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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FÚRIA / Alexander Gordon Smith
A FÚRIA / Alexander Gordon Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Bristol, 16h15
Era a tarde comum de uma quarta-feira de junho quando o mundo acabou matando Benny Millston.
Era aniversário dele. De quinze anos. Não que alguém tivesse reparado. Ele ficara quieto no canto da sala de estar, na casa minúscula que chamava de lar desde que seus pais tinham se separado três anos antes. Sua mãe estava no sofá, à esquerda dele, ociosamente arrancando espuma dos buracos enormes que o cachorro havia feito no antigo forro verde. Ela olhava para a TV por cima da gigantesca barriga e entre dois conjuntos de unhas de pé recém-pintadas, a boca aberta em uma expressão de reverência e fascinação, como se assistisse ao Arrebatamento e não ao Deal or No Deal.
Do outro lado da sala, esparramada numa poltrona de vime, encontrava-se sua irmã Claire. Um dia ela fora a irmãzinha caçula, até a verdadeira caçula chegar um ano atrás. Alison, a mais jovem Millston, contorcia-se em seu cadeirão de bebê no corredor, entre a sala de estar e a cozinha, batendo para valer na bandeja com uma colher de plástico. O cachorro, um jack russell idoso ao qual Benny dera o nome de Crapper quando era garoto, estava sentado embaixo do cadeirão, avançando um tanto sem vontade para a colher quando ela chegava perto, mas já velho e preguiçoso demais para tentar de verdade.
Ninguém tinha lhe desejado feliz aniversário durante o dia inteiro.
Mas não era isso que incomodava Benny. O que o estava deixando assustado de verdade era que ninguém havia sequer falado com ele o dia todo.
E não tinha sido só hoje. Coisas estranhas vinham acontecendo desde a semana anterior. Ele não conseguia saber exatamente o que era; só sabia que algo estava errado. As pessoas o tratavam de um modo diferente. Ele não era o garoto mais popular da escola, de jeito nenhum, mas nos últimos dias até as pessoas a quem chamava de amigos — Adam, Ollie, Jamie — o estavam ignorando. Não, ignorando era a palavra errada. Tinham falado com ele, mas era quase como se ele nem estivesse ali de verdade; era como se olhassem através dele. E as coisas que diziam — Não precisamos de mais jogadores, Benny. Agora estamos ocupados, Benny. Tchau, Benny — causavam uma mágoa profunda. Estava sendo tratado como se tivesse dado uma cagada épica na boca deles enquanto dormiam. Estava sendo tratado como se eles o odiassem.
Em casa, as coisas não estavam melhores que isso. O vocabulário da mãe em geral limitava-se a cerca de vinte palavras, sendo as mais usadas “faça isso já”, “não discuta” e “estou ocupada”. Essa semana, porém, tinha ouvido algo pior. Bem pior. Ontem ela havia dito a ele para “dar o fora”, o que soara tão fora de contexto e doloroso que quase tinha começado a chorar na mesma hora. Claire também estava agindo de maneira estranha. Ela não havia dito nada, mas era o jeito como o observava quando achava que ele não estava olhando — o jeito como uma criança olha para um estranho, para alguém que ela considera perigoso.
Ela fazia isso agora, ele percebeu, encarando-o, os olhos escuros repletos de suspeita, talvez medo. Assim que o olhar dos dois se cruzou, ela virou o rosto para a televisão, sentando-se sobre as pernas e cruzando os braços, encolhendo-se ainda mais, como um porco-espinho farejado por um cachorro. Benny sentiu os pelos do braço se eriçarem; as bochechas ferveram, mas uma corrente fria percorria seu corpo.
Afinal, que droga estava acontecendo?
Benny massageou as têmporas. Sua cabeça latejava. Ela não andava muito bem já fazia alguns dias, mas o que tinha começado como um apito irritante nos ouvidos agora parecia alguém batendo a carne do seu cérebro com um martelo de cozinha. E havia com certeza um ritmo naquilo, sincopado como pulsação:

Tum-tum...

Tum-tum...

Tum-tum...

 

 

 

 

Só que não era sua pulsação. Não tinha o mesmo ritmo. Mais parecia alguém batendo a uma porta, exigindo que o deixassem entrar. Tinha tomado uma dose de paracetamol ao chegar da escola uma hora antes, mas quase não havia feito diferença. O barulho literalmente consumia sua cabeça.

Não era de admirar. Ele nunca tinha ficado tão estressado na vida.

Não, estressado não. Assustado.

Percebeu que Claire o encarava de novo, e a intensidade de seu olhar parecia fazer a sala encolher, as paredes com papel de parede floral descascado se fechando. Levantou-se da poltrona, e o rosto da irmã se contorceu, como se avançasse para ela com um taco de críquete. Fez menção de abrir a boca para lhe dizer que estava tudo bem, mas não saiu nada. O único som na sala era aquela batida pulsando na cabeça, uma turbina gigante entre seus ouvidos.

Benny dirigiu-se à cozinha, o olhar de Claire em seu encalço. A mãe também o observava. A cabeça apontava para a TV, mas os olhos giraram para tão longe que as partes brancas com raios vermelhos pareciam luas crescentes. Ele deu as costas para as duas, espremendo-se para passar pelo cadeirão de Alison. A irmã menor parou de bater a colher, o rosto contorcido, alarmada.

— Não chore — sussurrou Benny, estendendo a mão para ela, e o jeito como ela se lançou contra o assento, os dedinhos roliços embranquecidos com o esforço, partiu o coração dele. Ela não estava chorando. Estava assustada demais para chorar.

Foi então que ele sentiu; era algo em sua cabeça, uma ordem instintiva que perfurou o estrondo causado pela enxaqueca — Saia já daqui —, surgindo de uma parte do cérebro que ficava muito abaixo da superfície. Corra!

Era tão forte que ele quase obedeceu, a mão estendendo-se para a porta dos fundos. Então Crapper arrastou-se em sua lentidão artrítica de sob o cadeirão de Alison e veio devagar até ele. O cachorro levantou um olhar tão bondoso e com tanta confiança que Benny não pôde deixar de sorrir. Agachou-se para acariciar seu pelo crespo, para coçar embaixo de suas orelhas. Crapper pôs a língua para fora, as patas estalando contra o assoalho, a pequena cauda batendo à velocidade das asas de um beija-flor.

— Pronto, pronto, garotão — disse Benny, afagando a barriga do cachorro. — Você não me odeia, não é?

E, não mais que de repente, a voz na cabeça dele sumiu, e até o estrondo das pulsações abafou-se. Não havia nada de errado. Só estava passando por uma semana ruim, nada mais. Claire também já era adolescente agora; havia acabado de completar treze anos, e a rivalidade em relação a ele com certeza se intensificara nos últimos meses. Inevitável, considerando que eram como dois soldadinhos de chumbo lacrados naquela casa fechada a vácuo. E só Deus sabia quanto sua mãe era predisposta a momentos de depressão e rudeza, ainda mais desde que o pai de Alison — um cara alto, calado, chamado Rob, que Benny tinha visto na casa umas duas ou três vezes no máximo — decidira não voltar mais.

Benny cutucou com ternura o nariz úmido de Crapper e, em seguida, levantou-se, o afluxo de sangue para a cabeça fazendo o cômodo girar. Abriu a cristaleira, procurando um copo grande na prateleira empoeirada.

Não que o normal fosse bom, pensou ele enquanto enchia o copo com água. O normal era um saco. Tomou um gole grande, deixando os olhos vagarem. Alguma coisa em cima de um dos armários capturou-os, um fiapo colorido esgueirando-se das sombras. Benny franziu o rosto e colocou o copo na bancada. Arrastou uma cadeira pelo piso e trepou nela, ficando frente a frente com uma caixa retangular revestida de papel de presente escarlate. Uma faixa fora atada com cuidado ao redor, terminando em um laço.

O sorriso de Benny estendeu-se tanto que as bochechas passaram a doer mais que a cabeça, e com uma risadinha baixa ele pegou o pacote. Era grande, e era pesado. Tão pesado quanto um Xbox. E foi aí que a empolgação realmente o envolveu, causando-lhe um nó no estômago. Sua mãe nunca tinha comprado um console para ele — nenhum PlayStation, nenhum Wii, nem mesmo um DS. Mas sempre havia dito que ele poderia ter um quando tivesse idade para isso. Nunca soubera que “idade” era essa, mas agora tinha descoberto: quinze anos!

Ele saltou da cadeira e carregou a caixa para a sala de estar, quase derrubando Alison do cadeirão ao passar por ela. Então era isso que estava por trás daquilo tudo: a mãe e a irmã provocando-o, fingindo que tinham esquecido seu aniversário, antes de surpreendê-lo com o melhor presente de todos, provavelmente um 360 com Modern Warfare 3. Elas iam se virar, vê-lo com a caixa, e sorrisos dançariam no rosto de ambas. Ah, você estragou tudo!, diria a irmã aos risos. Íamos fazer você pensar que não tínhamos comprado nada. E a mãe diria: Vamos lá, abra, acho que posso perder um tiquinho do Noel Edmonds enquanto você monta isso.

— Obrigado, mãe! — gritou Benny, emitindo um baque ao sentar-se de novo em seu lugar com a caixa no colo. Havia um cartão de presente atado ao laço, e ele ficou mexendo nele, os dedos dormentes de empolgação.

Para Benny. Quem sabe agora você para de encher o nosso saco com isso. Desejamos a você um feliz aniversário. Com muito, muito amor. Mamãe, Claire e Alison.

— Que legal! — disse ele. — Sabia que vocês estavam só de brincadeira.

A dor de cabeça também tinha passado, percebeu ele — aquela pulsação de gerador agora em silêncio, obliterada pela inesperada reviravolta que a tarde trouxera. Ele rasgou o papel fino, que a um simples toque deslizou para o chão. Revelou-se uma caixa verde e branca, com o logo do Xbox cobrindo-a toda, como uma linda borboleta emergindo da crisálida. A mãe tinha içado o corpo volumoso do sofá e cambaleava na direção dele, os braços estendidos, e ele ficou esperando o abraço, os beijos que deveriam ter vindo de manhã, preparando um protesto fingido — Arre, mãe, eu tenho quinze anos, não cinco —, mas ansiando por eles, todo feliz por poder ser outra vez uma criança, nem que só por um dia. Simplesmente transbordando de felicidade.

O tapa fez fogos de artifício explodirem na sala, os pontinhos coloridos parecendo penetrar em seus olhos, queimando-os. Ele foi lançado de volta à cadeira, tão chocado que a caixa quicou de seu colo e amassou-se no carpete.

Assim você vai quebrá-lo!, foi a primeira coisa que trovejou em sua cabeça. Em seguida, a dor chegou, um lampejo de calor como se estivesse perto demais do fogo. Não houve tempo para nada antes que o segundo tapa o acertasse na outra bochecha, provocando um zunido agudo e dando-lhe a impressão de que seu rosto inteiro estava em chamas. Ele ergueu os olhos, as lágrimas liquefazendo a sala toda, como se estivesse cheia de água. A mãe estava ali, desta vez uma silhueta borrada com o mesmo formato da mãe, um dos braços bem lá no alto, prestes a descer.

Crac! Desta vez não foi um tapa, foi um soco. A mente de Benny enegreceu, nada nela além da necessidade de fugir. Pôde sentir algo quente, com gosto de cobre, pingando garganta abaixo, e reconheceu o que era ao se lembrar da vez em que uma bola de futebol tinha batido direto contra sua boca.

Sangue.

O pânico o fez saltar da cadeira como se impulsionado por uma catapulta, e ele partiu em desabalada carreira, empurrando a mãe para o lado com força suficiente para desequilibrá-la para trás. Ela rodopiou pelo pequeno trecho de piso, bateu no sofá, dando por um instante a impressão de que iria tropeçar, como em uma dessas videocassetadas, mas conseguiu equilibrar-se por pouco. Ela grunhiu, o tipo de ruído que um javali assustado emitiria, e Benny encarou aqueles olhos negros sem ver neles absolutamente nada de humano.

— Mãe — ele tentou dizer, mas a palavra não coube em sua garganta. Ela foi para a frente e para trás, os pés descalços fazendo um sapateado esquisito e silencioso até que reencontrasse o equilíbrio. Então ela se lançou sobre ele. O ambiente foi tomado por barulho, os ruídos ásperos, balados e intensos da respiração da mãe, e algo mais: um tom cada vez mais agudo, como uma chaleira prestes a ferver. Benny levou uma fração de segundo para entender que sua irmã Claire gritava. Ela saiu da cadeira tão rápido que ele não foi capaz de abrir caminho, o corpo dela se chocando contra o dele, os braços fininhos travados em torno de seu pescoço. Então a mãe acertou os dois, seu ímpeto derrubando-os no chão como pinos de boliche.

Benny bateu a cabeça no carpete, e a mãe caiu em cima dele, bloqueando a luz. O peso dela era inacreditável, pregando-o no chão, recusando-se a deixá-lo respirar. Fora envolvido pelo odor dela — creme para a pele, xampu e o fedor do esmalte. Ele revidou, partindo para cima dela com tudo, mas não conseguiu colocar força em nenhum golpe. Ela bateu nele em resposta, os punhos carnudos socando-lhe as têmporas, o pescoço, a testa.

Alguma coisa quente e branca perfurava seu ombro, mas não podia virar a cabeça para ver o que era. Desta vez, a dor fez com que ele guinchasse, os gritos abafados pelo peso do peito da mãe. A agonia aumentou, algo úmido borbulhando e descendo pela manga do casaco da escola.

Isso não está acontecendo não está acontecendo não está acontecendo.

Mas ele sabia que estava; via faíscas luzindo no canto dos olhos enquanto o cérebro, privado de oxigênio, perdia suas conexões. E pior, muito pior, conseguia sentir a morte ali, sua morte, em algum lugar dos sombrios recessos da figura sobre seu corpo.

Essa ideia lhe deu força. Foi tanta adrenalina a inundar seu organismo que, desta vez, quando desferiu um soco para cima, acertou a mãe no maxilar. A cabeça dela voltou rápido, e ela cuspiu um grunhido ensanguentado, o peso do corpo transferindo-se para o lado enquanto se desvencilhava dele. Benny se arrastou como quem foge de areia movediça, as unhas demarcando seu rastro no carpete. No meio do caminho, notou que os dentes de Claire sulcavam seu braço, um naco de carne preso entre eles. Então reparou nos olhos dela, repletos de ódio, e seu punho alçou um voo automático, acertando-a no nariz. Com um grito ela o soltou, quicando para longe.

De algum modo, Benny ficou de pé, embora muito cambaleante. Notou que as mandíbulas de Crapper haviam se cravado nos tornozelos da mãe, percebendo, mesmo em meio ao caos, que seu cão tentava salvar-lhe a vida. A mãe rolava como uma baleia encalhada, soltando grunhidos bizarros, horrendos. Estava tentando se levantar; ele podia ver a determinação nos olhos dela, que faiscavam ao mirá-lo. Ela tentava se levantar para terminar o serviço.

Claire já estava de pé, arrastando os pés em sua direção como um zumbi. Benny estendeu as mãos espalmadas para ela, empurrando-a contra a parede. Ela quicou de volta, partindo outra vez para cima dele, e agora era Crapper quem a impedia, saltando sobre o corpo contorcido da mãe e agarrando a coxa de Claire, derrubando-a como uma arvorezinha.

Benny cruzou a sala de estar em duas passadas, a porta da cozinha bem à frente dele, a porta dos fundos visível logo atrás. Conseguiria sair para a luz. Ele seria capaz disso.

Pressentiu uma silhueta a seu lado e virou-se para a janela a tempo de vê-la implodir. Uma saraivada de vidro irrompeu na sala e ele se agachou, erguendo os braços para proteger o rosto. Algo bateu nele, e quase foi derrubado outra vez, tendo de estender a mão para o carpete a fim de impedir a própria queda. Como um corredor, pegou impulso para levantar-se, mas uma mão segurou seu tornozelo, puxando-o com força e fazendo-o cair de cara no chão. Ele desferiu um chute e se virou para ver o novo agressor: um estranho que usava jeans e uma camiseta verde da Latitude. Tinha as duas mãos na perna de Benny, e seu rosto — sangrando e coberto de cintilantes estilhaços de vidro — era uma máscara de fúria genuína.

O homem puxou-o de novo, levando Benny como se fosse um peixe no anzol. Claire tinha conseguido se livrar de Crapper e agora o cão uivava e corria em círculos, o branco de seus olhos sendo a coisa mais brilhante da sala. A mãe estava de pé outra vez. Havia mais alguém subindo pela janela — o vizinho, sr. Porter, homem de uns setenta anos, os olhos cegos pela catarata revirando-se em agitação. Suas mãos eram bolas com falanges brancas.

Benny tentava se desvencilhar, mas o estranho o prendia com muita força, os dedos em sua carne como garras de metal. Ele puxou Benny para mais perto, os dedos subindo até seus joelhos.

— Mãe! — gritou ele. — Dê um fim nisso! Dê um fim!

Eles se jogaram em cima dele, todos, tão pesados e escuros que Benny se sentiu como um corpo descendo para dentro de uma cova. Ele se debatia, mas não podia mover as pernas, e agora algo pesado se sentara em suas costas. Dedos gordos comprimiam seu pescoço, apertando sua garganta com tanta força que ela assoviava a cada suspiro seu. Ele balançava a cabeça, tentando se soltar, porém viu mais duas pessoas entrando pela janela arrebentada, nada além de silhuetas contra o sol. Elas se aglomeraram na sala minúscula, tentando socar, arranhar, chutar, morder — som nenhum além de suspiros roucos, selvagens e o risinho na televisão.

Alguma coisa rígida demais para ser um punho entrou em contato com sua nuca, e uma semente de trevas floresceu em uma noite completa. Ainda conseguia ouvir o som de cada golpe, mas não os sentia. Fechou os olhos, contente por deixar-se afundar nessa letargia reconfortante; contente por deixar a dor e a confusão para trás...

Tudo parou tão de repente quanto tinha começado. Ao tentar respirar, percebeu que não podia. Nos últimos segundos antes do fim de sua vida, Benny ouviu a porta de trás se abrindo e o som de passos molhados saindo da casa, o estalo da cadeira de vime na hora em que sua irmã se reclinou, um gemido baixinho do cão.

Então, inacreditavelmente, ouviu o ruído da chaleira sendo enchida pela mãe na cozinha.

E foi esse barulho, tão familiar, que escutava todos os dias de sua vida, que o conduziu para fora do mundo. Depois isso também foi apagado pela nuvem imensa e incompreensível de fria escuridão que se estabelecera em sua cabeça.

Seu coração trepidou, parou, e ele sentiu algo incandescente subir de dentro dele, uma onda de fogo frio e azul que se libertou com um uivo silencioso. Então Benny Millston morreu no carpete da sala de estar enquanto a mãe fazia chá.


Quinta-feira

O céu não tem raiva como amor em ódio transformando.

William Congreve, The Mourning Bride


Cal

Oakminster, leste de Londres, 14h32

Todo mundo adorava Callum Morrissey.

Capitão do time de futebol do penúltimo ano. Ótimo aluno, mas sem se achar nem fazer pose. Um cara gente boa. E ele sabia disso. Agora mesmo ele avançava pelo lado direito do campo da escola, a bola nos pés, correndo tão rápido que o rugido do vento quase abafava o barulho da multidão. Truman, o zagueiro do time adversário — um beque animalesco com o corpo e o rosto de Shrek —, estava bem à frente, grande mas lento. Cal fingiu que ia para a esquerda, fazendo a bola passar pelas pernas do garoto, grossas como troncos de árvore, antes de correr para a direita e cortar para o gol.

Na grande área estavam dois de seus melhores amigos, Dan e Abdus, ambos com as mãos no ar pedindo aos berros por um passe. Cal driblou mais um zagueiro, pensando em colocar ele mesmo a bola na rede. Porém, não era fominha. Já havia feito um gol, um chute livre que colocara o placar em 3 a 1 a favor de seu time. Era melhor quando todos tinham motivo para celebrar depois do jogo.

Ele respirou fundo, apreciando a maneira como o tempo parecia ir mais devagar. Cada segundo se alongava, estendendo-se languidamente ao sol que tingia o campo de dourado. O relógio colocado nas arquibancadas à direita — lia-se “Patrocínio da Oficina Union” sobre o mostrador — marcava 14h32: faltavam treze minutos, e então tudo acabaria, ficariam um passo mais perto da Copa Escolar de fim de ano. Desfilariam diante dos colegas como se já fossem campeões, e talvez desta vez até Georgia tirasse os olhos do livro por tempo suficiente para lhe dar os parabéns. Ela não podia ignorá-lo para sempre, não agora que estava jogando tão bem.

Ele colocou o pé para trás, pronto para dar um passe alto, com efeito, para o centro da grande área. E foi aí que alguma coisa atingiu seu tornozelo.

Ele caiu no chão, uma ardência agonizante beliscando a perna. A cada piscada saía uma lágrima; ele rangeu os dentes, balançando para a frente e para trás com o tornozelo entre as mãos, até que a visão se desanuviasse.

Incrivelmente, o jogo prosseguia. Truman, que o tinha derrubado, estava de novo em pé, chutando a bola campo afora. Todos os outros iam atrás dela como se Cal nem existisse, entre eles o sr. Platt, o professor de educação física, que fazia o papel de juiz.

— Ei! — gritou ele, erguendo a mão para tentar chamar a atenção do sujeito. Não havia fingido cair no chão nem nada parecido. Podia até ver o sangue encharcando sua meia, cinco linhas marcadas no tornozelo pela sola da chuteira de Shrek. Ele berrou de novo, mas não havia mais ninguém perto o bastante para ouvi-lo.

Cal levantou-se com dificuldade, tentando não colocar peso nenhum na perna esquerda. A dor ia se transformando em um pulsar incômodo. Poderia ter sido pior; um carrinho como aquele podia ter quebrado seus ossos, nocauteando-o pelas férias de verão inteiras, talvez mais. Truman ia pagar caro por isso. Foi trotando devagar rumo à ação do outro lado do campo. Ia ser expulso, mas que importância isso tinha? Faltando tão pouco para acabar, não corriam o risco de perder.

À frente, a bola estava nos pés do meio-campo do time adversário, um garoto chamado Connor. Cal ignorou o jogo, correndo na direção de Truman. O ogro tinha as mãos nos joelhos e estava curvado, tentando recuperar o fôlego.

— Ei — disse Cal, aumentando a velocidade, o corpo inteiro ansiando por aquilo. Truman virou a tempo de ver o punho de Cal dirigindo-se para sua bochecha. Ouviu-se um baque surdo, e a cabeça do garoto balançou como uma bola de treino de boxe. Por um instante, pareceu que ele cairia, mas conseguiu se manter em pé, a cara feia de pug enrugada de incômodo.

Não, não era incômodo. A cara que ele fez para Cal ia muito além disso. Por um segundo, os olhos de Shrek deram a impressão de não ter fundo, repletos de um ódio que Cal nunca encontrara antes em seus dezessete anos. Seu rosto estava tão sombrio devido à raiva que parecia inchado, envenenado. Era o olhar de alguém que queria matá-lo.

Ele recuou instintivamente, ouvindo o apito de novo e de novo, o ruído agudo se avolumando à medida que o sr. Platt corria em sua direção. Truman veio para cima dele, os punhos cerrados como rochas, a boca escancarada como a do louco do bairro, o olhar fixo e furioso.

Alguém agarrou Cal por trás, travando os braços em volta de seu peito. Outra pessoa estava ao lado dele, empurrando-o e gritando. Num piscar de olhos, fora cercado por uma multidão, mãos e braços como pistões, e ele se sentia preso dentro de um motor.

— Fora! — gritou ele, sentindo dedos cutucarem seu peito, o mar de caos crescendo em volta. Alguém do time adversário empurrou-o com força e ele quase caiu, as pernas emaranhando-se nas de quem quer que estivesse atrás dele. Em seguida, a papada do sr. Platt surgiu no campo de visão, as bochechas em um tom inacreditável de escarlate enquanto ele soprava o apito. O professor estendeu a mão e segurou Cal pelo ombro, impedindo-o de desabar.

— Já chega! — urrou ele, o apito pendendo contra o peito. — Mandei parar com isso, agora mesmo!

— Deixa pra lá, Cal — disse uma voz em seu ouvido, e ele reconheceu Joe McGowan, o lateral-direito, o garoto que o havia segurado. — Chega, cara.

— Certo, já foi — disse ele, a voz se perdendo em meio ao rugido da multidão. — Mas olha o que esse babaca fez com a minha perna; quase arrancou ela do lugar. — Ele pôs a mão na meia, e em seguida levantou os dedos manchados de sangue, balançando-os para Shrek. — Está vendo?

— Chega! Já falei! — vociferou o sr. Platt, à beira de um surto. Ele soprou o apito outra vez, mandando todo mundo ir embora e botando a mão no bolso. Mostrou o cartão vermelho para Cal como um padre exibindo o crucifixo a um vampiro. — Você está fora, Morrissey, e também bastante encrencado. Se manda.

Truman investiu de novo contra o adversário, mas sem muita convicção, satisfeito em deixar os colegas de time segurarem-no. Seu semblante tinha se abrandado, e a expressão nele agora era de confusão, quase como se não conseguisse se lembrar direito de onde estava. Talvez Cal tivesse batido nele com mais força do que imaginava. O sr. Platt voltou-se para o ogro, o cartão vermelho na mão.

— Cuidado, Truman — disse ele. — Ou vai ser expulso também. Sorte sua que eu não vi o carrinho.

Pouco a pouco os jogadores se afastaram, uma série de vaias e de xingamentos vindo das arquibancadas. Cal deslizou a mão pela camisa do time, alisando-a, e, quando ergueu os olhos, Joe o encarava, as sobrancelhas arqueadas.

— Tudo bem, cara? — perguntou. Cal fez que sim com a cabeça, e o rosto de Joe se abriu em um sorriso. — Quase fez ele cair de bunda no chão. Mandou bem!

O sorriso de Joe era contagiante, e Cal se pegou rindo. A adrenalina tinha anestesiado a dor em seu tornozelo, e havia vantagens em perder os últimos dez minutos do jogo — um, em particular, era sentar-se na primeira fila. Joe estendeu o braço, e Cal deu um aperto de mão de surfista.

— Manda ver aí por mim, valeu? — disse ele.

— Com certeza — respondeu Joe, e saiu correndo. O sr. Platt tinha colocado a bola a cerca de nove metros de onde Cal tinha socado Truman e apitou outra vez, acenando com violência para que Cal abandonasse a grande área.

— O.k., o.k., já estou indo — murmurou Cal, andando o mais lentamente que podia ousar. Ergueu as mãos para a plateia, dando socos no ar como Rocky, e tirou dela gritos e assovios, que foi aproveitando até chegar à lateral. Aproximou-se dos colegas do penúltimo ano na primeira fila de assentos, grato por estar na sombra. Eddie Ardagh lhe deu um tapinha nas costas.

— O babaca mereceu — falou. — Atacou você feito um lenhador.

— Era melhor não ter batido nele, Cal — disse Megan Rao, balançando a cabeça. Uma de suas mechas encaracoladas pintadas de vermelho se soltou, e ela a prendeu de volta atrás da orelha. — Ele vai vir atrás de você. Você sabe que o Truman é maluco.

— Ele que venha — disse Cal, deixando-se cair no lugar vazio entre Megan e Georgia. Georgia Cole. Ela tinha o narizinho perfeito e esnobe enfiado em um romance, como sempre, e, quando ele deu uma ombrada sutil nela, a garota lhe concedeu um brevíssimo instante de atenção. Cal não insistiu — não pegava bem quando era você quem ficava indo atrás. Em vez disso, virou-se para o campo ensolarado enquanto seu time lutava outra vez para chegar ao campo adversário. Aquele puf oco e emborrachado de alguém chutando a bola devia ser o melhor som que existia, em particular no verão. Tudo tinha um som melhor no verão.

Ele viu Truman vagando sozinho fora da grande área adversária, tocando a bochecha. Jamais tinha sentido medo dele, ainda que Truman fosse um ano mais velho e muito maior, e ainda que tivesse fama de bater em garotos menores. Cal não tinha medo de ninguém. Não mesmo. Praticava kung fu Choy Li Fut desde os oito anos e, apesar de nunca ter precisado usá-lo em uma briga de verdade, sabia que podia, caso fosse necessário.

Em sua mente, ainda enxergava o rosto de Truman após ter batido nele, aquele ódio primitivo em sua expressão, uma raiva de ferver o sangue. Ele parecia um verdadeiro psicopata, do tipo que aparece nos filmes. Megan tinha razão; todo mundo sabia que Truman era maluco. Porém, essa era a primeira vez que Cal pensava nele como um verdadeiro maluco.

— Está com sede? — perguntou Eddie, oferecendo a Cal uma garrafa de água sem rótulo.

— Sabe que eu não bebo esse negócio — disse ele, tirando uma lata de Dr. Pepper da mochila aberta de Megan. — Água faz mal. — Ele abriu a lata, dando um gole enorme antes de liberar um arroto que quase fez sua cabeça estourar. — D.P. Reidratação pura.

— Não sei como você ainda está vivo — murmurou Eddie. — Por dentro deve estar todo grudado numa meleca de açúcar.

— ’Bora! — gritou Megan, pulando cerca de um metro no ar, e Cal viu que Ab tinha conduzido a bola até a área. Ele chutou e o goleiro mergulhou, batendo nela só com meia ponta do dedo, mas o bastante para mandá-la pra longe. Cal estava de pé, as mãos na cabeça.

— Cara, essa foi quase — disse ele, desabando com força suficiente para sacudir o livro de Georgia. Desta vez ela ergueu os olhos com uma careta forçada, encarando-o por trás da franja loura. Ele abriu um sorriso enorme para ela.

— Foi mal, George. Aqui não é lugar de nerd.

— Fui arrastada para cá contra a minha vontade — respondeu ela, e a careta ainda mais forçada a fez parecer mais linda, como uma dessas modelos que fazem biquinho na capa de uma revista.

Cal sentiu o estômago se revirar, o corpo inteiro de repente pesado demais, como se a gravidade tivesse se transformado. E, por um instante ridículo — apesar da vitória; apesar do susto que havia passado com Truman; apesar do sol e da promessa de uma tarde de diversão com os colegas —, teve a sensação de que começaria a chorar. Virou o rosto, os olhos e o corpo inteiro formigando, e após um único suspiro irregular a sensação passou.

— Tudo bem com a sua perna? — perguntou Georgia, sorrindo timidamente, como se soubesse o que se passava pela cabeça dele. Ele baixou os olhos, observando os riscos vermelhos nas meias amarfanhadas, onde a chuteira de Shrek havia sulcado sua pele. Só havia um borrão de sangue ali, já coagulado, quase seco.

— Não sei — disse ele. — Pode ter sido um golpe fatal. De repente daqui a pouco vou precisar de respiração boca a boca.

— Eca! — protestou Georgia, batendo-lhe de leve com o livro. — Pode chamar o Eddie para isso.

— Eu faço — intrometeu-se Megan, soprando um beijo para Cal.

— Graças a Deus — murmurou Eddie.

Cal abriu um leve sorriso, enlaçando as mãos atrás da cabeça e reclinando-se no assento. Havia uma minhoca de incômodo revirando-se em suas têmporas, mas não havia nada de anormal nisso depois de um jogo, ainda mais depois de um jogo como aquele. Era em parte uma reação pós-adrenalina, em parte desidratação. Sabia que devia beber mais água, mas odiava água. Dr. Pepper era o único líquido de que precisava.

— Esse cara é um jumento — comentou Megan, quando Steven Abelard, o meio-campo mais lento deles, passou trotando pelo campo.

Cal distanciou-se da voz dela, distanciou-se de tudo, contente pelo momento de paz. Respirou fundo, sentindo abrandar-se a pressão na cabeça. Em seguida, expirou, e a dor voltou — a dor e um pulsar sutil, que parecia ecoar na parte frontal de seu crânio, ressoando menos que o farfalhar das asas distantes de um pássaro.

Tum-tum...

Tum-tum...

Tum-tum...


Daisy

Boxwood St. Mary, Suffolk, 14h47

— Vocês estão me assustando...

Daisy Brien recuou, a parede fria feito gelo contra as costas causando-lhe um sobressalto. Suas duas melhores amigas, Kim e Chloe, moviam-se em sua direção, os cabelos em tranças idênticas, ambas usando vestidos armados à moda antiga, que escondiam os pés e davam a impressão de que deslizavam. Os olhos estavam arregalados, sem piscar. Olhos de fantasma.

— Ei, parem com isso!

Elas a tinham encurralado, cabideiros lotados à direita e à esquerda, como paredes de um labirinto de sebe, espessas demais para se fugir através delas. Só havia uma porta ali, invisível na penumbra, mas Daisy distinguia a luz verde de emergência com seu homenzinho-palito em posição de corrida. Parecia estar a mil quilômetros de distância. Kim e Chloe estavam perto o bastante para tocá-la, e Kim estendeu devagar a mão adornada em renda branca. Depois deslizou um dedo gélido pelo rosto de Daisy.

— Para!

— Olha só como ela inclina o rosto contra a minha mão — disse Kim, soltando um suspiro grave e fantasmagórico. — Oh, se Fred fosse a luva em minha mão, para tocar sua face!

Chloe levantou as duas mãos, agitando-as na frente do peito de Daisy.

— Um, dois, e o terceiro... certeiro em seu coração — suspirou ela —, que é onde Fred deseja estar!

— Ah, Fredeu — acrescentou Kim. — Fredeu, onde estás, Fredeu?

— Onde peidaste? — perguntou Chloe. E essa foi a gota d’água. As três caíram na gargalhada, como que enchendo o camarim de raios solares. Daisy ria tão alto que parecia a ponto de explodir. Chloe caiu de joelhos, o vestido esparramando-se em volta dela em dobras incontáveis, liberando o odor familiar de pó e roupa velha.

— Odeio vocês — disse Daisy, quando seus pulmões sem ar conseguiram funcionar de novo. Deu um tapa de brincadeira no braço de Kim, e o golpe foi amortecido por uma ombreira enorme. — Já falei, não gosto dele!

— Mas é ele o seu Fredeu — disse Chloe, estendendo as mãos. Kim pegou uma delas e Daisy a outra, colocando-a de pé. — Fredeu e Daisyeta, a história mais romântica do mundo.

— Ele não está nem aí para mim — disse ela. — Pelo amor de Deus, ele está no ensino médio.

— Acho que a senhorita reclama demais — disse Kim, enxugando as lágrimas dos olhos.

— Peça errada, sua anta — revidou Daisy. Ela passou no meio das duas, escapando do labirinto de roupas teatrais e dirigindo-se ao enorme espelho do lado esquerdo do camarim. Ele era emoldurado por lâmpadas, como em um camarim da Broadway, que tingiam seu reflexo com uma doentia luz amarelada. Mesmo assim, não conseguia deixar de aprovar sua aparência, com seu longo cabelo castanho amarrado em um coque de tranças. O vestido que usava era tão branco e tão bonito que poderia ser de noiva, o colarinho alto e estreito fazendo-a parecer mais alta e mais esguia do que realmente era. Ele também a fazia parecer mais velha, talvez com quinze anos, em vez de quase treze.

A idade ideal para Fred...

Ela sentiu as bochechas arderem e ficou contente por estar de maquiagem, escondendo o constrangimento. Debatia-se agora com as luvas, faixas de seda fina parecidas com teia de aranha que iam até o cotovelo e eram um pesadelo para colocar. De início, cerca de três meses antes, quando tinham descoberto seus papéis na peça da escola, ela ficara mortificada porque o Romeu de sua Julieta seria do ensino médio. A simples ideia já era suficiente para fazê-la correr às coxias e esconder-se nas sombras até que tudo aquilo terminasse.

Porém havia enfrentado o medo e seguido adiante, do jeito que os pais tinham lhe ensinado. E, apesar dos protestos, na verdade até que gostara bastante daquilo. Só precisava dizer a si mesma que estava apenas atuando; que seu Adônis de quinze anos, já comprometido, nem em um milhão de anos teria interesse na verdadeira Daisy Brien.

— Ainda não consigo me lembrar de todas as minhas falas — disse Chloe, seu reflexo juntando-se ao de Daisy, uns quinze centímetros mais alta, mesmo sendo um mês mais nova.

— Você só tem umas três — riu Daisy, conseguindo colocar a primeira luva.

Chloe fazia o papel da sra. Montéquio, mãe de Romeu, e, mesmo que só aparecesse em duas cenas, sempre embaralhava as palavras. Kim era Teobaldo, primo de Julieta, que, segundo a decisão da professora de teatro, seria uma menina nessa versão da peça. Ela inclinou-se contra a prateleira de maquiagem, brincando com uma espada de papelão enquanto a fazia ir para a frente e para trás.

— Eu me pergunto se realmente dá pra matar alguém com isso — disse Kim. — Talvez a senhora Jackson.

As três meninas olharam para a espada frouxa prescrevendo seus movimentos e outra vez caíram na gargalhada. O momento foi interrompido por um estalo seguido do rangido da porta do camarim se abrindo, e um rosto redondo, de óculos, deu uma espiada lá dentro.

— Eu ouvi meu nome? — perguntou a sra. Jackson. — Estão precisando de mim, meninas?

— Está tudo bem, senhora Jackson — disse Kim, apontando a espada na direção da professora e sussurrando morra morra morra entre as palavras. — Estávamos só ensaiando nossas falas.

— Muito bem — falou a sra. Jackson. — Bem, apressem-se e fiquem prontas. O ensaio geral começa — ela verificou o relógio por um tempo que pareceu uma eternidade — em sete minutos.

Ficou ali um segundo a mais, como se esperasse ser dispensada, e retirou-se do camarim.

— Isso não pode mexer comigo — disse Daisy, sentindo uma pressão nada bem-vinda no peito. Sabia que não era aquilo que devia mexer com ela. Era seu nervosismo. Sentia-se assim toda vez que subia ao palco, mas a situação com certeza estava piorando. Só Deus sabia como seria na apresentação de verdade. — Será que alguém quer o meu papel?

— E dar um beijo técnico no Freddy? Nem pensar! — disse Chloe. — Prefiro beijar a senhora Jackson.

— Que mentira — respondeu Daisy sorrindo. Enfim tinha colocado a outra luva e ajeitava agora a seda no contorno do cotovelo. — Pronta?

Ela se virou do espelho para Kim. A amiga ainda balançava a espada para a frente e para trás, agora com mais força, com mais rapidez. Era difícil afirmar, por causa do brilho agressivo das lâmpadas atrás dela, mas parecia encarar Daisy, os olhos inacreditavelmente escuros. E, toda vez que a lâmina coberta de papel-alumínio cortava o ar silencioso, sua boca soprava a mesma palavra sussurrada.

Morra. Morra. Morra. Morra. Morra. Morra. Morra.

— Ahn... Kim? — disse Daisy. Kim deu mais uma investida no ar, e em seguida pareceu ter um sobressalto, como se acordasse de um transe hipnótico. Piscou pesadamente algumas vezes.

— Hã? — perguntou ela, após um segundo ou dois.

— Nada — disse Daisy, dirigindo-se à porta. — Vamos lá, vamos resolver isso de uma vez.


Brick

Parque de Diversões Fursville, Hemmingway, Norfolk, 15h03

Brick Thomas odiava todo mundo.

Odiava o pai, odiava a madrasta, odiava a mãe por ter morrido quando ele era um molequinho ruivo no jardim de infância; odiava o irmão, que tinha saído de casa dois anos atrás para ingressar no regimento de paraquedistas; realmente odiava os professores, que lhe diziam para nem se dar o trabalho de fazer os exames para a faculdade; e realmente, realmente odiava o psicólogo da escola, que tinha informado seu pai sobre suas dificuldades de comportamento; ele odiava os amigos, se é que podia chamá-los de amigos, quando nem falavam mais com ele; e, se fosse totalmente sincero, havia momentos em que odiava a namorada — ainda que não tivesse muita certeza disso, porque às vezes o amor e o ódio eram tão parecidos que não conseguia perceber a diferença entre os dois.

E também se odiava, odiava seu cérebro, o jeito como ele o fazia se sentir perfeitamente feliz em um momento e, logo depois, triste feito um túmulo de cemitério. Odiava-o por lhe sussurrar coisas — Você não presta. Não consegue fazer isso. É burro demais. Ninguém gosta de você porque você é pirado —, não que fosse o tempo todo, mas com frequência suficiente para sentir que havia algo morando ali dentro dele, algo que o odiava. Mais que tudo, porém, ele odiava o ódio. Era exaustivo.

Sentou-se no caminho elevado de concreto que dava na praia, arremessando pedrinhas em gestos preguiçosos contra o mar calmo. A maré estava baixa, mas mesmo assim havia só cerca de vinte metros de praia entre a água e a enorme duna atrás dele. Do outro lado ficava Fursville, um vasto naufrágio de metal deformado, madeira podre, lixo e cocô de rato, que um dia fora o maior e mais popular parque temático de Norfolk.

Quando Brick era criança, visitava sempre o lugar com os pais, suportando com paciência a viagem pelas estradas do interior desde Norwich, porque o destino valia a pena. Tinha uma montanha-russa das antigas, de madeira, sem grandes loops nem nada, mas ainda assim bem rápida. Muitos fliperamas, também, tantos que as musiquinhas artificiais e truncadas haviam se entranhado em sua cabeça, o som de trombeta que anunciava o seu verão. Eles se estendiam da praça até o píer, que se incendiara em 1999, às vésperas de uma enorme celebração do milênio, e que hoje não passava de uma porção esquelética de metal, quase toda coberta de areia e mar.

O que ele mais gostava em Fursville, porém, era do toboágua, porque era preciso se espremer em um barquinho comprido, engatado no alto de um aclive da altura do Everest, antes de ser estilingado ao longo de poças congelantes de água amarelo-xixi. Gostava dele porque era o único momento em que ganhava um abraço do pai. O velho não tinha escolha — você precisava agarrar a pessoa na sua frente ou correr o risco de sair voando do barco nas curvas da descida. Adorava aquela sensação de estabilidade, o peso dos braços tatuados sobre seus ombros, como se o pai e a gravidade fossem a mesma coisa, impedindo-o de quicar para fora do planeta, na fria escuridão infinita do espaço.

Não que fosse admitir esses sentimentos algum dia, mesmo que na época pudesse ter dito isso em palavras. Mas era provável que o pai batesse nele. Agora, porém, tinha dezoito anos e não se importava mais com o que o pai pensava.

Olhou para o céu, uma vasta extensão de azul-claro, o sol tão brilhante que espetava sua retina. O único som era o murmúrio das ondas na altura do joelho, que viajavam até as pedras; isso, e a conversa distante das gaivotas de Hemsby, cerca de um quilômetro e meio ao sul. Uma década atrás tinha adorado o lugar porque havia tanta gente, o movimento constante e o som sendo o exato oposto do frio vácuo de casa, que seu pai e sua mãe outrora preenchiam com tanta facilidade. Agora ele gostava dali exatamente por causa da quietude, da imobilidade. Ali, nas vísceras arruinadas de Fursville, não havia ninguém para odiar.

As costas de Brick estavam ficando dormentes, e ele se levantou, lançando ao mar uma última pedra do tamanho de um punho. Seu celular informou que era pouco mais de três horas. Lisa logo sairia da escola, e ele tinha dito a ela que estaria esperando no portão. Não havia a menor chance; levaria cerca de meia hora para voltar à cidade, e àquela altura imaginou que ela já teria entrado em casa, mandando a primeira de uma remessa aparentemente infinita de mensagens de texto enfurecidas.

Praguejou, sentindo o volátil equilíbrio de seu humor começar a se desfazer. Sentia-se agora como um equilibrista na corda bamba, tentando manter-se de pé com o auxílio daquelas varas compridas. Às vezes, quando as coisas estavam bem, seu humor conseguia equilibrar-se com perfeição naquele fio. Mas não era preciso muito para cambalear. Qualquer coisa podia causar isso — alguém dizendo algumas palavras atravessadas para ele, os professores enchendo o saco, até mesmo um olhar esquisito. Porém, havia aprendido a lidar com esses cambaleios: apenas respirava fundo e deixava o ânimo se estabilizar de novo.

O problema era quando mais de uma coisa ia mal. A primeira revirava suas emoções como uma brisa, totalmente controlável com um pequeno ajuste, mas a segunda seria como uma gaivota enlouquecida bem na cara, batendo as asas e grasnando, e de repente seu humor desabava como se fosse uma tonelada de tijolos, e o mundo tornava-se escuridão.Fechou os olhos, o holofote de sol deixando um ligeiro resquício de dor contra seu crânio. Deixar o ar entrar, sair, mais uma vez, devagar, uma respiração profunda, e, quando abriu de novo os olhos, sentiu-se mais calmo, seu estado de espírito completamente equilibrado.

Avançou pelo caminho, a nuca ardendo onde o sol a havia atingido. Bronzeava-se tão bem quanto um vampiro albino, a pele sardenta variando bastante entre extremos de branco-leitoso e vermelho-tomate ao longo do ano. A culpa era da cor do cabelo, o tom de laranja mais berrante que se podia imaginar.

A uma dezena de metros de onde estava, ficava uma das várias frestas na cerca de Fursville. A maior parte delas era resultado apenas de negligência, o metal tendo enferrujado até se desfazer. Esta fresta, porém, ele mesmo tinha feito cerca de três anos atrás, quando ele e alguns amigos haviam explorado pela primeira vez o parque temático abandonado. Tinham levado um par de alicates, uma lanterna e uma mochila, e haviam passado a noite procurando tesouros — antigos brinquedinhos de pelúcia e doces das barraquinhas destroçadas, dinheiro vivo das máquinas nos banheiros, garrafas que teriam ficado no bar onde os adultos se abrigavam enquanto os filhos corriam feito banshees, seres mitológicos que anunciam a morte com seus gritos potentes, de brinquedo em brinquedo.

No fim das contas, não tinham encontrado grande coisa além de alguns pacotes de doce mofado e uma pilha de desinfetantes de mictório ainda lacrados, que, segundo Douglas Frinton, amigo de Brick, poderiam usar para criar a própria vodca. Porém haviam se divertido muito naquela noite explorando o lugar. Ainda que as áreas fora de Fursville fossem abandonadas e perigosas, o lado de dentro — depois que você passava das correntes e das portas trancadas — até que estava em boas condições. Brick já tinha passado a noite ali uma vez, depois de uma briga séria com o pai. Dormira no antigo restaurante, em posição fetal, sob algumas toalhas de mesa que haviam restado por ali.

Passou pela fresta, certificando-se de que a cerca voltara ao lugar depois de sua passagem, cobrindo-a com um quadrado enorme de compensado. Não que realmente fosse necessário. Ninguém mais passava por ali, não havia postes na calçada ou no parque, e, como todos os locais que tinham sido abandonados, Fursville tivera sua cota de burburinho sobre assassinos e fantasmas. Mas ele já havia visitado o local tantas vezes que sabia que nenhuma daquelas histórias era verdadeira. Por ali, só havia Brick.

Ir da praia até a praça central sempre parecia um treinamento militar, mas ele vencia o entulho, os vidros quebrados e os sorrisos desbotados dos personagens infantis do minicarrossel com estudada calma. A moto de cinquenta cilindradas estava onde ele a tinha deixado, apoiada contra uma fonte que transbordava de algas, a placa que indicava ainda não ter a carteira plena pendendo de lado, de onde um dos grampos magnéticos tinha caído. Já fazia um ano que a dirigia ilegalmente, e não tinha a menor intenção de algum dia ir fazer o teste. Pelo menos não até que ficasse rico o bastante para comprar uma Ducatti.

Colocou o capacete, que apertava suas orelhas. Era incômodo, mas não se importava. Pelo menos seu cabelo ficava escondido. Então subiu a bordo, a moto pequena demais para seu corpo de um metro e noventa e cinco. Foram necessárias seis investidas para que o motor — do tamanho de um cortador de grama — decidisse acordar, a moto acelerando dolorosamente devagar pela praça. Ignorou as placas que indicavam a saída — os portões da frente estavam cobertos por tábuas e presos com correntes, no melhor estilo Alcatraz. Em vez disso, encaminhou-se para a parte sudoeste do parque, o motor choramingando feito uma mosca desvairada. Ele seguiu as próprias marcas de pneu, virando na casinha da assistência médica — as palavras “Estação Dodói” ainda visíveis no muro de pedrinhas. Logo à frente havia uma fresta na cerca do tamanho certo para a moto. Diminuiu a velocidade ao passar, sem deixar de pisar no acelerador para garantir que o motor não pararia, e em seguida foi em direção a dois enormes arbustos de louro que cresciam logo depois dela.

Por instinto, olhou para a direita e para a esquerda, sem desejar denunciar seu esconderijo secreto. Porém, não havia risco de ninguém vê-lo. A ampla estrada estava deserta. Do outro lado, havia uma concessionária de carros abandonada quase há tanto tempo quanto o parque. Depois da extensão vazia de concreto e poeira, Brick conseguiu distinguir as chaminés fumegantes e as luzes piscantes da fábrica de fertilizantes que ficava a menos de um quilômetro rumo ao interior. Aquele ponto era o mais próximo que alguém chegava de Fursville hoje.

Parou por um instante, apreciando a imobilidade, o modo como o tempo parecia estagnado ali. Mesmo com o lamento anasalado da moto, ali era mais quieto e pacífico do que na cidade. Porém Lisa o esperava, e o triste fato era que ela lhe botava medo mesmo quando não estava gritando com ele.

Suspirando, Brick pisou fundo e seguiu para casa.

Norwich, 15h57

— Então... Brick, não é?

Brick fez que sim com a cabeça, tentando não sorrir diante dos pais de Lisa, que o encaravam da segurança da varanda da frente. O sr. Dawlish, que tinha cinquenta e poucos mas parecia ter o dobro, segurava a porta com as duas mãos, como se temesse precisar fechá-la com força a qualquer momento. A esposa, que tinha todos os defeitos de Lisa e nenhuma de suas qualidades, estava na ponta dos pés, olhando por cima do ombro do marido. Nenhum deles sorria de fato. Parecia mais uma careta. Ele estava acostumado. Com um metro e noventa de altura, e ainda corpulento, era natural as pessoas ficarem receosas em sua presença. E ele tinha um daqueles rostos, era o que lhe tinham dito, sabe-se lá o que queriam dizer com isso. Era o destino dele. Todo mundo odiava Brick Thomas.

— Ela sabe que você está aqui — disse o sr. Dawlish. — Já está descendo.

Ele voltou os olhos para a esposa, e ela deu de ombros.

— Acho que está. — A sra. Dawlish deu uma espiada no capacete preso às mãos de Brick. — Não está pensando em levá-la para andar nisso, está?

— Não, senhora Dawlish — mentiu Brick. Lisa sempre andava com ele. Não que fosse possível algo ruim acontecer com ela, a velocidade máxima da moto quando havia duas pessoas mal chegava a setenta por hora. Apesar de sua resposta, a sra. Dawlish franziu o rosto. Abriu a boca para dizer algo, mas foi evidente que acabou mudando de ideia.

— Por que Brick? — perguntou o sr. Dawlish após um silêncio desconfortável. — Imagino que não seja esse seu nome.

— Acho que sou só mais um tijolo, um brick, no muro da família Thomas — disse Brick. — Como na música. Minha mãe e meu pai sempre me chamaram assim. Na minha certidão de nascimento, meu nome é John. — Outra mentira. Seu nome verdadeiro era Harry, mas ele gostava de ver a cara das pessoas quando dizia que seu nome era John Thomas.

O sr. Dawlish precisou de alguns segundos para entender a piada, e, quando o fez, a testa enrugou-se feito um acordeão. Deram-se mais algumas trocas de palavras incômodas antes que Brick ouvisse passos dentro da casa. Os pais de Lisa viraram-se quando ela apareceu.

— Quatro horas? — disse ela, batendo na parte vazia de seu braço onde ficaria um relógio. Ela era bonita, não havia dúvida, mas escondia isso bem atrás de muita maquiagem e um cabelo sempre alisado e tingido, além de preso em um rabo de cavalo. Tinha um piercing no nariz e outro na sobrancelha; os pais culpavam Brick pelos dois, mesmo que ele os detestasse. Ela agora o encarava em meio a cílios postiços que não haviam sido bem fixos.

— Desculpe — disse Brick. — Fiquei preso no trabalho. Tive de fazer uma entrega mais tarde.

— Problemas na construção? — perguntou o sr. Dawlish. Brick dissera a Lisa que trabalhava para a mesma empresa de andaimes que o pai dela. O que, em termos técnicos, era verdade, ainda que há semanas ele não aparecesse.

— Nada que a gente não pudesse resolver — respondeu Brick. — Hoje em dia é muito difícil arrumar pessoal.

Por algum motivo, isso pareceu tranquilizar o velho casal. O sr. Dawlish acenou com a cabeça, um vago sorriso aparecendo entre as rugas do rosto.

— Nisso você não está errado, garoto. — Virou-se para a filha. — Vamos lá, querida. Vai sair ou não? Está entrando muito calor com essa porta aberta.

Lisa fixou os olhos em Brick por cerca de sete segundos, depois soltou um minigrito de frustração, passando pelos pais e saindo.

— Você vai me compensar por isso, Brick — murmurou ela, com uma cara que demolia os trinta centímetros de diferença entre eles, fazendo-o se sentir o menor dos dois. À luz do sol, ele reparou que ela parecia de algum modo diferente, ainda que não pudesse dizer exatamente por quê. Não era nada banal, como alguma nova base de rosto ou camiseta. Não, era alguma coisa nos olhos dela, no jeito como olhava para ele. Por algum motivo, aquilo lhe causou um formigamento. Lisa devia estar zangada mesmo.

— Calma, gata — disse ele, levantando os braços e se rendendo. — Vou sim. Prometo.

— Divirtam-se — disse o sr. Dawlish enquanto se afastavam. Brick acenou, ouvindo os gritos esganiçados da sra. Dawlish seguindo-os o caminho todo até o portão.

— Esteja em casa às dez, por favor. E nada de subir naquela moto!

Brick sorriu, mas foi por um breve momento. Olhou para Lisa de novo, tentando entender o que o deixava tão inquieto e desejando ter ficado na praia.


Daisy

Boxwood St. Mary, 18h22

— Ah, é ele, o vilão Romeu — disse Kim sem entusiasmo, ainda investindo com a espada, mas desta vez contra Fred.

— Mais maldade, querida — disse a sra. Jackson das coxias, fazendo interrupção semelhante às demais, praticamente após cada frase até ali. — Você odeia Romeu.

— Eu odeio você, sua velhota — murmurou Kim, a acústica do teatro levando a voz mais longe do que ela queria. Daisy teria rido, mas estava exausta. Fazia três horas que estavam ali, e não haviam passado do primeiro ato. Naquele ritmo, só chegariam em casa no fim de semana, e isso porque estavam fazendo uma versão condensada da peça.

— É ele — cuspiu Kim, brandindo a espada, imprimindo na frase toda a maldade de que era capaz. — Romeu, o vilão!

— Acalma-te, gentil primo, e deixa-o em paz — disse Ethan, o gordinho da classe de Daisy que fazia o papel de seu pai. Ele usava uma toga, e desenhara em si mesmo um cavanhaque com delineador que o fazia parecer ridículo. — Nem por toda a riqueza da... cidade aqui em minha casa faria essa...

— ... essa descortesia, Ethan — disse a sra. Jackson, sem precisar olhar o texto em suas mãos.

— Descortesia, pois é. Então tenham paciência, não reparem nele, é minha vontade.

— Razoável, quando tal vilão é convidado — continuou Jim. — Não vou tolerá-lo.

— Criarás algazarra entre os convivas! — rugiu Ethan, agitando os pulsos. — Será um galinheiro!

Todos riram — sempre riam nessa fala —, e o som ao mesmo tempo ecoou na grande sala vazia, sendo abafado por ela. A sra. Jackson mandou que fizessem silêncio.

— Romeu? — disse a sra. Jackon. — Romeu, onde estás, Romeu?

— Hã? — disse Fred, obviamente perplexo. Ele estava do outro lado da grande mesa da cantina e deve ter sentido o olhar de Daisy, porque ergueu os olhos, cruzando-os com os dela. Ela virou a cabeça com tanta força que algo vibrou em sua nuca, as bochechas outra vez tingindo-se sob a maquiagem.

— É sua fala, Fred querido.

— Ah, bem. — Ele colocou as mãos na mesa e encarou Daisy. Desta vez ela não desviou os olhos, tentando colocar-se no estado de espírito de uma menina interessada em um cara mais velho. Não era difícil. — Se eu profanar com minha mão indigna este santuário, eis o débito: meus lábios, dois peregrinos enrubescidos, amortecerão o toque rude com um terno beijo.

Pelo canto do olho, Daisy via Kim rolando de rir, e precisou de toda a sua concentração para não rir também.

— Bom peregrino — disse ela, a voz trêmula.

— Baixo demais, querida, assim ninguém vai ouvir lá atrás.

Daisy pigarreou e falou mais alto, dirigindo-se não aos olhos de Fred, mas a algum ponto em seu queixo.

— Bom peregrino, insultas tua mão, que mostra devidamente tua devoção; pois santos têm mãos que as mãos dos peregrinos tocam, e palma com palma é o beijo mais sagrado.

— Ótimo, Daisy — disse a sra. Jackson, arruinando com maestria a tensão dramática.

— Não têm lábios os santos, e também os peregrinos que recebem o beijo sagrado?

— Sim, peregrino, lábios que devem usar na oração.

— Ah, então, ó santa, que os lábios façam o que fazem as mãos; oram para que me concedas a graça, e o amor não se torne... ahn... desespero?

— Quase isso... — disse a professora de teatro.

— Os santos não se comovem, mas concedem graça pela oração — falou Daisy. Sua pulsação se acelerava, tão rápido que podia senti-la nas têmporas; tão rápido que quase parecia uma pulsação em dobro, correndo lado a lado. Três falas a mais e chegaria aquela de que ela mais gostava — e menos gostava — na peça inteira. Deu um passo para a esquerda, e Fred a imitou.

— Então não te comovas enquanto recebo a graça da minha oração — disse ele, usando uma unha para tirar um borrão da superfície da mesa. Suas bochechas também começaram a se tingir. — Então, dos lábios meus, pelos teus, é purgado meu pecado.

Ambos deram outro passo para o lado, convergindo na ponta estreita da mesa — o local crucial.

— Toma então meus lábios com o plecado que tiraram — disse ela, sem que a língua funcionasse direito. — Desculpa, pecado.

— Pecado dos teus lábios? — disse Fred, agora murmurando, mas sem que a sra. Jackson falasse uma palavra. Ele deu um passo para o lado da mesa, e Daisy moveu-se também, de modo que agora estavam diante um do outro, quase se tocando. A cabeça de Daisy latejava — não era dor; era apenas uma pressão, como se algo fosse estourar. O teatro nunca parecera tão quieto, os espaços de silêncio entre as palavras não tinham fundo. Todos ali retinham o fôlego.

— Ah, profanação docemente instada, devolve-me meu pecado.

Fred inclinou-se para a frente. Daisy esticou-se, pôs-se na ponta dos pés, inclinando-se para ele como se uma mão invisível a empurrasse. Sua cabeça agora berrava, uma chaleira fervendo entre as têmporas. Os olhos de Daisy se levantaram, ela não foi capaz de detê-los — passando do queixo de Fred, dos lábios e do nariz para se encontrar com os olhos dele, e seus lábios foram convergindo.

Ficou petrificada, começando de repente a suar frio, como se a temperatura do corredor tivesse caído abaixo de zero. Os olhos de Fred estavam vazios, as contas negras cegas e insensíveis de uma boneca que pareciam prestes a cair das órbitas assim que ele se inclinara em sua direção. Ela recuou, mas Fred continuou se aproximando, assomando sobre ela, os dentes cerrados, rangendo.

Então a boca de Fred se abriu, e ele cuspiu na cara dela.

O coração de Daisy parou, e por um momento ela se perguntou se havia morrido no palco. Conseguia sentir a saliva quente no lábio superior — não muito, só uma espuma, na verdade, quente contra a pele fria, mas foi incapaz de erguer o braço para limpar aquilo. Não conseguia mexer um só músculo.

Fred começou a rir, os lábios agora deixando os dentes à mostra, os olhos mortos ainda perfurando-a. Daisy cambaleou para trás, vendo Kim apontando para ela e rindo tanto, a ponto de guinchar. O riso contagiou outra pessoa, e mais outra, e ainda outra, até que o teatro inteiro reverberava com ele.

— Beijas conforme o livro — disse a sra. Jackson, abafando a própria risadinha.

— O quê? — perguntou Daisy, esfregando o antebraço enluvado pelo rosto.

— Sua fala, querida, beijas conforme o livro. Beijas conforme o livro. — A sra. Jackson andava pelo palco, brandindo o script para ela. — Conforme o livro, Daisy.

Daisy esbarrou em um dos figurantes do sétimo ano e quase caiu de costas. Era demais; o teatro passou a girar. Virou-se e saiu correndo, emitindo baques secos ao tocar os degraus de madeira e irrompendo pelas portas duplas, a voz da sra. Jackson esganiçando atrás dela:

— Conforme o livro, Daisy, conforme o livro, conforme o livro!


Cal

Oakminster, 18h34

— Ainda não consigo acreditar que acabamos com eles — disse Abdus, sem fôlego, enquanto deslizava devagar com seu skate. Chegou aos degraus que davam na pequena praça do lado de fora da biblioteca, fazendo um ollie para descer, mas perdendo o controle antes de chegar ao chão. Recobrou o equilíbrio e foi atrás do maldito skate antes de se voltar outra vez para Cal. — Três a um!

Cal ergueu as mãos, celebrando como se fosse um astro de rock. Estava sentado em uma das três mesas de metal na parte externa da lanchonete especializada em milk-shakes que tinha se tornado o lugar favorito deles, em particular depois de um jogo. O nome era Udderz, e ali você podia escolher sua barra de chocolate favorita e mandar batê-la com leite e sorvete, fazendo provavelmente o melhor milk-shake do planeta. Cal já tomava o terceiro naquela tarde, este agora feito de barras de Boost. Estava já um pouco enjoado, mas não seria isso que o impediria de terminar.

O lugar estava lotado. Em sua mesa também encontravam-se Megan, Eddie, Dan e Jack, o goleiro, empoleirado na beirada e criando uma sombra bem-vinda ao sol poente. As outras duas mesas eram ocupadas pelo resto do time. Estavam todos ali, menos Steven Abelard, que morava longe e sempre precisava sair mais cedo. Várias outras pessoas da sua sala espalhavam-se pelo local, entre elas Georgia, sentada bem ao lado da enorme janela da frente, atrás do imenso “e” pintado de Udderz, absorvida no que quer que estivesse lendo.

Cal a observava — não conseguia evitar; era como se a cabeça dele e a dela se conectassem por um fio elástico invisível. Havia um limite até onde podia esticá-lo, antes de ser puxado de volta. O que ela estava lendo devia ser bom, porque não tinha erguido os olhos uma única vez. Não achava que podia haver nada tão deprimente e tão frustrante quanto o perfil da cabeça daquela garota.

— Mais um? — perguntou Dan, arrastando para trás a cadeira de metal e apontando com a cabeça para o milk-shake de Cal.

— Já deu — respondeu Cal. — Mais um desse e vou sair vomitando pela praça.

— Você não é de nada — falou Megan, os lábios em volta do canudo, e o copo borbulhando. — Já estou no quinto.

— É, dá para ver — disse Cal, abrindo um sorrisão. — Essa cadeira aí vai quebrar logo, logo.

— Cala a boca — disse Megan estendendo a mão e dando um tapinha no braço de Cal, uma expressão de escândalo fingido lhe tomando o rosto. Megan tinha um metro e meio, descalça, e era magra como um graveto. Não era capaz de fazer aquela cadeira nem sequer cambalear, mesmo que ficasse pulando nela por uma semana.

Alguém passou zunindo em um skate, um garoto da série anterior, pensou Cal. Fez um ollie no corrimão e caiu direto na praça, executando uma manobra perigosa e um flip de 360, pousando só com uma cambaleadinha. Prescreveu um arco para se dirigir ao grupo de colegas do décimo primeiro ano, que encaravam as mesas ocupadas como se planejassem uma invasão.

— E então, que tal nossas chances amanhã? — perguntou Eddie, empurrando os óculos nariz acima. Eddie tinha asma, uma asma bastante problemática, o que significava estar impedido de jogar no time. Era uma pena, porque sempre que batiam uma bola na hora do almoço ele até que jogava bem.

— A 12H é dureza — falou Jack, sem voltar os olhos para o amigo. — Eles ganharam ano passado. E têm aquele garoto alto, o Nasim, que, segundo dizem, está sendo considerado pelo Arsenal.

Cal bufou, fingindo não estar nem aí. A verdade era que Nas, meio-campista, era bom o bastante para se tornar profissional. Da última vez que tinham se enfrentado, Nas foi superior a Cal. Mas Cal agora estava jogando muito melhor.

— A gente vai ganhar — disse ele. — Com ou sem Nas.

— Bem, se você não puder correr mais que ele, pode lhe socar a cara — disse Megan, e todo mundo riu.

— De repente, você não vai nem jogar a próxima partida — disse Jack. — Se Platt seguir adiante com aquilo. Aquele cartão vermelho pode colocar você no banco por um jogo ou dois.

— Que nada — falou Cal. — O Frosty foi expulso no primeiro jogo, e jogou contra a gente na segunda semana, lembra?

— Lembro, ele derrubou o goleiro com um carrinho — disse Eddie, balançando a cabeça. — Que burro.

Um dos skatistas levou uma queda na praça, rolando de maneira impressionante antes de se estatelar de cara para o céu. Todos aplaudiram e gritaram. Cal reclinou-se na cadeira, dando mais um gole no milk-shake ultradoce. Ali era tão aconchegante, tão tranquilo. Os sons da praça — o murmúrio constante e suave de conversas e risos, o bater e deslizar dos skates... Era quase um sonho.

A única coisa que atrapalhava seu estado de espírito era aquela cabeça idiota, ainda latejando. Não doía, não como se fosse uma enxaqueca. Era só incômodo — tum-tum... tum-tum... tum-tum... —, como se houvesse alguma coisa ali dentro, um pássaro moribundo batendo devagar as asas quebradas, tentando levantar voo...

Deus do céu, de onde vinha aquilo? Cal deu de ombros, a imagem lhe fazendo o estômago revirar com ainda mais força. Dan reapareceu, despencando na cadeira e sugando o canudo do novo milk-shake. O som gorgolejante que ele produzia parecia alto demais, e Cal demorou alguns segundos para perceber que era porque a conversa na praça estava mais baixa. As pessoas ainda falavam, mas aos sussurros. Era como um daqueles silêncios esquisitos, do tipo em que todo mundo para de falar porque acha que os outros pararam, e todos se entreolham por um instante, perguntando-se o que está acontecendo, antes de rir e prosseguir com a vida.

Só que ninguém estava rindo. Os garotos do décimo primeiro ano ainda olhavam para a lanchonete como se quisessem as mesas. Os skatistas tinham parado também e olhavam na mesma direção. Cal sentiu alguma coisa dançando em sua coluna, os pelos do braço ficando arrepiados de repente.

— Eeeeeeu hein — disse ele, fazendo o que podia para sorrir. Eddie o observava com uma expressão de intensa confusão, como se da cara de Cal houvesse brotado de súbito um focinho de porco ou um par de orelhas de panda, algo assim. E não era só Eddie. Megan franzia o rosto para ele, o nariz retorcido. A cabeça de Cal virou para a esquerda e depois para a direita, vendo que praticamente todo mundo na praça parecia encará-lo. Até Georgia enfim tirara a cara do livro. Podia ser o reflexo da luz do poente na vitrine, mas Cal podia jurar que os lábios dela estavam apertados, distorcendo seu rosto impecável em uma careta.

Percebeu que seu coração batia com tanta força que podia ver cada batida como um flash luminoso em seus olhos. Arrastou a cadeira para trás, levantando-se com desconforto e passando a mão pelo cabelo.

— Há, há, muito engraçado, galera — disse ele, a voz solitária ecoando pela praça. — Vocês podiam crescer um pouquinho, que tal?

Os três copões de milk-shake que ele tinha consumido naquela tarde agora faziam algazarra em seu estômago. Ninguém respondeu; apenas continuaram a encará-lo, os rostos com a mesma expressão atônita. Cal foi passando pela multidão de olhos arregalados, tentando não correr enquanto se dirigia aos degraus. Sua garganta coçava, do jeito que sempre acontecia quando estava prestes a vomitar. A lanchonete de milk-shakes não tinha banheiro, mas a biblioteca sim.

Atravessou a praça em doze passadas, zunindo portas automáticas adentro. Parou tempo suficiente para olhar para trás, sentindo-se inundado de alívio quando notou que um dos skatistas voltara a se mover; que Eddie, Megan e o restante dos amigos pareciam ter voltado ao normal, conversando.

Eles te pegaram direitinho, pensava ele ao andar até os banheiros. Estavam se divertindo, e era bem provável que houvessem inventado aquilo à tarde, enquanto ele trocava de roupa. Foi como na ocasião em que tinham roubado o uniforme de Jack depois do treino, obrigando-o a passar o resto do dia vestido de goleiro. Ou quando tinham dito a Megan que na quinta haveria treinamento para professores, e ela não fora para a escola. Pregavam peças entre si o tempo todo, e esta era mais uma delas — chhh, às sete e quinze da noite, hoje, todo mundo vai parar e encarar o Cal. Vamos ver ele ficar maluco; passe adiante.

E o pior era que ele tinha mesmo ficado maluco. Havia saído de si completamente.

Ele abriu com força a porta externa, passou pela segunda porta e foi direto para a única cabine vazia. No instante em que abriu a tampa, achou que o último milk-shake ia voltar, fervilhante em seu caminho desde o estômago. Porém, após alguns instantes de esforço em vão, sentiu o milk-shake se assentando. Continuou curvado sobre a privada por mais um minuto, depois baixou a tampa e sentou-se nela.

O que havia de errado com ele? Não estava passando bem. Primeiro o incidente com Truman, o jeito como o garoto olhava com fúria para ele. E agora isso. Sempre achara que fosse constituído de uma substância mais firme, mas ali estava ele, no banheiro da biblioteca, pronto para cuspir as vísceras só porque os colegas haviam feito uma brincadeira idiota.

Cal passou a mão pela testa, a pele úmida, fria, e em seguida saiu da cabine, jogou água no rosto e ficou olhando seu reflexo no espelho pichado. Parecia um pouco pálido — macilento, como a mãe dizia. Talvez estivesse ficando doente. Seria essa a desculpa dele; tinha pegado gripe suína, não estava bem mesmo. Os amigos não acreditariam, claro, mas não importava. Ainda era Cal Morrissey, e todos adoravam Cal Morrissey.

Sentindo-se um pouco melhor, Cal saiu do banheiro. Ele admitiria: os amigos tinham saído vitoriosos. As meninas apreciavam um cara que sabia rir de si mesmo. Georgia sempre dizia que ele levava as coisas muito a sério.

Andou pela praça, mantendo a cabeça baixa para fingir constrangimento, evitando os skatistas que ziguezagueavam pela praça, esperando os gritinhos, os uhus, as piadinhas. Eles não vieram, e foi só quando Cal subiu os degraus que percebeu que os garotos sentados ali não eram seus amigos. Os garotos do décimo primeiro ano tinham ocupado todas as mesas, rindo e berrando entre si, alguns fitando-o com receio.

Mas que droga é essa?, disse consigo mesmo, examinando o interior da lanchonete de milk-shakes. Georgia tinha ido embora, todos tinham ido embora. Deu um giro, mas não viu vestígio de nenhum deles nem na praça nem nos dois acessos que levavam à rua. Olhou para a garota mais próxima, uma menina de cabelos verdes e camiseta do Linkin Park.

— Você viu para onde foi todo mundo?

— Não — cuspiu ela, como se aquela fosse a pergunta mais idiota do mundo. Virou a cara para a amiga, fez um comentário, e as duas deram uma risadinha.

Cal coçou a cabeça mas logo baixou a mão, pois não queria parecer fraco nem confuso. Eles ainda estavam ali, em algum lugar, tinha certeza. Talvez mijando de rir. Meu Deus, isso não acontecia desde que ele tinha oito anos e seus três supostos melhores amigos haviam fugido, abandonando-o em pleno zoológico de Londres. Bom, que se danassem eles; não ia ficar parado feito um palerma esperando que mostrassem a cara. Afastou-se dali, a cabeça ainda latejando enquanto andava sozinho pelo anoitecer quente e pesado de verão.


Brick

Fursville, 18h56

Quando Brick retornou a Fursville, o sol já estava adiantado em seu caminho para o calor alvo do horizonte. Não estava mais fresco. O mar parecia oprimido por um punho quente e úmido. Ele pingava de suor. Contribuía para isso o fato de ter ficado como um sanduíche entre o motor sobrecarregado da motocicleta e a pressão firme dos braços de Lisa pelos últimos trinta e cinco minutos.

— Ai, meu Deus, Brick, desta vez eu fiquei aleijada — disse ela, saindo da garupa e alisando o traseiro com as duas mãos. — Quando é que você vai arrumar um carro?

— Quando tiver dinheiro — respondeu ele, esperando que ela se afastasse para passar a perna por cima do veículo. Os músculos protestaram, pois já tinha passado quase duas horas rodando naquele dia e faltavam trinta minutos para levar Lisa para casa, mas ele os ignorou. Alongou-se, ouvindo a coluna estalar, e depois removeu o capacete. A dor em suas orelhas comprimidas começou a esmorecer, revelando indícios de uma dor de cabeça que se aproximava. Ele reconheceu o desconforto, como os primeiros estrondos de uma tempestade distante. Ainda não era preciso se preocupar, mas mais tarde naquela noite teria sorte se não houvesse um furacão vigoroso entre as têmporas.

Por que diabos tinha trazido Lisa até ali?

Fora uma vontade que surgira de momento, uma vontade idiota de momento. Depois de apanhá-la, haviam ido a Riverside, o complexo de lazer, parando primeiro em sua casa para pegar um capacete reserva. Ela tinha exigido que ele a levasse ao cinema para compensá-la pelo atraso, e ele relutara, embora houvesse concordado depois, mesmo quando a única sessão próxima era uma comédia romântica horrenda com Jennifer Aniston e um sujeito que ele meio que reconhecia de alguma comédia da TV. Brick não riu nenhuma vez durante o filme inteiro, exceto no meio da grande cena de amor, quando Lisa deixou o balde de pipoca cair para pegar o celular na bolsa. E aquele riso não durou muito, porque ela o mandou sair para pegar mais.

Depois do filme, Brick sentiu tanto alívio por estar sob a luz do sol de novo que teve um súbito acesso de felicidade eufórica. O único outro lugar em que ele se sentia feliz assim, pra valer, era Fursville, e, por alguma distorção bizarra da lógica neural, decidira na hora revelar seu segredo a Lisa.

Ela protestou, grunhiu, gemeu, e só precisou de cinco minutos de moto rumo à praia com a voz dela buzinando no ouvido para que o humor de Brick despencasse da corda bamba. Deveria ter voltado e a deixado em casa, mas por algum motivo simplesmente mantivera a cabeça baixa e seguira rugindo para o leste. Agora ali estavam eles, em seu abrigo, seu esconderijo, as queixas agudas de Lisa parecendo uma frota invasora.

— Que raio de lugar é este? — perguntou ela, tirando o capacete e ajeitando o rabo de cavalo. Por um instante, enquanto fazia isso, pareceu insuportavelmente bonita para Brick. Então seu rosto desabou naquela máscara já tão conhecida de tristeza e decepção. — Fursville? Isso aqui não costumava ser um parque de diversões ou algo assim?

Dã, pensou Brick, observando a roda-gigante, ou o que tinha sobrado dela. Com apenas uma das gôndolas ainda presa, e seus raios retorcidos em ângulos diversos, parecia um gigante leproso e anoréxico.

— Por favor, não me diga que me arrastou até aqui para ver este parque de entulho — cuspiu ela. Ele não disse nada. Não ousava. Sentia-se ridiculamente na defensiva em proteção do local. Ouvi-la falar dele daquele jeito fez seu sangue ferver. Mordeu a língua, mirando um ponto distante com o olhar, a cabeça latejando. Podia ouvir sua pulsação latejando nas orelhas, talvez por ter usado o capacete tempo demais. — Brick? Por que a gente está aqui?

— Vamos só... entrar — disse ele. — Antes que alguém nos veja. Não quero que as pessoas saibam que eu venho aqui.

— Isso não me surpreende. Por que você vem aqui? — perguntou Lisa enquanto ele empurrava a moto para o arbusto de louro. Era mais fresco ali, como se entrasse em uma geladeira, e também mais escuro. O simples fato de sair do sol já o acalmava um pouco. Podia ouvir os passos de Lisa atrás de si, praguejando quando as folhas de louro se enroscavam em seu cabelo, as folhas graúdas e frias esfregando-se contra seu rosto. Então se detiveram, presos entre o arbusto e a cerca. A fresta ficava logo à frente, e ele conduziu a moto através dela, empurrando-a pelo caminho de pedrinhas e entulho.

Lar, doce lar.

— Deus do céu, este lugar tem cheiro de cachorro morto — disse Lisa. — Deve ter até vampiros aqui. Tem certeza de que este lugar não é assombrado?

— Não é assombrado — disse Brick, sentindo-se como um pai que tenta com toda a paciência acalmar o filho chato. — Não tem vampiro nenhum, cachorro morto nenhum.

— Vampiros assassinos — insistiu ela enquanto passavam ao lado da Estação Dodói. — Aposto minha vida que tem. Tenha dó, Brick, vamos dar o fora daqui. Hemsby é aqui do lado, não é? A gente pode comprar doces e jogar fliperama. Brick?

— Detesto Hemsby — disse ele. — Você não consegue ouvir nem os próprios pensamentos lá. Está cheio de gentalha. Sem querer ofender.

— Cala a boca — falou ela.

Chegaram à praça, o lugar inteiro imerso em silêncio. A grande roda se estendia acima, e atrás dela havia a pista de madeira podre da montanha-russa. Algumas gaivotas estavam empoleiradas no ponto mais alto da curva mais alta, mas não gritavam, cutucando-se entre si com seus bicos de um amarelo brilhante. Era difícil achar um centímetro de chão que não estivesse coberto de lixo ancestral — jornais velhos, latas vazias que tinham perdido a cor anos antes, bolsas soterradas por pedrinhas — e, à esquerda, perto dos portões principais, havia uma pilha de carrinhos bate-bate que ficaria melhor em um ferro-velho.

— Minha nossa, Brick, você sabe mesmo como impressionar uma dama, não é?

— Até parece que você é uma dama — respondeu ele.

— Ei! — Ela tentou acertá-lo na cabeça, mas ele se esquivou, dando um passo para trás quando ela veio em sua direção. — Fique paradinho para receber sua punição, Brick Thomas.

Ela partiu para cima dele de novo, e desta vez, quando ele se abaixou para fugir da mão dela, ela estava rindo. Ele se virou, correndo para a esquerda da roda-gigante, passando por um quiosque vedado com tábuas e coroado com um enorme cachorro-quente de plástico, fazendo dele o maior prédio do parque. Era uma caixa quadrada e feia mais ou menos do tamanho do auditório da escola, com uma fachada de plástico turquesa que supostamente daria ao telhado a aparência de ondas em movimento. Algumas das letras três metros acima dos portões principais tinham caído, criando a palavra banguela PAV LHÃ . Lisa alcançou-o sob o toldo decadente da varanda, agarrando seu cotovelo e fazendo-o se virar.

— Mandei você receber a punição — sorriu ela, e em seguida ficou na ponta dos pés e lhe deu um beijo. Ele fechou os olhos e abriu a boca, sentindo a língua dela contra a dele. Não soube quanto tempo se passou até ela recuar, e demorou um instante a mais para se lembrar de onde estava. O beijo também tinha amenizado a dor de cabeça. O tum-tum agora tinha se aquietado, parecendo ondas distantes. Lisa deu um passo para trás, o colorido emergindo das bases da fundação. — Agora entendi por que me trouxe aqui — disse ela sorrindo. — Você é um vampiro assassino!

O sorriso estava no rosto de Brick antes que pudesse contê-lo, ainda que sorrir diante dela daquele modo o fizesse se sentir pouco à vontade.

— Quem dera — disse ele, virando-se e caminhando pelo prédio. Lisa se aproximou de Brick, entrelaçando a mão na dele.

— É sério que você vem aqui sozinho? — perguntou ela, enquanto contornavam o prédio. O caminho ali era rachado e irregular, o campo de minigolfe ao lado tão coberto de grama que não podia mais ser reconhecido. Um esquilo gigante os espiava só com metade do rosto, atrás de um véu espinhoso de sarça.

— O tempo todo — disse ele. — Só aqui eu consigo um pouco de paz e quietude.

— É muito assustador.

No meio do caminho, pelo muro lateral do pavilhão, ficava uma saída de incêndio com duas portas conectadas por uma corrente do tamanho de uma jiboia. Brick pegou uma delas e puxou, as portas abrindo-se pouco mais de meio metro antes que as correntes as detivessem. Agachou-se e passou entre elas, espremendo-se na escuridão.

— De jeito nenhum, Brick. É imundo aí dentro — disse Lisa, a voz abafada apenas pelo peso do silêncio lá dentro. Espirais de luz escorriam de claraboias, sem permitir que se enxergasse grande coisa.

— Não tem problema, eu juro — disse ele, abrindo as portas o máximo possível. Enfim Lisa se agachou, espremendo-se pela fresta, fazendo o que podia para não tocar nada. Endireitou o corpo, examinando o lúgubre corredor e esfregando as palmas contra o jeans. Tudo o que ela conseguiu dizer foi “eca”.

— Está bem destruído — explicou Brick, virando à direita, rumo à parte frontal do prédio. Lisa logo foi atrás, o bater dos saltos ecoando no pântano de sombras que se estendia por todo o corredor. — Mas o porão até que está bem conservado.

— O porão? — disse Lisa, colocando-se mais perto dele.

Brick passou por duas portas à esquerda, mas só abriu a terceira. O que havia do outro lado era um poço de alcatrão, tão escuro que parecia verter escuridão para o corredor.

— Não está falando sério — disse ela, e o tom de sua voz mudara, a ansiedade agora verdadeira. — De jeito nenhum eu vou entrar aí, Brick.

Ele estendeu a mão para dentro, procurando na penumbra a lanterna que tinha deixado ali. Com um clique ela ganhou vida, banindo a noite artificial e revelando uma escada que dava em um pequeno corredor repleto de velharias. Mesmo com a luz, ainda era bem sinistro.

— Vai melhorar lá embaixo — disse ele. Segurou com firmeza a mão de Lisa, puxando-a com delicadeza, embora com insistência, atrás de si. — Vamos.

Ela tropeçava em sua sombra distorcida enquanto passava pelas velharias e abria outra porta, conduzindo-a ao porão. Não era mentira dele. Por algum motivo, o odor de umidade e podridão que infestava o parque inteiro, em particular o pavilhão, era menos forte debaixo da terra. Ele tinha limpado o lugar, abrindo um espaço livre de desordem. Apoiou a lanterna contra a parede, o brilho suave iluminando um sofá rosa roído por traças colocado contra a parede do outro lado, com uma mesa de centro à frente. Além de um aquecedor frio e silencioso que jazia em um canto, e de várias caixas de eletricidade nas paredes, era tudo.

— Levei as outras coisas lá para cima — disse ele, indo até a mesa para pegar uma caixa de fósforos. Havia duas velas que ele tinha roubado de casa, e acendeu ambas, a luz bruxuleante nas paredes dando a impressão de que estavam sob a água. — Aconchegante aqui, você não acha?

— Imagino que sim — respondeu ela. — Se você for o Drácula.

— Cala a boca — disse ele, mas sem nenhum tom de ofensa. Desvencilhou-se da mão dela, andando até o sofá e se jogando ali. Seu laptop estava aberto na mesa de centro, e um adaptador wi-fi de internet pré-paga, preso a uma das entradas USB, a ponta piscando. O sinal era melhor lá em cima, mas ele preferia ali embaixo, principalmente à noite, e na verdade nunca precisava ter pressa. Era disso que gostava naquele lugar: não havia pressa.

A dor de cabeça tinha voltado com tudo, e Brick usou as mãos para massagear as têmporas, querendo que ela fosse embora, enquanto Lisa se sentava a seu lado.

— O.k., aqui estou — disse ela. — E agora?

Ela sorriu, virando a cabeça para o lado e mordendo dramaticamente o lábio inferior. A lanterna aumentava muito a vivacidade de seu rosto, destacando os pontinhos que pareciam farpas sob a maquiagem, e os olhos brilhavam de empolgação e também de outra coisa, algo que fazia dela a mulher mais desejável que Brick já vira na vida. Ela se inclinou, e ele foi ao seu encontro, o mundo se desfazendo ao redor deles, esquecido.


Daisy

Boxwood St. Mary, 19h07

Daisy estava sentada nos degraus externos da entrada principal da escola, esperando a mãe aparecer e tentando não pensar no que tinha acontecido no teatro. Sentia-se ofendida, zangada e triste, mas as emoções eram tão equivalentes em sua proporção que lhe causavam na verdade certa letargia. Não podia acreditar que Fred havia cuspido nela, cuspido bem na cara dela. Mas não era isso que a tinha deixado realmente atônita, e sim o riso que viera depois. Era como um pesadelo, um daqueles em que você faz alguma burrice e todos se voltam contra você, sem que você entenda por quê.

Só que não era um pesadelo. Todos tinham se voltado contra ela; todos tinham rido dela.

Ainda conseguia ver o rosto de Kim, retorcido por uma espécie de satisfação doentia. E o da sra. Jackson também. Ela pelo menos deveria ter se comportado melhor. Por que não tinha dito nada? E quanto a Fred? Havia algumas palavras para ele, palavras que tinha ouvido a mãe usar quando estava bem zangada. Todas aquelas palavras se aplicavam a Fred, e outras bem piores, se é que havia algo pior. E, se não houvesse, teria de inventar uma palavra pior. Sentia ódio dele.

Um carro entrou no estacionamento, circulando o canteiro de flores, e Daisy endireitou as costas. O carro era azul, não branco, e ela deixou os ombros caírem, apertando a mochila contra o peito. Tinha esperanças de que a mãe chegasse antes que todo mundo começasse a sair; não queria ver mais ninguém naquela noite. Não queria nunca mais ver nenhum deles. Só queria ir para casa ver TV, desenhar e tentar esquecer tudo.

Os portões principais fizeram um clique atrás dela, causando-lhe um sobressalto. Ouviu-se um estrondo de passos, uma turma de garotos correndo degraus abaixo. Olharam-na com curiosidade, como se não pudessem lembrar com exatidão quem era ela. Melhor isso do que ficarem rindo. Daisy se encolheu contra a mochila, espiando por cima dela.

Vamos lá, mãe. Chegue logo.

Clique, mais passos, e desta vez Daisy sentiu uma mão no ombro. Ergueu os olhos e viu Chloe. Ela tinha tirado o figurino e vestia o uniforme da escola de novo, o cabelo ainda com as tranças de uma época mais antiga.

— O que aconteceu com você? — perguntou ela.

Daisy ficou boquiaberta.

— Como assim, o que aconteceu? — perguntou ela, a raiva destravando sua língua. — Você estava lá. Eu vi você rindo.

— Aquilo com Fred? — disse Chloe, sentando-se no degrau ao lado dela. Outros garotos passaram zunindo, correndo para o estacionamento. — O espirro?

Daisy franziu o rosto, balançando a cabeça. Ela deu uma rápida olhada por sobre o ombro, para ter certeza de que ninguém a ouvia, antes de se inclinar para Chloe.

— Como assim, espirro? Ele cuspiu na minha cara.

Chloe abriu um sorriso enorme, mas não havia nada de maldoso nele.

— Ele espirrou — disse ela. — E aí você saiu correndo antes que ele pudesse pedir desculpas.

Daisy ainda balançava a cabeça. Não tinha sido um espirro. De jeito nenhum. Podia ainda agora ver os olhos dele, desprovidos de qualquer simpatia, de qualquer delicadeza. Ele tinha cuspido nela, e tinha sido de propósito.

Não tinha?

— Ele pediu desculpas? — perguntou ela depois de um instante.

Chloe tirou uma das fitas do cabelo, desfazendo as tranças. Pareceu refletir sobre aquilo por um instante.

— Não, não exatamente. Mas era óbvio que teria pedido se você não tivesse saído correndo como se sua calcinha estivesse pegando fogo.

— Vocês todos estavam rindo — disse Daisy, em tom mais brando agora, baixando os olhos para os degraus. — Eu vi.

Chloe se inclinou, colocando um braço em volta do ombro de Daisy.

— Desculpe, mas foi engraçado, você tem que admitir. Levar um espirro do garoto de quem você gosta? É coisa de vídeo caseiro que vai parar na TV. Aposto que também teria rido se fosse eu.

— Ou eu — disse uma voz atrás delas. Kim desceu correndo a escada, deu em Daisy um rápido abraço por trás e foi seguindo adiante, em direção ao carro azul. — É meu pai. Foi mal, Daisy, mas foi muito engraçado. Não fique triste. Tenho certeza de que o Fred ainda te ama.

Ela se acomodou no banco do passageiro, soprando um beijo para Daisy enquanto o veículo se afastava. Agora os carros jorravam portões adentro, os motoristas fazendo o que podiam para não atropelar o pequeno exército de alunos reunido aos pés dos degraus.

— Está vendo, está tudo bem — disse Chloe, dando em Daisy um safanão gentil. — Você vem amanhã ao ensaio, não vem? É o último, tem que vir.

Daisy não respondeu. Os ombros dela pareciam um pouco mais leves, a mente mais clara. Talvez Chloe tivesse razão. Talvez tudo não tivesse passado de um mal-entendido. Sentia-se muito cansada. O dia havia sido exaustivo. De repente, outra sensação irrompeu de sua letargia, essa pior que todas as outras: vergonha. E se tivesse sido um inocente espirro, e ela tivesse fugido feito uma criança? Que tipo de idiota ela teria parecido?

— E lá vou eu — disse Chloe, dando um abraço em Daisy. — Te amo.

Daisy assentiu com um gesto de cabeça, conseguindo esboçar um rascunho de sorriso, e em seguida Chloe se foi, subindo no banco de trás do jipe do pai. O jipe seguiu até o portão, saindo no mesmo instante em que uma caminhonete branca estropiada chegava. Daisy se levantou. Nunca achou que fosse se sentir tão aliviada algum dia por ver a mãe. Correu para o carro, abrindo a porta com tanta força que as dobradiças praticamente estremeceram, quase fazendo-a se fechar de novo. Jogou-se no banco do passageiro, ainda apertando a bolsa contra o peito como se fosse um colete salva-vidas.

— Como foi hoje? — perguntou a mãe, guardando uma pequena mecha de cabelos brancos no lenço da cabeça.

Daisy abriu a boca para responder, mas ficou petrificada. A sra. Jackson estava postada na porta aberta da escola, um naco de sombra. Os óculos meia-lua pareciam soltar chispas ao esquadrinhar todo o estacionamento, detendo-se bem em Daisy.

— Tudo certo — mentiu Daisy, a voz trêmula. — Foi tudo bem.

A mãe atravessou o portão. Atrás, a sra. Jackson continuava à porta, imóvel, sem piscar, observando-as partir.


Brick

Fursville, 20h01

— Ai!

Brick afastou-se com um movimento brusco, quase deixando parte do lábio inferior entre os dentes de Lisa. Ele o sugou para dentro da boca, sentindo que começava a inchar. A dor era latejante, espalhando-se pelas laterais de seu rosto e juntando-se ao compasso incansável nas têmporas.

— O que é isso, Lisa? — disse ele. — Doeu de verdade!

Lisa não respondeu, só ficou olhando a boca dele. Brick não tinha certeza de quanto tempo fazia que estavam ali se beijando, mas parecia desde sempre — de um modo bom. O porão foi ganhando foco ao redor dele, as peças do mundo real encaixando-se devagar, como se tivessem deixado de existir na última meia hora, mais ou menos. Imaginou que deviam ter deixado de existir. De verdade. O pavilhão inteiro poderia estar desabando em um incêndio acima de suas cabeças, que nenhum dos dois teria reparado.

— Vai tentar me mastigar de novo? — perguntou Brick, sentindo seu humor cambalear. Lisa fez que não com a cabeça, tão aturdida quanto o estado de espírito dele. As pálpebras dela estavam pesadas, semicerradas, e a maior parte da maquiagem tinha passado para o rosto dele, revelando a pele sob ela. O queixo tinha um trecho avermelhado, onde a barba irregular e cor de ferrugem dele a havia arranhado. Ela se inclinou para ele outra vez, e Brick a envolveu com os braços, atraindo-a para si. Tudo parecia em câmera lenta, o silêncio mais uma pressão física nos ouvidos dele do que a ausência de som, e Brick teve de novo a sensação absurda de que estavam debaixo da água. Ele a beijou, suas línguas dançaram, a realidade mais uma vez começando a girar.

Mais dor, desta vez tão surpreendente que ele pôde vê-la como um forte flash luminoso. Empurrou Lisa, colocando a mão na boca. A ponta dos dedos se tingiu de vermelho. Ela o havia mordido exatamente no mesmo lugar, uma protuberância já se formando sob a pele do lábio.

— Pelo amor de Deus, Lisa, pare com isso. — Ele sentia o gosto do sangue, metálico e forte, ao articular as palavras. — Estou falando sério.

Mesmo assim, ela não disse nada, reclinando-se contra o sofá e umedecendo os lábios. Parecia estar semiadormecida, e, sob as pálpebras pesadas, os olhos estavam escuros, havia algo ali que Brick não conseguia identificar direito. Pela primeira vez desde que tinha começado a visitar o local, perguntou-se se era mesmo seguro, se talvez as velas não estivessem consumindo todo o oxigênio e exalando monóxido de carbono, ou algo assim. O efeito nele talvez não fosse grande coisa, mas Lisa tinha dois palmos a menos e metade do seu peso.

— Tudo bem? — perguntou ele, pegando seu ombro e lhe dando uma sacudidela.

Ela pareceu despertar, os olhos recobrando o foco e as sobrancelhas logo se franzindo. Ela endireitou as costas, passando a mão pelo rosto e soltando um suspiro profundo, mas incerto. Quando em seguida olhou para Brick, era como se não pudesse associar muito bem um nome àquele rosto, e piscou algumas vezes, os cantos da boca se curvando para baixo, como se puxados por fios.

— Lisa? Amor? — Ele nunca a tinha chamado de amor antes, mas ela estava começando a assustá-lo de verdade. — Quer sair daqui? Tomar um pouco de ar?

Depois do que pareceu um minuto ou até mais, ela balançou a cabeça. Estendeu a mão e agarrou o colarinho da camiseta de Brick, aproximando-se dele com a boca escancarada. Brick recuou, o lábio latejando, mas a ideia de mais um beijo apagou tudo o mais. Pressionou a boca contra a dela, recolocando a mão embaixo de sua camiseta, onde tinha passado a última meia hora, perambulando com impaciência pela parte inferior de suas costelas, incerto a respeito de qual direção tomar, e por isso não tomando nenhuma. A pele dela estava tão quente que parecia haver uma fornalha ali. O coração de Brick era como o motor surrado de sua motocicleta, fazendo tanto esforço que tinha medo que enguiçasse.

A mão de Lisa ainda estava no colarinho de sua camiseta, e ela a usou para recostá-lo no sofá, subindo em seu colo, os lábios de ambos em momento nenhum se separando. A mudança de posição, o pescoço virado em um ângulo incômodo, tudo isso piorava a dor de cabeça, aquela pulsação agora tão forte que era como uma mão em seu crânio apertando a carne do cérebro — tum-tum... tum-tum... tum-tum... —, não tão rápido quanto os batimentos de seu coração, mas sem dúvida com mais urgência. Que hora. Na noite em que enfim podia chegar aos finalmentes com Lisa, sua cabeça estava prestes a implodir.

Os beijos de Lisa agora continham certa fúria, tão vigorosos que os dentes deles batiam. O nariz dela colidia com o seu, e ele tentava inclinar a cabeça para o lado, para que isso não acontecesse de novo — uma lança de desconforto perfurando-lhe o pescoço. Lisa não desistia, partindo para cima dele, cobrindo sua boca com a dela para que ele não conseguisse respirar, a língua prestes a descer pela traqueia dele.Tentou afastá-la, mas Lisa parecia mais pesada do que teria achado possível. O ângulo em que seu corpo estava encurralado — recurvado contra a quina do velho sofá — impossibilitava-lhe conseguir a força de alavancagem. Brick empurrou a cabeça para a frente e ela se moveu com ele, presa a seus lábios como uma sanguessuga. Ele repetiu o gesto, empurrando-a com mais força. A cabeça dela pendeu para trás.

Não era Lisa.

Parecia ela, mas havia algo de errado com seu rosto, como se estivesse derretido. Todos os músculos dela tinham se tornado frouxos, fazendo-o se lembrar da avó quando tivera um AVC. Lisa parecia anos, décadas mais velha. Parecia morta.

— Lisa? Lisa? — chamou Brick, as palavras aos solavancos devido ao medo, enquanto se retorcia embaixo dela. — O que foi? Amor, me diz o que você tem.

Ela partiu para cima dele de novo, aquele rosto encovado se aproximando, a boca tão escancarada que Brick quase gritou ao vê-la. Pegou-a pelos ombros, mantendo-a à distância e tentando se arrastar para a beirada do sofá.

— Lisa, o que foi? O que você tem?

E se alguma coisa acontecesse com ela ali? E se ela morresse? E Brick percebeu, com uma sensação nauseante de vergonha, que a primeira ideia que lhe viera à cabeça — surgindo e desaparecendo em um piscar de olhos — era que teria de deixá-la ali e fugir; se mandar antes que os pais dela descobrissem. Mas não, claro que não faria isso; chamaria uma ambulância, que chegaria em minutos, e ela ficaria bem. Ficaria bem.

Ele lhe deu uma sacudidela, e a cabeça dela pendeu para trás dos ombros como se fosse uma boneca de pano, antes de voltar para a frente, caindo de novo em sua direção.

— Brick — disse ela, a fala engrolada, e ele pôde ver que sua boca, que parecia um saco de papelão, estava quase sorrindo.

— Lisa? — ele falou. — Tudo bem?

E foi assim que as marteladas na cabeça pararam, a dor desaparecendo com tanta velocidade que sua ausência era quase tão assustadora quanto sua presença.

— Só pode ser brincadeira — disse ele. Lisa tinha parado de tentar beijá-lo, a cabeça pendendo contra o peito, com leves meneios. Ainda tinha as mãos nos ombros dela, e conseguia sentir os músculos sob a camiseta, sutis mas tensos. Perguntou-se se talvez sua dor de cabeça e o jeito esquisito dela não teriam algo em comum. Talvez não devesse ter acendido as velas sem a devida ventilação. — Tudo bem, amor? Vamos...

Lisa recurvou as costas, a cabeça voltando-se para o teto, os tendões no pescoço parecendo cabos de aço. Então ela gritou, e o som não se parecia com nada que Brick já tivesse ouvido na vida. Era visceral, selvagem, pleno de ódio, dando a impressão de ser eterno e ameaçando derrubar as paredes do pavilhão. O grito morreu em um guincho tenebroso, gotículas de saliva pipocando de seus lábios. Lisa baixou a cabeça, os olhos tão escuros que pareciam negros; olhos de inseto, fixos em Brick, com um olhar de fúria concentrada. Ele tentou chamá-la pelo nome, mas não teve a menor chance.

Ela partiu para cima dele, a cabeça se projetando para a frente como a de uma naja. Os dentes dela desceram arranhando sua testa, fincando-se na carne da sobrancelha e mordendo com força. Brick por fim deu vazão à sua voz com um ganido. O sangue esguichou em seus olhos, pingando na boca, sufocando-o. Ela o mastigava, percorrendo o rosto dele como um pedaço de carne dura, a respiração dela surgindo com breves arquejos polpudos. Percebeu que ela também lhe desferia socos, golpes perdidos na supernova de agonia que incendiava seu rosto.

Ele a empurrou com toda a força que tinha. O corpo dela foi para trás, mas seus dentes a ancoravam no lugar, ameaçando arrancar sua testa. Ele berrou de novo, a adrenalina catapultando-o do sofá. Lisa continuou agarrada a ele, as pernas envolvendo sua cintura, os punhos desferindo-lhe socos nos ombros, nas orelhas, em sua garganta.

Brick cambaleou, tropeçando na mesa de centro, e os dois desabaram. Ela acertou o chão primeiro, grunhindo na hora em que ele a esmagou, seu peso fazendo ambos rolar. Ela pousou em cima dele, os dentes com vestígios da sobrancelha arrancada. Então investiu de novo contra ele, mirando sua bochecha, e tudo o que Brick conseguiu foi colocar a mão embaixo de seu queixo antes que a mandíbula se fechasse de modo brusco. Reparou que ela havia perdido um dos dentes, mas não parecia se importar. Os olhos dela chamuscavam de ódio. Estava furiosa, bestial.

E pronta para matá-lo.

Ele levou o braço para trás e socou-a, acertando seu nariz, recebendo com isso uma chuveirada de sangue quente. Em seguida, deu uma joelhada nas costelas dela, girando para o mesmo lado, para que ela caísse de cima dele.

Então agarrou a mesa, apoiando-se para ficar de pé. Lisa, porém, foi ágil, desenrolando-se como uma serpente e afundando os dentes no calcanhar dele. A dor quase o fez estatelar-se no chão de novo. Ele desvencilhou o pé e seguiu mancando até a porta do porão. Podia ouvir Lisa se mexendo ao olhar por sobre os ombros; viu-a se contorcer, as costas no chão. O tornozelo dela estava esquisito, retorcido em um ângulo estranho. Ela rolou, colocando-se de pé como se nem reparasse que a perna estava quebrada, vindo atrás dele com passadas largas e desajeitadas.

Brick apressou-se ao ouvi-la se aproximar, escutando aquele grunhido bestial vertido pelos lábios dela. Correu porta afora, dando de cara com a parede do outro lado. Debateu-se na escuridão, e viu Lisa se aproximando dele de novo, um fio de saliva escorrendo pela mandíbula, o sangue descendo de seu nariz.

Fechou a porta com um chute, e o corredor inteiro pareceu estremecer enquanto Lisa esmurrava a porta pelo lado de dentro. Esta começou a se abrir, e ele apoiou as costas contra a parede, mantendo as pernas contraídas, enfim grato pelos seus quase dois metros e por conseguir manter os pés contra o metal. Ouviu-se um ruído de passos e depois outra batida de arrebentar a coluna, parecendo mais um rinoceronte investindo contra a porta do que uma garota de dezesseis anos.

Mais passos, outra tentativa. Brick não se moveu, só manteve o corpo inteiro rígido enquanto a porta se dilatava e dava um clique ao se fechar, o compasso do coração se acelerando horrivelmente à medida que ela investia de novo e de novo, e ainda outra vez. Só então reparou que berrava feito um bebê, o rosto ensopado de lágrimas, de sangue, de secreção nasal. Porém era incapaz de parar; aqueles soluços eram fortes demais para ser contidos. Ficou ali chorando, gritando para a escuridão infinita do corredor, enquanto Lisa uivava, sedenta de seu sangue.


O Outro: I

Atentai ao sopro da Besta;

na morte ela nasce,

e em nossos dias mais sombrios

a todos vai devorar.

Livro de Hebron


Murdoch

Scotland Yard, 23h59

Quase meia-noite, em uma das noites mais quentes, mais abafadas do ano, e ali estava ele, enterrado vivo no necrotério da Scotland Yard.

E nem seu turno era.

O inspetor Alan Murdoch desceu o último lance de escadas e percorreu o corredor de azulejos verdes. Não havia ninguém na recepção, o que não era surpreendente considerando a hora, mas ele conhecia o caminho até bem demais. O necrotério era sua segunda casa; passava mais tempo naquela cripta do que em casa com a esposa e o bebê, que havia visto talvez uma dezena de vezes desde que tinha nascido. Podia visualizar a sala do outro lado da porta — o aviso que dizia “Mãos limpas não contaminam provas: lave-as já!”, os bancos estofados encostados nas paredes, a espuma saindo deles como se também fossem cadáveres, o bolsão de poeira e fiapos no canto ao lado do cacto que a faxineira aparentemente nunca limpava — melhor do que conseguia visualizar o rosto do filho.

Murdoch suspirou, passando a mão pela grossa barba por fazer, que ainda não havia tido ocasião de raspar desde que seu turno começara havia doze horas. Em seguida, apoiou-se na porta, quase escorregando dela na área de espera. Esperava que também estivesse deserta — no turno da noite, as pessoas tendiam a evitar aquele local —, mas não estava. Fez uma contagem rápida: oito cabeças apertadas na salinha. O dr. Sven Jorgensen, seu amigo e principal patologista da equipe, estava no centro, um poste louro de roupa cirúrgica branca, parecendo uma torre ao lado dos demais assistentes vestidos como ele a seu lado. Mesmo através da máscara contra ameaças biológicas, Murdoch pôde perceber que o semblante dele estava mais fechado que o normal. Ele notou a presença de Murdoch e voltou-se em sua direção, o reflexo das cáusticas lâmpadas halogênicas explodindo no visor.

— Bom te ver, Alan — disse ele, a voz abafada. Depois acenou, afastando os assistentes enquanto Murdoch se aproximava. — Isto aqui você não vai querer perder.

— Não vou querer perder o quê? — perguntou Murdoch. — Por que essa roupa? Terroristas?

A última vez que vira o patologista em uma roupa contra ameaças biológicas tinha sido quando o esquadrão antiterrorismo trouxera três jihadistas envenenados com a ricina que pretendiam usar no metrô.

— Bem — disse Jorgensen, balançando a cabeça —, isto é... Isto é outra coisa. Não consigo explicar.

Murdoch sentiu a pulsação acelerar. Jorgensen não era o tipo de pessoa que se impressionava com facilidade. Murdoch estivera ao lado do patologista enquanto ele fatiava cadáveres abertos, de todos os formatos e tamanhos, de crianças e adultos, de homens e mulheres, queimados, afogados, espancados, esturricados, perfurados, esfolados, canibalizados, raquíticos, degolados, eviscerados — praticamente todos os métodos possíveis de matar. E nunca tinha visto o homem sequer tremer. Porém alguma coisa havia mexido com ele; essa verdade estava na cor de cera da face e no brilho de suor da testa, circunstâncias que não tinham absolutamente nada a ver com o espaço restrito da roupa protetora.

— Desculpe ter ligado tão tarde — prosseguiu Jorgensen. — Mas queria te mostrar. Não sei quanto tempo mais vou ter.

— O quê? — perguntou Murdoch. — Por quê?

— Tive de avisar — disse ele, esfregando as mãos enluvadas na capa. — MI5. Temos algo novo aqui.

— O Serviço de Segurança? — indagou Murdoch, arqueando as sobrancelhas. — Sério?

— Você vai entender quando olhar. — Jorgensen fez uma pausa, e, naquela hesitação, Murdoch entendeu que o homem não queria voltar ao necrotério. Sentiu um suor frio escorrer pelo rosto e pela espinha. Jorgensen não querer ir para o local de trabalho era como uma criança não querer sair para brincar, havia algo muito errado. O homem pareceu acordar de seu transe, voltando um par de olhos avermelhados para a porta. — Vai precisar de máscara.

Murdoch trocou um olhar com o patologista, detendo-se um instante a mais, e depois virou-se e encaminhou-se para os armários de aço que ficavam de frente para a entrada da sala de espera. O que estava marcado “perigoso” já estava aberto, algumas máscaras de rosto inteiro ao fundo. Colocou uma na cabeça, acionando-a e garantindo que a vedação de borracha estivesse firme em volta do pescoço. Odiava aquelas coisas; o ar dentro delas era como a respiração de um morto. Porém era melhor do que respirar o que quer que estivesse dentro do necrotério; o que quer que tivesse deixado Jorgensen tão perturbado.

— Por aqui — disse o patologista, como se Murdoch não houvesse estado ali umas centena de vezes. Um dos assistentes do necrotério abriu a porta da sala de espera para eles, e Murdoch seguiu Jorgensen, passando pela janela em que os entes queridos tinham de ficar para identificar os restos daqueles que algum dia tinham chamado de mãe, filha, irmão. A entrada principal do necrotério ficava a alguns passos e, no entanto, havia mais membros da equipe, de roupa branca, aglomerados do lado de fora. Um deles empurrou a porta, segurando-a para passarem.

— Nenhuma alteração — disse a mulher. Ela precisava gritar por cima do zumbido do ar-condicionado, que trabalhava dobrado para enfrentar o calor. Mesmo ali, no subsolo, Murdoch o sentia pinicando a pele, provocando-lhe coceiras no corpo inteiro.

Jorgensen assentiu com um gesto de cabeça, indo à frente pela enorme sala até uma área isolada por cortinas de privacidade, como as dos hospitais. Ele parou ao lado delas.

— Isto aqui é confidencial, Alan. Entendido? — avisou ele. — Até sabermos o que é, ninguém pode ficar sabendo. Trouxe você aqui porque é meu amigo, porque confio em você. Mas ninguém mais pode saber. Combinado?

Murdoch fez que sim com a cabeça, pronto para esfregar a barba por fazer outra vez, mas acertando a máscara. Um jato de pura adrenalina explodiu em suas vísceras, e ele respirou fundo algumas vezes, o que enevoou seu visor. Sentiu-se grato por isso, porque sua visão foi obscurecida bem na hora em que Jorgensen estendeu a mão e puxou a cortina para o lado.

Ele não queria ver o que estava naquela sala. Podia ouvir, porém, um som que se elevava acima do zumbido e dos cliques do ar-condicionado sobrecarregado. Era um grito, um grito repugnante, terrível, estrangulado, gorgolejado por uma garganta úmida — não um grito emitido, mas extirpado, como a expiração de um asmático. Quase era capaz de sentir aquela respiração na pele, fazendo irromper uma enxurrada de calafrios que se prenderam a ele como uma doença. Fazia-o querer correr daquela sala e se jogar em um banho de desinfetante; lançar-se no sol para que ele queimasse aquela sensação em sua pele.

A névoa no visor se dissipava, e, através do plástico, viu um corpo nu deitado em uma mesa cirúrgica de aço inoxidável. Era um rapaz. E também um cadáver. Sobre isso não havia dúvida, porque o peito estava aberto como um presente de aniversário, as dobras retorcidas de pele avermelhada do embrulho puxadas para o lado, revelando o presente feito de órgãos degenerados. O corpo estava enegrecido na parte inferior, onde o sangue acumulara-se na lividez post mortem.

Não olhe para o rosto, disse-lhe o cérebro. Porém ele seria tão capaz de evitar esse olhar quanto seria de criar asas e sair voando do necrotério. Os olhos se afastaram do banquete do estômago, passaram pela garganta sem pulsação e chegaram ao rosto, ainda vivo.

Não, vivo não. Animado, sim — a boca aberta, escancarada o bastante para Murdoch colocar o punho inteiro dentro dela, se é que algum dia conseguiria voltar a se mexer. Era dali que vinha o barulho, a ofegância gorgolejante. Murdoch lembrou-se do antigo videocassete que tinha, aquele que a esposa insistira que guardassem, mesmo que não fizessem mais gravações em fita. Se você apertasse o botão de pausa, as pessoas na tela ficavam congeladas, mas ainda assim estariam em movimento, bruxuleando, estremecendo, e a fita emitiria um ronronar pulsante que duraria até você apertar o play de novo. Esse cadáver estava congelado do mesmo jeito, porque, ainda que estivesse morto, ainda que não se mexesse, era possível sentir a vida dentro dele. Era como se algo estivesse logo sob a superfície daquela pele fina como pergaminho, algo que se retorcia, se revirava, respirando naquele grito esganiçado sem fim.

Eram os olhos dele, percebeu. Bolas de gude brancas em órbitas enrugadas, envoltas em morte, mas que ainda conseguiam enxergar. Entendeu isso instintivamente: que aquelas pupilas de alfinete que fitavam o teto azulejado do necrotério viam algo; elas observavam.

— Já faz uma hora que ele está assim — disse Jorgensen, lá de onde estava. — Desde que o carro-patrulha o trouxe.

Murdoch cambaleou, apoiando-se na parede ao lado. Jorgensen o encarava, e ele podia ver o próprio reflexo boquiaberto no visor do patologista.

— Não há pulsação, nem pressão — ele continuou. — Está cem por cento morto.

— Não está — Murdoch quase cuspiu as palavras. — Ele está respirando.

Jorgensen virou-se para o cadáver, balançando a cabeça.

— Não exatamente — disse ele. — Está inspirando. Mas os pulmões estão vazios; abrimos para ver aonde aquele ar todo estava indo.

— E para onde está indo? — perguntou Murdoch, berrando acima daquela respiração chiada, imutável, infinita, da mandíbula deslocada.

Jorgensen deu de ombros.

— Isso é que é o mais esquisito — respondeu ele, abrindo um pote de talco que estava na bandeja ao lado da mesa. Ele pegou um pouco e jogou por cima da boca do cadáver, observando o morto sugar o talco como um aspirador de pó. Murdoch foi capaz de dar um passo à frente, espiando o interior da boca escancarada e vendo que o pó havia desaparecido no fundo do poço de sua garganta. Jorgensen colocou a tampa de volta no pote enquanto falava. — Foi por isso que eu chamei o MI5. É isso que não entendo. Esse ar não está indo para lugar nenhum. Pelo menos não para algum lugar que a gente possa encontrar.

Atrás deles, um dos assistentes apareceu à porta.

— Doutor — disse ele —, acho que as autoridades chegaram.

— Já vou — respondeu Jorgensen, virando-se para Murdoch. — O que quer que seja essa coisa, esse ar, para onde quer que esteja indo, aqui não é.

— Não é aqui? — perguntou Murdoch. O olhar dele se voltou para o cadáver: para o peito todo aberto, a boca inspirando, os olhos fixos no teto. — Sven, o que você quer dizer com aqui não é?

Jorgensen suspirou, um som que mais pareceu um soluço.

— É exatamente isso que estou querendo dizer — disse ele. — Que o ar está indo para outro lugar.


Sexta-feira

Girando sem cessar no vórtex que se expande

O falcão não pode ouvir o falcoeiro;

Coisas se despedaçam; o centro não se sustenta;

Mera anarquia está à solta sobre o mundo,

A maré de sangue à solta se esvai, e em toda parte

A cerimônia da inocência se afoga.

W. B. Yeats, “A Segunda Vinda”


Brick

Fursville, 0h24

Brick estava sentado no alto dos degraus do porão, a cabeça entre as mãos, tendo um espasmo toda vez que achava ter ouvido algum barulho lá de baixo.

Sentia-se vazio, completa e totalmente sugado. Precisara de toda a sua força só para conseguir subir a escada. Pouco depois de sair do porão, encontrou uma barra de metal no pavilhão — parecia uma das varas elétricas de um carrinho bate-bate — e a fixou bem entre a porta e a parede. Juntou tudo o que conseguira encontrar em volta para mantê-la no lugar, rezando para que contivesse o furacão que vinha do outro lado. Até agora, fora capaz disso. Lisa tinha passado a maior parte das últimas três horas esmurrando a porta, cada tentativa ficando mais fraca, mais débil, até que o som de seu corpo acertando a madeira e o metal não fosse mais alto que um delicado tapa.

Porém, eram os ruídos entre cada investida e a seguinte que lhe reviravam o estômago e o faziam pensar que ficaria maluco sentado ali na escuridão. Estalos de algo se quebrando, algo úmido que acompanhava seus passos, um som de agitação que ele imaginava ser ela caindo e tentando levantar-se, às vezes se estendendo por dez, quinze minutos.

Pior de tudo eram os gemidos e os grunhidos, sons que podiam vir de um animal ferido em uma armadilha, não fossem as meias palavras entrecortadas. A única que pudera reconhecer fora seu nome, cuspido repetidas vezes, em berros ofegantes, malignos, até que ele precisou atar as mãos às orelhas e abafá-los com os próprios gritos.

Às 22h53, o ataque à porta tinha cessado. Brick pressionara o ouvido contra ela, escutando uma respiração entrecortada e constante. Lisa estava dormindo, ou inconsciente. Foi então que subiu a escada. Sabia que havia sido nessa hora exata, porque estava com o Nokia fuleiro no colo desde esse momento, o número de emergência já discado, mas ainda sem chamar. Por cem vezes esteve prestes a chamar uma ambulância, mas algo o impediu — a ideia do que os paramédicos diriam ao chegar ali, eles e os policiais. Veriam uma garota surrada quase até a morte, um nariz quebrado, um tornozelo fora do lugar, e Deus sabe o que mais; uma garota que quase havia se matado ao tentar fugir de um porão trancado em um parque temático abandonado. E, quando Brick lhes mostrasse seu único ferimento, as marcas de dentes na sobrancelha, diriam apenas que ela fizera isso para se defender.

E, claro, Brick tinha uma daquelas caras. Todos o odiavam.

Mas esse fato por si só não o teria impedido de pedir ajuda. Afinal, se a polícia chegasse e Lisa ainda estivesse pirada, saberiam com certeza que aquilo não era culpa dele. Não, era uma voz em sua cabeça, uma voz benévola, talvez pela primeira vez, que dizia: Tudo vai dar certo; ela só está um pouco maluca. Daqui a algumas horas ela vai estar bem, repetidas vezes, convincente demais para ser ignorada. A voz tinha razão; daria algum tempo a ela, e Lisa ficaria bem.

Algum outro argumento surgiu em sua cabeça, mas ele o reprimiu, empurrando-o mais para o fundo com as mãos. Sua testa estava queimando — ele tivera mesmo de tirar de sua carne o dente perdido por Lisa, o incisivo ainda na palma da mão — e mal pôde abrir o olho direito que estava inchado.

Olhou para a poça de escuridão líquida aos pés dos degraus. Havia uma fina gaze prateada pendendo das claraboias, mas ele não tinha coragem suficiente para se aproximar do porão. Quando muito, distinguia a luminosidade da vela sob a porta, imóvel desde que Lisa havia parado de se mexer. Pensou em descer de novo; em verificar se ela estava bem, mas seu corpo protestou, recusando-se a obedecer a qualquer comando.

Qual era o plano agora? Não sabia. Só queria se encolher e dormir, acordar no outro dia na própria cama com uma mensagem de texto de Lisa dizendo: foi mal, não vou fazer isso de novo. Mas estava agitado demais para dormir, o corpo todo dolorido por causa da briga, a adrenalina agora uma bola de espetos em seu estômago e pesos de chumbo nos braços.

Ouviu-se um ruído baixinho lá embaixo. Brick ergueu a cabeça, o coração de novo aceleradíssimo. A princípio achou que fosse imaginação sua, mas com certeza fez-se outro som de algo deslizando, e, depois, um arranhar que poderia ser unha contra madeira.

Ela tinha acordado.

Brick não se mexeu, com medo de que, se chegasse a respirar alto demais, isso a enfurecesse de novo. A faixa de luz dourada dividiu-se em duas, depois em quatro, desapareceu por completo em seguida, quando Lisa fez pressão contra a porta. Podia ouvi-la respirando agora, ofegando, desesperada. Ouviu-se um som característico quando ela tentou forçar a maçaneta, mas a barra de metal permaneceu firme.

— Brick.

A voz dela era a de uma velha, o nome dele saiu deformado, o “B” quase inaudível, o “r” era agora um “w”. Foi pronunciado não com malignidade, mas com medo.

— Me aj... me ajuda.

Seu estômago foi parar no chão, o coração indo logo atrás. Ele se levantou cambaleando.

— Me ajuda.

— Lisa? — disse ele, a própria voz aguda e entrecortada. Os ruídos de algo deslizando ficaram mais altos. Podia ouvi-la arranhando a porta.

— Deixa eu sair, Brick — pediu ela. — Por favor. Estou ferida. Só quero ir para casa. Deixa eu sair. Eu faço o que você quiser. Por favor.

Brick passou a mão pela cabeça, sentindo as lágrimas voltando, ecoando as de Lisa, que vinham do porão. Deu um passo para baixo, segurando o corrimão como se descesse o Everest.

— Por favor, Brick — gritou Lisa. — Estou assustada. Por que está fazendo isso?

— Não sou eu que estou fazendo — ganiu ele, dando mais um passo. — Você me atacou, me mordeu.

— Não mordi — veio a resposta dela, sufocada quase a ponto de ser irreconhecível. — Não fiz nada, só me deixe ir embora, Brick. Não vou contar para ninguém, prometo.

Contar o quê? O que ela achava que tinha acontecido? E se ela não se lembrasse? E se ela acreditasse sinceramente que ele a havia atacado? Quando deu por si, estava no meio de mais um passo, a perna no ar. Trouxe-a de volta.

— Brick! — gritou ela, chacoalhando a maçaneta com mais força agora. — Estou sangrando!

Aquilo funcionou, rompendo a necessidade dele de autopreservação. E se ela estivesse sangrando muito? E se estivesse morrendo? E daí que ele poderia ser preso e interrogado? Ele não a tinha atacado; iam colocá-lo em um detector de mentiras ou algo assim, e descobrir. Era Lisa; não podia apenas ficar ali e deixá-la sangrar até morrer no porão do PAV LHÃ abandonado de Fursville.

— Certo, estou chegando, aguente firme — disse ele, descendo os degraus com hesitação. Imergiu na escuridão, tomando cuidado para não tropeçar. Os soluços de Lisa foram ficando mais altos à medida que ele se aproximava, o arranhar das unhas contra a porta fazendo seus dentes grudarem uns nos outros.

— Rápido — disse ela. — Sang... Me aj...

Ele chegou ao corredor de baixo, agachando-se para tentar localizar a barra de metal. Atrás da porta, as palavras de Lisa começaram a soar mais baixo, e ele a imaginava caída em uma poça de sangue, tentando levantar-se com a perna quebrada, sem conseguir. Ouviu-se um grunhido, uma respiração desesperada.

— Brick... Deix... Eu... Sa...

— Aguente firme aí — disse ele, segurando a barra com as duas mãos. — Em um minuto estarei aí.

As palavras dela eram agora fragmentos de som sem sentido entre fungadas que lembravam o ruído de porcos. Brick se deteve, baixando outra vez a cabeça. Essa breve pausa provavelmente salvou sua vida.

Lisa arremessou-se contra a porta, com tanta força que o canto de cima chegou a rachar. Ela gritou e gritou, debatendo-se incansavelmente, fazendo Brick subir a escada de quatro. Desta vez não parou ao fim da escada. Correu sem enxergar nada pelo corredor do pavilhão, os gritos de banshee acompanhando-o.


Cal

Oakminster, 7h02

Cal foi acordado pelo celular, o efeito sonoro de metralhadora despertando-o de um sonho com Georgia e algo sobre prisões. O sonho se desfez antes que pudesse agarrá-lo, dissolvendo-se na cálida luz matinal. Estendeu a mão meio grogue, tateando a mesinha de cabeceira até encontrar o celular. Era uma mensagem de Megan.

O q aconteceu com vc ontem?!?!?!

Precisou de um segundo para se lembrar do dia anterior, e, ao recordar, sentou-se na cama, franzindo o rosto. Todos o tinham deixado, todos; tinham fugido e o largado na biblioteca. Acabara indo a pé para casa, mesmo que houvesse levado quarenta e cinco minutos, em vez dos dez caso fosse de ônibus, cada vez mais chateado com eles à medida que ia ficando mais tarde. Na hora em que irrompera pela porta da frente, ignorando a mãe e indo direto para o quarto, estava devidamente zangado.

Bocejou, esfregando o rosto para espantar o sono, e piscou algumas vezes para o celular entrar em foco.

Vocês todos me largaram lá, começou a escrever, mas, após pensar um instante, apagou tudo e trocou por: Cansei, voltei para casa. Não ia dar a eles a satisfação de saberem quanto tinham mexido com ele.

Deixou o celular deslizar para a mesinha, aconchegando-se de novo embaixo do edredom. Não queria nem ouvir falar em ir à escola naquele dia. Na hora do almoço aconteceria a próxima partida da Copa Escolar, mas sabia que teria de passá-la ouvindo as piadinhas dos colegas. Coitadinho do Callum... Ficou assustado? Ah, que peninha, a mamãe cuidou de você? Não, melhor deixar que suassem frio um pouco, fazendo-os pensar que talvez houvesse decidido não jogar mais. Vamos ver se eles fazem 3 a 1 contra a 12H sem seu melhor meio-campo.

A mãe o deixaria matar aula, sem problema. Ela era mole; tudo o que precisava fazer era sua melhor cara de cachorrinho sem dono, e ela cederia. O pai — o único obstáculo potencial a seu plano — estava fora, em mais uma de suas intermináveis viagens de negócios à Espanha.

Para ser sincero, não estava mesmo se sentindo muito bem. Sua cabeça estava esquisita, como se estivesse cheia de lã, aquele sutil tum-tum da dor de cabeça ainda soprando dentro do crânio.

Rolou para o lado, esticando as pernas e olhando pela janela. A luz que passava pelas cortinas era espessa, cor de mel, e ele já conseguia sentir o calor da manhã pressionando do lado de fora. Seria outro dia impecável. Bom demais para ser passado na cama, concluiu, com ou sem dor de cabeça. Melhor guardar as faltas; ele as usaria ao longo do ano, quando a neve estivesse caindo e as ruas fossem pistas de patinação no gelo.

Além disso, tinha a aula semanal de kung fu naquela noite e realmente não queria perdê-la. Logo receberia o grau avançado de Choy Li Fut e ainda não havia aprendido tudo o que queria.

Verificou o celular de novo para ter certeza de que Megan não tinha mandado outra mensagem de texto e em seguida pulou da cama. Havia um episódio de Inbetweeners ao qual só conseguira assistir até a metade na noite anterior, e colocou-o de volta, ouvindo-o enquanto escovava os dentes no lavabo do quarto. Trocou de roupa e abriu a cortina, uma haste de genuína luz do sol banhando-o como se fosse Bruce, o Todo-Poderoso, ou coisa parecida, sendo abraçado pelo dedo de Deus. Cara, ele adorava o verão.

Cal desceu, fazendo um rápido desvio para o banheiro antes de entrar na cozinha.

— Bom dia, mãe — disse ele, bocejando outra vez, sentando-se em um dos bancos altos em torno do balcão da cozinha. A mãe estava a um canto, ao lado do fogão enorme, uma panela borbulhando em uma das bocas. Ela fazia ovos para ele todas as manhãs, não importando se desejava ou não. Naquela manhã com certeza seria um não; os milk-shakes da noite anterior ainda estavam em algum lugar lá embaixo, brincando de esconde-esconde com seus intestinos.

— Eu disse bom dia, mãe.

Ela não respondeu. Cal deixou-a cozinhando, voltando-se para o papel na mesa, correndo os olhos sem pretensão pela programação de TV. Atrás dele, a panela estalava e retinia feito um carro velho.

O som de metralhadora emanou de novo de seu bolso, e ele pegou o celular. Megan de novo: Cabeção a gnt n sabia p onde vc tinha ido.

Qual era a dela? Eles é que tinham ido embora. E, se não sabiam mesmo para onde ele tinha ido, então por que não haviam mandado nenhuma mensagem enquanto ele estava a caminho de casa? Meteu o celular de volta no bolso, sentindo a ressaca de humor da noite passada começar a aumentar.

Algo estalou no fogão, e o cheiro de queimado invadiu a cozinha. Cal levantou-se e foi até ali.

— Terra para mãe — disse ele. — Você vai incendiar a casa.

A panela estava totalmente seca, os dois ovos lá dentro esbugalhando-se para fora das cascas enegrecidas, a coisa toda estalando tanto que parecia prestes a decolar. Cal pegou o cabo e tirou a panela do fogo, jogando-a sobre outra boca.

— Que droga você está fazendo, mãe? — perguntou ele, voltando-se para ela. A mãe ainda não havia se mexido, o cabelo louro platinado cobrindo-lhe o rosto. E o cheiro dela estava esquisito, lembrando bolor. Ah, meu Deus, ela teve um AVC, foi a primeira coisa que Cal pensou, e seu coração parou de bater. Estendeu a mão, afastando o cabelo dela para poder enxergar seu rosto, e o toque causou nela um sobressalto — ela não estremeceu apenas; literalmente saltou, e de um modo tão brusco que o corpo inteiro saiu do chão, como se tivesse levado um choque elétrico.

— Mãe? — perguntou Cal. — O que há de errado com você?

Ela virou a cabeça devagar, os olhos precisando de um instante para encontrá-lo. Estavam avermelhados, com raios amarelos. Não eram os olhos da mãe. Cal deu um passo para trás, com um calafrio súbito, a mão deslizando pelo balcão da cozinha, derrubando a manteiga no chão. O som da queda pareceu trazer sua atenção de volta. Ela inclinou a cabeça, franzindo a testa, os olhos recobrando o foco, voltando a ser os dela outra vez.

— Mãe? — perguntou Cal.

— Sim? — disse ela. O fantasma de um sorriso dançava em seus lábios.

— Não foi nada — respondeu Cal, agachando-se e pegando a manteiga, mas sem afastar os olhos dela. — Tudo bem?

Ela moveu a cabeça como uma marionete. Em seguida, pareceu lembrar-se de onde estava, pegando a panela com os ovos e dando-lhe uma sacudidela.

— Ah, estes já não prestam. Quer que eu faça outros?

Se fosse levar em conta o modo como seu estômago se revirava, Cal nunca mais voltaria a comer.

— Não precisa — disse ele, recuando para a porta da cozinha. Por algum motivo, não queria ficar de costas para ela. — Na escola eu como alguma coisa.

— A marmita do almoço está na mesa — disse ela, abrindo a lata de lixo de metal e batendo a panela virada contra ela, como se cortasse lenha. O ruído era ensurdecedor.

Cal pegou o Tupperware, quase tropeçando em si mesmo na pressa de sair dali. A mãe observou-o partir, batendo a panela contra o lixo em golpes determinados e constantes, por muito tempo depois de Cal ter fechado a porta da frente.


Brick

Fursville, 8h18

Brick acordou sob um cobertor de sol, e foi só quando tentou se mexer — uma centena de pequenas lâminas dilacerando seus músculos — que se lembrou de onde estava. Sentou-se, Fursville reluzindo até entrar em foco ao redor dele, imerso no frescor da luz do dia. Estava deitado ao lado da Estação Dodói, a poucos metros de sua moto, com uma camada espessa de algas lhe servindo de colchão e a camiseta, de travesseiro. Inclinou-se contra a madeira, tirando formigas do rosto e do pescoço, sabendo que havia um motivo para se sentir tão dolorido...

Lisa, nós brigamos, ela tentou me matar, ainda está lá embaixo.

Esse pensamento sugou todo o calor do dia, deixando o parque tão escuro e frio quanto se fosse inverno. Brick estremeceu e vestiu de novo a camiseta, colocando as mãos em volta dos joelhos e puxando-os com firmeza contra o peito. Balançava para a frente e para trás em movimentos sutis.

Havia conseguido chegar até ali na noite passada, depois que Lisa voltara a martelar a porta. Sem ter para onde ir e sem conseguir abandoná-la, apesar de ter se tornado uma psicopata insana, despencara ali mesmo e mergulhara em um sono inquieto. Seus sonhos naquela noite tinham sido repletos dos gritos de Lisa, e ele se perguntava se não seriam reais, vindo cheios de fúria do porão.

Tirou o celular do bolso. Não havia chamadas perdidas. A mãe e o pai de Lisa deviam estar absolutamente enlouquecidos. Deviam estar com vontade de matá-lo, isso sim, pensou ele. Havia prometido que ela estaria em casa no máximo às dez. Eles deviam estar por aí procurando-o, e a essa altura a polícia também. Por sorte, não tinham seu número, que era de um celular fuleiro e pré-pago, comprado em um posto.

E ninguém, tirando ele e agora Lisa, conhecia aquele lugar.

Ficou petrificado. Lisa tinha um celular. E se ela chamasse a polícia? Isso seria pior ainda; daria a impressão de que a mantinha prisioneira.

Mas... um momento. Não, se ela pudesse usar o telefone, já o teria feito a esta altura. O lugar estaria cheio de gente, e Brick se encontraria dentro de uma cela na prisão de Norwich, os policiais bombardeando-o com perguntas. Talvez ela já estivesse muito fora de si para se lembrar de como operá-lo. Talvez tivesse ferido tanto as mãos tentando sair que não conseguia apertar os botões. Ou talvez não houvesse sinal lá embaixo. Devia ser isso. Nem todas as redes funcionavam tão longe assim da cidade.

Brick voltou a balançar, sentindo-se culpado pelo alívio que apaziguou seu estômago embrulhado. Maravilha, minha namorada não pode ligar para a emergência de onde eu a trancafiei na noite passada. Isso é digno de uma comemoração! Perguntou-se, não pela primeira vez desde a noite anterior, se ele é que tinha ficado maluco. Talvez tivesse pirado. Seu temperamento tinha piorado no último ano; e se seu cérebro tivesse acabado de ter um colapso e ele houvesse lançado contra ela toda uma vida de raiva e frustração?

Podia ver o rosto de Lisa, os olhos soltando chispas nas órbitas enquanto o mordia; sentir o cheiro de sua respiração pesada e movida a sangue; ouvir aquele grito gorgolejante, moribundo, de uma fera quando o atacara do nada. Não, essa memória era real. Ficaria com ela o resto da vida.

Então, o que poderia fazer? Telefonar pedindo ajuda não era mais uma opção. Era tarde demais. Se a ambulância chegasse ali e ela já estivesse... já estivesse...

Não era capaz nem de pensar na hipótese. Mas, se isso já tivesse acontecido, então ele seria condenado por homicídio: a sangue-frio, premeditado, primeira página, maluco-mata-namorada-em-parque-abandonado. Qualquer defesa que pudesse ter, se tivesse telefonado logo para a polícia, perdera-se há muito tempo.

Podia ir embora, abandoná-la ali, dizer aos pais dela que a havia deixado ali na rua — que não a deixara na porta porque não queria que eles a vissem na moto. Sim, isso soava bem, parecia plausível. O pai lhe daria um álibi; diria que ele tinha voltado para casa. O pai era legal. Talvez nunca a encontrassem.

Não, gritou ele dentro de sua cabeça, o som transbordando da garganta como um gemido grave e horrendo. Não podia fazer isso. Não era do feitio dele. Não podia deixar ninguém morrendo sozinho em um porão, muito menos Lisa. O simples fato de a ideia ter atravessado sua mente o deixou nauseado, fazendo-o se sentir um monstro. Bateu na testa duas, três vezes, reabrindo o ferimento na sobrancelha, sentindo as lágrimas se acumulando outra vez. O que devia fazer?

O pai. Talvez devesse apenas contar tudo ao pai. Provavelmente ele lhe daria uma surra por isso, mas o pai saberia o que fazer. Se fossem juntos à polícia, talvez as coisas não parecessem tão ruins. O pai era um zé-ninguém, sem dúvida, mas pelo menos era adulto; dariam ouvidos a ele, acreditariam nele.

Brick pressionou-se contra a parede da Estação Dodói para ficar de pé. Nunca se sentira tão fraco na vida, o corpo inteiro trêmulo, oco. Acima do telhado semidestruído da bilheteria, à esquerda, era possível avistar o ponto mais alto do toboágua de madeira, não tão alto quanto a montanha-russa ou a roda-gigante, mas ainda assim bem impressionante. Fechou os olhos, o mundo girando como um pião já quase sem velocidade. Podia se ver na canoa de plástico, correndo para baixo, os braços do pai mantendo-o no lugar. Gravidade.

Determinado, Brick andou até a moto, levantou o apoio e subiu no banco. O capacete pinicava o rosto, mas cobria bem o ferimento. Foi preciso mais tempo que o habitual para fazer a moto funcionar, sete ou oito tentativas antes de o motor ganhar vida, e lá estava ele passando pela cerca. Deixou o arbusto de louro para trás, e foi quando reparou que o ponteiro da gasolina estava no vermelho. Droga, queria ter abastecido na ida — duas pessoas em cima realmente faziam a moto beber mais combustível —, mas tinha decidido não fazê-lo, porque não aguentava a ideia de parar por tempo suficiente para Lisa começar a reclamar de novo.

Tudo bem. Havia um posto a mais ou menos um quilômetro a oeste. Encheria o tanque e às nove estaria de volta a Norwich. O pai estaria no trabalho, mas Brick sabia em que construção ele estava, a mesma do último ano e meio — o enorme conjunto residencial perto da antiga fábrica de papel. Olhou para os dois lados, a barra estava limpa. Em seguida, virou à esquerda, acelerando pela estrada e pegando a primeira à direita rumo à fábrica de fertilizantes.

Era boa a sensação de estar em movimento, mesmo quando alguma coisa nele hesitava diante da ideia de deixar Lisa para trás. A ideia de fugir, de nunca mais voltar, assombrou as profundezas de sua mente, mas desapareceu quase tão rápido quanto havia surgido. Manteve a velocidade constante de sessenta quilômetros por hora, sem querer chamar atenção para si, mesmo que tivesse a sensação de que havia uma placa enorme em cima de sua cabeça com as palavras MATOU A NAMORADA.

Mas ela não morreu, repetia a si mesmo. Ela vai ficar bem.

Deixou a via principal e chegou ao posto, parando na bomba mais próxima e desligando o motor. Tinha cinco libras e alguns quebrados na carteira, e isso bastaria para levá-lo de volta à cidade.

Pela janela da loja, avistou o caixa. Já tinha falado com ele dezenas de vezes a caminho de Hemmingway, um verdadeiro imbecil. Porém, o modo como ele olhava para Brick agora era diferente. Ele sentiu as faces enrubescerem e baixou a cabeça. E se tivesse aparecido no noticiário ou algo assim? Fotos dele no jornal. Não, com certeza não; Lisa tinha sumido só por uma noite. O homem provavelmente só tinha desconfiado de que ele iria se mandar assim que tivesse abastecido.

Olhou outra vez, e o caixa havia sumido. Olhou a bomba — 3,31 libras, 3,37 libras. Talvez precisasse encontrar um esconderijo que fosse mais perto de casa, pensou, antes de se dar conta de que talvez nunca mais pudesse voltar a Fursville. Estranhamente, essa ideia encheu-o de pesar, mais que qualquer outra coisa.

Ouviu-se um cantar de pneus atrás dele, e Brick se virou a tempo de ver um pequeno carro hatch vermelho bater na traseira de um táxi detonado na estrada perto do posto. Os carros rodaram juntos, soltando vapor, depois ficaram parados.

Pelo menos não sou só eu que estou tendo um dia ruim, pensou ele. O motorista do táxi estava saindo. Parecia muito zangado. A mulher atrás do volante abriu a porta também, o cabelo todo desgrenhado, o rosto branco onde o airbag tinha disparado. Os dois pareciam prestes a se engalfinhar.

4,01 libras. 4,09 libras.

Uma campainha tocou de outra direção, e a porta do posto se abriu. O caixa passou por ele, provavelmente para se certificar de que todos estavam bem. Porém, havia algo de errado com o rosto daquele homem; estava retorcido em um esgar, os olhos faiscando...

Ele está igual a Lisa, igualzinho a ela, pensou Brick, e outra campainha tocou, agora no centro do seu cérebro, como uma espécie de alarme instintivo. O caixa vinha em sua direção, andando bem rápido, bufando a cada passo.

— Eu já vou pagar — disse Brick, a voz estilhaçada em mil pedaços.

O caixa não pareceu se importar, acelerando os passos. Ouviram-se ruídos de outra direção também, um ganido rouco. Brick se virou e viu o taxista atravessando a rua, começando a correr, dirigindo-se ao posto. A mulher estava bem atrás dele, o rosto tão retorcido pela fúria que parecia uma pintura. Era ela quem estava gritando.

Brick arrancou a bomba, jogando-a no chão. Pulou na moto, o medo liquefazendo seus ossos. Pisou fundo; a moto ofegou e se calou. O caixa tinha chegado às bombas, o rosto envelhecido manchado, as mandíbulas se abrindo e fechando. Era um homem pequenino, gordo demais, velho demais para assustar Brick. Mas aquela expressão... Não havia nada nela além de desejo de matar.

— Quê? — questionou ele, quase ganindo agora. Tentou mais uma vez, o pé escorregando do pedal. Era tarde demais. O caixa lançou-se sobre Brick e lhe deu um soco. Brick se esquivou, a motocicleta quase caindo entre suas pernas e fazendo-o cair junto. Só a adrenalina o mantinha de pé. O homem pegou seu capacete, forçando sua cabeça para baixo.

Passos atrás, mais uivos da mulher. Brick pisou fundo, o tempo todo sentindo que sua cabeça estava prestes a ser arrancada. O caixa não desistia.

— Não! — a palavra irrompeu pelo pescoço estrangulado. — Não!

Ele desistiu de dar a partida por um instante, desvencilhando-se do capacete. O caixa caiu para trás, acertando o pedestal em volta da bomba e caindo de costas, o capacete ainda nas mãos. Brick não olhou para trás, apenas pisou fundo no pedal outra vez, jogando todo o seu peso nele.

O motor ofegou, estalou e deu a partida. Ele acelerou, a moto partindo de maneira inacreditavelmente lenta. Algo agarrou a parte de trás de sua camiseta, espetando sua carne, e ele se inclinou para a frente no assento. Outra vez viu seu reflexo na vitrine da loja, um êxtase de terror, os olhos arregalados e a boca escancarada, o taxista e a mulher vindo para cima dele.

Pisou tão forte no acelerador que arrebentou o apoio de borracha, a moto no limite, quase agonizando. Contornou as bombas e a loja, os pés no chão impulsionando a moto para a frente, escorregando no asfalto sujo de óleo, a mulher ainda agarrada à sua camiseta. Havia agora mais gente na rua, saindo de carros, todos com aquele olhar faiscando de ódio — Iguais a Lisa, todos iguais a Lisa —, todos correndo em sua direção, na direção dele, uma manada. Recuperou o equilíbrio, acelerando para fora da garagem, a mão da mulher se soltando, levando consigo um fragmento de tecido. Ele se desviou dos braços de um homem na calçada e bateu em uma mulher com força suficiente para fazê-la rolar para longe. Alguém em um carro se desviou dele, colidindo com sua roda traseira. Mas ele se agarrou à própria vida, virando à esquerda, à direita, a multidão crescendo atrás dele como ratos atrás do flautista do conto de Grimm, enquanto ele corria rumo ao sol.


Daisy

Boxwood St. Mary, 9h38

Daisy estava atrasada, atrasada mesmo. As aulas tinham começado fazia uma hora, e ela acabara de tirar o pijama, tentando encontrar uma camisa polo limpa e meias enquanto olhava sem acreditar para o relógio ao lado da cama.

Por que os pais não a tinham acordado? Arrancavam-na da cama aos gritos e aos chutes toda manhã sem falta, e era por isso que não se preocupava mais em colocar o despertador.

Tirou uma bola de meias da gaveta, fazendo o melhor que podia para colocá-las enquanto andava, aos tropeços. Parou, respirou fundo. O que era mesmo que o pai sempre dizia? A pressa é inimiga da perfeição, algo assim. Quando enfim decidiu que a frase não tinha importância, já tinha conseguido enfiar os pés nas meias, os passos apressados pelo patamar que levava à escada.

Tinha feito estalar os primeiros quatro degraus quando ouviu algo se mexendo no quarto do pai. Parou, virando a cabeça por cima do ombro. No silêncio, deu-se conta de que a cabeça doía, uma pulsação — não a dela — crescia e sumia em seus ouvidos, a mesmo do dia anterior, mas pior agora.

Tum-tum...

Tum-tum...

Tum-tum...

Franzindo o rosto, Daisy foi devagar ao patamar de baixo.

— Mãe? — chamou ela. — Pai?

Aproximou-se da porta, só então reparando que estava fechada. Os pais nunca fechavam a porta, nem à noite. Quando era bem menina, Daisy tinha exigido que ficasse aberta sempre, e assim ficara estabelecido desde então, mesmo que agora tivesse quase treze anos e soubesse de coisas que não sabia na época, preferindo, portanto, que ficasse fechada. Estendeu a mão, os nós de seus dedos pairando perto da madeira, mas sem tocá-la.

Do que estaria com medo?

Sabia exatamente do que tinha medo. Tinha medo de entrar e ver a mãe vomitando na pia, o cabelo caindo aos montes, a pele da cor da água de uma pia cheia de louça. Tinha medo de ter de passar por tudo aquilo de novo, ainda que lhe tivessem dito que as chances de aquela coisa reaparecer no cérebro dela fossem quase nulas. Também tinha medo de outras coisas, de coisas piores, mas havia se reeducado para parar de pensar nelas, pois o simples fato de tê-las na cabeça poderia fazê-las acontecer.

Engoliu, ainda que a boca estivesse seca como lixa. Depois, bateu.

Ouviu-se outro tum do lado de dentro. Em seguida, uma voz aguda. Daisy não conseguiu entender o que ela dizia, então bateu de novo, a orelha quase tocando a madeira. Aquela voz de novo. Será que estava chamando seu nome?

Com o coração na garganta, Daisy girou a maçaneta e abriu a porta. A escuridão e um cheiro de bolor, quase de putrefação, invadiu o corredor. As cortinas estavam fechadas — cortinas espessas de veludo, de forro duplo, que o pai instalara para que a mãe pudesse dormir quando estava realmente muito doente. Parecia que eram três da manhã ali dentro.

— Olá? — disse ela, o quarto engolindo a voz dela.

— Daisy?

Ela deu um passo para dentro, os olhos demorando um pouco para se ajustar à penumbra. Os pais eram dois montes sob o edredom, a parte superior do corpo deles duas manchas negras na cabeceira acolchoada da cama. Por algum motivo, a visão fez com que pensasse em túmulos lado a lado em um cemitério, e ela percebeu que ofegava.Viu o pai se mover, inclinando-se para a frente e em seguida jogando-se para trás, forçando o móvel contra a parede.

— Pai, o que aconteceu? — perguntou ela, aproximando-se da cama, tentando não inspirar. O ar estava tomado por aquele cheiro de coisa embolorada, velha. Não velha como o pai e a mãe, mas velha mesmo.

— Venha cá — disse a mãe, a voz como uma brisa que varre as folhas na rua.

Daisy ficou esperando pelo precisamos conversar, mas ele não veio. O único som foi o clique da garganta do pai respirando. Ela contornou a cama e se aproximou da mãe, a mão na cabeceira para se equilibrar. Queria abrir as cortinas e a janela com um gesto violento, mas não ousava. Não queria ver quem estava deitado naquela cama.

Meus pais, claro, disse ela a si mesma. Quem mais?

O lobo, disse algo em seu cérebro. É o lobo, e ele está vestido igual à sua mãe e ao seu pai. Olhe bem que você vai perceber, Daisy. E é melhor olhar, porque, se não o fizer, o lobo vai te pegar.

Cala a boca, gritou ela para o cérebro. Ele sempre lhe pregava peças quando estava assustada. Como se para provar que era corajosa, Daisy sentou-se na beirada do colchão, a mão deslizando pelo edredom até encontrar a mão da mãe. Ela a agarrou, apertando-a.

— Está tudo bem? — perguntou. Os dedos da mãe eram hastes úmidas. Não fizeram força alguma para se entrelaçar aos de Daisy. — O que aconteceu?

— Nada — disse a mãe. Um vestígio de luminosidade emanava do corredor, explorando sem vontade o rosto dos pais. Tinha se fixado nos olhos deles, como uma centelha vibrante, mas não vibrante o suficiente para iluminar o semblante dos dois. Porém, estava bem certa de que podia distinguir os dentes do pai, firmes uns contra os outros por entre lábios arreganhados. Ele inclinou o tronco para a frente, devagar, e depois se recostou de novo, o baque fazendo a cama toda estremecer. A mãe virou a cabeça até que as centelhas encontrassem Daisy. — Deite aqui conosco.

Não faça isso, disse seu cérebro. Mas outra vez ela o mandou se calar. Subiu na cama, tentando evitar pisar na mãe enquanto se aninhava no meio. Era o lugar mais seguro em que podia se imaginar, prensada como um sanduíche entre a mãe e o pai. Era o lugar onde tinha se recuperado de mil pesadelos. E, no entanto, não havia colocado as pernas sob o edredom.

— O que foi? — indagou ela, olhando do pai para a mãe, e voltando para o pai. — Você está doente outra vez?

A cabeça da mãe girou, o corpo completamente imóvel. Na escuridão, o sorriso que ela deu a Daisy parecia o de uma boneca de porcelana.

— Estou ótima — disse ela. — Ótima.

— Ela está ótima — concordou o pai, causando um sobressalto em Daisy. Ela o olhou e ele a encarou em resposta. Sorriu. Ele sorriu também, mas o sorriso escorregou da cara dele como água de uma capa de chuva. Ouviu-se um estalo quando ele bateu os dentes uns contra os outros.

— Só queremos ficar aninhados aqui — disse a mãe.

— Abraçados — acrescentou o pai.

Eles se moveram juntos, os corpos mudando de lugar, os braços se erguendo — tão compridos, tão fininhos no escuro. A mãe pôs as duas mãos nos ombros dela, puxando-a para si, encostando os lábios no cabelo de Daisy. O pai a acompanhou, envolvendo as duas, o peito contra as costas dela. Respiravam em perfeita sintonia, e, quando inspiravam, Daisy sentia os ossos estalarem enquanto o espaço entre eles diminuía. Tentou mover os braços e abraçá-los também, mas não havia espaço.

— Daisy, nós amamos você — disse a mãe. — O que quer que aconteça, nunca se esqueça disso.

Daisy não conseguiu virar a cabeça para ver a mãe. Os beijos na testa eram intensos demais. Eram uma artilharia se abatendo sobre ela, fazendo a dor de cabeça cantarolar.

— Como assim? — perguntou ela. — O que vai acontecer?

Não houve resposta. Os pais a apertaram mais ainda, comprimindo-a como uma cobra faz com sua presa. O cheiro ali parecia pior, e o medo gelou a barriga de Daisy. Outra vez ela ouvia a voz na cabeça: Eles não são quem você pensa; é o lobo, que se vestiu com o pijama dos seus pais. Era uma imagem tão ridícula e assustadora que não sabia se ria ou gritava.

— O que vai acontecer? — perguntou ela de novo. — Não quero que nada aconteça.

— Vai ficar tudo bem — disse a mãe, as palavras abafadas pelo cabelo de Daisy. — Nós amamos tanto você. Nada vai machucá-la. Nós não vamos machucá-la.

Machucá-la? O que isso queria dizer? Começou a se contorcer, o frio na barriga tornando-se pânico genuíno. Porém eles não a soltavam, e agora a apertavam tanto que estavam torcendo seu pescoço.

— Mãe, está doendo.

Ela sentia as próprias pernas se debatendo na cama, empurrando o edredom para baixo, amarrotando-o. O cheiro de bolor, de coisa envelhecida, parecia algo sólido em sua boca.

— Mãe!

O abraço começou a afrouxar, e os braços do pai relaxaram quando ele se virou de costas. Ela massageou o pescoço, olhando para os pais, impedindo por pouco as lágrimas de escorrer. A mãe sorriu para ela, usando os dedos frios para afastar uma mecha de cabelo do rosto de Daisy. Seus olhos estavam escuros, mas aquela libélula de luz zumbia em liberdade dentro deles. Dava à mãe uma aparência feliz, mas distante. Ela acariciou a bochecha de Daisy, tocando sua cabeça com delicadeza.

— O que quer que aconteça, o que quer que aconteça, sempre, sempre se lembre de que amamos você. Sempre se lembre disso. Nós amamos muito você, Daisy.

— Também amo vocês — respondeu Daisy. Depois, ela se lançou sobre a mãe, abraçando-a com a mesma força com que tinha sido abraçada, pressionando a testa contra a bochecha dela com tanta força que pôde ver manchas coloridas nascendo em seu campo de visão. — Amo vocês mais que tudo.

A mãe inspirou, o som quase uma bufada, e Daisy sentiu seu corpo ficar tenso. Soltou-a, receosa de estar ferindo-a.

— Você está atrasada para a escola — disse a mãe, as palavras desprovidas de calor. Ela olhava para a frente outra vez, os braços pendendo ao lado do corpo. — É hora de ir.

— Mas, mãe, não quero...

— Vá! — A palavra foi disparada pela mãe como uma bala.

Daisy saiu do edredom arrastando-se, sentindo que algo estava prestes a explodir em seu peito. Ficou ao pé da cama por um instante, fitando os fragmentos escuros de sombra ali, e depois recuou, saindo pela porta do quarto.

A mãe falou alto quando ela saiu, a voz monótona como a de uma gravação:

— A gente se vê logo mais.

Porém, por algum motivo, Daisy entendeu que era mentira. De algum modo, tão profundo que ela sequer podia perceber, entendeu que eles nunca mais a veriam de novo.


Brick

Fursville, 11h55

Brick estava sentado nos degraus de madeira que levavam ao toboágua de toras de Fursville, tremendo tanto que os cotovelos escorregavam dos joelhos a todo momento. Tinha voltado direto para o parque após o incidente no posto — eles tentaram me matar, eles todos tentaram me matar —, quase dando cabo da própria vida ao sair da estrada principal a cem quilômetros por hora, quase batendo na placa que dizia com uma carinha sorridente “Bem-vindo a Hemmingway. Por favor, dirija com cuidado!” e ornamentando-a com seus miolos.

A multidão o seguira pela estrada, os rostos retorcidos no retrovisor, os olhos de grandes órbitas brancas enfurecidos. Eles efetivamente se pisotearam tentando alcançá-lo. O carro que quase o derrubara da moto também tinha tentado vir atrás dele, mas havia deixado a estrada e fora parar em um quintal cerca de doze metros depois, o motorista saindo pelo para-brisa quebrado e continuando a persegui-lo a pé.

Na hora em que saíram de seu campo de visão, havia umas vinte pessoas: homens, mulheres, crianças, avós. Brick tinha visto tudo com clareza absoluta: cada dente à mostra, cada mandíbula cerrada, cada dedo ávido como uma garra — uma visão absolutamente nítida, como em câmera lenta, algo que só se tem quando a vida está por um fio.

E agora pagava o preço disso. Seu corpo dava a impressão de ter usado o último dos últimos recursos. Usado ou gastado — tinha vomitado tudo o que havia dentro de si ao passar pela cerca, a pipoca da noite anterior nada além de uma espuma leitosa. Agora sentia-se exatamente como quando ficava doente de verdade — a luz era forte demais, o corpo inteiro tremia como um dia tremera na ponte bamba, que quase podia avistar de onde estava.

O pior era que em algum lugar da estrada havia perdido o celular e a carteira. Era bem provável que tivessem escorregado do bolso quando quase despencara da moto, ou talvez isso tivesse acontecido durante o ataque no posto. O celular não era tão importante, mas perder a carteira poderia se tornar uma coisa bem ruim — significava que a polícia saberia que ele tinha estado em Hemmingway. Ninguém precisaria ser um gênio para ter a ideia de empreender uma busca no velho parque temático. Com um pouco de sorte, talvez ela tivesse caído em um arbusto, ou na toca de algum coelho. Porém, sorte não era algo que aparecia voluntariamente para Brick Thomas.

O cotovelo escorregou de novo do joelho, fazendo a cabeça balançar com violência. Apoiou-o de volta, ainda trêmulo, os dentes batendo como granizo em teto de zinco, a coisa mais audível no parque. Tremia tanto que se sentia uma britadeira prestes a perfurar o chão, e então levantou-se, andando de um lado para o outro.

Mas que droga era aquela que estava acontecendo?

Havia uma explicação batendo na porta de sua cabeça, berrando para ele, mas Brick recusava-se a lhe dar qualquer atenção. Recusava-se porque era algo idiota, ainda que houvesse visto coisas do tipo em milhões de filmes — pessoas transformando-se em feras e atacando os entes queridos. No geral, isso acontecia quando os mortos voltavam à vida, mas nem sempre. Às vezes era um vírus ou algo assim, como naquele filme que Lisa adorava: Extermínio.

Zumbis. Muito bem, Brick. Você é um gênio.

Mas aí é que estava o problema: os zumbis eram coisa da televisão, dos videogames. Não existiam na vida real; não podiam existir, era impossível.

Então, o que era aquilo? O que tinha feito Lisa ficar contra ele e depois convidara todo o maldito mundo a persegui-lo? Pois é, ele tinha aquela cara, mas o negócio não era tão ruim assim. Não era a cara do Frankenstein, por exemplo, para ser capaz de agitar uma multidão.

Até onde sabia, havia três modos de descobrir. Primeiro, podia telefonar para o pai, perguntar-lhe o que estava acontecendo, para verificar se havia algo parecido na cidade também. Claro que essa opção não estava mais disponível, porque tinha perdido o celular, e o telefone público mais próximo ficava — Há, há, Brick, tente não rir da ironia — no posto do qual tinha acabado de fugir. Segundo, podia limpar o vômito da moto, subir nela e ir para outro lugar, talvez para Norwich. Essa opção também não era muito atraente, porque, se as pessoas em um posto quase o haviam matado, que dirá uma cidade inteira. Era um pouco como mergulhar em um oceano cheio de tubarões para ver se havia um tubarão-branco escondido embaixo do barco.

Restava a terceira alternativa: a porta do porão. Seu laptop estava lá. Estava na mesa quando ele e Lisa tinham rolado sobre ela, e por isso não tinha certeza de que ainda funcionasse — a evidência de que ela obviamente não o tinha usado para mandar um e-mail para alguém em busca de ajuda não era lá um sinal muito positivo. Porém talvez ela apenas tivesse se esquecido de pensar nisso. Ou quem sabe o adaptador wi-fi tivesse se soltado e ela não fora capaz de fazê-lo funcionar de novo.

De qualquer jeito, se pudesse entrar e pegar o computador, conseguiria pesquisar os sites de notícias, para ver o que estava acontecendo. Ele tinha ali um pequeno estoque de comida e bebida; não era muito, mas dava para sobreviver alguns dias.

A ideia de abrir aquela porta, de encarar o que estava lá dentro, fez com que tremesse ainda mais; e precisou voltar a se sentar nos degraus. A moldura de madeira do toboágua estalou mais acima, expandindo-se no feroz calor do meio-dia. O sol estava atrás da roda-gigante, pintando no parque uma teia de sombras delgadas e dançantes, tão forte que Brick precisou fechar os olhos para pôr fim ao incômodo nas retinas. Por um instante maravilhoso e hipnotizante, quando os abriu de novo, Fursville parecia exatamente igual a uma década antes, a névoa brilhando da terra fendida, dando a ilusão de movimento, da presença de várias pessoas. A sensação era tão vívida que Brick podia até ouvir o som das máquinas de fliperama do píer, reverberando alto pela quente brisa de verão.

Então lembrou-se de Lisa arremessando-se contra a porta com tanta força que ouviu a madeira — ou um osso — estalar, lá do alto das escadas, mesmo com as mãos nas orelhas; mesmo em meio aos soluços dela. A imagem se desfez, deixando-o só.

Brick levantou-se, o corpo em espasmos, incapaz de ficar imóvel. Se tinha que fazer isso, era melhor fazer agora.

Foi em direção ao pavilhão, as mãos cruzadas no cabelo emaranhado da nuca, como se fosse um prisioneiro forçado a marchar sob a mira de uma arma. Chegou à porta de incêndio pensando Deus, por favor, não permita que esta seja a última vez que eu veja o sol, enquanto se esgueirava por baixo das correntes. Não se permitiu parar, sabendo que, se fizesse uma pausa de apenas um segundo, nunca mais voltaria a se mexer. Acabaria como uma daquelas estátuas de plástico do lado de fora, os esquilos sorridentes do minigolfe, congelados até o fim dos tempos.

Aproximou-se devagar da porta que dava para a escada do porão e baixou os olhos para a garganta de trevas. O canto inferior da porta estava retorcido, mas ela ainda estava fechada, e a barra de metal continuava firme. Nenhuma luminosidade passava por ali agora. Não conseguia ouvir nada, mas isso não o impediu de querer colocar os dedos nos ouvidos e cantarolar uma melodia em volume máximo enquanto descia devagarzinho. Se não pudesse escutar nada, então talvez tudo ficasse bem.

Encostou a orelha na porta, retendo com força a respiração, achando que estava prestes a vomitar de novo — desta vez, não comida, mas o coração, que batia tão forte na garganta que era capaz de sentir o gosto de cada batida como cobre em sua língua. Fazia silêncio ali, como se houvesse encostado a orelha na tampa de um caixão.

Lisa?, disse ele, percebendo só depois de alguns instantes que não tinha falado em voz alta. Fez força para desbloquear a garganta.

— Lisa? — Desta vez, ele quase latiu a palavra, dando um pulo em seguida. Parecia ter soado alta o bastante para derrubar o telhado. Prendeu a respiração outra vez, só escutando.

Fez-se um movimento dentro do porão; o ruído de algo pesado sendo arrastado pelo chão. Um tronco, pensou Brick. Parece alguém movendo um cadáver. Ouviu-se um grito baixinho, o miado de um gatinho, seguido de silêncio.

Pelo menos ela ainda estava viva. Saber disso fez com que Brick sentisse alívio e terror em doses iguais. Viva mas fraca, talvez. Quem sabe não fosse possível abrir a porta, correr ali para dentro, pegar aquilo de que precisava e sair antes que ela realmente se desse conta da presença dele.

Pensou em chamá-la de novo, mas depois reconsiderou. Na cabeça, começou a contagem regressiva: três... dois... e, sem esperar o um, chutou a barra, fazendo-a estalar pelo chão. Abriu a porta com violência, emitindo um grito breve e desesperado. Depois, com os punhos cerrados com tanta força que as unhas eram como bisturis cravando em suas palmas, invadiu o porão.


Cal

Oakminster, 11h59

Cal se agachou no gramado, o sol tentando rachar sua cabeça, o calor martelando seu crânio — tum-tum... tum-tum... tum-tum... —, perguntando-se por que a dor tinha piorado tanto no espaço de apenas algumas horas. Tinha a sensação de que estava prestes a vomitar. Não era só a náusea do excesso de milk-shakes do dia anterior; era algo mais, como se precisasse purgar alguma coisa venenosa de seu corpo, eliminá-la de cada célula. Tinha a sensação de que se pudesse fazer isso talvez a turbina que rugia na cabeça enfim pararia de funcionar.

O ruído esganiçado do apito o fez franzir o rosto, e semicerrou os olhos para observar o sr. Lyons avançando devagar para dentro do campo. Os dois times estavam esperando o jogo começar, encarando-se de ambos os lados da linha do meio de campo. Cal tinha ido normalmente ao vestiário, perguntando-se se alguém iria mencionar o que havia acontecido na praça no dia anterior. Ninguém disse nada, mas o modo como os colegas desviavam o olhar, mirando o chão enquanto saíam, era um indício de que estavam envergonhados ou pelo menos embaraçados.

Cal estendeu a mão e pegou a garrafa de Dr. Pepper ao lado do próprio pé, bebeu o último gole e a jogou na lateral do campo. Atrás ficava a única arquibancada, que estava lotada — duzentos adolescentes esperando o jogo começar. Os espectadores de sempre estavam outra vez na primeira fila, Eddie sentado entre Megan e Georgia. Uma vez na vida, Georgia estava sem o livro, tendo se juntado às canções entoadas pelos torcedores. O som era entusiasmante.

Olhou para o relógio. Meio-dia. Chris fizera algumas embaixadinhas antes de colocar a bola na marca do meio de campo. Lyons apitou para o jogo começar, e Cal partiu para o lado oposto do campo. Não demorou para a bola encontrá-lo, um passe inteligente de Steven. Cal controlou-a, chutando-a para a frente e perseguindo-a, sentindo-se avançar na velocidade do som. Ouviu alguém gritar “olha o zagueiro” e parou de repente, prendendo a bola enquanto o zagueiro passava. Então virou-se e examinou o campo em busca de camisas brancas, lançando a bola na direção do gol.

Na verdade, não foi um de seus melhores passes, e um jogador do time adversário interceptou-o com uma cabeçada. Mesmo assim, era bem óbvio que seria um bom jogo. Um jogo fácil.

O outro time corria para o gol, e Cal ia sem pressa atrás deles, contente em deixar a defesa se virar. Jack, o goleiro, pegou um chute e mandou a bola para o outro lado do campo. A plateia agora estava menos barulhenta. Ouviam-se apenas alguns fragmentos de canções e palavrões lançados ao ar. Era provável que estivessem poupando o fôlego para os gols. Cal olhava para o lado enquanto corria, acenando para Megan e Georgia. Elas olhavam para ele, mas nenhuma acenou em resposta.

Na verdade, todo mundo na arquibancada parecia ter o olhar fixo nele. Estavam de frente para o sol, por isso os olhos eram fendas fininhas em cada rosto, mas mesmo assim Cal era capaz de sentir os olhares se arrastando por sua pele como dedos, a sensação causando-lhe calafrios apesar do calor. Estremeceu, um jato de dor alcançando sua testa. Claro que estão todos olhando para mim, pensou ele ao virar-se. Todos adoram Callum Morrissey.

Do outro lado do campo, Nas aproximava-se do gol, Jack tentando se esticar o máximo possível para deter o chute. Seus dois zagueiros, Sam e Sprout, deveriam estar correndo atrás da bola, mas haviam parado, como se não soubessem muito bem o que fazer com eles mesmos.

Ambos encaravam Cal.

Tum-tum...

Tum-tum...

Tum-tum...

A confusão fazia o motor em sua cabeça girar com ainda mais força, batendo contra a carne macia do cérebro.

— Vão lá! — gritou. — O bloqueio!

Mais jogadores tinham se virado agora para encará-lo. Nas ficara literalmente imóvel na pequena área, ainda que só houvesse ele e o goleiro; ainda que nada o impedisse de chutar. A cabeça do garoto estava virada para trás em um ângulo excessivo, e ele encarava Cal. Até o sr. Lyons o encarava, o apito preso entre os dentes. Fazia silêncio suficiente nas arquibancadas para que Cal conseguisse ouvir o apito soar baixinho toda vez que o professor expirava.

Jack deu alguns passos em direção à bola, mas logo se deteve, como se sua pilha tivesse acabado. Levantou a cabeça, os olhos negros apesar do sol em seu rosto. Jack tinha sido o último. Agora cada pessoa presente ali olhava para Cal. O único som era o leve sussurro do apito, quase inaudível em meio às marteladas dentro de sua cabeça.

— O que foi? — perguntou ele, a voz ridiculamente alta contra a atmosfera anormal de silêncio. Virou-se para a multidão. As pessoas estavam de pé, empurrando-se para sair dos assentos. O modo como se moviam fez Cal pensar em um bando de pássaros: todos pareciam fazer a mesma coisa ao mesmo tempo, sem que ninguém mandasse. Cerca de duzentas pessoas movimentavam-se como uma, o olhar delas tão intenso que parecia paralisar Cal na superfície quente do campo.

É um reality show, pensou ele, examinando o campo, os jogadores feito estátuas. Não, pareciam gárgulas, os lábios arreganhados, os dentes cerrados, os olhos esbugalhados, repletos de fúria e loucura. Estou sendo filmado neste momento. É tudo armação, algum programa que tenha “pegadinhas”. Jackass. É só ficar frio, Cal, não vá fazer papel de idiota.

Tinha de ser isso, não tinha? Como poderia ser outra coisa?

Porém algo em sua cabeça, algo soterrado mais fundo que a dor, berrava com ele. Era nada menos que a mais antiga, mais simples, mais instintiva mensagem que o corpo era capaz de mandar.

Corra!

E Cal teria corrido, se a pulsação de agonia na cabeça não tivesse desaparecido — tum-tum... tum-tum... tum-tum... —, e tão rápido, que era como se alguém houvesse apertado um botão. Ficara com aquela dor de cabeça por tanto tempo que por um ou dois segundos sua ausência era quase pior; como se não tê-la significasse que algo estava faltando em seu cérebro. Porém não havia como negar o alívio.

— Sumiu — disse ele, perguntando-se se, quando vissem o episódio do programa das “pegadinhas” do qual ele era a estrela, notariam o momento exato em que o arame farpado tinha sido retirado de sua cabeça. — Ei, pessoal, é...

As palavras morreram no instante em que o sr. Lyons começou a correr na direção dele — correr, correr mesmo —, o rosto franzido numa expressão de ódio. Outros vieram atrás, como se o professor os arrastasse atrás de si. Um estrondo de trovão veio de outra direção, e Cal viu a multidão emergindo da arquibancada, um tsunami que batera e se espalhara pelas laterais, derramando-se sobre os assentos. Havia tanto movimento que o chão tremia.

Tentou abrir um sorriso inexpressivo. Não durou mais que um segundo, tempo suficiente para Cal perceber que não havia câmeras, que não havia deixa nenhuma para ninguém começar a correr; tempo suficiente para ouvir aquela voz dentro de si, aquele grito animalesco, furioso e desesperado, que dizia: CORRA! CORRA! CORRA!

Tempo suficiente para perceber com absoluta clareza que morreria se não obedecesse àquela voz.

Girou o corpo com tanta força que quase tropeçou nos próprios pés, fugindo pelo meio de campo enquanto a multidão tomava conta dele. Viu alguns garotos da primeira fila tombando sob o peso da multidão, uma explosão úmida e avermelhada irrompendo brevemente e em seguida perdendo-se na crescente massa de pés.

Correu mais rápido do que achava possível, a adrenalina nas veias como óxido nitroso em um carro, uma injeção de puro combustível, os braços e as pernas como pistões que o conduziam pelo campo da escola. Cal arriscou olhar por cima do ombro e viu Nas bem atrás dele, um fio de saliva pendendo da boca escancarada, os olhos duas feridas repletas de ódio à medida que se aproximava. Atrás dele vinha a multidão, um tsunami de carne.

Cal baixou a cabeça, tentando correr mais rápido, mesmo que seus pulmões já ardessem. Ele era rápido, mas não capaz de manter um ritmo tão acelerado por muito tempo.

O prédio principal da escola surgiu em seu campo de visão. Se conseguisse entrar, alguém faria aquilo parar, um dos professores ou o diretor. Mas, assim que essa ideia lhe passou pela cabeça, viu um grupo de garotos sentado na frente da porta levantando a cabeça, farejando o ar como leões sentindo o odor de uma gazela. Como se fossem um só, puseram-se de pé e saíram correndo atrás dele, aquela mesma expressão de furor lunático transformando os rostos em máscaras grosseiras de Halloween.

Cal virou à esquerda, dirigindo-se ao bicicletário, a mente em uma profusão sibilante de ruídos sem sentido. Mais garotos convergiam em sua direção, vindos dos portões da escola. Um deles gritou, um ganido agudo que foi reproduzido por alguém na multidão atrás, e Cal só percebeu o quanto estavam em silêncio quando todos começaram a berrar, o som ensurdecedor, quase uma pressão física contra seus ouvidos. Atou as mãos à cabeça e rezou para que aquilo acabasse logo. Era tudo o que podia fazer para não desabar ali mesmo.

Ouviu suspiros ofegantes e entrecortados logo atrás de si, e em seguida algo roçou seu ombro. Cal forçou-se a pensar. Havia praticado artes marciais durante anos, mas cada coisa que tinha aprendido fora de algum modo sugada de seu cérebro, dissolvida pelo terror.

Nas se aproximou de novo, e desta vez pegou a camisa de Cal, puxando-o com tanta força que ele perdeu o equilíbrio. Ele caiu, escorregando de joelhos, quase conseguindo se levantar antes que Nas o esmurrasse, fazendo os dois rolarem pelo chão. Nas o prendeu contra a superfície e lhe deu um soco que roçou na mandíbula de Cal, mas sem força o bastante para doer. Podia ouvir o compasso incansável dos pés, aqueles gritos insanos aumentando em um crescendo horripilante.

Pense!, gritou seu cérebro, o corpo incapaz de respirar. Manchas luminosas apareceram em sua visão, deixando cicatrizes negras chamuscadas ao desaparecer. Faça alguma coisa ou vão te matar!

Ele se preparou, estendendo as pernas sob o peso de Nas e plantando os pés com firmeza no chão. Depois fez pressão com os dois braços para cima, desvencilhando-se das mãos de Nas e prendendo-as. Ao mesmo tempo, girou os quadris, erguendo-se com um grunhido. Nas caiu, o brilho assassino jamais abandonando seu olhar. Cal atacou, acertando-o bem na garganta enquanto ficava de pé em um salto.

Alguém mais estava bem ali, pronto para pegá-lo, e Cal empurrou o garoto com toda a força que tinha. Esquivou-se de um par de mãos, mergulhando nas sombras no momento em que a multidão tentava cercá-lo. Era como correr em uma floresta de membros: pés faziam-no tropeçar como raízes, corpos impediam seu caminho como troncos.

Cal lançou-se ao único estilhaço de luz que restava, libertando-se, o corpo inteiro anestesiado quando voltou a correr. Agora estava ao lado do prédio da escola. Uma das janelas explodiu, um rosto ensanguentado contorcendo-se em meio a dentes de vidro quebrado. Cal passou zunindo pelo bicicletário e ao longo do caminho estreito na lateral da escola. Bem à frente ficavam os portões, e do outro lado a rua Rochester, com seus carros e multidões. Naquele caminho, não havia nada além de morte.

A seu lado estava a cerca; do outro lado, uma faixa arborizada. As árvores eram magricelas, em número muito reduzido para dar qualquer espécie de cobertura. Porém, que escolha ele tinha?

Pulou a cerca, grato por não haver arame farpado ao passar desajeitadamente por ela. Pela tela, pôde ver a multidão inundar o caminho estreito, um rio agitado que se jogava contra a cerca, fazendo as estacas curvarem-se para o bosque. Megan estava ali, ou algo demoníaco que um dia fora Megan, as mãos retorcidas em garras estendendo-se em sua direção.

Cal engolia o ar, escorregando e tropeçando pelo terreno pedregoso. De algum modo ainda conseguia correr, usando as árvores como apoio para chegar à cerca que dava para a rua Rochester. Ele subiu nela, escorregou, voltou a subir, e rolou de cabeça por cima dela.

Mãos o alcançaram pelo arame, agarrando sua camisa, sua carne, fazendo-o ficar de pé de novo. Ouviu um motor estalar, erguendo os olhos a tempo de ver um carro virar na rua bem em sua direção. Pelo para-brisa inundado de sol, pôde distinguir um rosto idêntico àqueles atrás de si, e foi a visão daquela máscara retorcida, e não das duas toneladas maciças da SUV, que o fez mergulhar para o lado.

O carro bateu com estrondo contra a cerca, indo direto contra a multidão. Cal compreendeu esse fato por causa dos sons, um cântico de estalidos abafados. Olhou para trás, vendo que as pessoas se acotovelavam por cima de uma pilha de corpos destroçados, de membros em espasmos, os olhos ainda faiscantes. Uma menina rastejava atrás dele, mesmo que seu braço esquerdo já não estivesse mais devidamente conectado ao corpo. Ela o arrastava atrás de si como um bebê arrastando um brinquedo.

Cal examinou a rua enquanto seguia mancando, o cérebro funcionando com o dobro da velocidade, o corpo parecendo carregar chumbo. As pessoas jorravam do supermercado Tesco na frente da escola. Mais carros aceleravam ladeira acima, ziguezagueando a toda. Um bateu contra um poste, dobrando-se em um ângulo de quarenta e cinco graus. O motorista, um homem de meia-idade, tinha aberto a porta e corria aos tropeços pela pista, ganindo.

O carro. Era sua única chance.

Cal lançou-se em direção ao homem, esperando que ele estivesse perto o bastante antes de mandar um vigoroso golpe Choy Li Fut. Sua chuteira de futebol mergulhou no rosto do homem, quase fazendo-o dar um salto-mortal para trás. Cal correu para o carro, jogando-se no assento do motorista e fechando a porta bem na hora em que o primeiro cliente do Tesco o alcançava.

O motor estava desligado. Cal conferiu se o carro estava em ponto morto e girou a chave, tal como tinha aprendido nas aulas de direção, e o motor ganhou vida com um grunhido. Uma mulher atirava sua cesta contra a janela, o vidro já rachando. Outras figuras arremessaram-se contra as portas, e Cal ativou a trava elétrica central no momento exato. Alguém subiu no capô e começou a chutar o para-brisa.

Cal tentou engatar a ré. Não ia. Tateou o câmbio com as duas mãos, achou um anel e o puxou para cima, permitindo que a marcha entrasse. Acelerou e soltou a embreagem.

O motor gaguejou, depois morreu. A janela do passageiro explodiu, mãos começaram a entrar. Não restava mais luz do sol no carro, havia mais pessoas no capô, e tantas no teto, que ele se recurvava para o interior do veículo, o metal estalando. Girou a chave outra vez, mas se esqueceu de pisar na embreagem. O carro sacolejou, e pessoas caíram de cima dele sobre a multidão.

Cal praguejou, pisando na embreagem, e tentou a ignição mais uma vez, pisando fundo com o pé direito. O carro inteiro agora sacolejava, porque as pessoas tentavam virá-lo.

Deixou a embreagem subir devagar. O carro engasgou, rosnou, e depois deu um solavanco para trás. Não foi muito longe; o mar de corpos atrás dele bloqueava a passagem. Cal pisou com força no acelerador, forçando o caminho através deles. O carro grunhia, achatando tudo atrás de si enquanto ganhava velocidade.

Cal pisou fundo no freio, lembrando-se de pisar também na embreagem. Forçou a primeira marcha, girando o volante por completo ao afastar-se, sem se importar com as pessoas que quicavam no para-choque; sem se importar por ter atropelado um garoto com quem tinha jogado no dia anterior; sem se importar com o fato de o carro avançar de solavanco em solavanco por causa dos incontáveis corpos contorcendo-se embaixo das rodas.

Apenas avançou ladeira abaixo o mais rápido que pôde, gritando em silêncio pelo vidro iluminado de sol, e manchado de rubi, do para-brisa.


Brick

Fursville, 12h17

A lanterna estava bem do lado da porta quando ele entrou. Brick acendeu-a, e ela cuspiu uma luz fraca, quase insuficiente para iluminar a escuridão.

A primeira coisa que viu foi seu computador, caído de ponta-cabeça, a tela emanando uma aura fantasmagórica. Examinou a sala, esperando que algum vulto viesse voando para cima dele, que dentes se cravassem em seu rosto, em sua garganta. Porém estava estranhamente quieto ali, como se houvesse entrado em uma tela de pintura, o silêncio rompido apenas pelo zumbido baixinho do laptop e do compasso forte de sua pulsação.

Então, um fragmento de escuridão se moveu, uma névoa contra a penumbra perto da parede do outro lado. De onde ele estava, parecia um saco de juta, ou roupas amontoadas em um monte. Um resmungo escapou dali, seguido de um leve soluço e um punhado de palavras ininteligíveis.

Não fique só parado aí, pegue logo o laptop!, ordenou seu cérebro, mas a visão de Lisa tão machucada, tão arruinada, era demais. Queria se aproximar dela, tirá-la daquele lugar, levá-la ao hospital. Queria que ela fosse como era antes da noite anterior: chata, egoísta e mandona, sim, mas também engraçada, bondosa e sexy pra caramba quando queria. Não era tarde demais.

O monte se mexeu de novo, um longo membro estendendo-se e acertando o chão com o som de um pé pisando em uma poça. Outro membro agora, fazendo Brick pensar em uma aranha presa em água corrente, esticando-se antes de fugir apressada. Mas aquela coisa — Não é uma coisa, é Lisa! — não estava indo a lugar nenhum. Ela soltou um risinho, e o riso parecia repleto de cacos de vidro, transformando-se em um grunhido grave, sufocado.

— Lisa? — perguntou ele. Não pôde evitar.

Ela ergueu a cabeça, seus olhos, pontos de trevas na carne do rosto. Um ferimento estendia-se a partir do nariz, e a boca era um buraco dentado que se abria e fechava em uma bandana de sangue.

Lisa observava-o, virando a cabeça primeiro para um lado, depois para o outro. Tentou rastejar até ele, mas o punho esquerdo estava retorcido para trás em um ângulo anormal, as pontas dos dedos quase alojadas na curva do cotovelo. Não conseguiu sustentar o peso de seu corpo, e ela desabou.

O porão ficou escuro, e por um segundo Brick achou que fosse desmaiar. Lisa tinha feito isso tentando feri-lo. Tinha quebrado os próprios ossos. Mesmo agora tentava agredi-lo, usando as pernas para arrastar-se para a frente, o rosto deslizando no chão molhado. Foi isso que fez Brick voltar a si. Quanto mais tempo ficasse ali, mais ela machucaria a si própria.

Encaminhou-se para a mesa, sem desgrudar os olhos dela por mais que um instante. Pegou o laptop, fechou-o e procurou pelo adaptador wi-fi, encontrando-o plugado na entrada USB. Lisa tinha erguido a cabeça de novo, estudando-o. A mudança de ângulo possibilitou enxergar os olhos dela. Um deles estava completamente vermelho, nadando em sangue, e, apesar dos ferimentos, ambos faiscavam de ódio. Ela parecia possuída.

Brick andou até o canto do cômodo, onde se encontravam alguns sacos de provisões. Tinham sido esvaziados no chão: uma garrafa de água semiaproveitada e tombada de lado, e três ou quatro pacotes de doces. Ainda de olho em Lisa, e com a mão na parede, foi se abaixando até o chão, recolocando os doces em um dos sacos. Havia ainda cinco garrafas de água nele, que resolveu levar também, depois mudando de ideia e tirando três, para deixá-las ali. Podia beber das torneiras da cozinha, e não sabia quanto tempo Lisa ainda ficaria ali embaixo.

Ele colocou tudo, inclusive o laptop, no saco, segurando-o com o punho cerrado enquanto recuava para a porta. Lisa observou-o enquanto conseguiu manter a cabeça erguida, mas depois deixou-a pender. Soltou outro gemido repleto de frustração, de confusão, que quase partiu o coração de Brick ao meio. Ele aguardou até a porta estar bem atrás de si antes de falar:

— Desculpe, Lisa. Eu não... não sei o que fazer. Tem água aí, e eu deixei alguns doces. — O som da voz dele fazia com que ela se arrastasse, uma das mãos estendida em sua direção. Ele reparou que uma das unhas dela estava pendurada. Deu um passo para trás, tropeçando no lixo do corredor, batendo com força suficiente na parede para perder o fôlego. Apertou o saco contra o peito. — Vou arrumar um jeito de ajudar você — disse ele. — Prometo que vai dar tudo certo. Prometo.

Ela fez um último esforço para encará-lo, os olhos negros como um tinteiro. Não havia nada naquele rosto, que era uma máscara semiderretida parecendo prestes a se desprender. A boca escancarou-se, algo borbulhando nela, mas Brick estendeu a mão e fechou a porta antes de poder ver o que era, gritando uma última vez:

— Desculpe!


Ele prendeu a barra de metal entre a porta e a parede outra vez, mesmo que não pensasse que Lisa pudesse ir a algum lugar de verdade. Em seguida, subiu a escada e virou à esquerda, seguindo pelo corredor e se afastando da porta de incêndio. Chegou a uma porta dupla em que um adesivo descascado dizia: A toda a equipe do pavilhão: lembrem-se de SORRIR! E, por algum motivo, obedeceu à sugestão enquanto se afastava, a boca se abrindo em um sorriso de cadáver.

Não havia dúvida. Ele estava pirando.

Encontrava-se agora no saguão frontal do pavilhão, a bilheteria era uma janelinha na parede à direita e, depois dela, os portões principais, bem fechados com mais correntes. Do outro lado do saguão ficavam os banheiros, a escada para o andar de cima com suas lojas de presentes, e ao lado — depois de uma maquete de plantas selvagens de plástico e de um leopardo de brinquedo em tamanho real, que parecia ter vindo de uma das barraquinhas de jogos lá de fora — ficavam as portas do teatro. Uma faixa que dizia “Palhaçada Jurássica!” pendia da parede como uma trepadeira.

Ele desabou contra a parede entre as plantas, ao lado do leopardo de olhos de vidro, tirando uma das garrafas de água do saco e saciando uma sede que até então rugia despercebida.

Pegou o laptop, esperando ver a tela rachada e inútil. Quando a máquina ligou, porém, percebeu que estava exatamente como a tinha deixado, tirando um borrão escuro no canto superior direito da tela. A bateria estava com pouco menos que metade da carga, o que era preocupante, porque não havia energia. Uma caixinha de mensagem avisou-o de que havia sido desconectado por inatividade, e ele digitou com rapidez sua senha, clicando o botão de conectar.

A luzinha azul no adaptador piscou furiosamente enquanto a tela dizia aguardando rede... conectando... autenticando... Você está on-line! Em seguida, a caixinha de mensagem desapareceu, exibindo a janela do navegador. Ele digitou “BBC News” na barra do Google, a página carregando mais rápido do que teria carregado lá embaixo, mas ainda assim de maneira dolorosamente lenta.

— Vamos lá — disse ele. — Vamos, vamos, vamos.

Inclinou-se para a frente, o rosto quase colado na tela. O que estava esperando? Uma manchete que dissesse “Epidemia zumbi assola o país e pessoas atacam umas às outras”, seguida de sugestões sobre como lidar com ela? Fique em casa, NÃO saia, porque pessoas completamente estranhas VÃO tentar matá-lo de modo aleatório. Tome cuidado em particular para não beijar sua namorada, porque ela pode morder um pedaço do seu rosto. Ou talvez não houvesse nada. Talvez o site de notícias da BBC tivesse caído. Talvez a internet inteira tivesse caído.

O logo apareceu, e a página começou a carregar abaixo dele. Brick examinava o texto que ia aparecendo. “Condenação de testes nucleares da Coreia do Norte.” “Divórcio real prossegue.” E um monte de coisas sobre as Olimpíadas. Nem uma única menção a ataques de multidões selvagens ou a violência não provocada. Brick franziu o rosto. Talvez fosse algo local. Digitou “Eastern Daily Press” no Google e foi levado a uma primeira página repleta de notícias sobre promessas descumpridas de candidatos e outra sobre um sujeito que colecionava caixas de correio. Verificou a data e a hora do artigo mais recente. Os acontecimentos naquele posto tinham sido o quê? Três horas antes? Com certeza um tumulto em uma pacata cidadezinha de Norfolk era mais digno de ser noticiado do que o fato de algum idiota ter uma caixa sul-africana de correio rara.

Não fazia sentido. Brick apoiou a cabeça contra a parede, ruminando pensamentos. Quando uma velhinha era derrubada na rua, o EDP fazia uma matéria de seis páginas. Como informações a respeito de algo assim poderiam não ter sido publicadas? Aquele posto devia ter ficado lotado de policiais e paramédicos a manhã toda, com suculentas fotos de asfalto ensanguentado e para-brisas estilhaçados, implorando para serem tiradas. Ele digitou “posto, hemmingway” no Google e só achou o endereço do posto e um monte de coisas sobre o escritor, apesar de os nomes terem grafias diferentes.

Algo acertou os portões principais com força suficiente para chacoalhar as correntes. Uma figura branca passou na frente do vidro imundo grasnando, e outra se juntou a ela. Duas gaivotas. Fez-se um flash amarelo enquanto as aves brigavam. Uma saiu voando, a outra foi atrás. Brick tentou engolir o coração e enviá-lo de volta ao peito, esperando as mãos pararem de tremer antes de apertar o teclado de novo.

“Por que todos me odeiam?”, digitou, examinando a lista de resultados na página do Google. Eram todos de sites de perguntas e respostas e de autoajuda. Clicou no primeiro, Yahoo Respostas, e leu algumas linhas de um garoto que não tinha nenhum amigo.

— Sinto muito por você — disse, enquanto clicava no botão de voltar. — Mas acho que o meu problema é pior que o seu.

Deletou a última pergunta e digitou “por que todo mundo está tentando me matar?”. Alguns resultados abaixo, ele viu: “Todo mundo está tentando me matar!”. Clicou, e tudo o que apareceu foi um site de um videogame carregando: “Todo mundo em Thieves Landing está tentando me matar. O que eu fiz?”.

— Droga — disse ele, voltando à página de buscas e examinando cerca de cem resultados, antes de perceber que seria em vão. Franziu a testa, e esse gesto provocou dor — o ferimento da mordida na sobrancelha latejava. Provavelmente deveria tê-la lavado ou algo assim; se infeccionasse, estaria em uma tremenda encrenca. Abriu outra garrafa de água, jogou um pouco na palma da mão e depois sobre a ferida. Parecia haver um ferro quente costurado sob sua pele.

Secou as mãos na calça jeans e depois tamborilou as teclas, tentando decidir o que fazer em seguida. Após alguns instantes, carregou de novo a página do Yahoo Respostas, logando com seu nome. Escolheu a opção “perguntar” e digitou “Por que todo mundo está tentando me matar?”. Em seguida, digitou na caixa de mensagem abaixo:

Não é brincadeira. Minha namorada acabou de tentar me matar, por motivo nenhum. REALMENTE tentou. Mordeu minha cara. Depois fui abastecer minha moto no posto e de repente uma multidão veio atrás de mim. Alguém tentou me atropelar, e as pessoas teriam me matado de verdade. Elas me perseguiram pela estrada. Estou falando sério. NÃO ESTOU zoando, estou assustado mesmo. Isso aconteceu com mais alguém? Se sim, por favor, responda.

Leu tudo, garantindo que aquilo não entregaria nada sobre onde estava. Não havia muito que fazer quanto à sua identidade — ele precisava usar a ID do Yahoo para postar a pergunta. Porém, desde que ninguém soubesse onde estava, era quase certo que não haveria problema. Selecionou a opção “postar”, esperando a nova página carregar. Olhando-a de novo, a pergunta parecia absurda, tão ridícula que o fazia duvidar de toda a situação. Então aquilo tinha mesmo acontecido com ele? Ele tinha mesmo sido atacado?

Seu rosto ardia, o corpo tremia, o estômago revirava e revirava, sem cessar. Sim, tinha acontecido.

Fechou o laptop para preservar a bateria, encolheu as pernas e encostou-as no peito, apoiando a cabeça nos joelhos. Agora não havia nada a fazer além de esperar.


Daisy

Boxwood St. Mary, 15h17

Daisy encarava o pôster na porta do teatro da escola, um nó na garganta do tamanho de uma casa. Era o anúncio da peça, e, onde um dia orgulhosamente estivera seu nome, agora havia uma enorme mancha preta. Abaixo, alguém rabiscara: “Emily Horton como Julieta”.

Por um instante, Daisy decidiu que ia voltar para casa. Depois do que tinha acontecido com Fred no dia anterior, aquilo era demais. A sra. Jackson e o resto do clube de teatro podiam jogar-se de uma ponte que ela não estava nem aí. Podia ter sido um erro, mas era bem mais provável que fosse uma piada, alguém querendo zoar com ela. Se queriam a preciosa Emily Horton, que ficassem com ela. Aquela besta ia ser a substituta de Daisy, mas nem sabia direito o que isso significava. Tinha certeza de que ela havia folheado o script todo procurando um personagem chamado Substituta de Julieta, até que alguém lhe explicou.

Sim, ela iria para casa e esqueceria tudo. Estaria mentindo se não dissesse que se sentia ligeiramente aliviada por não ter de atuar em um auditório lotado. Porém esse alívio era envenenado por outra coisa, algo que sentia no estômago, como se estivesse cheio demais. Ela tentava dizer a si própria que era decepção. E estava decepcionada, não havia a menor dúvida. Mas havia outras coisas ali também. Raiva, com certeza. Dor. E medo. Muito medo.

Porque na verdade não queria ir para casa. Não queria ter de explicar aos pais que tinha perdido o papel principal na peça. Não queria vê-los escondendo a própria decepção. Não queria que pedissem comida chinesa, que ela adorava, só para alegrá-la.

Mas também não era só isso. Não queria atravessar a porta da frente e encontrar os pais ainda na cama.

Daisy esfregou as têmporas, aquele mesmo tum-tum martelando dentro do crânio. Resolveu ir até o teatro, onde alguns pirralhos desengonçados quase a derrubaram ao sair. Levou a mochila ao ombro, seguiu pelo estreito corredor que levava ao segundo conjunto de portas. Empurrou-as e adentrou um turbilhão de movimentos e ruídos, mais de cem garotos correndo pelo auditório, pulando nas cadeiras dobráveis, jogando bolas de papel uns nos outros. No palco havia algumas garotas de sua turma que tinham sido escolhidas como contrarregras. Tentavam mover um banco comprido de madeira — o balcão de Julieta — para as coxias.

Emily Horton estava ali também. Do outro lado do palco, conversando com Kim e Fred. E usava o vestido de Julieta. O vestido dela.

Daisy hesitou. O teatro de repente ficou enorme, o palco parecia infinito. Em toda a sua vida, jamais imaginou que um dia poderia se sentir tão pequena. Subiu os degraus até o fundo do palco, atravessando a cortina. Na súbita escuridão, no silêncio empoeirado, começaram as lágrimas. Eram muitas para ser contidas. Envolveu a pesada cortina em torno de si, do mesmo jeito que às vezes fazia com seu edredom, apertando o rosto contra ela e chorando baixinho.

Por que todos agiam daquele modo terrível? Era só o estresse da peça? Será que ela tinha feito alguma coisa para deixar todos chateados? Aguardou que a emoção passasse e enxugou os olhos, na esperança de que não estivessem tão vermelhos. Não queria dar uma de garotinha chorona. Depois respirou fundo e marchou pelo palco, até ficar ao lado de Emily. A menina tinha uns quinze centímetros a mais do que ela. Kim também. Fred, o mais alto de todos, olhava para Emily e sorria. Daisy achava que nunca o tinha visto sorrir daquele jeito.

— Com licença — disse Daisy. Nenhuma reação. Ela estendeu a mão, pegando Emily pelo colarinho. Emily olhou para baixo. Todos olharam para baixo, os sorrisos desaparecendo como ratos sob a sombra de um falcão. A voz de Daisy se tornou um sussurro: — Ah, sou eu que faço a Julieta.

Os olhos de Emily pareceram inchar, esbugalhando-se, e ela se virou, continuando a conversa. Tanto Fred quanto Kim riram de alguma coisa que ela disse, mas Daisy não conseguiu ouvir. O sangue martelava seus ouvidos, como se houvesse uma gigantesca máquina entre suas têmporas.

— Foi um equívoco — disse ela, os olhos ardendo. Não vá chorar, de novo não. — Eu... Você ainda é a substituta.

Ela olhou para Fred, na esperança de que ele fosse dizer alguma coisa, ficar do lado dela. Sabia que ele não gostava dela nem nada, mas tinham passado três meses fingindo ser namorados; tinham até dado risadinhas e ficado sem graça a esse respeito. Isso valia alguma coisa, não valia?

Não. Fred mirava as unhas, como se não fosse capaz de encará-la. Era tudo culpa dela. Todos tinham presenciado o que acontecera no dia anterior, quando ele cuspira na cara dela, e agora achavam que ela era um zero à esquerda com quem não valia a pena sequer conversar. Daisy voltou-se de novo para Emily, uma lágrima quente e gorda rastejando bochecha abaixo.

— Você nem sabe as falas — disse ela, enxugando furiosamente a lágrima. — Você nem veio aos ensaios.

Emily ainda não tinha respondido nada; apenas pegara as mangas do vestido — curtas demais; os babados só chegavam à metade do antebraço — e as puxara com força, para deixá-las mais compridas. Daisy balançou a cabeça, sentindo o gosto de sal quando as lágrimas voltaram a correr. Aquele vestido tinha sido feito para ela; a mãe havia feito as mangas sob medida, e também a bainha, para que ficasse na altura dos tornozelos e ela não tropeçasse. Emily era grande demais para ele; parecia uma salsicha em uma embalagem a vácuo. Um movimento súbito, e o vestido se rasgaria ao meio.

— Você vai rasgar o vestido — ela tentou protestar, mas os três riam outra vez, Fred quase chorando com algo que Emily dissera. Por que ele a achava tão engraçada? Ela estava sendo realmente rude, realmente cruel.

Ouviu-se um chamado de trás da cortina, o pano ondulando inteiro antes de o rosto da sra. Jackson surgir. Ela viu o tumulto nos assentos e praticamente trotou no palco, chamando a atenção dos garotos que faziam bagunça ali.

— Chega. Chega! Pessoal, isso não é modo de se comportar em um teatro. Quero que todos vocês se sentem agora, por favor. Quem não quiser ficar aqui, pode sair.

Pouco a pouco o ruído foi diminuindo enquanto a plateia se sentava, e alguns poucos saíram pelos fundos.

A sra. Jackson fitou Emily.

— Pronta? — Emily fez que sim com a cabeça. — Ótimo, agora saia do palco para começarmos. Fred, Kimberly, vocês também.

— Senhora Jackson — disse Daisy —, e eu?

A sra. Jackson já tinha sumido em direção ao camarim.

Daisy ficou ali parada, segurando com as duas mãos a alça da mochila. Fred, Kim e Emily dirigiram-se para as coxias, ainda rindo. A plateia sussurrava; de vez em quando, bolinhas de papel eram lançadas de uma fila para outra. Daisy teve a ideia assustadora de que na verdade estava morta; de que tinha sufocado durante o sono ou algo assim. De que outro modo se explicaria o que estava acontecendo? Tinha vontade de gritar para a multidão, só para provar que existia de verdade.

Ouviu-se um estalido, e as luzes do auditório se apagaram, os holofotes do palco se acendendo com força total lá em cima, apagando a silhueta de Daisy e fazendo-a se sentir ainda mais um fantasma. Outra vez a cortina se abriu, e a sra. Jackson reapareceu. Ela foi até o centro do palco, a cerca de três metros de onde Daisy estava, e estendeu as mãos.

— Obrigada a todos pela presença — disse ela, a voz trêmula de nervosismo. — É maravilhoso ver tantos de vocês aqui. Bem, como sabem, tecnicamente este é um ensaio geral, não um espetáculo pronto. Por isso, perdoem qualquer lapso, ou qualquer pedido meu para retomadas ocasionais.

Daisy não se mexia, não podia se mexer, as bochechas ardendo com mais vigor do que as luzes.

— Por favor, por favor, lembrem-se de desligar os celulares, crianças — continuou a sra. Jackson. — E, sim, aproveitem a peça. Senhoras e senhores, eu lhes apresento Romeu e Julieta, uma tragédia de William Shakespeare.

A sra. Jackson virou-se para sair, e Daisy conseguiu romper sua paralisia, agitando os braços para a professora.

— Por favor, senhora Jackson — ela falou o mais baixinho que pôde, sentindo a presença da plateia na penumbra. — Preciso falar com a senhora.

— Não deveria estar no palco — respondeu a sra. Jackson. A luz fixa e intensa transformava seu rosto em uma máscara de couro. — Saia.

— Mas...

— Você vai estragar tudo — cortou a sra. Jackson, fazendo para Daisy um gesto como se ela fosse uma mosca no jantar. — Xô.

Daisy ficou ali parada, em pleno palco, boquiaberta, sem acreditar. A plateia estava em silêncio, parecendo bonecos de olhos de vidro.

— Fora — disse a sra. Jackson, e desta vez ela deu um passo em direção a Daisy. O calor das lâmpadas acima era excessivo, uma ilha de luz no meio de um oceano de trevas. Daisy se pôs em movimento, procurando a escada. Viu-a tarde demais, tropeçando e caindo. A dor agarrou sua perna esquerda como um punho em garra ao aterrissar de quatro, a mochila pesada sacudindo no ombro. Esperou as risadas, os gritos de deleite, os insultos, mas o teatro encontrava-se mortalmente silencioso.

Daisy levantou-se com dificuldade. Dali, fora do foco das luzes, podia observar a plateia. Ninguém olhava para ela. No palco, a sra. Jackson mantinha a cortina aberta, trazendo a menina que faria o narrador. Ela mostrou o polegar e encaminhou-se para a escuridão. A menina assumiu sua posição e começou a falar:

— Ahn... Duas famílias, equivalentes em dignidade...

Daisy se afastou, indo para a porta, desejando que todos tivessem rido dela. Aquilo era pior, muito pior. Era uma cena de pesadelo. Quando se aproximou das portas, já estava correndo, irrompendo por elas, precipitando-se pela saída principal e chegando ao sol, a mente berrando isto não está acontecendo, isto não está acontecendo, não está acontecendo sem parar, enquanto ela seguia às pressas pelo estacionamento. Enfim, bateu contra a cerca, recuperando o fôlego entre acessos de soluços.

Só quando sentiu que tinha espremido a última lágrima foi que ergueu os olhos, usando a manga para enxugar o rosto. Em comparação com o que havia acabado de acontecer, sua casa parecia a melhor coisa que podia imaginar — mesmo que os pais estivessem aninhados na cama, mesmo que a mãe, que Deus não o permitisse, estivesse doente outra vez. Pelo menos eles ainda reconheciam sua presença.

A mãe deveria apanhá-la de novo à noite, no horário de sempre, mas sua casa ficava a apenas dez minutos de ônibus. Daisy apressou-se pelo caminho, desviando dos grupos de alunos que perambulavam perto dos portões, querendo que uma pessoa — só uma, um aluno, ou o professor de plantão, ou a policial que sempre estava ali fora na hora da saída — olhasse para ela. Mas era como se fosse invisível.

Havia três ônibus enfileirados na rua. Subiu no do meio bem quando estava partindo. Não tinha cartão de passagem de ônibus, mas, depois de mais de um minuto ao lado do motorista esperando para pagar, tentando se equilibrar enquanto ele acelerava rua afora, sentou-se de modo furtivo no primeiro banco, ao lado da janela. Dali via o mundo passar, enquanto esfregava as têmporas latejantes, pensando que, se fosse um fantasma, com certeza não precisaria ficar limpando o vidro para livrá-lo da sua respiração.

Havia muito trânsito, e sua rua demorou mais de quinze minutos para aparecer. Daisy deu sinal, saindo do assento quando o ônibus parou. Sua casa não ficava longe, mas mesmo assim ela andou rápido, quase correndo, desesperada para estar lá dentro; desesperada para ver a mãe. Se o tumor tivesse voltado, decidiu Daisy, não fazia diferença. Ela cuidaria da mãe, garantiria seu bem-estar. A mãe dela já o tinha vencido uma vez; podia vencê-lo de novo.

Chegou ao portão da frente sentindo-se um pouco melhor. E daí que todo mundo na escola dela tinha agido da pior maneira possível? Havia coisas mais importantes com que se preocupar. Talvez fosse por isso que havia tido uma semana tão ruim — talvez a vida estivesse preparando-a para alguns meses difíceis; talvez fosse uma tentativa de tornar mais suave a ideia de ficar em casa cuidando da mãe. Sim, era isso. Pela primeira vez no que parecia um dia inteiro, lembrou-se de inspirar.

Estava quase entrando em casa quando percebeu que havia outra boa notícia.

Entre sair do ônibus e chegar em casa, a dor de cabeça tinha sumido.


Brick

Fursville, 15h46

Ele percebeu sua presença tarde demais, o pequeno arvoredo de plástico camuflando a chegada dela. Foi só quando gritou — um ganido gorgolejante saído de uma garganta cheia de sangue — que Brick entendeu que ela estava ali.

Lisa lançou-se contra ele, prendendo-o bem no ângulo entre a parede e o piso. Seu corpo parecia um saco de ossos e de cartilagem, nada no lugar certo, coisas quebradas espetando a pele. Ainda assim, ela era pesada, pesada demais, um peso morto que o esmagava, que o impedia de se levantar — mesmo quando a boca desdentada arreganhou-se mais do que era possível, cobrindo a sua como um desentupidor, roubando o ar de seus pulmões.

— Ainda amo você, Brick — ela soprou um ensopado quente de palavras dentro dele, o cotoco de sua língua bruxuleando contra seus lábios. — Mesmo que tenha feito isso comigo. Mesmo que TENHA FEITO ISSO COMIGO!

Brick sufocava, gritando, agitando os punhos. Ela se dissolveu, espiralando e se desfazendo como açúcar na água, deixando apenas seu gosto metálico. Ele rastejou, agora desperto, arquejante e nervoso, as mãos na garganta como se de algum modo pudesse alargar as vias aéreas. Estava imerso em suor, a camiseta grudada no peito e nas costas, os olhos ardendo com o sal. O leopardo de brinquedo o encarava, e ele o encarou em resposta.

Grande cão de guarda, você — sussurrou ele, alcançando o laptop com a mão estendida e puxando-o para perto. Abriu-o, esperando o adaptador wi-fi conectar-se à internet. Tinha deixado aberta a página da sua pergunta no Yahoo, e recarregou-a, o coração batendo forte quando viu que alguém — PWN_U13 — já tinha deixado uma resposta. Sua empolgação não durou muito.

Caro maluco,
Ou você é totalmente pirado e imaginou essa tolice toda, e precisa de um terapeuta para os seus problemas mentais, ou é um pirado que deixou muita gente p*** e fez alguma loucura, e precisa de um terapeuta para as suas maluquices. Espero que isso ajude.

— Obrigado — disse ele a PWN_U13, atualizando a página de novo, só para garantir, antes de fechar o laptop com cuidado.

E se fosse só com ele? E se ele fosse a única pessoa no mundo com quem isso estivesse acontecendo? Lembrava-se de alguém lhe dizendo na escola que as pessoas podiam ser alérgicas umas às outras, ao óleo na pele ou à saliva delas. Beijar ou tocar aquela pessoa podia irritar a pele, ou até provocar uma espécie de choque. Brick não tinha acreditado na época — o garoto que havia falado aquilo também tinha dito que os chifres dos rinocerontes eram feitos de cabelo —, mas podia ser verdade. E se as pessoas de repente tivessem ficado alérgicas a ele? Àquela cara que ele tinha? Será que isso despertaria nelas a vontade de matá-lo?

Considerou voltar à internet. Dar mais uma pesquisada. Mas achou melhor não. Mesmo que fosse isso que estivesse acontecendo, procurar informações na rede não iria ajudá-lo. Não. Melhor esperar. Cedo ou tarde, alguém teria de dar uma resposta sensata, não teria? Brick apoiou a cabeça contra a parede, o coração ainda acelerado por causa do sonho.

Agora, ficaria acordado.


Daisy

Boxwood St. Mary, 15h48

Era como abrir uma porta para outro universo, a escuridão fria vertendo, emudecendo o calor e a luz do sol. A mudança de luz foi tão drástica que os olhos de Daisy precisaram de quase um minuto para penetrar a penumbra do corredor, a escuridão dentro da casa parecendo algo sólido e vívido.

Entrou, tirando a chave da fechadura e limpando os pés no largo capacho. O silêncio era imenso, como se tivesse envolvido a cabeça dela e a puxado para dentro. Apesar de a dor de cabeça ter sumido — ou talvez por causa disso —, sentia-se esquisita. Mais leve, de algum modo, como se parte dela não estivesse ali.

A casa estava vazia. Ela sempre conseguia perceber. Uma casa sem gente tinha uma atmosfera diferente, como se estivesse à espera de alguma coisa. Aquilo a assustava, e ela já tinha dito várias vezes aos pais que não gostava de ficar ali sozinha. Você já é quase adolescente, o pai costumava responder. Já não tem idade para ficar sozinha em casa? Já não tem idade para não se assustar com as sombras? Sim, ela era praticamente uma adolescente, mas isso não tirava num passe de mágica os medos que a haviam habitado aqueles anos todos. Um aniversário não deixava você corajoso da noite para o dia.

Daisy depositou a mochila no chão ao lado dos cabideiros, massageando o ombro no lugar onde a alça tinha deixado uma marca. Agora que o sol havia abandonado suas retinas, parecia mais claro ali, mas mesmo assim ela acendeu a luz do corredor, e também a luz da cozinha, enquanto andava até os fundos da casa. O pai estaria no trabalho — era contador em uma empresa em Ipswich. A mãe não tinha voltado ao emprego de professora depois da doença, mas muitas vezes saía para fazer compras, visitar as amigas, ou só para tomar ar fresco.

Ou será que estão no hospital?, o cérebro de Daisy sugeriu. Agulhas enfiadas nas veias da mamãe, o cabelo caindo em tufos, o rosto aparentando mil anos de idade, papai fingindo que os olhos estão vermelhos por causa do pólen, ou do cansaço.

Ela afastou esses pensamentos, indo até a pia e enchendo um copo da torneira de água filtrada. O quintal dos fundos, visto da janela, estava um caos. Sempre foi assim, ainda que tanto a mãe quanto o pai ficassem lá o tempo todo na primavera e no verão. O trecho de grama era curto, mas os canteiros de flores eram explosões de cores que tomavam conta do jardim — como um tumor — um pouco mais a cada dia. Logo, logo não poderiam sair mais pela porta dos fundos sem ser arranhados até a morte pelos espinhos.

Terminou a água e voltou pela cozinha, encaminhando-se para a sala de estar. Seria bom sentar e ver um pouco de TV; isso ajudaria a acalmá-la. Os acontecimentos na escola já pareciam ter ocorrido um milhão de anos atrás, vagos e distantes, como se os tivesse imaginado. Provavelmente a coisa não tinha sido tão ruim quanto parecera na hora. Nem era a primeira vez que tinha sido ignorada.

Havia acabado de sair da cozinha quando percebeu que algo estava errado. Voltou para a cozinha, olhando a caixa de chaves acima do aquecedor. Tinha feito aquela caixa no último verão do ensino fundamental. Havia uma aba que não fechava, porque ela tinha parafusado as dobradiças no lugar errado, e dentro dela havia nove ganchos em três fileiras para as chaves da família. Penduradas nesses ganchos, havia três chaves — a reserva, a da mãe e a do pai.

Daisy franziu o rosto, tocando-as, como que para ter certeza de que estavam mesmo ali. Os chaveirinhos de A Melhor Mãe de Todas e de Táxi (e Caixa Automático) do Papai que tinha comprado para eles no último Natal tilintaram. Não fazia sentido. Se as chaves estavam ali, isso significava... Eles ainda estão em casa, ainda estão lá em cima, ainda estão na cama.

Sua pele gelou, os pelos se arrepiando tanto que poderiam espetar alguém. Quase saiu correndo pela porta da frente, para o sol, antes de conseguir se acalmar. Não era para ela um grande choque os pais ainda estarem na cama. Ela já sabia — ou praticamente sabia — que a mãe estava doente, então fazia sentido que estivesse lá em cima, sob as cobertas, em repouso, o pai cuidando dela.

Então por que ela não subia e olhava?

Daisy ficou na porta da cozinha, sem poder se mover. Seu medo era grande demais para que o entendesse; parecia preencher seu corpo inteiro. Você só está preocupada e não quer vê-la outra vez doente daquele jeito, disse a si mesma. E teve tudo aquilo na escola hoje. Essas coisas estão deixando você nervosa demais, só isso. Mas não era só isso. Era a ideia do pai pressionando a cabeça contra a cama, olhando-a com aquele olhar esbugalhado e insano; a ideia de ficar para sempre em um casulo nos braços tão longos deles.

Daisy deu um passo à frente, e mais um, a determinação aumentando ao se encaminhar para a escada. Já estava no meio do caminho quando compreendeu o que havia acontecido. Foi como um soco no estômago, que a obrigou a se apoiar com as mãos e os joelhos nos degraus.

Era o cheiro. Ela o conhecia porque certa vez um gato fora atropelado e morto por um táxi na frente de sua casa. Nenhum dos vizinhos sabia quem era o dono, por isso a mãe o pegara e o colocara em uma caixa de papelão no galpão do quintal. Daisy — ela devia ter uns sete ou oito anos, não conseguia lembrar direito — tinha ido xeretar assim que acordara, antes de os pais se levantarem da cama, na esperança de que o gato tivesse voltado à vida, de que pularia da caixa, lamberia sua mão, miaria e ronronaria, e de que ela poderia ficar com ele, cuidar dele e garantir que nada de ruim lhe aconteceria outra vez.

Daisy abrira a caixa, e o cheiro fora descendo por sua garganta até chegar ao estômago. Não era um cheiro de podridão, o odor que você sente quando vai esvaziar o latão de lixo. Ele nem estava ali direito, mas ao mesmo tempo estava por toda parte. E, mesmo que só tivesse sete ou oito anos, Daisy sabia exatamente o que era aquele cheiro. Era a morte, pura e simples. Era o cheiro que a morte deixava quando tinha visitado a sua casa.

O cheiro estava ali agora. Tinha se impregnado em tudo — ao carpete da escada, às paredes com fotografias emolduradas. Estava também na sua pele, tão pungente que a princípio Daisy achou que era ela quem fedia; que a morte tinha vindo atrás dela.

Mas não era isso. A morte tinha passado por ali, mas não era Daisy que ela havia levado.

Forçou-se a subir os últimos degraus. Quase de joelhos, cruzou o patamar até o quarto dos pais. A porta estava fechada, e nela havia uma folha de papel em que a escrita caótica da mãe dizia: Daisy, não abra esta porta. Chame a polícia, meu amor. Por favor, não entre.

Ela estendeu a mão, como uma marionete, incapaz de deter a si própria. A maçaneta estalou, a porta rangeu, uma nova onda daquele cheiro desabou sobre ela, assentando-se em suas narinas. O fedor era tão forte que podia haver uma dúzia de gatos mortos em caixas dentro do quarto, duas dúzias, uma centena.

Ou uma mãe, sugeriu sua mente, a frase perversa surgindo de algum lugar de seu cérebro. Uma mãe, morta na cama, que o câncer levou deste mundo.

— Cala a boca! — gritou ela, as lágrimas escorrendo. Apoiou-se na maçaneta, tentando não respirar, mas os soluços continuavam esvaziando seus pulmões, forçando-a a sugar o odor pela boca. As cortinas pesadas ainda estavam bem fechadas, e parecia não haver ar no quarto escuro, apenas morte.

Havia duas figuras na cama, as mesmas de antes. Só que agora elas não se mexiam. Estavam sentadas e recostadas na cabeceira, uma apoiada na outra, duas silhuetas que faziam Daisy se lembrar das imagens que tinha visto na escola das vítimas de bombas nucleares no Japão, o contorno delas impresso no pavimento devido ao calor da explosão. Ela queria chamar os pais, mas não o fez. Não queria cair no silêncio, onde deveria estar a resposta deles.

Em vez disso, foi até a janela, achando que era a falta de luz que mantinha os pais imóveis. Talvez, se deixasse o sol, o calor entrar, ele mandaria a morte embora, eliminando o fedor do quarto.

Pegou o veludo pesado, puxando primeiro a cortina da direita, quase com força suficiente para arrancar a vara do apoio. A luz que penetrou era menos dourada e mais âmbar, de um tom queimado e viscoso. Lutou depois com a esquerda, puxando enquanto andava com ela. A cortina parou no meio, por isso precisou prender sua extremidade atrás do espelho ao lado. Olhou para o espelho, vendo os pais dormindo na cama — É isso, eles estão dormindo, claro. É só olhar de perto e vai ver que estão respirando.

Só que eles não estavam dormindo. E também não eram os pais dela. Havia algo de errado com o rosto deles, os músculos transformados em geleia sob a pele.

Uma represa de soluços irrompeu de seu peito, e Daisy desabou. Não lutou contra eles; só os deixou vir, sabendo que, o que quer que visse ao se virar, seria menos pior se todas as lágrimas já tivessem ido embora. Não sabia quanto tempo depois a última delas caiu de seus lábios trêmulos. Com um suspiro palpitante, sonoro, foi até a cama e se sentou na beirada do colchão, o mesmo lugar onde se sentara naquela mesma manhã, mas um milhão, um bilhão de anos antes.

Ela se virou para olhá-los. A cabeça da mãe apoiava-se no ombro do pai, e os dois pareciam mais em paz do que ela vira durante anos. Os rostos estavam pálidos, exceto por uma mancha colorida em cada bochecha. Os olhos encontravam-se fechados. Eles não pareciam de verdade. Pareciam modelos de plástico dos pais, como as pessoas de cera que tinha visto no Museu Madame Tussaud — tão quase humanos, tão claramente inumanos.

Porém, não havia como negar. Eram os pais dela, a mãe e o pai, as pessoas que a tinham gerado e criado, que a tinham visto em cada dia de sua vida, que tinham tomado conta dela quando estava doente, e a alimentado quando estava com fome, e a abraçado quando estava triste, e...

Daisy sentiu um grito crescendo em sua cabeça, a mente rodopiando como se a realidade houvesse saído dos trilhos e agora corresse em uma direção nova e assustadora. Não sentia mais vontade de chorar, tinha toda a certeza, se fosse capaz de se lembrar disso naquele momento. Olhou a mão da mãe entrelaçada à do pai, ambos imóveis como em uma fotografia. Perto deles havia outra folha de papel dobrada, seu nome gravado na frente. Daisy estendeu a mão e a pegou, abrindo-a. Era a letra da mãe, rabiscada em garranchos enormes, assustadores, insanos — e havia muitos deles. Examinou as linhas sem conseguir entendê-las, como se tivessem sido escritas em uma língua estrangeira. Somente o parágrafo final estava claro, inscrito em letras duas vezes maiores do que o restante:

Por favor, me perdoe, Daisy. Você por acaso já não sentiu isto? Alguma coisa se aproxima, meu amor, algo ruim, e ela nos teria feito machucar você. Eu já sentia alguma coisa dentro de mim, algo pedindo que eu fizesse coisas terríveis com a minha pequena Daisy, com a minha querida filhinha. Não acho que seja a doença. Não, com certeza NÃO é a doença. Cuidei do seu pai para você. Não tenho certeza de que ele a teria ferido, mas acho que sim. Nós dois teríamos. Tome cuidado, seja forte. Amamos você, Daisy; não tivemos escolha. Não podíamos machucar você. Não podíamos fazer nada para machucá-la. E nós TERÍAMOS machucado você.

Aquele último “teríamos” tinha sido sublinhado com tanta força que a caneta havia furado o papel. Daisy não leu o bilhete outra vez. Com cuidado, dobrou-o e o recolocou na cama. Sua cabeça estava recheada de isopor e algodão. Pensamento nenhum entrava ou saía. Levantou-se, querendo apenas sair daquele quarto com sua luz laranja-vômito e seu colossal fedor de morte. Com calma, desceu até a cozinha, tirando o telefone sem fio da base e discando o número de emergência. Alguém atendeu no terceiro toque.

— Emergência. Qual serviço você busca? — perguntou uma mulher.

— Uma ambulância, por favor — disse Daisy, como se pedisse uma pizza. — Meus pais estão mortos. Minha mãe se matou. Ela matou meu pai também.

Fez-se uma pausa, e em seguida a mulher falou:

— Meu Deus do céu. — Daisy achou aquilo uma coisa idiota de se dizer. — Aguarde na linha. — Ouviu-se um clique, e depois Daisy falou com outra pessoa, um homem. Ela respondeu às perguntas dele sem pensar muito, o olhar fixo no quintal, sem ver as flores, a grama ou o céu; sem ver nada.

— A ambulância vai chegar logo, está bem? — disse o homem. — Só mais uns minutos e estaremos aí.


Cal

Oakminster, 16h

Sentado na sala de estar, Cal aguardava imagens dele próprio aparecerem na televisão; esperando para ver o próprio rosto aos gritos enquanto fugia da caçada. A casa estava vazia, como sempre ficava naquela hora do dia. Seu pai, um homem de negócios que nunca gostava de falar sobre a espécie de negócios com que estava envolvido, encontrava-se no exterior, e a mãe era voluntária na loja de caridade da esquina nas tardes de terça a sexta. Sentia-se contente por não estarem ali. Por mais que quisesse falar com eles, ouvi-los dizer que tudo daria certo, não sabia o que aconteceria quando o vissem — E se começarem a caçá-lo também, Cal? Eles podem querer perseguir você, chutá-lo e esmagá-lo no chão, exatamente como todo mundo quer fazer —, e precisava descobrir o que estava acontecendo antes que eles entrassem em casa. Precisava pensar em seus próximos passos.

Seu corpo inteiro tremia. As últimas horas não pareciam ter sido reais, não podiam ser reais. Esse tipo de coisa não acontecia, exceto nos filmes. E, no entanto, flores horrendas e roxas brotavam em seus braços, no peito, no pescoço e nas costas, onde havia sido agarrado e espancado. Tinha uma marca de mordida na mão e nem se lembrava de como ela fora parar ali.

Quase não havia conseguido chegar em casa. O carro parecia atrair pessoas da calçada como um ímã. Estranhos se lançavam aleatoriamente contra ele, sendo arremessados para longe como sacos de carne, contorcendo-se em seu retrovisor. Esperou ver a polícia atrás de si; quis ver a polícia ali, para que pudessem tomar conhecimento de tudo aquilo. Mas não havia polícia, nem ambulância, só um exército tentando abrir caminho para dentro do carro.

A multidão foi diminuindo à medida que se afastava da escola, desaparecendo por completo quando chegou à sua rua, quinze minutos depois. Havia parado o carro ensanguentado dentro da garagem dupla de sua casa, para que ninguém o visse, antes de entrar cambaleando. Nem sequer chegara ao sofá, caindo de joelhos ao lado da TV, onde ainda estava sentado.

O canal Sky News, com noticiário vinte e quatro horas, já tinha informado todas as manchetes, mas não havia nada sobre uma turba selvagem querendo atacar um garoto de dezessete anos no leste de Londres. Deixou a TV ligada, levantando-se e forçando as pernas dormentes a cruzar a sala e chegar à mesa do computador, ao lado das portas francesas. Deixou-se cair na cadeira, ligando a máquina e fechando os olhos enquanto a esperava ligar.

Imagens projetavam-se contra a tela escura de suas pálpebras: bocas escancaradas, dentes estalando, unhas manchadas com seu sangue, e cem pares de olhos, todos faiscantes de ódio, transbordando raiva, esbugalhando-se para fora das órbitas.

Queriam matá-lo, sem motivo mas também sem dúvida. Por quê? O que teria feito para provocá-los?

Abriu o Internet Explorer, carregando a página do Yahoo. Examinou os links à esquerda, sem saber direito o que fazer. Estava prestes a clicar na página do noticiário quando o bolso começou a vibrar, causando-lhe um sobressalto tão forte que os joelhos bateram contra o tampo da escrivaninha. Pegou o telefone. Era Megan. Encarou o nome pixelado sobre uma foto dela com duas canetas na boca, fingindo ser uma vampira, por um tempo que pareceu horas. Atendeu.

Silêncio. A boca estava seca demais para formar palavras.

— Cal? — disse ela enfim, e ele ficou aliviado porque a voz dela parecia distante. — Está sabendo das notícias?

De que vocês todos tentaram me matar? Isso, porém, resumiu-se a um grunhido.

— A Georgia está no hospital. Foi pisoteada. Aonde você foi, Cal? Precisávamos de você.

Cal afastou o telefone da orelha, esfregando os olhos e depois olhando a foto dela de novo, para ter certeza de que o telefonema era real. Ouviu Megan gritar seu nome e aproximou-o de novo da orelha.

— Tudo bem? — perguntou ela. — As coisas ficaram meio esquisitas na escola. O pessoal acha que houve um problema com a arquibancada, que o pessoal lá no fundo achou que tudo ia desabar, sei lá. Quase tivemos um desastre.

— Megan, — ele enfim foi capaz de responder — do que você está falando?

— Hoje, durante o jogo — disse ela. — Você deve ter visto. Achamos que foi por isso que você fugiu. Aliás, obrigada, meu herói.

Ela não se lembrava de tê-lo perseguido? Não vira o que tinha acontecido no campo, depois na rua? Talvez na confusão ela não tivesse se dado conta dos acontecimentos — Mas ela estava ali, você a viu estendendo o braço para você através da cerca, o rosto fervilhando de raiva —, talvez tivesse apenas se deixado levar pelo calor do momento, alguma espécie de histeria de grupo, algo assim. Tinha ouvido falar desse tipo de coisa, um monte de gente desmaiando ao mesmo tempo, ou pirando. Ela ainda falava, rápido, como sempre falava quando as emoções a dominavam.

— Vocês tentaram me matar — interrompeu ele. Megan deve ter dito mais umas duas dúzias de palavras antes de absorver essas palavras.

— O quê? — disse ela após uma pausa. — Fala sério, Cal. Não estou de brincadeira. A Georgia está com uma perna quebrada, a clavícula fraturada ou algo assim, e eu... Bem, eu torci o dedo, o que não é grande coisa, mas dói mesmo assim. E foi assustador. Cal, aquela gente toda.

Acha mesmo?, quase cuspiu ele.

— Cal, por favor, você encontra a gente lá no hospital? Estaremos na ala pediátrica. A Georgia não queria ficar nela, mas disseram que era nova demais para a seção dos adultos. Tem um Xbox lá. Você vem? Por favor?

Não havia nem um traço de falsidade na voz dela, nenhuma sensação de que ela tentava atraí-lo para que pudessem atacá-lo de novo. Era apenas Megan, assustada, ferida, mas a mesma garota que conhecia fazia onze anos; a mesma garota com quem tinha saído por dois meses quando estavam no Ano 5; que tinha feito para ele um coraçãozinho de clipes de papel multicoloridos que ainda guardava no parapeito da janela de seu quarto. Ainda que a tivesse visto correndo atrás dele, os dentes cerrados, o rosto uma máscara de pura fúria, não era capaz de ficar zangado com ela.

— Eu vou — disse ele baixinho. Era mentira, só para que ficasse mais calma. — Só me dê um tempinho, está bem? E mande um oi pra todo mundo. Tomara que consigam consertar seu dedo.

Megan riu.

— Obrigada, Cal. Te amo.

Ele não respondeu, e depois de um ou dois segundos ela desligou. Ficou sentado ali com o celular contra o ouvido, sem compreender aquela conversa. Por que ela não se lembrava? Será que o choque ou alguma coisa a tinha feito bloquear essa lembrança? Não fazia o menor sentido. Pensou em ligar para Georgia, para ver se ela sabia o que tinha acontecido. O número de Nas também estava em algum lugar da agenda. Mas o que exatamente ele diria? Ei, Nas, estou te ligando só para perguntar por que tentou me estrangular no campo de futebol da escola. Era uma maluquice, e jogou o celular sobre a escrivaninha com um grunhido de frustração.

Pense, Cal, disse a si próprio, reclinando-se na cadeira. O que você vai fazer?

Havia regras para sobreviver a um desastre natural, tinha lido a respeito. Haviam sido elaboradas para terremotos, vulcões, furacões, coisas assim, mas achava que funcionariam para esse caso também. Primeira regra: encontre um lugar seguro. Tinha feito isso; estava em segurança ali, pelo menos por ora. Segunda regra: verifique se há ferimentos e faça o máximo para garantir a própria sobrevivência. Bem, ele estava bem surrado, mas não ia morrer de hematomas e mordidas. A terceira regra era procurar sobreviventes, garantir que ninguém estivesse sob escombros, ou isolado pela lava, ou no telhado das casas. A terceira regra consistia, essencialmente, em ver se alguém mais estava na mesma situação.

Cal inclinou-se para a frente, clicando na busca do Yahoo. Parou por um instante, tentando encontrar o melhor jeito de formular a pergunta, e escreveu:

“Por que todo mundo está tentando me matar?”


Daisy

Boxwood St. Mary, 16h13

— Como foi que ele ficou assim?

Daisy disse essas palavras bem baixinho enquanto penteava o cabelo da mãe. Foi mais fácil do que de costume, porque o pescoço dela estava realmente rígido, quase paralisado, e por isso a cabeça não se mexia. Ela fez um rabo de cavalo, tentando não notar o quanto a pele da mãe estava fria.

Saiu da cama, observando-a. Era tão fácil esquecer — Não fale, não pense nisso, não é verdade; o pessoal da ambulância vai dar um jeito de tratá-los — que desta vez eles não iam acordar. Que não bocejariam nem se espreguiçariam; que o pai não faria um carinho em sua cabeça; que a mãe não lhe daria um beijo; que não pediriam comida chinesa nem comeriam na frente da TV.

Daisy tinha a sensação de que deveria estar chorando, mas cada pedaço seu estava dormente. A única coisa que sentia de verdade era uma enorme pressão no peito, como se alguém estivesse sentado nele. Era difícil respirar, e ela precisava inalar grandes porções daquele horrível cheiro de gato encaixotado para que o quarto parasse de girar e ficar estranho. Sabia, ou ao menos achava que sabia, que estava em choque. Mesmo que não se sentisse efetivamente chocada, como se tivesse levado um susto ou colocado o dedo na tomada. Não era desse jeito. Era mais como um grande nada.

O quarto balançava, e Daisy, erguendo os olhos, viu uma fina luz azul bruxulear pela janela, como se estivesse debaixo da água. Foi dar um beijo na bochecha da mãe, mas parou no meio do caminho, ao pensar na pele úmida e pálida contra seus lábios. Em vez disso, soprou um beijo, afastando-se da cama para esconder a cara de culpa e também para olhar pela janela.

— Eles vão cuidar de vocês — disse ela, afastando a cortina e vendo uma ambulância do lado de fora, estacionada bem ao lado do carro deles, com duas rodas na calçada. Um homem de sobretudo verde saiu, arqueando as costas. O outro ficou na ambulância. Daisy não conseguiu ver direito o rosto dele por causa do reflexo do sol no para-brisa. As luzes azuis piscaram, e Daisy então se deu conta de que aqueles estranhos levariam os pais dela embora naquela coisa, para serem enterrados ou incinerados.

Aquele peso horrendo em seu peito pareceu se avolumar, e ela precisou apoiar a testa contra o vidro frio para evitar perder o equilíbrio. O homem piscou algumas vezes à luz do sol, erguendo a mão na testa para proteger os olhos. Depois, abriu um sorriso triste e acenou. Daisy acenou em resposta, mas não foi capaz de sorrir. Seu rosto parecia tão duro e plastificado quanto os da mãe e do pai. O homem olhou de novo para dentro da ambulância. Depois, começou a se dirigir para a casa, levando consigo um saco. Não parecia ter muita pressa.

Daisy parou no alto da escada. Tinha deixado a porta da frente destrancada para o pessoal da ambulância poder entrar, mas o homem tocou a campainha mesmo assim, virando a maçaneta enquanto as batidas do Big Ben invadiam a casa. De onde estava, só conseguia ver a parte de baixo da porta, um par de sapatos pretos pisoteando o capacho.

— Olá — disse Daisy. O homem respondeu, mas ela não entendeu direito o que foi dito. Tinha começado como uma palavra — olá, pensou ela —, mas, ao chegar ao l, a palavra foi alongada e perdeu sua articulação, parecendo mais um grunhido, um ronronado gutural que preencheu o corredor abaixo. Ele deu um passo arrastado à frente, as pernas apareceram, e depois ele fungou.

— Olá? — repetiu ela, a incerteza transformando a palavra em pergunta. As pessoas que trabalhavam em ambulâncias deviam ser gentis, não deviam? Deviam ser amáveis, prestativas, e nos curar quando estamos doentes.

Então por que ela sentia aquele frio esquisito na barriga?

Porque vieram buscar a mamãe e o papai, só isso, disse a si própria. Nessa situação, qualquer pessoa sentiria um frio esquisito na barriga.

O homem deu mais um passo, depois mais outro, o tronco surgindo agora, e em seguida os ombros, e...

Não era o mesmo homem. Outra pessoa havia entrado na casa dela. Não, não era alguém, mas uma coisa, uma coisa que vestia as roupas do homem e tinha o cabelo dele, carregando sua bolsa, mas uma coisa que não estava ali para ser amável nem prestativa. Era uma coisa ruim, que usava o rosto do homem como máscara, a boca escancarada como a de um cavalo, os dentes enormes, afiados, amarelados.

Seus passos eram pesados escada acima, e agora tinham mais pressa do que Daisy já tinha visto na vida, tão rápidos que aquilo tropeçou em um dos degraus, batendo a testa na madeira. Mas ele não pareceu se importar. Continuou subindo de quatro. O som era ensurdecedor.

Daisy esperou até que chegasse à metade da escada, antes que a parte dela que dizia Não se preocupe, ele está aqui para ajudar estivesse total e completamente consumida pela parte que berrava SAIA JÁ DAÍ! CORRA! ELE É DO MAL! Ela recuou no patamar, sem conseguir desgrudar os olhos dele. Aquela coisa chegou ao alto da escada, fios de saliva escorrendo dos lábios, o olhar faiscante. Ele usou o corrimão para se levantar, apoiando-se com tanta força que arrancou um pedaço da madeira.

Daisy gritou, virou-se e correu para o quarto dos fundos, os grunhidos animalescos do homem bem atrás dela. Conseguiu chegar, batendo a porta e se recostando nela. O homem acertou-a um segundo depois, a madeira fazendo um som que parecia um tiro de pistola. Todas as portas da casa possuíam pequenos trincos de segurança, e ela o acionou assim que a maçaneta girou. O homem arremessou-se contra a porta, e uma lasca caiu pela lateral. Daisy cambaleou para trás. Aquele era o quarto menor, onde mal cabiam a cama de solteiro contra a parede e as pilhas de roupas velhas que dormiam nele, e, ao dar três passos para trás, já tinha batido na janela.

A porta estalou de novo, fragmentos de gesso despencando do teto. Pôde ouvir ainda outros passos martelando pelo corredor. Punhos e pés esmurravam a porta. Por que as pessoas faziam isso? Por que estavam com tanta raiva dela? Será que achavam que ela tinha matado os pais?

— Eu não matei ninguém! — gritou ela, a voz perdendo-se em meio aos estrondos. — Não fiz nada!

A porta saiu voando com tanta força que arrancou um pedaço da parede. O homem parecia ocupar o quarto inteiro, um gigante cuja boca de cavalo relinchante era grande o suficiente para engoli-la inteira. As pernas de Daisy bambearam, mas, antes que tocassem o chão, as mãos enormes dele alcançaram seu tronco, para jogá-la através da janela.

O vidro explodiu, o universo estilhaçando-se em mil cacos cintilantes enquanto Daisy caía. Acertou o telhado da extensão da cozinha, a dor como fogo em cada parte do corpo. Rolou, quicando na calha, outra vez em pleno ar, até que o arbusto de azaleias amorteceu sua queda.

Além da própria dor, além do estrondo do sangue correndo nos ouvidos, Daisy podia ouvir os gritos das pessoas acima dela. Sentou-se, sem ver nada além da luz prateada e ofuscante por um segundo, antes de o quintal voltar a seu campo de visão. Saiu cambaleando pelo canteiro de flores, sem confiar em si para ficar em pé de novo, arrastando-se de lado pelo quintal feito um caranguejo. Só quando tinha passado da parte central e espiralada da sebe foi que ousou olhar para trás.

A janela do quartinho não tinha ninguém.

O galpão ficava nos fundos do quintal. Não ficava trancado, porque estava caindo aos pedaços, o telhado quase despencando. Abriu a porta e se jogou na extremidade oposta. Uma névoa de madeira embolorada e grama úmida do cortador envolveu-a, mas aquilo era muito melhor que o fedor da casa. Respirou fundo, ouvindo o rangido familiar da porta dos fundos.

Por favor, não me achem, por favor, não me achem, pensava ela, o coração batendo tão alto que a rua inteira deveria ser capaz de ouvi-lo. Pegadas surgiram do outro lado do quintal. Daisy apertou os joelhos contra o peito, tentando diminuir tanto quanto possível, tornar-se menor do que realmente era, pequenina como os tatuzinhos que subiam com pressa pelos seus calçados. Deus, por favor, não permita que eles descubram onde estou, eu imploro.

Os ruídos silenciaram. Mesmo assim, Daisy não ousava se mexer, ainda que a pele ardesse e pudesse ver uma folhinha de grama reluzindo em seu braço, ainda que o ombro e o tornozelo latejassem. Encolheu-se em silêncio, os olhos cerrados, rezando, rezando, rezando.

Vozes. Conseguia ouvi-las, ainda que não fossem tão audíveis a ponto de entender o que diziam. Uma delas ela reconheceu. Era a velha senhora escocesa que morava ao lado, a sra. Baird. Ela sempre dava a Daisy uma caixa de Quality Street no Natal e uma nota de cinco libras em seu aniversário. A outra voz era de homem, um ribombar grave. Incrivelmente, ambos riam.

Não pôde suportar mais ficar sem saber o que estava acontecendo. Levantou-se e avançou ao longo das paredes do galpão, tomando cuidado para não tropeçar em nenhuma tora de lenha. Respirando fundo, olhou pela janela suja.

Os homens da ambulância estavam ali, os dois. Só que o segundo era uma mulher, não um homem. Estava postado ao lado da cerca, em uma poça de cacos de vidro. A sra. Baird estava do outro lado, apontando para a janela do quartinho. O homem deu de ombros, observando o jardim. Daisy se agachou, mas não conseguiu evitar dar outra espiadinha.

A paramédica entrou de novo na casa, pela porta dos fundos. O homem apertava a mão da sra. Baird — Estas são as mãos que me jogaram da janela! As mãos que tentaram me matar!, queria berrar —, e ambos riam outra vez. Então ele foi atrás da mulher dentro da casa.

Daisy observou a porta se fechar, em parte aliviada porque, por algum motivo que não compreendia, pareciam ter desistido de procurar por ela, mas em parte desejando que continuassem ali fora, porque sabia que agora iam levar seus pais; sabia que não a deixariam se despedir deles. Encolheu-se sob a janela, colocou a cabeça entre as mãos e começou a chorar.


Brick

Fursville, 16h30

Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo.

Brick tinha vontade de tirar o laptop ali de Fursville e jogá-lo no mar. Aquilo o estava deixando maluco. Estava sentado no saguão havia quatro horas, e nos últimos quarenta e cinco minutos mais ou menos ficara com o computador no colo, atualizando sem parar a página do Yahoo. Tirando os anúncios, não havia nada de novo cada vez que a página era atualizada. Só sua pergunta desesperada, e aquilo que algum idiota considerava ser uma resposta engraçadinha. Brick queria encontrar PWN_U13 e jogá-lo no porão com Lisa, para vê-la arrancar sua garganta. Depois disso, veriam quem é que tinha problemas psicológicos.

Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo.

— Vamos lá, sua porcaria — gritou Brick, agarrando o laptop pela tela e o sacudindo. A bateria agora já estava em um quarto. Se acabasse... bem, preferia nem pensar nisso. Deveria conservá-la, mas, quanto mais tempo ficava ali, mais ansioso e com raiva se sentia. Praguejou, pronto para começar a arrancar os cabelos.

— Vê se funciona direito!

Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo.

Desta vez, ele efetivamente socou o teclado, escrevendo kjhhjuk na caixa de pergunta. Deletou e trocou por “E se eu jogasse você no chão e pisasse nos seus miolos eletrônicos imbecis?”. Apertou enter, sem ficar surpreso quando o Yahoo lhe disse que não havia encontrado nenhuma resposta. Voltou para a página principal. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo.

Apesar de não serem ainda cinco horas, parecia estar ficando mais escuro no saguão, e mais frio também. A ideia daquele cobertor noturno estendendo-se pelo planeta, pronto para enterrar juntos a ele e Lisa, era assustadora. Na escuridão, não saberia se ela havia escapado; se estava à espreita nos corredores; se estava bem ao lado dele...

Seu corpo inteiro estremeceu, e ele afastou aquela imagem. Alguma coisa aconteceria antes disso. Ele descobriria o que fazer.

Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo.

Sua raiva era como uma coisa viva dentro dele, garras enfiando-se em sua garganta rumo ao cérebro, fazendo-o gritar. Seu humor, é verdade, nunca fora muito estável. Tinha o mesmo pavio curto do pai. O humor do pai mudava como um interruptor de luz sendo apertado, em um instante feliz, brincalhão, fazendo piadas, e literalmente — literalmente — no próximo segundo os olhos escureceriam, o sorriso sumiria dos lábios, e a mão estaria erguida. Paf! Pare de encher o saco, Brick. Cresça, Brick. Se manda, vai cuidar da sua vida.

Brick não era tão ruim assim, de jeito nenhum. Mas houve momentos em que havia berrado com Lisa, quando ela tinha lhe dado nos nervos de tal maneira que quase levantara a mão contra ela. Quase. O mais perto que chegara disso fora enquanto tomavam cidra na casa dela, quando os pais dela tinham saído, e ele arremessara o copo no canto do quarto. Nem conseguia lembrar por que ficara tão furioso naquele dia. Alguma coisa a ver com o ex dela. Havia tido um branco, o mundo inteiro tornara-se um fósforo incandescente. E, durante o segundo que a sensação levou para passar, poderia ter feito qualquer coisa. Por sorte, não a tinha machucado. Não achava que seria capaz de feri-la de verdade — exceto em autodefesa. Não era esse tipo de cara.

Porém, quanto a detonar o laptop, não teria dificuldade nenhuma caso seu humor atingisse outra vez os mil graus.

Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atuali- zando. Nada...

Já se habituara tanto a essa rotina que levou alguns segundos para perceber que algo tinha mudado. Havia outra resposta abaixo da primeira, e o disparo de adrenalina que agitou seu organismo quase o impediu de lê-la. Respirou fundo, estremecendo, e fechou os olhos por um instante, sentindo-se um pouco mais calmo ao abri-los. A resposta era de alguém chamado CalMessiRonaldo.

Wtf, cara? tá falando sério? isso tbm aconteceu comigo eu tava na escola e todo mundo me atacou sem motivo, me perseguiu até a rua e eu precisei roubar um carro pra fugir. acho que atropelei umas pessoas. por que isso está acontecendo? o que eu faço?

Brick se inclinou em direção à tela, lendo a mensagem de novo, e de novo, e de novo, tentando entender se era verdade ou se era algum outro idiota que se achava comediante. Nada ali levava a crer que fosse piada. Apesar de ser difícil captar alguma coisa de alguém lendo uma mensagem, Brick teve a sensação de que aquele cara — aquele garoto, se tinha mesmo sido atacado na escola — estava assustado.

Digitou uma resposta embaixo da do garoto.

Olha, não estou de brincadeira, isso realmente aconteceu comigo. Se está falando sério, então eu preciso falar com você.

Ele parou, lendo de novo o que tinha escrito e deletando tudo, para recomeçar.

Preciso falar com você. Vou criar um fórum. Vou chamá-lo de...

Parou de novo, tentando pensar.

Odiados, o.k.? Assim a gente pode conversar sem ninguém ver. Mas você tem que ser rápido.

Ele postou, verificou a bateria do laptop e criou o novo fórum.

O que aconteceu com você? Está sozinho? Sabe se aconteceu com mais alguém? Não sei o que fazer.

Pensou em escrever mais, em contar ao garoto sobre Lisa, mas alguma coisa o deteve. Podia ser um truque, um jeito de a polícia descobrir onde ele estava. Era improvável, mas não tinha como ter certeza. Pelo menos ainda não. Ia esperar para descobrir quem ele era; esperar para ter certeza de que podia confiar nele. Porém, não havia como impedir aquela onda azulada e tranquilizante de alívio que umedecia o fogo em suas vísceras, pensando que, no fim das contas, não estava sozinho nessa.

— Vamos lá, CalMessiRonaldo — disse ele. — Não me deixe esperando.

Olhou para o relógio na tela: 16h42. Reclinou-se contra a parede.

Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo. Atualizando. Nada de novo.


Cal

Oakminster, 16h45

Cal pegou outro casaco no caos que era seu armário e enfiou-o na mochila cilíndrica em cima da cama. Já tinha colocado meia dúzia de camisetas, todos os seus jeans e calças de exercícios, e outros dois casacos. Tinha esvaziado a gaveta de cuecas e calçado outro par de tênis. A bolsinha com a escova de dentes e outros itens de higiene estava sobre o travesseiro, com o carregador do celular.

Parte dele ainda achava isso uma ideia idiota. Mas era a mesma parte que insistia em que aquilo que tinha acontecido à tarde era apenas um grande mal-entendido; que tinha realmente ocorrido uma confusão na arquibancada, e ele acabara ficando no meio dela. Era a mesma parte que dizia que Nas não quisera estrangulá-lo de verdade; que aquelas pessoas não tinham pulado sobre o carro só para matá-lo.

Essa parte dele estava errada.

Eles — amigos, professores, estranhos da rua — tinham tentado matá-lo. E, se tinham tentado, então parecia fazer um tenebroso sentido que outras pessoas tentassem também. Outras pessoas, como sua mãe. Se isso acontecesse, precisava estar preparado.

Tirou o casaco do gancho atrás da porta. Era verão, o mais quente de que podia se lembrar. Porém não sabia quanto tempo ficaria fora.

Fora onde?, perguntou-se, ao colocar o casaco na mochila. Aonde você vai, Cal? Não sabia, não ainda. Mas pensaria em algo. Não ficaria sozinho. Não, porque todo mundo adora Callum Morrissey, certo? Todos gostam tanto dele que só querem abraçá-lo e apertá-lo até que fique em pedaços.

Talvez não precisasse ir a lugar nenhum. Talvez sua mãe voltasse como sempre voltava e lhe desse um abraço, dizendo-lhe que tudo daria certo, e cuidasse dele. Era isso que as mães faziam, não era? Mas até ela estava agindo de um jeito esquisito naquela manhã. Estava agindo exatamente como os amigos dele antes de tentarem matá-lo. Ignorar esse fato poderia custar-lhe a vida.

Deu uma verificada rápida no armário para ter certeza de que não tinha esquecido nada, depois tirou a mochila da cama — pesava uma tonelada — e foi para o corredor. Entrou no quarto dos pais, sendo tomado por uma sensação de culpa ao adentrar o closet. No fundo de uma prateleira baixa, ficava o cofre do pai.

Ficou de joelhos, tirando a pilha embolorada de camisas velhas e jogando-a para o lado. O pai jamais desconfiara de que Cal soubesse a combinação. O fato era que já fazia três anos que sabia, e tinha demorado quase esse tempo para descobri-la. Praticamente toda vez que os pais saíam, Cal havia ido lá para tentar diferentes sequências de números — aniversários, datas memoráveis, números de telefone, equações matemáticas que tinha aprendido na escola. Nada havia funcionado, mas ele nunca tinha desistido. Não sabia sequer o que havia no cofre. O pai — sempre que estava por perto, ou seja, quase nunca — tinha se recusado a lhe contar. Aquilo tinha se tornado então uma espécie de missão secreta, como se fosse um espião, e a segurança do mundo dependesse de ele um dia conseguir descobrir o segredo. Ficara obcecado.

Enfim, quando tinha catorze anos, Cal descobriu. Uma noite, ele e os pais ficaram conversando. Os dois estavam de ótimo humor, o melhor desde muito tempo. E contavam para Cal como haviam se conhecido, em uma festa no West End.

Você estava linda, disse o pai, lançando para a mãe um olhar que Cal não tinha entendido na época, mas que conhecia bem demais agora. Você era a minha perfeita 90, 60, 90.

Os números eram um mistério, mas, no dia seguinte, quando chegou da escola, ele tentou usá-los para abrir o cofre, sem conseguir conter o riso ao ouvir o clique e ver a pequena porta sólida se abrir.

Ela se abriu agora também, e a lembrança foi forte o bastante para fazer deslizar um riso insano de sua garganta. Sufocou-o, correndo o olhar pelo quarto para ter certeza de que não estava sendo observado antes de voltar a atenção para o cofre. Ali dentro estavam as mesmas coisas que tinha visto pela primeira vez três anos antes. Do lado direito havia uma pilha de dinheiro — notas de dez, vinte e cinquenta, todas emolduradas em tijolinhos perfeitos. A quantidade mudava toda vez que Cal olhava, mas uma vez havia contado, e o valor ficara em mais de cem mil libras — mais do que suficiente para Cal roubar algumas centenas de vez em quando sem ser descoberto. Ao lado havia uma caixinha pequena e achatada que continha as joias mais valiosas da mãe. Repousando na caixa havia um HD portátil que ele tinha certeza de que só continha fotos e dados pessoais da família — nunca se dera o trabalho de investigar.

Havia outra coisa no cofre, e era isso que Cal procurava. Algo pesado, muito mais pesado do que tinha o direito de ser; muito mais pesado do que parecia nos filmes. O cabo de madeira polida encaixava-se com perfeição na palma úmida, o cano de prata fosca era muito mais longo do que a versão Airsoft BB que Cal tinha no armário ao lado da cama. Verificou o tambor — seis buracos vazios encarando-o em resposta — e depois o fechou com uma rápida sacudidela de punho. Armou o cão, os tendões da mão doendo com o esforço, e então apertou o gatilho. Clique.

Já brincava com aquela arma havia três anos, mirando e disparando-a em mil jogos imaginários. Uma vez tinha até colocado balas da caixa marcada .38 nos fundos do cofre, ainda que, nessa ocasião, não tivesse ousado puxar o cão, para evitar abrir um buraco na parede do armário, ou quem sabe na própria perna. Cal achava difícil imaginar o pai — que era calvo, usava óculos e normalmente era manso e delicado — com a arma na mão. A mãe sempre o descrevia como “empresário”, ainda que suas empreitadas envolvessem viagens mensais à Espanha e muita gente esquisita aparecendo em casa depois que escurecia. Cal no fundo sabia a verdade, claro, ainda que nunca houvesse sido capaz de admiti-la. Seu pai estava do lado dos bandidos.

Cal pegou dois maços de notas — no valor de alguns milhares, imaginou — e a caixa de balas. Fechou a porta e girou a combinação, ouvindo o ruído da tranca. Parou apenas um instante, a dúvida perturbando-o nas profundezas da mente. Se fosse pego com uma arma, uma arma de verdade, não ia ganhar só um tapinha e um sermão dos policiais. Ia enfrentar um bom tempo atrás das grades, isso sim.

Mas, se não a levasse...

Imaginou a multidão socando-o; os dedos em garra arranhando-lhe a pele; mãos roliças apertando sua garganta. Se não levasse a arma, cedo ou tarde lamentaria.

— Vamos ver se vocês vêm atrás de mim agora — disse ele baixinho, apontando a pistola para o quarto. Porém a ideia de dispará-la, de atirar de verdade em alguém, dava-lhe náuseas.

Levou seu tesouro roubado de volta ao corredor, colocando a arma com cuidado na mochila, enterrando-a em um ninho de roupas. Colocou também um dos maços de notas, fechando bem a mochila. Olhou para o outro maço e folheou-o como se fosse um livro animado, o rosto imutável e franzido da rainha nas notas encarando-o. Pensamentos sobre novos tênis ou jogos para o Xbox borbulharam na superfície de seu cérebro, mas ele os afastou. Se as coisas estavam ruins como pareciam, aquele dinheiro era para sobreviver — comida, abrigo, talvez até transporte para sair logo dali, até que o que quer que estivesse acontecendo parasse de acontecer.

Enfiou o dinheiro no bolso das calças de corrida que tinha colocado enquanto fazia as malas, jogando a mochila sobre o ombro. Desceu, passou pelo jardim de inverno e pelo curto corredor que levava à garagem, deixando a mochila perto da porta. Então voltou à sala, parando na cozinha para pegar uma garrafa de Dr. Pepper na geladeira. O computador estava ligado, a página do Yahoo Respostas, como ele a tinha deixado. Fora a primeira coisa a aparecer no Google quando Cal digitara “Por que todo mundo está tentando me matar?”. Deu um gole da bebida, o açúcar revigorando-o, e então clicou em atualizar.

Havia um comentário abaixo de sua resposta, e Cal sentiu um misto de alívio e pânico ao lê-lo. Alívio por não estar sozinho. Pânico porque, se tinha acontecido com outra pessoa, lá fora as coisas deviam estar realmente ruins. Passou o mouse sobre o nome de usuário do sujeito, Rick_B, e clicou no link para o fórum privado chamado Odiados. Havia uma grande probabilidade de o sujeito ser apenas um maluco da internet querendo jogar conversar fora. Não importava. Agora Cal tinha uma arma e podia se defender.

E talvez — um talvez bem incerto — o sujeito estivesse falando a verdade.

— O.k., senhor B — disse ele enquanto o fórum carregava —, vamos ver o que tem para me contar.


Brick

Fursville, 16h50

CalMessiRonaldo: é que nem eu falei, eu estava na escola jogando futebol e todo mundo começou a me perseguir. não era de brincadeira, achei que era no começo, mas depois tentaram me estrangular e me socar, e me perseguiram até fora da escola na rua e vieram outros atrás de mim também, a galera que estava no supermercado. só escapei por causa do carro. iam me matar. e vc?

Brick colocou outra garrafa de refrigerante na boca, mastigando devagar enquanto relia o post que aparecia abaixo do seu. Engoliu, estendeu as mãos e escreveu:

Rick_B: Minha namorada tentou me matar, tentou morder minha cara. Depois ela ficou se jogando na porta quase até morrer pra arrebentar tudo e me alcançar. Estou escondido num lugar seguro, que ninguém conhece. preciso descobrir o que está acontecendo. Alguma ideia?

Ele postou, pegando mais uma bala Haribo do saco. Ajeitou-se no chão duro, perguntando-se se devia subir até o restaurante, onde havia cadeiras confortáveis e mesas. Não ousava se mexer, porém, para evitar perder a conexão com a única pessoa que talvez pudesse ajudá-lo. Queria atualizar a página imediatamente, mas forçou-se a esperar cinco minutos — contando mentalmente até trezentos, devagar, o silêncio avassalador do saguão quase fazendo-o dormir enquanto contava — antes de clicar.

CalMessiRonaldo: ideia nenhuma, mas tb tô superassustado. tô em casa, minha mãe vai chegar a qualquer momento. vc acha q ela vai me atacar tb? onde vc está?

Brick pegou mais uma bala, mas as sete ou oito que já tinha comido dissolviam-se de maneira desagradável no estômago vazio. Ele arrotava ácido, engolindo-o de volta com uma careta. E agora? Deveria contar sobre Hemmingway, sobre Fursville, ou seria arriscado demais? Sinceramente, não achava que o outro fosse um policial — e, mesmo que fosse, havia regras contra esse tipo de coisa, não havia? Ninguém podia ser induzido a testemunhar contra si mesmo, não é isso? E com certeza a polícia escreveria melhor que esse cara. Bateu a cabeça de leve contra a parede atrás de si, tentando arrancar um plano do cérebro. Precisava de alguma prova de que o garoto tinha passado pela mesma coisa.

Rick_B: E o que aconteceu depois?

Ele postou a pergunta, pensando no modo como Lisa parecia ter saído do estado de fúria, voltando a ser ela própria; no modo como tinha esquecido o que fizera. A lembrança mordiscava e fazia seu cérebro pinicar, ao lembrar-se da voz gorgolejante de sangue dela suplicando que a deixasse ir embora. Depois, a visão dela encolhida e ferida contra a parede, ainda assim tentando partir para cima dele. Engasgou-se com um suspiro dolorido, atualizando a página e encontrando dois posts à espera.

CalMessiRonaldo: eu me caguei, foi isso q aconteceu. o q vc acha?

CalMessiRonaldo: na vdd eu recebi um telefonema da minha amg, uma das que me atacaram, se é isso que vc está falando. ela não lembrava do q tinha feito. onde vc tá?

Não havia como a polícia saber disso, certo? Talvez pudessem ter descoberto que ele tinha sido atacado ao ler sua pergunta do Yahoo, mas não tinham como saber que Lisa havia voltado ao normal assim que saíra de suas vistas. Estralou os dedos, assentindo com a cabeça enquanto digitava.

Rick_B: Estou no litoral, num lugar chamado...

E foi até aí que conseguiu chegar antes que outro pensamento atravessasse sua mente. Esse cara tinha sido atacado do mesmo jeito que ele. Mas isso significava que não iria atacar Brick — ou vice-versa — quando se encontrassem? Tinha presumido que teriam algo em comum, que talvez fossem imunes uns aos outros ou algo assim, mas não sabia absolutamente nada sobre o que estava acontecendo ali. Com certeza não conhecia as regras de funcionamento daquela loucura toda. A última coisa de que precisava era outro maluco tentando matá-lo — ficaria em um pavilhão cheio de portas trancadas com psicopatas atrás dele. Seu próprio hospital de loucos.

Fazer o quê, então?

Brick deletou o que tinha escrito e recomeçou.

Rick_B: Estou em Norfolk, no litoral. Posso dizer onde você pode me encontrar. Precisamos ter certeza de que podemos confiar um no outro, de que não vamos tentar nos matar, certo? Onde você está?

Postou. Não precisavam se encontrar em Fursville. Hemmingway era uma cidade-fantasma quase por inteiro; só havia a fábrica de fertilizantes longe da praia, e o Sainsbury uns cinco quilômetros ao norte, na estrada que levava a Winterton. Havia poucas casas naquele trajeto, na maior parte chalés com gente velha, mas nunca tinha deparado com ninguém perto do parque. Não dava para conceber a imagem de um bando de vovozinhas trepando na cerca para se sentar nos cavalos de madeira podre do carrossel. Atualizou a página do fórum.

CalMessiRonaldo: londres, oakminster. acho q consigo te encontrar em algumas horas. me diz onde, preciso sair logo daqui.

Hora da verdade. Sim ou não. Os dedos de Brick pairaram sobre as teclas, e ele mordeu o lábio inferior como se fosse outro doce. Estava melhor sozinho, sempre estivera. Não era bom no trato com outras pessoas; ou elas mexiam com ele, ou o deixavam zangado. E esse garoto, de nome CalMessiRonaldo, provavelmente era jogador de futebol ou algo assim. Resumindo: o tipo de pessoa que Brick mais detestava, e de pessoa que detestava Brick. Se ele lhe contasse sobre Fursville, iam acabar se matando de qualquer jeito, mesmo que não fossem afetados pelo que estava acontecendo.

Porém a outra alternativa era pior. Era ficar ali sozinho, com Lisa agonizando no porão — se já não estiver morta —, e ele enlouquecendo lentamente nas ruínas repletas de rangidos e ferrugem de seu paraíso infantil.

Rick_B: Você precisa seguir para o norte, pelo litoral. Tem uma cidade chamada Hemmingway, procure no Google Maps. É logo depois de Hemsby. É uma cidade-fantasma. Cerca de quatrocentos metros depois da placa da cidade, aparece uma pista à direita, que vai dar na praia. Dunas e coisas do tipo. No final dela, tem um estacionamento, já todo tomado por plantas, e um banheiro interditado com tábuas. Não é lá que estou agora, é só um lugar onde a gente pode se encontrar sem ser visto. Se sair agora, dá para chegar às oito. Se você se atrasar, é só esperar ali à noite que amanhã eu apareço. NÃO TRAGA MAIS NINGUÉM. Combinado? Se não estiver sozinho, nem vou aparecer.

Ele releu tudo, sentindo-se ridículo, como se negociasse a entrega de reféns ou algo assim. Mas era bom ter cuidado. Postou, releu, depois acrescentou na caixa de texto:

Rick_B: Boa sorte.

Fechou os olhos, deixando a cabeça pender. Sentia-se exausto, o que não era surpresa, considerando o que vinha passando. Não queria dormir, porém. Não queria fechar os olhos agora, acordar e descobrir que a noite já havia caído, que estava sozinho ali com seus pesadelos.

Entrou de novo no Yahoo, perguntando-se se deveria apagar sua pergunta original, ao menos até descobrir o que estava acontecendo quando encontrasse aquele cara. Clicou, a setinha pairando acima do botão de deletar perguntas, o dedo pronto para apertar o botão, e quase não reparou nelas até que fosse tarde demais.

Desceu a página, os olhos arregalando-se, a pulsação se acelerando enquanto absorvia o que estava vendo:

Há no momento 8 respostas para a sua pergunta.


Cal

Oakminster, 17h05

Cal sentou-se no banco do motorista do Freelander conversível da mãe, o motor roncando baixinho. A frente foi saindo da garagem. Ele o tinha colocado em ponto morto para poder tirar de leve o pé do freio, e sua perna tremia de nervosismo e impaciência, enquanto ficava de olho no portão. À sua esquerda estava o carro em que tinha escapado, o sangue agora seco em ramificações que pareciam veias nas laterais e no para-brisa todo rachado, o teto côncavo como uma tigela de frutas.

A mochila estava no banco de trás do 4x4, com três sacolas de supermercado cheias de batata frita, doces e bebidas. Se tivesse um pouco de sorte, não precisaria de nada daquilo. Se tivesse um pouco de sorte, a mãe apareceria ao portão, o veria dentro do carro e teria um chilique enorme — ficaria louca, mas não furiosamente louca. Mexeu-se no assento, com a sensação de que estava com as tripas na garganta. A mão direita dele apertava o volante com tanta força que achou que não conseguiria soltá-lo nem se quisesse, enquanto a mão esquerda repousava sobre o câmbio. Elas contavam a verdade — tinha quase certeza de que teria de fugir, e bem rápido.

Não sabia ainda qual seria o plano, caso o pior acontecesse. O cara com quem tinha conversado on-line, Rick_B, parecia esquisito. Cal não tivera uma boa impressão durante as poucas mensagens que haviam trocado. Que tipo de pessoa escolheria um velho banheiro abandonado em uma velha cidade abandonada para um encontro? Porém a mensagem parecia bem genuína.

E que opção ele tinha, afinal? Não podia ir para o oeste, rumo à mais populosa cidade da Europa. A leste ficavam Southend e os portos, um polo industrial ativo vinte e quatro horas por dia. Ao sul ficavam as filas sem fim para o túnel Dartford. Com certeza havia alguns lugares quietos por ali — centenas de áreas campestres a uma distância que podia vencer de carro, além do parque, onde seria possível se abrigar nas árvores. Mas o que deveria fazer? Viver no mato pelo resto da vida? Se fosse para o norte, pelo menos estaria se afastando da cidade e indo para as terras desabitadas de East Anglia.

Alguém passou pela lixeira logo ao lado do portão, e Cal teve um sobressalto, o pé direito aumentando a rotação do motor com um espasmo. Era um velho se arrastando, segurando uma bolsa da Waitrose quase tão grande quanto ele próprio. A luz do sol refletia-se em seus óculos. Ele não olhou para dentro. Do outro lado da rua, uma das vizinhas carregava alguma coisa no carro. O som da porta batendo e os pés dela pisoteando o cascalho pareciam chegar de longe naquele calor.

Cal encolheu-se no assento de couro, mantendo a cabeça tão baixa quanto possível. Ligou o rádio para tentar acalmar os nervos, passando com impaciência de estação em estação, até chegar à Kiss. Algo meio trance invadiu o carro, dando-lhe vontade de pisar fundo no acelerador e simplesmente sumir dali.

Ouviu-se um baque. A cabeça de Cal se ergueu de repente, e ele viu a tampa da lixeira aberta. Ela foi fechada, revelando a mãe atrás. A mãe pegou o cabo da lixeira e puxou-a pela rampa de acesso, aquele ruído oco parecendo a coisa mais alta do mundo.

E se ela o atacasse — Ela não vai fazer isso, não vai, não pode —, e se viesse pra cima dele como os outros, e se tentasse abrir a porta e tirá-lo dali, para que pudesse esmagar a cabeça dele com as botas? Era sua mãe, pelo amor de Deus, sua mãe. O mais perto que ela já havia chegado de machucá-lo fora um tapinha de leve quando ele estava com nove anos, porque ele a havia xingado. E mesmo aquilo tinha doído muito mais do que devia. Um tapa da própria mãe é como uma martelada na cara. Era essa a força desses tapas.

— Por favor, esteja normal — sussurrou Cal.

Ela estava no meio da rampa quando ouviu o motor do carro. Parou, colocando uma das mãos sobre o rosto, espiando-o por uma máscara de sombras. Com seu top roxo e seus jeans pretos, estava meio Batgirl. Cal pegou o volante, a madeira falsa escorregadia na palma suada. As palavras secaram em sua boca, a língua de repente parecendo papelão.

Um carro passou pela rua e a mãe virou o rosto. Quando se voltou para Cal, ergueu as mãos, o esmalte vermelho brilhante parecendo rubis, e deu de ombros de um modo dramático.

— Cal, que droga você está fazendo aí? — disse ela, a voz abafada. Cal soltou o ar que nem percebera que havia prendido. De repente, o sol pareceu duas vezes mais cintilante, as folhas nas árvores e nos arbustos ganhando um tom reluzente que até então nem tinha existido.

Estava tudo bem com ela. Tudo normal.

A mãe soltou a lixeira, e ela balançou sobre as rodinhas, chacoalhando. Deu um passo em sua direção.

— Desligue esse motor agora mesmo, rapazinho — disse ela, encaminhando-se para a garagem. Cal sorriu para ela, pegando a chave.

— Tudo bem! — gritou ele, perguntando-se de que jeito ia conseguir colocar a porcaria da arma do pai de volta no cofre sem que ela percebesse. — Só estava me divertindo.

— Você está bem encrencaaaa...do, raaapaaaazz — disse ela. Cal ficou petrificado. Um lado da boca dela estava caído, o olho esquerdo grande demais, vermelho demais. Ela deu mais um passo, desta vez balançando a cabeça. — Saia já do carro, saia, Caaaaaa...

O nome dele esticou-se nos lábios dela, horrivelmente distorcido, pingando com alguns fios de saliva. A mãe arrastou-se pelos últimos dez metros do acesso, o rosto escorrendo ainda mais, como uma máscara mal colada. Acertou o capô do Freelander com força suficiente para fazer o carro sacudir, as unhas arranhando o metal enquanto ela subia em direção à janela, ainda grunhindo aquela versão gutural do seu nome. Perto assim, Cal podia ver que os olhos dela pareciam brasas quentes, repletas de trevas, mas faiscantes de calor.

— Mãe? — disse Cal. Balançou a cabeça, sem querer acreditar no que via, ainda que lá no fundo soubesse que era isso que ia acontecer; ainda que não restasse nada da mãe na coisa que batia na janela com punhos pequenos e estaladiços, cobrindo-o de saliva enquanto a voz tornava-se um urro de banshee. — Mãe, desculpe.

Ele mexeu no câmbio do Freelander e moveu-se devagar, para não feri-la. Ela o acompanhou, batendo nas janelas com tanta violência, a ponto de deixar manchas alaranjadas de sangue nelas. Ele chegou ao asfalto sem saber direito para onde ia. Os olhos estavam grudados no retrovisor, na figura que se arrastava atrás dele como um zumbi, o rosto tão familiar, mas tão estranho. Ela perdeu o equilíbrio no cascalho e sumiu de vista, e ele precisou de toda a força que tinha para não parar o carro e ajudá-la.

Tchau, Cal tentou dizer. Em seguida, pisou fundo no acelerador, soltando a embreagem, e o carro rugiu pela rua afora.


Brick

Fursville, 18h07

Brick não podia acreditar no que estava lendo.

Isso aconteceu comigo tb, fui atacado pelo meu irmão :(((((( preciso de ajuda não consigo andar.

Estava lá embaixo na página, postado por alguém chamado EmoTwin3 há exatos dois minutos. Era a décima segunda resposta. Acima estava a décima primeira, de JoeAbraham:

não chame a polícia eles tentaram me matar. NÃO ESTOU BRINCANDO. Foi ontem à noite, Só consegui escapar porque pulei num rio. Minha mãe era um deles achei que ela ia me estrangular. Estou na casa do meu pai porque ele está passando o verão fora, mas tem gente por toda parte e não vou sair se não arrumar um local seguro. Onde você tá kra?

As duas respostas tinham aparecido da última vez que havia atualizado a página. Brick a rolou para cima, a mão tremendo tanto que ficava o tempo todo perdendo o lugar. Tinha lido e relido as outras entradas. Nem todas eram sérias; alguém tinha escrito “Vocês são todos muito esquisitos” na resposta número sete. O resto, porém, era tão parecido que podia ter sido escrito pela mesma pessoa. Examinou as respostas pela bilionésima vez, balançando a cabeça enquanto as mesmas frases saltavam aos seus olhos.

... ela quebrou meu braço, estava tentando arrancá-lo...

... vieram todos para cima de mim como se me odiassem...

... fui até o hospital e lá foi a mesma coisa, um tentou me escalpelar...

... por favor me ajudem não sei o que fazer...

Todas elas terminavam quase do mesmo jeito — por favor, me ajudem —, como se Brick fosse algum messias que pudesse conduzi-los à salvação. Sem chance, ele pensou. Não sabia sequer o que faria consigo mesmo.Colocou o laptop no chão para poder esticar as pernas. Pregos e agulhas fincavam-se em suas costas. Podia apenas desligar o laptop e ignorar tudo o que tinha lido. Podia deletar sua pergunta, e as respostas desapareceriam ao mesmo tempo que ela. Podia até se convencer de que nunca as tinha visto.

Não. Não podia fazer isso. Era tão capaz de deixar toda aquela gente entregue à própria sorte quanto era de andar sobre o mar.

E aquelas pessoas ainda por cima pareciam jovens. Era por isso que as mensagens pareciam bem similares — o linguajar, a grafia, a falta de preocupação com a gramática. Tinham todas sido escritas por jovens. Não podia ter certeza, claro. Mas havia algo naquelas mensagens que o deixava confiante de que não eram de adultos.

O laptop ficou aberto, a tela quase preta para preservar a bateria, embora as mensagens ainda estivessem visíveis, encarando-o, implorando.

— O.k., o.k. — murmurou para elas. — Mas só depois de eu ter certeza de que vocês não vão todos partir para cima de mim, está bem?

Essa era a melhor solução. Sairia e encontraria CalMessiRonaldo, e, se não arrancassem a garganta um do outro, então talvez avisasse os demais. O outro sujeito talvez tivesse alguma ideia melhor.

Verificou o relógio. Dali até o estacionamento era uma caminhada de apenas vinte minutos, mas não reclamaria de esticar bem as pernas e pegar algum ar que não tivesse cheiro de cocô de pássaro e podridão. Fechou a tampa com o pé, ouvindo o laptop adormecer. Seguiu então pelos corredores de manutenção, parando no alto da escada que dava para o porão por não mais que um segundo — Está tudo bem, tudo em silêncio; não preciso verificar, não preciso descer lá, ela está bem —, antes de sentir o coração saltar para fora da garganta e quicar pela escada como uma mola. Estava mesmo tudo em silêncio lá embaixo? Por acaso ele não ouvia um ruído sutil de atrito? Dedos sem unhas contra a madeira? Quase correu pelos últimos metros até a porta de incêndio, rastejando e desvencilhando-se das correntes como um homem livrando o próprio corpo de um túmulo.


Cal

Autoestrada M11, 18h10

Aquilo não era nada bom.

Não mesmo.

E estava indo tudo tão bem até aquele momento, a estrada vazia na saída de Oakminster, a autoestrada sem trânsito, apesar de ser o horário em que todos saíam do trabalho. Precisou parar uma vez, no semáforo que tinham colocado para o novo supermercado ASDA, mas ninguém havia atravessado. A mulher no carro atrás dele fez menção de sair, mas o sinal ficou verde antes que ela pudesse se atirar sobre o carro dele.

A navegação via satélite tinha lhe oferecido duas opções: via Ipswich ou via Norwich. Uma voz interior o conduziu de maneira irresistível para a segunda opção. Agora preferia tê-la ignorado. Tinha seguido por estradas secundárias até a M11, mantendo com alegria o Freelander a cento e dez quilômetros por hora na faixa do meio, passando pelas pessoas rápido demais para que pudessem vê-lo, pressenti-lo, ou o que quer que elas sentissem. O fluxo seguia veloz pela autoestrada, e foi só cerca de uma hora depois de partir que ele enfim se permitiu achar que agora talvez estivesse tudo bem, que a sorte tinha cagado um montão bem na cabeça dele.

Os painéis eletrônicos davam-lhe um aviso — acidente, longo tempo de espera entre as junções 8 e 9 —, e podia avistar o engarrafamento a pouco menos de um quilômetro de distância. A faixa da esquerda fora bloqueada por uma van da polícia, as luzes azuis piscantes multiplicadas uma centena de vezes pelas janelas dos carros que ronronavam, imóveis, ao longo dela. Mais adiante, viu uma torre de fumaça esgueirando-se quase com perfeição rumo ao calmo céu azul. Diminuiu a velocidade, mantendo-se na faixa do meio, e os carros começaram a convergir em volta dele.

— Pegue a próxima saída — rugiu de repente a voz feminina da navegação por satélite, causando-lhe um sobressalto.

— Vou tentar — respondeu ele. — Mas não vai ser fácil.

As luzes de freio do carro da frente acenderam-se, e ele diminuiu de sessenta para quarenta quilômetros por hora. Atrás dele, uma Mercedes velha se aproximava com rapidez, o motorista apenas um vulto reclinado sobre o volante.

Aquilo não era nada bom. Não mesmo.

O carro à frente chegou ao fim da fila e parou. Cal pisou no freio no último instante, e o Freelander deu um solavanco antes de parar. Outro caminhão parou à direita, guinchando, e ficou ainda mais escuro dentro do carro, os contêineres formando muros altos e dando-lhe a sensação de que estava em um túmulo.

Fique calmo, é só manter a calma, disse a si mesmo. Eles não sabem quem é você, não vão vir atrás de você.

Então por que o cara da frente está saindo desse Fiat verde horroroso? Era um homem de meia-idade, de tênis e calça de náilon, como se estivesse a caminho da academia. Ele parou com uma perna no carro e a outra no chão da estrada, petrificado. A Mercedes estava mais próxima, o motorista fazendo o motor roncar. Será que estava acelerando?

O homem do Fiat pareceu lembrar-se do que ia fazer, e arrastou a perna para fora do carro. Em seguida, virou-se para Cal.

— Ah, não — disse Cal, quando o rosto do homem se transformou, as bochechas pendendo como roupa velha em um corpo esquálido, as pálpebras inferiores flácidas, revelando órbitas com veias avermelhadas. Ele cambaleou para a frente como uma marionete, jogando-se no capô do Freelander bem quando a Mercedes colidiu por trás.

O carro de Cal foi arrastado contra a traseira do Fiat, o homem ficou preso como em uma armadilha. Ouviu-se um estalido, depois uma cusparada de sangue partindo da boca deformada, e então o homem desapareceu. O impacto lançou Cal para a frente, o rosto acertando o centro do volante com tanta força que fez a buzina soar. O corpo voltou a se encostar no assento, e Cal se perguntou por que o airbag não tinha disparado, tentando entender o mundo por meio das supernovas que brilhavam em seu campo de visão.

O cara do Fiat tinha de estar morto; o cara da Mercedes não se mexia. Cal, porém, podia distinguir outras pessoas saindo dos carros mais adiante na fila. Havia sete ou oito abrindo caminho em sua direção, todas com o semblante preocupado, algumas com o celular na mão, outras chamando com insistência a viatura policial na faixa da esquerda. Uma por uma, ao passar por um caminhão da Argos, talvez a vinte metros de distância, tiveram a expressão do rosto transformada, o ritmo dos passos se acelerando enquanto se apressavam e tropeçavam na direção do carro dele.

Cal engatou a primeira marcha, rezando para que a batida não tivesse causado nenhum dano, enquanto pisava fundo. Ouviu-se um estalo ensurdecedor, o guincho de metal contra metal, mas o Freelander nem se mexeu. Olhou para trás e viu a Mercedes esmagada contra ele, o capô amassado e fumegante. Estava preso entre os carros. Praguejou, engatando a ré, e pisou fundo, empurrando o carro para trás cerca de um metro.

Uma mão bateu em sua janela, alguém forçando a maçaneta. Cal não olhou, só engatou a primeira de novo e esmagou a traseira do Fiat, liberando um pouco mais de espaço. Ele ouviu um grito, abafado pelo barulho do punho batendo no vidro. Uma das pessoas do engarrafamento — uma adolescente — tentava subir no capô, mas Cal deu ré outra vez e lançou-a rolando no chão. Desta vez, adquiriu mais energia, empurrando a Mercedes para trás o suficiente para se libertar.

Girou o volante todo para a esquerda, tirando o Fiat do caminho. Mal havia espaço entre ele e o caminhão a seu lado, mas não desistiu, espremendo-se, ao fundo uma trilha sonora de metal em atrito. Alguém atrás do carro tentava rasgar o teto de lona, os olhos como duas feridas em chispas pelo buraco que tinha aberto.

Mais pessoas surgiam pelos corredores entre o trânsito parado, e por um instante Cal achou que seria pego, que não haveria saída. Mas espremeu-se um pouco mais pela lateral do caminhão, percebendo que o carro à frente era um Smart. Virou com força para a esquerda de novo e foi para cima dele. Estava só a trinta quilômetros por hora, mas o peso do Freelander empurrou aquela coisinha para a frente como se fosse de brinquedo, afastando-o para o lado e abrindo caminho para o acostamento.

Cal acelerou, passando tão perto da viatura policial que arrancou seu para-choque, chegando a oitenta quilômetros por hora em cinco segundos. O homem no teto tinha sumido. À frente, via a origem da coluna de fumaça que tinha enxergado antes: um carro que havia saído da estrada, aberto um buraco na barreira e descido ladeira abaixo. Estava em um campo, cercado de pessoas, centenas delas, que eram como um enxame em torno dele, tal como havia acontecido com Cal na escola. Elas não pareciam se importar com as nuvens negras que afluíam do motor, preocupadas apenas em chutar, arranhar e até morder o metal, esfomeadas como ratos tentando chegar à carne dentro de uma lata.

Pisou no freio ao aproximar-se, diminuindo para cerca de trinta quilômetros por hora antes mesmo de perceber o que fazia. Algumas das pessoas no carro fumegante olharam para onde ele estava, deixando a matilha e passando a correr aclive acima pela estrada. A multidão atrás também quase o alcançava agora, uma maré de carne preenchendo o espelho retrovisor.

Então ele ouviu. Ouvir, porém, era a palavra errada, porque não tinha nada a ver com as orelhas dele. Era algo na cabeça, algo que não era ele, uma voz que ao mesmo tempo não era uma voz. Parecia ter o poder de agarrar o tempo e fazê-lo parar, as pessoas todas ao redor correndo em câmera lenta, como aquelas novas câmeras de alta definição usadas no futebol. A voz parecia o oposto de um ruído — um silêncio profundo que amortecia o mundo e, no entanto, de algum modo, comunicava-se com ele. E naquele instante Cal soube exatamente o que estava dentro daquele carro.

Era uma pessoa, alguém como ele.

Alguém precisando de ajuda.

O mundo começou a girar como um mecanismo de corda que tivesse sido muito bem ajustado, a realidade se impondo de novo. Os gritos de fora eram agora ensurdecedores, mais pessoas batendo no Freelander e arranhando-o. Além dos rostos devastados pelo ódio, Cal avistava o carro lá embaixo, corpos se retorcendo ao redor dele. Acelerou com força, jogando o carro para a esquerda e amassando carnes e ossos ao avançar rumo à barreira arrebentada. Não sabia o que faria ao chegar aos destroços, mas precisava fazer alguma coisa.

O relâmpago veio antes do trovão. O carro no campo irrompeu em uma bola esbranquiçada de calor, que enviou cadáveres chamuscados girando em todas as direções. Cal teve tempo de ver um punho de fumaça socar o céu — e algo dentro daquela fumaça, uma forma impossível de distinguir formada em chama azul, que abria a boca e urrava — antes que a onda de choque atingisse o Freelander, descascando a pele das pessoas do lado de fora e estilhaçando as janelas dos passageiros. Protegeu o rosto, o ar envenenado se agarrando a seus pulmões, o 4x4 quicando nas rodas com tanta força que achou que fosse capotar.

No momento em que ergueu a cabeça, o pior da explosão já tinha passado. Do carro incandescente, a fumaça ainda esguichava para cima como líquido, mas nela não havia nada além de escuridão. O motor tinha morrido, e Cal girou a chave para ressuscitá-lo. Virou o volante para a direita, acelerando para longe da carnificina, para longe das silhuetas em chamas que corriam, uivavam e batiam nos vidros.

Havia uma viatura de polícia no acostamento, mas passou por ela sem problema nenhum. O engarrafamento continuava estrada afora, rostos espiando pela janela dos carros, olhando para o céu enegrecido pela fumaça, mas a saída estava vazia.

— Continue nesta via — disse a navegação via satélite. Cal esfregou os olhos, que ardiam devido às cinzas, tentando não pensar nas pessoas que estavam perto do carro — vinte, trinta, talvez mais, todas mortas; tentando não pensar na pessoa ali dentro, a voz sem palavras de algum modo suplicando socorro, que tinha sumido como um rádio sendo desligado no instante em que o carro explodiu; tentando não pensar no vulto em meio à fumaça, na figura de chama que gritava ao voar.

Deixou o ar fresco esvaziar sua cabeça, e foi adiante.


Daisy

Boxwood St. Mary, 18h58

Daisy engatinhou pelo quintal como uma leoa, aquelas que ela gostava de ver na TV. Tinham tanta elegância, eram tão silenciosas, e ela tentou imitá-las o melhor que podia enquanto avançava de quatro, tomando cuidado para se manter o tempo todo escondida pelos arbustos altos.

Já fazia bastante tempo que não via ninguém dentro da casa. Aquele homem horrendo da ambulância tinha aparecido talvez meia hora atrás. Podia ser menos. Havia voltado a entrar na casa após fumar um cigarro, conversado com algum policial na cozinha, depois todos tinham saído, e fora a última vez que ela os vira. Claro que podiam estar todos ali dentro, escondidos na penumbra, prontos para pular em cima dela...

Essa imagem, a cara de cavalo do homem da ambulância relinchando para ela, as mãos ásperas jogando-a pela janela, fizeram-na parar de imediato. Enfiou a mão na grama comprida, entrelaçando os dedos nela, abaixando-se para cheirar as rosas, as azaleias, as buddleias. Aquilo a fazia se lembrar da mãe. Da coitada da mãe. Aquilo tinha voltado e comido o cérebro dela, como antes. O tumor a fizera agir de um jeito esquisito da última vez, mas eram só espasmos, tiques, e uma ou outra palavra que saía errado. Desta vez tinha sido muito pior. Ela havia matado seu pai, depois tinha se matado.

Porém, não foi o câncer, pensou Daisy, lembrando-se do bilhete. Ela disse que não era o tumor. Que era outra coisa. Ela sabia o que estava por vir, e que iria me machucar.

Os pensamentos eram dolorosos, e ela os afastou, desemaranhando a mão e engatinhando para a porta dos fundos. Havia um grande trecho de grama curta entre o último arbusto e a casa. Se engatinhasse por ali, qualquer pessoa lá dentro poderia vê-la. Ela olhou para a direita, os canteiros de flores repletos de coisas espinhosas, e atrás delas a passagem que levava para a lateral da casa. Para a esquerda, o quintal da sra. Baird. As macieiras da bondosa mulher pendiam sobre a cerca baixa, uma cortina de sombras sob elas.

Daisy foi nessa direção, grata por conseguir mergulhar na penumbra. Pôde ouvir algo do outro lado da cerca. Deviam ser Pudding e Wolfie, os gatos da sra. Baird. Continuou avançando.

A cerca de dez metros do arbusto onde tinha pousado após a queda da janela do quartinho, Daisy viu o primeiro caco de vidro — mais ou menos do tamanho e com o formato de uma das facas de carne da cozinha. Estava aninhado na terra, uma linha de sangue de um lado. A luz do sol o atravessava, tingindo a grama com um tom de vermelho vivo, fazendo Daisy pensar em vitrais. Chegou a considerar pegá-lo e colocá-lo em sua caixa de artes. Era tão bonito, até que lembrou que era seu sangue.

Levantou-se, por não querer cortar os joelhos e cotovelos nos cacos cintilantes dali até a casa, agachando-se para ficar abaixo da cerca. Era difícil andar daquele jeito, mas não havia muita distância a percorrer. Os ruídos à esquerda agora estavam mais altos, mas ela quase podia ouvir o “briiauu” dos gatos. Era o ruído que faziam quando Daisy ia sorrateiramente dar camarões ou um pouco de atum para eles depois do jantar, o barulho que faziam quando estavam sendo alimentados.

Mas, se ela não os estava alimentando...

Daisy olhou por cima do ombro e viu uma figura semiescondida entre os nós do tronco de uma das macieiras. Usava um vestido marrom de modelo antigo, e chumaços ondulados de cabelo branco deixavam entrever sua cabeça rosada. Um pequenino olho preto espiou da sombra, mirando-a fixamente.

— Senhora Baird? — perguntou Daisy, parando, ainda de cócoras. — Tudo bem?

A bondosa senhora respirava pesado, quase grunhindo. Ouviu-se um ruído de madeira batendo, e um dos gatos — Daisy nunca conseguia diferenciá-los, porque os dois eram pretos — pulou na cerca. Ele cambaleou, recuperando o equilíbrio, esfregando a cabeça na manga da sra. Baird e emitindo o mesmo protesto de “estou com fome”. A sra. Baird ignorou-o, ainda encarando-a com um olhar vazio.

Daisy endireitou-se, dando alguns passos para a porta de trás. E tinha acabado de pegar na maçaneta quando a senhora jogou a cabeça para trás e gritou. Foi um som horrível, como se estivesse tendo um ataque do coração ou algo assim, e Daisy quase foi até ela. Seu primeiro instinto foi ajudar.

Com outro grito gorgolejante, a sra. Baird lançou-se contra a cerca, as tábuas de madeira curvando-se sob seu peso. Ela perdeu o apoio, sumindo com um estalo nauseante. Isso foi um osso se quebrando, pensou Daisy quando a vizinha reapareceu, o corpo inteiro trêmulo, os fios de saliva espessos pendendo dos lábios pálidos. Ela ainda grunhia, o som que um porco faria. Daisy girou a maçaneta, empurrando a porta, quase batendo a cabeça nela porque estava emperrada. Tentou de novo, usando as duas mãos desta vez.

Trancada.

Ouviu-se mais um ruído de dar nó no estômago, e em seguida algo caiu no chão com um baque seco. Daisy percebeu que a sra. Baird tinha ultrapassado a cerca e agora estava caída em um montinho, tentando levantar-se. Seus braços e pernas agitavam-se no ar, como um besouro de costas, o vestido para cima revelando as meias grossas de veludo. Um dos chinelos tinha sumido, e havia algo de errado com aquele tornozelo à mostra. Estava apontando para o lado errado.

Daisy virou-se de novo para a porta, balançando com força a maçaneta, chutando a parte de baixo da porta com vigor suficiente para fazer o vidro tilintar.

— Vamos logo! — gritou ela contra a porta, desejando de repente que a polícia ainda estivesse ali dentro, que qualquer pessoa ainda estivesse ali dentro. A sra. Baird não tentava mais se levantar. Havia se virado e engatinhava pelo quintal do mesmo jeito que Daisy fizera, os dedos enrugados arrancando nacos de terra enquanto abria caminho.

Daisy chutou a porta outra vez, mas depois recuou, indo para a passagem lateral que levava para a rua. A sra. Baird avançava, o rosto pendendo, repleto de exaustão, mas com aqueles olhinhos de porco brilhando com uma determinação que Daisy jamais vira. A boca estava escancarada, a respiração em breves e penetrantes ganidos que podiam corresponder a seu nome — Dei-ziiii, Dei-ziiii, Dei-ziiii —, entrecortados e gorgolejantes de saliva. Ela ia sulcando a grama, braços e pernas movimentando-se rápido demais para uma velhinha, como se houvesse um horrendo mecanismo sob a sua pele.

Daisy virou-se e fugiu pela passagem, sem saber direito para onde ia, sem se importar com as vozes que ouvia na rua lá fora, querendo apenas afastar-se da coisa que rastejava atrás dela, que dizia seu nome a cada suspiro ofegante.


Cal

Boxwood St. Mary, 19h07

— Dê a volta quando for seguro.

Cal realmente desejava seguir a sugestão da voz da navegação por satélite. Não queria mais nada além de dar uns cento e oitenta no Freelander, sair daquela cidadezinha esquisita e voltar para a via expressa.

Só que não podia. Alguma coisa o tinha feito sair da A11, relativamente vazia, logo depois de Mildenhall — aquela mesma estranha voz sem palavras dentro de sua cabeça, fazendo-o ignorar as instruções do painel, ligar o pisca-alerta e tirar o carro da estrada principal, conduzindo-o por uma rua estreita, repleta de casas.

Havia gente ali. Um motorista de entregas tirava caixas de uma van da Iceland alguns carros adiante, e um bando de skatistas adolescentes encontrava-se em uma esquina, um andando atrás do outro, todos rindo. Podiam ser Cal e os amigos na frente da biblioteca em Oakminster, sem nenhuma preocupação além de quem está a fim de quem e o que fazer a respeito. Pensou em Georgia, Megan e Eddie, e nos outros. Parecia ter transcorrido um milhão de anos desde a última vez que os vira.

O motorista-entregador começou a farejar o ar assim que Cal se aproximou. A caixa caiu de suas mãos, e uma garrafa plástica de leite estourou. Ele correu para o Freelander, e Cal acelerou um pouco mais. Os skatistas também tinham sentido seu cheiro. Com uma fileira de carros estacionados de cada lado, não havia espaço para manobrar, por isso Cal manteve a velocidade em quarenta quilômetros por hora o tempo todo, na esperança de que fossem sair do caminho.

Não saíram. O primeiro garoto foi contra o 4x4 como um touro em posição de ataque, quicando para trás em um movimento quase perfeito. Os outros foram atirados para o lado pelo capô, lançados nos intervalos entre os carros. Cal não parou, nem quando as rodas do Freelander passaram por cima de algo, algo grande, macio. Virou na esquina, guiado pelo estranho radar em sua cabeça, um silêncio que parecia vasto e ininterrupto, ainda que fosse capaz de ouvir gritos baixinhos, como de macacos, atrás dele, o som de portas se abrindo, o estrondo de passos apressados. Havia uma saída à esquerda e ele seguiu por ela, aumentando a velocidade para que as criancinhas no bazar de garagem não pressentissem sua presença senão quando fosse tarde demais.

A rua descia, fazendo uma curva à direita e depois inclinando-se bastante para cima. O que quer que estivesse em sua cabeça agora parecia ter ganhado mais força, embora se mantivesse ainda totalmente silencioso. Aquilo era parecido com estar no fundo de uma piscina: a paz perfeita, sem som. Ainda que pudesse ver a multidão correndo atrás dele pelo retrovisor, mesmo que não tivesse ideia do que estava à frente, aquilo lhe dava segurança. Dava-lhe a certeza de estar fazendo a coisa certa.

Virou em outra esquina, o Freelander estalando por cima de um patinete que fora largado na rua. Havia movimento adiante, um homem fugindo de Cal, encaminhando-se para uma pequena multidão aglomerada do lado de fora de uma casa à esquerda. Havia quatro ou cinco pessoas, uma mescla de homens e mulheres, e até um garotinho que não parecia ter mais do que cinco anos. Os que ele podia ver tinham a mesma expressão de absoluta fúria, tão ferozes que o rosto de cada um deles parecia uma máscara demoníaca. Acelerou, de algum modo sabendo a mesma coisa que já sabia desde a autoestrada — havia alguém por perto na mesma situação que ele.

Não havia tempo para planos. Cal alcançou a turba em segundos e pisou nos freios, o Freelander derrapando e detendo-se próximo a um muro baixo. Uma mulher cambaleou em sua direção, uivando enquanto tentava entrar no carro pela janela quebrada do lado do passageiro. Cal estendeu a mão para a mochila, mas não conseguiu alcançá-la, os dedos da mulher espetando a carne ao redor de sua garganta, o hálito dela quente em seu rosto. Ele pegou a primeira coisa que encontrou, uma garrafa de dois litros de Dr. Pepper, usando-a para bater nas mãos dela. Abriu a porta e rolou para longe dela, já na rua.

Mas que droga eu estou fazendo?

Outra mulher partiu para cima de Cal com dedos ensanguentados. Ele deu com a garrafa nela como se fosse um taco de beisebol. Ela fez um boing ridículo quando ele acertou sua cabeça, fazendo-a rodopiar até cair no asfalto. A primeira mulher engatinhava para fora do carro, e Cal bateu a porta na cara dela, duas vezes, dando a volta por trás do Freelander.

Um dos adultos no jardim partiu para cima de Cal, tropeçando na mureta quebrada e lhe dando tempo suficiente para ver que os outros tinham se aglomerado ao redor de uma passagem fechada por um portão que dava na lateral de uma casa. Do outro lado, podia avistar uma garota. Ela parecia ter onze ou doze anos, e estava gritando, mas era um som diferente daquele que as pessoas a seu lado emitiam. Era um grito repleto não de terror, mas de medo.

Ergueu a garrafa acima do ombro, esperando o homem chegar bem perto para dar outra tacada. Arrebentou seu nariz, um estalo de algo se quebrando ecoando pela rua. O homem pareceu nem reparar, pegando Cal pelo pescoço e apertando, um chafariz de sangue jorrando de seu rosto a cada fungada.

Cal acomodou a garrafa na carne macia abaixo do queixo do homem, forçando-a para cima até as mãos em volta de sua garganta se afrouxarem. Deu outra tacada com a garrafa nele. Acertou, mas ela estourou, a bebida fervilhando como se houvesse Mentos dentro. O homem rangeu os dentes, distraído, e Cal lhe deu um soco na cara.

Algo mordia sua perna, e, olhando para baixo, ele viu o garotinho. Afastou-o com o pé com tanta delicadeza quanto lhe foi possível, dando um chute na cara da mulher que veio depois. O último sujeito era grande, mas Cal lembrou-se de seu treinamento em Choy Li Fut. Postou-se atrás dele, encaixando a perna direita em volta do joelho do homem, e em seguida desferiu o golpe. O sujeito tropeçou, caindo como uma árvore cortada, a cabeça espatifando-se contra a superfície de concreto.

Cal levantou a cabeça e viu as pessoas se aproximando com um estrondo pela rua abaixo. Tinha talvez uns trinta segundos antes de ser destroçado. Correu para o portão, ignorando o ardor que corria por seus músculos e pulmões. Havia na verdade duas pessoas ali dentro, sendo a segunda uma senhora de cabelos brancos com dedos retorcidos e enroscados nas pernas da garota. A menina a chutava, o rosto retorcido pelo medo e esmaecido pela penumbra, os gritos amplificados pelo eco da passagem estreita. Cal tentou abrir o portão, mas estava emperrado.

— Ei! — gritou. — Me deixa entrar!

A garota ignorou-o, os gritos aumentando quando a velha senhora enterrou os dentes em sua perna. Cal olhou de novo para a rua. Quinze segundos. Berrou, deu um passo para trás e desferiu um chute. Uma dor dilacerante rasgou sua perna, parando em suas costas, mas o portão não se moveu. Deteve-se, respirando fundo e assumindo uma postura defensiva, antes de chutar outra vez, com cada miligrama de força que ainda tinha.

A tranca enferrujada arrebentou, algo metálico estalando ao cair na passagem quando o portão se abriu. Cal o transpôs, chutando a senhora como se batesse um pênalti. Colocou a garota embaixo do braço, ignorando seus gritos e socos.

— Tudo bem, pode confiar em mim, não vou machucar você — disse ele, as palavras semiarticuladas devido ao pânico e à falta de ar. Espremeu-a contra si ao correr para o jardim, desviando de uma das pessoas da multidão que estava de pé outra vez, abrindo com rapidez a porta do Freelander. A mulher que tinha entrado no carro estava inconsciente — ou morta —, e Cal pegou-a pelos cabelos, tentando tirá-la dali com um safanão. Ela não se mexeu, os membros presos entre os assentos. A tempestade de passos agora era ensurdecedora, cada suspiro ofegante audível.

— Não fuja — disse ele, soltando a garota e pegando a mulher com as duas mãos. O corpo dela escorregou do carro como um saco de carne, esparramando-se no chão. A garota deu alguns passos para afastar-se dele, mas parou quando viu a multidão alvoroçada rua abaixo — talvez vinte pessoas agora, todas uivando. Ela o encarou, os olhos tão arregalados de choque que nem pareciam de verdade.

— Pode confiar em mim, eu juro — disse ele. O garoto na frente da turba (um dos skatistas, pensou Cal) já estava quase alcançando-os. — Precisamos dar o fora daqui.

Ele estendeu a mão e ela a pegou, deixando que a ajudasse a subir no banco do motorista. Ele subiu ao lado dela, batendo a porta bem na hora em que o skatista chegou. O garoto continuou no embalo, e escorregou no cascalho, desaparecendo com um ganido. A menina se arrastou para o banco do carona enquanto Cal engatava a marcha e pisava fundo, desembestando pela rua, o caos e a carnificina outra vez contidos em segurança no vidro estilhaçado do retrovisor.


Agora só a moça da navegação por satélite falava, e Cal achou que até ela parecia aliviada enquanto ele seguia contente suas instruções para sair de Boxwood St. Mary e voltar para a A11. Não tirou o pé do acelerador, enfim lembrando-se de respirar quando chegou ao acesso que levava à via expressa. Só quando chegou a cento e dez quilômetros por hora na faixa mais rápida foi que reparou que seu corpo inteiro estava rígido como uma rocha. Permitiu-se relaxar, os tremores tomando o lugar da tensão.

— Continue nesta estrada — disse a moça.

Cal olhou para a garota. Ela estava encolhida no banco do carona, fazendo-o parecer enorme. Seu rosto estava pálido, como se tivesse sido inteiramente sugada através dos cortes nos braços e no pescoço. O cabelo comprido balançava como algas ao vento pela janela quebrada. Ela olhava além do para-brisa com os úmidos olhos azuis, mas Cal sabia que não enxergava nada, com exceção, talvez, de uma reprise do que quer que tivesse enfrentado.

— O nome desta moça é Dona Mandona — disse ele, a voz alta demais apesar do uivo do vento e do movimento pesado dos pneus. Era algo idiota de se dizer, mas Cal não conseguia pensar em mais nada. Olhou para a estrada, depois de novo para a garota. — Ela mora no carro e me diz aonde ir.

A menina nem se mexeu. Pelo menos não estava tentando atacá-lo, o que só podia significar algo bom. Um carro vinha a toda atrás dele, e Cal preparou-se, ligando o pisca-pisca e passando para a faixa ao lado. A BMW cambaleou um pouco ao passar zunindo, mas não parou. Se passasse pelas pessoas rápido o bastante, elas pareciam voltar ao normal antes que qualquer coisa ruim acontecesse.

— Quando pego o caminho errado, ela me dá bronca — prosseguiu. — Bem, no geral, ela dá bronca na minha mãe, por isso ela se chama Dona Mandona. Foi ela quem inventou o nome, não eu.

Muito bem, Cal, pensou ele. Você é bom demais com as crianças.

— Qual é o seu nome? — ele perguntou. Ela não respondeu, nem quando pareceu reparar nele. Cal resolveu deixá-la em paz. Talvez estivesse em choque ou algo assim, e não tinha certeza de como deveria agir com gente nesse estado. Não havia uma regra que instruía a não deixá-los dormir? Ou será que isso era para outra coisa? Constipação, talvez.

Concussão, seu burro, disse seu cérebro, e ele fungou ao conter uma risada. O som causou um sobressalto na garota. Ela saiu do transe em que estava e olhou com medo para Cal. Ele viu os dedos dela dirigindo-se para a maçaneta da porta — meu Deus, menina, não faça uma coisa dessa, você vai virar patê na estrada —, e levantou a mão esquerda para mostrar que não iria feri-la.

— Está tudo bem; por favor, não se assuste. — A estrada à frente parecia mais vazia, e ele foi para a faixa de tráfego mais lento, desacelerando para que o som dentro do carro fosse mais uma tempestade de verão do que um furacão. — Meu nome é Cal, você pode confiar em mim, eu juro.

Ela se reclinou ainda mais contra o assento, encolhida feito um porco-espinho.

— Aonde estamos indo? — ela perguntou. Ou pelo menos foi isso que ele achou que tinha dito. Sua voz era um sussurro abafado e carregado pelo vento.

— Para um lugar seguro — respondeu ele. — Pelo menos é o que eu acho. Não tenho certeza. Mas vou cuidar de você. Não se preocupe, está bem?

Devia haver algo amigável no rosto dele, porque a menina pareceu relaxar. Pousou o queixo nos joelhos, sem nunca piscar aqueles olhos enormes.

— Dona Mandona quer que você coloque o cinto de segurança — disse Cal, ao perceber que nenhum dos dois estava com ele. Colocou o seu. —Ela vai dar bronca na gente se não colocar o seu.

A menina olhou para ele, e em seguida para o painel de onde vinha a voz. Estendeu a mão e passou o cinto sobre as pernas encolhidas, encaixando-o na trava. Avançaram por quase mais um quilômetro antes que ela falasse, a voz tão baixinha, tão triste, que Cal sentiu um nó na garganta:

— Todo mundo me odeia.

— Eles não te odeiam — disse ele, antes que pensasse no que poderia dizer depois. — Eu não sei direito, é só que tem alguma coisa de errado com as pessoas. Algo que as faz agir de um jeito que na verdade não querem. Tipo zumbis, entendeu?

Ela não respondeu.

— Todo mundo está me atacando também. Começou na escola; todos os meus amigos, eles tentaram... — Ele hesitou, as palavras com medo de serem ouvidas. Ele praticamente as cuspiu: — Tentaram me matar. Depois, gente da rua, gente que eu nunca tinha visto antes na vida. — Enxugou uma lágrima antes mesmo de perceber que chorava. — E depois a minha mãe.

A menina olhou para ele, a boca se escancarando, e um jato súbito de adrenalina atingiu Cal, achando que ela estava prestes a se lançar sobre ele e enterrar os dentes em sua garganta.

— Sua mãe tentou machucar você? — disse ela. Cal fez que sim com a cabeça. Ela encarava algo a um milhão de quilômetros de distância, absorta em pensamentos. Depois de um tempo, baixou a cabeça até os joelhos encolhidos e começou a soluçar, quase aos gritos. A mão de Cal pairou sobre ela um segundo, antes de pousar em seu ombro. O corpo dela inteiro teve um espasmo ao sentir o toque, mas, fora isso, ela não reagiu de nenhum outro modo. Ele deslizou o polegar para a frente e para trás, do jeito que a mãe sempre fazia com ele quando estava chateado.

— Tudo bem — disse ele, mantendo a voz baixa e tranquilizadora. — Vai dar tudo certo, prometo. Vamos descobrir o que está acontecendo e depois vamos descobrir como deter isso. Vamos dar um jeito, e aí nossas mães vão ficar bem; não vão mais ter raiva da gente. Prometo.

Estava fazendo muitas promessas, para um cara que não tinha ideia do que estava acontecendo, mas o que mais poderia fazer? De qualquer jeito, não parecia estar dando nenhum resultado mesmo. Na verdade, ele só conseguira fazer a garota ter uma crise de choro. Colocou a mão de volta no volante, vendo uma enorme placa verde anunciando Norwich dali a vinte e quatro quilômetros, e Yarmouth a sessenta e quatro. A moça da navegação por satélite informou que chegariam em uma hora. Chegariam tarde, mas tinha quase certeza de que Rick_B, quem quer que fosse, estaria lá esperando.

Dirigiu em silêncio por mais alguns minutos, a voz da navegação por satélite tagarelando e orientando-o por uma série de trevos. Só um pouco depois foi que a garota parou de soluçar, o rosto se erguendo por trás dos joelhos. Cal sorriu para ela com o máximo de delicadeza possível, sem querer falar nada para não entristecê-la outra vez. Porém, ela parecia já ter esgotado seu estoque de choro; parecia estar drenada. Olhou para ele, esfregando o nariz com as costas da mão.

— Você realmente acha que existe um jeito de deixar as coisas normais de novo?

O olhar que ela lhe lançou, de repente tão cheio de esperança, de confiança, significava que ele só podia dar uma resposta:

— Claro. — Ele fez que sim com a cabeça. — Acho mesmo. O que quer que seja, nós vamos resolver juntos. Prometo.

Ela esfregou o nariz de novo, fungando. Cal inclinou-se e abriu o porta-luvas, deixando à mostra uma caixa de lenços quase vazia ali dentro. Apontou-a com o dedo e ela pegou um, secando os olhos e depois amassando-o e guardando-o na manga. Respirou fundo, estremecendo, o que pareceu lhe devolver certa cor às bochechas.

— Obrigada — disse ela, o espectro de um sorriso aparecendo nos lábios finos e nos olhos claros. — Meu nome é Daisy.


Brick

Hemmingway, 20h48

Ele estava atrasado.

Ou era isso, ou tinha morrido. De onde era mesmo que ele havia dito que viria? De Londres? Se as coisas estavam como Brick pensava, a viagem seria formidável — um corredor polonês com dez milhões de psicóticos tentando acertar você na rua. Pensando assim, seria um milagre ele conseguir chegar. Isso fazia o estômago de Brick se revirar, como se tivesse comido algo estragado. Por mais que ele odiasse admitir, não queria ficar sozinho de jeito nenhum.

Pousou a cabeça na areia quente, aproveitando o contato reconfortante do pôr do sol — nem tão quente, nem ainda tomado pelo friozinho da noite. Estava deitado na encosta de uma das dunas que havia ao longo da praia, uma das grandes dunas que seriam perfeitas para o Saara, não fosse a vegetação que as recobria. À frente dele estava a superfície imóvel do mar, quase perfeitamente sem ondas, tão plana que se imaginou correndo sobre ela até a Holanda, a Dinamarca, ou o que quer que ficasse adiante naquele horizonte.

Do outro lado da duna havia um breve trecho com pinheiros, um leito de árvores de pontas macias em que o sol afundava devagar. Um caminho de terra levava dali até um pequeno estacionamento de concreto, o horroroso banheiro postado ali como uma ferida. Havia tábuas sobre todas as portas e janelas, com pichações atacadas demais pelas intempéries para poderem ser lidas. O ruído suave das ondas e o farfalhar dos pinheiros faziam-no se sentir inexplicavelmente em paz.

Talvez o sujeito tivesse decidido não vir. Brick não fora lá muito convincente em suas mensagens. Tentou relembrar o que tinha escrito, sem conseguir recordar uma única palavra além da informação de que ele deveria vir sozinho. Aquilo por si só era algo idiota de se dizer — se CalMessiRonaldo estivesse na mesma situação que ele, não estaria agora exatamente cercado de amigos. Por que tinha sido tão babaca?

Culpa do estresse, pensou ele, revirando uma longa folha de grama entre os dedos. Culpa do estado de choque, do medo. Mas a verdade era muito mais simples. Ele era um babaca. Prometeu a si mesmo que se esforçaria para ser legal com o sujeito quando ele aparecesse.

Se aparecesse.

Queria ter um relógio, ou pelo menos o celular, que deixara cair quando havia saído do posto. Norfolk era plana como uma panqueca, o que significava que a luz diurna se estendia até a noite, mas, assim que desse dez horas, ficaria escuro. Realmente escuro. Precisava estar de volta a Fursville até esse horário, ou acabaria passando a noite inteira na praia.

Uma formiga se esforçava para prosseguir bem sob o seu nariz, os pés se movendo tão rápido que eram um borrão ao tentar vencer a areia que desmoronava. Baixou uma folha bem debaixo do nariz dela, observando-a subir a bordo antes de soltá-la com delicadeza. A formiga seguiu pela folha e desapareceu no emaranhado de areia.

— De nada — disse ele, erguendo o tronco para esticar a coluna, tentando fazer o sangue circular pelas pernas. Os joelhos do jeans estavam úmidos. Como a areia podia se manter úmida, mesmo em um dia como aquele? Estava esfregando as manchas quando ouviu um ruído de um carro, distante mas inconfundível.

Abaixou-se de novo, espiando pela vegetação, a pulsação aumentando com o barulho do motor. Pareceu ter transcorrido uma eternidade até que enfim se revelasse o que vinha em meio aos pinheiros: uma daquelas versões menores de Land Rover. Havia alguma coisa — Sangue? — espalhada pelo capô amassado, brilhante como tinta. As janelas do lado do carona estavam quebradas, e uma rachadura enorme se estendia em diagonal pelo para-brisa, dificultando que se enxergasse o interior. O carro avançou devagar pelo concreto e parou ao lado do banheiro.

Nada aconteceu. Ninguém saiu dele.

— Vamos lá — sussurrou Brick. Abriu e fechou o maxilar, os ouvidos dando a sensação de estar entupidos, exatamente como ficavam quando ele mergulhava fundo demais. O estranho silêncio contrastava com o medo, fazendo-o se sentir estranhamente nauseado. O carro apontava direto para ele, e teve a sensação de que quem quer que estivesse do lado de dentro o observava, esperando-o se mover. Aquilo era ridículo, claro. Ninguém conseguiria vê-lo escondido ali na duna. A menos...

Olhou para a esquerda e para a direita, esquadrinhando a praia. E se o sujeito não estivesse sozinho? E se houvesse mais gente? Os amigos dele podiam ter se espalhado, ladeando o estacionamento, prontos para atacá-lo de todos os lados. Soltou um palavrão. Por que não tinha trazido uma arma? Fursville era cheia de barras de metal e ferramentas velhas; no restaurante havia até facas. Tudo o que tinha ali eram os próprios punhos.

Não era tarde demais para recuar. Se escorregasse pela duna, podia andar pela praia. Jamais conseguiriam encontrá-lo — a menos que seguissem as pegadas na areia. Soltou outro palavrão, a mente em um turbilhão. Tivera horas para se preparar. Que droga estivera fazendo durante esse tempo todo? Pegando sol e resgatando formigas.

Calma. Você está entrando em pânico, como uma velhinha. Fique frio, tudo vai dar certo.

Era para ele se mover primeiro? Parecia um daqueles filmes antigos de espião. Passou a mão na testa, a areia colando no brilho de suor que irrompera ali. Ainda sentia aquela pressão esquisita na cabeça, um silêncio que era quase um som. Era como se houvesse algo dentro do seu cérebro, dentro dos seus pensamentos, e de repente sentiu-se ridiculamente exposto. Semicerrou os olhos, tentando distinguir a figura atrás do volante. Com certeza havia alguém ali — Brick, quem você estava esperando, um fantasma? —, mas teria alguém também no banco do passageiro?

A buzina soou, e Brick quase berrou, um grito rouco perdido no bater de asas de uma dúzia de pássaros que saíram das árvores. A adrenalina era um calor esbranquiçado em suas veias. De repente, tornou-se consciente demais do próprio desconforto, da umidade entrando em suas roupas e da areia pinicando nas dobras dos cotovelos. A buzina soou de novo, duas vezes.

— Saia do carro — sibilou ele pela duna. Não vou aparecer antes de você.

As palavras dele eram baixas demais para chegarem lá, mas funcionaram mesmo assim. Ouviu-se um estalido alto, e em seguida a porta do motorista abriu-se com um rangido irritante. Alguém saiu, e Brick teve de se inclinar para o lado para enxergar em meio a um redemoinho de vegetação. Era um garoto com calças de corrida cinza e uma camiseta. O garoto passou a mão pelo cabelo enquanto examinava o estacionamento, parecendo ter talvez dezesseis ou dezessete anos.

— Oi — gritou ele, a vibração da voz audível mesmo onde Brick estava escondido. Mais pássaros dispararam das árvores, e o garoto girou o tronco, a mão movendo-se para a lombar. Havia alguma coisa ali, percebeu Brick, uma protuberância sob a camiseta. O garoto estava armado. Outra vez, aquela necessidade instintiva de fugir quase arrancou-o da duna, anestesiado que estava pelo silêncio calmo e esquisito, que parecia lã de algodão dentro de sua cabeça.

— Tem alguém aí? — gritou o garoto, as palavras se alastrando com facilidade pelo ar quente. — Rick?

Rick?, pensou Brick, antes de lembrar seu nome de usuário. Sentiu uma resposta surgindo dentro dele, com força própria, quando ouviu o som da porta do passageiro se abrindo. Fechou a boca quando o garoto berrou algo para o carro, fazendo um gesto para quem quer que estivesse ali dentro. Brick não foi capaz de ouvir a resposta, mas não importava. O sujeito tinha violado as regras.

Começou a recuar. Não valia o risco. Um adolescente ele poderia enfrentar, mas, se houvesse dois ou talvez três, então ele estaria em uma grande encrenca — ainda mais se começassem a atacá-lo do mesmo modo que todo mundo parecia estar fazendo. O carro estava quase fora de seu campo de visão quando a pessoa no banco do passageiro saiu. Brick parou, arrastando-se de volta para o alto da duna. A outra pessoa era uma garotinha, pequenina ao lado do Land Rover, o rosto franzido de ansiedade. Usava uma calça preta e uma camisa polo vinho com o que poderia ser o emblema de uma escola.

Um garoto e uma criança, talvez irmãos. Mesmo que pirassem, Brick achou que conseguiria dar conta deles — se derrubasse primeiro o cara, correria mais do que a menina com facilidade.

Então vamos para a hora da verdade, pensou. Passou a mão na testa outra vez e se levantou.


Cal

Hemmingway, 20h55

— Não tem ninguém aqui — Cal falou para Daisy.

— Tem, tem sim — respondeu ela, olhando para ele. — Você... Você não sente?

Cal balançou a cabeça, mas havia algo ali, aquela mesma sensação de paz que ia e vinha, zumbindo em seu crânio. Esquadrinhou o estacionamento com o olhar outra vez, sem ver nada além de concreto rachado e de pequenos montes de areia. O banheiro estava interditado com tábuas, o que na verdade era um alívio. Alguns lugares eram macabros por si sós. A arma estava guardada na cintura da calça, e toda vez que ele a ajeitava tinha medo de que a dispararia e explodiria metade da bunda. Deveria tê-la deixado no carro.

— Olha ali — disse Daisy. Ele seguiu a linha de visão dela até as dunas que escondiam o mar do estacionamento. Alguém andava por elas, um homem alto com cabelo tão vermelho que reluzia feito cobre no sol poente. Usava jeans e uma camiseta branca suja, e os braços longos e desengonçados pendiam ao longo do corpo, os dedos abertos.

— Ele vai machucar a gente? — perguntou Daisy, correndo para perto de Cal. Ele não respondeu, apertando-a contra ele com uma das mãos. Sentia o peso da arma, frio e cortante contra as costas. Por favor, permita que eu não precise usá-la, por favor, Deus, tomara que ele seja bom.

O homem — era difícil afirmar qual era sua idade — parou na parte de baixo da duna, a cerca de dez ou quinze metros de distância. Daquela distância, Cal podia ver as manchas de sangue na camiseta dele, que mais pareciam chocolate na penumbra crescente. Sangue seco também tingia o seu rosto, um ferimento feio acima de um olho. Havia algo naquele rosto que inspirava uma desconfiança imediata em Cal, algo na rudeza das maçãs do rosto, nos olhos semicerrados. E, no entanto, havia algo dentro de sua cabeça — mais a ausência de algo, na verdade —, uma sensação que lhe dizia que tudo bem, que o ruivo era um deles.

Mesmo assim, por um minuto ou talvez mais, ninguém se mexeu, todos com o mesmo receio — de que alguém começasse a gritar, saísse correndo pelo estacionamento com os punhos se agitando no ar, os dentes à mostra e os olhos em chamas. Aqueles sessenta segundos, mais ou menos, pareceram se estender pela eternidade, tudo perfeitamente imóvel, apenas a tranquilidade das ondas fora do campo de visão e o farfalhar das árvores deixando Cal consciente de que o tempo não tinha parado.

Daisy foi a primeira a se mover.

— Ele não vai atacar a gente — sussurrou ela. O sujeito devia tê-la ouvido, porque deixou escapar uma risadinha. As mãos pareceram relaxar um pouco, embora ainda fosse visível sua tensão.

— É você o Rick? — perguntou Cal.

O homem semicerrou os olhos, erguendo uma das mãos para protegê-los. O sol estava acima dos ombros de Cal, aninhando-se nas copas das árvores, iluminando o garoto do peito para cima.

— O que você acha? — disse ele, arqueando as sobrancelhas. — Achei que tivesse falado para você vir sozinho.

— Ah, esta aqui é a Daisy — disse Cal, sentindo-se súbita e avassaladoramente protetor em relação à garota. — Eu a encontrei no caminho. Ela é como... — ele quase disse como nós, mas era cedo demais para isso — ... como eu. Ela também foi atacada.

Daisy ergueu a mão e fez um breve aceno.

— Meu nome é Cal — prosseguiu ele. E ficou sem ter o que dizer. O homem o observava com receio, os olhos indo e vindo entre ele e Daisy.

— CalMessiRonaldo — disse ele. — É fã de futebol, não é?

A questão soou mais como um insulto do que como uma pergunta, por isso não respondeu. Cal sentiu a raiva crescendo. A arma escorregou para baixo na cintura da calça, e precisou empurrá-la para cima. Era tão pesada que, se não tomasse cuidado, em um minuto estaria ali de pé usando só a cueca. O silêncio que se seguiu foi o mais incômodo possível.

— Meu nome é Brick — o cara disse enfim.

— Brick? — perguntou Daisy. O homem sorriu, apenas um pequenino espasmo dos lábios, mas ainda assim um sorriso. Seu rosto parecia mais humano assim.

— Por causa do meu cabelo — ele explicou a ela. — É da mesma cor de um tijolo.

— Não é, não — respondeu ela. — Os tijolos são meio rosados, e o seu cabelo é laranja fosforescente.

O sorriso de Brick aumentou, enfim chegando aos olhos. Cal pôde notar que, apesar de sua altura, Brick também não era muito mais que um garoto.

— Pode me chamar de Cenoura se quiser — sugeriu ele. Olhou de novo para Cal, e o sorriso desapareceu. Segundos de silêncio se passaram, as gaivotas circulando acima, como abutres. — Como estão as coisas por aí?

— Muito ruins — disse Cal. — Tirando a Daisy, você é a primeira pessoa que eu vejo que não tentou arrancar minha cabeça. Parece que o mundo inteiro enlouqueceu.

Brick fez que sim com a cabeça. Olhou para a direita, e depois de novo para Cal.

— É, o negócio foi pro brejo mesmo. — Ele mastigava algo, mas depois de um instante o cuspiu. — Vai escurecer logo. Tenho um lugar, um lugar que é seguro, eu acho. Fica a uns vinte minutos daqui. Não tem comida, nem luz, nem nada...

— A gente tem comida — interrompeu Daisy. — Um monte de coisa no carro. É tudo do Cal, não é meu.

— Que bom — continuou Brick. — Pode não ser o ideal, mas pelo menos ninguém conhece. Vocês podem vir se quiserem.

Dã, pensou Cal. Dirigimos todo esse tempo apenas para dizer oi, mas agora vamos cair na estrada de novo. Claro que vamos com você. Porém, em vez disso, ele falou:

— Certo, claro. Podemos levar o carro?

Brick olhou para o Freelander como se fosse mais um estranho não desejável ali. Cal apoiou o peso do corpo na outra perna, e, ao fazer isso, sentiu o metal pesado escorregar da cintura e descer, batendo no concreto com um baque. Os olhos de Brick se arregalaram ao ver a arma. Então, antes que Cal pudesse dizer qualquer coisa, ele se virou e correu.

— Espere! — berrou Cal. O cara corria a uma velocidade impressionante, braços e pernas como pistões levando-o duna acima. — Espere! Era só por precaução, eu não ia usar isso!

Brick não ouvia mais nada, praticamente saltando duna afora em meio a uma cortina de areia levantada da superfície. Cal soltou um palavrão, depois agachou-se e pegou a arma.

— Espere aqui! — disse ele a Daisy, começando a correr. Saltou na duna, os pés afundando à medida que avançava. Chegou ao topo a tempo de ver Brick correndo pela praia.

— Brick, espere! — gritou. Mas ele não parou nem diminuiu a velocidade dos passos. Cal começou a descer, dando quatro ou cinco passadas antes de perceber que, por mais rápido que fosse, jamais o alcançaria. Por isso, ergueu a arma, apontando-a para o alto e apertou o gatilho.

O coice fez seu braço tremer, o impacto chegando ao ombro e finalizando em uma torção dolorida entre as costelas — um choque tão forte que quase deixou o revólver cair. Seu ouvido começou a zumbir. Porém funcionou. Brick perdeu o equilíbrio e caiu de cara na areia. Girou, rastejando para trás como um caranguejo, as órbitas brancas visíveis até de onde Cal estava.

Cal manteve a arma erguida, apontada para o alto, desconfiado de que a bala pudesse voltar e se enterrar em sua cabeça. Respirou fundo, a pólvora como fumaça de fogos de artifício dentro de seus pulmões.

— Não vou atirar em você! — gritou. — Só trouxe a arma para o caso de você ser um maluco. Olha só. — Ele jogou o revólver em direção a Brick. A arma pousou a meio caminho deles, sulcando a areia. Em seguida, ergueu as mãos, ignorando a parte do cérebro que gritava para ele: Seu idiota, percebe o que você fez? Agora ele vai te matar! — É sua, pode pegar, só não deixe a gente aqui, está bem?

Muito lentamente, Brick ficou de pé. Estava inclinado, como se esperasse que outro tiro viesse de algum outro lugar. Refez o caminho pelas crateras das próprias pegadas, pegando a arma pelo cano e segurando-a longe do corpo, o que fez Cal pensar em uma criança segurando uma tesoura.

Ouviu-se um suspiro ruidoso, e Daisy apareceu ao lado de Cal, segurando a mão direita dele com as duas mãos. Eles olharam para Brick, que estava como uma estátua, a arma ainda entre as mãos à sua frente, sua sombra um enorme t minúsculo na praia.

— Por favor, não deixe a gente aqui — pediu Daisy. — A gente não ia machucar você.

Brick pareceu demorar um tempão antes de assentir para ela.

— É melhor irmos então. O som daquele disparo deve ter ecoado por quilômetros. — Ele se virou e andou devagar pela praia, aproximando-se da água. — Deixe o carro aí. Não queremos marcas de pneu. Só peguem as coisas de vocês e me sigam.


Daisy

Hemmingway, 21h13

Daisy caminhava entre os dois garotos, na verdade tendo que trotar a cada poucos segundos, para conseguir acompanhar as gigantescas passadas. Estava exausta, as pernas doloridas por causa do esforço da caminhada na areia e as mãos, por causa das duas sacolas que segurava, mas sentia-se segura. O que era estranho, considerando que havia violado uma das regras mais importantes, uma das coisas que a mãe e o pai tinham martelado para ela inúmeras vezes. Nunca, jamais, falar com desconhecidos. E com certeza nunca, nunca, nunca MESMO entrar no carro de um garoto desconhecido e deixar que a conduzisse para o outro lado do país, a fim de encontrar outro garoto desconhecido, e depois ir com os dois para um lugar secreto que ninguém conhecia.

Devia estar nervosa, mas aquela sensação horrorosa que costumava sentir no peito e na barriga quando se assustava — como se houvesse coisas vivas rastejando dentro dela — simplesmente não havia surgido. Podia ser ainda efeito do choque do que tinha acontecido. Podia ser o fato de que nas últimas horas tudo em sua vida — tudo o que ela sabia sobre o mundo — havia mudado.

Mas havia outra coisa também.

— Você é de onde? — ela ouviu Cal perguntar.

Ele estava alguns passos na frente dela, uma enorme mochila cilíndrica sobre o ombro, e a última sacola presa em um dos punhos. O outro garoto estava alguns passos na frente dele e não carregava nada além da arma. Estavam quase andando em fila. O mar ainda estava à direita, enorme e brilhante como um grande pedaço de papel-alumínio. As dunas erguiam-se à esquerda. O sol agora mergulhara abaixo deles, fazendo a areia parecer cimento molhado. Apressou-se alguns passos adiante, até ficar ao lado de Cal outra vez.

— De algum lugar por aqui?

Ele é de Larkman, pensou Daisy, o pensamento chegando de modo vago. O que era esquisito, porque nunca tinha ouvido falar de Larkman antes.

— Norwich — resmungou Brick sem olhar para trás.

Ah, pensou Daisy.

— De um lugar chamado Larkman, na verdade — continuou. — Você nunca deve ter ouvido falar.

— Legal — disse Cal. Sorriu para Daisy, e ela sorriu em resposta, sem precisar pensar muito. Cal era gente boa, e ela podia confiar nele. Mesmo que ele não tivesse salvado a vida dela, ela saberia disso. Ele não era de Norwich; era de um lugar chamado Oak Minster, ou algo assim. Isso a fazia pensar em uma igreja de madeira. Aquela pequena informação flutuava em sua mente como um cubo de gelo em um copo de água, meio transparente, quase invisível, mas sem dúvida ali. Aquilo parecia resfriar sua cabeça por dentro, mas não de um jeito ruim.

— Tudo bem? — perguntou-lhe Cal. — Quer que eu carregue essas sacolas?

— Tudo bem — respondeu ela, sem querer se sentir mais infantil do que já se sentia. Como os pais não estavam mais por perto — Mas não estão mortos; lembre-se do que Cal disse, ele pode fazer as coisas voltarem ao normal —, ela teria de cuidar de si mesma por algum tempo. Não podia esperar que aqueles garotos tomassem conta dela, porque todo mundo sabia que os garotos eram meio ruins nisso. Ela olhou para as costas de Brick. Até no escuro o cabelo do garoto maior parecia laranja fosforescente. Ele odeia isso, pensou ela. Não por causa da cor, ou porque as pessoas implicam com ele, mas porque o cabelo o faz lembrar o pai. A cabeça dela estava cheia de cubos de gelo, um diferente do outro, pedacinhos tilintantes de conhecimento em forma de pensamentos.

— Quem você disse que te atacou? — perguntou Cal. — A sua namorada, não foi?

Brick disparou um olhar por cima do ombro que era bem fácil de interpretar — Não me faça essa pergunta —, mas que se abrandou um instante depois. Ele se curvou e pegou uma das pedrinhas espalhadas pela praia, jogando-a no mar. Ela foi longe. Daisy sentiu pena da pedrinha, porque ficaria presa na água fria e escura por muito tempo. Para sempre, talvez.

— Foi assim que começou, isso mesmo — disse ele, continuando a andar. — A gente estava junto, entende? E aí ela pirou. Me mordeu. — Ele se virou de novo e apontou para o ferimento acima do olho. Parecia horrível e infeccionado. — Mas não foi só isso, ela estava totalmente louca, queria me fazer em pedaços. Sem motivo nenhum. Eu não tinha feito nada. Depois fui ao posto pedir ajuda, e um monte de gente veio pra cima de mim. Todo mundo queria me matar.

Tem alguma coisa que ele não está contando, pensou Daisy. E outro cubo de gelo flutuou em sua mente, um corredor escuro e alguns degraus, uma porta trancada no final. Essa ideia lhe deu uma sensação ruim, uma coceira desagradável no estômago, e ela a afastou, concentrando-se nas gaivotas que pescavam no mar. Elas a encararam em resposta, os olhinhos fazendo-a pensar nas pessoas que a tinham atacado — o homem da ambulância, a sra. Baird, todos os vizinhos, e pessoas que ela nunca tinha visto antes —, porque não havia nada naqueles olhos. Eram como bolas de gude pretas e ocas.

— Você chamou a polícia, fez alguma coisa? — perguntou Cal.

Brick negou com um gesto de cabeça.

— Eles também teriam vindo atrás de mim. Não sei como eu sei disso, mas sei. — Ele olhou para Cal. — E você sabe também.

Daisy também sabia. Todos viriam atrás deles, não importando aonde fossem ou o que fizessem. Até encontrarem um jeito de resolver aquilo, o mundo inteiro teria a fúria. Esse pensamento não era outro cubo de gelo; era uma enorme luz piscando em sua cabeça, impossível de ignorar ou de afastar.

— A fúria — disse Brick, assentindo com um gesto de cabeça, como se Daisy tivesse falado alto. — A pergunta é: por quê? Por que nós?

A única resposta para isso foi o som do mar que lambia a praia com sua língua espumosa; isso, e os gritos delicados das gaivotas aninhando-se. Elas dormiam na água? Aquilo era estranho. Como podiam não se virar no meio da noite?

Andaram em silêncio por mais alguns minutos, Daisy ficando cada vez mais para trás enquanto a superfície macia e irregular cobrava seu preço das pernas dela. Tentava compreender os outros cubos de gelo. Podia ver um com uma menina bonita lendo um livro. Esse era de Cal. Havia outro de um píer repleto de máquinas de fliperama, que era transparente demais para ser decifrado. Havia também cubos feios: gente gritando, mordendo, socando, chutando e perseguindo, que pertenciam aos dois garotos. Daisy surfava entre eles como alguém mudando de canal, sem de fato entender como aquelas coisas podiam estar em sua cabeça, a menos que estivesse imaginando aquilo.

Depois de um tempo, Brick foi para a esquerda, em direção às dunas. À frente a praia se estreitava, e Daisy pôde avistar uma coisa esquisita de madeira — como uma enorme ponte de cordas em ruínas — estendendo-se pela areia até o mar. Ela correu para alcançá-los, quase tropeçando. Cal esperou por ela no sopé da duna, Brick já quase no meio da encosta.

— Tem certeza de que não quer que eu leve as sacolas? — disse ele, colocando a sua por cima do ombro. — Eu não me importo.

— Tudo bem — respondeu ela. — Acho que já estamos quase chegando.

Como ela sabia disso? Não sabia explicar como, mas sabia. Assim como sabia que veria uma roda-gigante antes mesmo que ela surgisse acima da duna, como um sol de metal enferrujado. A imagem do cubo de gelo era quase igual à real, sobreposta a ela e brilhando ligeiramente. Só que no cubo a roda girava, e havia pessoas dentro das cabines. Era cheiro de donuts que estava sentindo? Piscou algumas vezes, e o gelo derreteu. A roda-gigante era antiga; não se parecia em nada com aquela que tinha visto em Londres. Pedaços dela tinham caído, parte das barras de metal do meio, e três ou quatro cabines. Parecia um gigante banguela.

Brick contorcia-se, em movimentos desengonçados, para descer a outra encosta da duna, dirigindo-se a uma cerca enorme. Daisy viu que não havia apenas uma roda-gigante à frente, mas um parque inteiro — duas montanhas-russas, e ainda um daqueles brinquedos que subiam e desciam e deixavam você enjoado só de olhar, e também um grande prédio quadrado com um telhado em forma de ondas. O coração dela se alegrou ao ver um carrossel, ainda que pudesse distinguir apenas o telhado pintado, em forma de cone, acima da cerca. Adorava carrosséis! Era o mais perto que podia chegar de montar um cavalo.

— É um parque temático — disse ela.

Brick virou-se e de algum modo um sorriso conseguiu pousar de novo em seu rosto repleto de amargura.

— Antigamente, era — disse ele. — Mas não se empolgue. Nada mais funciona aqui. Embora seja um lugar seguro. Só eu venho aqui.

Não importava se nada mais funcionava, ainda assim haveria cavalos. Na verdade, podia vê-los mesmo agora, como mais um daqueles pensamentos semi-invisíveis que faziam seu cérebro gelar. Podia ver os olhos bondosos e o focinho longo, e aquele horrendo corredor escuro e os degraus que desciam, e a porta trancada e algo do outro lado, gemendo.

A pele dela começou a formigar, e ela correu até Cal, andando ao lado dele enquanto seguiam Brick duna abaixo até um caminho de concreto, ao longo da cerca. No meio do caminho, Brick se espremeu por uma fresta e desapareceu. Ficou esperando por eles do outro lado até que o alcançassem.

— Cuidado para não se arranhar — Cal disse a Daisy. — O arame é bem afiado.

Cal abriu a fresta enquanto Daisy a olhava. Vasculhou dentro de si por sinais de alerta, procurando aquelas pequenas correntes elétricas que lhe diziam que algo ruim poderia acontecer. Mas elas não vieram. Além do corredor e da porta trancada — que talvez nem fossem reais; talvez estivessem só na cabeça dela —, sentia-se cem por cento em segurança.Engatinhou pela fresta, levantando-se e limpando-se enquanto Cal vinha atrás. Brick mandou-os sair do caminho, pegando um imenso pedaço de madeira no qual ela pôde ver algumas letras: LGODÃO DOC. Passou-o por cima da cerca e enterrou a ponta dele no chão, verificando se estava firme. Mesmo com a saída bloqueada, Daisy não sentia o menor vestígio de medo. Na verdade, não conseguia se lembrar de já ter estado em algum lugar onde sentisse tanto que era o lugar onde deveria estar.

Brick virou-se e esticou os braços compridos e sardentos. Desta vez, seu sorriso era nervoso, quase envergonhado.

— Cal, Daisy, bem-vindos a Fursville.


Cal

Fursville, 22h02

Poderia ter sido um jantar romântico, não fosse pelo fato de que comia um pacote de salgadinhos de camarão, e de que a pessoa sentada à sua frente, do outro lado da mesa iluminada pela vela, era um cara ruivo e feio chamado Brick.

Estavam no primeiro piso do pavilhão, no pequeno restaurante chamado Waves. Um lado do salão era decorado com janelas que iam do chão ao teto, mas não havia mais vista para o mar. As janelas tinham sido tapadas com tábuas do lado de fora. Boa parte dos vidros estava estilhaçada e manchada, de modo que a vela bruxuleante refletia-se neles várias vezes, dando a impressão de que o salão estava em chamas. O lugar inteiro tinha uma camada de um centímetro de pó e teias de aranha, e o fedor de podridão marinha estava suspenso no ar, com a fumaça.

Seu desconforto devia ser evidente, porque Brick deixou escapar um ruído que talvez fosse uma risada.

— Aqui não é o Four Seasons nem nada assim — disse ele.

— Está ótimo — respondeu Cal, derramando os farelinhos do salgadinho na boca e depois achatando o pacote contra o pano bolorento da mesa. Daisy estava em uma pequena espreguiçadeira ao lado deles. Tinha se esticado ali cinco minutos antes e já estava totalmente adormecida, o ressonar macio como veludo. — É seguro.

— Completamente seguro. Ninguém nunca vem aqui. Nunca.

Não era de surpreender, considerando o que tinham visto na última meia hora. Brick havia feito um tour com eles, agindo como se trabalhasse ali enquanto lhes mostrava a montanha-russa, o tobogã de madeira, o carrossel, os carrinhos bate-bate e o campo de minigolfe tomado pela vegetação. O que ele devia estar fazendo de verdade, pensou Cal, era mostrar as saídas de emergência, os esconderijos mais seguros, as provisões, os pontos fracos, as áreas de vigia. No mínimo, podia ter mostrado onde ficavam os banheiros. Mas não; ficara dando voltas e tagarelando sobre fliperamas, donuts e qual era o melhor lugar para pegar o toboágua e não se molhar — ainda que nenhum desses brinquedos funcionasse mais.

Cal não tinha dito nada, porém. Ali parecia quieto, e, pelo que ele e Daisy tinham visto no carro enquanto dirigiam, aquela parte do litoral era mesmo deserta. Haveria bastante tempo para fugir do parque caso alguém viesse atrás deles.

Suspirou, com vigor suficiente para fazer a luz da vela estremecer. Era a primeira vez que admitia para si mesmo que aquilo talvez não fosse acabar de um dia para o outro. Talvez não acabasse nunca.

— O que foi? — perguntou Brick.

— Nada. Isso tudo... não parece real.

— Eu sei. Parece que foi em outra vida que eu trouxe Lisa até aqui, que estávamos bem.

Outra vida, pensou Cal. Era mesmo. Quanto tempo fazia desde que estivera na escola jogando futebol? Talvez dez horas. Dez horas para que as regras do universo se esfarelassem em volta dele, para que tudo o que conhecia definhasse. Isso o fazia se lembrar de um poema que tinham estudado na aula de inglês, mas não conseguia recordar como terminava. Algo sobre as coisas virem abaixo. Ficaram sentados em silêncio, ambos ruminando os próprios pensamentos enquanto a vela escorria em sua respiração entrecortada, um agonizar trêmulo.

— Sua namorada — disse Cal. — Lisa? O que... Quer dizer, ela...

— Não precisa se preocupar com ela — cortou Brick, com um olhar que dizia a Cal que seria melhor não insistir mais no assunto.

— Tem alguma ideia do que pode estar causando isso? — perguntou Cal, mudando logo o rumo da conversa. — Quer dizer, não consigo pensar em nada, exceto talvez em genética.

— Hã? — resmungou Brick.

— Como os gatos. Sabe como são alguns gatos; é só eles verem outro gato e partem para cima. Às vezes brigam até a morte. Acho que os cachorros também.

Brick assentiu, absorto em pensamentos.

— Mas uma coisa dessa não acontece por acontecer — disse ele enfim. — Você não aperta um botão e todo mundo te odeia.

— Comigo não foi só isso — disse Cal. Daisy se mexeu, fungando e apertando o rosto contra a espreguiçadeira. Ele esperou que a respiração dela voltasse a ficar constante para continuar. — As coisas andaram estranhas uns dias atrás. As pessoas me ignoravam, agindo de um jeito esquisito. Achei que fosse uma brincadeira, mas...

Não precisava terminar. Brick traçava algumas linhas no pó na mesa, a unha em seu indicador uma lua crescente de pó e sangue. Quando recolheu o braço, Cal viu um círculo com dois X no lugar dos olhos, sobrancelhas arqueadas e zangadas, e uma boca virada para baixo. Era como uma daquelas carinhas sorrindo, mas sem o sorriso. De algum modo, sem exatamente admitir que tinha pensado isso, soube que era aquilo que Brick ia desenhar.

— A fúria — murmurou Brick, fitando sua criação. — É um bom nome, não é?

— Com certeza se encaixa — disse Cal. — Mas por que a gente? E por que agora?

O olhar de Brick cruzou com o de Cal por uma fração de segundo antes de se desviar. Ele se inclinou e vasculhou um saco — que tinha pegado no saguão enquanto passavam por lá. Tirou dele um laptop e o pousou com cuidado na mesa, cobrindo seu desenho de poeira.

— Preciso mostrar uma coisa — disse ele, abrindo a tampa. Cal ouviu o gemido do HD voltando à vida, e o rosto do garoto de repente se banhou em uma luz branca ofuscante. Cal levantou-se, limpando a poeira das palmas enquanto contornava a mesa. Brick estava on-line, o browser mostrando a mesma página do Yahoo Respostas que Cal tinha visto em casa. Viu a mensagem original de Rick_B e, abaixo, a própria resposta cheia de pânico. Brick ergueu os olhos e, visto daquele ângulo, parecia ter metade da idade. — Não somos só nós — disse ele.

— Eu sei — respondeu Cal, vendo os olhos de Brick se arregalarem. — Vi o que aconteceu na autoestrada. Uma tonelada de gente em cima de um carro, atacando alguém ali dentro. Era alguém como nós. Não sei como eu sei que era. Mas sei.

Ele engoliu em seco quando a lembrança voltou com tudo, as chamas da explosão parecendo chamuscar a carne do seu cérebro. Brick virou-se de novo para a tela. Quando ergueu o dedo enegrecido de poeira sobre o trackpad, ele tremia.

— Não é só isso — disse ele. — Você não foi a única pessoa a responder. Olha só.

Rolou a página para baixo bem devagar, para que Cal lesse as onze respostas que tinham surgido depois da dele, todas, exceto duas, quase uma cópia idêntica uma da outra. Quando chegou à última, tinha a sensação de ter corrido uma maratona — ou isso, ou de ter levado um soco no estômago. Precisou apoiar-se no encosto da cadeira de Brick para impedir as pernas trêmulas de fazê-lo desabar no chão.

— Isto é de quatro horas atrás — disse Brick, movendo o cursor para o horário da última entrada: 18h05. — Desde então não olhei mais.Colocou a seta no botão de atualizar, e Cal quase gritou para que não o apertasse. Não queria ver. Não queria saber.

Brick clicou. A página carregou com uma lentidão dolorida. O cabeçalho do Yahoo, depois os anúncios, depois o frame, e, por fim, a mensagem de Brick. As respostas vieram depois, todas juntas, como se estivessem sendo vomitadas na página.

Todas as quarenta e oito respostas.

— Meu Deus — disse Cal, e desta vez precisou sentar-se na cadeira ao lado de Brick. Seu corpo inteiro parecia anestesiado, gelado. — Por favor, me diga que não são todas reais.

Brick rolava a página mais uma vez, e sua palidez não tinha nada a ver com a luz da tela. Cal observou o semblante dele desabar um pouco mais a cada nova resposta que lia. Pareceu ter transcorrido um milênio quando o rosto enfim ficou vermelho, os olhos marejados levantando-se. Trocaram um olhar sério pela primeira vez, e, apesar das devidas diferenças, poderiam ser o espelho um do outro.

— Brick? — perguntou Cal. — O que elas dizem?

— A mesma coisa — murmurou ele, ofegante, voltando-se para a tela. — São todas exatamente iguais.

— O que vamos fazer? — Brick não respondeu, a luz da vela dando à sua pele um brilho de cera. Como se ele não fosse real; como se nada disso fosse real, insistiu o cérebro de Cal. Como pode ser? Como algo assim pode estar acontecendo? — Brick, o que vamos fazer?

Brick levantou a cabeça e, desta vez, quando o olhar de ambos se cruzou, Cal soube exatamente o que Brick pensava.

— Vamos contar a eles — disse Cal. — Vamos contar sobre este lugar.

— Precisamos contar — confirmou Brick. — Eu não queria, mas temos de fazer isso. Olha só, eu e você, a gente não se matou, nem a Daisy. Se somos...

— ... diferentes — completou Cal, ao ver a dificuldade dele de concluir.

— Se somos diferentes, se há em nós uma coisa que é diferente dos outros, da Fúria — Ele deu um F maiúsculo para o nome, percebeu Cal; agora é mais do que uma palavra —, então precisamos nos unir, ficarmos no maior número possível. É o único jeito de nos mantermos em segurança, de dar um jeito nisso.

— Mas não pode dizer a eles onde estamos — disse Cal. — Não aí. E se os outros descobrirem? Brick, precisamos pensar nisso direito.

— Não temos tempo — respondeu ele, batendo o dedo no alto da tela. Cal reparou no ícone da bateria ali, vermelho e piscando. — O computador vai desligar, e aqui não tem energia.

Cal soltou um palavrão, alto o bastante para fazer Daisy se mexer de novo. O corpo dela se agitou, ela abriu os olhos e olhou para ele. Quando seu sorriso distante e sonhador desapareceu, ela já ressonava outra vez.

— Olha — sussurrou Brick —, não vou falar de Fursville. Tem uma concessionária de carros usados do outro lado da estrada. Ela está vazia. Vou falar para irem para lá e esperarem alguém ir pegá-los. Ficaremos de vigia e, se algo parecer suspeito, simplesmente não damos as caras. Combinado?

Cal balançou a cabeça.

— Combinado? — repetiu Brick.

— Combinado — disse Cal, agitando as mãos no ar. — O.k., está certo.

Brick já estava digitando:

Vocês não estão sozinhos. Temos um lugar seguro, alguns de nós estão aqui, e não estamos atacando uns aos outros. Se conseguirem chegar até nós, estamos numa cidadezinha chamada Hemmingway, em Norfolk, bem na praia, depois de Hemsby. Na principal estrada costeira tem uma concessionária de carros abandonada, chamada Soapy’s. Vão para lá e esperem; estaremos lá todo dia, ao meio-dia.

Ele parou, passando as duas mãos pelo cabelo.

— Será que isso basta? — ele perguntou. Cal não respondeu. Brick leu mais uma vez, o cursor pairando acima do botão de postar resposta. — Vai ter que bastar.

— Você sabe que não é preciso ser nenhum gênio para perceber que, se não estamos na concessionária, vamos estar no enorme parque vazio bem na frente — disse Cal. — Devíamos tê-los mandado para o estacionamento.

— É longe demais — disse Brick. — A gente ia precisar fazer aquela caminhada todo dia. Seria um risco.

— Isto é um risco — replicou Cal. Brick fechou o laptop, tamborilando na tampa. — Precisamos garantir que este lugar tenha o máximo de segurança possível — continuou Cal. — Fechar a cerca, ter um plano de emergência, só para garantir.

Brick demorou um instante para levantar a cabeça. Encarou Cal, mas parecia olhar através dele, para algo muito além.

— Coisas se despedaçam — disse ele, a voz tão baixa quanto a vela derretendo. Cal balançou a cabeça enquanto o poema de que não se lembrava, o poema que aprendera na escola, vertia dos lábios de Brick. — O centro não se sustenta. Mera anarquia está à solta sobre o mundo.

Brick desviou o olhar, uma luz ígnea ardendo em seus olhos ao finalizar:

— A maré de sangue à solta se esvai, e em toda parte a cerimônia da inocência se afoga...


O Outro: II

As montanhas tremem por causa dele,

as colinas estremecem

e a terra é devastada diante dele.

Quem subsistirá? Diante de sua cólera,

Quem se levantará perante o ardor de sua ira?

Seu furor derrama-se como o fogo,

e as montanhas reduzem-se a pó diante dele.

Naum 1, 5-6


Murdoch

Thames House, Londres, 23h40

— Olha, tudo o que eu quero é saber o que está acontecendo.

O detetive Alan Murdoch já vinha falando essas mesmas palavras para a mesma porta trancada havia quase três horas. E já fazia quase vinte e quatro horas que ele fora enlatado em um carro com Jorgensen e seus assistentes do necrotério, sendo conduzido ao enorme quartel-general do MI5 no Tâmisa. Estava sendo tratado como terrorista, como se de algum modo fosse responsável pelo cadáver bizarro de respiração infinita. Assim que chegara lá, tinham amarrado díodos e sensores nele, e fizeram-lhe uma pergunta atrás da outra, recusando-se terminantemente a responder qualquer uma que ele propusesse. Depois disso, havia sido jogado naquele porão para apodrecer.

Não recebera permissão sequer para telefonar à esposa. O celular e o rádio da polícia tinham sido confiscados; também sua identificação de policial. Era para ele estar em casa àquela mesma hora, só que no dia anterior. Ela estaria morta de preocupação. Sentia algo se revirar no estômago, o medo de nunca mais vê-la de novo, de nunca abraçar seu bebezinho.

Você está sendo ridículo. É a exaustão falando mais alto. Mas sabia que não era. Tinha visto aquilo, aquela coisa inacreditável, o cadáver vivo que transformara em piada tudo o que ele conhecia. A realidade havia começado a desabar, e ali estava ele com um assento na primeira fila para o desfecho de tudo.

— Realmente, sinto muito — disse Jorgensen no que devia ter sido a centésima vez naquele dia. Sentou-se no outro lado do quartinho (quartinho não, cela), parecendo ter cem anos de idade. — Não devia ter chamado você, Alan, de jeito nenhum.

Não, realmente não devia, pensou Murdoch, mas respondeu:

— Não é culpa sua, Sven. Você só estava fazendo o seu trabalho.

O patologista deu-lhe um sorriso cansado e em seguida afundou a cabeça de novo entre as mãos. Murdock bateu o punho contra a porta, forte o bastante para doer.

— Vocês não têm o direito de nos deixar aqui, droga — rugiu. Haviam recebido água e um sanduíche, mas isso tinha sido horas atrás. A fome de Murdoch se perdera em meio ao ódio nutrido em suas entranhas. — Eu sou policial, tenho o direito de saber o que está acontecendo.

Direitos. Murdoch riu com amargura. Não tinha direitos, não ali; não no centro do Serviço Secreto do governo. Podiam deixá-lo ali para sempre e garantir que ninguém jamais fizesse alguma pergunta a respeito. Mas por quê?

Ouviu-se uma batida metálica do outro lado da porta, seguida de passos. Uma chave girou, e em seguida a porta se abriu, revelando um homem e uma mulher em uniformes de enfermagem. O homem segurava uma bandeja com mais sanduíches e duas garrafas de água. Fez menção de entrar, mas Murdoch impediu-lhe a passagem.

— Vocês não podem manter a gente aqui — disse ele. — Exijo ver o seu superior.

— Lamento, senhor — respondeu a mulher. — Receio que ninguém possa falar com você agora.

— Por favor, aguardem dentro do recinto — acrescentou o homem, e havia um ou sofrerão as consequências que ele deixou apenas no ar.

Murdoch mordeu a língua, olhando além dos enfermeiros e vendo um corredor comprido e sem janelas. Ao final dele havia uma porta de metal reforçado, protegida por homens armados. Murdoch entendeu que era lá que estava o cadáver vivo. A ideia daquilo ali, tão perto, o fazia estremecer. Enquanto ele olhava, a porta se abriu, e um grupo de pessoas saiu de lá. Usavam uniformes diversos — algumas, de altas patentes militares; outras vestiam jalecos cirúrgicos —, mas todas tinham a mesma expressão de medo. Avançaram pelo corredor e viraram, sumindo do campo de visão.

— Veja — disse Murdoch, obrigando-se a ficar calmo —, não quero causar encrenca, só quero ir para casa. Minha esposa não sabe onde estou. Você poderia ao menos me dizer quanto tempo vão nos deixar aqui?

Os enfermeiros deviam ter deparado com tamanho desespero em seu rosto desolado que o semblante deles se abrandou.

— A verdade é que não sabemos — disse a mulher. — Tem alguma coisa... Estão dizendo que é algo ruim, muito ruim. Estão detendo todo mundo que teve qualquer tipo de contato com essa coisa. Você viu?

— Eu vi — respondeu Murdoch, suspirando. — E eles têm razão, é ruim mesmo.

— Fique com isto — falou o homem, passando a bandeja para Murdoch. — Talvez não demore tanto para acabar. Estão chamando um especialista, parece. Com um pouco de sorte, vão conseguir entender logo o que está acontecendo e tirar vocês daqui.

— Um especialista? — comentou Jorgensen, aproximando-se. — Que tipo de especialista?

O homem deu de ombros.

— Alguém que talvez saiba o que é essa coisa.

E o que ela quer, acrescentou a mente de Murdoch.

O som de vozes aumentou, e um grupo de soldados apareceu no mesmo corredor por onde os outros tinham saído antes. Dirigiram-se para a porta protegida, e Murdoch viu outra pessoa com eles, alguém vestido de preto. A enfermeira olhou por cima do ombro.

— É o especialista — disse ela.

— O especialista? — perguntou Jorgensen. O homem e a mulher assentiram com um gesto de cabeça.

— Não pode ser — disse Murdoch, quase sem acreditar no que via. Os soldados chegaram à porta e o homem se virou, revelando o colarinho branco em volta do pescoço, o pesado crucifixo pendendo no peito. O especialista não era cientista, nem médico, nem general.

Era um padre.


Sábado

O inimigo na própria pele é menos horrendo do que quando se enfurece no interior dos homens.

Nathaniel Hawthorne, “Young Goodman Brown”


Rilke

Farlen, Lincolnshire, 0h23

— Não devíamos estar fazendo isso.

Rilke Bastion ignorou o irmão da maneira que aprendera a fazer ao longo de anos de prática. Ele andava ao lado dela como se fosse um cão, não seu irmão gêmeo de quinze anos, o rostinho triste voltado para ela, os olhinhos úmidos de um filhote. Se Schiller tivesse cauda, ela estaria permanentemente fixa entre suas pernas.

— Rilke, por favor, a mamãe vai ficar zangada.

A mãe jamais descobriria. Estava mumificada nos mesmos lençóis rançosos e manchados de chá em que tinha passado metade da vida. A outra metade ela tinha passado na cadeira de banho, que ficava travada ao lado das enormes janelas de seu quarto, os olhos examinando a propriedade, mas a mente atrofiada, sem capacidade para pensar.

— Rilke, por favor, não quero ir.

O gemido canino dele era uma ponta de faca nos ouvidos dela, fazendo com que a dor de cabeça que já sentia há dois dias piorasse infinitamente. Ela se deteve, virando-se e pegando Schiller pelo colarinho. Olhar o rosto dele era tão parecido com olhar o próprio reflexo, mas também tão diferente. Podia ver as mesmas maçãs do rosto salientes, os mesmos olhos verdes límpidos, o mesmo nariz estreito. E, no entanto, parecia olhar para um espelho distorcido, que deixava o queixo dela suave demais, as bochechas frouxas demais, os olhos marejados demais. Encarou Schiller até que ele desviasse os olhos, como sempre fazia. Só então ela o deixava em paz.

— Então volta — disse ela, enquanto ele deslizava as mãos pela camisa polo, tentando tirar os vincos. — Vai pra casa.

Schiller olhou para a rua, onde a vasta construção da igreja de São Pedro erguia-se como uma montanha na escuridão. Mais ou menos um quilômetro e meio depois dela ficava o solar da família Bastion, agora em ruínas e soterrado pelas sombras de seu terreno quase infinito.

— Então volta — repetiu ela. — O que está esperando? Se vai voltar, volte logo. Vou achar essa festa com ou sem você.

— Mas é que eu não estou me sentindo muito bem — respondeu Schiller, esfregando a têmpora do lado esquerdo. Seus olhos se reviraram para cima, encontrando os dela por uma fração de segundo. A verdade é que nem ela se sentia muito bem, a cabeça ainda latejando. Porém ignorou aquela pulsação, encarando o irmão até que a mão dele pendesse, submissa. — Está bem, mas não quero ficar a noite inteira. Rilke, por favor.

Bom menino, pensou ela. Você é um bom cãozinho. Ela lhe deu um tapinha na cabeça, forte o bastante para que ele se encolhesse. Em seguida, virou-se e continuou andando rua abaixo. Tinha ouvido falar da festa pela boca de uma faxineira chamada Millie, que trabalhava em meio expediente na propriedade. Não que Millie tivesse lhe contado diretamente — nenhum dos empregados ousava falar desse modo com Rilke. Ela ouvira a moça conversando com uma amiga enquanto as duas limpavam a biblioteca. Uma rave ilegal, ela havia dito, e ambas soltaram risadinhas após a palavra “ilegal”. Vai ser legal, só música e umas paradas. Vamos, vai! Não é longe da cidade; você conhece a fazenda Logan, perto da praia.

— Não vamos ficar a noite inteira, certo? — insistiu Schiller. — Por favor?

— A noite inteira, irmãozinho — disse ela. Ela sempre o chamava assim, ainda que, em termos técnicos, ele fosse alguns minutos mais velho. — Até os pássaros começarem a cantar.

Farlen não era uma cidade grande. Algumas pessoas nem sequer a chamavam de cidade; era mais uma aldeia com complexo de superioridade. Tinha crescido em torno da propriedade deles, séculos atrás, na época em que a família Bastion era rica e influente. Nas últimas gerações, a propriedade desabara sob o próprio peso, a casa enorme quase se desintegrando, ratos roendo as fundações e cocô de pombo descendo pelas calhas. E toda a cidade parecia estar sob a mesma maldição.

Um espasmo de alguma coisa se aninhou desconfortavelmente em seu estômago. Ela diminuiu o passo, estendendo o braço e deixando Schiller entrelaçar o seu no dela. Ele se apertou com força contra ela, e Rilke podia sentir a gratidão dele sendo emanada em ondas grandes e douradas.

— Te amo, irmãozinho — disse ela. — Você sabe que não vou deixar nada te acontecer.

— Eu sei — sussurrou ele enquanto deixavam a luminosidade para trás. Rilke tirou a lanterna do bolso do casaco, ligando o facho e abrindo uma trilha pela noite, como Moisés fizera com o mar Vermelho. Ela puxou Schiller mais para perto, apertando o passo e quase o arrastando.

— Vamos lá — disse ela. — Não é longe.


A música chegou a ela no mesmo instante em que o cheiro do mar.

Ela odiava aquele cheiro. Como era mesmo que diziam? Na Inglaterra, você nunca estava a mais de cento e dez quilômetros do mar. E todo ano ele parecia chegar um pouquinho mais perto, erodindo a praia e seus penhascos, fazendo a terra apodrecer sempre mais alguns metros. Era o vasto peso dele que a assustava, não só sua extensão — um golfo entre continentes —, mas sim suas profundezas insondáveis. Havia tanto mar que, se um dia ele decidisse crescer, vertendo suas vísceras sem luz pela terra, poderia banir por completo o mundo, sem pensar duas vezes. A ideia era assustadora, mas não necessariamente má. Não havia muita coisa no mundo que fizesse Rilke sorrir.

Ela respirava pela boca, concentrando-se no brilho à frente. Holofotes erguiam-se de um campo de restolho a quase um quilômetro de distância, refletindo sua luz para as estrelas e a enorme face sorridente da lua. A música era apenas uma pulsação que conseguia sentir nos pés, como se o próprio chão houvesse ganhado vida. A verdade era que ela odiava esse tipo de festa, as pessoas que faziam parte delas, todas drogadas ou bebendo até cair. Todas idiotas, do mesmo jeito que a maioria das pessoas era. Mas aquilo devia ser melhor do que outra noite de tédio insuportável em casa. Rilke nunca fora de dormir muito.

Apontou a lanterna para a pequena encosta de grama e subiu por ela, o braço de Schiller ainda preso com firmeza ao dela. Era difícil prosseguir naquela superfície irregular, mas a terra era rígida e ela mantinha o ritmo, permanecendo na mesma trilha aberta. Seu coração batia cada vez mais forte quanto mais se aproximavam, estalando nos ouvidos, fazendo sua pele vibrar. Ele encontrou eco na dor entre suas têmporas — tum-tum... tum-tum... tum-tum... —, como se algo estivesse dentro de seu crânio, batendo para tentar sair dali. Apertou o passo, a rave despontando à distância como uma catedral de luz.

Estavam quase na metade do caminho quando Schiller se deteve, plantando os pés na terra seca como uma âncora. Rilke se virou, apontando o facho para o rosto dele.

— Não quero ir — choramingou ele, apertando os olhos contra a luz árida. — Estou com medo.

— Mas que bebezão, Schill — respondeu ela, puxando-o para a frente. Ele fincou o pé, resistindo.

— Vai acontecer alguma coisa ruim — continuou ele.

— Deixa de ser bobo. — E, bem na hora em que disse essas palavras, sentiu algo dentro de si, algo nas entranhas, gritando Ele tem razão, ele tem razão, ele tem razão, um jato não verbalizado e instintivo de adrenalina. A rave estava perto o bastante para que visse o círculo de vans e carros que cercava a festa como vagões; e, no interior, a massa saltitante de carne que parecia inspirar e expirar no compasso daquela batida de chacoalhar os ossos.

Rilke engoliu em seco, de repente com frio. Quase recuou dali mesmo, prestes a tomar a dianteira e pegar o caminho de volta para casa. Porém seu lado teimoso a impediu, fazendo-a cortar pela raiz aquela advertência instintiva. A família Bastion sempre havia avançado sob o comando de suas mulheres. Eram elas que iam à frente.

Apertou o braço, prendendo bem o de Schiller e puxando-o pelo caminho. Ele precisa de uma coleira, pensou ela. Andaram por mais ou menos um minuto, a multidão à frente distinguindo-se em indivíduos — garotos e garotas de uns vinte anos, quase todos usando bastões luminosos. A maior parte estava dentro do círculo de veículos, mas havia alguns perambulando na penumbra ao redor da festa, conversando, beijando-se, ou perdidos na própria dança coreografada pelas drogas. Não havia nada ali para se temer. Ela ficaria durante cerca de uma hora, só para ver como era, só para ter tido a experiência, e depois eles voltariam. Ela fingiria estar voltando por causa de Schiller, para que ele se sentisse em dívida com ela.

Ele resistia de novo. Rilke olhou por cima do ombro, sem desacelerar o ritmo dos passos. Schiller havia dito alguma coisa, mas as palavras tinham se perdido sob o som ensurdecedor que parecia erguer-se da terra. O quê?, articulou ela, dando de ombros, esperando que ele começasse a resmungar de novo. Mas ele não estava resmungando.

— Minha cabeça — gritou ele, inclinando-se para ela. — Não está mais doendo.

Ela já ia responder, quando percebeu que a dor no próprio cérebro também tinha sumido, tão rápida, tão subitamente, que nem havia reparado. Rilke tocou a lateral da cabeça de Schiller, acariciando sua têmpora com o polegar.

— Está vendo, irmãozinho? — gritou ela, sorrindo. — O que foi que eu falei? Vai dar tudo certo.

Não era possível ouvir o que ela tinha dito devido ao barulho, mas Schiller sorriu mesmo assim, o reflexo dos holofotes fazendo seus olhos cintilarem.

Não durou muito.

Rilke sabia o que ele estava vendo antes mesmo de se virar, como se tivesse visto com os próprios olhos — duas pessoas, um homem e uma adolescente, vindo aos tropeções na direção deles. E havia mais — lampejos de coisas, cheiro de putrefação, uma garota e dois meninos dormindo em um restaurante em ruínas, alguém andando por um matagal, uma terceira dirigindo um carro, depois mais uma dezena, talvez duas dezenas. As imagens eram tão fortes que foi tomada pela vertigem, como se tivesse sido arrancada do próprio corpo e lançada para fora dele a uma velocidade altíssima.

Schiller murmurou o nome dela, e Rilke se virou. O homem e a adolescente aproximavam-se cada vez mais, às pressas, grunhindo como porcos ao avançar. Havia outros também, os garotos que perambulavam no lado exterior do círculo, correndo pelo campo até eles.

Todos tinham a mesma expressão, recortada contra a luz, mas inconfundível. Estavam furiosos. Aquelas pessoas queriam matar os dois, Rilke compreendeu — uma certeza absoluta e inquestionável. Queriam pisoteá-los naquele campo, transformá-los em lama.

Ela deu um empurrão em Schiller, gritando para ele:

— Corra!


Brick

Fursville, 0h34

Nadou em um oceano de trevas, rompendo-o como um nadador que mergulhou fundo demais, esperando sentir o calor e a luz do dia no rosto, mas, em vez disso, emergindo em uma noite infinita e gélida. Tentou respirar, mas não se lembrava de como fazer isso, os pulmões berrando com ele.

Via o garoto, Cal, bem ali, emitindo sua própria e esquisita luz, como uma água-viva das profundezas. O garoto lutava na torrente de trevas, os olhos esbugalhados, a boca arquejando como a de um peixe. E, atrás dele, visível sobre seu ombro, uma silhueta pequenina que só podia ser Daisy, os membros finos como gravetos atacando a água, tentando encontrar a superfície.

Estendeu a mão, reparando que sua pele também parecia brilhar, como se fosse radioativo. Esticou-se, tentando segurar Cal, querendo que o garoto segurasse a menina, todos eles se debatendo para vir à tona.

Brick acordou, os gritos mais parecendo latidos enquanto tossia na escuridão. Levantou-se, a cadeira tombando atrás dele. Ainda não havia luz, mas conseguia sentir o chão sob si, sentir a dor na bochecha, que ficara apoiada sobre o laptop enquanto dormia. Mas havia algo além, um zumbido nos ouvidos que era ao mesmo tempo profundamente silencioso, sinos invertidos de uma catedral, cujas badaladas eram cada qual uma ausência escancarada dentro de sua cabeça.

Daisy soltou um grito, a voz marcada pelo medo. Brick cerrou os olhos, ainda que não houvesse luz, tentando lembrar onde ela estava.

— Está tudo bem — falou ele, contornando a mesa e procurando fósforos. — Não se preocupe, estamos aqui.

Ela começou a gritar cada vez mais alto, e ele ouviu o baque quando ela rolou da espreguiçadeira.

— Daisy, não se mexa, você vai se machucar. Aguente firme.

Ele achou a vela, totalmente derretida, e, ao lado, bingo!, uma caixa de fósforos. Com cuidado, tirou um, acendendo-o na caixa, a pequena chama invadindo o enorme restaurante com uma luminosidade branda. Daisy estava de pé ao lado do sofá, os braços estendidos, os soluços abafados enquanto observava o fósforo aceso.

— Aqui — disse outra voz, e Brick virou-se e viu Cal vindo do outro lado do salão. Ele segurava uma vela, e Brick acendeu-a, colocando-a na mesa. Ao ver Cal, Daisy foi correndo até ele, abraçando-o com força, os olhos ainda embaçados de sono. — Tudo bem? — Cal perguntou-lhe. — Teve um pesadelo?

— A gente estava se afogando — disse ela, praticamente dentro da camiseta dele. — Você estava no sonho, e o outro garoto também.

— Brick — recordou o próprio Brick. Cal olhou para ele e, quando os olhares se cruzaram, Brick percebeu que ele estivera preso exatamente dentro do mesmo pesadelo. Não só isso, como também sabia que, se tivesse acenado no sonho, os outros teriam visto. Aquele zumbido nos ouvidos pareceu ficar mais alto e, no entanto, infinitamente mais silencioso, e ele abriu o maxilar para tentar destampá-los. Demorou coisa de um segundo para reparar que Cal fazia o mesmo.

— Está ouvindo também?

— Sinos — respondeu Cal.

Daisy tirou a cabeça do peito dele e enfiou um dedo no ouvido.

— Estão altos demais — disse ela. — Mas não é alto. Na verdade, não consigo ouvi-los. Não estou gostando nada disso.

— Eu já tive isso — Cal falou para Brick, a mão alisando com delicadeza o cabelo emaranhado de Daisy. — Minha cabeça estava... não sei direito. Parecia cheia de som e vazia ao mesmo tempo. Foi isso que me levou até Daisy.

Foi só dizer isso, e Brick entendeu exatamente o que estava ouvindo. Todos entenderam, e esse momento de compreensão passou entre eles com tanta facilidade quanto o reflexo da luz da vela em seus olhos.

— É um de nós — disse Brick.

Cal assentiu, acrescentando:

— E precisa de ajuda.


Rilke

Farlen, 0h37

O primeiro da turba, o homem, estava quase alcançando-os. Rilke agachou-se, tateando o chão até sua mão fechar-se sobre uma pedra do tamanho de uma tangerina. Esperou até que ele chegasse bem perto — seu rugido animalesco, um abismo denteado que dividia o rosto em dois — e em seguida lançou a pedra nele com cada miligrama de força que tinha.

Ela acertou no nariz e, com o som que uma garrafa de leite faria ao ser derrubada em um chão de pedra, o homem caiu. Rilke se abaixou, procurando mais munição, mas era tarde demais. A adolescente jogou-se contra ela, fazendo as duas rolarem pelo campo. Espigas de milho espetavam suas pernas e braços, o ar socado para fora dela no momento em que o cotovelo da menina acertou seu plexo solar. Quando pôde se reorientar, a garota já estava sobre seu peito, os joelhos escavando suas costelas e garras descendo por suas bochechas.

Rilke ganiu, o som gorgolejado vertido de seus lábios de algum modo mais assustador que o ataque. Não havia dor, só um rugido sanguinolento. Ela contra-atacou, desferindo um soco no rosto da agressora e pegando um punhado de terra, que esfregou nos olhos da adolescente, forçando-a para trás.

Outro uivo. Rilke ergueu os olhos a tempo de ver um sujeito de dreadlocks prestes a desferir um chute em sua cabeça. Rolou, a garota desvencilhando-se dela enquanto o pé do homem errava feio, fazendo-o perder o equilíbrio. Logo se levantou, a cada inspiração, um ganido. Havia mais gente vindo agora, talvez uns dez ou vinte.

— Schiller! — gritou ela, agachando-se quando outra garota tentou socá-la. Ela desferiu um chute, seu pé conectando-se com o joelho da menina e provocando um estalo. Onde estaria ele? Só havia a multidão, avançando incansavelmente. Se não conseguisse achá-lo, os dois estariam mortos.

Ali. A uns quinze metros, um amontoado de sombras que tinha braços e pernas demais. Tinha de ser ele.

Rilke correu, escorregando na superfície irregular, aos tropeços. Os tremores que sentia sob os pés agora não tinham nada a ver com a música que ainda tocava. Ela não olhava para trás, sabendo que fazer isso seria seu fim. A única coisa que importava era chegar até Schiller.

Ela podia ouvi-lo agora, os gritos quase murmúrios. Estava deitado no chão, um homem sentado em sua barriga, estrangulando-o com suas luvas que deixavam os dedos à mostra de um laranja fluorescente. Os olhos de Schiller estavam do tamanho de ovos, parecendo prestes a saltar das órbitas, as mãos desferindo golpes patéticos no agressor.

— SAIA DE CIMA DELE! — gritou Rilke. Ela agora estava a uns dez metros, o punho cerrado e levantado, pronto para ser enterrado na cabeça do canalha.

Alguém atrás dela acertou seu pé e ela saiu voando, o ímpeto fazendo seu corpo rolar em um salto-mortal desajeitado. Um peso caiu em suas costas, e desta vez houve dor, uma ondulação de calor intenso que subiu ardendo por sua coluna. Um punho acertou-a na nuca, enfiando sua cabeça na terra. Depois outro, como um martelo. Ela tentava respirar, mas só encontrava terra e cheiro de minhocas. Alguém pegou sua mão direita, dobrando-a para trás.

Ela ia morrer. Iam matá-la naquele campo mesmo, a um quilômetro e meio de onde morava. Iam enterrá-la ali, e ninguém jamais a encontraria. Era uma ideia inacreditável, maluca demais para ser real. Insana demais para que alguém a concebesse.

Vão matar Schiller também. Esses gritos dele vão ser a última coisa que você vai ouvir. Isso, sim, não era inacreditável. Isso não era maluco. Era real demais. Podiam matar o irmão dela, pisoteando-o até que ficasse soterrado no chão.

Não. Ela não permitiria. Não podiam fazer isso com ele.

Rilke moveu a cabeça para trás com tanta força que achou que fosse quebrar o pescoço. Levou a mão esquerda atrás de si, pegando um punhado de carne e apertando com força. Ouviu-se um rosnado entremeado de dor. O peso em suas costas mudou de lugar — não muito, mas o suficiente para que ela rastejasse para a frente. Schiller estava um pouco adiante, quase próximo o bastante para que o tocasse. Havia agora quatro ou cinco pessoas em cima dele, uma diferente da outra, mas todas com a mesma expressão furiosa. Suas mãos e pés subiam e desciam, subiam e desciam, como pistões, como o mecanismo de uma máquina horripilante. Mesmo assim, Schiller ainda estava vivo. Podia entrevê-lo pelas frestas na multidão, a mão estendida para ela.

Se ao menos pudesse alcançá-lo... E aí o quê? Poderiam morrer aqui de mãos dadas? Não, era algo além disso. Algo maior.

Um peso maciço atingiu sua perna, depois o ombro. Ela não parou, rastejando para a frente com toda a força. Estendeu a mão para Schiller, a distância entre eles de meros centímetros, mas agora também sendo um enorme e profundo abismo.

— Schill. — Balbuciou o nome dele em meio ao sangue, mas ele a ouviu, voltando os olhos avermelhados, incrédulos, para ela.

— Rilke. — Ele se esticou todo, os dedos rastejando pela terra. Ela também se esticou até ele, o abismo diminuindo cinco centímetros para quatro, três, dois.

As pontas dos dedos se tocaram, e o mundo explodiu em um ardor frio e escuro.


Daisy

Fursville, 0h44

— Funcionou? — perguntou Cal.

— Funcionou o quê? — disse Brick. — Ficar aqui que nem um bando de idiotas de mãos dadas?

Era justamente isso o que faziam, formando um círculo em meio à luz bruxuleante do salão. Daisy não estava bem certa do motivo. Não lembrava de quem tinha sido a ideia. Aquilo apenas tinha acontecido, o mesmo instinto que o faz se encolher quando alguém vai lhe dar um soco; que faz você procurar abrigo quando ouve um trovão.

— Funcionou — disse Daisy, desvencilhando-se da palma enorme e pegajosa de Brick. Brick tirou a outra palma da mão de Cal, os dois garotos esfregando as mãos na roupa como se tivessem veneno. Cal segurou a mão de Daisy um instante a mais, fazendo uma ligeira pressão antes de soltá-la.

— Como você sabe? — perguntou ele.

— Apenas sei — respondeu ela. E ela sabia mesmo. Tinha visto dentro da cabeça, em um daqueles cubinhos de gelo. Apesar de que visto era a palavra errada. Não havia visto nada realmente; apenas sentido. Mas o que ela tinha sentido de verdade? Duas pessoas, ou talvez uma só — eram tão parecidas que não tinha certeza. Estavam assustadas, e com dor. E prestes a morrer.

Mas e depois?

Daisy não sabia com certeza, mas entendeu que os três — ela, Cal e Brick — haviam ajudado. Tinham feito alguma coisa. Ainda conseguia sentir a pessoa, ou as duas pessoas — gêmeos, percebeu, inspirando fundo. Só que havia algo diferente neles, algo que não conseguia entender bem o que era.

Mas iriam vir para onde eles estavam. Disso não havia dúvida. Daisy franziu o rosto, tentando se lembrar de mais, tentando ver dentro daqueles filmes transparentes e tilintantes que apareciam dentro de sua mente. Havia algo ali que a assustava, algo que ardia, mas que não conseguia entender muito bem.

— E agora? — perguntou Brick. — A gente acende um incenso e canta “Kumbaya”?

Daisy não respondeu, só ficou olhando o fogo dentro de sua cabeça, tentando compreender o que havia de errado, e por que se sentia tão assustada.


Rilke

Farlen, 0h45

A primeira coisa que Rilke pensou foi que tinha morrido.

O pensamento que se seguiu foi que não podia ter morrido, porque ainda estava pensando. Então veio a percepção de que não podia estar dormindo também, porque sentia dor.

Abriu os olhos, as pálpebras pegajosas como se estivesse dormindo havia uma semana. As estrelas se mexiam, espiralando pela tela negra e infinita do céu. Os ouvidos zumbiam. Seu corpo inteiro parecia trancafiado em uma única dor latejante e muda. A fumaça adentrava seu nariz. Enchia também a cabeça, enevoando pensamentos e recordações com pesadas sombras.

Por que estava ali?

Schiller, disse-lhe seu cérebro, e de imediato a paralisia acabou. Ela endireitou o tronco, um jato de vômito branco leitoso irrompendo sem aviso da boca. Segurou a barriga com uma das mãos, enxugando a saliva com a outra. As estrelas desciam na noite, pousando em seu rosto e no campo ao redor, emanando um brilho feroz. Estendeu a mão, permitindo que uma se acomodasse nela. A centelha vacilou e morreu. Derrubamos as estrelas do céu, pensou ela. Nossos dedos se tocaram, e derrubamos as estrelas.

Só que não eram estrelas. Como poderiam ser? Eram cinzas, como as fagulhas cintilantes de uma fogueira. Elas preenchiam o ar, dançando ao som do próprio calor. Rilke olhou através delas, o mundo pouco a pouco recuperando o foco. Schiller estava ali, deitado ao lado dela. Seu rosto era um mosaico de hematomas, o sangue escorrendo livremente do nariz e da boca. Porém, estava vivo. Vê-lo daquele jeito trouxe tudo de volta, e Rilke levantou-se, cambaleante, pronta para se defender de outro ataque.

Não havia ninguém ali.

Não apenas não havia ninguém ali, como ela não sabia afirmar onde era “ali”. Estavam em um campo, mas um campo diferente. Este tinha algo ainda em crescimento — um carpete de folhas robustas tingidas de prata pela lua. Havia um brilho contra o horizonte, e ela precisou de um segundo para entender que olhava para a festa, a rave. A multidão distante dançava sob a fraca luminosidade, como se nada tivesse acontecido. Olhou de novo para o irmão, o cérebro tentando desesperadamente juntar as peças; tentando dar algum sentido ao que tinha acabado de acontecer.

— Schill? — perguntou ela. — Tudo bem com você?

Ele não respondeu; não deu nenhum sinal de que a tinha ouvido. Rilke agachou-se ao lado dele, pressionando dois dedos contra a garganta dele para sentir a pulsação, fraca mas constante. Porém ele estava frio; estava congelando. Tocá-lo era como pegar um copo de água geladíssima, e Rilke precisou afastar a mão após cerca de um minuto, porque o frio anestesiante se transmitia para ela.

— Schiller — repetiu ela, sacudindo o braço para trazer o sangue de volta. — Fale comigo. Por favor.

Ele estava em estado de choque. Tinha de estar. Levara uma surra e tanto; aliás, os dois. Mas como tinham saído de lá, onde a vida deles estava sendo pisoteada por um bando de estranhos drogados, e chegado ali? Eu lutei com eles, o cérebro dela argumentou, reunindo fiapos de lógica em meio à confusão. Ela olhou para as mãos, repletas de manchas arroxeadas, como se tivesse cortado beterrabas. Eu lutei com eles, e fugimos. Foi tão assustador que bloqueei tudo. Tinha de ser isso, não tinha? Ela queria ter um relógio, ou um telefone, para poder conferir a hora.

Assim você pode chamar uma ambulância, certo?

Não. Não faria isso. E não havia nenhum motivo coerente para essa recusa. Só sabia que seria a coisa errada a fazer. Tinha em sua cabeça uma imagem, uma cena, uma lembrança da qual não tinha a menor recordação — um paramédico de sobretudo verde, o rosto de algum modo parecendo o focinho de um cavalo, no instante em que avançava para ela, jogando-a pela janela.

Alguém gritou lá da festa, uma palavra que não pôde entender direito. Ela tateou o bolso, procurando a lanterna, mas sem achá-la. Seria melhor assim. Talvez viessem atrás dela agora, os pés em compasso pela escuridão, os punhos cerrados, a mesma raiva sem fim faiscando no olhar.

A Fúria.

— Precisamos sair daqui — disse ela, levantando um dos braços do irmão e passando-o por cima dos ombros. Preparou-se para o impulso, apoiando-se nas pernas, o corpo dele uma boneca de pano pendendo contra o dela. — Schiller — disparou ela, o nome dele parecendo ecoar na noite. — Vamos lá. Temos que sair daqui.

A cabeça dele tombou contra seu peito, balançando de um lado para o outro como a de um daqueles cachorros em um painel de carro. Olhou para trás, observando a festa, enquanto tentava se orientar na escuridão. Se estava onde achava que estava, o caminho para retornar à cidade ficava para a direita. Mas não era para lá que estava indo.

— Fursville — sussurrou. Uma palavra ridícula, sem sentido, mas a única em que conseguia pensar. Teve o lampejo de uma montanha-russa, a madeira podre, o restaurante deserto. Era para lá que deveria ir. E, de algum modo, também sabia como chegar lá; algo dentro dela a empurrava, a impelia.

Você só pode estar maluca, disse-lhe sua cabeça. Vá para o hospital, procure socorro para Schiller. Ele vai morrer se você não fizer isso.

Mas não estava louca. Aquilo era outra coisa. O enxame de cinzas tinha abrandado, mas elas ainda caíam, surgindo como vaga-lumes. Estendeu a mão livre e capturou outra, um fragmento de couro rosa chamuscado que cintilou e morreu em sua palma. Outro se seguiu, era um fragmento incandescente de um laranja fluorescente — Como as luvas do homem, aquelas luvas sem dedo em volta da garganta de Schiller, sufocando-o para lhe tirar a vida — que saiu voando de novo após um ou dois segundos, erguendo-se outra vez no ar noturno.

Sim, aquilo era outra coisa.

Ela içou Schiller e começou a andar. Ele não lhe dava ajuda nenhuma, mas carregou-o passo após passo, após outro passo e mais outro passo. O frio que vinha dele era inacreditável, como se andassem em meio a uma tempestade de neve. Não era algo em que um médico pudesse colocar um curativo ou que desse para tratar com antibiótico. Schiller não precisava de hospital; precisava do que quer que estivesse no lugar na cabeça dela, o parque abandonado chamado Fursville.

Certo?

Afastou as perguntas, firmando-se nesses instintos, na crença absolutamente instintiva de que fazia o que era o melhor para eles. O mar não ficava longe dali, e havia um pequeno ancoradouro na cidade vizinha. Podia fazer uma ligação direta em um dos botes. Já tinha feito isso. Era uma noite clara, não havia vento; podiam chegar lá — onde quer que lá fosse — antes do amanhecer. Tudo o que precisava fazer era seguir aquela sensação, aquela corda-guia que puxava com delicadeza seus pensamentos.

Trêmula, os dentes batendo com tanta força que receava que o pessoal da rave ouvisse, Rilke foi abrindo caminho aos chutes em meio às cinzas e pela terra, ao encontro do mar, ao encontro de Fursville, ao encontro de respostas.


Brick

Fursville, 5h59

Acordar desta vez foi mais fácil, apesar da leve dor que sentia em cada músculo. Brick endireitou o tronco, esfregando as duas mãos no cabelo e bocejando com tanta força que o maxilar estalou. Bolotas de luz granulavam-se pelas fendas nas tábuas que cobriam as janelas, suspensas no pó e revelando Daisy no sofá, Cal no chão ao lado, ambos ainda em sono profundo.

O que tinha acontecido na noite anterior? Haviam sentido algo, ou alguém. Tinha sido ideia de Daisy tentar enviar uma mensagem, uma imagem mental de Fursville. Parecera uma boa ideia no meio da noite, mas a luz do dia tinha o hábito de trazer consigo a realidade, o bom senso. Brick sentiu as bochechas arderem ao pensar nos três de pé, as mãos dadas, no meio do restaurante, transmitindo uma tolice psíquica através do tempo e do espaço.

Foi até a porta, tomando cuidado para não esbarrar em nenhuma das mesas ou cadeiras. Apressou os passos assim que chegou ao corredor, passando mais rápido pelos cardápios descascados e pelos cartazes com promoções — Hadoque ou bacalhau maior por apenas 30 centavos a mais —, dirigindo-se depois aos degraus que davam no saguão. A luz ali era mais forte, fazendo os olhos arderem, e ficou quase contente por estar de volta ao corredor de serviço que levava à saída de incêndio.

Até que chegou aos degraus que conduziam ao porão.

Estacou, o coração como uma britadeira na garganta. Se Lisa estivesse viva — claro que ela está viva, faz só um dia, e ela tem comida, água e... bom, apenas desconsidere os ferimentos dela, Brick, nem pense nisso —, aquilo era o mais perto que podia chegar sem que ela pirasse de novo. Sem que fosse consumida pela Fúria.

Pigarreou, chamando o nome dela. A palavra foi um sussurro, embora ensurdecedor para Brick, mas na realidade baixinho demais para ser transmitido. Olhou para a direita e para a esquerda, tentando não pensar no que poderia acontecer caso ela saísse, caso ficasse solta naquele prédio. Imaginava as mãos dela esgueirando-se da penumbra, as unhas quebradas arranhando o rosto dele.

Algo moveu-se atrás do breu no fim dos degraus, um baque surdo.

— Brick? — A voz tênue dela quase o colocou de joelhos. Seus olhos arderam, as lágrimas escorrendo antes mesmo que soubesse que chorava — Meu Deus, obrigado, obrigado por ela estar viva —, e ele apoiou a mão na parede, na esperança de que de algum modo aquele toque pudesse viajar até o porão, morno contra o rosto dela. — Por favor, me deixe sair. — Era como se ela falasse com a boca cheia de balas, mas parecia mais forte do que no dia anterior. — Brick? Não é tarde demais.

— Tudo bem, Lisa — respondeu ele. — Agora há mais de nós. Vamos pensar em algo juntos, está bem?

— Brick, por favor, só me deixe sair daqui para podermos conversar. Eu não estou... não estou com raiva de você.

— Eu sei — disse ele. — Sei que não está. Sei que não entende. Eu também não, mas...

Mas o quê? Ele ia dar um jeito? Porque você é cientista, é isso? Porque é superinteligente e vai dar conta de entender isso tudo e depois colocar sua cabeça de gênio para funcionar e acertar toda a situação? Certo. Bateu a mão na testa, mandando a voz para longe.

— Eu vou... — respondeu ele — ... vou dar um jeito de acertar as coisas com você, Lisa. Eu...

Eu te amo, as palavras estavam ali, mas a boca não sabia como articulá-las.

— Vou fazer as coisas voltarem a ser como eram — prosseguiu ele, aquelas três palavras não ditas abrindo um buraco em sua garganta. — Juro que vou. Aguente firme. Lembre-se de beber água; estou bem aqui, perto de você. Não vou abandoná-la.

Ouviu-se mais um baque, desta vez algo mais estrondoso, e de início Brick achou que Lisa se lançava outra vez contra a porta. Deu um passo para trás, tentando sair do radar dela, ou o quer que fosse que disparasse a Fúria. Foi só quando ouviu de novo — pancadas, como punhos na madeira — que percebeu que o som não vinha do porão.

Vinha de fora.

É a polícia; vieram atrás de você.

Seguiu pelo corredor até a saída de incêndio e passou por baixo das correntes, o corpo inteiro em estado de alerta, pronto para fugir ao primeiro sinal de uma luz azul piscante. Ele era rápido, conseguia correr mais do que eles. Consegue correr mais do que os cachorros também? Mais que os helicópteros? Mas não havia sirenes, nenhuma exigência pelo alto-falante, nenhum ruído de hélices de helicóptero. Só as mesmas pancadas estrondosas.

Brick engoliu em seco, percebendo que sua cabeça fora preenchida pela mesma dormência muda da noite anterior — aquele estranho silêncio invertido. Ao se dar conta disso, o medo foi atirado para longe. Quem quer que estivesse ali, não era a polícia. Foi andando pelo caminho recoberto de grama por cortar, passou pelo minigolfe e pelo esquilo gigante de um olho, encaminhando-se para a lateral do parque que dava para o mar. Ao chegar aos galpões de armazenamento que ficavam nos fundos do pavilhão, também pôde ouvir uma voz. O som do mar disfarçava as palavras, mas sem sombra de dúvida era uma menina.

— Oi! — gritou ele. Talvez devesse voltar e acordar os outros. Também podia pegar a arma, só para garantir. Porém, apesar das preocupações que não o largavam, não se sentia em perigo. Andou ao longo da cerca de quase três metros, oculta por antigas placas dos brinquedos do parque e por anúncios. A placa de Pescaria de Patos chacoalhava bastante, e, quando se deteve ao lado dela, a voz da menina era nítida.

— Tem alguém aí? Deixem a gente entrar.

A gente?, pensou Brick, lembrando-se da arma outra vez.

— Oi! — repetiu ele. As pancadas cessaram, deixando o parque em uma estranha quietude. Por algum motivo, ali também era mais frio, como se estivesse ao lado de uma geladeira aberta. — Quem são vocês?

— Precisamos de ajuda — disse a garota. Podia afirmar que a voz estava trêmula. — Meu irmão está ferido.

A garota, quem quer que fosse, não estava furiosa. Não rosnava para ele pela cerca. Isso só podia ser sinal de coisa boa.

— Tem um jeito de entrar — disse ele. — Sigam para a esquerda. A mais ou menos cinquenta metros para lá, tem uma fresta na cerca. Encontro vocês lá.

Seguiu adiante sem esperar pela resposta, trotando devagar até chegar às oficinas da engenharia. Agachou-se no corredor entre elas, movendo a placa LGODÃO DOC e se espremendo através do arame. O sol se erguia no horizonte, já ofuscando, e ele pôs a mão na testa, espreitando pela sombra e vendo duas pessoas vindo pela praia. A garota era um pouco mais nova do que ele, bonita, de cabelos escuros, o rosto tão branco que chegava a ser azulado. Um mosaico de hematomas e sangue coloria seu rosto e pescoço. Ela praticamente carregava um garoto, o braço dele em volta do ombro dela, e, à medida que se aproximaram, notou que tinham o mesmo rosto.

— Que tal dar uma ajudinha? — disparou ela.

Brick resmungou, trotando na direção deles. Estava a uns dez metros quando o frio o atingiu, como se corresse por uma tempestade de inverno. A pele dos braços ficou toda arrepiada, e conseguia ver a própria respiração, como um fantasma, à sua frente. Parou, abraçando a si mesmo.

— Mas o que... — Então ele viu a fina camada de gelo que cobria o rosto do garoto, os cristais pendendo dos lábios e das sobrancelhas. Sua pele estava cinza, e os olhos, apesar de abertos, estavam inexpressivos, congelados.

— Rápido — disse a garota. Brick voltou a caminhar, desta vez mais devagar. O corpo inteiro tremia, o frio efetivamente queimando-o. Ajustou-se ao lado do corpo do garoto, agachando-se embaixo de seu braço livre e pegando-o nos braços. Parecia ter se embrenhado em uma nevasca. A menina relaxou o corpo, afastando-se e tirando flocos de neve da lateral do rosto.

— Precisamos levá-lo para dentro — disse ela.

— O que há de errado com ele? — perguntou Brick entre os dentes que estalavam. A garota mirou-o com um olhar tão frio quanto o do irmão.

— É exatamente isso que você precisa me dizer. Porque eu quero uma explicação. E quero já.


Daisy

Fursville, 6h14

Daisy não entendia como o menino podia estar tão frio e ainda assim permanecer vivo. Brick o levara ao restaurante havia alguns minutos, acordando-a. Havia pedido que saísse do sofá onde tinha passado a noite e deitara o garoto ali. Depois, saíra correndo para achar algo com que cobri-lo.

— Vai ficar tudo bem, Schiller — disse a menina que havia entrado com ele. Ela se ajoelhou ao lado do garoto. Usava só uma saia curta e um top. Não era de admirar que parecesse tão congelada. Seu rosto era muito bonito, tirando os hematomas, mas havia algo nele que deixava Daisy desconfortável. Devia ser porque ela era uma desconhecida.

— Achei mais algumas — disse Cal, chegando com um punhado de velas. Ele as colocou na mesa do café ao lado do sofá, acendendo-as com uma que já estava acesa e usando pingos de cera para prendê-las na madeira. As chamas pareciam hesitantes, e Daisy não as culpava — o ar estava tão frio que até o fogo se ressentia. Seria mais fácil tirar as tábuas das janelas e deixar o sol entrar, mas Brick lhes disse que não podiam fazer isso, pois tinham que evitar que as pessoas reparassem e viessem xeretar.

— Quem são vocês? — perguntou a garota.

— Você foi atacada, não foi? — disse Cal. — Por gente totalmente desconhecida?

A garota encarou Cal e, ainda que meia dúzia de velas estivessem acesas, seus olhos permaneceram escuros. Daisy sentiu algumas daquelas estranhas imagens translúcidas de cubos de gelo tilintando em seu cérebro. Tentou observá-las melhor, mas elas quicaram para longe de seu campo de visão.

— Não foi? — disse Cal, vendo que ela não respondia.

E você viu nossa mensagem on-line? — acrescentou Brick, cambaleando de volta para o salão, olhando por trás de uma montanha de panos. Ele depositou tudo no braço do sofá, e a garota começou a vasculhá-la, sacudindo cada toalha de mesa antes de estendê-la em cima do garoto, prendendo-as embaixo do corpo imóvel. A temperatura fria dele transformara a umidade do sofá em uma camada de gelo que reluzia como diamante. Daisy expirava baforadas de chumaços de algodão, vendo-as se dissolver no ar durante os minutos que a garota levara para concluir a operação.

— Schill, você está me ouvindo? — disse ela, levantando-se e soprando os próprios dedos azulados. O menino não respondeu, o olhar ainda inexpressivo, fixo no teto. Ele estava bem embrulhado, como uma múmia. Ela colocou a mão na testa dele, depois se virou e encarou Brick, como se de alguma maneira aquilo fosse culpa dele. — Que mensagem? — ela perguntou após um instante.

Brick olhou para Cal, depois para Daisy e, quando viu que ninguém se pronunciaria, enfim se virou para a menina.

— Colocamos uma mensagem na internet dizendo às pessoas para virem a Hemmingway, caso fossem atacadas. — Ele hesitou, passando as mãos pelo cabelo. — Você não leu?

Mais cubos de gelo na cabeça. Daisy viu um campo, e o céu caindo — flocos incandescentes de estrelas. O menino estava lá, a menina também. E ela podia sentir a si mesma na imagem, sua voz esquisita, como se a ouvisse saindo de um rádio mal sintonizado.

— Você nos ouviu — disse ela. — Na noite passada, falamos para você vir para cá, e você veio.

A menina olhou para ela, fuzilando-a com o olhar. Respirou fundo, e sua respiração pareceu um balão de pensamento. Daisy quase conseguia lê-lo, as emoções que estavam bem comprimidas ali — medo, raiva e muita confusão. Sentiu pena dela.

— Olha — disse Cal —, a verdade é que não sabemos muito mais do que você. Pelo menos, acho que não. Vamos sair daqui, pegar um pouco de ar, de sol? Podemos conversar ali fora. Que tal?

Todos estremeceram durante mais um momento incômodo de silêncio, e enquanto isso Daisy teve mais uma visão de cubo de gelo flutuando pelo cérebro, a mesma que havia tido na noite anterior, só que muito mais clara. Esta era cheia de fogo, tão real que teve vontade de colocar as mãos perto dele, degelando-as em seu calor. Mas havia algo de ruim naquela imagem, algo que não entendia bem. A cena mudou de lugar, derretendo, e Daisy teve a impressão de ver o parque, Fursville, perdido em chamas. E a menina, também, no centro daquele inferno. Então as imagens se separaram, desbotando sob a luz oscilante da vela no salão.

— Tudo bem — disse a menina. Ela ajeitou as toalhas de mesa em volta do pescoço do irmão e sussurrou algo no ouvido dele antes de olhar para Cal. — Pode ir na frente.

Cal saiu do salão, a garota em seu encalço, os dois seguidos por Brick. Daisy trotou atrás deles, perguntando-se se era seguro deixar o garoto ali enfaixado em panos ao lado de meia dúzia de velas. Porém, não era isso que a deixava incomodada. Os cubos de gelo tinham ido embora, mas haviam deixado algo desagradável em sua cabeça, uma sensação que não podia afastar, mesmo saindo das trevas do restaurante e entrando na luminosidade do saguão.

A garota que havia acabado de chegar era perigosa.


Rilke

Fursville, 6h37

Estavam sentados no telhado do pavilhão, comendo salgadinhos e pão, e contando cada qual sua história.

O ruivo alto falou primeiro, gaguejando sua história, que envolvia uma namorada psicótica e um ataque em um posto ali perto. Tinha sido ele que havia encontrado aquele lugar, Fursville, e relutara em compartilhá-lo. Isso não ficava tão claro no que dizia, mas nas pausas entre as palavras, breves hesitações em que Rilke parecia capaz de espiar dentro daquela cabeça de cobre e ter uma ideia do que ele pensava de verdade. Claro que provavelmente era uma alucinação provocada pela exaustão — já fazia bem mais de vinte e quatro horas que não dormia. Se era esse o caso, porém, então é inexplicável o que a fizera se inclinar para a frente e falar:

— Sua namorada ainda está aqui.

A boca do garoto ficou escancarada, as bochechas pegaram fogo, o punho esmagou a fatia de pão que segurava.

— Que besteira — murmurou ele. — Claro que não.

Ela não precisou ler os pensamentos dele para saber que era mentira.

O sol tinha erguido sua massa preguiçosa no horizonte, e o dia se espalhava pelo telhado, dando aos quatro longas sombras delgadas que vertiam além da beirada. Era imundo ali, os espaços entre as saídas de ventilação, os aparelhos de ar-condicionado, e as antenas cobertas de cocô de pássaro e de detritos apodrecidos. Porém havia confortáveis cadeiras giratórias roídas por traças, que a equipe do parque levara havia muito tempo lá para cima, e a vista não era ruim. Isto é, desde que você olhasse para a esquerda, além das cristas de ondas falsas, passando por toda a terra plana até a fábrica distante. Na outra direção ficava o mar, o mesmo em que Rilke passara a noite inteira. Não queria olhá-lo de novo nunca mais.

Pelo menos estava quente, e ficando mais quente a cada minuto. Ocorreu-lhe que deviam pegar Schiller e deixá-lo ao sol, mas seria mais seguro do lado de dentro, pelo menos até saberem o que estava acontecendo. Ali fora o mundo parecia grande demais. Qualquer coisa poderia acontecer.

— Bom, qual é a sua história? — perguntou o ruivo em um tom de voz agressivo.

— Espere aí — disse o outro garoto, o que usava calças de corrida. Ele tinha uma beleza convencional, mas sob o cabelo despenteado o rosto era sem graça, sem traços peculiares. Ele é bonzinho, pensou Rilke. É do tipo que passam por cima. Ele limpou alguns farelos de salgadinho do lábio, dizendo: — Vamos manter o tom amigável, o.k.? Meu nome é Cal, Callum. Esta é a Daisy. Ela tem o quê? Onze anos?

— Quase treze — corrigiu Daisy. — Só pareço mais nova. — A menina lhe ofereceu um sorriso nervoso, e Rilke o retribuiu.

— E aquele é o Brick — continuou Cal, acenando com a cabeça para o ruivo.

— Por que Brick? — perguntou Rilke. Ela pegou outra fatia de pão da sacola, arrancando um pedaço e colocando-o na boca. Tinha a sensação de estar literalmente morrendo de fome, mas não queria demonstrar fraqueza engolindo metade do pão.

— Porque o lema do meu pai é: nunca bata em ninguém com seu punho quando você tem um tijolo — rosnou ele.

— Que legal — disse ela. Seu neandertal.

— Qual é o seu nome? — perguntou Daisy.

— Rilke — disse ela. — Rilke Bastion. Aquele menino é meu irmão, Schiller.

— Então os seus pais gostavam de poesia — disse Brick, deixando-a abalada. Como um homem das cavernas como ele sabia que ambos tinham o nome de poetas alemães? Ele sorriu com um ar convencido. Um sorriso que dizia: Por essa você não esperava. Daisy tossiu com delicadeza, aliviando a tensão.

— Meus pais, eles... — a menina menor começou, e naquela pausa, a mente de Rilke completou a frase. Ela podia sentir o peso, a horrível gravidade, de duas pessoas mortas em uma cama. O rosto de Daisy se enrugou como um saco de papel deixado na chuva e Rilke sentiu vontade de ir até ela, de envolvê-la em seus braços. Garotas tinham que cuidar umas das outras. Mas Cal foi mais rápido, e ela pareceu encontrar forças em seus braços.

— Minha mãe, ela não queria me machucar — prosseguiu Daisy. — Mas ela estava doente mesmo, ela tinha... câncer na cabeça. O câncer fazia ela agir de um jeito esquisito. Ela... matou meu pai, depois ela própria, para não me fazerem nenhum mal. Aí o pessoal da ambulância tentou me matar, jogando-me pela janela. — A menina olhou para o garoto, que a abraçava. — Cal me encontrou. Ele me salvou.

— Quase não consegui — disse Cal, apertando Daisy um pouco mais nos braços, antes de soltá-la. Ele contou sua história com mais fluência do que os outros, como se a tivesse ensaiado na cabeça. Ao terminar, olhou para Rilke. Todos olharam. — Sua vez.

O que ela poderia dizer? Não tinha a menor ideia do que havia acontecido. O único motivo pelo qual estava tão calma a respeito de tudo, tão sensata, era que o peso total daquilo ainda não tinha batido. Nada daquilo parecia de verdade. Talvez nem fosse de verdade. Talvez tivessem ido à festa e alguém tivesse dado ácido a eles, ecstasy. Talvez tudo aquilo fosse só uma bad trip. Terminou o pão e deu de ombros, mais para si do que para os outros.

— Fomos atacados em uma festa, uma rave. E de repente saímos, estávamos em outro... não sei bem. De qualquer modo, a gente conseguiu escapar. Eu ouvi... Não, eu senti vocês falando comigo, por isso trouxe meu irmão para cá. Achei que saberiam o que estava acontecendo. Achei que teriam respostas. Que poderiam nos ajudar.

Do nada, ela sentiu um tsunami de pânico, medo e total desespero jorrar em seu cérebro. Cerrou os dentes até a sensação passar. Não podia se dar o luxo de parecer fraca na frente daquelas pessoas. Não agora; aliás, nunca. Tarde demais, percebeu, vendo o modo como Daisy a encarava, como se seus pensamentos brilhassem na testa. Levantou-se, dando as costas para eles. Estava começando a esquentar, a fazer um calor que beirava o ridículo.

— Sabemos o mesmo que você — disse Cal atrás dela, e por um instante ela achou que ele admitia aquela ideia insana de que podiam ler mentes. — Que as pessoas estão ficando loucas. Que elas estão cheias de...

— ... Fúria — concluiu Rilke por ele, embora a palavra não fosse dela. Perguntou-se se não seria uma via de mão dupla; se ela podia também roubar os pensamentos deles.

— Pois é, a Fúria. Ela não parece afetá-las a menos que um de nós esteja por perto. Elas simplesmente enlouquecem e tentam nos matar. Elas tentam fazer picadinho da gente.

— Mas depois elas voltam a fazer o que quer que estivessem fazendo — disse Brick. — Retomam suas vidas, como se nada tivesse acontecido. Esquecem completamente que ficaram loucas. Se você conseguir se afastar delas, se conseguir sair do radar delas, elas deixam você em paz. Pelo menos, é o que eu acho.

Um par de gaivotas que brigavam no céu voou até o telhado, encarando com desconfiança os estranhos antes de levantar voo outra vez. Rilke voltou-se para os demais.

— E o Schill? — perguntou ela. — Por que ele está tão frio? O que aconteceu com ele?

Eles se entreolharam, e ela conseguiu sentir o enorme abismo negro nos pensamentos de cada um. Não faziam ideia. Ela balançou a cabeça com repugnância.

— Então por que me trouxeram aqui?

— Porque estamos mais seguros quando estamos juntos — disse Daisy.

Por isso? Rilke precisou morder a língua para se impedir de se manifestar em voz alta.

— É o único jeito de descobrirmos o que está acontecendo — disse Cal. — Quanto mais de nós houver aqui, mais rápido acharemos as respostas.

— Bem, eu estou aqui agora — rebateu Rilke. — Já somos cinco. Cadê as respostas?

Uma lembrança da noite anterior nadou de volta para sua mente, a imagem de alguém dirigindo um carro, de outra pessoa correndo pelo mato. Ela balançou a cabeça para se libertar daquilo.

— Não somos só nós, não é? — disse ela. — Tem mais gente vindo.

Brick sorriu sem nenhum humor, inclinando-se para a frente na cadeira e apoiando a cabeça nas mãos.

— Você nem imagina.


Cal

Fursville, 10h54

— Tem uma fresta — disse Cal, apontando para uma parte arruinada da cerca na parte da frente do parque, do lado direito, quase escondida atrás do volumoso toboágua de madeira. Havia pilhas e pilhas de andaimes ali, estacas enferrujadas apoiadas contra a barricada em ruínas. Aquilo o fazia pensar em uma floresta de bambu, como em todos os filmes antigos de artes marciais, e era capaz até de ver um ninho desgrenhado de pássaro precariamente apoiado em cima de uma delas.

— Onde? — perguntou Brick. Os dois haviam rondado o perímetro nas últimas horas para ter certeza de que o parque estava em segurança. Tinha sido ideia de Cal, e, quando ele a sugeriu a Brick, este pareceu tomá-la como um insulto, como se Cal tivesse dito: Ei, cara, você é feio. Que tal a gente ver como resolve isso? Daisy e Rilke, a garota nova, tinham ficado de olho em Schiller.

— Ali — disse Cal, pisoteando um aglomerado de espinhos de aparência malévola para poder se aproximar mais um passo da cerca. Um canto já tinha se soltado do chão, formando uma dobra de aço. Atrás dela ficava a enorme sebe de louro, que protegia o parque da rua. Brick fungou.

— Aquilo não é uma fresta. Quem vai passar por ali? Um anão?

— Mesmo assim é um problema — disse Cal. — Este lugar precisa ficar o mais perfeito possível. A gente nunca sabe o que vai acontecer.

— Certo, pode pôr na lista — disse Brick, fazendo um gesto para afastá-lo como se ele fosse algo fedorento. Cal levantou seu caderninho — um bloquinho de pedidos do restaurante — e acrescentou “toboágua, painel solto” às duas outras frestas que tinham encontrado.

— Cara, não sei qual é o seu problema — disse Cal, correndo para alcançar o garoto maior. — Nunca viu filmes de zumbi? Depois que um consegue entrar, todos entram, e, se te alcançarem, então acabou; você já era, morreu.

— Eles não são zumbis — replicou Brick. — Para começar, nem mortos estão.

— Sei que não são zumbis de verdade — disse Cal enquanto passavam por algumas barraquinhas de brincadeiras, que já tinham apodrecido devido à maresia. — Dã. Você me entendeu. Eles formam bandos. Se um vier atrás de você, todos vêm.

Brick resmungou, dando de ombros.

— Pelo menos estamos fazendo alguma coisa, certo? — continuou Cal enquanto se dirigiam à pequena bilheteria quadrada. — Melhor isso do que ficar sentado no escuro brincando com os dedões.

— Ainda mais com aquela garota lá dentro — acrescentou Brick aos sussurros, embora não houvesse como ela ouvi-los. — Ela me assusta mais do que as feras por aí.

Cal riu, o som flutuando no ar quente, parecendo preencher o parque inteiro por um instante, dando-lhe vida do mesmo jeito que um dia o riso mantivera seu coração batendo.

— Você não está brincando... — ele disse, ainda em voz baixa e dando um olhar discreto para o pavilhão. — Não vou dormir no mesmo quarto que ela, ela pode me matar no meio da noite.

Logo os dois já abafavam o riso com as mãos. Era gostoso. Parecia que há anos não davam risada. Anos, não, foi ontem, lembra? Ontem, quando as coisas ainda estavam quase normais. Mas ontem já tinha passado. Só havia antes e depois, e antes era um milhão de anos atrás.

— Então você conhece bem mesmo este lugar? — perguntou Cal, andando até a bilheteria e olhando através do vidro sujo. Havia luz ali dentro, derramando-se pelo enorme buraco no teto e revelando uma máquina registradora com a bandeja aberta e vazia, algumas revistas encharcadas e bastante poeira.

— Como a palma da minha mão — respondeu Brick. Cal conseguia vê-lo refletido no vidro, o cabelo parecendo fogo. Ele esfregava o nariz. — Passei mais tempo aqui do que em casa este ano. Já entrei em praticamente todos os prédios. Só tem tralhas aí dentro.

Cal foi andando pela lateral do escritório, os portões principais surgindo acima dele. Uma corrente do tamanho de uma mangueira de incêndio dava voltas no ferro ornamentado, que fora fechado para esconder o parque da rua. Havia uma torre de tijolos de cada lado, talvez com dez metros de altura. Uma escada turquesa subia pela esquerda, conduzindo à enorme placa sobre a entrada. Havia também uma meia dúzia de ninhos abrigados nas letras quando vistas de trás.

— Este é um bom posto de vigia — disse Cal. — Acho que dá pra ver quase um quilômetro daqui.

— Acho que sim, se você quiser ficar o dia inteiro sentado em cocô de pássaro — disse Brick. — Aliás, pra que vigiar? Ninguém nunca vem aqui, estou dizendo.

Cal não respondeu, só escreveu no bloquinho. Brick tinha um jeito de falar que logo deixava você irritado, mas com certeza era por causa da situação em que estavam. Havia a possibilidade de que o cara tivesse sempre sido um babaca, claro, mas Cal estava disposto a lhe conceder o benefício da dúvida. Era importante que eles se dessem bem — só Deus sabia por quanto tempo teriam que morar juntos ali.

— A lojinha de presentes — disse Brick, apontando com a cabeça para o prédio do outro lado do portão. — Outra construção em ruínas. Basicamente vazia.

Cal foi até lá. As janelas estavam tapadas, mas uma chapa de compensado fora arrancada, revelando um único olho quadrado, sem vidro. Verificou o espaço entre o prédio e a cerca para ter certeza de que aquele era um local seguro.

— Então você costumava malhar aqui, é isso? — perguntou ao se juntar a Brick outra vez.

— Eu? De jeito nenhum. Este lugar já estava em ruínas quando eu tinha, sei lá, sete anos. Que idade você acha que eu tenho?

— Não sei, você é bem alto, sei lá — disse Cal, dando de ombros. — Vinte e um?

Brick mais fungou que riu.

— Dezoito — disse ele. — Igual a você. Eu não ficaria surpreso. Só cresci um pouco mais rápido, só isso.

Cal o esquadrinhou devidamente pela primeira vez, observando as sardas, aquela cobertura ruiva e rebelde. E os olhos — um pouco vesgos, nada acolhedores, mas ainda assim os de um garoto.

— Está querendo me beijar, é? — falou Brick, dando um passo para trás e estendendo as mãos à frente. — Você está me olhando de um jeito esquisito.

— Credo — respondeu Cal, as bochechas esquentando. — Vai sonhando. Aliás, eu tenho dezessete anos.

Fez-se um momento de desconforto, e em seguida os dois começaram a rir de novo.

— Que bom que já resolvemos esse ponto — disse Brick. Avançaram pela lateral da lojinha, adentrando a piscina de sombras entrecortadas projetada pela enorme montanha-russa do lado sudeste do parque. — Há outra entrada por ali. É a que eu costumo usar. Há uma fresta na cerca que está escondida pela sebe; é fácil entrar e sair. É...

Cal ficou petrificado, segurando Brick pelo braço. O mais velho continuou falando por alguns segundos antes que as palavras lhe secassem na garganta. Então ambos ficaram olhando em silêncio o caminho que passava por entre os banheiros e ia até a Estação Dodói, espreitando na penumbra o garoto louro, manchado de sangue, que estava ali.

Era novo; parecia mais novo até do que Daisy. Usava calças esportivas da Adidas e uma camiseta do Batman, ambos cobertos de sujeira avermelhada. Os pés estavam descalços e imundos. O cabelo, quase branco, estava rosado em algumas partes, e também o rosto — o sangue seco fazia sua pele parecer um pergaminho. O semblante não tinha expressão nenhuma. Era como um manequim em uma vitrine, os olhos como bolsos vazios.

— É um deles — sibilou Brick, dando um passo para trás. Cal ainda o segurava pelo braço, recusando-se a soltá-lo, mesmo quando Brick fez menção de se afastar. — Cal, por favor!

— Espere aí — disse Cal. — Acho que ele é do bem. Não está sentindo?

Havia algo na cabeça de Cal, o mesmo silêncio ensurdecedor de antes, fazendo-a se lembrar do mar em um dia de calmaria, quando ele ficava plano como um gramado, embora você ainda sentisse o vasto peso da água revirando sob a superfície. Brick relaxou, e Cal o soltou.

— Ei — disse Cal, falando com o garoto. Deu um passo em sua direção, as mãos para cima, mostrando que era inofensivo. — Tudo bem com você? Está ferido?

Como ele tinha chegado ali? O menino não parecia capaz de brigar nem com um saco de papel, quanto mais ir sozinho àquele lugar horroroso em Norfolk. Com certeza havia algo de errado naquilo.

— Não vamos machucar você — disse Cal, aproximando-se. Ele apoiou um dos joelhos no chão, ao lado dele. — Só fale pra gente qual é o seu nome, ou algo assim. Diga alguma coisa, para sabermos que você não é um deles. Tudo bem?

— Você não vai fazer esse bestinha falar. — A voz veio da sebe, seguida do farfalhar de galhos quebrados e da martelada de passos. Cal sentiu a pele gelar assim que uma espingarda de cano duplo surgiu da cerca quebrada. O sujeito que a segurava tinha dezoito, dezenove anos, talvez vinte ou vinte e poucos, o rosto fino semioculto por uma barba rala. Usava um casaco verde por cima de uma camisa branca. Apoiou a arma no ombro, apontando-a direto para Cal. — Não se mova, ou vou acertar seus miolos.

Cal ergueu as mãos, afastando-se. A seu lado, Brick parecia pronto para fugir, o corpo rígido, mas pareceu reconsiderar sua decisão. O rapaz se aproximou, girando a arma de um lado para o outro. Parou ao lado do menino, olhando-o de um jeito que o fez se mover com rapidez.

— Venha cá — gritou o atirador. Ouviu-se mais um farfalhar, e em seguida uma menina apareceu, os cabelos quase tão vermelhos quanto os anéis em volta de seus olhos. Deu uns passos à frente, e outro garoto se espremeu pela cerca. Parecia ter a mesma idade de Cal, alto mas ligeiramente acima do peso. Ambos tinham a mesma expressão: Socorro.

— É melhor me dizerem o que estou fazendo aqui — disse o moço, dando estocadas com a espingarda como se fosse uma lança. — Por que todos neste mundo estão querendo me matar? Por que vocês estão dentro da minha cabeça, sacaneando os meus pensamentos?

Cal ergueu as mãos e deu um passo para trás, escorregando no chão repleto de detritos.

— Falei para NÃO SE MEXER! — vociferou o homem. Seu dedo estava no gatilho, e bem firme. Mesmo dali, Cal via que a junta tinha se esbranquiçado. Se o sujeito espirrasse, seus miolos se espalhariam por toda a Estação Dodói.

— Cara, isso é totalmente desnecessário — disse Cal, mais tremor do que voz. — Não vamos fazer nada com você.

— Não vão mesmo — rebateu o homem, ainda avançando para eles. O cano da espingarda parecia dois olhos escuros sem piscar. — Quantos vocês são aqui?

Brick e Cal se entreolharam.

— Quantos? — perguntou o moço.

— Cinco — Cal deixou escapar. — Um ferido.

— Onde?

— Lá atrás — disse Cal, inclinando a cabeça para o ombro. — No pavilhão. Somos só garotos.

— Gordinho, verifique se eles não estão armados. — O garoto mais forte nem se mexeu. — Anda! — gritou o homem, fazendo o garoto se sobressaltar com tanta violência que a carne balançou sob a camiseta. Ele se pôs em movimento, desculpando-se em um fio de voz enquanto apalpava Cal, depois Brick. Seus olhos não se levantavam acima dos joelhos deles. Ele se afastou assim que terminou.

— Nada — sussurrou.

— Certo, virem-se e comecem a andar — ordenou o atirador. — Levem-me até onde estão os outros, com as mãos na cabeça.

— O que você quer? — perguntou Cal, obedecendo. Não queria de jeito nenhum ficar de costas para aquele cara, mas não tinha escolha.

— Eu quero respostas — respondeu o moço. — Mexa-se, ou juro que vai morrer antes de cair no chão.

Cal começou a voltar pelo caminho de onde tinham vindo, as mãos presas no cabelo. Brick andava ao lado dele, o rosto pálido e sério.

Isto vai terminar mal. O pensamento bateu com força na mente de Cal. Não era só medo; era uma premonição. Alguém vai se ferir.

E essas palavras ainda soavam em sua cabeça quando ele saiu da penumbra, e a arma disparou.


Rilke

Fursville, 11h22

— Tem alguma coisa errada.

Rilke desviou os olhos do irmão ao ouvir Daisy. A menina mais nova estava sentada em uma cadeira ao lado do sofá, abraçando os joelhos e tremendo. Fazia horas que estavam ali, jogando mais cobertores em Schiller, ainda gelado e sem reação, e guardando o estoque de comida em pilhas. Daisy tentara iniciar uma conversa, mas Rilke estava cansada demais para trocar mais que algumas poucas palavras. Desta vez, porém, havia urgência em sua voz.

— O que foi? — perguntou Rilke. Algo estava muito errado. Schiller, para início de conversa, a pele como mármore, irradiava frio. E também o mundo. Naquele momento, o mundo inteiro estava errado.

— É o Cal — disse Daisy, levantando-se e ainda tremendo. À luz bruxuleante da vela havia algo surreal nela, algo meio encantado, os olhos em formato de pires, a pele fantasmagórica. — Ele vai morrer.

— O quê? — repetiu Rilke, franzindo o rosto. — O Cal? Por quê?

— Eu não sei por quê. Eu... eu só sei.

Rilke apoiou-se no sofá para levantar-se do chão, tirando o pó da saia. Sua pulsação estava acelerada, e pelo ritmo descontrolado ela compreendeu que Daisy não estava sendo histérica, não estava inventando. Cal estava em perigo mesmo.

— É o Brick? — perguntou ela. Havia algo naquele garoto alto que lhe causava desconfiança; algo no rosto dele e no jeito como havia evitado responder a ela quando tinha perguntado sobre sua namorada. Ele tinha ar de culpado.

Daisy balançou a cabeça em uma negativa, os olhos grudados no chão e, no entanto, também em algum outro lugar, um lugar bem distante.

— Não é o Brick. Ele também está em perigo. Todos nós estamos.

— Vamos — disse Rilke, pegando-a pela mão. Daisy pegou a dela também, a pele febrilmente quente em comparação com a de Schiller. Começaram a se encaminhar para a porta, mas Daisy se deteve, desvencilhando-se com um safanão e correndo para o outro lado do restaurante. Tirou uma sacola de baixo de uma mesa, vasculhando-a e tirando algo grande de lá. Correu de novo pelo salão e entregou o objeto a Rilke.

Era uma arma.

— Onde você arrumou isso? — perguntou Rilke ao pegar a arma. Era mais pesada do que parecia. Já tinha usado armas, mas basicamente espingardas. Schiller adorava atirar nos pombos e nos ratos para praticar, e muitas vezes ela saía com ele, sobretudo porque não havia muito mais a fazer.

— É do Cal — disse Daisy, o tom agora mais urgente. Ela ficava olhando para a porta a toda hora. — Brick escondeu, mas eu achei enquanto a gente verificava as sacolas. Vamos, por favor.

Deram as mãos de novo, Daisy quase arrastando Rilke para fora do restaurante, descendo a escada e passando pela saída de incêndio fechada com correntes.

— Espere — disse Rilke. — Daisy, espere aí.

A única resposta de Daisy foi aumentar a velocidade, correndo pela porta principal do pavilhão e indo para o estacionamento. Rilke trotou para alcançá-la e estava prestes a gritar de novo quando os viu do outro lado do caminho coberto pela vegetação.

Cal e Brick apareceram primeiro, as mãos na cabeça, como prisioneiros de guerra. Depois surgiu o longo cano de aço de uma espingarda, seguido de um moço, talvez um adolescente, de sobretudo verde.

— Agora — disse Daisy, praticamente derrapando ao parar. Agora o quê?, pensou Rilke. Devo atirar nele? E, incrivelmente, Daisy gritou: — Sim! Atire nele agora!

Não havia tempo para perguntas. Rilke ergueu a pistola, usando os dois dedões para puxar para trás o cão teimoso. Mirou além da boca do cano, até encontrar o rosto do homem. Ele tinha barba escura, os olhos se comprimindo contra o sol matinal. Ela apertou os dois indicadores contra o gatilho, uma tempestade de pensamentos ganindo ao mesmo tempo em sua cabeça — Você não pode fazer isso; não pode atirar num homem! Em seguida, como se tivessem sido aspirados, eles sumiram, restando apenas um, restando apenas Daisy:

Agora.

Ela apertou. A arma resistiu, e em seguida o gatilho clicou. O tiro foi ensurdecedor, quase arremessando a pistola para longe de suas mãos. Conseguiu segurá-la, espiando em meio à fumaça e vendo que Brick e Cal estavam no chão.

Meu Deus, acertei um deles, pensou ela. Mas depois ela os viu se contorcendo no chão, tentando rastejar para longe. O sujeito com a espingarda ainda estava de pé, mas havia um rasgão escarlate no lado esquerdo de seu rosto que ia da bochecha à orelha. Ela o tinha pego de raspão. Sua expressão de choque era tão profunda quanto cômica. Ele pareceu demorar milênios para ver Rilke, e, à medida que se preparava para apontar a espingarda, ela deu um passo à frente, mirando direto na cabeça dele.

— O próximo não vai ser de raspão — disse ela, encarando-o. — Juro por Deus.

A espingarda permaneceu apontada para baixo, para as costas de Cal. Os dois garotos voltaram os olhos para ela, o rosto de ambos distorcido pelo medo. O choque do moço com a espingarda transformava-se em raiva; até de onde estava Rilke podia senti-la emanando dele. Porém havia também outra coisa, aquele mesmo silêncio esquisito, ressoante, que ela sentira logo antes de encontrar Daisy e os outros. Aquele sujeito era um deles.

É sim, mas ele é um homem mau. Rilke, por favor, agora; eu não quero que o Cal morra.

Daisy tinha dito mesmo aquilo, ou estava tudo em sua cabeça? De um jeito ou de outro, a voz da garotinha tornava tudo confuso.

— Largue a arma — gritou ela, o dedo tensionado. Era para ela puxar o cão de novo? — Largue imediatamente. Imediatamente.

O sangue escorria da ferida do homem, mas ele ainda não tinha largado a arma. Ela puxou o cão, o clique quase inaudível comparado ao zumbido que ecoava em seus ouvidos.

Rilke, por favor — a voz de Daisy de novo, diretamente no seu cérebro. Sei que não acredita em mim, mas...

— Ele vai matá-lo — disse Daisy em voz alta, a mudança fazendo Rilke cambalear. A menininha agora soluçava, as palavras entrecortadas. — Ele... vai... morrer...

O corpo do moço da espingarda retesou-se, o rosto se franzindo em uma máscara maléfica. Ele ergueu um pouco a arma, fazendo o cano apontar direto para a cabeça de Cal. Cal agora estava de costas, os braços estendidos à frente, congelado como uma das esculturas no palácio da Bruxa Branca. O sujeito de barba não desgrudava os olhos de Rilke.

— É mesmo? — disse ele em um tom irônico. — E se eu...

Rilke puxou o gatilho, apoiando-se desta vez. A arma soltou um baque, mas ela deixou os braços absorverem o impacto, observando o moço cambalear para trás, um buraco perfeitamente redondo na testa. Ainda que estivesse morto — tinha que estar morto —, ele ainda a encarava, algo mantendo seu corpo rígido e ereto, algo impedindo-o de cair no...

Calor intenso, ardendo brilhante como um fósforo.

O moço explodiu como uma bomba nuclear detonada no meio do parque. Uma onda de choque foi se assomando, derrubando as barraquinhas de comida nas duas laterais do caminho. Rilke nem teve tempo de gritar ao ver o furacão vindo em sua direção, arrancando-a do chão e fazendo-a girar para trás, enquanto colidia com a parede do pavilhão.

Foi talvez uma fração de segundo ou um milhão de anos depois que ela se lembrou de como abrir os olhos. Os detritos ainda voavam com o impacto, movendo-se em câmera lenta, como se o tempo tivesse sido deslocado de seu eixo. Varas de metal despencavam com uma lentidão ridícula da roda-gigante, emitindo baques ao cair no chão, como dardos gigantes. Brick e Cal estavam em pleno ar, girando como bonecas de pano ao serem lançados do local da detonação.

O moço da espingarda estava suspenso sobre o chão, os braços abertos para os lados como se estivesse sendo crucificado. Seu corpo inteiro brilhava, vermelho-fogo. De repente, sua cabeça foi para trás, a coluna arqueou, e o corpo pareceu se partir, como se houvesse uma corda de cada lado pressionando-o. Dentro dele havia um inferno vívido, quase cintilante demais para ser observado, mas Rilke não se afastou, nem piscou. Não conseguia.

Porque havia algo saindo do homem. Poderia ser outro homem, só que esse era grande demais, e feito de fogo — ferozes chamas azuis e brancas. O maxilar escancarava-se em um grito silencioso, e as chamas se alastravam para além de suas costas, desfraldando como velas gêmeas. Os olhos ardiam, e naqueles segundos fragmentados a coisa olhou para Rilke, incendiando justamente o âmago de sua alma. Em seguida, outra onda de choque irrompeu para o exterior, pulverizando o corpo do homem e a coisa que abria caminho para fora dele, transformando em cinzas a barraquinha de cachorro-quente, antes de explodir contra ela.

Ela caiu na escuridão.


Daisy

Fursville, 11h48

Daisy queimava.

Ela se levantou, reparando que sua saia tinha leves fagulhas, e deu tapas nela até que as brasas morressem de vez. Havia fumaça no ar e ao redor dela, uma gaze prateada que mais parecia a bruma da manhã. O cheiro era horrível, como quando a mãe tirava cabelo da escova e jogava na lareira. Estava deitada no caminho repleto de ervas daninhas que ia do pavilhão até o mar. O que estava fazendo ali? Levantou-se, observando através da fumaça e percebendo que um dos locais de comida, aquele com o refrigerante enorme no telhado, pegava fogo.

Aquele parque inteiro era um caos. A barraquinha do outro lado do caminho, aquela com o cachorro-quente, tinha sumido por completo. Mais adiante havia uma enorme cratera no concreto, tão chamuscada que parecia um buraco enorme no chão. Do tipo daqueles de que uma aranha gigante logo sairia.

Havia um rapaz ali, um rapaz com uma arma. E, com esse pensamento, as lembranças voltaram, disputando umas com as outras para ver quem seria a primeira da fila. Tinha visto algo em sua cabeça, como um filme malfeito de Cal levando um tiro. Havia sido horrível, e elas tinham saído com a arma.

Rilke. Daisy não podia senti-la, não do modo como vinha sentindo as pessoas nos últimos tempos, com aqueles cubinhos de gelo na mente. Também não conseguia ver nem Cal nem Brick em sua cabeça. Havia um cubo de gelo, porém, com uma sala que parecia um consultório de dentista, com aquela cadeira grande para o paciente. Ela enxergou um pôster com um gatinho no teto, mas não tinha ninguém no cubo de gelo.

O que teria acontecido? Rilke tinha dado um tiro no moço, não tinha? E tudo bem, porque ele era malvado, muito malvado. Era ele que ia matar Cal. Embora não tivesse sido muito bom observar o moço morrer, ainda que ele merecesse. Mas e depois? Daisy tinha visto algo dentro dele, um fogo que uivava, que tentava se libertar. Era provável que tivesse desmaiado e visto essas coisas em um sonho.

Então por que a fumaça? E onde estavam os outros? Foi seguindo pelo caminho, sentindo-se atordoada. Enormes agulhas de metal projetavam-se do chão, como espinhos de um porco-espinho. Daisy levantou o rosto, perguntando-se se teriam caído da roda-gigante. Por sorte, ninguém tinha sido cravado por nenhuma delas. Havia uma pilha de trapos contra as portas do pavilhão, e ela quase não deu importância, até perceber o que era.

— Rilke! — berrou Daisy, tropeçando pela superfície irregular. O rosto da menina estava coberto de fuligem, e não havia sinal de vida ali. — Socorro! — berrou a garota. — Alguém me ajude, por favor!

O que você devia fazer quando alguém não parecia estar vivo? Respirar na boca dele ou algo assim. Tinham feito isso na escola com um boneco de plástico, a regra do ABC. “A” era para... A pulsação do coração? Não parecia fazer sentido, mas Daisy apertou os dedos contra o pescoço de Rilke, rezando para sentir algo ali. Pulso-pulso-pulso-pulso, rápido como um coelho. Daisy quase chorou de alívio, afastando com delicadeza os longos cabelos escuros do rosto de Rilke.

— Tem alguém aí? — ela berrou de novo. Depois, mais baixinho: — Já volto, Rilke, vou procurar ajuda. Vai ficar tudo bem.

Ela partiu outra vez; foi para a frente do parque, aproximando-se da enorme cratera. Por favor, que nada saia de dentro dela.

— Oi? Cal? Eu preciso de você!

— Daisy? — Não era tanto um grito, era mais um gemido, vindo de algum lugar à sua direita. Ela foi até os restos estilhaçados da barraquinha de cachorro-quente, pisando com cuidado nos detritos. Havia algumas caixas do outro lado, e meia parede de tijolos coberta por um texto escrito à mão. Além, enxergou um par de pés, um de tênis e outro de meia. Estavam se mexendo.

— Cal? — Correndo, ela contornou a parede e viu Cal sentado no chão. Ele também se encontrava em farrapos, com parte do cabelo faltando, dando-lhe uma entrada engraçada bem acima da orelha esquerda. Ao vê-la, tentou se levantar, mas deu com o traseiro no chão. Daisy agachou-se ao lado dele, colocando a mão em seu ombro. Havia um rasgo enorme cruzando a frente de sua camiseta. — Está tudo bem com você?

— Acho que sim — disse ele, tateando o próprio corpo. — Pelo menos, parece que estou inteiro. — Sorriu, mas obviamente isso lhe causou muita dor. — Você me ajuda a me levantar?

Daisy pegou seu braço, e ele se colocou de pé. Ficou parado por um instante, as mãos nos joelhos, os olhos bem apertados.

— Mas que droga de coisa aconteceu aqui? — perguntou ele. — Parece que fui atropelado por um caminhão.

— Pessoal? — Daisy se virou e viu Brick mancando na direção deles. Ele tinha anéis escuros como carvão em volta dos olhos, como um guaxinim, e havia sangue pingando do seu braço esquerdo. Daisy ficou contente em vê-lo, ainda mais quando ele abriu um ligeiro sorriso para ela. — Tudo bem?

— Eu estou bem, mas Rilke está ferida. E desacordada. Ela precisa de ajuda.

— Ela está respirando? — perguntou Brick. Daisy fez que sim com a cabeça. Se tinha pulsação, então devia estar respirando, não devia? Brick tossiu, botando para fora uma bola de cuspe cor de ferrugem. — Primeiro a gente precisa apagar o incêndio. Se as pessoas virem isso, vão chamar os bombeiros ou a polícia.

— Tem água aqui? — perguntou Cal. Brick negou com um gesto de cabeça, correndo para a barraquinha em chamas. Cal correu atrás dele, aos tropeços com seu único pé calçado.

Daisy foi junto, ainda sem querer se aproximar demais da cratera. Assim que a contornou, viu que Brick e Cal soltavam a parede dianteira da barraquinha de bebidas, liberando uma nova nuvem de fumaça. O fogo se animou ao engolir a nova dose de ar, mas Brick não hesitou, pisando e chutando as chamas até a nuvem de fumaça começar a definhar e enfim perecer. Afastou-se cambaleante, tossindo tanto que Daisy não sabia como ele ainda conseguia respirar.

— Cadê o resto do pessoal? — disse ele ao acabar o procedimento, agarrando o braço ferido. Lágrimas pintavam listras negras ao escorrer por seu rosto. — Você os viu?

Que resto do pessoal?, pensou ela, enquanto Brick e Cal partiam outra vez. Ela corria atrás deles enquanto os dois se desviavam das varas de metal no chão, tentava acompanhá-los, com receio de ficar sozinha.

— Ali — ela ouviu Brick gritar. Ele virou no carrossel, sumindo atrás de mais detritos. Daisy ouviu uma voz, um grito de pânico, e de repente havia mais cubos de gelo deslizando em seu cérebro. Antes mesmo de virar ali, já sabia que veria três pessoas, dois meninos e uma menina.

— A gente não estava com ele! — gritava a garota, erguendo as mãos em um gesto de rendição, enquanto Brick se apressava na direção deles. O cabelo dela era vermelho, quase da mesma cor que o dele, e seu rosto tinha listras causadas por fuligem e fumaça. — A gente nem conhecia ele!

— Brick, espere aí — disse Cal. — Acho que estão falando a verdade.

Brick parou, respirando fundo e ruidosamente. O garotinho com a camiseta do Batman aproximou-se dele com cautela, depois se desviou e aproximou-se de Cal, relanceando o olhar algumas vezes para Daisy. O cubo do dentista era dele, e agora podia ver mais — um homem de uniforme branco gritando através de uma máscara e estendendo a mão para ele por cima da cadeira.

— Adam — disse ela, vendo seu nome no gelo. O garotinho se virou ao ouvi-lo, as sobrancelhas manchadas de sangue se franzindo. Ela estendeu a mão. — Pode vir, tudo bem. Você agora está em segurança.

Ele se aproximou dela de imediato, sem nem olhar para trás, e ela lhe deu a mão.

— Quer vir aqui dentro? A gente tem comida e refrigerante.

Ele não sorriu, mas também não soltou a mão dela. Daisy olhou para trás, avistando Brick, que andava de um lado para o outro como um tigre enjaulado. Cal ia em seu encalço. A menina e o outro garoto estavam aterrorizados. Daisy sentia o medo dentro dela, como cubos de gelo derretendo e fazendo sangrar a emoção deles nas dela. Não gostou daquilo.

— Quem era ele? — disse Brick. — Meu Deus, parecia que estava carregando uma bomba.

— Eu o peguei — falou o menino mais robusto. — Assim como peguei os outros, só que ele tinha a arma e...

— Tudo bem — disse Cal. — Não está, Brick? Está tudo bem. A gente pode confiar neles. Todos, por favor, acalmem-se.

Brick estendeu as mãos para cima, dando de ombros em um gesto enfurecido. Mais sangue pingou de seus dedos, gotejando no chão.

— São só vocês três? — perguntou ele. — Tem mais gente?

O menino e a menina se entreolharam, mas foi Adam, o garotinho ao lado de Daisy, quem entregou o jogo. Daisy viu um carro prata dentro do cubo de gelo dele, um carro grande, e alguma coisa batendo e ganindo no porta-malas, alguma coisa com respiração gorgolejante de sangue.

— Tem mais uma pessoa — disse ela, olhando para o caminho que conduzia ao exterior do parque. O garoto roliço concluiu por ela:

— Mas não é um de nós.


Brick

Fursville, 12h09

O nome da ruiva era Jade. Do gordinho era Chris. Eles contaram isso a Brick enquanto avançavam pela lateral da Estação Dodói e passavam pela fenda na sebe de louro. Daisy tinha levado o garotinho para dentro, e Cal fora ver como Rilke estava. Brick meio que queria ter ficado com a tarefa deles, e eles com a dele, mas não confiava em que conseguissem lidar com a situação.

Com certeza também não confiava no garoto e na garota ao lado dele. Não importando o que dissessem, tinham levado um sujeito armado para lá. Olhou para o braço, um ferimento feio no bíceps. Pelo menos o sangue não escorria mais, só gotejava, portanto não ia sangrar até morrer. Que sorte. Que sorte todos eles haviam tido. Quem andava por aí com uma bomba?

E, no entanto, alguma coisa no fundo de sua cabeça lhe dizia que não era uma bomba, uma lembrança que causava uma coceira em seu crânio. Estava olhando fixamente para o homem bem na hora em que ele explodiu; não havia uma coisa ali, uma coisa saindo dele com um corpo em chamas?

Não seja imbecil, Brick. É a adrenalina que está falando por você.

— Bem ali — disse Chris. Ele apontou com a cabeça para um carro prata estacionado em ângulo no meio-fio. Era um carro de luxo, um Jaguar ou algo assim, enorme. Havia manchas de sangue no capô. Brick já era capaz de ouvir baques surdos no porta-malas, além de um choro fraco, um resmungo.

— Não tivemos escolha — disse Jade. Ela tinha um sotaque que Brick não conseguia definir direito. Parecia do norte. — Aquele cara, aquele com a arma, derrubou este aqui e o prendeu no porta-malas. Ele acordou, sei lá, meia hora antes de a gente chegar aqui, e desde então está batendo aí e tentando sair.

— O esquisito é que quando a gente não está por perto ele age normalmente — disse Chris. — Agora, por exemplo, se você gritar uma coisa pra ele, é bem provável que ele vai gritar em resposta.

Os dois olharam para Brick em expectativa. Ele assentiu com um gesto de cabeça.

— Eu sei. Todos estão fazendo isso. — Suspirou, praguejando baixinho. Não podiam deixar o carro ali; a primeira pessoa que o visse chamaria a polícia. Não podiam também levá-lo para Fursville; não havia uma brecha grande o bastante na cerca para fazê-lo passar. Podiam levá-lo para o estacionamento, onde tinha encontrado Cal e Daisy na noite passada, mas não tinha a mínima vontade de rodar por ali durante dez minutos com um ser furioso no porta-malas. Fursville tinha um estacionamento. Estava trancado, mas podiam dar um jeito de entrar nele.

Quem quer que estivesse ali dentro deve tê-los ouvido, porque a voz ficou mais alta, ainda abafada, porém mais audível.

— Por favor, me tirem daqui, prometo que não conto pra ninguém.

E de repente era Lisa dentro daquele carro, debatendo-se por oxigênio no calor, arranhando a tranca com as unhas. Brick cerrou os olhos até a imagem desaparecer.

— Vocês estão com as chaves? — perguntou.

— Estão na ignição — disse Chris.

— Podemos estacionar ali — ele respondeu, apontando o estacionamento de Fursville. — Vão precisar arrebentar a cerca. A gente esconde o carro e depois decide o que fazer com ele.

Chris concordou com um gesto de cabeça. Seguiu cambaleante até o carro, respirou fundo e se sentou no banco do motorista. Jade ficou ao lado de Brick.

— Ali é que eu não entro! — disse ela quando Brick a encarou. A menina não deu nenhuma explicação, só cruzou os braços sobre o peito como se estivesse com frio.

Brick andou pelo asfalto, a voz do homem no porta-malas agora uma sequência de ganidos uivantes. Os baques ficaram mais altos, a tampa de metal se sacudindo com as batidas que vinham de dentro. A cinquenta metros de distância ficava a entrada do estacionamento de Fursville, com seus portões principais trancados. Ali, porém, a cerca não era tão grande.

Chris manobrou o carro e voltou para o meio-fio, abrindo caminho pela cerca com um som que parecia o de unhas correndo por um quadro-negro. O motor rugia, mas ele não tirava o pé, pisando fundo até o arame arrebentar e o carro entrar com um solavanco.

— Por ali — gritou Brick, apontando a enorme sebe que separava o estacionamento de Fursville. Havia um pequeno escritório de madeira — um galpão de jardim, na verdade — onde antigamente se pagava uma libra para estacionar. — Vá dirigindo o mais rápido que puder até ficar atrás daquela construção.

Chris obedeceu, conduzindo o carro pelo caminho de terra dura até o porta-malas desaparecer sebe adentro. Avançou o máximo que pôde, antes de bater em algo e parar com um baque. Ouviu-se uma cacofonia de estalos farfalhantes e de resmungos antes de Chris aparecer, tirando ramos de vegetação do rosto. Afastou-se com cautela, olhando desolado para o arruinado Jaguar.

— Cara, meu pai vai me matar quando vir o carro — disse ele, ficando pálido ao se dar conta do que tinha dito. Exibiu os dentes em um sorriso amargo, sem humor. — De novo.

A voz no porta-malas agora estava ainda mais alta, os rugidos de um animal enjaulado. Porém o carro estava bem escondido, pensou Brick, o pequeno escritório escondendo-o da estrada. Podia pegar algumas tábuas no parque e cobri-lo direito depois que decidissem o que fazer com o homem ali dentro.

— Vamos lá — disse ele, virando-se e dirigindo-se para a cerca destruída. — Vamos voltar. Algo me diz que precisamos ter uma conversa.


Cal

Fursville, 12h33

Cal terminou de amarrar o par de tênis reserva, grato por ter pensado em trazê-lo antes de sair de casa. Tirou a camiseta enegrecida pela fumaça e as cuecas esportivas antes de ir se juntar aos outros.

Estavam todos sentados no restaurante, aglomerados em volta de uma mesa do lado oposto àquele em que Schiller ainda estava, como uma escultura de gelo no sofá. Lá fora fazia uns trinta graus e havia sol; dentro, porém, e atrás das janelas tapadas, fazia uns quinze, mesmo com a dúzia de velas que bruxuleavam. Ali, porém, a sensação era de segurança. De quietude. De esconderijo.

Cal deu mais uma olhada em Rilke. Tinha verificado o pulso e a respiração dela do lado de fora do pavilhão, onde estava caída, e depois a trouxera até ali. Ela estava encolhida no chão, encostada em um canto do salão e coberta com uma toalha de mesa, a cabeça descansando em uma pilha de roupas que ele havia tirado da mochila cilíndrica. Ela tinha batido a cabeça com força; o inchaço ali dava a impressão de que alguém costurara um ovo sob sua pele. Ele, porém, não achava que era sério. Já ficara daquele jeito antes jogando futebol, e aquele galo costumava sumir depois de um dia ou dois.

— O que é que há com ele? — perguntou Jade, apontando Schiller com a cabeça. — Por que ele está congelado desse jeito?

— Fale primeiro sobre vocês — disse Brick. — Eu quero...

— Quer salgadinho? — interrompeu Daisy, ganhando um olhar zangado de Brick. — Ou chocolate? Ou alguma coisa para beber?

— A gente não tem muita coisa — falou Brick. — Precisamos economizar comida.

Daisy olhou para a mesa, obviamente pensando em algo. Em seguida, arrastou a cadeira para trás e puxou dois pacotes de salgadinho da sacola atrás de si. Foi até os novos garotos e os entregou a eles, lançando um olhar de provocação a Brick que dizia claramente: Levou a pior, seu malvado. Cal sorriu, todos aguardando que Daisy servisse um pouco de Fanta nos copos que tinham achado na cozinha. A garrafa grande era pesada demais para ela, e uma boa parte foi parar na toalha de mesa, sibilando feito ácido.

— Obrigada — disse Jade, tomando a bebida em um gole só, e depois arrotando sobre a mão. — Nossa, que bom. Desde ontem eu não comia nem bebia nada.

— Então, o que aconteceu? — disparou Brick. — Por que vocês estão aqui?

— Foram vocês que pediram pra gente vir para cá, não foram? — respondeu Chris, falando com a boca cheia de salgadinhos. — Quem foi que deixou aquela mensagem on-line?

Brick fez uma careta e deu de ombros. Olhou para Cal, como se fosse culpa dele.

— Eu vi a mensagem — prosseguiu Chris. — Olha só, foi isto que aconteceu. Eu estava em casa jogando Fallout, deviam ser umas nove, nove e meia. De repente, a minha mãe, do nada, veio para cima de mim com uma faca. — Ele fez uma pausa e franziu o rosto, como se acabasse de se dar conta do que tinha acontecido. Reclinou-se na cadeira, esticando a camiseta para que ela não assumisse o formato das lombadas de gordura em torno da barriga. — E aí ela caiu, pois é, e estava tão... sei lá, selvagem, maluca, que nem sabia para onde estava indo. — Ele parou de novo, juntando as mãos, os olhos a um milhão de quilômetros dali. O único som na sala vinha das chamas das velas e dos dentes de Daisy, que batiam. — Daí eu chamei uma ambulância, né? Mas, antes que chegassem, uma pessoa entrou em casa, um cara que eu nunca tinha visto antes, e ele começou a me socar, a me estrangular. Só que ele tropeçou na minha mãe, batendo a cabeça na mesa. Juro, parecia uma cena do Monty Python.

— E aí? — perguntou Brick quando o garoto parou de falar.

— Para ser sincero, não lembro direito — disse Chris. — Saí de casa, entrei no carro. No carro do meu pai. Ele veio atrás de mim na garagem, mas ele estava usando muleta, porque operou o dedão do pé, e caiu. Daí o pessoal da ambulância chegou e, antes mesmo que saíssem, eu já sabia o que iam fazer. Eles partiram pra cima do carro junto com o meu pai. Pareciam bichos. Eu saí dirigindo, parei num lugar tranquilo, usei o celular para entrar na internet, e foi aí que vi a sua mensagem.

— Ainda está com o celular aí? — perguntou Brick. Chris tirou-o do bolso.

— Sem sinal — ele respondeu, colocando-o de volta.

— E os outros? — perguntou Brick. — E aquele cara?

— Bom, isso é que é estranho — disse Chris. Ele tentou rir, mas pareceu mais um rosnado. — Bom, uma das coisas estranhas. Eu... — Ele olhou para Jade e, por algum motivo, suas bochechas coraram. — Eu... a gente... meio que sabia onde eles estavam.

— Eu sou de Whitehaven — disse Jade, preenchendo a pausa antes que ficasse longa e incômoda demais. — Mas estava com a minha amiga Heather, que tinha se mudado para Grantham, certo? Bom, a gente estava no táxi, indo para um show na cidade, e eu nem queria ir, porque a minha cabeça, cara, estava doendo muito. — Ela levou as mãos às têmporas, como que tentando encontrar a dor que estivera ali. A gente também teve isso, pensou Cal, dividindo um olhar de cumplicidade com Brick. A dor de cabeça faz parte disso. — E à noite só foi piorando, porque a Heather nem falava comigo e eu não sabia o porquê, e aí o motorista do táxi bateu o maldito carro numa árvore. Tipo uma batida de verdade mesmo, e a gente capotou e foi parar em uma vala. — Ela abraçou os joelhos outra vez, colocando as pernas sobre a cadeira por um instante, antes de baixá-las de novo. — E a Heather começou a me chutar e a me arranhar, mas acho que ela só queria se livrar, porque estava embaixo de mim, certo? Aí eu saí pela janela e me inclinei, e ela me mordeu. Me mordeu pra valer. — Ela estendeu a mão, mostrando uma meia-lua roxa no punho. — E de repente o motorista do táxi estava vindo para cima de mim, apesar de...

Ela parou, parecendo que ia vomitar.

— O braço dele — retomou ela, os olhos marejados. Pôs a mão na boca. — O punho dele estava quebrado, a mão dele estava quase caindo, mas ele ainda...

Ela olhou para Chris. Ele fez menção de levantar o braço como que para reconfortá-la, mas desistiu da ideia, pousando-o de novo no joelho.

— Eu cheguei um pouco depois — disse ele. — Nem sabia aonde estava indo; só sei que precisava ir naquela direção. Aí vi o táxi capotado, uma ambulância e um carro de polícia, e sabia que ela não estava ali, mas em algum lugar por perto, por isso estacionei mais à frente e fui para o mato, e a encontrei sentada ao lado de uma árvore. E pareceu que a gente se conhecia desde sempre, sabe como é?

Cal sabia. Agora tinha a sensação de ter crescido com aquelas pessoas, de ter passado cada hora desperta de sua vida com elas.

— Aí entramos no carro, andamos mais um pouco, até eu ficar cansado demais para continuar, e dormimos no carro, em uma clareira. Na manhã seguinte, nós dois começamos a sentir uma coisa na cabeça, tipo... Sei lá, não sei nem explicar.

— Como um silêncio — disse Cal. — Mas um silêncio que você ouve.

— Pois é, exatamente isso. Então, nós dois tivemos esse silêncio e soubemos que a gente só precisava continuar mais um pouco, e ia chegar aonde precisava estar.

— Ele — disse Jade, indicando Adam com a cabeça. O garoto nem ouvia. Mastigava os salgadinhos, mas os movimentos mecânicos e lentos do maxilar eram o único sinal de que estava vivo. — Cara, a gente quase morreu. Ele estava no dentista, certo? Numa casa, em uma rua bem normal. Onde era? Peterborough?

— Ely — falou Chris. — Bem, ali perto, se não for isso.

— Ele tinha conseguido se esconder no sótão. Só Deus sabe quanto tempo passou ali. O dentista, ele veio pra cima da gente, mas...

Ela olhou de novo para Chris, e naquele olhar Cal viu o que os dois tinham feito. O que tiveram que fazer.

— Ele não fala — continuou ela. — Só soubemos o nome dele porque tinha uma etiqueta na camisa. Coitadinho.

— E o cara com a arma? — perguntou Brick. — o que sabem sobre ele?

— Ele foi o último — disse Chris. — A gente estava vindo para cá, obedecendo à mensagem que mandava a gente vir para o mar. Não que a gente precisasse, quer dizer, tinha alguma coisa puxando a gente pra cá, aquela mesma... coisa que tinha me levado até Jade, depois a Adam, e depois àquele cara.

— Ele nunca falou o nome — disse Jade. — A gente apareceu na fazenda dele, que nem fica longe daqui, uma hora, talvez. E eu sabia que era má ideia, porque tinha sangue por toda parte, tipo, muito sangue. — Ela estremeceu. — Aí esse cara veio até o carro, e ele simplesmente estava maluco. Não como os outros, não como as pessoas furiosas. Ele estava pirado, tipo louco mesmo, entendeu?

— Ele jogou um homem inconsciente no porta-malas, entrou e falou que ia matar a gente se a gente não fizesse o que ele mandasse — disse Chris. — Aí a gente veio de carro até aqui, nós todos, e nem precisamos da navegação por satélite. A gente já sabia que vocês estavam no parque.

Fez-se silêncio quando ele terminou. Cal deu um gole em sua Fanta, ignorando a sujeira do copo. Estava gostosa, e ele estalou a língua.

— Acho ótimo vocês terem matado ele — Jade praticamente cuspiu.

— Viram algum explosivo? — perguntou Brick. Tanto Chris quanto Jade deram de ombros. — Ele tinha que ter uma bomba. Vocês viram aquela explosão. Ele era um maluco, então devia ter uma bomba, não devia?

— Imagino que sim — disse Chris, ainda que não parecesse ter muita certeza.

Era isso, não era? O que quer que tivesse acontecido, havia atingido Cal e o lançado em um pesadelo do qual ele achava que jamais acordaria. Ele acordara com a sensação de ter sido atropelado. Talvez o cara tivesse uma granada ou algo assim, alguma coisa que havia sobrado da guerra, que seu avô tivesse trazido para casa.

Ou talvez não fosse isso. Pensou no carro explodindo na estrada, na figura que tinha subido dele com asas de fogo, gritando.

— Acho que a gente nunca vai saber — continuou Chris. — Há pedaços desse cara por toda parte.

— Você falou que estava com dor de cabeça — lembrou Cal. — Logo antes de tudo isso acontecer.

Chris e Jade assentiram com a cabeça.

— E eu também — disse Daisy. — Ela ficou dolorida por dias. E eu também conseguia ouvir tipo uma pulsação.

— Tum-tum, tum-tum — disse Brick. Dayse acenou com a cabeça, arregalando os olhos.

— Exatamente — disse ela, endireitando as costas na cadeira. — Era exatamente assim, exatamente assim!

A pele de Cal se enrijeceu em nós de arrepio, o couro cabeludo formigando como se alguém estivesse respirando nele.

— As coisas desandaram logo depois que a minha dor de cabeça parou — disse Chris. — Tipo logo depois, em segundos.

— Pois é, comigo também — acrescentou Jade. — Até me lembro de ter pensado: De repente, a noite nem vai ser tão ruim, porque a minha dor de cabeça tinha ido embora, e aí, três segundos depois ou algo assim, a gente estava na vala.

Tinha sido assim, não tinha? Cal começou a recordar, lembrando-se do campo de futebol, do sol. A dor latejante entre as têmporas havia sumido, como se tivesse sido desligada. E então o mundo inteiro viera atrás dele.

— Minha dor de cabeça com certeza tinha ido embora quando o cara da ambulância chegou — disse Daisy.

Mais silêncio. Todos se entreolharam, e nos olhos deles viram a si mesmos, viram a própria confusão, o próprio medo.

— O que significa isso? — perguntou Jade.

— Parecia uma coisa batendo no meu crânio — disse Brick. — Tum-tum, tum-tum, tum-tum, tum-tum.

O som pareceu tirar Adam de seu transe. O garotinho olhou para Brick, o maxilar petrificado no meio da mastigação. Parecia assustado.

— Tum-tum, tum-tum. — Brick agora batia na própria cabeça. — Parecia uma coisa tentando entrar, tentando arrombar a porta. — Tum-tum.

— Brick, chega — disse Cal. — Está assustando o garoto.

Brick não ouvia, ainda batendo no crânio e pronunciando as palavras como um louco. Adam agora estava totalmente desperto, os olhos vidrados.

— Tum-tum — continuou Brick. — Tum-tum, exatamente assim. — Tum-tum, tum-tum.

— Brick — disse Cal. — Já chega...

E foi aí que Adam abriu a boca, emitindo um grito tão agudo e tão alto que Cal teve de colocar as mãos nas orelhas; um grito que fez seu copo virar cacos de vidro, que correu por todo o salão e apagou todas as velas, mergulhando-os na noite.


Brick

Fursville, 13h04

Brick procurou os fósforos, acendeu um e pensou: Esse grito não pode ter saído desse garotinho. Tinha sido ensurdecedor; havia chegado a quebrar vidros.

— Deixe ele tomar um pouco de ar — disse Daisy, que estava com o braço em volta do ombro de Adam. — Ele está assustado.

— Estamos todos assustados — disse Jade. — Que droga de coisa foi essa?

— Ele só não gostou do barulho — respondeu Daisy, lançando um olhar zangado para Brick. Ele sentiu um impulso perverso de fazer aquilo de novo, de começar a gritar tum-tum com toda a força, mas resistiu. — Tudo bem. Só precisamos sair deste lugar; aqui está muito escuro e assustador.

— Pois é — disse Cal, encaminhando-se para a porta do restaurante e abrindo-a. Uma luz fraca e empoeirada entrou no local. — Vamos lá, está frio demais mesmo.

Rilke continuava inconsciente ao lado do irmão. Brick deixou-a ali e seguiu os outros pelo corredor — grato por não haver nenhum ruído vindo do porão —, rumo à saída de incêndio. O calor abraçou-o em um gesto perfeito de carinho, e ele desejou ser possível sair da própria pele e pairar acima do brilhante papel-alumínio que era o oceano, seguir o Sol em volta da Terra pelo resto dos tempos e nunca mais ser aprisionado pela carne, nem pela gravidade, nem pelas trevas.

— O que está acontecendo? — Ele reconheceu o próprio tom: agressivo, como se achasse que estavam todos escondendo alguma coisa. Mas não podia evitar. Quando estava zangado, poxa, quando sentia qualquer emoção, ele apenas agia feito um idiota. Era assim que ele era. Todo mundo odiava Brick Thomas.

— Como é que eu vou saber? — rebateu Cal. — A gente não sabe mais do que você.

Brick abriu a boca, pronto para disparar mais acusações. Deteve-se, porém, respirando fundo e contando até cinco. Quando enfim falou, sua voz estava mais branda:

— Isso não é normal.

— Você acha mesmo? — disse Cal.

Brick engoliu sua primeira resposta e prosseguiu com a segunda:

— Precisamos entender o que está acontecendo — disse ele. — Precisamos pensar bem a respeito. Porque isto tudo é esquisito demais, Cal. E... — Estou com medo, ele queria dizer, mas algo o impediu. Ele tossiu, olhando para o campo de minigolfe. O esquilo gigante de um olho só encarou-o em resposta, dando-lhe um sorriso insano.

— Também estou com medo — disse Daisy, como se tivesse lido a mente dele. Ela tinha se sentado entre Jade e Adam no muro baixo que cercava o minigolfe. O garotinho parecia ter se acalmado, mas sua expressão de boneco continuava a deixar Brick bem assustado.

— Precisamos organizar em detalhes tudo o que sabemos — disse Cal. — Tudo. De um jeito lógico.

— As pessoas estão tentando matar a gente — disse Chris.

— Mas não é só isso, não é mesmo? — Cal afastou-se do muro, andando de um lado para o outro. — Eles só querem nos matar quando estamos perto deles; quando estamos... como foi que você disse? No radar deles?

— É — disse Jade. — Parece que eles sentem a nossa presença e enlouquecem, como um cachorro que sente a presença de outro cachorro.

— E se a gente se afastar, se a gente se afastar o suficiente, eles voltam ao normal — continuou Cal. — Eles esquecem totalmente o que fizeram. Mas por quê? O que é que os faria agir assim?

A única resposta que tiveram foi o barulho das ondas.

— Certo, precisamos começar do começo — disse Cal. — A dor de cabeça, o tum-tum. De repente isso é, não sei... algum tipo de mudança psicológica.

— Fisiológica — corrigiu Jade. — Deve ter a ver com química. Talvez a gente esteja produzindo um novo tipo de feromônio, alguma espécie de gene mutante que faz as pessoas odiarem a gente.

— Faz sentido — disse Cal, os tênis arrastando-se no chão seco enquanto ele ia e vinha. Cada passo que dava perturbava o humor de Brick, mas ele engoliu tudo, a raiva fervilhando em sua barriga. — Até que você pense em Schiller. E em Adam. Eu nunca tinha ouvido um grito como esse na vida.

— Daisy também — falou Brick. Cal estacou, e Daisy levantou os olhos, franzindo o rosto.

— Que tem eu?

— Você sabia o nome do garoto — disse ele. — Depois da explosão. Eu ouvi você chamá-lo antes de qualquer pessoa abrir a boca. Como é que sabia?

Daisy deu de ombros.

— Quer ouvir uma coisa esquisita? — falou Cal, passando as mãos pelo cabelo. — Também está acontecendo comigo. Parece que às vezes eu vejo as coisas nas quais vocês estão pensando. Não é nada ruim, nada parecido com isso. E talvez nem seja tão importante. A questão é que alguns dos pensamentos na minha cabeça não são meus, entenderam?

Brick juntou uma bola de cuspe e soltou em direção ao minigolfe.

— Estão falando sério?

— E a explosão? — disse Cal, fazendo que sim com a cabeça. — Brick, você e eu estávamos deitados bem do lado daquele cara; a gente estava a um metro de distância. Fomos lançados para o outro lado do parque, mas estamos bem? Aquela explosão demoliu a barraquinha de cachorro-quente, soltou pedaços de metal da roda-gigante, mas nós estamos bem? Já pensou nisso?

Brick não havia pensado. Não até aquele momento. Porém Cal tinha razão. Se o homem estivesse com explosivos, teriam sido feitos em pedaços, e os pedaços ainda estariam chovendo sobre Fursville. Ele só presumira que haviam tido sorte, mas mesmo isso já era muito forçado. A sorte, afinal, costumava se desviar de Brick com vontade. Então talvez o homem não tivesse uma bomba, talvez fosse outra coisa...

E era mesmo, lembra? Você viu uma coisa saindo de dentro dele.

Brick balançou a cabeça, a imagem dissolvendo-se como sal na água, esquecida. Haviam tido sorte, só isso, sorte, sorte, sorte. Continue repetindo, Brick, e vai acabar acreditando.

— O que é que isso significa? Que a gente é invencível? — perguntou Chris, apoiando-se na parede, sua expressão um retrato do desespero.

— Não faço ideia — prosseguiu Cal. — Não temos a mínima ideia.

Brick sentia o sol no rosto queimando sua pele clara e sardenta. E de repente lhe ocorreu algo.

— Não ainda, não temos — disse ele. — Mas acho que sei como descobrir.


— Cara, essa ideia é realmente péssima.

Estavam no estacionamento, perto o bastante do porta-malas do Jaguar para ouvir os débeis gemidos do lado de dentro — “Por favor, quero sair, não quero morrer aqui” —, mas distantes o suficiente para não provocar o cara lá dentro, para não deixá-lo furioso. Eram mais ou menos uns vinte metros, Brick estimara. Era até ali que o radar deles ia, quer pudessem ver, quer não. Ele estava com um saco de juta nas mãos, um saco grande que havia achado na cozinha ao lado do restaurante. Estava imundo, mas com sorte resolveria a situação. Cal, Jade e Chris estavam ao lado dele. Daisy tinha se oferecido para cuidar de Adam em Fursville — era melhor que eles não vissem aquilo.

— Sério, cara — repetiu Chris. — Isso não vai terminar bem.

— Amigo, devo dizer que eu concordo — disse Cal. Ele segurava faixas compridas de tecido que tinham rasgado de outro saco. — Você não sabe quem está ali dentro, nem do que ele é capaz.

— Nós nunca o vimos — falou Jade. — Ele estava inconsciente quando aquele cara da fazenda o colocou ali. Pode ser qualquer pessoa.

— Não importa quem seja — disse Brick, pegando o saco. O material era grosseiro, e a sensação dele contra as pontas dos dedos lhe dava coceira. — Neste momento, ele é a única pessoa que pode nos ajudar; é ele que pode explicar o que está acontecendo.

E quanto a Lisa? Ela também não poderia explicar? Ela está lá embaixo, no porão; você ainda pode falar dela pra eles.

Não. Ainda não. Não sabia o que fazer com Lisa; precisava de mais tempo para descobrir como ajudá-la.

— Todo mundo já entendeu o que precisa fazer? — perguntou, preparando o espírito, não que a adrenalina precisasse de muita ajuda, já rasgando seu coração. — Lembrem-se: ele está ali há um dia, no sol, sem comer nem beber nada. Vai estar fraco. Não esqueçam isso.

— Meu Deus — murmurou Chris. — Que insanidade.

— Abra — disse Brick, abrindo o saco na frente dele. Nada aconteceu. — Mandei abrir! Já.

Chris apontou o controle remoto e pôs o dedão no botão do porta-malas. Fez um clique suave, e a tampa de metal levantou-se alguns centímetros. Os gemidos ali dentro pararam, como que sem acreditar no que acontecia.

— Vamos — disse Brick, correndo para o carro e ouvindo os pés de Cal estrondando em seu encalço.

A tampa se levantava, a escuridão deixando aparecer um rosto pálido. O homem os viu chegando, as súplicas temerosas durando mais ou menos cinco ou seis palavras, antes que chegassem perto o bastante para acontecer o que quer que tenha acontecido. O rosto dele se contorceu como o de alguém recebendo um choque elétrico — os lábios recuados, os olhos esbugalhados —, e ele começou a se arrastar para fora do porta-malas.

Brick gritou, colocando o saco de juta sobre a cabeça do homem. O cara era rápido, e arremessou a mão contra a bochecha de Brick. Ele ignorou a dor, puxando o saco para baixo com força, até que cobrisse o sujeito até a cintura.

— Rápido! — disse ofegante. O homem se lançou sobre Brick, fazendo-o bater com força no chão, tendo se esquecido de erguer a cabeça, e o resultado foram fogos de artifício removendo nacos de sua visão. O homem furioso pousou sobre ele, os joelhos enfiados em suas costelas. Uivos selvagens, guturais, jorravam de trás do saco, a mandíbula do homem movimentando o tecido como se tentasse mastigá-lo para chegar a Brick.

Ouviu-se um baque quando Cal desferiu um chute, fazendo o furioso rolar para o lado. O homem conseguiu ficar de pé, só um par de pernas sob um saco que corria em círculos malucos. Cal investiu com tudo, dando um soco impressionante que derrubou o homem. Ele o prendeu no chão, pedindo ajuda enquanto tentava envolvê-lo com as faixas de tecido.

Chris chegou primeiro, sentando-se nas pernas do homem. Jade veio logo depois, apertando as duas mãos contra a cabeça dele enquanto Cal amarrava a primeira faixa, prendendo-a bem. Passou mais uma em volta da cintura do sujeito, e usou a última para prender seus pés. Ao terminar, deixou-se cair para trás, limpando o suor do rosto e soltando alguns palavrões. Chris e Jade também se afastaram, deixando a múmia de juta se contorcendo na grama.

— Pois é, superfraco — disse Cal, o peito subindo e descendo, a pulsação fazendo as palavras se entrecortarem.

— E agora? — perguntou Jade.

— A gente leva ele pra dentro — disse Brick. — Depois a gente faz ele contar tudo.


Rilke

Fursville, 13h33

Rilke emergiu do fogo para o gelo, o inferno do sonho apagado pelo frio imenso do salão.

Curvou-se, trêmula, sabendo que Schiller estava próximo, porque nada mais podia estar emanando tanto frio. Ficou ali, tentando se agarrar ao pesadelo, lembrando apenas que sucumbira a uma tempestade de fogo, um furacão de calor, luz e barulho; e que havia mergulhado em um oceano que se movimentava, feito não de água, mas de membros compridos, mandíbulas retorcidas e olhos de escuridão faiscante. A imagem era tão real que ela suava, apesar da temperatura no restaurante, a pele ardendo de calor.

Será que estava ficando com febre? Não era improvável, considerando o que tinha passado no último dia. Já havia tido uma febre forte quando criança, de quase quarenta graus, mas com calafrios fortíssimos, que faziam a cama chacoalhar. Lembrava-se do que o médico tinha lhe dito, que as febres eram algo benéfico, pois significavam que seu corpo estava lutando.

Esta, porém, era diferente. Era pior. Porque sabia que não tinha nada a ver com estar doente. O corpo dela lutava contra alguma coisa, mas não era nada que os médicos pudessem resolver.

Rilke deu-se conta de repente do quanto o salão estava quieto. Não ouvia mais o mar, só a respiração baixinha e rápida do irmão, não mais alta do que as batidas de um coração. Onde estariam todos?

Lá fora, ela soube. Quase podia vê-los, uma imagem pendurada no canto de seu campo de visão, algo que pressentia, embora não entendesse muito bem.

— Schill, tudo bem com você? — perguntou ela, sem esperar pela resposta. O padrão de sua respiração permaneceu inalterado. Ela andou devagar pelo salão, lembrando-se da disposição dos móveis, batendo o quadril apenas uma vez antes de encontrar a mesa com as velas. Acendeu um fósforo e acendeu uma delas, a chama oscilante trazendo mais lembranças do sonho — um homem em chamas, algo despregando-se de sua pele.

Estremeceu, e desta vez não teve nada a ver com o frio.

Não tinha sido um sonho. Tinha sido real.

Desabou em uma cadeira. O que tinha acontecido lá fora, antes de ela desmaiar?

Uma explosão, uma onda de choque, o cara em cuja cabeça você deu um tiro.

Ela tinha matado alguém. Tinha puxado o gatilho e tirado sua vida. Colocou os cotovelos na mesa, aninhando a cabeça entre as mãos. Lembrar-se do que tinha feito era avassalador, e a colocava no limite da loucura. Tinha sido Daisy; tinha sido culpa da garotinha. Ela a fizera agir daquele jeito, choramingando, gritando e berrando até Rilke não conseguir mais pensar direito. Será que o homem estava mesmo prestes a matar Cal? Não havia como saber; ela lhe dera um tiro antes que ele sequer tivesse essa oportunidade. E, pior ainda, não tinha sido em um dos furiosos; tinha sido em um deles.

Os pensamentos dela se inflamavam e esmoreciam, tal como a vela. Havia matado um homem, mas não era só isso; tinha matado outra coisa também. Fechou os olhos, tentando se transportar para o momento, vendo a coisa que tinha aberto o corpo do moço como se fosse um saco de dormir, como se fosse uma fantasia; uma coisa que tinha se libertado do moço arrebentando-o e rasgando-o com ira; que tinha aberto o abismo de sua boca e uivado para ela, abrindo suas asas inacreditáveis e incandescentes. Aquilo não podia ter sido real, mas aquela coisa, aquela criatura era mais real do que qualquer outra coisa que já havia conhecido.

Seu corpo estremeceu, os dentes bateram.

Pense, sua idiota, gritou para si mesma, dando um tapa na testa. O que era aquela coisa? O que estaria fazendo disfarçada de homem?

Ou talvez não estivesse disfarçada. Talvez estivesse se escondendo.

Recordou-se de seu rosto, daqueles olhos em chamas — não de emoção, mas de poder. O calor deles parecia sulcar sua mente, deixando ali vestígios enegrecidos. O que era aquilo? E, mais importante, se ficara escondido dentro do homem, então havia a possibilidade de aquilo também estar escondido dentro dela? Havia um dentro de cada um deles? Era isso que os tornava diferentes? Será que todos tinham sido...

A palavra “escolhidos” foi o que surgiu na cabeça de Rilke. É isso, não é? Somos especiais. Fomos escolhidos.

Ela se inclinou sobre a mesa, trêmula e febril, perguntando-se o que havia de errado com ela, perguntando-se o que é que seu corpo estava combatendo. Ela era forte, como todas as demais mulheres da família Bastion. Quando decidia fazer alguma coisa, sempre fazia, a qualquer custo. Não era de admirar que tivesse sido escolhida.

Porém, escolhida para quê? Passou uma das mãos na sobrancelha, a pele quente e úmida de suor. Ali estava frio como dentro de uma igreja, e a ideia trouxe lembranças da igreja de São Pedro na aldeia. Fora forçada a ir à missa ali toda semana desde que podia se lembrar. Mas talvez aquelas horas todas não tivessem sido perdidas. Porque, nas histórias que ela ouvia na igreja, as pessoas estavam sempre sendo escolhidas.

Para coisas boas, e para coisas ruins.

— Por que estamos aqui, irmãozinho? — perguntou ela a Schiller. — Você enxerga, de onde está? Tem respostas aí?

Talvez fosse algum tipo de teste. Talvez ela tivesse de atirar naquele cara, para provar que era forte o bastante para fazer o que quer que fosse que estava ali para fazer. Talvez o papel do moço naquilo tudo fosse prestar um sacrifício, um peão a ser morto para que ela pudesse ser conduzida na direção correta. Havia muitos peões mortos naquelas histórias de igreja também.

Ela tinha matado. Mas será que isso era realmente algo ruim? Era realmente tão diferente das vezes em que tinha saído com Schiller e atirado em ratos nos barris de grãos? Ela também tinha dado um tiro em um gato uma vez, mas ele ia morrer de qualquer jeito, preso em uma armadilha de raposa só Deus sabia há quanto tempo. Rato morto, gato morto, humano morto. O que lhe importava?

Porque ela não era nenhuma daquelas coisas.

O restaurante girou, a vertigem fazendo com que se agarrasse à mesa antes de perder o equilíbrio. Seu corpo estremeceu, tomado de febre, a verdade tão luminosa e dourada quanto o sol nascente. Era quase demais para absorver, demais para considerar. Fechou os olhos, os lábios se abrindo em um sorriso arrepiante.

E, assim, ela soube exatamente o que tinha de fazer.


Daisy

Fursville, 13h56

— Você sente falta da sua mãe e do seu pai? — perguntou Daisy.

Estava sentada no carrossel, em um dos três cavalos que restavam. Ele tinha perdido a maior parte da tinta, mas ela não se importava — sua cobertura cinza deixava-o mais parecido com um pônei de verdade. Ainda tinha partes do rosto, os olhos assustados e os dentes grandes. Fazia Daisy se lembrar um pouco do homem da ambulância, mas ela tentou não pensar nele. Aquele era Angie — o nome da mãe —, Angie, seu belo lipizzan branco. Estava apoiada na estaca, balançando as pernas de modo aleatório, mirando o cavalo ao lado do dela. Adam estava sentado nele, os braços em volta de seu pescoço, a bochecha apoiada no cavalo de plástico desbotado. Seus olhos piscavam a cada poucos segundos, mas isso parecia tudo de que era capaz. Tivera de colocá-lo ali em cima, de tão mole que ele estava.

Para dizer a verdade, agora ela sentia um pouco de medo dele. Aquele som que ele tinha feito no restaurante, aquele grito. Saíra da boca do garotinho, mas não havia sido ele. Tinha certeza.

— Sinto falta da minha mãe e do meu pai — prosseguiu ela, e parou, porque seu coração doía. — Que nome vamos dar ao seu cavalo?

Os cubos de gelo em sua cabeça tilintavam. Estava aprendendo a entendê-los, a perceber as diferentes camadas que formavam. Os que ficavam no fundo eram sempre escuros, turvos. Podia ver coisas neles, mas não o que eram exatamente. Os do meio eram melhores; também tinham sons, vozes abafadas ou música de piano, coisas assim. Porém volta e meia algum vinha à superfície e parecia ganhar vida dentro dela, como se aquilo estivesse ali de verdade. Nem sempre gostava desses, porque às vezes eram reais demais. E, às vezes, bem de vez em quando, eram repletos de fogo. Ela via as coisas em chamas, coisas com rostos ardendo, coisas que a assustavam.

— Geoffrey — disse ela, lendo um cubo de gelo, vendo ali um cachorro, um cãozinho com orelhas grandes e um sorriso canino apatetado. Os olhos do menino cruzaram com os dela quando ela falou, e Daisy achou que tinha visto um sorriso neles, desfeito antes que pudesse ter certeza. — Era o seu cachorro? Geoffrey? Mas que nome engraçado. Wolfie seria melhor, ou... — Ela não conseguia pensar em nenhum outro nome de cachorro, e deu de ombros. — Certo, vamos chamar seu cavalo de Geoffrey. O meu se chama Angie, e precisamos de um nome para aquele também, senão ele vai se sentir rejeitado.

Ela apontou para o cavalo mais adiante no carrossel. Era o que tinha resistido melhor, e ainda podia distinguir o freio e as rédeas sobre os ombros, e até manchas marrons deixadas na sela.

— Que tal Fishy? — perguntou. O olhar de Adam encontrou o dela outra vez, e ele balançou a cabeça, só uma vez. O rosto de Daisy abriu-se em um enorme sorriso. — Não, você tem razão, que nome mais bobo. E Ploppy? — Desta vez, o sorriso de Adam estendeu-se até os lábios, parecendo fazer o parque inteiro se iluminar. Ele balançou a cabeça outra vez. — Wonky-Butt — disse Daisy, dando risadinhas. — Wonky-Butt, o Cavalo-Maravilha.

Adam abriu a boca, e Daisy se inclinou para ele, quase escorregando do cavalo. Ele ia falar! Mas não pôde, porém, porque outras vozes surgiram ali perto, gritos de raiva, de pânico.

Daisy virou-se e viu os outros entrando em Fursville. Reparou no que carregavam, e nem precisou dos cubos de gelo para perceber que havia alguém dentro do saco. Esse alguém se contorcia, debatia-se, gritava, retorcia-se, e os quatro faziam força para segurá-lo. Cal estava na frente, os braços travados em volta da cabeça do homem. Brick segurava o tronco, e Chris e Jade, as pernas.

O saco se curvou com força, e Cal deixou-o cair, a cabeça do homem fazendo um baque contra o chão, onde continuou a balançar sem parar. Ela ouviu Cal soltar um palavrão. Ele pegou a cabeça do homem de novo, e todos foram aos trancos e barrancos para o pavilhão, como uma lagarta esquisita. Daisy endireitou as costas, perguntando-se o que devia fazer. Ela tinha uma ideia do lugar para onde levariam o homem, e do que iam fazer com ele.

— Quer dar uma caminhada? — disse ela. Adam balançou a cabeça em uma negativa e abraçou seu cavalo com mais força ainda. Daisy assentiu para ele. Provavelmente era melhor que ele não visse nada. — Bem, posso deixar você aqui por cinco minutos então? Tudo bem?

Adam não respondeu. Seus olhos tinham assumido aquele brilho vítreo, sem vida. Daisy não gostava daquilo; dava a impressão de que Adam não era de verdade. Pensou de novo naquele grito, em outra boca dentro da de Adam, uivando como um feiticeiro. Pegou a estaca e cautelosamente escorregou para fora do cavalo, andando até ele.

— Não vou demorar — disse ela, esticando-se nas pontas dos pés para poder deslizar a mão pelas costas dele, para cima e para baixo. — Não saia daqui, está bem? Aqui você está em segurança, mas fique no cavalo. E, se precisar de mim, é só me chamar dentro da sua cabeça, certo? Eu vou ouvir.

Parecia estranho dizer aquilo, mas ao mesmo tempo era perfeitamente natural. Ele não respondeu. Daisy ficou parada ali um instante a mais, e depois saiu do carrossel e foi correndo até onde os outros estavam. Quando os alcançou, estavam empurrando o frenético homem do saco pela saída de incêndio, fechada a correntes. Ele se contorcia tanto que parecia prestes a tirar as portas das dobradiças.

— Imobilizem as pernas dele — gritou Cal do lado de dentro. — Pelo amor de Deus, desse jeito ele vai acabar se matando.

O homem urrava. Não havia dor naquele som, nem medo. Não havia nada além de fúria. Jade se lançou sobre os pés do homem, abraçando-os enquanto Cal o puxava para o pavilhão.

— Uma ajudinha aí, por favor? — gritou Cal. Brick abaixou-se, praguejando. Recuou quando o homem deu pontapés, mas enfim rastejou desajeitadamente para dentro. Chris veio depois, com certa dificuldade para fazer sua massa passar pela passagem.

Daisy esperou os gritos sumirem para só então entrar. Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, viu que Cal e Brick arrastavam o homem pelo corredor sombrio.

— Aqui — disse Brick, abrindo com um chute uma porta na metade do caminho. Daisy foi atrás enquanto jogavam o homem ali dentro, deixando-o quase na parede do outro lado.

— Vamos! — disse Cal, todos correndo para fora da sala, quase tropeçando uns nos outros. O homem dentro do saco já se levantava, parecendo um tronco sem cabeça nem membros na sala escura. Ele colidiu com um alçapão na parede, arrastando-se depois para o corredor. Brick esperou que todos saíssem para fechar a porta. O homem passou a bater nela com força suficiente para sacudir o pó do teto. Seus gritos selvagens quase não podiam ser abafados pela madeira.

— E agora? — disse Jade, ofegando. — Como vamos trancar a porta?

Brick a encarou, mas não respondeu.

— Podemos usar os sacos — disse Cal, pondo a mão nos bolsos. — Saiam daí.

Os outros se afastaram para o lado, enquanto ele amarrava uma faixa de tecido na maçaneta da porta, laçando a outra ponta em um cano paralelo à lateral da porta e dando dois nós. Daisy não achou aquilo muito seguro, mas os outros pareceram relaxar. Deram um passo para trás e desabaram contra a parede.

— Agora você já pode contar qual é o seu plano? — disse Cal, ofegante. — Como é que a gente vai tirar alguma informação dele com ele assim?

— Você viu aquele alçapão? — perguntou Brick, passando uma das mãos pelo rosto. — É um elevador de louça e comida. Tem um duto que leva dali direto para a cozinha. Vamos.

Ele foi à frente pelo saguão, subindo a escada e passando pela entrada do restaurante. Estava congelante ali, uma aridez gélida soprava pela fenda entre as portas duplas do Waves como se fosse pleno inverno. Daisy estremeceu, ficando bem perto de Cal quando passaram pelo restaurante.

— Quer ver como estão os gêmeos? — perguntou Cal.

— Não — Brick grunhiu. O corredor ali era pequeno, e só tinha uma porta a mais. Brick abriu-a com força, dando em outro corredor, e pegou a primeira passagem à direita. Daisy precisou apertar os olhos contra a lâmina de sol que atravessava uma tábua quebrada na janela, os olhos pouco a pouco se ajustando.

A cozinha era enorme, as superfícies de metal e os fogões industriais cobertos de sujeira — penas e cocô de pássaro por toda parte. O piso azulejado estava rachado, e, incrivelmente, pequenos aglomerados de vegetação surgiam da terra, esticando seus pequeninos dedos verdes em direção à janela. Dali a cerca de uma década, não seria de admirar se o parque se perdesse em meio a uma floresta, como em um conto de fadas.

— Como em A Bela Adormecida — sussurrou ela para si mesma.

Brick dirigiu-se para a parede do outro lado, chegando a uma porta pequena e quadrada que ficava bem no centro dela — o outro lado do elevador.

— Prontos? — perguntou ele a ninguém em particular. Abriu o alçapão, as dobradiças enferrujadas protestando, mas enfim cedendo. Do lado de dentro só havia escuridão, e Brick enfiou a cabeça lá dentro. Daisy esperou ver uma cabeça furiosa surgindo do duto, as mandíbulas se fechando em volta da garganta do garoto. Mas ele apenas pigarreou, falando para a penumbra infinita do elevador:

— Olá? Está me ouvindo?

Um ruído subiu da sala logo abaixo, um chacoalhar metálico. Daisy supôs que era o sujeito tentando sair dali. O som era transmitido com perfeição pelo elevador, como se o homem estivesse ali na cozinha.

— Oi? — Brick disse outra vez. — Sei que está me ouvindo, seu babaca, então fale alguma coisa.

— Quer que eu fale com ele? — perguntou Cal.

— Por quê? Porque você é o cara bonzinho? — rebateu Brick de modo abrupto. Ele ficou na mesma posição por um segundo, mas depois deu um passo para trás, as mãos espalmadas para o alto. — Todo seu.

— Escute — chamou Cal, esticando a cabeça para dentro da porta. Daisy se inclinou para ouvir melhor o que ele dizia. — Não vamos machucar você. Só queremos conversar.

Mais ruídos, e em seguida o rangido de uma porta abrindo. De início, Daisy achou que o homem tinha conseguido fugir. Mas depois veio o som de um suspiro rouco e profundo, assombrando o duto.

— Ei? — A voz era fraca e débil, como a de um idoso. — Quem está aí? Por que estão fazendo isso?

— Tem água na torneira — disse Cal, virando-se para Brick. — Não tem?

Brick fez que sim com um gesto de cabeça. A rouquidão sumiu, sendo substituída pelo som distante de canos chacoalhando. O homem voltou após cerca de um minuto, arfando com força, como se tivesse acabado de tomar três litros de uma vez.

— Obrigado — ofegou ele. — Olha, por favor, quem quer que sejam, eu não tenho nada, não sou rico, só tenho uma fazenda, mais nada.

— Não queremos nada de você — gritou Cal. — Só queremos saber por que você tentou matar a gente.

Silêncio. Até a respiração dele tornou-se inaudível.

— Como assim? — perguntou ele por fim. — Nunca tentei matar vocês; nem sei quem vocês são.

— Você não se lembra do que acabou de acontecer? — prosseguiu Cal. — Não se lembra de ter sido trancado nessa sala pela gente?

— Eu... Eu... — Daisy o imaginou dando uma boa olhada em volta, tentando entender onde estava. — Não faço ideia de como vim parar aqui — gaguejou ele.

— Qual a última coisa de que você se lembra? — perguntou Cal.

— De estar no carro — respondeu ele com hesitação. — No porta-malas.

— E antes disso?

— Ah, eu estava em casa, trabalhando. É sexta-feira, não é?

— Cara, ele não sabe nem que dia é hoje — disse Chris. Cal o mandou ficar quieto com um gesto.

— E depois?

— Eu, hã... não sei. Não sei. — Ele chorava agora; lamentos apressados, metálicos. — Acho que apaguei. Vocês me drogaram.

— Pergunte o nome dele — sussurrou Daisy. Não conseguia ler nada daquele homem; não havia nada da vida dele nos cubos de gelo em sua cabeça. Porque ele não é um de nós, pensou. — Diga a ele seu nome também.

— A gente não drogou você — disse Cal. — Estamos tentando ajudar. Aliás, meu nome é Cal. Qual é o seu?

— Maltby — disse o homem. — Edward Maltby. Ted.

— Certo, Ted. Preciso que faça um esforço de verdade — disse Cal, e havia algo tranquilizador em seu tom de voz. — Quem foi a última pessoa que você se lembra de ter visto?

Mais ruídos, mas desta vez vindo de trás deles, do restaurante. Daisy olhou para a porta da cozinha, esperando ver Rilke entrar. Em vez disso, ouviu a garota descendo a escada. Pelo menos ela já parecia recuperada e de pé depois da explosão. Daisy ficou aliviada.

— Não lembro — repetiu o homem, o duto dando à sua voz uma qualidade quase robótica. — Por favor, me deixem ir embora. Eu tenho um filho, ele...

Silêncio. Todos se aglomeraram em volta do elevador de comida para ouvir o que viria em seguida.

— Esperem, eu me lembro: meu filho, voltando para casa. Ele está bem? Está aí? Ele não tem andado bem, está com uma dor de cabeça... — Outra pausa. — Isso, ele berrou pra mim sobre como a dor tinha passado, e... e aí, não sei. Depois, não tem mais nada.

— Então o babaca com a arma era o filho dele? — murmurou Brick. — Faz sentido.

— Tem certeza de que não tem mais nada, Ted? — perguntou Cal. — Não se lembra de mais nada?

— Eu... Eu acho que eu devia estar sonhando — disse Maltby, ainda chorando. — Eu vi alguma coisa na escuridão. Tinha uma coisa ruim ali, não lembro direito, mas... Era só bem ruim, e eu precisava... Não sei. Por que vocês estão fazendo isso?

— O que era? — perguntou Cal. — O que você viu?

O homem respondeu, mas as palavras se misturavam. Brick se inclinou, ombro a ombro com Cal, os dois encarando a escuridão.

— O que ele disse? — perguntou Brick.

— Shiuu — sibilou Cal. Tinha certeza de que o homem havia falado alguma coisa, os ganidos como os de um cão, espiralando-se ao final em um rosnado.

— O que foi? — disse Jade. — Ele vai ficar furioso de novo?

— É Rilke — disse Daisy, tendo um lampejo de algo avermelhado e horripilante dentro de um cubo de gelo. — Ela está com ele.

O sinistro rangido de uma porta de casa assombrada subiu pelo elevador. O homem rugiu, um grito de cólera que fez todos se afastarem do alçapão. Ainda bem, porque o som que veio em seguida os teria deixado surdos — era o estalo inconfundível de um tiro.


Brick

Fursville, 14h27

Brick e Cal entreolharam-se enquanto o tiro ecoava pela cozinha. Mas logo se viraram e começaram a correr.

Brick tomou a dianteira, as longas pernas dando-lhe vantagem enquanto estrondava escada abaixo e pelo saguão afora. Ele se lançou contra a porta onde estava escrito “Entrada restrita a funcionários”, parando de súbito ao ver Rilke no corredor. Os olhos dela reluziam, a coisa mais brilhante daquela penumbra.

Ela segurava a arma.

— Mas que droga você fez? — berrou ele. Ela o encarou em resposta, sem piscar. O cano do revólver fumegava, o ar espesso com a fragrância amarga da cordite. Brick avançou mais alguns passos, chegando à porta da sala e espiando lá dentro. Sentiu o estômago se revirar, as pernas tremendo tanto que precisou se apoiar no batente da porta para não cair de cara no cadáver que estava ali. Um buraco dentado tinha sido aberto no peito do homem, e o sangue se acumulava naquela região.

Ouviu passos atrás de si, e logo Cal estava a seu lado. Ele emitiu um som que ficou entre engolir seco e um fraco suspiro, depois virou-se abruptamente.

— Daisy, não olhe — disse ele. — Fique aí, fique aí.

Chris se meteu entre Cal e Brick.

— Você matou ele — disse.

Brick olhou de novo para Rilke, o rosto da menina petrificado.

— Eu perguntei que droga você fez! — gritou. Deu um passo em sua direção, só parando quando ela ergueu a arma, apontando o cano direto para sua testa.

— Chega, Rilke — falou Cal. — Por Deus, o que é que você acha que está fazendo? Abaixe isso aí.

— Responda, droga — disse Brick, as emoções fervilhando no estômago, deixando-o pronto para tomar alguma atitude idiota. — Por que você fez isso? Ele estava falando com a gente, estava prestes a nos contar uma coisa.

— Não — disse Rilke —, não estava.

— Como você sabe? — continuou Brick. — Você nem estava aqui.

Ele sentiu uma mão no braço, os dedos de Cal apertando-o. Desvencilhou-se dela com um movimento de ombros, dando mais um passo para Rilke. Quantos tiros foram dados?, tentava se lembrar. Um na praia, dois lá fora, acho, e mais um agora. Sobram duas balas? Porém, ela só precisaria de uma para abrir um buraco onde ficava seu cérebro.

— Recarreguei — ela respondeu à pergunta não verbalizada, oferecendo-lhe um sorriso tão afiado e perigoso quanto a lâmina de um bisturi.

— Rilke, sei que você passou por muita coisa — disse Cal naquele tom enfurecedoramente calmo que ele tinha. — Sei como você deve estar se sentindo. Todos nós estamos assim. Mas ele estava em segurança aqui dentro, a gente tinha trancado ele aqui. Ele não podia nos machucar.

— Eu sei — disse Rilke, o corpo inteiro imóvel, exceto pelos olhos, que se voltaram para Cal. — Não foi por isso que eu o matei.

— Foi por que, então?

— Porque ele não era um de nós — disse ela. — E qualquer pessoa que não seja um de nós não merece viver.

— Você não sabe do que está falando — disse Jade.

— Sei, sim — ela respondeu, abaixando a arma, mas mantendo o dedo no gatilho. — Sei exatamente do que estou falando. E você também sabe, Daisy.

Brick voltou os olhos para onde Daisy estava, envolta na escuridão, perto da porta. Podia ver dali a silhueta de sua cabeça trêmula.

— Deixe-a fora disso — disse Cal. — Só me dê a arma, está bem? Depois a gente conversa.

Ele foi em sua direção, a mão estendida, mas Rilke deu um passo para trás, o dedo coçando no gatilho.

— Nenhum de vocês entende o que está acontecendo — falou ela. — É ridículo. Mas nós sabemos, não sabemos, Daisy? Nós sabemos a verdade.

— Não sei do que você está falando, Rilke — disse Daisy. — Não sei de nada.

— Sabe, sim — continuou Rilke, ainda recuando pelo corredor. — Você viu. O fogo dentro deles, dentro de nós.

— Fogo? — disse Brick. — Você perdeu a cabeça!

— Rilke, por favor — soluçou Daisy. — Por favor, entregue a arma para o Cal. Não quero que ninguém se machuque.

— Não podemos ter nenhum deles aqui — disse Rilke. Deles? Brick sentiu um dedo gélido subir por suas costas, parando na base do crânio. — Eles vão tentar nos deter.

Ela ainda recuava, parando na porta que levava ao porão. Estendeu a mão e girou a maçaneta. O corpo inteiro de Brick se enrijeceu, pronto para voar em cima dela.

— Nem ouse — rosnou ele. — Eu mato você.

— Ousar o quê? — perguntou Cal. — O que é que tem lá dentro?

Brick já não o ouvia mais. Já não ouvia mais ninguém. Sua cabeça era uma fornalha, só calor intenso e ruído. Foi à frente, sem se deter, nem mesmo quando Rilke ergueu a arma de novo, aquele olho negro sem piscar mirando-o. Ela era louca, mas de jeito nenhum ela atiraria; de jeito nenhum ela apertaria o gatilho.

Ouviu-se um estrondo no corredor, o disparo fazendo seus tímpanos zunirem. Parecia que um canhão tinha sido disparado. Ele caiu de joelhos, as mãos no rosto, esperando encontrar sangue. Porém tudo estava onde devia estar.

— O próximo não vai ser de raspão — disse Rilke, exatamente a mesma frase que dissera antes de explodir a cara daquele sujeito. Ela abrira a porta, e agora descia a passos cautelosos pela escada, sem tirar os olhos dele em momento nenhum.

— Por favor — disse Brick, a voz entrecortada. Foi de quatro até o alto da escada, ouvindo os gritos de pânico de Lisa lá embaixo, ficando cada vez menos humanos à medida que Rilke se aproximava. — Por favor, não faça isso, não a machuque; ela não te fez nada.

— Ainda não — falou Rilke. — Mas vai fazer, se tiver a oportunidade. Todos eles vão. Somos nós contra eles, mas nós somos muito melhores do que eles. — Ela riu, um riso enlouquecido que se erguia da escuridão dos degraus. — Agora somos criaturas de fogo. E o que é que o fogo faz? Ele purifica.

Brick chorava, tudo o que ficara fervilhando dentro dele agora escapando como vapor. As lágrimas caíam em suas mãos, inacreditavelmente quentes, e através de um borrão viu Rilke chutar para longe a barra que ele tinha usado para travar a porta do porão. Lisa jogava-se contra ela, arranhando-a.

Esses não podiam ser os últimos sons que ela faria na vida; não podiam. Queria ouvi-la falar de novo, nem que fosse para insultá-lo; queria ouvir aquela risada, a mesma que sempre achava tão irritante, mas que o fazia sorrir quando ela não estava olhando; queria sentir os lábios dela nos dele, o calor de seu corpo.

— Rilke — soluçou ele. — Estou implorando.

— Não implore — respondeu ela para o alto da escada. — Você agora é melhor que isso. É mais que isso.

E, com essas palavras, ela abriu a porta do porão. Brick viu uma figura voar dela de quatro, batendo de cabeça contra a parede. Viu Rilke apontar a arma para a cabeça de Lisa. Viu-a puxar o gatilho. Em seguida, fechou os olhos e deixou a tristeza consumi-lo.

Em meio aos soluços avassaladores, ao estrondo nos ouvidos, ouviu Rilke subir de volta a escada. Ela pousou a mão em seu ombro.

— Ainda vai me agradecer por isso — disse ela.

E foi embora.


Daisy

Fursville, 14h48

Daisy não conseguia se lembrar de como se mexer. Parecia que seu corpo tinha sido talhado em uma pedra, lascado um pedacinho de cada vez, recebendo apenas a ilusão da vida. Observou Rilke subir a escada e colocar a mão no ombro de Brick; observou-a andar com calma pelo corredor em sua direção. Daisy queria sair correndo dali, fugir antes que Rilke tentasse atirar nela também, mas aquelas pernas de pedra não deixavam. Estava fixa ali, naquele corredor escuro que fedia a balas e carne.

— Não fique assustada, Daisy — pediu Rilke. Ela se inclinou para a frente, os olhos refletindo a luz que se infiltrava, vindo do saguão. Seus olhos eram como os de um alienígena, parecendo radioativos ou algo assim. — Talvez você ainda não saiba, mas eu precisava fazer aquilo — disse ela. — Somos iguais, eu e você. Olhe dentro da sua cabeça, e logo você vai ver a verdade.

Rilke endireitou-se e passou pela porta. Os soluços de Brick preenchiam todo o espaço por onde ela tinha passado, o som muito pior porque vinha dele, logo de alguém tão forte. Tijolos não choravam; eram resistentes a tudo.

— Brick? — Cal inclinou-se sobre o garoto maior, a mão onde tinha estado a de Rilke. Chris e Jade ficaram olhando para aquilo como se estivessem na plateia de um teatro, a boca aberta. — Brick, cara, o que foi que aconteceu? Quem estava ali?

A namorada dele, claro. Lisa, pensou Daisy. Ela estava trancada ali; era por isso que a escada assustava tanto Daisy. Sua cabeça estava cheia de cubos de gelo, todos batendo uns contra os outros. Conseguia vê-la, uma menina bonita que talvez usasse maquiagem demais, que falava muito palavrão e que nem sempre entendia as coisas. Daisy não tinha muita certeza de que coisas ela não entendia; era só o que podia ver, e sentir, daqueles pequenos filmes transparentes. Ele, porém, Brick, a amava. Ele a amava com todo o coração, e agora ela havia morrido. Agora ele não poderia mais consertar as coisas. Nunca mais.

Os cubos de gelo derreteram, e com o desaparecimento deles veio a raiva — não dela própria, ela entendeu, mas a dele. Ela fez menção de ir até Brick e Cal, mas pensou melhor e saiu correndo pela porta, indo atrás de Rilke.

— Daisy, espere! — gritou Cal atrás dela. Ela o ignorou, quase tropeçando na escada. Rilke entrava no Waves, mas deve ter ouvido os passos de Daisy, porque se virou, um sorriso esquisito e falso impresso nos lábios. Daisy abriu a boca, pronta para gritar com ela, para dizer um palavrão se fosse necessário, mas não conseguiu articular as palavras.

— Não temos escolha — disse Rilke. — Isto está acontecendo por um motivo.

— Que motivo você... que motivo pode haver... Você não pode simplesmente matar as pessoas.

— Há coisas mais importantes em jogo aqui — respondeu Rilke. — Não consegue enxergar? Precisamos sobreviver. Precisamos. Se não sobrevivermos...

Pela primeira vez, a expressão no rosto de Rilke cedeu, o sorriso desaparecendo. Era como observar o boneco de um ventríloquo, pensou Daisy; como se falasse não por si, mas fosse porta-voz de outra pessoa, de outra coisa. A menina mais velha olhou a arma nas mãos e engoliu com força, mas, quando olhou de novo para Daisy, o sorriso havia voltado — incerto nos lábios, mas brilhante e inabalável no olhar.

— Preciso que confie em mim — disse ela. — Que confie que estou dizendo a verdade. Aqueles dois lá embaixo teriam matado a gente sem pensar duas vezes. Você não entende? Somos nós contra eles agora, mas é mais do que isso, é... — Ela parecia lutar consigo de novo, os olhos indo da direita para a esquerda. — Apenas confie em mim — ela repetiu, como se estivesse em transe. — Logo você vai entender.

Mais cubos de gelo, desta vez os que tinham fogo. Daisy viu uma maré de pessoas, de furiosos, adentrando o parque em uma onda de sangue, batendo contra algo que ardia, algo maravilhoso. Não fazia nenhum sentido; as imagens eram tão rápidas e tão desconexas que a deixaram enjoada.

— Confie neles — falou Rilke. — Eles não vão mentir pra você.

— Quem?

— Eles — repetiu Rilke, os olhos parecendo furar a testa de Daisy, como se ela pudesse ver o que acontecia lá dentro. — Confie no gelo. Confie no fogo.

Daisy ouviu a porta de “Entrada restrita a funcionários” ranger lá embaixo, e depois o ruído de pés subindo a escada. Rilke recuou ainda mais para a escuridão do restaurante, até que apenas seus olhos, seus dentes e o cano reluzente da arma pudessem ser vistos. Cal surgiu ao lado de Daisy. Seus olhos estavam avermelhados, a sujeira no rosto listrada pelas lágrimas.

— Você não devia ter feito aquilo — ele resmungou. — Era a namorada dele. Ele vai matar você.

— Não — disse a sombra na porta. — Não vai. Ele vai fazer exatamente o que eu disser.

— O quê? — perguntou Cal, de supetão. — Do que é que você está falando, Rilke?

— Exatamente o que eu disser — repetiu ela, afundando ainda mais no breu. Não parecia mais que era Rilke quem falava, parecia alguém muito mais velho. — Ele não tem escolha.

Cal olhou para Daisy. Estava assustado, e isso parecia emanar de cada poro seu. Daisy estendeu a mão e pegou a dele, e ele apertou-a em resposta, com tanta força que ela sentiu uma das juntas dos dedos estalar. Rilke recuou um pouco mais, permitindo que a porta se fechasse.

— Vocês virão até mim quando estiverem prontos — falou Rilke, a voz abafada. — Todos virão.

Fez-se um clique, um baque pesado, e Daisy precisou de um instante para perceber que ela tinha trancado a porta. Então Rilke riu, uma risada baixinha que fez Daisy cerrar os dentes.

— Porque vão morrer se não vierem.


O Outro: III

Eis que vosso adversário, o diabo, vos rodeia como um leão a rugir, procurando a quem devorar.

1 Pedro 5, 8


Murdoch

Autoestrada M1, Londres, 19h16

O comboio era composto de dezenove veículos. Quatro motos da polícia iam à frente, expulsando outros carros para fora do caminho, bloqueando as entradas para a via de mão dupla e, assim, permitindo que as três primeiras limusines pretas oficiais se movessem a uma velocidade constante de cento e dez quilômetros por hora. Bem no meio ia uma ambulância particular, longa, negra e sem janelas, que mais parecia um carro funerário. Duas outras motos da polícia ladeavam-na, com metralhadoras e capacetes de visor escuro. Outras três limusines vinham atrás.

O detetive Alan Murdoch estava na segunda, espremido entre o dr. Sven Jorgensen, patologista da Scotland Yard, e um de seus assistentes do necrotério. Olhava pelo vidro fumê da parte de trás e via os dois carros-patrulha e as quatro motos que formavam a cauda do comboio. Suas luzes azuis transformavam a cidade à sua volta em um oceano em constante mutação, criando uma ilusão tão forte que Murdoch de repente teve a sensação de que afogava, como se não houvesse mais oxigênio no carro.

Inclinou-se para a frente, sugando o ar, o cinto de segurança firme em volta do pescoço. O comboio estrondou por um trevo, quase sem diminuir a velocidade, adentrando em seguida a M1. Pessoas de olhos arregalados viam-nos passar de dentro de seus carros.

Se eles soubessem, pensava, espiando os veículos à frente e vendo a ambulância. Seu único paciente estava em uma maca na parte de trás. Sem estar vivo. Sem estar morto. Respirando naquela respiração perene e uivante. Se ao menos pudessem ver.

Queria acenar em resposta para eles. Queria a ajuda deles. Queria que soubessem que ele era um prisioneiro. Claro que eles jamais diriam isso, os soldados que o haviam escoltado para fora de sua cela na Thames House. Tinham-no convidado a ir com eles, mas havia apenas uma única resposta que poderia dar. Aquilo era o MI5, era o Serviço de Segurança nacional. Podia ser um dos detetives mais renomados da capital, mas, se tentasse fugir — como tão desesperadamente desejava —, era provável que o matassem de imediato.

Murdoch estava tão cansado que não tinha certeza de que os músculos do rosto ainda funcionavam. As pálpebras davam a sensação de que estavam sendo puxadas para baixo, como as de um cadáver, que alguém tentava fechar pela última vez. Sua pele foi tomada por dolorosos arrepios ao pensar nisso, e precisou se inclinar para a frente outra vez, os punhos cerrados, para que o mundo parasse de girar. O sujeito à sua esquerda, um dos assistentes de Jorgensen, estava sentado com o rosto contra o vidro, chorando baixinho. Estava assim desde que haviam deixado o MI5.

Uma moto da polícia acelerou e passou por eles, a sirene berrando, sumindo para além da ambulância. Por favor, vamos parar, rogou Murdoch. Tomara que aconteça alguma coisa para distraí-los, para que eu possa sair daqui.

Porém o comboio continuava, cortando o pesado ar da noite como um trem de carga. Estavam saindo de Londres, percebeu ele, indo para o noroeste. O único lugar em que conseguia pensar naquela direção era Northwood, a base militar.

Olhou para o lado, para além do rosto cansado de Jorgensen, do vidro sombreado que transformava a luz do sol em cor de caramelo. Ele morava ali perto, em Finchley. Agora mesmo Alice estaria dando banho em John, talvez amamentando-o, tentando manter a calma por causa do bebê. Teria telefonado para o seu trabalho a essa altura, e até para os amigos. Devia estar desesperada. Talvez o Serviço de Segurança já tivesse falado com ela, contado que fora detido, mas isso só a deixaria ainda mais nervosa. Queria poder colocar a mão no vidro, transmitindo de algum jeito uma mensagem a ela. Vai dar tudo certo. Ele percebeu que fazia exatamente isso. Volto logo. Não vou deixar que nos mantenham separados. Prometo. Por favor, não se preocupe.

Foi na hora em que enviava essas palavras pelo carro afora, querendo que voassem para sua casa, que ouviu os freios guinchando à frente. Em seguida, a porta de trás da ambulância se abriu, e o desenlace do seu mundo começou.


— Mick, que droga essa coisa está fazendo?

Mick Rosen sobressaltou-se ao ouvir a voz do parceiro. Teve a sensação de estar deitado sob uma lâmina afiada, o menor movimento ou som prestes a cortá-lo em dois. Nunca se sentira tão assustado na vida, mesmo tendo sido médico no Iraque e no Afeganistão; mesmo tendo andado em ambulâncias por campos de batalha, por campos minados e por campos inimigos, com balas furando os vidros. Achava que já tinha visto tudo o que havia para ver, todos os horrores que o homem era capaz de infligir.

Estava equivocado.

Olhou para a maca que ficava no centro da ambulância particular. Não havia máquinas ali, nenhum fio, nenhum soro. Por que haveria? O homem que estava deitado nela, com um lençol até o pescoço, estava morto. Não tinha pulsação, não escorria sangue dele, e fedia a putrefação, do modo como qualquer cadáver federia em pleno verão.

Porém, a boca estava aberta, escancarada demais; a boca de uma cobra logo antes de devorar a presa. E ainda respirava, naquele arquejar sem fim e infernal que já tinha feito Mick vomitar uma vez naquela tarde e estava prestes a fazê-lo vomitar de novo. Usava uma roupa de proteção biológica, por isso não tinha escolha, além de controlar a náusea. Engoliu um monte de bile, gemendo sem nem se dar conta de que gemia.

Ninguém sabia com certeza o que era aquela coisa, mas havia rumores. Um padre fora chamado para olhá-la — não um médico, não um cirurgião, mas um padre. Isso tinha assustado Mick mais do que o próprio cadáver, isso e o fato de ter ouvido algumas pessoas sussurrarem palavras como “Anticristo” e “Profanador”. Era absurdo, ridículo — até que olhou de novo para o corpo e ouviu aquela respiração horrenda e gorgolejante.

— Como assim? — ele conseguiu falar após um momento. Seu parceiro, sentado ao lado dele nos fundos da ambulância, era Alik Garro. Tinham trabalhado juntos havia alguns anos para o Serviço Secreto de Inteligência, na maior parte do tempo livrando-se dos corpos de suspeitos de terrorismo que tinham sido submetidos a um interrogatório com excesso de entusiasmo. Não eram exatamente amigos, mas se davam bem, unidos pelo conhecimento de que aquilo que faziam mantinha o país em segurança, mantinha os vilões do lado de fora.

— Eu achei... — começou Alik. Ele encarava o cadáver, e a maior parte da cor tinha sumido de seu rosto, deixando-o acinzentado por detrás do plástico do visor. Balançou a cabeça, recostando-se. — Nada. Não foi nada. É que essa coisa está me deixando arrepiado.

A ambulância virou em uma esquina, o movimento vigoroso o bastante para jogar Mick contra Alik. Seu assento sacolejou, e por um instante ele pensou que fosse acabar de cara no cadáver. Desta vez, uma porção do seu almoço subiu pela garganta, repousando em sua língua. Ele engoliu de novo, encharcado de suor frio.

Anda logo, gritou para o motorista. Iam só para Northwood; por que não tinham chegado ainda? Daria praticamente tudo para sair daquele caixão de metal. Sentiu a ambulância diminuir a velocidade, virar à esquerda e depois acelerar de novo. O motorista queria fazê-lo vomitar?

— Mick, de novo!

Alik desta vez ficou de pé, pegando a maçaneta da porta. Olhava fixamente para o cadáver, seu olhar o de um homem que tinha acabado de ver o filho sendo atropelado por um caminhão. O coração de Mick vacilou, palpitando, como se não pudesse se lembrar direito de como deveria funcionar. Massageou o peito para afastar a dor, ainda observando Alik. Não queria ver o que o outro estava vendo.

Porém alguma coisa puxou sua cabeça, forçando-o a olhar. O cadáver estava ali deitado, aqueles olhos tão mortos e tão vivos ao mesmo tempo. Tinha tentado fechá-los, assim como Alik, mas eles ficavam se abrindo, como se houvesse uma mola. Havia uma escuridão naquelas pupilas leitosas, sem vida, uma opressão negra colossal, uma escuridão enorme que parecia ir e vir, invisível mas inconfundível. Era como se houvesse algo ali dentro querendo sair.

— O que... — Mick fez menção de falar, mas em seguida ele mesmo viu.

A boca do cadáver se alargava. Não estava se abrindo, apenas ficando maior. Mick percebeu que tinha se levantado também, as costas contra a porta da ambulância. Abra, gritou seu cérebro. Abra e pule, porque é melhor morrer na autoestrada do que ver isso. Porém não conseguia virar a maçaneta, assim como não conseguiu forçar um grito pelo nó em sua garganta.

Um dente caiu da gengiva do cadáver, desaparecendo em sua garganta com um clique seco. Outro o sucedeu, sugado como se estivesse sendo aspirado. E aquele ruído, aquela respiração incansável, ia ficando mais alta, aumentando de volume como o motor de um jato antes da decolagem.

— Não — disse Mick, balançando a cabeça, o medo como um paletó de arame farpado sobre a pele. — Não. — É só continuar repetindo que isso vai parar; tem de parar. — Não, por favor, não.

As gengivas desintegravam-se, dissolvendo-se na goela em expansão. Aquilo fazia Mick se lembrar de um castelo de areia na praia quando a maré subia, a água lambendo a construção, destruindo-o lenta mas inexoravelmente. Os lábios do morto, também, separavam-se, pulverizando-se em um milhão de partículas que desafiavam a gravidade, circundando o abismo de sua boca.

— Deus do céu, pare a ambulância! — Alik berrava, as palavras nublando o visor. Ele arranhava a porta agora, batendo nela, os olhos tão arregalados que não pareciam reais. — Pare a ambulância! Deixe a gente sair!

A ambulância não diminuiu, os gritos perdendo-se no uivo de turbina que era a respiração do cadáver. Os olhos também tinham mudado. A centelha de vida neles estava mais brilhante, repleta de uma satisfação ácida. Mick estendeu a mão e pegou o braço de Alik, apertando-o com força.

— Onde está seu rádio? — perguntou ele. Alik o encarou como se não o reconhecesse. — Seu rádio, Alik?

Alik não respondeu, e Mick percebeu que o havia perdido. Vira o que o medo podia fazer com um homem. Podia remover sua mente em segundos e deixá-lo com nada mais que uma reunião de fragmentos desconexos. Mick soltou um palavrão, vasculhando a ambulância atrás do rádio. Era o único jeito de falar com o motorista. O compartimento ali era à prova de som.

Não olhe, disse-lhe seu cérebro. Sabia que sua própria mente estava prestes a se romper. Sentia a loucura ali, como uma comichão impossível de coçar bem na base do cérebro. Não olhe, Mick. E, no entanto, como poderia não olhar? A cabeça parecia girar por vontade própria, os olhos focando aquele pesadelo no centro da ambulância.

O rosto do cadáver era um redemoinho de partículas que circundava uma garganta de pura treva. Aquela garganta não era apenas destituída de luz; era destituída de tudo. Era genuína e absoluta ausência. E ainda crescia, a carne das bochechas e do nariz do homem virando pó e se juntando àquele amontoado de detritos em volta de um buraco negro.

E aqueles olhos. Aqueles olhos negros, que viam tudo. Estavam vivos de riso, um deleite doentio que parecia penetrar as vísceras de Mick. Desabou contra a porta, o rádio esquecido, tudo esquecido. Nada mais importava. Como podia importar, quando uma coisa dessa existia?

A ambulância diminuiu a velocidade, e Mick sentiu-se sugado para o centro dela. Pegou a maçaneta da porta, para se agarrar em algum lugar, mas Alik não teve a mesma sorte. O parceiro escorregou pela superfície sem emitir um som sequer, batendo na extremidade do carrinho e inclinando-se sobre ele.

A respiração de redemoinho pareceu dobrar de volume, um uivo interior que detonava a cabeça de Mick, fazendo-o prender as mãos nas orelhas. O rosto de Alik dissolvia-se em um redemoinho. Os olhos foram os primeiros a desaparecer, dissolvendo-se como sorvete e espiralando pelo buraco que se revirava. O resto foi atrás, apagado como uma pintura a óleo encharcada de aguarrás. O corpo de Alik tremia e chacoalhava, suspenso acima do chão como que por cordas invisíveis.

Havia também outra coisa, algo saindo de Alik. Não que Mick visse de verdade; era mais uma energia que passava através do parceiro, sendo puxada de cada poro, sugada rumo à loucura.

O cadáver degustava a alma de Alik.

O Anticristo, pensou Mick. O Profanador, a Besta. Apenas ele sabia que aquela coisa era mais antiga que a Bíblia, anterior aos tempos, e infinitamente má.

A coceira dentro do crânio se expandiu, deixando tudo nebuloso em um único curto-circuito devastador. Mick não sabia mais que tinha esposa, não se lembrava mais do nome dos filhos. Cada momento de seu passado foi banido naquela fração de segundo.

Os últimos flocos de Alik circundaram a boca, desaparecendo de vez. O vórtex urrava, agora maior, mais faminto. Desejava mais. Mick podia senti-lo alcançando-o, dedos invisíveis tentando se aproximar dele, querendo devorar sua alma também. Mas ele não permitiria.

Afastou-se, abriu a porta da ambulância em alta velocidade e adentrou a noite.


Um homem voou dos fundos da ambulância para o capô do carro à frente, esmagando o para-brisa e rolando por cima do teto. Caiu debaixo das rodas da limusine em que estava Murdoch, provocando um solavanco tão forte que todos dentro do veículo foram jogados de seus assentos. A cabeça de Murdoch bateu contra o teto, mas ele nem reparou. Viu o outro carro desviar-se para o acostamento da rodovia, batendo na barreira e girando no campo do outro lado.

— Mas o que... — começou Murdoch, olhando pelo vidro de trás quando passaram pelos destroços, o ar atrás deles já repleto de fumaça. — Mas que droga está acontecendo aqui? Eles precisam de ajuda.

— O comboio só para quando chega ao destino — disse o motorista. E falou outra coisa também, mas as palavras foram sumindo, virando um fio de voz quando olhou para a ambulância.

— O que é aquilo? — perguntou o dr. Jorgensen, pressionando o corpo contra Murdoch enquanto apontava para além dos assentos dianteiros. Murdoch seguiu o dedo dele, e de início não compreendeu o que estava vendo. Alguma coisa acontecia dentro da ambulância, um furacão de objetos que se erguiam e espiralavam pelo ar. As luzes se acendiam e apagavam, as portas batiam, embora fosse impossível ver com clareza o que estava ocorrendo.

— Entre em contato com o líder — disse o motorista. O passageiro da frente, outro agente do MI5 de terno preto, levou a mão à orelha.

— Comboio 1, aqui é Comboio 5 — falou ele. — Comboio 4 está fora e há um problema na ambulância.

Ninguém respondeu. Murdoch apertou os olhos, espiando o caos piscante. Um ruído se avolumara acima do monótono barulho de rodas no asfalto, um som que fazia gelar sua espinha. Não pode ser, pensou, mas era. Era o cadáver, aquela mesma respiração, só que agora mais alta. Muito mais alta.

— Pare — disse ele, sua voz um silvo. — Agora.

— Não, senhor — respondeu o motorista. — Nossas ordens...

— Danem-se as suas ordens — esbravejou Murdoch. — Pare o carro agora.

— Preciso que o senhor se acalme — disse o homem no banco do passageiro, virando-se. Sua mão direita tinha escorregado para debaixo do paletó, e Murdoch sabia muito bem o que ele guardava ali: uma pistola de serviço de nove milímetros. Não fazia diferença alguma. O que quer que estivesse acontecendo dentro daquela ambulância, era um milhão de vezes pior do que qualquer arma. — Encoste no assento e não fale mais.

Murdoch não obedeceu. Estendeu a mão para o lado, além de Jorgensen, pegando a maçaneta da porta e puxando-a com força. Estava trancada. Tentou o outro lado, o assistente do necrotério ao lado dele já sem chorar, agora apenas olhando pelo para-brisa e emitindo ruídos entrecortados como se prestes a morrer asfixiado.

— Se o senhor não se encostar no assento e se acalmar, serei obrigado a contê-lo.

A porta não abria, e Murdoch se inclinou para a frente, pronto para berrar na cara do homem, pronto para bater nele se fosse necessário.

Mas nem sequer teve essa chance.

À frente, a ambulância explodiu — não em fogo, mas em trevas. Tudo pareceu acontecer em câmera lenta, o lampejo de um relâmpago negro que deformou as paredes de metal, abrindo-as como uma flor; que levantou as rodas do chão, fazendo o veículo inteiro voar. Uma onda destituída de luz pulsou da ambulância em ruínas, tão negra que os olhos de Murdoch doeram só de olhar para ela. Era como se aquele trecho de existência tivesse sido excluído; como se a substância tivesse sido invertida, transformada em ausência. Por aquela fresta, além daquela fenda na realidade, havia algo tão vasto, tão infinito, tão vazio, que seu coração se partiu assim que ele viu. Este é o verdadeiro universo, ele entendeu. A verdade atrás da máscara. É tudo o que há, e é nada.

Outra explosão arrebentou a ambulância, mandando pedaços de rodas, de motor e de carne em todas as direções — ainda em câmera lenta, como se o tempo não tivesse poder nenhum ali. O escapamento foi como um dardo para trás, perfurando o para-brisa do carro e empalando o motorista, só parando depois de passar diretamente por Jorgensen no banco de trás. Murdoch pôde ouvir o silvar do sangue no metal quente, o ar de repente pesado demais com o cheiro de carne cozida. O carro bateu na divisória entre as pistas, fagulhas descendo pelas portas até parar por completo.

O cadáver estava suspenso acima do asfalto em um bolsão de noite absoluta. A boca era um vácuo em agitação, parecendo sugar toda a luz e toda a bondade do mundo. Seus olhos lançaram-se fulminantes para o carro, fixos na cabeça de Murdoch.

Aquela coisa levantou as mãos, e, ao fazer isso, outra onda de sombra expandiu-se pela autoestrada. Murdock viu uma moto ser erguida no ar e arrebentada, o motoqueiro pulverizado em uma nuvem escarlate cintilante que foi sugada pela boca enfurecida do cadáver. Viu uma das limusines à frente desmontar-se como se fizesse parte de uma maquete, os passageiros desintegrando-se ao serem arrastados para o abismo. Uma tempestade de metal e carne sem componentes moía-se em volta do cadáver, vibrante como um tornado, e mais luz negra ofuscante disparou com selvageria nesse redemoinho.

Ouviu-se mais um estalo de trovão. Murdoch voltou o olhar e deparou com duas garotinhas na estrada segurando-se uma na outra, enquanto uma saraivada de cinzas incandescentes era arrastada ao redor delas. Elas fitavam o monstro suspenso ali.

Sinto muito. Uma das meninas tinha falado, a voz parecendo um sussurro bem no ouvido dele. Não posso salvar você.

Ele estendeu a mão para elas, os dedos pressionados contra o vidro.

Não sinta, pensou ele. Ele vai devorar você também. Vai devorar todos nós.

— Alice — disse ele, pensando na esposa, no filho, e sabendo que nunca mais os veria de novo... Não nesta vida, nem em nenhuma outra.

O cadáver outra vez levantou as mãos, e mais do mundo desapareceu sob uma cobertura de trevas. Murdoch sentiu o carro se levantar do chão, e em seguida aquela sombra alcançou-o. Foi como se todo mundo que conhecesse e amava houvesse morrido — um pesar tão angustiante, tão inacreditável, que literalmente o despedaçou. Ergueu as mãos para o rosto, vendo os dedos começando a se fragmentar em partículas do tamanho de grãos de areia. Elas convergiam para o morto, as mãos desaparecendo, depois os braços, a visão tornando-se uma faísca enquanto seu cérebro virava pó. E era ainda pior o fato de não haver dor, porque a dor ao menos seria a lembrança derradeira de que um dia ele tinha vivido.

Porém só o que havia era a vasta, turva, infinita, silenciosa escuridão.

Depois, mais nada.


A Fúria

Fursville, 19h31

Brick sentiu. Estava encharcado de suor por ter trabalhado ao sol inclemente, cada músculo do corpo dolorido. Pôs de lado a pá e endireitou a coluna, com a sensação de que a noite tinha caído de repente e sem aviso, apesar de o sol ainda aquecer suas costas. Lisa jazia deitada perto dele, em um trecho de grama encharcado de luz perto da cerca de trás, coberta com uma toalha de mesa. Ele próprio a tinha carregado até ali, seu peso morto deixando-a cem vezes mais pesada do que fora antes. Ainda não olhara para o rosto dela, porque sabia que, assim que o fizesse, não haveria mais dúvida; ele não poderia mais se enganar, achando que ela voltaria. Piscou algumas vezes, a luz do sol voltando de modo gradual. Porém aquele calafrio permanecia, mantendo os pelos dos braços arrepiados. Pegou a pá, entrou no túmulo dela e continuou a cavar.

 

Cal e Daisy sentiram. Observavam Brick à distância, as mãos dela bem presas em volta do braço dele, do jeito como sempre se agarrara à mãe. Viraram-se um para o outro, ambos sentindo aquela tristeza súbita e esmagadora, o reconhecimento de que algo no mundo tinha dado terrível, irreversivelmente errado. Era como animais pressentindo um terremoto, pensou Cal, sem saber por que estavam tão assustados, mas entendendo que precisavam fugir. É a Fúria, percebeu ele. As coisas estão mudando. E, no instante exato em que essas palavras atravessaram sua mente, Daisy apertou-o com mais força. Ele fitou os olhos claros dela e viu a voz dela ali, no olhar. Vai ficar pior, Cal. Vai piorar muito. Ele a abraçou com força, do mesmo jeito que abraçaria uma boia se estivesse se afogando. Não queria soltá-la nunca mais.

 

Jade sentiu. Ela sentada no corredor dentro do pavilhão, um homem morto bem ali do lado. Sentiu uma pressão assomando pelo corredor e arrombando sua cabeça, ao mesmo tempo que tampava seus ouvidos, como naquela vez em que havia mergulhado fundo demais na piscina. Aquilo ficou ali, um convidado indesejado, fazendo até mesmo a tristeza parecer descartável, fútil. Era tão medonho que abriu a boca para gritar, mas foi incapaz de fazer o barulho sair. Ficou ali sentada, urrando em silêncio, sabendo que nada nunca mais seria igual; que nada nunca mais poderia voltar a ser bom.


Chris sentiu. Estava na praia, jogando pedrinhas no mar. Observou algo diferente precipitando-se pelo ar quente, pensando que, apesar da Fúria, apesar dos tiros, as coisas não estavam tão ruins — pelo menos, o sol ainda brilhava. Então, em um instante, foi como se o oceano se levantasse, uma parede sólida de trevas que se erguia acima dele, que bloqueava a luz e se esgueirava por cima do mundo, enterrando tudo em sedimentos e água salgada. Caiu de joelhos, lutando para se lembrar de como respirar, piscando para trazer a realidade de volta à vida. Porém, mesmo com o sol no rosto outra vez, soube que as trevas ainda estavam ali. Tinham acabado de nascer.


Adam sentiu. Enquanto dormia profundamente no saguão do pavilhão. Seus sonhos de cavalos e parques de diversão foram abruptamente manchados, como tinta se espalhando em uma tigela de água. Nuvens negras, maciças, formavam cogumelos, sua superfície negro-azulada densa como granito, poluindo tudo e deixando-o sozinho dentro de uma caverna sem fim. Chamou pela mãe aos gritos, e também pela menina, Daisy, mas tudo o que existia na noite era ele e uma criatura sem forma, de tristeza ilimitada. Seu corpo dormente se agitou, mas ele não acordou.


Rilke sentiu. Estremeceu no restaurante iluminado pelas velas, ainda segurando a pistola. Havia matado por uma razão, porque tinha de matar, porque todos tinham um trabalho mais importante a fazer ali e não podiam deixar nada ficar no caminho. Porém, os rostos do homem e da garota que ela havia matado estavam suspensos à frente dela, como fantasmas na penumbra — sem falar, sem se mover, apenas observando-a. Estariam presentes para sempre, percebeu ela. Estariam presentes até que ela morresse. E aquele pensamento parecia a pior coisa que poderia imaginar, até que aquilo bateu nela, uma onda infinita, sem esperança, de absoluto nada. Ela deixou cair a arma, levou as mãos à cabeça e gritou: Vá embora vá embora vá embora.


Até Schiller sentiu, trancado no caixão frio de seu corpo. Grunhiu, tendo espasmos, e soltou flocos cintilantes de gelo no chão. Rilke disparou para onde ele estava deitado e caiu de joelhos a seu lado. Chamou seu nome, segurando a cabeça dele e acariciando seu rosto; esperou que seus olhos se abrissem. Ele gemeu de novo, como se estivesse tendo um pesadelo, e depois ficou imóvel. Porém ela sabia que ele havia sentido o mesmo que ela, ainda que dentro do que quer que fosse aquele sono sem fim em que estava perdido. Ainda assim, ele entendia o que estava acontecendo.

— Você precisa melhorar logo, Schill — disse Rilke, afastando alguns fios de cabelo fino e escuro dos olhos dele. — Precisamos de você. Todos nós.

Encostou a cabeça no peito dele, tentando ignorar o frio de anestesiar os ossos, concentrando-se apenas na sombra que tinha se esgueirado sobre sua mente, que tinha se esgueirado sobre tudo.

— Porque chegou, irmãozinho — disse ela. — Chegou.


Domingo

E quando dois fogos raivosos se encontram

Consomem aquilo que alimenta sua fúria.

William Shakespeare, A megera domada


Brick

Fursville, 5h05

Ele acordou com a sensação de agulhas nas costas, subindo e descendo rápido pela coluna. Não era doloroso, era quase relaxante, até que outra coisa começou a picar a carne de seu ombro.

— Ai! — disse ele, rolando para o lado, o mundo um borrão. Ouviu-se um ruído de agitação, asas batendo e um grasnar selvagem. Piscou com força algumas vezes, até distinguir uma gaivota no chão, a pouco mais de um metro de distância. Ela o mirava com seus olhos negros e curiosos, aproximando-se, pronta para iniciar outro ataque. Brick pegou um punhado de terra do chão e o jogou contra a ave, olhando-a cambalear desajeitada e depois sair voando, perfeitamente graciosa, rumo à aurora nascente. — É melhor fugir mesmo — gritou ele para a gaivota, e quase foi capaz de sorrir, antes de se lembrar de onde estava.

A superfície arenosa era de um montículo ao seu lado, um perímetro de um metro por um metro e meio na grama. Tinha demorado horas para cavar, mas apenas minutos para encher — havia lançado terra em desespero por cima do cadáver e da toalha de mesa xadrez, até que não se pudesse ver nenhum vestígio dele. Ela estava fria quando a tocou, rígida. Não parecia real. Brick não tinha certeza de se esse detalhe ajudava ou atrapalhava.

Havia andado até a praia enluarada ao terminar. Ali, encontrara uma estrela-do-mar, morta. Colocara-a na extremidade da sepultura e dissera a si próprio que fazia isso como sinal de respeito, para não esquecer. Na verdade, porém, fizera isso porque temia que, se não pusesse algum peso no túmulo, o corpo dela se libertaria durante a noite. E viria atrás dele. Depois da estrela-do-mar, colocara ali também mais umas cem pedras.

Em seguida, tinha adormecido ao lado dela. Ela estava fria, mas a terra estava quente. Tinha passado o dia absorvendo o calor, e a sensação dela em sua pele era quase humana. Poderia ser ela deitada ao lado dele, mantendo a noite à distância.

Mas não era, claro. Ele a tinha matado. Não havia puxado o gatilho, mas não tinha impedido aquilo de acontecer, e isso o tornava tão culpado quanto Rilke.

Rilke.

Brick levantou-se com dificuldade, o corpo inteiro dolorido. O esforço fez sua cabeça girar, um jato de sangue que fez a luz matinal alfinetar como um choque. Ela também trouxe de volta outra coisa, uma sensação que tivera enquanto cavava, a sensação de que algo realmente ruim acontecera. E aconteceu, sua besta, disse-lhe seu cérebro. Lisa morreu. Mas não era só isso. Não conseguia explicar; era só aquela sensação de que o mundo inteiro tinha perdido um ente querido.

Será que ele também tinha visto alguma coisa? Uma silhueta em meio ao caos? Um homem cuja boca era um redemoinho e que sangrava trevas sem fim para dentro do mundo?

Suspirou, sentindo-se ridículo só por ter pensado nisso. A pá estava do outro lado do montículo, e ele a pegou. A madeira incrustada de terra cortou as bolhas na palma de sua mão, fazendo-o franzir o rosto.

Rilke. Ela tinha matado Lisa. Ela pagaria por isso, ela e aquele seu irmão em coma. Ela tinha a arma, mas aquilo não a protegeria, não para sempre. Cedo ou tarde, ela baixaria a guarda. Brick pegou o cabo, varrendo o ar com a pá. A lâmina refletiu a luz âmbar da manhã, fazendo-o sorrir. Sim, ela pagaria.

A sepultura de Lisa não seria a última a ser cavada em Fursville.


Daisy

Fursville, 6h37

Daisy não reconheceu a própria voz, e foi essa incerteza que a arrancou do sonho. Na hora em que abriu os olhos, já havia esquecido o que estivera em sua cabeça, lembrando-se apenas de que era algo ruim, um eco do que sentira na noite anterior com Cal.

Estava deitada na sala dos funcionários do pavilhão, sobre as almofadas que tinha tirado do sofá úmido e fedorento. Não eram muito confortáveis, mas havia dormido até que bem, considerando tudo o que acontecera no dia anterior. Endireitou as costas, olhando ao redor. Adam estava encolhido ao lado dela. Chris estava afastado, no outro canto do cômodo, o rosto pressionado contra a parede suja como se tentasse dançar de rosto colado com ela. Jade e Cal não estavam ali. E Brick não tinha dado as caras por lá.

Uma sedosa luz amarelada infiltrava-se por uma fenda na janela tapada com tábuas. Parecia brilhar através do cubo de gelo em sua cabeça, no qual via outro garoto, magricela como um esqueleto. Saiu da cama improvisada, tomando cuidado para não acordar Adam, e dirigiu-se até a porta. Sua mão tocou-a antes de recordar que havia um homem morto ali fora, no corredor.

É só não olhar, e ele não estará ali.

Ela abriu e virou à esquerda, andando com determinação para a saída de incêndio, acelerando só quando achou que tivesse ouvido os passos de Edward Maltby atrás dela, os lamentos em um fio de voz enquanto lhe estendia os dedos ensanguentados. Agachou sob as correntes, suspirando e afastando a ilusão da mente. Quando endireitou o corpo, limpando a roupa, percebeu que não estava sozinha.

— E esta é a Daisy — disse Cal. Ele conversava com o garoto que ela tinha acabado de ver em seus pensamentos, outro adolescente, talvez um ou dois anos mais velho do que ela. Era bem magrinho, a camiseta esvoaçando como uma vela em um mastro. Ele sorriu delicadamente sob um amontoado de mechas encaracoladas, e em seguida estendeu a mão. Daisy reparou que ela tinha sido enfaixada com pano, uma luva branca de boxe tingida de rosa. Ele pareceu se lembrar da bandagem e abaixou a mão.

— Desculpe — disse ele. — Oi.

— Marcus — disse Daisy, tirando o nome da cabeça. O garoto franziu o rosto, olhando para Cal em busca de uma explicação. Cal se limitou a um dar de ombros.

— Falei que as coisas aqui eram esquisitas — ele comentou. — Marcus viu a mensagem que deixamos na internet.

— Eu teria vindo de qualquer jeito — falou o garoto. — Vocês têm uma atração psíquico-cerebral. Não poderia ficar longe daqui nem que eu quisesse.

— Você acabou de chegar? — perguntou Daisy. — Quer comida?

Assim que falou isso, lembrou-se de Rilke e do fato de a menina ter se trancado no restaurante com todos os suprimentos. Por sorte, Marcus balançou a cabeça.

— Estive na concessionária fechada do outro lado da estrada — explicou ele. — Achei uma coisa que um dia devia ter sido crocante lá no escritório. Cheguei lá esta madrugada, umas três ou quatro da manhã, talvez. Não queria vir antes de saber quem estava por perto, mesmo que parecesse seguro, sabe? — Ele deu uma batidinha na têmpora e parou, apertando os olhos contra o horizonte cada vez mais brilhante além do ombro de Daisy. — Não era só eu. Éramos quatro, até chegarmos a um lugar chamado King’s Lynn.

Ele olhou para a mão, e mais cubos de gelo vieram à tona na cabeça de Daisy. Ela viu duas meninas e um garoto mais velho, debatendo-se em um mar de garras rasgando carne, dentes afiados e olhos esbugalhados. Gritos invadiam a mente dela, e por um terrível instante a dor se fez sentir por todo o seu corpo. Ela arfou como se tivesse caído em um lago gelado, forçando os cubos de gelo para longe, onde não pudesse mais senti-los.

— Fomos pegos quando tentávamos roubar combustível — prosseguiu ele, as palavras ficando presas na garganta. — Tive de deixá-los. Eu... eles iam me matar também. — Ele ergueu a mão enfaixada em uma justificativa hesitante. — Roubei uma bicicleta e pedalei pelo resto do caminho. Estou exausto. Uma soneca faria bem.

— Quer levá-lo até a sala dos funcionários? — perguntou Cal. Daisy balançou a cabeça em uma negativa. Não queria voltar para dentro, para onde estava o homem morto. Melhor ficar ao sol, onde os fantasmas não pegavam você. Cal fez um gesto em direção à saída de incêndio, e ele e Marcus se agacharam para passar sob as correntes, sumindo penumbra adentro.

Daisy olhou para a esquerda, observando a frente do parque. Também não queria ir naquela direção. Daquele lado ficava a cauda da noite, ainda estendida sobre a terra. Daquele lado ficava o que quer que tivesse visto em sua mente na noite passada. Virou à direita. Era mais claro ali, o sol já aparecendo sobre a cerca, e podia ouvir o doce sussurro das ondas. Diminuiu o passo para se virar de novo, vendo o montículo de terra que ficava perto do trecho de grama que precisava ser aparada, ao lado do minigolfe. Ela e Cal tinham observado Brick por um tempo que parecera uma eternidade na noite anterior. Ele ainda cavava quando entraram. Pobre Brick.

Aproximou-se da sepultura, os pensamentos se voltando para os próprios pais. Será que agora estariam sob a terra? Enxugou as lágrimas com um gesto furioso, embora continuassem a escorrer. Como as pessoas podiam fazer aquilo com seus entes queridos? Como podiam colocá-los em um buraco no chão, cobri-los com terra e simplesmente largá-los ali para os vermes os devorarem? Não podia imaginar nada pior do que ficar presa na terra fria, na escuridão, completamente sozinha e sem nada para fazer, para todo e todo o sempre.

Afastou-se com rapidez da sepultura. Algo fazia barulho ali perto, e, quando andou até os fundos de Fursville, percebeu que o ruído de batidas vinha de um dos pequenos galpões de metal ao longo da cerca. Ela passou por “Utensílios”, “Higiene” e depois “Perigo: Não Entre”, até chegar a uma porta aberta onde se lia “Zelador”. Espiou ali dentro e viu Brick vasculhando pilhas de tralhas.

— O que você está fazendo? — perguntou ela. Ele a encarou por um instante, depois voltou ao que quer que fosse a resposta, jogando chapas de aço contra a parede do galpão. O ruído era ensurdecedor. Enfim, estendeu a mão para baixo e pegou algo, erguendo o objeto.

— Bingo — disse ele, saindo do galpão e indo para a luminosidade. Na mão, levava um martelo tão enferrujado que parecia ter sido mergulhado em uma gosma laranja fosforescente. Nem cabo ele tinha mais, só um cotoco pequenino de metal. Voltou por onde Daisy acabara de chegar. Nem sequer olhou para o túmulo ao passar por ele, usando o pequeno martelo para atravessar o matagal do minigolfe. Daisy foi atrás, tomando cuidado para não ser arranhada pelas pontas de grama que quicavam de volta após a passagem dele.

Quando ela voltou, viu que ele martelava um prego enorme na cerca. Era esquisito, porque ele não conseguia martelar com força, mas ia sem pressa, garantindo que o prego fosse martelado direitinho na cabeça. Pouco a pouco, milímetro a milímetro, ele foi desaparecendo na madeira macia.

— Esse pedaço estava frouxo — disse Brick, passando o polegar no prego afundado. — A cerca toda podia se abrir. Não ia ser nada legal, já que a gente quer deixar os furiosos lá fora.

Ele tirou mais um prego do bolso da calça jeans.

— Sinto muito por Lisa — Daisy deixou escapar, as palavras saltando da boca antes que pudesse detê-las. O corpo de Brick se enrijeceu, examinando o prego na mão como se a resposta de tudo estivesse escrita nele. Daisy ficou imóvel, na esperança de que ele não se zangasse. Após um segundo ou algo assim, ele lançou a ela um olhar exausto, os olhos rodeados por círculos avermelhados. Acenou com a cabeça, e ela entendeu que era um obrigado. Postou o prego contra outra parte solta da cerca e voltou a martelar.

— Tem outro garoto aqui — disse ela. Ele parou por um instante, depois continuou. — É bem magrinho. Ele disse que havia outros, mas... mas eles não conseguiram chegar.

Ele terminou de afundar o prego e continuou o trabalho com um terceiro. Daisy oscilava o peso do corpo de um pé para o outro. Estava com fome e com sede também. Mas não queria perguntar sobre comida a Brick. Não queria dar a ele nenhum motivo para entrar e dar de cara com Rilke. Desse encontro só sairiam coisas ruins. Porém havia outro assunto sobre o qual queria conversar com ele.

— Brick — começou ela, falando por cima das marteladas. — Você sentiu também? Ontem?

Desta vez ele nem parou, batendo no prego até que desaparecesse. Deu uma sacudidela na cerca, uma parte ainda solta embaixo, antes de botar a mão no bolso de novo e se agachar.

— Foi realmente horrível — disse ela. — Aquilo... aquela sensação, parecia uma dormência, mas algo muito triste também. — Ele ainda não dera nenhuma resposta. Daisy mastigava a unha do polegar, desejando ser mais capaz de encontrar as palavras certas. — Parecia que alguma coisa tinha dado errado... com a vida.

Pá. Pá. Pá. Brick martelava, o prego entrando meio torto. Daisy esperou um instante a mais e depois se virou para sair dali. Não precisava de verdade que ele respondesse. Podia ver dentro de sua cabeça, de seus pensamentos. Ele tinha sentido; ele sabia exatamente do que ela estava falando. Só que havia outras coisas ali, na mente dele. Ela se concentrou, libertando um cubo de gelo, tentando entender o que estava dentro dele. Não fazia nenhum sentido; só havia o caos, e era como um redemoinho, e um som ofegante que não parava e lhe dava arrepios. Algo horrendo, algo maligno, algo...

Ela olhou de novo para Brick e tentou dar nitidez à imagem. Ele a encarava e, assim que o olhar de ambos se encontrou, foi como se algo se encaixasse com perfeição.

Aquela tempestade, aquele redemoinho, aquela coisa ruim não era um algo; era um nada. Era a ausência de algo, e essa ausência se espalhava — deletando, apagando, cancelando tudo o que tocava. Era por isso que dava uma sensação tão triste, tão horrível; porque essa coisa era o contrário da vida, o contrário da morte também — era o contrário de tudo.

Antimatéria. A palavra que flutuou para o topo de seus pensamentos era de Brick, não dela; ela nem sabia o que isso significava. Sabia que ele estava pensando a mesma coisa que ela, porém. Os dois sabiam o que aquilo queria, aquele outro. Ele queria pegar tudo e transformar em nada, devorar tudo, banir a existência.

E, ao terminar, a realidade seria apenas um buraco vazio no tempo.


Rilke

Fursville, 8h42

— Rilke, por favor, só preciso falar com você por um momento.

Rilke estava ao lado da porta do restaurante ouvindo Cal reclamar. Ele já estava ali fora havia algum tempo, andando de um lado para o outro como um lobo, primeiro pedindo, depois ameaçando, e agora enfurecido.

— Rilke, precisamos da nossa comida, das nossas bebidas. Não é justo; isso é nosso.

Ele bateu na porta, flocos de gelo soltando-se. A risada silenciosa de Rilke vinha em pequenas baforadas. Ela puxou o cão da arma, a mão tão dormente por causa do frio que quase não a sentia, a não ser por seu peso.

— Olha, você não precisa falar comigo, não precisa ver os outros. Só me deixe entrar por cinco segundos que eu pego o que eu preciso. Você pode ficar com uma parte da comida, está bem?

A porta balançou nas dobradiças, fazendo com que ela desse um passo para trás. Cal chutou-a de novo, com força, a madeira estalando.

— Não faria isso se fosse você — disse Rilke.

— Então me deixe entrar — falou Cal. — Nós precisamos de comida. Eu vou entrar por essa porta de um jeito ou de outro, Rilke.

Ela não respondia, contente em deixá-lo fervilhando na própria raiva. Ele era tão previsível, achando que podia fazer o que quisesse porque era um garoto, porque era forte. Rilke sabia por que ela tinha sido escolhida, mas e quanto a Cal? E quanto aos outros? Todos eles eram ridículos.

— Rilke! — berrou ele. — Estou falando sério. Você precisa me deixar entrar.

— Não. Não preciso.

O sorriso dela se alargou. Estava no comando porque tinha toda a comida. Cal e os outros não podiam simplesmente caminhar até o supermercado mais próximo e fazer compras.

— Abra a porta! — gritou Cal. — Sério, estou ficando realmente zangado. Você vai matar todos nós? Me diga o que quer, ou juro que vou arrebentar essa porta e te dar uma surra, seja você menina ou não.

Rilke soltou um risinho que parecia mais frio do que a brisa.

— Só quero uma coisa — disse ela. — Quero falar com Daisy.

Cal protestou, mas depois de um tempo desistiu. Ela o ouviu recuando escada abaixo, os palavrões enfim sumindo no silêncio imenso do pavilhão. Ela pressionou a testa contra a madeira congelada das portas, se perguntando se ele lhe daria o que havia pedido.

Ele vai dar um jeito. Vai sim, se quiser comer.

Ela endireitou as costas e se dirigiu à mesa mais próxima, deixando a arma ao lado de uma vela bruxuleante. Precisou desgrudar os dedos do metal frio. Era incrível, mesmo, que algo tão pequeno pudesse ser tão letal. Que o simples fato de apertar o dedo pudesse resultar no fim de uma vida.

Porém, as duas pessoas que ela tinha matado, os dois humanos, não mereciam viver. Nenhum deles merecia. Era por isso que estava ali; por isso que tinha sido escolhida. E logo teria armas que fariam esta parecer um brinquedo de plástico. Não tinha sido isso que sentira na noite passada? A compreensão de que havia algo lá fora, algo terrível, mas maravilhoso. Uma força de genuíno poder destrutivo.

Schiller estava deitado em seu bolsão de gelo, o corpo ainda irradiando frio, como um sol às avessas. Não havia tido sequer um espasmo desde a noite anterior, mas ela sabia que ele não ficaria assim para sempre. Não tinha certeza de como sabia; apenas sabia. Ele não estava à beira da morte, mas sim em transformação, como uma lagarta no casulo.

— Você está se transformando em quê, Schill? — sussurrou ela. — O que é que você vai virar?

Daisy tinha as respostas. A garotinha não havia se dado conta ainda, mas todas as respostas estavam trancadas em algum lugar dentro daquela cabeça bonitinha dela. Ela só precisava de um pouco de incentivo para libertá-las.

A vela lutava, como se a escuridão pesasse, tentando apagar a chama solitária. Rilke pegou mais uma da pilha que tinha juntado, acendendo-a na primeira e fixando-a em uma base de cera derretida. Ela também começou a oscilar na pesada penumbra. Sorriu diante da metáfora óbvia. Nós poucos somos as chamas, pensou consigo, hipnotizada pelo colorido dançante. Somos a luz na escuridão.

E o que poderia ser a escuridão, se não a humanidade? Aquela massa esmagadora e palpitante de pessoas que não tinham nenhum direito legítimo à vida! Quantas almas viviam agora no planeta? Seis bilhões? Sete? Todas como insetos, andando de quatro ou se matando por migalhas. Eram ignorantes, cruéis; eram a noite que sufocava o dia. Não mereciam a própria existência.

Era por esse motivo que aquilo estava acontecendo. Era por isso que ela e Schiller tinham sido atacados — era por isso que todos eles tinham sido atacados. As pessoas sentiam algo diferente neles, algo especial. E odiavam, porque era algo melhor do que tinham. Lembrou-se dos homens e das mulheres na rave, do jeito como tinham se tornado feras — mordendo, arranhando, agarrando, uivando. Tinham agido como animais porque era isso que eram; porque tinham sentido que Rilke e Schiller eram mais do que eles, que ela e o irmão eram perigosos, eram...

Parou, sem conseguir definir a palavra certa. As chamas gêmeas esvoaçavam, não se apagando nunca. E não se apagariam. Não sucumbiriam à escuridão.

E aquilo que tinha sentido na noite anterior? Aquela onda de nada total, o horrendo conhecimento de que o que estava sob a pele do mundo era um abismo infinito de ausência? Não tinha certeza, mas aquela criatura, aquela força — ou o que quer que fosse — poderia ter vindo para lhes mostrar o caminho. Por mais sombria que tivesse sido sua imagem, ela poderia ser a luz que eles todos precisavam seguir. Por que outro motivo ela teria sentido aquilo?

Passos, de mais de uma pessoa. Rilke ergueu a cabeça, sentindo a presença de Daisy do lado de fora antes mesmo que a voz de Cal surgisse através da porta.

— Ela está aqui — disse ele. — Ela falou que vai conversar com você, mas só se nos der um pouco de comida.

Rilke andou até a porta, depois recuou alguns passos, pegando a arma. Cal era ridículo demais para tentar qualquer coisa, estava bem certa disso, mas não podia se dar o luxo de assumir nenhum risco, não quando a verdade se encontrava tão perto. Destrancou a porta, e em seguida empurrou-a com a mão livre. Daisy estava ali, os olhos estreitados. Cal estava ao lado dela.

— Não precisa entrar — disse ele. — O que quer que ela tenha a dizer, pode dizer aqui mesmo.

— Tudo bem — falou Daisy. — Ela não vai me machucar.

Daisy deu um abraço em Cal e depois entrou no restaurante. Cal a observou por um momento, encarando Rilke em seguida.

— Melhor nem pensar nisso mesmo — sibilou ele. — Nem pense em encostar nela. Vou estar bem aqui, Rilke; não vou sair daqui.

Rilke soltou um risinho, deixando a porta bater bem na cara dele.


Daisy

Fursville, 9h03

Daisy foi até a mesa com as velas e sentou-se, colocando as mãos trêmulas entre os joelhos para que Rilke não reparasse no quanto estava assustada. Tinha mentido para Cal; não sabia se Rilke ia machucá-la ou não. Porém precisava fazer alguma coisa para arrumar comida, ou todos passariam fome. Ela passou o olhar pelo cômodo com o máximo de inocência possível, mas não viu as sacolas em lugar nenhum.

— Eu as deixei em um local seguro — disse Rilke, os olhos reluzindo. Andou até a mesa e colocou a arma no meio dela, antes de sentar-se à frente de Daisy. O rosto dela tinha aquele mesmo olhar enlouquecido do dia anterior. Era perigoso. — É só termos a nossa conversinha.

— Sobre o quê? — disse Daisy, trêmula. Ali estava mais frio do que nunca, Schiller enterrado em gelo no sofá.

— Você sabe sobre o quê — falou Rilke, pousando os cotovelos na mesa e deslizando as mãos sobre o tampo. A maneira como seus braços se desdobraram fizeram Daisy pensar em um louva-a-deus. Ela não estendeu as mãos para a menina. — Sobre isto aqui. Sobre tudo.

— Mas eu não sei de nada — respondeu Daisy. Onde estaria a comida? Escondida em algum canto. Ou embaixo de uma mesa.

— Acho que sabe sim — insistiu Rilke, o rosto abrindo-se em um enorme sorriso, os olhos faiscando. — Acho que está tudo aí dentro da sua cabeça, você só não sabe como interpretar.

Daisy não respondeu. Mas talvez Rilke tivesse razão. Havia muita coisa acontecendo em seu cérebro que ela não conseguia entender. Os cubos de gelo, chacoalhando e tilintando por ali, mostrando-lhe coisas que ela não tinha como saber. Faziam isso agora, mas se moviam rápido demais, do jeito que pareciam fazer quando estava assustada.

— Não quero que tenha medo de mim, Daisy — disse Rilke, agora com mais delicadeza. — Eu e você somos iguais.

Só que eu não mato gente, ela pensou, mas não falou.

— Eu não tinha escolha. Você sabe o perigo que os furiosos representam. Será que já esqueceu o que aconteceu com você?

Daisy balançou a cabeça em uma negativa, pensando no homem da ambulância com seus dentes de cavalo.

— As coisas estão mudando, Daisy. O mundo está mudando. Você sentiu também, não sentiu? Ontem à noite. Tudo o que quero é saber o que foi aquilo. Porque eu acho que alguma coisa está tentando nos dizer o que fazer. Está tentando nos guiar, só que não estamos sabendo ouvir.

Aquilo fazia sentido, embora de uma maneira estranha. Era um pouco como as vezes em que estava na escola e não entendia de verdade o que o professor dizia.

Rilke estendeu as mãos um pouco mais, agora abrindo-as para Daisy.

— Sei que as coisas estão realmente ruins. Eu também perdi pessoas. Estou com medo de perder meu irmão. O mundo inteiro se voltou contra nós; precisamos nos ajudar. Agora somos diferentes, diferentes do resto, todos nós: eu, você, Schill, Cal, Brick e os outros. Somos uma família, e devemos confiar uns nos outros.

Daisy gostava da ideia de uma família. Cal já parecia seu irmão. Na verdade, parecia que ela era amiga deles todos desde sempre, até de Marcus, o novo garoto que, como ela sabia sem que ninguém dissesse, gostava de ouvir música bem alto e odiava futebol — ela tinha esperanças de que Cal não se importasse muito com esse último detalhe. Rilke também não era uma estranha. Nunca havia sido. Relaxou um pouco, as mãos indo ao encontro das de Rilke.

— Você confia em mim? — perguntou Rilke. Daisy mordeu o lábio, e em seguida assentiu com um gesto de cabeça. O sorriso de Rilke se alargou ainda mais, revelando uma fileira de dentes pequenos e perfeitos. — Então me dê as mãos.

Desta vez, Daisy não hesitou. Entrelaçou os dedos com os de Rilke, a pele da menina fria como mármore. Rilke apertou-os com força — mas não a ponto de doer. O contato era gostoso. Daisy sorriu em resposta, esquecendo por que tinha ficado tão receosa antes.

— Você é especial, Daisy — disse Rilke, a voz agora não muito mais alta que o esvoaçar das chamas das velas. — Você é capaz de coisas impressionantes. Acho que todos somos. Ainda não, talvez, mas logo seremos. Acho que todos nós temos um dom.

— Que tipo de dom? — perguntou Daisy. Seus cubos de gelo não pareciam um presente de Natal. Não tinha certeza nem de que os desejava, quando a faziam se sentir triste ou assustada. Rilke apertou as mãos dela.

— Pense, Daisy. Por que o mundo inteiro se voltaria contra nós? Por que tentariam nos matar?

— Porque nos odeiam, acho — respondeu Daisy, dando de ombros. Rilke balançou a cabeça.

— Pense. Por que eles nos odiariam? Por que agiriam desse jeito?

Daisy franziu o rosto, querendo que Rilke apenas lhe respondesse. Odiava que lhe fizessem perguntas cujas respostas ignorava. Então, do nada, ela falou:

— Porque estão com medo de nós.

Rilke acenou com a cabeça, obviamente satisfeita, e Daisy sentiu parte do estresse ir embora de seu peito. Fazia um certo sentido, ela percebeu. As pessoas faziam coisas realmente idiotas quando estavam muito assustadas. Mesmo assim, não começavam a tentar arrancar braços e pernas só por isso. Elas...

Não?, disse Rilke, interrompendo os pensamentos dela, e Daisy não tinha certeza de se a outra garota tinha falado ou não.

— Isso já aconteceu ao longo da História. Com os que são diferentes; com os que se elevam acima do meramente humano. As pessoas ficam com medo deles e os matam. E se tiverem motivo para ter medo da gente, Daisy? E se tiverem razão de terem medo de nós?

— Por quê? — indagou Daisy, esforçando-se para entender. Daisy relaxou as mãos, mas não a ponto de soltá-las das de Rilke.

— Não fique com medo. Não vou machucar você. Jamais poderia fazer isso. Não percebe? Não se lembra daquela sensação de ontem?

Daisy estremeceu só de lembrar, aquela onda de tristeza total que tinha se abatido sobre ela enquanto estava lá fora. Não, não tinha sido exatamente tristeza, tinha sido algo pior. Era como se todo tipo de emoção tivesse sumido, como se nada mais tivesse sobrado. Não conseguia explicar; só sabia que era como ter ficado sozinha em uma sala escura e infinita, sabendo que não havia ninguém mais em lugar nenhum do universo inteiro.

— É um sinal — disse Rilke. — Um sinal de que tudo vai mudar.

— Mas por quê? — perguntou Daisy, sentindo um nó na garganta. — As pessoas vão se ferir, e eu não quero isso. As pessoas são boas.

— São mesmo, Daisy? — falou Rilke. — Pense. Realmente pense.

Ela não queria, mas pensou — nas vezes em que fora intimidada na escola antiga; em que tivera um eczema nos braços e todo mundo a havia chamado de diversos nomes; no garotinho em sua cidade que tinha sido assassinado pelo esquisitão que distribuía panfletos e cujo corpo nunca fora encontrado; em todos os tumultos transmitidos pela televisão, as pessoas se batendo por coisas tolas das quais nem precisavam; e até na própria mãe, na pior fase do câncer, quando a doença a fazia dizer coisas que eram cruéis de verdade. Havia também outra lembrança, mas essa era de Rilke, um homem com dedos ásperos, unhas longas e sujas, e um hálito de café e álcool, o rosto enorme se esgueirando sobre ela. Daisy se encolheu, afastando aqueles pensamentos, nauseada por ter o ódio, o medo e a confusão dos outros dentro da cabeça, prestes a gritar: Me deixem em paz!

— Não — disse ela em vez disso, quase se engasgando com essa palavra. — As pessoas são boas, Rilke, são gentis, pelo menos a maioria. Não quero que as coisas mudem.

O sorriso de Rilke desapareceu, sendo trocado por um olhar de simpatia e compaixão que era de partir o coração.

— Tarde demais. Sinto muito, Daisy, mas vai ser assim. O que está acontecendo com o mundo... Já começou.

— Mas o que está acontecendo? — perguntou Daisy, recuperando um pouco do fôlego. Rilke apertou as mãos dela, puxando-as para mais perto de si.

— Nós estamos acontecendo — disse ela. — Nós. Não consegue perceber? Não está claro o que temos de fazer? Fomos enviados aqui para mudar as coisas. Para purificar tudo. Olhe dentro da sua cabeça, Daisy, e me diga se estou errada.

Ela não queria, não de novo. Se espiasse mais uma vez aqueles cubos de gelo, quem sabe o que veria? Seria ruim, e haveria o fogo.

— Daisy, por favor — disse Rilke. — Não posso fazer isso sem você. Preciso de você, Schiller precisa de você, todos precisamos. Veja por si mesma.

Daisy olhou outra vez o menino no canto. Devia estar com tanta fome agora, e tanta sede. Talvez morresse caso não conseguissem acordá-lo. Por mais horrível que fosse, e se ela pudesse ajudá-lo? Ela apertou as mãos de Rilke com mais força, grata enfim por não estar sozinha. Depois, fechou os olhos e deixou as imagens flutuarem para a superfície...


Era como tirar um grande casaco em pleno inverno, um casaco encharcado de neve e de água, e que pesava uma tonelada. Ficou leve como o pó que se erguia à luz das velas, livre de tudo e de qualquer coisa que pudesse segurá-la.

Mesmo de olhos fechados, podia ver os outros como se estivessem todos de pé no mesmo salão. Só que não estavam; eles estavam espalhados pelo parque — Adam, Chris e Marcus, o novo garoto, ainda dormindo (dividiam um sonho, percebeu ela, no qual havia tartarugas), Jade sentada no toboágua pensando em um garoto que tentara matá-la, Brick ainda consertando a cerca, seus pensamentos repletos de vingança, e Cal do outro lado da porta do restaurante, o ouvido grudado nela, trêmulo enquanto tentava entender o que estava acontecendo.

Havia muito mais, meninos e meninas que ela ainda não conhecia, mas que parecia reconhecer. Estavam por toda parte: vinte, talvez, ou ainda mais, e todos se dirigiam para o parque. Enxergá-los — ainda que não os enxergasse exatamente; era mais do que isso, era uma visão — era estonteante, embora reconfortante. Aqueles eram os membros de sua família. E seriam todos bem-vindos.

Contudo, a mesma sensação de ontem estava ali também, e com certeza não era bem-vinda. Ela manchava tudo, do mesmo jeito que o mundo ficava com a cor de hematomas de vários dias quando uma tempestade estava prestes a irromper, e isso lhe dava vontade de chorar, mesmo que tivesse sido ótimo voar por aqueles pensamentos. Queria ficar longe daquela coisa, fosse o que fosse, e lutou para encontrar o caminho de volta para seu corpo.

Tudo bem, nada pode nos fazer mal aqui. A voz era de Rilke, emanando de toda parte. Só um pouco mais, Daisy. Só até enxergarmos aquilo.

Por que ela queria enxergar aquilo? Era horripilante. Rilke, porém, estava certa; aquilo não podia lhes fazer mal. Mesmo que a sensação fosse de que ela estava a um milhão de quilômetros de distância em um milhão de lugares diferentes, sabia que ainda estava dentro do restaurante, em um parque de diversões à beira-mar. Concentrou-se na nuvem negra, tentando entender o que ela era e por que transmitia uma sensação de tanta crueldade.

Uma imagem começou a surgir: uma estrada larga, com campos dos dois lados. Havia vários carros negros grandes ali, e homens de terno com armas. Alguns deles tremiam, outros apontavam...

O que era aquilo?

Havia um homem, mas ele flutuava dentro de um redemoinho caótico, e sua boca... Daisy suspirou. Não é de verdade, não é de verdade, disse a si mesma. Mas era; aquela era a coisa que todos tinham sentido a noite passada, o senhor da ausência. Tentou fechar os olhos, mas as imagens estavam em sua cabeça, os sons vindo de dentro dela. Sentia cheiro de sangue, de carne queimada, de fumaça; sentia o gosto do ar espesso e oleoso em sua língua. Nada disso importava, porém, porque o homem na tempestade a fazia se sentir vazia. Não restava mais nada dela. Nunca, jamais havia se sentido tão só.

Preciso ir, disse ela, sentindo as mãos de Rilke sobre a sua. Rilke, por favor, eu preciso...

Uma explosão de luz, como o flash de uma câmera antiga, e depois um fogo furioso beliscou sua pele, fazendo-a gritar. Era como se o chão tivesse cedido, o estômago subindo pela garganta. Abriu os olhos, e o ar estava cheio de chamas em tons de azul, amarelo e vermelho bruxuleantes. Com a mesma velocidade, elas foram extintas, restando a estrada larga de antes, só que desta vez era tudo completa e profundamente real. Rilke estava lá, a boca aberta em uma máscara congelada de choque, os cabelos ondulando em volta dos ombros. Ambas agora estavam de pé, as mãos dadas, o vento rugindo ao passar por elas como um trem. Centenas de cinzas incandescentes haviam sido capturadas no vendaval, todas sendo puxadas na mesma direção.

Daisy observou-as enquanto eram arrastadas até o homem na tempestade. Ele estava acima do chão, como que crucificado, os olhos emitindo uma luminosidade negra, o rosto como um ralo, sugando nuvens de escuridão. O som era terrível, um uivo para dentro como se alguém com asma respirasse em desespero pela última vez. Só que continuava para sempre. Em volta dele o ar se revoltava, como um tornado, como o furacão de O Mágico de Oz. Ele é um feiticeiro, ela conseguiu pensar. Ou coisa pior.

Um dos carros estava no ar, e Daisy, olhando pelas janelas, viu cinco homens dentro, dois mortos, perpassados por um cano de metal, o resto gritando. Um deles — o homem sentado no meio do banco de trás — encarou-a, e ela pôde ver o genuíno horror em seus olhos esbugalhados, os dentes à mostra.

Sinto muito, ela lhe disse. Não posso salvar você. E em algum lugar do caos ela percebeu que, apesar de estar ali, efetivamente ali na estrada, aqueles acontecimentos já tinham passado. Quase podia ouvir o rangido da vastidão do tempo sendo partida.

O homem na tempestade urrou, e fez-se mais um estalo de relâmpago negro, e mais do mundo se desintegrou. O carro explodiu em um milhão de pedaços, os corpos dentro dele virando areia e espiralando para a boca do cadáver.

Daisy gritava, até a própria respiração roubada pelo vento. Os olhos sem vida do homem reviraram-se e pararam nela, dando-lhe a sensação de que havia levado um soco no estômago. O cadáver flexionou os dedos, e Daisy sentiu-se levantar do chão. Agarrou-se a Rilke com tudo o que tinha, as duas sendo puxadas para o vórtice. E ela sabia que, se não se afastassem, se não se afastassem imediatamente, seriam arrastadas para dentro dele, tornando-se nada.

Rilke também pareceu entender isso.

Daisy fechou os olhos com força e de repente começou a cair, a sensação tão real que o corpo inteiro balançava. Outro flash, mais chamas. Caiu para trás, a cadeira desabando atrás dela, derrubando-a. Tateou o piso frio, esperando ver o homem da tempestade ali, pronto para sugá-la. Porém só o que havia era o restaurante e uma tempestade de cinzas incandescentes que vagavam com displicência para o chão.


Daisy esperou o mundo real parecer sólido outra vez antes de se sentar. Rilke continuava sentada do outro lado da mesa, o mesmo sorriso lunático no rosto. Olhou para Daisy e começou a rir.

— Eu falei — disse ela. — Falei que as coisas logo iam mudar.

Daisy ficou de pé, meio correndo, meio tropeçando para a porta, sabendo que devia procurar comida, mas desesperada para ir embora dali. Voou para a porta, procurando a tranca e despencando nos braços de Cal. Ele a abraçou com força na aura quente que emanava do saguão, alisando o cabelo dela enquanto Daisy chorava.

— Tudo bem? O que aconteceu? O que foi que ela te fez?

Daisy se agarrava a ele, ouvindo o som de passos e depois a porta batendo atrás dela, a tranca se fechando.

— Rilke, o que você fez? Daisy, Daisy, olhe para mim.

Ela afastou um pouco o rosto, e ele passou os dedos por sua face. Saíram cobertos de uma fina areia vermelha.

— O que é isso? — perguntou ele, e havia lágrimas nos olhos dele também. — Conte pra mim.

Daisy abraçou-o de novo, a camiseta dele logo manchada com sangue em pó. Mas não era dela. Nem de Rilke. Não; era de um homem cujo corpo tinha se desintegrado a quilômetros e quilômetros dali, em outro lugar, em outro tempo, tendo sido arrastado para o vórtice. Ele era real, tudo tinha sido real.

Assim como o homem na tempestade.


Cal

Fursville, 10h23

Cal carregava a pesada panela com água porta da cozinha afora, com cuidado para não tropeçar no cadáver de Edward Maltby, que estava deitado ali coberto por um pano. O vapor da água subia ali dentro, uma sensação bem-vinda em seu rosto. Ele a tinha aquecido em uma daquelas bocas dos fogões industriais, que, surpreendentemente, ainda funcionavam. Chris estava no corredor, do lado de fora do banheiro.

— Quer que eu leve isso para você? — perguntou. Cal balançou a cabeça dizendo que não, ainda que seus braços tremessem com o peso da panela. Entrou no banheiro da esquerda, colocando a panela ao lado do pequeno chuveiro que ficava perto da única cabine. Em seguida, entrou na sala dos funcionários ali do lado. Daisy estava sentada no sofá, envolta nos braços de Jade. A outra garota tinha limpado a maior parte da estranha areia vermelha do rosto de Daisy, mas ele ainda estava manchado de rosa, como se ela estivesse queimada de sol.

— Desculpe ter demorado tanto — disse Cal enquanto Chris o seguia. — Demorou um século para esquentar.

— Obrigada — disse Jade. Daisy ergueu os olhos, mas ela olhava algo muito além de Cal, algum ponto distante. Ele sorriu para ela, e ela o imitou com um gesto robótico. Não tinha falado mais nada a respeito do que Rilke fizera com ela. Não tinha falado nada de absolutamente nada desde que saíra do restaurante.

— Não se preocupe — disse ele. — Aqui não é exatamente agradável, mas não é tão ruim assim. Já vi banheiros piores na vida. É só fingir que você está em um festival de rock.

— Vamos lá, Daisy — disse Jade com delicadeza, puxando-a e tirando-a do sofá. — Vamos limpar você.

Cal esperou até que as duas saíssem antes de se virar para Chris.

— E Brick? — perguntou.

— Ele não vem. Disse que está consertando a cerca. Aquele cara... — Ele fez uma cara feia, mas não concluiu. Cal sentiu-se grato. Brick era um babaca, claro, mas tinha acabado de ver a namorada ser assassinada. Cal passou pela figura adormecida de Adam e foi até Marcus, sacudindo-o com suavidade. O novo garoto roncou, e foram necessárias mais algumas tentativas para que seus olhos abrissem. Ele franziu o rosto ao ver Cal, debatendo-se dentro do casulo de toalhas de mesa antes de lembrar onde estava.

— Desculpe — disse Cal. — Não queria acordar você, mas precisamos de informações sobre a Soapy’s.

— A concessionária? — falou Marcus, resmungando enquanto se sentava. — O que tem ela?

— Tem mais comida lá?

Ele esfregou os olhos para espantar o sono.

— Ahn... Sim, acho que sim. Não muita, acho. Algumas latas, talvez umas caixas de cereal, foi isso que eu comi. Tinha gosto de cocô. Achei que tivesse comida aqui.

— É uma longa história — disse Cal. — Não temos. Está disposto a voltar lá?

— Ali do outro lado da estrada? — falou Marcus. — Claro, só me dê um minuto, está bem?

— Encontre a gente lá fora — disse Cal. Ele se virou para Chris. — Devíamos levar armas, só por garantia.

Cal avançou pelo corredor e passou pela saída de incêndio, piscando contra a forte luz do sol. Não havia uma única nuvem ali, o céu de uma vastidão e de um azul perfeitos. Em qualquer outro fim de semana, estaria indo para o parque com os amigos, ou para a cidade, para ficar sentado ali do lado de fora da biblioteca, e talvez até pulassem o muro da escola para usar o campo de futebol. Aquilo parecia ter acontecido há tanto tempo... Já quase esquecera como era o rosto deles, deles todos, menos o de Georgia. Porém, mesmo quando pensava nela, só conseguia ver seus olhos, o resto do rosto oculto atrás de um livro.

Que sentido tem isso tudo? Por que tentar arrumar comida, por que tentar sobreviver, quando tudo o que você tem acabou?

Suspirou, a luz do sol menos brilhante agora, o céu menos azul. Chris apareceu ao lado dele, examinando a superfície em geral e saltitando até um aglomerado de vegetação que ia até a cintura dele, tirando algo dali. Brandiu uma prancha de madeira como se fosse uma espada, e ela se partiu em duas com o som brando de algo úmido e podre.

— Melhor não — disse ele, jogando-a no chão e esfregando a mão nas calças. — Eca, deve estar cheio de tatuzinhos.

Ouviu-se o chacoalhar de correntes, e Marcus passou pela saída de incêndio. Abriu um sorriso para Cal, erguendo a mão para proteger os olhos.

— Pronto! Quando quiser.

Cal voltou a andar, indo para a frente do parque. A roda-gigante surgia adiante, rangendo enquanto absorvia o calor da manhã. Passou bem longe dela, por não querer ser trespassado por algum outro fragmento que viesse a se soltar. O caminho principal do pavilhão até o portão estava repleto de lixo e detritos, a terra ainda negra e repleta de fendas por causa da explosão. Viu uma barra de metal enferrujada saindo da pilha do que antes era a barraquinha de cachorro-quente e tirou-a dali. Tinha meio metro e era pesada. Não podia se dizer que era uma arma em si, mas dava uma sensação boa quando brandida de um lado para o outro.

— Não tem ninguém lá — disse Marcus. Os braços dele eram tão finos que Cal achava impossível ele ter força suficiente para segurar uma faca ou um garfo que fosse, quanto mais algo mais pesado. Ele pulava ao andar, o corpo desengonçado sempre balançando. O garoto podia ser um espantalho.

— Melhor prevenir do que se arrepender — respondeu Cal, brandindo outra vez a barra, imaginando que ela se enterrava na lateral da cabeça de Rilke. A imagem fez seu estômago se revirar. Não havia sinal de Brick enquanto avançavam e viraram à esquerda, dirigindo-se à Estação Dodói. Porém ele estava ali. Observando-os. Cal podia sentir.

Foi até a cerca e se espremeu para sair, as folhas de louro frias e suaves contra sua pele. Precisou de um tempinho para achar o caminho pela sebe espessa, mas enfim desvencilhou-se da folhagem, vendo-se em uma estrada larga que se estendia à direita e à esquerda, até onde podia enxergar. Sentia-se estranhamente exposto ali. Fursville não era uma fortaleza, claro, mas tinha passado a pensar assim depois que chegara ali, os furiosos à distância desde então. A concessionária ficava bem em frente, o show-room em forma de caixote invadido pela longa sombra da roda-gigante.

— A barra parece limpa — disse Chris. — O lugar está deserto.

— Como eu já tinha dito — acrescentou Marcus. — Não vi ninguém quando estava vindo de bicicleta.

— Bem, não baixem a guarda — avisou Cal. — Fiquem atentos mesmo assim.

— Sim, senhor coronel! — disse Chris, fazendo uma saudação. Marcus riu. Cal olhou para os dois, cruzando a estrada depois. O ruído dos passos deles parecia a coisa mais alta do mundo, ressoando como tiros. Se houvesse algum furioso por perto, com certeza ele os ouviria e viria correndo.

Passou com pressa pelas vagas vazias do estacionamento, batendo na janela trancada do show-room. Marcus estava a seu lado em um lampejo, Chris levando alguns segundos a mais, já sem fôlego.

— A entrada é pelos fundos — disse Marcus, indo à frente e contornando o prédio. Passaram por um tanque de propano engaiolado e pela carcaça vazia de uma máquina de venda de snacks, antes de chegar a uma porta. Ela estava aberta, nada ali dentro além de escuridão. Marcus bateu a mão na cabeça. — Ah, é. Esqueci de avisar que a gente devia trazer uma lanterna.

— Use isso — disse Chris, pegando o celular no bolso e estendendo-o. Cal não o pegou, e Chris entendeu a sugestão dele. — Quer que eu vá na frente? Não sei o caminho.

— Eu vou — disse Marcus, pegando o próprio celular e passando pela porta. Ele sumiu de imediato, como se tivesse sido engolido. Cal seguiu-o, na esperança de que os outros não ouvissem sua pulsação acelerada. Chris foi o último a entrar, segurando o celular acima da cabeça. Não ajudava muito a iluminar o caminho, cobrindo tudo de um luar prateado e deixando a penumbra ainda mais profunda. Ficaram perto um do outro, quase se tocando, enquanto arrastavam os pés por um curto corredor.

— De onde vocês são, aliás? — perguntou Chris, o sussurro ganhando o volume de um furacão.

— Do oeste — respondeu Marcus. — Na fronteira, mesmo. Se eu sair pela frente de casa sou galês, se sair pelos fundos sou inglês.

— Eu sei bem o que eu preferiria ser — disse Chris. Marcus riu, e Cal mandou os dois fazerem silêncio. — Acho que está tudo bem por aqui — prosseguiu Chris. — Se tivesse algum vilão, já teria ouvido a gente, não teria?

Era um bom argumento, mas mesmo assim Cal não se sentia à vontade andando na escuridão enquanto falava de amenidades. Havia duas portas no final do corredor, uma conduzindo ao show-room principal. Marcus passou pela outra, chegando a um escritório grande, o piso coberto de lixo. Havia ratos ali; Cal era capaz de ouvir o ruído deles dentro das paredes. Abriu a boca para comentar esse fato, quando um som cortou o silêncio, o barulho de violinos da trilha sonora de Psicose. Quase soltou um grito.

— Desculpem — disse Marcus, balançando o telefone. — Devia ter mudado o toque do celular, considerando tudo o que está acontecendo.

— Será que aqui eu acho uma cueca nova? — perguntou Chris. — Depois dessa, vou precisar.

— É meu irmão — explicou Marcus, colocando o celular de volta no bolso. Depois de um tempo, o barulho cessou. — Ele fica me ligando para perguntar onde estou. Parece que esqueceu que pisou na minha cara com suas botas.

Cal pensou no próprio celular. Ali fora não tinha conseguido sinal, mas o que aconteceria se conseguisse? Será que Megan teria ligado outra vez? Eddie? Georgia, talvez?

Ou sua mãe. Será que ela perguntaria onde ele estava? Por que tinha fugido? O pensamento fez seu coração parecer um balão perdendo o ar, e sentiu-se grato pela escuridão, enxugando uma lágrima.

— Bom — disse Marcus —, vamos dar uma olhada. Aqui não tem muito, mas tem uma ou outra coisa.

Cal ficou de quatro, tentando não reparar nas bolinhas macias espalhadas pelo chão. As primeiras embalagens que pegou — uma que talvez tivesse sido de Frosties, outra desbotada a ponto de ter ficado irreconhecível — estavam vazias. A terceira tinha algo vivo, que andou às pressas sobre seus dedos rumo às trevas. Estremeceu, resistindo ao ímpeto de levantar e sair correndo dali. Em vez disso, continuou rastejando pelo chão, tateando em busca de qualquer coisa que pudesse ser útil.

— Achei algo — disse Chris. — Ah, que droga. Velas de bolo. É aniversário de alguém?

Ninguém respondeu. Cal se arrastou para a frente um pouco mais, encontrando outra embalagem. Esta fez barulho quando ele a chacoalhou e, ao abri-la, descobriu um saco fechado lá dentro. Ergueu a caixa, estreitando os olhos.

— Alguém gosta de Weetabix velho?

— Tem leite? — perguntou Marcus.

— Tem Fanta — disse Cal.

— Humm, Weetabix velho com Fanta, meu prato favorito — respondeu o novo garoto.

Passaram-se mais alguns minutos antes que os dedos de Cal batessem em um pote pequeno, fazendo-o girar em círculo. Ele o apanhou, percebendo quanta fome sentia ao ler “Creme de Amendoim” no rótulo.

— Ganhamos na loteria — disse ele, contando aos outros o que tinha encontrado. Os dois resmungaram, e Marcus simulou uma crise de enjoo e ânsia. Que malucos! Como podiam não gostar de creme de amendoim?

Trabalharam mais um pouco em silêncio, um uhu ocasional sendo comunicado aos outros quando mais tesouros eram descobertos. Cal não sabia dizer quanto tempo havia se passado quando Marcus falou:

— Então, vocês não sabem mesmo o que está acontecendo?

— Não mais que vocês — respondeu Cal. Tinha encontrado um pacote de biscoitos que praticamente virara pó no momento em que o tocou. Agora o ar fedia a mofo e bolachas de água e sal.

— Não sei de nada — disse o novo garoto.

— Exatamente — murmurou Cal.

— Imagino que não sejam zumbis — continuou Marcus. — Para começar, estão vivos. E voltam ao normal quando você não está por perto. Bem, aqueles que não fizeram mal a si mesmos. Mas nem esses se lembram de como se feriram. Já reparou nisso?

— Ahã.

— Roscas! — falou Chris. — Ah, não, são roscas de parafuso, não de comer.

— Bateram em mim lá em casa, isso sim — disse Marcus. — Como eu falei, meus irmãos. Cara, a gente nem se dava tão bem, mas o jeito como eles partiram pra cima de mim! Parecia que estavam... sei lá...

Cal desistiu de procurar mais. Tudo estava depenado ali; até as tomadas tinham sido arrancadas das paredes. Aquilo não fazia o menor sentido.

— ... possuídos. Parecia que estavam possessos — repetiu Marcus. — Sabe, que nem no Exorcista, algo assim. Já viu esse filme?

— Vi um pedaço — disse Cal. — Achei um saco.

— Bem, eles estavam com cara de quem estava possuído. É a minha teoria.

— Possessão demoníaca? — perguntou Chris. Parecia estar com a boca cheia. Era para estocar o que achassem. — Você acha?

— Tem sugestão melhor? — disse Marcus. Todos sabiam que Chris dava de ombros, ainda que não pudessem vê-lo.

— O que aconteceu com os seus irmãos? — perguntou Cal.

— O que acha que aconteceu? Eu me mandei. Eles sempre foram maiores do que eu, mais fortes, mas estavam parecendo cavalos. Fugi deles, fugi da minha mãe, fugi de todos. Às vezes, vale a pena ser magrinho e rápido.

— Igual a mim, quer dizer — disse Chris.

— Pois é, igual a você — riu Marcus em resposta. Seu tom era leve, mas Cal conseguia sentir uma tristeza terrível logo sob a superfície. Ela lhe deu vontade de voltar logo para a luz, para o ar fresco. Ele se aproximou da pilha de comida, agachando-se ao lado dela. Pilha era um exagero, deu-se conta. Havia talvez uns sete itens ali.

— Prontos? — perguntou.

— Sim — disse Chris. — Aqui agora só tem poeira.

— Jurava que tinha mais coisas — falou Marcus. — Foi mal.

— A gente vai se arranjando — disse Cal, pegando o que havia reunido e voltando pelo corredor, rumo à luz, baixando os olhos para o que carregava. Weetabix, um pote quebrado de creme de amendoim que parecia viscoso e esverdeado, um pacote de marshmallows semicarcomido pelos ratos. Chris saiu segurando uma lata sem rótulo e uma caixa de Alpen que já tinha perdido a maior parte da coloração. Ele tirou o saco da caixa e os flocos escorreram, deixando-o vazio.

— Ah — disse ele.

Marcus veio atrás, abraçado a um pacote do que descobriu ser biscoitos de cachorro.

— Droga — disse. — Achei que fossem bolachas Oreo.

— É tudo? — perguntou Cal, o estômago se revirando de medo. Aquilo não bastaria para alimentá-los nem naquela manhã, muito menos pelo tempo que demoraria para as coisas se ajeitarem. A verdade era que, mesmo que conseguissem pegar de volta os alimentos de Rilke, não poderiam se manter para sempre com balas Haribo e Dr. Pepper. Olhou ao redor, observando a estrada, as dunas, a fábrica distante. Não havia mais nada.

— Os grandes caçadores voltam com seus espólios — disse Chris.

Cruzaram a estrada correndo, as sombras elásticas, alongadas pela sombra da concessionária. Duas palavras ressoavam na cabeça de Cal a cada par de passadas: Estamos mortos, estamos mortos, estamos mortos.


Brick

Fursville, 11h02

De seu posto de vigia acima dos portões principais, Brick observou-os correr de volta pela estrada. Tudo parecia diferente ali de cima, como se ele tivesse literalmente se elevado acima do mundo; como se pudesse só observar o mundo, sem fazer parte dele. Lá onde estava era meio caminho até o sol, meio caminho para o nada. Era uma sensação boa.

Porém era também horrivelmente desconfortável. Mudou de lugar, apoiando-se na enorme exclamação plástica de FURSVILLE! para evitar uma queda. Eram só seis metros até o chão, mas com certeza ele quebraria uma perna, um braço, ou talvez uma vértebra. Cal e os dois novos garotos desapareceram na sebe em um ponto equivocado, e podia ouvi-los pelo farfalhar, sussurrando com urgência, tentando achar a fresta na cerca.

Não tinham achado muita comida, isso estava bem claro. Brick não ficou muito chateado. Tinham água, que era o principal. Pensariam em alguma coisa.

Inspirou profundamente o ar salgado e, descendo então do alto da pilastra, aterrissou na pequena plataforma de acesso ao longo da faixa do parque. Ela rangeu com o peso dele, mas os parafusos enferrujados mantiveram-se firmes no tijolo gasto. Quando vasculhara o galpão do zelador, havia achado uma lata de tinta e alguns pincéis que já tinham visto dias melhores. A tinta era preta, própria para ferro, mas serviria.

Andou com cuidado pela plataforma, parando no enorme “S” verde. Usando o cabo para abrir a lata, mexeu o líquido concentrado ali dentro, pressionando o pincel gotejante na extremidade da lata. Algumas boas pinceladas resolveram, e deu um passo para trás a fim de admirar seu trabalho.

— Furiaville — leu, assentindo com a cabeça. — Ficou bom.

Já ia sair dali, mas mudou de ideia e foi até o final da plataforma, onde um enorme animal desajeitado sorria para o mundo. Era outro esquilo, o mascote do parque.

— Não sei do que você está rindo — disse Brick, mergulhando o pincel outra vez na lata e dando à criatura uma linha infeliz e em arco para baixo no lugar da boca. Acrescentou dois “X” gigantes no lugar dos olhos, com enormes sobrancelhas zangadas — a mesma imagem que desenhara no restaurante quando Cal e Daisy haviam chegado. — Agora você já não está tão feliz, não é mesmo?

Deixou a tinta ali, esfregando as mãos na calça jeans. O cheiro o deixava meio zonzo, e ele desceu a escada, voltando com cuidado à terra firme. Ouviu risos ali perto e foi naquela direção, curioso.

Daisy, Jade e Adam estavam sentados no carrossel. Era Daisy quem estava rindo, o som parecendo o canto de um pássaro. Ela fingia montar seu cavalo, assim como os outros dois, como se disputassem o Grande Prêmio. Cal, Marcus e Chris estavam de pé ao lado deles, segurando o que quer que tivessem conseguido na concessionária e sorrindo enquanto observavam a corrida. Brick virou-se, pronto para se afastar dali. Era melhor para todos que ele não ficasse por perto naquele momento. Porém foi só dar alguns passos, e Daisy chamou seu nome.

Ele voltou os olhos para ela, vendo-a acenar para ele. Seu rosto era ingênuo, reluzente, brilhante, e parecia pequenino demais para conter aquele sorriso gigante. Ela parecia um anjo. Os outros também olharam para ele, Cal erguendo a mão. Brick ficou parado por um instante, sem saber o que fazer, mas depois engoliu um protesto iminente e juntou-se a eles.

— Estamos apostando uma corrida — disse Daisy, subindo e descendo, enquanto balançava os pés. Adam sacudia um par invisível de rédeas com tanta força que corria o risco de cair a qualquer momento. Jade os acompanhava, a cabeça para baixo e o traseiro para cima, como um jóquei. Nenhum dos cavalos movia-se de verdade, claro, ainda que o carrossel inteiro chacoalhasse de modo preocupante.

— É mesmo? — disse ele. — E quem está na frente?

— Não é uma corrida desse tipo, seu bobo — falou Daisy. — Estamos todos na frente.

Brick considerou explicar a ela o conceito de “corrida”, mas desistiu da ideia. Virou-se para Cal.

— Teve sorte?

— O que temos é o que você está vendo — disse Cal, mostrando uma caixa de cereais. — Isto aqui e alguns biscoitos de cachorro, temo dizer.

— Podemos dar os biscoitos de cachorro para os cavalos! — exclamou Daisy, sem fôlego. — Eles vão precisar de alguma coisa depois de correr tanto.

— Combinado — falou Cal. — Biscoitos para os cavalos, Weetabix para os jóqueis.

— Acho que eu preferia ser um cavalo — disse Chris. — Weetabix tem gosto de cocô crocante.

O novo garoto, o magricela, acenou com a mão enfaixada.

— Meu nome é Marcus.

— Brick — disse Brick.

— Brick? Que nome é esse?

— É porque sou forte como uma casa de tijolos, claro — disse ele. Marcus riu.

— Que nada, você é quase tão magrinho quanto eu.

— Nada disso — respondeu Brick. O bom humor do novo garoto era meio contagiante. Ele mostrou o dedo médio para ele, esforçando-se para fazer uma cara feia. — De qualquer modo, bem-vindo a Furiaville.

— Fúria-ville? — disse Cal. Brick ergueu as mãos manchadas de tinta, mas não quis se dar o trabalho de explicar. Os outros se entreolharam, perplexos, mas ninguém insistiu. Brick olhou de novo para o carrossel, as três pessoas ali mais animadas do que antes.

— Vamos lá, Angie, estamos quase chegando — gritou Daisy. — Adam, você tem de conversar com seu cavalo para ele se sentir bem.

O garotinho balançou a cabeça em uma negativa, olhando de um jeito nervoso para a plateia, mas ainda puxando suas rédeas imaginárias.

— Você tem de conversar com ele também, Jade — gritou Daisy. — Lembre que o nome dele é Wonky-Butt, o Cavalo-Maravilha!

— O nome dele é Samson — corrigiu Jade. — Você é quem o chama de Wonky-Butt!

Os três corriam com vontade, os cavalos com os olhos arregalados e as narinas bufantes, muito reais apesar de serem de plástico. E, por um instante, Brick estava acima do chão, o vento batendo em suas orelhas, o corpo do animal sob ele — a sensação de movimento tão forte que foi tomado de vertigem. Fechou os olhos, cambaleando, e pensou: é isso que ela está vendo, é isso que está na cabeça de Daisy. E era tão bom estar em movimento. E, de repente, aquele momento acabou. Abriu os olhos, grato pelo fato de ninguém ter reparado nele.

— E aí, alguém quer um pouco disso? — perguntou Cal, chacoalhando a caixa de cereais. — Já passou da validade, mas... — Abriu o saco e puxou uma barra, cheirando-a com cuidado. Deu de ombros. — Acho que não está tão ruim assim.

— Desde que você experimente primeiro — disse Chris. — Vai que eles são venenosos.

Cal mordiscou o Weetabix. Fez cara feia enquanto engolia, mas deu uma mordida maior em seguida.

— Nojento — disse ele, a boca cheia de uma papa viscosa. — Mas é melhor do que nada.

Deu uma barra a Chris, depois outra para Marcus. Brick fez que não com um gesto de cabeça diante da oferta, mas depois acabou pegando uma. Não sabia quando iria comer de novo. Mordeu metade de uma vez, o biscoito parecendo papelão. Demorou milênios mastigando até que o pedaço estivesse pequeno o bastante para ser forçado goela abaixo. Cal estava no carrossel dando Weetabix para os outros.

— São feitos pela Nestlé? Se são, então não posso comer — disse Daisy, olhando para a caixa. — Minha mãe diz que a Nestlé é do mal.

— Não se preocupe, não são da Nestlé — falou Marcus, sorrindo. — Ei, de repente é essa a causa de tudo. De repente, a Nestlé colocou alguma coisa na comida que faz as pessoas virarem zumbis enlouquecidos.

— Achei que vocês defendiam o argumento da possessão demoníaca — disse Chris.

— O quê? — perguntou Brick, quase engasgando com o fim da barra de cereais.

— Possessão demoníaca — repetiu Chris. — Ser possuído por demônios.

— Dã, eu sei o que é. Só quero saber por que vocês pensaram nisso.

Marcus levantou uma das mãos, percebendo que todos o olhavam com curiosidade.— Ah, sei lá. Foi só uma ideia. É porque os... como é? Ah, os furiosos. Eles agem como se estivessem possessos, como se tivessem demônios dentro deles ou algo assim.

Brick deixou escapar uma risadinha sem nenhum humor.

— Acho que essa conversa da Nestlé tem mais chance de estar certa.

— Pelo menos eu estou tentando pensar em uma explicação — disse Marcus, dando de ombros de um modo desengonçado. — Não vejo ninguém aqui propondo nenhuma outra hipótese.

— O que são demônios? — perguntou Daisy. Ela tinha parado de correr com o cavalo e olhava para Marcus com intensa curiosidade. — A mesma coisa que fantasmas do mal?

— Tipo isso — respondeu Marcus. — Eles são como espíritos malignos, uma coisa assim. Podem entrar em você e tomar conta do seu corpo, como se você fosse uma marionete.

— Nos filmes — interrompeu Cal. — Isso acontece nos filmes. Eles não existem de verdade.

— Certo — disse Daisy, voltando a quicar no cavalo. Adam a imitou; pelo menos o garotinho estava quase abrindo um sorriso. Jade subia e descia na sela desbotada. Parecia exausta.

— Não, Jade! — gritou Daisy. — Só depois que a corrida terminar.

— É um revezamento — disse a outra garota. — Vou passar o bastão. Quem quer?

— Brick — sugeriu Daisy. — Deixa ele brincar.

— Ahã — respondeu ele, afastando-se. — De jeito nenhum. Pode dar o bastão pra outra pessoa.

— É seu, Brick — disse Jade, descendo do carrossel e se aproximando dele. — Pode pegar.

Ela saiu correndo, um sorriso aberto no rosto, e uma empolgação feroz surgiu no peito de Brick, fazendo-o se virar e sair correndo também. Ele tropeçou, os braços se agitando no ar, e Jade deu-lhe um tapa nas costas.

— Peguei! Peguei você, Brick!

E, antes que ele percebesse o que fazia, foi correndo atrás de Cal, o outro garoto chutando poeira ao sair desembestado, rápido demais para que Brick o pegasse. Brick mudou de direção, indo atrás de Chris, o menino maior cambaleando ao disparar.

— Nem vem, você não pode me pegar; meus ossos são largos!

Brick pegou-o, indo na direção contrária enquanto Chris pulava no carrossel e perseguia Daisy e Adam em seus cavalos. Ele corria em círculo em torno do eixo central, todos rindo sem parar. Até mesmo Brick, correndo enquanto Daisy vinha atrás dele, ria tanto que não conseguia andar em linha reta, as lágrimas escorrendo, o vento batendo nas orelhas como antes, e era tão bom estar em movimento, sempre em movimento.


Rilke

Furiaville, 12h43

Ainda que não pudesse vê-los, Rilke sabia o que faziam.

Podia sentir, um calor que vinha pelo ar gelado do restaurante, uma luz que roubava a força das sombras. Permitiam-se rir, permitiam-se esquecer.

E isso era errado.

Ela estava com tanto frio que já não conseguia sentir mais nada. Até os calafrios tinham parado, o corpo congelado demais para tremer. Não havia luminosidade suficiente que lhe permitisse ver sua pele, mas ela sabia que estaria da cor de marfim, talvez de um azul metálico, como daquela vez em que ficara trancada fora de casa por três horas em plena tempestade de neve. Era capaz de sentir uma fina camada de gelo sobre si, mas não ardia mais. Havia atingido um ponto além da dor.

Schiller estava deitado no mesmo lugar em que ficara desde que tinham chegado ali, a respiração tão constante e lenta quanto o mar lá fora. Ele emanava um vento invernal, e era por isso que Rilke não tinha medo. Por que teria medo do irmão? Ele jamais lhe fizera mal algum. Schiller a idolatrava.

Mais importante: por que teria medo daquilo em que ele estava se transformando? Se tinham sido escolhidos por alguma razão, não seriam feridos no processo. Afinal, ninguém mata soldados durante o treinamento.

Rilke encolheu as pernas contra o peito. A última vela se apagara havia muito — não fazia ideia de quanto tempo exatamente —, e não conseguia se obrigar a levantar para acender outra. Havia casacos e outras roupas espalhadas pelo salão, quase todas de Cal. Contudo, não se cobriria com nenhuma camada protetora. O que quer que estivesse fazendo aquilo com eles, talvez estivesse testando-os. E não desejava parecer fraca.

Ao contrário dos outros. A fraqueza deles entrava na cabeça dela como uma onda de luz e calor, ridícula a ponto de lhe causar náuseas. O mundo estava mudando, algo incrível estava prestes a acontecer e, no entanto, tudo o que tinham feito na última hora era correr lá fora feito crianças, aos risos. Não tinham a menor noção do que haviam se tornado; não tinham o menor respeito por isso. E pagariam; seriam punidos.

Os olhos dela estavam doloridos e Rilke tentou piscar, mas sua pele estava fria demais e as pálpebras não obedeciam. Aquilo também não importava. Tinha a sensação de que logo não precisaria delas. Não precisaria de nenhuma parte do corpo. Nunca mais sentiria frio. Nem Schiller, quando saísse de sua crisálida de gelo. Era por isso que ela o mantinha ali, em vez de levá-lo para o sol, para degelar. Era tudo parte do teste, e com certeza ele fora aprovado.

Sentou-se, trêmula, e começou a pensar. O que tinha acontecido quando Daisy estava ali no salão? Rilke se lembrou da criatura que haviam visto. Era maior do que o mundo, um vórtice de força. Tinha sido assustador, claro, assim como também a morte era assustadora. Porque era algo puro, algo definitivo. Era uma força benéfica não por causa de algum senso artificial de moralidade, mas porque removeria tudo o que era feio, maculado, impuro, podre, arruinado. Ela prometia o vazio, um belo e impecável nada no qual o mundo inteiro cairia.

E ela fora escolhida para ajudar.

Tem certeza?, algo dentro dela perguntava, uma voz trancada no núcleo de sua mente. Tem certeza mesmo, Rilke? Porque tudo isso não parece certo.

Mas era certo. Como poderia haver outra explicação? A raça humana se voltara contra ela e Schiller, e também contra o restante deles. Ela os tinha caçado como aldeões caçam um leão ou um lobo que se alimentasse de seu gado. As pessoas haviam se voltado contra eles porque sentiam medo. E é bom mesmo que se sintam assim, pensou, tentando abrir um sorriso no rosto congelado. É bom que se sintam aterrorizadas.

A humanidade já tinha chegado a seu fim. Isso estava claro. Sempre estivera claro. Rilke desprezava a Igreja, mas havia uma verdade nas histórias que ouvia sentada naqueles bancos sem estofamento. Avisos de que o lugar da humanidade não deveria ser considerado natural, e histórias de uma vingança terrível que poderia se abater sobre aqueles que pensassem assim. Já tinha acontecido antes, e agora aconteceria de novo — uma tempestade de fogo, vento e sangue, que purificaria o mundo.

E eles tinham aprendido? Não. Todos os dias, guerra, fome, peste, doenças; todo dia, homicídio, ganância, medo, burrice. Coisas piores, também; coisas que tinham acontecido com ela e nas quais nunca se permitia pensar. Sim, todo dia a raça humana ficava mais doentia, e essa coisa seria a cura.

O Anticristo, pensou ela. Porém, essa coisa, esse homem envolto em uma tempestade que ela tinha visto, era mais antigo que qualquer coisa escrita na Bíblia. Era tão antigo quanto o tempo. Como você sabe disso?, perguntou aquela pequenina parte dela que ainda duvidava. Ela apenas sabia. Assim como sabia que havia também algo nela, algo semelhante àquela criatura, embora diferente. Havia esse algo em cada um deles.

Havia ainda tantas perguntas, mas Rilke tinha fé em que as respostas viriam com o tempo. Por ora, sabia o bastante. Algo os tinha convocado a lutar. Todos eles tinham sido escolhidos, até os idiotas lá fora. Se Cal, Brick, Daisy e os outros decidissem não aceitar, então seriam punidos exatamente como os vermes que rastejavam pelas ruas em cada esquina do planeta. Sim, tudo estava prestes a mudar, e Rilke entendia isso melhor do que qualquer outra coisa em sua vida.

Agora, ela era um soldado. E havia uma guerra a caminho.


Daisy

Furiaville, 15h02

— Tudo bem?

Daisy levantou os olhos, tendo estremecido por causa de uma sensação esquisita. Cal a observava, o rosto ainda vermelho da brincadeira. Tinha sido tão divertido. Mais divertido que qualquer coisa na vida de Daisy em milênios. Nem na escola as pessoas brincavam mais de pega-pega, de esconde-esconde. Essas brincadeiras eram consideradas de criança. Mas tinham passado um tempão correndo pelo parque um atrás do outro, escondendo-se e rindo tanto que por um momento ela achou que seus pulmões parariam de funcionar.

Agora, ela, Cal e Adam estavam sentados no caminho de madeira que levava ao toboágua. Estava um calor tremendo, o sol ainda mais forte do que daquela única vez em que tinha ido ao estrangeiro, em uma viagem para Maiorca. Porém não suportava a ideia de entrar, não depois do que tinha acontecido com Rilke. Até as sombras a assustavam. Ali no sol havia corridas, brincadeiras, diversão e risos.

— Tudo bem — disse ela. — Só estou cansada.

— Deve estar mesmo — respondeu Cal. — Acho que nunca vi ninguém correr tão rápido por tanto tempo. Você conseguiu pegar até o Brick, e ele tem três metros de pernas.

Daisy deu uma risadinha, a dorzinha do lado da barriga ainda protestando da correria de antes. Brick tinha ido a algum lugar com Marcus e Jade, e Chris fugira para o banheiro havia algum tempo dizendo que aquela correria toda tinha “soltado alguma coisa” dentro dele. Daisy não gostava de pensar no que ele queria dizer. Mexeu-se no assento desconfortável, colocando um braço em volta dos ombros de Adam.

— Estão com sede? — perguntou ela. Cal tinha trazido mais uma panela cheia de água da pia, fria desta vez, e tinham tomado, um de cada vez. — Com fome? Querem mais Weetabix?

Adam fez uma careta. Daisy não podia culpá-lo. Tinham um gosto horrível sem leite e um monte de açúcar. Era como comer um pedaço de madeira. Tivera de forçar duas barras goela abaixo porque estava faminta, mas não tinham lhe saciado. Agora ela daria tudo por um misto-quente ou alguma daquelas pizzas marguerita do Tesco, que o pai sempre comprava. Queria que Rilke parasse de ser tão cruel e os deixasse pegar alguns suprimentos. Lá em cima havia chocolates, jujubas, e era impossível que Rilke fosse comer tudo sozinha.

Rilke. Aquela sensação esquisita tinha a ver com ela, mas Daisy não entendia direito o que era. Ficar ao sol parecia ter derretido os cubos de gelo em sua cabeça, deixando-os borrados em uma enorme bagunça pastosa que não fazia o menor sentido. Era bom; estava cansada de ver o mundo através dos pensamentos dos outros. Torcia para que os cubos nunca mais voltassem.

— Terra chamando Daisy — disse Cal, acenando. — Tem certeza de que está tudo bem?

Ela fez que sim com a cabeça, mas havia outra coisa incomodando-a, aquilo que Marcus tinha dito. Demônios e possessão. Ela não entendia muito bem o significado de possuídos, só que você deixava de ser você mesmo. O que é que Marcus tinha dito? Que era alguma coisa dentro de você controlando-o como uma marionete? Essa explicação era bem boa para o que estava acontecendo, não era? Pensou na sra. Baird, a adorável senhorinha da casa ao lado que sempre lhe levava potes de marmelada gostosa e de chutney melequento. Por que ela tentaria atacá-la, a menos que houvesse algo obrigando-a a fazer isso? Idem para o homem da ambulância e todos os outros. Se havia um fantasma maligno ou sabe-se lá o quê vivendo no corpo deles, obrigando-os a fazer coisas, isso explicaria tudo.

Mas como poderiam se curar disso?

— Adam? — disse ela. — Você gosta de flores?

O menino a encarou, franzindo o rosto. Daisy apontou o pequeno aglomerado de flores roxas no meio da vegetação.

— Eu gosto. Pode pegar uma para mim?

Ele concordou com um gesto de cabeça, correndo até a vegetação. Quando ele estava longe o bastante, Daisy se virou para Cal.

— Como é que a gente pode se livrar de demônios?

— Hã? — disse ele. — Está falando do que o Marcus disse? Melhor ignorá-lo, Daisy, ele estava falando bobagem.

— Não estou com medo — mentiu ela. — Só estou pensando. E se ele tiver razão?

— Ele não tem; demônios não existem. As pessoas inventaram isso séculos atrás, talvez milênios, porque não sabiam como explicar o que havia de ruim no mundo. Elas achavam que as pessoas faziam coisas horríveis porque estavam possuídas.

— Mas talvez seja por isso que as pessoas estão fazendo coisas horríveis — ela falou. — Isso explicaria por que todo mundo está tentando matar a gente: eles estão possuídos, e a gente não.

Cal respirou fundo, mirando uma faixa prateada de mar suspensa acima da cerca negra. A luz do sol se infiltrava em seus cabelos. Ele era bem bonito, pensou Daisy. O tipo de garoto que estaria em um programa do canal Disney.

— Não sei — disse ele. — Não sei se algum dia a gente vai realmente saber. — Olhou de novo para Daisy. — Agora, por favor, não se preocupe, está bem? Estamos em segurança aqui. Se são demônios ou não, eles não podem fazer mal a você.

— Eu sei — respondeu ela, outra mentira. Adam corria de volta com a mão cheia de flores miúdas. Deixou cair uma, e a maior parte das outras foi para o chão quando se curvou para pegá-la. Daisy se levantou para ajudar, mas, quando se aproximou dele, o garotinho já havia recuperado todas. Ele estendeu as florezinhas com um sorriso tímido e ela as pegou, o aroma adocicado deixando-a ligeiramente zonza. — São tão bonitas, Adam, obrigada.

Ele não respondeu; só correu para onde as havia colhido e tirou um graveto do chão poeirento. Começou a atacar a vegetação como se fosse um pirata espadachim atacando um navio.

Meninos, pensou ela. Pegou um dos pequenos botões e guardou-o atrás da orelha, como a mãe às vezes fazia quando ela estava no quintal, e depois olhou de novo para Cal.

— Devíamos colocá-las na água.

— Sem problema — disse ele, levantando-se e esticando o corpo. — Vamos, tem jarros e outras coisas na cozinha.

Foram devagar para o pavilhão, Adam indo atrás e investindo com firmeza contra tudo por que passava. Quando chegaram à porta de incêndio, porém, Daisy ouviu uma briga nos fundos do parque.

— O que é isso? — perguntou ela.

— Espere aí — disse Cal. — Vou verificar.

Ele foi, mas ela não esperou, seguindo-o enquanto ele virava na extremidade do pavilhão. Viu-o do lado de fora de uma das pequenas construções, aquela que dizia: “Perigo: Não Entre”. As vozes ali dentro reverberavam com um eco metálico assustador.

— Acho que é esta. Não, espere, é aquela.

— Esta?

— Ah, que droga. Sei lá, tenta aí.

— Nem pensar, tenta você.

Daisy apertou-se contra Cal, olhando dentro do galpão e vendo Marcus e Chris ali. As paredes estavam cobertas de caixas e fios estranhos, com grandes adesivos amarelos que tinham caveiras e ossos cruzados nelas.

— O que estão fazendo? — ela perguntou a Cal.

— Não tenho a menor ideia. Pessoal, o que estão fazendo aí?

Chris virou-se e abriu um largo sorriso em meio à escuridão.

— O Marcus aqui é eletricista. Ele acha que consegue botar o parque pra funcionar. A gente teria luz, ar-condicionado, fliperama, talvez até uma TV, se acharmos alguma.

— Não — discordou Marcus. — Primeiro, não sou eletricista. Comecei o curso técnico de encanador, e a gente estuda um pouco de eletricidade também, para o banheiro, essas coisas. Segundo, este lugar não é ligado há anos, então existe uma chance de zero vírgula um por cento de que alguma coisa volte a funcionar por aqui.

— Como eu disse — continuou Chris —, ele vai dar um jeito.

Marcus suspirou e voltou a fazer o que quer que estivesse fazendo.

— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntou Cal. — Se funcionar, e a gente começar a usar eletricidade, as pessoas não vão reparar?

Porém, nenhum dos garotos ouvia; discutiam por algo que Chris segurava, o que não parecia recomendável, considerando todos aqueles adesivos de advertência.

— Vamos embora — disse Cal. — Vamos deixá-los explodirem a si mesmos.

Refizeram o caminho por onde tinham vindo, passando pela saída de incêndio. Assim que a fria escuridão do corredor tomou-a, Daisy sentiu os cubos de gelo começando a voltar, tilintando até chegar à superfície de seu cérebro. Tentou empurrá-los de novo para baixo, mas eles escorregavam e subiam. Seguiu Cal até a cozinha, dizendo a si própria para não olhar para o morto. Ele não estava ali, e a princípio achou que talvez ele tivesse se levantado e ido embora. Depois viu as manchas na penumbra, negras como breu, que levavam até o porão. Alguém enfim o havia tirado dali.

— Aqui — disse Cal, pegando um copo rachado e imundo de uma das prateleiras, e enchendo-o com água da pia. — Isso deve dar.

Ele entregou o copo a ela, e ela colocou as flores ali dentro. Já estavam murchando, como se a escuridão do prédio as oprimisse. Daisy sentia, também, essa opressão empurrando-a para baixo, esmagando-a.

— Podemos voltar lá para fora? — perguntou. Cal fez que sim com a cabeça, e ela pôde ver pela sua expressão que ele tinha medo de ficar ali dentro. Medo do escuro, medo de Rilke. Recuaram pelo corredor, parando só quando ouviram Brick atrás deles, fechando a porta do saguão.

— Ela ainda não está deixando a gente entrar — disse ele. — Juro que vou tocar fogo neste lugar inteiro e botar ela pra fora.

— Calma, Brick — falou Cal, enquanto esperavam que ele os alcançasse. — Vamos pensar em outra coisa.

— Vamos ver se ela continua determinada desse jeito quando estiver em chamas — ele esbravejou. — Ela e o irmão. Vamos ver se ela continua tão determinada enquanto vê o irmão morrer.

Daisy se agachou por baixo das correntes, erguendo-as para que Cal e depois Brick pudessem passar. Ali, ao sol, o garoto maior pareceu perder um pouco da raiva, mas seus punhos estavam cerrados com tanta força que Daisy enxergava onde as longas unhas tinham cavado a carne das palmas. Era tão triste, porque fazia menos de uma hora ele estava correndo com eles, seu riso uma explosão aguda que o fazia parecer alguém completamente diferente.

— Ela nem quis me responder — disse ele. — Depois de tudo, depois do que ela fez, nem uma resposta ela me deu.

— Vamos — disse Cal, colocando a mão no ombro do garoto. — Vamos lá fora encontrar os outros. Acho que precisamos de um plano.


Cal

Furiaville, 15h42

— Primeiro precisamos resolver a situação da comida — disse Cal. — Não podemos fazer nada se estivermos morrendo de fome.

Estavam de novo no carrossel, ainda que ninguém estivesse sentado nos cavalos. Daisy e Adam andavam entre Angie, Geoffrey e Wonky-Butt, o Cavalo-Maravilha, com pilhas de biscoitos de cachorro nas mãos em concha. Os demais — exceto Marcus, que ainda xeretava nos fundos do parque — estavam empoleirados nos degraus de metal enferrujados, aproveitando a sombra do dossel semidesintegrado. O ar tinha cheiro de sal marinho e suor.

— É isso aí — disse Chris. — Eu vou ficar só pele e osso se a gente não comer alguma coisa logo.

— Não sei por que, mas acho que isso não vai acontecer tão cedo — vociferou Brick, fazendo um gesto com a cabeça para a dobra visível sob a camiseta de Chris.

— É retenção de líquido — respondeu ele, corando. — Não, na verdade são meus genes. Não, peraí, na verdade, não é da sua conta!

— Sério, pessoal — disse Cal, sentindo um incômodo de impaciência na oca vastidão de seu estômago. O Weetabix que havia comido não chegara nem perto de enchê-lo, e a perspectiva de passar a noite inteira sem comer mais nada o deixava nervoso. — Precisamos pensar em alguma coisa. Alguma ideia?

— Sim, de repente seria sensato não ficar correndo por aí como uns doidos, gastando toda a nossa energia — disse Jade. Os olhos dela estavam avermelhados, como se tivesse chorado, mas ela conseguiu abrir um ligeiro sorriso.

— Tem razão — concordou Cal.

— Precisamos achar um jeito de desentocar Rilke — falou Brick. — Estou falando sério, a gente pode botar fogo do lado de fora do restaurante. Ela seria obrigada a sair.

— Olha, esquece ela — disse Cal. — Você não vai querer deixá-la zangada. Ela ainda está com a arma.

— E quem foi que trouxe a arma, hein, gênio?

— Não estou dizendo que você não pode se vingar dela, Brick — respondeu Cal. — Mas precisamos pensar primeiro na comida, ou nenhum de nós vai conseguir fazer nada.

As vísceras de Cal protestaram, alto o bastante para Daisy se virar e rir.

Ela ofereceu os biscoitos caninos.

— Quer experimentar?

Talvez cheguemos a esse ponto, pensou ele, mas disse:

— Não, Daisy, obrigado. Tenho medo de criar uma cauda se comer isso.

Ela riu e voltou para a brincadeira, Adam seguindo-a pelo carrossel como uma sombra.

— Restou alguma comida no seu carro? — perguntou Brick. Cal balançou a cabeça em um gesto negativo.

— Não, trouxemos tudo. Precisamos pensar em outra coisa. Brick, você conhece a área. Será que não consegue pensar em nenhum lugar onde a gente possa conseguir suprimentos?

— Bom, tem um mar bem aqui na frente — disse ele. — Se alguém souber pescar...

Ninguém respondeu, o que era resposta suficiente. Mesmo que pescassem alguma coisa, Cal não tinha ideia de como tirar as escamas, remover as entranhas do peixe, ou o que quer que tivesse de ser feito para ter certeza de que não seriam envenenados.

— E Hemsby fica a mais ou menos um quilômetro e meio. Muitos restaurantes por lá. Provavelmente não vai ter mais do que, sei lá, alguns milhares de pessoas nesta época do ano.

Alguns milhares de furiosos, gritando, socando, mordendo, pisoteando. Não durariam cinco segundos em um lugar como aquele. Cal suspirou, chutando os degraus com força suficiente para fazer a plataforma inteira chacoalhar.

— Vamos lá, pessoal, isto é sério. Se a gente não arrumar comida, vamos morrer aqui.

— Bem, podemos comer o gordinho — disse Brick, olhando para Chris. Cal precisou se conter para não subir os degraus e dar um soco bem na boca daquele sujeito. Esperou a raiva passar antes de falar:

— Tem algum supermercado aqui por perto, alguma coisa assim? Alguma loja que a gente pudesse roubar durante a noite?

— Tem um posto a mais ou menos um quilômetro e meio — murmurou Brick, relutante. — Só que fica aberto vinte e quatro horas. Foi lá que eu quase morri da primeira vez. Tem um Sainsbury’s também, mas sempre tem gente ali. Eles abastecem as prateleiras à noite; meu irmão costumava trabalhar no de Norwich, antes de entrar para o exército.

— Só isso?

— Só isso. Aqui não é Londres, Callum. Aqui é o cafundó de Norfolk, o que você esperava?

Cal balançou a cabeça. Não tinha certeza do que esperava. Nunca estivera em uma situação como aquela antes. Tentou se lembrar do caminho até ali, com Daisy no carro. Deviam ter passado por algum lugar.

— Espere aí — disse ele. — E a fábrica, aquela que você vê daqui?

— Aquele lugar? Eles fazem adubo, algo assim. Vai querer comer isso?

— Eles devem ter um café lá — falou Chris, dando de ombros.

— Deve ter um refeitório, se a fábrica for grande — acrescentou Jade. — Meu pai trabalhava numa fábrica de carros; às vezes me levava para almoçar lá, quando eu não estava na escola. Batata e feijão, ainda é minha refeição favorita no mundo inteiro.

A barriga de mais alguém roncou.

— Não tem a menor possibilidade de a gente entrar — disse Brick. — Tem segurança, e não deve ser só um.

Cal soltou um palavrão, afundando a cabeça nas mãos.

— Estou dizendo — insistiu Brick. — Precisamos forçar Rilke a sair, para podermos pegar os nossos suprimentos.

— O quê? Alguns sacos de salgadinho e um pouco de refrigerante? — retrucou Cal. — Isso vai mesmo nos sustentar por alguns meses, não vai?

— Acho que essa ideia da fábrica pode dar certo — disse Jade. — Pensem só. Se tiver, sei lá, uns caras tomando conta do lugar à noite, a gente podia distraí-los enquanto alguém entra para procurar comida.

— Distraí-los? — repetiu Chris. — Como?

— É só a gente se aproximar — disse Cal. — Isso vai provocá-los. Eles vão vir atrás da gente.

— Isso não parece divertido — rebateu Chris.

— A gente podia ir de carro — falou Cal, de pé, já empolgado. — A gente para na frente do portão para chamar a atenção deles. Depois seguimos rápido o bastante para que não peguem a gente, mas não tão rápido, pra não perderem o nosso rastro. Daria pra entrar e sair em poucos minutos, se a gente conseguisse encontrar o café ou algo assim.

Ele olhou para Jade, e ela deu de ombros. Chris balançava a cabeça dizendo que não, mas também lambia os lábios. O rosto de Brick estava tão rígido quanto seu nome, as feições carrancudas.

— Brick?

— Não sei. Muito perigoso. A gente devia pensar sobre isso durante alguns dias.

— Não temos alguns dias — disse Cal. — Devíamos fazer isso amanhã. Amanhã é domingo, não vai ter ninguém lá.

— Lamento informar, Cal — disse Jade. — Mas amanhã é segunda. Se a gente vai fazer isso, precisa fazer agora.

— Agora? — disse ele, e de repente a ideia de sair de Fursville e invadir uma fábrica pareceu totalmente ridícula, completamente impossível. — Brick, talvez você tenha razão; acho que devemos pensar um pouco mais.

— Acha mesmo? — respondeu Brick, batendo os braços enquanto simulava o cacarejar de uma galinha. — Já não se sente mais tão durão agora, não é?

Cal deu um passo na direção do garoto maior, o punho cerrado.

— Vá se f...

Não teve chance de terminar, porque o teto do carrossel explodiu, centelhas voando das lâmpadas quebradas. Ele se agachou, os estilhaços cortando o ar quente, espetando sua pele como ferrões de abelha. Daisy começou a gritar, toda encolhida enquanto uma chuva elétrica respingava nela. Um guincho partiu do brinquedo arruinado, tornando-se uma canção antiga tão desafinada que parecia vir de um pesadelo. Os cavalos passaram a se mexer, indo para baixo, para a frente e parando; o tempo todo, ouvia-se um rugido ensurdecedor, ruidoso, sendo emanado pelo maquinário abaixo deles.

— Daisy! — Cal correu para os degraus, mas Brick já estava lá, erguendo a menina em um braço e Adam no outro. Quase caiu ao descer, o rosto contorcido em uma careta. Jade corria também, as mãos sobre a cabeça.

Houve uma segunda explosão, desta vez mais adiante. Cal levantou o rosto e viu a roda-gigante se sacudir, liberando uma nuvem de sujeira, pó e fragmentos de metal tão espessa que o dia tornou-se crepúsculo. Um dos poucos vagões que restavam se soltou, caindo na cabine abaixo e disparando outra enchente letal de cacos de vidro. A estrutura estremecia, guinchando tão alto que Cal espremeu as mãos contra as orelhas. Daisy se libertou da mão de Brick e correu para ele, abraçando-o com força.

— O que é isso? O que é isso? — ela choramingava.

Do outro lado do parque veio um baque assustador de madeira se partindo. Um punho horrendo de fumaça subiu para o céu. Cal agora ouvia mais música, vindo de toda parte, cem melodias diferentes que contrastavam entre si. Era tudo tão alto, tão confuso, que começou a se sentir nauseado. E havia riso também, riso e aplausos, como nos programas de perguntas e respostas da TV, como se houvesse uma plateia assistindo. Era isso o que mais o assustava, porque era um som inacreditável. Um som que não tinha direito nenhum de estar ali.

Chris berrava com ele, apontando o pavilhão, mas o furacão de ruídos varria suas palavras para longe. O carrossel agora girava mais rápido. Os cavalos pareciam selvagens, como se estivessem prestes a pular da plataforma e sair correndo pelo parque. Pareciam ter ganhado vida.

O parque inteiro parecia ter ganhado vida.

De súbito, Cal entendeu o que Chris gritava.

— Marcus — disse Cal. Vendo a perplexidade no rosto de Brick, gritou: — É o Marcus. Ele deve ter colocado a eletricidade para funcionar.

— A o quê? — gritou Brick em resposta, deixando Adam cair no chão. Às pressas, saiu correndo para os fundos do parque. — Que burro! Que idiota!

A roda-gigante estremeceu com força, outra onda escura de dejetos espiralando de sua carcaça com mais meia dúzia de estacas de metal que desabaram pelo caminho. Uma sirene soou, um ruído estridente de ataque aéreo que vinha do pavilhão.

— Está tudo bem, Daisy — disse Cal. A menina agora se agarrava a ele com tanta força que chegava a causar dor. Podia sentir o corpo inteiro dela trêmulo. — É só a eletricidade, ela voltou.

— Eles vão ouvir — disse ela. — Vão ouvir e vir aqui matar a gente.

— Não vão, não vão não. Não tem ninguém perto assim para fazer isso.

Torceu para estar certo. Se não estivesse, se as pessoas viessem investigar, então todos estariam metidos em uma séria encrenca. Daisy ergueu os olhos para ele.

— Mas eu vejo isso, Cal, na minha cabeça. Eles virão.

O carrossel dava solavancos, os espelhos no centro se partindo. Um dos cavalos estrebuchou tanto que sua coluna rachou, e o animal de plástico pendeu enquanto rodava. A baia se prendeu em uma pilha de detritos ali perto, arrancando o cavalo da sela e jogando-o no chão. Cal pegou Daisy e levou-a para longe.

— Vai ficar tudo bem. Brick vai dar um jeito.

Outra chuva de centelhas despencou do alto do carrossel, caindo feito uma cortina, até que a máquina parou por completo. A melodia ficou mais lenta e mais grave, antes de morrer para sempre. Pouco a pouco, o resto do caos passou, deixando o parque mais silencioso do que já fora um dia. Cal endireitou as costas, suspirando de alívio como se um furacão tivesse acabado de passar. Seu coração também parecia ter recebido uma súbita corrente elétrica, palpitando a toda. Colocou a mão no peito para tentar contê-lo.

Adam veio correndo e se agarrou a Daisy com a mesma força com que ela se agarrava a Cal.

— Tudo bem? — Cal perguntou aos dois. — Não se machucaram com nenhum caco de vidro ou alguma outra coisa?

Os dois fizeram que não com a cabeça. Daisy olhava para algo que ninguém mais podia ver, os olhos indo de um lado para o outro. A pele dela ficara tão pálida que estava quase translúcida.

— Está só na sua cabeça — disse ele, afastando uma mecha de cabelo dos olhos dela. — Não se assuste.

— Mas eu estou vendo — disse ela. — Eles vão...

E foi aí que os gritos começaram.


Daisy

Furiaville, 16h07

Os gritos vinham do pavilhão — gritos abafados que de certa forma eram mais altos do que o caos ensurdecedor que tinha acabado de sumir. Daisy se agarrou ao braço de Cal, sua cabeça um enlouquecedor e constante revirar de cubos de gelo.

— Quem é? — disse Cal quando outro grito rasgou o ar. Até os pássaros tinham se calado, como se estivessem com medo do que viria em seguida.

Os gritos não se pareciam nada com gritos de filme; eram desesperadores, entrecortados, insanos e fortes, tudo ao mesmo tempo. Deram uma coceira no interior do crânio de Daisy, o sangue nos ouvidos dela rugindo como se houvesse um oceano correndo entre eles. Adam chorava em seu peito, os braços fininhos travados em volta dela. Cal soltou um palavrão, correndo as mãos pelos cabelos. Chris estava ao lado deles, como um fantasma. Nenhum deles sabia o que fazer.

— Espere aqui — Cal disse a Chris. — Cuide da segurança deles.

— Não, cara, a gente devia ficar junto — respondeu Chris. — Se forem os furiosos, a gente não devia se separar.

Cal fez que sim com a cabeça, soltando Daisy.

— Certo, fique comigo, está bem? Fique perto, e segure Adam. — Ele olhou para Chris. — Pegue uma arma, cara; de repente, a gente vai precisar.

Os dois garotos vasculharam os detritos, pegando barras de metal de comprimentos diversos. Cal colocou a dele embaixo do braço, pegando Daisy pela mão e levando-a para o pavilhão bem na hora em que outro guincho horrendo penetrou as paredes. Passaram correndo pela entrada principal trancada, quase colidindo com Jade quando ela virou a esquina.

— Tudo bem? — perguntou-lhe Cal. — Era você gritando?

Ela balançou a cabeça em negativa, voltando os olhos arregalados para a porta de incêndio. Daisy ouviu pés se arrastando, e depois Brick apareceu do lado oposto. Segurava Marcus pela nuca e parecia mais zangado do que Daisy já vira. Avançaram pela lateral do pavilhão, Brick jogando Marcus para longe. O garoto mais novo caiu, rolando na terra.

— É Rilke — disse Brick. Os gritos eram mais altos ali, abafados pela saída de incêndio como se estivessem tentando fugir do que quer que houvesse lá dentro. Um cubo de gelo tilintou no topo da pilha: o restaurante, e um vulto que se movia dentro dele, luminoso e escuro ao mesmo tempo. Não entrem, por favor, não entrem.

— O que está acontecendo lá? — perguntou Jade.

— O que quer que seja — disse Brick —, espero que ela esteja gritando de dor.

Marcus já estava em pé de novo.

— Começou quando a eletricidade voltou — disse ele. — Aliás, desculpem. Não imaginei que fosse acontecer tudo aquilo.

— A gente devia... — Cal precisou parar, com mais gritos cortando o ambiente. — Vamos.

— Está falando sério? — perguntou Brick, postando-se à frente da porta de incêndio. — Deixe que ela sofra.

— Não sabemos o que é — disse Cal, cara a cara com o garoto mais alto. — Até onde a gente sabe, pode ser outra pessoa ali, alguém que entrou quando a gente estava lá na frente. Rilke pode estar fazendo alguma coisa com ela. Já pensou nisso?

Brick obviamente não tinha pensado naquilo, pois, após ruminar por um instante, foi para o lado.

— Quem sabe não conseguimos pegar um pouco de comida enquanto estivermos lá — prosseguiu Cal. — Se ela estiver distraída.

Ele olhou para Chris, acenando com a cabeça. Chris acenou em resposta, a barra de metal em posição, e os dois se agacharam e avançaram escuridão adentro. Brick praguejou, também seguindo-os de quatro. Daisy e Adam se entreolharam. Ele choramingava.

— Não fique com medo — disse ela. — Estaremos em segurança se ficarmos todos juntos. Eles vão cuidar da gente.

Ele resistiu por um instante, mas por fim deixou-a conduzi-lo para a porta. Ela se agachou, espremendo-se pela fresta. Depois da forte luz do sol, o corredor parecia extraordinariamente escuro. Ela não podia respirar sob o peso daquelas sombras, mas, quando se virou para tentar fugir, Adam estava no caminho, e Jade já ia entrando.

Um grito estridente ecoou pelo corredor, agora bem mais alto, bem mais real. Daisy abriu a boca, um grito dela própria prestes a se manifestar, mas interrompido no instante em que sentiu uma mão no ombro.

— Vamos — disse Cal. — Fique comigo.

Foram bem juntinhos enquanto passavam pela luminosidade empoeirada do saguão e subiam pela escada. O restaurante estava à vista quando o grito seguinte emergiu, as portas balançando nos batentes com sua força, flocos de gelo espiralando para o chão congelado.

— O que... — começou Brick. — A gente devia se mandar.

Enquanto ainda podemos. Daisy percebeu que estavam todos pensando isso. Ouviu-se um baque dentro do Waves. Alguma coisa grande bateu do outro lado da parede, uma rachadura imensa dividindo o gesso e fazendo todos cambalearem para trás — Marcus quase rolou escada abaixo. E um grito, uivado com uma força de gelar os ossos:

— Schiller!

— O que quer que esteja acontecendo, ela merece — disse Brick, recuando. — Por mim, ela pode ir para o inferno.

— Ah, dane-se tudo isso — falou Cal, dando um passo para trás. Daisy achou que ele fosse sair dali, mas estava só tomando distância. Ele se lançou contra as portas, berrando no momento em que as chutou. A madeira lascou, mas as portas não se abriram. Ele chutou de novo, e desta vez as portas saíram voando, revelando um mundo virado de cabeça para baixo.

Ainda havia luz no restaurante, um brilho bruxuleante que certamente era fogo, mas que era frio demais e forte demais para uma simples vela. Em seu alcance incerto, Daisy viu que o restaurante estava um caos, mesas e cadeiras reviradas, a maior parte da mobília destruída. Quase não havia um centímetro de piso que não estivesse coberto de detritos.

Rilke estava ajoelhada no meio do salão como se rezasse, as pernas dobradas embaixo de si. As chamas se refletiam nos olhos arregalados, sem piscar, e nos riachos que desciam por suas bochechas, fazendo-a parecer alguém que estivesse se queimando de dentro para fora. A boca estava escancarada. Sem aviso, o grito voltou — não o de Rilke, mas de outra coisa. Era como uma agulha escorregando para dentro do cérebro de Daisy. Adam soltou-a, desabando de joelhos com as mãos nas orelhas, e ela precisou de toda a sua força para não fazer o mesmo.

A fonte de luz se movia velozmente, as sombras no restaurante abrangendo largas porções. Uma silhueta voou pelo restaurante, banhada em chamas fracas. Bateu contra a parede do outro lado e caiu no chão, debatendo-se como um pássaro moribundo. Aquilo não parava, lançando-se no ar outra vez. Antes que Daisy pudesse entender do que se tratava, a coisa quebrou uma mesa que estava de ponta-cabeça, fazendo-a em mil pedaços, antes de sumir, agitando-se no ar.

— Rilke? — gritou Cal para dentro do salão. — Saia já daí!

A cabeça dela girou, mirando-os. Daisy entendeu que Rilke não estava com medo. Havia algo mais em sua expressão: uma parte era temor, de fato, mas outra era uma empolgação radiante. Era algo totalmente insano. Ela sorriu para eles, um sorriso que ficaria bem em um hospício. O tempo inteiro o fogo se movia, perseguindo sombras enquanto se jogava de parede a parede.

— Rilke — Cal chamou de novo em um fio de voz.

— Vocês não veem? — falou a garota. A figura caiu na frente dela, as chamas agora menores, mas ainda cobrindo-a como uma pele azul bruxuleante. Era um corpo, os braços envoltos nele próprio, as pernas espalhadas em ângulos nada naturais, como se estivessem quebradas. A cabeça estava encostada contra o peito, mas Daisy não teve a menor dificuldade para entender quem era.

Schiller.

As costas do garoto se arquearam, a boca escancarando-se e soltando mais um grito. O inferno ardia, brilhante demais para ser encarado. Ele se jogava no chão tão rápido que ricocheteava contra o teto. Um dos painéis se soltou ali, caindo ao lado de Rilke. Ela nem se deu conta, os olhos fixos no irmão enquanto ele se debatia de cabeça para baixo lá do alto do salão, como se a gravidade tivesse se invertido subitamente.

Ele saiu do campo de visão, e Daisy se viu dando um passo à frente. Seu terror era tão extremo que quase não o registrava mais. Sentiu a mão de Cal em volta da sua, ambos andando pela porta juntos porque precisavam ver, precisavam saber o que era aquela coisa.

Schiller agora rolava contra o teto, parecendo tentar apagar as chamas que ardiam em sua pele. Mas o fogo não emitia calor, tampouco se espalhava. Na verdade, ele fazia o contrário, deixando cristais cintilantes de gelo em tudo o que tocava. Ele sugava o calor de tudo, alimentando-se de calor e luz, ao devorá-los. Ele gritou de novo, ondulou o corpo da esquerda para a direita e colidiu com a parede do outro lado.

O irmão de Rilke não era a única figura em chamas, percebeu Daisy. Havia outra coisa ali, discreta mas inconfundível. Inconfundível mas inacreditável. Inacreditável mas real. Estendia-se dos ombros curvados de Schiller, desfraldando-se com elegância, uma silhueta mais longa que o corpo inteiro do garoto. Ela se estendeu para baixo com força inacreditável, lançando detritos do piso e fazendo-os voar pelo salão. Schiller gritou de novo, o som interrompido assim que ele bateu contra a outra parede, ficando pendurado ali como um alpinista enquanto aquela forma se debatia freneticamente.

Era uma asa. Uma única asa, bela, terrível, flamejante.

— Vocês não veem? — disse Rilke outra vez, ainda olhando para eles.

As chamas bruxulearam e por fim sumiram, e Schiller desabou no chão. Ele berrou, tentando rastejar até a irmã, antes de desaparecer dentro de outro inferno, a mesma asa de cisne movendo-se em suas costas, suspendendo-o em pleno ar. Rilke ria enquanto o via voar, um som que parecia o de vidro sendo espatifado.

— Não é óbvio o que somos? — continuou a garota. — O que estamos nos tornando? O que viemos fazer?

Ninguém respondeu. Como poderiam? Schiller batia a asa em direção à janela, precipitando-se contra as tábuas. A luz do sol entrava aos pouquinhos, mas não tinha poder nenhum ali, curvando-se diante da chama viva. Sua asa única bateu, e ele foi içado para o teto de novo, e depois lançado no piso com a mesma força. Daisy não entendia como ele ainda podia estar vivo, mas estava, o rosto retorcido em uma máscara de dor e confusão, enquanto tentava chegar à janela outra vez.

— Vocês precisam fazer uma escolha — disse Rilke. — Precisam abraçar isso, abraçar nosso dom, ou dar as costas a ele.

Ela foi, cambaleante, até a porta. As mãos estavam livres, nenhuma arma à vista. Ainda assim, ela era perigosa, Daisy sabia, muito perigosa. O irmão insurgia-se atrás dela, tomado pelo fogo.

— Estamos todos mudando — Rilke continuou. — Fomos escolhidos. Olhem só o que Schiller está se tornando. Vai acontecer com todos nós. Você não enxerga isso, Daisy?

Daisy enxergava. De repente, tinha ficado claro. Marcus estivera certo o tempo todo, mas também totalmente errado. Ela olhou para Cal, sentindo a última porção de calor ser sugada dela, apagada. Rilke dizia a verdade, todos iriam se transformar.

— Os furiosos, não são eles que estão possuídos — disse Daisy, cambaleando para trás, querendo chorar, mas sem lembrar como. Cal estendeu a mão para ela, mas ela se afastou, indo para a escada. — Não são eles que estão com o demônio dentro deles.

Todos, menos Schiller, encaravam-na, esperando que ela concluísse, que formulasse em palavras o que todos agora já sabiam.

— Somos nós.


Brick

Furiaville, 16h19

Brick não desgrudava os olhos do irmão incandescente de Rilke.

O garoto estava em silêncio de novo, aquelas chamas azuis fervilhando em cada poro. Estava deitado no chão, a cabeça para cima. Até os olhos ardiam, poços de uma luz inacreditável. Brick achou que ficaria louco se olhasse tempo demais para aqueles olhos, do mesmo jeito que você podia ficar cego se olhasse diretamente para o sol. Aqueles olhos não eram de Schiller; pertenciam a outra coisa — uma forma que Brick quase podia distinguir em sua segunda pele reluzente e oscilante.

Daisy tinha razão. Schiller estava possuído.

— Daisy, espere! — Cal gritou para a menina, mas ela já tinha saído dali, o som de seus passos sumindo. Os outros permaneceram onde estavam, paralisados pelo fogo frio de Schiller e pela intensidade do olhar de Rilke. Cal virou-se para ela, o rosto quase acinzentado. — Você é louca; está fora de si.

Mas ela não estava. O que dizia fazia um sentido terrível. Brick se encolheu todo, sentindo o mundo prestes a desabar. A realidade parecia um castelo de cartas — tire o suficiente daquilo que conhece, e o resto vai abaixo.

— Você não precisa me dar ouvidos, Cal — disse Rilke. Teve de parar quando Schiller entrou em combustão de novo, como se alguém tivesse levado o botão do fogão do fogo baixo para o máximo. Os rostos do garoto — tanto o dele quanto o rosto em chamas — uivavam juntos enquanto aquela asa horrenda balançava e o lançava em mais um voo desajeitado. — É só usar os olhos. Olhe o que ele é. Ouça sua cabeça e me diga que não sente isso também.

Não dê ouvidos a ela, Brick ordenou a si mesmo. Mas ali estava, alojada em seu cérebro, uma verdade inescapável que incinerava tudo o mais. Havia algo dentro dele da mesma maneira que havia algo dentro de Schiller; havia algo dentro de todos eles, lutando para chegar à superfície. Tinha começado com a dor de cabeça, aquele tum-tum tum-tum tum-tum enlouquecedor. Aquele barulho havia sido alguma coisa tentando entrar, algo batendo à porta. E tinha conseguido. Ali estava desde então.

— Não sei por que fomos escolhidos — prosseguiu Rilke, fixando seus olhos de boneca em um deles de cada vez. — Mas fomos. Com o tempo, vocês vão ver.

— Não pode ser — disse Chris, deslizando em desamparo para o chão, a mão ainda no corrimão.

Os outros também balançavam a cabeça. Porém ele via no rosto deles. Via que acreditavam.

— Não existem demônios, Rilke — respondeu Cal, sem nenhuma convicção. — Isto não é real, é um...

Schiller arranhava outra vez a janela. Arrancou a tábua, lançando-a pelo salão com tanta força que ela ficou cravada na parede oposta. A luz do sol jorrou para dentro, parecendo afunilar-se em volta da figura em chamas. O efeito era estonteante, dando a impressão de que ele ardia dentro de um bolsão de trevas.

Rilke sorriu.

— Não são demônios — ela falou. — Não sei por que estamos aqui, mas não é para nada ruim. É para uma coisa boa. Alguma coisa incrível.

— Como assim? — perguntou Jade, os olhos avermelhados perdidos ao longe.

— Você não vê? — disse Rilke. — Depois de tudo o que aconteceu com você, não é óbvio?

Brick cerrou os olhos com força, lutando contra a maré de emoção que se revoltava em suas entranhas. Via as pessoas no posto grunhindo, uivando e ganindo como animais descerebrados enquanto o perseguiam. Aquelas eram as pessoas que tinha odiado por tanto tempo, e que o tinham odiado. A grande massa incômoda de idiotas, que vinha atrapalhando sua vida desde muito antes de aquilo tudo começar. Não era justo que fossem punidas?

Mas não Lisa. Ela não. Ela não o tinha odiado.

— Não lute contra isso, Brick — disse Rilke. — Você sabe o que temos de fazer.

Ele podia sentir os pensamentos dela dentro dos próprios, plantando uma semente em seu cérebro. Ele sabia o que ela desejava. E a sensação era tão exata, tão genuína. Era mais real do que qualquer outro pensamento que tivera na vida. As pessoas eram más, as pessoas faziam coisas terríveis. A humanidade precisava ser purificada.

Encolheu-se ao pensar nisso, a mente resistindo. Aquilo não podia ser certo, não era certo. Rilke estava errada.

— Não resista — disse ela, um sussuro que estourou em sua cabeça e pulverizou qualquer razão. — Você não pode dizer não, Brick. É por isso que estamos aqui, é isso que temos de fazer.

Ele sentiu algo quente e úmido pingando do nariz, o gosto de sal e cobre na língua.

— Não ouça a mim, ouça a eles — disse Rilke. — Ouça o que estão tentando lhe dizer.

Aquela coisa, fosse o que quer que estivesse dentro de sua alma, tentava lhe dizer algo. Não havia palavras, só uma sensação instintiva que se revirava dentro dele. Fomos escolhidos, mas não para isso, e sim para outra coisa.

— Você está errada — disse ele em um fio de voz, o tom tão distante quanto uma gravação abafada dele próprio. — Não é isso.

— É sim — sibilou ela. — Se não enxerga, então você é igual aos outros. Se não entende, então vai morrer com os outros.

Schiller gritou, as chamas se desvanecendo como uma turbina de jato quebrada. Ele desabou, a segunda pele se apagando e se acendendo, apenas os poços dos olhos ainda ferozes.

— O que nós somos é um milagre — disse Rilke. — O que vive dentro de nós é sagrado, é correto. Aqueles que aceitarem serão salvos. Os que forem cegos ou tiverem medo de compreender o que está acontecendo vão perecer. Vocês precisam fazer uma escolha, agora mesmo, ou será tarde demais.

— Mas o que está dentro de nós, Rilke? — perguntou Jade, dando alguns passos na direção da outra menina. Pingava sangue do seu nariz, e os olhos estavam arregalados, o olhar inocente e confiante.

— Jade — protestou Cal. — Rilke, deixe-a em paz.

— Eu quero saber — disse Jade. — Você não? Isto não é... — Ela fez um gesto que abrangia todo o restaurante, mas não conseguiu encontrar palavras para descrever o que via. — Isto não é prova suficiente?

Cal esfregou a mão no rosto, manchando-o de lágrimas escarlate.

— O que são elas, essas coisas dentro de nós? — perguntou Jade outra vez.

— Vocês já sabem — respondeu Rilke. — Todos sabem.

Jade sorriu, como alguém hipnotizado. Ela olhou para Cal, depois para Chris, e enfim para Brick. Ele tinha a impressão de enxergar bem dentro da cabeça dela, entre os fragmentos de sua mente. Jade andou pelo restaurante, caindo de joelhos no meio do salão.

— Vamos dar o fora daqui — gritou Cal. Pegou o braço de Adam, arrastando o menino para a escada. — Agora!

Brick não se mexia. Tudo o que queria era estar lá fora, longe daquela loucura. Porém a voz de Rilke ainda clamava dentro de seu crânio, totalmente equivocada e, no entanto, totalmente convincente. Ele olhava para Schiller, banhado em chamas. Aquele seria seu destino também, caso ficasse? Será que poderia recusar um dom como esse?

— Última chance, Cal — disse Rilke, dirigindo a voz para a escada.

— Vá se danar, Rilke — gritou ele em resposta. — Vá para o inferno!

Chris já ia tropeçando atrás dele, mas Marcus não se mexia. Seu rosto mostrava aquele mesmo olhar de transe de Jade.

— Última chance, Harry — Rilke disse a Brick, e o som de seu nome verdadeiro enviou um jato de euforia venenosa que irrompeu garganta acima. Quase caiu de joelhos naquele instante, pronto para abraçá-la. — Ouça o chamado deles, faça sua escolha.

Ele deu um passo em direção a ela. Marcus também se movia, rindo baixinho para si mesmo enquanto andava pelo salão e se ajoelhava diante de Schiller.

— Você sabe o que eles são — insistiu Rilke. — Como dizer não?

Brick abriu a boca e soltou um grito rouco e desesperado — um som que não parecia vir dele, mas da coisa dentro dele. Depois, caiu sobre si mesmo, engatinhando de volta para a escada e rolando pelos primeiros degraus, antes de se recuperar. Então escorregou para baixo, sem jamais tirar os olhos de Rilke. Ela balançou a cabeça, a expressão imersa em uma profunda tristeza.

— Como pôde dizer não? — ela perguntou de novo, e em seguida fechou a porta do restaurante. Ele se virou e correu, zunindo pelo saguão e pelo corredor afora, espremendo-se com tanta força pela porta de incêndio que as correntes arrancaram uma mecha do seu cabelo.

Despencou no chão, o corpo inteiro trêmulo sob o sol ardente. E o tempo todo a verdade daquilo tudo era um farol dentro de seu crânio, ardendo em um calor intenso, a coisa dentro dele emitindo um som de clarim impossível de ignorar.

Não, não era uma coisa. Tampouco um fantasma ou um demônio.

Era um anjo.


Cal

Furiaville, 16h42

Cal alcançou Daisy perto do carrossel, chamando-a até que a garota parou, cambaleante. Quando olhou ao redor, não parecia vê-lo, como se o menino incandescente a tivesse cegado.

— Daisy — disse ele, aproximando-se dela e abraçando-a.

Ela piscou algumas vezes, os olhos aquosos ganhando e perdendo foco, enfim encontrando-o. Ele a abraçava com força. Não sabia o que dizer.

Após um instante, Cal ouviu passos pesados no cascalho. Era Chris, com Adam em seu encalço. Daisy também os viu. Desvencilhou-se do abraço de Cal e correu até Adam, abraçando-o. Ele não reagiu, porém. Parecia nem reparar que ela estava ali.

— Diga-me que Marcus e Brick não ficaram lá — pediu Cal. Chris balançou a cabeça.

— Marcus, sim. Brick está lá atrás vomitando tudo o que tem dentro dele.

Cal ergueu as mãos, apertando uma na outra com tanta força que chegou a doer. Queria arrancar a própria cabeça, arrancar as lembranças de tudo o que acabara de acontecer. Se isso o matasse, tudo bem. Melhor morto do que daquele jeito.

— O que foi que aconteceu lá dentro, Cal? — perguntou Chris. — O que há com aquele garoto?

Ele não é um garoto, pensou Cal. Não mais. É outra coisa.

Porém não se permitia dizer o quê, ainda que a palavra brilhasse diante dele como um sinalizador na escuridão de seus pensamentos. Mas não precisou falar, porque Chris tirou a palavra direto de sua mente.

— Um anjo? — disse o menino. — Cara, isso é insano.

— Esquece isso — vociferou Cal. — Sim, claro, é só esquecer. É só esquecer que você viu um garoto coberto de fogo voando dentro de um restaurante. Isso não tem a menor importância.

Correu pelo caminho por onde tinha vindo, virando e encontrando Brick de quatro do lado de fora da porta. Não estava vomitando, e sim chorando, o que era um milhão de vezes pior. Cal foi até ele, colocando a mão em suas costas. Brick levantou o rosto, agora tão pálido que as sardas pareciam feitas com caneta. Nenhum deles disse uma palavra. Não precisavam — viam nos olhos um do outro a verdade do que Rilke lhes dissera.

— Vamos lá, cara — falou Cal depois de um tempo, estendendo a mão. Brick aceitou-a, colocando-se de pé. Deram pelo menos uma dúzia de passos em direção ao carrossel antes que Brick começasse a voltar ao normal.

Cal se deixou cair nos degraus, o mesmo lugar onde tinham estado sentados apenas alguns minutos atrás, mas que agora ficava do outro lado da eternidade. Colocou a cabeça nas mãos, tentando não pensar em nada. Brick sentou-se ao lado dele.

— O que...

— Não — Cal interrompeu Chris antes que ele pudesse terminar. Se não falassem a respeito, talvez não se tornasse real. — Não fale isso, Chris, não agora, nem nunca.

— Mas precisamos...

— Não precisamos — rebateu Cal, levantando o rosto. Chris se sentara no chão. Daisy e Adam estavam ao lado dele, ambos encarando o nada. — Olha só, tem algo esquisito acontecendo, claro, algo que a gente não entende. Mas uma coisa eu garanto a você: Rilke também não tem a menor ideia do que seja; ela está apenas tentando adivinhar, assim como nós. É por isso que tudo o que ela disse é bobagem.

Ninguém contestou, embora tampouco parecessem muito convencidos.

— Jade e Marcus vão se dar conta disso logo. E vão voltar. Quanto a nós, precisamos manter a cabeça no lugar, está bem? Não podemos nos dar o luxo de perder a cabeça agora.

— Então, o que a gente faz? — perguntou Chris depois de um instante.

— Estamos todos exaustos. Todos nós passamos, em poucos dias, por mais do que qualquer pessoa deveria passar em uma vida inteira. Nenhum de nós comeu muito, e é provável que estejamos um pouco malucos mesmo.

— Aquilo não foi alucinação — disse Brick.

— Não estou dizendo que foi. Mas é verdade que estava escuro lá dentro, e, sei lá... A gente precisa manter nosso plano: precisamos de comida. Depois que tivermos nos alimentado, aí, sim, pensaremos em alguma coisa.

Ele olhou ao redor. Chris concordava com um gesto de cabeça. Brick deu de ombros. A ideia de ir atrás de comida parecia estranha a Cal. A ideia de fazer qualquer coisa parecia-lhe estranha agora. Contudo, precisavam fazer alguma coisa, ou voltariam para a loucura do que tinham acabado de ver.

— Eu preciso sair daqui de qualquer jeito — desabafou Brick. — Não quero nunca mais voltar.

— Daisy? — perguntou Cal. Ela pareceu acordar, o rosto se erguendo para ele.

— Quero ir para casa — disse ela.

— Eu sei. Todos queremos. Só que ainda não dá. Ainda não.

Eles ficaram sentados ali, ouvindo o mar batendo indefinidamente contra a praia. Até as gaivotas estavam caladas.

— E então, qual é o plano? — perguntou Chris.

— Pegamos o carro — respondeu Cal. — O seu carro. E vamos para a fábrica. O resto a gente decide quando chegar lá.


Em cinco minutos, tinham saído do parque. Assim que Cal se espremeu pela sebe de louro, sentiu o calor do dia assentar de novo dentro de si. Estava mais claro ali fora, como se o parque houvesse mergulhado em sombras, preso sob o peso de uma enorme nuvem de chuva. Lá fora era mais fácil esquecer.

Ergueu um galho para que os outros pudessem passar, primeiro Daisy e Adam, depois Chris e Brick. Pôde ouvi-los suspirando de alívio ao pisar na névoa difusa da rua vazia.

— De repente, as coisas se resolveram — disse Daisy quando começaram a caminhar pela frente do parque. — Talvez as pessoas não odeiem mais a gente.

Era tentador acreditar naquilo... Alguma coisa na brisa fresca do mar que se enroscava em cima da cerca, alisando seu cabelo, dava-lhe a impressão de que talvez estivesse mesmo tudo bem. Era uma ilusão, claro, uma fantasia, mas ainda assim agradável.

— Talvez — respondeu Cal. — Acho que a gente logo vai descobrir.

Ergueu os olhos, vendo o trabalho de arte de Brick na placa de Fursville. O rosto zangado o encarava com seus olhos de “X”, fazendo-o estremecer. E se fossem até a fábrica e ela estivesse cheia de gente? E se ficassem presos? Bastaria um pequeno equívoco e todos morreriam.

Porém a alternativa era pior. A alternativa era voltar para o restaurante e cair de joelhos diante de Rilke e de seu irmão em chamas.

Chegaram ao estacionamento e atravessaram a parte danificada da cerca. O Jaguar estava na sebe atrás do arbusto, sua traseira reluzindo embaixo de uma máscara de galhos, o porta-malas ainda aberto. Pelo menos seria rápido, pensou. Se tivessem de fugir em um Punto ou um Fiesta, com certeza estariam encrencados. Brick correu à frente, afastando a folhagem.

— Está com a chave? — perguntou Brick. Chris apalpou os bolsos e fez uma careta. — Está brincando comigo?

— Sim, estou brincando com você — respondeu Chris, pegando o chaveiro e destravando o carro. — Calma.

A expressão de Brick era tão azeda que Cal não pôde deixar de sorrir. Daisy também soltou uma risadinha abafada pela mão.

— Sério? — perguntou Brick. — Vocês acham isso engraçado?

— Só a cara que você fez — disse Cal, e, por Deus, como era bom rir novamente.

— É mesmo? Vamos ver se você ainda vai rir quando o seu rosto estiver debaixo do meu traseiro — esbravejou Brick, o insulto sem nexo fazendo todos rirem ainda mais. — Calem a boca — disse ele, mas seus olhos mostraram uma centelha de luz. — Vocês me entenderam.

— Ahã — disse Chris, contornando o carro e se sentando no banco do motorista. — Meu carro, minhas regras.

— Eu vou na frente! — Brick e Cal gritaram juntos, correndo para a porta do passageiro. Brick chegou primeiro, abrindo-a com força e entrando de cabeça. Endireitou o corpo esguio e mostrou os dois dedos médios para Cal.

— Parece que os bebês vão atrás — disse ele, abrindo um sorriso enorme enquanto Cal fechava a porta com um chute.

— Que se dane — disse ele. Abriu a porta de trás para Daisy e Adam poderem entrar, indo depois e plantando os joelhos no encosto do banco de Brick. A resposta do garoto maior foi deslizar o assento bem para trás. — Ei, isso não é justo — berrou Cal. — Chris, fale com ele.

— Comportem-se — disse Chris, dando a partida. — Não vou a lugar nenhum até que parem com isso. E coloquem o cinto de segurança.

Isso deu resultado: todos se curvaram de tanto rir — inclusive Adam, capturado também por aquela onda súbita, os olhos brilhando. Aquilo podia continuar para sempre, pensou Cal, aquela luz dourada que se derretia em cada fibra de seu corpo, fazendo cada partícula do carro brilhar. Aquilo não vinha dele, e sim de outro lugar — uma corrente de calor que se espalhava dele para Daisy, dela para Adam, e deste para Chris e Brick, retornando ao primeiro. O que quer que fosse aquilo dentro deles, estava curando-os. Aquilo os manteria fortes e em segurança.

Cal afastou as lágrimas dos olhos, as bochechas ardendo. Olhava para os outros, e naquele momento de silêncio pareciam se conhecer como se tivessem estado juntos desde a eternidade.

— Prontos? — perguntou Chris.

Todos fizeram que sim com a cabeça. Ele engatou a ré, fazendo o motor funcionar.

— Então vamos lá.


Rilke

Furiaville, 17h15

Rilke pôde ouvir o sutil rugido de um motor de carro aumentando e depois sumindo. Sabia do que se tratava; podia praticamente ver tudo pelos olhos de Daisy — os cinco dentro do grande carro prata, o garoto gordo ao volante. Eles riam. Riam. Aquele som, ecoando quase em silêncio por seus pensamentos, fez seu sangue fervilhar.

Também sabia para onde iam. Resgatou esse pensamento da tempestade de emoções dentro da mente deles com a mesma facilidade com que tiraria um doce de um saco. Era um sinal de que, o que quer que estivesse dentro dela, estava ficando mais forte. Tinha de estar. Logo ela ficaria como Schiller, tomada pelo fogo santo e pronta para incendiar o mundo.

Ele agora estava sentado diante dela, e, mesmo que não estivesse mais em chamas, mesmo que se encontrasse arqueado e com os membros frouxos, como uma marionete com seus fios cortados, ela podia sentir a energia pulsando dentro dele. Ele ainda estava frio, o piso abaixo um lago de gelo. Ele encarava o chão com dois pares de olhos — os velhos olhos que ela conhecia tão bem, e os dois poços de fogo assentados sobre estes, fervilhando com delicadeza.

Marcus e Jade também estavam ali, os dois de joelhos, encarando Schiller como se tivessem acabado de ver a face de Deus. Aquilo não estava muito longe da verdade, pensou ela, exceto pelo fato de que os dois tinham o mesmo dom. Ele apenas não fora revelado ainda. Todos o tinham. Ela o vira dentro do homem com a espingarda, aquele que havia matado — a criatura em chamas dentro dele que tinha morrido quando ele mesmo morrera. Os que haviam fugido também o tinham. Rilke sentia-se decepcionada por tantos fugirem dessa responsabilidade. Não era nenhuma surpresa Brick e Cal terem ido embora, cegos diante da própria irresponsabilidade. Daisy, porém, ela queria que tivesse ficado. De todos eles — exceto Schiller, claro —, Daisy era a mais próxima de mudar, de tornar-se o que todos eles estavam destinados a se tornar.

Jade virou-se. Os olhos dela estavam arregalados e úmidos, o cabelo cobre parecendo uma pira à luz do sol da janela quebrada. Era a típica criatura fraca que Rilke comumente odiaria. Porém ela também fora escolhida. Era irmã dela agora, assim como Schiller era seu irmão.

— O que somos, Rilke? — perguntou Jade.

— Anjos — respondeu ela. Jade ergueu a cabeça, boquiaberta. Pareceu que um milênio se passara antes que falasse de novo.

— Mas como assim?

— É porque eles nos escolheram.

Rilke sentia uma força se mover dentro de si enquanto falava. Era bem pequena agora, mas cresceria.

— Mas como assim? — insistiu Jade. — Como isso é possível?

— Não importa. Acho que não é para sabermos. A única coisa importante é o que se pede que façamos.

Schiller resmungou. Seu braço esquerdo pendia de um ângulo esquisito, tendo sido deslocado do ombro. Não resista, irmãozinho, ela lhe dizia, sabendo que as palavras chegariam a ele. Vai dar tudo certo. Só não resista.

— E o que é que se pede que façamos? — indagou Marcus. Escorria sangue da sua orelha, e ele o limpou com as costas da mão. — Também vi isso na minha cabeça, acho. Eu vi pessoas, aquelas que tentaram me matar.

— Elas tentaram matá-lo por um motivo — disse Rilke. — Porque elas sabem como você é perigoso.

— Mas por que os anjos iriam querer ferir as pessoas? — perguntou Jade. Ela olhava para a porta, franzindo o rosto como se acordasse de um sono profundo. Agora que Schiller tinha se aquietado, ela parecia estar mudando de ideia. — Eles não são bons?

Rilke deixou escapar uma risada ríspida.

— O que você acha que eles são? Pequenos querubins com harpas e halos? Não. São soldados. São poderosos e cruéis. — Isso ela tinha aprendido na igreja. — Não podem existir aqui por si sós, queimariam assim que atravessassem a película da realidade. Eles precisam de um hospedeiro, de um veículo. Precisam de nós.

Marcus e Jade se entreolharam. Se saíssem correndo agora, Rilke decidira, ela atiraria nos dois antes que chegassem à porta. Como poderiam ser tão ignorantes?

— Cruéis? — disse Marcus.

— Não, esse é um termo errado — disse Rilke. — Eles não são cruéis. Mas também não são bondosos. Eles não têm emoções. São guerreiros. Não têm amor por nós, não sentem rigorosamente nada. Já foram mandados aqui antes, para destruir cidades. Mataram milhares. Se tivesse uma Bíblia, eu mostraria; há provas. Lá está escrito que os anjos vão purificar o mundo dos malvados.

Mesmo enquanto falava, sabia que a criatura dentro dela não tinha nada a ver com a Bíblia. Era muito, muito mais antiga que qualquer história humana. Rilke sentia o peso de sua idade na própria alma. Mas eles deviam ter estado aqui antes, deviam ter inspirado aquelas histórias.

— É isso que temos de fazer? — disse Jade, balançando a cabeça. — Matar gente? Não parece certo.

— Só os malvados. Não vê? O mundo é um lugar horrível. As pessoas fazem coisas terríveis umas com as outras o tempo todo. Seria tão ruim assim purificar toda essa... podridão?

Enquanto falava, uma súbita dúvida tomou conta dela. Pensou no que tinha visto com Daisy, aquele homem na tempestade suspenso sobre a rua, uivando e sugando tudo o que era quente e luminoso, e cuspindo de volta nada mais que ausência. Se eles eram anjos, então o que era aquela coisa? Um deles?

Não, não é um de nós, não é um de nós. Aquela coisa é o oposto de nós e está aqui para destruir tudo. Temos de combatê-la, temos de combatê-la. As palavras na cabeça dela não eram dela, e ela as afastou. Tinha de acreditar que aquilo que estava fazendo era certo. Se não acreditasse, estaria perdida.

— Você vai ver — disse ela. — Não vai duvidar de mim por muito mais tempo.

Nenhum deles duvidaria. Algo incrível aconteceria — ainda mais incrível do que a transformação de Schiller; podia sentir isso da mesma maneira que sentia uma coceira ou um espirro surgindo. Não sabia como seria, só que envolveria fogo. Também não sabia se essa premonição era dela ou de Daisy, mas era inevitável. Haveria fogo, e eles veriam a verdade.

E sabia o que deveria fazer para que isso se realizasse.

— Preciso de um telefone — disse ela. — Algum de vocês tem um celular?

— A bateria já era — disse Jade. Marcus pegou o seu do bolso e o examinou.

— Para que você quer o telefone? — perguntou ele.

— Confie em mim.

Ele obviamente confiou, pois o entregou a ela.

— Eles estão indo para a fábrica, não estão? — perguntou Rilke. — Procurar comida?

Jade fez que sim com a cabeça, uma expressão incerta.

Rilke discou o número da emergência e levou o telefone ao ouvido. Daisy e os outros logo entenderiam o que teriam de fazer — quer dizer, se sobrevivessem. Ouviu-se um clique, e depois uma voz perguntando qual serviço de emergência ela queria.

— Todos — disse ela com um sorriso. — Acho que vai haver um ataque terrorista.


Daisy

Hemmingway, 17h34

Quando Daisy enfim conseguiu travar o cinto de segurança, eles já estavam praticamente parando o carro.

A fábrica se erguia no horizonte, um aglomerado de prédios negros com meia dúzia de chaminés em cima, penetrando o céu azul brilhante. O conjunto todo parecia uma mosca morta com as pernas para cima, pensou Daisy. Não havia nada por perto além de uma placa ao lado da estrada que dizia “Obrigado por visitar Hemmingway e Fursville. Dirija com cuidado!”. O mesmo esquilo de olhos esbugalhados sorria nela. O parque de Fursville estava agora a um quilômetro e meio de distância.

— Estão vendo alguma coisa? — perguntou Cal. A entrada da fábrica ficava bem perto da estrada, com uma rampa de acesso breve e larga. Não havia portão, só uma barreira. Dos dois lados havia muros grandes com estacas em cima, dando-lhes uma aparência maléfica. Havia uma cabine ali também, pequenina, com porta e janela, anexa ao prédio principal.

— Tem alguém ali dentro — disse Daisy, vendo uma figura borrada atrás do vidro encharcado de sol. — Acho que devíamos voltar.

— Pode ser só uma pessoa — falou Chris, sem desligar o motor.

— E ele pode ter mais cinquenta amigos lá atrás — disse Brick. — Ou cem.

Daisy sentiu o estômago protestar. Em parte era medo, mas era principalmente fome. Queria que pudessem apenas telefonar para as pessoas na fábrica e pedir um pouco de comida. Será que não fariam essa gentileza para um carro cheio de garotos?

— Claro, a gente devia telefonar — disse Cal, pescando o pensamento no cérebro dela. — Olha, está bem aqui o nome, Cavendish-Harbreit. A gente pode ligar para o número de informações e achar o número dela.

— E dizer o quê? — perguntou Brick. — Oi, a gente estava se perguntando se hoje teria alguém aí, porque gostaríamos de invadir a fábrica e roubar umas coisas?

— Não, seu burro, é só para ver se alguém responde.

Chris apertou um botão no centro do painel, e um teclado apareceu na tela.

— Legal — disse Cal. — Tem sinal?

— Vamos ver — falou ele, digitando o número de informações. Fez-se um zumbido, o telefone chamando, e depois uma voz saiu das caixas de som do carro. Daisy distanciou-se dela, olhando pela janela, para Fursville. O parque inteiro parecia pequenino, reluzindo naquele calor de rachar. Não parecia de verdade; era como se agora, a qualquer minuto, aquela cena fosse estremecer e se apagar. Era uma ideia maluca, mas com certeza não tão maluca quanto ter criaturas dentro deles.

Anjos.

E, no entanto, parecia bem certo o que Rilke dissera. Quer dizer, a maior parte do que ela dissera. O que estava vivendo neles não eram anjos de verdade; ela não pensava assim. Não eram as mesmas coisas das quais a mãe tinha imagens pela casa, aquelas com que ela ficara obcecada quando estava doente. Aquelas imagens exibiam rostos sorridentes, bochechas rosadas, e ficavam sentadas em nuvens fofinhas.

Estas... Estas eram diferentes. Daisy não tinha as palavras certas para explicar, só que não estavam vivas do mesmo jeito que as pessoas estavam. Não podiam viver aqui, neste mundo. Era por isso que haviam escolhido ela, Cal, Brick e os outros. Precisavam de um corpo para andar por aí, assim como os humanos precisavam de carros para ir aos lugares.

Só que esses anjos não podiam controlar você do mesmo jeito que uma pessoa controlava um carro. Era mais como se andassem com você, dando-lhe força — fogo, como no caso de Schiller —, mas esperando-o tomar as decisões corretas.

Será que era isso mesmo? Daisy não tinha certeza.

Porém eram boas essas coisas. Não como gente boazinha, mas mais como um animal amistoso, como um cão ou um tigre. Não falariam nada, mas cuidariam de você. Era daí que vinham os cubos de gelo na cabeça dela, aqueles pequenos vislumbres da vida dos outros. Só de outras pessoas com anjos dentro delas, deu-se conta. Era assim que falavam uns com os outros.

— Devo transferir sua ligação diretamente? — disse a voz.

— Sim, obrigado — respondeu Chris. Ouviu-se um clique suave e, em seguida, mais toques do telefone chamando.

A grande pergunta era por que os anjos estavam ali. Não tinha como eles os obrigarem a matar gente. Rilke estava errada, muito errada. Daisy não a culpava. Não haviam recebido um manual de instruções nem nada. Nenhum deles tinha a menor ideia do que deveria fazer. Porém não estavam ali para ferir pessoas, Daisy tinha certeza.

— Ninguém atende — disse Brick, enquanto o toque do telefone continuava a se espalhar pelo carro.

— É mesmo? — rebateu Cal. — Achei que alguém tivesse atendido e estivesse só imitando o ruído de um telefone.

Brick ia abrir a boca para falar quando uma voz saiu das caixas de som:

— Bem-vindo à Cavendish-Harbreit Tecnologia Agrícola. Nosso horário de funcionamento é das nove às cinco, de segunda a sexta. Caso precise de assistência emergencial ou de orientação sobre produtos fora do horário comercial, por favor aguarde.

Música, um clássico que fazia Daisy se lembrar da aula de teatro. Aquela recordação foi como se alguém tivesse lhe dado um tapa na cara. A peça! Eles a teriam encenado àquela altura. Emily Horton teria feito o papel de Julieta, teria beijado Fred. Era para ter sido ela. A sensação de fome na barriga tornou-se algo bem pior, como se estivesse sendo esmagada. Lágrimas correram por suas bochechas, mas ela as enxugou antes que alguém pudesse notar, respirando fundo e estremecendo, até que aquele peso fosse embora.

Agora não era hora de se preocupar com a peça. Havia coisas mais importantes. Melhor que houvesse, aliás. Tinha de haver alguma razão para aquilo, algo que redimisse as coisas; do contrário, teria perdido tudo — tudo — por nada.

É a coisa que você viu, pensou ela. O homem do redemoinho. É ele a razão de estarmos aqui. Precisamos combatê-lo. E, mesmo que a lembrança daquela criatura fosse aterrorizante, esse pensamento acalmou-a.

Estavam ali para detê-lo. Antes que ele comesse o mundo inteiro.

É isso que ele quer fazer. Ele quer comer tudo, até que não sobre nada além de trevas.

— Alô? — disse uma voz nas caixas de som, provocando um sobressalto em Daisy.

— Ah... sim, alô — respondeu Chris, olhando para os outros com urgência e movendo os lábios, mas sem emitir nenhum som: O que eu digo? — Hã... Tudo bem?

Cal apontava a cabine, e todos eles apertaram os olhos e viram pelo vidro que a pessoa ali dentro estava ao telefone.

— Este é um número de emergência — disse a voz. — Estamos fechados. Se só quiser conversar, telefone de novo amanhã.

— Espere — disse Cal, inclinando-se entre os assentos dianteiros. — Precisamos falar com alguém aí com urgência.

— É uma emergência?

— Sim — prosseguiu Cal. — Ahn, estamos do lado de fora e achamos que tem alguém tentando invadir a fábrica.

— O quê? — sibilou Brick. — Está querendo que peguem a gente?

— Quem é? — repetiu o homem.

— Do lado de fora, na estrada, uma gangue em um carro prata. Parecem suspeitos.

Ouviu-se um baque, um som agudo, coisas se arrastando, e então a porta da cabine se abriu. Daisy se agachou, espiando enquanto um homem com uniforme de segurança aparecia. Ele colocou a mão em concha sobre a testa, olhando para o Jaguar.

— Mas que droga você está fazendo? — disse Brick.

— Confie em mim — respondeu Cal. — Ele vai vir até aqui. Chris, assim que ele se aproximar o suficiente, você dá a partida, certo? Vá devagar, faça com que ele siga você até Fursville. Tem vários lugares para virar por lá; só garanta que ele continue seguindo a gente. E tranque as portas, certo?

— Claro — disse Chris, a voz trêmula. — Sem problema.

O guarda estendeu a mão para dentro da cabine para pegar o quepe, colocou-o e foi para baixo do sol. Daisy conseguia ouvir seus passos esmagando o caminho arenoso enquanto ele se aproximava da estrada. Não estava longe. A qualquer instante, ele os veria. Pegou a mão de Adam, apertando-a.

— Se ele chegar perto demais, pise fundo — continuou Cal, fazendo o melhor que podia para sorrir para Daisy. — Garanta a segurança deles, não importando o que aconteça.

Ele abriu a porta, o carro balançando quando ele saiu.

— Vamos lá, Brick, sua vez.

— De jeito nenhum, cara; eu vou ficar aqui dentro — falou Brick, dando um risinho que era mais uma fungada. — Por que não pode ser o Chris?

— Você dirige? — perguntou Cal. O guarda aproximava-se com rapidez, gritando alguma coisa para eles. Brick soltou um palavrão, esmurrando com força o porta-luvas. — Vamos lá, cara, é sua vez de ser o herói.

Brick pegou a maçaneta e abriu a porta com o ombro, quase derrubando Cal.

— Ei, fique onde está — gritou o guarda. Ele corria agora, a enorme pança sacudindo abaixo da camiseta cinza apertada.

— Boa sorte — disse Daisy, colocando a mão na janela. Cal encostou a dele do outro lado, enquanto Brick batia a porta. — Cuidado, Cal, cuidado.

— Vocês também — disse ele. — A gente se encontra na Soapy’s, certo?

— Entendido! — disse Chris, apertando um botão para travar as portas. — Boa sorte.

— Queeeemm ssssssãooo vvvooooo...? — a boca do guarda foi derretendo, os olhos se enchendo de uma fúria sem fim. Daisy se afastou da porta quando seus passos começaram a se arrastar, tornando-se depois saltos, impelindo-o pelo último trecho do caminho.

— Agora! — gritou Cal, correndo para o oceano de vegetação que ficava ao lado da estrada. Brick o seguiu, os dois garotos agachando-se e sumindo enquanto o guarda saía desembestado atrás do carro.

— Ah, que droga, devíamos ter planejado melhor isso — disse Chris. Ele girou o volante, tentando virar. A traseira do Jaguar bateu no canteiro quando ele deu ré, o motor quase morrendo. Daisy gritou quando o guarda se jogou contra a janela, batendo no vidro. Ele batia a cabeça contra ele, o nariz se esborrachando de um jeito esquisito. Esguichava sangue dos dentes amarelados, mas ele nem reparou. Agora não conhecia mais nada além da Fúria.

Chris pisou fundo. A dianteira do carro arranhou o canteiro do outro lado da estrada, dando um solavanco, e depois estavam livres. Lembrando-se do que devia fazer, pisou suavemente no freio. Daisy olhou pela janela de trás e viu o guarda correndo atrás deles, o rosto uma máscara de crueldade e raiva. Atrás dele, saindo do esconderijo, Cal e Brick atravessavam a estrada, indo em direção à fábrica.

— Tomem cuidado — sussurrou Daisy. — Boa sorte.

Porém, teve a terrível sensação de que só a sorte não lhes bastaria.


Cal

Cavendish-Harbreit Tecnologia Agrícola, 17h46

Brick chegou primeiro à cabine, passando pela porta com tanta pressa que quase a arrancou das dobradiças. Cal derrapou e parou de repente do lado de fora, olhando a estrada. Podia distinguir o teto reluzente do Jaguar, os gritos guturais do guarda vagando ao vento. Sua pulsação estava tão acelerada e tão forte na garganta que tinha a sensação de dedos apertando-o ali.

— Cal, vamos! — Brick estava à porta, acenando furiosamente. Cal lançou-se à frente dele na sala pequenina. Estava vazia, tendo só uma mesa, um painel de controle, alguns monitores de segurança e um telefone fora do gancho. Ele o ergueu e ouviu o ronco do motor de um carro.

— Alô? Chris? Você está aí?

— Cal? — A voz de Chris estava repleta de pânico.

— Sim, a gente acabou de entrar. Não tem ninguém aqui. Tudo bem aí?

Uma pausa, e então a voz de Daisy:

— Ele vai nos alcançar?

— Não, está tudo bem — respondeu Chris. E depois: — Resolvam isso logo.

Cal pousou o telefone na mesa, mantendo a ligação. Brick estava concentrado nos monitores, apertando um interruptor que mudava qual câmera era exibida.

— Parece que não tem ninguém mesmo.

Cal andou da cabine até a outra porta, abrindo-a um pouquinho e vendo um breve corredor. Ia entrar ali, mas parou ao ouvir a voz de Brick.

— Isto vem bem a calhar — disse ele, tirando uma folha de papel da parede e entregando-a a Cal. Era uma planta da fábrica, feita em linhas finas e com uma letra bem miúda. Cal reconheceu a cabine em que estavam e, ali do lado, um grande retângulo no qual estava escrito “Funcionários”.

— Deve ser aqui — disse ele apontando. — Certo?

— Só tem um jeito de saber.

Passaram pela porta, Brick voltando para pegar uma enorme lanterna Maglite da mesa. Ele a ergueu como um taco de beisebol enquanto corriam pelo corredor, passando por uma enorme recepção e um banheiro. Havia outra porta do outro lado, e Cal, abrindo-a, avistou um pátio ensolarado. Dois jipes com o logotipo da fábrica estavam estacionados ali, perto de um Rover azul amassado. Cal olhou o mapa para se orientar melhor.

— Por ali — disse ele, indo à frente. Passaram apressados pelos carros, a respiração entrecortada sendo o único som no lugar inteiro. A fábrica se erguia acima deles, chaminés gigantescas projetando sombras como dedos sobre a ampla superfície em que pisavam. Seguiram correndo para um prédio baixo e quadrado bem à frente.

Estavam quase lá quando apareceu outro segurança, uma mulher baixinha que surgiu entre dois enormes silos reluzentes a uns trinta metros de distância, balançando um chaveiro no dedo. Estava assobiando, até que a melodia foi interrompida quando os viu. Cal estacou e se jogou contra a parede, Brick batendo nele, e por um instante os três ficaram parados feito estátuas.

— São vocês os filhos do Roger? — perguntou a mulher, deixando as chaves caírem no bolso e pegando o rádio. — Não podem brincar aqui.

Ela andava a passos rápidos na direção deles, falando pelo rádio. As palavras desfizeram-se em um resmungo grave, gorgolejante, o ganido de um cão moribundo. Então ela passou a correr, o quepe voando para longe. Cal abriu a porta em um gesto brusco, mas Brick continuava parado.

A mulher o alcançou, os dedos retorcidos em garras, os dentes rangendo. Brick não hesitou e desferiu um golpe de lanterna sobre ela, acertando seu maxilar. O estalo ecoou por entre os prédios. A mulher caiu, uma gota de sangue saindo da boca espatifada. Após um espasmo, ficou imóvel. Brick se afastou, jogando a lanterna em cima dela como se fosse uma cobra venenosa.

— Pegue o rádio — gritou Cal. Brick pegou-o do chão, correndo para a porta.

— Ah, meu Deus — murmurou ele. — Não queria ter batido com tanta força.

— Ela vai ficar bem — disse Cal, tirando o walkie-talkie dos dedos trêmulos de Brick. — Você não tinha escolha.

Estavam em outro corredor agora, este mais comprido e mais escuro. A única luz vinha de uma porta à frente, à esquerda. Cal ergueu o rádio e apertou o botão.

— Tem alguém aí? — sussurrou. Só estática. Repetiu a pergunta, que continuou sem resposta. — Se houvesse mais guardas aqui, alguém responderia, certo?

— Sei lá — disse Brick. Ele estava branco feito um lençol, observando fixamente as próprias mãos. Cal pegou-o pelo braço, arrastando-o para a porta. Uma rápida olhada ali dentro revelou um grande salão com armários e cabideiros vazios. Correram um pouco mais, passando por outro banheiro e uma sala cheia de sofás. Vamos lá, pensou Cal. O corredor já estava acabando. Tem que ser aqui.

Era. A última porta à qual chegaram levava a um refeitório com dúzias de mesas e cadeiras, além de um enorme balcão prateado. Cal passou correndo por ele, e ainda por um conjunto de portas duplas, tendo um sorriso enorme no rosto quando Brick se aproximou.

— Opa — disse Brick.

— Opa mesmo.

Estavam em uma cozinha parecida com a de Fursville, só que aquele lugar encontrava-se em perfeito estado. Havia comida por toda parte, prateleiras e prateleiras de latas, jarros, pacotes, vasilhas e garrafas. Brick foi direto para o pão, abrindo um pacote do integral e engolindo três fatias. Cal tentou fazer o mesmo, a pressão nas entranhas quase o arrastando para a montanha de caixas de cereal a um canto. Porém talvez não tivessem muito tempo. Precisavam levar o máximo que pudessem.

— Sacos — disse ele, deixando o rádio cair no chão e apontando para uma pilha deles. Virou um, liberando uma avalanche de batatas. Brick fez a mesma coisa, ambos trabalhando em silêncio na pilhagem. Cal só parou quando mal conseguia levantar o que tinha reunido, girando o saco para vedar a parte de cima. Arrastou-o até a porta. — Já acabou?

— Quase — cuspiu Brick, a boca cheia com alguma coisa. Ele deixou cair uma lata de espaguete pronto no saco e então girou a extremidade para fechá-lo, erguendo-o acima do ombro.

Já saíam correndo da cozinha quando o rádio apitou. O som quase matou Cal do coração, e ele deixou o saco cair, uma caixa de biscoito de coco indo para o chão. Estática, depois a voz de um homem:

— Roger? Claire? Vocês estão aí?

Os dois irromperam pelas portas duplas e foram para o refeitório, mas mesmo dali dava para ouvir o rádio apitar de novo, a voz amplificada perseguindo-os pelo corredor afora.

— Pessoal, o que aconteceu? A polícia está aqui.


Daisy

Hemmingway, 18h05

O segurança estava visivelmente cansado, mas não diminuía o ritmo. Perseguia o carro com a mesma expressão feroz, os dentes ensanguentados à mostra, os dedos esticados na direção deles. Os pés se arrastavam pela estrada, e em dado momento ele chegou a tropeçar, caindo de cara no chão. Chris pisou no freio, esperando que o homem se levantasse. Ele hesitou, por um segundo parecendo sair do transe, mas depois farejou-os de novo e foi cambaleante para a frente.

Era horrível. O guarda não tinha consciência do que fazia e, naquele ritmo, iam matá-lo. Será que não podiam parar o carro e colocar um saco nele, como tinham feito com o outro homem? Pelo menos desse jeito ele não causaria nenhum mal a si próprio. Mas não sugeriu nada, para não correr o risco de ser ela a ter de fazer isso.

Chris desacelerou o carro ao chegar ao fim da estrada, Fursville quase bem na frente deles agora.

— Esquerda ou direita? — perguntou, olhando para Daisy pelo retrovisor. O guarda quase os alcançou de novo, os dedos arranhando o porta-malas do carro quando Chris se decidiu pela esquerda. Daisy ouvia o homem grunhir baixinho enquanto corria pela estrada atrás deles, a camisa pendendo da barriga enorme e um pé descalço.

Coitado. Ela gostaria de poder fazer alguma coisa por ele. Com certeza havia um jeito de desligar o que quer que ligasse as pessoas naquela frequência de raiva. Se o homem soubesse o que havia dentro deles — que era algo bom —, não tentaria matá-los. Se Daisy tivesse razão, e os anjos estivessem ali para combater o homem na tempestade, estavam ali para ajudar as pessoas, não para lhes fazer mal.

Chris entrou na concessionária abandonada do outro lado do parque, fazendo um círculo, de modo que agora apontavam para o lugar de onde tinham vindo. O homem se arrastava na direção deles em uma maratona desengonçada, digna de piedade. Tropeçou, caiu de novo, e desta vez Daisy ouviu o estalo de um osso se quebrando.

— Chega! — disse ela, observando o guarda tentando se levantar. Um pedaço avermelhado de osso despontava do antebraço, mas não havia nada nos olhos semicerrados além de raiva. — Por favor, Chris, ele vai morrer.

— Não sei mais o que eu posso fazer — falou Chris. — Não podemos deixar que ele nos alcance, e não podemos deixar ele aqui porque vai voltar para a fábrica.

O homem de alguma maneira conseguiu ficar em pé de novo. Ele corria cambaleante pela entrada, um dos braços estendidos. Bateu contra a janela, golpeando-a sem força. Chris soltou um palavrão, conduzindo o carro outra vez para a estrada.

A ambulância passou tão rápido que fez o carro balançar. Daisy soltou um grito, olhando horrorizada a ambulância oscilar, batendo no meio-fio alto e capotando diversas vezes. Ela se desintegrava enquanto rolava, soltando vidro, metal e plástico pelo que parecia ser uns cinquenta metros, antes de ficar imóvel. O motor se incendiou com um som baixinho, a fumaça se espalhando com preguiça sob o céu imaculado. Só o segurança se mexia, dando socos sem vigor na lateral do carro.

— O que foi isso? — perguntou Chris, as palavras abafadas por outra sirene. Essa era da polícia, que passou zunindo e derrapando até se deter ao lado da ambulância arruinada. — Ah, não. Não. Isso vai ser feio.

Dois policiais saíram correndo do carro. Um foi logo para a ambulância, o outro ficou olhando para o Jaguar. Chris girou o volante, acelerando para a esquerda e se afastando do acidente. O segurança caiu atrás deles, mas Daisy já não olhava mais para ele. Observava a superfície plana que se estendia até a fábrica, e a névoa azul piscante que a cercava.


Cal

Cavendish-Harbreit Tecnologia Agrícola, 18h11

Não era só a polícia. Um caminhão dos bombeiros entrava também pela barreira aberta, a buzina ainda tocando. Já havia uma viatura no pátio, e o que era aquilo na estrada: uma van do esquadrão antibombas?

Cal agachou-se atrás da porta do prédio dos funcionários.

— Já era — disse ele.

— O que houve? — perguntou Brick. — Como chegaram aqui tão rápido assim? Faz o quê? Vinte minutos que a gente está aqui?

Eles se entreolharam, e a resposta praticamente balançou na frente deles na penumbra.

— Rilke — disseram os dois ao mesmo tempo.

Brick jogou o saco de comida no chão.

— Vou matar aquela garota.

Diante da situação atual, talvez nem tivesse essa oportunidade. Cal ouvia o gemido das sirenes, dezenas delas. Por sorte, ninguém ainda estava perto o bastante para sentir a Fúria. Mas isso não iria demorar. Já havia gente correndo naquela direção, levando em conta a movimentação das luzes azuis piscantes. Fechou a porta bem devagar, os pensamentos em um turbilhão.

— Será que tem outra saída? — perguntou ele.

— Como é que eu vou saber? — disse Brick. — Deixei o mapa lá na cabine, não deixei?

Começaram a andar, arrastando os sacos de comida. Tinha de haver uma saída pelos fundos, claro. Para incêndios, essas coisas. Cal olhou para cima e viu os conhecidos sinais verdes de emergência com o homem-palito em posição de corrida. Seguiu-os até o refeitório, irrompendo pelas portas duplas. Precisou de um segundo para avistar a saída de incêndio nos fundos da cozinha.

Estavam quase na metade do caminho quando ouviram uma voz lá fora, distorcida por um alto-falante.

— Aqui é a polícia. Sabemos que vocês estão aí dentro. Retornem imediatamente para a entrada da fábrica.

— Cara, parece que é um assalto a banco, sei lá — disse Brick. — Do que é que eles têm medo? Estão achando que a gente vai roubar uma tonelada de cocô de cavalo?

— É fertilizante, não é? — comentou Cal. — Terroristas fazem bombas com isso.

— Com cocô de cavalo? — perguntou Brick, ambos chegando à porta. — Sério?

— Cala a boca, Brick. A gente precisa ficar em silêncio.

Cal empurrou a barra no centro da porta, abrindo-a. Ouviu-se um clique baixinho, e depois o silêncio do salão foi tomado por um alarme barulhento.

— Que bom que estamos em silêncio, Cal — disse Brick, abrindo a porta com um soco e correndo para fora. Cal foi às pressas atrás dele, uma enxurrada de alarmes soando pela fábrica inteira. Estavam em um pátio menor desta vez, com um pequeno prédio quadrado bem à frente e mais tonéis industriais enormes do lado direito. Atrás deles ficava o muro, com cinco metros de altura, coroado de estacas negras.

— É a última chance de vocês — disse o homem do alto-falante, a voz abafada mas ainda dolorosamente clara. Cal teve a impressão de ouvir um latido, o som lhe dando arrepios na pele. Podia fugir dos furiosos. Dos cães, não.

— E agora? — disse ele. Ouviram-se passos ali por perto. Ele olhou por cima do ombro, imaginando uns cinquenta policiais perto do prédio dos funcionários. Brick encaminhava-se para os tonéis brilhantes de metal, cada um deles quatro ou cinco vezes mais alto que o muro. Os silos gigantes ficavam presos em um ninho de andaimes brancos, e Cal não demorou para compreender o que Brick planejava.

Os latidos agora eram mais altos, mais perto deles. E havia outro som também, o distante vum-vum-vum de um helicóptero. Por que tinha que ser uma fábrica de fertilizantes? Teve de se obrigar a andar, o pânico fazendo seu corpo parecer ter o dobro do peso, enchendo seus ossos de chumbo. O saco não ajudava em nada, e ele quase o deixou cair pelo caminho. Porém, se fossem embora de mãos vazias, estariam de volta ao ponto de partida.

Brick devia estar pensando a mesma coisa, pois girava seu saco feito um lançador de martelo nas Olimpíadas em preparação. Soltou-o, a comida espalhando-se em um círculo perfeito enquanto o saco subia para o alto do muro. Ele não alcançou a extremidade, batendo nos tijolos e quicando de volta na terra. Brick juntou às pressas latas e caixas, jogando-as uma a uma sobre as estacas. Cal abriu o próprio saco e começou a jogar o conteúdo também, uma chuva de comida voando por cima do muro. Tinha jogado uns sete ou oito itens, quando ouviu vozes, agora bem mais perto.

— Isso vai ter que bastar — gritou, jogando longe o saco agora quase todo vazio. — Vamos dar o fora daqui.

Os dois correram para o silo mais próximo. Brick foi primeiro, pulando e pegando uma das espessas escoras diagonais dos andaimes. Ele gemia enquanto se alçava para cima, os pés lutando para se firmar no metal liso. Alcançou a escora seguinte, e Cal foi atrás dele. Seus dedos escorregaram na primeira tentativa, e ele bateu o joelho ao cair em cheio no concreto. Ignorou a dor, saltando e firmando-se bem na hora em que o primeiro policial apareceu.

O homem fez menção de gritar, mas o som não saiu, pois a Fúria tomou conta dele. Ele se lançou pelo pátio, a boca escancarada demais, os olhos duas pedrinhas negras. O coração de Cal deu um solavanco e quase parou. Estendeu a mão para a escora seguinte, agarrando-a e encolhendo os pés para cima enquanto o policial se chocava com a base do andaime. Unhas arranharam seus tornozelos, a boca do homem um abismo ruidoso e sem fundo.

Cal continuou a subir, sem se importar por ter ultrapassado Brick. Ambos se esbarravam, os movimentos frenéticos quase fazendo-os derrubar um ao outro. Duas outras figuras uniformizadas derraparam pela lateral do prédio dos funcionários, tornando-se furiosos em um piscar de olhos. Aglomeraram-se na base do silo, trepando nele com as garras. Veio um quarto, escorregando em uma das latas e esborrachando a cabeça no chão.

— Não pare! — berrou Brick, achando seu caminho silo acima. Cal escalou a escora seguinte, quase escorregando no mar de mãos e dentes que se alvoroçava abaixo. Manteve-se firme ali, o terror sendo quase demais para ele, a ponto de deixá-lo zonzo. Quase caiu, mas logo a mão de Brick estava em seu braço. — Nem ouse — disse o outro garoto. — Você não vai me deixar aqui sozinho de jeito nenhum.

Os pés dele encontraram algo sólido, e ele se impulsionou para o nível seguinte. Mais e mais policiais aglomeravam-se no pátio, uivando à medida que a Fúria os dominava, os olhos soltando faíscas para Cal. Havia cães também, com o rabo entre as pernas ao ver seus donos virarem feras.

Brick agora estava na altura do muro. Estendeu um braço, as estacas quase perto o bastante para serem tocadas. A queda dali, porém, seria incrível, e a morte, uma certeza em meio ao caos crescente e esganiçante lá embaixo.

— Vá — disse Cal. — Você consegue.

Brick praguejou e, com um grito sufocado, lançou-se do andaime para o muro, os braços se agitando no ar. Bateu com força nele, soltando um grunhido, mas conseguiu enganchar a mão por cima, levantando-se. O ruído grave agora estava mais alto; um helicóptero voava acima como uma mosca-varejeira estufada. Cal imaginava o rosto do piloto olhando para baixo, vendo os colegas da polícia uivando feito lobos.

— Você vem ou não? — perguntou Brick, movendo-se com cuidado para o lado. Cal subiu mais algumas escoras, tentando, sem conseguir, não olhar para baixo. O pátio agora era uma massa palpitante de uniformes negros e rostos tomados pelo ódio.

Respirou fundo e se lançou contra o muro, o estômago revirando loucamente enquanto estendia a mão para uma das estacas. Ela lhe fez um corte na mão, mas ele a segurou com firmeza mesmo assim, subindo até ficar empoleirado na beirada. Um olhar rápido para o outro lado revelou uma queda crua em um terreno aberto, só areia, vegetação e alguns itens de comida.

Juntos, viraram para o terreno, ficando diretamente acima do local da queda. O helicóptero girava acima, mas descendo cada vez mais em ângulo, bombardeando-os com um furacão de vento e ruído. Cal olhou para Brick e sorriu.

— Isto é insano. Se a gente morrer, só quero que você saiba que é um babaca — gritou ele.

Brick sorriu em resposta.

— Eu sei.

Então, os dois saltaram.


Rilke

Furiaville, 18h14

Era como ver uma dúzia de filmes diferentes ao mesmo tempo, em uma televisão que mudava louca e aleatoriamente de canal.

Rilke conseguia captar lampejos — um enorme contêiner de aço que reluzia ferozmente ao sol, um muro com estacas, um carro em movimento, uma ambulância em chamas. Porém não compreendia direito o que via. Tudo o que sabia era que seu plano estava dando certo. Os outros, aqueles que lhe tinham dado as costas, agora encontravam-se à mercê da Fúria. Ou se afogariam em um oceano de raiva humana, ou seriam forçados a agir, a fazer o que tinham vindo ali para fazer.

Teriam de entrar em combate.

Abriu os olhos. Parte da loucura do lado de fora escapava para o interior do restaurante. Sirenes distantes iam e vinham em compasso com a doce calmaria do mar, além do rugido gorgolejante de um incêndio. Havia também um helicóptero. Perguntou-se quanto tempo ele ficaria no céu até que o piloto fosse consumido pela Fúria.

— A gente não devia ir lá para ajudar eles? — sussurrou Jade. — Eles vão morrer.

— Não, se abraçarem seu dom — respondeu Rilke.

Schiller já estava quieto fazia algum tempo, mas começava a se agitar outra vez. O braço esquerdo ainda pendia daquele jeito peculiar, um caroço sob a pele onde a junta se tornara protuberante. Todavia, ele não parecia sentir dor nenhuma. Na verdade, estava mais forte do que ela jamais vira, um olhar tão intenso que era preciso desviar os olhos dele.

— Mas o que vai acontecer quando os outros forem presos, ou mortos? — perguntou Marcus. — A polícia não vai vir aqui? Não vai sentir a nossa presença?

— Vai — disse ela, olhando outra vez para o irmão. — Mas estaremos prontos para eles. Não estaremos, Schill?

Schiller levantou o braço bom, observando a mão como se nunca a tivesse visto antes. Ela irrompeu em chamas, línguas azuis suaves que acariciavam sua pele, precipitando-se entre os dedos. Ele pressionou a palma incandescente contra o ombro deslocado, as chamas brincalhonas espalhando-se. Com uma série de estalos bruscos e úmidos, o braço voltou ao lugar. Ele estendeu as duas mãos à frente, irradiando luz gélida. Sorria.

— Ah, se estaremos — disse Rilke, sorrindo para ele. — Vamos estar prontíssimos.


Daisy

Hemmingway, 18h15

— Chris, dê a volta, a gente não pode largar eles aqui!

Chris ignorou-a, o carro acelerando com força, uma mão invisível empurrando-a de volta ao assento. Ela gritou de novo, e desta vez ele pisou fundo no freio, os pneus cantando enquanto paravam. Não foram, porém, os pedidos dela que o detiveram. À frente, bloqueando a estrada, estava um carro da polícia, piscando as luzes azuis.

— Não! — berrou Chris, lutando para engatar a ré. Assim que o fez, girou o carro, arrancando um pedaço de terra do meio-fio ao se dirigir de novo para o lugar de onde tinham vindo. A polícia veio atrás, chegando bem perto deles. Daisy se virou, olhando a policial que dirigia, vendo o exato instante em que seu rosto passou de um zangado normal a uma fúria enlouquecedora. Ela largou o volante e estendeu a mão por cima dele. O homem ao lado dela fazia o mesmo, inclinando-se para a frente no assento, os gritos embaçando o para-brisa.

Como nenhum dos dois assumia mais o volante, a viatura bateu no meio-fio e capotou, janelas se estilhaçando e airbags se ativando. Chris afastava-se rápido demais para que pudesse ver o que acontecera com as pessoas lá dentro. A ambulância em chamas estava à frente, e Chris girou o volante, Daisy escorregando pelo banco de couro para cima de Adam enquanto entravam de novo na concessionária Soapy’s. Dois policiais esperavam por eles. Um passou zunindo pela janela, a velocidade do carro alta demais para disparar a Fúria. O outro quicou no capô, rolando por cima do carro e caindo no chão, o corpo mole.

— Chris, não! — Daisy choramingou. — Você está matando eles!

Ele não respondeu, os olhos se arregalando no retrovisor. Manteve o pé firme enquanto iam com tudo contra a cerca enferrujada nos fundos do pátio. Daisy passou os braços pelos ombros de Adam — o menino ainda em silêncio total —, o impacto lançando-a no ar e fazendo sua cabeça bater no teto.

Ela fechou os olhos para afastar a dor e, ao abri-los, viu que estavam em um enorme campo aberto. A fábrica ficava na outra extremidade, a construção maciça e sem graça tomando o para-brisa rachado. Engoliu outro grito quando o carro quicou na superfície irregular, as entranhas se sacudindo dentro do corpo, prestes a se despedaçar. Pelo menos estavam na direção certa. Talvez conseguissem encontrar Cal e Brick.

Uma nova sirene, e outra viatura passou pelo trecho aberto da cerca, perseguindo-os. Esse carro era maior, um daqueles jipões. Nem parecia notar as crateras e os montículos do terreno, aumentando de tamanho atrás deles como um tubarão no oceano.

— Não! — gritou Daisy para os policiais ali dentro, a voz se perdendo em meio ao estrondo dos motores. — Vocês vão se machucar!

Mas eles já tinham sido tomados pela Fúria, nada além de olhos em chamas e dentes em meia-lua na escuridão do 4 X 4. Eles se desviaram de um buraco, a traseira quicando acima do chão. A visão pelas janelas subia e descia como a sala do leme de um navio em um mar tempestuoso. Daisy teve tempo de ver a vala à frente, uma cicatriz profunda que avançava por toda a extensão daquele terreno.

Então o carro mergulhou nela, e seu mundo se apagou.


Cal

Hemmingway, 18h23

Cal gritou ao pousar, as pernas se afundando no solo macio, arenoso. A dor no joelho foi como uma faca envenenada girando na cartilagem. Ouviu-se um baque na hora em que Brick caiu a seu lado, rolando desajeitadamente para longe do muro. Logo ele se pôs de pé, pegando o saco que Cal tinha jogado, antes de correr até ele e lhe estender a mão.

— Tudo bem? — Brick perguntou, levantando-o. A dor recrudesceu assim que ele apoiou o pé, e não pôde evitar que um gemido saísse de seus lábios.

— Tudo bem — disse ele, mancando pelo terreno irregular. Brick saiu correndo, catando freneticamente a comida na vegetação baixa e jogando tudo o que podia no saco. De trás deles vinha um coral de uivos fantasmagóricos de arrebentar os nervos, e o ribombar de punhos contra o muro. Os policiais voltariam ao normal assim que ele e Brick estivessem fora de alcance, e então retomariam a perseguição. O helicóptero rugia acima deles, aplainando os trechos de vegetação e fazendo o campo ondular feito água. Era tanto barulho que Cal não escutou o rugido dos motores até que se ouvisse um baque fabuloso do outro lado do campo.

Voltou-se para o lugar e viu um carro prata capotando de frente, o capô amassando como um punho socando a terra, e em seguida caindo sobre o próprio teto. Um Land Rover da polícia fez um gracioso salto-mortal por cima dele, perdendo energia em pleno ar e caindo de lado. Os destroços vomitavam fumaça, mas, pela cortina negra e agitada, Cal reconheceu o motorista.

— É o Chris — disse ele, apontando. Começou a correr, esquecendo o joelho torcido.

— Lá vêm eles — gritou Brick, passando o saco por cima do ombro. Cal virou-se para trás e viu quatro ou cinco policiais correndo da estrada principal, todos gritando e apontando para eles. Estavam a talvez uns cem metros, mas logo os alcançariam, quando a Fúria tomasse conta deles.

Vamos morrer, pensou Cal, e ficou surpreso com a ausência de emoção. Era uma afirmação factual, que parecia não ter peso algum. Na verdade, dava-lhe certo alívio. Chega de correr, chega de se esconder, chega de não saber. Apenas a morte.

Mas pensou em Daisy, de cabeça para baixo no carro, arranhando a janela enquanto a fumaça preenchia seus pulmões. Correu com mais vigor, baixando a cabeça e ultrapassando Brick. A distância, outro Land Rover saía da Soapy’s, a construção maciça de Fursville pendendo acima dele como uma nuvem negra enquanto ele acelerava pelo terreno. Inacreditavelmente, alguém saía do Land Rover capotado, uma figura desgrenhada cujo uniforme policial tinha sido quase todo rasgado. O homem cambaleou ao se levantar, e então pareceu desabar sobre o Jaguar de ponta-cabeça, chutando a janela ao cair.

— O que faremos? — perguntou Brick, ofegante.

Já estavam a meio caminho entre a fábrica e o carro, o som de gritos atrás deles aumentando e ficando acima do estrondo do helicóptero. Havia latidos também. Não demoraria muito até que Cal sentisse dentes afiados feito agulhas em suas pernas, fazendo-o despencar no chão. Aí, sim, seria game over.

— Cal? O que vamos fazer?

Ele não tinha um plano, só instinto. Se ao menos pudessem chegar até o carro, se ao menos pudessem chegar até Daisy, se ao menos pudessem chegar ao parque, tudo daria certo.

— Continue a correr — gritou ele. A distância até o carro diminuía, mas o outro Land Rover os alcançaria antes. Não importava. — Continue correndo, e confie em mim.


Daisy

Hemmingway, 18h25

Alguém sacudia Daisy e a despertava de um sonho incandescente. Sentia-se feliz, porque em seu sonho o mundo inteiro estava em chamas, mas, em vez de calor, fazia frio — corpos congelando, prédios desabando enquanto neve cor de cinza caía dos céus.

Abriu os olhos de repente, pensando a princípio que seu sonho tinha virado realidade. Tudo estava errado, o mundo de cabeça para baixo, sua cabeça envolta em uma fumaça horrível e sufocante. Seu corpo inteiro doía, mas havia uma dor realmente forte e cortante em seu pescoço. Quando levantou a mão — não, abaixou —, sentiu um nó ali, pressionando sua pele. Precisou de um instante para perceber que era o cinto de segurança.

Precisou de mais um instante para se dar conta de que Adam estava a seu lado, agachado no teto que agora era o chão. Suas mãos pequeninas estavam nos ombros dela, sacudindo-a com força, e seu rosto cheio de fuligem abriu-se como uma flor ao ver que ela tinha despertado.

— Tudo bem? — quis perguntar, as palavras tornando-se uma tosse seca. Alguma coisa batia ali, um pé descalço contra a janela, os dedos roxos e retorcidos de maneira antinatural. As lembranças de Daisy brilharam na fumaça, a viatura que os tinha perseguido, e então Chris dirigindo para dentro de uma vala.

Chris. Ele também estava suspenso do lado errado, no banco do motorista. Escorria um sangue incessante de seu nariz, formando uma pequena poça no teto. Ela chamou o nome dele entre tosses, mas ele não respondeu.

Adam mexia em algo no assento, e ela seguiu as mãos dele até o fecho do cinto de segurança. O botão não se movia, não importando a força com que o apertasse. Uma forte onda de claustrofobia percorreu-a, e ela gritou, puxando o cinto em uma tentativa de se libertar. Havia um cheiro esquisito no ar, além do de fumaça. Era parecido com o cheiro que o pai dela tinha toda vez que preparava churrasco no verão. Era o horripilante fedor de combustível que surgia logo antes de um incêndio.

— Saia — disse ela a Adam. — Vá embora daqui.

Não tinha certeza se tinha falado ou tossido. De qualquer jeito, Adam não dava sinal de que iria embora. Ele puxava o cinto dela, emitindo gemidos baixinhos e assustados, o rosto retorcido pelo esforço. Ela ouviu outro motor soando lá fora, e depois o carro em que estavam balançou com força, algo colidindo contra ele. O espaço restrito pareceu diminuir e escurecer ainda mais, como se tivesse afundado no chão. Fez-se um som baixinho de vum, e o ar oscilou, reluzente.

— Adam, por favor, você precisa sair ou vai morrer aqui.

Ele balançou a cabeça em uma negativa, ainda puxando o cinto dela. Ouviu-se um grito do lado de fora, e a janela a seu lado partiu-se. Um par de mãos ásperas e ensanguentadas entrou. Ela berrou, dedos como anzóis de aço em seu crânio. Outro baque, um sorriso assassino deslizando pelo porta-malas, e unhas ensanguentadas na garganta de Adam.

A visão de Daisy apagava-se, a dor forte demais para suportar. E o pior de tudo era que, à medida que as sombras e a fumaça entravam em sua cabeça, transformando tudo em penumbra, só conseguia escutar a voz de Rilke. Eu falei, dizia ela. Por que você não me ouviu?

Porém, se Rilke estava certa, e estavam ali para matar as pessoas pelo mundo, então Daisy na verdade não queria viver mais. Preferia estar com o pai e a mãe, onde quer que se encontrassem. Pelo menos desse jeito ela poderia voltar para seu lar.

Desvencilhou-se das garras que rasgavam seu couro cabeludo, e estendeu a mão para Adam.

— Vai ficar tudo bem — disse ela. — Vamos partir juntos, e eu vou sempre cuidar de você.

Ainda que estivesse sendo arrastado para fora do carro, Adam pareceu ouvir. Estendeu a mão, esticando os dedos para ela. E, incrivelmente, sorria.

Não é um jeito tão ruim de partir, pensou Daisy. Olhando um sorriso.

E, sorrindo em resposta, alcançou a mão dele.


Brick

Hemmingway, 18h27

Brick estava a apenas dez metros de distância quando o carro explodiu.

O Jaguar capotado fora cercado, cinco policiais chutando-o e socando-o, tentando entrar. Um deles tinha a mão dentro da janela de trás, e Brick distinguiu um rosto conhecido em meio à agitação da fumaça. Daisy. A raiva fervilhou em seu estômago, uivando de sua boca como um grito entrecortado.

— Deixe-a em paz!

Então, um flash de pura luz branca, uma bolha que se expandiu do carro e mandou a fumaça para longe. Brick se jogou no chão, uma mão cobrindo o rosto, aguardando o incêndio.

Que não veio.

Levantou o rosto e viu uma penetrante luz branca envolver os policiais, ardendo através deles. Eles se desfizeram em cinzas como gravetos secos, enchendo o ar com uma tempestade de neve cinza e incandescente. O orbe ofuscante oscilou, e em seguida foi sugado de volta para o carro a uma velocidade estonteante. Uma onda de choque golpeou o terreno, um estrondo de trovão que quase arrancou a cabeça de Brick do corpo. Depois, um silêncio inacreditável.

Ele se pôs de pé cambaleando, tentando se equilibrar. A seu lado, Cal fazia o mesmo, colocando e tirando o dedo da orelha, como se estivesse surdo. Espiaram em meio ao silêncio infinito, vendo a massa crescente de policiais galopando para eles da estrada, ainda sem estar perto o suficiente para terem sido tomados pela Fúria. Na outra direção estava o Jaguar, dentro de uma tempestade de cinzas incandescentes, nenhum sinal de vida em lugar algum próximo dele.

— O que aconteceu? — A voz de Cal parecia estar a um quilômetro de distância. Brick abriu e fechou os maxilares, o som pouco a pouco retornando ao mundo. O helicóptero tinha se afastado da explosão, mas pairava acima deles de novo, a corrente de ar descendente fazendo o cabelo ondular.

Brick não respondeu, só voltou a correr. Foi só depois de alguns passos que se deu conta de ter deixado para trás o saco de comida semicompleto. Não que fizesse diferença — por mais faminto que estivesse, não parecia provável que qualquer um deles fosse viver tempo suficiente para comer outra vez. Chegou ao carro em segundos e caiu de joelhos a seu lado. Cinzas quentes dançavam em seu rosto, queimando a pele onde pousavam. Afastou os flocos cadentes de pessoas mortas, espreitando em meio à esmagadora escuridão e vendo Chris ali.

— Daisy? — gritou Cal, agachando-se ao lado dele. Ambos olharam para o banco de trás. Estava vazio. — Ele deve ter deixado os dois em algum lugar. Vamos, me ajude a tirá-lo daqui.

— Mas eu acabei de vê-la — Brick começou a dizer, perguntando-se se não teria apenas imaginado o rosto dela no redemoinho de caos.

Cal testou a porta, mas ela estava toda retorcida. Deu um passo para trás e chutou o vidro rachado da janela, estendendo a mão pela fresta e chamando por Chris. Brick levantou o rosto, a turba de policiais talvez a uns trinta metros, perto o bastante para fazer o chão estremecer. Havia um batalhão deles.

Ele enfiou o braço ao lado de Cal, ambos tentando soltar o cinto de segurança. Havia uma poça de sangue no carro, ainda pingando do nariz de Chris. Ele estava inconsciente, o corpo imóvel impossibilitando que fosse resgatado. Brick olhou de novo. Vinte metros, e os da frente já estavam ficando furiosos. Pegou os ombros de Cal, afastando-o da janela.

— A gente não pode deixar ele aqui! — gritou Cal, pressionando o corpo para trás, enquanto dava um safanão no garoto ali dentro.

— Vamos ter que deixar — disse Brick. Quinze metros, e uma linha de rostos fantasmagóricos. — Cal, vamos!

— Desculpe, cara! — disse ele. Então voltaram a correr, fugindo da loucura atrás deles.


Daisy

Hemmingway, 18h29

Daisy tinha a sensação de que estivera dentro de uma secadora de roupas, a cabeça girando e o estômago se revirando. Curvou-se, um jato de vômito leitoso irrompendo de sua boca. Flocos de fogo assentaram-se na poça, sibilando à medida que seu calor se extinguia. O ar ganhara vida com vaga-lumes, aquelas mesmas cinzas incandescentes que tinha visto no restaurante com Rilke.

Percebeu que ainda havia uma mão na dela e, observando melhor, viu Adam ali, um halo de cinzas em volta de sua cabeça, caindo sobre os ombros. Ele ainda sorria.

Daisy levantou-se cambaleando. Estava em um campo aberto. O mesmo campo. Porém, ela estava fora do carro prata capotado lá. Virou-se e viu a concessionária deserta a seu lado e, atrás, o sorriso banguela e enorme da roda-gigante dentro de Fursville.

Nós nos movemos, percebeu ela. Tocamos as mãos e de algum modo viemos de lá para cá.

Pouco a pouco, pedaços de realidade começaram a se juntar, encaixando-se — o som de sirenes e a mosca estufada e negra que pairava sobre o carro distante. Estreitando os olhos contra o sol, distinguiu um enxame de pessoas correndo pelo outro lado do campo, e mais duas correndo em sua direção.

— Cal! — gritou ela, reconhecendo-as. — Brick!

Apertou com mais força a mão de Adam e começou a correr, tropeçando pelo terreno irregular e em fragmentos de grama mais alta, até que estivessem suficientemente próximos para se ouvirem.

— Daisy? — gritou Cal. — Tudo bem?

— Tudo bem — disse ela detendo-se, sem fôlego. Os dois garotos galopavam em sua direção, ambos encharcados de suor. Olharam para trás e observaram o terreno. Não se via o carro, que estava sob uma massa de silhuetas retorcidas de roupas pretas, o helicóptero pairando acima e fazendo com que toda aquela cena horrenda nadasse em poeira.

— Chris — disse Daisy, as lágrimas borbulhando, mesmo que não quisesse. O que quer que tivessem feito, ela e Adam o haviam deixado para trás. Espreitou através do borrão que era sua visão, vendo Cal balançar a cabeça.

— Sinto muito, Daisy. Não conseguimos tirar ele de lá.

Ainda há tempo. Ela não falou, porém, porque era mentira.

— A gente devia dar o fora daqui — disse Brick. — Podemos nos esconder no parque. É nossa única chance.

Contudo, nenhum deles se mexeu, observando a horda embrenhar-se carro capotado adentro. E todos sentiram quando Chris morreu, uma súbita sombra fria na cabeça, como se alguma coisa tivesse sido desligada. Uma figura incandescente pareceu esforçar-se para sair dos destroços, uma forma bruxuleante, imaterial, feita de chamas. Abriu suas asas enormes e graciosas, abriu a boca como que para uivar, e em seguida evaporou em meio ao calor e ao ruído do campo.

Era o anjo de Chris, pensou Daisy. Ele morreu também.

— Vamos — disse Brick. — Vamos sair daqui.

Daisy olhou por um instante a mais, e a polícia pareceu sair de seu transe. Alguns tinham as mãos vermelhas e reluzentes. Ela sentiu muito ódio deles. Não importava que não soubessem o que faziam, que não fosse realmente culpa deles. Ainda assim, tinham-no matado. E alguns já se viravam para encará-la, apontando e gritando. O helicóptero virou-se também, dirigindo-se ao parque.

Treparam na cerca quebrada que levava de volta à Soapy’s, passando às pressas pelos corpos do segurança e do policial. A ambulância estava à direita deles, apenas uma carcaça fumegante. Porém não havia mais ninguém à vista. Daisy ergueu o rosto enquanto corriam pela estrada, vendo a placa que Brick tinha pintado. Furiaville. Cal desapareceu pela sebe espessa, e o restante deles foi em seu encalço. Só no bem-vindo frescor das sombras foi que Brick falou com ela.

— O que aconteceu lá? — perguntou ele. — No carro? Vi você lá dentro, mas depois você sumiu.

— Foram os anjos — disse ela. — Rilke tinha razão. Eles nos moveram. Eles nos salvaram.

— E o que vai acontecer agora?

— Acho que alguma coisa ruim — disse ela, balançando a cabeça. — Não sei.

Não sabia, mas não tinha visto? O parque afogando-se em chamas, e Rilke no meio daquele inferno, rindo. Que escolha tinham eles, porém? Lá fora só havia a Fúria, só havia morte. Ao menos ali dentro estavam juntos.

Brick manteve o olhar fixo no dela por mais um instante, e depois pegou-a pela mão, conduzindo-a ao parque.


Rilke

Furiaville, 18h33

— Eles estão aqui — disse Schiller.

Rilke endireitou as costas ao ouvir a voz do irmão, as primeiras palavras que ele dizia desde que tudo aquilo havia começado. A voz era a mesma, mas diferente. Havia uma profundeza oculta naquele tom familiar e lamuriante. Alguma coisa atemporal, que ressoava dentro do crânio dela.

Ela o observou. As mãos dele ainda estavam em chamas, tingindo o salão com um brilho cintilante. Enquanto o olhava, o fogo se espalhou para seus braços, envolvendo o tronco, o pescoço e, por fim, o rosto. Seus olhos eram como dois sóis raivosos, a luminosidade deles avassaladora. Rilke os encarou fixamente, e era como se enxergasse, através do gêmeo, um reinado de puro ser, um lugar de força aterrorizante, hipnotizante.

Schiller deu de ombros, e desta vez duas asas translúcidas desfraldaram-se com elegância atrás dele, estendendo-se sobre sua cabeça como velas gêmeas. Pareciam cintilar para dentro e para fora dele, como se fossem feitas só de ar, de calor. Ele as estendeu, as pontas quase tocando as paredes opostas do salão, e, quando as recolheu, produziram um turbilhão de vento que fez Marcus e Jade rolarem pelo salão e mesas e cadeiras colidirem contra as paredes. Rilke, porém, manteve-se firme contra o golpe gélido, ajoelhando diante do irmão como se rezasse diante de um altar.

Nunca o amara tanto.

— Você sabe o que fazer — disse-lhe Rilke. Ele inclinou a cabeça, parecendo incerto.

— Acho que sim.

— Você sabe — repetiu Rilke, levantando-se e aproximando-se dele. — Porque eu lhe expliquei por que estamos aqui, por que isto está acontecendo. Não me decepcione, Schiller. Não os decepcione.

O fogo de Schiller se intensificou, e ele sorriu para ela.

— Não vou, irmã. Prometo.

Jade arrastava-se freneticamente pelo chão, os olhos vidrados. Prostrou-se ao lado de Rilke, rindo. Marcus encostou-se na parede dos fundos, balançando a cabeça. Schiller estendeu as asas de novo, e com um pequenino esforço ergueu-se no ar. Começou a se mexer, sem andar, apenas levitando a cerca de trinta centímetros do chão. Abaixo dele, as coisas pareciam crescer do piso — formas trêmulas que pareciam plantas em flor, mas que eram feitas de chama, girando e se dissolvendo após um breve instante.

— Aonde ele está indo? — perguntou Jade.

— Ele vai fazer o que foi convocado a fazer — disse Rilke, observando o irmão flutuar como um fantasma para as portas. Ele as empurrou, a madeira evaporando-se a seu toque, florescendo em uma nuvem de pó e de cinzas que desafiava a gravidade, flutuando com a energia que irradiava dele. Rilke seguiu-o enquanto ele descia a escada, Jade grudada nela, Marcus também, todos pisando com cuidado no carpete de ramos brilhantes que Schiller ia deixando. Ele ainda emitia aquele zumbido supersônico, um som que fazia o ar tremer.

— Fazer o que todos fomos convocados a fazer — disse Rilke. Sentia-se até zonza de tanta empolgação, uma onda de deleite insano irrompendo por sua garganta e explodindo dos lábios sorridentes. — Ele vai começar uma guerra.


Cal

Furiaville, 18h35

Brick foi à frente rumo à Estação Dodói, no rosto uma careta de pânico enquanto o helicóptero sobrevoava o espaço acima deles. Um tornado de dejetos rodopiava no caminho estreito, o mundo sacudido pelo estrondo incansável do helicóptero. Cal segurava a mão de Daisy, cerrando os olhos contra o pó, tentando lembrar o caminho. Ouviu Brick gritar:

— Para onde é que a gente está indo? — Pelo menos pareceu que ele disse isso. Não havia mais ar, só a poeira uivante.

Ele abriu os olhos apenas o tanto que pôde, apontando o caminho.

— Pavilhão — gritou. Não que fosse exatamente seguro, mas não havia outro lugar para onde ir. Em segundos o parque estaria infestado de policiais, todos tomados pela Fúria. Se conseguissem entrar, talvez pudessem bloquear as portas, resistir até pensar em um plano. Brick deu de ombros, colocando a mão em concha no ouvido. — Pavilhão! — repetiu Cal, tão alto quanto possível.

Não esperou para ver se Brick tinha entendido, só arrastou Daisy por aquele caminho e depois até o carrossel. O helicóptero contornou a roda-gigante, o vento diminuindo. Naquela súbita calmaria, Cal conseguiu distinguir vozes atrás dele. Olhou para trás a tempo de ver os portões principais incharem-se para dentro, cuspindo estilhaços. Ouviu-se o ronco de um motor, e com um baque gigantesco as correntes se arrebentaram. Um Land Rover adentrou o parque, o capô fumegando, e um rio de policiais veio atrás.

— Não se mexam! — gritou um deles, apontando direto para Cal. — Ou vamos abrir fogo.

Abrir fogo?

Três policiais de capacete com submetralhadoras correram para a frente da formação. Agacharam-se, as armas em posição. Mesmo dali, Cal via que os dedos estavam no gatilho. Quem poderia culpá-los? Tinham acabado de ver os companheiros virarem cinzas. Ergueu as mãos, virando-se para os outros e articulando as palavras: O que vamos fazer?

Porém não havia nada que pudessem fazer. Se corressem, provavelmente seriam metralhados. Se ficassem, seriam despedaçados assim que os policiais se aproximassem um pouco mais.

— Somos apenas garotos — gritou Cal. — Não atirem.

— Fiquem onde estão — berrou o mesmo homem de antes. Alguns dos policiais moviam-se com cuidado para a frente.

— Não, por favor — disse Daisy, soluçando. — Se vocês se aproximarem da gente, vão acontecer coisas ruins. Por favor, não se aproximem.

— Pois é — disse Brick, a voz entrecortada quase inaudível. — Temos uma bomba.

A polícia hesitou.

— Uma bomba? — sibilou Cal, olhando para Brick. — Agora é que eles vão atirar na gente, com certeza.

— Precisamos que coloque o dispositivo no chão — gritou o homem, as palavras abafadas pelo helicóptero que circulava acima. — E se afaste. Faça isso, ou seremos obrigados a atirar.

— E agora? — disse Cal.

— Como é que eu vou saber? — vociferou Brick. Deu um passo para trás, as mãos travadas no cabelo.

— Brick, fique parado, pelo amor de Deus — disse Cal. Porém Brick não ouvia, e deu mais um passo, e mais outro. Seu corpo estava rígido, como se estivesse prestes a sair correndo. — Brick, não!

Enquanto falava, percebeu que o helicóptero não era mais o som que reinava no parque. Havia algo mais alto, um zumbido dentro de sua cabeça, baixinho mas ensurdecedor. Era como o som que um amplificador faz quando você liga uma guitarra elétrica nele mas não toca nota nenhuma; um zumbido abafado que fazia seu crânio vibrar. Brick obviamente podia ouvi-lo também, pois tampou as orelhas com força, berrando.

Um uivo agudo: um dos policiais cruzando a linha invisível da Fúria. Seu rosto retorceu-se em uma careta que quase não era humana, uma genuína raiva impelindo-o. Alguém mais, uma policial, foi atrás dele, ambos furiosos, precipitando-se pelo caminho.

Não havia mais nada a fazer. Cal virou-se e correu, todos correram, enquanto o ar atrás deles era rasgado por tiros.


Brick

Furiaville, 18h39

A adrenalina fazia o mundo girar em câmera lenta. Algo apitou atrás do ouvido de Brick, parecendo uma vespa, espetando sua carne. Ele se agachou, braços e pernas como pistões enquanto corria para o pavilhão, o cérebro gritando Eu não, eu não, eu não sincronizado com a forte batida de cada passo que ele dava. Não olhou para trás — não por causa do medo, mas por causa da culpa de deixar os outros para trás.

Estava a meio caminho quando viu, a visão arrancando cada grama de sua força, fazendo-o desabar de joelhos.

Schiller flutuava para fora do pavilhão, banhado em chamas, as paredes do prédio literalmente descascando-se à sua passagem, como extremidades de papel incandescente. Seus pés não tocavam o chão, uma força invisível mantendo-o acima. Algo se estendia de suas costas: um par de asas feito de chamas finas como gaze. O rosto do garoto não era mais dele — os olhos eram fornalhas gêmeas que ardiam pelo parque, destituídas de toda emoção. Era a coisa mais assustadora que Brick já vira.

Ouviram-se tiros, agora mais distantes. Mas eles não importavam mais. Brick ouvia gritos também, gritos de Fúria, mas não conseguia se lembrar de como sentir medo. Era capaz apenas de mirar Schiller enquanto ele avançava. Poderia olhá-lo para sempre, mesmo que seus olhos queimados caíssem das órbitas. Era possível que uma criatura como aquela vivesse dentro dele também, em estado latente agora, mas pronta para despertar e reter o mesmo poder? Pela primeira vez ele acreditou — acreditou no que Rilke dissera.

Schiller o alcançou, fazendo do caminho uma erupção de plantas em chamas que se curvavam e desapareciam tão rápido quanto apareciam. O zumbido no ar era incrível, uma corrente de pura energia. Brick se virou, ainda de joelhos, observando o garoto — o anjo — levitar para a frente do parque.

Lá havia o caos. Cal estava no chão, preso por dois policiais, as pernas se debatendo em desespero enquanto eles o atacavam. Daisy e Adam ainda corriam, ambos quase cegos devido às lágrimas. Atrás deles havia uma muralha em ebulição de policiais furiosos. Os três homens armados ainda disparavam. Uma bala perfurou o ombro de Daisy, surgindo do outro lado e arrastando consigo uma cauda de cometa de sangue vermelho-escuro. O impacto lançou-a para a frente, fazendo-a rolar no chão até escorregar e parar, imóvel.

— Daisy! — gritou Brick. Foi até ela, derrapando a seu lado e erguendo sua cabeça. Os olhos da garota estavam abertos, mas não enxergavam nada. Adam estava ali também, segurando a mão dela com as duas mãos, puxando-a como se estivesse tentando despertá-la. — Não! — gritou Brick, a palavra tão fraca e inútil quanto ele, abafada pelos tiros, pelo rugido do helicóptero e por aquele zumbido infinito de pesadelo.

Brick apoiou Daisy e pressionou a mão contra o ferimento, o sangue escorrendo entre seus dedos, tão quente que parecia escaldá-lo. Ele a abraçou, querendo que aquilo acabasse, querendo que tudo terminasse. Era demais.

Schiller virou a cabeça, examinando o parque com aqueles poços de luz sem alma. Os homens com armas voltaram-nas para ele — exceto um, que arrancou o capacete e começou a atacar a própria cabeça em um acesso de insanidade. As balas pareciam se congelar quando alcançavam o garoto, penduradas no ar à frente dele e formando uma cortina cintilante de chumbo. Com um gesto de mão, Schiller espalhou as balas em todas as direções, uma dúzia de policiais lançados para trás enquanto cabeças e peitos explodiam.

Mate-os, gritou Brick em silêncio. E ele desejava isso mais do que tudo. Aqueles humanos ridículos, assassinos, que tinham invadido seu lar, atacado seus amigos. Tinham desistido, portanto, do direito de viver. Abraçou Daisy com força, disparando a mensagem para o garoto suspenso em seu berço de chamas. Mate-os todos, mate-os já.

Uma mão pousou em seu ombro, e ele, erguendo os olhos, viu Rilke. Jade e Marcus estavam atrás dela, ambos petrificados pela criatura à sua frente. Rilke abriu-lhe um sorriso.

— Ele vai fazer isso — disse ela, banhada no brilho dourado do irmão. — Veja só.

Schiller abriu os braços, como se estivesse prestes a abraçar alguém. Seus olhos fixaram-se nos policiais. Uma parte cada vez maior deles ficava furiosa, correndo pelo caminho em direção ao anjo. Mesmo os que pisoteavam Cal mudaram de alvo, dirigindo-se ao garoto flutuante.

Mas nem sequer chegaram perto.

Sem que precisasse tocá-los, Schiller ergueu os dois homens mais próximos no ar e virou-os de dentro para fora — corpos se revirando até que não fossem nada além de carne mutilada. Moveu a mão, e os cadáveres arruinados voaram por sobre o parque, subindo para o céu cada vez mais escuro, como que catapultados. Os outros furiosos nem repararam e continuaram a ir para cima dele sem pensar, os dentes à mostra, os dedos estendidos em garras.

Schiller virou a cabeça, e outra dúzia de policiais foi banida para o alto pela mesma força invisível. Desta vez, foram jogados uns contra os outros, esmagados em uma esfera gigante de membros que se agitavam. A esfera girava insanamente, ficando menor e menor, com um coro de ossos estalando até que aqueles doze homens e mulheres não fossem maiores que uma bola de praia. O bolo emaranhado de carne despencou no chão com força suficiente para rachar o concreto, uma teia de fendas estendendo-se da cratera.

Isso não é certo, algo em Brick protestava. Mas colocou as palavras de lado. Não queria ouvi-las.

O helicóptero recuava, subindo com rapidez. Schiller bateu aquelas asas enormes e lançou-se ao ar. Subiu com a máquina, e, ainda que não tivesse colocado um dedo sequer nela, os rotores deformaram-se e retorceram-se, soltando-se com um rangido de rachar os tímpanos. O resto do helicóptero começou a despencar, algo vermelho e úmido florescendo atrás do vidro trincado. Então a máquina caiu de lado com força incrível, abrindo um buraco pelo pavilhão e pela cerca do outro lado, escavando uma trincheira de mais de um quilômetro pela superfície do mar.

Os furiosos continuavam vindo, mas Schiller apenas começava a experimentar seus poderes. Desceu de novo, pairando um pouco acima do chão e esticando os braços outra vez. O zumbido elétrico ficou mais alto, os tímpanos de Brick parecendo prestes a implodir. As chamas em volta do garoto eram brilhantes como sinalizadores de magnésio, abrindo um buraco na superfície da própria realidade. Sua boca se abriu, um bolsão de puro brilho.

E então ele falou.

Sua voz era destituída de palavras e apocalíptica. Era um rugido que rasgava o ar e fazia o chão tremer, levantando pó. Tudo em seu caminho se fraturou e desintegrou — o concreto e as pedras, o Land Rover, os tijolos nos muros, os portões de metal, carne, sangue e ossos dos furiosos, a lama e a grama no campo do outro lado — um tsunami de matéria que se erguia pelo ar, apagando cada migalha de luz.

Brick gritou, à beira da loucura, enquanto aquela nuvem subia e subia em uma noite sem fim e sem luz.

Então a voz de Schiller morreu, e a noite morreu com ela, um milhão de toneladas de detritos caindo de volta em seu local de repouso. Brick curvou-se contra si próprio, o ruído inacreditável no ar, absolutamente aterrorizante. O mundo tremeu, tremeu e tremeu.

E, enfim, ficou em silêncio.


Cal

Furiaville, 19h05

Até onde enxergava, o mundo era um oceano de ruínas; uma paisagem de destroços e de terra revirada, fendida e fragmentada até a fábrica distante. Nem ela tinha escapado incólume, pilares de fumaça subindo em frente ao sol carrancudo como as grades de uma cela de prisão. Ainda caía poeira, além de uma chuva de terra, sangue e ossos, que sapateava sobre o vasto túmulo que outrora fora Hemmingway.

Cada poro do corpo de Cal doía. Achava que seu nariz estava quebrado, e havia marcas em seu rosto e no pescoço nos lugares em que os furiosos o tinham atacado. Um de seus dedos tinha entortado em um ângulo esquisito, dolorido demais para ser tocado. Ele o abrigou contra o peito. Deveria se sentir agradecido por estar vivo. Mas não se sentia assim. O custo de sua sobrevivência fora alto demais. Não era só a cidade que tinha desaparecido. Tudo o que conhecia havia mudado irrevogavelmente.

Precisou de um instante para encontrar coragem e olhar ao redor. A primeira coisa que viu foi Schiller. O menino estava sentado no chão, as pernas contra o peito, nenhum vestígio de chamas, das asas ou daqueles olhos faiscantes como estrelas. Estava todo trêmulo, e a irmã, agachada a seu lado, os braços envoltos em seus ombros. Jade e Marcus estavam ali perto também, abraçados.

Brick estava do outro lado, perto de Adam. Estava abraçando algo, e, quando Cal se deu conta de que era Daisy, levantou-se, indo aos tropeços até eles. A menina tinha a palidez da morte, uma ferida feia no ombro. Mas estava viva. Sua respiração baixinha e superficial encheu-o de tanto alívio que só reparou na temperatura quando tocou nela.

Estava congelando.

Afastou a mão como se tivesse levado um choque elétrico. A pele dela estava perolizada pelo gelo, o frio que emanava dela como o de uma brisa de inverno.

— Daisy? — sussurrou, acariciando sua bochecha. — Daisy? Está me ouvindo?

— Ela não responde — disse Brick, batendo os dentes. As lágrimas tinham se congelado no canto de seus olhos e no rosto, pendendo ali como contas de vidro. — Igual a Schiller.

— Ela está se transformando — disse Rilke com naturalidade.

— Ela não queria isso — falou Cal. — Faça essa coisa parar.

Rilke balançou a cabeça em uma negativa.

— Nenhum de nós pode fazer isso parar. Você não viu ele? Não entende do que somos capazes? — Ela riu, um riso de espanto. — Foi maravilhoso. Schiller o salvou, Cal; ele salvou a todos nós.

Era verdade. Não havia dúvida. Sem ele, todos teriam sido pisoteados até a morte. A lógica invertida de Rilke debatia-se em sua mente. Será que ela tinha razão? Será que era para aquilo mesmo que estavam ali? Para devastar a humanidade, para purificar sua espécie da face da terra? Passou o olhar pela terra devastada que Schiller criara. Só que não era uma terra devastada. Parecia mais um campo arado, sulcado, pronto para algo novo. E havia aquela paz sobre ele, sem gritos, nem berros, nem sirenes. Era algo verdadeiramente perfeito.

E, no entanto, aquela dúvida persistente, a sensação de que Rilke estava errada, de que cometia um tremendo erro.

— Daisy vai ficar bem — disse Rilke. Ela se levantou, colocando um braço sob o irmão e erguendo-o também. Schiller sorriu para ela, outra vez apenas um menino. Porém aquele poder continuava ali, cabendo a ele trazê-lo à tona. Cal sabia disso, assim como sabia que ele também um dia resfriaria, e que algo terrível irromperia de sua alma. — Vamos todos ficar bem. Você vai ver, Cal. Pode levar um dia, pode levar uma semana, mas você vai ver.

— Não dói — disse Schiller, a voz fraca e baixinha, quase igual à da irmã. Após vê-lo ardendo céu afora, destroçando a terra, Cal não podia compreender a imagem do garoto à sua frente. — Parece... Parece que tem uma coisa no seu corpo, mas que não controla você, que não o força a fazer nada. Ela só deixa você mais forte, seguro. Não resista. É... é...

Era evidente que não conseguia encontrar a palavra, mas sua expressão de êxtase dizia tudo.

— Mas ela explicou para você por que estamos aqui, não explicou? — disse Rilke. — Para fazer a guerra contra a humanidade?

Os olhos de Schiller baixaram, vasculhando o chão atrás de uma verdade que não era capaz de definir com exatidão. Rilke apertou-o com mais força, tanta força que Cal viu o garoto franzir o rosto.

— Conte para eles, irmãozinho.

— Sim, é para isso que estamos aqui — disse ele, tentando se desvencilhar. Apesar de todo o poder recém-encontrado, não tinha encontrado forças para se libertar dela. Seu olhar cruzou com o de Cal, e havia medo nele, medo e uma tristeza de partir o coração. — É para isso que estamos aqui.

Rilke começou a andar, o irmão dando passos pequenos, cautelosos, como alguém que usasse as pernas pela primeira vez. Marcus correu e também se postou ao lado do garoto, passando o braço de Schiller em volta de seu ombro para apoiá-lo. Jade finalizava a procissão, afastando o cabelo dos olhos. Ela lançou um olhar inquieto para Cal.

— Vocês não têm escolha — disse Rilke, andando pacientemente ao lado do irmão cambaleante. — Não importa onde estejam, não importa o que façam, vai acontecer a mesma coisa. As pessoas vão tentar fazer mal a vocês, e vocês terão que combatê-las. Elas não os deixarão em paz. Porque não podem. É parte da natureza delas. E essa natureza podre, violenta e corrupta é o motivo de estarmos aqui. Entendemos errado; não é a Fúria deles que vai mudar o mundo, é a nossa.

Ela se voltou para Brick, o sorriso caloroso e gentil jamais deixando seu rosto.

— Pense só nisso. Tente imaginar como será este mundo quando terminarmos nosso trabalho.

Cal conseguia imaginar, apenas sol e paz.

Não, não, não, não, não, insistia o protesto, um tambor em seu crânio.

— Cuidem dela — disse Rilke, pisoteando o oceano de terra, os pés chutando nuvens de cinzas negras que antes tinham sido prédios, carros e pessoas. — Vai ser mais fácil para vocês quando ela acordar.

— Aonde vocês vão? — perguntou Cal.

— A lugar nenhum, e a todo lugar. — Essa foi a resposta dela. — Quando estiverem prontos, saberão como nos encontrar.

Cal observou-a andar rumo ao céu avermelhado com seu rebanho — Schiller, Jade e Marcus —, a poeira do mundo chovendo em seus pés.

— Também precisamos ir — disse Brick. — Logo este lugar vai estar lotado. Precisamos achar um lugar seguro.

Seguro. Rilke tinha razão. Não existia mais nenhum lugar seguro. Seriam caçados aonde quer que fossem. Cal baixou os olhos para Daisy, que irradiava frio, os olhos cobertos de gelo, o pequeno rosto sem expressão. Perguntou-se onde ela estaria, e o que poderia ver lá. Perguntou-se se saberia o que iria se tornar quando acordasse.

— Pois é — disse ele, levantando-se. — Você tem razão. Vamos embora. O carro da minha mãe ainda está na praia, perto dos banheiros. A gente pode usá-lo. Quer que eu a carregue?

— Não, tudo bem — falou Brick, esforçando-se para ficar de pé com Daisy nos braços. Ele tremeu devido ao frio, as palavras surgindo de lábios azulados. — Você leva ele.

— Vamos lá, amiguinho — disse Cal, passando o braço pelo ombro de Adam, franzindo o rosto quando a dor alfinetou seu dedo quebrado. O garoto não reagiu, observando algo que só ele podia ver. — Não se preocupe, tudo vai dar certo.

— Não, não vai — rebateu Brick. — O planeta inteiro vai para o inferno.

— Obrigado. Assim ele vai se sentir bem melhor.

— Ah, dane-se — respondeu Brick, mas havia em seus olhos o vestígio de um sorriso. Ele contagiou Cal e, ainda que fosse descabido naquele momento, trouxe uma boa sensação.

— Você realmente é um babaca — disse ele sorrindo, enquanto seguiam aos tropeços pelo parque. Brick olhou ao redor, suspirando. Voltou-se para Cal.

— Eu sei.


Epílogo

Quem luta com monstros precisa tomar cuidado para não se tornar um monstro. E, se olhar o abismo por tempo suficiente, o abismo olhará em resposta para você.

Friedrich Nietzsche


Daisy

Ela sempre havia achado que a morte seria um lugar de paz, de calma e silêncio infinitos.

Porém Daisy estava em um reino de fogo e gelo, de movimento e ruído infindáveis. Estava no limiar de um bilhão de vidas distintas, no local em que mundos se juntavam. Dali, podia enxergar tudo.

Tinha levado um tiro, ao menos isso ela sabia. Estavam dentro do parque, Fursville, fugindo da polícia. Então teve a sensação de que havia levado uma martelada. Mas não conseguia se lembrar de ter caído no chão. Mais parecia ter caído através dele, através da pele do mundo real, naquilo que ficava além. Era como Alice caindo na toca do coelho, só que aquilo que via agora não era nenhum País das Maravilhas.

E não havia nenhum sinal de seu pai nem de sua mãe. Tinha a esperança de que, no mínimo, estariam ali esperando por ela.

É porque você não está morta, algo lhe disse. Será que era sua própria voz? Não tinha certeza, tudo era caótico demais.

— Quem está aí? — gritou ela. — Onde é que eu estou?

Nenhuma resposta. Concentrava-se nas figuras que giravam ao seu redor, todas dentro de cubos de gelo como os que havia em sua cabeça. Eram incompreensíveis, imagens trêmulas e incontáveis, sons abafados vindo de cada uma delas.

— Daisy, está me ouvindo?

A voz pareceu se sobrepor às outras, e com ela um dos cubos de gelo ficou maior, rangendo e estalando como um iceberg enquanto preenchia sua visão. Era Brick, seu cabelo cor de cobre brilhando ao sol, as roupas em farrapos cobertas de sangue. Parecia que seu peito estava em chamas, um orbe de fogo azul no lugar onde devia estar seu coração. Segurava algo nos braços, uma figura pequenina cuja cabeça pendia de um lado para o outro, cujos olhos estavam abertos mas não enxergavam. Era ela, percebeu. Mas ela não tinha medo, porque também tinha um inferno de chamas sem fumaça no peito — que ardia com ainda mais força.

São eles. É onde eles vivem.

E com esse pensamento o cubo de gelo derreteu. Outro surgiu em seu lugar, e através dele ela viu mais gente que conhecia. Rilke estava ajudando o irmão, Schiller, a andar por um campo sem fim de poeira e terra. Marcus e Jade cambaleavam ao lado deles, as sombras compridas ao sol poente. Todos tinham também chamas no peito, exceto Schiller, cujo corpo inteiro era incandescente. Parecia ter outra silhueta sobreposta à dele, uma figura de olhos resplandecentes e asas enormes, como as da esfinge, que deixavam um rastro de luz no caminho por onde se arrastavam. Olhar aquilo deixava Daisy assustada e empolgada ao mesmo tempo.

É assim que eles ficam quando... Parou até que a palavra nasceram apareceu em sua cabeça. Sim, quando já nasceram. Não conseguem sobreviver em nosso mundo, por isso precisam viver dentro de nós.

A imagem mudou de novo. Isso significava que estava certa? Será que aquilo era um teste? Voou para Rilke, para dentro da cabeça da garota, o mundo se desfazendo e sendo reconstituído. Desta vez, viu pessoas, centenas, talvez milhares delas. Schiller estava entre essas pessoas, o rosto sem emoção enquanto estendia as mãos e transformava aqueles homens, mulheres e crianças em pó. Entreviu Rilke ali também, com um sorriso insano, antes que a cena se perdesse em uma nuvem ondulante de poeira.

Então é por isso que estamos aqui?, disse Daisy para si mesma, o coração deprimido até o chão. Mas eu não quero machucar ninguém. As pessoas às vezes fazem coisas más, e algumas delas não são muito legais, mas a maioria delas é gentil, engraçada e pacífica. Elas não merecem morrer.

Aquela mesma cena outra vez, Schiller matando incontáveis inocentes. Daisy parecia entender o que estava sendo mostrado a ela.

É isso que Rilke vê, continuou Daisy. Mas ela está errada, não está? Não estamos aqui para matar as pessoas. Estamos aqui para salvá-las.

As sombras da última cena derreteram-se, os cubos de gelo tilintando. Ainda que não tivesse corpo ali, nem rosto, tinha a sensação de estar com um sorriso enorme.

Eu sabia!, disse ela ao anjo dentro de si. Sabia que você não era mau!

Porém a felicidade não durou. Outra imagem surgiu, esta ainda pior que a anterior. Daisy sabia o que veria ali, mas não conseguiu fechar os olhos. Sentiu-se arrastada para a cena, açoitada por uma forte brisa que fedia a carne e fumaça. O homem na tempestade estava suspenso dentro de um ninho de escuridão fragmentada, a boca um redemoinho que triturava e moía. Aquele mesmo som horrendo e ensurdecedor — aquela respiração para dentro e infinita —, que lhe dava coceira na pele.

Daisy gritou sem emitir nenhum som, fazendo força para escapar dali. Mas não havia para onde ir. Não podia fazer nada além de olhar o homem na tempestade abrir os braços e despedaçar mais do mundo como se fosse vidro, caindo em um abismo sem fundo e sem luz. Era impossível não reparar na semelhança dele com Schiller. Porém essa coisa era puro mal, o contrário da vida. O homem na tempestade voltou para ela seus olhos, que eram rabiscos escuros, e, em algum lugar daquele som horrendo, podia-se ouvir uma risada doentia e satisfeita. Ele movimentou suas mãos de cadáver e, mesmo a distância, ainda que Daisy só o visse dentro de sua cabeça, pôde sentir a luz, a felicidade e o amor sendo sugados dela. Ele a deixou completamente vazia.

Ele é o motivo de estarmos aqui, vociferou Daisy, contorcendo-se e rezando para que fosse a resposta certa, assim a cena desapareceria, como as outras. Ele é mau e está fazendo algo terrível, e temos de detê-lo.

A cena começou a se rachar, um brilho dourado vertendo pelas fendas até que o homem na tempestade sumiu na névoa. Daisy andou para dentro do calor, como se pisasse em uma praia em pleno verão. Ali não havia nada além de luz.

Quem são vocês?, perguntou ela. Anjos?

Não houve resposta. A cena não mudou. Isso significava que estava certa ou errada? Talvez um pouco de cada. Talvez não fossem anjos, mas outra coisa — algo que as pessoas haviam vislumbrado ao longo dos séculos e a que tinham dado esse nome. Havia tanta coisa que as pessoas desconheciam. Quem poderia dizer que criaturas como aquela não podiam existir?

Daisy percebeu que havia um rosto na luz, os traços tão sutis que quase nem estava ali. Era destituído de toda emoção e sentimento, os olhos tendo se tornado órbitas ardentes. Parecia despedaçar-se e se reconstituir constantemente, como se não pudesse reter sua forma por mais do que alguns segundos. Aqueles olhos ardentes se fixaram em Daisy, tanto poder ali que era capaz de ouvi-lo no ar como um trovão perpétuo.

Este é o meu anjo, entendeu ela, o terror e o temor tornando-se um calor genuíno dentro dela.

Então, em um instante, a luz se desfez, o rosto se dissolveu e o brilho se desvaneceu. Daisy sentiu-se puxada para longe, tão rápido que praticamente deixou o estômago para trás. Pousou em um lugar escuro e frio, o fogo se espalhando.

Vozes, que ela reconhecia, ecoavam nas sombras.

— Para que lado?

— Qualquer lado, só tire a gente daqui.

Ela acordaria logo e, ao acordar, seria algo diferente, algo mais. Mas Cal, Brick e Adam ainda estariam presentes. E cuidariam dela. Ela também cuidaria deles. Era esse o trabalho dela agora, ao menos até que os anjos deles nascessem.

E, quando isso acontecesse, todos estariam prontos.

Prontos para combater o homem na tempestade.

 

 

                                                                  Alexander Gordon Smith

 

 

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