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A GAROTA INGLESA
A GAROTA INGLESA

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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ZELÂNDIA, DINAMARCA
Uma mesa fora posta com um suntuoso banquete russo. A origem da comida era incerta, pois, aparentemente, não havia mais ninguém ali além dos três executivos. Mikhail
se perguntou como teriam arranjado aquela propriedade em tão pouco tempo. Não tinham arranjado, é claro. Com certeza era uma casa segura da Volgatek. Ou do SVR.
Aliás, talvez essa distinção fosse desnecessária.
Por ora, a comida servia apenas de decoração. Mikhail recebera uma bebida - vodca, obviamente - e fora acomodado em uma cadeira de honra, com uma bela vista para
o mar negro. Bershov, o atleta da companhia, percorria o perímetro da sala com o vagar determinado de um homem prestes a entrar no ringue. Zhirov, o guardião dos
segredos da Volgatek, sequestrador de Madeline, fitava o teto, como se calculasse quanta corda seria necessária para enforcar Mikhail. Por fim, pousou seu olhar
duro em Lazarev, que havia tomado posse do lugar à lareira e contemplava as chamas. Ele ponderava sobre a questão feita por Mikhail no instante anterior:
- O que estou fazendo aqui?
- O que você está fazendo aqui? - respondeu o russo, afinal.
- Eu vim porque você me convidou.
- Você costuma aceitar encontros com os inimigos do homem que assina seu contracheque?
Lazarev virou-se vagarosamente.
- Então é disso que se trata? - Mikhail perguntou um pouco depois. - Você está me recrutando para espionar Viktor?
- Você parece familiarizado com a linguagem de espionagem, Nicholas.
- Eu leio livros.
- Que tipo de livros?
Mikhail largou sua bebida.
- Isso está começando a parecer muito com um interrogatório - disse calmamente. - Se você não se importa, gostaria de voltar para o meu hotel.
- Isso seria um erro da sua parte.
- Por quê?
- Porque você ainda não ouviu minha oferta.
Sorrindo, Lazarev pegou a bebida intocada de Mikhail e levou-a até o carrinho para ser renovada. O falso Avedon olhou para Zhirov e retribuiu seu olhar inexpressivo.
Internamente, no entanto, visualizava, no lugar das roupas de lã escura, a exuberante roupa de verão que ele usava no almoço no Les Palmiers, em Calvi. Quando sua
bebida reapareceu, Mikhail apagou a imagem da mente como giz de uma lousa e olhou apenas para Lazarev, que tinha a testa franzida, como se debatesse com uma equação
sem solução possível.
- Você se importa se continuarmos a nossa conversa em russo? - perguntou.
- Receio que o meu conhecimento de russo seja bom apenas para me comunicar em restaurantes e táxis.
- Fontes confiáveis me dizem que seu russo é bem bom. Fluente, até.
- Quem lhe disse isso?
- Um amigo da Gazprom - respondeu Lazarev com sinceridade. - Ele falou brevemente com você em Praga, durante sua estadia com Viktor.
- As notícias voam.
- Receio que não haja segredos em Moscou, Nicholas.
- É o que dizem.
- Você estudou russo na escola?
- Não.
- Então deve ter aprendido em casa.
- Provavelmente.
- Seus pais são russos?
- E meus avós também - completou Mikhail.
- Como foram parar na Inglaterra?
- Do jeito de sempre.
- O que isso significa?
- Eles saíram da Rússia após a queda do czar e se estabeleceram em Paris. Depois, foram para Londres.
- Seus ancestrais eram burgueses?
- Não eram bolcheviques, se é isso que está perguntando.
- Suponho que seja.
Mikhail pareceu pesar suas próximas palavras com cuidado.
- Meu bisavô era um homem de negócios moderadamente bem-sucedido que não queria viver sob o comunismo.
- Qual era o nome dele?
- O nome da família era Avdonin, que ele acabou mudando para Avedon.
- Então o seu nome real é Nikita Avdonin.
- Nicolai.
- Posso chamá-lo de Nicolai?
- Se desejar.
- Você já foi a Moscou? - perguntou Lazarev, passando ao russo.
- Não - respondeu Mikhail na mesma língua.
- Por que não?
- Nunca tive motivo.
- Você não tem curiosidade de saber de onde veio?
- A Inglaterra é o meu lar. A Rússia é a terra de onde a minha família fugiu.
- Você se opunha à União Soviética?
- Eu era jovem demais para me opor.
- E nosso governo atual?
- O que tem ele?
- Você partilha da opinião de Viktor Orlov de que nosso presidente é um cleptocrata autoritário?
- Talvez você se surpreenda, Sr. Lazarev, mas Viktor e eu não falamos sobre política.
- De fato isso me surpreende.
Mikhail ficou em silêncio. Lazarev deixou passar o assunto. Seu olhar moveu-se de Bershov para Zhirov antes de repousar sobre Mikhail novamente.
- Presumo que você tenha lido sobre o acordo de licenciamento que fechamos com o governo britânico que vai nos permitir conduzir perfurações no mar do Norte - falou
Lazarev, voltando ao inglês.
- Duas áreas recém-descobertas nas Ilhas Ocidentais - disse Mikhail, como se estivesse lendo um prospecto. - Produção prevista em campo maduro de cem mil barris
por dia.
- Muito impressionante.
- É o meu trabalho, Sr. Lazarev.
- Na verdade é o meu trabalho. - Lazarev fez uma pausa. - Mas eu gostaria que você tomasse conta dele para mim.
- O projeto das Ilhas Ocidentais?
Lazarev assentiu.
- Sinto muito, Sr. Lazarev - falou Mikhail educadamente -, mas não sou gerente de projetos.
- Você fez um trabalho similar no mar do Norte para a petroleira KBS.
- E é por isso que não quero fazê-lo de novo. Além do mais, já sou contratado de Viktor. - Mikhail se levantou. - Desculpe-me por não ficar para o jantar, Sr. Lazarev,
mas eu realmente preciso voltar.
- Mas você ainda nem ouviu o resto da minha proposta.
- Se for igual à primeira parte, não estou interessado - retrucou Mikhail.
Lazarev nem pareceu ouvir a resposta:
- Como você sabe, Nicolai, a Volgatek está expandindo suas operações na Europa e em outros lugares. Se quisermos ter sucesso nessa iniciativa, vamos precisar de
pessoas talentosas como você. Pessoas que entendam o Ocidente e a Rússia.
- Isso seria uma oferta?
Lazarev se aproximou e pousou com determinação as mãos nos ombros de Mikhail. Como se não houvesse mais ninguém na sala, prosseguiu:
- As Ilhas Ocidentais são apenas o começo. Quero que me ajude a construir uma petrolífera com alcance realmente global. Vou torná-lo rico, Nicolai Avdonin, rico
como você jamais sonhou ser.
- Minha vida já é bastante confortável.
- Se bem conheço o Viktor, ele está lhe pagando com os trocados do bolso. - Lazarev sorriu e apertou os ombros de Mikhail. - Venha para a Volgatek, Nicolai. Volte
para casa.
O lado sul da baía de Koge não é o tipo de lugar onde dois homens possam conversar longamente dentro de um carro estacionado sem serem notados, então Gabriel e Keller
dirigiram até a cidade mais próxima e sentaram-se em um pequeno e acolhedor restaurante, que servia uma mistura pouco apetitosa de pratos italianos e chineses. Keller
comeu pelos dois, enquanto Gabriel tomava apenas um chá preto. Seu fone de ouvido permanecia silencioso e ele visualizava Mikhail sendo escoltado para a morte através
de um bosque de bétulas nevado. Por duas vezes, o receio e a frustração impeliram-no a levantar-se, e por duas vezes Keller o mandou sentar e esperar:
- Você fez o seu trabalho - disse calmamente, com um falso sorriso operacional estampado no rosto bronzeado. - Deixe as coisas tomarem o seu rumo.
Por fim, uma hora e 33 minutos após Mikhail ter entrado na casa à beira-mar, Gabriel escutou um áspero estalido eletrônico, seguido pelo rugido do vento, o mesmo
que chacoalhava os vidros da janela congelada a poucos centímetros de seu rosto. Bastante aliviado, ele pôde ouvir Mikhail dizer, com a voz debilitada pelo frio:
- Eu vou pensar em sua proposta, Gennady. De verdade, vou pensar.
- Não pense demais, Nicolai: minha oferta tem um prazo.
- Quanto tempo eu tenho?
- Gostaria de saber em uma semana. Caso contrário, terei de tomar outra direção.
- E se eu disser sim?
- Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte. Senão, você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.
- Por que Moscou?
- Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?
- É claro que não.
- E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.
Essas foram as últimas palavras trocadas pelos dois. Depois, uma porta foi fechada, deram partida num carro e o ponto de luz azul voltou a se mover através da tela
do tablet. Enquanto o sinal se aproximava das coordenadas do restaurante onde estavam, Gabriel levantou a cabeça e viu o grande Mercedes preto passar, levantando
um torvelinho de neve. Mikhail sobrevivera. Agora, tudo o que tinham a fazer era retirá-lo do mar e trazê-lo para casa.
A viagem de volta a Copenhague durou 45 minutos; foi bem tediosa, pois nada de mais aconteceu. Gabriel deixou Keller dirigir para poder focar seu considerável poder
de concentração no áudio transmitido pelo fone de ouvido. Não havia outros sons além do rumor aveludado do motor do Mercedes e umas batidinhas monótonas. A princípio,
Gabriel achou que havia algo sob o automóvel, mas logo percebeu que Mikhail estava tamborilando sobre o descanso de braço, o que sempre fazia quando estava ansioso.
No entanto, ao sair do carro no Hotel d'Angleterre, ele parecia um homem sem uma preocupação sequer na vida. Ao entrar no saguão, encontrou os brasileiros bebendo
no bar e decidiu juntar-se a eles para um merecido drinque de final de noite. Depois disso, rumou para o quarto, que não tinha nenhuma evidência da busca altamente
profissional executada durante sua ausência. Até mesmo o notebook, objeto de uma completa revista digital, estava exatamente onde fora deixado. Mikhail utilizou-o
para redigir um alerta rápido para a equipe, cuja cópia impressa Lavon tinha nas mãos quando Gabriel e Keller retornaram ao apartamento seguro na rua com nome impronunciável.
- Você conseguiu, Gabriel. Você o pegou.
- Peguei quem?
Com um sorriso, Lavon respondeu;
- Paul. Pavel Zhirov, da Volgatek Óleo e Gás, é Paul.
O desentendimento que se seguiu foi um dos mais sérios na longa história da equipe, embora tenha se desenrolado tão discretamente que Keller mal o percebeu. De forma
incomum, o grupo se dividiu em dois, e Yaakov assumiu o controle da facção rebelde. Seu argumento era simples e defendido com fervor. A missão havia sido conduzida
com um objetivo: encontrar uma prova de que os russos tinham sequestrado Madeline como parte de uma conspiração para ter acesso ao petróleo britânico. Agora a prova
estava em seu quarto no Hotel Imperial na forma de Pavel Zhirov, chefe de segurança da Volgatek e um autêntico facínora da Central Moscovita. Segundo Yaakov, não
havia o que fazer senão capturá-lo de imediato. De outra forma, Zhirov escaparia para sempre do alcance da equipe.
Infelizmente para Yaakov, o líder da facção oposta era ninguém menos que o futuro diretor, Gabriel Allon. Ele expôs com calma todas as razões pelas quais Zhirov
deixaria Copenhague pela manhã como estava programado. Não havia tempo para planejar ou ensaiar adequadamente uma operação dessas; além disso, não haveria uma oportunidade
para a captura limpa de Zhirov que se encaixasse em qualquer um dos critérios do Escritório. Gabriel lembrou que operações-relâmpago são sempre arriscadas, mas uma
sem planejamento é a receita certa para um desastre com o qual o Escritório não poderia arcar agora. Zhirov estava livre para ir e, se necessário, o Escritório até
carregaria sua bagagem.
E assim foi que, às dez da manhã do dia seguinte, Pavel Zhirov, vulgo Paul, deixou o Hotel Imperial acompanhado por Lazarev e Bershov. Os três entraram em uma limusine
com chofer que os levou ao aeroporto de Copenhague, onde embarcaram num avião particular para Moscou. Yossi ainda tirou uma foto do embarque para um jornal que não
existia e, depois, tomou um avião para Londres. No fim daquela tarde, Gabriel já estava rodeado dos outros membros da equipe na casa segura de Grayswood. Nicolai
Avdonin disse que estava indo à cidade dos hereges para uma entrevista de emprego, e o grupo iria com ele.
46
GRAYSWOOD, SURREY
A intimação chegou pelo link seguro no fim da tarde seguinte. Gabriel até a % pensou em ignorá-la, mas a mensagem deixou claro que o seu não com- parecimento implicaria
a imediata revogação da licença operacional. Assim, às seis horas, ele se dirigiu ao centro de Londres e se esgueirou pela entrada dos fundos da embaixada israelense.
O chefe de posto, um carreirista experimentado chamado Natan, esperava-o tenso no saguão. Ele acompanhou Gabriel ao andar inferior, até o Santo dos Santos, e logo
foi embora, como se temesse ser atingido por estilhaços. A câmara estava vazia, mas sobre a mesa havia uma travessa com pequenos sanduíches e biscoitos vienenses
amanteigados, além de uma garrafa de água mineral, que Gabriel tratou de guardar dentro de um armário. Era a força do hábito, já que a doutrina do Escritório pregava
que um encontro potencialmente hostil deveria ser realizado num ambiente isento de objetos que pudessem ser usados como arma.
Após vinte minutos, apareceu um homem com físico de praticante de luta livre. Vestia um terno escuro que parecia um número menor do que o ideal, além de uma camisa
social de colarinho alto que dava a impressão de que sua cabeça fora aparafusada nos ombros. Os cabelos já haviam sido louro-avermelhados, mas agora tinham mechas
brancas e eram cortados curtos para ocultar o fato de que caíam num ritmo alarmante. Ele observou Gabriel por um momento através dos óculos estreitos, como se decidindo
se iria matá-lo imediatamente ou apenas ao nascer do dia. Por fim, foi até a travessa e balançou devagar a cabeça.
- Você acha que meus inimigos sabem?
- Sabem o quê, Uzi?
- Que eu não consigo resistir a comida. Especialmente a isto - acrescentou Navot, apanhando um biscoito. - Suponho que seja genético. O que meu avô mais amava era
biscoito amanteigado e uma boa xícara de café vienense.
- Bom, é melhor ter um problema com doces do que com jogo ou mulheres.
- Falar é fácil - replicou Navot, ressentido. - Você é como Shamron: não tem fraquezas. É incorruptível. - Ele fez uma pausa. - Você é perfeito.
Gabriel percebeu a direção que a conversa estava tomando. Permaneceu em silêncio enquanto Navot olhava para o biscoito na mão como se aquilo fosse a fonte de todos
os seus problemas. Por fim, ele falou:
- Suponho que você tenha uma fraqueza: sempre deixou os sentimentos influírem em suas decisões. Terá que se livrar dessa tendência quando se tornar diretor.
- Não se trata de sentimentos, Uzi.
Navot deu um sorriso artificial.
- Então você não nega que Shamron lhe falou sobre ser o próximo diretor?
- Não, Navot. Eu não nego.
Navot já mal fingia sorrir.
- Você tem outra fraqueza, Gabriel: você é honesto. Honesto demais para ser espião.
Navot sentou e pousou os braços maciços sobre a mesa. O tampo pareceu acomodar-se sob o peso. Observando-o, Gabriel recordou uma desagradável tarde muitos anos antes,
quando formara uma dupla com Navot em um treinamento de assassinato silencioso. Gabriel perdera a conta de quantas vezes morrera naquele dia.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Por favor, Uzi, não precisamos conversar sobre isso.
- Por que não?
- Porque não vai ser bom para nenhum de nós.
- Então você se sente culpado.
- De jeito nenhum.
- Há quanto tempo você planeja tomar meu cargo?
- Ora, Uzi, você me conhece muito bem.
- Eu achava que conhecia.
Navot afastou a travessa e olhou em torno da sala.
- Será que custava eles terem deixado ao menos uma garrafa de água para mim?
- Eu a tranquei no armário.
- Por quê?
- Porque eu não queria que você me batesse com ela.
Navot segurou-lhe o cotovelo e o apertou, fazendo a mão de Gabriel ficar dormente no mesmo instante.
- Pegue-a para mim. É o mínimo que você pode fazer.
Gabriel lhe entregou a garrafa. A raiva de Navot parecia ter se atenuado, mas só um pouco. Ele desenroscou a tampa de alumínio usando apenas o polegar e o indicador
e pôs a água com gás num copo de plástico transparente, sem oferecer para Gabriel.
- O que eu fiz para merecer isso? - começou a falar, mais para si mesmo do que para Gabriel. - Eu fui um bom diretor, realmente bom. Conduzi os assuntos do Escritório
com dignidade e mantive meu país fora de qualquer problema maior com outras nações. Consegui deter o programa nuclear iraniano? Não, não consegui. Mas também não
nos meti em nenhuma guerra catastrófica. É esse o papel primordial do diretor: assegurar que um primeiro-ministro mal orientado não arraste o país para um conflito
desnecessário. Você vai aprender isso assim que sentar na minha cadeira.
Como Gabriel não respondeu, Navot resolutamente bebeu mais de sua água, como se fosse a última garrafa na terra. Sobre uma coisa ele estava certo: de fato havia
sido um bom chefe. Porém, para seu infortúnio, todos os sucessos sob sua gestão foram obra de Gabriel.
- Há outra coisa que você logo vai aprender - voltou a falar Navot. - É bem difícil comandar um serviço de inteligência com Shamron espiando por cima do ombro.
- O serviço é obra de Shamron. Ele o construiu do nada e o transformou no que é hoje em dia.
- O velho é apenas isso: um velho. O mundo mudou desde que Shamron era o diretor.
- Uzi, você não pensa mesmo assim.
- Perdoe-me, Gabriel, mas no momento não estou especialmente inclinado a simpatizar com Shamron. E nem com você, para falar a verdade.
Navot mergulhou num silêncio mal-humorado. Ao espiar através das paredes de vidro à prova de som, o chefe de posto Natan viu dois homens se fuzilando com o olhar
e resolveu voltar a seu bunker.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Uzi...
- Vão ao menos me deixar terminar o meu mandato?
- É claro que sim.
- Não queira fazer parecer a coisa mais óbvia do mundo, Gabriel. Da maneira que vejo agora, nada parece assim tão óbvio.
- Você foi um ótimo diretor, Uzi. O melhor desde Shamron.
- E qual é minha recompensa? Ser descartado e afastado antes do tempo. Sim, porque é claro que ninguém vai admitir um ex-diretor no King Saul Boulevard.
- E por que não?
- Porque é algo sem precedentes.
- Nada disso tem precedentes, Uzi.
- Desculpe-me, Gabriel, mas não vou querer que minha carreira termine como um caso de caridade.
- Você não deve se depreciar assim, Uzi.
- Parece minha mãe falando.
- Como está ela?
- Bem em alguns dias, mal em outros.
- Algo que eu possa fazer?
- Vá visitá-la na próxima vez em que estiver na cidade. Ela sempre o adorou, Gabriel. Todo mundo adora você. - Navot pegou um biscoito amanteigado. Depois mais outro.
Limpando as migalhas dos dedos grossos, prosseguiu: - Pelos meus cálculos, ainda tenho catorze meses como diretor, logo é minha a decisão de mandar ou não alguns
de nossos melhores agentes à cidade mais perigosa do mundo.
- Você me deu autorização para conduzir a missão.
- Na ocasião, havia um revólver apontado para a minha cabeça.
- O revólver ainda está lá.
- É, eu sei, por isso jamais sonharia em abortar sumariamente o seu pequeno plano. Em vez disso, vou apenas pedir que respire fundo e retome o juízo.
Ao receber apenas silêncio como resposta, Navot se inclinou sobre a mesa e olhou nos olhos de Gabriel. Seu rosto já não apresentava qualquer sinal de raiva.
- Você lembra como foi a última vez em que estivemos em Moscou, Gabriel, ou conseguiu apagar de sua memória?
- Eu me lembro de tudo, Uzi.
- Eu também - comentou Navot, com uma voz distante. - Foi o pior dia da minha vida.
- Da minha também.
Navot franziu a testa, confuso.
- Então por que, em nome de Deus, você quer voltar lá?
Navot retirou os óculos com um ar pensativo e massageou a ponte do nariz, que estava marcada. Os óculos, assim como tudo mais que ele estava usando, tinham sido
escolhidos por Bella, sua exigente esposa. Ela havia trabalhado brevemente como analista no posto do Escritório na Síria e adorava o status de esposa do diretor.
Gabriel sempre suspeitara que sua influência se estendia para bem além do guarda-roupa do marido.
- Acabou - disse Navot por fim. - Você o derrotou. Você venceu.
- Venci quem?
- Ivan.
- Isso não tem nada a ver com Ivan.
- É claro que tem. Se você não consegue perceber isso, talvez nem esteja preparado para conduzir essa operação, afinal.
- Então cancele minha licença.
- Eu adoraria. Se eu o fizer, entretanto, vou começar uma guerra que simplesmente não posso vencer. - Navot voltou a pôr os óculos e deu um breve sorriso. - Essa
é outra coisa que você vai precisar aprender quando for o chefe: escolher as batalhas com cuidado.
- Foi exatamente o que eu fiz.
- Como eu ainda estarei na chefia por catorze meses, faça a cortesia de me descrever o seu plano em linhas gerais.
- Vou trazer Pavel Zhirov para uma conversa privada. Ele vai me contar por que sequestrou e assassinou uma jovem inocente em nome dos interesses da Volgatek. E vai
confessar que a empresa não é nada mais que uma fachada para a KGB. Então, vou reduzi-los a cinzas, Uzi. Vou provar de uma vez por todas ao mundo civilizado que
a atual corja que está no Kremlin não é muito melhor do que seus antigos ocupantes.
- Vou contar um segredinho, Gabriel: o mundo civilizado já sabe de tudo isso, e ninguém está dando a mínima. A verdade é que estão todos tão falidos e apavorados
com o futuro que são até capazes de permitir que os mulás realizem seus sonhos nucleares.
Gabriel permaneceu em silêncio. Navot suspirou fundo, resignado.
- Uma confissão? É disso que você está falando?
- Gravada. Exatamente como a que ele forçou Madeline a fazer, antes de matá-la.
- E se ele não falar?
- Todo mundo fala, Uzi.
- O que você vai fazer com o Keller?
- Ele vai comigo.
- Ele é um assassino profissional que tentou matar você.
- São águas passadas. Além disso, preciso de um pouco mais de força bruta na equipe.
- Do que mais você precisa?
- Passaportes, vistos, passagens, acomodações... o de sempre, Uzi. E nossa base em Moscou deve colocar Pavel Zhirov imediatamente sob vigilância em tempo integral.
- Isso é tudo?
- Não. Preciso de você, também.
Navot ficou em silêncio.
- Eu não pedi que fosse assim, Uzi.
- Sim, eu sei. Mas isso não torna as coisas mais fáceis.
Já era quase meia-noite quando Gabriel voltou à casa segura em Grayswood. Entrando no quarto que dividia com Chiara, viu-a sentada na cama, com uma xícara de chá
de ervas sobre o criado-mudo e uma pilha de revistas no colo. Tinha os cabelos arranjados em um coque descuidado que deixava várias madeixas soltas e estava usando
os óculos novos de grife que solicitara para ler. Chiara se incomodava um pouco com o novo adereço, mas, em segredo, Gabriel apreciava o leve enfraquecimento de
sua visão. Pelo menos isso lhe dava esperanças de que, algum dia, ela viesse a parecer menos com uma filha e mais como sua esposa.
- E então, como foi? - perguntou ela, sem erguer os olhos.
- Com repouso e reabilitação adequada, acho que ainda recuperarei parcialmente os movimentos da minha mão esquerda.
- Foi tão ruim assim?
- Ele está furioso, e não o culpo.
Gabriel tirou o casaco e o jogou sobre o espaldar de uma cadeira. Chiara revirou os olhos em desaprovação, depois lambeu a ponta do dedo para virar a página da revista.
- Ele vai superar - disse casualmente.
- Esse não é o tipo de coisa que se supera, Chiara. Não teria chegado a esse ponto se você e Shamron não houvessem tramado pelas minhas costas.
- Não foi assim que aconteceu, querido.
- E como foi, exatamente?
- Shamron veio me visitar quando você estava na França procurando Madeline. Ele disse que ia pressionar você uma última vez para que aceitasse o cargo de diretor,
e que desejava minha aprovação.
- Bem simpático da parte dele.
- Não fique bravo, Gabriel. É o que ele quer. - Chiara fez uma pausa. - E o que eu quero, também.
- Você? - perguntou Gabriel, surpreso. - Tem ideia de como vai ser depois que eu prestar o juramento?
- Estamos vivendo no quarto de uma casa segura que compartilhamos com oito pessoas, incluindo um homem que já tentou matá-lo. Acho que consigo lidar com seu posto
de chefia.
Gabriel foi até a cama e começou a folhear as revistas que agora estavam ao lado de Chiara. Uma delas era voltada para mulheres grávidas e Gabriel a ergueu, perguntando:
- Você tem alguma coisa para me contar?
Chiara arrancou a revista da mão de Gabriel. Inclinando a cabeça um pouco para o lado e apoiando o queixo na mão, ele a observou atentamente por um momento.
- Não me olhe assim - pediu ela.
- Assim como?
- Como se eu fosse uma pintura.
- Não dá para evitar.
Chiara sorriu.
- Em que você está pensando?
- Estou pensando em como queria estar sozinho com você, e não dividindo uma casa com oito pessoas.
- Incluindo um sujeito que já tentou matá-lo. Mas em que você está realmente pensando?
- Por que você não me pediu para não ir a Moscou?
- Eu me faço a mesma pergunta.
- E então, por quê?
- Porque eles a trancaram num carro e a mataram queimada.
- Não há nenhuma outra razão?
- Nenhuma - respondeu Chiara. - E, caso você esteja imaginando se eu quero ir a Moscou com a equipe, a resposta é “não”. Eu não saberia me virar por lá. Acabaria
cometendo algum erro.
Gabriel subiu na cama e pousou a cabeça sobre o ventre de Chiara.
- Você não vai tirar as roupas? - perguntou ela.
- Estou muito cansado.
- Importa-se se eu ler um pouco mais?
- Você pode fazer o que quiser.
Gabriel fechou os olhos. O som de Chiara folheando a revista ia embalando seu sono, até que ela subitamente perguntou:
- Você ainda está acordado?
- Não - murmurou ele.
- Ela sabia que essa história ia terminar em Moscou, Gabriel?
- Ela quem?
- A velha na Córsega. Ela sabia?
- Sim. Suponho que sim.
- Ela lhe disse para não ir?
- Não - respondeu Gabriel, culpado, sentindo como se uma faca dilacerasse seu peito. - Ela me disse que eu estaria em segurança lá.
- Ela viu mais alguma coisa?
- Uma criança. Ela viu uma criança.
_ Uma criança? De quem? - perguntou Chiara, mas Gabriel já não a escutava. Ele se via correndo em direção a uma mulher através de um interminável campo nevado. A
mulher estava em chamas e a neve estava toda manchada de sangue.
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GRAYSWOOD, SURREY
Uzi Navot, diretor do serviço de inteligência israelense, chegou à casa segura em Grayswood às sete e vinte do dia seguinte, enquanto uma cinzenta aurora de dezembro
raiava sobre as árvores desfolhadas do Knobby Copse. A primeira pessoa que ele encontrou foi Christopher Keller, perseguindo uma bolinha de pingue-pongue, após um
ponto decisivo de Yaakov. O placar estava oito a cinco para Yaakov, mas Keller já se aproximava.
- Quem é você? - perguntou Keller, ao ver o carrancudo homem de óculos no hall de entrada.
- Não lhe interessa - retrucou Navot.
- Nome estranho. É hebraico, certo?
Navot franziu a testa.
- Você deve ser Keller.
- É, devo ser.
- Onde está Gabriel?
- Ele foi a Guildford com Chiara.
- Por quê?
- Porque nós comemos todo o peixe do lago.
- E quem está no comando?
- Os internos.
Navot sorriu.
- Não mais.
Após a chegada pouco ortodoxa de Navot, a equipe entrou em modo de guerra. Seria uma guerra não declarada, como todos os seus conflitos, travada em território hostil,
contra um inimigo maior e mais capacitado. O Escritório é considerado um dos melhores serviços de inteligência do mundo, mas não chega a ser páreo para a irmandade
da espada e do escudo, herdeira de uma orgulhosa e sanguinária tradição. Por mais de setenta anos, a KGB protegeu implacavelmente o comunismo soviético contra inimigos
reais ou percebidos como tal, agindo também na vanguarda do Partido no exterior, recrutando e plantando milhares de espiões por todo o planeta. Seu poder chegou
a ser quase ilimitado, quase fazendo da KGB um Estado dentro do Estado. Após o colapso da União Soviética, ela tornou-se o Estado. E a Volgatek era a sua companhia
petrolífera.
A todo momento, Gabriel destacava essa conexão entre a Volgatek e o SVR enquanto a equipe começava seus trabalhos. A empresa e o serviço de inteligência eram uma
só entidade, e isso significava que Mikhail estaria em mãos inimigas no momento em que seu avião partisse de Londres. Sua falsa identidade enganara bem Gennady Lazarev,
mas não resistiria muito tempo nas sessões de interrogatório em Lubyanka. Assim como Mikhail. Gabriel advertiu que Lubyanka era o fim da linha, o lugar onde agentes
e operações morriam.
Entretanto, os pensamentos de Gabriel estavam mais concentrados em Pavel Zhirov, o chefe de segurança da Volgatek e principal articulador do plano para obter acesso
ao petróleo britânico no mar do Norte. Nas 24 horas desde a chegada de Navot à casa de Grayswood, o posto do Escritório em Moscou já tinha determinado que Zhirov
morava no apartamento de um prédio fortificado nas Colinas do Pardal, uma região de elite às margens do rio Moscou. Sua rotina diária era típica da duplicidade de
suas atividades: passava a manhã nos luxuosos escritórios da Volgatek na rua Tverskaya e, à tarde, ia para a Central Moscovita, o bem arborizado complexo do SVR
em Yasenevo. A equipe de vigilância do Escritório em Moscou tirou várias fotos de Zhirov entrando e saindo de sua limusine Mercedes com chofer, embora nenhuma revelasse
claramente suas feições. Gabriel não pôde deixar de admirar o profissionalismo do russo. Ele já tinha demonstrado ser um adversário capaz quando sua artimanha confundira
os agentes do Escritório. Capturá-lo nas ruas de Moscou exigiria uma operação com um nível equivalente de habilidade.
Eli Lavon enfatizou:
- Com duas importantes diferenças: Moscou não é a Córsega, e Pavel Zhirov não estará de camiseta, pilotando uma lambreta numa estradinha deserta, vestindo apenas
um vestido de alças.
- Então teremos de pensar em um meio de pôr Mikhail no carro de Zhirov - comentou Gabriel. - Com uma arma carregada no bolso de trás, é claro.
- E como você pretende fazer isso?
- Assim.
Sentando-se ao computador, com alguns rápidos toques no teclado, Gabriel recuperou a gravação das últimas palavras de Lazarev a Mikhail na Dinamarca:
“Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte .Senão,você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.”
“Por que Moscou?” ‘Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?”
‘É claro que não”
‘E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.’
Gabriel parou a reprodução e olhou para Lavon, dizendo:
- Posso estar enganado, mas suspeito que o retorno de Nicholas Avedon à Rússia não correrá sem problemas.
- Que tipo de problemas?
- O tipo que só Pavel pode resolver.
- E quando Mikhail estiver na limusine?
- Ele dará a Pavel a chance de fazer uma escolha simples.
- Essa escolha seria vir quietinho ou ter os miolos espalhados pelo interior do lindo Mercedes?
- Alguma coisa do gênero.
- Bem, e quanto à regra de ouro de Shamron?
- Qual?
- Aquela que fala sobre exibir armas em público.
- Ah, existe uma pequena e pouco conhecida exceção quando se trata de encostar um revólver nas costelas de um gângster como Pavel.
Lavon ficou pensativo, e por fim falou:
- Precisaremos trazer o motorista, também. Caso contrário, todos os agentes da FSB e milicianos russos ficarão no nosso encalço.
- Sim, Eli, eu sei disso.
- Onde você pretende conduzir o interrogatório?
- Aqui.
Digitando mais algumas teclas, Gabriel apresentou o local. Lavon olhou para a tela e comentou:
- Adorável. Quem é o proprietário?
- Um homem de negócios russo que não conseguiu mais suportar a vida na Rússia.
- E onde ele vive agora?
- Bem perto da residência de Shamron.
Gabriel fez desaparecer a imagem da casa com um clique do mouse.
- Bem, isso deixa só mais uma questão... - continuou Lavon.
- Tirar Mikhail da Rússia.
Lavon assentiu.
- Sim, e ele não poderá sair com a identidade de Nicholas Avedon.
- De preferência, com o mínimo possível de obstáculos russos a superar - acrescentou Gabriel.
- E como resolveremos isso?
- Da mesma forma que Shamron conseguiu tirar Eichmann da Argentina.
- El Al?
Gabriel assentiu.
- Garoto levado - comentou Lavon.
Gabriel sorriu.
- É. E estou só começando.
Navot aprovou imediatamente os planos de Gabriel, faltando cinco dias para o prazo final dado a Mikhail por Lazarev. Cinco dias para verificar uma miríade de questões
grandes e pequenas - ou, como Lavon observou, cinco dias para determinar se aquela visita de Mikhail à Rússia terminaria melhor do que a última. Passaportes, vistos,
passagens e providências de transporte e hospedagem: tudo teria que ser feito em passo duplamente acelerado. E havia ainda as rotas de fuga e esconderijos, os planos
de contingência, e os planos B para os planos de contingência. A tarefa do grupo era ainda mais difícil porque Gabriel não podia dizer onde ou quando se daria a
captura de Zhirov. Eles teriam que improvisar numa cidade que, ao longo de sua longa e sangrenta história, nunca acolhera bem livres-pensadores.
Ao longo daqueles dias e noites, Gabriel exigiu o máximo - e, quando ele virava as costas, Navot se encarregava de pressionar a equipe ainda mais. Não havia tensão
visível entre os dois, nenhum sinal de que um estava em ascensão e o outro rumava para a aposentadoria. Na verdade, vários membros da força-tarefa imaginavam se
não estariam testemunhando a formação de uma parceria que poderia continuar para bem depois da posse de Gabriel como chefe do Escritório. Yaakov, o mais fatalista
do grupo, não compartilhava dessa hipótese: “Seria como a nova esposa permitindo que a ex-mulher mantivesse seu velho quarto na casa. Isso nunca vai acontecer.”
Lavon, entretanto, não tinha tanta certeza. Se havia alguém tão seguro de si que pudesse admitir a permanência do predecessor no serviço, esse alguém era Gabriel
Allon. Afinal de contas, disse Lavon, se ele conseguira fazer as pazes com Keller, certamente seria capaz de acertar as contas com Navot.
As conversas sobre os planos futuros de Gabriel eram sempre interrompidas assim que Chiara entrava no recinto. A princípio, ela tentou colaborar, mas, como o assunto
constante era a Rússia, o seu humor logo foi arruinado. Chiara só estava viva porque membros daquela equipe certa vez arriscaram os pescoços para salvá-la. Agora,
enquanto lutavam para cumprir um prazo quase impossível, ela assumiu o papel de cuidadora. Apesar da tensão que reinava na casa, esforçava-se para fazer prevalecer
um clima bem familiar. Toda noite, eles sentavam à mesa para uma farta refeição e, por insistência de Chiara, falavam sobre qualquer assunto que não fosse a missão:
livros, filmes e até mesmo o futuro de seu problemático país. Após pouco mais de uma hora desse intervalo, Gabriel e Navot punham-se de pé e o trabalho recomeçava.
Chiara cuidava sozinha da louça com prazer, cantarolando suavemente à pia para abafar o som da conversa na sala contígua. Mais tarde, confidenciou a Gabriel que
o simples som de uma palavra russa provocava uma sensação de dor e vazio em seu útero.
O homem que estava no centro daquela operação permanecia jovialmente indiferente aos esforços da equipe de agentes, ou essa foi a impressão de quem encontrou Nicholas
Avedon após o regresso a Londres. Tinha a postura de uma pessoa que já nem se preocupava em ocultar o fato de estar alcançando lugares que os outros nem podiam sonhar
alcançar. Orlov babava pelo protegido como se fosse o filho que nunca tivera, e parecia a cada dia mais dependente de Avedon. O pronome nós passou a figurar pela
primeira vez no vocabulário de Orlov quando ele se referia aos negócios - uma mudança de tom que não passou despercebida no centro financeiro londrino. Ele comunicou
à sua equipe que passaria parte do mês de janeiro em um local não revelado do Caribe:
- Preciso de um belo e longo descanso. Agora que tenho Nicholas, enfim posso tirar férias.
Com Orlov aparentemente distante, os rumores nos círculos financeiros eram de que agora Nicholas Avedon era o homem a ser procurado na VOI. A maior parte dos interessados
tinha que esperar uma semana ou mais por uma entrevista com ele, mas quando ligou um tal Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, Avedon agendou uma
reunião sem demora. O encontro se deu em seu escritório, com vista para a Praça Hanover, embora o assunto tratado nada tivesse a ver com negócios ou investimentos.
Ao término, ele fez uma chamada de três minutos para um número de Moscou, com resultados satisfatórios. Em seguida, acompanhou o Sr. Albright aos elevadores, com
o ar de quem está certo do sucesso. Em tom bem audível para quem estivesse por perto, anunciou:
- Vou expor os detalhes para Viktor, mas me parece que está tudo certo para seguirmos em frente sem problemas.
Naquela noite, um carro estacionou do lado de fora do prédio de Mikhail em Maida Vale. Tempos depois, Graham Seymour identificaria o homem que saiu do veículo como
um mensageiro dentre os numerosos agentes da rezidentura do SVR em Londres. O sujeito pegou o passaporte falso de Mikhail e o levou à embaixada russa em Kensington
Gardens. Quando voltou, uma hora mais tarde, trazia o documento, que já tinha recebido apressadamente um carimbo de visto para a Rússia. Dentro, Mikhail encontrou
o cartão de embarque de um voo da British Airways com destino a Moscou, que decolaria às dez horas da manhã seguinte.
Mikhail pôs a passagem e o passaporte em sua valise e entrou em contato com Orlov, na Cheyne Walk, para dizer que precisava de alguns dias de folga.
- Desculpe, Viktor, mas estou exausto. E, por favor, sem chamadas ou e-mails. Quero sair de circulação.
- Por quanto tempo?
- Até quarta ou quinta-feira, no mais tardar.
- Tire a semana toda.
- Tem certeza?
- Prometo não fazer nenhuma bobagem enquanto você estiver longe.
- Obrigado, Viktor. Você é demais.
Mikhail tentou dormir naquela noite, mas em vão. Era o que sempre acontecia antes de uma operação. Assim, pouco antes das quatro da madrugada, levantou-se da cama
e vestiu sua armadura de Nicholas Avedon, também conhecido como Nicolai Avdonin. Às seis, um carro estava na porta do edifício para conduzi-lo a Heathrow, onde ele
passou sem dificuldades pela segurança, com Christopher Keller e Dina Sarid por perto para garantir sua retaguarda. Ao atravessar o portão de embarque, pôde ver
uma versão bem modificada de Gabriel absorvido na leitura do Economist com o que parecia ser um interesse exagerado. Mikhail entrou no avião sem olhá-lo, mas Gabriel
ainda esperou até pouco antes de a porta se fechar para se precipitar em direção ao compartimento de primeira classe.
Após a decolagem, a torre britânica orientou a aeronave, para que sobrevoasse Basildon, até que, precisamente às dez e meia, ela entrou no espaço aéreo internacional.
Nervoso, Mikhail tamborilava no console central de seu assento. A partir de agora, estava nas mãos do inimigo, junto com o futuro chefe da inteligência israelense.
48
MOSCOU
Os manifestantes afluíam para a Praça Vermelha em pequenos grupos, de forma a não serem identificados pela milícia de Moscou ou pelos gorilas de jaquetas de couro
da FSB. Eram artistas, escritores, jornalistas, roqueiros punk e até mesmo algumas poucas babushkas que ainda sonhavam em passar os últimos anos da vida em um país
realmente livre. Por volta do meio-dia já havia uma multidão de centenas de pessoas, numerosa demais para ocultar seus reais motivos. Uma pessoa desfraldou uma bandeira
e outra surgiu com um megafone, acusando o presidente de fraudar as últimas eleições, o que por sinal era a pura verdade. Depois, o manifestante fez uma piada sobre
outras coisas que o presidente havia roubado do povo russo, e que o líder dos mal-encarados agentes da FSB não considerou nem um pouco engraçada.
Após um breve sinal, os milicianos avançaram com grande violência sobre a multidão, quebrando tudo o que viam pela frente, inclusive algumas das cabeças mais importantes.
O dono do megafone levou a pior, e foi visto pela última vez ensanguentado e semiconsciente na traseira de uma van da polícia. Mais tarde, o Kremlin anunciou que
o homem seria acusado de tentar incitar um motim, logo poderia ficar preso por dez anos numa “neogulag”. A subserviente imprensa russa referiu-se aos manifestantes
como “desordeiros”, o mesmo rótulo que o regime soviético aplicava a todos os oponentes, e nem um único comentarista ousou criticar as táticas violentas do governo.
Talvez se devesse perdoar o seu silêncio: atualmente, jornalistas que irritam o Kremlin têm o curioso costume de aparecerem mortos.
No Aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, as notícias da manifestação na Praça Vermelha passaram rapidamente pelas televisões, enquanto Mikhail deixava a ponte de desembarque,
seguido trinta segundos depois por Gabriel. Conforme se encaminhavam ao controle de passaportes, Allon notou um mal nutrido policial da alfândega com o uniforme
surrado e, ao lado, um homem de terno bem cortado, que tinha nas mãos uma fotografia. Ele a consultou por duas vezes enquanto Mikhail se aproximava. Depois, foi
até o falso Nicholas e disse algo em russo que Gabriel não chegou a entender. Mikhail sorriu e apertou a mão do homem antes de acompanhá-lo até uma porta não identificada.
Gabriel continuou até o controle de passaportes, onde uma mulher séria observou seu rosto por um momento desconfortavelmente longo. Por fim, ela carimbou com força
o passaporte e acenou para que ele fosse em frente. Bem-vindo à Rússia, pensou enquanto adentrava o salão de desembarque apinhado. Ao sair do aeroporto, logo sentiu
a mistura dos cheiros de tabaco e diesel, que fizeram sua cabeça rodar. O céu do entardecer estava claro e o frio era cortante. Olhando à esquerda de forma sutil,
Gabriel pôde ver Mikhail e seu acompanhante da Volgatek entrando no calor confortável do Mercedes sedã que os esperava. Juntou-se à longa fila de espera de táxis.
O frio do concreto atravessava as solas finas de seus mocassins ocidentais; quando ele enfim se esgueirou para dentro de um Lada decrépito, seu maxilar estava tão
congelado que Gabriel mal conseguia falar. O motorista perguntou pelo destino e ele pediu para ser levado ao Hotel Metropol - nem soube como o homem conseguiu entender,
tamanha sua dificuldade de dicção.
Saindo do aeroporto, o táxi tomou a Leningradsky Prospekt e iniciou o longo e penoso trajeto até o centro de Moscou. Faltavam cinco para as sete, já no final do
terrível rush vespertino moscovita; ainda assim, o ritmo de deslocamento era glacial. O motorista tentou entabular uma conversa, mas seu inglês era tão impenetrável
como o tráfego. Gabriel concordava polidamente de vez em quando, mas sua atenção estava voltada mesmo era para os edifícios decadentes ao longo da velha e malcuidada
via. Por um breve período, os prédios eram apenas horríveis, mas agora haviam se transformado em ruínas. Em cada esquina, cada telhado, cartazes anunciavam promessas
de luxúria. Era o pesadelo comunista com uma nova demão de capitalismo, refletiu Gabriel. Deprimente e impactante.
Enfim cruzaram o Anel Rodoviário dos Jardins e a prospekt embocou na rua Tverskaya, a versão moscovita da Madison Avenue, que os levou por uma ladeira suave, passando
pela nova e luxuosa sede da Volgatek e pelos muros de tijolos vermelhos do Kremlin. Então, chegaram às oito pistas da rua Okhotnyy Ryad. Virando à esquerda, passaram
pela Câmara dos Deputados, pela velha Casa dos Sindicatos e pelo Teatro Bolshoi. Entretanto, Gabriel não observava nada disso. Seus olhos enxergavam apenas a fortaleza
amarela bem iluminada por holofotes no alto da Praça Lubyanka.
- KGB - falou o motorista, apontando por sobre o volante
- Não existe KGB - replicou Gabriel em tom distante. - A KGB é uma coisa do passado.
O taxista resmungou algo sobre a ingenuidade dos estrangeiros e conduziu o carro até a entrada do Hotel Metropol. O saguão havia sido restaurado fielmente voltando
à sua beleza original, mas a mulher de meia-idade no balcão de recepção não tinha tido a mesma sorte. Ela saudou Gabriel com um sorriso gélido, fez algumas perguntas
polidas sobre a natureza de sua viagem e depois estendeu um longo formulário de registro - uma cópia seria enviada às autoridades competentes. Gabriel o preencheu
rapidamente como se fosse Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, e recebeu em troca as chaves dos aposentos. Um mensageiro do hotel ofereceu-se para
ajudá-lo com a bagagem e pareceu aliviado quando Gabriel lhe disse que não era necessário. Mesmo assim, premiou-o pela solicitude com uma gratificação que indicava
sua pouca familiaridade com o valor da moeda russa.
O aposento ficava no quarto andar, com vista para as dez pistas da Teatralny Prospekt. Gabriel sabia que o recinto tinha escutas e nem se deu o trabalho de localizá-las.
Tratou de fazer duas chamadas a clientes que não eram de fato clientes e, depois, foi examinar o monte de e-mails que se acumulara durante a viagem. Uma das mensagens
era de um advogado de Nova York, a respeito de um determinado investimento de natureza legalmente dúbia. O verdadeiro remetente era Eli Lavon, que reservara um quarto
algumas portas depois no mesmo corredor. O real conteúdo do e-mail foi revelado após Gabriel digitar a senha adequada: ao que parecia, Gennady Lazarev levara seu
possível novo funcionário ao Lounge 02, no Ritz, para aperitivos e tira-gostos. Estavam também presentes Dmitry Bershov, Pavel Zhirov e quatro beldades russas. Fotos
de vigilância iam em anexo, por cortesia de Yaakov e Dina, que ocupavam uma mesa no lado oposto do salão.
Gabriel digitou novamente a senha e a mensagem retornou ao texto original. Em seguida, pôs os fones de ouvidos e captou uma transmissão segura do áudio do celular
de Mikhail. Dava para ouvir o tilintar de copos, risadas e o chilrear das acompanhantes russas, que pareciam fúteis mesmo em um idioma incompreensível. Logo escutou
a voz familiar de Lazarev murmurando uma confidência ao ouvido de Mikhail:
- Trate de descansar bem esta noite. Temos grandes planos para você amanhã.
Eles permaneceram no lounge até as onze, quando Mikhail se retirou desacompanhado, mas com uma tremenda dor de cabeça, para sua suíte de luxo no Ritz. Apesar do
conselho de Lazarev, não conseguiu dormir, pois sua mente era um turbilhão de lembranças de operações passadas, encadeadas como numa matéria jornalística sobre as
maiores catástrofes do século. Mikhail ansiava por atividade, por uma ação de qualquer tipo, mas as câmeras de vigilância certamente ocultas no quarto eram um impeditivo.
Assim, ele se viu enroscado nos lençóis úmidos de sua cama, com uma imobilidade cadavérica, até as sete da manhã,
quando a chamada do serviço de despertador do hotel enfim lhe permitiu se levantar, grato.
Seu café chegou pouco depois, e Mikhail o tomou enquanto se atualizava sobre o mundo corporativo no noticiário londrino. Desceu para a academia, onde fez um treino
impressionante, testemunhado pelo observador de um dos serviços de inteligência russos. Voltando ao quarto, encarou um banho gelado para injetar um pouco de vida
nos ossos cansados. Então, vestiu o melhor terno cinza risca de giz - aquele que Dina tinha escolhido para ele na Anthony Sinclair da Savile Row. Mikhail avistou-a
no salão de café da manhã quinze minutos depois, fitando Keller nos olhos como se detivessem o segredo para a felicidade eterna. A algumas mesas de distância, Yossi
devolvia seus ovos mexidos. “Eu pedi ovos moles, mas estes deviam ter sido servidos num copo.” O comentário ricocheteou no garçom como uma pedrinha jogada num trem
de carga. “Você quer os seus ovos num copo?” perguntou ele.
Às nove horas em ponto, depois de ler os jornais matinais e resolver algumas questões pendentes em Londres por e-mail, Mikhail foi até o saguão ultramoderno do Ritz.
Lá, aguardava-o o mesmo sujeito da Volgatek que o retirara da fila de controle de passaportes em Sheremetyevo na noite anterior. Seu rosto sorridente era tão agradável
quanto uma janela quebrada.
- Espero que tenha dormido bem, Sr. Avedon.
- Nunca dormi melhor - mentiu Mikhail, cordial.
- Nossos escritórios ficam muito perto. Espero que não se incomode de caminhar.
- Nós vamos sobreviver?
- As chances são boas, mas não há nenhuma garantia em Moscou nesta época do ano.
O sujeito virou e conduziu Mikhail para a rua Tverskaya. Enquanto subia a ladeira inclinando o corpo contra o vento forte, o falso Avedon se deu conta de que aquele
amontoado anônimo de lã e pele caminhando dois passos atrás dele era Eli Lavon, que o escoltou em silêncio até a porta da frente da Volgatek, como se quisesse lembrar
a Mikhail que ele não estava sozinho. Em seguida, flutuou na direção do sol forte de Moscou e desapareceu.
Se houvesse quaisquer mal-entendidos quanto à missão verdadeira da Volgatek, eram aquietados pela vasta escultura de metal no saguão da sede da empresa na rua Tverskaya.
A obra retratava o planeta com uma Rússia desproporcional na posição dominante,bombeando energia vital para os quatro cantos da Terra.
Abaixo do globo, um Atlas sorridente num terno italiano feito sob encomenda, estava Gennady Lazarev.
- Bem-vindo ao novo lar - disse, apertando a mão de Mikhail. - Ou devo dizer, ao verdadeiro lar?
- Um passo de cada vez, Gennady.
Lazarev apertou a mão de Mikhail com um pouco mais de força, como a indicar que não seria contrariado, e o conduziu até um elevador executivo, que os levou ao último
andar do prédio. Na entrada, havia uma placa: BEM-VINDO, NICOLAI! Lazarev parou para admirá-la, como se tivesse se esforçado muito na redação, antes de levar Mikhail
até o vasto escritório que ele poderia usar sempre que estivesse na cidade. Tinha uma vista do Kremlin e vinha com uma secretária perigosamente atraente chamada
Nina.
- O que você acha? - perguntou Lazarev, com seriedade.
- Bom.
- Venha. - Lazarev conduziu Mikhail pelo cotovelo. - Estão todos ansiosos para conhecê-lo.
De fato, Lazarev não estava exagerando quando disse “todos”. Durante as duas horas e meia seguintes, Mikhail sentiu mesmo que cumprimentava todos os funcionários
da empresa, e possivelmente mais algumas pessoas também. Havia uma dúzia de vice-presidentes de diversas formas, tamanhos e responsabilidades, e uma figura cadavérica
chamada Mentov que fazia algo com análise de riscos que Mikhail não conseguiu nem fingir entender. Em seguida, foi apresentado à equipe científica da Volgatek -
dos geólogos que buscavam novas fontes de petróleo ao redor do mundo aos engenheiros responsáveis por desenvolver novas formas de extraí-lo. Depois, percorreu os
andares inferiores para conhecer as pessoas de menor importância: jovens executivos que sonhavam tomar seu lugar algum dia, os mortos-vivos presos às suas mesas
e às xícaras de café vermelhas da Volgatek. Mikhail não pôde deixar de se perguntar o que acontecia com um funcionário demitido de uma empresa administrada e possuída
pela sucessora da KGB. Talvez recebesse um relógio de ouro e uma pensão, mas Mikhail achava pouco provável.
Por fim, voltaram ao último andar e entraram no espaçoso escritório de Lazarev, similar a um átrio, onde ele falou longamente sobre sua visão para o futuro da Volgatek
e o papel que queria atribuir a Mikhail. Sua posição inicial na empresa seria de diretor da Volgatek Reino Unido, a subsidiária que seria formada para administrar
o projeto das Ilhas Ocidentais. Uma vez que o petróleo estivesse fluindo, Mikhail receberia responsabilidades maiores, em especial na Europa Ocidental e na América
do Norte.
- Isso seria o suficiente para mantê-lo interessado? - perguntou Lazarev.
- Pode ser.
- O que seria necessário para convencê-lo a deixar Viktor e vir trabalhar comigo?
- Dinheiro, Gennady. Muito dinheiro.
- Posso garantir, Nicolai, que dinheiro não é problema.
- Então você tem a minha total atenção.
Lazarev abriu uma pasta de couro e retirou uma única folha de papel.
- Seu pacote de compensação vai incluir apartamentos em Aberdeen, Londres e Moscou. Você vai usar jatos particulares, é claro, e poderá utilizar uma casa da Volgatek
que mantemos no sul da França. Além do salário-base, você receberá diversos bônus e incentivos que levarão sua remuneração total para algo assim.
Lazarev posicionou a folha na frente de Mikhail e apontou para o número próximo ao pé da página. Mikhail o observou por um instante, coçou a cabeça careca e franziu
a testa.
- E então? - perguntou Lazarev.
- Nem perto.
Lazarev sorriu.
- Achei que a sua resposta seria essa - disse, guardando a folha na pasta -, então tomei a liberdade de preparar uma segunda oferta. - Ele a colocou na frente de
Mikhail. - Melhor?
- Agora está mais quente - respondeu Mikhail, sorrindo para Lazarev. - Definitivamente mais quente.
49
PRAÇA VERMELHA, MOSCOU
As quatro horas da tarde, eles já tinham as linhas gerais de um acordo.
Lazarev preparou um documento com uma página, reservou um salão particular no Café Pushkin para a comemoração e mandou Mikhail de volta ao Ritz para algumas horas
de descanso. O falso Avdonin percorreu a pequena distância a pé, acompanhado de perto por Gabriel, que andava do outro lado da rua com a lapela levantada cobrindo
os ouvidos e a boina baixada até as sobrancelhas. Ele observou Mikhail atravessar a entrada suntuosa do hotel e continuou ao longo da rua Tverskaya até a Praça da
Revolução. Lá, parou um pouco para ver um imitador de Lênin instando um grupo de turistas japoneses atônitos a tomarem os meios de produção de seus soberanos burgueses.
Em seguida, cruzou o arco do Portão da Ressurreição e adentrou a Praça Vermelha.
Já estava escuro e o vento decidira dar uma folga para a cidade conduzir seus negócios em paz. Com a cabeça baixa e os ombros contraídos, Gabriel parecia um moscovita
acabado qualquer. Percorreu às pressas o muro norte do Kremlin e passou pelos olhares vazios dos guardas congelados em frente ao Mausoléu de Lênin. Bem à sua frente,
resplandecentes à luz branca, erguiam-se os domos da Catedral de São Basílio, coloridos como bengalas de açúcar. Gabriel olhou de relance para o relógio da Torre
do Salvador e seguiu ao longo do muro do Kremlin, até o ponto onde Stálin, o assassino de milhões, repousava pacificamente num lugar de honra. Lavon se juntou a
ele pouco tempo depois.
- O que você acha? - perguntou Gabriel em alemão.
- Acho que eles deviam tê-lo enterrado num túmulo sem marcação em algum campo, mas essa é só a minha opinião.
- A barra está limpa?
- O máximo que pode estar num lugar como Moscou.
Gabriel se virou sem dizer nada e conduziu Lavon pela praça até a entrada da GUM. Antes da queda da União Soviética, aquele tinha sido o único estabelecimento comercial
do país onde os russos sempre podiam encontrar um casaco de inverno ou um par de sapatos. Agora era um shopping de estilo ocidental, entupido de todas as bugigangas
inúteis que o capitalismo tem a oferecer. O elevado teto de vidro reverberava com o burburinho dos compradores noturnos. Lavon ficou encarando o BlackBerry enquanto
andava ao lado de Gabriel. Atualmente, esse era um hábito bem russo.
- A secretária de Lazarev acabou de enviar um e-mail para a equipe sênior sobre o jantar de hoje no Café Pushkin - informou Lavon. - Zhirov está na lista de convidados.
- Não ouvi a voz dele hoje na Volgatek, durante a passagem de Mikhail.
- Ele não estava lá - explicou Lavon, ainda olhando o celular. - Depois de deixar seu apartamento nas Colinas do Pardal, foi direto para Yasenevo.
- Por que logo hoje? Por que não estava na Volgatek para conhecer o garoto novo?
- Talvez ele tivesse outros afazeres.
- Como o quê?
- Talvez alguém mais precisasse ser sequestrado.
- É isso que me preocupa.
Gabriel parou em frente à vitrine de uma joalheria e examinou alguns relógios suíços reluzentes. Ao lado, havia um café de estilo soviético com mulheres roliças
infelizes de avental branco colocando comida russa barata em pratos cinzentos da época de Leonid Brejnev. Mais de vinte anos depois da queda do comunismo, alguns
russos ainda tinham nostalgia do passado totalitário.
- Você não está ficando inseguro, está? - perguntou Lavon.
- É dezembro em Moscou, Eli. É impossível não ter receios.
- O que você quer fazer?
- Gostaria que o hotel desse a regalia especial a Nicholas Avedon um pouco antes do planejado.
- Regalias desse tipo são mal vistas no Café Pushkin.
- Qualquer pessoa importante anda armada no Pushkin, Eli.
- É arriscado.
- Não tão arriscado quanto a alternativa.
- Por que nós não pulamos o jantar e vamos direto para a sobremesa?
- Eu adoraria - respondeu Gabriel -, mas o trânsito da hora do rush não vai deixar. Teremos que esperar até as dez horas. Caso contrário, nunca vamos conseguir tirá-lo
da cidade. Ficaríamos com as mãos atadas.
- Uma escolha infeliz de palavras.
- Envie a mensagem, Eli.
Lavon digitou alguns caracteres no BlackBerry e levou Gabriel para fora, até a rua Il'inka. O vento se intensificava de novo e a temperatura tinha caído. Lágrimas
correram livremente pelo rosto de Gabriel enquanto eles passavam pelas fachadas características dos sólidos prédios imperiais. Em seu fone de ouvido, ouvia Mikhail
cantarolar durante o banho no Ritz.
- Quero cobertura completa nele o tempo inteiro - disse Gabriel. - Nós o levamos para jantar, sentamos com ele durante o jantar e o trazemos de volta para o hotel.
É aí que começa a diversão.
- Só se Pavel concordar em resgatar Mikhail.
- Ele é o chefe de segurança da Volgatek. Se o executivo mais novo da empresa acreditar que sua vida está em perigo, Pavel irá correndo. E então o faremos se arrepender.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Qual, Eli? Ucrânia? Bielorrússia? Ou que tal o Cazaquistão?
- Na verdade, eu estava pensando na Mongólia.
- A comida é ruim.
- A comida é terrível - concordou Lavon -, mas pelo menos não é a Rússia.
No fim da rua, eles dobraram à esquerda e subiram a ladeira em direção à Praça Lubyanka.
- Você acha que isso já foi feito antes? - perguntou Lavon.
- O quê?
- Sequestrar um oficial da KGB dentro da Rússia.
- Não existe KGB, Eli. A KGB é coisa do passado.
- Não, não é. Agora se chama FSB. E ocupa aquele prédio grande e feio bem na nossa frente. E eles vão ficar bastante chateados quando descobrirem que um dos seus
companheiros desapareceu.
- Se o pegarmos direito, eles não vão ter tempo para fazer nada.
- Se o pegarmos direito - enfatizou Lavon.
Gabriel ficou em silêncio.
- Faça-me um favor esta noite, Gabriel: se você não tiver a oportunidade de dar um tiro adequado, não dispare. - Ele fez uma pausa. - Eu detestaria perder a chance
de trabalhar para você como diretor.
Eles tinham chegado ao topo da ladeira. Lavon parou de andar e contemplou a imensa fortaleza amarela no outro lado da Praça Lubyanka.
- Por que você acha que a mantiveram? - perguntou, sério. - Por que não a arrancam e colocam um monumento às vítimas no lugar?
- Pela mesma razão que não removem os ossos de Stálin.
Lavon ficou quieto por um momento.
- Eu odeio este lugar - disse por fim. - Ao mesmo tempo, amo-o com carinho. Estou louco?
- Completamente - respondeu Gabriel -, mas essa é só a minha opinião.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Eu também, Eli. Mas não podemos.
- A Mongólia fica muito longe?
- Longe demais para ir dirigindo. E a comida é terrível.
Cinco minutos depois, quando Gabriel entrou no saguão superaquecido do Metropol, Yossi saiu de seu quarto no quadragésimo quarto andar do Ritz vestindo um terno
cinza de banqueiro e uma gravata prateada. Na mão esquerda, levava um crachá dourado com o nome ALEXANDER - um nome adequado para um estudante de história como Yossi
escolher - e, na mão direita, havia uma embalagem azul lustrosa de presente com o logo do hotel. Ela era mais pesada do que Yossi fazia parecer, pois continha uma
pistola Makarov 9 mm, uma das diversas armas que a base de Moscou adquirira de fontes locais ilícitas antes da chegada da equipe. Por três dias, a arma ficara escondida
entre o estrado e o colchão no seu quarto. Ele ficou compreensivelmente aliviado de enfim poder se livrar dela.
Yossi esperou até o corredor se esvaziar para afixar na sua lapela a plaqueta com um nome. Então, dirigiu-se à porta do quarto 421. Mesmo do lado de fora, dava para
ouvir muito bem um homem cantando Penny Lane. Deu duas batidas firmes, mas educadas, a batida de um concierge. Como não obteve resposta, bateu de novo, mais alto.
Dessa vez, um homem com um roupão branco abriu a porta. Ele era alto, estava numa forma física impressionante e tinha a pele rosada por causa do banho.
- Estou ocupado - reclamou.
- Peço desculpas por interromper, Sr. Avelon - respondeu Yossi com um sotaque neutro cosmopolita -, mas a gerência gostaria de lhe oferecer um pequeno presente de
agradecimento.
- Agradeça à gerência, mas dispenso.
- A gerência ficaria desapontada.
- Não é mais daquele maldito caviar, é?
- Receio que a gerência não tenha dito.
Avedon pegou o embrulho e bateu a porta na cara sorridente do falso funcionário. Yossi girou nos calcanhares e, depois de tirar a plaqueta da lapela, voltou para
o próprio quarto. Ao entrar, despiu rapidamente o terno e vestiu uma calça jeans e um casaco pesado de lã. Sua mala estava no pé da cama. Yossi enfiou o terno num
compartimento lateral dela e fechou o zíper. Se tudo saísse de acordo com os planos, um mensageiro da base de Moscou a coletaria em algumas horas e destruiria o
conteúdo. Passou um pano em todos os objetos que tinha tocado no quarto e partiu, torcendo para ser a última vez.
Já no saguão, viu Dina folheando um jornal moscovita escrito em inglês com uma expressão de ceticismo. Passou por ela como se não a conhecesse e saiu do hotel. Um
Range Rover aguardava no meio-fio, soltando gases na noite amargamente fria, e Keller estava ao volante. Ele se embrenhou no trânsito do rush na rua Tverskaya antes
mesmo de Yossi fechar a porta. Diretamente à frente, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto; sua estrela vermelha reluzia como um sinal de alerta. Keller assobiava
desafinado enquanto dirigia.
- Você sabe o caminho? - perguntou Yossi.
- À esquerda na rua Okhotnyy Ryad, depois à esquerda na Bol'shaya Dmitrovka e novamente à esquerda no Anel dos Bulevares.
- Passou muito tempo em Moscou?
- Nunca tive o prazer.
- Você pode pelo menos fingir que está ansioso?
- Por que eu estaria ansioso?
- Porque nós estamos prestes a sequestrar um oficial da KGB em plena Moscou.
Keller sorriu enquanto pegava a primeira esquerda.
- Molezinha.
Keller e Yossi levaram vinte minutos para percorrer o trecho curto até o ponto de espera no anel rodoviário. No instante em que chegaram, Yossi mandou uma mensagem
criptografada para Gabriel, que, por sua vez, a encaminhou para o King Saul Boulevard. Ela surgiu na tela de status do Centro Operacional. Sentado em sua cadeira
habitual estava Uzi Navot. Ele assistiu à transmissão ao vivo do saguão do Ritz, cortesia do minidispositivo oculto na bolsa de Dina. Eram 7h36 em Moscou, 6h36 em
Tel Aviv. Às 6h38, o telefone ao lado do cotovelo de Navot tocou. Ele atendeu depressa, resmungou algo que soava como o próprio nome, e escutou a voz de Orit, sua
secretária executiva. No Escritório, era conhecida como “Cúpula de Ferro” - uma referência ao impressionante sistema de defesa antiaéreo israelense - devido à incomparável
habilidade de destroçar os pedidos por um instante de conversa com o diretor.
- De jeito nenhum - respondeu Navot. - Sem chance.
- Ele deixou claro que não vai embora.
Navot suspirou fundo.
- Tudo bem. Deixe-o descer, se for mesmo necessário.
Navot desligou e fitou a imagem que mostrava o saguão do hotel. Dois minutos depois, escutou a porta do Centro de Operações ser aberta e fechada. Pelo canto do olho,
viu a mão manchada que colocava dois maços de cigarros turcos em cima da mesa, além de um Zippo velho, desgastado. O isqueiro foi aceso. Uma nuvem de fumaça obscureceu
a tela.
- Achei que tinha revogado os seus passes - disse Navot em voz baixa, ainda olhando para a frente.
- Você revogou - respondeu Shamron.
- Como você entrou no prédio?
- Abri um túnel.
Shamron girou o isqueiro nos dedos. Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- É muita cara de pau sua aparecer aqui - falou Navot.
- Não é a hora nem o lugar, Uzi.
- Eu sei que não, mas ainda assim é muita cara de pau.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- Você poderia aumentar o volume do áudio do telefone de Mikhail? - perguntou Shamron. - Minha audição não é mais a mesma.
- Não é só a sua audição.
Navot pediu a um dos técnicos que aumentasse o volume.
- Que música ele está cantando? - perguntou Shamron.
- Que diferença faz?
- Responda a pergunta, Uzi.
- Penny Lane.
- Beatles?
- É, Beatles.
- Por que você acha que ele escolheu essa música?
- Talvez goste dela.
- Talvez - disse Shamron.
Navot consultou o relógio: 7h42 em Moscou, 6h42 em Tel Aviv. Shamron apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Mikhail ainda cantarolava quando saiu do quarto vestido para o jantar. No momento em que ele entrou no elevador, o embrulho estava em sua mão direita, mas três minutos
depois, ao deixar o banheiro masculino do saguão, havia sumido. A equipe do Centro de Operações viu Mikhail pela primeira vez às 7h51, filmado pela câmera de Dina,
dirigindo-se para a entrada do hotel. Lazarev estava lá, com os braços erguidos como se sinalizasse para um avião de resgate. Ele tomou Mikhail pelo ombro e o levou
até a traseira de uma limusine Maybach.
- Espero que você tenha conseguido descansar um pouco - disse Lazarev enquanto o carro se afastava do meio-fio com suavidade -, porque esta noite você vai sentir
um gostinho da verdadeira Rússia.
50
CAFÉ PUSHKIN, MOSCOU
Mais tarde, na hora de arrumar os arquivos e preencher os relatórios da missão, haveria uma discussão acalorada acerca do verdadeiro significado das palavras de
Lazarev. Um lado considerou-as uma expressão inofensiva de boa vontade, enquanto o outro viu naquela frase um aviso claro que Gabriel, o futuro diretor, deveria
reconhecer se fosse sábio. Como sempre, foi Shamron que resolveu a controvérsia: as palavras de Lazarev não tinham importância, pois o destino de Mikhail já estava
selado no instante em que entrara no carro.
O ambiente onde os eventos se passaram, o renomado Café Pushkin, não poderia apresentar uma aparência mais acolhedora, especialmente numa noite de dezembro com o
ar gélido e a neve dançando no vento siberiano. O café ficava na esquina da rua Tverskaya com o anel rodoviário, numa imponente casa do século XVIII que dava a impressão
de ter sido importada da Itália renascentista. Diante de suas belas portas francesas, havia três pistas de tráfego e, mais além, uma pequena praça onde, certa vez,
os soldados de Napoleão armaram suas tendas e queimaram limoeiros para se aquecerem. Moscovitas seguiam às pressas para casa por trilhas de cascalho e algumas mães
corajosas estavam sentadas nos bancos sob a luz dos postes, observando os filhos superagasalhados brincarem nos gramados cobertos de neve. Entre as mulheres se achavam
Mordecai, observando a entrada do café, e Rimona, de olho nas crianças. Keller e Yossi tinham encontrado uma vaga a menos de 50 metros do Pushkin. Yaakov e Oded,
também num Land Rover, estavam outros 50 metros atrás deles.
O jantar fora marcado para as oito horas, mas, como o trânsito estava pior do que o normal, Lazarev e Mikhail chegaram com doze minutos de atraso. Mordecai anotou
o horário, assim como as equipes nos Land Rovers. Gabriel também tomou nota e logo mandou uma mensagem para o Centro de Operações - algo desnecessário, claro, pois
Navot e Shamron acompanhavam com atenção a transmissão ao vivo do telefone de Mikhail. Foi assim que eles escutaram os passos pesados sobre o piso sem polimento
na entrada do Pushkin. E o barulho do elevador antigo que levou o falso Avedon ao segundo andar. E os acalorados aplausos que o receberam quando ele entrou no salão
particular reservado para a sua coroação.
Um lugar tinha sido reservado para Mikhail na cabeceira da mesa, com Lazarev à direita e Zhirov à esquerda. Apenas o chefe de segurança não parecia entusiasmado
com a aquisição do novo pupilo de Viktor Orlov. No decorrer da noite, manteve a expressão neutra de um jogador experiente perdendo dinheiro na roleta. Seu olhar,
sombrio e focado, nunca se afastou por muito tempo do rosto de Mikhail. Parecia estar calculando suas perdas e decidindo se tinha estômago para mais uma rodada.
Mikhail não deu nenhum sinal de desconforto diante da presença soturna de Zhirov. Todos os que escutaram sua performance naquela noite a descreveriam como uma das
melhores que já haviam testemunhado. Ele era o Nicholas Avedon por quem todos tinham se apaixonado. O Nicholas espirituoso. O Nicholas irritável. O Nicholas mais
esperto que os demais no salão - com exceção de Lazarev, que talvez fosse mais inteligente que qualquer um no mundo. Conforme a noite avançava, ele foi falando menos
em inglês e mais em russo, até que parou completamente de falar inglês. Agora era um deles. Era Nicolai Avdonin. Um homem da Volgatek. Um homem do futuro da Rússia.
Um homem do passado da Rússia.
A transformação foi concluída pouco depois das dez horas, quando ele fez uma imitação perfeita de Orlov, incluindo o tique no olho esquerdo, que foi aclamada por
todos. Apenas Zhirov pareceu não ver graça. Ele também não se juntou à ovação após a bênção de Lazarev. Depois dos comentários do CEO da Volgatek, os festeiros seguiram
para a rua, onde uma fila de limusines da empresa aguardava na calçada. Lazarev pediu que Mikhail fizesse uma parada no escritório antes de deixar a cidade na manhã
seguinte, para que pudessem resolver algumas pendências no acordo de contratação. Em seguida, conduziu-o até a porta aberta de um Mercedes.
- Se não se incomodar - disse, com seu sorriso calculado de matemático vou deixar Pavel levar você de volta ao hotel. Ele gostaria de fazer algumas perguntas no
caminho.
Mikhail se viu respondendo "Sem problemas, Gennady” e, sem um instante de hesitação, entrou no carro. Zhirov, o único perdedor daquela noite, estava sentado à sua
frente, encarando a janela com uma aparência inconsolável. Ele não disse nada quando o carro começou a andar. Mikhail começou a tamborilar no apoio de braço, mas
logo se forçou a parar.
- Gennady disse que você tem algumas perguntas para mim.
- Na verdade - respondeu Zhirov em voz baixa -, tenho só uma.
- Qual?
Zhirov encarou Mikhail pela primeira vez.
- Quem é você, porra?
- Parece que Pavel acabou de mudar a posição do gol - disse Navot.
Shamron franziu a testa. Ele considerava o uso de metáforas esportivas inadequado para um negócio tão vital quanto a espionagem. Ergueu os olhos para um dos monitores
e viu luzes se movendo rapidamente pelo mapa do centro de Moscou. A luz que indicava a posição de Mikhail piscava em vermelho. Quatro luzes azuis a acompanhavam,
duas na frente e duas atrás.
- Parece que o encurralamos - comentou Shamron.
- Encurralado, muito bem. A questão é se Pavel tem reforços próprios ou se está num voo solo.
- Não sei se isso faz muita diferença a esta altura.
- Alguma sugestão?
- Chute para o gol - disse Shamron, acendendo outro cigarro. - Rápido.
Eles passaram em alta velocidade pela rua Tverskaya e continuaram pelo anel rodoviário.
- Meu hotel fica naquela direção - avisou Mikhail, apontando para trás com o polegar.
- Você parece conhecer bem Moscou - replicou Zhirov. Estava claro que não se tratava de um elogio.
- É um hábito meu.
- Como assim?
- Aprender a me virar em cidades estrangeiras. Odeio ter que pedir instruções. Não gosto de agir como um turista.
- Você gosta de ficar incógnito?
- Escute, Pavel, eu não estou gostando do rumo...
- Ou talvez você já tenha visitado Moscou antes - sugeriu Zhirov.
- Nunca.
- Recentemente, não?
- Não.
- Nem na infância?
- “Nunca” significa “nunca”, Pavel. Agora, se não se importa, gostaria de voltar para o hotel.
Zhirov estava olhando pela janela de novo. Ou será que perscrutava o retrovisor? Mikhail não podia ter certeza.
- Você ainda não respondeu a minha pergunta - disse Zhirov.
- Sua pergunta não é digna de resposta.
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas Avedon - falou Mikhail, calmo. - Sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, em Londres. E, graças a essa sua pequena exibição, vou continuar
sendo.
Zhirov não ficou convencido:
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas. Cresci na Inglaterra. Estudei em Cambridge e Harvard. Fiquei em Aberdeen por um tempo, já na indústria do petróleo. E depois fui trabalhar com
Viktor.
- Por quê?
- Por que eu cresci na Inglaterra? Ou por que fui para Harvard?
- Por que você foi trabalhar para um inimigo conhecido do Kremlin como Viktor Orlov?
- Porque ele estava em busca de alguém que pudesse assumir seu portfólio de petróleo. E, neste momento, estou arrependido de tê-lo traído.
- Você sabia das políticas dele quando aceitou o trabalho?
- Eu não me importo com as políticas dele. Para falar a verdade, não me importo com as políticas de ninguém.
- Você é um livre-pensador?
- Não, Pavel. Sou um homem de negócios.
- Você é um espião.
- Um espião? Você parou de tomar seus remédios, Pavel?
- Para quem você está trabalhando?
- Leve-me de volta para o hotel.
- Os ingleses?
- Meu hotel, Pavel.
- Os americanos?
- Foram vocês que me abordaram, lembra, Pavel? Em Copenhague, no fórum de petróleo. Nós nos encontramos numa casa no meio do nada. Tenho certeza de que você estava
lá.
- Para quem você está trabalhando? - insistiu Zhirov, como um professor lidando com um pupilo abobalhado.
- Pare o carro. Deixe-me sair.
- Quem?
- Pare a porra do carro.
A limusine parou, mas não por causa da ordem. Eles tinham chegado à rua Petrovka e a um cruzamento grande, com vias que levavam para várias direções diferentes.
O semáforo estava vermelho. Bem à frente, havia um Land Rover com dois homens. Mikhail olhou por cima do ombro e viu outro atrás. Em seguida, sentiu o celular vibrando
três vezes em rápida sucessão.
- O que foi isso? - perguntou Zhirov.
- É só o meu celular.
- Desligue-o e remova a bateria.
- Todo cuidado é pouco, não é, Pavel?
- Desligue-o!
Mikhail enfiou a mão no sobretudo, sacou a Makarov e enfiou o cano da pistola com força nas costelas de Zhirov. Os olhos do russo se arregalaram, mas ele não disse
nada. Encarou Mikhail por alguns segundos e, então, fitou Yaakov, que saía do Land Rover na frente deles. Keller já tinha deixado o outro carro e se aproximava do
Mercedes por trás.
- Fale ao motorista para colocar o câmbio na posição neutra - mandou Mikhail, em voz baixa. - Caso contrário, vou meter uma bala no seu coração. Dê a ordem, Pavel,
ou você morre agora mesmo.
Como Zhirov não respondeu, Mikhail engatilhou a arma. Keller estava parado ao lado da janela do chefe de segurança.
- Fale para ele, Pavel.
A luz do semáforo voltou a ficar verde. Um carro buzinou. Depois outro.
- Dê a ordem! - gritou Mikhail em russo.
Zhirov olhou para motorista pelo retrovisor e meneou a cabeça. O chofer obedeceu e pôs as mãos no volante.
- Fale para ele sair do carro e seguir as instruções.
Outra olhada para o retrovisor, outro aceno de cabeça. O motorista abriu a porta e saiu devagar. Yaakov estava esperando para cuidar dele. Depois de murmurar algumas
palavras no ouvido do motorista, levou-o até o seu Land Rover e o empurrou para o banco traseiro, sentando ao lado. Àquela altura, Keller já tinha assumido o volante
do Mercedes. Quando o Land Rover da frente partiu, ele engatou a marcha e o seguiu. Mikhail ainda pressionava a Makarov contra as costelas de Zhirov.
- Quem é você? - perguntou Pavel.
- Eu sou Nicholas Avedon.
- Quem é você?
- Eu sou o seu pior pesadelo e, se não calar a boca, vou matar você.
No Centro de Operações, as luzes da equipe se moviam para cima pelo mapa de Moscou - todas menos uma, que se mantinha na Teatralny Prospekt, descendo a ladeira,
vindo da praça Lubyanka. Não houve nenhuma celebração, nenhuma congratulação por um trabalho bem-feito. O ambiente ainda não permitia; Moscou tinha formas de revidar.
- Trinta segundos do começo ao fim - comentou Navot, os olhos presos na tela. - Nada mal.
- Trinta e três - corrigiu Shamron. - Mas quem está contando?
- Você estava.
Shamron deu um sorriso débil; ele estava contando. Na verdade, tinha passado a vida inteira contando: o número de membros da família perdidos para os fogos do Holocausto;
o número de compatriotas perdidos para as balas e as bombas; o número de vezes que tinha driblado a morte. Então, ele perguntou a Navot:
- Qual é a distância até o esconderijo?
- Duzentos e trinta e cinco quilômetros a partir dos limites da cidade.
- Qual é a previsão do tempo?
- Horrorosa - respondeu Navot. - Mas eles conseguem se virar.
Ele encarou as luzes se movendo através de Moscou.
- Trinta segundos - repetiu. - Nada mal.
- Trinta e três - voltou a corrigir Shamron. - E vamos torcer para que ninguém mais estivesse olhando.
Embora Shamron não soubesse, era exatamente isso que estava pensando o homem parado à janela do quadragésimo quarto andar do Hotel Metropol. Ele observava a esquina
da Teatralny Prospekt e o caminho até a fortaleza amarela, que se erguia na praça Lubyanka. Imaginou se conseguiria detectar alguma espécie de reação - luzes se
acendendo nos andares superiores, carros saindo da garagem -, mas decidiu que era improvável. Lubyanka sempre escondera bem suas emoções, assim como a Rússia sempre
escondera seus mortos com eficiência.
O homem se afastou da janela, desligou o notebook e o colocou no compartimento lateral da bolsa de viagem. Desceu de elevador até o saguão, acompanhado por duas
prostitutas de 17 anos com aparência de 45. Fora do hotel, um utilitário da Volvo aguardava, vigiado por um manobrista de aparência miserável, que recebeu uma generosa
gorjeta. Ele sentou ao volante e dirigiu para longe. Vinte minutos depois, tendo contornado o Kremlin, uniu-se ao rio de aço e luzes que saía de Moscou rumo ao norte.
No Centro de Operações, no entanto, ele era apenas uma luz vermelha, um anjo vingador sozinho na cidade dos hereges.
51
TVER OBLAST, RÚSSIA
Outrora, aquela fora a dacha de um homem poderoso - um membro do Comitê Central, talvez até mesmo do Politburo. Ninguém sabia dizer com certeza, porque, nos dias
caóticos que se seguiram ao colapso da União Soviética, tudo havia sido perdido. Fábricas pertencentes ao Estado permaneceram fechadas, pois ninguém conseguia encontrar
as chaves; computadores do governo entraram no modo de repouso, porque ninguém conseguia se lembrar dos códigos. A Rússia entrara aos tropeções num admirável novo
milênio sem qualquer mapa ou lembrança. Alguns falavam que ela ainda não tinha memória, embora agora a amnésia fosse proposital.
Por muitos anos, a dacha esquecida ficou vazia e abandonada, até que um construtor moscovita com uma fortuna recém-obtida, chamado Bloch, adquiriu-a por uma ninharia
e realizou uma reconstrução completa. Por fim, assim como muitos novos-ricos da Rússia, entrou em conflito com a nova equipe do Kremlin e decidiu deixar o país enquanto
ainda podia. Estabeleceu-se em Israel, em parte porque se achava um pouco judeu, mas principalmente porque nenhum outro país o acolheria. Com o passar do tempo,
vendeu os bens russos, mas não abriu mão da dacha na Tver Oblast. Resolveu dá-la a Ari Shamron, dizendo-lhe para fazer bom proveito.
A dacha ficava ao lado de um lago sem nome, e a rua que conduzia até ela não aparecia em nenhum mapa. Não era bem uma rua; tratava-se mais de um sulco que fora criado
na floresta de bétulas muito antes de qualquer pessoa ouvir falar de um lugar chamado Rússia. O portão original da dacha ainda existia. Por medo, Bloch - filho da
era stalinista - não removera a velha placa soviética de “Entrada Proibida”, que agora reluziu brevemente sob os faróis de Gabriel enquanto ele subia aos solavancos
pela pista coberta de neve. A dacha logo surgiu à sua frente, uma construção pesada de madeira com o telhado pontudo e varandas espaçosas ao redor. Havia diversos
veículos estacionados em volta da casa, inclusive um Mercedes Classe E de propriedade da Volgatek. Quando saiu do utilitário, Gabriel viu a luz de um cigarro na
escuridão.
- Bem-vindo a Shangri-Lá - disse Keller, que usava uma jaqueta grossa e segurava uma Makarov.
- Como está o perímetro?
- Um frio dos infernos, mas seguro.
- Quanto tempo você consegue ficar aqui fora?
Keller sorriu.
- Eu sou do Regimento, querido.
Gabriel deixou-o para trás e entrou na dacha. O restante da equipe se espalhava pelos móveis rústicos da sala ampla. Mikhail ainda estava vestido para um jantar
no Café Pushkin. Ele tinha a mão direita enfiada numa tigela de água gelada.
- O que aconteceu? - perguntou Gabriel.
- Eu bati a mão.
- No quê?
- Num rosto.
Gabriel pediu para ver a mão. Estava muito inchada, com os nós de três dedos esfolados.
- Quantas vezes você bateu a mão?
- Uma ou duas. Ou talvez tenham sido onze ou doze.
- Como está o rosto?
- Veja você mesmo.
- Onde ele está?
Mikhail apontou para o chão.
Em meio aos muitos recursos de luxo da dacha, havia um abrigo nuclear. O espaço já fora ocupado por um estoque de um ano de comida, água e suprimentos. Agora continha
dois homens. Ambos estavam cobertos de fita adesiva: mãos, pés, joelhos, bocas e olhos. Ainda assim, dava para ver que o rosto do mais velho sofrerá danos significativos,
devido a repetidas colisões contra a perigosa direita de Mikhail. Ele estava apoiado numa parede, as pernas estendidas no chão. Ao escutar a porta sendo aberta,
sua cabeça começou a virar de um lado para o outro, como uma antena de radar em busca de uma aeronave invasora. Gabriel se agachou na frente dele e arrancou a fita
adesiva dos seus olhos, levando junto parte de uma sobrancelha; agora, o prisioneiro parecia estar com uma expressão de surpresa permanente. Havia um corte profundo
na bochecha e sangue ressecado em volta do nariz entortado. Gabriel sorriu e tirou a fita adesiva da boca.
- Olá, Pavel. Ou devo chamá-lo de Paul?
Zhirov ficou em silêncio. Gabriel avaliou o nariz quebrado.
- Isso deve doer. Mas esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
- Estou ansioso para retribuir o favor, Allon.
- Então você me reconhece, afinal.
- É claro - disse Zhirov, um pouco confiante demais. - Nós o estamos observando desde que você colocou os pés na Rússia.
- Nós quem? A Volgatek? O SVR? A FSB? Ou deixamos as amenidades de lado e chamamos logo de KGB, que é exatamente do que se trata a sua organização?
- Você está morto, Allon... Você e toda a sua equipe. Nunca vai sair vivo da Rússia.
O sorriso de Gabriel se manteve firme.
- Eu sempre achei melhor não fazer ameaças vazias, Pavel.
- Concordo plenamente.
- Então talvez você deva parar de fingir que sabia que eu estava em Moscou, ou que sabia que Nicholas Avedon era minha criação. Você nunca teria agido contra ele
esta noite sem o apoio da FSB se soubesse que ele era meu agente.
- Quem disse que eu não tinha apoio?
- Eu.
- Você está enganado, Allon. Mas você tem um longo histórico de erros. A FSB está apenas esperando para garantir que todos os membros da sua equipe estejam identificados.
Você tem algumas horas, no máximo. E aí você é que estará sentado numa cela com o nariz quebrado.
- Então suponho que seja bom começarmos.
- Começarmos o quê?
- Sua confissão. Você vai dizer ao mundo como sequestrou uma garota inglesa chamada Madeline Hart para que a Volgatek Petróleo e Gás pudesse ganhar acesso ao mar
do Norte.
Zhirov simulou surpresa.
- A garota inglesa? É disso que se trata?
Gabriel balançou a cabeça lentamente, como se desapontado com a resposta de Zhirov.
- Vamos, Pavel. Sem dúvida você pode fazer melhor do que isso. Você a sequestrou na estrada costeira perto de Calvi poucas horas depois de almoçar com ela no Les
Palmiers. Um delinquente de Marselha chamado Marcei Lacroix o levou até o continente, onde você a entregou para outro vagabundo marselhês, René Brossard, para que
a mantivesse presa. Então, após coletar 10 milhões de euros do primeiro-ministro britânico como resgate, deixou-a na traseira de um carro na praia em Audresselles
e acendeu um fósforo.
- Nada mal, Allon.
- Na verdade, não foi muito difícil. Você deixou um monte de pistas para seguir. Mas isso foi proposital: o sequestro e o assassinato de Madeline deveriam parecer
trabalho de criminosos franceses. Mas houve um engano, Pavel. Você deveria ter me dado ouvidos quando avisei para não machucá-la. Eu disse exatamente o que aconteceria
se você o fizesse. Eu disse que o encontraria. E também que o mataria.
- Então por que não matou? Por que arriscar o seu pessoal me sequestrando e me trazendo para cá?
- Nós não o sequestramos, Pavel. Nós o capturamos. E o trouxemos aqui porque, apesar das circunstâncias atuais, esse é o seu dia de sorte. Eu vou lhe dar algo que
não acontece com muita frequência no nosso negócio: uma segunda chance.
- E o que eu preciso fazer?
- Responder algumas perguntas, amarrar algumas pontas soltas.
- Só isso?
Gabriel assentiu.
- E depois?
- Depois você será liberado.
- Para fazer o quê? - perguntou Zhirov, sério.
- Voltar para a Volgatek. Para o SVR. Para baixo da pedra da qual você rastejou.
Zhirov conseguiu abrir um sorriso condescendente.
- E o que você acha que vai acontecer comigo quando eu voltar para Yasenevo depois de responder suas perguntas e amarrar as pontas soltas?
- Suponho que você vá receber a vysshaya mera. A maior punição.
Zhirov aquiesceu, admirado.
- Você sabe muito sobre o meu serviço.
- Não por escolha. Para ser sincero, Pavel, não me importo com o que o seu serviço vai fazer com você.
- Você deveria se importar - disse Zhirov, mantendo o sorriso condescendente. - Veja bem, Allon, tudo o que você está me oferecendo é uma escolha entre a morte e
a morte.
- Eu estou lhe oferecendo a oportunidade de presenciar mais uma alvorada russa, Pavel. E não se preocupe: vou garantir que você tenha bastante tempo num lugar tranquilo
para poder pensar numa boa história para seus mestres no SVR. Algo me diz que, no fim, você vai acabar bem.
- E se eu me recusar?
- Nesse caso, vou meter uma bala na sua nuca por ter matado Madeline.
- Preciso de tempo para pensar.
Gabriel recolocou a fita adesiva sobre os olhos e a boca de Zhirov.
- Você tem cinco minutos.
Na verdade, acabaram se passando dez minutos antes de Mikhail, Yaakov e Oded carregarem Zhirov para a sala de jantar, onde o prenderam com firmeza numa cadeira pesada.
Gabriel estava sentado à sua frente. Atrás dele, postava-se Yossi, com os olhos fixos na pequena tela de uma filmadora montada num tripé. Depois de fazer um pequeno
ajuste ao ângulo da filmagem, Yossi meneou a cabeça para Mikhail, que arrancou a fita dos olhos e da boca de Zhirov. O russo piscou rapidamente várias vezes. Em
seguida, seus olhos varreram o cômodo devagar, gravando cada rosto, cada detalhe, antes de enfim recair sobre a fotografia que Gabriel tinha nas mãos. Nela estava
Zhirov, com uma aparência muito diferente da atual, almoçando com Madeline Hart no Les Palmiers.
- Como você a conheceu? - perguntou Gabriel.
- Conheci quem?
Gabriel colocou a foto em cima da mesa e pediu para Yossi desligar a filmadora. Eles cortaram as amarras da cadeira, prenderam os pulsos de Zhirov com uma corda
e o carregaram para fora, na escuridão, até a beira do lago. No fim de uma doca com cerca de 15 metros de comprimento, havia um trecho de água que ainda não tinha
congelado. Zhirov deu um mergulho desajeitado, como faz um homem bem amarrado sendo jogado por três sujeitos furiosos.
- Você sabe qual é o tempo de sobrevivência na água nessa temperatura? - perguntou Keller.
- Ele vai começar a perder sensibilidade e destreza em dois minutos. E provavelmente estará inconsciente em quinze.
- Isso se ele não se afogar antes.
- Sempre há essa chance - admitiu Gabriel.
Keller observou em silêncio o homem se debater.
- Como você vai saber que já passou tempo suficiente?
- Quando ele começar a afundar.
- Lembre-me de nunca entrar na sua lista negra.
- Esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
52
TVER OBLAST, RÚSSIA
Bastaram dois minutos no lago. Depois disso, não houve mais nenhuma afirmação de inocência, nenhuma ameaça de que, em breve, a FSB chegaria. Resignado ao seu destino,
Zhirov se tornou um prisioneiro-modelo. Apresentou apenas um pedido: que fizessem algo a respeito de sua aparência. Como a maior parte dos espiões, tinha passado
a vida evitando câmeras e não queria fazer a estreia parecendo o perdedor de uma luta de boxe.
Na comunidade de inteligência, há uma verdade dada como certa: ao contrário da crença popular, a maioria dos espiões gosta de falar, especialmente em meio a circunstâncias
que tomam suas carreiras irrecuperáveis. Nessa situação, fazem os segredos jorrarem, mesmo se for apenas para provar a si mesmos que eles foram mais do que uma simples
engrenagem na máquina secreta, que foram importantes, mesmo que não tenham sido.
Portanto, Gabriel não se surpreendeu quando Zhirov, depois de se recuperar do mergulho no lago, assumiu subitamente uma atitude verborrágica. Vestido com roupas
secas, aquecido pelo chá doce e por um gole de uísque, começou o relato não com Madeline Hart, mas consigo mesmo. Ele tinha sido um filho da nomenklatura, a elite
comunista da União Soviética. Seu pai fora um oficial de alto escalão no Ministério Soviético das Relações Exteriores sob o comando de Andrei Gromyko; isso significava
que Zhirov tinha estudado em escolas especiais reservadas para as crianças da elite e que podia fazer compras em lojas especiais do Partido que vendiam bens de luxo,
com os quais a maioria dos cidadãos soviéticos conseguia apenas sonhar. E também havia o luxo quase inaudito das viagens ao exterior. Zhirov passou boa parte da
infância fora da União Soviética, principalmente nos estados vassalos do Leste Europeu que compunham a área de especialização do pai - embora, certa vez, ele tenha
ficado seis meses em Nova York quando o pai trabalhou nas Nações Unidas. Zhirov odiava a cidade americana, pois, como criança leal ao Partido, fora criado e educado
para detestá-la.
- Nós não víamos a riqueza e a ganância dos Estados Unidos como algo a ser imitado. Para nós, eram elementos que podíamos usar contra os americanos para destruí-los.
Apesar de ter sido um estudante indiferente e, com frequência, inadequado, Zhirov foi aceito pelo prestigiado Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou. Ao se
graduar, todos imaginaram que ele fosse trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores. Em vez disso, um recrutador do Comitê de Segurança do Estado, mais conhecido
como KGB, apareceu no apartamento de Zhirov em Moscou. O homem disse que o serviço secreto estava de olho em Pavel desde a sua infância e acreditava que ele reunia
todos os atributos de um espião perfeito.
- Fiquei incrivelmente lisonjeado - admitiu Zhirov. - Era 1975. Ford e Brejnev estavam se fazendo de amigos em Helsinque, mas, por trás da fachada amena, a disputa
entre o Leste e o Oeste, o capitalismo e o socialismo, ainda grassava. E eu iria fazer parte dela.
Mas antes, acrescentou Zhirov, teria que frequentar outra instituição: o Instituto do Estandarte Vermelho, o centro de treinamento da KGB em Moscou. Lá, aprendeu
os aspectos básicos do trabalho na KGB, em especial sobre recrutamento de espiões, um processo dolorosamente lento e controlado com firmeza, que chegava a durar
um ano ou mais. Quando o treinamento terminou, foi designado para o Quinto Departamento do Primeiro Diretório Geral e transferido para Bruxelas. Em seguida, passou
por vários outros postos na Europa Ocidental, até que os seus superiores no Centro Moscovita perceberam que tinha talento para o lado mais obscuro da profissão.
Zhirov foi realocado no Departamento S, a unidade que supervisionava agentes soviéticos residindo “ilegalmente” no exterior. Depois, trabalhou para o Departamento
V, a divisão da KGB que lidava com o mokroye delo.
- “Serviço úmido”... Assassinatos, certo?
Zhirov assentiu.
- Eu não era um assassino como você, Allon, mas um organizador, estrategista.
- Você conduziu alguma operação de falsa bandeira enquanto estava no De-partamento V?
- Nós as conduzíamos o tempo todo - admitiu Zhirov. - Na verdade, falsas bandeiras eram o procedimento operacional de praxe. Quase nunca agíamos contra um alvo a
menos que pudéssemos criar uma história plausível mostrando que outra pessoa estava por trás da ação.
- Quanto tempo você ficou no Departamento V?
- Até o fim.
Com isso, ele queria dizer o fim da União Soviética, que desmoronou em dezembro de 1991. Quase da noite para o dia, o antigo superpoder foi transformado em quinze
países, com a Rússia, o coração da velha organização, em destaque. A KGB se dividiu em dois serviços diferentes. Em pouco tempo, o Centro Moscovita, outrora uma
catedral da inteligência, enfrentou tempos difíceis. Surgiram rachaduras no exterior do prédio e o saguão se encheu de lixo. Oficiais com a barba por fazer vestindo
trajes amarrotados vagavam pelos corredores num torpor alcoólico.
- Não havia sequer papel higiênico no banheiro masculino - disse Zhirov, a voz sendo tomada pelo desgosto. - O lugar todo era um chiqueiro. E não havia ninguém no
comando.
Ele contou que isso mudara quando Boris Yeltsin enfim deixou o palco e os siloviki, homens dos serviços de segurança, assumiram o controle do Kremlin. Quase imediatamente,
ordenaram que o SVR aumentasse o volume de operações contra os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aliados nominais da nova Federação Russa. Zhirov foi designado como
novo chefe rezident do SVR em Washington, um dos postos mais importantes do serviço. Mas, no dia em que deveria partir da Rússia, recebeu uma convocação do Kremlin.
Pelo visto, o presidente, um velho colega da KGB, queria conversar.
- Imaginei que ele quisesse me dar algumas instruções de despedida sobre como lidar com o trabalho em Washington, mas a verdade é que ele tinha outros planos para
mim.
- A Volgatek - concluiu Gabriel.
Zhirov assentiu.
- A Volgatek.
Para compreender o que aconteceu em seguida, disse Zhirov, antes seria necessário entender a importância do petróleo para a Rússia. Ele lembrou à sua plateia que,
por décadas, a União Soviética havia sido a terceira maior produtora mundial dessa commodity, perdendo apenas para os emirados do Golfo Pérsico, dominados pelos
americanos, e para a Arábia Saudita. As crises de petróleo nos anos 1970 e 1980 turbinaram a vacilante economia soviética. Foram como uma máscara de oxigênio, que
prolongou a vida do paciente até muito tempo depois de o cérebro parar de funcionar. O novo presidente russo compreendeu o que Yeltsin não tinha entendido: o petróleo
poderia transformar a Rússia numa superpotência novamente. Então, ele disse aos oligarcas como Viktor Orlov que a porta da rua era a serventia da casa, e colocou
todo o setor russo de energia sob o controle efetivo do Kremlin. Em seguida, abriu uma empresa petrolífera própria.
- A KGB Óleo e Gás - disse Gabriel.
- Mais ou menos - concordou Zhirov, assentindo devagar. - Mas a nossa empresa seria diferente. Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de
downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.
- E para onde vai o resto?
- Use a sua imaginação.
- Para o bolso do presidente russo?
- Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB. Nosso presidente vale cerca de 40 bilhões de dólares, e boa parte da
fortuna vem da Volgatek.
- De quem foi a ideia de perfurar no mar do Norte?
- Foi dele - respondeu Zhirov. - É uma empreitada que ele leva muito a sério. Disse que a Volgatek deveria enfiar um canudo nas águas territoriais britânicas e sugar
até que não reste nada. Ah, só para constar: eu fui contra a ideia desde o começo.
- Por quê?
- Parte do meu trabalho como chefe de segurança e operações consiste em inspecionar o campo antes de ser tomada qualquer decisão sobre um ativo ou um contrato. A
minha análise da situação na Inglaterra não foi promissora. Previ que as tensões políticas entre Londres e Moscou levariam a uma rejeição do nosso pedido para perfurar
na região das Ilhas Ocidentais. E, infelizmente, eu estava certo.
- Suponho que o presidente tenha ficado desapontado.
- Eu nunca o vi tão furioso. Principalmente porque suspeitou que Viktor Orlov tivesse desempenhado algum papel nessa questão. Ele me chamou para o seu escritório
no Kremlin e disse que eu deveria usar todos os meios necessários para conseguir aquele contrato.
- Então você mirou em Jeremy Fallon.
Zhirov hesitou antes de responder:
- É óbvio que você tem boas fontes em Londres.
- Cinco milhões de euros numa conta bancária suíça. Foi isso que você deu para Jeremy Fallon em troca do contrato.
- A negociação foi dura. É claro que ficamos extremamente desapontados quando ele não cumpriu a promessa. Fallon alegou que não podia fazer nada.
Lancaster e o secretário de Energia eram totalmente contra o acordo. Nós precisávamos agir para mudar a dinâmica... moldar o campo de batalha, por assim dizer.
- Então você sequestrou a amante do primeiro-ministro.
Zhirov não respondeu.
- Confesse, ou vamos dar outro mergulho ao luar.
- Sim - disse Zhirov, olhando direto para a câmera -, eu sequestrei a amante do primeiro-ministro.
- Como você sabia que Lancaster estava tendo um caso com ela?
- A rezidentura em Londres já ouvia rumores há algum tempo sobre uma jovem do quartel-general do Partido que visitava a Downing Street tarde da noite. Pedi que investigassem
a questão mais a fundo. Não levaram muito tempo para descobrir quem era.
- Fallon sabia que você planejava sequestrá-la?
Zhirov balançou a cabeça.
- Só depois de obter a confissão de Madeline é que revelei a Fallon nossa participação. Disse a ele para aproveitar a oportunidade e fechar o negócio. Caso contrário,
eu o entregaria também.
- Vazando o fato de que ele aceitara um suborno de cinco milhões de euros de uma petrolífera do Kremlin.
Zhirov assentiu.
- Quando você entrou em contato com ele?
- Eu viajei para Londres enquanto você e o seu amigo da Córsega reviravam a França atrás da garota. Lancaster estava tão incapacitado pelo estresse que aceitava
qualquer coisa. Fallon forçou o acordo, apesar das objeções do secretário de Energia. Em seguida, dei início ao lance final.
- O pedido de resgate - completou Gabriel. - Dez milhões de euros, ou a garota morreria. E Fallon soube o tempo todo que era só uma farsa para encobrir o papel da
Volgatek no desaparecimento de Madeline.
- E o papel dele também.
- O quanto Lancaster sabia?
- Nada - garantiu Zhirov. - Ele ainda acha que pagou 10 milhões de euros para salvar a amante e a carreira política.
- Por que você insistiu para que eu entregasse o dinheiro?
- Nós queríamos nos divertir um pouco às suas custas.
- Matando Madeline na minha frente?
Zhirov ficou em silêncio.
- Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.
- Eu matei Madeline Hart - recitou ele.
- Como?
- Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.
- Por quê? Por que você a matou?
- Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra de forma alguma.
- Por que você não me matou também?
- Acredite em mim, Allon, nada teria nos deixado mais felizes. Mas achamos que você fosse mais útil vivo do que morto. Afinal, quem melhor do que o grande Gabriel
Allon para confirmar que Madeline tinha sido morta em um esquema banal de sequestro por resgate?
- Onde estão os 10 milhões de euros?
- Dei de presente para o presidente russo.
- Gostaria de tê-los de volta.
- Boa sorte.
Gabriel colocou a fotografia do almoço no Les Palmiers na mesa de novo.
- O que estava acontecendo aqui?
- Suponho que você possa considerar isso o estágio final de um recrutamento romântico.
Gabriel franziu o cenho, cético.
- Por que uma jovem linda como Madeline se interessaria por um babaca como você?
- Eu sou bom no que faço, Allon. Assim como você. Além disso, ela era uma garota solitária. Uma garota fácil.
- Tome cuidado, Pavel. - Gabriel analisou a foto com certo exagero. - Engraçado, mas vocês dois não pareciam muito à vontade juntos.
- Foi a nossa terceira reunião.
- Reunião?
- Encontro - corrigiu-se Zhirov.
- Não me parece que vocês estivessem se divertindo - insistiu Gabriel, ainda fitando a foto. - Na verdade, se fosse para eu adivinhar, diria que vocês estavam brigando.
- Não estávamos - retrucou Zhirov rapidamente.
- Tem certeza?
- Tenho.
Gabriel colocou a foto de lado.
- Mais alguma pergunta? - quis saber Zhirov.
- Só uma: como você soube que Madeline estava tendo um caso com Jonathan Lancaster?
- Eu já respondi a essa pergunta.
- Eu sei, mas, desta vez, quero que me diga a verdade.
Ele deu a mesma explicação - sobre os rumores chegando aos ouvidos do rezident do SVR em Londres -, mas Gabriel não estava engolindo. Deu mais uma chance para Zhirov
e, como ele continuava repetindo a mesma mentira, levou o russo até o final da doca e pressionou o cano da Makarov contra a sua nuca. Lá, na beira do lago congelado
sem nome, a verdade saiu aos borbotões. Parte de Gabriel tinha suspeitado desde o começo. Mesmo assim, ele mal pôde acreditar na história. Mas só podia ser verdade,
pensou. Era a única explicação possível para tudo o que havia acontecido.
Quando eles voltaram para a dacha, Zhirov recitou a história novamente, dessa vez para a câmera, antes de ser devolvido, amarrado e amordaçado, ao abrigo nuclear.
Agora, a operação estava quase concluída. Eles tinham obtido provas de que a Volgatek subornara e chantageara para abrir caminho até o lucrativo mercado de petróleo
do mar do Norte. Tudo o que restava era se dirigirem ao aeroporto e embarcarem em voos separados para casa. Ou, sugeriu Gabriel, poderiam adiar a partida para tratar
de uma última questão. Não era uma decisão que ele podia tomar sozinho, portanto, atipicamente, uma votação foi aberta. Não houve nenhuma oposição.
53
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Gabriel decidiu que seria mais seguro ir de trem. Havia uma estação na cidade de Okulovka e ele poderia pegar o primeiro transporte local da manhã e chegar a São
Petersburgo no começo da tarde. Ficou secretamente feliz quando Lavon insistiu em acompanhá-lo. Gabriel precisava dos olhos dele. E também precisava de seu russo.
Eram menos de 65 quilômetros até Okulovka, mas as estradas terríveis e o tempo ruim alongaram a viagem para quase duas horas. Eles deixaram o Volvo num pequeno estacionamento
tomado pelo vento e foram às pressas para a estação, uma estrutura de tijolos vermelhos recém-construída, estranhamente parecida com uma fábrica. Os passageiros
já estavam embarcando quando Lavon conseguiu comprar duas passagens de primeira classe de um dos bilheteiros protegidos atrás das cabines de vidro. Eles dividiram
um compartimento com duas garotas russas que conversavam sem parar e um homem de negócios magro vestido com elegância que não tirou os olhos do telefone sequer uma
vez. Lavon passou o tempo lendo os jornais matinais de Moscou, que não faziam nenhuma menção a um executivo do petróleo desaparecido. Gabriel ficou olhando através
da janela coberta de gelo, contemplando os campos intermináveis de neve, até que o oscilar do vagão começou a embalá-lo.
Ele acordou assustado quando o trem entrou chacoalhando na estação Moskovsky, em São Petersburgo. No andar de cima, o grande saguão abobadado estava tumultuado;
pelo visto, o trem-bala vespertino para Moscou tinha sido atrasado por uma ameaça chechena de bomba. Seguido por Lavon, Gabriel se embrenhou na massa de crianças
choronas e casais discutindo e saiu na Praça Vosstaniya. O Obelisco da Cidade-Herói se erguia no centro da rotatória engarrafada. Postes iluminavam toda a Nevsky
Prospekt. Eram apenas duas da tarde, mas qualquer luz do sol que tivesse surgido já desaparecera havia muito tempo.
Gabriel caminhou pela prospekt, seguido por um vigilante Lavon. Ele não estava mais na Rússia, pensou, mas num paraíso czarista, importado do Ocidente e construído
por camponeses aterrorizados. Florença o chamava das fachadas dos palácios barrocos, e, atravessando o rio Moyka, ele imaginou Veneza. Gabriel se perguntou quantos
cadáveres jaziam abaixo do gelo. Milhares, dezenas de milhares. Nenhuma outra cidade no mundo escondia os horrores do passado com mais beleza do que São Petersburgo.
A única visão desagradável da prospekt ficava perto do final: o velho prédio da Aeroflot, uma monstruosidade cinza inspirada no Palácio Ducal de Veneza, com uma
pitada da Florença dos Médicis para completar. Gabriel entrou na rua Bolshaya Morskaya e a seguiu através do Arco do Triunfo, chegando à Praça do Palácio. Ao chegarem
perto da Coluna de Alexandre, Lavon se aproximou para dizer que ele não estava sendo seguido. Gabriel consultou o relógio, que parecia congelado em seu pulso. Eram
duas horas e vinte. Acontece no mesmo horário todos os dias, dissera Zhirov. Eles sempre ficam meio loucos quando voltam para casa depois de muito tempo no frio.
Junto à Praça do Palácio, havia um pequeno parque, verde no verão e agora branco como um osso por causa da neve. Lavon aguardou ali num banco enquanto Gabriel caminhava
sozinho até o Cais do Palácio. O rio Neva estava congelado. Olhou para o relógio pela última vez. Em seguida, ficou parado na barreira, tão inerte quanto o poderoso
rio, e esperou por uma garota desconhecida.
Ele a viu cinco minutos depois, atravessando a Ponte do Palácio. Ela usava um casaco grosso e botas que quase alcançavam os joelhos. Um chapéu de lã cobria-lhe os
cabelos claros. Um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Mesmo assim, Gabriel soube instantaneamente que era ela. Os olhos a traíam. Os olhos e o contorno dos
malares. Era como se a moça com brincos de pérola de Vermeer tivesse sido libertada da tela e agora caminhasse ao longo da margem de um rio em São Petersburgo.
Ela passou como se Gabriel fosse invisível e seguiu para o Hermitage. Antes de segui-la, ele verificou se a mulher estava sendo vigiada e, quando entrou no museu,
a garota já tinha sumido. Isso não importava, pois Gabriel sabia para onde a desconhecida ia. Sempre o mesmo quadro, falara Zhirov. Ninguém consegue entender por
quê.
Ele comprou uma entrada e caminhou pelos corredores e galerias intermináveis até a Sala 67: a Sala de Monet. E lá estava ela, sentada a sós, admirando Lagoa em Montgeron.
Quando Gabriel se sentou ao seu lado, a mulher olhou de relance para ele antes de voltar a observar a pintura. O disfarce dele era melhor do que o dela. Gabriel
não significava nada para a mulher. Nunca deveria ter significado.
Após mais um minuto, ele ainda não tinha se mexido; ela se virou e o encarou pela segunda vez. Foi então que a mulher percebeu o exemplar de Uma janela para o amor
equilibrado sobre o seu joelho.
- Acredito que isso pertença a você - disse Gabriel, e colocou o livro com cuidado na mão trêmula da mulher.
54
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar da sede da FSB, há um conjunto de salas ocupadas pela menor e mais secreta unidade da organização. Conhecido como Departamento de Coordenação, o
grupo lida apenas com casos de extrema sensibilidade política, normalmente a pedido do próprio presidente russo. Naquele momento, o velho chefe da unidade, coronel
Leonid Milchenko, estava sentado em frente à sua grande mesa feita na Finlândia, com um telefone grudado no ouvido, os olhos fixos na Praça Lubyanka. Vadim Strelkin,
seu braço direito, estava parado ansioso na soleira da porta. Pela forma como Milchenko bateu o telefone, percebeu que teria uma longa noite.
- Quem era? - perguntou Strelkin.
Milchenko respondeu sem tirar os olhos da janela.
- Merda - praguejou Strelkin.
- Merda não, Vadim: petróleo.
- O que ele queria?
- Ele quer uma conversa particular.
- Onde?
- No escritório dele.
- Quando?
- Cinco minutos atrás.
- Do que você acha que se trata?
- Pode ser qualquer coisa - falou Milchenko. - Mas, se a Volgatek está envolvida, não pode ser nada bom.
- Vou pegar o carro.
- Boa ideia, Vadim.
Tirar o carro das entranhas de Lubyanka levou mais tempo do que a viagem curta até a sede da Volgatek na rua Tverskaya. Dmitry Bershov, o número dois da empresa,
esperava, ansioso, no saguão quando Milchenko e Strelkin entraram - outro mau sinal. Em silêncio, conduziu-os a um elevador executivo e apertou o botão do último
andar. Ao se abrirem as portas, eles deram diretamente no maior escritório que Milchenko já vira em Moscou. Só depois de alguns segundos é que ele avistou Gennady
Lazarev, sentado numa das pontas de um comprido sofá de couro. O coronel decidiu ficar de pé enquanto o CEO da Volgatek explicava que Pavel Zhirov, seu chefe de
segurança, não era visto desde as onze horas da noite passada. Milchenko conhecia o nome: havia sido seu contemporâneo na KGB. Ele deixou um caderno de couro na
mesa de centro de Lazarev e se sentou.
- O que estava acontecendo ontem à noite às onze horas?
- Nós estávamos dando uma festa no Café Pushkin para celebrar uma contratação importante na empresa. A propósito, o novo funcionário também está desaparecido. Assim
como o motorista.
- Você podia ter mencionado isso logo de cara.
- Estava chegando ao ponto.
- Qual é o nome do novo contratado?
Lazarev respondeu.
- Russo?
- Na verdade, não.
- O que isso significa?
- Que ele vem de família russa, mas carrega um passaporte britânico.
- Então ele é, na verdade, britânico.
- É.
- Mais alguma coisa que eu deva saber sobre ele?
- Atualmente, é funcionário de Viktor Orlov em Londres.
Milchenko trocou um olhar demorado com Strelkin antes de encarar o caderno, sem dizer nada. Ele ainda não tinha escrito nada no papel; provavelmente, uma atitude
sensata. Estavam desaparecidos um ex-agente da KGB e um associado do oponente mais ferrenho do Kremlin. Milchenko começava a achar que deveria ter ficado em casa
naquela manhã, fingindo estar doente.
- Suponho que eles tenham deixado o Café Pushkin juntos - disse por fim. Lazarev assentiu.
- Por quê?
- Pavel queria lhe fazer algumas perguntas.
- Por que eu não estou surpreso?
Lazarev ficou em silêncio.
- Que tipo de perguntas?
- Pavel tinha algumas suspeitas em relação a ele.
- Tais como...?
- Ele acreditava que o homem podia estar vinculado a um serviço estrangeiro de inteligência.
- Algum serviço específico?
- Por razões óbvias - disse Lazarev com cuidado suas suspeitas se centraram nos britânicos.
- Então ele planejava bater um pouco no cara.
- Ele só ia fazer algumas perguntas.
- E se não gostasse das respostas?
- Nesse caso, bateria um pouco.
- Que bom que esclarecemos isso.
O telefone perto de Lazarev emitiu um zumbido leve. Ele atendeu, escutou em silêncio e disse “Imediatamente” antes de desligar.
- O que foi? - perguntou Milchenko.
- O presidente gostaria de ter uma conversa.
- Você não deveria deixá-lo esperando.
- Na verdade, é você que ele quer ver.
55
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Naquele mesmo instante, o homem responsável pela convocação do coronel Milchenko ao Kremlin caminhava pela Admiralty Prospekt, em São Petersburgo. Ele não sentia
mais frio, apenas o ponto em seu braço onde a mão dela havia pousado brevemente antes de eles se separarem. Seu coração batia contra o peito. Sem dúvida ela estaria
sendo observada. E Gabriel estaria prestes a ser preso. Para apaziguar seus medos, mentiu para si mesmo. Ele não estava na Rússia, pensou, mas em Veneza e Roma e
Florença e Paris, tudo ao mesmo tempo. Estava seguro. Ela também.
A Catedral de Santo Isaac, a colossal igreja de mármore que os soviéticos transformaram num museu do ateísmo, surgiu à sua frente. Ele entrou no prédio e subiu a
escadaria estreita em caracol até a cúpula que cercava o domo dourado. Como esperava, a plataforma estava vazia. A cidade de conto de fadas fervilhava abaixo dos
seus pés, o trânsito se movendo lentamente pelas grandes prospekt.
Numa delas, uma mulher caminhava sozinha; um chapéu cobria-lhe os cabelos claros, um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Alguns momentos depois, ele ouviu
os passos na escada. E, então, ela estava parada na sua frente. Não havia iluminação na cúpula. Mal dava para vê-la na escuridão.
- Como você me encontrou?
O som da voz dela era quase irreal. Era o sotaque britânico. Gabriel se deu conta de que era o único sotaque dela.
- Não importa como eu encontrei você.
- Como? - perguntou ela de novo, mas dessa vez Gabriel só ficou em silêncio. Ele deu um passo na direção dela para enxergar seu rosto mais claramente.
- Agora você se lembra de mim, Madeline? Fui eu que arrisquei tudo para tentar salvar a sua vida. Nunca me ocorreu que você estivesse envolvida desde o começo. Você
me enganou, Madeline. Você enganou todo mundo.
- Eu nunca estive envolvida, mas apenas obedecendo ordens.
- Eu sei - disse Gabriel depois de um instante. - Caso contrário, não estaria aqui.
- Quem é você?
- Na verdade, eu estava prestes a fazer a mesma pergunta.
- Meu nome é Madeline. Madeline Hart, de Basildon, Inglaterra. Eu segui todas as regras. Fui bem na escola e na universidade. Consegui um emprego na sede do Partido.
Meu futuro era promissor. Eu seria membro do Parlamento algum dia. Talvez até mesmo uma ministra. - Ela fez uma pausa. - Pelo menos era isso que diziam sobre mim.
- Qual é o seu nome real?
- Não sei o meu nome real. Eu mal falo russo. Eu não sou russa. Sou Madeline. Uma garota inglesa.
Ela tirou o exemplar de Uma janela para o amor do bolso do casaco e o ergueu.
- Onde você encontrou isto?
- No seu quarto.
- O que você estava fazendo lá?
- Tentando descobrir por que a sua mãe foi embora de Basildon sem dizer nada para ninguém.
- Ela não é a minha mãe.
- Agora eu sei disso. Na verdade, acho que eu soube quando vi uma fotografia com você e os seus pais. Eles parecem...
- Camponeses - completou ela, ressentida. - Eu os odiava.
- Onde a sua mãe e o seu irmão estão agora?
- Num velho centro de treinamento da KGB no meio do nada. Eu deveria ter ido para lá também, mas me recusei. Disse que queria viver em São Petersburgo, ou então
fugiria para o Ocidente.
- Você tem sorte de não estar morta.
- Eles me ameaçaram. - Ela o encarou por um instante. - Quanto você realmente sabe sobre mim?
- Sei que o seu pai foi um general importante no Primeiro Diretório Geral, talvez até mesmo o próprio chefão. Sua mãe era uma de suas datilografas. Ela teve uma
overdose com pílulas para dormir e vodca pouco depois de você nascer; pelo menos essa é a história. Então, você foi colocada num tipo de orfanato.
- Um orfanato da KGB. Fui criada por lobos, de verdade.
- A certa altura, eles pararam de falar russo com você no orfanato. Na verdade, não falavam mais nada na sua presença. Você cresce em completo silêncio até mais
ou menos os 3 anos. É aí que eles começam a conversar com você em inglês.
- Inglês da KGB - explicou ela. - Passei um tempo com o sotaque de um locutor da Rádio Central de Moscou.
- Quando você conheceu os seus novos pais?
- Eu tinha uns 5 anos. Nós vivemos juntos num campo da KGB por um ano para nos conhecermos. Em seguida, nos acomodamos na Polônia. Quando a grande migração polonesa
para Londres começou, nós fomos junto. Os meus pais da KGB já falavam um inglês perfeito. Eles criaram identidades e se engajaram em espionagem de baixo nível. Sua
principal função era cuidar de mim. Nós nunca conversávamos em russo dentro de casa. Só inglês. Depois de um tempo, até esqueci que era russa. Eu lia livros para
aprender a ser uma garota inglesa adequada: Austen, Dickens, Lawrence, Forster.
- Uma janela para o amor.
- Assim como a Lucy, eu só queria um quarto com uma bela vista...
- Por que a casa em Basildon?
- Era a década de 1990 - explicou ela. - A Rússia estava falida. O SVR estava em frangalhos. Não havia orçamento para sustentar uma família de ilegais em Londres,
então nós fomos para Basildon e recebíamos seguro-desemprego. O Estado britânico do bem-estar financiava uma espiã.
- O que aconteceu com o seu pai?
- Ele contraiu a doença da ilegalidade.
- Perdeu o controle?
Ela assentiu.
- Disse ao Centro Moscovita que queria sair dali. Caso contrário, iria até o MI5. O Centro o levou de volta para a Rússia. Só Deus sabe o que fizeram com ele.
- Vysshaya mera.
- O que isso significa?
- Não importa.
Agora nada além daquela garota importava, pensou Gabriel. Ele olhou para a praça e viu Lavon batendo os pés no chão para se aquecer. Madeline também o viu.
- Quem é ele?
- Um amigo.
- Um vigia?
- O melhor.
- É bom que seja.
Ela deu as costas para Gabriel e começou a caminhar devagar ao longo do parapeito.
- Quando eles ativaram você? - perguntou Gabriel, olhando para suas costas elegantes.
- Quando eu estava na universidade. Eles queriam que eu me preparasse para uma carreira no governo. Estudei ciências políticas e serviço social, e de repente eu
tinha um emprego na sede do Partido. O pessoal do Centro Moscovita ficou bem entusiasmado. Então, Jeremy Fallon me acolheu e eles ficaram eufóricos.
- Você dormiu com ele?
Madeline se virou e sorriu pela primeira vez.
- Você já viu Jeremy Fallon?
- Vi.
- Então tenho certeza de que você não vai duvidar que eu não dormi com ele. Mas Fallon queria dormir comigo, eu alimentei suas esperanças e ele me deu tudo o que
eu queria.
- Como o quê?
- Alguns minutos sozinha com o primeiro-ministro.
- De quem foi a ideia?
- Do Centro Moscovita. Eu nunca fiz nada sem a aprovação deles.
- Eles acharam que Lancaster poderia estar vulnerável a uma abordagem?
- Eles são todos vulneráveis - retrucou Madeline. - Infelizmente para Jonathan, ele cedeu à tentação. No instante em que fez amor comigo pela primeira vez, comprometeu-se
totalmente.
- Parabéns. Você deve ter ficado muito orgulhosa de si mesma.
Ela se virou bruscamente e o encarou por um momento sem falar nada.
- Não estou orgulhosa do que fiz. Eu me afeiçoei muito a Jonathan. Nunca quis que ele sofresse qualquer mal.
- Então talvez você devesse ter dito a verdade a ele.
- Eu pensei em fazer isso.
- O que aconteceu?
- Fui tirar férias na Córsega - respondeu ela, com um sorriso triste. - E depois eu morri.
Mas a história era mais complicada do que isso, claro. A começar pela mensagem que ela recebera do Centro Moscovita, que a orientava a se encontrar com um agente
do SVR no restaurante Les Palmiers, em Calvi. O homem lhe informou que sua missão na Inglaterra tinha terminado e que ela deveria voltar para a Rússia. Seu retorno
deveria parecer um sequestro, despistando, assim, a inteligência britânica.
- Vocês discutiram - disse Gabriel.
- De forma silenciosa, mas intensa. Eu disse a ele que queria ficar na Inglaterra e viver o resto da minha vida como Madeline Hart. O agente falou que isso não seria
possível, que, se eu não fizesse exatamente o que ele tinha ordenado, o sequestro seria real.
- Então você saiu da casa de moto e sofreu um acidente.
- Por sorte, não morri. Ainda tenho as cicatrizes da colisão.
- Quanto tempo você realmente passou nas mãos dos criminosos franceses?
- Tempo demais - respondeu ela. - Mas a equipe do SVR também estava junto.
- E quanto à noite em que fui vê-la?
- Todos naquela casa eram do SVR, inclusive a garota que eles enviaram para contar o dinheiro.
- Você fez uma bela performance naquela noite, Madeline.
- Não foi tudo uma performance. - Ela fez uma pausa. - Eu queria que você me resgatasse.
- Eu tentei, mas o jogo estava armado contra mim.
- Deve ter sido terrível.
- Especialmente para a garota que eles enfiaram no porta-malas daquele carro.
Madeline ficou calada.
- Quem era ela? - perguntou Gabriel.
- Alguma garota que arrancaram das ruas de Moscou. Espalharam o DNA dela no meu apartamento em Londres, e aí... - Sua voz se perdeu.
- Acenderam um fósforo.
A expressão dela ficou sombria. Ela se virou de costas e olhou para a cidade escura e gélida.
- Não é tão mal aqui, sabe? Me deram um apartamento adorável. Tem uma boa vista. Posso passar o resto da vida aqui e fingir que estou em Roma, Veneza ou Paris.
- Ou em Florença.
- Sim, Florença - concordou ela. - Como Lucy e Charlotte nesse livro que você trouxe.
- É isso que você quer?
Ela voltou a encará-lo.
- Que escolha eu tenho?
- Você pode vir comigo.
- Não, não posso - replicou ela, balançando a cabeça devagar. - Você vai acabar morto. Eu também.
- Se eu consegui encontrá-la em São Petersburgo, Madeline, consigo tirar você daqui.
- Como você me encontrou? - insistiu ela.
- Ainda não posso dizer.
- Quem é você?
- Também não posso dizer.
- Para onde você vai me levar?
- Para casa - afirmou ele com uma parada no caminho.
Ela vivia num grande prédio antigo do outro lado do rio Neva com vista para o Palácio de Inverno. Lavon acompanhou-a em segredo até seu apartamento. Já Gabriel deu
entrada no Astoria Hotel e, já no quarto, fez um relatório atualizado para o King Saul Boulevard. Uma cópia do documento foi entregue a um Uzi Navot exausto às 17h47,
no horário de Tel Aviv. Ele o leu em silêncio, então olhou para Shamron.
- O que foi, Uzi?
- Ele quer mudar a cidade de partida de Moscou para São Petersburgo.
- Por quê?
- Você não acreditaria se eu dissesse.
Navot passou o relatório para Shamron, que o leu através de uma nuvem de fumaça. Ao término, Navot recebeu uma segunda atualização.
- Ele está prestes a nos enviar um vídeo.
- Do quê?
Antes que Navot pudesse responder, o rosto inchado de Zhirov apareceu num dos monitores.
- Parece que ele caiu feio - comentou Shamron.
- Várias vezes.
- O que ele está dizendo?
Navot instruiu os técnicos a aumentar o volume.
“Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial
dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.”
“Epara onde vai o resto?”
“Use a sua imaginação.”
“Para o bolso do presidente russo?”
“Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB.”
Shamron sorriu.
- Isso é que eu chamo de carta na manga.
- Eu diria que três cartas na manga.
- Que horas é o próximo voo da El Al saindo de São Petersburgo?
Navot digitou no teclado à sua frente.
- O voo seis-dois-cinco sai do Ben Gurion à uma e dez da madrugada e aterrissa em São Petersburgo às oito da manhã. A tripulação passa o resto do dia descansando
num hotel no centro da cidade. Eles trazem o avião de volta para Tel Aviv na mesma noite.
- Ligue para o presidente da El Al - pediu Shamron. - Diga que precisamos desse avião emprestado.
Navot pegou o telefone. Shamron continuou a observar o monitor.
“Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.”
“Eu matei Madeline Hart.”
“Como?"
“Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.”
“Por quê? Por que você a matou?”
“Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra deforma alguma.“
56
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
Em tempos como aqueles, pensou o coronel Leonid Milchenko, a imensidão da Rússia era mais uma maldição do que uma bênção. Ele estava observando um mapa em seu escritório
na Praça Lubyanka, ao lado de Vadim Strelkin. Tinha acabado de voltar do Kremlin, onde o novo czar lhes dera ordens para não poupar esforços na busca pelos três
homens desaparecidos. O presidente não se mostrou disposto a explicar por que isso era tão importante, falando apenas que dizia respeito aos interesses vitais da
federação e de seus laços com o Reino Unido. Foi Strelkin, no caminho de volta para Lubyanka, que lembrou a Milchenko que a Volgatek tinha acabado de obter direitos
lucrativos para perfurar no mar do Norte.
- Você acha que a Volgatek fez algo ilegal para conseguir a permissão? - perguntou Milchenko, ainda com os olhos no mapa.
- Eu não gostaria de julgar a situação antecipadamente sem conhecer todos os fatos - respondeu Strelkin, cauteloso.
- Nós trabalhamos para a FSB, Vadim. Nunca nos preocupamos com fatos.
- Você sabe como eles chamam a Volgatek, não sabe, chefe?
- KGB Óleo e Gás.
Strelkin ficou calado.
- Digamos que a Volgatek não tenha jogado limpo para obter a licença - começou Milchenko.
- Eles raramente jogam limpo. Pelo menos é isso que se ouve.
- Digamos que tenham subornado alguém.
- Ou pior.
- E digamos que a inteligência britânica reagiu tentando inserir um agente na empresa.
- Digamos - repetiu Strelkin, assentindo.
- Digamos que os britânicos estivessem escutando quando Zhirov colocou o homem deles no carro e começou a enchê-lo de perguntas.
- Provavelmente estavam.
- E que acreditaram que seu homem estivesse em perigo.
- Ele estava.
- E que reagiram retirando o seu homem.
- Com bastante violência.
- E que levaram Zhirov e seu motorista junto.
- Provavelmente não tiveram escolha.
Milchenko caiu num silêncio pensativo.
- Então onde está Zhirov agora?
- Ele vai acabar aparecendo.
- Vivo ou morto?
- Os britânicos não gostam do mokroye delo.
- Onde foi que você ouviu isso? - Milchenko se aproximou do mapa. - Se você fosse britânico, o que tentaria fazer agora?
- Tirar o meu homem do país o mais rápido possível.
- Como você faria isso?
- Imagino que pudesse levá-lo de carro até os caminhos que cruzam a fronteira norte, só que o caminho mais rápido é pelo Sheremetyevo.
- Ele vai ter um passaporte diferente.
- E um novo rosto - acrescentou Strelkin.
- Vá para o Ritz. Pegue algumas fotos dele com a segurança do hotel. E leve-as para todos os agentes de controle alfandegário e membros das milícias no Sheremetyevo.
Strelkin se dirigiu para a porta.
- Mais uma coisa, Vadim.
Ele se deteve.
- Faça o mesmo em São Petersburgo. Só para garantir.
* * *
Naquele instante, o homem em questão estava descansando confortavelmente numa dacha isolada na Tver Oblast, junto aos outros membros da equipe israelense. Pouco
depois das cinco horas da madrugada, após mais uma noite insone, eles saíram da casa em grupos de dois e três e foram para a estação de trem em Okulovka - todos
menos Christopher Keller, que ficou vigiando Zhirov e o motorista.
O trem de Okulovka saiu atrasado, ao contrário do voo 625 da El Al. O avião decolou do Ben Gurion pontualmente à 1h1O e aterrissou em São Petersburgo dois minutos
antes do previsto, às 8h03. A tripulação, com doze pessoas, ficou dentro da aeronave até todos os passageiros saírem. Então, depois de passarem pela alfândega, subiram
numa van sem identificação, de serviços terrestres da El Al, e percorreram o trajeto de vinte minutos até o Astoria Hotel, onde tinham quartos reservados para o
resto do dia. Um dos comissários de bordo era uma mulher alta de cabelos escuros e olhos cor de caramelo. Após deixar sua pequena mala com rodinhas ao pé da cama,
ela foi até o fim do corredor e, ignorando o aviso de NÃO PERTURBE pendurado na maçaneta, deu uma batida suave. Como não recebeu resposta, bateu de novo. Dessa vez,
a porta se entreabriu alguns centímetros, apenas o suficiente para deixá-la passar, e ela entrou.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou Gabriel.
Chiara ergueu os olhos para o teto, como se quisesse lembrar ao marido, o futuro diretor da inteligência israelense, que eles estavam num quarto de hotel russo,
que provavelmente fora grampeado. Gabriel fez um gesto para indicar que o quarto estava limpo e, com as mãos nos quadris, repetiu a pergunta, estreitando os olhos
verdes. Chiara não o via tão bravo havia muito tempo.
- Como fui boba... Achei que você ficaria feliz em me ver.
- Como você conseguiu autorização para vir?
- Nós precisávamos de mulheres para a tripulação. Eu me voluntariei.
- E Uzi não podia achar nenhuma outra mulher além da minha esposa?
- Na verdade, Uzi foi contra a ideia.
- Então como você entrou na equipe?
- Eu apelei para Shamron - revelou ela. - Falei que queria participar da operação e que, se ele não permitisse, não daria o que ele queria.
- Eu?
Chiara sorriu.
- Garota esperta.
- Aprendi com o melhor.
- Achei que você tivesse dito que não queria vir para a Rússia. Que não aguentaria a pressão.
- Mudei de ideia.
- Por quê?
- Porque eu queria dividir isto com você. - Chiara foi até a janela e contemplou a penumbra da Praça de Santo Isaac. - Alguma hora fica claro por aqui?
- É o máximo de luz possível.
Chiara fechou a persiana e se virou. A saia azul e a blusa branca frisada a deixavam irresistível. Gabriel não estava mais bravo por ela ter ido à Rússia contra
a sua vontade. Na verdade, ficou feliz em ter a companhia da esposa. Aquilo tornaria a espera das próximas horas muito mais tolerável.
- Como ela é? - perguntou Chiara.
- Madeline?
- É assim que a chamamos?
- É o único nome que ela conhece - disse Gabriel. - Ela foi...
- O quê?
- Criada por lobos.
- Talvez ela também seja uma loba.
- Ela não é.
- Tem certeza disso?
- Tenho, Chiara.
- Porque ela já enganou você uma vez.
Gabriel ficou em silêncio.
- Desculpe, Gabriel, mas você deve ter considerado a possibilidade de ela ainda ser leal ao seu serviço.
- Devo ter - falou Gabriel, incapaz de conter a irritação na voz. - Mas, se ela estiver limpa quando sair do apartamento esta tarde, vou trazê-la para cá. E depois
vou levá-la para casa.
- Que fica onde?
- Inglaterra.
- Ela vai causar bastante comoção.
- Bastante.
- O que vai fazer com ela?
- Vou usá-la para retribuir uma pequena dívida. E depois vou deixá-la nas mãos capazes de Graham Seymour.
- Pobre Graham.
Chiara sentou na beira da cama e tirou os sapatos.
- Como foi o voo? - perguntou Gabriel.
- Consegui não ferir nenhum dos passageiros entregando as refeições.
- Bom trabalho.
- Tinha um bebê na primeira classe que chorou o trecho inteiro de Ankara a Minsk. Alguns passageiros ficaram bem irritados. A mãe estava envergonhada. - Chiara fez
uma pausa. - E eu só consegui pensar que ela era a mulher mais sortuda do mundo.
- Talvez você não devesse ter vindo - falou Gabriel depois de um instante.
- Eu tinha que vir. Vou apreciar muito tudo isso.
Ela tirou a saia, esticando-a com cuidado na cama, e começou a desabotoar a blusa.
- O que você está fazendo? - questionou Gabriel.
- O que lhe parece?
- Parece que uma comissária de bordo muito bonita está se despindo no meu quarto.
- Preciso descansar um pouco. Você também - acrescentou ela ao tirar a blusa. - Não me leve a mal, Gabriel, mas você está com uma aparência terrível. Durma por uma
ou duas horas. Vai se sentir melhor.
- Eu não conseguiria dormir agora.
- O que você vai fazer? Ficar na frente da janela o dia todo, morrendo de preocupação?
- Esse era o meu plano.
- Quando você for chefe, vai ter bastante tempo para fazer isso. Venha para a cama. Prometo que não vou machucá-lo.
Gabriel acabou cedendo: tirou os sapatos e a calça jeans e engatinhou pela cama até a esposa. O corpo de Chiara estava ardente, como se febril. Ao beijar os seus
lábios, ele sentiu gosto de mel. Ela passou o dedo pelo nariz do marido.
- Chiara...
- O que foi, querido? - perguntou ela, beijando-o de novo.
- Estou em serviço.
- Você está sempre em serviço. E vai continuar assim pelo resto da vida. Chiara o beijou novamente. Depois no pescoço. No peito.
- Acho que ela tinha razão desde o começo - comentou ela.
- Quem? - murmurou Gabriel.
- Aquela mulher idosa da Córsega. Ela disse que você saberia a verdade
quando Madeline morresse. Em certo sentido, ela morreu naquela manhã na França. E agora você sabe a verdade.
- Mas ela se enganou com relação a uma coisa. Ela me avisou para não ir à cidade dos hereges. Disse que eu morreria lá.
Chiara parou de beijá-lo e olhou bem nos seus olhos.
- Você não me disse o contrário?
- Disse.
- Então você mentiu para mim.
- Desculpe, Chiara. Eu não deveria ter feito isso.
Ela o beijou de novo.
- Eu sabia que você estava mentindo.
- Sério?
- Eu sempre sei quando você está mentindo, Gabriel.
- Mas eu sou um profissional.
- Não quando se trata de mim. - Ela tirou a camisa de Gabriel e montou em seu colo. - Ainda é uma possibilidade, sabe?
- O quê?
- Você morrer na cidade dos hereges.
- Ela estava se referindo a Moscou. Acho que estou seguro agora.
- Na verdade - replicou ela, passando as mãos pela barriga dele -, você está correndo um grande perigo.
- Estou percebendo.
Chiara o recebeu no calor macio de seu corpo. Gabriel já não estava mais na Rússia, mas no quarto em Veneza onde os dois tinham feito amor pela primeira vez, numa
cama de lençóis brancos. Ele estava seguro. Ela também.
- Talvez Madeline não venha - opinou depois Chiara, quando Gabriel começava a adormecer.
- Ela vai vir. E vamos levá-la para casa.
- Eu também quero ir para casa.
- Em breve...
- Alguma hora vai ficar claro lá fora?
- Não, Chiara. Não hoje.
57
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Eles já tinham feito aquilo dezenas de vezes, em dezenas de campos de batalha secretos. Portanto, bastaram alguns minutos debruçados sobre um mapa de rua no quarto
de Gabriel no Astoria para elaborar o plano: a rota, os postos de observação fixa, os pontos de retirada, os paraquedas. Gabriel se referiu ao plano como a última
chance do Centro Moscovita. Jogariam Madeline como isca, fazendo-a percorrer as ruas de São Petersburgo uma última vez, para garantir que estava limpa. E então iriam
recolher a linha e fazer a garota desaparecer. De novo.
Foi assim que, pouco depois das duas horas daquela tarde sombria de São Petersburgo, seis agentes do serviço secreto israelense saíram do Astoria e passaram pelos
fascinantes palácios e igrejas até os seus pontos de espera. Lavon faria o maior percurso, pois deveria estar na frente do prédio de Madeline quando ela saísse às
14h52 - o horário exato em que deveria aparecer se tivesse de fato intenção de fugir. Ela atravessou a Ponte do Palácio, entrou no Museu Hermitage pelo portão que
dava para o cais e seguiu para a Sala de Monet, onde se sentou em seu banco de sempre às 15h07. Dois minutos depois, Lavon se juntou a Madeline.
- Até aqui tudo bem - disse ele baixinho em inglês. - Agora escute com atenção e faça exatamente o que eu digo.
Eles a conduziram pela Praça do Palácio, passando pelo Arco do Triunfo e seguindo para a Nevsky Prospekt. Ela tomou café e comeu um pedaço de bolo russo no Café
Literário, caminhou pelas colunatas romanas da Catedral de Nossa Senhora de Kazan e fez algumas compras na Zara. Em cada ponto ao longo da rota, ela passava por
um membro da equipe. E todos relataram que não havia nenhum sinal de oposição.
Ao sair da loja de roupas, ela foi em direção ao rio Moyka e seguiu pelos caminhos de pedra até a Praça de Santo Isaac, onde Dina esperava, fingindo falar ao telefone.
Se ela estivesse segurando o celular contra o ouvido esquerdo, Madeline deveria continuar andando. Se o pressionasse contra o direito, indicaria que era seguro entrar
no saguão do Hotel Astoria - foi o que fez, às 15h48.
Lavon entrou com ela no elevador. Madeline ficou olhando a neve em suas botas. Ele observou o teto ornamentado. Quando chegaram ruidosamente ao terceiro andar, estendeu
o braço com formalidade e disse: “Você primeiro.” Madeline passou por ele sem dizer nada e seguiu para o quarto ao fim do corredor. Uma das portas se abriu quando
ela se aproximou. Gabriel a puxou para dentro.
- Quem é você? - perguntou ela.
- Não posso dizer.
- Para onde estou indo?
- Você saberá em breve.
Dois minutos depois, a atualização de progresso piscou nos monitores do Centro de Operações do King Saul Boulevard. Navot a encarou por um instante, quase incrédulo.
Em seguida, olhou para Shamron.
- Eles realmente conseguiram, Ari. Estão com ela.
- Isso é bom - comentou Shamron, sem alegria. - Agora vejamos se conseguem ficar com ela.
Ele acendeu outro cigarro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Escureceram o cabelo e as sobrancelhas de Madeline e deram ao seu rosto um bronzeado mediterrâneo. Mordecai tirou uma foto dela e colocou-a no passaporte que Madeline
usaria para sair do país. Por enquanto, ela seria liana Shavit. Tinha nascido em outubro de 1985 e vivia no subúrbio de Tel Aviv, em Rishon LeZion, que por acaso
era um dos primeiros assentamentos judeus da Palestina. Antes de se juntar à El Al, ela servira nas Forças Armadas de Israel. Era casada, mas não tinha filhos. Seu
irmão morrera na última guerra do Líbano. A irmã fora assassinada por um homem-bomba do Hamas durante a Segunda Intifada. Essa não era uma vida totalmente inventada,
disse-lhe Gabriel. Era uma vida israelense. E por algumas horas seria a vida de Madeline.
Se havia um defeito em sua armadura, era a inabilidade de falar mais do que algumas poucas palavras hebraicas aprendidas às pressas. Essa fraqueza foi amenizada
até certo ponto porque o seu inglês não tinha qualquer traço de sotaque russo e a tripulação passaria toda junta pelo controle alfandegário. Provavelmente seria
uma formalidade vazia, pouco mais do que uma olhada na fotografia e um aceno para seguir em frente. Gabriel estava bastante confiante de que Madeline resistiria
ao impulso de responder a uma pergunta feita em russo. Ela passara a vida inteira fazendo isso. Só precisava contar mais uma mentira, fazer uma última performance.
E, então, ficaria livre deles para sempre.
Pouco depois das cinco da tarde, as garotas tiraram as últimas roupas russas de Madeline, vestiram-na com o uniforme impecável da El Al e pentearam seus novos cabelos
pretos. Em seguida, a apresentaram para Gabriel, que a avaliou por um tempo, como se ela fosse uma pintura num cavalete.
- Qual é o seu nome? - perguntou secamente.
- Ilana Shavit.
- Qual é a sua data de nascimento?
- 12 de outubro de 1985.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- O que isso significa em hebraico?
- “O Primeiro em Sião”.
- Qual era o nome do seu irmão?
- Moshe.
- Onde ele foi morto?
- No Líbano.
- Qual era o nome da sua irmã?
- Dalia.
- Onde ela foi morta?
- Na discoteca Dolphinarium.
- Quantas outras pessoas foram mortas naquele dia?
- Vinte.
- Qual é o seu nome?
- Ilana Shavit.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- Qual rua?
- Sokolow.
Gabriel não tinha mais perguntas. Ele colocou uma das mãos no queixo e inclinou a cabeça para o lado.
- E então? - perguntou ela.
- Partimos em cinco minutos.
Lavon estava tomando café no saguão mal iluminado. Gabriel se sentou ao lado. - Estou com uma sensação estranha - disse Lavon.
- Muito estranha?
- Dois na frente da porta, dois no bar e um à toa perto do balcão do concierge.
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - concordou Lavon, inseguro.
- Podem estar vigiando um hóspede.
- É disso que tenho medo.
- Outro hóspede, Eli.
Lavon não respondeu.
- Tem certeza de que ela estava limpa quando a trouxemos?
- Impecável.
- Então ela está limpa agora - afirmou Gabriel.
- Por que o saguão está cheio de agentes da FSB?
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - repetiu Lavon.
Gabriel olhou pela janela, para a van da El Al parada na frente do hotel.
- O que vamos fazer? - perguntou Lavon.
- Vamos seguir o plano.
- Você vai contar a ela?
- Sem chance.
Lavon tomou um gole do café.
- Boa ideia.
Três longos minutos se passaram até os primeiros membros da tripulação da El Al saírem dos elevadores para o saguão: duas jovens bem-arrumadas, que eram mesmo funcionárias
da empresa aérea, ao contrário das quatro mulheres e dos dois homens que vieram atrás, todos agentes de campo veteranos do Escritório. Então, surgiram o capitão
e o engenheiro de voo, seguidos um instante depois por uma versão muito bem disfarçada de Mikhail, que posava de primeiro oficial. O homem da FSB que estava perto
do balcão do concierge se voltou para encarar descaradamente o traseiro de uma das falsas comissárias de voo. Observando a cena do outro lado do saguão, Gabriel
se permitiu um breve sorriso. Se o agente tinha tempo para dar uma olhada nos dotes israelenses, havia grandes chances de que não estivesse à procura de uma russa
ilegal desaparecida.
Enfim, às 17hl0, Chiara e Madeline apareceram puxando suas malas de rodinhas da El Al. A esposa estava contando uma história sobre um voo recente num hebraico rápido
e a garota inglesa ria como se fosse a coisa mais divertida que tivesse ouvido em muito tempo. Elas se juntaram aos outros membros da tripulação, saíram do hotel
e subiram na van. As portas se fecharam. E eles partiram.
- O que você acha? - perguntou Gabriel.
- Acho que ela é muito boa - respondeu Lavon.
- Estamos limpos?
- Impecáveis.
Gabriel se levantou, pegou sua bolsa de viagem e saiu para a noite sem fim.
Um táxi aguardava na frente do hotel. Ele levou Gabriel em alta velocidade pela última prospekt. Passou por uma estátua desmedida de Lênin conduzindo seu povo por
setenta anos de estagnação e assassinatos; pelos monumentos a uma guerra da qual ninguém podia se lembrar; e quilômetro após quilômetro de prédios em ruínas. Por
fim, chegou ao terminal internacional do Aeroporto Pulkovo. Ele fez check-in para o voo com destino a Tel Aviv e não teve problemas com o controle alfandegário,
identificando-se como Jonathan Albright, da Markham Capital Services. Por fim, andou até o portão de embarque muito bem fortificado da El Al. Os russos alegavam
que as barreiras serviam para a segurança dos passageiros que seguiam para Israel. Mesmo assim, Gabriel teve a incômoda sensação de estar entrando no último gueto
da Europa.
Ele se acomodou num lugar vazio no canto do saguão, perto de uma grande família haredim. Ninguém falava russo, apenas hebraico. Se não fosse pelo disfarce, ele certamente
teria sido reconhecido. Mas agora Gabriel estava sentado em meio ao seu povo como um estranho, seu servo secreto, seu anjo da guarda invisível. Em breve, seria o
diretor de seu afamado serviço de inteligência. Seria mesmo? Sem dúvida essa era uma bela forma de encerrar a carreira. Obtivera provas de que uma petrolífera possuída
e administrada pelo SVR tinha desestabilizado o governo do Reino Unido para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte - tudo a pedido do próprio presidente russo.
Não haveria mais volta depois disso. Nada mais de conversas alegres sobre a Rússia como amiga do Ocidente. Ele provaria de uma vez por todas que os ex-agentes da
KGB, atuais administradores do país, eram implacáveis, autoritários e indignos de confiança. Que eles deveriam ser marginalizados e contidos, como nos velhos tempos
da Guerra Fria.
Mas de nada adiantaria se ele perdesse a garota. Gabriel consultou o relógio e, ao erguer os olhos, viu Yossi e Rimona adentrando o saguão de embarque. Em seguida,
vieram Mordecai e Oded. Então, Yaakov e Dina. E, por fim, Lavon, com cara de quem tinha ido parar no aeroporto por engano. Ele perambulou um pouco pelo saguão, inspecionando
cada assento vazio com o cuidado de um homem que sofre de fobia de germes, antes de sentar-se em frente a Gabriel. Eles nem trocaram olhares: eram duas sentinelas
numa vigília sem fim. Agora não havia nada para fazer além de esperar. A espera, pensou Gabriel. Sempre a espera. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer
do sol depois de uma noite de matança. E esperando sua esposa carregar uma garota morta de volta para a terra dos vivos.
Ele olhou para o relógio novamente, e depois para Lavon.
- Onde elas estão? - perguntou.
Lavon respondeu sem baixar o jornal:
- Já passaram pela alfândega. Os funcionários só estão dando uma olhada nas bagagens.
- Por quê?
- Como eu poderia saber?
- Me diga que não há nada de errado com a bagagem.
- A bagagem está certinha.
- Então por que estão verificando?
- Talvez estejam entediados. Ou gostem de tocar em roupas íntimas femininas. Eles são russos, pelo amor de Deus.
- Quanto tempo, Eli?
- Dois minutos, talvez menos.
Os dois minutos de Eli passaram sem qualquer sinal delas. Seguidos por um terceiro. E um interminável quarto. Gabriel encarava o relógio, o carpete imundo, a criança
ao seu lado - tudo menos a entrada do saguão de embarque. Então, enfim, ele as vislumbrou com o canto do olho, um lampejo de azul e branco, como uma bandeira sendo
acenada. Mikhail caminhava ao lado do capitão. Madeline estava com um sorriso nervoso e parecia estar segurando o braço de Chiara para sentir-se mais segura. Ou
será que era o contrário? Gabriel não pôde ter certeza. Ele viu-os virar ao mesmo tempo em direção ao portão e desaparecer pela passarela. Em seguida, olhou para
Lavon.
- Eu falei que ia ficar tudo bem - disse ele.
- Você nem ficou preocupado?
- Indescritivelmente aterrorizado.
- Por que não me disse?
Lavon não respondeu. Ele só ficou sentado lendo o jornal até o voo ser chamado. Em seguida, levantou-se e seguiu Gabriel até o avião. Deu uma última olhada em busca
de vigilância inimiga, só para garantir.
Ela foi orientada a sentar-se na terceira fila, ao lado da janela. Estava olhando para o aeroporto escuro e malcuidado de Pulkovo, seu último vislumbre de uma Rússia
que nunca chegara a conhecer. Vestida com o uniforme azul e branco, Madeline estava parecida com uma estudante inglesa. Ela olhou para o lado quando Gabriel se acomodou
no assento, mas logo virou o rosto. Ele disparou uma última mensagem para o King Saul Boulevard pelo BlackBerry criptografado. Em seguida, observou a esposa preparar
a cabine para a decolagem. Os olhos de Madeline reluziram. Quando as rodas se ergueram do solo russo, uma lágrima escorreu por sua bochecha. Ela segurou na mão de
Gabriel e a apertou com força.
- Nem sei como agradecer - disse, com seu sotaque britânico preciso.
- Então não agradeça.
- Quanto tempo dura o voo?
- Cinco horas.
- Vai estar quente em Israel?
- Só no sul.
- Você vai me levar lá?
- Vou levá-la aonde você quiser ir.
Chiara apareceu e entregou taças de champanhe para os dois. Gabriel ergueu a sua na direção de Madeline num brinde silencioso antes de colocá-la no apoio de centro,
sem beber nada.
- Você não gosta de champanhe? - perguntou ela.
- Me dá uma dor de cabeça terrível.
- Também me dá.
Madeline tomou uns goles e ficou olhando pela janela para a escuridão abaixo.
- Como você me encontrou lá embaixo?
- Isso não é importante.
- Algum dia você vai me dizer quem é?
- Você vai saber em breve.
Parte 3
O ESCÂNDALO
58
LONDRES - JERUSALÉM
Na manhã seguinte, ocorreriam as eleições na Inglaterra. Jonathan Lancaster votou cedo, acompanhado da esposa, Diana, e dos três filhos fotogênicos, antes de voltar
para a Downing Street e esperar o veredicto. Não houve muito suspense, pois uma pesquisa divulgada na noite anterior previra que o partido de Lancaster quase certamente
aumentaria sua maioria parlamentar em vários assentos. No meio da tarde, Whitehall estava tomada por rumores de um massacre eleitoral e, no começo da noite, o champanhe
já fluía pela sede do Partido em Millbank. Mesmo assim, o primeiro-ministro pareceu estranhamente reservado quando subiu ao palco do Royal Festival Hall para fazer
o discurso da vitória. Entre os repórteres políticos que tomaram nota de sua atitude séria estava Samantha Cooke, do Daily Telegraph. Lancaster, ela escreveu, parecia
saber que o segundo mandato não correria tão bem quanto o primeiro. Mas, por outro lado, acrescentou ela, era isso que costumava acontecer com segundos mandatos.
Os problemas de Lancaster começaram mais adiante naquela semana, quando ele deu início ao tradicional processo de remanejamento de gabinete e equipe pessoal. De
acordo com o previsto, Jeremy Fallon, agora membro do parlamento de Bristol, foi designado ministro do Tesouro, logo também seria seu vizinho na Downing Street.
O homem que já fora descrito pela imprensa como o cérebro de Lancaster agora era considerado por Whitehall como o futuro primeiro-ministro. Fallon rapidamente reuniu
os membros remanescentes da antiga equipe - pelo menos os que ainda suportavam trabalhar para ele - e usou sua influência dentro da sede do Partido para preencher
posições políticas essenciais. O palco estava preparado, escreveu Samantha Cooke, para uma batalha por poder de proporções shakespearianas. Em breve, Fallon bateria
à porta do número 10 da Downing Street e pediria as chaves. Ele tinha criado Lancaster. E, certamente, tentaria destruí-lo.
Em nenhum momento durante as manobras pós-eleição, a imprensa mencionou o nome de Madeline Hart, nem mesmo quando o presidente do Partido decidiu que já era hora
de preencher a vaga deixada por ela. Um subordinado que trabalhava na sede assumiu a tarefa mórbida de remover as posses restantes de Madeline de seu antigo cubículo.
Não havia muita coisa: alguns arquivos empoeirados, um calendário, canetas e clipes de papel, um exemplar já bem gasto de Orgulho e preconceito que ela costumava
ler sempre que tinha um momento de folga. O homem entregou os itens ao presidente do Partido, que mandou sua secretária se livrar discretamente do material, com
tanta dignidade quanto possível. E, assim, os últimos traços de uma vida inacabada foram expurgados. Madeline Hart enfim tinha partido. Ao menos era o que eles pensavam.
No começo, ela teve a impressão de que havia trocado um tipo de cativeiro por outro. Dessa vez, o apartamento que servia de cela dava vista não para o rio Neva,
em São Petersburgo, mas para o mar Mediterrâneo, em Netanya. Para a administração do prédio, ela estava se recuperando de uma longa doença. A verdade não era muito
diferente.
Madeline não saiu do apartamento por uma semana. Seus dias não tinham nenhuma rotina discernível. Ela dormia tarde, observava o mar, relia seus romances favoritos,
tudo sob a observação da equipe de segurança do Escritório. Um médico ia vê-la uma vez por dia. No sétimo dia, quando ele lhe perguntou como estava, ela respondeu
que sofria de tédio terminal.
- Melhor morrer de tédio do que de veneno russo - brincou o doutor.
- Não tenho tanta certeza - respondeu, com seu inglês arrastado.
O médico prometeu que levaria o caso de seu confinamento à autoridade mais alta. No oitavo dia, o alto escalão permitiu que Madeline fizesse uma breve caminhada
pelo trecho frio e ventoso de areia na frente do prédio onde residia. No dia seguinte, pôde ir um pouco mais longe. E, no décimo dia, caminhou quase até Tel Aviv
antes de seus cuidadores a colocarem com gentileza no banco traseiro de um carro do Escritório e a levarem de volta para o apartamento. Ao entrar, encontrou uma
réplica exata de Lagoa em Montgeron pendurada na parede da sala de estar - exata, com exceção da assinatura do artista que a pintara. Ele ligou alguns minutos depois
e se apresentou adequadamente pela primeira vez.
- O famoso Gabriel Allon? - perguntou ela.
- Receio que sim.
- E quem foi a mulher que me ajudou a subir no avião?
- Você saberá em breve.
Gabriel e Chiara chegaram em Netanya no horário de almoço do dia seguinte, depois que Madeline voltou da caminhada matinal pela praia. Eles a levaram ao
Cesarea para almoçar e passearam pelas ruínas dos romanos e das cruzadas. Em seguida, subiram o litoral, até perto do Líbano, para visitar as cavernas marinhas de
Rosh HaNikra. De lá, seguiram para o leste em direção à fronteira disputada, passando pelos postos de escuta das Forças Armadas de Israel e pelas pequenas cidades
que tinham sido despovoadas após a última guerra contra o Hezbollah, até que chegaram em Kiryat Shmona. Gabriel reservara dois quartos na pousada de um velho kibutz.
Os aposentos de Madeline tinham uma bela vista da Alta Galileia. Um guarda do Escritório passou a noite na frente da porta dela, enquanto outro ficou sentado na
varanda com jardim.
No dia seguinte, depois de tomar o café da manhã no salão de refeições, foram de carro até as colinas de Golã. As Forças Armadas os aguardavam. Um jovem coronel
levou o grupo até um ponto na fronteira com a Síria, onde era possível ouvir os bombardeios do conflito entre o regime e os rebeldes. Em seguida, eles fizeram uma
breve visita à Fortaleza de Nimrod, o antigo bastião dos cruzados com vista para a cidade judaica de Safed. Eles almoçaram no bairro dos artistas, na casa de uma
mulher chamada Tziona Levin. Embora Gabriel a chamasse de doda - tia -, na verdade ela estava mais para irmã. A mulher não demonstrou surpresa quando ele e Chiara
apareceram à sua porta acompanhados pela bela jovem que o mundo inteiro pensava estar morta. Ela sabia que Gabriel tinha o hábito de voltar para Israel com objetos
perdidos.
- Como está o trabalho? - perguntou, enquanto tomavam café em seu jardim banhado pelo sol.
- Melhor do que nunca - respondeu Gabriel, dando uma olhada em Madeline.
- Eu estava falando da sua arte.
- Acabei de concluir a restauração de um Bassano adorável.
- Você devia focar no seu próprio trabalho - falou ela, reprovadora.
- É o que estou fazendo - disse vagamente, e Tziona deixou a questão de lado.
Quando terminaram o café, ela os levou para o estúdio e mostrou seus novos quadros. Então, a pedido de Gabriel, destrancou um cômodo. Dentro, havia centenas de pinturas
e esboços feitos pela mãe de Allon, inclusive várias obras retratando um homem alto vestido com o uniforme da SS.
- Achei que tivesse dito para queimar estes - repreendeu Gabriel.
- Você disse - admitiu Tziona mas não consegui.
- Quem é ele? - perguntou Madeline, encarando as pinturas.
- Seu nome era Erich Radek - respondeu Gabriel. - Ele coordenou um programa nazista secreto chamado Aktion 1005. A meta era ocultar todas as evidências de que o
Holocausto tinha ocorrido.
- Por que sua mãe o pintou?
- Ele quase a matou na marcha da morte de Auschwitz em janeiro de 1945.
Madeline ergueu uma sobrancelha, intrigada.
- Radek não foi capturado em Viena alguns anos atrás e trazido a Israel para julgamento?
- Para seu governo, ele se voluntariou para vir a Israel.
- Sim, claro - disse Madeline, sem convicção. - E eu fui sequestrada por criminosos franceses de Marselha.
No dia seguinte, eles dirigiram até Eilat. O Escritório tinha alugado uma casa particular ampla perto da fronteira com a Jordânia. Madeline passou os dias deitada
ao lado da piscina, lendo e relendo uma pilha de romances ingleses clássicos. Gabriel percebeu que a garota estava se preparando para voltar ao país que não era
realmente dela. Madeline não era ninguém, pensou Gabriel. Não era uma pessoa real. E, não pela primeira vez, perguntou-se se seria melhor para ela morar em Israel,
e não no Reino Unido. Foi o que lhe indagou na última noite de estadia no sul. Eles estavam sentados num terreno rochoso em Neguev, vendo o sol se pôr nas terras
ermas do Sinai.
- É tentador - respondeu ela.
- Mas...?
- Não é a minha casa. Pareceria com a Rússia. Eu seria uma estranha aqui.
- Vai ser difícil, Madeline. Muito mais difícil do que você pensa. Os ingleses vão pressioná-la até terem certeza da sua lealdade. E vão trancá-la em algum lugar
que os russos nunca vão conseguir encontrar. Você nunca vai poder retomar a antiga vida. Nunca. Vai ser horrível.
- Eu sei - disse ela, distante.
Na verdade não sabia, pensou Gabriel, mas talvez fosse melhor desse jeito. O sol pairava logo acima do horizonte. De repente, o ar do deserto esfriou o suficiente
para fazê-la estremecer.
- Acha que devemos voltar? - perguntou ele.
- Ainda não.
Gabriel tirou sua jaqueta e a colocou por cima dos ombros dela.
- Vou dizer algo que provavelmente não deveria: em breve serei o diretor da inteligência israelense.
- Parabéns.
- “Meus pêsames” seria uma resposta mais adequada. Mas isso significa que vou ter o poder de cuidar de você. Vou dar um bom lugar para você viver. Uma família. Disfuncional,
é verdade, mas a única família que eu tenho. Vamos lhe dar um país. Um lar. É isso que fazemos em Israel: damos um lar às pessoas.
- Eu já tenho um lar.
Ela não disse mais nada. O sol mergulhou no horizonte e ela sumiu em meio à escuridão.
- Fique - pediu Gabriel. - Fique aqui conosco.
- Eu não posso ficar. Eu sou Madeline. Sou uma garota inglesa.
Na noite seguinte, ocorreria a festa de abertura da exposição dos Pilares de Salomão no Museu de Israel, em Jerusalém. O presidente e o primeiro-ministro estavam
na lista de convidados, assim como os membros do gabinete, a maior parte do Knesset e inúmeros escritores, artistas e celebridades. Chiara foi uma das oradoras da
cerimônia, realizada no recém-construído saguão de exibição. Ela não mencionou o fato de que seu marido, o lendário espião Gabriel Allon, tinha descoberto os pilares,
nem que a linda jovem de cabelos escuros ao seu lado era, na verdade, uma garota inglesa morta chamada Madeline Hart. Os dois omitidos ficaram só alguns minutos
no coquetel, então foram de carro ao outro lado de Jerusalém, até um restaurante tranquilo no velho campus da Academia Bezalel de Artes e Design. Em seguida, enquanto
caminhavam pela rua Ben Yehuda, Gabriel perguntou novamente se Madeline queria ficar em Israel, mas a resposta foi a mesma. Ela passou a última noite na cidade no
quarto de hóspedes do apartamento de Gabriel, na rua Narkiss, o quarto que fora idealizado para uma criança. No início da manhã seguinte, eles foram até o Ben Gurion
em meio às trevas e embarcaram num voo para Londres.
59
LONDRES
Gabriel passou vários dias tentando decidir se avisava a Graham Seymour que ele estava prestes a receber uma desertora russa bastante incomum. Por fim, achou melhor
não. Suas razões foram pessoais, não operacionais: simplesmente não queria estragar a surpresa.
Dessa forma, a equipe de recepção no aeroporto de Heathrow no fim daquela manhã era composta por membros do Escritório, e não do MI5. Os agentes assumiram a custódia
clandestina de Gabriel e Madeline no saguão de desembarque e os transportaram para um apartamento obtido às pressas em Pimlico. Ao chegar, Gabriel ligou para Seymour
em seu escritório e disse que, mais uma vez, tinha entrado no Reino Unido sem assinar o livro de visitantes.
- Que surpresa - disse Seymour, seco.
- Ainda há mais por vir, Graham.
- Onde você está?
Gabriel passou o endereço.
Seymour tinha uma reunião com uma delegação visitante de espiões australianos que não podia ser adiada, então somente depois de uma hora é que seu carro surgiu na
frente do prédio. Ao entrar no apartamento, encontrou Gabriel sozinho na sala de estar. Na mesa de centro, havia um notebook aberto e Allon o utilizou para rodar
uma gravação de Pavel Zhirov confessando os muitos pecados da empresa de energia que pertencia ao Kremlin, conhecida como Volgatek Óleo e Gás. Quando o vídeo terminou,
Seymour parecia bastante abalado. Isso provava uma das máximas favoritas de Ari Shamron, pensou Gabriel: no negócio da inteligência, assim como na vida, às vezes
é melhor não saber.
- Foi ele que almoçou com Madeline na Córsega? - perguntou Seymour, ainda encarando a tela do computador.
Gabriel assentiu devagar.
- Você me disse para encontrá-lo. E eu o encontrei.
- O que aconteceu com o rosto dele?
- Ele disse algo para Mikhail que não devia ter dito.
- Onde ele está agora?
- Ele se foi.
- Isso pode significar várias coisas, sabe?
A expressão neutra de Gabriel deixou claro que Zhirov tinha partido para nunca mais voltar.
- Os russos sabem? - perguntou Seymour.
- Ainda não.
- Quanto tempo até descobrirem?
- Lá pela primavera, eu diria.
- Quem o matou?
- Essa é uma história para outra hora.
Gabriel ejetou o DVD do computador e o ofereceu para Seymour. Ao pegá-lo, ele soltou o ar lentamente, como se tentasse manter a pressão sanguínea num nível saudável.
- Eu estou nesse jogo há muito tempo. E este vídeo foi a coisa mais explosiva que já vi.
- Você ainda não viu tudo, Graham.
- Eu não sei se você reparou - continuou Seymour, como se não tivesse escutado o aviso de Gabriel -, mas nós tivemos uma eleição neste país recentemente. Jonathan
Lancaster acabou de ganhar com um dos maiores percentuais de votos na história da Inglaterra. E, agora, Jeremy Fallon é o ministro do Tesouro.
- Não por muito tempo.
Seymour não respondeu.
- Você não está pensando em deixá-lo sair impune dessa, está, Graham?
- Não. Mas vai ser um banho de sangue.
- Você sempre soube que seria.
- Mas eu estava torcendo para que o sangue não respingasse em mim.
Graham caiu num silêncio pesado.
- Algo que você precise desabafar, Graham?
- O primeiro-ministro me ofereceu uma promoção - explicou ele, depois de hesitar um pouco.
- Que tipo de promoção?
- O tipo que eu não pude recusar.
- Diretor-geral?
Seymour assentiu.
- Mas não do MI5 - acrescentou depressa. - Você está olhando para o futuro diretor do Serviço Secreto de Sua Majestade. Nós dois vamos governar o mundo juntos...
às escondidas, é claro.
- A menos que você derrube o governo de Lancaster.
- Correto. Se eu fizer isso, há boas chances de eu ser jogado ao mar com o resto deles. E você vai perder um aliado próximo no processo. - Ele acrescentou, baixando
a voz: - Eu achava que um homem na sua posição desejasse manter um amigo como eu. Você não tem muitos atualmente.
- Mas você não pode permitir que uma empresa da KGB perfure nas águas do seu território.
- Isso seria negligência do dever - concordou Seymour, jovialmente.
- Você também não pode permitir que um agente pago do Kremlin continue servindo como ministro. Caso contrário, talvez ele seja o seu próximo primeiro-ministro.
- Eu estremeço só de pensar na possibilidade.
- Então você precisa destruí-lo, Graham. - Gabriel fez uma pausa. - Ou vai ter que desviar os olhos enquanto eu o faço para você.
Seymour ficou em silêncio por um instante.
- Como você faria?
- Retribuindo um favor.
- E quanto a Lancaster?
- Ele é culpado de um caso extraconjugal. É provável que o povo britânico o perdoe, especialmente quando descobrirem que Fallon tem 5 milhões de euros numa conta
suíça. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - E há mais uma circunstância atenuante sobre a qual eu ainda não falei.
- Qual?
Gabriel sorriu e se levantou.
Ele entrou no quarto e voltou um momento depois com uma jovem linda ao lado, de cabelos escuros como carvão e pele bem bronzeada pelo sol do mar Vermelho. Seymour
se levantou cavalheirescamente e, sorrindo, estendeu a mão. Quando o cumprimento não foi retribuído, seu rosto assumiu uma expressão intrigada. E, então, ele entendeu.
Olhou para Gabriel e sussurrou:
- Meu Deus.
Ela contou a história desde o começo para Seymour - a mesma que contara a Gabriel naquela tarde gélida em São Petersburgo, na cúpula da Catedral de Santo Isaac.
Depois, calma, empertigada, declarou que desejava desertar para o Reino Unido e, se possível, um dia retornar à sua vida antiga.
Como vice-diretor do MI5, Seymour não tinha autoridade para conceder status de desertora a uma espiã russa. A única pessoa que podia fazer aquilo seria o ex-amante
de Madeline, Jonathan Lancaster. Por isso, às duas e quinze daquela tarde, Seymour se apresentou na Downing Street sem aviso e exigiu uma conversa em particular
com o primeiro-ministro. Por coincidência, o encontro se deu na sala de reuniões. Lá, embaixo do mesmo retrato da baronesa Thatcher, Seymour contou tudo o que tinha
descoberto. Que o presidente russo ordenara que a Volgatek utilizasse qualquer meio possível para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte. Que Jeremy Fallon, o
assessor e amigo íntimo de Lancaster, o traíra por 5 milhões de moedas de prata russa. E que Madeline Hart, sua antiga amante, era uma espiã nascida na Rússia que
ainda estava muito viva e havia solicitado asilo na Inglaterra. Para seu crédito, Lancaster, embora visivelmente perturbado, não hesitou em responder. Fallon tinha
que partir, Madeline tinha que ficar, e que as fichas caíssem onde fosse para elas caírem. Ele fez apenas um pedido: queria contar tudo à esposa antes.
- Eu não esperaria muito tempo se fosse você, primeiro-ministro.
Lancaster estendeu o braço lentamente na direção do telefone. Seymour se levantou e saiu do cômodo em silêncio.
Agora restava apenas o nome do repórter que receberia a exclusiva mais sensacional da história política da Inglaterra. Seymour sugeriu Tony Richmond, do Times, ou
talvez Sue Gibbons, do Independent, mas Gabriel se recusou. Ele tinha feito uma promessa, explicou, e pretendia cumpri-la. Telefonou para o celular dela, mas a ligação
caiu na caixa postal e ele deixou uma mensagem breve. Ela retornou logo em seguida.
- Às quatro horas no Café Nero - disse Gabriel. - E desta vez não se atrase.
Para profundo desgosto de Seymour, Gabriel e Madeline insistiram em dar uma última volta juntos. Ambos seguiram para Millbank enfrentando rajadas de vento; passaram
pelos Victoria Tower Gardens, pela Abadia de Westminster e pelo Palácio de Westminster. Às dez para as quatro, entraram na cafeteria. Gabriel pediu café preto, Madeline
quis um chá Earl Grey com leite e um biscoito digestivo. Ela tirou um estojo compacto da bolsa e deu uma olhada no próprio rosto pelo espelho.
- Como estou? - ela quis saber.
- Muito israelense.
- Isso é um elogio?
- Deixe para lá. É melhor comer.
Ela obedeceu. Em seguida, olhou pela janela e viu a multidão se movendo pela Bridge Street. Como se nunca tivesse visto aquilo antes. Como se nunca fosse ver novamente.
Ele vistoriou a parte interna do café. Ninguém a reconhecera. Por que reconheceriam? Ela estava morta e enterrada - enterrada no terreno de uma igreja em Basildon.
Uma cidade sem alma para uma garota sem nome nem passado.
- Você não precisa fazer isso - falou Gabriel depois de um instante.
- É claro que preciso.
- Eu já tenho o suficiente sem você. Tenho o vídeo de Zhirov.
- O Kremlin pode negar Zhirov - retrucou Madeline. - Mas não pode me negar.
Ela ainda contemplava a rua.
- Dê uma boa olhada - disse Gabriel -, porque, se você fizer o que está pretendendo, vai demorar um bom tempo até deixarem você voltar para Londres.
- Onde você acha que vão me colocar?
- Num esconderijo no meio do nada, talvez uma base militar, até a tempestade passar.
- Não parece muito agradável, parece?
- Você sempre pode voltar para Israel comigo.
Ela não respondeu. Gabriel se inclinou para a frente e segurou a mão dela, que tremia um pouco.
- Eu tenho uma casinha na Cornualha - revelou ele em voz baixa. - A cidade não é nada de mais, mas fica junto ao mar. Você pode permanecer lá se quiser.
- Tem vista?
- Uma vista adorável.
- Acho que eu gostaria.
Madeline deu um sorriso corajoso. Do outro lado da rua, o Big Ben bateu quatro horas.
- Ela está atrasada - comentou Gabriel, incrédulo. - Não acredito que ela está atrasada.
- Ela sempre está atrasada.
- Você a deixou bem impressionada, a propósito.
- Ela não foi a única.
Madeline riu, apesar das circunstâncias, e tomou um pouco do chá. Gabriel consultou o relógio e franziu a testa. Ele ergueu os olhos a tempo de ver Samantha Cooke
passar correndo pela porta. Um instante depois, estava à mesa deles, um pouco sem fôlego. Ela olhou para Gabriel e, em seguida, para a bela garota de cabelos escuros
sentada à sua frente. E, então, Samantha entendeu.
- Meu Deus - sussurrou.
- Quer algo para beber? - perguntou Madeline, com seu sotaque britânico.
- Na v-verdade - gaguejou Samantha -, talvez seja melhor darmos uma volta.
60
LONDRES
Trinta horas depois, um funcionário júnior da Downing Street entregou um pacote com vários jornais numa casa de tijolos vermelhos em Hampstead. A residência pertencia
a Simon Hewitt, o diretor de comunicações de Jonathan Lancaster, e o baque contra sua porta o acordou de um sono atipicamente profundo. Ele estava sonhando com um
incidente da infância, quando um valentão da escola o deixara com um olho roxo. Era uma leve melhora em relação ao pesadelo da noite anterior - em que fora despedaçado
por lobos -, ou mesmo ao da outra noite - uma nuvem de abelhas o picava até deixá-lo todo ensanguentado. Tudo fazia parte de um tema recorrente. Apesar do triunfo
de Lancaster nas urnas, Hewitt estava tomado por uma sensação de desastre iminente muito diferente de qualquer coisa que tivesse sentido desde que viera para a Downing
Street. Tinha certeza de que o silêncio na imprensa era ilusório. Sem dúvida um terremoto estava prestes a acontecer.
Tudo isso explicava por que Hewitt demorou para sair da cama e abrir a porta da frente naquela fria manhã londrina. Ao abaixar para pegar os jornais, sentiu um espasmo
nas costas, um lembrete do peso do emprego sobre a sua saúde. Ele levou o pacote para a cozinha, onde a cafeteira emitia o chacoalhar enferrujado que sinalizava
o fim de sua vida útil. Depois de se servir uma xícara grande e cobri-la com creme de leite fresco, tirou os jornais do plástico. Como sempre, o antigo periódico
de Hewitt, o Times, estava no topo. Ele o examinou rapidamente, não encontrou nada que chamasse atenção e seguiu para o Guardian. Depois foi a vez do Independent.
E, por fim, do Daily Telegraph.
- Merda - praguejou em voz baixa. - Merda, merda, merda.
No começo, a imprensa não soube bem que nome dar àquela história. Tentaram “O Caso de Madeline Hart”, mas pareceu restrito demais. Assim como “O Fiasco de Fallon”,
que durou algumas horas, ou “A Conexão do Kremlin”, que gozou de uma breve aparição na ITV. Ao fim da manhã, a BBC tinha se decidido por “O Caso da Downing Street”,
que era vago, mas amplo o bastante para cobrir todas as espécies de pecado. O resto da imprensa rapidamente adotou o título, e assim nasceu um escândalo.
Na maior parte do dia, Jonathan Lancaster, o homem no centro dele, permaneceu num silêncio inesperado. Enfim, às seis horas daquela tarde, a porta preta do número
10 se abriu e ele saiu sozinho para encarar o país. Com um tom de arrependimento, conseguiu manter os olhos secos e a voz firme. Reconheceu que tinha mantido um
relacionamento breve e insensato com uma jovem da sede do Partido. Também admitiu que convocara os serviços de um agente estrangeiro de inteligência para encontrar
a moça depois de seu desaparecimento; que, indevidamente, retivera informações das autoridades britânicas; e que pagara 10 milhões de euros pelo resgate. Em nenhum
momento, insistiu, chegou a suspeitar que a garota fosse uma espiã nascida na Rússia. Nem que o sequestro fizesse parte de uma conspiração bem orquestrada por uma
empresa petrolífera do Kremlin. Ele tinha aprovado a licença para a Volgatek seguindo a sugestão de Jeremy Fallon, seu assistente de longa data e chefe de gabinete.
E aquele acordo, ressaltou, agora estava desfeito.
Inteligente, Fallon emitiu sua própria declaração por escrito, pois, mesmo em seus melhores dias, parecia um homem culpado de alguma coisa. Ele reconheceu que havia
ajudado o primeiro-ministro a lidar com as consequências de sua “conduta pessoal imprudente”, mas negou categoricamente que tivesse aceitado pagamentos em dinheiro
de qualquer pessoa ligada à Volgatek. Os comentaristas políticos não deixaram de notar a agressividade da declaração. Para eles, Fallon acreditava que Lancaster
talvez não sobrevivesse e que poderia tomar seu cargo. Aquilo tudo estava se transformando numa luta por sobrevivência. Talvez até mesmo uma luta até a morte.
A declaração seguinte não veio de Londres, mas de Moscou. O presidente russo disse que as alegações contra o Kremlin e sua empresa de petróleo eram uma maliciosa
mentira ocidental. Num sinal claro de que a questão teria repercussões geopolíticas, acusou a inteligência britânica de ter se envolvido no desaparecimento de Pavel
Zhirov, o homem que era a base daquelas alegações. Então, sem oferecer qualquer prova, insinuou que Viktor Orlov tinha alguma relação com o caso. De sua sede em
Mayfair, o ex-oligarca emitiu uma declaração provocativa contradizendo o presidente e afirmando que ele era um mentiroso congênito e cleptocrata que enfim mostrara
sua verdadeira face. Em seguida, entregou-se imediatamente a uma equipe de segurança do MI5 e desapareceu de vista.
Mas quem era o misterioso agente de um serviço estrangeiro que Lancaster convocara para encontrar Madeline Hart? Alegando questões de segurança nacional, o primeiro-ministro
se recusou a identificá-lo. Jeremy Fallon também não esclareceu o assunto. Inicialmente, a especulação se focou nos americanos, de quem se sabia que Lancaster era
próximo. Mas isso mudou quando o Times noticiou que Gabriel Allon, o famoso agente secreto israelense, fora visto entrando na Downing Street em duas ocasiões distintas
durante o período em questão. Em seguida, o Daily Mail relatou que um membro do alto escalão do Parlamento o vira com uma jovem no Café Nero um dia antes de o escândalo
vir à tona. A matéria do Mail foi considerada baboseira sensacionalista - com certeza o grande Gabriel Allon não seria tão tolo a ponto de sentar-se num café movimentado
em Londres sem se disfarçar mas era difícil rejeitar a reportagem do Times. Quebrando a tradição, o Escritório emitiu uma declaração lacônica negando as informações
dos dois relatos, algo que a imprensa britânica viu como uma confirmação inegável do envolvimento de Allon.
Depois disso, o escândalo entrou num ciclo previsível de vazamento de informações e contrainformações e de guerra política aberta. O líder da oposição declarou sua
repulsa e exigiu a renúncia de Lancaster. Mas, quando uma sondagem na Câmara dos Comuns revelou que Lancaster sobreviveria por pouco ao processo do voto de não confiança,
o oposicionista não se deu o trabalho de agendá-lo. Até mesmo Fallon pareceu resistir à tempestade. Afinal, não havia nenhuma prova de que ele tivesse aceito qualquer
pagamento da Volgatek, apenas a palavra de um executivo russo da indústria do petróleo que parecia ter desaparecido da face da Terra.
E tudo poderia ter terminado dessa forma, com o casamento Lancaster-Fallon bastante prejudicado mas ainda intacto, se não fosse pela edição do Daily Telegraph que
acertou com um baque a porta de Simon Hewitt na segunda terça-feira de janeiro. Na primeira página, ao lado de um artigo de Samantha Cooke, havia uma fotografia
de Fallon entrando num pequeno banco particular em Zurique. Algumas horas depois, Lancaster voltou a aparecer sozinho diante da famosa porta do número 10, dessa
vez para anunciar a demissão do ministro do Tesouro. Após alguns minutos, a Scotland Yard anunciou que Fallon passara a ser alvo de uma investigação de suborno e
fraude. Ele novamente declarou inocência. Nenhum membro da equipe de imprensa de Whitehall acreditou.
Ele saiu da Downing Street pela última vez ao pôr do sol e voltou para o pequeno apartamento vazio em Notting Hill. O prédio parecia cercado por todos os repórteres,
cinegrafistas e fotógrafos de Londres. O inquérito não chegaria a determinar como ou quando ele os despistara, embora uma gravação de circuito fechado tenha capturado
uma imagem clara de seu rosto abatido às 2h23 da madrugada seguinte enquanto ele caminhava por um trecho deserto da Park Lane, com uma corda já presa no pescoço.
Com um nó náutico que tinha aprendido com o pai, amarrou a outra ponta num poste no centro da Ponte de Westminster. Ninguém chegou a ver Fallon se jogando do parapeito,
então ele passou a noite inteira pendurado, até que o sol enfim iluminou o seu corpo oscilante. Assim, provou-se verdadeiro um antigo e sábio provérbio corso: “Aquele
que leva uma vida imoral tem uma morte imoral.”
61
CÓRSEGA
Mas quem tinha fornecido a fotografia condenatória que custou o emprego de Jeremy Fallon e o levou a pular da Ponte de Westminster? Essa era a pergunta que dominaria
os círculos políticos britânicos nos meses seguintes. Mas, na ilha encantada onde o escândalo teve sua gênese, apenas algumas pessoas sofisticadas com jeito de terem
vindo do norte devotaram seu tempo a pensar na questão. De vez em quando, surgia um casal no Les Palmiers para tirar uma foto posando de Madeline Hart e Pavel Zhirov
na tarde em que ambos tiveram o fatídico almoço. Porém, de forma geral, os habitantes da ilha se esforçaram para esquecer o pequeno papel que sua terra tinha desempenhado
na morte de um importante político britânico. Com a chegada do inverno, os corsos retomaram instintivamente os seus velhos hábitos. Eles queimaram a macchia para
se aquecerem. Sacudiram os dedos na direção de estranhos para afastar o mau-olhado. E, num vale isolado perto da costa sudoeste, buscaram a ajuda de Don Anton Orsati
quando não podiam recorrer a mais ninguém.
Numa tarde tempestuosa em meados de fevereiro, sentado à mesa de carvalho em seu amplo escritório, ele recebeu um telefonema incomum. O homem do outro lado da linha
não queria que alguém fosse eliminado - na verdade, nada surpreendente, pensou o don, pois o interlocutor era mais do que capaz de cuidar dos próprios assassinatos.
Em vez disso, ele estava em busca de uma casa onde pudesse passar algumas semanas a sós com a esposa. Deveria ser um lugar onde ninguém fosse reconhecê-lo e ele
não precisasse de guarda-costas. Orsati tinha o lugar perfeito. Mas havia um problema: só se entrava e saía por uma única rua, que passava por três oliveiras centenárias,
onde o maldito bode de Don Casabianca acampava.
- Existe alguma forma de ele sofrer um acidente trágico antes de nós chegarmos? - perguntou o homem pelo telefone.
- Desculpe - respondeu Don Orsati mas aqui na Córsega algumas coisas nunca mudam.
Eles chegaram à ilha três dias depois, por um voo que saiu de Tel Aviv, fez escala em Paris e seguiu para Ajaccio. Don Orsati tinha deixado um carro à disposição
no aeroporto, um Peugeot sedã cinza reluzente que Gabriel dirigiu com a típica despreocupação corsa. Foi em direção ao sul, percorrendo a costa, e então rumo ao
interior, passando por vales tomados pela macchia. Quando eles chegaram às três oliveiras centenárias, o bode se ergueu ameaçador e bloqueou o caminho. Mas rapidamente
lhes deu passagem depois que Chiara disse algumas palavras tranquilizadoras em seu ouvido.
- O que você disse? - perguntou Gabriel, quando eles continuaram o percurso.
- Que você sentia muito por ter sido malvado com ele.
- Mas eu não sinto. Ele foi o agressor.
- Ele é um bode, querido.
- Ele é um terrorista.
- Como é que você pode administrar o Escritório se não consegue se entender com um bode?
- Boa pergunta - replicou ele, carrancudo.
A casa ficava pouco mais de um quilômetro depois do reduto do bode. Era pequena e mobiliada com simplicidade, com um piso claro de pedra calcária. Pinheiros-larícios
sombreavam o terraço de granito pela manhã, mas, à tarde, o sol batia com força nas pedras. De dia, o tempo era frio e agradável; à noite, o vento assobiava ao passar
pelas árvores. Eles as observavam oscilar enquanto tomavam vinho tinto corso diante da fogueira. D fogo queimava com um tom azul-esverdeado, por causa da madeira
da macchia, e cheirava a alecrim e tomilho. Em pouco tempo, Gabriel e Chiara também adquiriram aquele aroma.
O único plano deles era não fazer quase nada. Dormiam tarde. Tomavam café da manhã na praça do vilarejo. Comiam peixe no almoço, perto do mar. Durante a tarde, se
estivesse quente, havia banho de sol no terraço e, se estivesse frio, retiravam-se para o quarto simples e faziam amor até dormirem de exaustão. Shamron deixou inúmeras
mensagens lamuriosas que Gabriel ignorou com alegria. Dentro de um ano, todos os seus instantes de vigília seriam consumidos pela tarefa de proteger Israel dos que
desejavam destruí-la. Mas, por enquanto, havia apenas Chiara, o sol frio, o mar e o cheiro inebriante dos pinheiros e da macchia.
Nos primeiros dias, evitaram os jornais, a internet e a televisão. Mas, aos poucos, Gabriel se reconectou com um mundo de problemas que logo seriam dele. O chefe
da AIEA, a agência de vigilância nuclear da ONU, previu que o Irã se tornaria uma potência do ramo dentro de um ano. No dia seguinte, apareceu no noticiário que
o regime na Síria tinha transferido armas químicas para o Hezbollah. E, um dia depois, o Irmão Muçulmano que administrava o Egito foi gravado falando sobre uma nova
guerra com Israel. De fato, as únicas boas notícias que Gabriel conseguiu encontrar vieram de Londres, onde Jonathan Lancaster, sobrevivente do Caso da Downing Street,
designou Graham Seymour para o cargo de diretor do MI6. Gabriel ligou para ele na mesma tarde a fim de parabenizá-lo. Mas, na verdade, queria saber de Madeline.
- Ela está se dando melhor do que eu esperava.
- Onde ela está?
- Parece que um amigo lhe ofereceu um chalé perto do mar.
- É mesmo?
- Não é um procedimento muito ortodoxo - admitiu Seymour -, mas decidimos que era um lugar tão bom quanto qualquer outro.
- Só não dê as costas para ela, Graham. O SVR tem um alcance muito grande.
Foi por causa desse grande alcance que Gabriel e Chiara mantiveram-se bastante discretos na ilha. Eles raramente saíam da casa depois de escurecer e, diversas vezes
por noite, Gabriel ia ao terraço para ficar atento a movimentos no vale. Com uma semana de estadia, ele escutou o chacoalhar familiar de um Renault e, um instante
depois, viu luzes acesas na casa de Keller pela primeira vez. Esperou até a tarde seguinte para aparecer sem aviso prévio. O Inglês estava usando calças brancas
largas e um pulôver branco. Ele abriu uma garrafa de Sancerre e os dois beberam fora da casa, ao sol. Sancerre de tarde, tinto à noite: Gabriel podia facilmente
se acostumar àquilo. Mas agora não havia mais como voltar atrás. Seu povo precisava dele. Tinha um compromisso com a história.
- Daria para melhorar um pouco o Cézanne - comentou Gabriel casualmente. - Que tal me deixar restaurá-lo enquanto estou na cidade?
- Eu gosto do Cézanne do jeito que ele está. Além disso, você veio aqui para descansar.
- Você não precisa?
- Do quê?
- De descanso.
Keller não respondeu.
- Onde você esteve, Christopher?
- Fiz uma viagem de negócios.
- Azeite de oliva ou sangue?
Keller ergueu uma sobrancelha, indicando que era a segunda opção, e Gabriel balançou a cabeça em reprovação.
- Não dá para ganhar dinheiro cantando - disse Keller em voz baixa.
- Existem outras maneiras de ganhar dinheiro, sabia?
- Não quando o seu nome é Christopher Keller e você deveria estar morto. Gabriel tomou um pouco de vinho.
- Eu não incluí você na equipe porque precisava da sua ajuda - explicou ele depois de um instante. - Queria mostrar a você que há mais na vida do que matar pessoas
por dinheiro.
- Você queria me restaurar? É isso que está dizendo?
- É um instinto natural.
- Algumas coisas estão além do reparo. - Keller fez uma pausa. - Além da redenção.
- Quantos homens você matou?
- Não sei. Quantos você matou?
- Para mim é diferente. Eu sou um soldado. Secreto, mas, ainda assim, um soldado. - Ele olhou para Keller, sério, por um momento. - E você também pode ser.
- Você está me oferecendo um emprego?
- Você precisaria se tornar um cidadão israelense e aprender a falar hebraico para trabalhar no Escritório.
- Eu sempre me senti meio judeu.
- Sim - disse Gabriel -, você já mencionou isso.
Keller sorriu, e caiu o silêncio. O vento da tarde começava a se intensificar.
- Existe outra possibilidade, Christopher.
- Qual?
- Você já reparou quem foi nomeado novo diretor-geral do MI6?
Keller não respondeu.
- Eu posso falar sobre você com Graham. Ele pode lhe dar uma nova identidade. Uma nova vida.
Keller ergueu a taça de vinho na direção do vale.
- Eu tenho uma vida. Uma vida muito boa, na verdade.
- Você é um mercenário. Um criminoso.
- Eu sou um bandido de honra. Existe uma diferença.
- Como queira.
- Foi por isso que você veio à Córsega? Para me convencer a voltar para casa?
- Suponho que sim.
- Se eu deixar você restaurar o Cézanne, promete que me deixa em paz?
- Não - respondeu Gabriel.
- Então talvez seja melhor aproveitar o silêncio.
62
CÓRSEGA
Três dias depois, Don Orsati convidou Gabriel a seu escritório para uma conversa. Não era de fato um convite que pudesse ser polidamente recusado. Era uma ordem
shamroniana, gravada em pedra, inviolável.
- Que tal no horário do almoço? - perguntou Gabriel, sabendo que Orsati provavelmente estaria de bom humor naquele horário.
- Ótimo - concordou o don. Mas acrescentou, ameaçador: - Talvez seja melhor se você vier sozinho.
Gabriel saiu da casa pouco depois do meio-dia. O bode lhe deu passagem sem nenhum confronto, pois o reconheceu como um associado da linda mulher italiana. Os guardas
em frente à propriedade também permitiram que ele passasse, pois Orsati avisara que o israelita era esperado. Encontrou o don em seu amplo escritório, curvado sobre
os livros-razão.
- Como estão os negócios?
- Melhores do que nunca. Tenho mais pedidos do que seria possível cumprir.
Orsati não esclareceu se estava falando de sangue ou azeite. Conduziu Gabriel a uma sala de jantar; sobre a mesa, havia um banquete corso. Com portas caiadas e móveis
simples, o cômodo lembrava a Gabriel a sala de jantar particular do papa no Palácio Apostólico. Havia até mesmo um crucifixo pesado de madeira na parede atrás do
assento reservado para o don.
- Incomoda você? - perguntou Orsati.
- De forma nenhuma.
- Christopher me disse que você é familiarizado com igrejas católicas.
- O que mais ele disse?
Orsati franziu a testa, mas ficou em silêncio enquanto servia Gabriel com comida e vinho.
- Gostou da casa? - perguntou, por fim.
- É perfeita, Don Orsati.
- E a sua esposa está feliz aqui?
- Muito.
- Quanto tempo você pretende ficar?
- Pelo tempo em que eu for bem-vindo.
Estranhamente, o don nada respondeu.
- Será que a minha estadia já se alongou demais, Don Orsati?
- Você pode ficar aqui na ilha o tempo que quiser. - O don fez uma pausa. - Desde que não se envolva em questões que afetem os meus negócios.
- Obviamente você se refere a Keller.
- Obviamente.
- Não era minha intenção desrespeitá-lo, Don Orsati. Eu estava apenas...
- Envolvendo-se em questões que não lhe dizem respeito.
O celular do don vibrou suavemente. Ele o ignorou.
- Eu não o ajudei quando você veio para a ilha pela primeira vez em busca da garota inglesa?
- Ajudou.
- Não forneci Keller sem cobrar nada para ajudar a encontrá-la?
- Eu não teria conseguido sem ele.
- Não relevei o fato de nunca terem me oferecido parte do dinheiro que você recuperou?
- O dinheiro está na conta do presidente russo.
- Isso é o que você diz.
- Don Orsati...
Ele fez um gesto de desdém.
- Do que se trata, então? Dinheiro?
- Não - admitiu o don. - É sobre Keller.
Uma rajada atingiu as portas francesas que davam acesso ao jardim de Don Orsati. Era o libeccio, um vento do sudoeste. No inverno, normalmente trazia chuva, mas
por ora o céu estava limpo.
- Aqui na Córsega - disse o don, após um momento de silêncio as nossas tradições são muito antigas. Por exemplo, um jovem nunca sonharia em propor casamento a uma
mulher sem antes pedir sua mão ao pai dela. Você entende o meu ponto, Gabriel?
- Acredito que sim, Don Orsati.
- Você deveria ter falado comigo antes de conversar com Christopher sobre voltar à Inglaterra.
- Foi um erro da minha parte.
A expressão de Orsati se amenizou. Lá fora, o libeccio virou uma mesa e uma cadeira no jardim. Ele gritou algo para o alto no dialeto corso e, alguns segundos depois,
um homem bigodudo com uma espingarda pendurada no ombro apareceu correndo no jardim para colocar a mobília no lugar.
- Você não sabe como o seu amigo Christopher estava quando chegou aqui do Iraque. Ele estava em frangalhos. Eu lhe dei uma casa. Uma família. Uma mulher.
- E trabalho. Bastante trabalho.
- Ele é muito bom no que faz.
- Sim, eu sei.
- Melhor do que você.
- Quem disse isso?
O don sorriu. O silêncio pairou e Gabriel aproveitou a pausa para escolher as próximas palavras com muito cuidado:
- Não é uma maneira adequada para Christopher ganhar a vida.
- “Quem mora em casa de vidro não deveria atirar pedras.”
- Eu nunca soube que era um provérbio corso.
- Todas as coisas sábias vêm da Córsega. - Orsati afastou o prato e apoiou os antebraços pesadamente na mesa. - Existe algo que você parece não compreender. Christopher
é mais do que o meu melhor taddunaghiu. Eu o amo como um filho. E, se algum dia ele fosse embora... eu ficaria de coração partido.
- O pai biológico de Christopher acha que ele está morto.
- Não havia outra maneira.
- Como você se sentiria se os papéis fossem trocados?
Orsati não tinha resposta, então mudou de assunto:
- Você realmente acha que esse amigo seu da inteligência britânica estaria interessado em levar Christopher de volta para a Inglaterra?
- Ele seria um tolo se não o fizesse.
- Mas talvez ele se negue. E, ao discutir a questão, você pode pôr em risco a posição de Christopher aqui na Córsega.
- Eu vou fazer tudo de uma forma que não o ameace.
- Seu amigo é um homem de confiança?
- Eu confiaria minha própria vida a ele. Na verdade, já fiz isso muitas vezes.
Orsati respirou fundo, resignado. Estava prestes a dar sua bênção à proposta incomum de Gabriel quando o celular vibrou novamente. Dessa vez ele atendeu. Ouviu em
silêncio por um instante, falou algumas palavras em italiano e desligou.
- Quem era? - perguntou Gabriel.
- Sua esposa - respondeu o don.
- Algo errado?
- Ela quer dar uma volta pelo vilarejo.
Gabriel começou a se levantar.
- Fique e termine seu almoço - disse Orsati. - Vou mandar dois garotos para ficarem de olho nela.
Gabriel se sentou. O libeccio estava provocando o caos no jardim. Orsati observou a cena em silêncio por um momento, triste.
- Continuo feliz por não termos precisado matá-lo, Allon.
- Garanto, Don Orsati, que o sentimento é mútuo.
O vento perseguiu Chiara pela trilha estreita, passando pelos gatos e pelas casas com as venezianas fechadas até alcançar a praça principal, onde rodopiou pelas
construções e vandalizou as mesas de exposição dos vendedores. Ela foi para o mercado e encheu a cesta de palha com alguns itens para o jantar. Em seguida, sentou-se
a uma mesa em uma das cafeterias e pediu um café. No centro da praça, alguns velhos jogavam boules em meio a minúsculos ciclones de poeira e, nos degraus da igreja,
uma idosa vestida de preto passava um pedaço de papel azul para um garoto de cabelos castanhos bem compridos. Observando-o, Chiara sorriu com tristeza. Ela pensou
em como o filho de Gabriel, Dani, seria agora se tivesse vivido até os 10 anos.
A mulher desceu a escadaria e entrou numa pequena casa torta. O garoto começou a atravessar a praça com o papel azul na mão. Para surpresa de Chiara, entrou na cafeteria
onde ela estava e colocou o papel em sua mesa sem dizer uma palavra. Ela esperou o garoto partir antes de ler a única linha:
Preciso vê-la imediatamente.
Quando Chiara chegou, a signadora estava esperando à porta de sua casa. Ela sorriu, tocou-lhe a bochecha com delicadeza e conduziu-a para dentro.
- Você sabe quem eu sou? - perguntou a velha.
- Tenho uma boa ideia.
- Seu marido falou de mim?
Chiara assentiu.
- Eu o avisei para não ir à cidade dos hereges, mas ele não escutou. Ele tem sorte de estar vivo.
- Ele é osso duro de roer.
- Talvez ele seja um anjo, afinal. - A senhora tocou o rosto de Chiara de novo. - E você também foi até lá, não é mesmo?
- Quem lhe disse que eu fui à Rússia?
- Você foi sem dizer ao seu marido - continuou a signadora, como se não tivesse escutado a pergunta. - Vocês ficaram juntos por algumas horas num quarto de hotel
na cidade da noite. Você se lembra?
Ela sorriu, ainda tocando o rosto de Chiara. Então, afastou-lhe os cabelos.
- Devo continuar? - indagou a velha.
- Não acredito que você possa ver o passado.
- Seu marido foi casado com outra mulher antes de você - prosseguiu a signadora, como se tentasse provar que Chiara estava enganada. - Havia uma criança. Houve um
incêndio. A criança morreu, mas a mulher, não. Ela ainda vive.
Chiara se afastou com um movimento brusco.
- Você o amou por muito tempo - continuou a velha -, mas ele não se casou com você por causa do luto. Ele a mandou embora, mas voltou numa cidade de água.
- Como você sabe disso?
- Ele fez uma pintura de você envolta em lençóis brancos.
- Foi um esboço - retrucou Chiara.
A mulher deu de ombros, indicando que aquilo não fazia muita diferença. Então, gesticulou na direção da mesa, onde havia um prato com água e uma vasilha de azeite
ao lado de duas velas acesas.
- Não quer sentar? - perguntou ela.
- Prefiro continuar em pé.
- Por favor. Só vai levar um instante. E, então, eu saberei com certeza.
- Saberá o quê?
- Por favor - repetiu ela.
Chiara se sentou. A velha se acomodou à sua frente.
- Mergulhe o dedo no azeite. Depois, deixe três gotas caírem na água.
Chiara seguiu as instruções com relutância. Ao tocar a superfície da água, o azeite reuniu-se numa única gota. A velha teve um sobressalto e uma lágrima desceu por
sua bochecha pálida.
- O que você vê? - perguntou Chiara.
A mulher segurou a mão dela.
- Seu marido está esperando na casa. Vá e diga a ele que vai ser pai de novo.
- Menino ou menina?
A signadora sorriu.
- Um de cada.
Nota do Autor
A versão da pintura Suzana e os anciãos que aparece na história não existe. Se existisse, seria uma ótima obra, assim como a que está no Museu de Belas-Artes em
Reims, na França. Há de fato um edifício de calcário na rua Narkiss, em Jerusalém - aliás, vários. Mas não reside ali nenhum oficial da inteligência israelense chamado
Gabriel Allon. A sede do serviço secreto de Israel não fica mais no King Saul Boulevard, em Tel Aviv. Mantive o endereço porque sempre gostei do nome. O bombardeio
ao Hotel King David em 1946 é um fato histórico, embora Arthur Seymour - pai do oficial fictício do MI5, Graham Seymour - não tenha realmente presenciado a situação.
Não há nenhuma exposição no Museu de Israel com os pilares do Templo de Salomão, pois nunca foi descoberta nenhuma ruína dele.
Existe um restaurante chamado Les Palmiers em Calvi, mas, até onde sei, nunca foi utilizado como ponto de encontro para dois espiões russos. A empresa Orsati Olive
Oil foi inventada por mim, assim como o incidente de fogo amigo que levou Christopher Keller - que apareceu pela primeira vez em O assassino inglês - a deixar o
Serviço Aéreo Especial e tornar-se um matador de aluguel na Córsega. Os que estão familiarizados com a ilha e suas ricas tradições vão notar que eu dei poderes à
minha signadora fictícia que a maioria de seus colegas não professa ter.
A companhia de energia russa conhecida como Volgatek Óleo e Gás também não existe. Eu mexi nos tempos de voo da El Al entre Tel Aviv e São Petersburgo para atender
às necessidades da minha operação. Os corajosos que visitam São Petersburgo no pesado inverno não devem tentar escalar a gloriosa cúpula da Catedral de Santo Isaac,
pois ela fica fechada durante o tempo frio. Para constar: gosto muito do Café Nero na Bridge Street. Minhas sinceras desculpas aos hotéis Metropol, Astoria e Ritz-Carlton
por executar operações de inteligência com base em suas instalações, mas tenho certeza de que não fui o primeiro.
Eu me esforcei para descrever de forma precisa a atmosfera dentro do número 10 da Downing Street, embora admita que, ao contrário de Gabriel Allon, nunca tenha passado
pela barreira de segurança da Whitehall. Ao criar Jeremy Fallon, dei-lhe a ampla autoridade que o primeiro-ministro Tony Blair deu a Jonathan Powell, o chefe de
gabinete verdadeiro. Tenho certeza de que a presença do brilhante e escrupuloso Powell ao lado de Lancaster teria prevenido todo o caso sórdido retratado em A garota
inglesa.
O aumento da espionagem por parte do serviço de inteligência russo contra alvos ocidentais tem sido bem documentado. Oleg Gordievsky, desertor da KGB, disse ao The
Guardian recentemente que o tamanho da rezidentura do SVR em Londres chegou ao nível da Guerra Fria. Gordievsky tem credibilidade para fazer essa declaração porque
trabalhou para a KGB em Londres entre 1982 e 1985. Além disso, o MI5 chegou à mesma conclusão, então ele não está sozinho em sua avaliação. “É muito frustrante ainda
ter que empregar um montante significativo de equipamento, dinheiro e pessoal para combater essa ameaça. São recursos que eu com certeza preferiria empregar para
combater ameaças de terrorismo internacional”, disse o diretor-geral do MI5, Jonathan Evans.
Embora Londres ainda seja um eixo importante de atividade da inteligência russa, os Estados Unidos permanecem como o foco principal do Centro Moscovita. O FBI forneceu
provas extensas desse fato em junho de 2010, quando prendeu dez espiões russos que viviam no país sob disfarces não oficiais e ilegais havia muitos anos. Receosa
de comprometer o tão anunciado “recomeço” nas relações com o Kremlin, a administração de Obama logo decidiu enviar os espiões à Rússia como parte de uma troca de
prisioneiros - a maior já realizada entre os dois países desde a Guerra Fria. Entre os espiões, a mais conhecida era Anna Chapman, uma belíssima femme fatale que
viveu em Londres muitos anos antes de se mudar para Nova York, trabalhando como agente imobiliária e acompanhante de festas. Desde que retornou à Rússia, Chapman
apresentou um programa de TV, escreveu uma coluna no jornal e posou para a capa de uma revista de lingerie francesa. Ela também foi indicada para o conselho orientador
da Guarda Jovem do partido Rússia Unida, uma organização pró-Kremlin afiliada ao partido que governa o país. Os críticos da Guarda Jovem frequentemente se referem
à organização, em tons sombrios, como “Juventude Putinista”.
A maior parte da espionagem russa contra os Estados Unidos é de natureza industrial e econômica. As razões são dolorosamente óbvias: quase um quarto de século após
o colapso da União Soviética, a Rússia continua sendo um país praticamente incapaz de se manter sozinho, bastante dependente de matérias-primas e, claro, de petróleo
e gás. O presidente Vladimir Putin nunca manteve segredo sobre o que a energia significa para a nova Rússia. Na verdade, o Kremlin declarou em um documento de estratégia
de 2003 que “o papel do país no mercado de energia global determina em grande parte sua influência geopolítica”. O governo, sabiamente, suavizou a linguagem para
falar da importância do setor de energia russo, mas os objetivos permanecem os mesmos. Sem seu império e militarmente fraca, a Rússia pretende ganhar poder no cenário
mundial com petróleo e gás em vez de armas nucleares e ideologia marxista-leninista. Além disso, os gigantes estatais de energia não estão satisfeitos em operar
apenas dentro da Rússia, onde a produção dessas commodities já se estabilizou. Eles passaram a adquirir ativos de upstream e downstream como parte do estratagema
para se tornarem participantes reais do mercado de energia global. Em suma, a Rússia está tentando se transformar na Arábia Saudita euroasiática.
A gigante estatal russa Gazprom é a maior companhia de gás do mundo e suas receitas são a fonte de grande parte do orçamento federal anual do Kremlin. Muitas das
antigas repúblicas soviéticas recebem todo o gás natural da Rússia, assim como a pequena Finlândia. Mais de quarenta por cento do produto da Alemanha vêm da Rússia;
já na Áustria, a porcentagem chega a oitenta. Enquanto o avanço na tecnologia de perfuração leva mais gás ao mercado internacional, os gasodutos que ligam a Europa
e a Rússia ajudam a garantir a posição dominante da Gazprom nos próximos anos. E seus muitos clientes europeus devem lembrar que a empresa operou como instrumento
de repressão política em 2001, quando comprou a NTV, a única opção de transmissão nacional independente e uma feroz crítica de Putin e do Rússia Unida. Agora, a
perspectiva editorial da NTV é seguramente pró-Kremlin.
Após um breve período como primeiro-ministro, Putin foi eleito para um terceiro mandato como presidente da Rússia em março de 2012. Ex-agente da KGB, encontra-se
em posição para governar, pelo menos, até 2024 - período maior do que Leonid Brejnev e quase tão longo quanto o de Joseph Stálin. Obviamente, nem todos os russos
apoiam seu apego ditatorial ao poder, porém cada vez mais vozes da oposição estão sendo silenciadas, às vezes de forma violenta. Em novembro de 2009, Sergei Magnitsky
- advogado e contador moscovita que fez acusações de desfalque a policiais e funcionários da receita federal - morreu de repente numa prisão russa, aos 37 anos.
O incidente provocou condenação e sanções dos Estados Unidos. Agora o Kremlin está de olho em Alexei Navalny, o dissidente mais proeminente e líder do movimento
de protesto que varreu o país após o retorno de Putin à presidência. No momento em que escrevo esta nota, ele aguarda julgamento por acusações de desvio de dinheiro
- acusações que Navalny e sua legião de apoiadores denunciaram como politicamente motivadas. Caso seja condenado, pode passar dez anos na prisão, onde não será uma
ameaça a Putin e aos seus companheiros siloviki no Kremlin.
Na nova Rússia de Putin, com demasiada frequência, as penas de prisão com qualquer tipo de duração equivalem a uma sentença de morte. De acordo com as autoridades
russas, 4.121 pessoas morreram sob custódia do governo só em 2012, porém advogados pró-democracia dizem que é provável que o número real seja muito maior. Isso pode
explicar por que Alexander Dolmatov, ativista pró-democrata russo, se suicidou no centro de detenção de Roterdã em janeiro de 2013. Com medo de ser preso e julgado
na Rússia, ele voou para a Holanda em busca de asilo político. Quando sua solicitação foi negada, enforcou- se na cela. O governo holandês disse que o suicídio de
Dolmatov não teve nada a ver com a negação do asilo. Os amigos dele no movimento de oposição não compartilham dessa opinião.
Os nomes de Magnitsky, Navalny, Dolmatov são conhecidos no Ocidente, mas existem muitos outros que já definharam nas celas das prisões russas por terem ousado erguer
um cartaz de protesto ou escrever um blog criticando Vladimir Putin. Na Rússia, a intensificação do autoritarismo continua. E os gigantes do petróleo e do gás do
Kremlin estão pagando a conta.45
ZELÂNDIA, DINAMARCA
Uma mesa fora posta com um suntuoso banquete russo. A origem da comida era incerta, pois, aparentemente, não havia mais ninguém ali além dos três executivos. Mikhail
se perguntou como teriam arranjado aquela propriedade em tão pouco tempo. Não tinham arranjado, é claro. Com certeza era uma casa segura da Volgatek. Ou do SVR.
Aliás, talvez essa distinção fosse desnecessária.
Por ora, a comida servia apenas de decoração. Mikhail recebera uma bebida - vodca, obviamente - e fora acomodado em uma cadeira de honra, com uma bela vista para
o mar negro. Bershov, o atleta da companhia, percorria o perímetro da sala com o vagar determinado de um homem prestes a entrar no ringue. Zhirov, o guardião dos
segredos da Volgatek, sequestrador de Madeline, fitava o teto, como se calculasse quanta corda seria necessária para enforcar Mikhail. Por fim, pousou seu olhar
duro em Lazarev, que havia tomado posse do lugar à lareira e contemplava as chamas. Ele ponderava sobre a questão feita por Mikhail no instante anterior:
- O que estou fazendo aqui?
- O que você está fazendo aqui? - respondeu o russo, afinal.
- Eu vim porque você me convidou.
- Você costuma aceitar encontros com os inimigos do homem que assina seu contracheque?
Lazarev virou-se vagarosamente.
- Então é disso que se trata? - Mikhail perguntou um pouco depois. - Você está me recrutando para espionar Viktor?
- Você parece familiarizado com a linguagem de espionagem, Nicholas.
- Eu leio livros.
- Que tipo de livros?
Mikhail largou sua bebida.
- Isso está começando a parecer muito com um interrogatório - disse calmamente. - Se você não se importa, gostaria de voltar para o meu hotel.
- Isso seria um erro da sua parte.
- Por quê?
- Porque você ainda não ouviu minha oferta.
Sorrindo, Lazarev pegou a bebida intocada de Mikhail e levou-a até o carrinho para ser renovada. O falso Avedon olhou para Zhirov e retribuiu seu olhar inexpressivo.
Internamente, no entanto, visualizava, no lugar das roupas de lã escura, a exuberante roupa de verão que ele usava no almoço no Les Palmiers, em Calvi. Quando sua
bebida reapareceu, Mikhail apagou a imagem da mente como giz de uma lousa e olhou apenas para Lazarev, que tinha a testa franzida, como se debatesse com uma equação
sem solução possível.
- Você se importa se continuarmos a nossa conversa em russo? - perguntou.
- Receio que o meu conhecimento de russo seja bom apenas para me comunicar em restaurantes e táxis.
- Fontes confiáveis me dizem que seu russo é bem bom. Fluente, até.
- Quem lhe disse isso?
- Um amigo da Gazprom - respondeu Lazarev com sinceridade. - Ele falou brevemente com você em Praga, durante sua estadia com Viktor.
- As notícias voam.
- Receio que não haja segredos em Moscou, Nicholas.
- É o que dizem.
- Você estudou russo na escola?
- Não.
- Então deve ter aprendido em casa.
- Provavelmente.
- Seus pais são russos?
- E meus avós também - completou Mikhail.
- Como foram parar na Inglaterra?
- Do jeito de sempre.
- O que isso significa?
- Eles saíram da Rússia após a queda do czar e se estabeleceram em Paris. Depois, foram para Londres.
- Seus ancestrais eram burgueses?
- Não eram bolcheviques, se é isso que está perguntando.
- Suponho que seja.
Mikhail pareceu pesar suas próximas palavras com cuidado.
- Meu bisavô era um homem de negócios moderadamente bem-sucedido que não queria viver sob o comunismo.
- Qual era o nome dele?
- O nome da família era Avdonin, que ele acabou mudando para Avedon.
- Então o seu nome real é Nikita Avdonin.
- Nicolai.
- Posso chamá-lo de Nicolai?
- Se desejar.
- Você já foi a Moscou? - perguntou Lazarev, passando ao russo.
- Não - respondeu Mikhail na mesma língua.
- Por que não?
- Nunca tive motivo.
- Você não tem curiosidade de saber de onde veio?
- A Inglaterra é o meu lar. A Rússia é a terra de onde a minha família fugiu.
- Você se opunha à União Soviética?
- Eu era jovem demais para me opor.
- E nosso governo atual?
- O que tem ele?
- Você partilha da opinião de Viktor Orlov de que nosso presidente é um cleptocrata autoritário?
- Talvez você se surpreenda, Sr. Lazarev, mas Viktor e eu não falamos sobre política.
- De fato isso me surpreende.
Mikhail ficou em silêncio. Lazarev deixou passar o assunto. Seu olhar moveu-se de Bershov para Zhirov antes de repousar sobre Mikhail novamente.
- Presumo que você tenha lido sobre o acordo de licenciamento que fechamos com o governo britânico que vai nos permitir conduzir perfurações no mar do Norte - falou
Lazarev, voltando ao inglês.
- Duas áreas recém-descobertas nas Ilhas Ocidentais - disse Mikhail, como se estivesse lendo um prospecto. - Produção prevista em campo maduro de cem mil barris
por dia.
- Muito impressionante.
- É o meu trabalho, Sr. Lazarev.
- Na verdade é o meu trabalho. - Lazarev fez uma pausa. - Mas eu gostaria que você tomasse conta dele para mim.
- O projeto das Ilhas Ocidentais?
Lazarev assentiu.
- Sinto muito, Sr. Lazarev - falou Mikhail educadamente -, mas não sou gerente de projetos.
- Você fez um trabalho similar no mar do Norte para a petroleira KBS.
- E é por isso que não quero fazê-lo de novo. Além do mais, já sou contratado de Viktor. - Mikhail se levantou. - Desculpe-me por não ficar para o jantar, Sr. Lazarev,
mas eu realmente preciso voltar.
- Mas você ainda nem ouviu o resto da minha proposta.
- Se for igual à primeira parte, não estou interessado - retrucou Mikhail.
Lazarev nem pareceu ouvir a resposta:
- Como você sabe, Nicolai, a Volgatek está expandindo suas operações na Europa e em outros lugares. Se quisermos ter sucesso nessa iniciativa, vamos precisar de
pessoas talentosas como você. Pessoas que entendam o Ocidente e a Rússia.
- Isso seria uma oferta?
Lazarev se aproximou e pousou com determinação as mãos nos ombros de Mikhail. Como se não houvesse mais ninguém na sala, prosseguiu:
- As Ilhas Ocidentais são apenas o começo. Quero que me ajude a construir uma petrolífera com alcance realmente global. Vou torná-lo rico, Nicolai Avdonin, rico
como você jamais sonhou ser.
- Minha vida já é bastante confortável.
- Se bem conheço o Viktor, ele está lhe pagando com os trocados do bolso. - Lazarev sorriu e apertou os ombros de Mikhail. - Venha para a Volgatek, Nicolai. Volte
para casa.
O lado sul da baía de Koge não é o tipo de lugar onde dois homens possam conversar longamente dentro de um carro estacionado sem serem notados, então Gabriel e Keller
dirigiram até a cidade mais próxima e sentaram-se em um pequeno e acolhedor restaurante, que servia uma mistura pouco apetitosa de pratos italianos e chineses. Keller
comeu pelos dois, enquanto Gabriel tomava apenas um chá preto. Seu fone de ouvido permanecia silencioso e ele visualizava Mikhail sendo escoltado para a morte através
de um bosque de bétulas nevado. Por duas vezes, o receio e a frustração impeliram-no a levantar-se, e por duas vezes Keller o mandou sentar e esperar:
- Você fez o seu trabalho - disse calmamente, com um falso sorriso operacional estampado no rosto bronzeado. - Deixe as coisas tomarem o seu rumo.
Por fim, uma hora e 33 minutos após Mikhail ter entrado na casa à beira-mar, Gabriel escutou um áspero estalido eletrônico, seguido pelo rugido do vento, o mesmo
que chacoalhava os vidros da janela congelada a poucos centímetros de seu rosto. Bastante aliviado, ele pôde ouvir Mikhail dizer, com a voz debilitada pelo frio:
- Eu vou pensar em sua proposta, Gennady. De verdade, vou pensar.
- Não pense demais, Nicolai: minha oferta tem um prazo.
- Quanto tempo eu tenho?
- Gostaria de saber em uma semana. Caso contrário, terei de tomar outra direção.
- E se eu disser sim?
- Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte. Senão, você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.
- Por que Moscou?
- Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?
- É claro que não.
- E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.
Essas foram as últimas palavras trocadas pelos dois. Depois, uma porta foi fechada, deram partida num carro e o ponto de luz azul voltou a se mover através da tela
do tablet. Enquanto o sinal se aproximava das coordenadas do restaurante onde estavam, Gabriel levantou a cabeça e viu o grande Mercedes preto passar, levantando
um torvelinho de neve. Mikhail sobrevivera. Agora, tudo o que tinham a fazer era retirá-lo do mar e trazê-lo para casa.
A viagem de volta a Copenhague durou 45 minutos; foi bem tediosa, pois nada de mais aconteceu. Gabriel deixou Keller dirigir para poder focar seu considerável poder
de concentração no áudio transmitido pelo fone de ouvido. Não havia outros sons além do rumor aveludado do motor do Mercedes e umas batidinhas monótonas. A princípio,
Gabriel achou que havia algo sob o automóvel, mas logo percebeu que Mikhail estava tamborilando sobre o descanso de braço, o que sempre fazia quando estava ansioso.
No entanto, ao sair do carro no Hotel d'Angleterre, ele parecia um homem sem uma preocupação sequer na vida. Ao entrar no saguão, encontrou os brasileiros bebendo
no bar e decidiu juntar-se a eles para um merecido drinque de final de noite. Depois disso, rumou para o quarto, que não tinha nenhuma evidência da busca altamente
profissional executada durante sua ausência. Até mesmo o notebook, objeto de uma completa revista digital, estava exatamente onde fora deixado. Mikhail utilizou-o
para redigir um alerta rápido para a equipe, cuja cópia impressa Lavon tinha nas mãos quando Gabriel e Keller retornaram ao apartamento seguro na rua com nome impronunciável.
- Você conseguiu, Gabriel. Você o pegou.
- Peguei quem?
Com um sorriso, Lavon respondeu;
- Paul. Pavel Zhirov, da Volgatek Óleo e Gás, é Paul.
O desentendimento que se seguiu foi um dos mais sérios na longa história da equipe, embora tenha se desenrolado tão discretamente que Keller mal o percebeu. De forma
incomum, o grupo se dividiu em dois, e Yaakov assumiu o controle da facção rebelde. Seu argumento era simples e defendido com fervor. A missão havia sido conduzida
com um objetivo: encontrar uma prova de que os russos tinham sequestrado Madeline como parte de uma conspiração para ter acesso ao petróleo britânico. Agora a prova
estava em seu quarto no Hotel Imperial na forma de Pavel Zhirov, chefe de segurança da Volgatek e um autêntico facínora da Central Moscovita. Segundo Yaakov, não
havia o que fazer senão capturá-lo de imediato. De outra forma, Zhirov escaparia para sempre do alcance da equipe.
Infelizmente para Yaakov, o líder da facção oposta era ninguém menos que o futuro diretor, Gabriel Allon. Ele expôs com calma todas as razões pelas quais Zhirov
deixaria Copenhague pela manhã como estava programado. Não havia tempo para planejar ou ensaiar adequadamente uma operação dessas; além disso, não haveria uma oportunidade
para a captura limpa de Zhirov que se encaixasse em qualquer um dos critérios do Escritório. Gabriel lembrou que operações-relâmpago são sempre arriscadas, mas uma
sem planejamento é a receita certa para um desastre com o qual o Escritório não poderia arcar agora. Zhirov estava livre para ir e, se necessário, o Escritório até
carregaria sua bagagem.
E assim foi que, às dez da manhã do dia seguinte, Pavel Zhirov, vulgo Paul, deixou o Hotel Imperial acompanhado por Lazarev e Bershov. Os três entraram em uma limusine
com chofer que os levou ao aeroporto de Copenhague, onde embarcaram num avião particular para Moscou. Yossi ainda tirou uma foto do embarque para um jornal que não
existia e, depois, tomou um avião para Londres. No fim daquela tarde, Gabriel já estava rodeado dos outros membros da equipe na casa segura de Grayswood. Nicolai
Avdonin disse que estava indo à cidade dos hereges para uma entrevista de emprego, e o grupo iria com ele.
46
GRAYSWOOD, SURREY
A intimação chegou pelo link seguro no fim da tarde seguinte. Gabriel até a % pensou em ignorá-la, mas a mensagem deixou claro que o seu não com- parecimento implicaria
a imediata revogação da licença operacional. Assim, às seis horas, ele se dirigiu ao centro de Londres e se esgueirou pela entrada dos fundos da embaixada israelense.
O chefe de posto, um carreirista experimentado chamado Natan, esperava-o tenso no saguão. Ele acompanhou Gabriel ao andar inferior, até o Santo dos Santos, e logo
foi embora, como se temesse ser atingido por estilhaços. A câmara estava vazia, mas sobre a mesa havia uma travessa com pequenos sanduíches e biscoitos vienenses
amanteigados, além de uma garrafa de água mineral, que Gabriel tratou de guardar dentro de um armário. Era a força do hábito, já que a doutrina do Escritório pregava
que um encontro potencialmente hostil deveria ser realizado num ambiente isento de objetos que pudessem ser usados como arma.
Após vinte minutos, apareceu um homem com físico de praticante de luta livre. Vestia um terno escuro que parecia um número menor do que o ideal, além de uma camisa
social de colarinho alto que dava a impressão de que sua cabeça fora aparafusada nos ombros. Os cabelos já haviam sido louro-avermelhados, mas agora tinham mechas
brancas e eram cortados curtos para ocultar o fato de que caíam num ritmo alarmante. Ele observou Gabriel por um momento através dos óculos estreitos, como se decidindo
se iria matá-lo imediatamente ou apenas ao nascer do dia. Por fim, foi até a travessa e balançou devagar a cabeça.
- Você acha que meus inimigos sabem?
- Sabem o quê, Uzi?
- Que eu não consigo resistir a comida. Especialmente a isto - acrescentou Navot, apanhando um biscoito. - Suponho que seja genético. O que meu avô mais amava era
biscoito amanteigado e uma boa xícara de café vienense.
- Bom, é melhor ter um problema com doces do que com jogo ou mulheres.
- Falar é fácil - replicou Navot, ressentido. - Você é como Shamron: não tem fraquezas. É incorruptível. - Ele fez uma pausa. - Você é perfeito.
Gabriel percebeu a direção que a conversa estava tomando. Permaneceu em silêncio enquanto Navot olhava para o biscoito na mão como se aquilo fosse a fonte de todos
os seus problemas. Por fim, ele falou:
- Suponho que você tenha uma fraqueza: sempre deixou os sentimentos influírem em suas decisões. Terá que se livrar dessa tendência quando se tornar diretor.
- Não se trata de sentimentos, Uzi.
Navot deu um sorriso artificial.
- Então você não nega que Shamron lhe falou sobre ser o próximo diretor?
- Não, Navot. Eu não nego.
Navot já mal fingia sorrir.
- Você tem outra fraqueza, Gabriel: você é honesto. Honesto demais para ser espião.
Navot sentou e pousou os braços maciços sobre a mesa. O tampo pareceu acomodar-se sob o peso. Observando-o, Gabriel recordou uma desagradável tarde muitos anos antes,
quando formara uma dupla com Navot em um treinamento de assassinato silencioso. Gabriel perdera a conta de quantas vezes morrera naquele dia.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Por favor, Uzi, não precisamos conversar sobre isso.
- Por que não?
- Porque não vai ser bom para nenhum de nós.
- Então você se sente culpado.
- De jeito nenhum.
- Há quanto tempo você planeja tomar meu cargo?
- Ora, Uzi, você me conhece muito bem.
- Eu achava que conhecia.
Navot afastou a travessa e olhou em torno da sala.
- Será que custava eles terem deixado ao menos uma garrafa de água para mim?
- Eu a tranquei no armário.
- Por quê?
- Porque eu não queria que você me batesse com ela.
Navot segurou-lhe o cotovelo e o apertou, fazendo a mão de Gabriel ficar dormente no mesmo instante.
- Pegue-a para mim. É o mínimo que você pode fazer.
Gabriel lhe entregou a garrafa. A raiva de Navot parecia ter se atenuado, mas só um pouco. Ele desenroscou a tampa de alumínio usando apenas o polegar e o indicador
e pôs a água com gás num copo de plástico transparente, sem oferecer para Gabriel.
- O que eu fiz para merecer isso? - começou a falar, mais para si mesmo do que para Gabriel. - Eu fui um bom diretor, realmente bom. Conduzi os assuntos do Escritório
com dignidade e mantive meu país fora de qualquer problema maior com outras nações. Consegui deter o programa nuclear iraniano? Não, não consegui. Mas também não
nos meti em nenhuma guerra catastrófica. É esse o papel primordial do diretor: assegurar que um primeiro-ministro mal orientado não arraste o país para um conflito
desnecessário. Você vai aprender isso assim que sentar na minha cadeira.
Como Gabriel não respondeu, Navot resolutamente bebeu mais de sua água, como se fosse a última garrafa na terra. Sobre uma coisa ele estava certo: de fato havia
sido um bom chefe. Porém, para seu infortúnio, todos os sucessos sob sua gestão foram obra de Gabriel.
- Há outra coisa que você logo vai aprender - voltou a falar Navot. - É bem difícil comandar um serviço de inteligência com Shamron espiando por cima do ombro.
- O serviço é obra de Shamron. Ele o construiu do nada e o transformou no que é hoje em dia.
- O velho é apenas isso: um velho. O mundo mudou desde que Shamron era o diretor.
- Uzi, você não pensa mesmo assim.
- Perdoe-me, Gabriel, mas no momento não estou especialmente inclinado a simpatizar com Shamron. E nem com você, para falar a verdade.
Navot mergulhou num silêncio mal-humorado. Ao espiar através das paredes de vidro à prova de som, o chefe de posto Natan viu dois homens se fuzilando com o olhar
e resolveu voltar a seu bunker.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Uzi...
- Vão ao menos me deixar terminar o meu mandato?
- É claro que sim.
- Não queira fazer parecer a coisa mais óbvia do mundo, Gabriel. Da maneira que vejo agora, nada parece assim tão óbvio.
- Você foi um ótimo diretor, Uzi. O melhor desde Shamron.
- E qual é minha recompensa? Ser descartado e afastado antes do tempo. Sim, porque é claro que ninguém vai admitir um ex-diretor no King Saul Boulevard.
- E por que não?
- Porque é algo sem precedentes.
- Nada disso tem precedentes, Uzi.
- Desculpe-me, Gabriel, mas não vou querer que minha carreira termine como um caso de caridade.
- Você não deve se depreciar assim, Uzi.
- Parece minha mãe falando.
- Como está ela?
- Bem em alguns dias, mal em outros.
- Algo que eu possa fazer?
- Vá visitá-la na próxima vez em que estiver na cidade. Ela sempre o adorou, Gabriel. Todo mundo adora você. - Navot pegou um biscoito amanteigado. Depois mais outro.
Limpando as migalhas dos dedos grossos, prosseguiu: - Pelos meus cálculos, ainda tenho catorze meses como diretor, logo é minha a decisão de mandar ou não alguns
de nossos melhores agentes à cidade mais perigosa do mundo.
- Você me deu autorização para conduzir a missão.
- Na ocasião, havia um revólver apontado para a minha cabeça.
- O revólver ainda está lá.
- É, eu sei, por isso jamais sonharia em abortar sumariamente o seu pequeno plano. Em vez disso, vou apenas pedir que respire fundo e retome o juízo.
Ao receber apenas silêncio como resposta, Navot se inclinou sobre a mesa e olhou nos olhos de Gabriel. Seu rosto já não apresentava qualquer sinal de raiva.
- Você lembra como foi a última vez em que estivemos em Moscou, Gabriel, ou conseguiu apagar de sua memória?
- Eu me lembro de tudo, Uzi.
- Eu também - comentou Navot, com uma voz distante. - Foi o pior dia da minha vida.
- Da minha também.
Navot franziu a testa, confuso.
- Então por que, em nome de Deus, você quer voltar lá?
Navot retirou os óculos com um ar pensativo e massageou a ponte do nariz, que estava marcada. Os óculos, assim como tudo mais que ele estava usando, tinham sido
escolhidos por Bella, sua exigente esposa. Ela havia trabalhado brevemente como analista no posto do Escritório na Síria e adorava o status de esposa do diretor.
Gabriel sempre suspeitara que sua influência se estendia para bem além do guarda-roupa do marido.
- Acabou - disse Navot por fim. - Você o derrotou. Você venceu.
- Venci quem?
- Ivan.
- Isso não tem nada a ver com Ivan.
- É claro que tem. Se você não consegue perceber isso, talvez nem esteja preparado para conduzir essa operação, afinal.
- Então cancele minha licença.
- Eu adoraria. Se eu o fizer, entretanto, vou começar uma guerra que simplesmente não posso vencer. - Navot voltou a pôr os óculos e deu um breve sorriso. - Essa
é outra coisa que você vai precisar aprender quando for o chefe: escolher as batalhas com cuidado.
- Foi exatamente o que eu fiz.
- Como eu ainda estarei na chefia por catorze meses, faça a cortesia de me descrever o seu plano em linhas gerais.
- Vou trazer Pavel Zhirov para uma conversa privada. Ele vai me contar por que sequestrou e assassinou uma jovem inocente em nome dos interesses da Volgatek. E vai
confessar que a empresa não é nada mais que uma fachada para a KGB. Então, vou reduzi-los a cinzas, Uzi. Vou provar de uma vez por todas ao mundo civilizado que
a atual corja que está no Kremlin não é muito melhor do que seus antigos ocupantes.
- Vou contar um segredinho, Gabriel: o mundo civilizado já sabe de tudo isso, e ninguém está dando a mínima. A verdade é que estão todos tão falidos e apavorados
com o futuro que são até capazes de permitir que os mulás realizem seus sonhos nucleares.
Gabriel permaneceu em silêncio. Navot suspirou fundo, resignado.
- Uma confissão? É disso que você está falando?
- Gravada. Exatamente como a que ele forçou Madeline a fazer, antes de matá-la.
- E se ele não falar?
- Todo mundo fala, Uzi.
- O que você vai fazer com o Keller?
- Ele vai comigo.
- Ele é um assassino profissional que tentou matar você.
- São águas passadas. Além disso, preciso de um pouco mais de força bruta na equipe.
- Do que mais você precisa?
- Passaportes, vistos, passagens, acomodações... o de sempre, Uzi. E nossa base em Moscou deve colocar Pavel Zhirov imediatamente sob vigilância em tempo integral.
- Isso é tudo?
- Não. Preciso de você, também.
Navot ficou em silêncio.
- Eu não pedi que fosse assim, Uzi.
- Sim, eu sei. Mas isso não torna as coisas mais fáceis.
Já era quase meia-noite quando Gabriel voltou à casa segura em Grayswood. Entrando no quarto que dividia com Chiara, viu-a sentada na cama, com uma xícara de chá
de ervas sobre o criado-mudo e uma pilha de revistas no colo. Tinha os cabelos arranjados em um coque descuidado que deixava várias madeixas soltas e estava usando
os óculos novos de grife que solicitara para ler. Chiara se incomodava um pouco com o novo adereço, mas, em segredo, Gabriel apreciava o leve enfraquecimento de
sua visão. Pelo menos isso lhe dava esperanças de que, algum dia, ela viesse a parecer menos com uma filha e mais como sua esposa.
- E então, como foi? - perguntou ela, sem erguer os olhos.
- Com repouso e reabilitação adequada, acho que ainda recuperarei parcialmente os movimentos da minha mão esquerda.
- Foi tão ruim assim?
- Ele está furioso, e não o culpo.
Gabriel tirou o casaco e o jogou sobre o espaldar de uma cadeira. Chiara revirou os olhos em desaprovação, depois lambeu a ponta do dedo para virar a página da revista.
- Ele vai superar - disse casualmente.
- Esse não é o tipo de coisa que se supera, Chiara. Não teria chegado a esse ponto se você e Shamron não houvessem tramado pelas minhas costas.
- Não foi assim que aconteceu, querido.
- E como foi, exatamente?
- Shamron veio me visitar quando você estava na França procurando Madeline. Ele disse que ia pressionar você uma última vez para que aceitasse o cargo de diretor,
e que desejava minha aprovação.
- Bem simpático da parte dele.
- Não fique bravo, Gabriel. É o que ele quer. - Chiara fez uma pausa. - E o que eu quero, também.
- Você? - perguntou Gabriel, surpreso. - Tem ideia de como vai ser depois que eu prestar o juramento?
- Estamos vivendo no quarto de uma casa segura que compartilhamos com oito pessoas, incluindo um homem que já tentou matá-lo. Acho que consigo lidar com seu posto
de chefia.
Gabriel foi até a cama e começou a folhear as revistas que agora estavam ao lado de Chiara. Uma delas era voltada para mulheres grávidas e Gabriel a ergueu, perguntando:
- Você tem alguma coisa para me contar?
Chiara arrancou a revista da mão de Gabriel. Inclinando a cabeça um pouco para o lado e apoiando o queixo na mão, ele a observou atentamente por um momento.
- Não me olhe assim - pediu ela.
- Assim como?
- Como se eu fosse uma pintura.
- Não dá para evitar.
Chiara sorriu.
- Em que você está pensando?
- Estou pensando em como queria estar sozinho com você, e não dividindo uma casa com oito pessoas.
- Incluindo um sujeito que já tentou matá-lo. Mas em que você está realmente pensando?
- Por que você não me pediu para não ir a Moscou?
- Eu me faço a mesma pergunta.
- E então, por quê?
- Porque eles a trancaram num carro e a mataram queimada.
- Não há nenhuma outra razão?
- Nenhuma - respondeu Chiara. - E, caso você esteja imaginando se eu quero ir a Moscou com a equipe, a resposta é “não”. Eu não saberia me virar por lá. Acabaria
cometendo algum erro.
Gabriel subiu na cama e pousou a cabeça sobre o ventre de Chiara.
- Você não vai tirar as roupas? - perguntou ela.
- Estou muito cansado.
- Importa-se se eu ler um pouco mais?
- Você pode fazer o que quiser.
Gabriel fechou os olhos. O som de Chiara folheando a revista ia embalando seu sono, até que ela subitamente perguntou:
- Você ainda está acordado?
- Não - murmurou ele.
- Ela sabia que essa história ia terminar em Moscou, Gabriel?
- Ela quem?
- A velha na Córsega. Ela sabia?
- Sim. Suponho que sim.
- Ela lhe disse para não ir?
- Não - respondeu Gabriel, culpado, sentindo como se uma faca dilacerasse seu peito. - Ela me disse que eu estaria em segurança lá.
- Ela viu mais alguma coisa?
- Uma criança. Ela viu uma criança.
_ Uma criança? De quem? - perguntou Chiara, mas Gabriel já não a escutava. Ele se via correndo em direção a uma mulher através de um interminável campo nevado. A
mulher estava em chamas e a neve estava toda manchada de sangue.
47
GRAYSWOOD, SURREY
Uzi Navot, diretor do serviço de inteligência israelense, chegou à casa segura em Grayswood às sete e vinte do dia seguinte, enquanto uma cinzenta aurora de dezembro
raiava sobre as árvores desfolhadas do Knobby Copse. A primeira pessoa que ele encontrou foi Christopher Keller, perseguindo uma bolinha de pingue-pongue, após um
ponto decisivo de Yaakov. O placar estava oito a cinco para Yaakov, mas Keller já se aproximava.
- Quem é você? - perguntou Keller, ao ver o carrancudo homem de óculos no hall de entrada.
- Não lhe interessa - retrucou Navot.
- Nome estranho. É hebraico, certo?
Navot franziu a testa.
- Você deve ser Keller.
- É, devo ser.
- Onde está Gabriel?
- Ele foi a Guildford com Chiara.
- Por quê?
- Porque nós comemos todo o peixe do lago.
- E quem está no comando?
- Os internos.
Navot sorriu.
- Não mais.
Após a chegada pouco ortodoxa de Navot, a equipe entrou em modo de guerra. Seria uma guerra não declarada, como todos os seus conflitos, travada em território hostil,
contra um inimigo maior e mais capacitado. O Escritório é considerado um dos melhores serviços de inteligência do mundo, mas não chega a ser páreo para a irmandade
da espada e do escudo, herdeira de uma orgulhosa e sanguinária tradição. Por mais de setenta anos, a KGB protegeu implacavelmente o comunismo soviético contra inimigos
reais ou percebidos como tal, agindo também na vanguarda do Partido no exterior, recrutando e plantando milhares de espiões por todo o planeta. Seu poder chegou
a ser quase ilimitado, quase fazendo da KGB um Estado dentro do Estado. Após o colapso da União Soviética, ela tornou-se o Estado. E a Volgatek era a sua companhia
petrolífera.
A todo momento, Gabriel destacava essa conexão entre a Volgatek e o SVR enquanto a equipe começava seus trabalhos. A empresa e o serviço de inteligência eram uma
só entidade, e isso significava que Mikhail estaria em mãos inimigas no momento em que seu avião partisse de Londres. Sua falsa identidade enganara bem Gennady Lazarev,
mas não resistiria muito tempo nas sessões de interrogatório em Lubyanka. Assim como Mikhail. Gabriel advertiu que Lubyanka era o fim da linha, o lugar onde agentes
e operações morriam.
Entretanto, os pensamentos de Gabriel estavam mais concentrados em Pavel Zhirov, o chefe de segurança da Volgatek e principal articulador do plano para obter acesso
ao petróleo britânico no mar do Norte. Nas 24 horas desde a chegada de Navot à casa de Grayswood, o posto do Escritório em Moscou já tinha determinado que Zhirov
morava no apartamento de um prédio fortificado nas Colinas do Pardal, uma região de elite às margens do rio Moscou. Sua rotina diária era típica da duplicidade de
suas atividades: passava a manhã nos luxuosos escritórios da Volgatek na rua Tverskaya e, à tarde, ia para a Central Moscovita, o bem arborizado complexo do SVR
em Yasenevo. A equipe de vigilância do Escritório em Moscou tirou várias fotos de Zhirov entrando e saindo de sua limusine Mercedes com chofer, embora nenhuma revelasse
claramente suas feições. Gabriel não pôde deixar de admirar o profissionalismo do russo. Ele já tinha demonstrado ser um adversário capaz quando sua artimanha confundira
os agentes do Escritório. Capturá-lo nas ruas de Moscou exigiria uma operação com um nível equivalente de habilidade.
Eli Lavon enfatizou:
- Com duas importantes diferenças: Moscou não é a Córsega, e Pavel Zhirov não estará de camiseta, pilotando uma lambreta numa estradinha deserta, vestindo apenas
um vestido de alças.
- Então teremos de pensar em um meio de pôr Mikhail no carro de Zhirov - comentou Gabriel. - Com uma arma carregada no bolso de trás, é claro.
- E como você pretende fazer isso?
- Assim.
Sentando-se ao computador, com alguns rápidos toques no teclado, Gabriel recuperou a gravação das últimas palavras de Lazarev a Mikhail na Dinamarca:
“Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte .Senão,você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.”
“Por que Moscou?” ‘Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?”
‘É claro que não”
‘E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.’
Gabriel parou a reprodução e olhou para Lavon, dizendo:
- Posso estar enganado, mas suspeito que o retorno de Nicholas Avedon à Rússia não correrá sem problemas.
- Que tipo de problemas?
- O tipo que só Pavel pode resolver.
- E quando Mikhail estiver na limusine?
- Ele dará a Pavel a chance de fazer uma escolha simples.
- Essa escolha seria vir quietinho ou ter os miolos espalhados pelo interior do lindo Mercedes?
- Alguma coisa do gênero.
- Bem, e quanto à regra de ouro de Shamron?
- Qual?
- Aquela que fala sobre exibir armas em público.
- Ah, existe uma pequena e pouco conhecida exceção quando se trata de encostar um revólver nas costelas de um gângster como Pavel.
Lavon ficou pensativo, e por fim falou:
- Precisaremos trazer o motorista, também. Caso contrário, todos os agentes da FSB e milicianos russos ficarão no nosso encalço.
- Sim, Eli, eu sei disso.
- Onde você pretende conduzir o interrogatório?
- Aqui.
Digitando mais algumas teclas, Gabriel apresentou o local. Lavon olhou para a tela e comentou:
- Adorável. Quem é o proprietário?
- Um homem de negócios russo que não conseguiu mais suportar a vida na Rússia.
- E onde ele vive agora?
- Bem perto da residência de Shamron.
Gabriel fez desaparecer a imagem da casa com um clique do mouse.
- Bem, isso deixa só mais uma questão... - continuou Lavon.
- Tirar Mikhail da Rússia.
Lavon assentiu.
- Sim, e ele não poderá sair com a identidade de Nicholas Avedon.
- De preferência, com o mínimo possível de obstáculos russos a superar - acrescentou Gabriel.
- E como resolveremos isso?
- Da mesma forma que Shamron conseguiu tirar Eichmann da Argentina.
- El Al?
Gabriel assentiu.
- Garoto levado - comentou Lavon.
Gabriel sorriu.
- É. E estou só começando.
Navot aprovou imediatamente os planos de Gabriel, faltando cinco dias para o prazo final dado a Mikhail por Lazarev. Cinco dias para verificar uma miríade de questões
grandes e pequenas - ou, como Lavon observou, cinco dias para determinar se aquela visita de Mikhail à Rússia terminaria melhor do que a última. Passaportes, vistos,
passagens e providências de transporte e hospedagem: tudo teria que ser feito em passo duplamente acelerado. E havia ainda as rotas de fuga e esconderijos, os planos
de contingência, e os planos B para os planos de contingência. A tarefa do grupo era ainda mais difícil porque Gabriel não podia dizer onde ou quando se daria a
captura de Zhirov. Eles teriam que improvisar numa cidade que, ao longo de sua longa e sangrenta história, nunca acolhera bem livres-pensadores.
Ao longo daqueles dias e noites, Gabriel exigiu o máximo - e, quando ele virava as costas, Navot se encarregava de pressionar a equipe ainda mais. Não havia tensão
visível entre os dois, nenhum sinal de que um estava em ascensão e o outro rumava para a aposentadoria. Na verdade, vários membros da força-tarefa imaginavam se
não estariam testemunhando a formação de uma parceria que poderia continuar para bem depois da posse de Gabriel como chefe do Escritório. Yaakov, o mais fatalista
do grupo, não compartilhava dessa hipótese: “Seria como a nova esposa permitindo que a ex-mulher mantivesse seu velho quarto na casa. Isso nunca vai acontecer.”
Lavon, entretanto, não tinha tanta certeza. Se havia alguém tão seguro de si que pudesse admitir a permanência do predecessor no serviço, esse alguém era Gabriel
Allon. Afinal de contas, disse Lavon, se ele conseguira fazer as pazes com Keller, certamente seria capaz de acertar as contas com Navot.
As conversas sobre os planos futuros de Gabriel eram sempre interrompidas assim que Chiara entrava no recinto. A princípio, ela tentou colaborar, mas, como o assunto
constante era a Rússia, o seu humor logo foi arruinado. Chiara só estava viva porque membros daquela equipe certa vez arriscaram os pescoços para salvá-la. Agora,
enquanto lutavam para cumprir um prazo quase impossível, ela assumiu o papel de cuidadora. Apesar da tensão que reinava na casa, esforçava-se para fazer prevalecer
um clima bem familiar. Toda noite, eles sentavam à mesa para uma farta refeição e, por insistência de Chiara, falavam sobre qualquer assunto que não fosse a missão:
livros, filmes e até mesmo o futuro de seu problemático país. Após pouco mais de uma hora desse intervalo, Gabriel e Navot punham-se de pé e o trabalho recomeçava.
Chiara cuidava sozinha da louça com prazer, cantarolando suavemente à pia para abafar o som da conversa na sala contígua. Mais tarde, confidenciou a Gabriel que
o simples som de uma palavra russa provocava uma sensação de dor e vazio em seu útero.
O homem que estava no centro daquela operação permanecia jovialmente indiferente aos esforços da equipe de agentes, ou essa foi a impressão de quem encontrou Nicholas
Avedon após o regresso a Londres. Tinha a postura de uma pessoa que já nem se preocupava em ocultar o fato de estar alcançando lugares que os outros nem podiam sonhar
alcançar. Orlov babava pelo protegido como se fosse o filho que nunca tivera, e parecia a cada dia mais dependente de Avedon. O pronome nós passou a figurar pela
primeira vez no vocabulário de Orlov quando ele se referia aos negócios - uma mudança de tom que não passou despercebida no centro financeiro londrino. Ele comunicou
à sua equipe que passaria parte do mês de janeiro em um local não revelado do Caribe:
- Preciso de um belo e longo descanso. Agora que tenho Nicholas, enfim posso tirar férias.
Com Orlov aparentemente distante, os rumores nos círculos financeiros eram de que agora Nicholas Avedon era o homem a ser procurado na VOI. A maior parte dos interessados
tinha que esperar uma semana ou mais por uma entrevista com ele, mas quando ligou um tal Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, Avedon agendou uma
reunião sem demora. O encontro se deu em seu escritório, com vista para a Praça Hanover, embora o assunto tratado nada tivesse a ver com negócios ou investimentos.
Ao término, ele fez uma chamada de três minutos para um número de Moscou, com resultados satisfatórios. Em seguida, acompanhou o Sr. Albright aos elevadores, com
o ar de quem está certo do sucesso. Em tom bem audível para quem estivesse por perto, anunciou:
- Vou expor os detalhes para Viktor, mas me parece que está tudo certo para seguirmos em frente sem problemas.
Naquela noite, um carro estacionou do lado de fora do prédio de Mikhail em Maida Vale. Tempos depois, Graham Seymour identificaria o homem que saiu do veículo como
um mensageiro dentre os numerosos agentes da rezidentura do SVR em Londres. O sujeito pegou o passaporte falso de Mikhail e o levou à embaixada russa em Kensington
Gardens. Quando voltou, uma hora mais tarde, trazia o documento, que já tinha recebido apressadamente um carimbo de visto para a Rússia. Dentro, Mikhail encontrou
o cartão de embarque de um voo da British Airways com destino a Moscou, que decolaria às dez horas da manhã seguinte.
Mikhail pôs a passagem e o passaporte em sua valise e entrou em contato com Orlov, na Cheyne Walk, para dizer que precisava de alguns dias de folga.
- Desculpe, Viktor, mas estou exausto. E, por favor, sem chamadas ou e-mails. Quero sair de circulação.
- Por quanto tempo?
- Até quarta ou quinta-feira, no mais tardar.
- Tire a semana toda.
- Tem certeza?
- Prometo não fazer nenhuma bobagem enquanto você estiver longe.
- Obrigado, Viktor. Você é demais.
Mikhail tentou dormir naquela noite, mas em vão. Era o que sempre acontecia antes de uma operação. Assim, pouco antes das quatro da madrugada, levantou-se da cama
e vestiu sua armadura de Nicholas Avedon, também conhecido como Nicolai Avdonin. Às seis, um carro estava na porta do edifício para conduzi-lo a Heathrow, onde ele
passou sem dificuldades pela segurança, com Christopher Keller e Dina Sarid por perto para garantir sua retaguarda. Ao atravessar o portão de embarque, pôde ver
uma versão bem modificada de Gabriel absorvido na leitura do Economist com o que parecia ser um interesse exagerado. Mikhail entrou no avião sem olhá-lo, mas Gabriel
ainda esperou até pouco antes de a porta se fechar para se precipitar em direção ao compartimento de primeira classe.
Após a decolagem, a torre britânica orientou a aeronave, para que sobrevoasse Basildon, até que, precisamente às dez e meia, ela entrou no espaço aéreo internacional.
Nervoso, Mikhail tamborilava no console central de seu assento. A partir de agora, estava nas mãos do inimigo, junto com o futuro chefe da inteligência israelense.
48
MOSCOU
Os manifestantes afluíam para a Praça Vermelha em pequenos grupos, de forma a não serem identificados pela milícia de Moscou ou pelos gorilas de jaquetas de couro
da FSB. Eram artistas, escritores, jornalistas, roqueiros punk e até mesmo algumas poucas babushkas que ainda sonhavam em passar os últimos anos da vida em um país
realmente livre. Por volta do meio-dia já havia uma multidão de centenas de pessoas, numerosa demais para ocultar seus reais motivos. Uma pessoa desfraldou uma bandeira
e outra surgiu com um megafone, acusando o presidente de fraudar as últimas eleições, o que por sinal era a pura verdade. Depois, o manifestante fez uma piada sobre
outras coisas que o presidente havia roubado do povo russo, e que o líder dos mal-encarados agentes da FSB não considerou nem um pouco engraçada.
Após um breve sinal, os milicianos avançaram com grande violência sobre a multidão, quebrando tudo o que viam pela frente, inclusive algumas das cabeças mais importantes.
O dono do megafone levou a pior, e foi visto pela última vez ensanguentado e semiconsciente na traseira de uma van da polícia. Mais tarde, o Kremlin anunciou que
o homem seria acusado de tentar incitar um motim, logo poderia ficar preso por dez anos numa “neogulag”. A subserviente imprensa russa referiu-se aos manifestantes
como “desordeiros”, o mesmo rótulo que o regime soviético aplicava a todos os oponentes, e nem um único comentarista ousou criticar as táticas violentas do governo.
Talvez se devesse perdoar o seu silêncio: atualmente, jornalistas que irritam o Kremlin têm o curioso costume de aparecerem mortos.
No Aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, as notícias da manifestação na Praça Vermelha passaram rapidamente pelas televisões, enquanto Mikhail deixava a ponte de desembarque,
seguido trinta segundos depois por Gabriel. Conforme se encaminhavam ao controle de passaportes, Allon notou um mal nutrido policial da alfândega com o uniforme
surrado e, ao lado, um homem de terno bem cortado, que tinha nas mãos uma fotografia. Ele a consultou por duas vezes enquanto Mikhail se aproximava. Depois, foi
até o falso Nicholas e disse algo em russo que Gabriel não chegou a entender. Mikhail sorriu e apertou a mão do homem antes de acompanhá-lo até uma porta não identificada.
Gabriel continuou até o controle de passaportes, onde uma mulher séria observou seu rosto por um momento desconfortavelmente longo. Por fim, ela carimbou com força
o passaporte e acenou para que ele fosse em frente. Bem-vindo à Rússia, pensou enquanto adentrava o salão de desembarque apinhado. Ao sair do aeroporto, logo sentiu
a mistura dos cheiros de tabaco e diesel, que fizeram sua cabeça rodar. O céu do entardecer estava claro e o frio era cortante. Olhando à esquerda de forma sutil,
Gabriel pôde ver Mikhail e seu acompanhante da Volgatek entrando no calor confortável do Mercedes sedã que os esperava. Juntou-se à longa fila de espera de táxis.
O frio do concreto atravessava as solas finas de seus mocassins ocidentais; quando ele enfim se esgueirou para dentro de um Lada decrépito, seu maxilar estava tão
congelado que Gabriel mal conseguia falar. O motorista perguntou pelo destino e ele pediu para ser levado ao Hotel Metropol - nem soube como o homem conseguiu entender,
tamanha sua dificuldade de dicção.
Saindo do aeroporto, o táxi tomou a Leningradsky Prospekt e iniciou o longo e penoso trajeto até o centro de Moscou. Faltavam cinco para as sete, já no final do
terrível rush vespertino moscovita; ainda assim, o ritmo de deslocamento era glacial. O motorista tentou entabular uma conversa, mas seu inglês era tão impenetrável
como o tráfego. Gabriel concordava polidamente de vez em quando, mas sua atenção estava voltada mesmo era para os edifícios decadentes ao longo da velha e malcuidada
via. Por um breve período, os prédios eram apenas horríveis, mas agora haviam se transformado em ruínas. Em cada esquina, cada telhado, cartazes anunciavam promessas
de luxúria. Era o pesadelo comunista com uma nova demão de capitalismo, refletiu Gabriel. Deprimente e impactante.
Enfim cruzaram o Anel Rodoviário dos Jardins e a prospekt embocou na rua Tverskaya, a versão moscovita da Madison Avenue, que os levou por uma ladeira suave, passando
pela nova e luxuosa sede da Volgatek e pelos muros de tijolos vermelhos do Kremlin. Então, chegaram às oito pistas da rua Okhotnyy Ryad. Virando à esquerda, passaram
pela Câmara dos Deputados, pela velha Casa dos Sindicatos e pelo Teatro Bolshoi. Entretanto, Gabriel não observava nada disso. Seus olhos enxergavam apenas a fortaleza
amarela bem iluminada por holofotes no alto da Praça Lubyanka.
- KGB - falou o motorista, apontando por sobre o volante
- Não existe KGB - replicou Gabriel em tom distante. - A KGB é uma coisa do passado.
O taxista resmungou algo sobre a ingenuidade dos estrangeiros e conduziu o carro até a entrada do Hotel Metropol. O saguão havia sido restaurado fielmente voltando
à sua beleza original, mas a mulher de meia-idade no balcão de recepção não tinha tido a mesma sorte. Ela saudou Gabriel com um sorriso gélido, fez algumas perguntas
polidas sobre a natureza de sua viagem e depois estendeu um longo formulário de registro - uma cópia seria enviada às autoridades competentes. Gabriel o preencheu
rapidamente como se fosse Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, e recebeu em troca as chaves dos aposentos. Um mensageiro do hotel ofereceu-se para
ajudá-lo com a bagagem e pareceu aliviado quando Gabriel lhe disse que não era necessário. Mesmo assim, premiou-o pela solicitude com uma gratificação que indicava
sua pouca familiaridade com o valor da moeda russa.
O aposento ficava no quarto andar, com vista para as dez pistas da Teatralny Prospekt. Gabriel sabia que o recinto tinha escutas e nem se deu o trabalho de localizá-las.
Tratou de fazer duas chamadas a clientes que não eram de fato clientes e, depois, foi examinar o monte de e-mails que se acumulara durante a viagem. Uma das mensagens
era de um advogado de Nova York, a respeito de um determinado investimento de natureza legalmente dúbia. O verdadeiro remetente era Eli Lavon, que reservara um quarto
algumas portas depois no mesmo corredor. O real conteúdo do e-mail foi revelado após Gabriel digitar a senha adequada: ao que parecia, Gennady Lazarev levara seu
possível novo funcionário ao Lounge 02, no Ritz, para aperitivos e tira-gostos. Estavam também presentes Dmitry Bershov, Pavel Zhirov e quatro beldades russas. Fotos
de vigilância iam em anexo, por cortesia de Yaakov e Dina, que ocupavam uma mesa no lado oposto do salão.
Gabriel digitou novamente a senha e a mensagem retornou ao texto original. Em seguida, pôs os fones de ouvidos e captou uma transmissão segura do áudio do celular
de Mikhail. Dava para ouvir o tilintar de copos, risadas e o chilrear das acompanhantes russas, que pareciam fúteis mesmo em um idioma incompreensível. Logo escutou
a voz familiar de Lazarev murmurando uma confidência ao ouvido de Mikhail:
- Trate de descansar bem esta noite. Temos grandes planos para você amanhã.
Eles permaneceram no lounge até as onze, quando Mikhail se retirou desacompanhado, mas com uma tremenda dor de cabeça, para sua suíte de luxo no Ritz. Apesar do
conselho de Lazarev, não conseguiu dormir, pois sua mente era um turbilhão de lembranças de operações passadas, encadeadas como numa matéria jornalística sobre as
maiores catástrofes do século. Mikhail ansiava por atividade, por uma ação de qualquer tipo, mas as câmeras de vigilância certamente ocultas no quarto eram um impeditivo.
Assim, ele se viu enroscado nos lençóis úmidos de sua cama, com uma imobilidade cadavérica, até as sete da manhã,
quando a chamada do serviço de despertador do hotel enfim lhe permitiu se levantar, grato.
Seu café chegou pouco depois, e Mikhail o tomou enquanto se atualizava sobre o mundo corporativo no noticiário londrino. Desceu para a academia, onde fez um treino
impressionante, testemunhado pelo observador de um dos serviços de inteligência russos. Voltando ao quarto, encarou um banho gelado para injetar um pouco de vida
nos ossos cansados. Então, vestiu o melhor terno cinza risca de giz - aquele que Dina tinha escolhido para ele na Anthony Sinclair da Savile Row. Mikhail avistou-a
no salão de café da manhã quinze minutos depois, fitando Keller nos olhos como se detivessem o segredo para a felicidade eterna. A algumas mesas de distância, Yossi
devolvia seus ovos mexidos. “Eu pedi ovos moles, mas estes deviam ter sido servidos num copo.” O comentário ricocheteou no garçom como uma pedrinha jogada num trem
de carga. “Você quer os seus ovos num copo?” perguntou ele.
Às nove horas em ponto, depois de ler os jornais matinais e resolver algumas questões pendentes em Londres por e-mail, Mikhail foi até o saguão ultramoderno do Ritz.
Lá, aguardava-o o mesmo sujeito da Volgatek que o retirara da fila de controle de passaportes em Sheremetyevo na noite anterior. Seu rosto sorridente era tão agradável
quanto uma janela quebrada.
- Espero que tenha dormido bem, Sr. Avedon.
- Nunca dormi melhor - mentiu Mikhail, cordial.
- Nossos escritórios ficam muito perto. Espero que não se incomode de caminhar.
- Nós vamos sobreviver?
- As chances são boas, mas não há nenhuma garantia em Moscou nesta época do ano.
O sujeito virou e conduziu Mikhail para a rua Tverskaya. Enquanto subia a ladeira inclinando o corpo contra o vento forte, o falso Avedon se deu conta de que aquele
amontoado anônimo de lã e pele caminhando dois passos atrás dele era Eli Lavon, que o escoltou em silêncio até a porta da frente da Volgatek, como se quisesse lembrar
a Mikhail que ele não estava sozinho. Em seguida, flutuou na direção do sol forte de Moscou e desapareceu.
Se houvesse quaisquer mal-entendidos quanto à missão verdadeira da Volgatek, eram aquietados pela vasta escultura de metal no saguão da sede da empresa na rua Tverskaya.
A obra retratava o planeta com uma Rússia desproporcional na posição dominante,bombeando energia vital para os quatro cantos da Terra.
Abaixo do globo, um Atlas sorridente num terno italiano feito sob encomenda, estava Gennady Lazarev.
- Bem-vindo ao novo lar - disse, apertando a mão de Mikhail. - Ou devo dizer, ao verdadeiro lar?
- Um passo de cada vez, Gennady.
Lazarev apertou a mão de Mikhail com um pouco mais de força, como a indicar que não seria contrariado, e o conduziu até um elevador executivo, que os levou ao último
andar do prédio. Na entrada, havia uma placa: BEM-VINDO, NICOLAI! Lazarev parou para admirá-la, como se tivesse se esforçado muito na redação, antes de levar Mikhail
até o vasto escritório que ele poderia usar sempre que estivesse na cidade. Tinha uma vista do Kremlin e vinha com uma secretária perigosamente atraente chamada
Nina.
- O que você acha? - perguntou Lazarev, com seriedade.
- Bom.
- Venha. - Lazarev conduziu Mikhail pelo cotovelo. - Estão todos ansiosos para conhecê-lo.
De fato, Lazarev não estava exagerando quando disse “todos”. Durante as duas horas e meia seguintes, Mikhail sentiu mesmo que cumprimentava todos os funcionários
da empresa, e possivelmente mais algumas pessoas também. Havia uma dúzia de vice-presidentes de diversas formas, tamanhos e responsabilidades, e uma figura cadavérica
chamada Mentov que fazia algo com análise de riscos que Mikhail não conseguiu nem fingir entender. Em seguida, foi apresentado à equipe científica da Volgatek -
dos geólogos que buscavam novas fontes de petróleo ao redor do mundo aos engenheiros responsáveis por desenvolver novas formas de extraí-lo. Depois, percorreu os
andares inferiores para conhecer as pessoas de menor importância: jovens executivos que sonhavam tomar seu lugar algum dia, os mortos-vivos presos às suas mesas
e às xícaras de café vermelhas da Volgatek. Mikhail não pôde deixar de se perguntar o que acontecia com um funcionário demitido de uma empresa administrada e possuída
pela sucessora da KGB. Talvez recebesse um relógio de ouro e uma pensão, mas Mikhail achava pouco provável.
Por fim, voltaram ao último andar e entraram no espaçoso escritório de Lazarev, similar a um átrio, onde ele falou longamente sobre sua visão para o futuro da Volgatek
e o papel que queria atribuir a Mikhail. Sua posição inicial na empresa seria de diretor da Volgatek Reino Unido, a subsidiária que seria formada para administrar
o projeto das Ilhas Ocidentais. Uma vez que o petróleo estivesse fluindo, Mikhail receberia responsabilidades maiores, em especial na Europa Ocidental e na América
do Norte.
- Isso seria o suficiente para mantê-lo interessado? - perguntou Lazarev.
- Pode ser.
- O que seria necessário para convencê-lo a deixar Viktor e vir trabalhar comigo?
- Dinheiro, Gennady. Muito dinheiro.
- Posso garantir, Nicolai, que dinheiro não é problema.
- Então você tem a minha total atenção.
Lazarev abriu uma pasta de couro e retirou uma única folha de papel.
- Seu pacote de compensação vai incluir apartamentos em Aberdeen, Londres e Moscou. Você vai usar jatos particulares, é claro, e poderá utilizar uma casa da Volgatek
que mantemos no sul da França. Além do salário-base, você receberá diversos bônus e incentivos que levarão sua remuneração total para algo assim.
Lazarev posicionou a folha na frente de Mikhail e apontou para o número próximo ao pé da página. Mikhail o observou por um instante, coçou a cabeça careca e franziu
a testa.
- E então? - perguntou Lazarev.
- Nem perto.
Lazarev sorriu.
- Achei que a sua resposta seria essa - disse, guardando a folha na pasta -, então tomei a liberdade de preparar uma segunda oferta. - Ele a colocou na frente de
Mikhail. - Melhor?
- Agora está mais quente - respondeu Mikhail, sorrindo para Lazarev. - Definitivamente mais quente.
49
PRAÇA VERMELHA, MOSCOU
As quatro horas da tarde, eles já tinham as linhas gerais de um acordo.
Lazarev preparou um documento com uma página, reservou um salão particular no Café Pushkin para a comemoração e mandou Mikhail de volta ao Ritz para algumas horas
de descanso. O falso Avdonin percorreu a pequena distância a pé, acompanhado de perto por Gabriel, que andava do outro lado da rua com a lapela levantada cobrindo
os ouvidos e a boina baixada até as sobrancelhas. Ele observou Mikhail atravessar a entrada suntuosa do hotel e continuou ao longo da rua Tverskaya até a Praça da
Revolução. Lá, parou um pouco para ver um imitador de Lênin instando um grupo de turistas japoneses atônitos a tomarem os meios de produção de seus soberanos burgueses.
Em seguida, cruzou o arco do Portão da Ressurreição e adentrou a Praça Vermelha.
Já estava escuro e o vento decidira dar uma folga para a cidade conduzir seus negócios em paz. Com a cabeça baixa e os ombros contraídos, Gabriel parecia um moscovita
acabado qualquer. Percorreu às pressas o muro norte do Kremlin e passou pelos olhares vazios dos guardas congelados em frente ao Mausoléu de Lênin. Bem à sua frente,
resplandecentes à luz branca, erguiam-se os domos da Catedral de São Basílio, coloridos como bengalas de açúcar. Gabriel olhou de relance para o relógio da Torre
do Salvador e seguiu ao longo do muro do Kremlin, até o ponto onde Stálin, o assassino de milhões, repousava pacificamente num lugar de honra. Lavon se juntou a
ele pouco tempo depois.
- O que você acha? - perguntou Gabriel em alemão.
- Acho que eles deviam tê-lo enterrado num túmulo sem marcação em algum campo, mas essa é só a minha opinião.
- A barra está limpa?
- O máximo que pode estar num lugar como Moscou.
Gabriel se virou sem dizer nada e conduziu Lavon pela praça até a entrada da GUM. Antes da queda da União Soviética, aquele tinha sido o único estabelecimento comercial
do país onde os russos sempre podiam encontrar um casaco de inverno ou um par de sapatos. Agora era um shopping de estilo ocidental, entupido de todas as bugigangas
inúteis que o capitalismo tem a oferecer. O elevado teto de vidro reverberava com o burburinho dos compradores noturnos. Lavon ficou encarando o BlackBerry enquanto
andava ao lado de Gabriel. Atualmente, esse era um hábito bem russo.
- A secretária de Lazarev acabou de enviar um e-mail para a equipe sênior sobre o jantar de hoje no Café Pushkin - informou Lavon. - Zhirov está na lista de convidados.
- Não ouvi a voz dele hoje na Volgatek, durante a passagem de Mikhail.
- Ele não estava lá - explicou Lavon, ainda olhando o celular. - Depois de deixar seu apartamento nas Colinas do Pardal, foi direto para Yasenevo.
- Por que logo hoje? Por que não estava na Volgatek para conhecer o garoto novo?
- Talvez ele tivesse outros afazeres.
- Como o quê?
- Talvez alguém mais precisasse ser sequestrado.
- É isso que me preocupa.
Gabriel parou em frente à vitrine de uma joalheria e examinou alguns relógios suíços reluzentes. Ao lado, havia um café de estilo soviético com mulheres roliças
infelizes de avental branco colocando comida russa barata em pratos cinzentos da época de Leonid Brejnev. Mais de vinte anos depois da queda do comunismo, alguns
russos ainda tinham nostalgia do passado totalitário.
- Você não está ficando inseguro, está? - perguntou Lavon.
- É dezembro em Moscou, Eli. É impossível não ter receios.
- O que você quer fazer?
- Gostaria que o hotel desse a regalia especial a Nicholas Avedon um pouco antes do planejado.
- Regalias desse tipo são mal vistas no Café Pushkin.
- Qualquer pessoa importante anda armada no Pushkin, Eli.
- É arriscado.
- Não tão arriscado quanto a alternativa.
- Por que nós não pulamos o jantar e vamos direto para a sobremesa?
- Eu adoraria - respondeu Gabriel -, mas o trânsito da hora do rush não vai deixar. Teremos que esperar até as dez horas. Caso contrário, nunca vamos conseguir tirá-lo
da cidade. Ficaríamos com as mãos atadas.
- Uma escolha infeliz de palavras.
- Envie a mensagem, Eli.
Lavon digitou alguns caracteres no BlackBerry e levou Gabriel para fora, até a rua Il'inka. O vento se intensificava de novo e a temperatura tinha caído. Lágrimas
correram livremente pelo rosto de Gabriel enquanto eles passavam pelas fachadas características dos sólidos prédios imperiais. Em seu fone de ouvido, ouvia Mikhail
cantarolar durante o banho no Ritz.
- Quero cobertura completa nele o tempo inteiro - disse Gabriel. - Nós o levamos para jantar, sentamos com ele durante o jantar e o trazemos de volta para o hotel.
É aí que começa a diversão.
- Só se Pavel concordar em resgatar Mikhail.
- Ele é o chefe de segurança da Volgatek. Se o executivo mais novo da empresa acreditar que sua vida está em perigo, Pavel irá correndo. E então o faremos se arrepender.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Qual, Eli? Ucrânia? Bielorrússia? Ou que tal o Cazaquistão?
- Na verdade, eu estava pensando na Mongólia.
- A comida é ruim.
- A comida é terrível - concordou Lavon -, mas pelo menos não é a Rússia.
No fim da rua, eles dobraram à esquerda e subiram a ladeira em direção à Praça Lubyanka.
- Você acha que isso já foi feito antes? - perguntou Lavon.
- O quê?
- Sequestrar um oficial da KGB dentro da Rússia.
- Não existe KGB, Eli. A KGB é coisa do passado.
- Não, não é. Agora se chama FSB. E ocupa aquele prédio grande e feio bem na nossa frente. E eles vão ficar bastante chateados quando descobrirem que um dos seus
companheiros desapareceu.
- Se o pegarmos direito, eles não vão ter tempo para fazer nada.
- Se o pegarmos direito - enfatizou Lavon.
Gabriel ficou em silêncio.
- Faça-me um favor esta noite, Gabriel: se você não tiver a oportunidade de dar um tiro adequado, não dispare. - Ele fez uma pausa. - Eu detestaria perder a chance
de trabalhar para você como diretor.
Eles tinham chegado ao topo da ladeira. Lavon parou de andar e contemplou a imensa fortaleza amarela no outro lado da Praça Lubyanka.
- Por que você acha que a mantiveram? - perguntou, sério. - Por que não a arrancam e colocam um monumento às vítimas no lugar?
- Pela mesma razão que não removem os ossos de Stálin.
Lavon ficou quieto por um momento.
- Eu odeio este lugar - disse por fim. - Ao mesmo tempo, amo-o com carinho. Estou louco?
- Completamente - respondeu Gabriel -, mas essa é só a minha opinião.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Eu também, Eli. Mas não podemos.
- A Mongólia fica muito longe?
- Longe demais para ir dirigindo. E a comida é terrível.
Cinco minutos depois, quando Gabriel entrou no saguão superaquecido do Metropol, Yossi saiu de seu quarto no quadragésimo quarto andar do Ritz vestindo um terno
cinza de banqueiro e uma gravata prateada. Na mão esquerda, levava um crachá dourado com o nome ALEXANDER - um nome adequado para um estudante de história como Yossi
escolher - e, na mão direita, havia uma embalagem azul lustrosa de presente com o logo do hotel. Ela era mais pesada do que Yossi fazia parecer, pois continha uma
pistola Makarov 9 mm, uma das diversas armas que a base de Moscou adquirira de fontes locais ilícitas antes da chegada da equipe. Por três dias, a arma ficara escondida
entre o estrado e o colchão no seu quarto. Ele ficou compreensivelmente aliviado de enfim poder se livrar dela.
Yossi esperou até o corredor se esvaziar para afixar na sua lapela a plaqueta com um nome. Então, dirigiu-se à porta do quarto 421. Mesmo do lado de fora, dava para
ouvir muito bem um homem cantando Penny Lane. Deu duas batidas firmes, mas educadas, a batida de um concierge. Como não obteve resposta, bateu de novo, mais alto.
Dessa vez, um homem com um roupão branco abriu a porta. Ele era alto, estava numa forma física impressionante e tinha a pele rosada por causa do banho.
- Estou ocupado - reclamou.
- Peço desculpas por interromper, Sr. Avelon - respondeu Yossi com um sotaque neutro cosmopolita -, mas a gerência gostaria de lhe oferecer um pequeno presente de
agradecimento.
- Agradeça à gerência, mas dispenso.
- A gerência ficaria desapontada.
- Não é mais daquele maldito caviar, é?
- Receio que a gerência não tenha dito.
Avedon pegou o embrulho e bateu a porta na cara sorridente do falso funcionário. Yossi girou nos calcanhares e, depois de tirar a plaqueta da lapela, voltou para
o próprio quarto. Ao entrar, despiu rapidamente o terno e vestiu uma calça jeans e um casaco pesado de lã. Sua mala estava no pé da cama. Yossi enfiou o terno num
compartimento lateral dela e fechou o zíper. Se tudo saísse de acordo com os planos, um mensageiro da base de Moscou a coletaria em algumas horas e destruiria o
conteúdo. Passou um pano em todos os objetos que tinha tocado no quarto e partiu, torcendo para ser a última vez.
Já no saguão, viu Dina folheando um jornal moscovita escrito em inglês com uma expressão de ceticismo. Passou por ela como se não a conhecesse e saiu do hotel. Um
Range Rover aguardava no meio-fio, soltando gases na noite amargamente fria, e Keller estava ao volante. Ele se embrenhou no trânsito do rush na rua Tverskaya antes
mesmo de Yossi fechar a porta. Diretamente à frente, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto; sua estrela vermelha reluzia como um sinal de alerta. Keller assobiava
desafinado enquanto dirigia.
- Você sabe o caminho? - perguntou Yossi.
- À esquerda na rua Okhotnyy Ryad, depois à esquerda na Bol'shaya Dmitrovka e novamente à esquerda no Anel dos Bulevares.
- Passou muito tempo em Moscou?
- Nunca tive o prazer.
- Você pode pelo menos fingir que está ansioso?
- Por que eu estaria ansioso?
- Porque nós estamos prestes a sequestrar um oficial da KGB em plena Moscou.
Keller sorriu enquanto pegava a primeira esquerda.
- Molezinha.
Keller e Yossi levaram vinte minutos para percorrer o trecho curto até o ponto de espera no anel rodoviário. No instante em que chegaram, Yossi mandou uma mensagem
criptografada para Gabriel, que, por sua vez, a encaminhou para o King Saul Boulevard. Ela surgiu na tela de status do Centro Operacional. Sentado em sua cadeira
habitual estava Uzi Navot. Ele assistiu à transmissão ao vivo do saguão do Ritz, cortesia do minidispositivo oculto na bolsa de Dina. Eram 7h36 em Moscou, 6h36 em
Tel Aviv. Às 6h38, o telefone ao lado do cotovelo de Navot tocou. Ele atendeu depressa, resmungou algo que soava como o próprio nome, e escutou a voz de Orit, sua
secretária executiva. No Escritório, era conhecida como “Cúpula de Ferro” - uma referência ao impressionante sistema de defesa antiaéreo israelense - devido à incomparável
habilidade de destroçar os pedidos por um instante de conversa com o diretor.
- De jeito nenhum - respondeu Navot. - Sem chance.
- Ele deixou claro que não vai embora.
Navot suspirou fundo.
- Tudo bem. Deixe-o descer, se for mesmo necessário.
Navot desligou e fitou a imagem que mostrava o saguão do hotel. Dois minutos depois, escutou a porta do Centro de Operações ser aberta e fechada. Pelo canto do olho,
viu a mão manchada que colocava dois maços de cigarros turcos em cima da mesa, além de um Zippo velho, desgastado. O isqueiro foi aceso. Uma nuvem de fumaça obscureceu
a tela.
- Achei que tinha revogado os seus passes - disse Navot em voz baixa, ainda olhando para a frente.
- Você revogou - respondeu Shamron.
- Como você entrou no prédio?
- Abri um túnel.
Shamron girou o isqueiro nos dedos. Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- É muita cara de pau sua aparecer aqui - falou Navot.
- Não é a hora nem o lugar, Uzi.
- Eu sei que não, mas ainda assim é muita cara de pau.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- Você poderia aumentar o volume do áudio do telefone de Mikhail? - perguntou Shamron. - Minha audição não é mais a mesma.
- Não é só a sua audição.
Navot pediu a um dos técnicos que aumentasse o volume.
- Que música ele está cantando? - perguntou Shamron.
- Que diferença faz?
- Responda a pergunta, Uzi.
- Penny Lane.
- Beatles?
- É, Beatles.
- Por que você acha que ele escolheu essa música?
- Talvez goste dela.
- Talvez - disse Shamron.
Navot consultou o relógio: 7h42 em Moscou, 6h42 em Tel Aviv. Shamron apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Mikhail ainda cantarolava quando saiu do quarto vestido para o jantar. No momento em que ele entrou no elevador, o embrulho estava em sua mão direita, mas três minutos
depois, ao deixar o banheiro masculino do saguão, havia sumido. A equipe do Centro de Operações viu Mikhail pela primeira vez às 7h51, filmado pela câmera de Dina,
dirigindo-se para a entrada do hotel. Lazarev estava lá, com os braços erguidos como se sinalizasse para um avião de resgate. Ele tomou Mikhail pelo ombro e o levou
até a traseira de uma limusine Maybach.
- Espero que você tenha conseguido descansar um pouco - disse Lazarev enquanto o carro se afastava do meio-fio com suavidade -, porque esta noite você vai sentir
um gostinho da verdadeira Rússia.
50
CAFÉ PUSHKIN, MOSCOU
Mais tarde, na hora de arrumar os arquivos e preencher os relatórios da missão, haveria uma discussão acalorada acerca do verdadeiro significado das palavras de
Lazarev. Um lado considerou-as uma expressão inofensiva de boa vontade, enquanto o outro viu naquela frase um aviso claro que Gabriel, o futuro diretor, deveria
reconhecer se fosse sábio. Como sempre, foi Shamron que resolveu a controvérsia: as palavras de Lazarev não tinham importância, pois o destino de Mikhail já estava
selado no instante em que entrara no carro.
O ambiente onde os eventos se passaram, o renomado Café Pushkin, não poderia apresentar uma aparência mais acolhedora, especialmente numa noite de dezembro com o
ar gélido e a neve dançando no vento siberiano. O café ficava na esquina da rua Tverskaya com o anel rodoviário, numa imponente casa do século XVIII que dava a impressão
de ter sido importada da Itália renascentista. Diante de suas belas portas francesas, havia três pistas de tráfego e, mais além, uma pequena praça onde, certa vez,
os soldados de Napoleão armaram suas tendas e queimaram limoeiros para se aquecerem. Moscovitas seguiam às pressas para casa por trilhas de cascalho e algumas mães
corajosas estavam sentadas nos bancos sob a luz dos postes, observando os filhos superagasalhados brincarem nos gramados cobertos de neve. Entre as mulheres se achavam
Mordecai, observando a entrada do café, e Rimona, de olho nas crianças. Keller e Yossi tinham encontrado uma vaga a menos de 50 metros do Pushkin. Yaakov e Oded,
também num Land Rover, estavam outros 50 metros atrás deles.
O jantar fora marcado para as oito horas, mas, como o trânsito estava pior do que o normal, Lazarev e Mikhail chegaram com doze minutos de atraso. Mordecai anotou
o horário, assim como as equipes nos Land Rovers. Gabriel também tomou nota e logo mandou uma mensagem para o Centro de Operações - algo desnecessário, claro, pois
Navot e Shamron acompanhavam com atenção a transmissão ao vivo do telefone de Mikhail. Foi assim que eles escutaram os passos pesados sobre o piso sem polimento
na entrada do Pushkin. E o barulho do elevador antigo que levou o falso Avedon ao segundo andar. E os acalorados aplausos que o receberam quando ele entrou no salão
particular reservado para a sua coroação.
Um lugar tinha sido reservado para Mikhail na cabeceira da mesa, com Lazarev à direita e Zhirov à esquerda. Apenas o chefe de segurança não parecia entusiasmado
com a aquisição do novo pupilo de Viktor Orlov. No decorrer da noite, manteve a expressão neutra de um jogador experiente perdendo dinheiro na roleta. Seu olhar,
sombrio e focado, nunca se afastou por muito tempo do rosto de Mikhail. Parecia estar calculando suas perdas e decidindo se tinha estômago para mais uma rodada.
Mikhail não deu nenhum sinal de desconforto diante da presença soturna de Zhirov. Todos os que escutaram sua performance naquela noite a descreveriam como uma das
melhores que já haviam testemunhado. Ele era o Nicholas Avedon por quem todos tinham se apaixonado. O Nicholas espirituoso. O Nicholas irritável. O Nicholas mais
esperto que os demais no salão - com exceção de Lazarev, que talvez fosse mais inteligente que qualquer um no mundo. Conforme a noite avançava, ele foi falando menos
em inglês e mais em russo, até que parou completamente de falar inglês. Agora era um deles. Era Nicolai Avdonin. Um homem da Volgatek. Um homem do futuro da Rússia.
Um homem do passado da Rússia.
A transformação foi concluída pouco depois das dez horas, quando ele fez uma imitação perfeita de Orlov, incluindo o tique no olho esquerdo, que foi aclamada por
todos. Apenas Zhirov pareceu não ver graça. Ele também não se juntou à ovação após a bênção de Lazarev. Depois dos comentários do CEO da Volgatek, os festeiros seguiram
para a rua, onde uma fila de limusines da empresa aguardava na calçada. Lazarev pediu que Mikhail fizesse uma parada no escritório antes de deixar a cidade na manhã
seguinte, para que pudessem resolver algumas pendências no acordo de contratação. Em seguida, conduziu-o até a porta aberta de um Mercedes.
- Se não se incomodar - disse, com seu sorriso calculado de matemático vou deixar Pavel levar você de volta ao hotel. Ele gostaria de fazer algumas perguntas no
caminho.
Mikhail se viu respondendo "Sem problemas, Gennady” e, sem um instante de hesitação, entrou no carro. Zhirov, o único perdedor daquela noite, estava sentado à sua
frente, encarando a janela com uma aparência inconsolável. Ele não disse nada quando o carro começou a andar. Mikhail começou a tamborilar no apoio de braço, mas
logo se forçou a parar.
- Gennady disse que você tem algumas perguntas para mim.
- Na verdade - respondeu Zhirov em voz baixa -, tenho só uma.
- Qual?
Zhirov encarou Mikhail pela primeira vez.
- Quem é você, porra?
- Parece que Pavel acabou de mudar a posição do gol - disse Navot.
Shamron franziu a testa. Ele considerava o uso de metáforas esportivas inadequado para um negócio tão vital quanto a espionagem. Ergueu os olhos para um dos monitores
e viu luzes se movendo rapidamente pelo mapa do centro de Moscou. A luz que indicava a posição de Mikhail piscava em vermelho. Quatro luzes azuis a acompanhavam,
duas na frente e duas atrás.
- Parece que o encurralamos - comentou Shamron.
- Encurralado, muito bem. A questão é se Pavel tem reforços próprios ou se está num voo solo.
- Não sei se isso faz muita diferença a esta altura.
- Alguma sugestão?
- Chute para o gol - disse Shamron, acendendo outro cigarro. - Rápido.
Eles passaram em alta velocidade pela rua Tverskaya e continuaram pelo anel rodoviário.
- Meu hotel fica naquela direção - avisou Mikhail, apontando para trás com o polegar.
- Você parece conhecer bem Moscou - replicou Zhirov. Estava claro que não se tratava de um elogio.
- É um hábito meu.
- Como assim?
- Aprender a me virar em cidades estrangeiras. Odeio ter que pedir instruções. Não gosto de agir como um turista.
- Você gosta de ficar incógnito?
- Escute, Pavel, eu não estou gostando do rumo...
- Ou talvez você já tenha visitado Moscou antes - sugeriu Zhirov.
- Nunca.
- Recentemente, não?
- Não.
- Nem na infância?
- “Nunca” significa “nunca”, Pavel. Agora, se não se importa, gostaria de voltar para o hotel.
Zhirov estava olhando pela janela de novo. Ou será que perscrutava o retrovisor? Mikhail não podia ter certeza.
- Você ainda não respondeu a minha pergunta - disse Zhirov.
- Sua pergunta não é digna de resposta.
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas Avedon - falou Mikhail, calmo. - Sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, em Londres. E, graças a essa sua pequena exibição, vou continuar
sendo.
Zhirov não ficou convencido:
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas. Cresci na Inglaterra. Estudei em Cambridge e Harvard. Fiquei em Aberdeen por um tempo, já na indústria do petróleo. E depois fui trabalhar com
Viktor.
- Por quê?
- Por que eu cresci na Inglaterra? Ou por que fui para Harvard?
- Por que você foi trabalhar para um inimigo conhecido do Kremlin como Viktor Orlov?
- Porque ele estava em busca de alguém que pudesse assumir seu portfólio de petróleo. E, neste momento, estou arrependido de tê-lo traído.
- Você sabia das políticas dele quando aceitou o trabalho?
- Eu não me importo com as políticas dele. Para falar a verdade, não me importo com as políticas de ninguém.
- Você é um livre-pensador?
- Não, Pavel. Sou um homem de negócios.
- Você é um espião.
- Um espião? Você parou de tomar seus remédios, Pavel?
- Para quem você está trabalhando?
- Leve-me de volta para o hotel.
- Os ingleses?
- Meu hotel, Pavel.
- Os americanos?
- Foram vocês que me abordaram, lembra, Pavel? Em Copenhague, no fórum de petróleo. Nós nos encontramos numa casa no meio do nada. Tenho certeza de que você estava
lá.
- Para quem você está trabalhando? - insistiu Zhirov, como um professor lidando com um pupilo abobalhado.
- Pare o carro. Deixe-me sair.
- Quem?
- Pare a porra do carro.
A limusine parou, mas não por causa da ordem. Eles tinham chegado à rua Petrovka e a um cruzamento grande, com vias que levavam para várias direções diferentes.
O semáforo estava vermelho. Bem à frente, havia um Land Rover com dois homens. Mikhail olhou por cima do ombro e viu outro atrás. Em seguida, sentiu o celular vibrando
três vezes em rápida sucessão.
- O que foi isso? - perguntou Zhirov.
- É só o meu celular.
- Desligue-o e remova a bateria.
- Todo cuidado é pouco, não é, Pavel?
- Desligue-o!
Mikhail enfiou a mão no sobretudo, sacou a Makarov e enfiou o cano da pistola com força nas costelas de Zhirov. Os olhos do russo se arregalaram, mas ele não disse
nada. Encarou Mikhail por alguns segundos e, então, fitou Yaakov, que saía do Land Rover na frente deles. Keller já tinha deixado o outro carro e se aproximava do
Mercedes por trás.
- Fale ao motorista para colocar o câmbio na posição neutra - mandou Mikhail, em voz baixa. - Caso contrário, vou meter uma bala no seu coração. Dê a ordem, Pavel,
ou você morre agora mesmo.
Como Zhirov não respondeu, Mikhail engatilhou a arma. Keller estava parado ao lado da janela do chefe de segurança.
- Fale para ele, Pavel.
A luz do semáforo voltou a ficar verde. Um carro buzinou. Depois outro.
- Dê a ordem! - gritou Mikhail em russo.
Zhirov olhou para motorista pelo retrovisor e meneou a cabeça. O chofer obedeceu e pôs as mãos no volante.
- Fale para ele sair do carro e seguir as instruções.
Outra olhada para o retrovisor, outro aceno de cabeça. O motorista abriu a porta e saiu devagar. Yaakov estava esperando para cuidar dele. Depois de murmurar algumas
palavras no ouvido do motorista, levou-o até o seu Land Rover e o empurrou para o banco traseiro, sentando ao lado. Àquela altura, Keller já tinha assumido o volante
do Mercedes. Quando o Land Rover da frente partiu, ele engatou a marcha e o seguiu. Mikhail ainda pressionava a Makarov contra as costelas de Zhirov.
- Quem é você? - perguntou Pavel.
- Eu sou Nicholas Avedon.
- Quem é você?
- Eu sou o seu pior pesadelo e, se não calar a boca, vou matar você.
No Centro de Operações, as luzes da equipe se moviam para cima pelo mapa de Moscou - todas menos uma, que se mantinha na Teatralny Prospekt, descendo a ladeira,
vindo da praça Lubyanka. Não houve nenhuma celebração, nenhuma congratulação por um trabalho bem-feito. O ambiente ainda não permitia; Moscou tinha formas de revidar.
- Trinta segundos do começo ao fim - comentou Navot, os olhos presos na tela. - Nada mal.
- Trinta e três - corrigiu Shamron. - Mas quem está contando?
- Você estava.
Shamron deu um sorriso débil; ele estava contando. Na verdade, tinha passado a vida inteira contando: o número de membros da família perdidos para os fogos do Holocausto;
o número de compatriotas perdidos para as balas e as bombas; o número de vezes que tinha driblado a morte. Então, ele perguntou a Navot:
- Qual é a distância até o esconderijo?
- Duzentos e trinta e cinco quilômetros a partir dos limites da cidade.
- Qual é a previsão do tempo?
- Horrorosa - respondeu Navot. - Mas eles conseguem se virar.
Ele encarou as luzes se movendo através de Moscou.
- Trinta segundos - repetiu. - Nada mal.
- Trinta e três - voltou a corrigir Shamron. - E vamos torcer para que ninguém mais estivesse olhando.
Embora Shamron não soubesse, era exatamente isso que estava pensando o homem parado à janela do quadragésimo quarto andar do Hotel Metropol. Ele observava a esquina
da Teatralny Prospekt e o caminho até a fortaleza amarela, que se erguia na praça Lubyanka. Imaginou se conseguiria detectar alguma espécie de reação - luzes se
acendendo nos andares superiores, carros saindo da garagem -, mas decidiu que era improvável. Lubyanka sempre escondera bem suas emoções, assim como a Rússia sempre
escondera seus mortos com eficiência.
O homem se afastou da janela, desligou o notebook e o colocou no compartimento lateral da bolsa de viagem. Desceu de elevador até o saguão, acompanhado por duas
prostitutas de 17 anos com aparência de 45. Fora do hotel, um utilitário da Volvo aguardava, vigiado por um manobrista de aparência miserável, que recebeu uma generosa
gorjeta. Ele sentou ao volante e dirigiu para longe. Vinte minutos depois, tendo contornado o Kremlin, uniu-se ao rio de aço e luzes que saía de Moscou rumo ao norte.
No Centro de Operações, no entanto, ele era apenas uma luz vermelha, um anjo vingador sozinho na cidade dos hereges.
51
TVER OBLAST, RÚSSIA
Outrora, aquela fora a dacha de um homem poderoso - um membro do Comitê Central, talvez até mesmo do Politburo. Ninguém sabia dizer com certeza, porque, nos dias
caóticos que se seguiram ao colapso da União Soviética, tudo havia sido perdido. Fábricas pertencentes ao Estado permaneceram fechadas, pois ninguém conseguia encontrar
as chaves; computadores do governo entraram no modo de repouso, porque ninguém conseguia se lembrar dos códigos. A Rússia entrara aos tropeções num admirável novo
milênio sem qualquer mapa ou lembrança. Alguns falavam que ela ainda não tinha memória, embora agora a amnésia fosse proposital.
Por muitos anos, a dacha esquecida ficou vazia e abandonada, até que um construtor moscovita com uma fortuna recém-obtida, chamado Bloch, adquiriu-a por uma ninharia
e realizou uma reconstrução completa. Por fim, assim como muitos novos-ricos da Rússia, entrou em conflito com a nova equipe do Kremlin e decidiu deixar o país enquanto
ainda podia. Estabeleceu-se em Israel, em parte porque se achava um pouco judeu, mas principalmente porque nenhum outro país o acolheria. Com o passar do tempo,
vendeu os bens russos, mas não abriu mão da dacha na Tver Oblast. Resolveu dá-la a Ari Shamron, dizendo-lhe para fazer bom proveito.
A dacha ficava ao lado de um lago sem nome, e a rua que conduzia até ela não aparecia em nenhum mapa. Não era bem uma rua; tratava-se mais de um sulco que fora criado
na floresta de bétulas muito antes de qualquer pessoa ouvir falar de um lugar chamado Rússia. O portão original da dacha ainda existia. Por medo, Bloch - filho da
era stalinista - não removera a velha placa soviética de “Entrada Proibida”, que agora reluziu brevemente sob os faróis de Gabriel enquanto ele subia aos solavancos
pela pista coberta de neve. A dacha logo surgiu à sua frente, uma construção pesada de madeira com o telhado pontudo e varandas espaçosas ao redor. Havia diversos
veículos estacionados em volta da casa, inclusive um Mercedes Classe E de propriedade da Volgatek. Quando saiu do utilitário, Gabriel viu a luz de um cigarro na
escuridão.
- Bem-vindo a Shangri-Lá - disse Keller, que usava uma jaqueta grossa e segurava uma Makarov.
- Como está o perímetro?
- Um frio dos infernos, mas seguro.
- Quanto tempo você consegue ficar aqui fora?
Keller sorriu.
- Eu sou do Regimento, querido.
Gabriel deixou-o para trás e entrou na dacha. O restante da equipe se espalhava pelos móveis rústicos da sala ampla. Mikhail ainda estava vestido para um jantar
no Café Pushkin. Ele tinha a mão direita enfiada numa tigela de água gelada.
- O que aconteceu? - perguntou Gabriel.
- Eu bati a mão.
- No quê?
- Num rosto.
Gabriel pediu para ver a mão. Estava muito inchada, com os nós de três dedos esfolados.
- Quantas vezes você bateu a mão?
- Uma ou duas. Ou talvez tenham sido onze ou doze.
- Como está o rosto?
- Veja você mesmo.
- Onde ele está?
Mikhail apontou para o chão.
Em meio aos muitos recursos de luxo da dacha, havia um abrigo nuclear. O espaço já fora ocupado por um estoque de um ano de comida, água e suprimentos. Agora continha
dois homens. Ambos estavam cobertos de fita adesiva: mãos, pés, joelhos, bocas e olhos. Ainda assim, dava para ver que o rosto do mais velho sofrerá danos significativos,
devido a repetidas colisões contra a perigosa direita de Mikhail. Ele estava apoiado numa parede, as pernas estendidas no chão. Ao escutar a porta sendo aberta,
sua cabeça começou a virar de um lado para o outro, como uma antena de radar em busca de uma aeronave invasora. Gabriel se agachou na frente dele e arrancou a fita
adesiva dos seus olhos, levando junto parte de uma sobrancelha; agora, o prisioneiro parecia estar com uma expressão de surpresa permanente. Havia um corte profundo
na bochecha e sangue ressecado em volta do nariz entortado. Gabriel sorriu e tirou a fita adesiva da boca.
- Olá, Pavel. Ou devo chamá-lo de Paul?
Zhirov ficou em silêncio. Gabriel avaliou o nariz quebrado.
- Isso deve doer. Mas esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
- Estou ansioso para retribuir o favor, Allon.
- Então você me reconhece, afinal.
- É claro - disse Zhirov, um pouco confiante demais. - Nós o estamos observando desde que você colocou os pés na Rússia.
- Nós quem? A Volgatek? O SVR? A FSB? Ou deixamos as amenidades de lado e chamamos logo de KGB, que é exatamente do que se trata a sua organização?
- Você está morto, Allon... Você e toda a sua equipe. Nunca vai sair vivo da Rússia.
O sorriso de Gabriel se manteve firme.
- Eu sempre achei melhor não fazer ameaças vazias, Pavel.
- Concordo plenamente.
- Então talvez você deva parar de fingir que sabia que eu estava em Moscou, ou que sabia que Nicholas Avedon era minha criação. Você nunca teria agido contra ele
esta noite sem o apoio da FSB se soubesse que ele era meu agente.
- Quem disse que eu não tinha apoio?
- Eu.
- Você está enganado, Allon. Mas você tem um longo histórico de erros. A FSB está apenas esperando para garantir que todos os membros da sua equipe estejam identificados.
Você tem algumas horas, no máximo. E aí você é que estará sentado numa cela com o nariz quebrado.
- Então suponho que seja bom começarmos.
- Começarmos o quê?
- Sua confissão. Você vai dizer ao mundo como sequestrou uma garota inglesa chamada Madeline Hart para que a Volgatek Petróleo e Gás pudesse ganhar acesso ao mar
do Norte.
Zhirov simulou surpresa.
- A garota inglesa? É disso que se trata?
Gabriel balançou a cabeça lentamente, como se desapontado com a resposta de Zhirov.
- Vamos, Pavel. Sem dúvida você pode fazer melhor do que isso. Você a sequestrou na estrada costeira perto de Calvi poucas horas depois de almoçar com ela no Les
Palmiers. Um delinquente de Marselha chamado Marcei Lacroix o levou até o continente, onde você a entregou para outro vagabundo marselhês, René Brossard, para que
a mantivesse presa. Então, após coletar 10 milhões de euros do primeiro-ministro britânico como resgate, deixou-a na traseira de um carro na praia em Audresselles
e acendeu um fósforo.
- Nada mal, Allon.
- Na verdade, não foi muito difícil. Você deixou um monte de pistas para seguir. Mas isso foi proposital: o sequestro e o assassinato de Madeline deveriam parecer
trabalho de criminosos franceses. Mas houve um engano, Pavel. Você deveria ter me dado ouvidos quando avisei para não machucá-la. Eu disse exatamente o que aconteceria
se você o fizesse. Eu disse que o encontraria. E também que o mataria.
- Então por que não matou? Por que arriscar o seu pessoal me sequestrando e me trazendo para cá?
- Nós não o sequestramos, Pavel. Nós o capturamos. E o trouxemos aqui porque, apesar das circunstâncias atuais, esse é o seu dia de sorte. Eu vou lhe dar algo que
não acontece com muita frequência no nosso negócio: uma segunda chance.
- E o que eu preciso fazer?
- Responder algumas perguntas, amarrar algumas pontas soltas.
- Só isso?
Gabriel assentiu.
- E depois?
- Depois você será liberado.
- Para fazer o quê? - perguntou Zhirov, sério.
- Voltar para a Volgatek. Para o SVR. Para baixo da pedra da qual você rastejou.
Zhirov conseguiu abrir um sorriso condescendente.
- E o que você acha que vai acontecer comigo quando eu voltar para Yasenevo depois de responder suas perguntas e amarrar as pontas soltas?
- Suponho que você vá receber a vysshaya mera. A maior punição.
Zhirov aquiesceu, admirado.
- Você sabe muito sobre o meu serviço.
- Não por escolha. Para ser sincero, Pavel, não me importo com o que o seu serviço vai fazer com você.
- Você deveria se importar - disse Zhirov, mantendo o sorriso condescendente. - Veja bem, Allon, tudo o que você está me oferecendo é uma escolha entre a morte e
a morte.
- Eu estou lhe oferecendo a oportunidade de presenciar mais uma alvorada russa, Pavel. E não se preocupe: vou garantir que você tenha bastante tempo num lugar tranquilo
para poder pensar numa boa história para seus mestres no SVR. Algo me diz que, no fim, você vai acabar bem.
- E se eu me recusar?
- Nesse caso, vou meter uma bala na sua nuca por ter matado Madeline.
- Preciso de tempo para pensar.
Gabriel recolocou a fita adesiva sobre os olhos e a boca de Zhirov.
- Você tem cinco minutos.
Na verdade, acabaram se passando dez minutos antes de Mikhail, Yaakov e Oded carregarem Zhirov para a sala de jantar, onde o prenderam com firmeza numa cadeira pesada.
Gabriel estava sentado à sua frente. Atrás dele, postava-se Yossi, com os olhos fixos na pequena tela de uma filmadora montada num tripé. Depois de fazer um pequeno
ajuste ao ângulo da filmagem, Yossi meneou a cabeça para Mikhail, que arrancou a fita dos olhos e da boca de Zhirov. O russo piscou rapidamente várias vezes. Em
seguida, seus olhos varreram o cômodo devagar, gravando cada rosto, cada detalhe, antes de enfim recair sobre a fotografia que Gabriel tinha nas mãos. Nela estava
Zhirov, com uma aparência muito diferente da atual, almoçando com Madeline Hart no Les Palmiers.
- Como você a conheceu? - perguntou Gabriel.
- Conheci quem?
Gabriel colocou a foto em cima da mesa e pediu para Yossi desligar a filmadora. Eles cortaram as amarras da cadeira, prenderam os pulsos de Zhirov com uma corda
e o carregaram para fora, na escuridão, até a beira do lago. No fim de uma doca com cerca de 15 metros de comprimento, havia um trecho de água que ainda não tinha
congelado. Zhirov deu um mergulho desajeitado, como faz um homem bem amarrado sendo jogado por três sujeitos furiosos.
- Você sabe qual é o tempo de sobrevivência na água nessa temperatura? - perguntou Keller.
- Ele vai começar a perder sensibilidade e destreza em dois minutos. E provavelmente estará inconsciente em quinze.
- Isso se ele não se afogar antes.
- Sempre há essa chance - admitiu Gabriel.
Keller observou em silêncio o homem se debater.
- Como você vai saber que já passou tempo suficiente?
- Quando ele começar a afundar.
- Lembre-me de nunca entrar na sua lista negra.
- Esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
52
TVER OBLAST, RÚSSIA
Bastaram dois minutos no lago. Depois disso, não houve mais nenhuma afirmação de inocência, nenhuma ameaça de que, em breve, a FSB chegaria. Resignado ao seu destino,
Zhirov se tornou um prisioneiro-modelo. Apresentou apenas um pedido: que fizessem algo a respeito de sua aparência. Como a maior parte dos espiões, tinha passado
a vida evitando câmeras e não queria fazer a estreia parecendo o perdedor de uma luta de boxe.
Na comunidade de inteligência, há uma verdade dada como certa: ao contrário da crença popular, a maioria dos espiões gosta de falar, especialmente em meio a circunstâncias
que tomam suas carreiras irrecuperáveis. Nessa situação, fazem os segredos jorrarem, mesmo se for apenas para provar a si mesmos que eles foram mais do que uma simples
engrenagem na máquina secreta, que foram importantes, mesmo que não tenham sido.
Portanto, Gabriel não se surpreendeu quando Zhirov, depois de se recuperar do mergulho no lago, assumiu subitamente uma atitude verborrágica. Vestido com roupas
secas, aquecido pelo chá doce e por um gole de uísque, começou o relato não com Madeline Hart, mas consigo mesmo. Ele tinha sido um filho da nomenklatura, a elite
comunista da União Soviética. Seu pai fora um oficial de alto escalão no Ministério Soviético das Relações Exteriores sob o comando de Andrei Gromyko; isso significava
que Zhirov tinha estudado em escolas especiais reservadas para as crianças da elite e que podia fazer compras em lojas especiais do Partido que vendiam bens de luxo,
com os quais a maioria dos cidadãos soviéticos conseguia apenas sonhar. E também havia o luxo quase inaudito das viagens ao exterior. Zhirov passou boa parte da
infância fora da União Soviética, principalmente nos estados vassalos do Leste Europeu que compunham a área de especialização do pai - embora, certa vez, ele tenha
ficado seis meses em Nova York quando o pai trabalhou nas Nações Unidas. Zhirov odiava a cidade americana, pois, como criança leal ao Partido, fora criado e educado
para detestá-la.
- Nós não víamos a riqueza e a ganância dos Estados Unidos como algo a ser imitado. Para nós, eram elementos que podíamos usar contra os americanos para destruí-los.
Apesar de ter sido um estudante indiferente e, com frequência, inadequado, Zhirov foi aceito pelo prestigiado Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou. Ao se
graduar, todos imaginaram que ele fosse trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores. Em vez disso, um recrutador do Comitê de Segurança do Estado, mais conhecido
como KGB, apareceu no apartamento de Zhirov em Moscou. O homem disse que o serviço secreto estava de olho em Pavel desde a sua infância e acreditava que ele reunia
todos os atributos de um espião perfeito.
- Fiquei incrivelmente lisonjeado - admitiu Zhirov. - Era 1975. Ford e Brejnev estavam se fazendo de amigos em Helsinque, mas, por trás da fachada amena, a disputa
entre o Leste e o Oeste, o capitalismo e o socialismo, ainda grassava. E eu iria fazer parte dela.
Mas antes, acrescentou Zhirov, teria que frequentar outra instituição: o Instituto do Estandarte Vermelho, o centro de treinamento da KGB em Moscou. Lá, aprendeu
os aspectos básicos do trabalho na KGB, em especial sobre recrutamento de espiões, um processo dolorosamente lento e controlado com firmeza, que chegava a durar
um ano ou mais. Quando o treinamento terminou, foi designado para o Quinto Departamento do Primeiro Diretório Geral e transferido para Bruxelas. Em seguida, passou
por vários outros postos na Europa Ocidental, até que os seus superiores no Centro Moscovita perceberam que tinha talento para o lado mais obscuro da profissão.
Zhirov foi realocado no Departamento S, a unidade que supervisionava agentes soviéticos residindo “ilegalmente” no exterior. Depois, trabalhou para o Departamento
V, a divisão da KGB que lidava com o mokroye delo.
- “Serviço úmido”... Assassinatos, certo?
Zhirov assentiu.
- Eu não era um assassino como você, Allon, mas um organizador, estrategista.
- Você conduziu alguma operação de falsa bandeira enquanto estava no De-partamento V?
- Nós as conduzíamos o tempo todo - admitiu Zhirov. - Na verdade, falsas bandeiras eram o procedimento operacional de praxe. Quase nunca agíamos contra um alvo a
menos que pudéssemos criar uma história plausível mostrando que outra pessoa estava por trás da ação.
- Quanto tempo você ficou no Departamento V?
- Até o fim.
Com isso, ele queria dizer o fim da União Soviética, que desmoronou em dezembro de 1991. Quase da noite para o dia, o antigo superpoder foi transformado em quinze
países, com a Rússia, o coração da velha organização, em destaque. A KGB se dividiu em dois serviços diferentes. Em pouco tempo, o Centro Moscovita, outrora uma
catedral da inteligência, enfrentou tempos difíceis. Surgiram rachaduras no exterior do prédio e o saguão se encheu de lixo. Oficiais com a barba por fazer vestindo
trajes amarrotados vagavam pelos corredores num torpor alcoólico.
- Não havia sequer papel higiênico no banheiro masculino - disse Zhirov, a voz sendo tomada pelo desgosto. - O lugar todo era um chiqueiro. E não havia ninguém no
comando.
Ele contou que isso mudara quando Boris Yeltsin enfim deixou o palco e os siloviki, homens dos serviços de segurança, assumiram o controle do Kremlin. Quase imediatamente,
ordenaram que o SVR aumentasse o volume de operações contra os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aliados nominais da nova Federação Russa. Zhirov foi designado como
novo chefe rezident do SVR em Washington, um dos postos mais importantes do serviço. Mas, no dia em que deveria partir da Rússia, recebeu uma convocação do Kremlin.
Pelo visto, o presidente, um velho colega da KGB, queria conversar.
- Imaginei que ele quisesse me dar algumas instruções de despedida sobre como lidar com o trabalho em Washington, mas a verdade é que ele tinha outros planos para
mim.
- A Volgatek - concluiu Gabriel.
Zhirov assentiu.
- A Volgatek.
Para compreender o que aconteceu em seguida, disse Zhirov, antes seria necessário entender a importância do petróleo para a Rússia. Ele lembrou à sua plateia que,
por décadas, a União Soviética havia sido a terceira maior produtora mundial dessa commodity, perdendo apenas para os emirados do Golfo Pérsico, dominados pelos
americanos, e para a Arábia Saudita. As crises de petróleo nos anos 1970 e 1980 turbinaram a vacilante economia soviética. Foram como uma máscara de oxigênio, que
prolongou a vida do paciente até muito tempo depois de o cérebro parar de funcionar. O novo presidente russo compreendeu o que Yeltsin não tinha entendido: o petróleo
poderia transformar a Rússia numa superpotência novamente. Então, ele disse aos oligarcas como Viktor Orlov que a porta da rua era a serventia da casa, e colocou
todo o setor russo de energia sob o controle efetivo do Kremlin. Em seguida, abriu uma empresa petrolífera própria.
- A KGB Óleo e Gás - disse Gabriel.
- Mais ou menos - concordou Zhirov, assentindo devagar. - Mas a nossa empresa seria diferente. Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de
downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.
- E para onde vai o resto?
- Use a sua imaginação.
- Para o bolso do presidente russo?
- Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB. Nosso presidente vale cerca de 40 bilhões de dólares, e boa parte da
fortuna vem da Volgatek.
- De quem foi a ideia de perfurar no mar do Norte?
- Foi dele - respondeu Zhirov. - É uma empreitada que ele leva muito a sério. Disse que a Volgatek deveria enfiar um canudo nas águas territoriais britânicas e sugar
até que não reste nada. Ah, só para constar: eu fui contra a ideia desde o começo.
- Por quê?
- Parte do meu trabalho como chefe de segurança e operações consiste em inspecionar o campo antes de ser tomada qualquer decisão sobre um ativo ou um contrato. A
minha análise da situação na Inglaterra não foi promissora. Previ que as tensões políticas entre Londres e Moscou levariam a uma rejeição do nosso pedido para perfurar
na região das Ilhas Ocidentais. E, infelizmente, eu estava certo.
- Suponho que o presidente tenha ficado desapontado.
- Eu nunca o vi tão furioso. Principalmente porque suspeitou que Viktor Orlov tivesse desempenhado algum papel nessa questão. Ele me chamou para o seu escritório
no Kremlin e disse que eu deveria usar todos os meios necessários para conseguir aquele contrato.
- Então você mirou em Jeremy Fallon.
Zhirov hesitou antes de responder:
- É óbvio que você tem boas fontes em Londres.
- Cinco milhões de euros numa conta bancária suíça. Foi isso que você deu para Jeremy Fallon em troca do contrato.
- A negociação foi dura. É claro que ficamos extremamente desapontados quando ele não cumpriu a promessa. Fallon alegou que não podia fazer nada.
Lancaster e o secretário de Energia eram totalmente contra o acordo. Nós precisávamos agir para mudar a dinâmica... moldar o campo de batalha, por assim dizer.
- Então você sequestrou a amante do primeiro-ministro.
Zhirov não respondeu.
- Confesse, ou vamos dar outro mergulho ao luar.
- Sim - disse Zhirov, olhando direto para a câmera -, eu sequestrei a amante do primeiro-ministro.
- Como você sabia que Lancaster estava tendo um caso com ela?
- A rezidentura em Londres já ouvia rumores há algum tempo sobre uma jovem do quartel-general do Partido que visitava a Downing Street tarde da noite. Pedi que investigassem
a questão mais a fundo. Não levaram muito tempo para descobrir quem era.
- Fallon sabia que você planejava sequestrá-la?
Zhirov balançou a cabeça.
- Só depois de obter a confissão de Madeline é que revelei a Fallon nossa participação. Disse a ele para aproveitar a oportunidade e fechar o negócio. Caso contrário,
eu o entregaria também.
- Vazando o fato de que ele aceitara um suborno de cinco milhões de euros de uma petrolífera do Kremlin.
Zhirov assentiu.
- Quando você entrou em contato com ele?
- Eu viajei para Londres enquanto você e o seu amigo da Córsega reviravam a França atrás da garota. Lancaster estava tão incapacitado pelo estresse que aceitava
qualquer coisa. Fallon forçou o acordo, apesar das objeções do secretário de Energia. Em seguida, dei início ao lance final.
- O pedido de resgate - completou Gabriel. - Dez milhões de euros, ou a garota morreria. E Fallon soube o tempo todo que era só uma farsa para encobrir o papel da
Volgatek no desaparecimento de Madeline.
- E o papel dele também.
- O quanto Lancaster sabia?
- Nada - garantiu Zhirov. - Ele ainda acha que pagou 10 milhões de euros para salvar a amante e a carreira política.
- Por que você insistiu para que eu entregasse o dinheiro?
- Nós queríamos nos divertir um pouco às suas custas.
- Matando Madeline na minha frente?
Zhirov ficou em silêncio.
- Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.
- Eu matei Madeline Hart - recitou ele.
- Como?
- Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.
- Por quê? Por que você a matou?
- Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra de forma alguma.
- Por que você não me matou também?
- Acredite em mim, Allon, nada teria nos deixado mais felizes. Mas achamos que você fosse mais útil vivo do que morto. Afinal, quem melhor do que o grande Gabriel
Allon para confirmar que Madeline tinha sido morta em um esquema banal de sequestro por resgate?
- Onde estão os 10 milhões de euros?
- Dei de presente para o presidente russo.
- Gostaria de tê-los de volta.
- Boa sorte.
Gabriel colocou a fotografia do almoço no Les Palmiers na mesa de novo.
- O que estava acontecendo aqui?
- Suponho que você possa considerar isso o estágio final de um recrutamento romântico.
Gabriel franziu o cenho, cético.
- Por que uma jovem linda como Madeline se interessaria por um babaca como você?
- Eu sou bom no que faço, Allon. Assim como você. Além disso, ela era uma garota solitária. Uma garota fácil.
- Tome cuidado, Pavel. - Gabriel analisou a foto com certo exagero. - Engraçado, mas vocês dois não pareciam muito à vontade juntos.
- Foi a nossa terceira reunião.
- Reunião?
- Encontro - corrigiu-se Zhirov.
- Não me parece que vocês estivessem se divertindo - insistiu Gabriel, ainda fitando a foto. - Na verdade, se fosse para eu adivinhar, diria que vocês estavam brigando.
- Não estávamos - retrucou Zhirov rapidamente.
- Tem certeza?
- Tenho.
Gabriel colocou a foto de lado.
- Mais alguma pergunta? - quis saber Zhirov.
- Só uma: como você soube que Madeline estava tendo um caso com Jonathan Lancaster?
- Eu já respondi a essa pergunta.
- Eu sei, mas, desta vez, quero que me diga a verdade.
Ele deu a mesma explicação - sobre os rumores chegando aos ouvidos do rezident do SVR em Londres -, mas Gabriel não estava engolindo. Deu mais uma chance para Zhirov
e, como ele continuava repetindo a mesma mentira, levou o russo até o final da doca e pressionou o cano da Makarov contra a sua nuca. Lá, na beira do lago congelado
sem nome, a verdade saiu aos borbotões. Parte de Gabriel tinha suspeitado desde o começo. Mesmo assim, ele mal pôde acreditar na história. Mas só podia ser verdade,
pensou. Era a única explicação possível para tudo o que havia acontecido.
Quando eles voltaram para a dacha, Zhirov recitou a história novamente, dessa vez para a câmera, antes de ser devolvido, amarrado e amordaçado, ao abrigo nuclear.
Agora, a operação estava quase concluída. Eles tinham obtido provas de que a Volgatek subornara e chantageara para abrir caminho até o lucrativo mercado de petróleo
do mar do Norte. Tudo o que restava era se dirigirem ao aeroporto e embarcarem em voos separados para casa. Ou, sugeriu Gabriel, poderiam adiar a partida para tratar
de uma última questão. Não era uma decisão que ele podia tomar sozinho, portanto, atipicamente, uma votação foi aberta. Não houve nenhuma oposição.
53
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Gabriel decidiu que seria mais seguro ir de trem. Havia uma estação na cidade de Okulovka e ele poderia pegar o primeiro transporte local da manhã e chegar a São
Petersburgo no começo da tarde. Ficou secretamente feliz quando Lavon insistiu em acompanhá-lo. Gabriel precisava dos olhos dele. E também precisava de seu russo.
Eram menos de 65 quilômetros até Okulovka, mas as estradas terríveis e o tempo ruim alongaram a viagem para quase duas horas. Eles deixaram o Volvo num pequeno estacionamento
tomado pelo vento e foram às pressas para a estação, uma estrutura de tijolos vermelhos recém-construída, estranhamente parecida com uma fábrica. Os passageiros
já estavam embarcando quando Lavon conseguiu comprar duas passagens de primeira classe de um dos bilheteiros protegidos atrás das cabines de vidro. Eles dividiram
um compartimento com duas garotas russas que conversavam sem parar e um homem de negócios magro vestido com elegância que não tirou os olhos do telefone sequer uma
vez. Lavon passou o tempo lendo os jornais matinais de Moscou, que não faziam nenhuma menção a um executivo do petróleo desaparecido. Gabriel ficou olhando através
da janela coberta de gelo, contemplando os campos intermináveis de neve, até que o oscilar do vagão começou a embalá-lo.
Ele acordou assustado quando o trem entrou chacoalhando na estação Moskovsky, em São Petersburgo. No andar de cima, o grande saguão abobadado estava tumultuado;
pelo visto, o trem-bala vespertino para Moscou tinha sido atrasado por uma ameaça chechena de bomba. Seguido por Lavon, Gabriel se embrenhou na massa de crianças
choronas e casais discutindo e saiu na Praça Vosstaniya. O Obelisco da Cidade-Herói se erguia no centro da rotatória engarrafada. Postes iluminavam toda a Nevsky
Prospekt. Eram apenas duas da tarde, mas qualquer luz do sol que tivesse surgido já desaparecera havia muito tempo.
Gabriel caminhou pela prospekt, seguido por um vigilante Lavon. Ele não estava mais na Rússia, pensou, mas num paraíso czarista, importado do Ocidente e construído
por camponeses aterrorizados. Florença o chamava das fachadas dos palácios barrocos, e, atravessando o rio Moyka, ele imaginou Veneza. Gabriel se perguntou quantos
cadáveres jaziam abaixo do gelo. Milhares, dezenas de milhares. Nenhuma outra cidade no mundo escondia os horrores do passado com mais beleza do que São Petersburgo.
A única visão desagradável da prospekt ficava perto do final: o velho prédio da Aeroflot, uma monstruosidade cinza inspirada no Palácio Ducal de Veneza, com uma
pitada da Florença dos Médicis para completar. Gabriel entrou na rua Bolshaya Morskaya e a seguiu através do Arco do Triunfo, chegando à Praça do Palácio. Ao chegarem
perto da Coluna de Alexandre, Lavon se aproximou para dizer que ele não estava sendo seguido. Gabriel consultou o relógio, que parecia congelado em seu pulso. Eram
duas horas e vinte. Acontece no mesmo horário todos os dias, dissera Zhirov. Eles sempre ficam meio loucos quando voltam para casa depois de muito tempo no frio.
Junto à Praça do Palácio, havia um pequeno parque, verde no verão e agora branco como um osso por causa da neve. Lavon aguardou ali num banco enquanto Gabriel caminhava
sozinho até o Cais do Palácio. O rio Neva estava congelado. Olhou para o relógio pela última vez. Em seguida, ficou parado na barreira, tão inerte quanto o poderoso
rio, e esperou por uma garota desconhecida.
Ele a viu cinco minutos depois, atravessando a Ponte do Palácio. Ela usava um casaco grosso e botas que quase alcançavam os joelhos. Um chapéu de lã cobria-lhe os
cabelos claros. Um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Mesmo assim, Gabriel soube instantaneamente que era ela. Os olhos a traíam. Os olhos e o contorno dos
malares. Era como se a moça com brincos de pérola de Vermeer tivesse sido libertada da tela e agora caminhasse ao longo da margem de um rio em São Petersburgo.
Ela passou como se Gabriel fosse invisível e seguiu para o Hermitage. Antes de segui-la, ele verificou se a mulher estava sendo vigiada e, quando entrou no museu,
a garota já tinha sumido. Isso não importava, pois Gabriel sabia para onde a desconhecida ia. Sempre o mesmo quadro, falara Zhirov. Ninguém consegue entender por
quê.
Ele comprou uma entrada e caminhou pelos corredores e galerias intermináveis até a Sala 67: a Sala de Monet. E lá estava ela, sentada a sós, admirando Lagoa em Montgeron.
Quando Gabriel se sentou ao seu lado, a mulher olhou de relance para ele antes de voltar a observar a pintura. O disfarce dele era melhor do que o dela. Gabriel
não significava nada para a mulher. Nunca deveria ter significado.
Após mais um minuto, ele ainda não tinha se mexido; ela se virou e o encarou pela segunda vez. Foi então que a mulher percebeu o exemplar de Uma janela para o amor
equilibrado sobre o seu joelho.
- Acredito que isso pertença a você - disse Gabriel, e colocou o livro com cuidado na mão trêmula da mulher.
54
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar da sede da FSB, há um conjunto de salas ocupadas pela menor e mais secreta unidade da organização. Conhecido como Departamento de Coordenação, o
grupo lida apenas com casos de extrema sensibilidade política, normalmente a pedido do próprio presidente russo. Naquele momento, o velho chefe da unidade, coronel
Leonid Milchenko, estava sentado em frente à sua grande mesa feita na Finlândia, com um telefone grudado no ouvido, os olhos fixos na Praça Lubyanka. Vadim Strelkin,
seu braço direito, estava parado ansioso na soleira da porta. Pela forma como Milchenko bateu o telefone, percebeu que teria uma longa noite.
- Quem era? - perguntou Strelkin.
Milchenko respondeu sem tirar os olhos da janela.
- Merda - praguejou Strelkin.
- Merda não, Vadim: petróleo.
- O que ele queria?
- Ele quer uma conversa particular.
- Onde?
- No escritório dele.
- Quando?
- Cinco minutos atrás.
- Do que você acha que se trata?
- Pode ser qualquer coisa - falou Milchenko. - Mas, se a Volgatek está envolvida, não pode ser nada bom.
- Vou pegar o carro.
- Boa ideia, Vadim.
Tirar o carro das entranhas de Lubyanka levou mais tempo do que a viagem curta até a sede da Volgatek na rua Tverskaya. Dmitry Bershov, o número dois da empresa,
esperava, ansioso, no saguão quando Milchenko e Strelkin entraram - outro mau sinal. Em silêncio, conduziu-os a um elevador executivo e apertou o botão do último
andar. Ao se abrirem as portas, eles deram diretamente no maior escritório que Milchenko já vira em Moscou. Só depois de alguns segundos é que ele avistou Gennady
Lazarev, sentado numa das pontas de um comprido sofá de couro. O coronel decidiu ficar de pé enquanto o CEO da Volgatek explicava que Pavel Zhirov, seu chefe de
segurança, não era visto desde as onze horas da noite passada. Milchenko conhecia o nome: havia sido seu contemporâneo na KGB. Ele deixou um caderno de couro na
mesa de centro de Lazarev e se sentou.
- O que estava acontecendo ontem à noite às onze horas?
- Nós estávamos dando uma festa no Café Pushkin para celebrar uma contratação importante na empresa. A propósito, o novo funcionário também está desaparecido. Assim
como o motorista.
- Você podia ter mencionado isso logo de cara.
- Estava chegando ao ponto.
- Qual é o nome do novo contratado?
Lazarev respondeu.
- Russo?
- Na verdade, não.
- O que isso significa?
- Que ele vem de família russa, mas carrega um passaporte britânico.
- Então ele é, na verdade, britânico.
- É.
- Mais alguma coisa que eu deva saber sobre ele?
- Atualmente, é funcionário de Viktor Orlov em Londres.
Milchenko trocou um olhar demorado com Strelkin antes de encarar o caderno, sem dizer nada. Ele ainda não tinha escrito nada no papel; provavelmente, uma atitude
sensata. Estavam desaparecidos um ex-agente da KGB e um associado do oponente mais ferrenho do Kremlin. Milchenko começava a achar que deveria ter ficado em casa
naquela manhã, fingindo estar doente.
- Suponho que eles tenham deixado o Café Pushkin juntos - disse por fim. Lazarev assentiu.
- Por quê?
- Pavel queria lhe fazer algumas perguntas.
- Por que eu não estou surpreso?
Lazarev ficou em silêncio.
- Que tipo de perguntas?
- Pavel tinha algumas suspeitas em relação a ele.
- Tais como...?
- Ele acreditava que o homem podia estar vinculado a um serviço estrangeiro de inteligência.
- Algum serviço específico?
- Por razões óbvias - disse Lazarev com cuidado suas suspeitas se centraram nos britânicos.
- Então ele planejava bater um pouco no cara.
- Ele só ia fazer algumas perguntas.
- E se não gostasse das respostas?
- Nesse caso, bateria um pouco.
- Que bom que esclarecemos isso.
O telefone perto de Lazarev emitiu um zumbido leve. Ele atendeu, escutou em silêncio e disse “Imediatamente” antes de desligar.
- O que foi? - perguntou Milchenko.
- O presidente gostaria de ter uma conversa.
- Você não deveria deixá-lo esperando.
- Na verdade, é você que ele quer ver.
55
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Naquele mesmo instante, o homem responsável pela convocação do coronel Milchenko ao Kremlin caminhava pela Admiralty Prospekt, em São Petersburgo. Ele não sentia
mais frio, apenas o ponto em seu braço onde a mão dela havia pousado brevemente antes de eles se separarem. Seu coração batia contra o peito. Sem dúvida ela estaria
sendo observada. E Gabriel estaria prestes a ser preso. Para apaziguar seus medos, mentiu para si mesmo. Ele não estava na Rússia, pensou, mas em Veneza e Roma e
Florença e Paris, tudo ao mesmo tempo. Estava seguro. Ela também.
A Catedral de Santo Isaac, a colossal igreja de mármore que os soviéticos transformaram num museu do ateísmo, surgiu à sua frente. Ele entrou no prédio e subiu a
escadaria estreita em caracol até a cúpula que cercava o domo dourado. Como esperava, a plataforma estava vazia. A cidade de conto de fadas fervilhava abaixo dos
seus pés, o trânsito se movendo lentamente pelas grandes prospekt.
Numa delas, uma mulher caminhava sozinha; um chapéu cobria-lhe os cabelos claros, um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Alguns momentos depois, ele ouviu
os passos na escada. E, então, ela estava parada na sua frente. Não havia iluminação na cúpula. Mal dava para vê-la na escuridão.
- Como você me encontrou?
O som da voz dela era quase irreal. Era o sotaque britânico. Gabriel se deu conta de que era o único sotaque dela.
- Não importa como eu encontrei você.
- Como? - perguntou ela de novo, mas dessa vez Gabriel só ficou em silêncio. Ele deu um passo na direção dela para enxergar seu rosto mais claramente.
- Agora você se lembra de mim, Madeline? Fui eu que arrisquei tudo para tentar salvar a sua vida. Nunca me ocorreu que você estivesse envolvida desde o começo. Você
me enganou, Madeline. Você enganou todo mundo.
- Eu nunca estive envolvida, mas apenas obedecendo ordens.
- Eu sei - disse Gabriel depois de um instante. - Caso contrário, não estaria aqui.
- Quem é você?
- Na verdade, eu estava prestes a fazer a mesma pergunta.
- Meu nome é Madeline. Madeline Hart, de Basildon, Inglaterra. Eu segui todas as regras. Fui bem na escola e na universidade. Consegui um emprego na sede do Partido.
Meu futuro era promissor. Eu seria membro do Parlamento algum dia. Talvez até mesmo uma ministra. - Ela fez uma pausa. - Pelo menos era isso que diziam sobre mim.
- Qual é o seu nome real?
- Não sei o meu nome real. Eu mal falo russo. Eu não sou russa. Sou Madeline. Uma garota inglesa.
Ela tirou o exemplar de Uma janela para o amor do bolso do casaco e o ergueu.
- Onde você encontrou isto?
- No seu quarto.
- O que você estava fazendo lá?
- Tentando descobrir por que a sua mãe foi embora de Basildon sem dizer nada para ninguém.
- Ela não é a minha mãe.
- Agora eu sei disso. Na verdade, acho que eu soube quando vi uma fotografia com você e os seus pais. Eles parecem...
- Camponeses - completou ela, ressentida. - Eu os odiava.
- Onde a sua mãe e o seu irmão estão agora?
- Num velho centro de treinamento da KGB no meio do nada. Eu deveria ter ido para lá também, mas me recusei. Disse que queria viver em São Petersburgo, ou então
fugiria para o Ocidente.
- Você tem sorte de não estar morta.
- Eles me ameaçaram. - Ela o encarou por um instante. - Quanto você realmente sabe sobre mim?
- Sei que o seu pai foi um general importante no Primeiro Diretório Geral, talvez até mesmo o próprio chefão. Sua mãe era uma de suas datilografas. Ela teve uma
overdose com pílulas para dormir e vodca pouco depois de você nascer; pelo menos essa é a história. Então, você foi colocada num tipo de orfanato.
- Um orfanato da KGB. Fui criada por lobos, de verdade.
- A certa altura, eles pararam de falar russo com você no orfanato. Na verdade, não falavam mais nada na sua presença. Você cresce em completo silêncio até mais
ou menos os 3 anos. É aí que eles começam a conversar com você em inglês.
- Inglês da KGB - explicou ela. - Passei um tempo com o sotaque de um locutor da Rádio Central de Moscou.
- Quando você conheceu os seus novos pais?
- Eu tinha uns 5 anos. Nós vivemos juntos num campo da KGB por um ano para nos conhecermos. Em seguida, nos acomodamos na Polônia. Quando a grande migração polonesa
para Londres começou, nós fomos junto. Os meus pais da KGB já falavam um inglês perfeito. Eles criaram identidades e se engajaram em espionagem de baixo nível. Sua
principal função era cuidar de mim. Nós nunca conversávamos em russo dentro de casa. Só inglês. Depois de um tempo, até esqueci que era russa. Eu lia livros para
aprender a ser uma garota inglesa adequada: Austen, Dickens, Lawrence, Forster.
- Uma janela para o amor.
- Assim como a Lucy, eu só queria um quarto com uma bela vista...
- Por que a casa em Basildon?
- Era a década de 1990 - explicou ela. - A Rússia estava falida. O SVR estava em frangalhos. Não havia orçamento para sustentar uma família de ilegais em Londres,
então nós fomos para Basildon e recebíamos seguro-desemprego. O Estado britânico do bem-estar financiava uma espiã.
- O que aconteceu com o seu pai?
- Ele contraiu a doença da ilegalidade.
- Perdeu o controle?
Ela assentiu.
- Disse ao Centro Moscovita que queria sair dali. Caso contrário, iria até o MI5. O Centro o levou de volta para a Rússia. Só Deus sabe o que fizeram com ele.
- Vysshaya mera.
- O que isso significa?
- Não importa.
Agora nada além daquela garota importava, pensou Gabriel. Ele olhou para a praça e viu Lavon batendo os pés no chão para se aquecer. Madeline também o viu.
- Quem é ele?
- Um amigo.
- Um vigia?
- O melhor.
- É bom que seja.
Ela deu as costas para Gabriel e começou a caminhar devagar ao longo do parapeito.
- Quando eles ativaram você? - perguntou Gabriel, olhando para suas costas elegantes.
- Quando eu estava na universidade. Eles queriam que eu me preparasse para uma carreira no governo. Estudei ciências políticas e serviço social, e de repente eu
tinha um emprego na sede do Partido. O pessoal do Centro Moscovita ficou bem entusiasmado. Então, Jeremy Fallon me acolheu e eles ficaram eufóricos.
- Você dormiu com ele?
Madeline se virou e sorriu pela primeira vez.
- Você já viu Jeremy Fallon?
- Vi.
- Então tenho certeza de que você não vai duvidar que eu não dormi com ele. Mas Fallon queria dormir comigo, eu alimentei suas esperanças e ele me deu tudo o que
eu queria.
- Como o quê?
- Alguns minutos sozinha com o primeiro-ministro.
- De quem foi a ideia?
- Do Centro Moscovita. Eu nunca fiz nada sem a aprovação deles.
- Eles acharam que Lancaster poderia estar vulnerável a uma abordagem?
- Eles são todos vulneráveis - retrucou Madeline. - Infelizmente para Jonathan, ele cedeu à tentação. No instante em que fez amor comigo pela primeira vez, comprometeu-se
totalmente.
- Parabéns. Você deve ter ficado muito orgulhosa de si mesma.
Ela se virou bruscamente e o encarou por um momento sem falar nada.
- Não estou orgulhosa do que fiz. Eu me afeiçoei muito a Jonathan. Nunca quis que ele sofresse qualquer mal.
- Então talvez você devesse ter dito a verdade a ele.
- Eu pensei em fazer isso.
- O que aconteceu?
- Fui tirar férias na Córsega - respondeu ela, com um sorriso triste. - E depois eu morri.
Mas a história era mais complicada do que isso, claro. A começar pela mensagem que ela recebera do Centro Moscovita, que a orientava a se encontrar com um agente
do SVR no restaurante Les Palmiers, em Calvi. O homem lhe informou que sua missão na Inglaterra tinha terminado e que ela deveria voltar para a Rússia. Seu retorno
deveria parecer um sequestro, despistando, assim, a inteligência britânica.
- Vocês discutiram - disse Gabriel.
- De forma silenciosa, mas intensa. Eu disse a ele que queria ficar na Inglaterra e viver o resto da minha vida como Madeline Hart. O agente falou que isso não seria
possível, que, se eu não fizesse exatamente o que ele tinha ordenado, o sequestro seria real.
- Então você saiu da casa de moto e sofreu um acidente.
- Por sorte, não morri. Ainda tenho as cicatrizes da colisão.
- Quanto tempo você realmente passou nas mãos dos criminosos franceses?
- Tempo demais - respondeu ela. - Mas a equipe do SVR também estava junto.
- E quanto à noite em que fui vê-la?
- Todos naquela casa eram do SVR, inclusive a garota que eles enviaram para contar o dinheiro.
- Você fez uma bela performance naquela noite, Madeline.
- Não foi tudo uma performance. - Ela fez uma pausa. - Eu queria que você me resgatasse.
- Eu tentei, mas o jogo estava armado contra mim.
- Deve ter sido terrível.
- Especialmente para a garota que eles enfiaram no porta-malas daquele carro.
Madeline ficou calada.
- Quem era ela? - perguntou Gabriel.
- Alguma garota que arrancaram das ruas de Moscou. Espalharam o DNA dela no meu apartamento em Londres, e aí... - Sua voz se perdeu.
- Acenderam um fósforo.
A expressão dela ficou sombria. Ela se virou de costas e olhou para a cidade escura e gélida.
- Não é tão mal aqui, sabe? Me deram um apartamento adorável. Tem uma boa vista. Posso passar o resto da vida aqui e fingir que estou em Roma, Veneza ou Paris.
- Ou em Florença.
- Sim, Florença - concordou ela. - Como Lucy e Charlotte nesse livro que você trouxe.
- É isso que você quer?
Ela voltou a encará-lo.
- Que escolha eu tenho?
- Você pode vir comigo.
- Não, não posso - replicou ela, balançando a cabeça devagar. - Você vai acabar morto. Eu também.
- Se eu consegui encontrá-la em São Petersburgo, Madeline, consigo tirar você daqui.
- Como você me encontrou? - insistiu ela.
- Ainda não posso dizer.
- Quem é você?
- Também não posso dizer.
- Para onde você vai me levar?
- Para casa - afirmou ele com uma parada no caminho.
Ela vivia num grande prédio antigo do outro lado do rio Neva com vista para o Palácio de Inverno. Lavon acompanhou-a em segredo até seu apartamento. Já Gabriel deu
entrada no Astoria Hotel e, já no quarto, fez um relatório atualizado para o King Saul Boulevard. Uma cópia do documento foi entregue a um Uzi Navot exausto às 17h47,
no horário de Tel Aviv. Ele o leu em silêncio, então olhou para Shamron.
- O que foi, Uzi?
- Ele quer mudar a cidade de partida de Moscou para São Petersburgo.
- Por quê?
- Você não acreditaria se eu dissesse.
Navot passou o relatório para Shamron, que o leu através de uma nuvem de fumaça. Ao término, Navot recebeu uma segunda atualização.
- Ele está prestes a nos enviar um vídeo.
- Do quê?
Antes que Navot pudesse responder, o rosto inchado de Zhirov apareceu num dos monitores.
- Parece que ele caiu feio - comentou Shamron.
- Várias vezes.
- O que ele está dizendo?
Navot instruiu os técnicos a aumentar o volume.
“Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial
dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.”
“Epara onde vai o resto?”
“Use a sua imaginação.”
“Para o bolso do presidente russo?”
“Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB.”
Shamron sorriu.
- Isso é que eu chamo de carta na manga.
- Eu diria que três cartas na manga.
- Que horas é o próximo voo da El Al saindo de São Petersburgo?
Navot digitou no teclado à sua frente.
- O voo seis-dois-cinco sai do Ben Gurion à uma e dez da madrugada e aterrissa em São Petersburgo às oito da manhã. A tripulação passa o resto do dia descansando
num hotel no centro da cidade. Eles trazem o avião de volta para Tel Aviv na mesma noite.
- Ligue para o presidente da El Al - pediu Shamron. - Diga que precisamos desse avião emprestado.
Navot pegou o telefone. Shamron continuou a observar o monitor.
“Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.”
“Eu matei Madeline Hart.”
“Como?"
“Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.”
“Por quê? Por que você a matou?”
“Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra deforma alguma.“
56
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
Em tempos como aqueles, pensou o coronel Leonid Milchenko, a imensidão da Rússia era mais uma maldição do que uma bênção. Ele estava observando um mapa em seu escritório
na Praça Lubyanka, ao lado de Vadim Strelkin. Tinha acabado de voltar do Kremlin, onde o novo czar lhes dera ordens para não poupar esforços na busca pelos três
homens desaparecidos. O presidente não se mostrou disposto a explicar por que isso era tão importante, falando apenas que dizia respeito aos interesses vitais da
federação e de seus laços com o Reino Unido. Foi Strelkin, no caminho de volta para Lubyanka, que lembrou a Milchenko que a Volgatek tinha acabado de obter direitos
lucrativos para perfurar no mar do Norte.
- Você acha que a Volgatek fez algo ilegal para conseguir a permissão? - perguntou Milchenko, ainda com os olhos no mapa.
- Eu não gostaria de julgar a situação antecipadamente sem conhecer todos os fatos - respondeu Strelkin, cauteloso.
- Nós trabalhamos para a FSB, Vadim. Nunca nos preocupamos com fatos.
- Você sabe como eles chamam a Volgatek, não sabe, chefe?
- KGB Óleo e Gás.
Strelkin ficou calado.
- Digamos que a Volgatek não tenha jogado limpo para obter a licença - começou Milchenko.
- Eles raramente jogam limpo. Pelo menos é isso que se ouve.
- Digamos que tenham subornado alguém.
- Ou pior.
- E digamos que a inteligência britânica reagiu tentando inserir um agente na empresa.
- Digamos - repetiu Strelkin, assentindo.
- Digamos que os britânicos estivessem escutando quando Zhirov colocou o homem deles no carro e começou a enchê-lo de perguntas.
- Provavelmente estavam.
- E que acreditaram que seu homem estivesse em perigo.
- Ele estava.
- E que reagiram retirando o seu homem.
- Com bastante violência.
- E que levaram Zhirov e seu motorista junto.
- Provavelmente não tiveram escolha.
Milchenko caiu num silêncio pensativo.
- Então onde está Zhirov agora?
- Ele vai acabar aparecendo.
- Vivo ou morto?
- Os britânicos não gostam do mokroye delo.
- Onde foi que você ouviu isso? - Milchenko se aproximou do mapa. - Se você fosse britânico, o que tentaria fazer agora?
- Tirar o meu homem do país o mais rápido possível.
- Como você faria isso?
- Imagino que pudesse levá-lo de carro até os caminhos que cruzam a fronteira norte, só que o caminho mais rápido é pelo Sheremetyevo.
- Ele vai ter um passaporte diferente.
- E um novo rosto - acrescentou Strelkin.
- Vá para o Ritz. Pegue algumas fotos dele com a segurança do hotel. E leve-as para todos os agentes de controle alfandegário e membros das milícias no Sheremetyevo.
Strelkin se dirigiu para a porta.
- Mais uma coisa, Vadim.
Ele se deteve.
- Faça o mesmo em São Petersburgo. Só para garantir.
* * *
Naquele instante, o homem em questão estava descansando confortavelmente numa dacha isolada na Tver Oblast, junto aos outros membros da equipe israelense. Pouco
depois das cinco horas da madrugada, após mais uma noite insone, eles saíram da casa em grupos de dois e três e foram para a estação de trem em Okulovka - todos
menos Christopher Keller, que ficou vigiando Zhirov e o motorista.
O trem de Okulovka saiu atrasado, ao contrário do voo 625 da El Al. O avião decolou do Ben Gurion pontualmente à 1h1O e aterrissou em São Petersburgo dois minutos
antes do previsto, às 8h03. A tripulação, com doze pessoas, ficou dentro da aeronave até todos os passageiros saírem. Então, depois de passarem pela alfândega, subiram
numa van sem identificação, de serviços terrestres da El Al, e percorreram o trajeto de vinte minutos até o Astoria Hotel, onde tinham quartos reservados para o
resto do dia. Um dos comissários de bordo era uma mulher alta de cabelos escuros e olhos cor de caramelo. Após deixar sua pequena mala com rodinhas ao pé da cama,
ela foi até o fim do corredor e, ignorando o aviso de NÃO PERTURBE pendurado na maçaneta, deu uma batida suave. Como não recebeu resposta, bateu de novo. Dessa vez,
a porta se entreabriu alguns centímetros, apenas o suficiente para deixá-la passar, e ela entrou.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou Gabriel.
Chiara ergueu os olhos para o teto, como se quisesse lembrar ao marido, o futuro diretor da inteligência israelense, que eles estavam num quarto de hotel russo,
que provavelmente fora grampeado. Gabriel fez um gesto para indicar que o quarto estava limpo e, com as mãos nos quadris, repetiu a pergunta, estreitando os olhos
verdes. Chiara não o via tão bravo havia muito tempo.
- Como fui boba... Achei que você ficaria feliz em me ver.
- Como você conseguiu autorização para vir?
- Nós precisávamos de mulheres para a tripulação. Eu me voluntariei.
- E Uzi não podia achar nenhuma outra mulher além da minha esposa?
- Na verdade, Uzi foi contra a ideia.
- Então como você entrou na equipe?
- Eu apelei para Shamron - revelou ela. - Falei que queria participar da operação e que, se ele não permitisse, não daria o que ele queria.
- Eu?
Chiara sorriu.
- Garota esperta.
- Aprendi com o melhor.
- Achei que você tivesse dito que não queria vir para a Rússia. Que não aguentaria a pressão.
- Mudei de ideia.
- Por quê?
- Porque eu queria dividir isto com você. - Chiara foi até a janela e contemplou a penumbra da Praça de Santo Isaac. - Alguma hora fica claro por aqui?
- É o máximo de luz possível.
Chiara fechou a persiana e se virou. A saia azul e a blusa branca frisada a deixavam irresistível. Gabriel não estava mais bravo por ela ter ido à Rússia contra
a sua vontade. Na verdade, ficou feliz em ter a companhia da esposa. Aquilo tornaria a espera das próximas horas muito mais tolerável.
- Como ela é? - perguntou Chiara.
- Madeline?
- É assim que a chamamos?
- É o único nome que ela conhece - disse Gabriel. - Ela foi...
- O quê?
- Criada por lobos.
- Talvez ela também seja uma loba.
- Ela não é.
- Tem certeza disso?
- Tenho, Chiara.
- Porque ela já enganou você uma vez.
Gabriel ficou em silêncio.
- Desculpe, Gabriel, mas você deve ter considerado a possibilidade de ela ainda ser leal ao seu serviço.
- Devo ter - falou Gabriel, incapaz de conter a irritação na voz. - Mas, se ela estiver limpa quando sair do apartamento esta tarde, vou trazê-la para cá. E depois
vou levá-la para casa.
- Que fica onde?
- Inglaterra.
- Ela vai causar bastante comoção.
- Bastante.
- O que vai fazer com ela?
- Vou usá-la para retribuir uma pequena dívida. E depois vou deixá-la nas mãos capazes de Graham Seymour.
- Pobre Graham.
Chiara sentou na beira da cama e tirou os sapatos.
- Como foi o voo? - perguntou Gabriel.
- Consegui não ferir nenhum dos passageiros entregando as refeições.
- Bom trabalho.
- Tinha um bebê na primeira classe que chorou o trecho inteiro de Ankara a Minsk. Alguns passageiros ficaram bem irritados. A mãe estava envergonhada. - Chiara fez
uma pausa. - E eu só consegui pensar que ela era a mulher mais sortuda do mundo.
- Talvez você não devesse ter vindo - falou Gabriel depois de um instante.
- Eu tinha que vir. Vou apreciar muito tudo isso.
Ela tirou a saia, esticando-a com cuidado na cama, e começou a desabotoar a blusa.
- O que você está fazendo? - questionou Gabriel.
- O que lhe parece?
- Parece que uma comissária de bordo muito bonita está se despindo no meu quarto.
- Preciso descansar um pouco. Você também - acrescentou ela ao tirar a blusa. - Não me leve a mal, Gabriel, mas você está com uma aparência terrível. Durma por uma
ou duas horas. Vai se sentir melhor.
- Eu não conseguiria dormir agora.
- O que você vai fazer? Ficar na frente da janela o dia todo, morrendo de preocupação?
- Esse era o meu plano.
- Quando você for chefe, vai ter bastante tempo para fazer isso. Venha para a cama. Prometo que não vou machucá-lo.
Gabriel acabou cedendo: tirou os sapatos e a calça jeans e engatinhou pela cama até a esposa. O corpo de Chiara estava ardente, como se febril. Ao beijar os seus
lábios, ele sentiu gosto de mel. Ela passou o dedo pelo nariz do marido.
- Chiara...
- O que foi, querido? - perguntou ela, beijando-o de novo.
- Estou em serviço.
- Você está sempre em serviço. E vai continuar assim pelo resto da vida. Chiara o beijou novamente. Depois no pescoço. No peito.
- Acho que ela tinha razão desde o começo - comentou ela.
- Quem? - murmurou Gabriel.
- Aquela mulher idosa da Córsega. Ela disse que você saberia a verdade
quando Madeline morresse. Em certo sentido, ela morreu naquela manhã na França. E agora você sabe a verdade.
- Mas ela se enganou com relação a uma coisa. Ela me avisou para não ir à cidade dos hereges. Disse que eu morreria lá.
Chiara parou de beijá-lo e olhou bem nos seus olhos.
- Você não me disse o contrário?
- Disse.
- Então você mentiu para mim.
- Desculpe, Chiara. Eu não deveria ter feito isso.
Ela o beijou de novo.
- Eu sabia que você estava mentindo.
- Sério?
- Eu sempre sei quando você está mentindo, Gabriel.
- Mas eu sou um profissional.
- Não quando se trata de mim. - Ela tirou a camisa de Gabriel e montou em seu colo. - Ainda é uma possibilidade, sabe?
- O quê?
- Você morrer na cidade dos hereges.
- Ela estava se referindo a Moscou. Acho que estou seguro agora.
- Na verdade - replicou ela, passando as mãos pela barriga dele -, você está correndo um grande perigo.
- Estou percebendo.
Chiara o recebeu no calor macio de seu corpo. Gabriel já não estava mais na Rússia, mas no quarto em Veneza onde os dois tinham feito amor pela primeira vez, numa
cama de lençóis brancos. Ele estava seguro. Ela também.
- Talvez Madeline não venha - opinou depois Chiara, quando Gabriel começava a adormecer.
- Ela vai vir. E vamos levá-la para casa.
- Eu também quero ir para casa.
- Em breve...
- Alguma hora vai ficar claro lá fora?
- Não, Chiara. Não hoje.
57
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Eles já tinham feito aquilo dezenas de vezes, em dezenas de campos de batalha secretos. Portanto, bastaram alguns minutos debruçados sobre um mapa de rua no quarto
de Gabriel no Astoria para elaborar o plano: a rota, os postos de observação fixa, os pontos de retirada, os paraquedas. Gabriel se referiu ao plano como a última
chance do Centro Moscovita. Jogariam Madeline como isca, fazendo-a percorrer as ruas de São Petersburgo uma última vez, para garantir que estava limpa. E então iriam
recolher a linha e fazer a garota desaparecer. De novo.
Foi assim que, pouco depois das duas horas daquela tarde sombria de São Petersburgo, seis agentes do serviço secreto israelense saíram do Astoria e passaram pelos
fascinantes palácios e igrejas até os seus pontos de espera. Lavon faria o maior percurso, pois deveria estar na frente do prédio de Madeline quando ela saísse às
14h52 - o horário exato em que deveria aparecer se tivesse de fato intenção de fugir. Ela atravessou a Ponte do Palácio, entrou no Museu Hermitage pelo portão que
dava para o cais e seguiu para a Sala de Monet, onde se sentou em seu banco de sempre às 15h07. Dois minutos depois, Lavon se juntou a Madeline.
- Até aqui tudo bem - disse ele baixinho em inglês. - Agora escute com atenção e faça exatamente o que eu digo.
Eles a conduziram pela Praça do Palácio, passando pelo Arco do Triunfo e seguindo para a Nevsky Prospekt. Ela tomou café e comeu um pedaço de bolo russo no Café
Literário, caminhou pelas colunatas romanas da Catedral de Nossa Senhora de Kazan e fez algumas compras na Zara. Em cada ponto ao longo da rota, ela passava por
um membro da equipe. E todos relataram que não havia nenhum sinal de oposição.
Ao sair da loja de roupas, ela foi em direção ao rio Moyka e seguiu pelos caminhos de pedra até a Praça de Santo Isaac, onde Dina esperava, fingindo falar ao telefone.
Se ela estivesse segurando o celular contra o ouvido esquerdo, Madeline deveria continuar andando. Se o pressionasse contra o direito, indicaria que era seguro entrar
no saguão do Hotel Astoria - foi o que fez, às 15h48.
Lavon entrou com ela no elevador. Madeline ficou olhando a neve em suas botas. Ele observou o teto ornamentado. Quando chegaram ruidosamente ao terceiro andar, estendeu
o braço com formalidade e disse: “Você primeiro.” Madeline passou por ele sem dizer nada e seguiu para o quarto ao fim do corredor. Uma das portas se abriu quando
ela se aproximou. Gabriel a puxou para dentro.
- Quem é você? - perguntou ela.
- Não posso dizer.
- Para onde estou indo?
- Você saberá em breve.
Dois minutos depois, a atualização de progresso piscou nos monitores do Centro de Operações do King Saul Boulevard. Navot a encarou por um instante, quase incrédulo.
Em seguida, olhou para Shamron.
- Eles realmente conseguiram, Ari. Estão com ela.
- Isso é bom - comentou Shamron, sem alegria. - Agora vejamos se conseguem ficar com ela.
Ele acendeu outro cigarro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Escureceram o cabelo e as sobrancelhas de Madeline e deram ao seu rosto um bronzeado mediterrâneo. Mordecai tirou uma foto dela e colocou-a no passaporte que Madeline
usaria para sair do país. Por enquanto, ela seria liana Shavit. Tinha nascido em outubro de 1985 e vivia no subúrbio de Tel Aviv, em Rishon LeZion, que por acaso
era um dos primeiros assentamentos judeus da Palestina. Antes de se juntar à El Al, ela servira nas Forças Armadas de Israel. Era casada, mas não tinha filhos. Seu
irmão morrera na última guerra do Líbano. A irmã fora assassinada por um homem-bomba do Hamas durante a Segunda Intifada. Essa não era uma vida totalmente inventada,
disse-lhe Gabriel. Era uma vida israelense. E por algumas horas seria a vida de Madeline.
Se havia um defeito em sua armadura, era a inabilidade de falar mais do que algumas poucas palavras hebraicas aprendidas às pressas. Essa fraqueza foi amenizada
até certo ponto porque o seu inglês não tinha qualquer traço de sotaque russo e a tripulação passaria toda junta pelo controle alfandegário. Provavelmente seria
uma formalidade vazia, pouco mais do que uma olhada na fotografia e um aceno para seguir em frente. Gabriel estava bastante confiante de que Madeline resistiria
ao impulso de responder a uma pergunta feita em russo. Ela passara a vida inteira fazendo isso. Só precisava contar mais uma mentira, fazer uma última performance.
E, então, ficaria livre deles para sempre.
Pouco depois das cinco da tarde, as garotas tiraram as últimas roupas russas de Madeline, vestiram-na com o uniforme impecável da El Al e pentearam seus novos cabelos
pretos. Em seguida, a apresentaram para Gabriel, que a avaliou por um tempo, como se ela fosse uma pintura num cavalete.
- Qual é o seu nome? - perguntou secamente.
- Ilana Shavit.
- Qual é a sua data de nascimento?
- 12 de outubro de 1985.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- O que isso significa em hebraico?
- “O Primeiro em Sião”.
- Qual era o nome do seu irmão?
- Moshe.
- Onde ele foi morto?
- No Líbano.
- Qual era o nome da sua irmã?
- Dalia.
- Onde ela foi morta?
- Na discoteca Dolphinarium.
- Quantas outras pessoas foram mortas naquele dia?
- Vinte.
- Qual é o seu nome?
- Ilana Shavit.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- Qual rua?
- Sokolow.
Gabriel não tinha mais perguntas. Ele colocou uma das mãos no queixo e inclinou a cabeça para o lado.
- E então? - perguntou ela.
- Partimos em cinco minutos.
Lavon estava tomando café no saguão mal iluminado. Gabriel se sentou ao lado. - Estou com uma sensação estranha - disse Lavon.
- Muito estranha?
- Dois na frente da porta, dois no bar e um à toa perto do balcão do concierge.
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - concordou Lavon, inseguro.
- Podem estar vigiando um hóspede.
- É disso que tenho medo.
- Outro hóspede, Eli.
Lavon não respondeu.
- Tem certeza de que ela estava limpa quando a trouxemos?
- Impecável.
- Então ela está limpa agora - afirmou Gabriel.
- Por que o saguão está cheio de agentes da FSB?
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - repetiu Lavon.
Gabriel olhou pela janela, para a van da El Al parada na frente do hotel.
- O que vamos fazer? - perguntou Lavon.
- Vamos seguir o plano.
- Você vai contar a ela?
- Sem chance.
Lavon tomou um gole do café.
- Boa ideia.
Três longos minutos se passaram até os primeiros membros da tripulação da El Al saírem dos elevadores para o saguão: duas jovens bem-arrumadas, que eram mesmo funcionárias
da empresa aérea, ao contrário das quatro mulheres e dos dois homens que vieram atrás, todos agentes de campo veteranos do Escritório. Então, surgiram o capitão
e o engenheiro de voo, seguidos um instante depois por uma versão muito bem disfarçada de Mikhail, que posava de primeiro oficial. O homem da FSB que estava perto
do balcão do concierge se voltou para encarar descaradamente o traseiro de uma das falsas comissárias de voo. Observando a cena do outro lado do saguão, Gabriel
se permitiu um breve sorriso. Se o agente tinha tempo para dar uma olhada nos dotes israelenses, havia grandes chances de que não estivesse à procura de uma russa
ilegal desaparecida.
Enfim, às 17hl0, Chiara e Madeline apareceram puxando suas malas de rodinhas da El Al. A esposa estava contando uma história sobre um voo recente num hebraico rápido
e a garota inglesa ria como se fosse a coisa mais divertida que tivesse ouvido em muito tempo. Elas se juntaram aos outros membros da tripulação, saíram do hotel
e subiram na van. As portas se fecharam. E eles partiram.
- O que você acha? - perguntou Gabriel.
- Acho que ela é muito boa - respondeu Lavon.
- Estamos limpos?
- Impecáveis.
Gabriel se levantou, pegou sua bolsa de viagem e saiu para a noite sem fim.
Um táxi aguardava na frente do hotel. Ele levou Gabriel em alta velocidade pela última prospekt. Passou por uma estátua desmedida de Lênin conduzindo seu povo por
setenta anos de estagnação e assassinatos; pelos monumentos a uma guerra da qual ninguém podia se lembrar; e quilômetro após quilômetro de prédios em ruínas. Por
fim, chegou ao terminal internacional do Aeroporto Pulkovo. Ele fez check-in para o voo com destino a Tel Aviv e não teve problemas com o controle alfandegário,
identificando-se como Jonathan Albright, da Markham Capital Services. Por fim, andou até o portão de embarque muito bem fortificado da El Al. Os russos alegavam
que as barreiras serviam para a segurança dos passageiros que seguiam para Israel. Mesmo assim, Gabriel teve a incômoda sensação de estar entrando no último gueto
da Europa.
Ele se acomodou num lugar vazio no canto do saguão, perto de uma grande família haredim. Ninguém falava russo, apenas hebraico. Se não fosse pelo disfarce, ele certamente
teria sido reconhecido. Mas agora Gabriel estava sentado em meio ao seu povo como um estranho, seu servo secreto, seu anjo da guarda invisível. Em breve, seria o
diretor de seu afamado serviço de inteligência. Seria mesmo? Sem dúvida essa era uma bela forma de encerrar a carreira. Obtivera provas de que uma petrolífera possuída
e administrada pelo SVR tinha desestabilizado o governo do Reino Unido para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte - tudo a pedido do próprio presidente russo.
Não haveria mais volta depois disso. Nada mais de conversas alegres sobre a Rússia como amiga do Ocidente. Ele provaria de uma vez por todas que os ex-agentes da
KGB, atuais administradores do país, eram implacáveis, autoritários e indignos de confiança. Que eles deveriam ser marginalizados e contidos, como nos velhos tempos
da Guerra Fria.
Mas de nada adiantaria se ele perdesse a garota. Gabriel consultou o relógio e, ao erguer os olhos, viu Yossi e Rimona adentrando o saguão de embarque. Em seguida,
vieram Mordecai e Oded. Então, Yaakov e Dina. E, por fim, Lavon, com cara de quem tinha ido parar no aeroporto por engano. Ele perambulou um pouco pelo saguão, inspecionando
cada assento vazio com o cuidado de um homem que sofre de fobia de germes, antes de sentar-se em frente a Gabriel. Eles nem trocaram olhares: eram duas sentinelas
numa vigília sem fim. Agora não havia nada para fazer além de esperar. A espera, pensou Gabriel. Sempre a espera. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer
do sol depois de uma noite de matança. E esperando sua esposa carregar uma garota morta de volta para a terra dos vivos.
Ele olhou para o relógio novamente, e depois para Lavon.
- Onde elas estão? - perguntou.
Lavon respondeu sem baixar o jornal:
- Já passaram pela alfândega. Os funcionários só estão dando uma olhada nas bagagens.
- Por quê?
- Como eu poderia saber?
- Me diga que não há nada de errado com a bagagem.
- A bagagem está certinha.
- Então por que estão verificando?
- Talvez estejam entediados. Ou gostem de tocar em roupas íntimas femininas. Eles são russos, pelo amor de Deus.
- Quanto tempo, Eli?
- Dois minutos, talvez menos.
Os dois minutos de Eli passaram sem qualquer sinal delas. Seguidos por um terceiro. E um interminável quarto. Gabriel encarava o relógio, o carpete imundo, a criança
ao seu lado - tudo menos a entrada do saguão de embarque. Então, enfim, ele as vislumbrou com o canto do olho, um lampejo de azul e branco, como uma bandeira sendo
acenada. Mikhail caminhava ao lado do capitão. Madeline estava com um sorriso nervoso e parecia estar segurando o braço de Chiara para sentir-se mais segura. Ou
será que era o contrário? Gabriel não pôde ter certeza. Ele viu-os virar ao mesmo tempo em direção ao portão e desaparecer pela passarela. Em seguida, olhou para
Lavon.
- Eu falei que ia ficar tudo bem - disse ele.
- Você nem ficou preocupado?
- Indescritivelmente aterrorizado.
- Por que não me disse?
Lavon não respondeu. Ele só ficou sentado lendo o jornal até o voo ser chamado. Em seguida, levantou-se e seguiu Gabriel até o avião. Deu uma última olhada em busca
de vigilância inimiga, só para garantir.
Ela foi orientada a sentar-se na terceira fila, ao lado da janela. Estava olhando para o aeroporto escuro e malcuidado de Pulkovo, seu último vislumbre de uma Rússia
que nunca chegara a conhecer. Vestida com o uniforme azul e branco, Madeline estava parecida com uma estudante inglesa. Ela olhou para o lado quando Gabriel se acomodou
no assento, mas logo virou o rosto. Ele disparou uma última mensagem para o King Saul Boulevard pelo BlackBerry criptografado. Em seguida, observou a esposa preparar
a cabine para a decolagem. Os olhos de Madeline reluziram. Quando as rodas se ergueram do solo russo, uma lágrima escorreu por sua bochecha. Ela segurou na mão de
Gabriel e a apertou com força.
- Nem sei como agradecer - disse, com seu sotaque britânico preciso.
- Então não agradeça.
- Quanto tempo dura o voo?
- Cinco horas.
- Vai estar quente em Israel?
- Só no sul.
- Você vai me levar lá?
- Vou levá-la aonde você quiser ir.
Chiara apareceu e entregou taças de champanhe para os dois. Gabriel ergueu a sua na direção de Madeline num brinde silencioso antes de colocá-la no apoio de centro,
sem beber nada.
- Você não gosta de champanhe? - perguntou ela.
- Me dá uma dor de cabeça terrível.
- Também me dá.
Madeline tomou uns goles e ficou olhando pela janela para a escuridão abaixo.
- Como você me encontrou lá embaixo?
- Isso não é importante.
- Algum dia você vai me dizer quem é?
- Você vai saber em breve.
Parte 3
O ESCÂNDALO
58
LONDRES - JERUSALÉM
Na manhã seguinte, ocorreriam as eleições na Inglaterra. Jonathan Lancaster votou cedo, acompanhado da esposa, Diana, e dos três filhos fotogênicos, antes de voltar
para a Downing Street e esperar o veredicto. Não houve muito suspense, pois uma pesquisa divulgada na noite anterior previra que o partido de Lancaster quase certamente
aumentaria sua maioria parlamentar em vários assentos. No meio da tarde, Whitehall estava tomada por rumores de um massacre eleitoral e, no começo da noite, o champanhe
já fluía pela sede do Partido em Millbank. Mesmo assim, o primeiro-ministro pareceu estranhamente reservado quando subiu ao palco do Royal Festival Hall para fazer
o discurso da vitória. Entre os repórteres políticos que tomaram nota de sua atitude séria estava Samantha Cooke, do Daily Telegraph. Lancaster, ela escreveu, parecia
saber que o segundo mandato não correria tão bem quanto o primeiro. Mas, por outro lado, acrescentou ela, era isso que costumava acontecer com segundos mandatos.
Os problemas de Lancaster começaram mais adiante naquela semana, quando ele deu início ao tradicional processo de remanejamento de gabinete e equipe pessoal. De
acordo com o previsto, Jeremy Fallon, agora membro do parlamento de Bristol, foi designado ministro do Tesouro, logo também seria seu vizinho na Downing Street.
O homem que já fora descrito pela imprensa como o cérebro de Lancaster agora era considerado por Whitehall como o futuro primeiro-ministro. Fallon rapidamente reuniu
os membros remanescentes da antiga equipe - pelo menos os que ainda suportavam trabalhar para ele - e usou sua influência dentro da sede do Partido para preencher
posições políticas essenciais. O palco estava preparado, escreveu Samantha Cooke, para uma batalha por poder de proporções shakespearianas. Em breve, Fallon bateria
à porta do número 10 da Downing Street e pediria as chaves. Ele tinha criado Lancaster. E, certamente, tentaria destruí-lo.
Em nenhum momento durante as manobras pós-eleição, a imprensa mencionou o nome de Madeline Hart, nem mesmo quando o presidente do Partido decidiu que já era hora
de preencher a vaga deixada por ela. Um subordinado que trabalhava na sede assumiu a tarefa mórbida de remover as posses restantes de Madeline de seu antigo cubículo.
Não havia muita coisa: alguns arquivos empoeirados, um calendário, canetas e clipes de papel, um exemplar já bem gasto de Orgulho e preconceito que ela costumava
ler sempre que tinha um momento de folga. O homem entregou os itens ao presidente do Partido, que mandou sua secretária se livrar discretamente do material, com
tanta dignidade quanto possível. E, assim, os últimos traços de uma vida inacabada foram expurgados. Madeline Hart enfim tinha partido. Ao menos era o que eles pensavam.
No começo, ela teve a impressão de que havia trocado um tipo de cativeiro por outro. Dessa vez, o apartamento que servia de cela dava vista não para o rio Neva,
em São Petersburgo, mas para o mar Mediterrâneo, em Netanya. Para a administração do prédio, ela estava se recuperando de uma longa doença. A verdade não era muito
diferente.
Madeline não saiu do apartamento por uma semana. Seus dias não tinham nenhuma rotina discernível. Ela dormia tarde, observava o mar, relia seus romances favoritos,
tudo sob a observação da equipe de segurança do Escritório. Um médico ia vê-la uma vez por dia. No sétimo dia, quando ele lhe perguntou como estava, ela respondeu
que sofria de tédio terminal.
- Melhor morrer de tédio do que de veneno russo - brincou o doutor.
- Não tenho tanta certeza - respondeu, com seu inglês arrastado.
O médico prometeu que levaria o caso de seu confinamento à autoridade mais alta. No oitavo dia, o alto escalão permitiu que Madeline fizesse uma breve caminhada
pelo trecho frio e ventoso de areia na frente do prédio onde residia. No dia seguinte, pôde ir um pouco mais longe. E, no décimo dia, caminhou quase até Tel Aviv
antes de seus cuidadores a colocarem com gentileza no banco traseiro de um carro do Escritório e a levarem de volta para o apartamento. Ao entrar, encontrou uma
réplica exata de Lagoa em Montgeron pendurada na parede da sala de estar - exata, com exceção da assinatura do artista que a pintara. Ele ligou alguns minutos depois
e se apresentou adequadamente pela primeira vez.
- O famoso Gabriel Allon? - perguntou ela.
- Receio que sim.
- E quem foi a mulher que me ajudou a subir no avião?
- Você saberá em breve.
Gabriel e Chiara chegaram em Netanya no horário de almoço do dia seguinte, depois que Madeline voltou da caminhada matinal pela praia. Eles a levaram ao
Cesarea para almoçar e passearam pelas ruínas dos romanos e das cruzadas. Em seguida, subiram o litoral, até perto do Líbano, para visitar as cavernas marinhas de
Rosh HaNikra. De lá, seguiram para o leste em direção à fronteira disputada, passando pelos postos de escuta das Forças Armadas de Israel e pelas pequenas cidades
que tinham sido despovoadas após a última guerra contra o Hezbollah, até que chegaram em Kiryat Shmona. Gabriel reservara dois quartos na pousada de um velho kibutz.
Os aposentos de Madeline tinham uma bela vista da Alta Galileia. Um guarda do Escritório passou a noite na frente da porta dela, enquanto outro ficou sentado na
varanda com jardim.
No dia seguinte, depois de tomar o café da manhã no salão de refeições, foram de carro até as colinas de Golã. As Forças Armadas os aguardavam. Um jovem coronel
levou o grupo até um ponto na fronteira com a Síria, onde era possível ouvir os bombardeios do conflito entre o regime e os rebeldes. Em seguida, eles fizeram uma
breve visita à Fortaleza de Nimrod, o antigo bastião dos cruzados com vista para a cidade judaica de Safed. Eles almoçaram no bairro dos artistas, na casa de uma
mulher chamada Tziona Levin. Embora Gabriel a chamasse de doda - tia -, na verdade ela estava mais para irmã. A mulher não demonstrou surpresa quando ele e Chiara
apareceram à sua porta acompanhados pela bela jovem que o mundo inteiro pensava estar morta. Ela sabia que Gabriel tinha o hábito de voltar para Israel com objetos
perdidos.
- Como está o trabalho? - perguntou, enquanto tomavam café em seu jardim banhado pelo sol.
- Melhor do que nunca - respondeu Gabriel, dando uma olhada em Madeline.
- Eu estava falando da sua arte.
- Acabei de concluir a restauração de um Bassano adorável.
- Você devia focar no seu próprio trabalho - falou ela, reprovadora.
- É o que estou fazendo - disse vagamente, e Tziona deixou a questão de lado.
Quando terminaram o café, ela os levou para o estúdio e mostrou seus novos quadros. Então, a pedido de Gabriel, destrancou um cômodo. Dentro, havia centenas de pinturas
e esboços feitos pela mãe de Allon, inclusive várias obras retratando um homem alto vestido com o uniforme da SS.
- Achei que tivesse dito para queimar estes - repreendeu Gabriel.
- Você disse - admitiu Tziona mas não consegui.
- Quem é ele? - perguntou Madeline, encarando as pinturas.
- Seu nome era Erich Radek - respondeu Gabriel. - Ele coordenou um programa nazista secreto chamado Aktion 1005. A meta era ocultar todas as evidências de que o
Holocausto tinha ocorrido.
- Por que sua mãe o pintou?
- Ele quase a matou na marcha da morte de Auschwitz em janeiro de 1945.
Madeline ergueu uma sobrancelha, intrigada.
- Radek não foi capturado em Viena alguns anos atrás e trazido a Israel para julgamento?
- Para seu governo, ele se voluntariou para vir a Israel.
- Sim, claro - disse Madeline, sem convicção. - E eu fui sequestrada por criminosos franceses de Marselha.
No dia seguinte, eles dirigiram até Eilat. O Escritório tinha alugado uma casa particular ampla perto da fronteira com a Jordânia. Madeline passou os dias deitada
ao lado da piscina, lendo e relendo uma pilha de romances ingleses clássicos. Gabriel percebeu que a garota estava se preparando para voltar ao país que não era
realmente dela. Madeline não era ninguém, pensou Gabriel. Não era uma pessoa real. E, não pela primeira vez, perguntou-se se seria melhor para ela morar em Israel,
e não no Reino Unido. Foi o que lhe indagou na última noite de estadia no sul. Eles estavam sentados num terreno rochoso em Neguev, vendo o sol se pôr nas terras
ermas do Sinai.
- É tentador - respondeu ela.
- Mas...?
- Não é a minha casa. Pareceria com a Rússia. Eu seria uma estranha aqui.
- Vai ser difícil, Madeline. Muito mais difícil do que você pensa. Os ingleses vão pressioná-la até terem certeza da sua lealdade. E vão trancá-la em algum lugar
que os russos nunca vão conseguir encontrar. Você nunca vai poder retomar a antiga vida. Nunca. Vai ser horrível.
- Eu sei - disse ela, distante.
Na verdade não sabia, pensou Gabriel, mas talvez fosse melhor desse jeito. O sol pairava logo acima do horizonte. De repente, o ar do deserto esfriou o suficiente
para fazê-la estremecer.
- Acha que devemos voltar? - perguntou ele.
- Ainda não.
Gabriel tirou sua jaqueta e a colocou por cima dos ombros dela.
- Vou dizer algo que provavelmente não deveria: em breve serei o diretor da inteligência israelense.
- Parabéns.
- “Meus pêsames” seria uma resposta mais adequada. Mas isso significa que vou ter o poder de cuidar de você. Vou dar um bom lugar para você viver. Uma família. Disfuncional,
é verdade, mas a única família que eu tenho. Vamos lhe dar um país. Um lar. É isso que fazemos em Israel: damos um lar às pessoas.
- Eu já tenho um lar.
Ela não disse mais nada. O sol mergulhou no horizonte e ela sumiu em meio à escuridão.
- Fique - pediu Gabriel. - Fique aqui conosco.
- Eu não posso ficar. Eu sou Madeline. Sou uma garota inglesa.
Na noite seguinte, ocorreria a festa de abertura da exposição dos Pilares de Salomão no Museu de Israel, em Jerusalém. O presidente e o primeiro-ministro estavam
na lista de convidados, assim como os membros do gabinete, a maior parte do Knesset e inúmeros escritores, artistas e celebridades. Chiara foi uma das oradoras da
cerimônia, realizada no recém-construído saguão de exibição. Ela não mencionou o fato de que seu marido, o lendário espião Gabriel Allon, tinha descoberto os pilares,
nem que a linda jovem de cabelos escuros ao seu lado era, na verdade, uma garota inglesa morta chamada Madeline Hart. Os dois omitidos ficaram só alguns minutos
no coquetel, então foram de carro ao outro lado de Jerusalém, até um restaurante tranquilo no velho campus da Academia Bezalel de Artes e Design. Em seguida, enquanto
caminhavam pela rua Ben Yehuda, Gabriel perguntou novamente se Madeline queria ficar em Israel, mas a resposta foi a mesma. Ela passou a última noite na cidade no
quarto de hóspedes do apartamento de Gabriel, na rua Narkiss, o quarto que fora idealizado para uma criança. No início da manhã seguinte, eles foram até o Ben Gurion
em meio às trevas e embarcaram num voo para Londres.
59
LONDRES
Gabriel passou vários dias tentando decidir se avisava a Graham Seymour que ele estava prestes a receber uma desertora russa bastante incomum. Por fim, achou melhor
não. Suas razões foram pessoais, não operacionais: simplesmente não queria estragar a surpresa.
Dessa forma, a equipe de recepção no aeroporto de Heathrow no fim daquela manhã era composta por membros do Escritório, e não do MI5. Os agentes assumiram a custódia
clandestina de Gabriel e Madeline no saguão de desembarque e os transportaram para um apartamento obtido às pressas em Pimlico. Ao chegar, Gabriel ligou para Seymour
em seu escritório e disse que, mais uma vez, tinha entrado no Reino Unido sem assinar o livro de visitantes.
- Que surpresa - disse Seymour, seco.
- Ainda há mais por vir, Graham.
- Onde você está?
Gabriel passou o endereço.
Seymour tinha uma reunião com uma delegação visitante de espiões australianos que não podia ser adiada, então somente depois de uma hora é que seu carro surgiu na
frente do prédio. Ao entrar no apartamento, encontrou Gabriel sozinho na sala de estar. Na mesa de centro, havia um notebook aberto e Allon o utilizou para rodar
uma gravação de Pavel Zhirov confessando os muitos pecados da empresa de energia que pertencia ao Kremlin, conhecida como Volgatek Óleo e Gás. Quando o vídeo terminou,
Seymour parecia bastante abalado. Isso provava uma das máximas favoritas de Ari Shamron, pensou Gabriel: no negócio da inteligência, assim como na vida, às vezes
é melhor não saber.
- Foi ele que almoçou com Madeline na Córsega? - perguntou Seymour, ainda encarando a tela do computador.
Gabriel assentiu devagar.
- Você me disse para encontrá-lo. E eu o encontrei.
- O que aconteceu com o rosto dele?
- Ele disse algo para Mikhail que não devia ter dito.
- Onde ele está agora?
- Ele se foi.
- Isso pode significar várias coisas, sabe?
A expressão neutra de Gabriel deixou claro que Zhirov tinha partido para nunca mais voltar.
- Os russos sabem? - perguntou Seymour.
- Ainda não.
- Quanto tempo até descobrirem?
- Lá pela primavera, eu diria.
- Quem o matou?
- Essa é uma história para outra hora.
Gabriel ejetou o DVD do computador e o ofereceu para Seymour. Ao pegá-lo, ele soltou o ar lentamente, como se tentasse manter a pressão sanguínea num nível saudável.
- Eu estou nesse jogo há muito tempo. E este vídeo foi a coisa mais explosiva que já vi.
- Você ainda não viu tudo, Graham.
- Eu não sei se você reparou - continuou Seymour, como se não tivesse escutado o aviso de Gabriel -, mas nós tivemos uma eleição neste país recentemente. Jonathan
Lancaster acabou de ganhar com um dos maiores percentuais de votos na história da Inglaterra. E, agora, Jeremy Fallon é o ministro do Tesouro.
- Não por muito tempo.
Seymour não respondeu.
- Você não está pensando em deixá-lo sair impune dessa, está, Graham?
- Não. Mas vai ser um banho de sangue.
- Você sempre soube que seria.
- Mas eu estava torcendo para que o sangue não respingasse em mim.
Graham caiu num silêncio pesado.
- Algo que você precise desabafar, Graham?
- O primeiro-ministro me ofereceu uma promoção - explicou ele, depois de hesitar um pouco.
- Que tipo de promoção?
- O tipo que eu não pude recusar.
- Diretor-geral?
Seymour assentiu.
- Mas não do MI5 - acrescentou depressa. - Você está olhando para o futuro diretor do Serviço Secreto de Sua Majestade. Nós dois vamos governar o mundo juntos...
às escondidas, é claro.
- A menos que você derrube o governo de Lancaster.
- Correto. Se eu fizer isso, há boas chances de eu ser jogado ao mar com o resto deles. E você vai perder um aliado próximo no processo. - Ele acrescentou, baixando
a voz: - Eu achava que um homem na sua posição desejasse manter um amigo como eu. Você não tem muitos atualmente.
- Mas você não pode permitir que uma empresa da KGB perfure nas águas do seu território.
- Isso seria negligência do dever - concordou Seymour, jovialmente.
- Você também não pode permitir que um agente pago do Kremlin continue servindo como ministro. Caso contrário, talvez ele seja o seu próximo primeiro-ministro.
- Eu estremeço só de pensar na possibilidade.
- Então você precisa destruí-lo, Graham. - Gabriel fez uma pausa. - Ou vai ter que desviar os olhos enquanto eu o faço para você.
Seymour ficou em silêncio por um instante.
- Como você faria?
- Retribuindo um favor.
- E quanto a Lancaster?
- Ele é culpado de um caso extraconjugal. É provável que o povo britânico o perdoe, especialmente quando descobrirem que Fallon tem 5 milhões de euros numa conta
suíça. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - E há mais uma circunstância atenuante sobre a qual eu ainda não falei.
- Qual?
Gabriel sorriu e se levantou.
Ele entrou no quarto e voltou um momento depois com uma jovem linda ao lado, de cabelos escuros como carvão e pele bem bronzeada pelo sol do mar Vermelho. Seymour
se levantou cavalheirescamente e, sorrindo, estendeu a mão. Quando o cumprimento não foi retribuído, seu rosto assumiu uma expressão intrigada. E, então, ele entendeu.
Olhou para Gabriel e sussurrou:
- Meu Deus.
Ela contou a história desde o começo para Seymour - a mesma que contara a Gabriel naquela tarde gélida em São Petersburgo, na cúpula da Catedral de Santo Isaac.
Depois, calma, empertigada, declarou que desejava desertar para o Reino Unido e, se possível, um dia retornar à sua vida antiga.
Como vice-diretor do MI5, Seymour não tinha autoridade para conceder status de desertora a uma espiã russa. A única pessoa que podia fazer aquilo seria o ex-amante
de Madeline, Jonathan Lancaster. Por isso, às duas e quinze daquela tarde, Seymour se apresentou na Downing Street sem aviso e exigiu uma conversa em particular
com o primeiro-ministro. Por coincidência, o encontro se deu na sala de reuniões. Lá, embaixo do mesmo retrato da baronesa Thatcher, Seymour contou tudo o que tinha
descoberto. Que o presidente russo ordenara que a Volgatek utilizasse qualquer meio possível para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte. Que Jeremy Fallon, o
assessor e amigo íntimo de Lancaster, o traíra por 5 milhões de moedas de prata russa. E que Madeline Hart, sua antiga amante, era uma espiã nascida na Rússia que
ainda estava muito viva e havia solicitado asilo na Inglaterra. Para seu crédito, Lancaster, embora visivelmente perturbado, não hesitou em responder. Fallon tinha
que partir, Madeline tinha que ficar, e que as fichas caíssem onde fosse para elas caírem. Ele fez apenas um pedido: queria contar tudo à esposa antes.
- Eu não esperaria muito tempo se fosse você, primeiro-ministro.
Lancaster estendeu o braço lentamente na direção do telefone. Seymour se levantou e saiu do cômodo em silêncio.
Agora restava apenas o nome do repórter que receberia a exclusiva mais sensacional da história política da Inglaterra. Seymour sugeriu Tony Richmond, do Times, ou
talvez Sue Gibbons, do Independent, mas Gabriel se recusou. Ele tinha feito uma promessa, explicou, e pretendia cumpri-la. Telefonou para o celular dela, mas a ligação
caiu na caixa postal e ele deixou uma mensagem breve. Ela retornou logo em seguida.
- Às quatro horas no Café Nero - disse Gabriel. - E desta vez não se atrase.
Para profundo desgosto de Seymour, Gabriel e Madeline insistiram em dar uma última volta juntos. Ambos seguiram para Millbank enfrentando rajadas de vento; passaram
pelos Victoria Tower Gardens, pela Abadia de Westminster e pelo Palácio de Westminster. Às dez para as quatro, entraram na cafeteria. Gabriel pediu café preto, Madeline
quis um chá Earl Grey com leite e um biscoito digestivo. Ela tirou um estojo compacto da bolsa e deu uma olhada no próprio rosto pelo espelho.
- Como estou? - ela quis saber.
- Muito israelense.
- Isso é um elogio?
- Deixe para lá. É melhor comer.
Ela obedeceu. Em seguida, olhou pela janela e viu a multidão se movendo pela Bridge Street. Como se nunca tivesse visto aquilo antes. Como se nunca fosse ver novamente.
Ele vistoriou a parte interna do café. Ninguém a reconhecera. Por que reconheceriam? Ela estava morta e enterrada - enterrada no terreno de uma igreja em Basildon.
Uma cidade sem alma para uma garota sem nome nem passado.
- Você não precisa fazer isso - falou Gabriel depois de um instante.
- É claro que preciso.
- Eu já tenho o suficiente sem você. Tenho o vídeo de Zhirov.
- O Kremlin pode negar Zhirov - retrucou Madeline. - Mas não pode me negar.
Ela ainda contemplava a rua.
- Dê uma boa olhada - disse Gabriel -, porque, se você fizer o que está pretendendo, vai demorar um bom tempo até deixarem você voltar para Londres.
- Onde você acha que vão me colocar?
- Num esconderijo no meio do nada, talvez uma base militar, até a tempestade passar.
- Não parece muito agradável, parece?
- Você sempre pode voltar para Israel comigo.
Ela não respondeu. Gabriel se inclinou para a frente e segurou a mão dela, que tremia um pouco.
- Eu tenho uma casinha na Cornualha - revelou ele em voz baixa. - A cidade não é nada de mais, mas fica junto ao mar. Você pode permanecer lá se quiser.
- Tem vista?
- Uma vista adorável.
- Acho que eu gostaria.
Madeline deu um sorriso corajoso. Do outro lado da rua, o Big Ben bateu quatro horas.
- Ela está atrasada - comentou Gabriel, incrédulo. - Não acredito que ela está atrasada.
- Ela sempre está atrasada.
- Você a deixou bem impressionada, a propósito.
- Ela não foi a única.
Madeline riu, apesar das circunstâncias, e tomou um pouco do chá. Gabriel consultou o relógio e franziu a testa. Ele ergueu os olhos a tempo de ver Samantha Cooke
passar correndo pela porta. Um instante depois, estava à mesa deles, um pouco sem fôlego. Ela olhou para Gabriel e, em seguida, para a bela garota de cabelos escuros
sentada à sua frente. E, então, Samantha entendeu.
- Meu Deus - sussurrou.
- Quer algo para beber? - perguntou Madeline, com seu sotaque britânico.
- Na v-verdade - gaguejou Samantha -, talvez seja melhor darmos uma volta.
60
LONDRES
Trinta horas depois, um funcionário júnior da Downing Street entregou um pacote com vários jornais numa casa de tijolos vermelhos em Hampstead. A residência pertencia
a Simon Hewitt, o diretor de comunicações de Jonathan Lancaster, e o baque contra sua porta o acordou de um sono atipicamente profundo. Ele estava sonhando com um
incidente da infância, quando um valentão da escola o deixara com um olho roxo. Era uma leve melhora em relação ao pesadelo da noite anterior - em que fora despedaçado
por lobos -, ou mesmo ao da outra noite - uma nuvem de abelhas o picava até deixá-lo todo ensanguentado. Tudo fazia parte de um tema recorrente. Apesar do triunfo
de Lancaster nas urnas, Hewitt estava tomado por uma sensação de desastre iminente muito diferente de qualquer coisa que tivesse sentido desde que viera para a Downing
Street. Tinha certeza de que o silêncio na imprensa era ilusório. Sem dúvida um terremoto estava prestes a acontecer.
Tudo isso explicava por que Hewitt demorou para sair da cama e abrir a porta da frente naquela fria manhã londrina. Ao abaixar para pegar os jornais, sentiu um espasmo
nas costas, um lembrete do peso do emprego sobre a sua saúde. Ele levou o pacote para a cozinha, onde a cafeteira emitia o chacoalhar enferrujado que sinalizava
o fim de sua vida útil. Depois de se servir uma xícara grande e cobri-la com creme de leite fresco, tirou os jornais do plástico. Como sempre, o antigo periódico
de Hewitt, o Times, estava no topo. Ele o examinou rapidamente, não encontrou nada que chamasse atenção e seguiu para o Guardian. Depois foi a vez do Independent.
E, por fim, do Daily Telegraph.
- Merda - praguejou em voz baixa. - Merda, merda, merda.
No começo, a imprensa não soube bem que nome dar àquela história. Tentaram “O Caso de Madeline Hart”, mas pareceu restrito demais. Assim como “O Fiasco de Fallon”,
que durou algumas horas, ou “A Conexão do Kremlin”, que gozou de uma breve aparição na ITV. Ao fim da manhã, a BBC tinha se decidido por “O Caso da Downing Street”,
que era vago, mas amplo o bastante para cobrir todas as espécies de pecado. O resto da imprensa rapidamente adotou o título, e assim nasceu um escândalo.
Na maior parte do dia, Jonathan Lancaster, o homem no centro dele, permaneceu num silêncio inesperado. Enfim, às seis horas daquela tarde, a porta preta do número
10 se abriu e ele saiu sozinho para encarar o país. Com um tom de arrependimento, conseguiu manter os olhos secos e a voz firme. Reconheceu que tinha mantido um
relacionamento breve e insensato com uma jovem da sede do Partido. Também admitiu que convocara os serviços de um agente estrangeiro de inteligência para encontrar
a moça depois de seu desaparecimento; que, indevidamente, retivera informações das autoridades britânicas; e que pagara 10 milhões de euros pelo resgate. Em nenhum
momento, insistiu, chegou a suspeitar que a garota fosse uma espiã nascida na Rússia. Nem que o sequestro fizesse parte de uma conspiração bem orquestrada por uma
empresa petrolífera do Kremlin. Ele tinha aprovado a licença para a Volgatek seguindo a sugestão de Jeremy Fallon, seu assistente de longa data e chefe de gabinete.
E aquele acordo, ressaltou, agora estava desfeito.
Inteligente, Fallon emitiu sua própria declaração por escrito, pois, mesmo em seus melhores dias, parecia um homem culpado de alguma coisa. Ele reconheceu que havia
ajudado o primeiro-ministro a lidar com as consequências de sua “conduta pessoal imprudente”, mas negou categoricamente que tivesse aceitado pagamentos em dinheiro
de qualquer pessoa ligada à Volgatek. Os comentaristas políticos não deixaram de notar a agressividade da declaração. Para eles, Fallon acreditava que Lancaster
talvez não sobrevivesse e que poderia tomar seu cargo. Aquilo tudo estava se transformando numa luta por sobrevivência. Talvez até mesmo uma luta até a morte.
A declaração seguinte não veio de Londres, mas de Moscou. O presidente russo disse que as alegações contra o Kremlin e sua empresa de petróleo eram uma maliciosa
mentira ocidental. Num sinal claro de que a questão teria repercussões geopolíticas, acusou a inteligência britânica de ter se envolvido no desaparecimento de Pavel
Zhirov, o homem que era a base daquelas alegações. Então, sem oferecer qualquer prova, insinuou que Viktor Orlov tinha alguma relação com o caso. De sua sede em
Mayfair, o ex-oligarca emitiu uma declaração provocativa contradizendo o presidente e afirmando que ele era um mentiroso congênito e cleptocrata que enfim mostrara
sua verdadeira face. Em seguida, entregou-se imediatamente a uma equipe de segurança do MI5 e desapareceu de vista.
Mas quem era o misterioso agente de um serviço estrangeiro que Lancaster convocara para encontrar Madeline Hart? Alegando questões de segurança nacional, o primeiro-ministro
se recusou a identificá-lo. Jeremy Fallon também não esclareceu o assunto. Inicialmente, a especulação se focou nos americanos, de quem se sabia que Lancaster era
próximo. Mas isso mudou quando o Times noticiou que Gabriel Allon, o famoso agente secreto israelense, fora visto entrando na Downing Street em duas ocasiões distintas
durante o período em questão. Em seguida, o Daily Mail relatou que um membro do alto escalão do Parlamento o vira com uma jovem no Café Nero um dia antes de o escândalo
vir à tona. A matéria do Mail foi considerada baboseira sensacionalista - com certeza o grande Gabriel Allon não seria tão tolo a ponto de sentar-se num café movimentado
em Londres sem se disfarçar mas era difícil rejeitar a reportagem do Times. Quebrando a tradição, o Escritório emitiu uma declaração lacônica negando as informações
dos dois relatos, algo que a imprensa britânica viu como uma confirmação inegável do envolvimento de Allon.
Depois disso, o escândalo entrou num ciclo previsível de vazamento de informações e contrainformações e de guerra política aberta. O líder da oposição declarou sua
repulsa e exigiu a renúncia de Lancaster. Mas, quando uma sondagem na Câmara dos Comuns revelou que Lancaster sobreviveria por pouco ao processo do voto de não confiança,
o oposicionista não se deu o trabalho de agendá-lo. Até mesmo Fallon pareceu resistir à tempestade. Afinal, não havia nenhuma prova de que ele tivesse aceito qualquer
pagamento da Volgatek, apenas a palavra de um executivo russo da indústria do petróleo que parecia ter desaparecido da face da Terra.
E tudo poderia ter terminado dessa forma, com o casamento Lancaster-Fallon bastante prejudicado mas ainda intacto, se não fosse pela edição do Daily Telegraph que
acertou com um baque a porta de Simon Hewitt na segunda terça-feira de janeiro. Na primeira página, ao lado de um artigo de Samantha Cooke, havia uma fotografia
de Fallon entrando num pequeno banco particular em Zurique. Algumas horas depois, Lancaster voltou a aparecer sozinho diante da famosa porta do número 10, dessa
vez para anunciar a demissão do ministro do Tesouro. Após alguns minutos, a Scotland Yard anunciou que Fallon passara a ser alvo de uma investigação de suborno e
fraude. Ele novamente declarou inocência. Nenhum membro da equipe de imprensa de Whitehall acreditou.
Ele saiu da Downing Street pela última vez ao pôr do sol e voltou para o pequeno apartamento vazio em Notting Hill. O prédio parecia cercado por todos os repórteres,
cinegrafistas e fotógrafos de Londres. O inquérito não chegaria a determinar como ou quando ele os despistara, embora uma gravação de circuito fechado tenha capturado
uma imagem clara de seu rosto abatido às 2h23 da madrugada seguinte enquanto ele caminhava por um trecho deserto da Park Lane, com uma corda já presa no pescoço.
Com um nó náutico que tinha aprendido com o pai, amarrou a outra ponta num poste no centro da Ponte de Westminster. Ninguém chegou a ver Fallon se jogando do parapeito,
então ele passou a noite inteira pendurado, até que o sol enfim iluminou o seu corpo oscilante. Assim, provou-se verdadeiro um antigo e sábio provérbio corso: “Aquele
que leva uma vida imoral tem uma morte imoral.”
61
CÓRSEGA
Mas quem tinha fornecido a fotografia condenatória que custou o emprego de Jeremy Fallon e o levou a pular da Ponte de Westminster? Essa era a pergunta que dominaria
os círculos políticos britânicos nos meses seguintes. Mas, na ilha encantada onde o escândalo teve sua gênese, apenas algumas pessoas sofisticadas com jeito de terem
vindo do norte devotaram seu tempo a pensar na questão. De vez em quando, surgia um casal no Les Palmiers para tirar uma foto posando de Madeline Hart e Pavel Zhirov
na tarde em que ambos tiveram o fatídico almoço. Porém, de forma geral, os habitantes da ilha se esforçaram para esquecer o pequeno papel que sua terra tinha desempenhado
na morte de um importante político britânico. Com a chegada do inverno, os corsos retomaram instintivamente os seus velhos hábitos. Eles queimaram a macchia para
se aquecerem. Sacudiram os dedos na direção de estranhos para afastar o mau-olhado. E, num vale isolado perto da costa sudoeste, buscaram a ajuda de Don Anton Orsati
quando não podiam recorrer a mais ninguém.
Numa tarde tempestuosa em meados de fevereiro, sentado à mesa de carvalho em seu amplo escritório, ele recebeu um telefonema incomum. O homem do outro lado da linha
não queria que alguém fosse eliminado - na verdade, nada surpreendente, pensou o don, pois o interlocutor era mais do que capaz de cuidar dos próprios assassinatos.
Em vez disso, ele estava em busca de uma casa onde pudesse passar algumas semanas a sós com a esposa. Deveria ser um lugar onde ninguém fosse reconhecê-lo e ele
não precisasse de guarda-costas. Orsati tinha o lugar perfeito. Mas havia um problema: só se entrava e saía por uma única rua, que passava por três oliveiras centenárias,
onde o maldito bode de Don Casabianca acampava.
- Existe alguma forma de ele sofrer um acidente trágico antes de nós chegarmos? - perguntou o homem pelo telefone.
- Desculpe - respondeu Don Orsati mas aqui na Córsega algumas coisas nunca mudam.
Eles chegaram à ilha três dias depois, por um voo que saiu de Tel Aviv, fez escala em Paris e seguiu para Ajaccio. Don Orsati tinha deixado um carro à disposição
no aeroporto, um Peugeot sedã cinza reluzente que Gabriel dirigiu com a típica despreocupação corsa. Foi em direção ao sul, percorrendo a costa, e então rumo ao
interior, passando por vales tomados pela macchia. Quando eles chegaram às três oliveiras centenárias, o bode se ergueu ameaçador e bloqueou o caminho. Mas rapidamente
lhes deu passagem depois que Chiara disse algumas palavras tranquilizadoras em seu ouvido.
- O que você disse? - perguntou Gabriel, quando eles continuaram o percurso.
- Que você sentia muito por ter sido malvado com ele.
- Mas eu não sinto. Ele foi o agressor.
- Ele é um bode, querido.
- Ele é um terrorista.
- Como é que você pode administrar o Escritório se não consegue se entender com um bode?
- Boa pergunta - replicou ele, carrancudo.
A casa ficava pouco mais de um quilômetro depois do reduto do bode. Era pequena e mobiliada com simplicidade, com um piso claro de pedra calcária. Pinheiros-larícios
sombreavam o terraço de granito pela manhã, mas, à tarde, o sol batia com força nas pedras. De dia, o tempo era frio e agradável; à noite, o vento assobiava ao passar
pelas árvores. Eles as observavam oscilar enquanto tomavam vinho tinto corso diante da fogueira. D fogo queimava com um tom azul-esverdeado, por causa da madeira
da macchia, e cheirava a alecrim e tomilho. Em pouco tempo, Gabriel e Chiara também adquiriram aquele aroma.
O único plano deles era não fazer quase nada. Dormiam tarde. Tomavam café da manhã na praça do vilarejo. Comiam peixe no almoço, perto do mar. Durante a tarde, se
estivesse quente, havia banho de sol no terraço e, se estivesse frio, retiravam-se para o quarto simples e faziam amor até dormirem de exaustão. Shamron deixou inúmeras
mensagens lamuriosas que Gabriel ignorou com alegria. Dentro de um ano, todos os seus instantes de vigília seriam consumidos pela tarefa de proteger Israel dos que
desejavam destruí-la. Mas, por enquanto, havia apenas Chiara, o sol frio, o mar e o cheiro inebriante dos pinheiros e da macchia.
Nos primeiros dias, evitaram os jornais, a internet e a televisão. Mas, aos poucos, Gabriel se reconectou com um mundo de problemas que logo seriam dele. O chefe
da AIEA, a agência de vigilância nuclear da ONU, previu que o Irã se tornaria uma potência do ramo dentro de um ano. No dia seguinte, apareceu no noticiário que
o regime na Síria tinha transferido armas químicas para o Hezbollah. E, um dia depois, o Irmão Muçulmano que administrava o Egito foi gravado falando sobre uma nova
guerra com Israel. De fato, as únicas boas notícias que Gabriel conseguiu encontrar vieram de Londres, onde Jonathan Lancaster, sobrevivente do Caso da Downing Street,
designou Graham Seymour para o cargo de diretor do MI6. Gabriel ligou para ele na mesma tarde a fim de parabenizá-lo. Mas, na verdade, queria saber de Madeline.
- Ela está se dando melhor do que eu esperava.
- Onde ela está?
- Parece que um amigo lhe ofereceu um chalé perto do mar.
- É mesmo?
- Não é um procedimento muito ortodoxo - admitiu Seymour -, mas decidimos que era um lugar tão bom quanto qualquer outro.
- Só não dê as costas para ela, Graham. O SVR tem um alcance muito grande.
Foi por causa desse grande alcance que Gabriel e Chiara mantiveram-se bastante discretos na ilha. Eles raramente saíam da casa depois de escurecer e, diversas vezes
por noite, Gabriel ia ao terraço para ficar atento a movimentos no vale. Com uma semana de estadia, ele escutou o chacoalhar familiar de um Renault e, um instante
depois, viu luzes acesas na casa de Keller pela primeira vez. Esperou até a tarde seguinte para aparecer sem aviso prévio. O Inglês estava usando calças brancas
largas e um pulôver branco. Ele abriu uma garrafa de Sancerre e os dois beberam fora da casa, ao sol. Sancerre de tarde, tinto à noite: Gabriel podia facilmente
se acostumar àquilo. Mas agora não havia mais como voltar atrás. Seu povo precisava dele. Tinha um compromisso com a história.
- Daria para melhorar um pouco o Cézanne - comentou Gabriel casualmente. - Que tal me deixar restaurá-lo enquanto estou na cidade?
- Eu gosto do Cézanne do jeito que ele está. Além disso, você veio aqui para descansar.
- Você não precisa?
- Do quê?
- De descanso.
Keller não respondeu.
- Onde você esteve, Christopher?
- Fiz uma viagem de negócios.
- Azeite de oliva ou sangue?
Keller ergueu uma sobrancelha, indicando que era a segunda opção, e Gabriel balançou a cabeça em reprovação.
- Não dá para ganhar dinheiro cantando - disse Keller em voz baixa.
- Existem outras maneiras de ganhar dinheiro, sabia?
- Não quando o seu nome é Christopher Keller e você deveria estar morto. Gabriel tomou um pouco de vinho.
- Eu não incluí você na equipe porque precisava da sua ajuda - explicou ele depois de um instante. - Queria mostrar a você que há mais na vida do que matar pessoas
por dinheiro.
- Você queria me restaurar? É isso que está dizendo?
- É um instinto natural.
- Algumas coisas estão além do reparo. - Keller fez uma pausa. - Além da redenção.
- Quantos homens você matou?
- Não sei. Quantos você matou?
- Para mim é diferente. Eu sou um soldado. Secreto, mas, ainda assim, um soldado. - Ele olhou para Keller, sério, por um momento. - E você também pode ser.
- Você está me oferecendo um emprego?
- Você precisaria se tornar um cidadão israelense e aprender a falar hebraico para trabalhar no Escritório.
- Eu sempre me senti meio judeu.
- Sim - disse Gabriel -, você já mencionou isso.
Keller sorriu, e caiu o silêncio. O vento da tarde começava a se intensificar.
- Existe outra possibilidade, Christopher.
- Qual?
- Você já reparou quem foi nomeado novo diretor-geral do MI6?
Keller não respondeu.
- Eu posso falar sobre você com Graham. Ele pode lhe dar uma nova identidade. Uma nova vida.
Keller ergueu a taça de vinho na direção do vale.
- Eu tenho uma vida. Uma vida muito boa, na verdade.
- Você é um mercenário. Um criminoso.
- Eu sou um bandido de honra. Existe uma diferença.
- Como queira.
- Foi por isso que você veio à Córsega? Para me convencer a voltar para casa?
- Suponho que sim.
- Se eu deixar você restaurar o Cézanne, promete que me deixa em paz?
- Não - respondeu Gabriel.
- Então talvez seja melhor aproveitar o silêncio.
62
CÓRSEGA
Três dias depois, Don Orsati convidou Gabriel a seu escritório para uma conversa. Não era de fato um convite que pudesse ser polidamente recusado. Era uma ordem
shamroniana, gravada em pedra, inviolável.
- Que tal no horário do almoço? - perguntou Gabriel, sabendo que Orsati provavelmente estaria de bom humor naquele horário.
- Ótimo - concordou o don. Mas acrescentou, ameaçador: - Talvez seja melhor se você vier sozinho.
Gabriel saiu da casa pouco depois do meio-dia. O bode lhe deu passagem sem nenhum confronto, pois o reconheceu como um associado da linda mulher italiana. Os guardas
em frente à propriedade também permitiram que ele passasse, pois Orsati avisara que o israelita era esperado. Encontrou o don em seu amplo escritório, curvado sobre
os livros-razão.
- Como estão os negócios?
- Melhores do que nunca. Tenho mais pedidos do que seria possível cumprir.
Orsati não esclareceu se estava falando de sangue ou azeite. Conduziu Gabriel a uma sala de jantar; sobre a mesa, havia um banquete corso. Com portas caiadas e móveis
simples, o cômodo lembrava a Gabriel a sala de jantar particular do papa no Palácio Apostólico. Havia até mesmo um crucifixo pesado de madeira na parede atrás do
assento reservado para o don.
- Incomoda você? - perguntou Orsati.
- De forma nenhuma.
- Christopher me disse que você é familiarizado com igrejas católicas.
- O que mais ele disse?
Orsati franziu a testa, mas ficou em silêncio enquanto servia Gabriel com comida e vinho.
- Gostou da casa? - perguntou, por fim.
- É perfeita, Don Orsati.
- E a sua esposa está feliz aqui?
- Muito.
- Quanto tempo você pretende ficar?
- Pelo tempo em que eu for bem-vindo.
Estranhamente, o don nada respondeu.
- Será que a minha estadia já se alongou demais, Don Orsati?
- Você pode ficar aqui na ilha o tempo que quiser. - O don fez uma pausa. - Desde que não se envolva em questões que afetem os meus negócios.
- Obviamente você se refere a Keller.
- Obviamente.
- Não era minha intenção desrespeitá-lo, Don Orsati. Eu estava apenas...
- Envolvendo-se em questões que não lhe dizem respeito.
O celular do don vibrou suavemente. Ele o ignorou.
- Eu não o ajudei quando você veio para a ilha pela primeira vez em busca da garota inglesa?
- Ajudou.
- Não forneci Keller sem cobrar nada para ajudar a encontrá-la?
- Eu não teria conseguido sem ele.
- Não relevei o fato de nunca terem me oferecido parte do dinheiro que você recuperou?
- O dinheiro está na conta do presidente russo.
- Isso é o que você diz.
- Don Orsati...
Ele fez um gesto de desdém.
- Do que se trata, então? Dinheiro?
- Não - admitiu o don. - É sobre Keller.
Uma rajada atingiu as portas francesas que davam acesso ao jardim de Don Orsati. Era o libeccio, um vento do sudoeste. No inverno, normalmente trazia chuva, mas
por ora o céu estava limpo.
- Aqui na Córsega - disse o don, após um momento de silêncio as nossas tradições são muito antigas. Por exemplo, um jovem nunca sonharia em propor casamento a uma
mulher sem antes pedir sua mão ao pai dela. Você entende o meu ponto, Gabriel?
- Acredito que sim, Don Orsati.
- Você deveria ter falado comigo antes de conversar com Christopher sobre voltar à Inglaterra.
- Foi um erro da minha parte.
A expressão de Orsati se amenizou. Lá fora, o libeccio virou uma mesa e uma cadeira no jardim. Ele gritou algo para o alto no dialeto corso e, alguns segundos depois,
um homem bigodudo com uma espingarda pendurada no ombro apareceu correndo no jardim para colocar a mobília no lugar.
- Você não sabe como o seu amigo Christopher estava quando chegou aqui do Iraque. Ele estava em frangalhos. Eu lhe dei uma casa. Uma família. Uma mulher.
- E trabalho. Bastante trabalho.
- Ele é muito bom no que faz.
- Sim, eu sei.
- Melhor do que você.
- Quem disse isso?
O don sorriu. O silêncio pairou e Gabriel aproveitou a pausa para escolher as próximas palavras com muito cuidado:
- Não é uma maneira adequada para Christopher ganhar a vida.
- “Quem mora em casa de vidro não deveria atirar pedras.”
- Eu nunca soube que era um provérbio corso.
- Todas as coisas sábias vêm da Córsega. - Orsati afastou o prato e apoiou os antebraços pesadamente na mesa. - Existe algo que você parece não compreender. Christopher
é mais do que o meu melhor taddunaghiu. Eu o amo como um filho. E, se algum dia ele fosse embora... eu ficaria de coração partido.
- O pai biológico de Christopher acha que ele está morto.
- Não havia outra maneira.
- Como você se sentiria se os papéis fossem trocados?
Orsati não tinha resposta, então mudou de assunto:
- Você realmente acha que esse amigo seu da inteligência britânica estaria interessado em levar Christopher de volta para a Inglaterra?
- Ele seria um tolo se não o fizesse.
- Mas talvez ele se negue. E, ao discutir a questão, você pode pôr em risco a posição de Christopher aqui na Córsega.
- Eu vou fazer tudo de uma forma que não o ameace.
- Seu amigo é um homem de confiança?
- Eu confiaria minha própria vida a ele. Na verdade, já fiz isso muitas vezes.
Orsati respirou fundo, resignado. Estava prestes a dar sua bênção à proposta incomum de Gabriel quando o celular vibrou novamente. Dessa vez ele atendeu. Ouviu em
silêncio por um instante, falou algumas palavras em italiano e desligou.
- Quem era? - perguntou Gabriel.
- Sua esposa - respondeu o don.
- Algo errado?
- Ela quer dar uma volta pelo vilarejo.
Gabriel começou a se levantar.
- Fique e termine seu almoço - disse Orsati. - Vou mandar dois garotos para ficarem de olho nela.
Gabriel se sentou. O libeccio estava provocando o caos no jardim. Orsati observou a cena em silêncio por um momento, triste.
- Continuo feliz por não termos precisado matá-lo, Allon.
- Garanto, Don Orsati, que o sentimento é mútuo.
O vento perseguiu Chiara pela trilha estreita, passando pelos gatos e pelas casas com as venezianas fechadas até alcançar a praça principal, onde rodopiou pelas
construções e vandalizou as mesas de exposição dos vendedores. Ela foi para o mercado e encheu a cesta de palha com alguns itens para o jantar. Em seguida, sentou-se
a uma mesa em uma das cafeterias e pediu um café. No centro da praça, alguns velhos jogavam boules em meio a minúsculos ciclones de poeira e, nos degraus da igreja,
uma idosa vestida de preto passava um pedaço de papel azul para um garoto de cabelos castanhos bem compridos. Observando-o, Chiara sorriu com tristeza. Ela pensou
em como o filho de Gabriel, Dani, seria agora se tivesse vivido até os 10 anos.
A mulher desceu a escadaria e entrou numa pequena casa torta. O garoto começou a atravessar a praça com o papel azul na mão. Para surpresa de Chiara, entrou na cafeteria
onde ela estava e colocou o papel em sua mesa sem dizer uma palavra. Ela esperou o garoto partir antes de ler a única linha:
Preciso vê-la imediatamente.
Quando Chiara chegou, a signadora estava esperando à porta de sua casa. Ela sorriu, tocou-lhe a bochecha com delicadeza e conduziu-a para dentro.
- Você sabe quem eu sou? - perguntou a velha.
- Tenho uma boa ideia.
- Seu marido falou de mim?
Chiara assentiu.
- Eu o avisei para não ir à cidade dos hereges, mas ele não escutou. Ele tem sorte de estar vivo.
- Ele é osso duro de roer.
- Talvez ele seja um anjo, afinal. - A senhora tocou o rosto de Chiara de novo. - E você também foi até lá, não é mesmo?
- Quem lhe disse que eu fui à Rússia?
- Você foi sem dizer ao seu marido - continuou a signadora, como se não tivesse escutado a pergunta. - Vocês ficaram juntos por algumas horas num quarto de hotel
na cidade da noite. Você se lembra?
Ela sorriu, ainda tocando o rosto de Chiara. Então, afastou-lhe os cabelos.
- Devo continuar? - indagou a velha.
- Não acredito que você possa ver o passado.
- Seu marido foi casado com outra mulher antes de você - prosseguiu a signadora, como se tentasse provar que Chiara estava enganada. - Havia uma criança. Houve um
incêndio. A criança morreu, mas a mulher, não. Ela ainda vive.
Chiara se afastou com um movimento brusco.
- Você o amou por muito tempo - continuou a velha -, mas ele não se casou com você por causa do luto. Ele a mandou embora, mas voltou numa cidade de água.
- Como você sabe disso?
- Ele fez uma pintura de você envolta em lençóis brancos.
- Foi um esboço - retrucou Chiara.
A mulher deu de ombros, indicando que aquilo não fazia muita diferença. Então, gesticulou na direção da mesa, onde havia um prato com água e uma vasilha de azeite
ao lado de duas velas acesas.
- Não quer sentar? - perguntou ela.
- Prefiro continuar em pé.
- Por favor. Só vai levar um instante. E, então, eu saberei com certeza.
- Saberá o quê?
- Por favor - repetiu ela.
Chiara se sentou. A velha se acomodou à sua frente.
- Mergulhe o dedo no azeite. Depois, deixe três gotas caírem na água.
Chiara seguiu as instruções com relutância. Ao tocar a superfície da água, o azeite reuniu-se numa única gota. A velha teve um sobressalto e uma lágrima desceu por
sua bochecha pálida.
- O que você vê? - perguntou Chiara.
A mulher segurou a mão dela.
- Seu marido está esperando na casa. Vá e diga a ele que vai ser pai de novo.
- Menino ou menina?
A signadora sorriu.
- Um de cada.
Nota do Autor
A versão da pintura Suzana e os anciãos que aparece na história não existe. Se existisse, seria uma ótima obra, assim como a que está no Museu de Belas-Artes em
Reims, na França. Há de fato um edifício de calcário na rua Narkiss, em Jerusalém - aliás, vários. Mas não reside ali nenhum oficial da inteligência israelense chamado
Gabriel Allon. A sede do serviço secreto de Israel não fica mais no King Saul Boulevard, em Tel Aviv. Mantive o endereço porque sempre gostei do nome. O bombardeio
ao Hotel King David em 1946 é um fato histórico, embora Arthur Seymour - pai do oficial fictício do MI5, Graham Seymour - não tenha realmente presenciado a situação.
Não há nenhuma exposição no Museu de Israel com os pilares do Templo de Salomão, pois nunca foi descoberta nenhuma ruína dele.
Existe um restaurante chamado Les Palmiers em Calvi, mas, até onde sei, nunca foi utilizado como ponto de encontro para dois espiões russos. A empresa Orsati Olive
Oil foi inventada por mim, assim como o incidente de fogo amigo que levou Christopher Keller - que apareceu pela primeira vez em O assassino inglês - a deixar o
Serviço Aéreo Especial e tornar-se um matador de aluguel na Córsega. Os que estão familiarizados com a ilha e suas ricas tradições vão notar que eu dei poderes à
minha signadora fictícia que a maioria de seus colegas não professa ter.
A companhia de energia russa conhecida como Volgatek Óleo e Gás também não existe. Eu mexi nos tempos de voo da El Al entre Tel Aviv e São Petersburgo para atender
às necessidades da minha operação. Os corajosos que visitam São Petersburgo no pesado inverno não devem tentar escalar a gloriosa cúpula da Catedral de Santo Isaac,
pois ela fica fechada durante o tempo frio. Para constar: gosto muito do Café Nero na Bridge Street. Minhas sinceras desculpas aos hotéis Metropol, Astoria e Ritz-Carlton
por executar operações de inteligência com base em suas instalações, mas tenho certeza de que não fui o primeiro.
Eu me esforcei para descrever de forma precisa a atmosfera dentro do número 10 da Downing Street, embora admita que, ao contrário de Gabriel Allon, nunca tenha passado
pela barreira de segurança da Whitehall. Ao criar Jeremy Fallon, dei-lhe a ampla autoridade que o primeiro-ministro Tony Blair deu a Jonathan Powell, o chefe de
gabinete verdadeiro. Tenho certeza de que a presença do brilhante e escrupuloso Powell ao lado de Lancaster teria prevenido todo o caso sórdido retratado em A garota
inglesa.
O aumento da espionagem por parte do serviço de inteligência russo contra alvos ocidentais tem sido bem documentado. Oleg Gordievsky, desertor da KGB, disse ao The
Guardian recentemente que o tamanho da rezidentura do SVR em Londres chegou ao nível da Guerra Fria. Gordievsky tem credibilidade para fazer essa declaração porque
trabalhou para a KGB em Londres entre 1982 e 1985. Além disso, o MI5 chegou à mesma conclusão, então ele não está sozinho em sua avaliação. “É muito frustrante ainda
ter que empregar um montante significativo de equipamento, dinheiro e pessoal para combater essa ameaça. São recursos que eu com certeza preferiria empregar para
combater ameaças de terrorismo internacional”, disse o diretor-geral do MI5, Jonathan Evans.
Embora Londres ainda seja um eixo importante de atividade da inteligência russa, os Estados Unidos permanecem como o foco principal do Centro Moscovita. O FBI forneceu
provas extensas desse fato em junho de 2010, quando prendeu dez espiões russos que viviam no país sob disfarces não oficiais e ilegais havia muitos anos. Receosa
de comprometer o tão anunciado “recomeço” nas relações com o Kremlin, a administração de Obama logo decidiu enviar os espiões à Rússia como parte de uma troca de
prisioneiros - a maior já realizada entre os dois países desde a Guerra Fria. Entre os espiões, a mais conhecida era Anna Chapman, uma belíssima femme fatale que
viveu em Londres muitos anos antes de se mudar para Nova York, trabalhando como agente imobiliária e acompanhante de festas. Desde que retornou à Rússia, Chapman
apresentou um programa de TV, escreveu uma coluna no jornal e posou para a capa de uma revista de lingerie francesa. Ela também foi indicada para o conselho orientador
da Guarda Jovem do partido Rússia Unida, uma organização pró-Kremlin afiliada ao partido que governa o país. Os críticos da Guarda Jovem frequentemente se referem
à organização, em tons sombrios, como “Juventude Putinista”.
A maior parte da espionagem russa contra os Estados Unidos é de natureza industrial e econômica. As razões são dolorosamente óbvias: quase um quarto de século após
o colapso da União Soviética, a Rússia continua sendo um país praticamente incapaz de se manter sozinho, bastante dependente de matérias-primas e, claro, de petróleo
e gás. O presidente Vladimir Putin nunca manteve segredo sobre o que a energia significa para a nova Rússia. Na verdade, o Kremlin declarou em um documento de estratégia
de 2003 que “o papel do país no mercado de energia global determina em grande parte sua influência geopolítica”. O governo, sabiamente, suavizou a linguagem para
falar da importância do setor de energia russo, mas os objetivos permanecem os mesmos. Sem seu império e militarmente fraca, a Rússia pretende ganhar poder no cenário
mundial com petróleo e gás em vez de armas nucleares e ideologia marxista-leninista. Além disso, os gigantes estatais de energia não estão satisfeitos em operar
apenas dentro da Rússia, onde a produção dessas commodities já se estabilizou. Eles passaram a adquirir ativos de upstream e downstream como parte do estratagema
para se tornarem participantes reais do mercado de energia global. Em suma, a Rússia está tentando se transformar na Arábia Saudita euroasiática.
A gigante estatal russa Gazprom é a maior companhia de gás do mundo e suas receitas são a fonte de grande parte do orçamento federal anual do Kremlin. Muitas das
antigas repúblicas soviéticas recebem todo o gás natural da Rússia, assim como a pequena Finlândia. Mais de quarenta por cento do produto da Alemanha vêm da Rússia;
já na Áustria, a porcentagem chega a oitenta. Enquanto o avanço na tecnologia de perfuração leva mais gás ao mercado internacional, os gasodutos que ligam a Europa
e a Rússia ajudam a garantir a posição dominante da Gazprom nos próximos anos. E seus muitos clientes europeus devem lembrar que a empresa operou como instrumento
de repressão política em 2001, quando comprou a NTV, a única opção de transmissão nacional independente e uma feroz crítica de Putin e do Rússia Unida. Agora, a
perspectiva editorial da NTV é seguramente pró-Kremlin.
Após um breve período como primeiro-ministro, Putin foi eleito para um terceiro mandato como presidente da Rússia em março de 2012. Ex-agente da KGB, encontra-se
em posição para governar, pelo menos, até 2024 - período maior do que Leonid Brejnev e quase tão longo quanto o de Joseph Stálin. Obviamente, nem todos os russos
apoiam seu apego ditatorial ao poder, porém cada vez mais vozes da oposição estão sendo silenciadas, às vezes de forma violenta. Em novembro de 2009, Sergei Magnitsky
- advogado e contador moscovita que fez acusações de desfalque a policiais e funcionários da receita federal - morreu de repente numa prisão russa, aos 37 anos.
O incidente provocou condenação e sanções dos Estados Unidos. Agora o Kremlin está de olho em Alexei Navalny, o dissidente mais proeminente e líder do movimento
de protesto que varreu o país após o retorno de Putin à presidência. No momento em que escrevo esta nota, ele aguarda julgamento por acusações de desvio de dinheiro
- acusações que Navalny e sua legião de apoiadores denunciaram como politicamente motivadas. Caso seja condenado, pode passar dez anos na prisão, onde não será uma
ameaça a Putin e aos seus companheiros siloviki no Kremlin.
Na nova Rússia de Putin, com demasiada frequência, as penas de prisão com qualquer tipo de duração equivalem a uma sentença de morte. De acordo com as autoridades
russas, 4.121 pessoas morreram sob custódia do governo só em 2012, porém advogados pró-democracia dizem que é provável que o número real seja muito maior. Isso pode
explicar por que Alexander Dolmatov, ativista pró-democrata russo, se suicidou no centro de detenção de Roterdã em janeiro de 2013. Com medo de ser preso e julgado
na Rússia, ele voou para a Holanda em busca de asilo político. Quando sua solicitação foi negada, enforcou- se na cela. O governo holandês disse que o suicídio de
Dolmatov não teve nada a ver com a negação do asilo. Os amigos dele no movimento de oposição não compartilham dessa opinião.
Os nomes de Magnitsky, Navalny, Dolmatov são conhecidos no Ocidente, mas existem muitos outros que já definharam nas celas das prisões russas por terem ousado erguer
um cartaz de protesto ou escrever um blog criticando Vladimir Putin. Na Rússia, a intensificação do autoritarismo continua. E os gigantes do petróleo e do gás do
Kremlin estão pagando a conta.45
ZELÂNDIA, DINAMARCA
Uma mesa fora posta com um suntuoso banquete russo. A origem da comida era incerta, pois, aparentemente, não havia mais ninguém ali além dos três executivos. Mikhail
se perguntou como teriam arranjado aquela propriedade em tão pouco tempo. Não tinham arranjado, é claro. Com certeza era uma casa segura da Volgatek. Ou do SVR.
Aliás, talvez essa distinção fosse desnecessária.
Por ora, a comida servia apenas de decoração. Mikhail recebera uma bebida - vodca, obviamente - e fora acomodado em uma cadeira de honra, com uma bela vista para
o mar negro. Bershov, o atleta da companhia, percorria o perímetro da sala com o vagar determinado de um homem prestes a entrar no ringue. Zhirov, o guardião dos
segredos da Volgatek, sequestrador de Madeline, fitava o teto, como se calculasse quanta corda seria necessária para enforcar Mikhail. Por fim, pousou seu olhar
duro em Lazarev, que havia tomado posse do lugar à lareira e contemplava as chamas. Ele ponderava sobre a questão feita por Mikhail no instante anterior:
- O que estou fazendo aqui?
- O que você está fazendo aqui? - respondeu o russo, afinal.
- Eu vim porque você me convidou.
- Você costuma aceitar encontros com os inimigos do homem que assina seu contracheque?
Lazarev virou-se vagarosamente.
- Então é disso que se trata? - Mikhail perguntou um pouco depois. - Você está me recrutando para espionar Viktor?
- Você parece familiarizado com a linguagem de espionagem, Nicholas.
- Eu leio livros.
- Que tipo de livros?
Mikhail largou sua bebida.
- Isso está começando a parecer muito com um interrogatório - disse calmamente. - Se você não se importa, gostaria de voltar para o meu hotel.
- Isso seria um erro da sua parte.
- Por quê?
- Porque você ainda não ouviu minha oferta.
Sorrindo, Lazarev pegou a bebida intocada de Mikhail e levou-a até o carrinho para ser renovada. O falso Avedon olhou para Zhirov e retribuiu seu olhar inexpressivo.
Internamente, no entanto, visualizava, no lugar das roupas de lã escura, a exuberante roupa de verão que ele usava no almoço no Les Palmiers, em Calvi. Quando sua
bebida reapareceu, Mikhail apagou a imagem da mente como giz de uma lousa e olhou apenas para Lazarev, que tinha a testa franzida, como se debatesse com uma equação
sem solução possível.
- Você se importa se continuarmos a nossa conversa em russo? - perguntou.
- Receio que o meu conhecimento de russo seja bom apenas para me comunicar em restaurantes e táxis.
- Fontes confiáveis me dizem que seu russo é bem bom. Fluente, até.
- Quem lhe disse isso?
- Um amigo da Gazprom - respondeu Lazarev com sinceridade. - Ele falou brevemente com você em Praga, durante sua estadia com Viktor.
- As notícias voam.
- Receio que não haja segredos em Moscou, Nicholas.
- É o que dizem.
- Você estudou russo na escola?
- Não.
- Então deve ter aprendido em casa.
- Provavelmente.
- Seus pais são russos?
- E meus avós também - completou Mikhail.
- Como foram parar na Inglaterra?
- Do jeito de sempre.
- O que isso significa?
- Eles saíram da Rússia após a queda do czar e se estabeleceram em Paris. Depois, foram para Londres.
- Seus ancestrais eram burgueses?
- Não eram bolcheviques, se é isso que está perguntando.
- Suponho que seja.
Mikhail pareceu pesar suas próximas palavras com cuidado.
- Meu bisavô era um homem de negócios moderadamente bem-sucedido que não queria viver sob o comunismo.
- Qual era o nome dele?
- O nome da família era Avdonin, que ele acabou mudando para Avedon.
- Então o seu nome real é Nikita Avdonin.
- Nicolai.
- Posso chamá-lo de Nicolai?
- Se desejar.
- Você já foi a Moscou? - perguntou Lazarev, passando ao russo.
- Não - respondeu Mikhail na mesma língua.
- Por que não?
- Nunca tive motivo.
- Você não tem curiosidade de saber de onde veio?
- A Inglaterra é o meu lar. A Rússia é a terra de onde a minha família fugiu.
- Você se opunha à União Soviética?
- Eu era jovem demais para me opor.
- E nosso governo atual?
- O que tem ele?
- Você partilha da opinião de Viktor Orlov de que nosso presidente é um cleptocrata autoritário?
- Talvez você se surpreenda, Sr. Lazarev, mas Viktor e eu não falamos sobre política.
- De fato isso me surpreende.
Mikhail ficou em silêncio. Lazarev deixou passar o assunto. Seu olhar moveu-se de Bershov para Zhirov antes de repousar sobre Mikhail novamente.
- Presumo que você tenha lido sobre o acordo de licenciamento que fechamos com o governo britânico que vai nos permitir conduzir perfurações no mar do Norte - falou
Lazarev, voltando ao inglês.
- Duas áreas recém-descobertas nas Ilhas Ocidentais - disse Mikhail, como se estivesse lendo um prospecto. - Produção prevista em campo maduro de cem mil barris
por dia.
- Muito impressionante.
- É o meu trabalho, Sr. Lazarev.
- Na verdade é o meu trabalho. - Lazarev fez uma pausa. - Mas eu gostaria que você tomasse conta dele para mim.
- O projeto das Ilhas Ocidentais?
Lazarev assentiu.
- Sinto muito, Sr. Lazarev - falou Mikhail educadamente -, mas não sou gerente de projetos.
- Você fez um trabalho similar no mar do Norte para a petroleira KBS.
- E é por isso que não quero fazê-lo de novo. Além do mais, já sou contratado de Viktor. - Mikhail se levantou. - Desculpe-me por não ficar para o jantar, Sr. Lazarev,
mas eu realmente preciso voltar.
- Mas você ainda nem ouviu o resto da minha proposta.
- Se for igual à primeira parte, não estou interessado - retrucou Mikhail.
Lazarev nem pareceu ouvir a resposta:
- Como você sabe, Nicolai, a Volgatek está expandindo suas operações na Europa e em outros lugares. Se quisermos ter sucesso nessa iniciativa, vamos precisar de
pessoas talentosas como você. Pessoas que entendam o Ocidente e a Rússia.
- Isso seria uma oferta?
Lazarev se aproximou e pousou com determinação as mãos nos ombros de Mikhail. Como se não houvesse mais ninguém na sala, prosseguiu:
- As Ilhas Ocidentais são apenas o começo. Quero que me ajude a construir uma petrolífera com alcance realmente global. Vou torná-lo rico, Nicolai Avdonin, rico
como você jamais sonhou ser.
- Minha vida já é bastante confortável.
- Se bem conheço o Viktor, ele está lhe pagando com os trocados do bolso. - Lazarev sorriu e apertou os ombros de Mikhail. - Venha para a Volgatek, Nicolai. Volte
para casa.
O lado sul da baía de Koge não é o tipo de lugar onde dois homens possam conversar longamente dentro de um carro estacionado sem serem notados, então Gabriel e Keller
dirigiram até a cidade mais próxima e sentaram-se em um pequeno e acolhedor restaurante, que servia uma mistura pouco apetitosa de pratos italianos e chineses. Keller
comeu pelos dois, enquanto Gabriel tomava apenas um chá preto. Seu fone de ouvido permanecia silencioso e ele visualizava Mikhail sendo escoltado para a morte através
de um bosque de bétulas nevado. Por duas vezes, o receio e a frustração impeliram-no a levantar-se, e por duas vezes Keller o mandou sentar e esperar:
- Você fez o seu trabalho - disse calmamente, com um falso sorriso operacional estampado no rosto bronzeado. - Deixe as coisas tomarem o seu rumo.
Por fim, uma hora e 33 minutos após Mikhail ter entrado na casa à beira-mar, Gabriel escutou um áspero estalido eletrônico, seguido pelo rugido do vento, o mesmo
que chacoalhava os vidros da janela congelada a poucos centímetros de seu rosto. Bastante aliviado, ele pôde ouvir Mikhail dizer, com a voz debilitada pelo frio:
- Eu vou pensar em sua proposta, Gennady. De verdade, vou pensar.
- Não pense demais, Nicolai: minha oferta tem um prazo.
- Quanto tempo eu tenho?
- Gostaria de saber em uma semana. Caso contrário, terei de tomar outra direção.
- E se eu disser sim?
- Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte. Senão, você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.
- Por que Moscou?
- Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?
- É claro que não.
- E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.
Essas foram as últimas palavras trocadas pelos dois. Depois, uma porta foi fechada, deram partida num carro e o ponto de luz azul voltou a se mover através da tela
do tablet. Enquanto o sinal se aproximava das coordenadas do restaurante onde estavam, Gabriel levantou a cabeça e viu o grande Mercedes preto passar, levantando
um torvelinho de neve. Mikhail sobrevivera. Agora, tudo o que tinham a fazer era retirá-lo do mar e trazê-lo para casa.
A viagem de volta a Copenhague durou 45 minutos; foi bem tediosa, pois nada de mais aconteceu. Gabriel deixou Keller dirigir para poder focar seu considerável poder
de concentração no áudio transmitido pelo fone de ouvido. Não havia outros sons além do rumor aveludado do motor do Mercedes e umas batidinhas monótonas. A princípio,
Gabriel achou que havia algo sob o automóvel, mas logo percebeu que Mikhail estava tamborilando sobre o descanso de braço, o que sempre fazia quando estava ansioso.
No entanto, ao sair do carro no Hotel d'Angleterre, ele parecia um homem sem uma preocupação sequer na vida. Ao entrar no saguão, encontrou os brasileiros bebendo
no bar e decidiu juntar-se a eles para um merecido drinque de final de noite. Depois disso, rumou para o quarto, que não tinha nenhuma evidência da busca altamente
profissional executada durante sua ausência. Até mesmo o notebook, objeto de uma completa revista digital, estava exatamente onde fora deixado. Mikhail utilizou-o
para redigir um alerta rápido para a equipe, cuja cópia impressa Lavon tinha nas mãos quando Gabriel e Keller retornaram ao apartamento seguro na rua com nome impronunciável.
- Você conseguiu, Gabriel. Você o pegou.
- Peguei quem?
Com um sorriso, Lavon respondeu;
- Paul. Pavel Zhirov, da Volgatek Óleo e Gás, é Paul.
O desentendimento que se seguiu foi um dos mais sérios na longa história da equipe, embora tenha se desenrolado tão discretamente que Keller mal o percebeu. De forma
incomum, o grupo se dividiu em dois, e Yaakov assumiu o controle da facção rebelde. Seu argumento era simples e defendido com fervor. A missão havia sido conduzida
com um objetivo: encontrar uma prova de que os russos tinham sequestrado Madeline como parte de uma conspiração para ter acesso ao petróleo britânico. Agora a prova
estava em seu quarto no Hotel Imperial na forma de Pavel Zhirov, chefe de segurança da Volgatek e um autêntico facínora da Central Moscovita. Segundo Yaakov, não
havia o que fazer senão capturá-lo de imediato. De outra forma, Zhirov escaparia para sempre do alcance da equipe.
Infelizmente para Yaakov, o líder da facção oposta era ninguém menos que o futuro diretor, Gabriel Allon. Ele expôs com calma todas as razões pelas quais Zhirov
deixaria Copenhague pela manhã como estava programado. Não havia tempo para planejar ou ensaiar adequadamente uma operação dessas; além disso, não haveria uma oportunidade
para a captura limpa de Zhirov que se encaixasse em qualquer um dos critérios do Escritório. Gabriel lembrou que operações-relâmpago são sempre arriscadas, mas uma
sem planejamento é a receita certa para um desastre com o qual o Escritório não poderia arcar agora. Zhirov estava livre para ir e, se necessário, o Escritório até
carregaria sua bagagem.
E assim foi que, às dez da manhã do dia seguinte, Pavel Zhirov, vulgo Paul, deixou o Hotel Imperial acompanhado por Lazarev e Bershov. Os três entraram em uma limusine
com chofer que os levou ao aeroporto de Copenhague, onde embarcaram num avião particular para Moscou. Yossi ainda tirou uma foto do embarque para um jornal que não
existia e, depois, tomou um avião para Londres. No fim daquela tarde, Gabriel já estava rodeado dos outros membros da equipe na casa segura de Grayswood. Nicolai
Avdonin disse que estava indo à cidade dos hereges para uma entrevista de emprego, e o grupo iria com ele.
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GRAYSWOOD, SURREY
A intimação chegou pelo link seguro no fim da tarde seguinte. Gabriel até a % pensou em ignorá-la, mas a mensagem deixou claro que o seu não com- parecimento implicaria
a imediata revogação da licença operacional. Assim, às seis horas, ele se dirigiu ao centro de Londres e se esgueirou pela entrada dos fundos da embaixada israelense.
O chefe de posto, um carreirista experimentado chamado Natan, esperava-o tenso no saguão. Ele acompanhou Gabriel ao andar inferior, até o Santo dos Santos, e logo
foi embora, como se temesse ser atingido por estilhaços. A câmara estava vazia, mas sobre a mesa havia uma travessa com pequenos sanduíches e biscoitos vienenses
amanteigados, além de uma garrafa de água mineral, que Gabriel tratou de guardar dentro de um armário. Era a força do hábito, já que a doutrina do Escritório pregava
que um encontro potencialmente hostil deveria ser realizado num ambiente isento de objetos que pudessem ser usados como arma.
Após vinte minutos, apareceu um homem com físico de praticante de luta livre. Vestia um terno escuro que parecia um número menor do que o ideal, além de uma camisa
social de colarinho alto que dava a impressão de que sua cabeça fora aparafusada nos ombros. Os cabelos já haviam sido louro-avermelhados, mas agora tinham mechas
brancas e eram cortados curtos para ocultar o fato de que caíam num ritmo alarmante. Ele observou Gabriel por um momento através dos óculos estreitos, como se decidindo
se iria matá-lo imediatamente ou apenas ao nascer do dia. Por fim, foi até a travessa e balançou devagar a cabeça.
- Você acha que meus inimigos sabem?
- Sabem o quê, Uzi?
- Que eu não consigo resistir a comida. Especialmente a isto - acrescentou Navot, apanhando um biscoito. - Suponho que seja genético. O que meu avô mais amava era
biscoito amanteigado e uma boa xícara de café vienense.
- Bom, é melhor ter um problema com doces do que com jogo ou mulheres.
- Falar é fácil - replicou Navot, ressentido. - Você é como Shamron: não tem fraquezas. É incorruptível. - Ele fez uma pausa. - Você é perfeito.
Gabriel percebeu a direção que a conversa estava tomando. Permaneceu em silêncio enquanto Navot olhava para o biscoito na mão como se aquilo fosse a fonte de todos
os seus problemas. Por fim, ele falou:
- Suponho que você tenha uma fraqueza: sempre deixou os sentimentos influírem em suas decisões. Terá que se livrar dessa tendência quando se tornar diretor.
- Não se trata de sentimentos, Uzi.
Navot deu um sorriso artificial.
- Então você não nega que Shamron lhe falou sobre ser o próximo diretor?
- Não, Navot. Eu não nego.
Navot já mal fingia sorrir.
- Você tem outra fraqueza, Gabriel: você é honesto. Honesto demais para ser espião.
Navot sentou e pousou os braços maciços sobre a mesa. O tampo pareceu acomodar-se sob o peso. Observando-o, Gabriel recordou uma desagradável tarde muitos anos antes,
quando formara uma dupla com Navot em um treinamento de assassinato silencioso. Gabriel perdera a conta de quantas vezes morrera naquele dia.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Por favor, Uzi, não precisamos conversar sobre isso.
- Por que não?
- Porque não vai ser bom para nenhum de nós.
- Então você se sente culpado.
- De jeito nenhum.
- Há quanto tempo você planeja tomar meu cargo?
- Ora, Uzi, você me conhece muito bem.
- Eu achava que conhecia.
Navot afastou a travessa e olhou em torno da sala.
- Será que custava eles terem deixado ao menos uma garrafa de água para mim?
- Eu a tranquei no armário.
- Por quê?
- Porque eu não queria que você me batesse com ela.
Navot segurou-lhe o cotovelo e o apertou, fazendo a mão de Gabriel ficar dormente no mesmo instante.
- Pegue-a para mim. É o mínimo que você pode fazer.
Gabriel lhe entregou a garrafa. A raiva de Navot parecia ter se atenuado, mas só um pouco. Ele desenroscou a tampa de alumínio usando apenas o polegar e o indicador
e pôs a água com gás num copo de plástico transparente, sem oferecer para Gabriel.
- O que eu fiz para merecer isso? - começou a falar, mais para si mesmo do que para Gabriel. - Eu fui um bom diretor, realmente bom. Conduzi os assuntos do Escritório
com dignidade e mantive meu país fora de qualquer problema maior com outras nações. Consegui deter o programa nuclear iraniano? Não, não consegui. Mas também não
nos meti em nenhuma guerra catastrófica. É esse o papel primordial do diretor: assegurar que um primeiro-ministro mal orientado não arraste o país para um conflito
desnecessário. Você vai aprender isso assim que sentar na minha cadeira.
Como Gabriel não respondeu, Navot resolutamente bebeu mais de sua água, como se fosse a última garrafa na terra. Sobre uma coisa ele estava certo: de fato havia
sido um bom chefe. Porém, para seu infortúnio, todos os sucessos sob sua gestão foram obra de Gabriel.
- Há outra coisa que você logo vai aprender - voltou a falar Navot. - É bem difícil comandar um serviço de inteligência com Shamron espiando por cima do ombro.
- O serviço é obra de Shamron. Ele o construiu do nada e o transformou no que é hoje em dia.
- O velho é apenas isso: um velho. O mundo mudou desde que Shamron era o diretor.
- Uzi, você não pensa mesmo assim.
- Perdoe-me, Gabriel, mas no momento não estou especialmente inclinado a simpatizar com Shamron. E nem com você, para falar a verdade.
Navot mergulhou num silêncio mal-humorado. Ao espiar através das paredes de vidro à prova de som, o chefe de posto Natan viu dois homens se fuzilando com o olhar
e resolveu voltar a seu bunker.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Uzi...
- Vão ao menos me deixar terminar o meu mandato?
- É claro que sim.
- Não queira fazer parecer a coisa mais óbvia do mundo, Gabriel. Da maneira que vejo agora, nada parece assim tão óbvio.
- Você foi um ótimo diretor, Uzi. O melhor desde Shamron.
- E qual é minha recompensa? Ser descartado e afastado antes do tempo. Sim, porque é claro que ninguém vai admitir um ex-diretor no King Saul Boulevard.
- E por que não?
- Porque é algo sem precedentes.
- Nada disso tem precedentes, Uzi.
- Desculpe-me, Gabriel, mas não vou querer que minha carreira termine como um caso de caridade.
- Você não deve se depreciar assim, Uzi.
- Parece minha mãe falando.
- Como está ela?
- Bem em alguns dias, mal em outros.
- Algo que eu possa fazer?
- Vá visitá-la na próxima vez em que estiver na cidade. Ela sempre o adorou, Gabriel. Todo mundo adora você. - Navot pegou um biscoito amanteigado. Depois mais outro.
Limpando as migalhas dos dedos grossos, prosseguiu: - Pelos meus cálculos, ainda tenho catorze meses como diretor, logo é minha a decisão de mandar ou não alguns
de nossos melhores agentes à cidade mais perigosa do mundo.
- Você me deu autorização para conduzir a missão.
- Na ocasião, havia um revólver apontado para a minha cabeça.
- O revólver ainda está lá.
- É, eu sei, por isso jamais sonharia em abortar sumariamente o seu pequeno plano. Em vez disso, vou apenas pedir que respire fundo e retome o juízo.
Ao receber apenas silêncio como resposta, Navot se inclinou sobre a mesa e olhou nos olhos de Gabriel. Seu rosto já não apresentava qualquer sinal de raiva.
- Você lembra como foi a última vez em que estivemos em Moscou, Gabriel, ou conseguiu apagar de sua memória?
- Eu me lembro de tudo, Uzi.
- Eu também - comentou Navot, com uma voz distante. - Foi o pior dia da minha vida.
- Da minha também.
Navot franziu a testa, confuso.
- Então por que, em nome de Deus, você quer voltar lá?
Navot retirou os óculos com um ar pensativo e massageou a ponte do nariz, que estava marcada. Os óculos, assim como tudo mais que ele estava usando, tinham sido
escolhidos por Bella, sua exigente esposa. Ela havia trabalhado brevemente como analista no posto do Escritório na Síria e adorava o status de esposa do diretor.
Gabriel sempre suspeitara que sua influência se estendia para bem além do guarda-roupa do marido.
- Acabou - disse Navot por fim. - Você o derrotou. Você venceu.
- Venci quem?
- Ivan.
- Isso não tem nada a ver com Ivan.
- É claro que tem. Se você não consegue perceber isso, talvez nem esteja preparado para conduzir essa operação, afinal.
- Então cancele minha licença.
- Eu adoraria. Se eu o fizer, entretanto, vou começar uma guerra que simplesmente não posso vencer. - Navot voltou a pôr os óculos e deu um breve sorriso. - Essa
é outra coisa que você vai precisar aprender quando for o chefe: escolher as batalhas com cuidado.
- Foi exatamente o que eu fiz.
- Como eu ainda estarei na chefia por catorze meses, faça a cortesia de me descrever o seu plano em linhas gerais.
- Vou trazer Pavel Zhirov para uma conversa privada. Ele vai me contar por que sequestrou e assassinou uma jovem inocente em nome dos interesses da Volgatek. E vai
confessar que a empresa não é nada mais que uma fachada para a KGB. Então, vou reduzi-los a cinzas, Uzi. Vou provar de uma vez por todas ao mundo civilizado que
a atual corja que está no Kremlin não é muito melhor do que seus antigos ocupantes.
- Vou contar um segredinho, Gabriel: o mundo civilizado já sabe de tudo isso, e ninguém está dando a mínima. A verdade é que estão todos tão falidos e apavorados
com o futuro que são até capazes de permitir que os mulás realizem seus sonhos nucleares.
Gabriel permaneceu em silêncio. Navot suspirou fundo, resignado.
- Uma confissão? É disso que você está falando?
- Gravada. Exatamente como a que ele forçou Madeline a fazer, antes de matá-la.
- E se ele não falar?
- Todo mundo fala, Uzi.
- O que você vai fazer com o Keller?
- Ele vai comigo.
- Ele é um assassino profissional que tentou matar você.
- São águas passadas. Além disso, preciso de um pouco mais de força bruta na equipe.
- Do que mais você precisa?
- Passaportes, vistos, passagens, acomodações... o de sempre, Uzi. E nossa base em Moscou deve colocar Pavel Zhirov imediatamente sob vigilância em tempo integral.
- Isso é tudo?
- Não. Preciso de você, também.
Navot ficou em silêncio.
- Eu não pedi que fosse assim, Uzi.
- Sim, eu sei. Mas isso não torna as coisas mais fáceis.
Já era quase meia-noite quando Gabriel voltou à casa segura em Grayswood. Entrando no quarto que dividia com Chiara, viu-a sentada na cama, com uma xícara de chá
de ervas sobre o criado-mudo e uma pilha de revistas no colo. Tinha os cabelos arranjados em um coque descuidado que deixava várias madeixas soltas e estava usando
os óculos novos de grife que solicitara para ler. Chiara se incomodava um pouco com o novo adereço, mas, em segredo, Gabriel apreciava o leve enfraquecimento de
sua visão. Pelo menos isso lhe dava esperanças de que, algum dia, ela viesse a parecer menos com uma filha e mais como sua esposa.
- E então, como foi? - perguntou ela, sem erguer os olhos.
- Com repouso e reabilitação adequada, acho que ainda recuperarei parcialmente os movimentos da minha mão esquerda.
- Foi tão ruim assim?
- Ele está furioso, e não o culpo.
Gabriel tirou o casaco e o jogou sobre o espaldar de uma cadeira. Chiara revirou os olhos em desaprovação, depois lambeu a ponta do dedo para virar a página da revista.
- Ele vai superar - disse casualmente.
- Esse não é o tipo de coisa que se supera, Chiara. Não teria chegado a esse ponto se você e Shamron não houvessem tramado pelas minhas costas.
- Não foi assim que aconteceu, querido.
- E como foi, exatamente?
- Shamron veio me visitar quando você estava na França procurando Madeline. Ele disse que ia pressionar você uma última vez para que aceitasse o cargo de diretor,
e que desejava minha aprovação.
- Bem simpático da parte dele.
- Não fique bravo, Gabriel. É o que ele quer. - Chiara fez uma pausa. - E o que eu quero, também.
- Você? - perguntou Gabriel, surpreso. - Tem ideia de como vai ser depois que eu prestar o juramento?
- Estamos vivendo no quarto de uma casa segura que compartilhamos com oito pessoas, incluindo um homem que já tentou matá-lo. Acho que consigo lidar com seu posto
de chefia.
Gabriel foi até a cama e começou a folhear as revistas que agora estavam ao lado de Chiara. Uma delas era voltada para mulheres grávidas e Gabriel a ergueu, perguntando:
- Você tem alguma coisa para me contar?
Chiara arrancou a revista da mão de Gabriel. Inclinando a cabeça um pouco para o lado e apoiando o queixo na mão, ele a observou atentamente por um momento.
- Não me olhe assim - pediu ela.
- Assim como?
- Como se eu fosse uma pintura.
- Não dá para evitar.
Chiara sorriu.
- Em que você está pensando?
- Estou pensando em como queria estar sozinho com você, e não dividindo uma casa com oito pessoas.
- Incluindo um sujeito que já tentou matá-lo. Mas em que você está realmente pensando?
- Por que você não me pediu para não ir a Moscou?
- Eu me faço a mesma pergunta.
- E então, por quê?
- Porque eles a trancaram num carro e a mataram queimada.
- Não há nenhuma outra razão?
- Nenhuma - respondeu Chiara. - E, caso você esteja imaginando se eu quero ir a Moscou com a equipe, a resposta é “não”. Eu não saberia me virar por lá. Acabaria
cometendo algum erro.
Gabriel subiu na cama e pousou a cabeça sobre o ventre de Chiara.
- Você não vai tirar as roupas? - perguntou ela.
- Estou muito cansado.
- Importa-se se eu ler um pouco mais?
- Você pode fazer o que quiser.
Gabriel fechou os olhos. O som de Chiara folheando a revista ia embalando seu sono, até que ela subitamente perguntou:
- Você ainda está acordado?
- Não - murmurou ele.
- Ela sabia que essa história ia terminar em Moscou, Gabriel?
- Ela quem?
- A velha na Córsega. Ela sabia?
- Sim. Suponho que sim.
- Ela lhe disse para não ir?
- Não - respondeu Gabriel, culpado, sentindo como se uma faca dilacerasse seu peito. - Ela me disse que eu estaria em segurança lá.
- Ela viu mais alguma coisa?
- Uma criança. Ela viu uma criança.
_ Uma criança? De quem? - perguntou Chiara, mas Gabriel já não a escutava. Ele se via correndo em direção a uma mulher através de um interminável campo nevado. A
mulher estava em chamas e a neve estava toda manchada de sangue.
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GRAYSWOOD, SURREY
Uzi Navot, diretor do serviço de inteligência israelense, chegou à casa segura em Grayswood às sete e vinte do dia seguinte, enquanto uma cinzenta aurora de dezembro
raiava sobre as árvores desfolhadas do Knobby Copse. A primeira pessoa que ele encontrou foi Christopher Keller, perseguindo uma bolinha de pingue-pongue, após um
ponto decisivo de Yaakov. O placar estava oito a cinco para Yaakov, mas Keller já se aproximava.
- Quem é você? - perguntou Keller, ao ver o carrancudo homem de óculos no hall de entrada.
- Não lhe interessa - retrucou Navot.
- Nome estranho. É hebraico, certo?
Navot franziu a testa.
- Você deve ser Keller.
- É, devo ser.
- Onde está Gabriel?
- Ele foi a Guildford com Chiara.
- Por quê?
- Porque nós comemos todo o peixe do lago.
- E quem está no comando?
- Os internos.
Navot sorriu.
- Não mais.
Após a chegada pouco ortodoxa de Navot, a equipe entrou em modo de guerra. Seria uma guerra não declarada, como todos os seus conflitos, travada em território hostil,
contra um inimigo maior e mais capacitado. O Escritório é considerado um dos melhores serviços de inteligência do mundo, mas não chega a ser páreo para a irmandade
da espada e do escudo, herdeira de uma orgulhosa e sanguinária tradição. Por mais de setenta anos, a KGB protegeu implacavelmente o comunismo soviético contra inimigos
reais ou percebidos como tal, agindo também na vanguarda do Partido no exterior, recrutando e plantando milhares de espiões por todo o planeta. Seu poder chegou
a ser quase ilimitado, quase fazendo da KGB um Estado dentro do Estado. Após o colapso da União Soviética, ela tornou-se o Estado. E a Volgatek era a sua companhia
petrolífera.
A todo momento, Gabriel destacava essa conexão entre a Volgatek e o SVR enquanto a equipe começava seus trabalhos. A empresa e o serviço de inteligência eram uma
só entidade, e isso significava que Mikhail estaria em mãos inimigas no momento em que seu avião partisse de Londres. Sua falsa identidade enganara bem Gennady Lazarev,
mas não resistiria muito tempo nas sessões de interrogatório em Lubyanka. Assim como Mikhail. Gabriel advertiu que Lubyanka era o fim da linha, o lugar onde agentes
e operações morriam.
Entretanto, os pensamentos de Gabriel estavam mais concentrados em Pavel Zhirov, o chefe de segurança da Volgatek e principal articulador do plano para obter acesso
ao petróleo britânico no mar do Norte. Nas 24 horas desde a chegada de Navot à casa de Grayswood, o posto do Escritório em Moscou já tinha determinado que Zhirov
morava no apartamento de um prédio fortificado nas Colinas do Pardal, uma região de elite às margens do rio Moscou. Sua rotina diária era típica da duplicidade de
suas atividades: passava a manhã nos luxuosos escritórios da Volgatek na rua Tverskaya e, à tarde, ia para a Central Moscovita, o bem arborizado complexo do SVR
em Yasenevo. A equipe de vigilância do Escritório em Moscou tirou várias fotos de Zhirov entrando e saindo de sua limusine Mercedes com chofer, embora nenhuma revelasse
claramente suas feições. Gabriel não pôde deixar de admirar o profissionalismo do russo. Ele já tinha demonstrado ser um adversário capaz quando sua artimanha confundira
os agentes do Escritório. Capturá-lo nas ruas de Moscou exigiria uma operação com um nível equivalente de habilidade.
Eli Lavon enfatizou:
- Com duas importantes diferenças: Moscou não é a Córsega, e Pavel Zhirov não estará de camiseta, pilotando uma lambreta numa estradinha deserta, vestindo apenas
um vestido de alças.
- Então teremos de pensar em um meio de pôr Mikhail no carro de Zhirov - comentou Gabriel. - Com uma arma carregada no bolso de trás, é claro.
- E como você pretende fazer isso?
- Assim.
Sentando-se ao computador, com alguns rápidos toques no teclado, Gabriel recuperou a gravação das últimas palavras de Lazarev a Mikhail na Dinamarca:
“Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte .Senão,você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.”
“Por que Moscou?” ‘Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?”
‘É claro que não”
‘E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.’
Gabriel parou a reprodução e olhou para Lavon, dizendo:
- Posso estar enganado, mas suspeito que o retorno de Nicholas Avedon à Rússia não correrá sem problemas.
- Que tipo de problemas?
- O tipo que só Pavel pode resolver.
- E quando Mikhail estiver na limusine?
- Ele dará a Pavel a chance de fazer uma escolha simples.
- Essa escolha seria vir quietinho ou ter os miolos espalhados pelo interior do lindo Mercedes?
- Alguma coisa do gênero.
- Bem, e quanto à regra de ouro de Shamron?
- Qual?
- Aquela que fala sobre exibir armas em público.
- Ah, existe uma pequena e pouco conhecida exceção quando se trata de encostar um revólver nas costelas de um gângster como Pavel.
Lavon ficou pensativo, e por fim falou:
- Precisaremos trazer o motorista, também. Caso contrário, todos os agentes da FSB e milicianos russos ficarão no nosso encalço.
- Sim, Eli, eu sei disso.
- Onde você pretende conduzir o interrogatório?
- Aqui.
Digitando mais algumas teclas, Gabriel apresentou o local. Lavon olhou para a tela e comentou:
- Adorável. Quem é o proprietário?
- Um homem de negócios russo que não conseguiu mais suportar a vida na Rússia.
- E onde ele vive agora?
- Bem perto da residência de Shamron.
Gabriel fez desaparecer a imagem da casa com um clique do mouse.
- Bem, isso deixa só mais uma questão... - continuou Lavon.
- Tirar Mikhail da Rússia.
Lavon assentiu.
- Sim, e ele não poderá sair com a identidade de Nicholas Avedon.
- De preferência, com o mínimo possível de obstáculos russos a superar - acrescentou Gabriel.
- E como resolveremos isso?
- Da mesma forma que Shamron conseguiu tirar Eichmann da Argentina.
- El Al?
Gabriel assentiu.
- Garoto levado - comentou Lavon.
Gabriel sorriu.
- É. E estou só começando.
Navot aprovou imediatamente os planos de Gabriel, faltando cinco dias para o prazo final dado a Mikhail por Lazarev. Cinco dias para verificar uma miríade de questões
grandes e pequenas - ou, como Lavon observou, cinco dias para determinar se aquela visita de Mikhail à Rússia terminaria melhor do que a última. Passaportes, vistos,
passagens e providências de transporte e hospedagem: tudo teria que ser feito em passo duplamente acelerado. E havia ainda as rotas de fuga e esconderijos, os planos
de contingência, e os planos B para os planos de contingência. A tarefa do grupo era ainda mais difícil porque Gabriel não podia dizer onde ou quando se daria a
captura de Zhirov. Eles teriam que improvisar numa cidade que, ao longo de sua longa e sangrenta história, nunca acolhera bem livres-pensadores.
Ao longo daqueles dias e noites, Gabriel exigiu o máximo - e, quando ele virava as costas, Navot se encarregava de pressionar a equipe ainda mais. Não havia tensão
visível entre os dois, nenhum sinal de que um estava em ascensão e o outro rumava para a aposentadoria. Na verdade, vários membros da força-tarefa imaginavam se
não estariam testemunhando a formação de uma parceria que poderia continuar para bem depois da posse de Gabriel como chefe do Escritório. Yaakov, o mais fatalista
do grupo, não compartilhava dessa hipótese: “Seria como a nova esposa permitindo que a ex-mulher mantivesse seu velho quarto na casa. Isso nunca vai acontecer.”
Lavon, entretanto, não tinha tanta certeza. Se havia alguém tão seguro de si que pudesse admitir a permanência do predecessor no serviço, esse alguém era Gabriel
Allon. Afinal de contas, disse Lavon, se ele conseguira fazer as pazes com Keller, certamente seria capaz de acertar as contas com Navot.
As conversas sobre os planos futuros de Gabriel eram sempre interrompidas assim que Chiara entrava no recinto. A princípio, ela tentou colaborar, mas, como o assunto
constante era a Rússia, o seu humor logo foi arruinado. Chiara só estava viva porque membros daquela equipe certa vez arriscaram os pescoços para salvá-la. Agora,
enquanto lutavam para cumprir um prazo quase impossível, ela assumiu o papel de cuidadora. Apesar da tensão que reinava na casa, esforçava-se para fazer prevalecer
um clima bem familiar. Toda noite, eles sentavam à mesa para uma farta refeição e, por insistência de Chiara, falavam sobre qualquer assunto que não fosse a missão:
livros, filmes e até mesmo o futuro de seu problemático país. Após pouco mais de uma hora desse intervalo, Gabriel e Navot punham-se de pé e o trabalho recomeçava.
Chiara cuidava sozinha da louça com prazer, cantarolando suavemente à pia para abafar o som da conversa na sala contígua. Mais tarde, confidenciou a Gabriel que
o simples som de uma palavra russa provocava uma sensação de dor e vazio em seu útero.
O homem que estava no centro daquela operação permanecia jovialmente indiferente aos esforços da equipe de agentes, ou essa foi a impressão de quem encontrou Nicholas
Avedon após o regresso a Londres. Tinha a postura de uma pessoa que já nem se preocupava em ocultar o fato de estar alcançando lugares que os outros nem podiam sonhar
alcançar. Orlov babava pelo protegido como se fosse o filho que nunca tivera, e parecia a cada dia mais dependente de Avedon. O pronome nós passou a figurar pela
primeira vez no vocabulário de Orlov quando ele se referia aos negócios - uma mudança de tom que não passou despercebida no centro financeiro londrino. Ele comunicou
à sua equipe que passaria parte do mês de janeiro em um local não revelado do Caribe:
- Preciso de um belo e longo descanso. Agora que tenho Nicholas, enfim posso tirar férias.
Com Orlov aparentemente distante, os rumores nos círculos financeiros eram de que agora Nicholas Avedon era o homem a ser procurado na VOI. A maior parte dos interessados
tinha que esperar uma semana ou mais por uma entrevista com ele, mas quando ligou um tal Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, Avedon agendou uma
reunião sem demora. O encontro se deu em seu escritório, com vista para a Praça Hanover, embora o assunto tratado nada tivesse a ver com negócios ou investimentos.
Ao término, ele fez uma chamada de três minutos para um número de Moscou, com resultados satisfatórios. Em seguida, acompanhou o Sr. Albright aos elevadores, com
o ar de quem está certo do sucesso. Em tom bem audível para quem estivesse por perto, anunciou:
- Vou expor os detalhes para Viktor, mas me parece que está tudo certo para seguirmos em frente sem problemas.
Naquela noite, um carro estacionou do lado de fora do prédio de Mikhail em Maida Vale. Tempos depois, Graham Seymour identificaria o homem que saiu do veículo como
um mensageiro dentre os numerosos agentes da rezidentura do SVR em Londres. O sujeito pegou o passaporte falso de Mikhail e o levou à embaixada russa em Kensington
Gardens. Quando voltou, uma hora mais tarde, trazia o documento, que já tinha recebido apressadamente um carimbo de visto para a Rússia. Dentro, Mikhail encontrou
o cartão de embarque de um voo da British Airways com destino a Moscou, que decolaria às dez horas da manhã seguinte.
Mikhail pôs a passagem e o passaporte em sua valise e entrou em contato com Orlov, na Cheyne Walk, para dizer que precisava de alguns dias de folga.
- Desculpe, Viktor, mas estou exausto. E, por favor, sem chamadas ou e-mails. Quero sair de circulação.
- Por quanto tempo?
- Até quarta ou quinta-feira, no mais tardar.
- Tire a semana toda.
- Tem certeza?
- Prometo não fazer nenhuma bobagem enquanto você estiver longe.
- Obrigado, Viktor. Você é demais.
Mikhail tentou dormir naquela noite, mas em vão. Era o que sempre acontecia antes de uma operação. Assim, pouco antes das quatro da madrugada, levantou-se da cama
e vestiu sua armadura de Nicholas Avedon, também conhecido como Nicolai Avdonin. Às seis, um carro estava na porta do edifício para conduzi-lo a Heathrow, onde ele
passou sem dificuldades pela segurança, com Christopher Keller e Dina Sarid por perto para garantir sua retaguarda. Ao atravessar o portão de embarque, pôde ver
uma versão bem modificada de Gabriel absorvido na leitura do Economist com o que parecia ser um interesse exagerado. Mikhail entrou no avião sem olhá-lo, mas Gabriel
ainda esperou até pouco antes de a porta se fechar para se precipitar em direção ao compartimento de primeira classe.
Após a decolagem, a torre britânica orientou a aeronave, para que sobrevoasse Basildon, até que, precisamente às dez e meia, ela entrou no espaço aéreo internacional.
Nervoso, Mikhail tamborilava no console central de seu assento. A partir de agora, estava nas mãos do inimigo, junto com o futuro chefe da inteligência israelense.
48
MOSCOU
Os manifestantes afluíam para a Praça Vermelha em pequenos grupos, de forma a não serem identificados pela milícia de Moscou ou pelos gorilas de jaquetas de couro
da FSB. Eram artistas, escritores, jornalistas, roqueiros punk e até mesmo algumas poucas babushkas que ainda sonhavam em passar os últimos anos da vida em um país
realmente livre. Por volta do meio-dia já havia uma multidão de centenas de pessoas, numerosa demais para ocultar seus reais motivos. Uma pessoa desfraldou uma bandeira
e outra surgiu com um megafone, acusando o presidente de fraudar as últimas eleições, o que por sinal era a pura verdade. Depois, o manifestante fez uma piada sobre
outras coisas que o presidente havia roubado do povo russo, e que o líder dos mal-encarados agentes da FSB não considerou nem um pouco engraçada.
Após um breve sinal, os milicianos avançaram com grande violência sobre a multidão, quebrando tudo o que viam pela frente, inclusive algumas das cabeças mais importantes.
O dono do megafone levou a pior, e foi visto pela última vez ensanguentado e semiconsciente na traseira de uma van da polícia. Mais tarde, o Kremlin anunciou que
o homem seria acusado de tentar incitar um motim, logo poderia ficar preso por dez anos numa “neogulag”. A subserviente imprensa russa referiu-se aos manifestantes
como “desordeiros”, o mesmo rótulo que o regime soviético aplicava a todos os oponentes, e nem um único comentarista ousou criticar as táticas violentas do governo.
Talvez se devesse perdoar o seu silêncio: atualmente, jornalistas que irritam o Kremlin têm o curioso costume de aparecerem mortos.
No Aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, as notícias da manifestação na Praça Vermelha passaram rapidamente pelas televisões, enquanto Mikhail deixava a ponte de desembarque,
seguido trinta segundos depois por Gabriel. Conforme se encaminhavam ao controle de passaportes, Allon notou um mal nutrido policial da alfândega com o uniforme
surrado e, ao lado, um homem de terno bem cortado, que tinha nas mãos uma fotografia. Ele a consultou por duas vezes enquanto Mikhail se aproximava. Depois, foi
até o falso Nicholas e disse algo em russo que Gabriel não chegou a entender. Mikhail sorriu e apertou a mão do homem antes de acompanhá-lo até uma porta não identificada.
Gabriel continuou até o controle de passaportes, onde uma mulher séria observou seu rosto por um momento desconfortavelmente longo. Por fim, ela carimbou com força
o passaporte e acenou para que ele fosse em frente. Bem-vindo à Rússia, pensou enquanto adentrava o salão de desembarque apinhado. Ao sair do aeroporto, logo sentiu
a mistura dos cheiros de tabaco e diesel, que fizeram sua cabeça rodar. O céu do entardecer estava claro e o frio era cortante. Olhando à esquerda de forma sutil,
Gabriel pôde ver Mikhail e seu acompanhante da Volgatek entrando no calor confortável do Mercedes sedã que os esperava. Juntou-se à longa fila de espera de táxis.
O frio do concreto atravessava as solas finas de seus mocassins ocidentais; quando ele enfim se esgueirou para dentro de um Lada decrépito, seu maxilar estava tão
congelado que Gabriel mal conseguia falar. O motorista perguntou pelo destino e ele pediu para ser levado ao Hotel Metropol - nem soube como o homem conseguiu entender,
tamanha sua dificuldade de dicção.
Saindo do aeroporto, o táxi tomou a Leningradsky Prospekt e iniciou o longo e penoso trajeto até o centro de Moscou. Faltavam cinco para as sete, já no final do
terrível rush vespertino moscovita; ainda assim, o ritmo de deslocamento era glacial. O motorista tentou entabular uma conversa, mas seu inglês era tão impenetrável
como o tráfego. Gabriel concordava polidamente de vez em quando, mas sua atenção estava voltada mesmo era para os edifícios decadentes ao longo da velha e malcuidada
via. Por um breve período, os prédios eram apenas horríveis, mas agora haviam se transformado em ruínas. Em cada esquina, cada telhado, cartazes anunciavam promessas
de luxúria. Era o pesadelo comunista com uma nova demão de capitalismo, refletiu Gabriel. Deprimente e impactante.
Enfim cruzaram o Anel Rodoviário dos Jardins e a prospekt embocou na rua Tverskaya, a versão moscovita da Madison Avenue, que os levou por uma ladeira suave, passando
pela nova e luxuosa sede da Volgatek e pelos muros de tijolos vermelhos do Kremlin. Então, chegaram às oito pistas da rua Okhotnyy Ryad. Virando à esquerda, passaram
pela Câmara dos Deputados, pela velha Casa dos Sindicatos e pelo Teatro Bolshoi. Entretanto, Gabriel não observava nada disso. Seus olhos enxergavam apenas a fortaleza
amarela bem iluminada por holofotes no alto da Praça Lubyanka.
- KGB - falou o motorista, apontando por sobre o volante
- Não existe KGB - replicou Gabriel em tom distante. - A KGB é uma coisa do passado.
O taxista resmungou algo sobre a ingenuidade dos estrangeiros e conduziu o carro até a entrada do Hotel Metropol. O saguão havia sido restaurado fielmente voltando
à sua beleza original, mas a mulher de meia-idade no balcão de recepção não tinha tido a mesma sorte. Ela saudou Gabriel com um sorriso gélido, fez algumas perguntas
polidas sobre a natureza de sua viagem e depois estendeu um longo formulário de registro - uma cópia seria enviada às autoridades competentes. Gabriel o preencheu
rapidamente como se fosse Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, e recebeu em troca as chaves dos aposentos. Um mensageiro do hotel ofereceu-se para
ajudá-lo com a bagagem e pareceu aliviado quando Gabriel lhe disse que não era necessário. Mesmo assim, premiou-o pela solicitude com uma gratificação que indicava
sua pouca familiaridade com o valor da moeda russa.
O aposento ficava no quarto andar, com vista para as dez pistas da Teatralny Prospekt. Gabriel sabia que o recinto tinha escutas e nem se deu o trabalho de localizá-las.
Tratou de fazer duas chamadas a clientes que não eram de fato clientes e, depois, foi examinar o monte de e-mails que se acumulara durante a viagem. Uma das mensagens
era de um advogado de Nova York, a respeito de um determinado investimento de natureza legalmente dúbia. O verdadeiro remetente era Eli Lavon, que reservara um quarto
algumas portas depois no mesmo corredor. O real conteúdo do e-mail foi revelado após Gabriel digitar a senha adequada: ao que parecia, Gennady Lazarev levara seu
possível novo funcionário ao Lounge 02, no Ritz, para aperitivos e tira-gostos. Estavam também presentes Dmitry Bershov, Pavel Zhirov e quatro beldades russas. Fotos
de vigilância iam em anexo, por cortesia de Yaakov e Dina, que ocupavam uma mesa no lado oposto do salão.
Gabriel digitou novamente a senha e a mensagem retornou ao texto original. Em seguida, pôs os fones de ouvidos e captou uma transmissão segura do áudio do celular
de Mikhail. Dava para ouvir o tilintar de copos, risadas e o chilrear das acompanhantes russas, que pareciam fúteis mesmo em um idioma incompreensível. Logo escutou
a voz familiar de Lazarev murmurando uma confidência ao ouvido de Mikhail:
- Trate de descansar bem esta noite. Temos grandes planos para você amanhã.
Eles permaneceram no lounge até as onze, quando Mikhail se retirou desacompanhado, mas com uma tremenda dor de cabeça, para sua suíte de luxo no Ritz. Apesar do
conselho de Lazarev, não conseguiu dormir, pois sua mente era um turbilhão de lembranças de operações passadas, encadeadas como numa matéria jornalística sobre as
maiores catástrofes do século. Mikhail ansiava por atividade, por uma ação de qualquer tipo, mas as câmeras de vigilância certamente ocultas no quarto eram um impeditivo.
Assim, ele se viu enroscado nos lençóis úmidos de sua cama, com uma imobilidade cadavérica, até as sete da manhã,
quando a chamada do serviço de despertador do hotel enfim lhe permitiu se levantar, grato.
Seu café chegou pouco depois, e Mikhail o tomou enquanto se atualizava sobre o mundo corporativo no noticiário londrino. Desceu para a academia, onde fez um treino
impressionante, testemunhado pelo observador de um dos serviços de inteligência russos. Voltando ao quarto, encarou um banho gelado para injetar um pouco de vida
nos ossos cansados. Então, vestiu o melhor terno cinza risca de giz - aquele que Dina tinha escolhido para ele na Anthony Sinclair da Savile Row. Mikhail avistou-a
no salão de café da manhã quinze minutos depois, fitando Keller nos olhos como se detivessem o segredo para a felicidade eterna. A algumas mesas de distância, Yossi
devolvia seus ovos mexidos. “Eu pedi ovos moles, mas estes deviam ter sido servidos num copo.” O comentário ricocheteou no garçom como uma pedrinha jogada num trem
de carga. “Você quer os seus ovos num copo?” perguntou ele.
Às nove horas em ponto, depois de ler os jornais matinais e resolver algumas questões pendentes em Londres por e-mail, Mikhail foi até o saguão ultramoderno do Ritz.
Lá, aguardava-o o mesmo sujeito da Volgatek que o retirara da fila de controle de passaportes em Sheremetyevo na noite anterior. Seu rosto sorridente era tão agradável
quanto uma janela quebrada.
- Espero que tenha dormido bem, Sr. Avedon.
- Nunca dormi melhor - mentiu Mikhail, cordial.
- Nossos escritórios ficam muito perto. Espero que não se incomode de caminhar.
- Nós vamos sobreviver?
- As chances são boas, mas não há nenhuma garantia em Moscou nesta época do ano.
O sujeito virou e conduziu Mikhail para a rua Tverskaya. Enquanto subia a ladeira inclinando o corpo contra o vento forte, o falso Avedon se deu conta de que aquele
amontoado anônimo de lã e pele caminhando dois passos atrás dele era Eli Lavon, que o escoltou em silêncio até a porta da frente da Volgatek, como se quisesse lembrar
a Mikhail que ele não estava sozinho. Em seguida, flutuou na direção do sol forte de Moscou e desapareceu.
Se houvesse quaisquer mal-entendidos quanto à missão verdadeira da Volgatek, eram aquietados pela vasta escultura de metal no saguão da sede da empresa na rua Tverskaya.
A obra retratava o planeta com uma Rússia desproporcional na posição dominante,bombeando energia vital para os quatro cantos da Terra.
Abaixo do globo, um Atlas sorridente num terno italiano feito sob encomenda, estava Gennady Lazarev.
- Bem-vindo ao novo lar - disse, apertando a mão de Mikhail. - Ou devo dizer, ao verdadeiro lar?
- Um passo de cada vez, Gennady.
Lazarev apertou a mão de Mikhail com um pouco mais de força, como a indicar que não seria contrariado, e o conduziu até um elevador executivo, que os levou ao último
andar do prédio. Na entrada, havia uma placa: BEM-VINDO, NICOLAI! Lazarev parou para admirá-la, como se tivesse se esforçado muito na redação, antes de levar Mikhail
até o vasto escritório que ele poderia usar sempre que estivesse na cidade. Tinha uma vista do Kremlin e vinha com uma secretária perigosamente atraente chamada
Nina.
- O que você acha? - perguntou Lazarev, com seriedade.
- Bom.
- Venha. - Lazarev conduziu Mikhail pelo cotovelo. - Estão todos ansiosos para conhecê-lo.
De fato, Lazarev não estava exagerando quando disse “todos”. Durante as duas horas e meia seguintes, Mikhail sentiu mesmo que cumprimentava todos os funcionários
da empresa, e possivelmente mais algumas pessoas também. Havia uma dúzia de vice-presidentes de diversas formas, tamanhos e responsabilidades, e uma figura cadavérica
chamada Mentov que fazia algo com análise de riscos que Mikhail não conseguiu nem fingir entender. Em seguida, foi apresentado à equipe científica da Volgatek -
dos geólogos que buscavam novas fontes de petróleo ao redor do mundo aos engenheiros responsáveis por desenvolver novas formas de extraí-lo. Depois, percorreu os
andares inferiores para conhecer as pessoas de menor importância: jovens executivos que sonhavam tomar seu lugar algum dia, os mortos-vivos presos às suas mesas
e às xícaras de café vermelhas da Volgatek. Mikhail não pôde deixar de se perguntar o que acontecia com um funcionário demitido de uma empresa administrada e possuída
pela sucessora da KGB. Talvez recebesse um relógio de ouro e uma pensão, mas Mikhail achava pouco provável.
Por fim, voltaram ao último andar e entraram no espaçoso escritório de Lazarev, similar a um átrio, onde ele falou longamente sobre sua visão para o futuro da Volgatek
e o papel que queria atribuir a Mikhail. Sua posição inicial na empresa seria de diretor da Volgatek Reino Unido, a subsidiária que seria formada para administrar
o projeto das Ilhas Ocidentais. Uma vez que o petróleo estivesse fluindo, Mikhail receberia responsabilidades maiores, em especial na Europa Ocidental e na América
do Norte.
- Isso seria o suficiente para mantê-lo interessado? - perguntou Lazarev.
- Pode ser.
- O que seria necessário para convencê-lo a deixar Viktor e vir trabalhar comigo?
- Dinheiro, Gennady. Muito dinheiro.
- Posso garantir, Nicolai, que dinheiro não é problema.
- Então você tem a minha total atenção.
Lazarev abriu uma pasta de couro e retirou uma única folha de papel.
- Seu pacote de compensação vai incluir apartamentos em Aberdeen, Londres e Moscou. Você vai usar jatos particulares, é claro, e poderá utilizar uma casa da Volgatek
que mantemos no sul da França. Além do salário-base, você receberá diversos bônus e incentivos que levarão sua remuneração total para algo assim.
Lazarev posicionou a folha na frente de Mikhail e apontou para o número próximo ao pé da página. Mikhail o observou por um instante, coçou a cabeça careca e franziu
a testa.
- E então? - perguntou Lazarev.
- Nem perto.
Lazarev sorriu.
- Achei que a sua resposta seria essa - disse, guardando a folha na pasta -, então tomei a liberdade de preparar uma segunda oferta. - Ele a colocou na frente de
Mikhail. - Melhor?
- Agora está mais quente - respondeu Mikhail, sorrindo para Lazarev. - Definitivamente mais quente.
49
PRAÇA VERMELHA, MOSCOU
As quatro horas da tarde, eles já tinham as linhas gerais de um acordo.
Lazarev preparou um documento com uma página, reservou um salão particular no Café Pushkin para a comemoração e mandou Mikhail de volta ao Ritz para algumas horas
de descanso. O falso Avdonin percorreu a pequena distância a pé, acompanhado de perto por Gabriel, que andava do outro lado da rua com a lapela levantada cobrindo
os ouvidos e a boina baixada até as sobrancelhas. Ele observou Mikhail atravessar a entrada suntuosa do hotel e continuou ao longo da rua Tverskaya até a Praça da
Revolução. Lá, parou um pouco para ver um imitador de Lênin instando um grupo de turistas japoneses atônitos a tomarem os meios de produção de seus soberanos burgueses.
Em seguida, cruzou o arco do Portão da Ressurreição e adentrou a Praça Vermelha.
Já estava escuro e o vento decidira dar uma folga para a cidade conduzir seus negócios em paz. Com a cabeça baixa e os ombros contraídos, Gabriel parecia um moscovita
acabado qualquer. Percorreu às pressas o muro norte do Kremlin e passou pelos olhares vazios dos guardas congelados em frente ao Mausoléu de Lênin. Bem à sua frente,
resplandecentes à luz branca, erguiam-se os domos da Catedral de São Basílio, coloridos como bengalas de açúcar. Gabriel olhou de relance para o relógio da Torre
do Salvador e seguiu ao longo do muro do Kremlin, até o ponto onde Stálin, o assassino de milhões, repousava pacificamente num lugar de honra. Lavon se juntou a
ele pouco tempo depois.
- O que você acha? - perguntou Gabriel em alemão.
- Acho que eles deviam tê-lo enterrado num túmulo sem marcação em algum campo, mas essa é só a minha opinião.
- A barra está limpa?
- O máximo que pode estar num lugar como Moscou.
Gabriel se virou sem dizer nada e conduziu Lavon pela praça até a entrada da GUM. Antes da queda da União Soviética, aquele tinha sido o único estabelecimento comercial
do país onde os russos sempre podiam encontrar um casaco de inverno ou um par de sapatos. Agora era um shopping de estilo ocidental, entupido de todas as bugigangas
inúteis que o capitalismo tem a oferecer. O elevado teto de vidro reverberava com o burburinho dos compradores noturnos. Lavon ficou encarando o BlackBerry enquanto
andava ao lado de Gabriel. Atualmente, esse era um hábito bem russo.
- A secretária de Lazarev acabou de enviar um e-mail para a equipe sênior sobre o jantar de hoje no Café Pushkin - informou Lavon. - Zhirov está na lista de convidados.
- Não ouvi a voz dele hoje na Volgatek, durante a passagem de Mikhail.
- Ele não estava lá - explicou Lavon, ainda olhando o celular. - Depois de deixar seu apartamento nas Colinas do Pardal, foi direto para Yasenevo.
- Por que logo hoje? Por que não estava na Volgatek para conhecer o garoto novo?
- Talvez ele tivesse outros afazeres.
- Como o quê?
- Talvez alguém mais precisasse ser sequestrado.
- É isso que me preocupa.
Gabriel parou em frente à vitrine de uma joalheria e examinou alguns relógios suíços reluzentes. Ao lado, havia um café de estilo soviético com mulheres roliças
infelizes de avental branco colocando comida russa barata em pratos cinzentos da época de Leonid Brejnev. Mais de vinte anos depois da queda do comunismo, alguns
russos ainda tinham nostalgia do passado totalitário.
- Você não está ficando inseguro, está? - perguntou Lavon.
- É dezembro em Moscou, Eli. É impossível não ter receios.
- O que você quer fazer?
- Gostaria que o hotel desse a regalia especial a Nicholas Avedon um pouco antes do planejado.
- Regalias desse tipo são mal vistas no Café Pushkin.
- Qualquer pessoa importante anda armada no Pushkin, Eli.
- É arriscado.
- Não tão arriscado quanto a alternativa.
- Por que nós não pulamos o jantar e vamos direto para a sobremesa?
- Eu adoraria - respondeu Gabriel -, mas o trânsito da hora do rush não vai deixar. Teremos que esperar até as dez horas. Caso contrário, nunca vamos conseguir tirá-lo
da cidade. Ficaríamos com as mãos atadas.
- Uma escolha infeliz de palavras.
- Envie a mensagem, Eli.
Lavon digitou alguns caracteres no BlackBerry e levou Gabriel para fora, até a rua Il'inka. O vento se intensificava de novo e a temperatura tinha caído. Lágrimas
correram livremente pelo rosto de Gabriel enquanto eles passavam pelas fachadas características dos sólidos prédios imperiais. Em seu fone de ouvido, ouvia Mikhail
cantarolar durante o banho no Ritz.
- Quero cobertura completa nele o tempo inteiro - disse Gabriel. - Nós o levamos para jantar, sentamos com ele durante o jantar e o trazemos de volta para o hotel.
É aí que começa a diversão.
- Só se Pavel concordar em resgatar Mikhail.
- Ele é o chefe de segurança da Volgatek. Se o executivo mais novo da empresa acreditar que sua vida está em perigo, Pavel irá correndo. E então o faremos se arrepender.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Qual, Eli? Ucrânia? Bielorrússia? Ou que tal o Cazaquistão?
- Na verdade, eu estava pensando na Mongólia.
- A comida é ruim.
- A comida é terrível - concordou Lavon -, mas pelo menos não é a Rússia.
No fim da rua, eles dobraram à esquerda e subiram a ladeira em direção à Praça Lubyanka.
- Você acha que isso já foi feito antes? - perguntou Lavon.
- O quê?
- Sequestrar um oficial da KGB dentro da Rússia.
- Não existe KGB, Eli. A KGB é coisa do passado.
- Não, não é. Agora se chama FSB. E ocupa aquele prédio grande e feio bem na nossa frente. E eles vão ficar bastante chateados quando descobrirem que um dos seus
companheiros desapareceu.
- Se o pegarmos direito, eles não vão ter tempo para fazer nada.
- Se o pegarmos direito - enfatizou Lavon.
Gabriel ficou em silêncio.
- Faça-me um favor esta noite, Gabriel: se você não tiver a oportunidade de dar um tiro adequado, não dispare. - Ele fez uma pausa. - Eu detestaria perder a chance
de trabalhar para você como diretor.
Eles tinham chegado ao topo da ladeira. Lavon parou de andar e contemplou a imensa fortaleza amarela no outro lado da Praça Lubyanka.
- Por que você acha que a mantiveram? - perguntou, sério. - Por que não a arrancam e colocam um monumento às vítimas no lugar?
- Pela mesma razão que não removem os ossos de Stálin.
Lavon ficou quieto por um momento.
- Eu odeio este lugar - disse por fim. - Ao mesmo tempo, amo-o com carinho. Estou louco?
- Completamente - respondeu Gabriel -, mas essa é só a minha opinião.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Eu também, Eli. Mas não podemos.
- A Mongólia fica muito longe?
- Longe demais para ir dirigindo. E a comida é terrível.
Cinco minutos depois, quando Gabriel entrou no saguão superaquecido do Metropol, Yossi saiu de seu quarto no quadragésimo quarto andar do Ritz vestindo um terno
cinza de banqueiro e uma gravata prateada. Na mão esquerda, levava um crachá dourado com o nome ALEXANDER - um nome adequado para um estudante de história como Yossi
escolher - e, na mão direita, havia uma embalagem azul lustrosa de presente com o logo do hotel. Ela era mais pesada do que Yossi fazia parecer, pois continha uma
pistola Makarov 9 mm, uma das diversas armas que a base de Moscou adquirira de fontes locais ilícitas antes da chegada da equipe. Por três dias, a arma ficara escondida
entre o estrado e o colchão no seu quarto. Ele ficou compreensivelmente aliviado de enfim poder se livrar dela.
Yossi esperou até o corredor se esvaziar para afixar na sua lapela a plaqueta com um nome. Então, dirigiu-se à porta do quarto 421. Mesmo do lado de fora, dava para
ouvir muito bem um homem cantando Penny Lane. Deu duas batidas firmes, mas educadas, a batida de um concierge. Como não obteve resposta, bateu de novo, mais alto.
Dessa vez, um homem com um roupão branco abriu a porta. Ele era alto, estava numa forma física impressionante e tinha a pele rosada por causa do banho.
- Estou ocupado - reclamou.
- Peço desculpas por interromper, Sr. Avelon - respondeu Yossi com um sotaque neutro cosmopolita -, mas a gerência gostaria de lhe oferecer um pequeno presente de
agradecimento.
- Agradeça à gerência, mas dispenso.
- A gerência ficaria desapontada.
- Não é mais daquele maldito caviar, é?
- Receio que a gerência não tenha dito.
Avedon pegou o embrulho e bateu a porta na cara sorridente do falso funcionário. Yossi girou nos calcanhares e, depois de tirar a plaqueta da lapela, voltou para
o próprio quarto. Ao entrar, despiu rapidamente o terno e vestiu uma calça jeans e um casaco pesado de lã. Sua mala estava no pé da cama. Yossi enfiou o terno num
compartimento lateral dela e fechou o zíper. Se tudo saísse de acordo com os planos, um mensageiro da base de Moscou a coletaria em algumas horas e destruiria o
conteúdo. Passou um pano em todos os objetos que tinha tocado no quarto e partiu, torcendo para ser a última vez.
Já no saguão, viu Dina folheando um jornal moscovita escrito em inglês com uma expressão de ceticismo. Passou por ela como se não a conhecesse e saiu do hotel. Um
Range Rover aguardava no meio-fio, soltando gases na noite amargamente fria, e Keller estava ao volante. Ele se embrenhou no trânsito do rush na rua Tverskaya antes
mesmo de Yossi fechar a porta. Diretamente à frente, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto; sua estrela vermelha reluzia como um sinal de alerta. Keller assobiava
desafinado enquanto dirigia.
- Você sabe o caminho? - perguntou Yossi.
- À esquerda na rua Okhotnyy Ryad, depois à esquerda na Bol'shaya Dmitrovka e novamente à esquerda no Anel dos Bulevares.
- Passou muito tempo em Moscou?
- Nunca tive o prazer.
- Você pode pelo menos fingir que está ansioso?
- Por que eu estaria ansioso?
- Porque nós estamos prestes a sequestrar um oficial da KGB em plena Moscou.
Keller sorriu enquanto pegava a primeira esquerda.
- Molezinha.
Keller e Yossi levaram vinte minutos para percorrer o trecho curto até o ponto de espera no anel rodoviário. No instante em que chegaram, Yossi mandou uma mensagem
criptografada para Gabriel, que, por sua vez, a encaminhou para o King Saul Boulevard. Ela surgiu na tela de status do Centro Operacional. Sentado em sua cadeira
habitual estava Uzi Navot. Ele assistiu à transmissão ao vivo do saguão do Ritz, cortesia do minidispositivo oculto na bolsa de Dina. Eram 7h36 em Moscou, 6h36 em
Tel Aviv. Às 6h38, o telefone ao lado do cotovelo de Navot tocou. Ele atendeu depressa, resmungou algo que soava como o próprio nome, e escutou a voz de Orit, sua
secretária executiva. No Escritório, era conhecida como “Cúpula de Ferro” - uma referência ao impressionante sistema de defesa antiaéreo israelense - devido à incomparável
habilidade de destroçar os pedidos por um instante de conversa com o diretor.
- De jeito nenhum - respondeu Navot. - Sem chance.
- Ele deixou claro que não vai embora.
Navot suspirou fundo.
- Tudo bem. Deixe-o descer, se for mesmo necessário.
Navot desligou e fitou a imagem que mostrava o saguão do hotel. Dois minutos depois, escutou a porta do Centro de Operações ser aberta e fechada. Pelo canto do olho,
viu a mão manchada que colocava dois maços de cigarros turcos em cima da mesa, além de um Zippo velho, desgastado. O isqueiro foi aceso. Uma nuvem de fumaça obscureceu
a tela.
- Achei que tinha revogado os seus passes - disse Navot em voz baixa, ainda olhando para a frente.
- Você revogou - respondeu Shamron.
- Como você entrou no prédio?
- Abri um túnel.
Shamron girou o isqueiro nos dedos. Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- É muita cara de pau sua aparecer aqui - falou Navot.
- Não é a hora nem o lugar, Uzi.
- Eu sei que não, mas ainda assim é muita cara de pau.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- Você poderia aumentar o volume do áudio do telefone de Mikhail? - perguntou Shamron. - Minha audição não é mais a mesma.
- Não é só a sua audição.
Navot pediu a um dos técnicos que aumentasse o volume.
- Que música ele está cantando? - perguntou Shamron.
- Que diferença faz?
- Responda a pergunta, Uzi.
- Penny Lane.
- Beatles?
- É, Beatles.
- Por que você acha que ele escolheu essa música?
- Talvez goste dela.
- Talvez - disse Shamron.
Navot consultou o relógio: 7h42 em Moscou, 6h42 em Tel Aviv. Shamron apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Mikhail ainda cantarolava quando saiu do quarto vestido para o jantar. No momento em que ele entrou no elevador, o embrulho estava em sua mão direita, mas três minutos
depois, ao deixar o banheiro masculino do saguão, havia sumido. A equipe do Centro de Operações viu Mikhail pela primeira vez às 7h51, filmado pela câmera de Dina,
dirigindo-se para a entrada do hotel. Lazarev estava lá, com os braços erguidos como se sinalizasse para um avião de resgate. Ele tomou Mikhail pelo ombro e o levou
até a traseira de uma limusine Maybach.
- Espero que você tenha conseguido descansar um pouco - disse Lazarev enquanto o carro se afastava do meio-fio com suavidade -, porque esta noite você vai sentir
um gostinho da verdadeira Rússia.
50
CAFÉ PUSHKIN, MOSCOU
Mais tarde, na hora de arrumar os arquivos e preencher os relatórios da missão, haveria uma discussão acalorada acerca do verdadeiro significado das palavras de
Lazarev. Um lado considerou-as uma expressão inofensiva de boa vontade, enquanto o outro viu naquela frase um aviso claro que Gabriel, o futuro diretor, deveria
reconhecer se fosse sábio. Como sempre, foi Shamron que resolveu a controvérsia: as palavras de Lazarev não tinham importância, pois o destino de Mikhail já estava
selado no instante em que entrara no carro.
O ambiente onde os eventos se passaram, o renomado Café Pushkin, não poderia apresentar uma aparência mais acolhedora, especialmente numa noite de dezembro com o
ar gélido e a neve dançando no vento siberiano. O café ficava na esquina da rua Tverskaya com o anel rodoviário, numa imponente casa do século XVIII que dava a impressão
de ter sido importada da Itália renascentista. Diante de suas belas portas francesas, havia três pistas de tráfego e, mais além, uma pequena praça onde, certa vez,
os soldados de Napoleão armaram suas tendas e queimaram limoeiros para se aquecerem. Moscovitas seguiam às pressas para casa por trilhas de cascalho e algumas mães
corajosas estavam sentadas nos bancos sob a luz dos postes, observando os filhos superagasalhados brincarem nos gramados cobertos de neve. Entre as mulheres se achavam
Mordecai, observando a entrada do café, e Rimona, de olho nas crianças. Keller e Yossi tinham encontrado uma vaga a menos de 50 metros do Pushkin. Yaakov e Oded,
também num Land Rover, estavam outros 50 metros atrás deles.
O jantar fora marcado para as oito horas, mas, como o trânsito estava pior do que o normal, Lazarev e Mikhail chegaram com doze minutos de atraso. Mordecai anotou
o horário, assim como as equipes nos Land Rovers. Gabriel também tomou nota e logo mandou uma mensagem para o Centro de Operações - algo desnecessário, claro, pois
Navot e Shamron acompanhavam com atenção a transmissão ao vivo do telefone de Mikhail. Foi assim que eles escutaram os passos pesados sobre o piso sem polimento
na entrada do Pushkin. E o barulho do elevador antigo que levou o falso Avedon ao segundo andar. E os acalorados aplausos que o receberam quando ele entrou no salão
particular reservado para a sua coroação.
Um lugar tinha sido reservado para Mikhail na cabeceira da mesa, com Lazarev à direita e Zhirov à esquerda. Apenas o chefe de segurança não parecia entusiasmado
com a aquisição do novo pupilo de Viktor Orlov. No decorrer da noite, manteve a expressão neutra de um jogador experiente perdendo dinheiro na roleta. Seu olhar,
sombrio e focado, nunca se afastou por muito tempo do rosto de Mikhail. Parecia estar calculando suas perdas e decidindo se tinha estômago para mais uma rodada.
Mikhail não deu nenhum sinal de desconforto diante da presença soturna de Zhirov. Todos os que escutaram sua performance naquela noite a descreveriam como uma das
melhores que já haviam testemunhado. Ele era o Nicholas Avedon por quem todos tinham se apaixonado. O Nicholas espirituoso. O Nicholas irritável. O Nicholas mais
esperto que os demais no salão - com exceção de Lazarev, que talvez fosse mais inteligente que qualquer um no mundo. Conforme a noite avançava, ele foi falando menos
em inglês e mais em russo, até que parou completamente de falar inglês. Agora era um deles. Era Nicolai Avdonin. Um homem da Volgatek. Um homem do futuro da Rússia.
Um homem do passado da Rússia.
A transformação foi concluída pouco depois das dez horas, quando ele fez uma imitação perfeita de Orlov, incluindo o tique no olho esquerdo, que foi aclamada por
todos. Apenas Zhirov pareceu não ver graça. Ele também não se juntou à ovação após a bênção de Lazarev. Depois dos comentários do CEO da Volgatek, os festeiros seguiram
para a rua, onde uma fila de limusines da empresa aguardava na calçada. Lazarev pediu que Mikhail fizesse uma parada no escritório antes de deixar a cidade na manhã
seguinte, para que pudessem resolver algumas pendências no acordo de contratação. Em seguida, conduziu-o até a porta aberta de um Mercedes.
- Se não se incomodar - disse, com seu sorriso calculado de matemático vou deixar Pavel levar você de volta ao hotel. Ele gostaria de fazer algumas perguntas no
caminho.
Mikhail se viu respondendo "Sem problemas, Gennady” e, sem um instante de hesitação, entrou no carro. Zhirov, o único perdedor daquela noite, estava sentado à sua
frente, encarando a janela com uma aparência inconsolável. Ele não disse nada quando o carro começou a andar. Mikhail começou a tamborilar no apoio de braço, mas
logo se forçou a parar.
- Gennady disse que você tem algumas perguntas para mim.
- Na verdade - respondeu Zhirov em voz baixa -, tenho só uma.
- Qual?
Zhirov encarou Mikhail pela primeira vez.
- Quem é você, porra?
- Parece que Pavel acabou de mudar a posição do gol - disse Navot.
Shamron franziu a testa. Ele considerava o uso de metáforas esportivas inadequado para um negócio tão vital quanto a espionagem. Ergueu os olhos para um dos monitores
e viu luzes se movendo rapidamente pelo mapa do centro de Moscou. A luz que indicava a posição de Mikhail piscava em vermelho. Quatro luzes azuis a acompanhavam,
duas na frente e duas atrás.
- Parece que o encurralamos - comentou Shamron.
- Encurralado, muito bem. A questão é se Pavel tem reforços próprios ou se está num voo solo.
- Não sei se isso faz muita diferença a esta altura.
- Alguma sugestão?
- Chute para o gol - disse Shamron, acendendo outro cigarro. - Rápido.
Eles passaram em alta velocidade pela rua Tverskaya e continuaram pelo anel rodoviário.
- Meu hotel fica naquela direção - avisou Mikhail, apontando para trás com o polegar.
- Você parece conhecer bem Moscou - replicou Zhirov. Estava claro que não se tratava de um elogio.
- É um hábito meu.
- Como assim?
- Aprender a me virar em cidades estrangeiras. Odeio ter que pedir instruções. Não gosto de agir como um turista.
- Você gosta de ficar incógnito?
- Escute, Pavel, eu não estou gostando do rumo...
- Ou talvez você já tenha visitado Moscou antes - sugeriu Zhirov.
- Nunca.
- Recentemente, não?
- Não.
- Nem na infância?
- “Nunca” significa “nunca”, Pavel. Agora, se não se importa, gostaria de voltar para o hotel.
Zhirov estava olhando pela janela de novo. Ou será que perscrutava o retrovisor? Mikhail não podia ter certeza.
- Você ainda não respondeu a minha pergunta - disse Zhirov.
- Sua pergunta não é digna de resposta.
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas Avedon - falou Mikhail, calmo. - Sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, em Londres. E, graças a essa sua pequena exibição, vou continuar
sendo.
Zhirov não ficou convencido:
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas. Cresci na Inglaterra. Estudei em Cambridge e Harvard. Fiquei em Aberdeen por um tempo, já na indústria do petróleo. E depois fui trabalhar com
Viktor.
- Por quê?
- Por que eu cresci na Inglaterra? Ou por que fui para Harvard?
- Por que você foi trabalhar para um inimigo conhecido do Kremlin como Viktor Orlov?
- Porque ele estava em busca de alguém que pudesse assumir seu portfólio de petróleo. E, neste momento, estou arrependido de tê-lo traído.
- Você sabia das políticas dele quando aceitou o trabalho?
- Eu não me importo com as políticas dele. Para falar a verdade, não me importo com as políticas de ninguém.
- Você é um livre-pensador?
- Não, Pavel. Sou um homem de negócios.
- Você é um espião.
- Um espião? Você parou de tomar seus remédios, Pavel?
- Para quem você está trabalhando?
- Leve-me de volta para o hotel.
- Os ingleses?
- Meu hotel, Pavel.
- Os americanos?
- Foram vocês que me abordaram, lembra, Pavel? Em Copenhague, no fórum de petróleo. Nós nos encontramos numa casa no meio do nada. Tenho certeza de que você estava
lá.
- Para quem você está trabalhando? - insistiu Zhirov, como um professor lidando com um pupilo abobalhado.
- Pare o carro. Deixe-me sair.
- Quem?
- Pare a porra do carro.
A limusine parou, mas não por causa da ordem. Eles tinham chegado à rua Petrovka e a um cruzamento grande, com vias que levavam para várias direções diferentes.
O semáforo estava vermelho. Bem à frente, havia um Land Rover com dois homens. Mikhail olhou por cima do ombro e viu outro atrás. Em seguida, sentiu o celular vibrando
três vezes em rápida sucessão.
- O que foi isso? - perguntou Zhirov.
- É só o meu celular.
- Desligue-o e remova a bateria.
- Todo cuidado é pouco, não é, Pavel?
- Desligue-o!
Mikhail enfiou a mão no sobretudo, sacou a Makarov e enfiou o cano da pistola com força nas costelas de Zhirov. Os olhos do russo se arregalaram, mas ele não disse
nada. Encarou Mikhail por alguns segundos e, então, fitou Yaakov, que saía do Land Rover na frente deles. Keller já tinha deixado o outro carro e se aproximava do
Mercedes por trás.
- Fale ao motorista para colocar o câmbio na posição neutra - mandou Mikhail, em voz baixa. - Caso contrário, vou meter uma bala no seu coração. Dê a ordem, Pavel,
ou você morre agora mesmo.
Como Zhirov não respondeu, Mikhail engatilhou a arma. Keller estava parado ao lado da janela do chefe de segurança.
- Fale para ele, Pavel.
A luz do semáforo voltou a ficar verde. Um carro buzinou. Depois outro.
- Dê a ordem! - gritou Mikhail em russo.
Zhirov olhou para motorista pelo retrovisor e meneou a cabeça. O chofer obedeceu e pôs as mãos no volante.
- Fale para ele sair do carro e seguir as instruções.
Outra olhada para o retrovisor, outro aceno de cabeça. O motorista abriu a porta e saiu devagar. Yaakov estava esperando para cuidar dele. Depois de murmurar algumas
palavras no ouvido do motorista, levou-o até o seu Land Rover e o empurrou para o banco traseiro, sentando ao lado. Àquela altura, Keller já tinha assumido o volante
do Mercedes. Quando o Land Rover da frente partiu, ele engatou a marcha e o seguiu. Mikhail ainda pressionava a Makarov contra as costelas de Zhirov.
- Quem é você? - perguntou Pavel.
- Eu sou Nicholas Avedon.
- Quem é você?
- Eu sou o seu pior pesadelo e, se não calar a boca, vou matar você.
No Centro de Operações, as luzes da equipe se moviam para cima pelo mapa de Moscou - todas menos uma, que se mantinha na Teatralny Prospekt, descendo a ladeira,
vindo da praça Lubyanka. Não houve nenhuma celebração, nenhuma congratulação por um trabalho bem-feito. O ambiente ainda não permitia; Moscou tinha formas de revidar.
- Trinta segundos do começo ao fim - comentou Navot, os olhos presos na tela. - Nada mal.
- Trinta e três - corrigiu Shamron. - Mas quem está contando?
- Você estava.
Shamron deu um sorriso débil; ele estava contando. Na verdade, tinha passado a vida inteira contando: o número de membros da família perdidos para os fogos do Holocausto;
o número de compatriotas perdidos para as balas e as bombas; o número de vezes que tinha driblado a morte. Então, ele perguntou a Navot:
- Qual é a distância até o esconderijo?
- Duzentos e trinta e cinco quilômetros a partir dos limites da cidade.
- Qual é a previsão do tempo?
- Horrorosa - respondeu Navot. - Mas eles conseguem se virar.
Ele encarou as luzes se movendo através de Moscou.
- Trinta segundos - repetiu. - Nada mal.
- Trinta e três - voltou a corrigir Shamron. - E vamos torcer para que ninguém mais estivesse olhando.
Embora Shamron não soubesse, era exatamente isso que estava pensando o homem parado à janela do quadragésimo quarto andar do Hotel Metropol. Ele observava a esquina
da Teatralny Prospekt e o caminho até a fortaleza amarela, que se erguia na praça Lubyanka. Imaginou se conseguiria detectar alguma espécie de reação - luzes se
acendendo nos andares superiores, carros saindo da garagem -, mas decidiu que era improvável. Lubyanka sempre escondera bem suas emoções, assim como a Rússia sempre
escondera seus mortos com eficiência.
O homem se afastou da janela, desligou o notebook e o colocou no compartimento lateral da bolsa de viagem. Desceu de elevador até o saguão, acompanhado por duas
prostitutas de 17 anos com aparência de 45. Fora do hotel, um utilitário da Volvo aguardava, vigiado por um manobrista de aparência miserável, que recebeu uma generosa
gorjeta. Ele sentou ao volante e dirigiu para longe. Vinte minutos depois, tendo contornado o Kremlin, uniu-se ao rio de aço e luzes que saía de Moscou rumo ao norte.
No Centro de Operações, no entanto, ele era apenas uma luz vermelha, um anjo vingador sozinho na cidade dos hereges.
51
TVER OBLAST, RÚSSIA
Outrora, aquela fora a dacha de um homem poderoso - um membro do Comitê Central, talvez até mesmo do Politburo. Ninguém sabia dizer com certeza, porque, nos dias
caóticos que se seguiram ao colapso da União Soviética, tudo havia sido perdido. Fábricas pertencentes ao Estado permaneceram fechadas, pois ninguém conseguia encontrar
as chaves; computadores do governo entraram no modo de repouso, porque ninguém conseguia se lembrar dos códigos. A Rússia entrara aos tropeções num admirável novo
milênio sem qualquer mapa ou lembrança. Alguns falavam que ela ainda não tinha memória, embora agora a amnésia fosse proposital.
Por muitos anos, a dacha esquecida ficou vazia e abandonada, até que um construtor moscovita com uma fortuna recém-obtida, chamado Bloch, adquiriu-a por uma ninharia
e realizou uma reconstrução completa. Por fim, assim como muitos novos-ricos da Rússia, entrou em conflito com a nova equipe do Kremlin e decidiu deixar o país enquanto
ainda podia. Estabeleceu-se em Israel, em parte porque se achava um pouco judeu, mas principalmente porque nenhum outro país o acolheria. Com o passar do tempo,
vendeu os bens russos, mas não abriu mão da dacha na Tver Oblast. Resolveu dá-la a Ari Shamron, dizendo-lhe para fazer bom proveito.
A dacha ficava ao lado de um lago sem nome, e a rua que conduzia até ela não aparecia em nenhum mapa. Não era bem uma rua; tratava-se mais de um sulco que fora criado
na floresta de bétulas muito antes de qualquer pessoa ouvir falar de um lugar chamado Rússia. O portão original da dacha ainda existia. Por medo, Bloch - filho da
era stalinista - não removera a velha placa soviética de “Entrada Proibida”, que agora reluziu brevemente sob os faróis de Gabriel enquanto ele subia aos solavancos
pela pista coberta de neve. A dacha logo surgiu à sua frente, uma construção pesada de madeira com o telhado pontudo e varandas espaçosas ao redor. Havia diversos
veículos estacionados em volta da casa, inclusive um Mercedes Classe E de propriedade da Volgatek. Quando saiu do utilitário, Gabriel viu a luz de um cigarro na
escuridão.
- Bem-vindo a Shangri-Lá - disse Keller, que usava uma jaqueta grossa e segurava uma Makarov.
- Como está o perímetro?
- Um frio dos infernos, mas seguro.
- Quanto tempo você consegue ficar aqui fora?
Keller sorriu.
- Eu sou do Regimento, querido.
Gabriel deixou-o para trás e entrou na dacha. O restante da equipe se espalhava pelos móveis rústicos da sala ampla. Mikhail ainda estava vestido para um jantar
no Café Pushkin. Ele tinha a mão direita enfiada numa tigela de água gelada.
- O que aconteceu? - perguntou Gabriel.
- Eu bati a mão.
- No quê?
- Num rosto.
Gabriel pediu para ver a mão. Estava muito inchada, com os nós de três dedos esfolados.
- Quantas vezes você bateu a mão?
- Uma ou duas. Ou talvez tenham sido onze ou doze.
- Como está o rosto?
- Veja você mesmo.
- Onde ele está?
Mikhail apontou para o chão.
Em meio aos muitos recursos de luxo da dacha, havia um abrigo nuclear. O espaço já fora ocupado por um estoque de um ano de comida, água e suprimentos. Agora continha
dois homens. Ambos estavam cobertos de fita adesiva: mãos, pés, joelhos, bocas e olhos. Ainda assim, dava para ver que o rosto do mais velho sofrerá danos significativos,
devido a repetidas colisões contra a perigosa direita de Mikhail. Ele estava apoiado numa parede, as pernas estendidas no chão. Ao escutar a porta sendo aberta,
sua cabeça começou a virar de um lado para o outro, como uma antena de radar em busca de uma aeronave invasora. Gabriel se agachou na frente dele e arrancou a fita
adesiva dos seus olhos, levando junto parte de uma sobrancelha; agora, o prisioneiro parecia estar com uma expressão de surpresa permanente. Havia um corte profundo
na bochecha e sangue ressecado em volta do nariz entortado. Gabriel sorriu e tirou a fita adesiva da boca.
- Olá, Pavel. Ou devo chamá-lo de Paul?
Zhirov ficou em silêncio. Gabriel avaliou o nariz quebrado.
- Isso deve doer. Mas esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
- Estou ansioso para retribuir o favor, Allon.
- Então você me reconhece, afinal.
- É claro - disse Zhirov, um pouco confiante demais. - Nós o estamos observando desde que você colocou os pés na Rússia.
- Nós quem? A Volgatek? O SVR? A FSB? Ou deixamos as amenidades de lado e chamamos logo de KGB, que é exatamente do que se trata a sua organização?
- Você está morto, Allon... Você e toda a sua equipe. Nunca vai sair vivo da Rússia.
O sorriso de Gabriel se manteve firme.
- Eu sempre achei melhor não fazer ameaças vazias, Pavel.
- Concordo plenamente.
- Então talvez você deva parar de fingir que sabia que eu estava em Moscou, ou que sabia que Nicholas Avedon era minha criação. Você nunca teria agido contra ele
esta noite sem o apoio da FSB se soubesse que ele era meu agente.
- Quem disse que eu não tinha apoio?
- Eu.
- Você está enganado, Allon. Mas você tem um longo histórico de erros. A FSB está apenas esperando para garantir que todos os membros da sua equipe estejam identificados.
Você tem algumas horas, no máximo. E aí você é que estará sentado numa cela com o nariz quebrado.
- Então suponho que seja bom começarmos.
- Começarmos o quê?
- Sua confissão. Você vai dizer ao mundo como sequestrou uma garota inglesa chamada Madeline Hart para que a Volgatek Petróleo e Gás pudesse ganhar acesso ao mar
do Norte.
Zhirov simulou surpresa.
- A garota inglesa? É disso que se trata?
Gabriel balançou a cabeça lentamente, como se desapontado com a resposta de Zhirov.
- Vamos, Pavel. Sem dúvida você pode fazer melhor do que isso. Você a sequestrou na estrada costeira perto de Calvi poucas horas depois de almoçar com ela no Les
Palmiers. Um delinquente de Marselha chamado Marcei Lacroix o levou até o continente, onde você a entregou para outro vagabundo marselhês, René Brossard, para que
a mantivesse presa. Então, após coletar 10 milhões de euros do primeiro-ministro britânico como resgate, deixou-a na traseira de um carro na praia em Audresselles
e acendeu um fósforo.
- Nada mal, Allon.
- Na verdade, não foi muito difícil. Você deixou um monte de pistas para seguir. Mas isso foi proposital: o sequestro e o assassinato de Madeline deveriam parecer
trabalho de criminosos franceses. Mas houve um engano, Pavel. Você deveria ter me dado ouvidos quando avisei para não machucá-la. Eu disse exatamente o que aconteceria
se você o fizesse. Eu disse que o encontraria. E também que o mataria.
- Então por que não matou? Por que arriscar o seu pessoal me sequestrando e me trazendo para cá?
- Nós não o sequestramos, Pavel. Nós o capturamos. E o trouxemos aqui porque, apesar das circunstâncias atuais, esse é o seu dia de sorte. Eu vou lhe dar algo que
não acontece com muita frequência no nosso negócio: uma segunda chance.
- E o que eu preciso fazer?
- Responder algumas perguntas, amarrar algumas pontas soltas.
- Só isso?
Gabriel assentiu.
- E depois?
- Depois você será liberado.
- Para fazer o quê? - perguntou Zhirov, sério.
- Voltar para a Volgatek. Para o SVR. Para baixo da pedra da qual você rastejou.
Zhirov conseguiu abrir um sorriso condescendente.
- E o que você acha que vai acontecer comigo quando eu voltar para Yasenevo depois de responder suas perguntas e amarrar as pontas soltas?
- Suponho que você vá receber a vysshaya mera. A maior punição.
Zhirov aquiesceu, admirado.
- Você sabe muito sobre o meu serviço.
- Não por escolha. Para ser sincero, Pavel, não me importo com o que o seu serviço vai fazer com você.
- Você deveria se importar - disse Zhirov, mantendo o sorriso condescendente. - Veja bem, Allon, tudo o que você está me oferecendo é uma escolha entre a morte e
a morte.
- Eu estou lhe oferecendo a oportunidade de presenciar mais uma alvorada russa, Pavel. E não se preocupe: vou garantir que você tenha bastante tempo num lugar tranquilo
para poder pensar numa boa história para seus mestres no SVR. Algo me diz que, no fim, você vai acabar bem.
- E se eu me recusar?
- Nesse caso, vou meter uma bala na sua nuca por ter matado Madeline.
- Preciso de tempo para pensar.
Gabriel recolocou a fita adesiva sobre os olhos e a boca de Zhirov.
- Você tem cinco minutos.
Na verdade, acabaram se passando dez minutos antes de Mikhail, Yaakov e Oded carregarem Zhirov para a sala de jantar, onde o prenderam com firmeza numa cadeira pesada.
Gabriel estava sentado à sua frente. Atrás dele, postava-se Yossi, com os olhos fixos na pequena tela de uma filmadora montada num tripé. Depois de fazer um pequeno
ajuste ao ângulo da filmagem, Yossi meneou a cabeça para Mikhail, que arrancou a fita dos olhos e da boca de Zhirov. O russo piscou rapidamente várias vezes. Em
seguida, seus olhos varreram o cômodo devagar, gravando cada rosto, cada detalhe, antes de enfim recair sobre a fotografia que Gabriel tinha nas mãos. Nela estava
Zhirov, com uma aparência muito diferente da atual, almoçando com Madeline Hart no Les Palmiers.
- Como você a conheceu? - perguntou Gabriel.
- Conheci quem?
Gabriel colocou a foto em cima da mesa e pediu para Yossi desligar a filmadora. Eles cortaram as amarras da cadeira, prenderam os pulsos de Zhirov com uma corda
e o carregaram para fora, na escuridão, até a beira do lago. No fim de uma doca com cerca de 15 metros de comprimento, havia um trecho de água que ainda não tinha
congelado. Zhirov deu um mergulho desajeitado, como faz um homem bem amarrado sendo jogado por três sujeitos furiosos.
- Você sabe qual é o tempo de sobrevivência na água nessa temperatura? - perguntou Keller.
- Ele vai começar a perder sensibilidade e destreza em dois minutos. E provavelmente estará inconsciente em quinze.
- Isso se ele não se afogar antes.
- Sempre há essa chance - admitiu Gabriel.
Keller observou em silêncio o homem se debater.
- Como você vai saber que já passou tempo suficiente?
- Quando ele começar a afundar.
- Lembre-me de nunca entrar na sua lista negra.
- Esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
52
TVER OBLAST, RÚSSIA
Bastaram dois minutos no lago. Depois disso, não houve mais nenhuma afirmação de inocência, nenhuma ameaça de que, em breve, a FSB chegaria. Resignado ao seu destino,
Zhirov se tornou um prisioneiro-modelo. Apresentou apenas um pedido: que fizessem algo a respeito de sua aparência. Como a maior parte dos espiões, tinha passado
a vida evitando câmeras e não queria fazer a estreia parecendo o perdedor de uma luta de boxe.
Na comunidade de inteligência, há uma verdade dada como certa: ao contrário da crença popular, a maioria dos espiões gosta de falar, especialmente em meio a circunstâncias
que tomam suas carreiras irrecuperáveis. Nessa situação, fazem os segredos jorrarem, mesmo se for apenas para provar a si mesmos que eles foram mais do que uma simples
engrenagem na máquina secreta, que foram importantes, mesmo que não tenham sido.
Portanto, Gabriel não se surpreendeu quando Zhirov, depois de se recuperar do mergulho no lago, assumiu subitamente uma atitude verborrágica. Vestido com roupas
secas, aquecido pelo chá doce e por um gole de uísque, começou o relato não com Madeline Hart, mas consigo mesmo. Ele tinha sido um filho da nomenklatura, a elite
comunista da União Soviética. Seu pai fora um oficial de alto escalão no Ministério Soviético das Relações Exteriores sob o comando de Andrei Gromyko; isso significava
que Zhirov tinha estudado em escolas especiais reservadas para as crianças da elite e que podia fazer compras em lojas especiais do Partido que vendiam bens de luxo,
com os quais a maioria dos cidadãos soviéticos conseguia apenas sonhar. E também havia o luxo quase inaudito das viagens ao exterior. Zhirov passou boa parte da
infância fora da União Soviética, principalmente nos estados vassalos do Leste Europeu que compunham a área de especialização do pai - embora, certa vez, ele tenha
ficado seis meses em Nova York quando o pai trabalhou nas Nações Unidas. Zhirov odiava a cidade americana, pois, como criança leal ao Partido, fora criado e educado
para detestá-la.
- Nós não víamos a riqueza e a ganância dos Estados Unidos como algo a ser imitado. Para nós, eram elementos que podíamos usar contra os americanos para destruí-los.
Apesar de ter sido um estudante indiferente e, com frequência, inadequado, Zhirov foi aceito pelo prestigiado Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou. Ao se
graduar, todos imaginaram que ele fosse trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores. Em vez disso, um recrutador do Comitê de Segurança do Estado, mais conhecido
como KGB, apareceu no apartamento de Zhirov em Moscou. O homem disse que o serviço secreto estava de olho em Pavel desde a sua infância e acreditava que ele reunia
todos os atributos de um espião perfeito.
- Fiquei incrivelmente lisonjeado - admitiu Zhirov. - Era 1975. Ford e Brejnev estavam se fazendo de amigos em Helsinque, mas, por trás da fachada amena, a disputa
entre o Leste e o Oeste, o capitalismo e o socialismo, ainda grassava. E eu iria fazer parte dela.
Mas antes, acrescentou Zhirov, teria que frequentar outra instituição: o Instituto do Estandarte Vermelho, o centro de treinamento da KGB em Moscou. Lá, aprendeu
os aspectos básicos do trabalho na KGB, em especial sobre recrutamento de espiões, um processo dolorosamente lento e controlado com firmeza, que chegava a durar
um ano ou mais. Quando o treinamento terminou, foi designado para o Quinto Departamento do Primeiro Diretório Geral e transferido para Bruxelas. Em seguida, passou
por vários outros postos na Europa Ocidental, até que os seus superiores no Centro Moscovita perceberam que tinha talento para o lado mais obscuro da profissão.
Zhirov foi realocado no Departamento S, a unidade que supervisionava agentes soviéticos residindo “ilegalmente” no exterior. Depois, trabalhou para o Departamento
V, a divisão da KGB que lidava com o mokroye delo.
- “Serviço úmido”... Assassinatos, certo?
Zhirov assentiu.
- Eu não era um assassino como você, Allon, mas um organizador, estrategista.
- Você conduziu alguma operação de falsa bandeira enquanto estava no De-partamento V?
- Nós as conduzíamos o tempo todo - admitiu Zhirov. - Na verdade, falsas bandeiras eram o procedimento operacional de praxe. Quase nunca agíamos contra um alvo a
menos que pudéssemos criar uma história plausível mostrando que outra pessoa estava por trás da ação.
- Quanto tempo você ficou no Departamento V?
- Até o fim.
Com isso, ele queria dizer o fim da União Soviética, que desmoronou em dezembro de 1991. Quase da noite para o dia, o antigo superpoder foi transformado em quinze
países, com a Rússia, o coração da velha organização, em destaque. A KGB se dividiu em dois serviços diferentes. Em pouco tempo, o Centro Moscovita, outrora uma
catedral da inteligência, enfrentou tempos difíceis. Surgiram rachaduras no exterior do prédio e o saguão se encheu de lixo. Oficiais com a barba por fazer vestindo
trajes amarrotados vagavam pelos corredores num torpor alcoólico.
- Não havia sequer papel higiênico no banheiro masculino - disse Zhirov, a voz sendo tomada pelo desgosto. - O lugar todo era um chiqueiro. E não havia ninguém no
comando.
Ele contou que isso mudara quando Boris Yeltsin enfim deixou o palco e os siloviki, homens dos serviços de segurança, assumiram o controle do Kremlin. Quase imediatamente,
ordenaram que o SVR aumentasse o volume de operações contra os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aliados nominais da nova Federação Russa. Zhirov foi designado como
novo chefe rezident do SVR em Washington, um dos postos mais importantes do serviço. Mas, no dia em que deveria partir da Rússia, recebeu uma convocação do Kremlin.
Pelo visto, o presidente, um velho colega da KGB, queria conversar.
- Imaginei que ele quisesse me dar algumas instruções de despedida sobre como lidar com o trabalho em Washington, mas a verdade é que ele tinha outros planos para
mim.
- A Volgatek - concluiu Gabriel.
Zhirov assentiu.
- A Volgatek.
Para compreender o que aconteceu em seguida, disse Zhirov, antes seria necessário entender a importância do petróleo para a Rússia. Ele lembrou à sua plateia que,
por décadas, a União Soviética havia sido a terceira maior produtora mundial dessa commodity, perdendo apenas para os emirados do Golfo Pérsico, dominados pelos
americanos, e para a Arábia Saudita. As crises de petróleo nos anos 1970 e 1980 turbinaram a vacilante economia soviética. Foram como uma máscara de oxigênio, que
prolongou a vida do paciente até muito tempo depois de o cérebro parar de funcionar. O novo presidente russo compreendeu o que Yeltsin não tinha entendido: o petróleo
poderia transformar a Rússia numa superpotência novamente. Então, ele disse aos oligarcas como Viktor Orlov que a porta da rua era a serventia da casa, e colocou
todo o setor russo de energia sob o controle efetivo do Kremlin. Em seguida, abriu uma empresa petrolífera própria.
- A KGB Óleo e Gás - disse Gabriel.
- Mais ou menos - concordou Zhirov, assentindo devagar. - Mas a nossa empresa seria diferente. Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de
downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.
- E para onde vai o resto?
- Use a sua imaginação.
- Para o bolso do presidente russo?
- Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB. Nosso presidente vale cerca de 40 bilhões de dólares, e boa parte da
fortuna vem da Volgatek.
- De quem foi a ideia de perfurar no mar do Norte?
- Foi dele - respondeu Zhirov. - É uma empreitada que ele leva muito a sério. Disse que a Volgatek deveria enfiar um canudo nas águas territoriais britânicas e sugar
até que não reste nada. Ah, só para constar: eu fui contra a ideia desde o começo.
- Por quê?
- Parte do meu trabalho como chefe de segurança e operações consiste em inspecionar o campo antes de ser tomada qualquer decisão sobre um ativo ou um contrato. A
minha análise da situação na Inglaterra não foi promissora. Previ que as tensões políticas entre Londres e Moscou levariam a uma rejeição do nosso pedido para perfurar
na região das Ilhas Ocidentais. E, infelizmente, eu estava certo.
- Suponho que o presidente tenha ficado desapontado.
- Eu nunca o vi tão furioso. Principalmente porque suspeitou que Viktor Orlov tivesse desempenhado algum papel nessa questão. Ele me chamou para o seu escritório
no Kremlin e disse que eu deveria usar todos os meios necessários para conseguir aquele contrato.
- Então você mirou em Jeremy Fallon.
Zhirov hesitou antes de responder:
- É óbvio que você tem boas fontes em Londres.
- Cinco milhões de euros numa conta bancária suíça. Foi isso que você deu para Jeremy Fallon em troca do contrato.
- A negociação foi dura. É claro que ficamos extremamente desapontados quando ele não cumpriu a promessa. Fallon alegou que não podia fazer nada.
Lancaster e o secretário de Energia eram totalmente contra o acordo. Nós precisávamos agir para mudar a dinâmica... moldar o campo de batalha, por assim dizer.
- Então você sequestrou a amante do primeiro-ministro.
Zhirov não respondeu.
- Confesse, ou vamos dar outro mergulho ao luar.
- Sim - disse Zhirov, olhando direto para a câmera -, eu sequestrei a amante do primeiro-ministro.
- Como você sabia que Lancaster estava tendo um caso com ela?
- A rezidentura em Londres já ouvia rumores há algum tempo sobre uma jovem do quartel-general do Partido que visitava a Downing Street tarde da noite. Pedi que investigassem
a questão mais a fundo. Não levaram muito tempo para descobrir quem era.
- Fallon sabia que você planejava sequestrá-la?
Zhirov balançou a cabeça.
- Só depois de obter a confissão de Madeline é que revelei a Fallon nossa participação. Disse a ele para aproveitar a oportunidade e fechar o negócio. Caso contrário,
eu o entregaria também.
- Vazando o fato de que ele aceitara um suborno de cinco milhões de euros de uma petrolífera do Kremlin.
Zhirov assentiu.
- Quando você entrou em contato com ele?
- Eu viajei para Londres enquanto você e o seu amigo da Córsega reviravam a França atrás da garota. Lancaster estava tão incapacitado pelo estresse que aceitava
qualquer coisa. Fallon forçou o acordo, apesar das objeções do secretário de Energia. Em seguida, dei início ao lance final.
- O pedido de resgate - completou Gabriel. - Dez milhões de euros, ou a garota morreria. E Fallon soube o tempo todo que era só uma farsa para encobrir o papel da
Volgatek no desaparecimento de Madeline.
- E o papel dele também.
- O quanto Lancaster sabia?
- Nada - garantiu Zhirov. - Ele ainda acha que pagou 10 milhões de euros para salvar a amante e a carreira política.
- Por que você insistiu para que eu entregasse o dinheiro?
- Nós queríamos nos divertir um pouco às suas custas.
- Matando Madeline na minha frente?
Zhirov ficou em silêncio.
- Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.
- Eu matei Madeline Hart - recitou ele.
- Como?
- Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.
- Por quê? Por que você a matou?
- Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra de forma alguma.
- Por que você não me matou também?
- Acredite em mim, Allon, nada teria nos deixado mais felizes. Mas achamos que você fosse mais útil vivo do que morto. Afinal, quem melhor do que o grande Gabriel
Allon para confirmar que Madeline tinha sido morta em um esquema banal de sequestro por resgate?
- Onde estão os 10 milhões de euros?
- Dei de presente para o presidente russo.
- Gostaria de tê-los de volta.
- Boa sorte.
Gabriel colocou a fotografia do almoço no Les Palmiers na mesa de novo.
- O que estava acontecendo aqui?
- Suponho que você possa considerar isso o estágio final de um recrutamento romântico.
Gabriel franziu o cenho, cético.
- Por que uma jovem linda como Madeline se interessaria por um babaca como você?
- Eu sou bom no que faço, Allon. Assim como você. Além disso, ela era uma garota solitária. Uma garota fácil.
- Tome cuidado, Pavel. - Gabriel analisou a foto com certo exagero. - Engraçado, mas vocês dois não pareciam muito à vontade juntos.
- Foi a nossa terceira reunião.
- Reunião?
- Encontro - corrigiu-se Zhirov.
- Não me parece que vocês estivessem se divertindo - insistiu Gabriel, ainda fitando a foto. - Na verdade, se fosse para eu adivinhar, diria que vocês estavam brigando.
- Não estávamos - retrucou Zhirov rapidamente.
- Tem certeza?
- Tenho.
Gabriel colocou a foto de lado.
- Mais alguma pergunta? - quis saber Zhirov.
- Só uma: como você soube que Madeline estava tendo um caso com Jonathan Lancaster?
- Eu já respondi a essa pergunta.
- Eu sei, mas, desta vez, quero que me diga a verdade.
Ele deu a mesma explicação - sobre os rumores chegando aos ouvidos do rezident do SVR em Londres -, mas Gabriel não estava engolindo. Deu mais uma chance para Zhirov
e, como ele continuava repetindo a mesma mentira, levou o russo até o final da doca e pressionou o cano da Makarov contra a sua nuca. Lá, na beira do lago congelado
sem nome, a verdade saiu aos borbotões. Parte de Gabriel tinha suspeitado desde o começo. Mesmo assim, ele mal pôde acreditar na história. Mas só podia ser verdade,
pensou. Era a única explicação possível para tudo o que havia acontecido.
Quando eles voltaram para a dacha, Zhirov recitou a história novamente, dessa vez para a câmera, antes de ser devolvido, amarrado e amordaçado, ao abrigo nuclear.
Agora, a operação estava quase concluída. Eles tinham obtido provas de que a Volgatek subornara e chantageara para abrir caminho até o lucrativo mercado de petróleo
do mar do Norte. Tudo o que restava era se dirigirem ao aeroporto e embarcarem em voos separados para casa. Ou, sugeriu Gabriel, poderiam adiar a partida para tratar
de uma última questão. Não era uma decisão que ele podia tomar sozinho, portanto, atipicamente, uma votação foi aberta. Não houve nenhuma oposição.
53
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Gabriel decidiu que seria mais seguro ir de trem. Havia uma estação na cidade de Okulovka e ele poderia pegar o primeiro transporte local da manhã e chegar a São
Petersburgo no começo da tarde. Ficou secretamente feliz quando Lavon insistiu em acompanhá-lo. Gabriel precisava dos olhos dele. E também precisava de seu russo.
Eram menos de 65 quilômetros até Okulovka, mas as estradas terríveis e o tempo ruim alongaram a viagem para quase duas horas. Eles deixaram o Volvo num pequeno estacionamento
tomado pelo vento e foram às pressas para a estação, uma estrutura de tijolos vermelhos recém-construída, estranhamente parecida com uma fábrica. Os passageiros
já estavam embarcando quando Lavon conseguiu comprar duas passagens de primeira classe de um dos bilheteiros protegidos atrás das cabines de vidro. Eles dividiram
um compartimento com duas garotas russas que conversavam sem parar e um homem de negócios magro vestido com elegância que não tirou os olhos do telefone sequer uma
vez. Lavon passou o tempo lendo os jornais matinais de Moscou, que não faziam nenhuma menção a um executivo do petróleo desaparecido. Gabriel ficou olhando através
da janela coberta de gelo, contemplando os campos intermináveis de neve, até que o oscilar do vagão começou a embalá-lo.
Ele acordou assustado quando o trem entrou chacoalhando na estação Moskovsky, em São Petersburgo. No andar de cima, o grande saguão abobadado estava tumultuado;
pelo visto, o trem-bala vespertino para Moscou tinha sido atrasado por uma ameaça chechena de bomba. Seguido por Lavon, Gabriel se embrenhou na massa de crianças
choronas e casais discutindo e saiu na Praça Vosstaniya. O Obelisco da Cidade-Herói se erguia no centro da rotatória engarrafada. Postes iluminavam toda a Nevsky
Prospekt. Eram apenas duas da tarde, mas qualquer luz do sol que tivesse surgido já desaparecera havia muito tempo.
Gabriel caminhou pela prospekt, seguido por um vigilante Lavon. Ele não estava mais na Rússia, pensou, mas num paraíso czarista, importado do Ocidente e construído
por camponeses aterrorizados. Florença o chamava das fachadas dos palácios barrocos, e, atravessando o rio Moyka, ele imaginou Veneza. Gabriel se perguntou quantos
cadáveres jaziam abaixo do gelo. Milhares, dezenas de milhares. Nenhuma outra cidade no mundo escondia os horrores do passado com mais beleza do que São Petersburgo.
A única visão desagradável da prospekt ficava perto do final: o velho prédio da Aeroflot, uma monstruosidade cinza inspirada no Palácio Ducal de Veneza, com uma
pitada da Florença dos Médicis para completar. Gabriel entrou na rua Bolshaya Morskaya e a seguiu através do Arco do Triunfo, chegando à Praça do Palácio. Ao chegarem
perto da Coluna de Alexandre, Lavon se aproximou para dizer que ele não estava sendo seguido. Gabriel consultou o relógio, que parecia congelado em seu pulso. Eram
duas horas e vinte. Acontece no mesmo horário todos os dias, dissera Zhirov. Eles sempre ficam meio loucos quando voltam para casa depois de muito tempo no frio.
Junto à Praça do Palácio, havia um pequeno parque, verde no verão e agora branco como um osso por causa da neve. Lavon aguardou ali num banco enquanto Gabriel caminhava
sozinho até o Cais do Palácio. O rio Neva estava congelado. Olhou para o relógio pela última vez. Em seguida, ficou parado na barreira, tão inerte quanto o poderoso
rio, e esperou por uma garota desconhecida.
Ele a viu cinco minutos depois, atravessando a Ponte do Palácio. Ela usava um casaco grosso e botas que quase alcançavam os joelhos. Um chapéu de lã cobria-lhe os
cabelos claros. Um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Mesmo assim, Gabriel soube instantaneamente que era ela. Os olhos a traíam. Os olhos e o contorno dos
malares. Era como se a moça com brincos de pérola de Vermeer tivesse sido libertada da tela e agora caminhasse ao longo da margem de um rio em São Petersburgo.
Ela passou como se Gabriel fosse invisível e seguiu para o Hermitage. Antes de segui-la, ele verificou se a mulher estava sendo vigiada e, quando entrou no museu,
a garota já tinha sumido. Isso não importava, pois Gabriel sabia para onde a desconhecida ia. Sempre o mesmo quadro, falara Zhirov. Ninguém consegue entender por
quê.
Ele comprou uma entrada e caminhou pelos corredores e galerias intermináveis até a Sala 67: a Sala de Monet. E lá estava ela, sentada a sós, admirando Lagoa em Montgeron.
Quando Gabriel se sentou ao seu lado, a mulher olhou de relance para ele antes de voltar a observar a pintura. O disfarce dele era melhor do que o dela. Gabriel
não significava nada para a mulher. Nunca deveria ter significado.
Após mais um minuto, ele ainda não tinha se mexido; ela se virou e o encarou pela segunda vez. Foi então que a mulher percebeu o exemplar de Uma janela para o amor
equilibrado sobre o seu joelho.
- Acredito que isso pertença a você - disse Gabriel, e colocou o livro com cuidado na mão trêmula da mulher.
54
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar da sede da FSB, há um conjunto de salas ocupadas pela menor e mais secreta unidade da organização. Conhecido como Departamento de Coordenação, o
grupo lida apenas com casos de extrema sensibilidade política, normalmente a pedido do próprio presidente russo. Naquele momento, o velho chefe da unidade, coronel
Leonid Milchenko, estava sentado em frente à sua grande mesa feita na Finlândia, com um telefone grudado no ouvido, os olhos fixos na Praça Lubyanka. Vadim Strelkin,
seu braço direito, estava parado ansioso na soleira da porta. Pela forma como Milchenko bateu o telefone, percebeu que teria uma longa noite.
- Quem era? - perguntou Strelkin.
Milchenko respondeu sem tirar os olhos da janela.
- Merda - praguejou Strelkin.
- Merda não, Vadim: petróleo.
- O que ele queria?
- Ele quer uma conversa particular.
- Onde?
- No escritório dele.
- Quando?
- Cinco minutos atrás.
- Do que você acha que se trata?
- Pode ser qualquer coisa - falou Milchenko. - Mas, se a Volgatek está envolvida, não pode ser nada bom.
- Vou pegar o carro.
- Boa ideia, Vadim.
Tirar o carro das entranhas de Lubyanka levou mais tempo do que a viagem curta até a sede da Volgatek na rua Tverskaya. Dmitry Bershov, o número dois da empresa,
esperava, ansioso, no saguão quando Milchenko e Strelkin entraram - outro mau sinal. Em silêncio, conduziu-os a um elevador executivo e apertou o botão do último
andar. Ao se abrirem as portas, eles deram diretamente no maior escritório que Milchenko já vira em Moscou. Só depois de alguns segundos é que ele avistou Gennady
Lazarev, sentado numa das pontas de um comprido sofá de couro. O coronel decidiu ficar de pé enquanto o CEO da Volgatek explicava que Pavel Zhirov, seu chefe de
segurança, não era visto desde as onze horas da noite passada. Milchenko conhecia o nome: havia sido seu contemporâneo na KGB. Ele deixou um caderno de couro na
mesa de centro de Lazarev e se sentou.
- O que estava acontecendo ontem à noite às onze horas?
- Nós estávamos dando uma festa no Café Pushkin para celebrar uma contratação importante na empresa. A propósito, o novo funcionário também está desaparecido. Assim
como o motorista.
- Você podia ter mencionado isso logo de cara.
- Estava chegando ao ponto.
- Qual é o nome do novo contratado?
Lazarev respondeu.
- Russo?
- Na verdade, não.
- O que isso significa?
- Que ele vem de família russa, mas carrega um passaporte britânico.
- Então ele é, na verdade, britânico.
- É.
- Mais alguma coisa que eu deva saber sobre ele?
- Atualmente, é funcionário de Viktor Orlov em Londres.
Milchenko trocou um olhar demorado com Strelkin antes de encarar o caderno, sem dizer nada. Ele ainda não tinha escrito nada no papel; provavelmente, uma atitude
sensata. Estavam desaparecidos um ex-agente da KGB e um associado do oponente mais ferrenho do Kremlin. Milchenko começava a achar que deveria ter ficado em casa
naquela manhã, fingindo estar doente.
- Suponho que eles tenham deixado o Café Pushkin juntos - disse por fim. Lazarev assentiu.
- Por quê?
- Pavel queria lhe fazer algumas perguntas.
- Por que eu não estou surpreso?
Lazarev ficou em silêncio.
- Que tipo de perguntas?
- Pavel tinha algumas suspeitas em relação a ele.
- Tais como...?
- Ele acreditava que o homem podia estar vinculado a um serviço estrangeiro de inteligência.
- Algum serviço específico?
- Por razões óbvias - disse Lazarev com cuidado suas suspeitas se centraram nos britânicos.
- Então ele planejava bater um pouco no cara.
- Ele só ia fazer algumas perguntas.
- E se não gostasse das respostas?
- Nesse caso, bateria um pouco.
- Que bom que esclarecemos isso.
O telefone perto de Lazarev emitiu um zumbido leve. Ele atendeu, escutou em silêncio e disse “Imediatamente” antes de desligar.
- O que foi? - perguntou Milchenko.
- O presidente gostaria de ter uma conversa.
- Você não deveria deixá-lo esperando.
- Na verdade, é você que ele quer ver.
55
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Naquele mesmo instante, o homem responsável pela convocação do coronel Milchenko ao Kremlin caminhava pela Admiralty Prospekt, em São Petersburgo. Ele não sentia
mais frio, apenas o ponto em seu braço onde a mão dela havia pousado brevemente antes de eles se separarem. Seu coração batia contra o peito. Sem dúvida ela estaria
sendo observada. E Gabriel estaria prestes a ser preso. Para apaziguar seus medos, mentiu para si mesmo. Ele não estava na Rússia, pensou, mas em Veneza e Roma e
Florença e Paris, tudo ao mesmo tempo. Estava seguro. Ela também.
A Catedral de Santo Isaac, a colossal igreja de mármore que os soviéticos transformaram num museu do ateísmo, surgiu à sua frente. Ele entrou no prédio e subiu a
escadaria estreita em caracol até a cúpula que cercava o domo dourado. Como esperava, a plataforma estava vazia. A cidade de conto de fadas fervilhava abaixo dos
seus pés, o trânsito se movendo lentamente pelas grandes prospekt.
Numa delas, uma mulher caminhava sozinha; um chapéu cobria-lhe os cabelos claros, um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Alguns momentos depois, ele ouviu
os passos na escada. E, então, ela estava parada na sua frente. Não havia iluminação na cúpula. Mal dava para vê-la na escuridão.
- Como você me encontrou?
O som da voz dela era quase irreal. Era o sotaque britânico. Gabriel se deu conta de que era o único sotaque dela.
- Não importa como eu encontrei você.
- Como? - perguntou ela de novo, mas dessa vez Gabriel só ficou em silêncio. Ele deu um passo na direção dela para enxergar seu rosto mais claramente.
- Agora você se lembra de mim, Madeline? Fui eu que arrisquei tudo para tentar salvar a sua vida. Nunca me ocorreu que você estivesse envolvida desde o começo. Você
me enganou, Madeline. Você enganou todo mundo.
- Eu nunca estive envolvida, mas apenas obedecendo ordens.
- Eu sei - disse Gabriel depois de um instante. - Caso contrário, não estaria aqui.
- Quem é você?
- Na verdade, eu estava prestes a fazer a mesma pergunta.
- Meu nome é Madeline. Madeline Hart, de Basildon, Inglaterra. Eu segui todas as regras. Fui bem na escola e na universidade. Consegui um emprego na sede do Partido.
Meu futuro era promissor. Eu seria membro do Parlamento algum dia. Talvez até mesmo uma ministra. - Ela fez uma pausa. - Pelo menos era isso que diziam sobre mim.
- Qual é o seu nome real?
- Não sei o meu nome real. Eu mal falo russo. Eu não sou russa. Sou Madeline. Uma garota inglesa.
Ela tirou o exemplar de Uma janela para o amor do bolso do casaco e o ergueu.
- Onde você encontrou isto?
- No seu quarto.
- O que você estava fazendo lá?
- Tentando descobrir por que a sua mãe foi embora de Basildon sem dizer nada para ninguém.
- Ela não é a minha mãe.
- Agora eu sei disso. Na verdade, acho que eu soube quando vi uma fotografia com você e os seus pais. Eles parecem...
- Camponeses - completou ela, ressentida. - Eu os odiava.
- Onde a sua mãe e o seu irmão estão agora?
- Num velho centro de treinamento da KGB no meio do nada. Eu deveria ter ido para lá também, mas me recusei. Disse que queria viver em São Petersburgo, ou então
fugiria para o Ocidente.
- Você tem sorte de não estar morta.
- Eles me ameaçaram. - Ela o encarou por um instante. - Quanto você realmente sabe sobre mim?
- Sei que o seu pai foi um general importante no Primeiro Diretório Geral, talvez até mesmo o próprio chefão. Sua mãe era uma de suas datilografas. Ela teve uma
overdose com pílulas para dormir e vodca pouco depois de você nascer; pelo menos essa é a história. Então, você foi colocada num tipo de orfanato.
- Um orfanato da KGB. Fui criada por lobos, de verdade.
- A certa altura, eles pararam de falar russo com você no orfanato. Na verdade, não falavam mais nada na sua presença. Você cresce em completo silêncio até mais
ou menos os 3 anos. É aí que eles começam a conversar com você em inglês.
- Inglês da KGB - explicou ela. - Passei um tempo com o sotaque de um locutor da Rádio Central de Moscou.
- Quando você conheceu os seus novos pais?
- Eu tinha uns 5 anos. Nós vivemos juntos num campo da KGB por um ano para nos conhecermos. Em seguida, nos acomodamos na Polônia. Quando a grande migração polonesa
para Londres começou, nós fomos junto. Os meus pais da KGB já falavam um inglês perfeito. Eles criaram identidades e se engajaram em espionagem de baixo nível. Sua
principal função era cuidar de mim. Nós nunca conversávamos em russo dentro de casa. Só inglês. Depois de um tempo, até esqueci que era russa. Eu lia livros para
aprender a ser uma garota inglesa adequada: Austen, Dickens, Lawrence, Forster.
- Uma janela para o amor.
- Assim como a Lucy, eu só queria um quarto com uma bela vista...
- Por que a casa em Basildon?
- Era a década de 1990 - explicou ela. - A Rússia estava falida. O SVR estava em frangalhos. Não havia orçamento para sustentar uma família de ilegais em Londres,
então nós fomos para Basildon e recebíamos seguro-desemprego. O Estado britânico do bem-estar financiava uma espiã.
- O que aconteceu com o seu pai?
- Ele contraiu a doença da ilegalidade.
- Perdeu o controle?
Ela assentiu.
- Disse ao Centro Moscovita que queria sair dali. Caso contrário, iria até o MI5. O Centro o levou de volta para a Rússia. Só Deus sabe o que fizeram com ele.
- Vysshaya mera.
- O que isso significa?
- Não importa.
Agora nada além daquela garota importava, pensou Gabriel. Ele olhou para a praça e viu Lavon batendo os pés no chão para se aquecer. Madeline também o viu.
- Quem é ele?
- Um amigo.
- Um vigia?
- O melhor.
- É bom que seja.
Ela deu as costas para Gabriel e começou a caminhar devagar ao longo do parapeito.
- Quando eles ativaram você? - perguntou Gabriel, olhando para suas costas elegantes.
- Quando eu estava na universidade. Eles queriam que eu me preparasse para uma carreira no governo. Estudei ciências políticas e serviço social, e de repente eu
tinha um emprego na sede do Partido. O pessoal do Centro Moscovita ficou bem entusiasmado. Então, Jeremy Fallon me acolheu e eles ficaram eufóricos.
- Você dormiu com ele?
Madeline se virou e sorriu pela primeira vez.
- Você já viu Jeremy Fallon?
- Vi.
- Então tenho certeza de que você não vai duvidar que eu não dormi com ele. Mas Fallon queria dormir comigo, eu alimentei suas esperanças e ele me deu tudo o que
eu queria.
- Como o quê?
- Alguns minutos sozinha com o primeiro-ministro.
- De quem foi a ideia?
- Do Centro Moscovita. Eu nunca fiz nada sem a aprovação deles.
- Eles acharam que Lancaster poderia estar vulnerável a uma abordagem?
- Eles são todos vulneráveis - retrucou Madeline. - Infelizmente para Jonathan, ele cedeu à tentação. No instante em que fez amor comigo pela primeira vez, comprometeu-se
totalmente.
- Parabéns. Você deve ter ficado muito orgulhosa de si mesma.
Ela se virou bruscamente e o encarou por um momento sem falar nada.
- Não estou orgulhosa do que fiz. Eu me afeiçoei muito a Jonathan. Nunca quis que ele sofresse qualquer mal.
- Então talvez você devesse ter dito a verdade a ele.
- Eu pensei em fazer isso.
- O que aconteceu?
- Fui tirar férias na Córsega - respondeu ela, com um sorriso triste. - E depois eu morri.
Mas a história era mais complicada do que isso, claro. A começar pela mensagem que ela recebera do Centro Moscovita, que a orientava a se encontrar com um agente
do SVR no restaurante Les Palmiers, em Calvi. O homem lhe informou que sua missão na Inglaterra tinha terminado e que ela deveria voltar para a Rússia. Seu retorno
deveria parecer um sequestro, despistando, assim, a inteligência britânica.
- Vocês discutiram - disse Gabriel.
- De forma silenciosa, mas intensa. Eu disse a ele que queria ficar na Inglaterra e viver o resto da minha vida como Madeline Hart. O agente falou que isso não seria
possível, que, se eu não fizesse exatamente o que ele tinha ordenado, o sequestro seria real.
- Então você saiu da casa de moto e sofreu um acidente.
- Por sorte, não morri. Ainda tenho as cicatrizes da colisão.
- Quanto tempo você realmente passou nas mãos dos criminosos franceses?
- Tempo demais - respondeu ela. - Mas a equipe do SVR também estava junto.
- E quanto à noite em que fui vê-la?
- Todos naquela casa eram do SVR, inclusive a garota que eles enviaram para contar o dinheiro.
- Você fez uma bela performance naquela noite, Madeline.
- Não foi tudo uma performance. - Ela fez uma pausa. - Eu queria que você me resgatasse.
- Eu tentei, mas o jogo estava armado contra mim.
- Deve ter sido terrível.
- Especialmente para a garota que eles enfiaram no porta-malas daquele carro.
Madeline ficou calada.
- Quem era ela? - perguntou Gabriel.
- Alguma garota que arrancaram das ruas de Moscou. Espalharam o DNA dela no meu apartamento em Londres, e aí... - Sua voz se perdeu.
- Acenderam um fósforo.
A expressão dela ficou sombria. Ela se virou de costas e olhou para a cidade escura e gélida.
- Não é tão mal aqui, sabe? Me deram um apartamento adorável. Tem uma boa vista. Posso passar o resto da vida aqui e fingir que estou em Roma, Veneza ou Paris.
- Ou em Florença.
- Sim, Florença - concordou ela. - Como Lucy e Charlotte nesse livro que você trouxe.
- É isso que você quer?
Ela voltou a encará-lo.
- Que escolha eu tenho?
- Você pode vir comigo.
- Não, não posso - replicou ela, balançando a cabeça devagar. - Você vai acabar morto. Eu também.
- Se eu consegui encontrá-la em São Petersburgo, Madeline, consigo tirar você daqui.
- Como você me encontrou? - insistiu ela.
- Ainda não posso dizer.
- Quem é você?
- Também não posso dizer.
- Para onde você vai me levar?
- Para casa - afirmou ele com uma parada no caminho.
Ela vivia num grande prédio antigo do outro lado do rio Neva com vista para o Palácio de Inverno. Lavon acompanhou-a em segredo até seu apartamento. Já Gabriel deu
entrada no Astoria Hotel e, já no quarto, fez um relatório atualizado para o King Saul Boulevard. Uma cópia do documento foi entregue a um Uzi Navot exausto às 17h47,
no horário de Tel Aviv. Ele o leu em silêncio, então olhou para Shamron.
- O que foi, Uzi?
- Ele quer mudar a cidade de partida de Moscou para São Petersburgo.
- Por quê?
- Você não acreditaria se eu dissesse.
Navot passou o relatório para Shamron, que o leu através de uma nuvem de fumaça. Ao término, Navot recebeu uma segunda atualização.
- Ele está prestes a nos enviar um vídeo.
- Do quê?
Antes que Navot pudesse responder, o rosto inchado de Zhirov apareceu num dos monitores.
- Parece que ele caiu feio - comentou Shamron.
- Várias vezes.
- O que ele está dizendo?
Navot instruiu os técnicos a aumentar o volume.
“Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial
dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.”
“Epara onde vai o resto?”
“Use a sua imaginação.”
“Para o bolso do presidente russo?”
“Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB.”
Shamron sorriu.
- Isso é que eu chamo de carta na manga.
- Eu diria que três cartas na manga.
- Que horas é o próximo voo da El Al saindo de São Petersburgo?
Navot digitou no teclado à sua frente.
- O voo seis-dois-cinco sai do Ben Gurion à uma e dez da madrugada e aterrissa em São Petersburgo às oito da manhã. A tripulação passa o resto do dia descansando
num hotel no centro da cidade. Eles trazem o avião de volta para Tel Aviv na mesma noite.
- Ligue para o presidente da El Al - pediu Shamron. - Diga que precisamos desse avião emprestado.
Navot pegou o telefone. Shamron continuou a observar o monitor.
“Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.”
“Eu matei Madeline Hart.”
“Como?"
“Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.”
“Por quê? Por que você a matou?”
“Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra deforma alguma.“
56
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
Em tempos como aqueles, pensou o coronel Leonid Milchenko, a imensidão da Rússia era mais uma maldição do que uma bênção. Ele estava observando um mapa em seu escritório
na Praça Lubyanka, ao lado de Vadim Strelkin. Tinha acabado de voltar do Kremlin, onde o novo czar lhes dera ordens para não poupar esforços na busca pelos três
homens desaparecidos. O presidente não se mostrou disposto a explicar por que isso era tão importante, falando apenas que dizia respeito aos interesses vitais da
federação e de seus laços com o Reino Unido. Foi Strelkin, no caminho de volta para Lubyanka, que lembrou a Milchenko que a Volgatek tinha acabado de obter direitos
lucrativos para perfurar no mar do Norte.
- Você acha que a Volgatek fez algo ilegal para conseguir a permissão? - perguntou Milchenko, ainda com os olhos no mapa.
- Eu não gostaria de julgar a situação antecipadamente sem conhecer todos os fatos - respondeu Strelkin, cauteloso.
- Nós trabalhamos para a FSB, Vadim. Nunca nos preocupamos com fatos.
- Você sabe como eles chamam a Volgatek, não sabe, chefe?
- KGB Óleo e Gás.
Strelkin ficou calado.
- Digamos que a Volgatek não tenha jogado limpo para obter a licença - começou Milchenko.
- Eles raramente jogam limpo. Pelo menos é isso que se ouve.
- Digamos que tenham subornado alguém.
- Ou pior.
- E digamos que a inteligência britânica reagiu tentando inserir um agente na empresa.
- Digamos - repetiu Strelkin, assentindo.
- Digamos que os britânicos estivessem escutando quando Zhirov colocou o homem deles no carro e começou a enchê-lo de perguntas.
- Provavelmente estavam.
- E que acreditaram que seu homem estivesse em perigo.
- Ele estava.
- E que reagiram retirando o seu homem.
- Com bastante violência.
- E que levaram Zhirov e seu motorista junto.
- Provavelmente não tiveram escolha.
Milchenko caiu num silêncio pensativo.
- Então onde está Zhirov agora?
- Ele vai acabar aparecendo.
- Vivo ou morto?
- Os britânicos não gostam do mokroye delo.
- Onde foi que você ouviu isso? - Milchenko se aproximou do mapa. - Se você fosse britânico, o que tentaria fazer agora?
- Tirar o meu homem do país o mais rápido possível.
- Como você faria isso?
- Imagino que pudesse levá-lo de carro até os caminhos que cruzam a fronteira norte, só que o caminho mais rápido é pelo Sheremetyevo.
- Ele vai ter um passaporte diferente.
- E um novo rosto - acrescentou Strelkin.
- Vá para o Ritz. Pegue algumas fotos dele com a segurança do hotel. E leve-as para todos os agentes de controle alfandegário e membros das milícias no Sheremetyevo.
Strelkin se dirigiu para a porta.
- Mais uma coisa, Vadim.
Ele se deteve.
- Faça o mesmo em São Petersburgo. Só para garantir.
* * *
Naquele instante, o homem em questão estava descansando confortavelmente numa dacha isolada na Tver Oblast, junto aos outros membros da equipe israelense. Pouco
depois das cinco horas da madrugada, após mais uma noite insone, eles saíram da casa em grupos de dois e três e foram para a estação de trem em Okulovka - todos
menos Christopher Keller, que ficou vigiando Zhirov e o motorista.
O trem de Okulovka saiu atrasado, ao contrário do voo 625 da El Al. O avião decolou do Ben Gurion pontualmente à 1h1O e aterrissou em São Petersburgo dois minutos
antes do previsto, às 8h03. A tripulação, com doze pessoas, ficou dentro da aeronave até todos os passageiros saírem. Então, depois de passarem pela alfândega, subiram
numa van sem identificação, de serviços terrestres da El Al, e percorreram o trajeto de vinte minutos até o Astoria Hotel, onde tinham quartos reservados para o
resto do dia. Um dos comissários de bordo era uma mulher alta de cabelos escuros e olhos cor de caramelo. Após deixar sua pequena mala com rodinhas ao pé da cama,
ela foi até o fim do corredor e, ignorando o aviso de NÃO PERTURBE pendurado na maçaneta, deu uma batida suave. Como não recebeu resposta, bateu de novo. Dessa vez,
a porta se entreabriu alguns centímetros, apenas o suficiente para deixá-la passar, e ela entrou.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou Gabriel.
Chiara ergueu os olhos para o teto, como se quisesse lembrar ao marido, o futuro diretor da inteligência israelense, que eles estavam num quarto de hotel russo,
que provavelmente fora grampeado. Gabriel fez um gesto para indicar que o quarto estava limpo e, com as mãos nos quadris, repetiu a pergunta, estreitando os olhos
verdes. Chiara não o via tão bravo havia muito tempo.
- Como fui boba... Achei que você ficaria feliz em me ver.
- Como você conseguiu autorização para vir?
- Nós precisávamos de mulheres para a tripulação. Eu me voluntariei.
- E Uzi não podia achar nenhuma outra mulher além da minha esposa?
- Na verdade, Uzi foi contra a ideia.
- Então como você entrou na equipe?
- Eu apelei para Shamron - revelou ela. - Falei que queria participar da operação e que, se ele não permitisse, não daria o que ele queria.
- Eu?
Chiara sorriu.
- Garota esperta.
- Aprendi com o melhor.
- Achei que você tivesse dito que não queria vir para a Rússia. Que não aguentaria a pressão.
- Mudei de ideia.
- Por quê?
- Porque eu queria dividir isto com você. - Chiara foi até a janela e contemplou a penumbra da Praça de Santo Isaac. - Alguma hora fica claro por aqui?
- É o máximo de luz possível.
Chiara fechou a persiana e se virou. A saia azul e a blusa branca frisada a deixavam irresistível. Gabriel não estava mais bravo por ela ter ido à Rússia contra
a sua vontade. Na verdade, ficou feliz em ter a companhia da esposa. Aquilo tornaria a espera das próximas horas muito mais tolerável.
- Como ela é? - perguntou Chiara.
- Madeline?
- É assim que a chamamos?
- É o único nome que ela conhece - disse Gabriel. - Ela foi...
- O quê?
- Criada por lobos.
- Talvez ela também seja uma loba.
- Ela não é.
- Tem certeza disso?
- Tenho, Chiara.
- Porque ela já enganou você uma vez.
Gabriel ficou em silêncio.
- Desculpe, Gabriel, mas você deve ter considerado a possibilidade de ela ainda ser leal ao seu serviço.
- Devo ter - falou Gabriel, incapaz de conter a irritação na voz. - Mas, se ela estiver limpa quando sair do apartamento esta tarde, vou trazê-la para cá. E depois
vou levá-la para casa.
- Que fica onde?
- Inglaterra.
- Ela vai causar bastante comoção.
- Bastante.
- O que vai fazer com ela?
- Vou usá-la para retribuir uma pequena dívida. E depois vou deixá-la nas mãos capazes de Graham Seymour.
- Pobre Graham.
Chiara sentou na beira da cama e tirou os sapatos.
- Como foi o voo? - perguntou Gabriel.
- Consegui não ferir nenhum dos passageiros entregando as refeições.
- Bom trabalho.
- Tinha um bebê na primeira classe que chorou o trecho inteiro de Ankara a Minsk. Alguns passageiros ficaram bem irritados. A mãe estava envergonhada. - Chiara fez
uma pausa. - E eu só consegui pensar que ela era a mulher mais sortuda do mundo.
- Talvez você não devesse ter vindo - falou Gabriel depois de um instante.
- Eu tinha que vir. Vou apreciar muito tudo isso.
Ela tirou a saia, esticando-a com cuidado na cama, e começou a desabotoar a blusa.
- O que você está fazendo? - questionou Gabriel.
- O que lhe parece?
- Parece que uma comissária de bordo muito bonita está se despindo no meu quarto.
- Preciso descansar um pouco. Você também - acrescentou ela ao tirar a blusa. - Não me leve a mal, Gabriel, mas você está com uma aparência terrível. Durma por uma
ou duas horas. Vai se sentir melhor.
- Eu não conseguiria dormir agora.
- O que você vai fazer? Ficar na frente da janela o dia todo, morrendo de preocupação?
- Esse era o meu plano.
- Quando você for chefe, vai ter bastante tempo para fazer isso. Venha para a cama. Prometo que não vou machucá-lo.
Gabriel acabou cedendo: tirou os sapatos e a calça jeans e engatinhou pela cama até a esposa. O corpo de Chiara estava ardente, como se febril. Ao beijar os seus
lábios, ele sentiu gosto de mel. Ela passou o dedo pelo nariz do marido.
- Chiara...
- O que foi, querido? - perguntou ela, beijando-o de novo.
- Estou em serviço.
- Você está sempre em serviço. E vai continuar assim pelo resto da vida. Chiara o beijou novamente. Depois no pescoço. No peito.
- Acho que ela tinha razão desde o começo - comentou ela.
- Quem? - murmurou Gabriel.
- Aquela mulher idosa da Córsega. Ela disse que você saberia a verdade
quando Madeline morresse. Em certo sentido, ela morreu naquela manhã na França. E agora você sabe a verdade.
- Mas ela se enganou com relação a uma coisa. Ela me avisou para não ir à cidade dos hereges. Disse que eu morreria lá.
Chiara parou de beijá-lo e olhou bem nos seus olhos.
- Você não me disse o contrário?
- Disse.
- Então você mentiu para mim.
- Desculpe, Chiara. Eu não deveria ter feito isso.
Ela o beijou de novo.
- Eu sabia que você estava mentindo.
- Sério?
- Eu sempre sei quando você está mentindo, Gabriel.
- Mas eu sou um profissional.
- Não quando se trata de mim. - Ela tirou a camisa de Gabriel e montou em seu colo. - Ainda é uma possibilidade, sabe?
- O quê?
- Você morrer na cidade dos hereges.
- Ela estava se referindo a Moscou. Acho que estou seguro agora.
- Na verdade - replicou ela, passando as mãos pela barriga dele -, você está correndo um grande perigo.
- Estou percebendo.
Chiara o recebeu no calor macio de seu corpo. Gabriel já não estava mais na Rússia, mas no quarto em Veneza onde os dois tinham feito amor pela primeira vez, numa
cama de lençóis brancos. Ele estava seguro. Ela também.
- Talvez Madeline não venha - opinou depois Chiara, quando Gabriel começava a adormecer.
- Ela vai vir. E vamos levá-la para casa.
- Eu também quero ir para casa.
- Em breve...
- Alguma hora vai ficar claro lá fora?
- Não, Chiara. Não hoje.
57
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Eles já tinham feito aquilo dezenas de vezes, em dezenas de campos de batalha secretos. Portanto, bastaram alguns minutos debruçados sobre um mapa de rua no quarto
de Gabriel no Astoria para elaborar o plano: a rota, os postos de observação fixa, os pontos de retirada, os paraquedas. Gabriel se referiu ao plano como a última
chance do Centro Moscovita. Jogariam Madeline como isca, fazendo-a percorrer as ruas de São Petersburgo uma última vez, para garantir que estava limpa. E então iriam
recolher a linha e fazer a garota desaparecer. De novo.
Foi assim que, pouco depois das duas horas daquela tarde sombria de São Petersburgo, seis agentes do serviço secreto israelense saíram do Astoria e passaram pelos
fascinantes palácios e igrejas até os seus pontos de espera. Lavon faria o maior percurso, pois deveria estar na frente do prédio de Madeline quando ela saísse às
14h52 - o horário exato em que deveria aparecer se tivesse de fato intenção de fugir. Ela atravessou a Ponte do Palácio, entrou no Museu Hermitage pelo portão que
dava para o cais e seguiu para a Sala de Monet, onde se sentou em seu banco de sempre às 15h07. Dois minutos depois, Lavon se juntou a Madeline.
- Até aqui tudo bem - disse ele baixinho em inglês. - Agora escute com atenção e faça exatamente o que eu digo.
Eles a conduziram pela Praça do Palácio, passando pelo Arco do Triunfo e seguindo para a Nevsky Prospekt. Ela tomou café e comeu um pedaço de bolo russo no Café
Literário, caminhou pelas colunatas romanas da Catedral de Nossa Senhora de Kazan e fez algumas compras na Zara. Em cada ponto ao longo da rota, ela passava por
um membro da equipe. E todos relataram que não havia nenhum sinal de oposição.
Ao sair da loja de roupas, ela foi em direção ao rio Moyka e seguiu pelos caminhos de pedra até a Praça de Santo Isaac, onde Dina esperava, fingindo falar ao telefone.
Se ela estivesse segurando o celular contra o ouvido esquerdo, Madeline deveria continuar andando. Se o pressionasse contra o direito, indicaria que era seguro entrar
no saguão do Hotel Astoria - foi o que fez, às 15h48.
Lavon entrou com ela no elevador. Madeline ficou olhando a neve em suas botas. Ele observou o teto ornamentado. Quando chegaram ruidosamente ao terceiro andar, estendeu
o braço com formalidade e disse: “Você primeiro.” Madeline passou por ele sem dizer nada e seguiu para o quarto ao fim do corredor. Uma das portas se abriu quando
ela se aproximou. Gabriel a puxou para dentro.
- Quem é você? - perguntou ela.
- Não posso dizer.
- Para onde estou indo?
- Você saberá em breve.
Dois minutos depois, a atualização de progresso piscou nos monitores do Centro de Operações do King Saul Boulevard. Navot a encarou por um instante, quase incrédulo.
Em seguida, olhou para Shamron.
- Eles realmente conseguiram, Ari. Estão com ela.
- Isso é bom - comentou Shamron, sem alegria. - Agora vejamos se conseguem ficar com ela.
Ele acendeu outro cigarro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Escureceram o cabelo e as sobrancelhas de Madeline e deram ao seu rosto um bronzeado mediterrâneo. Mordecai tirou uma foto dela e colocou-a no passaporte que Madeline
usaria para sair do país. Por enquanto, ela seria liana Shavit. Tinha nascido em outubro de 1985 e vivia no subúrbio de Tel Aviv, em Rishon LeZion, que por acaso
era um dos primeiros assentamentos judeus da Palestina. Antes de se juntar à El Al, ela servira nas Forças Armadas de Israel. Era casada, mas não tinha filhos. Seu
irmão morrera na última guerra do Líbano. A irmã fora assassinada por um homem-bomba do Hamas durante a Segunda Intifada. Essa não era uma vida totalmente inventada,
disse-lhe Gabriel. Era uma vida israelense. E por algumas horas seria a vida de Madeline.
Se havia um defeito em sua armadura, era a inabilidade de falar mais do que algumas poucas palavras hebraicas aprendidas às pressas. Essa fraqueza foi amenizada
até certo ponto porque o seu inglês não tinha qualquer traço de sotaque russo e a tripulação passaria toda junta pelo controle alfandegário. Provavelmente seria
uma formalidade vazia, pouco mais do que uma olhada na fotografia e um aceno para seguir em frente. Gabriel estava bastante confiante de que Madeline resistiria
ao impulso de responder a uma pergunta feita em russo. Ela passara a vida inteira fazendo isso. Só precisava contar mais uma mentira, fazer uma última performance.
E, então, ficaria livre deles para sempre.
Pouco depois das cinco da tarde, as garotas tiraram as últimas roupas russas de Madeline, vestiram-na com o uniforme impecável da El Al e pentearam seus novos cabelos
pretos. Em seguida, a apresentaram para Gabriel, que a avaliou por um tempo, como se ela fosse uma pintura num cavalete.
- Qual é o seu nome? - perguntou secamente.
- Ilana Shavit.
- Qual é a sua data de nascimento?
- 12 de outubro de 1985.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- O que isso significa em hebraico?
- “O Primeiro em Sião”.
- Qual era o nome do seu irmão?
- Moshe.
- Onde ele foi morto?
- No Líbano.
- Qual era o nome da sua irmã?
- Dalia.
- Onde ela foi morta?
- Na discoteca Dolphinarium.
- Quantas outras pessoas foram mortas naquele dia?
- Vinte.
- Qual é o seu nome?
- Ilana Shavit.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- Qual rua?
- Sokolow.
Gabriel não tinha mais perguntas. Ele colocou uma das mãos no queixo e inclinou a cabeça para o lado.
- E então? - perguntou ela.
- Partimos em cinco minutos.
Lavon estava tomando café no saguão mal iluminado. Gabriel se sentou ao lado. - Estou com uma sensação estranha - disse Lavon.
- Muito estranha?
- Dois na frente da porta, dois no bar e um à toa perto do balcão do concierge.
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - concordou Lavon, inseguro.
- Podem estar vigiando um hóspede.
- É disso que tenho medo.
- Outro hóspede, Eli.
Lavon não respondeu.
- Tem certeza de que ela estava limpa quando a trouxemos?
- Impecável.
- Então ela está limpa agora - afirmou Gabriel.
- Por que o saguão está cheio de agentes da FSB?
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - repetiu Lavon.
Gabriel olhou pela janela, para a van da El Al parada na frente do hotel.
- O que vamos fazer? - perguntou Lavon.
- Vamos seguir o plano.
- Você vai contar a ela?
- Sem chance.
Lavon tomou um gole do café.
- Boa ideia.
Três longos minutos se passaram até os primeiros membros da tripulação da El Al saírem dos elevadores para o saguão: duas jovens bem-arrumadas, que eram mesmo funcionárias
da empresa aérea, ao contrário das quatro mulheres e dos dois homens que vieram atrás, todos agentes de campo veteranos do Escritório. Então, surgiram o capitão
e o engenheiro de voo, seguidos um instante depois por uma versão muito bem disfarçada de Mikhail, que posava de primeiro oficial. O homem da FSB que estava perto
do balcão do concierge se voltou para encarar descaradamente o traseiro de uma das falsas comissárias de voo. Observando a cena do outro lado do saguão, Gabriel
se permitiu um breve sorriso. Se o agente tinha tempo para dar uma olhada nos dotes israelenses, havia grandes chances de que não estivesse à procura de uma russa
ilegal desaparecida.
Enfim, às 17hl0, Chiara e Madeline apareceram puxando suas malas de rodinhas da El Al. A esposa estava contando uma história sobre um voo recente num hebraico rápido
e a garota inglesa ria como se fosse a coisa mais divertida que tivesse ouvido em muito tempo. Elas se juntaram aos outros membros da tripulação, saíram do hotel
e subiram na van. As portas se fecharam. E eles partiram.
- O que você acha? - perguntou Gabriel.
- Acho que ela é muito boa - respondeu Lavon.
- Estamos limpos?
- Impecáveis.
Gabriel se levantou, pegou sua bolsa de viagem e saiu para a noite sem fim.
Um táxi aguardava na frente do hotel. Ele levou Gabriel em alta velocidade pela última prospekt. Passou por uma estátua desmedida de Lênin conduzindo seu povo por
setenta anos de estagnação e assassinatos; pelos monumentos a uma guerra da qual ninguém podia se lembrar; e quilômetro após quilômetro de prédios em ruínas. Por
fim, chegou ao terminal internacional do Aeroporto Pulkovo. Ele fez check-in para o voo com destino a Tel Aviv e não teve problemas com o controle alfandegário,
identificando-se como Jonathan Albright, da Markham Capital Services. Por fim, andou até o portão de embarque muito bem fortificado da El Al. Os russos alegavam
que as barreiras serviam para a segurança dos passageiros que seguiam para Israel. Mesmo assim, Gabriel teve a incômoda sensação de estar entrando no último gueto
da Europa.
Ele se acomodou num lugar vazio no canto do saguão, perto de uma grande família haredim. Ninguém falava russo, apenas hebraico. Se não fosse pelo disfarce, ele certamente
teria sido reconhecido. Mas agora Gabriel estava sentado em meio ao seu povo como um estranho, seu servo secreto, seu anjo da guarda invisível. Em breve, seria o
diretor de seu afamado serviço de inteligência. Seria mesmo? Sem dúvida essa era uma bela forma de encerrar a carreira. Obtivera provas de que uma petrolífera possuída
e administrada pelo SVR tinha desestabilizado o governo do Reino Unido para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte - tudo a pedido do próprio presidente russo.
Não haveria mais volta depois disso. Nada mais de conversas alegres sobre a Rússia como amiga do Ocidente. Ele provaria de uma vez por todas que os ex-agentes da
KGB, atuais administradores do país, eram implacáveis, autoritários e indignos de confiança. Que eles deveriam ser marginalizados e contidos, como nos velhos tempos
da Guerra Fria.
Mas de nada adiantaria se ele perdesse a garota. Gabriel consultou o relógio e, ao erguer os olhos, viu Yossi e Rimona adentrando o saguão de embarque. Em seguida,
vieram Mordecai e Oded. Então, Yaakov e Dina. E, por fim, Lavon, com cara de quem tinha ido parar no aeroporto por engano. Ele perambulou um pouco pelo saguão, inspecionando
cada assento vazio com o cuidado de um homem que sofre de fobia de germes, antes de sentar-se em frente a Gabriel. Eles nem trocaram olhares: eram duas sentinelas
numa vigília sem fim. Agora não havia nada para fazer além de esperar. A espera, pensou Gabriel. Sempre a espera. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer
do sol depois de uma noite de matança. E esperando sua esposa carregar uma garota morta de volta para a terra dos vivos.
Ele olhou para o relógio novamente, e depois para Lavon.
- Onde elas estão? - perguntou.
Lavon respondeu sem baixar o jornal:
- Já passaram pela alfândega. Os funcionários só estão dando uma olhada nas bagagens.
- Por quê?
- Como eu poderia saber?
- Me diga que não há nada de errado com a bagagem.
- A bagagem está certinha.
- Então por que estão verificando?
- Talvez estejam entediados. Ou gostem de tocar em roupas íntimas femininas. Eles são russos, pelo amor de Deus.
- Quanto tempo, Eli?
- Dois minutos, talvez menos.
Os dois minutos de Eli passaram sem qualquer sinal delas. Seguidos por um terceiro. E um interminável quarto. Gabriel encarava o relógio, o carpete imundo, a criança
ao seu lado - tudo menos a entrada do saguão de embarque. Então, enfim, ele as vislumbrou com o canto do olho, um lampejo de azul e branco, como uma bandeira sendo
acenada. Mikhail caminhava ao lado do capitão. Madeline estava com um sorriso nervoso e parecia estar segurando o braço de Chiara para sentir-se mais segura. Ou
será que era o contrário? Gabriel não pôde ter certeza. Ele viu-os virar ao mesmo tempo em direção ao portão e desaparecer pela passarela. Em seguida, olhou para
Lavon.
- Eu falei que ia ficar tudo bem - disse ele.
- Você nem ficou preocupado?
- Indescritivelmente aterrorizado.
- Por que não me disse?
Lavon não respondeu. Ele só ficou sentado lendo o jornal até o voo ser chamado. Em seguida, levantou-se e seguiu Gabriel até o avião. Deu uma última olhada em busca
de vigilância inimiga, só para garantir.
Ela foi orientada a sentar-se na terceira fila, ao lado da janela. Estava olhando para o aeroporto escuro e malcuidado de Pulkovo, seu último vislumbre de uma Rússia
que nunca chegara a conhecer. Vestida com o uniforme azul e branco, Madeline estava parecida com uma estudante inglesa. Ela olhou para o lado quando Gabriel se acomodou
no assento, mas logo virou o rosto. Ele disparou uma última mensagem para o King Saul Boulevard pelo BlackBerry criptografado. Em seguida, observou a esposa preparar
a cabine para a decolagem. Os olhos de Madeline reluziram. Quando as rodas se ergueram do solo russo, uma lágrima escorreu por sua bochecha. Ela segurou na mão de
Gabriel e a apertou com força.
- Nem sei como agradecer - disse, com seu sotaque britânico preciso.
- Então não agradeça.
- Quanto tempo dura o voo?
- Cinco horas.
- Vai estar quente em Israel?
- Só no sul.
- Você vai me levar lá?
- Vou levá-la aonde você quiser ir.
Chiara apareceu e entregou taças de champanhe para os dois. Gabriel ergueu a sua na direção de Madeline num brinde silencioso antes de colocá-la no apoio de centro,
sem beber nada.
- Você não gosta de champanhe? - perguntou ela.
- Me dá uma dor de cabeça terrível.
- Também me dá.
Madeline tomou uns goles e ficou olhando pela janela para a escuridão abaixo.
- Como você me encontrou lá embaixo?
- Isso não é importante.
- Algum dia você vai me dizer quem é?
- Você vai saber em breve.
Parte 3
O ESCÂNDALO
58
LONDRES - JERUSALÉM
Na manhã seguinte, ocorreriam as eleições na Inglaterra. Jonathan Lancaster votou cedo, acompanhado da esposa, Diana, e dos três filhos fotogênicos, antes de voltar
para a Downing Street e esperar o veredicto. Não houve muito suspense, pois uma pesquisa divulgada na noite anterior previra que o partido de Lancaster quase certamente
aumentaria sua maioria parlamentar em vários assentos. No meio da tarde, Whitehall estava tomada por rumores de um massacre eleitoral e, no começo da noite, o champanhe
já fluía pela sede do Partido em Millbank. Mesmo assim, o primeiro-ministro pareceu estranhamente reservado quando subiu ao palco do Royal Festival Hall para fazer
o discurso da vitória. Entre os repórteres políticos que tomaram nota de sua atitude séria estava Samantha Cooke, do Daily Telegraph. Lancaster, ela escreveu, parecia
saber que o segundo mandato não correria tão bem quanto o primeiro. Mas, por outro lado, acrescentou ela, era isso que costumava acontecer com segundos mandatos.
Os problemas de Lancaster começaram mais adiante naquela semana, quando ele deu início ao tradicional processo de remanejamento de gabinete e equipe pessoal. De
acordo com o previsto, Jeremy Fallon, agora membro do parlamento de Bristol, foi designado ministro do Tesouro, logo também seria seu vizinho na Downing Street.
O homem que já fora descrito pela imprensa como o cérebro de Lancaster agora era considerado por Whitehall como o futuro primeiro-ministro. Fallon rapidamente reuniu
os membros remanescentes da antiga equipe - pelo menos os que ainda suportavam trabalhar para ele - e usou sua influência dentro da sede do Partido para preencher
posições políticas essenciais. O palco estava preparado, escreveu Samantha Cooke, para uma batalha por poder de proporções shakespearianas. Em breve, Fallon bateria
à porta do número 10 da Downing Street e pediria as chaves. Ele tinha criado Lancaster. E, certamente, tentaria destruí-lo.
Em nenhum momento durante as manobras pós-eleição, a imprensa mencionou o nome de Madeline Hart, nem mesmo quando o presidente do Partido decidiu que já era hora
de preencher a vaga deixada por ela. Um subordinado que trabalhava na sede assumiu a tarefa mórbida de remover as posses restantes de Madeline de seu antigo cubículo.
Não havia muita coisa: alguns arquivos empoeirados, um calendário, canetas e clipes de papel, um exemplar já bem gasto de Orgulho e preconceito que ela costumava
ler sempre que tinha um momento de folga. O homem entregou os itens ao presidente do Partido, que mandou sua secretária se livrar discretamente do material, com
tanta dignidade quanto possível. E, assim, os últimos traços de uma vida inacabada foram expurgados. Madeline Hart enfim tinha partido. Ao menos era o que eles pensavam.
No começo, ela teve a impressão de que havia trocado um tipo de cativeiro por outro. Dessa vez, o apartamento que servia de cela dava vista não para o rio Neva,
em São Petersburgo, mas para o mar Mediterrâneo, em Netanya. Para a administração do prédio, ela estava se recuperando de uma longa doença. A verdade não era muito
diferente.
Madeline não saiu do apartamento por uma semana. Seus dias não tinham nenhuma rotina discernível. Ela dormia tarde, observava o mar, relia seus romances favoritos,
tudo sob a observação da equipe de segurança do Escritório. Um médico ia vê-la uma vez por dia. No sétimo dia, quando ele lhe perguntou como estava, ela respondeu
que sofria de tédio terminal.
- Melhor morrer de tédio do que de veneno russo - brincou o doutor.
- Não tenho tanta certeza - respondeu, com seu inglês arrastado.
O médico prometeu que levaria o caso de seu confinamento à autoridade mais alta. No oitavo dia, o alto escalão permitiu que Madeline fizesse uma breve caminhada
pelo trecho frio e ventoso de areia na frente do prédio onde residia. No dia seguinte, pôde ir um pouco mais longe. E, no décimo dia, caminhou quase até Tel Aviv
antes de seus cuidadores a colocarem com gentileza no banco traseiro de um carro do Escritório e a levarem de volta para o apartamento. Ao entrar, encontrou uma
réplica exata de Lagoa em Montgeron pendurada na parede da sala de estar - exata, com exceção da assinatura do artista que a pintara. Ele ligou alguns minutos depois
e se apresentou adequadamente pela primeira vez.
- O famoso Gabriel Allon? - perguntou ela.
- Receio que sim.
- E quem foi a mulher que me ajudou a subir no avião?
- Você saberá em breve.
Gabriel e Chiara chegaram em Netanya no horário de almoço do dia seguinte, depois que Madeline voltou da caminhada matinal pela praia. Eles a levaram ao
Cesarea para almoçar e passearam pelas ruínas dos romanos e das cruzadas. Em seguida, subiram o litoral, até perto do Líbano, para visitar as cavernas marinhas de
Rosh HaNikra. De lá, seguiram para o leste em direção à fronteira disputada, passando pelos postos de escuta das Forças Armadas de Israel e pelas pequenas cidades
que tinham sido despovoadas após a última guerra contra o Hezbollah, até que chegaram em Kiryat Shmona. Gabriel reservara dois quartos na pousada de um velho kibutz.
Os aposentos de Madeline tinham uma bela vista da Alta Galileia. Um guarda do Escritório passou a noite na frente da porta dela, enquanto outro ficou sentado na
varanda com jardim.
No dia seguinte, depois de tomar o café da manhã no salão de refeições, foram de carro até as colinas de Golã. As Forças Armadas os aguardavam. Um jovem coronel
levou o grupo até um ponto na fronteira com a Síria, onde era possível ouvir os bombardeios do conflito entre o regime e os rebeldes. Em seguida, eles fizeram uma
breve visita à Fortaleza de Nimrod, o antigo bastião dos cruzados com vista para a cidade judaica de Safed. Eles almoçaram no bairro dos artistas, na casa de uma
mulher chamada Tziona Levin. Embora Gabriel a chamasse de doda - tia -, na verdade ela estava mais para irmã. A mulher não demonstrou surpresa quando ele e Chiara
apareceram à sua porta acompanhados pela bela jovem que o mundo inteiro pensava estar morta. Ela sabia que Gabriel tinha o hábito de voltar para Israel com objetos
perdidos.
- Como está o trabalho? - perguntou, enquanto tomavam café em seu jardim banhado pelo sol.
- Melhor do que nunca - respondeu Gabriel, dando uma olhada em Madeline.
- Eu estava falando da sua arte.
- Acabei de concluir a restauração de um Bassano adorável.
- Você devia focar no seu próprio trabalho - falou ela, reprovadora.
- É o que estou fazendo - disse vagamente, e Tziona deixou a questão de lado.
Quando terminaram o café, ela os levou para o estúdio e mostrou seus novos quadros. Então, a pedido de Gabriel, destrancou um cômodo. Dentro, havia centenas de pinturas
e esboços feitos pela mãe de Allon, inclusive várias obras retratando um homem alto vestido com o uniforme da SS.
- Achei que tivesse dito para queimar estes - repreendeu Gabriel.
- Você disse - admitiu Tziona mas não consegui.
- Quem é ele? - perguntou Madeline, encarando as pinturas.
- Seu nome era Erich Radek - respondeu Gabriel. - Ele coordenou um programa nazista secreto chamado Aktion 1005. A meta era ocultar todas as evidências de que o
Holocausto tinha ocorrido.
- Por que sua mãe o pintou?
- Ele quase a matou na marcha da morte de Auschwitz em janeiro de 1945.
Madeline ergueu uma sobrancelha, intrigada.
- Radek não foi capturado em Viena alguns anos atrás e trazido a Israel para julgamento?
- Para seu governo, ele se voluntariou para vir a Israel.
- Sim, claro - disse Madeline, sem convicção. - E eu fui sequestrada por criminosos franceses de Marselha.
No dia seguinte, eles dirigiram até Eilat. O Escritório tinha alugado uma casa particular ampla perto da fronteira com a Jordânia. Madeline passou os dias deitada
ao lado da piscina, lendo e relendo uma pilha de romances ingleses clássicos. Gabriel percebeu que a garota estava se preparando para voltar ao país que não era
realmente dela. Madeline não era ninguém, pensou Gabriel. Não era uma pessoa real. E, não pela primeira vez, perguntou-se se seria melhor para ela morar em Israel,
e não no Reino Unido. Foi o que lhe indagou na última noite de estadia no sul. Eles estavam sentados num terreno rochoso em Neguev, vendo o sol se pôr nas terras
ermas do Sinai.
- É tentador - respondeu ela.
- Mas...?
- Não é a minha casa. Pareceria com a Rússia. Eu seria uma estranha aqui.
- Vai ser difícil, Madeline. Muito mais difícil do que você pensa. Os ingleses vão pressioná-la até terem certeza da sua lealdade. E vão trancá-la em algum lugar
que os russos nunca vão conseguir encontrar. Você nunca vai poder retomar a antiga vida. Nunca. Vai ser horrível.
- Eu sei - disse ela, distante.
Na verdade não sabia, pensou Gabriel, mas talvez fosse melhor desse jeito. O sol pairava logo acima do horizonte. De repente, o ar do deserto esfriou o suficiente
para fazê-la estremecer.
- Acha que devemos voltar? - perguntou ele.
- Ainda não.
Gabriel tirou sua jaqueta e a colocou por cima dos ombros dela.
- Vou dizer algo que provavelmente não deveria: em breve serei o diretor da inteligência israelense.
- Parabéns.
- “Meus pêsames” seria uma resposta mais adequada. Mas isso significa que vou ter o poder de cuidar de você. Vou dar um bom lugar para você viver. Uma família. Disfuncional,
é verdade, mas a única família que eu tenho. Vamos lhe dar um país. Um lar. É isso que fazemos em Israel: damos um lar às pessoas.
- Eu já tenho um lar.
Ela não disse mais nada. O sol mergulhou no horizonte e ela sumiu em meio à escuridão.
- Fique - pediu Gabriel. - Fique aqui conosco.
- Eu não posso ficar. Eu sou Madeline. Sou uma garota inglesa.
Na noite seguinte, ocorreria a festa de abertura da exposição dos Pilares de Salomão no Museu de Israel, em Jerusalém. O presidente e o primeiro-ministro estavam
na lista de convidados, assim como os membros do gabinete, a maior parte do Knesset e inúmeros escritores, artistas e celebridades. Chiara foi uma das oradoras da
cerimônia, realizada no recém-construído saguão de exibição. Ela não mencionou o fato de que seu marido, o lendário espião Gabriel Allon, tinha descoberto os pilares,
nem que a linda jovem de cabelos escuros ao seu lado era, na verdade, uma garota inglesa morta chamada Madeline Hart. Os dois omitidos ficaram só alguns minutos
no coquetel, então foram de carro ao outro lado de Jerusalém, até um restaurante tranquilo no velho campus da Academia Bezalel de Artes e Design. Em seguida, enquanto
caminhavam pela rua Ben Yehuda, Gabriel perguntou novamente se Madeline queria ficar em Israel, mas a resposta foi a mesma. Ela passou a última noite na cidade no
quarto de hóspedes do apartamento de Gabriel, na rua Narkiss, o quarto que fora idealizado para uma criança. No início da manhã seguinte, eles foram até o Ben Gurion
em meio às trevas e embarcaram num voo para Londres.
59
LONDRES
Gabriel passou vários dias tentando decidir se avisava a Graham Seymour que ele estava prestes a receber uma desertora russa bastante incomum. Por fim, achou melhor
não. Suas razões foram pessoais, não operacionais: simplesmente não queria estragar a surpresa.
Dessa forma, a equipe de recepção no aeroporto de Heathrow no fim daquela manhã era composta por membros do Escritório, e não do MI5. Os agentes assumiram a custódia
clandestina de Gabriel e Madeline no saguão de desembarque e os transportaram para um apartamento obtido às pressas em Pimlico. Ao chegar, Gabriel ligou para Seymour
em seu escritório e disse que, mais uma vez, tinha entrado no Reino Unido sem assinar o livro de visitantes.
- Que surpresa - disse Seymour, seco.
- Ainda há mais por vir, Graham.
- Onde você está?
Gabriel passou o endereço.
Seymour tinha uma reunião com uma delegação visitante de espiões australianos que não podia ser adiada, então somente depois de uma hora é que seu carro surgiu na
frente do prédio. Ao entrar no apartamento, encontrou Gabriel sozinho na sala de estar. Na mesa de centro, havia um notebook aberto e Allon o utilizou para rodar
uma gravação de Pavel Zhirov confessando os muitos pecados da empresa de energia que pertencia ao Kremlin, conhecida como Volgatek Óleo e Gás. Quando o vídeo terminou,
Seymour parecia bastante abalado. Isso provava uma das máximas favoritas de Ari Shamron, pensou Gabriel: no negócio da inteligência, assim como na vida, às vezes
é melhor não saber.
- Foi ele que almoçou com Madeline na Córsega? - perguntou Seymour, ainda encarando a tela do computador.
Gabriel assentiu devagar.
- Você me disse para encontrá-lo. E eu o encontrei.
- O que aconteceu com o rosto dele?
- Ele disse algo para Mikhail que não devia ter dito.
- Onde ele está agora?
- Ele se foi.
- Isso pode significar várias coisas, sabe?
A expressão neutra de Gabriel deixou claro que Zhirov tinha partido para nunca mais voltar.
- Os russos sabem? - perguntou Seymour.
- Ainda não.
- Quanto tempo até descobrirem?
- Lá pela primavera, eu diria.
- Quem o matou?
- Essa é uma história para outra hora.
Gabriel ejetou o DVD do computador e o ofereceu para Seymour. Ao pegá-lo, ele soltou o ar lentamente, como se tentasse manter a pressão sanguínea num nível saudável.
- Eu estou nesse jogo há muito tempo. E este vídeo foi a coisa mais explosiva que já vi.
- Você ainda não viu tudo, Graham.
- Eu não sei se você reparou - continuou Seymour, como se não tivesse escutado o aviso de Gabriel -, mas nós tivemos uma eleição neste país recentemente. Jonathan
Lancaster acabou de ganhar com um dos maiores percentuais de votos na história da Inglaterra. E, agora, Jeremy Fallon é o ministro do Tesouro.
- Não por muito tempo.
Seymour não respondeu.
- Você não está pensando em deixá-lo sair impune dessa, está, Graham?
- Não. Mas vai ser um banho de sangue.
- Você sempre soube que seria.
- Mas eu estava torcendo para que o sangue não respingasse em mim.
Graham caiu num silêncio pesado.
- Algo que você precise desabafar, Graham?
- O primeiro-ministro me ofereceu uma promoção - explicou ele, depois de hesitar um pouco.
- Que tipo de promoção?
- O tipo que eu não pude recusar.
- Diretor-geral?
Seymour assentiu.
- Mas não do MI5 - acrescentou depressa. - Você está olhando para o futuro diretor do Serviço Secreto de Sua Majestade. Nós dois vamos governar o mundo juntos...
às escondidas, é claro.
- A menos que você derrube o governo de Lancaster.
- Correto. Se eu fizer isso, há boas chances de eu ser jogado ao mar com o resto deles. E você vai perder um aliado próximo no processo. - Ele acrescentou, baixando
a voz: - Eu achava que um homem na sua posição desejasse manter um amigo como eu. Você não tem muitos atualmente.
- Mas você não pode permitir que uma empresa da KGB perfure nas águas do seu território.
- Isso seria negligência do dever - concordou Seymour, jovialmente.
- Você também não pode permitir que um agente pago do Kremlin continue servindo como ministro. Caso contrário, talvez ele seja o seu próximo primeiro-ministro.
- Eu estremeço só de pensar na possibilidade.
- Então você precisa destruí-lo, Graham. - Gabriel fez uma pausa. - Ou vai ter que desviar os olhos enquanto eu o faço para você.
Seymour ficou em silêncio por um instante.
- Como você faria?
- Retribuindo um favor.
- E quanto a Lancaster?
- Ele é culpado de um caso extraconjugal. É provável que o povo britânico o perdoe, especialmente quando descobrirem que Fallon tem 5 milhões de euros numa conta
suíça. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - E há mais uma circunstância atenuante sobre a qual eu ainda não falei.
- Qual?
Gabriel sorriu e se levantou.
Ele entrou no quarto e voltou um momento depois com uma jovem linda ao lado, de cabelos escuros como carvão e pele bem bronzeada pelo sol do mar Vermelho. Seymour
se levantou cavalheirescamente e, sorrindo, estendeu a mão. Quando o cumprimento não foi retribuído, seu rosto assumiu uma expressão intrigada. E, então, ele entendeu.
Olhou para Gabriel e sussurrou:
- Meu Deus.
Ela contou a história desde o começo para Seymour - a mesma que contara a Gabriel naquela tarde gélida em São Petersburgo, na cúpula da Catedral de Santo Isaac.
Depois, calma, empertigada, declarou que desejava desertar para o Reino Unido e, se possível, um dia retornar à sua vida antiga.
Como vice-diretor do MI5, Seymour não tinha autoridade para conceder status de desertora a uma espiã russa. A única pessoa que podia fazer aquilo seria o ex-amante
de Madeline, Jonathan Lancaster. Por isso, às duas e quinze daquela tarde, Seymour se apresentou na Downing Street sem aviso e exigiu uma conversa em particular
com o primeiro-ministro. Por coincidência, o encontro se deu na sala de reuniões. Lá, embaixo do mesmo retrato da baronesa Thatcher, Seymour contou tudo o que tinha
descoberto. Que o presidente russo ordenara que a Volgatek utilizasse qualquer meio possível para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte. Que Jeremy Fallon, o
assessor e amigo íntimo de Lancaster, o traíra por 5 milhões de moedas de prata russa. E que Madeline Hart, sua antiga amante, era uma espiã nascida na Rússia que
ainda estava muito viva e havia solicitado asilo na Inglaterra. Para seu crédito, Lancaster, embora visivelmente perturbado, não hesitou em responder. Fallon tinha
que partir, Madeline tinha que ficar, e que as fichas caíssem onde fosse para elas caírem. Ele fez apenas um pedido: queria contar tudo à esposa antes.
- Eu não esperaria muito tempo se fosse você, primeiro-ministro.
Lancaster estendeu o braço lentamente na direção do telefone. Seymour se levantou e saiu do cômodo em silêncio.
Agora restava apenas o nome do repórter que receberia a exclusiva mais sensacional da história política da Inglaterra. Seymour sugeriu Tony Richmond, do Times, ou
talvez Sue Gibbons, do Independent, mas Gabriel se recusou. Ele tinha feito uma promessa, explicou, e pretendia cumpri-la. Telefonou para o celular dela, mas a ligação
caiu na caixa postal e ele deixou uma mensagem breve. Ela retornou logo em seguida.
- Às quatro horas no Café Nero - disse Gabriel. - E desta vez não se atrase.
Para profundo desgosto de Seymour, Gabriel e Madeline insistiram em dar uma última volta juntos. Ambos seguiram para Millbank enfrentando rajadas de vento; passaram
pelos Victoria Tower Gardens, pela Abadia de Westminster e pelo Palácio de Westminster. Às dez para as quatro, entraram na cafeteria. Gabriel pediu café preto, Madeline
quis um chá Earl Grey com leite e um biscoito digestivo. Ela tirou um estojo compacto da bolsa e deu uma olhada no próprio rosto pelo espelho.
- Como estou? - ela quis saber.
- Muito israelense.
- Isso é um elogio?
- Deixe para lá. É melhor comer.
Ela obedeceu. Em seguida, olhou pela janela e viu a multidão se movendo pela Bridge Street. Como se nunca tivesse visto aquilo antes. Como se nunca fosse ver novamente.
Ele vistoriou a parte interna do café. Ninguém a reconhecera. Por que reconheceriam? Ela estava morta e enterrada - enterrada no terreno de uma igreja em Basildon.
Uma cidade sem alma para uma garota sem nome nem passado.
- Você não precisa fazer isso - falou Gabriel depois de um instante.
- É claro que preciso.
- Eu já tenho o suficiente sem você. Tenho o vídeo de Zhirov.
- O Kremlin pode negar Zhirov - retrucou Madeline. - Mas não pode me negar.
Ela ainda contemplava a rua.
- Dê uma boa olhada - disse Gabriel -, porque, se você fizer o que está pretendendo, vai demorar um bom tempo até deixarem você voltar para Londres.
- Onde você acha que vão me colocar?
- Num esconderijo no meio do nada, talvez uma base militar, até a tempestade passar.
- Não parece muito agradável, parece?
- Você sempre pode voltar para Israel comigo.
Ela não respondeu. Gabriel se inclinou para a frente e segurou a mão dela, que tremia um pouco.
- Eu tenho uma casinha na Cornualha - revelou ele em voz baixa. - A cidade não é nada de mais, mas fica junto ao mar. Você pode permanecer lá se quiser.
- Tem vista?
- Uma vista adorável.
- Acho que eu gostaria.
Madeline deu um sorriso corajoso. Do outro lado da rua, o Big Ben bateu quatro horas.
- Ela está atrasada - comentou Gabriel, incrédulo. - Não acredito que ela está atrasada.
- Ela sempre está atrasada.
- Você a deixou bem impressionada, a propósito.
- Ela não foi a única.
Madeline riu, apesar das circunstâncias, e tomou um pouco do chá. Gabriel consultou o relógio e franziu a testa. Ele ergueu os olhos a tempo de ver Samantha Cooke
passar correndo pela porta. Um instante depois, estava à mesa deles, um pouco sem fôlego. Ela olhou para Gabriel e, em seguida, para a bela garota de cabelos escuros
sentada à sua frente. E, então, Samantha entendeu.
- Meu Deus - sussurrou.
- Quer algo para beber? - perguntou Madeline, com seu sotaque britânico.
- Na v-verdade - gaguejou Samantha -, talvez seja melhor darmos uma volta.
60
LONDRES
Trinta horas depois, um funcionário júnior da Downing Street entregou um pacote com vários jornais numa casa de tijolos vermelhos em Hampstead. A residência pertencia
a Simon Hewitt, o diretor de comunicações de Jonathan Lancaster, e o baque contra sua porta o acordou de um sono atipicamente profundo. Ele estava sonhando com um
incidente da infância, quando um valentão da escola o deixara com um olho roxo. Era uma leve melhora em relação ao pesadelo da noite anterior - em que fora despedaçado
por lobos -, ou mesmo ao da outra noite - uma nuvem de abelhas o picava até deixá-lo todo ensanguentado. Tudo fazia parte de um tema recorrente. Apesar do triunfo
de Lancaster nas urnas, Hewitt estava tomado por uma sensação de desastre iminente muito diferente de qualquer coisa que tivesse sentido desde que viera para a Downing
Street. Tinha certeza de que o silêncio na imprensa era ilusório. Sem dúvida um terremoto estava prestes a acontecer.
Tudo isso explicava por que Hewitt demorou para sair da cama e abrir a porta da frente naquela fria manhã londrina. Ao abaixar para pegar os jornais, sentiu um espasmo
nas costas, um lembrete do peso do emprego sobre a sua saúde. Ele levou o pacote para a cozinha, onde a cafeteira emitia o chacoalhar enferrujado que sinalizava
o fim de sua vida útil. Depois de se servir uma xícara grande e cobri-la com creme de leite fresco, tirou os jornais do plástico. Como sempre, o antigo periódico
de Hewitt, o Times, estava no topo. Ele o examinou rapidamente, não encontrou nada que chamasse atenção e seguiu para o Guardian. Depois foi a vez do Independent.
E, por fim, do Daily Telegraph.
- Merda - praguejou em voz baixa. - Merda, merda, merda.
No começo, a imprensa não soube bem que nome dar àquela história. Tentaram “O Caso de Madeline Hart”, mas pareceu restrito demais. Assim como “O Fiasco de Fallon”,
que durou algumas horas, ou “A Conexão do Kremlin”, que gozou de uma breve aparição na ITV. Ao fim da manhã, a BBC tinha se decidido por “O Caso da Downing Street”,
que era vago, mas amplo o bastante para cobrir todas as espécies de pecado. O resto da imprensa rapidamente adotou o título, e assim nasceu um escândalo.
Na maior parte do dia, Jonathan Lancaster, o homem no centro dele, permaneceu num silêncio inesperado. Enfim, às seis horas daquela tarde, a porta preta do número
10 se abriu e ele saiu sozinho para encarar o país. Com um tom de arrependimento, conseguiu manter os olhos secos e a voz firme. Reconheceu que tinha mantido um
relacionamento breve e insensato com uma jovem da sede do Partido. Também admitiu que convocara os serviços de um agente estrangeiro de inteligência para encontrar
a moça depois de seu desaparecimento; que, indevidamente, retivera informações das autoridades britânicas; e que pagara 10 milhões de euros pelo resgate. Em nenhum
momento, insistiu, chegou a suspeitar que a garota fosse uma espiã nascida na Rússia. Nem que o sequestro fizesse parte de uma conspiração bem orquestrada por uma
empresa petrolífera do Kremlin. Ele tinha aprovado a licença para a Volgatek seguindo a sugestão de Jeremy Fallon, seu assistente de longa data e chefe de gabinete.
E aquele acordo, ressaltou, agora estava desfeito.
Inteligente, Fallon emitiu sua própria declaração por escrito, pois, mesmo em seus melhores dias, parecia um homem culpado de alguma coisa. Ele reconheceu que havia
ajudado o primeiro-ministro a lidar com as consequências de sua “conduta pessoal imprudente”, mas negou categoricamente que tivesse aceitado pagamentos em dinheiro
de qualquer pessoa ligada à Volgatek. Os comentaristas políticos não deixaram de notar a agressividade da declaração. Para eles, Fallon acreditava que Lancaster
talvez não sobrevivesse e que poderia tomar seu cargo. Aquilo tudo estava se transformando numa luta por sobrevivência. Talvez até mesmo uma luta até a morte.
A declaração seguinte não veio de Londres, mas de Moscou. O presidente russo disse que as alegações contra o Kremlin e sua empresa de petróleo eram uma maliciosa
mentira ocidental. Num sinal claro de que a questão teria repercussões geopolíticas, acusou a inteligência britânica de ter se envolvido no desaparecimento de Pavel
Zhirov, o homem que era a base daquelas alegações. Então, sem oferecer qualquer prova, insinuou que Viktor Orlov tinha alguma relação com o caso. De sua sede em
Mayfair, o ex-oligarca emitiu uma declaração provocativa contradizendo o presidente e afirmando que ele era um mentiroso congênito e cleptocrata que enfim mostrara
sua verdadeira face. Em seguida, entregou-se imediatamente a uma equipe de segurança do MI5 e desapareceu de vista.
Mas quem era o misterioso agente de um serviço estrangeiro que Lancaster convocara para encontrar Madeline Hart? Alegando questões de segurança nacional, o primeiro-ministro
se recusou a identificá-lo. Jeremy Fallon também não esclareceu o assunto. Inicialmente, a especulação se focou nos americanos, de quem se sabia que Lancaster era
próximo. Mas isso mudou quando o Times noticiou que Gabriel Allon, o famoso agente secreto israelense, fora visto entrando na Downing Street em duas ocasiões distintas
durante o período em questão. Em seguida, o Daily Mail relatou que um membro do alto escalão do Parlamento o vira com uma jovem no Café Nero um dia antes de o escândalo
vir à tona. A matéria do Mail foi considerada baboseira sensacionalista - com certeza o grande Gabriel Allon não seria tão tolo a ponto de sentar-se num café movimentado
em Londres sem se disfarçar mas era difícil rejeitar a reportagem do Times. Quebrando a tradição, o Escritório emitiu uma declaração lacônica negando as informações
dos dois relatos, algo que a imprensa britânica viu como uma confirmação inegável do envolvimento de Allon.
Depois disso, o escândalo entrou num ciclo previsível de vazamento de informações e contrainformações e de guerra política aberta. O líder da oposição declarou sua
repulsa e exigiu a renúncia de Lancaster. Mas, quando uma sondagem na Câmara dos Comuns revelou que Lancaster sobreviveria por pouco ao processo do voto de não confiança,
o oposicionista não se deu o trabalho de agendá-lo. Até mesmo Fallon pareceu resistir à tempestade. Afinal, não havia nenhuma prova de que ele tivesse aceito qualquer
pagamento da Volgatek, apenas a palavra de um executivo russo da indústria do petróleo que parecia ter desaparecido da face da Terra.
E tudo poderia ter terminado dessa forma, com o casamento Lancaster-Fallon bastante prejudicado mas ainda intacto, se não fosse pela edição do Daily Telegraph que
acertou com um baque a porta de Simon Hewitt na segunda terça-feira de janeiro. Na primeira página, ao lado de um artigo de Samantha Cooke, havia uma fotografia
de Fallon entrando num pequeno banco particular em Zurique. Algumas horas depois, Lancaster voltou a aparecer sozinho diante da famosa porta do número 10, dessa
vez para anunciar a demissão do ministro do Tesouro. Após alguns minutos, a Scotland Yard anunciou que Fallon passara a ser alvo de uma investigação de suborno e
fraude. Ele novamente declarou inocência. Nenhum membro da equipe de imprensa de Whitehall acreditou.
Ele saiu da Downing Street pela última vez ao pôr do sol e voltou para o pequeno apartamento vazio em Notting Hill. O prédio parecia cercado por todos os repórteres,
cinegrafistas e fotógrafos de Londres. O inquérito não chegaria a determinar como ou quando ele os despistara, embora uma gravação de circuito fechado tenha capturado
uma imagem clara de seu rosto abatido às 2h23 da madrugada seguinte enquanto ele caminhava por um trecho deserto da Park Lane, com uma corda já presa no pescoço.
Com um nó náutico que tinha aprendido com o pai, amarrou a outra ponta num poste no centro da Ponte de Westminster. Ninguém chegou a ver Fallon se jogando do parapeito,
então ele passou a noite inteira pendurado, até que o sol enfim iluminou o seu corpo oscilante. Assim, provou-se verdadeiro um antigo e sábio provérbio corso: “Aquele
que leva uma vida imoral tem uma morte imoral.”
61
CÓRSEGA
Mas quem tinha fornecido a fotografia condenatória que custou o emprego de Jeremy Fallon e o levou a pular da Ponte de Westminster? Essa era a pergunta que dominaria
os círculos políticos britânicos nos meses seguintes. Mas, na ilha encantada onde o escândalo teve sua gênese, apenas algumas pessoas sofisticadas com jeito de terem
vindo do norte devotaram seu tempo a pensar na questão. De vez em quando, surgia um casal no Les Palmiers para tirar uma foto posando de Madeline Hart e Pavel Zhirov
na tarde em que ambos tiveram o fatídico almoço. Porém, de forma geral, os habitantes da ilha se esforçaram para esquecer o pequeno papel que sua terra tinha desempenhado
na morte de um importante político britânico. Com a chegada do inverno, os corsos retomaram instintivamente os seus velhos hábitos. Eles queimaram a macchia para
se aquecerem. Sacudiram os dedos na direção de estranhos para afastar o mau-olhado. E, num vale isolado perto da costa sudoeste, buscaram a ajuda de Don Anton Orsati
quando não podiam recorrer a mais ninguém.
Numa tarde tempestuosa em meados de fevereiro, sentado à mesa de carvalho em seu amplo escritório, ele recebeu um telefonema incomum. O homem do outro lado da linha
não queria que alguém fosse eliminado - na verdade, nada surpreendente, pensou o don, pois o interlocutor era mais do que capaz de cuidar dos próprios assassinatos.
Em vez disso, ele estava em busca de uma casa onde pudesse passar algumas semanas a sós com a esposa. Deveria ser um lugar onde ninguém fosse reconhecê-lo e ele
não precisasse de guarda-costas. Orsati tinha o lugar perfeito. Mas havia um problema: só se entrava e saía por uma única rua, que passava por três oliveiras centenárias,
onde o maldito bode de Don Casabianca acampava.
- Existe alguma forma de ele sofrer um acidente trágico antes de nós chegarmos? - perguntou o homem pelo telefone.
- Desculpe - respondeu Don Orsati mas aqui na Córsega algumas coisas nunca mudam.
Eles chegaram à ilha três dias depois, por um voo que saiu de Tel Aviv, fez escala em Paris e seguiu para Ajaccio. Don Orsati tinha deixado um carro à disposição
no aeroporto, um Peugeot sedã cinza reluzente que Gabriel dirigiu com a típica despreocupação corsa. Foi em direção ao sul, percorrendo a costa, e então rumo ao
interior, passando por vales tomados pela macchia. Quando eles chegaram às três oliveiras centenárias, o bode se ergueu ameaçador e bloqueou o caminho. Mas rapidamente
lhes deu passagem depois que Chiara disse algumas palavras tranquilizadoras em seu ouvido.
- O que você disse? - perguntou Gabriel, quando eles continuaram o percurso.
- Que você sentia muito por ter sido malvado com ele.
- Mas eu não sinto. Ele foi o agressor.
- Ele é um bode, querido.
- Ele é um terrorista.
- Como é que você pode administrar o Escritório se não consegue se entender com um bode?
- Boa pergunta - replicou ele, carrancudo.
A casa ficava pouco mais de um quilômetro depois do reduto do bode. Era pequena e mobiliada com simplicidade, com um piso claro de pedra calcária. Pinheiros-larícios
sombreavam o terraço de granito pela manhã, mas, à tarde, o sol batia com força nas pedras. De dia, o tempo era frio e agradável; à noite, o vento assobiava ao passar
pelas árvores. Eles as observavam oscilar enquanto tomavam vinho tinto corso diante da fogueira. D fogo queimava com um tom azul-esverdeado, por causa da madeira
da macchia, e cheirava a alecrim e tomilho. Em pouco tempo, Gabriel e Chiara também adquiriram aquele aroma.
O único plano deles era não fazer quase nada. Dormiam tarde. Tomavam café da manhã na praça do vilarejo. Comiam peixe no almoço, perto do mar. Durante a tarde, se
estivesse quente, havia banho de sol no terraço e, se estivesse frio, retiravam-se para o quarto simples e faziam amor até dormirem de exaustão. Shamron deixou inúmeras
mensagens lamuriosas que Gabriel ignorou com alegria. Dentro de um ano, todos os seus instantes de vigília seriam consumidos pela tarefa de proteger Israel dos que
desejavam destruí-la. Mas, por enquanto, havia apenas Chiara, o sol frio, o mar e o cheiro inebriante dos pinheiros e da macchia.
Nos primeiros dias, evitaram os jornais, a internet e a televisão. Mas, aos poucos, Gabriel se reconectou com um mundo de problemas que logo seriam dele. O chefe
da AIEA, a agência de vigilância nuclear da ONU, previu que o Irã se tornaria uma potência do ramo dentro de um ano. No dia seguinte, apareceu no noticiário que
o regime na Síria tinha transferido armas químicas para o Hezbollah. E, um dia depois, o Irmão Muçulmano que administrava o Egito foi gravado falando sobre uma nova
guerra com Israel. De fato, as únicas boas notícias que Gabriel conseguiu encontrar vieram de Londres, onde Jonathan Lancaster, sobrevivente do Caso da Downing Street,
designou Graham Seymour para o cargo de diretor do MI6. Gabriel ligou para ele na mesma tarde a fim de parabenizá-lo. Mas, na verdade, queria saber de Madeline.
- Ela está se dando melhor do que eu esperava.
- Onde ela está?
- Parece que um amigo lhe ofereceu um chalé perto do mar.
- É mesmo?
- Não é um procedimento muito ortodoxo - admitiu Seymour -, mas decidimos que era um lugar tão bom quanto qualquer outro.
- Só não dê as costas para ela, Graham. O SVR tem um alcance muito grande.
Foi por causa desse grande alcance que Gabriel e Chiara mantiveram-se bastante discretos na ilha. Eles raramente saíam da casa depois de escurecer e, diversas vezes
por noite, Gabriel ia ao terraço para ficar atento a movimentos no vale. Com uma semana de estadia, ele escutou o chacoalhar familiar de um Renault e, um instante
depois, viu luzes acesas na casa de Keller pela primeira vez. Esperou até a tarde seguinte para aparecer sem aviso prévio. O Inglês estava usando calças brancas
largas e um pulôver branco. Ele abriu uma garrafa de Sancerre e os dois beberam fora da casa, ao sol. Sancerre de tarde, tinto à noite: Gabriel podia facilmente
se acostumar àquilo. Mas agora não havia mais como voltar atrás. Seu povo precisava dele. Tinha um compromisso com a história.
- Daria para melhorar um pouco o Cézanne - comentou Gabriel casualmente. - Que tal me deixar restaurá-lo enquanto estou na cidade?
- Eu gosto do Cézanne do jeito que ele está. Além disso, você veio aqui para descansar.
- Você não precisa?
- Do quê?
- De descanso.
Keller não respondeu.
- Onde você esteve, Christopher?
- Fiz uma viagem de negócios.
- Azeite de oliva ou sangue?
Keller ergueu uma sobrancelha, indicando que era a segunda opção, e Gabriel balançou a cabeça em reprovação.
- Não dá para ganhar dinheiro cantando - disse Keller em voz baixa.
- Existem outras maneiras de ganhar dinheiro, sabia?
- Não quando o seu nome é Christopher Keller e você deveria estar morto. Gabriel tomou um pouco de vinho.
- Eu não incluí você na equipe porque precisava da sua ajuda - explicou ele depois de um instante. - Queria mostrar a você que há mais na vida do que matar pessoas
por dinheiro.
- Você queria me restaurar? É isso que está dizendo?
- É um instinto natural.
- Algumas coisas estão além do reparo. - Keller fez uma pausa. - Além da redenção.
- Quantos homens você matou?
- Não sei. Quantos você matou?
- Para mim é diferente. Eu sou um soldado. Secreto, mas, ainda assim, um soldado. - Ele olhou para Keller, sério, por um momento. - E você também pode ser.
- Você está me oferecendo um emprego?
- Você precisaria se tornar um cidadão israelense e aprender a falar hebraico para trabalhar no Escritório.
- Eu sempre me senti meio judeu.
- Sim - disse Gabriel -, você já mencionou isso.
Keller sorriu, e caiu o silêncio. O vento da tarde começava a se intensificar.
- Existe outra possibilidade, Christopher.
- Qual?
- Você já reparou quem foi nomeado novo diretor-geral do MI6?
Keller não respondeu.
- Eu posso falar sobre você com Graham. Ele pode lhe dar uma nova identidade. Uma nova vida.
Keller ergueu a taça de vinho na direção do vale.
- Eu tenho uma vida. Uma vida muito boa, na verdade.
- Você é um mercenário. Um criminoso.
- Eu sou um bandido de honra. Existe uma diferença.
- Como queira.
- Foi por isso que você veio à Córsega? Para me convencer a voltar para casa?
- Suponho que sim.
- Se eu deixar você restaurar o Cézanne, promete que me deixa em paz?
- Não - respondeu Gabriel.
- Então talvez seja melhor aproveitar o silêncio.
62
CÓRSEGA
Três dias depois, Don Orsati convidou Gabriel a seu escritório para uma conversa. Não era de fato um convite que pudesse ser polidamente recusado. Era uma ordem
shamroniana, gravada em pedra, inviolável.
- Que tal no horário do almoço? - perguntou Gabriel, sabendo que Orsati provavelmente estaria de bom humor naquele horário.
- Ótimo - concordou o don. Mas acrescentou, ameaçador: - Talvez seja melhor se você vier sozinho.
Gabriel saiu da casa pouco depois do meio-dia. O bode lhe deu passagem sem nenhum confronto, pois o reconheceu como um associado da linda mulher italiana. Os guardas
em frente à propriedade também permitiram que ele passasse, pois Orsati avisara que o israelita era esperado. Encontrou o don em seu amplo escritório, curvado sobre
os livros-razão.
- Como estão os negócios?
- Melhores do que nunca. Tenho mais pedidos do que seria possível cumprir.
Orsati não esclareceu se estava falando de sangue ou azeite. Conduziu Gabriel a uma sala de jantar; sobre a mesa, havia um banquete corso. Com portas caiadas e móveis
simples, o cômodo lembrava a Gabriel a sala de jantar particular do papa no Palácio Apostólico. Havia até mesmo um crucifixo pesado de madeira na parede atrás do
assento reservado para o don.
- Incomoda você? - perguntou Orsati.
- De forma nenhuma.
- Christopher me disse que você é familiarizado com igrejas católicas.
- O que mais ele disse?
Orsati franziu a testa, mas ficou em silêncio enquanto servia Gabriel com comida e vinho.
- Gostou da casa? - perguntou, por fim.
- É perfeita, Don Orsati.
- E a sua esposa está feliz aqui?
- Muito.
- Quanto tempo você pretende ficar?
- Pelo tempo em que eu for bem-vindo.
Estranhamente, o don nada respondeu.
- Será que a minha estadia já se alongou demais, Don Orsati?
- Você pode ficar aqui na ilha o tempo que quiser. - O don fez uma pausa. - Desde que não se envolva em questões que afetem os meus negócios.
- Obviamente você se refere a Keller.
- Obviamente.
- Não era minha intenção desrespeitá-lo, Don Orsati. Eu estava apenas...
- Envolvendo-se em questões que não lhe dizem respeito.
O celular do don vibrou suavemente. Ele o ignorou.
- Eu não o ajudei quando você veio para a ilha pela primeira vez em busca da garota inglesa?
- Ajudou.
- Não forneci Keller sem cobrar nada para ajudar a encontrá-la?
- Eu não teria conseguido sem ele.
- Não relevei o fato de nunca terem me oferecido parte do dinheiro que você recuperou?
- O dinheiro está na conta do presidente russo.
- Isso é o que você diz.
- Don Orsati...
Ele fez um gesto de desdém.
- Do que se trata, então? Dinheiro?
- Não - admitiu o don. - É sobre Keller.
Uma rajada atingiu as portas francesas que davam acesso ao jardim de Don Orsati. Era o libeccio, um vento do sudoeste. No inverno, normalmente trazia chuva, mas
por ora o céu estava limpo.
- Aqui na Córsega - disse o don, após um momento de silêncio as nossas tradições são muito antigas. Por exemplo, um jovem nunca sonharia em propor casamento a uma
mulher sem antes pedir sua mão ao pai dela. Você entende o meu ponto, Gabriel?
- Acredito que sim, Don Orsati.
- Você deveria ter falado comigo antes de conversar com Christopher sobre voltar à Inglaterra.
- Foi um erro da minha parte.
A expressão de Orsati se amenizou. Lá fora, o libeccio virou uma mesa e uma cadeira no jardim. Ele gritou algo para o alto no dialeto corso e, alguns segundos depois,
um homem bigodudo com uma espingarda pendurada no ombro apareceu correndo no jardim para colocar a mobília no lugar.
- Você não sabe como o seu amigo Christopher estava quando chegou aqui do Iraque. Ele estava em frangalhos. Eu lhe dei uma casa. Uma família. Uma mulher.
- E trabalho. Bastante trabalho.
- Ele é muito bom no que faz.
- Sim, eu sei.
- Melhor do que você.
- Quem disse isso?
O don sorriu. O silêncio pairou e Gabriel aproveitou a pausa para escolher as próximas palavras com muito cuidado:
- Não é uma maneira adequada para Christopher ganhar a vida.
- “Quem mora em casa de vidro não deveria atirar pedras.”
- Eu nunca soube que era um provérbio corso.
- Todas as coisas sábias vêm da Córsega. - Orsati afastou o prato e apoiou os antebraços pesadamente na mesa. - Existe algo que você parece não compreender. Christopher
é mais do que o meu melhor taddunaghiu. Eu o amo como um filho. E, se algum dia ele fosse embora... eu ficaria de coração partido.
- O pai biológico de Christopher acha que ele está morto.
- Não havia outra maneira.
- Como você se sentiria se os papéis fossem trocados?
Orsati não tinha resposta, então mudou de assunto:
- Você realmente acha que esse amigo seu da inteligência britânica estaria interessado em levar Christopher de volta para a Inglaterra?
- Ele seria um tolo se não o fizesse.
- Mas talvez ele se negue. E, ao discutir a questão, você pode pôr em risco a posição de Christopher aqui na Córsega.
- Eu vou fazer tudo de uma forma que não o ameace.
- Seu amigo é um homem de confiança?
- Eu confiaria minha própria vida a ele. Na verdade, já fiz isso muitas vezes.
Orsati respirou fundo, resignado. Estava prestes a dar sua bênção à proposta incomum de Gabriel quando o celular vibrou novamente. Dessa vez ele atendeu. Ouviu em
silêncio por um instante, falou algumas palavras em italiano e desligou.
- Quem era? - perguntou Gabriel.
- Sua esposa - respondeu o don.
- Algo errado?
- Ela quer dar uma volta pelo vilarejo.
Gabriel começou a se levantar.
- Fique e termine seu almoço - disse Orsati. - Vou mandar dois garotos para ficarem de olho nela.
Gabriel se sentou. O libeccio estava provocando o caos no jardim. Orsati observou a cena em silêncio por um momento, triste.
- Continuo feliz por não termos precisado matá-lo, Allon.
- Garanto, Don Orsati, que o sentimento é mútuo.
O vento perseguiu Chiara pela trilha estreita, passando pelos gatos e pelas casas com as venezianas fechadas até alcançar a praça principal, onde rodopiou pelas
construções e vandalizou as mesas de exposição dos vendedores. Ela foi para o mercado e encheu a cesta de palha com alguns itens para o jantar. Em seguida, sentou-se
a uma mesa em uma das cafeterias e pediu um café. No centro da praça, alguns velhos jogavam boules em meio a minúsculos ciclones de poeira e, nos degraus da igreja,
uma idosa vestida de preto passava um pedaço de papel azul para um garoto de cabelos castanhos bem compridos. Observando-o, Chiara sorriu com tristeza. Ela pensou
em como o filho de Gabriel, Dani, seria agora se tivesse vivido até os 10 anos.
A mulher desceu a escadaria e entrou numa pequena casa torta. O garoto começou a atravessar a praça com o papel azul na mão. Para surpresa de Chiara, entrou na cafeteria
onde ela estava e colocou o papel em sua mesa sem dizer uma palavra. Ela esperou o garoto partir antes de ler a única linha:
Preciso vê-la imediatamente.
Quando Chiara chegou, a signadora estava esperando à porta de sua casa. Ela sorriu, tocou-lhe a bochecha com delicadeza e conduziu-a para dentro.
- Você sabe quem eu sou? - perguntou a velha.
- Tenho uma boa ideia.
- Seu marido falou de mim?
Chiara assentiu.
- Eu o avisei para não ir à cidade dos hereges, mas ele não escutou. Ele tem sorte de estar vivo.
- Ele é osso duro de roer.
- Talvez ele seja um anjo, afinal. - A senhora tocou o rosto de Chiara de novo. - E você também foi até lá, não é mesmo?
- Quem lhe disse que eu fui à Rússia?
- Você foi sem dizer ao seu marido - continuou a signadora, como se não tivesse escutado a pergunta. - Vocês ficaram juntos por algumas horas num quarto de hotel
na cidade da noite. Você se lembra?
Ela sorriu, ainda tocando o rosto de Chiara. Então, afastou-lhe os cabelos.
- Devo continuar? - indagou a velha.
- Não acredito que você possa ver o passado.
- Seu marido foi casado com outra mulher antes de você - prosseguiu a signadora, como se tentasse provar que Chiara estava enganada. - Havia uma criança. Houve um
incêndio. A criança morreu, mas a mulher, não. Ela ainda vive.
Chiara se afastou com um movimento brusco.
- Você o amou por muito tempo - continuou a velha -, mas ele não se casou com você por causa do luto. Ele a mandou embora, mas voltou numa cidade de água.
- Como você sabe disso?
- Ele fez uma pintura de você envolta em lençóis brancos.
- Foi um esboço - retrucou Chiara.
A mulher deu de ombros, indicando que aquilo não fazia muita diferença. Então, gesticulou na direção da mesa, onde havia um prato com água e uma vasilha de azeite
ao lado de duas velas acesas.
- Não quer sentar? - perguntou ela.
- Prefiro continuar em pé.
- Por favor. Só vai levar um instante. E, então, eu saberei com certeza.
- Saberá o quê?
- Por favor - repetiu ela.
Chiara se sentou. A velha se acomodou à sua frente.
- Mergulhe o dedo no azeite. Depois, deixe três gotas caírem na água.
Chiara seguiu as instruções com relutância. Ao tocar a superfície da água, o azeite reuniu-se numa única gota. A velha teve um sobressalto e uma lágrima desceu por
sua bochecha pálida.
- O que você vê? - perguntou Chiara.
A mulher segurou a mão dela.
- Seu marido está esperando na casa. Vá e diga a ele que vai ser pai de novo.
- Menino ou menina?
A signadora sorriu.
- Um de cada.
Nota do Autor
A versão da pintura Suzana e os anciãos que aparece na história não existe. Se existisse, seria uma ótima obra, assim como a que está no Museu de Belas-Artes em
Reims, na França. Há de fato um edifício de calcário na rua Narkiss, em Jerusalém - aliás, vários. Mas não reside ali nenhum oficial da inteligência israelense chamado
Gabriel Allon. A sede do serviço secreto de Israel não fica mais no King Saul Boulevard, em Tel Aviv. Mantive o endereço porque sempre gostei do nome. O bombardeio
ao Hotel King David em 1946 é um fato histórico, embora Arthur Seymour - pai do oficial fictício do MI5, Graham Seymour - não tenha realmente presenciado a situação.
Não há nenhuma exposição no Museu de Israel com os pilares do Templo de Salomão, pois nunca foi descoberta nenhuma ruína dele.
Existe um restaurante chamado Les Palmiers em Calvi, mas, até onde sei, nunca foi utilizado como ponto de encontro para dois espiões russos. A empresa Orsati Olive
Oil foi inventada por mim, assim como o incidente de fogo amigo que levou Christopher Keller - que apareceu pela primeira vez em O assassino inglês - a deixar o
Serviço Aéreo Especial e tornar-se um matador de aluguel na Córsega. Os que estão familiarizados com a ilha e suas ricas tradições vão notar que eu dei poderes à
minha signadora fictícia que a maioria de seus colegas não professa ter.
A companhia de energia russa conhecida como Volgatek Óleo e Gás também não existe. Eu mexi nos tempos de voo da El Al entre Tel Aviv e São Petersburgo para atender
às necessidades da minha operação. Os corajosos que visitam São Petersburgo no pesado inverno não devem tentar escalar a gloriosa cúpula da Catedral de Santo Isaac,
pois ela fica fechada durante o tempo frio. Para constar: gosto muito do Café Nero na Bridge Street. Minhas sinceras desculpas aos hotéis Metropol, Astoria e Ritz-Carlton
por executar operações de inteligência com base em suas instalações, mas tenho certeza de que não fui o primeiro.
Eu me esforcei para descrever de forma precisa a atmosfera dentro do número 10 da Downing Street, embora admita que, ao contrário de Gabriel Allon, nunca tenha passado
pela barreira de segurança da Whitehall. Ao criar Jeremy Fallon, dei-lhe a ampla autoridade que o primeiro-ministro Tony Blair deu a Jonathan Powell, o chefe de
gabinete verdadeiro. Tenho certeza de que a presença do brilhante e escrupuloso Powell ao lado de Lancaster teria prevenido todo o caso sórdido retratado em A garota
inglesa.
O aumento da espionagem por parte do serviço de inteligência russo contra alvos ocidentais tem sido bem documentado. Oleg Gordievsky, desertor da KGB, disse ao The
Guardian recentemente que o tamanho da rezidentura do SVR em Londres chegou ao nível da Guerra Fria. Gordievsky tem credibilidade para fazer essa declaração porque
trabalhou para a KGB em Londres entre 1982 e 1985. Além disso, o MI5 chegou à mesma conclusão, então ele não está sozinho em sua avaliação. “É muito frustrante ainda
ter que empregar um montante significativo de equipamento, dinheiro e pessoal para combater essa ameaça. São recursos que eu com certeza preferiria empregar para
combater ameaças de terrorismo internacional”, disse o diretor-geral do MI5, Jonathan Evans.
Embora Londres ainda seja um eixo importante de atividade da inteligência russa, os Estados Unidos permanecem como o foco principal do Centro Moscovita. O FBI forneceu
provas extensas desse fato em junho de 2010, quando prendeu dez espiões russos que viviam no país sob disfarces não oficiais e ilegais havia muitos anos. Receosa
de comprometer o tão anunciado “recomeço” nas relações com o Kremlin, a administração de Obama logo decidiu enviar os espiões à Rússia como parte de uma troca de
prisioneiros - a maior já realizada entre os dois países desde a Guerra Fria. Entre os espiões, a mais conhecida era Anna Chapman, uma belíssima femme fatale que
viveu em Londres muitos anos antes de se mudar para Nova York, trabalhando como agente imobiliária e acompanhante de festas. Desde que retornou à Rússia, Chapman
apresentou um programa de TV, escreveu uma coluna no jornal e posou para a capa de uma revista de lingerie francesa. Ela também foi indicada para o conselho orientador
da Guarda Jovem do partido Rússia Unida, uma organização pró-Kremlin afiliada ao partido que governa o país. Os críticos da Guarda Jovem frequentemente se referem
à organização, em tons sombrios, como “Juventude Putinista”.
A maior parte da espionagem russa contra os Estados Unidos é de natureza industrial e econômica. As razões são dolorosamente óbvias: quase um quarto de século após
o colapso da União Soviética, a Rússia continua sendo um país praticamente incapaz de se manter sozinho, bastante dependente de matérias-primas e, claro, de petróleo
e gás. O presidente Vladimir Putin nunca manteve segredo sobre o que a energia significa para a nova Rússia. Na verdade, o Kremlin declarou em um documento de estratégia
de 2003 que “o papel do país no mercado de energia global determina em grande parte sua influência geopolítica”. O governo, sabiamente, suavizou a linguagem para
falar da importância do setor de energia russo, mas os objetivos permanecem os mesmos. Sem seu império e militarmente fraca, a Rússia pretende ganhar poder no cenário
mundial com petróleo e gás em vez de armas nucleares e ideologia marxista-leninista. Além disso, os gigantes estatais de energia não estão satisfeitos em operar
apenas dentro da Rússia, onde a produção dessas commodities já se estabilizou. Eles passaram a adquirir ativos de upstream e downstream como parte do estratagema
para se tornarem participantes reais do mercado de energia global. Em suma, a Rússia está tentando se transformar na Arábia Saudita euroasiática.
A gigante estatal russa Gazprom é a maior companhia de gás do mundo e suas receitas são a fonte de grande parte do orçamento federal anual do Kremlin. Muitas das
antigas repúblicas soviéticas recebem todo o gás natural da Rússia, assim como a pequena Finlândia. Mais de quarenta por cento do produto da Alemanha vêm da Rússia;
já na Áustria, a porcentagem chega a oitenta. Enquanto o avanço na tecnologia de perfuração leva mais gás ao mercado internacional, os gasodutos que ligam a Europa
e a Rússia ajudam a garantir a posição dominante da Gazprom nos próximos anos. E seus muitos clientes europeus devem lembrar que a empresa operou como instrumento
de repressão política em 2001, quando comprou a NTV, a única opção de transmissão nacional independente e uma feroz crítica de Putin e do Rússia Unida. Agora, a
perspectiva editorial da NTV é seguramente pró-Kremlin.
Após um breve período como primeiro-ministro, Putin foi eleito para um terceiro mandato como presidente da Rússia em março de 2012. Ex-agente da KGB, encontra-se
em posição para governar, pelo menos, até 2024 - período maior do que Leonid Brejnev e quase tão longo quanto o de Joseph Stálin. Obviamente, nem todos os russos
apoiam seu apego ditatorial ao poder, porém cada vez mais vozes da oposição estão sendo silenciadas, às vezes de forma violenta. Em novembro de 2009, Sergei Magnitsky
- advogado e contador moscovita que fez acusações de desfalque a policiais e funcionários da receita federal - morreu de repente numa prisão russa, aos 37 anos.
O incidente provocou condenação e sanções dos Estados Unidos. Agora o Kremlin está de olho em Alexei Navalny, o dissidente mais proeminente e líder do movimento
de protesto que varreu o país após o retorno de Putin à presidência. No momento em que escrevo esta nota, ele aguarda julgamento por acusações de desvio de dinheiro
- acusações que Navalny e sua legião de apoiadores denunciaram como politicamente motivadas. Caso seja condenado, pode passar dez anos na prisão, onde não será uma
ameaça a Putin e aos seus companheiros siloviki no Kremlin.
Na nova Rússia de Putin, com demasiada frequência, as penas de prisão com qualquer tipo de duração equivalem a uma sentença de morte. De acordo com as autoridades
russas, 4.121 pessoas morreram sob custódia do governo só em 2012, porém advogados pró-democracia dizem que é provável que o número real seja muito maior. Isso pode
explicar por que Alexander Dolmatov, ativista pró-democrata russo, se suicidou no centro de detenção de Roterdã em janeiro de 2013. Com medo de ser preso e julgado
na Rússia, ele voou para a Holanda em busca de asilo político. Quando sua solicitação foi negada, enforcou- se na cela. O governo holandês disse que o suicídio de
Dolmatov não teve nada a ver com a negação do asilo. Os amigos dele no movimento de oposição não compartilham dessa opinião.
Os nomes de Magnitsky, Navalny, Dolmatov são conhecidos no Ocidente, mas existem muitos outros que já definharam nas celas das prisões russas por terem ousado erguer
um cartaz de protesto ou escrever um blog criticando Vladimir Putin. Na Rússia, a intensificação do autoritarismo continua. E os gigantes do petróleo e do gás do
Kremlin estão pagando a conta.45
ZELÂNDIA, DINAMARCA
Uma mesa fora posta com um suntuoso banquete russo. A origem da comida era incerta, pois, aparentemente, não havia mais ninguém ali além dos três executivos. Mikhail
se perguntou como teriam arranjado aquela propriedade em tão pouco tempo. Não tinham arranjado, é claro. Com certeza era uma casa segura da Volgatek. Ou do SVR.
Aliás, talvez essa distinção fosse desnecessária.
Por ora, a comida servia apenas de decoração. Mikhail recebera uma bebida - vodca, obviamente - e fora acomodado em uma cadeira de honra, com uma bela vista para
o mar negro. Bershov, o atleta da companhia, percorria o perímetro da sala com o vagar determinado de um homem prestes a entrar no ringue. Zhirov, o guardião dos
segredos da Volgatek, sequestrador de Madeline, fitava o teto, como se calculasse quanta corda seria necessária para enforcar Mikhail. Por fim, pousou seu olhar
duro em Lazarev, que havia tomado posse do lugar à lareira e contemplava as chamas. Ele ponderava sobre a questão feita por Mikhail no instante anterior:
- O que estou fazendo aqui?
- O que você está fazendo aqui? - respondeu o russo, afinal.
- Eu vim porque você me convidou.
- Você costuma aceitar encontros com os inimigos do homem que assina seu contracheque?
Lazarev virou-se vagarosamente.
- Então é disso que se trata? - Mikhail perguntou um pouco depois. - Você está me recrutando para espionar Viktor?
- Você parece familiarizado com a linguagem de espionagem, Nicholas.
- Eu leio livros.
- Que tipo de livros?
Mikhail largou sua bebida.
- Isso está começando a parecer muito com um interrogatório - disse calmamente. - Se você não se importa, gostaria de voltar para o meu hotel.
- Isso seria um erro da sua parte.
- Por quê?
- Porque você ainda não ouviu minha oferta.
Sorrindo, Lazarev pegou a bebida intocada de Mikhail e levou-a até o carrinho para ser renovada. O falso Avedon olhou para Zhirov e retribuiu seu olhar inexpressivo.
Internamente, no entanto, visualizava, no lugar das roupas de lã escura, a exuberante roupa de verão que ele usava no almoço no Les Palmiers, em Calvi. Quando sua
bebida reapareceu, Mikhail apagou a imagem da mente como giz de uma lousa e olhou apenas para Lazarev, que tinha a testa franzida, como se debatesse com uma equação
sem solução possível.
- Você se importa se continuarmos a nossa conversa em russo? - perguntou.
- Receio que o meu conhecimento de russo seja bom apenas para me comunicar em restaurantes e táxis.
- Fontes confiáveis me dizem que seu russo é bem bom. Fluente, até.
- Quem lhe disse isso?
- Um amigo da Gazprom - respondeu Lazarev com sinceridade. - Ele falou brevemente com você em Praga, durante sua estadia com Viktor.
- As notícias voam.
- Receio que não haja segredos em Moscou, Nicholas.
- É o que dizem.
- Você estudou russo na escola?
- Não.
- Então deve ter aprendido em casa.
- Provavelmente.
- Seus pais são russos?
- E meus avós também - completou Mikhail.
- Como foram parar na Inglaterra?
- Do jeito de sempre.
- O que isso significa?
- Eles saíram da Rússia após a queda do czar e se estabeleceram em Paris. Depois, foram para Londres.
- Seus ancestrais eram burgueses?
- Não eram bolcheviques, se é isso que está perguntando.
- Suponho que seja.
Mikhail pareceu pesar suas próximas palavras com cuidado.
- Meu bisavô era um homem de negócios moderadamente bem-sucedido que não queria viver sob o comunismo.
- Qual era o nome dele?
- O nome da família era Avdonin, que ele acabou mudando para Avedon.
- Então o seu nome real é Nikita Avdonin.
- Nicolai.
- Posso chamá-lo de Nicolai?
- Se desejar.
- Você já foi a Moscou? - perguntou Lazarev, passando ao russo.
- Não - respondeu Mikhail na mesma língua.
- Por que não?
- Nunca tive motivo.
- Você não tem curiosidade de saber de onde veio?
- A Inglaterra é o meu lar. A Rússia é a terra de onde a minha família fugiu.
- Você se opunha à União Soviética?
- Eu era jovem demais para me opor.
- E nosso governo atual?
- O que tem ele?
- Você partilha da opinião de Viktor Orlov de que nosso presidente é um cleptocrata autoritário?
- Talvez você se surpreenda, Sr. Lazarev, mas Viktor e eu não falamos sobre política.
- De fato isso me surpreende.
Mikhail ficou em silêncio. Lazarev deixou passar o assunto. Seu olhar moveu-se de Bershov para Zhirov antes de repousar sobre Mikhail novamente.
- Presumo que você tenha lido sobre o acordo de licenciamento que fechamos com o governo britânico que vai nos permitir conduzir perfurações no mar do Norte - falou
Lazarev, voltando ao inglês.
- Duas áreas recém-descobertas nas Ilhas Ocidentais - disse Mikhail, como se estivesse lendo um prospecto. - Produção prevista em campo maduro de cem mil barris
por dia.
- Muito impressionante.
- É o meu trabalho, Sr. Lazarev.
- Na verdade é o meu trabalho. - Lazarev fez uma pausa. - Mas eu gostaria que você tomasse conta dele para mim.
- O projeto das Ilhas Ocidentais?
Lazarev assentiu.
- Sinto muito, Sr. Lazarev - falou Mikhail educadamente -, mas não sou gerente de projetos.
- Você fez um trabalho similar no mar do Norte para a petroleira KBS.
- E é por isso que não quero fazê-lo de novo. Além do mais, já sou contratado de Viktor. - Mikhail se levantou. - Desculpe-me por não ficar para o jantar, Sr. Lazarev,
mas eu realmente preciso voltar.
- Mas você ainda nem ouviu o resto da minha proposta.
- Se for igual à primeira parte, não estou interessado - retrucou Mikhail.
Lazarev nem pareceu ouvir a resposta:
- Como você sabe, Nicolai, a Volgatek está expandindo suas operações na Europa e em outros lugares. Se quisermos ter sucesso nessa iniciativa, vamos precisar de
pessoas talentosas como você. Pessoas que entendam o Ocidente e a Rússia.
- Isso seria uma oferta?
Lazarev se aproximou e pousou com determinação as mãos nos ombros de Mikhail. Como se não houvesse mais ninguém na sala, prosseguiu:
- As Ilhas Ocidentais são apenas o começo. Quero que me ajude a construir uma petrolífera com alcance realmente global. Vou torná-lo rico, Nicolai Avdonin, rico
como você jamais sonhou ser.
- Minha vida já é bastante confortável.
- Se bem conheço o Viktor, ele está lhe pagando com os trocados do bolso. - Lazarev sorriu e apertou os ombros de Mikhail. - Venha para a Volgatek, Nicolai. Volte
para casa.
O lado sul da baía de Koge não é o tipo de lugar onde dois homens possam conversar longamente dentro de um carro estacionado sem serem notados, então Gabriel e Keller
dirigiram até a cidade mais próxima e sentaram-se em um pequeno e acolhedor restaurante, que servia uma mistura pouco apetitosa de pratos italianos e chineses. Keller
comeu pelos dois, enquanto Gabriel tomava apenas um chá preto. Seu fone de ouvido permanecia silencioso e ele visualizava Mikhail sendo escoltado para a morte através
de um bosque de bétulas nevado. Por duas vezes, o receio e a frustração impeliram-no a levantar-se, e por duas vezes Keller o mandou sentar e esperar:
- Você fez o seu trabalho - disse calmamente, com um falso sorriso operacional estampado no rosto bronzeado. - Deixe as coisas tomarem o seu rumo.
Por fim, uma hora e 33 minutos após Mikhail ter entrado na casa à beira-mar, Gabriel escutou um áspero estalido eletrônico, seguido pelo rugido do vento, o mesmo
que chacoalhava os vidros da janela congelada a poucos centímetros de seu rosto. Bastante aliviado, ele pôde ouvir Mikhail dizer, com a voz debilitada pelo frio:
- Eu vou pensar em sua proposta, Gennady. De verdade, vou pensar.
- Não pense demais, Nicolai: minha oferta tem um prazo.
- Quanto tempo eu tenho?
- Gostaria de saber em uma semana. Caso contrário, terei de tomar outra direção.
- E se eu disser sim?
- Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte. Senão, você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.
- Por que Moscou?
- Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?
- É claro que não.
- E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.
Essas foram as últimas palavras trocadas pelos dois. Depois, uma porta foi fechada, deram partida num carro e o ponto de luz azul voltou a se mover através da tela
do tablet. Enquanto o sinal se aproximava das coordenadas do restaurante onde estavam, Gabriel levantou a cabeça e viu o grande Mercedes preto passar, levantando
um torvelinho de neve. Mikhail sobrevivera. Agora, tudo o que tinham a fazer era retirá-lo do mar e trazê-lo para casa.
A viagem de volta a Copenhague durou 45 minutos; foi bem tediosa, pois nada de mais aconteceu. Gabriel deixou Keller dirigir para poder focar seu considerável poder
de concentração no áudio transmitido pelo fone de ouvido. Não havia outros sons além do rumor aveludado do motor do Mercedes e umas batidinhas monótonas. A princípio,
Gabriel achou que havia algo sob o automóvel, mas logo percebeu que Mikhail estava tamborilando sobre o descanso de braço, o que sempre fazia quando estava ansioso.
No entanto, ao sair do carro no Hotel d'Angleterre, ele parecia um homem sem uma preocupação sequer na vida. Ao entrar no saguão, encontrou os brasileiros bebendo
no bar e decidiu juntar-se a eles para um merecido drinque de final de noite. Depois disso, rumou para o quarto, que não tinha nenhuma evidência da busca altamente
profissional executada durante sua ausência. Até mesmo o notebook, objeto de uma completa revista digital, estava exatamente onde fora deixado. Mikhail utilizou-o
para redigir um alerta rápido para a equipe, cuja cópia impressa Lavon tinha nas mãos quando Gabriel e Keller retornaram ao apartamento seguro na rua com nome impronunciável.
- Você conseguiu, Gabriel. Você o pegou.
- Peguei quem?
Com um sorriso, Lavon respondeu;
- Paul. Pavel Zhirov, da Volgatek Óleo e Gás, é Paul.
O desentendimento que se seguiu foi um dos mais sérios na longa história da equipe, embora tenha se desenrolado tão discretamente que Keller mal o percebeu. De forma
incomum, o grupo se dividiu em dois, e Yaakov assumiu o controle da facção rebelde. Seu argumento era simples e defendido com fervor. A missão havia sido conduzida
com um objetivo: encontrar uma prova de que os russos tinham sequestrado Madeline como parte de uma conspiração para ter acesso ao petróleo britânico. Agora a prova
estava em seu quarto no Hotel Imperial na forma de Pavel Zhirov, chefe de segurança da Volgatek e um autêntico facínora da Central Moscovita. Segundo Yaakov, não
havia o que fazer senão capturá-lo de imediato. De outra forma, Zhirov escaparia para sempre do alcance da equipe.
Infelizmente para Yaakov, o líder da facção oposta era ninguém menos que o futuro diretor, Gabriel Allon. Ele expôs com calma todas as razões pelas quais Zhirov
deixaria Copenhague pela manhã como estava programado. Não havia tempo para planejar ou ensaiar adequadamente uma operação dessas; além disso, não haveria uma oportunidade
para a captura limpa de Zhirov que se encaixasse em qualquer um dos critérios do Escritório. Gabriel lembrou que operações-relâmpago são sempre arriscadas, mas uma
sem planejamento é a receita certa para um desastre com o qual o Escritório não poderia arcar agora. Zhirov estava livre para ir e, se necessário, o Escritório até
carregaria sua bagagem.
E assim foi que, às dez da manhã do dia seguinte, Pavel Zhirov, vulgo Paul, deixou o Hotel Imperial acompanhado por Lazarev e Bershov. Os três entraram em uma limusine
com chofer que os levou ao aeroporto de Copenhague, onde embarcaram num avião particular para Moscou. Yossi ainda tirou uma foto do embarque para um jornal que não
existia e, depois, tomou um avião para Londres. No fim daquela tarde, Gabriel já estava rodeado dos outros membros da equipe na casa segura de Grayswood. Nicolai
Avdonin disse que estava indo à cidade dos hereges para uma entrevista de emprego, e o grupo iria com ele.
46
GRAYSWOOD, SURREY
A intimação chegou pelo link seguro no fim da tarde seguinte. Gabriel até a % pensou em ignorá-la, mas a mensagem deixou claro que o seu não com- parecimento implicaria
a imediata revogação da licença operacional. Assim, às seis horas, ele se dirigiu ao centro de Londres e se esgueirou pela entrada dos fundos da embaixada israelense.
O chefe de posto, um carreirista experimentado chamado Natan, esperava-o tenso no saguão. Ele acompanhou Gabriel ao andar inferior, até o Santo dos Santos, e logo
foi embora, como se temesse ser atingido por estilhaços. A câmara estava vazia, mas sobre a mesa havia uma travessa com pequenos sanduíches e biscoitos vienenses
amanteigados, além de uma garrafa de água mineral, que Gabriel tratou de guardar dentro de um armário. Era a força do hábito, já que a doutrina do Escritório pregava
que um encontro potencialmente hostil deveria ser realizado num ambiente isento de objetos que pudessem ser usados como arma.
Após vinte minutos, apareceu um homem com físico de praticante de luta livre. Vestia um terno escuro que parecia um número menor do que o ideal, além de uma camisa
social de colarinho alto que dava a impressão de que sua cabeça fora aparafusada nos ombros. Os cabelos já haviam sido louro-avermelhados, mas agora tinham mechas
brancas e eram cortados curtos para ocultar o fato de que caíam num ritmo alarmante. Ele observou Gabriel por um momento através dos óculos estreitos, como se decidindo
se iria matá-lo imediatamente ou apenas ao nascer do dia. Por fim, foi até a travessa e balançou devagar a cabeça.
- Você acha que meus inimigos sabem?
- Sabem o quê, Uzi?
- Que eu não consigo resistir a comida. Especialmente a isto - acrescentou Navot, apanhando um biscoito. - Suponho que seja genético. O que meu avô mais amava era
biscoito amanteigado e uma boa xícara de café vienense.
- Bom, é melhor ter um problema com doces do que com jogo ou mulheres.
- Falar é fácil - replicou Navot, ressentido. - Você é como Shamron: não tem fraquezas. É incorruptível. - Ele fez uma pausa. - Você é perfeito.
Gabriel percebeu a direção que a conversa estava tomando. Permaneceu em silêncio enquanto Navot olhava para o biscoito na mão como se aquilo fosse a fonte de todos
os seus problemas. Por fim, ele falou:
- Suponho que você tenha uma fraqueza: sempre deixou os sentimentos influírem em suas decisões. Terá que se livrar dessa tendência quando se tornar diretor.
- Não se trata de sentimentos, Uzi.
Navot deu um sorriso artificial.
- Então você não nega que Shamron lhe falou sobre ser o próximo diretor?
- Não, Navot. Eu não nego.
Navot já mal fingia sorrir.
- Você tem outra fraqueza, Gabriel: você é honesto. Honesto demais para ser espião.
Navot sentou e pousou os braços maciços sobre a mesa. O tampo pareceu acomodar-se sob o peso. Observando-o, Gabriel recordou uma desagradável tarde muitos anos antes,
quando formara uma dupla com Navot em um treinamento de assassinato silencioso. Gabriel perdera a conta de quantas vezes morrera naquele dia.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Por favor, Uzi, não precisamos conversar sobre isso.
- Por que não?
- Porque não vai ser bom para nenhum de nós.
- Então você se sente culpado.
- De jeito nenhum.
- Há quanto tempo você planeja tomar meu cargo?
- Ora, Uzi, você me conhece muito bem.
- Eu achava que conhecia.
Navot afastou a travessa e olhou em torno da sala.
- Será que custava eles terem deixado ao menos uma garrafa de água para mim?
- Eu a tranquei no armário.
- Por quê?
- Porque eu não queria que você me batesse com ela.
Navot segurou-lhe o cotovelo e o apertou, fazendo a mão de Gabriel ficar dormente no mesmo instante.
- Pegue-a para mim. É o mínimo que você pode fazer.
Gabriel lhe entregou a garrafa. A raiva de Navot parecia ter se atenuado, mas só um pouco. Ele desenroscou a tampa de alumínio usando apenas o polegar e o indicador
e pôs a água com gás num copo de plástico transparente, sem oferecer para Gabriel.
- O que eu fiz para merecer isso? - começou a falar, mais para si mesmo do que para Gabriel. - Eu fui um bom diretor, realmente bom. Conduzi os assuntos do Escritório
com dignidade e mantive meu país fora de qualquer problema maior com outras nações. Consegui deter o programa nuclear iraniano? Não, não consegui. Mas também não
nos meti em nenhuma guerra catastrófica. É esse o papel primordial do diretor: assegurar que um primeiro-ministro mal orientado não arraste o país para um conflito
desnecessário. Você vai aprender isso assim que sentar na minha cadeira.
Como Gabriel não respondeu, Navot resolutamente bebeu mais de sua água, como se fosse a última garrafa na terra. Sobre uma coisa ele estava certo: de fato havia
sido um bom chefe. Porém, para seu infortúnio, todos os sucessos sob sua gestão foram obra de Gabriel.
- Há outra coisa que você logo vai aprender - voltou a falar Navot. - É bem difícil comandar um serviço de inteligência com Shamron espiando por cima do ombro.
- O serviço é obra de Shamron. Ele o construiu do nada e o transformou no que é hoje em dia.
- O velho é apenas isso: um velho. O mundo mudou desde que Shamron era o diretor.
- Uzi, você não pensa mesmo assim.
- Perdoe-me, Gabriel, mas no momento não estou especialmente inclinado a simpatizar com Shamron. E nem com você, para falar a verdade.
Navot mergulhou num silêncio mal-humorado. Ao espiar através das paredes de vidro à prova de som, o chefe de posto Natan viu dois homens se fuzilando com o olhar
e resolveu voltar a seu bunker.
- Quanto tempo eu tenho? - perguntou Navot.
- Uzi...
- Vão ao menos me deixar terminar o meu mandato?
- É claro que sim.
- Não queira fazer parecer a coisa mais óbvia do mundo, Gabriel. Da maneira que vejo agora, nada parece assim tão óbvio.
- Você foi um ótimo diretor, Uzi. O melhor desde Shamron.
- E qual é minha recompensa? Ser descartado e afastado antes do tempo. Sim, porque é claro que ninguém vai admitir um ex-diretor no King Saul Boulevard.
- E por que não?
- Porque é algo sem precedentes.
- Nada disso tem precedentes, Uzi.
- Desculpe-me, Gabriel, mas não vou querer que minha carreira termine como um caso de caridade.
- Você não deve se depreciar assim, Uzi.
- Parece minha mãe falando.
- Como está ela?
- Bem em alguns dias, mal em outros.
- Algo que eu possa fazer?
- Vá visitá-la na próxima vez em que estiver na cidade. Ela sempre o adorou, Gabriel. Todo mundo adora você. - Navot pegou um biscoito amanteigado. Depois mais outro.
Limpando as migalhas dos dedos grossos, prosseguiu: - Pelos meus cálculos, ainda tenho catorze meses como diretor, logo é minha a decisão de mandar ou não alguns
de nossos melhores agentes à cidade mais perigosa do mundo.
- Você me deu autorização para conduzir a missão.
- Na ocasião, havia um revólver apontado para a minha cabeça.
- O revólver ainda está lá.
- É, eu sei, por isso jamais sonharia em abortar sumariamente o seu pequeno plano. Em vez disso, vou apenas pedir que respire fundo e retome o juízo.
Ao receber apenas silêncio como resposta, Navot se inclinou sobre a mesa e olhou nos olhos de Gabriel. Seu rosto já não apresentava qualquer sinal de raiva.
- Você lembra como foi a última vez em que estivemos em Moscou, Gabriel, ou conseguiu apagar de sua memória?
- Eu me lembro de tudo, Uzi.
- Eu também - comentou Navot, com uma voz distante. - Foi o pior dia da minha vida.
- Da minha também.
Navot franziu a testa, confuso.
- Então por que, em nome de Deus, você quer voltar lá?
Navot retirou os óculos com um ar pensativo e massageou a ponte do nariz, que estava marcada. Os óculos, assim como tudo mais que ele estava usando, tinham sido
escolhidos por Bella, sua exigente esposa. Ela havia trabalhado brevemente como analista no posto do Escritório na Síria e adorava o status de esposa do diretor.
Gabriel sempre suspeitara que sua influência se estendia para bem além do guarda-roupa do marido.
- Acabou - disse Navot por fim. - Você o derrotou. Você venceu.
- Venci quem?
- Ivan.
- Isso não tem nada a ver com Ivan.
- É claro que tem. Se você não consegue perceber isso, talvez nem esteja preparado para conduzir essa operação, afinal.
- Então cancele minha licença.
- Eu adoraria. Se eu o fizer, entretanto, vou começar uma guerra que simplesmente não posso vencer. - Navot voltou a pôr os óculos e deu um breve sorriso. - Essa
é outra coisa que você vai precisar aprender quando for o chefe: escolher as batalhas com cuidado.
- Foi exatamente o que eu fiz.
- Como eu ainda estarei na chefia por catorze meses, faça a cortesia de me descrever o seu plano em linhas gerais.
- Vou trazer Pavel Zhirov para uma conversa privada. Ele vai me contar por que sequestrou e assassinou uma jovem inocente em nome dos interesses da Volgatek. E vai
confessar que a empresa não é nada mais que uma fachada para a KGB. Então, vou reduzi-los a cinzas, Uzi. Vou provar de uma vez por todas ao mundo civilizado que
a atual corja que está no Kremlin não é muito melhor do que seus antigos ocupantes.
- Vou contar um segredinho, Gabriel: o mundo civilizado já sabe de tudo isso, e ninguém está dando a mínima. A verdade é que estão todos tão falidos e apavorados
com o futuro que são até capazes de permitir que os mulás realizem seus sonhos nucleares.
Gabriel permaneceu em silêncio. Navot suspirou fundo, resignado.
- Uma confissão? É disso que você está falando?
- Gravada. Exatamente como a que ele forçou Madeline a fazer, antes de matá-la.
- E se ele não falar?
- Todo mundo fala, Uzi.
- O que você vai fazer com o Keller?
- Ele vai comigo.
- Ele é um assassino profissional que tentou matar você.
- São águas passadas. Além disso, preciso de um pouco mais de força bruta na equipe.
- Do que mais você precisa?
- Passaportes, vistos, passagens, acomodações... o de sempre, Uzi. E nossa base em Moscou deve colocar Pavel Zhirov imediatamente sob vigilância em tempo integral.
- Isso é tudo?
- Não. Preciso de você, também.
Navot ficou em silêncio.
- Eu não pedi que fosse assim, Uzi.
- Sim, eu sei. Mas isso não torna as coisas mais fáceis.
Já era quase meia-noite quando Gabriel voltou à casa segura em Grayswood. Entrando no quarto que dividia com Chiara, viu-a sentada na cama, com uma xícara de chá
de ervas sobre o criado-mudo e uma pilha de revistas no colo. Tinha os cabelos arranjados em um coque descuidado que deixava várias madeixas soltas e estava usando
os óculos novos de grife que solicitara para ler. Chiara se incomodava um pouco com o novo adereço, mas, em segredo, Gabriel apreciava o leve enfraquecimento de
sua visão. Pelo menos isso lhe dava esperanças de que, algum dia, ela viesse a parecer menos com uma filha e mais como sua esposa.
- E então, como foi? - perguntou ela, sem erguer os olhos.
- Com repouso e reabilitação adequada, acho que ainda recuperarei parcialmente os movimentos da minha mão esquerda.
- Foi tão ruim assim?
- Ele está furioso, e não o culpo.
Gabriel tirou o casaco e o jogou sobre o espaldar de uma cadeira. Chiara revirou os olhos em desaprovação, depois lambeu a ponta do dedo para virar a página da revista.
- Ele vai superar - disse casualmente.
- Esse não é o tipo de coisa que se supera, Chiara. Não teria chegado a esse ponto se você e Shamron não houvessem tramado pelas minhas costas.
- Não foi assim que aconteceu, querido.
- E como foi, exatamente?
- Shamron veio me visitar quando você estava na França procurando Madeline. Ele disse que ia pressionar você uma última vez para que aceitasse o cargo de diretor,
e que desejava minha aprovação.
- Bem simpático da parte dele.
- Não fique bravo, Gabriel. É o que ele quer. - Chiara fez uma pausa. - E o que eu quero, também.
- Você? - perguntou Gabriel, surpreso. - Tem ideia de como vai ser depois que eu prestar o juramento?
- Estamos vivendo no quarto de uma casa segura que compartilhamos com oito pessoas, incluindo um homem que já tentou matá-lo. Acho que consigo lidar com seu posto
de chefia.
Gabriel foi até a cama e começou a folhear as revistas que agora estavam ao lado de Chiara. Uma delas era voltada para mulheres grávidas e Gabriel a ergueu, perguntando:
- Você tem alguma coisa para me contar?
Chiara arrancou a revista da mão de Gabriel. Inclinando a cabeça um pouco para o lado e apoiando o queixo na mão, ele a observou atentamente por um momento.
- Não me olhe assim - pediu ela.
- Assim como?
- Como se eu fosse uma pintura.
- Não dá para evitar.
Chiara sorriu.
- Em que você está pensando?
- Estou pensando em como queria estar sozinho com você, e não dividindo uma casa com oito pessoas.
- Incluindo um sujeito que já tentou matá-lo. Mas em que você está realmente pensando?
- Por que você não me pediu para não ir a Moscou?
- Eu me faço a mesma pergunta.
- E então, por quê?
- Porque eles a trancaram num carro e a mataram queimada.
- Não há nenhuma outra razão?
- Nenhuma - respondeu Chiara. - E, caso você esteja imaginando se eu quero ir a Moscou com a equipe, a resposta é “não”. Eu não saberia me virar por lá. Acabaria
cometendo algum erro.
Gabriel subiu na cama e pousou a cabeça sobre o ventre de Chiara.
- Você não vai tirar as roupas? - perguntou ela.
- Estou muito cansado.
- Importa-se se eu ler um pouco mais?
- Você pode fazer o que quiser.
Gabriel fechou os olhos. O som de Chiara folheando a revista ia embalando seu sono, até que ela subitamente perguntou:
- Você ainda está acordado?
- Não - murmurou ele.
- Ela sabia que essa história ia terminar em Moscou, Gabriel?
- Ela quem?
- A velha na Córsega. Ela sabia?
- Sim. Suponho que sim.
- Ela lhe disse para não ir?
- Não - respondeu Gabriel, culpado, sentindo como se uma faca dilacerasse seu peito. - Ela me disse que eu estaria em segurança lá.
- Ela viu mais alguma coisa?
- Uma criança. Ela viu uma criança.
_ Uma criança? De quem? - perguntou Chiara, mas Gabriel já não a escutava. Ele se via correndo em direção a uma mulher através de um interminável campo nevado. A
mulher estava em chamas e a neve estava toda manchada de sangue.
47
GRAYSWOOD, SURREY
Uzi Navot, diretor do serviço de inteligência israelense, chegou à casa segura em Grayswood às sete e vinte do dia seguinte, enquanto uma cinzenta aurora de dezembro
raiava sobre as árvores desfolhadas do Knobby Copse. A primeira pessoa que ele encontrou foi Christopher Keller, perseguindo uma bolinha de pingue-pongue, após um
ponto decisivo de Yaakov. O placar estava oito a cinco para Yaakov, mas Keller já se aproximava.
- Quem é você? - perguntou Keller, ao ver o carrancudo homem de óculos no hall de entrada.
- Não lhe interessa - retrucou Navot.
- Nome estranho. É hebraico, certo?
Navot franziu a testa.
- Você deve ser Keller.
- É, devo ser.
- Onde está Gabriel?
- Ele foi a Guildford com Chiara.
- Por quê?
- Porque nós comemos todo o peixe do lago.
- E quem está no comando?
- Os internos.
Navot sorriu.
- Não mais.
Após a chegada pouco ortodoxa de Navot, a equipe entrou em modo de guerra. Seria uma guerra não declarada, como todos os seus conflitos, travada em território hostil,
contra um inimigo maior e mais capacitado. O Escritório é considerado um dos melhores serviços de inteligência do mundo, mas não chega a ser páreo para a irmandade
da espada e do escudo, herdeira de uma orgulhosa e sanguinária tradição. Por mais de setenta anos, a KGB protegeu implacavelmente o comunismo soviético contra inimigos
reais ou percebidos como tal, agindo também na vanguarda do Partido no exterior, recrutando e plantando milhares de espiões por todo o planeta. Seu poder chegou
a ser quase ilimitado, quase fazendo da KGB um Estado dentro do Estado. Após o colapso da União Soviética, ela tornou-se o Estado. E a Volgatek era a sua companhia
petrolífera.
A todo momento, Gabriel destacava essa conexão entre a Volgatek e o SVR enquanto a equipe começava seus trabalhos. A empresa e o serviço de inteligência eram uma
só entidade, e isso significava que Mikhail estaria em mãos inimigas no momento em que seu avião partisse de Londres. Sua falsa identidade enganara bem Gennady Lazarev,
mas não resistiria muito tempo nas sessões de interrogatório em Lubyanka. Assim como Mikhail. Gabriel advertiu que Lubyanka era o fim da linha, o lugar onde agentes
e operações morriam.
Entretanto, os pensamentos de Gabriel estavam mais concentrados em Pavel Zhirov, o chefe de segurança da Volgatek e principal articulador do plano para obter acesso
ao petróleo britânico no mar do Norte. Nas 24 horas desde a chegada de Navot à casa de Grayswood, o posto do Escritório em Moscou já tinha determinado que Zhirov
morava no apartamento de um prédio fortificado nas Colinas do Pardal, uma região de elite às margens do rio Moscou. Sua rotina diária era típica da duplicidade de
suas atividades: passava a manhã nos luxuosos escritórios da Volgatek na rua Tverskaya e, à tarde, ia para a Central Moscovita, o bem arborizado complexo do SVR
em Yasenevo. A equipe de vigilância do Escritório em Moscou tirou várias fotos de Zhirov entrando e saindo de sua limusine Mercedes com chofer, embora nenhuma revelasse
claramente suas feições. Gabriel não pôde deixar de admirar o profissionalismo do russo. Ele já tinha demonstrado ser um adversário capaz quando sua artimanha confundira
os agentes do Escritório. Capturá-lo nas ruas de Moscou exigiria uma operação com um nível equivalente de habilidade.
Eli Lavon enfatizou:
- Com duas importantes diferenças: Moscou não é a Córsega, e Pavel Zhirov não estará de camiseta, pilotando uma lambreta numa estradinha deserta, vestindo apenas
um vestido de alças.
- Então teremos de pensar em um meio de pôr Mikhail no carro de Zhirov - comentou Gabriel. - Com uma arma carregada no bolso de trás, é claro.
- E como você pretende fazer isso?
- Assim.
Sentando-se ao computador, com alguns rápidos toques no teclado, Gabriel recuperou a gravação das últimas palavras de Lazarev a Mikhail na Dinamarca:
“Vamos levá-lo a Moscou por alguns dias, para que você conheça o restante da equipe. Se ela também gostar de você, passaremos à fase seguinte .Senão,você permanecerá
com Viktor e fingirá que nada disso ocorreu.”
“Por que Moscou?” ‘Você tem receio de ir a Moscou, Nicolai?”
‘É claro que não”
‘E nem deveria ter. Pavel vai cuidar muito bem de você.’
Gabriel parou a reprodução e olhou para Lavon, dizendo:
- Posso estar enganado, mas suspeito que o retorno de Nicholas Avedon à Rússia não correrá sem problemas.
- Que tipo de problemas?
- O tipo que só Pavel pode resolver.
- E quando Mikhail estiver na limusine?
- Ele dará a Pavel a chance de fazer uma escolha simples.
- Essa escolha seria vir quietinho ou ter os miolos espalhados pelo interior do lindo Mercedes?
- Alguma coisa do gênero.
- Bem, e quanto à regra de ouro de Shamron?
- Qual?
- Aquela que fala sobre exibir armas em público.
- Ah, existe uma pequena e pouco conhecida exceção quando se trata de encostar um revólver nas costelas de um gângster como Pavel.
Lavon ficou pensativo, e por fim falou:
- Precisaremos trazer o motorista, também. Caso contrário, todos os agentes da FSB e milicianos russos ficarão no nosso encalço.
- Sim, Eli, eu sei disso.
- Onde você pretende conduzir o interrogatório?
- Aqui.
Digitando mais algumas teclas, Gabriel apresentou o local. Lavon olhou para a tela e comentou:
- Adorável. Quem é o proprietário?
- Um homem de negócios russo que não conseguiu mais suportar a vida na Rússia.
- E onde ele vive agora?
- Bem perto da residência de Shamron.
Gabriel fez desaparecer a imagem da casa com um clique do mouse.
- Bem, isso deixa só mais uma questão... - continuou Lavon.
- Tirar Mikhail da Rússia.
Lavon assentiu.
- Sim, e ele não poderá sair com a identidade de Nicholas Avedon.
- De preferência, com o mínimo possível de obstáculos russos a superar - acrescentou Gabriel.
- E como resolveremos isso?
- Da mesma forma que Shamron conseguiu tirar Eichmann da Argentina.
- El Al?
Gabriel assentiu.
- Garoto levado - comentou Lavon.
Gabriel sorriu.
- É. E estou só começando.
Navot aprovou imediatamente os planos de Gabriel, faltando cinco dias para o prazo final dado a Mikhail por Lazarev. Cinco dias para verificar uma miríade de questões
grandes e pequenas - ou, como Lavon observou, cinco dias para determinar se aquela visita de Mikhail à Rússia terminaria melhor do que a última. Passaportes, vistos,
passagens e providências de transporte e hospedagem: tudo teria que ser feito em passo duplamente acelerado. E havia ainda as rotas de fuga e esconderijos, os planos
de contingência, e os planos B para os planos de contingência. A tarefa do grupo era ainda mais difícil porque Gabriel não podia dizer onde ou quando se daria a
captura de Zhirov. Eles teriam que improvisar numa cidade que, ao longo de sua longa e sangrenta história, nunca acolhera bem livres-pensadores.
Ao longo daqueles dias e noites, Gabriel exigiu o máximo - e, quando ele virava as costas, Navot se encarregava de pressionar a equipe ainda mais. Não havia tensão
visível entre os dois, nenhum sinal de que um estava em ascensão e o outro rumava para a aposentadoria. Na verdade, vários membros da força-tarefa imaginavam se
não estariam testemunhando a formação de uma parceria que poderia continuar para bem depois da posse de Gabriel como chefe do Escritório. Yaakov, o mais fatalista
do grupo, não compartilhava dessa hipótese: “Seria como a nova esposa permitindo que a ex-mulher mantivesse seu velho quarto na casa. Isso nunca vai acontecer.”
Lavon, entretanto, não tinha tanta certeza. Se havia alguém tão seguro de si que pudesse admitir a permanência do predecessor no serviço, esse alguém era Gabriel
Allon. Afinal de contas, disse Lavon, se ele conseguira fazer as pazes com Keller, certamente seria capaz de acertar as contas com Navot.
As conversas sobre os planos futuros de Gabriel eram sempre interrompidas assim que Chiara entrava no recinto. A princípio, ela tentou colaborar, mas, como o assunto
constante era a Rússia, o seu humor logo foi arruinado. Chiara só estava viva porque membros daquela equipe certa vez arriscaram os pescoços para salvá-la. Agora,
enquanto lutavam para cumprir um prazo quase impossível, ela assumiu o papel de cuidadora. Apesar da tensão que reinava na casa, esforçava-se para fazer prevalecer
um clima bem familiar. Toda noite, eles sentavam à mesa para uma farta refeição e, por insistência de Chiara, falavam sobre qualquer assunto que não fosse a missão:
livros, filmes e até mesmo o futuro de seu problemático país. Após pouco mais de uma hora desse intervalo, Gabriel e Navot punham-se de pé e o trabalho recomeçava.
Chiara cuidava sozinha da louça com prazer, cantarolando suavemente à pia para abafar o som da conversa na sala contígua. Mais tarde, confidenciou a Gabriel que
o simples som de uma palavra russa provocava uma sensação de dor e vazio em seu útero.
O homem que estava no centro daquela operação permanecia jovialmente indiferente aos esforços da equipe de agentes, ou essa foi a impressão de quem encontrou Nicholas
Avedon após o regresso a Londres. Tinha a postura de uma pessoa que já nem se preocupava em ocultar o fato de estar alcançando lugares que os outros nem podiam sonhar
alcançar. Orlov babava pelo protegido como se fosse o filho que nunca tivera, e parecia a cada dia mais dependente de Avedon. O pronome nós passou a figurar pela
primeira vez no vocabulário de Orlov quando ele se referia aos negócios - uma mudança de tom que não passou despercebida no centro financeiro londrino. Ele comunicou
à sua equipe que passaria parte do mês de janeiro em um local não revelado do Caribe:
- Preciso de um belo e longo descanso. Agora que tenho Nicholas, enfim posso tirar férias.
Com Orlov aparentemente distante, os rumores nos círculos financeiros eram de que agora Nicholas Avedon era o homem a ser procurado na VOI. A maior parte dos interessados
tinha que esperar uma semana ou mais por uma entrevista com ele, mas quando ligou um tal Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, Avedon agendou uma
reunião sem demora. O encontro se deu em seu escritório, com vista para a Praça Hanover, embora o assunto tratado nada tivesse a ver com negócios ou investimentos.
Ao término, ele fez uma chamada de três minutos para um número de Moscou, com resultados satisfatórios. Em seguida, acompanhou o Sr. Albright aos elevadores, com
o ar de quem está certo do sucesso. Em tom bem audível para quem estivesse por perto, anunciou:
- Vou expor os detalhes para Viktor, mas me parece que está tudo certo para seguirmos em frente sem problemas.
Naquela noite, um carro estacionou do lado de fora do prédio de Mikhail em Maida Vale. Tempos depois, Graham Seymour identificaria o homem que saiu do veículo como
um mensageiro dentre os numerosos agentes da rezidentura do SVR em Londres. O sujeito pegou o passaporte falso de Mikhail e o levou à embaixada russa em Kensington
Gardens. Quando voltou, uma hora mais tarde, trazia o documento, que já tinha recebido apressadamente um carimbo de visto para a Rússia. Dentro, Mikhail encontrou
o cartão de embarque de um voo da British Airways com destino a Moscou, que decolaria às dez horas da manhã seguinte.
Mikhail pôs a passagem e o passaporte em sua valise e entrou em contato com Orlov, na Cheyne Walk, para dizer que precisava de alguns dias de folga.
- Desculpe, Viktor, mas estou exausto. E, por favor, sem chamadas ou e-mails. Quero sair de circulação.
- Por quanto tempo?
- Até quarta ou quinta-feira, no mais tardar.
- Tire a semana toda.
- Tem certeza?
- Prometo não fazer nenhuma bobagem enquanto você estiver longe.
- Obrigado, Viktor. Você é demais.
Mikhail tentou dormir naquela noite, mas em vão. Era o que sempre acontecia antes de uma operação. Assim, pouco antes das quatro da madrugada, levantou-se da cama
e vestiu sua armadura de Nicholas Avedon, também conhecido como Nicolai Avdonin. Às seis, um carro estava na porta do edifício para conduzi-lo a Heathrow, onde ele
passou sem dificuldades pela segurança, com Christopher Keller e Dina Sarid por perto para garantir sua retaguarda. Ao atravessar o portão de embarque, pôde ver
uma versão bem modificada de Gabriel absorvido na leitura do Economist com o que parecia ser um interesse exagerado. Mikhail entrou no avião sem olhá-lo, mas Gabriel
ainda esperou até pouco antes de a porta se fechar para se precipitar em direção ao compartimento de primeira classe.
Após a decolagem, a torre britânica orientou a aeronave, para que sobrevoasse Basildon, até que, precisamente às dez e meia, ela entrou no espaço aéreo internacional.
Nervoso, Mikhail tamborilava no console central de seu assento. A partir de agora, estava nas mãos do inimigo, junto com o futuro chefe da inteligência israelense.
48
MOSCOU
Os manifestantes afluíam para a Praça Vermelha em pequenos grupos, de forma a não serem identificados pela milícia de Moscou ou pelos gorilas de jaquetas de couro
da FSB. Eram artistas, escritores, jornalistas, roqueiros punk e até mesmo algumas poucas babushkas que ainda sonhavam em passar os últimos anos da vida em um país
realmente livre. Por volta do meio-dia já havia uma multidão de centenas de pessoas, numerosa demais para ocultar seus reais motivos. Uma pessoa desfraldou uma bandeira
e outra surgiu com um megafone, acusando o presidente de fraudar as últimas eleições, o que por sinal era a pura verdade. Depois, o manifestante fez uma piada sobre
outras coisas que o presidente havia roubado do povo russo, e que o líder dos mal-encarados agentes da FSB não considerou nem um pouco engraçada.
Após um breve sinal, os milicianos avançaram com grande violência sobre a multidão, quebrando tudo o que viam pela frente, inclusive algumas das cabeças mais importantes.
O dono do megafone levou a pior, e foi visto pela última vez ensanguentado e semiconsciente na traseira de uma van da polícia. Mais tarde, o Kremlin anunciou que
o homem seria acusado de tentar incitar um motim, logo poderia ficar preso por dez anos numa “neogulag”. A subserviente imprensa russa referiu-se aos manifestantes
como “desordeiros”, o mesmo rótulo que o regime soviético aplicava a todos os oponentes, e nem um único comentarista ousou criticar as táticas violentas do governo.
Talvez se devesse perdoar o seu silêncio: atualmente, jornalistas que irritam o Kremlin têm o curioso costume de aparecerem mortos.
No Aeroporto Sheremetyevo, em Moscou, as notícias da manifestação na Praça Vermelha passaram rapidamente pelas televisões, enquanto Mikhail deixava a ponte de desembarque,
seguido trinta segundos depois por Gabriel. Conforme se encaminhavam ao controle de passaportes, Allon notou um mal nutrido policial da alfândega com o uniforme
surrado e, ao lado, um homem de terno bem cortado, que tinha nas mãos uma fotografia. Ele a consultou por duas vezes enquanto Mikhail se aproximava. Depois, foi
até o falso Nicholas e disse algo em russo que Gabriel não chegou a entender. Mikhail sorriu e apertou a mão do homem antes de acompanhá-lo até uma porta não identificada.
Gabriel continuou até o controle de passaportes, onde uma mulher séria observou seu rosto por um momento desconfortavelmente longo. Por fim, ela carimbou com força
o passaporte e acenou para que ele fosse em frente. Bem-vindo à Rússia, pensou enquanto adentrava o salão de desembarque apinhado. Ao sair do aeroporto, logo sentiu
a mistura dos cheiros de tabaco e diesel, que fizeram sua cabeça rodar. O céu do entardecer estava claro e o frio era cortante. Olhando à esquerda de forma sutil,
Gabriel pôde ver Mikhail e seu acompanhante da Volgatek entrando no calor confortável do Mercedes sedã que os esperava. Juntou-se à longa fila de espera de táxis.
O frio do concreto atravessava as solas finas de seus mocassins ocidentais; quando ele enfim se esgueirou para dentro de um Lada decrépito, seu maxilar estava tão
congelado que Gabriel mal conseguia falar. O motorista perguntou pelo destino e ele pediu para ser levado ao Hotel Metropol - nem soube como o homem conseguiu entender,
tamanha sua dificuldade de dicção.
Saindo do aeroporto, o táxi tomou a Leningradsky Prospekt e iniciou o longo e penoso trajeto até o centro de Moscou. Faltavam cinco para as sete, já no final do
terrível rush vespertino moscovita; ainda assim, o ritmo de deslocamento era glacial. O motorista tentou entabular uma conversa, mas seu inglês era tão impenetrável
como o tráfego. Gabriel concordava polidamente de vez em quando, mas sua atenção estava voltada mesmo era para os edifícios decadentes ao longo da velha e malcuidada
via. Por um breve período, os prédios eram apenas horríveis, mas agora haviam se transformado em ruínas. Em cada esquina, cada telhado, cartazes anunciavam promessas
de luxúria. Era o pesadelo comunista com uma nova demão de capitalismo, refletiu Gabriel. Deprimente e impactante.
Enfim cruzaram o Anel Rodoviário dos Jardins e a prospekt embocou na rua Tverskaya, a versão moscovita da Madison Avenue, que os levou por uma ladeira suave, passando
pela nova e luxuosa sede da Volgatek e pelos muros de tijolos vermelhos do Kremlin. Então, chegaram às oito pistas da rua Okhotnyy Ryad. Virando à esquerda, passaram
pela Câmara dos Deputados, pela velha Casa dos Sindicatos e pelo Teatro Bolshoi. Entretanto, Gabriel não observava nada disso. Seus olhos enxergavam apenas a fortaleza
amarela bem iluminada por holofotes no alto da Praça Lubyanka.
- KGB - falou o motorista, apontando por sobre o volante
- Não existe KGB - replicou Gabriel em tom distante. - A KGB é uma coisa do passado.
O taxista resmungou algo sobre a ingenuidade dos estrangeiros e conduziu o carro até a entrada do Hotel Metropol. O saguão havia sido restaurado fielmente voltando
à sua beleza original, mas a mulher de meia-idade no balcão de recepção não tinha tido a mesma sorte. Ela saudou Gabriel com um sorriso gélido, fez algumas perguntas
polidas sobre a natureza de sua viagem e depois estendeu um longo formulário de registro - uma cópia seria enviada às autoridades competentes. Gabriel o preencheu
rapidamente como se fosse Jonathan Albright, da Markham Consultoria Financeira, e recebeu em troca as chaves dos aposentos. Um mensageiro do hotel ofereceu-se para
ajudá-lo com a bagagem e pareceu aliviado quando Gabriel lhe disse que não era necessário. Mesmo assim, premiou-o pela solicitude com uma gratificação que indicava
sua pouca familiaridade com o valor da moeda russa.
O aposento ficava no quarto andar, com vista para as dez pistas da Teatralny Prospekt. Gabriel sabia que o recinto tinha escutas e nem se deu o trabalho de localizá-las.
Tratou de fazer duas chamadas a clientes que não eram de fato clientes e, depois, foi examinar o monte de e-mails que se acumulara durante a viagem. Uma das mensagens
era de um advogado de Nova York, a respeito de um determinado investimento de natureza legalmente dúbia. O verdadeiro remetente era Eli Lavon, que reservara um quarto
algumas portas depois no mesmo corredor. O real conteúdo do e-mail foi revelado após Gabriel digitar a senha adequada: ao que parecia, Gennady Lazarev levara seu
possível novo funcionário ao Lounge 02, no Ritz, para aperitivos e tira-gostos. Estavam também presentes Dmitry Bershov, Pavel Zhirov e quatro beldades russas. Fotos
de vigilância iam em anexo, por cortesia de Yaakov e Dina, que ocupavam uma mesa no lado oposto do salão.
Gabriel digitou novamente a senha e a mensagem retornou ao texto original. Em seguida, pôs os fones de ouvidos e captou uma transmissão segura do áudio do celular
de Mikhail. Dava para ouvir o tilintar de copos, risadas e o chilrear das acompanhantes russas, que pareciam fúteis mesmo em um idioma incompreensível. Logo escutou
a voz familiar de Lazarev murmurando uma confidência ao ouvido de Mikhail:
- Trate de descansar bem esta noite. Temos grandes planos para você amanhã.
Eles permaneceram no lounge até as onze, quando Mikhail se retirou desacompanhado, mas com uma tremenda dor de cabeça, para sua suíte de luxo no Ritz. Apesar do
conselho de Lazarev, não conseguiu dormir, pois sua mente era um turbilhão de lembranças de operações passadas, encadeadas como numa matéria jornalística sobre as
maiores catástrofes do século. Mikhail ansiava por atividade, por uma ação de qualquer tipo, mas as câmeras de vigilância certamente ocultas no quarto eram um impeditivo.
Assim, ele se viu enroscado nos lençóis úmidos de sua cama, com uma imobilidade cadavérica, até as sete da manhã,
quando a chamada do serviço de despertador do hotel enfim lhe permitiu se levantar, grato.
Seu café chegou pouco depois, e Mikhail o tomou enquanto se atualizava sobre o mundo corporativo no noticiário londrino. Desceu para a academia, onde fez um treino
impressionante, testemunhado pelo observador de um dos serviços de inteligência russos. Voltando ao quarto, encarou um banho gelado para injetar um pouco de vida
nos ossos cansados. Então, vestiu o melhor terno cinza risca de giz - aquele que Dina tinha escolhido para ele na Anthony Sinclair da Savile Row. Mikhail avistou-a
no salão de café da manhã quinze minutos depois, fitando Keller nos olhos como se detivessem o segredo para a felicidade eterna. A algumas mesas de distância, Yossi
devolvia seus ovos mexidos. “Eu pedi ovos moles, mas estes deviam ter sido servidos num copo.” O comentário ricocheteou no garçom como uma pedrinha jogada num trem
de carga. “Você quer os seus ovos num copo?” perguntou ele.
Às nove horas em ponto, depois de ler os jornais matinais e resolver algumas questões pendentes em Londres por e-mail, Mikhail foi até o saguão ultramoderno do Ritz.
Lá, aguardava-o o mesmo sujeito da Volgatek que o retirara da fila de controle de passaportes em Sheremetyevo na noite anterior. Seu rosto sorridente era tão agradável
quanto uma janela quebrada.
- Espero que tenha dormido bem, Sr. Avedon.
- Nunca dormi melhor - mentiu Mikhail, cordial.
- Nossos escritórios ficam muito perto. Espero que não se incomode de caminhar.
- Nós vamos sobreviver?
- As chances são boas, mas não há nenhuma garantia em Moscou nesta época do ano.
O sujeito virou e conduziu Mikhail para a rua Tverskaya. Enquanto subia a ladeira inclinando o corpo contra o vento forte, o falso Avedon se deu conta de que aquele
amontoado anônimo de lã e pele caminhando dois passos atrás dele era Eli Lavon, que o escoltou em silêncio até a porta da frente da Volgatek, como se quisesse lembrar
a Mikhail que ele não estava sozinho. Em seguida, flutuou na direção do sol forte de Moscou e desapareceu.
Se houvesse quaisquer mal-entendidos quanto à missão verdadeira da Volgatek, eram aquietados pela vasta escultura de metal no saguão da sede da empresa na rua Tverskaya.
A obra retratava o planeta com uma Rússia desproporcional na posição dominante,bombeando energia vital para os quatro cantos da Terra.
Abaixo do globo, um Atlas sorridente num terno italiano feito sob encomenda, estava Gennady Lazarev.
- Bem-vindo ao novo lar - disse, apertando a mão de Mikhail. - Ou devo dizer, ao verdadeiro lar?
- Um passo de cada vez, Gennady.
Lazarev apertou a mão de Mikhail com um pouco mais de força, como a indicar que não seria contrariado, e o conduziu até um elevador executivo, que os levou ao último
andar do prédio. Na entrada, havia uma placa: BEM-VINDO, NICOLAI! Lazarev parou para admirá-la, como se tivesse se esforçado muito na redação, antes de levar Mikhail
até o vasto escritório que ele poderia usar sempre que estivesse na cidade. Tinha uma vista do Kremlin e vinha com uma secretária perigosamente atraente chamada
Nina.
- O que você acha? - perguntou Lazarev, com seriedade.
- Bom.
- Venha. - Lazarev conduziu Mikhail pelo cotovelo. - Estão todos ansiosos para conhecê-lo.
De fato, Lazarev não estava exagerando quando disse “todos”. Durante as duas horas e meia seguintes, Mikhail sentiu mesmo que cumprimentava todos os funcionários
da empresa, e possivelmente mais algumas pessoas também. Havia uma dúzia de vice-presidentes de diversas formas, tamanhos e responsabilidades, e uma figura cadavérica
chamada Mentov que fazia algo com análise de riscos que Mikhail não conseguiu nem fingir entender. Em seguida, foi apresentado à equipe científica da Volgatek -
dos geólogos que buscavam novas fontes de petróleo ao redor do mundo aos engenheiros responsáveis por desenvolver novas formas de extraí-lo. Depois, percorreu os
andares inferiores para conhecer as pessoas de menor importância: jovens executivos que sonhavam tomar seu lugar algum dia, os mortos-vivos presos às suas mesas
e às xícaras de café vermelhas da Volgatek. Mikhail não pôde deixar de se perguntar o que acontecia com um funcionário demitido de uma empresa administrada e possuída
pela sucessora da KGB. Talvez recebesse um relógio de ouro e uma pensão, mas Mikhail achava pouco provável.
Por fim, voltaram ao último andar e entraram no espaçoso escritório de Lazarev, similar a um átrio, onde ele falou longamente sobre sua visão para o futuro da Volgatek
e o papel que queria atribuir a Mikhail. Sua posição inicial na empresa seria de diretor da Volgatek Reino Unido, a subsidiária que seria formada para administrar
o projeto das Ilhas Ocidentais. Uma vez que o petróleo estivesse fluindo, Mikhail receberia responsabilidades maiores, em especial na Europa Ocidental e na América
do Norte.
- Isso seria o suficiente para mantê-lo interessado? - perguntou Lazarev.
- Pode ser.
- O que seria necessário para convencê-lo a deixar Viktor e vir trabalhar comigo?
- Dinheiro, Gennady. Muito dinheiro.
- Posso garantir, Nicolai, que dinheiro não é problema.
- Então você tem a minha total atenção.
Lazarev abriu uma pasta de couro e retirou uma única folha de papel.
- Seu pacote de compensação vai incluir apartamentos em Aberdeen, Londres e Moscou. Você vai usar jatos particulares, é claro, e poderá utilizar uma casa da Volgatek
que mantemos no sul da França. Além do salário-base, você receberá diversos bônus e incentivos que levarão sua remuneração total para algo assim.
Lazarev posicionou a folha na frente de Mikhail e apontou para o número próximo ao pé da página. Mikhail o observou por um instante, coçou a cabeça careca e franziu
a testa.
- E então? - perguntou Lazarev.
- Nem perto.
Lazarev sorriu.
- Achei que a sua resposta seria essa - disse, guardando a folha na pasta -, então tomei a liberdade de preparar uma segunda oferta. - Ele a colocou na frente de
Mikhail. - Melhor?
- Agora está mais quente - respondeu Mikhail, sorrindo para Lazarev. - Definitivamente mais quente.
49
PRAÇA VERMELHA, MOSCOU
As quatro horas da tarde, eles já tinham as linhas gerais de um acordo.
Lazarev preparou um documento com uma página, reservou um salão particular no Café Pushkin para a comemoração e mandou Mikhail de volta ao Ritz para algumas horas
de descanso. O falso Avdonin percorreu a pequena distância a pé, acompanhado de perto por Gabriel, que andava do outro lado da rua com a lapela levantada cobrindo
os ouvidos e a boina baixada até as sobrancelhas. Ele observou Mikhail atravessar a entrada suntuosa do hotel e continuou ao longo da rua Tverskaya até a Praça da
Revolução. Lá, parou um pouco para ver um imitador de Lênin instando um grupo de turistas japoneses atônitos a tomarem os meios de produção de seus soberanos burgueses.
Em seguida, cruzou o arco do Portão da Ressurreição e adentrou a Praça Vermelha.
Já estava escuro e o vento decidira dar uma folga para a cidade conduzir seus negócios em paz. Com a cabeça baixa e os ombros contraídos, Gabriel parecia um moscovita
acabado qualquer. Percorreu às pressas o muro norte do Kremlin e passou pelos olhares vazios dos guardas congelados em frente ao Mausoléu de Lênin. Bem à sua frente,
resplandecentes à luz branca, erguiam-se os domos da Catedral de São Basílio, coloridos como bengalas de açúcar. Gabriel olhou de relance para o relógio da Torre
do Salvador e seguiu ao longo do muro do Kremlin, até o ponto onde Stálin, o assassino de milhões, repousava pacificamente num lugar de honra. Lavon se juntou a
ele pouco tempo depois.
- O que você acha? - perguntou Gabriel em alemão.
- Acho que eles deviam tê-lo enterrado num túmulo sem marcação em algum campo, mas essa é só a minha opinião.
- A barra está limpa?
- O máximo que pode estar num lugar como Moscou.
Gabriel se virou sem dizer nada e conduziu Lavon pela praça até a entrada da GUM. Antes da queda da União Soviética, aquele tinha sido o único estabelecimento comercial
do país onde os russos sempre podiam encontrar um casaco de inverno ou um par de sapatos. Agora era um shopping de estilo ocidental, entupido de todas as bugigangas
inúteis que o capitalismo tem a oferecer. O elevado teto de vidro reverberava com o burburinho dos compradores noturnos. Lavon ficou encarando o BlackBerry enquanto
andava ao lado de Gabriel. Atualmente, esse era um hábito bem russo.
- A secretária de Lazarev acabou de enviar um e-mail para a equipe sênior sobre o jantar de hoje no Café Pushkin - informou Lavon. - Zhirov está na lista de convidados.
- Não ouvi a voz dele hoje na Volgatek, durante a passagem de Mikhail.
- Ele não estava lá - explicou Lavon, ainda olhando o celular. - Depois de deixar seu apartamento nas Colinas do Pardal, foi direto para Yasenevo.
- Por que logo hoje? Por que não estava na Volgatek para conhecer o garoto novo?
- Talvez ele tivesse outros afazeres.
- Como o quê?
- Talvez alguém mais precisasse ser sequestrado.
- É isso que me preocupa.
Gabriel parou em frente à vitrine de uma joalheria e examinou alguns relógios suíços reluzentes. Ao lado, havia um café de estilo soviético com mulheres roliças
infelizes de avental branco colocando comida russa barata em pratos cinzentos da época de Leonid Brejnev. Mais de vinte anos depois da queda do comunismo, alguns
russos ainda tinham nostalgia do passado totalitário.
- Você não está ficando inseguro, está? - perguntou Lavon.
- É dezembro em Moscou, Eli. É impossível não ter receios.
- O que você quer fazer?
- Gostaria que o hotel desse a regalia especial a Nicholas Avedon um pouco antes do planejado.
- Regalias desse tipo são mal vistas no Café Pushkin.
- Qualquer pessoa importante anda armada no Pushkin, Eli.
- É arriscado.
- Não tão arriscado quanto a alternativa.
- Por que nós não pulamos o jantar e vamos direto para a sobremesa?
- Eu adoraria - respondeu Gabriel -, mas o trânsito da hora do rush não vai deixar. Teremos que esperar até as dez horas. Caso contrário, nunca vamos conseguir tirá-lo
da cidade. Ficaríamos com as mãos atadas.
- Uma escolha infeliz de palavras.
- Envie a mensagem, Eli.
Lavon digitou alguns caracteres no BlackBerry e levou Gabriel para fora, até a rua Il'inka. O vento se intensificava de novo e a temperatura tinha caído. Lágrimas
correram livremente pelo rosto de Gabriel enquanto eles passavam pelas fachadas características dos sólidos prédios imperiais. Em seu fone de ouvido, ouvia Mikhail
cantarolar durante o banho no Ritz.
- Quero cobertura completa nele o tempo inteiro - disse Gabriel. - Nós o levamos para jantar, sentamos com ele durante o jantar e o trazemos de volta para o hotel.
É aí que começa a diversão.
- Só se Pavel concordar em resgatar Mikhail.
- Ele é o chefe de segurança da Volgatek. Se o executivo mais novo da empresa acreditar que sua vida está em perigo, Pavel irá correndo. E então o faremos se arrepender.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Qual, Eli? Ucrânia? Bielorrússia? Ou que tal o Cazaquistão?
- Na verdade, eu estava pensando na Mongólia.
- A comida é ruim.
- A comida é terrível - concordou Lavon -, mas pelo menos não é a Rússia.
No fim da rua, eles dobraram à esquerda e subiram a ladeira em direção à Praça Lubyanka.
- Você acha que isso já foi feito antes? - perguntou Lavon.
- O quê?
- Sequestrar um oficial da KGB dentro da Rússia.
- Não existe KGB, Eli. A KGB é coisa do passado.
- Não, não é. Agora se chama FSB. E ocupa aquele prédio grande e feio bem na nossa frente. E eles vão ficar bastante chateados quando descobrirem que um dos seus
companheiros desapareceu.
- Se o pegarmos direito, eles não vão ter tempo para fazer nada.
- Se o pegarmos direito - enfatizou Lavon.
Gabriel ficou em silêncio.
- Faça-me um favor esta noite, Gabriel: se você não tiver a oportunidade de dar um tiro adequado, não dispare. - Ele fez uma pausa. - Eu detestaria perder a chance
de trabalhar para você como diretor.
Eles tinham chegado ao topo da ladeira. Lavon parou de andar e contemplou a imensa fortaleza amarela no outro lado da Praça Lubyanka.
- Por que você acha que a mantiveram? - perguntou, sério. - Por que não a arrancam e colocam um monumento às vítimas no lugar?
- Pela mesma razão que não removem os ossos de Stálin.
Lavon ficou quieto por um momento.
- Eu odeio este lugar - disse por fim. - Ao mesmo tempo, amo-o com carinho. Estou louco?
- Completamente - respondeu Gabriel -, mas essa é só a minha opinião.
- Eu me sentiria melhor se pudéssemos pegá-lo em outro país.
- Eu também, Eli. Mas não podemos.
- A Mongólia fica muito longe?
- Longe demais para ir dirigindo. E a comida é terrível.
Cinco minutos depois, quando Gabriel entrou no saguão superaquecido do Metropol, Yossi saiu de seu quarto no quadragésimo quarto andar do Ritz vestindo um terno
cinza de banqueiro e uma gravata prateada. Na mão esquerda, levava um crachá dourado com o nome ALEXANDER - um nome adequado para um estudante de história como Yossi
escolher - e, na mão direita, havia uma embalagem azul lustrosa de presente com o logo do hotel. Ela era mais pesada do que Yossi fazia parecer, pois continha uma
pistola Makarov 9 mm, uma das diversas armas que a base de Moscou adquirira de fontes locais ilícitas antes da chegada da equipe. Por três dias, a arma ficara escondida
entre o estrado e o colchão no seu quarto. Ele ficou compreensivelmente aliviado de enfim poder se livrar dela.
Yossi esperou até o corredor se esvaziar para afixar na sua lapela a plaqueta com um nome. Então, dirigiu-se à porta do quarto 421. Mesmo do lado de fora, dava para
ouvir muito bem um homem cantando Penny Lane. Deu duas batidas firmes, mas educadas, a batida de um concierge. Como não obteve resposta, bateu de novo, mais alto.
Dessa vez, um homem com um roupão branco abriu a porta. Ele era alto, estava numa forma física impressionante e tinha a pele rosada por causa do banho.
- Estou ocupado - reclamou.
- Peço desculpas por interromper, Sr. Avelon - respondeu Yossi com um sotaque neutro cosmopolita -, mas a gerência gostaria de lhe oferecer um pequeno presente de
agradecimento.
- Agradeça à gerência, mas dispenso.
- A gerência ficaria desapontada.
- Não é mais daquele maldito caviar, é?
- Receio que a gerência não tenha dito.
Avedon pegou o embrulho e bateu a porta na cara sorridente do falso funcionário. Yossi girou nos calcanhares e, depois de tirar a plaqueta da lapela, voltou para
o próprio quarto. Ao entrar, despiu rapidamente o terno e vestiu uma calça jeans e um casaco pesado de lã. Sua mala estava no pé da cama. Yossi enfiou o terno num
compartimento lateral dela e fechou o zíper. Se tudo saísse de acordo com os planos, um mensageiro da base de Moscou a coletaria em algumas horas e destruiria o
conteúdo. Passou um pano em todos os objetos que tinha tocado no quarto e partiu, torcendo para ser a última vez.
Já no saguão, viu Dina folheando um jornal moscovita escrito em inglês com uma expressão de ceticismo. Passou por ela como se não a conhecesse e saiu do hotel. Um
Range Rover aguardava no meio-fio, soltando gases na noite amargamente fria, e Keller estava ao volante. Ele se embrenhou no trânsito do rush na rua Tverskaya antes
mesmo de Yossi fechar a porta. Diretamente à frente, erguia-se a Torre do Arsenal do Canto; sua estrela vermelha reluzia como um sinal de alerta. Keller assobiava
desafinado enquanto dirigia.
- Você sabe o caminho? - perguntou Yossi.
- À esquerda na rua Okhotnyy Ryad, depois à esquerda na Bol'shaya Dmitrovka e novamente à esquerda no Anel dos Bulevares.
- Passou muito tempo em Moscou?
- Nunca tive o prazer.
- Você pode pelo menos fingir que está ansioso?
- Por que eu estaria ansioso?
- Porque nós estamos prestes a sequestrar um oficial da KGB em plena Moscou.
Keller sorriu enquanto pegava a primeira esquerda.
- Molezinha.
Keller e Yossi levaram vinte minutos para percorrer o trecho curto até o ponto de espera no anel rodoviário. No instante em que chegaram, Yossi mandou uma mensagem
criptografada para Gabriel, que, por sua vez, a encaminhou para o King Saul Boulevard. Ela surgiu na tela de status do Centro Operacional. Sentado em sua cadeira
habitual estava Uzi Navot. Ele assistiu à transmissão ao vivo do saguão do Ritz, cortesia do minidispositivo oculto na bolsa de Dina. Eram 7h36 em Moscou, 6h36 em
Tel Aviv. Às 6h38, o telefone ao lado do cotovelo de Navot tocou. Ele atendeu depressa, resmungou algo que soava como o próprio nome, e escutou a voz de Orit, sua
secretária executiva. No Escritório, era conhecida como “Cúpula de Ferro” - uma referência ao impressionante sistema de defesa antiaéreo israelense - devido à incomparável
habilidade de destroçar os pedidos por um instante de conversa com o diretor.
- De jeito nenhum - respondeu Navot. - Sem chance.
- Ele deixou claro que não vai embora.
Navot suspirou fundo.
- Tudo bem. Deixe-o descer, se for mesmo necessário.
Navot desligou e fitou a imagem que mostrava o saguão do hotel. Dois minutos depois, escutou a porta do Centro de Operações ser aberta e fechada. Pelo canto do olho,
viu a mão manchada que colocava dois maços de cigarros turcos em cima da mesa, além de um Zippo velho, desgastado. O isqueiro foi aceso. Uma nuvem de fumaça obscureceu
a tela.
- Achei que tinha revogado os seus passes - disse Navot em voz baixa, ainda olhando para a frente.
- Você revogou - respondeu Shamron.
- Como você entrou no prédio?
- Abri um túnel.
Shamron girou o isqueiro nos dedos. Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- É muita cara de pau sua aparecer aqui - falou Navot.
- Não é a hora nem o lugar, Uzi.
- Eu sei que não, mas ainda assim é muita cara de pau.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda.
- Você poderia aumentar o volume do áudio do telefone de Mikhail? - perguntou Shamron. - Minha audição não é mais a mesma.
- Não é só a sua audição.
Navot pediu a um dos técnicos que aumentasse o volume.
- Que música ele está cantando? - perguntou Shamron.
- Que diferença faz?
- Responda a pergunta, Uzi.
- Penny Lane.
- Beatles?
- É, Beatles.
- Por que você acha que ele escolheu essa música?
- Talvez goste dela.
- Talvez - disse Shamron.
Navot consultou o relógio: 7h42 em Moscou, 6h42 em Tel Aviv. Shamron apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Mikhail ainda cantarolava quando saiu do quarto vestido para o jantar. No momento em que ele entrou no elevador, o embrulho estava em sua mão direita, mas três minutos
depois, ao deixar o banheiro masculino do saguão, havia sumido. A equipe do Centro de Operações viu Mikhail pela primeira vez às 7h51, filmado pela câmera de Dina,
dirigindo-se para a entrada do hotel. Lazarev estava lá, com os braços erguidos como se sinalizasse para um avião de resgate. Ele tomou Mikhail pelo ombro e o levou
até a traseira de uma limusine Maybach.
- Espero que você tenha conseguido descansar um pouco - disse Lazarev enquanto o carro se afastava do meio-fio com suavidade -, porque esta noite você vai sentir
um gostinho da verdadeira Rússia.
50
CAFÉ PUSHKIN, MOSCOU
Mais tarde, na hora de arrumar os arquivos e preencher os relatórios da missão, haveria uma discussão acalorada acerca do verdadeiro significado das palavras de
Lazarev. Um lado considerou-as uma expressão inofensiva de boa vontade, enquanto o outro viu naquela frase um aviso claro que Gabriel, o futuro diretor, deveria
reconhecer se fosse sábio. Como sempre, foi Shamron que resolveu a controvérsia: as palavras de Lazarev não tinham importância, pois o destino de Mikhail já estava
selado no instante em que entrara no carro.
O ambiente onde os eventos se passaram, o renomado Café Pushkin, não poderia apresentar uma aparência mais acolhedora, especialmente numa noite de dezembro com o
ar gélido e a neve dançando no vento siberiano. O café ficava na esquina da rua Tverskaya com o anel rodoviário, numa imponente casa do século XVIII que dava a impressão
de ter sido importada da Itália renascentista. Diante de suas belas portas francesas, havia três pistas de tráfego e, mais além, uma pequena praça onde, certa vez,
os soldados de Napoleão armaram suas tendas e queimaram limoeiros para se aquecerem. Moscovitas seguiam às pressas para casa por trilhas de cascalho e algumas mães
corajosas estavam sentadas nos bancos sob a luz dos postes, observando os filhos superagasalhados brincarem nos gramados cobertos de neve. Entre as mulheres se achavam
Mordecai, observando a entrada do café, e Rimona, de olho nas crianças. Keller e Yossi tinham encontrado uma vaga a menos de 50 metros do Pushkin. Yaakov e Oded,
também num Land Rover, estavam outros 50 metros atrás deles.
O jantar fora marcado para as oito horas, mas, como o trânsito estava pior do que o normal, Lazarev e Mikhail chegaram com doze minutos de atraso. Mordecai anotou
o horário, assim como as equipes nos Land Rovers. Gabriel também tomou nota e logo mandou uma mensagem para o Centro de Operações - algo desnecessário, claro, pois
Navot e Shamron acompanhavam com atenção a transmissão ao vivo do telefone de Mikhail. Foi assim que eles escutaram os passos pesados sobre o piso sem polimento
na entrada do Pushkin. E o barulho do elevador antigo que levou o falso Avedon ao segundo andar. E os acalorados aplausos que o receberam quando ele entrou no salão
particular reservado para a sua coroação.
Um lugar tinha sido reservado para Mikhail na cabeceira da mesa, com Lazarev à direita e Zhirov à esquerda. Apenas o chefe de segurança não parecia entusiasmado
com a aquisição do novo pupilo de Viktor Orlov. No decorrer da noite, manteve a expressão neutra de um jogador experiente perdendo dinheiro na roleta. Seu olhar,
sombrio e focado, nunca se afastou por muito tempo do rosto de Mikhail. Parecia estar calculando suas perdas e decidindo se tinha estômago para mais uma rodada.
Mikhail não deu nenhum sinal de desconforto diante da presença soturna de Zhirov. Todos os que escutaram sua performance naquela noite a descreveriam como uma das
melhores que já haviam testemunhado. Ele era o Nicholas Avedon por quem todos tinham se apaixonado. O Nicholas espirituoso. O Nicholas irritável. O Nicholas mais
esperto que os demais no salão - com exceção de Lazarev, que talvez fosse mais inteligente que qualquer um no mundo. Conforme a noite avançava, ele foi falando menos
em inglês e mais em russo, até que parou completamente de falar inglês. Agora era um deles. Era Nicolai Avdonin. Um homem da Volgatek. Um homem do futuro da Rússia.
Um homem do passado da Rússia.
A transformação foi concluída pouco depois das dez horas, quando ele fez uma imitação perfeita de Orlov, incluindo o tique no olho esquerdo, que foi aclamada por
todos. Apenas Zhirov pareceu não ver graça. Ele também não se juntou à ovação após a bênção de Lazarev. Depois dos comentários do CEO da Volgatek, os festeiros seguiram
para a rua, onde uma fila de limusines da empresa aguardava na calçada. Lazarev pediu que Mikhail fizesse uma parada no escritório antes de deixar a cidade na manhã
seguinte, para que pudessem resolver algumas pendências no acordo de contratação. Em seguida, conduziu-o até a porta aberta de um Mercedes.
- Se não se incomodar - disse, com seu sorriso calculado de matemático vou deixar Pavel levar você de volta ao hotel. Ele gostaria de fazer algumas perguntas no
caminho.
Mikhail se viu respondendo "Sem problemas, Gennady” e, sem um instante de hesitação, entrou no carro. Zhirov, o único perdedor daquela noite, estava sentado à sua
frente, encarando a janela com uma aparência inconsolável. Ele não disse nada quando o carro começou a andar. Mikhail começou a tamborilar no apoio de braço, mas
logo se forçou a parar.
- Gennady disse que você tem algumas perguntas para mim.
- Na verdade - respondeu Zhirov em voz baixa -, tenho só uma.
- Qual?
Zhirov encarou Mikhail pela primeira vez.
- Quem é você, porra?
- Parece que Pavel acabou de mudar a posição do gol - disse Navot.
Shamron franziu a testa. Ele considerava o uso de metáforas esportivas inadequado para um negócio tão vital quanto a espionagem. Ergueu os olhos para um dos monitores
e viu luzes se movendo rapidamente pelo mapa do centro de Moscou. A luz que indicava a posição de Mikhail piscava em vermelho. Quatro luzes azuis a acompanhavam,
duas na frente e duas atrás.
- Parece que o encurralamos - comentou Shamron.
- Encurralado, muito bem. A questão é se Pavel tem reforços próprios ou se está num voo solo.
- Não sei se isso faz muita diferença a esta altura.
- Alguma sugestão?
- Chute para o gol - disse Shamron, acendendo outro cigarro. - Rápido.
Eles passaram em alta velocidade pela rua Tverskaya e continuaram pelo anel rodoviário.
- Meu hotel fica naquela direção - avisou Mikhail, apontando para trás com o polegar.
- Você parece conhecer bem Moscou - replicou Zhirov. Estava claro que não se tratava de um elogio.
- É um hábito meu.
- Como assim?
- Aprender a me virar em cidades estrangeiras. Odeio ter que pedir instruções. Não gosto de agir como um turista.
- Você gosta de ficar incógnito?
- Escute, Pavel, eu não estou gostando do rumo...
- Ou talvez você já tenha visitado Moscou antes - sugeriu Zhirov.
- Nunca.
- Recentemente, não?
- Não.
- Nem na infância?
- “Nunca” significa “nunca”, Pavel. Agora, se não se importa, gostaria de voltar para o hotel.
Zhirov estava olhando pela janela de novo. Ou será que perscrutava o retrovisor? Mikhail não podia ter certeza.
- Você ainda não respondeu a minha pergunta - disse Zhirov.
- Sua pergunta não é digna de resposta.
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas Avedon - falou Mikhail, calmo. - Sou funcionário da Viktor Orlov Investimentos, em Londres. E, graças a essa sua pequena exibição, vou continuar
sendo.
Zhirov não ficou convencido:
- Quem é você?
- Eu sou Nicholas. Cresci na Inglaterra. Estudei em Cambridge e Harvard. Fiquei em Aberdeen por um tempo, já na indústria do petróleo. E depois fui trabalhar com
Viktor.
- Por quê?
- Por que eu cresci na Inglaterra? Ou por que fui para Harvard?
- Por que você foi trabalhar para um inimigo conhecido do Kremlin como Viktor Orlov?
- Porque ele estava em busca de alguém que pudesse assumir seu portfólio de petróleo. E, neste momento, estou arrependido de tê-lo traído.
- Você sabia das políticas dele quando aceitou o trabalho?
- Eu não me importo com as políticas dele. Para falar a verdade, não me importo com as políticas de ninguém.
- Você é um livre-pensador?
- Não, Pavel. Sou um homem de negócios.
- Você é um espião.
- Um espião? Você parou de tomar seus remédios, Pavel?
- Para quem você está trabalhando?
- Leve-me de volta para o hotel.
- Os ingleses?
- Meu hotel, Pavel.
- Os americanos?
- Foram vocês que me abordaram, lembra, Pavel? Em Copenhague, no fórum de petróleo. Nós nos encontramos numa casa no meio do nada. Tenho certeza de que você estava
lá.
- Para quem você está trabalhando? - insistiu Zhirov, como um professor lidando com um pupilo abobalhado.
- Pare o carro. Deixe-me sair.
- Quem?
- Pare a porra do carro.
A limusine parou, mas não por causa da ordem. Eles tinham chegado à rua Petrovka e a um cruzamento grande, com vias que levavam para várias direções diferentes.
O semáforo estava vermelho. Bem à frente, havia um Land Rover com dois homens. Mikhail olhou por cima do ombro e viu outro atrás. Em seguida, sentiu o celular vibrando
três vezes em rápida sucessão.
- O que foi isso? - perguntou Zhirov.
- É só o meu celular.
- Desligue-o e remova a bateria.
- Todo cuidado é pouco, não é, Pavel?
- Desligue-o!
Mikhail enfiou a mão no sobretudo, sacou a Makarov e enfiou o cano da pistola com força nas costelas de Zhirov. Os olhos do russo se arregalaram, mas ele não disse
nada. Encarou Mikhail por alguns segundos e, então, fitou Yaakov, que saía do Land Rover na frente deles. Keller já tinha deixado o outro carro e se aproximava do
Mercedes por trás.
- Fale ao motorista para colocar o câmbio na posição neutra - mandou Mikhail, em voz baixa. - Caso contrário, vou meter uma bala no seu coração. Dê a ordem, Pavel,
ou você morre agora mesmo.
Como Zhirov não respondeu, Mikhail engatilhou a arma. Keller estava parado ao lado da janela do chefe de segurança.
- Fale para ele, Pavel.
A luz do semáforo voltou a ficar verde. Um carro buzinou. Depois outro.
- Dê a ordem! - gritou Mikhail em russo.
Zhirov olhou para motorista pelo retrovisor e meneou a cabeça. O chofer obedeceu e pôs as mãos no volante.
- Fale para ele sair do carro e seguir as instruções.
Outra olhada para o retrovisor, outro aceno de cabeça. O motorista abriu a porta e saiu devagar. Yaakov estava esperando para cuidar dele. Depois de murmurar algumas
palavras no ouvido do motorista, levou-o até o seu Land Rover e o empurrou para o banco traseiro, sentando ao lado. Àquela altura, Keller já tinha assumido o volante
do Mercedes. Quando o Land Rover da frente partiu, ele engatou a marcha e o seguiu. Mikhail ainda pressionava a Makarov contra as costelas de Zhirov.
- Quem é você? - perguntou Pavel.
- Eu sou Nicholas Avedon.
- Quem é você?
- Eu sou o seu pior pesadelo e, se não calar a boca, vou matar você.
No Centro de Operações, as luzes da equipe se moviam para cima pelo mapa de Moscou - todas menos uma, que se mantinha na Teatralny Prospekt, descendo a ladeira,
vindo da praça Lubyanka. Não houve nenhuma celebração, nenhuma congratulação por um trabalho bem-feito. O ambiente ainda não permitia; Moscou tinha formas de revidar.
- Trinta segundos do começo ao fim - comentou Navot, os olhos presos na tela. - Nada mal.
- Trinta e três - corrigiu Shamron. - Mas quem está contando?
- Você estava.
Shamron deu um sorriso débil; ele estava contando. Na verdade, tinha passado a vida inteira contando: o número de membros da família perdidos para os fogos do Holocausto;
o número de compatriotas perdidos para as balas e as bombas; o número de vezes que tinha driblado a morte. Então, ele perguntou a Navot:
- Qual é a distância até o esconderijo?
- Duzentos e trinta e cinco quilômetros a partir dos limites da cidade.
- Qual é a previsão do tempo?
- Horrorosa - respondeu Navot. - Mas eles conseguem se virar.
Ele encarou as luzes se movendo através de Moscou.
- Trinta segundos - repetiu. - Nada mal.
- Trinta e três - voltou a corrigir Shamron. - E vamos torcer para que ninguém mais estivesse olhando.
Embora Shamron não soubesse, era exatamente isso que estava pensando o homem parado à janela do quadragésimo quarto andar do Hotel Metropol. Ele observava a esquina
da Teatralny Prospekt e o caminho até a fortaleza amarela, que se erguia na praça Lubyanka. Imaginou se conseguiria detectar alguma espécie de reação - luzes se
acendendo nos andares superiores, carros saindo da garagem -, mas decidiu que era improvável. Lubyanka sempre escondera bem suas emoções, assim como a Rússia sempre
escondera seus mortos com eficiência.
O homem se afastou da janela, desligou o notebook e o colocou no compartimento lateral da bolsa de viagem. Desceu de elevador até o saguão, acompanhado por duas
prostitutas de 17 anos com aparência de 45. Fora do hotel, um utilitário da Volvo aguardava, vigiado por um manobrista de aparência miserável, que recebeu uma generosa
gorjeta. Ele sentou ao volante e dirigiu para longe. Vinte minutos depois, tendo contornado o Kremlin, uniu-se ao rio de aço e luzes que saía de Moscou rumo ao norte.
No Centro de Operações, no entanto, ele era apenas uma luz vermelha, um anjo vingador sozinho na cidade dos hereges.
51
TVER OBLAST, RÚSSIA
Outrora, aquela fora a dacha de um homem poderoso - um membro do Comitê Central, talvez até mesmo do Politburo. Ninguém sabia dizer com certeza, porque, nos dias
caóticos que se seguiram ao colapso da União Soviética, tudo havia sido perdido. Fábricas pertencentes ao Estado permaneceram fechadas, pois ninguém conseguia encontrar
as chaves; computadores do governo entraram no modo de repouso, porque ninguém conseguia se lembrar dos códigos. A Rússia entrara aos tropeções num admirável novo
milênio sem qualquer mapa ou lembrança. Alguns falavam que ela ainda não tinha memória, embora agora a amnésia fosse proposital.
Por muitos anos, a dacha esquecida ficou vazia e abandonada, até que um construtor moscovita com uma fortuna recém-obtida, chamado Bloch, adquiriu-a por uma ninharia
e realizou uma reconstrução completa. Por fim, assim como muitos novos-ricos da Rússia, entrou em conflito com a nova equipe do Kremlin e decidiu deixar o país enquanto
ainda podia. Estabeleceu-se em Israel, em parte porque se achava um pouco judeu, mas principalmente porque nenhum outro país o acolheria. Com o passar do tempo,
vendeu os bens russos, mas não abriu mão da dacha na Tver Oblast. Resolveu dá-la a Ari Shamron, dizendo-lhe para fazer bom proveito.
A dacha ficava ao lado de um lago sem nome, e a rua que conduzia até ela não aparecia em nenhum mapa. Não era bem uma rua; tratava-se mais de um sulco que fora criado
na floresta de bétulas muito antes de qualquer pessoa ouvir falar de um lugar chamado Rússia. O portão original da dacha ainda existia. Por medo, Bloch - filho da
era stalinista - não removera a velha placa soviética de “Entrada Proibida”, que agora reluziu brevemente sob os faróis de Gabriel enquanto ele subia aos solavancos
pela pista coberta de neve. A dacha logo surgiu à sua frente, uma construção pesada de madeira com o telhado pontudo e varandas espaçosas ao redor. Havia diversos
veículos estacionados em volta da casa, inclusive um Mercedes Classe E de propriedade da Volgatek. Quando saiu do utilitário, Gabriel viu a luz de um cigarro na
escuridão.
- Bem-vindo a Shangri-Lá - disse Keller, que usava uma jaqueta grossa e segurava uma Makarov.
- Como está o perímetro?
- Um frio dos infernos, mas seguro.
- Quanto tempo você consegue ficar aqui fora?
Keller sorriu.
- Eu sou do Regimento, querido.
Gabriel deixou-o para trás e entrou na dacha. O restante da equipe se espalhava pelos móveis rústicos da sala ampla. Mikhail ainda estava vestido para um jantar
no Café Pushkin. Ele tinha a mão direita enfiada numa tigela de água gelada.
- O que aconteceu? - perguntou Gabriel.
- Eu bati a mão.
- No quê?
- Num rosto.
Gabriel pediu para ver a mão. Estava muito inchada, com os nós de três dedos esfolados.
- Quantas vezes você bateu a mão?
- Uma ou duas. Ou talvez tenham sido onze ou doze.
- Como está o rosto?
- Veja você mesmo.
- Onde ele está?
Mikhail apontou para o chão.
Em meio aos muitos recursos de luxo da dacha, havia um abrigo nuclear. O espaço já fora ocupado por um estoque de um ano de comida, água e suprimentos. Agora continha
dois homens. Ambos estavam cobertos de fita adesiva: mãos, pés, joelhos, bocas e olhos. Ainda assim, dava para ver que o rosto do mais velho sofrerá danos significativos,
devido a repetidas colisões contra a perigosa direita de Mikhail. Ele estava apoiado numa parede, as pernas estendidas no chão. Ao escutar a porta sendo aberta,
sua cabeça começou a virar de um lado para o outro, como uma antena de radar em busca de uma aeronave invasora. Gabriel se agachou na frente dele e arrancou a fita
adesiva dos seus olhos, levando junto parte de uma sobrancelha; agora, o prisioneiro parecia estar com uma expressão de surpresa permanente. Havia um corte profundo
na bochecha e sangue ressecado em volta do nariz entortado. Gabriel sorriu e tirou a fita adesiva da boca.
- Olá, Pavel. Ou devo chamá-lo de Paul?
Zhirov ficou em silêncio. Gabriel avaliou o nariz quebrado.
- Isso deve doer. Mas esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
- Estou ansioso para retribuir o favor, Allon.
- Então você me reconhece, afinal.
- É claro - disse Zhirov, um pouco confiante demais. - Nós o estamos observando desde que você colocou os pés na Rússia.
- Nós quem? A Volgatek? O SVR? A FSB? Ou deixamos as amenidades de lado e chamamos logo de KGB, que é exatamente do que se trata a sua organização?
- Você está morto, Allon... Você e toda a sua equipe. Nunca vai sair vivo da Rússia.
O sorriso de Gabriel se manteve firme.
- Eu sempre achei melhor não fazer ameaças vazias, Pavel.
- Concordo plenamente.
- Então talvez você deva parar de fingir que sabia que eu estava em Moscou, ou que sabia que Nicholas Avedon era minha criação. Você nunca teria agido contra ele
esta noite sem o apoio da FSB se soubesse que ele era meu agente.
- Quem disse que eu não tinha apoio?
- Eu.
- Você está enganado, Allon. Mas você tem um longo histórico de erros. A FSB está apenas esperando para garantir que todos os membros da sua equipe estejam identificados.
Você tem algumas horas, no máximo. E aí você é que estará sentado numa cela com o nariz quebrado.
- Então suponho que seja bom começarmos.
- Começarmos o quê?
- Sua confissão. Você vai dizer ao mundo como sequestrou uma garota inglesa chamada Madeline Hart para que a Volgatek Petróleo e Gás pudesse ganhar acesso ao mar
do Norte.
Zhirov simulou surpresa.
- A garota inglesa? É disso que se trata?
Gabriel balançou a cabeça lentamente, como se desapontado com a resposta de Zhirov.
- Vamos, Pavel. Sem dúvida você pode fazer melhor do que isso. Você a sequestrou na estrada costeira perto de Calvi poucas horas depois de almoçar com ela no Les
Palmiers. Um delinquente de Marselha chamado Marcei Lacroix o levou até o continente, onde você a entregou para outro vagabundo marselhês, René Brossard, para que
a mantivesse presa. Então, após coletar 10 milhões de euros do primeiro-ministro britânico como resgate, deixou-a na traseira de um carro na praia em Audresselles
e acendeu um fósforo.
- Nada mal, Allon.
- Na verdade, não foi muito difícil. Você deixou um monte de pistas para seguir. Mas isso foi proposital: o sequestro e o assassinato de Madeline deveriam parecer
trabalho de criminosos franceses. Mas houve um engano, Pavel. Você deveria ter me dado ouvidos quando avisei para não machucá-la. Eu disse exatamente o que aconteceria
se você o fizesse. Eu disse que o encontraria. E também que o mataria.
- Então por que não matou? Por que arriscar o seu pessoal me sequestrando e me trazendo para cá?
- Nós não o sequestramos, Pavel. Nós o capturamos. E o trouxemos aqui porque, apesar das circunstâncias atuais, esse é o seu dia de sorte. Eu vou lhe dar algo que
não acontece com muita frequência no nosso negócio: uma segunda chance.
- E o que eu preciso fazer?
- Responder algumas perguntas, amarrar algumas pontas soltas.
- Só isso?
Gabriel assentiu.
- E depois?
- Depois você será liberado.
- Para fazer o quê? - perguntou Zhirov, sério.
- Voltar para a Volgatek. Para o SVR. Para baixo da pedra da qual você rastejou.
Zhirov conseguiu abrir um sorriso condescendente.
- E o que você acha que vai acontecer comigo quando eu voltar para Yasenevo depois de responder suas perguntas e amarrar as pontas soltas?
- Suponho que você vá receber a vysshaya mera. A maior punição.
Zhirov aquiesceu, admirado.
- Você sabe muito sobre o meu serviço.
- Não por escolha. Para ser sincero, Pavel, não me importo com o que o seu serviço vai fazer com você.
- Você deveria se importar - disse Zhirov, mantendo o sorriso condescendente. - Veja bem, Allon, tudo o que você está me oferecendo é uma escolha entre a morte e
a morte.
- Eu estou lhe oferecendo a oportunidade de presenciar mais uma alvorada russa, Pavel. E não se preocupe: vou garantir que você tenha bastante tempo num lugar tranquilo
para poder pensar numa boa história para seus mestres no SVR. Algo me diz que, no fim, você vai acabar bem.
- E se eu me recusar?
- Nesse caso, vou meter uma bala na sua nuca por ter matado Madeline.
- Preciso de tempo para pensar.
Gabriel recolocou a fita adesiva sobre os olhos e a boca de Zhirov.
- Você tem cinco minutos.
Na verdade, acabaram se passando dez minutos antes de Mikhail, Yaakov e Oded carregarem Zhirov para a sala de jantar, onde o prenderam com firmeza numa cadeira pesada.
Gabriel estava sentado à sua frente. Atrás dele, postava-se Yossi, com os olhos fixos na pequena tela de uma filmadora montada num tripé. Depois de fazer um pequeno
ajuste ao ângulo da filmagem, Yossi meneou a cabeça para Mikhail, que arrancou a fita dos olhos e da boca de Zhirov. O russo piscou rapidamente várias vezes. Em
seguida, seus olhos varreram o cômodo devagar, gravando cada rosto, cada detalhe, antes de enfim recair sobre a fotografia que Gabriel tinha nas mãos. Nela estava
Zhirov, com uma aparência muito diferente da atual, almoçando com Madeline Hart no Les Palmiers.
- Como você a conheceu? - perguntou Gabriel.
- Conheci quem?
Gabriel colocou a foto em cima da mesa e pediu para Yossi desligar a filmadora. Eles cortaram as amarras da cadeira, prenderam os pulsos de Zhirov com uma corda
e o carregaram para fora, na escuridão, até a beira do lago. No fim de uma doca com cerca de 15 metros de comprimento, havia um trecho de água que ainda não tinha
congelado. Zhirov deu um mergulho desajeitado, como faz um homem bem amarrado sendo jogado por três sujeitos furiosos.
- Você sabe qual é o tempo de sobrevivência na água nessa temperatura? - perguntou Keller.
- Ele vai começar a perder sensibilidade e destreza em dois minutos. E provavelmente estará inconsciente em quinze.
- Isso se ele não se afogar antes.
- Sempre há essa chance - admitiu Gabriel.
Keller observou em silêncio o homem se debater.
- Como você vai saber que já passou tempo suficiente?
- Quando ele começar a afundar.
- Lembre-me de nunca entrar na sua lista negra.
- Esse tipo de coisa sempre acontece num lugar como a Rússia.
52
TVER OBLAST, RÚSSIA
Bastaram dois minutos no lago. Depois disso, não houve mais nenhuma afirmação de inocência, nenhuma ameaça de que, em breve, a FSB chegaria. Resignado ao seu destino,
Zhirov se tornou um prisioneiro-modelo. Apresentou apenas um pedido: que fizessem algo a respeito de sua aparência. Como a maior parte dos espiões, tinha passado
a vida evitando câmeras e não queria fazer a estreia parecendo o perdedor de uma luta de boxe.
Na comunidade de inteligência, há uma verdade dada como certa: ao contrário da crença popular, a maioria dos espiões gosta de falar, especialmente em meio a circunstâncias
que tomam suas carreiras irrecuperáveis. Nessa situação, fazem os segredos jorrarem, mesmo se for apenas para provar a si mesmos que eles foram mais do que uma simples
engrenagem na máquina secreta, que foram importantes, mesmo que não tenham sido.
Portanto, Gabriel não se surpreendeu quando Zhirov, depois de se recuperar do mergulho no lago, assumiu subitamente uma atitude verborrágica. Vestido com roupas
secas, aquecido pelo chá doce e por um gole de uísque, começou o relato não com Madeline Hart, mas consigo mesmo. Ele tinha sido um filho da nomenklatura, a elite
comunista da União Soviética. Seu pai fora um oficial de alto escalão no Ministério Soviético das Relações Exteriores sob o comando de Andrei Gromyko; isso significava
que Zhirov tinha estudado em escolas especiais reservadas para as crianças da elite e que podia fazer compras em lojas especiais do Partido que vendiam bens de luxo,
com os quais a maioria dos cidadãos soviéticos conseguia apenas sonhar. E também havia o luxo quase inaudito das viagens ao exterior. Zhirov passou boa parte da
infância fora da União Soviética, principalmente nos estados vassalos do Leste Europeu que compunham a área de especialização do pai - embora, certa vez, ele tenha
ficado seis meses em Nova York quando o pai trabalhou nas Nações Unidas. Zhirov odiava a cidade americana, pois, como criança leal ao Partido, fora criado e educado
para detestá-la.
- Nós não víamos a riqueza e a ganância dos Estados Unidos como algo a ser imitado. Para nós, eram elementos que podíamos usar contra os americanos para destruí-los.
Apesar de ter sido um estudante indiferente e, com frequência, inadequado, Zhirov foi aceito pelo prestigiado Instituto de Línguas Estrangeiras de Moscou. Ao se
graduar, todos imaginaram que ele fosse trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores. Em vez disso, um recrutador do Comitê de Segurança do Estado, mais conhecido
como KGB, apareceu no apartamento de Zhirov em Moscou. O homem disse que o serviço secreto estava de olho em Pavel desde a sua infância e acreditava que ele reunia
todos os atributos de um espião perfeito.
- Fiquei incrivelmente lisonjeado - admitiu Zhirov. - Era 1975. Ford e Brejnev estavam se fazendo de amigos em Helsinque, mas, por trás da fachada amena, a disputa
entre o Leste e o Oeste, o capitalismo e o socialismo, ainda grassava. E eu iria fazer parte dela.
Mas antes, acrescentou Zhirov, teria que frequentar outra instituição: o Instituto do Estandarte Vermelho, o centro de treinamento da KGB em Moscou. Lá, aprendeu
os aspectos básicos do trabalho na KGB, em especial sobre recrutamento de espiões, um processo dolorosamente lento e controlado com firmeza, que chegava a durar
um ano ou mais. Quando o treinamento terminou, foi designado para o Quinto Departamento do Primeiro Diretório Geral e transferido para Bruxelas. Em seguida, passou
por vários outros postos na Europa Ocidental, até que os seus superiores no Centro Moscovita perceberam que tinha talento para o lado mais obscuro da profissão.
Zhirov foi realocado no Departamento S, a unidade que supervisionava agentes soviéticos residindo “ilegalmente” no exterior. Depois, trabalhou para o Departamento
V, a divisão da KGB que lidava com o mokroye delo.
- “Serviço úmido”... Assassinatos, certo?
Zhirov assentiu.
- Eu não era um assassino como você, Allon, mas um organizador, estrategista.
- Você conduziu alguma operação de falsa bandeira enquanto estava no De-partamento V?
- Nós as conduzíamos o tempo todo - admitiu Zhirov. - Na verdade, falsas bandeiras eram o procedimento operacional de praxe. Quase nunca agíamos contra um alvo a
menos que pudéssemos criar uma história plausível mostrando que outra pessoa estava por trás da ação.
- Quanto tempo você ficou no Departamento V?
- Até o fim.
Com isso, ele queria dizer o fim da União Soviética, que desmoronou em dezembro de 1991. Quase da noite para o dia, o antigo superpoder foi transformado em quinze
países, com a Rússia, o coração da velha organização, em destaque. A KGB se dividiu em dois serviços diferentes. Em pouco tempo, o Centro Moscovita, outrora uma
catedral da inteligência, enfrentou tempos difíceis. Surgiram rachaduras no exterior do prédio e o saguão se encheu de lixo. Oficiais com a barba por fazer vestindo
trajes amarrotados vagavam pelos corredores num torpor alcoólico.
- Não havia sequer papel higiênico no banheiro masculino - disse Zhirov, a voz sendo tomada pelo desgosto. - O lugar todo era um chiqueiro. E não havia ninguém no
comando.
Ele contou que isso mudara quando Boris Yeltsin enfim deixou o palco e os siloviki, homens dos serviços de segurança, assumiram o controle do Kremlin. Quase imediatamente,
ordenaram que o SVR aumentasse o volume de operações contra os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aliados nominais da nova Federação Russa. Zhirov foi designado como
novo chefe rezident do SVR em Washington, um dos postos mais importantes do serviço. Mas, no dia em que deveria partir da Rússia, recebeu uma convocação do Kremlin.
Pelo visto, o presidente, um velho colega da KGB, queria conversar.
- Imaginei que ele quisesse me dar algumas instruções de despedida sobre como lidar com o trabalho em Washington, mas a verdade é que ele tinha outros planos para
mim.
- A Volgatek - concluiu Gabriel.
Zhirov assentiu.
- A Volgatek.
Para compreender o que aconteceu em seguida, disse Zhirov, antes seria necessário entender a importância do petróleo para a Rússia. Ele lembrou à sua plateia que,
por décadas, a União Soviética havia sido a terceira maior produtora mundial dessa commodity, perdendo apenas para os emirados do Golfo Pérsico, dominados pelos
americanos, e para a Arábia Saudita. As crises de petróleo nos anos 1970 e 1980 turbinaram a vacilante economia soviética. Foram como uma máscara de oxigênio, que
prolongou a vida do paciente até muito tempo depois de o cérebro parar de funcionar. O novo presidente russo compreendeu o que Yeltsin não tinha entendido: o petróleo
poderia transformar a Rússia numa superpotência novamente. Então, ele disse aos oligarcas como Viktor Orlov que a porta da rua era a serventia da casa, e colocou
todo o setor russo de energia sob o controle efetivo do Kremlin. Em seguida, abriu uma empresa petrolífera própria.
- A KGB Óleo e Gás - disse Gabriel.
- Mais ou menos - concordou Zhirov, assentindo devagar. - Mas a nossa empresa seria diferente. Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de
downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.
- E para onde vai o resto?
- Use a sua imaginação.
- Para o bolso do presidente russo?
- Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB. Nosso presidente vale cerca de 40 bilhões de dólares, e boa parte da
fortuna vem da Volgatek.
- De quem foi a ideia de perfurar no mar do Norte?
- Foi dele - respondeu Zhirov. - É uma empreitada que ele leva muito a sério. Disse que a Volgatek deveria enfiar um canudo nas águas territoriais britânicas e sugar
até que não reste nada. Ah, só para constar: eu fui contra a ideia desde o começo.
- Por quê?
- Parte do meu trabalho como chefe de segurança e operações consiste em inspecionar o campo antes de ser tomada qualquer decisão sobre um ativo ou um contrato. A
minha análise da situação na Inglaterra não foi promissora. Previ que as tensões políticas entre Londres e Moscou levariam a uma rejeição do nosso pedido para perfurar
na região das Ilhas Ocidentais. E, infelizmente, eu estava certo.
- Suponho que o presidente tenha ficado desapontado.
- Eu nunca o vi tão furioso. Principalmente porque suspeitou que Viktor Orlov tivesse desempenhado algum papel nessa questão. Ele me chamou para o seu escritório
no Kremlin e disse que eu deveria usar todos os meios necessários para conseguir aquele contrato.
- Então você mirou em Jeremy Fallon.
Zhirov hesitou antes de responder:
- É óbvio que você tem boas fontes em Londres.
- Cinco milhões de euros numa conta bancária suíça. Foi isso que você deu para Jeremy Fallon em troca do contrato.
- A negociação foi dura. É claro que ficamos extremamente desapontados quando ele não cumpriu a promessa. Fallon alegou que não podia fazer nada.
Lancaster e o secretário de Energia eram totalmente contra o acordo. Nós precisávamos agir para mudar a dinâmica... moldar o campo de batalha, por assim dizer.
- Então você sequestrou a amante do primeiro-ministro.
Zhirov não respondeu.
- Confesse, ou vamos dar outro mergulho ao luar.
- Sim - disse Zhirov, olhando direto para a câmera -, eu sequestrei a amante do primeiro-ministro.
- Como você sabia que Lancaster estava tendo um caso com ela?
- A rezidentura em Londres já ouvia rumores há algum tempo sobre uma jovem do quartel-general do Partido que visitava a Downing Street tarde da noite. Pedi que investigassem
a questão mais a fundo. Não levaram muito tempo para descobrir quem era.
- Fallon sabia que você planejava sequestrá-la?
Zhirov balançou a cabeça.
- Só depois de obter a confissão de Madeline é que revelei a Fallon nossa participação. Disse a ele para aproveitar a oportunidade e fechar o negócio. Caso contrário,
eu o entregaria também.
- Vazando o fato de que ele aceitara um suborno de cinco milhões de euros de uma petrolífera do Kremlin.
Zhirov assentiu.
- Quando você entrou em contato com ele?
- Eu viajei para Londres enquanto você e o seu amigo da Córsega reviravam a França atrás da garota. Lancaster estava tão incapacitado pelo estresse que aceitava
qualquer coisa. Fallon forçou o acordo, apesar das objeções do secretário de Energia. Em seguida, dei início ao lance final.
- O pedido de resgate - completou Gabriel. - Dez milhões de euros, ou a garota morreria. E Fallon soube o tempo todo que era só uma farsa para encobrir o papel da
Volgatek no desaparecimento de Madeline.
- E o papel dele também.
- O quanto Lancaster sabia?
- Nada - garantiu Zhirov. - Ele ainda acha que pagou 10 milhões de euros para salvar a amante e a carreira política.
- Por que você insistiu para que eu entregasse o dinheiro?
- Nós queríamos nos divertir um pouco às suas custas.
- Matando Madeline na minha frente?
Zhirov ficou em silêncio.
- Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.
- Eu matei Madeline Hart - recitou ele.
- Como?
- Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.
- Por quê? Por que você a matou?
- Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra de forma alguma.
- Por que você não me matou também?
- Acredite em mim, Allon, nada teria nos deixado mais felizes. Mas achamos que você fosse mais útil vivo do que morto. Afinal, quem melhor do que o grande Gabriel
Allon para confirmar que Madeline tinha sido morta em um esquema banal de sequestro por resgate?
- Onde estão os 10 milhões de euros?
- Dei de presente para o presidente russo.
- Gostaria de tê-los de volta.
- Boa sorte.
Gabriel colocou a fotografia do almoço no Les Palmiers na mesa de novo.
- O que estava acontecendo aqui?
- Suponho que você possa considerar isso o estágio final de um recrutamento romântico.
Gabriel franziu o cenho, cético.
- Por que uma jovem linda como Madeline se interessaria por um babaca como você?
- Eu sou bom no que faço, Allon. Assim como você. Além disso, ela era uma garota solitária. Uma garota fácil.
- Tome cuidado, Pavel. - Gabriel analisou a foto com certo exagero. - Engraçado, mas vocês dois não pareciam muito à vontade juntos.
- Foi a nossa terceira reunião.
- Reunião?
- Encontro - corrigiu-se Zhirov.
- Não me parece que vocês estivessem se divertindo - insistiu Gabriel, ainda fitando a foto. - Na verdade, se fosse para eu adivinhar, diria que vocês estavam brigando.
- Não estávamos - retrucou Zhirov rapidamente.
- Tem certeza?
- Tenho.
Gabriel colocou a foto de lado.
- Mais alguma pergunta? - quis saber Zhirov.
- Só uma: como você soube que Madeline estava tendo um caso com Jonathan Lancaster?
- Eu já respondi a essa pergunta.
- Eu sei, mas, desta vez, quero que me diga a verdade.
Ele deu a mesma explicação - sobre os rumores chegando aos ouvidos do rezident do SVR em Londres -, mas Gabriel não estava engolindo. Deu mais uma chance para Zhirov
e, como ele continuava repetindo a mesma mentira, levou o russo até o final da doca e pressionou o cano da Makarov contra a sua nuca. Lá, na beira do lago congelado
sem nome, a verdade saiu aos borbotões. Parte de Gabriel tinha suspeitado desde o começo. Mesmo assim, ele mal pôde acreditar na história. Mas só podia ser verdade,
pensou. Era a única explicação possível para tudo o que havia acontecido.
Quando eles voltaram para a dacha, Zhirov recitou a história novamente, dessa vez para a câmera, antes de ser devolvido, amarrado e amordaçado, ao abrigo nuclear.
Agora, a operação estava quase concluída. Eles tinham obtido provas de que a Volgatek subornara e chantageara para abrir caminho até o lucrativo mercado de petróleo
do mar do Norte. Tudo o que restava era se dirigirem ao aeroporto e embarcarem em voos separados para casa. Ou, sugeriu Gabriel, poderiam adiar a partida para tratar
de uma última questão. Não era uma decisão que ele podia tomar sozinho, portanto, atipicamente, uma votação foi aberta. Não houve nenhuma oposição.
53
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Gabriel decidiu que seria mais seguro ir de trem. Havia uma estação na cidade de Okulovka e ele poderia pegar o primeiro transporte local da manhã e chegar a São
Petersburgo no começo da tarde. Ficou secretamente feliz quando Lavon insistiu em acompanhá-lo. Gabriel precisava dos olhos dele. E também precisava de seu russo.
Eram menos de 65 quilômetros até Okulovka, mas as estradas terríveis e o tempo ruim alongaram a viagem para quase duas horas. Eles deixaram o Volvo num pequeno estacionamento
tomado pelo vento e foram às pressas para a estação, uma estrutura de tijolos vermelhos recém-construída, estranhamente parecida com uma fábrica. Os passageiros
já estavam embarcando quando Lavon conseguiu comprar duas passagens de primeira classe de um dos bilheteiros protegidos atrás das cabines de vidro. Eles dividiram
um compartimento com duas garotas russas que conversavam sem parar e um homem de negócios magro vestido com elegância que não tirou os olhos do telefone sequer uma
vez. Lavon passou o tempo lendo os jornais matinais de Moscou, que não faziam nenhuma menção a um executivo do petróleo desaparecido. Gabriel ficou olhando através
da janela coberta de gelo, contemplando os campos intermináveis de neve, até que o oscilar do vagão começou a embalá-lo.
Ele acordou assustado quando o trem entrou chacoalhando na estação Moskovsky, em São Petersburgo. No andar de cima, o grande saguão abobadado estava tumultuado;
pelo visto, o trem-bala vespertino para Moscou tinha sido atrasado por uma ameaça chechena de bomba. Seguido por Lavon, Gabriel se embrenhou na massa de crianças
choronas e casais discutindo e saiu na Praça Vosstaniya. O Obelisco da Cidade-Herói se erguia no centro da rotatória engarrafada. Postes iluminavam toda a Nevsky
Prospekt. Eram apenas duas da tarde, mas qualquer luz do sol que tivesse surgido já desaparecera havia muito tempo.
Gabriel caminhou pela prospekt, seguido por um vigilante Lavon. Ele não estava mais na Rússia, pensou, mas num paraíso czarista, importado do Ocidente e construído
por camponeses aterrorizados. Florença o chamava das fachadas dos palácios barrocos, e, atravessando o rio Moyka, ele imaginou Veneza. Gabriel se perguntou quantos
cadáveres jaziam abaixo do gelo. Milhares, dezenas de milhares. Nenhuma outra cidade no mundo escondia os horrores do passado com mais beleza do que São Petersburgo.
A única visão desagradável da prospekt ficava perto do final: o velho prédio da Aeroflot, uma monstruosidade cinza inspirada no Palácio Ducal de Veneza, com uma
pitada da Florença dos Médicis para completar. Gabriel entrou na rua Bolshaya Morskaya e a seguiu através do Arco do Triunfo, chegando à Praça do Palácio. Ao chegarem
perto da Coluna de Alexandre, Lavon se aproximou para dizer que ele não estava sendo seguido. Gabriel consultou o relógio, que parecia congelado em seu pulso. Eram
duas horas e vinte. Acontece no mesmo horário todos os dias, dissera Zhirov. Eles sempre ficam meio loucos quando voltam para casa depois de muito tempo no frio.
Junto à Praça do Palácio, havia um pequeno parque, verde no verão e agora branco como um osso por causa da neve. Lavon aguardou ali num banco enquanto Gabriel caminhava
sozinho até o Cais do Palácio. O rio Neva estava congelado. Olhou para o relógio pela última vez. Em seguida, ficou parado na barreira, tão inerte quanto o poderoso
rio, e esperou por uma garota desconhecida.
Ele a viu cinco minutos depois, atravessando a Ponte do Palácio. Ela usava um casaco grosso e botas que quase alcançavam os joelhos. Um chapéu de lã cobria-lhe os
cabelos claros. Um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Mesmo assim, Gabriel soube instantaneamente que era ela. Os olhos a traíam. Os olhos e o contorno dos
malares. Era como se a moça com brincos de pérola de Vermeer tivesse sido libertada da tela e agora caminhasse ao longo da margem de um rio em São Petersburgo.
Ela passou como se Gabriel fosse invisível e seguiu para o Hermitage. Antes de segui-la, ele verificou se a mulher estava sendo vigiada e, quando entrou no museu,
a garota já tinha sumido. Isso não importava, pois Gabriel sabia para onde a desconhecida ia. Sempre o mesmo quadro, falara Zhirov. Ninguém consegue entender por
quê.
Ele comprou uma entrada e caminhou pelos corredores e galerias intermináveis até a Sala 67: a Sala de Monet. E lá estava ela, sentada a sós, admirando Lagoa em Montgeron.
Quando Gabriel se sentou ao seu lado, a mulher olhou de relance para ele antes de voltar a observar a pintura. O disfarce dele era melhor do que o dela. Gabriel
não significava nada para a mulher. Nunca deveria ter significado.
Após mais um minuto, ele ainda não tinha se mexido; ela se virou e o encarou pela segunda vez. Foi então que a mulher percebeu o exemplar de Uma janela para o amor
equilibrado sobre o seu joelho.
- Acredito que isso pertença a você - disse Gabriel, e colocou o livro com cuidado na mão trêmula da mulher.
54
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
No quarto andar da sede da FSB, há um conjunto de salas ocupadas pela menor e mais secreta unidade da organização. Conhecido como Departamento de Coordenação, o
grupo lida apenas com casos de extrema sensibilidade política, normalmente a pedido do próprio presidente russo. Naquele momento, o velho chefe da unidade, coronel
Leonid Milchenko, estava sentado em frente à sua grande mesa feita na Finlândia, com um telefone grudado no ouvido, os olhos fixos na Praça Lubyanka. Vadim Strelkin,
seu braço direito, estava parado ansioso na soleira da porta. Pela forma como Milchenko bateu o telefone, percebeu que teria uma longa noite.
- Quem era? - perguntou Strelkin.
Milchenko respondeu sem tirar os olhos da janela.
- Merda - praguejou Strelkin.
- Merda não, Vadim: petróleo.
- O que ele queria?
- Ele quer uma conversa particular.
- Onde?
- No escritório dele.
- Quando?
- Cinco minutos atrás.
- Do que você acha que se trata?
- Pode ser qualquer coisa - falou Milchenko. - Mas, se a Volgatek está envolvida, não pode ser nada bom.
- Vou pegar o carro.
- Boa ideia, Vadim.
Tirar o carro das entranhas de Lubyanka levou mais tempo do que a viagem curta até a sede da Volgatek na rua Tverskaya. Dmitry Bershov, o número dois da empresa,
esperava, ansioso, no saguão quando Milchenko e Strelkin entraram - outro mau sinal. Em silêncio, conduziu-os a um elevador executivo e apertou o botão do último
andar. Ao se abrirem as portas, eles deram diretamente no maior escritório que Milchenko já vira em Moscou. Só depois de alguns segundos é que ele avistou Gennady
Lazarev, sentado numa das pontas de um comprido sofá de couro. O coronel decidiu ficar de pé enquanto o CEO da Volgatek explicava que Pavel Zhirov, seu chefe de
segurança, não era visto desde as onze horas da noite passada. Milchenko conhecia o nome: havia sido seu contemporâneo na KGB. Ele deixou um caderno de couro na
mesa de centro de Lazarev e se sentou.
- O que estava acontecendo ontem à noite às onze horas?
- Nós estávamos dando uma festa no Café Pushkin para celebrar uma contratação importante na empresa. A propósito, o novo funcionário também está desaparecido. Assim
como o motorista.
- Você podia ter mencionado isso logo de cara.
- Estava chegando ao ponto.
- Qual é o nome do novo contratado?
Lazarev respondeu.
- Russo?
- Na verdade, não.
- O que isso significa?
- Que ele vem de família russa, mas carrega um passaporte britânico.
- Então ele é, na verdade, britânico.
- É.
- Mais alguma coisa que eu deva saber sobre ele?
- Atualmente, é funcionário de Viktor Orlov em Londres.
Milchenko trocou um olhar demorado com Strelkin antes de encarar o caderno, sem dizer nada. Ele ainda não tinha escrito nada no papel; provavelmente, uma atitude
sensata. Estavam desaparecidos um ex-agente da KGB e um associado do oponente mais ferrenho do Kremlin. Milchenko começava a achar que deveria ter ficado em casa
naquela manhã, fingindo estar doente.
- Suponho que eles tenham deixado o Café Pushkin juntos - disse por fim. Lazarev assentiu.
- Por quê?
- Pavel queria lhe fazer algumas perguntas.
- Por que eu não estou surpreso?
Lazarev ficou em silêncio.
- Que tipo de perguntas?
- Pavel tinha algumas suspeitas em relação a ele.
- Tais como...?
- Ele acreditava que o homem podia estar vinculado a um serviço estrangeiro de inteligência.
- Algum serviço específico?
- Por razões óbvias - disse Lazarev com cuidado suas suspeitas se centraram nos britânicos.
- Então ele planejava bater um pouco no cara.
- Ele só ia fazer algumas perguntas.
- E se não gostasse das respostas?
- Nesse caso, bateria um pouco.
- Que bom que esclarecemos isso.
O telefone perto de Lazarev emitiu um zumbido leve. Ele atendeu, escutou em silêncio e disse “Imediatamente” antes de desligar.
- O que foi? - perguntou Milchenko.
- O presidente gostaria de ter uma conversa.
- Você não deveria deixá-lo esperando.
- Na verdade, é você que ele quer ver.
55
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Naquele mesmo instante, o homem responsável pela convocação do coronel Milchenko ao Kremlin caminhava pela Admiralty Prospekt, em São Petersburgo. Ele não sentia
mais frio, apenas o ponto em seu braço onde a mão dela havia pousado brevemente antes de eles se separarem. Seu coração batia contra o peito. Sem dúvida ela estaria
sendo observada. E Gabriel estaria prestes a ser preso. Para apaziguar seus medos, mentiu para si mesmo. Ele não estava na Rússia, pensou, mas em Veneza e Roma e
Florença e Paris, tudo ao mesmo tempo. Estava seguro. Ela também.
A Catedral de Santo Isaac, a colossal igreja de mármore que os soviéticos transformaram num museu do ateísmo, surgiu à sua frente. Ele entrou no prédio e subiu a
escadaria estreita em caracol até a cúpula que cercava o domo dourado. Como esperava, a plataforma estava vazia. A cidade de conto de fadas fervilhava abaixo dos
seus pés, o trânsito se movendo lentamente pelas grandes prospekt.
Numa delas, uma mulher caminhava sozinha; um chapéu cobria-lhe os cabelos claros, um lenço ocultava a parte inferior do rosto. Alguns momentos depois, ele ouviu
os passos na escada. E, então, ela estava parada na sua frente. Não havia iluminação na cúpula. Mal dava para vê-la na escuridão.
- Como você me encontrou?
O som da voz dela era quase irreal. Era o sotaque britânico. Gabriel se deu conta de que era o único sotaque dela.
- Não importa como eu encontrei você.
- Como? - perguntou ela de novo, mas dessa vez Gabriel só ficou em silêncio. Ele deu um passo na direção dela para enxergar seu rosto mais claramente.
- Agora você se lembra de mim, Madeline? Fui eu que arrisquei tudo para tentar salvar a sua vida. Nunca me ocorreu que você estivesse envolvida desde o começo. Você
me enganou, Madeline. Você enganou todo mundo.
- Eu nunca estive envolvida, mas apenas obedecendo ordens.
- Eu sei - disse Gabriel depois de um instante. - Caso contrário, não estaria aqui.
- Quem é você?
- Na verdade, eu estava prestes a fazer a mesma pergunta.
- Meu nome é Madeline. Madeline Hart, de Basildon, Inglaterra. Eu segui todas as regras. Fui bem na escola e na universidade. Consegui um emprego na sede do Partido.
Meu futuro era promissor. Eu seria membro do Parlamento algum dia. Talvez até mesmo uma ministra. - Ela fez uma pausa. - Pelo menos era isso que diziam sobre mim.
- Qual é o seu nome real?
- Não sei o meu nome real. Eu mal falo russo. Eu não sou russa. Sou Madeline. Uma garota inglesa.
Ela tirou o exemplar de Uma janela para o amor do bolso do casaco e o ergueu.
- Onde você encontrou isto?
- No seu quarto.
- O que você estava fazendo lá?
- Tentando descobrir por que a sua mãe foi embora de Basildon sem dizer nada para ninguém.
- Ela não é a minha mãe.
- Agora eu sei disso. Na verdade, acho que eu soube quando vi uma fotografia com você e os seus pais. Eles parecem...
- Camponeses - completou ela, ressentida. - Eu os odiava.
- Onde a sua mãe e o seu irmão estão agora?
- Num velho centro de treinamento da KGB no meio do nada. Eu deveria ter ido para lá também, mas me recusei. Disse que queria viver em São Petersburgo, ou então
fugiria para o Ocidente.
- Você tem sorte de não estar morta.
- Eles me ameaçaram. - Ela o encarou por um instante. - Quanto você realmente sabe sobre mim?
- Sei que o seu pai foi um general importante no Primeiro Diretório Geral, talvez até mesmo o próprio chefão. Sua mãe era uma de suas datilografas. Ela teve uma
overdose com pílulas para dormir e vodca pouco depois de você nascer; pelo menos essa é a história. Então, você foi colocada num tipo de orfanato.
- Um orfanato da KGB. Fui criada por lobos, de verdade.
- A certa altura, eles pararam de falar russo com você no orfanato. Na verdade, não falavam mais nada na sua presença. Você cresce em completo silêncio até mais
ou menos os 3 anos. É aí que eles começam a conversar com você em inglês.
- Inglês da KGB - explicou ela. - Passei um tempo com o sotaque de um locutor da Rádio Central de Moscou.
- Quando você conheceu os seus novos pais?
- Eu tinha uns 5 anos. Nós vivemos juntos num campo da KGB por um ano para nos conhecermos. Em seguida, nos acomodamos na Polônia. Quando a grande migração polonesa
para Londres começou, nós fomos junto. Os meus pais da KGB já falavam um inglês perfeito. Eles criaram identidades e se engajaram em espionagem de baixo nível. Sua
principal função era cuidar de mim. Nós nunca conversávamos em russo dentro de casa. Só inglês. Depois de um tempo, até esqueci que era russa. Eu lia livros para
aprender a ser uma garota inglesa adequada: Austen, Dickens, Lawrence, Forster.
- Uma janela para o amor.
- Assim como a Lucy, eu só queria um quarto com uma bela vista...
- Por que a casa em Basildon?
- Era a década de 1990 - explicou ela. - A Rússia estava falida. O SVR estava em frangalhos. Não havia orçamento para sustentar uma família de ilegais em Londres,
então nós fomos para Basildon e recebíamos seguro-desemprego. O Estado britânico do bem-estar financiava uma espiã.
- O que aconteceu com o seu pai?
- Ele contraiu a doença da ilegalidade.
- Perdeu o controle?
Ela assentiu.
- Disse ao Centro Moscovita que queria sair dali. Caso contrário, iria até o MI5. O Centro o levou de volta para a Rússia. Só Deus sabe o que fizeram com ele.
- Vysshaya mera.
- O que isso significa?
- Não importa.
Agora nada além daquela garota importava, pensou Gabriel. Ele olhou para a praça e viu Lavon batendo os pés no chão para se aquecer. Madeline também o viu.
- Quem é ele?
- Um amigo.
- Um vigia?
- O melhor.
- É bom que seja.
Ela deu as costas para Gabriel e começou a caminhar devagar ao longo do parapeito.
- Quando eles ativaram você? - perguntou Gabriel, olhando para suas costas elegantes.
- Quando eu estava na universidade. Eles queriam que eu me preparasse para uma carreira no governo. Estudei ciências políticas e serviço social, e de repente eu
tinha um emprego na sede do Partido. O pessoal do Centro Moscovita ficou bem entusiasmado. Então, Jeremy Fallon me acolheu e eles ficaram eufóricos.
- Você dormiu com ele?
Madeline se virou e sorriu pela primeira vez.
- Você já viu Jeremy Fallon?
- Vi.
- Então tenho certeza de que você não vai duvidar que eu não dormi com ele. Mas Fallon queria dormir comigo, eu alimentei suas esperanças e ele me deu tudo o que
eu queria.
- Como o quê?
- Alguns minutos sozinha com o primeiro-ministro.
- De quem foi a ideia?
- Do Centro Moscovita. Eu nunca fiz nada sem a aprovação deles.
- Eles acharam que Lancaster poderia estar vulnerável a uma abordagem?
- Eles são todos vulneráveis - retrucou Madeline. - Infelizmente para Jonathan, ele cedeu à tentação. No instante em que fez amor comigo pela primeira vez, comprometeu-se
totalmente.
- Parabéns. Você deve ter ficado muito orgulhosa de si mesma.
Ela se virou bruscamente e o encarou por um momento sem falar nada.
- Não estou orgulhosa do que fiz. Eu me afeiçoei muito a Jonathan. Nunca quis que ele sofresse qualquer mal.
- Então talvez você devesse ter dito a verdade a ele.
- Eu pensei em fazer isso.
- O que aconteceu?
- Fui tirar férias na Córsega - respondeu ela, com um sorriso triste. - E depois eu morri.
Mas a história era mais complicada do que isso, claro. A começar pela mensagem que ela recebera do Centro Moscovita, que a orientava a se encontrar com um agente
do SVR no restaurante Les Palmiers, em Calvi. O homem lhe informou que sua missão na Inglaterra tinha terminado e que ela deveria voltar para a Rússia. Seu retorno
deveria parecer um sequestro, despistando, assim, a inteligência britânica.
- Vocês discutiram - disse Gabriel.
- De forma silenciosa, mas intensa. Eu disse a ele que queria ficar na Inglaterra e viver o resto da minha vida como Madeline Hart. O agente falou que isso não seria
possível, que, se eu não fizesse exatamente o que ele tinha ordenado, o sequestro seria real.
- Então você saiu da casa de moto e sofreu um acidente.
- Por sorte, não morri. Ainda tenho as cicatrizes da colisão.
- Quanto tempo você realmente passou nas mãos dos criminosos franceses?
- Tempo demais - respondeu ela. - Mas a equipe do SVR também estava junto.
- E quanto à noite em que fui vê-la?
- Todos naquela casa eram do SVR, inclusive a garota que eles enviaram para contar o dinheiro.
- Você fez uma bela performance naquela noite, Madeline.
- Não foi tudo uma performance. - Ela fez uma pausa. - Eu queria que você me resgatasse.
- Eu tentei, mas o jogo estava armado contra mim.
- Deve ter sido terrível.
- Especialmente para a garota que eles enfiaram no porta-malas daquele carro.
Madeline ficou calada.
- Quem era ela? - perguntou Gabriel.
- Alguma garota que arrancaram das ruas de Moscou. Espalharam o DNA dela no meu apartamento em Londres, e aí... - Sua voz se perdeu.
- Acenderam um fósforo.
A expressão dela ficou sombria. Ela se virou de costas e olhou para a cidade escura e gélida.
- Não é tão mal aqui, sabe? Me deram um apartamento adorável. Tem uma boa vista. Posso passar o resto da vida aqui e fingir que estou em Roma, Veneza ou Paris.
- Ou em Florença.
- Sim, Florença - concordou ela. - Como Lucy e Charlotte nesse livro que você trouxe.
- É isso que você quer?
Ela voltou a encará-lo.
- Que escolha eu tenho?
- Você pode vir comigo.
- Não, não posso - replicou ela, balançando a cabeça devagar. - Você vai acabar morto. Eu também.
- Se eu consegui encontrá-la em São Petersburgo, Madeline, consigo tirar você daqui.
- Como você me encontrou? - insistiu ela.
- Ainda não posso dizer.
- Quem é você?
- Também não posso dizer.
- Para onde você vai me levar?
- Para casa - afirmou ele com uma parada no caminho.
Ela vivia num grande prédio antigo do outro lado do rio Neva com vista para o Palácio de Inverno. Lavon acompanhou-a em segredo até seu apartamento. Já Gabriel deu
entrada no Astoria Hotel e, já no quarto, fez um relatório atualizado para o King Saul Boulevard. Uma cópia do documento foi entregue a um Uzi Navot exausto às 17h47,
no horário de Tel Aviv. Ele o leu em silêncio, então olhou para Shamron.
- O que foi, Uzi?
- Ele quer mudar a cidade de partida de Moscou para São Petersburgo.
- Por quê?
- Você não acreditaria se eu dissesse.
Navot passou o relatório para Shamron, que o leu através de uma nuvem de fumaça. Ao término, Navot recebeu uma segunda atualização.
- Ele está prestes a nos enviar um vídeo.
- Do quê?
Antes que Navot pudesse responder, o rosto inchado de Zhirov apareceu num dos monitores.
- Parece que ele caiu feio - comentou Shamron.
- Várias vezes.
- O que ele está dizendo?
Navot instruiu os técnicos a aumentar o volume.
“Ficamos incumbidos de adquirir direitos de perfuração e ativos de downstream fora da Rússia. E nós éramos KGB de cima a baixo. Na verdade, uma porcentagem substancial
dos lucros passou a fluir diretamente para as contas em Yasenevo.”
“Epara onde vai o resto?”
“Use a sua imaginação.”
“Para o bolso do presidente russo?”
“Ele não se tornou o homem mais rico da Europa investindo com sabedoria a sua pensão da KGB.”
Shamron sorriu.
- Isso é que eu chamo de carta na manga.
- Eu diria que três cartas na manga.
- Que horas é o próximo voo da El Al saindo de São Petersburgo?
Navot digitou no teclado à sua frente.
- O voo seis-dois-cinco sai do Ben Gurion à uma e dez da madrugada e aterrissa em São Petersburgo às oito da manhã. A tripulação passa o resto do dia descansando
num hotel no centro da cidade. Eles trazem o avião de volta para Tel Aviv na mesma noite.
- Ligue para o presidente da El Al - pediu Shamron. - Diga que precisamos desse avião emprestado.
Navot pegou o telefone. Shamron continuou a observar o monitor.
“Diga para a câmera, Pavel. Admita que você matou Madeline.”
“Eu matei Madeline Hart.”
“Como?"
“Colocando-a na traseira de um Citroen com uma bomba de gasolina.”
“Por quê? Por que você a matou?”
“Ela precisava morrer. Não poderia voltar para a Inglaterra deforma alguma.“
56
PRAÇA LUBYANKA, MOSCOU
Em tempos como aqueles, pensou o coronel Leonid Milchenko, a imensidão da Rússia era mais uma maldição do que uma bênção. Ele estava observando um mapa em seu escritório
na Praça Lubyanka, ao lado de Vadim Strelkin. Tinha acabado de voltar do Kremlin, onde o novo czar lhes dera ordens para não poupar esforços na busca pelos três
homens desaparecidos. O presidente não se mostrou disposto a explicar por que isso era tão importante, falando apenas que dizia respeito aos interesses vitais da
federação e de seus laços com o Reino Unido. Foi Strelkin, no caminho de volta para Lubyanka, que lembrou a Milchenko que a Volgatek tinha acabado de obter direitos
lucrativos para perfurar no mar do Norte.
- Você acha que a Volgatek fez algo ilegal para conseguir a permissão? - perguntou Milchenko, ainda com os olhos no mapa.
- Eu não gostaria de julgar a situação antecipadamente sem conhecer todos os fatos - respondeu Strelkin, cauteloso.
- Nós trabalhamos para a FSB, Vadim. Nunca nos preocupamos com fatos.
- Você sabe como eles chamam a Volgatek, não sabe, chefe?
- KGB Óleo e Gás.
Strelkin ficou calado.
- Digamos que a Volgatek não tenha jogado limpo para obter a licença - começou Milchenko.
- Eles raramente jogam limpo. Pelo menos é isso que se ouve.
- Digamos que tenham subornado alguém.
- Ou pior.
- E digamos que a inteligência britânica reagiu tentando inserir um agente na empresa.
- Digamos - repetiu Strelkin, assentindo.
- Digamos que os britânicos estivessem escutando quando Zhirov colocou o homem deles no carro e começou a enchê-lo de perguntas.
- Provavelmente estavam.
- E que acreditaram que seu homem estivesse em perigo.
- Ele estava.
- E que reagiram retirando o seu homem.
- Com bastante violência.
- E que levaram Zhirov e seu motorista junto.
- Provavelmente não tiveram escolha.
Milchenko caiu num silêncio pensativo.
- Então onde está Zhirov agora?
- Ele vai acabar aparecendo.
- Vivo ou morto?
- Os britânicos não gostam do mokroye delo.
- Onde foi que você ouviu isso? - Milchenko se aproximou do mapa. - Se você fosse britânico, o que tentaria fazer agora?
- Tirar o meu homem do país o mais rápido possível.
- Como você faria isso?
- Imagino que pudesse levá-lo de carro até os caminhos que cruzam a fronteira norte, só que o caminho mais rápido é pelo Sheremetyevo.
- Ele vai ter um passaporte diferente.
- E um novo rosto - acrescentou Strelkin.
- Vá para o Ritz. Pegue algumas fotos dele com a segurança do hotel. E leve-as para todos os agentes de controle alfandegário e membros das milícias no Sheremetyevo.
Strelkin se dirigiu para a porta.
- Mais uma coisa, Vadim.
Ele se deteve.
- Faça o mesmo em São Petersburgo. Só para garantir.
* * *
Naquele instante, o homem em questão estava descansando confortavelmente numa dacha isolada na Tver Oblast, junto aos outros membros da equipe israelense. Pouco
depois das cinco horas da madrugada, após mais uma noite insone, eles saíram da casa em grupos de dois e três e foram para a estação de trem em Okulovka - todos
menos Christopher Keller, que ficou vigiando Zhirov e o motorista.
O trem de Okulovka saiu atrasado, ao contrário do voo 625 da El Al. O avião decolou do Ben Gurion pontualmente à 1h1O e aterrissou em São Petersburgo dois minutos
antes do previsto, às 8h03. A tripulação, com doze pessoas, ficou dentro da aeronave até todos os passageiros saírem. Então, depois de passarem pela alfândega, subiram
numa van sem identificação, de serviços terrestres da El Al, e percorreram o trajeto de vinte minutos até o Astoria Hotel, onde tinham quartos reservados para o
resto do dia. Um dos comissários de bordo era uma mulher alta de cabelos escuros e olhos cor de caramelo. Após deixar sua pequena mala com rodinhas ao pé da cama,
ela foi até o fim do corredor e, ignorando o aviso de NÃO PERTURBE pendurado na maçaneta, deu uma batida suave. Como não recebeu resposta, bateu de novo. Dessa vez,
a porta se entreabriu alguns centímetros, apenas o suficiente para deixá-la passar, e ela entrou.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou Gabriel.
Chiara ergueu os olhos para o teto, como se quisesse lembrar ao marido, o futuro diretor da inteligência israelense, que eles estavam num quarto de hotel russo,
que provavelmente fora grampeado. Gabriel fez um gesto para indicar que o quarto estava limpo e, com as mãos nos quadris, repetiu a pergunta, estreitando os olhos
verdes. Chiara não o via tão bravo havia muito tempo.
- Como fui boba... Achei que você ficaria feliz em me ver.
- Como você conseguiu autorização para vir?
- Nós precisávamos de mulheres para a tripulação. Eu me voluntariei.
- E Uzi não podia achar nenhuma outra mulher além da minha esposa?
- Na verdade, Uzi foi contra a ideia.
- Então como você entrou na equipe?
- Eu apelei para Shamron - revelou ela. - Falei que queria participar da operação e que, se ele não permitisse, não daria o que ele queria.
- Eu?
Chiara sorriu.
- Garota esperta.
- Aprendi com o melhor.
- Achei que você tivesse dito que não queria vir para a Rússia. Que não aguentaria a pressão.
- Mudei de ideia.
- Por quê?
- Porque eu queria dividir isto com você. - Chiara foi até a janela e contemplou a penumbra da Praça de Santo Isaac. - Alguma hora fica claro por aqui?
- É o máximo de luz possível.
Chiara fechou a persiana e se virou. A saia azul e a blusa branca frisada a deixavam irresistível. Gabriel não estava mais bravo por ela ter ido à Rússia contra
a sua vontade. Na verdade, ficou feliz em ter a companhia da esposa. Aquilo tornaria a espera das próximas horas muito mais tolerável.
- Como ela é? - perguntou Chiara.
- Madeline?
- É assim que a chamamos?
- É o único nome que ela conhece - disse Gabriel. - Ela foi...
- O quê?
- Criada por lobos.
- Talvez ela também seja uma loba.
- Ela não é.
- Tem certeza disso?
- Tenho, Chiara.
- Porque ela já enganou você uma vez.
Gabriel ficou em silêncio.
- Desculpe, Gabriel, mas você deve ter considerado a possibilidade de ela ainda ser leal ao seu serviço.
- Devo ter - falou Gabriel, incapaz de conter a irritação na voz. - Mas, se ela estiver limpa quando sair do apartamento esta tarde, vou trazê-la para cá. E depois
vou levá-la para casa.
- Que fica onde?
- Inglaterra.
- Ela vai causar bastante comoção.
- Bastante.
- O que vai fazer com ela?
- Vou usá-la para retribuir uma pequena dívida. E depois vou deixá-la nas mãos capazes de Graham Seymour.
- Pobre Graham.
Chiara sentou na beira da cama e tirou os sapatos.
- Como foi o voo? - perguntou Gabriel.
- Consegui não ferir nenhum dos passageiros entregando as refeições.
- Bom trabalho.
- Tinha um bebê na primeira classe que chorou o trecho inteiro de Ankara a Minsk. Alguns passageiros ficaram bem irritados. A mãe estava envergonhada. - Chiara fez
uma pausa. - E eu só consegui pensar que ela era a mulher mais sortuda do mundo.
- Talvez você não devesse ter vindo - falou Gabriel depois de um instante.
- Eu tinha que vir. Vou apreciar muito tudo isso.
Ela tirou a saia, esticando-a com cuidado na cama, e começou a desabotoar a blusa.
- O que você está fazendo? - questionou Gabriel.
- O que lhe parece?
- Parece que uma comissária de bordo muito bonita está se despindo no meu quarto.
- Preciso descansar um pouco. Você também - acrescentou ela ao tirar a blusa. - Não me leve a mal, Gabriel, mas você está com uma aparência terrível. Durma por uma
ou duas horas. Vai se sentir melhor.
- Eu não conseguiria dormir agora.
- O que você vai fazer? Ficar na frente da janela o dia todo, morrendo de preocupação?
- Esse era o meu plano.
- Quando você for chefe, vai ter bastante tempo para fazer isso. Venha para a cama. Prometo que não vou machucá-lo.
Gabriel acabou cedendo: tirou os sapatos e a calça jeans e engatinhou pela cama até a esposa. O corpo de Chiara estava ardente, como se febril. Ao beijar os seus
lábios, ele sentiu gosto de mel. Ela passou o dedo pelo nariz do marido.
- Chiara...
- O que foi, querido? - perguntou ela, beijando-o de novo.
- Estou em serviço.
- Você está sempre em serviço. E vai continuar assim pelo resto da vida. Chiara o beijou novamente. Depois no pescoço. No peito.
- Acho que ela tinha razão desde o começo - comentou ela.
- Quem? - murmurou Gabriel.
- Aquela mulher idosa da Córsega. Ela disse que você saberia a verdade
quando Madeline morresse. Em certo sentido, ela morreu naquela manhã na França. E agora você sabe a verdade.
- Mas ela se enganou com relação a uma coisa. Ela me avisou para não ir à cidade dos hereges. Disse que eu morreria lá.
Chiara parou de beijá-lo e olhou bem nos seus olhos.
- Você não me disse o contrário?
- Disse.
- Então você mentiu para mim.
- Desculpe, Chiara. Eu não deveria ter feito isso.
Ela o beijou de novo.
- Eu sabia que você estava mentindo.
- Sério?
- Eu sempre sei quando você está mentindo, Gabriel.
- Mas eu sou um profissional.
- Não quando se trata de mim. - Ela tirou a camisa de Gabriel e montou em seu colo. - Ainda é uma possibilidade, sabe?
- O quê?
- Você morrer na cidade dos hereges.
- Ela estava se referindo a Moscou. Acho que estou seguro agora.
- Na verdade - replicou ela, passando as mãos pela barriga dele -, você está correndo um grande perigo.
- Estou percebendo.
Chiara o recebeu no calor macio de seu corpo. Gabriel já não estava mais na Rússia, mas no quarto em Veneza onde os dois tinham feito amor pela primeira vez, numa
cama de lençóis brancos. Ele estava seguro. Ela também.
- Talvez Madeline não venha - opinou depois Chiara, quando Gabriel começava a adormecer.
- Ela vai vir. E vamos levá-la para casa.
- Eu também quero ir para casa.
- Em breve...
- Alguma hora vai ficar claro lá fora?
- Não, Chiara. Não hoje.
57
SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA
Eles já tinham feito aquilo dezenas de vezes, em dezenas de campos de batalha secretos. Portanto, bastaram alguns minutos debruçados sobre um mapa de rua no quarto
de Gabriel no Astoria para elaborar o plano: a rota, os postos de observação fixa, os pontos de retirada, os paraquedas. Gabriel se referiu ao plano como a última
chance do Centro Moscovita. Jogariam Madeline como isca, fazendo-a percorrer as ruas de São Petersburgo uma última vez, para garantir que estava limpa. E então iriam
recolher a linha e fazer a garota desaparecer. De novo.
Foi assim que, pouco depois das duas horas daquela tarde sombria de São Petersburgo, seis agentes do serviço secreto israelense saíram do Astoria e passaram pelos
fascinantes palácios e igrejas até os seus pontos de espera. Lavon faria o maior percurso, pois deveria estar na frente do prédio de Madeline quando ela saísse às
14h52 - o horário exato em que deveria aparecer se tivesse de fato intenção de fugir. Ela atravessou a Ponte do Palácio, entrou no Museu Hermitage pelo portão que
dava para o cais e seguiu para a Sala de Monet, onde se sentou em seu banco de sempre às 15h07. Dois minutos depois, Lavon se juntou a Madeline.
- Até aqui tudo bem - disse ele baixinho em inglês. - Agora escute com atenção e faça exatamente o que eu digo.
Eles a conduziram pela Praça do Palácio, passando pelo Arco do Triunfo e seguindo para a Nevsky Prospekt. Ela tomou café e comeu um pedaço de bolo russo no Café
Literário, caminhou pelas colunatas romanas da Catedral de Nossa Senhora de Kazan e fez algumas compras na Zara. Em cada ponto ao longo da rota, ela passava por
um membro da equipe. E todos relataram que não havia nenhum sinal de oposição.
Ao sair da loja de roupas, ela foi em direção ao rio Moyka e seguiu pelos caminhos de pedra até a Praça de Santo Isaac, onde Dina esperava, fingindo falar ao telefone.
Se ela estivesse segurando o celular contra o ouvido esquerdo, Madeline deveria continuar andando. Se o pressionasse contra o direito, indicaria que era seguro entrar
no saguão do Hotel Astoria - foi o que fez, às 15h48.
Lavon entrou com ela no elevador. Madeline ficou olhando a neve em suas botas. Ele observou o teto ornamentado. Quando chegaram ruidosamente ao terceiro andar, estendeu
o braço com formalidade e disse: “Você primeiro.” Madeline passou por ele sem dizer nada e seguiu para o quarto ao fim do corredor. Uma das portas se abriu quando
ela se aproximou. Gabriel a puxou para dentro.
- Quem é você? - perguntou ela.
- Não posso dizer.
- Para onde estou indo?
- Você saberá em breve.
Dois minutos depois, a atualização de progresso piscou nos monitores do Centro de Operações do King Saul Boulevard. Navot a encarou por um instante, quase incrédulo.
Em seguida, olhou para Shamron.
- Eles realmente conseguiram, Ari. Estão com ela.
- Isso é bom - comentou Shamron, sem alegria. - Agora vejamos se conseguem ficar com ela.
Ele acendeu outro cigarro.
Duas voltas para a direita, duas voltas para a esquerda...
Escureceram o cabelo e as sobrancelhas de Madeline e deram ao seu rosto um bronzeado mediterrâneo. Mordecai tirou uma foto dela e colocou-a no passaporte que Madeline
usaria para sair do país. Por enquanto, ela seria liana Shavit. Tinha nascido em outubro de 1985 e vivia no subúrbio de Tel Aviv, em Rishon LeZion, que por acaso
era um dos primeiros assentamentos judeus da Palestina. Antes de se juntar à El Al, ela servira nas Forças Armadas de Israel. Era casada, mas não tinha filhos. Seu
irmão morrera na última guerra do Líbano. A irmã fora assassinada por um homem-bomba do Hamas durante a Segunda Intifada. Essa não era uma vida totalmente inventada,
disse-lhe Gabriel. Era uma vida israelense. E por algumas horas seria a vida de Madeline.
Se havia um defeito em sua armadura, era a inabilidade de falar mais do que algumas poucas palavras hebraicas aprendidas às pressas. Essa fraqueza foi amenizada
até certo ponto porque o seu inglês não tinha qualquer traço de sotaque russo e a tripulação passaria toda junta pelo controle alfandegário. Provavelmente seria
uma formalidade vazia, pouco mais do que uma olhada na fotografia e um aceno para seguir em frente. Gabriel estava bastante confiante de que Madeline resistiria
ao impulso de responder a uma pergunta feita em russo. Ela passara a vida inteira fazendo isso. Só precisava contar mais uma mentira, fazer uma última performance.
E, então, ficaria livre deles para sempre.
Pouco depois das cinco da tarde, as garotas tiraram as últimas roupas russas de Madeline, vestiram-na com o uniforme impecável da El Al e pentearam seus novos cabelos
pretos. Em seguida, a apresentaram para Gabriel, que a avaliou por um tempo, como se ela fosse uma pintura num cavalete.
- Qual é o seu nome? - perguntou secamente.
- Ilana Shavit.
- Qual é a sua data de nascimento?
- 12 de outubro de 1985.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- O que isso significa em hebraico?
- “O Primeiro em Sião”.
- Qual era o nome do seu irmão?
- Moshe.
- Onde ele foi morto?
- No Líbano.
- Qual era o nome da sua irmã?
- Dalia.
- Onde ela foi morta?
- Na discoteca Dolphinarium.
- Quantas outras pessoas foram mortas naquele dia?
- Vinte.
- Qual é o seu nome?
- Ilana Shavit.
- Onde você mora?
- Em Rishon LeZion.
- Qual rua?
- Sokolow.
Gabriel não tinha mais perguntas. Ele colocou uma das mãos no queixo e inclinou a cabeça para o lado.
- E então? - perguntou ela.
- Partimos em cinco minutos.
Lavon estava tomando café no saguão mal iluminado. Gabriel se sentou ao lado. - Estou com uma sensação estranha - disse Lavon.
- Muito estranha?
- Dois na frente da porta, dois no bar e um à toa perto do balcão do concierge.
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - concordou Lavon, inseguro.
- Podem estar vigiando um hóspede.
- É disso que tenho medo.
- Outro hóspede, Eli.
Lavon não respondeu.
- Tem certeza de que ela estava limpa quando a trouxemos?
- Impecável.
- Então ela está limpa agora - afirmou Gabriel.
- Por que o saguão está cheio de agentes da FSB?
- Pode ser por qualquer coisa.
- Pode ser - repetiu Lavon.
Gabriel olhou pela janela, para a van da El Al parada na frente do hotel.
- O que vamos fazer? - perguntou Lavon.
- Vamos seguir o plano.
- Você vai contar a ela?
- Sem chance.
Lavon tomou um gole do café.
- Boa ideia.
Três longos minutos se passaram até os primeiros membros da tripulação da El Al saírem dos elevadores para o saguão: duas jovens bem-arrumadas, que eram mesmo funcionárias
da empresa aérea, ao contrário das quatro mulheres e dos dois homens que vieram atrás, todos agentes de campo veteranos do Escritório. Então, surgiram o capitão
e o engenheiro de voo, seguidos um instante depois por uma versão muito bem disfarçada de Mikhail, que posava de primeiro oficial. O homem da FSB que estava perto
do balcão do concierge se voltou para encarar descaradamente o traseiro de uma das falsas comissárias de voo. Observando a cena do outro lado do saguão, Gabriel
se permitiu um breve sorriso. Se o agente tinha tempo para dar uma olhada nos dotes israelenses, havia grandes chances de que não estivesse à procura de uma russa
ilegal desaparecida.
Enfim, às 17hl0, Chiara e Madeline apareceram puxando suas malas de rodinhas da El Al. A esposa estava contando uma história sobre um voo recente num hebraico rápido
e a garota inglesa ria como se fosse a coisa mais divertida que tivesse ouvido em muito tempo. Elas se juntaram aos outros membros da tripulação, saíram do hotel
e subiram na van. As portas se fecharam. E eles partiram.
- O que você acha? - perguntou Gabriel.
- Acho que ela é muito boa - respondeu Lavon.
- Estamos limpos?
- Impecáveis.
Gabriel se levantou, pegou sua bolsa de viagem e saiu para a noite sem fim.
Um táxi aguardava na frente do hotel. Ele levou Gabriel em alta velocidade pela última prospekt. Passou por uma estátua desmedida de Lênin conduzindo seu povo por
setenta anos de estagnação e assassinatos; pelos monumentos a uma guerra da qual ninguém podia se lembrar; e quilômetro após quilômetro de prédios em ruínas. Por
fim, chegou ao terminal internacional do Aeroporto Pulkovo. Ele fez check-in para o voo com destino a Tel Aviv e não teve problemas com o controle alfandegário,
identificando-se como Jonathan Albright, da Markham Capital Services. Por fim, andou até o portão de embarque muito bem fortificado da El Al. Os russos alegavam
que as barreiras serviam para a segurança dos passageiros que seguiam para Israel. Mesmo assim, Gabriel teve a incômoda sensação de estar entrando no último gueto
da Europa.
Ele se acomodou num lugar vazio no canto do saguão, perto de uma grande família haredim. Ninguém falava russo, apenas hebraico. Se não fosse pelo disfarce, ele certamente
teria sido reconhecido. Mas agora Gabriel estava sentado em meio ao seu povo como um estranho, seu servo secreto, seu anjo da guarda invisível. Em breve, seria o
diretor de seu afamado serviço de inteligência. Seria mesmo? Sem dúvida essa era uma bela forma de encerrar a carreira. Obtivera provas de que uma petrolífera possuída
e administrada pelo SVR tinha desestabilizado o governo do Reino Unido para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte - tudo a pedido do próprio presidente russo.
Não haveria mais volta depois disso. Nada mais de conversas alegres sobre a Rússia como amiga do Ocidente. Ele provaria de uma vez por todas que os ex-agentes da
KGB, atuais administradores do país, eram implacáveis, autoritários e indignos de confiança. Que eles deveriam ser marginalizados e contidos, como nos velhos tempos
da Guerra Fria.
Mas de nada adiantaria se ele perdesse a garota. Gabriel consultou o relógio e, ao erguer os olhos, viu Yossi e Rimona adentrando o saguão de embarque. Em seguida,
vieram Mordecai e Oded. Então, Yaakov e Dina. E, por fim, Lavon, com cara de quem tinha ido parar no aeroporto por engano. Ele perambulou um pouco pelo saguão, inspecionando
cada assento vazio com o cuidado de um homem que sofre de fobia de germes, antes de sentar-se em frente a Gabriel. Eles nem trocaram olhares: eram duas sentinelas
numa vigília sem fim. Agora não havia nada para fazer além de esperar. A espera, pensou Gabriel. Sempre a espera. Esperando por uma fonte. Esperando pelo nascer
do sol depois de uma noite de matança. E esperando sua esposa carregar uma garota morta de volta para a terra dos vivos.
Ele olhou para o relógio novamente, e depois para Lavon.
- Onde elas estão? - perguntou.
Lavon respondeu sem baixar o jornal:
- Já passaram pela alfândega. Os funcionários só estão dando uma olhada nas bagagens.
- Por quê?
- Como eu poderia saber?
- Me diga que não há nada de errado com a bagagem.
- A bagagem está certinha.
- Então por que estão verificando?
- Talvez estejam entediados. Ou gostem de tocar em roupas íntimas femininas. Eles são russos, pelo amor de Deus.
- Quanto tempo, Eli?
- Dois minutos, talvez menos.
Os dois minutos de Eli passaram sem qualquer sinal delas. Seguidos por um terceiro. E um interminável quarto. Gabriel encarava o relógio, o carpete imundo, a criança
ao seu lado - tudo menos a entrada do saguão de embarque. Então, enfim, ele as vislumbrou com o canto do olho, um lampejo de azul e branco, como uma bandeira sendo
acenada. Mikhail caminhava ao lado do capitão. Madeline estava com um sorriso nervoso e parecia estar segurando o braço de Chiara para sentir-se mais segura. Ou
será que era o contrário? Gabriel não pôde ter certeza. Ele viu-os virar ao mesmo tempo em direção ao portão e desaparecer pela passarela. Em seguida, olhou para
Lavon.
- Eu falei que ia ficar tudo bem - disse ele.
- Você nem ficou preocupado?
- Indescritivelmente aterrorizado.
- Por que não me disse?
Lavon não respondeu. Ele só ficou sentado lendo o jornal até o voo ser chamado. Em seguida, levantou-se e seguiu Gabriel até o avião. Deu uma última olhada em busca
de vigilância inimiga, só para garantir.
Ela foi orientada a sentar-se na terceira fila, ao lado da janela. Estava olhando para o aeroporto escuro e malcuidado de Pulkovo, seu último vislumbre de uma Rússia
que nunca chegara a conhecer. Vestida com o uniforme azul e branco, Madeline estava parecida com uma estudante inglesa. Ela olhou para o lado quando Gabriel se acomodou
no assento, mas logo virou o rosto. Ele disparou uma última mensagem para o King Saul Boulevard pelo BlackBerry criptografado. Em seguida, observou a esposa preparar
a cabine para a decolagem. Os olhos de Madeline reluziram. Quando as rodas se ergueram do solo russo, uma lágrima escorreu por sua bochecha. Ela segurou na mão de
Gabriel e a apertou com força.
- Nem sei como agradecer - disse, com seu sotaque britânico preciso.
- Então não agradeça.
- Quanto tempo dura o voo?
- Cinco horas.
- Vai estar quente em Israel?
- Só no sul.
- Você vai me levar lá?
- Vou levá-la aonde você quiser ir.
Chiara apareceu e entregou taças de champanhe para os dois. Gabriel ergueu a sua na direção de Madeline num brinde silencioso antes de colocá-la no apoio de centro,
sem beber nada.
- Você não gosta de champanhe? - perguntou ela.
- Me dá uma dor de cabeça terrível.
- Também me dá.
Madeline tomou uns goles e ficou olhando pela janela para a escuridão abaixo.
- Como você me encontrou lá embaixo?
- Isso não é importante.
- Algum dia você vai me dizer quem é?
- Você vai saber em breve.
Parte 3
O ESCÂNDALO
58
LONDRES - JERUSALÉM
Na manhã seguinte, ocorreriam as eleições na Inglaterra. Jonathan Lancaster votou cedo, acompanhado da esposa, Diana, e dos três filhos fotogênicos, antes de voltar
para a Downing Street e esperar o veredicto. Não houve muito suspense, pois uma pesquisa divulgada na noite anterior previra que o partido de Lancaster quase certamente
aumentaria sua maioria parlamentar em vários assentos. No meio da tarde, Whitehall estava tomada por rumores de um massacre eleitoral e, no começo da noite, o champanhe
já fluía pela sede do Partido em Millbank. Mesmo assim, o primeiro-ministro pareceu estranhamente reservado quando subiu ao palco do Royal Festival Hall para fazer
o discurso da vitória. Entre os repórteres políticos que tomaram nota de sua atitude séria estava Samantha Cooke, do Daily Telegraph. Lancaster, ela escreveu, parecia
saber que o segundo mandato não correria tão bem quanto o primeiro. Mas, por outro lado, acrescentou ela, era isso que costumava acontecer com segundos mandatos.
Os problemas de Lancaster começaram mais adiante naquela semana, quando ele deu início ao tradicional processo de remanejamento de gabinete e equipe pessoal. De
acordo com o previsto, Jeremy Fallon, agora membro do parlamento de Bristol, foi designado ministro do Tesouro, logo também seria seu vizinho na Downing Street.
O homem que já fora descrito pela imprensa como o cérebro de Lancaster agora era considerado por Whitehall como o futuro primeiro-ministro. Fallon rapidamente reuniu
os membros remanescentes da antiga equipe - pelo menos os que ainda suportavam trabalhar para ele - e usou sua influência dentro da sede do Partido para preencher
posições políticas essenciais. O palco estava preparado, escreveu Samantha Cooke, para uma batalha por poder de proporções shakespearianas. Em breve, Fallon bateria
à porta do número 10 da Downing Street e pediria as chaves. Ele tinha criado Lancaster. E, certamente, tentaria destruí-lo.
Em nenhum momento durante as manobras pós-eleição, a imprensa mencionou o nome de Madeline Hart, nem mesmo quando o presidente do Partido decidiu que já era hora
de preencher a vaga deixada por ela. Um subordinado que trabalhava na sede assumiu a tarefa mórbida de remover as posses restantes de Madeline de seu antigo cubículo.
Não havia muita coisa: alguns arquivos empoeirados, um calendário, canetas e clipes de papel, um exemplar já bem gasto de Orgulho e preconceito que ela costumava
ler sempre que tinha um momento de folga. O homem entregou os itens ao presidente do Partido, que mandou sua secretária se livrar discretamente do material, com
tanta dignidade quanto possível. E, assim, os últimos traços de uma vida inacabada foram expurgados. Madeline Hart enfim tinha partido. Ao menos era o que eles pensavam.
No começo, ela teve a impressão de que havia trocado um tipo de cativeiro por outro. Dessa vez, o apartamento que servia de cela dava vista não para o rio Neva,
em São Petersburgo, mas para o mar Mediterrâneo, em Netanya. Para a administração do prédio, ela estava se recuperando de uma longa doença. A verdade não era muito
diferente.
Madeline não saiu do apartamento por uma semana. Seus dias não tinham nenhuma rotina discernível. Ela dormia tarde, observava o mar, relia seus romances favoritos,
tudo sob a observação da equipe de segurança do Escritório. Um médico ia vê-la uma vez por dia. No sétimo dia, quando ele lhe perguntou como estava, ela respondeu
que sofria de tédio terminal.
- Melhor morrer de tédio do que de veneno russo - brincou o doutor.
- Não tenho tanta certeza - respondeu, com seu inglês arrastado.
O médico prometeu que levaria o caso de seu confinamento à autoridade mais alta. No oitavo dia, o alto escalão permitiu que Madeline fizesse uma breve caminhada
pelo trecho frio e ventoso de areia na frente do prédio onde residia. No dia seguinte, pôde ir um pouco mais longe. E, no décimo dia, caminhou quase até Tel Aviv
antes de seus cuidadores a colocarem com gentileza no banco traseiro de um carro do Escritório e a levarem de volta para o apartamento. Ao entrar, encontrou uma
réplica exata de Lagoa em Montgeron pendurada na parede da sala de estar - exata, com exceção da assinatura do artista que a pintara. Ele ligou alguns minutos depois
e se apresentou adequadamente pela primeira vez.
- O famoso Gabriel Allon? - perguntou ela.
- Receio que sim.
- E quem foi a mulher que me ajudou a subir no avião?
- Você saberá em breve.
Gabriel e Chiara chegaram em Netanya no horário de almoço do dia seguinte, depois que Madeline voltou da caminhada matinal pela praia. Eles a levaram ao
Cesarea para almoçar e passearam pelas ruínas dos romanos e das cruzadas. Em seguida, subiram o litoral, até perto do Líbano, para visitar as cavernas marinhas de
Rosh HaNikra. De lá, seguiram para o leste em direção à fronteira disputada, passando pelos postos de escuta das Forças Armadas de Israel e pelas pequenas cidades
que tinham sido despovoadas após a última guerra contra o Hezbollah, até que chegaram em Kiryat Shmona. Gabriel reservara dois quartos na pousada de um velho kibutz.
Os aposentos de Madeline tinham uma bela vista da Alta Galileia. Um guarda do Escritório passou a noite na frente da porta dela, enquanto outro ficou sentado na
varanda com jardim.
No dia seguinte, depois de tomar o café da manhã no salão de refeições, foram de carro até as colinas de Golã. As Forças Armadas os aguardavam. Um jovem coronel
levou o grupo até um ponto na fronteira com a Síria, onde era possível ouvir os bombardeios do conflito entre o regime e os rebeldes. Em seguida, eles fizeram uma
breve visita à Fortaleza de Nimrod, o antigo bastião dos cruzados com vista para a cidade judaica de Safed. Eles almoçaram no bairro dos artistas, na casa de uma
mulher chamada Tziona Levin. Embora Gabriel a chamasse de doda - tia -, na verdade ela estava mais para irmã. A mulher não demonstrou surpresa quando ele e Chiara
apareceram à sua porta acompanhados pela bela jovem que o mundo inteiro pensava estar morta. Ela sabia que Gabriel tinha o hábito de voltar para Israel com objetos
perdidos.
- Como está o trabalho? - perguntou, enquanto tomavam café em seu jardim banhado pelo sol.
- Melhor do que nunca - respondeu Gabriel, dando uma olhada em Madeline.
- Eu estava falando da sua arte.
- Acabei de concluir a restauração de um Bassano adorável.
- Você devia focar no seu próprio trabalho - falou ela, reprovadora.
- É o que estou fazendo - disse vagamente, e Tziona deixou a questão de lado.
Quando terminaram o café, ela os levou para o estúdio e mostrou seus novos quadros. Então, a pedido de Gabriel, destrancou um cômodo. Dentro, havia centenas de pinturas
e esboços feitos pela mãe de Allon, inclusive várias obras retratando um homem alto vestido com o uniforme da SS.
- Achei que tivesse dito para queimar estes - repreendeu Gabriel.
- Você disse - admitiu Tziona mas não consegui.
- Quem é ele? - perguntou Madeline, encarando as pinturas.
- Seu nome era Erich Radek - respondeu Gabriel. - Ele coordenou um programa nazista secreto chamado Aktion 1005. A meta era ocultar todas as evidências de que o
Holocausto tinha ocorrido.
- Por que sua mãe o pintou?
- Ele quase a matou na marcha da morte de Auschwitz em janeiro de 1945.
Madeline ergueu uma sobrancelha, intrigada.
- Radek não foi capturado em Viena alguns anos atrás e trazido a Israel para julgamento?
- Para seu governo, ele se voluntariou para vir a Israel.
- Sim, claro - disse Madeline, sem convicção. - E eu fui sequestrada por criminosos franceses de Marselha.
No dia seguinte, eles dirigiram até Eilat. O Escritório tinha alugado uma casa particular ampla perto da fronteira com a Jordânia. Madeline passou os dias deitada
ao lado da piscina, lendo e relendo uma pilha de romances ingleses clássicos. Gabriel percebeu que a garota estava se preparando para voltar ao país que não era
realmente dela. Madeline não era ninguém, pensou Gabriel. Não era uma pessoa real. E, não pela primeira vez, perguntou-se se seria melhor para ela morar em Israel,
e não no Reino Unido. Foi o que lhe indagou na última noite de estadia no sul. Eles estavam sentados num terreno rochoso em Neguev, vendo o sol se pôr nas terras
ermas do Sinai.
- É tentador - respondeu ela.
- Mas...?
- Não é a minha casa. Pareceria com a Rússia. Eu seria uma estranha aqui.
- Vai ser difícil, Madeline. Muito mais difícil do que você pensa. Os ingleses vão pressioná-la até terem certeza da sua lealdade. E vão trancá-la em algum lugar
que os russos nunca vão conseguir encontrar. Você nunca vai poder retomar a antiga vida. Nunca. Vai ser horrível.
- Eu sei - disse ela, distante.
Na verdade não sabia, pensou Gabriel, mas talvez fosse melhor desse jeito. O sol pairava logo acima do horizonte. De repente, o ar do deserto esfriou o suficiente
para fazê-la estremecer.
- Acha que devemos voltar? - perguntou ele.
- Ainda não.
Gabriel tirou sua jaqueta e a colocou por cima dos ombros dela.
- Vou dizer algo que provavelmente não deveria: em breve serei o diretor da inteligência israelense.
- Parabéns.
- “Meus pêsames” seria uma resposta mais adequada. Mas isso significa que vou ter o poder de cuidar de você. Vou dar um bom lugar para você viver. Uma família. Disfuncional,
é verdade, mas a única família que eu tenho. Vamos lhe dar um país. Um lar. É isso que fazemos em Israel: damos um lar às pessoas.
- Eu já tenho um lar.
Ela não disse mais nada. O sol mergulhou no horizonte e ela sumiu em meio à escuridão.
- Fique - pediu Gabriel. - Fique aqui conosco.
- Eu não posso ficar. Eu sou Madeline. Sou uma garota inglesa.
Na noite seguinte, ocorreria a festa de abertura da exposição dos Pilares de Salomão no Museu de Israel, em Jerusalém. O presidente e o primeiro-ministro estavam
na lista de convidados, assim como os membros do gabinete, a maior parte do Knesset e inúmeros escritores, artistas e celebridades. Chiara foi uma das oradoras da
cerimônia, realizada no recém-construído saguão de exibição. Ela não mencionou o fato de que seu marido, o lendário espião Gabriel Allon, tinha descoberto os pilares,
nem que a linda jovem de cabelos escuros ao seu lado era, na verdade, uma garota inglesa morta chamada Madeline Hart. Os dois omitidos ficaram só alguns minutos
no coquetel, então foram de carro ao outro lado de Jerusalém, até um restaurante tranquilo no velho campus da Academia Bezalel de Artes e Design. Em seguida, enquanto
caminhavam pela rua Ben Yehuda, Gabriel perguntou novamente se Madeline queria ficar em Israel, mas a resposta foi a mesma. Ela passou a última noite na cidade no
quarto de hóspedes do apartamento de Gabriel, na rua Narkiss, o quarto que fora idealizado para uma criança. No início da manhã seguinte, eles foram até o Ben Gurion
em meio às trevas e embarcaram num voo para Londres.
59
LONDRES
Gabriel passou vários dias tentando decidir se avisava a Graham Seymour que ele estava prestes a receber uma desertora russa bastante incomum. Por fim, achou melhor
não. Suas razões foram pessoais, não operacionais: simplesmente não queria estragar a surpresa.
Dessa forma, a equipe de recepção no aeroporto de Heathrow no fim daquela manhã era composta por membros do Escritório, e não do MI5. Os agentes assumiram a custódia
clandestina de Gabriel e Madeline no saguão de desembarque e os transportaram para um apartamento obtido às pressas em Pimlico. Ao chegar, Gabriel ligou para Seymour
em seu escritório e disse que, mais uma vez, tinha entrado no Reino Unido sem assinar o livro de visitantes.
- Que surpresa - disse Seymour, seco.
- Ainda há mais por vir, Graham.
- Onde você está?
Gabriel passou o endereço.
Seymour tinha uma reunião com uma delegação visitante de espiões australianos que não podia ser adiada, então somente depois de uma hora é que seu carro surgiu na
frente do prédio. Ao entrar no apartamento, encontrou Gabriel sozinho na sala de estar. Na mesa de centro, havia um notebook aberto e Allon o utilizou para rodar
uma gravação de Pavel Zhirov confessando os muitos pecados da empresa de energia que pertencia ao Kremlin, conhecida como Volgatek Óleo e Gás. Quando o vídeo terminou,
Seymour parecia bastante abalado. Isso provava uma das máximas favoritas de Ari Shamron, pensou Gabriel: no negócio da inteligência, assim como na vida, às vezes
é melhor não saber.
- Foi ele que almoçou com Madeline na Córsega? - perguntou Seymour, ainda encarando a tela do computador.
Gabriel assentiu devagar.
- Você me disse para encontrá-lo. E eu o encontrei.
- O que aconteceu com o rosto dele?
- Ele disse algo para Mikhail que não devia ter dito.
- Onde ele está agora?
- Ele se foi.
- Isso pode significar várias coisas, sabe?
A expressão neutra de Gabriel deixou claro que Zhirov tinha partido para nunca mais voltar.
- Os russos sabem? - perguntou Seymour.
- Ainda não.
- Quanto tempo até descobrirem?
- Lá pela primavera, eu diria.
- Quem o matou?
- Essa é uma história para outra hora.
Gabriel ejetou o DVD do computador e o ofereceu para Seymour. Ao pegá-lo, ele soltou o ar lentamente, como se tentasse manter a pressão sanguínea num nível saudável.
- Eu estou nesse jogo há muito tempo. E este vídeo foi a coisa mais explosiva que já vi.
- Você ainda não viu tudo, Graham.
- Eu não sei se você reparou - continuou Seymour, como se não tivesse escutado o aviso de Gabriel -, mas nós tivemos uma eleição neste país recentemente. Jonathan
Lancaster acabou de ganhar com um dos maiores percentuais de votos na história da Inglaterra. E, agora, Jeremy Fallon é o ministro do Tesouro.
- Não por muito tempo.
Seymour não respondeu.
- Você não está pensando em deixá-lo sair impune dessa, está, Graham?
- Não. Mas vai ser um banho de sangue.
- Você sempre soube que seria.
- Mas eu estava torcendo para que o sangue não respingasse em mim.
Graham caiu num silêncio pesado.
- Algo que você precise desabafar, Graham?
- O primeiro-ministro me ofereceu uma promoção - explicou ele, depois de hesitar um pouco.
- Que tipo de promoção?
- O tipo que eu não pude recusar.
- Diretor-geral?
Seymour assentiu.
- Mas não do MI5 - acrescentou depressa. - Você está olhando para o futuro diretor do Serviço Secreto de Sua Majestade. Nós dois vamos governar o mundo juntos...
às escondidas, é claro.
- A menos que você derrube o governo de Lancaster.
- Correto. Se eu fizer isso, há boas chances de eu ser jogado ao mar com o resto deles. E você vai perder um aliado próximo no processo. - Ele acrescentou, baixando
a voz: - Eu achava que um homem na sua posição desejasse manter um amigo como eu. Você não tem muitos atualmente.
- Mas você não pode permitir que uma empresa da KGB perfure nas águas do seu território.
- Isso seria negligência do dever - concordou Seymour, jovialmente.
- Você também não pode permitir que um agente pago do Kremlin continue servindo como ministro. Caso contrário, talvez ele seja o seu próximo primeiro-ministro.
- Eu estremeço só de pensar na possibilidade.
- Então você precisa destruí-lo, Graham. - Gabriel fez uma pausa. - Ou vai ter que desviar os olhos enquanto eu o faço para você.
Seymour ficou em silêncio por um instante.
- Como você faria?
- Retribuindo um favor.
- E quanto a Lancaster?
- Ele é culpado de um caso extraconjugal. É provável que o povo britânico o perdoe, especialmente quando descobrirem que Fallon tem 5 milhões de euros numa conta
suíça. - Gabriel se deteve, então acrescentou: - E há mais uma circunstância atenuante sobre a qual eu ainda não falei.
- Qual?
Gabriel sorriu e se levantou.
Ele entrou no quarto e voltou um momento depois com uma jovem linda ao lado, de cabelos escuros como carvão e pele bem bronzeada pelo sol do mar Vermelho. Seymour
se levantou cavalheirescamente e, sorrindo, estendeu a mão. Quando o cumprimento não foi retribuído, seu rosto assumiu uma expressão intrigada. E, então, ele entendeu.
Olhou para Gabriel e sussurrou:
- Meu Deus.
Ela contou a história desde o começo para Seymour - a mesma que contara a Gabriel naquela tarde gélida em São Petersburgo, na cúpula da Catedral de Santo Isaac.
Depois, calma, empertigada, declarou que desejava desertar para o Reino Unido e, se possível, um dia retornar à sua vida antiga.
Como vice-diretor do MI5, Seymour não tinha autoridade para conceder status de desertora a uma espiã russa. A única pessoa que podia fazer aquilo seria o ex-amante
de Madeline, Jonathan Lancaster. Por isso, às duas e quinze daquela tarde, Seymour se apresentou na Downing Street sem aviso e exigiu uma conversa em particular
com o primeiro-ministro. Por coincidência, o encontro se deu na sala de reuniões. Lá, embaixo do mesmo retrato da baronesa Thatcher, Seymour contou tudo o que tinha
descoberto. Que o presidente russo ordenara que a Volgatek utilizasse qualquer meio possível para ganhar acesso ao petróleo do mar do Norte. Que Jeremy Fallon, o
assessor e amigo íntimo de Lancaster, o traíra por 5 milhões de moedas de prata russa. E que Madeline Hart, sua antiga amante, era uma espiã nascida na Rússia que
ainda estava muito viva e havia solicitado asilo na Inglaterra. Para seu crédito, Lancaster, embora visivelmente perturbado, não hesitou em responder. Fallon tinha
que partir, Madeline tinha que ficar, e que as fichas caíssem onde fosse para elas caírem. Ele fez apenas um pedido: queria contar tudo à esposa antes.
- Eu não esperaria muito tempo se fosse você, primeiro-ministro.
Lancaster estendeu o braço lentamente na direção do telefone. Seymour se levantou e saiu do cômodo em silêncio.
Agora restava apenas o nome do repórter que receberia a exclusiva mais sensacional da história política da Inglaterra. Seymour sugeriu Tony Richmond, do Times, ou
talvez Sue Gibbons, do Independent, mas Gabriel se recusou. Ele tinha feito uma promessa, explicou, e pretendia cumpri-la. Telefonou para o celular dela, mas a ligação
caiu na caixa postal e ele deixou uma mensagem breve. Ela retornou logo em seguida.
- Às quatro horas no Café Nero - disse Gabriel. - E desta vez não se atrase.
Para profundo desgosto de Seymour, Gabriel e Madeline insistiram em dar uma última volta juntos. Ambos seguiram para Millbank enfrentando rajadas de vento; passaram
pelos Victoria Tower Gardens, pela Abadia de Westminster e pelo Palácio de Westminster. Às dez para as quatro, entraram na cafeteria. Gabriel pediu café preto, Madeline
quis um chá Earl Grey com leite e um biscoito digestivo. Ela tirou um estojo compacto da bolsa e deu uma olhada no próprio rosto pelo espelho.
- Como estou? - ela quis saber.
- Muito israelense.
- Isso é um elogio?
- Deixe para lá. É melhor comer.
Ela obedeceu. Em seguida, olhou pela janela e viu a multidão se movendo pela Bridge Street. Como se nunca tivesse visto aquilo antes. Como se nunca fosse ver novamente.
Ele vistoriou a parte interna do café. Ninguém a reconhecera. Por que reconheceriam? Ela estava morta e enterrada - enterrada no terreno de uma igreja em Basildon.
Uma cidade sem alma para uma garota sem nome nem passado.
- Você não precisa fazer isso - falou Gabriel depois de um instante.
- É claro que preciso.
- Eu já tenho o suficiente sem você. Tenho o vídeo de Zhirov.
- O Kremlin pode negar Zhirov - retrucou Madeline. - Mas não pode me negar.
Ela ainda contemplava a rua.
- Dê uma boa olhada - disse Gabriel -, porque, se você fizer o que está pretendendo, vai demorar um bom tempo até deixarem você voltar para Londres.
- Onde você acha que vão me colocar?
- Num esconderijo no meio do nada, talvez uma base militar, até a tempestade passar.
- Não parece muito agradável, parece?
- Você sempre pode voltar para Israel comigo.
Ela não respondeu. Gabriel se inclinou para a frente e segurou a mão dela, que tremia um pouco.
- Eu tenho uma casinha na Cornualha - revelou ele em voz baixa. - A cidade não é nada de mais, mas fica junto ao mar. Você pode permanecer lá se quiser.
- Tem vista?
- Uma vista adorável.
- Acho que eu gostaria.
Madeline deu um sorriso corajoso. Do outro lado da rua, o Big Ben bateu quatro horas.
- Ela está atrasada - comentou Gabriel, incrédulo. - Não acredito que ela está atrasada.
- Ela sempre está atrasada.
- Você a deixou bem impressionada, a propósito.
- Ela não foi a única.
Madeline riu, apesar das circunstâncias, e tomou um pouco do chá. Gabriel consultou o relógio e franziu a testa. Ele ergueu os olhos a tempo de ver Samantha Cooke
passar correndo pela porta. Um instante depois, estava à mesa deles, um pouco sem fôlego. Ela olhou para Gabriel e, em seguida, para a bela garota de cabelos escuros
sentada à sua frente. E, então, Samantha entendeu.
- Meu Deus - sussurrou.
- Quer algo para beber? - perguntou Madeline, com seu sotaque britânico.
- Na v-verdade - gaguejou Samantha -, talvez seja melhor darmos uma volta.
60
LONDRES
Trinta horas depois, um funcionário júnior da Downing Street entregou um pacote com vários jornais numa casa de tijolos vermelhos em Hampstead. A residência pertencia
a Simon Hewitt, o diretor de comunicações de Jonathan Lancaster, e o baque contra sua porta o acordou de um sono atipicamente profundo. Ele estava sonhando com um
incidente da infância, quando um valentão da escola o deixara com um olho roxo. Era uma leve melhora em relação ao pesadelo da noite anterior - em que fora despedaçado
por lobos -, ou mesmo ao da outra noite - uma nuvem de abelhas o picava até deixá-lo todo ensanguentado. Tudo fazia parte de um tema recorrente. Apesar do triunfo
de Lancaster nas urnas, Hewitt estava tomado por uma sensação de desastre iminente muito diferente de qualquer coisa que tivesse sentido desde que viera para a Downing
Street. Tinha certeza de que o silêncio na imprensa era ilusório. Sem dúvida um terremoto estava prestes a acontecer.
Tudo isso explicava por que Hewitt demorou para sair da cama e abrir a porta da frente naquela fria manhã londrina. Ao abaixar para pegar os jornais, sentiu um espasmo
nas costas, um lembrete do peso do emprego sobre a sua saúde. Ele levou o pacote para a cozinha, onde a cafeteira emitia o chacoalhar enferrujado que sinalizava
o fim de sua vida útil. Depois de se servir uma xícara grande e cobri-la com creme de leite fresco, tirou os jornais do plástico. Como sempre, o antigo periódico
de Hewitt, o Times, estava no topo. Ele o examinou rapidamente, não encontrou nada que chamasse atenção e seguiu para o Guardian. Depois foi a vez do Independent.
E, por fim, do Daily Telegraph.
- Merda - praguejou em voz baixa. - Merda, merda, merda.
No começo, a imprensa não soube bem que nome dar àquela história. Tentaram “O Caso de Madeline Hart”, mas pareceu restrito demais. Assim como “O Fiasco de Fallon”,
que durou algumas horas, ou “A Conexão do Kremlin”, que gozou de uma breve aparição na ITV. Ao fim da manhã, a BBC tinha se decidido por “O Caso da Downing Street”,
que era vago, mas amplo o bastante para cobrir todas as espécies de pecado. O resto da imprensa rapidamente adotou o título, e assim nasceu um escândalo.
Na maior parte do dia, Jonathan Lancaster, o homem no centro dele, permaneceu num silêncio inesperado. Enfim, às seis horas daquela tarde, a porta preta do número
10 se abriu e ele saiu sozinho para encarar o país. Com um tom de arrependimento, conseguiu manter os olhos secos e a voz firme. Reconheceu que tinha mantido um
relacionamento breve e insensato com uma jovem da sede do Partido. Também admitiu que convocara os serviços de um agente estrangeiro de inteligência para encontrar
a moça depois de seu desaparecimento; que, indevidamente, retivera informações das autoridades britânicas; e que pagara 10 milhões de euros pelo resgate. Em nenhum
momento, insistiu, chegou a suspeitar que a garota fosse uma espiã nascida na Rússia. Nem que o sequestro fizesse parte de uma conspiração bem orquestrada por uma
empresa petrolífera do Kremlin. Ele tinha aprovado a licença para a Volgatek seguindo a sugestão de Jeremy Fallon, seu assistente de longa data e chefe de gabinete.
E aquele acordo, ressaltou, agora estava desfeito.
Inteligente, Fallon emitiu sua própria declaração por escrito, pois, mesmo em seus melhores dias, parecia um homem culpado de alguma coisa. Ele reconheceu que havia
ajudado o primeiro-ministro a lidar com as consequências de sua “conduta pessoal imprudente”, mas negou categoricamente que tivesse aceitado pagamentos em dinheiro
de qualquer pessoa ligada à Volgatek. Os comentaristas políticos não deixaram de notar a agressividade da declaração. Para eles, Fallon acreditava que Lancaster
talvez não sobrevivesse e que poderia tomar seu cargo. Aquilo tudo estava se transformando numa luta por sobrevivência. Talvez até mesmo uma luta até a morte.
A declaração seguinte não veio de Londres, mas de Moscou. O presidente russo disse que as alegações contra o Kremlin e sua empresa de petróleo eram uma maliciosa
mentira ocidental. Num sinal claro de que a questão teria repercussões geopolíticas, acusou a inteligência britânica de ter se envolvido no desaparecimento de Pavel
Zhirov, o homem que era a base daquelas alegações. Então, sem oferecer qualquer prova, insinuou que Viktor Orlov tinha alguma relação com o caso. De sua sede em
Mayfair, o ex-oligarca emitiu uma declaração provocativa contradizendo o presidente e afirmando que ele era um mentiroso congênito e cleptocrata que enfim mostrara
sua verdadeira face. Em seguida, entregou-se imediatamente a uma equipe de segurança do MI5 e desapareceu de vista.
Mas quem era o misterioso agente de um serviço estrangeiro que Lancaster convocara para encontrar Madeline Hart? Alegando questões de segurança nacional, o primeiro-ministro
se recusou a identificá-lo. Jeremy Fallon também não esclareceu o assunto. Inicialmente, a especulação se focou nos americanos, de quem se sabia que Lancaster era
próximo. Mas isso mudou quando o Times noticiou que Gabriel Allon, o famoso agente secreto israelense, fora visto entrando na Downing Street em duas ocasiões distintas
durante o período em questão. Em seguida, o Daily Mail relatou que um membro do alto escalão do Parlamento o vira com uma jovem no Café Nero um dia antes de o escândalo
vir à tona. A matéria do Mail foi considerada baboseira sensacionalista - com certeza o grande Gabriel Allon não seria tão tolo a ponto de sentar-se num café movimentado
em Londres sem se disfarçar mas era difícil rejeitar a reportagem do Times. Quebrando a tradição, o Escritório emitiu uma declaração lacônica negando as informações
dos dois relatos, algo que a imprensa britânica viu como uma confirmação inegável do envolvimento de Allon.
Depois disso, o escândalo entrou num ciclo previsível de vazamento de informações e contrainformações e de guerra política aberta. O líder da oposição declarou sua
repulsa e exigiu a renúncia de Lancaster. Mas, quando uma sondagem na Câmara dos Comuns revelou que Lancaster sobreviveria por pouco ao processo do voto de não confiança,
o oposicionista não se deu o trabalho de agendá-lo. Até mesmo Fallon pareceu resistir à tempestade. Afinal, não havia nenhuma prova de que ele tivesse aceito qualquer
pagamento da Volgatek, apenas a palavra de um executivo russo da indústria do petróleo que parecia ter desaparecido da face da Terra.
E tudo poderia ter terminado dessa forma, com o casamento Lancaster-Fallon bastante prejudicado mas ainda intacto, se não fosse pela edição do Daily Telegraph que
acertou com um baque a porta de Simon Hewitt na segunda terça-feira de janeiro. Na primeira página, ao lado de um artigo de Samantha Cooke, havia uma fotografia
de Fallon entrando num pequeno banco particular em Zurique. Algumas horas depois, Lancaster voltou a aparecer sozinho diante da famosa porta do número 10, dessa
vez para anunciar a demissão do ministro do Tesouro. Após alguns minutos, a Scotland Yard anunciou que Fallon passara a ser alvo de uma investigação de suborno e
fraude. Ele novamente declarou inocência. Nenhum membro da equipe de imprensa de Whitehall acreditou.
Ele saiu da Downing Street pela última vez ao pôr do sol e voltou para o pequeno apartamento vazio em Notting Hill. O prédio parecia cercado por todos os repórteres,
cinegrafistas e fotógrafos de Londres. O inquérito não chegaria a determinar como ou quando ele os despistara, embora uma gravação de circuito fechado tenha capturado
uma imagem clara de seu rosto abatido às 2h23 da madrugada seguinte enquanto ele caminhava por um trecho deserto da Park Lane, com uma corda já presa no pescoço.
Com um nó náutico que tinha aprendido com o pai, amarrou a outra ponta num poste no centro da Ponte de Westminster. Ninguém chegou a ver Fallon se jogando do parapeito,
então ele passou a noite inteira pendurado, até que o sol enfim iluminou o seu corpo oscilante. Assim, provou-se verdadeiro um antigo e sábio provérbio corso: “Aquele
que leva uma vida imoral tem uma morte imoral.”
61
CÓRSEGA
Mas quem tinha fornecido a fotografia condenatória que custou o emprego de Jeremy Fallon e o levou a pular da Ponte de Westminster? Essa era a pergunta que dominaria
os círculos políticos britânicos nos meses seguintes. Mas, na ilha encantada onde o escândalo teve sua gênese, apenas algumas pessoas sofisticadas com jeito de terem
vindo do norte devotaram seu tempo a pensar na questão. De vez em quando, surgia um casal no Les Palmiers para tirar uma foto posando de Madeline Hart e Pavel Zhirov
na tarde em que ambos tiveram o fatídico almoço. Porém, de forma geral, os habitantes da ilha se esforçaram para esquecer o pequeno papel que sua terra tinha desempenhado
na morte de um importante político britânico. Com a chegada do inverno, os corsos retomaram instintivamente os seus velhos hábitos. Eles queimaram a macchia para
se aquecerem. Sacudiram os dedos na direção de estranhos para afastar o mau-olhado. E, num vale isolado perto da costa sudoeste, buscaram a ajuda de Don Anton Orsati
quando não podiam recorrer a mais ninguém.
Numa tarde tempestuosa em meados de fevereiro, sentado à mesa de carvalho em seu amplo escritório, ele recebeu um telefonema incomum. O homem do outro lado da linha
não queria que alguém fosse eliminado - na verdade, nada surpreendente, pensou o don, pois o interlocutor era mais do que capaz de cuidar dos próprios assassinatos.
Em vez disso, ele estava em busca de uma casa onde pudesse passar algumas semanas a sós com a esposa. Deveria ser um lugar onde ninguém fosse reconhecê-lo e ele
não precisasse de guarda-costas. Orsati tinha o lugar perfeito. Mas havia um problema: só se entrava e saía por uma única rua, que passava por três oliveiras centenárias,
onde o maldito bode de Don Casabianca acampava.
- Existe alguma forma de ele sofrer um acidente trágico antes de nós chegarmos? - perguntou o homem pelo telefone.
- Desculpe - respondeu Don Orsati mas aqui na Córsega algumas coisas nunca mudam.
Eles chegaram à ilha três dias depois, por um voo que saiu de Tel Aviv, fez escala em Paris e seguiu para Ajaccio. Don Orsati tinha deixado um carro à disposição
no aeroporto, um Peugeot sedã cinza reluzente que Gabriel dirigiu com a típica despreocupação corsa. Foi em direção ao sul, percorrendo a costa, e então rumo ao
interior, passando por vales tomados pela macchia. Quando eles chegaram às três oliveiras centenárias, o bode se ergueu ameaçador e bloqueou o caminho. Mas rapidamente
lhes deu passagem depois que Chiara disse algumas palavras tranquilizadoras em seu ouvido.
- O que você disse? - perguntou Gabriel, quando eles continuaram o percurso.
- Que você sentia muito por ter sido malvado com ele.
- Mas eu não sinto. Ele foi o agressor.
- Ele é um bode, querido.
- Ele é um terrorista.
- Como é que você pode administrar o Escritório se não consegue se entender com um bode?
- Boa pergunta - replicou ele, carrancudo.
A casa ficava pouco mais de um quilômetro depois do reduto do bode. Era pequena e mobiliada com simplicidade, com um piso claro de pedra calcária. Pinheiros-larícios
sombreavam o terraço de granito pela manhã, mas, à tarde, o sol batia com força nas pedras. De dia, o tempo era frio e agradável; à noite, o vento assobiava ao passar
pelas árvores. Eles as observavam oscilar enquanto tomavam vinho tinto corso diante da fogueira. D fogo queimava com um tom azul-esverdeado, por causa da madeira
da macchia, e cheirava a alecrim e tomilho. Em pouco tempo, Gabriel e Chiara também adquiriram aquele aroma.
O único plano deles era não fazer quase nada. Dormiam tarde. Tomavam café da manhã na praça do vilarejo. Comiam peixe no almoço, perto do mar. Durante a tarde, se
estivesse quente, havia banho de sol no terraço e, se estivesse frio, retiravam-se para o quarto simples e faziam amor até dormirem de exaustão. Shamron deixou inúmeras
mensagens lamuriosas que Gabriel ignorou com alegria. Dentro de um ano, todos os seus instantes de vigília seriam consumidos pela tarefa de proteger Israel dos que
desejavam destruí-la. Mas, por enquanto, havia apenas Chiara, o sol frio, o mar e o cheiro inebriante dos pinheiros e da macchia.
Nos primeiros dias, evitaram os jornais, a internet e a televisão. Mas, aos poucos, Gabriel se reconectou com um mundo de problemas que logo seriam dele. O chefe
da AIEA, a agência de vigilância nuclear da ONU, previu que o Irã se tornaria uma potência do ramo dentro de um ano. No dia seguinte, apareceu no noticiário que
o regime na Síria tinha transferido armas químicas para o Hezbollah. E, um dia depois, o Irmão Muçulmano que administrava o Egito foi gravado falando sobre uma nova
guerra com Israel. De fato, as únicas boas notícias que Gabriel conseguiu encontrar vieram de Londres, onde Jonathan Lancaster, sobrevivente do Caso da Downing Street,
designou Graham Seymour para o cargo de diretor do MI6. Gabriel ligou para ele na mesma tarde a fim de parabenizá-lo. Mas, na verdade, queria saber de Madeline.
- Ela está se dando melhor do que eu esperava.
- Onde ela está?
- Parece que um amigo lhe ofereceu um chalé perto do mar.
- É mesmo?
- Não é um procedimento muito ortodoxo - admitiu Seymour -, mas decidimos que era um lugar tão bom quanto qualquer outro.
- Só não dê as costas para ela, Graham. O SVR tem um alcance muito grande.
Foi por causa desse grande alcance que Gabriel e Chiara mantiveram-se bastante discretos na ilha. Eles raramente saíam da casa depois de escurecer e, diversas vezes
por noite, Gabriel ia ao terraço para ficar atento a movimentos no vale. Com uma semana de estadia, ele escutou o chacoalhar familiar de um Renault e, um instante
depois, viu luzes acesas na casa de Keller pela primeira vez. Esperou até a tarde seguinte para aparecer sem aviso prévio. O Inglês estava usando calças brancas
largas e um pulôver branco. Ele abriu uma garrafa de Sancerre e os dois beberam fora da casa, ao sol. Sancerre de tarde, tinto à noite: Gabriel podia facilmente
se acostumar àquilo. Mas agora não havia mais como voltar atrás. Seu povo precisava dele. Tinha um compromisso com a história.
- Daria para melhorar um pouco o Cézanne - comentou Gabriel casualmente. - Que tal me deixar restaurá-lo enquanto estou na cidade?
- Eu gosto do Cézanne do jeito que ele está. Além disso, você veio aqui para descansar.
- Você não precisa?
- Do quê?
- De descanso.
Keller não respondeu.
- Onde você esteve, Christopher?
- Fiz uma viagem de negócios.
- Azeite de oliva ou sangue?
Keller ergueu uma sobrancelha, indicando que era a segunda opção, e Gabriel balançou a cabeça em reprovação.
- Não dá para ganhar dinheiro cantando - disse Keller em voz baixa.
- Existem outras maneiras de ganhar dinheiro, sabia?
- Não quando o seu nome é Christopher Keller e você deveria estar morto. Gabriel tomou um pouco de vinho.
- Eu não incluí você na equipe porque precisava da sua ajuda - explicou ele depois de um instante. - Queria mostrar a você que há mais na vida do que matar pessoas
por dinheiro.
- Você queria me restaurar? É isso que está dizendo?
- É um instinto natural.
- Algumas coisas estão além do reparo. - Keller fez uma pausa. - Além da redenção.
- Quantos homens você matou?
- Não sei. Quantos você matou?
- Para mim é diferente. Eu sou um soldado. Secreto, mas, ainda assim, um soldado. - Ele olhou para Keller, sério, por um momento. - E você também pode ser.
- Você está me oferecendo um emprego?
- Você precisaria se tornar um cidadão israelense e aprender a falar hebraico para trabalhar no Escritório.
- Eu sempre me senti meio judeu.
- Sim - disse Gabriel -, você já mencionou isso.
Keller sorriu, e caiu o silêncio. O vento da tarde começava a se intensificar.
- Existe outra possibilidade, Christopher.
- Qual?
- Você já reparou quem foi nomeado novo diretor-geral do MI6?
Keller não respondeu.
- Eu posso falar sobre você com Graham. Ele pode lhe dar uma nova identidade. Uma nova vida.
Keller ergueu a taça de vinho na direção do vale.
- Eu tenho uma vida. Uma vida muito boa, na verdade.
- Você é um mercenário. Um criminoso.
- Eu sou um bandido de honra. Existe uma diferença.
- Como queira.
- Foi por isso que você veio à Córsega? Para me convencer a voltar para casa?
- Suponho que sim.
- Se eu deixar você restaurar o Cézanne, promete que me deixa em paz?
- Não - respondeu Gabriel.
- Então talvez seja melhor aproveitar o silêncio.
62
CÓRSEGA
Três dias depois, Don Orsati convidou Gabriel a seu escritório para uma conversa. Não era de fato um convite que pudesse ser polidamente recusado. Era uma ordem
shamroniana, gravada em pedra, inviolável.
- Que tal no horário do almoço? - perguntou Gabriel, sabendo que Orsati provavelmente estaria de bom humor naquele horário.
- Ótimo - concordou o don. Mas acrescentou, ameaçador: - Talvez seja melhor se você vier sozinho.
Gabriel saiu da casa pouco depois do meio-dia. O bode lhe deu passagem sem nenhum confronto, pois o reconheceu como um associado da linda mulher italiana. Os guardas
em frente à propriedade também permitiram que ele passasse, pois Orsati avisara que o israelita era esperado. Encontrou o don em seu amplo escritório, curvado sobre
os livros-razão.
- Como estão os negócios?
- Melhores do que nunca. Tenho mais pedidos do que seria possível cumprir.
Orsati não esclareceu se estava falando de sangue ou azeite. Conduziu Gabriel a uma sala de jantar; sobre a mesa, havia um banquete corso. Com portas caiadas e móveis
simples, o cômodo lembrava a Gabriel a sala de jantar particular do papa no Palácio Apostólico. Havia até mesmo um crucifixo pesado de madeira na parede atrás do
assento reservado para o don.
- Incomoda você? - perguntou Orsati.
- De forma nenhuma.
- Christopher me disse que você é familiarizado com igrejas católicas.
- O que mais ele disse?
Orsati franziu a testa, mas ficou em silêncio enquanto servia Gabriel com comida e vinho.
- Gostou da casa? - perguntou, por fim.
- É perfeita, Don Orsati.
- E a sua esposa está feliz aqui?
- Muito.
- Quanto tempo você pretende ficar?
- Pelo tempo em que eu for bem-vindo.
Estranhamente, o don nada respondeu.
- Será que a minha estadia já se alongou demais, Don Orsati?
- Você pode ficar aqui na ilha o tempo que quiser. - O don fez uma pausa. - Desde que não se envolva em questões que afetem os meus negócios.
- Obviamente você se refere a Keller.
- Obviamente.
- Não era minha intenção desrespeitá-lo, Don Orsati. Eu estava apenas...
- Envolvendo-se em questões que não lhe dizem respeito.
O celular do don vibrou suavemente. Ele o ignorou.
- Eu não o ajudei quando você veio para a ilha pela primeira vez em busca da garota inglesa?
- Ajudou.
- Não forneci Keller sem cobrar nada para ajudar a encontrá-la?
- Eu não teria conseguido sem ele.
- Não relevei o fato de nunca terem me oferecido parte do dinheiro que você recuperou?
- O dinheiro está na conta do presidente russo.
- Isso é o que você diz.
- Don Orsati...
Ele fez um gesto de desdém.
- Do que se trata, então? Dinheiro?
- Não - admitiu o don. - É sobre Keller.
Uma rajada atingiu as portas francesas que davam acesso ao jardim de Don Orsati. Era o libeccio, um vento do sudoeste. No inverno, normalmente trazia chuva, mas
por ora o céu estava limpo.
- Aqui na Córsega - disse o don, após um momento de silêncio as nossas tradições são muito antigas. Por exemplo, um jovem nunca sonharia em propor casamento a uma
mulher sem antes pedir sua mão ao pai dela. Você entende o meu ponto, Gabriel?
- Acredito que sim, Don Orsati.
- Você deveria ter falado comigo antes de conversar com Christopher sobre voltar à Inglaterra.
- Foi um erro da minha parte.
A expressão de Orsati se amenizou. Lá fora, o libeccio virou uma mesa e uma cadeira no jardim. Ele gritou algo para o alto no dialeto corso e, alguns segundos depois,
um homem bigodudo com uma espingarda pendurada no ombro apareceu correndo no jardim para colocar a mobília no lugar.
- Você não sabe como o seu amigo Christopher estava quando chegou aqui do Iraque. Ele estava em frangalhos. Eu lhe dei uma casa. Uma família. Uma mulher.
- E trabalho. Bastante trabalho.
- Ele é muito bom no que faz.
- Sim, eu sei.
- Melhor do que você.
- Quem disse isso?
O don sorriu. O silêncio pairou e Gabriel aproveitou a pausa para escolher as próximas palavras com muito cuidado:
- Não é uma maneira adequada para Christopher ganhar a vida.
- “Quem mora em casa de vidro não deveria atirar pedras.”
- Eu nunca soube que era um provérbio corso.
- Todas as coisas sábias vêm da Córsega. - Orsati afastou o prato e apoiou os antebraços pesadamente na mesa. - Existe algo que você parece não compreender. Christopher
é mais do que o meu melhor taddunaghiu. Eu o amo como um filho. E, se algum dia ele fosse embora... eu ficaria de coração partido.
- O pai biológico de Christopher acha que ele está morto.
- Não havia outra maneira.
- Como você se sentiria se os papéis fossem trocados?
Orsati não tinha resposta, então mudou de assunto:
- Você realmente acha que esse amigo seu da inteligência britânica estaria interessado em levar Christopher de volta para a Inglaterra?
- Ele seria um tolo se não o fizesse.
- Mas talvez ele se negue. E, ao discutir a questão, você pode pôr em risco a posição de Christopher aqui na Córsega.
- Eu vou fazer tudo de uma forma que não o ameace.
- Seu amigo é um homem de confiança?
- Eu confiaria minha própria vida a ele. Na verdade, já fiz isso muitas vezes.
Orsati respirou fundo, resignado. Estava prestes a dar sua bênção à proposta incomum de Gabriel quando o celular vibrou novamente. Dessa vez ele atendeu. Ouviu em
silêncio por um instante, falou algumas palavras em italiano e desligou.
- Quem era? - perguntou Gabriel.
- Sua esposa - respondeu o don.
- Algo errado?
- Ela quer dar uma volta pelo vilarejo.
Gabriel começou a se levantar.
- Fique e termine seu almoço - disse Orsati. - Vou mandar dois garotos para ficarem de olho nela.
Gabriel se sentou. O libeccio estava provocando o caos no jardim. Orsati observou a cena em silêncio por um momento, triste.
- Continuo feliz por não termos precisado matá-lo, Allon.
- Garanto, Don Orsati, que o sentimento é mútuo.
O vento perseguiu Chiara pela trilha estreita, passando pelos gatos e pelas casas com as venezianas fechadas até alcançar a praça principal, onde rodopiou pelas
construções e vandalizou as mesas de exposição dos vendedores. Ela foi para o mercado e encheu a cesta de palha com alguns itens para o jantar. Em seguida, sentou-se
a uma mesa em uma das cafeterias e pediu um café. No centro da praça, alguns velhos jogavam boules em meio a minúsculos ciclones de poeira e, nos degraus da igreja,
uma idosa vestida de preto passava um pedaço de papel azul para um garoto de cabelos castanhos bem compridos. Observando-o, Chiara sorriu com tristeza. Ela pensou
em como o filho de Gabriel, Dani, seria agora se tivesse vivido até os 10 anos.
A mulher desceu a escadaria e entrou numa pequena casa torta. O garoto começou a atravessar a praça com o papel azul na mão. Para surpresa de Chiara, entrou na cafeteria
onde ela estava e colocou o papel em sua mesa sem dizer uma palavra. Ela esperou o garoto partir antes de ler a única linha:
Preciso vê-la imediatamente.
Quando Chiara chegou, a signadora estava esperando à porta de sua casa. Ela sorriu, tocou-lhe a bochecha com delicadeza e conduziu-a para dentro.
- Você sabe quem eu sou? - perguntou a velha.
- Tenho uma boa ideia.
- Seu marido falou de mim?
Chiara assentiu.
- Eu o avisei para não ir à cidade dos hereges, mas ele não escutou. Ele tem sorte de estar vivo.
- Ele é osso duro de roer.
- Talvez ele seja um anjo, afinal. - A senhora tocou o rosto de Chiara de novo. - E você também foi até lá, não é mesmo?
- Quem lhe disse que eu fui à Rússia?
- Você foi sem dizer ao seu marido - continuou a signadora, como se não tivesse escutado a pergunta. - Vocês ficaram juntos por algumas horas num quarto de hotel
na cidade da noite. Você se lembra?
Ela sorriu, ainda tocando o rosto de Chiara. Então, afastou-lhe os cabelos.
- Devo continuar? - indagou a velha.
- Não acredito que você possa ver o passado.
- Seu marido foi casado com outra mulher antes de você - prosseguiu a signadora, como se tentasse provar que Chiara estava enganada. - Havia uma criança. Houve um
incêndio. A criança morreu, mas a mulher, não. Ela ainda vive.
Chiara se afastou com um movimento brusco.
- Você o amou por muito tempo - continuou a velha -, mas ele não se casou com você por causa do luto. Ele a mandou embora, mas voltou numa cidade de água.
- Como você sabe disso?
- Ele fez uma pintura de você envolta em lençóis brancos.
- Foi um esboço - retrucou Chiara.
A mulher deu de ombros, indicando que aquilo não fazia muita diferença. Então, gesticulou na direção da mesa, onde havia um prato com água e uma vasilha de azeite
ao lado de duas velas acesas.
- Não quer sentar? - perguntou ela.
- Prefiro continuar em pé.
- Por favor. Só vai levar um instante. E, então, eu saberei com certeza.
- Saberá o quê?
- Por favor - repetiu ela.
Chiara se sentou. A velha se acomodou à sua frente.
- Mergulhe o dedo no azeite. Depois, deixe três gotas caírem na água.
Chiara seguiu as instruções com relutância. Ao tocar a superfície da água, o azeite reuniu-se numa única gota. A velha teve um sobressalto e uma lágrima desceu por
sua bochecha pálida.
- O que você vê? - perguntou Chiara.
A mulher segurou a mão dela.
- Seu marido está esperando na casa. Vá e diga a ele que vai ser pai de novo.
- Menino ou menina?
A signadora sorriu.
- Um de cada.
Nota do Autor
A versão da pintura Suzana e os anciãos que aparece na história não existe. Se existisse, seria uma ótima obra, assim como a que está no Museu de Belas-Artes em
Reims, na França. Há de fato um edifício de calcário na rua Narkiss, em Jerusalém - aliás, vários. Mas não reside ali nenhum oficial da inteligência israelense chamado
Gabriel Allon. A sede do serviço secreto de Israel não fica mais no King Saul Boulevard, em Tel Aviv. Mantive o endereço porque sempre gostei do nome. O bombardeio
ao Hotel King David em 1946 é um fato histórico, embora Arthur Seymour - pai do oficial fictício do MI5, Graham Seymour - não tenha realmente presenciado a situação.
Não há nenhuma exposição no Museu de Israel com os pilares do Templo de Salomão, pois nunca foi descoberta nenhuma ruína dele.
Existe um restaurante chamado Les Palmiers em Calvi, mas, até onde sei, nunca foi utilizado como ponto de encontro para dois espiões russos. A empresa Orsati Olive
Oil foi inventada por mim, assim como o incidente de fogo amigo que levou Christopher Keller - que apareceu pela primeira vez em O assassino inglês - a deixar o
Serviço Aéreo Especial e tornar-se um matador de aluguel na Córsega. Os que estão familiarizados com a ilha e suas ricas tradições vão notar que eu dei poderes à
minha signadora fictícia que a maioria de seus colegas não professa ter.
A companhia de energia russa conhecida como Volgatek Óleo e Gás também não existe. Eu mexi nos tempos de voo da El Al entre Tel Aviv e São Petersburgo para atender
às necessidades da minha operação. Os corajosos que visitam São Petersburgo no pesado inverno não devem tentar escalar a gloriosa cúpula da Catedral de Santo Isaac,
pois ela fica fechada durante o tempo frio. Para constar: gosto muito do Café Nero na Bridge Street. Minhas sinceras desculpas aos hotéis Metropol, Astoria e Ritz-Carlton
por executar operações de inteligência com base em suas instalações, mas tenho certeza de que não fui o primeiro.
Eu me esforcei para descrever de forma precisa a atmosfera dentro do número 10 da Downing Street, embora admita que, ao contrário de Gabriel Allon, nunca tenha passado
pela barreira de segurança da Whitehall. Ao criar Jeremy Fallon, dei-lhe a ampla autoridade que o primeiro-ministro Tony Blair deu a Jonathan Powell, o chefe de
gabinete verdadeiro. Tenho certeza de que a presença do brilhante e escrupuloso Powell ao lado de Lancaster teria prevenido todo o caso sórdido retratado em A garota
inglesa.
O aumento da espionagem por parte do serviço de inteligência russo contra alvos ocidentais tem sido bem documentado. Oleg Gordievsky, desertor da KGB, disse ao The
Guardian recentemente que o tamanho da rezidentura do SVR em Londres chegou ao nível da Guerra Fria. Gordievsky tem credibilidade para fazer essa declaração porque
trabalhou para a KGB em Londres entre 1982 e 1985. Além disso, o MI5 chegou à mesma conclusão, então ele não está sozinho em sua avaliação. “É muito frustrante ainda
ter que empregar um montante significativo de equipamento, dinheiro e pessoal para combater essa ameaça. São recursos que eu com certeza preferiria empregar para
combater ameaças de terrorismo internacional”, disse o diretor-geral do MI5, Jonathan Evans.
Embora Londres ainda seja um eixo importante de atividade da inteligência russa, os Estados Unidos permanecem como o foco principal do Centro Moscovita. O FBI forneceu
provas extensas desse fato em junho de 2010, quando prendeu dez espiões russos que viviam no país sob disfarces não oficiais e ilegais havia muitos anos. Receosa
de comprometer o tão anunciado “recomeço” nas relações com o Kremlin, a administração de Obama logo decidiu enviar os espiões à Rússia como parte de uma troca de
prisioneiros - a maior já realizada entre os dois países desde a Guerra Fria. Entre os espiões, a mais conhecida era Anna Chapman, uma belíssima femme fatale que
viveu em Londres muitos anos antes de se mudar para Nova York, trabalhando como agente imobiliária e acompanhante de festas. Desde que retornou à Rússia, Chapman
apresentou um programa de TV, escreveu uma coluna no jornal e posou para a capa de uma revista de lingerie francesa. Ela também foi indicada para o conselho orientador
da Guarda Jovem do partido Rússia Unida, uma organização pró-Kremlin afiliada ao partido que governa o país. Os críticos da Guarda Jovem frequentemente se referem
à organização, em tons sombrios, como “Juventude Putinista”.
A maior parte da espionagem russa contra os Estados Unidos é de natureza industrial e econômica. As razões são dolorosamente óbvias: quase um quarto de século após
o colapso da União Soviética, a Rússia continua sendo um país praticamente incapaz de se manter sozinho, bastante dependente de matérias-primas e, claro, de petróleo
e gás. O presidente Vladimir Putin nunca manteve segredo sobre o que a energia significa para a nova Rússia. Na verdade, o Kremlin declarou em um documento de estratégia
de 2003 que “o papel do país no mercado de energia global determina em grande parte sua influência geopolítica”. O governo, sabiamente, suavizou a linguagem para
falar da importância do setor de energia russo, mas os objetivos permanecem os mesmos. Sem seu império e militarmente fraca, a Rússia pretende ganhar poder no cenário
mundial com petróleo e gás em vez de armas nucleares e ideologia marxista-leninista. Além disso, os gigantes estatais de energia não estão satisfeitos em operar
apenas dentro da Rússia, onde a produção dessas commodities já se estabilizou. Eles passaram a adquirir ativos de upstream e downstream como parte do estratagema
para se tornarem participantes reais do mercado de energia global. Em suma, a Rússia está tentando se transformar na Arábia Saudita euroasiática.
A gigante estatal russa Gazprom é a maior companhia de gás do mundo e suas receitas são a fonte de grande parte do orçamento federal anual do Kremlin. Muitas das
antigas repúblicas soviéticas recebem todo o gás natural da Rússia, assim como a pequena Finlândia. Mais de quarenta por cento do produto da Alemanha vêm da Rússia;
já na Áustria, a porcentagem chega a oitenta. Enquanto o avanço na tecnologia de perfuração leva mais gás ao mercado internacional, os gasodutos que ligam a Europa
e a Rússia ajudam a garantir a posição dominante da Gazprom nos próximos anos. E seus muitos clientes europeus devem lembrar que a empresa operou como instrumento
de repressão política em 2001, quando comprou a NTV, a única opção de transmissão nacional independente e uma feroz crítica de Putin e do Rússia Unida. Agora, a
perspectiva editorial da NTV é seguramente pró-Kremlin.
Após um breve período como primeiro-ministro, Putin foi eleito para um terceiro mandato como presidente da Rússia em março de 2012. Ex-agente da KGB, encontra-se
em posição para governar, pelo menos, até 2024 - período maior do que Leonid Brejnev e quase tão longo quanto o de Joseph Stálin. Obviamente, nem todos os russos
apoiam seu apego ditatorial ao poder, porém cada vez mais vozes da oposição estão sendo silenciadas, às vezes de forma violenta. Em novembro de 2009, Sergei Magnitsky
- advogado e contador moscovita que fez acusações de desfalque a policiais e funcionários da receita federal - morreu de repente numa prisão russa, aos 37 anos.
O incidente provocou condenação e sanções dos Estados Unidos. Agora o Kremlin está de olho em Alexei Navalny, o dissidente mais proeminente e líder do movimento
de protesto que varreu o país após o retorno de Putin à presidência. No momento em que escrevo esta nota, ele aguarda julgamento por acusações de desvio de dinheiro
- acusações que Navalny e sua legião de apoiadores denunciaram como politicamente motivadas. Caso seja condenado, pode passar dez anos na prisão, onde não será uma
ameaça a Putin e aos seus companheiros siloviki no Kremlin.
Na nova Rússia de Putin, com demasiada frequência, as penas de prisão com qualquer tipo de duração equivalem a uma sentença de morte. De acordo com as autoridades
russas, 4.121 pessoas morreram sob custódia do governo só em 2012, porém advogados pró-democracia dizem que é provável que o número real seja muito maior. Isso pode
explicar por que Alexander Dolmatov, ativista pró-democrata russo, se suicidou no centro de detenção de Roterdã em janeiro de 2013. Com medo de ser preso e julgado
na Rússia, ele voou para a Holanda em busca de asilo político. Quando sua solicitação foi negada, enforcou- se na cela. O governo holandês disse que o suicídio de
Dolmatov não teve nada a ver com a negação do asilo. Os amigos dele no movimento de oposição não compartilham dessa opinião.
Os nomes de Magnitsky, Navalny, Dolmatov são conhecidos no Ocidente, mas existem muitos outros que já definharam nas celas das prisões russas por terem ousado erguer
um cartaz de protesto ou escrever um blog criticando Vladimir Putin. Na Rússia, a intensificação do autoritarismo continua. E os gigantes do petróleo e do gás do
Kremlin estão pagando a conta.

 

 

                                                   Daniel Silva         

 

 

 

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