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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FRAGATA SURPRISE - P.2 / Patrick O'brian
A FRAGATA SURPRISE - P.2 / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Na quietude da guarda do meio subiu à coberta em camisa de dormir, observou o tabuleiro com as medições à luz da bitácula e ordenou a Pullings que diminuisse vela ao soar as oito badaladas. Voltou a rondar por ali, como um alma penada, quando soaram as cinco badaladas, e mudou a orientação das gávias durante um tempo. Seus cálculos resultaram rigorosamente exatos, pois fez chegar a fragata ao Rio de Janeiro justo quando o sol assomava por detrás da cidade, banhando com sua luz dourada aquele maravilhoso panorama. Mas isto não serviu de nada, não conseguiu fechar a ferida. Stephen, a quem haviam tirado da cama para contemplar o panorama, disse que era curioso como às vezes a Natureza podia ser tão vulgar e enganosa e intentar produzir efeitos ad captan-dum vulgus, o mesmo tipo de efeitos que tratavam de conseguir Astley e Ranelagh, mas que, afortunadamente, não o lograva. Talvez tinha a intenção de fazer outros comentários, já que a preguiça havia passado toda a noite mareado, mas, nesse momento, a Surprise se encheu de labaredas e fumaça ao saudar ao almirante português, que se encontrava a bordo de um navio de setenta e quatro canhões cor carmim, junto a Rat Island.


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Jack desembarcou com o senhor Stanhope depois do café da manhã. Seus remeiros estavam barbeados e muito arrumados, com chapéus de palha e calças de brim brancas como a neve, e ele estava com seu melhor uniforme. Quando voltou não havia em sua expressão nem o menor rastro de receio, rancor ou arrogância. Bonden trazia uma bolsa, e por todo o barco se repetiu o grito: “Correio!”
— O capitão lhe envia seus cumprimentos e diz que gostaria que lhe dedicasse uns momentos — disse Church o Ratívoro —. E..., senhor — apertou o braço de Stephen e baixou a voz —, por favor, interceda em favor de Scott e de mim para que nos deixem descer a terra. Creio que merecemos.
Perguntando-se como era possível que Church cresse merecer outra coisa que ser empalado, Stephen entrou na cabine. Ali encontrou uma doce sorriso, uma grande alegria e cheiro de porto. Jack estava sentado à mesa, sobre a qual havia várias cartas de Sophie abertas, dois copos e uma jarra.
— Ah, já estás aqui, meu querido Stephen! — exclamou —. Vem, tómate um copo do porto que os franciscanos irlandeses nos presentearam. Recebi cinco cartas de Sophie, e aí há algumas para ti..., creio que também são de Sussex. — Estavam sobre outro montão de cartas dirigidas ao doutor Maturin e a letra era, certamente, a de Sophie —. Tem uma letra preciosa, verdade? Podes entender todas as palavras. E que estilo! Que estilo! Pergunto-me como haverá conseguido ter esse estilo, seguramente essas cartas estão entre as melhores já escritas. Há um fragmento que fala do jardim de Melbury e os perais que é tão bom como o de uma obra literária, vou ler para ti... Mas se queres ler suas cartas agora, não te preocupes comigo, não tenhas cerimônias.
— Não, agora não — disse Stephen, com ar ausente, metendo-as no bolso e passando uma a uma as demais, que eram de sir Joseph, Ramis, Waring e quatro desconhecidos —. Diga-me uma coisa, havia cartas para Nicolls?
— Para Nicolls? Não, nenhuma. Mas havia muitas para os demais oficiais. Killick!
— Em que posso ser útil, senhor? — perguntou Killick mal-humorado, com uma colher na mão.
— Leve o correio ao despenseiro da sala de oficiais. E traga outra jarra. Stephen, olhe isto, por favor.
Entregou-lhe uma carta onde o senhor Fanshaw presentava seus respeitos ao capitão Aubrey e se comprazia em comunicar-lhe que esse dia havia recebido a soma de 9.755 libras, 13 chelines e 4 peniques enviada a seu nome pelo Almirantado, que a feliz soma era uma paga ex gratia ao capitão por haver preso as fragatas Clara, Fama, Medea e Mercedes, de Sua Majestade o rei Católico, e que Suas Senhorias não tinham pensado dar recompensa pelos tripulantes nem pelos canhões que estas levavam a bordo nem tampouco pelo número de embarcações e que a soma mencionada, menos diversas quantidades de reserva e sua comissão, havia sido depositada na conta que o capitão tinha no banco dos senhores Hoare.
— Não é o que eu chamaria uma grande soma — disse Jack, sorridente —, mas mais vale um pássaro na mão que cem voando, não te parece? E me basta para o saldar minhas dívidas. Agora o que necessito é capturar um par de presas bastante grandes e então mamãe Williams não poderá fazer nenhuma objeção. Neste lado de Batavia, contudo, não fica nem rastro de nenhum mercante, quer dizer, de nenhum que possa considerar-se presa de direito, e Deus me livre de voltar a apresar um barco neutral; mas ainda há barcos corsários que saem de cruzeiro desde Ile de France, e uma escaramuça com um ou dois deles... — Voltava a ter aquele olhar ávido de pirata e parecia haver rejuvenescido cinco anos —. A propósito, Stephen, estava pensando em ti. Tenho que carenar a fragata e recolocar a carga (a bagagem e os regalos do senhor Stanhope estão amontoados no porão de popa) para poder mover a proa com mais facilidade, tenho que mover tudo, e me ocorreu que, agora que tens tanta agilidade, talvez gostarias de ter uma semana de permissão e fazer um percurso pelo interior. Há jaguares, avestruzes, unicórnios...
— Oh, Jack, que bom tu és! Tive que obrigar a mim mesmo a sair do cabo São Roque, a abandonar aquela esplêndida vegetação. Na selva brasileira habitam a anta, a gibóia e o caititu. Possivelmente tu não acredites, Jack, mas nunca vi uma gibóia.
Havia visto gibóias (também as havia tido entre suas mãos), colibris, vaga-lumes, um belo tucano em seu ninho, um tamanduá e sua cria, tingidos pela luz púrpura do amanhecer, sobre um desolado pântano, tatus, três espécies de macacos do Novo Continente e uma anta, quando regressou ao Rio de Janeiro para subir à fragata, e havia esgotado a três cavalos e ao senhor White, seu companheiro. A Surprise estava ancorada com apenas uma âncora e seu aparência era sumamente estranha, pois tinha o mastro maior de uma fragata de trinta e seis canhões, o mastro traquete e o da mesana muito inclinados para atrás e os costados pintados em xadrez em branco e preto, os típicos quadros de Nelson.
— É uma ideia minha — disse Jack, dando-lhe as boas-vindas a bordo —, algo entre a Lively e a Surprise que conheci de jovem. Isto fará com que se mova com ventos fracos, porque a proa é estreita, o vês? E sobretudo lhe permitirá conseguir um nó a mais quando o velame fizer muita pressão. Já sei que não gostarás da superestrutura — Stephen olhava boquiabierto a um tímido loro que estava no alto —, mas hei tirado toda a areia que levava de lastro e a sustituí por lingotes de ferro (não tenho palavras para explicar-te o quão amável foi o almirante) que hemos colocado muito abaixo. A fragata está tão rígida como..., bom, o mais rígida possível, e me surpreenderia se não pudessemos conseguir um nó mais. Pode ser que o necessitemos, pois segundo os homens da Lyra, que estava no porto, Linois há passado em um navio de linha rumo ao oceano Indico, junto com duas fragatas e uma corbeta. Recorda-se de Linois, Stephen?
— Monsieur de Linois, o que nos capturou quando íamos na Sophie? Sim, sim, recordo-me perfeitamente. Um cavalheiro alegre e cortês que vestia uma jaqueta vermelha.
— E também um extraordinário marinheiro. Mas se posso evitá-lo, não voltará a nos capturar, não em seu navio de setenta e quatro canhões. Mas com as fragatas a coisa é diferente; a Belle-Poule é grande e pesada e tem quarenta canhões, enquanto que nós temos apenas vinte e oito, mas a Semillante é mais pequena e teríamos possibilidades de ganarle se conseguisse que nossos homens fossem rápidos e disparassem bem. Poderia ser uma presa, verdade? Ah, ah!
— Corremos algum perigo imediato? Viram essas embarcações perto do Cabo?
— Não, não, estão a dez mil milhas de distância. Entraram no oceano índico pelo estreito de Sonda.
— Então talvez seja um pouco prematuro...
— Nem um pouco, nem um pouco. Inclusive se pensa na própria Armada, não há nem um minuto a perder. A tripulação não está nem medianamente preparada; não está nas condições da tripulação da Lively nem, muito menos, como a tripulação da Sophie. Por outro lado, tenho muita vontade de me casar, sabes? A ideia de estar casado serve de impulso ao homem, bem o sabe Deus, e não podes imaginar até que ponto. Por suposto, casado com Sophie; peço que me desculpes se me expressei inadequadamente outra vez.
— Bom, querido amigo, não sou muito partidário do matrimônio, como sabes, e às vezes me pergunto se não se dá excessivo valor a um contrato que obriga a gente a ser feliz, e se uma chegada tem o mesmo valor que muitas viagens ou se seria melhor seguir viajando indefinidamente.
Em suas cartas, Sophie falava de um horrível acosso. A saúde da senhora Williams estava realmente debilitada (o presidente do Colégio de Médicos e sir John Butler não eram homens que se deixavam enganar pela apreensão ou a hipocondria, e além disso, alguns sintomas eram muito maus) mas sua mente incansável parecia ter mais energia. Umas vezes estava tão pálida e atormentada pela dor que inspirava lástima (suportava a dor com grande fortaleza), outras estava vermelha de raiva e martirizava a sua filha falando-lhe do senhor Hincksey, o novo pastor. Com voz cansada, do, que ela chamava, seu leito de morte, rogava a sua filha que abandonasse o capitão Aubrey, que nunca ia fazê-la feliz e que ia à Índia pelo motivo que todos conheciam (ia à Índia atrás daquela mulher), suplicava que a deixasse morrer em paz, sabendo que estava bem casada e estabelecida na próxima paróquia de Swiving, onde estaria cômoda e próxima de todos os amigos, não nas pousadas da costa na outra ponta da Inglaterra ou no Peru. Queria vê-la casada com esse homem, a quem todos seus amigos olhavam com bons olhos, um homem com abundantes recursos econômicos e um brilhante futuro, que poderia mantê-la muito bem e cuidaria de suas irmãs quando ela tivesse morta (pobres órfãs!), um homem que não era indiferente, dissesse o que dissesse. O capitão Aubrey esqueceria tudo em seguida, se já não a havia esquecido nos braços de alguma rameira, pois, como dizia o magnífico lord Nelson, depois de passar Gibraltar todos os homens eram solteiros, e a Índia estava muito mais distante que Gibraltar, se o atlas não estava equivocado. Além disso, o almirante Haddock e todos os cavalheiros da Armada que havia conhecido diziam: “O mar e a distância acabam com o amor”; todos tinham à mesma opinião. Falava assim porque desejava apenas o melhor para Sophie e implorava que não lhe negasse esse pedido, o último, ao menos pelo bem de suas irmãs, se é que a felicidade de sua mãe não significava nada para ela.
Stephen conhecia a Hincksey, o novo pastor. Era alto, de boa aparência, cavalheiresco e muito instruido. Não tinha a rigidez de um clérigo, era divertido, agudo e amável. Por outro lado, Stephen tinha mais carinho a Sophie que ao resto das mulheres que conhecia, mas não esperava de ninguém um comportamento heróico; não era possível um comportamento heróico quando não se tinha aliados, e entre ela e Jack havia uma distância de dez mil milhas. Dez mil milhas e quantas semanas, meses e mesmo anos? O tempo era uma coisa para quem tinha uma vida ativa e mutável e outra muito distinta para uma jovem que vivia em uma isolada casa de província, presa com uma mulher de caráter forte e sem escrúpulos convencida de sua autoridade divina.
O medo e a aversão que a senhora Williams sentia pelas dívidas eram genuinos, e isso dava a seus argumentos uma força muito superior à que ela normalmente conseguia imprimir-lhes. Na tranquila e agradável região do país onde vivia, não existia o encarceramento — encarceramento! — por dívidas, e nas horríveis histórias que lhe chegavam das regiões circundantes ou da metrópole frívola e dissoluta apenas estavam envolvidos mulherengos, aventureiros ou gente pior. E contudo, recordava que durante sua ninhez havia ouvido susurrar muitas vezes histórias apocalípticas sobre pessoas abandonadas por Deus que haviam perdido todo seu dinheiro na operação fraudulenta dos Mares do Sul. Com seu próprio esforço, tanto a senhora Williams como o resto das pessoas que conhecia podiam ganhar até cinco peniques diários escardeando ou costurando, embora os homens pudessem conseguir um pouco mais na coleta da colheita, de modo que reunir cem libras era algo inalcançável, reunir dez mil inimaginável; por isso rendiam culto ao dinheiro com um profundo e inquebrantável fervor não isento de superstição.
Stephen havia refletido sobre isso enquanto lia as cartas de Sophie; havia refletido quando caminhava pela selva brasileira, enquanto contemplava enormes cataratas de orquídeas e mariposas do tamanho de pratos de sopa; reflexionava agora. O tempo dos pensamentos era infinitesimal. Aquele intervalo havia durado apenas o bastante para que Jack mudasse sua expressão desconcertada por outra um tanto ansiosa, enquanto tratava de descobrir o motivo das palavras de Stephen, e logo por outra satisfeita e relaxada, ao receber a mensagem de que a lancha se afastava da costa com o senhor Stanhope a bordo.
— Tinha medo de que perdessemos a maré — disse, subindo pela escada até a coberta, que parecia um formigueiro.
Parecia um formigueiro, mas com ordem; e embora Jack dizia que a tripulação não estava nem medianamente preparada, a verdade era que fazia os preparativos para zarpar com muita diligência. O Racoon já havia sido esquecido e os homens do interior haviam deixado muito para trás o arado e o tear; e quando a tripulação havia se enfrentado em terra com os marinheiros de licença da Lyra, havia brigado como um grupo unido, e não havia nenhum de seus membros que não levasse em seu chapéu de palha uma fita com o nome de Surprise bordado.
A cerimônia de recepção (o senhor Stanhope nunca subia a bordo de incógnito), o ruído metálico quando os infantes da marinha apresentavam armas, a ordem largamente esperada: “Levantar âncora!”, o apito do contramestre e o ranger das botas dos soldados quando corriam para pegar as barras do cabrestante.
O tempo passado em terra, prolongado até o último momento possível, havia levantado o ânimo do senhor Stanhope, pensava Stephen enquanto o olhava, mas não havia melhorado muito a sua saúde; também havia lhe tirado o costume de caminhar em um barco. Ambos estavam comentando as cartas oficiais que haviam recebido da Inglaterra e da Índia quando a maré mudou, situando-se em direção contrária ao vento, e a Surprise virou a proa para o alto mar e começou a mover-se como um cavalinho de balanço.
— Desculpe-me, doutor Maturin — disse —, mas vou a ir-me abaixo para tombar-me. Não creio que este movimento me faça bem. Sei que dentro de uma hora este frio e esta salivação chegarão a seu ponto máximo e me convertiré em um ser abominável, que não será uma boa companhia durante algum tempo, apenas Deus sabe quanto.
Stephen ficou com ele durante alguns momentos para tranquilizar-lhe e o deixou com seu ajudante de câmara e um balde.
— Ficará bem em breve, muito em breve. Voltará a se acostumar com o movimento muito antes do que se acostumou no Canal, ou à altura de Gibraltar, ou de Madeira. Seus sofrimentos acabarão em pouco tempo.
Contudo, não o cria. Pelo que deciam os livros de viagens e o que contava Pullings, quem havia percorrido aquele trajeto várias vezes em um mercante que fazia o comércio com a China, conhecia a fama das altas latitudes do sul. E é que nesta viagem não seguiam o caminho mais comum para ir à Índia: o cabo de Boa Esperança havia sido devolvido aos holandeses entre reverências e sorrisos em 1802 (embora, supostamente, haveria que voltar a tomá-lo), pelo que a Surprise tinha que se afastar muito mais do sul da África, para a horrível zona dos quarenta graus de latitude, dirigir-se ao leste e depois ao norte, às águas onde soprava a monção de verão.
A fragata navegava velozmente com os ventos alísios, como se tentasse recuperar o tempo perdido. A diferença em sua forma de navegar era evidente para todos, movia-se com muita mais facilidade, mais rapidez e mais graça. Jack estava encantado e explicou a Stephen que a fragata era como uma égua puro-sangue, que necessitava de uma mão delicada que a levasse com cuidado. Disse que havia que governá-la com suavidade, que tinha a estabilidade de um cúter e navegava muito bem de bolina, mas não tão bem com o vento de rajadas, como qualquer agudo observador poderia observar, já que tinha certa tendência a dar solavancos, e por isso se devia prestar muita atenção ao timão para evitar receber um golpe de mar.
— Lamentaria muito que recebesse um golpe do mar — disse, sacudindo a cabeça —. Se tivesse que virar a barlavento não sei o O que está acontecendoria com essa condenada verga do traquete nem tampouco com o próprio traquete, que foi o único que não pude trocar. Recordasse dos malletes, verdade?
Stephen tinha uma vaga lembrança de haver visto Jack cravando um passador na madeira enquanto as lascas saltavam. Também ele, com uma expressão grave, sacudiu a cabeça. E depois de uma breve pausa de cortesia, perguntou quando seria possível ver um albatroz.
— Pobrezinha! — continuou Jack, pensando ainda em sua fragata —. Creio que está ficando velha, tem todo o ânimo do mundo mas não pode vencer os anos. Um albatroz? Bom, creio que poderemos ver algum antes de chegar à altura do Cabo. Incluirei em minhas ordens que te avisem quando virem um.
Na medição da altura do sol ao meio-dia se obtinha a cada dia uma cifra mais alta: 26° 16', 29° 47', 30° 58' e a cada dia o ar era mais frio. Viam-se de novo os suéteres de Guernesey e os chapéus de pele, que haviam ficado em horríveis condições depois de sua passagem pelo trópico, e o uniforme dos oficiais já não era um tormento para eles. Também a cada novo dia chamavam Stephen para que subisse à coberta para ver fardelas, petreles comuns e pombas do Cabo, pois agora atravessavam as ricas águas do sul do Atlântico, as águas onde morava Leviatán (o monstro marinho). Podia-se vê-lo repetidamente brincando na distância, e uma noite, quando a fragata deu uma sacudida e deteve-se momentaneamente, tiveram a certeza de que se haviam encontrado com ele.
Para o sul, sempre para o sul, mais para lá de onde nasciam os ventos alísios, abriéndose passagem entre inumeráveis ventos variáveis, muito, muito frios, para a horrível zona dos quarenta graus de latitude. E dali o vento do oeste, que percorria sem pausa todos os oceanos do globo, lhes levaria para o leste, do outro lado do fim da África. Semana após semana navegaram com resolução, e o sol, que brilhava mas não aquecia, estava mais baixo e parecia menor cada meio-dia, enquanto a lua, aparentemente, aumentava de tamanho.
Era curioso comprovar com que rapidez este progresso passou a considerar-se um feito normal. A Surprise não havia percorrido ainda mil milhas quando a rotina do barco, de subir as macas, tocar com o tambor, “Coração de Roble”, anunciando a comida dos oficiais, chamar todos a seus postos, realizar incessantes exercícios com os canhões e fazer a guarda, havia feito esquecer tanto o princípio como o fim da viagem, havia feito esquecer inclusive o tempo, e os marinheiros tinham a impressão de que iriam estar sempre navegando por aquele mar infinito e completamente deserto, vendo o sol diminuir e a lua aumentar.
Ambos estavam no céu claro de uma memorável quinta-feira em que Stephen e Bonden voltaram aos postos que costumavam ocupar no cesto da gávea do pau da mesana e, sem prestar atenção a seus ocupantes habituais, se sentaram sobre as dobradas. Bonden havia se graduado em garranchos ao norte do Equador, havia atirado pela borda sua indigna lousa ao chegar a 3°S e agora ia de uma verga a outra levando pluma e tinta, e a medida que aumentava a latitude sul, sua letra se fazia mais definida e mais pequena, mais pequena, mais pequena.
— Poesia — disse Stephen.
Bonden sentia uma indescritível satisfação em escrever versos, e com um sorriso infantil abriu o tinteiro e, cuidadosamente, pôs nele a pluma, uma pluma de alcatraz.
— Poesia — repetiu Stephen, olhando o imenso mar azul cinzento e a curva da lua sobre ele —. Poesia:
Iremos até o confim do globo,
e veremos o oceano unir-se ao céu.
Então a nossos vizinhos do universo conheceremos
e no mundo lunar seguros entraremos
“Meu Deus! Creio que esse é um albatroz.
“...creio que esse é um albatroz”, repetiu Bonden apenas movendo os lábios. E então disse:
— Não rima. Falta outro verso ainda? — Como não recebeu resposta de seu rigoroso mestre, olhou para o lugar aonde este dirigia a vista —. Bom, senhor, conseguiu. Creio que seguirá nossa esteira em seguida e nos alcançará. Os albatrozes são pássaros muito belos, contudo têm gosto parecido com pescado se não lhes tira a pele.
O albatroz aproximava-se cada vez mais e seguia a esteira da fragata fazendo um sinuoso percurso, sem mover as asas. Avançava a um ritmo muito rápido, pois quando Stephen o viu por primeira vez era uma pequeníssima mancha e quando Bonden acabou de dar a receita de torta de albatroz se havia convertido em uma enorme figura, uma enorme figura branca com as pontas das asas negras, a treze pés da popa. Então se inclinou e se dirigiu para um costado, desapareceu atrás da nuvem de velas e voltou a aparecer a cinquenta jardas da popa.
Um mensajeiro após outro subiram ao cesto da gávea da mesana. Mal Allmet lhe havia dito em urdu: “Senhor, há um albatroz a dois graus pela alheta de bombordo”, quando atrás de seu rosto melancólico apareceu o de um marinheiro do castelo de popa, que lhe comunicou: “O capitão lhe envia cumprimentos, senhor, e diz que lhe há parecido distinguir o pássaro que o senhor queria ver.” E em seguida ouviu: “Maturin! Maturin! Aí tem o seu albatroz!” Era a voz de Bowes, o contador, que subia graças à força de suas mãos, arrastando sua perna paralizada.
Depois de um pouco, Bonden disse:
— Tenho que fazer guarda agora, senhor. Devo ir, com a sua permissão, se não o senhor Rattray me açoitará. Quer que lhe mande um jaquetão, senhor? Faz um frio mortal.
— Sim, sim. Vá, vá — murmurou Stephen distraído, sem escutar-lhe.
O sino soou, a guarda mudou. Uma badalada, duas, três. O tambor chamou todos a seus postos, depois tocou retirada (não houve exercícios com os canhões esse dia, graças a Deus) e ele ainda seguia olhando o albatroz. E agora, na penumbra, o via voltear, descender até a popa, posar-se às vezes sobre o mar quando algum objeto era lançado pela borda e voltar a subir, descrevendo uma larga série de curvas suaves, perfeitas.
Os dias que seguiram foram dos mais fatigosos que Stephen havia passado na mar. Alguns marinheiros do castelo, antigos baleeiros dos mares do Sul, eram apaixonados caçadores de albatroz. Depois do primeiro enfrentamento duro com eles, não se atreviam a caçar os albatrozes quando ele estava na coberta, mas quando descia largavam secretamente um cabo e os enormes pássaros aproximavam-se dele batendo as asas e eram capturados para ser convertidos em cigarreiras, boquilhas de cachimbo, comida quente, coletes de plumas para usar colados à pele e amuletos para não afogar-se (porque nunca se havia visto nenhum albatroz afogado, e da meia dúzia que seguia a fragata também não haviam visto afogar-se nenhum, nem quando o vento era fraco nem quando era forte). Sabia que não tinha força moral para impedi-los, porque havia comprado e esfolado os primeiros exemplares. Era resistente a pedir a intervenção de quem tinha a autoridade, mas estava muito ocupado na enfermaria (a abertura do tonel 113, com carne de um porco de três anos, a quem havia chegado sua hora no posto das Índias Ocidentais, havia produzido disenteria e, surpreendemente, dois casos de pneumonia também) e muito cansado de tanto subir e descer, de forma que recorreu a Jack.
— Bom, Stephen — disse —, darei essa ordem se queres, mas eles não gostarão, sabes? Está em oposição ao costume. Os marinheiros têm caçado albatrozes e fardelas desde que os barcos cruzam estes mares. Não gostarão. Haverá olhares aborrecidos e respostas de má vontade, e a metade dos marinheiros mais velhos começarão a profetizar desgraças, como que deixaremos muitas viuvas ou chocaremos contra uma montanha de gelo.
— Pelo que hei lido e pelo que me há contado Pullings, poderiam acertar se predissessem que nos quarenta graus de latitude sul haverá uma terrível tempestade.
— Vamos — disse Jack, pegando o violino —, toquemos um pouco de Boccherini antes de deitar-mos. É possível que não tenhamos outra oportunidade deste lado de El Cabo devido o seu desejo de alterar a ordem natural das coisas.
Os olhares aborrecidos e as frases em tom de censura começaram na manhã seguinte, e também as profecias. No castelo, muitos moviam sua cabeça branca de um lado a outro e pronunciavam com profunda gravidade as palavras ameaçadoras que às vezes Stephen ouvia: “Já veremos o que acontece.”
Para o sul, sempre para o sul, navegava a fragata, atravessando o vento do oeste, completamente sozinha sob o céu cinza, penetrando na imensidão do oceano. As águas eram cada vez mais frias, e o frio, úmido e penetrante, traspassava as paredes dos porões, do rancho e das cabinas. Stephen subiu à coberta pensando com satisfação na preguiça, que havia sido acolhida no convento dos franciscanos irlandeses do Rio de Janeiro, onde se bebia secretamente o vinho do altar. Observou que o velame fazia tanta pressão sobre a fragata que a coberta estava inclinada como um teto e o turco de sotavento estava oculto pela espuma. Deslocava-se a doze nós e meio, com o vento pela alheta de estibordo, levava desfraldadas quase todas as velas, incluidas as sobrejoanetes e as asas inferiores e superiores, e tinha as amuras de estibordo recolhidas, pois Jack queria que virasse um pouco mais para o sul ainda. Ali, no coroamento, viu a Jack, olhando umas vezes para o céu, outras para a exárcia.
— Que te parece este fluxo de ondas? — perguntou.
Stephen o observou, pestanejando sem cessar por causa do vento forte e frio. As ondas eram gigantescas, escuras e com manchas brancas; vinham do oeste, em direção oblíqua ao rumo da fragata, e a separação entre suas cristas era de duzentas jardas. Chegavam com precisa regularidade e passavam por debaixo da alheta, levantando a fragata tão alto que o horizonte se alargava vinte milhas, depois seguiam adiante e formavam um seio no que esta se afundava com as velas maiores, as mais baixas, flácidas, devido à calma que havia em seu interior. Em um desses seios viu um albatroz voando tranquilamente, sem nenhum esforço, e embora fosse um pássaro enorme, parecia uma pequeníssima gaviota comparado com o grande tamanho das ondas.
— É impressionante — respondeu.
— É mesmo? — disse Jack —. Encanta-me o vendaval.
Havia satisfação em seu olhar, mas também intranquilidade, e enquanto a fragata subia de novo lentamente ele olhava as alas da gávia. Quando a fragata se elevava, o vento exercia a máxima força sobre ela e as espichas das alas cediam, curvando-se para adiante mais que o conveniente; também se curvavam todas as vergas e os mastros, com um forte rangido, mas nenhum tanto como as espichas das alas. Um leque de espuma cobriu o convés, atravessou a exárcia e desapareceu pela amura de bombordo, ensopando o senhor Hailes, o condestável, que ia com seus ajudantes de um canhão a outro, colocando contra-bragueiros para atá-los mais fortemente ao costado. Por sua parte, Rattray estava reforçando as espichas e assegurando os botes. Todos os homens responsáveis realizavam tarefas sem que lhes houvessem dado ordens, e enquanto trabalhavam observavam o capitão, que com sua própria mão comprovava a tensão da exárcia, como fazia com frequência, e voltava a vista para o céu, o mar e as velas superiores.
— Vai a toda vela — observou Joliffe.
— Dentro de pouco se romperá— disse Church — se não recolhe velas.
Durante muito tempo, os homens de guarda na coberta esperaram a ordem de subir e diminuir vela, antes de que Deus mesmo a diminuisse, mas a ordem não chegou. Jack queria avançar até a última milha possível naquele esplêndido dia, e por outro lado, a vertiginosa velocidade da fragata, o agudo canto de sua exárcia, seu majestoso ascenso e sua queda produziam um prazer próximo ao êxtasi. E embora ele não soubesse, isto era visível apesar de sua expressão tranquila, até mesmo grave, e o tom áspero com que dava as ordens enquanto gobernava a fragata com precisão, totalmente identificado com ela. Encontrava-se no castelo de popa, mas ao mesmo tempo estava atento às espichas das alas e à sua excessiva curvatura, tratando de calcular exatamente o ponto em que iriam romper-se.
— Sim — disse, como se não tivesse passado um longo período de tempo —. E será mais impressionante antes de que acabe esta guarda. A areia do relógio cai com rapidez. Dentro de pouco começarão as rajadas de vento e já verás como sobe a maré e como se agita o mar. Senhor Harrowby! Senhor Harrowby, manda outro homen ao timão. E desdobre a giba e suas alas.
Ouviu-se o apito do contramestre, depois apressadas pisadas e a velocidade da fragata diminuiu sensivelmente. O senhor Stanhope, que descia pela escada de toldilla, se agarrou a ela e disse:
— É assombroso que não caiam todos, os pobres. Isto é estimulante, não creem? Como o champanha.
Assim era. Todo o barco vibrava, um zumbido grave chegava dos porões e o vento penetrante enchia os pulmões dos tripulantes. E muito antes do anoitecer o vento chegou a ser tão forte que quase não podiam respirar e a Surprise teve que navegar com as gávias e as maiores rizadas e os mastaréus tombados sobre a coberta, embora ainda se deslocasse com muita velocidade e na direção sudeste.
Durante a noite, Stephen ouviu vários golpes e gritos entre os sonhos e notou que haviam mudado o rumo porque sua maca já não se mexia na a mesma direção, mas não esperava encontrar-se com o que viu ao subir à coberta.
Sob o ameaçador céu cinza, arrastando a chuva e lançando espuma, o mar estava completamente branco, como se uma capa de creme o cobrisse até onde alcançava a vista. Havia visto o golfo de Vizcaya em seus piores momentos e as fortes rajadas do vento do sudoeste na costa irlandesa, mas nenhuma das duas coisas tinham comparação com isto. Por um momento todo o conjunto podia ter-se confundido com uma paisagem natural, com montanhas extranhamente regulares, mas então entrou em movimento, um movimento majestoso que ocultava sua aterradora e incrível violência. Agora se formavam cristas e seios muito maiores e muito mais separados entre si, e as ondas encrespadas rompiam provocando uma avalanche de espuma branca. A Surprise ia deslizando com rapidez, quase precisamente na frente delas, em direção leste, quarta ao sul. Haviam conseguido tirar o mastaréu de sobre-mesana ao amanhecer (assim diminuia a pressão do vento na popa e o risco de que o casco se partisse) e haviam colocado proteções ao longo da coberta. Ao voltar os olhos para o castelo de popa, Stephen viu uma onda que se elevava como um muro cinza verdoso, muito mais alto que o coroamento, e inevitavelmente lançava-se contra eles. Inclinou a cabeça para atrás para ver sua crista, que se curvou até passar a vertical e logo avançou, balançando-se pela velocidade que chegava, enquanto o vento formava uma lingueta com sua espuma. Jack deu uma ordem ao timoneiro e a fragata se desviou um pouco de seu rumo e se elevou, com a popa tão inclinada para o céu que Stephen se agarrou à escada que tinha detrás, e seguiu elevando-se; então a onda mortal passou por debaixo da abóbada, dividindo-se, cobriu o convés d’água e espuma e seguiu avançando até o horizonte, enquanto a fragata se afundava no seio e o rangido da exárcia baixava de tom uma oitava porque a tensão havia diminuido.
— Agarra-te firme, doutor, com as duas mãos! — gritou Jack.
Stephen avançou segurando-se ao cabo de proteção, notando um olhar de censura nos quatro homens que levavam o timão, como se lhe dissessem: “Veja o que has conseguido com teus albatrozes, companheiro”, e chegou até o mastro ao qual Jack estava amarrado.
— Bons dias, senhor.
— Muito bons dias. Está começando o temporal.
— Que?
— Está começando o temporal — repetiu Jack com mais força.
Stephen franziu o cenho e olhou para popa, e através da neblina que o mar formava ao salpicar, viu dois albatrozes mais brancos que a espuma acercando-se com o vento. Um se dirigiu para a fragata, subiu até a altura do coroamento e depois pousou sobre um redemoinho a uns dez pés de distância. Stephen observou seus olhos pequenos e redondos, que estavam fixos nele, sua cauda e a mudança constante e sutil das plumas das asas; então o albatroz se inclinou para um lado e se elevou com o vento, depois se precipitou para baixo e, com as asas levantadas, pairou sobre um arrecife d’água que avançava, pegou algo e se afastou apressadamente antes de que este quebrasse.
Killick apareceu então, com uma expressão triste e preocupada e muito incomodado pelo vento. Sacou de baixo de sua jaqueta a cafeteira e a passou a Jack, que pôs a boca no bico e começou a beber.
— Deverias ir-te abaixo — Jack gritou para Stephen —. Desça e tome o café da manhã. É possível que não voltes a comer quente se isto ficar feio.
Os oficiais eram da a mesma opinião. Tinham a mesa servida com presunto fervido, bifes e torta de carne, e embora tudo estivesse bem preso com uma dobrada barreira de cordas, os molhos se mesclavam ao acaso uns com os outros.
— Torta de carne, doutor? — perguntou Etherege, sorrindo-lhe —. Separei um pedaço para ti.
— Sim, por favor.
Stephen o seu prato e recebeu o pedaço de torta quando estavam na crista de onda; então a fragata desceu velozmente pela superfície desta e o pedaço ficou no ar, mas Etherege, com grande habilidade, o pegou com o garfo e o reteve até que chegaram ao seio, onde a gravidade voltou a atuar.
Pullings lhe deu uma bolacha escolhida e disse com um sorriso que o tempo passava e as coisas tinham que “ficar pior antes de ficar melhor”, e pediu que comesse “tudo o que pudesse”.
O contador estava explicando-lhes um método infalível para calcular a altura das ondas por simples triangulação quando Hervey chegou à sala de oficiais, jogando água como uma fonte invertida.
— Oh, meu Deus, meu Deus! — exclamou, arremessando a um lado a capa alcatroada e pondo os óculos —. Babbington, alcance-me uma xícara de chá, tenha a bondade. Tenho os dedos entorpecidos e não posso girar a chave.
— O chá caiu pela borda, senhor. Serve um pouco de café?
— Qualquer coisa, qualquer coisa, contanto que esteja quente. Resta torta de carne?
Mostraram a fonte vazia e protestou:
— Isso sim que está bom..., a noite toda na coberta e não tenho torta de carne.
Quando o presunto lhe havia apaziguado, Stephen lhe perguntou:
— Importasse em dezer-me por que passou toda a noite na coberta?
— O patrão não quiz descer, embora lhe roguei que fosse a deitar-se, e eu tampouco podia deitar com ele na coberta, porque sou de natureza nobre — respondeu Hervey sorridente, satisfeito pelo presunto.
— Então estamos em grave perigo? — perguntou Stephen.
Todos lhe asseguraram que sim com expressão grave e angustiada. Era enorme o risco de ir a pique, de que o casco se partisse e de virar bruscamente e ir parar na Austrália; em troca, era remota a possibilidade de que chocassem com uma montanha de gelo e ficassem encalhados nela, embora assim poderio salvar-se até meia-dúzia de homens.
Depois de que todos exercitaram sua mente durante tempo considerável, Hervey disse:
— O patrão está preocupado com o mastaréu de velacho. Subimos para dar uma olhada e, não poderão acredetitar senhores, a força do vento sobre nós, quando estávamos ali em cima, fez que a fragata se desviasse um grau de seu rumo. Os pinos que estão justamente acima do tamborete não são o que nossos amigos desejariam para nós, e se há enredo e começamos a balançar, me porei a rezar.
— O senhor Stanhope pede ao doutor Maturin que lhe dedique um minuto quando possa — murmurou Killick para Stephen.
Na escura e fria cabine, à luz de uma vela de sebo, com os abrigos postos e o colarinho erguido, estavam sentados o senhor White, o senhor Atkins e um jovem agregado chamado Berkeley com os pés na água, que se movia de um lado a outro com um ruído apagado. O senhor Stanhope estava meio incorporado em seu leito e seus criados ocultos entre as sombras. Aparentemente não lhes haviam dado de comer, e além disso, seus aquecedores de álcool não funcionavam. Todos estavam silenciosos.
O senhor Stanhope expressou o seu agradecimento ao doutor Maturin por ir vê-lo tão rápido. Não queria causar nenhum incômodo, mas agradeceria que lhe dissesse se aquele era o fim. A água estava entrando pelos costados, e um marinheiro havia dado a entender ao seu mordomo que esse era o sinal mais grave de todos. Um cadete havia confirmado isto ao senhor Atkins e havia adicionado que tinhamos mais probabilidades de recebermos um golpe do mar do que de ir a pique, ou que o casco se partisse em dois, embora nenhuma possibilidade devesse ser descartada. O que significava “receber um golpe do mar”? Podiam eles ajudar em algo?
Stephen lhe respondeu que, pelo que ele sabia, o perigo real consistia em que uma onda de popa golpeasse de cheio a parte traseira da fragata, fazendo-a girar e colocar-se com o vento de través, de maneira que receberia a onda seguinte pelo costado e se inundaria. E para evitar esses golpes era necessário navegar a grande velocidade com o vento em popa, levando desfraldadas todas as velas possíveis. Também havia que ter em conta que quando o barco estava na crista da enorme onda ficava exposto à máxima pressão do vento, mas na depressão, uns cinquenta pés mais abaixo, ficava protegido dele, embora a velocidade precisasse manter-se para poder virar na direção desejada e reduzir o impacto da onda seguinte; e tudo isto requeria um perfeito ajuste daquele complexo de velas e cabos. Em sua opinião, tudo se fazia conscienciosamente e com diligência e, por sua parte, estando em uma embarcação como essa, com essa tripulação e esse capitão, não tinha motivos racionais para estar atemorizado. O capitão Aubrey havia afirmado repetidamente em sua presença que, entre todas as fragatas da Armada real com sua mesma tonelagem, a Surprise era a melhor. E embora o fato de que a água entrasse fosse incômodo e preocupante, era um fenômeno normal naquelas circunstâncias, especialmente em barcos velhos. Aconselhava-os que não tomassem ao pé da letra as palavras dos marinheiros, porque sentiam um estranho prazer em assustar os homens de terra adentro.
Quando o senhor Stanhope deixou de se atormentar com a ideia de uma morte iminente, voltou a sentir os horríveis enjôos que havia tido durante a noite. E quando Stephen e o pastor o ajudavam a se meter em sua maca, disse, intentando sorrir:
— Muito obrigado. Não estou preparado para viajar de barco. Nunca voltarei a viajar assim. Se não há nenhuma forma de regressar a meu país por terra ficarei em Kampong para sempre.
Mas os demais estavam indignados e falavam gritando. O senhor White pensava que era vergonhoso que o governo os mandasse ao seu destino em um barco tão pequeno que, além disso, entrava a água. Dava-se conta o doutor Maturin de que no mar fazia muito frio, muito mais que em terra? O senhor Atkins disse que os oficiais aos quais havia perguntado repondiam lacônicamente ou nem sequer repondiam e que o capitão deveria ter dado uma explicação a Sua Excelência. Além disso, o jantar do dia anterior havia sido horrível, pois o assado estava a meio fazer. Queria falar com o capitão.
— Pode encontrá-lo no castelo de popa — disse Stephen —. Acredito que não terá nenhum inconveniente em escutar suas queixas.
Em meio ao silêncio que seguiu a estas palavras, o senhor Berkeley disse:
— E todos os nossos penicos se quebraram.
Stephen foi até a enfermaria, passando pelo rancho, ensopado e fedorento, onde, apesar do cabeceio e do ruído, dormiam completamente vestidos os marinheiros de um dos turnos de guarda, porque toda a tripulação havia sido chamada três vezes durante a noite. Encontrou alguns casos de acidentes frequentes em uma violenta tormenta, como golpes e machucaduras; um homem havia sido lançado contra a unha da âncora, outro havia caído de cabeça pela escotilha, quando estavam fixando seus encerados com barras, e outro estava com o passador com que trabalhava cravado, nada que um cirurgião não pudesse atender. Mas o que o preocupava era o pior dos casos de pneumonia, um marinheiro velho chamado Woods. A enfermidade havia se mantido mais ou menos igual antes do temporal, mas a intensa atividade e a falta de descanso a haviam agravado. Stephen escutou sua respiração, tomou-lhe o pulso, trocou umas palavras com McAlister e terminou a ronda em silêncio.
Na coberta tudo havia voltado a mudar. O vento soprava com mais força e havia rolado três graus, e o aspecto do mar era diferente. Agora, em vez de passar em procissão, as imensas ondas se entrecruzavam em uma grande confusão e rompiam com fúria, enchendo os seios de espuma. Sua forma era a mesma de antes, mas as cristas estavam separadas um quarto de milha e tinham maior altura, embora às vezes isto não se apreciava bem devido à agitação do mar. Não havia nenhum albatroz à vista. E contudo, a fragata continuava navegando rapidamente sob o escasso velame aberto a proa, tão valioso naquela situação, elevando-se docilmente com as enormes ondas e separando na sua passagem as turbulentas águas com grande força.
Todos os oficiais estavam na coberta, metidos nos mais estranhos cantos. O senhor Bowes, irreconhecível debaixo de sua capa alcatroada, segurou Stephen quando a fragata, ao dar um solavanco a barlavento, o fez perder o equilíbrio, e depois lhe guiou por toda a corda de segurança até onde estava o capitão, ainda atado ao mastro. Stephen esperou enquanto Jack ordenava a Callow que descesse para fazer a leitura do barômetro e depois lhe disse:
— Woods, um marinheiro da guarda de popa, está morrendo. Se queres vê-lo antes que morra tens que vir em seguida.
Jack ficou pensativo e mecânicamente deu algumas ordens aos homens que estavam ao timão. Correria o risco de deixar a coberta nesses momentos? Callow chegou arrastando-se até a proa.
— Está subindo, senhor! — gritou —. Há subido duas marcas e meia. E o senhor Hervey mandou dizer-lhe que as estrelleras de reforço já estão penduradas.
Jack assentiu com a cabeça.
— Isso significa que o temporal vai ser ainda mais forte — disse, olhando para o velacho (nos trópicos havia se coberto de mofo, mas o haviam reforçado o máximo possível) e para as velas de mal tempo, que também resistiam —. É melhor que Desça agora.
Desatou-se, chamou o segundo oficial e Pullings para que ocupassem seu lugar e baixou dando tropeços. Em sua cabine bebeu um copo de vinho e flexionou os braços.
— Estou muito penalizado pelo que me disse do pobre Woods — disse com a mesma voz forte de antes, que logo moderou —. Não há esperança? — Stephen negou com a cabeça —. Stephen, espero que o senhor Stanhope e seus acompanhantes não tenham sofrido demasiadas quedas nem estejam excessivamente indispostos.
— Não. Eu lhes disse que a Surprise era um barco excelente e que tudo ia bem.
— Sim, certamente, enquanto o velacho resistir. É o barco mais forte que já navegou os mares. E se o barômetro está correto, o temporal continuará alguns dias a mais. Bom, vamos?
— Não te penalizes tanto, pois embora o aspecto do enfermo e o ruído sejam horríveis, ele não sente nada. A morte por esta causa é muito doce.
Eram horríveis. Woods tinha uma cor azul plúmbeo, e o ruído de sua trabalhosa respiração era horrível e quase mais alto que o grande estrépito que se ouvia ao redor. Talvez tenha reconhecido Jack, talvez não; apenas se observou alguma mudança nele, sua boca permaneceu aberta e seus olhos semicerrados. Jack cumpriu com o seu dever, pronunciou as palavras que se esperavam de um capitão (lhe partia o coração), depois passou alguns minutos com os demais homens e voltou depressa para junto do mastro.
Que mudança, apenas em um quarto de hora! Quando havia baixado, a fragata apenas tinha um balanço de dez graus, agora o turco de bombordo submergia na água. As gigantescas ondas, mais altas que nunca, incrivelmente altas, seguiam chegando do sombrio oeste, e sua espuma enchia o convés até uma altura de cinco pés. A fragata afundava tanto a proa que o castelo desaparecia, mas voltava a subir, com a água saindo a jorros pelos embornais; sempre voltava a subir. Seria mais forte esta vez?
Na cabine do senhor Stanhope, um de seus criados, meio bêbado, havia explodido a estufa de álcool. Estava muito queimado e cheio de machucaduras porque havia caído contra um canhão, e os cirurgiões o estavam curando. Enquanto isso, o senhor White, o senhor Atkins e o senhor Berkeley, que haviam lutado com afinco em Londres para conseguirem seus postos, estavam sentados muito juntos na maca, com os pés levantados para que ficassem fora da água e a vista fixa à frente. Ficaram assim hora após hora.
Na coberta o dia se desvanecia, se é que aquele conjunto de sombras cinzas podia ser chamado de dia. Não obstante, Jack via ainda como aproximavam-se as ondas pela popa, desde uma distância de meia milha, e como elevavam suas brancas cristas até o céu e pareciam atravesá-lo. Então, duas ondas monstruosas, muito próximas uma da outra, romperam contra a popa e formaram uma grande massa que avançou com força arrasadora, provocando um ruído estrondoso. Mas Jack, com seu ouvido aguçado, distinguiu em meio daquele ruído um golpe seco, como um canhonaço, na proa. O mastro do traquete caiu sobre a borda, e o velacho foi afastando-se pela proa, como uma mancha na escuridão, até que desapareceu.
— Todos a proa! Todos a proa! — gritou.
A fragata havia dado uma guinada, afastando-se de seu rumo, e movia-se sem controle. Jack olhou para atrás. Iriam cair no seio, e a menos que conseguisse pôr um pouco de velame na proa para colocar a fragata com o vento a favor, esta receberia um golpe do mar, orçaria e a onda seguinte lhe chegaria pelo costado.
— Todos a proa! — gritou tanto que lhe saiu sangue da garganta —. Pullings, leve os homens aos amantilhos de proa! O tamborete se partiu! A traquetina, a traquetina! Venham comigo! Tragam os machados! Os machados!
Em um breve momento de calma, quando estavam no profundo seio, correu pela borda da coberta seguido de vinte homens. A água estava entrando por cima da borda e lhes chegava até a cintura, mas conseguiram alcançar o castelo antes que a fragata, já com o vento de través, começasse a elevar-se, antes de que a onda seguinte chegasse à metade da distância que os separava. Os marinheiros treparam pelos enfrechates de barlavento com grande esforço, tratando de resistir ao embate do vento, e com suas costas atuando como velas, contribuiram para que a proa virasse um pouco justo antes de que o mar lhes envestisse, cobrindo-lhes por completo com água e espuma; mas a proa havia virado o suficiente para que a onda chegasse pela alheta e a fragata seguisse flutuando. Os machados cortaram a confusão de paus e cabos. Por fora da proa, sobre o bauprés, Bonden tratava de cortar o estai do mastaréu do velacho, o qual, ao estar ainda unido ao mastro que flutuava na água, fazia virar a fragata. Jack estava atrás dele, prendendo a respiração e com a cabeça sob a espuma, buscando a tientas os matanholes da traquetina, atados fortemente por debaixo do estai. Por fim os encontrou, e suas mãos, com muitas outras mãos, tentaram soltá-los, mas estavam tão apertados que não se desatavam, não se desatavam.
“Segure-se!”, gritou uma voz ao seu ouvido e uma vigorosa mão o agarrou pelo colarinho. Logo o mar arremeteu com uma força inimaginável e ele sentiu um peso fora do comum: a terceira onda virou a fragata justamente a barlavento.
A pressão diminuiu. Já tinha a cabeça fora da água e pôde ver que havia mais marinheiros nos amantilhos. Novamente, a pressão do vento sobre eles fez virar a proa, esta vez ajudada por uma fortíssima marejada; mas não podiam permanecer ali pora sempre, e se as coisas continuassem assim alguns minutos mais, não ficaria ninguém pendurado. A fragata afundou de novo a proa, e Jack, ao passar a mão pela vela, descobriou o problema: a talha havia se emaranhado no aro do punho da escota e nos garrunchos havia pedaços de cabos dos aparelhos quebrados.
— Um faca! — gritou, erguendo a cabeça.
Em seguida a teve na mão, deu um corte rápido e tudo se soltou.
“Segure-se, segure-se!”, gritou a voz de novo, e então ouviu o estrondo de uma onda descomunal. Uma insuportável opressão no peito; a ideia fixa de que não devia soltar a vela que apertava contra ele; as pernas enroscadas no bauprés para segurar-se..., segurar-se... Suas forças fraquejavam... Mas pôde extrair a cabeça da água e o ar entrou de novo em seus pulmões quando estavam a ponto de estourar. Então gritou:
— Todos às adriças! Vós me ouvem? Todos às adriças!
A vela subiu devagar pelo estai, dando sacudidas, depois se inchou e os homens amarraram as escotas. Mas a fragata balançava quase até pôr-se de lado. A haveriam aberto a tempo? Lentamente, com dificuldade, a fragata foi virando à medida que a traquetina se punha tensa. A enorme onda aproximava-se..., e a fragata virou o suficiente para que a alcançsse pela alheta, subiu na crista e, quando uma rajada de vento passou a traquetina, ficou colocada justo a favor do leste. Navegava mais e mais rápido, e o timão se movia com facilidade, pois embora o vento havia apartado os homens dele, os reforços se mantinham firmes. A onda seguinte passou por debaixo da popa inofensivamente.
Voltou de gatinhas à proa, detendo-se um momento e agarrando-se forte às colunas do bauprés quando a fragata afundou de novo a proa, e em seguida chegou ao castelo. Observou que já não restavam restos dos destroços e que a vela ia bem. Então ordenou aos homens que descessem dos amantilhos e seguiu caminhando pela borda da coberta.
— Perdemos algum marinheiro, Hervey? — perguntou, rodeando o mastro com os braços.
— Não, senhor. Há alguns feridos, mas todos retornaram à popa. Está bem, senhor?
Jack assentiu com a cabeça.
— Agora o timão responde melhor — disse —. Mande os homens de guarda abaixo. Reparta grogue a todos os marinheiros na entrecoberta. Avise ao contramestre.
Toda a noite… Durante aquela interminável noite os oficiais permaneceram na coberta ou passaram breves intervalos sentados na sala dos oficiais, meio adormecidos, escutando com atenção e apreensão aquele rígido triângulo de lona na proa. Depois de uma hora, Jack notou que o tremor que tinha por todo o corpo havia desaparecido, e também que sua próprio corpo lhe preocupava menos. Também notou que o timão se movia com mais suavidade, cada vez com mais suavidade. Constantemente dava ordens com voz irada e, em duas ocasiões, mandou à proa uma brigada escolhida para reforçar e ajustar os cabos o mais rápido possível, em uma noite tão desagradável. Pouco antes do amanhecer, o vento rolou um grau, depois dois graus, e chegava em rajadas ou se detinha de repente, formando um vazio que lhe machucava os ouvidos. Jack ouviu como seu assobio alcançava um tom agudo que nunca antes havia escutado e sentiu uma grande preocupação pela traquetina e pela fragata, ao mesmo tempo que sentia pena de si mesmo, e esteve a ponto de pronunciar o nome de Sophie, que lutava para sair de seus lábios. O assobio do vento baixou meio tom, depois outro, e outro, lentamente, até converter-se em um monótono zumbido. E na fraca luz que ia envolvendo tudo pôde ver o mar, completamente branco de um lado a outro do horizonte, com ondas enormes e majestosas que se sucediam com uma frequência constante e em rigorosa ordem outra vez, e que apesar de seu tamanho já não eram perigosas. Não havia enredo, e a Surprise, com muito pouco balanço, deslizava rapidamente deixando para trás a desolação; as ondas passavam agora sob a abóbada e a água que se amontoava no convés não alcançava mais que um pé de altura. Um albatroz se distinguia com claridade pelo costado de estibordo. Jack se desatou e deu uns passos extendendo os membros.
— As bombas devem começar a funcionar, senhor Hervey, por favor. E creio que podemos abrir um pouco a gávia maior.
Paz, paz. Madagascar e as ilhas Comores haviam ficado para trás. O casco destroçado que havia navegado com dificuldade para o norte do paralelo quarenta, arrastando pedaços de cabos e bombeando dia e noite, tinha o melhor aspecto que o engenho e um pouco de pintura haviam podido lhe dar. Mas uns olhos especialistas haveriam notado que tinha muitos cabos malfeitos na exárcia e que, curiosamente, havia muito poucos botes nas espichas; haveriam se surpreendido ao ver os reforços do timão; haveriam observado que, embora soprasse uma brisa moderada, a fragata não levava desdobrada nenhuma vela acima das gávias. Com efeito, não as levava, porque apesar de seu belo aspecto, ter um novo mastaréu de velacho e estar recém pintada, havia sofrido danos na estrutura interna. Jack falava com tanta frequência das roda-de-proa de armar e os vaus de bateria que um dia Stephen lhe disse:
— Capitão Aubrey, pelo que me disse, não é possível tentar reparar as rodas-de-proa de armar e os vaus de bateria enquanto não “faças entrar em doca” a fragata, a três mil milhas daqui, assim te peço que “ponhas uma pedra” no assunto e que aceites o que é inevitável, com uma boa dose de tranquilidade. Se a fragata se fez em pedaços, então se fez em pedaços e acabou. Pelo que me diz respeito, tenho a segurança de que chegaremos a Bombaim.
— O que eu sei e tu não sabes — argumentou Jack —, é que não resta nem uma única chaveta de dez polegadas no barco.
— Até Deus te ouviu dizer que não tens nem uma chaveta de dez polegadas, meu amigo — disse Stephen —. E claro que eu sei; o has repetido todos os dias ao longo das últimas duzentas léguas, mencionando também os cabos e as rodas-de-proa, e has falado disso até mesmo de noite, nos sonhos. Pensa que a predestinação existe ou põe-te a rezar, mas em silêncio.
— Nem uma chaveta de dez polegadas, nem uma espicha, nem um mastro, além daqueles que reparamos — disse Jack, sacudindo a cabeça.
Assim era, de fato. E lhe resultava irritante que o senhor Stanhope, seu séquito e inclusive o doutor Maturin, manifestassem comprazer que agora a viagem era prazeirosa..., esse era o melhor modo de viajar..., não tinha nem comparação com uma viagem em cabriolé por um caminho plano..., o recomendariam a todos seus amigos.
Indubitavelmente, navegar assim era agradável para os passageiros, pois o mar estava calmo e a forte brisa lhes levava pouco a pouco para uma zona de ventos mais quentes. Contudo, na latitude onde se encontrava Ile de France, Jack, o carpinteiro, o timoneiro e todos os oficiais olhavam ansiosos ao seu redor esperando ver algum barco corsário francês. (Que felizes lhes haveriam feito um ou mais mastaréus de reserva, alguns paus e cem braços de corda de uma polegada e meia de grossura!) Olharam com grande atenção, mas o oceano índico estava tão vazio como o Atlântico Sul, e nem sequer tinha baleias.
Seguiam avançando por águas mais quentes, mais vazias, como se fossem os únicos sobreviventes do dilúvio, como outro Deucalión, e lhes parecia que a terra havia desaparecido do planeta. Uma vez mais a rotina do barco distorcia o tempo e a realidade; parecia-lhes estar em um sonho interminável ou repetitivo que se desenrolava em um espaço onde o horizonte era fixo, um sonho apenas interrompido pelo ruído estrondoso dos canhões que, diariamente, preparavam-se para enfrentar a um inimigo cuja existência real era impossível crer.
Stephen guardou as pistolas, lhes esfregou o canhão com o lenço e fechou o estojo. Estavam quentes porque estivera praticando com elas, e contudo a garrafa que pendia da ponta do traquete estava ainda intacta. Disto as pistolas não tinham culpa, pois eram das melhores fabricadas por Joe Mantón e, além disso, o contador havia acertado o branco três vezes com elas, nem tampouco o fato de que disparasse com a mão esquerda porque a direita havia resultado mais afetada em Porto Mahón; um ano atrás haveria acertado a garrafa com qualquer uma das mãos. Teria demasiada pressa? Fazia excessivamente esforço? Deu um suspiro e, reflexionando sobre a coordenação entre músculos e nervios, começou a abrir caminho para o cesto da gávea do mastro da mesana. O senhor Atkins o seguiu com o olhar, quase convencido de que seria mais seguro brigar com ele quando estivessem em Bombaim.
Ao chegar às arraigadas, Stephen tomou uma repentina decisão, pensando que se seu corpo não lhe obedecia de uma maneira lhe obedeceria de outra. Se agarrou aos cabos que desciam da margem da plataforma e, em vez de passar retorcendo-se entre eles até chegar ao cesto da gávea, se pendurar neles e começou a subir de costas para o mar, com uma inclinação de quarenta e cinco graus, ofegando pelo esforço, e chegou a seu destino pelo caminho que um marinheiro haveria seguido (um marinheiro, não um homem de terra adentro, acostumado à força da gravidade ordinária). Nesse momento Bonden estava olhando para a boca de lobo, o lugar por onde Stephen chegava sempre, seguindo o caminho mais lógico, direto e seguro, ao mesmo tempo vergonhoso, e ao volver-se não pôde ocultar seu assombro, o qual foi uma satisfação para Stephen e pôs em vermelho vivo a sua vaidade. Reprimindo seu ofego, que haveria estragado aquele impacto, disse:
— Passemos em seguida à poesia.
Isso foi só o que conseguiu dizer com uma inspiração de ar, então fez uma pausa, como se estivesse pensando, até que seu coração começou a bater com normalidade.
— Poesia — repetiu —. Estás preparado, Barret Bonden? Então, adiante.
Às ricas terras do Oriente vamos, atravessando as tormentas,
mas agora que hemos dobrado o cabo já nada nos inquieta,
porque os ventos alísios não deixarão de soprar e devagar até as costas cheias de especiarias nos vão a levar.
— Belos versos, senhor — disse Bonden —, muito belos. São tão bons como os de Dibdin. Mas se a gente lhes busca faltas, e não é que seja essa minha intenção, vê que o cavalheiro estava um pouco confundido, porque esses não são ventos alísios mas os que nós no mar chamamos monções. E quanto à riqueza, pois, essa é uma licença poética ou o que poderíamos chamar pura invenção. Pode ser que haja especiarias, não digo que não, e costas cheias delas (embora a maior parte do que há nos portos da Índia é merda, desculpe) mas riqueza..., permita que eu ria, senhor, ah, ah!, porque excetuando alguns barcos corsários de Ile de France e Reunião, não encontraremos nenhuma outra presa em todo o oceano índico, e muito menos daqui a Java, depois que o almirante Rainier acabou com todos em Trincomalee. Embora talvez possamos capturar o almirante Linois em seu navio de setenta e quatro canhões, aquele que nos persiguiu sem piedade em nossa querida Sophie. Era um cavalheiro maior, muito alegre, lembra-se dele senhor, senhor?
Claro que Stephen recordava dele, e também aquela horrível perseguição no Mediterrâneo, sua captura e a perda da corveta. Bonden deixou de sorrir, adotou uma expressão grave e guardou o livro no peito quando o inoportuno Callow apareceu por cima do corrimão e, da parte do capitão, saudou-lhe e perguntou se pretendia trocar de jaqueta.
— Por que razão eu ia querer mudar de jaqueta? — perguntou Stephen —. Além do mais, não tenho nenhuma jaqueta arrumada.
— Talvez pensou que ia pôr uma para ir à refeição do senhor Stanhope, senhor, e aludiou a isso dessa forma tão cortês. Será minutos depois de que soarem as três badaladas, senhor, e já resta pouca areia no relógio. O capitão lhe pede que desça pela..., que desça pelo lugar habitual.
— A refeição do senhor Stanhope — murmurou Stephen.
Ficou de pé e baixou a vista até o castelo de popa, onde estavam reunidos todos os oficiais da fragata, à exceção do capitão, vestindo uniforme completo. Era verdade. Havia esquecido o convite. Observou o castelo de popa, onde se distinguiam numerosas jaquetas vermelhas e azuis, meia dúzia de jaquetas negras e, entre elas, as camisas a quadros dos atarefados marinheiros; parecia-lhe remoto, muito remoto, embora não estava a uma grande distância, apenas cinquenta pés mais abaixo. Conhecia todos esses homens, simpatizava com alguns e apreciava muito a Babbington e a Pullings, e contudo, tinha a sensação de estar vivendo no vazio. A sensação se fez mais forte, apesar de que muitos haviam voltado seu rosto para ele e o saudavam e lhe faziam piscadas. Então deslizou as pernas pela boca de lobo e, com uma expressão muito séria, iniciou a difícil descida.
“Em um barco tão cheio, formando um mundo tão hermético, sempre em rápido movimento e rodeado pelo vazio, cada homem fecha-se em si mesmo. Ontem, ao reler meu diário, tive essa impressão; comprendi que havia me comportado como um ser egocêntrico que vive entre borradas sombras, pois em suas páginas não se reflete a complexa e agitada vida deste abarrotado barco, nem se menciona quase a meu anfitrião (a quem estimo) e seus homens, nem aparece a sala dos oficiais”, pensava Stephen durante um dos intervalos da conversação, sentado à esquerda do enviado do Rei, depois de ter posto as calças, ter-se penteado e ter-se metido dentro de sua melhor jaqueta, ajudado pelas fortes mãos de Jack, em um minuto e vinte segundos, enquanto o infante da marinha, expondo-se à pena de morte, mantinha oculto na mão o relógio de areia de meia hora para evitar que tocassem as badaladas. E ali sentado, saboreava os excelentes manjares largamente conservados na despensa do senhor Stanhope e bebia rosé quente como o leite à saúde do duque de Cumberland, porque era seu aniversário. Contudo, tinha presente que aquele era um ato social e se havia dado conta do grande mal-estar que havia causado por levar as mãos e a cara muito sujas, desacreditando o barco, por isso se esforçou por falar e ser agradável, e até cantou, depois que o porto desse várias rondas.
O senhor Bowes, o contador, havia presenteado a seus acompanhantes com uma interminável balada sobre a batalha do Primeiro de Junho, na qual estivera a cargo de um canhão. Tinha que começar no tom de Sou um barqueiro do Támesis, mas cantou toda a composição em um tom invariável, a meias entre um agudo e um grito, próximo a lá menor, olhando fixamente um nó que havia no teto, acima do senhor Stanhope. O enviado do Rei sorria satisfeito, e quando todos corearam: “vamos lutar ou morrer”, os que estavam sentados junto a ele puderam distinguir a sua voz aguda.
Aquela interpretação musical a bordo da fragata não podia ter grande qualidade. Não apenas Etherege desconhecia o tom de sua graciosa canção, mas que agora, além disso, perturbado pelo porto do senhor Stanhope, estava se esquecendo da letra. Por fim deixou de cantar, depois de dar três notas falsas, e lhes assegurou que a canção, bem cantada, por exemplo, por Kitty Pale, era muito divertida (como haviam rido!), mas que a ele, lamentavelmente, não se lhe dava bem cantar, embora amasse a música com paixão. Disse que era uma peça mais adequada para o doutor, quem inclusive podia imitar os gatos com perfeição com seu violoncelo e lograria enganar a qualquer cachorro que se encontrasse a bordo.
O senhor Stanhope voltou para Stephen seu rosto amável e cansado, e nesse momento, ao balançar-se a fragata, um raio de sol se filtrou pelo escotilhão e atingiu seus olhos, fazendo-lhe pestanejar. Stephen notou então, por primeira vez, que sob seus apagados olhos azuis começava a aparecer um arco esbranquiçado, o arcus senilis. Da outra ponta da mesa o senhor Atkins gritou:
— Não, Sua Excelência, não devemos incomodar o doutor Maturin. É excessivamente intelectual para se ocupar destas simples diversões.
Stephen esvaziou o copo, olhou para o nó apropriado, deu uma palmada na mesa e começou:
Os mares nos revelam suas maravilhas, mas há mais nos olhos de Cloe.
Os tesouros que escondem
não podem comparar-se com os meus em terra.
Sua voz estridente, que mais que dar as notas se aproximava delas, contribuiu muito pouco para melhorar a reputação do barco. Então Jack começou a acompanhar-lhe, cantarolando com uma voz de trovão que fazia vibrar os copos, e ele continuou mais alto:
Da temperada costa de minha nativa Irlanda,
afasto-me mais ainda,
para tremer onde o frio é eterno
Ou derreter-me com o calor da Índia.
Nesse momento compreendeu que o senhor Stanhope não seria capaz de suportar outra estrofe. O calor, a falta de ar (a Surprise tinha o vento justo de popa e o ar quase não chegava lá embaixo), a aglomeração de pessoas na cabine, os obrigados brindes e o ruído haviam feito seu trabalho; tinha um ar lastimoso e um sorriso fixo, e seu rosto se tornava cada vez mais pálido, o que indicava que ia sofrer um síncope nos próximos compassos.
— Venha comigo, senhor — lhe disse, abandonando seu assento —. Venha. Um momento, por favor.
Conduziu ele à cabine onde dormia, deitou-lhe e desabotoou sua gravata e a faixa da cintura, e quando viu que começava a voltar-lhe a cor o deixou só. Entretanto, o grupo havia se dispersado sem fazer ruído, e Stephen, que não tinha vontade de responder perguntas no castelo de popa, foi até a proa, atravessando o rancho e a enfermaria. Permaneceu ali enquanto na fragata se realizavam os trabalhos da tarde, apoiado no bauprés e observando milha após milha como a talha-mar cortava as águas do oceano com um ruído como o da seda ao rasgar-se, enquanto estas, formando suaves curvas, deslizavam-se pelos costados da fragata até alcançar sua esteira, arrastada ao longo de oito mil milhas. De pronto recordou a canção inacabada, e uma e outra vez cantou para si:
Sua imagem encherá meus dias de felicidade e sempre meu sonho será.
Sonho; não era mais do que isso. Tinha talvez algum contato com a realidade... Era um raio de esperança..., algo em potencial que era infinitamente melhor não converter em realidade. Stephen havia amado a Diana Villiers apaixonadamente. Além disso, havia sentido por ela um grande afeto, o afeto que une um ser humano com outro, e ela o correspondia, não da mesma maneira mas, ao menos, da melhor que era capaz. De que maneira? Diana o tratara mal como amigo e como amante e ele se alegrara muito de conseguir o que chamava sua “liberação” dela, embora sua liberdade não houvesse durado. Pouco depois de vê-la em um palco da ópera “prostituindo-se” (embora a palavra fosse forte, apenas significava que ela usava conscientemente seus encantos para agradar outros homens), a parte irracional de sua mente havia evocado vivas imagens de seus encantos e a incrível graça de seus movimentos quando eram espontâneos. Mas em seguida a parte racional começou a dizer-lhe que essa falta tinha que ser incluida na larga lista de defeitos que ele conhecia e aceitava, defeitos que, a seu ver, eram contestados ou mesmo anulados por duas qualidades: inteligência e valentia. À Diana nunca faltava agudeza nem agia com covardia. Mas as considerações morais eram irrelevantes ao julgar a Diana, porque nela a beleza física e o estímulo sustituiam à virtude. Isto a situava em um contexto muito diferente, no qual a falta de castidade, que em outra mulher era uma desonra, nela tinha o que ele chamaria pureza, mas uma pureza de outro tipo, pagã, claro, pertencente a outro código. Ela havia arruinado parte de sua beleza, mas ainda lhe sobrava. A havia destruido apenas na periferia, pois estava fora de seu alcance destruir sua essência, essa essência que a diferenciava de todas as demais mulheres, de todas as demais pessoas que ele havia conhecido.
Essa era, ao menos no momento, a sua conclusão. Havia navegado essas oito mil milhas com o desejo sempre crescente de voltar a vê-la e, às vezes, com um medo cada vez maior desse encontro, mas com mais desejo do que medo, claro.
Contudo, bem sabia Deus que as possibilidades de que enganasse a si mesmo eram infinitas, pois era difícil desemaranhar os inumeráveis sentimentos que experimentava e chamar a cada um por seu nome, e era difícil também separar o dever do prazer. Às vezes, dissesse o que dissesse, parecia que estava perdido, rodeado pela espessa nuvem do desconhecido; mas agora, ao menos, sentia-se tranquilo no meio dessa nuvem, e deslizar-se pelas esbranquiçadas águas com a possibilidade, embora remota, de encontrar o êxtasi a uma distância indefinida era para ele o maior gozo da vida ou, ao menos, sua sombra.
Paz, uma paz até mais profunda. A abatida paz do mar da Arábia quando soprava a monção do sudoeste, um vento estável como os alísios, mas mais suave. Tão suave era o vento que a deteriorada Surprise levava desfraldadas as joanetes e até as rasteiras porque necessitava navegar muito mais depressa que o habitual. Suas provisões eram tão escassas que a semanas os oficiais alimentavam-se com as do próprio barco, que consistiam em carne de porco e de vaca salgada, bolachas e ervilhas secas, e da camareta dos cadetes havia chegado a notícia de que não ficava nem um só rato vivo. E ocurria algo pior ainda: Stephen e McAlister tinham outra vez pacientes com escorbuto.
Mas pronto iriam acabar-se as vacas magras. Ao chegar a um determinado ponto, Harrowby quiz desviar-se para o canal Paralelo Nove e as ilhas Laquedivas, mas Harrowby era um navegante mediocre e sem arrojo; Jack repeliu sua ideia e pôs proa diretamente para Bombaim. Agora levavam muito tempo navegando em direção noroeste, quarta ao leste, tanto que, segundo cálculos aproximados, a Surprise encontrava-se a cem milhas ao leste dos Gates Ocidentais, entre os que se elevava Poona, como outra arca perdida. Mas depois de consultar a Pullings, repassar as medições lunares uma e outra vez e fazer com que os cadetes mais brilhantes revisassem os cálculos repetidamente para encontrar qualquer possível erro, depois de comprovar os dados dos cronômetros e fazer as mudanças necessárias, Jack estava quase seguro de sua posição. E pelas aves marítimas que encontrava, as embarcações típicas daqueles mares que se viam ao longe, um mercante que apareceu no horizonte e fugiu a toda vela sem esperar para saber se eles eram franceses ou ingleses (o primeiro barco que avistavam em quatro meses) e, sobretudo, a areia branca com abundantes pedaços de conchas que sonda havia recolhido a onze braças e que provavelmente pertenciam ao banco de areia Direção, por tudo isso, chegou a ter a certeza de que estava em 18° 34' N, 72° 29' E e de que no dia seguinte avistariam terra. Permaneceu no castelo de popa, olhando às vezes para o mar e outras para o topo, onde os homens com a vista mais aguda e as melhores lunetas da fragata olhavam fixamente para o leste.
A confiança de Stephen no capitão Aubrey como navegante era absoluta, a mesma que a do capitão nele como médico, por isso, despreocupado dos problemas que seu amigo infrentava agora, havia se sentado no turco, nú como Adão e quase da mesma cor, e havia atirado um copo no mar.
Os turcos, essas madeiras que saem horizontalmente da proa do barco e servem de apoio aos amantilhos quando são estendidos, eram para Stephen um assento incrivelmente cômodo, e desfrutava neles do sol, da solidão (porque o turco estava muito abaixo do corrimão) e do mar, cujas águas se agitavam sob seus pés e às vezes os roçavam suavemente como se os acariciassem e outras salpicavam seu corpo produzindo-lhe uma agradável sensação. E ali sentado cantava:
Pulverizes em mim, domine, hyssopo..., mas essas qualidades
certamente
se apreciavam melhor quando ela era pobre
e estava sozinha e oprimida.
Que encontrarei agora,
que mudança encontrarei
se chego a visitá-la? Hyssopo
et super nivem dealbabor.
Pulverizes em mim...
Interrompeu seu canto ao ver passar uma serpente marinha, uma das muitas que havia visto e não havia conseguido pegar. Afastou mais a vara, com a intenção de que o/ou animal entrasse no copo, mas um copo vazio não era capaz de atrair a serpente, assim que esta, quase sem vacilar, seguiu nadando com seus característicos movimentos suaves e majestosos.
Do alto escutou a voz do senhor Hervey que, em tom irado, muito diferente do tom conciliador que normalmente usava, perguntava se alguma vez os faxineiros iriam chegar à popa, se alguma vez aquele condenado desastre ia se parecer com a coberta de um barco de guerra. Ouviu outra voz mais baixa, com um tom quase confidencial: era a de Babbington. Estava lendo um livro de frases em urdu que Stephen lhe havia emprestado e repetia uma e outra vez nessa língua: “Mulher, queres deitar comigo?”, enquanto olhava impaciente para o noroeste. Como muitos outros marinheiros, sentia a presença da costa, e nessa costa havia milhares de mulheres que poderiam deitar-se com ele.
— Não haverá exercícios esta tarde, doutor — gritou Pullings, inclinando-se sobre o corrimão —. Estamos limpando e preparando tudo para amanhã. Creio que avistaremos o promontório Malabar antes que escureça, e o almirante está em Bombaim. Temos que ter tudo em ordem para quando o almirante nos visitar.
Bombaim: fruta fresca para os enfermos, sorvetes gelados para os marinheiros, grandes quantidades de comida. Veriam as maravilhas de Oriente, os palácios de mármore, as torres do silêncio do povo parsi, os escritórios dos comissários para os assuntos das antiguas zonas francesas, comercios e fábricas na costa Malabar, a residência do comissário Canning.
— Que alegria me dá, Pullings! — exclamou Stephen —. Esta será a primeira tarde, desde O que está acontecendomos os trinta graus sul, que não ouvimos esse infernal... Silêncio! silêncio! Não se mova! Já a tenho! Ah, ah! Por fim, meu amigo!
Então levantou a vara, e ali, no copo, estava a serpente marinha, um animal muito curioso, de corpo muito fino e de cor preto e amarelo brilhante.
— Não a toque, doutor! — gritou Pullings —. É uma serpente marinha!
— Naturalmente que é uma serpente marinha. Tenho tentado pescá-la desde que chegamos a estes mares. Que criatura mais formosa!
— Não a toque! — voltou a gritar Pullings —. É venenosa, vi um homem morrer em vinte minutos...!
— Terra à vista! — gritou o serviola —. Terra à vista pela amura de estibordo!
— Suba ao tope, senhor Pullings, por favor — ordenou Jack —, e diga-me o que vê.
Ouviu-se um estrondoso ruído de pisadas quando toda a tripulação do barco correu ao costado para examinar o horizonte e a Surprise se inclinou um marco para estibordo. Stephen mantinha o copo a uma distância prudencial e a serpente se retorcia com fúria e se enrolava e se estendia com rapidez como uma mola.
— Coberta! — gritou Pullings —. É o promontório Malabar, senhor. E posso ver a ilha com clareza.
A serpente, cega fora de seu elemento natural, mordeu a si mesma várias vezes. Morreu em seguida, e antes que Stephen conseguisse subi-la a bordo, onde um vaso com álcool a esperava, suas cores começaram a apagar-se. Quando Stephen passava por cima do corrimão, uma rajada de ar moveu para trás as velas da Surprise, uma rajada de ar quente que chegava da terra cheia de mil aromas desconhecidos, o cheiro da úmida vegetação e as palmas, o cheiro de uma enorme massa humana, de outro mundo.
CAPÍTULO 7
Fruta fresca para os enfermos havia, sem dúvida, e também abundante comida para os que tivessem tempo de come-la. Contudo, à parte dos onipresentes odores e um pouco de arac, que subiram a bordo furtivamente, as maravilhas do Oriente e os palácios de mármore seguiam sendo para a Surprise objetos distantes, apenas imaginários. A fragata foi levada diretamente ao estaleiro, onde a despojaram de todos os aparelhos, lhe tiraram os canhões e esvaziaram seus porões para ver o fundo; e o encontraram em tais condições que o encarregado do estaleiro mandou desocupar em seguida o dique seco para levá-la ali antes que afundasse.
O almirante, um homem rosado e alegre, a visitou pessoalmente e fez grandes elogios a ela, mas de imediato deixou Jack sem seu primeiro oficial, ao nomear o senhor Hervey capitão de corveta e designar-lhe uma de dezoito canhões. Dessa forma, todo o trabalho de voltar a armar a fragata recaia sobre seu capitão.
O almirante, contudo, tinha consciência e, além disso, sabia que o senhor Stanhope era um homem de certa importância, assim que intercedeu com o encarregado a favor deles, e todos os recursos daquele estaleiro tão bem equipado ficaram a disposição da Surprise. Os estragos causados pela sanguessuga burriqueira não eram nada comparados com os do capitão Aubrey ao passar por um estaleiro de Tom Tiddler cheio de breu, cânhamo, estopa, aparelhos, cabos, acres de lona, brilhantes lâminas de cobre, paus, polias, botes e vaus de bateria naturais, e apesar dele também estar desejoso de passear pela costa coralínea sob os coqueiros, disse a Stephen:
— Enquanto isto dure, nenhum homem abandonará o barco. Há que recolher a fruta quando está madura, como dizia nosso amigo Christy-Palliére.
— Não crês que os homens se sentirão descontentes? Não crês que todos poderiam pôr-se de acordo em abandonar o barco?
— Não se sentirão contentes, mas sabem que devemos tomar a monção com um barco bem equipado; e sabem que pertencem à Armada. A quem quer o azul celeste, que lhe custe.
— Queres dizer que não se pode festejar e estar na procissão.
— Não, não, tampouco é isso. Quero dizer..., gostaria que não me confundisses, Stephen. Quero dizer que temos mais ou menos uma semana para pegar tudo o que queramos, pois depois chegarão a Ethalion e a Revenge pedindo a gritos paus e cabos. Seguro que então poderemos escolher as coisas com mais calma, com a ajuda dos calafetadores nativos do estaleiro, e a tripulação poderá sair com permissão. Mas há muito trabalho que fazer... Has visto o sobretrancanil? Teremos que trabalhar durante várias semanas e muito depressa.
Desde que havia entrado em contato com a Armada, Stephen havia se sentido agoniado pela pressa: pressa para ver o que aparecia no horizonte, pressa para chegar a um porto determinado, pressa para afastar-se dele se ocorria algo em um ponto distante e pressa agora não apenas para recolher a fruta mas para tomar a monção. Se não levassem o enviado do Rei a Kampong em certa data, Jack se veria obrigado a fazer todo o caminho de regresso navegando contra ventos de proa e tardaria meses, um tempo valioso durante o qual poderia participar ativamente na guerra.
— A guerra poderia acabar-se antes que dobrássemos o cabo se perdemos a monção do noroeste — continuou —, e isso seria desastroso.
Afinal, agora tinha uma incomparável oportunidade de conseguir que a Surprise voltasse a ser o que era e estivesse como deveria estar. Mas para Stephen não interessava nada disso, e o desejo que em vão empurrava Jack a descer a terra era nele uma chama ardente, uma força arrasadora, irresistível.
Enquanto observava Jack acariciar um gordo mastro da melhor teca da ilha, disse:
— Meus pacientes estão no hospital e o senhor Stanhope se recupera na casa do governador; não tenho nada o que fazer aqui. Devo passar algum tempo em terra, diversos assuntos requerem a minha presença em terra.
— Podes descer — disse Jack com ar ausente —. Senhor Babbington! Senhor Babbington! Onde está esse maldito carpinteiro preguiçoso? Podes descer, mas por mais ocupado que estejas não percas como colocamos os mastros. Os trazemos com a máquina flutuante, que pode elevá-los com uma facilidade espantosa; é a coisa mais bonita do mundo. Avisarei-te um dia antes. Lamentarias não poder ver a máquina flutuante em ação.
Stephen ia à fragata de vez em quando. Uma vez foi com um matemático parsi que queria ver as cartas marítimas da fragata; outra vez com uma menina de raça desconhecida que o havia encontrado perdido entre os búfalos aquáticos na planície de Aungier, correndo o perigo de ser pisoteado por eles, e o havia tirado dali pela mão, falando-lhe todo o caminho em urdu, embora adaptando-o para conseguir um mínimo de comprensão; e outra vez com um patrão de barco chinês, um cristão de Macao que em um tempo havia estudado para sacerdote, com quem conversava em latim enquanto o ensinava o funcionamento da bomba de baldes. E algumas vezes ia ver Jack na sua casa, onde, em teoria, também ele tinha alojamento. Jack era excessivamente discreto para preguntar-lhe onde dormia quando não estava ali com ele e excessivamente educado para fazer comentários ao ver-lhe aparecer umas vezes envolto em uma toalha, outras vestido como um europeu e outras com uma túnica e calças brancas, mas sempre com uma expressão cansada e ao mesmo tempo satisfeita.
Dormia onde lhe apetecia ou onde o profundo cansaço o obrigava: sob as árvores, em galerias, em um caravansará, nas escadas de um templo ou no chão, rodeado de filas de homens que costumavam dormir ali, envolvidos em uma espécie de sudário. Na abarrotada cidade, onde habitualmente se mesclavam centenas de raças e inumeráveis línguas, não chamava a atenção quando passeava pelos bazares e os palmeirais ou visitava os estábulos de cavalos árabes, nem quando entrava e saia dos templos, pagodes, igrejas e mesquitas, nem quando caminhava pela praia entre as piras funerárias hindus ou dava voltas e mais voltas olhando a maratas, bengaleses, rajputes, persas, sijs, malaios, siameses, javaneses, filipinos, quirquiz, etíopes, parsis, judeus de Bagdad, cingaleses e tibetanos; eles também olhavam para ele se não estavam ocupados em algo, mas sem muita curiosidade, sem especial interesse, sem nenhuma animosidade, em absoluto. Às vezes o olhavam uma segunda vez, inquisitivamente, porque lhes chamavam a atenção seus assombrados olhos claros, que pareciam ter menos cor até em contraste com sua pele bronzeada; às vezes o tomavam por um religioso. Muitas vezes lhe jogavam azeite em cima e, com um sorriso, colocavam em suas mãos cozidos quentes feitos de algum vegetal, fruta ou uma tijela de arroz amarelo; também lhe ofereciam chá com manteiga derretida, seiva de palma fresca e suco de cana-de-açucar. Por fim regressou à casa, antes de que os malletes do mastro maior fossem substituidos, levando sobre os ombros nus uma coroa de flores que um grupo de prostitutas lhe haviam dado como oferenda. Pendurou a coroa no respaldo da cadeira e se sentou a escrever em seu diário.
Esperava encontrar maravilhas em Bombaim, mas as coisas que havia imaginado, baseando-me na leitura das mil e uma noites e livros de viagem e no que havia visto nas cidades moras da África, eram um pálido reflexo da realidade. Encontrei aqui uma civilização que tem avidez pelos bens materiais e se esforça por consegui-los, e esses enormes e animados mercados onde se compra e se vende incessantemente são uma prova evidente. Contudo, não imaginava que o sagrado era onipresente, nem até que ponto outro mundo podia entrelaçar-se com o leigo. A sujeira, o mal cheiro, a enfermidade, a “grande superstição”, como a chamam em minha terra, a repugnante promiscuidade, não afeta esta relação nem tampouco minha visão deste grupo humano que me rodeia. Que agradável é uma cidade na que um homem, conforme o deseje, pode caminhar nu porque tem calor! Hoje, nas escadas de uma igreja portuguesa, estive falando com um religioso hindú que estava nu, um parama-hamsa, um verdadeiro gimnosofista, e lhe expressei minha ideia de que em um clima como este a sabedoria e a roupa são inversamente proporcionais; então ele, midindo minha roupa com sua mão, me disse que eu carecia de sabedoria.
Nunca me senti tão feliz de ter esta facilidade para aprender uma língua, ao menos superficialmente. O uso da gramática de Fort William, o pouco que sei de árabe e, sobretudo, minhas conversações com Allmet e Butoo hão dado fruto. Se fosse surdo, quase seria melhor que fosse cego também, porque, de que vale poder ver um violino se não podem se ouvir suas notas? Essa menina encantadora, Dil, tem me ensinado muitas coisas. Fala incansavelmente, faz comentários e narrações sem parar e, quando não entendo, repete muitas vezes as palavras; está empenhada em que chegue a entendê-la, e as respostas evasivas não a enganam. Mas não creio que o urdu seja sua língua materna, pois quando fala com essa bruxa com quem vive emprega uma língua muito diferente, da que não me parece familiar nenhuma palavra. A velha me ofereceu a menina por doze rupias, assegurando-me que era virgem, e queria mostrar-me o fecho que confirmava seu estado. Isto tinha sido superfluo, já que nada demonstra melhor a virgindade dessa frágil criatura que a ação de que, sem nenhum temor, me veja à cara como se eu fosse um animal doméstico não muito inteligente e compartilhe comigo suas ideias e opiniões no momento em que se formam, como se eu também fosse uma criança. Pode jogar pedras, saltar e trepar como um homem, mas não é uma garcón manqué (menina levada que se interessa por atividades masculinas), porque além de ser comunicativa e afetuosa demonstra ter instinto maternal quando tenta controlar, para o meu bem, o que faço e o que como: desaprova que fume haxixe, que mastigue ópio e que use calças que superem determinado comprimento. Mas também é violenta; na sexta-feira pegou um garoto de olhos bondosos que queria unir-se a nós no palmeiral e amenaçou a seus companheiros com um pedaço de ladrilho, proferindo blasfêmias que lhes fizeram abrir excessivamente os olhos. Come com voracidade, mas, quantas vezes comerá na semana? Tem um grande pedaço de tela de algodão que às vezes usa como uma saia escocesa e outras como xale, uma pedra negra ungida com azeite que venera sem demasiada convicção e a sua virgindade. Quando há comido creio que se sente completamente feliz, apesar de que ainda suspira por conseguir, sem muitas esperanças, uma pulseira de prata. Aqui quase todas as meninas vão carregadas dessas pulseiras, que se ouvem soar quando passam. Que idade tem? Nove? Dez? Sua primeira menstruação não está distante e já tem os peitos um pouco avultados, pobrezinha. Estou tentado de comprarla para que siga sendo como é agora, não uma pessoa assexuada mas que não tem consciência de seu sexo, liberada de si mesma e das ruas e bazares de Bombaim, com sua profunda humanidade e sua sensatez. Mas apenas Josué pode deter o sol. Dentro de um ano ou menos estará em um bordel. Seria melhor uma casa europeia? Seria melhor que fosse uma servente extenuada e isolada? Poderia tê-la comigo como um animal doméstico? Quanto tempo? Deveria lhe dar um dote? É triste pensar que um espírito jovial e vitalista como o seu se arrase, se perca entre a gente comum. Consultarei a Diana; tenho a ligeira impressão de que têm alguma qualidade em comum.
Esta cidade está cheia de homens piedosos, mas também moram nela os pecadores. Hei visto cadáveres de pessoas que morreram de fome, espancadas, apunhaladas ou estranguladas; como já se sabe, em uma cidade mercantil, o que é mal para uma pessoa é bom para outra. Contudo, este materialismo, que em Dublín ou Barcelona não provocaria nenhum comentário, escandaliza ao estrangeiro em Bombaim. Estava sentado junto às torres do silêncio, no promontório Malabar, observando os abutres (que espectáculo! Havia levado a luneta de Jack, mas não me fez falta; todos os pássaros eram muito dóceis, inclusive o alimoche de bico amarelo, que, segundo o senhor Norton, é muito raro encontrar ao oeste de Hyderabad) e recolhendo ossos com anomalías quando Khowasjee, um mercader parsi que oferecia serviços funerários, com um chapéu cor ameixa, falou comigo. Como eu vinha de visitar ao senhor Stanhope, vestia como um europeu, assim que me perguntou em inglês que se eu não sabia que estava proibido pegar os ossos. Respondi que ignorava os costumes de seu país, mas cria que os corpos dos mortos eram expostos sobre essas torres para serem devorados, de uma vez ou pouco a pouco, pelos abutres, e portanto, se convertiam em bonus nullius. Disse a ele que se existia a propiedade sobre a carne, havia que atribui-la aos abutres, os quais, como era justo, me davam direito a pegar aquele fémur e aquele hiodes curiosamente torcido; mas lhe assegurei que não queria ofender a nenhum homem, que me contentava em contemplar os despojos e não ia levá-los, pois não era um profanador de tumbas nem um comerciante, mas um filósofo. Ele me disse que também era um filósofo, que cultivava a filosofia dos números, e que se eu desejasse, ele diria a raiz cúbica de qualquer cifra que eu escolhesse. Seus cálculos eram assombrosos e as respostas chegavam enquanto terminava de escrever as cifras na terra com uma costela. Estava encantado, e haveria continuado eternamente se eu não tivesse mencionado os bastões de Neper, as tábuas de Gunter, a matemática aplicada à navegação, as medições lunares e as indispensáveis cartas marítimas. Mas havia saido de meu terreno e não podia descreve-las satisfatoriamente, por isso me propus levá-lo à fragata, e apesar sentir um evidente temor, sua curiosidade foi mais forte. As atenções e também os instrumentos o agradaram muito, e ao voltar à terra me convidou para tomar chá em seu escritório (é um mercador de considerável fortuna) e ali, a meu pedido, fez um suscinto relato de sua vida. Fiquei decepcionado, embora não surpreso, ao descobrir que era um tipo satisfeito de si mesmo, pragmático e materialista. Não sei muito de matemática nem de leis, mas nos poucos matemáticos e advogados que conheço me pareceu observar essa insensibilidade, que é proporcional a sua brilhantez; possivelmente se sentem satisfeitos com um mundo limitado e, no caso dos advogados, quase totalmente artificial. Se é assim ou não, este homem há convertido seu antigo credo cheio de benevolência em um árido sistema de exercícios mecânicos: dedicar uma série de horas a cerimônias preceptivas, separar uma parte dos ingressos reconhecidos para ajudar às almas (não creio que isto seja caridade), expressar seu ódio pelos khadmees, contrários à sua seita, e também pelos shenshahees, embora não devido a uma questão doutrinal mas à fixação da data de sua origem. Me deu a impressão de estar no meio dessa disputa. Não me parece um típico parsi exceto por seu enorme interesse pelos negócios e sua dedicação. Entre outras coisas, é um segurador, um segurador marítimo, e me contou que os prêmios dos seguros hão subido desde que a esquadra do almirante Linois começou a fazer certos movimentos, ou ao menos correu o rumor de que os fazia, e esses preparativos não apenas alarmaram à Companhia mas a todos os barcos do país; os prêmios são mais altos agora que nos tempos de Suffren. Sua família tem inumeráveis negócios, ocupa-se do comércio do bórax tibetano, a noz moscada de Bencoolen e as pérolas de Tuticorin, que eu lembre. Tem um primo cuja banca está estreitamente relacionada com os comissários para os assuntos das antigas possessões francesas. Poderia ter me contado muitas coisas sobre eles, se não tivesse sido por seu sentido da prudência; apesar de tudo, falou-me bastante de Richard Canning, por quem sente grande respeito e estima. Falou-me poucas coisas que já não soubesse e me confirmou que eles tinham previsto regressar no dia dezessete.
Não pôde dizer-me nada acerca da cerimônia hindu que terá lugar à orla da bahia na próxima lua nova; não lhe interessava nem a conhecia. Terei que pedir informação a Dil outra vez, embora suas ideias religiosas procedam de diferentes doutrinas e isto lhe cria confusão. Afirma que Deus não será piedoso com o homem que, por vaidade, usa calças largas (uma ideia da religião mussulmana) e, por outro lado, está convencida de que sou um homem urso, um urso que pertenece a outro lugar e que perdeu sua forma original, um torpe demônio rústico que se há extraviado na cidade, e crê que posso voar se quiser, mas que não poderia fazê-lo bem nem na direção adequada; esta ideia ela deve ter tomado dos tibetanos. Contudo, tem razão ao pensar que necessito ser guiado por alguém.
O dia dezessete. Se os cálculos de Jack estão exatos, e nestas questões nunca o vi equivocar-se, me restam três semanas livres antes que a fragata esteja preparada. Agora estou impaciente para que regressem, embora temia um pouco esse momento quando desembarcamos. Este tempo foi um maravilhoso interlúdio, que enriqueceu a minha vida...
— Ah, estás aí, Stephen! — exclamou Jack —. Por fim voltou!
— Sim — disse Stephen com um olhar afetuoso, pois apreciava muito que Jack lhe dissesse esse tipo de frases — Tu também, e mais cedo que de costume. Pareces perturbado. Está incomodado com o calor? Tire algo de tua esplêndida vestimenta.
— Não, não me afeta mais que outras vezes — respondeu Jack, tirando o sabre —, embora faça um calor horrível, úmido e pegajoso. Não. Hei passado por aqui por acaso... Tive que ir comer na casa do almirante, sabes?, e ali me enterei de algo que me deixou gelado e em seguida pensei que devia diser-lhe: Diana Villiers está aqui, e esse tipo, Canning, também. Juro que me gostaria que a fragata estivesse lista para fazer-se ao mar. Não poderia suportar o encontro. Não te surpreende, não te impressiona?
— Não. Sinceramente, não. E de minha parte, espero com ansia esse encontro. Mas não estão em Bombaim, regressarão no dia dezessete.
— Sabias que ela estava aqui? — gritou Jack.
Stephen assentiu com a cabeça.
— És uma pessoa muito fechada, Stephen — disse Jack, desviando a vista.
Stephen encolheu os ombros.
— Sim, temo que sim — disse —. Tenho que sê-lo, sabes? por isso estou vivo. E a mente se acostuma..., mas te peço desculpas por não haver sido franco contigo, como devia. Contudo, este é um assunto delicado.
Houve um tempo em que ambos eram rivais, e Jack se sentia tão atraído por Diana que a situação chegou a ser muito perigosa. Por causa dela, Jack esteve a ponto de arruinar sua carreira e seu compromiso com Sophie, e agora, ao olhar para trás, lamentava profundamente, tanto como havia sofrido por sua infidelidade, apesar de que ela não estava obrigada a ser-lhe fiel. De certo modo, a odiava. A considerava malvada e perigosa e temia encontrar-se com ela..., temia mais por Stephen que por ele.
— Não, não, meu amigo, não tens que pedir-me desculpas — disse, sacudindo-lhe pelo braço —. Fazes bem. Refiro-me a tu guardares os segredos.
Após uma pausa, Stephen comentou:
— Mas me surpreende que não hajas ouvido falar deles nem na Inglaterra nem aqui. A mim me hão entretido com histórias sobre sua cohabitação ilícita cada vez que hei ido jantar ou tomar o chá na casa de um europeu ou quando me hei encontrado casualmente com algum.
Assim era. A chegada de Canning e Diana Villiers havia sido uma benção do céu para Bombaim, pois na tediosa cidade apenas se falava da fome de Gujarat e de uma possível guerra marata. Canning ocupava um posto oficial importante, tinha um grande poder dentro da Companhia e vivia com esplendor. Era um homem ativo e desenvolto, preparado e até mesmo desejoso de responder a qualquer desafio, e deixou claro que esperava que seu amancebamento fosse aceito. Os altos oficiais que conheciam o pai de Diana e os que tinham concubinas indianas não representaram nenhuma dificuldade, nem tampouco os solteiros, mas as esposas européias eram mais difíceis de convencer. Poucas delas estavam em condições de atirar a primeira pedra, mas a hipocrisia nunca faltou na classe média inglesa, em nenhuma latitude, assim que, com grande satisfação e desembaraço tiraram muitas, desde pequenos seixo a grandes rochas, limitadas em tamanho apenas pelo medo de que seus maridos não consiguissem o ascenso. A benevolência e a discrição nunca estiveram entre as virtudes da senhora Villiers, e se o que queriam eram motivos para fofocar, ela os deu aos montes. Canning passava muito tempo nas possessões francesas e em Goa, e durante sua ausência as respeitáveis senhoras mantinham seus telescópios enfocados para a casa de Diana. Com grande afetação elas lamentaram a morte do senhor James, do 87° regimento de infantaria, morto pelas mãos do capitão Macfarlane, e também pela ferida que havia recebido de um membro do Conselho e por outros altercados de menor importância, e falavam de todos estes incidentes como se fossem sacrilégio, enquanto que muitas outras peleas que ocorriam naquela comunidade libertina, superalimentada e sufocada se passavam por alto por serem consideradas simples debilidades, consequência natural do calor. O senhor Canning era muito ciumento e recebia cartas anônimas que lhe davam conta dos visitantes de Diana, reais e imaginários.
— Senhor, senhor! — gritou Babbington da galeria.
Jack respondeu com seu vozeirão:
— Estou aqui!
A escada tremeu. A porta se abriu de repente e o sorriso de Babbington apareceu na escuridão, mas se desvaneceu quando viu a expressão mal-humorada do capitão.
— Que fazes em terra, Babbington? Com dois pares de amantilhos ainda quebrados e baixas a terra?
— Bom, senhor, é que o kolipar do governador trouxe o correio e pensei que gostaria vê-lo em seguida.
— Sim, tens razão — disse Jack, enquanto a escura habitação se iluminava.
Pegou a saca e foi apressadamente ao outro cômodo. Ao cabo de uns momentos voltou com um pacote de cartas para Stephen e depois desapareceu outra vez.
— Bem, senhor, não o farei perder mais tempo — disse Babbington.
— Nem tampouco a essa fulana — disse Stephen, olhando pela janela.
— Oh, não, senhor, não é uma fulana! — exclamou Babbington —. É a filha de um clérigo.
— Então, por que sempre estás pedindo emprestadas importantes somas de dinheiro a certa pessoa do barco, a única que é bastante fraca para dar-lhe? Dois pagodas na semana passada e quatro rupias e seis paisas na semana anterior.
— É que ela deixa a seus amigos..., a seu amigo, ajudá-la a pagar o aluguel..., se atrasou um pouco no pagamento. Quando baixo a terra, que é em raríssimas ocasiões, me alojo em sua casa, sabe? Verdadeiramente, senhor, o senhor foi muito bom comigo.
— Ah, te alojas ali! Bem, permita-me que te diga algo, senhor Babbington: estas coisas podem ser perjudiciais a longo prazo. Além disso, os clérigos não são sempre o que parecem. Tu te recordas do que disse sobre esses tumores chamados gomas e a terceira geração? Nos bazares podes ver muitos exemplos disso. Gostarias de ter um neto raquítico que gaguejasse e que antes dos doze anos estivesse calvo, desdentado e decrépito? Por favor, tens cuidado. Qualquer mulher é uma fonte de perigos para um marinheiro.
— Oh, sim, senhor, o terei! — exclamou Babbington, olhando dissimuladamente através da persiana —. Ah, senhor! Sabe que me há passado algo absurdo? Hei baixado do barco sem dinheiro nos bolsos.
Stephen o olhou descer estrepitosamente as escadas, suspirou e voltou a suas cartas.
Sir Joseph se ocupava quase unicamente dos insetos, de uma classe ou de outra. Dizia que lhe agradeceria muitíssimo que se recordasse dele caso encontrasse algum bupréstido. Mas em um enigmático pós-escrito lhe dava a chave para entender a carta de Waring, que embora parecia referir-se a um grupo de conhecidos estúpidos, brigões e polemistas, de fato, lhe davam uma visão geral da situação política: em Catalunha os serviços secretos militares apostavam no cavalo perdedor, como de costume, e em Lisboa, através da embaixada, se mantinham conversações com outro duvidoso representante da resistência. Existia o perigo de um cisma no movimento e estavam ansiosos por sua volta.
Uma notícia de seu agente de negócios: a senhora Canning preparava um viagem à Índia para enfrentar-se com seu esposo. Os Mocatta haviam averiguado que ele estaria em Calcutá antes das chuvas e ela embarcaria no Warren Hastings rumo a esse desagradável porto.
Por esquecimento de Sophie, três de suas cartas estavam datadas apenas com o dia da semana, e Stephen as leu na ordem incorreta. Sua primeira impressão foi que a ordem cronológica estava completamente alterada: Cecilia estava esperando um filho (“Quanto desejo ser tia!”) sem haver perdido sua virgindade e sem receber as críticas de seus amigos; Frances vivia na desolada costa de Lough Erne e tremia de frio em companhia de uma tal lady F. Esperando o regresso de um tal sir O. Uma segunda leitura aclarou as coisas: as duas irmãs mais novas de Sophie haviam se casado, Cecilia com um jovem oficial do exército e Frances, copiando a sua irmã, com um primo deste, muito mais velho, propietário de terras no Ulster e, além disso, representante do condado de Antrim em Westminster. Devido a isto último, Frances vivia com a mãe dele, já anciã, em Floodesville, brindando com vinho de bagas de sabugueiro pela perdição do Papa duas vezes ao dia. Sophie estava exultante de alegria ante a felicidade de suas duas irmãs (ao menos a Cecilia estava encantava com o matrimônio, o achava mais divertido do que cria, embora estavam alojados provisoriamente em Gosport e ali permaneceriam até que sir Oliver fosse induzido a fazer algo por seu primo) e fazia uma descrição detalhada das bodas que, com um tempo esplêndido, haviam sido celebradas de forma impecável pelo senhor Hincksey, o vigário de sua própria paróquia, tão estimado por elas. Mas as cartas não eram alegres, não eram as cartas que ele gostaria de ler.
Uma terceira leitura o convenceu de que o matrimônio de Cecilia havia sido bastante apressado. A senhora Williams se havia visto obrigada a render-se em todas as frentes porque o jovem e determinado oficial havia destruido sua cidadela. Não obstante, havia sabido manejar a sir Oliver Floode, um homem endinheirado e um insosso. Essa terceira leitura também confirmou sua impressão de que a vitória frente ao advogado do senhor Oliver e a excitação pelas bodas haviam levantado o ânimo da senhora Williams, mas agora sua saúde estava outra vez deteriorada e se queixava de sua solidão. Posto que ela e Sophie haviam ficado sozinhas, havia reduzido o número de serventes, havia fechado a ala da casa onde estava a torre e havia deixado de convidar a suas amizades; quase seu único visitante era o senhor Hincksey que, geralmente, ia vê-las um dia sim, um dia não e ceiava com elas quando sustituia o senhor Fellows.
Agora que não tinha nada mais em que ocupar sua mente, havia começado a acossar Sophie de novo, falando com fluidez quando se sentia bem e entre ofegos quando se via obrigada a ficar na cama. “E o estranho é que, apesar de que ouço seu nome tão a miúde, o senhor Hincksey é um verdadeiro consolo para mim. É um homem afável, e também um bom homem, como estava certa que seria, porque tu o havias recomendado. Tem uma grande opinião do "bondoso e generoso doutor Maturin", e seguro que enrubecerias se nos ouvisses falar de ti, coisa que fazemos muito frequentemente. Nunca menciona seus sentimentos nem me incomoda, e é muito amável com mamãe, mesmo quando não é muito discreta. Sabe pregar muito bem, sem entusiasmo nem palavras duras nem o que poderia chamar-se eloquência, e é um prazer ouvi-lo, até quando fala do dever, o que ocorre muito a miúde. E, verdadeiramente, faz o que prega, porque é um filho muito obediente. Isso me faz sentir culpada e envergonhada. Sua mãe...” a Stephen não interessava a anciã senhora Hincksey, que segundo ela era encantadora, muito doce e amável, mas completamente surda. Stephen pensou: “Céu, essa mulher pode ouvir quando quer. Aproveita-se sem escrúpulos dessas coisas, e de seus grisalhos também.” Saltou a parte que lhe preocupavas mais. Sophie achava muito estranho que Jack não lhe tivesse escrito. “Vamos, menina tonta, não vês que um barco de guerra é mais veloz até mesmo que o mais rápido barco correio?” Estava segura de que Jack nunca, nunca faria nada mal de propósito, mas até os melhores homens eram distraídos e esquecidos às vezes, sobretudo quando tinham muito o que fazer, como ocorria ao capitão de um barco de guerra; além disso, segundo o conhecido ditado, a distância e o mar apagam os sentimentos. Nada era mais normal que um homem se cansasse de uma ignorante provinciana como ela e que mesmo os mais ardentes sentimentos se apagassem em um homem que tinha muitas outras coisas em que pensar e tão grandes responsabilidades. Ela não queria ser um estorvo para Jack nem para sua carreira (lord Saint Vincent estava totalmente em oposição ao matrimônio) nem em nenhuma outra coisa. Provavelmente ele teria amigas na Índia, e ela se sentiria muito mal se, por sua causa, ele se considerava atado ou retido.
“O catalizador de tudo isto foi o General — pensou Stephen, comparando a letra da carta com a de outras anteriores —. Há escrito depressa, com certa agitação. A ortografia é muito inferior à habitual.” Sophie o considerou um incidente sem importância, mas seu tom alegre era forçado e pouco convincente: o General Aubrey, a madrastra de Jack (jovem alegre e vulgar, até fazia muito pouco uma leiteira) e seu pequeno filho haviam ido a Mapes. E por sorte a senhora Williams estava então em Canterbury com a senhora Hincksey. Sophie lhes ofereceu a melhor comida que pôde, acompanhada, desgraçadamente, por várias garrafas de vinho. O General Aubrey pertencia a outro grupo social, um grupo no que não havia influido no Iluminismo nem no desenvolvimento da burguesia e que havia desaparecido dos condados próximos a Londres antes de que ela nascesse, um grupo ao que sua respeitável família, urbana e de classe média, não havia pertencido nunca. Sophie havia sido criada em uma casa muito séria, onde não havia nenhum homem, e não sabia como interpretar suas galanterias nem o modo como elogiou o gosto de Jack (Cecilia teria se sentido mais cômoda com ele) nem o comentário de que Jack era e sempre havia sido um tipo descuidado, mas que ela não tinha que dar importância a essas coisas, pois a mãe de Jack não havia dado. E a isto havia adicionado que estava seguro de que ela não daria importância a meia dúzia de filhos naturais.
O General Aubrey não era um sem-vergonha; era amável e educado, mas tinha a rudeza própria do meio rural. Contudo, tinha a cabeça cheia e era impulsivo, e quando estava nervoso (Sophie se assombrava do eloquente que podia ser um homem de quase setenta anos) e bebido pensava que precisava ficar falando o tempo todo. A Sophie lhe resultavam sumamente desagradáveis suas brincadeiras grosseiras e atrevidas, suas engraçadas baixarias, sua falta de princípios e sua defesa da vida dissoluta e libertina, e lhe parecia uma grosseira caricatura de seu filho. Seu único consolo era que o General e sua mãe não se encontrarm e que esta não conheceu à segunda senhora Aubrey.
Sophie recordava a voz forte e clara do General, tão parecida com a de seu filho, quando lhe havia gritado da ponta da grande mesa que Jack não tinha “nem um groat de que dispor” nem nunca o teria e que todos os Aubrey eram “desgraçados nas questões de dinheiro”, por isso tinham que ser “afortunados no matrimônio”. Recordava a demorada pausa depois da comida, durante a qual o menino fazia furos na proteção da chaminé, e quanto desejava que o General terminasse rápido a garrafa para poder passar à salinha, tomar o chá e conseguir que se fosse antes de que sua mãe voltasse, que a essa hora já deveria haver chegado. Recordava como entre ela e a senhora Aubrey, que ria sem parar, lhe haviam levado até a carruagem. Uma despedida interminável... O General contou uma demorada anedota daquela vez que havia ido à caça da rapoza e havia se perdido, enquanto o menino arruinava os maciços de flores gritando como uma coruja. E dez minutos depois, quando ainda tinha os nervos destroçados, o regresso de sua mãe, a sena, os gritos, as lágrimas, o desmaio, a cama, a extrema palidez, as censuras.
— Stephen. Desculpe, Stephen, não te hei interrompido, verdade? — perguntou Jack, que havia saido de seu quarto com uma carta na mão —. Aqui há algo muito estranho. Sophie me há escrito uma condenada enfiada de disparates. Não posso mostrar-te a carta porque tem algumas coisas muito íntimas, já me entendes, mas diz, em resumo, que se quero ser livre, ela o aceitará com agrado. Deus Bendito! Livre para que? Maldita seja! Estamos prometidos, não? Se qualquer outra mulher sobre a terra o dissesse creria que outro homen a está rondando. Que quererá dizer com isso? Entendes algo?
— Talvez alguém tenha inventado uma história..., talvez alguém lhe tenha dito que vinhas à Índia para ver Diana Villiers — respondeu Stephen, tratando de ocultar a cara, envergonhado, porque aquela era um clara tentativa de mantê-lo afastado, por sua própria conveniência..., ao menos em parte por sua própria conveniência, e posto que não era sincero com Jack como o havia sido até agora, sentia uma imensa raiva que, contudo, não o impediu de seguir adiante —. Ou que ias encontrar-se com ela aqui.
— Ela sabia que Diana estava em Bombaim? — perguntou Jack.
— Claro que sim, isso era do domínio público na Inglaterra.
— Então a mamãe Williams o sabia?
Stephen assentiu com a cabeça.
— Ah, essa é a autêntica Sophie! — exclamou Jack, com um radiante sorriso —. Crês que se pode dizer algo mais nobre? Has visto a alguém com mais humildade? Como se a gente pudesse encarar a Diana depois de... Contudo — olhou a Stephen com ar envergonhado —, não é minha intenção dizer nada incorreto nem descortês. Já vês, Stephen, em toda a carta não há nenhuma censura nenhuma palavra dura. Meu Deus, quanto a quero! — Seus brilhantes olhos azuis se encheram de lágrimas e algumas escaparam e ele as secou com a manga —. Nem o menor indício de que a tratam mal, embora sei muito bem o tipo de vida que leva ao lado dessa mulher, que lhe enche a cabeça de histórias falsas. Uma vida horrível, e o fato de que Cecilia e Frances se hajam ido (se hão casado, sabes?) a faz ainda pior. Meu Deus, farei tudo o que possa para que o barco esteja armado o quanto antes! Desejo com veemência regressar ao Atlântico ou o Mediterrâneo; nestas águas um homem não pode encontrar nenhuma forma de distinguir-se, longe disso, de fazer-se rico. Se ao menos hovéssemos capturado uma presa importante próximo de Ile de France, lhe escribiria pidiéndole que fosse a Madeira e seguro que... Umas centenas de libras bastariam para comprar-nos uma bonita casa de campo. Quanto eu gostaria ter uma bela casa de campo, Stephen! Com batatas, jardins e outras coisas.
— Sinceramente, não sei por que não lhe escreves, com presa ou sem ela. Tens seu soldo ao menos.
— Oh, não! Isso não estaria bem, sabes? Hei saldado quase todas minhas dívidas, mas ainda faltam umas duas mil libras. Não seria honrado pagá-las com seu dinheiro. Além disso, apenas poderia ofrecer-lhe sete chelines ao dia.
— Pretendes ensinar-me a diferença que há entre uma conduta honrada e uma não honrada?
— Não, não, certamente que não. Por favor, não te enfades comigo, Stephen. Hei voltado a expressar-me mal. O que quero dizer é que isso não seria correto da minha parte, comprendes? Não poderia suportar que a senhora Williams me chamasse de caça-dotes. Na Irlanda é diferente, eu sei... Maldita seja, hei voltado a meter a pata! Não hei querido dizer que tu eras um caça-dotes, mas em teu país veis as coisas diferentes. Autre pays, autre merde. Em qualquer caso, ela há jurado que não se casará sem o consentimento de sua mãe, e isso é uma barreira.
— Nem fale, meu amigo. Se Sophie vai a Madeira, a senhora Williams terá que dar seu consentimento ou suportar os jocosos comentários de seus vizinhos. Acredito que se viu obrigada a fazer o mesmo no caso de Cecilia.
— Não seria esse um comportamento jesuítico, Stephen? — perguntou Jack, olhando o seu rosto.
— De nenhuma maneira. A negação de um consentimento sem motivos razoáveis justifica que seja obtido pela força. A felicidade de Sophie e a tua me preocupam mais do que a senhora Williams veja satisfeita sua avareza. Deves escrever essa carta, Jack. Tens que pensar que Sophie é a mulher mais bela do mundo, enquanto que tu, embora tens certo encanto como marinheiro, és um pouco mais velho e o serás mais ainda, és excessivamente gordo e o serás mais ainda..., chegarás a ser obeso. — Jack olhou sua barriga e sacudiu a cabeça —. Tens horríveis feridas e cicatrices e te falta uma orelha; meu amigo, não és nenhum Adonis. — Pôs uma mão no joelho de Jack —. Não se ofenda porque te digo que não és um Adonis.
— Nunca pensei que fosse — disse Jack.
— Nem tampouco porque te diga que não és nenhum lince, que careces de uma notável inteligência que possa compensar tua falta de graça e encanto, de juventude e de riquezas.
— Nunca tentei me passar por esperto — disse Jack —, embora às vezes eu tenha boas ideias, com tempo.
— Sophie, repito, é uma autêntica beleza, e há muitos Adonis, Adonis inteligentes e ricos, na Inglaterra. Além disso, leva uma vida horrível. Suas duas irmãs menores são casadas, e já sabes a importância que tem o matrimônio para uma mulher jovem, pois lhe serve para subir de posição social, de escape, de certificação de que não há fracassado, e garante por completo sua subsistência. Tu estás muito distante, a dez mil milhas ou mais; em qualquer momento podes ficar ferido e a maioria das vezes não te separas da tumba mais que um tabuão de duas polegadas de grossura. Tu te afastas a metade do mundo dela e de Diana apenas meia milha. Ela sabe pouco ou nada do mundo, pouco ou nada dos homens, à parte do que a sua mãe lhe conta, que seguramente não será muito bom. E além disso, tem um grande sentido do dever. Portanto, embora os sentimentos de Sophie sejam muito puros, mais que os de qualquer outra jovem, ela é um ser humano e a afetam as considerações humanas. Não digo que por agora as analise friamente, mas essas considerações existem, e também pressões muito fortes. Deves escrever essa carta, Jack. Pega pluma e tinta.
Jack o olhou durante alguns momentos com uma expressão séria e preocupada, depois se pôs de pé, deu um suspiro e encolheu a barriga.
— Tenho que ir ao estaleiro — disse —. Vamos erguer o novo cabrestante esta tarde. Obrigado pelo que me disse, Stephen.
Foi Stephen quem escreveu em seu diário:
“Tenho que ir ao estaleiro. Vamos erguer o novo cabrestante esta tarde”, disse. Se na habitação tivesse havido fumaça de pólvora, prova tangível de que um inimigo estava próximo, não haveria duvidado nem ficaria parado com o olhar fixo, haveria tomado uma decisão e haveria atuado em seguida, segundo um plano inteligente. Mas agora está paralizado. Parece-me odioso que lhe haja falado com essa libertade, porque o fiz para lograr ocultar minha vergonha; foi algo muito cruel e desonesto de minha parte. No instante que transcorreu desde que me perguntou se entendia algo até que respondi, o diabo me disse: “Se Aubrey está realmente enfadado da senhorita Williams, voltará junto a Diana outra vez. E já o senhor Canning me há posto difíceis as coisas.” Caí em seguida. Contudo, quase me convenci de que as palavras que seguiram eram as mesmas que haveria pronunciado um homem honesto, as que haveria pronunciado eu mesmo se não tinha existido este vínculo. Não posso chamar-lhe união, porque a união implica uma atração mútua, e apenas tenho provas de que esta existe por minha falível intuição. Desejo veementemente que chegue o dia dezessete. Estou começando a matar o tempo, como se fosse um jovem ardente. Com a cerimônia da praia talvez possa matar seis inocentes horas.
A cerimônia se celebrava à orla da baía Negra, desde o promontório Malabar até o forte, e a ampla zona coberta de grama que estava na frente do forte, formando uma espécie de parque, era o melhor lugar para contemplar os preparativos. Como todas as cerimônias hindus que havia visto, esta parecia preparar-se com profundo entusiasmo, grande alegria e absoluta falta de organização. Já havia vários grupos na praia, e seus principais representantes estavam metidos no mar até a cintura e atiravam flores à água. Parecia que a maioria dos habitantes de Bombaim havia se reunido ali sobre a grama; vestiam seus melhores trajes, riam, cantavam, tocavam os tambores, comiam doces e pires de comida que sacavam de umas barracas, e de vez em quando formavam uma procissão irregular e cantavam um hino com voz forte e estridente. Um grande calor, infinita variedade de odores e cores, o rouco som das conchas de caramujo, o toque dos trompetes, da multidão de pessoas; elefantes que passeavam entre a gente levando sobre o lombo torres abarrotadas, carros de bois, centenas e centenas de palanquins, jinetes, vacas sagradas, carruagens européias...
Uma mão quente pegou a sua, e ao descer os olhos Stephen viu a Dil, que lhe sorria.
— Está vestido de uma forma muito estranha, Stephen — disse —. Quase te havia tomado por um topi-wallah. Tenho uma fonte cheia de pondoo, vamos comê-lo antes que se derrame. Cuidado não te manches sua bonita túnica com os excrementos..., é excessivamente longa sua túnica.
Conduziu-o pela pisoteada grama até a esplanada por onde se subia ao forte e se sentaram em um lugar vazio que puderam encontrar.
— Ponha a cabeça para frente — disse Dil, e desenbrulhou a transbordante fonte e a pôs entre os dois —. Não, não, para frente, mais para frente. Não vê que está melando a camisa? Deveria ter vergonha. Onde te ensinaram? Que mãe te trouxe ao mundo? Adiante.
Desesperada por fazerle comer como um ser humano, se pôs de pé, limpou-lhe a camisa com a língua e dobrou suas pernas morenas e flexíveis até ficar agachada.
— Abre a boca — disse, e com mão esperta moldou o pondoo em pequenas bolas e começou a dá-las —. Fecha a boca, Stephen. Engula. Abre. Assim, marajá. Outra. Assim, meu jardim de rouxinóis. Abre. Fecha. — Stephen sentia passar por seu interior a massa doce, arenosa e gordurenta, enquanto a voz de Dil subia e baixava de tom —. Não saber comer muito melhor que um urso. Engula. Agora para e arrota. Não saber arrotar? Assim. Eu posso arrotar sempre que quero. Arrota duas vezes. Veja, veja, os chefes maratas! — Era um esplêndido grupo de ginetes vestidos de cor carmesim, com os turbantes e as sudaderos de renda dourada —. Esse do meio é o peshwa, e aí está o rajá de Bhonsli. Har, har mahadeo! Outra bola e se acabou. Abre. Ter quinze dentes cima e um menos abaixo. Aí há um carro europeu cheio de “fraceses”. Uf! Sinto seu cheiro daqui, é mais forte que o dos camelos. Nota-se que comem vaca e porco. Pobre Stephen, não comer com os dedos com mais habilidade que um urso ou um “francês”! Não ser às vezes como um “francês”?
Ela fez a pergunta olhando-o fixamente, com grande curiosidade, mas, antes que ele pudesse responder-lhe, ela já havia desviado a vista para uma fila de elefantes com assento. Iam tão cobertos de gualdrapas, oropéis e pintura que por debaixo apenas dava para ver os pés deslizando entre o pó e por diante apenas a tromba, em contínuo movimento, e as presas adornadas com fitas douradas e prateadas.
— Cantarei para ti o hino marwari dedicado a Krishna — anunciou Dil, e começou a entonar um canto lúgubre com sua voz nasal, enquanto cortava o ar com a mão direita.
Outro elefante passou em frente a eles, e no assento levava um pau com um galhardete ondeando ao vento no qual se lia: Revenge. A maioria dos gavieiros de estibordo desse navio estavam ali, apertados uns contra os outros, formando uma massa compacta, enquanto que seus companheiros de bombordo corriam detrás gritando que também tinham direito, que já estava bom. Outro elefante em concorrência com aquele, da Goliah, quase oculto por uma massa de alegres marinheiros vestidos com a roupa de descer a terra e chapéus de palha com fitas. Em um camelo ia o senhor Smith, um oficial baixinho e de cabeça redonda (o típico oficial ativo, esmerado e bebedor de porto) que havia sido companheiro de tripulação de Stephen na Lively e agora era segundo a bordo da Goliah; estava sentado tranquilamente com as pernas dobradas sobre o pescoço do animal como se estivesse acostumado desde o berço. Passou agilmente entre o elefante e a ladeira, a uns quinze pés de distância de Stephen, mas com a cara a sua altura. Os homens da Goliab lançaram gritos de cumprimento ao senhor Smith enquanto agitavam garrafas no ar, e este lhes devolveu ou cumprimento. Podia verse como abria e fechava a boca, mas não podia se ouvir nada com todo aquele ruído. Dil seguia cantando, hipnotizada por seu monótono canto e a ladainha de palavras.
Cada vez apareciam mais europeus e muitíssimos mais hindus, pois já estava próximo o clímax. A praia estava quase coberta por figuras de pele morena e trajes brancos, e o som das trompas afogava o ruído do mar; na zona coberta de grama os grupos eram cada vez mais numerosos e os carros avançavam ao ritmo dos pedestres, se é que avançavam um pouco. Aumentava o pó, o calor, a alegria; e por cima daquela massa em atividade, no céu limpo, os falcões e os abutres voavam descrevendo círculos, elevando-se cada vez mais até desaparecer no alto do céu. Dil seguia cantando. Stephen afastou os olhos dos abutres e o resplendor, ao baixá-los pousou-os casualmente no rosto de Diana. Ela ia em uma carruagem aberta com três oficiais, sob a sombra de duas sombrinhas de cor de damasco, e estava inclinada para a frente, muito interessada em ver o que lhes havia detido. Justo diante da carruagem, dois carros de bois tinham as rodas enganchadas entre si; os condutores se gritavam enquanto os bois, com os olhos fechados, permaneciam com os jugos apoiados um contra o outro, e detrás dos postigos das janelas, encerradas para que os homens não pudessem vê-las, as mulheres protestavam, pediam conselho ou davam ordens. Com uma interminável procissão de gente pelo lado direito e a encosta pelo esquerdo, era evidente que a carruagem aberta teria que esperar que desenganchassem os carros. Ela se levantou e se virou para um lado e para o outro, com um movimento que Stephen havia esquecido, mas que conhecia tão bem como as batidas de seu coração. Os serventes que estavam detrás segurando as sombrinhas as afastaram e se agacharam para que ela visse melhor, mas a multidão não se retirou. Então voltou a sentar-se, dizendo algo ao homem que estava de frente para ela e ele começou a rir. A sombra de cor de damasco voltou a cubrir-lhes.
Estava mais bonita, se isso era possível, que a última vez que a havia visto. Embora estivesse bastante distante, notava-se que aquele clima (o clima em que quase se havia criado e que havia posto amarelada a pele de tantos ingleses) a havia favorecido, pois sua tez tinha um rosado que nunca lhe havia visto na Inglaterra. E seus movimentos continuavam sendo perfeitos, como ele os recordava; em seu sinuoso giro não havia nada estudado, nada que pudesse afetar seu juizo sobre ela.
— Que te passa? — perguntou Dil, levantando a vista para ele.
— Nada — respondeu Stephen, olhando fixamente para frente.
— Estar enfermo? — perguntou ela, e se pôs de pé e lhe pôs as mãos no coração.
— Não — respondeu Stephen, e lhe sorriu enquanto sacudia a cabeça com uma expressão muito tranquila.
Ela se agachou, sem deixar de olhá-lo. Nesse momento Diana olhava ao seu redor, respondendo com um sorriso mecânico a um comentário de seu vizinho de assento. Começou a percorrer a encosta com a vista, passou por cima de Stephen e, de repente, voltou para ver-lhe outra vez e ficou olhando-o fixamente, primeiro cheia de dúvida, depois com grande assombro; e então a alegria se desenhou em seu rosto, que ruborizou e pouco depois empalideceu. Abriu a portinhola e saltou ao solo, deixando a todos surpreendidos.
Subiu correndo pela encosta. Stephen se levantou e, pisoteando a Dil, pegou suas mãos estendidas.
— Stephen, que surpresa! — exclamou —. Stephen, que contente estou de ver-te!
— Também eu estou muito contente, minha amiga — disse, rindo como um menino.
— Mas, pelo amor de Deus, como chegou até aqui?
Por mar, por barco..., da forma normal..., breves explicações interrompidas uma e outra vez por frases de assombro..., dez mil milhas..., comentários sobre a saúde, a aparência..., olhares atrevidos, sorrisos, troca de frases corteses: “Como estás moreno!”, “Tens a pele mais branca que quando te vi pela última vez!”.
— Stephen — Dil murmurou.
— Quem é sua encantadora companheira? — perguntou Diana.
— Permita-me que te presente a Dil, uma grande amiga e minha guia.
— Stephen, diga à mulher que tire o pé de meu khatta — disse Dil, com um olhar frio.
— Oh, minha filha, peço que me perdoes! — suplicou Diana, agachando-se e sacudindo o pó dos farrapos de Dil —. Oh, quanto o sinto! Mas se tiver estragado, te darei um sari de seda de Gholkand com fios de ouro duplos.
Dil olhou o pedaço pisoteado e disse:
— Pode passar assim. Olhe, tu não cheirar como uma “francês”.
Diana sorriu e agitou seu lenço na frente da menina para espalhar o cheiro da essência de Oudh.
— Fique com ele, te peço, Dil-gudaz. Fique com ele, coração, e sonhe com a deusa Siva.
Dil voltou a cabeça e em seu rosto se notava claramente o conflito entre o agradável e o desagradável. Por fim venceu o agradável; Dil pegou o lenço fazendo uma graciosa reverência e, depois de agradecer a begum lala, aspirou seu voluptuoso aroma. Ouviram o ruído dos carros de bois ao desenganchar-se; o cocheiro, empinando-se, lhe gritou que o caminho estava livre, que lhes apressavam e que os cavalos estavam suados e asquerosos.
— Stephen, não posso ficar. Venha ver-me. Tenho que dar-te meu endereço. Sabes onde fica o promontório Malabar?
— Sei, sei — respondeu Stephen, querendo dizer que sabia onde ela vivia, que conhecia bem sua casa, mas ela, tão concentrada em seus pensamentos e com tanta pressa, não prestou atenção e continuou falando —. Não. Acredito que vá se perder.
Voltou-se para Dil e lhe perguntou:
— Sabes onde fica o templo de Jain, depois de passar a Pagoda Negra...? O palácio de Jaswant Rao e depois a torre Satara... — Uma série de complicadas indicações se sucedieron com rapidez, e Dil as escutava muito séria, com um olhar astuto e insolente; era evidente que apenas a cortesia a impedia de interrompê-la e gritar como Stephen: “O sei, o sei!” — e então passas pelo jardim. Ele se perderá sem uma mão esperta que o guie. Traga-o amanhã à noite e poderás pedir três desejos.
— Claro que necessita quem o guie.
A portinhola aberta da carruagem se fechou, o cocheiro arrumou-se em seu assento e os três oficiais, apesar de seu comportamento sumamente discreto, lançaram olhares furtivos à encosta. O carro se incorporou à incesante maré de formas; as sombrinhas de cor de damasco puderam ver-se uns minutos mais e logo desapareceram.
Stephen sentia o peso do olhar de Dil, que o observava sem pestanejar. Coçou-se e permaneceu calado, escutando as fortes batidas de seu coração.
— Oh, oh, oh! — exclamou ela por fim, levantando-se e juntando suas delgadas mãos como as bailarinas dos templos —. Já o entendo! — Começou a retorcer o corpo, a dar golpes no solo com o pé, e a balançar-se enquanto cantava —. Oh, Krishna, deusa Krishna! Oh, Stephen bahadur! Oh, deusa Siva! Oh, coração! Ah, ah, ah! — Ria tanto que não pôde seguir bailando e caiu no chão —. Entender?
— Talvez não tão bem como tu.
— Explicarei muito claro para ti. Ela estar cortejando-te, querer ver-te de noite. Que desavergonhada! Ah, ah, ah! Mas, por que se tem três esposos? Porque querer ter quatro, como as tibetanas. Sim, as tibetanas têm quatro esposos, e as fracesas se lhes parecem muito..., têm costumes muito estranhos. Nenhum dos três esposos lhe há dado um filho, por isso tem que ter mais outro, e te há escolhido a ti porque ser muito diferente deles. Seguro que lhe revelaram em um sonho onde podia encontrar-te, alguém tão distinto aos demais.
— Muito distinto?
— Oh, sim, sim! Eles são estúpidos, o levam escrito na testa. São ricos e tu ser pobre; são jovens e tu ser velho; são bonitos e têm a cara vermelha e tu..., a maioria dos homens santos são espantosos, embora sejam mais ou menos inocentes. Trompas e trompetes! Rápido! Vamos, rápido, temos que descer correndo até o mar!
Stephen entrou no beco dos ourives, um dos becos mais estreitos, com toldos abertos para evitar o ardente pôr-do-sol; em meio ao calor se ouviam incessantes chiados parecidos com os de um inseto. A cada lado do beco os ourives faziam filigranas, narigueiras, argolas, pulseiras e petos em um pequeno ateliê aberto diante da loja; alguns tinham braseiros com tubos para dirigir a chama, e o cheiro do carvão vegetal se espalhava por todo o beco.
Sentou-se e ficou observando como um jovem polia algo que havia fabricado sobre uma enlouquecida roda, salpicando a rua de um líquido vermelho. “Não quero que Dil me acompanhe, e vestido de europeu menos ainda”, pensou. A sombra de um touro brâmane se projetou sobre ele e o ateliê, fazendo que o braseiro tomasse uma cor rosa; o touro encostou o focinho contra o peito, resfolegou e seguiu andando. “Estou tão cansado das mentiras! Hei estado rodeado de mentiras e enganos de uma forma ou de outra durante muito tempo. Dissimulação e subterfúgios..., uma atividade perigosa..., o mal termina por sobressair. Há algumas pessoas, e creio que Diana é uma de elas, que têm uma verdade própria; as pessoas normais, como Sophie e como eu, por exemplo, não são nada sem a verdade comum, nada em absoluto. Morrem sem a verdade, sem inocência, sem candor. De fato, a maioria delas se matam muito antes de que lhes chegue sua hora. São muito vivas na infância, languidecem na adolescência, revivem com o amor e morrem aos vinte e tantos anos e vão a juntar-se com as pobres almas furiosas que vagam sem descanso pela Terra. Dil está viva. Este jovem está vivo.” Fazia algum tempo, aquele jovem de olhos enormes lhe sorria entre as pulseiras; todos já sabiam o que Stephen ia dizer.
— Garoto, quanto custam essas pulseiras?
— Pandit — disse o jovem, e seus dentes brilharam —, sou filho da verdade e não te mentirei. Há pulseiras para todo tipo de fortuna.
Encontrou a Dil jogando algo parecido com o tejo, um jogo de sua infância, e sentiu a mesma ansiedade de então enquanto a pedra plana deslizava para o paraíso cruzando as marcas. Uma de suas companheiras, com ar triunfante, chegou saltando até a meta, entre o ruído das argolas. Mas Dil gritou que não valia porque não havia saltado bem e que uma hiena cega haveria visto que se havia tambaleado e havia tocado o chão. Com os punhos para o alto olhou ao seu redor clamando justiça ao céu e a terra; então viu a Stephen e abandonou o jogo, gritando para suas companheiras que elas eram umas filhas-de-puta e que seriam estéreis por toda a vida.
— Já vamos? Estar muito ansioso, Stephen? — perguntou. Cria que Stephen se sentia como um noivo e isso lhe resultava muito divertido.
— Não — respondeu Stephen —. Não. Conheço o caminho, hei estado ali várias vezes. Tenho outro encargo que fazer-te, que leves esta carta ao barco.
Seu rosto entristeceu. Pôs o lábio inferior sobre o superior e com todo o corpo expressou seu descontentamento e sua oposição.
— Tens medo de levá-la de noite? — perguntou Stephen, olhando para o sol, a uma distância do mar igual a sua própria largura.
— Bah! — protestou, dando um chute no chão —. Quero ir contigo. Além disso, se não vou contigo, como vou a conseguir meus três desejos? Não há justiça no mundo.
Não era difícil saber quais eram os desejos de Dil, fosse qual fosse a quantidade. Desde o dia em que haviam se conhecido, ela lhe havia falado de pulseiras, de pulseiras de prata, lhe havia descrito detalhadamente todos os tipos que havia em Bombaim, na província vizinha e nos reinos próximos, precisando seu tamanho, seu peso e sua qualidade. E a havia visto dar patadas, por pura inveja, em mais de uma menina carregado dos sonoros aros. Foram até un coqueiral de onde se via a ilha Elefanta e ele disse:
— Nunca vi as cavernas.
Tirou do peito um pacote de tela, e Dil, como si também houvesse tido uma vrevelação em un sonho, ficou imóvel, olhando-o fixamente, e sem poder respirar.
— Aqui está o primeiro desejo — continuou, tirando a primeira pulseira —. Aqui está o segundo. — Sacou a segunda —. E aqui está ou terceiro. — Sacou três pulseiras mais.
Dil estendeu a mão timidamente e as tocou com delicadeza; sua expressão alegre e decidida havia dado passagem a outra muito grave. Sustentou uma durante alguns momentos, voltou a deixá-la com um gesto solene e olhou para Stephen, que contemplava a ilha em frente à baía. Permaneceu em silêncio, agachou-se e ficou olhando com assombro a brilhante faixa prateada ao redor de seu braço; depois pôs outra, e outra, e sentiu-se invadida pelo extraordinário prazer que produz a posse. Começou a rir estrondosamente, derrubou-as e voltou a pô-las em ordem diferente, começou a falar com elas, acariciando-as, e lhes pôs nomes. Levantou-se de um salto e começou a dar voltas, agitando os delgados braços para que as pulseiras soarem. De repente, postrou-se ante Stephen e durante um instante ficou bendizendo-lhe e acariciando-lhe os pés, dando-lhe encarecidamente as obrigado entre exclamações. Perguntava-se como ele havia sabido... Sua inteligência era sobrenatural, não cabia dúvida... Elas ficam melhor desta maneira ou da outra?... Como brilhavam! Podia ficar com a tela em que estavam envoltas?... Elas deslizavam com tanta suavidade!... Tirou-as, acariciou-as e colocou-as de novo. Depois se sentou, apoiando-se em seus joelhos, e ficou contemplando a prata que envolvia seus braços.
— Dil — disse —, o sol já se pôs. Está ficando escuro e temos que ir.
— Vamos — disse —. Dá-me a folha e irei correndo ao barco, diretamente ao barco. Ah, ah, ah!
Baixou a ladeira correndo e saltando. Ele ficou olhando-a até ela desaparecer na penumbra, agitando seus brilhantes braços como asas e segurando a carta com a boca.
Havia visto a casa por fora muitas vezes, e os muros, as janelas e as entradas já lhe resultavam familiares. Era uma casa recuada, precedida de grandes pátios e jardins amuralhados. Surpreendeu-se com o tamanho que tinha por dentro; em verdade, parecia um pequeno palácio, e embora não fosse tão grande como a residência do comissário, era mais bonita, pois era feita de mármore branco. O mármore estava abundantemente adornado com orlas no cômodo onde se encontrava, um aposento muito fresco, de forma octogonal, rematado por uma cúpula e com uma fonte no centro.
Sob a cúpula havia uma galeria adornada com o mesmo encaixe de mármore, e dali, descrevendo uma curva, baixava uma escada até onde Stephen estava. No quinto degrau havia três panelas pequenas e um escorredor de restos de bronze; no sexto havia uma escova curta feita de folhas de palma atadas cuidadosamente e outra escova mais comprida que era quase como uma vassoura. Um escorpião havia se escondido sob o escorredor, mas, aparentemente, aquele refúgio não lhe havia parecido adequado, porque agora Stephen o via mover-se devagar entre as panelas, balançando as pinças e a cauda, erguido sobre suas patas com certa graça.
Ouviu vozes e olhou para cima. Na galeria viu umas sombras projetando-se através dos arcos. E nesse momento apareceu Diana no alto da escada, seguida de outra mulher. A maioria das mulheres têm aspecto inferior se olhadas de baixo, mas Diana não; sua figura não se via recortada. Parecia muito alta e esbelta; vestia calças de musselina azul claro, ajustados nos tornozelos, um fixa azul escura e uma jaqueta sem mangas.
— Maturin! — exclamou, e desceu a escada correndo.
Tropeçou no escorredor com o pé direito e com o cabo da escova maior com o esquerdo, e o impulso da carreira a fez saltar por cima dos outros objetos e dos degraus restantes. Stephen a pegou na base da escada, segurando seu frágil corpo entre os braços. Depois beijou-a nas bochechas, e baixou-a até o chão.
— Por favor, tenha cuidado com o escorpião, senhora — ele gritou para a senhora idosa que estava na escada —. Está detrás da vassoura pequena.
— Maturin! — exclamou Diana de novo —. Ainda estou assombrada de ver-te, realmente assombrada. Parece impossível que estejas aqui de pé..., é muito mais espantoso que haveerte visto sentado ali, entre a multidão que estava junto ao forte..., é como um sonho. Lady Forbes, permita-me apresentar-lhe o doutor Maturin. Doutor Maturin, lady Forbes, que tem a amabilidade de viver comigo.
Era uma mulher rechonchuda e de cara larga. Vestia-se descuidadamente e apenas tinha adornos, mas havia dedicado especial atenção ao seu rosto, tão pintado que já não parecia humano, e a sua peruca, cujos largos cachos caiam em perfeita ordem sobre sua testa. Incorporou-se de uma profunda genuflexão e disse:
— É um horrível malvado. Creio que existe para me maltratar. Maldita perna! Não me levantarei nunca mais. Como está senhor? Encantada. O senhor nasceu na Índia, senhor? Recordo de alguns Maturins na costa Coromandel.
Diana deu umas palmadas e uma fileira de serventes entrou no cômodo. Houve exclamações lamentando o perigo que havia corrido e aquela desordem; leves murmúrios desaprovatórios e reverências; ansiosa e silenciosa, firme obstinação. Por fim trouxeram um ancião para que levasse o escorredor e pegaram o escorpião com umas pinças de madeira; depois outros dois serventes recolheram o que restava.
— Perdão, Maturin — disse —. Não podes nem imaginar o que é conduzir uma casa com criados de tantas castas diferentes: um não pode tocar isto, o outro não pode tocar aquilo, e a metade imita aos demais. Que absurdo! Mas, claro, uma radha-vallabhi pode tocar as panelas. Bom, vamos ver se nos trazem algo para molharmos a garganta. Já jantou, Maturin?
— Não — respondeu Stephen.
Ela deu de novo umas palmadas e apareceu outro grupo de uns vinte serventes. Enquanto dava ordens (havia mais discussões, súplicas e risos do que Stephen esperava encontrar fora da Irlanda), ele se voltou para lady Forbes e disse:
— É muito fresco este cômodo, senhora.
— Discutir, discutir, discutir — disse a senhora Forbes —. Não sabe manejar os criados, nunca soube. Sim, senhor, é que está enterrada com esse propósito, bastante enterrada, sabe? Meu Deus! Espero que pessa champanha, porque estou seca. Crê que este jovem a merece? Sim, essa é a questão. Canning é muito tacanho com os vinhos. Mas tem o inconveniente de que se inunda. Lembro que nos tempos de Raghunath Rao, que era o dono, sabe?, o barro cobria o solo até dois pés de altura. Mas a monção não trouxe chuva; não há chovido apenas. Dentro de pouco haverá outra fome em Gujarat e essas insignificantes criaturas morrerão aos montes, e o passeio matutino a cavalo resultará muito desagradável. — Destas frases, as que eram dirigidas a si mesma ela dizia em um tom mais grave, mas o volume não variava.
— Villiers, em que língua lhes falavas? — perguntou Stephen.
— Em banga-bhasa, a língua que falam em Bengala. Quando fui a Calcutá trouxe alguns antigos serventes de meu pai. Mas vem, conta-me coisas de tua viagem. Foi agradável? Em que veio?
— Em uma fragata, a Surprise.
— Que nome tão bonito! Não crerás, mas quase caí de costas quando te vi na encosta com aquela horrível túnica. Era exatamente o que imaginava que usarias neste clima, muito mais apropiado que a roupa grossa. Gosta de minhas calças?
— Muitíssimo.
— A Surprise. Tu me surpreendes. O almirante Hervey me falou de uma fragata na que vinha um sobrino seu, mas disse que se chamava Nemesis. Aubrey está ao comando? Certamente que estará, do contrário não haverias vindo. Já se casou? Li o anúncio no The Times, não vi nada sobre o casamento ainda.
— Creio que acontecerá de logo.
— Todas as minhas primas Williams estarão casadas — disse, perdendo um pouco de sua chispeante alegria —. Aqui está o champanha, em fim. Oh, Deus, que falta me faz uma taça! Seguro que estás tão sedento como eu, Maturin. Brindemos por sua saúde e felicidade.
— De mil amores.
— E diga-me, amadureceu? — perguntou Diana.
— Não creio que possas notar muito mais maturidade — respondeu Stephen e esvaziou o copo pensando: “Quanto mais velho, mais rude sou.”
Um ancião com uma maça de prata se aproximou de Diana, fez uma reverência e golpeou três vezes o chão. Em seguida apareceram mesinhas baixas e grandes bandejas de prata com inumeráveis pratos de comida, quase todos muito pequenos.
— Peço que me desculpes, querida — disse lady Forbes, levantando —. Já sabes que nunca ceio.
— Certamente — disse Diana —. E por favor, ao passar pelos quartos, tenhas a amabilidade de comprovar se tudo está pronto? O doutor Maturin ficará no quarto de lápis-lázuli.
Sentaram-se em um divã, e em frente a eles estavam agrupadas as mesinhas. Ela descobriu os pratos com toda a atenção, comendo-os com os olhos.
— Não te importarás em comer à maneira indiana, verdade? A mim me encanta.
Tinha um excelente humor, ria e falava sem parar, como se tivesse passado muito tempo sem companhia. Stephen pensou: “Como a favorece rir-se! Doce loquentem, doce ridentem. A maioria da mulheres são sérias como corujas. Afinal, poucas têm dentes tão brilhantes.” Então lhe perguntou:
— Quantos dentes tens agora, Villiers?
— Não sei. Quantos deveria ter? Em qualquer caso, os tenho todos. Ah, ah, nos trouxe bidpai llhatta! Quando menina eu gostava muito..., ainda gosto. Crês que agradaria a Aubrey vir comer aqui com seus oficiais? Poderia pedir ao almirante que viesse. É bastante desagradável, mas pode ser muito simpático quando quer. Sua mulher é estúpida, mas isso não é estranho, são tantas as mulheres de oficiais navais que são impossíveis! E também convidaria os encargados do estaleiro; apenas a homens.
— Não posso responder por ele, certamente, mas sei que está muito ocupado com a fragata. Estão reparando-lhe o casco e reemplazando peças vitais em seu interior, porque sofreu grandes estragos quando estava ao sul do Cabo. Jack tem rejeitado todos os convites, com exceção ao do almirante; teve esse dia livre por obrigação.
— Bom, pois, ao diabo Aubrey. Não tenho palavras para expressar o contente que estou de ver-te, Stephen. Estava me sentido muito sozinha..., Justo antes de ver-te, sua lembrança veio a minha mente com toda claridade. Não és muito hábil comendo à maneira indiana, pelo que vejo... Oh, meu Deus! O que aconteceu com suas mãos?
— Nada de importância — respondeu Stephen, afastando-as —. Têm algumas feridas..., ficaram atrapadas em uma máquina. Mas não é nada de importância, logo passará.
— Eu te darei de comer.
Sentou-se em um almofada na frente dele, com as pernas cruzadas. Formava bolas com a comida de uma dúzia de pratos e tigelas e as punha na sua boca. Stephen sentia que algumas lhe explodiam como bombas no estômago e outras lhe refrescavam o paladar e lhe deixavam um sabor enjoativo. Observava suas pernas torneadas e firmes sob a musselina azul e o movimento de suas cadeiras quando se inclinava para os lados ou para ele.
— Quem era aquela menina tão magra que estava contigo? — perguntou —. Uma dhaktari? É excessivamente pálida para ser uma gond. Fala mal o urdu.
— Nunca lhe fiz perguntas, nem ela a mim tampouco. Diga-me o que devo fazer com ela, Villiers. Quero que possa comer todos os dias sem que tenha que mendigar ou robar a comida, como faz agora. Poderia comprá-la por doze rupias, o que parece ser uma solução fácil, mas não é. Não posso fazer que ela ganhe a vida honradamente, como costureira, por exemplo, porque não sabe coser nem sente a necessidade de aprender. Também não quero confiá-la às monjas portuguesas para que a convertam e a façam vestir os hábitos. Mas estou seguro de que tem que haver uma solução.
— Acredito que há — disse Diana —. Mas antes de poder dizer algo concreto tenho que saber muito mais sobre ela, por exemplo, a casta e outras coisas. Não imaginas as dificuldades que podem surgir quando a gente tenta encontrar colocação para uma menina. Pode ser que seja uma intocável; o mais provável é que o seja. Mande-a aqui quando tiver alguma mensagem para enviar-me e poderei averiguar. Entretanto, ela pode vir sempre que tiver fome. Encontraremos uma solução, estou segura. Mas és muito tonto se pagas doze rupias, Stephen; três é o preço mais normal. Queres um pouco mais?
— Sim, por favor. E não esquessamos a cerveja que está aí, próximo de seu cotovelo.
Cervejas, sorvetes, mangostões, pasteis indianos (o céu empalideceu quando falaram deles); a viagem da fragata e seu propósito; o senhor Stanhope, o preguiça, os grandes homens de Bombaim... Diana fez referência a Canning de forma indireta quando disse: “Em seus dias bons, lady Forbes pode ser uma divertida companhia. Além disso, me ajuda a não perder a serenidade..., o necessito, sabes?” e “Cavalguei sessenta milhas anteontem e outras sessenta no dia anterior, atravessando os Gates, por isso regressei muito mais rápido do que esperava. Havia que tratar um aborrecido assunto com o nizam, e de repente senti que não podia aguentar mais e regressei sozinha, deixando para trás os elefantes e os camelos. Chegarão no dia dezessete”.
— Eram muitos elefantes e camelos?
— Não. Trinta elefantes e uns cem camelos. E carros de bois, naturalmente. Mas até mesmo uma pequena caravana demora uma eternidade para mover-se, e não podes evitar enfurecer-te e começar a gritar.
— É verdade que viajas com trinta elefantes?
— Esta viagem era curta, apenas até Hyderabad. Quando atravessamos todo o país levamos cem, e tudo o demais proporcionalmente. O mesmo que um exército. Oh, Stephen, queria que tivesses podido ver ao menos a metade do que vi nesta viagem! Dúzias de leopardos, uma píton que comeu um cervo, pássaros e macacos de todo tipo e um filhote de tigre muito desenvolvido, um belo exemplar, embora não pode comparar-se com os que temos em Bengala. Diga-me, Stephen, que queres que te ensine deste país? É meu país, depois de tudo, e gostaria de servir-te de guia. Serei minha própria dona durante alguns dias.
— Deus te bendiga, minha amiga. Queria ver as cavernas de Elefanta, um bosque de bambus e um tigre.
— Posso prometer-te que iremos à Elefanta. Daremos uma festa neste fim de semana e convidaremos o senhor Stanhope, que é um homem encantador e foi muito galante comigo em Londres, e também o pastor. Poderás ver o bosque de bambus. Contudo, não posso asegurar-te que verás o tigre. Asseguro que o peshwa tratará de encontrar-nos um nas montanhas de Poona, mas tem chovido muito nessa zona e a selva é tão espessa que... Não obstante, se não podemos encontrar um tigre ali, te prometo que verás meia dúzia em Bengala, pois, pelo que entendi, depois de deixar ao respeitável cavalheiro em Kampong deveis ir a Calcutá.
Talvez foi um erro convidar o senhor Stanhope. O dia era horrivelmente caloroso e úmido e a ele apenas lhe apetecia estar deitado na cama enquanto o punkah, com um leve rumor, movia o ar irrespirável. Contudo, pensou que era seu dever apresentar seus respeitos à senhora Villiers e, além disso, tinha muito interesse em ver o doutor Maturin, que inexplicavelmente havia desaparecido durante os últimos dias, assim que, sobrepondo-se às náuseas e com um pouco de carmim em suas pálidas bochechas, subiu ao barco para cruzar as águas densas e gordurosas, e como não soprava vento, teve que atravessar remando as seis malditas milhas da baía.
O senhor Atkins ia sentado junto a ele e, muito excitado, contou-lhe rapidamente, em voz baixa, as coisas que havia descoberto; o senhor Atkins sempre se enteirava de todos os mexericos de uma comunidade ao pouco tempo de estar nela. Disse que, segundo suas notícias, a senhora Villiers não era uma pessoa respeitável, pois era a amante de um comerciante judeu (“Um judeu! Pelo amor de Deus!”), e sua presença era considerada uma vergonha em Bombaim e despertava indignação. Acrescentou que o doutor Maturin sabia que o casal convivia ilicitamente e que o havia posto em uma situação difícil. O representante de Sua Majestade apoiava uma relação desse tipo!
O senhor Stanhope apenas respondeu, mas quando desembarcou estava mais sério e reservado que habitualmente, e apesar dos inumeráveis cumplidos que lhe fez a Diana e dos elogios do magnífico conjunto de tendas, sombrinhas e tapetes, no que não faltavam as bebidas frias (essas coisas lhe recordavam Ascot), da rudimentária estátua do elefante e de assombrosa quantidade de esculturas das cavernas, apesar de tudo isso, sua falta de cordialidade e alegria afetou a todo o grupo.
Chamou a Stephen à parte enquanto caminhavam para as cavernas e lhe disse:
— Estou muito preocupado, doutor Maturin. O capitão Aubrey me assegurou que zarparemos no dia dezessete e eu contava com outras três semanas pelo menos, porque o tratamento do doutor Clowes à base de sangrias e banhos de lodo dura mais três semanas.
— Creio que deve ter falado de forma extravagante e hiperbólica em que se expressam os marinheiros. Repetidamente temos lido a notícia de que alguns passageiros que haviam sido chamados com urgência para embarcar em Greenwill ou os downs e verificaram que os marinheiros não tinham a mínima intenção de zarpar por falta de vontade ou mesmo por falta de velas. Pode estar tranquilo, senhor. Pelo que eu sei, faz muito pouco tempo a Surprise estava ainda sem mastros, assim que é materialmente impossível que possa zarpar no dia dezessete. Surpreende-me a precipitação de Jack.
— Há visto o capitão Aubrey recentemente?
— Não. Nem tampouco visitei o doutor Clowes desde a sexta-feira, do que me envergonho. Tens notado melhoria com os banhos de lodo?
— O doutor Clowes e seus colaboradores são excelentes médicos, sem dúvida, e muito atentos, mas parece que não acertam com a enfermidade do fígado. Temen que possa extender-se e afetar o estômago. Não obstante..., meu propósito ao rogar a sua atenção uns momentos era dizer que chegaram vários despachos de ultramar e queria a sua opnião sobre eles. E ao mesmo tempo desejo assinalar, se me permite, que o senhor não tem ido ao escritório com a frequência que poderia considerar-se ideal. Não temos podido encontá-lo durante os últimos dias, apesar dos repetidos avisos que enviamos ao barco e à sua casa. Não cabe dúvida de que seus pássaros o seduziram e lhe fizeram esquecer a sua habitual pontualidade.
— Peço que me perdoe, Sua Excelência. Irei esta tarde. E ao mesmo tempo poderemos falar de seu fígado com o doutor Clowes.
— Agradeço-lhe infinitamente, doutor Maturin. Mas estamos descuidando de um modo terrível nosso comportamento. Senhora Villiers! — Percorreu com seus cansados olhos o banquete que havia preparado em frente às cavernas —. Isto é magnífico, magnífico! É um banquete digno de Lúculo, eu asseguro!
O senhor White, o pastor, a quem Atkins havia contado em seguida o que havia averiguado, tinha um ar tão reservado como o chefe deste. Além disso, havia se impressionado desagradavelmente com as esculturas femininas e hermafroditas e lhe havia picado na nádega esquerda um inseto desconhecido sobre o qual havia se sentado. Esteve distante e taciturno durante todo o tempo que durou a excursão.
Ao senhor Atkins e aos jovens do séquito do senhor Stanhope lhes afetava menos o tempo, e pelo ruído que faziam parecia que estavam desfrutando muito, e Atkins mais que ninguém. Tinha uma atitude bonachona, falava muito alto e sem coibição, e durante o pequenique gritou para Stephen: “Não fique com a garrafa... Nem todos os dias podemos beber champanha.” Depois levou Diana ao fundo da segunda caverna para ver um destacado grupo escultórico e, segurando em alto o farol, lhe disse que reparou em suas curvas suaves, sua deliciosa armonia, seu equilíbrio, e assinalou que parecia digna de Fidias, o famoso escultor grego. Ela se assombrou de sua desfaçatez e de que a tinha pegado pelo cotovelo e sussurrado ao seu ouvido, mas não lhe deu demasiada importância, porque supôs que estava bêbado. Então se soltou, lamentando haver sido tão tonta por seguir-lhe. E se sentiu muito contente ao ver Stephen aproximando-se deles apressadamente.
Contudo, o senhor Atkins seguiu muito animado e, quando o grupo desembarcou em Bombaim e se separou, meteu a cabeça pela janela do palanquim e disse:
— Irei vê-la uma destas tardes. — Arqueou as sobrancelhas e a olhou de tal modo que ela ficou sem fala —. Sei onde vive.
Mais tarde Stephen voltou à casa do promontório Malabar e disse a Diana:
— O senhor Stanhope envia suas mais sinceras felicitações e te agradece encarecidamente por esta tarde deliciosa e inesquecível. Lady Forbes, às ordens. Não crê que faz muito calor, senhora?
Lady Forbes esboçou um tímido sorriso e abandonou a cômodo.
— Maturin, has visto alguma vez em sua vida um pequenique tão horrível, tão totalmente mal como esse? — perguntou Diana. Agora tinha posto um vestido azul muito feio, de tela grossa e abundantemente adornado de pérolas, e levava no pescoço uma sarta de pérolas maiores com um nó perto da cintura —. Mas é muito amável de sua parte enviar suas felicitações a uma mulher em falta.
— De que estás falando, Villiers? — perguntou ele.
— Devo de haver caído muito baixo para que um odioso reptil como esse tal Perkins tome essas libertades. Deus Santo! Maturin, esta vida é horrível! Não posso sair sem que exista o perigo de uma afronta; e estou sozinha, presa todo o tempo neste lugar horrível. Apenas meia dúzia de mulheres me recebem com agrado, e delas quatro carecem de boa reputação e as outras dos são tontas que se dedicam a fazer a canridade... Pouca companhia! E as outras mulheres que conheço, sobretudo as que já conhecia, quando vivia na Índia, sabem muito bem aonde disparar seus dardos. Não o fazem de maneira evidente, porque poderia devolvê-los e Canning poderia destruir seus maridos, mas são bastante afiados, e muito venenosos. Não podes imaginar como as mulheres são malvadas. Fico tão furiosa por causa disto que não posso dormir. Adoecerei. Estou cheia de raiva e parece que tenho quarenta anos. Dentro de seis meses não estarei em condições de ser vista por ninguém.
— Claro que sim, minha amiga. Engana-se a ti mesma. Quando te vi notei que sua pele tinha uma cor muito melhor do que na Inglaterra. E essa impressão se confirmou quando vim aqui e pude observá-la com tranquilidade.
— É assombroso com que facilidade tu podes se enganar. Apenas é uma boa quantidade de trompe-couillon, como o chama Amélie, ela é a melhor pintora que há havido desde..., como é o nome?
— Vigée Lebrun?
— Não. Jezebel. Veja — disse, passando um dedo em seu rosto e mostrando a delgada capa rosada que havia sobre ele.
Stephen observou atentamente e, sacudindo a cabeça, disse:
— Não. Não é essa a causa. E de passagem te desaconselho que uses cerusa, porque pode ressecar e arrugar as camadas mais profundas da pele. A gordura de porco é mais apropiada. Realmente, seu ânimo, seu valor, sua inteligência e sua alegria são a causa. Nenhuma destas coisas é fingida, e são elas que dão forma a seu rosto..., tu és responsável por seu próprio rosto.
— Mas, quanto tempo crês que uma mulher com este tipo de vida pode conservar o ânimo? Quando Canning está aqui ninguém se atreve a tratar-me mal, mas ele se ausenta com frequência, porque tem que ir a Mahé e outros lugares; mas também quando está aqui brigamos constantemente. Repetidamente quase chegamos a romper. E se rompemos, tu imaginas qual será meu futuro? Ficar em Bombaim sem dinheiro. Isso é horrível. Mas, por outro lado, seguir unida por covardia também é horrível. Ele é amável, não digo que não, mas é tremendamente ciumento. Fora! — Gritou a um criado que estava na soleira da pota —. Fora! — Gritou de novo, porque ele havia ficado ali fazendo gestos de desaprovação, e depois lhe jogou uma jarra à cabeça.
— É tão humilhante que suspeitem da gente! — lamentou-se —. Sei que os serventes têm ordem de vigiar-me. Se não me recusasse, não tardariam em aparecer aqui um montão de eunucos negros, tão flácidos, os pobres. Por isso tenho a meus própios criados... Oh, estou tão cansada dessas peleas! A única coisa que é medianamente tolerável é viajar, visitar outros lugares. Esta situação é insuportável para uma mulher com ânimo. Tu recordas daquilo que te disse já faz muito tempo, que os homens casados eram o inimigo? Pois aqui me tens, me hei entregado ao inimigo e estou atada de pés e mãos. Claro, a culpa é minha, não é necessário que me o digas, mas isso não faz que minha vida seja menos desgraçada. Viver na abundância é bom, e, certamente, agrada-me ter uma sarta de pérolas, tanto como a qualquer outra mulher, mas me conformaria com a casa de campo inglesa mais fria e mais úmida.
— Lamento que não sejas feliz — disse ele em tom grave —. Mas, ao menos, isso me dá um pouco mais de confiança e um bom motivo para fazer-te minha proposta.
— Também tu queres que eu seja sua amante, Stephen? — perguntou com um sorriso.
— Não — respondeu ele, esforçando-se por imitá-la. Encomendou-se a Deus e seguiu falando com frases um tanto desordenadas por causa de sua agitação —. Nunca fiz uma proposição de matrimônio a nenhuma mulher e não conheço as fórmulas que se usam para isso. Desculpa minha ignorância. Peço que tenhas a bondade, a imensa bondade de casar-te comigo.
Ela não respondeu. E então ele acrescentou:
— Eu te agradeceria muito, Diana.
— Vá, Stephen! — disse ela por fim, olhando-o ainda com grande assombro —. Dou a minha palavra de honra que me surpreendeu. Quase não posso falar. É a coisa mais amável que podias me haver dito. Mas te has deixado levar pela amizade e o afeto; seu bom coração e a lástima que sentes por uma amiga são os que...
— Não, não, não — disse impetuosamente —. Minha declaração foi deliberada. Hei meditado muito antes de fazê-la, pois concebi a ideia já faz tempo e a hei amadurecido ao longo de mais de doze mil milhas. Sei que, desgraçadamente, minha aparência não me favorece — enquanto falava retorcia as mãos atrás das costas —, que há muitas coisas que objetar quanto a minha pessoa, meu nascimento e minha religião, e que minha fortuna não pode comparar-se com a de um homem rico, mas já não sou aquele joão ninguém sem dinheiro que era quando nos conhecemos e posso oferecer-te um matrimônio digno, até mesmo esplêndido. E pelo menos tenho um soldo decente para manter a minha esposa, ou a minha viúva, e assegurar seu futuro.
— Meu querido Stephen, suas palavras me honram e não sei como agradecê-las; és o homem mais bondoso que conheço e meu melhor amigo. Mas já sabes que quando me enfado falo sem pensar, digo coisas que não queria dizer, e tenho mal genio. Canning e eu estamos muito unidos; ele foi muito bom comigo... Além disso, que classe de esposa seria eu? Deverias haver-te casado com Sophie; ela sim haveria se contentado com muito pouco e tu nunca se sentiria envergonhado dela. Envergonhado... Pensa no que fui e no que sou agora. E Londres não está distante de Bombaim, os mexericos são os mesmos em ambos os lugares. Por outro lado, depois de haver levado esta vida, crês que alguma vez poderia...? Stephen, estás bem?
— Ia dizer que também estão em Barcelona, París, Dublín...
— Não há dúvida de que etás passando mal. Estás muito pálido. Tire a jaqueta, fique de camisa e calças.
— Nunca me havia afetado tanto o calor — disse, tirando a jaqueta e a gravata.
— Bebe um pouco de água gelada e baixa a cabeça. Meu querido Stephen, queria poder fazer-te feliz. Por favor, não fique tão triste. Bom, talvez se chegarmos a romper...
— De todos os modos — disse ele, como se não houvessem passado dez silenciosos minutos —, não é tão pequeno se comparado com a maioria das européias. Tenho dez mil libras aproximadamente, terras por esse valor que inclusive podem chegar a valer mais. E também tenho meu soldo: duzentas ou trezentas libras ao ano.
— E um castelo em Espanha — disse Diana, sorrindo —. Deite e fale-me desse castelo na Espanha. Sei que tem o banheiro de mármore.
— Sim, e o teto, onde o conserva ainda. Mas não quero enganar-te, Villiers: não é como o que tens aqui. Dispõe de seis, não, cinco cômodos onde se pode viver, e a maioria delas estão ocupadas por ovelhas merinas. É uma ruina cheia de romantismo, rodeada de montanhas cheias de romantismo, mas de romantismo não se vive.
Havia feito a tentativa, mas havia errado ao lançar sua carga; agora seu coração voltava a bater devagar. Falava em um tom amável e muito tranquilo sobre as ovelhas minguadas, as peculiaridades do aluguel de propiedades na Espanha, os prejuízos da guerra e as possibilidades que tinha um marinheiro de conseguir butins, e no momento em que tratava de pegar a gravata ela o interrompeu.
— Stephen, o que me disse me há desconcertado tanto que quase não sabia o que responder. Tenho que pensar. Falaremos disso outra vez em Calcutá. Necessito de muitos meses para pensar. Meu Deus! Que pálido te has posto outra vez! Vem, põe uma bata leve e nos sentaremos no pátio para respirar ar fresco. Estas lamparinas são insuportáveis dentro de casa.
— Não, não. Não te movas.
— Por que não? Porque é uma bata de Canning? Porque Canning é meu amante? Porque é judeu?
— Tolice. Tenho grande estima pelos judeus, se é que alguém pode fazer uma generalização de um grupo de homens tão grande e heterogêneo.
Canning entrou no cômodo. Apesar de ser um homem corpulento, suas pisadas não eram fortes. “Quanto tempo haverá estado aí fora?”, pensou Stephen. Então Diana disse:
— Canning, o doutor Maturin tem excessivamente calor. Estou tentando persuadi-lo de que ponha uma bata e se sente junto à fonte no pátio dos pavões reais. Lembra-se do doutor Maturin?
— Perfeitamente, e me alegro muito de vê-lo. Estimado amigo, lamento que o senhor não se sinta bem. Verdadeiramente hoje faz um calor asfixiante. Por favor, dê-me seu braço e sairemos para tomar um ar; eu também necessito. Diana, te importaria em pedir uma bata ou um xale?
“Que coisas sabe de mim?”, se perguntava Stephen enquanto estavam sentados naquele lugar relativamente fresco e Diana falava com Canning de sua viagem, o nizam e um tal senhor Norton. Pelo que diziam, a mulher do senhor Norton havia fugido com o melhor amigo deste para o território governado pelo nizam.
“Não deixa trasluzir nada — pensou Stephen —, mas isso é, em si mesmo, significativo. E não há perguntado por Jack, o que é mais significativo ainda. É notório o seu ar varonil e arrogante, muito parecido ao de Jack, que reflete boa parte de sua personalidade; mas também advirto o brilho de uma inteligência oculta. Quanto me gostaria que tivesse o dom da senhora Forbes de revelar seus pensamentos!” Em voz alta perguntou:
— O senhor Norton, o ornitólogo?
— Não — respondeu Diana —, ele está interessado nos pássaros.
— Tão interessado que foi até Bikanir para ver uma ortega — disse Canning —, e quando voltou a senhora Norton havia fugido. Creio que não é adequado seduzir a esposa de um amigo.
— O senhor tem razão — afirmou Stephen —. Contudo, isso é realmente uma ofensa? Uma jovem ingênua pode fugir com um sedutor, mas, pode fazer o mesmo uma mulher casada? Por minha parte, penso que nunca um matrimônio se rompe por uma força externa. Suponhamos que à senhora Norton é permitido escolher entre o rosé e o porto e ela comprova que não lhe agrada o rosé mas lhe agrada o porto. Desde esse momento se sente ligada a esse turvo vinho e é inútil assegurar-lhe que o rosé é melhor. E não creio que a culpa seja da garrafa eleita.
— Se ao menos soprasse um pouco de brisa do mar! — exclamou Canning, rindo ruidosamente —. Poderia fazer pedaços de sua analogia. Afinal não deveria se meter nisso..., é um assunto emaranhado, se os há. O que queria assinalar é que Norton era amigo íntimo de Morton. Norton o levou a sua casa e ele se meteu na cama de Norton.
— Isso não foi adequado, devo admitir. Isso cheira a deslealdade.
— Não lhe perguntei por nosso amigo Aubrey. Sabe algo dele? Temos que brindar por sua felicidade. Talvez devessemos fazê-lo agora.
— Está aqui, em Bombaim. A sua fragata, a Surprise, está sendo armanda de novo em Bombaim.
— Estou surpreso, senhor — disse Canning. “O duvido muito, meu amigo”, pensou Stephen. Ficou escutando os comentários que Canning fazia sobre a Armada, sua ubiquidade e seus inumeráveis compromissos e os elogios a Jack como marinheiro, a quem desejava sinceramente felicidade. Então levantou-se e disse que, com sua permissão, queria retirar-se, porque fazia algum tempo que não ia a sua casa e tinha muito trabalho esperando, acrescentando que sua casa ficava próxima do estaleiro e que lhe agradava ir andando até ali.
— Não pode ir andando até o estaleiro — disse Canning —. Mandarei buscar um palanquim.
— O senhor é muito amável, mas prefiro andar.
— Mas, meu amigo, é uma loucura passear por Bombaim a esta hora da noite. Sem dúvida alguma, o matarão. Creia-me, esta é uma cidade muito perigosa.
Stephen não era fácil de convencer, mas Canning o obrigou a aceitar uma escolta, assim que desceu as desertas ruas com um grupo de barbudos sijs armados com sabres, não excessivamente contente consigo mesmo (“E contudo, ele me agrada como pessoa e não lhe censuro do todo a satisfação de saber que estou fora do jogo e que vivo sem esperança”), e enquanto descia via o resplendor das piras funerárias na praia, que despediam um cheiro a carne queimada e a sândalo. Atravessaram ruas cheias de vacas sagradas que dormiam tranquilamente, viram cães vagabundos e um árvore sem folhas onde dormiam inumeráveis falcões, abutres e corvos, formando um sinistro conjunto. Passaram pelos bazares, agora cheios de figuras que jaziam no chão envoltas em sudários. Cruzaram o bairro dos bordéis, onde havia atividade e viam-se alguns músicos mal acoplados e grupos do marinheiros, entre os quais, contudo, não havia nenhum da Surprise. Depois seguiram o comprido caminho junto ao muro do estaleiro e, ao dobrar uma esquina, toparam com um grupo de moplahs que formavam uma roda. Os moplahs se levantaram, lhes olharam vacilantes, calculando suas forças, e fugiram deixando um cadáver no chão. Stephen se agachou sobre ele com o farol dos sijs na mão e, vendo que já não podia fazer nada, seguiu seu caminho.
A certa distância da casa viu uma luz em seu interior e se surpreendeu muito. Mas se surpreendeu ainda mais ao entrar e ver Bonden, que dormia inclinado sobre a mesa, com a cabeça apoiada sobre os braços vendados; e a cabeça e os braços os tinha cobertos por uma capa grizalha que parecia cinza, mas que, de fato, estava formada por inumeráveis insetos voadores que a luz do farol havia atraído. E na mesa havia um grupo de salamandras preparadas para comer as mariposas deslumbradas.
— Por fim há chegado, senhor! — exclamou, levantando-se e esparciendo seu carregamento de mortos e espantando as salamandras —. Alegro-me muito em vê-lo.
— És muito amável, Bonden — disse Stephen —. O que aconteceu?
— Há uma confusão dos diabos, perdoe a expressão. O capitão tem tentado encontá-lo desesperadamente, senhor. Ordenou aos cadetes e aos marinheiros que se revesassem para esperá-lo aqui e mandava um mensajeiro a cada hora para perguntar se o senhor havia voltado. Todos tinham medo de regressar e dizer que senhor não havia chegado e que também não havia enviado nenhum recado. Mandou pôr grilhões em Babbington. E surrou com suas própias mãos na cabine os cadetes Church e Callow. Deu-lhes vários golpes! Queixavam-se lastimosamente como gatos.
— Por quê? O Que se passa?
— Que, o que se passa? É que tem havido protestos, senhor. Não há permissão para descer a terra, todas foram suspensas, levaram a barca à doca, não conseguimos nada de beber porque não deixam que os vivandeiros se aproximem, e todos os marinheiros trabalham em jornada dobrada, os oficiais também. Não há permissão, embora tenha prometido dá-las faz semanas. Recorda-se que em Gibraltar puseram os mastros novos do Caesar num instante, antes de nossa escaramuça com os espanhóis? Bom, pois isto foi mais ou menos igual, apenas que um maldito dia atrás do outro..., com todos os tripulantes que eram capazes de puxar um cabo, enfermos ou não, os marinheiros indianos contratados por ele pessoalmente, membros da dotação do navio do almirante e aparelhadores do estaleiro..., aquilo parecia um fodido formigueiro, perdoe a expressão, e sempre sob o sol abrasador. Sem pudim de passas os domingos! Não se permite a ninguém descer a terra, exceto a esses baixinhos que são inúteis a bordo e aos mensajeiros que vêm aqui correndo. Eu mesmo não estaria aqui se não fosse por meu braço.
— O que te aconteceu?
— Eu me queimei com alcatrão fervendo, senhor. Caiu do cesto da gávea. Mas isso não é nada comparado com o que nos há presenteado o capitão. Supomos que ele deve de saber algo sobre Linois, mas, em qualquer caso, não temos feito mais do que correr, correr e correr. Não havia nenhuma vigota colocada na terça-feira e hoje os amantilhos já estão amarrados e zarpamos amanhã na maré alta. O almirante não cria que isso era possível, eu não cria que era possível, nem tampouco o mais velho dos marinheiros do castelo. O senhor Rattray se meteu na cama na segunda-feira porque, segundo dizem, estava enfermo e extenuado; e a metade da tripulação também faria o mesmo se tivesse coragem. E todo o tempo o capitão repetia: “Onde está o doutor? Maldito seja! Não pode, senhor, encontrar ao doutor, condenado inútil?” Estava muito aborrecido. A bagagem de Sua Excelência subiu a bordo duas vezes mais rápido: disparavam os canhões a cada cinco minutos de forma que as balas passassem por cima dos botes e animassem os homens a remar. Bendito seja Deus! Aqui está a folha que me deu para o senhor.
Surprise, Bombaim
Senhor:
Pela presente se lhe ordena apresentar-se na fragata de Sua Majestade que se encontra sob meu comando imediatamente que receba esta ordem. Fica a cargo do senhor,
JACK AUBREY
— Tem a data de três dias atraz — disse Stephen.
— Sim, senhor. Nós a temos passado de uns para os outros. E Ned Hyda a manchou de ponche na ponta.
— Bom, a lerei amanhã. Agora quase não vejo e, além disso, temos que dormir ao menos um par de horas antes de que amanheça. Então pensa realmente zarpar amanhã na maré alta?
— Oh, sim, senhor! Estamos ancorados no canal apenas com uma âncora. Sua Excelência está a bordo e também quase toda a pólvora, quando eu saí, faltavam apenas alguns barris para estivar.
— Oh, meu Deus! Então volte agora à fragata, Bonden, dê meus cumprimentos ao capitão e diga-lhe que me reunirei com ele antes que a maré suba. Mas, por que ficas aí como uma estaca, como uma estátua, Barret Bonden?
— Senhor, ele me chamará de lerdo, estúpido e não sei quantas coisas mais se não regresso com o senhor, e lhe asseguro que enviará a um grupo de infantes da marinha para que o leven à fragata assim que se entere de que está aqui. Eu o conheço há muitos anos, senhor, e nunca o vi tão enfurecido; parece um leão.
— Bom, chegarei antes que a fragata zarpe. Não é necessário que voltes a ela correndo, entendes? — disse enquanto empurrava o pobre Bonden para fora da casa, ansioso e desanimado, e fechava a porta.
O dia seguinte era o dezessete. Embora poderiam existir outros fatores, estava seguro de que a razão principal daquela louca corrida era que Jack queria sair de Bombaim antes que Canning e Diana regressassem. Não havia dúvida de que tinha boas intenções: queria evitar se encontrar com aquele homem. Seu estratagema era muito engenhosa, mas apesar de Stephen estar submetido ao direito naval, ele nunca havia gostado das leis e não era fácil conseguir que as acatasse.
Tirou a roupa, lavou-se e se sentou para escrever um bilhete para Diana. Não serviria; havia usado um tom errôneo. Outra versão; o suor de seus dedos borrou as palavras. Canning era um temível inimigo — silencioso, inteligente, sagaz —, se é que podia chamar-lhe assim, com uma perigosa tendência a exceder-se e capaz de formar astutamente complexos enredos. As constantes suspeitas e intrigas provocavam repugnância e a desesperada nostalgia de manter uma relação sincera, limpa. Pegou outra folha. Disse a ela que o inimigo, aparentemente, estava em alto mar..., pedia desculpas por não ter-se despedido..., desejava ardentemente vê-la em Calcutá..., rogava que se recordasse do tigre que lhe havia prometido..., enviava cumprimentos ao senhor Canning..., estava seguro de que poderia confiar-lhe a sua pequena protegida, a quem ia comprar por...
“Isso me faz recordar minha bolsa”, disse. Encontrou a pequena bolsa de tela e a pendurou no pescoço, pôs uma túnica e saiu. La fora o ar era mais frio, mais limpo. Atravessou de novo as ruas, mais concorridas agora. Os hortelãos traziam as frutas e os vegetais em carrinhos de mão, mulas e carros puxados por bois e camelos que, lentamente, abriam passagem entre a cinza penumbra, seguidos por cães vagabundos. Nos bazares viam-se faróis por todas as partes, os braseiros resplandeciam e havia uma grande atividade, pois as pessoas recolhiam suas camas para guardá-las dentro das lojas ou a convertiam em uma banca. Cruzou o caravansará Gharwal, passou a igreja dos franciscanos, passou o templo de Jain e chegou até o beco onde vivia Dil.
O beco estava muito cheio; a gente o ocupava de lado a lado. Ele conseguiu que um touro brâmane que estava na sua frente avançasse e pôde chegar até a choça triangular feita de pranchas e sustentada por um pontal. A velha estava sentada na entrada; a sua direita havia um farol com uma chama oscilante, a sua esquerda um homem vestido de branco, e em frente a ela o cadáver de Dil, parcialmente coberto por um pedaço de tela. E no chão havia uma bacia com algumas calêndulas e quatro moedas de cobre. A gente se amontoava ante a velha formando um semicírculo e escutava com expressão grave sua voz áspera e irada.
Stephen se sentou na segunda fila (caiu ao solo como se houvessem cortado as suas pernas, lançando um gemido) e uma imensa tristeza se apoderou dele. Havia visto a morte tantas vezes que não podia estar equivocado, mas apesar disso e de saber aceitar a dura realidade, tardou em resignar-se. A velha estava pedindo dinheiro à gente; então se interrompeu para dizer ao brâmane que bastaria muito pouca lenha e seguiu discutindo com ele, insistindo. Todos eram muito amáveis; expressavam sua condolência, diziam palavras de consolo, faziam elogios, e depositavam pequenas oferendas na bacia, mas aquele era um bairro desesperadamente pobre e as moedas não davam nem para meia dúzia de troncos.
— Aqui não há ninguém de sua casta — disse o homem que estava ao lado de Stephen.
Outros murmuraram que isso era o lamentável da questão, porque a gente de sua própria casta haveria se encarregado do fogo, mas, com a fome que se avizinhava, ninguém queria ajudar outra casta que não fosse a sua. Stephen tocou no ombro do homem que estava adiante dele e lhe disse:
— Eu sou de sua casta. Amigo, diga à mulher que lhe compro a menina e que a levarei ali abaixo e me encarregarei do fogo.
O homem se voltou para ele. Stephen tinha o olhar perdido, as bochechas afundadas, enrrugadas e sujas, e o cabelo lhe caia sobre o rosto; dava a impressão de que estava louco ou absorto. O homem olhou aos demais e, ao observar a aprovação em seus rostos sérios, disse:
— Avó, aqui há um homem Santo de seu casta que por piedade comprará a menina e a levará ali abaixo, e também se encarregará do fogo.
Aumentou a conversação..., gritos..., e um silêncio sepulcral. Stephen sentiu como o/ou homem lhe pendurava de novo a bolsa no peito e lhe arrumava a gola da túnica ao redor do cordão.
Depois de alguns momentos, ficou de pé. No rosto de Dil havia uma infinita placidez. Às vezes, quando se movia a chama do farol, parecia que sorria misteriosamente, mas ao aproximar-lhe a luz se notava que era incapaz de sentir emoções, o mesmo que o mar. Nos braços tinha as marcas que lhe haviam feito ao arrancar-lhe as pulseiras. Eram marcas superficiais: não havia havido luta nem desesperada resistência.
A pegou nos braços e, seguido pela velha, alguns amigos e o brâmane, a levou até a praia, com a cabeça apoiada em seu ombro. Amanheceu quando passavam pelos bazares, e quando chegaram à borda do mar, agora em calma, após passar junto aos vendedores de lenha, outros três grupos já estavam ali.
Pregações, purificação; cânticos, purificação. A pôs cuidadosamente na pira. O sol iluminava as pálidas chamas e os troncos de sândalo ardiam depressa; uma coluna de fumaça subiu e subiu e depois se desviou e começou a afastar-se com a brisa do mar.
—... nunc et in hora mortis nostrae — repetiu de novo enquanto sentia as ondas bater suavemente contra seus pés.
Levantou a vista. Todos se haviam ido. A pira havia se convertido em uma mancha negra e se escutava o susurrar do mar ao cobrir suas brasas. Estava sozinho. A maré subia muito rápido.
CAPÍTULO 8
A Surprise estava ancorada apenas com uma âncora próxima da saida do canal. O vento era favorável e a maré alta. O capitão se encontrava junto ao corrimão olhando a distante costa com expressão mal-humorada. Tinha as mãos atrás das costas e de vez em quando as apertava com força. O jovem Church saiu da camareta dos cadetes e, com uma inexplicável alegria, subiu dando saltos em meio ao expectante silêncio. Seu companheiro Callow, ao ver-lhe, alertou-lhe em um sussurro:
— Prepara-te para a tormenta.
Jack já havia visto o bote que se afastava do navio do almirante. Contudo, esse não era o bote que esperava, era o cúter de um barco de guerra e na popa estava sentado um oficial com seu baú ao lado: era seu primeiro oficial, que o simpático almirante havia decidido mandar-lhe ao voltar de uma caçada no norte do país. O bote que Jack esperava era uma embarcação típica daquele lugar, provavelmente sebenta, e ainda a buscava com o olhar quando o cúter se engatou ao turco e o oficial subiu pelo costado.
— Stourton, senhor — disse, tirando o chapéu —. A suas ordens, senhor, com sua permissão.
— Alegra-me ver-lhe por fim, senhor Stourton — disse Jack, e em seu rosto carrancudo apareceu um sorriso forçado —. Vamos à cabine. — Olhou de novo para a costa antes de dirigir-se a ela, mas não viu nada —. Estavam sentados em silêncio. Jack lia a carta do almirante e Stourton olhava de soslaio o seu novo capitão. O último que havia tido era um homem reservado e taciturno e um bebedor incorrigível, e além disso estava em guerra com os oficiais, sempre encontrava faltas e surrava os homens seis dias por semana. Stourton e todos os demais oficiais que não queriam ser degradados se haviam visto obrigados a comportar-se como tiranos. Entre todos haviam convertido a Narcissus na fragata mais bonita das que se encontravam ao leste de Greenwill, na qual a colocação das vergas superiores levava vinte e dois segundos; a haviam convertido em uma reluzente fragata com o maior índice de castigo e deserção de toda a Armada.
Stourton era o primeiro oficial da Narcissus e tinha fama de ser muito duro. Mas não parecia um negreiro; tinha a pele rosada e estava muito bem barbeado e dava a impressão de ser um jovem animado e consciencioso. Apesar disso, Jack sabia o que o hábito de exercer a autoridade podia provocar e, deixando a um lado a carta do almirante, lhe disse:
— Em cada barco há costumes diferentes, como o senhor sabe. Não é minha intenção criticar a nenhum outro capitão, mas quero que na Surprise as coisas se façam da minha maneira. Alguns gostam que a coberta pareça uma sala de baile; a mim também, mas uma sala de baile bem preparada para o combate. A artilharia e a navegação são a prioridade, mas, por outro lado, um barco não pode lutar bem se não tiver armonia. Se os tripulantes manejam os canhões com destreza e dão no branco e podemos fazer-nos ao mar com rapidez, não me importa um pingo que às vezes haja um montão de pedaços de cabos metidos debaixo de um canhão. E vou dizer-lhe algo que não desejo que se saiba publicamente: não creio que um homem mereça ser açoitado por um punhado de estopa. De fato, na Surprise não nos agrada muito preparar o castigo. Uma vez que os homens aprendam a cumprir com o seu dever e a respeitar em boa medida a disciplina, os oficiais que não conseguem que mantenham esse comportamento sem golpear-lhes ou açoitar-lhes constantemente, não conhecem a sua profissão. Detesto a sujeira e a negligência, mas também detesto ter um barco limpo e reluzente que careça de espírito de luta ou esteja até mesmo em piores condições. Mas é verdade que um barco descuidado não pode lutar. Assim que lhe peço que encontre o ponto ideal, senhor Strouton. Outra coisa que quero dizer-lhe, para que nos entendamos bem desde o princípio, é que detesto a falta de pontualidade. — A expressão de Strouton era agora muito mais angustiada. Havia subido a bordo com um horrível atraso, embora não por culpa da sua —. Não o digo pelo senhor mas pelos cadetes, que chegam tarde aos turnos de meia e do amanhecer e se demoram em desocupar a coberta. Em verdade, neste barco poucos têm sentido do tempo. E precisamente agora, quando a maré está mais alta, tenho que esperar...
Ouviu-se o ruído de um bote aproximando-se e depois, muito levemente, uma forte discussão acerca do preço da viagem. Jack aguçou o ouvido e então se precipitou à coberta com o rosto aceso pela raiva.
Surprise, em alto mar
Meu amor:
Encontramos a monção, depois de navegar com ventos fracos e instáveis que sopravam nas ilhas Laquedivas, e por fim posso seguir escrevendo minha carta com a mente livre. Estamos atravessando o canal Paralelo Oito com as escotas soltas e temos a Minicoy a quatro léguas NNO. A tripulação se recupera do esforço que fez em Bombaim para aprovisionar o barco, pois tenho que admitir que a apertei muito duro, e agora nossa querida fragata desliza para o sudeste com todas as velas desfraldadas como um cavalo puro-sangue por Epsom Downs. Não pude fazer no estaleiro tudo o que gostaria, porque estava decidido a zarpar no dia dezessete, mas embora não estejamos muito contentes com os brandais, que não são muito fortes, nem com sua exárcia, creio que fizemos caso ao dito: “à ocasião pinta a careca”. E agora, com o vento a dois pontos pela alheta, a fragata pode governar-se tão facilmente como um cúter; é uma Surprise muito diferente da embarcação em estado lamentável que trouxemos, atada como a barca de Santo Pablo e com tanta água que havia que bombear dia e noite. Percorremos 172 milhas ontem, e navegando a essa velocidade, em direção sul, na próxima semana já teremos bordeado Ceilán e posto rumo a Kampong. E será muito raro que em um trajeto de duas mil milhas pelo oceano não consigamos acabar com sua pequena tendência a cabecear, é mínima. Até mesmo com a exárcia que tem agora, confio que poderemos ultrapassar qualquer barco de guerra nestes mares. Pode suportar uma grande pressão das velas, e com o tempo tão limpo, creio que poderemos desdobrar os sobrejoanetinhos e talvez até mesmo um estai.
É um verdadeiro prazer sentir como responde a uma suave brisa e como permanece erguida com um vento forte, e se navegássemos para o oeste em vez de para o leste, minha felicidade seria completa. Caso nos dirigíssemos ao nosso país, também teria desfraldadas as sobrejoanetes e as asas, embora seja domingo pela tarde.
Os tripulantes tiveram um extraordinário comportamento em Bombaim, e lhes estou muito agradecido. Que grande pessoa é Tom Pullings! O pobre Pullings trabalhou como um escravo, dirigindo os marinheiros dia e noite, e quando o almirante mandou o senhor Strouton como primeiro oficial, passando por cima dele (depois que se havia acabado o trabalho de aprovisionar a fragata) não protestou, não se queixou de que o haviam tratado mal. Trabalhou duro, sumamente duro, e posto que o contramestre estava enfermo, tinha uma carga ainda maior. Não creio que descesse do barco mais de uma vez; dizia em seu habitual tom alegre que conhecia Bombaim, que estivera ali muitas vezes e para ele era o mesmo que Gosport. Afortunadamente, correu o rumor de que a esquadra de Linois estava em frente ao cabo Comorín, e isso fez que os homens trabalhassem com afinco todo o tempo. Não o contradisse, claro, embora não creio que ele haja avançado tanto para o oeste ainda.
Meu Deus! Trabalhamos tão duro sob o sol abrasador! o senhor Bowes, o contador, foi de grande ajuda. Não é espantoso? É um oficial com as melhores qualidades de um marinheiro, e ele e Bonden (até que Bonden se queimou com alcatrão) faziam o trabalho do contramestre, substituindo-lhe admiravelmente. Também William Babbington é um jovem excelente, embora foi pego por uma rameira quando pôs os pés em terra, e ao final houve que prendê-lo. Contudo, quando tivemos que nos esforçar de verdade, por consequência de um maldito contratempo que te contarei, teve um comportamento exemplar. E esse horrível garoto, Callow, faz progressos. Foi estupendo que os cadetes pudessem ver em pouco tempo todas as operações para armar um barco, inclusive algumas que raras vezes se fazem quando este se encontra realizando uma missão; e os tive comigo o tempo todo. Eu também não baixei muitas vezes, à parte de ir jantar com o almirante e de fazer algumas visitas obrigatórias.
Agora, minha querida Sophie, vou a entrar em águas pouco profundas sem levar um mapa e temo que possa encalhar; já sabes que não escrevo muito bem. Contudo, tratarei de fazê-lo o melhor que possa, confiando em que poderás entender bem graças a sua intuição. Apenas uma hora antes de receber seu último pacote de cartas, com grande assombro me enterei de que Diana estava em Bombaim e também de que tu o sabias e que Stephen o sabia. Duas ideias vinheram a minha mente em seguida. Em primeiro lugar, pensei que te molestaria que descesse a terra estando ela ali; em segundo lugar, senti uma grande preocupação por Stephen. E não creio que traia sua confiança (já que nunca me falou deste assunto, quer dizer, não abertamente) ao dizer-te que esteve muito apaixonado por Diana e temo que ainda está. É muito reservado e não tenho a intenção de invadir sua intimidade, mas é a pessoa que mais quero depois de ti, e o carinho profundo pode dar-nos o que não nos dá o intelecto: lhe(o;a) hei visto ruborizar-se como um adolescente quando chegamos à zona de pouca profundidade, isso me surpreendeu muito, e outra vez quando mencionei o nome dela, embora tratou de ocultá-lo. Desde) o princípio ele sabia que ela estava em Bombaim. Quando desembarcou, enterou-se de que estava de viagem pelo norte do país mas que regressaria no dia dezessete. Tinha o firme propósito de vê-la; e claro, não é possível fazê-lo mudar de opinião. Depois pensar bastante nisso, cheguei ao convencimento de que ou ela ia maltratar-lhe ou ele ia bater-se com Canning, ou ambas as coisas. Ele está melhor, muito melhor agora, mas não se encontra em condições de bater-se nem de ser maltratado.
Assim que decidi fazer-me ao mar nesse dia, o que, além disso, me permitiria voltar antes à Inglaterra. E posto que fiz aprovisionar o barco com rapidez, eu me congratulava de que havia conseguido meu propósito. Mas devo confessar que tinha minhas dúvidas. Esteve ausente durante dias e dias, e me aborreci muito com ele porque não se apresentou quando passamos revista nem se preocupou das provisões que necessitava nem da enfermaria. Não se podia lhe encontrar nem enviava nenhuma mensagem. E quando o senhor Stanhope subiu a bordo e disse que estivera com ele e a senhora Villiers na ilha Elefanta, pensei que lhe prenderia se pudesse pegá-lo, mas não pude. Estava furioso e muito preocupado, e decidi que quando subisse a bordo o repreenderia como seu superior e também como amigo.
Estávamos ancorados com apenas uma âncora no canal e com a bandeira de saida içada no traquete, desde o amanhecer, quando apareceu seu bote. E pelo calor, a ansiedade, o cansaço de haver estado desperto toda a noite e uma estúpida discussão com o secretário do enviado do Rei, que estava me chateando, encontrava-me preparado para lhe lançar uma descarga tripla. Mas quando o vi me partiu o coração; não podes imaginar quanta tristeza se refletia em seu rosto e que aspecto mais lamentável tinha. Apesar de ter ficado moreno como um nativo desta terra devido ao sol, estava pálido ou, melhor dizendo, cinza.
Parece-me que ela o tratou horrivelmente, pois apesar de que levamos já vários dias de viagem, navegando com vento favorável por águas quentes, e termos voltado a nossa rotina diária, que é a melhor maneira de deixar para trás as coisas desagradáveis da vida em terra, apesar de tudo isso ele não se anima. Às vezes penso que gostaria que se declarasse uma epidemia benigna no barco, porque isso o animaria. Mas por agora apenas Babbington está na lista de enfermos; o resto dos tripulantes estão muito bem, com exceção do senhor Rattray e um par de homens com insolação. Nunca o havia visto tão deprimido. Agora me alegro de não lhe haver repreendido, entre outras coisas porque lhe haveria resultado embaraçoso, já que estamos todos muito juntos, muito apertados, devido ao senhor Stanhope e seu séquito ocuparem todo o espaço. Não obstante, espero que tudo tenha acabado e a distância e o mar o borren tudo. Está sentado em frente a mim agora, sobre a taquilla de estibordo, lendo um dicionario malayo, e te pareceria muito velho se o visses. Gostaria muito de me encontrar com uma das fragatas de monsieur Linois e poder passar bem próximo dela, porque agora nossos canhões são muito rápidos e seguro que poderíamos causar-lhe danos. Não há nada como isso para levantar o ânimo.
Até mesmo um navio de guerra (com o qual não se consegue muito dinheiro como butim porque, em geral, são tratados sem consideração ao se tomar posse deles) bastaria para que pudessemos ter uma bonita casa de campo. Hei pensado tanto nessa casa, Sophie! Pullings entende tudo o relacionado com a terra, porque sua família tem uma propriedade, e temos falado sobre como plantar e cuidar de uma horta; creio que com uma atenção adequada, duas pessoas, não acostumadas ao luxo, podem alimentar-se muito bem com um quarto de acre de terra. Não me cansarei de comer verduras e batatas depois de tantos anos alimentando-me de bolachas. Neste desenho verás como dispus a rotação das colheitas; no quadro A ficarão os tubérculos no primeiro ano. Deus sabe quando verás este plano, mas com sorte nos encontraremos com a frota da Companhia das Índias que vai à China, e se assim for, te enviarei esta carta e as outras que já tenho preparadas em um pacote; e como muitos dos barcos que vão de regresso ao nosso país não fazem escala nem em Calcutá nem em Madras, as terás antes de Navidad. Contudo, como os movimentos da frota dependem dos de Linois, se ele estiver perto do estreito, ela não se fará ao mar, e então talvez eu seja meu próprio carteiro.
Ficou concentrado, vendo filas perfeitas de couves, couve-flores e alhos-poró grandes e belos, aos quais não atacavam nem as larvas, nem os vermes, nem as típulas, nem a temível mosca da cebola; e, ao final da horta, um riacho com trutas por cujas margens se estendia um bom pasto, e no pasto duas vacas, vacas de Jersey. Seguindo o curso do riacho viu o Canal, não muito distante, e alguns barcos que estavam ali; e através da fina névoa que havia sobre suas águas se deu conta de que Stephen lhe sorria.
— Podes me dizer em que estavas pensando agora? — perguntou Stephen —. Seguramente em algo muito agradável.
— Estava pensando no matrimônio — respondeu Jack —, e a horta que o acompanha.
— Deve a gente ter uma horta quando se casa? — perguntou Stephen —. Não sabia disso.
— É claro — disse Jack —. Havia conseguido um butim e meus couves já brotavam aos montes. Não sei como vou a poder cortar a primeira. — de repente mudou de tema —. Stephen, gostaria de ver uma lembrança de minha juventude? Ia mostrar-te quando usamos a máquina flutuante, mas não apareces-te; de todos os modos, o hei conservado. Levantará o teu ânimo, já verás.
— Eu gostaria muito de ver um lembrança de seu juventude — respondeu Stephen.
Subiram à abarrotada coberta, onde, contudo, reinava a tranquilidade, a tranquilidade dos domingos pela tarde. O toldo da improvisada igreja ainda estava aberto, e sob sua sombra descansavam os oficiais, o séquito do senhor Stanhope e a maioria dos cadetes, ou ao menos tentavam. E é que ao acabar o serviço religioso haviam reaparecido os galinheiros da cabine, da sala de oficiais e do rancho, e também os animais menores, incluida a cabra do senhor Stanhope, e agora todos estavam amontoados sob aquela sombra porque havia muito pouco vento (a fragata navegava de vento em popa) para atenuar o efeito do sol abrasador. Enquanto isso, o oficial de guarda dava seus rituais passeios de proa a popa com uma luneta sob o braço e seu ajudante e o cadete de guarda iam e vinham pela parte do castelo de popa que ficava livre no outro costado; o timoneiro estava ao timão, o oficial de navegação gobernava o barco e dois marinheiros, os mensajeiros do turno, permaneciam em seus postos mansos como cordeiros apesar de que às vezes lhes pisoteavam. E um mangusto de Bombaim volteava entre todos eles, assustando as galinhas. Jack se deteve para felicitar ao senhor White por seu sermão (uma contundente refutação do arminianismo) e para preguntar-lhe pelo senhor Stanhope, que havia podido comer ao menos uma torrada e um pouco de caldo e esperava acostumar-se de novo a caminhar pelo barco em um ou dos dias.
Seguido por Stephen, avançou para proa entre a multidão dos marinheiros vestidos com sua roupa dos domingos, muitos deles com esplêndidos lenços indianos; uns estavam junto ao corrimão, olhando para o mar deserto ou conversando com os companheiros que estavam nos turcos, outros davam voltas desfrutando de seu tempo de ócio. Chegou ao castelo, também repleto de marinheiros, entre outras razões, porque fazia excessivamente calor para ir abaixo e porque ali se jogava um antigo jogo do campo que consistia em meter a cabeça em uma coalheira e fazer careta, e ganhava o que tivesse o aspecto mais horrível. Em vez de uma coalheira usavam o aro pelo qual se passavam as macas, e o provável ganhador, a julgar pelas gargalhadas, era o jovem ajudante do cirurgião. Era um jovem que, por sua péssima cabeça para os números, havia sido um simples açougueiro nas Bahamas, mas tinha a mão firme na mesa de operações e bastante habilidade para a dissecação. Generalmente se mantinha à distância dos ignorantes, mas agora, por efeito do grogue do domingo e o ímpeto de sua juventude, fazia careta como um macaco, e sua cara tinha uma cor violácea pela pressão. Mas quando seus avermelhados olhos se cruzaram com os de Stephen, deixou de fazer careta e seu rosto tomou um aspecto normal, sorriu forçadamente e em seu olhar refletiu uma mescla de tristeza e turbação; contudo, não foi bastante rápido para tirar o aro. Silencioso como um fantasma, sem ser visto, Jack subiu lentamente pelos amantilhos do mastro traquete, e ao meter a cabeça pela boca de lobo, ouviu o som de uns dados (o som de um jogo ilegal e punível) e o grito de horror: “É o capitão!” Olhou para abaixo para indicar a Stephen onde pôr as mãos e quando por fim chegou ao cesto da gávea, os marinheiros estavam agrupados junto às vigotas de bombordo, em silêncio. Eles sabiam que seu capitão era extraordinariamente ativo, mas subir ao cesto da gávea do traquete, em um domingo, passando pela boca de lobo, superava a imaginação de qualquer ser humano. Doudle o Rápido, o único deles capaz de agir com sensatez apesar da tensão, havia metido os dados na boca e olhava distraidamente para o horizonte com uma expressão que delatava sua ação ilícita. Jack lhes sorriu desde longe e lhes disse: “Continuem, continuem!” Então se sentou sobre uma asa para ajudar Stephen a subir, apesar de seus insistentes protestos: “Posso subir sozinho perfeitamente... Hei subido muitas vezes pelas arraigadas..., dúzias de vezes... Por favor, deixe de prodigalizar-me teus desnecessários cuidados.”
Uma vez que chegou em cima, também se sentou sobre a asa e, devido ao enorme esforço que havia feito para subir, ficou ofegando durante alguns instantes, enquanto o suor corria por suas bochechas afundadas.
— Então este..., este é o cesto da gávea do traquete — disse —. Subi no cesto da gávea do pau da mesana e no do maior, mas nunca havia vindo aqui. É muito parecido aos outros, realmente muito parecido. Tem colocados da mesma forma engenhosa os mastros duplos, os tamboretes e essas coisas redondas... Te has dado conta, meu amigo, que é quase idêntica às demais?
— Uma estranha coincidência, verdade? — disse Jack —.Parece-me que até agora nunca havia ouvido ninguém apontá-la.
— Sua lembrança está aqui?
— Oh, não! Não precisamente aqui, mas um pouco mais cima. Não te importarás subir um pouco mais, verdade?
— Não — respondeu Stephen, olhando para cima, onde o mastaréu, elevando-se em meio da luz difuminada, era o único objeto reto entre as brancas e onduladas formas rodeadas de cabos entrecruzados —. Queres dizer que está no piso seguinte, na plataforma seguinte? Está bem. Mas nesse caso, tirarei a jaqueta, as calças e as meias; não há porque arriscar a estragar como se não fosse nada umas meias de lã de trinta e nove peniques o par.
Sentou-se, e enquanto tirava as calças observava aos homens que estavam junto ao corrimão.
— Doudle, deu-se bem com o ruibarbo que te receitei? — perguntou —. Como estão teus intestinos, meu bom amigo? Deixa-me ver tua língua.
— Oh, não, no domingo não, doutor! — protestou Jack, pensando que Doudle o rápido, um dos homens que se ocupava das vergas superiores, era um excelente marinheiro e não lhe agradaria vê-lo no portaló —. Esqueceu-se de que hoje é domingo. Mellish, cuide da peruca do doutor. Ponha o relógio e o dinheiro dentro e depois o lenço por cima. Vamos, agárrate aos amantilhos, doutor, não aos enfrechates, e olhe sempre para cima, nunca para abaixo. Não se preocupe, eu o seguirei e irei colocando os seus pés.
Acima, cada vez mais acima. Passaram junto ao serviola que estava trepado na ponta, que aparentou estar vigiando com grande atenção. Ainda mais acima. Jack rodeou o mastro, subiu às cruzetas e ajudou Stephen a subir, que agora se deixava levar docilmente. Então lhe passou uma corda ao redor e lhe disse que abrisse os olhos.
— Oh, isto é magnífico! — exclamou e, com grande nervosismo, abraçou o mastro.
Se encontravam muito acima da superfície do mar. Através das gávias e das maiores se via uma pequena parte da distante coberta e nela os homens pareciam bonecos desenhados em perspectiva, bonecos de pernas desproporcionais que, ao caminhar, deslocavam exageradamente os pés para frente e para trás.
— Magnífico! — voltou a exclamar —. Que grande extenção tem o mar agora! Que luminosidade!
Jack riu ao ver sua enorme satisfação e o brilho de seu olhar curioso, e disse:
— Olhe para cima.
A fragata não tinha nenhuma vela de proa desdobrada, pois o vento vinha pela popa. Os estais do traquete, muito tensos, desciam em diagonal formando ângulos geometricamente perfeitos, e debaixo deles se via a curva do corrimão de proa e, mais adiante desta, o comprido bauprés, estendendo-se sobre o infinito oceano. A um ritmo rápido e constante, a proa se afundava nas águas de cor azul escuro, separando-a e lançando para os lados a brilhante espuma.
Durante um longo instante ficou ali sentado, olhando para baixo. A proa subia e baixava lentamente (sem balanço); eles se deslocavam pelo ar cinquenta pés quando a proa baixava e depois voltavam devagar à vertical, e depois de uma pausa voltavam a mover-se para frente.
— O vento é muito mais forte aqui em cima, a tão grande altura — disse por fim.
— Sim, sempre é assim — disse Jack —. Com ventos fracos, por exemplo, as sobrejoanetes dão o mesmo impulso que as maiores, ou até mesmo maior.
Olhou para o pau da sobrejoanete, agora nu, elevando-se para o céu limpo. E enquanto uma parte de sua mente pensava no conveniente que era a cunha do mastaréu, a outra parte lhe disse que era descortês com Stephen que lhe havia feito uma pergunta e esperava sua resposta. Reconstruiu as palavras de Stephen o melhor que pôde: “Has pensado alguma vez que o barco é uma representação do presente e o mar inexplorado que se extende ante ele é o futuro..., que o cabeceio nos faz perceber a nossa existência real?” E então respondeu:
— Não, a verdade é que não. Mas me agrada muito a metáfora; é muito formosa, sobretudo se pensa que esse mar é tão vasto e brilhante como o que vemos agora. Espero que tenhas gostado de vê-lo, Stephen.
— Muito. Raras vezes estive tão gratamente impressionado, tão comprazido. Agradeço-lhe muito que tenhas tido a amabilidade de trazer-me até aqui. Aposto que já veio a este lugar muitas vezes.
— Oh, sim! Quando era cadete nesse mesmo barco, o velho Fidge me mandava subir como castigo por qualquer coisa. Era um excelente marinheiro, mas um pouco irritável; morreu de febre amarela em 1797. Passei muitas horas aqui e, de todas as coisas que li, a maioria eu li aqui.
— Um lugar venerável.
— Oh, meu Deus! Se tivesse um guineu por cada hora que hei passado aqui, não teria que preocupar-me com os butins nem de descontar faturas do soldo do próximo trimestre, e me haveria casado faz muito tempo.
— A questão monetária te preocupa. A mim também, às vezes. Que agradável seria poder presentear a amada com um colar de pérolas! É curioso como muitos homens realmente estúpidos podem conseguir uma fortuna sem esforço, sem comerciar nem possuir sequer mercadorias, apenas anotando cifras em um livro. O parsi que conheci, por exemplo, me disse que se soubesse de boa fonte onde se encontra Linois, ele e seus sócios ganhariam muitos lakh de rupias.
— Como o fariam?
— Mediante a especulação com diversos produtos, sobretudo o arroz. Bombaim não se autoabastece de alimentos, e se Linois estivesse de frente a Mahé, por exemplo, os barcos que transportam o arroz não poderiam chegar. Como consequência disto, o preço do arroz subiria muitíssimo e o parsi venderia as milhares de toneladas que possue nominalmente por uma soma muito maior. Além disso, se especula com os fundos públicos, ou seus equivalentes indianos, algo que não consigo comprender. Até mesmo uma frase falsa astutamente difundida e atribuida a um homem honesto, serviria para ativar o mercado, como dizem eles.
— Ah, sim? Esses tipos são uns verdadeiros veados. Vou te mostrar minha lembrança. Consegui conservá-lo ao sul de Madagascar e também em Bombaim. Tens que ficar em pé. Calma..., segure-se ao perno da cachola. Aí está! — Assinalava o tamborete, um escuro bloco de madeira, desgastado e marcado pelos cabos, que abraçava os dois mastros —. O sacamos do tronco de um loureiro de Guayanas, em uma enseada situada em território espanhol. Pode durar outros vinte anos. E aqui está minha lembrança.
Na margem da parte do bloco que descansava sobre o extremo do mastaréu, estavam gravadas, com uma profunda incisão, as iniciais J. A., e em ambos os lados umas formas toscas que poderiam ser manatis ou talvez sereias, sereias ébrias de cerveja.
— Não te há levantado o ânimo vê-la? — perguntou Jack.
— Bom, te agradeço muito que me tenhas mostrado — respondeu Stephen.
— Mas te levanta o ânimo, digas o que digas, sabes? — disse Jack —. Levanta o ânimo cem pés acima da coberta. Ah, ah, ah! Com o tempo, posso encontrar uma frase engenhosa. Ah, ah, ah!
Quando Jack estava tão contente como agora, sorrindo tanto que estremecia todo o corpo e movia a barriga, com aquela imensa alegria refletida em seu rosto avermelhado e aquele intenso brilho em seus olhos entrecerrados, era impossível resistir, e Stephen, involuntariamente, curvou os lábios, e o diafragma começou a se contrair e sua respiração se fez entrecortada.
— Meu amigo, agradeço realmente que me hajas trazido aqui, a este lugar maravilhoso e ao mesmo tempo perigoso, a este cume próximo ao ápex. Vir aqui reanimou meu espírito e minha carne, e estou decidido a voltar a subir todos os dias. Agora desprecio o cesto da gávea do pau da mesana, que antes me parecia o ponto mais extremo do norte, e inclusive aspiro a chegar a essa anilha daí de cima. — Indicou com a cabeça o racamento da sobrejoanete —. O que um macaco ou um obeso capitão de navio podem fazer, eu também posso fazer.
Essas palavras e a convicção com que foram pronunciadas apagaram o sorriso da cara de Jack.
— Cada um na sua — disse, muito sério —. Os macacos e eu nascemos...
Nesse momento foi interrompido pelo serviola, que gritou: “Coberta!” embora olhava para cima, para onde estava o capitão.
— Barco à vista! — continuou o serviola.
— Onde? — perguntou Jack.
— A dois pontos pela amura de bombordo, senhor.
— Senhor Pullings! Ei, senhor Pullings! Ordene que tragam a minha luneta às cruzetas do traquete!
Uns instantes depois apareceu o senhor Callow, que havia corrido desde a cabine até as cruzetas sem fazer pausa. Então pôde ver mais próxima aquela mancha branca ao sudeste; era um barco que navegava de bolina, lentamente, apenas com as gávias e as maiores desfraldadas, e estava dando uma bordejada a estibordo. Já se distinguia uma parte de seu escuro casco quando se elevava com as ondas. Encontrava-se a umas quatro léguas de distância. Agora a Surprise navegava a sete ou oito nós, mesmo sem ter muito velame aberto, portanto, levava vantagem. Havia muito tempo.
Contudo, Jack tinha gravada em sua mente a ideia: “Não há nem um minuto a perder”, e disse:
— Suba até as cruzetas do mastaréu, senhor Callow, e não veja a presa mas o mar que se extende diante dela. Doutor, por favor, não te movas.
Olhou para a coberta e, erguendo a voz, ordenou que seu timoneiro subisse. Depois começou a descer pelos amantilhos com considerável velocidade e se encontrou com Bonden, que subia.
— Desça o doutor com cuidado, Bonden. Tem que terminar de vestir-se no cesto da gávea — disse e prosseguiu seu caminho até chegar ao castelo de popa.
— Que hão visto, capitão? — perguntou Atkins, correndo a seu encontro —. É o inimigo? É Linois?
— Senhor Pullings, todos a largar velas. Joanete maior, alas e sobrejoanete. E mover a verga do velacho para reduzir sua superfície.
— Sim, senhor. Joanete maior, alas e sobrejoanete, e mover a verga do velacho para reduzir sua superfície. O contramestre chamou aos marinheiros com urgência, e por todo o barco se escutou o ruído pouco habitual dos sapatos dos domingos. Jack ouviu a voz estridente do senhor Atkins interomper-se de repente, quando os homens da guarda de popa o derrubaram. Em poucos momentos terminou a confusão e os homens se separaram em grupos de proa a popa, posicionando-se cada um no posto que lhe correspondia. As ordens chegaram em meio a um silêncio absoluto; as velas foram cazadas em rápida secessão, e à medida que se inflavam com o vento estável, a fragata recebia um impulso maior e deslizava pelo mar com mais rapidez. O ruído de sua exárcia mudou, e também o ritmo de seu cabeceio; ambos tinham agora mais força, mais vivacidade. Ao se ouvir pela última vez o grito “Amarrar!”, Jack olhou seu relógio. O haviam feito bastante bem; ainda não podiam comparar-se com os tripulantes da Lively, pois tardavam um minuto e quarenta segundos, mas o haviam feito bastante bem. Jack observou que o primeiro oficial tinha uma expressão de assombro e riu para si mesmo.
— Sulsudeste meio grau ao sul — disse ao timoneiro —. Senhor Pullings, creio que pode mandar abaixo aos marinheiros de guarda.
Os marinheiros de guarda baixaram correndo ao rancho, mas apenas para tirar suas melhores camisas adornadas com fitas, suas imaculadas calças brancas e seus sapatos enfeitados com laços. Poucos minutos depois reapareceram vestindo sua roupa de trabalho, agruparam-se no castelo, na proa e no cesto da gávea do traquete e dirigiram seu olhar atento para a embarcação que se via no horizonte.
Para então Jack havia começado seu ritual passeio desde o início do castelo de popa ao coroamento, e cada vez que dava a volta olhava para a exárcia e para a distante presa (para a depredadora fragata a embarcação era uma presa, apesar de que esta não fugia, longe disso, pois seu rumo parecia aproximar-se ao da Surprise em vez de afastar-se dele) que, nesse momento, era uma mancha branca junto ao lado mais baixa de bombordo, e conforme orçava desapareceria detrás desta. Agora que o impulso das velas recém desfraldadas havia chegado ao casco, agora que havia cessado o momentâneo queixume dos paus situados mais acima e que os brandais estavam menos tensos, a fragata sulcava as águas velozmente; tinha as velas do mastro da mesana recolhidas; no mastro maior levava desfraldadas a gávia, a joanete e suas duas alas e a sobrejoanete, e a vela maior estava levantada para que o vento chegasse até a traquete; no mastro traquete estavam desfraldadas a traquete e suas alas baixas, mas não o velacho (a gávia maior haveria impedido que lhe chegasse o vento), embora sua verga já estivesse no tope e suas alas desfraldadas. A fragata avançava entre as ondas com um movimento suave e ao mesmo tempo decidido, sem desviar-se minimamente da direção que seguia, e a essa velocidade, seu rumo e o da presa se cruzariam dentro de uma hora aproximadamente. E se isso ocorresse em menos tempo, Jack teria que reduzir vela. Contudo, se a presa virasse em redondo e fugisse, ele podia abrir ainda a cevadeira e as bujarronas e, além disso, teria em todo momento uma vantagem de dois ou três nós.
Alguns civis ficaram ali, e se pediu que eles ficassem calados, enquanto outros foram levados abaixo. Havia um profundo silêncio; não se ouvia nenhuma voz nem o rumor do vento de popa, apenas o ruído da água borbulhante que, a um ritmo rápido e constante, deslizava pelos costados da fragata até chegar a unir-se com a turbulenta esteira.
Seis badaladas. Braithwaite, o ajudante do oficial de guarda, aproximou-se do corrimão com a barquilha e perguntou:
— O relógio está pronto?
— Sim, senhor — disse o oficial de navegação.
Braithwaite deixou cair a barquilha pela popa.
— Agora! — disse, e o barbante começou a passar entre seus dedos enquanto o carretel dava voltas com um agudo rangido.
— Parar! — gritou o oficial de navegação, vinte e oito segundos depois.
— Onze nós e seis braços, senhor, com sua permissão — informou Braithwaite a Pullings, lutando inutilmente por manter-se sério como devia apesar de sua alegria. Todos os marinheiros escutavam muito atentos, e um sussurro de satisfação percorreu toda a fragata.
— Muito bem — disse Pullings, e se aproximou do capitão.
— Como vamos, senhor Pullings? — perguntou Jack.
— Onze nós e seis braços, senhor, com sua permissão — respondeu Pullings com um sorriso.
— Oh! — exclamou Jack —. Não cria que fosse a tanta velocidade.
Com expressão satisfeita percorreu a coberta com a vista e depois olhou para a bandeira, que ondeava na proa como uma chama, uma chama de cinquenta pés de comprimento. A fragata era verdadeiramente uma embarcação extraordinária, sempre havia sido, mas a barquilha nunca havia marcado onze nós e seis braços quando ele era jovem. Agora a presa havia desaparecido de sua vista, e se mantivesse o seu rumo não voltaria a vê-la até que estivesse ao alcance de seus canhões, a menos que se fosse a proa. Stephen estava sentado sobre o cabrestante, comendo um mangostão e observando como a mangusto brincava com seu lenço, lançando-o para cima, pegando-o depois e atacando-o como se quisesse matá-lo.
— Navegamos a onze nós com seis — Jack lhe disse.
— Oh! — Exclamou Stephen —. O sinto deveras..., lamento muito. Não há nenhuma solução?
— Temo que não — respondeu Jack, sacudindo a cabeça —. Queres vir à proa?
Desde o castelo podia comprovar-se que a presa estava mais perto do que se pensava, pois já se via seu casco, e, além disso, que tinha as mesmas velas desfraldadas e seguia o mesmo rumo.
— Pode ser que me equivoque — disse Stephen quando Jack enfocava a presa com sua luneta —, mas cria que este progresso era satisfatório, tendo em conta que a fragata é fraca e velha, quase decrépita. Observe como lança a espuma para os lados, como separa a água quando cabeceia, parece que escava um profundo canal. E pode verse pelo menos uma jarda do revestimento de cobre; nunca a havia visto inclinar-se tanto para os lados. A julgar apenas pelo jorro de espuma que arremessa (minha jaqueta está empapada) a velocidade me parecia adequada, a menos que pretendamos avançar ao ritmo frenético das embarcações modernas.
— Nossa velocidade é satisfatória — disse Jack e baixou a luneta, limpou a objetiva e voltou a enfocar o barco —, mas não o é essa estúpida, horrível e entrometida carraca.
Sem dúvida, no castelo havia diminuido a tensão aos poucos se via mais claro que tipo de presa era. Quase com toda segurança era um barco da Companhia das Índias que se dirigia a Bombaim, pois que outro barco manteria inalterável o rumo quando se aproximava um navio de guerra com boa parte do velame aberto? Seus costados pintados a quadros, suas dez portas e seu ar marcial poderiam enganar aos estranhos, mas os membros da Armada souberam em seguida que era um miserável mercante, que não era um inimigo nem uma presa.
— Bom, me alegro de não haver tirado sequer os canhões de proa — continuou Jack, e começou a caminhar para a popa —. Haveríamos ficado como imbecis se hovéssemos passado por seu lado com a coberta evacuada e os canhões como se fossem espinhos. Senhor Pullings, pode recolher a sobrejoanete e as alas da joanete.
Meia hora depois os dois barcos estavam parados com as gávias recolhidas e balançavam com as ondas. O capitão do Seringapatam foi até a fragata como era costume na Armada, em uma elegante barcaça com a tripulação uniformizada. Subiu ofegante pelo costado, seguido de um marinheiro indiano que levava um pacote, saudou aos oficiais do castelo de popa e se aproximou de Jack mancando, com um sorriso e a mão estendida.
— Não me reconhece, senhor? — perguntou —. Sou Teobaldo, da Orion.
— Teobaldo! Louvado seja Deus! — exclamou Jack, e seu receio se desvaneceu —. Quanto me alegro de ver-te! Killick, Killick! Onde estará esse maldito safado?
— O que está acontecendo agora, senhor? — perguntou Killick mal-humorado, apenas dois pés atrás dele.
— Ponche gelado na cabine de proa, e dê uma mão.
— Como estás, Killick? — perguntou Teobaldo.
— Bastante bem, senhor. Cumprindo meu dever, apesar de que é duro. Nos sentimos muito apenados ao nos enterarmos de sua desgraça, senhor.
— Obrigado, Killick. Não obstante, é uma economia em couro, sabes? — Então se voltou para Jack —. Avistamos a Surprise quando tinha as gávias recolhidas. Nunca imaginei que voltasse a ver o velho mastro maior erguido.
— Não pensas-te que era um navio de Linois?
— Oh, não! Ele estará agora em Ile de France ou no Cabo, muito longe destas águas.
Foram à cabine de proa. Quando por fim sairam dela, o rosto de Teobaldo tinha uma intensa cor vermelha e o de Jack não estava muito mais claro. Falavam com voz forte, como a maioria dos marinheiros, e se podia ouvi-los em todo o barco. Teobaldo se agarrou aos cabos do costado e baixou por eles empregando apenas a força dos braços, e seu rosto desapareceu como o sol no ocaso. Jack ficou olhando como seu amigo avançava pelo mar e subia pelo costado do Seringapatam, e quando os barcos, depois de uma despedida cortês, começaram a afastar-se um de outro, voltou-se para Stephen e lhe disse:
— Temo que tenhas ficado decepcionado; não conseguimos nada. Vem, ajuda-me a acabar o ponche. Já resta pouco e, além disso, apenas Deus sabe quando voltaremos a beber algo bom deste lado de Java.
Quando estavam na cabine, continuou:
— Peço que me desculpes por não haver te chamado para que conhecesse Teobaldo, mas não há nada mais aborrecido que estar sentado com dois antigos companheiros de tripulação que se fazem perguntas: “Lembra-se da batalha do canal da Mona que durou três dias? Recorda-se de Wilkins? Que foi do velho Blodge?” Teobaldo é um tipo estupendo e um excelente marinheiro, mas como não tem nenhum apoio não pôde conseguir um posto de comando: foi primeiro oficial durante dezoito anos. Conseguiu perder uma perna em uma explosão, mas isso também não lhe permitiu conseguir um barco; então se alistou na Companhia e aí está, ao comando de um barco que transporta chá. Pobre homem! Que afortunado sou em comparação com ele!
— Certamente. Esse cavalheiro me dá muita pena. Não obstante, parece estar muito contente. Pullings me disse que os capitães dos barcos que fazem o comércio com as Índias ficam muito ricos, quer dizer, sacodem a árvore das pagodas como o sabem fazer os autênticos marinheiros britânicos.
— Ricos? Oh, sim! Nadam em ouro. Mas ele nunca içará sua insígnia. Pobre homem, nunca içará sua insígnia! Mas à parte de falar de velhos tempos, me deu más notícias. A primeira é que Linois levou a esquadra a Ile de France para reabastecer (devem de ter uma horrível escassez de provisões, pois não há nenhum porto onde possam consegui-las nesta parte do oceano), assim que não poderão regressar a estas águas antes de que deixe de soprar a monção, se é que voltem, e então já estaremos a três mil milhas daqui. A segunda é que a frota da Companhia que faz o comércio com China já há zarpado; Teobaldo teve notícias dela no estreito de Sonda. Não poderemos nos encontrar com ela.
— E isso que importa?
— Esperava poder mandar um pacote de cartas à Inglaterra. E creio que tu terias gostado de fazer o mesmo. Mas o mar apaga a decepção e outras coisas. Repetidamente me hei assombrado de que uns poucos dias de navegação bastassem para nos fazer esquecer. Quando deixamos de avistar a terra parece como se estivessemos navegando pelo rio Leteo. Digo que quando deixamos de avistar a terra parece parece como se estivessemos navegando pelo rio Leteo.
— Já te ouvi. Contudo, não estou de acordo. Que é esse objeto que está sobre o armário, detrás de ti?
— É um estojo com pistolas.
— Não, não, me refiro a esse pacote mal envolto do qual sobressaem plumas.
— Ah, esse! Queria te mostrar muito antes. Teobaldo me trouxe para que eu o desse a Sophie. É uma ave do Paraíso. Foi muito amável, verdade? Sempre foi muito generoso. A caçou faz tempo nas Molucas. Disse para mim com toda a franqueza que ia a dá-la a sua noiva para que pusesse as plumas no chapéu, mas ela se enfadou com ele e o deixou por um advogado, o subdiretor da cadeia Poultry Compter, me parece. Que outra coisa podia esperar um tipo com uma perna de madeira? Ele me assegurou que não se importava e brindou por sua felicidade com este mesmo ponche. Disse que esperava que a ave desse mais sorte a mim. Não crês que um chapéu com estas plumas seria ostentoso? Talvez seja mais adequado colocá-las na proteção ou na prateleira da chaminé.
— Brilham como esmeraldas! Que belo colete! (Não sei se devo chamar-lhe assim.) Que bonita cauda! Nunca havia visto nada tão delicado, tão maravilhoso. É um macho, certamente.
Sentou-se junto dele e começou a tocar as brilhantes plumas da cauda, que agora não estavam desfraldadas. Jack esteve pensando na forma de fazer uma piada relacionando a ave com o advogado, mas abandonou sua tentativa porque seria uma desconsideração com Teobaldo.
Então Stephen perguntou:
— Has refletido alguma vez sobre o sexo?
— Nunca — respondeu Jack —. Nunca hei pensado no sexo, em nenhum momento.
— Refiro-me à carga do sexo. Esta ave, por exemplo, tem uma grande carga, está quase constrangida por ela. Apenas poderia voar ou fazer sua acostumada ronda diária com satisfação, pois se veria entorpecida por uma jarda de cauda e toda esta superestrutura. Todas estas plumas estrafalarias não têm mais que uma função: induzir a fêmea a concordar com suas insistentes pedidos. Se as plumas são (é muito provável que o sejam) um índice do ardor de seu desejo, o pobre pássaro deve de ter-se abrasado.
— Esse é um pensamento muito profundo.
— Se fosse um capão, sua vida haveria sido muito mais fácil. Estas esporas, que são para brigar, haveriam desaparecido; haveria se convertido em um animal tranquilo, sociável, dócil. Algo similar lhes passaria aos tripulantes da Surprise se eu lhes castrasse, Jack: engordariam e se tornariam pacíficos. Então este barco já não seria um navio de guerra que vai de um lado a outro em uma desenfreiada corrida; poderia dar a volta ao globo terráqueo sem que ouvíssemos uma única palavra desagradável. Ninguém sentiria decepção por não encontrar-se com Linois.
— Não importa que haja decepção. O mar a apagará. Verás que dentro de uma semana isto terá muito pouca importância e tudo voltará ao normal.
Isso era verdade. Uma vez que a Surprise bordeou Ceilán e pôs rumo ao mar de Java, todos ficaram capturados na rotina diária: lixar com pedra arenito, esfregar e tirar a água da coberta ao raiar o dia; guardar as macas; o café da manhã e seus agradáveis odores; a invariável sucessão dos turnos; o meio-dia e a medição da altitude do sol, a comida, ou grogue; carne de vaca assada ao estilo inglês para os oficiais, anunciada pelo tambor, quase um banquete; passar revista, tocar retirada, o rugido dos canhões pela tarde, rizar as gávias, a troca da guarda. E durante as noites langas e quentes, iluminadas pela lua e pelas as estrelas, Jack se reunia com dois brilhantes cadetes para explicar-lhes a intrincada e maravilhosa navegação astronômica. Essa vida, que seguia pautas fixas marcadas pelo som agudo e urgente dos sinos, parecia ter se tornado eterna quando desciam para o Equador, o qual cruzaram em um ponto situado a noventa e um graus de latitude a leste de Greenwill. As grandes cerimônias, como passar revista, formar para fazer chamada, celebrar a missa e ler as Ordenanças militares, indicavam uma ordenada sucessão temporal mais que o próprio transcurso do tempo, e antes de que houvessem se repetido duas vezes, para a maioria dos tripulantes o passado e o futuro lhes pareciam apagados, quase inexistentes, e essa sensação se fazia mais profunda pelo fato de que a Surprise se encontrava de novo em águas solitárias, águas de uma intensa cor azul que se estendiam ao longo de duas mil milhas, onde não havia nem uma ilha que quebrasse o seu perfeito contorno nem o cheiro de terra firme, por mais forte que soprasse o vento; a fragata era um universo à parte, movendo-se entre dois pontos constantemente mutáveis. Essa sensação se fazia mais profunda também por outro motivo, porque os homens já não olhavam impacientes para o leste, esquadrinhando o horizonte, pois navegavam sem esperar nenhum inimigo e nenhuma possível presa: os holandeses estavam controlados, os franceses haviam desaparecido e os portugueses eram amigos.
Contudo, não permaneciam ociosos. O senhor Stourton cumpria com grande zelo suas obrigações como primeiro oficial. Sentia um grande horror por qualquer indício de sujeira ou os mais mínimos restos de cabos. Passava quase todo o tempo com a megafone na mão, e por todo o barco se lhe ouvia gritar: “Faxineiros, faxineiros!” tão repetidamente como canta o cuco em maio e quase com o mesmo tom.
Havia aceitado as ideias do capitão sobre a disciplina, e com grande alívio. Contudo, a força do costume era tão grande que a Surprise estava em condições de receber a visita de um almirante todos os dias e sem o temor de envergonhar-se. Stourton era muito mais eficiente que Hervey. Estava claro que podia se ocupar de que se realizassem todas as tarefas rotineiras do barco; em uma fragata com uma tripulação bem preparada e um capitão que conhecia sua profissão, qualquer oficial medianamente competente poderia o haver feito, mas Stourton o fez admirávelmente. Era certo que muitas vezes, ao amanhecer, os cadetes desejavam que ele fosse ao inferno, mas seu caráter alegre melhorava até mais o agradável clima da sala dos oficiais.
Jack estava preocupado com a forma como a fragata navegava. O segundo oficial, Harrowby, não sobresalia por sua habilidade como marinheiro nem como navegante, e com a preça da partida, não se havia preocupado que o carregamento estivesse bem colocado no porão. Por essa razão, a fragata movia sua estreita proa com a soltura de uma potranca e quando navegava de bolina não se aproximava da direção do vento tanto quanto Jack desejava nem se movia com a suavidade e a rapidez com que poderia fazê-lo. Com o vento à quadra navegava esplendidamente, nunca o havia feito melhor, mas com o de vento em popa deixava muito que desejar, pois oferecia certa resistência e avançava a um ritmo lento e com dificuldade, e isso não podia se contrariar mudando a combinação de velas desfraldadas. Mas até que chegassem ao Equador, onde terminaram de transferir os tonéis de água para outro paiol e de trocar milhares de balas de lugar, Jack não se sentiu tranquilo, apesar de que essa era uma medida provisória. Para solucionar realmente o problema devia esperar até que pudesse descer a terra uma grande quantidade de provisões, chegar até o fundo do porão, onde estava o lastro, e recolocar o carregamento.
Não obstante, graças a essa mudança, agora era um prazer governá-la.
Tinha muito que fazer, e também os tripulantes. Contudo, muitas tardes estes bailavam e cantavam no castelo e Jack e Stephen tocavam música na pequena cabine ou no castelo de popa, ou às vezes, até mesmo, na cabine grande, formando um trio com o senhor Stanhope, que tocava a flauta suavemente, mas com emoção, e tinha muitas partituras.
A saúde do enviado do Rei, embora delicada, havia melhorado muito em Bombaim. E depois de passar uma semana mareado no barco, sentia-se muito mais forte e animado. Repetidamente se sentava com Stephen e ambos repetiam por turnos alguns verbos malaios ou ele ensaiava o discurso que pronunciaria ante o sultão de Kampong. Devia ser um discurso em francês, uma língua que o senhor Stanhope não dominava, e provavelmente tampouco o sultão, mas em Kampong havia um residente francês, e o senhor Stanhope pensava que, por respeito a Sua Majestade, tinha que fazer uma alocução perfeita. O repetiu uma e outra vez, interrompendo-se sempre em roí des trente-six parapluies et tres illustre seigneur de mille éléphants, porque devido a seu nervosismo trocava seigneur e éléphants. O discurso ia ser traduzido frase por frase ao malaio por seu novo secretário oriental, um cavalheiro de Bencoolen, procedente de uma família de origem mista, que lhe foi recomendado pelo governador de Bombaim. O senhor Atkins suspeitava do recém chegado e o odiava. Tratava de tornar a sua vida impossível, mas, ao menos aparentemente, não conseguia, porque no senhor Ahmed Smyth seguia predominando o caráter malaio, e seus olhos negros, grandes e oblíquos brilhavam de alegria.
O senhor Stanhope tratava de pôr paz entre eles; contudo, com frequência se ouvia de fora da cabine (quase não havia intimidade em um barco de trinta jardas de comprimento com duzentas pessoas amontonadas nele) como Atkins, com sua voz nasal, estridente, se queixava de que Smyth tensionava usurpar seu cargo, e depois se ouvia como o enviado, em voz baixa, empregando um tom conciliador, lhe assegurava que Smyth era um homem muito bom, amável, educado e sério e que não tinha a intenção de lhe fazer dano e nem sequer sabia o que era a usurpação. Ahmed Smyth era popular na fragata, embora, por ser mussulmano e padecer do fígado, não bebia vinho, e quando se terminou de recolocar o carregamento no porão e ficou um espaço livre bastante comprido para colgar um maca, o senhor Stourton ordenou que o tranformassem em uma cabine para o cavalheiro estrangeiro. Isso incomodou tanto a Atkins, que se via obrigado a compartilhar a sua com o pobre senhor Berkeley, com quem não se falava, que rogou a Stephen que fizesse uso de sua influência sobre o capitão para terminar com aquela enorme injustiça, aquele horrível abuso da autoridade.
— Não posso me meter nas questões internas do barco — disse Stephen.
— Então Sua Excelência terá que falar com o próprio Aubrey — disse Atkins —. Isto é intolerável. Cada dia esse preto encontra uma nova forma de me provocar. Se ele não andar com cuidado, serei eu quem o provocará, eu asseguro.
— Quer dizer que vai se bater com ele? — Perguntou Stephen —. Ninguém que lhe deseje o bem lhe aconselharia que o fizesse.
— Obrigado, obrigado, doutor Maturin — disse Atkins, pegando-lhe uma mão. O pobre homem era extremamente sensível inclusive à mais falsa demostração de afeto —. Não obstante, não era isso o que queria dizer. Oh, não! Uma pessoa de estirpe como eu não pode bater-se com um empregado preto, de uma casta intermediária, que não é nem sequer cristão. Afinal de contas, un gentilhomme est toujours un gentilhomme.
— Tranquilise-se, senhor Atkins — disse Stephen, porque Atkins havia dito estas últimas palavras com tal excitação que o sangue havia afluido para o seu nariz e suas orelhas —. Nestas latitudes, a excessiva excitação pode ocasionar febre. Não me agradam essas manchas que tem no rosto. Além disso, o senhor come excessivamente e bebe excessivamente, e isso o converte em uma provável vítima.
Contudo, foi o senhor Stanhope que teve febre. Numa tarde em que Ahmed Smyth estava comendo com os oficiais, puderam-se ouvir as queixas de Atkins na cabine. A poucos pés por acima da claraboia aberta, o carpinteiro deixou o maço e disse em voz baixa a seu companheiro: “Se eu fosse Sua Excelência, pondria a esse sacana em um bote com uma libra de queijo e lhe mandaria que buscasse outro lugar onde ficar. Como incomoda com suas censuras ao pobre cavalheiro! Qualquer um diria que estão casados. Fico com muita pena do pobre cavalheiro, sempre tão amável.”
Pouco depois o ajudante de câmara do senhor Stanhope lhes transmitiou os cumprimentos de seu senhor e suas desculpas por não comparecer à partida de whist, assim como seu desejo de falar com o doutor Maturin quando este julgasse oportuno. Quando Stephen foi vê-lo, parecia cansado, envelhecido e desanimado, e disse que, aparentemente, seu condenado fígado andava mal outra vez, pelo qual lhe rogava que lhe desse meia pílula azul ou o que ele cresse conveniente. O pulso era fraco e irregular e a temperatura alta. Tinha a pele seca, uma expressão ansiosa e os olhos brilhantes. Stephen lhe receitou quina, uma poção feita de limo, sua favorita, e um placebo de cor azul.
Tudo isso teve certo efeito, e pela manhã o senhor Stanhope já se sentia melhor. Contudo, não recuperou as forças nem o apetite. A Stephen não agradavam os sintomas do paciente, cuja temperatura subia e baixava provocando O que está acontecendosse de uma grande excitação a uma profunda languidez e vice-versa, um mudança que ele nunca havia visto. Ao senhor Stanhope lhe resultava difícil suportar o calor, cada vez maior porque a fragata aproximava-se do Equador, e todos os dias o vento se acalmava das dez às duas. Colocaram uma mangueira de ventilação para fazer o ar chegar à cabine, onde ele permanecia deitado, cada vez mais magro e amarelo, sentindo náuseas constantemente, mas sempre com uma atitude amável, agradecendo as atenções e desculpando-se.
Stephen e McAlister tinham bastantes livros sobre medicina tropical, e depois de lê-los com afã admitiram — em latim — que estavam perdidos.
— Ao menos uma coisa podemos fazer — disse Stephen —. Podemos eliminar uma fonte externa de irritação.
O senhor Atkins, por ordem do doutor, foi proibido de entrar na cabine. Stephen passava a maioria das noites ali, geralmente acompanhado pelo ajudante de câmara, o senhor White. O fazia porque sentia afeto pelo enviado do Rei e lhe desejava o melhor, mas, sobretudo, para cumprir com seu dever profissional. Aquele era um caso em que a meticulosa observação hipocrática substituia remédios, pois o paciente estava muito fraco e a enfermidade era excessivamente pouco conhecida para aplicar um tratamento eficaz, de forma que Stephen permaneceu sentado junto ao leito do senhor Stanhope uma palntão após o outro, enquanto a fragata navegava devagar por águas fosforescentes. Pensou que era disso que devia se ocupar, não de perseguir com paixão autodestruidora a uma mulher que estava fora do seu alcance. A medicina, em sua opinião, era algo impessoal, embora podia influir nela o fator humano; sem dúvida, haveria destinado a Atkins os mesmos cuidados.
Qual era a sua motivação, além do desejo de saber e o afã por classificar, medir, denominar e anotar?
Seu pensamento se desviou por intrincadas veredas. E quando, meio dormido, notou que lhe invadia uma sensação de prazer e que tinha um sorriso em seu rosto, sacudiu a cabeça, fazendo mais claras suas vagas ideias. Então compreendeu que, no intervalo entre as duas e as três badaladas, que acabavam de soar, estivera pensando em Diana Villiers ou, seja, em sua risada, tão alegre e excitante, tão musical, e nos cachos que seu cabelo formava na nuca.
— Leu Heautontimorúmenos na escola? — murmurou o senhor Stanhope.
— Sim — respondeu Stephen.
— No mar tudo é diferente. Sonhava com o doutor Bulkeley, que estava na escola, e via sua horrível cara negra; depois tive a sensação de que o havia visto realmente aqui, na cabine. Como me assustava quando era menino! Mas estamos no mar; aqui tudo é diferente. É quase de dia, verdade? Acho que ouvi três badaladas.
— Falta muito pouco. Por favor, levante a cabeça para que eu possa virar a almofada.
Mudaram os lençóis. Lavou-lhe com uma esponja, deu-lhe uma colherada de sopa e lhe tirou as crostas dos lábios, que pareciam negras à luz das velas. Quando soaram quatro badaladas, o senhor Stanhope começou a falar sem tom nem som do protocolo da corte do sultão: o senhor Smyth lhe havia dito que os governantes malaios estavam muito interessados em obter privilegios e ele cria que um representante de Seu Majestade não precisava concordar com nenhuma petição imprópia e que esperava fazer as coisas bem...
Lavou-lhe de novo. Mudou-lhe de posição, e o senhor Stanhope se sentiu envergonhado como uma jovem porque se viam suas partes pudendas. Stephen notava mudanças em seu estado dia a dia. E depois de duas semanas de constantes cuidados, com os olhos afundados e rodeados por negras olheiras devido ao cansaço, foi à enfermaria e disse ao senhor McAlister:
— Bons dias. Creio que podemos cantar vitória, pelo menos no que se refere à anorexia. Às quatro o paciente teve uma crise com bastante sudoração e pouco depois das seis tomou nada menos que onze onças de sopa. A sopa merece ser louvada! Que nunca falte a sopa! Seu pulso continua fraco e o fígado ainda é palpável, mas creio que podemos confiar em que ganhará peso e recuperará as forças.
Durante o dia penduravam sua maca no lado de barlavento do castelo de popa, e os tripulantes estavam contentes de tê-lo de novo entre eles. Embora o senhor Stanhope, seu séquito, sua bagagem, seus regalos e seus animais haviam sido uma incômodo para eles ao longo de quinze mil milhas, pensavam que “a Excelência”, como eles diziam, era um cavalheiro muito cortês, sempre muito amável — a diferença de outros convencidos soberbos — e haviam se acostumado com a sua presença. E posto que gostavam de conservar tudo aquilo ao que estavam acostumados, alegravam-se de ver que ele melhorava à medida que a fragata deslizava para o sudeste, através de ventos mais fortes e mais frios.
Ventos muito mais frios, e também mais instáveis, que às vezes mudavam completamente de direção. E não era raro que em alguns dias a Surprise levasse os mastaréus sobre a coberta, tivesse as maiores aferradas e navegasse apenas com as gávias rizadas.
Em um dia desses, um domingo, quando Jack estava comendo com os oficiais, como era costume, e a conversação girava em torno aos animais selvagens que encontrariam em Java (a cujo extremo ocidental, na entrada do estreito de Sonda, pensavam avistar na segunda-feira), o ajudante de câmara do senhor Stanhope entrou correndo no sala horrorizado, com os olhos fora das órbitas. Stephen deixou a comida, e poucos minutos depois mandou chamar McAlister. Os rumores já circulavam pela fragata: o enviado do Rei havia tido um ataque de apoplexia..., havia se engasgado com o vinho, e o sangue, muito espesso e anegrado, saia em profusão de sua boca..., o cirurgião ia operá-lo em seguida e já estavam afiando os instrumentos..., estava morto.
Quando Stephen regressou ao banquete encontrou silêncio, apreensão e desalento. Contudo, sentou-se a comer sem deixar trasluzir nenhuma emoção e disse a Jack:
— Tomamos algumas medidas e está bastante aliviado, mas sua estado é muito grave e é vital que desça a terra firme, ao lugar que nos fique mais próximo. E mesmo que hajamos chegado, o movimento da fragata deve ser o mínimo possível. Outras vinte e quatro horas com este balanço podem ter consequências fatais. Pode me passar o vinho, por favor?
— Senhor Harrowy, senhor Pullings, venham comigo — disse Jack, arremessando o guardanapo —. Senhor Stourton, peço que nos desculpe.
Poucos momentos depois, todos os oficiais haviam ido. Apenas ficaram Etherege e o contador, O que está acontecendoram para Stephen o queijo, o pudim e o vinho e, perturbados e silenciosos, observavam enquanto ele terminava a copiosa comida.
Jack olhava as cartas marítimas, e a seu lado estavam Pullings e o segundo oficial. Haviam mudado o rumo para que o vento chegasse pela alheta, e a fragata se deslocava agora suavemente com muito pouco velame aberto à parte do velacho. Segundo as últimas medições, sua posição exata era: 5° 13' S, 103° 37' E, com o cabo Java situado a 70 léguas ao oeste-sudoeste.
— Poderíamos chegar a Bencoleen se seguirmos nesta direção, mas não em vinte e quatro horas. Ou talvez poderíamos ir a Telanjang... Não, não com esta marejada. É necessário levá-lo a algum lugar civilizado, a um hospital, ou qualquer lugar é adequado? É importante que saibamos.
— Irei verificar, senhor — disse Pullings.
E ao seu regresso lhe informou:
— Ele disse que pode ser qualquer lugar.
— Obrigado, Pullings. Posto que o senhor conhece estas águas e seguramente há atravessado estes estreitos uma dúzia de vezes, tem alguma sugestão?
— Pulo Batak, senhor — respondeu Pullings, assinalando a costa com o compasso de ponta fixa —. A parte interior de Pulo Batak. Em uma viagem que fiz no Lord Clive, fomos reabastecer água ali duas vezes, na ida e na volta. Suas águas são navegáveis até muito próximo da costa, apenas a um cabo de distância há quarenta braços de profundidade, e o fundo é liso. Em um extremo da baía há um manancial e a água pode ser levada facilmente aos botes. Não é um lugar civilizado, apenas o habitam uns homenzinhos negros que andam nus e tocam tambores na selva. É muito tranquilo, e a ilha o protege de tudo menos do vento do noroeste.
— Muito bem — disse Jack, inclinado sobre a carta marinha —. Muito bem. Senhor Harrowy, ponha rumo a Pulo Batak, por favor.
Subiu à coberta para determinar o velame que poderia levar a fragata sem perder a estabilidade. À meia-noite ainda estava ali, e também ao amanhecer. A medida que o vento amainava, as velas iam abrindo-se uma a uma como flores, até que formaram uma pirâmide branca. Era necessário aproveitar todo o impulso disponível, para chegar a Pulo Batak em vinte e quatro horas.
Pela altitude que o sol tinha a meio-dia souberam que haviam avançado bastante nas últimas horas, e pouco depois da comida, que não foi anunciada com apitos nem tambores, avistaram terra. Pullings estava seguro disso, pois das cruzetas do mastaréu de proa distinguia ao noroeste um cabo arredondado com duas elevações. A fragata se movia com suavidade pelas águas tranquilas, e graças aos sobrejoanetinhos alcançava quatro nós de velocidade.
Avançava como se a terra exercesse uma estranha atração sobre ela. Pelo leste puderam ver umas escuras montanhas que pareciam barrotes no céu, e à medida que a fragata se aproximava da terra tinham uma cor verde mais intensa. A ilha que protegia a pequena baía podia ser vista agora claramente da coberta, e em sua costa oeste o mar estava ondeado. Tudo parecia indicar que a Surprise poderia jogar a âncora no tempo previsto. Ainda faltava uma hora. A melhor âncora já estava pronta na serviola, e todos os preparativos feitos, quando, inoportunamente, começou a soprar o terral, em fortes rajadas, trazendo o penetrante e nauseabundo cheiro da vegetação. As velas ficaram flácidas, inverteram, e a velocidade começou a diminuir. Jack mandou que largassem o cabo para comprovar a profundidade. À proa se ouviu o estalido do cabo quando caiu ao mar e depois chegou até a popa a frase familiar: “Atenção, atenção, soltar, soltar mais!”, em um inusual tom grave. E por fim Jack recebeu a resposta que esperava: “O fundo está a mais de duzentas braços, senhor.”
— Desça todos os botes, senhor Stourton — ordenou —. Temos que rebocá-la. Espero que cheguemos a um ancoradouro antes que a maré mude e tenhamos uma forte corrente contrária. Senhor Rattray, amarre outra corrente à âncora, por favor, e traga uma nova espia de oito polegadas.
A fragata avançava governada por Pullings da ponta da traquete, e quando a maré começou a baixar, com um rápido movimento em direção contrária, e os botes já não podiam conseguir que ganhasse velocidade, jogaram a âncora, apesar de estar em um lugar muito profundo, de mais de noventa braças. Jack nunca havia ancorado em águas de tanta profundidade, e sua ansiedade era tão grande que perguntou duas vezes a Thomas Pullings se ele estava seguro do que fazia:
— Senhor Pullings, está certo de que podemos ancorar aqui?
Ambos estavam na coberta, justo por cima do escovém, e detrás deles havia um grupo de experimentados marinheiros do castelo com semblante grave.
— Sim, senhor — respondeu Pullings —. Estivemos aqui três dias com o Clive, reconheço o lugar. O fundo é tão liso como o do cabo Gurnard. Podem soltar toda a corrente, assumo a responsabilidade.
— Ei, aí embaixo! — Gritou Jack, inclinando-se sobre a escotilha —. Ponham estopores duplos, atem dois cabos gancho e soltem a corrente até o final!
A Surprise retrocedia; a corrente ficava tensa, subia à superfície formando uma pronunciada curva e arrastava a âncora sobre o fundo do mar. Uma unha da âncora se prendeu no fundo, depois se arrastou um pouco mais e por fim ficou firmemente cravada. A corrente subiu mais à superfície e foi ficando cada vez mais tensa, até que, agitando a água, ficou estendida ao máximo, e então fez a fragata virar devagar.
Pullings, sentindo o peso da responsabilidade, não deixou de olhar para a corrente e a costa enquanto durou a maré. Tomou como referência três árvores situados em linha para comprovar que a fragata não se movia, que não era empurrada para o alto mar, para a forte corrente que cruzava ao noroeste da costa, a que tinha provocado que tardassem dias em voltar à baía. A maré baixava rápido, cada vez mais rápido, formando bolhas ao redor do acabamento da proa.
— Nunca vi uma âncora que se mantivesse firme com a corrente quase na vertical nem em águas de cem braças de profundidade — disse um marinheiro velho —. É lógico, pela compressão do volume.
— Cala-te, Wilks — disse Pullings, voltando-se bruscamente para ele —. Tu e teus condenados volumes!
— Foi apenas um comentário — disse Wilks muito tranquilo.
Com que rapidez baixava a maré! Contudo, agora parecia que o movimento do mar era mais lento, sim, não havia dúvida de que era mais lento. Babbington se reuniu com ele no castelo.
— O que está acontecendo? — perguntou Pullings.
— Ainda restam cinco minutos da maré minguante, mas o mar se move cada vez mais lentamente — disse Babbington, enquanto olhava junto com Pullings para a corrente, e este ficou grato a ele.
Depois de alguns instantes continuou:
— Temos que pôr uma bóia na corrente e depois recolhê-la quando pudermos rebocar a fragata de novo. Estão fazendo uma espécie de maca para descê-lo à terra.
A maré minguante parou, por fim. A barcaça se afastou com o cabo para o reboque e pôs a bóia na corrente. Então Pullings foi à popa, sentindo-se rejuvenescido.
— Estão preparados aí embaixo, senhor Stourton? — perguntou Jack.
— Todos preparados, senhor. — Sua voz parecia apagada.
— Recolham a corrente! Senhor Pullings, vá guiando-nos no bote. Todos os botes a remar e avançar com rapidez! Ouviram-me?
Avançaram com rapidez, puxaram com energia, e a fragata começou a se mover suavemente. Mas apesar de tudo, já era noite quando deixava para trás a ilha e se aproximava da resguardada baía flanqueada pela selva. Pelo extremo mais afastado se estendia um penhasco coberto de vegetação em algunas zonas, e nele havia uma enseada em forma de meia lua de cujas escuras rochas caia uma impressionante cascata, que era quase o único som que se ouvia em meio ao ar quase irrespirável. Aquele lugar, que de longe se via tão verde e parecia tão agradável, tomava uma aparência muito diferente quanto mais se aproximavam dele, e a duzentas jardas da borda a fragata e os botes foram invadidos por um enxame de moscas que pousaram sobre os aparelhos, as velas, a coberta e a tripulação.
Trinta horas, não vinte e quatro, haviam passado quando por fim baixaram a maca do senhor Stanhope da barcaça e a colocaram com cuidado na areia.
A enseada lhe pareceu ainda menor quando Jack a percorreu. A selva intensionava penetrar nela por todas as partes, fazendo sobresair por sobre da areia sua espessa folhagem. O ar imóvel, naquele lugar perdido não soprava o vento, estava cheio do repugnante cheiro da vegetação e o zumbido dos mosquitos. Enquanto se aproximavam dali, Jack havia ouvido o som de um tambor no bosque, e agora que seus ouvidos haviam se acostumado ao ruído da cascata, podia distingui-lo de novo, ao norte, embora não podia calcular a que distância estava.
Um grupo de morcegos (com uma envergadura de cinco pés) cruzaram a enseada voando baixo e foram a pousar em um árvore coberta por uma trepadeira. Jack, que seguia com a vista seu sinistro vôo, creu ver uma obscura forma humana entre a verde folhagem que rodeava a árvore e se dirigiu a ela com determinação, mas a selva era impenetrável, as únicas veredas não eram outra coisa que túneis de dois ou três pés de altura. Então voltou e ficou olhando a praia e o mar. Haviam montado duas tendas e as chamas da foguera já brilhavam na escuridão. Haviam aceso também um grande farol e Etherege havia começado a apostrofar aos infantes da marinha. Do outro lado das tendas estava a fragata, apenas a um cabo de distância e, contudo, em águas de vinte braças de profundidade; a haviam amarrado pela proa e pela popa às árvores de um saliente da costa e haviam jogado a âncora pelo costado mais próximo ao alto mar. Parecia enorme naquele reduzido espaço. Tinha as portas abertas, e através delas se viam luzes movendo-se pela coberta principal. Além da fragata estava a ilha, ocultando o mar. Estava segura ali, embora começasse a soprar o vento, e com seus canhões impediria o aproximação de qualquer embarcação. Nesse momento Jack teve a impressão de que estavam observando-lhe e se dirigiu para as tendas.
— Senhor Smyth, estivera aqui alguma vez? — perguntou ao secretário oriental.
— Não, senhor — respondeu Smyth —. Os malaios não frequentam esta parte do país. Oh, não! Pertenece aos Orang Bakut, uma tribo de homenzinhos negros que andam nus. Escute! Esses são seus tambores. Comunicam-se com tambores.
— Sim, isso parece... O doutor está com o paciente?
— Não, senhor. Está na outra tenda preparando seus instrumentos.
— Posso entrar, Stephen? — Perguntou, assomando-se à tenda —. Como vão as coisas?
Stephen testou o fio de seu bisturi raspando o antebraço e respondeu:
— Operaremos quando houver bastante luz, caso se recupere um pouco durante a noite. Expliquei-lhe as alternativas: por um lado, uma operação como esta é um risco para um organismo debilitado pela enfermidade, por outro lado, retardá-la teria inevitavelmente consequências fatais. Ele decidiu se submeter à operação porque o considera seu dever. O senhor White está com ele agora. Espero que sua determinação não o abandone.
Não foi a determinação do senhor Stanhope a que o abandonou mas seu espírito vital. Durante a noite os ruidos da selva o impediram de dormir, o estrondo dos tambores de ambos os lados da baía lhe produziram uma grande inquietação e o calor era excessivamente forte para que ele pudesse suportar. Ao redor das três da madrugada morreu, falando tranquilamente das cerimônias na corte do sultão e da importância de não ceder a nenhuma petição imprópria, enquanto os tambores pareciam servir de fundo à sua recepção oficial. Não tinha consciência de que estava morrendo. Stephen e o pastor permaneceram sentados junto a ele durante o resto da noite, escutando os ruidos que havia fora da tenda: o coaxar e o cacarejar de inumeráveis animais, uma infinidade de gritos, uivos e grunhidos não identificados destacando-se entre outros ruidos de fundo, o rugido de um tigre, repetindo-se com frequência de diferentes lugares, e o constante retumbar dos tambores, algumas vezes próximo e outras distante. Pela manhã o enterraram em um extremo da baía. Os infantes da marinha dispararam várias salvas junto à sua tumba e a fragata lhe disse adeus com um ruído estrondoso, provocando nuvens de pássaros e morcegos ao redor da reverberante enseada. Estavam presentes no funeral todos os oficiais com o uniforme completo e com os sabres do revés, e também a maioria da tripulação.
Jack aproveitou que a fragata estava ancorada em um lugar resguardado para arrumar os aparelhos, e enquanto isto era feito, o carpinteiro fez uma cruz de madeira. Pintaram-na de branco, e a pintura ainda não havia secado quando a fragata saiu para o alto mar, com as correntes já recolhidas e guardadas no paiol e impregnadas de um cheiro fétido.
Jack olhou pela janela de popa para a distante terra, agora de coloração púrpura e assolada por uma tempestade.
— Terminamos uma absurda missão — disse.
E Stephen, em resposta, recitou:
Em todos os tempos o caçador há perseguido uma presa, as guerras não hão servido de nada, os amantes hão sido infiéis.
— Pelo menos — disse Jack depois de uma demorada pausa —, pelo menos podemos regressar ao nosso país. Regressar por fim! Acho que terei que fazer uma escala em Calcutá (Calcutá te agradará), mas será muito breve, e nos dirigiremos à Inglaterra à maior velocidade que a fragata possa alcançar.
Ficou pensativo um pouco e depois acrescentou: — Creio que se começarmos a navegar a toda vela desde já poderemos alcançar a frota que faz o comércio com a China e enviar nossas cartas. Os barcos da frota são velhos e lentos como carracas, embora acreditam que são como navios de guerra, e navegam toda a noite com as gávias rizadas. Não deverias haver dito isso sobre os amantes, Stephen.
CAPÍTULO 9
Foi nos noventa graus de latitude leste onde a alcançaram. Ao final da guarda do meio viram uma fileira de luzes, e quando saiu o sol a maioria dos tripulantes da Surprise estava na coberta contemplando a nuvem de velas que flutuava no horizonte: trinta e nove navios de diferentes tipos e um bergantim, divididos em dois grupos.
Haviam se separado um pouco durante a noite e agora estavam reagrupando-se, obedecendo os sinais do comodoro, e os atrazados navegavam com todas as velas desfraldadas para aproveitar o moderado vento do noroeste. A divisão de sotavento — se um grupo tão desordenado, espalhado ao longo de três milhas, pudesse ser chamado de divisão — estava integrada por mercantes daquela zona que se dirigiam a Calcutá, Madras ou Bombaim, e alguns de outros lugares que haviam se unido a eles para se proteger contra os piratas e beneficiar-se de sua superioridade em matéria de navegação. Contudo, o grupo de barlavento, composto por dezesseis dos mercantes maiores da Companhia das Índias, que viajavam diretamente de Cantón a Londres, estava colocado em uma ordem perfeita que não haveria desacreditado a Armada.
— Está senhor totalmente convencido de que não são navios de guerra? — Perguntou o senhor White —. Parece que o são por essas filas de canhões que têm; à qualquer homem de terra adentro lhe pareceria que o são.
— Eles se parecem muito, não é? — Disse Stephen —. O seu propósito é precisamente se parecer com eles. Não obstante, se o senhor os observar mais atentamente, verá que há tonéis de água colocados, armazenados, entre os canhões, e um montão de fardos na coberta, algo que nunca seria permitido na Armada. E as diversas bandeiras e bandeirolas que ondeiam nos paus são muito diferentes; não sei qual é exatamente a diferença, mas um marinheiro percebe logo que não são da Armada real. Além disso, creio que há ouvido ao capitão dar a ordem de nos aproximarmos, e me extranharia muito que o tivesse dito se cresse que é uma frota inimiga de grande magnitude.
— Gritou: “Bolinar!” e depois uma blasfêmia — disse o pastor, semicerrando os olhos.
— É o mesmo — Stephen lhe assegurou—. Os marinheiros falam usando tropos.
Do seu posto, nas cruzetas do mastro maior, Pullings chamou a William Church, um cadete muito jovem que fazia sua primeira viagem, durante a qual parecia ter encolhido em vez de crescer.
— Bem, jovenzinho — disse Pullings —, sei que sempre está dizendo que não há visto as riquezas do Oriente nem em Bombaim nem em nenhuma zona próxima, que apenas há visto barro, moscas e o mar deserto, por isso quero que veja com a luneta o barco que tem o galhardete. É o Lushington; fiz duas viagens nele. O que está detrás é o Warley, de excelentes características para a navegação, quase navega sozinho, e muito rápido para ser um mercante da Companhia das Índias; por suas belas formas, qualquer um que não tenha estado a bordo o tomaria por uma potente fragata. Observe que têm trinquetinas, como nós; são os únicos mercantes que levam uma traquetina. Alguns consideram isso uma impertinência. E esse outro com a gávia recolhida, onde estão desdobrando velas devagar. Meu Deus, que desastre! Esqueceram de passar a escota da vela do estai. Vê o contramestre correndo pela coberta enfurecido? Até mesmo posso ouvir-lhe. Sempre ocorre o mesmo com os marinheiros indianos: são bastante bons, mas às vezes esquecem o a-bê-cê da navegação. Além disso, não se pode conseguir que façam seu trabalho rápido, embora sempre seja o mesmo. Próximo a sua alheta, com a polaca remendada, está o Hope, ou talvez seja o Ocean, os dois se parecem muito, sairam do mesmo estaleiro e têm o mesmo calado. A todos os barcos deste grupo de barlavento lhes chamamos “mercantes de mil e duzentas toneladas”, embora alguns têm um arqueio de mil e trezentas e até mesmo de mil e quinhentas toneladas, segundo nosso método de arquear. Por exemplo, o Wexford, esse que tem no castelo um reluzente canhão de bronze de oito libras, tem mais, mas o chamamos “mercante de mil e duzentas toneladas”.
— Senhor, não seria mais simples chamar-lhe “mercante de mil e quinhentas toneladas”?
— Talvez seria mais simples, mas não seria possível. Não se podem mudar os velhos costumes. Oh, não, meu Deus! Se o capitão lhe ouvisse expressar-se com essa liberalidade jacobina e essa falta de respeito, garanto que o abandonaria no mar em um tabuão de três polegadas com as duas orelhas cravadas nele para que aprendesse a ter vergonha, o mesmo que fez com três cadetes no Mediterrâneo. Não, não, não se devem mudar os velhos costumes; os franceses o fizeram e veja em que confusão estão metidos. Mas o hei mandado subir aqui para que visse as riquezas do Oriente. Observe os barcos que estão entre o do comodoro e o que vai na frente da frota, o Ganges, se não me equivoco, e os que estão detrás, até chegar àquele atrasado, que se encontra muito abatido a sotavento e agora está desdobrando as sobrejoanetes. Olhe-os bem, porque provavelmente não voltará a ver nada igual: aí tem senhor seis milhões de libras, sem contar o dinheiro dos negócios privados dos oficiais. Seis milhões de libras! Meu Deus, que butim!
Os oficiais que levavam este enorme tesouro pelo oceano, navegando sem pressa, como era o costume nas Índias Orientais, eram recompensados generosamente. Isso lhes comprazia, entre outras coisas, porque lhes permitia ser magníficos anfitriões; de fato, eram os melhores anfitriões de toda a frota. Tão pronto como o capitão Muffit, o comodoro, distinguiu à luz do amanhecer o altíssimo mastro maior da fragata, mandou buscar o seu despenseiro, o seu melhor cozinheiro chinês e o seu melhor cozinheiro indiano, e no Lushington apareceram sinais: um dirigido à Surprise, com a mensagem: Rogamos a honra da companhia do capitão e dos oficiais para jantar, e a outra dirigida ao comboio com a mensagem: a todos os barcos: rogamos que jovens e belas passageiras compareçam ao jantar com os oficiais da fragata. Repetimos jovens. Repetimos belas.
A Surprise deteve-se a um cabo de distância do Lushington. Os botes iam e vinham entre os barcos da frota levando a bordo jovens com trajes de seda e ansiosos oficiais vestidos de azul e dourado. O esplêndido camarote do comodoro estava cheio de gente, cheio de vozes alegres. Ouviam-se notícias da Europa, da Índia e do longínquo Oriente; notícias da guerra e de amizades comuns; mexericos, conversações triviais mas alegres e até adivinhações. Fizeram brindes pela Armada real, pela honrada Companhia Britânica das Índias Orientais, pelo aumento do comércio... E os oficiais da fragata se encheram de excelente comida e de um vinho estupendo. A jovem que estava sentada junto ao senhor Church, uma encantadora criatura de cabelos dourados, tratou-lhe com a atenção e o respeito devidos ao seu uniforme, animando-o a comer um pouco mais de pato laqueado, mais um pedacinho de porco, mais rodelas de abacaxi, mais pãozinhos de Cantón, e trocou seu terceiro prato de pudim com ele, dizendo-lhe que ninguém o notaria. Mas apesar de sua boa vontade, ao final tratou de evitar que seguisse pegando coisas. Uma vão tentativa, pois Church já tinha bem agarrado uma torta com a forma da pagoda de Kwan-Yin. Ainda lhe faltavam por comer oito pisos, mas seguia o lema de seu querido capitão: “Não há nem um minuto a perder” e por isso não perdia nenhum falando e comia sem parar. Ela olhou ansiosa ao seu ao redor e fixou o olhar no cirurgião da fragata, que estava sentado em frente, mas não conseguiu ajudante. Quando as damas se retiraram — seguidas imediatamente por Babbington, que disse haver esquecido seu lenço no bote — ela se deteve junto ao primeiro oficial do Lushington e lhe disse:
— Por favor, senhor, evite que esse menino de uniforme azul se machuque.
Com a expressão preocupada o observou descer pelo costado. Mas não pôde ver, nem sequer imaginar, como correu desde a coberta da fragata até a camareta de cadetes, onde os que haviam tido que ficar a bordo desfrutavam da estupenda comida que lhes haviam enviado do mercante.
Jack, pelo contrário, não haveria podido jantar por segunda vez quando voltou à Surprise, não haveria podido ingerir nada sólido. Tirou a jaqueta, a gravata, o colete e as calças e mandou que lhe trouxessem pantalonas, nanquim e café.
— Divide comigo outra cafeteira, Stephen? — perguntou —. Meu Deus! Que maravilhoso é ter espaço para mover-se! — o séquito do enviado do Rei (menos o senhor White, que era excessivamente pobre para pagar a passagem) havia embarcado em um mercante, e a cabine grande era sua de novo —. E como estou contente de ter me livrado de Atkins, esse tipo tão malvado e desprezível!
— Era um chato, mas não um malvado. Afinal era fraco e estúpido.
— Quando dizes que era um fraco, já disse tudo. Tens uma grande tendência a desculpar aos tipos desprezíveis, Stephen. Proteges-te a Scriven, aquele homem perverso que havia saido da cadeia, alimentou-lhe em tua casa, deu-lhe apoio, e quem pagou por isso? Jack Aubrey pagou por isso. Aqui está o café. Depois de um jantar como esse o que o corpo pede a gente é um café. Um jantar excelente, sem dúvida. O pato era dos melhores que já comi em minha vida.
— Fiquei preocupado ao vê-lo servindo-se pela quarta vez, pois pato faz mal ao fígado. Em qualquer caso, o espesso molho com que estava banhado não é conveniente para uma pessoa tão corpulenta como tu. A apoplexia se esconde nessa classe de pratos. Eu te fiz sinais, mas não me prestas-te atenção.
— Por isso tinhas essa expressão tão mal-humorada?
— Também porque as senhoras que estavam sentadas ao meu lado não me agradavam.
— Essas ninfas vestidas de verde? Eram umas jovens encantadoras.
— Nota-se que has passado muito tempo no mar, do contrário não chamarias assim a essas mentecaptas vulgares e libidinosas de cabelo avermelhado e feições toscas, com a cara cheia de espinhas, o pescoço curto e os dedos gordos. Grandes ninfas! Se são ninfas devem ter estado em um tanque de água suja e fedorenta; a que se encontrava à minha esquerda tinha mal hálito, e quando me virei para a que estava à minha direita em busca de alivio, descobri que sua irmã o tinha pior. Além disso, a parte superior de seus trajes tampouco era incensurável, e seguramente a parte inferior era ainda pior. Uma disse à outra: “Olá, irmã!”, jogando o bafo na minha cara e mostrando-me os seus horríveis dentes. E a outra lhe respondeu: “Olá, irmã!” Nunca tinha visto a duas irmãs que usassem os vestidos iguais, tão chamativos como os das prostitutas, nem que usassem os mesmos cachos, esses espantosos cachos de Gorgona, caindo-lhes sobre a testa, dando-lhes uma aparência horrorosa. Isso demonstra que têm dupla vulgaridade, tanto inata como adquirida. E quando penso que, arrastadas por sua lascívia, povoarão o Oriente... Por favor, sirva-me outra xícara de café. São realmente estúpidas e presuçosas.
Poderia haver adicionado que as duas jovens haviam começado a falar em seguida de uma tal senhora Villiers de Bombaim que acabava de chegar a Calcutá. Supunham que ele teria ouvido falar dela em Bombaim e lhe disseram que era uma aventureira..., isso era uma vergonha..., a haviam visto na casa do Governador vestida de forma extravagante..., não era bonita, longe disso..., corriam estranhos rumores sobre ela..., a gente se via obrigada a recebê-la em sua casa e fingir que não sabia nada, devido a que seu amigo (“Protetor”, disse uma irmã à que falava) era uma pessoa muito importante e vivia com magnificência, quase como um príncipe..., se rumorejava que ela o estava arruinando. Contaram que o cavalheiro era muito amável, alto, de porte distinto, quase como um dos seus, e... como havia olhado a Aggie! Ambas taparam suas bocas com os sujos lenços formando uma bola, tentando dissimular a risada, e bateram as palmas por detrás de Stephen, que tinha as costas arqueadas para a frente.
Estava pensando em confessar: “Essas mulheres falaram muito mal de Diana Villiers e isso me incomodou. Em Bombaim pedi a Diana que se casasse comigo e me dará sua resposta em Calcutá. Faz tempo que queria dizer-te; considerando a confiança que temos, devia lhe ter feito esta confissão antes. Espero que me perdoes por minha aparente falta de franqueza”, mas nesse momento Jack disse:
— Pelo que vejo não te agradaram de modo algum. Sinto muito. A pessoa que estava sentada ao meu lado e eu nos simpatizamos muito; me refiro a Muffit. A jovem que estava do outro lado era uma criançola, não tinha peito. Eu imaginava que as mulheres sem peito haviam se extinguido faz tempo. Imediatamento ele e eu simpatizamos. É um autêntico marinheiro, não se parece em nada com os típicos capitães da Companhia, e com isto não quero dizer que os demais não sejam bons marinheiros, mas creio que o são pianíssimo, não sei se me entendes.
— Entendo o que quer dizer pianíssimo.
— Tem a mesma ideia que eu de que se deve colocar o mastaréu do sobrejoanete detrás do mastaréu do joanete, com a base apoiada no tamborete do cesto da gávea; o tem colocado assim, como seguramente haverás notado, e afirma que isso o permite conseguir um nó a mais com vento moderado. Estou decidido a fazer a prova. É um tipo estupendo; me prometeu entregar as nossas cartas a um barco mensajeiro quando chegar a um ancoradouro.
“Espero que tenhas pedido a Sophie que vá a Madeira”, disse Stephen para si.
— E também entende de artilharia, o que é bastante raro até mesmo na Armada. Faz tudo o que pode para treinar a sua tripulação, mas o pobre homem não tem um barco bem equipado.
— Pareceu-me que tinha formidáveis canhões, e mais que nós, se não me equivoco.
— Mas não eram canhões longos, meu querido Stephen. Eram canhões de curto alcance.
— Que queres dizer com isso?
— Pois que são canhões medianos, de dezoito libras. Como poderei explicar-lhe? Sabes o que é uma coronada, certo?
— Certamente, esses canhões curtos que estão sobre uma plataforma e que têm pequenas proporções mas lançam balas enormes. Hei visto vários na fragata.
— És um lince, na verdade; não te escapa nada. E, claro, sabes o que é um canhão. Pois bem, imagine que do cruzamento entre os dois saisse um horrível híbrido que pesasse nada menos do que vinte e oito quintais (2.800kg), saltasse pelo ar e se soltassem das retrancas a cada vez que disparasse e não acertasse o alvo a quinhentas jardas, nem sequer a cinquenta: isso é um canhão de curto alcance. Mas mesmo se a Companhia cuidasse mais de seus interesses e lhe desse autênticos canhões, quem os disparariam? Precisaria de trezentos e cinquenta homens. E quantos tem? Cento e quarenta, e a maioria deles cozinheiros e despenseiros, e para completar cozinheiros e despenseiros indianos. Santo Deus, que forma de levar pelo mundo seis milhões de libras! E contudo, ele tem uma ideia muito acertada sobre como colocar um mastaréu de sobrejoanete. Estou decidido a fazer a prova, ao menos no pau do traquete.
Dois dias depois, atravessando agitadas águas e envolta pela névoa, a Surprise fazia a prova. O carpinteiro e sua brigada haviam trabalhado toda a manhã, e agora, apenas terminada a comida, o comprido mastaréu era içado entre o trançado da intrincada exárcia. Aquela era uma tarefa perigosa quando havia marejada, por isso Jack pôs a fragata apresentável. Mas além disso, decidiu adiar o grogue do meio-dia, porque assim evitaria que os homens estivessem ébrios quando puxassem o virador e porque sabia que o atraso os ia animar a trabalhar: não perderiam tempo nem fariam uma pausa — simulando que ofegavam por causa do calor asfixiante — por temor ao que seus companheiros pudessem lhes fazer.
Subia e subia. E Jack, com os olhos entrecerrados devido ao resplendor do sol, oculto pela névoa, o guiava polegada a polegada, tratando de que os sucessivos puxões coincidissem com o cabeceio da fragata. O último meio pé; todos os tripulantes contuveram a respiração e fixaram a vista na base do mastaréu. Subiu um pouco mais, enquanto o novo virador rangia ao passar pela polia e deixava cair uma nuvem de fiapos, e depois seguiu subindo, estremecendo, até que a base ficou situada por acima do tamborete.
— Devagar, devagar! — gritou Jack. Elevou-se um pouco mais, e então o contramestre, desde o topo, levantou a mão —. Descer!
O virador se afrouxou e a base do mastaréu se encaixou na carlinga; tudo havia terminado.
Os tripulantes da Surprise deram um suspiro coletivo. A gávia maior e a traquete cairam como uma cortina ao final de um atormentado drama; os homens pegaram as escotas e o contramestre, com o apito, deu a ordem de amarrar. A fragata respondeu em seguida, e quando Jack começava a notar o aumento da velocidade, levantou a vista para o novo mastaréu de sobrejoanete, que se elevava por cima do mastaréu do joanete, paralelo a ele, e parecia combinar esplendidamente a robustez e a flexibilidade. Sentiu uma grande satisfação, que não estava motivada unicamente pela colocação do mastaréu nem pelo suave movimento da fragata — sua própria fragata — nem pelo fato de que estava navegando e que tinha um posto de comando. Tinha a agradável sensação de estar...
— Coberta! — gritou o serviola, vacilante e envergonhado —. Barco pela amura de bombordo! Dois talvez! — Vacilante porque era absurdo avisar pela terceira vez que divisava a frota da Companhia que fazia o comércio com a China e envergonhado porque o deveria haver feito antes se não tivesse estado atento ao perigoso espetáculo da colocação do mastaréu.
Seu aviso despertou pouco interesse ou, melhor dito, nenhum, porque iriam servir o grogue quando terminassem de fixar o mastaréu e colocassem a verga nele. Os marinheiros, muito dispostos, já haviam começado a colocar na verga os dois pares de amantilhos para prendê-lo muito antes de receber as ordens, e seus companheiros, nas cruzetas, esperavam impacientes para amarrar os braços. Contudo, Jack e o primeiro oficial olhavam atentamente para os barcos envolvidos pela névoa, a umas quatro milhas da proa. Pareciam extraordinariamente grandes e podiam ser vistos com maior nitidez à medida que a fragata se aproximava, que agora alcançava uma velocidade de cinco nós com o forte vento do noroeste.
— Quem será esse tipo antiquado que leva colocada a vela de estai no mastaréu de sobre-mesana por debaixo do cesto da gávea do maior? — Perguntou Stourton —. Creio que há outros dois atrás. Assombra-me que nos hajam alcançado com tanta rapidez. Depois de tudo...
— Stourton! Stourton! — Exclamou Jack —. É Linois! Virar a bombordo! Virar a bombordo! Rápido! Largar a vela maior! Içar o galhardete! Abrir a traquetina e a joanete maior! Atenção, infantes da marinha! Atar a braça maior! Movam-se! Movam-se! Senhor Etherege, posicione rapidamente os seus homens!
Babbington se dirigiu a proa correndo para informar que já estava colocada a verga da sobrejoanete de proa, e o brusco giro da fragata, junto com o forte balanço, lhe fizeram perder o equilíbrio e, era tão comprido que, caiu aos pés do capitão.
— Demônios! — Exclamou Jack —. Senhor Babbington, sua deferência é um pouco exagerada.
— A verga está colocada, senhor, com sua permissão — disse Babbington.
E ao ver a expressão alegre de Jack e o intenso brilho de seus olhos, pensando em que fazia muitos anos que o conhecia, se atreveu a preguntar:
— O que está acontecendo, senhor?
— Aí está Linois — disse Jack com um sorriso —. Senhor Stourton, ponha estais nesse mastaréu e em seguida contraestais. E não deixe que tensionem excessivamente os amantilhos; há que evitar que se parta. Despliegue o maior número de velas possível. E depois ordene fazer os preparativos para o combate.
Pegou a luneta do ombro e subiu ao tope como um menino. A Surprise havia virado em redondo e havia tomado um novo rumo; navegava de bolina para o norte, inclinando a bombordo à medida que aumentava o velame aberto e com um cabeceio que fazia salpicar água a uma grande distância. Os barcos franceses estavam quase ocultos pela névoa, mas ele pôde ver como o mais próximo fazia sinais. Ambos haviam seguido um rumo convergente ao da Surprise, a haviam visto primeiro, e agora viravam para continuar a perseguição. Contudo, não alcançariam sua esteira a menos que dessem bordadas, mas mesmo assim estavam muito afastados para conseguirem. Pôde distinguir outro barco muito maior entre ambos, outro bastante afastado ao sudoeste e outro muito mais borrado no horizonte, talvez um bergantim. Esses três ainda navegavam com o vento à quadra, e era evidente que a esquadra estivera formada em linha, abarcando vinte milhas justo na zona por onde devia passar no dia seguinte a lenta frota da Companhia em seu regresso da China.
Desde a manhã se ouviam o retumbar dos trovões, e agora, em meio do distante ruído, se pôde ouvir um canhonaço. Seguramente o almirante ordenava aos barcos que estavam a sotavento que se aproxiassem.
— Senhor Stourton — disse —. Ice a bandeira holandesa e duas o três tiras das primeiras bandeiras de sinais que encontre e dispare um canhonaço por barlavento, não, dois canhonaços.
As fragatas francesas navegavam a toda vela; levavam desfraldadas inclusive as velas de estai dos mastaréus, a bujarrona e o estai. Tinham um forte cabeceio; a primeira avançava possivelmente a oito nós e a segunda a nove, e cada vez se distanciavam mais do resto, o que não o agradava nada. A principal preocupação de Jack era averiguar; qual delas teria que enfrentar.
A coberta, ali debaixo dele, parecia um formigueiro no qual se havia perdido a tranquilidade, e desde a cabine podiam se ouvir os golpes de maço que davam os carpinteiros ao tombar as anteparas. Passariam alguns minutos antes que terminasse a aparente confusão e tudo estivesse em perfeita ordem de proa a popa: os canhões já desatados, as brigadas de artilheiros junto a eles, todos os tripulantes em seus postos, os sentinelas nas escotilhas, grandes pedaços de lona molhada estendidos sobre o paiol e areia úmida espalhada pela coberta. Os homens haviam dado todos esses passos centenas de vezes, mas nunca em uma situação real. Como se comportariam na batalha? Muito bem, sem dúvida, como se comportavam a maioria deles no combate se guiados adequadamente. Afinal, os tripulantes da Surprise eram muito dispostos; disparavam os canhões com demasiada precipitação ao princípio, mas isso se podia solucionar... Quanta pólvora tinham? Segundo o informe do dia anterior, tinham vinte cartuchos por pessoa e grande número de buchas. Hales era um magnífico condestável; o mais provável é que estivesse nesse momento no paiol trabalhando sem parar.
Aquele distanciamento não o agradava nada; esperaria mais dois minutos e depois tomaria medidas. A segunda fragata havia ultrapassado a primeira. Jack estava quase serto de que era a Semillante, com trinta e seis canhões, dos quais os que levava na coberta principal eram de doze libras; a Surprise poderia pegá-la. Colocou-se no ponta para poder ver melhor, pois as fragatas se aproximavam pela alheta e era difícil contar suas portas. Sim, era a Semillante. E a potente fragata que estava detrás era a Belle Poule, com quarenta canhões no total e canhões de dezoito libras na coberta; se fosse bem governada era um osso duro de roer. As avaliou desapaixonadamente: ambas estavam bem governadas, eram um pouco instáveis — talvez pela falta de carga — e lentas, certamente, já que depois de passar tantos meses naquelas águas quentes como um caldo seguramente arrastavam uma grande capa de algas, o que tornava as manobras mais difíceis. Eram belas embarcações, sem dúvida. E tudo indicava que seus tripulantes conheciam seu trabalho; na Semillante recolheram as escotas da traquetina em um instante. Em sua opinião, a Belle Poule estaria melhor com menos velame aberto e a joanete da proa fazia demasiada pressão, mas, Indubitavelmente, o capitão da fragata conhecia melhor sua exárcia.
Braithwaite apareceu, dando resfolegos, e disse:
— Senhor, o senhor Stourton lhe informa que terminaram a preparação para o combate e pergunta se deseja que chame todos a seus postos.
— Não, senhor Braithwaite — disse Jack, pensando em que não havia indícios de que a batalha fosse começar logo e seria uma lástima obrigar os homens a esperar de pé —. Não. Diga-lhe que diminua vela discretamente; pode subir um pouco as bolinas e dar mais ou menos meia braça às escotas, mas não deve deixar que notem nada, entenda. Além disso, diga-lhe que coloque o velho velacho número três em uma espia e que o abra pela última porta de sotavento.
— Sim, sim, senhor — disse Braithwaite e desapareceu.
Uns momentos depois, a velocidade da fragata começou a diminuir; e quando a vela rasteira recebeu uma grande pressão e se abriu como um pára-quedas sob a superfície, a velocidade diminuiu muito mais.
Stephen e o pastor, apoiados no coroamento, olhavam para atrás pelo costado de bombordo.
— Parece que estão se aproximando — disse o senhor White —, porque vejo claramente aos homens que estão na ponta da mais próxima, e até mesmo da que vem atrás. Hão disparado um canhonaço! E agora aparece uma bandeira! Sua luneta, por favor. Vá! É a bandeira inglesa! Felicito-lhe, doutor Maturin, lhe felicito porque nos hemos salvado. Sinceramente, Cheguei a crer que estávamos em uma situação difícil, que existia um perigo real. Ah, ah, ah! São nossos amigos!
— Haud crede colorí (Não confies muito na cor) — disse Stephen —. Veja para cima, meu querido amigo.
O senhor White levantou a vista e viu uma bandeira tricolor ondeando na ponta do mastro da mesana.
— É a bandeira francesa — disse —. Não, a holandesa. Navegamos sob uma bandeira falsa! Como isso é possível?
— Eles também — disse Stephen —. Eles tratam de nos enganar e nós tratamos de enganá-los. A maldade está dividida em partes iguais. É uma prática aceita, creio eu, como ordenar ao nosso servente... — um disparo do canhão de proa da Semillante fez saltar um penacho de água perto da popa e o pastor recuou — que diga que não estamos em casa quando a verdade é que estamos comendo pãozinhos com manteiga junto ao fogo e não queremos que nos incomodem.
— Hei feito isso com frequência — disse o senhor White, cujo rosto havia ficado de muitas cores —. Que Deus me perdoe. E agora estou aqui, no meio de uma batalha. Nunca crí que uma coisa assim poderia ocorrer-me, porque sou um homem pacífico. Contudo, não darei um mal exemplo.
Uma bala caiu na crista de uma onda e, de rebote, atravessou as macas perfeitamente apilados e chegou até o castelo de popa, mas não causou danos. Dois cadetes correram para pegá-la, e depois de uns instantes de luta o mais forte conseguiu ficar com ela e a envolveu em sua jaqueta.
— Céu Santo! — Exclamou o senhor White —. É uma barbaridade disparar enormes balas de ferro em pessoas com as quais a gente nem sequer conhece.
— Vamos dar uma volta, senhor? — perguntou Stephen.
— Com muito prazer, senhor, se não crê que eu deveria ficar aqui para demostrar que não temo a esses rufiões. O capitão vai ficar no alto do mastro, nesse lugar tão perigoso?
— Creio que sim — respondeu Stephen —. Creio que está reflexionando sobre a situação.
Indubitavelmente estava reflexionando. Estava claro que seu principal dever era alcançar a frota da Companhia e fazer todo o possível para protegê-la. Não tinha dúvidas de que podia ir mais rápido do que os franceses, porque as fragatas tinham os fundos sujos. Mas mesmo que tivessem os fundos limpos, haveria podido ultrapassá-las, por muito boas embarcações que fossem, não apenas porque a Surprise também havia sido construida pelos franceses mas porque estava sob seu comando, e, naturalmente, um inglês sabia governar um barco melhor que um francês. Não obstante, Linois era uma rapoza e não se devia subestimá-lo. Linois lhe havia perseguido no Mediterrâneo, durante um comprido dia de verão, e o havia apanhado.
A fragata de duas cobertas de bateria, estava tão perto agora que não havia dúvidas sobre sua identidade. Era a Marengo, de setenta e quatro canhões, e levava a insígnia de contra-almirante. Havia virado em redondo e agora navegava de bolina escorada a bombordo, seguida por outro barco e o distante bergantim. O barco devia de ser a corveta Berceau, de vinte e dois canhões; não sabia nada a respeito do bergantim. Linois havia virado em redondo, não havia dado bordejadas; isso significava que queria facilitar as coisas para a sua fragata. As três embarcações, a Marengo, a Berceau e o bergantim, se mantinham no lado oposto ao das fragatas, com a clara intenção de bloqueá-lo se estas conseguissem desviá-lo; estavam dispostas como uma matilha em torno da lebre.
A última bala havia caído muito próxima, havia sido um tiro excelente para uma distância tão grande. Seria uma lástima se cortassem algum cabo.
— Senhor Stourton! — gritou —. Tire um rizo do velacho e puxe mais as bolinas.
A Surprise deu um salto para a frente, apesar de levar a vela rasteira. A Semillante deixava para trás a Belle Poule, a sotavento. Jack sabia que poderia atraí-la um pouco mais e, virando de repente, obligá-la a realizar um combate corpo a corpo; poderia lhe fazer muito dano com suas caronadas de trinta e duas libras e talvez afundá-la ou capturá-la antes de que seus companheiros chegassem. A tentação era tão forte que começou a ofegar. Conseguiria a glória e a única presa do oceano índico... Já via a bonita imagem da batalha: os clarões dos canhões, o fumo se dispersando, os mastros caindo... Mas se desvaneceu em seguida e seu coração voltou a bater ao sossegado ritmo que impunham o raciocínio e o dever. Não devia arriscar nem um único pau; sua fragata precisava alcançar a frota da Companhia a todo custo, e permanecer intacta.
Pelo rumo que ia agora levaria Linois diretamente à frota, que se encontrava a meio dia de navegação em direção leste, dispersa por um área de várias milhas, sem suspeitar de nada. Indubitavelmente, tinha que afastar os franceses com qualquer nimia estratagema, mesmo que isso significasse perder a sua cômoda vantagem; lhes afastaria até que anoitecesse, e então viraria e, confiando na escuridão e na excelente capacidade de manobra da Surprise, se livraria deles e se reuniria com a frota a tempo.
Podia mudar de rumo e navegar em direção sudeste mais ou menos até as dez; então já se haveria separado tanto de Linois que, aproveitando a escuridão, poderia virar e cruzar em frente a ele e depois voltar a mudar de direção. Contudo, se o fizesse mostraria a sua intenção, e Linois, que era uma velha rapoza, poderia ordenar às fragatas que o perseguiam que continuassem navegando rumo ao norte, aproximando-se da Surprise por barlavento, para que chegassem a ultrapassá-la ao amanhecer. Isso seria horrível, pois por mais rápido que fosse não poderia ultrapassar à Semillante e a Belle Poule se navegassem com o vento à quadra, e teria que mudar de bordo repetidas vezes para avisar à frota.
Mas se Linois fazia isso, se ordenasse às fragatas seguir para o norte, se formaria uma fenda na disposição de sua esquadra depois de um quarto de hora, e por essa fenda a Surprise poderia passar. Viraria de repente e, navegando com o de vento em popa e a maior quantidade de velame aberto que fosse possível, passaria entre a Marengo e a Belle Poule, fora do alcance de ambas, já que Linois havia disposto sua esquadra considerando que a presa navegaria a nove ou a dez nós, o máximo que podia alcançar um barco europeu nessas águas e, por tanto, também a Surprise. A Berceau, a corveta, a mais fastada por sotavento, poderia tratar de ocupar esse espaço, mas não lograria reter a Surprise até que a Marengo chegasse, embora derribasse alguns paus. Se tivesse um capitão tão determinado que tentasse lhes abordar e deixasse que crivassem o seu barco de balas ou o afundassem, então isso era diferente.
Observou a distante corveta, e quando esta desapareceu atrás de uma cortina de chuva, voltou os olhos para a fragata de duas baterias. Que pensaria Linois? Navegava velozmente em direção leste-sudeste com pouco velame aberto e levava carregadas as gávias e a maior. De uma coisa estava seguro: Linois tinha um interesse infinitamente maior em pegar a frota da Companhia que fazia o comércio com a China que em destruir uma fragata.
Os movimentos..., as respostas a esses movimentos em ambos os lados..., os diversos perigos..., e sobretudo a ideia de Linois sobre a situação... Desceu para a coberta, e Stephen, olhando-lhe atentamente, pensou que tinha o que ele chamava “cara de combate”, ou seja, uma expressão que não apenas refletia seu ardente desejo de começar imediatamente a batalha e de isolar ou abordar ao inimigo, mais uma mescla de alegria e confiança, reserva e absoluta firmeza. Sem dizer uma palavra — no lugar de dar a ordem de enganchar as polias nos topes e pôr contra-estais duplos — começou a passear pelo castelo de popa com as mãos para trás das costas, olhando umas vezes para as fragatas menores e outras para a do almirante. Stephen viu o primeiro oficial se aproximar, vacilar e depois retroceder, e pensou: “Em ocasiões como esta meu querido amigo parece aumentar de tamanho, parece crescer tanto espiritual como fisicamente. Será uma ilusão de ótica? Como poderia medi-lo? Sua perspicácia, contudo, não se pode medir. E se converte em um estranho; também eu duvidaria em me aproximar dele.”
— Senhor Stourton — disse Jack —. Vamos virar.
— Sim, senhor. Deseja que tire a vela rasteira?
— Não. E não quero virar excessivamente rápido, portanto as ordens devem ser espaçadas.
Quando os apitos transmitiram a ordem “Todos a virar!”, Jack se pôs de pé sobre as macas e focalizou a Marengo com sua luneta, e foi movendo à medida que a fragata virava. Justo depois do grito: “Tensionar a maior!” e a aguda apitada com que se ordenava amarrar, viu que na fragata do almirante aparecia um sinal e saia da popa o fumo de um disparo.
A Semillante e a Belle Poule haviam começado a virar para seguir-lhe, mas a Semillante derivou a sotavento e em seguida voltou à mesma posição. A Belle Poule, em troca, chegou a colocar-se contra o vento, por isso quando uma segunda canhonaço confirmou a ordem de seguir navegando em direção norte e ultrapassar a fragata, teve que virar em redondo para voltar a tomar o rumo anterior.
— Maldita seja! — murmurou Jack.
Aquele erro reduziria a apreciada fenda em um quarto de milha. Olhou para o sol e depois para seu relógio. Então disse:
— Senhor Church, traga-me uma manga, por favor.
Os minutos passaram; o suco caia pelo seu queixo. As fragatas francesas navegavam no rumo norte-noroeste e ficavam cada vez menores. As duas cruzaram a esteira da Surprise, primeiro a Semillante e depois a Belle Poule, e conseguiriam ultrapassá-la; agora não podia mudar de opinião. A Marengo estava a estibordo, seguindo uma trajetória paralela, e se viam claramente as suas duas filas de canhões. Não havia nenhum ruído exceto o rumor do vento na exárcia e o choque das ondas contra a amura de estibordo da fragata. Os barcos separados apenas pareciam se mover uns relativos aos outros à medida que o tempo passava; dava a impressão de que aquele era o lugar mais tranquilo do mundo.
A Marengo baixou o velacho e o ângulo de visão aumentou um grau. Jack comprovou todas as posições outra vez, olhou o seu relógio, depois o catavento, e disse:
— Senhor Stourton, as alas estão no cesto da gávea, certo?
— Sim, senhor.
— Em dez minutos soltaremos a vela rasteira, viraremos, desprenderemos as sobrejoanetes, as alas superiores e as inferiores, se a fragata soportar, e nos colocaremos com o vento dois graus pela aleta. Temos que fazer as manobras mais rápido que nunca, e, claro, carregar a vela da mesana e arriar as velas de estai ao mesmo tempo. Mande Clerk e Bonden ao timão. Abra as portas de estibordo. Prepare tudo e espere a soltar a vela rasteira quando lhe der o sinal.
Os minutos seguiam passando; aproximava-se o momento crítico, mas lentamente, lentamente. Jack, imóvel entre o movimento intenso na coberta, olhou para a distante fragata de Linois e começou a assobiar muito baixo. Depois observou com atenção a sua e pensou que gostaria que soprasse um vento de moderada intensidade, propício para as joanetes. Se o vento fosse mais forte e se formassem grandes ondas a fragata de duas cobertas seria favorecida, porque era uma embarcação alta e muito mais pesada; e ele sabia por experiência o rápido que as fragatas francesas de setenta e quatro canhões podiam se mover.
Um último olhar a barlavento: as forças estavam perfeitamente equilibradas, o momento havia chegado. Respirou fundo, lançou pela borda a semente seca da manga e disse:
— Agora! — Ouviu-se um impacto na água —. Tudo a bombordo!
A Surprise começou a girar sobre a popa e enquanto as vergas mudavam de orientação com uma admirável rapidez, umas velas se abriam ao tempo que outras desapareciam e a esteira, cheia de espuma, formava uma suave curva pela aleta de estibordo. Avançou com um impulso tremendo, enquanto se ouvia o queixume de seus mastros, e ficou situada justo em seu novo rumo, sem desviar-se nem um quarto de grau. Tinha a proa dirigida exatamente para o lugar que Jack queria, para onde poderia formar-se a fenda, e navegava mais rápido do que esperava. Os paus mais altos, dobrados como o chicote de um cocheiro, estavam a ponto de se romper.
— Senhor Stourton, tudo foi muito bem feito. Estou muito satisfeito.
A Surprise sulcava as águas cada vez com maior rapidez e passou dos onze nós de velocidade. Então parou o queixume dos mastros e os brandais ficaram um pouco menos tensos. Sem deixar de olhar a Marengo, Jack se inclinou para um deles para comprovar sua tensão e depois disse:
— Despregue as alas da sobrejoanete de proa e da sobrejoanete maior.
A Marengo manobrava rapidamente e estava muito bem governada. Contudo, a mudança a pegou desprevenida, e quando começou a virar a Surprise já havia aberto as alas das sobrejoanetes. Na Surprise se ouvia de novo o queixume dos mastros, que agora arrastavam as quinhentas toneladas da fragata a uma velocidade maior. A coberta se inclinava tanto que a espuma cobria o corrimão de proa pelo lado de sotavento e o mar passava por seus costados com um ruído ensurdecedor, enquanto a tripulação permanecia silenciosa; o silêncio era absoluto de proa a popa.
Quando a Marengo terminou de virar se colocou em seu novo rumo, com o vento pela aleta de estibordo, o qual daria a suas primorosas velas o impulso necessário para interceptar a Surprise em algum ponto ao sudoeste, se não conseguisse aumentar a velocidade um ou dois nós. Então fez uma série de sinais: alguns, indubitavelmente, eram dirigidos à corveta, que estava a sotavento mas ainda não era visível, e outros à Semillante e à Belle Poule, ordenando-lhes que siguissem a Surprise a toda velocidade.
— Não poderão, meu amigo — disse Jack —. Não subiram os contra-estais duplos faz meia hora. Não podem suportar as sobrejoanetes desfraldadas com este vento.
Contudo, enquanto dizia estas palavras tocava um pontal, porque com sobrejoanetes ou sem elas a situação era bastante delicada. A Marengo se movia com mais rapidez do que esperava, e a Belle Poule, cujo erro a havia afastado excessivamente a sotavento, estava mais próxima do que desejava. Na fragata de duas pontes e na fragata maior estava o perigo; não tinha nenhuma possibilidade frente à Marengo e muito poucas frente à Belle Poule, e ambas aproximavam-se com rapidez por rumos convergentes ao seu. Cada uma estava rodeada por um círculo invisible de mais de duas milhas de diâmetro: a área de alcance de seus canhões. A Surprise tinha que manter-se fora desses círculos, sobretudo fora da área onde se sobreporiam dentro de pouco, e o espaço vazio entre ambos ia reduzindo-se rapidamente.
Observou o velame com grande atenção. Talvez estivesse fazendo uma pressão um pouco excessiva na popa, talvez houvesse aberto demasiadas velas e fazia a fragata se mover pela força, sem carinho.
— Subam o punho de barlavento da vela maior — ordenou.
Efetivamente, assim se movia com muito mais suavidade, com muito mais soltura. Pensou então que a sua querida Surprise sempre havia gostado das velas de proa e disse:
— Babbington, vá correndo à proa e diga-me se poderá suportar a cevadeira.
— Eu duvido, senhor — disse Babbington ao regressar a popa —. Tem um cabeceio muito forte.
Jack assentiu com a cabeça; havia pensado o mesmo.
— Então a sobrecevadeira — disse, dando as graças a Deus pelo novo mastaréu de sobrejoanete, que suportaria a pressão.
Como a fragata respondia bem! Podia-se pedir-lhe qualquer coisa. Mas o espaço vazio era realmente bastante reduzido. Agora a Marengo ia atagallada e a Surprise avançava a grande velocidade para a zona de máximo perigo.
— Senhor Callow! — Gritou ao cadete encarregado dos sinais —. Arrie a bandeira holandesa e depois ice a nossa bandeira e nosso galhardete!
A bandeira apareceu na ponta do pau da mesana, e o galhardete, a marca de identidade de cada navio de guerra, começou a ondear no mastro maior um momento depois. Na Surprise davam muita importância ao galhardete; o haviam renovado quatro vezes durante essa missão, aumentando-a uma jarda ou duas de cada vez. Agora, como uma enorme chama, estendeu-se sessenta pés em direção à amura de estibordo, e um sussurro de satisfação percorreu a coberta, onde os homens esperavam tensos e impressionados pela grande velocidade da fragata.
Agora estava quase ao alcance dos canhões de proa da Marengo. Se desviasse, a Belle Poule e a Semillante lhe alcançariam. Devia arriscar-se a seguir nesse rumo?
— Senhor Braithwaite — disse ao ajudante do segundo oficial —, lance a barquilha.
Braithwaite avançou até o costado de sotavento e se inclinou sobre a aleta buscando com a vista uma zona tranquila onde lançá-la, longe da forte corrente que passava junto ao costado. A jogou longe, através dos jorros de espuma, e gritou:
— Girar!
O marinheiro que estava sobre a barreira mantinha o carretel no alto. O barbante se soltou e um momento depois ouviu-se um grito. O oficial de navegação sustentava o marinheiro por um pé e tratava de meter-lhe dentro do barco, enquanto o carretel, que havia escapado das mãos do marinheiro, se afastava rapidamente pela popa.
— Traga outra barquilha, senhor Braithwaite — disse Jack com grande satisfação —, e use um relógio de quatorze segundos.
Havia visto desenrolar-se todo o barbante do carretel apenas uma vez em sua vida, quando era cadete em um paquete que regressava à Inglaterra desde Nova Escócia. E o Flying Childers presumia que lhe havia ocorrido uma vez e afirmava que havia perdido ao marinheiro. Mas não devia lamentar-se de que houvessem conservado ao atontado Ben Larsen, pois na velocidade em que estavam era suficiente para cruzar sem problemas com a Marengo e começar a aumentar a distância que os separava em poucos minutos. Contudo, estavam aproximando-se do ponto de convergência e sempre existia a possibilidade de se equivocar em vários centenas de jardas, e alguns canhões de bronze franceses com balas de oito libras podiam disparar com muita precisão de muito longe.
Linois dispararia? Sim; viu o clarão e a fumaça. A bala não os acertou. A trajetória era exata, mas como a bala rebotou cinco vezes afundou-se a trezentas jardas de distância. E o mesmo fizeram as duas seguintes; e a quarta caiu ainda mais distante. Haviam conseguido passar, e cada minuto que avançavam ficavam mais longe de seu alcance.
— Não obstante, não devo desanimar-lhe — disse Jack, trocando o rumo para aproximar um pouco mais a Surprise —. Senhor Stourton, afrouxe a escota da traquete e aferre a sobrecebadeira. Senhor Callow, ice as bandeiras de sinais com a mensagem: Inimigo à vista, barco de linha, corveta e bergantim em direção leste, duas fragatas em direção norte-noroeste. Peço ordens. E dispare um canhonaço por barlavento. Mantenha-as içadas e siga disparando um canhonaço a cada trinta segundos.
— Sim, senhor. Posso dizer que a corveta está virando agora para o sudeste, senhor?
Efetivamente, estava virando. Agora que a chuva era menos intensa podia verse pela amura de bombordo da Surprise, muito a frente da Marengo, por sotavento. As rajadas de vento da tormenta a haviam feito deslocar-se meia milha para o oeste. Grave, muito grave.
A corveta poderia entabuar combate com eles, a menos que se deslocasse para a zona de máximo alcance das fragatas (agora a Semillante havia adiantado à Belle Poule outra vez). Mas se a corveta entablasse combate, teria que suportar o seu fogo devastador, e necessitava de um capitão muito determinado para levar o seu barco a semelhante desastre. Seguramente dispararia de bastante distância e intercambiaria uma ou duas descargas. Jack não tinha nenhuma objeção contra isso, pelo contrário, pois desde que a Surprise havia posto rumo para aquela fenda, demonstrando todas as suas qualidades e que podia alcançar uma grande velocidade, ele havia procurado que Linois, esperançado, iniciasse uma perseguição que o afastasse para o sul antes de que anoitecesse. Os sinais estavam aparecendo, mas não teriam um efeito duradouro; a vela rastreira não podia voltar a ser usada..., seguramente haviam se dado conta de que a levavam; mas se caisse uma verga como se tivesse sido derrubada por um disparo..., isso serviria. Poderia deixar cair a penco ou a gávia maior.
— Senhor Babbington, a corveta entrará em combate conosco dentro de pouco. Quando eu avisar, deixe cair de repente a gávia maior, como se a houvessem derrubado com seus disparos. Mas a verga da vela deverá sofrer danos. Ponha alguma proteção no tamborete..., bom, deixo em suas mãos. Tem que parecer que isto é Bedlam e, não obstante, devemos estar preparados para lutar.
Esse era o tipo de travessura que encantava a Babbington. Jack estava seguro de que saberia provocar um terrível caos. A Berceau aproximava-se sob uma nuvem de velame, com maior rapidez do que nunca, e Jack observou que largava a sobrejoanete de proa. Estava virando para cruzar pela frente da Surprise, nesse momento estava próxima à amura, e embora pudesse alcançá-la com seus disparos, não abriu fogo.
— Senhor Babbington — disse Jack sem tirar os olhos da Berceau —, quer que tragamos sua maca aqui par cima?
Babbington baixou rapidamente, ruborizado pelo esforço.
— Sinto muito haver demorado, senhor — lamentou-se —. Tudo está solto e deixei Harris e Fiable no cesto da gávea e lhes dei ordem de que se mantenham ocultos e que a deixem cair com cuidado quando lhes avise.
— Muito bem, senhor Babbington. Senhor Stourton, chame todos a seus postos.
Quando os tambores começaram a soar, Stephen segurou pelo braço o atônito pastor e o levou para baixo com ele.
— Este é o seu lugar durante a batalha, meu querido amigo — disse na escuridão —. Esses são os baúles sobre os quais McAlister e eu operamos e aí estão o algodão, a estopa e as vendas (aproximou o farol delas) com que o senhor e Choles nos auxiliarão. Sente-se mal-estar ao ver sangue?
— Nunca vi sangue derramado, nem sequer uma pequena quantidade.
— Então, aqui tem um balde, caso necessite.
Jack, Stourton e Etherege se encontravam no castelo de popa. Harrowby estava detrás deles, a curta distância, governando a fragata. Os outros oficiais estavam junto aos canhões, em frente de suas divisões. Todos os tripulantes olhavam silenciosamente como a Berceau aproximava-se, uma formosa embarcação com um excelente velame e o casco pintado de vermelho. Agora se aproximava com a proa dirigida justo para o costado da fragata, e Jack, observando-a pela luneta, não viu nenhum indício de que tentaria virar. A canhonaço que soava a cada trinta segundos se ouvia uma e outra vez, e enquanto isso a Berceau aproximava-se com a certeza de que receberia disparos destruidores, mortíferos. Sua determinação era maior do que Jack acreditava. Ele havia feito o mesmo no Mediterrâneo, mas havia enfrentado a uma fragata espanhola.
Outras duzentas jardas e suas potentes caronadas já poderiam alcançar a Berceau. Outra vez a canhonaço de sinal, e outra vez.
— Atentos! — gritou.
Subiu ainda mais a voz e disse:
— Senhor Pullings! Senhor Pullings! Fogo abundante! Espere que a fumaça de um disparo se dissipe antes de fazer o seguinte! Aponte baixo, para o traquete!
Uma pausa. E quando a fragata subiu com as ondas, o canhão que estava sob o comando do contador disparou e o fumo se afastou pela proa. Apareceu um buraco na cevadeira da corveta e os tripulantes da fragata deram um viva que ficou afogado pelo disparo do segundo canhão.
— Continuem, continuem! — gritou Jack.
Pullings foi correndo pelo costado e apontou o terceiro canhão. A bala caiu próximo da proa da corveta, e esta, em resposta, fez um disparo com o canhão de proa que acertou em cheio no mastro maior. A bateria voltou a disparar em rápida secessão: duas balas cairam na proa da corveta, outra no turco e três esburacaram a traquete. A corveta continuava se aproximando, e à medida que a distância se reduzia muitos mais disparos podiam alcançá-la ou cruzar a coberta de proa a popa; já havia dois canhões desmontados e vários homens jaziam sobre a coberta. Uma descarga após outra; toda a fragata estremecia, cheia de um ruído estrondoso e de labaredas, e o fumo se afastava pela proa. Contudo a Berceau se mantinha erguida, embora perdesse velocidade, e então seus canhões de proa responderam lançando balas de corrente, que atravessaram a exárcia rompendo cabos e velas. “Algumas mais como estas e não será necessária nenhuma travessura. Terá a intenção de nos abordar?”, pensou Jack.
— Senhor Pullings, senhor Babbington, mais rápido agora. Usem metralha na próxima etapa. Senhor Etherege, os infantes da marinha podem...
Suas palavras foram interrompidas por um clamor geral. O mastaréu de velacho da corveta estava caindo; inclinou-se para a frente bruscamente, rompendo os estais e os amantilhos, e foi cair sobre os canhões de proa, que ficaram cobertos pela vela destroçada.
— Seguir disparando! — gritou —. Atentos no cesto da gávea! Soltar agora!
A gávia maior da Surprise começou a ondear e caiu. E da destroçada corveta ouviram um apagado viva como resposta.
Um canhão de proa lançou metralha contra a Berceau com grande estrondo, derrubando doze homens sobre a coberta e fazendo soltar a sua bandeira.
— Cessar fogo, maldita seja! — Gritou Jack —. Atar esses canhões. Senhor Stourton, todos os marinheiros a amarrar e ajustar.
A Surprise seguiu avançando e, de repente, se ouviu uma voz gritar do convés:
— Ela se rendeu!
A Berceau, com um forte cabeceio e a proa bastante afundada, começou a virar em redondo pesadamente, e se pôde ver uma figura subir pelos amantilhos do pau da mesana com uma bandeira nova. Jack saudou com o chapéu a seu capitão, que estava de pé no ensangrentado castelo de popa, a setenta jardas de distância. O capitão francês lhe devolveu o cumprimento, mas quando os canhões que ficavam a bombordo ficaram de frente para fragata, disparou uma potente descarga, e quando esta chegava ao limite de seu raio de alcance, disparou outra, fazendo a última tentativa de impedir a sua fuga. Uma vão tentativa: nenhum disparo acertou o alvo, e a Surprise estava muito na frente da Marengo, que se aproximava pela aleta de bombordo, e das duas fragatas, situadas a estibordo.
Jack olhou para o sol; lamentavelmente, faltava apenas uma hora para que se pusesse. Duvidava que pudesse afastá-las muito durante a noite sem lua e mesmo que pudesse afastá-las mais no que restava do dia.
— Senhor Babbington, leve a sua brigada ao cesto da gávea e trate de que pareça que estão pondo as coisas em ordem; pode atar a verga, por exemplo. Senhor Callow! Onde se há metido esse cadete?
— Levaram ele para baixo, senhor — respondeu Stourton —. Tem uma ferida na cabeça.
— Então que venha o senhor Lee. Ice as bandeiras com a mensagem: Enfrentamento parcial, grandes danos, necessitamos ajuda. Inimigo em direção nor-noroeste e nor-nordeste. E siga disparando um canhonaço a cada meio minuto. Senhor Stourton, um fogo com muito fumo no convés não seria mal. Pode ser uma caldeira de cobre cheia de gordura e estopa. Deve notar-se uma grande confusão.
Aproximou-se do coroamento e contemplou o amplo mar estendendo-se pela popa. O bergantim havia socorreu a Berceau; a Marengo mantinha sua posição pela alheta de bombordo, aproximando-se a uma considerável velocidade que parecia aumentar ligeiramente. Como esperava, fez sinais para a Semillante e para a Belle Poule (eram de uma nação comunicativa e galante), e sem dúvida lhes ordenava desdobrar mais velas, pois a Belle Poule largou a sobrejoanete maior, que imediatamente se soltou. Até momento tudo ia bem.
Desceu até a enfermaria e perguntou:
— Doutor Maturin, qual é a lista dos feridos?
— Há dos homens feridos por lascas, senhor, mas me alegra dizer-lhe que não é nada sério. E uma ligeira comoção.
— Como está o senhor Callow?
— Aí está, senhor, caido no chão, quer dizer, na coberta, justo detrás do senhor. Uma polia caiu na sua cabeça.
— Vai abrir o seu crânio? — perguntou Jack, com uma viva lembrança da trepanação de crânio que Stephen havia feito no condestável no castelo de popa da Sophie, deixando ao descoberto os miolos, para o espanto de todos.
— Oh, não! Não, seu estado não justificaria dar um passou assim. Ficará bem sem necessidade disso. Aqui tem a Jenkins; foi penetrado por um pedaço de madeira e escapou por um milagre. Quando McAlister e eu retiramos o...
— Caiu da encapeladura do mastro maior, senhor — disse Jenkins, segurando em alto um pedaço de madeira de dois pés de comprimento com uma ponta extremamente afiada.
—... Vimos que a ponta estava roçando a artéria inominada. Um veinte avos de polegada a mais ou a falta de atenção imediata e William Jenkins haveria se convertido involuntariamente em um herói.
— Alegro-me de que tenha escapado, Jenkins — disse Jack —. Alegro-me muito.
Então foi preguntar aos outros dois por sua saúde. Um deles tinha uma profunda incisão no antebraço e o outro uma horrível ferida no couro cabeludo.
— É esse o senhor White? — perguntou, ao ver a outra pessoa.
— Sim. Sentiu-se mareado quando levantamos o couro cabeludo a John Saddler e lhe pedimos que o segurasse enquanto o cosíamos, apesar de que quase não havia sangue. Foi um desmaio, nada de importância; se reporá com um pouco de ar fresco. Pode-se ir à coberta agora?
— Oh, agora mesmo se quer! Tivemos uma escaramuça com a corveta. Seu capitão é um tipo estupendo, se aproximou de uma forma assombrosa até que o senhor Bowes fez cair pela borda seu mastaréu do velacho. Mas agora estamos navegando de vento em popa, muito longe de seu alcance. Pode subir à coberta quando quiser.
Na coberta, do convés, se elevava uma nuvem de fumaça preta que logo se desviava para a proa, e os marinheiros corriam de um lado para o outro com lampazos, baldes e uma bomba d’água; no cesto da gávea Babbington gritava e maldizia, agitando os braços; e todos os marinheiros pareciam satisfeitos de si mesmos e tinham um olhar astuto. Seus perseguidores haviam ganhado um quarto de milha.
Longe, por estibordo, o sol ia descendo entre a neblina cor vermelho sangue, e seguiu descendo e descendo até que desapareceu. A noite já chegava do leste, uma noite sem estrelas nem lua, e na esteira da fragata havia começado a aparecer uma luz fosforescente.
Depois do crepúsculo, quando os barcos franceses não eram mais que tênues manchas brancas ao longe, pela popa, e apenas podiam localizar-se pelo farol aceso no cesto da gávea da fragata do almirante, a Surprise lançou varios sinais luminosos azuis, colocou a gávia maior, que não havia sofrido danos, e foi afastando-se em direção sudoeste a uma velocidade cada vez maior.
Quando soaram as oito badaladas na primeira guarda, orçou em meio da negra escuridão. Jack, depois de dar as ordens para a noite, disse a Stephen:
— Devemos deitar e dormir o que possamos, pois amanhã será um dia muito atarefado.
— Acha que não enganou a monsieur Linois?
— Espero que sim. Estou quase seguro de que o consegui, pois não deixou de nos perseguir, mas é uma velha rapoza, e também um perfeito marinheiro. Desejaria não ver nada pelo leste quando nos reunamos com a frota amanhã pela manhã.
— Queres dizer que ele poderia aproximar-se com rapidez e interpor-se entre nós, guiado por sua intuição? Caso isso ocorra, há que supor que o almirante tem um prescentimento que supera os limites do conhecimento humano. Um perfeito marinheiro não é necessariamente um adivinho. A atenção à adequada colocação das velas é uma coisa, o vaticinio é outra. Sinceramente, Jack, se roncas tão forte, Sophie passará mais de uma noite má. Creio... — voltou-se para seu amigo que, seguindo um velho costume, logo havia sumido em um profundo e agradável sonho do que apenas o tiraria o aviso de que havia um barco à vista ou a mudança do vento —, creio que nossa raça tem certa propenção à feiura. Tu não és um homem feio, até mesmo eras atraente antes de que os golpes e os disparos do inimigo te deixaram tão marcado e antes de expor-se tanto aos elementos, e vais casar com uma jovem verdadeiramente bonita. Contudo, estou certo de que os dois terão filhos normais que, como todos, vão a choramingar e gritar de forma irritante, extremamente vulgar e monótona para atrair a atenção e vão a babar e pôr os dentes e quando crescerem vão converter-se em uns mentecaptos. Uma geração sucede a outra, sem ganhar em beleza nem em inteligência. Por analogia com os cães, ou mesmo com os cavalos, os melhores indivíduos deveriam chegar a uma altura de nove pés, enquanto que os inferiores não passariam da altura de uma mesa, mas isso não é assim. Mas apesar de que não se produz nenhuma melhora, os homens não deixam de desejar a companhia de mulheres formosas. Claro que esse não é o meu caso, pois quando penso em Diana não cruza por minha mente a ideia de ter filhos. Nunca contribuiria à infelicidade do mundo trazendo mais pessoas a ele, e memo que tivesse essa ideia, me parece absurdo pensar em Diana como mãe. Não tem instinto maternal; suas virtudes são de outra classe.
Baixou a mecha do farol até que a chama se reduziu a uma linha azul e subiu sigilosamente à inclinada coberta. Meteu-se entre um rolo de cabos e a amurada e passou a contemplar o mar, agitado e escuro, e o céu, entre cujas nuvens começavam a aparecer as brilhantes estrelas. E ali permaneceu, pensando nas virtudes de Diana Villiers e tratando de defini-las, ouvindo as sucessivas badaladas e o grito: “Tudo bem!” repetindo-se pela fragata, até que o céu começou a se iluminar pelo leste.
— Trouxe uma xícara de café, doutor — disse Pullings, que havia aparecido de repente a seu lado —. E quando a haja bebido irei chamar ao capitão. Ficará muito contente. — Ainda falava em voz muito baixa, como se costumava fazer durante a guarda da noite, embora já houvessem chamado os marinheiros do convés e estivesse aumentando a atividade na fragata.
— Por que ele vai ficar muito contente, Thomas Pullings? Has sido muito amável ao trazer esta bebida tão reconfortante, tão estimulante. Muito obrigado. Por que ele vai ficar muito contente?
— Porque as luzes de cesto da gávea dos mercantes se veem desde faz um pouco, e creio que quando amanheça os veremos exatamente onde ele calculou que estariam, tirando os rizes das gávias. É quase impossível crer que se possa navegar com tanta precisão! Há seguido uma rota sinuosa, como Tom Cox, para afastar-se de Linois.
Quando Jack apareceu já havia luz suficiente para ver as quarenta exárcias dos mercantes, que ocupavam uma ampla zona ao oeste. Sorriu e abriu a boca para dizer algo, mas nesse momento a mesma luz fez com que a Surprise fosse visível para uma distante embarcação situada ao leste, que começou a disparar furiosamente como se estivesse em uma solitária batalha.
— Suba ao tope, Braithwaite — ordenou —, e me diga o que vê.
A resposta chegou flutuando no ar.
— É o bergantim francês, senhor. Está fazendo um montão de sinais. E me parece distinguir outro barco ao norte dele.
Era justamente o que temia. Linois havia mandado o bergantim para o norte, e agora este comunicava a seus amigos, mais lá do horizonte, onde estava a fragata e talvez até mesmo a frota da Companhia.
A estratagema cuidadosamente preparada havia fracassado. Durante a noite, Jack havia tentado muito afastar Linois a para o sudoeste, com o fim de que a Surprise virasse e fosse ao encontro da frota na escuridão e já não pudessem vê-la pela manhã. Com a grande velocidade da fragata (haviam ido a toda vela!) poderia o haver conseguido, mas não havia sido assim. Ou bem algum dos componentes da esquadra havia visto o brilho de suas velas quando se dirigia para o norte passando entre seus perseguidores, ou bem Linois havia intuido que ocorria algo ou que tentavam lhe enganhar e, dando por terminada a perseguição, havia enviado o bergantim de regresso a sua zona de cruzeiro e o havia seguido com o resto da esquadra uma hora depois a toda velocidade, para encontrar o rastro da frota da Companhia. Não obstante, seu estratagema não havia fracassado totalmente, pois lhe havia permitido ganhar um tempo precioso. Mas quanto tempo? Jack pôs rumo para onde estavam os mercantes e subiu às cruzetas. O maldito bergantim estava a umas quatro léguas de distância e ainda disparava, como se fosse a noite de Guy Fawkes; a outra embarcação se encontrava mais ou menos à mesma distância deste e não a teria visto se não fosse pela brilhante luz do horizonte naquela hora, que fazia a ponta das sobrejoanetes se destacar no céu. Estava seguro de que era uma das fragatas e de que todos os componentes da esquadra de Linois, menos a corveta, estavam alinhados na provável zona de passagem dos mercantes, e posto que a monção não variava não havia possibilidades de evitá-los. Podiam navegar mais rápido que a frota da Companhia, mas não muito mais rápido, e Linois tardaria a maior parte do dia em concentrar sua força e alcançá-la.
Os capitães de mais antiguidade subiram apressadamente a bordo da Surprise encabeçados pelo senhor Muffit, o comodoro. O sinal que ondeava na ponta do mastro maior da fragata e a urgente chamada do comodoro aos atrazados, lhes haviam dado uma ideia geral da situação. Estavam muito sérios, ansiosos e preocupados, embora alguns, lamentavelmente, não paravam de falar, fazer exclamações, culpar às autoridades por não proteger-lhes e aventurar hipótese sobre onde realmente Linois estivera todo esse tempo. A seção naval da Companhia das Índias era um organismo disciplinado e competente, cujas normas exigiam que o comodoro se reunisse em conselho com os capitães e escutsse seu parecer antes de levar a cabo uma ação transcendente; e como em muitos outros conselhos para decidir ações de guerra, neste falavam excessivamente, divagavam e havia tendência ao pessimismo. Jack nunca havia sentido tanta saudade da superioridade e do rigor da Armada real como ao ouvir o discurso do senhor Craig, que tratava de explicar qual haveria sido a situação se não houvessem esperado pelo barco de Botany Bay e os dos portugueses.
— Cavalheiros — disse Jack por fim, dirigindo-se aos três ou quatro homens que estavam sentados à mesa —, este não é momento para discutir. Apenas se podem fazer duas coisas: fugir ou lutar. Se fugir, Linois apanahrá um a um todos os barcos da frota, pois, por uma lado, só posso deter uma de suas fragatas, e por outro, a Marengo pode avançar cinco léguas para cada três que os senhores avancem e pode explodir dois de seus barcos de uma única vez. Pelo contrário, se lutarmos, se agruparmos nossas forças, poderemos responder a seus disparos um a um.
— Quem vai disparar os canhões? — disse uma voz.
— Já falarei disso, senhor. Além disso, faz um ano que Linois não vai a um estaleiro e está a três mil milhas de distância de Ile de France, assim que deve ter escassez de provisões, e um mastro o cinquenta braços de cabo de duas polegadas são muito mais valiosos para ele do que para nós; provavelmente não haverá nem mesmo um mastaréu de reserva em toda a esquadra. Não deve se expor a sofrer graves danos, não deve levar adiante o ataque se a resistência for muito forte.
— Como sabe que não se reabasteceu em Batavia?
— Deixaremos isso pelo momento, por favor — disse Jack —. Não há nem um minuto a perder. Lhes explicarei meu plano. Senhores terão três navios a mais do que os que Linois supõe, pois os três navios melhor armados levarão galhardetes de navios de guerra e a bandeira azul...
— Não estamos autorizados a levar a bandeira da Armada.
— Posso continuar, senhor? Assumo essa responsabilidade e me encarregarei de dar-lhes a permissão necessária.
37°
Os mercantes maiores se alinharão na frente e levarão a bordo todos os homens disponíveis no resto do comboio para disparar os canhões; os barcos menores deverão afastar-se por sotavento. Mandarei um oficial para cada um dos falsos navios de guerra e lhes enviarei todos os artilheiros que possa prescindir. Se formarmos uma perfeita linha e nos colocarmos próximos uns dos outros, posto que somos mais numerosos, poderemos atacá-lo pela frente ou pela retaguarda e vencê-lo; com um ou dois dos mercantes por um lado e a Surprise pelo outro, asseguro que o conseguiremos se pudermos bater a fragata de setenta e quatro canhões, e já nem se fala se batermos as outras fragatas.
— Escutem-no! Escutem-no! — Exclamou o senhor Muffit, pegando a mão de Jack —. Valha-me Deus, é assim que se fala!
Em meio daquela confusão de vozes se ouvia claramente a alguns apoiar-lhe com firmeza e com verdadeiro entusiasmo (um capitão inclusive golpeava a mesa e gritava: “Lhes pegaremos uma e outra vez!”). Contudo, também se ouvia a outros que não tinham a sua mesma opinião: “Alguém já ouviu alguma vez que um mercante com as cobertas repletas e poucos marinheiros haja resistido sequer por cinco minutos ao ataque de um potente navio de guerra?... A maioria apenas tem miseráveis canhões curtos de dezoito libras... Um plano muito, muito melhor seria separar-nos; alguns seguramente poderiam escapar... A Dorsetshire pode navegar mais veloz que os franceses... Podem citar os cavalheiros algum caso em que um barco cujas descargas eram de 270 libras tenha resistido ao ataque de um inimigo que podia lançar 950?”
— Senhor Craig — disse Muffit antes de que Jack pudesse responder —, o senhor não sabe que o capitão Aubrey é o cavalheiro que ia ao comando da corveta Sophie quando esta capturou a Cacafuego, uma fragata de trinta e dois canhões? E, segundo tenho entendido, senhor, a Sophie não lançava grandes descargas.
— Vinte e oito libras, senhor — disse Jack, enrubescendo.
— Bom — disse Craig —, falei tendo em conta os interesses da Companhia. Admiro ao cavalheiro, certamente, e lamento não me ter lembrado de seu nome. Espero que não me considere um covarde. Falei assim pensando na Companhia e em meu carregamento, não em mim mesmo.
— Parece-me, cavalheiros — disse Muffit —, que a opinião geral do conselho é favorável ao plano do capitão Aubrey, e a minha também. Não ouço a ninguém oporse. Cavalheiros, lhes peço que voltem a seus barcos, preparem a pólvora, saquem os canhões e atendam aos sinais do capitão Aubrey.
Na Surprise Jack chamou seus oficiais à cabine e disse:
— Senhor Pullings, o senhor irá ao mercante Lushington com Collins, Haverhill e Pollyblank. Senhor Babbington, o senhor ao Royal George com os irmãos Moss. Senhor Braithwaite, o senhor ao bergantim para repetir os sinais; Leve o conjunto adicional de bandeiras. Senhor Bowes, como poderia persuadi-lo a ocupar-se dos canhões do Earl Camelen? Sei que senhor pode apontá-los melhor que qualquer um de nós.
O contador ficou vermelho de satisfação e, sorrindo, disse que se o capitão o desejava, ele abandonaria o queijo e as velas, embora não sabia se lhe agradaria, e pediu que Evans e Joe Fresa o acompanhassem.
— Então tudo está arrumado — disse Jack —. Bem, cavalheiros, este é um assunto delicado. Não devemos ofender aos oficiais da Companhia, e alguns deles são muito sensíveis; um pouco mal-estar seria desastroso. Os marinheiros devem entender bem isto: não haverá orgulho, nem distância, nem nenhuma referência aos carrinhos de chá, nem falarão do modo como fazemos as coisas na Armada. Nosso único objetivo é conseguir que seus canhões façam fogo com rapidez e que disparem de perto de Linois para danificar seus paus e seus aparelhos o mais possível. Não há necessidade de afundá-lo nem de matar os seus homens; ele daria o seu contramestre em troca de um botalós de ala. Além disso, nem mesmo com o melhor propósito do mundo afundaríamos uma fragata de setenta e quatro canhões. Devemos disparar como os franceses dessa vez. Senhor Stourton, o senhor e eu faremos uma lista dos artilheiros que podemos enviar-les, e enquanto distribuo os homens nos mercantes, senhor levará a fragata para o leste e observará os movimentos de Linois.
Ao fim de uma hora já estavam alinhados quinze formidáveis mercantes com as velas visíveis, a um cabo de distância um do outro, e um rápido bergantim que repetiria os sinais. Os botes iam e vinham entre os barcos menores e traziam voluntários para os canhões. E durante toda a manhã Jack foi de um lado a outro da linha em sua barcaça, distribuindo os oficiais e os artilheiros e dando ânimo e discretos conselhos e esbanjando simpatia. Essa simpatia não era forçada em quase nenhum caso; a maioria dos capitães eram bons marinheiros, e posto que o entusiasta comodoro ejercia uma grande influência sobre eles, se haviam posto a trabalhar com tanto empenho que Jack estava encantado. As cobertas se desocupavam com rapidez; os três barcos escolhidos para levar os galhardetes, o Lushington, o Roial George e o Earl Camden, começavam a parecer navios de guerra, transformados pelo branqueador que cobria os costados e as vergas sobrejoanetes cruzadas; e os canhões rodavam para fora e para dentro sem pausa. Não obstante, havia alguns capitães raros, apáticos, pessimistas e reservados, e dois deles eram tímidos e abestalhados. Mas os passageiros representavam a maior dificuldade; com Atkins e os outros membros do séquito do senhor Stanhope não havia nenhum problema, mas as mulheres e os civis importantes pediam entrevistas particulares e explicações. Em uma ocasião uma mulher saiu de improviso de uma escotilha e lhe disse que não apoiava nenhuma forma de violência..., a Linois devia ser convencido com argumentos..., creio que poderiam fazê-lo ser razoável... Jack esteva muito ocupado, e apenas de vez em quando — como agora, ao sentar-se na barcaça junto a Church, seu solene ajudante de campo — teve tempo de pensar naquela observação: “Como sabe que ele não reabasteceu em Batavia?”
Não o sabia, e contudo, toda sua estratégia estava apoiada nessa suposição. Não o sabia, mas mesmo assim estava disposto a arriscar tudo baseado em uma intuição, embora de certa lógica. Sim, teve aquela intuição ao ver a forma cautelosa com que Linois gobernava seu barco e mil detalhes que apenas poderia descrever, pois tudo isso contrastava com a atitude despreocupada de Linois no Mediterrâneo, quando tinha Tolón e seu estaleiro a poucos dias de navegação. Mas até mesmo uma certeza absoluta podia ficar sem valor: ele não era infalível e Linois havia passado por muitas guerras e era um adversário astuto e perigoso.
A refeição com o capitão Muffit no Lushington foi um alívio, não apenas porque Jack estava morto de fome, já que não havia desenjuado, mas porque Muffit era um homem com quem se entendia muito bem. Ambos estavam de acordo sobre a disposição na linha de batalha e a maneira de levar a cabo o combate — com táticas agressivas em vez de defensivas — e sobre qual era a comida mais adequada para reanimar um espírito cansado e aturdido.
Church apareceu quando estavam tomando o café.
— A Surprise está fazendo sinais, senhor, com sua permissão — disse —. A Semillante, a Marengo e a Belle Poule seguem rumo leste quarta ao sul a umas quatro léguas; a Marengo pôs as gávias à frente.
— Linois está esperando que a Berceau chegue — disse Jack —. Só o veremos dentro de uma ou duas horas. O que acha de darmos uma volta pela coberta, senhor?
Quando ficou sozinho, o cadete devorou silenciosamente os restos do pudim e meteu no bolso dois pãozinhos. Depois correu para alcançar o seu capitão, que estava com o comodoro na popa, observando os últimos botes que se afastavam da linha levando os passageiros à divisão de sotavento, hipoteticamente mais segura.
— Não tenho palavras para expressar a paz que sinto ao vê-los ir embora, uma paz imensa, profunda — disse em voz baixa Muffit —. No caso dos senhores, dos almirantes, dos comissários, e também do inimigo, podem fazer que se sintam abatidos; mas os passageiros... “Capitão, há ratazanas neste barco! Comeram meu chapéu e dois pares de luvas. Me queixarei aos diretores; meu primo é um diretor.” “Capitão, por que não posso conseguir um ovo quente neste barco? Eu disse ao cozinheiro indiano que meu filho não podia digerir uma gema dura.” “Capitão, não há armários nem baús em minha cabine, não há nenhum espaço para pendurar nada, não há espaço, não há espaço, não há espaço, me ouve senhor, senhor?” Terá o espaço que se merece quando esteja a bordo de um barco modesto onde vão dez harpias encerradas em uma cabine. Ah, ah! Encanta-me vê-los ir embora; essa distância até me parece pouca.
— Então vamos aumentá-la. Dê-lhes permissão para se separar e dê o sinal de voltar a mudar de bordo em secessão; assim haverá matado dois pássaros de um único tiro. Um coração que não se alegra é um coração enfermo.
Apareceram as bandeiras de sinais. Os barcos que estavam a sotavento, obedecendo-as, se afastaram e os que formavam a linha de batalha se prepararam para virar. Primeiro o Alfred, depois o Cloutts, depois o Wexford e agora o Lushington. E quando este aproximava-se da turbulenta esteira onde o Wexford havia começado a girar, o senhor Muffit tomou o lugar do timoneiro e virou suavemente e com extrema precisão. O Lushington virou noventa graus e a Surprise apareceu pela amura de bombordo. Ao ver o casco quadriculado e os altos mastros da fragata Jack se animou e sua expressão séria deu lugar a um radiante sorriso. Mas depois deste instante de indulgência olhou para o horizonte, por trás da fragata, e ali pôde ver claramente as joanetes da esquadra de Linois.
O Lushington tomou seu novo rumo. O senhor Muffit se afastou do corrimão frotándose a cara, pois agora que o mercante havia virado, o sol dava de cheio na popa, na qual o toldo havia sido reemplazado fazia tempo por uma rede que protegia contra a queda de pedaços de madeira, não contra os ardentes raios do sol. Dirigiu-se rapidamente ao costado e dali observou os barcos do centro e da retaguarda. Outra vez os barcos haviam formado a linha, uma linha de uma milha e meia de longitude, e tinham a proa para o sudeste e o vento pela alheta de bombordo. A linha de barcos se estendia entre o inimigo e o resto do comboio, e posto que o conjunto de seus canhões não era muito potente, sua força residia no fato de que eram numerosos e podiam apoiar-se uns aos outros por estar situados muito próximos. Além disso, era uma linha muito ordenada; o Ganges e o Bombay Castle tendiam a desviar-se um pouco para sotavento, mas mantinham a distância correta. Os capitães da Companhia das Índias sabiam governar seus barcos, disso não havia dúvida. Já haviam feito essa manobra três vezes e em nenhuma haviam vacilado nem cometido erros. Uma manobra lenta, se comparada com as da Armada, mas feita com extraordinária segurança. Sabiam governar seus barcos, mas, saberiam também empreender combate com eles? Essa era a questão.
— Admiro a perfeita ordem desta linha, senhor — disse Jack —. A frota do Canal não poderia formá-la melhor.
— Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso — disse Muffit —. Embora não tenhamos tripulantes especialistas como os senhores, tratamos de fazer as coisas como os bons marinheiros. Mas aqui entre nós e a bitácula — o levou à parte —, creio que a presença de seus homens tem algo a ver com isso. Não há nenhum de nós que não deixasse arrancar um dente antes que perder os estais na presença de um oficial do Rei.
— Isso me lembra uma coisa — disse Jack —. O senhor se encomodaria em pôr a jaqueta que os oficiais do Rei usam, encomodaria aos cavalheiros ao comando dos barcos com galhardetes? Linois é condenadamente astuto, e se logra ver com sua luneta o uniforme da Companhia em barcos que aparentam ser navios de guerra, descubrirá o que ocorre, e isso o animará a lançar um ataque mais forte que o previsto.
Era uma sugestão ofensiva e não muito bem expressada. Muffit pensou nela com detalhamento. Considerou a possível vantagem, a extrema gravidade da situação, e depois de uns momentos disse que se sentiria muito honrado, muito satisfeito.
— Então mandarei vir a fragata e lhe enviarei em um bote todas as jaquetas que temos.
A Surprise se aproximou navegando com o vento, rodeou a linha e deteve-se pondo o velacho em apresentável, com a agilidade e a graça de um puro-sangue.
— Adeus, capitão Muffit — disse Jack, apertando-lhe a mão —. Não creio que voltemos a vernos antes que esse cavalheiro esteja conosco, mas sei que estamos de acordo em tudo. E permita-me acrescentar que estou muito contente de ter um colega como o senhor.
— Senhor — disse o capitão Muffit, dando-lhe um férreo aperto —, o senhor me honra imerecidamente.
A enorme satisfação de estar a bordo de sua própria fragata outra vez..., a vivacidade e a rápida reação desta em contraste com a torpeza e a lentidão do mercante..., suas cobertas desimpedidas, completamente limpas de proa a popa..., todos os detalhes que lhe eram tão familiares, incluindo o tênue som do violoncelo de Stephen que chegava de baixo, uma improvisação sobre um tema que ele conhecia muito bem mas cujo nome não recordava...
A fragata se colocou na frente da linha, e no castelo de popa, raras vezes tão vazio como agora (apenas ficavam nele os cadetes menos espertos e o segundo oficial, além de Etherege e do senhor Stourton), Jack escutou o informe de seu primeiro oficial sobre os movimentos de Linois. O informe confirmou sua própria impressão: o almirante havia agrupado suas forças, e seu aparente atraso era, de fato, uma tentativa de conseguir vantagem e conhecer bem a situação antes de se comprometer.
— Creio que virará quando alcançar nossa esteira — disse —, e então começará a se mover com mais rapidez. Mas mesmo assim, duvido que nos alcance antes do crepúsculo.
Mandou recolher todas as jaquetas de oficiais que tinha a bordo e se aproximou do coroamento, onde se encontrava apenas o senhor White, triste e desconsolado.
— Creio que esta é a primeira vez que participa da guerra, senhor — disse —. Deve de achá-la chata porque o senhor não tem uma cabine nem comidas apropiadas.
— Oh, não, senhor, isso não me importa nem um pouco! — Afirmou o pastor —. Mas devo confessar que, por ignorância, esperava algo mais, como lhe diria...?
Mais emocionante. Estas manobras extremamente lentas e esta prolongada e ansiosa anteicipação não formavam parte da ideia que tinha de uma batalha. Tambores e trompetes, galhardetes, apixonadas exortações, gritos de guerra, o iniciar do combate em seguida, os gritos do capitão, tudo isso formava minha ideia, não esta interminável espera em completa imobilidade, com uma enorme inquietação. Não interprete mal minhas palavras, mas lhe asseguro que me assombro de que possas suportar este tédio.
— É o costume, sem dúvida. A guerra tem nove partes de tédio, e na Armada nos acostumamos a ele. Mas a última hora compensa todo o resto, acredite. Acredito que amanhã ocorrerá algo emocionante, ou talvez esta noite. Mas temo que não haverá trompetes nem exortações, mas quanto aos gritos, farei todo o possível, e me atreveria a dizer que os canhões acabarão com seu tédio. Gostará de seu estrondo, estou certo, é algo que levanta o ânimo de uma forma assombrosa.
— Sua observação é muito interessante, não cabe dúvida, e me lembra qual é meu dever. Não seria conveniente uma preparação espiritual além da física?
— Bom — disse Jack pensativo —, agradeceríamos muito um te-déum quando tudo haja acabado, mas neste momento temo que não é possível preparar a igreja. — Havia servido às ordens de capitães beatos e havia começado sangrentas batalhas com salmos de fundo, o que era extremamente desagradável —. Mas se fosse possível, e não o digo com leviandade, rezaria por uma marejada, uma marejada muito forte. Senhor Church, faça o sinal de trocar de bordo em sucessão. Todos os homens a virar.
Subiu para a barreira para observar o bergantim, que estava afastado da linha, em um lugar onde podiam todos os barcos vê-lo; era de grande importância que Braithwaite repetisse os sinais com rapidez. As bandeiras de sinais foram içadas e por barlavento foi disparada um canhonaço. “Concederei um momento para que eles pensem”, disse. Esperou até que parou a atividade no castelo do Alfredo, justo a popa, e então gritou: — Preparados! Timão a sotavento! Com este movimento os mercantes giravam para o lugar onde a Surprise havia virado. Enquanto isso, a Surprise, agora em direção contrária, ia passando junto a cada um deles no momento em que viravam, e a linha se converteu em uma pronunciada curva que parecia seguir o seu líder. Jack os olhava com grande atenção ao passar. O Alfred e o Cloutts, onde iam seus oficiais de rota; com a pressa, o Cloutts havia travado a espicha no coroamento do Alfred, mas ambos se separaram sem maiores danos além de palavrões e de violentos protestos em um dialeto indiano. Depois o Wexford, uma embarcação de extraordinárias qualidades; podia dar aos outros sua gávia maior e ainda assim manter a sua posição. Tinha um capitão excelente, muito determinado, que havia escapado ao ataque de um grupo de piratas em Borneo no ano anterior. Depois o Lushington, em cujo castelo de popa podia ver Pullings junto ao senhor Muffit, e distinguia até mesmo seu sorriso. Também se viam outras jaquetas do uniforme da Armada real. Logo o Ganges, o Exeter e o Avergavenny. Este último tinha ainda tonéis de água na coberta. Em que estava pensando seu capitão? Era Gloag, um homem fraco e velho. “Meu Deus! Não permitas nunca que meu corpo sobreviva à minha mente”, pensou. No centro estava o espaço para a Surprise. Depois o Addington, uma embarcação rápida mas horrível. O Bombay Castle, que estava um pouco desviado a sotavento; à bordo o contramestre e o Fiable ainda estavam ajustando as retrancas dos canhões. Depois o Camden, onde viu Bowes aproximar-se da popa com rapidez, embora mancasse, para tirar o chapéu quando passava a Surprise. Nunca havia feito a nenhum homem tão feliz como ao contador quando lhe havia confiado os canhões do Camden, embora Bowes não fosse uma pessoa violenta, em absoluto. O Cumberland, uma embarcação enorme e pesada que não navegava bem de bolina e estava atagallada para poder se manter em sua posição. O Hope, que tinha ao comando outro estúpido apático e suscetível. Em seguida o Royal Beauty, que era uma beleza. Qualquer um poderia jurar que era um navio da Armada. Podia ver no castelo de popa uma de suas melhores jaquetas com a dragona brilhando ao sol. Talvez lhe ficava um pouco grande ao capitão, mas merecia levarla, pois era o melhor de todos depois de Muffit. Estava junto a Babbington detrás dos pescantes e os dois riam. O Dorset, com mais tripulantes europeus que o habitual mas apenas com uma miserável fila de canhões de brinquedo. O Ocean, de comportamento duvidoso.
— Senhor — disse Stourton —, com sua permissão, Linois está virando.
— Ah, sim? — disse Jack olhando para trás —. Por fim alcançou a nossa esteira. É hora de tomar posições. Senhor Church, faça o sinal de diminuir vela. Senhor Harrowby, tenha a amabilidade de situar a fragata entre o Addington e o Avergavenny.
Até esse momento Linois estivera manobrando para aproveitar o vento e agrupando suas forças, e apenas fazia bordejadas curtas, umas vezes em direção aos mercantes e outras em direção contrária. Mas por fim formara uma linha, e esse movimento indicava a perseguição imediata.
Enquanto a Surprise voltava a seu posto Jack enfocou a esquadra francesa com a luneta, embora não necessitasse, para ver as posições dos barcos, pois já se viam seus cascos, mas para se fixar nos detalhes da exárcia, que lhe permitiriam saber o que Linois pensava.
O que viu não serviu de consolo: os barcos franceses estavam desdobrando velas como se não tivessem nenhuma preocupação. À frente estava a Semillante, que já deslocava bastante água com a proa; a Marengo, justo detrás, desdobrava as sobrejoanetes; e na Belle Poule, um quarto de milha mais atrás, já estavam içando todas as velas. Depois vinha a Berceau. Jack não podia entender como havia podido desdobrar tanto velame depois da surra que havia recebido..., isso era uma grande façanha. Indubitavelmente, havia excelentes marinheiros na Berceau.
Agora os mercantes navegavam com poucas velas abertas e o vento a dois graus por estibordo, e Linois se encontrava a cinco milhas de distância e se aproximava deles pelo leste, seguindo na mesma direção. Jack poderia adiar o ataque conforme orçava; poderia retardá-lo até de manhã, a menos que Linois se arriscasse a lutar de noite. Um atraso tinha muitas vantagens: o descanso, a comida, uma maior preparação; além disso, a ordem em que se encontravam os mercantes não era o que desejava. Mas, por outro lado, atuar com resolução era fundamental. Havia que fazer crer a Linois que a frota tinha uma escolta, talvez não muito potente, mas o bastante para lhe causar sérios danos com ajuda dos mercantes armados, em caso de que está passasse de certos limites em seu ataque. E quanto a ordem dos mercantes, poderia formar-se muita confusão se a mudasse agora, pois não estavam acostumados a essas manobras, e depois de tudo, uma vez que começasse a luta, uma vez que o fumo, o ruído e a confusão da batalha acabassem com a rígida formação e com a comunicação, os capitães que verdadeiramente quisessem se aproximar do inimigo o faríam, os outros não.
A tática que ele e Muffit haviam concordado empregar, e que haviam explicado aos capitães, consistia em aproximar-se do inimigo e fazer um movimento envolvente.
Deviam seguir formando a linha de batalha até o último momento, e então rodear os barcos franceses e atacar cada um com dois ou três baterias; poderiam derrotar-lhes por ser superiores em número, apesar de que os disparos dos mercantes não fossem muito potentes. Se não fosse possível virar ordenadamente, cada capitão devia fazer o que julgasse conveniente para colocar-se dessa maneira; devia haver um grupo de mercantes ao redor de cada barco francês cortando suas velas e seus aparelhos da distância mais curta possível.
Agora, depois de horas de reflexão, seguia pensando que essa era a melhor ideia: a distância curta era fundamental para que fossem efetivos os disparos de seus canhões imprecisos. E se ele estivesse no lugar de Linois, desagradaria muito se ver rodeado de um enxame de barcos que bloqueassem seus movimentos e lhe disparassem com determinação, sobretudo se entre eles houvesse navios de guerra. Seu principal temor, além da dúvida sobre a capacidade dos mercantes para lutar, era que os potentes canhões franceses, bem apontados, podiam alcançar a seus barcos de uma distância de mil jardas.
Linois desapareceu detrás da traquete do Addington quando a Surprise se colocava em seu posto, no centro da linha. Jack olhou para o tope e sentiu de pronto um grande cansaço. Tinha a mente muito clara, e representava nela a variação constante das forças opostas como pontos em um gráfico, mas não tinha força nos braços nem nas pernas. “Meu Deus, estou ficando velho!”, pensou. “A escaramuça de ontem e falar com todas essas pessoas me esgotaram. Mas Linois é mais velho ainda. Caso se aproxime agora pode cometer um erro.”
— Bonden! — gritou —. Suba ao tope e me diga qual é a sua posição.
Estavam a três graus pela alheta; a dois graus e meio pela alheta; a Belle Poule havia aberto a traquetina e havia se aproximado da fragata de duas cobertas; navegavam muito juntas. Ouviam-se os gritos das ordens a intervalos e o sol descia cada vez mais pelo oeste. Quando Bonden comunicou por fim que a Semillante estava muito distante da linha, Jack disse ao cadete encarregado dos sinais:
— Senhor Lee, faça o sinal de desviar um grau e prepare as bandeiras para indicar: Preparar para virar em redondo todos juntos ao ouvir canhonaço; rumo sudeste quarta ao leste; os primeiros atacar por barlavento, os do centro e a retaguarda por sotavento.
Essa era a audaz manobra de um capitão desejoso de levar a cabo uma grande ação de guerra. Ao virar em redondo se inverteria a ordem dos mercantes e, sempre em linha, estes iriam rapidamente ao encontro da esquadra francesa, que navegava de bolina em direção contrária. A linha se romperia quando estivessem perto deles e tratariam de pegá-los entre dois fogos. Embora desta forma não aproveitariam o vento, ele não se atrevia a ordenar que virassem todos por avante porque, ao estar tão juntos, a manobra seria excessivamente perigosa. Até mesmo virar em redondo simultaneamente era bastante perigoso, embora a ação de desviar-se alguns minutos antes conseguiria que fosse mais seguro. Possivelmente Linois consideraria isto um sinal de confiança.
Agora haviam se desviado da direção do vento; a linha se inclinou mais para o sul, com o vento pela amura.
— Adiante, senhor Lee — disse, e olhou de novo para o bergantim, onde em seguida apareceram muito claros os sinais repetidos —. Devo dar tempo aos mercantes para interpretá-las.
Passeava de um lado para o outro, e enquanto isso, a fumaça acre que saia da mecha retardada para o canhonaço de sinal se dispersava pela coberta. Notou que sua respiração era entrecortada; sabia que tudo, tudo dependia de que essa manobra se fizesse corretamente. Caso não se mantivessem em ordem, se lhes faltasse resolução, Linois descobriria seu jogo e em cinco minutos estaria ali, passando entre eles enquanto disparava por ambos os costados com seus canhões de trinta e seis, e de vinte e quatro libras. Uma volta mais; outra. E então gritou:
— Fogo! Todos a virar!
De uma ponta a outra se ouviam sucessões de ordens e os agudos apitos dos contramestres. Os barcos começaram a virar, colocando-se de forma que tinham o vento justo em popa, depois pela alheta de bombordo, de través e mais adiante, e suas vergas giraram e giraram, cada vez com mais dificuldade, até que todos, apenas com alguma irregularidade, ficaram situados com o vento pela amura de bombordo. Cada um havia virado em seu posto, e agora o Ocean estava na frente e o Alfred no final.
Foi uma manobra muito bem executada, quase sem nenhum erro.
— Senhor Lee, faça o sinal de abrir mais velas e içar a insígnia.
Seria uma insígnia azul, porque o almirante que estava em Bombaim era Hervey, um contra-almirante da esquadra azul. A Surprise, em troca, usaria uma branca, pois estava sob as ordens do Almirantado. Eram belas insignias e impunham respeito; mas a velocidade dos mercantes não aumentava.
— Faça o sinal que indique: Oceam abrir mais velas; repito, Oceam abrir mais velas — disse Jack —. E dispare dois canhonaços.
De frente para eles, pela amura de bombordo, estava a esquadra francesa formando uma linha reta, com as bandeiras ondeando e a insígnia do almirante no mastro da mesana. As velocidades a que se aproximavam as duas linhas somavam quatorze nós, e em menos de cinco minutos estariam uma ao alcance da outra.
Jack correu para proa, e quando chegou ao castelo Linois disparou uma canhonaço. Mas era um disparo de festim, de sinal, e apenas a fumaça havia se dispersado quando os barcos franceses bolinaram, pondo rumo nor-noroeste e declinando o enfrentamento. Ao regressar ao castelo de popa, Jack fez o sinal de virar de bordo em sucessão. Todos os mercantes viraram e se situaram em direção ao sol, que já se ocultava.
Do profundo da fragata ainda chegava o som grave e queixumoso do violoncelo. E de repente Jack recordou o nome da melodia: era a Suite em ré maior de Boccherini. Sorriu, e seu amplo sorriso refletia muitas classes de felicidade.
— Cavalheiros — disse —, os mercantes o hão feito muito bem, não concordam?
— Quase não pude crer, senhor — respondeu Stourton —. Nenhum barco se chocou com outro. Foi assim porque lhes deu tempo para se desviar, não cabe dúvida.
— Linois não gostou — afirmou Etherege —. Mas até o último minuto não crí que se retiraria, não estava claro se lutaria de noite ou não.
— Os oficiais da Companhia têm bom comportamento. Muitos deles são homens sérios — disse Harrowby.
Jack riu. Por temor ou por superstição não se atrevia a dar forma a seu pensamento: “Se ele teve uma falsa ideia da situação; cometeu um erro”, e muito menos a expressá-lo com palavras. Tocou um pontal e disse:
— Passará a noite navegando de bolina enquanto nós nos manteremos ao pairo. Seus tripulantes estarão cansados quando entrem em combate pela manhã. Os nossos deverão descansar todo o possível, e comer. Senhor Stourton, já que o contador não está, peço que se ocupe da distribuição das provisões. Os homens devem jantar abundantemente; há alguns presuntos em minha despensa. Onde está meu despenseiro? Avisem a...
— Estou aqui, senhor. Estou aqui de pé junto às bitas faz tempo — lamentou-se Killick com sua desagradável voz estridente — aguentando este sanduíche e esta jarra de vinho.
O borgonha o reconfortou como nunca o havia feito nenhum outro vinho, levantou o seu ânimo e expulsou o cansaço.
— Então, não haverá batalha afinal? — Perguntou o pastor, aproximando-se entre as sombras e dirigindo-se a Etherege e ao segundo oficial —. Parece que se afastam a grande velocidade. É por covardia? Ouvi dizer que os franceses são covardes.
— Não, não, não pense isso, senhor White — disse Jack —. Já me deram muitas pisas, garanto. Não, não. Linois apenas está retrocedendo pour mieux sauter, como diria ele. Não deve se decepcionar; quase posso assegurar que haverá canhonaços pela manhã. Por isso talvez seja melhor que vá se deitar logo e durma tudo o que possa. Eu farei o mesmo após me reunir com os capitães.
Passaram toda a noite ao pairo; havia faróis de popa encendidos e luzes no cesto da gávea em toda a linha, os grupos de guarda baixaram a descansar por turnos e cinquenta lunetas de noite se mantiveram dirigidas para as luzes do almirante Linois, que seguia navegando de bolina. Na guarda do meio Jack acordou alguns minutos e notou que a fragata cabeceava muito; suas preces haviam sido escutadas, pois havia uma forte marejada que vinha do sul. Não tinha que temer os disparos dos franceses a longa distância, pois a precisão, ao de longo alcance e o mar em calma eram indissolúveis.
Começou a amanhecer, e a suave luz, difundindo-se lentamente sobre o mar agitado, fez visíveis as esquadras britânica e francesa, separadas por três milhas. Claro, Linois havia passado toda a noite preparando-se e agora, indubitavelmente, tinha a vantagem e podia começar a batalha quando quisesse. Tinha o poder, mas não parecia decidido a usá-lo. Sua esquadra estava balançando e cabeceando com a marejada. Depois de um pouco, a Semillante abandonou seu posto e se aproximou para observá-los de perto, chegando a ficar ao alcance dos canhões, e logo voltou atrás. Os barcos franceses se mantinham longe, a bombordo dos ingleses, com a proa em direção noroeste. E enquanto isso o calor aumentava.
A marejada, provocada por alguma distante tempestade ao sul, se entrecruzava com a invariável monção do noroeste, e a cada instante chegavam ao castelo de popa da Surprise os agradáveis salpicos do mar. “Caso iniciemos o combate por sotavento — pensou Jack, com a vista fixa no Marengo — lhe custará muito abrir as portas inferiores.” A Marengo tinha os canhões inferiores bastante altos, como todos os barcos franceses, mas mesmo assim, com aquele vento exercendo tanta pressão sobre o costado e o mar tão agitado, a coberta inferior se inundaria; e o fato de que era um pouco instável e tinha a tendência de se inclinar para um lado, seguramente por falta de provisões no porão, aumentava as probabilidades de que isso ocorresse. Se Linois não podia usar os canhões inferiores, os mais potentes, as forças estariam quase igualadas. Seria essa a razão pela qual permanecia ali parado, tendo um comboio de um valor de seis milhões de libras a sotavento, apesar de ser o dono da situação? Seria simplesmente incerteza? Talvez estivesse muito impressionado por haver visto durante toda a noite a fileira de luzes dos barcos britânicos, que haviam permanecido ao pairo lhes convidando a combater pela manhã em vez de se dispersar silenciosamente na escuridão, como haveriam feito se a audaz manobra do dia anterior tivesse sido uma estratagema.
— Chamar os marinheiros para o desjejum — disse —. E senhor, senhor Church, diga a Killick que se não estivé na coberta com meu café dentro de quinze segundos será crucificado ao meio-dia. Bons dias, doutor. faz um dia muito belo, verdade? Aqui está o café finalmente... Gostaria de uma xícara? Dormiu? Ah, ah! É estupendo dormir!
Jack havia dormido cinco horas em sua maca forrada de lã e tinha de novo muito brio. Sabia que havia se comprometido a levar a cabo uma empresa extremamente perigosa e sabia que se não tivesse êxito perderia credibilidade. Embora pudesse terminar mal, não cria que havia se lançado com seu barco e mil e quinhentos homens em uma empresa temerária; sua ansiedade desapareceu. Uma das razões para acreditar nisso era que agora as coisas haviam melhorado na linha de batalha, pois além do fato de que os capitães conheciam bem os seus barcos e sabiam governá-los, o êxito de sua manobra e a retirada de Linois havia animado os mais resistentes a lutar. Agora havia unanimidade e disposição para seguir o plano de ataque, e isso o encantava. Mas como sabia que tanta loquacidade à primeira hora da manhã podia incomodar o seu amigo, se contentou com passear de um lado a outro, balançando a xícara de café para contrariar o movimento característico dos barcos ao pairo e dando mordidas em uma bolacha untada de ghee (manteiga purificada).
O café da manhã terminou, e a esquadra francesa ainda não havia feito nenhum movimento.
— Devemos ajudá-lo a se decidir — disse Jack.
Os sinais apareceram em seguida e os barcos britânicos orientaram as velas para tomar o vento por estibordo e viraram para o oeste, com as gávias e as maiores desfraldadas. Em seguida a fragata começou a se mover mais suavemente, quase a deslizar; e em seguida, ali ao longe, os barcos franceses viraram em redondo e começaram a navegar em direção sul para ir ao encontro dos mercantes.
— Por fim! — exclamou —. Que fará agora?
Esteve observando-os por tempo suficiente para saber que aquele não era um movimento sem objetivo mas o verdadeiro início dos acontecimentos e então disse:
— Stephen, é hora de ires abaixo. Senhor Stourton, chame todos para seus postos.
O tambor enchia o ar com um ruído estrondoso, muito mais forte que o de um trompete. Mas não havia mais nada o que fazer na Surprise, pois já fazia tempo a coberta estava livre de estorvos para o combate, as vergas protegidas e asseguradas com correntes, as redes protetoras colocadas, os cartuchos cheios de pólvora, esperando, as balas de todas os tipos preparadas, os pavios fumegando em pequenas tigelas de metal por toda a coberta; os homens correram a seus postos e ali permaneceram, de pé ou ajoelhados, olhando o inimigo por cima dos canhões. Os franceses se aproximavam com poucas velas desfraldadas, e a Marengo ia na frente. Não estava claro o que intentavam fazer, mas a opinião geral entre os marinheiros mais velhos era que em seguida mudariam de bordo, tomariam um rumo paralelo ao dos mercantes e os atacariam pelo centro e a retaguarda na forma habitual, aproveitando que sua velocidade era maior; por outro lado, outros pensavam que Linois cruzaria sua esteira e orçaria para lhes atacar por sotavento, com o fim de poder usar os canhões inferiores, ainda ocultos pelas portas, contra as quais as ondas se chocavam. Em todo o caso, tanto eles como o resto dos tripulantes da fragata estavam convencidos de que o tempo das manobras lentas havia terminado e que dentro de um quarto de hora começaria a confusão; e todos estavam em silêncio, um profundo silêncio angustiado, desejando com veemência que começasse.
Jack estava excessivamente ocupado em observar sua própria linha de batalha e em interpretar os movimentos de Linois para sentir a mesma impaciência, mas também desejava que chegasse o momento de lutar corpo a corpo, o momento da verdade, porque sabia que infrentava a um terrível adversário capaz de utilizar táticas audazes e pouco comuns. O movimento seguinte de Linois lhe pegou de surpresa: o almirante, considerando que a frente da linha de batalha estava bastante adiantada para seus propósitos e sabendo que os mercantes não podiam trocar de bordo nem navegar a maior velocidade, abriu de repente todas as velas. Foi uma manobra bem coordenada. Em todas as fragatas francesas, e até no bergantim, se desdobrou a tempo uma grande quantidade de velame: apareceram as sobrejoanetes e se extenderam as alas, duplicando o comprimento das embarcações e dando-lhes um aspecto muito belo, que agora, quando se aproximavam dos mercantes, era ameaçador. Ao princípio não entendia a evolução nem por que tomavam esse rumo, mas de repente compreendeu tudo.
— Meu Deus! — exclamou —. Ele tenta romper a linha de batalha! Lee, faça o sinal de trocar de bordo em sucessão e de desdobrar todas as velas possíveis.
Quando apareceu o sinal, pôde se advertir mais claramente que essa era sua intenção. Linois estava situando sua potente fragata em direção à abertura que havia entre o Hope e o Cumberland, dois dos barcos menos potentes. Intensionava cruzar a linha de batalha, separar a retaguarda, ocasionar danos com seus disparos a um ou dois barcos para lhes manter ocupados e então bolinar e passar ao longo da linha por sotavento, disparando sua bateria.
Jack arrebatou o megafone das mãos de Stourton, correu ao coroamento e gritou com toda sua força ao barco que tinha pela popa:
— Addington, gire a gávia! Vou a sair da linha!
Então se voltou e disse:
— Todos os homens a virar! Rápido! Harrowby, vamos em direção ao escovém da Marengo.
Agora pôde apreciar-se o longo e duro treinamento: a fragata virou descrevendo uma suave curva sem se deter nem um momento, e foi aumentando de velocidade à medida que desdobravam suas velas. Sulcava as águas com o turco de sotavento coberto pela espuma, navegando de bolina para um ponto onde seu rumo se cruzaria com o da Marengo, que ficaria próximo da linha de batalha britânica se pudesse manter essa velocidade. Tinha que manter a Marengo afastada e retê-la até que os barcos que iam na vanguarda pudessem lhe seguir e se reunir com ele para apoiar a Surprise. A essa velocidade poderia consegui-lo, se não perdesse nenhum pau importante; isso significava que tinha que avançar justo até o costado da Marengo, mas era necessário fazê-lo, sobretudo com o mar nessas condições. Contudo, se conseguisse, se não perdesse os mastros, quanto tempo poderia retê-la? Quanto tempo tardaria a vanguarda em reunirse a ele? Não se atrevia a romper a linha de batalha, já que a segurança dos mercantes dependia inteiramente de que permanecesseam unidos e se apoiassem uns aos outros com seu armamento.
Subiu ao salto do castelo de popa e observou as posições mais uma vez. A Surprise já havia passado três barcos, o Addington, o Bombaim Castle e o Camden, que navegavam em direção contrária, aproximando-se ao ponto onde se faria a virada decisiva, e estavam desdobrando velas; a abertura havia se fechado. Pela amura de bombordo, a uma milha de distância pelo noroeste, estava a Marengo, cuja proa era assolada pelas ondas. Pela alheta de bombordo, ainda a uma milha de distância, estavam o Alfred e o Cloutts, que haviam virado e agora estavam desdobrando as sobrejoanetes; o Wexford estava virando, e dava a impressão de que o ansioso Lushington ia se chocar com ele. Jack assentiu com a cabeça: poderiam conseguir. Afinal, não havia alternativa.
Desceu de um salto e correu para falar com os artilheiros das brigadas. Falou com eles muito amavelmente, quase com familiaridade, pois já eram velhos companheiros de tripulação; conhecia a todos e simpatizava com a maioria. Disse que estava seguro de que não iriam desperdiçar nenhuma bala..., deviam disparar alto durante um tempo, no momento em que a fragata estivesse em cima ao balançar-se..., deviam usar balas normais e quando fosse conveniente balas de corrente..., a fragata receberia alguns impactos à medida que se aproximasse, mas isso não devia lhes preocupar, porque a fragata francesa não podia abrir as portas inferiores e eles lhe dariam o que merecia quando lograssem estar muito próximos a ela e colocados perpendicularmente à proa..., sabia que disparariam sem parar..., deviam tomar exemplo do Fiable, que não havia desperdiçado nem uma única bala nesta missão..., e deviam ter cuidado ao carregar os canhões. O Fiable piscou o único olho que tinha e começou a rir.
O primeiro disparo da Marengo caiu no mar, a umas cem jardas do convés de bombordo, formando um grande penacho que o vento dispersou. O seguinte caiu mais próximo, por estibordo. Uma pausa. E em seguida o costado da Marengo desapareceu atrás de uma nuvem de fumaça branca que a cobria da proa até a alheta; quatro balas daquela terrível descarga deram no branco, três na proa e uma na serviola.
Jack olhou seu relógio e disse ao escrevente que anotasse a hora. Depois seguiu passeando de um lado a outro com o relógio na mão, acompanhado por Stourton, até que se ouviu o horrível estrondo de outra descarga. Foi muito mais exata; os salpicos chegaram à altura do mastaréu e tantas balas de vinte e quatro libras deram no branco que o casco estremeceu. A fragata perdeu velocidade momentaneamente e cambaleou; na vela maior e na traquete apareceram numerosos furos e um conjunto de polias caiu na rede protetora que cobria o convés. “Quase dois minutos. Não muito rápido”, se disse. (A Surprise não levava mais de um minuto e vinte segundos entre uma descarga e outra.) “Mas graças a Deus as portas inferiores estão fechadas.” Antes de que a Marengo disparasse a descarga seguinte, a fragata estaria um quarto de milha mais próxima.
A Semillante, justo detrás da Marengo, abriu fogo com seus canhões de proa. Jack viu uma bala se aproximar da popa e passar a certa distância dele quando, em seu passeio ritual, chegava até o coroamento; era uma bala peculiar, com uma espécie de halo ao redor.
— Senhor Stourton, o canhão de proa pode começar a disparar.
Não lhes afetaria dispará-lo, poderiam inclusive acertar a essa distância, e além disso, o ruído consolaria aos silenciosos marinheiros. Passaram os dois minutos; passaram uns segundos mais. E então chegou a certeira descarga da Marengo, golpeando a Surprise como um martelo, e quase nenhuma bala errou o alvo. Imediatamente depois chegaram seis canhonaços da Semillante, todos muito altos.
Stourton informou:
— Os cabos da verga cevadeira se soltaram, senhor. O carpinteiro disse que há três pés de água na sentina e está tamponando dois furos sob a linha de flutuação, não muito abaixo.
Enquanto falava se ouviu o rugido do canhão de proa, e o fumo da pólvora, com seu cheiro embriagador, estimulante, chegou até a popa.
— O trabalho se complica, senhor Stourton — disse Jack, sorrindo —. Mas pelo menos a Semillante não poderá nos atingir outra vez. Agora o ángulo é excessivamente reduzido. Quando a Marengo comesse a lançar metralha, deixe que os homens se deitem no chão junto aos canhões.
Pela amura de bombordo pôde ver como sacavam os canhões da Marengo; estavam esperando a que a fragata se balançasse. Percorreu com a vista o castelo de popa quase deserto antes de retomar seus passeios. Bonden e Carlow estavam ao timão, e detrás deles se encontrava Harrowby, que gobernava a fragata; Stourton, no turco, dava ordem aos veleiros de revisar a bolina da gávia; a sotavento se encontravam o cadete encarregado dos sinais, depois Callow, com a cabeça vendada, e o jovem Nevin, o escrevente, com o quadro na mão; Etherege observava os mercantes com seu telescópio de bolso; apenas havia um infante de marinha de sentinela na escotilha, os demais estavam dispersos entre as brigadas de artilheiros.
O estrondo da descarga da Marengo, da canhonaço de proa, e das vinte balas se chocando contra a fragata foram ouvidos simultaneamente..., o ruído era ensurdecedor. Jack viu o timão se desintegrar e Harrowby ser lançado para trás, para o coroamento, partido em dois; e na proa se ouviu um grito. Imediatamente se inclinou sobre um tubo que descia pelo interior da fragata e comunicava com os marinheiros que manejavam as polias de reforço para substituir o timão.
— Atenção, aí em baixo! É possível governar?
— Sim, senhor.
— Muito bem. Mantenha-a assim, escutaram?
Três canhões haviam sido desmontados, e sobre a coberta, da proa até o mastro maior, ficaram espalhados pedaços de metal das carretas de canhão, lascas, pedaços do corrimão, espichas, fragmentos dos botes e montes de macas que haviam sido arrancadas da barreira; o botalós havia sido atravessado por uma bala e dava solavancos. As balas de canhão haviam caído dos suportes e das relingas e quando a coberta se inclinava rodavam por ela. Mas muito mais perigosos que estas eram os canhões soltos que se deslocavam em todas as direções: enormes pesos letais movendo-se com fúria. Jack passou entre os destroços para chegar à proa (havia poucos oficiais e escassa coordenação) e enquanto corria tropeçou em uma maca sangrenta. O que havia sido seu querido canhão de bombordo, agora simplesmente duas toneladas de metal, permanecia imóvel enquanto a fragata se elevava com o balanço, mas estava pronto para cruzar a coberta e atravessar o costado de estibordo. Jack lhe pôs uma maca debaixo, lhe passou um cabo ao redor da parte mais grossa da boca e chamou aos marinheiros para que o atassem a um pontal. E enquanto os chamava, uma bala de trinta e seis libras que rodava por ali o golpeou no tornozelo, derrubando-lhe. Stourton tratava de fixar com uma alavanca a caronada mais próxima, ainda montada na carreta, que estava a ponto de cair pela escotilha de proa e poderia chegar a atravessar o fundo da fragata; o batente que rodeava a escotilha se dobrava como se fosse de papelão. Então a fragata cabeceou, e ao inclinar-se para a frente parou a pressão e a caronada rodou para a proa e conseguiram virá-la quando ganhou velocidade. Mas o mesmo cabeceio e a mesma inclinação fizeram que o canhão que estava solto na parte central da fragata, sob o portaló, avançasse rapidamente para o desconcertado grupo de homens; e posto que cada um tinha uma ideia diferente sobre como detê-lo, cruzou até o outro costado, o atravessou por detrás do turco de proa e se afundou no mar. Ah, se seus oficiais estivessem ali! A férrea disciplina haveria acabado com a iniciativa desses homens. Mas os oficiais que havia deixado estavam trabalhando muito duro: Rattray, correndo um grande perigo, se encontrava com dois ajudantes no bauprés, trincando o botalós para evitar que se desprendesse; Etherege junto com meia dúzia de infantes da marinha atiravam as balas pela borda ou as colocavam em um lugar seguro; Callow e a tripulação do bote tiravam os fragmentos da lancha que haviam caído sobre os canhões.
Olhou para a Marengo. Todos seus canhões, exceto dois, estavam para fora outra vez.
— Ao chão! — gritou.
Enquanto a fragata se elevava com as ondas, na coberta havia um profundo silêncio que apenas rompiam o vento, o mar agitado e uma bala que rodava perto do portalão. A descarga chegou e a metralha caiu com grande estrondo sobre a coberta, mas foi excessivamente alta e um pouco apressada.
Rattray e seus homens continuavam no mesmo lugar trabalhando laboriosamente e pediam aos gritos dez braços de corda de duas polegadas e mais esteios. A Surprise ainda navegava com rapidez, embora a velocidade houvesse diminuido um pouco porque havia perdido a bujarrona e tivesse as velas esburacadas. Nesse momento os mercantes da retaguarda abriram fogo de meia milha de distância. Apareceram furos no velacho da Marengo. Jack duvidava que esta disparasse outra descarga antes de que a Surprise estivesse tão próxima da proa que os canhões não poderiam apontar para ela, quer dizer, não poderiam se adiantar o suficiente para alcançá-la. Se a Marengo se desviasse de seu rumo para ter a Surprise ao alcance de seus disparos, o plano de Linois fracassaria, porque ao dar uma guinada a essa velocidade, a fragata de duas pontes se deslocaria para o leste da linha de batalha.
Regressou coxeando ao castelo de popa e ali se encontrou com Nevin de gatinhas, porque se havia mareado.
— Está tudo bem, Bonden? — Perguntou e se agachou junto ao tubo —. Atenção, aí em baixo! Desviar meio grau! Outro meio grau! Basta! — a fragata era difícil de governar agora.
— Muito bem, senhor — respondeu Bonden —. Apenas torci o braço esquerdo. Carlow a palmou, — Dê-me uma mão com este outro, então — disse Jack, e ambos lançaram a Harrowby por cima do coroamento.
Pela popa, muito mais lá de onde havia caído o corpo, seis mercantes já haviam virado em redondo e aproximavam-se com bastante velame aberto, embora ainda se encontravam a grande distância. A Marengo já estava quase a seu alcance pela amura de bombordo.
— Preparados os canhões! Não desperdiçar nem uma bala! Esperar! Esperar!
— Cinco pés de água na sentina, senhor — Stourton lhe informou.
Jack assentiu com a cabeça.
— Meio grau! — gritou outra vez, inclinado sobre o tubo.
E outra vez uma voz fantasmal lhe respondeu:
— Meio grau, sim, senhor.
Ia ser difícil manobrar; foi difícil. Não obstante, a menos que a fragata fosse a pique nos próximos minutos, ele conseguiria fazer muito, muito dano à Marengo, pois quando a Surprise cruzasse a proa da Marengo sua silenciosa bateria entraria por fim em ação, e a muito curta distância.
Desde o castelo da Marengo os mosquetes começaram a disparar; os infantes da marinha estavam amontoados na proa e no cesto da gávea do traquete. Outras cem jardas e crivaria a Marengo, a menos que esta desse uma guinada; e em caso de que o fizesse e ambas ficassem paralelas, lutaria até que se agotassem suas forças.
— Senhor Stourton, mande alguns marinheiros carregar as velas e preparem o velacho. Callow, Lee, Church, vão rapidamente à proa.
Mais próximo, cada vez mais próximo. A Marengo ainda navegava a grande velocidade; a Surprise se movia mais lentamente. A Surprise cruzaria a proa da Marengo a umas duzentas jardas de distância; estava tão perto dela que os mercantes haviam deixado de disparar com medo de atingi-la. Ainda mais perto, preparando-se para atacar com força; os artilheiros, muito tensos e com grande concentração, estavam inclinados sobre os canhões já dirigidos para o alvo e os moviam ligeiramente para apontar com mais precisão, indiferentes às balas dos mosquetes.
— Fogo! — gritou Jack quando a fragata se elevava com o balanço.
Os canhões dispararam com um terrível rugido. A fumaça se dispersou e pôde verse que a proa e o castelo da Marengo estavam desertos; os cabos penduravam sobre eles e uma traquetina meio solta era agitada pelo vento.
— Excessivamente baixo! — gritou —. Elevem-os! Elevem-os! Callow, Church, elevem-os!
Era inútil matar franceses; os aparelhos, as vergas, os mastros eram o importante, não o sangue vermelho que agora saia pelos imbornais de proa da Marengo, contrastando com suas marcas brancas. Entre ofegos, com fúria, puxaram os canhões, os limparam, os carregaram e dispararam a carga e depois voltaram a puxá-los. E o canhão número três, o mais rápido, foi o primeiro a disparar.
— Carregar as velas! — Gritou em meio daquele ruído estrondoso —. Preparar o velacho!
A Surprise perdeu velocidade e por fim deteve-se. E de sua posição, justamente perpendicular à proa da Marengo, e envolta em seu próprio fumo, lhe lançava descargas com maior rapidez do que nunca. A terceira descarga se juntou com a quarta; agora o fogo era contínuo e Stourton e os cadetes corriam de um lado a outro da bateria movendo e apontando os canhões, traduzindo as ferozes ordens de seu capitão em certeiros disparos, em uma tempestade de balas de corrente. Depois das descargas recebidas, os homens estavam um pouco nervosos e disparavam nos franceses sem muita precisão às vezes e excessivamente baixo no geral, mas a tão curta distância não erravam nem um único disparo. Os marinheiros servidores de pólvora corriam e os cartuchos chegavam uns após outros com rapidez; os artilheiros, nus até a cintura e banhados em suor, gritavam como loucos, saboreando sua vingança, disparando-lhes com os canhões cheios até a boca. Mas aquilo era excessivamente bom para que durasse. Pelo que podia ver através da fumaça, estava claro que Linois pretendia acabar com a Surprise: arremeteria contra a pequena fragata para afundá-la ou abordá-la.
— Largar a traquete! Virar o velacho! — gritou com toda a força de seus pulmões.
Depois, inclinado sobre o tubo, gritou de novo:
— Desviar dois graus!
A todo custo tinha que manter a proa da Marengo e continuar disparando-lhe, pois embora na proa desta tivesse havido uma matança, não havia perdido nada de vital importância. A Surprise virou lentamente, com dificuldade, e pôde ver-se o costado da fragata de duas pontes, que nesse momento, apesar da marejada, abria as portas inferiores para extrair os grandes canhões de trinta e seis libras. Apenas um movimento do timão para apontar para a Surprise com os canhões e esta teria a um tiro de pistola a destruidora bateria. Então poderiam fechar as portas inferiores, porque a fragata estaria afundada.
Etherege, com quatro mosquetes e um ajudante para carregá-los, disparava sem parar contra o cesto da gávea do traquete da Marengo, derrubando a todos os homens que apareciam ali. A meia milha, por popa, os barcos britânicos que iam na vanguarda abriram fogo contra a Semillante e a Belle Poule, que nos últimos cinco minutos haviam se aproximado deles perigosamente; havia fumaça por todas as partes e o ruído estrondoso das descargas silenciava o vento.
— A bombordo, a bombordo, virar a bombordo! — Gritou na boca do tubo e se pôs de pé —. Abrir a maior!
Que havia sido da velocidade da pobre Surprise? A duras penas se mantinha justo adiante da Marengo, e para isso tinha que desviar-se tanto da direção do vento que seus canhões não podiam apuntar-lhe e sua popa ficava de frente à proa desta. O fogo foi diminuindo e finalmente parou. Os homens olhavam para a Marengo; dois golpes de timão posicionaram o costado da fragata francesa em frente a eles..., já podiam ver como as duas filas de canhões assomavam as bocas pelas portas. Por que não virava? por que estava fazendo sinais?
Um rugido de canhões a estibordo lhes fez comprender o porque. O Royal George e os dois mercantes que iam atrás haviam se separado da linha de batalha, a linha sagrada, e aproximavam-se velozmente para atacar a Marengo pelo outro costado, enquanto a vanguarda se aproximava pelo oeste; entre todos poderiam rodeá-la, e essa era precisamente a manobra que Linois temia.
A Marengo orçou. Agora a Surprise podia apuntar-lhe de novo com seus canhões, e abriu fogo. A fragata de duas pontes respondeu imediatamente com uma devastadora descarga dos canhões superiores de estibordo, e estava tão próxima que as balas passaram muito altas acima da coberta e as buchas acesas cairam sobre ela, tão perto que puderam ver os rostos iluminados pelo resplendor. Durante uns momentos ambas as fragatas permaneceram com os costados muito próximos. Através de um buraco no costado da Marengo, Jack pôde ver ao almirante sentado em uma cadeira no castelo de popa, com uma expressão grave, apontando para cima. Jack havia se sentado a sua mesa com frequência e reconheceu em seguida sua característica forma de ladear a cabeça. A Marengo seguiu virando e se afastou considerávelmente; disparou outra descarga com suas caronadas de popa e terminou de virar em redondo, colocando-se contra o vento. Então a fragata lhe lançou uma descarga com os canhões que lhe restavam (havia outros dois desmontados e um havia explodido), destroçando o mirante de popa. Lançou-lhe outra descarga quando começou a se afastar e a ganhar velocidade e se ouviram entusiastas vivas quando caiu a verga mesana, seguida do mastaréu de sobre-mesana e o mastaréu. A fragata de duas pontes já estava fora do alcance da Surprise, mas esta, embora o desejasse ardentemente, não podia virar nem se mover com a rapidez suficiente para alcançá-la de novo.
Todos os barcos franceses haviam virado juntos. Passaram navegando de bolina entre as linhas convergentes que formavam os mercantes e agora se afastavam.
— Senhor Lee, faça o sinal de iniciar perseguição.
Foi inútil. Os mercantes perseguiram a esquadra francesa a toda vela, e até mesmo chegaram a desprender as sobrejoanetinho, mas esta seguia levando vantagem; e quando Linois virou para o leste, Jack lhes ordenou voltar.
O Lushington foi o primeiro a se reunir com a Surprise e o capitão Muffit subiu a bordo. Tinha a cara vermelha de satisfação, como um sol nascente, e uma expressão triunfante quando subia pelo costado, mas ao chegar ao sangrento castelo de popa sua expressão se transformou em outra horrorizada.
— Oh, meu Deus! — gritou, olhando os destroços que havia de proa a popa: sete canhões desmontados, quatro portas convertidas em uma, os botes pendentes das espichas completamente destruidos, fragmentos de paus por todas as partes, a água saindo pelos imbornais de sotavento à medida que era bombeada de baixo, maranhas de cabos, grandes pedaços de madeira no convés, enormes furos nos costados, o mastro maior e o traquete quase totalmente cortados em vários lugares, balas de vinte e quatro libras encaixadas no chão —. Meu Deus! Os senhores sofreram danos terríveis! — Pegou a mão de Jack entre as suas —. Felicito-lhe pela vitória, mas os senhores sofreram danos terríveis. O número de baixas deve de ser horrível.
Jack estava extenuado e o pé havia inchado e doia terrivelmente.
— Obrigado, capitão — disse —. Nos pegou forte, e fosse pelo George, que se aproximou tão valentemente, creio que nos tivesse afundado. Mas apesar de haver grande quantidade de feridos, perdemos muito poucos homens: o senhor Harrowby, desgraçadamente, e dois homens mais. É uma quantidade muito reduzida para uma batalha tão dura. Mas lhe devolvemos os golpes. Sim, sim, lhe devolvemos os golpes, eu acredito.
— Oito pés e três polegadas de água na sentina, senhor, com sua permissão — disse, o carpinteiro —. E o nível está aumentando.
— Posso lhe ajudar em algo, senhor? — Perguntou Muffit —. Necessita de nossos carpinteiros ou de nossos contramaestres ou de marinheiros para bombear?
— Agradeceria que enviasse de regresso os meus oficiais e o resto de meus homens e também qualquer tipo de ajuda que possa me prestar. A fragata não poderá navegar mais que uma hora.
— Em seguida, senhor, em seguida! — Exclamou Muffit e começou a caminhar para o costado, agora muito afundado na água, mas deteve-se para lançar um último olhar —. Meu Deus, que destruição!
— Sim — disse Jack —. E não sei onde vou substituir tudo o que foi danificado, pois estou distante de Bombaim. Não há nem um pau na fragata. Meu consolo é que Linois está pior.
— Oh! Quanto a mastros, vergas, botes, cabos e outras provisões não tem que se preocupar. A Companhia ficará encantada..., todos em Calcutá sentirão grande admiração pelo senhor, senhor... Nada lhes parecerá excessivo, lhe asseguro. Sua grande façanha salvou a frota, e eu me encarregarei de dizê-lo. Lutar lado a lado com uma fragata de setenta e quatro canhões! Quer que o reboque, senhor?
Jack sentiu uma horrível pontada no pé.
— Não, senhor — respondeu secamente —. Eu os escoltarei até Calcutá, se o deseja, porque suponho que os senhores não ficarão em alto mar estando Linois por perto, mas não irei a reboque, não enquanto tiver um único mastro em pé.
CAPÍTULO 10
Na Companhia todos sentiram grande admiração por ele, de fato. Houve fogos de artifício e lhe obsequiaram com esplêndidos banquetes e os tesouros dos estaleiros. Além disso, prodigaram tantas atenções aos tripulantes enquanto a Surprise era reparada que quase nenhum homem esteve sóbrio ou sem companhia desde o dia que jogaram a âncora até o dia que a levantaram e se converteram em um grupo violento, brigão, dissipado e lascivo.
Expressaram-lhe gratidão com comidas, recepções pomposas com todo o esplendor oriental e muitos, muitos discursos cheios de palavras de elogio, e isso contribuiu para que Jack se encontrasse em seguida com Richard Canning. No primeira jantar oficial Canning estava à sua direita, cheio de grande espanto e desejoso de demostrar que já se conheciam. Jack se assombrou de vê-lo, pois desde que havia saido de Bombaim apenas havia pensado duas vezes em Canning, e depois da batalha com Linois, nenhuma. Estivera muito ocupado em cuidar da pobre Surprise, maltratada e fraca, enquanto sulcava os mares, apesar de que o tempo era favorável e de que os mercantes lhe haviam enviado todos os tripulantes que podiam caber nela para lhe ajudar. Além disso, como Stephen tinha a enfermaria cheia e algumas operações delicadas para realizar, incluindo a operação da cabeça do pobre Bowes, quase não haviam falado extra-oficialmente, apenas haviam trocado uma dúzia de palavras que poderiam lhe haver recordado Diana ou Canning.
Mas ali estava Canning, a sua direita, afavél e louquaz — aparentemente sem ter consciência de que existiam motivos para receiar um ao outro —, e lhe rendeu honras e propôs um brinde à sua saúde em um discurso bem estruturado e de linguagem erudita, um discurso muito gratificante no qual aludiou à Sophie veladamente ao falar da iminente, enorme e perduravél felicidade do capitão Aubrey. Depois dos primeiros momentos de desconfiança e desassossego, foi impossível para Jack sentir antipatia por ele, e ele também não dava pé para isso, sobretudo porque parecia dar-se muito bem com Stephen. Por outro lado, embora aquela ofensa tivesse sido mais grave e muito mais recente, não podia ter um comportamento frio e reservado em uma reunião pública porque se haveria notado muito e haveria sido muito incorreto e descortês. E provavelmente Canning nem sequer sabia que o havia deixado à deriva fazia tempo, fazia muito tempo, em outro mundo.
Banquetes, recepções, um baile ao qual não compareceu porque nesse dia enterraram Bowes..., assim passou uma semana sem que voltasse a ver Canning. E um dia, quando estava sentado ante sua escrivaninha na cabine, com o pé ferido metido em um balde com azeite de gergelim temperado, e escrevia para Sophie: “... O sabre que hei tido a honra de receber como regalo é muito belo, de estilo indiano, me parece, e leva uma inscrição sumamente bajuladora. De fato, se as bajulações fossem moedas de meio penique eu seria um marajá, um marajá casado, meu amor. A Companhia, os mercadores parsis e os asseguradores reuniram uma quantiosa soma de dinheiro para os homens e eu a distribuirei. Afinal, hão tido a delicadeza de...”, anunciaram a Canning.
— Diga-lhe que desça — disse, colocando um canino de baleia sobre a carta, enquanto aspirava a brisa que trazia o fétido cheiro do Hugli —. Bons dias, senhor Canning. Por favor, sente-se. Perdoe-me por lhe reciber tão informalmente, mas Maturin me esfolaria se me levantasse sem permissão.
Após as perguntas corteses sobre o estado de seu pé (“Muito melhor, obrigado”, foi a resposta), Canning disse:
— Hei dado a volta à fragata e lhe asseguro que não compreendo como pôde chegar até aqui. Hei contado quarenta e sete grandes furos entre o que ficou da talha-mar e a destroçada serviola de bombordo, e muitos mais na amura de estibordo. Que movimentos fez a Marengo então?
Poucos homens que não fossem marinheiros queriam saber mais detalhes dos que proporcionava o resumo dos fatos, mas Canning estivera no mar, era propietário de barcos corsários e havia participado com um deles de uma batalha breve mas dura. Jack lhe explicou os movimentos da Marengo, e ao observar que Canning seguia com grande atenção cada um deles, cada mudança do vento, também lhe explicou que movimentos haviam feito a Semillante e a Belle Poule e quais havia tratado de fazer a corajosa Berceau, fazendo desenhos com azeite de gergelim sobre a mesa.
— Eu o admiro, lhe asseguro — disse Canning e exalou um suspiro —. Foi uma ação extraordinária. Teria dado a minha mão direita para estar ali... Mas nunca hei sido um homem afortunado, exceto nos negócios. Oh, meu Deus, quanto gostaria ser um marinheiro e estar muito longe de terra! — Parecia deprimido e velho, mas em seguida se reanimou —. Foi uma ação extraordinária, como as de Nelson.
— Oh, não, senhor! — Exclamou Jack —. Nisso se equivoca. Nelson haveria capturado a Marengo. Houve um momento em que pensei que poderíamos conseguir isso. Se o valente McKay, do Royal George, tivesse se aproximado da retaguarda com maior rapidez ou se Linois tivesse mantido sua posição um minuto a mais para lançarmos outra descarga e a retaguarda teria chegado, o haveríamos apanhado entre dois fogos. Mas não pôde ser. Não foi mais que uma escaramuça, depois de tudo; foi outra batalha irrelevante. E asseguro que está reabastecendo em Batavia neste momento.
Canning sorriu, sacudindo a cabeça.
— Contudo, não foi um completo fracaso — disse —. Uma frota avaliada em seis milhões de libras se salvou e o país, por não falar da Companhia, estaria em uma difícil situação se tivesse perdido. Isso me lembra o propósito de minha visita. Vim porque meus sócios me hão encarregado de averiguar com muito tato e delicadeza se podem lhe agradecer o que conseguiu com algo mais, digamos, tangível que discursos, montanhas de pilaf e um insosso borgonha, com algo negociável, como dizemos na City. Espero não haver lhe ofendido, senhor.
— Não, em absoluto, senhor — disse Jack.
— Então, posto que os cavalheiros como o senhor consideram inaceitável qualquer forma direta de gratificação...
“De onde há tirado senhor essa absurda ideia?”, pensou Jack, olhando-o com ansiedade.
—... Alguns membros sugeriram um jogo de bandejas de prata ou um palanquim com incrustações de ouro como o de Surajah Dowlah. Mas lhes disse que as bandejas do tipo que sugeriam não iriam chegar a sua mesa até dentro de um ano ou mais e que sabia que o senhor já possuia umas esplêndidas bandejas de prata — Jack tinha seis bandejas, mas estavam empenhadas —, e também que o palanquim, embora fosse magnífico, não serviria muito a um oficial da marinha. Então me ocorreu que a solução a nossos problemas era o frete. Sou excessivamente rude ao lhe falar com tanta franqueza?
— Oh, não, não! — Respondeu Jack —. Não faça cerimônias, eu peço. Mas estava perplexo. O frete, esse maravilhoso jorro de ouro que se conseguia sem esforço, quase sem fazer nada, apenas o recebiam os afortunados capitães de navios de guerra que levavam valiosos carregamentos do Governo em moedas ou lingotes de ouro de pessoas que não se atreviam a transportar suas riquezas por meios menos seguros, e o supunha em dois ou três por cento do valor total do carregamento..., e era sempre bem-vindo. Embora apenas se dava em raras ocasiões, à diferença do butim (o único que recebia um oficial da marinha que pudesse se comparar), era mais seguro, não estava afetado por questões legais nem nenhum homem tinha que arriscar seu barco, sua vida ou sua carreira para consegui-lo. Como qualquer outro marinheiro, Jack sabia tudo acerca do frete, mas nunca o havia cobrado... Sentiu uma grande simpatia por Canning. Contudo, tinha algumas dúvidas: os lingotes de ouro sempre iam para a Índia, não regressavam para a Inglaterra. As riquezas que a Companhia enviava para a Inglaterra eram chá, musselina, chales de casimira... Nunca havia ouvido que ninguém que mandasse lingotes de ouro.
— Talvez saiba senhor que o Lushington levava um de nossos envios de pedras preciosas, levava rubis de Borneo — disse Canning —. E nos hão encarregado um envio de pérolas de Tinnevelly e dois paquetes de zafiras. Creio que seu valor total não é muito alto, apenas chega a um quarto de milhão, mas também não ocupam lugar, não lhe molestarão. Aceitaria isto, senhor?
— Sim, senhor — respondeu Jack —, e lhe agradeço muito a forma delicada e cavalheiresca em que me fez a oferta.
— Não tem que ma agradecer nada, estimado Aubrey; não tem que agradecer nada a mim pessoalmente, pois apenas sou o portavoz da Companhia. Contudo, gostaria muito de poder lhe prestar algum serviço. Ficaria encantado de poder lhe ajudar em algo. Gostaria de mandar alguma mensagem para a Inglaterra? Se investir alguns milhares de libras em chá de Bohea ou lã de Angora, já haverá recuperado uns trinta por cento quando chegue ali; meus primos e eu mantemos um serviço de correio por terra através de Suez e o mensajeiro está a ponto de partir.
— Investir em lã de Angora — disse Jack, pensativo —.Temo que nesse terreno estou perdido. Mas lhe agradeceria infinitamente que desse a seu mensajeiro uma carta pessoal. A terá dentro de dez minutos. O senhor é muito amável, muito amável.
Encarregou Pullings que levasse Canning para dar uma volta pelo barco, recomendando-lhe que se fixasse sobretudo na parte anterior do trancanil e nas bitas, e se pôs a terminar sua carta:
Sophie, carinho, há ocorrido o mais maravilhoso do mundo: John Companhia vai encher o barco de tesouros. A ti e a mim nos pagarão o frete, como nós chamamos; mais tarde te explicarei tudo. É como o butim, mas não se reparte com os tripulantes, e neste caso tampouco com o almirante, já que estou sob as ordens do Almirantado. Não te parece maravilhoso? Não é uma enorme soma, mas graças a ela saldarei minhas dívidas e poderemos ter uma bonita casa de campo com um ou dois acres. Pela presente te peço que vás imediatamente para Madeira e adjunto uma nota para Heneage Dundas, que ficará encantado de te levar na Ethalion se faz esse itinerário e desde que não o faça buscará a algum de nossos amigos que vá até ali. Não percas nem um momento, podes fazer o vestido de novia no barco. Com muita pressa e muito mais amor, Jack.
P.S. Stephen está muito bem. Tivemos uma escaramuça com Linois.
Querido Heneage:
Pelo apreço que me tens, leva a Sophie a Madeira. E se não podes, fala com Clowes, Seymour, Rieu, qualquer um dos nossos amigos que sejam sérios e confiáveis. E se podes levar a uma respeitável mulher que a sirva te agradecerei infinitamente.
Com todo meu afeto,
JACK AUBREY
P.S. A Surprise foi açoitada pela Marengo, de 74 canhões, mas lhe devolveu os golpes com mais força. Quando terminarem de pôr os vaus da bateria de proa me farei ao mar. Te envio esta nota por terra, y seguramente chegará dois meses antes que eu.
— Aqui tem, senhor — disse, quando o robusto corpo de Canning apareceu na porta, escurecendo a cabine —. Firmada, selada e entregue. E muitíssimo obrigado.
— Não há por que. Em seguida a darei a Atkins e ele a entregará ao mensajeiro antes que se vá.
— Atkins? O secretário do senhor Stanhope?
— Sim, o doutor Maturin o mandou ir verme com uma recomendação. Parece que ao morrer o enviado do Rei em tão penosas circunstâncias ficou em uma situação difícil. Conhece ele?
— Sim, claro, viajou aqui na Surprise, mas o vi muito poucas vezes.
— Ah, sim? Isso me lembra que faz dias que não tenho o prazer de ver a Maturin.
— Nem eu tampouco. Nos encontramos nessas esplêndidas cenas, mas passa o resto do tempo no hospital ou correndo pelo país buscando insetos e tigres.
— Vais e traga-me um elefante, por favor — disse Stephen.
— Sim, sahib, em seguida. Sahib prefere um elefante macho ou fêmea?
— Macho. Eu me sentirei mais à vontade com um elefante macho.
— Se sahib desejar, posso levá-lo a uma casa de garotos jovens, garotos limpos, doces como gazelas, que cantam e tocam a flauta.
— Não, Mahomet. Apenas traga o elefante, por favor.
O enorme animal de cor cinza se agachou e Stephen viu de perto seu pequeno olho, bem aberto, brilhando entre a pintura e as rendas.
— Ponha o pé aqui, sahib, em cima do animal.
— Desculpe-me — murmurou Stephen, inclinando-se para sua imensa orelha, e depois subiu.
Passearam pelo abarrotado Chowringhee, e enquanto isso Mahomet ia mostrando coisas de interesse.
— Aí vive Mirza Shah; está decrépito e cego. Os reis tremiam ao ouvir seu nome. Aí Kumar o Rico, um descrente. Tem mil concubinas. Ao sahib isso lhe repugna. O sahib pensa, como eu, que as mulheres são fofoqueiras, intrigueiras, mentirosas, alvoroçadas, desprezíveis, mesquinas, malvadas, inconstantes, insensiveis, desumanas; lhe trei um jovem que cheira a mel. Esta é a maidan. Veja, sahib, que Deus lhe conserve a vista, as duas figueiras de Bengala que estão perto da ponte; aí é onde os cavalheiros europeus vêm lutar uns contra os outros com sabres e pistolas. O edifício que está do outro lado da ponte é um templo pagão; está cheio de ídolos. Cruzamos a ponte. Agora o sahib está em Alipur.
Em Alipur havia vastos jardins e casas isoladas. Aqui algumas ruinas góticas sobre as quais se erigia uma pagoda, ali a torre redonda de um irlandês que sente saudade de sua terra. O elefante subiu por um caminho empedrado que levava a um pórtico, um pórtico muito similar ao de uma casa de campo inglesa exceto pelos profundos vãos que tinha em ambos os lados para os tigres e o cheiro das feras enchendo o espaço. Os tigres sairam e lhe dirigiram um olhar desapiedado; suas correntes ainda se arrastavam pelo solo. Tinham as caras tão juntas que seus bigotes se entrelaçavam, e era impossível saber de que peito saia aquele ruído cavernoso, persistente, que retumbava no pórtico. O filho do guarda se despertou ao ouvir aquele ruido tão grave como o de um órgão, girou um torno e imediatamente os tigres ficaram isolados.
— Menino, diga-me como se chamam estas feras e que idade têm.
— Pai dos pobres, seus nomes são Bom e Mal. Devem viver desde tempos imemoriais porque estavam neste pórtico já antes que eu nascesse.
— O território de um se superpõe ao do outro?
— Marajá, não consigo comprender a palavra superpõe, mas creio que sim.
— Menino, aceite esta moneda.
Stephen foi anunciado.
— Aqui está outra vez esse médico — disse lady Forbes, olhando-o de longe, fazendo seus sombra sobre os olhos com a mão —. Há que reconhecer que tem certa, elegância..., foi bem educado..., mas nunca confiaria em gente de castas intermédias. Boas tardes, senhor. Espero que esteja bem, Romeo Matasanos. Eles atiraram trastes na sua cabeça. Ela me teria feito chorar se me restassem lágrimas para derramar. Encontro-me, senhor, tomando o chá, senhor. Gostaria de uma xícara? Eu ponho umas gotas de genebra, senhor; essa é a única forma de combater este calor úmido e asfixiante. Kumar! Onde está esse preto sodomita? Outra xícara. Hei ouvido que os senhores haviam enterrado o senhor Stanhope. Bom, todos temos que chegar a isso; esse é meu consolo. Meu Deus, quantos jovens hei visto enterrar aqui! A senhora Villiers descerá em seguida. Eu lhe servirei outra xícara e irei ajudá-la a se vestir. Estará deitada completamente desnuda sob o punkah, suando. Seguro que o senhor gostaria de ir ajudá-la, jovem, embora tenha essa expressão seria. Não me diga que não há... Oh, sou uma velha grosseira! Ai de mim! E pensar que fui jovem em outro tempo!
— Stephen, meu herói! — Exclamou Diana, que veio sem companhia —. Que alegria ver seu rosto finalmente! Onde has estado todos estes dias? Recebes-te minha nota? Sentesse, por favor, e tire a jaqueta. Como podes suportar este horroroso calor? Nós estamos desesperados com este calor tão pegajoso e incômodo e tu pareces tão fresco como... Quanto te invejo! É teu esse elefante que está aí fora? Mandarei pô-lo à sombra imediatamente. Nunca deves deixar um elefante ao sol.
Chamou um servente, um homem estúpido que não entendeu de imediato as suas instruções, e sua voz passou para um tom que Stephen conhecia bem.
— Quando vi o elefante subindo pelo caminho — disse, voltando a sorrir —, pensei que era esse aborrecido de Johnstone, que me visita tanto. Bom, de fato, não é aborrecido..., é um homem interessante. É americano; acredito que simpatizarias com ele. Conheces algum americano? Eu também não conhecia a nenhum antes dele. É muito educado, sabes? Isso que dizem de que cospem no chão é um conto. E além disso, é imensamente rico. Mas sua presença é comprometedora e uma das causas dessas horríveis brigas tão frequentes. Detesto que um homem se envolva em uma briga, sobretudo com este calor, quando um pouco esforço faz que a gente se encha de um suor asqueroso. Todo mundo se põe furioso neste tempo. Mas, por que veio em um elefante e com uma jaqueta de uma cor tão viva?
Para qualquer homem com muitos menos conhecimentos de morfologia que Stephen era evidente que Diana não vestia nada por baixo do vestido. Stephen, franzindo o cenho, olhou pela janela; queria ter a mente muito clara.
— O elefante representa o esplendor e a confiança — disse —. Durante as últimas semanas, desde que o barco regressou da costa de Sumatra, hei notado que tenho uma expressão muito ansiosa. Quando me barbeio a vejo, e também olho com atenção os traços da cara, a cabeça, o pescoço, os ombros..., as partes expressivas. De vez em quando volto a me olhar, e comprovo que a expressão reflete um temor profundo, indefinido..., quase horror. E embora troque a expressão por outra alegre, animada e segura, em poucos minutos ela volta a aparecer. O elefante pode influir nisso. Lembras que a última vez que nos vimos te pedi que me desse a honra de casares comigo?
— Lembro-me, Stephen — disse, ruborizando. Nunca a havia visto ruborizar, e isso o comoveu —. Lembro-me muito bem. Mas, por que não me o disseste faz tempo...? Em Dover, por exemplo. Haveria sido diferente então, antes de que ocorresse tudo isto. — Pegou um leque de cima da mesa, se levantou e começou a agitá-lo nervosamente —. Meu Deus! Que calor faz hoje! — Sua expressão mudou —. Por que esperaste até agora? Qualquer um diria que caí tão baixo que te forcei a fazer algo quixotesco. De fato, se não te tivesse tanto carinho, e te tenho muito carinho, és um grande amigo, o consideraria uma impertinência, uma ofensa. Nenhuma mulher de meu temperamento toleraria uma ofensa. Não me hei degradado. — Seu queixo começou a enrrugar-se, mas ela conseguiu relaxar —. Não me hei rebaixado até...
Mas apesar de seu orgulho, se lhe saltaram as lágrimas. Apoiou a cabeça no ombro de Stephen e as lágrimas cairam sobre sua chamativa jaqueta.
— Em todo caso — continuou entre soluços —, tu não queres se casar comigo realmente. Faz tempo me disseste que o caçador não queria a rapoza.
— Que demônios está fazendo, senhor? — gritou Canning do umbral da porta.
— E o que isso lhe importa, senhor? — perguntou Stephen, voltando-se bruscamente para ele.
— A senhora Villiers está sob minha proteção — disse Canning, pálido pela ira.
— Não tenho que dar explicações a nenhum homem por beijar uma mulher, a menos que seja a sua esposa.
— Ah, não?
— Não, senhor. E em que consiste sua proteção? O senhor sabe muito bem que a senhora Canning chega no Hastings no dia dezesseis. Então, onde está sua proteção? Que tipo de proteção é essa?
— É verdade isso? — perguntou Diana.
Canning ruborizou.
— Esteve fuçando em meus documentos, Maturin. Atkins, seu enviado, esteve fuçando em meus documentos.
Cheio de raiva, deu alguns passos para frente e deu uma sonora bofetada em Stephen.
Imediatamente Diana interpôs uma mesa entre eles e empurrou Canning para trás, gritando:
— Não lhe faças caso, Stephen. Não era sua intenção fazê-lo... É o calor..., está bêbado... Ele te pedirá desculpas. Saia desta casa agora, Canning. Que pretendes com esta grotesca briga? Acaso és meu prometido? És ridículo.
Stephen permanecia com as mãos atrás das costas. Ele também tinha uma grande palidez, menos onde estava a marca vermelha que a mão de Canning havia deixado.
Já na porta, Canning pegou uma cadeira e a espatifou contra o chão. Ficou apenas com o respaldo nas mãos, o lançou a um lado e saiu correndo.
— Stephen — disse Diana —, não lhe faças caso. Não deves se bater com ele. Ele te pedirá desculpas, garanto que te pedirá desculpas.
— Talvez o faça, querida — disse Stephen —. Encontra-se em um estado lamentável, o pobre homem. — Abriu a janela —. Creio que Sairei por aqui, se posso. Não confio em seus tigres.
— Capitão Etherege — disse Stephen —, poderia me fazer um favor?
— Vários — respondeu Etherege, afastando sua cara redonda e risonha do escotilhão do costado, aonde a havia aproximado para aproveitar o ar que entrava.
— Hoje há ocorrido algo que me há molestado muito. Eu lhe peço que visite o senhor Canning e lhe diga que desejo receber uma satisfação pela bofetada que me deu.
— Uma bofetada? — perguntou Etherege, e em sua cara apareceu uma expressão muito preocupada —. Oh, meu Deus! Temo que não valem as desculpas neste caso. Mas disse senhor Canning? Não é um judeu? Não deve duelar com um judeu, doutor. Não deve arriscar sua vida por um judeu. Deixe que um grupo de infantes da marinha lhe dêem uma surra e lhe metam um pedaço de bacon na garganta e dê por terminado o assunto.
— Vemos as coisas de forma diferente — disse Stephen —. Sinto grande devoção por Nossa Senhora, que era judia, e não creio que minha raça seja superior à sua. Além disso, respeito esse homem. Duelarei com ele de boa vontade.
— O senhor lhe dá excessivo valor — disse Etherege descontente e incômodado —. Mas o senhor entende melhor do que ninguém os seus assuntos, certamente. E não pode tolerar uma bofetada. Contudo, duelar com um comerciante é como ser obrigado a formar um casal desigual ou a se casar com a criada porque a deixou embaraçada. Não preferiria duelar com outra pessoa? Bom, porei meu uniforme completo. Não faria isto por ninguém mais que pelo senhor, Maturin, não com este condenado calor. Espero que ele possa encontrar um padrino que entenda estas coisas, um cristão, claro.
Foi à sua cabine, preocupado e desgostado, e reapareceu vestido com sua jaqueta vermelha, já empapada em suor. Assomou a cabeça pela porta e fez a última tentativa:
— Está seguro de que não preferiria duelar com outra pessoa? Por exemplo, com alguém que tenha estado presente ali e tenha visto que lhe dava a bofetada.
— Não teria o mesmo efeito — respondeu Stephen, negando com a cabeça —. E sobretudo, Etherege, confio em sua discrição.
— Sei o que é correto, claro — disse Etherege mal-humorado —. Suponho que o senhor quererá que seja o quanto antes. Parece-lhe adequado ao amanhecer?
E enquanto se dirigia ao portaló, Stephen lhe ouviu dizer: “Obstinado..., não atende as razões..., teimoso...”
— Que aconteceu à Langosta? — Perguntou Pullings, entrando no sala dos oficiais —. Nunca o havia visto tão raivoso. Terá brotoeja?
— Estará mais tranquilo e sossegado pela tarde.
No seu retorno, Etherege estava mais tranquilo, e quase satisfeito.
— Bom, ao menos tem alguns amigos respeitáveis — disse —. Hei falado com o coronel Burke, da frota da Companhia, todo um cavalheiro, e combinamos que será com pistolas e a vinte passos. Espero que lhe pareça bem.
— Certamente. Estou muito agradecido, Etherege.
— Apenas me faltou inspecionar o terreno. Hemos acordado reunimos ali depois da festa do Presidente do Tribunal, porque o tempo estará mais fresco.
— Oh, não se preocupe comigo, Etherege! Me contento com qualquer terreno apropiado.
Etherege franziu o cenho e disse:
— Não, não. Detesto as irregularidades em um assunto desta classe. Já é bastante raro, e o será mais ainda se os padrinos não inspecionam o terreno.
— O senhor é muito amável. Eu lhe preparei uma tigela de ponche gelado; tome um copo, ou mais, por favor.
— Também há estado preparando suas pistolas — disse Etherege, assinalando com a cabeça o estojo aberto —. Recomendo que moa a pólvora muito fina... Mas não preciso ensinar nada ao senhor sobre a pólvora e os disparos. O ponche é excelente; poderia seguir bebendo-o sempre.
Stephen entrou na cabine grande.
— Jack — disse —, faz semanas que não tocamos nem uma nota. Que achas se tocarmos um pouco esta tarde, se não estás excessivamente ocupado com o proiz e as barras do cabrestante?
— Por fim has chegado, meu amigo! — exclamou Jack, levantando a vista das contas do contramestre e voltando para Stephen seu rosto radiante —. Tenho muito boas notícias. Vamos transportar um tesouro e com o frete saldarei minhas dívidas.
— O que é o frete?
— Isso significa que estou livre de dívidas.
— Essa é realmente uma boa notícia. Ah, ah! Te felicito de coração. Estou encantado, surpreso.
— Eu te explicarei com cifras quando terminar as contas. Mas basta de papéis por hoje. Tens alguma peça em mente?
— Tu gostarias do Concerto em dó maior de Boccherini?
— Vá, isto sim que é curioso! O adágio me há estado dando voltas na cabeça faz mais de uma hora, embora não esteja melancólico. Nada mais longe disso, ah, ah! — Começou a esfregar com colofônio o arco do violino —. Stephen, hei seguido seu conselho: escrevi para a Sophie pedindo que vá a Madeira. Canning enviará a carta por terra.
Stephen assentiu com a cabeça, sorrindo. Cantarolou umas notas e depois as buscou no violoncelo. Ambos afinaram os instrumentos, fizeram uma inclinação de cabeça e, com os olhos fixos, um no arco do outro, golpearam três vezes o chão com o pé e se lançaram ao brilhante e afeiçoado primeiro movimento.
Continuaram tocando, alienados pela música, um belo conjunto de sons entrelaçados; passaram ao adágio, quase desesperado, e seguiram com fúria até o ponto culminante e o majestoso e triunfante final.
— Deus! Nunca havíamos tocado tão bem, Stephen — disse, virando-se e deixando a um lado seu violino com cuidado.
— É uma belísima peça. Admiro a esse homem. Escute, Jack: quero te confiar estes documentos..., assuntos correntes. Vou duelar com Canning pela manhã, por desgraça.
Imediatamente uma grossa cortina os separou, interrompendo toda comunicação entre eles exceto a formal. Depois de uma pausa, Jack disse:
— Quem é seu padrino?
— Etherege.
— Irei contigo. Por isso se ouviam tantos disparos no castelo de popa, certamente. Te importaria que falasse com ele?
— Não, em absoluto. Mas há ido à festa do Presidente do Tribunal, e depois se reunirá com o coronel Burke para inspecionar o terreno. Não te preocupes comigo, Jack. Estou acostumado com estas coisas..., mais acostumado que tu, me parece.
— Oh, Stephen, que final tão horrível para um dia tão maravilhoso! — exclamou Jack.
— Aqui é onde habitualmente solucionamos nossos conflitos em Calcutá — disse o coronel Burke, guiándo-lhes através da maidan iluminada pela lua —. Esse é o caminho que leva à ponte de Ahpur, o vem? É uma vantagem que esteja perto. E contudo, a parte que está detrás desses árvores fica isolada e é muito discreta.
— Coronel Burke — disse Jack —, pelo que entendi, a ofensa não ocorreu em público. E creio que uma desculpa pode solucionar o assunto. Aprecio muito a seu chefe, e digo isto por consideração a ele. Por favor, faça tudo o que possa..., meu amigo é perigoso.
Burke lhe olhou com os olhos muito abertos.
— O meu também — disse em tom ofendido —. Fez cair a Harlow como a um pássaro em Hyde Park. Mas mesmo que não o fosse, isso não teria nenhuma importância. Não lhe agrada dar para trás, o sei muito bem, do contrário eu não estaria aqui. Mas certamente, se seu amigo decide tolerar uma bofetada e dar a outra face, não tenho nada a dizer. Benditos sejam os homens pacíficos!
Jack teve que se conter. E embora tivesse poucas esperanças de traspassar a estupidez de Burke, continuou:
— Seguramente Canning estava bêbado. Se ao menos admitir isso, mesmo que seja de forma vaga, bastará. Sim, isso seria satisfatório, e caso necessário, faria valer minha autoridade para que assim fosse.
— Quer dizer que obrigaria o seu amigo a permanecer no barco? Bom, vejo que senhores na Armada têm seus própios costumes. Isso não seria possível entre nós. De todos os modos, transmitirei sua mensagem, mas não sei se servirá de algo. Nunca hei tido um chefe tão disposto a dar satisfação na forma habitual. Tem uma coragem fora do comum.
Stephen escreveu em seu diário:
Na maioria dos casos, o que escreve um diário crê que se dirige a si mesmo em um tempo futuro, mas o realmente importante de um diário é o que se escreve sem um propósito, talvez como isto. Por que o duelo de amanhã me afeta desta maneira? Me hei batido muitas, muitas vezes. É certo que minhas mãos já não são o que eram e que, ao envelhecer, perdi a profunda embora ilógica convicção de que era imortal, mas a verdadeira razão é que agora tenho muito o que perder. Vou duelar com Canning; creio que era inevitável posto que somos da maneira que somos, mas o lamento profundamente. Não consigo sentir ódio por ele, e embora em seu estado atual — decepcionado e cheio de raiva e vergonha — não me resta dúvida de que tentará me matar, não creio que tampouco ele o sinta por mim; apenas sou o catalizador de sua infelicidade. Por minha parte, sub Deo, nada mais lhe rozaré o braço. O bom senhor White opinará que ao dizer sub Deo hei blasfemado, e creio que mais adiante farei algumas observações a respeito, mas peccavi nimis cogitatione, verbo, et opere. (pequei muitas vezes, por pensamentos, palavras e obras). Tenho que ver o pastor e me deitar a dormir em seguida. Dormir é o importante, dormir sem preocupações.
Dormiu, mas perturbado por sonhos breves e inconexos, e Jack o despertou quando soaram as duas badaladas na guarda da manhã. Enquanto ambos se vestiam, ouviram Babbington cantando docemente Lovely Peggy na coberta, com a mesma alegria do dia que despontava.
Sairam da cabine, e em seguida lhes chegou o fedor do rio Hugli e das intermináveis marismas. No portaló encontraram Etherege, McAlister e Bonden.
Sob as figueiras de Bengala, na deserta maidan, um silencioso grupo os esperava: Canning, dois amigos, um cirurgião e alguns homens para vigiar o terreno. A certa distância havia duas carruagens. Burke se adiantou.
— Bons dias, cavalheiros — disse —. Não há outra possibilidade de resolver a disputa. Etherege, se lhe parece suficiente esta luz, creio que podemos situar os contendores, a menos que seu amigo prefira desistir, claro.
Canning tinha uma jaqueta negra, e a havia abotoado até em cima, cobrindo até mesmo a gravata. Agora havia luz suficiente — de coloração cinza claro — para o ver perfeitamente. Estava muito tranquilo e sério, mas tinha a cara pálida e enrugada como um velho.
Stephen tirou a jaqueta e a camisa e as dobrou cuidadosamente.
— Que fazes? — murmurou Jack.
— Sempre duelo em calças. É péssimo que haja fragmentos de tecido em uma ferida, meu amigo.
Os padrinos contaram os passos sobre o terreno, examinaram as pistolas e posicionaram os contendores. Chegou outra carruagem fechada.
Em no momento em que Stephen teve na mão a culatra que lhe resultava tão familiar e sentiu seu peso, uma grande frieza se refletiu em seu rosto. Seus olhos claros olharam com letal intensidade para Canning, que já havia se colocado em posição de tiro, com o pé direito adiante e o corpo muito reto. Todos permaneciam imóveis, silenciosos e tão atentos como se fosse ser celebrado um sacramento.
— Cavalheiros — disse Burke —, podem fazer fogo quando der o sinal.
Canning subiu sua arma. Por cima do canhão de sua pistola, Stephen viu o clarão e imediatamente tirou o dedo do gatilho. Nesse mesmo momento recebeu um enorme impacto e uma bala lhe atravessou o peito. Cambaleou, mudou a pistola, ainda sem disparar, para a mão esquerda, e adotou uma postura diferente. Quando a fumaça se dispersou no ar carregado, pôde ver com claridade a Canning, que com a cabeça erguida, ligeiramente jogada para trás, tinha o ar de imperador romano. Apontou a pistola; o canhão oscilou uns instantes e depois ficou imóvel. Apertou os lábios e disparou. Canning se desabou, depois se pôs de gatinhas, enquanto pedia a segunda pistola, e caiu de novo. Seus amigos correram para ele e Stephen voltou a cabeça.
— Estás bem, Stephen?
Assentiu com a cabeça, ainda tão impassível como sempre, e disse a McAlister:
— Dá-me essas gases.
Secou a ferida, e enquanto McAlister a examinava, murmurando: “A bala deu na terceira costela..., a rompeu..., se desviou por detrás do esterno..., se há alojado em um lugar profundo... Esse porco queria matá-lo... Porei uma venda ao redor”, observava o distante grupo. Desabou, e seu olhar malevolente, viperino, deu passagem a outra triste e desesperado. O escuro charco de sangue aos pés dos homens que rodeavam a Canning apenas podia indicar uma coisa: havia errado o tiro.
McAlister, segurando com a boca o extremo da venda, seguiu seu olhar e assentiu com a cabeça.
— Subclávio ou aorta — murmurou, ainda com a venda na boca —. Terminarei de atar este extremo e irei falar com o nosso colega.
Regressou e assentiu de novo com a cabeça, muito sério.
— Morto? — perguntou Etherege, e olhou a Stephen desconcertado, duvidando se o felicitava, mas guardou silêncio ao vê-lo tão abatido.
Bonden guardou as duas pistolas em seus estojos, depois de extrair a carga da segunda. Enquanto isso, Etherege se aproximou de Burke e ambos trocaram algumas palavras, se despediram formalmente e se separaram.
Já a gente ia de um lado a outro da maidan e ao leste o céu se havia posto vermelho.
Jack disse:
Temos que levá-lo ao barco agora. Bonden, chame a carruagem.
CAPÍTULO 11
Os tigres já não estavam e os serventes levavam coisas descaradamente.
— Bons dias, senhora — disse Jack, levantando-se. Diana fez uma reverência —.Trouxe uma carta de Stephen Maturin.
— Como ele está? — perguntou.
— Muito mal. Tem muita febre e a bala está alojada em um lugar muito profundo. E uma ferida neste clima... Bom, a senhora já sabe o que ocorre com as feridas neste clima.
Os olhos de Diana se encheram de lágrimas. Esperava dureza, mas não essa profunda raiva. Era mais alto do que recordava, e muito mais corpulento. Sua cara havia mudado, o menino que havia nele já não estava, havia desaparecido sem deixar rastro; seu olhar era duro, penetrante. Apenas o que reconheceu, além do uniforme, foi seu cabelo loiro, que levava recolhido em uma trança. Mas até o uniforme havia mudado: agora ele era capitão de navio.
— Desculpe-me, Aubrey — disse ela e abriu a carta, que consistia em três linhas torcidas e irregulares: “Diana, deves voltar à Europa. O Lushington zarpa no dia quatorze. Permita-me que me ocupe das questões materiais. Conte comigo sempre, sempre. Stephen.”
A leu devagar, e outra vez, com os olhos nublados pelas lágrimas, enquanto Jack permanecia de pé, com as mãos para trás das costas, olhando pela janela.
Além da raiva e da repugnância que Jack sentia por estar ali, experimentava outro sentimento que lhe era difícil identificar, e sua mente estava cheia de dúvidas e perguntas. Não estava acostumado a julgar as coisas, exceto os erros nas manobras de um barco ou as violações da disciplina naval. Era tão ruim que tinha ódio contra uma mulher que havia perseguido? Acaso aquela profunda gravidade era odiosa hipocrisia, uma forma de o obligar a mostrar sua dignidade? Estivera a ponto de arruinar sua carreira por ela, mas ela havia preferido a Canning. Acaso sua tremenda indignação era, de fato, um horrível ressentimento? Não, não o era. Ela havia ferido profundamente a Stephen, e Canning, um bom homem, estava morto. Não era boa, não era boa com certeza. Contudo, naquele encontro sob as árvores lhe havia parecido uma das mulheres mais virtuosas que havia no mundo, segundo ele o via nesse momento. Virtude; reflexionava sobre ela enquanto olhava distraidamente um jóquei que ziguezagueava entre as árvores. Havia atacado sua “virtude” com toda a força que havia podido... Então, qual era realmente sua posição? Não lhe valia como desculpa a frase comum: “Os homens são diferentes.” O jóquei apareceu de novo ante sua vista, e agora podia ver muito bem seu cavalo. Provavelmente era o animal mais belo que havia visto: uma égua alazana de proporções perfeitas, ágil, com brio. Assustou-se ao ver uma serpente no caminho e se encabritou, mas o jóquei permaneceu tranquilo, dando-lhe palmadinhas no pescoço. Virtude; a que mais apreciava era o valor, e seguramente essa incluia a todas as demais. No cristal da janela podia ver a imagem fantasmal de Diana. Ela tinha valor, não cabia dúvida. Ali estava, muito erguida, tão delgada e frágil que poderia rompê-la com uma mão... Jack sentiu de novo uma ternura e um admiração que cria mortas.
— O senhor Johnstone — disse um servente.
— Não estou em casa.
O jóquei se afastou.
— Aubrey, poderias me levar à Inglaterra em seu barco?
— Não, senhora. As normas não o permitem. Além disso, não é adequado para levar a uma senhora e ainda falta mais de um mês para terminar de armá-lo.
— Stephen me pediu que case com ele. Poderia fazer de enfermeira.
— O sinto muitíssimo, mas minhas ordens não me o permitem. Não obstante, o Lushington zarpa esta semana, e se posso ajudá-la em algo, estarei encantado de servi-la.
— Sempre soube que eras um homem fraco, Aubrey — disse ela, olhando-o com desprezo —, mas não sabia que eras tão mau. És como todos os homens que conheço, à exceção de Maturin: falso, fraco e, na hora da verdade, um covarde.
Jack fez uma inclinação de cabeça e saiu do cômodo aparentemente sereno. Cruzou no caminho com um cozinheiro que empurrava uma carinho de mão cheio de panelas e frigideiras de cobre. “Sou ruim de fato?”, Perguntou-se. E a pergunta o atormentou até que chegou a Howrah, onde estava a fragata. No momento em que viu seu mastro maior sobressaindo entre a massa de barcos, começou a caminhar mais depressa. Subiu apressadamente ao portaló, passou entre os oficiais, que estavam esperando-lhe, e os carpinteiros e se foi abaixo.
— Killick — disse —, averigua se o senhor McAlister está ocupado com o doutor. Se não estiver, quero vê-lo.
Stephen estava na cabine grande, o lugar mais ventilado e iluminado do barco, e nela havia muita atividade. McAlister saiu dali com um desenho na mão, seguido pelo contramestre, o carpinteiro e alguns ajudantes deste. Parecia angustiado e triste.
— Como ele está? — perguntou Jack.
— A febre é excessivamente alta, senhor — respondeu McAlister —, mas espero que baixe quando lhe hajamos extraído a bala. Já estamos quase prontos, mas a bala está em um lugar muito ruim.
— Não seria melhor levá-lo ao hospital? Os cirurgiões poderiam lhe dar uma mão. Podemos preparar uma maca em um momento.
— Já lhe sugeri quando comprovamos que a bala estava justo debaixo do pericárdio, está esmagada e torcida, sabe?, mas não tem muito boa opinião dos cirurgiões militares nem do hospital. Eles mandaram dizer que ofereciam seu ajudante faz apenas meia hora, e lhe confesso que o teria recebido de boa vontade, o pericárdio é sumamente delicado, mas insiste em realizar a operação ele mesmo e não me atrevo a contradizê-lo. Desculpa-me, senhor, mas o armeiro está esperando para fazer este extrator que ele desenhou.
— Posso vê-lo?
— Sim, mas, por favor, procure que não se chateie nem se excite.
Stephen estava tendido sobre uma fila de baus, reclinado sobre um pedaço de pallete enrrolado e envolto em uma vela. No teto, justo sobre ele, havia pendurado um grande espelho mediante polias e cabos, e a seu lado, a seu alcance, uma mesa na qual havia vendas, estopa e instrumentos cirúrgicos: pinças, retratores e uma serra em forma de meia lua.
Olhou a Jack e disse:
— Tu a viste?
— Sim.
— Agradeço-te muito que hajas ido. Como ela está?
— Bastante bem. Tem grandeza de ânimo. E tu, como te sentes, Stephen?
— O que ela vestia?
— O que ela vestia? Um vestido de alguma classe, suponho. Não prestei atenção.
— Não era preto?
— Não. Isso o haveria notado. Stephen, parece que tens muita febre. Queres que mande abrir a clarabóia para que entre o vento?
Stephen negou com a cabeça.
— Tenho febre, certamente, mas não tanta para me preocupar. Pode ser que isso ocorra mais tarde. Espero que Bates se dê pressa com meu saca-bala.
— Deixe-me trazer um cirurgião de Fort William, apenas para que permaneça a seu lado? Poderia estar aqui em cinco minutos.
— Não, senhor. O farei com minha própria mão.
Ulhou a sua mão atentamente e acrescentou como para si:
— Se há podido encarregar-se de uma coisa, tem que encarregar-se da outra; é o justo.
McAlister regressou com umas pinças longas, recém saidas da forja do armeiro. Stephen as pegou, comprovou se tinham a mesma forma curva que o desenho, separou as pontas e disse:
— Muito bem feito, estupendas. McAlister, vamos começar. Por favor, chame a Choles, conforme esteja sóbrio.
— Posso ajudar em algo? — Perguntou Jack —. Eu gostaria muito de poder ser útil. Poderia sostener a bacia ou secar com a estopa.
— Podes sustituir a Choles, se queres. Tens que sujetar meu ventre e apertá-lo com força, assim, quando eu disser. Mas és capaz de resistir este tipo de coisas? Não te afeta ver sangue? Choles era açougueiro, sabes?
— Meu querido Stephen, hei visto sangue e feridas desde que era menino.
Havia visto sangue, claro, mas não assim, brotando com força a medida que avançava o bisturi e penetrava a sonda. Tampouco havia ouvido nada parecido ao ruído da serra cortando o osso, um ruído que sentia a poucas polegadas de seu ouvido, pois estava inclinado sobre a ferida com a cabeça muito baixa para não impedir Stephen de ver o espelho.
— Terá que subir a costela, McAlister — disse Stephen —. Agarre-a bem com o retrator quadrado. Para cima, mais forte, mais forte. Corte a cartilagem com as tesouras.
O ruído metálico dos instrumentos..., ordens..., o rápido e constante taponamento... Tinha a impressão de que atuava sobre ele uma força tremenda, uma força maior do que podia imaginar. Tudo aquilo se prolongava, se prolongava...
— Agora, Jack, empurre com força para baixo. Bom. Fique assim. Dá-me o saca-bala e me limpe com algodão, McAlister. Empurre, Jack, empurre.
No fundo da palpitante cavidade Jack viu um ponto cinza, que desapareceu em seguida. E nessa direção penetravam pouco a pouco as pinças alongadas. Fechou os olhos.
Stephen aspirou fundo, conteve a respiração e arqueou a costas. Em meio do silêncio Jack podia ouvir o tic-tac do relógio de McAlister muito próximo de seu ouvido. Escutou um ofego e Stephen disse:
— Aqui está. Muito esmagada. Está inteira, McAlister?
— Inteira, senhor, inteira, graças a Deus. Não lhe falta nem um pedaço.
— Deixe de fazer pressão, Jack. Devagar com o retrator, McAlister. Dê-me um pouco de algodão. Já podes começar a coser. Espera. Atenda ao capitão enquanto me limpo. Amoníaco... Baixe-lhe a cabeça.
McAlister lhe arrastou até uma cadeira. Jack sentiu como seus própios joelhos lhe oprimiam a cabeça e o penetrante cheiro do amoníaco. Levantou a cabeça e olhou para Stephen, que tinha a cara de cor cinza, brilhante pelo suor, com um aspecto quase inumano e uma expressão muito séria mas triunfante. Observou seu peito, no que havia uma profunda abertura de lado a lado que deixava à vista os brancos ossos... Então McAlister começou seu trabalho e suas costas impediu Jack de seguir vendo a ferida; eram umas costas amplas, movendo-se com uma agilidade que assegurava o triunfo. Trabalho de perito..., breves observações técnicas... E ali estava Stephen, com o peito rodeado por uma venda branca, limpo, relaxado, jogado para trás com os olhos meio fechados.
— Has contado o tempo, McAlister? — perguntou.
— Vinte e três minutos exatamente.
— Lento... — Sua voz se apagou, e ao cabo de uns instantes voltou a se ouvir —. Jack, chegarás tarde ao jantar.
Jack começou a protestar e disse que devia ficar. Então McAlister, pondo um dedo sobre os lábios, o levou sigilosamente até a porta. Fora havia mais tripulantes do que era conveniente, e pareciam haver esquecido a disciplina.
— Acabou a festa — disse —. Pullings, que não se ouça nenhum ruído próximo do mastro maior, nenhum ruído mesmo.
— Está muito pálido, senhor — disse Bonden —. Quer tomar algo?
— Terá que mudar a jaqueta, Sua Senhoria — disse Killick —. E também as calças.
— Oh, Bonden! — Exclamou Jack —. Ele mesmo se abriu, com suas própias mãos, lentamente, até chegar ao coração; hei visto seu coração batendo.
— A operação lhe há afetado, senhor — disse, dando-lhe o copo —. Contudo, aos antigos tripulantes da Sophie não lhes pareceria espantoso mas muito comum. Recorda-se do condestável, senhor? Não deixe de comparecer ao jantar por isso. Não se preocupe com ele, voltará a ficar forte como um carvalho.
Foi um esplêndido jantar entre reflexos dourados. E sem pensar, Jack enguliu uma libra ou duas de algum animal banhado em um molho picante. Seus companheiros de mesa eram afáveis, mas depois que agotaram os tópicos mais comuns o deixaram a um lado, e ele comeu em silêncio o resto dos pratos, cada um com seu próprio vinho. Naquele relativo silêncio podia ouvir a conversação dos dois civis que estavam em frente: um era um juiz velho e surdo, de voz rouca, que levava uns óculos verdes, o outro era um membro do Conselho, um homem muito corpulento, e ambos, ao final do jantar, estavam avermelhados e apenas se aguentavam em pé. O tema de sua conversação era Canning, sua impopularidade, seu atrevimento e sua independência.
— Pelo que hei ouvido, cavalheiros — disse o juiz —, os senhores estariam dispostos a presentear o sobrevivente um par de pistolas com incrustações de ouro ou um jogo de bandejas de prata.
— Não falo por mim mesmo — disse o membro do Conselho —, porque meu território é Madras, mas creio que em alguns carros dos que irão ao enterro não se derramarão lágrimas por ele.
— E o que está acontecendo com a mulher? É verdade que querem expulsá-la por ser uma pessoa não grata? Preferiria que a passeassem em um carro açoitando-a, como se fazia antiguamente; faz muitos anos que não tenho o prazer de ver isso. Não gostaria de ter o chicote na mão? Poderia tê-lo, porque a consideração de pessoa não grata é apenas de tipo administrativo neste caso.
— A esposa de Buller foi a visitá-la para ver como sobrelevava a desgraça, mas não foi recebida.
— Estará abatida, sem dúvida, muito abatida. Mas me fale desse charlatão irlandês, desse fanfarrão. A mulher era sua...?
Um ajudante de campo se lhes aproximou por detrás e lhes sussurrou algo.
— Que? — Gritou o juiz —. É? Oh, não o sabia!
Então baixou um pouco os óculos e olhou para Jack.
— Está falando senhor de meu amigo, o doutor Maturin, senhor. Espero que a mulher à que se há referido não seja a dama que nos honra a Maturin e a mim com sua amizade.
Asseguraram-lhe que não..., não queriam ofendê-lo nem um pouco..., estavam dispostos a retirar qualquer frase inoportuna..., nunca se lhes ocurreria falar desrespeitosamente de uma dama que o capitão Aubrey conhecesse..., queriam que bebesse com eles um copo de vinho. Jack lhes disse que o faria com muito prazer. E uns instantes depois levaram o juiz.
Ao dia seguinte, no silencioso castelo de popa da Surprise, Jack recebeu a Diana com menos frieza do que ela esperava. Disse que Maturin estava dormindo nesse momento, mas que se queria podia falar com McAlister para que lhe informasse sobre seu estado, e que se Stephen despertasse, McAlister a deixaria entrar. Mandou abaixo todos os tipos de refresco que a Surprise podia oferecer, e quando ela foi embora por fim, depois de esperar em vão, lhe disse:
— Espero que tenha melhor sorte da próxima vez. Foi uma benção que dormisse; até agora não havia dormido.
— Amanhã não posso sair, porque há muitas coisas que fazer. Posso retornar na quinta-feira?
— Claro. E se algum de meus oficiais puder lhe ser útil, estaríamos encantados de servi-la. Já conhece a Pullings e a Babbington. Ou se prefere, Bonden pode lhe servir de escolta. Estes cais não são um lugar apropiado para as damas.
— Muito amável. Ficaarei encantada em ter a proteção do senhor Babbington.
— Oh, Braithwaite, quanto amo à senhora Villiers! — disse o Babbington na sexta-feira, barbeado duas vezes e resplandecente com seu chapéu adornado com uma fita dourada.
Braithwaite suspirou, sacudindo a cabeça.
— Ela faz com que todas as demais, desde o cabo Portsmouth, pareçam horríveis.
— Nunca voltarei a pensar em nenhuma outra mulher, estou seguro. Aí vem ela! Vejo seu carro por detrás do dhow.
Correu para ajudá-la a entrar pelo portaló e a conduziu até o castelo de popa.
— Bons dias, senhora — disse Jack —. Stephen está muito melhor, e tenho o prazer de lhe comunicar que ele comeu um ovo. Contudo, ainda tem muita febre. Peço que evite lhe causar intranquilidade ou irritação. McAlister diz que é muito importante não irritá-lo.
— Querido Maturin! — exclamou ela —. Quanto me alegro de te ver já sentado! Aqui tens uns mangostões; são o melhor que há para a febre. Mas crês que estás suficientemente bem para receber visitas? Aubrey, Pullings, o senhor McAlister e inclusive Bonden me hão assustado tanto, dizendo-me que não devo te inquietar nem incomodar, que penso que eu deveria ir logo.
— Sou forte como um touro, querida — disse —, e ao te ver me sinto infinitamente melhor.
— De toda forma, tratarei de não deixá-lo nervoso nem de desgostá-lo. Em primeiro lugar, quero agradecer por tua nota; me há servido de consolo e estou seguindo tuas indicações.
Stephen sorriu e disse em voz baixa:
— Que feliz me fazes! Não obstante, Diana, há outra questão menos nobre: o necessário para viver, o pão de cada dia. E falando nisso...
— Stephen, querido, és a melhor das criaturas, mas tenho pão e também mais coisas pelo momento. Vendi uma enorme esmeralda que o Nizam me havia presenteado e hei reservado a única cabine decente do Lushington. Abandonarei todo o resto, o deixarei tal como está. Esses vulgares espantalhos de Calcutá poderão me insultar, mas não poderão dizer que sou interesseira.
— Não. Realmente, não — disse Stephen —. O Lushington é muito cômodo e espaçoso, quase o dobro de nossa fragata, e tem o melhor xerez que hei bebido, mas teria gostado que voltasses à Inglaterra na Surprise. Isso significaria esperar outro mês mais ou menos, mas... Não te ocorreu pedir a Jack?
— Não, carinho — disse ela com ternura —. Não me ocorreu. Que tonta que fui! Mas lá tem serventes, sabes? E além disso, não gostaria que me visses enjoada, pálida, suja e com uma atitude egoísta. Mas isso, a longo prazo, não tem importância. Provavelmente nos alcançarão e poderemos nos ver em Madeira. Do contrário, de todas formas, nos veremos em Londres. Não perderemos muito tempo. Deves de ter sede, vou te dar algo para beber. Isto é água de cevada, certo?
Falaram tranquilamente do água de cevada, dos ovos, dos mangostões, dos tigres de Sundarbans... Ou melhor, ela falou enquanto ele permaneceu deitado, muito pálido, com o semblante grave mas imensamente feliz, e apenas disse uma ou duas palavras.
— Aubrey cuidará muito bem de ti, não tenho dúvida — disse ela —. Será tão bom marido como amigo? O duvido, porque não sabe absolutamente nada sobre as mulheres. Pareces muito cansado, Stephen. Devo ir agora. O Lushington zarpa pela manhã em uma hora impossível, com a maré alta. Obrigado pelo anel. Adeus, querido. — Beijou-o e suas lágrimas cairam sobre o rosto de Stephen.
As fétidas águas do Hugli deram passagem às águas transparentes da baía de Bengala e estas às de coloração azul escuro do oceano índico. A Surprise, por fim de regresso a seu país, desdobrou as alas para tomar a monção e se dirigiu velozmente para o sudoeste, seguindo o rumo do Lushington, que tinha duas mil milhas de vantagem.
A bordo da fragata ia uma tripulação fraca, empapada e mal-humorada, uma caixa de aço cheia de pérolas em bolsas de camurça, rubis e safiras, um cirurgião delirante e um capitão angustiado.
Desde que a febre de Stephen havia subido de forma alarmante, Jack passava toda a noite sentado junto à sua maca. McAlister ou qualquer outro oficial poderiam lhe ter sustituido, mas Stephen revelava seus segredos no delírio, e embora muitas coisas as dizia em francês ou em catalão ou apenas tinham sentido em seu próprio pesadelo, outras muitas eram muito claras e específicas. Possivelmente um homem com menos segredos não haveria sido tão comunicativo; desde o inconsciente seus segredos saiam em torrente por sua boca.
Além dos segredos oficiais, havia coisas que Jack não queria que nenhuma outra pessoa ouvisse e que ele mesmo se envergonhava de ouvir. Para um homem tão orgulhoso como Stephen (nem sequer o próprio Lucifer o era tanto), significaria a morte saber que outro, embora fosse seu mais íntimo amigo, o havia ouvido expressar sem rodeios seus desejos e que suas fraquezas haviam ficado ao descoberto como no dia do juizo final. Exponia suas ideias sobre o adultério e a fornicação, falava imaginariamente com Richard Canning sobre os laços do matrimônio, e de repente dirigia insultos, por exemplo, a Jack: “Jack Aubrey, temo que tu também vais a se ferir com sua própria arma. Enquanto estejas bébado te deitarás com a primeira prostituta que encontres e o lamentarás o resto de sua vida. Não conheces a castidade.” Além disso dizia insultos, como: “Judeu é uma distinção imposta; bastardo é outra. Ambas palavras poderiam ser irmãs; as duas são, quando menos, amigas — embora pouco ou nada recomendáveis — Porque as duas poderiam qualificar a maioria dos seres desprezíveis.”
Jack permanecia ali sentado e o secava com uma esponja de vez em quando, enquanto os turnos mudavam e a fragata seguia avançando rapidamente. Agradecia a Deus ter oficiais aos quais podia confiar os trabalhos da rotina. Permanecia ali sentado e, enquanto o secava com uma esponja e o abanava, o escutava em contra a sua vontade e se sentia triste, angustiado, aborrecido e às vezes ferido.
Não tinha caráter para permanecer sentado e sem falar uma hora após outra. Além disso, ouvir aquelas palavras dolorosas lhe provocava uma grande tensão e já fazia tempo que era insensível a qualquer estímulo. Sentiu de repente um cansaço insuportável e enormes desejos de que Stephen deixasse de falar. Mas Stephen, tão calado normalmente, era loquaz no delirio, e o tema sobre o qual falava era a natureza do ser humano. Demostrou também ter uma prodigiosa memória, pois Jack o ouviu recitar capítulos inteiros de Molina e quase toda a Ética a Nicómaco.
O desconcerto e a vergonha que sentia por ter vantagem sobre ele eram horríveis, mas ainda pior era sua confusão de ideias. Considerava Stephen um filósofo, um homem forte ao qual apenas afetavam os sentimentos comuns, seguro de si mesmo e com razões para estar, e nunca havia respeitado mais a um homem que não era marinheiro. Por isso ao conhecer a este Stephen afeiçoado, subjugado por Diana, cheio de dúvidas de todo tipo, se sentiu horrorizado; seu desconcerto não haveria sido maior se tivesse descoberto que a Surprise não levava âncoras, nem lastro, nem bússula.
— Arma, virumque cano — começou a dizer Stephen com voz estridente, na escuridão, ao recordar o primo louco de Diana.
— Bom, graças a Deus que volta a falar em latim — disse Jack —. Oxalá que dure.
Durou muito, efetivamente; durou até que passaram o Equador. Durante a guarda da manhã puderam se ouvir, como um presságio, suas palavras:
—... ast illl solvuntur frigore membra
vitaque cum gemitu fugit indígnala sub umbras.
E as seguiu um indignado grito com o qual pedia chá:
—... chá verde! Não há ninguém neste maldito barco que saiba como curar uma febre? Eu lhes estava chamando e chamando.
O chá verde ou a mudança do vento (rolou ao noroeste) perto de Saint Stephen fizeram descer a febre hora após hora, e McAlister a manteve baixa com quina. Mas a febre foi seguida por um período de aborrecidos protestos que provocavam em Jack o mesmo cansaço que a Eneida. E se surpreendia ao ver como lhe resistiam os demais, que não tinham, como ele, a experiência de haver suportado pacientemente, durante longo tempo, o seu companheiro de tripulação. A Killick, tosco e mal-humorado mas firme, ouvia dizer às vezes: “esse condenado babuino”, mas corria o quanto podia para ir lhe buscar uma colher; Bonden aguentava com paciência seu ataque com uma vasilha; os mais veteranos e ferozes marinheiros do castelo, que tratavam de o acalmar quando levavam cuidadosamente sua cadeira aos melhores lugares da coberta, recebiam suas maldições fosse qual fosse sua escolha e a brisa que soprasse ali.
Stephen era um paciente horrível. Às vezes considerava a McAlister um ser omnisciente que podia preparar o melhor dos remédios, outras retumbava na coberta o grito: “Charlatão!” e se viam cair pelo escotilhão os frascos dos remédios. O pastor sofria mais que ninguém; a maioria dos oficiais costumavam irse a outras partes da fragata quando o convalecente Maturin estava no castelo de popa, mas o senhor White não podia subir pela exárcia, e além disso, seu dever era visitar os enfermos e até mesmo jogar xadrez com eles. Uma vez, deixando-se levar pelo erastianismo, aplicou com esmero todos seus conhecimentos e ganhou, e não apenas teve que suportar os olhares reprovatórios do timoneiro, do oficial de navegação que ia ao governo do barco e de todos os oficiais, senão uma censura indireta do capitão — que pensava que era “uma mesquinharia adiar a recuperação de um enfermo por um momento de satisfação” — e seus própios remorsos de consciência. O senhor White estava em uma situação desesperada, porque se perdesse o doutor Maturin provavelmente se queixaria de que não prestava atenção e ficaria furioso.
A férrea constitução de Stephen prevaleceu. E uma semana depois, quando a fragata se encontrava em frente a uma remota ilha desabitada do oceano índico — cuja longitude era diferente em todas as cartas marítimas — desceu a terra. Ali, um dia que precisava ficar assinalado em um monolito branco, fez a descoberta mais importante de seu vida.
O bote passou por uma abertura do arrecife de coral e chegou até uma praia com mangues no lado esquerdo e uma faixa de terra coberta de palmeiras no lado direito. Jack e seus oficiais haviam colocado ali seus instrumentos e, como um grupo de necromantes que faziam seus exercícios do dia, observavam a pálida lua, por cima da qual se via claramente Vênus.
Choles e McAlister o baixaram e o deixaram sobre a areia seca. Stephen cambaleou um pouco, e eles o levaram ao outro lado da praia, até uma árvore enorme e muito velha cujas raizes, cobertas de samambaias, formavam um cômodo assento, e em cujas ramas podiam ser vistas orquídeas de quatorze tipos diferentes. Ele ficou à sombra do árvore com um livro e papel de fumar enquanto se comprovava a ancoragem e prosseguiam as observações astronômicas, que demoravam várias horas.
Os instrumentos estavam colocados em uma zona onde haviam aplainado cuidadosamente a areia, e quando aproximava-se o grande momento a tensão pôde ser observada até mesmo da árvore. Todo o grupo ficou em completo silêncio, e apenas se ouvia a voz de Jack ditando uma série de números ao escrevente.
— Dois, sete, quatro — disse, irguendo-se por fim —. Qual é sua medição, senhor Stourton?
— Dois, sete, quatro, exatamente.
— Esta é a medição mais precisa que já fiz — disse Jack e, subindo o telescópio, olhou para Vênus, que podia ser vista no alto do céu se sabesse para onde olhar —. Agora podemos guardar tudo e voltar à fragata.
Cruzou a praia, e quando estava chegando à árvore disse:
— Que estupenda medição, Stephen! Sinto que o tenhamos feito esperar tanto, mas valeu a pena. Todos nossos cálculos coincidem, e os cronômetros indicaram uma diferença de vinte e sete milhas. Hemos situado a ilha com a exatidão... Meu Deus! Que é essa coisa tão monstruosa?
— Uma tartaruga, meu amigo. A maior tartaruga terrestre do mundo, uma nova espécie. É desconhecida para a ciência, e em comparação com elas as tartarugas gigantes de Rodríguez e Aldraba são répteis insignificantes. Deve pesar uma tonelada. Creio que nunca hei estado tão contente. Sinto-me tão alegre, Jack! Não sei como vais a levá-la ao barco, mas nada é impossível para a Armada.
— Devemos levá-la ao barco?
— Oh, sem dúvida! Imortalizará seu nome; a chamaremos Testudo aubreii. E quando o herói do Nilo haja sido esquecido, o capitão Aubrey será recordado graças a esta tartaruga e viverá eternamente coberto de glória.
— Bom, te agradeço muito, Stephen. Creio que poderíamos tirá-la da praia atada com uma tiravira. Como a encontraste?
— Estava passeando pelo interior da ilha, buscando exemplares de animais..., essa caixa está cheia..., há tanta variedade que poderia fazer meia dúzia de monografias..., e então a encontrei, em uma zona com poucas árvores, comendo as folhas de uma figueira de Bengala. Arranquei alguns brotos altos, que ela se esforçava para alcançar, e me seguiu até aqui comendo-os. É um animal muito confiado, não é receioso em absoluto. Que Deus proteja ela e também a sua espécie quando outros homens encontrarem esta ilha! Esta tartaruga me devolveu o ânimo — disse, e lhe passou o braço ao redor do enorme carapaça.
A tartaruga fazia pender a balança, como disse McAlister, a quem o sol tropical aguçava o engenho. Sua presença tinha um efeito mais tonificante que toda a quina e o bezoar guardados no baú de remédios da fragata. Stephen se sentava junto a Testudo aubreii perto dos galinheiros todos os dias, enquanto a fragata navegava com rapidez para o sul. Aumentava de peso e cada vez mais tinha melhor humor, mais serenidade, mais benevolência.
A Surprise havia feito a viagem de ida muito bem — salvo quando havia tido problemas ou havia encontrado ventos desfavoráveis — e isso podia ser atribuido ao zelo dos tripulantes. Agora regressava a seu país, e essas palavras tinham um efeito mágico sobre eles — muitos dos quais eram esperados por suas esposas e noivas — mas especialmente sobre seu capitão, porque ia contrair matrimônio (isso esperava), e tinha em perspectiva de não apenas se converter em um homem casado mas de chegar ao teatro da guerra, onde teria a possibilidade de se distinguir e ocupar todas as páginas de um exemplar da Gazette e também de obter butins. Além disso, a Companhia o havia tratado de uma forma muito especial, não como em um estaleiro real, onde haveriam regateado até meio penique de alcatrão, e lhe havia proporcionado estupendas provisões, novas velas, novas placas de cobre e um excelente cordame de Manila, o que lhe havia devolvido boa parte de suas antiguas qualidades. E embora não haviam sido eliminados alguns defeitos estruturais muito notórios — produzidos pela passagem do tempo e o ataque da Marengo —, tudo estava bem até o momento e avançava rapidamente para o sul, como se estivesse perseguindo um galeão.
Agora a tripulação estava muito bem treinada; a batalha havia contribuido para isso, mas já muito antes os marinheiros formavam um grupo compacto e armonioso e executavam as ordens assim que acabavam de recebê-las. O vento foi favorável até muito depois de passaram o trópico de Capricórnio, e dia após dia a fragata percorria duzentas milhas navegando a toda velocidade, enquanto todos os marinheiros aproveitavam ao máximo suas qualidades; essa era uma bonita imagem da vida naval, a que sentiam saudade e consideravam autêntica os oficiais com meia paga, alojados em escuras pousadas. Durante a viagem de ida não haviam visto nem um único barco desde o cabo de Boa Esperança até as ilhas Laquedivas; nesta haviam visto cinco e se haviam comunicado com três: um barco corsário inglês com exárcia de corveta, um americano que se dirigia ao mar da China e um barco abastecedor que ia rumo a Ceilán. Todos lhes deram notícias do Lushington, que agora, segundo o barco abastecedor, tinha umas setecentas milhas de vantagem.
As quentes águas se tornavam cada vez mais frias; as jaquetas apareceram nas turnos noturnos e as constelações do hemisfério ficaram visívesi. E quando cruzavam águas de cinquenta braças de profundidade, próximo do banco de areia Otter, lhes sobressaltaram os gritos dos pinguins na névoa. No dia seguinte encontraram o perpétuo vento do oeste e uma verdadeira troca de clima.
Agora usavam jaquetões e gorros de pele, enquanto a Surprise mudava de bordo e navegava de bolina com as velas de mal tempo ou seguia em linha reta para o sul, tratando de encontrar ventos favoráveis, ou estava ao pairo apenas com a maior de capa, lutando para avançar para o oeste milha a milha contra a barreira que formava o forte vento. Os petreles e os albatrozes lhes faziam companhia; na camareta dos cadetes, na sala dos oficiais e na própria cabine voltaram a comer carne de vaca salgada e bolachas (na coberta inferior nunca haviam deixado de comer isso) e seguia soprando o vento do oeste. Fazia um tempo tão mau que durante intermináveis dias não se fizeram medições.
A tartaruga havia sido levada ao porão fazia muito, e esteve dormindo sobre uma manta acolchoada durante o longo tempo que levaram para rodear o cabo. Enquanto isso, seu amo também dormia muito, comia, recobrava as forças e classificava os numerosos exemplares recolhidos em Bombaim e o pequeno número deles recolhidos — com demasiada pressa, lamentavelmente — em outros lugares. Tinha pouco o que fazer, pois as enfermidades que inevitavelmente os marinheiros haviam trazido de Calcutá McAlister havia tratado antes que ele se recuperasse, e por outro lado, a fragata estava tão cheia de puro suco de lima que os homens gozavam de boa saúde; além disso, a esperança, o desejo veemente e a alegria haviam causado seu efeito habitual e todos na Surprise estavam satisfeitos e felizes. Havia terminado com os coleópteros e havia avançado bastante na classificação das criptógamas vasculares quando a fragata pôs rumo ao norte por fim.
Cinco dias com vento fraco e instável, muito mais quente. Colocaram pela primeira vez em muitas semanas os mastaréus da Surprise. E em uma noite quente, iluminada pela lua, quando Stephen estava sentado junto ao coroamento observando como o senhor White desenhava a exárcia — negras sombras, manchas escuras sobre a fantasmal coberta — uma rajada de vento inclinou a fragata, derramando a tinta azul, e a água fosforescente começou a correr pelo costado de bombordo. A inclinação aumentou e o ruído das bolhas subiu de tom e se converteu em uma cantarola.
— Se estes não são os benditos ventos alísios, eu sou um holandês — disse Pullings.
Não era um holandês. Aqueles eram, efetivamente, os ventos alísios do sudeste, suaves mas estáveis, com uma variação de apenas um grau. A Surprise desdobrou bastante velame e continuou avançando para o trópico de Capricórnio; os homens haviam se recuperado de sua luta contra o cabo e agora cantavam no castelo, e se ouvia a charamela tocando a Surprise é uma delícia. Mas desta vez não se puseram em apresentável para nadar um pouco, nem sequer quando já haviam deixado muito distante o trópico de Capricórnio.
— Avistaremos Santa Elena pela manhã — disse Jack.
— Vamos a fazer escala? — perguntou Stephen.
— Não — respondeu Jack.
— Nem sequer para conseguir uma dúzia de bois? Não estás cansado da cecina?
— Não. E se crês que pode existir um ardil, um estratagema que te permita descer a terra para recolher insetos, deves seguir pensando.
Na luminosa luz do amanhecer pôde ser visto um ponto preto no horizonte, um ponto preto com uma nuvem flutuando sobre ele. Agora se via com mais claridade, e Pullings enumerou os principais atrativos da ilha: Holdfast Tom, Stone Top, o cabo Old Joan. Havia desembarcado ali várias vezes e disse ao doutor que teria gostado lhe mostar um pássaro que vivia em Dianas's Peak e tinha um bico muito curioso, um cruzamento entre uma coruja e um louro.
A fragata deu seu nome ao elevado posto de sinais e fez a pergunta: Há ordens para a Surprise? Há correio?
O posto de sinais respondeu: Não há ordens para Surprise. E depois de um quarto de hora disse por fim: Não há correio. Repetimos: não há ordens, não há cartas para Surprise.
— Por favor, pergunte se o Lushington já passou — disse Stephen.
O posto respondeu: o Lushington veio e zarpou para Madeira faz sete dias. Tudo bem.
— Em marcha — disse Jack, e a fragata mudou a orientação das velas e seguiu seu rumo —. Muffit deve de haver tido muita sorte ao dobrar o cabo. Chegará antes de nós ao cabo Lizard e fará a viagem em menos de seis meses. Haverá se atrevido a passar pelo canal de Moçambique, o muito porco?
Outro amanhecer, tão puro e belo que inspirava temor, porque toda perfeição é passível de se estragar e desaparecer. Esta vez foi o aviso de que havia um barco à vista o que fez subir aos marinheiros muito rápido, mais rápido que o apito do contramestre. O barco navegava para o sul, em direção contrária, e muito provavelmente era um navio de guerra. Meia hora depois se soube com certeza que era uma fragata e que estava se aproximando. Todos os marinheiros começaram a fazer os preparativos de combate e a Surprise fez o sinal secreto. A fragata lhe respondeu e lhe deu seu nome: Luchesis. A tensão foi substituida por uma grande expectativa.
— Por fim teremos notícias — disse Jack.
Mas enquanto falava, apareceram outras bandeiras de sinais que indicavam: Levamos mensagens oficiais urgentes. Então a fragata orçou; não poderia parar nem que tivesse se encontrado com um almirante.
— Pregunte se leva correio — ordenou Jack.
E pôde ler a resposta com sua luneta antes do cadete encarregado dos sinais: Não há correio para a Surprise.
— Maldita seja essa carraca mirrada! — exclamou quando se separavam.
Depois, na hora da comida, ele disse para Stephen:
— Sabes de uma coisa? Eu gostaria que esse pastor não estivesse a bordo. White é um bom tipo; não tenho nada contra ele, me cai simpático e teria parazer lhe servir no que possa em terra, mas dizem que levar um pastor a bordo sempre traz má sorte. Não sou nem um pouco supersticioso, como sabes, mas a tripulação está muito inquieta por isso. Não levaria nenhum pastor em meu barco se pudesse evitar. Afinal, os pastores estão fora de lugar em um navio de guerra, porque seu dever é nos dizer que devemos oferecer a outra face, e isso não tem nenhum sentido em uma batalha. Tampouco gostei desse horrível pássaro que cruzou a proa.
— Era simplesmente um alcatraz comum, sem dúvida vinha da ilha de Ascensión. Este grogue é a bebida mais espantosa do mundo, apesar de que lhe hei posto um pouco de carmim e gengibre. Morro de vontade de tomar vinho outra vez..., um vinho tinto bem encorpado. Digo uma coisa: quando mais conheço a Armada, mais me assombra que seus homens, com uma educação liberal, sejam tão simples que crêem em supertições. Apesar de que estavas ansioso pora regressar à Inglaterra, não quiseste zarpar em uma sexta-feira, dando a ridícula desculpa de que acontecia algo ao cabrestante. Asseguras que não falas por ti mas pelos homens, mas a isso respondo: ah, ah!
— Podes dizer o que quiser, mas essas coisas são certas. Poderia contar algumas histórias que te arrepiariam até os pelos da peruca.
— Todos os preságios dos marinheiros anunciam desgraças. Naturalmente, se os homens, como neste caso, estão tristes, formam um grupo excessivamente numeroso e dedicam todo seu tempo livre e seu esforço a atormentar os seus companheiros, é provável que algum mal augurio se cumpla, mas nem os cadáveres nem os pastores nem o fogo de Santo Telmo são os responsáveis pela tragédia.
Jack não estava convencido e negou com a cabeça. Mastigou durante um tempo a carne de vaca que parecia de madeira e depois disse:
— Quanto à educação liberal, eu também respondo: ah, ah! Nós marinheiros apenas temos educação. A única forma de fazer que alguém chegue a oficial da marinha é mandá-lo navegar, e muito jovem. Eu mesmo hei estado navegando desde que tinha doze anos, mais ou menos, e a maioria de meus amigos apenas assistiram a aulas elementares que alguma dama da localidade dava em sua casa. A única coisa que conhecemos é a nossa profissão, se é que conhecemos algo..., deveria haver passado pelo canal de Moçambique. Não, não pertenecemos a esse tipo de homens pelos quais as jovens educadas, inteligentes e de bons modos percorrem milhares de milhas pelo mar. Agradamo-as muito quando estamos em terra e são amáveis e nos chamam de bons marinheiros quando conseguimos uma vitória, mas não se casam conosco a menos que o façam de imediato, a menos que as abordemos envolvidos em nosso próprio fumo. Se têm tempo de pensar, como ocorre a miúde, se casam com pastores ou brilhantes advogados.
— Com respeito a isso, Jack, tenho a dizer que subvalorizas a Sophie — disse Stephen —. Querer a ela é uma demostração de sua educação liberal; ao menos nesse aspecto és um homem educado. Além disso, os advogados são péssimos maridos, porque têm o costume de estar sempre falando; em troca, os marinheiros estão habituados a obedecer em silêncio.
E para afastar os tristes pensamentos da mente de Jack, acrescentou:
— Giraldus Cambrensis afirma que os habitantes de Ossory podem se tranformar em lobos à vontade.
Voltou a seus criptógamas, mas sua consciência não lhe deixava tranquilo. Estivera pensando tanto em seus própios anseios — a esperança de Madeira e a certeza de Londres — que não havia observado a ansiedade de Jack, uma ansiedade que, igual à sua, aumentara à medida que o prometedor futuro estava mais definido, mais próximo do presente. Ele também se sentia angustiado, porque pressentia que logo ia perder a grande alegria de navegar — um mês após outro — com rumo a um esplêndido final. Não era um pressentimento de que se produziria um desastre iminente mas certa intranquilidade, algo muito difícil de definir.
— Essa foi a observação mais desafortunada — disse, pensando na frase de Jack: “... se casam com pastores” e em que nomear pessoas era a mais arraigada de suas ocultas superstições ou idéias ancestrais —. Absit, o absit ornen..
Encontrou o pastor somente no sala de oficiais, jogando um partida de xadrez.
— Por favor, senhor White — disse Stephen —, poderia me dizer se entre os cavalheiros de sua profissão conhece a algum chamado Hincksey?
— O senhor Charles Hincksey? — perguntou o pastor, inclinando cortesmente a cabeça.
— Exatamente, o senhor Charles Hincksey.
— Sim, conheço muito bem o senhor Hincksey. Estivemos juntos em Magdalen e costumávamos jogar cartas e caminhar grandes distâncias. Era um estupendo companheiro, não tratava de rivalizar, e era muito querido na universidade; me sentia orgulhoso de o conhecer. Também era um grande helenista. Tinha muito boas relações, tão boas que agora ocupa dois cargos eclesiásticos, os dois em Kent: um é o mais proveitoso do condado e o outro pode ainda melhorar. E contudo, não creio que nenhum de nós sinta inveja nem ressentimento dele, sabe?, inclusive os que não têm benefícios eclesiásticos. É um predicador excelente, parsimonioso, nunca se exalta. Creio que será o próximo bispo, e nossa igreja sairá beneficiada.
— Não tem defeitos o cavalheiro?
— Suponho que sim — respondeu o senhor White —, mas lhe dou minha palavra de que não posso recordar nenhum. Embora fosse outro Chartres, estou seguro de que à gente lhe seguiria sendo simpático. É um homem alto e atraente, não excessivamente engenhoso nem divertido, mas sempre uma agradável companhia. Não entendo como se escapou do matrimônio, porque poderia se encher um armazém com as tiaras das mulheres que olham para ele. Não tem aversão ao estado de casado, o sei, mas me parece que é difícil de se agradar.
Os dias passavam voando; cada um deles parecia comprido, mas rapidamente formaram uma semana..., uma quinzena. Os ventos instáveis e débeis da viagem de ida atuaram desta vez impulsando a fragata para o norte, que cruzou o Equador e, quase sem pausa, encontrou de novo os ventos alísios. Agora, quase a cem milhas de distância, podia verse por estibordo o pico que dominava Tenerife, um brilhante triângulo sob sua nuvem particular.
O enorme desejo de chegar a Madeira não havia diminuido nem um pouco; em nenhum momento Jack deixou de levar a frágil embarcação com todo o velame aberto, o que era quase uma temeridade. Mas tanto Aubrey como Maturin sentiam uma tensão cada vez maior, uma mescla de prazer e temor ao que ocorreria.
Ao norte, a ilha se recortava sobre o céu ameaçador, e antes do crepúsculo ficou oculta pela chuva, uma forte chuva que caia de nuvens baixas e formava sulcos nos costados recém pintados da fragata. Pela manhã entravam no porto de Funchal — cheio de barcos — atrás dos quais se via a cidade, branca e brilhante, em meio do ar luminoso. Havia uma fragata, a Amphion; uma corveta, a Badger; vários barcos portugueses, um norte-americano, inumeráveis botes, barcos de pesca e outras embarcações pequenas. E em um extremo estavam três mercantes da Companhia das Índias com suas excelentes vergas sobre a coberta, mas o Lusbington não estava entre eles.
— Dispare, senhor Hales — disse Jack.
Os canhões saudaram o castelo, o castelo disparou, devolvendo o cumprimento, e o fumo começou a se dispersar pela baía.
— Atenção na proa! Soltar!
A âncora caiu no mar e o cabo baixou correndo atrás dela, mas antes de que se cravasse e sacudisse o barco, voltaram a se ouvir canhonaços. Jack se voltou para o alto mar para ver se vinha outro barco, e então se deu conta de que os mercantes da Companhia estavam saudando a Surprise. Seguramente o Lushington lhes havia informado da escaramuça com Linois e estavam muito contentes.
— Dispare sete, senhor Hales — disse —. E depois desça a barcaça.
Stephen ia ser o primeiro em descer pelo costado. Contudo, quando estava no portaló se mostrou indeciso, e Bonden, pensando que estava inseguro devido a suas condições físicas, murmurou:
— Tranquilo, doutor. Dê-me seu pé.
Jack o seguiu. Então se ouviu o apito do contramestre e os marinheiros começaram a remar para levá-los a terra. Iam sentados um ao lado do outro, com seus melhores uniformes, de frente para os remeiros, que estavam barbeados e levavam suéteres brancos e amplos chapéus também brancos com largas fitas com o nome de Surprise. A única palavra que Jack pronunciou foi: “Avançar”.
Foram diretamente ver ao correspondente de seu agente, um inglês de Madeira.
— Bem-vindo, senhor! — exclamou o correspondente —. Quando ouvi os mercantes da Companhia soube que era o senhor. O senhor Muffit esteve aqui na semana passada e nos contou sua nobre façanha. Permita-me que o felicite, senhor, e que aperte a sua mão.
— Obrigado, senhor Henderson. Diga-me, sabe se há na ilha alguma jovem que espera por mim, que há chegado em um barco do Rei ou um mercante da Companhia?
— Uma jovem, senhor? Não, que eu saiba, não. Certamente, não há vindo em nenhum barco do Rei. Mas os mercantes da Companhia chegaram faz pouco, ou segunda-feira, após sofrer sérios danos no golfo de Vizcaya, e podia estar em algum deles. Aqui estão as listas de passageiros.
Jack leu rapidamente os nomes. Em seguida lhe chamou a atenção um: senhora Villiers, e depois, duas linhas mais abaixo, outro: senhor Johnstone.
— Mas esta é a lista do Lushington! — exclamou.
— Sim — disse o correspondente —. As outras, as do Mornington, do Bombay Castle e do Clive estão detrás.
Jack as leu duas vezes, e depois, lentamente, pela terceira vez. Não havia nenhuma senhorita Williams.
— Há correio? — perguntou com voz apagada.
— Oh, não, senhor! Ninguém perguntou na ilha pela Surprise mesmo dentro de muitos meses. Provavelmente na Inglaterra não sabiam que havia zarpado.
Acredito que o seu correio debe estar na Bellerophon, que vai para o sul com o último comboio que há passado. Mas agora que o penso, no escritório deixaram uma mensagem para um tal doutor Maturin, que viaja a bordo da Surprise. O deixou uma senhora que ia no Lushington. Aqui está.
— Meu nome é Maturin — disse Stephen. Reconheceu a letra, claro, e notou o anel ao apalpar o envelope —. Jack, vou dar um passeio. Bons dias, senhor.
Começou a subir a montanha. Seguiu o caminho por onde quer que atravessasse, por pequenos canaviais, hortas, vinhedos semeados em lajotas e um bosque de castanhas, entre as árvores até onde estas acabavam e apareciam arbustos, depois até onde os arbustos terminavam e começava uma zona ressecada e de escassa vegetação. E depois do caminho acabar continuou subindo até um lugar coberto de rochas vulcânicas, as mesmas que, dispostas em capas, formavam a cordilheira central da ilha. Nas partes que estavam à sombra havia um pouco de neve mole, e comeu vários punhados; havia chorado e suado tanto que já não lhe restava água no corpo e tinha a boca e a garganta tão secas como a áspera rocha onde estava sentado.
Havia se convencido de que tudo devia lhe ser indiferente, e embora suas bochechas ainda estivessem úmidas e o vento frio as surrasse agora, não sentia nenhuma dor. Abaixo se via uma atormentada paisagem: em primeiro lugar uma grande extenção de terra estéril, depois bosques, e mais além diminutos campos, alguns povoados e por último a costa sul da ilha. À direita estava Funchal, cheio de barcos que pareciam manchas brancas, e muito mais lá o oceano se unia com o céu. Observou tudo com verdadeiro interesse. Ao oeste, do outro lado do enorme cabo, estava Câmara de Lobos, um lugar habitado por focas, segundo diziam.
O sol estava apenas a um palmo do horizonte, e a sombra, quase tão escura como a noite, cobria totalmente os inumeráveis barrancos.
— Descer..., esse será o problema — disse em voz alta —. Qualquer homem pode subir, quase indefinidamente, mas descer, sobretudo descer com passo firme, é algo totalmente diferente.
Tinha que ler a carta, claro, e quando a luz do dia estava a ponto de acabar, a sacou do bolso. Rasgou o envelope (um ruído atroz) e a leu com grande frieza, embora não pôde evitar que ao final sentisse uma mescla de ternura e desesperação. Mas isso não servia de nada, a debilidade não servia de nada. Com à mesma aparente indiferença, olhou ao seu redor buscando nas rochas um vão onde pudesse dormir.
Quando saiu a lua, relaxou seu corpo contraido e exausto e ficou sumido por fim na escuridão, em um profundo sono, e assim, totalmente ausente, permaneceu várias horas. O sol, em sua tragetória circular, depois de haver iluminado Calcutá e depois Bombaim, apareceu na outra parte do mundo e lhe deu de cheio na cara, obrigando-lhe a despertar. Então se sentou, ainda sonolento, e embora experimentasse um doloroso sentimento, não podia identificá-lo. As dispersas recordações voltaram à sua mente; assentiu com a cabeça, enterrou o antigo anel de ferro que ainda tinha na mão (a carta havia sido levada pelo vento) e esfregou a cara com um pouco da neve que ficava.
Chegou à base da montanha pela tarde, e quando ia a caminho de Funchal se encontrou com Jack na praça da catedral.
— Espero não haver te atrasado — disse.
— Não, em absoluto — disse Jack, segurando-lhe pelo cotovelo —. Estamos carregando a água. Venha beber um copo de vinho.
Sentaram-se. Estavam excessivamente desalentados e aturdidos para se sentirem incomodados.
— Tenho que te dizer uma coisa — disse Stephen —. Diana se foi para a América com um tal senhor Johnstone, da Virgínia. Vão se casar. Não estava comprometida comigo; simplesmente me tratou com amabilidade em Calcutá e eu me iludi, perdi a razão. Não me sinto ofendido. Brindo a ela.
Terminaram a garrafa, e mais outra, mas isso não lhes fez nenhum efeito, pois quando regressavam à fragata na barcaça estavam tão silenciosos como quando haviam vindo.
Quando acabaram de carregar a água e as provisões, a Surprise levantou a âncora e saiu para o alto mar, bordeando a parte leste da ilha e penetrando em uma noite de cães. A alegria da proa contrastava fortemente com o silêncio da popa; Bonden havia dito que a fragata “parecia haver perdido a popa”. Os homens sabiam que ao capitão lhe passava algo; haviam navegado com ele muito tempo e haviam se esforçado por aprender a interpretar sua expressão, porque no mar o capitão de um navio de guerra era um monarca absoluto, quem decidia se haveria sol ou chuva. E também estavam preocupados com o doutor, porque estava muito pálido. A opinião geral era que ambos haviam comido alguma comida estranha da ilha e que em um ou dois dias, com enormes dose de ruibarbo, estariam melhores. Além disso, como não haviam ouvido palavras duras no castelo de popa, haviam cantado e rido enquanto levavam a âncora e se faziam ao mar. Estavam muito animados porque esse era o último tramo da viagem e o vento era favorável para navegar para o cabo Lizard. Ali iriam a licenciar-se e a encontrar-se com suas esposas e noivas... Por fim tinham Fiddler's Green à vista!
Na cabine, Stephen foi invadido por um grande pesadume. Não sentia tristeza mas um profundo cansaço por voltar à rotina diária, a uma vida monótona que não tinha muito sentido, a uma vida cinza. Visitou aos enfermos e durante longo tempo esteve reunido com McAlister revisando os livros da enfermaria, pois dentro de uma semana mais ou menos, quando o barco tivesse que prestar contas, eles teriam que apresentar as suas e justificar, sob juramento, o gasto de cada dracma e de cada escrúpulo de remédios e calmantes durante os últimos dezoito meses, e McAlister tinha muito má memória. Quando ficou sozinho, verificou quanto láudano — sua fortaleza engarrafada — restava ainda para seu uso pessoal; em outro tempo havia tomado muito, até quatro mil gotas diárias, mas desta vez nem sequer derrubou a rolha da garrafa. Já não necessitava de fortaleza; agora não sentia nada, de modo que não tinha sentido conseguir uma ataraxia artificial. Dormiu sentado na cadeira e permaneceu dormido enquanto os canhões faziam exercícios e durante quase toda a guarda do meio. De repente despertou e viu por debaixo da porta a luz que chegava da cabine grande. Nela encontrou Jack, ainda levantado, revisando as notas que entregaria ao hidrógrafo do Almirantado: inumeráveis dados sobre as medições com a sonda, as correntes das costas e a posição de fondeadouros, todas elas observações cuidadosas e valiosas. Jack havia se convertido em um marinheiro cientista.
— Jack — disse Stephen de improviso —, hei estado pensando em Sophie, sobretudo enquanto estava na montanha, e me ocorreu algo tão simples que não sei como não havíamos pensado nisso antes: não é certo que o mensajeiro haja chegado. Por uma parte, tinha que percorrer muitas, muitas milhas por terra, através de desertos e países incivilizados, e por outro lado, é provável que a notícia da morte de Canning se haja difundido com rapidez e se lhe haja adiantado, e indubitavelmente haverá afetado aos sócios de Canning e seus planos. Há muitos motivos para crer que ela nunca recebeu seu mensagem.
— É muito amável de seu parte dizer isso, Stephen — disse Jack, olhando-o afetuosamente —, e sua conclusão é muito razoável, mas sei que a mensagem chegou às oficinas da Companhia das Índias faz seis semanas. Brenton me disse. Costumavam me cahamar Jack o Afortunado, te recordas? E era realmente afortunado em outro tempo, mas agora não o sou tanto. Lord Keith me disse que a sorte se acabava, e a minha já terminou. Me fiz demasiadas ilusões, isso é tudo. Que te parece se tocarmos um pouco?
— Acho estupendo.
Enquanto a chuva caia e o farol balançava devido à marejada, eles tocaram com entusiasmo obras de Corelli e Hummel, e quando Jack tinha preparado o arco do violino para uma peça de Bocheriní, o baixou, fazendo chiar as cordas, e disse:
— Isso foi um canhonaço.
Ficaram imóveis, com a cabeça para o alto. Um cadete ensopado chamou à porta e entrou.
— O senhor Pullings lhe apresenta seus respeitos, senhor — disse —, e diz acha que viu um barco por sotavento.
— Obrigado, senhor Lee. Subirei à coberta em seguida — disse, pegando a capa de chuva —. Deus queira que seja um barco francês. Preferiria me encontrar com um francês do que...
Então desapareceu e Stephen guardou os instrumentos.
Na coberta, a chuva fria e o vento do sudoeste cortaram a sua respiração, pois contrastavam com o clima da cabine, aonde chegava o calor do trópico desde o porão, onde se encontrava armazenado. Posicionou-se atrás de Pullings, que estava inclinado sobre o corrimão olhando pela luneta.
— Onde ele está, Tom? — perguntou Jack.
— Justamente pela alheta, senhor, nessa vereda que forma a luz da lua. Vi o clarão e me pareceu ver um barco que virava. Quer olhar senhor, senhor?
Pullings podia vê-lo muito bem. O barco estava a três milhas de distância, com as gávias desfraldadas, e havia feito um sinal para outro barco que não podia ser visto, ou talvez a algum comboio, indicando que ia virar. Contudo, Pullings sentia um grande afeto por seu capitão e o penalizava vê-lo triste, por isso queria lhe dar essa pequena satisfação.
— Deus Santo! Tens razão, Pullings — murmurou —. É um barco e navega de bolina inclinado a estibordo. Vamos virar e a carregar as gávias. Alcançaremos sua esteira e veremos até onde deixa que nos aproximemos. Agora não há pressa.
Então, levantando a voz, exclamou:
— Todos a virar!
O som do apito e os gritos dos ajudantes do contramestre despertaram os marinheiros, que ainda dormiam abaixo, e uns minutos mais tarde a Surprise se aproximava com rapidez da esteira do desconhecido apenas com as maiores desfraldadas, seguramente invisível naquela escuridão. Tinha o vento a dois graus pela alheta, ganhava cada vez mais velocidade e se aproximava do desconhecido com os canhões preparados e a coberta principal iluminada por faróis com proteção. Não soavam as badaladas e as ordens eram dadas em voz baixa. Jack e Pullings permaneciam no castelo, observando o barco através da chuva; agora já não era necessário a luneta. Por um claro entre as nuvens viram que era uma fragata.
Se fosse a embarcação que ele esperava que fosse, iria lhe disparar uma forte descarga quando pudesse, e antes de que se repusesse da surpresa cruzaria sua popa e lhe lançaria dois, ou talvez três descargas, e depois se posicionaria junto à alheta. Mais próximo, mais próximo. Ouviu seu sino. Soaram as sete badaladas na guarda do meio e ainda não se ouviu nenhum grito. Mais próximo... O céu começou a se iluminar pelo leste.
— Preparados com os cabos das gávias — ordenou em voz baixa —. Preparem a carga.
Ainda mais perto. Seu coração batia com força. — Soltar! — ordenou.
As gávias se abriram e em seguida foram atadas às empunhaduras. Então a Surprise avançou rapidamente até situar-se próxima da alheta do desconhecido. Ouviram gritos e ruidos confusos. — Que barco é esse? — gritou —. Que barco é esse? E por cima do ombro disse: — Pôr em apresentável o velacho. Marinheiros aos palanquins.
A Surprise estava agora a um tiro de pistola, e todos os seus canhões apontavam para o desconhecido. Então se ouviu a resposta: — Euryalus! Que barco é esse? — Surprise! Ponha-o em apresentável ou o afundaremos! — gritou Jack, embora já não fosse possível disparar.
“Maldita corja do marinheiros inexperientes”, pensou. Mas acreditava que poderia se tratar de um estratagema e permaneceu ali de pé, enquanto as duas fragatas orçavam; parecia duas vezes maior que seu tamanho natural e estava resplandecente.
Contudo, era verdadeiramente a Euryalus. No castelo de popa apareceu Miller, um capitão de muito mais antiguidade que ele, em camisa de dormir. Repreendeu ao oficial de guarda e aos serviolas. Disse que pagariam caro por aquilo e que haveria muitas costas sangrentas pela manhã.
— Aubrey! — gritou Miller —. De onde demônios vem o senhor?
— Das Índias Orientais, senhor. Bom, agora venho da ilha.
— Por que demônios não fez o sinal noturno como um cristão? Se esta é uma brincadeira, senhor, é de muito mal gosto, não me faz graça. Onde está minha capa de chuva? Estou me ensopando! Senhor Lemmon! Senhor Lemmon! O senhor e eu temos que falar agora mesmo, senhor Lemmon. Aubrey, não deveria aparecer como um boneco de uma caixa de surpresa, o que deveria fazer é dizer a Ethalion que aumente a velocidade. Bons dias.
Desapareceu dando um terrível grunhido. Então, da proa, justo aos pés de Jack, se ouviu uma voz gritar:
— Euryalus!
— Que? — disse outra voz da popa da Euryalus.
— Cabrones!
A Surpríse virou, aproximou-se devagar à Ethalion, que estava atrasada — a uma enorme e vergonhosa distância — e depois de fazer o sinal secreto repetiu a ordem do capitão Miller.
A Ethalion indicou que havia recebido a mensagem, e quando Jack estava pondo rumo para Finisterre, o inexperiente cadete que se encarregava dos sinais durante essa guarda, disse:
— Apareceram novos sinais, senhor.
Então os olhou através da luneta, passou uma e outra vez as páginas do livro e, com ajuda do oficial, leu a mensagem lentamente: Capitão Surprise, tenho duas mulheres para o senhor. E depois outro: Uma jovem. Por favor, venha para o desjejum.
Jack pegou o timão enquanto gritava:
— Abram as velas, movam-se, movam-se, movam-se, depressa.
A Surprise cruzou a proa da Ethalion e parou junto dela por sotavento. Jack a observou com expressão temerosa, duvidando se acreditava ou não que a mensagem era verdadeira. E nesse momento, do castelo de popa, Heneage Dundas disse:
— Bons dias, Jack. A senhorita Williams está aqui. Queres vir?
O bote caiu no mar, enchendo-se de água até a metade, devido à marejada, e atravessou a distância que os separava. Jack saltou ao costado da fragata e subiu rapidamente. Saudou os oficiais do castelo de popa levando a mão ao chapéu, apertou Dundas entre seus braços e foi conduzido à cabine sem se barbear, sem se lavar, ensopado e radiante de alegria.
Sophie fez uma reverência, Jack fez uma inclinação de cabeça, e ambos se ruborizaram. Dundas disse que ia a se ocupar do café da manhã e os deixou sozinhos.
Palavras de carinho..., um beijo afeiçoado. Explicações intermináveis, incessantemente interrompidas e começadas de novo: o capitão Dundas era muito atencioso e a havia trazdo para esse barco..., estivera de cruzeiro..., tinham sido obrigados a perseguir um barco corsário quase até as Bahamas e estiveram a ponto de pegá-lo... Haviam disparado vários canhonaços!
— Vou te dizer uma coisa, Sophie — disse Jack —. Levo um pastor a bordo. Eu o estava maldizendo e quase termina como Jonás, mas agora estou muito contente de que esteja com nós, porque poderá nos casar nesta manhã.
— Não, meu amor — disse Sophie —. Será como Deus manda, em nossa terra e com o consentimento de mamãe, sim, quando tu queiras. Ela não se oporá agora, e se comprometeu. Quando cheguarmos à Inglaterra poderemos nos casar na igreja de Champflower, se realmente o desejas. Mas conforme não queiras, percorrerei o mundo contigo, meu querido. Como está Stephen?
— Stephen? Oh, querida, que lerdo e egoísta fui! Aconteceu algo horrível. Stephen achava que ela ia se casar com ele; me parece que era algo suposto. Ela ia de regresso à Inglaterra em um mercante da Companhia e ao chegar em Madeira desembarcou e se foi com um americano, um americano muito rico, segundo dizem. Isso é o melhor que lhe podia ter acontecido, mas ele está tão deprimido que daria minha mão direita contanto que ela voltasse. Quando a vir, ele desabará. Mas sei que a tratará com doçura.
Os olhos de Sophie se encheram de lágrimas, mas antes de que pudesse responder, sua criada entrou, saudou a Jack com uma inclinação de cabeça e disse que o café da manhã estava pronto. A criada não gostava nada daquela situação, e a julgar pelo olhar terrivelmente assustado do despenseiro, que estava detrás dela, tampouco agradava aos marinheiros.
O café da manhã foi muito comprido. Dundas contou a Jack detalhadamente sua troca e a perseguição do barco corsário e insistiu em que ele explicasse como havia sido a batalha contra Linois. Puseram os pratos a um lado e representaram os barcos com pedaços de pão tostado, e Jack os movia com a mão esquerda — enquanto pegava a mão de Sophie com a direita por debaixo da mesa — mostrando qual havia sido a disposição da linha de batalha nas diferentes fases do combate. Ela escutava com grande atenção e compreendia perfeitamente quem tinha a vantagem. Foi um café da manhã comprido e esquisito, ao qual puseram fim os furiosos e insistentes canhonaços do capitão Miller.
Subiram a coberta e Jack pediu que preparassem uma guindola. Enquanto esperavam, Stephen e Sophie não pararam de sorrir e se saudar com a mão. E se preguntaram: “Como estás, Stephen?” “Como estás, querida?”.
— Heneage, estou muito agradecido, profundamente agradecido — disse Jack —. Agora apenas me resta levar Sophie e o tesouro ao nosso país e o futuro será como o Paraíso.

 

 

                                                                                                    Patrick O'brian

 

 

 

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