamas azuis, mas o rosto estava novamente impassível. – Está tudo bem. – Pareceu garantir a si mesma.

– Majestade! – Lorde Hammel exclamou em alto e bom som, sua voz rouca ecoando pelo pátio de entrada. Serafine torceu para que a grande árvore Ancestral fosse capaz de adquirir vida e acertar algumas folhas afiadas na cabeça dele, mas nada aconteceu. – É com honra que me vejo aqui em seu palácio novamente. E é com maior honra ainda que venho para apresentar-lhe a minha preciosa pérola, Niara, a Dama da Lua.

– Vossa Graça. – A garota, que agora desmontara do corcel, fez uma reverência respeitosa para o Rei. Jon respondeu com gentileza.

– Fico honrado por tê-los em meu Castelo, lorde Hammel. Espero que sua estadia seja agradável, e que permaneça para partilhar de nossa comida e bebida durante a celebração à Era dos Magos. – o Rei virou-se para a dama recém-chegada, estendendo-lhe o braço formalmente. – Aceita um passeio, milady?

– Ficaria honrada, majestade. – Niara sorriu com doçura, uma doçura nada convincente, Serafine percebeu. Não gostou da maneira interesseira com que a ruiva encarava o monarca, mas Jon não reparou. Levou-a em direção aos jardins e ali desapareceram.

Theodore comandou os guardas, ordenando que levassem o resto da comitiva – criadas, soldados e damas de companhia – até seus aposentos, e também que eles recebessem um tratamento apropriado.

– O que achou daquela moça? A do nariz esquisito. – Guillian indagou a Serafine.

– Niara deve ter sido educada desde pequena para assumir o posto de uma rainha. – Theodore franziu o cenho. – Não gosto de ficar tirando conclusões precipitadas, mas o olhar dela pareceu estranhamente vaidoso...

– Senti a mesma coisa. – Serafine adorava tirar conclusões precipitadas. Ficou orgulhosa de si mesma por não ter sido a única a notar aquele detalhe. – Ela e lorde Hammel.

– Ele sempre foi estranho. – Theodore zombou em voz baixa, causando uma alta gargalhada na garota. Era raro ver o centauro usando do humor.

– Acha que o Rei vai aceitar a proposta de casamento? – Guillian perguntou.

– Ele precisa.


***


O salão estava vazio. Ývela ouviu seus passos ressoarem pelo piso de pedra, o farfalhar dos tecidos de seu vestido ecoando alto aos seus ouvidos.

A ondina caminhou calmamente pelo espaço, observando os vitrais coloridos iluminados pela lua da madrugada. Seus ombros pesavam pela responsabilidade neles colocada, seu olhar buscava por algum sinal, alguma ajuda divina em meio aos brilhos cintilantes das estrelas.

Nada. Não havia nada. Enquanto isso, sua mente se deixava dominar pelo mais puro caos.

– Deuses... – murmurou. – Por favor, mostrem-me um caminho. Ajudem-me a tomar a melhor decisão. – fechou os olhos, ajoelhando-se no círculo outrora usado para invocar a Fênix. Ela ainda sentia a energia daquele lugar vibrando ao seu redor. – Guiem-me.

– Ývi? – A voz que menos desejava ouvir naquele momento chegou até ela. Ývela abriu os olhos num rompante, virando o rosto para Jon; o Rei tinha um semblante sereno e curioso. – O que faz aqui tão tarde?

– Tive um pesadelo. – não quis mentir, mas foi fria com ele. Ergueu-se e arrumou as vestes. – Achei bom vir aqui, tentar... – o sorriso amargo cresceu em seu rosto. – Não sei bem. Buscar ajuda dos Deuses? Encontrar alguma esperança em meio a preces? Estou perdida. Não sei o que fazer, com quem conversar ou o que decidir.

– Quais escolhas atormentam sua mente? – Jon havia se aproximado. Ývela observou a aparência doentia dele, assustando-se com a velocidade com que o rosto dele se abatia. O que havia de errado?

– Meu Reino, Jon. – confessou. – Achei que, após todos esses anos, houvesse quebrado o vínculo que tinha com aquele lugar, mas venho percebendo que isso era mera ilusão de minha consciência. Minha alma ainda está ligada às Águas, meus familiares obrigam-me a ver o sofrimento de meu lar, de modo a atormentar-me por tê-las abandonado.

– Não foi culpa sua. Seu destino estava ligado a Warthia.

– Sim, mas elas não entendem isso da mesma maneira que nós. Há outras leis, outras ideias, egoísmo e falta de emoções. O nosso Reino é a única coisa que lhe importa, e nada mudará. – Ývela suspirou. – Prova disso é elas continuarem me atormentando, mesmo após minhas respostas de que voltar era impossível.

– Quando se tem um dever como esse, o de reinar sobre um território, o de tomar decisões por um povo... Nunca se está completamente livre dele – A voz dele denotou cansaço. Para a surpresa dela, Jon sentou-se no chão, olhando-a de baixo. – Estou cansado, Ývi. Cansado de ser forte, de ser justo, de seguir Leis, de aceitar acordos... Cansado da minha honra e do meu sangue.

– Não fale assim.

– Estou sendo sincero, como não venho sendo há muitos dias. – ele puxou os cabelos arrumados para trás com frustração. – Como tanta coisa mudou em tão pouco tempo? Há algumas semanas, você chegou, e então o caos a seguiu. Achei que seria tudo perfeito, achei que a paz poderia continuar por mais algum tempo... Mas não. As Trevas resolveram interferir novamente, arruinando tudo. E agora a festa se aproxima, e com ela a execução e... Meu noivado. – Ývela engoliu em seco, ignorando a ardência em seus olhos. Não chore. Ordenou a si mesma. Você não tem o direito de chorar. Você não entende seu coração, e não vai condenar Jon a segui-la nesta confusão.

– Como se sente sobre isso?

– Não acha cruel da sua parte perguntar isso a mim? – O olhar dele foi incisivo. Ývela recuou, surpresa pelo tom afiado. Jon havia se levantado e parado a sua frente. – Só você sabe como me sinto. Eu detesto esta ideia! Detesto pensar em tomar a mão de outra mulher que não a sua. Detesto o fato de que a mulher que dividirá a cama comigo não responderá ao nome Ývela.

– Jon... – ela suspirou. Amantes serão destruídos, foram às palavras da rainha para Ývela, pouco antes da ondina tomar a decisão de fugir de lá. A terra é cruel, como os sentimentos que nela habitam. A paixão condenaria suas almas a destinos cruéis, mais cruéis do que aqueles que já enfrentavam. Jon estava perdendo as forças, estava fraco e doente... Ývela sentia a culpa estraçalhando seus pensamentos. – Você vai superar. Vai se apaixonar por sua futura esposa e vai viver feliz com ela.

– Uma vida sem você ao meu lado nunca será completamente feliz, Ývi. – Ele acariciou seu rosto suavemente, puxando-a para um abraço logo em seguida. A respiração quente dele fazia cócegas no pescoço de Ývela. A ondina fechou os olhos, sentindo a tentação escorregar por sua pele.

– Está se sentindo bem? – Notou que o rosto dele adquirira uma palidez assustadora ao se afastar, como se ele estivesse prestes a desmaiar. Dor dilacerou o peito dela; é culpa sua, culpa do seu amor.

– Não sei, na verdade. – ele respirou fundo, com esforço. – Vou tentar dormir. Venho tendo várias noites de insônia, atormentado pelas sombras e suas andanças por esse mundo. Elas invadem minha mente de tal maneira que... Vez ou outra fico tomado por pensamentos sombrios durante o resto do dia. Nenhuma poção ou erva medicinal que eu conheça faz efeito – bufou, indignado. – Procurei no livro que Serafine me emprestou, mas nem meus antepassados conhecem algo para me livrar deste tormento. – claro que não, ela pensou. Seus antepassados não foram amaldiçoados pela minha presença.

– Se permitir, conheço uma combinação de ervas que te ajudarão a sentir melhor. – Ývela murmurou, listando as plantas que teria que usar. Jon tinha todas elas nos jardins daquele castelo, e alguns minutos depois, Ývela voltava com as ervas em mãos.

A ondina seguiu o Rei até seu quarto, o olhar preocupado e tímido sobre as costas ligeiramente encurvadas do Mago.

Lá dentro, pediu que Jon se deitasse enquanto preparava o extrato medicinal que Lonel a havia ensinado a usar. O fez sobre uma mesa de madeira muito escura, onde livros e pergaminhos estavam empilhados em todos os cantos, deixando pouco espaço para o trabalho.

A poção que se formou tinha coloração verde musgo e cheiro adocicado; Ývela a havia feito uma vez, tantos meses atrás, para Serafine, logo após o ataque a Vila do Sol.

A ondina deixou os olhos vagarem pelo cômodo enquanto separava a bebida numa taça; todo o quarto estava uma bagunça. Ainda que fossem os aposentos reais, o lugar mais ricamente adornado por móveis caros e tapeçarias antigas, Jon não fazia questão de organizar sua tralha.

– Envergonho-me por recebê-la aqui em tamanha desorganização. – Ouviu Jon comentar, e voltou-se para ele com um sorriso fraco. O Rei havia se sentado no canto da cama, os braços apoiados nas pernas, a cabeça pendendo para frente. Ývela notou que os ombros dele estavam trêmulos e a respiração ofegante.

Correu até Jon, ajoelhando-se para enxergar seu rosto. O jovem Mago fechara os olhos e parecia tentar relaxar, em vão.

– Beba isso – Entregou-lhe a taça. – Vai tirar sua tontura e te ajudará a sentir melhor. – Explicou cuidadosamente. Jon virou a bebida num só gole e franziu os lábios numa careta desgostosa. Ývela ficou de pé a sua frente, observando o suor frio que escorria pelas laterais de sua testa. Buscou por um pedaço de pano e secou o rosto dele lentamente, passeando o olhar consternado por suas feições abatidas. Jon fechou os olhos sob o toque dela, parecendo mais relaxado.

– Não deveria ter se sentado. – A ondina o repreendeu.

– Não importa, Ývi, continuo me sentindo mal – Jon a encarou abertamente. – Se me encontro abalado deste jeito com uma pequena crise, imagino que minha fraqueza não sobreviva à guerra. – Ele comentou em tom de gozação, fazendo-a cingir as sobrancelhas.

– Não fale assim! Você é forte, o que o está afetando nada tem a ver com fraqueza. – Você está destruindo ele, Ývela. Sua consciência retrucou.

Ele parecia perfeitamente bem no dia em que se encontraram. Tudo estava ótimo durante os primeiros dias de sua estadia também. Jon estava péssimo na Cidade Miragem, mas sinais mais fracos de que adoecia apareceram tempos antes; no dia em que se beijaram, por exemplo, Ývela se lembrou com assombro.

Ela se afastou, temendo tocá-lo, mas Jon notou sua hesitação antes mesmo que ela o fizesse.

– Ývi... Não. – ela se assustou com a rouquidão de sua voz. Ergueu os olhos azuis para os negros e viu-se presa a intensidade presente neles. – Não foi você.

– Como sabe? – indagou num fio de voz. – Amantes serão destruídos, Jon. – Ela cambaleou para trás.

– O amor não destrói Ývela. É por causa dele que eu me mantenho forte. – o Mago ficou de pé com esforço e segurou o rosto dela as suas mãos. Apoiou a testa contra a dela, fechando os olhos em paz. – Você é minha força. Não existe maldição prendendo-a a infortúnios, só o medo. Livre-se dele, Ývi. Fique comigo.

– Jon... – A ondina fechou os olhos com força. Desejo e razão batalhavam em sua mente.

– Ouça seu coração, como estou ouvindo o meu. Ao menos uma vez. Por favor. – ele a beijou suavemente, os lábios cálidos e atenciosos. Ývela perdeu-se no mar de amor que era o toque do Rei. – Só por esta noite, ignore suas decisões, assim como ignorarei as minhas. Esqueça seu Reino e suas preocupações. Esqueça a maldição e sua origem, assim como esquecerei todo o caos que me cerca. Seremos só Ývela e Jon. Feche os olhos e finja que não há mais nada ao seu redor.

Ývela quis que aquilo fosse verdade. Desejou aquilo com tanta força que se viu na ponta dos pés, rodeando os ombros dele com os braços, embrenhando os dedos nos cabelos longos e macios do Rei, deixando que ele a carregasse até a cama. Ela o beijou primeiro e quis fazer aquilo para sempre.

Fechou os olhos, deleitando-se com a carícia de seus lábios. O toque dele em sua pele beirou a cautela. Jon a encarou e havia tanto nervosismo e ansiedade no rosto dele que Ývela sorriu.

Olhos azuis, tão azuis quanto o oceano, mergulharam na escuridão acolhedora que eram as íris do monarca. Ela não se importou com as consequências; pelo menos por uma noite. Concentrou-se apenas na escuridão sob suas pálpebras e no coração do homem à sua frente e deixou-se mergulhar numa falsa e tola esperança.


***


Ývela contemplou o semblante adormecido do jovem Rei, delineando suas feições serenas com o olhar encantado. Sem querer, correu os dedos pela barba recém-cortada dele, acariciando os contornos de seu rosto, passeando pelas madeixas escuras que caíam sobre o travesseiro branco.

A ondina apoiou a o peso do corpo num braço e deixou que os minutos decorressem com lentidão, tirando-os para memorizar cada mínimo detalhe de Jon. Um dos braços dele a mantinha presa ao seu corpo, rodeando-a pela cintura fina, e o outro repousava sobre seu abdômen, subindo e descendo conforme ele respirava calmamente.

Ývela repousou a mão sobre seu peito, sentindo os batimentos cardíacos ternos sob sua palma. Diferente da euforia retumbante de horas atrás, Jon estava imerso em paz.

Suspirando profundamente, a loira ficou de lado para o corpo do Rei, apoiando as mãos debaixo do rosto. Fechou os olhos, mas temeu dormir. Temeu ser sugada para um pesadelo como os que a vinham assombrando ultimamente; temeu que uma de suas irmãs viesse atormentá-la, arrastando-a para longe da calmaria que Jon trouxera ao seu coração. Ali, naquele momento, ela era apenas Ývela; nenhuma outra preocupação deveria recair sobre sua mente.

Braços fortes a rodearam no instante em que se afogou em temor. Com um sorriso de alívio, Ývela deixou-se ser abraçada por Jon. Sentiu a respiração dele em seu pescoço, quente e ruidosa, e o corpo dele junto ao seu. Encaixou-se a ele, cobrindo as mãos do Rei com as suas, entrelaçando seus dedos.

– Tudo bem, Ývi? – Jon sussurrou sonolento.

– Sim. – ela respondeu incerta. – Tudo bem.

Notando que ela não se virava, Jon tornou o aperto mais leve.

– Eu... A machuquei? – Seu tom saiu temeroso. Ývela sorriu abertamente.

– Jon. – Murmurou seu nome com doçura, virando-se para que ficassem frente a frente. Os olhos dele eram poços de preocupação e ternura, íris de uma negritude fascinante. Eram sombras reconfortantes, uma escuridão amorosa. – Você nunca seria capaz de me machucar. – A ondina riu baixinho e beijou sua boca com rapidez e leveza. Jon estava sério quando se afastaram. Ývela estranhou sua reação.

– Eu a estou machucando. Estamos juntos, agora, mas e depois? Sinto que a estou usando, Ývi. Usando para experimentar a felicidade genuína antes de afundar na incerteza. – O Mago fechou os olhos, mas a carícia de Ývela em seu rosto o fez abri-los novamente.

– Você não está me usando, Jon. E se tem alguém aqui que se sente culpado, esse alguém sou eu. – Ývela respirou fundo. – Hoje foi uma exceção. Um ato de rebeldia nosso. Daqui a algumas horas, não poderemos mais ser só... Ývela e Jon. – ela sentiu um sorriso triste crescer em seu rosto. – A guerra está chegando, e, com ela, como peças importantes desse jogo, não poderemos agir com egoísmo. O que me machuca e sempre vai machucar é a cegueira quanto a um futuro em que não estivéssemos envolvidos na batalha por Warthia.

– Talvez isso possa acontecer, quando tudo acabar. – O tom esperançoso do Mago estilhaçou o coração de Ývela. Ela fechou os olhos e apoiou a testa contra a dele.

– Talvez, Jon. Mas não tenha esperanças. Sabe que o destino é cruel.


Capítulo 33

Desejo de Traição

 


TRÊS DIAS ATÉ A comemoração da Era dos Magos. Apenas três dias antes de Jon anunciar seu casamento com a Dama da Lua. Três dias até Leyona ser colocada em um altar de pedra, onde um arqueiro escolhido seria responsável por disparar uma flecha em seu coração. Três dias até Serafine ter um colapso nervoso.

A garota sentia seus nervos remoendo-se sempre que alguém mencionava a execução, recordando-se vividamente do dia em que havia presenciado uma. Esperava que, na próxima vez, conseguisse manter o controle. Não queria imaginar o que teria ocorrido caso Jon não a confrontasse. Caso Sibila não a acalmasse com aquelas palavras encantadas, ou mesmo se Jarek não a tivesse segurado.

Ela parou de andar quando se lembrou da maneira com que ele a abraçara, do modo como ele a encarara tão preocupadamente. Uma pontinha de esperança dizia que talvez fosse algo além do dever dele como guardião. Mas a razão sempre se sobressaía, e Serafine prontamente descartou aquilo. Jarek tinha coisas demais em sua cabeça, não havia qualquer possibilidade de... Bem... Gostar dela.

A garota estacou ao avistar aquele que atrapalhava seus pensamentos. Arqueou as sobrancelhas, questionando que tipo de brincadeira do destino era aquela. Não bastava ficar pensando em Jarek, agora tinha que encontrá-lo?

– Bom dia, princesa. – Jarek sorriu cordialmente, sem reter o humor.

– O que faz aqui?

– Eu vou bem, obrigado. – Ele disse mordazmente, os olhos escuros buscando no rosto dela qualquer coisa que denunciasse o mau humor. Jarek não encontrou nada. – Já tomou seu café da manhã? Deve estar morrendo de fome, o que explicaria essa sua postura ranzinza...

– Não estou ranzinza, só preocupada. – Ela parou próxima a ele. Encostou o ombro no pilar ao seu lado, os olhos fitando o céu cheio de nuvens brancas e fofas. Ciente do olhar de Jarek sobre si, Serafine voltou-se em sua direção. – O que? Não tem nada para fazer?

– Na verdade, não. – Ele sorriu com diversão. Ela grunhiu.

– Vá passear por ai, beber um pouco de vinho, você adora isso.

– Eu incomodo tanto assim?

– Sim.

– Ótimo. Então vou ficar. – Ele não sorria, mas sua voz estava carregada de diversão. Serafine parou com a boca aberta, pronta para soltar outra exclamação, mas acabou desistindo. Deu de ombros e voltou a encarar o céu.

O guerreiro ficou impaciente depois de alguns minutos em silêncio, o que quase a fez sorrir. Não fossem os pensamentos que cruzavam sua mente, ela até teria rido dele.

– O que foi? – Serafine finalmente perguntou. Havia vislumbrado o moreno tencionando dizer alguma coisa e, cansa-

da de esperar, soltou logo a pergunta. Jarek suspirou, quase com alívio.

– Queria pedir sua ajuda...

– Minha ajuda? – Ela sorriu com irreverência.

– Pois é, deixe-me terminar. Eu preciso visitar minha mãe novamente. – O humor em Serafine sumiu. Ela finalmente enxergou a ansiedade que Jarek tentava tirar da voz ao fazer o pedido. – Preciso falar com ela uma última vez.

Ela assentiu. Não negaria aquela ajuda a ele nem em um milhão de anos.

Se havia uma coisa que fazia o seu coração doer era pensar em família, e negar o encontro de Jarek com sua mãe seria quase um crime. Naquele momento, mais do que qualquer coisa, quis dar a ele a chance de se despedir. Coisa que ela mesma não tivera.

Segurou suas mãos e fechou os olhos. Concentrou todo o seu poder nas palavras que murmurou em seguida, tomando o máximo de cuidado – sabiam Deuses o que ocorreria caso as errasse. Quando abriu os olhos, Jarek estava completamente invisível.

Ela fez um sinal com a cabeça para que ele a seguisse e tomou a direção para os calabouços.


***


– Jarek! – Leyona exclamou, o olhar melancólico desaparecido de seu rosto ao avistar o filho. Ela estava numa cela separada agora, sozinha em meio à escuridão ao seu redor.

A fraca iluminação não impediu Serafine de vistoriar cela por cela enquanto Jarek conversava com a mãe. A curiosidade sobre os prisioneiros dali era maior do que sua cautela. Seus olhos percorreram mesmo os lugares vazios, encontrando marcas de seus antigos moradores nas paredes. Garras que havia se arrastado pela rocha. Lugares onde ela fora praticamente destruída por socos; espaços onde sangue seco ficaria marcado para sempre.

– Mynna... – A morena voltou seu olhar discretamente para onde Jarek ajoelhara-se. Leyona estava sentada em frente às grades, os olhos escuros intensificados pelo ébano ao seu redor. Ela parecia tão frágil ali, tão quebradiça. – Ela deve estar com tanto medo, Jarek. Eu gostaria... Eu gostaria de vê-la uma última vez. Mas eles a tiraram daqui antes que pudéssemos nos despedir.

Os outros Sturian haviam sido levados para outro nível, pelo que Serafine entendera. Ela havia pedido aos guardas que dessem passagem, pois gostaria de ver a Amaldiçoada uma última vez.

Foi quando notou que Leyona a encarava de volta, ao contrário de Jarek, que se mantinha de costas. Serafine identificou o olhar da mulher como sereno e amigável e, com um aceno, ela se aproximou.

– Serafine... – Leyona tinha a voz fraca. Os olhos seguravam lágrimas que a mulher não parecia temer derramar. – Obrigada por trazer Jarek aqui.

– Achei que fosse o certo a fazer – A menina sorriu fracamente. Os Deuses sabiam o quanto desejava poder ter se despedido da mãe.

– Jarek, contou a ela? – O olhar acusador de Leyona direcionou-se ao filho. Jarek continuava de costas a Serafine. A morena encarou mãe e filho seguidamente, tentando entender o que a mulher quisera dizer com aquilo. – Pelo que vejo, não.

– Era só uma ideia. – Jarek retrucou amargamente.

– Suas ideias costumam ser perigosas. – Leyona ralhou. – Onde está com a cabeça? Fugir? Como acha que agiriam se eu desaparecesse de repente?

– Você estaria a salvo.

– E por quanto tempo?

– Ei! O que está havendo? – Serafine parou ao lado de Jarek com uma expressão indagadora. O guerreiro não a encarou quando falou, usando em sua voz um tom frio e calmo.

– Eu estava pensando, e apenas pensando, que talvez pudesse tirar minha mãe daqui antes da... – Ele não conseguiu completar a frase. Ergueu-se para se afastar dali. Os músculos dos ombros estavam tensos debaixo da camiseta branca, os punhos cerrados ao lado do corpo. – Eu queria tentar salvá-la! E pensei que você poderia me ajudar. – Ele se virou para ela, sabendo o que uma troca de olhares transmitia para Serafine. Havia naqueles olhos azuis um desespero agonizante, do tipo que deixava a própria garota desamparada, mas ela tentou manter a razão.

– Você enlouqueceu? Quer que eu traia o governo? – Sibilou indignada.

– Eles nunca saberiam.

– É claro que saberiam! – Leyona e Serafine retrucaram juntas, encarando-se logo depois.

– Eu só... – Jarek levou as mãos à cabeça e puxou os cabelos para trás com força, erguendo os olhos para o teto. Com as mãos agora apoiadas na nuca, Serafine identificou pura frustração na pose dele. – Preciso fazer alguma coisa.

– Então aceite isso. Não fique se torturando por algo que não pode impedir. – Leyona esticou a mão na direção dele, mas Jarek não percebeu o gesto. O moreno continuou encarando o teto, o olhar agora perdido em fúria. – Como acha que seria se eu fugisse? Estou cansada, Jarek. Cansada das nossas fugas, cansadas de esconder quem eu realmente sou. Tenho orgulho do sangue que corre em minhas veias e do nome que carrego. Tenho orgulho do meu povo e dos meus filhos. Vou aceitar meu fim se for esse mesmo. Os Deuses me acolherão na outra dimensão e tudo ficará bem. – Ela sorriu docemente, de uma maneira completamente contrária a de alguém que estava à beira da morte.

Serafine lembrou-se de Guillian e de quando ele quase

fora morto, depois de Haius, do Sturian executado há alguns dias... Lembrou-se dos rostos de tantos outros mortos, como o seu pai e Mahiry e sentiu-se sufocada. A morte estava tão próxima que ela quase conseguia tocá-la. A sensação era insuportável, e ver Leyona calma estava ferindo seu coração.

– Meu filho, por favor...

– Não pode me impedir de tentar salvá-la. – A voz dele adquirira uma rouquidão profunda, de modo quase ameaçador.

– E como você faria isso, exatamente? – Serafine inquiriu, e tentou não se intimidar com o olhar feroz dele.

– Há túneis secretos na montanha. Usei alguns deles para fugir com Ývela um ano atrás, posso fazer isso novamente. Sei como me deslocar por lá, ela me ensinou os caminhos.

– E não acha que suspeitariam? Aqueles lordes seriam capazes de enviar um exército atrás de você apenas por terem seus egos feridos. – Serafine retrucou. O plano dele tinha alguns detalhes que poderiam dar certo, mas ela precisava se certificar de contradizê-lo.

– Que suspeitem! Já estaríamos longe quando eles partissem para o Deserto. Os túneis levam para caminhos entre as montanhas, suficientemente seguros e escondidos...

– Jarek, pare! – Leyona exclamou. O tom usado lembrava a Serafine o que sua mãe costumava usar quando a repreendia. Não havia ira, apenas preocupação. – Não vou permitir que você continue com essa loucura. Se necessário, o delatarei para os soldados. Não posso deixar que cometa esse erro. Eu não vou fug...

Um barulho nas escadas atraiu a atenção dos três. Serafine arregalou os olhos ao avistar Benídia com uma tocha em mãos, o rosto tocado pelas sombras do ambiente. Ela vasculhou algumas celas rapidamente antes de avistá-los. Quando ergueu os olhos para a cena à frente, a sua surpresa foi evidente – parecia haver indício de pânico ali, ou talvez fosse impressão de Serafine.

– Senhorita e... Hã... Jarek. – Benídia balbuciou encabulada, desculpando-se por ter interrompido a cena. – Achei que a Sturian não pudesse receber visitantes.

– E não pode. – Serafine adiantou-se até ela, fazendo uma prece silenciosa para que os Deuses a ajudassem naquele momento. Se alguém descobrisse que havia levado Jarek até ali... Ah, ela estaria encrencada. – Mas, por favor, não comente com ninguém. Ele me pediu, implorou para que eu o deixasse se despedir da mãe. – Olhou de soslaio para o guerreiro, com medo de que Benídia tivesse ouvido a discussão entre eles. Pelo olhar da garota, ela não havia notado.

– Tudo bem, Serafine. Não vou contar. – Benídia encarou Jarek, os olhos denotando estranha compaixão. – Imagino como um filho deve sofrer por ver a mãe nessa situação, não importa a sua raça. Minha boca é um túmulo.

– Obrigada. – Serafine sorriu sem muita convicção. – O que você veio fazer aqui? – Reparou que, por meio segundo, Benídia ficou sem saber o que dizer. O que, obviamente, indicava uma mentira.

– Vim procurá-la, na verdade. A prova de seu vestido precisa ser feita hoje, e imagine que depois de procurá-la pelo Castelo todo comecei a me preocupar. Pedi a um soldado e ele me informou que a havia visto vindo para cá... – Benídia deu de ombros, o rosto antes hesitante muito mais relaxado.

– Certo. – Serafine murmurou displicente. Ainda encafifada com a atitude estranha da garota, ela tentou deixar o assunto de lado. Precisavam sair logo dali antes que algum soldado suspeitasse da demora. – Hã... Benídia... Importa-se de ir à frente? Preciso enfeitiçar Jarek para que ele não seja visto pelos guardas.

– Claro. – Ela sorriu amigavelmente e retirou-se.

Serafine encarou mãe e filho lá atrás, suas silhuetas meio apagadas pelas sombras, e tencionou questionar se haviam notado algo de errado com Benídia. Não o fez, porém, percebendo que se mantiveram numa conversa sussurrante enquanto ela dialogava com a intrusa.

– Precisamos ir, Jarek.

Ele nada disse.

– Filho. – Leyona murmurou. Jarek baixou o olhar desolado; a mulher sorria, docemente. – Fique em paz. – Ele fechou os olhos, estendeu as mãos para Serafine e esperou o feitiço.

Lá fora, seguros de qualquer olhar curioso, Jarek virou-se para seguir seu caminho. Serafine o parou antes que ele se afastasse, segurando sua mão.

– Sinto muito.

– Não sinta. – ele rebateu friamente. Mesmo a sombra em seus olhos a assustou. – Ela pode não querer ser salva, pode estar cansada de fugir, mas eu também. Cansado de fugir da minha consciência. Cansado de tentar entender o que é a coisa certa. Minha mãe não me impedirá de tentar. E nem você – acrescentou rapidamente, como que finalizando o assunto. – Eu farei qualquer coisa para ajudá-la. Eu preciso fazer alguma coisa.

Desvencilhou-se dela, encarando-a com intensidade, e se afastou dali.

Serafine permaneceu alguns minutos parada no mesmo lugar, apreensão e ansiedade tomando conta de seu coração.

Antes, estivera completamente determinada a ajudar os Sturian por meio de diplomacias, agora via que a única opção coerente para livrá-los daquele horrível destino era a fuga.

Mas estava disposta a trair o Rei para salvar a vida daqueles considerados traidores?


***


Jarek não apareceu para o jantar, o que preocupou Serafine. Durante a refeição, a morena viu-se encarando a porta repetidas vezes, esperando pela aparição do Sturian. Ao fim, desistiu de aguardar. Na companhia de Guillian, ela deixou o recinto e vagou pelos corredores, procurando por seu guardião.

Não conseguia deixar de se preocupar. Mais cedo, o que mais se ouvia falar entre os soldados era a grandiosidade da execução de Leyona. Sobre como os lordes exigiram que não houvesse piedade. Jon estava tão afundado em problemas em relação aos outros Reinos que não podia se preocupar com aquela festividade. Cabendo aos seus conselheiros, Serafine sabia que a Sturian enfrentaria o pior.

E houve a execução, mais cedo.

Serafine vira um Sturian ser levado até o salão do trono para receber sua sentença, mas Guillian a impedira de assistir. O Atyubru bem sabia que aquela não era uma cena agradável aos olhos.

Pelo tanto que falaram sobre a morte, Serafine não podia deixar de imaginar o que Jarek estava tramando. Ele ia fazer alguma coisa. Ela se lembrava da certeza ansiosa na voz dele; preciso fazer alguma coisa.

Deuses, Serafine entendia. Entendia seu desespero e a ansiedade e o medo de assistir, impotente, enquanto arrastavam sua família para a morte. Ela havia sentido tudo aquilo de uma vez quando viu seu pai morrer, e experimentava a incerteza quanto a sentir tudo de novo ao pensar na mãe.

Precisava ajudar Jarek. Precisava mostrar que ele não estava sozinho.

Parou em frente às portas do quarto do guerreiro. Prendeu a respiração, medindo quão tola seria sua atitude frente aos olhos do Sturian; ele, provavelmente, nem a ouviria. Sequer abriria a porta. Depois da frieza usada mais cedo, talvez Jarek nem quisesse vê-la.

– Vá em frente. – Guillian incitou. O Atyubru a encarava

com carinho, como se entendesse a hesitação dela. – Jarek não vai negar sua companhia.

– Mas e você?

– Não. – ele balançou a pata. – O velho felpudo aqui não será de grande ajuda para o rapaz. Ele precisa de alguém que o entenda. – Guillian sorriu levemente. – Precisa de alguém com quem queira conversar.

– O que está insinuando? – Serafine sibilou de volta.

– Sabe bem do que eu estou falando.

Guillian fez um aceno e andou para trás, afastando-se de sua protegida em seguida. Serafine assistiu o orelhudo sumir no fim do corredor e só então retomou a coragem. Apesar do coração bater descompassado, ela precisava seguir em frente.

Timidamente, bateu na porta. Esperou por longos instantes, mas nenhuma resposta veio dali de dentro. Ela sabia que ele estava ali, no entanto.

Usando sua determinada estupidez, Serafine girou a maçaneta, e a escuridão a recebeu em um abraço incômodo.

Seus olhos adaptaram-se a pouca luz provinda da janela, e encontraram a silhueta do guerreiro recortada pelo luar. Serafine fechou a porta atrás de si, apoiando as costas ali. – Jarek? – Seu tom de voz saiu baixo e cauteloso.

O Sturian estava sentado no chão, as costas contra a cama. Tinha os braços apoiados sobre os joelhos e os ombros pareciam carregar o peso do mundo. Serafine hesitou quanto a se aproximar.

– Tudo bem para você... Se eu fizer companhia? – Ela indagou.

– Sem problemas, princesa. – Não havia o mínimo de provocação ou sequer animo na voz dele. Serafine se aproximou, encarando o espaço vazio ao lado do guerreiro. Ele tencionou dar-lhe mais alguns centímetros, mas a garota respondeu com um sorriso tímido.

Sentar-se ao lado de Jarek, naquele momento, foi constrangedor e surpreendentemente familiar. A insinuação de Guillian continuava atormentando seus pensamentos, e Serafine temeu se perder demais naquelas suposições e acabar imaginando coisas que não existiam. Sentimentos que não existiam.

Ela abraçou os próprios joelhos, apoiando o queixo sobre eles, enquanto mirava a janela a sua frente. O céu estrelado estava ao alcance de seus olhos, e ela buscou ali qualquer coisa que prendesse sua atenção. Depois de alguns minutos de silêncio, arriscou lançar a Jarek um olhar questionador.

Não esperava encontrar tanta fragilidade, e ficou bastante surpresa por Jarek não esconder aquilo. Por ele não fugir do seu olhar, por não virar o rosto ou por simplesmente erguer de volta aquele gélido muro de autocontrole, muro esse que mantivera Serafine afastada dele durante muito tempo.

Encarou-o com curiosidade, medindo as palavras a serem ditas, quando o próprio guardião falou:

– É tão injusto. – a garota assistiu-o tencionar os músculos, apertando os punhos com força. – Eles executaram Khei mais cedo. Ele era um bom homem, Serafine. Eu o conhecia desde pequeno. – Ela se lembrou de estar no corredor quando arrastaram o pobre velho até o salão. Lembrou-se de tê-lo olhado com crescente desespero, de ter desejado ardentemente parar os soldados e impedi-los de cumprir aquela sentença, e sentiu-se mal por ter visto aceitação nos olhos do ancião condenado.

Era a certeza de que, não importava o que qualquer pessoa fizesse, seu destino estava traçado. Linhas incorruptíveis que o guiavam até o fim da vida, linhas orquestradas pelos Deuses, pelos homens e pelas circunstâncias ao seu redor.

– É muito injusto. – a morena suspirou pesadamente. – Essa Lei é ridícula.

– Eu os ouvi, hoje. Os soldados. – o Sturian passeou uma das mãos pelo cabelo, bagunçando-os ainda mais. – Falaram da minha mãe. De como a execução dela vai ser grandiosa, um espetáculo aos visitantes. – ele pareceu descontrolado. – Eles vão matá-la em frente a todos! Vão humilhá-la como se fosse uma aberração. Ela está ao meu alcance e eu não posso fazer nada. – O guerreiro ficou de pé, andando de um lado para o outro como se lutasse para controlar a própria ira. Serafine o assistiu pacientemente.

– As linhas do destino são cruéis, Jarek. Não pode ficar se culpando pelo rumo que elas tomaram. – Sussurrou. O destino era imprevisível, mesmo quando obviamente previsto, a garota pensou. Depois de tantos anos fugindo da própria ruína, os Sturian a haviam encontrado mesmo assim.

– Não culpe o destino. Ele não tem nada a ver com isso.

– Você vai dizer isso a mim? – Serafine ficou de pé, mas não havia irritação em sua postura. – O destino é nosso guia, Jarek. Pode tentar escapar dele, mas não vai conseguir. Eu o sinto em mim, todo dia. – Encarou os arabescos pálidos contra sua pele e sentiu um calafrio ao pensar demais naquilo. Não havia porque trazer assuntos desconexos à tona, não quando a crise repousava nos outros.

Ao virar-se para encarar o Sturian, encontrou desamparo em seu rosto. Ele a encarava com suavidade, os olhos, sempre mares de intensidade, repentinamente tão abalados.

Jarek se aproximou. Segurou sua mão e encarou os mesmos arabescos que a garota estivera obsevando. Os dedos do guerreiro percorreram um dos desenhos sobre o pulso dela, seguindo as linhas que corriam em direção ao seu antebraço, uma carícia sutil e delicada. Serafine não percebeu que estava prendendo a respiração até precisar de ar.

– Gostaria de encontrar a coragem que move minha mãe. – Jarek confessou ainda próximo dela.

– Vocês dois são muito corajosos. – Serafine tentou sorrir, mas ele não a acompanhou.

– Há momentos em que entendo Sanzur.

– Jarek!

– Ele queria acabar com essa injustiça. Sou tratado como monstro o tempo todo, então por que não me tornar um? – Os olhos dele recaíram em sombras. Sombras que Serafine não gostou de encontrar.

– Você está falando sem pensar.

– É só que... Dói tanto. – ele respirou fundo. Afastou-se em direção a cama se sentou ali, silencioso por alguns momentos. Serafine não o pressionou para continuar falando, mas agradeceu aos céus por ver a expressão dele voltar àquela silenciosa calmaria. Era alarmante, mas não tanto quanto as sombras. – Dói não poder ajudá-los.

– Eu sei. Eu entendo.

Jarek despencou sobre o colchão, pouco se importando em deitar do jeito certo sobre a cama. Serafine sorriu em resposta.

Algo na postura dele, no jeito com que estava meio sentado e meio deitado na cama a fez querer se aproximar, a fez querer observá-lo pelas horas que se seguissem. A familiaridade dos gestos dele se mostrava confortável mesmo em momentos tensos como aquele.

Caminhou até a cama com a mesma polidez de antes. Sentou ao lado dele e lançou o seu olhar questionador.

– Ei...? Não posso dizer que tudo vai ficar bem, mas estarei aqui por você. Sempre que precisar. – Jarek desviou o olhar até seu rosto, e havia extrema gratidão nele. – Não fique tão surpreso! Já disse que te ajudaria se precisasse.

– Princesa... O que eu faria sem você? – ela arregalou os olhos quando Jarek segurou sua mão. – Vem cá.

Serafine arqueou as sobrancelhas em resposta, causando riso nele. Aquele riso genuíno, a gargalhada rouca e maravilhosa que a garota tanto adorava.

– Eu não vou morder, prometo.

A morena fingiu uma expressão desconfiada, mas deitou-se ao seu lado, com a mesma displicência com que ele havia feito. Jarek entrelaçou seus dedos, o toque tímido e caloroso. O Sturian trouxe a mão da garota até seus lábios, beijando as costas dela delicadamente.

– Obrigado. – Jarek sussurrou. Olhos dourados repousaram sobre as íris púrpuras dele. Serafine respondeu com o sorriso de antes.

A simplicidade daquela cena seria memorada por Serafine no decorrer dos próximos dias. Ela se lembraria de como o silêncio do quarto possibilitou a ela ouvir e apreciar as batidas do coração do Sturian e a respiração ruidosa conforme ele caia no sono. Serafine se lembraria de tê-lo observado pouco antes de também pegar no sono, e de ter agradecido aos Deuses por trilharem o caminho daquele guerreiro até o seu.


Capítulo 34

As Profundezas

 


FALTAVAM DOIS DIAS PARA a festa, e Serafine desejava poder voltar no tempo. Quando lhe disseram que os detalhes seriam minuciosamente preparados, ela pensou que havia certo exagero na frase. Infelizmente, não havia, e ela passara horas e mais horas parada na mesma posição enquanto uma velha senhora espetava agulhas em seu corpo para ajustar o seu vestido. A cerimônia seria grandiosa, afinal de contas. O Rei entregaria à Tropa de Arqueiros suas flechas mestras – as mesmas que Theodore agora passava horas moldando.

O vestido que a costureira estava preparando era elegante, mas seguia os padrões estranhos do Oeste, algo com que ela não se acostumara. O tecido era fino, vindo do Sul, e caía como uma suave brisa por seu corpo. O modelo longo tinha as laterais abertas em fendas e um cinto largo enrolava-se em sua cintura, prendendo-as. A cor era clara para combinar com os desenhos em seu corpo. A ousadia do vestido ou seus detalhes, no entanto, pouco lhe importavam.

Serafine passara a noite preocupada com Jarek. Ela não acreditou na paz encontrada no semblante do guerreiro. Ele estava sofrendo e não parecia querer desistir. E Serafine temia que ele fizesse alguma besteira.

Suspirou pesadamente ao encarar-se no espelho naquela manhã. A costureira estava terminando de anotar algumas medidas, resmungando qualquer coisa sobre quadril largo demais, deixando-a livre para vagar os pensamentos longe dali.

Ývela notou sua inquietação e, sentada de onde estava, lançou um olhar questionador.

– O que foi?

Serafine não queria falar na frente da visitante, então lançou à ondina um olhar preocupado. Pediu silenciosamente que a loira aguardasse. Seus nervos ainda fervilhavam ao se lembrar de que Benídia havia avistado Jarek lá no calabouço – desejava arrumar uma maneira mais perspicaz de silenciar a garota, como uma ameaça ou mesmo um feitiço, mas nada lhe vinha à mente.

– É sobre Jarek. – Serafine sentou-se na cama enquanto massageava o último local atingido fortemente por uma agulha. A velha costureira já havia se retirado, avisando que traria o vestido pronto no dia seguinte.

– Vocês dois estão muito próximos. – Ývela comentou curiosamente.

– Ele está mal. – Serafine suspirou. – Ontem à noite... Eu... – sentiu o rosto corar ao murmurar aquilo. – Eu fui até ele, e... Conversamos sobre a situação de Leyona. Estou com medo por ele, Ývi.

– Deve doer assistir a tanta crueldade com aqueles que ele ama.

– Ele está sofrendo em silêncio. Não sei por quanto tempo Jarek aguenta isso.

– Jarek é forte, mas toda força tem um limite. Fico feliz por saber que você pode ajudá-lo. Qualquer outra pessoa não teria conseguido. – o sorrisinho da ondina havia crescido. – Jarek se importa muito com você, sabe...

– Acho que ele vai fazer alguma besteira. – Serafine exclamou. Falou rápido demais, como se quisesse impedir Ývela de completar o pensamento; seu ritmo cardíaco havia aumentado subitamente, e estranho calor alastrou-se por seu peito.

– É para isso que estamos aqui, para impedi-lo. – O sorriso divertido de Ývela não durou.

– Ele quer ajudar a mãe a fugir da prisão. – a morena sussurrou, olhando em volta como se esperasse ver alguém. – Ontem foi tudo muito confuso, não tive coragem de falar com ele sobre isso.

– Posso conversar com ele, se quiser, tentar colocar algum juízo em sua cabeça. Mas acredite quando digo que ele não faria uma coisa dessas, ainda mais se pusesse em risco a segurança dos outros. Principalmente a sua.

– Como assim?

– Não acha que eles castigariam os prisioneiros pelo que uma foi capaz de fazer? Uma espécie de represália pela fuga? E o dever dele para com você é sagrado, Serafine, lembre-se disso. – Ývela arqueou as sobrancelhas claras. A mente de Serafine divagou sobre aquela suposição e prontamente a aceitou. – Falarei com ele mais tarde, prometo.

– Não consegue contatá-lo por meio dos seus poderes?

Serafine tinha medo que ele perdesse as estribeiras, como já parecia ter perdido, e jogasse tudo para o alto. E se ele não mais se importasse em ser discreto e cauteloso? Jarek andava sob muita pressão desde a sua chegada ao Oeste, e, como um vulcão, estava prestes a explodir.

– Está bem. – A ondina lançou um olhar significativo para sua protegida. A loira conhecia Jarek muito melhor do que ela, afinal de contas. Sabia do que ele era capaz. – Vou tentar achá-lo e pedir que venha aqui. – Ela fechou os olhos e respirou fundo.

Serafine encarou a ondina com curiosidade.

A postura da pequena guerreira estava rígida. Não havia nada nela de anormal. Depois de longos minutos de espera, no entanto, Serafine acabou se cansando.

– Ývela, você poderia...?

Ela tocou no braço da amiga, e arrependeu-se por isso.

Sentiu como se fosse sugada por uma forte ventania. O ar sumiu enquanto despencava; ficou difícil respirar. Seus olhos fecharam-se durante a queda, e Serafine logo soube que estava sendo transportada para uma visão.


***


O lugar à sua frente era diferente de tudo que havia visto até aquele momento.

Primeiramente, não havia ar ao seu redor, e sim água. A cor escurecia conforme seus olhos dirigiam-se para o horizonte; uma escuridão assombrosa coloria as profundezas do oceano.

O espaço era enorme. Tratava-se de um pátio, capaz de receber uma família inteira de gigantes. Altas vigas intrincadas por desenhos antigos erguiam-se ao seu lado, sustentando o teto centenas de metros acima de suas cabeças. Ao olhar mais para frente, Serafine entendeu que se tratava de uma sala do trono. Trono esse que não era muito ornamentado. Feito de pedra branca com apoio longo para os braços e encosto de – estaria ela vendo bem? – algas. De fato, algas esverdeadas estendiam-se sobre o assento, cobrindo-o com sua coloração intensa, e balançavam conforme as águas movimentavam-se.

Serafine olhou ao seu redor, buscando ajuda, e avistou Ývela. A ondina não parecia vê-la, pois se engalfinhava numa discussão com outra criatura. Aproximando-se com cautela, Serafine nadou de lado para ver aquela que discutia com sua amiga.

Era uma mulher. Da cintura para cima possuía um tronco esguio, cujos seios cobriam-se com uma armadura prateada. Os braços ornamentados pelas espirais azuladas estavam nus, e numa das mãos ela carregava um alto tridente de prata – as pontas afiadas estavam manchadas por um líquido negro pegajoso.

O rosto tinha traços delicados e jovens, apesar de seus olhos – grandes e azuis como os de Ývela – transparecerem uma sabedoria milenar. Serafine imaginou que aquela mulher fosse uma imortal muito velha; seus cabelos longos balançavam ao seu redor. A água produzia neles um brilho belíssimo, intensificando a cor vermelha das madeixas.

Da cintura para baixo, uma longa cauda esgueirava-se para lá e para cá. Não havia pernas ou pés, apenas aquela estranha combinação de peixe e mulher.

Serafine ouvira história sobre tal criatura – era uma sereia. Bela como uma deusa e mortífera como um monstro.

– Você deve voltar. – A voz da estranha vibrou pelo lugar com uma força assustadora.

– Não posso. – Ývela retrucou. – Pare de me chamar!

– A rainha está presa por um fio de vida. Se o sangue da primeira herdeira não estiver em nosso Reino quando ela falecer, a prisão dos leviatãs será arruinada. Nada os deterá.

– O Rei do Oeste já pensou em...

– Não estamos interessados na ajuda desses humanos tolos – a ruiva fez um gesto displicente com a mão livre. – Eles não entendem o que fazemos por eles e nunca entenderão. Reforços não são necessários, seu retorno é.

– Não...

– Veja a ruína que está esse lugar! – a mulher berrou e Ývela recuou um passo. Os olhos azuis da sereia haviam adquirido um furioso brilho avermelhado e seu rosto contorcera-se numa máscara horrenda. – O Reino das Águas está caindo e a culpa é toda sua!

– Eu...

– Os leviatãs estão se erguendo, traidora, e só você pode detê-los. – A sereia apontou para o horizonte e uma forte luz jorrou dele.

Serafine e Ývela foram transportadas para longe num piscar de olhos. Pararam sobre a encosta, à beira de uma enorme vala. Aquele lugar estava deserto, tão ao fundo do oceano quanto se podia imaginar.

Lá embaixo, presos em meio à escuridão, monstros urravam alucinadamente, estendendo suas garras afiadas em direção à superfície. Havia sobre aquele buraco uma espécie de energia mágica e pura, cujo brilho dourado se enfraquecia com o passar do tempo. Ainda era forte, isso se podia notar, mas ruía.

Serafine recuou quando o grito sepulcral emergiu do fundo da prisão; um grito tão arrepiante que atravessou sua alma como uma espada.

Ela sentiu dor, desespero e medo. Muito medo.

– A Luz... Nós vamos matá-la. – A voz gargalhou longamente, e foi essa gargalhada que as lançou de volta ao mundo real.

Ývela e Serafine abriram os olhos ao mesmo tempo, suas respirações ofegantes como se as houvessem prendido por vários minutos. A ondina encarou sua protegida, os olhos mostrando o mesmo medo puro e racional que as dominara durante a visão. O medo do desconhecido que estava por vir, do terror que aguardava aquele mundo.

Com aqueles pensamentos e com a voz da sereia reverberando nas exclamações raivosas, Serafine tomou uma decisão. Uma decisão perigosa, mas muitíssimo importante, que levaria até os Deuses se necessário para realizar.

– Ývela... Você precisa voltar.

E para a sua surpresa, a ondina não discordou. Só ergueu os olhos azuis para ela e assentiu com um aceno, o rosto antes tomado pelo terror moldando-se numa máscara rígida.

A princesa do Reino das Águas iria retornar.


Capítulo 35

Liberdade à alma imortal

 


OS SINOS ESTAVAM SOANDO, o que não era um bom presságio. Serafine nunca os ouvira e, pelo que haviam lhe informado, isso só ocorria em momentos de grande necessidade.

Os corredores que levavam até o salão do trono estavam uma confusão de soldados e pessoas curiosas. Serafine correu o mais rápido que pode, mas o mar de pessoas á sua frente a impedia de prosseguir. Quando se aproximou das portas, deixou a gentileza de lado e passou empurrando os curiosos, abrindo caminho até a entrada do salão.

O recinto estava ladeado por soldados, todos empunhando suas lanças na direção de duas criaturas paradas bem no centro. A luz do fim da tarde incidia pelos vitrais e deixava o ambiente estranhamente fantasmagórico.

Jon estava parado em frente ao seu trono, no rosto uma expressão de puro espanto. Ele não encarava, porém, aquelas invasoras, mas sim Ývela. A ondina estava próxima as duas, o olhar austero respondendo aos acontecimentos ao seu redor.

– Ývela, princesa das Águas, você nos convocou. – A primeira das criaturas murmurou, a voz ecoando pelo salão. Serafine finalmente reparou que aquela visitante era, na verdade, só uma imagem. Não estava ali de verdade, postando-se como um fantasma frente aos presentes.

– Sabe o que isso significa. – A outra disse em tom igualmente brando. Seus cabelos eram azulados, Serafine reparou, e balançavam ao seu redor como se um vento forte soprasse sobre ela.

– Sei, e fiz a convocação aqui para que o Rei tivesse ciência dela. – Ývela explicou enquanto encarava Jon. O mesmo perdia-se naquela conversa, parecendo cada vez mais confuso.

– O que está havendo? – Ele inquiriu.

– Ývela vai partir. – Serafine empurrou um dos soldados para o lado e caminhou na direção da guardiã. Ela avistou Guillian ali perto e o olhar dele foi de puro choque.

– Como assim partir? – o Atyubru intrometeu-se. – Ývela, você não pode...

– Posso. E sabe disso. – Ývela ergueu o queixo, o rosto assumindo seriedade. – É um grande sacrifício, mas preciso fazê-lo. Não há mais tempo a perder.

– Explique-se. – Jon exigiu.

– Tive outra visão do Reino das Águas, majestade. – Ývela disse. – Minha morada está perdendo forças pelo enfraquecimento de minha mãe e temo que sua morte esteja próxima. Se eu continuar vivendo em terra, causarei a ruína da cidade submersa e, assim, a de Warthia também. É o nosso Reino que aprisiona os leviatãs, como Vossa Graça bem sabe, e é o meu sangue que fortalece o oceano. Os Deuses me deram a missão de proteger Serafine, mas, sem meu Reino, não há porque tentar salvar Warthia. Eu preciso voltar e assumir o trono para que os titãs não quebrem sua prisão.

– Mas é evidente que o farão. – Jon replicou com crescente hesitação. – Não há motivo para abandonar Warthia se em determinado momento eles quebrarão aquelas barreiras.

– Quanto mais tempo demorarem, melhor. – dessa vez, Ývela encarava Serafine. – Minha protegida precisa prosseguir com sua viagem. Posso dar-lhes mais alguns meses de aprisionamento e também garantirei o apoio de meus exércitos quando a batalha em terra for eminente, mas as Águas necessitam de minha presença agora.

– E como fará para ir até lá? Fez um juramento de sangue para com os Deuses... – Guillian soou temeroso. Ývela sorriu com doçura por notar aquilo.

– A promessa de sangue diz que é necessária a entrega da vida para ser quebrado. – Uma voz soou ao fundo do salão. Sibila saiu de um canto escuro onde outrora observara tudo em silêncio, as cobras em sua cabeça estranhamente quietas.

– Sibila se voluntariou para assumir o meu lugar. – a ondina explicou, sorrindo suavemente.

– Cumprirei todas as regras, colocarei a minha vida antes da vida da protegida – Sibila murmurou.

– Mas, Ývi... – Jon soou como um garotinho perdido em meio à multidão, e Serafine sentiu tristeza por ele.

– Pela quebra desse meu juramento, eu ofereço aos Deuses a minha imortalidade. – Ývela relutou um pouco ao dizer aquilo, no rosto uma máscara de pesar, mas a voz soou imensamente controlada. – Quando a guerra acabar, eles decidirão se meu espírito aceitará a vida comum.

Serafine parou ao lado da ondina e segurou sua mão, lembrando-se das palavras que ela a havia ensinado a falar para aceitar aquela libertação. Depois da horrível visão que tivera do Reino das Águas, determinara-se a ajudar Ývela, e ela lhe contara que havia uma brecha no juramento, um sacrifício devastador que serviria para uma situação desesperada como aquela. Jarek e Guillian não podiam fazê-lo por causa de sua mortalidade, mas Ývela podia sacrificá-la.

Serafine não queria se separar da guardiã e temia nunca mais vê-la, mas a ondina lhe garantira que manteria contato. Seu poder psíquico serviria para que falassem vez ou outra, e a pequena prometeu que a ajudaria sempre que necessitasse.

– Ývela, não. – Jon deu um passo em falso, o rosto, por tanto tempo tomado por uma máscara fria, desmoronando em angústia. – Não pode fazer isso.

– Jon...

– Esse sacrifício... Ele é insano! Suas forças, seus poderes... Os Deuses vão enfraquecê-la até que seu espírito faleça – desespero denotou-se em sua voz. – Não. Por favor, não faça isso comigo.

– Serafine... Diga as palavras.

– Ývi... – A morena hesitou.

– Diga! – O tom cortante assustou a protegida, mas ela acabou anuindo.

– Eu, a escolhida dos Deuses, portadora do espírito tocado pelo poder divino, liberto você, Ývela, do dever para comigo jurado. – As palavras saíram tremidas. Serafine sentiu-as arranhando dolorosamente sua garganta. – Liberto-a para que proteja seu Reino e lute por Warthia da mesma maneira como lutou para me proteger. Que os Deuses aceitem seu sacrifício, pois eles sabem que o que está fazendo é para o bem desse mundo. – Serafine respirou fundo, sentindo o ar ao seu redor ficar mais denso. Algo dentro de si estilhaçou, e uma estranha dor tomou conta de seu peito. – Você está livre do dever como guardiã. Seu juramento comigo não mais existe.

Ývela fechou os olhos de repente, contraindo os lábios numa careta de dor, e Serafine temeu por ela. A aura ao redor do corpo pequeno da guerreira tremulou como a chama de uma vela prestes a apagar. A ondina caiu de joelhos, colando a testa contra o chão de pedra.

Jon correu em sua direção, assim como Guillian, mas Ývela os impediu de ajudá-la. Ergueu as mãos e, com dificuldade, pôs-se de pé.

– A marca foi tirada de sua alma. – Sibila murmurou roucamente.

– Acabou?

– Acabou. – o olhar de Ývela direcionou-se para sua outrora protegida, e havia nele o mais puro pesar. – Minha imortalidade se foi. Eu não sou mais sua guardiã, Serafine. – A morena queria abraçá-la, queria pedir desculpas por tudo aquilo. Queria oferecer sua alma aos Deuses, contanto que deixassem Ývela bem.

– Meu juramento deve ser feito. – Sibila parou ao lado da ondina, a voz suave e macia como uma pluma.

– Um juramento não pode ser feito assim, simplesmente. – Guillian não estava nada contente, Serafine notou. O orelhudo inflara as narinas ao murmurar aquilo, e os olhos brilhavam afiados. – É necessária uma preparação, precisamos que alguém ligado aos Deuses comunique-se com ele...

– Eu posso fazê-lo. – Sibila não virou o rosto para ele. – Minha mente está conectada à energia divina que emana nesse mundo. Eles irão me ouvir assim como ouvem qualquer outro filho que vive aqui em Warthia. Este salão ainda mantém-se conectado a energia divina da convocação, portanto, é cabível realizar o juramento aqui.

Serafine encarou o Rei enquanto os dois discutiam. Ele desviava o olhar de Ývela para as duas figuras fantasmagóricas, tão quietas quanto seres inanimados, que aguardavam pela princesa. A ondina precisava falar com Jon, isso se podia notar, mas parecia hesitante.

– Posso ser a testemunha. – Ývela disse repentinamente, encerrando a discussão que se seguia. – Mas precisamos ser rápidos, as sereias não esperarão muito tempo.

– São sereias? – Serafine olhou para suas pernas, completamente humanas, e estranhou tal fato.

– Quando pisam em terra firme, elas perdem suas caudas. – Ývela explicou. – Elas me transportarão para o Reino das Águas através da Luz.

Serafine surpreendeu-se quando Sibila tirou a faca que carregava em seu cinto e, erguendo-a sobre a palma da mão, traçou ali uma cruz. O sangue escorreu escarlate pela pele pálida, mas não chegou a pingar no chão.

– Com esse sangue derramado eu imploro – Sibila ergueu o punho para o céu e ergueu o tom de voz: – que os Deuses presenciem esse juramento e o aceitem; que a Ordem receba por meio das divindades um aviso; que os guardiões acreditem em minha força nessa missão; que os Quatro Elementos abençoem meu espírito... E que a protegida me acolha como sua protetora.

– Sibila, você jura servir aos Deuses? Jura cumprir sua missão acima de qualquer coisa? Jura pelo sangue que escorre em suas mãos? – Ývela indagou solenemente.

– Eu juro. Juro proteger a escolhida, juro ajudá-la nessa jornada cheia de perigos e iluminar o caminho daquela proclamada como salvadora de Warthia. – Sibila manteve o rosto direcionado para Serafine, que estava estática pela maneira como aquelas palavras soavam mais altas aos seus ouvidos.

E então um raio cortou o céu, riscando a cor acinzentada daquele fim de tarde com seu brilho espectral. Todos no salão ofegaram quando o trovão reverberou pelo salão numa frequência extremamente alta, um barulho ensurdecedor.

Serafine cobriu as orelhas com as mãos, assim como todos ali – exceto Sibila, que estava atenta a alguma coisa. O vento forte soprou, trazendo consigo estranhos sussurros. O ar rodou mais fortemente ao redor de Sibila, cujas serpentes agora se imobilizavam em sua cabeça.

A mulher prendeu a respiração por alguns instantes, e então o espetáculo acabou. O vento cessou, o trovão desapareceu e Sibila abriu a mão antes machucada. O sangue havia sumido e não havia cicatriz em sua palma. Não havia nenhum resquício de que o juramento fora feito além das testemunhas daquele evento.

Sibila era agora a nova guardiã, e a princesa do Reino das Águas estava livre.


***


Ývela nunca havia sentido tanta dor em toda a sua vida. A agonia foi excruciante, como se algo estivesse inflando seu peito e sua mente, fazendo com que o sangue parasse de circular em suas veias.

A ondina não pôde deixar de pensar que os Deuses talvez a estivessem punindo. Punindo-a por abandonar a Esperança, por estar indo embora quando a sua protegida precisava dela.

Mas era necessário, e ela esperava que eles entendessem.

O Reino das Águas tinha de ser salvo, era sabido que a herdeira do trono deveria assumir o trono. Ela relutou aceitar aquilo, durante todos aqueles anos, mas alguns destinos são imutáveis. Os leviatãs deveriam ficar presos o máximo de tempo possível, e só ela tinha o poder para fazer aquilo.

A princesa iria retornar; era por aquilo que os titãs esperavam. A ondina não os temia agora, mas lembrou-se da terrível sensação quando um deles falou aquilo. Do medo que correu por suas veias, que secou sua garganta e que a fez derramar lágrimas de desespero. Lembrou-se da maneira como a gargalhada do monstro arrastou-se por sua pele como uma lâmina afiada, machucando-a mais do que qualquer outra coisa.

Agora, retornaria para se certificar que mais ninguém sofresse aquilo. Iria manter aquelas bestas longe o suficiente para que Serafine tivesse tempo de destruir a Pedra, e também Sharowfox. Ou então partiria para a guerra.

Era por isso que encarava Jon. Em seus olhos havia o mais puro desespero, ansiando por sua compreensão. Queria resolver tudo com ele antes de partir.

Pediu para falar com Jon a sós, e as sereias permaneceram impassíveis àquilo, aguardando pela princesa.

No jardim lá fora, sozinha na presença dele, Ývela se deixou admirar o Rei pela última vez. Ignorou a aparência doentia dele, rezando para que Jon melhorasse logo.

Seus olhos examinaram o rosto de feições nobres, os lábios cheios que agora se apertavam numa linha rígida, os olhos tão escuros quanto o ébano, cuja sensação de paz que transpassavam era única.

Ela desejava poder esquecer as responsabilidades, poder apenas jogar-se nos braços dele e nunca mais se separar. Desejou retornar a algumas noites, quando se entregara de corpo e alma a Jon. Mas não podia. Não devia.

– Jon... – ela respirou fundo, ignorando os fortes batimentos do coração em seu peito. – Não... Posso me despedir. Às vezes, dizer adeus pode realmente significar adeus. E não quero isso.

Jon nada disse. Permaneceu rígido, os olhos colados no rosto da ondina, e por alguns instantes ficaram assim.

– Se houver um pouco de Luz em nossos caminhos, a distância não existirá por muito tempo.

Jon abraçou-a com força, com tanta força que foi capaz de tirar o ar da pequena guerreira, mas nada disso importava. Eram duas almas interligadas, distanciadas pelo dever e pela honra. Mas, naquele momento, nada mais importava. Nem suas coroas, seus nascimentos, seu futuro ou seu passado. Não havia guerra ou um casamento eminente.

Quando Ývela afastou-se para olhá-lo, soube que estava tudo bem. Jon havia compreendido; a dor dele desaparecera. O sofrimento viria mais tarde, pois a guerra certamente lhes traria agonia.

Estariam separados, mas suas almas seriam sempre unidas. Jon amaria Ývela eternamente, mesmo que o eterno não durasse muito.

Ela segurou o rosto do Rei entre suas mãos pequenas. Ele abaixou para que ela o alcançasse, fechando os olhos sob o toque da loira. Ývela contornou cada centímetro do rosto dele com as mãos, rezando para que seus detalhes ficassem marcados contra a sua pele. Tal como rezara para que aquela noite, em que foram só Ývela e Jon, jamais deixasse a sua memória.

Jon arfou quando a ondina acariciou seus lábios, mas ela não se deixou demorar. Beijou-o como gostaria de tê-lo beijado em todos os dias desde que haviam se conhecido, no que Jon correspondeu fervorosamente.

O calor de seus corpos estendeu-se ao coração desamparado do monarca. Ývela deslizou as mãos por seu cabelo e depois por seus ombros e braços, tentando memorizar o corpo dele em resposta ao seu toque. Seus contornos se misturaram e suas respirações se tornaram uma só.

Ývela se afastou de repente, acariciando sua bochecha. Apoiou a testa contra a dele e manteve seus olhos negros presos aos dela. Um último olhar melancólico foi o que gravou dele.

– Eu nunca quis que você sofresse. – Ela sussurrou.

– Eu nunca quis que você partisse.

Então a ondina marchou para o salão.

Abraçou Guillian e Serafine com força, segurando as lágrimas com que tanto lutara na presença de Jon.

A despedida foi rápida, pois tinha certeza de que eles entenderam. Assim como Jarek entendera, mais cedo, quando ela lhe contara sua decisão – não houvera lágrimas, apenas um abraço longo e um aceno positivo de que era a melhor coisa a se fazer.

– Sereias. – Ývela exclamou em alto e bom som. – Hora de partir.

A ondina apaixonada havia ficado para trás, abraçada a Jon. Seu Jon.

Ali estava apenas a princesa do Reino das Águas, a fria e determinada governante do exército. Ali estava a futura Rainha.


Capítulo 36

Há algo errado

 


SERAFINE CONTINUOU ANDANDO DEPOIS do jantar, nem um pouco disposta a ficar para ouvir toda aquela baboseira burocrática. Deixou para trás os lordes e os visitantes, o Rei e seus amigos. Queria ficar sozinha.

A grande e aguardada festa ocorreria no dia seguinte, mas Serafine não sentia muita vontade de participar. Fosse pelo fato de que a execução de Leyona ocorreria durante ela, ou porque se sentia demasiadamente solitária desde a partida de Ývela. Não no sentido literal da palavra, já que tinha companhia diversas vezes ao dia, mas espiritualmente.

Era como se a partida da ondina tivesse deixado um espaço vazio no presente, como se faltasse alguma coisa para que Serafine se sentisse completa. Não queria se deixar abalar, mas a verdade era que já estava. Sua amiga a havia deixado; uma amizade que nascera com rapidez, forte como qualquer outra, agora se tornava uma lembrança. Não sabia o que vinha pela frente, mas temia nunca mais reencontrar a loira.

Queria ter lhe perguntado quando voltariam a se ver. Desejou ter questionado qualquer coisa sobre os riscos daquela viagem, sobre o que a sua amiga iria enfrentar ao assumir o trono das Águas. Pediu aos Deuses que protegessem Ývela e que ela logo entrasse em contato.

Serafine não pôde deixar de pensar em Mahiry enquanto caminhava, na maneira abrupta com que a amiga também havia partido.

Mahiry morrera. Ývela se fora. Haius e seu pai estavam mortos. Sua mãe estava desaparecida.

Serafine vinha perdendo pessoas importantes durante aquela viagem, indivíduos insubstituíveis. Os deveres deviam ser colocados antes das emoções, Serafine finalmente entendia aquilo. Ývela havia sacrificado a sua alma imortal, condenado a si mesma a sabiam Deuses lá que futuro, de modo a dar a Warthia uma maior chance de se proteger.

E dependia de Serafine manter aquela chama de esperança acesa. Dependia de sua força para salvar aquele mundo; e parecia à jovem que esse destino estava cada vez mais eminente.

Um destino intrincado por mistérios, ela se lembrou.

O ciclo estava começando. Era questão de vida ou morte.

– Milady! – ela sorriu fracamente ao virar-se para Guillian, que vinha apressado na sua direção. – A vi saindo do salão e resolvi fazer companhia, atrapalho?

– Claro que não.

– Parece meio... Perturbada. – ele franziu o cenho. – Algo a inquieta?

– Muitas coisas – confessou com um suspiro. – Coisas demais, eu acho.

– Não é a primeira e nem a última jovem que vai se preocupar com coisas demais. – Ele disse descontraído.

– Mas aposto como as jovens não se preocupam com um possível apocalipse. – Ela rebateu mordazmente, fazendo-o pensar. Guillian assentiu.

– Sabe que pode contar comigo para qualquer coisa que precise, até mesmo para um desabafo, não é? – Guillian sorriu amigavelmente. – As coisas andam difíceis para você e para os outros. Sinto-me culpado por não poder ajudá-los como deveria.

– Oh, Gui, sua presença já ajuda o suficiente.

– Pois então fale comigo, milady. Diga suas perturbações.

Ela sentou-se quando começou a falar, esperando que Guillian pudesse ajudá-la. Tentara não pensar muito naquele ocorrido, mas ele persistia em assombrá-la.

– Não me lembro de ter sonhado com alguma coisa esta noite, mas tive a sensação que se tem quando pesadelos vêm à nossa mente, sabe? Acordei com o susto, como se alguma coisa estivesse muito errada. Como se a realidade e o sonho ainda estivessem se misturando... E mesmo que mais fraca, essa sensação ainda me persegue.

– Percebi o quanto estava evasiva... – Guillian comentou. – Foi por causa disso?

– Na verdade, eu não sei... Queria entender de onde vêm todas essas estranhezas. – Serafine bufou. – Faz um bom tempo que eu não ajo normalmente. É como se minha consciência estivesse tentando me alertar... Mas me alertar de que, exatamente? E ainda houve aquela situação em Cidade Miragem, aquela... Marca das sombras. – Estremeceu com a lembrança.

– Não se lembra de onde é que sempre tem essas sensações ruins? – Guillian coçou o queixo enquanto pensava. – Pode estar relacionado a alguém. Espíritos ligados à natureza e a energia desse mundo tendem a sentir vibrações ruins que emanam de pessoas. Pode ser uma explicação.

– Quer dizer que alguém aqui é ruim? – Serafine sussurrou a pergunta, olhando em volta com medo de que estivessem sendo observados.

– Não. Quero dizer, não sei. – o orelhudo franziu o nariz. – É uma hipótese. Ou ele está se manifestando por causa da Primeira Feiticeira, por Sharowfox estar se erguendo, pelas atividades sombrias estarem cada vez mais fortes.

Serafine assentiu hesitante. A primeira suposição do Atyubru, de alguma maneira, fazia bastante sentido para ela. O Castelo estava repleto de sulistas, afinal.


***


Começou como qualquer outro sonho.

Serafine havia acabado de se deitar, acreditando que demoraria a dormir, tamanha sua agitação por causa do próximo dia. Sua conversa com Guillian ainda reverberava como que num alerta de que não deveria ser esquecida. Havia algo perigoso rondando-os, ou alguém.

Fechou os olhos com o intuito de relaxar e acabou jogada para fora da realidade.

O lugar parecia deserto, sem qualquer ruído indicando a presença de outra pessoa. Sua respiração era o único som audível no corredor, cujas paredes feitas de pedra pura separavam-se por um espaço estreito. O teto não era muito alto, mas Serafine conseguia passar por ali sem ter que abaixar a cabeça.

A única luz provinha de algum lugar mais à frente, de um brilho fraco e fantasmagórico que em nada denotava segurança, mas Serafine viu-se içada como uma marionete e forçada a andar. Não tinha controle sobre seu corpo, ainda que a mente estivesse consciente.

– O que está havendo?

O eco correu túnel adentro e estendeu-se até depois da luz, deixando clara a presença da garota para qualquer coisa que ali havia. Frustrada, Serafine tentou mover os braços para agarrar as paredes, sem conseguir.

– Fuja.

Ela congelou quando a palavra soou em seus ouvidos.

Vinha da mesma direção que a luz. Era Ravenne! O alerta soou tão desesperado que causou medo na morena. Ela tentou novamente mover os pés, mas eles continuavam a caminhar para frente.

– Fuja.

– Por quê? – Serafine retrucou.

O brilho que iluminava o corredor se intensificou. Quando fez uma curva no túnel, Serafine recobrou o movimento do corpo e tapou os olhos com as mãos, tamanha a intensidade com que a luz brilhou.

– Não pode ficar na Fortaleza.

Serafine entreabriu os dedos e olhou pelas frestas. Aos seus pés havia um enorme buraco, sem uma ponte para ligá-lo até a entrada da caverna. A distância para um salto era absurda e não parecia haver fim na vala a sua frente. As paredes da caverna, tão pedregosas quanto às do túnel, ostentavam estranhos e rústicos desenhos antigos. Desgastados pelo tempo, Serafine podia notar, mas que brilhavam com a intensidade de uma tocha recém-acesa.

– Fuja antes que seja tarde. Use as passagens. Seu guardião sabe quais são.

– Do que você está falando? Explique-se!

– Fuja da armadilh-... – Ravenne foi interrompida.

E com um susto Serafine sentou-se na cama.

Ofegava como se tivesse passado horas num treino. Suas mãos tremiam compulsivamente e a mente estava enevoada por confusão.

Durante o pesadelo, nada fizera sentido, pensou consigo mesma, mas, naquele momento, uma das frases proferidas por Ravenne serviria para alguma coisa. Sabia a quem procurar.


***


Esperava que Jarek a compreendesse.

Quando Ravenne falou sobre passagens, Serafine recordou-se de Ývela. Lembrou-se de que a ondina e o Sturian haviam fugido por túneis secretos sob o Castelo. Não sabia se mais alguém os conhecia, mas, naquele momento, desejava que não fossem vigiados. Que pudesse convencer Jarek a mostrá-los sem qualquer impedimento.

Seria difícil explicar ao Rei o porquê de querer avaliar túneis na companhia de um Sturian que tinha extensos motivos para querer fugir dali.

Parou à frente da porta que levava ao quarto dele sem saber como perguntar aquilo. Da última vez que estivera ali, compartilhara com Jarek um momento poderoso. Algo entre eles havia mudado, ela sabia disso.

Apesar do nervosismo, ela ergueu o punho e bateu na porta diversas vezes, ansiosa para acabar logo com aquilo.

Jarek demorou a atendê-la e, quando o fez, exibiu no rosto uma mistura de surpresa e preocupação. Serafine compreendia perfeitamente a reação dele, só esperava que, com sua explicação, tudo ficasse mais claro.

Ela tentou ignorar o fato de que Jarek usava apenas a calça para dormir – e que ela pendia de maneira perigosa, de modo que o tronco marcado pelos músculos fortes estava exposto demais. O formato da cintura dele atraiu o olhar de Serafine de tal modo que ela imaginou como seria delinear o corpo dele com as mãos e, Deuses, estava ali para outro assunto!

Fixou seus olhos no rosto do Sturian num susto, sentindo as bochechas esquentarem.

– Boa... Noite? – Jarek olhou para fora, constatando que o céu estava fracamente iluminado. O Sol começava a despontar no horizonte. – O que aconteceu? – Assumiu um ar ansioso.

– Precisamos conversar.

– E não podia esperar até o Sol dar as caras por completo? – Ele resmungou com bom humor, mas deu passagem para que a garota entrasse. Serafine se sentiu um pouco nervosa ao fazê-lo, mas tentou demonstrar suavidade. Jarek passou a mão pelo cabelo desgrenhado, despenteando os fios longos ainda mais.

Ela lhe lançou um olhar controlado antes de falar:

– Tive um sonho estranho.

– Sonhos estranhos são normais na sua condição, princesa. – Jarek deu de ombros, encostando-se a porta atrás de si numa pose descontraída. – Quer conversar sobre? – O olhar demonstrava cansaço, mas a voz perdera o tom rouco de sono.

– Quero pedir sua ajuda para investigá-lo.

– Perdão?

– No sonho havia alguma coisa me guiando por um corredor estranho. Havia uma voz também. Eu não podia parar de andar, não tinha controle sobre o meu corpo. Notei uma vala no chão e, do outro lado, havia uma pequena caverna. – Serafine continuou encarando Jarek quando parou de falar, e encontrou reconhecimento no rosto dele. – Você e Ývela fugiram por passagens secretas, e me pergunto se havia uma gruta nesse mesmo caminho pelo qual seguiram.

– É, havia uma gruta. – ele arqueou as sobrancelhas. – Mas o que tem demais? Foi uma mera visão, você enxergou os túneis subterrâneos, grande coisa.

– É aí que está! Quando eu cheguei naquela gruta, a voz me mandou fugir. Disse que havia uma armadilha... Eu não tenho meras visões, elas geralmente significam algo. E se uma coisa ruim estiver para acontecer? Havia algo estranho na gruta na vez em que vocês passaram ali? – Indagou tudo rapidamente, e então fez uma pausa para que ele se inteirasse das perguntas.

– Havia algumas inscrições na parede, coisa antiga. Ývela disse que tinha a ver com a construção desse lugar... As passagens foram edificadas como um refúgio para as montanhas, mas não conheço a lenda das imagens gravadas na parede.

– Mas havia imagens. – Serafine replicou mordazmente.

– Sim, mas como eu disse... Não há nada relacionada a elas que eu saiba.

– Pode me levar até lá?

– O que? – Jarek exclamou abruptamente. – Ficou maluca? Quase ninguém ou, atrevo-me a dizer, ninguém conhece essas passagens! E quer que eu a leve até lá assim?

– Eu preciso!

– Se descobrirem, isso pode estragar... – Ele calou-se com um susto, mas percebeu que havia falado demais.

– Estragar o que? – Serafine estreitou os olhos. Jarek suspirou, mas não respondeu. Parecia estar em conflito consigo mesmo. – Jarek, o que está planejando?

– Tirar minha mãe daqui hoje, é isso que estou planejando. – O moreno ergueu as mãos para o alto num gesto frustrado.

– Você está louco? Quantas vezes ela lhe disse que você não pode e nem deve fazer isso?

– Não me importo com o que ela disse. Se houver uma chance de salvá-la, eu o farei.

– Vai acabar matando vocês dois!

– Se você tivesse tido qualquer chance de impedir a morte de seu pai, não teria se arriscado?! – Jarek exasperou-se, e pareceu arrependido em seguida.

Serafine deu um passo para trás, surpresa pela convicção com que sua mente assentiu. Sentou-se na cama dele, com o olhar ainda estupefato.

O guerreiro dirigiu-se até ela e sentou-se ao seu lado, colocando um curto espaço entre seus corpos. Jarek apoiou os braços nas pernas, inclinando o tronco para frente – Serafine identificou desesperança na postura dele, assim como desistência. As costas marcadas por cicatrizes estavam tensas, os músculos bronzeados retesados.

– Desculpe. Eu não queria ter dito isso. – Jarek quebrou o silêncio, encarando-a com suavidade.

Pensando com mais clareza, Serafine de fato teria feito qualquer coisa para impedir a morte de seu pai. Se pudesse voltar no tempo, teria lutado e até mesmo perdido a vida para salvá-lo.

Mas temia por Jarek. Sempre suspeitara que o amor e o desespero que ele sentia pela mãe o levariam a fazer alguma loucura. Ele era determinado demais para ficar sentado de braços cruzados enquanto executavam-na.

Contudo, se escolhesse aquele caminho, ele teria que fugir também. Teria que abandonar Serafine para ajudar sua família, assim como Ývela havia feito. O juramento o impedia, então como Jarek lidaria? Estaria ele pensando nas consequências daquela fuga? Como ele ajudaria os outros Sturian?

Serafine teria que pensar por ele. Por isso, ela tomou sua decisão. Uma decisão estúpida e absurda que certamente lhe renderia grande dor de cabeça no futuro, mas que pareceu a mais aceitável naquele momento. Jarek já havia salvado sua vida incontáveis vezes, era a hora de retribuir.

– Me mostre essas passagens. Vou ajudá-lo. – ela murmurou com tamanha certeza que foi capaz de surpreender o guerreiro. – Farei algo para tirar Leyona e os outros daqui.

– Se as autoridades descobrirem que está me ajudando...

– Meu treinamento com o Mestre está quase acabado. Minha formação como arqueira se dará mais tarde nesse mesmo dia. Acho que já é hora de prosseguirmos com nossa viagem... Não posso perder mais tempo aqui no Oeste. Os outros Mestres devem ser encontrados. – ela suspirou pesadamente. – Se uma fuga é o melhor que temos para também salvar vidas, então prefiro partir assim. Iremos pelas montanhas, leves e rápidos, e cuidarei para que os Sturian venham conosco até um lugar seguro.

– É arriscado demais... – Jarek passou as mãos pelo cabelo. – Eu deveria estar colocando você em primeiro lugar. Como esperança, sua vida importa mais do que qualquer outra, fiz um juramento de sangue e estou agindo tolamente...

– Eu não sou mais importante do que ninguém aqui. – Serafine retrucou. – E tomei minha decisão. – ela ficou de pé. Jarek ergueu o rosto para observá-la, seus olhos brilhando em orgulho. – Não é certo deixar esses inocentes para trás. Não quero ser a esperança se não puder salvar vidas que julgo dignas. Eu vou ajudar sua família. Fugiremos durante a celebração.


Capítulo 37

Passagem Secreta

 


JAREK FOI À FRENTE, mantendo os passos largos e suaves, quase felinos. Serafine tentou acompanhá-lo o mais rápido e silenciosamente que pode, mas a tarefa se mostrou difícil.

O guerreiro havia aceitado mostrar-lhe as passagens secretas, mas exigira silêncio total de sua protegida. Disse que passariam por uma série de corredores muito patrulhados e que o cuidado deveria ser extremo.

Quando chegaram perto do lugar desejado, Jarek fez um sinal para que ela se aproximasse e sussurrou:

– A passagem fica perto da estátua, está vendo? – Apontou para um guerreiro esculpido em rocha cinza. Segurava uma larga lança na mão direita, junta ao peito, e no esquerdo havia um escudo cheio de emblemas.

Serafine correu os olhos pelos detalhes na figura petrificada logo que a alcançaram. Reparou na maneira perfeita com que o rosto fora desenhado, o semblante sério e digno de um soldado. Os emblemas no escudo eram diversos, muitos deles em língua antiga, e Serafine sabia que a maioria deles se referia á proteção.

Quando sons de passos começaram a ribombar pelo corredor, Jarek apressou-se e endireitou um dos emblemas, que estava de ponta cabeça. O soldado deslizou para o lado num som oco e um estreito cubículo se revelou dentro da parede.

Serafine correu para o espaço apertado e Jarek fez o mesmo. Constrangimento instaurou-se entre eles ao verem-se cara a cara, pressionados pelo pouco espaço. Os passos ficaram mais apressados e a garota temeu serem pegos no flagra. O soldado, no entanto, voltou para o seu devido lugar, lacrando-os ao cubículo.

Sem ousar se mover, Serafine esperou pelos instantes que se seguiram enquanto Jarek tateava no escuro a parede atrás da garota.

A mão de Jarek esbarrou em sua pele, bem no espaço descoberto pelo vestido aberto, e Serafine podia jurar tê-lo ouvido prender a respiração.

– Achei! – Ele exaltou. Com um puxão, alcançou uma pequena alavanca encaixada no canto direito da parede. Outra passagem se abriu, dando chance de Serafine esquivar-se.

A porta se fechou atrás deles num baque.

– E então, gênio, como vamos voltar?

– Há um túnel lá na frente, com uma bifurcação. O da direita leva para uma passagem que é facilmente alcançável. Sai dentro dos calabouços. Não arrisquei usar essa entrada porque era muito perigoso. O corredor da esquerda leva até os túneis que você falou, e tem uma passagem para uma das torres a oeste.

– Ótimo, e você sabe voltar para cá?

– Sei. É um longo caminho, pode levar uma hora, talvez mais. Quer mesmo fazer isso?

– Sim.

– Foi mais fácil com a orelhuda aqui. – Jarek referiu-se à

Ývela com um pouco de diversão. Serafine imaginou Jarek e Ývela dentro daquele cubículo e sentiu uma estranha onda de ciúme, ainda que não houvesse motivo para tal. – E mais emocionante... – a expressão da morena azedou. – O túnel do calabouço não estava disponível na época, visto que Ývela não queria mostrar aos monstros lá presos como fugir. Enquanto corríamos, ela ficava passando informações e contando sobre a missão.

– Que bom. – Serafine não queria, mas acabou soando rude pela emoção com que ele relatou aquilo. Tomou a frente e começou a caminhar túnel adentro. – Você vem ou não?

– Qual é o seu problema? – Jarek replicou indignado. – Vai andar por ai sem luz?

– E eu por acaso tenho uma tocha?

Jarek estalou os dedos e uma pequena chama avermelhada surgiu na palma de sua mão. Maldita magia élfica, pensou Serafine. O sorriso presunçoso de Jarek serviu para irritá-la ainda mais. Queria que as luzes do sonho voltassem e então ele não seria mais necessário. Desejou que Guillian estivesse ali com ela. Seria menos irritante e menos constrangedor.

Longos minutos de caminhada se passaram até Jarek resolver quebrar o silêncio.

– E então... Quer falar mais desse seu sonho estranho?

– Não, eu estou bem. – ela retrucou. Jarek encarou-a com desconfiança. – O que? Já contei tudo o que me lembro. Outros detalhes passam embaçados, como se não fossem tão importantes. – ela bufou. – Uma coisa que me encafifa é o motivo dele ter acontecido... Aquela voz estava me alertando para fugir. Por quê? Do que eu tenho que fugir? Por que as pessoas não podem ser diretas e claras?

– Warthianos adoram mistérios.

O túnel estendia-se por metros e metros, engolido por uma nada acolhedora escuridão. A luz fornecida por Jarek não iluminava por completo, deixando o desconhecido por vir.

– Jarek... Tem certeza de que esses túneis são seguros? – Ele notou o temor na voz da garota e, para sua surpresa, não zombou disso.

– Foi o que Ývela me garantiu. Se mais alguém tem conhecimento, não arrisca vir para cá. Ele leva para muito longe, para caminhos intrincados nas montanhas atrás do Castelo... Só os muito desesperados vão para lá. – ele sorriu um pouco. – Quando fugi com Ývela, levamos cerca de uma semana para alcançar o Deserto. Pretendo fazer em menos dessa vez.

– Espero que dê tudo certo. Não gostaria de encarar Jon depois dessa traição – Serafine engoliu em seco.

– Está com medo?

– Estou com medo de fugir, sim. Mas, acima de tudo, com medo de trair meus amigos.

– Serafine. – Jarek parou de andar e voltou-se para ela. A luz bruxuleante da chama vermelha brilhou intensamente nas feições fortes, mas principalmente nos olhos. Púrpuras e misteriosos. – Sei que o que eu vou dizer soa errado, mas essa traição é necessária. Vamos impedir que almas inocentes sejam mortas e que o Rei cometa um erro tremendo. Fugir não é bom, mas logo que alcançarmos o Sul estaremos a salvo. Minha mãe tem contatos lá que poderão nos ajudar e...

Um estalo alto fez com que Jarek interrompesse seu discurso. Os dois se viraram para a direção de onde o som viera, assombro e surpresa expostos em seus rostos.

– O que foi... – Jarek tapou a boca da morena, fazendo-lhe um sinal para que ficasse quieta, e fechou a palma da mão contendo a chama, de modo que a escuridão voltou a reinar.

Da direção pela qual os dois seguiam, um som gutural começou a crescer. Como um forte rosnado selvagem.

Serafine bateu as costas contra a parede quando Jarek a empurrou. O dono daquele som caminhava até eles.

– Não respire. – Jarek sussurrou. O moreno pressionou seu corpo contra o dela, abraçando-a protetoramente, e então eles aguardaram. Serafine desejou poder enxergar qualquer coisa, mas a escuridão era tão absoluta que chegava a ser palpável.

O som persistiu até ficar mais alto e assustadoramente próximo. Serafine agarrou-se a Jarek com mais força quando o frio congelante apossou-se de seu corpo.

Por um breve instante, a criatura, ou o que quer que fosse, parou bem ao lado deles, a respiração farfalhante misturando-se a sua voz grave. Serafine reparou, chocada, que o monstro estava murmurando qualquer coisa em uma língua desconhecida. Não era a antiga e muito menos a comum – parecia errada e atormentadora.

A garota sentiu algo roçando em seu braço, algo tão denso quanto um pesado tecido e tão áspero quanto à parede em que estava encostada. O frio em seu corpo aumentou absurdamente e ela temeu estremecer. Lutou contra si mesma para não se retrair, tamanho asco ao sentir-se tocada por aquela coisa. Jarek apertou-a mais, os braços fortes formando um escudo ao seu redor de seu corpo.

Então o som desapareceu em pleno ar, tão rápido quanto havia chegado. O toque da criatura também sumiu, mas Jarek esperou até que o último resquício de murmúrios se dissipasse para falar.

– Você está bem? – Ele sussurrou. Seu coração estava acelerado e os olhos tinham indício de pavor. Ela acenou positivamente, sem notar que ainda mantinha-se agarrada a ele.

– O que era aquilo? – A garota sussurrou.

– Não sei se quero descobrir. – Ele se afastou e a puxou para que o seguisse.

– Ele veio desta direção – Serafine disse, lutando para acompanhar os passos rápidos de seu guia. – Veio do mesmo túnel com o qual eu havia sonhado. Veio das montanhas!

– Pelo amor dos Deuses, fique quieta!

– Como é possível? Ývela disse que essas passagens eram seguras.

– Serafine, aquela coisa pode ter amigos... Cale a boca!

– Não precisa ser tão rude.

Ele não retrucou, mas usou de um olhar zangado impactante o suficiente para fazê-la ficar quieta. Serafine prosseguiu cismada, temendo que algo aparecesse para atacá-los. Foi então que Jarek estacou.

A luz da chama na mão do guerreiro ficou mais intensa, de modo que alcançou as paredes do outro lado da vala. Os desenhos rústicos na pedra eram belíssimos e alguns lembravam símbolos que Serafine um dia avistara nos livros da Língua Antiga. A maioria era completamente desconhecida.

Antes, no sonho, não possuíam qualquer cor. Ali eram todos vermelhos, como se uma forte tinta escarlate tivesse sido passada por cada um deles. Em alguns lugares, marcas do escorrimento manchavam a parede.

– Jarek... Esses desenhos não eram assim, eram?

– Não. Estão todos diferentes. E há muito mais do que havia antes.

– Parece que foram todos pintados. – ela semicerrou os olhos para tentar enxergar melhor. – Se aquela criatura veio daqui, seria melhor investigarmos rápido.

– Ótimo. – Com alguns passos rápidos e muito bem calculados para trás, Jarek lançou seu corpo para frente e, auxiliado pela velocidade e agilidade sobrenaturais, caiu dentro da caverna. Serafine ficou ainda mais abismada quando ele pediu que pulasse.

– Nem pensar! Olhe só o abismo que há abaixo de nós!

– Você é mais rápida e ágil quanto eu, deixe de covardia. – Jarek resmungou.

Serafine mordeu o lábio inferior enquanto se afastava, tomando cuidado para tomar uma distância maior do que a dele. Auxiliada pelo espírito, seu pulo foi muito maior do que o calculado e a aterrissagem deu-se contra Jarek. O guerreiro bateu as costas contra a parede lateral com força, soltando um gemido de dor pela pancada. Serafine levou as mãos à boca.

– Desculpe!

– Eu estou bem. – Jarek grunhiu.

Serafine afastou-se depressa e, encabulada, postou-se no meio da caverna. Concentrou-se na observação, ignorando o fato de que Jarek a encarava com intensidade demais.

Vista de perto, aquela caverna era muito maior. As paredes laterais separavam-se por seis ou sete metros, talvez até mais, e o teto era incrivelmente alto. Ao fundo, avistava-se uma abertura, certamente levando em direção à outra passagem. Sobre ela havia uma união de quatro sóis, um para cada Reino, mais precisamente. Nenhum dos dois reparou bem naquilo, pois as marcas vermelhas chamavam mais sua atenção.

– Já viu esses desenhos antes?

– Nunca – Jarek aproximou a chama de um símbolo em particular, olhando-o com atenção por alguns instantes. – Espere... Esse aqui já.

– E o que significa?

– Nada bom. – Ele estreitou os lábios, frustrando a garota quanto à explicação vaga. O símbolo em questão era semelhante a um arabesco, mas as pontas eram afiadas. Era como um símbolo da Língua Antiga deturpado. Algo errado e grotesco. – É uma marca das Trevas. Um guia.

Serafine aproximou-se mais, consciente de que em algum lugar na sua memória aquele desenho já havia sido visto. Os detalhes avermelhados lhe lembravam de algo em particular, principalmente a maneira com que fora entalhado. Ravenne... Ravenne tinha marcas das Trevas entalhadas em sua pele!

– Também já o vi.

– Onde? – Jarek pareceu surpreso.

– Numa visão. – Levou as mãos à testa, sentindo uma fisgada dolorosa atrás dos olhos. As sombras a marcaram.

Haveria algum símbolo como aquele em seu espírito? Serafine indagou-se com assombro.

Eles passaram os minutos seguintes avaliando os outros símbolos e encontraram diversos que remetiam á magia negra. Os conhecidos, em geral, significavam coisas como proteção e abertura. Um deles tinha a tradução exata para a palavra Porta.

– Não há uma ligação – Jarek concluiu. – A não ser que identifiquemos todos os símbolos, o que certamente não temos tempo para fazer.

– Acha que o monstro veio de lá? Das Montanhas?

– Talvez... Por sorte, há uma barreira mágica no Castelo. – Jarek correu os olhos pelo teto enquanto falava e depois passou a observar o chão. – Se o monstro realmente passar por elas, vai ficar enfraquecido... Ou até mesmo desaparecerá. – um momento depois, seu rosto se iluminou. – Como não notamos isso antes?

– O que?

Ele apontou para o chão, onde uma pequena porção de areia havia sido queimada, reduzida a cinzas negras. A área exata estava marcada por um círculo vermelho, tão escarlate quanto à tinta na parede.

– Merda. Acho que sei o que era aquela criatura. – Jarek constatou. O medo ficou evidente em seu rosto, o que fez Serafine hesitar antes de questionar.

– O que?

– Um demônio. Alguém invocou um demônio.


Capítulo 38

Descrença

 


– UM DEMÔNIO? – GUILLIAN ESTAVA absolutamente surpreso. – Tem certeza, Jarek? – o orelhudo sentou-se em frente ao guerreiro e observou uma Serafine nada calma andar de um lado para o outro. A garota estava assim desde que ele havia aparecido na porta de seu quarto.

– Um demônio. Vimos o círculo de sangue no chão e a área dentro dele estava completamente queimada. – Jarek explicou exasperado. – Os murmúrios que ouvimos nos túneis pertenciam a um demônio, por isso não pudemos entender. Ele estava falando a língua das Trevas.

– E não havia mais ninguém lá embaixo?

– Não. Quando chegamos, estava tudo vazio, o que indica que a convocação ocorreu há algum tempo. A criatura com certeza estava presa ali... Ainda pode estar.

– Por quê?

– Ele desapareceu em pleno ar. – Serafine explicou. – Não sabemos para onde foi, e nem sabemos como alertar o Rei! Teríamos que explicar sobre os túneis e... – Ela calou-se ao notar que estava falando demais.

– E qual o problema em falar sobre os túneis? – Guillian, esperto, notou o olhar trocado entre ela e o guardião. – Jarek... – O tom de aviso fez o moreno bufar.

– Não sei como lidaremos com isso. O Rei precisa ser avisado e o demônio encontrado, até lá estamos todos estamos em perigo.

– E como é um demônio, exatamente? – Serafine inquiriu. – Ele se parece com um monstro o tempo todo?

– É ai que está... Depende do demônio. – Foi Guillian quem respondeu. Ele parecia bem mais preocupado do que antes. – Há muitos graus de poder para essas bestas. As mais fracas permanecem como monstros o tempo todo, outras podem mudar de forma. As mais fortes conseguem possuir... Pessoas.

Ele e Jarek trocaram um olhar atormentado.

– Não há como encontrá-lo facilmente, há?

– Receio que não, milady.

– Oh Deuses – Serafine levou as mãos à cabeça. – O que vamos fazer? Se contarmos para o Rei, tudo vai por água abaixo. Se não contarmos, colocaremos todos aqui em perigo!

– Devemos falar com Jon. – Jarek ergueu-se subitamente, determinação denotada em sua voz. – Não podemos lidar com isso. Não fale sobre os túneis a menos que ele lhe peça mais informações, está bem? Todos os soldados que restaram no Castelo devem procurar pelos sinais.

– E quais seriam?

– No geral, o humor da pessoa possuída fica diferente. Se o demônio for muito poderoso, conseguirá ocultar coisas como a mudança na cor dos olhos, mas não evitará a frieza excessiva.

– A corte está cheia de gente assim. – Serafine resmungou.

– É muito notável, milady. – Guillian informou com convicção. – E como diremos ao Rei? Ele está ausente agora, anda muito ocupado. Durante a manhã tentei falar com ele, mas

Jon não ficou por muito tempo. Há uma crise no Norte e o coitado está tendo que lidar com tudo sem a ajuda do irmão.

Uma ideia imediatamente matutou na cabeça de Serafine.

– Talvez eu consiga alcançá-lo. Sou membro da Tropa de Arqueiros, ele pode ter tempo para mim.

– Vá atrás dele! – Guillian exclamou. – Jarek, você e eu daremos uma volta pelo Castelo. Vamos sondar todos que pudermos.

Serafine cumpriu o que o Atyubru disse e saiu correndo. Haviam se passado três horas desde que tivera aquele sonho, portanto, eram pouco mais das oito da manhã.

Os nobres haviam se reunido mais cedo para tomar café, e Guillian lhe dissera que o Rei deixara o salão pouco tempo depois, afirmando ter assuntos a tratar na sala do trono.

A garota seguiu apressada até lá, despertando a curiosidade de soldados e servas que passavam por ela. Quando se aproximou das portas de entrada, avistou a Guarda Real e rezou aos Deuses para que o demônio não tivesse passado despercebido por ela.

Quando irrompeu pela porta, causou mais alvoroço do que desejava. Os quatro lordes estavam presentes, cada um em sua respectiva cadeira, e Jon sentava-se imponente no trono. Seu semblante calmo estava totalmente concentrado na figura com quem conversava, e foi um dos únicos ali no salão a não assustar com a entrada abrupta de Serafine.

– Menina, não são permitidas interrupções durante o Conselho! – Lorde Octus exaltou chocado. O homem que conversava com o Rei também parou de falar, e Serafine reconheceu-o como sendo um dos viajantes do Sul. – Acompanhem-na para fora daqui. – Serafine sentiu seu braço sendo tocado e virou-se para encarar Benídia. A garota demonstrava verdadeira preocupação, mas não foi capaz de tirá-la dali.

– Perdão, majestade, mas eu precisava encontrá-lo. O assunto que venho tratar é de extrema...

– Serafine, peço que espere eu terminar minha conversa com esse cavalheiro.

– Vossa Graça, o Castelo foi invadido! – A maneira com que falou foi insolente, mas serviu para despertar a atenção de todos. A conversa cessou e Jon direcionou seu olhar para ela.

– O que?

– A Fortaleza foi invadida por um demônio. – os lordes encararam-na com puro escárnio, desacreditados. – Não sabemos de que tipo de trata, mas pode ser perigoso e...

– Espere! Não quer que acreditemos nessa besteira, quer? – lorde Octus exultou.

– Nosso Castelo invadido por um demônio? Essas criaturas estão no Abismo, não existem há séculos. – Lorde Klaus retrucou com impaciência.

– Eu estive na presença dele! Pude sentir o mal que emanava!

– Serafine... Você tem muitas visões. – foi Jon quem disse aquilo. Estava calmo, como quando discutira com Ývela. – Sua mente pode estar confundindo-a. Todas as medidas já foram tomadas, nossa Fortaleza é segura.

– Mas majestade, eu o senti. Vi o local onde ele foi convocado. Pergunte a Jarek, ele estava comigo!

– Ah, e agora devemos acreditar no Amaldiçoado? – Octus replicou com sarcasmo. – A palavra dele é confiável, é isso que quer que acreditemos? Imagino que logo peça para que confiemos em todo o bando dele.

– Não é isso! Eu só quero...

– Já chega – o tom cortante de Jon a surpreendeu. – Não há provas de que esse demônio realmente está aqui. Eu sentiria caso uma convocação fosse feita em meus domínios.

– Jon, por favor, acredite em mim! – Ela se exaltou. Tinha consciência de que aquela agitação começava a despertar o espírito, mas continuou mesmo assim. – Esse demônio existe e está neste Castelo! Você precisa proteger os moradores! Tem que tomar alguma atitude antes que seja tarde...

– Serafine, você está perdendo o controle! Tem que parar com essa paranoia. Sua mente anda sobrecarregada demais, e você está deixando de distinguir realidade de fantasia. Não arriscarei meus soldados em uma missão para encontrar tal criatura sem a certeza absoluta de que ela existe. Há outros assuntos mais importantes a serem tratados. – Jon ergueu-se do trono.

– Está dizendo que estou louca?! – A surpresa ficou clara em sua voz, assim como a descrença estava evidente no rosto do Rei.

– Estou dizendo que precisa descansar. O espírito está assumindo sempre que você fica irritada, pode estar causando alucinações... Benídia, acompanhe Serafine até seus aposentos e certifique-se de que ela tenha todo o conforto até a celebração. – Jon parou alguns instantes. – Eu mesmo fiz os feitiços de proteção, Serafine, e garanto que nada de ruim passou despercebido por mim.

Serafine engoliu em seco ao notar os olhares desgostosos que foram lançados para ela. Sentiu-se como uma criança mentindo descaradamente em frente aos adultos que conhecia. Sentiu-se tola. Louca.

A maneira com que Jon havia dito aquilo não deveria ter denotado ofensa, mas acabou soando como uma. Ao sair do salão, a garota deu uma última olhada no Rei e constatou que ele também a encarava. Jon pareceu mais exausto do que nunca, como se todo o peso do Reino o estivesse a derrubando.

– Não fique assim. – Benídia trouxe-a de volta à realidade. – Jon está estressado com coisas demais. Se ele lhe garantiu que os escudos protetores estão perfeitos, então estão. O Rei é um Mago poderoso, não cometeria qualquer erro.

– Eu sei o que vi. Não há qualquer possibilidade de uma convocação ter passado despercebida? – Benídia pensou por alguns instantes antes de responder com doçura:

– Nada passa pelo Rei.


Capítulo 39

Um plano razoável

 


SERAFINE ANDAVA DE UM lado para o outro no quarto. Frustração a dominava, além da impaciência. Como poderia ficar sentada enquanto um monstro andava solto pelo Castelo? Como poderia tentar relaxar quando as autoridades fechavam os olhos para um possível ataque? Como Jon podia agir como aqueles lordes? Ele estava tão abalado a ponto de não acreditar em uma palavra sua?

Suspirando longamente, a morena sentou-se na cama e parou de pensar naquilo. Sua cabeça estava começando a doer por conta de tantas indagações e de nada adiantava ficar ali se questionando. Para que sua consciência se acalmasse, ela teria que agir.

Esperava que Jarek e Guillian estivessem se saindo melhor. Rezou aos Deuses para que eles encontrassem alguma pista ou mesmo cruzassem o caminho do demônio. Sabia que era perigoso, mas eles conseguiriam lidar com o monstro.

– Serafine? – Ela ergueu o rosto para encarar Benídia, que acabava de entrar pela porta de seu quarto. Não queria companhia naquele momento, mas a garota vinha agindo amigavelmente desde a cena no salão, então tentou não ser rude com ela. – Trouxe seu vestido. Está se sentindo melhor?

– Eu não me senti mal, para começo de conversa. – Lá se ia a educação.

– Você deve tentar entender o Rei. – Benídia parou em frente à cama de Serafine. – Ele está sob muita pressão desde que os nobres do Sul chegaram aqui. Toda aquela questão com a sua amiga e os leviatãs ainda o preocupa, e há tantos problemas políticos para lidar. Hoje pela manhã ele teve que se retirar do café por ter recebido uma mensagem urgente do Norte, mas não comentou com ninguém. Soube por causa da minha tia.

– O que há no Norte?

– Mais ataques. – a garota sussurrou. – Amaldiçoados marcham pelas vilas destruindo tudo o que encontram... Não há notícias da corte real.

Benídia deixou um embrulho sobre a cama e sorriu para Serafine.

– Distraia a mente. Costuma me ajudar a não me preocupar com nada. – ela piscou um olho. – Vou pedir às servas que venham prepará-la para a comemoração...

– Não se preocupe, eu mesma me apronto. – Serafine soou um pouco ansiosa demais, mas Benídia assentiu com a sutileza de sempre.

Sozinha, a morena pôs-se a pensar. Sabia que ao lado de fora de seus aposentos dois soldados montavam guarda, provavelmente por ordem do Rei. Eles haviam lhe dito que fariam qualquer coisa que Serafine precisasse, mas que ela deveria descansar em vez de sair dali.

Resolveu, depois de muito batalhar com a sua impaciência, rezar, como não fazia há algum tempo. Ajoelhando-se em frente a sua cama, Serafine ergueu as mãos para o alto e sussurrou:

– Deuses, por favor. Por favor, ouçam minha prece. Iluminem-me para que eu consiga achar uma resposta. Sei que não podem interferir, mas estou tão... Confusa e perdida. Eu quero ajudar meus amigos, mas não sei como. Preciso do seu auxílio.

Nada aconteceu imediatamente, o que a fez se levantar depois de tantos minutos ajoelhada. Resignada ao silêncio, aprumou os ombros e encontrou algo para fazer. Os Deuses não a estavam ouvindo, então não ficaria lamentando por isso. Tomou um banho rápido, buscando conforto, mas sem encontrá-lo, e então se vestiu.

Serafine soube ter sido ouvida quando olhou para a janela e as cortinas ergueram-se pela súbita rajada de vento. A brisa fria acariciou sua pele, tão macia quanto o tecido do seu vestido. Com um abraço acolhedor, o vento trouxe consigo mínimos sussurros, mas que foram suficientes para que a garota se sentisse mais tranquila:

– Aquele que procura será ferido pela prata...

– Senhorita? – Ela pulou de susto quando o soldado bateu na porta de seu quarto. A brisa fria que antes a rodeava parou repentinamente e os sussurros desapareceram.

– Sim?

– Há dois visitantes pedindo para vê-la.

– Abra logo essa porta, seu soldado insolente. Eu sou o guardião dela, tenho todo o direito de vê-la! – Guillian exaltou impaciente, o que a fez sorrir.

– Deixe-os entrar.

Jarek e o orelhudo passaram pela porta com expressões de desgosto, e só as retiraram quando o soldado se foi. Na realidade, eles arregalaram os olhos assim que se viraram para a garota.

– Por que essas caras? – Serafine indagou desconfiada.

– Milady... Está belíssima!

– Ah, isso. – Ela encarou o próprio vestido e então sorriu sem graça.

A vestimenta seguia o estilo dos outros vestidos. Era aberta nas laterais de seu corpo e presa por um largo cinto prateado, amarrado a sua cintura. Feita em tecido esvoaçante, de cor perolada, caía até seus calcanhares. Não tinha mangas e possuía um decote discreto no busto, que deixava exposto o colar de Serafine, onde a joia verde repousava sobre sua pele, e também expunha boa parte de seu corpo. As curvas, suas marcas, contornos de sua silhueta que a garota não costumava evidenciar, mas que ficavam belamente evidentes com aquela peça.

Ela havia deixado os cabelos soltos e trançara alguns fios com contas douradas, prendendo-as a uma tiara sobre sua testa.

O que causou embaraço na garota foi o fato de que Jarek não parou de olhá-la, passando os olhos por todo o seu corpo muito lentamente.

– Sabe... – O tom de Jarek foi rouco. Seus olhos eram poços de fascínio, e Serafine poderia se afogar na intensidade presente neles. – Você está igualzinha a uma princesa. – Guillian olhou de um para outro demoradamente, parecendo divertido com a cena que se seguia. Pigarreou para interromper a troca de olhares.

– E como foi a busca? Algum sinal? – Serafine engoliu em seco, obrigando-se a perguntar. A voz saiu ligeiramente esganiçada.

– Nada. Senti o rastro da criatura, mas ele perdeu-se quando começamos a rastrear. – o felpudo sentou-se numa cadeira, as orelhas enormes cobrindo seu rosto preocupado. – Nós falhamos, milady, e não sei o que podemos fazer agora.

– O Rei não quis ouvi-la, pelo que soubemos. – Jarek ainda a observava profundamente, mas disse aquilo com suavidade.

– Não. Ele disse que eu estava me descontrolando e que o espírito estava me fazendo ver coisas demais, depois pediu que eu descansasse aqui. – ela sentou-se na cama e soltou um grunhido. – O que faremos? Se não encontrarmos esse demônio não há como fugir. Não sabemos se é seguro!

– Ahá! Sabia que queriam fugir! – Guillian exclamou, tratando de manter o tom de voz baixo. Não queria que os soldados ouvissem sua conversa. – Quanta imprudência...

– Estava tentando salvar a minha mãe – Jarek retorquiu asperamente. – Você iria junto, de qualquer maneira.

– A questão agora não é essa. – Serafine encerrou a discussão ao reparar na maneira como Jarek ficara irritado. – Há algo que possamos fazer para que esse demônio se manifeste? Poderíamos feri-lo com prata.

– Sugere que cortemos todas as pessoas nesse palácio para ver qual delas vai se queimar? – O tom de Jarek foi sarcástico. Serafine respondeu com um olhar indignado.

– Mencionar os Deuses pode ser outra opção. É possível que ele se retraia. – Guillian sugeriu.

– Falar sobre os Deuses? – Serafine perguntou interessada.

– O nome de algum deles, ou de todos. Proponha um brinde em nome a eles. – Guillian recitou a parte final com um sorriso vencedor. – É isso! Você receberá sua flecha mestra essa noite, proponha um brinde em homenagem aos Deuses. Ficarei de vigia em algum lugar, e Jarek também. Se o demônio se manifestar, nós saberemos.

– Pedirei a Sibila para nos ajudar também. Ela precisa ser informada do que está acontecendo.

– Isso! Uma Feiticeira poderia ser de muita utilidade. – Guillian exaltou. Depois, o orelhudo reparou que Jarek não compartilhava da animação deles. – O que há de errado?

– Ainda não gosto dessa história... Deve haver um motivo maior para um demônio estar aqui no Castelo e não ter se manifestado.

– Seja o que for, vamos descobrir hoje à noite. Até lá, rezemos para que o demônio não ataque alguém.


Capítulo 40

A Celebração

 


AS TROMBETAS SOARAM LÁ fora, anunciando a chegada de mais convidados importantes.

O salão estava incrível. Tecidos com as cores do Reino, vermelho e prata, enroscavam-se nos pilares de pedra polida. Tapeçarias de várias partes do palácio haviam sido trazidas e colocadas ao redor do gigantesco aposento, e os candelabros lançavam uma luz confortável sobre os presentes. Duas mesas haviam sido organizadas e um corredor fora deixado entre elas. Ao fim, uma cadeira ornamentada por ouro e prata serviria de assento para o monarca, quando ele chegasse.

Os participantes da festa passeavam por ali, e Serafine tirou alguns instantes para observá-los. Todos se vestiam com cores exuberantes e penteados espalhafatosos. Mulheres e homens ornamentavam-se com joias vibrantes e vestes leves, mas ricamente trabalhadas.

A garota se sentiu simplória perto daquelas pessoas, mas não estava perturbada por isso. Lembrou-se da mãe, de como Mégara gostava de arrumá-la para festas, e sorriu tristemente. A festa memorava-a da comemoração que virara sua vida de cabeça para baixo, e aquela não era uma lembrança agradável.

– Está tudo tão lindo, não acha? – Serafine se assustou quando Benídia surgiu ao seu lado. Ela deixara os longos cabelos escuros soltos, com cachos perfeitos ao redor do seu rosto, e vestia uma linda peça escarlate. O vestido caía como uma luva em seu corpo, e ainda combinava com a joia adornando seu pescoço. A mesma presenteada por Luke. Havia muitas cores na maquiagem de Benídia, tal como nos fios que se enroscavam em seu cabelo.

– Maravilhoso. – Serafine assentiu.

As trombetas soaram novamente e, pelas grandes portas do salão, os soldados deram passagem para os quatro lordes do Conselho de Mídria. Benídia pareceu chocada pela rapidez com que eles entraram e imediatamente olhou em volta.

– O que houve? – Serafine indagou.

– Eu tenho que ir agora, perdi tempo demais! – Ela exaltou e saiu em disparada pelo meio da multidão. Serafine buscou-a com o olhar, mas ela já havia sumido. Os presentes olhavam encantados a entrada pomposa dos nobres, mas tudo o que Serafine queria saber é onde é que Benídia havia ido com tanta pressa, e onde, principalmente, estava Jon.


***


A escuridão reinava absoluta.

As tochas haviam sido apagadas quando a figura ali entrara, como que obedecendo a uma ordem silenciosa. O fogo desapareceu e a fumaça se foi com ele, restando apenas o silêncio atormentador.

Leyona ergueu-se na cela onde outrora repousava. O desespero da morte eminente que tanto omitira na frente de seu filho tomava conta de seu coração. Contudo, enquanto ela focava em pensamentos tranquilos, alguém entrou nos calabouços.

A figura passou por ela, tão rápida quanto uma sombra.

Leyona não conseguiu ver claramente o seu rosto, ou se era homem ou mulher, mas certamente havia poder emanando dela.

Uma tocha voltou a se acender numa das celas, longe o suficiente para impedi-la de entender o que estava acontecendo. Ouviu quando a pessoa pegou as chaves e abriu a cela, mas não conseguiu identificar qual era aquela. Uma das celas mais sombrias, Leyona pensou, pois o desconhecido havia avançado até o fim do corredor.

Minutos se passaram englobados por um silêncio atormentador até que a mulher voltou a escutar barulhos. Desta vez, eram estranhos sussurros roucos. Leyona apoiou o rosto na grade da cela, mas não enxergou muita coisa. Vultos sombrios contra a luz produzida pelas chamas, nada que denunciasse o que ocorria do outro lado do corredor.

Ela afastou-se quando a voz começou a mudar, assumindo um tom sinistro, tão assustador que fez um calafrio gélido percorrer sua espinha.

Leyona encostou-se à parede no fim da cela, temendo a criatura que se encontrava no fim do corredor.

Ela conhecia suficientemente das línguas de Warthia para não reconhecer aquela recitada. Vez ou outra, uma única palavra que entendia voltava a soar, e Leyona não gostou do significado dela naquele contexto: Venha.

A mulher ouviu passos vindos em sua direção e se comprimiu contra a pedra atrás de si, temendo que o invasor a visse.

– Está feito. – a voz continuava deformada. – Está feito.


***


– Serafine? – a morena voltou-se para a voz conhecida e sorriu aliviada. Sibila tinha o cabelo de cobras arrumado num penteado elaborado. Vestia uma túnica solta, de tecido leve e coloração avermelhada, bem mais discreta que os decotes e fendas que as mulheres ao seu redor usavam. – Tudo bem?

– Não. – ela confessou. – Algo está errado.

– Com o evento?

Ela assentiu, então se lembrou de que Sibila não podia vê-la.

– Com a... Coisa que invadiu o castelo. – Sussurrou, e foi interrompida em seguida:

– Oh, magnífico, o Rei chegou! – A mulher ao lado das duas gritou assim que os soldados voltaram a soprar as cornetas. Todos os curiosos viraram-se para a entrada do salão mais uma vez, cientes de que agora era a vez do monarca dar o ar de sua graça.

Serafine engoliu em seco ao se lembrar de que logo teria de enfrentar os olhos de todas aquelas pessoas, já que era chegada a hora de receber sua flecha mestra. Os outros membros da Tropa estavam espalhados pelo salão, e o único que ela vira alguns minutos antes havia sido Percival.

– Apresento-lhes sua majestade, o Rei Jon Tytos, e sua nobre noiva, Lady Niara, filha de Lorde Hammel! – O rapaz voltou a exaltar em plena voz, silenciando qualquer outro comentário que corria pelo salão.

Acompanhada de seu futuro esposo, Niara entrou com um largo sorriso no rosto. Seus cabelos estavam presos num penteado elaborado e uma tiara de cristais pendia sobre sua testa. O vestido brilhante e de saia longa possuía um largo decote nas costas e marcava sua silhueta magra.

Serafine encarou Jon, buscando familiaridade e encontrando um vazio atormentador. Ele se vestia tão nobremente quanto os outros lordes, com um casaco escarlate adornado por detalhes prateados e um longo colar incrustado de rubis vibrantes envolvendo o peito.

Pendurada em seus ombros havia uma capa negra, cuja bainha arrastava-se no chão quando ele caminhava. Sobre sua cabeça estava uma bela coroa de prata, e ele não parecia muito à vontade com ela.

Serafine sabia que Jon dispensava aquelas formalidades.

O que a inquietou foi o fato de ele andar com o olhar fixo no trono. No rosto havia uma máscara de pura seriedade. Não havia a mesma doçura de antes e ele não expressava seu amor por aquela celebração. Ele estava diferente.

Serafine buscou Jarek e Guillian na multidão, mas nenhum dos dois estava à vista. Seu guardião felpudo havia dito que arranjaria um belo lugar para observar os presentes, e ela não via Jarek desde a reunião em seus aposentos.

Encarou Sibila, mas não soube como pedir sua ajuda. Ela era tão diferente de Ývela. Tão sombria e silenciosa. Se a ondina estivesse ali, Serafine não hesitaria em pedir seus conselhos.

– Deuses... – a morena sussurrou. – Ajudem-me.

O Rei finalmente alcançou o trono e ficou de pé em frente a ele, os olhos penetrantes correndo pelo rosto dos presentes. Serafine estava relativamente longe do local, mas viu quando Jon a reconheceu e fez-lhe um suave aceno com a cabeça antes de começar a falar:

– Como todos aqui sabem, hoje comemoramos o dia em que o primeiro Mago assumiu o trono! Celebramos a derrota das Trevas pela Luz. Festejamos o dia em que meu ancestral foi coroado e a Rainha das Sombras recebeu sua punição! Ela agora está no Abismo, ainda que suas forças cresçam poderosamente a cada dia. – A maioria dos presentes aplaudiu, ainda que alguns tenham notado a estranheza no fim da sua frase. Serafine franziu o cenho quando uma brisa gélida, vinda da sacada aberta logo atrás de si, passou por seu corpo.

– Guillian... Onde está você? – Ela rosnou entre dentes, os olhos percorrendo os rostos das pessoas outra vez.

– Serafine, fale comigo. – Sibila soou verdadeiramente preocupada. – O que a incomoda?

– Gostaria agora de chamar-lhes a atenção para outra comemoração! Como sabem, uma exímia Tropa de Arqueiros está para ser formada, e dedicarei agora um tempo para que esses bravos soldados recebam suas armas de direito. As flechas mestras foram forjadas e é chegado o momento para que eles as recebam.

Serafine sentiu-se empurrada quando Percival passou por si, puxando-a em direção à entrada do salão.

– Sibila! Encontre Jarek e Guillian! – Exaltou para sua guardiã, recebendo um aceno da mulher.

As trombetas soaram uma terceira vez e logo Serafine viu-se caminhando na direção do trono. Os lordes se levantaram e ladearam seu Rei. Não havia sinal de Theodore.

As flechas estavam colocadas sobre almofadas de veludo e as aljavas e os arcos seriam também presenteados. Cada um possuía entalhes significativos, representando os seus futuros donos.

– Chamo agora... – Jon ergueu a voz, silenciando os murmúrios que começaram com a entrada da Tropa. – Drack, enviado do Sul.

Serafine bem que gostaria de ter prestado atenção na entrega das flechas. Gostaria de ter prestigiado seus amigos enquanto eles adiantavam-se até o Rei e recebiam suas armas. Sorriu fracamente para Percival quando ele a encarou com nervosismo, fingindo um incentivo, pois sua mente divagava longe.

As constatações de antes martelavam fortemente em seu coração, e Serafine sentia-se perto da resposta. Perto o suficiente para que seu espírito começasse a se manifestar, perto o suficiente para que o mal trouxesse dor à sua cabeça.

Encarou os quatro lordes, que, pomposos, sorriam para os presentes, animados por estar ali. Percorreu seus rostos minuciosamente, prendendo-se aos seus olhos por instantes que poderiam mudar tudo, mas nenhum deles estava diferente. Nem Klaus, Octus, Frai ou Ylla. Os que a encararam de volta ainda pareciam ter receio pela cena armada mais cedo.

Jon chamou seu nome. Serafine deu vários passos à frente para receber a flecha que lhe era estendida e ergueu os olhos para o rosto do monarca, reparando num detalhe curioso.

A pele estava avermelhada onde a coroa de prata o tocava. Serafine estreitou os olhos ao notar aquilo.

Ela havia encontrado o demônio.

Então Jon a encarou de volta e frio congelante pareceu dominá-la. Os olhos penetrantes estavam diferentes. A escuridão dentro deles era assustadora.

Os instantes que se passaram congelaram suas pernas e a sua voz desapareceu. A garota arregalou os olhos, mas ninguém notou sua expressão de pavor, pois as cornetas soaram mais uma vez. Mais alguém estava chegando...


Capítulo 41

A Invasão das Trevas

 


SERAFINE NÃO PODE IMPEDIR o Rei de se retirar. Ele seguiu até a entrada do salão e começou a caminhar rumo à saída com um sorriso animado no rosto, mas só ela sabia o que aqueles olhos escondiam. Só ela sabia quem havia debaixo daquele sorriso.

A garota queria alertar aos presentes que algo estava errado. Queria gritar para que eles a ouvissem e não seguissem o Rei, mas sua voz ainda não retornara. Sua capacidade de andar também não. Ela estava congelada.

Os convidados não notaram a garota que havia ficado lá na frente. Pareceria, a quem a observasse, que ela havia parado um instante, talvez para esperar a multidão seguir seu Rei. Sibila havia respondido ao seu pedido e sumira para procurar seus guardiões – justo agora que Serafine precisava de ajuda!

Um desespero monstruoso invadiu o coração da morena quando as pessoas adiantaram-se para acompanhar o governante. Todos se perguntavam que tipo de surpresa os aguardava lá fora, o porquê de Jon parecer tão ansioso para receber seus novos convidados.

O salão ficou vazio em questão de segundos, e ninguém notou que Serafine havia ficado para trás.

Só então ela finalmente ficou livre. Moveu as pernas com dificuldade e gemeu. Seus músculos doeram, como se não os movimentasse há dias, mas obrigou-se a marchar para a saída, o coração martelando fortemente contra seu peito.

Como fui idiota, pensou. Era Jon o tempo todo. O demônio o estava dominando.

Duas figuras se aproximaram, ofegando pela corrida. Benídia encarou Serafine com uma enorme confusão. Guillian, para seu alívio, pareceu ter notado.

– O Rei. – Os dois disseram ao mesmo tempo. O orelhudo, ágil, saiu em disparada na direção da porta.

– O que há com o Rei? Serafine! – Benídia indagou assustada. Ela colocou-se a frente de Serafine, tentando pará-la para entender aquela cena. – O que houve?

– O demônio! – Serafine balbuciou, empurrando a garota para o lado com mais força do que deveria. Sem ter tempo para se desculpar, seguiu em frente na direção da multidão, passando por diversos curiosos aos empurrões.

Avistou Guillian mais à frente e com temor percebeu que Jon havia avançado até os portões. O salão que haviam utilizado ficava próximo demais do pátio de entrada, de modo que Serafine perdera muito tempo. Não havia como pará-lo.

– Abram os portões! – Serafine pôde ouvi-lo gritar ao longe.

– Mas, majestade, não há ninguém lá...

– É uma ordem!

Serafine gritou para que parassem, mas os únicos que a ouviram foram as pessoas próximas dela. Olharam-na com expressões de desgosto e hesitação, talvez se questionando o porquê de ela exigir aquilo. Para sua infelicidade, os guardas não prestaram atenção.

Eles então acionaram o mecanismo e os gigantescos portões de ferro começaram a baixar. O burburinho de conversas continuou alto o suficiente para impedir Serafine de gritar novamente. Os convidados da festa ficaram parados, alguns espiando por cima dos ombros dos outros para tentar enxergar quem estava chegando.

A morena avançou por entre as pessoas com mais brusquidão, e, com alívio, avistou Guillian próximo do Rei. Ao menos seu guardião tentaria pará-lo. Ela só precisava de uma distração.

– Parem! – Gritou a plenos pulmões. Os soldados lá no alto estacaram pelo susto, mas os portões continuaram a se abrir. – É uma armadilha!

Jon virou-se para ela com a expressão feroz. Os olhos tão intensos do Rei haviam se perdido na escuridão da coisa que o controlava.

O demônio estava no corpo do senhor do Oeste.

Guillian, de pé sobre uma estátua, havia erguido suas orelhas na direção dos portões e, como todos os presentes, estacou ao encarar a entrada da Fortaleza.

Serafine ouviu os sussurros abismados das pessoas ao seu redor e enfim alcançou o fim da multidão, vislumbrando a densa fumaça que se erguia por trás da muralha. Por um instante, não soube como reagir.

Uma neblina tão negra quanto o ébano deslizava para dentro do palácio. Sussurros atormentadores podiam ser ouvidos em meio à escuridão, vozes roucas que falavam a língua das Trevas.

O mesmo frio congelante de momentos atrás fez o corpo todo de Serafine tremer. A brisa passou por seu rosto como uma lâmina afiada e seguiu na direção dos portões, embrenhando-se no caos de sombras que ali se erguia. A maneira como a névoa negra elevou-se do chão a fez congelar.

A névoa entrou em contato com a barreira mágica ao redor da Fortaleza, mas, diferente do que Jon dissera mais cedo, ela não havia sido fortificada. Ela fora enfraquecida.

Com um toque, as Trevas invadiram o pátio.

Serafine se lembrou de quando falavam sobre Sharowfox, sobre suas Trevas estarem ganhando força. Era a mais pura verdade. As sombras estavam vivas.

As brumas de ébano adentraram o Castelo em poucos segundos, seus tentáculos esticando-se em todas as direções para começar a dar forma a alguma coisa.

Serafine olhou em volta e constatou que todas as pessoas, apesar de abismadas, não saíam do lugar. Encarou Guillian e descobriu que o guardião também estava paralisado, e então olhou para Jon e descobriu ser ele o motivo de toda aquela paralisia. Seus olhos estavam totalmente negros e de sua boca saíram ruídos medonhos, palavras na língua das sombras. O demônio os estava prendendo ali.

Quando as formas finalmente se tornaram nítidas, quando os presentes perceberam quem é que havia entrado em seu Castelo, Serafine se desesperou.

Parados em uma formação de batalha, dezenas e mais dezenas de Amaldiçoados aguardavam para atacar.

Serafine conseguiu encarar apenas um deles. Sanzur estava na liderança. O monstro que assassinara seu pai e que ela tanto desejava matar estava ali, próximo o suficiente para que Serafine avistasse as sombras formando-o por completo. Próximo o suficiente para que o sorriso de pura maldade ficasse nítido em seu rosto.

Com frustração, a garota percebeu que também estava congelada. A névoa negra a impedia de se mover, enroscando-se em seus pés como garras.

Com esforço e uma força que só podia vir do espírito, Serafine conseguiu entreabrir os lábios. A tremedeira em sua boca a fez hesitar, mas mesmo com a terrível ardência que surgiu em sua garganta, Serafine murmurou:

– Lay. – A terra tremeu.

Os Lobisomens foram ao chão conforme este estremecia, criando rachaduras pela extensão do pátio. A névoa ergueu-se, como se o contato agora fosse repulsivo, e ficou pairando no ar. O tempo foi suficiente para que as pessoas recobrassem seus sentidos e saíssem correndo.

Então o caos instaurou-se.

Serafine viu-se empurrada quando os convidados dispararam em todas as direções, cientes de que não havia passagem pelos portões de entrada. A névoa continuava a formar mais e mais Lobisomens, então não havia para onde fugir.

Serafine estacou ao ver os sulistas desembainhando armas. Eles sorriam ao ver o pandemônio que se tornara aquele lugar; armação deles, claro.

– Ei! – Serafine virou-se quando ouviu Guillian chamando-a. O orelhudo ainda estava no alto da estátua, apoiado na cabeça do soldado de pedra, e apontava para a esquerda. Ao seguir a direção com o olhar, Serafine encontrou o caminho que levava aos calabouços. – Vamos precisar de soldados!

O Atyubru saltou no mesmo instante em que um lobo acertava sua estátua com um martelo, fazendo com que o pequeno guerreiro rolasse pelo chão. Serafine já estava correndo nesse momento, olhando em volta, a procura dos monstros.

Os Amaldiçoados, porém, haviam se dividido e se embrenhado em diversos pontos do Castelo. Os que ficaram lá fora aproveitavam para destruir tudo o que encontravam, eliminando os poucos soldados que ousavam enfrentá-los.

Serafine percebeu que os guardas estavam confusos por causa de seu monarca. Jon havia desaparecido e, sem ele, não havia mais ninguém para dar ordens.

Os soldados precisavam de instruções e de alguém capaz de guiá-los para enfrentar aquelas bestas. Ela precisava encontrar Theodore.

Ao parar para pensar, notou que não via o centauro desde o dia anterior. Mesmo durante o Conselho, Theodore não estivera presente.

Seus pensamentos falharam quando um lobo albino a interceptou. O impacto do corpo dele contra o seu fez Serafine rolar alguns metros longe, ralando o rosto e a pele nua dos braços pelo tombo. Antes que a fera a alcançasse, no entanto, seus olhos se acenderam e seu espírito respondeu ao ataque.

Duas enormes raízes brotaram do chão e agarraram o monstro quando ele saltou para abocanhá-la. As raízes o arrastaram para baixo da terra, mutilando-o enquanto silenciavam seus uivos. Serafine respirou pesadamente, um pouco desnorteada pelo susto, e então uma ideia estalou em sua mente.

Com esforço, a garota ergueu as mãos e concentrou seu poder. Guerreiros de terra ergueram-se à sua frente de uma só vez, armados e preparados para a batalha. Havia o suficiente para segurar o ataque enquanto ela buscava ajuda.

– Destruam os Lobisomens! – Serafine ordenou.

Os homens de terra marcharam na direção do pátio, armas em riste. Os lobos mais próximos saltaram na direção dos soldados, e os sons de batalha começaram a se erguer.

Serafine foi tomada por um poderoso fraquejar, mas ainda assim continuou correndo. A ajuda dos Amaldiçoados era necessária.


Capítulo 42

Para dar sorte

 


– JAREK! – ELA BERROU AO avistá-lo. O guerreiro tentava, inutilmente, arrebentar as portas que levavam aos calabouços. Sibila não estava com ele, e a garota temeu por deixar sua guardiã sozinha. Não sabia se a mulher conseguiria se proteger.

Nos breves minutos que haviam se passado desde a invasão, Serafine começara a sentir uma estranha energia pairando no ar, como se algo maior estivesse para chegar.

Jarek continuou batendo o ombro contra a porta, e então um barulho alto o fez parar. Como uma explosão ecoando pelo ar, o som chegou até eles, violento e repentino. O chão estremeceu furiosamente, reverberando o poder da explosão, e os dois foram ao chão.

Os momentos que se passaram até que o eco da explosão sumisse foram os exatos para arrastar Serafine até uma visão, até a mente de uma figura já familiar.

– O ataque foi um sucesso – Um homem falou.

Era o mesmo com a voz gélida e rouca que colocara nela a marca das sombras. Ele estava acompanhado por outra pessoa, um rapaz de cabelos claros.

Serafine chocou-se ao reconhecer Luke, ainda que a iluminação precária não permitisse maiores investigações. Traidor, ela pensou com asco.

– O Castelo foi invadido. Não falta muito para que Serafine seja encontrada.

– Eu a alertei. – Ravenne estava sentada no chão, mas não havia nela a fraqueza de antes. Serafine sentiu... Tanta força. – Ela vai saber o que fazer. – Quem era aquela mulher? Por que ela se preocupava tanto em ajudá-la?

– Como poderia ter dado o aviso? Eu tirei a sua magia. – Serafine notou que Luke se retesou ao lado do homem, como se o comentário o perturbasse.

– Você é tolo, majestade, e vai perder. – Ravenne afastou-se quando o homem esticou sua mão, determinado a estrangulá-la. Serafine sentiu a coragem da mulher passando por seu próprio coração, e notou também haver esperança.

Na visão, atrás de Ravenne, a parede da cela explodiu em fogo e faíscas. Luke e seu acompanhante gritaram, desnorteados pela luz e pelo barulho, e Ravenne saltou para fora da sua prisão. Ela correu pelo frio da noite, cortando o vento que uivava, arrastando neve pelo terreno pálido. Mesmo congelando, a mulher flamejou coragem por cada nervo e músculo e, de repente, Serafine sentiu a mente se desconectar da de Ravenne, porque alguns segundos depois, a mulher estava longe o suficiente para que Luke e o homem não fossem mais uma ameaça. Havia vultos ao fundo da paisagem branca; pessoas esperando pela prisioneira.

Aliados.

– É hora de partir.

Serafine voltou a si, arfante. Jarek estava ajoelhado ao seu lado, o olhar preocupado.

– Eu sei por onde podemos ir! – exaltou. – Os túneis! Temos que levar todos para lá.

– Serafine, não há tempo – ele disse aquilo com receio. – Eles trouxeram quimeras. E um monstro maior. O estrondo de poucos minutos atrás foi uma demonstração do seu poder.

– Temos que ajudar. – ela levantou-se com dificuldade. – O que houve com as portas?

– Estão trancadas. Por dentro. – Jarek franziu o cenho.

Serafine ergueu sua mão naquela direção e murmurou um encantamento. Seu coração acelerou quando as pedras responderam seu comando, estremecendo e derrubando as portas que sustentavam, mas a sensação de ansiedade logo desapareceu. A garota não ficou exausta, mas não conseguiu acompanhar Jarek com tanta rapidez até lá dentro.

O guerreiro já estava destrancando as portas das celas quando Serafine alcançou as escadarias. Leyona foi à última a ser libertada, voltando ao andar superior na companhia de outro conhecido.

– Theodore! – Serafine exclamou. – O que houve?

– Não sei bem... Devo ter sido enfeitiçado. Forçaram-me a trancar as portas. – o centauro massageou as têmporas. – Não me lembro de nada, só...

– Agora não temos tempo! – Jarek o calou com brusquidão. Trazia Mynna em seus braços, e o olhar da menina estava absurdamente apavorado. – Precisamos fugir.

– Mas e as pessoas lá fora?

– Serafine, já disse que não...

– Se lutamos, temos tempo sim! – ela replicou furiosa. – Escutem: sei que é pedir demais. Vocês foram julgados de maneira equivocada e condenados por terem feito nada, mas há pessoas lá fora que precisam de ajuda. Vocês têm todo o direito de partir, mas peço que considerem fazer a coisa certa. Provem aos outros que eles estavam errados! Provem que os Sturian não são como todos pensam. Lutem para salvar essas vidas.

– Quer que nos arrisquemos por aqueles nobres? – uma mulher retrucou indignada. – Quer que lutemos por aqueles que queriam nos matar?

– Eu sei que isso soa ruim, mas... – Serafine engoliu em seco, certa de que todos ali acabariam partindo. Mesmo Jarek parecia indeciso quanto a ficar e lutar. – Podemos salvar vidas. Temos que salvar. Eles não merecem ser abandonados.

– Minha querida... O que nos pede é insano. – Foi Leyona quem falou. Serafine sentiu gelo escorrendo por seus nervos, certa de que seria abandonada na batalha. No entanto, a mulher deu um passo à frente. A mais jovem arregalou os olhos no mesmo instante. – Quero nossas crianças a salvo. Pode contar comigo nessa luta.

Os outros, até então indignados, seguiram a sua líder sem hesitar. Eles precisaram arrombar o arsenal dali para armar a todos, e Serafine ficou impressionada ao ver como os Sturian estavam preparados para aquele tipo de situação.

Nesse momento, Leyona pediu para ter uma conversa com Serafine, e, pela expressão da mulher, pareceu-lhe importante:

– Devo avisá-la que quem quer que tenha trazido esses monstros para cá fez a convocação lá nos calabouços – acenou com a cabeça na direção das escadas. – Não pude ver seu rosto, portanto, não posso identificá-lo, mas tenho certeza que carregava consigo uma joia de cor vibrante, com um entalhe na pedra.

A garota se retesou, encarando Leyona com puro espanto. Jon estava possuído pelo demônio, então só uma pessoa, em toda a Fortaleza, batia com aquela característica.

Maldição, Serafine pensou, devia ter nocauteado Benídia quando teve chance.

Quando Theodore se aproximou, a morena não demorou a explicar-lhe a situação lá fora. O principal, e seu maior temor, foi a última coisa comunicada:

– Jon foi possuído. – o centauro assentiu quanto à informação. Serafine tentou não se demorar, mas contou-lhe como havia descoberto. – Benídia está por trás da convocação dos monstros. Leyona disse que a viu mais cedo, nos calabouços.

– Tenho pensado nisso desde que acordei. Só há um jeito de um demônio ter passado pelas proteções do Castelo: é Magia Negra, muito poderosa, algo que apenas uma Feiticeira poderia realizar.

– Mas Benídia não é...

– Benídia deve estar possuída por uma bruxa. Por isso escolheu esse local... O mal já esteve presente.

Os dois voltaram-se para as escadarias do calabouço. Lá embaixo, em tantas celas, criaturas malignas haviam passado anos e mais anos, e algumas ainda estavam presas ali. Serafine se lembrava da energia ruim que emanava de lá e odiou não ter pensado nisso antes.

– Como faremos para salvar Jon?

Eles foram impedidos de completar qualquer pensamento por outro tremor de terra. Não sendo Serafine a causá-lo, ficou claro que algo ruim havia chegado ao palácio.

Os Sturian marcharam porta afora, com a disciplina e postura de uma legião; como se fossem soldados treinados pelo melhor comandante.

Uma luz avermelhada erguia-se em direção ao céu, vinda do pátio central.

– Estão colocando fogo na Fortaleza. – Serafine sussurrou, os olhos vidrados em lembranças macabras. – Estão destruindo tudo, como antes...

– Ei. – Jarek virou-a para si, o olhar suave sobre o dela. – O que houve com o seu rosto? – Ele tocou a lateral da bochecha dela. Serafine se lembrou do empurrão do Lobisomem e de ter ralado a pele contra o chão, mas ergueu os ombros, fingindo não ser nada demais.

– Qual o plano?

– Nós temos que encontrar Jon. Se for mesmo Benídia quem convocou os monstros, temos que ficar longe dela. Ou acertar sua cabeça com uma pedra – ele sorriu. – O demônio só o quis por ele ser um Mago. A força das Trevas agora se alimenta dele. – Ele lhe entregou um arco longo e uma aljava cheia de flechas; não o seu arco ou sua flecha mestra, Serafine pensou com decepção, mas ao menos estaria armada. Ela notou que Jarek havia recuperado a inseparável adaga de prata, além de outras armas. – Vamos.

– Para onde, exatamente?

– Jon vai estar na entrada. É da energia dele que o exército se alimenta, então ele não pode abandonar as brumas. – Jarek estacou ao avistar um gigantesco rombo na varanda à frente. A parede fora estraçalhada e, com ela, a entrada para as escadarias.

Serafine viera por aquele caminho, mas era certo que não havia como voltar.

– E agora?

Os dois olharam por sobre a mureta de proteção. Lá embaixo, a assustadores metros de distância, era possível enxergar o caos. Tudo havia sido tomado pelas Trevas.

Ao fundo, no muro destruído, repousava uma fera que Serafine jamais imaginou encontrar.

A Fortaleza estava sendo destruída por um dragão.

A criatura não era tão grande quanto Serafine havia imaginado, mas irradiava poder. As Trevas a haviam criado, de modo que o dragão era todo sombras e terror. Seus olhos vermelhos varriam os soldados e, de sua bocarra, jatos de fogo derretiam corpos e rochas, reduzindo tudo ao caos flamejante.

Os sons da batalha eram os mais amedrontadores possíveis. Serafine ouvia claramente rosnados vindos dos lobos, gritos do gigante draconiano e os sussurros sinistros da névoa. As pessoas lá embaixo estavam vulneráveis, despreparadas para o terror que as perseguia. Elas precisavam de ajuda.

O dragão soltou um grito agudo antes de envergar as asas de morcego e saltar para o ar, desaparecendo atrás de uma das torres.

– Precisamos descer. – Jarek disse. Os olhos dele ainda exibiam choque pelo encontro com a fera draconiana.

– Mas a escada de acesso está estraçalhada.

– Preste atenção: você vai atrás do Rei. Aquele dragão o está guardando, mas, se for distraído, deixará a passagem livre. Vai ser sua chance de chamar a atenção do demônio. Leve-o até Sibila, ela vai saber o que fazer.

– E como, pelos Deuses, eu acharei Sibila?

– Minha mãe foi encontrá-la. Ela vai guiá-la até o pátio principal, e então o demônio vai poder ser exorcizado.

– Como sua mãe chegou lá embaixo? – Jarek riu suavemente. – Espere ai, você vai se jogar nas garras do dragão como se não fosse nada demais? – Ele pensou um pouco.

– É. – um sorriso torto atravessou seu rosto. Ela quase sorriu; ali estava, o brilho no olhar que ela tento sentira falta. – Ah, e espero que não fique brava.

– Por quê?

– Prometi que te mostraria um beijo de verdade. – Jarek puxou-a de encontro a si. No instante seguinte, Serafine o estava beijando.

Não soube dizer quanto tempo ficou estática, paralisada pela atitude inusitada, mas acabou correspondendo a ele.

O modo com que Jarek apertou seu corpo contra o dele a fez arfar e ansiar por mais. Ela deleitou-se com a sensação das mãos dele contra sua pele, com a maneira com que ele delineou o arco de suas costas para encaixá-la aos seus próprios contornos.

Jarek arrastou combustão pela pele da morena, por seus nervos e músculos, arrepiando cada mínimo centímetro do corpo de Serafine. Seus lábios eram um incêndio contra os dela.

Suas mãos embrenharam-se no cabelo dele, puxando os fios consigo, e Jarek sorriu debaixo do beijo.

Por alguns instantes, ela se esqueceu da batalha e até mesmo do próprio nome, tamanha sensação que queimou seu coração.

E então ele se afastou, colocando-a numa situação tão embaraçosa quanto a do beijo. Havia um sorriso largo enfeitando o rosto do moreno, daquele tipo presunçoso e arrogante que tanto a irritava, mas havia fascínio em seu olhar.

Serafine podia estar paralisada, mas seu rosto assumiu uma expressão de puro choque.

– Por que fez isso? – O tom de voz dela foi estridente.

– Para dar sorte. – Ele piscou um olho. No instante seguinte, Jarek saltou a mureta de proteção, tão ágil quanto um felino, e Serafine foi levada junto.

A garota gritou enquanto caíam, mas o impacto acabou sendo mais suave do que ela imaginava. Jarek cambaleou um pouco ao colocá-la seguramente contra o chão. Sorriu pela aterrissagem perfeita, mas o sorriso desapareceu quando ele ergueu os olhos para qualquer coisa atrás de Serafine. E então a empurrou para o lado, acabando por ser ele a chocar-se contra um Lobisomem.

Serafine olhou por sobre o ombro para constatar que Jarek conseguira se livrar da besta.

– Princesa! – ele exaltou. – Uma ajudinha! – ela entendeu o que ele queria fazer no instante em que o viu correr na direção da torre mais baixa. O dragão estava apoiado no topo da construção, esmagando o telhado com o peso de seu corpo, mas estava longe do alcance do guerreiro.

Os olhos de Serafine cintilaram e a terra a obedeceu; Jarek saltou para ganhar impulso e parte do chão se ergueu a frente dele. Outro degrau e mais outro e ele se agarrou a uma das janelas da torre. Serafine moveu a mão e as rochas a acompanharam. O dragão urrou quando seu apoio desmoronou, e precisou içar voo rapidamente para escapar da queda. Foi o momento perfeito para Jarek saltar sobre a besta.

O Sturian cravou uma espada no pescoço da criatura, meio montado meio caindo da fera draconiana, e Serafine prendeu a respiração ao vê-lo vacilar. Mas Jarek não cairia; ele era ágil o bastante para lutar com um dragão.

Serafine sentiu a aproximação de um Lobisomem e se esquivou quando a criatura tentou atacá-la. Ele portava uma massa, cujas pontas afiadas pingavam sangue, e a visão daquele monstro, somada ao já despertar do seu espírito, enfureceu Serafine.

Com o arco em riste e duas flechas encaixadas nele, a morena rolou pelo chão quando o Amaldiçoado atacou uma segunda vez. Apoiada numa das pernas, ela disparou os tiros contra o peito do monstro, mas não o derrubou imediatamente. Não precisou derrubá-lo.

Gritando e rugindo, o dragão bateu uma das asas contra a lateral da torre e seu imenso corpo despencou. Serafine correu para longe e deixou o lobo para ser esmagado pela fera draconiana. Jarek foi lançado longe pelo impacto, e o dragão caiu ao chão num amontoado de sombras e fumaça.

Serafine ergueu as mãos e a pedra que antes receberia o Sturian se transformou em solo macio. Jarek rolou algumas vezes antes de parar, consciente e com um sorriso eufórico no rosto.

– Maluco! – Serafine gritou para ele, recebendo um aceno displicente.

As asas do dragão estremeceram enquanto ele se desenrolava, e, quando cravou os olhos vermelhos no rosto de Jarek, Serafine temeu verdadeiramente por ele.

Mas Jarek, claro, não estava nem ai. Ele assoviou de maneira provocadora, chamando a atenção do monstro, deixando o caminho livre para Serafine.

O dragão abriu sua bocarra e fogo vivo foi lançado na direção de Jarek. O Sturian guiou as chamas para longe, permanecendo entre elas com aquele largo sorriso debochado. Serafine não sabia se gostaria de beijá-lo de novo ou socar o seu rosto.

Ele piscou um olho na direção da morena e então correu para longe, atraindo o dragão ferido.

O local onde Jon invocava as forças das Trevas ficou desprotegido. E para lá Serafine seguiu.


Capítulo 43

Esperança em perigo

 


GUILLIAN JÁ NÃO AVISTAVA mais o Lobisomem que estivera perseguindo. A besta havia desaparecido em meio ao caos de fogo e fumaça ali do pátio. O Atyubru, exausto por só enfrentar ataques diretos, começou a avançar na direção do Castelo. Sabia que havia pessoas desesperadas em busca de ajuda e talvez pudesse auxiliá-los a encontrar um local seguro.

Ele não era soldado de abandonar uma batalha, mas cidadãos precisavam ser salvos.

O orelhudo saltou pelos escombros da Muralha, escombros estes que quase o haviam esmagado mais cedo, e correu. Avistou Amaldiçoados trucidando os soldados despreparados do Rei, mas não pode fazer nada por eles. O próprio monarca, possuído pelo demônio, havia desaparecido em meio às brumas de ébano logo que a batalha tivera início. Guillian desejou encontrá-lo, mas sabia que a criatura só deixaria o corpo de Jon se houvesse um exorcismo, e ele não era conhecedor de magia para fazer qualquer tipo de feitiço.

Enquanto corria, avistou corpos e mais corpos jogados pelo chão. A crueldade sem limites reinava no Castelo.

O orelhudo sabia o quanto as quimeras haviam tentado queimar a Ancestral, mas uma árvore milenar não cairia frente a um bando de monstros rebeldes.

As bestas, furiosas, acabaram lançando fogo no telhado da entrada do Castelo, desaparecendo além dele. Para onde, exatamente, Guillian não queria imaginar. As pessoas que conseguiram fugir estavam refugiadas. Cabia a ele encontrá-las.

Com alívio, Guillian descobriu que não estava mais sozinho.

Logo que alcançou a entrada do palácio, cuja estrutura havia sido abalada quando o dragão lançou suas chamas naquela direção, encontrou um rosto conhecido.

– Desculpe a demora, amigo. – Theodore sorriu enquanto preparava duas flechas em seu arco. – Mas tivemos que pegar outro caminho. – O Atyubru então viu quando mulheres e homens passaram armados em direção à batalha, urrando um grito de guerra. Observou, com surpresa, que os que julgou mais débeis foram os mais hábeis no encontro com os monstros. Os Lobisomens pareceram surpresos ao encontrar mais oponentes; por confrontar sua própria raça.

– Faça-nos um favor: guie os refugiados até os calabouços. Há alguém lá para ajudá-los. – Theodore pediu, e Guillian deu passagem quando o centauro trotou para a batalha. As duas primeiras flechas disparadas acertaram em cheio o coração e a cabeça de dois Lobisomens.

O felpudo aproveitou a distração para adentrar o Castelo. Os Lobisomens agora marchavam em direção aos seus novos oponentes, esquecendo-se momentaneamente daqueles que antes caçavam.


***


– Sibila? – Guillian indagou a plenos pulmões, o rosto tomado por uma imensa confusão. – O que está fazendo aqui? É perigoso! Devia estar escondida!

– Estou preparando um feitiço para encontrar os fugitivos. – As cobras na cabeça dela sibilaram. Aos seus pés havia uma poça de sangue, sangue este que vinha de um corte feito na própria mão, e uma chama queimava magicamente sobre o líquido escarlate. – Onde está Serafine? – a mulher indagou desesperada. – Nós nos separamos durante a festa e eu não consegui encontrá-la depois disso... Vim aqui tentar localizá-la, mas há muito caos e barulho lá fora. Não consigo entender meus sentidos.

– Os Sturian foram libertos, o que significa que Serafine está bem. – Guillian sentiria se ela estivesse em perigo.

Sibila exaltou animada quando terminou de recitar o encantamento, e uma bola de fogo ergueu-se no ar. Flutuando com rapidez, o encantamento seguiu pelo corredor e fez uma curva à direita. Guillian hesitou.

– Há civis para lá.

O orelhudo ergueu a espada que trazia em mãos e, lançando à mulher um olhar estreito na direção de Sibila, certo de que ela sentiria sua desconfiança, seguiu a bola luminosa.

Sibila ficou para trás apenas por alguns instantes, caminhando para fora do Castelo logo que deixou de sentir a presença do Atyubru.

Quando saiu do prédio, a Feiticeira mutilada sentiu uma presença poderosa. Era uma energia tão forte que, debaixo de suas pálpebras, ela quase podia vislumbrar a silhueta vibrante da figura. Da sua irmã.


***


Para absoluta surpresa de Guillian, a bola de fogo levou-o a diversos lugares onde civis escondiam-se. Muitos estavam em quartos pequenos, outros em salas pouco usadas. Era o mínimo de pessoas que se podia imaginar, nobres amedronta- dos sem saber o que fazer para se salvar, mas Guillian sentiu-se bem ao ajudá-los. Sentiu-se grato por aquelas almas estarem seguras.

Encontrou, numa das salas, dois dos lordes do Conselho, sendo um deles o mais desprezível, em sua opinião. Eles pareciam desesperados para sair dali, mas agiram tão rudemente que coube a Guillian dar-lhes um sermão:

– Vocês já não ouviram Serafine quando deveriam, e agora querem me dar ordens? Ora veja só, melhor largá-los aqui e fazer um bem a este mundo!

– E para onde pretende nos levar, nobre senhor? – Lorde Klaus, esse era o nome dele, Guillian se lembrava. O felpudo encarou-o com suspeita, nada a vontade com o tom bajulador na voz do homem.

– Pretendo levá-los até os calabouços, há alguém lá que pode ajudar. – ele ouviu barulhos estranhos vindo de um corredor e imediatamente ergueu as orelhas. – Andem logo, precisamos alcançar aquela passagem!

Ele ficou por último na fila, incitando os nobres atormentados a irem mais rápido. Acabaram encontrando um grupo de servas no caminho, uma delas ferida e desacordada, o que resultou em uma demora maior para alcançarem o andar dos calabouços. Guillian, inquieto, não parava de olhar ao redor. Os barulhos da batalha lá fora ainda eram audíveis de longe e os urros assustadores do gigante de fogo ecoavam pelas paredes do Castelo.

– Pelos Deuses! – Eles estacaram quando uma das mulheres à frente gritou aquilo.

Guillian avançou para ver o que os interceptara e arrependeu-se por fazer isso.

Uma quimera estava parada ao fim do corredor. Ela era grande como um Amaldiçoado, metade leão e metade serpente. Guillian já lutara contra uma daquelas antes, mas estava muito mais preparado e fortificado, na época. Não houve tempo, ali, de uma esquiva ou de buscar abrigo. Quando a serpente abriu sua bocarra e seus olhos amarelos se acenderam, o Atyubru soube que estava perdido.

Tudo o que Guillian conseguiu enxergar, em seguida, foram chamas vindo para cima dele.


***


– Jarek! – O guerreiro voltou-se para a mãe, que corria desesperada em sua direção. Ele havia se esquivado do dragão, embrenhando-se numa série de corredores cobertos. A fera estava fraca, mas não caíra pelo ferimento no pescoço nem pelos diversos outros proferidos a ela. O dragão voava com a força das sombras, lançando chamas na direção do prédio.

– O que faz aqui? Eu pedi que encontrasse Sibila!

– Eu a encontrei. Ela está desacordada na entrada do Castelo! Tentei de tudo, mas ela não se levanta. Estava me aproximando quando a vi conversando com outra menina, e então a mulher desmaiou!

– Outra menina? Quem?

– Eu não sei bem. Era alta e usava um vestido vermelho. Morena, pele clara, tinha um colar bonito...

– Benídia?

O teto da abóbada em que se escondiam estremeceu, mas houve tempo para que Jarek e a mãe se jogassem longe antes dele desmoronar. O dragão lançou fogo sobre eles e o Sturian afastou as chamas, empurrando a mãe na direção da parede ainda erguida.

– Onde aprendeu a fazer isso? – Leyona arregalou os olhos, choque e fascínio duelando em seu olhar. Jarek sorriu convencido.

– Um truque dos elfos.

– Mas os Sturian não controlam o fogo desde...

– Mãe!

– Oh, certo, desculpe. Qual o plano?

– Preciso que leve todos que encontrar para os túneis... Vou atrás de Sibila. Só uma Feiticeira pode ajudá-la com aquele demônio.

Antes que Leyona pudesse dizer qualquer coisa, Jarek já havia partido.

Usando sua força sobrenatural, o guerreiro agarrou um pedaço da estrutura que havia cedido e lançou a rocha contra o dragão. A fera rugiu pela dor do impacto e perdeu o equilíbrio, caindo contra o chão. Leyona repetiu o gesto do filho e atirou outra rocha contra o monstro. Não conseguiram matá-lo, mas o abalaram o suficiente para fugir de seu encalço.

Jarek se afastou da mãe, e os instantes de atraso serviram de ajuda para Leyona, pois quando a mulher se adiantou na direção dos calabouços, vislumbrou uma figura perdida andando em meio aos escombros.

A garota chamada Benídia abraçava a si mesma e andava para lá e para cá com a expressão mais alucinada o possível, quase como se não soubesse onde realmente estava.

Hesitante, já que a menina estava em campo aberto, Leyona correu para ajudá-la, puxando-a pelo braço ao se aproximar. Benídia retesou-se ao toque e soltou um grito de lamento.

– Está tudo bem. – Leyona não pode deixar de se assustar com o olhar dela. Era insano. – O que houve querida?

– Eu tentei. Eu tentei. Todo esse tempo. Eu tentei fugir. Não pude impedir o Ritual... – Então havia sido ela, pensou Leyona. Aquela garota atormentada fizera o Ritual. Ela havia invocado os monstros.

– Tudo bem, vamos para dentro, aqui é perigoso. – Ela olhou para trás, e o dragão negro sobrevoou suas cabeças.

– Eu tentei avisar, mas a bruxa não deixou. – Benídia estremeceu violentamente.

– Vamos – Leyona tentou guiá-la, mas a menina puxou o braço com força e voltou a andar para lá e para cá. – Querida, temos que entrar!

– Luke... Só me pediu para usar o colar. Achei tão bonito. Mas quando o toquei... A bruxa me dominou. Eu passei a assistir tudo, mas não consegui... Havia tanta escuridão! – ela voltou a se contorcer. – Oh Deuses... Faça as vozes pararem, eu não aguento mais!

– Benídia, venha comigo, por favor.

– Serafine! Ela corre perigo.

Leyona seguiu o olhar da garota até o pátio. Viu Jarek, que trazia um arco e flecha em mãos, e viu que o Rei caminhava na direção dele com uma fúria assassina. Viu, mais ao fundo, Serafine lutando contra alguém.

De repente, o universo pareceu estremecer. E Leyona temeu ser tarde demais.


Capítulo 44

Possuída

 


SERAFINE COLOCOU-SE EM grandes problemas no momento em que resolveu se aproximar de Jon. Ela não tinha como saber quem estava para confrontar, mas arriscou-se ao ignorar a aura poderosa da criatura.

No passado, para confrontar o irmão, Sharowfox havia reunido um exército poderoso, mas não pareceu o bastante. Portanto, ela viajou até o Abismo, buscando pelo Caos, o nível mais profundo daquela vala cheia de tormento, onde viviam os demônios; num buraco corroído por lava, onde o ódio era seu único alimento, foi onde Sharowfox encontrou aqueles que a ajudaram a fortificar seu exército. Lá, ela achou auxílio para que seu controle sobre as sombras fosse supremo.

Um demônio em particular foi seu ajudante. Um, dentre todos os lordes que no Caos viviam, serviu como braço direito até o dia em que Sharowfox caiu em desgraça. Um Necromante que tornou a Feiticeira sua aprendiz nas artes sombrias.

A criatura tinha muitos nomes, mas a maioria não possuía tradução para a língua comum. Muitos eram tão assombrosos que as pessoas temiam pronunciar.

Morzyon, o demônio das sombras. Uma criatura cujos olhos pareciam abismos de uma tortura sem fim.

– Ora, ora, ora... A criança acabou vindo até mim. – Serafine estremeceu quando a voz do demônio se sobrepôs à de Jon. Era aquele mesmo murmúrio rouco e gutural que ouvira nas passagens secretas, o mesmo tom atormentador capaz de paralisar até o mais bravo guerreiro. Serafine não sabia que aquele era um dos demônios mais poderosos de todos os tempos, mas sentiu o poder que ele emanava.

Sharowfox podia ter o coração corrompido pelas Trevas, mas o demônio era moldado por elas. O medo lhe trazia força e a dor lhe dava prazer.

Com coragem, Serafine invocou os poderes de seu espírito. Prendeu o arco ao seu corpo, desistindo de tentar ferir a criatura. Seus tiros de nada serviria contra um monstro daqueles.

Ela sentiu a vibração em seus braços crescer. As marcas em seu corpo começaram a brilhar magicamente, a cor perolada respondendo à luz do espírito.

– Não pode batalhar comigo, criança tola. – Jon tombou a cabeça para o lado, curiosidade estampando seu rosto. Os olhos negros incidiram sobre os de Serafine de uma maneira cortante. – Eu não desejo feri-la.

– Claro que deseja. Sharowfox me quer morta.

– Oh, ela quer? E quem foi que lhe disse isso? – Serafine hesitou ao notar a diversão no sorriso dele. – Você já não anda chegando a conclusões erradas demais? Não bastou os acontecimentos em Cidade Miragem?

– O que quer dizer?

– Oh, criança, ficará abalada se eu lhe disser que o seu espírito estava revelando a verdade? Que era uma armadilha? – ele soltou uma gargalhada. – Minha Rainha camuflou um de seus Lobisomens como um Sturian. – ele fez uma pausa longa, observando as reações de assombro passarem pelo rosto da garota. – Era a única maneira que tínhamos para que você não suspeitasse de Benídia. Com os Sturian no Castelo, toda a atenção da nobreza caiu sobre eles, e ajudou minha Rainha de uma maneira que ninguém pode imaginar... A Feiticeira que ocupava o corpo da menina pode fazer o que bem desejou para manter contato conosco. Ela nos informou o melhor dia para a invasão, ela atacou Jon com a magia negra, enfraquecendo-o, adoecendo-o, de modo que o Mago estava fraco e não pode me impedir de possui-lo. Ela nos passou detalhes sobre sua... Saúde.

– Minha saúde?

– Ora, a portadora do espírito é preciosa demais para que deixemos qualquer coisa passar. Suas visões... Elas não eram nada comuns, certo?

Ela não respondeu.

– Sabe por que elas não eram comuns, querida? Porque eram forjadas. Porque alguém entrava em sua mente para tentar ajudá-la.

– A mulher de minhas visões. Quem é ela?

– Já descobriu sobre Ravenne, não descobriu? Ou nem tudo a respeito dela. – o demônio sorriu. – Você foi tola... Não percebeu o que Ravenne desejava lhe mostrar. Não entendeu que as Trevas já estavam no Castelo esse tempo todo, que Nayara controlava o corpo de Benídia. E tudo graças a minha Rainha. A mesma que agora a deseja ao seu lado.

– Eu vou aniquilá-la quando chegar à hora. Ela já tentou me matar uma vez!

– Tentou? Sharowfox falhou muito, então. E ela não falha. – a garota franziu o cenho ao ouvir aquilo. – Acha mesmo que minha soberana tinha a intenção de matá-la, criança? Acha que se a Rainha das Trevas desejasse sua morte, você já não teria partido?

– Ela não é tão forte quanto você pensa.

– Não. Ela é ainda mais. Podia estar fraca antes, mas isso – ele apontou ao seu redor, onde a Fortaleza ruía em chamas. – é o que sua força restaurada trouxe. Warthia sucumbirá ao seu poder antes da próxima Era dos Magos.

– Ela nunca vai chegar ao poder. Não enquanto houver a Luz para combatê-la.

– Sharowfox a quer ao seu lado. – Serafine ergueu um escudo de terra quando o demônio tentou se aproximar. A criatura gargalhou sobre a voz de Jon, parecendo achar sua magia patética. Com um aceno da mão, fez com que a névoa negra ao seu redor quebrasse o muro criado pela garota. – Por que não sente o poder? Por que, por alguns instantes, não mergulha nas sombras e compreende o que estou para lhe oferecer?

– Nunca!

– Você não tem ideia do que está perdendo. – ele não pareceu decepcionado. As sombras que repentinamente haviam avançado na direção dela se dissiparam, retornando para perto de seu mestre. – Não faz ideia do que é senti-las correndo por suas veias, drenando seu corpo com o mais puro poder. Não tem noção do que é pertencer às Trevas... E eu lhe ofereço uma oportunidade. Já existe uma marca sombria em seu espírito, deixe-me fortalecê-la. As sombras poderiam lhe mostrar porque esse destino a persegue, porque você, e apenas você, é a escolhida para essa missão. Não deseja isso, criança? – ele sorriu ao perceber que despertara o interesse de Serafine. – Não quer desvendar todos os mistérios?

A garota tentou controlar a ansiedade. Tentou permanecer impassível quando ele disse aquelas palavras. Tentou, tortuosamente, ignorar a sinceridade com que elas foram ditas, e também a estranha sensação de confiança que a voz dele lhe passou.

Concentrou-se no medo que aquela rouquidão lhe causava e também no frio que vinha abraçando seu corpo. Era isso que as sombras faziam; congelavam seu coração. Traziam emoções ruins à tona. Nada que vinha delas era bom.

– Houve uma garota como você no passado... Alguém que tinha dúvidas sobre seu futuro. E, querida, sinto dizer que, por causa dessas dúvidas, ela tomou o caminho errado. – o demônio suspirou com tanto pesar que chegou a ser real. – Não faça como ela. Aceite a oferta que as sombras lhe oferecem... Sharowfox quer lhe dar respostas.

– Não.

– Você não vai se arrepender se experimentar. Deixe que as sombras mostrem seu poder. – A terra estremeceu debaixo dos pés da garota, mas o demônio permaneceu rígido. O semblante dele ficou mais feroz pela insistência que estava tendo de usar.

Serafine assistiu, abismada, os tentáculos negros embrenhando-se em sua direção. Como serpentes feitas de fumaça, esticavam-se, ansiando por tocar sua alma. Ela não sabia como seria aquilo, se sentiria dor ou poder, se seria tentada para o lado do mal. Mas, por mais que o pedido tivesse se tornado tentador, ela se afastou.

– Não vou sucumbir.

– É uma pena. – as sombras pararam a centímetros de distância, flutuando no ar como uma fraca neblina. – Tenho uma missão, criança, e ela será cumprida. Minha Rainha exigiu a sua presença e eu a levarei até ela.

Uma sombra ergueu-se atrás da garota, tão repentina que fez Serafine ofegar, mas ao avistar a figura conhecida de Sibila, ela relaxou.

– Sibila, que bom!

E então algo aconteceu. Quando pareceu a Serafine que Sibila iria atacar o demônio, ela se virou. Ela saltou para atacar. A garota arregalou os olhos quando sua guardiã caiu num salto animalesco, mas, com os reflexos do espírito, conseguiu se esquivar a tempo.

– Não! Ela não pode ser morta! – Jon, consumido pela fúria do demônio, berrou aquilo. Sibila pareceu atordoada e virou-se para ele com confusão. – A Rainha a quer viva!

– Um ferimento não vai matá-la. – Serafine, completamente atordoada, tentou engatinhar para longe, mas seus calcanhares foram agarrados. Ela soltou um grito quando o toque gélido das Trevas foi sentido em sua pele, tão frio que chegou a doer.

Virou-se com assombro para sua guardiã, que caminhava em sua direção com uma determinação assassina. Se pudesse vislumbrar seus olhos, certamente encontraria maldade neles. Não entendia porque Sibila fazia aquilo, mas, de repente, ela havia sucumbido às sombras.

O espírito reagiu pela garota.

De um dos chafarizes destruídos ali perto, uma coluna de água jorrou, acertando em cheio o rosto da mulher. As cobras em sua cabeça silvaram em desespero e Sibila foi obrigada a se afastar.

– Já chega! – Morzyon berrou, e no instante seguinte estava sobre a garota. – Você vai pertencer ás Trevas. A primeira marca já está na sua alma!

– Me largue! – Serafine desesperou-se quando sentiu os dedos dele fechando-se em torno de sua garganta. Não encarou seus olhos, temendo congelar pelo pavor, e concentrou-se na força de seu espírito. O empurrão não foi suficiente para afastá-lo, mas ela conseguiu alguns instantes para escapar.

Instantes valiosos, pois quando Jon foi afastado de seu corpo, uma flecha atravessou o ombro direito dele. O demônio grunhiu alto e se contorceu pela prata que agora queimava sua pele.

– O colar! – Jarek gritou lá longe. Ele estava acompanhado de Percival, que tinha os olhos arregalados por ter atirado contra o seu Rei.

Serafine avistou Sibila em meio às sombras. Ela notou um conhecido brilho em seu pescoço e reconheceu o mesmo colar que outrora pertencera à Benídia, agora com sua guardiã. O colar enfeitiçado.

Num salto, Serafine se jogou na direção da mulher e a empurrou contra o chão. Arrancou a joia de uma só vez, mas acabou sofrendo por fazê-lo.

Ela não havia avistado Leyona, desesperada, pedindo que não se se aproximasse da pedra.

Quando sua mão tocou na joia, algo invadiu a escolhida. Algo mal e traiçoeiro, que tomou conta de seus membros e mente, que a afastou da realidade. Algo que fez o espírito se contorcer em agonia, como se fogo queimasse dentro de seu corpo.

Ela não pode fazer nada para impedir. Não conseguiu lutar ou reagir. Nem mesmo falar. Serafine foi possuída pelo espírito de uma Feiticeira.


Capítulo 45

A ajuda de Leyona

 


LEYONA NÃO PERDEU TEMPO quando viu a garota adiantar-se até Sibila. Ela precisava parar Serafine.

Benídia mencionara uma bruxa, e Leyona imaginou ser esse o motivo da possessão; Sibila também havia tocado na pedra. Havia magia das Trevas naquele colar.

Ela conseguiu alcançar o lugar a tempo, mas não foi suficiente. No âmago de Serafine, naquele momento, só havia Trevas.

A Esperança de Warthia estava dominada pelas sombras, e seus guardiões não podiam ajudar. Jarek engajava-se numa luta corpo a corpo com o poderoso demônio, e um menino desconhecido, que Leyona admirou pela pouca idade e tamanha força, era o único a segurar os Lobisomens que tentavam se aproximar. Sibila estava caída no chão, provavelmente tão atordoada quanto Benídia. Guillian não se encontrava em lugar algum. Dependia de Leyona que aquilo funcionasse.

Por isso ela chocou-se contra Serafine, empurrando-a ao chão. Ambas perderam o equilíbrio, mas a mais jovem não sofreu com o encontro. A bruxa dentro de Serafine, no entanto, foi consumida por uma fúria animal ao ver seu momento de glória atrapalhado. Ela voltou-se para Leyona, os olhos de âmbar tomados por escuridão.

Era tudo o que a Sturian queria.

Leyona ergueu o braço quando Serafine se atracou com ela e arrancou o colar de suas mãos, tomando cuidado para não tocar na joia.

Jogou-o contra o chão com toda a força que possuía, estilhaçando a joia. Serafine gritou, um grito que se tornou inaudível de tão estridente. O ar ao redor delas condensou-se, e Leyona assistiu uma nuvem negra ser sugada em direção ao céu, tirando a maldição do colar. Com dificuldade, a mulher viu um semblante animalesco contorcendo-se em meio à fumaça que era dissipada.

Então uma explosão cortou o ar e as nuvens pegaram fogo. Leyona protegeu Serafine com o seu corpo e cobriu os olhos, tamanho brilho a que foram expostas. Como se um incêndio colossal se alastrasse pelos pilares da terra.

Os presentes pararam suas lutas para observar aquela imagem, onde a noite clareava-se num dia de fogo. O dragão soltou um guincho de dor ao ver sua mestra indo embora. Quem quer que fosse aquela Feiticeira, era a responsável por fortificar os seres das sombras ali presentes. Mas, mesmo com a derrota dela, eles não desaparecerem.

As Trevas inflaram-se em fúria ao verem-se perdendo uma poderosa aliada. Jarek foi lançado longe por Jon, que agora estava determinado a exterminar a causadora daquela baixa no exército. Leyona empurrou Serafine para longe ao ver o monarca se aproximando, possuído pelas sombras, e então o demônio estava em cima dela.

Ele a arremessou para longe, tal como fizera com o filho. Diferente de Jarek, no entanto, Leyona não pode se recuperar da queda. Jon já a havia alcançado de novo e bateu sua cabeça contra o chão de pedra uma, duas vezes, até que a consciência da mulher se apagou.

A névoa negra agora se espalhava na direção do Castelo, tomando cada centímetro. O fogo tomou uma intensidade maior e começou a se alastrar por onde quer que as Trevas passassem; elas arrastavam consigo a fúria do demônio.

O dragão ficou maior e mais forte conforme as brumas de ébano escorregavam até seu corpo, e seu sopro incendiário começou a derreter as bases da Fortaleza.

– Morzyon, eu o invoco. – Jon voltou-se na direção daquela que a chamara. Sibila estava de pé, fraquejando, mas com força suficiente para continuar o encantamento: – Eu invoco fogo, terra, água e ar contra você. Eu invoco os Quatro Deuses e ordeno que parta. Eu invoco a fúria divina e ordeno que parta. Morzyon, eu o invoco. Raquies mei pessi. – E prosseguiu repetindo aquelas frases. A cada uma dita, a criatura contorcia-se mais e mais dentro do corpo do Rei.

– Morzyon, eu o invoco. – Os olhos de Serafine se acenderam, brilhando pálidos em meio à escuridão que ameaçava dominar aquele lugar. Sangue escorria de seu nariz, mas a voz poderosa do espírito gritou por ela: - Eu invoco o fogo, a terra, a água e o ar contra você. Eu invoco os Quatro Deuses e ordeno que parta! Raquies mei pessi. – O chão ao redor do demônio estremeceu. Raízes cresceram do chão, prendendo seus braços e pernas, enroscando-se no corpo do Rei possuído.

– Eu invoco a fúria divina e ordeno que parta.

– Raquies mei pessi! – Serafine gritou uma vez mais.

Theodore, até então ocupado com o dragão, cavalgou na direção de sua aprendiz e ajudou Sibila a montar em suas costas.

O espírito desperto trouxe nuvens cinzentas ao céu, e trovoadas retumbaram ao longe. Theodore sabia sobre a instabilidade da alma de Serafine, mas não podia arriscar deixá-la para trás, por isso a alcançou e, com a ajuda de Sibila, começou a tirá-la dali.

O demônio estava caído, fumaça negra saindo por suas orelhas e narinas. Os olhos pareciam queimar em plenas órbitas, mas só a cor negra do monstro era afetada. O Rei estava sendo libertado.

– Raquies mei pessi! – Jarek gritou quando alcançou sua mãe, erguendo-a em seu colo.

– Deixe-o, agora! – Sibila exultou uma última vez.

E Jon caiu no chão, livre, enquanto a fumaça negra que flutuara para fora dele afastava-se para o canto mais escuro da Fortaleza. Tomava forma lentamente, fortalecida pelas Trevas ao seu redor.

Theodore não perdeu tempo e agarrou o Rei, jogando-o sobre suas costas, as raízes tendo agora libertado o pobre Mago. O centauro sabia, assim como os outros, que o demônio logo se reergueria. Ele sabia que o Castelo estava tomado e não havia nada a fazer para recuperá-lo.

Pesada chuva começou a cair sobre suas cabeças, e raios dispararam em direção aos inimigos que ainda estavam de pé. Eram tantos.

O centauro sabia que os sobreviventes já estavam atravessando as passagens, assim como alguns Sturian que haviam lutado. Não podia ficar para trás. Eles tinham que alcançar aquela passagem antes que Morzyon expandisse sua fúria, e Theodore temia que ele o fizesse rápido demais.

Jarek os guiou, carregando sua mãe com esforço.

Na entrada dos túneis, que se abriam numa das celas do último nível, encontraram com um exasperado Guillian. O Atyubru tinha uma das orelhas queimadas e faltava-lhe pelo ali, mas ele parecia não sentir dor. A adrenalina o dominava por completo.

– Ah, graças aos Deuses! – Ele exclamou.

A estrutura da Fortaleza tremeu quando um grito alto

ecoou por ali. A passagem era arredondada e coberta por pedras, pedras essas que ameaçavam desabar a qualquer instante. Mais um terremoto daqueles e o túnel se fecharia.

– Morzyon!

Atrás deles, sombras começaram a se levantar. Jarek correu à frente carregando a mãe, e Percival ajudou Jon.

Guillian e Serafine ficaram para trás. A garota, cujo espírito ainda cintilava atrás de seus olhos, mirou as escadas com avassaladora fúria. A terra estremeceu sob seu comando e a estrutura da Fortaleza vacilou uma vez mais. Theodore olhou ao redor, temeroso.

Aproximou-se da aprendiz o suficiente para que as palavras sussurradas se tornassem compreensíveis:

– Queria ter tempo para lhe explicar, Serafine, mas espero que isso seja o suficiente. – os olhos dele pararam no colar pendurado no pescoço da garota, onde a pedra verde repousava, e então uma frase esquisita foi murmurada: – Meyn cilly duo.

Os olhos da garota se apagaram repentinamente. O espírito repousou com uma facilidade nunca vista antes, e a consciência da garota retomou controle sobre seu corpo sem sentir os efeitos da possessão.

Assustada, Serafine franziu as sobrancelhas na direção do Mestre, sem entender o que se passava. Theodore não se deteve em explicações. Voltou alguns passos para trás com uma expressão determinada, os olhos azuis preenchidos por uma repentina coragem, e encarou Serafine com absoluto orgulho:

– Boa sorte, esperança.

Ele murmurou uma única palavra. Palavra essa que fez Serafine gritar:

– Lay.

– Não!

As pedras atrás dele e à frente da dupla desmoronaram. Guillian precisou empurrar Serafine para que eles não acabassem soterrados, e os dois correram. Correram até que seus fôlegos fossem perdidos. Serafine fugiu pelas passagens como Ravenne havia ordenado em sua visão. Lágrimas e sangue manchavam seu rosto, dor corroía seu corpo, mas ela encontrou forças para a fuga.

Queria retornar e ajudar seu amigo, mas estava tudo perdido.

A Fortaleza do Dragão havia sido conquistada.


Capítulo 46

Você não está sozinha

 


OS TÚNEIS PARECIAM NÃO ter fim. A agonia e o desespero também não.

Serafine continuou caminhando pelo que lhe pareceram horas, exaustão dominando-a a cada minuto que passava. O espírito havia voltado ao repouso, mas Serafine também precisava descansar. Guillian pediu que ela continuasse andando, pois temia que as sombras avançassem pelas passagens. O orelhudo havia lhe informado que apenas ele sobrevivera ao ataque da quimera, e todos os sobreviventes que ele encontrara estavam agora mortos.

A garota desejava imensamente entender o que havia se passado momentos antes de Theodore sacrificar-se, mas nada tinha mudado em sua pedra. O que ele havia feito ficaria em segredo até que tal magia – ela acreditava tratar-se de um feitiço – se revelasse. As palavras sussurradas em nada significavam para ela, por mais que Serafine soubesse a Língua Antiga.

Chegou certo momento em que nem mesmo Jarek conseguiu prosseguir, portanto, pararam na caverna, a mesma cheia de inscrições na parede, e montaram guarda. Serafine foi informada de que os outros, principalmente as crianças e os nobres que conseguiram se salvar, já haviam atravessado o resto dos túneis.

Eles resolveram ficar ali por dez minutos apenas para restaurar as energias. Jarek dedicou-se a examinar os ferimentos da mãe, que ainda estava desacordada, e Guillian e Percival ajudaram o Rei – agora consciente, porém atormentado – com a flecha no ombro. O menino não parava de se desculpar, e Jon não parava de lhe dizer que não fora nada. Ele não estava sangrando muito, e a camisa foi suficiente para fazer uma bandagem. Enquanto o Atyubru enrolava o ferimento, Jon chamou Serafine para conversar:

– Onde está Theodore?

Serafine estacou por um instante, e aquela reação foi suficiente para responder ao questionamento. A expressão de Jon despencou em agonia. Dando as costas à garota, buscou recompor-se conforme respirava fundo pelos minutos seguintes. Serafine e Guillian entreolharam-se, mas não havia muito que fazer.

– Sinto muito – Jon murmurou. Ouvir a voz dele foi quase uma benção. – A possessão ocorreu nesta manhã, mas meu estado... Eu deveria ter sentido a bruxa em meus domínios. Ela estava usando sua magia para me deixar vulnerável. Achei que... Achei que fosse outra coisa. – Serafine se lembrava da maneira fria com que Jon vinha agindo há semanas, e de sua aparência doentia. – Mais cedo, me chamaram para uma reunião. Benídia estava lá, e os traidores do Sul... A bruxa me obrigou a enfraquecer as barreiras ao redor da Fortaleza, e então o demônio pode entrar. – ele segurou as mãos de Serafine e ela notou o quanto o Rei tremia. – Eu sinto muito por tê-la tratado tão friamente quando veio falar do demônio... Benídia permaneceu próxima de mim o dia todo, restaurando o poder de Morzyon sempre que eu conseguia encontrar uma brecha em minha prisão.

– A culpa não foi sua, Jon. Fomos enganados pela Feiticeira.

Serafine aproveitou para explicar sobre os acontecimentos em Cidade Miragem, que o demônio havia lhe contado não passar de uma armadilha. Mencionou também aquilo dito por ele: E ajudou minha Rainha de uma maneira que ninguém pode imaginar. Ela não conseguia entender aquela frase, mas a maneira como ele havia falado ainda trazia calafrios.

– Aquele colar que Benídia usava estava enfeitiçado por magia negra. A questão é que eu vi quem lhe deu a joia tempos atrás. – Ela hesitou, sem saber se deveria revelar aquilo para Jon. Mas não tinha porque esconder o segredo. Luke estivera parado ao lado do torturador, em sua última visão. O príncipe lutava pelas sombras.

– E quem foi?

– Luke. – Jon não pareceu muito surpreso. – Ele se encontrou com Benídia num dos jardins da Fortaleza, mas eu não tinha achado estranho até ser tarde demais...

– Os sulistas... Eu deveria imaginar. – o Rei massageou as têmporas. – Luke veio falar comigo, mas era Hammel quem tinha interesses maiores. O casamento seria útil, sim, mas a verdadeira intenção deles era me ter fora de seu caminho.

– O que quer dizer?

– Quero dizer que, preocupado com a proposta feita para tomar a mão de sua filha, eu nem cheguei a notar qualquer mudança no comportamento de meu sobrinho. Luke teve o caminho livre para chegar até Benídia, para dar-lhe o colar enfeitiçado... E desde então ela vêm me influenciando.

– Eu devia ter comentado minhas suspeitas antes. – Serafine resmungou.

– Não havia como, milady. – Foi Guillian quem se pronunciou. Com a fraca iluminação fornecida por uma tocha, os olhos do Atyubru ficavam surpreendentemente mais brilhantes.

– Ele tem razão, Serafine. – Jon disse compreensivo. – A Feiticeira me deixou num abismo de descontrole... Você teria me dito suas suspeitas e eu as teria descartado.

– A senhorita se saiu muito bem hoje, conseguiu salvar Sibila de um destino terrível.

– Como assim?

– Ser possuído por qualquer coisa é uma invasão horrenda. Jon é um Mago poderoso e por isso está são depois de passar um dia com as Trevas dentro de si, mas não poderia dizer o mesmo de Sibila. Ela já havia feito um encantamento mais cedo para me ajudar com os civis, e... Sendo uma filha das Trevas, ter acesso a elas novamente tirou suas energias. – ele olhou para um canto, onde Sibila repousava em uma espécie de meditação. – Todos os afetados pela bruxa terão sequelas.

Serafine engoliu em seco ao ouvir aquilo. Seu corpo ainda doía por ter sido possuído pelas sombras, e a garota tinha consciência de que o espírito estava inquieto. Ao ouvir aquelas palavras de Guillian, a certeza de que tudo ficaria bem desapareceu.

O orelhudo pareceu ter notado sua expressão assombrada, e por isso tratou de acrescentar:

– Milady, não tem que se preocupar! Quando chegar o momento, seu espírito renovara as energias e expulsará qualquer marca das sombras que tenha restado. Jon também o fará, por ter sangue mágico correndo em suas veias, e Sibila certamente se livrará com algum encantamento. – Estava claro que o Atyubru queria melhorar a situação, mas nem Serafine e nem Jon acreditaram em suas palavras. Os dois sorriram fracamente, e então se encararam por alguns instantes.

Serafine desviou o olhar e encontrou Jarek com a mãe. Ela avançou até lá com rapidez, sentindo-se mal por ainda não ter ajudado a mulher.

– Como ela está? – Serafine indagou. Tocou o ombro de Jarek, tentando demonstrar que estava ali por ele.

– Não reage. – O filho colocou a mão sobre o rosto da mãe, depois checou pela milésima vez os batimentos cardíacos. Preocupação transbordava de seus olhos azuis.

– Talvez eu possa ajudar. – Os dois olharam para Jon, que vinha mancando em sua direção. Com a ajuda de Guillian, o monarca ajoelhou-se ao lado de Leyona e ergueu suas mãos.

– O que vai fazer? – Jarek estreitou os olhos em desconfiança.

Jon não respondeu. Havia fechado os olhos e a mente para se concentrar no feitiço. Os presentes puderam vislumbrar a luz pálida e esverdeada que surgiu nas palmas de suas mãos. Ele colocou uma sobre a testa de Leyona e a outra sobre seu coração. Franziu os lábios, como se algo estivesse saindo errado, mas foi possível perceber que a respiração de Leyona voltava ao normal.

– Majestade, o senhor está fraco. – Guillian murmurou, mas Jon pediu que se calasse.

– Pode voltar agora. – Jon sussurrou num ofego.

Seu rosto estava encharcado de suor, mas, quando Leyona abriu os olhos, um largo sorriso ergueu-se no rosto do Rei.

– Majestade... – ela claramente não sabia o que dizer. – Obrigada. – Jarek segurou as mãos da mulher, alívio inundando suas feições.

– Eu precisava fazer isso. Tomei a decisão errada ao condená-los. – Jon soltou um longo suspiro. – Todo esse caos em meu Reino estava me levando à loucura. Os ataques às vilas não foram seus, imagino.

– Não. – Leyona respondeu. – Nós estávamos viajando para buscar alimento para o acampamento e soubemos dos lugares destruídos. Os lobos estavam viajando, disfarçados pelas sombras, fazendo parecer que nós éramos os culpados. Eu ia tentar argumentar com vossa majestade no dia em que um deles atacou aquela garotinha...

– Um Lobisomem disfarçado o fez, e fugiu depois disso. – Serafine se lembrava de ver o Amaldiçoado desaparecendo em meio às sombras. – As Trevas queriam que um dos Sturian fosse assassinado. Mas por que Sharowfox iria querer um inocente morto?

– Porque... – Jon parou repentinamente, os olhos arregalados enquanto a constatação chegava á sua mente. – Sharowfox precisava de uma alma para ser corrompida.

– Como é?

– É parte de uma lenda da necromancia. O ritual que precisa ser feito para que um condenado retorne dos mortos exige o sacrifício de uma alma inocente... – Jon começou a recitar. – Se Sharowfox já está nesse nível de ressurreição, nós estamos perdendo muito tempo. As sombras mais poderosas, o demônio assumindo forma própria... Os sinais de que ela está a ponto de se levantar estão à nossa frente.

– Por isso o espírito tentou impedir a execução. – Serafine sussurrou embasbacada.

– E o que faremos?

– Eu preciso viajar para o Norte. – Jon ergueu-se repentinamente. – As sombras já alcançaram o Reino das Florestas, e meu irmão não envia sinais de sua situação há tempos... Temo que algo tenha acontecido com Demetrius. Quanto a você, Serafine... – Ele voltou-se para a garota, que parecia amedrontada. A expressão de Jon se suavizou, como se o monarca notasse o quanto aquilo a estava abalando.

– Eu viajarei até o Sul. – ela disse, tentando esconder que a incerteza a fazia tremer. – Preciso encontrar o terceiro Mestre.

– Serafine... Se não fosse tão importante, jamais permitiria que você se arriscasse por lá – Jon tocou seu ombro num gesto afetuoso. O olhar de um Rei amenizado para o de um amigo preocupado. – Mas saiba que não há apenas escuridão na terra das brumas. O Reino das Águas fica próximo da costa, e há sempre lugares confiáveis para encontrar abrigo. – ele voltou-se para Jarek, que parecia pensativo em relação a alguma coisa. – Jarek, você conhece bem o Reino de gelo.

– Sim.

– Procurem por Cornélio. Ele vai lhes parecer... Inadequado – o monarca franziu o cenho. – Mas é um conhecido meu e os ajudará. Diga-lhes que Jon Tytos cobra seu favor. Não tenho qualquer informação sobre seu terceiro Mestre, mas sei que ele vai encontrá-la. Fique atenta a qualquer sinal no Ar.

– Ar?

– É. Seu Terceiro Elemento vai convocá-la.


***


Serafine cobriu o rosto com as mãos quando o fim do túnel se aproximou. A luz da nova alvorada surgia forte lá no fundo, guiando-os para um caminho seguro. Jon seguiu à frente, auxiliando Sibila, que cambaleava pela fraqueza. Leyona não mais aceitara ser carregada, mas Jarek e Guillian estavam próximos dela por precaução.

A Tropa de Arqueiros fora destruída. Percival e Serafine eram os únicos sobreviventes.

– Para onde, agora? – O pequeno menino indagou.

Serafine o encarou com compaixão. O olhar dele exibia a mais pura disposição para prosseguir naquela viagem, para onde quer que fossem.

– Os refugiados estão na encruzilhada. – Jarek falou lá da frente.

– Há uma encruzilhada?

– É uma espécie de cratera no espaço entre as Montanhas, e nela existem quatro caminhos. Ývela a chamava

assim.

Serafine suspirou ao lembrar-se da amiga. Desejou que a ondina estivesse ali com eles, ou que ao menos desse algum sinal de vida. Sentia falta dela e de seus conselhos, e temia a demora em se comunicar. O que estaria acontecendo lá nas Águas?

Após uma hora de caminhada, eles finalmente alcançaram seu destino.

As montanhas imponentes erguiam-se feito titãs acima de suas cabeças, alcançando as nuvens e talvez até mais alto. Os raios de Sol que antes haviam chegado até eles desapareceram sob a sombra das montanhas. Foi possível avistar um grande grupo de pessoas reunidas na tal encruzilhada, que era uma cratera larga, distanciando duas montanhas por dezenas de metros, como se alguma coisa tivesse achatado aquele lugar contra o chão. Serafine imaginou que algum Elemental da terra tivesse sido responsável por aquele formato.

Os presentes, ao notarem que havia um grupo se aproximando, começaram a exclamar preces de agradecimento. As crianças Sturian, muitas delas acompanhadas por seus pais, correram na direção de Leyona e Jarek. Serafine avistou a irmã dele e viu a mãe chorando ao abraçá-la. Jon adiantou-se até o último lorde sobrevivente – Ylla, Frai e Klaus haviam ficado para trás. Benídia não estava ali.

Pelo menos vinte pessoas haviam sido salvas.

Serafine se sentou numa pedra, deixando o olhar vagar

pelos conhecidos e desconhecidos que ali estavam, e suspirou pesadamente. A dor em seu corpo estava amenizada agora, mas ela ainda sentia a cabeça confusa. Parecia-lhe que alguma coisa fora remexida. Como se, quando a Feiticeira a possuíra, tivesse bisbilhotado onde não deveria.

– Importa-se em ter companhia, milady? – Ela ergueu o rosto para Guillian, que ostentava uma aparência abatida e moribunda, e então o puxou para um abraço. O felpudo ficou ligeiramente sem jeito, mas aceitou o gesto com ternura. – Está tudo bem, Serafine?

– Agora está. – Ela afastou-se.

– Outra parte de sua jornada está chegando ao fim, minha querida. – Sibila, aparentemente restaurada, aproximou-se. Sorrateira e silenciosa, a mulher com os cabelos de cobra sussurrou ao vento. – A parte mais sombria está para começar.

Por sorte, Serafine não chegou a ouvir aquilo, e Sibila não tinha a intenção de lhe informar. A mulher, e mais ninguém ali, era a única capaz de sentir a energia que agora vibrava do coração de sua protegida. Ela era a única que conseguia sentir que algo havia sido mudado dentro da alma da esperança.

Sibila sentia que uma antiga marca havia se fortificado no âmago do espírito. Uma marca das sombras.


***


Jarek avistou Serafine solitária, mergulhada em seus pensamentos. Em passos lentos, deixou seus olhos delinearem a figura quieta de sua protegida, encontrando em sua postura sinais de que algo estava errado.

A batalha a havia mudado. A possessão e as revelações do demônio marcaram sua mente e seu espírito de tal modo que se notava em seu olhar.

Serafine estava desmoronando, mas não queria preocupar ninguém.

Ela tinha muito disso, pensou Jarek. Não gostava de demonstrar fraqueza. Agora, então, sobrecarregada por tantas revelações e tantos acontecimentos marcantes, devia estar tentando arrumar o caos em sua mente.

– Atrapalho? – Ele indagou ainda distante. A garota virou o rosto de soslaio para ele, e Jarek encontrou em seus olhos a exaustão que ela levianamente tentou esconder.

– O que houve? – Era madrugada. Todos dormiam, com exceção dos Sturian montando sentinelas em alguns cantos estratégicos. Não tinha porque Jarek estar acordado; muito menos ela.

– Achei interessante vir conversar. – O guerreiro deu de ombros.

– Hm. – Nenhum retruco, nenhuma ordem para que ele a deixasse sozinha. Só um simples aceno com a cabeça e uma fuga de olhares, onde Serafine virou o rosto para voltar a encarar a fogueira. Jarek sentou-se e, discretamente, colocou sua mão sobre a dela, entrelaçando seus dedos.

Queria estar ali para ela como ela estivera por ele. Jarek se lembrava do carinho e do calor que ela transmitira quando o consolara pelo desespero em relação à família.

Desde o ataque, não tivera tempo para conversar com a garota. Estivera preocupado com sua família, mergulhado em um turbilhão de ansiedade, mas, ao vê-los sãos e salvos, houve aquela inquietante sensação de que estava deixando algo escapar. E então encarou Serafine, sentada sozinha, cultivando um olhar melancólico, e sentiu-se um imbecil.

– Vai ficar tudo bem. Você sabe que não está sozinha, não é? – murmurou, passando o braço por sua cintura, de modo a aproximar seus corpos. Ela acenou positivamente. – Desculpe ter demorado a vir aqui. – Serafine sorriu um sorriso fraco, escondendo o rosto no peito dele.

– Não tem nenhuma obrigação, Jarek. Seu coração estava com a sua família.

– Você não sabe nada sobre o meu coração, princesa. – ele sussurrou, encostando os lábios ao topo da cabeça dela. Serafine estremeceu. – Devia descansar. – Sugeriu.

– Não tenho sono. – Ela se afastou, o olhar suavizado.

– Se não se importa, vou ficar aqui por mais algum tempo. – Jarek puxou-a de volta para o abraço. Alguns instantes se passaram, em que o Sturian deixou seu olhar perder-se nas chamas da fogueira.

– Por que você veio? – O sussurro dela o tirou dos devaneios.

– Porque eu me preocupo com você.

Ela apertou o abraço ao redor do corpo dele e o teve retribuído.

– Eu senti tanta dor, Jarek. – Serafine confessou com a voz embargada. – Havia tanta escuridão e tanto tormento. Foi diferente de quando o espírito assumiu o controle. Eu estava ali, mas era uma marionete da bruxa. Eu achei que... Achei que fosse morrer. Que as Trevas fossem me matar. E Theodore... Theodore está morto. – ela soluçou. – Não me deixe chorar. – Implorou. A dor dela feriu o coração do guerreiro.

– Uma vez alguém me disse que chorar não é sinal de fraqueza. – Jarek murmurou, as palavras soando carinhosas.

Ela se apoiou em seu pescoço e embrenhou as mãos em seu cabelo. Jarek respirou fundo e continuou a mantê-la segura em seus braços, embalando-a enquanto ela se desolava em lágrimas e soluços.

– Nada vai te acontecer, princesa. Eu prometo.

Ela se afastou para encará-lo, longos minutos depois. Jarek acariciou o seu rosto e beijou suas lágrimas, ansiando por fazê-la se sentir bem.

– Seu rosto está machucado. – ele comentou. – Dói?

– Não. Não depois... Da Feiticeira. – Ela tentou tocar o local dos ferimentos, mas Jarek a impediu. Ele passeou os olhos pelo rosto da menina e a beijou, querendo que ela se sentisse bem. Serafine fechou os olhos em silenciosa paz, e ele a puxou para si, beijando-a novamente.

Jarek afastou-se para encará-la, e Serafine o observou como se tivesse medo da distância. De repente, ela o estava beijando, apertando as unhas contra o seu cabelo, ansiosa e desesperadamente.

As mãos de Jarek delinearam as costas da menina, prendendo-se a sua cintura. Ele perdeu o controle quando aquele maldito vestido enlouquecedor expôs a pele da morena ao seu toque; Jarek contornou a cintura dela, descendo até suas pernas, e a puxou para si.

Afastou-a subitamente, temendo estar indo longe demais. Os olhos de Serafine eram vítreas pedras de âmbar, ansiosos por ele.

– Jarek...

– Não fale. – Ele sussurrou, os lábios contornando a pele de seu queixo. Serafine prendeu a respiração. Segurou o rosto dele entre suas mãos, os dedos trêmulos acariciando as feições fortes de Jarek. Ele pareceu deliciado sob seu toque.

– Eu vou tentar dormir agora. – Beijou os lábios do guerreiro uma última vez. Cálida, carinhosa e melancólica. Apoiou a testa contra a dele, tirando alguns instantes para observar os contornos do guerreiro, detalhes pelos quais se apaixonara. – Obrigada por ter vindo até aqui por mim.

Com as pernas bombas, ela saiu dali. Serafine não sabia explicar por que, mas algo a incitava a ficar longe dele. Ela o amava, seu coração sabia disso, mas uma marca em seu espírito plantava pensamentos sombrios em sua mente.

Fique longe daquele que jamais será seu.


Capítulo 47

Rumo às Brumas

 


– QUANTO TEMPO VAI DURAR a viagem de vocês? – Serafine indagou.

– Não sei ao certo. – Jon respondeu. – Se meus poderes retornarem com toda a intensidade, eu talvez consiga transportar todos com um feitiço, mas, até lá, dependeremos de nossas pernas.

– Ývela e eu levamos pouco menos de uma semana para cruzar as montanhas. – Jarek explicou. – Se mantiverem um ritmo constante e fizerem poucas paradas, acho que conseguem o mesmo.

Jon pediu que o guerreiro o orientasse sobre os caminhos que deveriam seguir dali para frente e, por mais surpreso que tivesse ficado pelo tom simpático, Jarek adiantou-se até o Rei.

– Hã... Serafine? – A garota, até então concentrada, voltou-se para Percival. O garoto estendia em sua direção alguma coisa embrulhada em um trapo velho. – Peguei sua flecha mestra quando todo o caos começou... Mas ela se quebrou. Sinto muito.

Ela recebeu a flecha, segurando-a com o máximo de cuidado possível. Feita de madeira vermelha, ostentava penas brancas em uma de suas pontas e um triângulo de prata muitíssimo afiado na outra. Theodore a havia moldado de um galho da Ancestral. Era uma última lembrança que a garota guardaria dos dois, um presente que levaria até o fim de seus dias. Podia estar rachada e inutilizável, mas era importante.

– Aqui. – Jon estendeu-lhe algo. – As joias nesta peça valem muita coisa. – Era a coroa que havia revelado a possessão do monarca, um símbolo de poder ali no Oeste. – Vão precisar de armas e roupas adequadas para sua viagem no Sul e encontrarão tudo na Cidade das Areias. Eu não soube de ataques àquele lugar, talvez por ser tão bem fortificada, mas tenham cuidado. Não fiquem à vista. Até saírem das montanhas, o domínio das sombras pode ter se estendido para além da Fortaleza.

Leyona adiantou-se até Jarek, abraçando-o fortemente. Ela sussurrou alguma coisa em seu ouvido enquanto o abraçava, e a expressão do guerreiro moldou-se em um sorriso sutil. Enquanto Mynna, a pequena e destemida irmã de Jarek corria até ele, Leyona foi até Serafine.

A mulher puxou-a para um abraço carregado de carinho e preocupação, algo que a menina não experimentava desde o desaparecimento da mãe. Assim como fizera com o filho, Leyona sussurrou-lhe algumas palavras. Acabou fazendo Serafine sorrir em consideração, mesmo que completamente temerosa por dentro.

– O coração de Jarek não é inalcançável, minha querida, e você já está na metade do caminho.

Depois que se despediu da mulher, voltou-se para o Rei. Ele pediu para ter alguns minutos a sós com a morena, e comentou com ela o que vinha ansiando dizer:

– Lembra-se daquele livro que me deu logo que chegou aqui? – ela assentiu imediatamente, curiosidade iluminando seus olhos. – Não tive oportunidade de dizer-lhe antes, mas decifrei o conteúdo dele. Foi escrito por Neo e por alguns descendentes dele. Nem eu e nem meus irmãos tínhamos conhecimento da obra até recentemente. – Ele sorriu agradecido. – Quando encontrar Demetrius, sei que ele ficará contente por saber do achado.

– Mas o livro... Ficou no castelo! É perigoso! Os subordinados de Sharowfox vão pegá-lo. – Serafine estacou, os olhos arregalados. Mais uma coisa havia ficado no castelo. O fragmento da pedra Cílion, presenteado a ela por Lonel. Deuses, se as sombras se apoderassem dele...

– Não, não vão. – Jon a distraiu. – A obra é encantada. Sempre volta para as mãos de alguém com sangue mágico. Alguém que serve a Luz.

Então soltou um longo suspiro resignado e continuou:

– Não tenho nenhum conselho a lhe dar, Serafine, mas ouvi o que o demônio lhe disse lá no palácio. Você sabe quão forte está Sharowfox, e temo que, a qualquer momento, ela se erguerá definitivamente. Mesmo que a esperança seja mínima, mesmo que tudo pareça perdido, eu lhe peço: tenha fé. Confie na força dos Deuses, na nossa força, mas principalmente na sua. Esperança é o sentimento mais forte de todos e nem mesmo as sombras podem derrubá-la.

– Eu o farei. – Serafine curvou-se respeitosamente em frente ao Rei, mas Jon não gostou da reverência.

– Que os Deuses guiem seu caminho, Serafine. – Jon levou uma mão ao coração num gesto que desejava boa sorte, e depois a puxou para um abraço carinhoso. – Caso venha a falar com Ývela, pedirei que a mantenha informada.

– Eu agradeceria – Serafine sorriu pelo gesto. – Boa sorte, e que os Deuses o acompanhem.

O grupo ficou parado observando enquanto o Rei do Oeste partia com sua comitiva, e Serafine voltou-se para seus companheiros de viagem.

Jarek, que ainda encarava a sua família se afastando, mas que sorriu ao voltar seus olhos escuros e calorosos para sua protegida. Sibila, cujo rosto mutilado encontrava-se concentrado em algum pensamento profundo. E Guillian, que armou uma expressão corajosa.

E então eles partiram, rumo à parte mais sombria e obscura de toda Warthia. Partiram em direção ao Reino das Brumas.


Capítulo 48

Reino em Caos

 


ÝVELA SE SOBRESSALTOU NA cama, erguendo o tronco num pulo. O quarto encontrava-se num breu, mas ela não temia mais o escuro. Já vira o que havia de pior nele.

Dias atrás, a princesa das Águas havia visitado o abismo onde os leviatãs estavam aprisionados. O mesmo abismo que vinha roubando suas energias desde que assumira o trono do Reino.

Lembrou-se de como a viagem até as Águas havia sido rápida. Num momento estava no salão do Oeste, encarando seus amigos uma última vez, e logo depois se encontrara parada na entrada do palácio de cristal, uma construção milenar repleta de segredos.

Warthia e seus mistérios... Ah, a ondina nunca iria se acostumar.

Assumindo uma postura rígida e um olhar digno do sangue nobre que corria em suas veias, Ývela adiantou-se até a entrada do salão do trono no dia em que chegara ali. O oceano não era tão diferente do que a terra, não para uma criatura que agora pertencia aos dois mundos. O mar a guiava, seus pensamentos conectados a ele, e Ývela não quis se livrar da sua maior conexão com o mundo terrestre. Ela não deixou que suas pernas fossem substituídas pela cauda, tampouco se importou quando as sereias consideraram aquilo um ultraje.

Quando foi recebida no salão, encontrou rostos assustadoramente conhecidos. Todas as suas irmãs ainda estavam lá, armadas com tridentes e cobertas por armaduras de batalha. Seus olhares disseram o mesmo que fora dito na visão, tempos antes: decepção.

O povo do mar não queria uma traidora de volta, mas necessitava dela. O dilema era irônico. Ývela teria que assumir o trono e eles deveriam que seguir suas ordens, pois a rainha estava morrendo.

A ondina soube disso logo que colocou seus olhos no rosto da mãe. Quando a encarou pela primeira vez em tantos anos, soube que a linha da vida estava prestes a ruir.

Assim como a filha, a rainha, de nome Anfítrite, possuía longas madeixas douradas. Ela tinha um rosto arredondado e olhos incisivos. Não possuía rugas e nem ostentava os milênios de idade, mas a dor e a exaustão que sentia estavam em seu olhar. O brilho das íris azuis estava desaparecendo.

– Mãe... – Ývela havia dito com compaixão, o rosto inundado pela dor. – Desculpe pela demora. – A ondina sussurrou para que apenas a governante pudesse ouvir. Ela notou que Anfítrite pareceu perdida, como se as palavras não soassem mais exatas como antes.

– Os leviatãs sugaram quase toda a sua energia. – Uma das irmãs de Ývela pronunciou-se. – Ela queria que você retornasse para doar-lhe o poder que resta antes de descansar.

– Eu não sei se posso assumir esta responsabilidade. – Ývela murmurou. – Há criaturas mais capazes de governar com sabedoria e força. Eu não sei se posso ser como a senhora, minha mãe.

– Pode. – Ývela assustou-se ao ouvir aquela palavra. Percebeu que a rainha agora a encarava com confiança. – E vai. Seu coração é tão nobre quanto o meu, mas possui algo que a diferencia de todas as outras.

A ondina encarou-a com confusão e arregalou os olhos ao ver a mãe sussurrando a palavra seguinte:

– Amor.

A Rainha havia esticado sua mão, trêmula como se o peso do mundo caísse sobre suas costas, e tocado a testa da filha. Ývela sentira poderosa energia percorrendo cada centímetro do seu corpo, enviando força para cada canto da sua alma. Sentira quando a mãe passou todo o seu espírito para dentro dela, quando Anfítrite fez seu sacrifício, permitindo que as Águas continuassem lutando contra os leviatãs.

Ývela entendera que precisaria ser forte dali para frente. Precisaria resistir para proteger o oceano e também Warthia da ameaça eminente, pois, no momento em que sua mãe se foi, levada por uma suave corrente marítima, a ondina sentira o poder das Trevas emanando em sua direção. Sentira uma forte dor no coração ser impelida pelas sombras.

Ývela havia erguido os olhos para as irmãs, que a fitavam com assombro e curiosidade, e então ordenara que a levassem até o fosso dos leviatãs.

Queria mostrar que não era a princesa a ter retornado, mas a Rainha. A mesma Rainha que faria de tudo para manter aqueles monstros trancafiados debaixo do mar.


***


Ývela terminava de vestir sua armadura quando batidas na porta chamaram a sua atenção. Ela permitiu que o visitante entrasse e contemplou o rosto de um velho amigo com um sorriso.

Um tritão, cujo nome era Kael, viera visitá-la. Era um

grande amigo e excelente ouvinte, e fora o escolhido para integrar seu novo conselho.

Baseava-se no conselho dos Reinos de Warthia, com quatro criaturas de sua extrema confiança o compondo e auxiliando nas dúvidas relacionadas à política e à guerra. Além de Kael, Ývela convocara um golfinho, uma sereia e um tubarão-martelo gigante. Criaturas conscientes e muito influentes ali no Reino das Águas.

– O conselho está reunido, majestade. – Kael anunciou. – Está pronta?

– Sim. – Ývela suspirou longamente, pegando a coroa feita de cristais e colocando-a sobre a cabeça.

A questão que tanto amedrontava Ývela desde sua chegada ali era o fato de as criaturas marinhas estarem se voltando contra eles. Por influência das Trevas, exércitos tentavam invadir palácios e cidades subaquáticas para exterminar quem quer que recusasse seguir seu caminho.

Ývela sabia que eles desejavam amedrontá-la; Sharowfox queria conquistar territórios antes de avançar até seus leviatãs. Com a nova Rainha no trono, a força dos monstros haviam por mais alguns meses. Mas, até lá, as Trevas destruiriam as populações.

Enquanto seguia pelos corredores de cristal, a ondina deixou seus pensamentos perderem-se naquelas preocupações.

O conselho sempre se reunia no salão do trono, uma gigantesca construção oval, cuja abóbada erguia-se cem metros para o alto. Altas vigas intrincadas por desenhos estendiam-se ao redor do aposento, sustentando o teto acima de suas cabeças.

Os desenhos rústicos representavam milênios do passado daquele governo, quando os primeiros Elementais da Água, por ordem dos Deuses, dominaram o oceano.

O trono, que Ývela não gostava de usar, era feito de mármore branco, e algas encobriam a pedra como um manto de veludo.

A Rainha cumprimentou seus convidados logo que adentrou o enorme espaço. Ao sentar-se, deixou que os lordes falassem:

– Majestade. – O golfinho adiantou-se a ela. Sua voz era suave e afinada dentro da mente de Ývela. – Trago notícias do oeste.

Os exércitos haviam conseguido afugentar os monstros, que estavam em menor número, mas, pela escuridão que crescia no horizonte, essa situação logo seria invertida.

– Maya, o que me diz? – Ela virou-se para a sereia.

– Majestade. – A guerreira curvou-se ao se apresentar em frente ao trono. Maya era uma espécie de amazona, vivia numa comunidade constituída apenas por sereias, e fora treinada para a guerra desde criança. Seu tronco esguio estava coberto por uma armadura de bronze e seus longos cabelos rosados, presos numa trança, ostentavam um elmo de proteção. Ela tirou-o para conversar com a rainha, deixando à mostra um rosto de feições finas e olhos enérgicos. – O Sul está caindo. Não ousamos viajar até tão longe das linhas de proteção. Montamos sentinela em diversas cidades, mas o número de guerreiras está diminuindo significativamente.

– Poderia enviar guerreiros para ajudar, Kael? – Ývela voltou-se para o amigo. Foi claro o desgosto de Maya, que não desejava ter a ajuda de homens naquela missão. – Mande duzentos de seus melhores soldados. Quero mais trezentos no oeste. Quanto ao Leste...? – Voltou-se para o tubarão.

– Majestade... – O predador de quase dez metros de comprimento comunicou os acontecimentos: – O Leste está numa fase mais tranquila. Os subordinados de meus generais conseguem manter as linhas de proteção intactas, e há indícios

de que receberemos amigos em breve.

– Amigos?

– Troys.

– Troys? Vindos do Norte? – Kael exclamou abismado. – Como? Quando?

– Um soldado os avistou dias atrás, e recebi um recado de que eles chegarão pacificamente do acampamento. Querem fazer um acordo.

– Ótimo. – Ývela conhecia a fama dos Troys em batalha. Eram seres místicos. Metade do corpo era de tubarão e outra metade de gigante. Haviam sido criados séculos antes para ajudar na guerra contra as Trevas e se refugiaram no norte ao fim dela. Pelo visto, os pedidos de ajuda haviam chegado até eles. – Quero ser informada de cada detalhe sobre eles. Tentarei viajar até seu acampamento ainda essa semana. Preciso apenas...

– Tenho notícias da superfície... – Um pequeno e veloz peixe palhaço veio nadando exasperado até a rainha. Ela arqueou as sobrancelhas, sentindo o coração acelerar ao ouvir aquilo.

– O que houve?

– A Fortaleza do Dragão caiu, minha Rainha. O demônio Morzyon enviou um sinal para todos os Reinos. As Trevas ressuscitaram dragões e há uma recompensa pela captura da escolhida. – A ondina apoiou o rosto entre as mãos. Sua cabeça latejou com força, mas não podia ser possível. O Oeste... Caído?

Infelizmente para Ývela, a superfície não era mais problema seu. Tinha outros assuntos a tratar, coisas importantes do Reino das Águas.

– Não temos tempo a perder, Kael. – ela ergueu-se repentinamente. – Disse que os leviatãs estão tentando estourar a barreira de novo. Leve-me até lá.


Epílogo

Vida longa ao Rei

 


O AMBIENTE ESTAVA CONGELADO.

Respirar doía. Mover-se doía. Abrir os olhos parecia-lhe a tarefa mais difícil a ser realizada.

Durante dias, semanas, anos, ele não sabia dizer, permanecera deitado. Estendido debilmente contra o chão frio, com o vento açoitando seu rosto como um chicote, ele fora torturado com as risadas maléficas que aqueles ao seu redor lhe dirigiam e com a maneira violenta com que o tratavam.

Pelo que pareceu uma vida, o Grande Rei Demetrius foi humilhado.

No lugar onde estava deitado era possível ser tocado pelos raios quentes uma vez ao dia, mas só. No resto das horas tinha que contentar-se com o frio cortante e com a solidão amedrontadora. Demetrius passou a ter medo da escuridão, pois com ela vinham os gritos. Quando o Sol desaparecia e a noite inundava tudo com sua penumbra, os berros de horror e de desespero corriam soltos pelos corredores da prisão. Corroíam sua alma e faziam-no rezar aos Deuses para que o livrassem daquele tormento.

Talvez por isso, quando, na tediosa rotina de todos aqueles dias, alguém apareceu à porta de sua cela, ele tenha agradecido. Não precisaria mais permanecer com o rosto contra o chão frio, sem conseguir se mover. Algum feitiço havia tirado seu controle sobre os membros. Algum feitiço havia tirado suas forças. Algum feitiço o havia tornado inútil.

Tiraram-no da amedrontadora cela para levá-lo de encontro ao desconhecido. O Rei só não se queixou por não possuir a voz desde que havia sido sequestrado. Não sabia onde estava, quem conhecia ou o que estava acontecendo, mas ao menos estava se movendo.

Afastaram-no dos calabouços, o que pareceu uma benção. Por noites, havia sido ele a sofrer horríveis torturas, físicas e psicológicas. Lembrava-se de ter as sombras invadindo sua mente, do horror do descontrole... O Rei tentou esquecer as dores daquele dia. Tentou se concentrar no vazio.

E então estava num grande salão e sua mente se acendeu. Demetrius conhecia aquele lugar, com toda a certeza. Conhecia aquele largo corredor, enfeitado por tapeçarias sinistras. Conhecia aquelas portas de ferro, cujas extremidades haviam sido cobertas por gelo azul. E, definitivamente, conhecia aquele trono branco, em cuja superfície sentava-se uma figura imponente.

Os guardas largaram o Grande Rei no chão como um fantoche, suas pernas e braços não obedecendo à ordem de amortecer o impacto. Com o rosto contra a pedra fria, Demetrius aguardou.

– Já chega desse feitiço. – A voz de seu meio-irmão soou como uma maldição aos seus ouvidos. Quando Demetrius sentiu as mãos e todo o resto do corpo reagindo aos seus comandos, fez questão de colocar-se de pé. A pose durou alguns instantes, e logo ele estava de joelhos no chão. – Patético. – Maltrus murmurou com asco.

– P-por... – Demetrius balbuciou, a voz gaguejando por ter sido tão pouco usada naquele tempo todo. – Por... Q-q-q-ue...?

– Por quê? – Maltrus repetiu a pergunta com escárnio. – Por que você acha? Por que acha que eu me daria ao trabalho de sequestrar meu querido irmão e trazê-lo até mim? Por que acha que eu reuni os mais poderosos monstros e lordes das Trevas em meu palácio? Por que você acha que eu forjei os planos de invasão na Fortaleza do Dragão, e ajudei os monstros a conquistarem o Oeste? Por que você acha que me uni a Sharowfox, querido irmão? – o tom foi cortante. – Porque eu desejo o trono.

– Você já tem!

– Do lugar mais longínquo e sombrio de toda Warthia! – o mais velho cuspiu as palavras, erguendo-se para criar sombra sobre a figura moribunda do irmão. – Pode ter feito parecer uma atitude nobre, mas eu entendi a mensagem! Por ser um bastardo, devo ficar escondido no canto obscuro desse continente, escondido dos olhos de todos!

– Não deveria ver meu gesto dessa maneira. – Demetrius usou de raiva.

– O que eu desejo é o poder em sua forma pura, e ele me foi oferecido. – Maltrus bateu palmas e todas as tochas do salão se apagaram. Demetrius retesou-se ao ver algo se erguendo na escuridão. – Mas, para ter meu poder, eu precisava oferecer a ela algo em troca. E sabe o que Sharowfox me pediu, irmão? Você.

Demetrius sentiu quando alguma coisa o abraçou. Um toque tão gélido quanto o da cela, só que muito mais profundo e enérgico. Emanava puro mal.

– E eu agora o ofereço, ó patético Rei, à Rainha das Trevas!

O Grande Rei, no entanto, reuniu o pouco de força que restava para não gritar quando Sharowfox ergueu-se diante de seus olhos.

– Ora, ora... – a voz da Rainha das Trevas ergueu-se da escuridão. – Finalmente nos encontramos, herdeiro de Neo.

– O que você quer de mim, bruxa?

– De você? Nada demais, por enquanto. – a risada dela ecoou pelas paredes do palácio. – Mas, logo, logo, descobrirá o que pretendo fazer com o seu querido mundo... – as sombras enroscaram-se em Demetrius, abraçando-o. – Prepare-se, Demetrius, pois eu vivi o inferno. Eu sou o inferno. E eu trarei o inferno até vocês.

Maltrus, de longe, assistiu tudo com um sorriso largo no rosto.

– Vida longa ao Rei.

 

 

                                                   Denise Flaibam         

 

 

 

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