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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FURIA DO LOBO / Patricia Briggs
A FURIA DO LOBO / Patricia Briggs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Era uma vez uma menininha chamada Leslie. No ano em que ela completou oito anos, aconteceram duas coisas: sua mãe a abandonou – a ela e a seu pai –, mudando-se para a Califórnia com um corretor da Bolsa de Valores e, em meio a um espetacular julgamento de assassinato, os Fae das histórias e músicas revelaram sua existência. Leslie nunca mais viu sua mãe, mas com os Fae foi outra história.
Quando ela completou nove anos, seu pai conseguiu um emprego em outra cidade, mudando-se da casa onde ela havia crescido para um apartamento em Boston, onde eles eram as únicas pessoas negras em um bairro só de brancos. O apartamento deles compreendia o piso superior de uma casa estreita que pertencia à sua vizinha de baixo, a Sra. Cullinan. A Sra. Cullinan cuidava de Leslie enquanto seu pai trabalhava e silenciosamente ajudou a menina a se integrar à sociedade das crianças do bairro, que casualmente faziam uma visita para comer biscoitos ou tomar limonada. Pelas mãos capazes da Sra. Cullinan, Leslie aprendeu a fazer crochê, tricô, costurar e cozinhar, enquanto seu pai mantinha a casa e o gramado da velha senhora em ordem.
Mesmo já adulta, Leslie não podia dizer se seu pai realmente pagava alguma coisa à velha senhora ou se a Sra. Cullinan havia decidido arcar com os custos, sem consultá-lo. Era o tipo de coisa que a Sra. Cullinan teria feito.

 

 


 

 


Quando Leslie estava na terceira série, um dos meninos do jardim de infância desapareceu. Na quarta série, uma de suas colegas de classe, uma menina chamada Mandy, também desapareceu. No mesmo período, muitos animais de estimação desapareceram – em sua maioria, filhotes de cães e gatos. Nada que teria atraído a sua atenção se não fosse pela Sra. Cullinan. Em suas caminhadas diárias (a Sra. Cullinan as chamava de “passeios abelhudos”, porque nesses passeios viam o que as pessoas em sua vizinhança estavam aprontando), a velha senhora começou a parar na frente dos cartazes sobre animais desparecidos colados nas vitrines das lojas, pegando um caderninho e escrevendo todas as informações nele.
– Estamos procurando os animais perdidos? – perguntou Leslie finalmente. Na maior parte do tempo ela aprendia pela observação em vez de fazer perguntas, porque, de acordo com sua experiência, as pessoas mentiam melhor usando os lábios do que suas ações. Mas ela não havia encontrado uma boa explicação para a lista de animais de estimação desaparecidos e fora forçada, por fim, a recorrer a palavras.
– É sempre bom manter os olhos abertos.
Não era bem uma resposta, mas a Sra. Cullinan parecia perturbada, então Leslie não repetiu a pergunta.
Quando o cachorrinho que Leslie ganhara de aniversário – um vira-lata com olhos castanhos e patas grandes – desapareceu, a Sra. Cullinan apertou os lábios e disse:
– Está na hora de acabar com isso.
Leslie tinha certeza de que sua senhoria não percebera que alguém a estava escutando.
Leslie, seu pai e a Sra. Cullinan estavam jantando alguns dias depois do desaparecimento do cachorrinho quando uma limusine chique parou em frente à casa da Srta. Nellie Michaelson. Das profundezas escuras do veículo brilhante surgiram dois homens de terno e uma mulher em um vestido branco florido, que parecia leve e vaporoso demais para combinar com o vestuário dos homens. Eles estavam vestidos para um funeral, e ela, para um piquenique em algum parque.
Espiando descaradamente, o pai de Leslie e a Sra. Cullinan saíram da mesa para olhar pela janela quando as três pessoas entraram na casa da Srta. Nellie sem bater.
– O que eles estão...?
A expressão no rosto do pai de Leslie passou de curiosa (ninguém nunca visitava a Srta. Nellie) para sombria em um segundo. Ele pegou seu revólver e o distintivo. A Sra. Cullinan o deteve na varanda da frente.
– Não, Wes – disse ela em uma voz estranha, feroz. – Não. Eles são Fae, e é uma sujeira Fae que eles vieram limpar. Você deve deixá-los fazer o que precisam.
Leslie, olhando para os adultos, finalmente viu o que havia deixado todos agitados. Os dois homens estavam carregando Nellie para fora de sua casa.
Nellie estava lutando e sua boca estava aberta como se ela estivesse gritando, mas nenhum som saía de sua garganta.
Leslie sempre achou que Nellie tinha a aparência de alguém que deveria ser uma modelo ou estrela de cinema, com seus tristes olhos azuis e boca macia de cantos caídos. Mas ela não parecia tão bonita naquele momento, e nem assustada – parecia enfurecida. Seu belo rosto estava retorcido, feio e, ao mesmo tempo, assustador, a ponto de tirar o fôlego – o que iria assombrar os sonhos de Leslie, mesmo na fase adulta.
A mulher que tinha vindo com os homens, aquela do vestido leve e esvoaçante típico de uma fada, saiu da casa quase ao mesmo tempo em que os homens terminaram de enfiar Nellie no banco de trás do carro. Ela trancou a porta da casa de Nellie atrás de si e, quando terminou, olhou para cima e viu os três a observando. Depois de uma pausa, a mulher atravessou a rua e desceu pela calçada até chegar onde eles estavam. Ela não parecia estar andando rápido, mas já abria o portão da frente quase antes de Leslie perceber que ela se dirigia em direção a eles.
– E o que vocês acham que estão olhando? – disse ela suavemente, em um tom de voz que fez o pai de Leslie soltar o fecho que segurava a arma no coldre.
A Sra. Cullinan moveu-se para frente e sua mandíbula estava tão cerrada como no dia em que enfrentara dois jovens valentões que haviam decidido que uma velha senhora era um alvo fácil.
– Justiça – disse ela, no mesmo tom suave e ameaçador que havia feito os rapazes procurarem uma vítima mais fácil. – E não seja arrogante comigo. Sei o que você é e não tenho medo de você.
A cabeça da estranha mulher abaixou-se agressivamente e seus ombros ficaram tensos. Leslie recuou, ficando atrás de seu pai. Mas a resposta da Sra. Cullinan havia chamado a atenção dos homens da limusine.
– Eve – disse suavemente um dos homens, deixando a mão sobre a porta aberta do carro. Sua voz era quente e melodiosa, e seu sotaque tão fortemente irlandês como o sotaque da própria Sra. Cullinan; o som dela podia ser ouvido na rua até o final do quarteirão, como se não houvesse o tráfego para abafá-lo. – Venha para o carro e faça companhia a Gordie, por favor.
Até mesmo Leslie sabia que isso não era um pedido.
A mulher empertigou-se e estreitou os olhos, mas virou-se e caminhou para longe deles. Quando ela tomou seu lugar no carro, o homem aproximou-se deles.
– A senhora deve ser a Sra. Cullinan – disse ele, assim que chegou na calçada onde eles moravam, próximo o suficiente para uma conversa. Seu rosto era daquele tipo bonito e comum, que não se destaca em uma multidão, exceto pelos olhos: por mais que tentasse, Leslie nunca conseguia lembrar-se de que cor eles eram, apenas que eram estranhos e bonitos.
– Você sabe que sou – disse rigidamente a Sra. Cullinan.
– Agradecemos por ter nos contatado sobre isso e gostaríamos de deixar-lhe uma recompensa – disse o homem, estendendo-lhe um cartão de visitas. – Um favor para quando você mais precisar.
– Se as crianças estiverem seguras brincando em seus quintais, isso é recompensa suficiente – disse a Sra. Cullinan, secando as mãos nos quadris. Ela não fez nenhum movimento para pegar o cartão.
O homem sorriu e não abaixou a mão.
– Não ficarei em débito com a senhora, Sra. Cullinan.
– E eu sou esperta demais para aceitar um presente de um Fae – retrucou ela.
– Uma única recompensa – disse ele. – Algo pequeno. Prometo que nenhum mal será intencionalmente causado à senhora ou aos seus enquanto eu viver.
Então, persuasivamente, ele continuou:
– Ora, vamos lá. Eu não posso mentir para a senhora. Essa é uma época diferente, em que a sua raça e a minha precisam aprender a viver juntas. A senhora poderia ter chamado a polícia sobre suas suspeitas, que estavam corretas. Se tivesse feito isso, ela teria matado muitas outras crianças além das que já matou – ele suspirou e olhou para trás, para as janelas escurecidas da limusine. – É difícil mudar quando se é tão velho, e ela sempre teve o hábito de comer coisas pequenas, a nossa Nellie.
– Foi por essa razão que os chamei – disse resolutamente a Sra. Cullinan. – Eu não sabia quem estava levando os pequeninos até que vi Nellie em nosso quintal há duas noites; pela manhã, o cãozinho dessa criança tinha desaparecido.
O Fae olhou Leslie pela primeira vez, mas Leslie estava muito transtornada para entender a expressão de seu rosto. “Comer coisas pequenas”, o homem havia dito. Filhotes eram pequenos.
– Ah – disse ele, depois de um longo momento. – Criança, você pode se consolar com o fato de que a morte do seu cachorrinho significa que mais nenhum irá morrer devido às más ações de uma pessoa. Não é uma recompensa justa, eu sei, mas é alguma coisa.
– Dê a ela – disse a Sra. Cullinan, de repente. – Seu cachorrinho morreu. Dê a ela sua recompensa. Sou uma mulher velha, com câncer; não viverei até o fim do ano. Dê a ela.
O homem Fae olhou para a Sra. Cullinan, e em seguida ajoelhou-se em um joelho na frente de Leslie, que estava segurando com força a mão de seu pai. Ela não sabia se estava chorando por seu cachorrinho ou pela mulher idosa que era mais sua mãe do que sua própria mãe havia sido – ou por si mesma.
– Um presente por uma perda – disse ele. – Pegue isso e use-o quando você mais precisar.
Leslie colocou sua mão livre nas costas. Ele estava tentando compensar a morte do seu cachorrinho com um presente, exatamente como as pessoas haviam tentado fazer após sua mãe ter ido embora. Presentes não faziam as coisas ficarem melhores. Muito pelo contrário – como ela sabia por experiência própria. O urso de pelúcia gigante que sua mãe havia dado a ela na noite em que partira estava enfiado dentro do armário. Embora Leslie não suportasse a ideia de se desfazer dele, ela também não conseguia olhar para ele sem se sentir enjoada.
– Com isso você pode conseguir uma casa ou um carro – dissera o homem. – Dinheiro para sua educação – completou ele, sorrindo bastante gentilmente, o que o fez ficar com uma aparência totalmente diferente e, de alguma forma, mais real quando ele continuou a falar. – Ou salvar outro cachorrinho dos monstros. Tudo o que você precisa fazer é desejar com bastante força e rasgar o cartão.
– Qualquer desejo? – perguntou Leslie, pegando o cartão, o que fez mais por não querer ser o foco das atenções daquele homem do que por realmente desejar o presente. – Quero meu cachorrinho de volta.
– Não posso trazer alguém ou algo de volta à vida – disse-lhe tristemente o homem. – Eu o faria, se pudesse. Mas, fora isso, qualquer coisa.
Leslie olhou fixamente para o cartão em sua mão. Havia uma palavra escrita nele: PRESENTE.
Ele se levantou, e então sorriu – o rosto mais alegre e luminoso que ela já vira.
– E Srta. Leslie – disse ele, embora não devesse saber o nome dela em absoluto –, nada de desejar mais desejos. Não funciona dessa maneira.
Ela estava apenas pensando nisso...
O homem estranho virou-se para a Sra. Cullinan e tomou-lhe a mão, beijando-a.
– A senhora é uma mulher de rara beleza, muita perspicácia e espírito generoso.
– Sou uma velha xereta e intrometida – respondeu, mas Leslie viu que ela estava satisfeita.
Já adulta, Leslie manteve atrás de sua carteira de motorista o cartão que o homem-fada lhe havia dado. Parecia tão limpo e novo como no dia em que ela concordara em pegá-lo. Para o espanto de seus médicos, o câncer da Sra. Cullinan desaparecera misteriosamente, e ela morrera em sua cama muitos anos mais tarde, aos 94 anos. Leslie ainda sentia saudades dela.
Leslie aprendera duas coisas importantes sobre os Fae naquele dia. Eles eram poderosos e encantadores – e comiam crianças e cachorrinhos.
Um
Aspen Creek, Montana
– Vá para casa – rosnou Bran Cornick para Anna.
Todos que o vissem assim jamais poderiam esquecer o que se escondia por trás da fachada gentil do Marrok. Mas apenas as pessoas estúpidas – ou desesperadas – correriam o risco de aumentar sua fúria para revelar o monstro por trás da máscara de bom moço. Anna estava desesperada.
– Quando você me disser que vai parar de enviar meu marido para matar pessoas – disse obstinadamente Anna. Ela não gritara, não elevara a voz, mas não ia desistir facilmente.
Era óbvio que ela finalmente o havia empurrado além das fronteiras de seu último vestígio de comportamento civilizado. Bran fechou os olhos, virou a cabeça para longe dela e disse, com uma voz muito suave:
– Anna. Vá para casa e acalme-se.
Ir para casa até que ele se acalmasse, era o que queria dizer. Bran era o sogro de Anna, o seu Alfa, e também o Marrok que governava todas as alcateias de lobisomens nessa parte do mundo, puramente pela força da sua vontade.
– Bran...
Seu poder fora desencadeado com sua cólera, e os cinco outros lobos (sem contar Anna) que estavam na sala de estar da casa do Marrok jogaram-se no chão – até mesmo sua companheira, Leah. Eles inclinaram a cabeça e a viraram levemente para o lado, expondo a garganta.
Embora ele não tivesse feito nenhum movimento em direção a eles, a velocidade de sua rendição era testemunha da ira de Bran e de sua dominância – e somente Anna, um pouco surpresa com sua própria ousadia, ficara em pé. Se alguém gritasse com Anna na época em que ela chegou a Aspen Creek, espancada e abusada como havia sido, ela teria se escondido em um canto e não sairia de lá por uma semana.
Anna olhou nos olhos de Bran e mostrou-lhe os dentes quando a onda de poder do Marrok passou por ela como uma brisa de primavera. Anna estava com medo sim, mas não de Bran. Ela sabia que ele não a machucaria de verdade se pudesse evitar, e não importava o que seu cérebro posterior tentasse lhe dizer.
Na verdade, ela temia pelo seu companheiro.
– Você está errado – disse-lhe Anna. – Errado. Errado. Errado. E você está determinado a não ver isso até que ele seja destruído e nada mais se possa fazer.
– Cresça, garotinha – rosnou Bran, e agora seus olhos, de um dourado-brilhante que substituía a cor castanho-esverdeada habitual, estavam focalizados nela, e não mais na lareira na parede. – A vida não é um mar de rosas, e as pessoas precisam fazer coisas difíceis. Você sabia o que Charles era quando se casou com ele e o aceitou como companheiro.
Bran estava tentando desviar o foco da conversa para ela, porque assim não precisaria escutá-la. Anna achava que Bran não podia ser tão cego daquele jeito, apenas muito teimoso. Por isso, sua tentativa de alterar o argumento – quando não deveria haver nenhum argumento – a enraiveceu.
– Alguém aqui está agindo como criança, e não sou eu – rosnou ela de volta.
O rosnado que Bran lhe deu de volta não continha palavras.
– Anna, cale-se – sussurrou Tag, desesperado. Seu grande corpo imóvel estava no chão, onde seu cabelo alaranjado, penteado em dreadlocks, fazia um contraste chocante com a cor marrom do tapete persa. Ele era seu amigo e Anna confiava no julgamento da fera na maioria dos casos. Sob outras circunstâncias, Anna teria seguido seu conselho, mas agora ela havia deixado Bran tão furioso que ele não conseguia falar, e assim ela poderia tentar enfiar algumas palavras em sua mente teimosa e inflexível.
– Conheço meu companheiro – disse Anna a seu sogro. – Melhor do que você. Ele prefere ser destruído a decepcioná-lo ou deixar de cumprir o seu dever. Você tem que parar com isso, porque ele não pode.
Quando Bran falou, sua voz era um sussurro inexpressivo.
– Meu filho não irá se curvar, nem será destruído. Ele tem feito o seu trabalho por um século antes mesmo de você nascer, e estará fazendo daqui a um século.
– Seu trabalho era distribuir justiça – disse Anna. – Mesmo que isso significasse matar pessoas, ele podia fazê-lo. Agora, ele é apenas um assassino. Suas vítimas se agarram a seus pés, arrependidas. Elas choram e imploram por uma misericórdia que ele não pode dar. Isso está destruindo Charles – continuou Anna, de forma incisiva. – E sou a única que vê isso.
Bran se encolheu e, pela primeira vez, Anna percebeu que Charles não era o único a sofrer sob as novas regras mais rígidas sob as quais os lobisomens tinham que viver.
– Tempos desesperados – disse ele sombriamente, e Anna achou que havia conseguido fazê-lo entender. Mas Bran desembaraçou-se da fraqueza momentânea e continuou. – Charles é mais forte do que você pensa. Você é uma garotinha idiota que não sabe tanto quanto acha que sabe. Vá para casa antes que eu faça algo de que irei me arrepender mais tarde. Por favor.
Foi essa pausa breve que disse a Anna que tudo aquilo era inútil. Ele sabia. Bran entendia, e tinha esperança de que Charles pudesse aguentar. A raiva dela desapareceu e deixou em seu lugar... o desespero.
Ela olhou nos olhos de seu Alfa por um longo momento antes de reconhecer seu fracasso.
Anna soube exatamente o momento em que Charles voltou, recém-chegado de Minnesota, onde tinha ido resolver um problema que o chefe da alcateia de lá não podia resolver. Se ela não tivesse escutado o barulho da caminhonete ou da porta da frente, ainda assim saberia que Charles estava em casa, pela magia que liga um lobo à sua companheira. Isso era tudo o que o vínculo de companheira lhe havia dito diretamente – entretanto, o lado do vínculo de Charles estava tão opaco quanto ele podia controlar, o que mostrava a ela muito mais sobre o seu estado de espírito do que ele provavelmente pretendia.
A julgar pela maneira como Charles não deixava nada vazar até ela, Anna sabia que tinha sido outra viagem ruim, que havia deixado muita gente morta, provavelmente pessoas que ele não queria matar.
Ultimamente, todas as viagens tinham sido ruins.
No início, ela até conseguiu ajudar, mas quando as regras mudaram, quando os lobisomens admitiram sua existência para o resto do mundo, o novo escrutínio público passou a significar que uma segunda chance para os lobos que violavam as leis de Bran era oferecida apenas em circunstâncias extraordinárias. Anna havia continuado a ir com ele nessas viagens, porque se recusava a deixar Charles sofrer sozinho. Mas quando ela começou a ter pesadelos sobre o homem que havia caído de joelhos na sua frente em uma súplica muda antes de sua execução, Charles parou de levá-la com ele.
Anna tinha um temperamento forte e gostava de pensar em si mesma como uma pessoa durona. Ela poderia tê-lo feito mudar de ideia ou ter ido com ele mesmo sob essas circunstâncias. Mas Anna não havia contestado a decisão de Charles, pois percebera que estava apenas tornando o trabalho dele mais difícil de suportar. Ele se via como um monstro e não podia acreditar que ela também não o visse assim quando testemunhava a morte da qual ele era o portador.
Então, Charles voltara a caçar sozinho, como havia sido há cem anos ou mais, assim como seu pai lhe havia dito. Sua caça sempre fora bem-sucedida – e, ao mesmo tempo, um fracasso. Ele era dominante; sentia uma necessidade compulsiva de proteger os mais fracos, incluindo, paradoxalmente, os lobos que devia matar. Quando os lobos que ele executava morriam, uma parte de Charles também morria.
Antes de Bran ter trazido a existência dos lobisomens a público, os novos lobos, aqueles que haviam sido transformados há menos de dez anos, poderiam ter tido várias chances se sua transgressão fosse causada pela perda de controle. Certas condições poderiam ser levadas em conta e diminuiriam a punição de outros. Mas agora o público sabia sobre sua existência, e eles não podiam permitir que todos soubessem como os lobisomens eram realmente perigosos.
Era função do Alfa da alcateia distribuir justiça comum. Antes, Charles somente precisava sair algumas vezes por ano para cuidar de problemas maiores ou menos comuns. Mas muitos dos Alfas estavam descontentes com a nova rigidez das leis e, de alguma forma, mais e mais a execução destas ficava a cargo de Bran e, consequentemente, de Charles. Ele estava fazendo isso duas a três vezes por mês agora, desgastando-se muito.
Anna podia senti-lo em pé, dentro da casa, e então imprimiu um pouco mais de paixão em sua música, atraindo-o com a voz suave de seu violoncelo, que havia sido o primeiro presente de Natal de Charles para ela.
Se Anna fosse para o andar de cima, Charles a cumprimentaria gravemente e diria a ela que precisava falar com Bran, saindo logo em seguida. Ele voltaria em um dia ou mais, depois de correr na forma de lobo pelas montanhas. Mas Charles nunca mais voltara, não totalmente.
Fazia um mês que ele a tocara pela última vez. Seis semanas e quatro dias desde que ele havia feito amor com ela, desde que eles haviam voltado da última viagem na qual ela o acompanhara. Ela teria contado isso a Bran, se ele não tivesse feito aquele comentário “Cresça, garotinha”; provavelmente deveria ter contado a Bran de qualquer maneira, mas havia desistido de chama-lo à razão.
Anna decidiu então tentar outra coisa.
Ela ficou na sala de música que Charles havia construído no porão, enquanto ele permanecia no andar de cima. Em vez de usar palavras, ela deixara seu violoncelo falar por ela. Ricas e verdadeiras, as notas deslizavam de seu arco e pela escada. Após um momento, Anna ouviu as escadas rangerem sob o peso dos pés de Charles e soltou um suspiro de alívio. A música era algo que compartilhavam.
Seus dedos cantavam para ele, persuadindo-o a vir até ela, mas ele parou na porta. Anna podia sentir seus olhos sobre ela, mas ele não disse nada.
Ela sabia que quando tocava violoncelo seu rosto ficava sereno e distante – o resultado de muito treinamento por parte de um de seus primeiros professores, que havia lhe dito que morder os lábios e fazer caretas era um sinal claro para qualquer comissão julgadora de que ela estava com problemas.
As feições de Anna não eram regulares o suficiente para serem verdadeiramente belas, mas nem por isso ela era feia, e naquele dia havia usado alguns truques de maquiagem que suavizavam suas sardas e destacavam seus olhos.
Ela olhou para Charles rapidamente. A herança Salish da mãe de Charles legara a ele o adorável tom escuro de sua pele e seus traços exóticos (para ela), enquanto o sangue galês de seu pai mostrava-se apenas de forma sutil: o formato da boca, o ângulo de seu queixo. Era o seu trabalho, não sua linhagem, que havia congelado as feições de Charles em uma máscara sem emoção, deixando ainda seus olhos frios e duros. Suas obrigações o haviam consumido até que ele se transformara em nada além de músculos, ossos e tensão.
Os dedos de Anna tocavam as cordas e se balançavam, suavizando a música do violoncelo com um vibrato nas notas mais longas. Ela havia começado com uma parte do Cânone em Ré de Pachelbel, que ela geralmente usava como aquecimento ou quando não tinha certeza do que queria tocar. Anna pensou em mudar para algo mais desafiador, mas estava muito distraída por Charles. Além disso, ela não estava tentando impressioná-lo, mas convencê-lo a deixar que ela o ajudasse. Por isso, precisava de uma canção que pudesse tocar enquanto pensava em Charles.
Se ela não podia fazer Bran parar de enviar seu companheiro para matar, talvez pudesse convencer Charles a deixar que ela o ajudasse com os efeitos. Isso talvez desse a Charles algum tempo, até que ela pudesse encontrar um bastão de beisebol adequado – ou rolo de macarrão – para enfiar um pouco de lucidez na cabeça de Bran.
Anna abandonou Pachelbel e enveredou por uma ponte improvisada que mudou a nota de ré para sol e, em seguida, deixou a música fluir para o Prelúdio de Bach para Violoncelo Suíte No 1. Não que a música fosse fácil, mas essa havia sido a peça que ela tocara no concerto final do colegial; por isso, Anna podia praticamente tocá-la dormindo.
Com seus dedos em movimento, ela não se permitiu olhar para ele de novo, não importava quanto desejasse vê-lo. Anna olhou para uma pintura a óleo representando um lince dormindo enquanto Charles ficava parado na porta e a observava. Se ela ao menos pudesse fazer com que Charles se aproximasse dela e parasse de tentar protegê-la de seu trabalho...
Mas ela acabou metendo os pés pelas mãos.
Anna era um lobo Ômega. Isso significava que ela não apenas era a única pessoa no continente cujo lobo lhe permitia enfrentar o Marrok quando ele estava furioso, mas também que possuía um talento mágico para acalmar cóleras lupinas, quer os lobos quisessem ser acalmados ou não. Parecia errado impor sua vontade sobre os outros e ela tentava não fazer isso, a menos que a necessidade fosse desesperadora. Nos últimos anos, Anna aprendera quando e como usar suas habilidades da melhor forma possível, mas sua necessidade de ver Charles feliz passou por cima da barreira de seu controle arduamente conseguido, como se ele não estivesse ali.
Em um momento, ela estava tocando para ele com todo o seu ser, concentrada unicamente nele – e no momento seguinte, seu lobo havia se adiantado e acalmado o lobo de Charles, fazendo-o adormecer, deixando apenas sua metade humana para trás... Charles havia se virado e caminhado para fora de casa sem dizer uma única palavra. Ele, que não fugia de ninguém, havia saído de casa pela porta de trás.
Anna colocou o arco do violoncelo de lado e retornou o instrumento ao seu suporte. Charles não voltaria até que várias horas se passassem, talvez até mesmo alguns dias. A música não poderia mesmo funcionar: a única coisa que prendia Charles em sua magia era o seu lobo.
Ela saiu da casa também. A necessidade de fazer alguma coisa era tão forte que a fez sair sem destino verdadeiro. Era isso ou chorar, e Anna se recusava a chorar. Talvez ela pudesse ir até Bran mais uma vez. Mas quando o desvio para a casa dele apareceu, ela passou direto, sem entrar.
Era provável que Charles estivesse indo até Bran para contar a seu pai o que ele havia feito pelos lobos do mundo – e seria... estranho segui-lo, como se ela o estivesse perseguindo. Além disso, ela já havia conversado com Bran. Ele sabia o que estava acontecendo com seu filho; Anna sabia que ele entendia. Mas, como Charles, ele pesava a vida de todos de sua espécie contra a possibilidade de que Charles fosse desmoronar sob a pressão do que era necessário, e considerava o risco aceitável.
Então, Anna dirigiu pela cidade, chegando a uma grande estufa na floresta do outro lado. Ela parou e estacionou ao lado de um jipe Willys detonado e foi em busca de ajuda.
Muitos lobos o chamavam de Mouro, e ele não gostava disso, dizendo que era o tipo de coisa que um vampiro faria – pegar uma parte de quem a pessoa era e reduzi-la a isso com uma letra maiúscula ou duas. Suas feições e tom de pele mostravam traços de Arábia, passando pelo Norte da África, mas Anna concordava que certamente isso não era a soma do que ele era. Ele era bonito, muito velho, extremamente mortal – e nesse momento estava transplantando gerânios.
– Asil – ela começou.
– Silêncio – disse ele. – Não perturbe minhas plantas com seus problemas até que elas estejam seguras em suas novas casas. Faça algo de útil, como podar as rosas ao longo da parede.
Anna pegou um cesto e começou a remover flores mortas dos arbustos de rosas de Asil. Ele não falaria com ela até que tivesse terminado o que pretendia fazer, fosse acalmá-la antes de conversarem, conseguir que alguém trabalhasse de graça para ele ou simplesmente manter o silêncio enquanto ele cuidava de suas plantas. Conhecendo Asil, poderiam ser as três coisas.
Ela trabalhou por cerca de dez minutos antes de ficar impaciente e estender a mão para um botão de rosa, sabendo que Asil sempre mantinha um olho em qualquer um que estivesse trabalhando com suas preciosas flores.
– Lembra-se da história de A Bela e a Fera? – comentou suavemente Asil. – Vá em frente. Pegue esse pequeno botão. Veja o que acontece.
– A Bela e a Fera é um conto de fadas francês, e você é um simples espanhol –disse-lhe Anna, mas tirou os dedos do botão. O pai da Bela havia roubado uma flor a um grande custo. – E você não é um príncipe encantado, de jeito nenhum.
Asil tirou a terra das mãos e virou-se para ela, sorrindo um pouco.
– Na verdade, eu sou. Considerando algumas definições de “príncipe”.
– Ah – disse Anna. – A pobre Bela teria beijado seu belo rosto e então, puf, lá estaria o sapo.
– Acho que você está misturando seus contos de fada – disse-lhe Asil. – Mas, mesmo como sapo, eu não desapontaria. Você veio aqui para discutir contos de fada, mi querida?
– Não – respondeu Anna. Ela suspirou e levantou-se, sentando-se sobre uma mesa reta colocada ao lado de um grupo de pequenos potes que continham uma única folha do tamanho de uma ervilha. – Estou aqui para obter conselhos sobre como lidar com feras. Especificamente, informações sobre a fera que governa a todos nós. Naturalmente, eu procurei você. Bran tem que parar de enviar Charles para matar. Isso vai destruí-lo.
Asil se sentou em frente a Anna e olhou para ela, com o estreito espaço da mesa entre eles.
– Você sabe que Charles viveu quase duzentos anos sem que você tomasse conta dele, não é? Ele não é nenhum botão de rosa frágil que precisa do seu toque suave para sobreviver.
– Ele também não é nenhum assassino – rosnou Anna.
– Permita-me discordar.
Asil estendeu as mãos pacificamente quando ela rosnou para ele.
– Os resultados falam por si. Duvido que haja outro lobo com tantos lobisomens mortos nas costas, com exceção desse seu humilde servo.
Ele indicou a si mesmo com um ar modesto – uma homenagem às suas habilidades de ator, já que não havia um único osso modesto em seu corpo.
Anna balançou a cabeça para ele, e suas mãos se crispavam em punhos de frustração.
– Ele não é. Matar é algo que machuca Charles. Mas ele vê isso como necessário –
– E é – murmurou Asil, claramente sendo condescendente com ela.
– Certo – concordou Anna de forma abrupta, ouvindo o rosnado em sua voz mas incapaz de evitá-lo. O fato de ter falhado tão espetacularmente com Bran havia-lhe ensinado que seu temperamento precisava ser mantido sob controle se ela quisesse convencer velhos lobos dominantes de alguma coisa.
– Sei que é necessário. Claro que é necessário. Charles não mataria ninguém se não considerasse necessário. E Charles é o único lobo dominante o suficiente para fazer o trabalho sem ser também um Alfa, já que isso causaria problemas com os Alfas dos territórios onde ele precisa entrar. Certo. Mas isso não significa que ele possa continuar assim. Necessário não significa possível.
Asil suspirou.
– Mulheres.
Ele suspirou outra vez, teatralmente.
– Paz, criança. Eu entendo. Você é Ômega, e Ômegas são piores do que Alfas quando se trata de proteger seu companheiro. Mas seu companheiro é muito forte.
Ele fez uma careta ao dizer isso, como se estivesse provando algo amargo. Anna sabia que ele nem sempre se dava bem com Charles, mas lobos dominantes frequentemente tinham esse problema uns com os outros.
– Você precisa apenas ter um pouco mais de fé nele.
Anna olhou nos olhos de Asil sem desviar o olhar.
– Ele não me leva mais com ele quando viaja. Quando veio para casa essa tarde, usei minha magia para colocar o lobo para dormir, e assim que o lobo se aquietou, ele saiu sem dar uma palavra.
– Você esperava que viver com um lobisomem fosse algo fácil? – disse Asil, franzindo a testa para ela. – Você não pode consertar a todos. Eu lhe disse isso. Ser Ômega não faz de você Alá.
A companheira de Asil, há muito morta, tinha sido um Ômega. Asil havia ensinado a Anna tudo o que ela agora sabia sobre Ômegas, e parecia acreditar que isso lhe dava algum tipo de status paternal sobre ela. Ou talvez ele só gostasse de ser condescendente com todos.
– Ômega não significa ter poder sem fim. Charles é um assassino frio, pergunte a ele você mesma. Você sabia disso quando se casou com ele. Você deveria parar de se preocupar com ele e começar a se preocupar sobre como você vai lidar com a aceitação da situação na qual você mesma se meteu.
Anna olhou para ele. Ela sabia que Charles e Asil não eram amigos do peito ou algo assim. Anna não havia percebido que ele não conhecia Charles em absoluto, que Asil via apenas a fachada que ele mostrava para todos.
Asil tinha sido sua última e desamparada esperança. Anna levantou-se da mesa. Ela virou as costas para Asil e caminhou para a porta, sentindo o grande peso do desespero. Anna não sabia como fazer Asil – e Bran principalmente – perceber como as coisas estavam ruins. Era Bran que importava. Apenas ele poderia manter Charles em casa. Ela não conseguira convencer seu sogro, e esperava que Asil pudesse ajudar.
Ainda estava claro do lado de fora e ainda ficaria claro por mais algumas horas, mas o ar já estava agitado com o peso da lua crescente. Ela segurou a porta aberta e voltou-se para Asil.
– Você está totalmente errado sobre ele. Você, Bran e todo mundo. Ele é forte, mas ninguém é tão forte assim. Há meses ele não toca nenhum instrumento, não canta nenhuma canção.
Asil levantou a cabeça e olhou fixamente para ela por um momento, provando que ele sabia algo sobre o marido de Anna, afinal de contas.
– Talvez – disse ele lentamente, com um franzir de testa, ficando em pé. – Talvez você esteja certa. O pai dele e eu precisamos conversar.
Asil entrou na casa do Marrok sem bater. Bran nunca havia objetado, e outro lobo poderia pensar que ele simplesmente nunca percebera. Asil sabia que Bran percebia tudo e que havia escolhido permitir a Asil aquele sutil desafio por suas próprias razões. E isso era quase o suficiente para fazer Asil bater à porta e esperar por um convite para entrar. Quase.
Leah estava no sofá da sala, assistindo a algo em sua grande TV. Ela levantou os olhos quando ele passou e não se incomodou em sorrir, enquanto uma mulher gritava estridentemente do sistema de som surround. Quando Asil chegara a Montana, Leah havia flertado com ele – a companheira de seu Alfa, que deveria ter bom senso. Ele havia permitido o flerte na primeira vez, mas na segunda ensinou-a a não jogar seus joguinhos de sedução com ele.
Então, Leah ficou sentada no sofá, olhou para ele e depois desviou o olhar para longe, como se Asil a entediasse. Mas ambos sabiam que ele a assustava. Asil tinha um pouco de vergonha disso porque sabia que a sua companheira, morta, mas ainda amada, ficaria decepcionada com ele. Ensinar Leah a ter medo dele tinha sido mais fácil e mais satisfatório do que apenas deixá-la saber que seus flertes eram indesejados e não lhe dariam o que quer que fosse que ela desejava.
Se Asil não esperasse ser morto pelo Marrok em curto prazo – que havia sido o motivo pelo qual ele viera para a alcateia de Montana –,não teria feito um serviço tão completo. Mas Asil não estava infeliz com o fato de Leah ignorá-lo tanto quanto possível – e ainda menos infeliz com o fato de o Marrok não matá-lo como Asil havia previsto; Asil descobrira que a vida ainda tinha o poder de surpreendê-lo, por isso estava disposto a ficar por ali um pouco mais de tempo.
Ele seguiu o som de vozes tranquilas até o escritório do Marrok, parando no corredor para esperar quando percebeu que o homem conversando com o Marrok era Charles. Se fosse qualquer outra pessoa, Asil teria entrado, esperando que o lobo inferior – e todos eram lobos inferiores – cedesse o espaço a ele.
Asil franziu a testa, tentando decidir se o que ele tinha a dizer iria funcionar melhor com Charles na sala ou não. A estratégia era importante. Um lobo dominante, como Charles ou Bran, não podia ser compelido, apenas persuadido.
No final, ele se decidiu por uma conversa particular e seguiu para a biblioteca, onde encontrou uma cópia de Ivanhoé e releu os a primeiros capítulos.
– Bobagem romântica – disse Bran da porta. Sem dúvida, ele havia sentido o cheiro de Asil assim que ele havia passado pela porta do escritório. – Além disso, cheio de inverdades históricas.
– Há algum problema nisso? – perguntou Asil. – Romance é bom para a alma. Feitos heroicos, sacrifício e esperança. Ele fez uma pausa. – A necessidade de duas pessoas diferentes se tornarem uma só. Scott não estava tentando atingir exatidão histórica.
– Ainda bem – resmungou Bran, sentando-se na cadeira em frente à namoradeira que Asil tinha reivindicado como assento. – Porque ele não conseguiu.
Asil voltou a ler o livro. Era uma técnica de interrogação que ele havia visto Bran usar muitas vezes e ele imaginou que o velho lobo a reconheceria.
Bran bufou, divertido, e cedeu, ao iniciar a conversa.
– Então, o que o traz aqui esta tarde? Imagino que não tenha sido um súbito desejo de ler o arrojado romance de Sir Walter.
Asil fechou o livro e deu a seu Alfa um olhar disfarçado sob as pestanas.
– Não. Mas é sobre romance, sacrifício e esperança.
Bran jogou a cabeça para trás e gemeu.
– Você andou falando com Anna. Se eu soubesse que chateação seria ter um Ômega que não cede em minha alcateia, eu teria...
– Você a teria espancado até que ela se submetesse? – murmurou Asil astutamente. – Você a teria matado de fome e abusado dela, tratando-a como se fosse lixo, de forma que ela nunca pudesse entender o que era?
O silêncio tornou-se pesado.
Asil sorriu maliciosamente para Bran.
– Sei muito bem o que você teria feito. Você a teria trazido para cá duas vezes mais rápido. É bom para você ter alguém que não faz o que você manda por aqui. Ah, a alegria frustrante de ter um Ômega por perto. Lembro-me muito bem.
Asil sorriu ainda mais ao perceber que, no passado, ele achara que nunca mais sorriria ao lembrar-se de sua companheira.
– Extremamente irritante, mas bom para você. Ela é boa para Charles também.
O rosto de Bran endureceu-se.
– Anna veio me ver – continuou Asil, observando Bran cuidadosamente. – Eu lhe disse que ela precisava crescer. Anna assinou um contrato para os tempos difíceis, e também para os bons. Ela precisa perceber que o trabalho de Charles é difícil, e que às vezes ele vai precisar de tempo para lidar com isso.
Isso não era exatamente o que Asil queria dizer, mas ele podia apostar que era o que Bran havia realmente dito. O rosto inexpressivo do Alfa lhe dizia que estava no caminho certo.
– Eu disse a ela que havia uma questão geral mais importante que ela não estava percebendo – continuou Asil, com falsa seriedade. – Charles é o único que pode fazer o trabalho, e isso nunca foi mais necessário do que é agora, com os olhos do mundo sobre nós. Não é fácil encobrir as mortes com histórias de cães selvagens ou carniceiros comendo o corpo de alguém depois que a pessoa morreu por outro motivo, não mais. A polícia está à procura de sinais de que os assassinos sejam lobisomens e não podemos permitir isso. Eu disse a Anna que ela precisava crescer e lidar com a realidade.
O músculo na mandíbula de Bran contraiu-se porque Asil sempre tivera um talento para imitar – ele achava que agora havia imitado a voz de Bran quase com perfeição nas últimas sentenças.
– Então ela desistiu de mim – disse Asil, com sua própria voz. – Ela estava saindo, enquanto eu continuava sentado, contente com a minha presunçosa ideia de que ela era uma fêmea fraca que estava mais preocupada com seu companheiro do que com o bem-estar de todos. O que, afinal, é exatamente como uma mulher deve ser. Não é realmente justo culpá-las por isso, quando elas se tornam uma inconveniência.
Bran olhou para ele de forma tão controlada que Asil sabia que havia atingido um ponto sensível com a última frase.
Asil sorriu tristemente e acariciou o livro que segurava.
– E então ela me disse que há meses ele não toca nenhuma música, viejito. Quando foi a última vez que aquele lá ficou mais do que um dia sem cantarolar algo ou tocar aquele violão dele?
Os olhos de Bran ficaram chocados. Ele não sabia. O Marrok levantou-se e começou a andar.
– É uma necessidade – disse Bran finalmente. – Se eu não enviá-lo, então quem vai? Você está se oferecendo como voluntário?
Seria impossível, ambos sabiam disso. Uma morte, ou talvez até três ou quatro e o controle dele desapareceria. Asil era muito velho, muito frágil para ser enviado à caça de lobisomens. Ele iria gostar demais disso. Ele podia sentir o espírito selvagem de seu lobo alegrando-se com a chance de uma caçada, a chance de uma luta de verdade e do sangue de um oponente forte entre suas presas.
Bran ainda estava falando.
– Não posso enviar um Alfa ao território de outra alcateia sem que isso se torne um desafio que vai gerar ainda mais derramamento de sangue. Não posso enviar você. Não posso enviar Samuel, porque meu filho mais velho é um risco ainda maior do que você. Eu não posso ir porque aí teria que matar todos os malditos Alfas, e não tenho nenhum desejo de trazer todos os lobisomens para minha alcateia pessoal. Se não posso enviar Charles, então quem eu envio?
Asil inclinou a cabeça ao sentir a cólera de Bran.
– É por isso que você é o Alfa, e eu farei tudo que puder para nunca mais ser um novamente.
Asil levantou-se, a cabeça ainda baixa. Ele acariciou a capa de tecido do livro e colocou-o sobre a mesa.
– Acho que realmente não preciso ler esse livro de novo. Sempre achei que Ivanhoé deveria ter se casado com Rebecca, que era inteligente e forte, em vez de escolher Rowena e o que ele achava que era certo e apropriado.
Asil então deixou Bran sozinho com seus pensamentos, porque se ficasse, Bran iria discutir com ele. Dessa forma, o Marrok não teria ninguém com quem discutir, a não ser ele mesmo. E Asil sempre havia creditado a Bran a capacidade de ser persuasivo.
Bran olhou fixamente para o Ivanhoé. A capa era de uma cor opaca azulada, e a trama do tecido era um sinal visível de sua idade. Ele correu o dedo sobre os entalhes que formavam o título e a linha do desenho de um cavaleiro vestindo uma armadura do século XVI. O livro já tivera uma capa de papel com uma imagem ainda menos apropriada na parte da frente. Ele sabia que no interior, na folha de rosto, havia uma inscrição, mas não abriu o livro para encontrá-la. Ele tinha certeza de que Asil havia ficado aqui tempo suficiente para passar por toda a maldita biblioteca para encontrar esse livro. Charles havia dado o livro a ele, talvez setenta anos atrás.
Feliz Natal – dizia a inscrição. Você provavelmente já leu esse livro uma dúzia de vezes. Eu o li pela primeira vez há alguns meses e achei que você poderia encontrar conforto nesse conto sobre a possibilidade de que duas pessoas diferentes possam aprender a viver juntas – vale a pena revisitar uma boa história.
Era uma boa história, mesmo que fosse historicamente imprecisa e romântica.
Bran pegou o livro e colocou-o de volta suavemente na estante antes que ele pudesse ceder ao impulso de rasgá-lo em pedacinhos; depois disso, não iria parar até que não houvesse mais nada para destruir – e ninguém poderia controlá-lo se isso acontecesse. Ele precisava que Charles fosse algo que ele não era, e seu filho iria se matar tentando fazer o que seu pai precisava.
Por quanto tempo ele havia mentido a si mesmo, achando que Charles ficaria bem com aquilo? Há quanto tempo ele sabia que Anna estava certa ao objetar? Havia muitas razões, boas e sólidas razões, para que as mortes não ficassem a cargo de Bran. Ele havia dado a Asil uma delas. Mas o verdadeiro motivo, a verdadeira razão, estava mais próximo daquilo que Asil pensava, embora ele fosse mais honesto a respeito disso. Quanto tempo levaria até que Bran começasse a apreciar as súplicas, o sofrimento, antes de matar? Ele não se lembrava de muita coisa sobre o tempo em que deixara seu lobo dominá-lo, embora o mundo ainda guardasse um registro desse tempo – e isso havia acontecido há mais de dez séculos. Mas algumas das lembranças que ele retinha eram de suas vítimas aterrorizadas e a satisfação que seus gritos lhe traziam.
Charles nunca faria isso, ele nunca se regozijaria com o medo que os outros sentiam dele. Ele nunca faria mais do que o necessário. Um paradoxo, portanto. Bran precisava que Charles fosse exatamente o que ele era – e Charles precisava ser o monstro que seu pai era para sobreviver.
O telefone tocou, tirando Bran de seus pensamentos. Ele esperava que fosse um problema diferente no qual pudesse enterrar seus dentes. Algo que tivesse solução.
– Não farei isso – disse Adam Hauptman ao telefone.
Bran fez uma pausa.
Ele havia ficado surpreso quando Adam, dentre todos os seus Alfas, se mostrou o mais adequado para lidar com os agentes federais. Adam tinha um temperamento terrível e não o mantinha tão sob controle quanto era prudente. Por essa razão, Bran o havia mantido nos bastidores, longe dos holofotes, apesar de seus atributos físicos e do seu carisma. Mas sua experiência no exército e seus contatos, bem como uma compreensão inesperadamente boa da política (e da chantagem política) tinham gradualmente tornado Adam o peão político mais útil de Bran.
Não era comum ouvir uma recusa de Adam.
– Não é uma tarefa difícil – murmurou Bran ao telefone, mantendo sob controle o lobo, que queria insistir em obediência imediata. – Só uma troca de informações. Perdemos três pessoas em Boston; o FBI acha que isso está ligado a um caso maior e quer consultar um lobisomem. O Alfa local não é qualificado, e é muito jovem, não conseguirá fazer uma boa diplomacia; não enquanto seu próprio povo está morrendo.
– Se eles quiserem vir até aqui, tudo bem – disse Adam. – Mas as pernas de Mercy não estão curadas, e ela não pode se locomover na cadeira de rodas sem ajuda porque suas mãos foram queimadas.
– A alcateia não vai ajudá-la?
Uma fúria gelada congelou sua voz. Mercy podia ser a companheira de Adam, mas para seu lobo, ela sempre pertenceria a Bran. Sempre seria sua pequena coiote, durona e desafiadora, criada por um bom amigo, porque Bran não podia confiar à sua dissimulada companheira alguém com quem ele se preocupava e que era mais frágil do que seus filhos adultos.
Adam soltou um bufo de risada que aliviou a ira de Bran.
– Não é isso. Ela está mal-humorada e envergonhada por estar indefesa. Tive que sair na última semana a negócios. Quando voltei, percebi que os vampiros tiveram que vir cuidar dela porque Mercy havia expulsado todos os outros. Eu não preciso ouvir quando ela me diz para deixá-la em paz, mas todos os outros têm.
Satisfeito com o pensamento de Mercy dando ordens a um bando de lobisomens, Bran se acomodou em sua cadeira.
– Bran? Você está bem?
– Não se preocupe – disse Bran. – Vou pedir a David Christiansen para fazer isso. O FBI vai ter que esperar uma semana mais ou menos, até ele voltar da Birmânia.
– Não é isso o que eu estava perguntando – disse Adam. – “Instável” não é uma palavra que eu normalmente aplicaria a você, mas você não está no seu normal hoje. Está tudo bem?
Bran beliscou o nariz. Ele devia manter aquilo em segredo. Mas Adam... ele não podia falar com Samuel sobre isso; isso só deixaria seu filho mais velho se sentindo culpado.
Adam conhecia todos os envolvidos e também era um Alfa; ele entenderia sem que Bran precisasse explicar tudo.
O Alfa ouviu sem fazer comentários, exceto por um bufar quando ouviu como Asil havia habilidosamente virado a mesa contra Bran.
– Você precisa manter Asil aí – disse ele. – Os outros se sentem intimidados demais para jogar com você, e você precisa disso, de vez em quando, para mantê-lo alerta.
– Sim – disse Bran. – E o resto?
– Você tem que parar com as sentenças de morte – disse Adam com segurança. – Eu ouvi sobre o que houve em Minnesota. Três lobos pegaram um pedófilo com uma corda na mão e uma arma de choque no bolso; ele estava perseguindo um aluno da terceira série.
Bran rosnou.
– Eu não faria objeção, mas eles se empolgaram e, depois, deixaram o corpo meio devorado para ser descoberto no dia seguinte, antes mesmo de contar ao Alfa o que havia acontecido. Se eles tivessem apenas quebrado o pescoço dele, eu poderia ter ignorado – disse Bran, beliscando seu nariz novamente. – Porém, isso só fez com que o legista começasse a especular em todos os jornais.
– Se você recuasse, Charles não teria que sair e matar tantas vezes, porque você não teria tantos Alfas recusando-se a cuidar da disciplina.
– Eu não posso – disse Bran, cansado. – Você já viu os novos comerciais que a Bright Future tem patrocinado? As audiências a respeito das espécies ameaçadas de extinção irão começar a partir do mês que vem. Se eles nos classificarem como animais, não serão apenas os lobos que terão problemas ao serem caçados.
– Somos o que somos, Bran. Não somos civilizados nem domesticados, e se você nos forçar a isso, Charles não será o único a perder.
Adam soltou o fôlego e, com um tom de voz menos apaixonado, disse:
– Em todo caso, se você der uma folga a Charles, enviando-o a outras frentes, isso talvez lhe dê um pouco de descanso.
– Eu já o liberei completamente de suas obrigações financeiras – disse Bran. – Não funcionou.
Houve uma pausa.
– O quê? – disse Adam cuidadosamente. – Os negócios? Você transferiu as finanças da alcateia para outra pessoa?
– Ele já havia se afastado da maioria das tarefas diárias de gerenciamento da corporação, colocando-as nas mãos de cinco ou seis pessoas diferentes, das quais apenas uma sabe que a corporação é de propriedade da família de Charles. Ele faz isso a cada vinte anos, mais ou menos, para impedir que as pessoas percebam que ele não envelhece. Eu trouxe uma empresa de consultoria financeira para assumir os outros negócios da alcateia, e o que eles não estão gerenciando, Leah está.
– Então, Charles não está fazendo absolutamente nada, exceto sair e matar? Nada para distraí-lo, nada para diluir o impacto. Sei que acabei de dizer que ele precisa de uma folga, mas é quase o oposto. Você realmente acha que é uma boa ideia? Ele gosta de ganhar dinheiro, é como um jogo de xadrez infinitamente complicado para ele. Ele me disse uma vez que era ainda melhor do que a caça, porque ninguém morre.
Charles também havia dito isso a Bran. Talvez ele devesse ter escutado com mais atenção.
– Não posso devolver as finanças a ele – disse Bran. – Ele não está... não posso lhe dar o controle das finanças de volta.
Não até que Charles estivesse funcionando melhor, porque o dinheiro que a alcateia controlava era o suficiente para significar poder. Sua relutância em confiar em Charles, que havia gerenciado tudo desde o início, fez Bran admitir, pelo menos para si mesmo, que já havia notado que Charles estava com problemas há algum tempo.
– Tenho uma ideia – disse Adam lentamente. – Sobre aquela tarefa que você queria passar para mim...
– Não vou enviá-lo para lidar com o FBI – disse Bran, horrorizado. – Mesmo antes... disso, Charles não seria a pessoa certa para enviar.
– Ele não lida bem com pessoas – concordou Adam, parecendo achar aquilo divertido. – Imagino que esse ano que passou e tudo o mais não ajudou em nada. Não. Mande Anna. Aqueles agentes do FBI não têm pista alguma do que aconteceu. E com Anna para amortecer as coisas, pode ser que Charles realmente consiga ajudá-los. Envie os dois para dar assistência, bem como consultoria. Um dos nossos já basta para fornecer aos policiais muitas informações que a investigação forense não consegue dar sobre uma cena de crime. Dê a Charles algo para fazer onde ele possa ser o mocinho em vez do carrasco.
Deixe que ele seja um herói – pensou Bran, fixando os olhos em Ivanhoé na sua estante enquanto desligava o telefone. Asil tinha razão ao dizer que não havia nada de errado com um pouco de romance para amortecer as duras realidades da vida. Adam podia ter dado a ele o curativo de que precisava para ajudar seu filho mais novo. Bran ardorosamente esperava que sim.
Dois
A agente especial Leslie Fisher olhou para fora da janela cuja vista dava para o centro de Boston. O ponto onde Leslie se encontrava dava a ela uma adorável perspectiva do começo da manhã. O trânsito ainda era leve e, embora ainda fosse ficar muito mais pesado quando as pessoas começassem a ir para o trabalho, a falta de lugares para estacionar evitava que as ruas fossem tão alucinadas como as de Los Angeles, o último lugar para onde ela havia sido transferida. Como trabalhava para o FBI, Leslie era transferida para outro lugar depois de uns poucos anos, quisesse ela ou não – mas sempre pensava em Boston como seu lar.
O hotel era velho e elegantemente caro. Um papel de parede de bom gosto, acetinado, listrado, cobria as paredes da sala de reunião em estilo vitoriano genuíno. A sala um tanto pequena era dominada pela grande mesa de mogno com cadeiras acolchoadas, que pareciam pertencer mais a uma sala de jantar do que a uma sala de reuniões. Mas era um hotel mesmo assim, apesar de sua decoração, e lhe faltava até mesmo uma leve sugestão de personalização, que conseguia romper o estilo monótono do governo em seu próprio escritório-cubículo.
Leslie estava lá para se encontrar com um consultor. Embora o termo “consultor” lembrasse o nerd ou o contador ocasional perfeitamente inocente, em sua experiência os consultores frequentemente eram bandidos que faziam acordos para que os mocinhos pudessem apanhar bandidos maiores, recompensando o mal menor para que os grandes monstros fossem impedidos.
Cinco pessoas foram mortas no último mês: uma mulher idosa, dois turistas, um homem de negócios e um menino de oito anos de idade. Um assassino serial estava caçando. Ela tinha visto o corpo do menino e, para pegar seu assassino, teria sido capaz de se encontrar com o próprio diabo.
Durante seu trabalho no FBI, Leslie já havia lidado com traficantes de drogas, além de ter se encontrado com um ex-assassino na cadeia, já condenado à prisão perpétua, e um sem número de políticos (alguns dos quais deveriam estar servindo sentenças de prisão perpétua). Uma vez, ela até consultara uma autoproclamada bruxa. Pensando nisso, Leslie notou que não tinha ficado com tanto medo da bruxa quanto deveria.
Hoje, ela iria conversar com lobisomens. Até onde Leslie sabia, ela nunca conhecera um lobisomem antes, portanto isso deveria ser interessante.
Ela considerou a mesa onde todos estariam sentados. Os escritórios do FBI ou uma delegacia de polícia teriam dado ao seu lado a vantagem de estar em casa – o lado daqueles que lutavam pela lei e a ordem. Encontrá-los em seu próprio território, em seus escritórios ou casas, lhe tirava essa vantagem, mas ela às vezes usava esse estratagema para obter informações que não teria conseguido se as pessoas que estava entrevistando não se sentissem confortáveis e seguras. Prisões curiosamente davam ao prisioneiro a vantagem de se sentir em casa – especialmente se Leslie levasse um agente novato e nervoso com ela.
Hotéis eram territórios neutros, e era por isso que eles estavam se encontrando ali, e não no escritório.
– Por que eu? – perguntou Leslie, quando no dia anterior seu chefe disse que ela iria sozinha. – Pensei que toda a equipe ia falar com ele.
Nick Salvador tinha feito uma careta e esticado seu grande corpo desconfortavelmente atrás de sua mesa – onde ele passava tão pouco tempo quanto possível. Ele preferia estar no campo.
– “FUBAR” à frente – disse ele; esse era seu código para a política. Quando Leslie havia chegado ao escritório de Boston, a pessoa que ocupara sua mesa anteriormente havia gravado uma lista dos códigos usados por Nick no fundo da gaveta, com uma nota que dizia que a lista foi recebida por um fax vindo de Denver, justamente de onde Nick viera. Havia uma página inteira de palavrões, e “FUBAR à frente” era a primeira da lista. Nick conseguiria dançar graciosamente com os poderosos se fosse necessário, mas simplesmente não gostava de fazê-lo.
– Eu fiz um pedido e me disseram que iríamos falar com Adam Hauptman. Ele já deu um monte de consultorias – foi orador convidado em Quantico algumas vezes. Pensei que poderíamos obter informações para nos ajudar com o caso e talvez um pouco mais.
Nick virou a cadeira e seu joelho bateu no lado da lona de uma de suas mochilas. Ele tinha várias delas escondidas em seu escritório. Leslie tinha três – preparadas para trabalhos diferentes. As mochilas dela seguiam um código de cores; as de Nick eram numeradas – o que até fazia sentido, pois havia mais números do que cores apropriadas para homens (as mochilas dele eram de cor cáqui, cáqui e daquele outro tom de cáqui), e Nick precisava de mais mochilas do que ela porque seu trabalho era de alcance mais amplo. Leslie não precisava manter um terno à mão, por exemplo, porque era improvável que fosse chamada para entrevistas de televisão ou audiências no Congresso.
– Hauptman tem uma boa reputação – disse Leslie. – Tenho um amigo que assistiu a uma de suas palestras, e ele disse que foi informativa e muito divertida. Então, o que aconteceu com esse plano?
– Recebi um telefonema ontem de manhã. Hauptman não está disponível – você se lembra do monstro que eles encontraram no rio Columbia mês passado? Acontece que Hauptman e sua mulher o mataram, principalmente sua mulher – e essa informação é somente para nós. Não é confidencial, mas também não é para ser anunciada por aí. Ela aparentemente se machucou bastante e ele não pode voar para cá. Hauptman nos encontrou um substituto, alguém um degrau acima. Mas não mais do que cinco pessoas podem vir à reunião e nós temos que conduzi-la em território neutro. Não há nome, nem nenhuma outra informação oficial.
Ele franziu a boca, infeliz.
Nick Salvador disfarçava tão bem que podia jogar pôquer com os melhores jogadores, mas com pessoas de sua confiança, tudo o que ele pensava refletia-se em seu rosto. Leslie gostava disso. Gostava de trabalhar com Nick porque ele era inteligente e nunca, nunca a tratara como a “única mulher negra” do departamento.
– Isso não é FUBAR – disse ela.
– FUBAR é ouvir que o lobisomem consultor está “um degrau acima” – e isso torna tudo muito interessante para um monte de gente, e não só do FBI – disse Nick.
– Hauptman é o Alfa de uma alcateia em Washington, certo? – disse Leslie, franzindo os lábios. – Eu não sabia que havia um degrau acima de um Alfa.
– Nem ninguém mais – concordou Nick. – Eu não sei qual é o negócio, mas fui informado de que dois trippers estão chegando para a festa.
“Trippers”, em “dialeto Nick”, eram agentes da CNTRP. A sigla significava “Facilitador de Relações Combinadas Não-Humanas e Transumanas”, a nova agência formada especificamente para lidar com os vários seres preternaturais. Eles pronunciavam “Cantrip”. Nick os chamava de trippers porque sempre que eles se envolviam em uma investigação na qual ele estava trabalhando, Nick tropeçava neles.
– Eles queriam enviar dois agentes do Departamento de Segurança Interna também, mas eu bati o pé – disse Nick, fazendo uma careta para o telefone como se o aparelho fosse o culpado por irritá-lo. – O agente especial Craig Goldstein, que esteve envolvido em três casos anteriores com este mesmo assassino, terminou seus casos mais urgentes e está vindo do Tennessee para nos ajudar.
Leslie não conhecia Goldstein, mas sabia que Nick o conhecia e que gostava dele, o que era recomendação suficiente para ela.
– Quero que ele fale com o nosso lobisomem. Eu queria dois dos meus agentes lá com ele, mas perdi a votação. Dois trippers, um agente da Segurança Interna – nessa altura, a voz de Nick assumiu um tom frio – que não deveriam estar envolvidos nesse caso. E Craig e você.
– Por que eu? – perguntou ela. – Len poderia ir. Dessa forma, você incluiria a polícia – continuou Leslie. Len era o oficial do departamento de polícia local de Boston que trabalhava na força-tarefa do FBI. – Ou Christine. Ela teve um pouco mais de experiência com casos de assassinato em série do que eu.
Nick inclinou-se para trás e ficou imóvel, concentrando toda sua energia – como fazia quando conseguia uma boa pista sobre alguém que eles estavam procurando.
– Um amigo meu telefonou e deu-me umas informações. Ele conhece Hauptman e, mais importante, Hauptman sabe que ele é um amigo meu. Hauptman ligou para ele para dar umas informações a mais.
As sobrancelhas de Leslie se ergueram.
– Interessante.
– Não é? – sorriu Nick. – Meu amigo me disse que Hauptman falou que seria bom ter cuidado em relação a quem eu enviaria. Alguém discreto, bom na linguagem corporal e absolutamente não agressivo.
Nick olhou para Leslie, e ela concordou.
– Nem Len, nem Christine.
Len era inteligente, mas dificilmente era discreto, e Christine tinha uma veia competitiva de um quilômetro e meio de largura. Leslie era durona, mas não precisava esfregar isso no nariz dos outros.
– Isso também me deixa de fora – admitiu Nick. – Angel e você são provavelmente as melhores opções; e Angel simplesmente ainda está verde demais para ser enviado sozinho contra os bandidos.
Angel tinha acabado de sair da Academia do FBI em Quantico.
– Vou anotar tudo – prometeu ela.
– Faça isso – disse Nick. Seus dedos estavam fazendo a pequena dança impaciente que faziam quando ele estava pensando na presença de amigos – como se ele estivesse conduzindo música invisível.
Leslie esperou, mas ele não disse nada.
– Então, por que estamos fazendo esse esforço extra para estabelecermos uma boa relação com o lobisomem? – perguntou ela.
Nick sorriu.
– Meu amigo me disse que, segundo Hauptman, as pessoas com as quais nos reuniremos podem ser persuadidas a nos dar uma ajuda um pouco mais concreta se a pessoa que enviarmos for alguém em quem eles sintam que podem confiar.
– As pessoas? – disse Leslie, inclinando-se para frente. – Há mais de um?
– Hauptman disse “pessoas”. Essa informação não veio por canais oficiais, então não vi nenhuma razão em passá-la adiante.
Nick era muito bom em cooperação. A cooperação resolvia crimes, colocava os bandidos atrás das grades. Cooperação era a nova palavra de ordem – e funcionava.
No entanto, quando Nick ficava irritado, a palavra cooperação podia significar algo... um pouco menos cooperativo. Ele podia depreciar os trippers em particular, mas isso não o atrapalhava em absoluto no trabalho de campo. Os agentes do Departamento de Segurança Interna, por outro lado, tinham uma tendência a irritá-lo com um pouco mais de intensidade, porque gostavam de esquecer que o FBI tinha jurisdição sobre toda atividade terrorista no solo dos Estados Unidos. Nick os lembrava disso, sempre que necessário, e com grande prazer.
– Eu gostaria muito – disse Nick – de usar nosso consultor ou nossos consultores em campo.
– Seria interessante ver o que um lobisomem pode fazer em uma cena de crime – disse Leslie, considerando a questão. Baseando-se no pouco que sabia sobre lobisomens, poderia ser como ter um cão de caça que pudesse falar – análise forense instantânea.
Nick mostrou seus dentes brancos e perfeitos em uma careta sincera.
– Nunca mais quero ver o corpo de outra criança afogada, com uma etiqueta de gado na orelha. Se um lobisomem puder fazer a diferença, traga-os a bordo, por favor.
– Deixe por minha conta.
Leslie colocou as mãos sobre a mesa de conferências do hotel. Suas unhas eram curtas, bem cuidadas e polidas com um esmalte transparente que combinava com o brilho da madeira onde suas mãos estavam pousadas. Direitos territoriais eram importantes. Ela tinha um diploma em psicologia e outro em antropologia, mas já sabia disso desde que a senhorita Nellie Michaelson tinha ido caçar cachorrinhos no quintal da Sra. Cullinan.
Leslie chegara mais cedo porque era uma maneira de transformar um território neutro no seu próprio. Era uma das coisas que a tornavam uma boa agente – ela prestava atenção aos detalhes – detalhes como obter a vantagem do tribunal em casa quando se lidava com monstros, especialmente aqueles com dentes grandes e afiados.
Ela havia estudado um bocado sobre lobisomens desde que Nick jogara isso para ela no dia anterior.
Lobisomens deveriam ser as pobres e oprimidas vítimas de uma doença, pessoas que usavam as habilidades que seu infortúnio lhes concedera para ajudar os outros. David Christiansen, a primeira pessoa a admitir ser um lobisomem, era um especialista em extrair reféns de terroristas. Leslie tinha certeza de que o fato de ele ser incrivelmente fotogênico não havia sido um acidente. A filha mais velha de Leslie tinha um pôster na porta de seu quarto representando a famosa foto de David segurando a criança que ele havia resgatado. Outros lobos que haviam admitido ser o que eram geralmente trabalhavam como bombeiros, policiais e militares: os mocinhos em geral.
Ela podia sentir o cheiro da propaganda a quilômetros de distância, e ela não estava mentindo, não exatamente. O pequeno grupo de mercenários de David Christiansen tinha uma reputação muito boa entre as pessoas com quem Leslie havia falado. Eles faziam seu trabalho com um mínimo de baixas em todos os lados e eram bons no que faziam. Eles não trabalhavam com os bandidos. Por isso, Leslie estava mantendo a mente aberta – mas como também era naturalmente cautelosa, havia um par de balas de prata (compradas apressadamente) carregadas em sua arma portátil.
A porta se abriu atrás dela e Leslie se virou para ver uma jovem mulher entrar na sala; ela parecia ainda estar no ensino médio.
Leslie sentia-se assim muitas vezes quando conhecia os novos recrutas recém-saídos de Quantico. O cabelo castanho-claro-avermelhado da garota estava trançado severamente em uma tentativa de fazê-la parecer mais velha, mas o efeito não fora o suficiente para compensar as sardas que se espalhavam por suas faces pálidas ou os inocentes olhos castanhos cor-de-mel.
– Oh, oi – disse a garota animadamente; sua voz tinha um leve sotaque de Chicago. – Eu pensei que seria a primeira a chegar aqui. É um pouco cedo.
– Eu gosto de fazer o reconhecimento do terreno – disse Leslie, e a mulher mais jovem riu.
– Oh, eu entendo – disse ela sorrindo. – Charles é assim.
Charles deve ser o seu parceiro, pensou Leslie. Eles devem ser os agentes da Cantrip. Essa criança não poderia ser um lobisomem. Leslie sabia que havia poucas mulheres lobisomens graças ao seu curso rápido pela Internet, mas os lobos homens as protegiam com cuidado. Eles nunca a teriam enviado para lidar com agentes federais. Pensando melhor, ela também não teria deixado a garota sozinha.
– Por que seu Charles não está aqui, então?
Ele a havia abandonado aos lobos. Isso a fez querer acabar com a raça dele – e ela ainda nem o havia conhecido. E se tivesse sido o lobisomem aguardando a garota ali, em vez de um agente do FBI?
Leslie recebeu um sorriso lento, de quem compreendera sua censura privada e se divertira com ela.
– Ele perdeu uma aposta e teve que ir buscar café para todos. Ele não está feliz com isso, também. Eu provavelmente não deveria gostar tanto disso, mas às vezes tenho grande prazer em dar ordens a um homem mal-humorado; você não?
Ela fez Leslie dar uma risada, surpresa.
– E como – concordou ela, antes de respirar cautelosamente. Essa garota estava afetando seu comportamento; afinal, ela nunca ria quando estava trabalhando. Leslie reavaliou a outra mulher. Ela parecia uma adolescente, vestida com um conjunto de saia e blazer cinza listrados, que de algum modo parecia mais uma fantasia do que o tipo de roupa que ela realmente usava.
– Eu aposto – disse Leslie, testando uma ideia – que homens perigosos tropeçam uns sobre os outros para se certificar de que você não dê uma topada no dedo do pé.
Leslie sabia que estava certa quando, em vez de parecer perturbada, a mulher apenas sorriu maliciosamente.
– E eu me asseguro de que eles se desculpem quando tropeçam uns nos outros ao fazê-lo.
– Há! – disse Leslie, triunfante. – Eu pensei que a Cantrip tinha mais bom senso e não ia atirar um bocado tão saboroso para os lobos. Eu sou a agente especial Leslie Fisher, Unidade de Crimes Violentos do FBI.
– Eu sou Anna Smith, hoje – a garota deu um sorriso triste. – Não sou Cantrip. Um dos lobos, eu receio. E pior ainda, Smith não é meu nome verdadeiro. Eu disse a eles que era um nome bobo, mas Charles falou que era melhor deixar isso bem claro ou então vocês ou a Segurança Interna iriam encontrar um pobre Charles ou uma pobre Anna Washington, Adams ou Jefferson para atormentar.
A agente do FBI não era exatamente o que Anna esperava, mas não era diferente também. Inteligente, bem vestida, confiante – isso os programas de TV e os filmes de cinema haviam mostrado corretamente. Anna havia se tornado muito boa em julgar pessoas desde que fora transformada. Linguagem corporal, cheiro, essas coisas não mentiam. Ela havia surpreendido a agente com sua revelação, mas não a assustara, o que era um bom presságio para seu trabalho conjunto.
As linhas finas ao redor de seus olhos cor de chocolate-amargo ficaram mais pronunciadas, e por um momento a agente especial Leslie Fisher pareceu exatamente tão dominante quanto era. Ela devia ter por volta de quarenta e poucos anos e o terno bem cortado que ela usava cobria músculos bem definidos.
Seus olhos diziam que ela era durona. Durona como um cão de rua – e não apenas fisicamente. Se ela fosse um lobisomem – e macho –, seria a segunda ou terceira na alcateia, considerou Anna. Não um Alfa – ela não possuía a territorialidade agressiva inerente ao chefe da alcateia, mas quase isso. Quantas pessoas a agente do FBI havia enganado com aquele exterior calmo?
As rugas nos olhos da agente especial Fisher estenderam-se aos seus lábios cheios quando ela disse:
– Estamos fazendo esta reunião com tão poucas pessoas quanto possível porque o homem que a organizou nos disse que não seria inteligente perturbar o lobisomem – Leslie levantou uma sobrancelha bem desenhada. – Você não parece ficar facilmente perturbada.
Repreendida. Anna lutou para não sorrir de satisfação. Agora, como dizer o que ela precisava saber sem assustá-la?
– Eles não estão preocupados comigo. É o meu marido que é o lobisomem-problema.
A outra mulher franziu a testa.
– Então há mesmo outro lobisomem vindo para cá. Seu marido? – sua voz soava ligeiramente incrédula. Anna era casada? Seu marido era um lobisomem? Haveria dois deles ali? Se Fisher conhecesse bem os lobisomens, teria ficado mais surpresa pelo fato de Charles tê-la deixado sozinha.
Anna também estava um pouco incrédula – e isso dava a ela uma pitada de esperança de que Bran estivesse no caminho certo com esse negócio. Ela não ficara tão convencida quanto ele e Asil de que seria bom para Charles caçar um assassino serial em vez de caçar lobos malcomportados, mas Charles concordou e assim foi feito.
– Sim – concordou Anna. – Eu sou um lobisomem. Eu sou casada. E meu marido é um lobisomem, também.
A carranca de Fisher se aprofundou.
– Ficamos sabendo que quem quer que seja que vamos encontrar está acima de Hauptman, que é o Alfa de uma alcateia inteira de lobos.
– Foi isso que disseram? – murmurou Anna, enquanto se perguntava quem havia deixado escapar a informação, e se Bran sabia sobre isso – ou se ele havia planejado assim. Se Anna ficasse imaginando quanto de sua vida era planejado por Bran, ela acabaria em um hospício, tricotando gorros para patos.
– Você mal tem idade suficiente para cuidar de si mesma, e seu marido está acima de Hauptman na estrutura de governo dos lobisomens – disse a agente Fisher. – O que eles fizeram? Forçaram-na a casar com ele quando você tinha doze anos?
Anna piscou para ela. Em seu pequeno mundo de programas de TV e filmes assistidos religiosamente, um agente do FBI nunca teria dito algo pessoal para alguém que acabara de conhecer. Eles teriam feito isso gradualmente – ou insinuado algo cuidadosamente. Considerando o olhar chocado no rosto da agente Fisher, o mesmo devia se passar no pequeno mundo da agente no que dizia respeito aos lobisomens.
Um Ômega faz com que todos se sintam um pouco mais protetores, conforme Asil lhe dissera há algum tempo. Anna realmente não havia ligado isso ao mundo humano.
Anna sorriu e disfarçou sua simpatia.
– Não. Eles não amarraram a pobre, fraca, inocente e pequena euzinha aqui e me forçaram a casar com ele – disse Anna, considerando a questão. – Ele não é fraco, nem inocente, mas se fosse necessário, eu é que o teria amarrado e forçado a se casar comigo. Felizmente, isso não foi necessário.
A outra mulher havia se recuperado.
– Você disse que ele é a razão pela qual não pudemos trazer mais pessoas?
– Isso mesmo – disse Anna. – Mas se você esperar um momento, eu prefiro explicar tudo de uma vez só, e acho que...
Anna parou de falar enquanto contava os passos (não eram de Charles) que estava ouvindo do lado de fora da porta da sala de conferências. Poderiam ser de algum hóspede do hotel vagando pelos corredores, mas havia dois homens andando a uma velocidade intencional apenas um pouco rápida demais para ser confortável, da maneira como às vezes fazem homens que estão competindo uns com os outros.
A porta abriu-se. A atenção de Leslie desviou-se daquilo que Anna estava falando para verificar as novas adições na sala. Ela deu alguns passos à frente até ficar entre Anna e os recém-chegados, mantendo Anna às suas costas – o que tornava Anna e a agente do FBI uma equipe, enfrentando os agentes da Cantrip – pelo menos, Anna achava que eram, porque havia dois deles. Dois Cantrips, dois do FBI e um da Segurança Interna, fora o que Charles lhe dissera. Ela achou bastante interessante o fato de que a agente do FBI os via como adversários – e a Anna como uma aliada.
– Jim. Então eles estão deixando você andar com os meninos grandes agora?
O tom de Leslie era seco. Anna achou que os dois homens que entraram na sala tomaram aquilo como um comentário amável, um desses comentários sarcásticos que amigos podem fazer. Mas ao observar cuidadosamente a linguagem corporal da outra mulher, Anna percebeu que Leslie estava em guarda, mais ainda do que havia estado depois dos primeiros minutos perto de Anna.
– Leslie – exclamou o homem mais jovem, com um sorriso verdadeiro. Sua linguagem corporal dizia que ele gostava da agente do FBI, qualquer que fosse a opinião dela sobre ele.
– Agente especial Fisher – ele se corrigiu. – É bom ver você. Eu sou um dos meninos grandes, e isso já faz algum tempo. Esse é o Dr. Steve Singh.
Leslie estendeu a mão e apertou as que foram oferecidas a ela.
– E o que é que a Segurança Interna quer com um assassino serial? Isso é trabalho para a polícia local. O FBI só foi chamado porque o assassino tem atacado em diferentes estados há anos.
Segurança Interna. Deveria haver apenas uma pessoa da Segurança Interna. Anna franziu o cenho. Charles não ia ficar feliz com isso. Ele não gostava de surpresas. Ele provavelmente tinha um arquivo sobre todos que viriam para esse baile.
Singh não disse nada, apenas estudou o rosto da agente do FBI antes de passar para Anna, que olhou para ele só para ver o que Singh iria fazer.
Ele franziu a testa e tentou levá-la a desviar o olhar, mas mesmo Bran não podia fazer isso ao menos que ela assim o permitisse, e Singh estava longe de ser tão dominante quanto Bran – ou até mesmo quanto a agente Fisher. Mas Anna baixou os olhos de qualquer maneira. Não havia sentido em começar uma briga até que fosse importante.
– Ouvimos dizer que haveria alguém de alto escalão falando pelos lobisomens em relação a isso – respondeu Jim Sem-Sobrenome, aparentemente alheio ao teste de encarar no qual seu parceiro havia se envolvido com Anna. – Decidimos que seria uma boa ideia se soubéssemos quem ele é e o que tem a dizer.
Apenas uma sutil tensão nas costas da agente do FBI disse a Anna que a arrogância inconsciente na voz do homem a tinha irritado.
– E por que há dois de vocês? – perguntou Fisher. – O pedido foi para que não houvesse mais do que cinco pessoas. Dois de nós, dois da Cantrip e um de vocês.
Anna percebeu que a agente do FBI sabia por que a Segurança Interna estava perguntando do lobisomem. Ela não havia ficado surpresa com o fato de haver dois deles – mas estava fazendo questão de perguntar, pelo bem de Anna. Ao não apresentar Anna logo de cara, Leslie estava levando os homens a pensar que Anna era a outra agente do FBI, forçando-os a revelar sua agenda na frente do inimigo.
– Colocamos um pouco de pressão sobre a Cantrip – disse Jim. – Eles estavam nos devendo uma.
Não deveria realmente fazer diferença que Fisher tivesse tornado essa questão em um “nós contra eles”. Eles estavam todos do mesmo lado – focados na captura do vilão. Poderia ser algo tão simples como rivalidade de departamentos: FBI contra Segurança Interna. Anna estreitou os olhos e pensou. Podia ser um pouco disso – e Fisher definitivamente não gostava de Jim. Mas Anna achou que o show era direcionado a ela. Anna era paciente; iria aguardar e ver o que a agente do FBI queria dela. Enquanto isso, ela precisava chegar a uma conclusão sobre as outras pessoas na sala.
Jim tinha um viço que lhe dava um pouco de charme. Anna não deixou de identificar a inteligência por trás de sua fachada brilhante. Já o Dr. Singh, o homem mais velho, era reservado e isso a fazia se lembrar de alguns dos lobos Alfas que conhecera ao longo dos últimos anos.
Ele era um daqueles que ficavam na retaguarda e cuidavam de suas alcateias, deixando os assuntos se resolverem sozinhos até que se afastassem demasiado da direção que ele queria que tomassem. Então, atacavam com uma eficiência brutal, que significava que ele não teria que se mexer novamente por um tempo. Ele percebera o que Fisher tinha feito, sem dúvida, mas seus ombros relaxados disseram a Anna que ele ainda não tinha percebido quem e o que Anna era.
A porta se abriu de repente e outro homem entrou. Anna se assustou um pouco. Ela não era tão “multitarefa” quanto podia ser; se estivesse prestando atenção, ela o teria ouvido se aproximar, mas Anna estava prestando mais atenção no jogo de poder e não havia identificado o som daqueles passos.
Leve e quase frágil na aparência, o recém-chegado olhou para todos eles com frios olhos cinzentos. Seu terno parecia ter saído direto do cabide e estava um pouco amassado, mas sua cor cinza-azulada combinava com seus olhos e complementava o cabelo escuro cortado que circundava o topo de sua cabeça.
Seus olhos pareciam mais velhos do que o seu corpo e, se ele tivesse mais do que um 1,50 m de altura, não era muito mais. A palidez da pele complementava o efeito, mas ele se movia com facilidade, como um corredor.
Ele franziu a testa para os dois homens.
– Segurança Interna – disse ele em um tom neutro e, em seguida, olhou para Leslie. – Você deve ser a agente especial Fisher. Eu sou o agente especial Craig Goldstein. Apresente-me, por favor.
Ela o fez, começando com a equipe de Segurança Interna. Jim Sem-Sobrenome, como Anna descobriu, era Jim Pierce.
– E essa – disse a agente Fisher, com apenas um toque de malícia –, é Anna Smith, nossa consultora lobisomem. Anna, esse é o agente especial Craig Goldstein. Ele é o nosso especialista sobre este caso.
Goldstein parecia... atordoado, o que ela tinha certeza de que era um acontecimento incomum. A dupla da Segurança Interna parecia tão surpresa quanto. Singh, recuperando-se primeiro, deu um olhar irritado para Fisher.
Anna sorriu calorosamente e estendeu o braço para apertar a mão que Goldstein havia estendido automaticamente no início das apresentações.
– Olá, agente especial Goldstein – disse ela, com sinceridade. – Sei que não sou o que vocês estavam esperando, mas farei o melhor que puder. Estamos esperando os agentes da Cantrip e meu marido, que saiu para buscar café.
Charles estaria ali em breve. Anna tinha pensado em esperar até que os agentes da Cantrip chegassem, mas ela teria que fazer o melhor que pudesse nas circunstâncias. Se Charles chegasse antes que ela explicasse as regras, poderia ser desastroso.
Anna olhou para todos eles e soltou um suspiro.
– Ouçam, não há muito tempo. Nós vamos ajudá-los. Mas há algumas coisas que vocês devem saber. Todos nós precisamos estar sentados quando meu marido chegar. Não olhem nos olhos dele. Se vocês o fizerem, por favor, pisquem ou desviem o olhar se ele os encarar. Não toquem em mim, nem mesmo casualmente. Haverá uma cadeira vazia entre a minha e o assento de quem estiver sentado ao meu lado.
Bran a havia advertido sobre isso antes da viagem. Em Aspen Creek, na alcateia, Charles se sentia confiante sobre sua segurança. Isso podia mudar rapidamente fora de seu território. Anna tinha certeza de que ele ficaria bem. Não era o irmão lobo de Charles que estava com problemas; era Charles. Mas ela prometera a Bran que faria o que pudesse para evitar problemas.
O rosto de Goldstein ficou tenso, mas foi Singh quem perguntou:
– Ele é perigoso?
Anna bufou.
– Claro que ele é. Eu sou perigosa, e aposto que você é muito perigoso também. A questão aqui não é sobre quem é mais perigoso; é sobre ser inteligente e manter as coisas sob controle.
– Você está brincando de “bom policial, mau policial” com a gente? – perguntou Jim Pierce.
– Lobisomens dominantes não se misturam bem com os outros – disse-lhes Anna. – Se você jogar o meu jogo, todos nós seremos um pouco mais felizes – continuou ela, dando a Singh, que parecia o menos feliz de todos, um olhar severo. – Se você fosse se encontrar com um ministro chinês, não daria ouvidos a alguém que lhe desse algumas dicas sobre costumes chineses? Pense nisso dessa forma.
Três
Charles segurou os dois desajeitados porta-copos e atravessou o saguão lotado do hotel. Em sua pressa, ele não percebera que havia algo incomum na maneira como o seu caminho se esvaziava de pessoas, ou o elevador vazio que o levara até o terceiro andar, onde o encontro com os agentes federais ia acontecer. Somente quando um homem que estava esperando o elevador no terceiro andar recuou três passos ao vê-lo e, mantendo um olhar cauteloso em Charles, virou-se em direção às escadas, foi que ele se deu conta que as reações das pessoas eram um pouco incomuns.
Ele era um homem grande, um índio. (Ele havia sido índio por mais de um século e só ocasionalmente se considerava nativo-americano. Quando ele prestava atenção em detalhes, ele podia se considerar mestiço de índio Salish ou Flathead.) A combinação de tamanho e etnia geralmente fazia as pessoas evitarem-no, especialmente em lugares onde os índios não eram tão comuns. Não era culpa das pessoas; era da natureza do homem achar o desconhecido intimidante, especialmente quando se tratava de algo que tinha a forma de um grande predador. Seu pai não acreditava nisso, mas Charles tinha certeza de que, em algum lugar de seu cérebro posterior, a maioria das pessoas reconhecia um predador quando via um.
Seu irmão afirmava que o que fazia as pessoas recuarem para longe dele não era o seu tamanho, nem o sangue de sua mãe, mas unicamente a expressão de seu rosto. Para testar a teoria de Samuel, Charles havia tentado sorrir – e então solenemente informara a Samuel que ele estava enganado, dizendo que, quando sorria, as pessoas simplesmente corriam mais rápido.
A única pessoa que apreciava seu senso de humor era Anna.
As pessoas não se afastavam dele quando Anna estava ao seu lado. Mas mesmo sem a presença de Anna, ver uma pessoa para quem ele nem mesmo estava olhando se afastar como se ele estivesse com uma arma carregada na mão em vez de um monte de espressos e lattes em dois porta-bebidas de papelão era um pouco excessivo. Charles saiu do elevador e se moveu lentamente para que o homem não achasse que ele o estava perseguindo.
O irmão lobo achou que poderia ser divertido e enviou-lhe uma imagem do homem correndo aterrorizado pelo saguão enquanto Charles o perseguia, ainda carregando a droga das bebidas... Porque Anna havia pedido especificamente bebidas quentes para todos, e ele nunca deixava de pagar uma aposta.
Então, ele caminhou com lentidão deliberada pelo corredor em vez de persegui-lo – e despedaçar e rasgar a carne doce, cheia de sangue e com gosto metálico entre os dentes –, exatamente a mesma razão pela qual Charles havia tomado o elevador em vez de correr pelas escadas estreitas onde alguém poderia chocar-se com ele e derramar a bebida.
Seu pai devia estar louco por ter enviado Charles em uma missão quando ele estava assim tão perto de perder o controle, quando até mesmo um ser humano ignorante era capaz de perceber que havia algo errado com ele. Charles sabia que havia alguma coisa no ar quando chegara para almoçar com seu pai, conforme solicitado, e encontrara apenas seu pai, fazendo sanduíches de bacon, tomate e alface na cozinha da grande casa.
Bran havia comido seu próprio almoço e esperou até que Charles tivesse concluído o seu antes de indicar o caminho até o escritório. Seu pai então fechou a porta, sentou-se atrás de sua mesa e franziu os lábios, dando a Charles aquele olhar que dizia “tenho um trabalho para você e você não vai ficar feliz com isso”.
As refeições de pai e filho frequentemente incluíam a expressão no rosto de seu pai. Quando Bran queria falar com ele a sós, raramente era uma conversa feliz.
Charles esperara, em pé, para ouvir o que o seu pai tinha a lhe dizer. Seu lobo estava agitado, infeliz, e isso significava que ele não podia se sentar na cadeira oferecida e dificultar a sua capacidade de se mover.
– Asil tem me importunado por sua causa – disse seu pai.
– Asil?
Asil particularmente não gostava dele – e Charles não tinha sequer visto o lobo por algumas semanas. Mas pensando nisso, ele concluiu que era um pouco estranho não ter encontrado Asil em uma cidade tão pequena, onde alguém que estivesse de carro podia espirrar duas vezes e nem notar que já a havia atravessado.
– Anna também, nem preciso dizer – continuou Bran.
Charles se preparou para o que estava vindo. Anna sabia por que alguém tinha que manter a ordem; sabia por que tinha de ser ele a fazê-lo – ela apenas achava que ele era mais importante. Anna estava errada, mas o fato de ela pensar assim o comoveu. Se a opinião dela tinha convencido seu pai a enviar outra pessoa, porém, era algo que precisava ser decidido. Charles, como o filho do Marrok e solucionador de problemas de longa data, era a única opção quando se tratava de manter a violência a níveis imperceptíveis pelos padrões públicos. Sua reputação – e quem seu pai era – evitava que as alcateias entrassem em conflito para proteger sua própria espécie quando alguém precisava morrer.
– Eu sei o que ela disse. Mas Anna está errada. O irmão lobo não está a ponto de se descontrolar.
– Não – concordou seu pai suavemente. – Mas seu avô diria que você precisa se libertar de todos esses fantasmas que carrega com você.
Charles se encolheu. Ele devia saber que o seu pai entenderia o que estava acontecendo com ele. Bran não era um homem espiritual, pelo menos não até onde Charles sabia. Ele tinha certeza de que seu pai não podia ver os fantasmas da mesma maneira que seu avô teria visto. Mas Bran tinha uma maneira de ver diretamente no coração das coisas quando queria.
– Eu tentei – disse Charles, sentindo-se como se tivesse treze anos. – Jejuar e a Sauna Sagrada não funcionaram. Nem correr. Ou nadar.
– Você se agarra a eles porque sente que suas mortes não foram justas.
Charles desviou ligeiramente a cabeça e inclinou os olhos para baixo, mas não tanto que não pudesse ver o rosto de seu pai.
– Não é minha função determinar a lei, apenas cumpri-la.
Bran franziu o cenho, sem expressar descontentamento – apenas pensativo.
– Tive uma conversa com Adam Hauptman.
Charles ergueu as sobrancelhas e disse secamente:
– Adam está preocupado comigo, também?
– Adam está preocupado com a companheira dele, que está machucada, irritada, e agitada – respondeu seu pai. – Assim, ele não estará disponível para assumir uma situação bastante complicada.
Charles não estava entendendo onde aquela conversa os estava levando, então adotou o silêncio como estratégia, até porque Bran gostava de ouvir a própria voz.
O velho lobo suspirou, espreguiçou-se e colocou os pés sobre a mesa, um sinal de que Charles estava conversando com seu pai, e não apenas com o Marrok.
– Estive quebrando a cabeça, para não mencionar a cabeça de Asil, sobre o que fazer para tornar seu trabalho mais fácil.
Seu pai falou como se a situação de Adam tivesse alguma influência sobre a situação de Charles, embora ele não pudesse ver como.
– Você tem feito isso.
Seu pai franziu o cenho.
– Não. Está se tornando dolorosamente óbvio que nada do que fiz o ajudou.
Bran não disse o que era por alguns momentos e somente estudou o rosto de Charles, como se aquele não fosse o mesmo rosto que ele havia mostrado todos os dias desde que se tornara um adulto há quase dois séculos.
– Não posso enviar mais ninguém para fazer as leis serem cumpridas, mas vou, a partir desse momento, relaxar as penas para muitas das transgressões na esperança de que isso permita aos Alfas precisar de menos... ajuda para aplicá-las – disse Bran, erguendo a mão; Charles reprimiu seus protestos. – Você é o único que posso enviar, sim. Mas se você desmoronar, não haverá ninguém, a não ser eu – e não confio em mim mesmo. Então é necessário que você não seja prejudicado irremediavelmente. Qualquer um que tenha sido transformado há menos de cinco anos receberá um aviso. Asil é tão assustador quanto você e ele também não é um Alfa agora. Ele se ofereceu para ir e apavorar os jovens idiotas que quebrarem as regras pela primeira vez.
Charles sabia que isso era errado. Seu pai havia pesado e avaliado as necessidades de sobrevivência dos lobos e havia feito as mudanças necessárias nas leis das alcateias. Mas não foi vergonha, e sim alívio que o fez baixar os olhos.
– Eu falhei com você – disse ele.
– Não, filho – disse Bran. – Eu quase falhei com você. Você, como Asil tem me advertido, é um membro da minha alcateia e sou responsável por seu bem-estar – disse Bran; seu tom de voz havia ficado irônico.
– Asil se autodenominou meu tutor? – perguntou Charles suavemente. Asil estava indo longe demais.
– Ele estava entediado, segundo me disse – falou Bran, dando um pequeno sorriso para Charles. – Dei-lhe uma tarefa para que ele não fique entediado novamente.
Bran balançou para trás em sua cadeira e estudou o teto por um momento, como se houvesse algo interessante lá, antes de voltar os olhos amarelos em direção a Charles.
– Mandar Asil apavorar os nossos jovens lobos não será o suficiente. Eu... Nós ainda precisamos de você para matar. No entanto, Adam achou que se você fizesse outras coisas isso talvez poderia... diluir o efeito. Talvez se toda viagem que você fizer não for com o objetivo de matar velhos amigos e conhecidos – nesse momento, Charles escondeu uma careta, ou tentou. – Talvez isso ajude. Então. Recebi uma chamada de alguns dos meus contatos no governo, dizendo que eles precisam consultar-se com um de nós sobre um possível assassino serial.
Bran viu o rosto de Charles e sorriu sem humor.
– Não é um de nós. Um dos assassinos que eles vêm perseguindo há algum tempo parece ter mudado o perfil de suas vítimas. Pelo menos três das vítimas em Boston eram lobisomens.
– Três? E nós não sabíamos?
– Eu sabia que três haviam morrido – disse Bran. – De três alcateias diferentes, mas alguém não achou necessário me dizer que os casos provavelmente estavam ligados. Eu vou lidar com essa parte.
Algumas cabeças iriam rolar – provavelmente, não literalmente.
– Há apenas uma alcateia em Boston.
Não era exatamente uma pergunta, mas seu pai deveria ter começado a fazer perguntas se três lobos da mesma alcateia tivessem morrido em um curto período de tempo.
– Um turista de uma alcateia de Vermont e outro de Seattle. Apenas um da alcateia de Boston. O FBI está interessado em qualquer coisa que possamos acrescentar à investigação.
– Você está me enviando?
As pessoas instintivamente tendiam a agradar Adam. Charles era melhor no jogo de destruir-e-subjugar, mas não tão bom no jogo de persuadir-e-agradar.
– Não – disse Bran. – Isso seria uma ideia estúpida. Estou enviando Anna. Você irá para protegê-la. Mandei os detalhes de tudo o que sei para o seu e-mail e para o dela.
E, assim, Charles se viu andando pelo hotel, atrás de um par de agentes federais, enquanto segurava um suporte de papelão para café em cada mão, em vez de sair matando lobisomens malcomportados. Ele sabia que os dois eram agentes federais, porque só homens que eram parceiros moviam-se assim tão próximos um do outro. A linguagem corporal dizia que eles não estavam em um relacionamento, o que significava militares, agentes federais ou policiais. Como eles estavam indo na mesma direção que ele, Charles supôs que havia encontrado dois dos agentes federais com quem eles deviam se encontrar.
O pensamento que lhe veio de repente foi de que ele estava se divertindo ao perseguir agentes federais pelos corredores do antigo hotel elegante, especialmente porque eles não tinham ideia de que ele estava fazendo isso. Isso realmente o divertia.
Se Charles não tivesse perdido a aposta para Anna, nunca teria tido essa chance.
Quem teria pensado que o pessoal da segurança em SeaTac ficaria tão preocupado com ele que não perceberia Anna contrabandeando uma garrafa de água pelo posto de fiscalização? Ele deveria ter ganhado a aposta – e o pior que poderia acontecer a Anna seria ter que jogar fora a garrafa de água.
Fora culpa dele ter perdido a aposta.
Talvez Samuel estivesse certo quando disse a Charles que era a expressão de seu rosto que assustava as pessoas, porque um dos funcionários do hotel que estivera olhando-o com um olhar preocupado, de repente relaxou e deu-lhe um sorriso feliz.
Ele poderia ter vencido Anna. Não teria sido necessário rosnar exatamente no momento certo para distrair todos enquanto Anna jogava a garrafa de plástico por cima dos escâneres e sobre a bagagem de outra pessoa do outro lado das máquinas. Ninguém o ouvira, não realmente, apenas sentiram os pelos da nuca se arrepiarem enquanto o irmão lobo ria da audácia de sua companheira.
Anna não apenas tinha feito tudo isso e saído ilesa; ela havia distraído também o próprio Charles, enquanto os seguranças a apalpavam e a faziam passar pelos escâneres. O que provavelmente tinha sido sua intenção, em primeiro lugar. Mulher inteligente, sua Anna – mas ela o havia obrigado a pagar a aposta.
Quando a Administração da Segurança em Transportes finalmente deixou Charles passar – porque o fato de ser assustador não era realmente o suficiente para mantê-lo fora de um avião –, Anna estava esperando por ele, confortavelmente sentada em um dos pequenos bancos onde as pessoas se sentavam para colocar seus sapatos. Ela levantou a garrafa de água com corante azul em um brinde triunfante e depois a bebeu até a última gota. Tinha sido ideia de Anna, não dele, de tingir a água, para que ela não pudesse simplesmente fazê-la desaparecer – ela nunca trapacearia em uma aposta com ele.
Observar a garganta de Anna enquanto ela bebia o líquido era algo estranhamente erótico – erótico e mágico, algo que não poderia existir no mesmo universo em que as mortes o assombravam. Assim, os fantasmas recuaram; não de forma permanente, mas, mesmo assim, aquilo representava mais liberdade do que ele havia experimentado ultimamente, e era algo bom.
Charles não se importava em perder uma aposta para sua companheira, embora o fato de deixar Anna sozinha para lidar com os agentes federais enquanto ele seguia as ordens dela não deixasse seu lobo feliz. Mas ele sabia que Anna podia conquistar qualquer um, e alguns agentes federais que precisavam da ajuda deles não iriam dar trabalho a ela. Ninguém ia tentar machucá-la – não ainda, não antes que eles se envolvessem na caçada do FBI.
Bran achou que seria bom para Charles caçar algo diferente de um lobisomem, algo verdadeiramente maléfico. Ele esperava que seu pai estivesse certo – e evidências empíricas tendiam a apoiar sua esperança, já que seu pai estava frequentemente certo.
Então, Charles seguiu os dois agentes federais pelo corredor até a sala onde eles se encontrariam com sua companheira e um pequeno grupo de outros agentes. Ele concluiu que aqueles não eram agentes de campo do FBI porque nenhum deles notara sua presença – e Charles não estava fazendo nenhum esforço especial para evitar ser notado. A Segurança Interna e a Cantrip costumavam ter mais “agentes de escritório” do que o FBI. Eles estavam falando em voz baixa o suficiente para que fosse necessário ter ouvidos de lobisomem para ouvi-los. Desavergonhadamente, ele ouviu o que estavam dizendo.
– Tem certeza de que é seguro? – perguntou nervosamente o homem loiro da dupla de agentes federais. Ele parecia recém-saído da faculdade, com menos de 25 anos. – Quero dizer, lobisomens, Pat. Plural.
– Eles estão colaborando conosco – disse Pat, o homem mais velho. Charles identificou seu sotaque como originário da Nova Inglaterra, suavizado por uma temporada em algum lugar no sul. Ele tinha quarenta e poucos anos e andava como alguém acostumado a caminhar. – Eles vão se comportar, porque precisam.
– Você acha que eles vão ficar zangados por que eu vim junto com você? Era para ser apenas você. Cinco pessoas. Dois agentes do FBI, dois da Segurança Interna e um de nós.
Eles devem ser Cantrip, então, pensou Charles. De acordo com Bran, deveria haver dois deles e um agente da Segurança Interna. Alguém havia mexido seus pauzinhos. Vários alguéns. O irmão lobo decidira que Charles estava relaxado demais para ensiná-los a ter boas maneiras.
– É mais fácil pedir perdão do que permissão – disse Pat, quando abriu a porta da sala de reunião. – Não é verdade, Leslie?
– Um de vocês pode sair – disse uma voz fria de mulher. – Só porque você não é mais um agente do FBI, Pat, não significa que não saiba mais contar. Cinco. É fácil. Você pode trapacear e contar nos dedos, se precisar.
– Ha-ha... – disse Pat, puxando a porta atrás de si e fechando-a. Charles parou para ouvir antes de entrar. – Aposto com você que ninguém vai se importar de verdade. A que horas o lobisomem vai chegar? Pensei que o memorando tinha dito às oito em ponto.
– Um grupo de seis pessoas está OK – disse Anna, e o irmão lobo relaxou ainda mais ao ouvir o tom divertido na voz de sua companheira. – Cinco era apenas para manter o número pequeno.
Charles sabia que ela estava segura. Anna era um lobisomem e, se o treinamento que ele estava dando a ela não a deixasse segura em uma sala cheia de humanos, ele estava fazendo algo errado. Mas, mesmo assim, o irmão lobo ficou mais feliz ao ouvir o tom descontraído de sua voz.
Charles olhou para a porta e percebeu que seria difícil abri-la com ambas as mãos ocupadas. Ele poderia ter feito isso, mas havia outra maneira.
Ele sabia, sabia que os fantasmas não tinham ido embora. Mas a tentação era muito grande. Fazia tanto tempo desde que ele a tocara e o irmão lobo estava tão faminto. Quase tão faminto quanto ele.
Então ele estabeleceu o vínculo que ligava o lobo à sua companheira e disse, tão suavemente quanto possível: Abra a porta, por favor – e alguém vai ter que tomar café do hotel, já que eu trouxe somente o suficiente para cinco agentes federais.
A porta se abriu e ela olhou para ele, com o rosto totalmente sério e os olhos brilhantes de lágrimas.
Você falou comigo. Mas mais do que palavras viajaram pelo seu vínculo do lado dela; Anna sempre fora generosa ao compartilhar seus sentimentos com ele. Ela enviou-lhe uma onda de alívio que quase escondeu a tristeza profunda e a dor do abandono. Charles tinha feito isso com ela; ele sabia que estava fazendo isso – e ainda assim sabia que esse era o menor de dois males. Charles precisava protegê-la do que estava acontecendo com ele. Mas mesmo sabendo que estava certo isso não significava que ele não estava dividido, que ele não se arrependia de machucá-la.
– Eu não me importo de tomar café do hotel – disse ela em voz alta, com a voz um pouco rouca.
Ele estava com medo de que ainda pudesse machucá-la muito mais, antes que isso estivesse acabado.
Charles inclinou a cabeça para baixo e tocou seu nariz no dela, fechando os olhos para esconder o efeito do conhecimento do que ele tinha feito a ela – e o efeito de senti-la, pele sobre pele, uma vez mais. O irmão lobo queria arrastá-la para longe de todos esses estranhos e encontrar o quarto vazio mais próximo para envolver-se nela e nunca deixá-la partir. Charles queria dizer: “eu sinto muito por magoar você”, mas isso implicava que ele iria fazer algo diferente se tivesse que fazer de novo. Ele nunca iria permitir que a feiura de sua vida a maculasse – não se ele pudesse evitar.
Então, ele disse algo estúpido em vez disso.
– Minha mulher vai beber o chocolate quente que eu trouxe para ela.
Charles olhou por cima de Anna em volta da sala. Exceto pelos dois homens que ele seguira, todos estavam sentados à volta da mesa. Anna devia ter sugerido isso, porque todos pareciam tensos e desconfortáveis. Ficar sentado quando alguém está em pé pode ser uma posição de poder – uma maneira de dizer: “tenho tanta confiança de que posso vencê-lo que não preciso me levantar.” Mas quando um monstro entra em uma sala, todos querem ficar em pé. E Charles era um monstro grande.
A prova de que Anna fora esperta ao fazê-lo, entretanto, era o nível de sua irritação com os dois homens ainda em pé atrás dela.
Charles olhou o jovem agente da Cantrip nos olhos. O humano baixou os olhos e deu um passo atrás, involuntariamente, deixando o irmão lobo satisfeito. Charles sorriu para o agente com todos os dentes.
– Você se convidou sem ter sido chamado. Você pode beber o café do hotel.
E agora eles iriam pensar que ele era realmente estúpido, porque a maioria dos seres humanos não compreendia que ele precisava estabelecer quem estava no comando para que o irmão lobo soubesse que Anna estava segura. O fato de dar uma ordem que eles iriam obedecer havia estabelecido a hierarquia. Tudo bem se eles pensassem que ele era estúpido. Anna e ele podiam brincar um pouco de “policial inteligente, policial burro” se necessário. E brincar com os agentes federais era muito mais fácil do que tentar lidar com o que ele estava fazendo com Anna.
Anna deveria ter escolhido outra pessoa. Asil. Ou alguém mais. Mas pensar em Anna com outra pessoa deixou o irmão lobo com uma crise de ciúmes raivosa.
Não há ninguém para mim, exceto você. A resposta rápida de Anna lembrou-o de que ele havia escolhido deixar o vínculo entre eles aberto. Charles não sabia o quanto ela estava captando, mas estava mais do que na hora de se controlar.
Então, ele passou por Anna e colocou os suportes dos cafés sobre a mesa. Pegando o único copo que não continha café e entregando-o para Anna, Charles observava todos sentados perfeitamente imóveis e de olhos baixos – exceto pelos agentes da Cantrip: ela estivera educando-os.
Anna moveu-se ao redor da mesa, colocando uma cadeira vazia ao lado dela. Os agentes da Cantrip pegaram cadeiras vazias do outro lado da mesa depois que Charles, com um levantar de sobrancelhas, alertou o mais novo para que ficasse longe de Anna. Charles ficou atrás da cadeira de Anna.
– Esse é meu marido, Charles – disse Anna, com as mãos cruzadas. – Talvez seja bom apresentar-nos novamente, agora que estamos todos aqui. Eu sou Anna.
– Agente especial Leslie Fisher – disse a outra mulher na sala, uma mulher negra com olhos inteligentes e voz firme. – Unidade de Crimes Violentos do FBI.
– Agente especial Craig Goldstein – disse um homem magro com cerca de cinquenta anos. – No momento, nomeado para a Unidade de Crimes Violentos de Boston por ter experiência com esse assassino serial.
Charles acenou para os agentes do FBI. Ele sabia quem Fisher era, porque havia feito verificações em toda a UCV de Boston. Sobre Goldstein, ele ainda precisava descobrir mais.
– Jim Pierce – disse o único homem na sala que estava sorrindo. Ele dirigiu-se a Charles. – Segurança Interna. Fui enviado para reunir informações.
Charles tinha uma boa ideia sobre quem da Segurança Interna seria enviado para reunir informações, porque havia apenas oito pessoas especializadas em assuntos preternaturais – e ele tinha as fichas de todos eles.
Alpinista político, disse a Anna, em silêncio, devolvendo o sorriso de Pierce, que ficou bem menos feliz; ele empurrou a cadeira para trás alguns centímetros. A caminho de um cargo público. Você acha que preciso praticar mais meu sorriso?
Anna olhou para ele e franziu a testa. Comporte-se, disse sua companheira, bastante séria. Mas Charles percebeu seu divertimento na pequena curvatura de seus lábios.
– Dr. Steven Singh – disse o segundo agente da Segurança Nacional.
Um patriota antiquado, informou Charles mentalmente, após trocar cumprimentos de cabeça no estilo “artes marciais” com o doutor. Seu registro diz que ele pessoalmente classifica Fae e lobisomens como terroristas domésticos. Charles até concordava com ele. Nenhum deles está aqui porque deseja ajudar a pegar um assassino serial. Pierce não tem nada a acrescentar. Singh é inteligente o suficiente para ser de alguma ajuda, mesmo que não se importe com o crime.
Os agentes da Cantrip eram mais interessantes. Ele não sabia muita coisa sobre a Cantrip, apenas que era uma agência ainda mais recente do que a Segurança Interna, e que foi criada quando os lobisomens vieram a público.
Embora financiada e autorizada pelo governo, o seu papel era coletar e compartilhar informações sobre grupos e indivíduos não humanos e humanos alterados, o que lhes dava muita margem de manobra. Eles tinham dois escritórios principais, um em cada costa, e pareciam também viajar por todo o país ocupando-se principalmente com casos criminais que envolviam Fae, lobisomens ou qualquer outra coisa que parecesse estranho a eles.
Seu pai tendia a considerar os agentes da Cantrip inofensivos, já que não tinham autoridade para prender ou deter qualquer pessoa. Charles era menos otimista, pois eles eram um daqueles órgãos governamentais cujos membros andavam armados o tempo todo – e carregavam armas com balas de prata. Ele tinha arquivos sobre vários de seus membros, mas decidira ver quem seria enviado antes de refrescar sua memória.
O mais velho dos dois agentes da Cantrip tentou (e não conseguiu) olhar em seus olhos e então olhou fixamente para Anna, o que deixou Charles com raiva – e o irmão lobo não gostou muito dele, também.
– Patrick Morris – disse ele. – Agente especial Cantrip.
– Anteriormente do FBI – disse Fisher, com uma desaprovação fria que dizia que qualquer um que escolhia deixar o FBI era um tolo.
– Les Heuter – disse o homem mais jovem, e subitamente tornou-se mais interessante.
Heuter é o garoto-propaganda da Cantrip, disse Charles, pelo seu vínculo com Anna. Seu pai é um senador do Texas. Se alguém da Cantrip é entrevistado pela imprensa, três vezes em cada quatro é Heuter. Esta última, uma das razões pelas quais as pessoas tendiam a não levar mais a sério a Cantrip.
Charles deveria ter reconhecido Heuter imediatamente, mas ele parecia diferente em pessoa – não tão firme, impressionante ou bonito, mas mais sério e simpático. Seu cheiro era ansioso, como o de um cão de caça à espera do cheiro da presa.
Charles perguntou-se se eram os lobisomens ou o assassino serial que havia causado a descarga de adrenalina no jovem.
Contudo, ele era bom em disfarçar. Charles duvidava que qualquer dos humanos na sala tivesse percebido o quanto Les Heuter estava excitado por estar ali. Charles nunca havia sido humano, mas concluíra que devia ser como andar com tampões de ouvido e de nariz o tempo todo.
Goldstein olhou em volta.
– Pessoal, vamos colocar a bola em campo – disse, e então olhou para Charles. – O homem que organizou essa reunião me disse que provavelmente três lobisomens não teriam sido vítimas por acaso. De acordo com ele, não há tantos lobisomens assim por aí. Ele especulou que as três vítimas significariam que lobisomens são o alvo do assassino e sugeriu que mostrássemos todas as vítimas desde o início para você, Sr. Smith, e ver o que você pensa antes que eu comece a fazer perguntas. Sendo assim, eu vou lhe dizer o que sabemos sobre esse caso e apreciaríamos qualquer coisa que você pudesse nos dar.
Charles cruzou os braços e encostou-se à parede, mantendo a atenção em Anna, telegrafando em linguagem corporal tão alto quanto possível que era Anna quem estava no comando.
Isso era trabalho para Anna – se Charles tivesse que lidar com eles, aquelas pessoas provavelmente sairiam correndo com medo e começariam a atirar em lobisomens também.
– Quem foi que organizou isso? – perguntou abruptamente Heuter.
Goldstein se virou a fim de olhar para o homem mais jovem e disse suavemente:
– Eu não tenho ideia. O homem que me ligou não se identificou; além disso, apenas sugeriu que eu tomasse notas e seguisse seu conselho. Como a maior parte do que disse parecia razoável, eu fiz isso.
Bran, pensou Anna.
Provavelmente, concordou Charles. Ou Adam Hauptman.
Anna encontrou o olhar de Heuter e encolheu os ombros.
– Eu sei quem organizou as coisas de nosso lado. Não tenho nenhuma ideia de quem organizou do seu.
Goldstein pegou o laptop, conectando-o ao sistema de vídeo na sala. Ele limpou a garganta.
– Agente Fisher, você poderia trancar a porta, por favor? Algumas das imagens são explícitas e eu detestaria assustar uma pobre camareira.
A porta foi trancada e em seguida Goldstein tirou os óculos e limpou-os enquanto a agente Fisher desligava as lâmpadas. Quando colocou os óculos novamente, ele automaticamente vestiu o manto da autoridade; o leve ar de vulnerabilidade, da idade e da inofensividade desapareceu. Por apenas um instante, o agente Goldstein transformou-se em um homem que caçava outros homens, e então a aura de vulnerabilidade voltou, como um homem que vestisse uma confortável e velha camisa.
– Nós o chamamos de UNSUB – disse, fazendo uma pausa. – Isso é jargão do FBI para “sujeito desconhecido”, que parece um pouco mais profissional e menos histérico do que “assassino” e mais adulto do que “o malvado”. Esse UNSUB é conhecido como “O Grande Caçador” porque, nas primeiras duas décadas, todas as mortes ocorreram durante a tradicional temporada de caça. A primeira morte da qual temos conhecimento aconteceu em 1975; no entanto, dada a sofisticação dos assassinatos, é provável que ele tenha começado antes disso.
Nesse momento, Goldstein olhou para Anna, que devia ter mudado de expressão, e disse:
– Sim. Estamos absolutamente convencidos de que esse assassino é um homem.
Ele apertou um botão e duas fotos apareceram na grande tela de TV, lado a lado. A primeira era uma foto de escola de uma adolescente asiática – chinesa, concluiu Charles. Ela estava sorrindo corajosamente para o fotógrafo e havia uma faixa laranja no seu cabelo. A segunda foto não estava muito nítida e mostrava um corpo nu, a cabeça envolta em sombras e um lençol ou cobertor branco jogado sobre seus quadris.
– Karen Yun-Hao tinha catorze anos. Ela foi raptada de seu quarto em...
Charles deixou de prestar atenção à voz do homem; ele se lembraria do que o agente Goldstein dissera mais tarde, se precisasse. Naquele momento, ele concentrou-se nos rostos, procurando pistas, pessoas que ele conhecia, vítimas que fossem membros de alcateias.
Naquele primeiro ano o assassino levara quatro garotas, cada uma delas com uma semana de intervalo. Asiáticas e jovens, nenhuma delas com mais de dezesseis anos ou menos de doze. Ele as mantinha presas, estuprava-as e torturava-as até que estivesse pronto para pegar a próxima vítima. O FBI achava que ele matava a vítima exatamente antes de pegar a próxima – embora houvesse uma possível sobreposição. Assim que a temporada de caça terminava, ele parava. O primeiro ano foi em Vermont, o segundo foi no Maine, onde ele ficou durante alguns anos, e então Michigan, Texas e Oklahoma.
Organizado, pensou o irmão lobo de Charles, preparando-se para a perseguição. Um bom caçador levava apenas o que precisava, quando precisava, e sua presa era um bom caçador. As vítimas do assassino mudaram gradualmente ao longo dos anos: eram sempre garotas asiáticas e mulheres e então, no Texas, um adolescente que também era asiático. O garoto fora a primeira vítima a ser sodomizada, mas depois dele, todas tinham sido sodomizadas, homens e mulheres. No ano seguinte, as vítimas tinham sido divididas, dois a dois, mulheres e garotos. Depois, apenas garotos. Em seguida, ele acrescentou uma adolescente negra.
– É como se ele estivesse procurando a refeição perfeita – disse Anna suavemente, recebendo um olhar horrorizado do Dr. Singh que Charles achou que ela não viu, pois sua atenção estava fixada na tela. – Ele começou em 1975. Talvez ele seja um veterano do Vietnã.
– As vítimas asiáticas, sim – disse o agente sênior do FBI, parecendo ainda mais frágil do que antes. – Elas não eram todas vietnamitas, ou mesmo a maioria. Mas algumas pessoas não conseguem ver a diferença, ou não se importam. A polícia já tinha essa teoria antes que o FBI fosse trazido para o caso na década de 1980. O UNSUB não seria o único a sair daquela confusão com a necessidade de matar.
– “Esses são os tempos que testam as almas dos homens” – citou Anna, em um tom de voz macio; Charles sabia que ela estava se lembrando de outro guerreiro veterano.
– O FBI demorou mais de cinco anos para se envolver no caso? – perguntou Heuter.
Goldstein deu ao agente da Cantrip um olhar paciente.
– Quase dez. Primeiro, levou algum tempo para que a polícia entendesse que estava lidando com um assassino serial, já que a comunicação era o que era naquela época. Em segundo lugar, o FBI não é responsável por casos de assassinos seriais. Nós somos o pessoal de apoio, não os agentes primários.
Ele pressionou um botão e uma nova foto apareceu.
– Foi aqui que entramos no caso, o FBI – isso foi antes do meu tempo. A primeira vez em que trabalhei nesse caso eu ainda era um novato, em 2000. Em 1984, o Grande Caçador estava de volta ao Maine. Essa foi a primeira vítima naquele ano, Melissa Snow, dezoito anos de idade.
Charles a reconheceu – e ela não tinha dezoito anos. A próxima vítima fora um menino negro, um estranho. Ele não conhecia a terceira vítima, outra garota asiática. Essa tinha dez anos.
O irmão lobo decidira, olhando para o delicado e alegre rosto, que eles iriam encontrar o assassino e destruí-lo. Crianças deviam ser protegidas. Charles concordou, e os fantasmas daqueles que haviam sido injustamente executados, e que o assombravam, recuaram ainda mais.
– Essas foram as três únicas vítimas que encontramos naquele ano, e depois desse ano o número de corpos encontrados começou a variar. Em 1986 e 1987, foram encontrados três corpos. Em 1989, dois. Em 1990, três corpos de novo, e assim por diante, até 2000, quando várias coisas mudaram, mas chego lá em um minuto. Não achamos que ele tenha mudado o modo como mata suas vítimas. Esse intervalo de uma semana entre a vítima atual e a próxima parece ser bem definido. Então, achamos que ele começou a colocar os corpos em locais menos acessíveis.
No grupo de vítimas do ano seguinte, Charles reconheceu duas das três. Ele também observou que as fotos da cena do crime eram de melhor qualidade – um sinal de que o FBI estava utilizando os serviços de um fotógrafo melhor, ou apenas uma combinação do avanço da tecnologia e da maneira como o tempo degradava filmes coloridos.
Goldstein ainda comentou:
– Em 1984, duas das vítimas corresponderam às escolhas e vítimas anteriores de nosso UNSUB. De 1985 em diante, não há padrões aparentes para as vítimas. Homens e mulheres, jovens e velhos. Ele ainda os sequestra, estupra e tortura por uma semana antes de ir atrás da próxima vítima.
Ele apresentou tudo devagar, mostrando-lhes o rosto de cada vítima. Charles percebeu que Goldstein nunca precisava consultar suas notas para verificar os nomes e que, quando olhava suas notas, geralmente era para confirmar algo que ele havia acabado de dizer.
– No ano seguinte, ele começou em setembro.
Charles conhecia três das vítimas de 1985 e todos os corpos encontrados em 1986.
Interrompa-o, disse a Anna, decidindo que a vitimologia do assassino não era coincidência. Isso é importante. Volte para o primeiro ano, o ano em que o FBI entrou no caso.
– Espere – disse Anna, olhando para suas notas. – Você pode voltar para as vítimas de 1984?
Os Fae tornaram sua existência pública nessa época, continuou Charles. Melissa Snow era Fae e estava tão próxima dos dezoito anos de idade quanto meu pai. Acho que ela ainda não havia se declarado Fae publicamente, mas ela era Fae.
Talvez tenha sido um acidente? pensou Anna, enquanto o rosto de Melissa, brilhante e feliz em um instantâneo do tipo familiar, aparecia no monitor perto de seu rosto acinzentado e sem vida. Os Fae não estão exatamente em todos os lugares, mas é razoável pensar que ele tivesse capturado um por engano.
Ela não era uma mestiça, disse-lhe Charles. Se alguém a capturasse pensando que estava capturando uma adolescente humana, nunca teria sido capaz de mantê-la presa. Ela não era poderosa, mas podia se defender melhor do que um ser humano seria capaz.
Posso contar isso a eles? – disse-lhe Anna.
Claro. Faça com que avancem até o próximo ano; os corpos de alguns Fae desaparecem quando morrem. Essa pode ser a razão por que não há uma quarta vítima.
Goldstein olhou para Anna com olhos aguçados.
– Ela era um lobisomem?
– Não – disse Anna. – Fae.
E então ela contou aos agentes o que Charles lhe havia dito.
– Fae – disse Singh, franzindo a testa. – Como você sabe?
– Eu sou um dos monstros, Dr. Singh – disse Anna, sem uma só pausa. – Reconhecemos uns aos outros – e isso não era bem uma mentira. – A questão é, como o – como é que vocês o chamam? O Grande Caçador? Como ele sabia o que ela era? Se ele a atacasse pensando que Melissa era humana, ela teria escapado.
– Conheço o agente que trabalhou nesse caso – disse Goldstein. – Melissa tinha pais e dois irmãos, de dez e sete anos, na época. Ele conversou com eles. Ela tinha dezoito anos.
Ela não tinha pais, disse-lhe mentalmente Charles. Ou talvez eles fossem Fae também. Ou ela estava usando a aparência de uma garota que já morrera. Difícil dizer. Mas eu a conhecia... não muito bem, mas bem o suficiente para dizer que ela não tinha dezoito anos.
Será que a vítima poderia ser a verdadeira Melissa, e a Fae tomou sua identidade após sua morte?
Anna estava apenas cobrindo todas as possibilidades, mas era uma boa pergunta. Quando ele havia conhecido Melissa? Os anos tendiam a misturarem-se uns aos outros...
Eu a conheci durante a Lei Seca, e acho ela estava trabalhando em um bar clandestino no Michigan, em Detroit – mas muito antes dos anos 1980.
– Ela era Fae – disse Anna. – Se ela tinha pais e irmãos, suspeito que eles também fossem Fae. Eles sabem como se misturar com a sociedade, agente Goldstein. Idade aparente tem muito pouco a ver com a realidade quando você está lidando com os Fae.
– E os outros dois? – perguntou Goldstein, embora não parecesse convencido.
– Não sou uma especialista em Fae – disse Anna. – Foi um acaso eu ter reconhecido Melissa. Mas há Fae entre as vítimas em todos os anos daquele ponto em diante.
Goldstein perguntou:
– Todos os anos?
Isso explicaria a falta de corpos, disse-lhe Charles. Alguns Fae simplesmente desaparecem quando morrem. Se um Fae perdesse a aura mágica, seu glamour, outro Fae faria com que o corpo nunca fosse encontrado.
– Que eu tenha percebido, sim.
Havia uma tensão crescente nos ombros de Goldstein e uma ânsia em seu cheiro que dizia ao irmão lobo que o agente estava pensando, juntando todos os pedaços do que ele sabia sobre o assassino, tentando ver como isso alterava o todo.
Charles considerou as repercussões de um assassino serial que caçava Fae. Certamente os Lordes Cinzentos teriam percebido que alguém estava matando seu povo. Mas eles não eram como Bran, que protegia e amava seus lobos. A morte de um Fae que não era poderoso e se mantinha escondido por segurança faria com que os Lordes Cinzentos que governavam os Fae percebessem? E se percebessem, eles fariam algo?
– O assassino poderia ser Fae? – perguntou Pat, o agente da Cantrip, – Se ele está matando desde 1975 e é humano, ele provavelmente deve estar usando uma cadeira de rodas agora.
A agente Fisher franziu a testa.
– Conheço um homem de oitenta anos de idade que poderia derrotá-lo com um braço amarrado nas costas, Pat. E se esse homem tivesse dezoito anos no final da Guerra do Vietnã, ele teria muito menos do que oitenta anos hoje em dia. Mas a maioria dos assassinos seriais não dura tanto tempo. Eles geralmente desistem ou então começam a cometer erros.
– O Assassino de Green River caçou por mais de vinte anos – acrescentou Pat. – E quando finalmente o encontraram, ele era um homem casado que ia à igreja e tinha dois filhos, além de um emprego estável há mais de trinta anos.
Goldstein não estava ouvindo; ele estava olhando para Anna, mas sem realmente olhar para ela. Estava pensando.
– Não acho que ele seja Fae – disse ele. – Não o assassino original. Por que outra razão ele teria esperado até que os Fae se revelassem ao público para começar a matá-los?
Não o assassino original, pensou Charles consigo mesmo.
– Eu não conheço todos os Fae pessoalmente – disse Anna secamente. – Talvez eles tenham sido Fae o tempo todo.
Goldstein balançou a cabeça, e Charles concordou quando ele disse:
– Não. Estamos procurando pelo tipo de presa que o assassino caça.
Ele está seguindo o cheiro da presa, disse o irmão lobo, observando o agente mais velho do FBI com interesse.
– Caçando o inimigo – disse Singh inesperadamente. – Digamos que ele seja um veterano do Vietnã. Ele vai para casa e vê vietnamitas em seu território – ou asiáticos, que é mais ou menos a mesma coisa para ele. Então ele vai caçar, assim como fez na guerra. Ele muda o perfil das vítimas e começa a matar garotos. Talvez seja porque gosta mais de sexo com garotos, mas vamos dizer que é porque ele os acha mais durões, melhor caça. E então ele encontra os Fae – e decide que eles são adversários mais dignos, além de enxergá-los como invasores, assim como suas vítimas originais.
– Ele é bom e é inteligente, se matou tantos Fae assim – disse Anna. – Eles geralmente são mais difíceis de matar do que os humanos. Pena ele não ter escolhido o Fae errado, nós nunca encontraríamos os pedaços de seu corpo. Pergunto-me como ele conseguiu isso.
– Ele matou lobisomens – disse Heuter, inesperadamente. Charles havia parado de prestar a atenção no porta-voz da Cantrip, ignorando-o. – Eles não são mais difíceis de matar do que os Fae?
Anna deu de ombros.
– Eu mesma não saio por aí matando os Fae. Mas qualquer coisa tão antiga quanto eles deve ter alguns truques na manga.
– Melissa Snow morreu antes de você nascer – disse Pat. – Como você sabe que ela era Fae?
Não foi o que ele pretendeu, mas a agressão em sua voz fez o irmão lobo tomar conhecimento de que o teor da reunião havia mudado.
– Fotos de família – atirou Anna de volta, curvando o lábio. – Ou talvez eu seja mais velha do que pareço. Será que isso importa?
– Você tem 25 anos – disse Heuter. – Tinha sua foto no meu celular e enviei-a ao escritório central. Eles conseguiram identificá-la cerca de dois minutos atrás. Anna Latham de Chicago, mãe falecida, o pai é um advogado famoso.
– Então, como é que ele sabe? – murmurou Singh, ignorando o ataque do agente da Cantrip a Anna. – Como é que ele sabe que eles não são humanos? Se eles tivessem vindo a público, alguém teria notado que ele estava matando Fae.
Na maioria das vezes, um lobisomem podia identificar os Fae pelo cheiro.
– Talvez ele tenha tido alguma oportunidade de observar enquanto suas potenciais vítimas tocavam em ferro.
– Minha avó escocesa jurava que havia certas pomadas de ervas que você podia esfregar nos olhos para ver as fadas – continuou Singh, que não parecia ter tido uma avó escocesa, embora Charles não pudesse falar nada, porque não parecia muito galês também.
– Virar as roupas do avesso ou usar ferro frio também deveria ter o mesmo efeito – disse Fisher, que até então estava muito tranquila. Charles achou que ela estava se certificando de que os agentes da Cantrip não assumissem o controle do encontro novamente, já que Fisher havia falado no exato momento em que Heuter abrira a boca para dizer alguma coisa.
– Você falou “assassino original” – disse Anna, dirigindo-se a Goldstein; Charles teve que lutar para esconder seu sorriso. Ele achou que Anna não havia prestado atenção, mas ela só estava esperando o momento certo para saltar sobre eles. – Você acha que não estamos mais lidando com o mesmo homem?
– Certo – concordou Goldstein, ignorando completamente Singh e os agentes da Cantrip, passando a concentrar-se nos assassinatos. – Percebemos algumas diferenças nos assassinatos praticados pelo suspeito a partir de 1995, que pareciam indicar que ele havia adquirido um parceiro. Então, em 2000, os assassinatos aconteceram ao longo de seis semanas.
– Embora nós tenhamos encontrado somente cinco corpos – sem esquecer que 2000 foi meu primeiro ano neste caso –, a linha do tempo indicou que poderia haver seis vítimas. Como houve seis no ano seguinte, e em todos os anos seguintes sua janela de atuação foi de seis semanas em vez de quatro, temos certeza de que houve seis vítimas em 2000 também.
– Se o MO não corresponde, como é que você sabe que ainda era o Grande Caçador e não algum outro assassino? – perguntou Singh. Ele estava envolvido na busca de seu assassino, apesar de sua caça ter começado com uma presa totalmente diferente: os lobisomens. O irmão lobo concordou com a avaliação que Charles fez de Singh: inteligente e facilmente distraído pelo surgimento de algo mais interessante do que a sua presa atual.
Goldstein estendeu a mão para sua pasta e tirou... uma brilhante etiqueta de gado, do tipo usado na orelha dos animais.
– Ele marca suas vítimas. Em 1975 ele usava etiquetas de caça para cervos, roubadas de uma loja que fornecia equipamentos de caça. Em 1982, ele mudou para isso. O lote atual pode ser adquirido na Internet, em sacos com 25 unidades por um dólar cada.
Suas vítimas eram coisas para ele, pensou Charles. Gado.
Ou ele estava tentando transformá-las em coisas, disse-lhe Anna.
– Vamos continuar analisando as vítimas e ver se notamos algo mais em que possamos ajudá-los.
Goldstein continuou sua apresentação de slides. À medida que a ciência forense se desenvolvia, o assassino mudava seus métodos ao lidar com os corpos. Em vez de deixá-los para serem encontrados em algum lugar distante, ele começou a colocá-los na água. Rios, lagos, pântanos e ali, em Boston, no Atlântico, confiando na água para lavar seus pecados, que eram muitos.
– Houve várias mudanças, além de sua escolha e do número de vítimas – disse Goldstein. – Em 1991 houve várias. A tortura era mais ritualizada e ele parecia dar importância a ela. Os assassinatos também começaram a acontecer cerca de um mês mais cedo. De 1975 até 1990, todos os assassinatos aconteceram em novembro. Em 1991, ele mudou para outubro. E a cada ano depois disso, ele adiantou um mês até 1995, quando começou a matar no primeiro dia de junho – onde está agora.
– Se você me der uma lista das vítimas, com fotos – disse Anna, quando Goldstein terminou –, farei o melhor que puder para ver se podemos separar os Fae das outras vítimas. Acredito que as primeiras vítimas lobisomens foram essas aqui em Boston, mas serei capaz de lhe dizer com certeza depois que der alguns telefonemas.
Charles tinha quase certeza de que os lobos mortos naquele ano eram os únicos, mas não faria mal ter certeza. Além disso, ele poderia enviar a lista das vítimas para alguns Fae; Charles sabia que eles poderiam dar mais informações sobre as vítimas Fae, talvez até reconhecer algumas delas.
– Tudo bem – concordou Goldstein. – Podemos fazer isso.
Anna franziu a testa, uma mão esfregando levemente o queixo, enquanto olhava para a galeria de fotos das vítimas do ano corrente – cinco até o momento. A última era uma foto escolar de um menino. Ainda faltava mais uma vítima para que o Grande Caçador considerasse tudo finalizado – isso até o próximo ano.
– Eu não sou uma especialista em Fae – disse Anna. – Mas eu conheço lobos. Para um homem normal, ou até mesmo dois homens normais, dominar um lobisomem é algo muito ambicioso. Predadores costumam escolher vítimas que não sejam capazes de matá-los.
Heuter franziu a testa.
– Ele não parece ter tido muitos problemas com isso. Três lobos, certo? E ninguém viu nada. Não acho que seja tão difícil quanto você diz. Caso contrário, alguém teria notado.
Anna inclinou a cabeça para trás, encontrando os olhos de Charles. Estamos aqui para aconselhá-los. Para dar-lhes informações. Devemos mostrar a eles?
Charles saiu do seu lugar e foi até a extremidade da pesada mesa de conferência, ao redor da qual ninguém estava sentado. Ele olhou por baixo para se certificar de que ela não estava presa no chão, e então a levantou até a altura de seu peito, tendo o cuidado de deixá-la nivelada para que nenhum dos caros equipamentos eletrônicos de Goldstein caíssem. Ele a abaixou.
– Só nos matar – disse Anna. – Isso é difícil, mas não é impossível. Mas manter um lobisomem preso enquanto ele é torturado...
– Mágica? – perguntou Singh. O agente da Segurança Interna havia esquecido totalmente que sua primeira intenção era saber mais sobre os lobisomens. Charles descobriu que gostava dele, e não havia esperado que isso acontecesse.
Anna deu de ombros.
– Isso, ou um planejamento extremamente bom. Não é apenas a força – nós metabolizamos rapidamente. Drogar ou incapacitar um de nós por muito tempo sem nos matar é extremamente difícil.
– Água benta – disse Pat, o antigo agente do FBI e agora agente da Cantrip.
Anna não revirou os olhos, mas deixou Charles sentir sua exasperação.
– Eu poderia beber água benta todos os dias por uma semana – e vivendo dentro da Capela Sistina.
– Prata? – esse era Heuter, novamente.
– Há marcas enegrecidas onde eles foram amarrados? – perguntou Anna. – Prata nos queima como fogo ou ácido.
Eles não responderam a pergunta. Charles havia notado que as fotos das pessoas mortas a partir de 1990 mostravam somente do pescoço para baixo, e às vezes não havia fotos da cena do crime em absoluto. Ele estava certo de que a falta não era um descuido.
– E como – continuou Anna – ele sabia que as vítimas eram lobisomens? Apenas um deles, o lobo local, havia se declarado um lobisomem publicamente.
Houve mais um pouco de discussão, mas Charles deixou o irmão lobo assimilá-la, enquanto ele observava a sala. A agente Fisher estava olhando para Anna com o mesmo olhar que Asil tinha quando encontrava uma rosa que queria obter para sua estufa; uma mistura de desejo e satisfação.
Não vamos precisar insistir para convencê-los a nos deixar ajudar com esse caso, disse-lhe Charles. A agente Fisher nos quer para ela.
O irmão lobo trouxe sua atenção de volta para a sala, onde o outro agente de Segurança Interna, Jim Pierce, estava falando.
– E se o assassino fosse um lobisomem?
Anna balançou a cabeça.
– Então você não encontraria corpos marcados; você estaria encontrando partes de corpos.
– Lobisomens comem pessoas? – perguntou Heuter, ficando em estado de alerta como um cão. – Aquela morte em Minnesota – foram lobisomens?
Anna bufou e mentiu como um político.
– Veja. Tornar-se um lobisomem não faz de você um assassino serial – e não faz de você um super-herói, tampouco. Quem quer que você seja, você continuará sendo. Se um cara malvado é transformado, ele ainda é um cara mau. No entanto, nós nos policiamos e somos muito bons nisso. Mas principalmente somos apenas pessoas comuns que se transformam em lobo durante a lua cheia e saímos para caçar coelhos.
Ser transformado fazia qualquer um transformar-se em assassino. Lobisomens não eram lobos cinzentos ou vermelhos que caçavam apenas quando estavam com fome. Lobisomens eram assassinos – e aqueles que não conseguiam se controlar, às vezes levavam muitas pessoas com eles antes de morrer. Ninguém que estivesse olhando para o rosto sério e sardento de sua companheira perceberia a mentira, a menos que fosse um lobisomem também. Bran ficaria orgulhoso.
Quatro
Anna seguiu Charles para fora do hotel, tentando entender o que havia acontecido a ele e o porquê, para que ela pudesse decidir como proceder.
Charles assumiu a dianteira na saída do hotel e virou na direção do condomínio onde estavam hospedados. Charles, a alcateia de Aspen Creek e a corporação da alcateia possuíam condomínios em todo o lugar. O condomínio de Boston pertencia à corporação. Isso tornava a viagem mais discreta, sem contas de hotel, sem estranhos entrando para limpar todos os dias.
– Espere aí um pouco! – disse ela.
Charles se virou. A expressão em seu rosto era exatamente a mesma que tinha quando haviam saído de casa no dia anterior, indo para o aeroporto para que ele pudesse levá-los até Seattle, onde haviam embarcado em um voo comercial. Mas Charles parecia tão diferente.
Quando escolhera assustar todas aquelas pobres pessoas no aeroporto para que ela ganhasse a aposta, Anna pensou ter detectado um ar travesso em seus olhos. Mas havia tanto tempo que ele não ria – ou a tinha provocado com seu senso de humor dissimulado – que ela tinha medo de ter esperança. Afinal, eles apalparam Charles dos pés à cabeça, algo que o teria irritado o suficiente para que ele rosnasse, e aquele susto poderia ter sido apenas uma coincidência.
E até mesmo o encontro... Os agentes federais precisavam acreditar que Anna é quem detinha as informações, e para isso Charles teria que passar essas informações a ela. E a melhor forma de fazer isso, para ele, era abrir o vínculo entre eles. Bran não queria que os agentes federais ficassem com medo dos lobisomens e Charles, especialmente nos últimos meses, estava sendo realmente assustador.
Se Charles estivesse fazendo isso apenas pelo bem dos negócios, teria fechado seu vínculo quando deixaram o hotel, mas ele não o fez. E tinha também tocado nela.
Bran parecia, de fato, ter achado a cura – ou pelo menos um curativo – para o seu filho.
– O quê? – perguntou Charles. Evidentemente ela o estava observando há tempo demais. Ele se aproximou e colocou um cacho do cabelo de Anna atrás de sua orelha.
Ela queria agarrar a mão dele e segurá-la, queria pular em seus braços e senti-los ao seu redor. Mas Anna tinha medo de que, se chamasse a atenção dele para o fato, ele se fecharia para ela novamente. Então, ela manteve as mãos longe de Charles e balançou o corpo algumas vezes, para frente e para trás. Anna precisava deixá-lo fora de seu jogo e permitir que ele pensasse em outras coisas – e tinha exatamente o que precisava para fazer isso.
– Vamos explorar – disse ela, puxando do bolso e abrindo o mapa da cidade que havia pegado no saguão do hotel pela manhã.
– Eu conheço Boston – disse Charles, dando um olhar ligeiramente aflito ao redor deles para ver se alguém tinha notado o mapa laranja brilhante – e era altamente improvável que isso não fosse notado, mesmo depois de um olhar casual.
– Mas eu não – disse ela, apreciando a expressão no rosto dele. Ser a companheira de um lobo duzentos anos mais velho significava que ela raramente o via desconcertado. – E já que sou eu que quero explorar...
Ele a levaria a lugares interessantes, Anna sabia disso. O outro dia seria bom e sem dúvida ela aproveitaria mais esses lugares do que qualquer coisa que ela mesma tivesse encontrado. Mas hoje ela queria ser mais... espontânea.
– Se você andar por aí com esse mapa laranja brilhante em sua mão – disse-lhe Charles –, todos vão pensar que você é uma turista.
– Qual foi a última vez que você foi um turista? – perguntou maliciosamente Anna.
Ele apenas olhou para ela. Charles, como Anna tinha que concordar, não era o turista típico.
– Certo – disse-lhe Anna. – Aguente firme. Você pode até gostar disso.
– Você também podia tatuar “vítima indefesa” em sua testa – murmurou ele.
Anna agarrou a mão de Charles e o puxou pela rua até King’s Chapel e o cemitério mais antigo de Boston – de acordo com o mapa.
Duas horas depois, ela estava disputando comida no prédio North Market do Faneuil Hall Marketplace com o que pareciam ser quatrocentos grupos de turistas, enquanto Charles esperava ali perto com as costas contra a parede. O espaço livre ao seu redor provavelmente era a única área não ocupada em todo o lugar – mas aquele era Charles; as pessoas evitavam se amontoar perto dele. Pessoas inteligentes.
Como a maior parte dos turistas na frente do quiosque que Anna havia escolhido para comer chegavam só até sua cintura, ela tinha certeza que não corria perigo, apesar da extrema atenção que o seu companheiro estava dedicando às crianças.
Se você não consegue ver que estou olhando para alguma coisa em você que está precisamente no mesmo nível das pequenas cabeças – a voz dele em sua cabeça tinha um áspero ronronar –, então você precisa examinar seus olhos.
O queixo dela caiu. Ele estava flertando com ela? Anna virou sua cabeça para encontrar o seu olhar, que foi imediatamente em direção aos seus quadris. Ela jogou a cabeça para trás antes que ele visse seu sorriso – ou suas bochechas vermelhas. Charles estava realmente analisando a multidão, ela mesmo tinha visto isso: depois, ele deu uma boa e longa olhada em cada uma das crianças.
Charles certamente não estava mentindo para ela; assim, todo o resto tinha sido automático – mas tomar conta dela agora tinha um propósito. Anna sorriu e sentiu seu lobo relaxar com a decisão acertada de flertar com seu companheiro.
Ela teve tempo de sobra para deixar que suas bochechas se esfriassem. Demorou um pouco antes que conseguisse pedir a comida – principalmente porque sentiu pena de uma professora sobrecarregada que parecia estar tomando conta sozinha de um milhão de crianças. Finalmente, Anna escapou com dois sanduíches e duas garrafas de água, deixando Charles acompanhá-la para fora do prédio em busca de um lugar para sentar e comer.
– Podíamos ter ido a um restaurante de verdade – disse Charles, pegando uma garrafa de água que ela lhe entregara. – Ou ter esperado até que as hordas famintas se dispersassem antes de entrar na briga.
Charles parecia falar sério, como sempre, mas ela o conhecia bem – o que naquele momento era ainda mais seguro, pois seu vínculo havia transmitido o seu divertimento.
– Eram crianças de sete anos de idade. Eu estava confiante na pequena probabilidade de acabar em seus pratos com todos aqueles cachorros-quentes e sorvetes disponíveis.
– Se eles não fossem predadores, você não precisaria tê-los segurado – disse ele, andando em direção a uma área desocupada com bancos. Anna viu pelo menos uma pessoa caminhar para o mesmo lugar, mas então notou Charles e desistiu, mas ao menos ela não parecia estar em pânico.
– Eles não conseguiam ver por cima do balcão. – explicou-lhe Anna. – Nós tínhamos um trato. Eles não me mordiam e eu os levantava para que pudessem ver.
Anna achou que eles fossem mais tímidos, mas os pequenos realmente pareciam ter se divertido. Talvez fossem muito novos para se preocuparem com estranhos. A professora estava ocupada demais levantando metade da classe para se preocupar com Anna. Aparentemente as mães, que deveriam estar ajudando, tinham fugido para o banheiro feminino.
– Todas as crianças?
– Metade. Uma por vez. Elas não pesavam muito. E eu podia ajudar.
– Hum – disse Charles, levantando uma sobrancelha. – Havia uma disputa bastante intensa por um lugar, considerando que o prêmio eram cachorros-quentes e sanduíches, e não tesouros inestimáveis de arte. Eu vi você dar uma cotovelada naquela mulher.
– Ela furou a fila na frente de um menino de sete anos de idade. – disse-lhe Anna, indignada. – Quem faz isso?
– Mulheres usando quatro mil dólares em diamantes, aparentemente – respondeu Charles, limpando a mesa dos restos da refeição de outras pessoas e jogando tudo em uma lata de lixo próxima dali.
– Eu nunca furo fila na frente de uma criança, e tenho quatro mil dólares em diamantes – disse Anna. Ela se jogou em um banco estreito e colocou sua comida na minúscula mesa, esperando que ela não virasse e tudo caísse no chão.
– Você? – perguntou suavemente Charles, sentando-se do outro lado. O banco, ao contrário da mesa, parecia suficientemente robusto e não rangia sob seu peso, embora ela percebesse que Charles balançasse um pouco no banco para ter certeza de que ele aguentaria seu peso. – Exceto pelo seu anel, você não usa diamantes. E o anel não vale quatro mil.
– E aquele colar? Usá-lo não me faria furar fila na frente de uma pobre criança faminta.
Charles estava brincando com ela e a provocava por seu medo de usar a joia que seu pai havia dado a Anna quando se casara. O lobo de Anna queria brincar e caçar alguma coisa para celebrar. Ela mordeu um pedaço do sanduíche.
– Entretanto, eu talvez tivesse que colocar a pulseira também.
– Não – disse ele. – Apenas a pulseira já seria o suficiente. Mas você não usa nenhum dos dois.
O colar tinha pelo menos duas vezes mais diamantes do que a pulseira e diversas pedras maiores. Ela absorveu a ideia de que somente a pulseira valia mais de quatro mil dólares e ficou duplamente grata por não usá-los. Ela tinha a mania de brincar com qualquer coisa pendurada em seu pescoço – e se ela quebrasse o colar?
– Há um tempo e um lugar para coisas como essas – disse Anna, tentando não mostrar a Charles o quanto estava chocada com o valor da joia. Ela preferia minimizar as mudanças materiais em sua vida desde que havia encontrado Charles e se tornado sua companheira. Mas essas não eram as mudanças importantes – mesmo que ocasionalmente Anna as achasse mais complicadas do que as mudanças reais que haviam acontecido em sua vida.
– Ir às compras não é um bom momento para usar joias, especialmente se você acha que não há nenhum problema em empurrar criancinhas.
Ele levantou as sobrancelhas.
– Mas... E em que momento você planejava usar seus diamantes?
Charles parecia chateado. Ele sabia que Anna nunca os usaria, sabendo agora o quanto valiam.
– Talvez em um encontro com a Rainha da Inglaterra. – pensou Anna por um momento. – Ou se eu realmente precisar ofuscar alguém que não goste. – continuou ela, mordendo mais alguns pedaços do sanduíche, que precisava de alguma coisa a mais... cebola ou rabanete, talvez. Alguma coisa com um toque picante.
Anna realmente não podia imaginar uma situação terrível o suficiente para usar alguma coisa como aquele conjunto, especialmente se somente a pulseira valia quatro mil dólares. E se o fecho quebrasse?
– Ah. Talvez nunca então? – disse Charles, mas isso não parecia afetá-lo muito.
– Talvez se eu precisasse intimidar alguém – se, por exemplo, meu irmão decidisse casar novamente e meu pai me dissesse que não gostava dela, então eu iria até Chicago e a expulsaria. Eu até mesmo passaria na frente dela em uma fila de cachorro-quente enquanto estivesse usando as joias. Mas mesmo assim ela não teria sete anos.
Charles sorriu. Não era uma gargalhada ou sorriso aberto. Mas também não era o seu sorriso “você-vai-morrer-antes-de-respirar-mais-uma-vez”, o que era o mais próximo de um sorriso real que ela havia visto em seu rosto nos últimos tempos.
Anna deu um suspiro de satisfação e bateu a ponta da bota contra a perna da calça do terno de Charles. Eles estariam mais confortáveis em roupas casuais, mas teriam que se trocar. E ela estava com medo de que voltar para o apartamento desse a ele uma desculpa para se desconectar dela novamente.
– Está tudo bem – disse ele. – Nós podemos nos trocar e fazer um pouco mais de turismo.
Ele a estava lendo através de seu vínculo. Escondendo os pensamentos carinhosos que aquilo lhe causava atrás de um olhar desconfiado, Anna deu mais uma mordida em seu sanduíche e então disse:
– OK. Mas só se você concordar em fazer isso comigo
Ela pegou o mapa do bolso, agora sujo, e bateu o dedo em um anúncio.
Charles olhou, soltando um longo suspiro.
– Eu deveria saber que não sairia daqui sem fazer o passeio turístico completo no bonde de mentira até o cemitério com demônios fantasiados.
– Não no meu território – rosnou alguém atrás de Anna.
Como parecia uma resposta improvável à concordância pseudorrelutante de Charles, Anna inicialmente achou que tinha sido dirigida a outra pessoa. Mas Charles inclinou a cabeça e baixou as pálpebras, retesando subitamente os músculos em seus ombros e por isso Anna se virou na cadeira para ver quem tinha falado.
Alinhadas ao longo do lado de fora do mercado ao ar livre havia dezenas de carroças verde-escuras, assemelhando-se vagamente às carroças cobertas dos velhos filmes de faroeste do amado pai de Anna. As carroças serviam como quiosques onde as pessoas vendiam camisetas, bolsas ou outros itens pequenos. Parado no topo da carroça mais próxima deles estava um jovem negro, bem constituído e magro, observando-os – ou observando Charles – com olhos amarelos como os cordões de contas que pendiam balançando de ganchos em toda a volta das carroças.
A partir de fotos, Anna o reconheceu como Isaac Owens, o Alfa da alcateia de Olde Towne – ou Boston: a Olde Towne, inclusive com o e no final das palavras. Ele não tinha o hábito de correr no topo de improváveis poleiros – pois assim teria aparecido no jornal local muito mais do que já aparecera.
– Você está atraindo atenção – disse Charles, em um tom de conversa, planejado para não ser escutado por ouvidos humanos. Isaac, como era um lobisomem, o escutaria muito bem, apesar de estar a dezenas de metros de distância. – Você realmente quer isso?
– Eu tornei pública minha identidade. Eles sabem quem eu sou – disse ele, projetando sua voz para quem quisesse ouvir – e as pessoas estavam começando a parar o que estavam fazendo para ouvir. Isaac levantou o queixo de forma agressiva.
– E você?
Charles deu de ombros.
– Público, não público, não importa – disse ele, se inclinando para frente e baixando a voz. – Nem a sua declaração. Você perdeu o controle da situação que me trouxe aqui quando optou por não denunciar as mortes em seu território. Você não tem nada a dizer sobre o que eu faço ou não faço.
– Nós não matamos ninguém – declarou Isaac, e em seguida apontou para Charles. – E você vai ter que passar por cima de mim para pegar qualquer um da minha alcateia.
Isaac era novo, lembrou Anna. Novo em seu trabalho, novo como lobo – e, como ela, era um estudante universitário quando havia sido transformado. Normalmente se passariam anos antes que ele se tornasse um Alfa, não importando o potencial de dominância que tivesse. Mas a alcateia de Olde Towne tinha perdido o seu Alfa no ano passado em um bizarro acidente de barco e Isaac, que era o segundo em comando, entrou em cena para pegar o emprego. Seu atual segundo em comando era um velho lobo que provavelmente não sabia nada sobre essa proeza.
A mulher que estava trabalhando no quiosque – seu corpo estava coberto com bijuterias feitas à mão e tatuagens em uma mistura confusa de cor e textura – foi se afastando lentamente, tentando não chamar a atenção para si mesma. Não era uma estratégia ruim para alguém presa entre predadores, embora bijuterias menos brilhantes pudessem ter ajudado – outra razão pela qual Anna não usava os diamantes.
– Se nenhuma lei foi quebrada, ninguém está em risco – disse Charles, e Isaac deu-lhe um olhar de escárnio.
– Saia dessa carroça estúpida antes que aquela pobre mulher telefone para o 911 – disse Anna, exasperada. – Venha se apresentar, Isaac, e veja o que acontece.
Anna disse isso alto o suficiente para que fosse claramente audível para a multidão de pessoas que estava formando um anel em torno deles – perto o suficiente para verem o que estava acontecendo, mas não tão perto para se envolverem. Isso significava que ela estava falando quase tão alto quanto Isaac.
O Alfa local olhou para ela pela primeira vez e franziu a testa. Suas narinas se abriram enquanto ele tentava apanhar o cheiro dela – o que teria sido impossível filtrar do resto das pessoas próximas, exceto pelo fato de que ela cheirava como um lobo Ômega.
Depois de uma pausa bastante longa, Isaac encolheu os ombros para relaxar os músculos e pulou da extremidade da carroça – uns dois metros e meio ou três de queda. Ele caiu com os joelhos flexionados e se virou para a proprietária da loja, que havia ficado imóvel quando Anna chamara a atenção para si.
– Minhas desculpas – disse-lhe Isaac. – Eu não queria assustá-la. – continuou ele, sorrindo e entregando-lhe um cartão em seguida. – Um amigo meu tem um pub – faça-nos uma visita e coma uma refeição por nossa conta.
A mulher pegou o cartão com uma mão vacilante, mas que ficou mais firme à medida que o sorriso de Isaac ficava mais amigável. Ela olhou para baixo e levantou as sobrancelhas.
– Eu já comi lá. Bom peixe com batatas fritas.
– Eu também acho – disse ele, dando-lhe uma piscadela. Em seguida, caminhou até onde Anna e Charles estavam sentados.
– Boa tentativa de RP – disse Anna. – Embora considerando o que aconteceu antes, eu não esteja inclinada a dar-lhe um A por isso.
Ele a estudou, ignorando a presença taciturna de Charles.
– Não é mesmo, não? – disse ele, exagerando o seu sotaque de Boston em incompreensíveis sons nasais, antes de desistir e continuar de forma mais clara. – O que diabos é você?
– Prazer em conhecê-lo, também – disse Anna. – Eu aposto que o cartão foi ideia do seu segundo em comando, não foi? Para compensar sua falta de modos? – disse ela, baixando a voz e acrescentando-lhe um toque de Boston. – Opa, desculpe, eu destruí o seu carro. Aqui, faça uma refeição por minha conta. Foi o seu cão que eu comi? Oh, desculpe. Tome uma bebida no bar do meu amigo e esqueça tudo isso.
Isaac sorriu, uma expressão súbita, encantadora, que mostrou seus dentes absurdamente brancos em seu rosto negro-azulado.
– Você me pegou, querida. Mas não respondeu minha pergunta.
– Ela é minha – disse Charles. A agressividade de sua resposta não apareceu em sua voz, que estava baixa e calma. – Temos uma reunião marcada para amanhã, com você e sua alcateia. Não havia necessidade desse... – ele olhou ao redor. As pessoas ainda os estavam observando, embora fingindo que não. – Teatro – concluiu.
– Isso aqui é Boston, parceiro. – disse Isaac, e logo em seguida dobrou os joelhos e se agachou, colocando a cabeça no mesmo nível dos olhos dos dois. – Aqui se fala “tiatro”. Todos gostam de teatro aqui – ele pronunciou o segundo “teatro” exatamente como Charles. Ela se lembrou de que Isaac não era nativo de Boston. Achava que ele era de Michigan ou da Pensilvânia.
Anna deu-lhe um olhar penetrante e falou com Charles.
– Ele provavelmente estava andando e nos viu. Decidiu que não podia esperar até amanhã para dar um show.
– E você não é aquela que acaba com a pose de qualquer um? – os olhos escuros de Isaac a estudavam. E então, em um tom mais tranquilo, ele olhou para Charles e continuou. – De fato, ela está certa. – depois disso, seu rosto e sua voz ficaram muito, muito sérios. – Eu quis dizer exatamente o que disse. Para chegar até meus lobos, você vai ter que passar por cima do meu cadáver.
– Se você fizer o seu trabalho, ele não precisará fazer o dele – a amargura tornava a voz de Anna mais cortante do que ela desejava.
– Ela faz todos os seus discursos, Kemosabe? – perguntou Isaac, se dirigindo a Charles.
Charles levantou as sobrancelhas de forma exagerada e apontou o queixo para Anna como se estivesse esperando que ela respondesse por ele. Charles nunca usava os dedos para apontar. Na família da mãe dele, isso era considerado um péssimo hábito (como já tinha dito a Anna).
– Falando em maus modos... Onde está o nosso cartão que vale por uma refeição? – exigiu Anna. – Acho que você nos deve uma. Cogita ante salis, meu pai diria a você. “Pense antes de saltar”.
Charles murmurou:
– Antes de partir. Ir adiante. Quase isso.
Anna nunca tinha certeza sobre quantas das frases em latim que ela sabia estavam corretas e quantas o seu pai havia simplesmente inventado na hora. Anna havia desistido de falar em latim na frente de Bran porque o olhar em seu rosto enquanto ela falava era o de alguém que estava sentindo alguma dor. Charles parecia achar até engraçado, uma piada que compartilhavam. Ele alegava não falar latim, mas, aparentemente, espanhol e francês eram parecidos o bastante para lhe permitir comentar.
– Charles não está aqui para fazer cumprir a justiça, pelo menos não em relação a você ou aos seus – disse Anna, acenando para Isaac. – Nós íamos procurar você para pedir informações. Há lobisomens mortos e o FBI e a polícia aparentemente não têm nada além de corpos. Fomos enviados aqui para ajudá-los. Íamos procurar você para fazer as perguntas que o FBI provavelmente já fez, na esperança de que você pudesse responder de outra maneira para nós. Como nosso povo foi capturado e assassinado? Onde eles foram capturados?
– Informações sobre os caras mortos? – disse Isaac, levantando o queixo e encontrando os olhos dela. Ele esperou até que Anna abaixasse os olhos – e quando isso não aconteceu, ele franziu a testa, pensativo. Era provável que ele nunca tivesse conhecido um lobo que não conseguisse dominar ou que jamais esteve na presença de alguém a quem ele se sentisse compelido a curvar-se.
A magia dos lobos Ômega confundia muitos lobos que estavam acostumados a imediatamente medir os outros, quando os encontravam pela primeira vez. Esse lobo é mais dominante ou menos? Será que ela vai fazer o que eu mandar, ou eu tenho que fazer o que ela mandar? Será que estamos próximos o suficiente na hierarquia para que eu tenha que me preocupar em lutar para determinar quem governa e quem é governado, quem protege e quem é protegido? Anna não registrava nada na escala obedecer-ou-ser-obedecida – e ela aparentemente tinha algo que fazia com que todos os lobos dominantes precisassem protegê-la.
Finalmente Isaac balançou a cabeça.
– Minha opinião é que se trata de algum Fae, vampiro ou alguma coisa desse tipo – e excepcionalmente poderoso. Eu não sei nada sobre os outros dois – posso lhe dar os endereços dos seus hotéis e suas empresas. Mas eles estiveram aqui antes, muitas vezes. Não tinham o hábito de causar problemas, então eu não os mantinha sob vigilância. Mas o meu parceiro, Otten, ele foi levado enquanto estava correndo ao longo do Rio Charles aproximadamente às cinco horas da manhã.
Isaac olhou por cima do ombro como se pudesse ver o rio de onde estavam sentados, embora não fosse possível.
– É cedo; eu sei que é cedo. Mas há outras pessoas e – com os diabos! – ele é um lobisomem, não é? – Anna percebeu que ele havia virado a cabeça para que eles não pudessem ver a expressão em seu rosto. – Ainda assim, ninguém viu nada. Não há sinais de luta – e Otten, ele era um lobo muito velho... Velho, forte e durão, seja na forma de lobo ou humana. Ele sabia como se proteger. Não era alguém que pudesse ser surpreendido. O vínculo da alcateia me atingiu com força cerca de três horas depois, me derrubou – ele estava muito ferido. Mas havia tanta estática que não consegui encontrá-lo quando acordei.
Ele se concentrou em Charles, olhando nos olhos dele por mais tempo do que ela já tinha visto alguém fazer, com exceção de Bran.
– Eles o cortaram. Estupraram-no e mataram-no, enquanto o cortavam – a voz de Isaac estava áspera de raiva e faíscas douradas brilhavam em seus olhos escuros, apesar das lágrimas em seu rosto.
– Eles – disse atentamente Charles. – Quantos?
Isaac pareceu assustado com a pergunta, e então a surpresa o fez sacudir a cabeça para cima e ele franziu a testa.
– Dois? Dois... está errado, havia um terceiro. Eu só tenho impressões. Principalmente da dor. Achei que as sombras que percebi não eram importantes. Deixe-me pensar.
Ele fechou os olhos e inclinou a cabeça, um movimento de lobo que era comum. Todos eles faziam isso, muitas vezes. Se o nariz de Anna parasse de funcionar, ela ainda reconheceria um lobisomem só por esse movimento.
Isaac franziu a testa e balançou a cabeça.
Eles o cortaram, disse Isaac. O FBI tinha mostrado a eles apenas algumas imagens das últimas vítimas, como se quisessem esconder algum dano que tinha significado e que não queriam compartilhar. Ou então, eles estavam tentando não chocar um consultor civil, que poderia dar muita atenção para o corpo e não conseguisse ver mais nada. Mas o corte... Ela conhecia um tipo de criatura que podia cortar um lobisomem antes de matá-lo.
– Os cortes eram aleatórios? – perguntou Anna. – Ou seguiam um padrão deliberado?
Isaac entendeu onde ela estava querendo chegar.
– Bruxas? Você acha que há bruxas por trás disso?
Charles deu de ombros.
– Esse é o início de nossa caçada, Isaac. Tento não pensar em nada específico nesse ponto.
Isaac balançou a cabeça e olhou para Anna.
– Os cortes poderiam ser deliberados. Ou poderiam ser apenas de alguém brincando, como um gato com um rato – eles pareciam estar se divertindo. A ligação entre um Alfa e seus lobos não é como o vínculo de companheiro e companheira – eu só peguei o pior do que ele estava experimentando aqui e ali – continuou Isaac. Uma expressão infeliz apareceu em seu rosto e seus olhos se arregalaram enquanto ele segurava as lágrimas. – Ele não estava com medo, sabe? Mesmo quando a dor ficou ruim. Otten estava tranquilo, apenas esperando por sua chance – mas eles não lhe deram uma.
– Eu o conhecia – disse Charles, e sua voz disse muito mais do que as palavras. Ele reconhecia e concordava com a avaliação de Isaac, e disse a Anna – e a Isaac – que o homem morto tinha sido uma pessoa a quem Charles respeitava e de quem gostava.
– Obrigado por falar conosco, Isaac. Você nos ajudou. Nós vamos impedi-los, e quando o fizermos, você vai saber que nos ajudou.
– Encontre esses malditos – a frase saiu como um rosnado baixo vindo da barriga de Isaac, um comando de quem estava acostumado a dar ordens – que mataram Otten...
Ele prendeu a respiração e olhou bruscamente para longe e para baixo. Anna olhou para Charles, mas ela já não podia ver a expressão em seu rosto para a qual Isaac tinha respondido; ela já havia desaparecido.
Quando o Alfa de Boston falou novamente, o tom de comando havia desaparecido de sua voz.
– Encontre-os, e se você me chamar como reforço eu considerarei um favor pessoal.
Ele entregou um cartão a Anna. Tinha apenas um número de telefone embaixo de seu nome, e então ela estendeu a mão vazia deliberadamente. Ele abaixou suas pálpebras e a observou enquanto ela devolvia firmemente o seu olhar – e então mexeu os dedos.
– Dê-me.
Ele riu, limpou as lágrimas do rosto com as duas mãos e olhou para Charles.
– O que ela é? – perguntou Isaac, mas sem esperar por uma resposta – que também não veio – ele entregou para Anna um par de cartões com as palavras “The Irish Wolfhound” escritas em relevo sobre eles. – Não dobre os cartões. Nós os reutilizamos.
Anna bufou quando ele ficou em pé e pulou em cima da carroça onde estava antes, em um salto gracioso. Com um meio movimento de mão, ele saiu correndo, movendo-se rapidamente, sem dar a impressão de estar fugindo. Ele pulou facilmente de um quiosque para outro, balançando-os, mas não o suficiente para que algo caísse das prateleiras.
Charles levantou-se sem pressa mas também sem desperdiçar movimentos, recolhendo os restos de sua refeição em seguida.
– Vamos enquanto ele ainda está distraindo todo mundo.
Eles passaram pela Old State House em seu caminho para o condomínio. O prédio estava situado bem no meio de um monte de arranha-céus, parecendo um anacronismo brilhante, dourado e branco no meio de todos os vidros escuros e cromados de seus vizinhos mais próximos. Boston... Anna esperava algo como Seattle, pois muitas pessoas comparavam as duas cidades. E havia algumas coisas que a lembravam fortemente da Emerald City – o oceano, por exemplo, e toda aquela sensação de ser aquele um local liberal e educado. Mas Boston era diferente, pelo menos na parte que ela havia visto.
Boston não era apenas mais velha; ela parecia mais velha – e de alguma forma ainda era nova, impetuosa e dinâmica. Com um ar do Novo Mundo, talvez. Foi construída por pessoas insatisfeitas com as suas vidas que haviam cruzado um oceano, arriscando e dando suas vidas por um novo começo, exatamente ali.
Havia a arquitetura também. Muitos prédios da cidade tinham importância histórica; eles haviam sido deixados onde estavam, mesmo que isso fosse inconveniente. Espremido à esquerda e à direita por ruas movimentadas e grandes edifícios modernos, o Old State House era polido, pintado e cuidado de uma forma que provavelmente não fora nos tempos coloniais, quando Crispus Attucks e outros quatro homens tinham sido baleados na rua ao lado do edifício durante o Massacre de Boston.
Pequenas e estreitas estradas coloniais tinham em sua maioria desaparecido por causa das modernas avenidas, mas ainda apareciam aqui e ali – guardando tesouros como lojas de antiguidades e livrarias antigas. O efeito final dos maciços edifícios de aço e vidro montando guarda sobre seus precursores menores e mais delicadamente construídos era eclético e encantador.
– Você acha que os assassinos são lobisomens? – perguntou Anna, enquanto voltavam rapidamente ao condomínio.
– Lobisomens? – considerou Charles, balançando a cabeça. – Não. Isaac saberia se Otten tivesse sido caçado por lobisomens.
Eles andaram cerca de metade de um quarteirão em silêncio e, depois, Charles balançou a cabeça novamente.
– Talvez... talvez Isaac não pudesse perceber que os assassinos eram lobisomens. Ele é jovem. Mas a caçada está sendo feita de forma errada para que se considere os lobisomens. Ninguém está comendo essas vítimas. Um lobisomem que está caçando assim... Outros lobisomens poderiam farejar a doença do espírito neles – continuou Charles, fazendo uma pausa. – Eu poderia sentir o cheiro deles. Não há nenhum lobo no país com mais de quarenta anos que eu não tenha encontrado desde o início dos assassinatos. Mas poderiam ser vampiros – ou bruxas.
– Cinco e meia da tarde, nessa época do ano, é um horário claro demais para um vampiro – disse Anna. – Mas se ele está caçando... matando com sucesso Fae e lobisomens, tem que ser alguma coisa sobrenatural, não? Eu não posso imaginar um vampiro que também não beba o sangue de suas vítimas – e se esse for o caso, ninguém está nos contando.
Charles deu de ombros, esquivando-se de um pequeno grupo sendo conduzido por um homem com uma peruca empoada, vestido à moda revolucionária e carregando uma lanterna apagada em uma vara. Anna desviou para o outro lado e conseguiu ouvir um pouco do discurso do guia da turnê.
– Revere não cavalgou sozinho naquela noite, nem ficou, em sua época, famoso pelo seu ato. Paul Revere é famoso porque seu nome é aquele que Longfellow, quase cem anos depois, escolheu para usar em seu famoso poema, em vez do nome do meu bom amigo William Dawes, que foi o outro cavaleiro a avisar sobre a invasão britânica.
Antes que a voz dele desaparecesse em meio aos sons do movimento da cidade ao meio-dia, Anna notou que ele tinha um sotaque britânico pesado que encobria um leve sotaque sulista: ele não era um nativo de Boston.
Charles continuou a conversa como se ele nunca a tivesse interrompido.
– Poderia ser uma organização de pessoas que odeiam os Fae e os lobisomens, como a Bright Future ou a Sociedade John Lauren. Ou um grupo de caçadores que nos vê como um desafio.
– Ou um grupo de bruxas negras, se houvesse mais de um assassino.
– Certo – concordou Charles. – Eu não sei o suficiente ainda. O FBI foi bastante cuidadoso com as informações que nos deram.
– Notei que nenhuma das fotos das vítimas mais recentes nas cenas dos crimes mostrava seus rostos – disse Anna, pensativa. – Nós vimos o suficiente delas para que isso não tenha sido mesmo deliberado.
– Sem rostos, sem torsos ou costas descobertos. Também nenhuma indicação de como foram assassinados. Foram estrangulados? Apunhalados? Eu deveria ter perguntado a Isaac.
– Você acha que o FBI vai nos chamar para ajudar?
Anna pensava que sim, mas estava com medo de confiar em seu próprio julgamento, porque queria muito participar. Os olhos das vítimas haviam ficado em sua memória.
Charles deu de ombros.
– Sim. Fisher olhava para nós como se fôssemos doces. Mas não importa. Se não nos chamarem, vamos nos envolver. Seria mais fácil se eles pedissem.
Eles caminharam por algum tempo em silêncio. Bem, Charles ficou em silêncio. Os sapatos de Anna faziam um rápido clique-clique-clique sobre a calçada. Ela poderia ter andado mais silenciosamente, mas gostava da forma como o barulho que ela fazia se misturava com os sons da cidade, quase como música.
Ela tocou em Charles quando uma mulher bonita vestida com um terninho e com saltos tortuosamente altos passou por eles.
– Você viu isso? Veja as pernas dela. Olhe para todas as mulheres que estão usando vestidos; e olhe para as suas pernas. As panturrilhas são maiores que as coxas.
– Não é à toa que eles chamam Boston de “a cidade andarilha” – resmungou Charles, quando abriu a porta do edifício do condomínio. Assim que entrou, a fraca aura de perigo que ele emitia diminuiu. Evidentemente Charles tinha estado nesse edifício vezes o suficiente para não considerá-lo território inimigo.
– Em quanto tempo você acha que o FBI nos chamará? – perguntou Anna. – Se eles decidirem nos chamar.
– Entediada?
Charles guiou Anna pelas escadas e, depois de uma viagem em um elevador estreito, moderno e muito lento, Anna estava feliz em trotar atrás dele.
– Não. Eu só queria ter certeza de que temos tempo para fazer o tour mal-assombrado hoje à noite.
Charles lhe deu um olhar e Anna sorriu, mergulhando feliz no relacionamento quente e seguro que, de alguma forma, havia sido restaurado depois de mais de um ano de dificuldades. Era fácil demais; ela sabia disso. Mas iria aproveitar enquanto pudesse.
– Talvez o FBI telefone – disse Charles, esperançoso. Ela não acreditaria nisso; ele iria se divertir andando por velhos cemitérios tanto quanto ela – apenas não queria admitir.
– Tenho meu celular – ressalvou Anna. – Você tem o seu. Troque-se e vamos embora.
Ele rosnou.
Depois da reunião com os lobisomens, Leslie almoçou mais cedo em um pequeno restaurante próximo do local da reunião antes de andar o restante do quarteirão – ou quase isso – entre o hotel e seu escritório. Ela usou o tempo para processar mentalmente o que havia visto e ouvido de maneira que pudesse dar uma versão coerente e organizada dos fatos relevantes para Nick. Ela finalizou os últimos detalhes quando pegou o elevador, e estava pronta antes de chegar ao escritório.
O segurança do escritório, conhecido como o Guardião, apelido usado apenas pelo grupo de Leslie, acenou e abriu a porta para ela. Leslie foi para sua mesa, mas um assobio agudo de seu chefe mudou sua trajetória.
Nick parecia cansado. Eles vinham perseguindo dois ladrões de banco diferentes e algo que poderia ser uma célula terrorista – ou apenas um grupo de estudantes falidos morando juntos em um alojamento – antes que o caso do assassino serial entrasse em seu radar. A célula terrorista tinha prioridade sobre tudo, no entanto um dos assaltantes de banco estava fazendo um grande esforço para se colocar no topo da lista. Ele usava um peculiar capacete de moto com um pequeno adesivo no topo que lhe dera o apelido de Smiley. Ultimamente ele começara a trabalhar com outro homem sem rosto, que usava um capacete e gostava de carregar uma arma e dispará-la em luzes e câmeras após apontá-la para as pessoas. Um desses dias, muito em breve, ele começaria a atirar nas pessoas. A equipe de Nick estava um pouco desfalcada desde que Joe e Turk tinham sido transferidos. O trabalho era feito, mas todos estavam com déficit de horas de sono.
– Como foi? – perguntou Nick, depois que Leslie fechou a porta atrás de si.
Leslie pensou sobre o assunto.
– Interessante, em muitos aspectos.
Ele deu um bufo impaciente.
– Compartilhe. Por favor.
Ela começou com um resumo de quem estava lá. Nick resmungou quando ela disse que Heuter estava presente. Mas foi um grunhido que ela não conseguiu interpretar. Leslie não soube dizer se Nick gostava ou não de Heuter – ou se estava apenas admitindo que a Cantrip havia enviado o seu menino de ouro.
Leslie contou a ele sobre a descoberta mais importante.
– Nosso UNSUB tem matado principalmente Fae, achamos que nos últimos 25 anos, mais ou menos, e ninguém notou nada até que um lobisomem nos contou, um lobisomem que sequer era nascido quando os primeiros assassinatos começaram. A Cantrip afirma que ela é Anna Latham.
– Vou verificar o nome e ver se concordo com eles sobre a identidade dela, embora ela não tenha negado.
– Tem havido rumores, se você souber onde ouvir, que lobisomens podem compartilhar uma característica ou outra com os Fae. Que sua capacidade absurda de cicatrização também os impede de envelhecer.
Leslie absorveu o fato.
– Se é assim, acho que nossa Anna tem dezesseis anos, e seu marido tem dez mil e poucos.
Nick riu.
– Impressionada com ele, não? Craig também ficou. Ele me ligou logo que a reunião terminou para me dizer que iria lá para ver Kip no Departamento de Polícia de Boston. Ele esperava que a polícia pudesse ter alguém familiarizado com os Fae a quem pudessem mostrar as fotos, assim poderíamos ter uma confirmação.
– Se você já falou com Craig, por que tive que fazer um relatório preliminar? –perguntou Leslie, um pouco irritada.
– Ele disse que ia deixar o relatório para você entregar, já que ele era o agente de campo sênior – disse seu chefe, de forma equilibrada, voltando ao assunto em seguida. – Se for verdade, se muitas das vítimas são Fae, por que ninguém nas comunidades Fae falou nada?
Leslie encolheu os ombros.
– Por que os Fae fazem o que quer que seja, Nick? Talvez eles não queiram chamar a atenção ou encorajar um imitador. Talvez eles não tenham notado.
– Então, o assassino estava atirando nos Fae e decidiu abater um par de lobisomens, também.
– Essa é a teoria mais recente com a qual Craig e eu concordamos.
– E os lobisomens? Eles vão nos ajudar? Nós realmente queremos a ajuda deles?
Leslie bateu a lateral do pé no assoalho.
– O cara é nativo-americano e é grande. Ele ficou afastado e não disse uma palavra que não fosse necessária. Todos nós naquela sala estávamos fazendo o possível para não prestar atenção nele, porque ele era muito assustador.
– Como assim, assustador? Frio? Louco?
Leslie franziu o cenho para seu chefe.
– Como você, quando está tentando intimidar alguém que está interrogando; só que de forma não deliberada.
– Aquele olhar perdido na distância?
– Sim – concordou Leslie. – Ele deve ter visto bastante sangue por aí, com certeza – continuou ela; naquele momento, aquilo que a havia incomodado em relação ao casal de lobisomens finalmente fez sentido. – A garota, a esposa dele, ela parece tão doce que deve ser capaz de atrair abelhas. Inocente. Mesmo Jim Pierce estava se sentindo protetor em relação a ela; dava para perceber por sua postura – e o Dr. Singh deliberadamente distraiu os agentes da Cantrip quando eles a confrontaram e tentaram intimidá-la. E você conhece Singh.
– Você acha que ela estava fingindo?
Leslie sacudiu a cabeça.
– Não. Não acho. Mas ambos os lobisomens olharam para as fotos de cadáveres e não mostraram nenhuma reação. É verdade que não mostramos as piores fotos, em cores, mas as velhas fotos preto-e-brancas da polícia são bastante desagradáveis.
– Você acha que eles já devem ter passado algum tempo olhando para corpos – disse Nick. – Você acha que eles são assassinos.
Leslie assentiu com a cabeça.
– Ele, sim. Ele tem um... um olhar. Você tem. Muitos caras das forças armadas têm. Eu acho que ele poderia ter matado todos nós e nem sequer pensado a respeito. Quanto a ela... – disse Leslie, franzindo a testa, tentando achar uma melhor forma de descrever. – Você já trabalhou com Lee Jennings? O cara que a UAC envia para entrevistar os caras desagradáveis na prisão?
Nick franziu o cenho.
– Sim.
– Ele é um homem bastante comum. Eu gosto muito dele, da mesma forma que todos que trabalham com ele. E a razão pela qual eles o enviam às prisões para falar com a escória da terra e com os loucos é porque eles gostam dele também. Eles se atropelam para dar a Jennings todas as informações que ele pede.
Nick levantou o queixo e seu rosto ficou imóvel.
– Certo. E ela é assim?
Leslie assentiu.
– Seu marido não disse mais do que duas ou três palavras, mas ele dominava a sala. O único que não ficou intimidado foi Craig – e ele não estava olhando. Aposto que Charles Smith é um Alfa de alguma alcateia que não conhecemos.
– Intimidador.
Ela acenou novamente.
– Ele estava bancando o durão, acho. Mas ela não o tratou assim – disse Leslie, perguntando a si mesma o motivo dessa conclusão. – Ele chegou depois com café para todos – ela o mandou buscar café para que pudesse nos explicar como tornar as coisas mais fáceis para ele.
– Para manter todos a salvo?
Leslie sacudiu a cabeça.
– Ela disse que sim, mas eu tive a distinta impressão que ela estava muito mais preocupada com ele do que com qualquer um de nós. As coisas que ela disse seguiram o padrão – “não olhe nos olhos dele, se puder evitar”. “Nada de movimentos agressivos.” A única novidade era que nós não deveríamos tocá-la em absoluto. Eu esperava um maníaco com olhos de louco, e o homem que entrou na sala era firme, controlado e estava à vontade. Ele parecia estar acostumado a conduzir reuniões com o governo federal todos os dias de sua vida.
– E isso a fez pensar que ele estava dando as cartas por baixo da mesa?
– Não. Não é só isso. Sua linguagem corporal mostrou que ela o respeita e aceita seu julgamento. Ela estava à frente da reunião, mas ele era mais do que simplesmente o reforço.
– Então, vamos convidá-los?
– Ela chamou atenção para o fato de que o assassino matou lobisomens. Matar lobisomens, eu aprendi e percebi, é algo semelhante a ser capaz de aniquilar uma equipe SEAL inteira. Esse UNSUB tem caçado Fae e escapado – tanto quanto sabemos – ileso. Então, temos alguma escolha?
– O FBI tem alguns Fae na folha de pagamento. Nós temos uma escolha. Você se encontrou com eles e é de longe o melhor agente que tenho para avaliar pessoas. O que você acha?
Leslie suspirou alto.
– Eu gosto dela. Eu lhe disse. E ele é... competente – ele tem aquele ar. Aquele que diz “já vi muita coisa e consegui sair vivo”. Eles não vão nos custar nada, então o pessoal do orçamento vai ficar feliz. Mas – disse Leslie, erguendo um dedo – ele não vai aceitar ordens de ninguém.
Nick assentiu com a cabeça e fez os seus movimentos usuais com o dedo e a mão por meio minuto antes de soprar o ar para fora.
– Há algumas pessoas na UAC que estão familiarizadas com o Grande Caçador. Vou telefonar e ver o que os profilers têm a dizer sobre o que pode acontecer com o nosso assassino se a mídia souber que lobisomens estão na jogada. Você e Craig podem coletar informações sobre os lobisomens enquanto trabalham com eles. Deixe-me pensar sobre as implicações disso pelo resto do dia e, se nada me parecer muito estúpido, amanhã lhe darei meu OK para continuar.
Cinco
Depois de um dia duro como turista, Anna dormia profundamente na cama do outro lado da parede do banheiro. Charles colocou a testa contra o seu lado da parede por um longo momento antes de juntar sua... “coragem” não era a palavra certa. Era força.
Depois de um profundo suspiro, Charles ficou na frente do espelho do banheiro. Esse era um daqueles espelhos de corpo inteiro que as mulheres costumavam usar para certificar-se de que seus tornozelos não estavam aparecendo abaixo de suas saias e agora era usado para se certificar – ele supunha – que a roupa de baixo aparecesse apenas quando elas queriam.
E ele estava tentando se distrair olhando para si mesmo no espelho em vez de olhar para a imagem que ele continha.
Charles não podia vê-los se virasse a cabeça para olhar para trás, mas no espelho os espíritos que o assombravam eram tão claros e tridimensionais como eram quando ainda estavam vivos. Eles haviam se afastado durante todo o dia, enquanto ele e Anna bancavam os turistas, e também naquela noite, quando Anna o levara naquela tola turnê assombrada que tinha sido surpreendentemente divertida, permanecendo assim até o momento em que ele a abraçou enquanto ela adormecia.
Mas assim que Anna adormeceu, eles voltaram.
Nós a vemos, disseram eles. Será que ela o vê? Será que ela sabe o que você é? Assassino, matador, portador da morte. Vamos mostrar a ela e ela vai fugir de você. Mas ela não pode fugir para longe o suficiente e ficar segura.
De olhos fundos e esqueléticos, eles olhavam para ele, enfrentando seu olhar de uma forma que ninguém, exceto Anna, seu pai, ou seu irmão se atrevera a fazer por um longo tempo. Os mais antigos se transformaram em algo que não haviam sido em vida – seus olhos negros, os rostos distorcidos, dificilmente pareciam humanos. Os três mais novos estavam exatamente como eram no momento em que foram mortos por Charles. Eles estavam tão perto dele que Charles achou estranho não sentir o calor – ou o frio – que eles emanavam em suas costas. Mesmo assim, não eram apenas seus olhos que lhe diziam que eles estavam lá.
Charles podia sentir o cheiro deles. Não era um odor de carne podre precisamente, mas algo próximo disso: o cheiro doce e enjoativo que algumas flores produzem para atrair moscas e outros insetos que se alimentam de carniça. O cheiro penetrava em sua pele. Como os fantasmas no espelho, o cheiro era um reflexo, não era a coisa real.
E ele os ouvia.
Por quê?, perguntavam eles. Por que você nos matou? Mas Charles sabia que eles não estavam realmente interessados nas respostas.
Na primeira vez em que os viu, quando começou a fazer esse tipo de trabalho para seu pai, Charles tentou responder, embora soubesse que era inútil. Ele tinha certeza de que se pudesse pelo menos encontrar a coisa certa a dizer, eles iriam embora. Mas explicar as coisas para os mortos nunca funciona. Eles não ouvem da mesma forma que os vivos e as palavras têm pouco efeito sobre eles. As perguntas eram para ele, mas não para que ele as respondesse – e falar com eles apenas lhes dava mais poder.
A culpa os atraía. A culpa que ele sentia os impedia de seguir para onde eles deveriam ir. Deveria haver algo mais que pudesse ser feito por eles. Mas não haver nada que pudesse ser feito não fazia que Charles se sentisse de forma diferente a respeito da culpa.
Eles estavam protegendo uma criança e tinham perdido o controle de sua raiva. Charles, como qualquer lobisomem, sabia tudo sobre perder o controle. Havia um pedófilo perseguindo crianças no território da alcateia e eles tinham sido enviados para caçá-lo. Isso foi exatamente o que fizeram. Mas meteram os pés pelas mãos, sem possibilidade de conserto. Em outra época, seriam punidos, mas não mortos.
E agora eles o assombravam. O fato de Charles não poder libertá-los era um fardo adicional a suportar, uma segunda dívida que tinha com eles.
Seu avô – o pai de sua mãe – havia lhe ensinado que era assim, e sua vida muito longa não lhe tinha dado nenhuma razão para duvidar.
Dave Mason, o morto mais próximo de Charles, o último dos lobos de Minnesota que Charles havia executado, abriu a boca e disparou para frente. Dave tinha sido um bom homem. Não o mais brilhante ou o mais gentil, mas um homem bom, um homem de palavra. Ele havia entendido que Charles estava apenas fazendo o que era necessário. Dave não iria querer que seu fantasma atormentasse ninguém.
No espelho, os olhos frios e ávidos de Dave encontraram os de Charles enquanto sua boca, como a de uma lampreia, grudava-se ao pescoço de Charles, fria e afiada, alimentando-se de sua culpa. Ele desapareceu de vista depois de alguns minutos, mas os sentidos de Charles ainda percebiam sua presença, enquanto, um a um, os fantasmas atrás dele faziam o mesmo, até que ele ficou aparentemente sozinho na frente do espelho e sentiu seus fantasmas ganharem força, enquanto a dele enfraquecia. Eles não o tocavam fisicamente, ainda não. Mas ele sabia que não estava pensando tão claramente, não era mais capaz de confiar em seu próprio julgamento.
Do outro lado da parede, Anna se mexeu, inquieta. Não acordada, mas consciente.
Ele deveria fechar o seu vínculo com ela, mais uma vez. Charles não achava que qualquer um de seus fantasmas pudesse atravessar a barreira e tocá-la, mas não tinha certeza. Ele não poderia suportar se lhe causasse algum dano.
Mas também não poderia suportar ser separado dela novamente. O telefone celular de Anna tocou e ela resmungou, enquanto procurava às cegas por ele no criado-mudo desconhecido.
– Alô, é a Anna – disse ela, com sua voz rouca de sono.
Charles estava distraído demais para prestar atenção às palavras da pessoa do outro lado da conversa. Ele ouviu a voz de Anna e deixou que ela o lembrasse de que ele não a empurrara para longe, que não a havia machucado irremediavelmente.
Ainda não.
– Agora? – disse Anna, e depois houve uma pausa. – Claro. Ficamos felizes em poder ajudar. Pode me dar o endereço? Não. Não é necessário. Temos wi-fi aqui, então temos conexão com a Internet. Apenas espere até eu encontrar uma folha de papel.
Anna tirou outra coisa da mesa ao lado da cama – sua bolsa, como ele concluiu pelo som. Charles olhou para longe do espelho.
– Tudo bem. Tenho papel e caneta. Pode falar.
Ele não podia sair e trabalhar para os agentes federais. Não assim. Ele iria ferir alguém, alguém que não merecia.
Use a mim, disse o irmão lobo. Se eu ficar com Anna, será seguro para todos. Eu não vou prejudicar ninguém. Vou mantê-la a salvo deles.
Quem são “eles”?, perguntou Charles.
O FBI, os assassinos, os mortos. Todos eles, e qualquer um deles. Ela estará segura – e os outros também. Eu não vou machucá-los, a menos que seja preciso. E você, pode dizer o mesmo?
Charles quase sorriu ao pensar que o irmão lobo poderia ser menos perigoso do que ele, mas no momento isso parecia ser verdade.
Sem olhar outra vez para o espelho, Charles deixou a transformação ocorrer: ele confiaria no lobo para mantê-la segura.
– Quanto tempo você vai demorar até chegar aqui?
A voz de Leslie Fisher era fria e profissional, mas sua pergunta tinha um pequeno toque de urgência.
Uma jovem havia desaparecido de seu apartamento, embora não houvesse se passado muito tempo. Felizmente, o policial que tinha feito a verificação havia sido informado sobre o assassino serial e achou que o caso era parecido o suficiente com os outros assassinatos e, por isso, chamou o FBI.
Havia algo errado com Charles. Isso estava incomodando Anna desde que ela acordara, mas ela já havia atendido o telefone e não pôde dar atenção a isso. Não parecia ser nada urgente, apenas não parecia ser bom – mas ela decidira cuidar do assunto verdadeiramente urgente antes e livrar-se dele de uma vez. Se fosse o assassino serial, eles teriam a chance de chegar até a garota antes que algo acontecesse.
– Qual é a distância entre o apartamento e o hotel onde estávamos ontem de manhã? – disse ela; eram duas horas da manhã.
Charles não estava na cama ao lado dela, mas Anna sabia que ele estava no apartamento. Ela podia senti-lo.
– Uma caminhada de dez ou quinze minutos. Algo assim. O apartamento da vítima não é muito longe do Commons – disse Fisher; mas então ela se lembrou claramente de que Anna e Charles não eram de Boston. – O parque Commons. O grande parque que fica a duas quadras do hotel.
Depois de um dia de passeios, Anna poderia ter dito a Fisher qual o tamanho do Commons e aproximadamente quantas pessoas estavam enterradas lá, e tudo sobre os patos que haviam inspirado um famoso livro para crianças.
O condomínio ficava a menos de cinco minutos do hotel. Charles e ela poderiam tomar um táxi se o lugar onde eles precisavam ir fosse muito longe.
– Menos de quinze minutos, então – disse Anna.
– Ótimo – disse Fisher. – Agradecemos qualquer ajuda que vocês possam nos dar. Considerando que esse seja nosso suspeito, e com base em casos anteriores, ela ainda está viva e assim ficará por mais alguns dias.
– Faremos o melhor que pudermos.
Anna desligou o telefone e começou a apanhar suas roupas.
– Charles? Você ouviu? Há uma garota desaparecida. Lizzie Beauclaire é um dos nossos lobisomens? Eu não me lembro de ter visto seu nome na lista da alcateia de Olde Towne.
Não que eu saiba. Não foi Charles que respondeu.
Anna fez uma pausa, com um pé no ar, pois ela o estava enfiando dentro da calça. O irmão lobo saiu do banheiro: seus quase 140 quilos de pelo vermelho-raposa, presas e garras. Havia lobisomens maiores, mas não muitos. O lobo de Anna estava mais próximo da marca de cem quilos – assim como o lobo de Bran.
– Bem – disse ela lentamente. A sensação de algo errado em seu vínculo estava se dissipando, deixando apenas a presença calma e atenciosa que era o irmão lobo. – Acho que vamos poupar tempo se um de nós já estiver na forma de lobo quando chegarmos lá.
Charles está preocupado; acha que pode fazer algo ruim, disse-lhe o irmão lobo. Ele decidiu que seria melhor se eu tomasse o controle essa noite. O irmão lobo havia melhorado sua capacidade de falar com ela por palavras, em vez de utilizar apenas imagens. Ela tinha a distinta impressão de que ele considerava aquilo um pouco como o balbuciar de bebês, mas mesmo assim ele se divertia.
Anna voltou a se vestir enquanto pensava em suas palavras. De todos os lobisomens que conhecera ao longo dos últimos anos, nenhum, com exceção de Charles, podia deixar o lobo no comando sem que um desastre ocorresse. A parte lobo de um lobisomem era... uma fera selvagem, nascida para caçar e matar, proteger a alcateia a qualquer custo e não muito mais do que isso. O irmão lobo era diferente dos espíritos-lobo de outros lobisomens porque Charles, que nasceu como um lobisomem, era diferente dos outros.
Diferente por causa de você, também – disse-lhe o irmão lobo.
– Suponho que se você – se vocês dois acham que é melhor, tudo bem. Vocês sabem mais do que eu. Avisem-me se eu puder ajudar de alguma maneira. Mas isso significa que não poderemos pegar um táxi.
Ela já não se sentia estranha ao falar com Charles e seu lobo como se fossem dois indivíduos diferentes que partilhavam a mesma pele, ambos amados. Ela e sua natureza de lobo eram muito mais entrelaçadas, embora Anna tivesse a impressão de não estava tão integrada a ela como a maioria dos lobisomens estava.
O irmão lobo derrubou-a com um golpe de traseiro, ficando sobre ela e lambendo todo o seu rosto. Sim. Nada de táxis para lobisomens. Charles não gosta de andar de carro. O lobisomem saiu de cima dela e inclinou a cabeça; seus olhos dourados brilhavam, divertidos – o que quer que estivesse perturbando Charles, não deveria ser nada sério, já que seu lobo não estava preocupado.
Eu tomarei conta dele. O bom humor do irmão lobo desapareceu. Como sua irmã loba tomou conta de você, quando você precisou dela para derrotar os lobos de Chicago.
– Tudo bem, então.
Anna não sabia muito bem o que pensar sobre isso, porque seu lobo a havia ajudado a suportar estupro e tortura. Mas considerando o otimismo trazido pela mudança de Charles no dia anterior, ela decidiu acreditar que a intervenção do irmão lobo era uma coisa positiva. Anna secou o rosto na ponta da camisa e levantou-se para terminar de se vestir.
Com os sapatos nos pés, o rosto lavado, ela procurou o endereço em seu laptop.
– Estamos com sorte – disse ela. – É apenas a 2 km daqui.
Havia pessoas na rua às duas da manhã, mas ninguém parecia achar estranho que ela estivesse correndo pela rua com um lobisomem de 140 quilos. Podia ser um toque de magia da alcateia fazendo com que as pessoas vissem um grande cão – ou que não os enxergassem em absoluto. A magia da alcateia, como Anna descobrira, podia ser caprichosa, indo e vindo sem que qualquer um dos lobos a tivesse especificamente conjurado. Bran podia conjurá-la, assim como Charles – mas ela tinha a sensação de que a magia da alcateia fazia apenas o que escolhia fazer.
A falta de interesse que eles estavam gerando também podia simplesmente estar relacionada à capacidade de sobrevivência de seus observadores urbanos. Anna havia crescido em Chicago. Em uma cidade grande, você não olha para alguém cuja atenção não quer atrair. Quem quer que um lobo grande e assustador decida que você é interessante?
O irmão lobo estava usando uma coleira e uma guia, porque Bran achava que a coleira e a guia faziam muita diferença para os seres humanos que porventura os encontrassem – e não faria muita diferença para o lobisomem. A coleira tinha sido comprada em uma loja de produtos para animais e vinha com um dispositivo de segurança bonitinho que impedia que o cão se enrolasse na guia e sufocasse. Isso significava que a coleira não diminuiria a velocidade do lobisomem antes que o plástico quebrasse.
O nome na coleira era “Irmão Lobo”. Bran não havia aprovado. Ele preferia que os nomes fossem menos verídicos, mais amigáveis e bonitinhos. Surpreendentemente, como o irmão de Charles havia contado a Anna, Charles havia insistido no nome até que Bran cedera.
O endereço que Leslie Fisher havia fornecido os levou a um dos arranha-céus da cidade: um edifício alto, mas estreito, espremido entre dois edifícios ainda mais altos. Anna o teria escolhido mesmo sem ter visto os gigantes números negros gravados com bom gosto no vidro sobre a porta principal, porque era o único com carros de polícia estacionados em frente a ele. Ninguém olhou para eles quando entraram no edifício, embora houvesse um pequeno grupo de policiais encolhidos no saguão. Um homem jovem vestindo um uniforme de segurança tomava conta da recepção; ele parecia perturbado.
Em um impulso, Anna caminhou até ele.
– Com licença. Você estava de plantão quando a jovem desapareceu?
Anna pensou que ele iria pedir-lhe suas credenciais, mas ou ele estava chocado demais ou simplesmente tinha se acostumado a responder a todas as perguntas que lhe eram feitas.
– Lizzie – disse ele, seus olhos passando do rosto de Anna para o irmão lobo, e depois voltando, como se o fato de não olhar para o lobo gigante em frente à sua mesa pudesse fazer a coisa assustadora ir embora. – O nome dela é Lizzie. Ela chegou por volta de oito horas e não a vi sair. As fitas de segurança também não mostraram nada.
Ele engoliu em seco e olhou para o irmão lobo novamente.
– Quem usou o elevador depois que ela entrou?
– Tim Hodge no quinto andar. Sally Roe e sua parceira, Jenny, no oitavo. Esse é o maior cão que eu já vi.
Ele parecia um pouco apreensivo.
– E Lizzie mora no décimo-segundo.
– Isso mesmo.
– Quantas pessoas usam as escadas?
– Há escritórios nos três primeiros andares – respondeu ele, franzindo a testa para o irmão lobo. Ela podia ouvir o aumento de seu batimento cardíaco quando algo instintivo acordou e lhe disse que havia um grande predador na ponta da guia. Embora continuasse falando, o rapaz deu um passo atrás.
– Algumas pessoas no quarto e no quinto andar descem pelas escadas às vezes, mas todos que moram aqui pegam o elevador na maior parte do tempo.
O irmão lobo deu um passo à frente.
– E onde ficam as escadas? – perguntou Anna, e depois sibilou para o seu companheiro. – Pare com isso.
Se fosse apenas Charles, ela teria certeza de que ele estava apenas se divertindo – o lobo era outra história.
O irmão lobo voltou a cabeça em direção a Anna com os olhos semicerrados e deixou as orelhas caírem um pouco, em um sorriso lupino. O que não significava que ele não estivesse interessado em caçar o jovem – apenas que também tinha achado divertido provocá-la.
– Naquela direção – disse o segurança, apontando para a direção além de onde estavam os policiais. – Eu preciso liberar a porta para você entrar. Para isso, preciso ver sua identificação.
– Você precisa liberar a porta para as pessoas saírem?
Ele balançou a cabeça.
– É contra o código de segurança contra incêndios.
Era melhor sair pelas escadas. A porta ficava fora do caminho e não fazia barulho como as portas do elevador, que anunciavam quando alguém estava saindo. Ela iria levar o irmão lobo pelas escadas – se ela conseguisse se livrar da obrigatoriedade da identificação. Ela não trouxera nenhuma identificação, e não a teria usado se tivesse trazido. Anna não mentiria com uma identidade falsa, e não tinha nenhuma intenção de dar-lhes mais informações pessoais do que podia dar, a menos que Bran lhe dissesse para fazer isso.
– Você tem um cartão da agente Fisher ou do agente Goldstein do FBI? – perguntou Anna.
O segurança olhou para a pequena coleção de cartões sobre a mesa à sua frente.
– Agente Fisher. Sim.
– Por que você não interfona e a chama? Ela me telefonou e eu saí às pressas, acabei esquecendo minha bolsa e meu documento de identidade. Ela está me esperando.
O segurança franziu a testa para ela.
– Verdade – disse Anna secamente. – Mulher com lobisomem. É difícil me confundir com outra pessoa.
Os olhos do segurança se arregalaram e ele deu outra boa olhada no irmão lobo – que lentamente balançou o rabo e manteve a boca fechada. Aparentemente ele havia decidido não atormentar o jovem.
– Achei que eles eram maiores – falou o segurança, inesperadamente. – E... você sabe. Mais acinzentados.
– Menos civilizados, com espuma na boca? – perguntou Anna, com um sorriso. – Meio-humano, meio-lobo, todo monstruoso?
– Aham – confirmou ele, dando um sorriso rápido em seguida e mantendo um olhar desconfiado no irmão lobo. – Posso invocar a quinta emenda nessa? Mesmo assim você vai ter de esperar até que eu interfone e confirme que você pode subir. Se eu não a conheço, você não pode subir sem apresentar identificação ou então sem convite.
– A polícia já lhe fez perguntas sobre quem entrou aqui hoje?
O segurança acenou com a cabeça.
– Todo mundo. A polícia, o FBI, e possivelmente uma dúzia de outras agências e pessoas, que eu saiba. Começando com o pai de Lizzie.
– Eu não preciso repetir o trabalho deles, então – disse Anna.
Ele deu um sorriso educado, pegou o telefone e chamou o número escrito em um cartão que estava em cima da mesa.
– Aqui é o Chris da segurança no térreo. Tenho uma mulher e um lobisomem aqui.
– Mande-os subir – disse a voz de Leslie Fisher. Ela parecia bem menos calma do que quando tinha ligado para Anna, e desligou o telefone sem cerimônia.
O guarda de segurança Chris acenou para Anna.
– Eu vou abrir a porta para você passar. Por que você vai subir pelas escadas? Doze andares é muita coisa.
– Ele não gosta de elevadores – disse Anna. – E parece que, se ela foi raptada, talvez seu sequestrador a tenha levado pelas escadas, porque você o teria notado no elevador – Anna indicou o lobo com a cabeça. – Ele tem um bom nariz. Nós vamos verificar.
Chris olhou para o irmão lobo com menos medo e mais interesse.
– Seria bom – disse ele – se vocês pudessem encontrá-la logo.
Anna concordou com a cabeça.
– Tentaremos.
O irmão lobo trotou pela escadaria acima, examinando os cheiros das pessoas que haviam passado por ali. Havia cheiros antigos – várias pessoas tinham cães e alguém usava uma colônia horrível... e seis ou oito cheiros mais frescos. Enquanto ele e Anna se moviam para cima, em um ritmo constante e regular, os outros cheiros despareceram, permanecendo apenas alguns. Ele podia sentir o cheiro da mulher que fazia a limpeza ali – ela vinha muitas vezes –, mas havia outro que se sobrepunha a ele e era mais fresco por vários dias de diferença.
O irmão lobo colou as orelhas na cabeça e parou, porque Charles disse a ele que o que estava cheirando era improvável.
– O quê? – perguntou Anna; e então, mais apropriadamente, usou o vínculo entre eles: O quê?
Ela veio aqui por conta própria, sem tocar no chão. O irmão lobo sabia que seu tom de voz era mal-humorado, mas ele não podia mudar o que era apenas porque isso não fazia Charles feliz. Deslizando contra a parede a cerca de um metro do chão. Charles diz que não é possível.
– Muito bem – disse Anna, e sua voz acalmava a irritação do irmão lobo. – Evidências momentaneamente inexplicáveis em um sequestro que possivelmente envolve Fae ou lobisomens não são surpreendentes quando se pensa sobre isso.
Ela colocou a mão em sua cabeça, entre as orelhas.
– Discutir com os seus sentidos nesse momento é inútil; isso é algo que Charles me ensinou. Haverá uma explicação. Vamos ver o que o apartamento dela nos diz.
Mais alegre – porque Anna tinha tomado o partido dele, e não o de Charles – o irmão lobo voltou à caçada.
Eles chegaram, passo a passo, até o décimo-segundo andar, onde Anna segurou a porta aberta para ele. Não foi difícil localizar o apartamento da garota desaparecida, porque ali, como na frente do edifício, havia policiais e outras pessoas em pé do lado de fora da porta.
A mulher do FBI estava lá, de braços cruzados, e seu rosto estava impassível. Em frente a ela havia um homem de constituição delicada, mais alto do que a mulher do FBI, mas que parecia mais baixo por causa de sua constituição. Seu cabelo era castanho e grisalho nas laterais. Fae – o nariz do irmão lobo podia sentir o cheiro dele. Algum tipo de Fae da água, talvez; ele cheirava como um lago de água doce ao amanhecer.
Ele parecia muito desamparado, esse Fae, embora não houvesse nenhum sentido de timidez nele. O irmão lobo também não foi capaz de obter uma informação completa sobre seu nível de poder. Ele não era especialista em Fae, embora tivesse conhecido muitos. Mas parecia-lhe que a capacidade de se esconder de todos os sentidos do irmão lobo podia significar a mesma coisa tanto entre os Fae como entre os lobisomens. Só Bran conseguia esconder o que ele era, e tão bem que o irmão lobo não podia discernir imediatamente o seu poder.
– Estamos fazendo todo o possível – disse a mulher do FBI. – Não sabemos se esse caso está relacionado com os outros, mas o nosso assassino serial tem matado Fae por muitos anos e sequestra suas presas de forma semelhante a essa. Ninguém vê ou ouve nada, embora o local do rapto seja bem guardado ou bem povoado.
– Minha filha é apenas metade Fae – disse o homem. – E até o oficial Mooney, aqui, me perguntar, ninguém sabia. Ninguém. Não há razão para supor que o assassino serial tenha raptado minha filha antes que seu departamento forense entre lá e veja o que pode encontrar. Eu estive lá e não há sinal de luta. Nós íamos nos encontrar para comemorar seu sucesso em uma audição – ela conquistou um lugar em uma trupe de balé de alto nível – e ela não me deixaria simplesmente esperando. Não sem ligar para cancelar. Se não houver nenhum sinal de luta, então ela conhecia seu sequestrador e o deixou chegar muito perto. Ela era uma atleta treinada e eu a criei para que soubesse se defender. Eu preciso encontrar o livro de endereços dela e você precisa começar a seguir a lista e enviar pessoas para visitar cada pessoa que estiver lá enquanto esperamos que os sequestradores liguem para exigir um resgate. Estamos perdendo tempo.
Esse aí, pensou o irmão lobo, está acostumado a dar ordens em vez de segui-las. Ele poderia ter ficado tentado a dar uma lição nele, se não fosse pelo cheiro de preocupação frenética e terror aflito que o Fae estava disfarçando com ordens tranquilas.
– Se for mesmo nosso assassino serial – disse a mulher do FBI, soando muito mais paciente do que seu cheiro dizia –, então não haverá nada que nossas unidades forenses possam encontrar, e não será ninguém que ela conhece. Eu tenho um... – algo a levou a olhar ao seu redor naquele momento. Provavelmente o palavrão assustado que um dos policiais jovens disse quando notou Anna e o irmão lobo em pé do lado de fora da escada.
A mulher do FBI...
Leslie Fisher – advertiu Anna, porque ela gostava de ver o uso adequado dos nomes.
Para demonstrar que sabia perfeitamente bem do que estava falando, o irmão lobo enviou-lhe uma impressão complexa de dominância tranquila, humana, e um cheiro que era uma combinação de pele, produtos de higiene – e ainda um outro cheiro familiar, indicando que a mulher do FBI tinha um relacionamento de longo prazo com um homem, vários filhos não adultos e dois gatos. Ele estava se exibindo um pouco, porque era preciso ter muita experiência para separar o cheiro de uma pessoa em tantos detalhes.
Anna bateu de leve em sua cabeça com os nós dos dedos.
– Comporte-se – disse-lhe ela, com firmeza. Mas ele sentiu sua risada.
– Aqui estão eles – disse a mulher do FBI, Leslie Fisher. Seus olhos deslizaram sobre ele duas vezes. Ela piscou e então se concentrou na coleira.
Anna sorriu.
– Nós usamos a coleira e a guia porque faz as pessoas se sentirem mais seguras –explicou ela. – Dessa maneira, ninguém faz nada estúpido.
O Fae olhou para o irmão lobo e estendeu a mão para uma espada em seu quadril, que não estava lá – o que pareceu causar-lhe um pouco de desconforto. O irmão lobo transmitiu isso à Anna, de forma que ela soubesse que o Fae os via como uma possível ameaça.
– Anna Smith e Charles Smith, gostaria de lhes apresentar Alistair Beauclaire, um sócio na firma de advocacia Beauclaire, Hutten e Solis. Ele deveria ter encontrado aqui a filha Lizzie Beauclaire, de 22 anos de idade, às onze da noite, para uma comemoração tardia. Mas em algum momento entre sua conversa com ela às seis da tarde e o momento em que chegou aqui dez minutos antes das onze da noite, ela desapareceu.
Embora seu tom de voz fosse calmo, sua linguagem corporal, a maneira como sua mão se movia, de forma que ela pudesse alcançar uma arma, e o aumento de seu pulso disseram ao irmão lobo que a mulher do FBI tinha visto o que ele vira. Ela havia falado mais do que devia a fim de dar a todos algum tempo para se acalmarem. Tudo isso fazia com o irmão lobo a considerasse mais ainda, porque ela não era a vítima de ninguém e era esperta, Leslie Fisher do FBI.
– Senhor – disse Anna –, estamos aqui para ajudar. Além das outras vítimas, esse assassino matou três lobisomens em Boston nesse verão.
O homem esbelto deixou seus olhos passarem de Anna para o irmão lobo, que resistiu ao desejo de mostrar suas presas, pois havia prometido a Charles que tomaria conta de Anna. Provocar uma briga com um Fae podia ser divertido, mas isso não era proteger Anna.
– Vocês dois são lobisomens – disse o Fae.
Anna acenou, concordando.
– Ela recebe muitas visitas?
Ele sacudiu a cabeça.
– Ela passa de seis a oito horas por dia em aulas de balé e praticando. Geralmente ela encontra os amigos em um clube ou restaurante se quiserem sair. A maioria dos amigos dela são bailarinos, também, o que significa que são pobres. Acho que ela fica envergonhada de ter um alto padrão de vida. A mãe dela mora na Flórida com o marido e os dois meios-irmãos mais jovens de Lizzie.
– Ótimo. Isso ajuda muito. Então, quem esteve no apartamento hoje à noite?
Leslie ergueu a mão.
– Eu – disse ela, apontando também para o Fae. – Ele também – continuou ela, olhando ao seu redor. – Ei, Moon. Mooney, você ainda está por aí?
Um dos policiais no fundo do corredor saiu de trás de vários outros e ergueu a mão.
– Bem aqui – disse ele.
– Se isso for verdade, então vai ajudar bastante quando formos verificar quem esteve lá. Mas Charles precisa sentir o cheiro de todos vocês, de forma a poder ignorar sua presença. Ele não vai machucá-los; apenas fiquem imóveis.
Anna deixou cair a guia. O irmão lobo se aproximou do policial com as orelhas levantadas e o rabo balançando suavemente; mesmo assim o homem enrijeceu e ficou pálido. Isso não era problema. Na verdade, era até divertido. Não tão divertido quanto ver o homem correr também, mas o irmão lobo aproveitava todos os seus prazeres, onde quer que os encontrasse. Ainda assim, umas poucas fungadas a alguns metros de distância tinham sido o suficiente.
Quando havia identificado o cheiro do policial, ele se aproximou do Fae – que manteve um olhar cauteloso sobre ele, mas não objetou de outra forma. Curiosamente, Leslie Fisher não recuou, tampouco; apenas a elevação do pulso mostrava seu receio. Ele gostava dela cada vez mais.
O irmão lobo olhou para sua companheira.
– Alguém mais que conhecemos foi lá hoje à noite? – perguntou Anna.
– Não – disse Leslie. – Assim que cheguei aqui, lacrei o quarto.
– Se você puder nos deixar entrar agora – disse Anna, balançando a cabeça em direção à porta do apartamento.
O irmão lobo esperou até que eles estivessem fechados no apartamento antes de começar a trabalhar. Farejar um quarto à procura de pistas era um truque velho, mas não exigia menos concentração do que a primeira vez em que tinha feito isso – ele apenas fazia um trabalho melhor agora. Era uma questão de desconsiderar cheiros antigos ou obsoletos e então compará-los com aqueles que ele havia cheirado no corredor e ver o que restava.
O cheiro da mulher que ele havia sentido no corredor era o mesmo que ele havia encontrado na escadaria. Com exceção do cheiro do pai dela, quando o irmão lobo saiu da sala principal não havia o cheiro de ninguém que tivesse estado lá nos últimos seis meses. O cheiro da mulher era o único cheiro em seu quarto.
Ela era uma dançarina, como disse o pai dela, disse-lhe Charles. Olhe nos armários. Um para roupas do dia a dia e para festas. O outro cheio de roupas para treinar e alguns vestidos para apresentações. Concursos de dança. Achei que o pai dela havia dito que ela dançava balé.
O irmão lobo considerou a questão. O primeiro conjunto de roupas é sua camuflagem, disse ele. Era ótimo que Charles tivesse decidido participar em vez de apenas observar. As roupas nesse armário são um disfarce para ajudá-la a se encaixar na multidão e se parecer com qualquer outra pessoa. Elas cheiram a perfume – ela até escondeu o seu cheiro quando as usou. O segundo conjunto de roupas mostra quem ela realmente é. Elas cheiram a longas horas de trabalho; cheiram a triunfo e dor, sangue e suor.
O irmão lobo ficou mais interessado no quarto dela. Para ele, ela era uma presa tanto quanto aquele que eles estavam caçando. Talvez algo que ele pudesse aprender sobre ela fosse ajudar em sua busca.
Na parede havia algumas fotos de dançarinos emolduradas, e oito delas eram fotos em preto-e-branco, dispostas em círculo. Fred Astaire e Ginger Rogers imortalizados no momento em que Ginger estava no ar, com um sorriso enorme no rosto e Fred, com um sorriso malicioso. Outra foto em preto-e-branco era da cena de Dirty Dancing – Ritmo quente, na qual os atores principais estavam apoiados nas mãos e nos joelhos, olhando avidamente um para o outro – embora a tensão de sua postura dissesse ao observador que eles ainda estavam no meio de uma dança. Havia fotos de uma série de outros dançarinos que ele não conhecia, principalmente casais em uma grande variedade de tipos de danças: havia desde danças de salão, passando por dança tribal, até dança moderna. No centro do círculo de fotos havia uma imagem do tamanho de um pôster que dominava o quarto.
O fotógrafo havia capturado a imagem do dançarino em pleno voo, espalhado pela tela formando um gracioso Y. Seus pés no canto inferior esquerdo estavam ligeiramente fora de foco, dando à foto um senso de vivacidade e fazendo com que a imobilidade do resto fosse ainda mais profunda. O braço esquerdo do bailarino, mais distante do espectador, estava estendido em direção ao canto superior direito, e seu braço direito, mais próximo do espectador, esticado em direção ao canto superior esquerdo. Sua cabeça estava inclinada, e a linha de seu corpo era tão pura e reta que ele poderia estar balançando na ponta da corda de um navio pirata. Seus músculos estavam flexionados e retesados e, ainda assim, ele parecia dar a impressão de estar relaxado, em paz.
Diferentemente dos outros quadros, esse era colorido, mas com um colorido leve, como se alguém o tivesse preenchido com tons de marrom. A camisa branca e folgada que o dançarino usava parecia ser cor de creme; sua meia-calça de balé era cinza-claro e a cor do fundo era de um marrom mais escuro, mas não preto. Uma imagem bonita, calorosa.
Rudolf Nureyev – disse Charles.
– Irmão lobo? – chamou Anna, de algum lugar próximo. – Charles? Podem vir aqui por um momento? Acho que senti o cheiro de algo.
Ela estava em pé no corredor, ao lado do banheiro, com um olhar pensativo em seu rosto.
– O que você está cheirando? – perguntou Anna, e quando o irmão lobo farejou, deu um passo à frente e sentiu aquilo também.
Terror – respondeu ele, e tentou novamente, fechando os olhos para calar os outros sentidos. Sangue. O sangue dela. E... um rosnado baixo subiu de sua garganta... E o dele.
Ela havia lutado com seu agressor, a pequena dançarina havia lutado. Era apenas uma pequena gota de sangue, mas era o suficiente.
Ele a lambeu – sentindo o cheiro aumentar logo que sua língua o tocou, quebrando a magia de ocultação que havia tentado esconder o pouco do homem que tinha vindo ali para fazer o mal. Um homem, mas não humano, ou não totalmente humano. O sabor amargo da magia no sangue fez sua língua formigar. O irmão lobo reconheceria esse homem quando o cheirasse novamente.
Mestiço de Fae, disse ele.
– Nós provavelmente deveríamos ter deixado o sangue para os laboratórios do FBI – disse Anna, com um tom de voz um pouco pesaroso.
Minha caçada, assegurou o irmão lobo, embora Charles concordasse com Anna. Minhas regras. Essa última era tanto para Charles quanto para Anna. Ele olhou para a porta fechada do banheiro. Se ele a estivesse perseguindo, poderia ter esperado por ela no banheiro. Você poderia abrir o banheiro para que eu possa procurá-lo lá?
Anna enrolou a mão na ponta da camisa e abriu a porta. A princípio ele pensou que não havia nada para encontrar, que o sequestrador da mulher havia esperado por ela em outro lugar.
Então, ele apanhou um leve rastro de excitação, algo que ele mais sentiu do que cheirou, e uma pitada de algo que trouxe Charles à frente, atraído por algo que ele entendia melhor do que o lobo: espíritos.
Algumas casas tinham espíritos e outras não; nem ele e nem Charles sabiam por que era assim. Espíritos não eram fantasmas; eles eram a consciência de coisas que o pai de Charles não acreditava que estivessem vivas: árvores e água, pedras e terra. Casas e apartamentos – alguns deles, pelo menos.
Esse espírito era fraco e tímido e era mais adequado que o filho da xamã lidasse com ele, e não o lobo.
Mostre-me, disse Charles ao espírito da casa. Mostre-me quem esperou aqui.
O condomínio era novo e não tinha abrigado gerações de crianças – por isso o espírito era fraco. Tudo o que ele era capaz de dar era uma impressão de paciência e grande tamanho, muito maior do que a própria casa à qual pertencia. Cheiro de limpo – não, isso estava errado; ele cheirava a produtos de limpeza. Ele carregava uma... algo.
Algo? Charles foi paciente com ele. Uma arma? O irmão lobo forneceu o cheiro de um revólver, óleo, pólvora, metal.
Negação rápida e uma resposta, uma resposta mais sensorial do que em palavras: algo suave, principalmente têxtil, com apenas um toque de metal.
Uma bolsa, como uma mochila de ginástica, pensou Charles, imaginando tal mochila com cuidado em sua cabeça; o espírito quase pulou de alegria, fornecendo mais e mais informações sobre a mochila – como se ao dar um nome ao objeto Charles tivesse tirado uma rolha da garrafa do que o espírito sabia.
Ele trouxe uma mochila, disse o irmão lobo – triunfante, porque ele estava certo sobre a escada. Uma grande mochila de lona, e colocou nossa mulher desaparecida dentro dela. Ele a carregou pelas escadas, e é por isso que só pude sentir seu cheiro pelas paredes.
– E ele, não tem cheiro? – perguntou Anna, depois de ter apreendido algo do que ele havia encontrado. Sua voz fez o tímido espírito fugir.
Ele escondeu o cheiro dele com magia – parecida um pouco com magia Fae, disse-lhe Charles.
O irmão lobo pensou no gosto amargo que ainda permanecia em sua língua por causa do sangue do sequestrador. Também se parece com magia de bruxa, magia negra e encharcada de sangue.
Charles concordou. Parece menos... civilizada do que a magia Fae com a qual estou familiarizado.
– Uma bruxa conseguiria carregar uma mulher adulta por doze lances de escadas? – perguntou Anna.
Talvez não diretamente, respondeu Charles, depois de um momento de reflexão, mas há maneiras de fazer isso.
– No início da caçada – disse Anna.
Exatamente, concordou Charles.
– Quem nós conhecemos que sabe bastante sobre os Fae e sua magia? – perguntou Anna. – Será que Bran sabe?
Nós temos uma fonte melhor, sugeriu o irmão lobo. O pai dela é muito velho e poderoso.
– Ele estendeu a mão em direção a uma espada – disse Anna. – É por isso que você sabe que ele é muito velho?
O irmão lobo forneceu a lembrança do cheiro de criaturas que tinham mais do que alguns séculos: uma fragrância leve que ficava mais forte.
Antigo, explicou Charles.
E então eles mostraram a ela qual era o cheiro do poder entre os Fae: começava com algo mais fraco e aumentava, até o ponto em que Charles disse a ela: isso é a força. Mas eles são criaturas sutis, os Fae. Eles não podem adicionar nada ao seu cheiro, porque, em sua maioria, não podem senti-lo. No entanto, quando eles escondem o que são, às vezes também encobrem o cheiro que sentimos deles. Esse aqui cheira como se fosse muito antigo, mas tem um cheiro tão fraco quanto possível para alguém que ainda cheira como Fae.
– Então, um Fae provavelmente não irá cheirar como se fosse mais poderoso ou antigo do que é – disse Anna –, mas pode cheirar como se fosse mais fraco. Como Bran, que gosta de esconder o que ele é.
O irmão lobo bufou e deu um espirro afirmativo. Charles acrescentou: acho que pode ser uma boa coisa discutir o assunto com o pai de Lizzie – quando não houver humanos presentes.
– Discutir o quanto ele é poderoso? – perguntou sua companheira, torcendo um canto de sua boca. Anna sabia o que Charles queria dizer – mas tinha um senso de humor bobo, às vezes. O irmão lobo gostava dessa característica de Anna. O estado de espírito de Charles, no entanto, era mais sério e ele tratou a pergunta como se ela realmente quisesse dizer isso.
Não. Discutir com ele que tipo de Fae se encaixaria nos parâmetros que nos foram dados para esse assassino serial.
O irmão lobo espirrou para que ela soubesse que ele a achava engraçada.
– Vocês descobriram alguma coisa? – perguntou Leslie, quando Anna e Charles saíram do apartamento.
Anna olhou para os policiais especialistas em tecnologia que os aguardavam e se perguntou se era o assassino serial ou algo em relação ao pai da garota desaparecida que havia atraído todos aqueles figurões para um caso de pessoa desaparecida onde a vítima desaparecera há apenas algumas horas.
– Sim – disse Anna, respondendo à pergunta da agente do FBI. – Quem a levou é Fae... ou tem acesso à magia Fae. Ele se escondeu no banheiro e esperou até que ela viesse a ele.
Após gesticular para que a equipe forense que esperava entrasse no apartamento, Leslie tirou um caderno espiral pequeno e começou a escrever as informações nele. Ela não olhou para cima quando disse:
– O que mais vocês descobriram?
– Ele passou despercebido. Um Fae puro-sangue poderia ter vindo com a aparência de qualquer outra pessoa, provavelmente alguém que realmente vive aqui – disse-lhe Anna. Era especulação, mas era o que ela teria feito, se pudesse se esconder da forma como os Fae se escondiam. Eles tinham muitas variantes da magia do tipo “não olhe para mim”, mais fortes do que a magia de alcateia, mas o glamour, aquela aura mística que todos os Fae compartilhavam, era mais do que isso – uma ilusão muito forte. – Seja lá como foi que ele entrou, ele saiu com sua presa dentro de uma mochila de ginástica e levou-a escadas abaixo.
Leslie olhou para cima ao ouvir isso.
– Ele a carregou para baixo? Doze andares de escadas?
– Sem arrastá-la – disse Anna, colocando um dedo na parede do corredor aproximadamente na altura onde o irmão lobo havia detectado o cheiro. Se ele a tivesse carregado com os braços estendidos... ele era mais alto do que um ser humano. Anna não disse isso, no entanto; apenas apresentou os fatos a Leslie.
– O nosso autor do crime não deixa rastro, por isso ficamos muito confusos a princípio.
Ela olhou para o pai da mulher desaparecida, que estava imóvel, com o olhar direcionado ao chão.
– Como ele não deixa rastro, pode ser alguém que já esteve no apartamento antes, alguém que ela conhecia, mas não tivemos essa sensação. Ele a pegou de surpresa no corredor em frente ao banheiro. Ela lutou contra ele, lutou muito. Há uma marca funda na parede ao lado da porta do banheiro. Mas ela não era páreo para ele.
Ele usou algum tipo de droga, disse Charles. Eu peguei um traço dela no banheiro.
– O que o lobo acabou de lhe dizer? – perguntou Alistair Beauclaire. Sua voz devia ser uma grande vantagem em uma sala de tribunal: era fria, firme e bela. Se ela fosse humana, e não tivesse os seus sentidos para alertá-la, Anna não teria percebido que as palavras que ela dissera o haviam atingido com força – ele tinha esperança que fosse alguém que ele pudesse rastrear.
– O sequestrador a drogou – disse Anna, olhando para Charles. – Você sabe o que ele deu a ela?
O cheiro parecia ser de ketamina – disse Charles. Mas essa área não é minha especialidade.
Anna relatou sua resposta e a advertência aos seus ouvintes enquanto pensava em como fazer para encontrar-se com o pai de Lizzie a sós para discutir certos assuntos longe de ouvidos humanos.
– Lamento não podermos ajudar mais – disse Anna. – Como vocês sabem, temos um interesse particular nesse caso, e ninguém quer outra morte. Se ao menos soubéssemos mais sobre o Fae que a levou, ou o que exatamente o assassino faz com suas vítimas – ela fez uma pausa e continuou, delicadamente. – Ou são “assassinos”?
A agente Fisher deu-lhe um olhar avaliador, enquanto o oficial Mooney, o único policial presente na cena, limpou a garganta de forma áspera. Beauclaire olhou para ela com interesse.
Anna sustentou seu olhar e disse, sem ênfase especial:
– Vamos encontrá-lo, mas quanto mais soubermos, mais rápido faremos isso – Anna se virou para a agente do FBI e continuou. – Se você precisar entrar em contato conosco e eu não atender, você pode tentar o telefone de Charles.
Ela disse o número, que tinha um código de área de Boston, porque Bran achava que anunciar que eles eram de Montana era um erro.
O rosto de Leslie Fisher mostrou-se especulativo, antes de voltar a ficar neutro.
Ela havia percebido que o deslize de Anna foi proposital, mas não fez comentários em voz alta.
– Vocês podem ir para casa – disse Fisher. – Se vocês pensarem em alguma outra coisa, telefonem para mim ou para o agente Goldstein.
Seis
Anna trancou a porta e tirou a coleira e a guia de Charles, colocando-as sobre uma pequena mesa encostada na parede.
– Se o pai dela é um Fae antigo e poderoso, por que ele não consegue encontrá-la? – perguntou Anna.
Talvez o seu poder não seja nessa direção, respondeu o irmão lobo. Ou talvez algo o esteja bloqueando. Eu não sei muito sobre magia Fae, além do fato de que nenhuma magia tem respostas para tudo. É uma ferramenta. Um martelo é uma boa ferramenta, mas não é útil para remover parafusos.
– Certo. É uma boa resposta – disse Anna, e em seguida tirou os sapatos e penteou o cabelo com os dedos. Estava cansada. – Você pode me dizer qual o problema com Charles?
O irmão lobo olhou para ela e não disse nada.
– Achei que não diria – disse ela. – Charles, como posso ajudá-lo se você não me deixa entrar?
Você não pode ajudar, respondeu Charles.
Ela arquejou.
– Você acabou de mentir para mim?
Ela não tinha certeza, mas aquilo tampouco se parecia com a verdade.
O irmão lobo desviou o olhar. Charles não vai deixar você ajudar.
– Tudo bem – disse ela. – Veja só. Eu menti para você, também.
Não estava tudo bem, nem mesmo perto disso.
Devemos estar em forma humana quando o Lorde Fae chegar, disse o irmão lobo, finalmente.
Anna não sabia o que dizer; por isso, não disse nada. Depois de um momento, Charles começou a mudar de volta para a forma humana. Não levaria muito tempo – cinco ou dez minutos. Ter o sangue de um xamã Flathead fazia com que Charles levasse um tempo muito menor para se transformar do que qualquer outro lobo que ela já conhecera.
A transformação doía, e doía mais quando isso era feito duas vezes em apenas algumas horas – e Charles não estava exatamente bem quando se transformara em lobo dessa última vez. Anna podia sentir a dor que ele sentia, mas fracamente, porque ele nunca a deixava sentir tudo se pudesse evitar.
Era melhor deixá-lo sozinho por alguns minutos. Era melhor evitar a tentação de começar uma briga de verdade, especialmente quando podiam aparecer visitantes a qualquer momento. E eles não estavam de volta à estaca zero, não mesmo. O vínculo entre eles estava aberto – um testemunho de que Charles estava melhor do que antes.
Eram quatro da manhã. Anna pensou em tomar banho e se vestir – ou escovar os dentes e voltar a dormir. Porém, ela não chegou até o banheiro. A cama ainda estava amarrotada, exatamente como ela a havia deixado mais cedo, e convidativa demais para resistir.
Ela se arrastou sob os cobertores e enterrou a cabeça no travesseiro de Charles. Anna sentiu mais do que ouviu quando Charles entrou no quarto. Ele parou ao lado da cama, acariciando seu quadril levemente, e algo dentro dela relaxou.
– Não fique muito confortável, Bela Adormecida – grunhiu ele, provocando-a, parecendo o antigo Charles. Ele podia não ter aceitado sua ajuda, mas estava fazendo progresso assim mesmo, apesar de sua prévia decisão de ceder o controle ao irmão lobo. – Teremos companhia mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo. Você fez uma oferta óbvia ao Fae e ele sabe que você vai lhe dar as informações que o FBI não fornecerá. Ele não vai esperar até uma hora civilizada do dia para vir nos visitar. Duvido que ele consiga dormir, enquanto o destino de sua filha é incerto – eu não conseguiria.
Anna esperou até ouvir o barulho do chuveiro antes de tirar a cabeça de sob os cobertores. Não. Charles não descansaria enquanto um filho seu estivesse em perigo. Se ele tivesse filhos.
Lobisomens fêmeas não eram capazes de levar a gravidez a termo. A lua as chamava, elas se transformavam em lobos – e a violência da transformação era fatal para a criança em formação. Ela perguntara a Samuel, que era médico, sobre a possibilidade de permanecer na forma de lobo até o final da gestação. Ele empalideceu e balançou a cabeça.
– Quanto mais tempo você permanecer como lobo, menos a parte humana irá dominar. Se você ficar como lobo por muito tempo, não há mais volta.
– Eu sou um lobo Ômega – dissera Anna. – Meu lobo é diferente. Nós poderíamos tentar.
– Isso sempre termina mal – respondera asperamente o irmão de seu companheiro. – Por favor, não fale com Charles ou meu pai sobre isso. A última vez foi brutal. Havia uma mulher... Ela conseguiu esconder de Bran até que fosse tarde demais. Um lobisomem não é um lobo que vai proteger e cuidar dos seus filhotes, Anna. Quando finalmente rastreamos essa mulher, Charles teve que matá-la porque não havia mais nada de humano nela, apenas uma fera. Ele foi atrás dela na caverna onde ela fez sua toca. Ela havia dado à luz, sim. E então matou o bebê.
Os olhos de Samuel estavam vermelhos e injetados, então ela mudou de assunto. Mas Anna tinha seus próprios pensamentos sobre o assunto – o irmão lobo não era uma criatura irracional que iria comer sua cria e ela tinha certeza de que seu próprio lobo era ainda mais gentil. Mas ainda não havia necessidade de tomar medidas desesperadas.
Os lobisomens já haviam declarado sua existência para o mundo e não havia mais necessidade de se esconder. Havia opções para casais que não podiam ter filhos biológicos por uma razão ou outra e que também poderiam funcionar para lobisomens.
Agora, com a opinião pública tão ambivalente sobre os lobisomens, seria difícil tentar usar uma barriga de aluguel para carregar o filho deles. Mas eles podiam se dar ao luxo de esperar um pouco até que a opinião pública mudasse.
– Até a opinião pública mudar sobre o quê? – perguntou Charles, enquanto abria a porta do banheiro para deixar o vapor sair. Ele havia enrolado uma toalha em sua cintura e estava secando o longo cabelo com outra.
Anna não precisou responder porque alguém tocou a campainha. O Fae deveria telefonar antes; ela havia deixado o número de Charles. Aparentemente, ele decidira aparecer sem ser convidado.
Anna não tinha tirado a roupa, por isso passou os dedos pelo cabelo e se dirigiu para a porta. Charles ficou na frente dela e deixou a toalha na qual ele estava enrolado cair no chão.
– Não – disse ele.
Ela revirou os olhos, mas disse:
– Tudo bem. Eu espero você.
Ele se vestiu rapidamente, mas aparentemente sem se apressar enquanto ela o observava. Observar Charles se vestir e despir era uma das coisas que ela mais gostava de fazer – melhor do que embrulhar e desembrulhar presentes de Natal.
Lobisomens eram, em geral, jovens, saudáveis e musculosos – características atraentes, em geral. Mas não eram como Charles. Seus ombros eram largos, e sua pele escura tinha um brilho sedoso que convidava seus dedos a tocá-la. Seu longo cabelo negro como a meia-noite cheirava a...
– Se você não parar com isso – disse ele suavemente, embora pausasse com a camisa sobre os ombros para que ela pudesse ver a maneira como os músculos lisos das costas deslizavam para baixo nos jeans bem ajustados ao corpo – nosso cavalheiro pode ter que esperar um pouco mais.
Anna sorriu e estendeu a mão para correr um dedo por sua espinha dorsal.
Ela apertou o rosto contra a camiseta de algodão e cheirou.
– Senti sua falta – confessou ela.
– Sim – disse ele, com uma voz suave – que ficou ainda mais suave quando ele continuou. – Eu ainda não estou bem.
– Bem ou mal – disse-lhe Anna, sua voz baixando de tom até virar um rosnado –, você é meu. Melhor não se esquecer disso.
Charles riu – um som pequeno e feliz.
– Tudo bem. Eu me rendo. Apenas não venha atrás de mim com aquele seu rolo de macarrão.
Anna puxou a camisa dele para baixo e alisou-a.
– Então, não faça nada para merecer isso – disse ela, dando-lhe um tapa de leve no ombro. – Isso é por desrespeitar o rolo de macarrão da minha avó.
Ele virou-se para encará-la, o cabelo molhado em um emaranhado em torno de seus ombros. Com os olhos sérios, embora sua boca estivesse curvada, Charles disse:
– Eu nunca iria desrespeitar o rolo de macarrão de sua avó. Sua antiga alcateia fez tudo o que podia para transformá-la em uma vítima e, quando aquele lobo louco avançou na minha direção, você ainda pegou o rolo para me defender, mesmo se sentindo aterrorizada na presença dele. Acho que é a coisa mais corajosa que já vi. E foi, possivelmente, a única vez que alguém tentou me defender desde que cheguei à idade adulta.
Ele tocou seu nariz, inclinou-se e...
A campainha da porta soou novamente, um zumbido prolongado, como se alguém estivesse ficando impaciente.
Com os olhos semifechados, Charles olhou para a porta da frente como ele teria olhado para um urso pardo ou um guaxinim que tivesse interferido com sua caçada.
– Eu também te amo – murmurou Anna, embora ela estivesse tão irritada com a interrupção quanto Charles.
– Vamos ver o que o pai de Lizzie tem a dizer.
A campainha tocou novamente.
Charles respirou fundo, correu os dedos pelo cabelo molhado para se livrar do pior dos emaranhados, olhou-se no espelho sobre a parede – e então congelou.
– Charles?
Seu lado do vínculo fechou-se tão rapidamente que Anna não pôde evitar um arquejo, mas não tão rapidamente que ela não percebesse que a motivação dele era singular e enorme: ele queria protegê-la. Charles não olhou para ela, e quando a campainha soou novamente, ele saiu apressadamente do quarto.
Ela ficou parada onde ele ficara, na frente do espelho, e tentou ver o que o havia perturbado tanto. Seus ouvidos identificaram vozes de homens e de uma mulher. O espelho era chanfrado, tinha uma moldura simples, mas bem-acabada, e nele Anna viu seu próprio reflexo e as paredes da sala atrás dela. Havia uma pintura a óleo original de uma montanha na parede à sua direita, ao lado da porta do banheiro. Logo atrás dela, cortinas de rendas cor de creme estavam penduradas sobre a janela, que ainda estava escura com o reinado da noite.
O que Charles viu no espelho e por que queria protegê-la disso?
Quando ela entrou na sala de estar, Alistair Beauclaire já estava dentro do apartamento – bem como os agentes especiais Fisher e Goldstein.
– Eu pensei – dizia Beauclaire – que pouparíamos tempo se nos encontrássemos e colocássemos todas as cartas na mesa. A vida da minha filha é mais importante do que a política e os segredos.
Essa atitude, vinda de um Fae, era chocante. Anna não tinha muita experiência com os Fae, mas mesmo ela sabia que eles nunca davam um pingo de informação a ninguém se pudessem evitar fazê-lo.
Beauclaire olhou para Charles; ele precisou olhar para cima.
– Eu sei quem você é – disse o Fae, dirigindo-se a Charles. – Você pode ter uma chance de encontrá-la, mas não se todos estiverem tropeçando em segredos que não podemos revelar.
Ele olhou para os agentes do FBI para incluí-los na conversa.
– Se vocês esconderem algo que nos permitiria encontrar Elizabeth nem que fosse um minuto mais cedo, vocês vão se arrepender. Vamos falar nessa manhã sobre coisas que as pessoas de fora não sabem, confiando que vocês usarão essas informações para capturar o assassino.
Os olhos de Leslie se apertaram com a ameaça, mas Goldstein absorveu-a sem esboçar uma reação, nem mesmo um aumento nos batimentos cardíacos: ele só parecia cansado e mais frágil do que da última vez em que Anna o tinha visto.
– Eu garanto a você – disse Goldstein, dirigindo-se a Beauclaire – que a nossa missão é assegurar que sua filha seja encontrada rapidamente. Se não concordássemos com você, não estaríamos aqui. Não importa que favores você tivesse cobrado.
Anna perguntou-se como o FBI ou Beauclaire tinha descoberto onde Charles e ela estavam hospedados. O condomínio pertencia a uma pequena empresa que por sua vez pertencia integralmente a uma empresa maior, e assim por diante, ad infinitum. A coisa toda pertencia à Aspen Creek, Inc., que era o Marrok.
Aparecer sem aviso prévio era um movimento que queria demonstrar poder, como se dissessem “você não pode se esconder de nós”. Parecia um pouco agressivo demais para o FBI: Charles e Anna não eram suspeitos. Anna pensou que era mais provável que Beauclaire fosse o responsável pela visita na madrugada, procurando estabelecer sua dominância com a invasão do território sem aviso prévio – assumindo a posição principal na caçada por sua filha. Ela podia entender o que ele estava tentando fazer, mas isso não iria funcionar com Charles, embora pudesse tornar o seu companheiro mais perigoso se ele decidisse ficar ofendido. A face pública de Charles era muito boa para que ela pudesse interpretá-la agora, o que lhe dizia que ele estava se sentindo um monte de coisas sobre as quais ele não queria que ela soubesse.
Charles havia fechado o vínculo entre eles para protegê-la.
Anna tentou ficar zangada com isso, mas não precisava ficar preocupada ou magoada pois Charles era um lobo dominante e parte disso era cuidar do que era dele. Sua esposa, sua companheira, liderava essa lista. Assim, Charles iria protegê-la de tudo o que ele pensasse que iria atacá-la através de seu vínculo.
Mas ele havia esquecido algo no caminho. Ele era dela. Dela.
Ele estava se machucando para protegê-la e ela ia colocar um ponto final nisso, mas não agora. Não em público. Um bom caçador é paciente.
Charles olhou de relance para Anna e ela estreitou os olhos para lhe dizer que a raiva que ele sentia emanando dela era destinada a ele. Charles levantou uma sobrancelha e ela ergueu o queixo.
Redirecionando sua atenção para os intrusos, Charles silenciosamente fez um gesto em direção ao grande sofá situado na frente da TV. Ele puxou uma cadeira de madeira para longe da mesa de jantar, para que ele mesmo sentasse, e colocou-a para ficar frente a frente com eles do outro lado da mesinha de centro.
Os agentes do FBI sentaram-se à beira do sofá. Goldstein parecia mais cansado do que interessado, mas Leslie Fisher observava Charles atentamente, sem olhar nos olhos dele, sem desafiá-lo, apenas catalogando-o. Tal olhar de interesse intenção teria deixado Anna tensa, exceto que não havia paixão no olhar de Leslie. Era mais um “observar o sujeito em seu hábitat natural” do que um olhar que diz “ele é realmente sexy”.
Beauclaire, por sua vez, afundou-se no material macio do sofá como se o pensamento de que isso o impediria de se levantar se ele tivesse que se mover rapidamente nunca lhe tivesse ocorrido. Não tenho medo de ninguém aqui, dizia sua postura corporal. A postura de Charles – relaxada, de braços levemente cruzados, com o queixo ligeiramente inclinado, dizia: você está me aborrecendo; lute e morra – ou recue.
Anna pegou outra das cadeiras de madeira, colocando-a ao lado de Charles, e em seguida sentou-se.
– Tudo bem – disse ela, para interromper o festival da testosterona antes que a coisa ficasse feia. – Quem vai ser o primeiro a falar?
Charles olhou para Beauclaire.
– Os Fae sabem que há alguém caçando seu povo desde os anos 1980?
– Estamos aqui para compartilhar informações – disse Beauclaire, abrindo sua mão magnanimamente. – Fico feliz em começar. Sim, claro que sabíamos. Mas ele só caçou os ninguéns, os mestiços, os Fae solitários. Ninguém com uma família para protegê-los. Ninguém com poder verdadeiro.
Sua voz era fria.
– Ninguém que valesse a pena colocar-se em risco para salvar – disse Charles.
Beauclaire deu a Charles um olhar educado que era tão claro como qualquer adolescente levantando o dedo do meio.
– Nós não somos uma alcateia. Não somos todos bons amigos. Na maior parte das vezes, somos inimigos educados. Quando um Fae morre, se não for um Fae com poder – que são valiosos para nós, já que há tão poucos sobrando – e se não for alguém que tem família ou aliados com poder, a maioria dos outros Fae irá olhar isso com um suspiro de alívio. Primeiro, porque não foram eles que morreram. Segundo, porque não causou dano a mais ninguém – e esse Fae já não estará mais livre para fazer alianças com alguém que pode ser seu inimigo.
Sua voz ficou mais profunda na última frase.
– Isso incomoda você – disse Leslie.
Anna gostava de pessoas competentes. Poucos seres humanos eram tão bons em interpretar os outros como os lobos eram. Leslie era muito boa para ser capaz de “ler” Beauclaire tão bem.
Beauclaire olhou para a agente, começou a dizer algo, hesitou e, em seguida, disse:
– Sim, agente Fisher, incomoda-me que tenha sido permitido que um assassino continuasse sequestrando aqueles que ele escolheu por quase meio século. Se eu tivesse tomado conhecimento disso, teria feito algo – e isso provavelmente foi a razão pela qual eu não fui informado. Um erro que já tomei providências para corrigir. O que deveria ter sido, nesse caso, é suplantado por aquilo que é: um assassino que tortura suas vítimas antes de matá-las está com a minha filha.
– Você sabe quem ou o que estamos caçando, Sr. Beauclaire? – perguntou Goldstein. – É um Fae?
– Sim. Eu sei que tipo de Fae poderia entrar em um edifício sem deixar um rastro de cheiro que um lobisomem poderia seguir e se esconder de forma que as pessoas que passassem por ele não pudessem perceber que ele estava lá.
– É incomum – disse Anna. – A maior parte da magia de glamour não funciona com cheiros.
– Você não pode esconder o que não percebe – concordou Beauclaire. – A maioria dos Fae que podem seguir um rastro de cheiro tão bem quanto um lobisomem têm a mente de uma fera – como o gigante em João e o pé de feijão. Aqueles Fae não conseguiram esconder-se dos cristãos que carregavam o ferro frio, expulsando-nos de nossas casas, então a maioria deles morreu. Mas alguns, capazes de perceber e esconder seu cheiro, sobreviveram. Entre aqueles que têm essas habilidades, o único que também seria forte o suficiente para tirar a minha filha de sua casa dentro de uma sacola e ser confundido com alguém carregando roupa é um lorde cornudo.
Goldstein estreitou os olhos.
– O antigo termo para um homem que é traído? Não é isso que você quer dizer.
– Cornudo – disse Charles. – Ele quer dizer galhada, como um cervo.
Beauclaire acenou.
– Sim.
– Herne, o Caçador – sugeriu Charles.
– Como Herne – concordou Beauclaire. – Nunca houve muitos deles, menos do que uns poucos, que eu saiba. O último deste lado do Atlântico foi morto em 1981, atropelado por um carro em Vermont. O motorista pensou que havia matado um cervo muito grande, mas o acidente foi testemunhado por um de nós, que conseguiu ver o Fae dentro da pele do cervo. Quando ninguém estava olhando, roubamos o corpo.
– Você acha que há outro? – perguntou Leslie.
O Fae assentiu.
– Isso é o que as evidências sugerem.
– Se o assassino é Fae, então por que ele não começou a caçar suas vítimas Fae antes que vocês tornassem sua existência pública? – perguntou Anna.
O fato de o UNSUB ser um Fae explicaria por que ele ainda estava ativo após tantos anos e por que podia capturar um lobisomem sem ninguém perceber. Mas isso não explicava por que ele começara a considerar os Fae como alvo somente após esses terem vindo a público e admitirem sua existência.
– Eu não sou o assassino para conhecer suas motivações, Sra. Smith – disse Beauclaire.
Ele mastigou o “Smith”, para mostrar que sabia qual era seu nome verdadeiro – ainda disputando o lugar de dominância na sala.
– Coincidências acontecem.
– Me chame de Anna – disse ela, em uma voz amigável. – A maioria das pessoas me chama assim.
Beauclaire olhou para ela por um momento. Charles rosnou e o Fae tirou os olhos de cima dela, e então o Fae franziu a testa em irritação por ter perdido a vantagem.
Mas Anna pôde sentir toda a atmosfera da sala se iluminar quando a luta pela dominância foi perdida e ganha.
Beauclaire curvou a cabeça para Charles e depois sorriu para Anna; ela achou que nunca tinha visto uma expressão tão triste em sua vida.
Nesse olhar, ela entendeu o que ele estava fazendo e por que – Beauclaire achava que sua filha estava perdida. Ele não pensava assim anteriormente, não quando eles estavam no apartamento da filha dele – mas algo fez com que ele mudasse de ideia, talvez o fato de que o assassino era Fae. Ele estava caçando o assassino de sua filha agora, não tentando salvá-la. Talvez por isso havia cedido a posição de dominância para Charles tão facilmente.
– Coincidências – admitiu Beauclaire – são altamente superestimadas. Tenho uma explicação alternativa sobre como um Fae poderia não saber o que era até que soubesse que os Fae existiam.
Ele olhou em volta da sala, mas Anna não sabia o que ele estava procurando.
– No auge da era vitoriana – disse finalmente Beauclaire, em uma voz calma e baixa que desmentia o que o nariz de Anna lhe dizia –, quando os cavalos de ferro cruzavam a Europa para lá e para cá, varias coisas se tornaram óbvias. Não havia mais lugar para os Fae no Velho Mundo – e havia somente alguns de nós. De 1908 até alguns anos atrás, era política dos Lordes Cinzentos, aqueles que governam os Fae, encontrar aqueles escassos mas úteis membros de nossa raça e forçá-los a se casarem e cruzarem com os humanos, já que os humanos procriam muito mais rapidamente do que nós.
Anna sabia sobre isso, mas ela não havia percebido por quanto tempo isso tinha acontecido. Olhando para o rosto de Leslie, Anna tinha certeza de que a agente do FBI não sabia sobre a política de cruzamentos. Isso era interessante, porque seu rosto não havia mudado em nada quando Beauclaire tinha mencionado os Lordes Cinzentos, o que também era um grande segredo.
Goldstein poderia estar ouvindo a previsão do tempo, com base nas mudanças em seu rosto. Era impossível dizer o que ele sabia ou não sabia sobre os Fae.
– Acreditava-se – continuou Beauclaire – que os seres humanos eram de linhagens mais fracas e que o sangue Fae iria prevalecer – e os humanos procriam muito facilmente, mesmo com um Fae como parceiro.
Ele fechou os olhos e respirou fundo.
– A sabedoria desses cruzamentos forçados está sendo reexaminada. Um Fae mestiço enfrenta muitos desafios. Geralmente, eles não são aceitos pelos outros Fae. E muitos deles têm... características estranhas – as taxas de defeitos de nascença são muito elevadas. Depois do nascimento, uma alta porcentagem dos mestiços é abandonada pelo pai ou mãe Fae, que os deixa à própria sorte para descobrirem quem e o que são, com resultados às vezes desastrosos. E muitas dessas crianças acabam sendo inteiramente humanas.
Charles inclinou-se para trás.
– Como a sua filha? – disse ele, em uma voz suave.
– Como minha filha. A única coisa que ela tem de mim é o amor pela dança que veio de minha mãe, e ela tem que treinar muitas horas todos os dias para fazer o que minha mãe fez sem esforço.
Beauclaire olhou para baixo, depois de volta para Charles.
– Você é velho, mas não tão velho quanto seu pai. Talvez você possa entender por que eu lutei tanto contra esse decreto, mais arduamente do que já lutei contra qualquer outra coisa. Enganar uma mulher humana com o objetivo de gerar uma criança nela é... desonroso. Sim. E mesmo assim esse ato deu-me alguém que amo profundamente – o Fae respirou fundo e olhou Charles nos olhos. Não era um desafio, era mais uma maneira de mostrar como era sério o que ele estava falando. – Não é sábio – disse Beauclaire, com a voz entrecortada. Em algum lugar de suas vogais, Anna ouviu algo não muito diferente do sotaque que Bran tinha quando estava enfurecido. – Não é sábio dar a alguém velho e poderoso algo com que ele se importe. E eu sou muito velho – nesse momento, ele desviou os olhos para os agentes do FBI. – Talvez mais velho do que seu pai. Nós não comparamos as certidões de nascimento.
Leslie reagiu à ideia de que um lobisomem poderia ser mais velho do que um Fae – um velho Fae imortal. Goldstein apenas parecia mais cansado, mas talvez isso também fosse uma reação.
– Não fiquem com uma impressão errada – disse-lhes Anna. – A expectativa média de vida para uma pessoa a partir do momento em que é transformada e torna-se um lobisomem é de aproximadamente dez anos.
– Oito – disse Charles, soando tão cansado quanto Goldstein. Anna sabia que seus dados estavam corretos no ano passado. Ela estendeu a mão e tocou sua coxa, mas ele não olhou para ela. Anna concluiu que Charles não estava totalmente envolvido com o processo. Ele não parava de olhar por cima do sofá, para as janelas. Ela franziu a testa, observando que, como o céu ainda estava escuro lá fora, a janela refletia a sala de volta para eles. Charles estava vendo algo no reflexo.
– Quatro em cada dez das crianças mestiças sobrevive até a idade adulta – continuou Beauclaire. – Eles são a presa favorita de outros Fae – se não forem protegidos. Minha filha fará 23 anos em duas semanas.
Anna olhou para Charles. Ele não parecia estar ouvindo, e o que quer que estivesse vendo na superfície espelhada da janela estava deixando-o mais e mais distante.
– Que tipo de dança sua filha pratica? – perguntou Anna, de repente. – Eu vi sapatilhas, mas também trajes de dança de salão.
Ela não tinha visto, não de verdade, mas o irmão lobo tinha e a havia mantido informada.
– Balé – disse o pai de Lizzie. – Balé e dança moderna. Um de seus amigos pratica dança de salão e ela foi parceira dele por um tempo alguns anos atrás. A dança de salão é por diversão e balé é a sério, segundo ela me disse – Beauclaire sorriu para Anna. – Quando ela tinha seis anos, Lizzie se vestiu para o Halloween como uma princesa das fadas, usando o traje completo, com asas. Ela estava dançando ao redor da sala e eu perguntei por que ela não estava voando. Ela parou e me disse muito candidamente que suas asas eram de faz-de-conta. Que a dança era a coisa mais próxima de voar que ela podia fazer. E ela gostava de voar.
Não era o suficiente. Charles ainda estava preocupado.
Anna tocou o rosto de Charles e esperou até que ele tirasse os olhos da janela.
– Lizzie Beauclaire ainda não fez 23 anos. Ela adora dançar. E está sozinha com um monstro que vai torturá-la e matá-la se nós não a encontrarmos em breve. Você é a melhor esperança que ela tem – disse Anna, e mesmo não acrescentando “então, aguente as pontas e preste atenção”, ela achava que Charles pôde ouvir isso em sua voz.
Charles inclinou a cabeça, embora seu rosto estivesse calmo. Pelo menos ele não estava mais olhando para as janelas.
– Lembre-se disso – disse-lhe ferozmente Anna, enquanto abaixava a mão. – Você não pode mudar o passado, mas isso nós podemos fazer. Beauclaire respondeu primeiro, agora é a nossa vez. O que sabemos que poderia ajudar a caçada?
Ela olhou nos olhos de Charles e manteve-se assim até que ele jogou o próprio peso para frente e deu um breve aceno.
– Os corpos que os policiais encontraram estavam cortados – disse Charles, dirigindo-se aos agentes do FBI. – Senti o cheiro de magia negra, magia de sangue, no homem que levou Lizzie Beauclaire. Isso me fez pensar em bruxas; nesse caso, os cortes nas vítimas podem ser significativos. Os Fae não tem nenhum uso para a magia de sangue.
– Ela não funciona para nós – disse Beauclaire, mas sua voz estava distraída. Ele estava observando Charles – mas não olhando nos olhos dele, não exatamente.
Goldstein disse:
– Eu tenho mais detalhes sobre isso – ele abriu sua pasta e entregou a Charles uma grossa pilha de fotografias. – A maioria das vítimas têm formas gravadas na pele – estivemos olhando a coisa pelo ângulo da feitiçaria ou vodu nos últimos dez anos. Mas as bruxas dispostas a falar conosco apenas dizem que não conhecem aquilo. Não é vodu ou feitiçaria. Não são runas. Não são hieróglifos, nem qualquer outra linguagem simbólica usada por bruxas.
Charles abriu a pasta e depois espalhou as fotos sobre a mesinha de centro. Eram principalmente ampliações ou close-ups, algumas em preto-e-branco, algumas em cores. Nomes, datas e números estavam escritos em tinta branca no canto superior esquerdo das fotos. As fotografias documentavam símbolos, irregulares e escuros em volta das bordas. Algumas das marcas tinham sido rasgadas ao meio através de golpes furiosos; outras tinham sido distorcidas pela degradação da carne no local onde tinham sido gravadas.
– Elas mentiram para você – disse Charles, curvando-se para olhar as fotos mais de perto.
– Quem?
– As bruxas – disse Beauclaire, e em seguida puxou uma foto para fora da pilha, colocando-a de volta rapidamente. Ele fechou os olhos por um momento e quando os abriu novamente eles estavam ardentes de algo... era cólera ou terror; o nariz de Anna não tinha certeza de qual.
– Os símbolos que as bruxas usam – disse Beauclaire, dirigindo-se ao agente Goldstein em um tom de voz formal e educado – geralmente seguem linhas familiares. Eu não conheço esses símbolos, mas as bruxas deveriam ser capazes de lhe dizer de que linha familiar esses símbolos vêm. Há algo errado com a maneira como eles foram colocados, ou com o formato... Em minha longa vida, já vi muitas coisas. Eu não pratico magia de sangue, mas já a vi muitas vezes.
Charles virou uma das fotos para olhar para ela de um ângulo diferente e franziu a testa. Ele pegou o telefone do bolso e tirou uma foto em close-up de uma das fotografias. Ele apertou mais alguns botões e colocou o telefone em sua orelha.
– Charles – disse Bran.
– Ouvidos podem ouvir – alertou Charles, dizendo a seu pai que havia mais alguém na sala que podia ouvir seu telefonema. – Eu lhe enviei uma foto. Parece bruxaria para mim. O que você acha?
– Eu ligo de volta – disse Bran, e desligou.
Goldstein esfregou o rosto cansado.
– Precisamos manter essas fotos longe do conhecimento do público – disse ele. – Posso pedir que a foto não acabe aparecendo na Internet ou nos portais de notícias?
– Pode ficar tranquilo – tranquilizou Anna. – Pedimos a opinião de um especialista.
O telefone tocou antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa. Charles colocou-o no alto-falante quando atendeu.
– Todos podem ouvi-lo agora – disse ele.
Houve uma pequena pausa antes que Bran falasse.
– Você precisa que uma bruxa dê uma olhada nisso. Parece ser algo dos clãs irlandeses para mim, mas não me parece muito certo. Alguns desses símbolos são uma bobagem sem sentido e outros estão desenhados de forma errada. Seria melhor se uma bruxa pudesse ver as marcas nos corpos, e não apenas suas fotos. Há mais coisas em um feitiço do que apenas o visual pode dizer.
– Obrigado – disse Charles, desligando sem cerimônia. – Então, alguém conhece uma bruxa que mora nesta cidade com quem possamos conversar?
– Eu conheço uma bruxa – disse Leslie. – Mas ela está na Flórida.
Charles balançou a cabeça.
– Se vamos trazer alguém, eu conheço uma ou duas confiáveis. Você conhece alguma em Boston?
Ele olhou para Beauclaire, que balançou a cabeça.
– Não conheço ninguém que nos ajudaria.
– Se encontrarmos alguém – disse Anna –, poderíamos levá-la para ver um dos corpos?
– Podemos arranjar isso – disse Leslie.
– Tudo bem, então, vamos telefonar para o Alfa local e ver se ele tem uma bruxa que possa cooperar conosco.
Charles discou e deu o telefone a Anna.
– Ele gosta mais de você. Você pergunta a ele.
– Ele tem medo de mim – disse Anna, sentindo-se um pouco convencida.
– Aqui é Owens.
– Isaac, aqui é Anna – disse ela. – Precisamos de uma bruxa.
Os agentes do FBI saíram para arranjar a visita ao necrotério e permitir que a bruxa pudesse ver o corpo; ela não estaria disponível antes das dez horas da manhã. Beauclaire lhes dissera que iria ver se encontrava alguém que pudesse saber se o lorde cornudo que morrera em 1981 tinha deixado filhos mestiços.
Anna esperou até que Charles tivesse fechado a porta.
– O que você vê no espelho? – perguntou ela.
Ele fechou os olhos e não se voltou para olhar para ela.
– Charles?
– Há certas coisas – disse ele, lentamente – que melhoram quando se fala sobre elas. Há coisas que adquirem mais poder quando você fala delas. Essas são da segunda variedade.
Ela pensou por um momento e então foi até ele. Os músculos de suas costas estavam rígidos quando ela o tocou com a ponta dos dedos.
– Parece que ficar calado sobre o que quer que seja – disse ela, vagarosamente – não ajudou, tampouco.
Quais os tipos de coisas sobre as quais ele não gostava de falar? O Mal, ela se lembrou.
– É como nos filmes do Harry Potter?
Charles virou a cabeça para Anna.
– O quê?
– Os filmes do Harry Potter –disse ela novamente. – Você sabe, não diga o nome de Voldemort, porque pode atrair a atenção dele.
Ele considerou.
– Você quer dizer os livros para crianças.
– Eu tenho que levá-lo para assistir mais filmes – disse ela. – Você iria gostar desses. Sim, são os livros para crianças.
Ele balançou a cabeça.
– Não é bem assim. Notar algumas coisas torna-as mais reais. Elas já são reais para mim. Se você notá-las, elas podem tornar-se reais para você também e isso não seria bom.
De repente, ela adivinhou. Charles tinha dito uma vez que não falava o nome de sua mãe por medo de que isso fosse prendê-la a esse mundo e não a deixasse ir para o próximo. Fantasmas, como ele dissera, precisam ser pranteados e então libertados. Se você os mantém próximos, eles se tornam infelizes e corrompidos.
– Fantasmas – disse ela; Charles arquejou e se afastou dela, ficando mais perto da janela.
– Não – disse ele bruscamente. Anna teria retrucado se não tivesse se lembrado de que, quando fechara o vínculo, Charles estava preocupado com ela.
– Tudo bem – disse ela lentamente. – Porém, diga que você se sente melhor do que antes de virmos para cá. Estou certa?
Se ele estava melhorando, estava lidando com o problema.
Charles teve que pensar sobre isso antes de responder.
– Sim. Não bem, mas melhor.
Anna colocou os braços ao redor da cintura dele, abraçando-o por trás, e aspirou seu cheiro.
– Vou deixá-lo em paz, se você me prometer uma coisa.
– O quê?
– Se começar a piorar novamente, você vai me contar e vai contar a Bran.
– Farei isso.
– Tudo bem.
Anna passou as mãos pelas costas da camisa de Charles, como se houvesse fiapos de linha ou algo nela, e não como se suas mãos não estivessem famintas pelo calor da pele dele.
– Dormir ou café da manhã? – perguntou ela repentinamente. – Temos duas horas até o FBI chegar e nos levar até o necrotério.
O pequeno corpo coberto pelo lençol em cima da mesa cheirava a carne podre, sal e peixe. Nenhum deles conseguia encobrir satisfatoriamente o cheiro persistente de terror. Com base no tamanho do cadáver, Anna achou que ele deveria ser de uma pessoa de sete ou oito anos.
Anna tinha sido transformada mediante um estupro, físico e metafórico. Ela havia passado três anos em uma alcateia liderada por uma louca e durante aquele tempo, a morte tornara-se algo desejável, um fim para a dor.
Charles tinha mudado tudo isso e Anna apreciava a ironia de que o matador de lobos do Marrok, sem dúvida o mais temido lobisomem no mundo, tinha feito com que ela se sentisse segura e quisesse viver.
Ironia à parte, Anna conhecia a morte. O necrotério cheirava a ela, bem como a uma generosa dose de antisséptico, luvas de látex e fluidos corporais. Quando eles entraram na pequena sala de visualização, o cheiro de um menino acrescentou-se à mistura, um menino que por direito deveria estar lá fora brincando com seus amigos e, em vez disso, mostrava os sinais inconfundíveis da autópsia.
Ao lado dela, o irmão lobo rosnou; um som baixo o suficiente que nenhum dos humanos deveria ter ouvido. Ele viera como lobo novamente. Anna enterrou seus dedos no pelo do pescoço do irmão lobo e engoliu em seco, tentando se concentrar em algo além do pequeno corpo sobre a mesa. Preocupar-se com seu companheiro era algo melhor do que ver uma criança morta.
Charles prometera que lhe diria se piorasse, mas ele não tinha reaberto o vínculo entre eles, nem mesmo o suficiente para que pudesse se comunicar com ela enquanto estava na forma de lobo.
– A família dele deveria buscá-lo hoje – disse o homem que os deixara entrar. Ele vestia um avental de laboratório limpo e arrumado: ou ele estava apenas começando o dia, ou havia acabado de se trocar. – Quando eu expliquei a eles que um lobisomem se oferecera para procurar pistas que não conseguimos encontrar, não foi difícil convencê-los a deixá-lo aqui até amanhã.
– Você não disse a seus pais que estavam me trazendo, também? – disse a bruxa, que parecia saída diretamente de uma comédia dos anos 1970: ela era de meia-idade, um pouco atarracada, um pouco amarrotada; seu cabelo era de um tom improvável de vermelho, e ela vestia roupas que não lhe serviam bem. – A vinda dos lobisomens é incidental, e devo acrescentar que eles imploraram à bruxa aqui para vir; você não pensou em falar sobre mim?
A ameaça de morte em sua voz fez um bom trabalho e removeu qualquer senso de comédia, embora Anna não pudesse deixar de pensar em A Bela Adormecida e a fada má que se sentira ofendida porque não fora convidada.
Anna não gostava de bruxas em geral. Elas cheiravam à dor de outras pessoas e gostavam de causar problemas. Mas, mesmo que essa mulher não fosse uma bruxa, ela duvidava que tivesse gostado dela.
O Dr. Fuller – Anna perdeu a apresentação que Leslie fizera no necrotério enquanto absorvia os cheiros do lugar, mas o médico usava um crachá – franziu a testa.
– Ele vem de uma família batista bastante tradicional. Lobisomens foram uma grande concessão para eles. Acho que eles não teriam aceitado a ideia de uma bruxa muito bem.
A bruxa sorriu.
– Provavelmente não – concordou ela alegremente, como se não tivesse ficado ofendida um momento antes.
Isaac tinha avisado a Anna que a bruxa escolhida era um pouco instável. Ele também dissera que ela não era tão poderosa, por isso o mal que podia fazer era mínimo. Ele conhecia outra bruxa que trabalhava às vezes para a alcateia, mas ela era discreta e muito mais perigosa. A bruxa que estava ali, Caitlin (sobrenome não revelado), iria lhes dizer tudo o que descobrisse, só para provar o quanto sabia.
A outra iria manter as informações para si mesma, para uso posterior ou apenas para sua própria diversão, o que não ajudaria Lizzie em absoluto.
– Diga-lhes que agradecemos sua cooperação – disse Heuter, o agente mais jovem da Cantrip, que havia aparecido enquanto eles estavam esperando pela bruxa na frente do prédio onde ficava o necrotério do condado.
Ele alegou que alguém lhe dissera que eles iam ver o corpo, mas pela atitude de Leslie (educada, mas distante), não tinha sido ela.
Goldstein tinha sido chamado para discutir o caso com alguém no Departamento de Polícia de Boston, e com Heuter eles totalizavam cinco.
Se houvesse mais alguém no grupo, eles teriam que deixar aberta a porta da pequena sala.
O Dr. Fuller puxou a folha.
– Jacob Mott, idade oito anos. A água em seus pulmões nos diz que ele se afogou. Corredores encontraram seu corpo que havia sido levado pela maré até a praia de Castle Island no início da manhã. Seus pais dizem que ele não tinha as orelhas furadas, de modo que o assassino deve ter perfurado ambas, embora apenas a orelha esquerda tenha sido etiquetada. A etiqueta está no laboratório de perícia.
Anna deixou as palavras entrarem por um ouvido e saírem pelo outro. Elas não tinham importância ao lado do pequeno corpo que jazia na frente deles. Além disso, Charles se lembraria de cada palavra – e ela não queria se lembrar.
Jacob foi deixado na água e os peixes o tinham mordiscado, embora ele não se importasse com isso naquele momento. Comparado ao que tinha sido feito a esse menino, os peixes eram apenas uma nota de rodapé. A morte não tinha muito a ensinar a Anna, mas morrer... morrer podia ser tão difícil. A morte de Jacob deve ter sido muito difícil.
A bruxa estendeu a mão e tocou o corpo com uma tal luxúria que Anna poderia ter cheirado aquilo mesmo com o nariz humano.
– Oh... –sussurrou ela, e o discurso clínico do médico chegou a um impasse. – Você foi uma adorável refeição para alguém, não foi, criança?
Ela colocou o rosto sobre o peito do garoto e Anna queria agarrá-la e rasgá-la em pedaços. Em vez disso, ela cruzou os braços sobre o peito. Não adiantava irritar a bruxa antes que eles conseguissem o que precisavam dela. Jacob não se importaria com o que a bruxa estava fazendo.
– Alguém foi uma garota malvada – disse a bruxa para si mesma, enquanto seus dedos traçavam uma série de símbolos gravados na coxa do garoto. Ela afastou o rosto e começou a cantarolar It’s a small world enquanto seus dedos continuavam a traçar as marcas no corpo. – Há certamente mais na parte de trás – disse ela, olhando para o médico.
Ele assentiu em silêncio, e então a bruxa pegou o corpo e o rolou ate deixá-lo de bruços. Ela era forte, apesar de parecer estúpida e atarracada, pois não precisou se esforçar muito. Geralmente era mais difícil mover cadáveres do que corpos vivos.
Havia mais na parte de trás, como a bruxa havia dito, e lá estavam. Mais símbolos e mais marcas de abuso. Anna engoliu em seco.
– Antes da morte – disse a bruxa, feliz. – Tudo isso foi feito antes da morte. Alguém colheu sua dor e seu fim, não foi, pequenino? Mas eles foram desleixados, descuidados com ele. Não foram profissionais, de jeito nenhum – suas mãos acariciavam o menino morto. – Eu reconheço isso. A malvada Sally Reilly. Ela não era uma bruxa muito talentosa, não é? Mas ela escreveu um livro e foi para a TV, e escreveu mais livros e se tornou famosa. Linda, linda Sally, vendeu seus serviços e então, puf, ela se foi. Exatamente como uma bruxa que era má e quebrou todas as regras deveria ir.
– Sally Reilly gravou esses símbolos? – perguntou a agente Fisher; sua voz estava apenas um pouco exasperada.
– Sally Reilly está morta. Morta há vinte anos ou mais, porque ela mostrou às pessoas mundanas uma maneira de fazer isso – nesse momento, Caitlin se abaixou e lambeu a pele do garoto morto; Heuter arquejou. – Mas eles fizeram isso errado e não pegaram tudo, não é? Eles deixaram toda essa magia encantadora para trás em vez de consumi-la.
– Precioso... – murmurou Anna.
A bruxa inclinou a cabeça.
– O que você disse?
– Você esqueceu-se de dizer “meu precioso” – disse secamente Anna. – Se você quer agir como uma maldita maluca, você tem que fazer isso direito.
A bruxa baixou os cílios, sacudiu as mãos em direção a Anna e disse algo que soou quase como um espirro. O irmão lobo jogou Anna para o lado, flexionou o corpo um pouco, como se estivesse absorvendo um golpe, e então pulou sobre a mesa, empurrando a bruxa para longe do corpo de Jacob Mott e jogando-a no chão. Gracioso e preciso como um gato, ele fez isso sem tocar em Jacob, embora tivesse feito Heuter e o médico darem alguns passos para trás.
Anna correu em volta da mesa para que pudesse ver o que estava acontecendo, e então viu o irmão lobo mostrar suas presas de marfim para a bruxa – que desistiu de lutar.
– Charles tinha uma avó que era bruxa e um avô que era xamã – em lados opostos de sua linhagem – disse calmamente Anna, no silêncio da sala. – Você está em desvantagem. Agora, por que você não nos diz tudo o que você sabe sobre essas marcas?
Um rosnado baixo saiu do peito do irmão lobo e Anna acrescentou:
– Antes que ele pense muito sobre o que você tentou fazer comigo.
Anna não tinha certeza se o irmão lobo estava jogando o jogo de Anna ou se ele realmente queria matar a bruxa, mas ela iria usar o que tivesse à mão. Embora o espaço fosse apertado na sala, as outras pessoas presentes haviam se apertado na mesa entre eles e o irmão lobo. Talvez eles estivessem tentando fugir da bruxa.
– Os símbolos inscritos são destinados a aumentar o poder da pessoa cujo nome é dito na cerimônia – disse a bruxa Caitlin, com a voz um pouco mais alta e estrangulada do que antes. O suor escorria em sua testa, entrando em seus olhos; ela os piscou, afastando-o.
– Bom... – disse Anna. – Se você parar de olhar nos olhos dele, é menos provável que ele coma você.
A bruxa virou para encarar Anna em vez do irmão lobo e ele arreganhou ainda mais os dentes que estava mostrando, aumentando o barulho ameaçador que estava fazendo.
– Provavelmente.
– Então, os símbolos aumentam o poder de uma bruxa? – perguntou inesperadamente Leslie.
– Sim.
O irmão lobo estalou os dentes um pouco abaixo do nariz de Caitlin e a bruxa gritou, lutando involuntariamente antes de se forçar a ficar imóvel.
– Lobisomens – disse suavemente Anna – podem sentir o cheiro de mentiras e meias-verdades, bruxa. Eu teria muito cuidado com o que você vai dizer em seguida. Agora, responda a pergunta da agente Fisher, por favor. Os símbolos aumentam o poder de uma bruxa?
Caitlin engoliu em seco; sua respiração estava rápida.
– Sim – as habilidades mágicas de qualquer um. Fae, bruxa, feiticeiro, bruxo, mago. Qualquer um. Você pode armazená-la. Para uso posterior. Para dar poder a algum feitiço ou magia.
– Onde alguém poderia armazená-la? – perguntou Anna.
– Em algo denso. Metal ou cristal. A maioria de nós utiliza algo que pode ser usado ou transportado facilmente – ela hesitou, olhou para os grandes dentes do irmão lobo e continuou. – Mas isso não é o que aconteceu com essa magia, especificamente. Isso foi projetado para alimentar a magia de um Fae.
– Portanto, esse menino foi marcado por uma bruxa – disse Heuter.
Caitlin bufou apesar de seu terror do irmão lobo e respondeu a Heuter como se ele tivesse feito uma pergunta, e não uma declaração.
– Ela queria ser uma bruxa.
– O que você quer dizer? – a voz de Leslie era calma, como se todos os dias ela interrogasse bruxas caídas de costas, sendo ameaçadas por lobisomens.
– Alguns dos símbolos foram feitos de forma errada e alguns deles são completamente sem sentido – a voz da bruxa estava cheia de desprezo. – Sally está desaparecida desde o final dos anos 1980. Talvez alguém os tenha copiado errado. Uma bruxa de verdade conseguiria sentir que eles não estavam certos e poderia ter consertado as coisas no local. Então, alguém está brincando de bruxa de faz-de-conta.
Caitlin falou como se a vida do menino valesse menos do que nada, como se a pior coisa que a pessoa que gravara símbolos no corpo de Jacob Mott tivesse feito fosse ter escrito os símbolos de forma errada.
– Conte-nos sobre Sally Reilly – sugeriu Anna. – Se ela está morta, o que ela tem a ver com isso?
A bruxa cerrou a mandíbula.
– Não falamos com estranhos sobre ela.
O irmão lobo mostrou um pouco mais dos dentes.
Ela engoliu em seco.
– Se isso a faz se sentir melhor – murmurou Anna –, nós conhecemos algumas bruxas que irão nos contar o que queremos saber.
– Certo – disse Caitlin. – Sally Reilly descobriu uma maneira de fazer com que pessoas mundanas também pudessem usar nossos feitiços. Se alguém lhe pagasse o suficiente, ela ensinava como escrever os símbolos. Ela lhes dava um amuleto que, se usado enquanto trabalhavam com a magia – geralmente era apenas um feitiço específico –, funcionavam como se eles fossem uma bruxa de verdade. Era como tocar uma fita no gravador em vez de tocar um violino, como ela gostava de dizer. Faz muito tempo que ela foi morta, e a maioria das pessoas já perdeu ou os símbolos ou os feitiços que lhes permitia usar a magia. Esses foram feitos de forma errada. Podem ter sido desenhados dessa maneira de propósito, embora Sally tivesse a reputação de entregar o que prometia. Provavelmente, pensaram que tinham memorizado os símbolos.
Caitlin sorriu maliciosamente.
– Feitiços não gostam que as pessoas erradas os usem, pois eles tendem a revidar quando podem. Talvez em algumas décadas o feitiço seja errado o suficiente para que, quando for cortado em alguém, mate a todos eles – disse ela, e em seguida olhou para Charles e enrijeceu. – Eu estou dizendo a verdade – continuou ela, soando um pouco histérica. – Estou dizendo a verdade.
Músculos foram flexionados nas costas do irmão lobo e Anna pensou que poderia ser uma boa ideia tirá-lo de cima da bruxa antes que Caitlin realmente o irritasse – embora parte dela estivesse feliz ao ver que ele estava envolvido na caçada novamente.
– Ela está cooperando, Charles – disse Anna. – Solte-a antes que você a mate de susto.
O lobisomem rosnou para Anna.
– É sério – disse ela, batendo-lhe no nariz. – Já chega. Você não é um gato. Nada de brincar com algo que você não vai comer.
Não era com palavras que ela esperava convencê-lo, mas com seu toque apaziguador.
O irmão lobo saiu quase delicadamente de cima da bruxa e observou com olhos amarelos enquanto a mulher se levantava, meio trêmula.
– Melhor agora? – perguntou Anna, e então, sem esperar que ela respondesse, continuou com outra pergunta. – Como é que você sabe que é ela? Quem está tentando ser uma bruxa?
Caitlin ajeitou o cabelo com as mãos trêmulas.
– Seres fortes o suficiente para fazer isso são sempre mulheres.
– Você acabou de dizer que quem colocou esses símbolos no menino não era uma bruxa.
– Disse mesmo?
O irmão lobo rosnou.
– Eu realmente não o provocaria mais – aconselhou Anna. – Ele não está muito feliz com você agora.
O irmão lobo deu um olhar divertido para Anna, e então voltou a ser assustador.
A bruxa bufou maliciosamente. Ela estendeu a mão para tocar o corpo de Jacob novamente e parou quando o irmão lobo deu um passo em sua direção. mantendo os olhos na sua mão. Ela puxou-a para trás e respondeu à pergunta de Anna.
– Qualquer um poderia ter desenhado isso e feito o feitiço funcionar. Não há nenhuma razão a não ser o hábito para concluir que foi uma mulher. Suponho que o estupro signifique que provavelmente foi um homem, não é?
– E funcionou, apesar de alguns dos símbolos estarem errados?
Agora fora Heuter quem perguntara. Anna tinha se concentrado tanto na bruxa e no irmão lobo que quase havia esquecido dos outros na sala.
– Posso sentir que sim – disse Caitlin. – Não tão bem como se os símbolos tivessem sido inscritos corretamente, mas sim.
– Que símbolos estão errados? Como você teria feito isso melhor?
A voz Heuter estava um pouco ansiosa demais.
Caitlin deu-lhe um olhar frio. Ela era a perfeita dona de casa suburbana psicopata, a melhor que Anna já vira.
– Não estou aqui para instruir o FBI em práticas de bruxaria.
Leslie limpou a garganta.
– Sou a agente especial Fisher do FBI. Ele é o agente Heuter da Cantrip.
– Cantrip – bufou Caitlin, com desprezo. Ela tirou um cartão da bolsa e entregou-o a ele. – Se você tiver perguntas, pode me ligar nesse número. Mas não sou Sally Reilly, agente Heuter. Não pretendo desaparecer, então provavelmente não poderei ajudá-lo. E vou cobrar caro por isso.
O irmão lobo espirrou, mas Anna não foi capaz de rir, porque a bruxa estava indo em direção ao corpo do menino novamente.
– Há mais alguma coisa que precisamos saber a respeito disso? – perguntou Anna.
Caitlin olhou para a mesa.
– O sexo não é parte do ritual – ela enrugou os lábios. – Não sei se isso é útil.
– O assassino mantém suas vítimas vivas por algum tempo – disse Leslie. – Normalmente, sete dias. Algumas vezes mais, algumas menos. Isso é importante?
Caitlin franziu a testa.
– Provavelmente é por isso que a magia funcionou, mesmo que ele tenha errado. Ele cortou os símbolos e os deixou trabalhando – como se fosse uma panela elétrica. Não se pode cozinhar muito rápido a uma temperatura baixa, mas se você der tempo suficiente, a panela faz o trabalho – disse ela, bufando novamente. – Talvez o estupro seja consequência dessa longa espera. Se já acabamos aqui, eu gostaria de ir. Tenho um compromisso em meia hora.
Leslie entregou-lhe um cartão.
– Se você pensar em algo mais, por favor me telefone.
– Claro – disse Caitlin. E então ela se virou para Anna. – Eu vou contar a Isaac o que seu lobo fez para mim – continuou ela, sorrindo maliciosamente. – Ele não vai ficar satisfeito com você.
– Diga a ele que eu pago o jantar no The Irish Wolfhound para compensar pelo delito – sugeriu Anna, segurando a porta aberta.
Caitlin parecia decepcionada com a falta de reação de Anna.
– Ele é o Alfa da alcateia de Olde Towne e ele me deve. Você vai se arrepender.
– Você vai se atrasar para o seu compromisso, se não se apressar – disse-lhe Anna.
A bruxa fez uma careta, girou nos calcanhares e marchou para a porta.
Antes que ela estivesse fora da sala, o Dr. Fuller colocou o corpo do menino na posição original sobre a mesa e cobriu-o protetoramente. – Aquela... – gaguejou ele um pouco, tentando manter a voz baixa.
– Não é à toa que não gostamos muito bruxas – disse-lhe Anna, quando teve certeza de que Caitlin estava fora do alcance de sua voz. – Eu sei que isso é perturbador. Mas o assassino de Jacob tem outra vítima agora. Ela provavelmente está viva. E algo que essa bruxa nos disse pode ajudar-nos a encontrar Lizzie Beauclaire.
Ela acha que as bruxas mataram Sally Reilly.
Anna olhou para o irmão lobo. Seu vínculo de companheiro e companheira ainda estava tão congelado como um picolé na Antártida, mas era a sua voz em sua cabeça.
– Você pensa de maneira diferente? – disse ela.
Olhos de xamã olharam para ela – os olhos de Charles, e então ele os fechou e sacudiu-se, como se estivesse tentando sacudir a água depois de um mergulho em um lago.
Eu acho que Sally deu um feitiço para um assassino que não queria que ela falasse sobre isso. As bruxas provavelmente não eram as únicas que queriam a morte de Sally.
– Anna – perguntou Leslie. – O que ele está dizendo?
– Nada que possamos provar ainda – disse-lhe Anna. – Embora possa ser interessante checar se Sally Reilly desapareceu em um daqueles anos em que nenhum dos corpos foram encontrados.
– Não sabemos nada sobre Sally Reilly – lembrou Leslie. – Muito menos que ela desapareceu.
– Bruxaria e Fae no mesmo caso – disse Heuter, parecendo fascinado e um pouco empolgado.
Na pequena sala de exame com um garotinho morto sobre a mesa, Anna achou aquela empolgação de mau gosto.
Sete
– Acho que o Dr. Fuller não vai deixar mais nenhuma bruxa entrar em seu necrotério daqui para frente – disse Heuter, enquanto mordia um pedaço de bife meio cru em seu garfo.
– Essa foi a coisa mais assustadora que já vi – disse Leslie, que estava comendo uma salada e não estava olhando para Heuter. Anna não conseguiu decidir se ela era vegetariana ou apenas não gostava de ver alguém comer carne crua. Talvez a visita ao necrotério tivesse algo a ver com isso.
– A bruxa ou o bife sangrento do Heuter? – perguntou Anna, dando a primeira mordida em seu cheeseburger – e aprovando o sanduíche. Ela havia pedido seis cheeseburgers em dois pratos – todos ao ponto. Sim, ela preferia malpassado, mas antes de ser transformada ela gostava de carne bem-passada. Mas ela não comia carne crua na frente de estranhos.
– Os hábitos alimentares de Heuter são bastante assustadores – disse Leslie. – Mas eu estava falando sobre a bruxa. Pelo menos ela nos contou algumas coisas que não sabíamos.
Depois que eles haviam saído do necrotério, Leslie havia ligado para Goldstein para lhe passar as informações. Anna havia percebido que ele ficara empolgado, porque sua voz havia se acelerado em uma ou duas palavras. Quando ela terminara, Heuter recomendou um restaurante com boa comida e mesas ao ar livre, onde eles podiam conversar sem ter que se preocupar com o irmão lobo.
As sobrancelhas do garçom se levantaram quando Anna pediu tanta comida. Ele havia protestado quando ela colocou o prato com quatro hambúrgueres no chão para o irmão lobo, mas calou-se quando Leslie mostrou o distintivo e disse, com um aceno de cabeça:
– Lobisomem.
Houve uma rápida mudança nos garçons que os atendiam e a nova garçonete perguntou se ela podia trazer um pote de água para o irmão lobo (sim) – ou se ele gostaria de outra coisa para beber (não). Anna concluiu que aquela garçonete tinha acabado de ganhar uma gorjeta muito grande. Considerando o sorriso no rosto da garçonete, devia ser isso mesmo.
– Foi muito divertido, a forma como você cuidou da bruxa – disse-lhe Leslie. – Até então eu não havia percebido que ela estava apenas tentando nos assustar.
– Humm... – respondeu Anna, dando uma mordida no sanduíche para ganhar tempo e pensar. O irmão lobo olhou para cima e se concentrou em Anna. OK, ela estava ali para compartilhar informações. Então era melhor fazer seu trabalho.
– Ela não estava tentando assustar você – disse Anna. – Isaac nos contou que ela não era muito poderosa. Ela não tinha o controle para manter as aparências na presença da magia da morte no corpo do menino. Eu estava tentando distraí-la, levá-la a se concentrar em mim para que ela nos dissesse alguma coisa em vez de fazer algo estúpido que faria com que ela levasse um tiro.
– Tiro? – perguntou Heuter.
Anna sorriu para ele.
– Armas são muito fáceis de cheirar. Você devia mudar a posição do coldre na parte inferior das suas costas. Você precisa se esticar demais para alcançá-lo. Tente um coldre de ombro ou pratique mais.
O pão do sanduíche foi tostado com manteiga de verdade e a carne tinha sido grelhada na brasa. Anna comeu algumas batatas fritas para demorar um pouco mais antes de começar a comer o segundo hambúrguer.
– E você precisa esperar até ter certeza de que vai sacar o revólver antes de esticar a mão – concordou Leslie. Ela sorriu para Anna. – A Cantrip não exige o mesmo treinamento com armas que temos em Quantico.
Algo frio passou pelo rosto de Heuter antes que ele retomasse sua aparência agradável.
– Certo. Houve algumas conversas sobre mudar isso. Receio que minha experiência com tiro venha do uso de um rifle. Minha família é do Texas e temos uma propriedade em Nova York onde vamos caçar todo ano também – a caça é um ritual familiar. Mas aquela bruxa...
– Assustadora – disse Leslie com um aceno de cabeça. – Eu gostaria que ela estivesse fingindo. Será que algum de vocês reconheceu o nome que ela nos deu? Sally Reilly?
Anna balançou a cabeça.
– Não, mas acho que Charles sim. Vou falar com ele quando ele se transformar novamente, e aí volto a falar com você.
Leslie franziu a testa e começou a dizer algo, então olhou para Heuter e encheu a boca com salada em vez disso.
– Segundo a Wikipédia – disse Heuter, lendo do telefone –, em 1967, Sally Reilly escreveu um livro chamado Meu Pequeno Livro Cinzento de Histórias – ele olhou para cima e sorriu. – Era um trocadilho com a série de livros Meu Pequeno Livro Vermelho de Histórias, leitura de alunos do primeiro grau. Meu Pequeno Livro Cinzento de Histórias tornou-se um sucesso underground, e quando o segundo livro, O Livro das Bruxas Iniciantes, apareceu nas bancas três anos mais tarde, foi incluído na lista de best-sellers do New York Times. Sally Reilly era bonita, chocante e engraçada, e tornou-se uma celebridade instantaneamente, embora por pouco tempo. Os livros eram menos do tipo “como-fazer-bruxarias” do que “essa-é-a-minha-vida-como-bruxa”. Ela foi entrevistada em alguns programas de entrevistas, incluindo o The Mike Douglas Show, onde ela endireitou algumas colheres que haviam sido dobradas por Uri Geller – e sem tocá-las, no dia seguinte em que o famoso médium israelita apareceu.
– Bruxas não podem endireitar colheres – disse involuntariamente Anna. – Bruxas trabalham com coisas vivas e tecidos que já foram vivos: sangue, corpos e coisas assim.
Heuter mostrou o telefone para ela.
– Está na Wikipédia.
– Eu nunca tinha ouvido falar dela – disse Leslie. – Eu sei sobre Uri e sua habilidade em dobrar colheres. Aconteceu alguma coisa com ela? A bruxa parecia muito certa de que ela está morta e Charles, de acordo com Anna, acha que ela foi uma vítima do nosso assassino serial. O que a Wiki diz?
– A Wiki não diz – disse Heuter. – Espere.
– Meu pai fala dos anos 1960/1970 como o apogeu do pensamento da Nova Era, antes mesmo do aparecimento dos seguidores da Nova Era – disse Anna. – Muito amor livre, Wicca e pensamento mágico.
Heuter, ainda procurando na Internet, assentiu.
– A era vitoriana foi a única que chegou perto dessa época. Tábuas Ouija, sessões espíritas, jogos que testavam se as pessoas podiam ler mentes. Então, como todo mundo estava fazendo isso, tudo se tornou menos misterioso, menos sombrio e muito mais... ridículo. Os interesses mudaram.
– Então, nossa Sally Reilly talvez tenha simplesmente sumido da vista do público quando o mundo deu um grande bocejo – sugeriu Leslie. – Será que isso vai ajudar a nossa garota desaparecida?
Heuter não respondeu a pergunta.
– Há rumores de um terceiro livro que ela escreveu; foram impressos apenas alguns exemplares – o Magia Elementar. Quando eu voltar ao escritório, vou checar nossos arquivos e verificar se temos um na biblioteca. Também vou poder descobrir o que aconteceu com ela, ou se ela ainda está viva.
– A bruxa parecia terrivelmente certa de que ela estava morta – disse Anna. – Ela não estava mentindo.
Heuter bufou e uma carranca desfigurou seu rosto bonito.
– Aquela bruxa era... bem. Eu não confiaria nela de jeito nenhum.
– Ela nos deu Sally Reilly – comentou Anna.
– O que foi mais do que conseguimos de qualquer uma das outras bruxas que o FBI consultou sobre esse caso – concordou Leslie.
Anna terminou seu último cheeseburger e pegou o prato vazio do irmão lobo, empilhando-o com os outros sobre a mesa. Ela tentou pensar em qualquer outra maneira de eles dois ajudarem mais no caso.
– Talvez indo até o local onde o corpo de Jacob foi encontrado, poderíamos ser capazes de encontrar algo mais – disse lentamente. – Ele foi a última vítima antes de Lizzie?
– Sim – disse Leslie. – Ele era Fae ou lobisomem, você sabe? O Dr. Fuller disse que seus pais eram batistas. Isso não combina muito com a coisa sobrenatural.
Anna piscou por um momento. Ela não tinha pensado sobre isso. Por que o assassino tinha voltado a matar humanos novamente?
– Fae – disse Heuter. – Seu pai, Ian Mott, está listado no banco de dados Fae na Cantrip como Fae puro-sangue e Jacob é claramente listado como meio-Fae. Verifiquei a lista de vítimas depois que conversamos ontem. O banco de dados da Cantrip é de longe mais extenso do que o oficial.
– É mesmo? – perguntou Anna, e então ela tomou um gole rápido de sua água para disfarçar qualquer expressão que pudesse estar mostrando. Se Jacob Mott tivesse qualquer tipo de ascendência sobrenatural, ela comeria seu chapéu. Ele não tinha cheiro de Fae – e até mesmo um mestiço tinha cheiro de Fae. Não era interessante o fato de que ele estava listado como um no banco de dados da Cantrip? Talvez o assassino estivesse encontrando suas vítimas no mesmo banco de dados. Mesmo assim, o Fae que havia sequestrado Lizzie não deveria ser capaz de ver que Jacob Mott não era um deles? Ela realmente não sabia se um Fae podia dizer se outro estava por perto, embora suspeitasse que fosse assim.
Charles estava observando Heuter com súbito interesse. Ela sabia que era Charles e não o irmão lobo quem estava no comando; era algo como uma mãe de gêmeos que sabe qual deles é qual: tinha menos a ver com os pequenos detalhes e mais com os instintos.
Heuter olhou para Anna como se tivesse esquecido que ela estava lá.
– Oops – disse ele. – Eu acho que você não vai esquecer que ouviu isso...
– Você não quer ninguém preenchendo papelada para ver se eles estão no seu banco de dados, não é? – perguntou Leslie. – Um dos benefícios adicionais de trabalhar com a Cantrip ou uma das outras agências menores do governo é que ninguém pensa em manter arquivos sobre eles por causa da Lei sobre a Liberdade de Informação.
– Você ficaria surpresa – disse Heuter, em um tom de voz que era quase um gemido.
– As pessoas que usam o FOIA fazem muito isso; e bem. Responder a pedidos é o trabalho que damos aos novatos, o que inclui os filhos de importantes senadores, como esse seu criado, também – disse Heuter, sorrindo e mostrando que não achava que isso o fazia mais merecedor de privilégios do que o resto dos novatos. – Mas nem mesmo os que estão no poder poderiam me manter lá por muito tempo. A coleta de informações sobre lobisomens desconhecidos é um trabalho muito mais interessante – ele então olhou para Anna. – Anna Latham de Chicago, prodígio musical. Deixou a Universidade Northwestern alguns anos atrás pouco antes de formar-se – para desgosto do Codiretor de Estudos Musicais com quem conversei essa manhã, porque ele pensou que você se tornaria o equivalente feminino de Yo-Yo Ma. Ninguém parece ter notícias de você desde então – exceto o seu pai, que foi muito econômico na conversa.
– Meu pai é um advogado – explicou Anna, metade se explicando e metade se desculpando. – Ele não diria nada se não fosse para receber muito mais informação em troca. E provavelmente na presença de uma ordem judicial, embora eu não contasse com isso.
– Ele não quis me dizer o nome de seu marido ou onde você vive agora, e o pessoal do Imposto de Renda foi extremamente não cooperativo.
– Eles não deveriam ser? – perguntou Anna. – Meu marido e eu viemos aqui para ajudar; não viemos aqui para nos tornarmos nomes em sua lista do banco de dados, embora soubéssemos que você provavelmente iria descobrir quem eu era.
Ele pensou que havia tirado um coelho da cartola com suas revelações sobre sua verdadeira identidade. Anna deveria ter deixado que Heuter continuasse a dar tapinhas nas próprias costas e ela sabia disso. Heuter era uma dessas pessoas que gostava de ser mais inteligente do que todos os outros. Ele teria ficado mais feliz se Anna tivesse ficado zangada ou preocupada por ele ter descoberto quem ela era. Mas Heuter era apenas um pouco presunçoso demais para que Anna se dispusesse a fazer a vontade dele.
– Onde vocês estão hospedados aqui em Boston? – perguntou Heuter.
– Por que você está preocupado com isso? – retrucou Anna. Enquanto isso, Leslie, que sabia onde Charles e ela estavam hospedados, fazia incursões constantes no que restava de sua salada. – Prometo que nenhum de nós dois vai perder o controle e começar a matar pessoas.
Heuter bateu os dedos levemente sobre a mesa. – Fui criado para o serviço –disse ele. – É uma tradição de família. Eu acredito nesse país. Acredito que preciso proteger os inocentes. Acredito que é a minha vocação me certificar de que eles sejam protegidos de pessoas como você.
A voz de Heuter era fria e controlada, mesmo quando disse a última parte da frase. Se Leslie não tivesse arquejado, Anna acharia que tinha ouvido mal o que ele dissera. Ao lado de Anna, o irmão lobo ficou tenso, e então ela se controlou.
– Isso é engraçado – disse Anna. – Eu sempre achei que terroristas e assassinos seriam mais problemáticos do que eu.
Como resposta não era grande coisa, mas ela estava mais preocupada com as balas de prata que todo agente da Cantrip carregava em suas armas. A arma que Heuter quase havia sacado no necrotério. Naquele momento, ela não conseguia realmente se lembrar quando foi exatamente que ele tentara sacá-la. Heuter foi tão lento e desajeitado que não conseguiu sacá-la antes que o irmão lobo derrubasse Caitlin e a mantivesse no chão. Será que ele havia levado a mão ao coldre antes que o irmão lobo saltasse, para que pudesse apontar para a bruxa? Ou ele fora muito lento e, quando finalmente poderia ter sacado a arma, já era óbvio que o irmão lobo não ia ferir a bruxa?
Se ele disparasse a arma no necrotério, poderia ter matado Charles. Anna estendeu a mão e tocou seu companheiro, para assegurar-se de que ele estava bem.
– Heuter – disse bruscamente Leslie. – Isso foi desnecessário.
Ele deu um sorriso tenso para a agente do FBI e colocou algum dinheiro sobre a mesa.
– Preciso voltar ao escritório. Deixarei vocês livres para prosseguirem em sua tarde de explorações infrutíferas.
Leslie esperou até que ele saísse e, em seguida, balançou a cabeça.
– Trippers – disse ela.
– Trippers? – perguntou Anna.
– É assim que o chefe chama os agentes da Cantrip – disse Leslie, tomando um gole de seu chá gelado. – Justamente quando você pensa que eles são profissionais de verdade, eles fazem algo assim – ela olhou para Anna, pensativa. – Eu não vou mentir para você e dizer que não há pessoas preocupadas com os lobisomens e os Fae. Nós provavelmente temos alguns agentes do FBI que ficam muito assustados com pessoas como você ou Beauclaire. Mas pelo menos eles são profissionais o suficiente para não agirem assim quando tudo o que vocês estão tentando fazer é nos ajudar a pegar um maldito assassino serial.
Eles pegaram um táxi para Castle Island, a praia onde o corpo de Jacob havia aparecido, deixando o carro de Leslie na garagem ao lado do necrotério. Aparentemente havia estacionamentos na ilha, mas estavam justamente no meio do verão e Leslie não gostava de perder tempo tentando encontrar um lugar para estacionar.
As dúvidas de Anna sobre andar de táxi com o irmão lobo mostraram ser improcedentes. O motorista de táxi, segundo ele disse, tinha um grande vira-lata em casa: um cruzamento de dogue alemão com dinossauro. Quando ele descobriu que Anna nunca tinha estado em Boston antes, deu-lhe um resumo completo sobre a ilha, que não era realmente uma ilha desde 1930.
Suas histórias incluíam um conto fantasmagórico sobre um prisioneiro fugitivo que de alguma forma resultou em uma assombração e a lenda urbana de como o fato de Edgar Allan Poe ter servido o Exército no Forte Independence o levou a situar no forte da ilha a sua história O barril de Amontillado.
– Irado – disse-lhe Anna, quando saiu do carro e entregou-lhe uma gorjeta.
Ele riu e deu-lhe um high-five.
– Você também é irada. Vai ser uma nativa logo, logo.
– Não acredite nisso – disse Leslie, meio de brincadeira. – Os nativos de Boston são os que estão aqui desde a Guerra da Revolução – todos os outros são intrusos, não importa o quanto sejam bem-vindos.
O ar do oceano era frio e refrescante: Leslie liderava o caminho pela calçada de cimento paralela ao oceano do lado do porto na ilha.
A ilha não estava muito cheia – havia muitos lugares para estacionar –, mas havia muitas pessoas do lado de fora desfrutando o sol. As altas paredes de blocos de granito do Forte Independence dominavam a paisagem, que era composta principalmente de grama com alguns arbustos e árvores de tamanho moderado.
– Jacob não ficou aqui muito tempo antes de ser descoberto – disse Leslie. – Não há muitos lugares para esconder um corpo por aqui e, como você pode ver, há muitas pessoas nessa época do ano. A brisa do porto mantém as temperaturas a um nível razoável e a pesca é supostamente muito boa.
– Você acha que ele foi jogado de um barco?
– Essa é a teoria. Havia muitas pessoas ao redor para que alguém pudesse jogá-lo sem ser visto e o médico legista diz que o corpo esteve imerso na água por pelo menos um dia inteiro. Jacob foi encontrado alguns dias atrás. Suspeito que, se havia algo que não vimos inicialmente, agora é tarde demais.
– Provavelmente isso é inútil – concordou Anna. – Mas não tenho certeza sobre o que podemos fazer de útil agora.
Havia todos os tipos de pessoas na rua – corredores, passeadores de cães, observadores de pessoas. O som de crianças gritando na distância competia com os aviões do aeroporto voando através do porto e as aves marinhas.
Eles passaram por uma mulher com um pequinês que vinha em direção oposta. O cachorrinho esticou a guia ao máximo e começou a latir roucamente para o irmão lobo.
– Ele é bastante amigável – disse a dona. – Agora chega, Pedro.
Para vergonha óbvia de sua dona, o cão rosnou, mantendo-se entre os lobisomens e sua dona em uma corajosa mas equivocada tentativa de protegê-la, até que eles estivessem longe.
– Pedro – disse Anna, sorrindo involuntariamente. – Pedro e o Lobo.
– Essa reação é normal? – perguntou Leslie.
– A maioria dos cães tem problemas conosco, a princípio – admitiu Anna, sorrindo. – Ele tinha no máximo cinco quilos, não era? Muito corajoso da parte dele quando você pensa nisso. Após insultos serem trocados, geralmente tudo fica bem. Gatos... gatos não gostam de nós. E eles não se ajustam, nunca – continuou ela, sorrindo novamente para Leslie. – Assim como agentes da Cantrip, acho.
– Heuter é apenas um deles – retrucou Leslie. – É difícil julgar todos da Cantrip por um de seus homens.
– Eu não sei nada sobre isso – disse Anna. – Quem mais poderia participar de uma agência como a Cantrip exceto pessoas que têm medo da escuridão?
– Pessoas que precisam de empregos? – sugeriu secamente Leslie. – A Cantrip tem um monte de gente formada em Quantico que não conseguiu trabalhar com o FBI. Como emprego, a Cantrip toma menos do seu tempo do que o FBI ou a Segurança Interna e paga melhor do que a maioria dos departamentos de polícia. É menos perigoso também, porque eles realmente não fazem nada, a não ser coletar informações.
– Ainda não – disse afavelmente Anna. – Meu pai diz que o governo sem controle é como uma bola de neve; você sempre pode contar com o fato de que vai ficar maior e mais poderosa – continuou ela, e então caminhou alguns passos. – Heuter ia atirar em alguém no necrotério. Se ele pudesse ter disparado a arma antes que se tornasse óbvio que Charles não ia fazer mal a ninguém, ele teria atirado em Charles. Se você não estivesse lá, ele teria feito isso. Na hora eu pensei que ele ia atirar na bruxa, mas mudei de ideia. Os agentes da Cantrip levam armas carregadas com balas de prata.
– Eu também – admitiu Leslie, parecendo envergonhada.
– Tudo bem – disse-lhe Anna. – Você nem sequer pensou em sacá-la.
– Eu não sei por que não. Eu realmente deveria ter feito isso.
– Charles fez o que você queria – sugeriu Anna. – Obrigou a bruxa a tirar as mãos daquele pobre menino. Ela estava se preparando para alimentar-se dele e Charles a impediu.
– Alimentar-se?
– Absorver o restante da magia que os assassinos deixaram para trás.
– Não parece apetitoso. Parece necrofilia.
– Hum-hum – concordou Anna. – Mas você e eu não somos bruxas.
Leslie olhou a distância mirando o porto por um momento e então sorriu.
– Suponho que foi isso mesmo. Eu queria bater nela e seu Charles fez isso por mim.
Havia um monumento à frente que parecia algo como o Monumento a Washington em miniatura – ou, uma vez que eles estavam em Boston, como o Monumento de Bunker Hill. Era um retângulo alto, desgastado pelo mar, de lados estreitos, que se elevava em direção ao céu e terminava em uma ponta. Do lado do oceano, e ainda no caminho, havia alguns embarcadouros com algumas pessoas pescando neles.
– Ainda assim, Heuter... – disse Anna. – Você conhece as ideias do senador Heuter sobre lobisomens, certo? Ele é um dos defensores daquele projeto de lei que quer incluir-nos como uma espécie em extinção.
Leslie franziu o cenho.
– Espécies ameaçadas de extinção?
– E, portanto, não cidadãos – disse Anna. – Acho que não seria de seu interesse tanto quanto é para nós, lobisomens. Ele também quer que os lobisomens sejam obrigados a usar Identificação por Radiofrequência ou IDRF, como se nós fôssemos animais de estimação que podem se extraviar.
– IDRF?
– Isso não se tornou um projeto de lei ainda – disse Anna. – Mas já apareceu em alguns de seus discursos.
– Isso não seria constitucional – disse Leslie.
– Seria, se fôssemos uma espécie em extinção – Anna olhou para o irmão lobo. – Eu gostaria de ver alguém tentar colocar uma coleira com dispositivo de radiocontrole em Charles. Poderia ser divertido assistir a isso no YouTube.
Ele deu-lhe um olhar sério.
Anna levantou a mão que não estava segurando a guia.
– Eu não estou dizendo que faria isso. Eu apenas pagaria para ver alguém tentar.
Leslie deu-lhe um olhar pensativo quando ela parou.
– Eu pensei que vocês eram incompatíveis quando conheci vocês dois. Mas vocês não são, não é?
– Não – concordou Anna. – Sou a única que sabe quando ele está brincando.
– Se você está dizendo... – disse Leslie, divertida.
Anna olhou ao redor.
– Foi aqui que Jacob foi encontrado?
– Bem aqui.
Entre a calçada e o mar havia uma cerca decorativa de canos duplos que a água salgada tinha colorido de verde e ferrugem. Além dela, havia uma curta praia rochosa contornada por grama verde que dava lugar a um pouco de água e um muro de postes de madeira gastos colocados lado a lado, como soldados mantendo as ondas fora da terra. Leslie apontou para um pequeno pedaço de terra entre a parede do embarcadouro e os postes de madeira.
O corpo de Jacob foi um pouco protegido do clima. Anna curvou-se um pouco mais perto do que precisava quando soltou a coleira de Charles e respirou seu cheiro familiar para se confortar.
Charles esperou até que ela se levantasse antes de pular a cerca até a faixa de terra abaixo. Anna não fez nenhuma tentativa de segui-lo.
Leslie deu a ela um olhar inquiridor.
– Ele pode sentir o cheiro das coisas melhor em forma de lobo que você como humana?
– Sim. Mas ele também é melhor nisso do que eu – disse Anna; ela não se sentiu nem um pouco na defensiva por causa disso. Ele ensinara-lhe muito, mas... – Ele tem muito mais experiência do que eu. Cheiros não vêm com uma etiqueta, dizendo este é o vilão; aqui é uma senhora com um cão, aqui é um policial e esse cheiro pegajoso-doce-e-azedo-de-leite é o velho sorvete de casquinha de banana de alguém. Charles pode separar os cheiros que está sentindo melhor do que eu, e datá-los também, normalmente.
O irmão lobo correu até a isolada faixa de terra que Leslie tinha apontado e então seguiu por ela com o nariz no chão.
Um corredor se aproximou deles e parou, correndo no mesmo lugar.
– Seu cão deveria estar em uma coleira – disse ele educadamente, em tom de desaprovação. – São as regras. Há muitas crianças aqui e um cachorro grande como ele pode assustar alguém.
– Lobisomem – disse Anna calmamente, apenas para ver o que ele iria fazer.
Ele parou de correr e olhou, de boca aberta.
– Caramba. Você está brincando.
– É um lobisomem – disse Leslie.
– Esse aí tem o pelo vermelho. Lobisomens não são sempre pretos ou cinzas?
– Lobisomens podem ser de qualquer cor – disse-lhe Anna.
Ele se curvou, esticando as pernas e respirando profundamente.
– Animal bonito. Ei, foi aqui que encontraram aquele menino, não foi? Eu vi a polícia cercando o local alguns dias atrás. Você está com a polícia?
– FBI – Leslie deu-lhe um olhar penetrante. – Você corre aqui o tempo todo?
– Quando estou de folga – admitiu ele. – Eu sou bombeiro. Mas não participei nesse caso.
– Muita coisa aparece por aqui trazida pelo mar?
– Sim, senhora. Muita coisa. Coisas novas todos os dias, mas mantemos o local limpo. O corpo do menino foi o primeiro cadáver que eu saiba, mas só corro aqui há alguns anos – ele olhou para Charles, que felizmente não estava prestando atenção. – FBI. Vocês trouxeram o animal para procurar pistas.
– Ele é um homem – disse Anna, ficando cansada do “animal”.
O atleta não ficou desconcertado por sua correção.
– Ele trabalha para o FBI?
– Não. Estritamente voluntário – disse-lhe Anna.
– Irado – disse ele, com aprovação. – Espere só até eu contar aos caras que eu vi um lobisomem. Ele se importaria se eu tirasse uma foto?
– Nem um pouco – disse-lhe Anna.
Ele pegou o celular de um bolso em seu cinto e ficou parado por tempo suficiente para tirar uma foto.
– Legal. Os caras não vão acreditar.
Ele olhou para a foto e franziu a testa.
– Eles vão dizer que tirei uma foto de um cachorro grande.
– Charles – chamou Anna. – Que tal um sorriso?
Charles virou-se e deu-lhe um olhar irritado.
– Relações públicas – sugeriu Anna.
Ele virou seus olhos dourados para o corredor e então abriu a boca em um sorriso lupino para exibir presas grandes demais para qualquer cão já nascido.
O homem engoliu em seco.
– Lobisomem – sussurrou ele e, então, lembrando o que estava fazendo, tirou outra foto. – Obrigado, cara... lobo. Obrigado. Eles não vão rir disso – continuou o homem, olhando para Anna e Leslie e começando a correr no caminho de volta em seguida. – Ei, boa sorte. Espero que vocês peguem o sujeito.
– Nós também – assegurou Leslie.
Ele virou-se para olhar para elas algumas vezes antes de acelerar o passo e sair da ilha.
– Fazendo um pouco de RP? – perguntou Leslie.
– É sempre bom – concordou distraidamente Anna. – É o meu tipo de trabalho.
Leslie ainda estava vigiando o corredor e viu que ele havia acabado de passar por uma figura familiar. Goldstein avistou o grupo e acenou.
– Eu enviei uma mensagem para o agente Goldstein e disse a ele que estaríamos aqui – disse Leslie.
Anna assentiu.
– Charles não parece estar encontrando nada. Acho que fiz você perder tempo.
– Muito do meu trabalho é assim – disse Leslie.
O agente Goldstein chegou perto delas.
– Encontraram alguma coisa?
– Não – disse-lhe Anna. – Charles?
Charles trotou para onde eles estavam e começou a se transformar, exatamente na frente deles.
Bem na frente de qualquer um que estivesse olhando e vendo o que ele estava fazendo. Não era hábito dele fazer isso.
– O que devemos fazer, Sra. Smith? – perguntou Goldstein calmamente.
– Fiquem quietos e não o toquem, OK? Isso realmente dói; e tocar nele torna tudo pior.
Anna olhou ao redor, mas ninguém parecia estar prestando muita atenção. Isso podia ser pura sorte, ou podia ser algo que Charles estava fazendo propositadamente.
– Lembrem-se, por favor, não olhem em seus olhos.
Eles ouviram alguns barulhos de carne estalando e Leslie estremeceu.
– Sim. Isso dói – concordou Anna. – É por isso que se vocês estiverem perto de um lobisomem recentemente transformado – seja qual for a forma – vocês devem andar suavemente por algum tempo. A dor deixa os melhores de nós bastante rabugentos.
– Isso significa que ele achou alguma coisa? – perguntou Leslie.
– Não sei – respondeu Anna. – Isso ou... ou ele decidiu que era um bom dia para causar um ataque cardíaco em alguns bostonianos.
– Não é tão ruim quanto no cinema – disse Goldstein, em um tom de voz filosófico. – Não há líquidos ou gosma clara escorrendo, por exemplo.
– Eca – disse Anna. – Entretanto, se você se mexer na hora errada, pode haver sangue.
Leslie se virou e engoliu em seco.
– Estou brincando – disse Anna. – Mais ou menos.
– Ainda assim – continuou Goldstein – posso ver por que ninguém concordou até hoje em se transformar na frente de uma câmera.
– Toda aquela coisa de ter que ficar nu para se transformar torna as coisas mais difíceis, também – disse-lhe Anna. Aquilo não era fácil de observar, nem mesmo para ela. Você não precisava ser um lobisomem para observar articulações e ossos sendo transformados sem solidariamente sentir a dor em sua própria carne. E havia também a estranheza de ver coisas que deveriam estar do lado de dentro do corpo aparecendo do lado de fora.
– Você precisaria de uma rede de TV a cabo como a HBO. E estamos tentando fazer as pessoas se esquecerem de que somos monstros – esse é um tipo de lembrete desagradável.
– Eu achei que demorava mais do que isso – disse Goldstein, enquanto Charles se tornava quase totalmente humano.
Leslie estava com medo, mas mantendo a calma. Goldstein parecia estar pronto para adormecer.
– Para a maioria de nós, demora – concordou ela. – Lobos Alfa tendem a ser mais rápidos e podem se transformar mais frequentemente. Charles é mais rápido do que a maioria dos Alfas. Achamos que é pela mesma razão pela qual ele aparece com roupas quando se transforma – ele tem antepassados que usavam magia em ambos os lados de sua ascendência.
Eles não precisavam saber que Charles havia nascido um lobisomem.
– Para um lobisomem misterioso – observou Goldstein –, você parece extremamente feliz em conversar.
– O desconhecido é assustador – disse-lhe Anna. – Minhas ordens são para vir aqui, ajudar vocês onde puder, e tentar passar uma boa impressão dos lobisomens, para o FBI e para o público. Como eu faço isso, fica a meu critério. É difícil fazer amizade com alguém que você considera assustador.
– Seu marido é assustador, seja como lobo ou humano – disse Leslie.
Anna assentiu com a cabeça.
– Ele tem que ser. Independentemente disso, Charles é um dos mocinhos.
Charles já havia se transformado completamente e estava vestindo jeans, botas de amarrar de couro escuro e uma camiseta cinza claro. Ele levantou-se, deixando os olhos fechados e os músculos tensos enquanto lidava com as últimas e debilitantes contrações da transformação. Ele flexionou os dedos algumas vezes e, em seguida, olhou para Anna.
– Telefone para Isaac. Diga a ele que precisamos de um barco e sua outra bruxa.
Sua voz era grave.
– OK.
Ele olhou para Leslie.
– Ligue para o seu médico legista. Veja se conseguimos alguns cabelos de Jacob. Pele também serviria, mas o cabelo seria mais fácil para o resto de nós.
– Eu terei de lhe perguntar por quê.
Charles levantou uma sobrancelha desafiadora.
– Eu vou lhe dizer por que e você pode inventar uma boa mentira. Um dos pequenos espíritos da água me disse que o menino foi levado de uma ilha e jogado no porto. Ela se assegurou de que ele viesse parar aqui, o que foi útil para nós, mas acho que fez isso porque não queria que a magia negra permanecesse em sua água. Esse tipo de magia pode atrair algumas coisas desagradáveis. Ocorreu-me que, se o corpo ainda tinha suficiente resíduo de magia para deixar a bruxa Caitlin toda animada, então o local onde ele foi morto ainda pode ter o suficiente para que uma bruxa de verdade possa localizá-lo – se ela tiver um pouco de Jacob para se orientar.
– Espíritos da água? – disse Leslie, parecendo estupefata.
– Isso é por causa de seus antepassados xamãs, não é um talento de lobisomem – disse-lhe Anna. – Eu também não posso vê-los.
– Eu conheço o legista desde a minha temporada em Boston há alguns anos – disse Goldstein, após um momento de silêncio. – Eu vou falar com ele. Talvez fazer um pouco de chantagem se for preciso. E nós podemos arrumar um barco.
Charles balançou a cabeça.
– Nenhuma bruxa entraria em um barco oficial do FBI, nem morta. Terá que ser um dos barcos de Isaac.
– Eu vou telefonar para Isaac e depois para Beauclaire – disse Anna. – Se nós tivermos uma chance de encontrar sua filha, ele vai querer saber.
– Bruxas e fadas não se dão bem – avisou Charles.
– Se o destino da filha dele estiver nas mãos de uma bruxa, Beauclaire irá trazer-lhe flores e beijar seus pés –disse-lhe Anna, com certeza absoluta. – Além disso, se nos depararmos com esse lorde cornudo, pode não ser uma má ideia ter um Fae grande e mau do nosso lado – e do jeito que ele anda atirando informações sem se preocupar com isso, quer dizer que ele está louco, ou que é mesmo um Fae muito grande e mau.
Charles olhou para ela e então inclinou a cabeça.
– Eu confio em seu julgamento.
Anna olhou para Leslie.
– Mas vamos deixar a Cantrip de fora, OK? Teremos lobisomens, bruxas e Fae, não precisamos de um homem hostil e medroso que possa atirar tanto em aliados quanto em inimigos.
– Além disso, Heuter é um idiota – disse Leslie. – E eu não sei quanto a você, mas não quero ficar presa em um barco com ele.
– Exatamente.
Charles não gostava do oceano.
Ele gostava ainda menos de andar de barco; e não lhe agradava a forma como o colete salva-vidas restringia seus movimentos. O Daciana, o barco de trinta pés onde estavam, podia ter sido projetado para a pesca em alto-mar, mas barcos de pesca com um painel de controle central como esse nunca pareciam realmente grandes o suficiente para lidar com o clima no meio do oceano.
No barco mal cabiam todos eles: Charles e Anna, os dois agentes do FBI, Malcolm (o dono do barco), Isaac (que insistira em vir), Beauclaire e a bruxa de Isaac (que estava atrasada).
Se eles encontrassem Lizzie, poderiam ter que amarrá-la na proa ou fazê-la nadar atrás do barco. A única coisa que poderia ter piorado a situação era ter o barco manipulado por alguém que não fosse um lobo – não seria apenas a bruxa a se recusar a entrar em um barco da polícia ou federal.
– Charles – disse sua companheira, vindo por trás dele, que estava sozinho na proa – um tanto isolada do resto do pequeno barco. Malcolm e Isaac estavam resmungando sobre cursos e mexendo com os instrumentos embutidos no pequeno convés central elevado que tinha a única área protegida do barco. Todos os outros tinham escolhido esperar no cais até a bruxa chegar.
Ele ouviu Anna se aproximar, sentindo a ligeira inclinação do barco. Tinha sido tão fácil ficar com ela quando ele estava na forma de lobo. O irmão lobo não estava perturbado, ele sabia que poderia protegê-la de qualquer coisa, mas seu lobo era assim: confiante. Charles não era tão otimista.
A mácula dos fantasmas que ele carregava estava começando a cansá-lo.
Um dia, em breve, Anna iria olhar em seus olhos e ver o mal dentro dele. Charles desejou que fosse possível ter ficado em sua forma de lobo, mas conversar com Anna sem abrir o vínculo entre eles era muito difícil. E ele não podia fazer isso por medo de que os fantasmas pudessem usá-lo para machucar Anna. Havia histórias sobre isso, sobre fantasmas que haviam destruído todas as pessoas próximas ao homem que os matara.
Era mais fácil ser lobo do que humano, porque o seu mal não podia tocar o irmão lobo. O lobo não sentia nenhuma culpa, porque a culpa era uma emoção humana.
Anna tocou seu ombro. Charles não se virou para sua companheira, porque não podia encará-la enquanto estava pensando no mal que carregava dentro dele. Em vez disso, ele olhou para o estibordo da proa e para a água: o sol estava se pondo em listras azuis, prateadas e ouro-claro.
– Vai estar escuro quando chegarmos ao ancoradouro.
Anna fez um som concordando.
– Eu sei que essa não é a hora certa, mas observando você parado aqui, absorto, ocorre-me que você, evidentemente, esqueceu-se de algo, e acho que é melhor lembrá-lo disso. Eu deveria ter feito isso esta manhã.
Charles se virou para ela finalmente. Como ele, Anna estava olhando a distância, o ombro roçando o seu como as asas de uma borboleta.
– O que é?
– Você é meu.
Anna não olhou para ele, mas sua mão fechou-se possessivamente sobre a dele, que estava pousada na beirada do barco. Sua voz era suave e sem ênfase; nem mesmo ouvidos de lobisomem a teriam ouvido a três metros de distância.
– Seus fantasmas não podem ter você, Charles. Então, exorcize-os antes que eu tenha que fazer isso – a última frase foi uma ordem clara, afiada como um caco de gelo. O irmão lobo grunhiu de satisfação. Ele gostava quando sua companheira mostrava-se possessiva e reafirmava seus direitos sobre ele. E Charles também.
– Vamos lá, sorria – disse ela, falando sério, apesar de seu corpo estar relaxado contra o dele. – Basta manter isso em mente. Talvez você não tenha que combater todas as suas batalhas sozinho.
– Vou me lembrar de suas palavras – disse-lhe Charles, com a seriedade de antes, embora imaginasse Anna pegando o rolo de macarrão de sua avó e indo atrás dos fantasmas que o assombravam; isso fez com que ele quisesse... sorrir novamente.
– Assim é melhor – disse Anna, com ar satisfeito. – Chega de remoer as coisas.
E ela estava certa.
O barco balançou um pouco quando Isaac e Malcolm moveram-se de repente; houve um toque de expectativa no ar.
– Já estava na hora de você chegar, mulher – gritou Isaac, em um tom de voz com afeto real.
Surpreso, Charles virou-se para ver uma mulher andando pelo cais onde o barco estava ancorado. Ela era mais alta do que a média, mais alta até que Isaac, que havia saltado do barco para trotar pelo píer para encontrá-la. Ele a beijou, curvando-se sobre ela, demorando-se.
– Ele está dormindo com a bruxa, a mesma que ele nos disse ser desonesta demais para que pudéssemos obter informações confiáveis sobre o corpo de Jacob? – disse Anna; sua voz soava descontente.
Charles riu e puxou-a mais para perto para que pudesse colocar o queixo no topo de sua cabeça.
– Ele tem coragem – disse ele. – Mas se esqueceu da primeira regra do vestiário dos homens.
– Qual é?
– Não coloque o seu... – Charles não tinha necessidade de ser grosseiro, então ele se corrigiu. – Não transe com uma mulher louca, não importa como ela seja bonita.
Ela bufou.
– Você não a conhece.
– Conheço bruxas – disse ele. – São todas loucas.
– E Moira?
Moira era a bruxa branca que estava na folha de pagamento da alcateia da Cidade Esmeralda. Anna conhecera-a alguns anos atrás e elas haviam se tornado amigas.
– Exceto as bruxas cegas, como Moira – concedeu Charles.
Eles observaram enquanto Isaac apresentava a bruxa – Hally Smith – para os agentes do FBI. Ela não era bonita, mas causava impacto com seus cabelos escuros, um nariz longo e elegante e uma boca larga e generosa.
Isaac ajudou-a a entrar no barco. Para Charles, ela cheirava a magia negra quando se aproximou e ele se perguntou como Isaac aguentava aquilo. Moira, a amiga de Anna, era uma bruxa branca. Ela geralmente cheirava a ervas, especiarias e a magia do seu dom. Hally cheirava a morte, sangue velho e fantasmas.
A bruxa olhou para Charles, como se pudesse ler sua mente, o que ele sabia muito bem que ela não podia.
– Bem – disse ela, em uma voz baixa e rouca. – Ouvi falar muito sobre você, Charles...
Isaac fez um ruído em sua garganta e ela sorriu.
– Charles Smith. Veja só, temos o mesmo sobrenome. Que adorável.
– O sobrenome dela realmente é Smith – disse-lhe Isaac.
– Conveniente – disse Anna. – As pessoas vão pensar que você está mentindo, mesmo quando não estiver.
– Mas não você – disse a bruxa, e Charles lutou contra o desejo de agarrar sua companheira e colocá-la atrás dele, onde ele poderia protegê-la melhor. – Você e sua espécie podem dizer se eu estou mentindo.
– Só se a pessoa não for uma boa mentirosa – disse Anna, se desculpando e falando honestamente ao mesmo tempo. Um bom mentiroso poderia enganar um lobo jovem como Anna e impedi-la de descobrir uma mentira, mas um velho lobo como Charles quase sempre poderia identificar uma.
Anna continuou a esclarecer a questão.
– Se você acreditar em suas próprias mentiras ou se contar mentiras é algo que não a incomoda, podemos ser enganados. Na verdade, somos mesmo mais fáceis de enganar, pois muitos de nós pensam que são infalíveis. Eu, pessoalmente, tenho sempre cuidado para não subestimar a capacidade de mentir das pessoas.
– Vou me lembrar disso.
Hally sorriu e aceitou um colete salva-vidas de Isaac; em seguida, entregou-lhe sua bolsa (na verdade, uma mochila de lona impermeável) para que ele segurasse enquanto ela colocava o colete. Havia uma arrogância silenciosa em relação ao ato que deixou o irmão lobo irritado: Isaac não era o companheiro nem o servo da bruxa, para que seu serviço fosse simplesmente algo corriqueiro. Ela colocou o colete por cima do suéter de lã.
– Você está pensando em mentir? – perguntou Leslie Fisher, com interesse.
Anna deu-lhe um olhar rápido e, em seguida, olhou para Charles, que a deixou ver que ele não se incomodava; por isso, ela relaxou.
O sorriso de Hally se aprofundou.
– Eu ainda não sei. Isaac disse que você tem um pouco do corpo de Jacob para mim?
Goldstein sentou-se ao lado de Leslie, com as costas voltadas para o lado da popa do barco. Ele pegou um saco plástico do bolso do salva-vidas que continha um quadrado de cinco centímetros de pele e um pouco de cabelo escuro e depois o entregou a Hally, que o recebeu com o entusiasmo de uma criança que havia ganhado um pirulito.
– Esplêndido – disse ela. – Provavelmente seria melhor esperarmos até chegar ao porto antes que eu comece a fazer a magia. Tudo o que vamos conseguir é a distância e uma direção, não o percurso mais próximo até lá. A magia não vai durar para sempre, então eu prefiro esperar até estar em algum lugar que nos será mais útil. Isaac passou-me as informações – nesse momento, ela olhou para Charles –, e prometeu-me a recompensa.
Os serviços dela não eram baratos. Se não fosse o fator tempo, eles poderiam ter trazido Moira e Tom de Seattle por uma quantia consideravelmente menor.
– Dez mil dólares – concordou Charles.
Leslie assobiou.
– Não admira que não consultemos bruxas com muita frequência.
– Você está pagando pela melhor – disse Hally presunçosamente. – Vamos içar as velas?
– Motor – disse Anna, apontando para a popa. – Sem velas.
Oito
Charles manteve uma estreita vigilância da proa do barco enquanto Malcolm manobrava o Daciana ao redor de barcos e outros obstáculos variados com toda a habilidade de navegação de um pirata enquanto assobiava uma versão animada de The Ellen Mary Carter, uma canção sobre homens reivindicando um navio afundado, em um tom desafinado. Se Bran estivesse com eles, sem dúvida teria se juntado à música. O pai de Charles adorava concertos improvisados, especialmente com pessoas que cantavam – ou assobiavam – canções de Stan Rogers, embora naquele momento, e considerando os passageiros do barco, The witch of Westmoreland teria sido mais apropriada.
O movimento do oceano fazia o estômago de Charles revolver-se – outra razão pela qual ele não gostava de barcos. Anna estava ajoelhada na proa, bem na ponta do barco, com o rosto ao vento e uma expressão pacífica no rosto, que fez o irmão lobo querer beijar seus pés e outros lugares – embora Charles fosse vomitar no momento em que se inclinasse.
– Eu também me sinto assim – disse Isaac, vindo da parte de trás do barco. Ele encostou-se junto à parede do painel de controle e falou com um tom de voz bem calculado para ser ouvido por sobre o barulho do motor, mas não tão alto que qualquer outra pessoa pudesse ouvir. – Mas depois que eu vomito, fico bem – e então ele elevou a voz. – Mas eu sou o Alfa da alcateia de Olde Towne, com os diabos, e não posso me dar ao luxo de vomitar as tripas na presença de um bando de estranhos. Eles podem encontrar pedaços daquele vendedor irritante que eu comi na noite passada.
Charles olhou-o de cara feia.
– Muito bom você dizer isso agora.
Isaac jogou a cabeça para trás e riu.
– Você é legal, cara. Malcolm disse que está indo para um lugar onde poderemos enxergar a maioria das ilhas. Há também grande quantidade de armazéns abandonados ao longo da costa, graças ao desmoronamento da indústria pesqueira por aqui. Há muitos lugares para prender e torturar pessoas sem ninguém para ouvir. Você realmente vê espíritos indígenas e fala com eles?
– Espíritos – corrigiu Charles. –Não há nada de indígena em relação a eles, com exceção do fato de que nós acreditamos que eles existem e a maioria de vocês, olhos-brancos, não. E respondendo à sua pergunta, sim.
Isaac gargalhou.
– Não posso acreditar que você me chamou de olho-branco. Melhor do que cara-pálida, eu acho, mas isso parece tão Bonanza. – disse Isaac, e seu rosto suavizou-se. – Meu avô, ele podia ver fantasmas. Quando ele já estava muito velho, ficava se balançando em uma velha cadeira de balanço de madeira escura e contava a nós, crianças, sobre o assassino que assombrava a casa onde ele cresceu e tentou tornar a vida dele um inferno, quando ele era jovem demais para ler e escrever.
– Fantasmas são diferentes de espíritos – disse Charles. Sim, gritaram aqueles que o perseguiam, conte-lhe sobre seus fantasmas, faça com que nos tornemos um pouco mais reais cada vez que você fala de nós, cada vez que nos vê ou pensa sobre nós. Diga a ele que os fantasmas das pessoas que você mata podem voltar e matar aqueles a quem você ama, se você for burro o suficiente ou não souber como libertá-los depois da morte.
Charles teve que esperar um momento antes que pudesse continuar e disfarçou-o como se fosse enjoo do mar por causa do movimento do barco, engolindo pesadamente.
– Os espíritos que vejo são mais... uma forma pela qual a natureza fala com aqueles que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir. Eles nunca foram humanos. Eu não vejo fantasmas – mentiroso!, cacarejou um no seu ouvido –, não como seu avô via, mas já conheci pessoas que os viam. Não é um dom fácil de possuir.
– O meu avô, ele era um velho durão. Eu acho que ele era durão mesmo quando tinha cinco anos de idade e enfrentou uma assombração que ninguém podia ver. Isaac sorriu. O sol estava baixo e seus dentes brilhavam à luz da lua crescente. Faltavam dois dias para a lua cheia. – Durão como eu.
Durão e estúpido, pensou Charles, com um suspiro.
– Você está dormindo com a bruxa?
Isaac sorriu brancamente.
– Sim, senhor. E ela me traz café na cama, também.
Charles gostava desse jovem Alfa durão, por isso quis avisá-lo.
– Bruxas negras não são amantes confiáveis.
– Eu entendo – disse Isaac. Ele balançou os ombros para relaxá-los. – Eu sou um lobisomem; não posso me dar ao luxo de ser delicado – mas nunca poderia me apaixonar por uma mulher que tortura gatinhos para fazer poções de amor, mesmo que ela não faça isso perto de mim. É apenas desejo carnal mesmo e eu estou aproveitando enquanto dura; e deixo claro para ela que isso é tudo.
– As mulheres ouvem o que os homens dizem – disse Anna, sem se virar. – Isso não significa que elas acreditem neles. Você não deve brincar com uma bruxa, Isaac, e elas são tão possessivas quanto qualquer mulher. Você é bonito, forte e poderoso – ela não vai querer largar isso com facilidade.
– Você está tentando roubar meu homem?
Hally não parecia ter qualquer problema para se mover no balanço do barco, ao contrário do resto do grupo.
E ela era boa em se esgueirar, porque Charles não havia notado que ela se levantara de seu assento para contornar o lado oposto do painel de controle. Hally ainda carregava sua mochila – e estava segurando o saco plástico ao lado de seu rosto como se ele contivesse uma rosa em vez de um pedaço de pele de um menino morto.
Anna manteve uma mão no corrimão e rolou até sentar-se com apenas um quadril na borda na proa, para que assim pudesse enfrentar a bruxa. Seu companheiro sorriu um de seus grandes sorrisos generosos.
– Não. Só avisando-o sobre dormir com coisas perigosas. Tigres são tesouros raros – e irão comer você sem parar para pensar nem por um segundo...
A bruxa empertigou-se, envaidecida, e sua ira correu para longe. Sua Anna era muito boa em lidar com as pessoas – incluindo Charles. Era bom que a bruxa estivesse olhando para Anna e não para Isaac, porque Isaac tinha ouvido claramente o que Anna havia dito também. E quando um Ômega falava, era o lobo quem ouvia, não importava o que o homem pensasse. Parecia que Isaac tinha levado um tapa...
– Tigres precisam ter cuidado perto de lobos – disse Charles, para evitar que ela olhasse para Isaac.
Hally estreitou os olhos. Ela parecia mais uma cobra que um tigre – elas eram belas, também; feras belas e frias, matando com veneno em vez de presas ou garras.
– Você está metendo o nariz em lugares que não lhe pertencem, lobo – disse Hally, como se achasse que Charles deveria se preocupar com ela.
Hally havia ultrapassado o limite e, por isso, o irmão lobo olhou em seus olhos e deixou-a ver que ele havia matado bruxas mais poderosas do que ela, e que não se incomodaria em fazê-lo novamente.
Ela engoliu em seco e recuou, tropeçando quando uma onda a deixou sem equilíbrio.
– Você pode fazer o que bem entender – disse-lhe Charles; sua voz era fria e calma. – Divirta-se. Contudo, ao final do dia, lembre-se de que Isaac pertence ao meu pai – e a mim. Ele é necessário para nós, e você não é. É melhor você deixá-lo ileso, ou vou caçá-la e destruí-la.
Hally silvou para ele como um gato. Mas quando Charles apenas olhou para ela, Hally correu desajeitadamente até o outro lado do painel de controle, fora de sua linha de visão.
Isaac estava olhando para Charles com olhos dourados e brilhantes. O Alfa inclinou a mandíbula, expondo sua garganta. Charles avançou e mordeu-o levemente antes de liberá-lo.
Da parte de trás do barco, Beauclaire observava-os com olhos inumanos e o irmão lobo queria impor respeito ao homem Fae da mesma forma como havia acabado de colocar a bruxa em seu lugar. A lua chamava, os fantasmas em sua cabeça uivavam... e Charles deu meio passo para longe do corrimão da amurada.
– Você fez um inimigo – disse Isaac, com uma voz calma e suave, distraindo o irmão lobo. Beauclaire baixou os olhos finalmente e o momento passou.
– Ela é uma bruxa negra – disse Charles, igualmente em silêncio. – Sempre fomos inimigos. Por ora, temos o mesmo objetivo; isso é tudo. Se o seu alvo é somente prazer e você tem certeza de que esse é o dela também, isso é bom. Apenas lembre-se: bruxas negras não amam nada exceto o poder.
Isaac engoliu em seco e desviou o olhar.
– Bruxas brancas são apenas comida para o resto. Hally tinha uma irmã que morreu quando tinha dezesseis anos porque se recusou a tomar o caminho da magia negra para o poder. Uma grande bruxa má a devorou.
Charles assentiu.
– Você pode até admirar a sobrevivente, mas Hally sobreviveu. Ela vai se assegurar que sempre sobreviva. É melhor você ter certeza de que o mesmo seja verdade para você.
O pequeno barco desacelerou e os motores silenciaram. O céu estava escuro, exceto pela lua prateada e a fina faixa de nuvens que passava entre eles e ela.
– Aqui – disse desnecessariamente Malcolm.
A bruxa pegou o saco plástico que Goldstein havia lhe dado e subiu a escada de alumínio até a plataforma de pesca acima do painel de controle. Era o melhor lugar para fazer aquilo: uma superfície plana e aberta em um barco – mas Charles tinha certeza de que a bruxa sabia e gostava do fato de que a altura a colocava no centro do palco, e transformava o resto deles em seu público.
Em pé no topo da escada, Hally pegou um pequeno tapete de sua bolsa e estendeu-o. Enquanto ela o estava arrumando no lugar, Charles teve um vislumbre de círculos e símbolos e percebeu que ela havia tecido as proteções no tapete – uma bruxa teria normalmente usado giz para desenhar. Era uma coisa inteligente, algo que iria poupar seu tempo e evitar problemas – e também funcionaria admiravelmente bem em um barco sob a chuva.
Ajoelhada sobre o tapete, ela tirou quatro ou cinco pequenos vasos de cerâmica e distribuiu-os como se o local onde foram colocados fosse importante. Ela fez o mesmo com oito castiçais de prata que continham velas de cor escura – provavelmente eram velas negras, mas algumas bruxas trabalhavam com velas vermelhas também. Ela ajustou e mudou as coisas de lugar por um tempo. Finalmente, Hally colocou uma vela no centro de seu trabalho.
– Luz – disse a bruxa, em uma voz comum, meio segundo antes de as velas se acenderem, apesar do salgado ar marinho. As chamas dos pavios queimaram constantes e brilhantes contra o vento que soprava os fios de cabelo que haviam escapado de sua trança. Magia. A voz dela não tinha sido o gatilho, apenas uma distração ou enfeite. A fumaça disse ao seu nariz aquilo que Charles já supunha – havia sangue humano nas velas que queimavam.
A forma como as bruxas faziam seus feitiços diferiam de uma bruxa para outra e dependiam de muitas coisas: seus antecedentes familiares, quem haviam sido seus professores e um pouco de suas próprias personalidades. Essa gostava de serpentear e gemer, mas fazia isso com toda a graça de uma talentosa dançarina de dança do ventre, e seus gemidos eram ambos musicais e hipnotizantes.
Charles sentiu a chuva mágica descer sobre o pequeno barco e viu-se concordando com a avaliação de Isaac: ela era mesmo poderosa.
Isso o fez desejar que ele tivesse chamado a bruxa branca Moira no final das contas. Hally não o assustava, mas Charles, em sua paranoia, não gostava de estar com a sua companheira no meio do oceano em um barco acompanhado de uma bruxa de primeira classe que, como Anna prestativamente dissera anteriormente, não se importaria em matá-los. Ele não gostava absolutamente de estar sob o poder de alguém.
Se nós pulássemos lá em cima, ela iria gritar e cair na água, garantiu-lhe o irmão lobo, porque ele também não gostava de estar sob o poder da bruxa. Ou poderíamos simplesmente matá-la e poupar-lhe o trabalho de se afogar.
Hally colocou o conteúdo do saco plástico em uma pequena panela cor de marfim em forma de um sapo com grandes olhos, como um sapo de desenho animado; suas costas tinham uma abertura, como se fosse feita para encaixar uma vela ou uma pequena planta. A panela cabia na palma da mão da bruxa. Em seguida, ela tirou um frasco da bolsa, arrancou a rolha com os dentes e jogou o líquido na panela. Pelo cheiro, Charles sabia que era conhaque – e não era uma boa marca. Annie Green Springs, Everclear ou álcool comum provavelmente fariam o mesmo efeito.
Guardando o frasco vazio de volta em sua mochila, a bruxa segurou a panela sobre a chama da vela média com ambas as mãos, continuando o seu canto melódico. Depois de alguns momentos, ela tirou as mãos do pote e ele pairou sobre a vela sem se mover. Ela sentou-se sobre os calcanhares, levantou o rosto para a lua, que acariciava sua pálida pele inglesa, e deslizou suas mãos, que tremiam febrilmente, até uma distância de cerca de três centímetros da panela. Eram gestos teatrais concebidos para ocultar as partes importantes, no caso de outra bruxa estar assistindo.
Charles começou a se afastar do show, mas o canto de seu olho viu algo e ele congelou. Uma sombra mais espessa do que o vapor deslizou da boca do sapo. Ela caiu sobre o tapete e tornou-se ainda mais espessa e escura, preenchendo o espaço entre a bruxa e as velas. Charles olhou em volta para os outros, mas ninguém parecia preocupado ou excitado; por isso, Charles supôs que ele e Beauclaire, que estava lentamente se levantando, eram os únicos que podiam ver a sombra.
No meio de sua música, no auge de sua dança, a bruxa ficou imóvel e disse:
– Escuridão.
As velas e cada uma das luzes do barco se apagaram.
Malcolm xingou, mergulhou em direção ao painel de controle e freneticamente mexeu nos interruptores. Ele colocou um pé no primeiro degrau da escada, presumivelmente para subir e enfrentar a bruxa por se intrometer com seu barco.
Como Malcolm estava sob a proteção dele, Charles passou por Isaac (ainda observando a bruxa) até chegar ao lobo-piloto, empurrando inevitavelmente o Alfa e confiante de que ele teria presença de espírito suficiente para não cair no mar.
Charles pegou Malcolm pelos ombros quando ele já havia subido dois degraus, puxando-o de volta para o deque. Interromper uma bruxa não era uma boa ideia para qualquer um que quisesse viver mais tempo. Malcolm se livrou do toque desconhecido e rosnou. O barulho cessou assim que ele viu quem o tinha agarrado.
Uma luz fraca começou a brilhar no topo da plataforma de pesca, distraindo ambos.
– O que... –
Diabos, pensou Charles, enquanto a luz se transformava na figura tridimensional de um menino de oito anos de idade.
O cheiro da magia negra fez o enjoo anterior de Charles voltar com um forte toque de vingança e ele se afastou do centro do barco tanto quanto possível. A mão fria de Anna fechou-se sobre a dele. Ela estava tremendo. Mas não de medo. Não sua Anna. Ela estava tremendo de raiva.
– Diga-me que isso era necessário – disse ela.
– Não era – respondeu Charles. Ele sabia que Anna não estava se referindo à bruxa, mas sim ao método que ela havia escolhido. Feitiços direcionais eram fáceis. Ele não os fazia, mas já tinha visto alguns. Conjurar um fantasma para servir de bússola era um grande feitiço, um feitiço para demonstrar poder, e inteiramente desnecessário.
– Diga-me que ela não vai ficar com ele.
– Ela não vai ficar com ele – disse-lhe Charles. Ele não era bruxo, mas seu avô ensinara-lhe uma coisa ou duas. Charles podia não ser capaz de se livrar de seus próprios fantasmas, pois precisava, de alguma forma, consertar aquilo primeiro, mas Jacob Mott, conjurado através de magia negra, não seria problema.
– Tudo bem – disse Anna, com a voz firme, confiando na sua palavra.
– Jacob, eu te invoco – disse a bruxa, com uma voz doce como mel, em um crescendo sobre o vento e o barulho das ondas. – Jacob, eu te conjuro. Jacob, eu o nomeio. Faças a minha vontade.
A figura do menino, brilhando com o luar prateado, parou com as costas voltadas para ela, de cabeça baixa; via-se a relutância em cada linha de seu corpo. Mas Charles podia ver seu rosto – não havia nenhuma expressão nele e seus olhos brilhavam vermelhos como fogo.
– Onde eles o mataram, Jacob Mott? Onde é que eles sacrificaram seu ser mortal?
O menino levantou a cabeça, olhou para o sul e para o leste, e apontou.
– Eu não posso pilotar o barco sem luz – disse Malcolm. – É ilegal, para começo de conversa. E não quero ser pego com velas feitas com sangue humano. Não me importo com multas, mas não irei para a prisão.
– Minha magia precisa de escuridão – disse a bruxa, com uma voz soturna.
Beauclaire saiu de seu assento e tocou a amurada do barco. As luzes voltaram e a bruxa virou-se para encará-lo.
– Sua magia é a escuridão – disse repressivamente o Fae. – O resto é teatro barato.
A bruxa o ignorou e colocou as mãos sobre os ombros do garoto, acariciando-o de uma forma não maternal.
– Obrigado – disse Isaac, dirigindo-se ao Fae.
Malcolm, com o rosto tenso – ele tinha que ficar diretamente sob a mácula da magia negra, a fim de pilotar o barco –, virou o Daciana. Quando a direção que o menino estava indicando alinhou-se com o ponto da proa, Isaac aprovou – e o Daciana firmou-se no curso.
Malcolm olhou para suas cartas de navegação e então falou em voz alta o suficiente para que as pessoas que não eram lobisomens ou Fae pudessem ouvi-lo sobre o barulho do motor e das ondas:
– Parece que estamos indo para uma dessas três ilhas: Long, Georges ou Gallops.
– O que você acha? – perguntou-lhe Isaac e, em seguida, se dirigiu aos demais. – Malcolm ganha a vida transportando qualquer um que lhe pague para pescar ou explorar. Ele faz isso há 35 anos e conhece o porto melhor que qualquer pessoa viva.
– Poderia ser qualquer uma delas, eu acho. Um monte de pessoas passa pela Georges durante o dia, o que me deixaria nervoso se eu estivesse tentando manter prisioneiros vivos.
– Que tal a ilha Long? – perguntou Leslie. – Pode-se chegar a ela de carro também, certo?
– Certo – Malcolm ficou quieto. – Long tem os edifícios de saúde pública e pessoas que vivem e trabalham ali todos os dias. Mas há muitos lugares onde ninguém vai. Locais onde alguém pode esconder pessoas, mais do que nas ilhas Georges ou Gallops. Esses edifícios hospitalares antigos têm túneis que vão de um lugar para o outro. Há alguns prédios vazios também: a velha sala de concertos, a capela e alguns ligados ao antigo hospital. O Forte Strong está caindo aos pedaços e cheio de bons buracos para se esconder. O velho Alfa fez-me liderar um par de caçadas na lua cheia lá. Nós caçamos em Gallops, também, e nessa ilha precisamos fazer um pouco mais disso, porque há coelhos lá fazendo um monte de estragos. Se ninguém notar os barcos, não há problema. Não precisamos nos preocupar em não fazer barulho quando caçamos porque a ilha foi colocada em quarentena na última década. Gallops tem antigos edifícios militares cheios de amianto e não há dinheiro para limpá-los.
– Nosso UNSUB conhece muito bem a área – observou Anna.
– Sempre achei a mesma coisa – concordou Goldstein, que tinha se levantado e caminhado em torno do barco até chegar a um lugar onde tinha uma visão melhor do menino morto que guiava sua viagem. – Ele faz isso na maioria de seus campos de caça: usa o território mais como um nativo do que um viajante.
Goldstein parou e franziu a testa para o menino, que brilhava suavemente.
– Ele é um fantasma? – perguntou ele.
Anna olhou para Charles e todos os outros seguiram o exemplo. A bruxa olhou para ele também, e sorriu.
Charles ignorou isso e respondeu da melhor forma possível.
– Não a sua alma, que se libertou. Ela não poderia tê-la tocado.
Ele acreditava nisso, acreditava que a única pessoa que poderia destruir ou macular a própria alma era a pessoa a quem a alma pertencia, embora seus fantasmas estivessem rindo enquanto ele falava. Você nos maculou, eles lhe disseram. Você roubou a nossa vida e nos maculou. Contudo, Charles continuou, estoicamente ignorando as vozes dos mortos.
– Um fantasma é constituído de pequenos pedaços deixados para trás, colocados juntos. Lembranças mantidas em edifícios ou coisas – e, aqui, na carne e no cabelo.
– Não é realmente o menino? – perguntou Leslie Fisher; pelo tom de sua voz, se ele dissesse que sim ela teria atirado em Hally sem pensar nem um segundo.
– Não. É mais como um suéter que ele usou e jogou fora – disse-lhe Charles. Os olhos vermelhos, ele tinha certeza, eram causados por algum aspecto da magia da bruxa.
Leslie olhou para a figura do menino e Charles achou que, se ela olhasse para seus filhos dessa forma, eles se contorceriam. Em seguida, ela balançou a cabeça e andou até a parte de trás do barco – sentando-se ao lado de Beauclaire em vez de sentar nos assentos traseiros atrás do painel de controle, o que a teria deixado de costas para a bruxa. Charles não a culpou por isso.
Depois de um tempo, Malcolm disse:
– Não é Long nem Georges. Estamos indo para a ilha Gallops ou algum outro lugar ao longo da costa.
– Não é na costa – disse a bruxa, levantando o rosto para o céu noturno. – Vocês não sentem? É glorioso. Eles devem ser amadores para deixar tal festa não consumida para trás.
Ela sorriu e era um sorriso terrível, que a fazia parecer doce e jovem – e a causa do sorriso era a morte de Jacob Mott e outros antes dele.
– É muito ruim o fato de que muitos de nós, bruxas e bruxos, tenhamos medo de água – disse Hally, dirigindo-se a Charles. – Caso contrário, teríamos sabido sobre isso há muito tempo. Eles usaram o local mais vezes, não somente nessa temporada.
Charles lembrou-se que o Caçador havia caçado duas vezes em Boston.
– Se estivéssemos na primavera, teríamos problemas para chegar a Gallops – disse Malcolm. – Como não estamos, há algumas docas que ainda são utilizáveis. Vou fazer a volta.
– Sabemos para onde estamos indo – disse Charles à bruxa. – Liberte o menino.
– Eu achei que ele era apenas uma coleção de lembranças – murmurou ela. – Apenas um velho suéter descartado quando Jacob morreu.
Charles saltou para o topo da grade da plataforma de pesca e dobrou os joelhos, equilibrando-se com o impulso súbito da força que seu salto havia causado e acomodando-se mais confortavelmente enquanto o barco subia e descia na mão do oceano.
Ele chamou a atenção da bruxa e, trazendo o irmão lobo e todo o seu poder à frente, disse:
– Deixe-o ir.
Hally obedeceu antes que pudesse pensar; o aparecimento súbito de Charles e a força de sua ordem ditaram suas ações. Ela descartou o fantasma com um toque de seu poder. Em seguida, seu queixo caiu em ultraje e a magia reuniu-se ao seu redor.
– Não – disse Charles, antes que ela pudesse completar qualquer que fosse o malefício que lhe viera à cabeça. – Você não vai gostar do que vai acontecer.
Ele pulou ao lado dela e pegou o pequeno pote em forma de sapo. O resíduo doentio de magia tentou rastejar para seus dedos, mas no último momento recuou por causa da presença do irmão lobo. Seu instinto lhe disse que aquilo que ligava o conteúdo do pote a Jacob acabara, tendo sido totalmente consumido – e isso era bom o suficiente para ele. Charles jogou o sapo pelo lado do barco, assegurando-se de que o pote caísse de cabeça para baixo a fim de que seu conteúdo se espalhasse.
A bruxa sibilou e jogou algo que deslizou por ele como água. Charles sacudiu a cabeça.
– Você acha que eu teria sobrevivido tanto tempo se alguns feitiços conjurados apressadamente pudessem me prejudicar?
Não era uma mentira. Charles só estava fazendo uma pergunta a ela. Se a bruxa respondesse a isso de forma errada, a culpa não era dele.
Metade de sua reputação se devia às histórias que as pessoas contavam. Charles tinha sorte. Ele usava algumas proteções – e ser um lobisomem era outro tipo de proteção –, mas ninguém era invulnerável. O segredo de se proteger contra magia era fazer as pessoas pensarem que era inútil atacá-lo utilizando esse método.
Charles balançou o corpo de volta sobre o corrimão da plataforma e pousou suavemente no convés abaixo. Ele se sentou em um dos bancos que serviam como recipientes para iscas; sua companheira correu até ele e sentou-se em seu colo.
Anna beijou sua mandíbula e Charles sentiu os resmungos predatórios dos fantasmas. Mais perto, traga-a mais perto – disseram eles, cacarejando. Vamos devorá-la e dividi-la entre nós.
Minha – respondeu o irmão lobo. Ele então apertou os braços em volta de Anna, quando Charles teria preferido mantê-la longe em segurança. O irmão lobo a abraçou e olhou fixamente para a lua, que cantava serenamente para ele.
Charles saltou segurando um dos cabos de doca, assim que o barco chegou perto do embarcadouro. A plataforma de madeira parecia resistente sob suas botas e o gancho onde amarrou o cabo parecia novo. Ele perguntou a Malcolm sobre isso enquanto os outros desembarcavam.
– O pessoal do departamento de parques sai de barco constantemente e eles precisam de um lugar para amarrá-los, certo? – perguntou Malcolm, retoricamente. – Então, eles mantêm a doca em bom estado.
– Fiquem juntos – disse Charles. – Malcolm, seu trabalho é manter os nossos agentes do FBI seguros.
Leslie arquejou, mas Goldstein levantou uma mão.
– Você e eu não podemos ver no escuro, se nossas lanternas falharem. A lua está brilhando agora, mas considerando as nuvens no céu, isso pode mudar. Somos mais lentos e vulneráveis do que eles e, se esse for mesmo o local dos assassinatos, alguém poderia estar aqui para proteger a última vítima.
Leslie tirou a arma, verificou-a para ter certeza de que estava carregada e, em seguida, colocou-a de volta em seu coldre de ombro.
– Se vocês conseguirem andar sem as lanternas – disse-lhes Charles –, isso irá ajudar o resto de nós a manter nossa visão noturna. Mas tentem não torcer o pé. Não sei se a visão de vocês é boa – os lobos podem ver muito bem no escuro, e a maioria das bruxas tem um ou dois truques – continuou ele, olhando para Beauclaire.
O Fae assentiu.
– Posso ver muito bem.
– Então é com vocês. Se forem usar as lanternas, por favor, tentem não jogar o feixe de luz em nossos olhos.
– Eu tenho uma pergunta – disse Leslie. – Se você pode ver no escuro, por que Malcolm disse que precisava de luz para encontrar a ilha?
– Porque eu não iria levar um barco com instrumentos que não estão funcionando em águas que não são seguras – disse Malcolm. – Há alguns lugares muito desagradáveis por aqui, principalmente se você não sabe onde está e a magia dela matou todas as luzes dos meus instrumentos – GPS, localizadores de profundidade, toda a tralha.
A bruxa sorriu para todos eles.
– Vocês ainda estão falando?
Isaac tocou seu ombro.
– Mostre o caminho, Hally.
O Fae seguiu Isaac e sua bruxa; a pele pálida dela se destacava na escuridão como uma vela no meio da noite. Os agentes do FBI seguiram a bruxa, e Malcolm ia atrás deles. Isso deixou Charles e Anna na retaguarda.
A ilha Castle era como um parque, com árvores cuidadosamente plantadas e arbustos. Gallops era mais como uma selva. Não era tão densa quanto a floresta temperada perto de Seattle, mas para limpar a vegetação rasteira da ilha precisaria-se de um ou dois facões. Obrigatoriamente, eles seguiram caminhos que outrora deveriam ter sido calçadas ou ruas estreitas antes que a natureza tivesse retomado o local. Eles estavam andando principalmente para cima – com base no que ele tinha visto da água, a ilha toda era uma grande colina, longa e estreita. Não era muito grande, e Charles achou que ela teria menos de quarenta hectares. Não levaria muito tempo para encontrar o lugar onde Jacob tinha sido morto, desde que a bruxa estivesse dizendo a verdade – e que pudesse sentir.
Anna apontou a pedra angular de uma casa e o que originalmente fora, sem dúvida, uma cerca de rosas que havia se tornado selvagem.
Charles apontou alguns pés de hera venenosa e um par de coelhos curiosos que não ficaram com medo deles. Qualquer caçada nessa ilha seria entediante, se eles estivessem caçando coelhos.
Tudo ali cheirava a magia negra. Se ele estivesse tentando encontrar o centro por conta própria, Charles teria que cruzar toda a ilha e esperar encontrá-lo por acaso.
Por mais que ele odiasse admitir, a bruxa tinha razão. Apenas amadores deixariam tal resíduo de poder por trás. Depois que eles tivessem terminado ali, ele teria que falar com seu pai sobre como limpar o lugar. Esse poder contaminado era muito mais problemático do que amianto – as pessoas iam ficar doentes nesse lugar e morrer de resfriados. Eles se arranhariam em um espinheiro e morreriam da infecção resultante. Elas se matariam por causa de um desespero que nunca teriam sentido em condições normais.
Essa quantidade de resíduo também atrairia coisas da escuridão – e o oceano continha algumas coisas muito ruins que poderiam decidir vir até a terra por causa do tipo de convite que a ilha estava enviando. E a pior parte era que havia mais lugares como esse, em todos os lugares onde os assassinos haviam atacado ao longo dos anos.
Sally Reilly, dissera Caitlin, a bruxa, após ter identificado as marcas que os assassinos haviam deixado em suas vítimas. Fazia sentido. Ele não havia conhecido Sally, mas seu pai tinha assistido uma de suas “demonstrações” e voltara abanando a cabeça; depois disso, mandou Charles fazer uma pesquisa. Naquela época a pesquisa era feita mais a pé e por telefone do que por computador. Depois de falar com o pai dela (a mãe havia morrido), alguns velhos amigos e um par de bruxas, ele voltara a Bran com um relatório.
Sally não era uma farsa ou uma amadora, mas sim uma bruxa qualificada. Ela havia rompido com a família e decidira acirrar os ânimos, talvez até causar outra caça às bruxas. Uma caçada da qual ela pretendia se proteger com o dinheiro que ganhava enquanto estava ocupada convencendo o público que assistia à televisão de que as bruxas eram reais.
Charles dissera a Bran que precisavam detê-la – para que ela parasse de tentar fazer propaganda das bruxas. Mas, em vez disso, ela começou a cobrar de pessoas ricas grandes fortunas pelo seu trabalho. Ela desaparecera por completo em algum momento no início dos anos 1990, mas Charles sempre supôs que ela tinha se aposentado – até Caitlin, a bruxa, ter se mostrado tão absolutamente convencida de que Sally Reilly estava morta.
Parecia realmente trabalho de Sally fazer algo como concordar em criar um encantamento e deixar um resíduo como esse – talvez até com símbolos incorretos – enquanto ela cobrava os olhos da cara, pensando nos tolos que pretendiam matar galinhas ou cabras.
Eles a tinham mesmo matado? A época era a certa. E se tivessem dado dinheiro a uma bruxa por um feitiço que permitisse aos assassinos se alimentarem das pessoas que matavam, eles teriam sentido a necessidade de se livrar dela, já que a bruxa seria uma testemunha que eles não queriam. E assassinos seriais não permaneciam livres e matando por tantos anos se não fossem inteligentes o suficiente para cuidar de testemunhas.
Charles pousou a mão nas costas de Anna. Ela usava um suéter e uma jaqueta leve, mas ele fingiu que podia sentir o calor dela através da roupa que a cobria.
O irmão lobo queria sair dessa ilha e ir para algum lugar longe de assassinos que caçavam lobisomens e não deixavam nenhum cheiro que eles pudessem seguir. Mas Charles sabia o que era melhor. Tentar prender sua Anna em plástico-bolha seria matar a mulher que o protegera com o rolo de macarrão de mármore de sua avó. Ela era a mulher por quem ele se apaixonara.
Então, por que você está escondendo seus fantasmas dela?, disse o irmão lobo.
Porque eu tenho medo, respondeu Charles a seu irmão, como não teria respondido a mais ninguém. Ele já vivera um tempo muito longo e, somente depois que ganhou Anna, aprendeu a temer. Charles descobrira que nunca tinha sido corajoso antes – apenas indiferente. Ela havia lhe ensinado que, para ser corajoso, você tem que ter medo de perder alguma coisa. Eu tenho medo de perdê-la. Que eles a tirem de mim – ou que ela se afaste de mim quando vir o que eu realmente sou.
Beauclaire tinha falado sobre isso. Charles não conseguia lembrar as palavras exatas do Fae, mas ele as sentia. Pessoas tão velhas e poderosas como ele nunca deveriam ter alguém para amar.
Por Anna, ele destruiria o mundo.
Anna sentia Charles mais do que o ouvia, embora ele tivesse tirado a mão de suas costas, deixando-a ir na frente. Anna podia ouvir os outros andando na frente dela, mas Charles era uma presença silenciosa e tranquilizadora atrás dela.
Ela também podia sentir o cheiro de algo errado no ar, e isso fazia seu lobo ficar nervoso. Parecia que algo os estava observando, como se a coisa errada tivesse uma inteligência – e não ajudava em nada pensar que pelo menos uma das pessoas que estavam caçando podia se esconder de seus sentidos.
Anna lutou contra o impulso de virar-se para pegar a mão de Charles ou deslizar sob seu braço e deixar sua presença afastar aquilo que estava errado. No passado, ela teria feito isso, mas agora Anna tinha a desconfortável sensação de que ele poderia recuar, como quase fez quando ela se sentara em seu colo no barco, antes que o irmão lobo tomasse a frente.
Talvez ele estivesse apenas cansado dela. Anna ficava dizendo a todos que havia algo de errado com ele... mas Bran conhecia o próprio filho e achava que o problema era ela. Bran era inteligente e perspicaz; Anna deveria ter considerado que ele estava certo. Charles era velho. Ele tinha visto e experimentado tanto – perto dele, ela era apenas uma criança. Seu lobo a tinha escolhido sem consultar Charles em absoluto. Talvez ele preferisse alguém com mais experiência. Alguém bonita e inteligente que...
– Anna? – disse Charles. – Qual o problema? Você está chorando?
Ele se colocou à frente dela e parou, forçando-a a parar de andar também.
Ela abriu a boca e os dedos dele tocaram seu rosto molhado.
– Anna – disse ele, mantendo o corpo imóvel. – Chame seu lobo.
– Você deveria ter alguém mais forte – disse a ele miseravelmente. – Alguém que pudesse ajudá-lo quando você precisasse, em vez de alguém que é mandada para casa porque não pode aguentar o que você precisa fazer. Se eu não fosse Ômega, se eu fosse dominante como Sage, eu poderia ter ajudado você.
– Não há ninguém mais forte – disse-lhe Charles. – É a mácula da magia negra. Chame seu lobo.
– Você não me quer mais – sussurrou ela. E agora que as palavras saíram de sua boca, ela sabia que era verdade. Charles dizia as coisas que achava que ela queria ouvir porque era um homem bom. Mas eram mentiras. A verdade era a forma como ele fechara o vínculo entre eles para que ela não ouvisse coisas que a magoariam. Charles era um lobo dominante; e lobos dominantes eram levados a proteger os mais fracos. E Charles a via como muito mais fraca.
– Eu amo você – disse-lhe Charles. – Agora, chame o lobo.
Anna ignorou sua ordem – ele sabia muito bem que não adiantava lhe dar ordens. Ele disse que a amava; isso havia soado como a verdade. Mas Charles era velho e inteligente e Anna sabia que, no fim das contas, ele podia mentir e fazer qualquer um acreditar nele. Ela sabia por que ele estava mentindo para ela agora – e isso parecia-se com a verdade.
– Eu sinto muito – disse ela. – Eu vou embora.
De repente, Anna estava de costas contra uma árvore e o rosto de Charles estava a milímetros do dela. O corpo longo e quente dele pressionava o dela desde seus joelhos até o peito – ele tinha que se dobrar para fazer isso, pois era muito mais alto do que Anna, embora ela não fosse baixa.
Anna estremeceu quando o calor do corpo dele começou a penetrar o frio que havia engolido o dela. Charles esperou como um caçador, esperou que ela se mexesse e visse que estava realmente presa. Esperou enquanto ela prendia a respiração. Esperou até que ela olhou em seus olhos.
E então rosnou para ela.
– Você não vai me deixar.
Era uma ordem e ela não tinha que seguir as ordens de ninguém. Isso era parte de ser um Ômega, em vez de um lobisomem comum – mas o fato de um lobisomem comum ser uma companheira adequada para Charles era tão provável quanto uma bola de neve no inferno.
– Você precisa de alguém mais forte – disse Anna novamente. – Assim você não precisaria se esconder quando estivesse machucado. Assim você poderia confiar na sua companheira para cuidar de si mesma e ajudá-lo – droga! – em vez de ter de me proteger daquilo que você está escondendo.
Anna odiava chorar. Lágrimas eram fraquezas que poderiam ser exploradas e nunca resolviam nada.
Soluços juntaram-se em seu peito, como uma maré correndo, e ela precisava se afastar dele antes que desmoronasse.
Em vez de combater o abraço, ela tentou deslizar para fora dos braços de Charles.
– Eu preciso ir – disse ela, colando-se ao peito de Charles. – Eu preciso –
A boca dele se fechou sobre a dela, quente e com fome, aquecendo sua boca enquanto seu corpo aquecia o dela.
– De mim – disse Charles, e sua voz era rouca e grave como se tivesse viajado das profundezas da terra; seus olhos eram de um tom dourado brilhante. – Você precisa de mim.
Ele a beijou novamente e suas mãos passeavam de seu queixo para baixo, até seu pescoço e ombros. Seus quadris comprimiam o corpo dela e ele libertou sua boca enquanto deslizava seu corpo até que seu sexo, duro e cheio, pressionou-se contra o dela. Anna o empurrou involuntariamente e ele riu com a mesma voz profunda com que havia falado. Ela rosnou para ele, lobo para lobo.
– Aí está você, aí está você – disse ele. – Você vai me deixar fazer isso sozinho?
Ele estava falando muito – quando deveria mesmo era estar sentindo. Ela dobrou uma perna para cima até que o ângulo de seus quadris ficasse melhor, elevando o corpo até que pudesse morder sua clavícula. Ele prendeu a respiração com a dor e ela o soltou. Agora, a atenção dele estava nela e não mais nas palavras, então ela podia ser mais gentil. Ela lambeu a ferida que havia causado, sentindo-a cicatrizar-se sob a língua enquanto ela lambia o sangue rico em ferro de sua pele. Anna se lançou para cima e dessa vez pegou o tendão em seu pescoço suavemente; e o suspiro que ele deu não tinha nada a ver com dor.
Ela mexeu os quadris, esfregando a costura da calça jeans sobre ele, enquanto absorvia o cheiro inebriante que era seu companheiro quando ele estava excitado.
Anna queria sentir melhor o cheiro dele, então escorregou para baixo e encostou a boca aberta sobre a ereção, deixando seu hálito quente acariciá-lo através da calça jeans. Fazia tanto tempo desde que ela o tocara pela última vez...
O cheiro dele ficou mais forte: almíscar e floresta, salgado e amargo, com um toque indescritivelmente delicioso de doçura.
– Anna – disse Charles, um pouco desesperadamente. – Isaac, Malcolm e provavelmente o maldito Fae podem nos ouvir.
Ela abriu a boca e o mordeu – não com força, apenas o suficiente para calar sua boca e deixá-lo saber que empurrá-la para longe não era uma opção.
Charles fez um barulho que poderia ter sido uma risada, mas tudo o que ela ouviu foi sua rendição, e então ele a deixou empurrá-lo até ele cair de costas no solo úmido da ilha; ela abriu o zíper de sua calça jeans até que pudesse tocá-lo. Quando a pele nua dele estava em suas mãos, a necessidade frenética diminuiu, parcialmente acalmada pela clara evidência de que ele a queria tanto quanto ela o queria.
A pele dele parecia muito macia para cobrir algo tão duro. Ela o lambeu delicadamente, adorando o sabor dele, agora misturado ao sal do oceano. Anna adorava todos os sabores dele, adorava os ruídos que ele fazia quando ela lhe dava prazer, adorava ouvi-lo arquejar e os movimentos sem controle que ele fazia – ele, que sempre se movia graciosamente.
Ela o engoliu, reivindicando homem e lobo da forma mais básica possível.
– Eu sou seu – disse ele, mantendo um dedo sob o queixo dela, desalojando a reivindicação. – E você – continuou ele, movendo as mãos e colocando-as sob os ombros dela, puxando-a até que ela estivesse sobre ele – é minha.
A calça jeans dela estava no caminho, então Charles a virou de lado e tirou seus sapatos, calça comprida e calcinha em três movimentos rápidos. Ele então a puxou de volta para cima dele com mãos que eram mais urgentes do que gentis e deslizou para dentro dela.
Anna fechou os olhos e absorveu a sensação de calor lento, pressão escorregadia e fricção quente que significavam que ele era dela. Em seguida, Charles agarrou seus quadris, pediu e ela se mexeu – e então parou totalmente de pensar.
Relaxada e bem amada, Anna arquejou em cima de Charles. Quando os últimos frêmitos se extinguiram, ela começou a pensar novamente, em vez de apenas sentir.
– Nós realmente – sussurrou ela, sentindo o rubor se espalhar desde os dedos dos pés até suas orelhas – fizemos amor enquanto todos estavam ouvindo? Ao ar livre? Quando pode haver um assassino que não podemos ver ou ouvir nos observando?
Anna poderia ter guinchado a última palavra.
Embaixo dela, Charles riu, e a barriga dele fazia com que Anna saltasse para cima e para baixo. Ele se sentia resistente e descontraído, como um gato ao sol.
– Tudo o que eu estava tentando fazer era obrigar você a chamar seu lobo para que ela pudesse lutar contra a magia negra que estava fazendo você duvidar de si mesma – ele fez uma pausa e o relaxamento desapareceu. – Fazendo você duvidar de mim – continuou ele, esfregando as costas de Anna. – Eu fiz você duvidar de mim.
Anna colocou a cabeça no côncavo de seu ombro e fechou os olhos, mas esconder-se não funcionou. Depois de um minuto, ela riu, impotente.
– Não tem jeito de escaparmos dessa, não é? É melhor sair e enfrentar a multidão.
Anna sentou-se e levantou a cabeça para cheirar o ar. Tudo o que ela conseguiu cheirar foram coisas verdes que cresciam, Charles, sexo e o ar do oceano.
– Aquilo que estava errado se foi – disse Anna.
Ele franziu a testa e fechou os olhos, respirando profundamente.
– Só daqui – disse ele. – Não de toda a ilha. Isso é interessante – e então ele olhou para ela e sorriu. – Acho que é melhor nos arrumarmos. Eles estão esperando por nós.
Anna levantou-se e Charles lhe entregou sua camiseta. Ela se limpou da melhor forma possível, entregou-a de volta a ele e depois vestiu suas roupas. Ele foi mais rápido, já que só tinha que fechar a calça jeans. Anna estava tirando a terra de uma de suas meias quando ele pegou a camisa e pressionou-a contra uma árvore.
Enquanto colocava um sapato e começava a tirar a terra do outro, ela observava Charles.
Ele murmurou para a árvore algo que ela tinha quase certeza que era sua língua nativa – a qual ele raramente usava. Bran e Charles eram os únicos que haviam sobrado que falavam a língua que o povo da mãe de Charles havia usado – uma variante da língua falada pelos Flathead. Mas nas raras vezes em que a usava, Charles sentia-se triste e solitário, como ele mesmo disse em uma ocasião; ele e seu pai se comunicavam muito bem em inglês, galês ou em várias outras línguas.
Vestida com as roupas e com os sapatos nos pés, ela correu os dedos pelos cabelos para remover folhas, grama ou algum bicho rastejante que pudesse ter se aninhado ali. Charles ajoelhou-se em um joelho e pressionou a camiseta contra o solo... que a engoliu.
Ele murmurou mais uma frase e ficou em pé. Charles olhou para Anna, que ainda o observava, e sorriu: seu rosto tinha uma expressão mais aberta e fazia um bom tempo que ela não o via assim.
– Eu não ia vesti-la de volta – explicou ele. – E deixar por aí algo pessoal como uma camiseta quando se está viajando com uma bruxa, não é sábio. A macieira vai acabar absorvendo-a, e tomará conta dela até que isso aconteça.
– Vocês já acabaram? – perguntou Isaac.
Charles inclinou a cabeça e gritou de volta.
– Acho que é por isso que eles a chamam de “rainha da rapidinha”.
Anna podia sentir seus olhos se arregalarem e sua boca se abrir.
– Não acredito que você falou isso – ela parou e reconsiderou. – Eu vou contar ao Samuel que você falou isso.
Charles sorriu, beijou-a gentilmente e disse:
– Samuel não vai acreditar em você.
E então ele a pegou pela mão e foi atrás dos outros.
Nove
Enquanto eles escalavam, pulando por cima de cimento quebrado, pedras e pedaços de arbustos variados, Anna teve muito tempo para pensar sobre o show que eles haviam acabado de dar.
A culpa tinha sido dela.
Charles estava tentando chamar o lobo de Anna porque, aparentemente, a magia negra a estava afetando. Ela ficou embaraçada com a estúpida autopiedade na qual se permitira chafurdar. Falar com ela não havia adiantado para tirá-la das garras da magia negra e, por isso ele a beijou, deixando que o lobo de Anna tomasse o controle para se livrar dos efeitos da magia, assim como ele havia pensado que aconteceria.
E foi aí que o lobo de Anna mudou o jogo.
Anna lembrava-se claramente de que Charles a havia avisado de que eles tinham um público e ela o ignorara totalmente. Isso era ruim o suficiente. Mas fazê-lo quando havia uma clara chance de que eles fossem dar de cara com os assassinos era o cúmulo da estupidez.
– Anna – disse Charles. – Pare de remoer.
– Isso foi realmente estúpido – disse ela, sem olhar para ele. – Minha culpa. Sinto muito. Nós poderíamos ter sido atacados pelos assassinos – ela então jogou as mãos para cima e continuou. – Poderíamos muito bem ter colocado câmeras e convidado a todos para assistir. E agora temos que nos encontrar com o nosso público e nos explicar.
Charles parou abruptamente e a puxou para perto dele com uma mão em seu pulso. Ele a surpreendeu com seu toque de violência – Charles nunca perdia o controle.
– Se você pensa que isso foi estúpido, desnecessário e sua culpa – disse ele, com a voz rouca –, então você não estava prestando atenção.
Ele a beijou novamente e sua boca exigia uma resposta de Anna, seu corpo quente contra o dela.
O cheiro de Charles era o cheiro de casa, quente e certo. Anna sabia que deveria se afastar, sabia que não podiam se dar ao luxo de uma tal distração, mas ela estava muito faminta por ele – e não apenas pelo sexo, mas pelos simples toques, pela certeza absoluta de saber que era bem-vinda para acariciar, provocar e rir. Anna mergulhou nele, tanto quanto ele estava mergulhado nela.
Ambos estavam sem fôlego quando ele se afastou.
– Quando voltarmos, essa noite, vamos conversar – disse Charles. – Acabei de aprender uma coisa.
– Que o meu lobo não tem vergonha – murmurou ela, embora não conseguisse se afastar.
Ele riu, o maldito. Mais um bufo do que uma risada, mas Anna sabia identificar diversão quando ouvia.
Anna o derrubara no meio de uma caçada, quando havia uma multidão de pessoas à escuta. Todos os lobisomens – Charles a lembrara disso – e Beauclaire, que estava ali para encontrar a filha, não para ouvir Anna transar na floresta. E agora, para mostrar que não havia aprendido a lição, tudo o que Anna queria fazer era levar aquele último beijo de volta para onde eles haviam parado.
– Nada pode nos ajudar – murmurou Anna. – É melhor encarar os fatos.
– A vergonha... não é uma emoção muito produtiva – disse Charles.
Houve uma pausa engraçada quando ele inclinou a cabeça, olhou para o rosto dela e depois desviou o olhar.
– O irmão lobo gostou de reivindicá-la na frente dos outros, de modo que não haja nenhuma dúvida a quem você pertence. Enquanto eu... eu lamento seu constrangimento, mas por um lado concordo com o irmão lobo.
Anna olhou para ele, incrédula. Se havia um homem mais reservado no mundo do que seu marido, ela não o conhecia.
– Quanto a essa questão dos outros... – Charles sorriu bastante ferozmente para ela e levantou a voz. – Isaac, vá em frente, vamos segui-lo.
– Você é quem manda – gritou Isaac de volta.
– Vamos segui-los de perto – disse Charles. – Se algo acontecer, estaremos lá – mas se esperarmos até que apareça algo mais interessante do que nós, eles não vão nos importunar.
Ele não precisava dizer que ninguém iria importuná-lo.
– Obrigada – disse Anna, sem saber como responder de outra forma. Charles colocou a mão sobre o ombro dela quando voltaram para a trilha. Enquanto caminhavam, não havia nada da relutância em tocá-la que ele havia apresentado nos últimos meses. Ele colocou a mão em qualquer parte dela que estivesse mais próxima de seu corpo.
Charles tinha tentado abrir o vínculo de companheiro e chamar o lobo de Anna para derrotar a magia negra e não foi capaz de fazê-lo. O irmão lobo havia entrado em pânico porque Charles tinha, de alguma maneira, bagunçado o vínculo; em seguida, Anna ameaçara deixá-los e Charles havia entrado em pânico também. Se ela não tivesse permitido que eles fizessem amor com ela, para restabelecer o vínculo, as coisas poderiam ter ficado... interessantes, da mesma forma que o ataque de um urso pardo é interessante. Porque nem ele nem o irmão lobo eram capazes de deixá-la ir embora.
Isso havia sido uma espécie de revelação.
O ponto principal é que Charles concluiu que era uma criatura egoísta; e estava mais alegre com isso do que havia ficado com qualquer outra coisa em um longo tempo. Ele desviou Anna de um buraco no chão com um empurrão sutil de sua mão em seu quadril; ela provavelmente vira o buraco, mas ele ficava feliz em cuidar dela de pequenas formas. Charles estava disposto a pagar qualquer preço para mantê-la segura... qualquer preço, exceto perdê-la.
Quando eles voltassem para o apartamento, Charles iria contar a ela sobre os fantasmas que ameaçavam matar todos a quem ele amava, a menos que ele pudesse encontrar a chave para libertá-los. Era um risco, mas ele claramente havia danificado o vínculo de companheiro ao tentar fazer isso sozinho – e valia a pena tentar qualquer coisa para consertá-lo. Ele iria ver se, juntos, poderiam consertar o que Charles havia danificado e, se não fosse possível, ele chamaria seu pai.
Mesmo que essa viagem não tivesse servido para mais nada, ela o havia afastado da severidade implacável em que sua vida se havia transformado desde que os lobisomens tinham revelado sua existência ao público. Charles estava tão concentrado no dever, na necessidade e em simplesmente terminar o trabalho que havia perdido a perspectiva das coisas.
Honra, dever e amor. Ele não iria sacrificar Anna pelo seu pai e todos os outros lobisomens que existiam. Se lhe fosse dada uma escolha, ele escolheria o amor.
Isso significava que ele tinha que encontrar uma maneira de lidar com os fantasmas – ou deixar de ser o executor de seu pai. Não era esse o resultado que seu pai esperava dessa viagem, mas Charles não podia pensar de outro jeito. Ele não iria perder Anna, mesmo que isso significasse entrar em guerra com a população humana.
A decisão o deixou sentindo-se estranhamente calmo, mesmo que um pouco egoísta.
– Encontramos – avisou Isaac.
Charles começou a movimentar-se e Anna permaneceu ao seu lado – exatamente onde ela deveria estar.
O lugar onde os outros os aguardavam havia sido um pátio com uma pequena casa ou galpão de armazenamento, tinha talvez 3 m por 4,5 m, no centro.
A parte de madeira da estrutura há muito desaparecera, mas os blocos de granito da fundação ainda estavam no local. A argola que fora introduzida em um dos blocos poderia ter sido original, mas a corrente e as algemas ligadas a ela eram brilhantes e novas.
Beauclaire estava de pé no centro da fundação; seus olhos estavam fechados e seus lábios se moviam. Charles tinha certeza de que ele estava trabalhando alguma magia, mas com a sensação da magia do sangue que já havia sido feita ali entupindo seus sentidos, ele não podia ter certeza.
Ao longo do perímetro da clareira, Malcolm andava atrás dos agentes do FBI, que estavam ocupados utilizando suas lanternas para examinar o solo em busca de pistas ou rastros.
– Teremos que voltar à luz do dia com uma equipe – disse Goldstein, e havia um tom áspero em sua voz. – Não devíamos estar pisando por aqui à noite, podemos perder ou destruir pistas.
– Você não vai convencer Beauclaire a sair daqui sem a filha dele – disse Leslie. Em seguida, ela olhou para o lobisomem atrás deles e chegou um pouco mais perto de Goldstein.
Charles deu uma boa olhada em Malcolm.
– Malcolm – disse rispidamente Charles.
O lobisomem barbudo olhou para cima.
– Você me disse para ficar de olho neles.
Isaac estava tendo uma conversa em voz baixa com a bruxa, mas quando Charles falou, ele também olhou.
– Malcolm – disse o Alfa, com a voz muito suave.
O outro lobo suspirou e ficou um pouco mais longe dos agentes do FBI, mas também mudou sua linguagem corporal de perseguidor para guarda-costas.
Charles não tinha certeza de que os seres humanos pudessem conscientemente ler a linguagem corporal bem o suficiente para notar a diferença das duas posturas, mas os seus cérebros posteriores podiam.
Assim que Malcolm começou a se comportar, os ombros de Leslie relaxaram e ela parou de bater na coxa com a mão direita.
Isaac deixou a bruxa ajoelhada ao lado das correntes; seus dedos traçavam feitiços que deixavam um rastro de pequenas linhas vermelhas que brilhavam.
– Hally diz que dez ou doze pessoas foram mortas aqui ao longo de vários anos – disse Isaac, dirigindo-se a Charles. – Ela diz que vai trazer alguns de seus aprendizes, e eles vão limpar a ilha assim que a polícia tiver coletado as evidências. Ela está fazendo o que pode, agora. Não queremos um monte de pessoas armadas em um lugar com tanto resíduo de magia negra – as palavras “tiroteio acidental” não dão nem ideia do que poderia acontecer.
– Ótimo – disse Charles. Era uma coisa a menos com a qual se preocupar. – Algum sinal de Lizzie?
– Não aqui. Não há ninguém vivo aqui, exceto nós e alguns coelhos dentro do alcance de nossa audição e não há nenhum rastro entrando ou saindo desse lugar. Não sinto o cheiro de ninguém, exceto nós mesmos, na vizinhança. Talvez se eu estivesse na forma de lobo pudesse fazer melhor que isso.
– Vamos todos nos transformar para procurar a garota – exceto Malcolm, se ele puder evitar – disse Charles.
– Eu posso evitar – Malcolm parecia irritado por ser deixado para trás.
– Precisamos que você nos leve de volta para o continente rapidamente quando encontrarmos Lizzie – explicou Charles. – Ela vai precisar de cuidados médicos o mais cedo possível. Não é apenas o dever de montar guarda.
– Você acredita que Lizzie está aqui – disse bruscamente Beauclaire, parando de lançar seus feitiços. – Você consegue sentir o cheiro dela? Você tem provas?
Charles acenou com a mão em direção à pedra.
– Eles usaram esse lugar para matar todas as suas vítimas locais, assim que terminaram com elas. Você acha que eles encontraram um lugar melhor para manter suas vítimas enquanto ainda estão vivas do que essa ilha isolada e colocada em quarentena?
O Fae olhou para Charles; seu rosto estava faminto.
– O que você propõe que façamos para encontrá-la? Se ela estivesse aqui, eu seria capaz de encontrá-la. Mas minha magia não me diz nada. Não me disse nada desde o início – sua voz tornou-se um sussurro. – Pensei que isso significava que ela estava morta.
– Conheço algumas maneiras de impedir a magia Fae – disse a bruxa, sem interromper aquilo que estava fazendo na pedra de granito. – As bruxas irlandesas e alemãs são conhecidas por sua capacidade de interromper o seu tipo de poder, de uma forma ou de outra, e Caitlin me disse que esse cara conseguiu seu feitiço de runa de uma bruxa irlandesa. Há dezenas de maneiras de fazer amuletos, algumas mais eficazes do que outras.
Beauclaire olhou para ela, com o rosto tenso de esperança.
– É verdade – disse ele. – Há, de fato.
Isaac começou a tirar a roupa e Anna também. Charles moveu-se até ficar entre eles, em resposta a um pequeno ataque de territorialidade e ciúmes infundados. O irmão lobo estava se sentindo possessivo naquela noite.
Sem se preocupar em tirar a calça jeans, ele começou sua transformação. Demorou mais dessa vez, porque Charles tinha se transformado muito hoje e, na última vez, havia forçado a velocidade. Sua transformação foi mais lenta e doeu mais, deixando-o com uma dor surda nos ossos, indicando que ele iria pagar caro na próxima transformação de volta para ser humano. Se pudesse, Charles esperaria até chegar ao apartamento antes de tentar isso.
Ele ainda conseguiu atingir a transformação completa antes dos outros e estava sacudindo a dor latejante e as câimbras em seus músculos quando Isaac cambaleou e ficou em pé: ele era um lobo de estatura mediana e pelo dourado que lembrou Charles da companheira de Bran, Leah. Anna ainda estava se transformando.
Charles deixou os outros se recuperarem e começou a explorar o solo com o nariz. Como os agentes do FBI, ele concentrou seus esforços junto à borda da clareira. Ele não encontrou nada em sua primeira passagem ou na segunda – Beauclaire andava atentamente ao seu lado, mantendo uma mão sobre uma longa faca que ele usava em uma bainha na cintura, uma faca que Charles não se lembrava de ter visto no barco –, e estava começando a terceira quando Anna chamou-o com alguns latidos exigentes.
Charles demorou algum tempo, procurando em torno de onde Anna estava, mas não sentiu cheiro de nada, nem mesmo dos onipresentes coelhos e ratos. Ela gemeu para ele quando Charles levantou a cabeça e tentou novamente. Na segunda vez que ele levantou a cabeça, ela latiu e começou a farejar algo que ele não podia sentir.
Frustrado com a sua incapacidade de perceber algo que ela havia rastreado – e duplamente frustrado, porque se ele não tivesse de alguma forma bagunçado o vínculo entre os dois, ela poderia mostrar a ele o que havia encontrado –, Charles seguiu Anna e Isaac, com Beauclaire atrás deles. Provavelmente o fato de estar tão aborrecido o fez demorar cinco metros para entender.
Nada. Ele não estava sentindo cheiro de nada.
Era como se algo que disfarçasse o cheiro tivesse passado por ali muitas vezes; ele não havia cheirado absolutamente nada. Sua companheira era muito inteligente. Ele tocou seu nariz ao dela para que ela soubesse que ele entendia. Anna sorriu para ele, deixando sua língua pendurada e feliz, entre afiadas presas brancas.
– Espere – disse a bruxa.
Charles parou e olhou para ela.
– Isaac me disse que você não será capaz de ver ou ouvir esse Fae que você está perseguindo.
Charles deu a Isaac um olhar sombrio. Ele contara a Isaac o que eles estavam caçando quando o chamou para ajudar naquela noite. Essa informação não era para ser distribuída para todos, e o lobo Alfa sabia disso.
– Paz – disse a bruxa. – Isaac só me contou porque eu estava me colocando em risco ao vir aqui, e ele sabe que eu não falo. Esse Fae tem consumido a essência das pessoas que morreram aqui, e isso Isaac não precisava me contar. Eu conversei com Caitlin sobre a natureza da magia que eles estavam usando. Então. Eu posso dar um pouco desse poder a um de vocês, que poderá assim reconhecer o Fae – magia solidária, lobo, de semelhante para semelhante. Mas tenho o suficiente para apenas um de vocês.
Charles achatou as orelhas para Isaac, quando o outro lobo estava prestes a dar um passo à frente. Se havia um risco, esse risco era Charles que tinha de correr – de todos, ele era o único com a melhor chance de matar o inimigo.
Ele trotou até a bruxa e esperou por uma grande quantidade de fumaça, gestos dramáticos e dança. Em vez disso, ela simplesmente se inclinou até que seus rostos estivessem na mesma altura e soprou sobre ele.
Charles tossiu e engasgou, e então sufocou-se com o cheiro. Doeu, também. Como ser picado por mil abelhas de uma vez ou pular de um carro em movimento no asfalto, que arrancasse sua pele – duas coisas pelas quais ele já tinha passado. Mas isso não era o pior. Parecia que óleo de motor usado tinha sido derramado sobre seu corpo e ficara grudado lá, malcheiroso e oleoso.
O irmão lobo rosnou e abaixou a cabeça, mantendo suas orelhas para baixo. Isaac gemeu e deu um passo à frente, como se pudesse tentar ficar entre Charles e a bruxa. Os fantasmas dentro dele começaram a uivar e rir. Então Anna roçou contra Charles, silenciando as vozes com uma paz radiante – o dom do Ômega, que o fez recuperar o controle.
Só então a bruxa se moveu. Ela se levantou e limpou as mãos bruscamente.
– Minhas desculpas. Eu não sabia que isso iria afetá-lo de modo tão adverso. Ele vai ficar em você até o amanhecer dissipá-lo e provavelmente será apenas o suficiente para um aviso rápido, então preste atenção.
Mais calmo agora, se não mais confortável, Charles agradeceu com a cabeça – não era culpa dela a dor que sentira, ou aquela vontade que o fazia querer se jogar no oceano para limpar a sujeira oleosa de sua pele – nem o fato de ela ter lhe dado ordens, porque Isaac não havia lhe ensinado boas maneiras. O feitiço, se funcionasse como ela disse que funcionaria, daria a eles uma chance de encontrar o Fae. Por isso, ele poderia perdoá-la por muitas coisas.
Hally, a bruxa, estava diante dele sem medo, bastante frágil em sua humanidade.
Ela não podia lutar contra sua natureza de bruxa, não mais do que ele poderia lutar contra o fato de ser um lobisomem. Ambos nasceram daquele jeito. Isaac estava certo em relação ao fato de que bruxas brancas morriam ainda muito jovens, incapazes de se defender de seus parentes que usavam magia de sangue. Hally havia sido muito útil, dentro dos limites do que ela era – e ele iria se lembrar disso.
Os lobos e o Fae deixaram os outros para trás na dúbia segurança da clareira, sob a guarda de Malcolm e da bruxa.
Charles deixou os outros lobos tomarem a dianteira, já que seu nariz não estava em sua melhor forma sob o fardo do feitiço que a bruxa usara. Eles andavam devagar, porque era mais difícil não seguir cheiro nenhum do que seguir uma trilha com um certo odor.
Isaac pegou o rastro que eles estavam seguindo depois de algumas centenas de metros; seu nariz era melhor que o de Anna, mas ela o alcançou uma vez quando ele havia seguido uma pista falsa. Por fim, seus narizes os levaram a uma porta enterrada em cimento que parecia estar anexada ao lado da colina. Charles correu para cima, para o topo do cimento, onde havia um teto grosseiro que media cerca de 1,5 m por 0,5 m. Charles concluiu que ali era uma possível entrada ou saída, conforme fosse necessário, mas seria melhor se eles entrassem pela porta.
Depois que ele correu de volta para estudar a porta, percebeu que ela parecia ter sido comprada já usada e que foi colocada no lugar com dobradiças novas. Ela estava trancada com um ferrolho preso por parafusos de aço. Charles sabia que aço não era tão prejudicial para os Fae quanto o ferro, mas a porta iria resistir a qualquer magia que Beauclaire pudesse utilizar.
Evidentemente, o Fae pensara o mesmo. Ele se levantou do chão, perto de uns arbustos que estivera investigando, e trouxe um grande pedaço de pedra em uma das mãos. Ele murmurou algumas palavras até que a pedra começou a brilhar com uma luz verde suja e, em seguida, jogou-a contra a porta. Ela bateu com um estrondo mais parecido com o de uma granada do que com o choque de uma pedra, transformando-se em pó e deixando um amassado de bom tamanho na porta. Nem o ferrolho, nem o trinco sobreviveram ao encontro.
A maçaneta da porta era de alumínio e Beauclaire não pareceu ter qualquer problema em abri-la.
O lugar estava escuro como breu, mas mesmo assim Charles pôde ver que ali era muito mais profundo do que o pequeno teto parecia indicar. Alguém havia escavado aquele lugar no lado da colina. Charles sentia tudo isso pela forma como a câmara reverberava em eco, e não porque pudesse ver qualquer coisa. Mesmo um lobo precisava de um pouco de luz para enxergar. O ar era fresco – ou havia outra entrada, ou algum tipo de ventilação. Charles não conseguia cheirar nada perigoso, mas, dadas as circunstâncias, ele não estava disposto a confiar apenas em seu nariz para adverti-lo do perigo.
O lorde Fae resolveu o problema da luz ao atirar uma bola de magia brilhante a partir da entrada em direção à escuridão do interior do lugar. Ela parou antes que atingisse o chão, pairando a aproximadamente um metro dele, aproximadamente a dois metros e meio à frente do grupo, iluminando um espaço que anteriormente devia ser o porão de um grande edifício – talvez parte de um velho prédio militar. Muitas das ilhas no Porto de Boston tinham abrigado instalações militares em alguma época ou outra nos últimos quatrocentos anos.
– Quem está aí – sussurrou uma voz de forma indistinta, enquanto eles estavam bem na entrada. Era uma voz bastante suave, vinda de uma sala vazia – e todos congelaram em seus lugares. – Ajudem-me, por favor.
A voz dela era tão baixa que ouvidos humanos não a teriam escutado. O efeito sobre Beauclaire foi como uma descarga elétrica.
– Lizzie! – gritou ele, preparando-se para correr, virando a cabeça para os lados e tentando discernir de onde a voz dela vinha. A sala não tinha portas e estava vazia, exceto por alguns escombros. Ela obviamente não continha a pessoa de Lizzie Beauclaire.
– Papai? – a voz dela não ficou mais forte; parecia um queixume, sem esperança.
Isaac estava explorando cuidadosamente as bordas escuras da sala, e deu um grunhido suave para atrair a atenção. Por trás de uma pilha de madeiras podres, canos e blocos de granito quebrados, o que Charles havia pensado que era apenas uma sombra escura ou mais detritos mostrou ser uma estreita escadaria de cimento com buracos e pedaços de metal enferrujados onde, no passado, havia um corrimão. Um lado, aquele que continha pedaços de metal enferrujados, corria ao longo da parede da sala; o outro era aberto.
Beauclaire, levando sua luz mágica à frente, desceu as escadas e deixou o resto deles para trás. Não era a ideia mais inteligente do mundo, pensou Charles, mas ele entendeu. Se fosse alguém que pertencia a ele lá embaixo, Charles também não teria perdido tempo para chegar a ela. A bola de luz Fae revelou uma sala quase com a metade do tamanho da sala acima, com uma porta na parede posterior. A porta há muito não existia e uma das pilastras de madeira de sua moldura soltara-se e caíra no chão. Beauclaire parou momentaneamente ao pé das escadas: Lizzie havia parado de fazer barulho. Quando ele avançou novamente, seu ímpeto inicial havia diminuído e ele se moveu cuidadosamente em direção ao buraco aberto da porta, porque o subporão estava obviamente vazio.
Só que ele não estava.
Charles parou, ainda a seis ou oito passos do fundo das escadas. Houve uma dispersão de finas faíscas douradas na outra sala, como uma constelação em miniatura.
“Preste atenção”, dissera a bruxa.
Ele poderia não ter prestado atenção, poderia não ter notado se as faíscas não tivessem se movido. Mas quando elas se moveram, fizeram um trabalho muito bom em mostrar a Charles um pouco sobre o Fae que eles estavam perseguindo.
O lorde cornudo, se era isso o que ele era, era grande. O teto do subsolo tinha dois metros e meio, talvez três metros de altura, e as pequenas faíscas começavam no topo e ocupavam boa parte do canto da sala onde ele estava. Charles não conseguia ver nenhum detalhe, mas ele sabia que o Fae estava lá.
Charles gostaria de ter perguntado a Beauclaire com o que o lorde cornudo se parecia em sua forma original. Até mesmo saber se ele andava sobre duas ou quatro patas teria sido útil. Do jeito que as coisas estavam, ele esperava que fossem duas – uma criatura de quatro patas que era grande o suficiente para encostar no teto teria quase o porte de um elefante.
Anna havia parado quando ele parara, em uma imobilidade alerta e vigilante. Charles virou a cabeça e mordeu seu ombro levemente. Quando ela olhou para ele, Charles a dirigiu em direção a Beauclaire, que já estava no meio da sala.
O Fae precisava de cobertura – e Anna não tinha muita experiência em combate. Lutar contra algo que ela não podia ver não era a melhor maneira de ganhar mais experiência.
Anna deu-lhe um olhar perplexo e depois trotou após o Fae, enquanto Charles continuava a descer mais devagar os últimos degraus atrás dela.
Isaac, consciente de que alguma coisa estava acontecendo, parou no fundo das escadas e esperou que Anna, e então Charles, passassem por ele.
Charles esperou, observando o Fae escondido e tentando usar as faíscas para deduzir o que a criatura estava fazendo. Quando Anna e Beauclaire passaram por ela, a criatura se moveu. Charles preparou-se, mas a criatura escondida parou antes de chegar perto de Anna – a parte de cima de seu corpo movia-se com um redemoinho vertiginoso de faíscas.
Ele imaginou que o Fae finalmente havia notado que o par de lobisomens – Charles e Isaac –, estavam se concentrando onde ele estava, embora devesse ser invisível, e virou a cabeça para observá-los.
Depois de um momento, a parte superior da criatura se inclinou e sacudiu-se em direção a ele como um alce irritado – ele definitivamente estava prestando atenção nos dois. Em vez de saltar de cima e correr o risco de ser empalado, Charles arrastou-se cuidadosamente, descendo as escadas, até que ficou exatamente na frente de Isaac, deixando o outro lobo ver, por sua linguagem corporal, exatamente onde o inimigo estava.
Isaac agachou-se e deu um par de saltos, deslizando para longe, separando-se de forma que eles pudessem atacar de direções diferentes – e também estabelecendo dois alvos em vez de um.
Houve um estrondo abrupto vindo da entrada da porta por onde Anna e Beauclaire tinham desaparecido, e então o som entrecortado de uma mulher soluçando. O Fae invisível moveu-se novamente – balançando sua cabeça em direção ao barulho, concluiu Charles. Em seguida, Anna apareceu na abertura e o Fae correu em direção a ela.
Mas ele não foi tão rápido quanto Charles. Ele mirou baixo, considerando o tamanho da criatura que estava atacando: aproximadamente a um metro do chão. Olhando o jeito que ele se movia, Charles tinha quase certeza de que o Fae era bípede – e isso significava tendões. Charles atingiu alguma coisa que parecia a frente do jarrete de um alce e mudou sua mordida no meio do ataque, deixando seu impulso puxá-lo de volta, de forma que suas presas cortaram através da articulação horizontal, enquanto seu corpo girava até que ele estivesse por trás da criatura. Em seguida ele abriu sua mandíbula como um buldogue e fechou-a, enterrando-se em osso, enquanto dilacerava o lorde cornudo com suas garras, esticando-se para cima e tentando achar uma parte vital para danificar.
A criatura Fae uivou, um assobio selvagem e agudo que era uma estranha combinação do som de um alce e o relincho de um garanhão; e quando ele o fez, o ar se moveu através do subporão como uma tempestade alimentada pelo mar atingindo a costa. Algo parecido com um porrete atingiu Charles no ombro e então Isaac entrou na briga, atacando mais alto do que Charles, talvez esperando derrubar o Fae. Embaixo de Charles, a criatura girou mas não caiu quando Isaac achou alguma coisa onde enterrar suas presas. Sua cabeça movia-se de uma forma que lhe dizia que ele havia arrancado um pedaço de músculo em vez de osso. Ele estava arrancando pedaços enquanto o segurava com as garras dianteiras e o arranhava com as patas traseiras, como um gato.
As patas traseiras de Charles estavam no chão e ele as usou para mover seu peso, preparando-se para encontrar algo mais frágil do que o grosso osso que ele havia encontrado, mesmo que ele lhe desse um bom e sólido apoio. O osso era muito grosso para quebrar com as mandíbulas e Charles precisava incapacitá-lo para que ele não pudesse chegar até Anna.
A criatura gritou novamente e livrou-se de Isaac, jogando-o do outro lado da sala, contra a parede de cimento. Observar a forma como ele lidava com Isaac mostrou a Charles que o lorde cornudo tinha mãos de algum tipo – e era seriamente forte, mais forte do que um lobisomem.
Livre da distração, a criatura voltou a prestar atenção em Charles novamente. Ele tentou atacá-lo mais duas vezes, mas sem jeito, como se não conseguisse chegar até ele. Em seguida, o Fae levantou a pata que Charles havia agarrado e algo o atingiu no ombro novamente – um golpe certeiro que o fez soltar a presa. Antes que Charles pudesse agarrá-lo novamente ou largá-lo, o lorde cornudo chutou seu jarrete contra a parede de trás.
Charles caiu ao chão. Por um momento ele ficou indefeso, sem fôlego, mas antes que a criatura pudesse fazer algo contra ele, um dínamo negro mergulhou sobre Charles como um redemoinho.
Anna não se incomodou em tentar algo sofisticado. Ela apenas correu para frente e para trás, em círculos vertiginosos. Quando ela batia em algo, arrancava um pedaço, mas continuava a correr. Distraindo-o.
Charles cambaleou e ficou em pé, lançando-se para a criatura novamente. Dessa vez, tonto após bater na parede e depois no chão, ele não tinha nenhuma ideia do que havia atingido – tudo o que sabia, tudo o que o irmão lobo sabia, era que eles tinham que proteger sua companheira. Mas a sorte o favoreceu e ele atingiu um bom local: havia carne e osso embaixo de suas presas e ele afundou suas garras profundamente. Charles não viu quando Beauclaire juntou-se à luta. Mas, de repente, ele estava lá, seu rosto gelado, mais bonito e inumano do que Charles se lembrava. Ele estava mais alto também e mais magro, e lutava com uma faca em uma das mãos e magia na outra. Ele era rápido e resistente, lutando às cegas, mas atingiu a criatura vez após vez com a faca – e quando usava sua magia, Charles não conseguia ver o que Beauclaire fazia, mas o lorde cornudo sentia e estremecia debaixo de suas presas.
Charles tinha certeza de que fora a magia que virara a maré. Assim que Beauclaire o atacou com ela, o lorde cornudo parou de lutar para vencer e começou a lutar para fugir.
A fera Fae a quem Charles se agarrava gritou – dessa vez, um berro profundo como um tambor que feriu seus ouvidos – e atirou-se no chão, rolando como se estivesse em chamas, primeiro para um lado, depois para outro. Charles segurou-se quando ele rolou as duas primeiras vezes, mas caiu na terceira. Beauclaire, que não tinha nem presas nem garras, jazia imóvel no chão após a primeira rolada.
Livre de seus atacantes, a criatura correu para as escadas e Charles pôde dar uma boa olhada contra o que eles tinham lutado, porque seja lá o que fosse que o mantinha invisível tinha parado de funcionar. Seus chifres eram enormes. Charles havia pensado a princípio que eles eram como a galhada de um caribu, mas isso devia ter sido um truque das sombras, porque eles começaram a brilhar fracamente com uma gelada luz branca e eram como os chifres de um cervo – um enorme e antigo cervo.
A criatura tinha uma pelagem prateada que embranqueceu enquanto ela cambaleava para cima e Charles percebeu que tinha se enganado anteriormente, porque o Fae tinha quatro patas, longas e delicadas. Sangue negro desaparecia enquanto ele observava, absorvido pela pelagem prateada de um grande veado macho, quinze ou vinte centímetros mais alto do que qualquer alce que ele já vira.
O irmão lobo queria ir atrás dele e matá-lo, porque eles não estariam seguros até que ele estivesse morto. Charles concordava, mas decidiu que, como um de seus ombros havia se deslocado ou estava quebrado, mandar um lobo atrás de uma criatura que estava cicatrizando enquanto corria mais rápido do que um lobisomem era algo estúpido de se fazer. Especialmente quando ele já havia quase derrotado três lobisomens e um Fae durão. Ele se perguntou se o lorde cornudo, um mestiço, era realmente tão forte, ou se era a magia emprestada que o fazia assim. De qualquer maneira, Charles não iria atrás dele, não importando o que o irmão lobo quisesse.
Ele não ia deixar sua Anna indefesa.
O irmão lobo rugiu de raiva frustrada e sentiu alguma satisfação quando o cervo pulou os últimos cinco ou seis degraus, cambaleando no topo quando sua pata esquerda traseira, ainda não cicatrizada, não suportou o seu peso.
Quando ele desapareceu, Charles virou-se para examinar os outros. Isaac ainda estava no chão mas havia rolado até ficar em uma posição de esfinge; ele piscou um pouco estupidamente para Charles. Já que não estava morto, iria cicatrizar logo. Beauclaire estava apoiado em uma das mãos e nos seus joelhos, tentando ficar em pé com limitado sucesso; tudo parecia estar se movendo bem, exceto por um pulso obviamente quebrado. Anna... Anna estava agachada ao lado de Lizzie Beauclaire cantando para ela, ou o mais próximo disso que um lobo pudesse chegar.
A garota... Charles vira as fotos dela na parede de seu apartamento, e ela tinha sido bonita. Agora havia feridas cobertas de crostas cobrindo sua testa e faces, que era toda a pele que Charles conseguia ver. Ela já vestia a camisa de seu pai, mas estava obviamente nua por baixo, e sua pele anteriormente perfeita estava coberta de marcas e contusões – exatamente como o corpo de Jacob. Em uma pessoa viva e respirando, isso era ainda pior, porque ela também estava coberta por um miasma de magia negra que ele podia ver – como uma névoa de pulgas invisivelmente pequenas. Lizzie piscou para ele com olhos drogados e moveu-se para trás, parando abruptamente com um pequeno ofegar, porque algo doía.
Eles haviam quebrado o seu joelho. Destruído, na verdade, considerando sua experiência no assunto – e Charles tinha muita. O dano tinha sido deliberado, e ele se perguntou se ela, uma atleta treinada, tinha sido um pouco mais durona do que o esperado. Seus pés estavam machucados e sangrando, como se ela tivesse escapado e corrido descalça pelo terreno rochoso. Lizzie não teria tido nenhuma chance real de fugir, a não ser que ela pudesse invocar os habitantes do mar – e Charles duvidava disso. Eles tendiam a ser distantes ou agressivos, mesmo com os de sua própria espécie.
Lizzie estava claramente incapacitada de andar. Ela teria que ser carregada, e ao olhar para os outros, Charles sabia que ele é quem teria de fazê-lo. Com um pulso quebrado, o pai dela não conseguiria, e Anna ainda era um lobisomem muito jovem para transformar-se de novo tão rapidamente. Isaac estava tonto e confuso, e era muito novo também. Charles lembrou que ele tinha sido transformado quase na mesma época que Anna, apenas alguns anos atrás. Charles simplesmente teria de aguentar mais uma transformação para humano exatamente nesse minuto.
Doeu. Ele tinha esquecido o quanto doía transformar-se quando algo estava errado. Ele era velho, e a transformação ajudaria a curar qualquer ferimento que não tivesse sido causado pela prata, mas a transformação curava da mesma maneira como a água salgada impedia uma ferida de ficar infectada: por meio de muita dor.
Charles não gritou. Ele não iria uivar e assustar a pobre bailarina que tinha se enrolado em torno de Anna, como se o lobisomem fosse um cachorrinho de pelúcia. O suor escorreu de seu corpo antes mesmo que ele fosse novamente humano o suficiente para suar. E então Charles se tornou humano, ajoelhado no cimento coberto de poeira, vestindo uma camiseta vermelha encharcada de suor e seus jeans, que eram do velho estilo de botão – o que ele observou com um toque de diversão.
Charles tentou ficar de pé algumas vezes antes de conseguir inteiramente e mesmo assim suas mãos ainda estavam tremendo. Mas o ombro possivelmente fora apenas deslocado, porque a lesão havia sido curada completamente com a transformação, restando apenas uma sensação dolorosa.
Quando Anna e ele voltassem para o apartamento, Charles iria dormir por uma semana. Ele olhou ao redor para fazer uma triagem, com a ideia de levar todos para cima e para o barco, antes que o lorde cornudo voltasse para acabar com eles.
Charles deixou Lizzie Beauclaire com Anna por mais alguns minutos e foi agachar-se na frente de Isaac.
– Ei – disse ele. – Você está aí?
O lobo apenas ofegou, sem focalizar os olhos.
– Eu vou tocar em você – disse Charles, em um tom que não admitia nenhuma oposição: lobo mais dominante para lobo menos dominante. – Para ver se há qualquer coisa que precise ser consertada. Você não vai gostar, mas você vai me deixar fazer isso. Rosnados são aceitáveis. Morder não é.
Depois de um exame rápido, durante o qual Isaac rosnara muito, Charles estava certo de que, embora inicialmente houvesse alguns ferimentos, o Alfa de Boston já havia cicatrizado a maioria deles. O que restava eram muitos pontos doloridos e uma bela concussão, que iria se resolver em algumas horas com uma alimentação adequada. Charles gostaria que Malcolm tivesse mais do que lula, iscas artificiais e minhocas em suas caixas de iscas, embora proteína fosse proteína.
Ele levantou-se e olhou em volta novamente.
Beauclaire tinha conseguido ficar em pé e cambaleara até sua filha. Ele havia se sentado no chão a cerca de trinta centímetros dela, estendendo a mão para tocar em seu cabelo com uma mão leve. Ela se encolhera e ele começou a cantar para ela em galês.
Ar lan y môr mae lilis gwynion
Ar lan y môr mae ’nghariad inne
Ele tinha uma boa voz. Não espetacular, como Charles teria esperado de um Fae de posição e poder (e o Fae que havia lutado ao lado de Charles essa noite, obviamente, tinha poder), mas uma voz afinada e doce, embora um pouco afetada pelas lágrimas não derramadas em sua voz. Outra canção talvez tivesse sido mais adequada para o tom de voz de Beauclaire; e essa canção em particular não era das favoritas de Charles. Ele preferia aquelas que tinham uma história, imagens poderosas ou, pelo menos, melhor construção poética.
Charles deu um passo à frente e, embora Beauclaire não olhasse para cima ou parasse de cantar, Charles sentiu a atenção do Fae sobre ele. Parecia a atenção de uma cascavel pouco antes de atacar.
– “Junto ao mar”, de fato – disse Charles, baixinho, observando a linguagem corporal de Beauclaire.
O lorde Fae parou de cantar e olhou para cima. Charles viu que havia interpretado a situação de forma correta. Beauclaire estava pronto para defender sua filha contra alguém que chegasse muito perto. Como Isaac, ele havia levado uma bela surra na implacável pedra e parecia um pouco atordoado, algo que Charles não tinha notado em sua primeira avaliação. Um Fae ferido era muito mais perigoso. A longa faca tinha reaparecido em sua mão boa e parecia muito afiada.
– Ar lan y môr – cantou Charles; ele viu Beauclaire relaxar apenas um pouco, e então cantou mais algumas estrofes para ele. – Tudo bem. Aliados, lembra-se? Precisamos levar todos para o barco. Talvez a bruxa de Isaac tenha que fazer algo em sua filha para que a magia negra não a consuma – não sei se você pode vê-la, mas eu posso. Precisamos consertar seu pulso.
Beauclaire fechou os olhos e fez a faca desaparecer. Magia, pensou Charles, ou mãos rápidas. O Fae assentiu e, em seguida, se encolheu e fez uma careta. – Certo – sua voz era menos estável falando do que cantando. – Precisamos levá-la para um lugar seguro caso o lorde cornudo volte. Eu não posso carregá-la.
– Eu posso, se você me deixar – ofereceu Charles. Se necessário, ele usaria sua dominância em Beauclaire, como havia usado em Isaac. Mas Beauclaire não era um lobo. Ela podia funcionar por um segundo, mas também podia fazer Charles ser esfaqueado nas costas quando não estivesse prestando atenção em Beauclaire. Melhor obter cooperação de verdade.
– O joelho dela – disse Beauclaire.
– Eu sei. Eu vi. Vai doer, não importa como façamos isso. Mas a ilha não é tão grande. Não vamos demorar muito.
Beauclaire olhou para ele e deu-lhe um meio sorriso.
– Primeiro precisamos ficar em pé e subir as escadas.
– Sim – concordou Charles.
– Ele pode estar esperando por nós lá cima.
Charles começou a concordar, mas o irmão lobo interrompeu. O velho lobo podia não conhecer lordes cornudos, mas conhecia presas – e Charles confiava em seu julgamento.
– O grande cervo branco foi embora.
Beauclaire congelou.
– Você o viu? Como um cervo branco?
Charles balançou a cabeça.
– Quando lutamos contra ele, ele não estava usando essa forma – Charles tivera tempo para pensar sobre isso: ele sabia o que ele havia tocado e era uma forma vagamente humana, cujos membros inferiores eram parecidos com as patas traseiras de um alce.
– Mas ele correu até as escadas e se transformou em um cervo – exatamente quando sua invisibilidade se dissipou.
– Ela não se dissipou – disse Beauclaire. – Ele deixou cair o glamour de propósito. Por que você não o seguiu?
– Eu não estava exatamente em forma para derrotá-lo sozinho – disse Charles, gesticulando em direção aos outros. – Mesmo com os aliados, nós poderíamos não ter sido capazes de derrotá-lo, se ele não tivesse decidido correr. E eu não ia deixar você aqui ferido e vulnerável.
Anna bufou. Ela o conhecia, sabia de quem ele estava falando.
Beauclaire inclinou a cabeça e sorriu.
– Eu deveria saber que o filho de Bran seria teimoso demais para ser enganado por qualquer magia – mesmo pelo veado branco. Se você o tivesse perseguido, você teria continuado, sem nunca parar, sem nunca aproximar-se dele, até que suas pernas fossem apenas tocos sangrentos ou você estivesse morto.
Charles olhou para ele.
– Obrigado pelo aviso.
Beauclaire riu.
– Filho de Bran, ninguém pode se proteger do veado branco – e saber o que ele é e caçá-lo de qualquer maneira é muito perigoso. Até mais perigoso do que caçá-lo na ignorância do que ele é. Se o veado branco passasse por mim duas semanas atrás, eu não teria sido compelido a ir atrás dele. Mas se eu o tivesse visto essa noite, depois de começar a caçá-lo desde que ele roubou minha filha – eu o teria seguido, poderoso que sou, até que um de nós estivesse morto.
– Pensei que os Fae fossem imortais – disse Charles. – Pelo menos aqueles que podem referir-se a si mesmos como “poderoso que sou”.
Beauclaire começou a dizer algo, mas parou quando Charles ergueu uma mão.
Havia um som de pés se arrastando acima deles. Alguém estava lá em cima.
– Isaac? – era Malcolm.
– Estamos aqui – falou Charles, relaxando, embora o irmão lobo estivesse bravo com eles. Os outros deveriam ter ficado em segurança, onde ele os havia deixado.
Malcolm, a bruxa e o FBI vieram correndo para o resgate, trazendo mais barulho e caos com eles do que quatro pessoas conseguiriam produzir. Goldstein e Leslie Fisher assumiram a liderança e Charles, cansado e com dor em todos os ossos do corpo, deixou-os.
Leslie retirou sua jaqueta à prova d’água, que ia até o joelho, e ajudou Beauclaire a envolvê-la em torno de sua filha. A bruxa procurou em sua mochila e murmurou coisas desagradáveis. Finalmente ela encontrou um saco plástico de sal, fez com que eles tirassem o casaco e a camisa de Beauclaire de cima de Lizzie e polvilhou-a da cabeça aos pés com sal.
Brutal, mas eficaz. A magia negra se dissipou, mas o sal queimou suas feridas abertas. Ela gritou, mas parecia estar ainda muito profundamente sob a influência de tudo aquilo que seus sequestradores haviam dado a ela para que pudesse fazer muito ruído. Charles cheirou ketamina e algo mais.
– Nós poderíamos tê-la jogado no mar e pescado de volta – disse Hally. – Mas o frio não teria feito a ela qualquer bem. Melhor deixar o sal agir. Uma meia hora deve ser tempo suficiente, mas mais do que isso seria melhor. Isso também vai evitar a infecção.
Eles embrulharam Lizzie novamente e Charles pegou-a no colo, deixando-a em evidente aflição, mesmo com a quantidade de drogas que eles haviam dado a ela ainda em seu sistema. Ela não tinha ficado nas mãos deles por um longo tempo – foi pouco mais do que um dia completo, mas Lizzie tinha sido torturada e quem sabe o que mais. Ela não queria nenhum homem por perto.
Mas Anna não podia se transformar naquele momento e Leslie, embora em boa forma, era humana e não seria capaz de carregar Lizzie por todo o caminho de volta para o barco.
Charles tentou cantar para ela; a mesma canção que seu pai estivera cantando. Beauclaire – e Malcolm – juntaram-se a ele e a música pareceu ajudar.
Goldstein tinha usado um pedaço de pau e uma tira da barra de sua camisa de algodão para amarrar a tala no pulso de Beauclaire. E quando eles começaram a subir as escadas, ele colocou um ombro sob o braço do Fae e o ajudou a se manter em pé, tendo evidentemente decidido que Beauclaire era sua responsabilidade pessoal. Beauclaire deu a Charles um leve olhar divertido e deixou-se ajudar – possivelmente, um pouco mais do que realmente precisava.
Isaac estava obviamente com dor, ofegando com o esforço, mas ficou em pé e os seguiu; Malcolm caminhava firmemente ao lado dele. Charles manteve um olhar atento sobre eles por alguns momentos – lobos podiam ser um pouco imprevisíveis quando um lobo mais dominante estava ferido. Era um bom momento para eliminar o dominante e tomar seu lugar. Isso não costumava acontecer quando um lobo ainda mais dominante como Charles estava por perto para manter a paz e proteger a alcateia, mas era melhor estar seguro. Felizmente, Malcolm parecia sinceramente preocupado com seu Alfa.
Anna variava: às vezes caminhava ao lado de Charles, mas principalmente trotava em um amplo círculo ao seu redor, atenta para o perigo. Leslie cuidava da retaguarda, a arma em mãos e pronta para atirar. Hally andava na frente deles, liderando o caminho enquanto ignorava todos eles na maior parte do tempo.
E eles foram, cambaleando e tropeçando, feridos mas triunfantes, cantando a velha canção folclórica galesa Ar lan y môr.
E se havia algo estranho em retornar de uma batalha cantando uma canção que falava de lírios, alecrim, pedras e – por alguma razão que Charles nunca compreendera – ovos, dentre todas as coisas estranhas junto ao mar, os três conseguiram cantá-la muito bem até; e apenas Charles e Beauclaire sabiam falar galês.
Dez
No barco, Charles esticou as pernas e tentou ignorar a persistente dor da última transformação. Anna tentou sentar em vários lugares diferentes, mas os assentos humanos eram muito estreitos e tinham a forma errada. As saliências que ela havia usado para se sentar quando eles tinham vindo estavam escorregadias, e em vez de cravar suas garras na fibra de vidro, Anna deslizava pelo barco com o movimento do mar. Finalmente ela soltou um grande suspiro e se enrolou aos pés de Charles no convés.
Beauclaire havia proibido qualquer questionamento até que sua filha fosse examinada por um médico. Goldstein e Isaac tinham decidido ficar para trás até que as várias agências governamentais convocadas chegassem à ilha. Malcolm lhes dissera que decidiu que Beauclaire e os lobos podiam precisar de ajuda quando ouviu um barco sair da ilha. Charles sentiu-se seguro o suficiente para supor que o lorde cornudo com quem eles tinham lutado havia deixado a ilha naquele barco. Isso significava que restava muito pouco perigo – mas mesmo assim era bom que Isaac tivesse ficado lá, apenas para ter certeza de que tudo ficasse bem.
Charles suspeitava que Isaac tinha decidido adiar a viagem de barco até um momento em que se sentisse melhor, embora já estivesse bem o suficiente para se transformar de volta em humano. Hally ia ficar com Isaac para assegurar que a magia residual não se apossasse de nenhum dos membros da equipe forense, que ia examinar a ilha com um pente fino.
Assim, o barco estava muito mais vazio no caminho de volta do que na ida.
Leslie deixou Beauclaire na metade de trás do barco para sentar-se ao lado de Charles.
– Ela está mal – disse Leslie, sentando-se precisamente na beirada do assento. – Haverá uma ambulância esperando por nós no atracadouro usual do Daciana.
A agente do FBI parecia um pouco menos profissional, enrolada em um cobertor do barco, com os cabelos soprados pelo vento. Como Charles e Anna, ela estava há pouco mais de 24 horas sem dormir. A falta de sono e a ausência de sua sutil maquiagem, que havia saído em algum momento enquanto eles corriam ao redor da ilha, adicionavam alguns anos ao seu rosto.
Charles estava intrigado com o fato de ela ter escolhido sentar-se ao lado dele, com tantos assentos disponíveis.
– Você não tem medo de mim? – perguntou ele.
Leslie fechou os olhos.
– Cansada demais para ter medo de qualquer coisa. Além disso, se você pudesse ver o meu marido, você entenderia que eu não me assusto com pouco.
Isso despertou sua curiosidade.
– Como assim?
– Linebacker para os Tigers da LSU por três anos na faculdade – disse ela, sem abrir os olhos. – Machucou o ombro no último ano ou teria sido contratado por algum time profissional. Ele tem 1,95 m e pesa 108 kg. Nada desse peso é gordura, nem mesmo agora. Ele dá aulas para crianças da segunda série.
Leslie olhou para Charles.
– Do que você está rindo?
Charles arregalou os olhos.
– De nada, senhora.
Ela sorriu um pouco.
– Jude diz que ama as crianças mais do que já amou o futebol. Mas ele treina a equipe local do segundo grau também.
– Você não veio aqui para me contar sobre o seu marido – disse ele.
– Não – Leslie olhou para ele e então desviou o olhar. – Quantos anos você tem?
– Sou mais velho que aparento – disse Charles. – Muito mais velho.
Ela assentiu com a cabeça.
– Eu andei perguntando sobre você. Alguns lobisomens mantêm contato com o FBI. Disseram-me que você é uma espécie de detetive para todos os lobos. Você vem e resolve os crimes.
Charles se perguntou se isso era tudo o que haviam dito a ela, e achou que provavelmente sim. Ele não respondeu, porque não sabia se concordar com ela seria mais mentiroso do que discordar dela.
– E você sabe muito sobre esse mundo que estamos apenas começando a compreender. Conseguimos tirar Lizzie das mãos dos assassinos porque você sabia que devíamos trazer bruxas para o caso – e porque a bruxa ficou com medo de você o suficiente para se comportar.
Era um resumo bastante adequado. Ele esperou que ela chegasse ao ponto.
– Lizzie diz que havia três deles – disse-lhe Leslie. – Dois homens jovens e um homem velho. Um dos homens jovens chamou o velho de “tio” antes que ele o mandasse se calar. O velho fez os cortes em sua pele. Ambos os jovens a estupraram primeiro, “enquanto ela ainda estava bonita.” Eles lhe disseram que o velho preferia as mulheres depois que elas estivessem “quebradas”.
Charles queria ter chegado a tempo o suficiente para poupá-la disso, mas ele tinha tido quase certeza de que isso não iria acontecer.
– Pensei que Beauclaire tinha proibido que ela fosse interrogada – disse Charles. Ele ouviu Lizzie falando, mas Leslie não precisava saber até onde alcançava sua audição de lobo.
– Eu não fiz nenhuma pergunta a ela. Ela simplesmente falou. Lizzie disse que quer que eles sejam capturados e colocados na prisão, para que não possam fazer mais nada com ninguém. Garota durona. Ela adormeceu no meio da frase – e acho que o pai dela teve algo a ver com isso. Os Fae podem fazer as pessoas dormirem?
– Não sou um especialista em magia Fae – disse cuidadosamente Charles.
Ela virou a cabeça e assentiu.
– Você é muito bom em se desviar da verdade – suspirou Leslie. – Você é um detetive experiente e combateu o inimigo. Quais são suas impressões?
– Só combati um – disse Charles. Mas o pedido de informações era justo – e ele queria que os assassinos fossem capturados. – O Fae é definitivamente o membro júnior do grupo, muito embora ele seja provavelmente o único que tem magia – e ele é a razão pela qual eles conseguem capturar Fae e lobisomens.
– O que faz você pensar assim?
– Ele não é um caçador – disse-lhe Charles. – Ele é um cervo – não é um predador, não importa o quanto seja durão ou mortal.
Herne o Caçador ou não, o irmão lobo sabia que o Fae contra quem eles haviam lutado era uma presa. Talvez Herne fosse mais caçador e menos cervo, mas esse... esse fugia de seus inimigos. Ele não era um caçador; era uma ferramenta dos verdadeiros caçadores.
– Você acha que ele é uma vítima?
Charles bufou.
– Não. Ele não é nenhum anjo – mas não sairia caçando vítimas por aí. Ele poderia estuprar e matar alguém que chegasse muito perto dele – mas ele não caçaria. Isso é comportamento predatório. Não significa que ele não seja perigoso. Na maioria dos anos, alces matam mais pessoas no Canadá do que os ursos-pardos. Os alces, entretanto, geralmente não seguem a trilha das pessoas com a intenção de matá-las, como um urso pardo faz.
– Certo – disse Leslie. – Temos um alce, não um urso pardo. O que mais?
Ele pensou na luta. O lorde cornudo havia lutado instintivamente, e não estrategicamente – aparentemente incapaz de se concentrar em mais de um atacante de cada vez.
– O Fae não é inteligente. Se ele tivesse um emprego diário – e eu diria que ele tem – Charles tentou verbalizar os instintos que permitiam a um lobisomem dominante controlar sua alcateia. – Bom, se você vai manter alguém perigoso sob controle, não pode deixar que ele comece a pensar que é valioso demais. Você não o sustenta financeiramente por que ele é útil na caçada. Ele precisa sustentar a si mesmo.
– OK.
Leslie parecia duvidar, e Charles deu de ombros.
– Poderia ser diferente se nossa família de assassinos não tivesse dinheiro – aí eles teriam que encontrar alguma outra maneira de assegurar que ele soubesse que era seu subordinado.
– Eles têm dinheiro?
– Todas essas viagens, todos esses anos – se você estivesse procurando um grupo de pessoas sem dinheiro, você as teria encontrado. Dinheiro torna todas as coisas mais fáceis. Assassinato é uma delas. E eles precisariam de dinheiro para pagar Sally Reilly.
– Muito bem. Nossos profilers concluíram, há quinze anos, que o Grande Caçador era rico. Você ia especular sobre que tipo de emprego ele teria.
– Certo. Ele não é muito brilhante e, por causa disso, sua outra natureza seria difícil de esconder.
– “Outra”, como Fae?
Charles assentiu.
– Sim. Então, ele é um empacotador em um supermercado ou um estoquista. Talvez zelador ou faz-tudo. Ele seria muito forte. Estivador, se vocês ainda os utilizam por aqui.
– As pessoas se lembrariam dele?
– Se ele é assustador, você quer dizer? Como o seu marido? – Charles sacudiu a cabeça, seguindo os instintos do irmão lobo. – Acho que não. Acho que as pessoas sentiriam pena dele. Caso contrário, ele estaria na cadeia. Quando assustadas, as pessoas geralmente correm ou atacam. Se alguém o atacasse, ele os teria matado. Se ele saísse por aí matando pessoas à luz do dia, ele estaria na cadeia ou morto.
– Tudo bem – disse Leslie. – Vamos ver o que podemos fazer com essas informações. Vamos pedir aos nossos profilers para analisá-las e ver se eles concordam.
O apartamento não era a mesma coisa que estar em casa, mas parecia igualmente acolhedor. Charles tirou alguns bifes da geladeira e cortou-os em pedaços menores. Um deles ele colocou no chão para Anna e o outro ele comeu em pé. Seus dentes humanos não eram realmente afiados o suficiente para rasgar a carne, mas ele perseverou e foi recompensado quando as dores gradualmente diminuíram, enquanto a energia do alimento entrava em seu sistema.
Ele observou sua companheira comer com uma satisfação que nunca desaparecera totalmente desde que a conhecera, quase morta de fome e de olhos arregalados. O irmão lobo nunca esquecera como ela era magra, e ficava bastante insistente quando achava que Anna não estava comendo o suficiente.
Quando ela terminou de comer, se transformou de volta em humana. Isso sempre deixava Charles inquieto: vê-la se transformar, sentindo dor, e saber que não havia nada que ele pudesse fazer para ajudar. Charles andou para lá e para cá algumas vezes e, em seguida, sentou-se e ligou a TV, vagarosamente trocando os canais até que Anna, humana novamente, tirou o controle da sua mão e desligou a TV.
– Cama – disse ela. – Ou sua esposa vai se tornar um zumbi.
Charles se lembrou de que pretendia conversar com ela para contar-lhe sobre seus fantasmas. Mas nenhum dos dois estava bem o suficiente para conversar.
Charles olhou para ela e disse com sua voz mais grave:
– Acho que os lobisomens não podem se transformar em zumbis.
– Confie em mim – disse ela, em uma voz passável de zumbi. – Dez minutos e eu vou comer o seu cérebro.
Charles a puxou para o seu colo.
– Acho que vou arriscar – Anna suspirou como se estivesse aborrecida, embora o nariz de Charles lhe dissesse que ela gostava de estar abraçada a ele.
– Então, você consegue fazer isso sem um público? Era isso que estava incomodando você nesses últimos meses? Tudo o que eu precisava fazer era convidar a alcateia para vir ao nosso quarto? Você deveria ter me falado.
Ele riu. Anna o fazia rir.
– Não sei. Vamos descobrir.
Um razoável tempo depois, Anna esticou-se e caiu confortavelmente ao lado de Charles.
– Grrrr, cérebros – disse ela.
– Vá dormir – resmungou Charles, puxando-a para mais perto.
– Eu o avisei – disse ela. – Você não me deixou dormir. Ela abriu a boca em um amplo bocejo e continuou, com pesar. – E agora eu não tenho escolha, a não ser comer o seu cérebro.
– Obviamente – disse ele. – Você precisa de mais exercício antes de ir dormir. Ele rolou de costas. – Acho que terei de ser um bom companheiro e ajudá-la com isso.
Ela rastejou em cima dele, nua, quente e macia, cheirando a um milagre que o salvara de uma vida de solidão.
– Eu não quero que você tenha uma distensão – disse-lhe Anna. – Por que você não se deita simplesmente e pensa na Inglaterra.
A boca de Charles capturou a parte mais próxima do corpo de Anna: o interior macio de um cotovelo – e deu-lhe uma mordida de leve.
– A Inglaterra é a coisa mais distante em minha mente.
Ela se ajeitou em cima dele, levando-o para dentro dela, e Charles parou de falar completamente. Os olhos dela eram azuis, os olhos de seu lobo, quando ela o reivindicou pela segunda vez naquela noite.
Corada e alegre, Anna se inclinou e mordeu sua orelha.
– Nenhuma plateia é necessária, pelo que vejo.
– Mexa-se – disse-lhe Charles.
Ela riu de novo, os olhos ainda azuis iluminados pela lua, mas se mexeu.
Eles dormiram.
Charles acordou primeiro e observou o rosto dela na luz tardia da manhã. Anna parecia tranquila e isso agradou o irmão lobo, muito embora a lua crescente estivesse quase cheia e o desejo de caçar sempre corresse forte em seus ossos nessa época. Contentamento ainda era algo novo para Charles, algo que ele nunca experimentara em toda sua longa vida antes de encontrar Anna.
– Estive pensando sobre os assassinos – disse Anna, sem abrir os olhos. – Três pessoas constituem uma alcateia.
Charles esperou que ela continuasse.
Anna se sentou, de repente. Em uma voz cheia de excitação contida, ela disse:
– O Fae – ele é o soldado, o último na hierarquia. Fazendo o que mandam, quando mandam. O velho, ele é quem começou isso. O Alfa.
– Hum – disse Charles, quando parecia que ela precisava de sua concordância. A lua dos caçadores podia não estar agitando o irmão lobo enquanto Anna estivesse ali em sua cama, mas aparentemente ela estava sentindo aquilo com bastante força.
– Quem é o segundo homem jovem? – perguntou ela. – Você acha que ele é o segundo obediente? Leal, dedicado? Ou ele é o Alfa em treinamento, esperando que o homem velho fique velho demais para controlar a alcateia para que assim ele possa matá-lo e assumir o comando?
– Nenhum de nós é um profiler treinado – disse Charles, se sentindo obrigado a mencionar isso.
Anna saltou na cama: seus olhos castanhos brilhavam de emoção.
– Agora que Lizzie foi resgatada, tudo o que temos a fazer é resolver o resto.
– Como eles têm tentado fazer há mais tempo do que você está viva – disse ele secamente.
– Sim – disse ela – mas eles não tinham você e eu trabalhando no caso.
Eles tinham uma TV agora, e programação via satélite – principalmente para que Anna pudesse assistir a seus programas de detetive. Ela estava gostando disso. Já Charles... bem, ele supôs que estivesse gostando, também. Mais agora, que os inocentes estavam seguros, no hospital e no necrotério.
– Motivo – disse ela, na mesma voz que Arquimedes teria usado para dizer “Eureca!” em seu banho de todos aqueles anos atrás.
– Casos de assassinos seriais não funcionam como a maioria dos assassinatos –disse ele. – Assassinos seriais são viciados na caça e não conseguem parar, a maior parte deles. Suas vidas são controladas pelo ato de matar.
– Ele marca suas vítimas – disse Anna. – O que isso quer dizer?
– Esses são menos que seres humanos – disse Charles, repetindo o que ambos sabiam. – Animais que eu matei.
– Certo. Os animais que ele matou. Ele está reivindicando a morte das vítimas ao usar as etiquetas – ela franziu o cenho. – Os assassinos seriais supostamente não tentam entrar na investigação? Para assistir as pessoas lutarem e não conseguirem resolver o caso ou para controlar melhor o caso?
– Já ouvi falar sobre isso – concordou Charles. – Para alguns tipos de assassino.
Ela sorriu para ele.
– O FBI sabe mais do que nós a respeito de tudo isso – disse ele. – Provavelmente fizemos tudo o que era possível para ajudar no caso, até que outra pessoa seja levada.
Anna ficou séria.
– É uma pena que não conseguimos ferir mais gravemente o lorde cornudo. Ele já estava praticamente cicatrizado quando chegou ao topo das escadas – você percebeu? A polícia não tem a menor chance contra ele.
– Vamos ficar aqui por algum tempo. Leslie e Goldstein parecem ser pessoas sensatas. Eles irão nos chamar se precisarem de nós.
Ela inclinou a cabeça e perguntou:
– O que diz o irmão lobo sobre tudo isso?
– Que esses caçadores não conseguiram o que queriam; nós roubamos sua presa. Eles vão ficar com fome e serão ainda mais perigosos. Por outro lado, eu, Charles, digo que devemos comer alguma coisa, já que a manhã quase acabou e nós perdemos o café da manhã; e estamos quase perdendo o almoço – dessa vez o irmão lobo tem o prazer de concordar comigo.
– Você está sempre tentando me alimentar – acusou-o Anna, sem entusiasmo, enquanto saía da cama.
– Não, isso é o irmão lobo que faz. – disse Charles, sorrindo. – Eu cozinho.
Charles tinha a intenção de conversar com ela sobre os fantasmas durante o café da manhã, pois na noite anterior, além de estar muito cansado, fora distraído. Mas algo que Anna dissera o estava incomodando.
– Charles? – perguntou pacientemente Anna.
– Desculpe-me – disse-lhe ele. – Pensando.
– Você quer mais bacon, ou posso colocar o que sobrou na geladeira para mais tarde?
Haviam sobrado quatro pedaços de bacon. Ele pegou dois e os comeu. Em seguida, pegou os outros dois e levou-os até a boca de Anna.
– Você precisa de mais proteína.
Ela revirou os olhos, mas comeu mesmo assim.
– Eu preciso procurar uma coisa na internet – disse ele. – Você pode lavar a louça?
– Você cozinhou; eu limpo – disse ela.
Charles levou o laptop para o quarto de hóspedes, onde havia uma pequena mesa de trabalho. Ele era mais lento do que o seu desktop doméstico; a tela também era pequena demais e por isso ele não podia abrir tantas imagens ao mesmo tempo quanto gostava – e além disso a conexão da Internet do condomínio não era muito rápida. Ele rosnou de frustração quando seus dedos voaram sobre o teclado, como se ao movê-los mais rápido, ele pudesse persuadir a máquina a fazer um esforço maior.
Charles começou com as coisas legais às quais tinha acesso – Goldstein tinha lhe enviado um arquivo sobre o caso, como tinha prometido – e em seguida, ele cavou mais fundo. Esses assassinos, esses UNSUBs, eles tinham dinheiro – tinham poder. Anna estava certa: eles não poderiam ficar de fora da investigação.
Em algum momento, Anna trouxe uma pizza, embora ele não tivesse notado quando ela a pediu. Um pouco depois, ela entrou para tocar no seu ombro.
– Você, Isaac e eu fomos convidados para uma festa comemorando o sucesso do resgate de Lizzie – disse ela.
– Estou esperando por dois telefonemas – disse Charles.
– Esse seria um excelente momento para um pouco de RP com o Departamento de Polícia de Boston, o que é importante para a alcateia de Olde Towne. Isaac me disse que eles tiveram alguns problemas com a polícia esse ano.
Charles afastou a cadeira da mesa e olhou para sua companheira. Ela parecia um pouco impaciente, e seus olhos castanhos brilhavam ligeiramente, iluminados com o azul claro de seu lobo.
Estava escuro lá fora, o que significava que Anna havia ficado presa no apartamento durante horas sem nada para fazer além de ver TV. Além disso, a lua cheia estava muito próxima; não era justo fazê-la ficar sentada mais tempo.
– Esse pode ser um esforço inútil, mas estou na pista de alguma coisa e gostaria de terminar isso – disse-lhe Charles. – Será que você concorda em deixar Isaac ser seu acompanhante? – o irmão lobo não gostou, mas Charles não queria que ela se sentisse sufocada. Ele poderia terminar em cinco minutos, ou doze horas.
E Isaac era um bom lutador, Charles tinha visto isso na noite passada. Ele estava em desvantagem em tamanho e força, e prejudicado por não poder ver o adversário, mas lutara de forma inteligente.
– Eu não preciso de um guarda-costas – disse Anna, não se enganando nem por um momento com o fato de Charles ter chamado Isaac de acompanhante (mas Charles também não achou que iria conseguir enganá-la). – Nós vamos a um lugar cheio de policiais e agentes do FBI e lobisomens. Deve ser muito seguro. E um Alfa não está acima de ser um mero guarda-costas?
– Faça isso por mim – disse Charles.
Anna suspirou profundamente e depois estragou tudo com um sorriso malicioso.
– Eu disse a Isaac para vir me buscar e que ele seria responsável pela minha saúde e bem-estar.
– Se você sabia o que eu ia dizer, por que veio aqui me incomodar?
Ele grunhiu com irritação fingida.
Anna riu.
– Vou me trocar.
– Avise-me quando sair – disse ele, já começando a trabalhar de novo. Onde estava antes de ser interrompido por Anna?
Quando ele tornou a olhar, ela se fora.
– Ele deixa você sair sozinha?
Isaac, sem Charles para deixá-lo nervoso, era mais relaxado do que Anna havia pensado a princípio, mas também mais agressivo.
– Estou com você. Além disso, sou lobisomem – disse ela, com o dedo apontado para o próprio peito. – Não exatamente uma frágil princesa precisando ser resgatada.
– Não foi isso que ouvi a seu respeito – disse Isaac. – Perguntei por aí sobre você. Ômega. Fui informado pelo meu segundo em comando que deveríamos ficar honrados por você estar visitando nossa cidade. Que nós deveríamos lhe trazer presentes e tentar convencê-la a abandonar a sua alcateia e se juntar à nossa. Quando eu salientei que isso significava que Charles também viria e me substituiria, ouvi que a bênção de ter um Ômega na alcateia superaria até mesmo a possibilidade de ter que aguentar a presença de Charles.
Anna riu.
– Velhos lobos. Pensam que sabem tudo.
– E aí ele fica surpreso porque eu não lhe faço mais perguntas – concordou Isaac. – Então, faça aquilo.
Anna olhou para ele exatamente quando um pingo caiu em seu nariz. As nuvens haviam ameaçado, e o ar cheirava a molhado, mas essa tinha sido a primeira gota.
– Fazer o quê?
– Aquele vodu que você faz – disse Isaac. Ao ver a expressão dela, ele se virou e começou a andar para trás, para que ela pudesse visualizar o efeito completo de seu revirar de olhos e exagero cômico. – O quê? Você não conhece Adam Ant?
– “Uma emoção por dia mantém o frio lá fora” – cantou Anna, e então disse secamente: – Não é a melhor música deles. Você quer que eu faça o quê? Ataque-o com os meus incríveis superpoderes cósmicos Ômega?
– Foi isso que eu disse – Isaac virou-se de forma a caminhar ao seu lado mais uma vez. – Só que o meu pedido parecia mais maneiro e o seu parece uma frase de desenho animado de sábado de manhã.
– Meus poderes são mais um tipo de anti-superpoder – explicou Anna, enquanto as primeiras gotas de água tornavam-se uma chuva mais constante. – Se eu estivesse em uma história em quadrinhos, eu seria a estúpida menina solitária em uma equipe de machos incríveis e de grande força. Como Sue, a garota invisível – que era invisível de muitas maneiras – no Quarteto Fantástico. Que deveria se chamar o Terceto Fantástico e a garota bonita e idiota que anda por aí se metendo em confusões e sendo resgatada.
Isaac sorriu e sua expressão era mais leve; aquela tensão que Alfas sempre carregavam com eles suavizada.
– Nem mesmo Jessica Alba poderia salvar Sue de ser uma covarde.
Anna suspirou como se compartilhasse sua falsa tristeza.
– Eu gosto de filmes de super-heróis. Ainda assim foi melhor que Mulher Gato – e esse filme tinha um material muito melhor no qual se basear.
– E então, você vai me enfeitiçar? – perguntou novamente Isaac.
Ela agitou as mãos e fez seus dedos flutuarem na sua melhor imitação de mágico de palco, embora Anna já o tivesse atingido quando ele havia usado a frase de That Voodoo. Ela contorceu o rosto e fez sons gorgolejantes, e então disse em um tom de voz perfeitamente sério, que ela havia aprendido com Charles:
– Considere-se vuduzado.
Eles caminharam lado a lado, amigavelmente, por um quarteirão.
– Eu não me sinto vuduzado – disse ele.
– O que você sente? – perguntou ela.
Isaac deu mais três passos antes de enrijecer e parar.
– Eu não fico bêbado desde que fui transformado – sussurrou ele. – O que você fez comigo?
– Você não está bêbado. Não foi prejudicado física ou mentalmente – disse-lhe Anna.
Ele abaixou a cabeça, entrelaçou as mãos, se virou e começou a andar para trás de novo, de frente para ela. Anna o seguiu, mantendo um olhar atento para evitar que ele colidisse com alguma coisa ou caísse. Ela se perguntou se Isaac fazia isso o tempo todo, e como ele fazia para que suas fotos não fossem publicadas no jornal com títulos como “Alfa local tropeça em criança” ou “Lobo versus poste, poste vence”.
– Eu sou eu novamente – disse ele, com o rosto quase relaxado de admiração. – Há somente eu aqui – continuou ele, batendo na testa. – Uma noite antes da lua cheia e eu não quero caçar ou afundar meus dentes em qualquer coisa.
Ele piscou rapidamente e virou-se novamente para que ela não pudesse mais ver o seu rosto. Depois de um momento, ele disse:
– É como se o lobo tivesse sumido.
Havia um toque de preocupação em sua voz.
– Não – respondeu Anna. – Ele está apenas... em paz. Você poderia começar a se transformar agora, se quisesse.
– Por Deus, não é à toa que o meu segundo estava salivando ao pensar em você – disse Isaac. – Você não se preocupa em ser sequestrada? – a voz dele alterou-se apenas um pouco. – Eu ouvi que Charles resgatou você de uma situação abusiva.
Isaac olhou de relance para ela, seus olhos brilhando, amarelo-claros. O outro efeito de ter um Ômega por perto era que os lobos dominantes se sentiam extremamente protetores em relação a Anna.
Ela acenou com a cabeça.
– Charles me salvou. Minha primeira alcateia me transformou e me mantinha sob o domínio deles. A companheira do Alfa, que era bem velha, estava louca, e seu companheiro achou que eu poderia manter a sanidade dela. Quando Charles acabou com eles, ele me ensinou a salvar a mim mesma.
Charles a havia ajudado a resgatar a confiança em si mesma. Mas não importava sua competência em proteger a si mesma; Anna sabia o que, em última instância, a mantinha a salvo de alcateias de lobos que queriam um Ômega para eles mesmos.
– Se alguém tentar me sequestrar, Charles vai caçá-los. Você conhece muitos lobos dispostos a enfrentar isso?
– O bicho-papão do Marrok? – perguntou Isaac, com um grunhido. – Não. Ele fez uma pausa. – Especialmente se já o viram lutar. Hally me disse que ele não seria capaz de ver o Fae – somente que saberia quando ele estivesse por ali. Mas Charles lutou como era possível, como se soubesse exatamente onde atacar. E eu nunca vi ninguém – nem lobisomem, nem vampiro, nem ninguém – se mover com tamanha rapidez.
– Seu dom – concordou Anna. Sua desgraça. Talvez se ele não fosse um lutador tão bom, seu pai enviaria outra pessoa para manter a ordem nas alcateias. Mas isso não era para discussão pública. Ela precisava mudar de assunto.
– Então, para onde estamos indo?
Uma lanchonete seria perfeita – só um pouquinho dilapidada, com cadeiras de couro falso rachado e arranhado, mesas de fórmica imitando madeira, onde o café era servido a todos em xícaras brancas e todas as refeições eram preparadas em gordura pouco saudável: o ponto de encontro dos tiras, o clichê de todos os filmes ou romances policiais.
– Quando Goldstein me ligou, eu ofereci para sediar a festa no The Irish Wolfhound – disse Isaac. – O pub de propriedade de nossa alcateia. Há um grande salão para festas.
Anna não pôde deixar de ficar um pouco decepcionada.
– Eu estava esperando uma lanchonete.
Isaac riu.
– A comida é melhor no Wolfhound e somos menos propensos a ter convidados indesejados – seu rosto ficou sério e o sorriso que ele deu a Anna era tenso e infeliz. – Como eu lhe disse, há membros da nossa força policial que não gostam de nós e adorariam provocar uma briga com a desculpa de que beberam demais. Dessa forma, estarão lá apenas as pessoas que estão trabalhando neste caso – e a maioria deles está feliz demais com o resgate de Lizzie para perguntar muito sobre como isso foi feito.
– Parece muita comemoração, uma vez que não pegamos os assassinos – disse Anna. Isaac assentiu. – É como quando eu estava no colégio. No meu segundo ano, nosso time de futebol tinha exatamente essa... sinergia. No ano anterior, o ano posterior, eles eram bons. Mas naquele ano, eles não tinham só os jogadores, eles tinham o time. Ninguém havia marcado contra eles, até o último jogo da temporada. A outra equipe marcou um field goal no quarto tempo e as arquibancadas explodiram. Você acharia que eles é que tinham vencido o jogo, em vez de perder por trinta e poucos pontos. O que eles fizeram foi o que ninguém mais tinha conseguido fazer.
– Entendo – disse Anna.
Os dentes brancos de Isaac brilharam.
– Nós não ganhamos essa – disse ele. – Mas não perdemos, tampouco.
– Você não estava naquele time de futebol, estava?
Havia algo na voz dele e na maneira como ele se referia ao seu time do colégio como “eles”.
– Não. Eu era o pequeno nerd que o meio-de-campo do time de futebol gostava de enfiar nos armários do vestiário para se divertir, quando o capitão da equipe não estava por perto para mantê-lo na linha. Algumas vezes, quando estou me sentindo particularmente malvado, eu adoraria encontrar Jody Weaver de novo e vê-lo tentar me enfiar no armário de novo.
Anna riu... e parou, porque não sabia nada de futebol americano, mas tinha um pai e um irmão que eram fanáticos pelo esporte.
– Eu conheço esse nome. Jody Weaver. Ele é uma estrela, não é?
Isaac acenou com a cabeça.
– Ele ficou rico e famoso – e ainda é um babaca. Provando de uma vez por todas que a vida não é justa.
– Falando em não ser justa – disse Anna – você sabe alguma coisa sobre Lizzie? Liguei para Leslie mais cedo, mas tudo o que ela sabia era que o quadro dela foi considerado estável e que ela já estava na sala de operação para ser submetida a uma cirurgia no joelho.
Isaac balançou a cabeça.
– Você sabe mais do que eu. Deixei uma mensagem no telefone de Beauclaire e convidei-o para vir essa noite. Suspeito que ele não vai sair do hospital.
– Encontraram mais alguma pista na ilha?
Durante sua conversa anterior com Leslie, Anna soube que os investigadores forenses não tinham encontrado muito coisa. Mas havia uma possibilidade de que Isaac ou sua bruxa pudessem ter encontrado algo sobre o qual não haviam falado com as autoridades.
Isaac balançou a cabeça.
– Não. Era como se eles soubessem que a ilha iria ser revistada por lobisomens: a área inteira da prisão foi encharcada de amônia. Eles encontraram alguns traços pessoais, o suficiente para determinar que Jacob, Otten e algumas outras vítimas foram mantidas prisioneiras lá.
– Mas se eles soubessem que estávamos chegando, teriam tirado Lizzie de lá – disse Anna.
Isaac assentiu.
– Certo. Acho que foi uma precaução contra a pior das hipóteses. Eles mataram lobisomens. Eles não querem que a gente descubra quem eles são.
A explicação de Isaac fazia sentido. Ele provavelmente estava certo. E se ele não estivesse, eles entenderiam quando os malditos fossem presos.
A chuva estava caindo torrencialmente quando eles chegaram ao pub. Anna notou que pubs irlandeses em Boston eram mais ou menos como pizzarias em Chicago: havia muitas delas e a maioria servia boa comida.
Do lado de dentro da porta havia uma estátua de madeira representando um wolfhound irlandês em tamanho natural.
Anna considerou que ele era apenas um pouco menor em altura do que Charles, mas cerca de um quarto mais largo. Em torno de seu pescoço havia uma placa que dizia BEM-VINDO AMIGO.
Isaac acenou uma mão para a anfitriã e, com a outra mão nas costas de Anna, dirigiu-a para uma escadaria feita de madeira serrada.
No topo das escadas, logo depois dos banheiros, havia uma porta marcada com as palavras FESTA PARTICULAR.
Atrás da porta havia uma grande sala com quatro mesas de cavalete onde cadeiras e bancos estavam misturados; a sala estava cheia de gente, a maioria das quais Anna não conhecia. Música celta filtrava-se através de alto-falantes no teto, e havia jarros de cerveja e água em todas as mesas.
Uma garçonete veio por uma porta no fundo da sala. Ela colocou os dedos na boca e assobiou. Anna havia tampado os ouvidos assim que viu os dedos da garota tocarem seus lábios, e o ruído penetrante ainda doía. Ela podia identificar os lobisomens, porque eles eram aqueles com caretas em seus rostos. Ela reconheceu Malcolm, é claro, mas havia mais três lobos na sala, também.
A sala ficou em silêncio.
– Muito bem, senhores e senhoras. Há cerveja e água sobre as mesas e nós vamos manter as jarras cheias até nove horas da noite. Mas se vocês quiserem algo diferente para beber, nosso Isaac diz que vai pagar por isso – ela parou, interrompida por aplausos. Isaac inclinou-se e acenou para que a garçonete continuasse. – De novo, até as nove, depois disso, sua comida e bebida sairão de seus bolsos. Viremos pegar os pedidos. Nossa especialidade é salsicha com purê de batatas, mas temos um ótimo ensopado hoje e o peixe com batatas fritas é de matar. Divirtam-se!
Ela recuou pela porta às suas costas debaixo de outra rodada de aplausos, e dois homens jovens e uma mulher de meia-idade vieram pela mesma porta, começando a anotar os pedidos.
Anna olhou ao redor. Havia talvez trinta pessoas na sala – se sete eram lobisomens, isso significava que havia 23 policiais. O que parecia bastante, até que ela pôs os olhos em Leslie. A agente do FBI estava sentada ao lado de um homem gigante, que parecia ser bastante competente em empurrar as pessoas para dentro de armários. Ele dava duas ou talvez mesmo três vezes o tamanho de Leslie e, enquanto ela conversava com um par de policiais à paisana, ele mantinha uma grande mão na parte de trás do pescoço dela. Esse devia ser o marido-jogador-de-futebol-americano do qual Leslie tinha falado.
Se todos tinham trazido um acompanhante, os números faziam mais sentido. Ela avistou um dos dois agentes da Cantrip, o que não era Heuter. Seu nome começava com P. Patrick... Patrick Morris. Ele estava falando com Goldstein. Portanto, não havia apenas policiais ali. Ela decidiu evitá-lo se possível, apenas no caso de ele compartilhar os mesmos pontos de vista de Heuter sobre lobisomens.
Leslie olhou para cima, viu Anna e acenou, chamando-a. Nas duas horas que se seguiram, Anna se viu jogada de uma mesa para outra, respondendo a perguntas sobre como era ser um lobisomem. Em um momento tranquilo, ela disse a Leslie, em voz irritada, que havia outros seis lobisomens, Isaac e seus cinco companheiros de alcateia – por que todo mundo estava fazendo perguntas a ela?
– Todos os lobos estão respondendo perguntas – respondeu Leslie. – Mas é mais fácil falar com você – as mulheres não são tão ameaçadoras quanto os homens – ela pensou um momento sobre o que falou. – A maioria das mulheres, de qualquer maneira – eu conheço algumas que assustariam qualquer pessoa com um mínimo de bom senso. Mas você é acessível. E você vai embora logo. Assim, se eles ofenderem você, eles não precisam viver com as consequências.
Então Anna explicou, de novo e de novo, que os lobisomens podiam se controlar quando corriam como lobos – embora houvesse certa tendência a um temperamento forte. Sim, todos os lobos tinham que se transformar durante a lua cheia, mas a maioria deles podia se transformar sempre que desejasse. Sim, prata podia matar um lobisomem, bem como decapitação ou uma série de outras coisas. (Bran achava importante que o público não pensasse que lobisomens eram invulneráveis.) Não, a maioria dos lobisomens que ela conhecia eram cristãos convictos e nenhum deles, que ela soubesse, adorava Satanás. Uma vez, ela recitou alguns versos bíblicos para provar que ela podia fazê-lo. Anna teria ficado mais exasperada sobre isso, mas havia coisas lá fora que realmente não podiam citar as Escrituras (não que ela fosse lhes contar isso).
– Seu marido é um lobisomem, certo? – disse um homem jovem como ela quando Anna passou pela sua mesa.
– Sim – disse ela.
– Vocês já fizeram sexo como lobos? É diferente do sexo normal? Você gosta mais assim?
Ele sorriu um sorriso enorme e tomou um gole do seu copo, obviamente pensando que havia conseguido embaraçá-la. Mas Anna tinha sido criada em uma família de homens – seu pai, seu irmão e todos os amigos do seu irmão, que pensavam nela como uma irmã mais nova. E ele tinha um monte de amigos.
– Você já teve relações sexuais com sua mãe? – perguntou Anna casualmente. – Foi melhor do que com a sua namorada ou você prefere fazer com seu namorado ou seu rato de estimação?
A boca dele se abriu e o homem mais próximo dele lhe deu um tapa na cabeça e disse-lhe:
– E é por isso que você nunca vai conseguir uma namorada, Chuck. Você vê uma garota bonita e as coisas que sua mãe lhe ensinou sobre educação e todos os pontos de QI que você não consegue contar nos dedos para guardar o número desaparecem de sua cabeça – e então você tem que a abrir a boca... As mulheres não se impressionam com grosseria – ele olhou para Anna. – Ele pede perdão por ser um babaca. Ele realmente vai se sentir mal a respeito disso em cerca de quatro horas, quando começar a ficar sóbrio. Chuck é realmente um bom policial e geralmente não é... – ele olhou para o ofensor e suspirou. – Bem, está certo. Há uma razão pela qual ele não sai muito com garotas.
– Como você sabia que tenho um rato de estimação? – disse Chuck, em um tom cheio de admiração. Ele estava muito bêbado e tinha, provavelmente, perdido o significado de tudo que tinha sido dito nos últimos minutos: tudo, exceto, evidentemente, o rato.
Vários de seus amigos riram e zombaram dele.
Anna sorriu; ela não pôde segurar: ele parecia ter cerca de seis anos de idade.
– Eu posso sentir o cheiro dele.
E isso iniciou uma nova rodada de perguntas. Não foi exatamente uma noite divertida – Anna sentiu-se como se tivesse passado a maior parte de seu tempo andando na corda bamba. Mas era melhor do que ficar presa no apartamento enquanto Charles enterrava-se em eletrônica. E nem tudo tinha sido ruim. Ela gostara de conhecer o marido de Leslie, que era engraçado e inteligente, e se oferecera para enfiar Chuck em um cesto de lixo. O peixe e as batatas fritas eram maravilhosos e o ensopado também.
Por fim, o fascínio pelos lobisomens pareceu diminuir e Anna encontrou uma mesa tranquila em um canto onde pudesse relaxar e observar todos.
O amigo do idiota do Chuck viu Anna e veio pedir desculpas novamente.
– Ele sabe que fica estúpido quando bebe, então ele normalmente não faz isso. Hoje foi simplesmente um dia ruim, sabe? A última chamada que tivemos antes de vir para cá foi uma chamada de abuso doméstico – o namorado de uma mulher a espancou e, em seguida, começou a bater no bebê dela. Chuck tem um menininho que não vê desde que sua ex-mulher se mudou para a Califórnia e isso o afetou bastante.
– Eu tenho dias ruins, também – disse-lhe Anna. – Eu entendo. Não se preocupe com isso.
O amigo de Chuck acenou com a cabeça e se afastou.
Anna fechou os olhos por um minuto. Graças a Charles, ela havia dormido pouco e isso deixava seus olhos secos.
Alguém veio e sentou-se na cadeira em frente à dela. Anna abriu os olhos para ver Beauclaire servindo-se de um copo de cerveja.
– Isaac me disse que convidou você – disse-lhe Anna. – Mas nós tínhamos certeza de que você não viria.
– Lizzie saiu da cirurgia – disse Beauclaire, bebericando sua cerveja como se fosse um bom vinho. – A mãe e o padrasto dela estão lá – e Lizzie está sedada; vai dormir até amanhã – continuou ele, tomando um grande gole. – A mãe dela acha que Lizzie foi levada por minha culpa. Como eu concordo com ela, foi difícil me defender, e então eu recuei até aqui.
Anna balançou a cabeça.
– Nunca aceite a culpa pelo que pessoas más fazem. Somos todos responsáveis por nossas próprias ações – ela estava dando uma lição de moral a ele, então parou. – Desculpe. Fique perto de Bran por muito tempo e veja se você não começa a distribuir os conselhos do Marrok como se ele fosse Confúcio. Como está Lizzie?
– Seu joelho foi esmagado – disse ele, e em seguida olhou para a parede atrás de Anna, onde havia uma gravura muito agradável de um castelo irlandês. – Eles podem consertá-lo o suficiente para que ela possa andar, mas dançar está definitivamente fora de questão.
– Eu sinto muito – disse Anna.
– Bom, ela está viva, não é? – disse Beauclaire, e tomou um gole longo e lento. – As coisas que eles gravaram em sua pele... Com o tempo, os cirurgiões acham que conseguirão se livrar das cicatrizes. Até lá, cada vez que ela se olhar em um espelho vai lembrar do que passou – ele fez uma pausa. – Ela sabe que nunca mais vai dançar. Isso a destruiu.
– Talvez não – disse Leslie. Ela sentou-se ao lado de Anna no assento marrom escuro do banco e colocou sua bolsa sobre a mesa. – Alguém deu algo para mim, há muito tempo – e eu nunca usei. Acho que a principal razão é porque eu estava com medo. E se eu tentasse usá-lo e não funcionasse?
Ela abriu a bolsa, procurando dentro dela até que encontrou sua carteira, tirando de lá um cartão branco e liso, que ela entregou a Beauclaire. Parecia um cartão de visitas para Anna, mas em vez de um nome, a palavra PRESENTE estava escrita no centro do cartão.
Beauclaire pegou e esfregou os dedos sobre ele, e um leve sorriso atravessou seu rosto.
– E como você conseguiu isso?
Leslie parecia desconfortável, quase envergonhada.
– É real, certo?
Ele acenou com a cabeça, ainda brincando com o cartão.
– É real, sim.
Leslie respirou profundamente.
– Aconteceu assim – disse ela, e teceu um conto sobre monstros que comiam crianças, sonhos de infância – incluindo o filhote de cachorro de Leslie –, uma velha mulher corajosa que conhecia um pouco sobre os Fae, e uma dívida adquirida e uma barganha feita.
– Você pode usá-lo para curar o joelho da sua filha? – perguntou Leslie.
Beauclaire balançou a cabeça e entregou o cartão de volta para Leslie.
– Não. Mas vou me lembrar de que você o ofereceu – e vou lhe dar um conselho, se você não se importar. O Fae que deu isso a você fez isso com a melhor das intenções. Apesar de nos reproduzirmos pouco, somos um povo que vive muito, muito tempo. Treasach era muito velho, e poderoso também. Mas a morte vem para todos nós um dia, e veio para ele.
Leslie guardou o cartão e esfregou os olhos com a ponta do dedo para não borrar a maquiagem.
– Não sei por que estou me sentindo assim. É estúpido. Eu o encontrei uma vez, por menos de dez minutos... e... não vou esquecê-lo.
– Não – concordou Beauclaire gravemente. – Treasach era admirável. Poeta, lutador, alegre companheiro, e não há muitos mais como ele para serem encontrados. Nenhum de nós vai se esquecer dele. A magia Fae, entretanto, às vezes tem uma mente própria. Isso lhe foi dado para pagar uma dívida. Ele pretendia que fosse um presente e uma bênção, mas sua morte significa que a vontade dele não está mais ligada a esse pouco de magia. Use-o ou não, como quiser, mas use-o para algo pequeno, ou algo que se iguale ao pesar de um bom homem que não conseguiu evitar a dor de uma criança causada pelo destino de seu cãozinho. Se você se lembrar de suas palavras exatas, use-o para isso – essa magia é dominada por suas palavras e pela dívida. Vá além dessas coisas com o seu desejo, e isso irá causar danos de um tipo desagradável.
– Vocês têm curandeiros? – perguntou Anna.
– A cura está entre as grandes magias e temos muito poucos curandeiros entre nós, e a maioria deles é ainda menos confiável do que o presente de Treasach seria – disse Beauclaire, tomando um gole de cerveja e acenando para Leslie em seguida.
– Minha filha vai voltar a andar, mas ela não vai dançar. É assim com os mortais. Eles se atiram para a vida e emergem quebrados.
– Ela sobreviveu – disse Anna. – Lizzie é durona. Ela lutou contra eles o tempo todo. Ela vai conseguir.
Beauclaire assentiu educadamente.
– Alguns mortais conseguem. Alguns deles fazem isso muito bem quando coisas horríveis acontecem com eles. Alguns deles... – ele balançou a cabeça e tomou outro gole de cerveja, e depois continuou com calma selvageria. – Às vezes as pessoas quebradas permanecem quebradas – nesse momento, ele olhou para Anna. – Por que estou lhe dizendo tudo isso?
Anna deu de ombros.
– As pessoas falam comigo – Anna não sabia mais o que dizer, então seguiu seu impulso. – Eu já estive onde Lizzie está, brutalizada e aterrorizada. Alguém me salvou antes que meus captores me matassem. Perto disso... perder algo que ela ama é trágico. Mas ela não parece ser do tipo que vai pensar que estaria melhor morta – não a longo prazo.
Beauclaire olhou para o vidro.
– Sinto muito em saber que você precisou ser resgatada.
Anna encolheu os ombros novamente.
– Aquilo que não nos mata, nos fortalece, certo? – a frase tinha parecido irreverente e, por isso, Anna continuou. – Eu conheci uma mulher quando estava na escola. Ela era inteligente, uma musicista talentosa e trabalhadora. Ela foi para a universidade e descobriu que isso não era o suficiente para fazer dela o primeiro violino, ou mesmo um segundo – e ela tentou se matar porque tinha que se sentar com os terceiros violinos. Aquela foi a primeira verdadeira decepção que ela teve em sua vida e ela não sabia como lidar com isso. Aqueles como nós, que vivem no mundo real e sobrevivem a coisas horríveis, tornam-se mais fortes e prontos para enfrentar o amanhã. Lizzie vai ficar bem.
Beauclaire franziu a testa. Ele desviou o olhar e disse:
– Você pode visitá-la e dizer-lhe isso.
Anna não queria fazer isso. Ela não era uma terapeuta e não gostava de falar sobre o que tinha acontecido em sua vida com estranhos – embora tivesse que admitir que isso não a impediu de fazer isso naquela noite. Anna estava bem porque Charles a encontrara e lhe ensinara a ser forte. Lizzie teria que encontrar sua própria força e Anna não sabia como lhe dizer onde encontrá-la.
– Verei o que posso fazer – prometeu Anna, relutantemente. Ela estava exausta de ficar em exibição e de pensar sobre coisas que havia tentado esquecer. – Se vocês me derem licença, eu acho que vou ao toalete feminino.
Ela deixou Leslie conversando com o Fae e saiu da festa. Longe do barulho e da sala cheia de uma maioria de estranhos, Anna se sentiu melhor. Ela usaria o banheiro, comeria a comida que havia pedido e iria para casa.
Quando saiu do banheiro, Anna não ficou satisfeita ao ver que o agente Heuter estava encostado na parede ao lado da porta. Não havia mais ninguém no restaurante – que devia ter fechado às dez da noite. Então, Heuter e Anna estavam sozinhos no corredor ao lado da entrada para a sala onde a festa ainda estava animada.
– Então você é a heroína do dia – disse ele.
Algo em sua voz não estava certo, e ela franziu o cenho.
– Não realmente, não. Se você me der licença?
Mas ele ficou na frente dela.
– Não. Acho que não. Não hoje.
E alguém que não estava lá a agarrou por trás e colocou-a para dormir.
Onze
Anna acordou com um gosto adocicado na boca, que se espalhava pelo seu nariz e pelos seios da face, amortecendo qualquer outra coisa que seu nariz pudesse lhe dizer.
Náusea e uma dor de cabeça desgraçada disputavam com a coleira de prata, as algemas e correntes de estilo medieval (também com alto conteúdo de prata) pelas honras da pior distração. Anna tentou se lembrar do que tinha acontecido para que ela ficasse daquele jeito, acorrentada como em uma fantasia extrema de sadomasoquismo dentro de uma jaula pendurada em uma grande sala vazia. Estava escuro, e Anna estava sozinha.
Ela estava falando com Heuter, que estava agindo de forma estranha. E então... caramba. Eles tinham realmente usado clorofórmio nela? Décadas de assassinatos, magia de bruxa, raras e antigas linhagens de Fae assustadores – e eles usaram clorofórmio.
E por várias vezes, se suas vagas lembranças de acordar no banco de trás de um carro fossem precisas.
Aquilo parecia tão... ordinário.
Ela se levantou, apoiando-se nas mãos e joelhos – o que era o máximo que as correntes lhe permitiam. Anna deixou que a queimadura da prata e a necessidade desesperada de vomitar seu jantar mantivessem-na longe do pânico enquanto tentava contornar a dor de cabeça para pensar em um plano de ataque.
Lizzie tinha sido estuprada algumas horas depois de ser levada. Fora quase a primeira coisa que eles tinham feito. E foi esse o pensamento que fez Anna vomitar. Embora a comida no pub irlandês de Isaac fosse deliciosa, seu gosto não tinha sido muito bom na segunda vez. Anna conseguira vomitar a maior parte dela para fora da jaula, mas um pouco ficou em seu cabelo – por algum motivo, suas mãos algemadas e acorrentadas tinham impedido sua capacidade de manter seu cabelo longe da boca... – e havia salpicado sobre a borda do piso, o que aumentava seu sofrimento.
E então ela se perguntou se estava tão sozinha na sala quanto havia pensado. Ela não conseguira ver ou sentir o cheiro do Fae que estava guardando a prisão de Lizzie na ilha. O pânico ameaçou tomar conta dela e Anna forçou-se a controlá-lo, porque ele não lhe faria nenhum bem.
Charles estaria procurando por ela agora. Mas quando Anna tentou usar o vínculo entre eles, percebeu que ele estava fechado – tão fechado como nunca estivera antes. Será que ele não sabia que ela havia desaparecido? Isaac diria a ele imediatamente. Mas e se ele não soubesse? E se Heuter tivesse dito que Anna tinha decidido voltar para o condomínio por conta própria? Mas isso não fazia sentido, porque Isaac seria capaz de perceber que Heuter estava mentindo – e Heuter sabia disso. Ele teria que ficar o mais longe possível dos lobisomens, para que eles não percebessem suas mentiras.
Então, por que Charles não tinha aberto o vínculo entre eles?
Havia barulho fora do quarto cavernoso e Anna agachou-se, tentando acalmar sua respiração e abrandar o batimento de seu coração para que pudesse ouvir através das portas fechadas e das paredes. Estavam falando bem alto, então não foi muito difícil entender a maior parte.
– ... bonita. Eu gosto das mulheres e das bonitas mais ainda.
– Eu pensei que você tinha decidido virar um super-herói, Buldogue... – a voz de Heuter era zombeteira.
– Paga bem – disse o estranho. – Melhor do que trabalho de limpeza. Nunca ganhei um boquete depois de limpar um piso; ganhei um quando salvei aquela prostituta do seu cafetão. Essa que nós temos agora é bonita. Ela não é bonita?
– Não tão bonita quanto a que você deixou escapar – disse Heuter.
– Não é minha culpa. Não é minha culpa. Aquele lobo grande, ele ia me matar – havia uma ponta de histeria na voz do homem e uma estranha cadência no seu padrão de fala. – Você nunca me disse que eles teriam um monstro com eles. Matar lobisomens não é difícil. Eu matei todos eles que o tio Travis me enviou. Por que aquele é tão difícil de matar?
– A bruxa fez alguma coisa – disse Heuter. – Usou algum tipo de magia para que o lobo pudesse vê-lo e isso deve ter deixado o lobisomem mais forte. A garota que pegamos hoje é a esposa dele.
– Ele vai ficar tão bravo comigo. – Ele parecia assustado.
Heuter tentou distraí-lo.
– Ele precisa nos encontrar primeiro. Essa será a última do ano, e aí vamos embora.
– Eu fico com ela primeiro – disse o homem que não era Heuter. Anna tinha bastante certeza de que Heuter não era Fae – Beauclaire certamente teria sido capaz de dizer se ele fosse. Assim, ela concluiu que o outro devia ser o Fae. Ambos tinham vozes jovens e Lizzie tinha dito que um dos homens era mais velho – e se Anna decidira que um dos homens era o Fae, não havia nenhuma pessoa invisível observando-a das sombras.
– Fico com ela primeiro porque o lobo me machucou. Eu vou machucá-la. Vou fazer o que eu quiser com ela até que ela entenda quem é que manda. Eu vou...
Ele continuou nessa linha, aumentando em um frenesi enquanto usava uma linguagem mais e mais suja para descrever o destino de Anna em detalhes horríveis. Anna deliberadamente deixou de ouvi-lo. Ela aprendera a fazer isso logo depois de ter sido transformada, quando ainda não havia Charles para salvá-la daqueles loucos desgraçados na alcateia corrupta de Chicago.
Ela não conseguia sentir Charles. Ele ia chegar tarde demais, e isso o destruiria. Anna puxou as correntes, mas eles já tinham experiência com lobisomens prisioneiros e não havia nenhuma maneira de quebrá-las. Soprando em suas mãos para aliviar a dor das queimaduras pela prata, Anna pensou no que Isaac havia dito sobre seu lobo Otten e em como ele esperou por uma chance – a qual os assassinos não lhe haviam dado.
Anna não podia se dar ao luxo de esperar – ela precisava fazer sua própria escolha. Ela havia sido uma vítima no passado e – com os diabos! – não iria ser nunca mais.
Apesar de sua determinação, ela estava assustada. Suas chances não eram boas – esses homens haviam conseguido matar muitas pessoas, lobisomens e Fae, alguns deles com mais experiência em se proteger do que ela.
O cheiro acre e nauseante do seu terror dissipou o resto de clorofórmio de suas narinas e ela se agarrou a seu medo, à dor de cabeça restante e à dor que estava se infiltrando em seus músculos por causa da prata, jogando tudo aquilo contra as algemas de metal que a prendiam – pelo pescoço, pulsos e tornozelos – e chamando seu lobo.
Essa não era uma alcateia de lobos; eles eram humanos e Fae. Estuprar Anna em sua forma de lobo era uma proposta inteiramente diferente de violentar alguém que não tinha dentes assustadoramente afiados e garras que deixariam orgulhoso qualquer puma do planeta.
A transformação sempre doía. Sempre. E ela havia aprendido há muito tempo a usar a dor para espantar a sensação esquisita de ossos se esticando e se reagrupando, de músculos crescendo e de dentes ficando afiados, que era muito mais intolerável do que a mera dor.
Dessa vez, a transformação foi pior do que o usual.
Sua garganta cedeu sob a pressão da coleira de prata, e então cicatrizou e cedeu novamente, presa dentro de uma cinta de metal pequena demais para contê-la. Ela já estava achando que iria frustrar seus sequestradores ao matar a si mesma, quando algo no mecanismo mais frágil do fecho finalmente quebrou, fazendo um pedaço do metal voar para longe. A coleira caiu de seu pescoço, atingindo o chão e pedaços da corrente com um som pesado.
Sugando o ar como se fosse um fole, Anna ainda precisou se concentrar em seus pensamentos e fazer seus braços, que estavam se transformando em suas patas dianteiras, se moverem exatamente na hora certa enquanto suas mãos ainda eram mãos – isso depois que seus braços se transformassem levemente e pudessem ser livrados das algemas em seus pulsos. Seus pulsos sangraram e Anna ofegou, tentando ficar quieta enquanto se arrastava e se libertava das cintas de metal de cinco centímetros de largura que a aprisionavam. Ela não se preocupou com as algemas em seus tornozelos, porque elas eram mais largas que as patas do lobo, e simplesmente removeu-as de dentro delas.
Anna esperou, mas não houve pausa na conversa do lado de fora. Ou eles estavam muito ocupados para notar qualquer coisa, ou estavam esperando que ela fizesse algum barulho – ou seus ouvidos eram humanos demais para ouvir através das paredes da mesma forma que ela podia ouvi-los.
Ela ficou imóvel por um momento, exausta – e então percebeu que o momento estava se prolongando demais e que a transformação não estava se completando. Era perigoso permanecer metade humano e metade lobo, embora a maioria dos lobos dominantes pudesse fazer isso durante algum tempo. Anna se esforçou para encontrar uma maneira de continuar a transformação, mas seu corpo estava exausto, tremendo com a necessidade de comida e...
Eles a haviam dopado com alguma coisa. Em sua maioria, lobisomens eram imunes a drogas e álcool. Seus corpos simplesmente metabolizavam o que quer que fosse muito rápido, mas eles haviam dado a ela alguma coisa, provavelmente uma grande quantidade de alguma droga. GHB ou Rohypnol, talvez, ou algum sedativo com a intenção de mantê-la passiva. A droga não tinha sido páreo para a onda de adrenalina que a ideia de estar impotente nas mãos de estupradores e assassinos causara em Anna – mas havia interrompido sua transformação.
A dor vinha em ondas, porque seu corpo não fora feito para ficar nessa semiforma por tanto tempo. Fluidos claros, rosados e de um tom vermelho brilhante começaram a pingar no chão da gaiola. Anna tentou entrar em contato com Charles usando seu vínculo e encontrou a lua em seu lugar.
Amanhã seria noite de lua cheia, quando sua canção era demasiado forte para resistir, mas essa noite a lua era crescente e cheia de força, a qual ela emprestou à filha que pedia sua ajuda. Com um movimento súbito doloroso que raspou as correntes e as algemas no fundo da gaiola, e fazendo um barulho alto enquanto seus músculos se flexionavam, rasgando-se e remodelando-se, Anna reiniciou sua transformação.
Charles estava concentrado em seu trabalho. O irmão lobo amava a caça mesmo quando ela era conduzida em computadores e não em carne e osso. Ambos podiam sentir o cheiro de suas presas, fracas e trêmulas, tentadoramente fora de seu alcance. Assim, a primeira batida na porta não provocou mais do que um grunhido de aborrecimento.
Foi o irmão lobo que percebeu algo errado na segunda vez que bateram. Mesmo concentrado no objetivo de sua caçada, seus sentidos ainda estavam em alerta, e disseram ao irmão lobo que a mulher inteligente do FBI, o homem inteligente do FBI, que tentava muito ser subestimado, o Fae cuja filha tinha sido ferida e o Alfa local estavam batendo em sua porta – e que todos deveriam estar com sua companheira, que não estava ali.
Anna. Charles tentou alcançá-la, mas não conseguiu tocá-la através de seu vínculo, nem mesmo usando o vínculo da alcateia. Com sua ajuda, os seus fantasmas haviam real e verdadeiramente isolado sua companheira.
Igualmente enfurecido e aterrorizado por Anna, ele abriu a porta sabendo que seus olhos estavam mostrando o irmão lobo em suas pupilas.
– Onde está Anna? – rosnou ele.
Isaac deveria garantir que ninguém a machucasse enquanto Charles trabalhava. A tentação de culpar o Alfa de Olde Towne surgiu e foi banida. Anna pertencia a Charles; ele deveria protegê-la e falhara. O irmão lobo queria sair correndo pela noite e matar, até que a encontrassem; Charles segurou-o com o conhecimento de que havia maneiras melhores de encontrar Anna mais rápido – e que o sangue correria quando isso acontecesse.
– Nós esperávamos que você pudesse nos dizer – disse Isaac. – Ela foi ao toalete feminino e não voltou. Vocês são companheiros, não é? Você não pode dizer onde ela está?
Charles tentou novamente. Ali mesmo, com os outros ainda parados na porta, ele tentou novamente abrir os vínculos que havia fechado para protegê-la.
Nada. Ele tentou com mais força, tentou até que a dor foi pior do que a dor da transformação. Charles rosnou e tentou de novo, sentindo os fantasmas que o assombravam uivarem em triunfo. Ele se virou e caminhou quase cegamente até que olhou para o grande espelho no quarto. Os fantasmas estavam irreconhecíveis e tinham se transformado em uma criatura com cinquenta bocas e vinte mãos, as quais estavam ocupadas atando nós na fita que era seu vínculo com sua companheira.
Podemos matá-la, não importa o quanto você tente protegê-la, disseram as criaturas, com vozes altas e corruptas. Sua culpa, sua culpa que morremos, sua culpa que ela morre. Uma voz começou a rir, e depois as outras continuaram até criarem uma cacofonia profana em sua cabeça.
Sangue estava pingando do nariz de Charles e o branco de seus olhos estava cor-de-rosa devido aos vasos sanguíneos rompidos – isso tornava seus olhos amarelos particularmente bizarros de se ver.
– Você tentou seguir a trilha dela? – perguntou a Isaac, enquanto continuava a olhar para o espelho; sua voz era tão baixa e áspera que ele mesmo não a reconheceu como sua. Charles guardou sua fúria em um lugar pequeno e gelado, prometendo libertá-la se ela o deixasse trabalhar agora. Ele seria frio e controlado até que encontrasse o lugar onde haviam escondido a sua Anna – e então os derrubaria em vários pequenos pedaços.
– Sim – disse o Alfa de Olde Towne. Charles se afastou do espelho para encontrar Isaac observando-o da sala de estar, cautelosamente e em relativa segurança, enquanto continuava a explicar. – Eu a rastreei até o toalete e de novo para fora. Então ela caminhou cerca de meio metro para o lado errado, como se tivesse a intenção de voltar para a festa – e ia mesmo voltar, porque havia pedido outra rodada de peixe e batatas fritas, de acordo com a garçonete que a serviu – e então seu rastro apenas desapareceu. Como o de Otten.
Isaac devia ser um bom rastreador. Era incomum para um lobo tão novo ser capaz de rastrear tão bem, mesmo em forma de lobo. Mas não importava o quanto ele era bom; Charles era melhor.
O computador ainda não tinha confirmado seus palpites, mas Charles só estava esperando a informação final. Ele considerou ir atrás das pessoas que deviam estar por trás dos assassinatos – mas se estivesse enganado, isso significaria que Anna ficaria nas mãos de seus sequestradores enquanto ele perseguia o rastro errado. E ainda havia o problema de que as pessoas com quem eles estavam lidando tinham quase os mesmos recursos financeiros de Bran e ele precisava...
– O que há de errado com ele? – perguntou Leslie em uma voz baixa, mas que mesmo assim interrompeu os pensamentos de Charles. – Por que ele está sangrando assim? Você viu seus olhos? Eles não estavam assim quando ele abriu a porta.
– Eu não tenho a menor ideia – disse Isaac, em uma voz calma. – Olhem, vocês dois, vocês não têm chance se ele perder o controle. Vocês ficam aqui atrás, fora do caminho, peguem suas armas e observem. Se vocês o virem vindo em sua direção, simplesmente atirem – e certifiquem-se que sua mira seja boa. Se ele é o lobo que eu acho que é, preferiria estar morto a ver vocês se tornarem dano colateral. E se ele estiver sem controle o suficiente para matar civis, ele não vai ser de muita ajuda para encontrar Anna.
– Civis? – disse o agente do FBI do sexo masculino, parecendo ofendido. O irmão lobo poderia saber o nome dele, se ele se importasse. Mas sua companheira estava desaparecida e ele não se importava com nada e ninguém, exceto com ela.
Isaac o ignorou – talvez ele tivesse sido enganado pela aparência cansada, com semblante desgastado, mas o irmão lobo era mais esperto que isso. Ele havia reconhecido um predador companheiro no agente do FBI, embora Goldstein – o nome surgiu em sua cabeça quando ele tentou se lembrar –, Goldstein não fosse uma ameaça a qualquer coisa com a qual Charles se importasse.
– Os seres humanos são civis aqui – disse Charles. Ele soava calmo, pelo menos para si mesmo. – E vocês devem prestar atenção a Isaac, embora eu não ache que esteja a ponto de perder o controle o suficiente para ferir nossos aliados. Isaac, eu deveria ser capaz de encontrá-la, mas não poderei usar nosso vínculo essa noite.
Sua garganta se fechou, enquanto o irmão lobo lutava para tomar o controle, em pânico frente à admissão de Charles.
Anna estava desaparecida. Anna estava nas mãos das pessoas que haviam machucado a pequena dançarina. Sua Anna, que já tinha sobrevivido a tanto – ele jurara que nada daquilo iria acontecer novamente, quando ela fosse deles. E eles haviam falhado, o irmão lobo e Charles, duas almas compartilhando a mesma pele... eles haviam falhado com sua companheira.
Charles convenceu o irmão lobo de que eles teriam uma chance melhor de encontrar Anna na forma de homem, e não de lobo – mas foi necessária mais força de vontade do que Charles sabia que tinha para fazê-lo.
– Ele não pode encontrá-la? – perguntou Leslie.
– Eu disse que não era uma coisa 100% certa – disse-lhe Isaac. – O vínculo entre companheiros é uma coisa muito pessoal.
Isaac estava fazendo um bom trabalho ao manter sua natureza Alfa sob controle; sua voz era suave e não ameaçadora. O irmão lobo gostava de Isaac, mas agora não seria um bom momento para desafiá-lo e provar quem era mais dominante. Pessoas morriam em lutas como essa – e o irmão lobo desejava a violência agora.
– Você também disse que, se não desse certo, poderíamos estar em sérios apuros – disse o Fae que era o pai da pequena dançarina durona. – Porque não há ninguém mais perigoso nessa cidade do que um lobo cuja companheira está em perigo. Estamos com um problema sério?
Sim, pensou Charles. Ele precisava fazer algo urgente, mas a cólera do irmão lobo estava obscurecendo seus pensamentos. Ele precisava chegar ao seu computador e confirmar –
– Eu não quero que aqueles bastardos ponham as mãos em Anna – disse Leslie. – Se Charles não pode encontrá-la, que tal o meu presente das fadas? Você disse que era perigoso usá-lo, exceto de forma específica ou pequena. Mas eu perdi um filhote e agora estamos tentando encontrar outro.
Charles estreitou os olhos para ela.
– Que presente?
Beauclaire o ignorou, olhando para Leslie com algo que parecia prazer.
– Inteligente – disse ele. – Ah, essa é uma maneira inteligente de olhar para isso.
– Um homem Fae me deu um presente quando eu era criança – disse-lhe Leslie e se lembrou de não olhá-lo nos olhos. – Para compensar o fato de não estar lá para salvar o meu cachorrinho, eu acho. Eu nunca o usei – e nosso especialista em magia Fae diz que preciso ter cuidado com ele. Mas isso me parece uma troca justa.
Ela olhou para Beauclaire.
Gravemente, ele acenou com a cabeça.
– Acho que pode dar certo.
Leslie abriu a bolsa e tirou sua carteira e Charles sentiu o cheiro da magia de onde ele estava. Magia Fae forte o suficiente para fazê-lo espirrar, poderosa o suficiente para dar-lhe esperança. Ela tirou um pequeno cartão branco da carteira. – Eu não sei exatamente como fazer isso.
– A magia segue a intenção – disse Charles, e Beauclaire deu-lhe um olhar penetrante. – Diga o que você quer e rasgue o cartão para selar o negócio.
– Desde quando o filho do Marrok se tornou um especialista em magia Fae? – perguntou Beauclaire, e Charles viu o olhar de Goldstein ficar desfocado. Fora “o filho do Marrok” que tinha feito isso. Goldstein tinha ouvido esse termo antes e agora queria saber o que significava.
– Desde quando os Fae dão informações sobre os lobisomens? – respondeu suavemente Charles. Anna estava desaparecida: ele não ligava para o que Goldstein descobrisse. Mas o Fae serviria muito bem para saciar o desejo do irmão lobo de rasgar carne até que ela sangrasse. Beauclaire, decidiu o irmão lobo, seria um adversário digno, e se ele matasse alguma coisa, talvez conseguisse pensar claramente de novo.
Beauclaire deu um passo cauteloso para trás e Isaac ficou entre eles.
– Não faça nada precipitado, Charles – ele o advertiu. – Estamos todos no mesmo time aqui.
– Eu desejo – disse Leslie, desviando a atenção de Charles para longe do Fae. – Eu desejo... – ela olhou para Charles. – Um cão perdido por outro – mas Anna é sua como Toby era meu. Então, eu desejo que, como perdi meu cãozinho, meu cão que eu amava, que Charles possa encontrar seu lobo perdido.
Ela rasgou o cartão ao meio e a magia... fez alguma coisa.
O telefone de Charles tocou antes que ele pudesse descobrir o que a magia tinha feito. Seu toque súbito e estridente, que não era a música que tocava quando Anna chamava, irritou o irmão lobo, que puxou-o para fora do bolso e esmagou-o para fazê-lo parar.
Todos no apartamento prenderam a respiração – e Charles percebeu que sua capacidade de falar de forma coerente aparentemente havia dado a eles uma falsa sensação de segurança.
– Quanto tempo até que isso funcione? – perguntou a Beauclaire, em uma voz suave e macia.
O Fae suspirou.
– Nós nem sequer sabemos se vai funcionar, lobisomem. Algo aconteceu, mas não era minha magia naquele cartão. Treasach usava um tipo de magia mais sutil que se esgueirava sorrateiramente por trás de você.
Outro telefone celular tocou e Charles rosnou. Isaac pegou seu telefone e quase o desligou, mas parou.
– Quatro-zero-seis é o código de área de Montana, certo?
Ele atendeu ao telefone antes que Charles respondesse e, clara como o dia, a voz do pai de Charles saiu do alto-falante do telefone de Isaac.
– Tenho a sensação de que meu filho está com problemas – disse Bran. – E tenho o hábito de não ignorar o que sinto, especialmente quando nem ele, nem Anna estão atendendo seus telefones.
Isaac deu a Charles um olhar nervoso.
– É isso mesmo. Charles está aqui e Anna foi levada pelos malditos assassinos que estamos perseguindo. O FBI está aqui, os dois agentes que têm trabalhado conosco. E Beauclaire está aqui também, o Fae cuja filha resgatamos ontem.
Um resumo muito bom do que está acontecendo, pensou Charles.
– Por que Charles não está rastreando Anna?
O irmão lobo rosnou.
– Isso não ajuda, Charles – disse Bran.
– Ele diz que não consegue entrar em contato com ela.
Houve uma pausa muito longa e, em seguida, seu pai disse calmamente:
– Charles. É a mesma coisa que o estava incomodando antes de vocês irem para Boston?
Charles não podia responder; não era humano o suficiente para isso. Ele se virou e caminhou para o outro lado da sala. Se não tivesse matado, se não tivesse executado aqueles lobos em Minnesota, teria sido capaz de encontrar Anna antes que ela fosse ferida.
– Antes de Boston... – disse Isaac, e sua voz sumiu. – Oh, eu sei o que você fez antes de vir para Boston, Charles. Isso pode ficar complicado – disse ele, agora dirigindo-se aos outros de repente, em um tom decidido. – Acho que podemos conseguir fazer algo aqui, mas seria melhor se vocês, que são mais fáceis de ferir, ficassem fora do caminho. Vocês se importariam em esperar no corredor?
– Você tem algo para dizer que não quer que a gente ouça – disse Goldstein. – Você não precisa mentir. Nós vamos esperar.
– Eu nunca mentiria para a polícia ou para o FBI – disse Isaac. Ele estava sendo sincero, como Charles um pouco distraidamente observou.
– As coisas podem ficar muito ruins antes de melhorar, e não quero que vocês se machuquem.
Isaac não disse nada a Beauclaire, mas o Fae disse:
– Acho que vou esperar do lado de fora com os outros. Será mais fácil, sem minha presença aqui.
Houve um clique suave quando a porta da frente se fechou e outro quando Isaac girou o trinco.
– Tudo bem – disse Isaac, e levou um momento para Charles perceber que ele estava falando com Bran. – Somos apenas Charles e eu, embora Beauclaire possa nos ouvir muito bem. Ele pode ouvir cada palavra que dissermos.
– Aceitável – disse secamente o pai de Charles. – Beauclaire é confiável – e ele tem uma dívida conosco, se você salvou a filha dele.
Era óbvio que Bran conhecia Beauclaire.
– Tudo bem – disse Isaac. – Então, se estou entendendo um pouco do que está acontecendo, tem algo a ver com a porr... – ele se conteve, provavelmente lembrando que alguém o advertira a não usar palavrões perto de Bran. O pai de Charles era velho e, embora pudesse usar palavrões tão bem quanto o melhor deles (geralmente em galês), em geral ele preferia evitar usar esse tipo de linguagem. Bran podia ser bastante assustador para subalternos com bocas sujas. Isaac continuou com adjetivos um pouco mais leves.
– Tem algo a ver com aquela maldita situação em Minnesota na qual Charles ficou de alguma forma preso, e isso está interferindo no vínculo dele com Anna...
– Não sei – disse Bran. – Charles, é esse o problema?
Charles não conhecia Isaac muito bem e falar na frente dele era semelhante a dançar nu em público. Mas se seu pai pudesse descobrir uma maneira de ajudar – e, se ele não pudesse, ninguém poderia –, Charles era capaz de tirar suas roupas e correr nu pela Rua do Congresso no centro de Boston na hora do almoço, só para ter uma chance de falar com ele.
– Eles quebraram o vínculo – disse Charles.
– Quem? – perguntou Bran.
– Os fantasmas das pessoas que matei, que deveriam ter vivido.
Ele virou-se para olhar para seu pai, mas tudo o que viu foi Isaac segurando seu telefone celular aberto.
Charles sorriu tristemente para Isaac, que deu um passo para trás e falou com ele.
– Outro homem provavelmente teria um colapso mental e culparia todos os tipos de psicoses. Mas meu avô era um xamã e passou para mim o dom que me permite ver os fantasmas de quem eu prejudiquei.
– Então, eles o estão assombrando – disse Isaac, com o rosto tranquilo.
Charles não esperava que o Alfa dissesse em sua cara que ele era um mentiroso – afinal de contas, Charles era o executor do Marrok. Mas a simples crença que viu em seu rosto o fez lembrar que o avô de Isaac podia ver fantasmas também.
– E eles estão me assombrando – disse Charles; o irmão lobo desistiu de um ataque imediato. Ele aprovava Isaac, contanto que o outro lobo não ficasse muito agressivo.
– Pergunte a ele por quê – disse Bran, no silêncio. Sua voz era estranha, como acontecia quando ele estava seguindo um impulso que não entendia. A verdade era que Charles devia sua capacidade de lidar com a magia a ambas as metades de sua herança – mas às vezes Bran ficava incomodado quando a magia falava com ele, provavelmente porque a mãe de Bran fazia a Bruxa Malvada do Oeste parecer a fada madrinha de Cinderela.
– Porque a minha culpa os prende aqui – Charles respondeu a Isaac, porque Bran achava que podia ser importante. – Eles deveriam ter ido para onde pessoas mortas vão, mas eu os mantenho presos aqui porque não posso libertá-los.
– Por que você se sente culpado? – perguntou Isaac, parecendo honestamente surpreso. – Todos sabem o que houve em Minnesota – ninguém fofoca mais do que nós, os Alfas. Três lobos mataram um velho pedófilo, comeram metade de seu corpo e deixaram o resto para os civis encontrarem – e foi um garoto de dez anos que o encontrou. Provavelmente, levando em consideração as fofocas e o que os relatórios da polícia diziam, era o mesmo garoto que o pedófilo estava caçando. Os malditos fizeram tanto barulho brigando pelo corpo que a criança veio investigar. Pelo menos eles tiveram o bom senso de correr em vez de matar o garoto, mas juntos eles somaram estupidez suficiente para ficarem no topo da lista das Dez Ações Mais Burras pelos próximos dez anos ou mais.
Charles não sabia que foi o menino quem encontrou o corpo. Seu pai havia lhe dito que seu trabalho era descobrir se eles tinham matado o homem e deixado o corpo para os seres humanos encontrarem e, em caso afirmativo, executá-los. O irmão lobo havia forçado a confissão deles – lobos dominantes podiam fazer isso se fossem suficientemente mais dominantes –, e então havia executado as ordens de seu Alfa.
– Pobre garoto – murmurou Bran. – Ninguém me disse que ele tinha encontrado o corpo.
Alguém, Charles sabia, entraria em contato com a família do menino e se certificaria de que ele recebesse terapia. Seus pais pensariam que era algum tipo de organização para vítimas de violência ou algo assim. Esse era um dos trabalhos que Charles costumava fazer ou supervisionar.
– Você se sente culpado por executá-los – disse Isaac, trazendo a atenção de Charles de volta para ele. – Eu entendo isso. Mas não entendo por que você deveria se sentir assim. Eles estavam chorando como bebês? Porque é realmente uma droga quando isso acontece. O Alfa deles era Robert? Eu ouvi o lixo que ele andou falando por aí. A vítima era um maldito pedófilo que merecia morrer. Certo. Se eles tinham certeza de que ele era culpado, deveriam tê-lo matado silenciosamente em algum lugar e se livrado do corpo. Se você me perguntar, eu teria executado o Alfa também, por ser incompetente o suficiente para deixar seus lobos perderem o controle e deixarem o resto do corpo para ser encontrado por civis.
– Se isso tivesse acontecido antes de virmos a público sobre nossa existência – disse Charles –, eu poderia tê-los deixado viver.
– Poderia mesmo? – disse Isaac. Ele sacudiu a cabeça. – Se eles estivessem em minha alcateia, eu os teria matado. Agora, ou dez anos atrás, tanto faz.
Charles leu a verdade daquilo no rosto de Isaac.
– Não importa se o pedófilo era um lixo humano – disse Isaac. – Se eles estivessem atrás de uma execução justa, provavelmente não o teriam devorado. Se eles não estivessem caçando em alcateia, provavelmente não o teriam matado também. Eles eram uns imbecis. Estavam fora de controle. E não podemos ter lobisomens imbecis fora de controle por aí. Não agora. Nem nunca. E era obrigação do Alfa certificar-se de que eles não agissem como imbecis. Sei muito bem que não devo enviar uma alcateia para caçar quando não queremos uma bagunça sangrenta como resultado, e olhe que sou lobisomem há pelo menos metade do tempo em que Robert é o Alfa de sua alcateia. E ele não conseguiu aceitar a própria culpa – ah, não. Eles eram os mocinhos; ele não ia matar os mocinhos – porque sabia que a culpa era dele, pelo fato de que esses lobos precisavam ser executados, para começo de conversa. Então Bran precisou mandar você para matá-los. Aposto que aquele mer... – Isaac deu um rápido olhar em pânico para o celular, mordeu o lábio e continuou –, aposto que ele falou todas as coisas certas, todas as coisas educadas, e ainda assim fez você se sentir como um assassino, não é? Ele fez isso porque sabe que a culpa é dele e não pode admitir isso nem para si mesmo, por isso está procurando alguém a quem culpar. E todos eles sabem, todos sabemos, que os lobisomens não podem dar-se ao luxo de ser o objeto de manchetes como as que vimos em Minnesota.
Era a verdade como Isaac a via. E parecia ser a coisa certa. Talvez Charles estivesse prestando atenção demais a Robert, em vez de pensar claramente.
Charles deu um profundo suspiro.
– Anna sabe como as pessoas funcionam – disse ele. – Ela também teria visto isso. Mas eu não levo Anna comigo, não mais.
– Mas faz sentido, apesar disso, não faz?– disse Isaac.
– Se você não estivesse tão desgastado por causa das mortes – disse pesadamente Bran –, você mesmo teria reconhecido a verdade. Se eu não estivesse tão ocupado tentando justificar algo que tem menos a ver com a justiça do que com expediência, eu teria visto isso também. Só porque aquilo era necessário, não quer dizer que não era a coisa certa a ser feita também.
– Um dos lobos era um lobisomem há menos de dois anos – disse Charles.
– Que pena para eles – disse Isaac. – Eles escolheram ceder ao lobo na hora errada. Eles escolheram andar com idiotas. Eles escolheram agir como agiram. Eles escolheram a sua própria morte e você foi apenas o instrumento.
– Eu acho – disse Bran – que a alcateia de Minnesota precisa de um novo Alfa.
– Concordo – disse Isaac.
– Charles – disse Bran. – Onde está Anna?
Ele apontou para o sudoeste, desconhecendo até aquele momento a exatidão da localização de Anna.
– Dezesseis quilômetros nessa direção.
Ele não podia dizer mais nada, não podia tocar a mente dela, mas sabia onde ela estava.
– Encontre-a – disse-lhe seu pai. – E capture esses homens. Evite matá-los se você puder – lembre ao seu lobo que a prisão é muito pior que uma sentença de morte. Se pudermos ajudar a capturá-los com um mínimo de violência, seria bom.
– Sim – concordou Charles, apesar de seu pai já ter desligado.
– Você está bem? – perguntou Isaac.
Charles inclinou-se em sinal de respeito, de um lobo dominante para outro.
– Melhor.
Mas não completamente são, nem próximo do seu normal; Charles não conseguia se importar com isso, porque agora podia encontrar Anna. – Sei em que direção ela está. O que há a dezesseis quilômetros naquela direção?
– Islington, Dedham, Westwood. Milton, talvez. Eu conheço o meu caminho por aqui por estrada, não em linha reta. Teremos que consultar um mapa para ter certeza – e você tem certeza dos dezesseis quilômetros?
– Próximo disso – disse Charles. Ele considerou simplesmente pegar um carro e seguir seu instinto, mas provavelmente seria mais rápido se soubesse para onde ia. Direções em “linha reta” tinham algumas graves inconveniências em uma época de cercas e estradas. Especialmente quando Charles tinha certeza de que poderia descobrir exatamente onde Anna estava antes de saírem do apartamento. Ele não havia perdido seu tempo naquele dia.
– Por que você não pede para os outros voltarem e se juntarem a nós para ver algo no meu computador?
Ele precisava daquele breve intervalo.
Charles estava tremendo e era dominante o suficiente para não querer que ninguém o visse assim. Anna estava viva. Era o suficiente no momento.
Ele sentou-se à mesa e descobriu que seu computador tinha terminado a tarefa que ele havia determinado. Charles os ouviu entrar, mas não se virou.
Ele não queria correr o risco de inesperadamente olhar nos olhos de uma pessoa até que Anna estivesse segura.
– Anna adora programas de TV sobre procedimentos da polícia – disse-lhes Charles, enquanto redimensionava uma janela no computador para ver se ele tinha feito algum progresso. – Essa manhã ela observou que assassinos seriais muitas vezes gostam de se insinuar nas investigações. Eu inicialmente descartei a possibilidade, porque vocês teriam notado algo assim depois de tantos anos, correto?
– Nós verificamos – disse Goldstein. – Não havia nenhum sinal disso.
Suas ações no computador tinham feito o seu trabalho e ele havia passado pelos firewalls – era sempre bom ter amigos que trabalhavam com isso. Ele podia falar e hackear ao mesmo tempo, e isso talvez impedisse os agentes federais de descobrir onde ele estava. Provavelmente, ele era ajudado pelo fato de nenhum deles ter trabalhado para a Receita Federal – bem como o fato de que a backdoor que ele estava utilizando contava com poucos gráficos e muitos códigos.
– Eu decidi que talvez o assassino inicial, o velho, talvez não fosse esse tipo de psicopata. Mas o cara novo poderia ser – o terceiro homem misterioso. Então eu voltei dez anos. E corri uma lista dos nomes de todos aqueles envolvidos no caso por todos esses anos. Havia duas pessoas cujos nomes apareceram mais de três vezes.
– Asseguro-lhe que não sou um assassino serial – disse secamente Goldstein.
– Estou bastante convencido de que não é você – concordou Charles. – Você quer tanto pegar o assassino que posso sentir isso no seu cheiro. Então dei uma olhada no outro homem primeiro.
Goldstein arquejou.
– Você não está falando sério.
Goldstein tinha se envolvido em uma série de investigações e ele sabia quem mais estava lá com ele.
– Alguém esteve presente em seis dos últimos dez anos – continuou Charles. – Dando entrevistas para o jornal ou o telejornal. Ajudando na central de atendimento. Designado como oficial de ligação para alguém – e uma vez eu tive sorte e encontrei a foto dele na primeira página do jornal onde um dos corpos aparecia. Fui capaz de confirmar que ele estava na cidade certa e na hora certa em nove dos últimos dez anos, fazendo um trabalho que geralmente obriga as pessoas a se mudarem. No outro ano, quando foi designado para o outro lado do país, ele tirou uma temporada de férias misteriosas na época dos assassinatos. Então fui dar uma olhada em seu passado. Cobrei alguns favores. Hackeei alguns bancos de dados. Liguei para alguns policiais e um pastor aposentado.
– Quem é ele? – perguntou Beauclaire, com um toque de ansiedade em sua voz.
Charles apertou um botão e uma foto do garoto-propaganda da Cantrip surgiu em metade da tela, deixando a outra metade para que ele navegasse pelos arquivos.
– De acordo com uma ex-babá, o bom senador era obcecado em ver seu filho se tornar um homem viril – ao estilo do Texas. E, quando aos seis anos de idade, Les Heuter foi pego brincando com a maquiagem de sua mãe, foi empacotado e enviado para passar algum tempo viril com o irmão mais velho do senador, o veterano da Guerra do Vietnã e ávido caçador Travis Heuter, que vivia e ainda vive em Vermont. Travis Heuter também tem casas e propriedades em várias cidades onde o Grande Caçador matou suas vítimas, bem como uma boa dúzia delas em locais que não tiveram mortes. Nos poucos lugares onde o assassino atuou e nos quais Travis Heuter não tem posses, sua família possui propriedades – ou uma de suas três empresas tem condomínios ou apartamentos. Ele é um pouco louco, o Travis, e por isso a família Heuter não o deixa fazer aparições públicas ou aparecer na TV, porque ele pode não ser politicamente correto em suas opiniões.
– Heuter.
Goldstein falou em um tom de voz que continha um pouco do desejo do irmão lobo de destruir o assassino.
– O filho de um senador. Isso vai ser um pesadelo de pressões políticas – disse Leslie. – Meu chefe vai adorar isso.
Charles não conseguiu perceber se ela estava sendo sarcástica ou não – provavelmente porque ela mesma não sabia.
– E a cereja no bolo é essa: Travis e o senador Dwight Heuter tinham uma irmã mais nova, Helena. Em 1981, quando tinha dezesseis anos, ela apareceu grávida, afirmando que foi estuprada. Ela foi morar com seu irmão mais velho e cometeu suicídio alguns anos mais tarde, deixando Travis encarregado da criação de seu filho mestiço. Uma professora aposentada com quem falei disse que o garoto era “diferente” – não precisamente lento ou autista, mas definitivamente estranho, com uma tendência para a violência. Seu nome é Benedict Heuter; ele faz trabalhos braçais, de acordo com a Receita Federal – esse tinha sido o último pedaço de informação que Charles precisava para fechar o círculo –, e há cinco anos vem fazendo trabalhos de limpeza ou manutenção, mudando de lugar a cada ano, mais ou menos.
Charles saiu do banco de dados da Receita e fechou a porta. Então, entrou na Darknet – um espaço separado da Internet, invisível para os sites de busca e projetado principalmente por hackers que haviam abandonado a Internet, devido a seus objetivos mais questionáveis – e puxou uma lista das propriedades de Travis Heuter segundo os registros do imposto de renda, algo que ele havia copiado durante uma excursão anterior ao banco de dados da Receita Federal.
– Eu acho que você não deveria ser capaz de ter acesso a esse tipo de informação – disse Leslie.
– Não olhe – disse Goldstein, olhando por cima do ombro de Charles. – Nós não sabemos nada sobre hacking ilegal – ele assobiou alegremente. – Travis Heuter é dono de metade do mundo.
Charles procurou em Massachusetts e encontrou um endereço.
– Não esse aí – murmurou Isaac. – Isso fica no centro da cidade. Você está procurando alguma coisa a dezesseis quilômetros a sudoeste daqui. Nem esse – isso fica lá no norte. Esse aí. Dedham. Uma das minhas namoradas da época da faculdade tinha um cavalo em um estábulo lá perto – a direção e a distância estão certas.
Charles não queria estar errado, então memorizou o endereço mas continuou procurando pelos registros até sua pesquisa voltar para o início. Era Dedham ou eles teriam que seguir o vínculo. De qualquer maneira, Heuter estava perdido.
Pesando o tempo perdido investigando versus o tempo perdido em si, Charles levou um momento para procurar o endereço de outro site na Darknet especializado em registros de propriedade oficiais e não oficiais – a Darknet era uma mistura bastante tediosa de teóricos da conspiração, hackers brilhantes e guardiões de registros com TOC (transtorno obsessivo-compulsivo). A propriedade de Travis Heuter em Dedham era uma casa de fazenda bem grande de dois andares com um celeiro em um terreno de 4,2 hectares, que havia sido vendido há cinco anos por aproximadamente um milhão de dólares. Charles imprimiu o projeto da casa e os registros da prefeitura da última vistoria do terreno; em seguida, dobrou-os e enfiou-os no bolso.
– Um dos lobos da minha alcateia está com um furgão nos esperando lá fora – disse Isaac. – Vamos?
Concentrado em Anna, Charles havia esquecido de que eles precisariam de um carro para chegar lá. Provavelmente seria melhor se ele não dirigisse.
Doze
Anna estava ofegante com a dor da transformação e seus músculos, como ela concluiu, tremiam aleatoriamente pela mesma razão. Ela se sentia mais fraca do que já se sentira alguma vez em forma de lobo e seu cheiro estava errado também. Doente ou drogada, talvez.
O outro homem, aquele que não era Les Heuter, ainda estava vociferando na outra sala sobre o que ia fazer com ela em linguagem bastante explícita... o que significava que sua transformação tinha sido rápida, ao estilo de Charles, ou que ele estava falando há quinze ou vinte minutos. Ela apostava na última opção.
Heuter encorajava o outro homem, cujo nome era obviamente Benedict, adicionando feios detalhes ou ridicularizando-o – o que quer que fosse necessário para incitá-lo ainda mais. Heuter provavelmente achava que Anna estava encolhida de medo na jaula, ouvindo.
– Você se lembra do que nós fizemos com aquela garota no Texas? – perguntou Heuter.
– Aquela com a tatuagem de borboleta?
– Não essa; aquela alta e...
Anna ficou em pé e sacudiu-se, como se estivesse chacoalhando água de seu pelo, em uma tentativa de fazer seus músculos trabalharem – e para que não parecesse que ela estava encolhida de medo em sua jaula, antes mesmo que eles tivessem feito alguma coisa com ela. Anna fez o melhor que pôde para abafar suas vozes e transformá-las em ruído de fundo, como uma música desagradável no rádio.
Ela precisava se concentrar em outra coisa.
Sua visão noturna como ser humano era muito boa. Em sua forma de lobo, era ainda melhor. Sua jaula estava pendurada a cerca de sessenta centímetros do chão polido, que parecia mais fora de lugar do que a jaula em si na grande sala aberta. Havia um cheiro persistente de cavalos que lhe dizia que ali havia originalmente um estábulo, mas alguém o havia reaproveitado para fazer um estúdio de dança. No extremo oposto da sala, na parede curta, um banco tinha alguns pares de sapatilhas, e o que parecia ser um... cinto para dança do ventre, decorado com moedas.
Ao lado do banco, um canto do estábulo fora fechado e uma tabuleta que dizia ESCRITÓRIO estava pendurada na porta. Uma parede de espelhos cobria o lado mais longo do estábulo – espelhos que refletiam a imagem de Anna, como se ela ainda estivesse aterrorizada. Uma longa barra de metal, colocada a cerca de um metro de altura e que corria por todo o comprimento da superfície espelhada, deu a informação que faltava. Ela estava presa em uma jaula pendurada nas vigas de um estúdio de dança. Nada de calabouço ou porão úmido escondido para ela. Quando Anna estava se apresentando regularmente, ela costumava ter pesadelos sobre estar presa em um palco de onde ela só poderia sair se fosse capaz de tocar Mary had a little lamb de trás para frente, o que deveria ter sido fácil se alguém não tivesse substituído as cordas de seu violoncelo por cordas de violino. Pelo menos uma jaula em um estúdio de dança era melhor do que isso... Terror honesto em vez de vergonha frustrada.
Anna tinha que sair dali.
Mas, nesse meio tempo, ela precisava fazer algo a respeito do lobisomem de aparência assustada refletido no espelho grande.
Ela levantou-se ereta e empinou as orelhas e a loba do espelho pareceu um pouco menos patética. A imagem não chegou a parecer assustadora – Charles podia fazer isso sem nem mesmo tentar –, mas pelo menos não parecia tão assustada. Anna era um lobisomem. Não uma vítima.
Vendo que a tinham trazido a um estábulo transformado em estúdio de dança, Anna se perguntou se aquilo tinha alguma conexão com Lizzie. Talvez ela tivesse dançado ou ensinado aqui. Talvez essa fosse a maneira como os assassinos a tinham encontrado.
Ou talvez Beauclaire e sua filha simplesmente constassem da misteriosa e às vezes imprecisa lista da Cantrip que relacionava Fae e outros seres vivendo nos Estados Unidos – uma lista à qual Heuter tinha acesso. Mas se houvesse uma ligação entre Lizzie e esse estúdio de dança, havia uma pequena chance de que Charles pudesse estabelecer uma conexão e encontrá-la.
Até porque ele já devia saber que ela havia desaparecido. Se ele não a havia contatado através de seu vínculo, era porque não podia. Charles teria que encontrar outra maneira. E o estúdio de dança poderia trazê-lo aqui... em uns dois meses mais ou menos.
E agora ela parecia patética novamente. Houve um som nítido de alguém sendo esbofeteado. Um segundo bofetão e o ruído de fundo dos homens fantasiando sobre tortura e estupro parou abruptamente.
– Você sabe o que eu lhes disse.
A voz era de um homem velho, um pouco trêmula mas ainda poderosa, falando em um tom quase suave que fez Anna lembrar-se de Bran quando ele ficava muito zangado.
– Se você continuar usando essas palavras, vai se esquecer e usá-las em público. Então, você vai perder o seu bom emprego e viver nas ruas, implorando por pão, porque eu não vou alimentá-lo. Nenhuma criança da minha casa será um inútil e viverá de esmolas.
Alguém disse “sim, senhor”, em um quase sussurro.
– Essas palavras são para o lixo – continuou o velho. – Para a escória malnascida. Seu pai pode ter sido escória, mas sua mãe era uma boa menina e seu sangue deveria ser mais forte. Você a envergonha quando fala desse modo.
A voz do velho mudou um pouco, como se ele mudasse de posição, mas também ficou mais afiada:
– E você. Les, o que você pensa que está fazendo? Você acha que eu não sei de onde ele tira isso? Você se acha tão inteligente, mas você não é nada. Nada. Burro demais para o FBI, mole demais para os militares. Você gosta de esquecer quem está no comando aqui, ou qual é a nossa missão e o que ela significa. Distração não é útil; você sabe o quanto é difícil para ele se parecer com uma pessoa normal. Você quer que ele seja pego? Até onde você acha que chegaria se tentasse destruir as criaturas que estão invadindo essa nossa terra sem Benedict? Você está tentando nos arruinar?
– Não, senhor – a voz de Heuter soava submissa, mas havia veneno espreitando sob o tom de humildade. – Desculpe-me, tio Travis.
– Você não é mais criança – disse severamente o homem velho, aparentemente não percebendo os sentimentos escondidos na atitude do homem mais jovem. – Comece a agir como um adulto. O que estamos fazendo aqui?
– Salvando nosso país – a voz de Heuter ficou mais forte, quase ao estilo militar – e ele estava dizendo a verdade. – Tornando nosso país mais seguro para seus cidadãos, eliminando o lixo e fazendo as coisas que nosso governo liberal e mole demais deveria fazer.
Anna não podia imaginar isso. Ela se lembrou do pequeno discurso de Heuter no almoço de ontem; ele estava mesmo dizendo a verdade segundo o que acreditava – e embora ela o tivesse achado desagradável, Anna também sentira um certo respeito por ele.
Ela deveria ter se lembrado da lei de Bran: fanáticos são pôneis de um truque só. Eles não amam nada a não ser sua própria causa. Não se pode ficar em seu caminho sem esperar ser ferido. Anna sempre pensou que Bran estava falando de si mesmo – mas ela sabia que ele era mais do que isso, mesmo que ele mesmo não soubesse.
Bran era focado, mas amava seus filhos e amava sua alcateia. Ele não era um pônei de um truque só.
“Você se lembra da garotinha que penduramos pelas tranças, enquanto nós...” – a luxúria na voz de Heuter enquanto ele incitava Benedict a um frenesi maior era mais real do que o discurso sincero que ele havia feito para Anna na mesa do almoço.
Anna concluiu que Heuter também não era um fanático. Ele só dizia que estava protegendo o país dos monstros para que ele mesmo acreditasse que estava certo quando satisfazia o seu desejo de poder sobre os outros, o seu desejo de causar dor e sofrimento a outras pessoas. Assassinato e estupro eram sua verdadeira causa; manter o país seguro era apenas uma desculpa.
– Posso ficar com ela primeiro, tio Travis? – perguntou Benedict. – Eu gosto mais das meninas. E o marido dela me machucou. Posso ficar com ela primeiro?
– Assim é melhor, garoto – disse o homem mais velho. – Você precisa manter sua linguagem educada. Vamos dar uma olhada nela antes de decidir qualquer coisa. Nós teremos algum tempo para brincar antes que você se alimente da morte dela. Haverá tempo suficiente para tudo.
Parecia que ele estava falando sobre ir pescar, e não torturar e matar alguém. A porta perto de sua jaula se abriu e o velho acendeu a luz quando todos eles entraram.
Salve, salve, a gangue está toda aqui, pensou Anna, quando deu a primeira boa olhada em seus captores.
Mesmo sabendo o que sabia, Anna achava que Les Heuter ainda parecia o típico bom moço americano, como o tipo de jovem que ajuda velhinhas a atravessar a rua. O outro jovem, Benedict Heuter... ele era grande. Mais alto do que Charles e talvez vinte e cinco quilos mais pesado – e Charles não era nenhum varapau. Havia algo de errado com seus olhos e ele cheirava como um cervo no cio. Ela achou desconfortável olhar em seus olhos, e Anna era capaz de fazer Bran desviar o olhar... Mas aquilo não tinha nada a ver com dominação e tudo a ver com a loucura em seu rosto.
As características eram diferentes, mas a expressão de Benedict e os pensamentos que se escondiam por trás de seus olhos eram iguaizinhos aos de Justin, o lobisomem louco que a havia transformado e... feito todas as outras coisas que particularmente ninguém mais queria fazer com um lobo Ômega. Não muito tempo depois de Anna ter conhecido seu parceiro, Justin foi assassinado por Charles. Mas, mesmo anos depois, ela ainda tinha pesadelos com os olhos de Justin.
Benedict a deixava bastante desconfortável, por isso ela voltou sua atenção para o outro estranho ali.
Claramente aparentado com os dois homens mais novos, o velho – tio Travis, era assim que Heuter o tinha chamado – mostrou-lhe como Heuter seria em quarenta anos, (supondo-se que ele não morresse sob suas presas, como ela esperava). A idade não tinha dobrado esse homem tanto quanto o havia afiado. Heuter ainda tinha uma aparência um pouco suave; era isso o que lhe dava sua aparência saudável.
Já esse homem era feito de couro cru e pele.
Mesmo em seus sessenta e poucos ou setenta anos, ele tinha boa aparência, com olhos azuis brilhantes que não pareciam gastos pela idade, além de feições distintas e limpas que deveriam ter sido espetaculares quando ele era mais jovem, mas que tinham sido solidificadas por um sentimento de força e determinação. Anna achava que a força do caráter em seu rosto era um pouco insana – pelo menos, ela estava em uma posição melhor do que a maioria das pessoas para fazer esse julgamento...
Ele se movia como se houvesse músculos sob sua pele, apesar de sua idade. E a linguagem corporal dos outros lhe disse que aquele ali era o lobo Alfa. Ele governava por decreto, por força de caráter e pela sua compreensão de que era ele que os mantinha seguros e os guiava – e os mataria, se necessário.
A linguagem corporal que ela observou enquanto o homem mais velho não estava olhando para seus asseclas também lhe disse que Heuter detestava sua posição subalterna: ele estava pronto para assumir, ao primeiro sinal de fraqueza. Sua voz tinha mostrado o mesmo. O velho deveria saber disso, e o fato de ele não saber mostrou a Anna que ele estava enfraquecendo e não governaria por muito mais tempo.
– Vamos dar uma olhada em você, querida – cantarolou o velho, enquanto vinha até a jaula, aparentemente sem se abalar com a sua transformação em lobo. – Negra como piche e olhos azuis de gelo. Eu nunca vi um lobo de olhos azuis antes.
Ela teve que lutar para não recuar. De perto, ele cheirava a tabaco para cachimbo. Charles às vezes cheirava assim depois de realizar uma das cerimônias que seu avô tinha lhe ensinado.
Ele não fazia isso com frequência, mas Anna aprendera a ver os sinais. Charles ficava agitado por alguns dias. Então ia para a floresta, sozinho – ou a arrastava com ele –, até encontrar um lugar para queimar tabaco e cantar para os espíritos na língua de sua mãe.
Às vezes Charles dizia a ela o que estava fazendo e às vezes não.
Anna não perguntava sobre as pedras que ele trazia ou os pequenos pedaços de pano que ele colocava sobre elas durante certas épocas do ano. Ele tinha lhe dito uma vez que algumas coisas eram para ser compartilhadas e outras não, e isso era bom o suficiente para ela.
Mas o cheiro de tabaco de Charles passara a ser reconfortante. Anna se ressentiu com o velho por ele ter arruinado isso.
– Tio Travis, ela é um lobo.
A voz de Benedict era um gemido mais adequado para um adolescente reclamando da hora que tinha que voltar para casa do que para o homem adulto que ele era. Agora ela tinha certeza de que havia algo errado com ele, algo mais do que ser um assassino serial sociopata – ou seria psicopata?
– Ela não serve para nada como lobo. Eu não gosto de homens velhos ou meninos, mas posso transar com eles. Eu não vou transar com um lobo – é nojento.
– Quieto – disse o velho. – Eles não podem ficar como lobos para sempre. Amanhã é noite de lua cheia, e ela pode permanecer como lobo até lá, mas depois terá que se transformar de volta quando a lua for embora.
Ele estava errado. Enquanto Anna não se importasse em ceder o controle ao lobo, ela poderia ficar em forma de lobo indefinidamente, mas ele parecia muito confiante.
Talvez os bancos de dados da Cantrip tivessem informações imprecisas sobre mais coisas do que simplesmente quem era Fae e quem não era.
– Mal posso esperar até amanhã – disse Heuter.
– Você não é um lobisomem – disse Benedict. – Você não precisa da lua cheia para fazer qualquer coisa.
– Não, eu não me importo com a lua – sorriu Heuter. – Mal posso esperar para ver a cara daquele presunçoso miserável, agora que temos sua esposa e ele não pode encontrá-la.
– Você não vai chegar perto dele – retrucou tio Travis, irritado. – Não seja estúpido. Você vai ficar arrogante e ele vai sentir o cheiro disso em você. Ou o cheiro dela em você, talvez.
Ele não havia desviado sua atenção de Anna e, por isso, não viu o ressentimento que perpassou pelo rosto de Heuter e depois desapareceu.
Anna não tinha a memória de Charles para informações, mas ela tinha certeza de que Heuter tinha quase trinta. Isso era bastante idade para receber ordens como se fosse uma criança. Se bem que lobisomens tinham que seguir as ordens de seu Alfa da mesma maneira. Ou eles as seguiam ou eles eram mortos. Talvez o mesmo tipo de coisa valesse para Heuter... Talvez seu tio o compreendesse melhor do que ela e a ameaça de morte fosse o suficiente para mantê-lo na linha.
– Você parece tão dócil aí – disse o tio Travis; levou um momento para Anna perceber que ele estava falando com ela, porque o velho tinha parado de falar com Heuter sem alterar a voz ou a postura do corpo. – Você está com medo, princesa? Você deveria estar. Sua espécie está tentando dominar o mundo. Vocês não me enganam com a propaganda de “nós somos os mocinhos”. Eu conheço um predador quando vejo um. É a mesma coisa com os gays. Assim como os amarelos, cucarachas e carcamanos. Tentando transformar esse país em uma fossa.
Amarelos eram... asiáticos, certo? Um ponto para sua aula de história na escola, já que ela nunca tinha realmente ouvido alguém dizer isso em voz alta antes. Cucarachas eram os latinos. Ela não tinha ideia de quem eram os carcamanos. Seu vocabulário racista obviamente precisava melhorar. Qual seria o epíteto racista para lobisomens? Wargs? Ela meio que gostava do termo, mas suspeitava que os malditos racistas não liam Tolkien. Ou se o fizessem, ela não queria saber sobre isso.
– Mas nós estamos aqui para impedi-los – disse o tio Travis, e depois sorriu sedutoramente; ele era bonito o suficiente para que Anna apostasse que muitas mulheres haviam seguido aquele sorriso até um quarto. – E em pagamento, tudo o que pedimos é um pouco de diversão ao longo do caminho – certo, meninos?
– Sim – disse o homem grande. – Sim, diversão.
Era estranho ouvir a idiotia em sua voz e cheirar sua luxúria. Em sua experiência – e ela havia sido voluntária na escola em um grupo que se especializara em trabalhar gratuitamente como babás para pais com crianças autistas ou com necessidades especiais –, a maioria das pessoas com deficiência mental era muito dócil desde que os pais não as tivessem mimado demais.
Benedict não era dócil, e era algo muito mais pervertido do que uma criança mimada. Ouvi-lo e cheirar sua luxúria lhe transmitia uma estranha vibração pedófila. Isso a fazia se sentir suja por associação.
Anna se perguntou se sempre houvera algo errado com Benedict, ou se o tio Travis o tinha transformado nessa... alma deformada.
– Olhe para ela, tio Travis – disse Heuter. – Ela está apenas olhando. Será que está com medo demais para lutar? Ou talvez ela ache que pode escapar, que pode lutar contra nós e ganhar. Talvez ela não tenha medo de um bando de meros seres humanos.
– Nada de rosnados ou fúria – concordou o tio Travis. – Pode significar que ela já desistiu. Talvez a gente não precise esperar até que ela se transforme em humana. Ela não tem nem a metade do tamanho do último, e ele não nos deu nenhum problema. O velho colocou seu rosto perto da gaiola, como se por acidente, mas ela podia sentir sua excitação. Ele a estava insultando, tentando levá-la a atacar.
– Nós o desmembramos, pedaço por pedaço, até que a criatura que sobrou era uma coisa destruída, gemente. Nós o matamos por pena quando acabamos com ele.
Mas Otten não havia sido treinado por Charles, como Anna lembrou-se firmemente. Deixe o sucesso torná-los descuidados... Ela relaxou suas orelhas e mudou sua postura até que o reflexo do lobo negro no espelho mostrasse uma fera que estava com medo e sozinha, que sabia que não havia nenhuma maneira de seu companheiro encontrá-la, como se a lembrança do que havia acontecido com Otten tivesse sido o suficiente para roubar a sua confiança.
Anna teve que firmemente lembrar a si mesma que estava apenas fingindo estar sem esperança e com medo. Que ela não era uma vítima, que iria vencê-los.
O tio Travis zombou.
– Patética. Mas todos eles acabam sendo.
– Eu não me importo com patético – disse sinceramente Benedict. – Enquanto eles forem bonitos. E humanos. Eu não transo com animais. Transar com animais é ruim.
Mas Anna notou que ele não se aproximou mais da jaula do que o necessário. Ele cheirava a... incerteza. Charles o havia ferido quando lutaram, e agora ele não queria ficar muito perto dela.
Tio Travis ignorou Benedict, estudando Anna como se ela fosse um quebra-cabeça.
– Acho que não vamos esperar. Peguem a power-head e a focinheira. Vamos colocá-la para dormir de novo e colocar as correntes de volta nela.
Tio Travis não especificara a quem ele estava ordenando que fosse buscar a arma, mas Benedict se afastou para cumprir a ordem; Heuter nem mesmo se mexeu.
Power-head. Uma power-head era um longo bastão com uma arma de fogo que podia atirar em tubarões embaixo da água, segundo o que ela tinha visto em um programa no canal National Geographic. Ela tinha torcido pelos tubarões.
Benedict entrou no escritório no canto posterior do estábulo e voltou com um bastão de dois metros ou dois metros e meio de comprimento; na sua extremidade parecia haver uma seringa hipodérmica presa com fita adesiva. Não era uma power-head, mas parecia que a arma tinha inspirado sua criação.
Anna moveu-se para trás cautelosamente. Ela não tinha intenção de ficar inconsciente novamente – não se pudesse evitar. Drogas podiam não funcionar direito em lobisomens, mas drogas suficientes poderiam derrubá-la por alguns minutos. Ela não queria ficar indefesa nas mãos desses homens.
Isaac ficou muito surpreso que o grande e poderoso senhor dos elfos não entendesse o quanto deveria estar assustado agora, preso como todos eles estavam em um carro com Charles, enquanto sua companheira estava nas mãos de um bando de assassinos seriais.
Que os agentes do FBI também não entendessem era uma homenagem aos talentos de Charles para manter sua face inexpressiva como um jogador de pôquer, mas Isaac achou que o Fae, muito mais velho e mais sábio, mais versado em música e história, tinha melhores instintos. Ele devia saber que o matador de lobos do Marrok estava prestes a perder o controle e muitas pessoas iriam morrer.
Naturalmente, Isaac teve a nítida impressão de que Beauclaire era um cara muito, muito durão, quando tinham lutado juntos na noite passada contra o lorde cornudo.
Atacar um monstro invisível, com nada mais do que uma faca longa, era algo bem corajoso e talvez um pouco louco – embora o Fae ainda estivesse vivo, o que podia significar que ele não era tão louco assim. Não que qualquer um deles, Isaac ou Beauclaire, tivesse causado um décimo dos danos que o bicho-papão dos lobisomens causou. Isaac tinha ficado impressionado mesmo quando pensou que Charles conseguia enxergar o monstro, mas Hally havia eliminado essa opção...
– Ele pode ter visto um lampejo – disse-lhe ela, enquanto esperavam os policiais e funcionários que iam fazer sua parte na limpeza da ilha Gallops. – Mas faz quase uma semana desde que mataram Jacob. A magia se dissipa rápido quando você a desperdiça da maneira como esses caras fazem. Em todo caso, a magia liberada pela morte de Jacob teria iluminado um pouco o lugar, o suficiente para dizer-lhe que havia algo na sala, especialmente se estivesse um pouco escuro, mas não o suficiente para que ele visse o que era.
E Charles havia atacado como se soubesse exatamente onde deveria atacar. Rápido. Muito rápido e poderoso. Isaac ouviu o barulho quando o outro lobo caíra sobre a fera e tinha visto Charles pendurado nela após a criatura rolar sobre ele algumas vezes. Naquela hora, Isaac já estava meio zonzo, então tudo de que se lembrava era de alguns pedaços do fim da luta, mas isso já era o suficiente para impressioná-lo.
Isaac também já havia brigado muito, tanto antes como depois de sua transformação. Ele sabia sem arrogância que era bom de briga, e cinco anos de caratê antes de ter sido transformado – inspirados pelo desejo de nunca mais deixar ninguém trancá-lo em um armário de novo – se revelaram muito úteis em seu trabalho como Alfa. Mas se ele fosse lutar contra Charles, ele poderia muito bem rolar e mostrar sua garganta antes que a primeira rodada de hostilidades começasse. Não era por acaso que o Marrok usava Charles como seu homem da limpeza. Quem iria se atrever a desafiá-lo?
Isaac dirigia o furgão, porque quando Horatio, o lobo que possuía o furgão – Horatio não era seu verdadeiro nome, mas ele queria ser um ator, e sua interpretação das obras de Shakespeare era muito boa; então, o apelido ficou –, deu uma olhada no rosto de Charles, jogou as chaves para Isaac. Depois, disse que poderia passar na casa de Isaac de manhã para pegar o carro, se eles realmente não precisassem que ele fosse junto. Horatio esperou para se certificar de que Isaac não ordenasse a ele que dirigisse, mas pareceu extremamente aliviado quando seu Alfa deu-lhe permissão para ir com um aceno de cabeça. Horatio tinha mais bom senso em seu dedo mindinho do qualquer pessoa em todo o corpo dentro daquele furgão – e isso incluía Isaac.
Mas Horatio era um bom lutador. Ele poderia ter sido útil quando se deparassem com os bandidos. Isaac olhou por cima do ombro para Charles, que estava brincando intensamente com o telefone que ele havia tirado de Isaac. Beauclaire estava sentado no banco de trás agora, e talvez não estivesse tão alheio ao estado de Charles naquele momento. O matador de lobos do Marrok mantinha seu corpo virado na direção exata de seu objetivo. Provavelmente eles não precisavam de Horatio. Provavelmente eles não precisavam de ninguém, exceto Charles.
E Horatio teria insistido em dirigir se tivesse vindo; afinal, era seu furgão. Charles tinha escolhido dar à agente Fisher o assento ao lado do motorista – o que poderia ter sido um antigo costume; velhos lobos faziam coisas assim. Era improvável que ele tivesse feito isso para que pudesse atingir Isaac sentando-se atrás dele, mesmo que esse fosse o resultado final. A nuvem negra de intensidade que Charles emitia deixava Isaac nervoso e teria feito Horatio, que era muito mais tenso, dirigir como uma criança de seis anos de idade tentando jogar uma bola de boliche.
Já era tarde, talvez uma hora da manhã, e o trânsito estava correspondentemente leve; por isso Isaac pisou um pouco no acelerador. Não tão rápido que os policiais teriam sentido que era imperativo pará-lo, mas não tão lento que o lobo no banco de trás decidisse assumir o volante.
Era um equilíbrio delicado. Horatio não tinha qualquer tipo de dispositivo de navegação por GPS em seu velho furgão, mas a agente Fisher havia usado seu telefone celular para funcionar como um. Eles decidiram que a estrada I-93 seria a maneira mais rápida de chegar lá, mesmo que fosse uma distância maior do que ir pelas estradas vicinais.
– Encoste – disse Charles, com uma voz áspera.
Isaac não ia discutir com Charles. Assim, ele fez o furgão parar no acostamento da estrada. Charles saltou, deu um tapinha na lateral do carro e disse:
– Siga em frente até o endereço que lhe dei. Eu vou correr em linha reta e devo chegar antes de você.
Foi só então que Isaac percebeu que Charles tinha começado a se transformar em lobo. Isaac não podia falar enquanto se transformava– exceto para xingar nas piores partes –, mas Charles podia ter uma conversa normal, ou algo muito próximo disso. Diabos. Quando crescesse, Isaac queria ser como Charles.
Charles fechou a porta e saiu para a escuridão, ainda em duas pernas, mas sua marcha era um estranho pulo deslizante, nem humano, nem lupino.
Isaac refletiu sobre como se tornar um lobisomem o deixou complacente, fazendo-o pensar que ele já sabia tudo o que havia para se saber sobre ser um lobo.
Ele voltou para a interestadual e perguntou:
– Quanto tempo até chegarmos lá?
– Quinze, vinte minutos – disse Leslie. – Ele acha que pode chegar primeiro que nós?
Esses não eram os locais habituais que Isaac costumava visitar, mas ele tinha uma boa ideia de geografia e uma ideia razoável da rapidez com a qual um lobisomem irritado podia correr. Ele acrescentou mentalmente 10 % a mais de velocidade apenas porque se tratava de Charles, e disse:
– Eu acho que ele pode, sim.
Charles não tinha certeza se aquela era uma boa ideia ou não, mas o irmão lobo não queria mais andar de carro enquanto tinha quatro boas patas e Anna precisava deles. Charles acabou de se transformar enquanto corria, o que não era sua maneira favorita de fazer isso, mas deu um jeito.
O celular de Isaac, que Charles havia deixado no banco do furgão, havia sugerido cortar através da floresta, alguns cemitérios e campos de golfe, e chegar aonde ele queria chegar. Charles não esperava que fosse tão fácil – o que era ótimo. Cercas, cursos de água e casas o impediriam de seguir um caminho reto, mas ele daria um jeito. Quando ele chegou perto, seu vínculo com Anna se estreitou. Charles ainda não podia falar com ela, mas podia sentir sua dor e seu medo – e isso o fez correr ainda mais rápido.
Ele escapou por pouco de ser atropelado por um Subaru Outback em uma estreita rodovia e deixou o carro parado com o cheiro azedo de borracha queimada. O motorista perguntou ao seu companheiro:
– Você viu isso? O que era aquela coisa?
Ele só desacelerou quando se aproximou da casa.
Ela não estava mais sentindo dor.
E agora que podia pensar em vez de simplesmente entrar em pânico, Charles percebeu o que Anna tinha feito. Quem conhecia melhor a sensação de uma transformação do que outro lobisomem? Ela era inteligente, sua companheira. O lobo era mais forte do que o ser humano e mais capaz de se defender, então ela se transformara para sua forma lupina.
Ela não precisava de resgate imediato e não estava com dor naquele momento, então ele podia demorar um pouco. O irmão lobo queria encontrar o lugar onde eles a tinham prendido e matar todos os envolvidos. Charles concordava com a última parte, mas achou que era melhor descansar um pouco até que não estivesse respirando como um motor a vapor. Ele caiu no chão sob um monte de arbustos de lilás perto de um cartaz que dizia: Estúdio de Dança Westwood: Fundado em 2006.
Charles iria entrar quando estivesse em sua melhor forma, e não ofegando como um galgo depois de uma corrida. O irmão lobo não estava feliz, mas tinha aprendido que às vezes sua metade humana era mais sábia – e às vezes não.
Acima deles, a lua cantou. No dia seguinte ela estaria cheia e não seria possível ignorá-la. Naquela noite, ela o acompanhou enquanto Charles se levantava para ir caçar aqueles que queriam machucar sua companheira.
Benedict enfiou o bastão na jaula em direção a Anna com um rápido movimento, esperando enganá-la. Charles às vezes lutava com Asil usando o quiang chinês e eles usavam o mesmo tipo de movimento, girando as espadas e fazendo as extremidades balançarem.
Se Anna fosse humana, talvez tivesse funcionado.
Em vez disso, Anna esquivou-se, agarrando a extremidade do bastão exatamente abaixo da seringa hipodérmica quando ele passou por ela. Anna virou a cabeça, enquanto cravava as presas nele.
Se um ser humano estivesse segurando do outro lado, Anna teria puxado o bastão das mãos de Benedict. Mas se ela fosse um lobo de verdade, não poderia tê-lo danificado. Embora ela fosse pequena para um lobisomem, era enorme para um lobo e mais forte do que um lobo do seu tamanho seria. A extremidade quebrou e a seringa hipodérmica caiu no chão da jaula aos seus pés.
Anna tinha uma arma – eles só precisavam tirá-la da jaula enquanto estava em sua forma de lobo. E quando fosse humana novamente, Anna poderia usá-la. Ela sorriu para o velho, deixando sua língua pender para ele: tome essa, pensou Anna, desafiando-o.
Não sou a vítima de ninguém, não mais.
Benedict deixou cair o bastão e saltou para trás, cheirando a medo. Ela mostrou os dentes para ele e rosnou, só um pouco. Uma provocação.
O tio Travis deu quatro grandes passos para alcançar Benedict e bateu em seu rosto com força, usando a palma da mão.
– Pare com isso. Pare com isso. Ela é uma abominação, mas nós matamos abominações antes. Ela é uma prisioneira e está fraca, e você é um Heuter. Não nos acovardamos diante de monstros cheios de doenças.
Benedict começou a dizer algo, e então enrijeceu e levantou a cabeça.
– Ele está vindo.
– Quem está vindo? – perguntou Travis.
Benedict transformou-se sem responder. Entre uma respiração e a seguinte, ele tornou-se algo... fantástico.
Anna esperava que ele fosse feio em sua forma Fae, para que o lado de fora representasse o interior, mas ela já devia saber que não. Ela tinha visto o cervo branco.
Uma galhada, branca como a neve e prateada nas pontas, subia como uma coroa de sua cabeça, que não era muito humana. Os olhos pareciam certos e a boca também, mas o resto do rosto era mais acentuado, alongado em uma forma estranhamente graciosa.
Havia muita beleza na simetria ímpar de seus traços, uma beleza não prejudicada por sua pele cor de prata. Não. Não sua pele, embora essa fosse pálida também. Todo o seu corpo superior, inclusive a face, era coberto por pelos curtos branco-prateados, que refletiam a luz e brilhavam. Seu cabelo tinha três ou quatro tons de cinza e caía em cascata através e sobre a base de seus chifres, assentando-se sobre os seus enormes e musculosos ombros em cachos, como gotas de cera derretida.
Ele era enorme. Nessa forma, Benedict não conseguiria ficar em pé em uma casa normal. Se o tio Travis tinha um metro e oitenta centímetros de altura (Anna achava que que ele estava perto disso), então Benedict tinha o dobro, não incluindo os chifres.
Suas roupas tinham derretido – e ocorreu a Anna que ele provavelmente não havia se transformado, mas apenas perdido seu domínio sobre o glamour, a aura mágica que todos os Fae usam para que possam parecer humanos. Mas seus ombros, peito e barriga eram cobertos com uma armadura prateada que lembrava a cobertura de um tatu. Aquilo não era roupa, mas parte de sua pele.
Do peito para baixo, a pelagem de prata ficava mais longa, mais espessa e enrolada, como pelo de búfalo. Ela cobria seus quadris e deixava sua genitália espreitando aqui e ali. Suas pernas eram construídas como as patas traseiras de um búfalo ou cervo, embora o tamanho delas lembrasse mais uma girafa, igual a que Anna tinha visto no zoológico de Brookfield, quando era criança.
Em seus... jarretes ou joelhos, o pelo escurecia até ficar cinza, da cor do aço, e ficava mais longo como o pelo na parte inferior das pernas de um cavalo da raça Clydesdale – e “pernas” porque um amigo de Anna da terceira série, louco por cavalos, havia insistido que eles chamassem assim os membros do animal.
Benedict ficava em pé em um par de cascos de dois dedos, como um alce. Ele inclinou a cabeça e seu nariz subiu em direção ao teto; seus chifres exageravam o movimento. Ele levantou uma pata nervosamente, antes de colocá-la para baixo e abaixar a cabeça novamente. Benedict ficou balançando de um casco para o outro, fazendo ruídos ocos sobre o chão de madeira e deixando marcas sobre a superfície polida.
– Ele apenas está com medo – disse Heuter, no sotaque arrastado do Texas, que ele parecia abandonar e usar novamente sem aviso prévio. – Não há ninguém lá fora. Eles não têm nenhuma pista.
Anna não tinha ouvido nenhum carro chegar e não podia farejar nada de diferente: a porta estava fechada, e assim não era possível dar uma boa cheirada em qualquer coisa que estivesse fora do celeiro. Ainda assim, ela suspeitava que Les Heuter estivesse certo. Anna sabia que ninguém suspeitava da ligação dele com os assassinatos.
Benedict jogou a cabeça para trás e soltou o rugido desafiante que ela tinha ouvido antes. Nada lhe respondeu, exceto os sons distantes de carros apressados e o vento passando pelas folhas.
Mas Anna sentiu algo também. Era a sensação de perigo iminente, como estar sobre trilhos e sentir que eles começam a vibrar antes de ouvir o barulho do trem. Ela levou um momento para perceber o que era esse sentimento: Anna tinha tanta certeza de que Charles não poderia encontrá-la...
Ele não veio através da porta. Charles arrombou as paredes como um aríete. Velhas vigas de dois por doze despedaçaram-se diante dele como folhas de grama e caíram de seu corpo como palitos de dentes e galhos. Seus olhos encontraram os dela, varreram o local e depois se concentraram em Benedict.
O lobo vermelho abaixou a cabeça, se agachou um pouco e rosnou; um som tão profundo que o chão de sua jaula vibrou.
O lorde cornudo balançou seus chifres grandes e berrou, atacando para a frente, apesar do cheiro de terror que Anna podia sentir emanando de seu corpo. Charles esperou e, então, desviou-se apenas o suficiente para sair de seu caminho. Os cascos do Fae escorregaram no chão duro e escorregadio, e ele bateu no espelho, quebrando-o, antes que conseguisse parar.
– Les, pegue minha pistola Glock – exclamou o tio Travis. – Ela ainda está carregada com balas de prata.
Heuter tinha puxado sua própria arma, mas ainda assim, obediente a seu tio, ele correu para o escritório. Isso significava que Heuter ou o tio Travis não iriam atirar em Charles ainda, mas a trégua não duraria muito.
Anna não podia fazer nada, presa na jaula. Charles tinha muitos pontos fortes, mas ele era ainda mais prejudicado pela prata do que a maioria dos lobisomens. Ela não podia deixar que eles disparassem contra ele.
Ela tinha que fazer alguma coisa. Anna empurrou a cabeça pelas barras cobertas de prata e lutou para se libertar, cravando as garras na madeira do fundo da jaula para conseguir apoio. Ela era menor do que a maioria dos lobisomens e talvez pudesse forçar seu caminho para fora, ou talvez as barras se rendessem à sua necessidade de proteger seu companheiro. A prata queimava-a mesmo através da sua espessa camada de pelo, mas Anna a ignorou e continuou lutando, enquanto observava a luta de seu companheiro com o monstruoso Fae.
Charles saltou quando Benedict passou por ele, pousando momentaneamente nas costas do lorde cornudo, que foi em frente dando uma dúzia de passos antes de virar-se e encarar a sua presa novamente. Tudo aconteceu tão rápido que Charles já havia parado quando o sangue começou a jorrar do ferimento na lateral do pescoço de Benedict. Sangue arterial, negro de oxigênio; ele esguichou um pouco enquanto era bombeado para fora.
Heuter tinha chegado ao escritório e Anna sentiu as barras cederem contra seus ombros. Ela se jogou contra elas de novo, com mais força. Tio Travis pegou os restos do bastão sem a seringa e, balançando-o como um bastão de beisebol, a atingiu na face, fazendo sua cabeça atingir as barras e torcendo seu pescoço.
Ciente da batalha de Charles, e não querendo distraí-lo, Anna não fez nenhum som, apenas continuou lutando.
Charles cruzou a sala em um movimento em ziguezague que Anna já havia visto ele usar enquanto caçava alces. Charles não parecia estar se movendo muito rápido – mas cruzou o espaço em tempo recorde. Dessa vez, ele dilacerou a face do lorde cornudo com suas presas.
O corte na lateral do pescoço de Benedict já havia parado de sangrar; ele cicatrizava muito rápido. Mas a metade de seu corpo prateado estava vermelha de sangue. Ele cambaleou e levou ambas as mãos ao rosto. Charles havia arrancado inteiramente um olho e cortado uma fatia do nariz do Fae.
Isso fez a luta pender para o lado de Charles – e Anna podia ver como isso era possível: ela tinha certeza de que algo além do nariz do Fae estava quebrado e doía, obscurecendo sua visão e enviando tremores de fraqueza pelos seus músculos. Nesse momento, Heuter saiu do escritório com uma segunda arma e Anna não se preocupou com nada mais que não fosse sair da jaula para evitar que eles atirassem em Charles. As barras haviam se mexido da última vez, antes de Travis atingi-la; Anna tinha certeza disso.
Ela arremeteu com toda sua força e o chão cedeu um pouco sob as garras de suas patas traseiras. Foi muito pouco e muito tarde. O lobo vermelho rondava lentamente a cerca de quatro metros de Benedict, dando a Heuter a oportunidade de um tiro perfeito.
Heuter ficou parado, atrapalhando-se com a segunda arma antes de colocá-la em seu coldre. A hesitação o fez apressar seu tiro para compensar a demora, e ele apertou o gatilho logo depois que Charles avançou.
O som desviou a atenção do velho.
– Les! Traga seu traseiro magro aqui e me dê a minha arma. Você não consegue atingir a parede mais larga de um celeiro. Mexa-se. Meu avô era mais rápido do que você quando tinha 86 anos.
Em vez de tentar um segundo tiro, Heuter correu para Travis – provando a Anna que ele não era um lobo Alfa, não importando o que quer que ele achasse que deveria ser.
As barras cederam um pouco mais e ela foi deslizando para frente – e então Travis bateu nela novamente, exatamente no mesmo ponto em seu nariz onde ele a havia atingido pela primeira vez.
Charles estava vencendo. Ele não sabia por que Benedict Heuter não estava ficando invisível; talvez fosse seu enorme pânico. Charles não iria reclamar.
O lorde cornudo cicatrizava mais rápido do que um lobisomem, mas não conseguia compensar a perda de sangue – a não ser que ele fosse muito mais poderoso do que parecia. A perda de sangue estava diminuindo a velocidade do Fae, tornando-o mais desajeitado.
Havia coisas que teriam tornado a luta mais fácil. O chão era muito escorregadio – aquilo era uma pista de dança – e Charles podia sentir o cheiro de cera sobre ele. Entretanto, aquilo incomodava o Fae mais do que a ele, por isso não era realmente um grande problema, desde que Charles não calculasse mal seus movimentos. Ele também preferia não ter dois outros vilões soltos e correndo por aí com armas carregadas com prata enquanto ele lutava contra o Fae, mas eles eram humanos e os instintos do irmão lobo diziam para descontá-los como ameaça. A outra coisa que ele sabia era que, ganhando ou não, teria que manter sua atenção no Fae. Nesse momento, Benedict estava mais lento e desajeitado – mas ainda era rápido o suficiente, e mortal com os chifres. Eles haviam atingido Charles no ombro quando ele atacou a garganta do Fae, e o ferimento queimava. As pontas daqueles chifres não apenas pareciam ser de prata; elas eram de prata.
A segunda regra de qualquer luta demorada era desmoralizar seu oponente. O Fae tinha começado com medo dele. O ataque ao rosto de Benedict Heuter não era nada fatal, mas perder um olho era assustador e criaturas com chifres e cascos eram propensas a entrar em pânico. Lutar ou fugir, diziam os cientistas. Lobos eram totalmente propensos a lutar e criaturas como Benedict eram propensas a fugir. O pânico fazia as pessoas agirem estupidamente e, considerando que Benedict já não era muito inteligente, pelo que Charles observara, fazê-lo entrar em pânico só poderia tornar as coisas melhores.
Já a primeira regra óbvia de qualquer tipo de combate era não entrar em um longo confronto. Charles começou a atacar para frente de novo quando ouviu o tiro de uma arma de fogo. A bala não o acertou, por isso ele ignorou o disparo e continuou sua linha de ataque. Mas o breve som de dor que Anna fez quase imediatamente depois era outra coisa completamente diferente.
Charles olhou e viu Anna metade dentro e metade fora da gaiola, seu nariz escorrendo sangue e Travis Heuter em pé ao lado da gaiola com um taco de bilhar extralongo e extragrosso, que tinha sido mastigado em uma extremidade.
Anna virou-se de volta para a jaula, onde tudo o que podiam fazer era cutucá-la, e então algo atingiu Charles nas costelas, como se fosse um trem de carga.
Ignorando a dor, ele agarrou a perna do lorde cornudo, logo acima de seu jarrete e suas presas romperam o grande tendão e o músculo menor. Em um ser humano, esse era o correspondente ao tendão de Aquiles e, ao seccioná-lo, Charles havia deixado a perna do Fae inútil.
Benedict tentou colocar a perna no chão e caiu quando ela cedeu sob ele. Charles deslizou sob os chifres e fechou os dentes sobre o pescoço do lorde cornudo.
Benedict estava derrotado. Impotente.
Ele havia estuprado Lizzie Beauclaire e, sem dúvida, dezenas de outras pessoas; provavelmente as matara também. O irmão lobo achava que ele precisava ser morto.
Charles hesitou.
Um carro parou com um guinchar de freios e borracha e Charles reconheceu o som do furgão que Isaac estava dirigindo. A cavalaria estava aqui e o lorde cornudo derrotado. Matá-lo para salvar Anna era desnecessário.
Havia algo de errado com a capacidade de Benedict para raciocinar, possivelmente errado o suficiente para torná-lo não responsável por suas ações. Se ele tivesse nascido em uma família diferente, talvez não tivesse passado sua idade adulta matando pessoas. Ele havia desistido da luta, ainda deitado embaixo de Charles e esperando o golpe final, o golpe mortal, assim como um cervo ou alce fazia às vezes. Ele era inofensivo. Preso por barras de aço, ele não machucaria ninguém.
Na ilha, Charles havia decidido que não iria mais matar por conveniência política, porque isso tinha colocado Anna em perigo ao interferir com seu vínculo de companheiro. O irmão lobo e ele estavam de acordo: essa não era uma morte política. Aquele ali teria ferido sua companheira, além de já ter matado os lobos sob sua proteção e machucado a tão corajosa dançarina.
O irmão lobo sabia o que devia acontecer com aqueles que quebravam as leis: justiça.
Charles cravou os dentes profundamente e, em seguida, deu um puxão com força, quebrando os ossos do pescoço de Benedict e separando-os. O Fae teve um breve espasmo quando a vida o deixou e a morte entrou, e então a presa de Charles não era nada, além de carne. Ele sentiu que aquilo era certo e apropriado, e algo dentro dele sentiu-se satisfeito com o fato de a justiça ter sido feita. Era isso o que ele era, o vingador das vítimas de Benedict Heuter. Essa era a sua resposta para os fantasmas que o assombravam.
Por que ele os matara? Porque era justo que eles pagassem pelo mal que haviam feito. O calor inundou sua carne quando os dedos frios dos mortos o deixaram livre. Ele estava livre deles, como eles estavam livres de Charles.
Algo o avisou, instintos ou o som de um dedo puxando um gatilho, e Charles se moveu instantaneamente. Ele ouviu o barulho de uma arma de fogo e algo atingiu o corpo de Benedict, quase onde Charles tinha estado um momento antes. Esse fora o segundo tiro perdido: alguém ali era um péssimo atirador.
Charles moveu-se novamente, deixando a maior parte do corpo do lorde cornudo entre ele e as armas, antes de se virar para ver que tanto Travis quanto Les tinham armas nas mãos: era impossível saber quem atirara nele. Mas a arma de Travis estava apontada para Anna.
– Aqui é o FBI. Larguem as armas – gritou Goldstein da porta aberta ao lado do buraco que Charles havia feito na parede. Ele e Leslie estavam com suas armas em punho também. Não havia nenhum sinal de Isaac ou Beauclaire e, por isso, Charles concluiu que eles estavam rodeando a casa para ver se poderiam entrar pela parte de trás. – Larguem as armas ou eu atiro.
– Não seja apressado, agente Goldstein – disse Travis. Ele segurava a arma de forma estável com ambas as mãos. – Esta arma está carregada com balas de prata. Eu atiro na cabeça dela e ela morre. Eu sei que ninguém quer isso.
Charles congelou, parando sua respiração. Ele estava muito longe. Seriam necessários três saltos para chegar até Travis e isso era dois saltos demais.
Les Heuter tinha levantado as mãos sobre a cabeça, mas não havia largado a arma.
– Les Heuter, Travis Heuter, soltem suas armas – disse Goldstein. – Está tudo acabado.
Ninguém se moveu.
Charles rosnou.
– Larguem suas armas – disse Goldstein, e então cedeu ao que deviam ser anos de frustação, falando demais. – Vocês estão acabados. Sabemos quem vocês são e vocês vão pagar por tudo isso. Tornem as coisas mais fáceis para todo mundo.
– Largue a arma você – gritou Travis. – Largue você a maldita arma. Você não é nada. Nada além da ferramenta impotente de um governo liberal fraco demais para servir seu povo e protegê-lo dessas aberrações.
Isso parecia estranhamente como um discurso memorizado, como algumas das poucas frases que o harém de Charles Manson cuspia. Talvez Travis Heuter tivesse dito isso tantas vezes que não precisasse pensar sobre isso.
– Largue a sua arma, ou vou matá-la agora e depois vou matar você.
Goldstein e Leslie estavam concentrados em Travis. Eles não perceberam o que Les estava fazendo, não viram a expressão estranha em seu rosto, que mudou de desespero para satisfação. Eles não o viram mudar a mira de sua arma, ajoelhar-se e atirar quase em um único movimento. Charles tinha visto, mas não havia nada que ele pudesse fazer sem arriscar-se a ver Travis atirar em Anna, e ele não faria isso.
– Para baixo. Para baixo agora – gritou Goldstein, mas Les Heuter já estava no chão. – Deite-se no chão e coloque as mãos atrás da cabeça.
Les já tinha feito isso antes que Goldstein dissesse uma palavra. As reações dos humanos eram muito lentas. Agora Les era inofensivo e matá-lo seria mais difícil. Se Charles tivesse uma arma naquele momento, teria matado Les de qualquer maneira, porque, apesar de Heuter ter matado seu tio, isso não havia impedido Travis Heuter de puxar o gatilho. Travis, com um buraco de bala no meio de sua testa, ainda assim tinha conseguido dar um tiro antes de morrer.
Anna tinha desmoronado em uma pilha no fundo da gaiola.
Ele a havia atingido na coxa e o sangue se acumulava em torno dela como um cobertor vermelho. Seu nariz estava torto e inchado; Travis tinha quebrado alguma coisa quando batera nela com o bastão.
– Não foi minha culpa – disse Heuter. – Foi o meu tio. Ele nos fez fazer isso. Ele era louco.
Anna choramingou e Charles parou de ouvir Les Heuter tentando culpar os mortos por seus crimes.
Charles destruiu as portas da jaula com as próprias mãos, sem nem mesmo notar que se tornara humano novamente até perceber seus polegares opositores segurando a prata, que queimava sua pele. Ele nunca tinha sido capaz de se transformar tão rapidamente antes.
Além disso, Charles cheirava a magia Fae. Ele desviou os olhos para Beauclaire, e o velho Fae, em pé na porta ao lado de Isaac, deu-lhe um aceno de cabeça.
Mais tarde, Charles iria pensar sobre isso; ele não sabia que havia uma maneira de um Fae afetar a transformação de um lobisomem.
Mas Anna estava ferida e não havia tempo para se preocupar com o que Beauclaire era agora. Não havia tempo para o pânico cego que ele estava sentindo ou a forma como ele queria rasgar o corpo morto de Travis Heuter. Ele precisava se assegurar de que Anna iria sobreviver.
– ...parar o sangramento até a ambulância chegar.
Charles rosnou essas palavras porque Goldstein estava muito perto de sua companheira ferida. Mas Isaac entrou em cena antes que Charles fosse levado a agir.
– Deixe-o em paz, você não vai querer ficar perto deles agora.
Lobo esperto, aquele Isaac. Muito jovem ou não, Bran tinha razão em deixá-lo no poder. Charles teria matado qualquer um que chegasse muito perto.
Como a ameaça à sua companheira desamparada tinha sido evitada, Charles ignorou a maior parte das palavras que diziam por trás de suas costas enquanto verificava os ferimentos de Anna com suave exatidão.
– Por que ele está vestindo pele de veado e contas?
– Cale a boca e fique aí até os policiais chegarem para ler os seus direitos.
– Quero dizer, ele é nativo-americano, mas como é que vamos explicar –
Quando Charles transformava-se sem pensar, quando ele mudava de lobo para humano muito rápido, às vezes suas roupas se esqueciam em que século ele estava, mas a camurça macia era confortável e familiar; Charles tocou o pobre nariz de Anna. Ela lambeu os dedos dele nervosamente, porque ele a estava machucando.
Em primeiro lugar, o sangramento.
Ele estendeu a mão e arrancou a manga da camisa de Travis, ignorando a reclamação dos agentes federais enquanto fazia isso. Mas Anna rosnou quando o curativo improvisado chegou perto dela, por isso ele o jogou no chão. Fazia sentido ela não querer o cheiro dele sobre seu corpo, mas a camurça de Charles não iria funcionar; couro não era absorvente.
– Eu preciso... – Charles não conseguiu terminar a frase antes de Isaac dizer “pegue” e atirar-lhe um dos grandes kits de primeiros socorros que todas as alcateias mantinham em seus carros sob ordens de Bran. Os lobos realmente cicatrizavam rápido, mas isso não queria dizer que cicatrizavam rápido o suficiente, como o Marrok gostava de dizer.
Charles baniu as palavras de seu pai, desejando que os fantasmas delas não permanecessem em seus ouvidos. Não havia nenhuma razão para pânico. Anna estava sangrando livremente, mas a bala tinha atravessado seu corpo e estava cravada no chão; não havia sinais de sangramento arterial. Mas o irmão lobo não iria ficar feliz até que ela estivesse bem.
Quando o ferimento a bala estava sob controle, Charles deu uma boa segunda olhada na cabeça de Anna.
Ele se abaixou para encostar os lábios em seus ouvidos e lhe perguntou:
– Posso fazer isso agora, ou você pode esperar até mais tarde. As drogas deles não ajudam muito e eles terão de quebrar novamente...
Agora. A voz dela era clara como um sino em sua cabeça e ele percebeu que seu vínculo estava forte e aberto.
Por um momento, Charles ficou sem fôlego. Quando tinha acontecido? Foi quando ele aceitara seu papel como portador da justiça mais uma vez? Ou quando ele aceitara que havia outras respostas além da morte – mas que a morte era a resposta correta e adequada? Ou tinha sido quando ele viu o sangue e soube que Travis conseguira feri-la mesmo com seu companheiro estando tão perto, quando a culpa e o certo e o errado se tornaram apenas palavras perto da realidade de sua companheira ferida?
Mas Anna estava machucada e haveria tempo para descobrir o que tinha acontecido mais tarde.
Ele usou seu vínculo para absorver a dor de Anna e levá-la para dentro dele, tanto quanto podia. Em seguida, ele colocou o osso do nariz de Anna onde ele precisava ficar, antes que a habilidade de cicatrizar rapidamente o fizesse ficar torto. Ela não se mexeu, mas ele sabia que não podia absorver toda a dor dela.
Pare com isso, repreendeu-o Anna. Você não precisa sentir dor só porque eu estou sentindo.
Mas eu preciso, respondeu Charles, mais honestamente do que pretendia. Eu não consegui mantê-la segura.
Ela bufou uma risada. Você me ensinou a me manter segura – um presente muito melhor para a sua companheira, eu acho. Se você não tivesse me encontrado, eu teria matado todos eles. Mas você veio – e isso é outro, um segundo presente. Que você tenha vindo, muito embora eu pudesse ter protegido a mim mesma.
Anna estava confiante e isso lhe agradava. Mesmo assim, ele não pensou sobre os três lobos experientes e durões que esses homens tinham matado sem problemas.
Era melhor deixá-la se sentir segura. Assim, Charles não discutiu com ela sobre isso, apenas correu os dedos suavemente pela sua pelagem.
Os fantasmas se foram, pronunciou ela, com certeza régia, e adormeceu antes que ele pudesse responder.
Mas ele o fez assim mesmo. Sim.
Treze
Quando Charles era menino, seu avô reunia seu povo e em todo outono se encontrava com outras tribos; a maior parte eram índios Flatheads, Tunaha ou outros grupos de Salish, mas às vezes alguns Shoshones de quem eles eram amigos viajavam com eles. Eles cavalgavam para o leste para caçar búfalos e se preparar para a vinda do inverno.
Ele não era mais um menino, e viajar para o leste não era mais um prazer, não quando isso significava estar de volta com a sua companheira em uma cidade grande em vez de estar em sua casa nas montanhas de Montana. Três meses haviam se passado desde que Charles matara Benedict Heuter e agora eles tinham voltado para o sensacional julgamento de seu primo. Boston era linda nessa época do ano – as árvores exibiam suas cores de outono. Mas o ar ainda cheirava a escapamento de carros e pessoas demais.
Ele havia testemunhado; Anna testemunhara; o FBI também. Lizzie Beauclaire, (de muletas, com o joelho envolto em um suporte) e as cicatrizes que os Heuters haviam deixado nela haviam testemunhado. Ela poderia, com cirurgias suficientes, ser capaz de andar sem as muletas novamente, mas dançar estava fora de questão. As cicatrizes podiam ser reduzidas, mas pelo resto de sua vida ela carregaria as marcas dos Heuters como uma lembrança cada vez que se olhasse no espelho.
Quando a acusação terminou de apresentar seu caso, iniciou-se a defesa.
Eles tinham passado a última semana guiando o júri através do inferno que havia sido a infância de Heuter. Quase foi o suficiente para que Charles simpatizasse com ele. Quase.
Mas então, Charles estivera lá e tinha visto o cálculo no rosto de Les Heuter quando ele atirou em seu tio. Ele tinha planejado essa defesa, planejando culpar os mortos pelos seus males. Seu tio havia errado; Les Heuter era inteligente.
Heuter sentou-se na frente do tribunal, bem arrumado, vestindo calça, camisa e gravata. Nada muito caro. Nada muito colorido. Haviam feito alguma coisa com seu cabelo e as roupas o faziam parecer mais jovem. Ele explicou ao júri, aos repórteres e ao público no tribunal como era viver com um homem louco que o havia obrigado a ajudá-lo a limpar o país – aparentemente o nome dado por Travis Heuter para a tortura e o estupro de suas vítimas – quando ele tinha dez anos de idade.
– Meu primo Benedict era um pouco mais velho do que eu – contou ele. – Era um bom garoto, tentava manter o velho longe de mim. Tomou algumas surras por minha causa – ele piscou para conter as lágrimas, mas como isso não funcionou, enxugou os olhos.
Talvez as lágrimas fossem genuínas, mas Charles achou que elas eram perfeitas demais: era a lágrima solitária de um homem forte gerando simpatia em vez de lágrimas reais, que poderiam ser vistas como fraqueza de caráter. Les Heuter havia escondido o que era por mais de duas décadas; representar para o júri não parecia ser mais difícil do que isso.
– Quando Benedict tinha onze anos, ele teve um ataque violento. Durante aproximadamente dois meses ele enlouqueceu. Tentou esfaquear meu tio, me bateu, e... – um olhar cuidadoso para baixo, um leve rubor. – Era como um cervo ou um alce entrando no cio. Meu tio tentou controlá-lo batendo nele, tentou drogas, mas nada funcionava. Então o velho chamou uma bruxa famosa. Ela nos mostrou o que ele era, o que ele instintivamente havia escondido. Ele parecia um garoto normal – acho que os Fae podem fazer isso, podem parecer com qualquer um – mas ele era um monstro. Ele tinha chifres como um cervo, e os cascos fendidos. E era muito maior do que qualquer garoto da mesma idade: 1,82 m naquela época, ou perto disso. Minha tia havia sido estuprada por um desconhecido quando tinha dezesseis anos. Foi a primeira vez que percebemos que ela tinha sido estuprada por um monstro.
Seu advogado deixou o barulho crescer no tribunal e depois começar a diminuir antes de fazer a próxima pergunta.
– O que o seu tio fez?
– Ele pagou à bruxa uma enorme quantia de dinheiro e ela lhe ensinou como manter o cio de Benedict sob controle. Ela deu a ele um feitiço e lhe disse que se ele gravasse esses símbolos em um animal ou dois por aproximadamente um mês, antes do cio de Benedict, eles o impediriam. Ela queria que sacrificássemos animais, mas – nesse momento Heuter fez um esgar de desgosto – o velho descobriu que o feitiço funcionava melhor em pessoas. Mas agora a bruxa sabia sobre a gente e tínhamos que nos livrar dela. Meu tio a matou e deixou seu corpo no gramado da frente de um dos seus parentes.
Foi um desempenho magnífico e Heuter conseguiu manter a mesma persona durante um feroz interrogatório cruzado; conseguiu manter o monstro que havia ajudado a estuprar, torturar e matar pessoas por quase duas décadas completamente disfarçado.
Seu pai foi quase tão brilhante quanto ele. Quando sua esposa morreu, ele abandonara seu filho para ser criado pelo seu irmão mais velho porque estava muito ocupado com seu cargo público, muito consumido pela dor da perda. Ele pensou que o menino estaria melhor nas mãos da família do que se fosse criado por alguém pago para fazer isso. O pai de Heuter tinha, como informou ao júri, decidido a renunciar ao seu cargo no Senado norte-americano.
– É muito pouco, muito tarde – disse ele, com um remorso que funcionou porque era obviamente genuíno. – Mas eu não posso permanecer no cargo que custou tanto ao meu filho.
E durante toda a apresentação da defesa, a habilidosa equipe de advogados de Heuter sutilmente lembrou ao júri e às pessoas na sala do tribunal que eles estavam matando Fae e lobisomens. Que Les Heuter acreditava estar protegendo as pessoas.
Quando Heuter contou como seu tio retratava os lobisomens como feras terríveis, seu advogado apresentou uma fotografia do pedófilo morto pelos lobisomens de Minnesota. Ele foi cuidadoso ao mencionar que o homem era um pedófilo, cuidadoso ao dizer que as autoridades de Minnesota estavam satisfeitas com o fato de os envolvidos terem sido julgados adequadamente e particularmente muito cuidadoso ao falar que esses eram os exemplos das coisas que Travis Heuter mostrava ao seu sobrinho.
Charles tinha certeza de que ninguém no júri havia escutado nada do que o advogado de defesa falara; eles tinham apenas olhado para as imagens. Eles mostraram fotos do cadáver de Benedict Heuter. O corpo em si havia desaparecido poucas horas depois de ter sido levado para o necrotério, mas as fotos permaneceram. As imagens mostravam um monstro, coberto de sangue e tripas; nada da graciosidade que o Fae tinha sido em vida era visível na morte. Uma foto mostrava os ossos do pescoço de Benedict Heuter, esmagados e espalhados, embora fossem tão grandes quanto a maçã na foto, que alguém havia cruelmente usado para efeito de comparação.
Embora o maior dos monstros na sala estivesse sentado na cadeira do réu, Charles tinha certeza de que os únicos monstros que o júri via eram Benedict Heuter – e o lobisomem que o matara.
Eles esperaram pelo veredito no escritório de Beauclaire: Charles e Anna, Lizzie, Beauclaire, a mãe de Lizzie e seu atual marido. Charles queria que tivessem aceitado a oferta de Isaac para uma boa refeição em vez de estarem ali – mas Beauclaire tinha insistido naquele seu jeito educado-mas-disposto-a-usar-a-espada-para-convencer que somente alguns dos Fae mais velhos possuíam. Charles tinha bastante certeza de que ele queria a presença de Anna e que desejava que ela estivesse com Lizzie quando Heuter fosse sentenciado.
Porque o advogado certamente sabia, assim como Charles, que a sentença seria leve. Os advogados de defesa haviam merecido seus salários. Eles não podiam apagar todos os corpos que Heuter havia deixado para trás, mas tinham feito o melhor que podiam.
O escritório de Beauclaire cheirava a vazio. As estantes na parede estavam limpas e vazias. Ele estava se aposentando. Oficialmente revelado como um Fae, sua empresa achava que esse era o melhor caminho para ela e seus clientes; ele devia parar de trabalhar como advogado. Beauclaire não parecia aborrecido com isso.
O nariz de Charles lhe disse que a maioria do restante da empresa era Fae também – e que havia muitas caixas fechadas no corredor. Talvez estivessem pensando em fechar a empresa juntos, reinventando a si próprios e seguindo em frente. Um dos presentes/maldição de uma vida longa. Ele mesmo havia se aposentado e começado de novo algumas vezes.
Eles jogaram pinocle, uma versão levemente diferente daquela que ele e Anna conheciam, mas que era, de modo geral, o mesmo jogo em todos os lugares. Isso os manteve ocupados enquanto esperavam e mantinha a tensão em um nível baixo.
Não havia afeição entre os pais de Lizzie, embora eles fossem assustadoramente educados um com o outro. O padrasto de Lizzie ignorava a tensão admiravelmente e parecia ter decidido que seu dever era manter sua enteada entretida.
Quando veio a chamada de que o júri havia chegado a um veredito, após apenas quatro horas de deliberação, eles jogaram as mãos para o alto com um suspiro de alívio.
A juíza era uma mulher de cabelos grisalhos com feições arredondadas e olhos que pareciam mais confortáveis com um sorriso do que com um rosto franzido. Ela tinha evitado olhar para Charles, Anna ou Isaac durante o julgamento – e tinha calmamente posicionado um guarda entre ela e o banco de testemunhas quando qualquer um dos lobisomens ou Fae – o que incluiu Lizzie – eram interrogados. Sua voz era lenta e paciente quando listou os nomes para os quais as acusações de assassinato contra Les Heuter tinham sido apresentados. Isso levou um longo tempo. Quando terminou, ela disse:
– Como vocês declaram o acusado?
O primeiro jurado engoliu em seco, um pouco nervoso; ele olhou para Charles, limpou a garganta e disse:
– Nós declaramos o acusado inocente de todas as acusações.
O tribunal ficou silencioso por um longo tempo.
Então Alistair Beauclaire levantou-se. Seu rosto estava inexpressivo, mas sua cólera expressa em todas as outras partes de seu corpo. Ele olhou para os membros do júri e então para a juíza. Sem mudar de expressão, ele se virou e saiu da sala do tribunal. Somente quando ele saiu a sala explodiu em ruído.
Les trocou abraços efusivos com seus advogados e seu pai. Ao lado de Charles, Anna deixou escapar um rosnado baixo ao ver a cena.
– Precisamos tirar Lizzie daqui – disse-lhe Charles. – Isso aqui vai se transformar em um zoológico.
Ele se levantou enquanto falava e usou o seu corpo para abrir caminho até a filha de Beauclaire, sua mãe e seu padrasto, enquanto Anna os conduzia para fora. Diversos repórteres apareceram e gritaram perguntas, mas se afastaram quando Charles arreganhou os dentes para eles – ou talvez fossem seus olhos, porque ele sabia que o irmão lobo os havia deixado dourados.
– Eu esperava que ele conseguisse uma condenação leve – disse a mãe de Lizzie e seus dentes batiam como se o leve ar outonal estivesse abaixo de zero – cólera, pensou Charles. – Pensei que ele seria condenado com uma pena menor. Nunca sonhei que eles simplesmente o deixariam sair livre.
Seu marido colocou o braço ao redor de Lizzie, que parecia atordoada.
– Ele está livre – disse ela, com uma voz perplexa. – Eles sabiam. Sabiam o que ele fez. Não apenas a mim, mas a todas aquelas pessoas – e simplesmente o deixaram ir.
Charles manteve metade de sua atenção em Heuter, que estava falando para uma multidão de repórteres nos degraus do tribunal, talvez a quinze metros de distância. Sua linguagem corporal e rosto mostravam um homem que estava sinceramente arrependido pelos atos que seu tio o levara a fazer. Isso fez o irmão lobo rosnar. O pai de Heuter, o senador do Texas, ficou atrás dele com uma mão em seu ombro. Se ambos tivessem visto o rosto da mãe de Lizzie, teriam contratado alguns guarda-costas. Se tivesse uma arma na mão, ela a teria usado.
Charles entendia o sentimento.
– Eles jogaram com a estranheza dos Fae e dos lobisomens e usaram isso para assustar o júri e convencê-los a absolver Heuter – disse o padrasto de Lizzie, parecendo tão chocado quanto ela. E então ele encarou Charles, embora tivesse sido avisado por Beauclaire para não fazê-lo. – Travis e Benedict não machucarão mais ninguém – e pessoas estarão vigiando Les, nem que eu mesmo precise contratá-las. Ele acabará cometendo um erro e nós o mandaremos para trás das grades.
– Você também pode considerar uma investigação do júri – sugeriu Anna, com uma voz fria que não escondia sua fúria. – O bom senador tem dinheiro mais do que suficiente para subornar algumas pessoas se necessário.
O padrasto de Lizzie se virou para ela e sua voz se suavizou.
– Vamos levá-la para casa, querida. Você provavelmente vai precisar dar uma entrevista para se livrar dos repórteres, mas meu advogado ou o seu pai podem arranjar isso.
– Você pode contar com Alistair – para não estar presente quando precisamos dele... – murmurou a mãe de Lizzie. Mas ela falou sem maldade. E então continuou. – Certo, eu sei que não é justo. Ele sabe que você está segura conosco, querida. E ele provavelmente estava preocupado em matar Heuter caso tivesse que olhar para ele, saindo livre como um pássaro. E por mais que eu desejasse que ele o fizesse, com certeza isso causaria mais problemas do que resolveria. Ele sempre sentiu falta da época em que podia matar qualquer um que o incomodasse.
Anna pôs a mão no braço de Charles.
– Você ouviu isso? – perguntou ela, tão ansiosamente que todos se viraram para olhá-la.
Charles não tinha escutado nada por causa do barulho das pessoas, das buzinas dos carros e dos cascos de cavalo das carruagens.
Anna olhou em volta, ficando nas pontas dos pés para ver sobre as cabeças das pessoas. Ainda havia uma multidão nas escadas e hordas de repórteres, porque o julgamento de um assassino serial mais o filho de um senador era igual a uma grande história. Charles olhou em volta também – e então percebeu que não conseguia ver nenhuma carruagem puxada por cavalos.
Charles jamais percebeu quando eles apareceram, ou de onde tinham vindo, mas de repente lá estavam eles. Após alguns minutos, outras pessoas também os viram e ficaram em silêncio. O trânsito parou. Les Heuter e seu repórter ainda estavam enrolados em seu depoimento cheio de mentiras para os noticiários nacionais, mas o senador Heuter estava olhando para a rua, e colocou a mão no ombro do filho.
Cinquenta e nove cavalos negros pararam imóveis na rua em frente ao tribunal. Eram altos e delgados, como cavalos de corrida puro-sangue, exceto que suas crinas e caudas eram mais espessas – muito mais espessas. Correntes de prata estavam entremeadas em suas crinas e havia sinos de prata pendendo das correntes.
Charles conhecia cavalos. Era impossível que cinquenta e nove cavalos ficassem imóveis, sem mexer sequer uma orelha ou balançar um rabo.
As selas eram brancas – selas no estilo antigo, com a virola e cabeça altas, quase como uma sela Western sem o pito. Os cobertores de sela eram prateados. Nenhum deles usava rédeas.
Em cada cavalo havia um cavaleiro vestido de preto com detalhes prateados, tão imóveis quanto seus cavalos. Suas calças eram largas, feitas de algum tecido leve; suas camisas eram túnicas bordadas com fios de prata, com um padrão de costura diferente para cada cavaleiro. Esse tinha flores, o outro estrelas, aquele outro, folhas de hera. Charles sabia que havia magia ali, porque não podia discernir um único rosto, apesar de nenhum deles usar máscara.
Apenas quando a magia de sua chegada começou a diminuir, quando as pessoas na multidão começaram a sussurrar, eles se separaram. Os cavalos recuaram e formaram duas fileiras, uma de frente para a outra, e por essa passagem um cavalo branco trotou lentamente. Assim como os outros cavalos, esse não tinha rédea – e também não tinha sela. Apenas correntes negras entremeadas em sua crina e cauda, cobertas com sinos de prata que tilintavam docemente com o movimento constante do cavalo.
Sobre o animal estava um homem vestido de prata e branco. Em sua mão direita ele segurava uma espada curta de prata e na esquerda o ramo de uma planta – folhas verde-azuladas e pequenas flores amarelas. Arruda.
O cavalo branco parou aos pés da escadaria e Charles notou duas coisas. Primeiro, que o cavalo tinha brilhantes olhos azuis, que olharam para ele de maneira fixa e o estudaram friamente antes de se mover para fitar Lizzie. Segundo, que o cavaleiro era o pai de Lizzie.
– Eu disse a eles – falou Beauclaire, com uma voz clara e poderosa – que não deveriam dar a alguém tão velho e poderoso como eu uma filha para amar. Que isso não terminaria bem – seu cavalo mudou de posição, levantando uma das patas dianteiras e escavando o ar antes de colocá-la exatamente onde estava antes. – Agora todos nós teremos que viver com as consequências.
O cavalo branco ergueu-se nas patas traseiras, sem empiná-las. Foi um movimento preciso, lento, tão equilibrado e gracioso quanto um passo de balé.
– O que foi feito hoje não foi a justiça. Esse homem estuprou e torturou minha filha. Quando terminou, estava prestes a matá-la. Mas todos vocês nos veem como monstros – tão assustados com o escuro que não conseguem verdadeiramente enxergar seus próprios monstros entre vocês. Muito bem. Vocês deixaram claro que nós e nossos filhos não somos cidadãos desse país, que somos algo à parte. E que nós receberemos uma justiça separada que pouco tem a ver com a adorável senhora que segura as duas balanças – e que tem tudo a ver com seus medos.
O cavalo voltou a pousar as quatro patas no chão.
– Vocês fizeram a sua escolha. E todos nós teremos de viver com as consequências. A maioria de nós. A maioria de nós terá de viver com as consequências.
O cavalo branco avançou novamente para cima, pelas escadas de cimento. Suas ferraduras de prata tilintaram enquanto ele andava e Alistair Beauclaire amassava a arruda em sua mão esquerda e a espalhava à medida que se moviam, deixando uma trilha de folhas muito espessa para o pequeno ramo de folhas inicial. A última folha caiu de sua mão quando o cavalo parou na frente de Les Heuter.
Charles finalmente tentou se mover – mas percebeu que não podia fazer nada além de respirar.
– Não me agrada o fato de que o agressor de minha filha continue a viver – disse Beauclaire; ele levantou a espada e a girou, e ela praticamente não diminuiu a velocidade quando o metal encontrou a carne e a atingiu. Beauclaire decapitou Les Heuter em frente da câmera de televisão – e então falou em direção a ela.
– Por duzentos anos eu tenho sido obrigado pelo meu juramento a não usar meus poderes para ganhos pessoais ou para o meu povo. Como compensação, nós teríamos permissão para vir aqui e viver em tranquila harmonia em um lugar livre de ferro.
Ele não disse a quem o juramento tinha sido feito, apesar de Charles achar que isso não importava. Para alguém como esse Fae, um juramento feito a uma criança era tão válido quanto um juramento feito a um rei ou ao papa.
Apontando a lâmina ensanguentada para corpo no chão, Beauclaire disse calmamente:
– O tempo do juramento passou, quebrado por esse homem e por aqueles que o libertaram sem considerar a justiça. Eu reivindico minha magia para mim e para o meu povo. Nosso tempo inicia-se mais uma vez.
Então ele levantou a espada com sangue para o céu e anunciou asperamente:
– Nós, os Fae, nos declaramos livres das leis dos Estados Unidos da América. Nós não as reconhecemos. Eles não têm autoridade sobre nós. A partir desse momento somos nosso próprio país soberano, reivindicando como nossas as terras cedidas para nosso povo. Vamos tratar com vocês, como uma nação hostil trata a outra, até o tempo em que nos pareça adequado tratá-los de outra forma. Eu, Alistair Beauclaire, mais uma vez chamado Gwyn ap Lugh, Príncipe dos Lordes Cinzentos, assim determino. Todos respeitarão meus desejos.
O cavalo branco levantou suas patas dianteiras e girou, cavalgando as escadas abaixo e voltando pelo caminho que os outros cavaleiros haviam aberto para ele. Enquanto o cavalo branco corria, uma névoa branca subiu atrás dele, cobrindo a todos por um momento antes de se dissipar junto com todos os Fae.
O senador Heuter caiu de joelhos, chorando por seu filho.
O Marrok entrou na casa de seu filho. Charles havia voado para casa na noite anterior – direto de Boston. Ele decidira não pegar voos comerciais novamente até que a segurança não mais o obrigasse a ver outras pessoas apalpando sua companheira. Bran não podia argumentar contra essa lógica, mas eles tinham chegado tarde e ido direto para casa. Bran até que tentou deixá-los dormir, mas a necessidade de ver que estavam seguros o fez esquecer seu senso de cortesia.
Ele andou silenciosamente pelo corredor até o quarto.
Charles estava deitado na cama e Anna, esparramada sobre ele; seu cabelo cobria o rosto de Charles. Bran sorriu, satisfeito com a felicidade de seu filho. Os problemas que viriam não importavam e, muito embora ele receasse que os problemas viessem em muito pouco tempo, considerando as inesperadas ações dos geralmente cautelosos Fae, saber que Charles ficaria bem era satisfatório. Nesse momento, observando seu filho dormir, ele pôde entender as ações de Beauclaire inteiramente.
Os olhos de Charles abriram-se, cor de ouro brilhante.
– Durma mais um pouco, irmão lobo – murmurou Bran, muito suavemente. – Ficarei de guarda até você acordar.
– Os Fae retiraram-se para as suas reservas – disse Bran, enquanto servia panquecas para Anna. O pai de Charles gostava de fazer panquecas para o café da manhã, mas essas em forma de cervo eram uma coisa nova. Às vezes, Charles tentava simplesmente não analisar seu pai.
– E os seres humanos? – perguntou Anna. – A burocracia da reserva?
Ela não parecia incomodada com as panquecas.
Charles tinha acordado depois de voar direto de Boston até Montana para encontrar seu pai preparando o café da manhã para eles: linguiça e panquecas em forma de cervo. E não eram parecidas com um cervo qualquer, também – as panquecas se pareciam com o personagem Bambi do desenho da Disney. Charles não queria saber como seu pai havia conseguido fazer isso.
Charles preferia que seu cervo tivesse gosto de carne e que suas panquecas se parecessem com panquecas. O irmão lobo achou que ele era muito exigente. O irmão lobo provavelmente estava certo.
– Os seres humanos foram expulsos e as portas fechadas para eles. Helicópteros do Exército enviados para vigiar a área não conseguiram encontrar as reservas para voar sobre elas.
Charles bufou.
– Isso é típico dos Fae.
– Eles entraram em contato comigo – disse Bran.
Charles largou o garfo. Anna, sendo Anna, tirou a espátula da mão dele e puxou-o para sentar-se com eles. Ela não disse nada: apenas empilhou algumas panquecas em um prato, derramou xarope de bordo sobre elas e entregou-as ao pai de Charles.
– O que eles disseram? – perguntou Charles.
– Eles se desculparam pela interrupção que suas ações terão sobre nossa capacidade de integração com a sociedade humana – ele então comeu um pedaço de panqueca e fechou os olhos. – Eles me agradeceram pela ajuda que meu filho deu a eles em relação ao caso de Les Heuter.
– Um Fae agradeceu a você? – perguntou Charles. Os Fae não agradeciam a ninguém, nem era sábio agradecer a um deles: isso colocava a pessoa sob o poder deles.
Seu pai acenou com a cabeça.
– Então eles me pediram para nos encontrarmos e discutirmos assuntos de diplomacia.
– O que você disse a eles?
Seu pai sorriu brevemente e comeu outro pedaço de panqueca.
– Eu disse a eles que vou considerar seu pedido. Não tenho a intenção de deixar que eles me forcem a seguir sua liderança.
Anna levantou seu copo de suco de laranja em um brinde formal:
– Um brinde a tempos interessantes – disse ela.
Bran inclinou-se e beijou sua testa.
Charles sorriu e deu uma mordida em sua panqueca em formato de cervo. O gosto estava ótimo.

 

 

                                                   Patricia Briggs         

 

 

 

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