Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Memórias de Idhún
Volume VI / Segunda Parte
A GÊNESIS
Aos tropeções, saíram das masmorras. Na sala dos guardas, Victoria deteve-se durante uns segundos para fazer saltar o cadeado do baú das armas confiscadas aos presos. Encontrou lá Haiass e resgatou-a, com a esperança de que Christian pudesse voltar a empunhá-la num futuro próximo.
Ainda teve de enfrentar mais três soldados e dois cavaleiros de Nurgon antes de sair da sala. Victoria sabia que não lutava de forma justa se os cegasse com a sua luz para os derrotar, mas agora não podia dar-se ao luxo de ser compassiva.
Por fim, chegaram ao pátio de armas. Victoria colou-se à parede e empurrou Christian até um canto escuro, para que a luz das luas não revelasse a sua posição. Dali estudou todas as possíveis vias de fuga. Como era de esperar, Alsan fizera redobrar a vigilância em todas as portas. Não tardariam a dar o alarme e todos aqueles guardas iriam cair-lhes em cima.
Apesar de tudo, ficou imóvel durante uns segundos, à espera. Talvez aguardasse que surgisse, milagrosamente, um modo de tirar Christian dali. Mas no fundo sabia que uma parte de si ainda estava à espera de que Jack se juntasse a eles no último momento.
Fechou os olhos e respirou fundo. Sabia que, se se fosse embora, talvez Jack não lho perdoasse, talvez o perdesse para sempre. Mas tinha de salvar a vida de Christian.
Arriscou-se a esperá-lo mais um pouco.
Mas Jack não apareceu.
Então, repentinamente, um suave arrulhar sobressaltou-a e fê-la erguer a cabeça.
Do alto da muralha contemplava-a um haai.
- Não é possível - murmurou Victoria, sem conseguir acreditar na sua boa sorte. Seria aquele o milagre de que tinha estado à espera?
- Chamei-o eu - disse uma voz nas suas costas.
A jovem moveu-se para esconder atrás dela o corpo de Christian, que respirava com dificuldade, apoiado contra o muro.
- Sabia que não irias aguardar pelo julgamento, rapariga - disse a voz, e Victoria reconheceu o tom aprazível de Ha-Din, o Pai Venerável. Espero que saibas o que estás a fazer.
O celeste aproximou-se dela, saído das sombras. Parecia cansado, muito cansado, mas o seu rosto reflectia também determinação. Victoria ergueu a cabeça.
- Pai, sabes que há um laço entre nós...
- Um laço forte e sólido - completou o celeste. - Sim, eu sei. Mas não necessitas de me dar explicações. Se puderes escolher entre salvar uma vida e extingui-la, escolhe sempre salvar uma vida, sem ter em conta o passado ou as circunstâncias dessa pessoa. Porque, ao assassiná-la, a única coisa que fazes é reproduzir o comportamento daquele a quem pretendes castigar. Tu tens motivos pessoais para salvar o shek. Eu, não. Mas salvava-o na mesma, se pudesse. Por isso chamei este pássaro para ti.
Victoria fechou por um momento os olhos, porque se lhe enchiam de lágrimas de gratidão.
- Pai, eu... - começou, mas Ha-Din interrompeu-a com um gesto.
- Não são necessárias palavras. Comigo, não. Vai-te embora, filha, e faz o que achares conveniente. A única coisa que te peço é que descubras o que é esse objecto que tem no peito e que é tão semelhante ao que brilha no braço de Alsan.
Victoria inclinou a cabeça.
- Creio que reprime uma parte da sua alma... de forma brutal - sussurrou. - Perdeu os seus sentidos de shek. O seu poder mental. É como se o tivessem encerrado num cubículo diminuto e escuro, completamente isolado do mundo. Para um shek, isso é uma tortura atroz, um estado pior do que a morte.
- Reprimir a sua parte shek - repetiu Ha-Din. - Sim, isso é mau. Também a gema que o rei de Vanissar usa tem nele um efeito parecido. Encerrou o animal num recanto da sua alma. E, com o animal, todo o ódio que pudesse ter dentro dele.
- Mas isso... parece ser bom, não?
- Em certos aspectos, sim. Mas, Victoria, quando alguém acha que o mal não lhe pode tocar, começa a achar-se no direito de julgar os outros. Torna-se intolerante perante os defeitos e as faltas alheias, que começa a considerar imperdoáveis, sentindo-se acima de tudo isso.
- É o que está a acontecer a Alsan - murmurou Victoria. - Não só quer reparar os erros que pensa que cometeu, como acha que se livrou de todo o mal que havia nele e por isso comporta-se desse modo.
Ha-Din inclinou a cabeça.
- A gema de Kirtash está a produzir o mesmo efeito sobre ele - disse -, separando a luz da escuridão, reprimindo-a no fundo da sua alma. Mas os sheks não são como os humanos. Isso vai matá-lo.
- Os sheks não são maus de todo - protestou Victoria. - Ele...
- Não se trata do que eu acredito - interrompeu Ha-Din -, mas sim da visão que os deuses têm do mundo. E um objecto assim só pode provir deles. Dos Seis, do Sétimo, não sei... está nas tuas mãos descobrir.
- Entendo - assentiu Victoria. - Obrigada por tudo, Pai. Prometo-te que farei o possível por encontrar respostas.
Ha-Din entoou uma breve melodia, e o haai desceu até pousar junto a Victoria.
- Que os Seis te protejam, filha - disse o celeste.
Pouco depois, a ave elevava-se sobre os telhados de Vanis, guiada pela mão de Victoria, que amparava Christian nos seus braços, moribundo. Sabia que deixava muitas coisas para trás... coisas que, provavelmente, nunca poderia recuperar. Mas, se existia a mínima possibilidade de salvar Christian, Victoria estava disposta a encontrá-la...
- Sabias que ia tentar salvar Kirtash? - perguntou Alsan, e os seus olhos reflectiam uma cólera fria que o seu rosto de pedra não revelava.
Jack ergueu a cabeça. Os seus olhos estavam marcados por profundas olheiras, porque não tinha conseguido dormir durante toda a noite; mas estava sereno.
- Sim, sabia.
- E porque não tentaste impedi-la?
- Porque estou cansado de tentar impedi-la. Desta vez, decidi deixá-la ir... que é, provavelmente, o que ela queria... desde o início.
Alsan olhou para ele, pensativo.
- Gaedalu vai ficar furiosa - comentou. - Para não falar de Qaydar... Jack encolheu os ombros.
- É-me indiferente. Não penso ir à procura dela, não importa o que digam Qaydar, Gaedalu, ou quem quer que seja. Não dizem que "os unicórnios têm de ser livres,
para que a magia seja livre"? Pois, no que me diz respeito, Victoria já o é. Talvez seja melhor para todos perdê-los de vista aos dois... de uma vez por todas. Por isso, sinto muito, mas só posso dizer que no fundo não lamento que Kirtash tenha fugido.
Houve um breve silêncio.
- Não te preocupes com isso - sorriu Alsan. - Kirtash morrerá brevemente, esteja onde estiver, porque não há nada neste mundo capaz de destruir a gema agora que o seu poder foi activado.
Jack olhou para ele quase sem o ver, entendendo, subitamente, porque não estava furioso com a fuga de Christian. Alsan pareceu captar os seus pensamentos.
- Teria preferido mante-lo prisioneiro e condená-lo à morte oficialmente, depois de um julgamento. Mas vai morrer de qualquer forma, de modo que...
- Então é verdade o que Victoria disse - murmurou. - É verdade que o shek estava a morrer. - No fundo sabia-o, mas conviera-lhe não acreditar.
Alsan semicerrou os olhos.
- Victoria sabia? Como é possível?
- Detectou-o através de Shiskatchegg - murmurou Jack, abatido. Ergueu a cabeça ao perceber que Alsan olhava fixamente para ele. O seu anel - explicou. - Deves saber, o que Kirtash lhe ofereceu.
A expressão de Alsan tornara-se tão severa e sombria que Jack sentiu-se inquieto e olhou-o, desorientado, sem entender o porquê da sua reacção.
- Esse anel tem nome? - perguntou Alsan, com perigosa suavidade. E chama-se Shiskatchegg?
- Sim - disse Jack, cada vez mais preocupado. - Porque o perguntas?
- Porque não o sabia - respondeu Alsan. - De modo que o anel é capaz de indicar a Victoria o estado do seu amante shek - comentou.
- Não o chames assim - resmungou Jack, sem saber muito bem porquê. - Sim, estão... unidos através dele. Por isso Victoria soube que ele estava em perigo. - Abanou a cabeça e acrescentou: - Se essa pedra o matar, Alsan, Victoria não te perdoará.
O rei encolheu os ombros. Ainda havia um brilho estranho no seu olhar, mas Jack, abatido como estava, não reparou.
- Acho que poderei viver com isso. Mas Jack negou com a cabeça.
- Não, não poderás. Se o shek morrer por tua culpa, asseguro-te que não haverá força humana capaz de deter Victoria quando se virar contra ti.
Alsan recordou a transformação que Victoria sofrera quando julgava que Christian matara Jack. O seu rosto ensombrou-se.
- Jack... - disse uma voz nas suas costas.
Alsan e Jack voltaram-se. Shail acabava de entrar.
- Já me contaram - disse; dirigiu-lhe um longo olhar. - Tens consciência de que ela te ama muito, não tens?
- Shail, não confundas mais o rapaz - grunhiu Alsan. - Já está bastante magoado por causa da traição de Victoria.
- Traição? - repetiu Shail, estupefacto. - Que traição?
- Como que traição? Sabes tão bem como eu que Victoria abandonou Jack para se unir ao inimigo...
Jack não pôde evitar recordar que Victoria tinha ido embora porque ele a obrigara, de certo modo. Uma parte dele sentia-se culpado por não a ter acompanhado no resgate de Christian, mas, sobretudo, por a ter afastado de junto de si simplesmente porque ela manifestara a sua intenção de fazer o que considerava mais correcto. Porém, aqueles pensamentos ficaram sufocados pela dor, pela confusão e pela acalorada discussão que os seus amigos mantinham.
- Os unicórnios não podem escolher um lado! - estava Shail a dizer.
- Pois Victoria fê-lo - sentenciou Alsan. - Vai ter um filho do shek.
- Isso não sabemos! - reagiu Jack, - O bebé pode ser meu! Os olhos de Alsan semicerraram-se.
- Isso é o que ela te fez crer - limitou-se a comentar.
Jack acusou o golpe e olhou para ele, profundamente ferido.
- Se ela esteve com os dois, como esperas que saiba quem é realmente o pai do seu filho? - raciocinou Shail, perdendo a paciência.
Alsan encolheu os ombros.
- Quem sabe? É um unicórnio, não é? Os unicórnios conseguem saber essas coisas. E ela sabe, Jack. Por que outro motivo teria fugido com o shek?
- Porque vocês estavam a matálo, Alsan! - quase gritou Shail; voltou-se para Jack, procurando apoio, e surpreendeu-se ao ver um vestígio de dúvida no seu olhar. - Por todos os deuses, Jack! Conheces Victoria melhor do que eu, e até eu sou capaz de entender sem problemas porque se foi embora!
Jack respirou fundo, mas não respondeu.
- Já chega, Shail - cortou Alsan, com firmeza. - Jack tem de esquecer todo este assunto o quanto antes. Pensar em Victoria não vai ajudá-lo quando atacarmos Gerde.
Shail olhou-o fixamente, sem poder acreditar no que estava a ouvir.
- Vais seguir em frente com esse plano? Alsan mostrou-se surpreendido.
- Claro, porque não? Shail suspirou, exasperado.
- bom, então não contem comigo. Acho que Kirtash e Victoria tentavam dizer-nos alguma coisa e não os escutámos. Talvez...
- Disse-me que Gerde exigia que suspendêssemos o ataque - cortou Jack. - Caso contrário, mataria Victoria.
- Mais uma razão para não a ouvir - disse Alsan. - E óbvio que é uma jogada. Não mataria Victoria, é sua aliada.
- Victoria não é aliada de Gerde! - exclamou Jack.
- Victoria é aliada de Kirtash, que é aliado de Gerde - raciocinou Alsan. - Portanto, Victoria é aliada de Gerde. É tudo uma farsa. Não digo que ela tenha toda a culpa: aquele shek andou a enganá-la desde que a conhece. Mas Victoria deixou claro esta noite de que lado prefere estar acrescentou, muito sério - e terá de enfrentar as consequências. O que lhe acontecer a partir de agora é responsabilidade sua.
Jack fechou os olhos. Não podia acreditar em Alsan, mas uma parte dele desejava acreditar. Era uma explicação tão simples, tão óbvia... embora não fosse verdadeira. Jack engoliu em seco. A verdade era infinitamente mais complexa que tudo isso e talvez mais difícil de enfrentar. Por alguma razão que lhe escapava, as palavras de Alsan eram tão reconfortantes...
Shail abanou a cabeça.
- Recuso-me a tomar parte nisto - disse. - Mesmo arriscando-me a que me declares traidor a mim também, vou voltar para a Torre de Kazlunn, com Ymur. Provavelmente encontrarei nos seus livros mais respostas do que nas tuas espadas e dragões, Alsan.
Ele dirigiu-lhe um sorriso sereno.
- Como queiras - disse. - Mas os nossos planos irão para a frente, contigo ou sem ti. Jack - disse, voltando-se para ele -, sei que posso contar contigo para continuar a lutar contra Gerde e os sheks.
Algo se agitou no interior de Jack. A vozinha do instinto começou a sussurrar-lhe: "Matar serpentes. Matar serpentes. Matar serpentes."
- Para já - prosseguiu Alsan -, quero que vás a Thalis e supervisiones o fabrico de dragões com Tanawe. Ajuda-a a conseguir tudo o que precisar para o novo exército. Quanto mais dragões tivermos, mais serpentes mataremos.
Jack pensou. Alsan oferecia uma missão simples, algo que fazer, algo que o manteria ocupado e que o impediria de pensar, e agradeceu-lho mentalmente. Uma parte dele rebelava-se perante a ideia de continuar a lutar. Mas o instinto era poderoso e, por uma vez, não havia nada que o travasse.
- De acordo - cedeu, com um sorriso. - Vamos matar serpentes.
DISTÂNCIA
Gerde atravessou o Portal, ligeira como um raio de lua, e, de seguida, tombou no chão.
Assher correu a socorrê-la. Era habitual a fada sentir-se fraca depois de vir das suas viagens ao estranho mundo que se abria para lá daquela tela avermelhada.
-Lá é tudo diferente - murmurara ela uma vez, ainda atordoada. Custa muito acostumar-me às mudanças.
Assher costumava deixar-lhe espaço para respirar e aguardar pacientemente que ela se sentisse melhor. No entanto, daquela vez havia algo urgente que tinha de lhe dizer.
- Minha senhora... tens visitas - disse-lhe.
- Visitas...? - repetiu Gerde, aturdida.
Ergueu a cabeça e tentou fixar a enorme figura que se erguia à entrada do desfiladeiro.
- O que está aqui a fazer? - murmurou. - Deixei bem claro que ninguém devia aproximar-se deste lugar.
- Diz que tem uma informação que te vai interessar.
Gerde levantou-se, muito a custo, e avançou até à grande serpente alada que a aguardava sem mover um músculo. Quando chegou junto dela, já era de novo completamente senhora de si.
- E então? - exigiu saber.
O shek tinha mantido os seus olhos irisados fixos no Portal, que contemplava com curiosidade e alguma desconfiança. Voltou-os para Gerde.
- Envia-me Eissesh - disse. - Quer que te informe de que o híbrido morreu. Há dias que não pressentimos a sua consciência em nenhum lugar deste mundo.
Gerde franziu o sobrolho.
- Kirtash morreu? E não é possível que se tenha ocultado de forma voluntária?
A serpente esboçou um breve sorriso.
- A mente de um shek, mesmo a de um meio-shek como ele, é demasiado poderosa para passar despercebida, feérica. Nenhum de nós poderia esconder-se dos outros. Não durante tanto tempo.
Gerde inclinou a cabeça, pensativa.
Sabia que as mentes dos sheks eram como ilhas navegando à deriva num enorme oceano. A rede telepática era semelhante a um denso emaranhado de pontes que ligavam umas ilhas com as outras e que as mantinham unidas mesmo à distância.
Há algum tempo que os sheks tinham expulso Kirtash daquela rede telepática. Porém, o facto de uma ilha não estar ligada às outras não implicava que o resto não estivesse ao corrente da sua existência. Os sheks sabiam que Kirtash continuava a existir, apesar de terem rompido aquela conexão. Se o híbrido morresse, as serpentes acabariam sempre por saber. Seria como se uma estrela se tivesse apagado no céu, embora essa estrela não pertencesse a nenhuma constelação.
- Como terão conseguido derrotá-lo? - perguntou-se Gerde em voz alta. - Os sangues-quentes não são rivais para ele.
- Mas o dragão é - disse o shek.
Gerde franziu o sobrolho, sem dizer nada.
- Espera - disse então o shek, e os seus olhos adquiriram um ligeiro tom azulado.- Uma mensagem para ti.
Gerde arqueou uma sobrancelha.
- Outra? Que solicitada estou esta tarde.
A serpente ergueu-se sobre os seus anéis. Parecia divertida.
- Pelos vistos, o híbrido continua vivo. Espera-te na tua própria base. - Fez uma pausa e acrescentou: - Não está sozinho.
- Não... consigo ver-te... - disse Christian. - O que me está a acontecer?
- Calma - sussurrou Victoria. - Os teus olhos estão bem. Tenta utilizar apenas os teus sentidos humanos e afasta-te da tua consciência de shek. Sei que não te agrada, mas os teus sentidos de serpente não te vão ser muito úteis, de momento.
Christian fechou os olhos e respirou fundo.
Victoria tinha sobrevoado os Picos de Fogo durante horas, nas proximidades do Abismo, evitando as zonas onde se abriam os grandes vulcões e as caldeiras de lava. Por fim, localizara do ar o acampamento dos szish. Dois sheks tinham vindo ao seu encontro e ela deixara que explorassem os seus pensamentos superficiais para que entendessem que apenas queria falar com Gerde e que não tinha nenhuma intenção de a atacar. Também lhes deixou entrever o estado lastimoso de Christian.
Porém, não foi propriamente isto que levou os sheks a escoltar o seu aterrorizado haai até à base de Gerde, mas sim a sinistra gema que brilhava no peito de Christian. Tinham detectado o seu poder, tinham pressentido que havia algo naquele objecto que não era bom para eles.
Fizeram Victoria aterrar numa clareira perto do acampamento e, antes de se darem ao trabalho de avisar Gerde, interrogaram-na a fundo.
Ela contou-lhe tudo o que sabia acerca da proveniência daquele objecto. Perguntou-lhes se sabiam mais alguma coisa, se conheciam o modo de neutralizar aquele poder.
Os sheks não responderam.
No entanto, conduziram-nos, a ela e a Christian, até uma das cabanas exteriores do acampamento, e disseram-lhes que esperassem ali.
E era isso que estavam a fazer.
Victoria deslizou os dedos por cima da pedra negra que Alsan cravara no peito de Christian. Aquela coisa produzira no shek marcas profundas na pele que a sua magia não tinha conseguido apagar, mas isso era o de menos. O pior era que tinha tentado por todos os meios partir aquela pedra e não tinha sido capaz.
- Posso tentar arrancar-ta do peito - murmurou -, mas não sei se irá funcionar. Está cravada tão profundamente no teu corpo que tenho medo de te matar se tentar.
Christian abriu lentamente os olhos. Esforçou-se por focá-los e cravou-os no rosto de Victoria.
- Já... te vejo - murmurou.
Victoria estreitou-o nos braços, com um sorriso.
- Assim está bem - disse.
- Mas não... te vejo como sempre - acrescentou ele, com esforço. Onde está a luz dos teus olhos?
- Onde sempre esteve, Christian. Não fui eu que mudou, mas sim tu. Os teus poderes de shek estão totalmente bloqueados. Se não queres enlouquecer, tens de ter isso em consideração.
- Sinto-me... como se me tivessem mutilado...
- Eu sei, Christian. Juro-te que vou fazer o possível para te ajudar. Tenho um plano. Não sei se é um bom plano, mas por enquanto é o único que tenho.
Christian deixou cair a cabeça, extenuado. Victoria ouviu um ruído lá fora e afastou-se dele para se aproximar da porta da cabana:
- Victoria? - murmurou Christian.
A jovem apressou-se a voltar para junto dele.
- Calma, estou aqui. Não me fui embora. Não te vou deixar sozinho. Ele olhou para ela com um certo cansaço.
- Não vou conseguir acostumar-me - disse. - Se não te vir, se não te tocar, não sei se estás aqui. É... uma sensação horrível.
Victoria sorriu.
- Então, não me vou separar de ti - sussurrou-lhe ao ouvido, afastando-lhe o cabelo da testa.
Christian fechou os olhos outra vez, apoiou a cabeça no seu colo e procurou a sua mão. Victoria estreitou-a com força.
Apenas uns instantes depois, tinha perdido a consciência outra vez. Victoria olhou para ele, com o coração despedaçado.
Ainda demoraram algum tempo até irem buscá-los. Victoria carregou Christian e seguiu os szish até à árvore de Gerde. Observou os rostos dos homens-serpentes, perguntando-se se seria capaz de reconhecer Assher entre eles. Mas todos lhe pareciam iguais.
Ninguém a ajudou a arrastar o shek por entre as raízes até à abertura que conduzia à sala principal, mas também não a apressaram. Quando, por fim, se encontrou na presença da fada, ergueu a cabeça e olhou para ela, com serenidade.
- Victoria - saudou Gerde, com um sorriso rasgado. - Vens devolver-me o que resta do meu espião? Que atenciosa.
- Venho pedir-te que lhe salves a vida - disse ela.
A fada dirigiu-se ao casal e contemplou o rosto de Christian com algum desânimo.
- Que mau aspecto tem - comentou. - Diria que até está amarelo.
- Por favor - insistiu Victoria. - Se não fizermos alguma coisa depressa, morrerá.
Gerde dirigiu-lhe um olhar divertido.
- Achas que isso me importa, por acaso? Victoria ergueu a cabeça.
- Precisas dele - recordou-lhe. - Se não fosse assim, já o terias matado há muito tempo.
- Precisava dele - corrigiu Gerde. - Mas já me deu uma informação valiosa e também me proporcionou um plano interessante. Era um espião útil, mas, dado que os teus o capturaram e deixaram neste estado lastimável, é óbvio que não era tão útil como eu supunha. Podes ficar com ele concluiu, com indiferença.
- Vais deixá-lo morrer? É um dos teus!
- Isso é o que quer fazer-me crer. Victoria abanou a cabeça.
- Está bem, o que é que queres em troca da sua vida? Gerde ergueu uma sobrancelha, interessada.
- Oh, queres fazer um trato. Que tal a vida do teu filho? Victoria cerrou os dentes.
- Se Christian não significa nada para ti, então não podes pretender trocá-lo por algo realmente valioso - replicou. - E sei que o meu filho te interessa... muito.
- Não estamos a falar do que Kirtash significa para mim, mas sim do que significa para ti. Renunciaste ao teu dragão para lhe salvar a vida, não foi? Renunciarias também ao teu bebé?
Victoria respirou fundo.
- Não podes voltar a fazer-me isto - murmurou.
Mas Gerde desatou a rir, com um riso puro como um ribeiro.
- Estava a brincar - disse. - O certo é que não posso fazer nada por ele... salvo dar-lhe uma morte rápida para lhe poupar sofrimento. Mas isso é algo que não vou fazer, pela simples razão de que gosto de o ver sofrer.
- Não podes fazer nada por ele? - repetiu Victoria, incrédula. - És uma deusa! Não há nada que não possas fazer.
Gerde voltou-se para ela e dirigiu-lhe um olhar insondável. De repente, o seu rosto tinha-se tornado sério, extraordinariamente sério. Os seus olhos negros pareceram trespassar Victoria, que tremeu de puro terror.
- Enganas-te - disse. - Há coisas que não posso fazer... porque não sou a única deusa deste mundo.
com um movimento enérgico, afastou os restos da camisa de Christian para deixar o seu peito a descoberto.
- Vês isso? - perguntou, indicando a pedra que estava a matar o shek.
- isso faz parte das minhas primeiras memórias deste mundo.
O seu tom de voz tinha-se tornado gélido e cheio de um ódio tão profundo que Victoria deu instintivamente um passo atrás.
- As tuas primeiras memórias... como Gerde? - atreveu-se a perguntar, embora soubesse a resposta.
Mas ela negou com a cabeça.
- As minhas primeiras memórias como Gerde têm a ver com árvores, acho - disse. - Não, desde que regressei à vida tenho memórias de outras coisas que fiz antes. Antes de ser Gerde, quero dizer.
Ergueu os olhos para a rapariga.
- Qual é a primeira coisa que os bebés vêem quando nascem? - perguntou. - Qual será a primeira coisa que o teu filho irá ver, Victoria?
- Luz... suponho - disse ela. - Não acho que os bebés tenham uma visão muito apurada, no início.
- Qual é a primeira coisa que os deuses vêem ao nascer? Nunca fiz esta pergunta. - Encolheu os ombros. - Supõe-se que eles estão aqui desde sempre, não? Antes de existirem todas as coisas. Antes que houvesse luz e escuridão. No entanto, eu... a primeira coisa de que me lembro... é da escuridão. Frio e escuridão. Foi a primeira coisa que senti quando tomei consciência de que existia.
Virou-lhe as costas e afastou-se dela. Pareceu a Victoria que tremia.
- Essa pedra aprisionou o espírito do shek que habita em Kirtash disse. - Confinou-o num lugar pequeno, frio e escuro, esquecido do mundo condenou-o à solidão. Não é assim tão estranho que produza esse efeito nele, dado que os sheks são feitos da minha própria essência. E essa coisa... também me aprisionou a mim, há muitos milénios. Era a minha pena... a minha prisão.
Victoria ergueu a cabeça, surpreendida.
- Chamam-lhe a Rocha Maldita - disse. - É um meteorito que caiu no mar há muito tempo.
Gerde suspirou profundamente.
- Foi lá que eu nasci - disse. No interior dessa rocha, no fundo do mar. Quando tomei consciência de mim mesma, a primeira coisa que pensei foi que o mundo era surpreendentemente pequeno - acrescentou, com amargura. - Mas havia tantas ideias na minha mente... tantas coisas que sabia que existiam... ou que podiam existir... não era possível que tudo se reduzisse àquelas paredes de rocha, àquela cela que cada dia que passava se tornava mais e mais estreita.
Fez uma pausa. Victoria escutava, contendo a respiração.
- De modo que já sabes - disse. - Isso a que tu chamas Rocha Maldita foi criado pelos Seis para me enclausurar antes mesmo do meu nascimento. Para manter a minha essência presa. Demorei vários séculos a fugir dali, a acumular a força necessária para me libertar. E tu queres que destrua esta pedra em minutos?
Riu-se com sarcasmo.
- Entendo - murmurou Victoria. - Então, só os Seis poderiam salvar Christian.
Gerde olhou para ela, sorrindo com inocência fingida.
- Poderiam... se quisessem. Mas, em primeiro lugar, são um pouco surdos à voz dos mortais e, além disso, duvido muito que estejam dispostos a salvar um shek.
Victoria cerrou os dentes.
- Não me importa - disse. - De qualquer das formas, vou tentar. Deu meia-volta para ir embora, ainda a carregar Christian.
- Devias deixá-lo morrer - ouviu Gerde dizer nas suas costas. - Não vale a pena, sabes? Além disso, ele foi à procura disso, com essa sua mania de andar por conta própria. Vês o que conseguiu? Que todo a gente o odeie, o tema ou o despreze. Ninguém moverá um dedo para o ajudar, Victoria, porque ninguém se importa com ele.
- Enganas-te - replicou Victoria. - Eu importo-me.
Gerde riu de novo, trocista, mas Victoria não se deu ao trabalho de se virar. Saiu da árvore, com Christian às costas, e avançou, vacilante, até ao lugar onde deixara o pássaro haai.
Os szish observaram-nos com receio, mas nenhum tentou detê-los. Provavelmente, nunca antes tinham visto o poderoso Kirtash naquele estado tão lastimável.
O trajecto até aos limites do acampamento foi longo e difícil. Victoria avançava passo a passo, carregando Christian, sob o olhar atento dos homens-serpentes.
Então, subitamente, alguém saiu de entre a multidão e foi ajudar Victoria, segurando Christian pelo outro braço. Victoria olhou para ele e sorriu.
- Obrigada, Assher - disse.
Mas o rapaz abanou a cabeça e semicerrou os olhos, aborrecido.
Os dois arrastaram Christian até à clareira onde o pássaro haai os esperava. Victoria abriu a boca para dizer mais alguma coisa a Assher, mas o jovem szish voltou para trás antes que ela pudesse pronunciar uma só palavra.
Montou Christian em cima do haai e subiu atrás dele. Segurou-o bem ao dorso da ave para que não escorregasse. Ele acordou naquele momento e olhou para ela, desorientado.
- Onde... onde vamos? - perguntou.
Os olhos de Victoria encheram-se de lágrimas, mas mordeu os lábios para as conter.
- Não sei, Christian - sussurrou. - Não sei.
O shek não fez nenhum comentário. Fechou de novo os olhos e recostou-se em Victoria, sem forças para mais nada.
Em silêncio, Victoria agarrou-se às penas do pássaro haai e esporeou-o para que levantasse voo.
Pouco depois, afastavam-se dali, deixando para trás o acampamento-base de Gerde.
Gaedalu foi falar com Alsan ao terceiro entardecer.
Fazia-o todos os dias. Sabia que o encontraria nas ameias, contemplando a cidade aos seus pés, como era seu hábito antes de se retirar para ir dormir. Se Alsan recebia aquelas visitas da Mãe com desagrado, não o demonstrava.
- Alguma notícia? - perguntou Gaedalu, uma vez mais. Alsan negou com a cabeça.
- Ainda não os encontraram. Encontrámos mais testemunhas que dizem ter visto um haai a sobrevoá-las, que ia em direcção a sul, mas o rasto perde-se depois do rio, o que não é de estranhar; do outro lado do rio é Shia e em Shia não resta muita gente a quem perguntar.
Gaedalu inclinou a cabeça. Alsan captou o seu olhar de reprovação.
- Achas que não faço o suficiente, Mãe Venerável? - perguntou, com calma. - Tudo indica que tenham ido ter com Gerde. E Gerde rodeou-se de um exército formidável. Não tardaremos a enviar o nosso próprio exército para lutar contra eles, mas ainda não estamos preparados.
Além disso - acrescentou, com um sorriso sereno -, não devias preocupar-te com o shek. Se ainda não está morto, não tardará a estar. Gaedalu semicerrou os olhos.
- Eu sei - disse -, mas gostaria de o ter visto morrer. Se não tivessem escapa do - acrescentou, acusadora -, não estaríamos agora a ter esta conversa.
Alsan voltou-se para ela. Não parecia zangado nem ofendido, mas falou com serenidade e segurança quando disse:
- Não conhecíamos o alcance do poder de Victoria. Agora já sabemos do que é capaz, de modo que no futuro estaremos preparados.
- No futuro? - repetiu a varu. - Achas que haverá uma segunda vez?
- Quando o shek morrer, Victoria regressará - vaticinou Alsan -, talvez para tentar recuperar Jack, ou talvez para se vingar de mim. Mas regressará, e então já não poderá escapar.
- A não ser que algum celeste chame um haai para ela - alvitrou Gaedalu, com um certo sarcasmo.
Alsan ergueu-se.
- Só há dois celestes no castelo, Mãe Venerável. Um deles está contigo.
- Zaisei não teve nada a ver com isso. Esteve no seu quarto durante toda a noite.
Alsan ficou em silêncio. Depois, acrescentou:
- Falaste com ele sobre isso?
Embora mencionassem em todas as suas conversas a possibilidade de Zaisei os ter traído, o certo era que os dois sabiam que tinha sido Ha-Din, o Pai Venerável, quem favorecera a fuga de Victoria.
- Falei, sim. Mas não quis tocar no assunto. Alsan não respondeu.
- Talvez o tenha feito por causa do bebé de Victoria - acrescentou Gaedalu.
- Os celestes são uma gente muito sentimental. Talvez que parecesse que a criatura não devia ficar órfã de pai antes mesmo do seu nascimento.
- Talvez - murmurou Alsan, franzindo o sobrolho. - Ou talvez estejamos a ignorar o evidente, Mãe Venerável.
- O que é evidente? - indagou Gaedalu com perigosa suavidade.
- Que talvez, no fundo, Ha-Din seja um adorador do Sétimo. Sobreveio um longo silêncio.
- Ha-Din é o Pai da Igreja dos Três Sóis - observou Gaedalu com frieza.
- Raelam também era o Pai da Igreja - limitou-se a responder Alsan. A varu semicerrou os olhos, ofendida.
Raelam tinha sido o último Pai durante a Era da Contemplação. Numa época de exaltação da doutrina dos seis deuses e de perseguição da magia, Raelam tinha sido surpreendido a adorar o Sétimo diante de um altar oculto numa das caves do Oráculo de Raden, numa câmara cheia de objectos e imagens que evocavam o culto das serpentes. Aquilo escandalizara todo o Idhún, determinara o regresso dos feiticeiros, desacreditara a Igreja e provocara a sua cisão em duas: a Igreja dos Três Sóis e a Igreja das Três Luas.
- Não temos por hábito falar desse lamentável incidente - replicou Gaedalu, com dignidade. Alsan sorriu para si próprio. Não pôde evitar recordar que, tempos antes, em Limbhad, também Shail se sentira incomodado perante a menção da Era Negra. Na altura mencionara Shiskatchegg, um objecto que tinha controlado a vontade de todos os feiticeiros.
Um objecto que, a julgar pelas suas últimas descobertas, era muito mais do que um mito. E que, se Jack estivesse certo, agora brilhava no dedo de Victoria.
Decidiu não partilhar esta informação com Gaedalu. Afinal de contas, ainda não tinha a certeza de que o Shiskatchegg que Jack mencionara, o anel de Victoria, fosse o mesmo da lenda.
- Certo, talvez me tenha precipitado - concedeu. - Na realidade, não suspeito do Pai Venerável. Mas temos de estar abertos a essa possibilidade.
- Quanto tempo mais vais retê-lo aqui? Alsan mostrou-se genuinamente confuso.
- Não estou a retê-lo. Ficou porque manifestou o seu desejo de ficar, pelo menos durante mais algum tempo. Tal como tu.
- Eu estou a aguardar o regresso de Victoria, que, segundo dizes, irá acontecer em breve. Estou à espera de notícias da morte do shek. E, além disso, quero abençoar pessoalmente os exércitos que forem para a batalha contra as serpentes.
- Seria uma grande honra para nós, Mãe Venerável.
- Por que razão se está a atrasar tanto o ataque?
Alsan hesitou por um momento antes de falar, mas finalmente encolheu os ombros e disse:
- Não temos nenhuma possibilidade de vencer sem dragões. E aos dragões de Tanawe faltam-lhes, neste momento, duas coisas: feiticeiros que renovem a sua magia e um
ingrediente que costuma utilizar-se no seu fabrico e que é necessário para enganar os sentidos dos sheks na batalha. Estamos há muito tempo à espera de que nos tragam esse ingrediente de Kash-Tar, mas enviámos alguém à procura dos pilotos que foram encarregues de os obter. E quanto aos feiticeiros... sei que Qaydar não nos irá proporcionar aprendizes de bom grado, mas tenho uma proposta a fazer-lhe... uma proposta que não irá recusar.
- Entendo - assentiu Gaedalu.
- Mas não demoraremos a estar preparados - assegurou-lhe Alsan. Quando isso acontecer, atacaremos Gerde com tudo o que temos. E, se Kirtash estiver vivo e com ela, matamo-lo.
Não mencionou Victoria e Gaedalu também não. Juntos, contemplaram o pôr do último dos sóis no horizonte.
"O que estou aqui a fazer?", perguntou-se Jack.
Ultrapassara os limites marcados pelo rio Ilvar apenas umas horas antes, mas já fizera aquela pergunta a si próprio pelo menos dez vezes.
Na realidade, sabia perfeitamente o que estava ali a fazer. Embora mal tivesse tido um momento de descanso nos dias anteriores e as horas que tinha dormido se pudessem contar com os dedos de uma mão, recordava muito bem cada pormenor de tudo o que tinha acontecido, de modo que não podia alegar que estava distraído quando aceitou aquela missão.
Recordava claramente a sua reunião com Tanawe em Thalis. Ela olhara para ele um tanto receosa, como se não conseguisse acreditar que por fim o último dragão se dignara visitar a sua base, ou como se temesse que fosse repreendê-la pelo facto que estar a repovoar os céus de Idhún com dragões artificiais, pálidas sombras da sua orgulhosa raça. Jack procurara mostrar-se simpático, mas andava irritadiço naqueles dias e notava-se que tinha a cabeça noutro sítio.
Tinham percorrido juntos as instalações dos Novos Dragões e Jack tinha podido admirar o novo exército de Tanawe: duzentos dragões novos prontos para serem pilotados.
- Os pilotos não são um problema - disse ela -, porque todos os dias nos chega mais gente nova. O problema são os feiticeiros - acrescentou, franzindo o sobrolho.
Jack já estava ao corrente de que Qaydar e Tanawe disputavam os escassos feiticeiros de Idhún praticamente desde a batalha de Awa. Agora que Victoria estava a consagrar novos feiticeiros, os dois lançavam-se sobre eles como cães de caça. Suspirou para com os seus botões. Sabia o que viria a seguir.
- Não conseguiremos fazer funcionar todos estes dragões no dia da batalha - disse Tanawe, indicando os artefactos com um gesto amplo da sua mão - se não contarmos com feiticeiros suficientes. Seria de grande utilidade que Lunnaris nos visitasse um dia e seleccionasse, entre os nossos pilotos, os que ela considerasse mais adequados...
- Não funciona assim - cortou Jack. - Ela... não consagra feiticeiros dessa maneira.
Absteve-se de dizer que Victoria tinha fugido com Christian e que provavelmente não voltaria tão cedo. E não o fez para a encobrir: afinal de contas, as notícias corriam depressa e não demoraria até que se soubesse da traição do unicórnio em todos os cantos de Nandelt. Não, o que realmente lhe doía era admitir que ela o tinha deixado por outro.
"Ou terei sido eu a deixá-la?", perguntou-se.
Tanawe cruzou os braços à frente do peito.
- Não consagra feiticeiros dessa maneira? - repetiu. - Então, como é que o faz? Sei que as salas da Torre de Kazlunn se estão a encher de aprendizes. Se ela pode criar feiticeiros para Qaydar, porque não para mim?
- Porque a função dos unicórnios é espalhar a magia pelo mundo, não fabricar feiticeiros em série como tu fabricas dragões - replicou Jack, sem conseguir conter-se.
A feiticeira semicerrou os olhos e Jack soube que a tinha magoado.
- Se não fosse pelos meus dragões, a tua raça já se teria extinguido atirou-lhe ela.
- A minha raça já se extinguiu, com os teus dragões ou sem eles.
- Nesse caso, não podes censurar-nos, humanos, por procurarmos outras formas de enfrentar os sheks. Se não queriam dragões artificiais, que tivessem exterminado as serpentes quando tiveram oportunidade.
Falou com dureza e com um ódio frio que impressionou Jack. No entanto, o jovem estava cansado de discussões e cravou nela um olhar demorado. Finalmente, Tanawe hesitou e baixou a cabeça, intimidada.
- Eu não posso falar em nome do unicórnio - disse Jack com suavidade. - Não sou eu quem tem o poder de outorgar a magia.
Não lhe disse que ele próprio era já um feiticeiro. A ideia ainda continuava a ser demasiado nova para ele. Por outro lado, também não tinha a certeza de ser capaz de renovar a magia de um dragão artificial. Pelo que sabia, era muito possível que lhe pegasse fogo na tentativa.
- Então, para que vieste? - indagou Tanawe.
"Isso", disse Jack para consigo. "Para que é que vim? Porque Alsan mo ordenou? E por que razão tenho de acatar as suas ordens?"
- Para supervisionar a criação do exército - disse, contudo. - Se vos faltam feiticeiros, transmitirei o problema a Alsan e a Qaydar, e veremos o que se pode fazer quanto a isso. Mas preciso de dados mais concretos acrescentou, procurando dar um toque de profissionalismo à sua voz.
Tanawe acalmou-se um pouco e retomou o seu passeio pelo hangar da base. Jack acompanhou-a.
- Aqui, em Thalis, somos dois - disse ela. - Mas contamos com outro feiticeiro em Vanissar. Denyal disse-me que o teu amigo Shail se juntou a vocês.
Olhou para Jack, à espera de confirmação.
- Acompanhou-nos na luta contra Eissesh - disse Jack, esquivo. Não pensava dizer-lhe que Shail não tinha a menor intenção de dedicar o seu tempo à manutenção dos dragões artificiais e que naquele momento estava na Torre de Kazlunn... com Qaydar.
Mas Tanawe pareceu dar-se por satisfeita com a resposta.
- Muito poucos feiticeiros - disse. - Também temos outros dois feiticeiros em Kash-Tar, mas há três meses que deviam ter regressado e...
Jack estacou.
- Kimara não voltou de Kash-Tar?
Tanawe fez um gesto negativo com a cabeça e começou a contar-lhe que, pelo que sabia, a esquadra de dragões que tinham enviado para o deserto continuava lá, engalfinhada numa luta sangrenta contra Sussh e desobedecendo a todas as ordens de retirada que lhes tinham enviado de Thalis.
- Voltaram dois dos dragões há algum tempo - explicou -, mas o resto ficou. E houve vários pilotos que se juntaram a eles, apesar das nossas ordens expressas para não o fazerem. Parece que os rebeldes yan são uma facção muito violenta e desorganizada, e por alguma razão isso atrai muitos dos nossos jovens. Acham que Kash-Tar é sinónimo de acção, aventura e liberdade.
- De certo modo, é - murmurou Jack, recordando o tempo que passara lá; afastou aqueles pensamentos da sua mente, porque lhe recordavam dolorosamente Victoria.
Tanawe olhou-o demoradamente.
- É verdade, estiveste lá. Bem... - Hesitou antes de acrescentar: - Se realmente queres fazer alguma coisa por nós... seria de grande ajuda que fosses a Kash-Tar tirá-los a todos de lá. Tanto os feiticeiros como os dragões são muito valiosos; na altura pareceu-nos boa ideia enviá-los para o deserto, mas agora precisamos deles noutro local.
Jack hesitou. A ideia de regressar a Kash-Tar era tentadora e, além disso, suspeitava que lhe faria bem uma mudança de ares. Para não falar de que, embora não quisesse admiti-lo, tinha vontade de ver Kimara outra vez. Pela sua mente passou, fugaz, a lembrança da dança que tinham partilhado há algum tempo, em Hadikah, e o seu pulso acelerou-se.
Abanou a cabeça. Parecia-lhe patético ir à procura de Kimara quando nem há três dias rompera com Victoria.
- És o único que pode trazê-los de volta - insistiu Tanawe. - Nem Denyal nem eu podemos dar-nos ao luxo de abandonar Nandelt nesta altura.
Acabou por aceitar a proposta. Não só porque Tanawe realmente precisava daqueles feiticeiros, mas também porque estava preocupado com Kimara. O facto de a rebelião de Kash-Tar se ter tornado tão sangrenta não agoirava nada de bom para ela e, por outro lado, não deixava de ser estranho. Os yan eram gente prática que poucas vezes embarcava em empreendimentos suicidas. No entanto, quando o faziam, era por motivos de peso, e nem os bárbaros conseguiam igualá-los em ferocidade e selvajaria. Alguma coisa devia ter detonado a bomba-relógio de Kash-Tar. Algo fizera os yan explodir, depois de quase vinte anos a tolerar o domínio shek.
"Suponho que é isso que vim fazer aqui", pensou Jack, com cansaço, enquanto sobrevoava as areias rosadas de Kash-Tar. "Descobrir o que se está realmente a passar e o que é que Kimara tem a ver com tudo isso."
Mas primeiro teria de a encontrar.
Da última vez que estivera em Kash-Tar, a própria Kimara tinha sido a sua guia no deserto, levando-os, a ele e a Victoria, de oásis em oásis, procurando na areia
caminhos que só ela conseguia ver. Agora, Jack podia sobrevoar a enorme extensão de Kash-Tar, mas não suportaria muito tempo aquele calor tão intenso.
No início embrenhou-se no deserto sem se preocupar com isso, com alguma temeridade. E no primeiro dia teve sorte. Avistou ao longe um oásis e desceu para beber.
Surpreendeu-se ao verificar que estava deserto, apesar de haver água na lagoa e de as árvores estarem carregadas de frutos azulados que se revelaram comestíveis. Mas, reparando melhor, Jack descobriu que aquele lugar parecia ter sido palco de uma batalha. Muitas das árvores estavam calcinadas ou destruídas, e um pouco mais longe descobriu, perturbado, um monte de cadáveres carbonizados: soldados caídos na batalha, cujos corpos tinham sido empilhados e queimados.
Naquele momento foi-lhe mais fácil entender que ninguém quisesse pernoitar ali.
Também ele não tencionava ficar durante toda a tarde. Bebeu água em abundância, empanturrou-se de fruta e, quando estava pronto, retomou novamente o voo. No entanto, não deixou de sentir saudades dos oásis cheios de cor e actividade que tivera ocasião de visitar na sua última viagem. Curiosamente, naquela época era apenas um adolescente que ainda não controlava os seus poderes de dragão, Kash-Tar estava sob a mão férrea das serpentes e Ashran procurava-o por todo o continente; porém, recordava aqueles dias com saudade.
Talvez porque, embora agora já estivesse na plenitude do seu poder, embora todos o temessem e respeitassem, embora as serpentes tivessem sido derrotadas, Ashran já não existisse e os deuses parecessem ter partido... Victoria não estava mais ao seu lado.
No dia seguinte, quando o calor já começava a afectá-lo, um shek inierceptou-o.
Dava a sensação de que estava à procura de alguma coisa ou talvez patrulhasse a zona. Voou direito a Jack assim que o detectou e apanhou o jovem dragão de surpresa. Defendeu-se como pôde, com pouca destreza, acusando já a fome, a sede e o cansaço. No entanto, surpreendeu-o a fúria cega com que o shek o atacava. Sempre admirara e invejara a fria dignidade com que as serpentes aladas dissimulavam o seu ódio, mostrando-se majestosas mesmo em pleno ataque de fúria, como se quisessem fazer crer ao mundo que controlavam o seu ódio aos dragões, e não o contrário. No entanto, aquele shek mostrava um brilho de loucura assassina no seu olhar. Estava desenfreado, descontrolado.
Jack estava demasiado cansado para se fazer mais perguntas. Defendeu-se com todas as suas forças, fugindo das presas letais da serpente, do seu asfixiante abraço, do seu olhar de gelo. Defendeu-se, porque não lhe restava energia para atacar.
E, quando achava que tudo estava perdido, chegaram os dragões para o salvarem. "
Eram três. Lançaram-se contra o shek com aquela mesma ferocidade que detectara na serpente, fustigaram-no até o deixar louco de ódio, fizeram-no cair no chão e, uma vez ali, imobilizaram-no e maltrataram-no com raiva até que exalou o seu último suspiro.
Jack contemplava tudo isto sem intervir, atónito. A atitude dos dragões lembrava-lhe a forma como ele destroçara a pele de shek que tinha encontrado nas montanhas. "Mas eu estava dominado pelo instinto", disse para consigo. "E estes não são dragões de verdade. Qual é a sua desculpa?"
Planou suavemente até ao chão e deixou-se cair sobre a areia, exausto. Dali, contemplou os dragões. Nenhum deles era a fêmea de dragão vermelha de Kimara, e sentiu-se ligeiramente decepcionado.
Os momentos seguintes seriam confusos. Os pilotos saíram dos dragões e correram ao seu encontro; mais tarde, Jack recordaria ter pensado que quase metiam mais medo do que os próprios dragões. Tinham pintado o rosto com ferozes pinturas de guerra e tinham o cabelo comprido e penteado em tranças sujas e desgrenhadas. Os sóis tinham tostado a sua pele, tornando-a mais escura. Estavam armados até aos dentes, e Jack perguntou-se porque que é que homens que lutavam a bordo de dragões precisavam de tantas armas.
Contudo, receberam-no com ferozes gritos de alegria e, mal se transformou em humano outra vez, olharam para ele com respeito e temor.
Acabava de cair a noite quando chegaram à base dos rebeldes nas montanhas. Jack ainda estava aturdido, de modo que o alojaram numa tenda e deram-lhe um odre de água fresca para que bebesse e se refrescasse um pouco. Depois levaram-lhe comida, e o jovem devorou tudo, faminto. Só então começou a pensar com clareza.
Ouviu tambores e gritos de júbilo, e o crepitar das fogueiras; e, de novo, recordou aquela noite inesquecível em Hadikah. Sorrindo, levantou-se e saiu da tenda.
Todavia, o espectáculo que o esperava não tinha nada a ver com a festa mágica que ele recordava.
Tinham deixado o corpo do shek no meio do acampamento, horrivelmente mutilado: tinham-lhe tirado os olhos e cortado as asas, e vários rebeldes encamiçavam-se contra ele, arrancando-lhe as escamas uma a uma ou desferindo punhais e espadas no seu corpo.
E, embora Jack odiasse as serpentes, não pôde evitar que o seu estômago se revolvesse. "Ainda bem que está morto", pensou. Subitamente entendeu que não era a primeira vez que faziam aquilo, que o que fizeram com os olhos, as asas, as escamas... não fora uma ocorrência isolada.
Provavelmente, noutra altura, talvez em várias ocasiões, já teriam torturado assim serpentes vivas.
Estremeceu de horror e repugnância. Reteve o primeiro que passou junto dele:
- Espera! Conheces Kimara?
- Kimaraaindanãovoltou - disse o yan. Jack reparou que era muito jovem, provavelmente mais jovem do que ele. - Esperamo-lacomaprimeiralua.
Jack assentiu, aliviado, e ergueu a cabeça para olhar para o céu. Ainda não tinham surgido as luas, mas não tardariam a erguer-se no horizonte. Não teria de esperar muito para falar com Kimara, para encontrar alguma sensatez naquela loucura.
Virou as costas à serpente mutilada e afastou-se um pouco, perturbado. Os rebeldes pareciam ter-se esquecido dele, de modo que aproveitou para dar uma volta pelo acampamento.
Descobriu, não sem surpresa, vários dragões artificiais pousados um pouco mais adiante. Um deles era o de Kimara.
Perguntou-se se o yan se teria enganado e se Kimara não estaria no acampamento. Que outro motivo teria para sair sem o seu dragão? Talvez, pensou de repente, se tivesse estragado ou precisasse de magia... Abanou a cabeça: Kimara era uma feiticeira, perfeitamente capaz de renovar a magia da sua fêmea de dragão sozinha.
Detectou então o primeiro vestígio de lua a erguer-se atrás das montanhas e regressou para junto dos outros.
Parecia que se tinham esquecido do shek, porque agora estavam a trabalhar noutra coisa. Jack viu-os amontoar lixo diante do corpo da criatura e, de seguida, levantar postes verticais em cada um dos montes, enquanto entoavam ferozes cânticos de guerra ao ritmo dos tambores.
- Yandrak! - chamou-o alguém.
Voltou-se. À luz das fogueiras reconheceu um dos pilotos que o tinha salvado de manhã.
- Fico contente por ver que já te recompuseste - disse. Falava quase tão depressa como Kimara. - Acompanhas-nos na festa desta noite?
- Que tipo de festa? - perguntou Jack com precaução. O humano riu.
- Isso depende de como tiver corrido a caça a Goser e aos outros. Sorriu, mostrando todos os dentes. - Mas aposto que será memorável.
- Apontou com um gesto vago para os postes e os montes de lixo. Bonita pira, não é? Vai arder muito bem...
Jack retrocedeu. Aquele ripo começava a parecer-lhe sinistro.
Ia comentar algo quando, subitamente, os vigias lançaram gritos de aviso. Mas, a julgar pela reacção exultante do resto dos rebeldes, parecia que os recém-chegados eram amigos. O coração de Jack deu um salto.
Correu para o lugar aonde chegavam uns vultos, triunfantes, banhados pela luz das fogueiras. Os outros receberam-nos com uma algazarra de tambores e gritos de entusiasmo. Jack deteve-se a uns metros, quando viu que os recém-chegados traziam prisioneiros. Sem conseguir acreditar nos que os seus olhos viam, contemplou como faziam subir os cativos, oito szish, para as piras que tinham preparado para eles e os atavam fortemente aos postes. "Vão queimá-los vivos", entendeu, estremecendo. Havia algo grotesco e perverso na ideia de sacrificar aqueles soldados szish diante do cadáver da grande serpente sem olhos e sem asas. "Provavelmente ter-lhe-iam arrancado também as presas, se se tivessem atrevido a enfrentar o veneno", pensou Jack, enojado.
Tinha de acabar com aquela loucura. Avançou para eles, com passo firme, quando outra coisa chamou a sua atenção.
Alguém tinha subido para cima do cadáver do shek e lançava um potente grito de triunfo, brandindo um machado no ar. Todos entoaram o
seu nome em coro:
- Goser! Goser! Goser! Goser!
Quase de imediato, outra figura subiu para junto dele. Uma figura feminina.
Ambas as silhuetas confundiram-se por um momento, recortadas contra a luz do fogo, e voltaram a separar-se. A mulher emitiu um grito de júbilo e ergueu os punhos em sinal de vitória. Os rebeldes imitaram-na e os tambores soaram mais alto.
Jack reconheceu Kimara e não suportou mais. Abriu caminho por entre a multidão e aproximou-se, aos empurrões, do corpo do shek.
Interceptou Kimara quando esta saía de um salto de cima do coto da asa direita. Quase tropeçou nela.
- Jack! - exclamou a semi-yan, encantada, ao reconhecê-lo. - Vieste juntar-te a nós!
Jack deu um passo atrás e olhou-a. Também ela parecia tão selvagem como os seus companheiros.
- Se isto é o que vocês fazem aqui - disse com frieza, indicando o corpo do shek e os szish que estavam a ser amarrados aos postes -, não quero ter nada a ver convosco.
O sorriso desapareceu do rosto de Kimara.
- Continuas a defender as serpentes? Executámos gente por muito menos do que isso - ameaçou.
Jack semicerrou os olhos.
- Atreve-te a pôr-me uma só mão em cima - desafiou-a.
Kimara olhou de relance à sua volta. Estavam rodeados de gente que os observava com curiosidade. com um gesto, indicou a Jack que a seguisse até um lugar mais discreto.
- Então, porque vieste?
- Tanawe exige que vocês voltem para Nandelt. Kimara fez um gesto de aborrecimento.
- Outra vez isso. Pois não vou voltar. Este é o meu lar e é aqui onde realmente estamos a lutar... Vocês, gente de Nandelt, não fazem mais do que organizar e preparar coisas, mas nunca passam à acção.
- É assim que deveríamos passar à acção? - quase gritou Jack. - Mutilando sheks?
Kimara dirigiu-lhe um breve olhar.
- Vejo que ainda és amigo de Kirtash.
- Kirtash não... - começou Jack, mas mordeu a língua. Aplacou aquela parte da sua mente que lhe recordou, de forma muito pouco oportuna, que o shek tinha levado a sua namorada e disse, contendo a raiva: Kirtash é um assassino e um traidor, mas ainda não desceu tão baixo como vocês.
- De que estás a falar? - atirou-lhe Kimara, e os seus olhos ardiam de ira. - Tu és um dragão! Devias odiar os sheks!
- E odeio... mas também os respeito. Podem ser frios ou impiedosos, mas não são cruéis. Não ferem nem matam por prazer. Essa, infelizmente... é uma qualidade dos sangues-quentes. Uma qualidade da qual devíamos envergonhar-nos.
Kimara sorriu de forma sinistra.
- Eu não me envergonho - disse. - Eu orgulho-me de estar viva e de sentir coisas... aqui. - Bateu no peito com o punho. - Orgulho-me de ter fogo a correr nas minhas veias, e não gelo! E de ter coragem para vingar as atrocidades que os sheks cometem contra a minha gente, dia após dia! Por acaso tu não sentes coisas? Ou será que já tens o coração gelado?
Aproximou-se dele... o bastante para que pudesse sentir o cheiro dela, selvagem e almiscarado... demasiado para que se sentisse à vontade.
Jack respirou fundo e afastou-se dela. E desta vez não o fazia por Victoria, mas por si próprio.
- Não, Kimara - disse. - Orgulho-me das minhas emoções, mas não de todas elas. Não das que poderiam chegar a tornar-me em alguém... como a pessoa em que tu acabaste por te tornar.
Ela riu-se dele.
- Bem - disse -, se vieste para me dar um sermão, fica a saber que não tenho tempo para te ouvir. Podes voltar para Nandelt, para junto de Victoria e do teu amigo shek.
Jack desejou com toda a sua alma poder fazê-lo.
- vou voltar para a festa - prosseguiu ela. - Acho que a mereci, não te parece? Pelo menos eu dou o couro a lutar contra o inimigo. Ah! Podes levar a fêmea de dragão a Tanawe. Já não preciso dela.
- Não é isso que Tanawe quer de ti, e sabes disso.
- Já sei - disse ela. - Mas vai passar-lhe a zanga assim que lhe deres o que está no interior da fêmea de dragão, já vais ver.
- O que há no interior da fêmea de dragão? - perguntou Jack, franzindo o sobrolho.
- Como, não te disse? Pediu-me restos de dragão: escamas, presas, garras e coisas assim. E eu cumpri com a minha parte,
Jack olhou para ela sem acreditar no que ouvia.
- Entraste em Awinor para saquear os restos dos dragões?
- Sim, e foi a tua admirada Tanawe quem mo pediu. Não é adorável?
- acrescentou, secamente. - E agora, vai-te embora, antes que se nos acabe a paciência.
Jack não respondeu. Os gritos de agonia dos szish, misturados com cicios desesperados, começavam a soar pelo acampamento. O jovem, ignorando Kimara, desembainhou Domivat e abriu caminho até à pira. Os rebeldes apuparam-no e vários procuraram impedi-lo, mas Jack afastou-os, brandindo a sua espada de fogo. Depois, foi de poste em poste, enterrando Domivat nos frios corações dos homens-serpentes, dando-lhes a morte rápida e limpa que os rebeldes lhes negavam, poupando-lhes o sofrimento de serem queimados vivos.
Quando desceu da pira de um salto, deparou-se com Goser, que o observava com os seus braços tatuados cruzados à frente do peito e os seus olhos de fogo fixos nele.
- Porquefizesteisso,estrangeiro? - indagou. Jack susteve o seu olhar.
- Não gosto de ver como torturam as pessoas - disse. - Não me parece que seja um espectáculo que alguém que tenha coração possa desfrutar acrescentou em voz suficientemente alta para que Kimara o ouvisse.
Goser semicerrou os olhos.
- Osszishnãosãopessoas - disse. - Sãomonstros.
- São pessoas - replicou Jack. - Embora não tenham o nosso aspecto. O yan meneou a cabeça.
- Nãodiriasissosetivessesvistooquesãocapazesdefazer.
Jack susteve o seu olhar mais um momento, procurando, talvez, ler na alma do líder yan. Pareceu-lhe ver, sob a sua capa de segurança e determinação, uma profunda tristeza.
Abanou a cabeça, deu meia-volta e afastou-se dele.
Não disse nada a Kimara quando passou junto dela. Não disse nada a ninguém nem respondeu aos gritos nem aos apupos. Limitou-se a entrar na sua tenda, a deitar-se na esteira e a fechar os olhos, com amargura.
A festa continuou até a noite ir alta. Como se quisessem desafiar Jack, os rebeldes tocaram, cantaram e dançaram em volta do fogo e do corpo do shek, lançando gritos de selvagem júbilo às estrelas. No entanto, quanto mais altos soavam os cânticos, mais Jack tinha a certeza de que aquela alegria feroz não fazia outra coisa senão mascarar camadas profundas de fúria, dor e desespero.
Dormiu apenas um pouco, o bastante para recuperar forças. Depois, saiu da tenda.
A celebração prosseguia. Os yan executavam naquele momento a dança das tochas que tão boas recordações lhe trazia. Goser e Kimara dançavam junto à fogueira. Jack ficou um momento a contemplá-los ao longe, admirando, apesar de tudo, a força de cada um dos seus movimentos, a energia que irradiavam, como se no peito de cada um batesse o coração de uma estrela. Sorriu com uma certa melancolia: também ele dançara aquela dança com Kimara, mas não havia dúvida de que Goser o fazia muito melhor.
"Tenho de me ir embora daqui", disse para si próprio; mas, por alguma razão, ficou até ao fim, até ao momento em que ambos entraram juntos numa das tendas.
Fechou os olhos. As lembranças continuavam a surgir na sua mente e era difícil afastá-las.
Na noite em que tinha dançado com Kimara, sentira saudades de Victoria. Parecia ter passado uma eternidade desde então. Ele mudara e Kimara também mudara, encontrara outra pessoa que lhe agradara o suficiente para dançar com ela em volta da fogueira. Mas havia coisas que permaneciam inalteráveis.
Ainda continuava a sentir saudades de Victoria. Desesperadamente.
Jack abanou a cabeça e afastou-se do acampamento, até um lugar mais discreto. Ali, transformou-se em dragão, levantou voo e abandonou a base dos rebeldes sem se despedir de ninguém.
Victoria encontrou a cabana por mero acaso quando sobrevoavam os limites de Alis Lithban.
Estava semidestruída. O crescimento desmesurado da flora do bosque quase a derrubara por completo; mas, misteriosamente, as paredes tinham aguentado e o telhado, embora asfixiado pelo abraço das árvores, não se tinha abatido por completo.
O interior, contudo, estava muito pior.
com um suspiro de resignação, Victoria cobriu com a sua capa uma extensa mata de fetos que tinha crescido num canto e deitou Christian em cima dela, com muito cuidado. Depois, continuou a arranjar a cabana, retirando as ervas e colocando no seu lugar os móveis e utensílios que ainda pudessem utilizar. Ao subir a um dos troncos para tirar a vegetação que cobria uma das janelas, reparou que Christian olhava para ela. Desceu com cuidado e juntou-se a ele.
- O que se passa? - perguntou-lhe, preocupada. - Estás bem?
- Nada. Só... bom... gosto de olhar para ti. Victoria sorriu.
- Redescobrindo os sentidos humanos, por fim? - brincou, mas a sua voz morreu na última sílaba e mordeu os lábios para conter as lágrimas.
- Não devias... estar a fazer isto - disse Christian com esforço. - Vais ter um bebé.
Victoria engoliu em seco e secou uma lágrima indiscreta.
- A cama não se pode usar - disse, sem responder ao comentário do shek. - Mas vou preparar-te uma cama de ervas e folhas. Vamos ver se não fica demasiado húmida...
- Não importa. Não estou... acostumado a comodidades. Posso descansar em qualquer parte,
Victoria deslizou os seus dedos pelo rosto de Christian, mas ele ergueu a mão e agarrou-lhe o pulso. Olhou-a nos olhos, e a tristeza voltou a invadir a jovem ao não ver neles aquele brilho gélido que costumavam reflectir.
- O... que... está a acontecer, Victoria? - conseguiu ele dizer; esforçou-se para que a sua voz soasse firme, mas estava demasiado fraco e foi apenas um sussurro.
Ela respirou fundo.
- Trouxemos-te... trouxe-te aqui para cuidar de ti. Sei que não é grande coisa, mas é que... não sabia para onde levar-te.
"Não te querem em lado nenhum", pensou, mas não se atreveu a dizê-lo em voz alta.
Ele continuava a olhar para ela.
- Preciso de saber mais - disse. - Por favor... sê sincera.
Havia uma nota de pânico na sua voz. "Pela primeira vez, não consegue ler a minha mente", pensou Victoria. "Não sabe o que penso, não sabe o que está a acontecer." Sentiu-se comovida. Não podia mentir-lhe.
Levantou a cabeça dele, com cuidado, para apoiá-la no seu colo.
- Não sei como curar-te, Christian - sussurrou. - Ninguém sabe como curar-te. Fui ter com Gerde, mas nem sequer ela pode fazer nada por ti. A matéria de que esta pedra é feita foi criada pelos Seis para encarcerar a essência do Sétimo. A partir do momento em que se activa para cumprir o seu propósito, não há força no mundo capaz de a destruir. Só os Seis poderiam salvar-te... e temo que não o façam.
- Onde está Jack? - perguntou Christian de repente.
Victoria cerrou os dentes. Pensar em Jack magoava-a muito, despedaçava-lhe o coração: por isso procurava afastá-lo da sua mente para se concentrar em Christian,
na busca de uma forma de o ajudar... mas isso era quase pior.
- Ficou... em Vanissar.
- Porque é que... não está aqui, contigo?
Victoria não soube o que responder. Não lhe parecia que fosse o momento adequado para falar dos seus problemas sentimentais.
- Porque... bom, preferiu ficar lá.
- Devia estar... contigo. Vais ter um bebé. - Parecia obcecado com a ideia; olhou para ela, com um brilho febril nos olhos. - Quem... vai cuidar de vocês quando eu morrer?
- Não digas isso! - quase gritou Victoria. - E pára de falar em cuidar de mim. Deixa que seja eu a cuidar de ti, pelo menos uma vez. Eu não me rendi, estás a ouvir? Juro-te... que vou encontrar uma forma de te salvar.
Christian olhou para ela, quase sem a ver, e depois fechou os olhos e voltou a mergulhar num estado de inconsciência. Victoria ergueu-o um pouco mais, com cuidado, para o estreitar nos braços.
- Não te rendas... - sussurrou. - Por favor, não te rendas. Não podes acabar assim. Prometo-te que... - A sua voz ficou sufocada pelas lágrimas, e demorou a conseguir falar de novo. - Quem me dera saber o que fazer. Quem me dera...
Shail encontrou Ymur a ler atentamente um enorme livro, sentado junto à janela, diante de uma das poucas mesas especiais para gigantes que havia na Torre de Kazlunn. Ao lado, havia uma pilha de livros pendentes para consultar. A maior parte deles eram volumes de um tamanho considerável.
Shail também levava os seus próprios livros, embora de tamanho mais reduzido. Deixou-os em cima da mesa contígua, e o ruído sobressaltou o gigante.
- Alguma novidade? - perguntou-lhe o feiticeiro.
- Este livro é muito interessante - respondeu o sacerdote. - Surpreende-me a visão da história tão errónea que vocês, os feiticeiros, têm. Apresentam a Era da Contemplação como uma época de repressão e obscurantismo.
"Porque foi", pensou Shail, mas não o disse. Não tinha vontade de iniciar uma discussão com Ymur.
- É o mesmo livro que estavas a ler ontem - fez notar, com um sorriso.
- Continuas com ele porque é muito interessante ou porque tem as letras muito grandes e é mais fácil de ler do que os outros?
O sacerdote grunhiu, mas não respondeu à pergunta.
- E tu, o que viste nesses livros? - quis saber, apontando para os volumes em arcano que Shail tirara da Biblioteca dos Iniciados.
O feiticeiro abanou a cabeça.
- Podemos invocar demónios, génios, espíritos e até mesmo elementos - disse -, mas o livro não diz nada sobre invocar um deus. Onde teria Ashran ido buscar a ideia de que se pode falar com os deuses? E como conseguiu que a Sala dos Ouvintes servisse para algo mais do que... ouvir.
Ymur não o escutava. Tinha voltado ao seu livro, e Shail, encolhendo os ombros, sentou-se à frente dele e começou a examinar os volumes que tinha trazido.
Mas mal conseguia concentrar-se.
Não podia deixar de pensar na fuga de Victoria. Sabia que podia cuidar de si sozinha, mas não conseguia evitar preocupar-se um pouco. Também o entristecia a ruptura de Jack e Victoria. Falara com Zaisei sobre isso, antes de se despedir dela para ir para a Torre de Kazlunn, e a jovem mostrara-se sinceramente desolada.
- Era um laço tão belo - suspirou. - Oxalá não permitam que se desfaça.
Shail pediu-lhe que falasse com Jack, que lhe dissesse o que sabia acerca dos sentimentos dos dois jovens, mas Zaisei recusara-se.
- É algo que eles devem resolver sozinhos, Shail. Se depois de todo este tempo Jack ainda tem dúvidas acerca dos seus sentimentos e dos de Victoria, nada do que eu possa dizer-lhe vai adiantar. Seria como pôr um penso em cima da ferida sem a limpar primeiro, compreendes?
Shail anuíra, mas o certo é que não compreendia muito bem.
Despedira-se de Zaisei com o coração apertado. Agira de forma impulsiva ao dizer a Alsan, sem consultar a celeste, que se ia embora para a Torre de Kazlunn, e agora arrependia-se. Zaisei e Gaedalu continuavam em Vanissar, mas em breve regressariam ao Oráculo. Quando Shail regressasse, elas já teriam partido.
Também Qaydar e o resto dos feiticeiros tinham voltado para a Torre de Kazlunn. Ninguém tinha dito ainda ao Arquifeiticeiro que Victoria se fora embora; ele sabia apenas que Kirtash tinha escapado, mas, pelos vistos, isso não o inquietava. Um dos aprendizes tinha desaparecido, e Qaydar estava sinceramente preocupado com ele. Shail conhecia-o de vista: tratava-se de um jovem de aspecto amargurado que nunca sorria. Qaydar regressara à Torre de Kazlunn com a esperança de o encontrar lá, mas não havia nem rasto dele. Shail não entendia porque lhe dava tanta importância. Era certo que havia poucos feiticeiros, mas, pelo que sabia, aquele em concreto não era propriamente um aprendiz promissor. No entanto, tinha-se oferecido para acompanhar os feiticeiros de regresso à Torre; não havia motivo para atrasar a viagem e, além disso, sentia curiosidade em saber se Ymur descobrira mais alguma coisa.
Embora tivesse na verdade regressado porque, depois de tudo o que acontecera, já não se sentia bem com Alsan. Era certo que Kirtash era um assassino, era certo que tinha sido seu inimigo, mas isso não justificava, na sua opinião, que o humilhassem, o maltratassem e o assassinassem daquela forma. "Devia morrer em combate", pensou. "Como o guerreiro que é; ou, pelo menos, devia ter uma morte rápida e limpa, sem dor, como as que ele mesmo infligia." Custava-lhe entender como era possível que Alsan, precisamente Alsan, não fosse capaz de o compreender. Não era próprio dele utilizar aquelas artimanhas para acabar com os seus inimigos, no entanto, continuava convencido de que agia com justiça.
Um golpe seco interrompeu os seus pensamentos. Ergueu a cabeça, sobressaltado. Ymur acabava de fechar o livro com alguma violência.
- Que série de mentiras - disse, aborrecido. - Como pode haver justificação possível para o comportamento dos feiticeiros na Segunda Era? Estavam todos do lado de Talmannon!
- Devia-se a Shiskatchegg... - começou Shail, mas Ymur interrompeu-o:
- Já li isso. Que desculpa mais esfarrapada. Toda a gente sabe que Shiska-qualquer-coisa não é mais do que um mito.
Shail não quis discutir.
- Talmannon foi um feiticeiro poderoso - comentou. - Não obteve o poder em Idhún por acaso.
- Claro que não; o Sétimo estava do seu lado, todos nós o sabemos. Ele e os sheks...
Interrompeu-se, porque Shail levantou-se de rompante.
- Mas que estúpido! - exclamou. - Como é que não me tinha apercebido antes? Talmannon! Ele foi uma das primeiras encarnações do Sétimo. Ashran deve tê-lo imaginado, de alguma maneira... inspirou-se nele, quis imitá-lo...
Ymur olhou-o fixamente.
- Talmannon, uma encarnação do Sétimo? - repetiu. - Não pode ser. Se fosse um deus, como teria Ayshel conseguido derrotá-lo?
- Da mesma maneira que Jack e Victoria derrotaram Ashran: porque os deuses actuaram através deles, emprestaram-lhes o seu poder... talvez, no caso de Ayshel, tenha sido através dos unicórnios... talvez tenha havido outra profecia...
Mas não tinha certezas. Abanou a cabeça, confuso.
- É uma teoria interessante, feiticeiro - grunhiu Ymur. - Mas isso não nos diz como Ashran descobriu a forma de invocar um deus.
Shail abanou a cabeça, perplexo.
- Deve tê-lo lido algures, tenho a certeza. Mas onde? Ymur riu sem alegria.
- Não me vais ouvir dizer isto muitas vezes, Shail, mas tenho a impressão de que não se trata de um conhecimento que possa ler-se nos livros. Caso contrário, muito mais gente saberia disso. Mais gente além de Ashran, claro.
Shail fechou os olhos e recostou-se na cadeira, com um suspiro. O raciocínio de Ymur fazia sentido, no entanto, não podia deixar de pensar no livro que Victoria encontrara em Limbhad, um livro cujo conteúdo tinha sido zelosamente guardado pelos unicórnios até àquele momento. Mas Ashran, que ele soubesse, não tinha tido ocasião de viajar até Limbhad, pelo que a informação de que estavam à procura não podia estar lá.
- Desde a época de Talmannon até agora - estava Ymur a dizer -, tivemos um longo período de paz. Se a tua teoria estiver correcta, quando Talmannon foi derrotado pela Donzela de Awa, o Sétimo abandonou Idhún... até que Ashran o voltou a chamar.
- E onde esteve durante todo esse tempo? - murmurou Shail, ainda com os olhos fechados.
- Desde Talmannon até Ashran - prosseguiu Ymur -, mais ninguém invocou o Sétimo. Esse conhecimento permaneceu oculto. Como o descobriu Ashran? Onde o obteve?
- Só se perguntarmos ao próprio... - disse Shail, desanimado.
- Sim - grunhiu Ymur, aborrecido. - Não tenho dúvida de que vocês, os feiticeiros, são capazes de fazer esse tipo de coisas. Incomodar os mortos no seu eterno descanso para lhes perguntar coisas absurdas.
- Nem toda a gente consegue fazer isso - protestou Shail, erguendo-se. - É um ramo da magia proibido e perigoso. Chama-se...
Calou-se e a cor desapareceu do seu rosto. Ymur viu-o e franziu o sobrolho.
- Necromancia? - ajudou-o. Shail tinha ficado sem fala.
- Não pode ser - disse. - Ashran foi capaz de invocar o próprio Talmannon para lhe perguntar como tinha contactado com o Sétimo?
Ymur franziu o sobrolho.
- Hummm - murmurou, pensativo. - Hummm. Sim, porque não? Afinal de contas, estamos a falar do homem que exterminou os dragões e os unicórnios. De quem, segundo me contaste, foi capaz de implantar o espírito de um shek no corpo do seu próprio filho.
- Mas essas coisas fê-las quando já era o Sétimo.
- A sério? Também Talmannon, se a nossa teoria estiver correcta, estava possuído pelo Sétimo. Se se tivesse visto obrigado a fazer coisas que não queria fazer, por que razão revelaria a alguém, depois de morto, como renovar o seu império?
Shail abanou a cabeça.
- Estamos a tirar conclusões precipitadas.
- Será que se poderia invocar o espírito de Talmannon, Shail? Poderia fazê-lo alguém suficientemente poderoso... ou suficientemente louco? Poderia ter-lhe perguntado como conseguiu fazer o Sétimo voltar a Idhún?
Shail enterrou a cabeça entre as mãos, a tremer.
- Eu... não sei - admitiu. - Teria de investigar um pouco mais. Teria de...
Levantou-se de rompante e saiu a voar da sala, em direcção à Biblioteca dos Iniciados.
Gerde acordou estremunhada. Encontrava-se sozinha na árvore-casa. Assher e Saissh dormiam numa tenda montada não muito longe dali... perto da Porta interdimensional. E, todavia, sentia uma presença muito perto dela. Retrocedeu até à parede e lançou um olhar cauteloso à bacia de água pousada num canto.
A água tremia e ondulava, emitindo um estranho brilho. Gerde sabia que isso significava que Shizuko, na Terra, queria falar com ela.
Quando a imagem da mulher era claramente visível na superfície da água, Gerde atirou-lhe:
- O que é que queres agora, Ziessel? Disse-te para esperares pelo meu sinal.
Ela não a ouviu. Ergueu a cabeça para Gerde, e a fada viu que, pela primeira vez, o rosto de marfim de Shizuko mostrava um ricto de profundo sofrimento.
- Peço-te... - disse, com voz sufocada. - Não consigo suportar mais... não consigo... por favor... devolve-me o meu corpo.
Gerde retrocedeu e olhou para ela com desagrado.
- E incomodas-me para isso?
- Há tempos disseste-me que tivesse paciência, que, quando estivéssemos todos na Terra, farias alguma coisa por mim... mas já não consigo... não posso continuar a viver assim...
A fada não respondeu. Limitou-se a olhá-la com uma expressão indecifrável, e Shizuko compreendeu, de repente, o que estava a acontecer. Empalideceu.
- Não tens a menor intenção de me ajudar, pois não?
- De momento, não.
Shizuko semicerrou os olhos. Gerde dirigiu-lhe um sorriso encantador.
- Sei o que estás a pensar. Tencionas regressar a Idhún assim que esta conversa acabar. Sabes, Ziessel, isso não seria boa ideia. Concedi-te o poder de viajar entre dimensões, mas fui eu quem abriu a Porta através de ti depois da morte de Ashran. Porque nunca te ensinei a utilizar esse poder, pois não?
- Não, que eu me lembre - disse Shizuko com lentidão.
- Deixa-me adivinhar: Kirtash ensinou-te, não foi? Híbrido intrometido - suspirou. - Não vos ocorreu pensar que, se não te ensinei, foi porque não queria que regressassem?
Shizuko pareceu perder a sua compostura. Os seus ombros tremeram numa convulsão silenciosa.
- Não posso ficar aqui mais tempo, minha senhora. Peço-te... deixa-nos voltar. Devolve-me o meu corpo.
- Tudo no seu devido tempo, Ziessel. Ainda é cedo...
- Cedo, para quê? - desesperou ela, e não era uma criatura propensa ao desespero. - Fiz tudo o que me ordenaste! Tenho tudo preparado, até estou a fazer diligências para recuperar os grandes bosques, como me disseste! Estou a investir toda a fortuna da minha família... da família de Shizuko Ishikawa - corrigiu-se - para adequar este mundo às tuas necessidades. Mas é demasiado esforço para uma só pessoa e, quando te procuro do outro lado, só encontro silêncio.
- Demasiado esforço para uma só pessoa - murmurou Gerde. - compreendo-te muito bem. Então, deves saber que todas as tarefas importantes levam o seu tempo. Sabes... que a Terra ainda não é um lugar adequado para os sheks... nem para mim. Dizes-me que está tudo pronto, mas sei muito bem que demorarás anos, talvez décadas, a terminar a tua tarefa.
Os olhos rasgados de Shizuko arregalaram-se.
- Vais esperar... tanto tempo?
- vou esperar o tempo que for preciso - replicou Gerde, secamente. E tu, enquanto isso, vais ficar onde estás. O teu trabalho na Terra é muito importante para todos nós. Sempre e quando te cingires ao plano estabelecido, obviamente. E para me assegurar de que o fazes... vou retirar-te o poder de abrir Portas. Não poderás voltar se eu não to permitir.
Shizuko empalideceu, aterrada, e quis replicar, mas Gerde não lhe deu oportunidade. Cortou a comunicação, e a bacia de água voltou a ficar escura e em silêncio.
Ergueu-se, inquieta. Não tinha sido assim tão brusca com ela simplesmente por a ter incomodado. Havia alguma coisa lá fora, algo que requeria a sua atenção imediatamente. Saiu da árvore, com precaução, e espiou por entre os ramos. Semicerrou os olhos, irritada, quando viu dois dragões a sobrevoar o desfiladeiro. Estavam a descer; já deviam ter visto o suave brilho avermelhado da Porta e desciam para investigar.
Um movimento junto dela indicou-lhe a presença de Assher.
- Viste isso, senhora? - sussurrou o szish.
Gerde assentiu, mas não se voltou. Os seus olhos continuavam fixos nos dragões.
Subitamente, um deles inspirou fundo e lançou uma baforada de fogo contra a Porta interdimensional. Gerde gritou e procurou detê-lo com um feitiço, mas o fogo alcançou o seu alvo. A frágil brecha entre dimensões tremeu com o ataque e tremeluziu.
- Malditos dragões! - ciciou Gerde. Correu e plantou-se diante da Porta interdimensional, disposta a defendê-la. Os pilotos viram-na. Devem tê-la reconhecido, dado que tomaram impulso para descer a pique na sua direcção.
Gerde utilizou a magia para erguer uma barreira mágica em torno de si e da Porta. Por um momento, hesitou. Podia utilizar o poder que latejava no fundo da sua alma, um poder que ia muito para lá da magia que os unicórnios lhe tinham entregado há muito tempo. Podia usar esse poder e destruir os dragões num instante. No entanto, receava chamar a atenção se o fizesse. Havia seis deuses que andavam à sua procura noutras dimensões, mas estava convencida de que, no fundo, não tinham deixado de vigiar Idhún nem por um só instante, aguardando um sinal que lhes indicasse que ela permanecia lá.
Usou a magia do raio para atacar o primeiro dos dragões, mas não teve o efeito que esperava. Aqueles artefactos eram construídos com madeira à prova de fogo. Nem canalizavam a electricidade, como o metal, nem o fogo podia incendiá-los. Recordou que, meses antes, a presença de Yohavir tinha acabado com metade de uma frota de dragões, se o que lhe contaram era verdade. Recorreu à magia do vento.
Um dos dragões desceu para a atacar, mas viu-se preso no tornado que ela criou. Viu-o rugir enquanto dava voltas no ar, e então utilizou um feitiço para sugar toda a magia que percorria aquela armação de madeira.
De repente, o dragão deixou de parecer um dragão. Agitou as asas inutilmente e caiu, dando voltas sobre si mesmo, sobre as rochas que bordejavam o desfiladeiro, não muito longe da Porta. Gerde lançou um último feitiço destruidor, energia pura que lançou com violência contra o dragão caído. Ambos, máquina e piloto, foram pelos ares numa tremenda explosão.
A fada sorriu para consigo. Mas então viu que o outro dragão batia em retirada e se afastava dali. Semicerrou os olhos. Os sheks estavam demasiado longe para o interceptarem a tempo, mas, se permitisse que regressasse a Vanissar e revelasse o lugar exacto onde se encontrava, não tardaria a ter em cima toda a frota de dragões artificiais dos sangues-quentes. Fechou os olhos e tomou uma decisão.
O piloto tinha visto o que acontecera ao seu companheiro. Compreendera que, naquele momento, era mais urgente regressar a Nandelt, para revelar a toda a gente o que tinha descoberto, do que ficar a lutar e correr o risco de que aquela informação se perdesse com ele.
Os Novos Dragões andavam já há algum tempo a enviar patrulhas para explorar os Picos de Fogo. Sabiam exactamente onde encontrar os sheks e os szish, mas ainda não tinham atacado a sua base. Limitavam-se a percorrer os arredores, reconhecendo o terreno. Algumas vezes tinham sido interceptados por sheks. Mas nunca antes se tinham deparado com Gerde. Toda a gente partia do princípio de que ela se encontraria no mesmo lugar onde se tinham refugiado o resto das serpentes, perto do Abismo. A notícia de que se escondia noutro lado ia interessar muito a Denyal, a Covan e ao rei Alsan.
Nunca chegou a sair dos Picos de Fogo. A última coisa que viu foi o rosto da feérica do outro lado da escotilha, um rosto terrível e sobrenatural, emoldurado por uma cabeleira revolta que parecia ter vida própria; Gerde olhava-o sem expressão alguma nas suas feições de alabastro. Era um olhar que pareceu perfurar a sua mente e fez tremer de horror cada partícula do seu corpo.
Aquela sensação de puro terror foi a última coisa que sentiu antes que ele e o seu dragão se desintegrarem como um castelo de areia esmagado pela mão de um titã.
Gerde voltou a pousar na terra, suavemente, e perscrutou o céu sobre ela. Não havia mais dragões. Sorriu, satisfeita... e estremeceu, de súbito, sem saber porquê. Ergueu a cabeça, preocupada, desejando que a sua percepção se tivesse enganado.
- Não, ainda não... - murmurou. - Ainda é demasiado cedo...
"Que diabo estou aqui a fazer?", perguntou-se Jack, pela segunda vez em muito pouco tempo. "Sou um dragão: tenho alguma dignidade..."
Mas também era em parte humano e, por alguma razão, parecera-lhe natural, ao deambular sem rumo pelas ruas de Lumbak, entrar na primeira taberna que tinha encontrado.
Não se surpreendeu ao ver que era gerida por um humano. No entanto, os clientes eram yan, na sua maioria. Depois do que tinha visto no acampamento dos rebeldes, não sentia vontade de conviver mais com eles, por agora; de modo que ocupou um lugar livre não muito longe de um enorme humano barbudo que roncava, de bruços sobre a mesa, diante do que, com toda a segurança, não era propriamente o seu primeiro jarro.
Jack suspirou para com os seus botões. Aquilo era um antro quente, barulhento e malcheiroso, mas agora nada disso importava. Sentia que não tinha outro sítio para onde ir. Já não queria regressar a Nandelt, para junto de Alsan, Tanawe e dos outros. Tinha a estranha sensação de que tinha visto o seu futuro naquele acampamento yan; de que, se as coisas continuassem assim, em breve a guerra contra as serpentes iria tornar-se algo muito semelhante ao que estava a acontecer em Kash-Tar. O taberneiro interrompeu os seus lúgubres pensamentos.
- O que te sirvo, rapaz?
Jack olhou para ele com alguma apatia. .- O que é que é típico por aqui?
- O darkah - respondeu o homem com um sorriso rasgado. - Mas é uma bebida yan. Puro fogo, obviamente.
Jack encolheu os ombros.
- O fogo não me assusta.
- Como queiras - riu o taberneiro.
O certo era que Jack não estava acostumado a beber álcool e pensava que o que lhe iam servir não lhe iria fazer bem. Mas não se importava. O bêbado que jazia ao seu lado dormia como um anjo, e naquele momento Jack invejava-o profundamente.
O taberneiro colocou diante dele um jarro cheio de um líquido avermelhado. Jack não quis perguntar de que era feito o darkah. Suspeitava que não lhe cairia melhor se o soubesse.
- Banzai - murmurou, bebendo um trago.
Foi muito pior do que imaginara. O licor queimou a sua boca, língua e garganta e caiu pelo seu esófago como um rio de lava. Jack começou a tossir, sem conseguir evitar, acordando o bêbado e provocando um coro de risos no local.
- Por Aldun, rapaz, eu avisei-te que era forte!
Jack procurou dizer algo, mas não foi capaz. Então, um vozeirão troou ao seu lado:
- Vai mais é encher as tripas a um swanit, Orfet! Queres envenená-lo?
Depois ordenou ao taberneiro que lhe servisse algo que Jack não entendeu. Momentos mais tarde, tinha diante de si um novo jarro. Ainda a abrir e a fechar a boca, olhou-a com alguma desconfiança.
- Bebe, vai fazer-te bem.
Qualquer líquido tinha de ser, forçosamente, mais refrescante do que aquele que acabavam de lhe dar, pelo que Jack, com a garganta a arder, bebeu com avidez. E foi quase milagroso: a beberagem acalmou a sua sede e refrescou-o por dentro. Voltou-se para o seu salvador, o enorme humano bêbado que, desperto, acabou por revelar um desconcertante olhar de duas cores.
Abriu a boca para lhe agradecer, mas, repentinamente, tudo começou a dar voltas e deixou cair pesadamente a cabeça em cima da mesa. Sentiu, vagamente, que o barbudo o agarrava pelo colarinho da camisa e o levantava um pouco no ar. Depois deixou-o cair outra vez.
Jack respirou fundo e, pouco a pouco, foi reanimando. Conseguiu levantar um pouco a cabeça, pestanejou e focou os olhos. A cabeça ainda andava à roda, mas começava a sentir-se melhor.
- Caramba - foi tudo o que conseguiu dizer.
O bêbado deu-lhe dois tabefes nas faces. Bastante certeiros, para quem estava bêbado, apercebeu-se Jack. Acordou completamente.
- Bem... pára, pára. Já estou bem.
- O teu primeiro trago de darkah, eh? Costuma provocar esse efeito nas pessoas. Devias tomar cuidado e, se te dizem que alguma coisa é forte, levá-lo a sério.
Jack sentiu-se zangado. Teve vontade de gritar a todo o mundo que ele não era nenhuma criança, que tinha caçado um swanit, matado vários sheks e derrotado um deus.
Conteve-se ao pensar que ninguém acreditaria nele e que, de qualquer das formas, não entrara naquela taberna à procura de notoriedade, mas, precisamente, para passar despercebido. O ar do barbudo era amistoso, pelo que se esforçou por sorrir.
- Obrigado - disse. - Chamo-me Jack.
- Que nome tão esquisito - comentou o homem. - bom, eu sou Rando. Não parecia tão bêbado como Jack pensara. Voltou a olhá-lo com mais
atenção e constatou que a sua primeira impressão tinha sido correcta: tinha um olho de cada cor.
Desviou o olhar, para não parecer mal-educado e voltou a mergulhá-lo nas profundezas do seu jarro.
- Podes beber isso à vontade - disse Rando. - Vai deixar-te um pouco entornado, mas não te vai matar. Pelo menos, no início - acrescentou, com uma gargalhada.
Jack sorriu. Não foi um sorriso alegre.
- Problemas com as mulheres, eh? - perguntou então Rando.
- Porque é que quando alguém tem um problema as pessoas partem sempre do pressuposto de que se trata de mulheres? - replicou Jack, aborrecido.
- Problemas com as mulheres - entendeu Rando, assentindo energicamente.
Jack não pôde reprimir um sorriso, apesar de ter tentado.
- Problemas com muitas coisas, na realidade - murmurou.
- bom - respondeu Rando, encolhendo os ombros. - Nada pode ser assim tão grave para alguém querer suicidar-se bebendo aquele que é provavelmente o pior darkah de todo o Kash-Tar - acrescentou, levantando a voz para que o taberneiro o ouvisse; este, do balcão mandou-o passear.
Rando pegou no jarro de darkah de Jack e, erguendo-o no ar, bebeu-o de um trago, à saúde do taberneiro. Jack olhava para ele, atónito. Quando Rando pousou o jarro na mesa, Jack deixou-se ficar ainda a olhar para ele, sem conseguir acreditar que continuasse tão sereno.
- Tu sim, deves ter problemas - comentou. - Como consegues engolir isso:
- Precisamente porque não tenho problemas - sorriu Rando. - Os problemas são uma chatice; impedem-te de ser feliz, não te parece?
Jack sorriu.
- Acho que sim - murmurou. - E quando são os problemas que nos perseguem?
- Então acabamos por ter de fugir deles à base de darkah. Mas é surpreendente a quantidade de problemas que podemos resolver simplesmente a falar. Sobretudo quando se trata de mulheres.
- Isso é simplificar as coisas - protestou Jack. - Há muitos outros assuntos que me preocupam.
- Se assim fosse, não estarias aqui esparramado; estarias a procurar resolvê-los - raciocinou Rando; suspirou, e abanou a cabeça. - E tudo é muito mais simples quando tens uma mulher ao teu lado. Parece mentira, mas julgas-te capaz de qualquer coisa. E nem te apercebes disso, até que a perdes... e vês até que ponto te apoiavas nela. É por isso que acabamos por cair em qualquer bar.
Jack olhou para ele, com curiosidade.
- Por isso estás aqui? Porque não tens uma mulher na qual te apoiar?
- De certo modo. Mas tive-a. Ah, sim, tive-a. - Sorriu com nostalgia, e Jack entendeu que a bebida o tinha afectado, pelo menos a ponto de lhe soltar a língua. - E perdi-a por não falar com ela.
- Eu falava com ela - replicou Jack. - Falávamos muito.
- E ouvia-la?
- Claro que sim. Eu era a pessoa em quem mais confiava. Era o seu melhor amigo...
Calou-se ao recordar que, apesar de tudo, Christian sempre conhecera e compreendera Victoria muito melhor do que ele. E isso mesmo quando não havia passado tanto tempo com ela como Jack. Abanou a cabeça. "Ele está em vantagem, pensou. Consegue ler-lhe a mente."
- E querias ser algo mais, não?
- Era algo mais. Éramos... bom, estávamos há bastante tempo juntos rendeu-se, por fim. - É verdade - murmurou. - Acho que no fundo não era mais do que um bom amigo
para ela... apesar de tudo o que passámos juntos.
- Oh - comentou Rando. - Então existe outro. Jack sorriu com cansaço.
- Houve sempre outro. - Enterrou a cabeça entre as mãos. - O que era suposto eu fazer? Até há pouco encarei isso... não sei, mais ou menos bem. Mas agora... estão a acontecer muitas coisas - suspirou. - Perguntei-lhe se queria que abençoassem a nossa união e ela disse-me que não. O que é que eu devia pensar?
- Nada - respondeu Rando, rotundamente. - Por muito que te esforces, não vais compreender as razões por que uma mulher faz isto ou aquilo. Porque as mulheres têm sempre razões para fazer as coisas, razões que podem não ser importantes para nós, mas para elas sim. Por isso, na dúvida, o melhor é perguntar. Sempre. E nunca ter tudo como garantido.
- Obrigado pelo conselho - murmurou Jack, arrependendo-se já de ter iniciado aquela conversa; estava a começar a aperceber-se de que a bebida o tinha feito falar demasiado a ele também.
- Foi o que me aconteceu - prosseguiu Rando, sem fazer caso dele. Eu tinha uma mulher. Linda, esperta, doce, corajosa... perfeita, ou pelo menos, a mini parecia-me. Chamava-se Yenna. Quando encontras uma mulher assim e ainda por cima ela sente alguma coisa por ti... queres acreditar... desejas acreditar que para ela não existe nada no mundo além de ti. Mas por muito importante que sejas para ela... é uma pessoa, tem a sua própria vida e outras coisas que lhe importam.
Yenna e eu éramos felizes. Havia um laço entre nós, os sacerdotes tinham abençoado a nossa união. Naquela altura, eu trabalhava como soldado no exército do rei
Kevanion. Saía-me bem - acrescentou, com um sorriso -, porque tenho algum sangue shur-ikaili e sou mais alto e forte do que a maioria dos homens. Mas para mim não era mais do que um trabalho. De modo que, quando os sheks invadiram Idhún e o rei Kevanion se aliou a eles... para mim não mudou nada. Continuei a lutar, como sempre, embora alguns dos meus companheiros desertassem.
Mas com o tempo Yenna começou a comportar-se de forma diferente. Achava-a mais calada, mais esquiva. Escondia-me alguma coisa e comecei a suspeitar que se encontrava com outro.
Jack ergueu a cabeça, interessado.
- Um dia vi-os juntos - prosseguiu Rando -, quando regressava a casa. Estavam numa viela escura e falavam baixinho, partilhando um segredo, algo que não me incluía. Fiquei furioso, para quê negá-lo? Regressei a casa e esperei por ela. Quando chegou, pedi-lhe explicações.
Perguntei-lhe quem era aquele homem e o que estava a fazer com ele.
- O que te disse? - quis saber Jack.
- Nada - respondeu Rando. - Não me disse nada. Limitou-se a olhar para mim, em seguida deu meia-volta e saiu de casa. Essa foi a primeira vez em toda a minha vida que me embebedei - acrescentou, abatido. Fui à taberna e bebi até ao terceiro amanhecer, e partilhei as minhas penas com outros solitários, como estou a fazer contigo agora. Quando regressei a casa, ela ainda não tinha voltado, mas eu estava tão ébrio que mal me apercebi. No dia seguinte, passei o dia todo a dormir. Quando acordei, achei estranho que Yenna ainda não tivesse regressado, e a primeira coisa que pensei foi que se tinha ido embora com o outro. Mas então reparei que algo não estava bem na casa. Todas as suas coisas continuavam no sítio. E parecia que tinha havido uma luta.
" Percebi nesse momento que alguém a levara à força e lancei-me nas ruas à procura dela, sem êxito. Apenas dois dias depois, chegou-me uma mensagem oficial do castelo. Informavam-me de que não era preciso procurar mais por Yenna, porque tinha sido acusada de traição... e executada.
A voz quebrou-se-lhe. Jack ficou petrificado.
- Pensei que devia ser uma brincadeira de mau gosto. Yenna, a minha Yenna... tinha ligações com os rebeldes? E então lembrei-me... de quando nos chegou a notícia de que os sheks tinham arrasado Shia. Ela chorara durante toda a noite. Eu consolei-a como pude, pensei que era muito sensível, de facto gostava que fosse sensível. Pensei que lhe passaria. Como no dia seguinte já não chorava, achei... que já se tinha esquecido.
- Mas não foi assim - murmurou Jack. Rando deu um murro na mesa.
- Se tivesse sabido ouvi-la... Se me tivesse apercebido de que a sua dor ia muito além da empatia, se tivesse dado importância ao facto de ela ter raízes shianas... talvez tivesse entendido antes o que estava a acontecer. Estávamos a lutar em lados contrários, e eu não sabia. Mas o que para mim era um trabalho... para ela era uma paixão. Acreditava firmemente na causa dos rebeldes, a ponto de dar a sua vida por ela. Mas não queria arriscar a minha, por isso nunca me disse nada. Sabia que, se me mantivesse à margem, proteger-me-ia mesmo que as serpentes a capturassem. E eu, estúpido, não fui capaz de enxergar que Yenna tinha uma vida para além de nós os dois e da nossa casa. Quando a vi com aquele homem, não pude deixar de pensar que tinha a ver comigo, que ele era uma ameaça para a nossa relação. Mas, embora eu fosse o centro do seu mundo, não era todo o seu mundo. Foi isso que não fui capaz de ver. E por isso denunciei-a sem me aperceber.
- Denunciaste-a? - repetiu Jack, perplexo. Rando assentiu.
- Foi na noite em que lhe perguntei pelo homem da viela, que não era senão um dos seus companheiros rebeldes. Ela não respondeu às minhas perguntas. E não estava a protegê-lo apenas a ele, mas também a mim. Poderia ter-me contado tudo, mas então ter-me-ia colocado em perigo. Ela considerou que salvar a minha vida era mais importante do que salvar a nossa relação. E eu traí-a sem me aperceber disso. Na taberna... quando contei que tinha visto a minha mulher com outro homem e que não tinha obtido nenhuma explicação nem desculpa da parte dela... havia ouvidos szish a escutar cada uma das minhas palavras. As serpentes são astutas e andavam há muito a seguir a pista de Yenna. Alguma coisa do que eu disse deu-lhes a informação de que precisavam para descobrir a sua identidade.
Eu traí-a, mataram-na por minha culpa... e tudo por não ter sabido escutar.
Jack ouvia-o, atónito. Quando Rando enterrou o rosto entre as mãos, a tremer, só foi capaz de dizer:
- Não foi culpa tua. Eles executaram-na. Não podias saber... Rando ergueu a cabeça.
- Eu era o seu homem. Devia saber. Devia conhecê-la melhor. - Abanou a cabeça. - Depois disso fui incapaz de continuar a servir no exército às ordens do rei Kevanion. Desertei... mas também não fui capaz de odiar as serpentes pelo que tinham feito. Não mais do que me odiava a mim mesmo, de qualquer das formas.
Sobreveio um longo silêncio.
- Mas não estávamos a falar de mim - concluiu o semibárbaro, subitamente animado. - Isto aconteceu há muito tempo. E agora és tu que tens de aprender a escutar a tua rapariga, não?
- Não preciso de escutar mais para saber que está com outro - murmurou Jack. - Achas que se pode amar duas pessoas ao mesmo tempo?
- Obviamente - afirmou Rando, muito convencido. - Embora uma das duas costume ser um capricho e a outra, o teu amor de verdade. As vezes custa um pouco distingui-los.
- E como se pode saber se é ou não um capricho?
- Sabe-se porque os laços de verdade duram muito mais tempo - respondeu Rando, como se fosse evidente. - Mas, se ainda te restam dúvidas, perguntas a um celeste e pronto. Embora eu tenha sempre achado que isso é como fazer batota.
Jack deixou cair os ombros.
- O seu "capricho" parece durar já há dois anos, talvez mais - murmurou. - Acho que tenho medo de que afinal seja eu esse "capricho". Pode alguém ter dois laços verdadeiros com duas pessoas diferentes?
- Acredito que sim. Eu mesmo tenho dois amores - declarou, com um sorriso malicioso. - Qualquer rapariga que queira alguma coisa comigo terá de aceitar que o meu coração não pode pertencer apenas a ela.
Jack olhou para ele, pasmado.
- Dois amores... e ainda falas de uma terceira rapariga? - perguntou, atónito.
Rando desatou a rir.
- Claro, homem. O meu primeiro amor - enumerou, levantando um dedo - é, e sempre será, Yenna. Embora ela já não exista, sempre a recordarei e sempre a terei aqui, comigo, no meu coração. É claro que eu sei que posso apaixonar-me outra vez, e, de facto, estou apaixonado; mas não faz sentido fingir que esqueci Yenna ou que já não a amo, tal como não faz sentido pensar que nunca voltarei a amar nenhuma outra mulher ou compará-las a todas com a minha Yenna. Uma vez - acrescentou, pensativo -, uma rapariga disse-me que não podia competir com a lembrança de Yenna. Fiquei bastante surpreendido. "E quem te pediu que compitas com ela?", perguntei-lhe. Não entendeu. Não sei se o que pretendia era que apagasse a sua memória do meu coração ou se realmente julgava que o meu coração estava tão morto como Yenna e não voltaria a amar mais ninguém, mas o caso é que não foi capaz de resistir.
- Mas realmente não as amas às duas ao mesmo tempo – raciocinou Jack.
- Tens a certeza? Põe-te no meu lugar. Imagina que amas uma mulher mais do que qualquer coisa no mundo... e depois a perdes. Choras por ela, sentes saudades dela, mas acabas por refazer a tua vida e seguir em frente. Então, encontras outra pessoa e passas a amá-la, não por ser um reflexo da que perdeste, nem por precisares de preencher um vazio, mas simplesmente por ser ela. Iniciam uma vida juntos... mas... o que aconteceria se a mulher que acreditavas estar morta estivesse viva e voltasses a encontrar-te com ela?
Jack não soube o que responder.
- Eu digo-te - prosseguiu Rando. - Se ambos os laços são verdadeiros, e não há motivo para pensar que não o são, por que razão não vou acreditar que se pode amar
duas pessoas ao mesmo tempo?
- Mas ficarias com as duas? - insistiu Jack; Rando encolheu os ombros.
- Isso dependeria delas. As pessoas são livres de tomar as suas próprias decisões, e eu não posso obrigar ninguém a estar ou não comigo. Por isso, o que eu decidisse a esse respeito não teria muita relevância. Poderia dizer às duas que as amo, e seria verdade. Também poderiam achar que tenho um grande descaramento e estariam no seu direito de me darem com os pés - riu -, mas eu não poderia evitar continuar a amá-las mesmo assim.
Jack sorriu, desconcertado.
- Então, já encontraste outra rapariga com quem possas partilhar a memória de Yenna? - indagou.
- Ainda não, mas estou a fazer por isso. De momento, estou à espera.
- À espera, de quê?
- De que se aperceba de que o tipo com quem está agora não é mais do que um capricho - vaticinou Rando, acabando com o seu jarro de darkah.
Jack riu; a sua segurança e alegria eram contagiosas.
- E quando pensas dizer-lhe que é uma candidata a ser o teu segundo amor?
- Oh, mas eu já tenho um segundo amor! Queres conhecê-lo? - perguntou, cúmplice.
- Conhecê-lo? - repetiu Jack, perplexo.
Rando levantou-se e atirou algumas moedas para cima da mesa.
- Pago eu.
- Nem pensar... - protestou Jack. Alsan tinha-lhe dado dinheiro para a viagem; e Jack estivera mesmo para recusá-lo, mas então pensara que, depois de tudo o que tinha feito por Idhún, bem merecia uma compensação... até os heróis tinham de viver de alguma coisa.
- Pago eu - repetiu Rando. - É o mínimo que posso fazer, depois de te ter aborrecido durante tanto tempo.
Jack rendeu-se perante a avassaladora simpatia do semibárbaro.
Saíram da taberna e percorreram as estreitas e sinuosas ruas de Lumbak. Há já algum tempo que o terceiro dos sóis se tinha posto e as luas iluminavam suavemente os edifícios achatados da cidade. Jack seguiu Rando até aos arredores da povoação. Chegaram a uma espécie de armazém abandonado; Rando franqueou as portas com passo firme.
Jack foi atrás dele. Quando os seus olhos se acostumaram à penumbra, viu um vulto ao fundo da divisão, coberto com uma lona.
O instinto falou por ele.
- É um dragão! - exclamou, antes mesmo de o ver.
- Caramba, como soubeste?
Rando acendeu um candeeiro de azeite e afastou um pouco a lona.
- Apresento-te Ogadrak - disse. - Asseguro-te que estamos total e sinceramente apaixonados um pelo outro. E que se atreva qualquer celeste a dizer-me o contrário.
Mas Jack não se riu da piada. Tinha recuado e olhava para Rando com cautela.
- Sei que não tem aspecto de dragão - disse o semibárbaro, interpretando mal o seu gesto. - Mas isso é porque há que renovar a sua...
- És um dos pilotos de Tanawe - cortou Jack. - Do grupo que enviou a Kash-Tar.
Rando pestanejou, perplexo.
- Sabes muitas coisas, tu! - disse, pondo-se repentinamente sério. Quem és?
- Enviaram-me de Thalis à vossa procura. Mas, a julgar pelo que vi - acrescentou, e a sua voz endureceu -, teria preferido nunca vos ter encontrado.
Rando dirigiu-lhe um longo olhar.
- Compreendo - disse. - Por esse motivo, separei-me do grupo. - Acariciou a madeira do dragão, pensativo. - Já não tenho nada a ver com eles. Juntei-me aos rebeldes para seguir o exemplo de Yenna, mas era a sua guerra, não a minha. Contudo... a primeira vez que voei... a bordo de um dragão... senti-me feliz pela primeira vez em muito tempo. Eu sei que o dragão não é meu e que, se me recusar a lutar com os Novos Dragões, terei de o devolver... e recuso-me a separar-me dele, por isso julgo que o roubei - acrescentou, olhando para Jack, desafiador.
- Por mim, podes ficar com ele - respondeu Jack, com um sorriso. Creio que está melhor nas tuas mãos do que nas de qualquer outro piloto, e diz-to alguém que realmente sente prazer a matar serpentes - acrescentou com uma certa tristeza.
- Obviamente que vou ficar com ele. Ogadrak e eu fomos feitos um para o outro. Nada nem ninguém poderá separar-nos.
- Renunciarias a ele... a voar... por amor? Se Yenna te tivesse pedido, por exemplo?
- Por amor fazem-se muitos disparates, Jack. Acho que seria capaz de renunciar ao meu dragão para demonstrar o meu amor por ela. Mas, pelo simples facto de mo pedir, Yenna teria demonstrado totalmente o contrário. Se amas uma pessoa, não lhe podes exigir que renuncie a algo que é importante para ela. Eu aprendi isso com Yenna. Se soubesse na altura o que fazia, se lhe tivesse exigido que abandonasse a luta contra as serpentes... tê-la-ia matado por dentro. Embora com isso lhe tivesse salvado a vida... Obrigá-la a renunciar aos seus ideais, àquilo que ela amava, teria sido como mutilar o seu espírito.
Jack abanou a cabeça, confuso. Rando desferiu uma palmada no seu ombro.
- És um tipo porreiro - disse. - Só precisas de aclarar um pouco as ideias.
- Acho que sim - murmurou ele. - Acostumei-me com o tempo a que a minha rapariga tivesse... dois amores, como tu dizes. Mas é que em breve terá três - gemeu. - Engravidou.
Rando coçou a cabeça.
- Bem, bem. Tens medo de que a criança seja filha do outro e que isso te deixe a ti de fora da família? E porque não falas com ela sobre isso?
- É demasiado tarde, parece-me.
- Nunca é demasiado tarde se alguma coisa realmente te importa. Jack fechou os olhos. Subitamente, teve vontade de correr para ir à
procura de Victoria, onde quer que ela se encontrasse, e dizer-lhe o quão a amava. Recordou as palavras de Rando: "Considerou que salvar a minha vida era mais importante do que salvar a nossa relação." Respirou fundo. "Como fui idiota", pensou. Victoria não escolhera entre os dois. Tinha-se visto obrigada a escolher entre salvar a vida de Christian ou salvar a sua relação com Jack. Perguntou-se, de súbito, como estariam os dois... os três. "O bebé", pensou. Custara-lhe assimilar a ideia de que Victoria ia ser mãe, mas já se acostumara e aguardava o nascimento da criança com a mesma esperança que a própria Victoria. E não suportava a ideia de que acabasse por ser filho de Christian e que isso implicasse perder os dois definitivamente.
"Mas deixei-a sozinha", recordou de repente. "Grávida de três meses e carregando com um shek moribundo." Tinha de ir ajudá-la... ajudá-los. Aos três. A Victoria, a Christian e ao bebé que ainda não tinha nascido, mas a quem, no fundo, já amava como a um filho. "Não importa que seja filho de Christian", pensou então. "Amo aquele bebé, e amo Victoria, e... e quero estar com eles", compreendeu.
- Creio que tenho de falar com ela - murmurou.
Rando sorriu e fez tenção de dar uma nova palmada nas costas de Jack. Mas o rapaz afastou-se com presteza e voltou-se bruscamente. Tinha ouvido um suave cicio à porta do armazém.
- Quem essstá contigo, Rando? - perguntou, irritada, uma voz sibilante.
Jack desembainhou Domivat, quase sem pensar. Rando deu um passo atrás, alarmado.
- Eh! O que é essa coisa? Guarda-a! Ersha é uma amiga!
Jack olhou para ele, sem conseguir acreditar no que acabava de ouvir.
- Amiga não - rectificou a szish. - Conhecida, nada maisss. - Aproximou-se ligeiramente, sem afastar os olhos do fio de Domivat. - Tenho notíciasss, Rando - disse.
- O coração de chamasss voltou.
Rando semicerrou os olhos, repentinamente sério.
- Esperava nunca mais ter de voltar a ouvir isso.
- Mas agora vão poder vê-lo - disse Ersha. - Vão compreender tudo o que ssse passsou.
- À custa de quê, Ersha? Quantas mais pessoas têm de morrer calcinadas para que entendamos de uma vez o que é essa coisa?
- Perdão - interveio Jack. - Sei que provavelmente não é da minha conta, mas... de que é que estão a falar?
Ersha olhou para ele com desconfiança, mas Rando respondeu:
- Estamos a falar daquilo que fez enlouquecer as pessoas, aqui, em Kash-Tar. Mas não faz sentido explicar-te; tens de o ver com os teus próprios olhos.
Jack semicerrou os olhos, assaltado por uma súbita suspeita.
- Leva-me a vê-lo - pediu. - Acho que sei do que se trata.
PODER SAGRADO
Sobressaltado, Shail ergueu os olhos do livro que estava a ler, quando alguém fechou repentinamente a porta da Biblioteca dos Iniciados.
Os dois aprendizes que estudavam na mesa contígua levantaram-se de rompante, atrapalhados, quando viram Qaydar entrar com uma expressão obviamente irritada no rosto, e começaram a tremer como pudins.
Devagar e com uma expressão resignada, Shail também se levantou. Não sabia muito bem porquê, mas suspeitava ser o motivo da fúria do Arquifeiticeiro.
- Deixem-nos sozinhos - pediu Qaydar, e os aprendizes apressaram-se a afastar-se, claramente aliviados.
Shail fechou o livro que estava a ler e tentou esconder o título, mas Qaydar não lhe prestou atenção.
- Chegou-me a notícia de que Victoria escapou, de que fugiu com o shek - disse. - É verdade?
- Bem... - hesitou Shail.
- Porque não me informaste? - explodiu Qaydar. - Sabes que ela é essencial para o futuro da Ordem Mágica! Agora o inimigo tem dois cornos de unicórnio...
- com todo o meu respeito, Victoria é uma pessoa, não um corno de unicórnio - interrompeu Shail, secamente. - Tem sentimentos...
- E também responsabilidades!
- Sim, mas se tem de prestar contas a alguém, não é ti, Arquifeiticeiro. Qaydar semicerrou os olhos.
- Dizem que o filho que espera tem o sangue do shek.
- Mas como é que as pessoas ficam a saber dessas coisas? - perguntou Shail, perplexo.
- Então, é verdade!
O feiticeiro levantou as mãos para o tranquilizar.
- Não sabemos se é verdade. Nem a própria Victoria tem a certeza, por isso não devíamos tirar conclusões precipitadas.
Qaydar deixou-se cair numa das cadeiras, a tremer.
- Isso é inaudito - murmurou. - Como foi capaz...? Que tipo de unicórnio se comportaria desse modo?
- Está apenas a tentar salvar a vida de Kirtash. Quer gostemos quer não, existe um laço entre os dois. Se queres ter Victoria do teu lado, Arquifeiticeiro, farias bem em respeitar esse laço.
- Um laço... com um shek - repetiu Qaydar, sacudindo a cabeça. É repugnante.
Shail lembrou-se de como Victoria protegera Christian, ferido de morte, de Alsan e Gaedalu, e sorriu com uma certa tristeza.
- A mim, parece-me bonito - replicou. Qaydar levantou-se de rompante.
- Bonito ou repugnante, a verdade é que Victoria não devia colocar esse laço acima das suas obrigações. Pega nas tuas coisas - ordenou. Vamos a Vanissar. Temos de organizar uma busca. Trá-la-emos de volta, quer queira quer não.
- Mas...
- Sem desculpas, Shail. Nada do que possas estar a fazer é mais importante do que encontrar o último unicórnio, certo?
"Tem razão", pensou Shail, desanimado.
Era a primeira vez que Jack voava num dragão artificial e não estava certo de que gostava. A sensação era semelhante à de voar de avião... um avião bamboleante e tão, tão instável, que até ele, habituado a voar e sem medo das alturas, se sentiu inquieto.
- Não é fantástico? - perguntou Rando quando levantaram voo. O rosto exibia uma expressão estática de alegria.
- Sim... fantástico - murmurou Jack, que começava a sentir-se enjoado.
Tinha resolvido não revelar ainda quem era, não porque não confiasse em Rando, mas porque simpatizara bastante com o semibárbaro e não queria que ele começasse a tratá-lo de outro modo. Como Ersha decidira ficar em Lumbak, uma vez que não tinha qualquer intenção de voltar a aproximar-se do "coração de chamas", havia um sítio na cabana para ele.
Rando pusera-o a par de tudo o que vira três meses antes no deserto e que, na sua opinião, fizera arder Nin até às fundações. Jack escutara, com o rosto grave, a história do semibárbaro.
- Queres dizer que os dois lados culpam o outro de um massacre que aconteceu por culpa de Al... da bola de fogo? - perguntou enquanto abanava a cabeça, incrédulo.
- Nesta altura já pouco importa quem começou - disse Rando -, porque as duas facções já cometeram tantas atrocidades que têm suficientes desculpas para se continuarem a matar durante muito mais séculos.
"É assim que se perpetuam as guerras." Jack recordou-se do que Victoria lhe dissera.
- Vamos na direcção que Ersha indicou - informou Rando, interrompendo-lhe os pensamentos. - Não sei quando o avistaremos, mas, de qualquer maneira, não nos podemos aproximar muito. Se começares a ter calor, avisa.
Jack assentiu, inquieto.
Demoraram ainda algumas horas até começarem a sentir a presença daquilo a que Ersha chamava o "coração de chamas". A temperatura aumentou no interior do dragão, e começaram os dois a suar.
- Onde está? - perguntou Jack, olhando através das escotilhas.
- Ainda estamos longe - disse Rando, e a preocupação de Jack aumentou. Os efeitos do deus faziam-se sentir mesmo a grande distância. Como seria vê-lo de perto?
O coração do jovem acelerou. Já tivera a sua dose de deuses para o resto da vida, mas, apesar disso, sentia uma estranha atracção por Aldun. Perguntou- se-se isso se devia ao facto de, segundo as lendas, ter sido aquele deus o que interviera de modo mais directo na criação dos dragões.
Naquele momento, Ogadrak contornou uma duna enorme e, de imediato, o coração de chamas surgiu à frente deles, vomitando línguas de fogo, como o núcleo de uma estrela.
- Cuidado! - gritou Jack, alarmado. Rando soltou uma imprecação sonora e manobrou as alavancas para elevar o dragão. Uma vaga de ar abrasador atingiu-os em cheio e, de súbito, uma das asas de Ogadrak incendiou-se como um ramo.
- Não, não, não! - gritou Rando, enquanto movia as mãos, frenético. Deu meia-volta e tentou fugir, mas o dragão não respondia. - Ogadrak! gritou, como se o estivessem a torturar.
- Tens de aterrar, Rando! - exclamou Jack.
- Mas que...! O que tenho de fazer é sair daqui!
- Ouve o que te digo! Aterra! Aterra! - insistiu Jack, enquanto o dragão dava duas voltas sobre si mesmo no ar.
Por fim, Ogadrak embateu contra una duna, com um forte solavanco. Rando e Jack foram projectados dos assentos. Jack chocou contra uma das paredes, mas, enquanto o dragão se estabilizava, saiu com toda a rapidez pela escotilha superior. Rando demorou um pouco mais a despachar-se. Fê-lo enquanto ouvia o crepitar das chamas que estavam a devorar o seu dragão e lançou um grito de alarme.
Mas de seguida um monte de areia caiu sobre o dragão, areia rosada que se espalhou através da escotilha em várias ondas, até que se apagou o som do fogo.
Rando saiu para o exterior. Foi recebido por uma noite limpa e calma, e o ambiente asfixiante deixou-o a ofegar.
- Ouve! - gritou. - Como fizeste para atirar tanta areia sobre...? Calou-se quando viu que não estava a falar com um humano, mas sim com um enorme dragão dourado que contemplava Ogadrak, preocupado.
- Por todos os... - começou o piloto, mas não conseguiu terminar a frase.
Saltou para a areia e aproximou-se, cauteloso, de Jack.
- Já sei quem és - disse-lhe. - Ouvi falar muito de ti.
- Ainda bem - respondeu Jack com pouco entusiasmo.
Voltou a transformar-se em humano e começou a examinar os estragos de Ogadrak.
- Parece que queimou apenas a camada externa - disse. - A armação resistiu. Está só um pouco chamuscado.
Rando ficara de boca aberta, mas sacudiu a cabeça e tentou concentrar-se.
- Devia ter resistido mais - disse. - O revestimento dos dragões... dos dragões artificiais, quero dizer - acrescentou, olhando-o de lado -, está protegido com encantamentos contra o fogo. E isto é madeira de olenko, supõe-se que não arde. Nem fica chamuscada.
Jack moveu a cabeça e, com um gesto, apontou para a grande esfera de fogo que iluminava o horizonte.
- Duvido muito que exista algo que não arda perto daquilo - replicou. Ele mesmo sentia que a pele queimava e que tinha a garganta seca.
Passou um braço pela testa coberta de suor. Afastou-o de imediato. O simples roçar fazia-lhe comichão e, ao olhar para os braços, viu que a pele estava a ficar vermelha.
- Temos de sair daqui o quanto antes - murmurou. - Está um autêntico forno.
Rando estava de novo concentrado em Ogadrak. Também ele suava copiosamente.
- Isso pode arranjar-se - respondeu, com um sorriso de alívio. - Apesar de tudo, os estragos foram apenas superficiais. Acho que se arranjar a asa até poderemos voar para um lugar civilizado.
Jack deixou escapar um suspiro de impaciência.
- Não sei se conseguirei esperar tanto - disse. - Ouve, talvez possa carregar com o dragão e afastarmo-nos os dois daqui.
- Carregar o dragão? - repetiu Rando. - Enlouqueceste?
- Eu sei - replicou Jack - que o lógico seria levar-te apenas a ti e deixar aqui este resto de dragão, mas não tenho ilusões. - Sorriu. - É o teu segundo amor, não é?
Rando soltou uma gargalhada.
- Certo, certo... Bem, se nos levas a ambos, agradeço-te. Não me parece que este seja um lugar muito seguro para passar a noite - acrescentou, e voltou-se para contemplar, sombrio, o coração de chamas. Virou-lhe de imediato as costas porque não suportava o calor e abanou-se com a mão, tentando aliviar o ardor que lhe mordia a pele.
- Não esperava voltar a encontrar-me com nenhum deles - disse Jack a meia-voz.
Rando olhou-o, desorientado.
- Já alguma vez tinhas visto algo parecido?
- Não exactamente - respondeu -, mas cruzei-me anteriormente com outros da sua espécie.
-E... o que é?
Jack virou-se e cravou nele um olhar demorado, mas não respondeu.
- Vamo-nos embora daqui - concluiu. - Já não consigo ficar parado. "Os próximos dias vão ser muito longos", pensou, pesaroso.
A viagem de regresso também foi longa. O dragão artificial pesava mais do que Jack supusera, e o semibárbaro, montado no seu dorso, não era nem de longe tão leve quanto Victoria. Quando, por fim, os voltou a deixar junto ao armazém de onde tinham partido, estava quase a amanhecer e Jack estava cansado.
- Devias descansar um pouco antes de te ires embora - disse-lhe Rando.
- Não dormimos nada durante toda a noite.
Mas Jack recusou.
- Não há tempo a perder - disse -, tenho de avisar que regressei. E tenho de encontrar Victoria - acrescentou, preocupado. - Quem sabe o que poderá acontecer se voltar a cruzar-se com um deles.
- Estás a falar da tua namorada, não estás? - sorriu Rando. - Bem, desejo-te sorte com ela. Confesso que nunca teria imaginado encontrar o último dragão no antro de Orfet - acrescentou, um pouco confuso - a afogar as suas mágoas amorosas num jarro de darkah.
- Nem tudo se resume a isso - protestou Jack, um tanto irritado. Mas de seguida sorriu. - bom, podes ter a certeza que não voltarás a ver-me a provar darkah. Que corra tudo bem, Rando. Gostei de te ter conhecido acrescentou, dando uma palmada amistosa no braço do semibárbaro -, e espero que nos voltemos a encontrar. Entretanto, gostaria de te pedir um favor.
Rando riu-se.
- Tu a pedires-me um favor...? - começou, mas calou-se ao ver a expressão extraordinariamente séria de Jack. - bom... de que se trata?
- Trata-se de Kimara - pediu-lhe, para surpresa dele. - Vê lá se estás perto dela quando lhe passar o capricho, está bem? Irá fazer-lhe bem ter ao seu lado alguém como tu - acrescentou, piscando-lhe o olho.
De seguida deu meia-volta e afastou-se em direcção à porta do armazém.
- Espera! - chamou Rando. - Como sabias isso de Kimara?
Jack não respondeu. Despediu-se com um gesto, sem se voltar, e saiu de novo para se defrontar com o deserto.
Victoria acordou ao sentir que alguma coisa se movia sob o seu corpo, a formigar. Levantou-se sobressaltada. Depois de despertar completamente, voltou-se para olhar para Christian que jazia junto dela, inerte. Preocupada, Victoria apressou-se a ver se ainda respirava. Suspirou mais tranquila quando verificou que continuava vivo. O pulso era muito fraco e a respiração um ligeiro sopro, mas ainda estava vivo. Cerrou os dentes para afugentar as lágrimas. Não sabia quanto tempo mais lhe restaria e sabia que não suportaria vê-lo morrer. Mas não podia fazer mais nada por ele, além de o tratar com todo o carinho de que era capaz.
Endireitou-se um pouco. A luz do primeiro amanhecer já se filtrava pela janela e pelas fendas da cabana em ruínas. Victoria olhou em volta, à procura da tigela que utilizava para trazer água do ribeiro a Christian. O shek mal conseguia engolir, mas de qualquer maneira Victoria dava-lhe de beber. Também o estivera a alimentar com frutas e bagas do bosque, mas já há alguns dias que nem sequer tinha força para mastigar.
De repente, voltou a sentir que algo se movia por debaixo do corpo e levantou-se de rompante, alarmada. Afastou a capa, que fazia de lençol, e que estendera sobre o monte de vegetação que lhes servia de cama, cautelosa, para ver o que havia em baixo.
No início, pareceu-lhe uma minhoca ou uma pequena serpente que se retorcia entre as folhas. Mas, quando viu melhor, apercebeu-se de que se tratava de um pequeno botão verde que crescia lentamente, em busca da luz do sol.
- Não pode ser - murmurou Victoria.
com delicadeza, afastou um pouco Christian, e limpou melhor a zona.
Ali estava: entre as lajes do chão cresciam plantas, lentamente, mas sem pausas. Victoria levantou a cabeça, enquanto o coração começava a bater-lhe com força, e viu que todas as plantas que não arrancara da cabana começavam de novo a crescer. A jovem inspirou profundamente e fechou os olhos para se concentrar. Voltara a ter a estranha sensação que tinha sempre que o ambiente se carregava de energia.
Já não havia dúvidas. Os deuses tinham regressado.
Quando voltou a abrir os olhos, estavam inundados de lágrimas. Aquele era o milagre por que esperara.
Pegou em Christian, com impaciência, e saiu da cabana. Procurou com o olhar o pássaro haai e sentiu-se aliviada ao ver que não se fora embora. Estivera a alimentá-lo durante todos aqueles dias e parecia que a ave ganhara carinho por ela, mas Victoria não a mantinha presa, pelo que o animal podia ir para onde quisesse. Chamou-o com um leve assobio que aprendera com Man-Bim e o haai aproximou-se dela, amistoso. Victoria colocou Christian sobre o dorso dele e, de seguida, montou. Pouco depois, elevavam-se no ar, sobrevoando a cúpula de árvores de Alis Lithban.
Teve alguma dificuldade em controlar o haai, cujo nervosismo aumentava ao aproximarem-se do lugar onde o bosque voltava a crescer desarvoradamente. Victoria franziu o sobrolho, preocupada. Sabia que era perigoso, sabia que não devia aproximar-se demasiado... mas tinha de salvar a vida de Christian. Quando achou que já se tinha aproximado o suficiente, incitou a ave a descer, esperando não se ter enganado nos seus cálculos.
Junto à terra, as árvores voltavam a crescer e a desenvolver ramos, flores e folhas a uma velocidade prodigiosa. Victoria teve problemas para encontrar um espaço onde aterrar e, quando o fez, apressou-se a atar o haai com uma liana que pendia de uma das árvores. O animal tentou levantar voo, mas a corda impediu-o. Aterrorizado, lançou um olhar suplicante a Victoria, deixando escapar um suave gorjeio de recriminação.
- Sinto muito - murmurou Victoria -, mas preciso de ti. Por favor, espera mais um pouco. Depois serás livre, prometo-te.
Deixou Christian ao pé de uma árvore e contemplou-o por um instante, sobressaltada. Abanou a cabeça e esforçou-se por manter o sangue-frio. Olhou para as mãos. Começava a sentir comichão na ponta dos dedos. Teve medo e reprimiu o instinto de sair dali a correr. Fechou os olhos e respirou fundo. "Por Christian", pensou.
Continuou a inspirar profundamente, a tentar acalmar-se, enquanto o haai piava, desesperado, e as árvores cresciam cada vez mais depressa. Quando voltou a abrir os olhos e examinou de novo as mãos, viu que estavam envoltas em faíscas. "Agora", pensou.
Transformou-se em unicórnio.
Foi espantoso. Uma torrente de energia brutal percorreu-a por dentro, quase destroçando-a, e fê-la soltar um grito de dor. Tentou deter aquilo mas não conseguiu, e lembrou-se, como se tivesse acontecido no dia anterior, de como Ashran a utilizara para sugar a energia do mundo. Aquilo era parecido, mas era o seu corpo que absorvia mais magia do que aquela que podia conter e começava a transbordar, como um leito de rio demasiado estreito que inundava tudo à sua volta. Victoria inclinou a cabeça, exausta pela dor interior. O corno pesava tanto que pensou que lhe ia partir o pescoço.
Cerrou os dentes e abriu os olhos, com esforço. A luz do corno deslumbrou-a. Lutou por levantar a cabeça e afastar o corno do corpo de Christian. Qualquer coisa onde roçasse naquele momento explodiria em milhões de fragmentos.
Qualquer coisa...
Victoria aguentou ainda mais um pouco, aterrorizada, a ponto de rebentar. Sabia o que lhe poderia acontecer se não descarregasse toda aquela energia, mas tinha medo de magoar Christian. "Tenho de tentar", pensou com esforço. "É a sua única oportunidade."
com um gemido de dor, voltou a mover a cabeça e lutou por controlar o movimento ao milímetro. Se se enganasse e o corno roçasse a pele de Christian, mesmo que fosse só por um instante...
Tentou não pensar nisso.
Lenta, muito lentamente, baixou a cabeça e aproximou a ponta do corno da gema que brilhava no peito do shek. O corno tremeu por um instante, a escassos centímetros da pedra. Junto dela, o pássaro haai piava aterrorizado.
"Um pouco mais", pensou Victoria, com um arquejo de agonia. "Só um pouco mais."
A ponta do corno roçou a pedra negra.
Victoria sentiu a descarga da energia divina, que passava através dela violentamente, rasgando-lhe a alma e obrigando-a a gritar de dor, mas manteve-se firme. A gema absorveu aquele poder, palpitando como um coração de obsidiana, e Victoria aguentou... aguentou...
Subitamente, a gema desfez-se em mil pedaços. O unicórnio afastou o corno e a magia deteve-se de súbito, enchendo-a por dentro até que se sentiu prestes a rebentar.
Não aguentou mais. Voltou a transformar-se em humana e a dor abrandou.
Sentiu vontade de chorar, mas conte vê-se. Deixou-se cair ao lado de Christian e olhou para as suas mãos. Ainda libertavam faíscas, mas não tantas como anteriormente. Respirou fundo. Tinha de sair dali...
Não se atreveu a olhar para Christian. Ainda não estava preparada para saber se funcionara ou não. Para já o mais urgente era regressar à cabana, a um lugar onde pudessem estar em segurança.
Levantou-se e percebeu então que algo estava terrivelmente mal.
Baixou os olhos, inquieta, e deixou escapar um grito de terror ao ver que o ventre lhe inchava lentamente. Apalpou-o com as mãos, morta de medo. Conseguia sentir o filho a crescer dentro dela.
- O que estás a fazer? - gemeu, com uma nota de pânico na voz. - O que é que se está a passar?
Teve uma visão fugaz do bebé a aumentar de tamanho a tal velocidade que acabava por lhe rasgar o ventre e sair violentamente de dentro dela. Tentou acalmar-se, mas percebeu que, se a criança continuasse a crescer, podia fazê-la rebentar as águas e obrigá-la a dar à luz ali mesmo, em pleno bosque...
Deixou escapar um gemido de terror e continuou a agarrar o ventre, sentindo-o aumentar de tamanho. Ficara bloqueada, sem saber o que fazer.
De repente, uma mão agarrou-lhe o pulso. Virou-se e deparou-se com o olhar de Christian.
Limitou-se a dizer:
- Tens de sair daqui.
Ainda falava com esforço, mas estava consciente. O alívio inundou o peito de Victoria. Ajudou Christian a levantar-se, tentando não olhar para baixo, mas sentia-se muito fraca e estranhamente faminta. O corpo estava a utilizar todos os recursos ao seu alcance para fazer crescer o bebé a toda a velocidade, contagiado pela febre criadora de Wina.
com muita dificuldade, aproximaram-se do pássaro haai, que piava ruidosamente e esvoaçava desesperado. Victoria ajudou Christian a subir para o dorso da ave. O próprio Christian teve de se apoiar nela, porque mal conseguia andar.
Quando a jovem, já sentada sobre o dorso do animal, soltou a liana, o haai lançou um grito de liberdade, abriu as asas e levantou voo. Pouco depois, afastavam-se os três daquele lugar, em direcção ao céu coroado pelos três sóis.
Chegaram à cabana, e Victoria sentiu-se aliviada ao verificar que as plantas tinham parado de crescer: Wina estava a afastar-se para sul, em direcção a Raden.
Soltou o haai com algumas palavras de agradecimento e, quando a ave se ergueu no ar com um gorgolejo agudo, ajudou Christian a atravessar a soleira da porta. Não se deteve a pensar naquilo por que passara. Deitou o shek sobre o leito de folhas e examinou-lhe o peito, com ansiedade.
A gema desaparecera. Apesar disso, as cicatrizes permaneciam: uma marca escura e redonda no local onde a pedra estivera cravada, como uma queimadura que tivesse
queimado a pele do shek; e aquelas estrias que partiam da marca central e que lhe percorriam o peito, como as patas de um insecto sinistro. Victoria roçou a marca com a ponta do dedo.
- Dói-te? - perguntou. Como Christian não respondeu, ergueu a cabeça para olhar para ele.
Viu que tinha os olhos fixos nela. Estava consciente e parecia que, pouco a pouco, o olhar recuperava aquele brilho de inteligência que o caracterizava. Apesar disso, Victoria não se quis iludir a esse ponto.
- Dói-te? - repetiu.
Christian negou, sem deixar de a olhar. Victoria concentrou-se então nas suas cicatrizes e pôs em acção todo o seu poder curativo, para lhe regenerar a pele e fazê-las desaparecer.
Foi inútil. Exausta, afastou as mãos. Sentia-se atordoada mas, apesar disso, tentou de novo.
- Descansa - disse Christian com suavidade, obrigando-a a parar. Pegou-lhe nas mãos e fê-las deslizar pelo ventre. Victoria tremia de medo e afastou o olhar.
- O bebé cresceu de repente - observou Christian.
Victoria baixou a cabeça para olhar, desolada, para a nova curva que o seu abdómen apresentava.
- Mas porquê? - sussurrou. A voz tremia-lhe e estava prestes a chorar.
- Ter-to-ia dito se tivesse tido oportunidade. Wina não faz crescer apenas as plantas. Também acelera o desenvolvimento de todo o tipo de criaturas.
Victoria apalpou o ventre, preocupada. Fechou os olhos por um instante. Sem a pressionar, Christian esperou até que ela o fitou com um sorriso fraco.
- Já dá pontapés - disse. - Senti-o mexer-se. Achas que... está bem? Christian abraçou-a.
- Espero que sim. Teoricamente, a única coisa que fez foi poupar-te vários meses de gravidez. - Observou com um olhar crítico. - Mas acho que ainda é demasiado pequeno. Não vais dar à luz esta noite - acrescentou a sorrir.
Victoria fitou-o, séria.
- E tu, como estás?
- Exausto, mas... acho que a melhorar. - Franziu ligeiramente o sobrolho. - É como se a minha visão tivesse estado desfocada e começasse a aclarar-se a pouco e pouco.
Ela sorriu, mas não respondeu. Levantou a mão para lhe tocar na testa.
- Parece-me que estás um pouco mais frio.
Christian recostou-se sobre o leito e fechou os olhos, com um suspiro de cansaço.
- A essência de shek vai recuperando pouco a pouco o terreno que tinha perdido - disse. - Talvez demore um pouco, mas parece-me que voltarei a recuperar as minhas forças e o meu poder.
- Está bem - murmurou Victoria, aninhando-se junto dele.
Christian abraçou-a com um gesto protector, mas a rapariga, extenuada, fechou os olhos e alguns instantes depois dormia profundamente. Christian sorriu.
- Salvaste-me a vida - disse-lhe ao ouvido. - Nunca o esquecerei.
Tinham visto a Luz.
Era a única coisa que sabiam, a única coisa que eram capazes de balbuciar quando lhes perguntavam o que lhes acontecera e quem os deixara naquele estado.
- Vêm todos de uma aldeia próxima das fontes do Adir, majestade informou Covan. - E ainda há muitos que vagueiam perdidos pelo vale. Os soldados estão a recolher todos aqueles que conseguem encontrar, mas... não sei se os conseguiremos devolver às suas casas.
- Porque não? - perguntou Alsan, inquieto. - Aquilo que os atacou continua lá?
Covan negou.
- É que não existe maneira de encontrar a aldeia, Alsan. Dizem que o local está envolto num clarão tão grande que ninguém se pode aproximar sem que lhe doa a vista.
E, tendo em consideração o estado de todas essas pessoas, não sei se será prudente aproximarem-se mais.
Alsan franziu o sobrolho, pensativo. Inclinou-se junto de um vulto que se agachara num recanto, a gemer e cobrindo o rosto com as mãos.
- Vanissardo, encontras-te perante o teu rei - disse. - Diz-me, o que vos aconteceu?
O homem limitou-se a levantar a cabeça. Alsan estremeceu ao ver aquele rosto, pálido como o de um cadáver e com as órbitas completamente vazias.
- A Luz... a Luz - gemeu o aldeão.
- Porque é que ainda não os curaram? - perguntou Alsan.
- Os curandeiros não sabem o que fazer com eles - respondeu Covan.
- Não lhes podem devolver os olhos e, de qualquer das maneiras, parece que não lhes dói. Parece que... essa luz de que falam lhes queimou os olhos e, apesar disso, não se importam. Pelos vistos, alguns até bendizem os deuses por lhes terem arrebatado a vista. Porque não são dignos de contemplar a Luz e o seu brilho fere-os por dentro. Ou algo assim.
- Bendizem os deuses... - murmurou Alsan, preso de um pressentimento horrível.
Ia continuar a falar, mas algo o interrompeu. Naquele momento, Shail apareceu como um raio.
- Alsan! - exclamou. - Que se passa? Acabámos de chegar e no pátio do castelo vimos todas aquelas pessoas... quem são? O que lhes aconteceu? Parece que ficaram...
- Cegas - confirmou Alsan. - Todas elas. Covan avançou para cortar a passagem a Shail.
- Que maneiras são essas, feiticeiro? Encontras-te perante o rei de Vanissar!
Shail deteve-se, perplexo.
- Covan, sou eu - protestou.
O cavaleiro ia responder quando viu Qaydar, que acabava de entrar. Franziu o sobrolho, mas não disse mais nada.
- Arquifeiticeiro - disse Alsan, com um sorriso. - Fico satisfeito por voltar a ver-te tão depressa. Vamos precisar da tua ajuda.
- Ouvimos as notícias acerca da fuga de Victoria e viemos ajudar na sua busca - informou-o o Arquifeiticeiro e cruzou as mãos à frente do peito.
- Victoria terá de esperar - interrompeu-o Alsan. - Temos outro problema muito mais urgente. - Indicou o cego que se encolhia num canto e que continuava a murmurar "a Luz... a Luz...". - Tenho uma dúzia de aldeões nestas mesmas condições, aqui no castelo, e disseram-me que há muitos mais perdidos pelo reino. Tenho de os encontrar primeiro e averiguar o que se está a passar.
Qaydar franziu o sobrolho.
- Um ataque das serpentes?
- Não é o estilo delas.
Qaydar ajoelhara-se junto do cego e examinava-lhe o rosto, preocupado.
- Podes curá-lo? - perguntou Shail.
- Reconstruir-lhe os olhos? - Qaydar negou. - Isso está fora do meu alcance. De qualquer maneira, creio que a sua mente ficou mais danificada do que a visão. - Suspirou. - Este homem perdeu o juízo.
- Como os ouvintes dos Oráculos - murmurou Shail, dirigindo a Alsan um longo e significativo olhar.
- Sim - assentiu ele -, já tinha pensado nisso. Mas há já algum tempo que não acontecem esse tipo de coisas em Idhún. Pensei que não aconteceriam mais.
- Talvez tenham regressado para terminar o que começaram - sugeriu Shail. - É provável que já saibam onde encontrar Gerde.
- Nesse caso, não estariam aqui, em Vanissar - resmungou Alsan.
- Mas não estão todos. Se aquilo que chegou a Vanissar pode ser definido como "Luz", creio que já sei como lhe devemos chamar.
Fez-se um silêncio incómodo, cheio de apreensão.
- Não gosto dessa ideia - declarou Alsan.
- Porquê? - perguntou Shail sem levantar a voz. - Por acaso achavas que a nossa deusa era menos destrutiva ou mais amável que os outros cinco?
- Estás a falar de quê? - interveio Covan. - O que é que Irial tem a ver com tudo isto?
Dirigiram-lhe os dois um olhar incomodado. Mas foi Qaydar que respondeu:
- Há três meses, um tufão estranho sacudiu as fundações da Torre de Kazlunn. O jovem Jack afirmava que se devia à presença do deus Yohavir no nosso mundo.
Covan empalideceu.
- Mas como... como se pode dizer semelhante insensatez?
- Não é assim tão descabido - replicou Alsan. - Assistimos a um terramoto violento em Nanhai e uma onda gigantesca varreu as costas de Derbhad na mesma altura. Também não é segredo para ninguém que Alis Lithban se regenerou de maneira assombrosa. Nem sequer as serpentes poderiam ter feito isso e também não é lógico acreditar que Gerde esteja por detrás de tudo.
- Karevan, Neliam e Wina - resumiu Shail. - Temo-los sempre representado como seres parecidos connosco, mas por que motivo teriam de ter o nosso aspecto?
Covan recuou um passo.
- Estão todos doidos - disse. - Não quero ouvir mais blasfémias. Deu meia-volta, não sem antes se inclinar perante Alsan, e saiu da sala.
- Parece - disse Alsan, passado um momento - que a deusa Irial deu-me a honra de visitar o meu reino.
- Então já estão todos - murmurou Shail. - À excepção de Aldun, é claro. Pergunto-me porque é que ainda não se manifestou.
Alsan sacudiu a cabeça.
- Quem disse que não o fez? Há três meses que Tanawe enviou um grupo de dragões a Kash-Tar, que ainda não voltou. Nem Jack, a quem enviámos para os procurar - acrescentou.
Shail semicerrou os olhos, preocupado.
- Ainda não regressou?
- De modo que perdemos o dragão e o unicórnio na véspera de uma batalha crucial - resmungou Qaydar.
- Perdemos muito mais do que um dragão e um unicórnio, Arquifeiticeiro - disse Alsan. - Estamos a perder dragões artificiais: o grupo de Kash-Tar não regressou e suspeito que já não regressará. Também desapareceram dois dragões que foram enviados há pouco para patrulhar os Picos de Fogo. É verdade que Tanawe tem preparada uma grande frota e que existe um número significativo de pilotos a treinarem-se... mas esses dragões não voarão sem magia.
Qaydar olhou-o fixamente.
- Não estou disposto a arriscar os meus feiticeiros numa guerra.
- Nem sequer para recuperar Victoria? Ou para obter o corno de unicórnio de Gerde?
O Arquifeiticeiro franziu o sobrolho.
- Estás a insinuar que, se Gerde fosse derrotada...?
- Colocaríamos o corno que está na sua posse à disposição da Ordem Mágica - assentiu Alsan. - No início pensei em devolvê-lo a Victoria, mas, dadas as circunstâncias...
A ruga na testa de Qaydar tornou-se mais profunda.
- Estou a perceber - anuiu. - Falarei com Tanawe e verei o que posso fazer.
- Ficar-te-ia grato, Arquifeiticeiro. Já há algum tempo que localizámos a base dos sheks, e, se ainda não atacámos, foi precisamente por esse motivo. Mas assim que os Novos Dragões dispuserem de feiticeiros que possam colocar em acção as suas máquinas... a batalha começará.
- Não sei se é boa ideia lutar contra as serpentes nestas circunstâncias - disse então Shail, olhando para Alsan. Este virou-se para ele.
- Então que sugeres? Que lutemos contra os deuses?
- Não se pode lutar contra eles, Alsan, sabes isso tão bem quanto eu. Além disso, não têm nada contra nós. Procuram o Sétimo.
- Então mais vale que o encontrem depressa - resmungou Alsan. - Se pudesse, eu mesmo lhes diria onde o procurar. - Voltou a olhar para Shail, subitamente interessado. - Tu foste a Kazlunn para averiguar mais coisas a respeito de Ashran. Acerca da maneira como aprendeu a invocar o Sétimo, não foi?
Shail remexeu-se, incomodado, sentindo sobre ele o olhar inquiridor de Qaydar.
- Sim... Ymur e eu temos uma teoria - disse. - Mas, obviamente, não está confirmada.
Contou-lhes, em poucas palavras, a conclusão a que tinham chegado.
- Isso é absurdo - replicou Qaydar. - Para invocar o espírito de Talmannon, Ashran teria precisado de pelo menos duas coisas: um objecto que lhe tivesse pertencido e restos do seu corpo, ossos, cinzas, o que quer que fosse. Estamos a falar de um feiticeiro que viveu na Segunda Era, Shail. Tudo
o que poderia restar dele perdeu-se há muito tempo. Shail acariciou o queixo, meditabundo.
- Tudo...? - perguntou. - Sabemos por acaso o que aconteceu a Talmannon depois de Ayshel o ter derrotado? O que é que aconteceu ao seu corpo?
Qaydar revirou os olhos.
- Os restos mortais de Ashran estavam debaixo das ruínas da Torre de Drackwen - insistiu Shail. - Retirámos tudo e fizemos uma pira com o seu corpo. Recolheste as cinzas, Arquifeiticeiro. O que foi feito delas?
- Não estás por acaso a insinuar que se possa invocar Ashran depois de morto - interveio Alsan, alarmado. - Não devíamos espalhar as suas cinzas no mar, para garantirmos que ninguém...?
- Não resta nada de Ashran que possa ser utilizado numa invocação interrompeu Qaydar, categórico.
- Chamavam a Ashran, o Necromante - insistiu Shail. - Se de algum modo conseguiu chegar até aos restos de Talmannon...
- Também não resta nada de Talmannon. É absurdo supor que alguém possa invocar o seu espírito.
Sem saber muito bem porquê, Shail teve a impressão de que o Arquifeiticeiro estava a mentir.
- Mas - interveio Alsan - se restasse alguma coisa e se se pudesse fazer a invocação... e perguntar a Talmannon como se fala com um deus...
Fez-se um longo silêncio. Qaydar e Alsan entreolharam-se. Shail percebeu.
- Não... não estão a pensar...
- Se pudéssemos falar com Irial - reflectiu Alsan -, fá-la-íamos ver que estamos aqui. Dir-lhe-íamos o que a sua presença e a dos outros deuses representa para nós. Poderíamos dizer-lhe onde Gerde se encontra. Nós sabemo-lo, eles não.
- Poderíamos pedir-lhe que voltasse a criar unicórnios, como em tempos passados - acrescentou Qaydar.
Shail olhava-os, alternadamente, primeiro para um, depois para o outro.
- Não podem estar a falar a sério. Talmannon foi o primeiro imperador negro, o antecessor de Ashran... e estão a pensar em invocá-lo para lhe perguntar como contactou com o Sétimo... para fazerem o mesmo?
- O mesmo não - salientou Alsan. - Invocaríamos um dos Seis, não o Sétimo. Não é a mesma coisa.
Shail abanou a cabeça, sem acreditar no que estava a ouvir.
- É uma loucura - disse. - Felizmente, não possuímos nenhum objecto de Talmannon nem conservamos restos do seu corpo. Por isso, estamos apenas a fazer conjecturas, não estamos? - insistiu.
Reinou um breve silêncio.
- Sim - respondeu Qaydar, por fim. - É uma pena.
Alsan não disse nada. Limitou-se a semicerrar os olhos, pensativo.
Quando Christian acordou naquela noite, Victoria não estava ao seu lado. Apesar disso, teve a sensação de que estava por perto. Não se tratava daquela absoluta certeza que costumava experimentar, mas sim de um pressentimento, uma intuição. Era melhor que nada.
Inspirou fundo e fechou os olhos. Tentou sintonizar a rede telepática shek, mas apenas obteve uma informação fragmentária e imprecisa. "Tudo leva o seu tempo", recordou a si mesmo.
Levantou-se em silêncio e saiu da cabana.
Encontrou Victoria sentada junto à porta. Esta sobressaltou-se ao vê-lo aproximar-se e secou apressadamente os olhos. Christian viu que soltara a Lágrima do Unicórnio e que estivera a apertá-la entre os dedos como se se tratasse do seu talismã mais precioso.
- Não conseguia dormir - murmurou ela perante o olhar inquiridor do shek.
- Sentes a falta de Jack, não é? - sorriu ele, sentando-se ao seu lado. Victoria encolheu os ombros.
- É melhor assim. Era óbvio que não o podia fazer feliz, de modo que...
- Pensas mesmo isso? - perguntou Christian, olhando-a fixamente.
- Merece ter a seu lado uma rapariga que o possa querer apenas a ele - murmurou Victoria. - E eu não sou essa rapariga.
Christian moveu a cabeça, desaprovador.
- Claro - disse. - E achas que o facto de teres entregado a tua vida para salvar a dele algumas vezes não tem qualquer importância?
- Pelos vistos, não - respondeu Victoria com um sorriso cansado. Mas não o recrimino. Cada um tem as suas prioridades. Talvez devêssemos ter esclarecido as coisas há mais tempo ... devíamos ter falado de tudo isto. Mas, como tínhamos de salvar o mundo, não tivemos oportunidade de sermos sinceros um com o outro. Parece-me que no fundo ele estava à espera de que nós acabássemos com a nossa relação. Acreditava que era uma questão de esperar. Devia ter-lhe dito...
- Mas disseste-lho - interrompeu-a Christian - de cem maneiras diferentes. E acho que aceitou, mas... parece que o bebé foi demasiado para ele.
- É natural - sorriu Victoria, enquanto acariciava o ventre com ternura. - Somos tão jovens. Devia ter-lhe explicado que continuava a gostar dele, mesmo que o meu filho fosse teu. Mas não sei se teria servido para alguma coisa. Não - concluiu -, é melhor assim. É melhor que tenha a possibilidade de encontrar uma mulher com a qual possa formar uma família no futuro, sem uma terceira pessoa...
- Acreditas mesmo que chegará a amar alguém da mesma maneira que te ama a ti? Nenhum dos dois é completamente humano, Victoria.
- Eu sei. Mas Jack é um rapaz carinhoso, sociável e aberto. Creio que pode ser feliz com outra pessoa que não eu. Sabes... até pode ser que eu tenha sido o grande amor da sua vida, pelo menos até ao momento, mas as pessoas nem sempre acabam por ficar com o seu grande amor. Pode vir a ser feliz com uma mulher por quem sinta muito carinho e que venha a ser uma boa companheira. Alguém que se possa entregar apenas a ele... alguém que não tenha de partilhar com ninguém.
Christian sacudiu a cabeça, desaprovador.
- E isso é mais importante do que um sentimento verdadeiro?
- Para Jack, talvez sim.
- Então, não penses mais nisso. Se realmente está mais interessado em possuir-te do que em amar-te, então é porque não merece o teu amor.
- É por causa do bebé - murmurou Victoria, tentando justificá-lo. Acho que teve medo de que eu decidisse abandoná-lo se o filho fosse teu.
- E então ele abandona-te antes?
Ela tentou conter as lágrimas, mas não foi capaz. Christian puxou-a para ele e Victoria chorou durante um longo momento no seu ombro.
- Se não fosse tão importante para ti - murmurou o shek, quando ela se acalmou -, juro-te que há muito tempo que lhe teria arrancado as tripas, por ser tão estúpido.
- Atreve-te a tocar-lhe num único fio de cabelo e vais arrepender-te sussurrou Victoria.
Christian sorriu, apesar de saber que ela não estava a brincar.
- Acho que não devo ser eu a falar disto - disse. - Irrita-me que te tenha feito mal, mas eu também nem sempre te tratei bem.
Victoria esboçou um sorriso amargo.
- Já estou habituada - disse - à indiferença de um e aos ciúmes do outro. Mas ninguém é perfeito, pois não?
Christian fez a mão deslizar pelo ventre de Victoria e manteve-se em silêncio.
- Reparaste? - sussurrou a jovem, com os olhos brilhantes. - Mexeu-se. Christian assentiu.
- Já pensaste no nome?
- Na verdade, preciso de quatro nomes. Dois de rapaz e dois de rapariga. Um idhunita e um terrestre para cada caso. É muito complicado?
- Não - respondeu ele. - Porque será filho dos dois mundos.
- Isso se restar algum mundo ao qual pertencer, quando tudo acabar. Christian abanou a cabeça.
- Não fales disso agora. Quero gozar este momento. Diz-me, em que nomes estavas a pensar?
Victoria inclinou a cabeça.
- É verdade que ainda não tínhamos pensado em nomes idhunitas. Quase todos os nomes que nos ocorreram eram nomes terrestres. Por exemplo, se for rapaz... Jack sugeriu
chamar-lhe Erik.
- O que é que significa?
- Não sei. Jack gosta desse nome. Disse-me que era comum na Dinamarca e que houve vários reis dinamarqueses com esse nome.
- Então, talvez o seu nome idhunita pudesse ser Kareth. Vários reis de Nandelt tiveram esse nome.
- Kareth - repetiu Victoria com suavidade. Sorriu. - Gosto. Se for menina - acrescentou -, gostaria de lhe chamar Eva. Também não sei o que significa. Segundo a tradição, foi o nome da primeira mulher.
- Para sermos rigorosos, a primeira mulher foi Lilith - corrigiu-a Christian, com um sorriso. - Mas Eva é um bom nome. A primeira mulher idhunita, segundo dizem, não foi humana, mas sim feérica. Chamava-se Lune.
Victoria fechou os olhos.
- Erik ou Kareth, Eva ou Lune. Gosto de todos esses nomes. Obrigada.
Christian encolheu os ombros.
- Gosto de poder contribuir um pouco para a escolha do nome. Seja meu filho ou não, sinto-me responsável.
Victoria olhou-o, a sorrir.
- Já interiorizaste a ideia de que vais ser pai, Christian?
- Desde que me disseste que estavas grávida - respondeu ele -, soube que protegeria essa criança com a minha vida, sem me importar se era meu ou não. E continuo a pensar o mesmo. Mas não sei se serei um bom pai ou, pelo menos, como os que estão em casa todos os dias.
- Posso imaginar como serias como pai - murmurou Victoria. - Porque sei como és como companheiro. Capaz de fazer os maiores sacrifícios, de lutar até à morte pelas pessoas que amas... mas incapaz de te prenderes a alguém. De estares presente nos pequenos momentos quotidianos em que precisamos de um ombro onde nos apoiar. Eu consigo aguentar isso, com ou sem Jack. Mas não seria justo para o meu filho.
- Tem dois pais - salientou Christian. - Canalhas o suficiente para te fazerem sofrer mais do que o desejável, mas não o suficiente para te abandonarem com um filho nos braços. Ou, pelo menos, julgava ser esse o caso de Jack. Vejo que estava enganado.
- Por favor, já chega - murmurou Victoria, cansada. - Sei que não foi o melhor momento para acabarmos a nossa relação, mas prefiro que tenhamos deixado as coisas claras. Não acredito que fosse bom para o bebé ter um pai que não é feliz ao meu lado. Ou, pior ainda, que o tratasse mal, o desprezasse ou ignorasse por ser filho de outro homem. Assim, apesar de tudo, as coisas estão melhores. E também... - hesitou.
- Também não acreditas que seja boa ideia que eu me ocupe dele, se viermos a descobrir que é filho de Jack? - Christian moveu a cabeça. Victoria, já te disse que isso me é indiferente. Talvez não seja capaz de estar presente sempre que precise, mas garanto-te que, se o teu filho se meter em problemas, darei a pele para o tirar deles, mesmo que, por um acaso, tresande a dragão. Por acaso não o faço já com Jack?
Victoria sorriu, embora a recordação de Jack continuasse a provocar-Ihe uma angustiante opressão no peito. Pestanejou para conter as lágrimas. Não conseguiu e cobriu o rosto com as mãos.
Christian esperou até que ela se acalmasse e de seguida abraçou-a por trás, com extrema delicadeza, e disse-lhe ao ouvido:
- Sei que tens saudades dele e que as terás durante o resto da tua vida. Nem sequer eu posso mudar isso, nem fazer-te feliz se ele estiver ausente. Mas deixa-me, pelo menos, reconfortar-te um pouco.
Victoria fechou os olhos, engoliu em seco e tentou resistir:
- Devias estar a repousar. Estiveste muito doente...
- Estou a repousar. Mas, quando deixar de o fazer, quando estiver completamente recuperado, terei de me ir outra vez embora. Talvez tardemos a ver-nos de novo.
Victoria virou-se para ele e detectou-lhe nos olhos um vestígio do gelo que costumavam reflectir.
- Parece que estás muito melhor - observou.
- Não o suficiente - disse ele. - Não o suficiente.
Lançou-lhe outro dos seus sorrisos enigmáticos, que foi um bálsamo para o coração ferido de Victoria.
Eissesh inclinou-se sobre o ninho para acariciar uma das crias. A pequena serpente levantou a cabeça e fitou-o. Parecia exausta. As asas eram apenas duas membranas frágeis, húmidas e enrugadas, coladas ao corpo.
Demoraria ainda algum tempo a descolá-las, e ainda mais a aprender a voar.
- Quinze - informou a mãe. - Seis machos e nove fêmeas. Houve duas que não conseguiram sair do ovo.
- Excelente prole - aprovou Eissesh. - Os meus parabéns.
A mãe shek semicerrou os olhos e ciciou suavemente. Depois, levantou a cabeça para olhar para Eissesh.
- São muito jovens - disse. - Resistirão à viagem? O shek ergueu-se sobre os seus anéis, pensativo.
- Não sei - respondeu. - Ainda não sei quando vamos partir, nem como será a viagem para esse outro mundo em que nos esperam Ziessel e os outros. E a primeira vez que a nossa espécie faz algo parecido, se exceptuamos a altura, é claro, em que tivemos de nos exilar por causa dos dragões. Mas faremos o possível por proteger as crias. As tuas e todas as outras. São o futuro da nossa espécie.
A fêmea baixou a cabeça para encaminhar para o seu lugar uma cria que começara a rastejar para demasiado longe.
- Para já - acrescentou Eissesh -, ficarão melhor aqui, em Umadhun. Longe dos sangues-quentes e dos seus deuses desequilibrados.
Um aviso interrompeu-o. Alguém desejava falar com ele, e Eissesh prestou-lhe atenção.
- Gerde deseja falar contigo - disseram-lhe. Eissesh ciciou, irritado.
- Espero que seja importante.
- Não me disse de que se tratava - respondeu a serpente. - Quer falar contigo pessoalmente.
Eissesh semicerrou as pálpebras, sem dizer nada. Despediu-se da mãe e saiu da galeria principal. Um instante depois, já se encontrava naquilo a que os sheks chamavam "a sala do Portal", a enorme caverna onde se abria a fenda interdimensional que comunicava com Idhún.
Detestava profundamente aquela sensação de intenso calor que tinha de suportar sempre que cruzava o Portal interdimensional entre os dois mundos. E, nos últimos tempos, tinha de o fazer com muita frequência. com um cicio irritado, levantou voo e, depois de dar duas voltas no ar, atreveu-se a cruzar o Portal.
Foi tão desagradável como das outras vezes, mas sentiu-se reconfortado ao verificar que do outro lado era noite, uma noite suave e fresca, que lhe acalmou a sensação de calor que lhe atravessara as escamas e ameaçava atingir-lhe o coração. Lançou um olhar rápido às luas, maravilhando-se, como sempre, com a sua perturbadora beleza, mas não se deteve muito mais. Contactou de imediato com a rede shek e perguntou por Gerde. Informaram-no de que não se encontrava na base principal. Isso queria dizer que o esperava no seu refúgio secreto, onde se encontrava a acabar de preparar os pormenores para o exílio das serpentes. Eissesh sentiu-se intrigado. Sabia que Gerde não desejava que nenhum shek se aproximasse dali para não chamar a atenção sobre aquele lugar, vital para a futura sobrevivência da espécie.
O céu começava já a clarear quando vislumbrou a árvore de Gerde entre duas paredes montanhosas. Perto dela, um suave brilho avermelhado denunciava o Portal que ela mantinha permanentemente aberto.
Pousou perto da árvore, com suavidade, e esperou. Uns instantes depois, o interior da árvore iluminou-se e Gerde apareceu à entrada.
- Eissesh - disse, ao reconhecê-lo. - Fico satisfeita por teres vindo tão depressa.
O shek inclinou um pouco a cabeça para a observar de mais perto.
- De que se trata?
O semblante da fada toldou-se.
- Os deuses regressaram - disse. - Estão a voltar, um atrás do outro. Não sei se fizemos alguma coisa que lhes tenha despertado a atenção ou se simplesmente se cansaram de permanecer no plano espiritual e decidiram regressar ao plano material. O que se passa é que acabarão por se manifestar todos, outra vez, e, quando o panteão estiver reunido por completo, continuarão a arrasar Idhún até nos encontrarem. Não podemos esperar mais.
O corpo de Eissesh estremeceu. Pensou na shek que acabara de visitar e nas suas crias recém-nascidas.
- Para onde iremos? - quis saber.
Gerde inspirou fundo. Pela primeira vez desde que a conhecia, pareceu indecisa.
- Vês este Portal? - disse, apontando para ele. - É o Portal do nosso futuro, Eissesh. Mas é um futuro que ainda não vejo claramente. Preciso que alguém vá ao outro lado para verificar se está tudo a correr bem.
Eissesh ciciou suavemente.
- Estou a perceber.
- Sheks e szish - disse Gerde. - Não um grupo demasiado numeroso, quatro ou cinco indivíduos, quando muito. Se regressarem sãos e salvos e com informações favoráveis, saberei que posso conduzir todos para o outro lado.
- Tu atravessas esse Portal com frequência - observou Eissesh. Gerde riu-se.
- Sim, mas eu não sou uma serpente - fez notar.
- É perigoso, certo?
- Provavelmente. Na verdade, deveria ser responsabilidade de Ziessel, mas ela não está aqui para assumir essa responsabilidade. De modo que terás de escolher aqueles que farão parte do grupo e trazê-los até aqui, o mais tardar amanhã ao primeiro entardecer.
- O que acontecerá se o grupo não regressar ou se as informações não forem favoráveis?
- Colocaremos em prática o plano alternativo. De qualquer maneira, chegou a hora de reunir todos os sheks. - Interrompeu-se e, de seguida, acrescentou: - Incluindo Sussh e os seus.
A serpente inclinou a cabeça.
- Não vais conseguir arrancar Sussh de KashTar. Está demasiado apegado a esse pedaço de deserto, sabe-se lá porquê.
- Então irei buscá-lo. Tal como te fui buscar a ti. Agora retira-te, Eissesh, e volta amanhã com a tua gente.
Passaram o dia a explorar as vizinhanças da cabana, sem se afastarem demasiado. As plantas tinham parado de crescer. Parecia que Wina continuava a avançar para sul.
Meses atrás, a sua passagem transformara o ressequido Alis Lithban numa selva cheia de vida e cor. Encontraram com facilidade frutas comestíveis, e Christian conseguiu até pescar no riacho. Victoria, por sua vez, descobriu que o seu novo estado lhe restringia a mobilidade. Era-lhe difícil habituar-se, já que isso lhe acontecera da noite para o dia.
- Não devias fazer esforços - disse Christian quando regressou com o que pescara e a viu ajoelhada perante aquilo que fora a fogueira, arrancando as ervas daninhas. - Estás grávida.
- Tu também não - respondeu ela, levantando a cabeça para o olhar.
- Estás em convalescença.
Christian sorriu e inclinou-se para ela para a ajudar.
- Quando estiveres melhor, vamo-nos embora daqui - disse Victoria.
- Como refúgio, esta cabana deixa muito a desejar.
O shek encolheu os ombros.
- Talvez - disse -, mas traz-me boas recordações. Victoria virou-se para ele, desconcertada.
- Boas recordações? Já tinhas estado aqui antes? Christian assentiu e passou o olhar pelas paredes em ruínas.
- Vivi aqui com a minha mãe - explicou -, antes de Ashran me vir buscar.
Victoria ficou boquiaberta.
- Queres dizer... que esta era a tua casa?
- Sim - sorriu ele. - Não tenho muitas recordações daquela época, mas as poucas que conservo são deste lugar. Pelos vistos, ninguém voltou a viver aqui desde então.
Victoria demorou um pouco a responder. Observou Christian enquanto este acabava de despejar a fogueira.
- Christian - disse então -, Jack e Shail estiveram à procura de informações acerca de Ashran e averiguaram algumas coisas acerca da tua mãe.
Ele não respondeu. Nem sequer a olhou. Continuava concentrado na tarefa que estava a efectuar, como se não a tivesse ouvido.
- Chamava-se Manua - prosseguiu ela, em voz baixa. - Era ouvinte do Grande Oráculo. - Deteve-se e acrescentou: - Foi aí que conheceu o teu pai, quando ele invocou o Sétimo através da Sala dos Ouvintes. E ali nasceste tu, meses depois.
Por fim, Christian ergueu a cabeça e olhou-a.
- Dizes que invocou o Sétimo através da Sala dos Ouvintes? - repetiu.
- Não sabia disso.
Victoria inclinou a cabeça.
- Pelos vistos, espetou uma adaga no peito e morreu ali mesmo para depois ressuscitar como o sétimo deus.
- Calculei que tivesse feito algo assim - assentiu ele. Sorriu ligeiramente. - Também Gerde morreu antes de ser a sétima deusa, tenho a certeza disso. O que me chama a atenção é Ashran precisar da Sala dos Ouvintes para invocar o Sétimo e não o fazer de qualquer outro lugar. Isso quer dizer que o Sétimo não estava em Idhún, mas sim nalgum desses planos imateriais por onde se movem os deuses. E imagino que fosse um lugar onde os outros Seis não o poderiam encontrar. Isso não me tinha contado - acrescentou, franzindo o sobrolho.
- Não te chama a atenção o que te contei a respeito da tua mãe?
- Isso pertence ao passado e não tem qualquer relevância para o momento presente, Victoria.
- Mas a tua mãe...
- A minha mãe está morta - interrompeu-a ele, com serenidade. Não havia raiva nem dor na sua voz quando o disse, e Victoria estremeceu. E, embora quisesse perguntar-lhe como é que o sabia, não se atreveu a insistir.
Naquela tarde, Victoria, extenuada, adormeceu profundamente depois do segundo crepúsculo. Christian deixou-a dormir e permaneceu na entrada da cabana, contemplando o bosque, pensativo.
Quando se fez noite, entrou na casa e estendeu-se junto de Victoria, ainda meditabundo.
Tinham chegado pontualmente ao primeiro entardecer. Eram três sheks e quatro szish.
Gerde observou-os com atenção e assentiu, aprovando a escolha de Eissesh.
Um dos sheks era uma fêmea velha que, provavelmente, teria posto os seus ovos há muito tempo e já não seria necessária para a continuação da espécie. O outro era um macho jovem, mas que parecia débil. E o terceiro era o próprio Eissesh.
Quanto aos szish, nenhum deles era feiticeiro. Isso bastava-lhe.
- Vais conduzir pessoalmente o grupo?
- Sim - respondeu Eissesh. - Encarreguei-me dos sheks de Nandelt desde a batalha de Awa. Ziessel não está; alguém tem de assumir as responsabilidades.
Gerde ergueu uma sobrancelha.
-E se não regressares
- Resta Ziessel. Imagino que um dia estará em condições de liderar todos os sheks.
Gerde esboçou um leve sorriso, mas não disse nada.
- Informação - pediu então Eissesh.
Gerde abriu a mente e forneceu-lhe os conhecimentos de que precisava. O shek inclinou-se um pouco mais e olhou-a nos olhos, e ela reparou que os tentáculos da consciência de Eissesh penetravam na sua consciência e bebiam todos os dados que ela lhe proporcionava acerca do mundo que iam explorar.
Quando o contacto se cortou, Eissesh semicerrou as pálpebras, pensativo.
- Não é como o tinha imaginado - admitiu.
- Nunca é - garantiu Gerde. - De qualquer maneira, está-se a desenvolver muito depressa, é um mundo em constante mudança. O que vais encontrar agora pode não ser o mesmo que eu vi.
Os sheks trocaram um olhar de incerteza, mas não disseram nada.
Eissesh lançou uma ordem telepática rápida aos szish e estes foram os primeiros a cruzar o Portal. Depois, seguiram-nos os outros dois sheks. Antes de ir atrás deles, Eissesh virou-se de novo para Gerde.
- Espero que saibas o que estás a fazer - disse-lhe.
- Eu também - murmurou Gerde, e, desta vez, não sorriu.
Ficou a olhar para o Portal muito tempo depois de as serpentes terem partido. Nem sequer se apercebeu de que Assher se punha ao seu lado, inquieto, nem que Saissh gatinhava aos seus pés.
- Se isto não funcionar - sussurrou para consigo -, juro que encontrarei esse meio-shek, se ainda estiver vivo, e fá-lo-ei pagar.
Christian acordou algumas horas mais tarde. Abriu os olhos e escutou com atenção, alerta. Depois, em absoluto silêncio, levantou-se e deslizou até à entrada, de onde perscrutou as sombras. Captou então um ligeiro movimento, ou, pelo menos, foi o que lhe pareceu.
Voltou para o interior da cabana e dirigiu-se ao canto donde Victoria deixara Haiass. Hesitou antes de pegar nela, já que não tinha a certeza se teria recuperado o suficiente para a poder tirar da bainha. De qualquer maneira, pegou nela e ajustou-a nas costas. Ao fazê-lo, os dedos deslizaram-lhe sobre a marca que a gema maldita lhe deixara no peito. Estremeceu. Nunca, jamais, passara tão mal como quando aquela coisa lhe oprimira a sua alma de shek. Para ele, fora pior do que qualquer tortura.
Tentou não pensar nisso. Ergueu a cabeça e procurou concentrar-se naquilo que se encontrava no exterior. Inquietava-o o facto de não saber de que se tratava. Ainda não recuperara totalmente os seus sentidos de shek e não estava habituado a ser apenas um humano com uma percepção limitada. Apesar disso, saiu da casa e embrenhou-se cautelosamente na selva.
Pouco depois, algo fez com que a sua parte shek, apesar de doente, despertasse de imediato no seu íntimo. Quase sem pensar, Christian desembainhou Haiass. Sentiu que o gelo lhe queimava a pele, mas não a ponto de ser perigoso para ele. Semicerrou os olhos. Só existia uma coisa capaz de o fazer reagir daquela maneira.
Jack não teve tempo de desembainhar Domivat. Algo surgiu das profundezas do bosque, algo entre uma sombra e um turbilhão, algo que empunhava um fio de gelo que conhecia muito bem. O dragão, apanhado de surpresa, retrocedeu, tropeçou e caiu para trás. As suas costas embateram contra o tronco de uma árvore enorme. De imediato, a lâmina de Haiass roçou-lhe o pescoço, fazendo com que se arrepiasse.
- Christian - murmurou Jack. - Estou a ver que já estás bom, embora... só te tenha detectado quando estavas em cima de mim. Como é que o fizeste?
- O que fazes aqui? - replicou o shek, num tom seco.
Jack captou o olhar hostil dele e também reparou que ainda não guardara a espada. Fitou-o, cauteloso.
- Estava à vossa procura.
Christian inclinou a cabeça, mas não afastou a espada.
- Imagino que estejas zangado porque não ajudei Victoria a salvar-te - murmurou Jack. - Pronto, foi uma estupidez. Em minha defesa, direi que estava completamente convencido de que essa coisa não podia fazer-te mal. E, pelos vistos, não estava enganado, porque estás... - calou-se quando o fio de Haiass se lhe enterrou um pouco mais na pele, produzindo um corte fino que provocou uma intensa sensação de frio.
- Estive quase a morrer.
Jack fez uma tentativa de inspirar fundo, mas sentia a espada de Christian demasiado cravada na carne para que aquilo fosse uma boa ideia.
- Estou a dizer a verdade quando te digo que em nenhum momento pensei que algum sangue-quente, nem sequer Alsan, tivesse poder para te ferir e muito menos matar - disse, e dizia-o com toda a sinceridade. Mas não se trata apenas disso. Naquele dia estava furioso e...
- Deixa-nos - cortou Christian. - Deixa-nos e nunca mais voltes a aproximar-te de nós.
Jack olhou para ele como se não estivesse a acreditar no que ouvia.
- O quê?
Christian afastou um pouco a espada.
- Já ouviste. Em consideração por aquilo que Victoria sente por ti não te matarei esta noite, mas, se voltares a aproximar-te dela...
- Um momento! - interrompeu-o Jack, e o fogo do dragão surgiu-lhe nos olhos verdes. - Quem és tu para me falares assim?
- O homem que está com ela neste momento. E tu és aquele que a abandonou. Por isso, é melhor ires.
Jack semicerrou os olhos. Sentia que Domivat lhe zumbia nas costas, sedenta de sangue de shek. Conteve-se para não dar rédea solta à sua raiva.
- Que eu abandonei? E quanto tempo passaste tu longe dela, quantas vezes foste visitá-la nos três meses que se passaram desde que te disse que ia ter um bebé? Um bebé que talvez seja teu!
- É isso que te incomoda - sorriu Christian. - Tens medo de reconhecer os meus traços nessa criança. Faz-te entrar em pânico a ideia de lhe pegares ao colo e sentires que tem algo de shek, não é?
Jack abriu a boca para responder, mas não foi capaz. Christian afastou a espada, bruscamente.
- Vai-te - disse. - Não ponhas à prova a minha paciência.
Jack ergueu a cabeça. No pescoço tinha a marca azulada do beijo de Haiass.
- Não irei sem falar primeiro com Victoria.
- Não vou permitir que te aproximes dela.
- com que direito? Disseste-lhe por acaso que estou aqui e ela recusou-se a ver-me:
- Não penso dizer-lho. O melhor para ela é que saias da sua vida de uma vez por todas.
- Mas que...? - explodiu Jack. - Vai ter um bebé! E talvez seja meu filho!
- Pensasses nisso antes de acabares com ela.
- Mas isso não é assunto teu! - quase gritou Jack. - Se ela não me quiser voltar a ver, aceitá-lo-ei, mas não tens o direito de falar em nome dela nem de decidir o que deve ou não deve fazer. Não eras tu que me recriminava por a tratar como se fosse um objecto meu?
- Por isso mesmo. Fui muito paciente, mas cansei-me de ver como brincas com ela. Não vou permitir que a confundas mais.
Jack fitou-o, ainda atónito. Franziu o sobrolho e deu um passo em frente. - vou ver Victoria.
Christian levantou Haiass, cujo brilho iluminou suavemente o seu rosto.
- Terás de passar por cima de mim.
Jack desembainhou Domivat e sentiu-a palpitar com uma alegria feroz. Não respondeu com palavras ao desafio de Christian. Sem dizer nada, lançou-se sobre ele e descarregou o primeiro golpe.
E, mais uma vez, Haiass e Domivat confrontaram-se.
Os movimentos de Christian eram menos ágeis do que de costume e ele percebeu de imediato que lhe custava antecipar-se ao seu opositor. As árvores e a vegetação estorvavam-no, e foi uma luta brusca, diferente da dança ágil e elegante de outras ocasiões. Também não demorou a reparar que o poder de Haiass diminuíra. Recordou-se de quando lutara contra Jack, na Terra, na praia, e como ele lhe partira a espada, que mais tarde fora reparada por Ydeon. Não podia permitir que aquilo voltasse a acontecer.
Retrocedeu, esquivando-se de Jack. Se a luta prosseguisse, perderia. E, para bem de Victoria, não devia deixar que isso acontecesse.
Deu uma volta brusca com o pulso para torcer a espada e deter um golpe a meia altura. A força de Domivat fez tremer Haiass por instantes. Não foi apenas Christian a notá-lo.
- Estás fraco - disse Jack. - Não quero lutar contra ti, Christian. Isto tudo não é necessário.
O shek não respondeu. Afastou a espada e lançou-se de novo sobre Jack, que deu um salto para trás e interpôs o próprio aço entre ambos. Subitamente, o dragão perdeu Christian de vista. Este parecera ter-se fundido com as sombras. Ficou desconcertado por um breve instante e depois virou-se.
Mas aquele segundo de hesitação foi a sua perdição. Reparou que algo deslizava entre os pés e isso fê-lo tropeçar. Instantes depois, estava estendido sobre a vegetação, com a ponta de Haiass sobre o peito.
- Fizeste batota - resmungou. Christian encolheu os ombros.
- Tive de o fazer. Guarda isso - disse, apontando com um gesto para Domivat -, antes que pegue fogo a alguma coisa.
Ainda com a espada de gelo muito perto do coração, Jack embainhou lentamente Domivat.
- Vais matar-me? - perguntou, calmamente.
- Esta noite, não - respondeu Christian. - vou deixar-te ir embora. Mas antes vais ouvir-me... com muita atenção. Sim, porque, se me irritares, é bem possível que todas as minhas boas intenções se esfumem. Fui claro?
Jack inspirou fundo e assentiu.
- Dispara - murmurou.
- Estou cansado desta situação - começou Christian. - Estou cansado de apareceres constantemente com exigências, com protestos e com mau humor. Victoria não tem qualquer obrigação de estar contigo. Fá-lo porque quer. Porque te ama.
- Eu sei disso... - disse Jack, mas o shek interrompeu-o:
- Sei que vens de um mundo com regras diferentes, onde o socialmente aceite, aquilo que é socialmente correcto, é mais importante do que os verdadeiros sentimentos de cada um. E também sei que desde o início todos se esforçaram por nos separar, a Victoria e a mim, e em fazer acreditar aos dois que o vosso destino, a vossa obrigação, era estarem juntos. Sei que nada do que eu disser poderá mudar a tua maneira de pensar porque te educaram assim, de modo que vou falar-te no teu idioma. E é melhor que prestes atenção.
Jack franziu o sobrolho. Christian cravou nele um olhar frio como o gelo.
- Victoria é a minha namorada - disse, muito sério. - Tu chegaste depois. Eu fui o primeiro a beijá-la; a primeira vez que ela disse a alguém "amo-te", apenas eu estava ali para o ouvir. Começámos a sair juntos muito antes de tu ousares dizer o que sentias por ela. O facto de ela também sentir algo por ti quase desde o início não é relevante. Porque, afinal de contas, o que conta são as regras, não os sentimentos, certo?
- Sabes que não penso assim - murmurou Jack, mas Christian aproximou ainda mais a espada do peito dele, obrigando-o a calar-se.
- Temos tido discussões e diferenças - disse o shek -, mas nunca acabámos com a nossa relação, nunca decidimos, de comum acordo, que cada um devia seguir o seu caminho. Nunca. Nem sequer quando ela ficou a saber que eu era um shek. Nem sequer quando a raptei para a levar para a Torre de Drackwen. Até em plena tortura, ela continuava a dizer que me amava. Até quando tentou matar-me pelo que fiz nos Picos de Fogo... o meu anel ainda brilhava no seu dedo, e isso significava que ela ainda sentia algo por mim.
Jack fechou os olhos, incapaz de continuar a ouvir.
- Assim como eu sentia por ela - prosseguiu Christian, sem piedade. Mas os dois sofremos muito, sacrificámos muito por esta relação. Não vamos acabar com ela apenas porque tu te empenhas em acreditar que tens algum direito sobre a vida de Victoria.
- Estás a dizer que eu sou o que sobra - disse Jack. - Já percebi.
- Não, Jack, não percebeste nada. A mim não me interessa minimamente que ela também esteja apaixonada por ti. O que faz quando não está comigo é assunto dela. A única coisa que quero que compreendas é que, falando em termos da cultura em que foste criado, ela é minha namorada e tu estás com ela porque eu to permito.
- Achas que não sei disso? - quase gritou Jack. - Sei-o desde sempre!
- Eu sei que sabes. E sei que o entendes. O que quero é que o admitas. Ela ainda te ama, tem saudades tuas e daria a vida por ti. Mas não vai pedir-te que voltes para ela porque acredita que mereces algo melhor. É um disparate.
Agora era Christian que estava a ficar irritado. Jack percebeu e, por algum motivo, isso acalmou um pouco os ânimos.
- Mas o que é que queres? Que volte para ela ou que a deixe em paz? Christian lançou-lhe um dos seus sorrisos sardónicos.
- Dizer "ela é a minha namorada e tu estás com ela porque eu te deixo" é uma das coisas mais absurdas e estúpidas que disse na minha vida. Mas, provavelmente, é o único ponto de vista que te fará raciocinar. Ela ficará com quem lhe apetecer, e ponto final. Se está grávida, tratarei dela e preocupar-me-ei com ela, porque me interesso. Porque o bebé que der à luz será filho dela e isso basta-me para que também seja importante para mim. E porque, afinal de contas, os bebés são criaturas que precisam de protecção e cuidados, não interessa quem sejam os pais. Tu sabes isso - acrescentou. - Arriscaste a vida perante uma deusa para defender uma menina que não era tua filha, nem de Victoria. E, apesar disso, não consegues suportar a ideia de tratar do filho de outro homem, embora tenha nascido da mulher que amas mais do que à própria vida. Percebes como são absurdas as tuas explicações?
Jack deixou cair os ombros.
- Não é isso - murmurou. - Não é isso.
Quis acrescentar mais qualquer coisa, mas não foi capaz. Os dois trocaram um olhar, inquiridor o de Christian, cheio de angústia o de Jack. O shek percebeu sem precisar de palavras. Deu um passo atrás, desorientado, e baixou a espada.
- Ainda duvidas do que sente por ti. Ainda acreditas que não te ama. Como é possível? - acrescentou, irritado. - Viste, tal como eu, que se sacrificou para nos salvar, a mim e a ti! Como podes... como podes duvidar dela? Como te atreves a duvidar dela?
- Isso foi há muito tempo - respondeu Jack. - Antes do bebé. Christian abanou a cabeça.
- O bebé não vai fazer com que tome uma decisão que na altura foi incapaz de tomar. Acreditas que, se Victoria der à luz um filho meu, te vai afastar da sua vida para sempre?
- Não sei em que acredito. Sei apenas que tu nunca estás com Victoria e, apesar disso, ela não consegue deixar de pensar em ti.
- Não pode esquecer-me precisamente porque não estou com ela. Porque tem saudades minhas. Mas desde que fiquei fora de perigo, não consegue deixar de pensar em ti, porque sente saudades tuas. É simples. Claro que... se acreditas que é melhor não estar com ela e sentir saudades...
- Estás a divagar - interrompeu-o Jack, irritado. - Onde queres chegar?
A espada de Christian voltou a erguer-se e fê-lo retroceder, alarmado. Contemplou cauteloso o fio de Haiass, que mais uma vez estava perigosamente perto do seu queixo.
- É simples - disse o shek, com calma. - Ela ainda te ama. Se lhe disseres que queres voltar para junto dela, vais fazê-la a mulher mais feliz deste mundo e do outro... mas apenas até voltares a fazê-la sofrer com as tuas dúvidas e receios. E não estou disposto a permiti-lo.
Por isso, é bom que te decidas. Aceita de uma vez que somos três e que, quando o bebé nascer, seremos uma família de quatro membros, ou deixa-a em paz.
- Isso... isso é tudo? - perguntou Jack, aliviado; mas Haiass aproximou-se ainda mais.
- Estou a falar a sério, Jack. Ainda há pouco, ela estava a dizer que acreditava que mereces ter ao teu lado uma mulher que apenas tenha olhos para ti. Pergunta a ti mesmo se estás de acordo. Aceita que Victoria não é essa mulher. E decide se preferes estar com ela, com tudo o que isso implica, ou ser livre para, por fim, escolheres outra pessoa com que possas formar um casal, sem mais ninguém. A decisão é tua. Faças o que fizeres, ela continuará a amar-te e não te guardará rancor. Mas, se decidires regressar para junto dela, não terás o direito de voltar a culpá-la por estar comigo.
Jack mordeu os lábios.
- Voltei porque quero estar com ela. Parece-me que tudo isto é desnecessário.
- Se é, Jack. Deixas-te levar pelo impulso do momento. Imagino que acabaste com ela num momento de raiva ou de frustração. Talvez a saudade te tenha feito voltar para junto dela, mas, quando estiveres de novo ao seu lado, o mais provável é que te esqueças facilmente de toda esta conversa. Por isso, peço-te que reflictas.
E que não penses no que queres fazer agora, mas sim no que queres fazer sempre, de agora em diante. Vem um bebé a caminho; isto nunca foi um jogo, mas agora ainda é menos.
Afastou a espada. Jack baixou a cabeça, pensativo.
- Compreendo - murmurou.
- Tens até ao primeiro amanhecer - disse Christian, muito sério. - Se decidires que não vais ser capaz de aguentar esta relação, então não te dês ao trabalho de regressar. Não direi a Victoria que vieste, nem que falámos. Só iria servir para a fazer sofrer mais. E quanto ao bebé... não terás de voltar a preocupar-te com ele. Irei protegê-lo, não importa quem seja o pai. Porque, se abandonas agora Victoria por receio de que dê à luz o filho de outro homem, então não tens qualquer direito de exigir a uma criança aquilo que recusaste. E se voltares a aproximar-te de Victoria ou do seu bebé, mato-te.
" Se estiveres aqui ao primeiro amanhecer, deixarei que fales com Victoria e que componhas as coisas. E tudo voltará a ser como antes. Mas... se voltares a magoar Victoria por causa da sua relação comigo ou se te passar pela cabeça abandoná-la depois de dar à luz porque o seu filho não é como tu esperavas, mato-te. Por isso, tu é que escolhes, Jack. Tiveste dois anos para considerares as vantagens e os inconvenientes desta relação. Sabes o que é estar com Victoria e o que é estar sem ela. Agora decide, ou aceitas ou recusas. Mas, seja qual for a tua decisão, irás mantê-la até ao final. E eu irei respeitá-la.
Jack levantou-se, lentamente. Lançou a Christian um olhar cansado.
- Pensa bem - disse este -, porque já não estamos a falar de Victoria, mas de ti. Decide o que queres para ti e, pelo menos uma vez na vida, não te precipites.
- Eu sei - assentiu ele.
Trocaram um olhar. Depois, sem mais uma palavra, Jack deu meia-volta e voltou a embrenhar-se no bosque.
Christian permaneceu ali por um momento. De seguida regressou, sem pressa, à cabana.
Victoria continuava a dormir profundamente. Christian conseguiu ver, na penumbra, a curva do seu ventre. Sorriu. Tirou Haiass das costas, mas não a deixou muito longe. Depois, estendeu-se junto dela e passou o resto da noite a contemplar o rosto de Victoria enquanto esta dormia.
Quando Victoria abriu os olhos, Christian já tinha partido. Demorou alguns segundos a acordar, o suficiente para olhar em volta. Mas a cabana estava vazia.
Sentou-se, receosa de que ele tivesse regressado para junto de Gerde sem se despedir dela. Levou a mão ao ventre, de maneira inconsciente. Tentou acalmar-se. Talvez tivesse ido buscar alguma coisa para comer.
Levantou-se com alguma dificuldade, sacudiu a capa e pendurou-a num ramo que entrava pela janela, para que arejasse. Depois lavou o rosto na bacia de água que tinha deixado sobre o desconjuntado aparador e saiu da cabana.
Os raios do primeiro amanhecer feriram-lhe os olhos e fizeram-na pestanejar, mas conseguiu ver um vulto que a esperava, de pé, um pouco afastado.
- Christian? - murmurou.
Fez uma pala com a mão e olhou melhor. O coração deu-lhe um salto e ficou paralisada onde estava, sem se atrever a avançar mais.
- Olá, Victoria - saudou-a Jack, com um sorriso entre tímido e afectuoso. Estendeu-lhe o ramo de flores que apanhara para ela. - Perdoas-me?
O coração de Victoria batia com tanta força que sentiu que lhe ia sair do peito. Ainda sem conseguir acreditar, avançou uns passos na direcção de Jack e olhou-o, vacilante, sem perceber ainda se era real ou fruto de um sonho.
- Fui um idiota - prosseguiu Jack, um pouco preocupado ao ver que ela não dizia nada. - Quero dizer-te que tenho sentido muito a tua falta e que, se me deixares, e a Christian não lhe parece mal, queria voltar para junto de ti e do bebé. Para sempre - acrescentou.
Victoria engoliu em seco e tentou controlar o impulso de se lançar nos seus braços. Inspirou fundo.
- Não é boa ideia - disse. Jack nunca chegaria a saber o quanto lhe custava pronunciar aquelas palavras. - Não vais ser feliz comigo, Jack, porque eu estou com Christian e nunca poderei dedicar a minha vida apenas à tua pessoa.
- Nem eu o quero - respondeu ele, muito sério. - Não quero que me entregues a tua vida. Só a quero partilhar contigo. E se Christian faz parte da tua vida, tal como o teu bebé... não deves renunciar a tudo isso por mim. A única coisa que te peço é que me deixes voltar a fazer parte da tua vida... tal como já fazes parte da minha.
Victoria não conseguiu conter mais as lágrimas. Algo pareceu rebentar-lhe no peito, uma felicidade tão intensa que até a assustou; e, a tremer de emoção, correu para ele e lançou os braços à volta do seu pescoço. Jack, um pouco aturdido, abraçou-a e enterrou o rosto na sua cabeleira castanha, sentindo-se mais feliz do que nunca. Ao abraçá-la, percebeu de imediato que a sua cintura era muito mais larga do que aquilo de que se recordava. Afastou-se dela e observou-a, atónito.
- Victoria, o que é que te aconteceu? - perguntou, com uma nota de autêntico pânico na voz. - Há apenas nove dias que não te vejo! Como é possível?
- Contaste... os dias?
- Todos e cada um deles - assegurou-lhe ele. - Estás bem? - insistiu. -
E o bebé?
Colocou as mãos sobre o ventre dela, angustiado. Victoria sorriu, comovida.
- Estamos os dois bem - tranquilizou-o. - Tivemos um encontro com a deusa Wina, foi só isso. E agora parece que vou ser mãe antes do previsto.
Jack moveu a cabeça, entre perplexo e maravilhado. Victoria pegou-lhe no rosto com as mãos e com extremo cuidado. Jack conteve uma expressão de dor.
- E o que te aconteceu a ti? - murmurou a jovem. - Tens a pele queimada, como se tivesses passado muitas horas a apanhar sol. Até tens a pele a cair do nariz.
Jack encolheu os ombros.
- Aldun - limitou-se a responder. Victoria suspirou, preocupada.
- Nestas alturas, faz falta um bom creme hidratante - observou, com um sorriso. - Não interessa; vou procurar aliviar-te com a minha magia.
Jack sorriu. Enterrou-lhe os dedos no cabelo, fê-la erguer a cabeça com suavidade e contemplou-a longamente. Depois, beijou-a e foi um beijo longo, ansioso. Beberam ambos com avidez um do outro, como náufragos que tivessem encontrado por fim um pouco de água fresca.
- Tive tantas saudades tuas - murmurou ele, apertando-a de novo nos braços. - Oh, como tive saudades tuas!
- E eu tuas, Jack - respondeu ela, com a voz embargada. - Desculpa ter-me afastado de uma maneira tão brusca. Tinha de...
- Eu sei, Victoria. Lamento não ter sido capaz de o compreender.
- Obrigada por voltares - disse ela, quase a chorar de emoção.
- Eu é que agradeço por aceitares o meu regresso - replicou Jack com um sorriso aberto. - Pensei muito e acho que sou mais feliz contigo, com tudo o que isso implica, do que sem ti. Assim, eu é que te agradeço por, apesar de tudo, me deixares voltar a fazer parte da tua vida.
- Tu sempre fizeste parte da minha vida, Jack - sorriu ela. - Em nenhum momento deixei de te amar.
Jack voltou a abraçá-la. Ao fazê-lo, viu, por cima do ombro dela, uma sombra que se apoiava calmamente contra a deteriorada fachada da cabana. Sorriu.
- Suponho que o shek terá de se habituar de novo à minha presença observou em tom de troça e um pouco mais alto.
- Estava a contar com isso - respondeu Christian, sereno. - Não és dos que desistem com facilidade. Uma pena. Mas, enfim! Isso não é assunto meu. Todos aqueles que sentem apreço por Victoria merecem o meu respeito, por isso, sê de novo bem-vindo.
O sorriso de Jack rasgou-se.
- Acrescenta isto à longa lista de favores que te devo, serpente.
- Começa a ser demasiado longa - respondeu Christian, movendo a cabeça. Endireitou-se. - vou dar um passeio. Voltarei com o primeiro entardecer. Temos de falar de muitas coisas.
Jack assentiu, ainda a apertar Victoria nos braços. Christian lançou a Victoria um dos seus meios sorrisos e depois, silencioso como uma sombra, penetrou na selva.
- Vejo que conseguiste salvar-lhe a vida - murmurou Jack, baixinho, sem tirar os olhos do lugar por onde Christian se afastara. - Se não fosse por ti, agora estaria morto.
- Sim - sussurrou Victoria, e uma sombra atravessou-lhe o rosto. Jack adivinhou o muito que sofrera naqueles dias e odiou-se a si mesmo por não ter estado ao seu lado para a apoiar.
- Tenho de reconhecer - disse Jack, franzindo o sobrolho - que, se tivesse morrido, teria tido pena.
Victoria ergueu a cabeça para o olhar.
- Só um pouco - apressou-se Jack a salientar.
LAÇOS
Tudo se tinha tornado de um estranho tom cinzento.
Pelo menos, essa foi a impressão que Jack e Victoria tiveram quando sobrevoavam Vanissar, de regresso ao castelo de Alsan. Não teriam conseguido dizer como acontecera, mas, de repente, tinham passado de um dia claro, radioso... tão radioso que fazia mal aos olhos, para uma paisagem na qual todas as cores eram muito mais desmaiadas e o céu parecia ver-se através de um filtro que o tornava mais escuro e de um curioso tom mate.
- O que está a acontecer aqui? - murmurou Jack, atónito.
- É um feitiço! - exclamou Victoria. - Que estranho!
Também era estranho o que estava a acontecer ao nível do chão. Parecia que todos os camponeses e aldeães de Vanissar se haviam lançado à estrada, empreendendo um precipitado êxodo em direcção às cidades. Alguns arrastavam carros nos quais tinham carregado grande parte das suas coisas, mas outros caminhavam com o que tinham sobre o corpo.
À medida que se iam aproximando da capital, a luz também diminuía, banhando o mundo como se tivesse de atravessar uma pesada camada de nuvens de chuva para chegar até ele. Mas o céu continuava completamente limpo. E, quando finalmente chegaram a Vanis e viram o castelo a dominar o horizonte, tornou-se claro que aquele estranho manto de escuridão tinha a sua origem ali.
- Qual é a tua opinião! - perguntou Victoria mentalmente. Chegou-lhe, distante, a resposta de Christian.
-Já vi. Diria que é uma espécie de protecção. Utilizam a escuridão para se resguardarem da luz..
- Irial - pensaram os dois ao mesmo tempo.
Victoria sorriu para consigo. Era a primeira vez que harmonizavam os seus pensamentos daquela maneira; foi reconfortante e, ao mesmo tempo, curiosamente excitante, como se, por um momento, tivessem alcançado uma união quase perfeita.
Christian não voava ao seu lado, em cima do dorso de Jack. Também não adoptara uma forma de shek para viajar com eles. Era demasiado perigoso para ele aproximar-se de Vanissar, sobretudo agora que Alsan tinha poder para lhe fazer mal. No entanto, também não regressara para junto de Gerde; Victoria sabia, embora ele não lho tivesse dito, que estava preocupado com ela e que, antes de voltarem a separar-se, queria assegurar-se de que ia estar a salvo em Vanissar.
De modo que os seguia a uma distância prudente.
Victoria jamais esqueceria o momento em que Christian se tinha transformado novamente em shek, o que significava que a sua alma voltava a estar sã e completa.
Tinha sido um momento íntimo em que só eles os dois tinham participado. Jack preferira retirar-se discretamente para que o ódio instintivo que lhe era tão difícil de controlar não o estragasse. Custara-lhe quase todo o dia, mas, por fim, Christian conseguira adoptar de novo a forma de uma serpente alada. Victoria sorriu ao recordá-lo. Os sheks não eram muito expressivos, mas ela conseguira ler com total clareza o alívio e a alegria naqueles olhos de réptil.
Christian tinha-os acompanhado, a voar, até aos limites de Nandelt. Uma vez ali, recuperou a sua forma humana e disse que os seguiria de uma forma mais discreta. Victoria perdera-o de vista, mas sabia que andava perto: o contacto telepático não se tinha rompido.
A chegada do dragão não deixou de causar impressão na cidade. Apesar de a camada de escuridão impedir que os sóis arrancassem reflexos dourados das escamas de Jack, todos reconheceram nele o último dragão, o único dragão de carne e osso que restava em Idhún.
Por isso quando desceram, a planar, sobre o pátio do castelo já havia várias pessoas à espera deles. Jack pousou onde conseguiu, fechou as asas e esperou que Victoria descesse para o chão por uma das suas garras para recuperar a sua forma humana.
Ali, no pátio, o filtro mágico que depurava a luz tinha-a convertido numa penumbra estranha, irreal, como a que há no momento de um eclipse.
- O que está a acontecer? - perguntou Jack a Alsan, que os observava, inquisitivo, com os braços cruzados à frente do peito. - Irial manifestou-se perto daqui?
- Trata-se de uma luz tão intensa que queima literalmente os olhos a todos os que a contemplam - explicou Shail. - Estamos a criar globos de escuridão em todas as cidades para que as pessoas possam refugiar-se da claridade, mas não sei se servirá de alguma coisa quando Irial se aproximar. Apesar de ainda se encontrar longe, a sua luz incide com tanta força na nossa escuridão que a desfaz. Vêem esta penumbra? Deveria ser uma escuridão tão impenetrável que não nos veríamos uns aos outros. Talvez...
- Como te atreveste a voltar aqui? - cortou Alsan, bruscamente, olhando para Victoria.
Ela ia responder, mas Jack adiantou-se e passou-lhe um braço pelos ombros.
- Está comigo. Algum problema?
- Antes estava com Kirtash. Por acaso arrancaste-a de junto dele ou será que já morreu e ela não tem nenhum sítio para onde ir?
- Não morreu - disse Victoria com tranquilidade; ergueu os olhos para ele. - E podes dar graças por isso.
O semblante de Alsan endureceu.
- Vejo-te um pouco mudada - comentou. - Será que as serpentes crescem mais depressa do que os humanos nos ventres das suas mães?
- Alsan, chega - cortou Jack.
- Não vou permitir que dê à luz o filho desse bastardo no meu castelo - replicou ele.
- Não há problema - disse Victoria. - Vou-me embora...
- Não, Victoria, parece-me que não vais. Prendam-na - ordenou aos soldados.
- O quê? - perguntou Shail, atónito. - Enlouqueceste?
Jack já se tinha colocado diante de Victoria, disposto a defendê-la.
- Desculpem - interveio então a voz agradável de Ha-Din. - Não sei o que está a acontecer, mas sem dúvida não será necessário recorrer às armas.
O Pai Venerável abriu caminho até chegar junto deles.
- Jack - disse, com um suave sorriso. - Victoria. Que os deuses vos abençoem. Fico contente por voltar a ver-vos sãos e salvos.
- Pai Venerável - grunhiu Alsan. - Estás a impedir o trabalho dos meus soldados.
- Não é minha intenção intervir em assuntos que não sejam da minha competência, apenas sentia curiosidade. Pareceu-me que estavas prestes a prender uma mulher grávida.
- É evidente que está grávida. Demasiado evidente, diria eu. Também é evidente que confraternizou com o inimigo... em excesso.
Ha-Din olhou para ele, sorrindo com inocência.
- Isso anula o facto de se tratar de uma jovem grávida? Por acaso tencionavas lançá-la num dos vossos tenebrosos calabouços, majestade?
- Agradeço-te, Pai Venerável, mas não sou de vidro - sorriu Victoria. Voltou a olhar para Alsan, séria. - Podes prender-me se quiseres, mas isso não mudará o facto de que há coisas muito mais importantes do que debater a origem do meu filho, e coisas muito mais perigosas, neste momento, do que um bebé que ainda nem sequer nasceu. Assistiram à manifestação de Irial em Nandelt; Jack viu Aldun em Kash-Tar, e Wina volta a passear-se por Alis Lithban. Os deuses regressaram, e receio que já cá estejam todos. Não tardarão a voltar a chegar-nos notícias de novos tornados, maremotos e deslizamentos de terras. Não tardaremos a saber onde estão os três que faltam.
Houve um breve silêncio, tenso, cheio de maus presságios.
- Vieram para lutar contra o sétimo deus - prosseguiu Victoria -, que agora se esconde deles num corpo material. Se esse corpo for destruído... se a essência do Sétimo voltar a ser libertada, os deuses lutarão contra ela e todos nós seremos aniquilados no processo.
Alsan franziu o sobrolho.
- Não é a primeira vez que ouço essa história. Como podes ter tanta certeza de que não acabarão de uma vez por todas com o Sétimo, de que não se irão embora depois para o sítio de onde vieram?
- Porque os deuses não podem ser destruídos - disse Jack. - São a própria energia que deu origem ao mundo. Podem estar a lutar eternamente entre eles sem que haja um claro vencedor. E tudo o resto será devastado enquanto isso. Já o fizeram uma vez... no primeiro mundo que criaram, antes de Idhún. Destruíram-no com as suas disputas, e na altura ainda não existia o Sétimo.
- Não existia o Sétimo? Insinuas que foi criado depois? Se foi criado, pode ser destruído.
Jack inspirou fundo, armou-se de coragem e soltou:
- O Sétimo procedia dos outros Seis. Livraram-se de toda a energia negativa que havia neles e depois lançaram-na no mundo como se fosse lixo.
- Nunca tinha ouvido tanta blasfémia junta - irrompeu nas suas mentes a voz de Gaedalu. Ninguém a tinha ouvido chegar, mas agora estava junto deles, com Zaisei ao seu lado, observando Jack com reprovação. Ha-Din inclinou a cabeça e olhou-a com amabilidade.
- Achas? Pois a mini parece-me uma teoria interessante.
- Por isso há que proteger Gerde, não lutar contra ela - disse Jack. Porque, no momento em que os deuses a encontrarem e a destruírem, libertarão a essência do Sétimo, começará a guerra e tudo terá terminado para os mortais.
Porque, desde que destruímos Ashran, já não temos qualquer papel nesta história. Agora tudo está nas mãos dos deuses; e tudo o que estão a fazer tem em vista os seus próprios interesses e não os nossos. Se correr tudo bem, Gerde e os sheks irão embora para outro mundo, para longe do alcance dos Seis, que irão regressar ao seu próprio plano.
- Irão regressar ao seu próprio plano? - repetiu Alsan com sarcasmo. Não podes saber isso. Talvez fiquem por aqui e continuem a destruir tudo. Como podes sugerir sequer que fiquemos a cobrir a retirada de Gerde e dos sheks, que os deixemos ugir? Como podes acreditar nessa patranha?
É óbvio que tudo isso foi inventado pelos sheks para que não lutemos contra eles! Porque sabem que não podem ganhar! Jack e Victoria entreolharam-se.
- Disse-te que não era boa ideia contar-lhe - comentou.
- Eu sei - respondeu ela com suavidade -, e era por isso que Christian não queria dizer-nos nada sobre tudo isto. Mas têm de saber a verdade.
- A verdade! - exclamou Alsan. - A verdade que Kirtash te contou? Ou talvez Gerde?
- Não sei porque estamos a falar de tudo isso - interveio Gaedalu. É óbvio que é um deles...
- E eu? - cortou Jack. - Também sou um deles?
- Actuas cego pelos teus sentimentos - observou Gaedalu. - Recusas-te a crer que ela te enganou e que está apenas a utilizar-te. Demonstrou repetidas vezes o seu amor pelo filho de Ashran.
- Certo - assentiu Alsan. - Lamento dizer-te, Jack, mas eu não acredito que sejas tão importante para Victoria como ela te faz crer. E óbvio o motivo por que regressou, e de quem é o filho que espera e a quem defende com tanta paixão.
- Há um laço entre nós - declarou Jack, rotundamente.
Todos olharam para Ha-Din e Zaisei. A sacerdotisa desviou o olhar, perturbada, e o Venerável murmurou:
- Não é assim que se devem fazer as coisas.
Olhou para Victoria, que susteve o seu olhar sem pestanejar.
- Ela não quer que tornemos pública essa informação - disse. - Enquanto não disser o contrário, só podemos revelar a existência ou não de um laço às pessoas unidas por esse laço, e a mais ninguém.
- Mas eu posso declará-lo! - disse Jack. - Sei que há um laço, qualquer celeste mo confirmará, mesmo que seja em privado!
- Estás louco por ela - grunhiu Alsan. - Farias qualquer coisa por ela, até mesmo aceitar que tenha um filho com um shek. Achas que não sei que também mentirias para a proteger?
Jack suspirou e olhou para Victoria, mas ela mantinha-se imperturbável.
- Não sabia que podias ser tão teimosa - censurou-a. Ela dirigiu-lhe um sorriso, mas não cedeu.
- Eu confio neles - interveio então Shail. - Lutaram contra Ashran, que foi, também, quem não há muito torturou brutalmente Victoria e lhe arrebatou o seu corno.
Pensa com lógica, Alsan. Achas mesmo que ela defenderia essas ideias se não achasse que são verdadeiras?
- Estou farto de discutir - cortou Jack. - Viemos de Alis Lithban e estamos cansados. Por isso, Alsan, decide já se nos expulsas, nos acolhes ou nos prendes, nos julgas e nos executas como traidores.
- Não estamos a falar de ti...
- Estás a falar de mim, porque não vou permitir que ponhas a mão em cima de Victoria nem do meu filho, ficou claro?
Tinha levantado a voz e olhava fixamente para Alsan. Este susteve o seu olhar, mas não foi capaz de aguentar por muito tempo. Esforçou-se para que a sua voz ainda soasse firme quando disse:
- Falaremos mais tarde. Por enquanto, podem alojar-se no lugar de sempre. Já sabem o caminho.
O monte Lunn era o lugar onde, segundo as lendas, o primeiro unicórnio tinha recebido o poder dos deuses através do seu corno e o tinha transformado em magia.
Todos os feiticeiros costumavam visitar o lugar alguma vez ao longo das suas vidas, não só pelo que simbolizava, mas também porque, segundo se dizia, ainda flutuava alguma energia no ar, apesar de terem decorrido mais de quinze mil anos desde então. Porém, outro tipo de pessoas afluía ali com frequência, para rezar em frente do pequeno templo que havia sido construído no seu cume. Ao longo de centenas de gerações, semifeiticeiros de todas as raças e condições tinham ido ali suplicar aos deuses que lhes concedessem a magia completa.
Porque ali, no monte Lunn, o mágico e o sagrado andavam de mãos dadas. Não havia feiticeiro que não tivesse descido do seu cume sem rogar uma fervorosa prece aos Seis, nem sacerdote que não tivesse desejado, depois de pisar o lugar onde a magia tocara o mundo pela primeira vez, ter visto um unicórnio.
O templo do monte Lunn era mais um refúgio de peregrinos do que um autêntico lugar de culto. Tomava conta dele um ancião eremita celeste que estava ali há muitos anos, mais dos que alguém pudesse recordar. Se lhe tivessem perguntado, teria respondido que não se lembrava de ter dado abrigo a nenhum feiticeiro particularmente ilustre.
Porém, durante muitas gerações, os feiticeiros mais poderosos tinham visitado o monte Lunn, porque era ali onde se ocultava um dos maiores segredos da Ordem Mágica, um segredo que, ao longo da Quarta Era, apenas estivera nas mãos dos arquifeiticeiros... e que, actualmente, só Qaydar conhecia.
O Arquifeiticeiro abandonara Vanissar pouco depois de ter chegado ali à procura de Victoria. Alsan deixara-lhe claro que para ele era urgente tentar controlar Irial antes que todos os seus súbditos perdessem a visão; além disso, a conversa que mantivera com ele e com Shail abrira-lhe novas possibilidades, ao pé das quais o assunto da perda de Victoria parecia irrelevante.
Agora avançava por um longo passadiço que se enterrava nas entranhas do monte Lunn, acompanhado apenas por uma esfera de luz mágica que dançava diante dele, iluminando o seu caminho.
Sabia o que ia encontrar no final do túnel, porque não era a primeira vez que visitava aquele lugar. No entanto, aquilo acontecera há muito tempo, há mais de duzentos anos, se não lhe falhava a memória. Naquele tempo, a Torre de Drackwen tinha sido uma escola de magia florescente. Antes de os sacerdotes obrigarem os feiticeiros a abandoná-la.
Qaydar franziu o sobrolho. Os sacerdotes sempre temeram o poder dos feiticeiros e tinham feito todos os possíveis para o restringir. Era certo que os deuses eram muito mais poderosos e que podiam obrar milagres que não estavam ao alcance dos feiticeiros. Mas os deuses poucas vezes se deixavam ver e os milagres escasseavam, enquanto que os prodígios dos feiticeiros eram muito mais frequentes e, por outro lado, os unicórnios, dadores de magia, eram criaturas de carne e osso que podiam ver-se e tocar-se, pelo menos em alguns casos. Era inevitável que as Igrejas temessem perder a sua influência em favor da Ordem Mágica. Apesar de os feiticeiros terem sido sempre uma minoria, as pessoas costumavam confiar mais neles do que nos sacerdotes.
Excepto quando os feiticeiros abusavam do seu poder... como na Era Negra.
Qaydar sorriu amargamente. Depois da derrota de Talmannon, viera a Era da Contemplação, e os feiticeiros tinham sido perseguidos e exterminados de forma sistemática. Naquela altura, os unicórnios começaram a ser vistos como criaturas malditas, apesar de terem ajudado Ayshel a derrotar Talmannon. Noutras épocas, ser tocado por um unicórnio era considerado uma bênção. Durante a Era da Contemplação era visto como uma desgraça.
"Não era de estranhar que desde a Era Negra os feiticeiros guardassem segredos que mais ninguém devia conhecer", disse Qaydar para consigo. "Muito menos os sacerdotes."
Suspirou para com os seus botões. A Quarta Era, a chamada Era dos Arquifeiticeiros, estava quase a terminar, dado que ele era o último. O que viria depois? Sem unicórnios, a Ordem Mágica morreria irremediavelmente. E iniciar-se-ia em Idhún uma nova Era da Contemplação, muito mais árida e austera do que a anterior. Porque, por muitos feiticeiros que os sacerdotes tivessem executado, nunca tinham conseguido pôr as mãos em cima de um unicórnio.
Enquanto que Ashran os tinha exterminado num só dia.
Tinham razão. Aquele maldito feiticeiro só podia ter sido o Sétimo. E se aquilo fora feito por um deus, apenas outro podia repará-lo.
E as lendas diziam que a deusa Irial sempre sentira predilecção pelos unicórnios.
Desembocou, por fim, numa vasta sala hexagonal iluminada por seis tochas que davam uma luz lúgubre, irreal. Não havia nenhuma magia naquele lugar. As tochas eram mantidas acesas por um ser vivo, alguém que, com toda a probabilidade, era a criatura mais desgraçada de Idhún. Alguém que estava ali em baixo há muito mais tempo do que o eremita que vivia no cume, alguém que não tinha visto a luz dos sóis durante mais de dois mil anos.
- Guardião - chamou. - Um feiticeiro deseja ver-te.
Sabia que ele estava lá. Mas tinha de o chamar para que o Guardião se atrevesse a mostrar o seu rosto a outras pessoas.
Chamavam-lhe o Guardião, mas também o Imperecível ou o Sempiterno. Ninguém se lembrava do seu verdadeiro nome. Vivia ali desde a noite da morte de Talmannon e permanecera oculto. Os mais leais servidores de Talmannon esconderam-no ali, junto com outros tesouros que tinham resgatado do seu castelo; e posteriormente, durante a repressão religiosa, aquele tinha sido o lugar escolhido para guardar os mais preciosos tesouros da Ordem Mágica do olhar severo dos sacerdotes.
O Guardião iria protegê-los, como sempre fizera. E fá-lo-ia por toda a eternidade, porque nenhum futuro o aguardava no exterior e porque muito tempo antes o tinham abençoado ou condenado com o dom da imortalidade.
Qaydar observou-o, surpreendido, quando avançou até ele, trazendo uma candeia, com o rosto coberto por um largo capuz que ocultava as suas feições.
- Sou Qaydar, o Arquifeiticeiro - disse o feiticeiro com gravidade.
- Oh - respondeu o Guardião, sem muito entusiasmo. - Esperava outra pessoa.
- Esperavas Ashran, não é? Ele esteve aqui há muito tempo. O Guardião não respondeu à pergunta.
- Vieste fazer uma consssulta?
Qaydar estremeceu. De vez em quando, o Guardião ciciava inconscientemente. Diziam que tinha a língua bífida, mas não tivera ocasião de o comprovar.
- Vim entregar-te isto - disse, mostrando-lhe uma pequena urna marcada com o símbolo do sétimo deus. - Ashran - disse apenas.
O Guardião deu um passo atrás e, embora Qaydar continuasse sem lhe ver a cara, notou que ficara comovido.
- Conhecia-lo, não?
O Guardião recuperou a compostura e ergueu-se para dizer:
- Segue-me.
Começou a andar pelo corredor e Qaydar seguiu-o. Atravessaram sete portas diferentes, que o Guardião abriu com cada uma das sete chaves que levava penduradas ao pescoço, até que chegaram à Sala das Relíquias.
Apesar de ser o homem mais poderoso de Idhún, Qaydar sentiu-se intimidado ao entrar naquela sala, que datava dos tempos do próprio Talmannon. Aquilo nascera como um santuário dedicado ao sétimo deus, e os seguidores de Talmannon, aqueles que continuavam a servi-lo mesmo depois de Shiskatchegg ter deixado de exercer a sua influência sobre eles, tinham ocultado ali todos os seus tesouros, incluindo os seus restos mortais, uma urna de cinzas que ainda se conservava no nicho mais recôndito da sala.
Os restantes feiticeiros deviam ter destruído aquele lugar e o seu guardião assim que descobriram a sua existência. Mas o Guardião não podia ser destruído, e, além disso, aquele foi o único lugar de Idhún onde puderam refugiar-se durante os anos mais tenebrosos da Era da Contemplação. Sem a Sala das Relíquias, a Ordem Mágica nunca teria conseguido recuperar-se, e eles sabiam disso.
Como agradecimento, permitiram ao Guardião continuar com a sua tarefa e adoptaram o hábito de levar ali as cinzas de todos os grandes feiticeiros. De vez em quando,
alguém utilizava parte daquelas cinzas para realizar uma invocação e consultar o espírito do defunto. Mas ninguém, jamais, teria ousado invocar o próprio Talmannon. Por outro lado, partiam do pressuposto de que o Guardião nunca o permitiria.
O Guardião guiou-o até um nicho que ainda estava livre. Depois, estendeu-lhe as mãos para que lhe entregasse o recipiente com as cinzas de Ashran. Qaydar não pôde evitar reparar que aquelas mãos estavam cobertas por uma fina camada de escamas translúcidas. Deu-lhe a urna e o Guardião colocou-a no seu lugar.
- Sela-a - disse.
Qaydar pronunciou um feitiço de protecção sobre a urna, que emitiu um breve brilho azulado e depois recuperou o seu aspecto habitual.
Os dois permaneceram durante uns segundos em silêncio.
- Acabámos? - perguntou o Guardião.
- Ainda não - disse Qaydar. - Preciso que me respondas a algumas perguntas.
A criatura riu amargamente.
- Que posso eu saber, se há tanto tempo não sssaio daqui?
- Coisas que aconteceram neste lugar - fez uma pausa -, há mais de vinte anos.
O Guardião não respondeu. Deu meia-volta e afastou-se dele em direcção à entrada da Sala das Relíquias. Qaydar reteve-o pelo braço.
- Espera! Veio um jovem feiticeiro chamado Ashran, não foi? Como entrou aqui?
- Não sei. Vocês, os feiticeiros, devem saber como manter este lugar protegido e quais as condições para entrar. Só sei que desde que aqui estou, apenas feiticeiros poderosos lograram atravessar as suas portas.
Qaydar reflectiu.
- Está bem - disse. - É difícil de acreditar que Ashran soubesse da existência deste lugar e mais ainda que descobrisse a chave para encontrar a entrada e atravessá-la... mas não é completamente impossível. O que foi que te disse? Pediu-te cinzas para uma invocação?
- Para que outra coisa, senão para isso, vêm aqui os feiticeiros?
- Quem foi o feiticeiro que invocou? Lembras-te, Guardião? A criatura estremeceu.
- Não poderia esquecê-lo - disse. - Pediu-me para invocar o maior feiticeiro de todos os tempos. O meu Amo e Senhor, Talmannon. Ninguém ousara jamais fazer-me um pedido semelhante. Ninguém se teria atrevido a profanar as suas cinzasss.
- Então, disseste-lhe que não?
O Guardião ergueu a cabeça para ele.
- Disse-lhe que sssim. Mas não lhe permiti que levasse a urna, nem sequer um saquinho de cinzas. Realizámos a invocação aqui mesmo.
Qaydar deu um passo atrás, atónito.
- Deixaste que invocasse Talmannon? Por que razão?
- Por que razão invocam os feiticeiros pessoas que morreram há muito tempo? Para perguntar. Para saber. Nada do que os vossos feiticeiros mortos tenham a dizer me interessa minimamente. Mas o meu Amo... tinha de lhe perguntar... queria saber...
- Saber, o quê? - perguntou Qaydar, com impaciência.
O Guardião voltou-se para ele e retirou o capuz, bruscamente.
- Isssto é o que quero saber! Se serviu de alguma coisa! Se a minha existência tem algum sentido! Quanto tempo... vou continuar na escuridão... sendo único... sendo um monssstro!
Qaydar tinha ficado mudo de horror.
Sabia o que era o Guardião. Em criança, acreditara que os szish, os homens-serpentes que tinham servido Talmannon e os sheks, não eram mais do que lendas... até que vira aquela criatura.
Mas o Guardião não era exactamente um szish. Era, talvez, o único homem-serpente de Idhún que merecia realmente aquele nome.
Porque tinha um rosto que era mais humano do que de réptil. Tinha olhos com íris, pupilas e um brilho de emoção humana. No entanto, também mostrava feições de serpente e toda a sua pele estava coberta por uma fina película escamosa. Qaydar sabia que, debaixo da túnica que usava, exibia uma cauda anelada, como a de qualquer szish.
- "Sssangue-morno", costumava chamar-me - disse o Guardião, e Qaydar viu desta vez, claramente, que a sua língua mostrava uma pequena fenda que não chegava a ser uma língua bífida, mas que também não era totalmente arredondada. - Ele estava orgulhoso de mim, dizia que era o futuro e que em breve todos chegariam à conclusão de que os szish não eram assim tão diferentes dos sangues-quentes, dado que podiam misturar-se com eles. Mas para o resto do mundo eu não era mais do que uma aberração, um monstro. Por isso, para me proteger dos outros, o meu Amo tornou-me imortal. Nada nem ninguém poderia fazer-me mal, nem sequer o tempo... viveria eternamente... aguardando o dia em que haveria em Idhún mais criaturas como eu. Mas aguardo há mais de dois milénios e só continuam a entrar aqui os feiticeiros sangues-quentes.
Qaydar recordou de repente o que sabia de Kirtash: que Ashran o criara fundindo a alma de um ser humano e a alma de um shek. Teria sido uma ideia sua ou seguia um plano que o Sétimo acalentava há séculos... quando, sob a identidade de Talmannon, cruzava humanos com homens-serpentes?
- Querias perguntar-lhe porque te criou, não foi?
- Criar-me? A mim? - O mestiço riu sem alegria. - Eu não sou uma criação sua. Sou fruto do amor que existiu entre uma feiticeira humana e um capitão szish. Nasci de forma natural, e o Amo adoptou-me.
- Amor? - repetiu Qaydar, não podendo evitar uma careta de repugnância. - Entre uma humana e uma serpente?
Uma vez mais voltou a pensar em Kirtash... e em Victoria.
- Não nasci da violência, nem da paixão de uma noite - insistiu o Guardião. - Os meus pais amavam-se. Lembro-me de ambos. Formávamos uma família. Mas agora... já não resta ninguém. Nem o meu pai, nem a minha mãe, nem o Amo estão aqui. Por isso, quando Ashran me disse que queria invocar Talmannon... quis estar presssente. Para lhe pedir que me retirasse o dom que me tinha concedido e que me permitisse morrer.
- Então, invocastes Talmannon. O que lhe perguntou Ashran?
- Não me lembro. Saí da sala depois de falar com o Amo e deixei-os a sós.
- Porquê? O que te disse a ti? O Guardião tardou a responder.
- Disse-me que já não tinha poder para me retirar o dom e permitir-me morrer. Que perdeu esse poder ao abandonar o seu corpo. E que só alguém com o mesmo poder poderia conceder-me o meu maior desejo.
Qaydar olhou-o demoradamente.
- Sabias que Ashran adquiriu esse poder ao longo da sua vida, não sabias?
O semi-szish inclinou a cabeça.
- Disse-me que o tentaria - murmurou. - E prometeu-me que voltaria quando conseguisse.
- Há quase vinte anos que o conseguiu, se não me informaram mal disse Qaydar com suavidade. - Nunca regressou para te buscar.
Perguntou-se porque não o tinha feito. Talvez a existência daquele extraordinário mestiço continuasse a significar um êxito para ele, mas, nesse caso, porque não o tirara daquela cripta e o mantivera ao seu lado, tal como fizera Talmannon?
Também existia a possibilidade de se ter esquecido dele. Podia parecer cruel, mas, afinal de contas, Ashran chegara a ser um deus. Talvez o tempo já não tivesse a mesma importância para ele, ou quiçá a luta contra a profecia dos Oráculos tivesse sido na altura um assunto de tal prioridade para ele que tudo o resto tenha ficado em segundo plano.
- E agora está morto - concluiu o Guardião.
Qaydar perguntou-se se devia dizer-lhe que existia outra pessoa no mundo que tinha esse poder. Talvez o semi-szish reunisse coragem suficiente para sair daquela tumba onde estava encerrado há dois mil anos e procurasse Gerde para lhe pedir clemência. Descartou a ideia. Se o Guardião morresse, não haveria ninguém encarregado de guardar as relíquias da Ordem Mágica.
- Lamento - murmurou Qaydar. - Talvez o sétimo deus ainda tenha planos para ti.
- Se asssim for, não os partilhou comigo.
O mestiço voltou a colocar o capuz na cabeça, deu meia-volta e encaminhou-se de novo para a porta. Qaydar sentiu então um ligeiro tremor no chão, mas não lhe deu importância.
- Espera, Guardião - deteve-o pela segunda vez. - Não terminei. Desejo fazer uma invocação.
O Guardião olhou para ele.
- Quero invocar Talmannon. Necessito de parte das suas cinzas. O semi-szish negou com a cabeça.
- Não, Arquifeiticeiro. Os restos do Amo permanecerão onde estão. Não voltarei a cedê-los a ninguém.
Qaydar franziu o sobrolho.
- Como vais impedir-me de levar a urna?
- Protegendo-a com a minha vida. E, como já sabes, a minha vida é algo que ninguém pode arrebatar-me. Nem sequer tu.
O chão voltou a retumbar, desta vez com mais força. Os dois notaram -no e olharam à sua volta, inquietos.
- Parece um tremor de terra - murmurou Qaydar.
Não tinha acabado de falar quando o sismo se repetiu e toda a caverna retumbou com um barulho parecido ao bocejo de um titã. Ambos, mestiço e feiticeiro, perderam o equilíbrio e caíram no chão.
- Alguma coisa se aproxima - disse o Guardião, nervoso.
O Arquifeiticeiro levantou-se com dificuldade. O chão continuava a tremer. Algumas pequenas pedras desprenderam-se do tecto e caíram sobre eles.
- Temos de sair daqui! - urgiu-o Qaydar, mas o semi-szish olhou para ele, aturdido, sem ser capaz de responder.
Outro movimento, mais violento do que o anterior, estalou uma das paredes e fez cair uma urna no chão. O feitiço de protecção evitou que se partisse e que as cinzas se espalhassem, mas o ruído fez reagir o Guardião, que se voltou, sobressaltado.
De novo, as entranhas da terra pareceram estalar, como se acordassem de um sono de milhões de anos. Um arrepio percorreu a espinha de Qaydar; passara demasiado tempo a falar com Shail nos últimos meses para não reconhecer o que estava a acontecer.
- Levanta-te! - gritou-lhe. - Isto vem tudo abaixo! O mestiço olhou para ele, desconcertado.
- Não pode ser. A tua magia...
- A minha magia não pode fazer nada contra o que nos vai cair em cima! Levanta-te e vamos sair daqui!
O Guardião abanou a cabeça.
- Não posso... não posso... o Amo... as cinzas...
Levantou-se de rompante e, desafiando o tremor de terra, desatou a correr para o fundo da sala. Qaydar resmungou baixinho, mas seguiu-o.
Alcançou-o quando já regressava com uma urna que apertava contra o seu peito como se fosse o seu bem mais precioso. Qaydar sabia o que havia lá dentro e recordou
de repente a sua missão.
- Guardião! Resta mais alguma coisa de Talmannon que queiras resgatar?
O semi-szish negou com a cabeça.
- Nada importante. Nada pessoal. A bruxa de Awa destruiu tudo quando conquistou o castelo. Apenas... conservava um cinto que lhe pertenceu, mas Ashran levou-o. Permiti-lhe que o fizesse porque prometeu regressar...
Uma nova sacudidela fez com que se desprendessem vários blocos do tecto. Qaydar puxou o Guardião para o afastar do perigo.
Juntos, saíram da Sala das Relíquias. Contemplando o longo corredor que tinham de percorrer, Qaydar compreendeu que não sairiam vivos dali a menos que usasse a magia.
- vou teletransportar-nos para o exterior. O semi-szish olhou para ele, aterrorizado.
- Para... o exterior? À luz dos sóis? Começou a tremer.
- Mas tens de sair! - gritou Qaydar. - Se ficares aqui, as rochas irão esmagar-te! Duvido muito que mesmo tu sejas capaz de sobreviver à passagem de um dos Seis!
De repente, o rosto do Guardião iluminou-se com um sorriso rasgado. Estendeu a urna a Qaydar.
- Toma - disse -, leva-a. É a única coisa que quero sssalvar deste lugar. O Arquifeiticeiro agarrou no recipiente, constrangido.
- Mas não podes ficar aqui! O Guardião abanou a cabeça.
- Realiza a invocação, se assim o desejares. Diz ao Amo que espero voltar a vê-lo em breve. E utiliza todas as suas cinzas, para que mais ninguém volte a incomodá-lo.
Qaydar quis dizer algo mais, mas não teve ocasião. O Guardião deu meia-volta e correu de novo para o interior da Sala das Relíquias. Um dos arcos que sustentavam o tecto acabou por rachar e caiu, ruidosamente, separando o mestiço do Arquifeiticeiro e selando o seu destino para sempre.
Comovido, Qaydar fez o feitiço de teletransporte e saiu dali, levando consigo a urna com as cinzas de Talmannon.
Várias toneladas de rocha mais acima, o eremita contemplava a destruição da montanha, assombrado. Tinha chamado um pássaro haai ao notar os primeiros tremores e, felizmente, havia um nas imediações, um que procedia de Alis Lithban e que escutara o seu canto. E agora, montado no dorso do pássaro dourado, assistia à devastação do lugar onde a magia nascera e perguntava-se se não seria aquilo um sinal dos novos tempos que estavam por vir, tempos em que os unicórnios e os dragões seriam lenda, onde só os deuses seriam mais poderosos do que as pessoas.
Quando estava prestes a ir-se embora, ainda impressionado, captou uma intensa emoção que vinha do coração da montanha: um medo extremo, e depois um enorme alívio, e depois nada mais...
Sacudindo a cabeça, o celeste afastou-se dali, ainda a tremer de terror, virando as costas àquele que fora o seu lar durante os últimos oitenta anos.
A proximidade de Irial fez com que todos se esquecessem momentaneamente da possível traição de Victoria: havia muito que fazer e muitos outros problemas a resolver. O mais urgente era encontrar alojamento e comida para todos os que chegavam à cidade a fim de se refugiarem na sua acolhedora penumbra. Mas também foram enviados mensageiros a diferentes lugares de Idhún, para averiguar onde se encontravam todos os deuses e o que estavam a fazer. Assim, em breve tiveram notícias que confirmaram o que Victoria dissera sobre o que estava a acontecer em Alis Lithban; também receberam notícias do desmoronamento do monte Lunn e logo souberam que Karevan se deslocava lentamente em direcção à Cordilheira de Nandelt; se não mudasse de rumo, os gigantes teriam de partir outra vez. Os mensageiros falaram também de inundações em Raden, devidas a marés especialmente violentas.
Assim, pouco a pouco, foram formando um mapa de deuses e não tardaram a reparar que faltava um. Ainda não tinham recebido notícias de ciclones nem tomados, nem de ventos tempestuosos, e isso aliviava-os, mas também os inquietava. Onde poderia ter-se metido Yohavir?
Enquanto isso, os feiticeiros continuavam a criar globos de escuridão. A Torre de Kazlunn ficara vazia, porque todos estavam a colocar o seu poder ao serviço do resto do mundo. O único que faltava era Qaydar; ninguém sabia onde tinha ido, nem quando voltaria, mas não havia tempo para sentir falta dele.
A iminente batalha contra Gerde ficava adiada indefinidamente enquanto todos trabalhavam freneticamente na busca de uma solução. Os sacerdotes mantinham longuíssimas reuniões nas quais debatiam, pela primeira vez, os fundamentos de questões teológicas que haviam permanecido estáveis durante milénios.
No entanto, Jack não podia deixar de se interrogar se Alsan teria agido assim se Irial não se tivesse manifestado no seu próprio reino. Estava quase convencido de que, se não tivesse de proteger a sua própria gente, ter-se-ia certamente lançado na guerra. Mas não pensava perguntar-lhe e, de qualquer das formas, aquilo convinha aos seus planos. Tinham prometido a Christian que fariam os possíveis por entreter Alsan e os seus aliados para dar tempo a Gerde e aos sheks para abandonar Idhún.
Naquela tarde, Jack encontrou um momento livre para ir falar com Ha-Din. O celeste saía de uma das suas reuniões com Gaedalu e com outros sacerdotes e sacerdotisas, com evidentes sintomas de estar a padecer de uma terrível dor de cabeça. Jack estacou a meio do corredor, sem saber se era ou não um bom momento para lhe expor as suas dúvidas. Ha-Din viu-o.
- Vem, Jack - disse, com um sorriso. - Acompanha-me às ameias, para ver se apanho um pouco de ar. Irá fazer-me bem.
Jack aceitou de bom grado.
- Estes... concílios... são longos e aborrecidos - opinou o Pai. - Antigamente costumavam celebrar-se no Grande Oráculo, que era terreno mais ou menos neutral. Chegámos a discutir se deveríamos estar a falar de todas estas coisas no Oráculo de Gantadd ou no de Awa. Creio que acabámos por ficar aqui porque não apetece a ninguém viajar mais - acrescentou, com um sorriso. - Se bem que, independentemente do lugar escolhido, chegaremos sempre à mesma conclusão: não temos nem a mais remota ideia do que está a acontecer.
Jack inclinou a cabeça.
- Nós fomos reunindo informação - disse - e reconstruímos o que achamos que é uma história bastante aproximada deste mundo. Entre o que Kirtash sabe, o que Victoria descobriu, o que Shail encontrou nos livros e o que eu averiguei... todas as peças parecem encaixar-se. Mesmo assim... não sei se o que descobrimos pode ajudar-nos a enfrentar o momento presente ou a descortinar o que o futuro nos reserva.
- Palavras sábias, Jack - sorriu o celeste. - Não sei se estou preparado para conhecer toda essa informação e também não sei se me ajudaria conhecê-la. Mas preciso, sim, de saber uma coisa: quando Victoria tirou Kirtash das masmorras e o levou para lhe salvar a vida, pedi-lhe que procurasse saber mais sobre esse objecto... que a Mãe Venerável extraiu das profundezas do mar e que serviu, ao mesmo tempo, para reprimir o animal dentro de Alsan e subjugar um shek. Não tive ocasião de falar com ela ainda. Não sei se te terá dito alguma coisa a esse respeito.
Jack sorriu e contou a Ha-Din como, há milhares de anos, os deuses se tinham libertado daquela parte de si mesmos que os levava a lutar uns contra os outros, do caos e da destruição que faziam parte, também, de todo o processo de criação.
- Encerraram-no numa espécie de câmara - prosseguiu -, que em teoria não se podia quebrar. E atiraram-no ao mar. Mas, muito tempo depois, essa rocha rompeu-se e um novo deus emergiu do seu interior.
" A substância com que a rocha foi criada estava... desenhada, por assim dizer, para reprimir essa essência de caos e destruição que queriam manter encerrada no seu íntimo. A essência de que é constituído o Sétimo e que deu origem aos sheks. Por esta razão, essa coisa repele-os e anula os seus sentidos. Mas também reprime tudo aquilo que é, em essência, caótico e destrutivo. Por isso, anulou o animal que há no interior de Alsan.
- Mas não o destruiu - fez notar Ha-Din.
- Não creio que possa ser destruído, Pai Venerável. O espírito do lobo já faz parte dele. Arrancá-lo do seu corpo equivaleria a rasgar a sua própria alma. A única opção que lhe restava era... reprimi-lo, anulá-lo, aprisioná-lo no seu interior. Algo que pode funcionar bem no caso de Alsan, porque as duas essências não conviviam em harmonia no seu corpo e lutavam constantemente pela supremacia. Mas no caso de Kirtash, por pouco lhe foi fatal, porque nele, o humano e o shek são uma só coisa. No entanto... - franziu o sobrolho -, não estou muito seguro de que a mudança tenha feito bem a Alsan.
- Pode parecer estranho - assentiu Ha-Din -, mas, desde que usa esse bracelete, tenho a sensação de que se tornou num monstro ainda mais terrível do que aquele que procurava destruir.
- Por que razão? - perguntou Jack, intrigado. - Alsan sempre foi severo e inflexível, mas nunca cruel ou intolerante. Como é possível?
- Tu mesmo o disseste: libertou-se de tudo o que havia nele de caótico e destrutivo. Isso leva-o a querer criar a ordem em seu redor, a exigir que tudo seja conforme às normas estabelecidas. A lutar contra o caos com todas as suas forças. Pela mesma razão por que os nossos deuses se esforçam com tanto empenho em destruir essa escuridão da qual quiseram livrar-se... sem se aperceberem de que, ao fazê-lo, reproduzem esse mesmo caos que tanto lhes desagrada.
- É um círculo vicioso - murmurou Jack.
- Sim - assentiu Ha-Din -, e isso leva-me a pensar que uma pessoa não se pode desfazer com tanta facilidade dessa parte obscura e caótica. Não tenho dúvida de que o teu amigo Alsan acredita que faz o que é certo, lutando contra o mal encarnado no Sétimo e nas suas serpentes. Ele é um cavaleiro de Nurgon, foi educado para combater, não conhece outra coisa. Tens de lhe dar um inimigo físico contra o qual dirigir a sua espada justiceira. Se lhe dizes que as serpentes não são assim tão más, não te ouvirá, porque acreditar em ti implicaria para ele admitir que a sua vida, tal como o ensinaram a vivê-la, não tem sentido.
- Mas ele mesmo experimentou esse caos. Ele mesmo esteve à mercê de uma criatura destruidora e durante algum tempo... pareceu-me que até a aceitava.
- Isso é o que mais odeia em si próprio: ter-se convertido numa das criaturas que jurou combater. E, porque o caos o escravizou, agora procurará o caos e lutará contra ele, onde quer que este se encontre. Mesmo que seja numa jovem de quem outrora gostava.
Jack estremeceu.
- Era justamente disso que queria falar-te. Ele gostava de Victoria, viu-a crescer, educou-a, juntamente com Aile e Shail, e foi, praticamente, como o seu irmão mais velho. Não seria capaz de lhe fazer mal, nem a ela nem ao seu bebé, pois não?
Ha-Din meneou a cabeça e uma sombra de dúvida cobriu o seu rosto.
- Os homens como ele, tão comprometidos com ideais que consideram acima de todas as pessoas, inclusivamente acima deles mesmos... não são capazes de criar laços fortes com ninguém, porque, para eles, os laços não são tão importantes como o dever. Não duvido que no fundo lhe doa atacar Victoria, mas fá-lo-á se achar que é o que deve fazer. É também assim que se rompem os laços. Alsan sente apreço por ti, Jack, mas sacrificar-te-ia sem hesitar se achasse que esse era o seu dever. Por muito que lhe doesse, cumpriria a sua obrigação. Jack inclinou a cabeça.
- Entendo. Mas se existisse um laço de autêntico amor entre Victoria e eu... talvez confiasse mais nela, não?
Ha-Din olhou para ele.
- Queres que te diga se existe um laço entre os dois? O jovem negou com a cabeça.
- Não é necessário. Já sei a resposta a essa pergunta. O que eu queria saber é porque é que Victoria não quer que a nossa união seja abençoada. Preciso de saber qual é o impedimento. Para o seu próprio bem, é necessário que a cerimónia se leve a cabo, em público ou em privado, é-me indiferente. Mas devo protegê-la de Alsan. A ela e ao meu filho.
Ha-Din sorriu.
- Consigo saber o que as pessoas sentem, Jack, não o que pensam. Jack ia responder, quando o próprio Alsan veio às ameias.
- Venerável - saudou, com uma inclinação de cabeça. - Jack, estava à tua procura. Tenho de falar contigo.
- Eu tenho de regressar à minha reunião - suspirou Ha-Din. - Vemo-nos à hora da ceia.
Os dois aguardaram que o celeste se fosse embora e permaneceram ainda durante uns segundos em silêncio, sentindo-se um tanto desconfortáveis.
- Queria perguntar-te - disse então Alsan - pelos dragões que foste procurar a Kash-Tar.
- Viram-se envolvidos numa guerra sangrenta contra o líder shek do lugar. Não têm a menor intenção de voltar.
Alsan franziu o sobrolho.
- Mas disseste-lhes para voltarem, não? Porque não te obedeceram?
- Por acaso eram obrigados a obedecer-me? - perguntou Jack, perplexo.
- Claro que sim! Jack, ainda não percebeste? És um dragão. O último. Num futuro não muito distante, quando tivermos acabado com todas as serpentes, tu governarás sobre todos os povos de Idhún.
Jack retrocedeu como se tivesse recebido uma cacetada.
- O quê? Endoideceste?
- Não, és tu que não actuas com sensatez. Quanto tempo mais vais continuar a evitar as tuas responsabilidades?
Jack deixou escapar uma breve gargalhada de incredulidade.
- Foi para isto que arriscámos a vida? Derrotámos um ditador para que tu coloques outro no seu lugar?
- Como podes insinuar que é a mesma coisa? Tu és um dragão e Ashran era a encarnação do Sétimo!
Jack continuava tão atónito que foi incapaz de falar. Alsan aproveitou o seu silêncio para acrescentar:
- Compreendes agora porque é tão importante que deixes de te relacionar com as serpentes? Não é um comportamento digno de quem vai ser o soberano de Idhún! Procurei explicar a Victoria que a sua relação com Kirtash era um erro, que não era apropriada... tinha a esperança de que tu metesses um pouco de juízo na sua cabeça, de que a convencesses a esquecer o shek e a estabelecer de uma vez um laço de verdade. Mas tu é que devias...
- Espera - cortou Jack, com voz estranha. - Disseste "um laço de verdade"?
- Um laço entre os que deveriam ser os futuros imperadores de Idhún, Jack - respondeu Alsan, solene.
Mas Jack não o escutava.
- Já estou a entender - disse apenas, e, dando meia-volta, desatou a correr para dentro do castelo, deixando Alsan com a palavra na boca.
Naquela noite, depois da ceia, outra pessoa se aproximou de Ha-Din para falar com ele.
- Pai Venerável, necessito do teu conselho... se tiveres um momento. Ha-Din deteve-se.
- Podes dizer, filha.
Zaisei ergueu a cabeça e deixou que Ha-Din notasse a sua preocupação, as suas dúvidas e o seu sentimento de culpa.
- Não é certo que um sacerdote se recuse a abençoar uma união, pois não?
- Se não existe um laço...
- Falo do tipo de união em que o laço está acima de qualquer dúvida - cortou Zaisei.
- Suponho - disse Ha-Din, com precaução - que, se o sacerdote se recusa, dever-se-á a outros motivos, não será assim? Que motivos poderiam ser esses? A união não parece... adequada... ou aceitável?
Zaisei negou com a cabeça.
- Os preconceitos do sacerdote não são nunca motivo para não abençoar um laço existente, Pai. Embora o sacerdote não soubesse muito bem a que deuses, exactamente, solicitar a bênção - acrescentou em voz um pouco mais baixa. Ha-Din sorriu ao notar o seu desconcerto. - Mas... o que aconteceria se o sacerdote se sentisse... ofendido de alguma maneira por causa de um dos membros do casal?
- O sacerdote é celeste, sem dúvida compreenderá os motivos da ofensa.
- Poderia ser um tanto difícil pôr-se no lugar de algumas pessoas murmurou Zaisei. - Mas e se não se trata de um dos membros do casal, mas sim de um familiar... que o sacerdote não conhece?
Ha-Din sorriu.
- Vai direita ao assunto, Zaisei. É muito irritante falar deste tema como se se tratasse de um problema teológico. - Baixou a voz. - Sei que Kirtash tem muitas contas
pendentes, assim como o seu pai, mais ainda...
- Não me refiro ao seu pai, mas sim à sua mãe, Venerável. Sobreveio um breve silêncio.
- O que é que Gaedalu te contou? - quis saber Ha-Din. Zaisei inclinou a cabeça.
- Que a mãe de Kirtash envenenou a minha. Sei que não devia importar-me e que, se os seus sentimentos são sinceros, os meus não...
- Espera - deteve-a Ha-Din. - As coisas não foram exactamente assim. Zaisei olhou para ele com os olhos muito abertos.
- Conhecias...? - começou. - Então, a Mãe mentiu-me?
- Não de todo. - Ha-Din inspirou fundo. - Conheci a tua mãe, Zaisei, embora só de vista. Escutámos juntos a primeira profecia. Também a mãe de Kirtash estava lá, mas a ela tive ocasião de conhecer mais a fundo alguns anos mais tarde... depois da segunda profecia e da morte da tua mãe.
- É verdade que a mãe de Kirtash a envenenou para poder ocupar o seu lugar na Sala dos Ouvintes?
- É verdade que Manua quis ocupar o lugar da tua mãe na Sala dos Ouvintes, para escutar uma profecia que, segundo julgava e não estava enganada, falaria do seu filho, a criança que Ashran lhe tinha arrebatado. Mas em nenhum momento teve intenção de fazer mal à tua mãe.
Quando a prenderam, fui vê-la. A sua dor e desorientação eram verdadeiras. Ela não quisera matar Kanei. Só lhe administrara um sonífero, disse-me. A pobre mulher
não tinha tido em conta que o metabolismo dos celestes não é igual ao dos humanos. Nós somos fisicamente mais frágeis e, por isso, algumas coisas não nos afectam do mesmo modo que a eles. A dose que a um humano só teria feito dormir durante várias horas, para a tua mãe acabou por ser letal.
Zaisei deixou-se cair contra a parede, a tremer, com os olhos cheios de lágrimas.
- Ao contrário de Kirtash - prosseguiu Ha-Din -, a sua mãe nunca teve intenção de fazer mal a ninguém E o seu amor por Ashran... pela pessoa que Ashran era antes de se tornar no que já sabemos... era sincero.
Tirei-a do Oráculo e encontrei um lugar afastado para ela, um lugar onde pudesse viver escondida, longe do olhar de Ashran e de um mundo que também não a via com bons olhos. Sei que viveu no anonimato durante muitos anos, até que um dia, sem nenhuma razão aparente, Ashran enviou um grupo de szish para a matarem. Kirtash devia ter na altura, se calculei correctamente, uns quinze ou dezasseis anos.
Zaisei baixou a cabeça.
- Ele sabe? - murmurou.
- Duvido muito - respondeu Ha-Din amavelmente. - Todos vimos em que se tornou essa criança ao longo dos anos. A educação que Ashran lhe deu não teria tido o mesmo êxito se a memória da sua mãe tivesse influído minimamente nele.
Zaisei ficou em silêncio durante bastante tempo. Depois ergueu a cabeça e disse:
- Muito obrigada, Pai. Obrigada por afastares as névoas do meu espírito. Ha-Din sorriu.
- De nada, filha. Então, vais abençoar a sua união? Ela inspirou fundo e ergueu-se quando disse:
- Não há motivo para não o fazer.
- Victoria ficará contente por teres aceitado - comentou Ha-Din, mas Zaisei negou com a cabeça.
- Victoria não sabe de nada. Foi Jack que me pediu que os abençoasse a ambos, a ela e ao shek.
Ha-Din mostrou-se impressionado.
- Esse rapaz - comentou - parece estouvado às vezes, mas no fundo sabe muito bem o que faz. Tem cuidado, Zaisei. Por muito forte e sólido que seja esse laço, muita gente quererá desfazê-lo. Poderias ver-te implicada.
- É um laço - respondeu Zaisei com simplicidade -, e a minha obrigação é testemunhar que existe, se ambos mo pedem.
- Não - replicou Christian. - Não penso fazê-lo.
- Mas, Christian - protestou Jack -, que mal é que tem? Será algo discreto, só estaremos quatro pessoas, e mais ninguém irá saber.
- Não necessito que um dos vossos sacerdotes me diga algo que eu considero evidente - replicou o shek.
Jack respirou fundo, enchendo-se de paciência.
Tinham-se encontrado num bosque próximo da cidade, depois de Jack pedir a Victoria que dissesse a Christian, através do vínculo telepático que ambos mantinham, que queria falar com ele. O shek, na realidade, já se ia embora; tinha atrasado o seu regresso aos Picos de Fogo apenas para se encontrar com Jack naquela noite.
- Alsan não confia nela - explicou. - Desde que fugiu contigo, está convencido de que é uma espécie de espia dos sheks, ou algo assim. Mas em mim... em mim ainda confiam. Se virem que existe um laço verdadeiro entre nós os dois...
- Isso não tem nada a ver comigo. Não precisam da minha autorização para que abençoem os vossos laços, ou lá como isso se chama.
- Tem a ver contigo, sim, Christian. Porque Victoria não quer que a cerimónia da nossa união sirva para encobrir o que sente por ti, que ela seja utilizada para fazer crer ao mundo que não te ama. Não quer continuar a esconder-se; está orgulhosa de te amar, da mesma forma que estará tremendamente orgulhosa do seu bebé quando nascer, quer seja filho de um dragão ou filho de um shek. Há laços, Christian. Há um laço entre ela e eu, e há um laço entre tu e ela. Victoria não quer que um deles seja oficial e o outro, um segredo vergonhoso que tenha de ocultar. Os dois são para ela igualmente importantes, pelo que não irá aceitar que os sacerdotes abençoem a sua união comigo, se não abençoarem também o laço que compartilha contigo.
Christian olhou para ele, pensativo.
- Ela contou-te isso?
- Não, mas sei-o. E também sei porque não me explicou isto. Porque, ou bem que não entendia, e sentia-me ferido e traído, ou entendia-o, e procurava convencer-te a aceitar que abençoassem a vossa união...
- Que é o que estás a fazer agora.
- Ela não quer pôr-te em perigo, mas a mim isso é-me mais ou menos indiferente. Sei que és capaz de correr riscos se for por uma boa razão.
- Tu poderes abençoar a tua união com Victoria é uma boa razão?
- Sei que ela adoraria e tem muita vontade disso; mas não é por este motivo que te peço e também não é por mim. É porque se está a arriscar, Christian, tal como se arriscou quando te tirou dessa cela e fugiu contigo às costas, porque está a defender com unhas e dentes o que sente por ti. E isso pode ser muito prejudicial para ela. Mais do que tu pensas.
Christian reflectiu.
- E não seria pior para ela que se soubesse que, efectivamente, mantém uma relação séria comigo? - perguntou. - É o que toda a gente imagina, não é? Isso é o que horroriza Alsan e os outros. Por isso têm tanto empenho em demonstrar que tu és o seu único parceiro verdadeiro.
- Isso é o que Victoria quer evitar. Nós procurámos protegê-la, tu tnantendo-te afastado dela, eu a fingir estar convencido de que o filho que espera é meu, mas não é isso que ela quer. Não quer que a protejamos, quer decidir por si. E decidiu que não quer continuar a fingir. Ama,te Christian, e não lhe importa o que as pessoas vão dizer. Está disposta a enfrentar as consequências.
Christian não respondeu e Jack esclareceu:
- Também não te estou a pedir que compareças numa cerimónia pública, isso seria uma loucura. Não duvido que Alsan e Gaedalu iriam adorar ter outra oportunidade de te capturar. Estou a falar de algo mais íntimo. Ela e tu, um sacerdote e uma testemunha. A mim não me importa ser essa testemunha, e Zaisei já aceitou oficiar a cerimónia. A Victoria bastará isso. Não necessita que toda a gente saiba o que sentem um pelo outro. Basta-lhe que os deuses o saibam, pelo menos de forma simbólica.
Os olhos de Christian brilharam de maneira estranha.
- Os deuses, ha? - murmurou. Reflectiu um pouco e acrescentou: O último unicórnio ousa enfrentar os Seis, reivindica o seu direito a amar quem entender e exige que reconheçam que se apaixonou por um shek malvado, que além disso é filho de uma encarnação do sétimo deus. Que desgosto para todos os sangues-quentes.
Jack olhou para ele.
- Christian, não estarás a pensar...
O shek não respondeu. Sorria, de forma um tanto sinistra, quando ergueu a cabeça e disse:
- De acordo. Diz-me um dia, uma hora e um lugar, e lá estarei.
Qaydar depositou a urna sobre a mesa e olhou longamente para Alsan.
- Aqui está - disse com gravidade. - As cinzas de Talmannon. O rei de Vanissar abanou a cabeça e franziu o sobrolho.
- É-me difícil acreditar que a Ordem Mágica guardasse semelhante aberração. Claro que, tratando-se de feiticeiros, tudo é possível, não?
- Uma das primeiras coisas que ensinamos aos nossos aprendizes indicou o Arquifeiticeiro - é que tudo no mundo é neutro, nem bom nem mau. Tudo depende da finalidade. Tal como a magia - acrescentou, após uma pausa.
Alsan inclinou a cabeça.
- Estás a querer dizer-me que as cinzas que Ashran utilizou para trazer o sétimo deus de volta ao mundo são algo neutro?
- Sim. Porque nós vamos usar estas mesmas cinzas para contactar com os Seis e comunicar-lhes onde se encontra esse mesmo sétimo deus. Cada feitiço tem o seu contrafeitiço, Majestade. Ou teria, neste caso - acrescentou, com um suspiro -, se tivesse conseguido algum objecto pessoal de Talmannon. Infelizmente, parece que o único que a Ordem conservava foi levado por Ashran. E suspeito que se perdeu com ele, de modo que, no fundo, o que há no interior desta urna não serve para nada. Alsan acariciou o queixo, pensativo.
- Talvez sim - disse. - Poderias invocar o espírito de Talmannon se eu conseguisse um objecto seu?
- Poderia - assentiu Qaydar.
Alsan sorriu. Ia comentar mais alguma coisa, quando a porta se abriu de rompante e Jack entrou.
- Alsan, estás aqui! Estava à tua procura. - Reparou no Arquifeiticeiro e saudou-o com um sorriso. - Quando voltaste, Qaydar? Shail perguntava por ti...
- Jack - cortou Alsan. - Devias bater à porta antes de entrar.
- Eu sei, lamento - disse ele. - Só queria convidar-te para a cerimónia de bênção da união.
Alsan arqueou uma sobrancelha.
- De quem?
Jack sorriu de orelha a orelha.
- Como de quem? Minha e de Victoria, naturalmente. Ha-Din irá oficiá-la. Será amanhã ao meio-dia.
Alsan estremeceu.
- Amanhã! Mas há que organizar...!
- Não há que organizar nada - tranquilizou-o Jack, - Tens meio Vanissar alojado na capital e arredores. Faz correr o boato de que haverá empadas grátis e verás como vêm todos - brincou. - Não, agora a sério, não é a altura apropriada para organizar uma grande festa, mas será uma cerimónia à qual poderá assistir bastante gente. Os Veneráveis estão aqui, até o Arquifeiticeiro poderá estar presente. E demonstraremos a todos que existe um laço entre nós os dois, e isso irá dar-lhes confiança e segurança neste momento de incerteza. Não era isso que querias?
Alsan abanou a cabeça.
- Mas ela fugiu com o shek - recordou-lhe.
- Porque ele também é importante para ela, Alsan, mais do que estás disposto a admitir. Mas isso não retira valor ao que ela sente por mim. Se realmente me ama, não me irá trair nem se voltará contra mim. Isso não te bastaria?
Alsan ainda estava perplexo.
- Julgo que sim. Mas... se Ha-Din aceitou... significa que...
- Significa que realmente acredita que há um sentimento verdadeiro entre os dois - concluiu Qaydar com um sorriso calculado.
- Disse-te que existia um laço, Alsan. E não quiseste acreditar em mim, nem em Victoria, mas a partir de amanhã já não terás mais dúvidas.
Alsan fechou os olhos.
- Graças aos deuses - murmurou. Jack sorriu.
- Sabia que ias adorar a notícia - comentou com algum sarcasmo.
Um a seguir ao outro, os sheks regressaram através da Porta. O último foi Eissesh.
Gerde esperou um pouco mais, mas os szish não apareceram.
- Morreram todos - explicou-lhe Eissesh. Gerde semicerrou os olhos, mas não disse nada. - Achamos que foi a água. Também não nos fez bem, mas para eles foi mortal.
- A água! - repetiu Gerde, exasperada. - São tantas coisas, tantas pequenas coisas!
- Todo este plano é uma loucura - opinou Eissesh. - À primeira vista, parecia uma boa ideia, mas no fundo não é mais do que uma armadilha. Há semanas que poderíamos
estar longe daqui; no entanto, perdes tempo com este projecto monumental e obrigas-nos a todos a esperar. Quando quisermos partir, já será tarde. Pergunto-me se não era essa a intenção do híbrido desde o início.
O resto de sheks ciciaram, mostrando a sua concordância.
- Por acaso estás a insinuar que Kirtash seria capaz de me enganar? perguntou ela com perigosa serenidade.
- Não seria a primeira vez - observou Eissesh.
Gerde ergueu a cabeça e olhou-o fixamente. A grande serpente semicerrou os olhos.
- Podem ir embora - disse a fada por fim, com um suspiro. - Precisam de descansar. Procurarei resolver o problema da água.
Um a um, os sheks levantaram voo e afastaram-se dali. O último, uma vez mais, foi Eissesh.
- Compreendo que seja um belo sonho - disse-lhe, desta vez, somente a ela. - Mas não nos sacrifiques a todos por um sonho. Dá-nos algo real, algo que possa realmente servir-nos.
Gerde sorriu com amargura, mas não respondeu. Eissesh agitou as asas e elevou-se no ar.
- Apesar de tudo - sussurrou na sua mente, antes de partir -, pareceu-me muito bonito.
Gerde não disse nada. Aguardou que os sheks desaparecessem no horizonte e então, com um suspiro, dispôs-se a atravessar a Porta mais uma vez.
Alguém a deteve. Gerde voltou-se e deparou-se com o olhar de Assher.
- Algum problema?
- Deixa-me ir contigo, minha senhora - pediu-lhe o szish. Gerde abanou a cabeça,
- Não é uma boa ideia. Vais ficar aqui, a cuidar de Saissh... como de costume.
- Mas é perigoso passar para o outro lado - insistiu Assher. - Não te faz bem; regressas sempre fraca e confusa. Sei que também podes lá ir com a mente, faze-lo quando entras em transe, e isso não te faz assim tão mal. Por que razão tens de viajar até lá através dessa Porta?
Gerde suspirou, mas colocou as mãos sobre os seus ombros e explicou, pacientemente:
- Há muitos mundos, Assher. Mundos que estão separados uns dos outros por distâncias tão grandes que não poderias sequer imaginá-las. E cada um desses mundos tem vários planos sobrepostos. O plano físico é aquele em que se movem todos os seres materiais: o plano no qual existes tu e tudo o que pode se ver e tocar.
Mas há outros planos. Há o plano espiritual e há até um plano superior a esse... o plano no qual se movem os deuses. Até há muito pouco, os deuses habitavam esse plano. Mas agora desceram ao plano material e manifestam-se como forças poderosas às quais nenhum mortal pode fazer frente.
- Isso eu sei - assentiu Assher. - E entendo.
- Nesse plano, as distâncias entre mundos não existem. Quando entro em transe e parte da minha essência viaja até ao plano das divindades, consigo chegar a qualquer ponto do Universo. Mas apenas ao seu plano imaterial. Não poderia descer ao plano material de outro mundo que não fosse o meu, menos ainda se o meu corpo físico estiver noutra parte.
" Por isso, no estado de transe consigo chegar até ao lugar que se abre do outro lado da minha Porta, mas não consigo fazer nada lá. Para actuar nesse mundo, para o modificar, necessito de chegar fisicamente a ele.
Como já te disse, as distâncias entre os mundos são imensuráveis. Os habitantes de mundos que não possuem magia esforçam-se por construir artefactos que cubram essas distâncias a velocidades impossíveis, mas somos nós, as criaturas dos mundos onde a magia continua viva, que possuímos o segredo de viajar através de todos os universos, de todas as dimensões. No entanto, trata-se de uma técnica complexa e que esteve sempre reservada àqueles cujo conhecimento extraordinário da magia só é equiparável ao seu grande poder. Assim, somos capazes de rasgar o tecido da realidade entre dimensões e viajar instantaneamente de um mundo para outro.
Os sheks, unicórnios e dragões tiveram esse poder em tempos remotos, costumavam viajar, com relativa frequência, ao mundo conhecido como Terra. Os seus habitantes ainda conservam lendas que falam de unicórnios e dragões. Os sheks, pelos vistos, foram bastante mais discretos - sorriu. - Mas os Seis restringiram os caminhos entre ambos os mundos para impedir que uns e outros viajassem até à Terra. É uma longa história - acrescentou, aborrecida de repente -, e, além do mais, isso já não importa, dado que levantei essa proibição assim que Ashran morreu, e os sheks são livres para atravessar a Porta para a Terra, se o desejarem, sem medo de se verem privados dos seus corpos.
- Então, porque não vão? - inquiriu Assher.
- Restam ainda... pequenos assuntos a resolver.
- Como a água - adivinhou Assher.
Gerde riu-se, como se tivesse dito algo muito divertido.
- Algo assim - sorriu. - E agora vai ver o que Saissh está a fazer. Não demorarei a voltar.
E, antes que o szish pudesse detê-la, a fada ergueu-se e, com um salto rápido, voltou a atravessar a Porta interdimensional.
Jack encontrou Victoria no seu quarto, mas não estava sozinha. Junto dela encontrava-se Shail e, deitado na cama, havia um homem com uma venda que lhe cobria parte do rosto. Parecia profundamente adormecido.
Victoria tinha-se sentado ao seu lado e colocado as mãos sobre a cara do doente, sem chegar a tocá-lo. Parecia muito concentrada, e Jack deteve-se à porta, sem saber se podia ou não interrompê-la. Shail viu-o e juntou-se a ele.
- O que está a fazer? - perguntou Jack em voz baixa. - Pensava que nem Qaydar tinha conseguido fazer alguma coisa por esse pobres desgraçados.
Shail encolheu os ombros.
- Qaydar não é um unicórnio.
- Mesmo assim, que tipo de feitiço pode ser impossível de realizar para um Arquifeiticeiro, mas praticável para um unicórnio?
- Não é exactamente um feitiço. O corpo tende a regenerar-se unicamente quando o ferem. Só que, quanto mais complexa é a ferida, mais demora a curar-se e, muitas vezes, o indivíduo não sobrevive ao processo. Mas, se proporcionarmos ao corpo energia suficiente, se o estimularmos para que se regenere mais depressa... teoricamente poderia curar quase qualquer coisa. O problema está em que normalmente os feiticeiros têm um limite de energia mágica. Qaydar incluído. Mas Victoria não tem esse limite, porque a magia que ela transmite não é a sua, é a própria energia do mundo, que é inesgotável. De modo que, se canalizar energia durante o tempo suficiente...
- Poderia fazer com que os olhos dele se regenerassem?
- É um processo lento e trabalhoso, e necessitará de muito tempo. Mas Victoria julga poder fazê-lo.
Jack recordou como Victoria curara Christian depois de este ter recebido uma estocada de Domivat em pleno estômago. Estivera vários dias a transmitir-lhe energia,
até que o corpo do shek sarara por completo.
- Mas há dezenas de afectados - disse Jack. - Precisarias de anos para os curar a todos... se é que consegues realmente curá-los.
- Isso não importa - respondeu a própria Victoria, levantando a cabeça para olhar para ele -, porque tenho muito tempo livre. Alsan não me permite sair daqui. Não viste os guardas no corredor? Estão aí para me vigiar.
Jack ficou petrificado.
- O quê? Não pode fazer isso! Disse-lhe...
- Disseste-lhe que vão abençoar a nossa união - murmurou Victoria, voltando novamente o seu olhar para o cego. - Podias ter-me consultado primeiro.
Jack olhou para ela, pesaroso.
- Vinha dizer-to agora mesmo. Teria adorado ser eu a dizer-te. Quem foi o desbocado?
- Ha-Din veio ver-me há pouco - disse Victoria. - Para abençoar uma união é necessário ter a concordância dos dois e, pelos vistos, esqueceste de lhe dizer qual era a minha opinião a esse respeito.
- Eh... deixo-vos sozinhos - murmurou Shail.
Nenhum dos dois lhe prestou atenção quando saiu do quarto.
- Não me esqueci - respondeu Jack, muito sério; avançou até ela e sentou-se ao seu lado. - Que mais te contou?
- Que a cerimónia está prevista para amanhã. - Victoria ergueu o olhar para ele, preocupada. -Jack, como pudeste fazer-me isto? Tens ideia do que significa para mim...?
- Eu sei, tem calma. - Jack abraçou-a, e por um instante sentiu, também, a energia que fluía através dela. - Tive tudo em conta. Está tudo em ordem.
Victoria negou com a cabeça.
- Não, Jack, nada está em ordem. Não entendes...
Jack pediu-lhe silêncio, colocando a ponta do indicador sobre os seus lábios.
- Entendo tudo perfeitamente. A sério. Diz-me, confias em mim?
- Claro que sim, Jack. Plenamente, sabes disso. Mas...
- Prometo-te que pensei muito na tua situação e nas tuas circunstâncias, e que não te irás arrepender. Por isso, diz-me... se confias em mim... estarias disposta a que amanhã abençoassem a nossa união?
Victoria olhou para ele, cheia de dúvidas. Depois, lentamente, assentiu. Jack sentiu-se tão feliz e aliviado que a abraçou com força e a beijou impulsivamente.
Naquela noite, Jack acordou Victoria quando grande parte da gente do castelo já dormia. Aturdida, a jovem conseguiu murmurar:
- O que se passa? E os olhos?
Jack demorou um instante a compreender que se referia ao aldeão a quem estivera a tentar curar. Tinha passado todo o dia junto a ele e ainda quisera entrar em transe ao seu lado para continuar a transmitir-lhe energia mesmo enquanto dormia, mas Jack não o permitira. O sonho curativo podia durar dias inteiros, e o jovem recordou-lhe que não era boa ideia que se abandonasse daquela maneira com um bebé a caminho. De modo que tinham levado o cego para o quarto do castelo onde o tinham alojado e Victoria adormecera quase em seguida, depois do segundo entardecer. Nem sequer descera para cear.
Jack deixara-a dormir. Precisava de recuperar forças.
- Está tudo bem - sussurrou-lhe ao ouvido. - Tenho de te mostrar uma coisa. Levanta-te e veste-te. Não temos muito tempo.
Victoria obedeceu. Quando já pegava na capa que Jack lhe estendia, deteve-se e olhou para ele, já um pouco mais acordada.
- Espera, não posso ir. Estou prisioneira, lembras-te?
- Disse aos guardas que se fossem embora - sorriu. - Ainda ontem, Alsan dizia-me que devo começar a fazer com que as pessoas me obedeçam. Pareceu-me uma boa altura para começar a praticar.
Victoria ia replicar, mas Jack tomou-lhe a mão e arrastou-a para o corredor.
- Não faças barulho - disse, enquanto percorriam juntos as divisões do castelo. - Será melhor que ninguém saiba que vamos embora.
- Mas onde vamos? - sussurrou ela. Ele dirigiu-lhe um sorriso enigmático.
- Já vais ver.
Quando saíram para o pátio, descobriram que a noite voltava a mostrar-se tão escura como antes.
- É porque Qaydar regressou - explicou Jack em voz baixa. - Deu força ao globo de escuridão dos feiticeiros. Mas fora das muralhas da cidade, longe da zona de influência do feitiço, há quase tanta claridade como se fosse dia.
No pátio havia gente e as muralhas do castelo estavam coroadas de vigias e soldados, mas Jack deslizou, arrastando Victoria atrás de si, até à parte traseira. Ali não havia grande coisa, salvo os estábulos e, um pouco mais adiante, uma estufa abandonada. Victoria não demorou a aperceber-se de que era para lá que Jack a conduzia.
- A estufa da rainha Gainil - sussurrou Jack. - Abandonaram-na um pouco quando morreu e tornou-se um pequeno jardim selvagem, mas creio que servirá.
A porta abriu-se com um ranger quando Jack a empurrou. Avançaram entre plantas altíssimas e flores de uma beleza inebriante, até uma pequena praça, mesmo no centro da estufa, onde havia uma fonte que lançava no ar sonantes jactos de água. Junto a ela, distinguiram dois vultos que os aguardavam. Victoria reconheceu Shail e Zaisei.
- Não quis deixá-la sair sozinha a estas horas - explicou Shail, perante o olhar acusador de Jack - e quase a obriguei a dizer-me onde ia. Lamento se me estou a intrometer... Em compensação, reparei a fonte com a minha magia - acrescentou. - Estava há anos sem funcionar e pareceu-me que...
- Esperem um momento - cortou Victoria. - Alguém quer explicar-me o que se está a passar aqui?
Zaisei mostrou-se desconcertada.
- Como, não sabes? vou abençoar a vossa união... se estiveres de acordo, claro. Oh, devia ter falado contigo primeiro, mas Jack assegurou-me que...
- Mas a cerimónia não era amanhã? - perguntou Victoria, impaciente. Olhou para Jack, julgando entender. - Querias algo mais íntimo? Foi por isso que me trouxeste até aqui?
Jack desviou o olhar, embaraçado.
- Não exactamente...
- Não sabe? - repetiu Zaisei, alarmada.
- Era para ser uma surpresa... - começou Jack, mas calou-se e ergueu a cabeça, alerta.
Victoria também notara. O seu coração deu um salto.
Shail e Zaisei demoraram um pouco mais a perceber que a temperatura tinha descido um pouco. Mas apenas uns instantes depois viram uma elegante figura aproximando-se deles vinda das sombras da estufa.
Jack segurou Victoria pelos ombros e deu-lhe um suave empurrão para que avançasse um pouco.
- Zaisei vai abençoar a tua união com Christian - disse-lhe ao ouvido.
- Se tu estiveres de acordo, claro. E amanhã será a nossa cerimónia. Não te parece que é melhor assim?
- A minha... união com Christian? - repetiu ela; parecia tímida de repente. - E que diz ele a esse respeito?
- Obviamente, se não estivesse de acordo não teria vindo até aqui esta noite - respondeu o próprio Christian, calmamente.
Avançou até ficar mesmo em frente de Victoria. Os dois olharam,se e todos puderam captar a intensa ligação que havia entre ambos, íack retrocedeu um pouco para os deixar a sós. Victoria não sabia o que dizer e Jack teria assegurado que até o próprio shek estava um tanto acanhado.
- E tu, Victoria? - perguntou Zaisei, com delicadeza. - Concordas? Victoria voltou-se para olhar para Jack, insegura.
- Amanhã é a minha vez - recordou-lhe ele com um sorriso. Victoria sorriu por sua vez e foi um sorriso cheio de agradecimento que inundou o coração dele como um bálsamo curativo. Ficou contente por ter acertado e pensou que, afinal de contas, entender Victoria não era assim tão complicado.
A jovem voltara a fixar-se em Christian.
- Sim, concordo - murmurou.
Zaisei aproximou-se deles. Ergueu a cabeça, mas não foi capaz de olhar para o shek, que a intimidava.
- Vamos começar - disse. - Trata-se de uma cerimónia muito simples, mas os preliminares são necessários para que vocês relaxem pouco a pouco e deixem que os vossos verdadeiros sentimentos fluam com facilidade. Dêem as mãos.
Christian pegou nas mãos de Victoria. Ela estremeceu e levantou a cabeça para olhar para ele, com alguma timidez.
- Digam os vossos nomes - convidou-os Zaisei.
- Chamo-me Kirtash - disse Christian. - Algumas pessoas também me chamam Christian.
- Eu sou Victoria dAscolli - respondeu ela. - Também me conhecem pelo nome de Lunnaris.
- Há quanto tempo se conhecem?
Victoria franziu o sobrolho, procurando calcular os anos que tinham passado. Mas Christian adiantou-se:
- Seis anos - respondeu, sereno. Ela olhou para ele, surpreendida.
- Tanto?
- Vi-te pela primeira vez na Suíça - respondeu ele. - Devias ter dez ou onze anos na altura. Estavas de férias com a tua avó... numas termas.
Victoria recordou a sombra que a tinha perseguido pelo bosque quando ela era ainda uma criança.
- Mas mal consegui ver-te na altura - murmurou. "O que foi uma sorte", pensou, sem conseguir evitá-lo. Christian pareceu captar os seus pensamentos, porque lhe dirigiu um ligeiro sorriso.
- Então, quatro anos. O dia em que nos vimos no metro.
Victoria sorriu, emocionada, ao compreender até que ponto aquelas lembranças estavam vívidas na mente de Christian.
- O que aconteceu nesse dia? - perguntou Zaisei.
Victoria engoliu em seco. A celeste pressentiu um rasto de medo no seu coração.
- Na altura éramos inimigos - relatou a jovem. - Ele tinha sido treinado para encontrar e matar todos os membros da Resistência. Especialmente o dragão e o unicórnio.
Fez uma pausa, esperando, talvez, que Christian a substituísse. Mas ele não o fez, de modo que Victoria prosseguiu:
- Nesse dia encontrou-me. Perseguiu-me para me matar, mas consegui escapar. E precisamente quando consegui pôr-me fora do seu alcance, trocámos um olhar. Foi a primeira vez que nos vimos cara a cara. E pensei... não sei o que pensei - concluiu, um pouco inibida. Lembrava-se vagamente de ter pensado que imaginara Kirtash de outra maneira e que havia algo nele que a atraía de forma inquietante e misteriosa, mas aquela sensação, se tivesse sido real, ficara sepultada sob uma onda de medo e de angústia.
- Eu sim, sei o que pensei - disse então Christian a meia-voz. - Pensei: "Que pena que tenha de morrer."
Reinou um silêncio de surpresa.
- Isso... é verdade? - perguntou por fim Victoria timidamente. O shek assentiu.
- Lembro-me disso, porque era a primeira vez que me passava pela mente um pensamento parecido - disse. - Preocupou-me sinceramente. Procurei comportar-me como se nada tivesse acontecido, mas na vez seguinte em que nos vimos, no deserto, não pude evitar voltar a olhar-te... e perguntar-me porquê.
Os dois trocaram um olhar longo, intenso. Zaisei deixou que partilhassem memórias e emoções, que fossem, pouco a pouco, relembrando aqueles primeiros sentimentos da história que ambos compartilhavam. Depois perguntou, amavelmente:
- Há quanto tempo estão juntos... como casal?
Victoria fechou os olhos e voltou a experimentar aquele electrizante primeiro beijo. Recordou o encontro às escondidas, o punhal, o beijo roubado, as súplicas e as ameaças... e, acima de tudo, aquele sentimento que nascera nos dois. Sorriu. Se aquele fora o seu primeiro encontro, não deixara de ser estranho.
Desta vez, foi ela quem respondeu:
- Dois anos, mais ou menos.
- E gostariam de continuar juntos... durante mais tempo?
Victoria voltou a olhar para Christian. Os seus olhos estavam pregados nela, um olhar intenso, inquisitivo. A jovem sentiu que voltava a ser dominada pela timidez, mas recompôs-se e sussurrou:
- Sim.
- Mas deve ter havido maus momentos, não é assim? - perguntou Zaisei com suavidade.
Sim, tinha havido muito maus momentos. Todos eles passaram pela mente de Victoria, todos ao mesmo tempo, como uma camada de nuvens negras de tempestade.
Zaisei captou os seus sentimentos de medo, de dor, de insegurança, e suspirou interiormente, entendendo o difícil que tinha sido para ambos levar aquela relação adiante.
- Sim, houve - reconheceu Victoria.
- E queres continuar com ele, apesar de tudo? Victoria suspirou.
- Sim - disse, desta vez em voz mais alta. Zaisei voltou-se para Christian.
- E tu... Christian? - perguntou.
O shek não respondeu logo. Ficara a olhar para Victoria, fixamente. Os segundos que permaneceu em silêncio pareceram-lhe eternos.
- Sim - disse finalmente.
Zaisei deu um passo atrás e contemplou-os a ambos, olhando-se nos olhos, de mãos dadas. Não foi difícil para ela detectar o sentimento que os unia. Sorriu.
- Existe um laço entre vocês - declarou. - Um laço forte, belo e sincero. E não são só as vossas palavras que dão prova disso, mas também os vossos sentimentos. Sou testemunha perante os deuses de que se amam e suplico aos Seis... aos Sete - corrigiu-se, ruborizando-se; custou-lhe um pouco, no entanto, pronunciar a palavra -, suplico que derramem todas as suas bênçãos sobre os dois, que o vosso laço perdure e que vos encha de felicidade a ambos.
Victoria sorriu e pestanejou, porque os seus olhos tinham-se nublado de emoção. Christian ergueu uma mão para lhe acariciar a face e aproximou-se um pouco mais. O coração da jovem começou a palpitar com mais força, ao pensar que ele ia beijá-la, diante de Jack, de Shail e de Zaisei. Mas Christian voltou-se bruscamente para a celeste e cravou nela um olhar gélido.
- Há um laço entre nós, não é? - perguntou, sem levantar a voz. Zaisei hesitou.
- Isso... é o que acabo de dizer.
Christian sorriu. Puxou Victoria para si e rodeou a sua cintura com um braço.
- Um laço entre um unicórnio e um shek - disse. - Entre a criatura predilecta dos Seis e um filho do Sétimo. Esse laço existe?
Zaisei não foi capaz de responder. O olhar intenso do shek fazia-a tremer de terror.
- Já chega - interveio Jack. - Não acho que seja necessário...
- Existe? - insistiu o shek.
Zaisei ergueu a cabeça, com um intenso arrepio.
- Sim, existe - murmurou.
Christian sorriu. Não foi um sorriso agradável. - bom - disse. - Desafio os teus deuses a provar que não é verdade. A tirarem-me essa parte do coração de Victoria que me pertence.
Reinou um silêncio horrorizado.
- Eu não... não sei... - tartamudeou a pobre Zaisei; quis acrescentar algo mais, mas não foi capaz.
Por fim, Christian pareceu relaxar um pouco.
- Diz isso aos teus deuses, celeste - murmurou. - Diz-lhes que há um laço.
Fechou os olhos e abraçou Victoria, e por um momento pareceu cansado e derrotado. Jack observou como ela rodeava a cintura do shek com os braços e apoiava a cabeça no seu peito, com um suspiro.
- Bem... - murmurou Zaisei. - Julgo que podemos dar por concluída a cerimónia. Parabéns aos dois.
Victoria abriu os olhos.
- Obrigada por abençoares a nossa união, Zaisei - disse. - Sei que não foi fácil para ti.
Contudo, havia nos seus olhos um vestígio de tristeza.
Não muito longe dali, alguém estava a observá-los. Três figuras tinham-se reunido em torno de uma grande bacia com água, em cuja superfície se reflectia a imagem do que estava a acontecer na estufa naquele momento. Alsan contemplava, sombrio, Christian e Victoria, ainda abraçados diante de Zaisei. E escutara cada uma das suas palavras.
- A arrogância desse shek não conhece limites - disse Gaedalu, descontente.
- Autorizaste isto, Mãe Venerável? - perguntou Alsan, tenso.
- Obviamente que não.
- Foi a tua pupila quem oficiou essa cerimónia. E mencionou o sétimo deus, todos nós ouvimos.
- Essa cerimónia foi organizada pelo teu pupilo, majestade - respondeu Gaedalu, secamente. - O dragão que ia conduzir os teus exércitos na batalha contra os sheks. E um dos teus feiticeiros - acrescentou, voltando-se para Qaydar - também está presente. Ek seduziu Zaisei e levou-a a ter ligações com os aliados do Sétimo.
Qaydar não disse nada. Os seus olhos estavam fixos na figura de Victoria, que permanecia junto de Christian.
- Isso devia ser motivo suficiente para os prender a todos como traidores. Aos quatro - murmurou Alsan -, já que, pelos vistos, a fruta podre envenenou o resto da árvore. E aproveitávamos a oportunidade para matar esse maldito shek. Escapou-nos uma vez, mas não voltará a fazê-lo de novo.
- Assim espero - disse Gaedalu, com raiva. - Como é possível que esteja vivo? Como é que Victoria conseguiu salvá-lo?
- Sem dúvida que Gerde a ajudou - replicou Alsan. - Creio que fomos demasiado generosos com eles. Enviarei a guarda para os prender a todos imediatamente.
- Esperem - deteve-o Qaydar. - O Pai ia abençoar amanhã a união de Jack e de Victoria, não ia?
- Zaisei acaba de abençoar outra união... monstruosa e sacrílega... entre Victoria e essa serpente maligna. Depois disto, só posso pensar que a de amanhã não será mais do que uma farsa.
- E se existissem dois laços?
Alsan dirigiu-lhe um olhar inquisitivo.
- Isso é possível?
- Para os celestes não existe nada impossível em matéria de laços, ou, pelo menos, é o que dizem - admitiu Gaedalu, contrafeita.
- A própria Victoria dizia que estava convencida de amar os dois recordou Alsan, pensativo.
- Que seja Ha-Din a confirmá-lo ou a desmenti-lo - propôs Qaydar.
- Não podemos esperar até amanhã. O tempo urge. Alsan franziu o sobrolho, pensativo.
- Esperaremos até amanhã - decidiu por fim. - Se interviermos agora, perderemos Jack definitivamente; mas se aguardarmos pela cerimónia e Ha-Din anunciar que não existe um vínculo verdadeiro, pelo menos da parte dela... ainda poderemos recuperá-lo para a nossa causa.
- E o que acontecerá se o Pai abençoar a sua união? Alsan ficou calado durante bastante tempo.
- A nossa gente notá-lo-á e isso dar-lhes-á coragem para lutar contra o inimigo - murmurou depois. - Depois, se Victoria morrer... na batalha... ou de qualquer outra maneira... todos irão recordá-la como uma heroína. E será mais do que o que merece. É melhor morrer com honra do que viver como uma traidora. Qaydar deu um passo atrás.
- Não posso crer que estejas a sugerir...
Alsan ergueu os olhos escuros para ele. Estes mostravam, apesar de tudo, uma calma insondável.
- Estava apenas a pensar em voz alta, Arquifeiticeiro - murmurou.
- Independentemente do resultado da cerimónia de amanhã - interveio Gaedalu -, ainda no caso de ela não sentir nada por ele... o seu bebé poderia ser filho de Jack.
Correrias o risco de permitir que o último unicórnio morresse... na batalha ou de qualquer outra maneira... sem que tenha transmitido o seu legado? Sacrificarias
também o filho de Jack?
Alsan cravou nela um olhar sereno.
- Correrias o risco de deixá-la dar à luz o filho de um shek? O filho de Kirtash?
Gaedalu estremeceu visivelmente e desviou o olhar.
- Passaram apenas dez dias fora e a sua gravidez avançou de forma desmesurada - acrescentou Alsan. - Talvez já não tenhamos pela frente todo o tempo que pensávamos ter. É provável que a gestação do seu filho continue a ser anormalmente acelerada. Poderia dar à luz dentro de poucos dias. Como podemos saber que o seu bebé não é um deles?
- Jack saberia - murmurou Qaydar. - Tem um estranho sentido para detectar as serpentes; não é à toa que é um dragão.
- Mas seria capaz de mentir para a proteger. Seria bem capaz de nos esconder a verdadeira origem do bebé... tal como nos escondeu isto acrescentou, indicando a cena reflectida pelas águas tranquilas da bacia.
O Arquifeiticeiro meneou a cabeça.
- Não posso permiti-lo. Pelo bem da magia, protegerei essa rapariga...
- Se houvesse mais unicórnios - interrompeu Alsan -, unicórnios puros, que não tivessem nada a ver com os sheks, que levassem a cabo a sua tarefa em vez de namoriscar com o inimigo... seria Victoria igualmente importante para a Ordem Mágica?
Qaydar olhou-o fixamente.
- Tens a certeza de que os deuses atenderão o meu pedido?
- Andam há meses à procura do sétimo deus. Quando lhes dissermos onde se encontra, sentir-se-ão agradecidos...
- Se é que os deuses podem sentir tais coisas pelos mortais - interveio Gaedalu.
- Se for da sua vontade que a magia perdure, atenderão o pedido de Qaydar. E, por outro lado, não creio que lhes agrade saber que a sua eleita passou a engrossar as fileiras do Sétimo. Irão entregar-nos um substituto, alguém que possa outorgar a magia, alguém em quem possamos confiar. Qaydar meneou a cabeça, não muito convencido.
- Pareces muito seguro de que conseguiremos falar com os deuses comentou. - No entanto, eu preferiria não fazer mal a Victoria nem ao seu filho até que tenhamos esclarecido tudo isto. Prometi a Aile que cuidaria dela. Foi a última coisa que me pediu antes de dar a sua vida para nos salvar a todos em Awa.
- Sim - grunhiu Alsan. - Aile sacrificou-se por todos nós e é assim que a sua protegida o paga... traindo-nos.
Qaydar parecia incomodado.
- Talvez não nos tenha traído... - começou, mas Alsan levantou a cabeça para olhar para ele, muito sério, e disse:
- A palavra "Shiskatchegg" diz-te alguma coisa, Arquifeiticeiro? Qaydar semicerrou os olhos e olhou para ele, com cautela, mas não disse palavra.
- É assim que Victoria chama ao anel que brilha no seu dedo - acrescentou Alsarr brevemente. - O anel que Kirtash lhe ofereceu.
O Arquifeiticeiro pareceu horrorizado. Abanou a cabeça.
- Tem de ser um erro... - murmurou, empalidecendo.
- Talvez. Mas, se não for, provaria de uma vez por todas que já não podemos confiar em Victoria... e, além disso, poderia proporcionar-nos a chave para solucionar tudo...
Gaedalu olhava-os, ligeiramente irritada.
- Parto do princípio de que irão explicar-me em que consiste essa chave de que estão a falar.
Alsan sorriu.
- Evidentemente, Mãe Venerável. De facto, gostaria muito de contar com a tua bênção antes de executar o plano que tenho em mente. Um plano que não pode levar-se a cabo sem Victoria... ou, melhor dizendo, sem algo que ela possui. Este plano, por sua vez, poderia trazer consigo a morte definitiva de Kirtash. Porque assim que ele souber que temos Victoria, virá buscá-la.
Qaydar olhou para eles, ainda chocado.
- Estás a tornar-te maquiavélico e tortuoso, majestade - comentou, com secura. - Tens fama de ser um bom estratega, mas, sinceramente, começo a perguntar-me onde termina o génio militar e começa o manipulador.
Alsan não respondeu. Ficara a olhar fixamente para a imagem do grupo da estufa, com um semblante impenetrável.
Jack tinha chamado Christian e Victoria à parte.
- Mas o que se passa contigo? - atirou à cara do shek. - Quase deitas tudo a perder! A que veio isso?
Ele dirigiu-lhe um breve sorriso.
- Tem calma, Jack. Afinal de contas, acabas de assistir a um facto histórico. Uma sacerdotisa dos Seis admitiu oficialmente que um dos seus unicórnios se apaixonou por...
- Cala-te - cortou Jack sem conseguir conter-se. - Agora és tu quem fala de Victoria como se fosse um trofeu. Orgulhas-te por se ter apaixonado por ti, como se fosse mérito teu, quando o que terias de proclamar ao mundo é que tu a amas a ela. Foi isso o que tentaste ensinar-me durante todo este tempo, não foi?
O semblante de Christian ensombrou-se.
- Tens razão - admitiu, após um instante de silêncio. Procurou o olhar de Victoria e disse-lhe, com suavidade: - Desculpa. Ultimamente tenho estado debaixo de muita tensão. Não costumo... Isto não é próprio de mim.
Victoria abanou a cabeça.
- Não faz mal. De certo modo, compreendo-te. Vamos contra toda a gente mantendo viva esta relação. O que houve esta noite era algo íntimo, era uma forma de dizer que estamos preparados para continuar juntos, porque os nossos sentimentos são sinceros; mas, ao mesmo tempo, é um acto de rebeldia contra todos aqueles que procuraram separar-nos. Se não fosse assim - acrescentou com uma certa amargura -, não o faríamos às escondidas, como ladrões.
- No entanto, invejo-vos - sorriu Jack -, porque vieram aqui por vontade própria e porque foi algo privado e pessoal; enquanto que a nossa bênção será uma espécie de acto público, quase como um exame - suspirou. - E fico contente por irmos fazê-lo, mas preferia que as coisas fossem de outra maneira e que o facto de nós nos amarmos, ou não, só dissesse respeito a nós e a mais ninguém.
- Desculpem interromper - interveio então Shail, aproximando-se -, mas deveríamos regressar já ou alguém irá dar pela nossa falta.
Jack, Christian e Victoria entreolharam-se.
- Na realidade, deviam passar o resto da noite juntos - disse Jack. Suponho que ter de vos separar justamente agora será triste para os dois...
- Mas é o mais prudente - cortou Christian, com firmeza, afastando-se suavemente de Victoria. - Para ela, para mim e também para vocês.
Jack sorriu.
- Então despeçam-se - disse. - Estamos à vossa espera à porta da estufa, mas não demorem muito ou vão acabar por nos encontrar.
E não demoraram muito. Apenas uns instantes depois, Victoria juntou-se em silêncio a Jack, Shail e Zaisei. Não disse nada, mas os seus olhos tinham um brilho especial e estavam ligeiramente húmidos. Jack sorriu, rodeou a sua cintura com o braço e beijou-a na testa, com carinho.
- Já se foi embora? - perguntou-lhe em voz baixa. Victoria assentiu, e Jack abanou a cabeça, perplexo.
- Pergunto-me como faz para entrar e sair a seu bel-prazer em sítios como este. Parece um fantasma.
Victoria sorriu, mas não disse nada. Shail voltou-se para eles, um pouco preocupado.
- Não vamos dizer a Alsan, pois não?
- Nem pensar - negou Jack. - Não o entenderia. O olhar de Shail suavizou-se.
- Não - concordou, agarrando na mão de Zaisei. - Não o entenderia.
INVOCAÇÃO
Foi ter com ele como uma aparição surgida do calor abrasador do deserto, caminhando descalça sobre as areias escaldantes como brasas, sem que o menor sinal de calor ou cansaço estragasse a sua fina pele cor de azeitona.
Sussh mal ergueu a cabeça ao vê-la chegar. As serpentes, criaturas de sangue frio, toleravam relativamente bem o calor e por vezes permitiam que os sóis aquecessem os seus corpos. Mas era tão contrário à sua própria essência que normalmente se refugiavam na sombra ao fim de algum tempo. Quando Gerde se aproximou dele, Sussh tinha procurado refúgio à sombra de uma formação rochosa no alto de uma colina. Escondera tão bem o seu enorme corpo atrás das rochas que era praticamente invisível. Contudo, Gerde caminhava direita a ele, sem vacilar. Sussh não se surpreendeu. Nenhuma fada seria capaz de fazer o que ela estava a fazer naquele momento. Qualquer feérico sucumbiria à infinita extensão do deserto, tão longe de qualquer bosque.
Quando Gerde se deteve por fim diante dele, fitaram-se durante uns segundos, o velho shek curtido em mil batalhas, a fada que regressara da morte. Foi ela quem falou primeiro:
- És esquivo, Sussh.
A grande serpente semicerrou os olhos.
- Por acaso esperavas encontrar-me em Kosh?
- Qualquer outro teria esperado encontrar-te em Kosh. Eu, não. Eu sabia que estavas aqui.
Sussh não respondeu. Baixou de novo a cabeça até a pousar sobre o seu corpo, enrolado sobre si mesmo, e contemplou longamente o horizonte. Gerde voltou-se para olhar naquela direcção. Aos seus pés, na base da colina, reunirae um grupo considerável de pessoas. A grande maioria era yan; reconheciam-se pela forma como se moviam, inquietos e desorganizados, correndo de um lado para o outro, incapazes de permanecer inactivos por um só instante. Falavam depressa e gesticulavam muito, e notava-se que estavam impacientes para entrarem em acção.
Mas também havia humanos entre eles, humanos que pareciam ter sido contagiados pelo entusiasmo dos yan, porque falavam aos gritos e impacientavam-se quase tanto como eles. Gerde suspirou para com os seus botões. Quase todas as raças de Idhún tinham-se limitado a implantar-se no território onde se tinham desenvolvido como povos, mas os humanos, não. Os humanos estavam em todo o lado.
Aquele grupo em concreto, humanos e yan, era mais uma multidão caótica de vultos esfarrapados do que um grupo de pessoas. Mas alguns tinham-se reunido em torno de dois homens que permaneciam de pé junto aos respectivos dragões que se tinham deitado a descansar sobre a areia. Os sóis arrancavam reflexos das suas escamas polidas.
- Não suspeitam que os espias?
- São sangues-quentes - respondeu Sussh, como se isso explicasse tudo.
- Eu também sou uma sangue-quente.
- Mas tu sabias que eu estava aqui. Gerde não viu necessidade de responder.
- Acham que não sabemos, mas estamos ao corrente de todos os seus movimentos - prosseguiu o shek. - Estão a reunir todas as tribos do deserto e a recrutar aliados nas cidades limítrofes. Já são suficientes para lançar uma ofensiva contra Kosh, de modo que irão atacar amanhã.
- Tão rápido? Sem aguardarem para traçar um plano?
- Soo yan - recordou-lhe Sussh. Gerde meneou a cabeça.
- Porque te dás ao trabalho de lutar contra eles? Porque insistes em lutar por este pedaço de deserto?
Sussh ciciou com suavidade, mas não respondeu.
- Nós estamos prontos para partir - disse Gerde. - Estou já a alargar a Porta interdimensional para que possa dar início à nossa viagem...
- Ao nosso exílio - rectificou Sussh. Gerde fitou-o.
- É isso que pensas? Que nos expulsam? A serpente brindou-a com um sorriso.
- Por acaso não é assim? Gerde encolheu os ombros.
- Não, não é. Podíamos ficar a lutar até ao fim, mas é uma perda de tempo. Não é lógico e não é racional, Sussh, sabes isso.
- Talvez não. Mas diz-me, feérica, há dragões no lugar para onde pretendes conduzir-nos?
- Não - reconheceu Gerde. - Mas aqui também não.
- Há os artefactos dos sangues-quentes. Uma pálida sombra dos dragões de outrora, um pobre substituto para alimentar o nosso ódio insatisfeito. Mas é melhor do que nada.
- Desejas continuar a lutar? É tudo o que esperas do futuro? Sussh levantou a cabeça e olhou-a fixamente.
- Por acaso não era isso o que tu esperavas de nós? - interrogou-a.
Gerde esboçou um meio sorriso.
- Sabias disso?
Sussh fechou os olhos, cansado.
- Intuía-o.
- Então, se te digo que devemos emigrar para outro mundo, saberás que não tens alternativa.
- Não - disse Sussh. - Nós, os sheks, fomos criados para lutar contra os dragões. Foste tu que não nos deste alternativa. Foi-nos ordenado que lutássemos contra os dragões por toda a eternidade e que eu saiba essa ordem continua em vigor. Se tinhas planeado que deixássemos de lutar algum dia, então devias ter-nos livrado do ódio e do instinto. Ficando para lutar, a defender este pedaço de terra morta, não faço senão obedecer ao mandado que nos foi implantado na alma, nos alvores da nossa história. Serias capaz de extirpar o ódio do nosso sangue?
Gerde sorriu.
- Talvez.
- Pois aí tens a minha resposta. Enquanto desejar lutar contra um dragão, mesmo que seja um sucedâneo, permanecerei onde houver dragões, obedecendo às ordens que o meu deus transmitiu a todos os da nossa raça. Continuarei a lutar porque é o que sempre fiz e porque os sheks foram criados para a guerra. Não se nos pode pedir que vivamos em paz- Quem pretender que o façamos, deverá mudar essa circunstância, porque, caso contrário, irá condenar-nos para sempre ao terrível vazio que implica para uma criatura não poder cumprir a missão para a qual foi criada. A maioria das criaturas pode deixar-se simplesmente viver. Mas nós temos de lutar. Por isso, ao fim e ao cabo, depende de ti.
- Não vais querer estar aqui quando os Seis chegarem.
- Depende de ti - repetiu Sussh. Gerde riu.
- Oh, sim, talvez. Deixa que te poupe trabalho, então. Se não houver inimigos contra os quais lutar, talvez mudes de ideias.
Ergueu a mão, só uma vez, e algo aconteceu. Durante um instante, a paisagem pareceu ondular, como se a própria realidade estremecesse. Momentos depois, todos os membros do grupo rebelde, incluindo os dragões artificiais, explodiram em miríades de partículas e fundiram-se com a areia do deserto. Sussh semicerrou os olhos. Se estava impressionado, não o demonstrou.
- Destruíste um pequeno grupo - observou -, mas restam muitos mais. A fada encolheu os ombros.
- Podia desintegrá-los a todos - admitiu -, mas tenho coisas mais importantes para fazer. E, além disso, não o fiz para os tirar de cima de ti, Sussh. Considero que tu também devias ter coisas mais importantes para fazer. Irás compreendê-lo assim que este lugar receber a visita de alguém muito mais poderoso e perigoso do que um grupo de sangues-quentes. O shek semicerrou os olhos.
- Conheço os rumores acerca da presença que abrasa o deserto.
- São muito mais do que rumores - riu Gerde. - Não tardarás a verificá-lo por ti mesmo. Estou convencida de que a esta altura já detectou o que acabo de fazer e não demorará a aparecer por aqui.
- Por acaso tencionas enfrentá-lo?
- Sabes que não. Por isso estou a abrir uma Porta para a nossa liberdade. Quando tiveres enfrentado um deles, se escapares com vida, irás entender.
- Uma vez mais - disse Sussh -, não tem a ver com o entendimento, mas sim com o instinto. Leva-me a um mundo onde haja dragões ou eíimina o ódio que pulsa no meu ser, e nessa altura seguir-te-ei.
Gerde riu-se outra vez.
- Estás a murchar - observou ele.
E era verdade; a pele de Gerde parecia mais murcha, menos esticada. O brilho de aço dos seus olhos também parecia estar a enfraquecer.
- Vês? - disse ela com simplicidade. - Todos temos de lutar contra coisas que escapam ao nosso controlo.
É o defeito de ter um corpo, não te parece?
Sussh não respondeu. Fechou os olhos, como se estivesse tremendamente cansado. Quando voltou a abri-los, Gerde já tinha desaparecido.
Victoria ergueu o longo vestido azul e contemplou-o com ar crítico. Depois, baixou a vista até à sua cintura e suspirou.
- Esse traje era da minha mãe - ouviu-se uma voz vinda da porta. Usou-o no dia em que os sacerdotes abençoaram a sua união com o meu pai.
Victoria voltou-se para olhar para Alsan, cautelosa. O rei de Vanissar apoiara-se na dobradiça da porta e, pelos vistos, não parecia importar-se com o facto de a jovem ainda ter vestida a túnica leve que costumava usar para dormir.
- Já me tinham dito - respondeu ela. E agradeço-te muito, mas acho que não vou conseguir vesti-lo hoje; é demasiado estreito na cintura.
Alsan encolheu os ombros.
- Teria servido há uns dias - observou. - O que te aconteceu exactamente?
Victoria ficou contente por Alsan parecer por fim disposto a ouvi-la.
- Aproximei-me demasiado da deusa Wina. Como deves saber, a deusa faz crescer as coisas vivas. Todas elas - acrescentou.
Alsan olhou para ela, assombrado.
- E que teria acontecido se chegasses a aproximar-te mais? - quis saber.
Victoria estremeceu.
- Tento não pensar nisso.
Inclinara-se junto de um baú que havia num canto do quarto e examinava o seu conteúdo, tirando umas peças e descartando outras. Quase nada do que havia ali dentro era realmente seu; na sua primeira viagem a Idhún, levara apenas o imprescindível e, quando regressara pela segunda vez, com Christian, também não se dera ao trabalho de fazer a mala. A roupa que costumava usar no seu mundo natal não se adaptava ali.
Levantou ao alto uma túnica branca larga e estudou-a com atenção. Era um pouco deslavada, mas iria servir-lhe. Suspirou para com os seus botões. Não era uma jovem vaidosa, mas naquele dia desejava de coração estar radiante para Jack. Também teria gostado de se poder preparar de forma apropriada para a cerimónia da noite anterior, com Christian, mas havia algo romântico e excitante no facto de se ter realizado de forma tão furtiva. A própria relação que mantinha com ele era assim, construída sobre momentos inesperados, não planificados. E não era a primeira vez que saía do seu quarto em plena noite para se encontrar com ele em segredo, pensou, recordando aqueles primeiros encontros, quando ele ia à sua procura e ela corria ao seu encontro de pijama, sem se preocupar minimamente com o seu aspecto. Naqueles momentos, o aspecto era o que menos importara aos dois.
com Jack era diferente. Não porque ele desse importância à roupa que usava, mas porque ao seu lado tinha a oportunidade de levar em frente uma relação mais convencional. Inclusivamente, Jack mencionara isso alguma vez. "Levar-te ao cinema, convidar-te para jantar num restaurante bonito, oferecer-te rosas no Dia dos Namorados", dissera. Victoria suspirou de novo. Não trocaria os momentos que tinham passado juntos por nada do mundo, mas também não teria dito que não a um encontro assim. E também ela ansiava, por vezes, fazer as coisas ao estilo da Terra. "Usar um vestido bonito no dia do meu casamento", disse para consigo. "Pôr-me bonita para ele."
- Quem me dera ter tido tempo de procurar um vestido em condições - murmurou.
- Importa-te mesmo?
A voz de Alsan sobressaltou-a. Quase se esquecera de que ele estava ali. Voltou-se e viu-o a olhar para ela de uma forma que a inquietou.
- Não especialmente. Quero dizer, gostaria que hoje tudo fosse bonito e perfeito, porque é um dia muito especial para mim. Mas acho que no fundo não importa como correrá, porque continuará a ser um dia que recordarei com carinho para o resto da minha vida.
Alsan demorou a responder.
- Ambos eram quase crianças quando vos acolhemos em Limbhad disse então a meia-voz. - Lembro-me de ter pensado por vezes, quando vos via juntos, que faziam um bonito casal. E, quando se desvendou a vossa verdadeira identidade, pensei que só podia ser um sinal dos deuses: o último dragão e o último unicórnio encarnados em corpos humanos, um corpo masculino e um feminino. A sua vontade era clara: que formassem um casal e tivessem descendência, filhos que herdariam parte da vossa essência. E sonhei com o dia em que veria cumprido esse plano divino; o dia em que destruiríamos as serpentes de uma vez por todas e celebraríamos a liberdade de Idhún com a cerimónia de união mais esplêndida e radiante que alguma vez se vira. Eu ter-te-ia acompanhado com orgulho diante do sacerdote, Victoria. Também teria sido para mim o dia mais feliz da minha vida.
Victoria fitou-o, sem dizer nada.
- E poderia ter esperado - prosseguiu Alsan -, porque vocês são jovens e porque ainda resta muito por fazer. Poderia ter esperado que se solucionasse todo este assunto dos deuses, que derrotássemos primeiro Gerde e os sheks. E depois teríamos culminado o nosso triunfo e o regresso da paz a Idhún com a vossa união. Teria sido tudo perfeito, não achas?
Victoria desviou o olhar e começou a dobrar a roupa para voltar a guardá-la no baú.
- Poderíamos ter aguardado se tivesse podido confiar em ti - prosseguiu Alsan, secamente. - Se não tivesses desafiado a vontade dos deuses mantendo uma relação sacrílega com um shek.
Victoria não se alterou. Continuou a dobrar a roupa, com calma.
- De quem é a criança que esperas, Victoria? - perguntou ele directamente.
Victoria levantou a cabeça para o olhar nos olhos.
- Não sei - respondeu com franqueza. - Pode ser de Jack ou pode ser de Christian. Sei que me odeias por isso, mas a verdade é que não me importa qual dos dois seja o pai.
As unhas de Alsan cravaram-se na guarnição da porta. Foi a sua única manifestação de raiva.
- Pois deveria importar-te. Tens consciência de que talvez dês à luz o neto de Ashran?
Victoria sorriu com uma certa amargura.
- Sim, não deixa de ser irónico - admitiu.
- É muito mais do que irónico. Fazes alguma ideia do que isso significaria para toda a gente?
- Posso imaginar. Ouve, sei que te decepcionei, que falhei todas as expectativas que tinhas para mim. Podes odiar-me por amar um shek, por não representar o papel que tinhas escrito para mim, mas há três coisas que quero que saibas e que, aconteça o que acontecer, tenhas muito claras. A primeira é que lamento realmente não ser o que tu esperavas que fosse. Tens razão, teria sido bonito e perfeito que isto fosse simplesmente uma história de bons e maus, que a rapariga e o rapaz matassem a serpente malvada e salvassem o mundo e depois fossem felizes para sempre. Teria sido tudo infinitamente mais simples e mais agradável. E não imaginas as vezes que desejei que as coisas fossem assim. Mas não são e nunca o foram.
Alsan manteve-se em silêncio. Continuou a olhá-la, quase sem a ver.
- A segunda coisa que quero que saibas - prosseguiu Victoria - é que defenderei o meu filho e o protegerei com a minha vida, quer gostes quer não. Sei que será um alívio para todos se afinal for filho de Jack; mas, se não for, não me vou envergonhar por isso, nem, muito menos, me vou livrar dele. De modo que não te dês ao trabalho de mo pedir.
Alsan semicerrou os olhos, mas continuou em silêncio.
- E por último - concluiu ela -, gostaria que acreditasses em mim quando te digo que amo Jack de coração, que estou sinceramente apaixonada por ele e que nunca lhe menti ou enganei quanto a isso. Sei que tens muito carinho por ele e que receias que eu possa estar a magoá-lo. Esta relação é dolorosa às vezes, é verdade, mas não só para ele. Não estou a brincar com os seus sentimentos nem o faço ter falsas esperanças. É verdade que o amo. Daria a minha vida por ele sem hesitar um só instante.
Alsan esboçou um breve sorriso.
- Não acreditas em mim - compreendeu Victoria. - Daqui a pouco, o Pai Venerável confirmará que os meus sentimentos por Jack são sinceros. Talvez acredites nele, mas não me importa; queria que o ouvisses primeiro dos meus lábios. Queria dizer-to eu.
Alsan trespassou-a com o olhar. Depois, os seus olhos desceram lentamente até às mãos de Victoria e ao anel que brilhava num dos seus dedos.
- Vais usar isso na cerimónia da tua união com Jack? - perguntou-lhe com frieza.
Victoria olhou para o anel. Não tinha intenção de o tirar, mas compreendia que Alsan não o achasse apropriado. Recordou então que, durante a bênção da sua união com Christian, tinha usado o pendente que Jack lhe oferecera e que o shek não lhe tinha dado a menor importância.
- Sim - disse somente.
Alsan não respondeu. Voltou a olhá-la daquela maneira, como se ela não fosse uma pessoa, mas sim uma mancha que havia que limpar porque estragava um chão limpo e impoluto. Victoria susteve o olhar dele, aparentemente calma, embora por dentro sentisse que o muro que os separava se tornava cada vez mais e mais alto. Finalmente, Alsan desencostou-se da porta e deu meia-volta para se ir embora.
- Lamento - disse Victoria, e era sincera. Lamentava por Alsan, embora não se arrependesse das decisões que tinha tomado.
O rei de Vanissar inclinou a cabeça.
- Tomarei providências para que procurem um traje que te sirva disse num tom impessoal, antes de abandonar o quarto.
A cerimónia teria lugar no pátio do castelo, no mesmo lugar onde, dias antes, Alsan se submetera à prova do Triplo Plenilúnio. Tinham voltado a dispor os assentos quase da mesma forma, mas, em vez do trono com correntes, tinham levado até ali um pequeno altar hexagonal. O chão estava atapetado de flores brancas, que tinham crescido ali de forma espontânea, e pequenas faíscas coloridas, como pirilampos a dançar, animavam o ambiente. Aqueles pormenores tinham sido um pequeno presente de Shail.
Victoria ergueu o olhar para contemplar os sóis, pálidos discos que se viam como que através de uma espessa camada de névoa. No entanto, apesar do globo de escuridão que ainda protegia a cidade, havia tanta luz como num dia limpo... porque não era a luz dos sóis que os iluminava agora.
Esforçou-se por afastar aquelas preocupações da sua mente. Voltou-se para Jack e sorriu-lhe.
Estavam ainda debaixo do pórtico de entrada, sem se atreverem a sair para o pátio. Havia muita gente lá fora: personagens importantes, como Gaedalu, Qaydar, Covan e alguns outros cavaleiros e nobres de Vanissar. Também estavam ali os seus amigos: Alsan, Shail e Zaisei. E muitas outras pessoas que não conheciam.
- Para quem avisou com tão pouca antecedência - murmurou Jack, subitamente nervoso -, reuniu-se muita gente, não achas?
- Hurra pelo nosso grande poder de convocação - respondeu ela, desanimada. Jack olhou para ela e apercebeu-se de que estava a tremer.
- Estás assustada? Não devias estar. Afinal de contas, tens mais prática nisto do que eu - brincou.
- O de ontem à noite não se parecia em nada com o de hoje - replicou Victoria. - E, além disso, continua a ser algo novo para mim. – Olhou para ele e sorriu. - É a primeira vez que faço isto contigo. Quero que saibas... - engoliu em seco um pouco ruborizada - que estou muito, muito ansiosa.
- Eu também - assegurou Jack, emocionado. - Embora tivesse preferido algo mais íntimo.
- Também eu - suspirou Victoria -, mas não podemos decepcioná-los agora, pois não?
Jack sorriu outra vez.
- Há algo que tenho de te dizer - sussurrou. - Não é muito importante, mas queria dizer-te.
- De que se trata?
- Ontem à noite, durante a cerimónia de bênção da união com Christian... disseste o teu nome. O teu nome completo, quero dizer. O nome que tinhas na Terra. Julgo que já o sabia porque devo tê-lo visto escrito em algum dos teus livros da escola, mas não tinha prestado atenção e não me lembrava. És Victoria dAscolli. Para mim, sempre tinhas sido simplesmente Victoria.
Ela sorriu.
- Onde queres chegar? Jack olhou-a com seriedade.
- Sabes por acaso como eu me chamo? Sabes o meu nome completo? Victoria abriu a boca para responder, mas depois fechou-a e negou com a cabeça. Jack sorriu outra vez.
- Chamo-me Jakob Redfield. - Riu-se ao ver a cara de desconcerto que ela fez. - Jakob é um nome dinamarquês, foi a minha mãe quem mo pôs. Mas o meu pai era inglês e costumava chamar-me, simplesmente, Jack.
- Julgava que Jack era o diminutivo de John - murmurou ela, ainda consternada.
- No meu caso, não. Na realidade, o meu pai devia ter-me chamado Jake, mas gostava mais de Jack.
- Jakob Redfield - repetiu Victoria em voz baixa. - É esquisito. É como se me estivesses a falar de outra pessoa.
Jack sorriu de orelha a orelha.
- A sério? Enfim, sei que isto não é exactamente um casamento, mas é muito parecido, e além disso vamos ter um bebé... de modo que, logicamente, achei que deverias pelo menos saber o meu nome... antes de o pronunciar diante do sacerdote e teres uma surpresa.
- Talvez no fundo não seja assim tão importante - opinou Victoria. Afinal de contas... é apenas um nome, não? - Riu-se e lembrou-se de Christian. Perguntou-se, de súbito, onde estaria, se já teria partido ou se ficara por perto para observar a cerimónia escondido nas sombras. - Por outro lado - acrescentou -, embora o meu nome oficial seja Victoria dAscolli, na realidade não era esse o apelido dos meus pais. Fui adoptada, lembras-te?
- Victoria dAscolli soa muito bem - comentou Jack. - É elegante.
- A minha avó sempre foi muito elegante - sorriu Victoria. - Quem me dera que estivesse aqui hoje - acrescentou com a voz toldada pela emoção.
Jack agarrou-lhe nas mãos para a consolar. Victoria engoliu em seco, pestanejou e abanou a cabeça. O rapaz contemplou-a com carinho.
- Estás lindíssima hoje.
Victoria corou e levantou um pouco a bainha do vestido, que se ajustava mesmo abaixo do peito, deixando o ventre e a cintura livres. Era branco, mas apenas a camada inferior; véus ligeiros de tule verde caíam pelas suas costas e da sua cintura. Delicados bordados em prata adornavam a bainha da túnica.
Jack tomou-lhe o queixo e fê-la levantar o rosto para ele. Também a tinham penteado com esmero, afastando-lhe o cabelo da cara e deixando-o solto sobre os ombros. O jovem não podia deixar de olhar para ela.
Durante um instante, todo o universo pareceu parar à sua volta. Ficaram presos nos olhos um do outro, saboreando toda uma constelação de sensações.
- Amo-te - disse Jack simplesmente, beijando-a com ternura. O breve suspiro de Victoria ficou sufocado naquele beijo.
- Eu também te amo - sussurrou ela, a tremer, apoiando a cabeça no seu ombro.
Jack adiou um pouco mais o instante da separação. Quando se afastou dela, com delicadeza, ainda sorria.
- Então que toda a gente saiba - declarou. - Estás preparada? Victoria assentiu. Jack deslizou uma mão até ao seu ventre.
- E tu, pequenino? Pronto?
Um enérgico pontapé pareceu ser a resposta. Os dois sorriram.
Jack deu a mão a Victoria. Ambos inspiraram profundamente e saíram para o pátio. Quando se aperceberam da sua presença, todos se voltaram para os olhar.
Jack apertou com força a mão de Victoria e ergueu a cabeça com decisão. Juntos percorreram a distância que os separava do altar. Ali, aguardava-os Ha-Din.
- Bem-vindos - sorriu o Pai Venerável. - Fico feliz por vos ver juntos outra vez.
- Obrigado, Pai - respondeu Jack. Victoria corroborou as suas palavras com uma inclinação de cabeça.
- A cerimónia da bênção da união - prosseguiu Ha-Din - é motivo de alegria para o casal e seus próximos. E uma forma de dizer a todo o mundo que sentem algo um pelo outro, um vínculo sólido e verdadeiro, que desejam que seja duradouro e que traga a ambos paz e felicidade. O vínculo é parte de vós. Nasce do coração de cada pessoa e une-a àqueles que são importantes para ela. Os vínculos são algo íntimo e privado, os sacerdotes não podem criá-los nem desfazê-los, apenas testemunhar que existem... ou não.
" O vosso caso é especial. Que se saiba, nunca antes tinha existido um vínculo desta natureza entre um dragão e um unicórnio. Mas também é verdade que nunca antes houve dragões e unicórnios com corpos e almas humanos. Por essa razão, a vossa relação é tão importante para todo o mundo. Vocês são o símbolo de Idhún. São o último dragão e o último unicórnio. E os deuses deram-vos corpos humanos que podem procriar.
O rosto de Victoria ensombrara-se. Não era aquilo que esperava. Dirigiu um olhar fugaz a Jack e viu que ele também tinha ficado sério.
- Apesar de tudo isso - continuou o Pai -, esta continua a ser uma cerimónia de bênção da união. Uma cerimónia que celebra um vínculo privado e pessoal que não devia dizer respeito a mais ninguém. Por isso, antes de continuar, necessito de saber se vieram por vontade própria, porque o desejam de coração e não porque vos pressionaram ou por acharem que é o vosso dever.
Houve murmúrios entre o público. Ha-Din sorriu ao perceber o desconcerto dos jovens. Também soube que Alsan o fulminava com o olhar, mas não se alterou.
Victoria foi a primeira a falar.
- Eu vim porque o desejo - disse. - Talvez tivesse preferido que a cerimónia fosse feita de outra maneira, mas não estou contra que se celebre. Quero fazer isto. De todo o coração.
Apertou com força a mão de Jack, que sorriu.
- Eu também vim por vontade própria - disse. Ha-Din assentiu com placidez.
- Não esperava menos dos dois. Agora é a vossa vez: digam os vossos nomes.
- O meu nome humano é Victoria dAscolli - disse Victoria. - O meu nome de unicórnio é Lunnaris.
Jack olhou-a aprovadoramente. Perguntou-se se Victoria pensara naquela fórmula depois da sua união com Christian ou se lhe ocorrera naquele preciso momento de forma espontânea. De qualquer modo, agradou-lhe.
- O meu nome de humano é Jakob Redfield, ou Jack, para os amigos disse. - O meu nome de dragão é Yandrak.
Ha-Din sorriu.
- Falem da vossa relação e dos vossos sentimentos - convidou-os. Foi Jack que começou. Relembrou o momento em que conhecera Victoria, recordou como começara a sentir-se atraído por ela ao chegar à adolescência. Não deu pormenores, porque havia muita gente presente, gente estranha; mas Ha-Din não precisava deles. Bastava que ele recordasse cada momento, embora não o expressasse em voz alta. Porque as lembranças despertavam no seu íntimo as emoções mais puras e sinceras, porque o faziam esquecer-se do que sucedia à sua volta para pensar somente em Victoria.
Ela, por sua vez, evocou o momento em que se tinham reencontrado, depois de dois anos separados. Ambos riram ao lembrar-se de si mesmos à porta do colégio de Victoria, felizes por voltarem a ver-se, mas demasiado tímidos para o demonstrarem.
Depois, calaram-se momentaneamente. Em silêncio, recordaram o seu primeiro beijo, os seus primeiros instantes juntos, cada segundo que pertencera apenas a eles. Victoria ruborizou-se ligeiramente ao evocar algumas cenas maisíntimas. Jack engoliu em seco, um tanto acanhado. Ha-Din sorriu ao perceber os sentimentos de ambos. Era óbvio que não iam falar em público daqueles momentos privados, mas não era preciso. O celeste captava, com total clareza, a ternura e a paixão que emanavam deles.
- Uma relação bela e sincera - comentou, descendo-os a ambos da nuvem. - E os maus momentos?
Victoria fechou os olhos ao recordar as discussões, os ciúmes e as suspeitas. Jack inspirou fundo e reviveu a dor de pensar que Victoria o abandonaria a qualquer momento para se ir embora com o shek.
- A nossa é, às vezes, uma relação difícil - reconheceu Victoria. Não disse mais nada. Sobreveio um breve silêncio, enquanto ambos evocavam alguns daqueles momentos dolorosos. Ha-Din semicerrou os olhos para captar com maior clareza os sentimentos de dor, receio, medo e insegurança. Claro que era uma relação difícil. Victoria também estava apaixonada por outro homem, mas Jack não tinha a menor intenção de renunciar a ela.
Ha-Din valorizou tudo aquilo em conjunto. Valorizou os bons momentos e os maus, os sentimentos positivos e os negativos. E depois, lentamente, perguntou.
- Apesar de tudo, querem continuar juntos?
- Sim - respondeu Jack sem hesitar.
- Sim - disse Victoria decidida.
Ha-Din deu um passo atrás e contemplou-os. Sim, ali estava o laço. Vira-o muitas vezes, quando estavam os dois juntos. Um fino cordão de energia que os unia e que cintilava como se estivesse entrançado com raios dos três sóis. Um vínculo sólido.
- Existe um laço entre vocês - anunciou por fim. - Um laço forte, belo e sincero. E não são só as vossas palavras que o demonstram, mas também os vossos sentimentos. Sou testemunha diante dos deuses de que se amam, e suplico aos Seis que derramem todas as suas bênçãos sobre os dois, que o vosso laço perdure e que vos encha de felicidade a ambos.
Victoria sorriu, emocionada, enquanto o público explodia em vivas aplausos e desejos de felicidade para o casal. Jack beijou-a com intensidade; não sabia se aquilo era ou não apropriado naquela cerimónia, mas não lhe importava.
Ainda nos braços de Jack, Victoria notou, por cima do seu ombro, uma sombra fugaz nas ameias. Foi apenas um instante e em seguida desapareceu, mas não conseguiu enganá-la. Sorrindo para consigo, Victoria compreendeu que Christian não conseguira resistir à tentação de assistir... à sua maneira. Agradeceu-lhe mentalmente, mas não obteve resposta. Não se surpreendeu. O shek sabia ser discreto quando era necessário, e sabia que aquele momento, aquele dia, era só de Jack e de Victoria.
De imediato, viram-se rodeados de gente que se aproximava para os felicitar. Victoria, algo aturdida, permaneceu junto de Jack, enquanto murmurava agradecimentos e procurava localizar todas as caras. Teve a sensação de que havia menos gente do que parecera no início. "Demasiados desconhecidos", pensou, perturbada, e sentiu falta dos que não estavam ali: Christian, Kimara, Allegra... do Alsan que conhecera tempos antes em Limbhad. Ergueu a cabeça e procurou-o entre a multidão. Viu-o um pouco afastado, olhando-a fixamente. O seu rosto era uma máscara inexpressiva, mas fulminava-a com o olhar, e Victoria teve pena de não ver o menor vestígio de carinho nos seus olhos. Perguntou-se, inquieta, se aquilo era obra da bracelete que usava ou se, pelo contrário, tinha cometido um crime assim tão horrível para que ele não conseguisse perdoá-la, para que a rejeitasse até esse ponto. Tal como Shail, Alsan tinha sido quase como o seu irmão mais velho nos tempos da Resistência. Tinham mudado todos assim tanto?
Viu Shail um pouco mais adiante. Estava junto de Zaisei, dizendo-lhe algo ao ouvido. Ela ruborizara-se. Descobriu Gaedalu a olhá-los quase com a mesma cara com que Alsan estivera a observá-la. Shail deve tê-lo percebido, porque se afastou um pouco de Zaisei. Foi então que os seus olhares se cruzaram, e o feiticeiro dirigiu-lhe um cumprimento e um sorriso caloroso que fez com que Victoria se sentisse um pouco melhor.
Jack tomou-lhe a mão e arrastou-a para longe do grupo de gente. Procurou levá-la até ao pórtico, de novo, mas Victoria deteve-se e olhou em redor, intrigada.
- O que se passa? - perguntou ele, inquieto.
- Não notas que há menos luz? Como se, de repente, o feitiço tivesse mais força.
Por um instante, a esperança de que Irial se tivesse retirado ardeu nos seus corações. Mas bastou-lhes erguer a cabeça para o céu para que fosse substituída por um profundo horror.
Sobre as suas cabeças aparecera, subitamente, uma enorme espiral de nuvens que girava lentamente, cobrindo os sóis por completo. Mesmo através do conjuro de escuridão que protegia o castelo, podiam ver claramente o brilho sobrenatural emitido por aquele torvelinho, como se houvesse centenas de relâmpagos a entrançar-se no seu interior; a cor daquela massa nebulosa, de um violáceo intenso, tingiu por um momento os seus aterrados rostos, dando-lhes um aspecto fantasmagórico. Subitamente, o céu inteiro emitiu um horrível estalido e levantou-se um vento tempestuoso que fez voar a roupa dos presentes e fez gritar algumas mulheres. Todos ficaram a olhar para o céu, horrorizados, mas uma nova rajada de ar derrubou algumas cadeiras e fez os mais leves perder o equilíbrio. Jack reagiu:
- Para dentro!! - gritou. - Todos para dentro!!
Instalou-se o pânico. As pessoas começaram a gritar e correram em debandada, algumas para a porta principal do castelo, em direcção à cidade; outras, para o pórtico de acesso ao edifício. Ninguém entendia o que estava a acontecer nem sabia o que era aquela estranha tempestade, mas a sua simples presença enchia os corações de uma angústia que nunca tinham experimentado e que não sabiam explicar.
Jack entendia o porquê dessa sensação: o horror perante o grandioso, o imensurável, o terrível fascínio de se saber, de repente, nada mais do que um grão de pó num universo demasiado grande para ter consciência da sua existência.
"Mas até mesmo os grãos de pó têm direito a existir", disse o jovem para consigo, com firmeza. Procurou agarrar em Victoria pela mão para a levar dali, mas não conseguiu tocar-lhe; a rapariga tinha-se carregado de energia de forma tão rápida e brutal que o seu olhar parecia uma galáxia de estrelas em miniatura. De novo, um manto de faíscas cintilava à sua volta.
- O báculo! - gritou Jack. - Onde tens o báculo?
- Não esperavas que o trouxesse no dia do meu casamento! - conseguiu ela dizer.
- O que se passa? O que está a acontecer? - gritou Alsan, que acabava de chegar junto deles.
- Há que levar toda a gente para debaixo da terra! - disse Jack. – Para uma cave, para as masmorras, onde quer que seja!
- Mas há que tentar detê-lo!
- Não se pode deter Yohavir, é um deus! O que há a fazer é abrigarmos!
Alsan olhou-os, aturdido.
- Mas não podes sair a fugir! - censurou-o. - Temos de tirar toda a gente daqui!
Jack bufou, exasperado.
- Olha como está Victoria! Tenho de ir com ela buscar o báculo, é a única coisa que pode ajudá-la agora!
- Eu irei com ela - disse então a voz de Qaydar, perto deles. - Já sei por experiência que a minha magia não será muito útil contra isto - acrescentou, indicando o torvelinho que se estava a formar sobre as suas cabeças.
- Mas... - começou Jack; Alsan interrompeu-o, puxando-o e levando-o de rastos.
- Chega de conversa. Deixo-a nas tuas mãos, Arquifeiticeiro.
Não escapou a Victoria o olhar de entendimento que Alsan e Qaydar trocaram, mas ela não teve tempo de dizer nada. Uma rajada de vento obrigou-a a tapar o rosto com um braço e, quando conseguiu voltar a olhar, Alsan e Jack já se afastavam de novo para o centro do pátio, desafiando o vendaval.
- Vamos! - gritou Qaydar, entrando no castelo.
Victoria não podia perder mais tempo. Seguiu-o, sentindo que o seu coração palpitava a toda a velocidade, bombeando energia para cada célula do seu corpo. Sabia que estava prestes a rebentar e que não aguentaria muito mais. E temia que o seu bebé também não resistisse.
Os dois subiram a toda a velocidade pela escada em caracol até ao quarto de Victoria. A jovem precipitou-se sobre o báculo de Ayshel e, assim que o tomou nas suas mãos, sentiu que o objecto absorvia aquela energia, descarregando-a e aliviando-a.
- Afasta-te, Qaydar - murmurou, estremecendo ao ver que a ponta do báculo começava a brilhar intensamente.
O Arquifeiticeiro obedeceu. Contemplou, fascinado, como ela se arrastava até à janela e ficava ali, um momento, enquanto a energia fluía através dela para o báculo e se acumulava na pedra que o rematava. Finalmente, Victoria libertou toda aquela energia. Um poderoso raio brotou do báculo e saiu disparado pela janela, perdendo-se no firmamento.
A jovem deixou-se escorregar para o chão, exausta, mas ainda agarrada ao báculo. Qaydar inclinou-se junto dela.
- Estás bem? - perguntou-lhe, com amabilidade.
- Acho... acho que sim - arquejou Victoria. - Mas estou muito cansada, e...
Deslizou uma mão para o seu ventre, inquieta. Esperava que o bebé estivesse bem.
Quando ergueu a cabeça de novo, surpreendeu-se ao ver o rosto do Arquifeiticeiro muito perto dela. E olhava-a de uma forma estranha.
- Qaydar...?
- Lamento, Victoria - murmurou ele.
Levantou uma mão e estendeu-a para ela. Victoria, alarmada, viu que a sua palma brilhava com um sinistro brilho azulado e retrocedeu, mas o Arquifeiticeiro foi mais rápido. Assim que a mão dele tocou a sua testa, Victoria sentiu que a consciência se lhe apagava, como uma vela extinta por um sopro.
Christian assistira à cerimónia da união do seu esconderijo, no alto das muralhas, mas apressara-se a refugiar-se numa das torres mal começara o furacão. Agora observava de uma janela as pessoas no pátio, correndo de um lado para outro, como pequenos insectos a fugir de uma tempestade. O cone do tornado descia lentamente em direcção à terra, e Christian viu como sugava os que ainda não tinha conseguido agarrar-se a nada, levantando-os do chão e arrastando-os pelo ar, no meio de um caos de gritos e espemeios. Ele mesmo, apesar de estar protegido atrás da grossa parede de pedra, sentia que a pressão dificultava a sua respiração. Agarrou-se com todas as suas forças ao peitoril da janela antes de se atrever a olhar de novo.
Descobriu Alsan e Jack lá em baixo; viu Shail a procurar abrigar Zaisei e os Veneráveis; mas não viu Victoria, e isso não lhe pareceu um bom sinal. Sentiu-a, contudo, do outro lado do anel, e deixou que a sua percepção o guiasse pelos corredores do castelo, agora desertos. Através de uma janela, viu o raio de energia descarregado pelo báculo, e acelerou o passo.
Mas quando chegou ao quarto de Jack e Victoria, encontrou-o vazio; só o báculo permanecia ali, no chão, abandonado de qualquer maneira.
Jack procurou abrir caminho através da maré humana que avançava pelas caves do castelo. Esticava o pescoço em busca de Alsan, mas não o viu em lado nenhum. Deparou-se com Shail à porta.
- Viste Alsan? - perguntou-lhe.
- Não - respondeu este. - Talvez esteja ao fundo, com os primeiros que entraram. Porque não vais ver?
- Estou à espera de Victoria e de Qaydar - disse Jack, não podendo evitar que a preocupação que sentia transparecesse no seu tom de voz. Já deviam ter descido.
Naquele momento, Ha-Din e Zaisei juntaram-se a eles.
- Alguém viu a Mãe Venerável? - perguntou Ha-Din, preocupado. Ambos negaram com a cabeça.
- Anda, eu ajudo-te a procurá-la - ofereceu-se Shail, agarrando na mão de Zaisei.
- Eu vou buscar Victoria - anunciou Jack. - Temos Yohavir mesmo em cima; já devia estar resguardada, como os outros.
Ha-Din reteve-o quando já se ia embora.
- Tem cuidado, Jack - disse-lhe. - Talvez Yohavir não seja a única coisa perigosa que aqui esteja hoje.
O jovem fitou-o, assentiu e saiu disparado em direcção às escadas.
Subiu os degraus dois a dois, desviando-se dos que desciam para as caves do castelo, fugindo do monstruoso tornado que gemia e rugia por cima das suas cabeças. Jack já passara por isso tempos antes; na altura, a sua situação tinha sido muito mais precária, porque a Torre de Kazlunn erguia-se junto a uma falésia, e não só tinham tido de fazer frente à fúria do vento, como também à das águas. O castelo de Alsan, contudo, parecia mais sólido... e, o mais importante, não tinha todo um oceano de ondas a rugir aos seus pés.
No entanto, Jack não pôde evitar sentir-se inquieto. Sabia que as varandas podiam cair e que os telhados podiam sair a voar. Sabia que passar junto a uma janela aberta seria um verdadeiro desafio. Por tudo isso, caminhou com cuidado pelos corredores da morada dos reis de Vanissar, colado às paredes, dando graças por o seu quarto não ser num piso superior.
Contudo, quando chegou, não encontrou ali nem Victoria nem Qaydar. Correu para o interior da divisão e por pouco não pegou no báculo caído; mas parou a tempo, recordando-se de que ele já não era um semifeiticeiro, mas sim um feiticeiro completo e que o artefacto absorveria a sua energia, em vez de permitir que o segurasse. Deixou o báculo onde estava e tirou Domivat do lugar onde a tinha guardado, perguntando-se, outra vez, por que diabo confiava tanto naquela espada, que nunca poderia protegê-lo de um deus. Recordou as palavras de Ha-Din, abanou a cabeça e ajustou-a às costas, por via das dúvidas.
Subitamente, o seu instinto avisou-o de que havia alguém atrás dele e voltou-se com rapidez, levando a mão ao punho da espada. Deparou-se com os olhos azuis de Christian.
- Onde está Victoria? - foi a primeira coisa que lhe disse, assim que conseguiu controlar o impulso de tirar Domivat da bainha.
- Eu ia fazer-te a mesma pergunta - respondeu ele.
Apesar da sua calma aparente, Jack reparou que estava muito preocupado. Tentou tranquilizar-se e pensar com frieza.
- Veio buscar o báculo - disse. Christian franziu o sobrolho.
- Utilizou-o para descarregar energia há apenas uns momentos - disse. - Mas já não estava quando cheguei. Não o teria abandonado nestas circunstâncias, pois não? - Jack negou com a cabeça. - Sabes se havia alguém com ela?
- Qaydar - disse Jack -, mas ele sabia que estaríamos à espera deles lá em ...
- O Arquifeiticeiro? - cortou Christian, e a ruga da sua testa tornou-se mais profunda. - Deixaste-a sozinha com ele?
Jack detectou o alarme subjacente às suas palavras.
- Não via motivos para desconfiar dele! Acolheu-nos na Torre durante meses, cuidou de Victoria quando estava doente...
- Victoria é um unicórnio, Jack - interrompeu Christian, com impaciência. - O último que resta. Já devias ter aprendido que há muita gente disposta a utilizá-la e a obrigá-la a entregar os seus dons. E devias ter suspeitado que, assim que Qaydar se apercebesse de que ela não iria seguir as suas normas, deixaria de ser simpático.
Jack respirou fundo para se acalmar. Não era o melhor momento para começar a discutir.
- Falaremos depois das suas motivações. Se Qaydar a levou, quero saber para onde foi. Consegues captá-la do outro lado do anel?
- Sim - respondeu ele. - Não está muito longe... ainda.
- Então, de que é que estamos à espera?
- Bebe.
Victoria abriu um pouco a boca, aturdida, mas voltou a fechá-la.
- Bebe - insistiu a voz na sua cabeça.
Victoria entreabriu os lábios e sentiu algo frio a apoiar-se neles e um líquido a deslizar na sua boca. Abanou a cabeça com um gemido e tossiu violentamente, mas já era tarde: a beberagem descia pela sua garganta. Tossiu ainda mais até que acordou completamente e abriu os olhos. A luz feriu as suas pupilas e fê-la pestanejar.
Distinguiu três figuras inclinadas sobre ela. Demorou uns instantes a reconhecer Alsan, Qaydar e Gaedalu. Procurou erguer-se, mas descobriu que um par de grilhetas a mantinha acorrentada à parede.
- O que me fizeram? - conseguiu dizer, com uma nota de pânico na voz; viu que tinha a boca pastosa. Uma fraqueza esgotante ia-se apoderando do seu corpo, obrigando-a a deixar cair a cabeça, porque lhe pesava demasiado.
- Assegurámo-nos de que não consegues mexer-te - disse Gaedalu. - Tratando-se de uma criatura como tu, nunca se sabe.
Victoria fechou os olhos por um instante e tentou raciocinar. Quando os abriu de novo, cravou um olhar acusador em Alsan.
- O que... significa isto? - esforçou-se por dizer.
O rei de Vanissar inclinou a cabeça, com um suspiro pesaroso.
- Os deuses sabem que confiava em ti, que te queria como a uma irmã
- disse. - Mas a honra e o dever têm de estar acima dos sentimentos. É a única lição que nunca aprendeste... a mais importante.
Victoria olhou-o sem entender. Acabava de demonstrar ao mundo que os seus sentimentos por Jack eram sinceros. Não era isso o que Alsan quisera desde o início?
Gaedalu não conseguiu conter-se por mais tempo.
- Tiveste a ousadia de fazer com que abençoassem a tua abominável união com um shek. com o filho de Ashran. Tu, que além disso admites que Ashran era o sétimo deus. A tua alma foi corrompida por ele e pelas suas criaturas, por isso os deuses vieram buscar-te hoje.
Victoria esboçou um sorriso amargo.
- Não... somos... assim tão importantes - conseguiu dizer. - Não veio... por mim... mas sim... por Irial.
- Mentes. Todos vimos como te afectava a presença do sagrado Yohavir...
- Sou... um... unicórnio - cortou ela. - Absorvo... energia.
- Talvez tenhas absorvido energias... pouco apropriadas - replicou Alsan, com frieza. - Mas é tarde para te arrependeres. Tiveste ocasiões de sobra para voltar atrás.
Aproximou-se mais dela. Victoria tentou retroceder.
- O que... vais fazer? O meu... filho...
Alsan esboçou um sorriso sinistro. Estendeu para ela a sua mão esquerda, a sua mão de três dedos, e fê-la levantar o queixo.
- Não vim pelo teu filho hoje, Victoria. Mas podes ter a certeza de que, se for uma serpente, no dia em que nascer cravarei Sumlaris no seu frio coração.
Victoria empalideceu. Abanou a cabeça para se libertar do contacto de Alsan.
- É... um bebé - sussurrou.
- Mas eu não posso permitir que o último unicórnio dê à luz uma aberração. Devias sabê-lo antes de permitires que Kirtash te tocasse.
Falava com um desprezo tão profundo que feriu Victoria no íntimo. No entanto, não disse nada. Limitou-se a levantar a cabeça e a cravar em Alsan um olhar de desafio.
- Não podemos perder mais tempo - interveio Qaydar, com impaciência.
Alsan assentiu. Gaedalu aproximou-se de Victoria levando na mão um fragmento de rocha que ela reconheceu imediatamente. Retrocedeu, inquieta. Alsan sorriu e tomou
a rocha da mão de Gaedalu.
- Há assim tanto de serpente em ti que temes o que a pedra dos deuses te pode fazer? Vamos averiguá-lo - acrescentou, com um sorriso, aproximando a rocha do ventre de Victoria.
A jovem gritou e procurou afastar-se, mas não lhe restavam forças.
- Maldição... Alsan! - exclamou, e a sua voz tinha um tom de ansiedade e desespero que deteve a mão do rei e o fez levantar a cabeça para ela. - Enlouqueceste? Estou grávida! Porque é que... é mais importante a identidade do pai... do meu filho... do que o facto de ser eu... a sua mãe?
Alsan semicerrou os olhos, sem saber onde ele queria chegar.
- Sou eu... Alsan - insistiu Victoria. - É a mim que... tens prisioneira. Victoria! Porque... é que fazes isto?
O jovem respirou fundo; de repente, pareceu muito cansado.
- Porque é o meu dever, Victoria. Os deuses exigem que lutemos contra os filhos do Sétimo. É assim que sempre foi e é assim que tem de ser feito. Eu... duvidei deles quando acreditei que Jack tinha morrido e que a profecia não se cumpriria. Demonstraram-me o quanto estava enganado... devolveram-me a luz de Irial... - acrescentou, tocando o bracelete.
- Foi... Jack quem te salvou - disse Victoria. - Trouxe-te... de Nanhai. Resgatou-te... do teu exílio. Se não... me vais ouvir a mim... pensa nele... pensa se ele gostaria... que pusessem em perigo... a vida do... seu filho.
Por um instante, Victoria detectou um lampejo de ternura no olhar dele. Mas Alsan abanou a cabeça e respondeu, com voz impessoal:
- Jack não consegue entendê-lo. Por muito que tente, não pertence a este mundo.
- Então - respondeu Victoria -, porque... insististes tanto... em fazê-lo crer que sim?
Ele não respondeu.
- Majestade - interveio Gaedalu, premente. Alsan respirou fundo, ergueu-se um pouco e tomou a mão de Victoria. Ela sentiu que Alsan lhe estendia os dedos e observava, com uma mistura de curiosidade e repugnância, o anel que brilhava, e que a mantinha em contacto com Christian.
Também Qaydar ficara a olhar para ele, com uma mescla de temor, curiosidade e fascínio.
- De modo que é isto - comentou. - Como podemos ter a certeza de que se trata do verdadeiro Olho da Serpente?
- Em breve, iremos comprová-lo.
- Não podemos arrancar-lho, assim sem mais? - perguntou Gaedalu. Alsan negou com a cabeça.
- Através deste anel, Kirtash vigia Victoria e está ao corrente de todos os seus movimentos. É, além disso, um objecto perigoso e como tal, sabe proteger-se sozinho. Mas contém parte da essência desse sbek... e já sabemos a que é vulnerável a essência de uma serpente.
Victoria reuniu forças e debateu-se, gritando com raiva. Não serviu de nada. Alsan limitou-se a segurá-la até que caiu nos seus braços, rendida aos efeitos da poção de Gaedalu. Então voltou a agarrar na sua mão, colocou a pedra sobre o Olho da Serpente... e deixou que começasse a actuar.
Victoria gemeu. Quis resistir, mas a poção já tinha actuado sobre todo o seu corpo e não foi capaz de se mexer. Não demorou a sentir como o anel ia enfraquecendo cada vez mais devido à presença daquele fragmento da Rocha Maldita, como a consciência de Christian se retirava apressadamente, expulsa com violência daquele que fora um dos apêndices da sua percepção. A gema de Shiskatchegg emitiu um breve cintilar alarmado e depois, lentamente, apagou-se.
E Victoria sentiu-se só e vazia, muito mais só e vazia do que alguma vez estivera. Nos últimos tempos criara uma conexão sólida e estreita com Christian, uma conexão que culminara naquela noite, no apartamento dele, em Nova Iorque, quando ambos tinham fundido as suas mentes. Se ela fosse uma shek, não teria necessitado do anel para manter viva aquela conexão.
Mas não era. Quando Shiskatchegg se rendeu ao poder da Rocha Maldita, o vínculo mental com Christian foi brutalmente cortado. Victoria deixou escapar um gemido, enquanto Alsan tirava o anel do seu dedo sem que ela pudesse fazer nada para o evitar. Fechou os olhos e duas lágrimas correram pelas suas faces.
Christian estacou com tanta brusquidão que Jack chocou contra ele.
- O anel... - murmurou. - O anel!
- O quê? - perguntou Jack, inquieto; Christian parecia fora de si, e a última vez que o tinha visto naquele estado fora quando Victoria caíra nas mãos de Ashran e eles estavam em Limbhad, sem poder chegar até ela.
- Perdi... perdi a conexão com ela - disse o shek, aturdido. - É como se não estivesse aí.
- E isso quer dizer o quê? Que lhe aconteceu algo de mal? Christian respirou fundo e procurou concentrar-se.
- Não necessariamente. É provável que tenha tirado o anel, mas...
- Ela não o tiraria por vontade própria, em nenhuma circunstância. Christian não respondeu. Parecia profundamente preocupado, e Jack
soube que ainda não lhe tinha dito tudo. Aguardou.
- Senti... algo muito desagradável. Mesmo antes de perder a conexão, alguma coisa me obrigou a retirar a minha consciência do anel. Algo que já tinha experimentado antes.
- A Rocha Maldita?
- Só me ocorre que a tenham usado para lhe arrancar o anel, para que perdesse todo o contacto comigo. Se utilizam essa coisa contra Victoria, talvez não a afecte a ela, mas...
Os dois entreolharam-se.
- O bebé - disseram ao mesmo tempo.
Precipitaram-se pelo corredor adiante, mantendo a direcção em que seguiam antes de Christian perder o contacto. Desembocaram numa sala que o rei utilizava para reuniões
privadas. Não havia nenhuma outra saída ali, mas Christian já tinha reparado nas tapeçarias grossas que forravam as paredes e estava a puxá-las.
Jack ajudou-o. Num instante despiram as paredes, mas só encontraram pedra sólida e fria. Lá fora, o vento uivava com força.
- Tem de haver uma passagem secreta - disse Christian telepaticamente.
- Tem de estar por aqui.
Jack observou-o enquanto apalpava as paredes com desespero.
- Se fosse realmente assim - respondeu, também em pensamento -, isso signiicaría que Alsan está por detrás de tudo isto. Duvido muito que Qaydar conheça os segredos deste castelo melhor do que ele.
Christian dirigiu-lhe um breve olhar.
- E achas isso estranho! - perguntou somente.
Jack semicerrou os olhos. Sabia que Alsan e ele não estavam de acordo em muitas coisas; mas a possibilidade de ter sequestrado Victoria, mesmo depois da sua união com ele... a ideia de que tivesse intenção de lhe fazer mal, apesar de saber que talvez ela desse à luz o filho de ambos... fê-lo sentir-se ferido e traído.
- Éramos amigos - limitou-se a responder.
Christian não disse nada. Continuou a examinar as paredes, e Jack juntou-se a ele sem proferir uma palavra.
Victoria conseguiu soerguer-se um pouco e tentou ver o que estavam a fazer. Qaydar e Alsan já não lhe prestavam atenção. A divisão onde estavam os quatro encerrados, uma ampla masmorra apenas iluminada por algumas tochas, estava praticamente despida. O Arquifeiticeiro traçava no chão símbolos arcanos, utilizando para isso um pó esbranquiçado que retirava de um velho recipiente. Victoria notou o símbolo do Sétimo gravado no recipiente e semicerrou os olhos.
Gaedalu, que estava junto dela, apercebeu-se do seu olhar.
- Durante os últimos anos - disse -, os filhos do Sétimo utilizaram-nos e manipularam-nos para servir os seus interesses. Já está na hora de nós devolvermos o golpe.
Victoria não foi capaz de falar, nem de se mover. Contemplou, assustada, como Qaydar acabava de preparar tudo. No centro do hexágono de cinzas, depositou Shiskatchegg.
"O que estão a fazer?", quis perguntar Victoria, mas não lhe saiu qualquer som. A Mãe captou aquele pensamento; no entanto, limitou-se a olhá-la, sem responder à sua pergunta.
Alsan retrocedeu para dar espaço ao Arquifeiticeiro, que ergueu as mãos e começou a recitar, lenta e solenemente, uma longa ladainha em idhunaico arcano. Victoria conhecia alguma coisa do idioma dos feiticeiros, porque Shail lho tinha ensinado tempos antes, mas aquelas palavras eram incompreensíveis. Devia tratar-se de uma magia antiga e secreta, reservada apenas aos feiticeiros mais poderosos, àqueles que conheciam os mistérios mais profundos.
De qualquer modo, não agradou a Victoria.
Lenta, muito lentamente, o hexágono formado com as cinzas foi-se iluminando.
Victoria sentiu, subitamente, que havia algo invisível na sala com eles. Era apenas uma intuição e também não sabia exactamente de que se tratava, mas suspeitava que, se se transformasse em unicórnio, seria capaz de o ver. De qualquer das formas, não o fez. O instinto impedia-a de mudar de aspecto ali, diante de pessoas às quais não tinha a menor intenção de entregar a magia. Estremeceu, fechou os olhos e procurou perceber o que havia ali.
Era algo real, não tinha a menor dúvida. Algo que não só era invisível, como nem sequer era material. Mas existia e tinha consciência. Uma criatura espiritual.
E aquele ser acudia à chamada de Qaydar, que utilizara o anel e as cinzas para o chamar. Uma invocação. Estavam a invocar um fantasma.
Victoria abriu os olhos e cravou o olhar no recipiente com o símbolo do sétimo deus. Não era possível que Qaydar invocasse Ashran. Ou era.
Pouco a pouco, a temperatura na cela foi descendo, e abateu-se sobre eles uma espécie de calma sobrenatural, como se o tempo tivesse paradoNenhum dos quatro conseguiu evitar um arrepio de puro terror. De repente, o simples facto de respirar tornou-os estranhos, intrusos, pessoas
insultuosamente vivas no umbral de uma porta que ainda não deviam ultrapassar. Enquanto isso, algo ia ganhando forma no interior do hexáno, uma bruma acinzentada que se tornava mais consistente a cada nova palavra de Qaydar, até que o fantasma adquiriu um rosto de feições feéricas, um rosto delicado e harmonioso, mas frio e impassível.
Por fim, a voz de Qaydar calou-se. Todos contiveram a respiração.
O espírito voltou-se para o Arquifeiticeiro e a sua boca fantasmagórica curvou-se num sorriso irónico.
- Tu és novo - disse. A sua voz sussurrante soava distante, fria e sem emoção. - Onde está o jovem que me invocou da última vez?
- Morto - respondeu Qaydar. Parecia cansado, mas, no entanto, ergueu-se e olhou para o fantasma fixamente quando disse: - Saúdo-te, Talmannon, Senhor das Serpentes. Agradeço-te por atenderes à minha chamada...
- Como se tivesse outra opção - comentou o fantasma com sarcasmo. Qaydar não se deixou intimidar.
- Eu sou Qaydar, o Arquifeiticeiro, líder da Ordem Mágica. Encontram-se comigo o rei Alsan de Vanissar e Gaedalu, a Mãe Venerável. Foste invocado...
- Que grande honra - cortou Talmannon. - E quem é a jovem prisioneira?
O espectro cravou os seus olhos fantasmagóricos em Victoria, que foi incapaz de se mover. Ainda não conseguia acreditar que tudo aquilo estivesse realmente a acontecer. Talmannon governara em Idhún muito tempo antes, na Segunda Era, em pleno apogeu da guerra entre sheks e dragões. Ouvira falar muito dele. Lera histórias sobre ele. Mas nunca lhe passara pela cabeça a possibilidade de que alguém pudesse invocar o seu espírito e conversar com ele. Estremeceu ao compreender que o anel de Christian, que os mantinha tão estreitamente ligados, tinha pertencido a Talmannon. Shiskatchegg, o Olho da Serpente, tinha sido a arma mais preciosa do Senhor das Serpentes, o Imperador Negro. Victoria soubera-o desde o início, mas nunca parara para pensar nisso seriamente. Sempre lhe parecera uma personagem lendária.
Parecia agora óbvio que era muito mais do que uma lenda, e Victoria lamentou não ter averiguado mais coisas sobre ele. Para começar, sempre tinha imaginado como um humano. E, pelos vistos, tinha sido um silfo.
Qaydar quis retomar as rédeas da conversa.
- Foste invocado...
Quem é ela? - exigiu o espectro saber.
Sem saber muito bem porquê, Victoria encolheu-se sobre si mesma.
- Ela é Lunnaris - interveio Alsan com calma -, um...
- Unicórnio! - uivou Talmannon, subitamente furioso. Pareceu tentar sair dos limites do hexágono, mas Qaydar fizera bem o seu trabalho e não havia fissuras. - O que faz ela aqui? Como te atreves a trazer semelhante criatura à minha presença?
- Acabámos de arrancar do seu dedo o Olho da Serpente - informou-o Qaydar com frieza.
- Shiskatchegg caiu nas mãos dos unicórnios - murmurou o espectro compreendendo.
- Parece que foi um shek quem lho entregou - interveio Gaedalu, com um sorriso amargo.
- Em todos os lados há traidores, não é? - comentou Alsan, ao aperceber-se do desconcerto de Talmannon.
- Os unicórnios são traidores por natureza - disse Talmannon. - Eles não deveriam ter intervindo, no entanto, aliaram-se a Ayshel e aos seus e viraram-se contra nós. Os unicórnios não foram concebidos para a guerra, mas criaram o báculo, uniram-se aos dragões e desequilibraram a balança. Diz-me, porquê?
Victoria ergueu a cabeça e olhou para ele. Entendeu que, apesar de todo o tempo que passara, para Talmannon aquela derrota continuava a ser tão recente como se acabasse de acontecer.
- Lunnaris ainda não tinha nascido quando isso aconteceu - observou Qaydar.
- Foi... pelos feiticeiros - conseguiu dizer Victoria, por fim; era certo que não tinha estado lá, que não vivera aquela guerra, mas naquele momento compreendeu, com toda a clareza, porque é que os unicórnios intervieram na altura. - Escravizaste... todos os feiticeiros. Os nossos... escolhidos. Os unicórnios... não lutaram contra os... sheks. Não lutaram... para derrotar o Sétimo. Apenas... para libertá-los... para que tivessem... a oportunidade de escolher...
O esforço esgotou-a e deixou cair a cabeça de novo. Fechou os olhos. Apesar disso, percebia o olhar gélido de Talmannon cravado nela, envolvendo cada fibra do seu ser. Um arrepio percorreu-lhe a espinha.
- Se não tivesse sido pelos unicórnios - disse então Talmannon -, nunca teríamos sido derrotados.
Ninguém discordou. Aqueles factos datavam de um passado demasiado remoto para interessar tanto a alguém como ele.
- E por isso Ashran exterminou-os a todos? - inquiriu Qaydar, dominando a sua cólera.
Talmannon riu suavemente.
- Oh, então fez isso, finalmente? Adverti-o sobre eles. Já sabia que os deuses enviariam os dragões contra eles, mas avisei-o para não perder de vista os unicórnios. com feiticeiros ou sem eles, com deuses ou sem eles... existia a possibilidade de que interviessem.
- Falaste com Ashran - disse Qaydar. - Invocou-te para te perguntar acerca dos deuses. Acerca do Sétimo.
Talmannon dirigiu-lhe um olhar de desprezo.
- Achas realmente que vou partilhar convosco, adoradores dos Seis, os segredos do sétimo deus... Arquifeiticeiro? É assim que agora chamam os feiticeiros poderosos, não é? No meu tempo, a um feiticeiro poderoso chamava-se-lhe "Amo" ou "Senhor".
- O teu tempo passou - cortou Alsan. - Se foste o feiticeiro vivo mais poderoso, agora não és mais do que uma sombra morta. Se alguma vez chegaste a ser um deus, agora és apenas um pobre fantasma. Por isso, o que te importa?
O espectro riu-se. Não foi um riso agradável.
- O meu legado continua vivo. Muitas das coisas que criei chegaram ao vosso tempo. O império dos sheks renovou-se através de Ashran. O sétimo deus regressou ao mundo através dele, tal como, no passado, regressou através de mim.
- Como? - insistiu Qaydar.
Talmannon cravou nele um olhar gélido e profundo.
- Adoradores dos Seis - cuspiu. - Julgam que não sei o que está a acontecer? Os deuses estão a provocar o caos no mundo. Os sete. E se se deram ao trabalho de me invocar, é porque desejam falar com eles, tal como Ashran fez no seu tempo. Acham realmente que vos revelaria esse segredo? Nunca trairei o meu deus.
- És um silfo - respondeu Gaedalu com frieza. - Wina é a tua deusa.
- Por nascimento - ripostou ele -, mas não por adopção. Adoro o sétimo deus e tudo o que ele criou. Há que estar cego para não apreciar a beleza e a suprema inteligência dos sheks. Ela sabe disso - acrescentou, voltando-se de novo para Victoria. - Não é verdade, unicórnio?
Victoria não respondeu.
- Tu foste o sétimo deus - disse Qaydar -, até que Ayshel acabou com a tua vida...
- Não sejam soberbos, adoradores dos Seis - cortou Talmannon, mal-humorado. - Uma semifeiticeira sozinha não teria conseguido vencer-me. Tinha todos os unicórnios do seu lado. Tinha aquele artefacto, o báculo. E, naquela época, em pleno esplendor da era dos unicórnios, aquela coisa era muito mais poderosa do que é agora. Para não falar dos vossos deuses, claro. Ayshel não foi convocada por acaso. Os unicórnios escolheram-na porque os deuses tinham ordenado aos dragões que acabassem comigo. Comigo, especificamente, e não com Esshian, que era a soberana dos sheks naquela época. Os deuses sabiam disso. Os deuses propiciaram a vitória de Ayshel, e os unicórnios outorgaram-lhe todo o seu poder. Ela não foi mais do que um joguete nas mãos de forças mais poderosas, porém, vocês continuam a atribuir-lhe todo o mérito. - Deixou escapar uma gargalhada sarcástica. Como se uma semifeiticeira pudesse derrotar um deus.
- Antes de seres um deus, o que eras? - insistiu Qaydar. - Mais um feiticeiro? Tiveste de sacrificar a tua própria vida para que o teu deus regressasse a Idhún através de ti?
- Estamos todos a perder tempo - replicou o espectro, aborrecido. Fazem-me perguntas cujas respostas estão fartos de saber; e as perguntas para as quais não tens resposta, não tenciono respondê-las.
- Não tens nenhum tempo a perder - cortou Qaydar. - És um espírito. És eterno. E estás preso no meu hexágono de poder. Estás obrigado a obedecer-me, quer queiras ou não. E quanto mais tempo permaneceres neste mundo, mais se debilitará a tua essência. Quantas mais invocações conseguirás suportar antes de te veres reduzido ao nada?
Houve uma longa troca de olhares. A presença de Talmannon era aterradora e intimidante, mas o Arquifeiticeiro não cedeu. Finalmente, o fantasma disse:
- Falei com o sétimo deus. Entreguei-lhe a minha vida em troca da sua essência. O preço que tive de pagar foi ínfimo em comparação com o que ele me proporcionou.
- Como te puseste em contacto com ele? Talmannon riu.
- Como nos pomos em contacto com os deuses? Através dos Oráculos, obviamente.
- Foi o que Ashran fez - interveio Alsan a meia-voz. - Sacrificou-se a si mesmo na Sala dos Ouvintes do Oráculo de Nanhai. Mas, quando o fez... já tinha falado com o Sétimo.
- Como conseguiu? - exigiu Qaydar saber. O espectro esboçou um sorriso desagradável.
- Os deuses falam - disse -, mas geralmente não connosco. Em tempos remotos, aprendemos a construir cúpulas que captavam a voz dos deuses, e o segredo foi ciosamente guardado pelos sacerdotes. O seu poder residia no facto de só eles terem o meio de comunicar com as divindades, segundo diziam. Mas isto não era completamente verdade. Podiam escutar os deuses, mas não falar com eles. E alguns escutavam melhor do que outros.
- Os ouvintes - murmurou Qaydar.
- Existe uma fórmula para reverter o processo. Uma fórmula que faz com que, em vez de escutarmos os deuses, eles nos escutem a nós. Mas o conjuro tem de se realizar num sítio especial. com uma pessoa especial.
Reinou um longo silêncio.
- Entendo - disse então Gaedalu. - Eu também - disse Qaydar.
De repente, um dos blocos da parede deslizou para trás e depois para um lado, deixando a descoberto uma passagem escura.
- Por aqui - disse Christian, embrenhando-se nela.
Parecia ter recuperado o seu sangue-frio. Concentrara todos os seus sentidos no que estava a fazer e procurava não perder a calma. Jack seguiu-o, inquieto.
Diante deles, abria-se uma escadaria descendente que se perdia na escuridão. Christian, que ia à frente, desembainhou Haiass para que iluminasse o caminho. Em silêncio, ambos desceram durante bastante tempo, até que desembocaram num corredor comprido. Christian deteve-se durante uns segundos e olhou em redor.
- Julgava que isto conduziria às caves - murmurou Jack -, onde se juntaram todos os que fugiram de Yohavir. Mas parece um lugar afastado.
- É labiríntico - acrescentou o shek, erguendo a espada; à sua luz puderam ver que, de ambos os lados do corredor, abriam-se novas passagens. - E então, por onde?
- Não consegues detectar Victoria?
- Sem o anel, não. Está demasiado longe. Mas tu, sim, devias saber como chegar até ela. Tens uma conexão espiritual muito estreita com ela. Podias encontrá-la em qualquer parte, se quisesses.
Jack fitou-o, pensando que estava a brincar. Mas os olhos de Christian diziam que falava a sério.
- vou tentar - suspirou por fim.
Retirou Domivat da bainha para que o iluminasse na escuridão, adiantou-se alguns passos e começou a andar pelo corredor.
Shail começava a ficar preocupado. Jack também não tinha regressado e no exterior, por cima deles, o vento rugia e uivava, ameaçando levar o castelo inteiro pelos ares.
- vou dar uma vista de olhos - disse a Zaisei.
- Tem cuidado - pediu ela.
Trocaram um beijo rápido. O feiticeiro subiu as escadas, com precaução. Chegou ao andar de baixo e encontrou-se ali com Covan, que, protegido atrás de uma das colunas, contemplava através de uma janela o furioso vendaval que fustigava o castelo.
- Viste Jack e Victoria? - perguntou-lhe, levantando a voz para se fazer ouvir por cima do rugido do vento.
Covan negou com a cabeça.
- Ninguém passou por aqui! - replicou. - Já estão todos refugiados nas caves!
- Todos, não! Também não encontrámos a Mãe, o Arquifeiticeiro e o rei!
O mestre-de-armas voltou-se para ele com rapidez.
- Alsan não está lá em baixo?
Shail negou com a cabeça. Covan hesitou.
- O tornado está a retirar-se - disse -, mas ainda é demasiado arriscado irmos lá para fora. Não podes tentar localizá-los com a tua magia, feiticeiro? Será mais rápido do que percorrer o castelo às cegas.
- Posso tentar um conjuro de localização - admitiu Shail. "Mas não funcionará com Victoria", pensou. Não sabia como o sabia, mas intuía que era assim. Os unicórnios não teriam permanecido ocultos durante milénios se qualquer feiticeiro pudesse encontrá-los com conjuros de localização. "Não importa", pensou. "Talvez consiga pôr-me em contacto com Qaydar ou pode ser que consiga encontrar Jack; Victoria deve estar com eles."
- Consegues fazê-lo? - insistiu Covan, ao ver que ele ficara em silêncio.
- Sim; mas preciso de um lugar sossegado. Covan esboçou um sorriso irónico.
- O mais sossegado possível... dadas as circunstâncias - especificou Shail.
Tinham-na deixado sozinha.
Da terrífica invocação, só restava um leve vestígio de cinzas no chão e um estranho efeito no ambiente, como se o espectro de Talmannon não tivesse ido definitivamente embora. De resto, tinham levado tudo: o recipiente com o que restava das cinzas, os fragmentos da Rocha Maldita... e o Olho da Serpente.
E tinham-na deixado ali, acorrentada à parede, encerrada naquela cela húmida, ainda vestida com o lindo vestido branco e verde que usara na cerimónia da sua união com Jack. Alsan parecia ter amolecido um pouco ao vê-la assim, porque tirara a capa e cobrira-a com ela, para a proteger do frio.
- Devíamos levá-la connosco - disse Qaydar.
- Estará mais segura aqui - respondeu Alsan -, a salvo dos deuses. Onde ninguém consiga encontrá-la.
Para se assegurar disso, tinham levado o anel com eles. Gaedalu guardara-o numa pequena caixinha, em cuja tampa fizera engastar uma pedra feita com um fragmento da Rocha Maldita. Victoria sorriu com amargura ao recordá-lo. Provavelmente sem o saber, Gaedalu reproduzia o comportamento dos deuses que servia. Felizmente, aquela caixa encerrava apenas um anel, um dos tentáculos da percepção de Christian. Mas Victoria não tinha dúvidas de que a Mãe teria sido bem capaz de encerrar o próprio Christian numa caixa semelhante, se pudesse.
Estava há algum tempo a pensar em tudo o que tinha visto, tentando encontrar-lhe um sentido. Percebera que tanto Talmannon como Ashran tinham sido encarnações do sétimo deus, a quem tinham invocado para o trazer de volta ao mundo em diferentes épocas da história de Idhún. Mas por que razão Alsan, Qaydar e Gaedalu estavam dispostos a repetir a experiência? Talvez para procurar comunicar com Gerde? Era absurdo. A única opção que fazia sentido era que quisessem contactar com algum dos Seis. Victoria recordava que Shail mencionara uma vez algo a esse respeito: falar com os deuses, fazê-los ver que os mortais estavam ali, suplicar-lhes que se detivessem.
A ideia de que Shail pudesse estar envolvido em tudo aquilo cravou-se no seu coração como mil agulhas lacerantes; mas de imediato compreendeu que não era possível que ele estivesse ao corrente do que aqueles três estavam a fazer. Alsan tinha tomado medidas muito drásticas, sequestrando-a, drogando-a e mantendo-a ali encerrada.
"Não vai suplicar clemência aos deuses", compreendeu subitamente. "Isto é a guerra, por isso está a tomar decisões difíceis. Vai revelar-lhes a identidade do sétimo deus. Vai dizer-lhes onde encontrar Gerde."
Recordava agora que Alsan colocara aquela possibilidade em alguma reunião. Na altura, parecera a Jack uma boa ideia. Mas depois de falar com Christian, depois de pôr as cartas na mesa, compreendiam porque é que os Seis não deviam conhecer o paradeiro de Gerde. Porque é que, subitamente, era necessário proteger o inimigo.
- Não queria dizer-vos - dissera Christian -, porque vocês são o dragão e o unicórnio, os heróis escolhidos pelos Seis. É suposto que lutem contra o Sétimo, as suas criaturas e os seus aliados. Se os líderes dos sangues-quentes descobrirem que protegem Gerde, não vos perdoarão. Eu posso fazê-lo, porque é o que se espera de mim. Vocês, não. De modo que o melhor que podem fazer é fingir que os apoiam na sua luta contra Gerde, mas mantendo-vos à margem. Podemos resolver o assunto. Só precisamos de um pouco mais de tempo.
Victoria fechou os olhos. Não lhe agradava a ideia de os Seis andarem a dar voltas por Idhún, a destruir tudo; mas, se encontrassem Gerde e obrigassem o Sétimo a dar a cara, seria pior, muito pior.
E isso era o que Alsan pretendia.
"Há que impedi-lo", disse Victoria para consigo. Mas continuava a ser incapaz de se mover e, de qualquer das formas, estava acorrentada e não poderia escapar dali. Ou podia?
Inclinou um pouco a cabeça e procurou transforma-se em unicórnio.
Não conseguiu. O seu corpo não lhe obedecia. Por alguma razão, a poção que Gaedalu lhe dera impedia-a de se transformar, tal como a impedia de se mover. Suspirou. Sabia que era suficientemente forte para suportar aquilo, mas temia pelo bebé. Se tivesse herdado a resistência sobrenatural dos seus pais, talvez pudesse superar aquela prova sem sequelas. Mas ainda era cedo para o saber.
Tinha de limpar o seu corpo daquela substância. Fechou os olhos outra vez e tentou ir libertando pouco a pouco a sua outra essência. Uma centelha de luz surgiu na sua testa, enquanto, lentamente, o seu poder de unicórnio a ia purificando por dentro.
Por fim recuperou parte da sua mobilidade. Tentou novamente metamorfosear-se em unicórnio e, após várias tentativas, conseguiu.
As delicadas patas do unicórnio deslizaram para fora das grilhetas sem problemas. Victoria pôs os cascos no chão e abanou a cabeça, sentindo o peso do seu longo corno e uma cascata de crinas suavíssimas a deslizar pelo seu pescoço. Tentou levantar-se, mas as patas tremiam-lhe. Arrastou-se como pôde até à porta. Estava fechada por fora.
- Unicórnio...
A voz sussurrante, que parecia vir de todos os lados e de nenhum, sobressaltou-a. Olhou à sua volta e descobriu algo que antes, com os seus olhos humanos, não fora capaz de ver, mas que o seu olhar de unicórnio captava claramente.
Uma ténue forma prateada deslizava pelos cantos da cela, algo semelhante a uma fina substância de névoa que se movia numa e noutra direcção, desnorteada.
- Talmannon? - murmurou ela, inquieta.
- Não, Talmannon não - sussurrou a voz em algum recanto da sua consciência. - Eu sou apenas a sua impressão.
- Impressão? - repetiu Victoria.
- Cada vez que um espírito é obrigado a regressar ao mundo dos vivos mediante uma invocação - explicou o ser -, ao partir, deixa atrás de si uma impressão, uma marca. Parte da sua essência. Eu não sou Talmannon. Ele voltou à sua dimensão. Eu sou a marca que a sua presença deixou no mundo dos vivos.
- E... o que és, exactamente?
- Nada - respondeu ele. - Que outra coisa pode ser a sombra de um espírito?
Falou com amargura, e Victoria notou-o.
- Lamento - murmurou.
- Não lamentes. O teu mundo está cheio de criaturas como eu, criadas belos mortais irresponsáveis que brincam com a vida e a morte. Por isso a necromancia é uma arte proibida. Mas isso não impediu os feiticeiros de guardar as cinzas de todos os seus grandes feiticeiros, para os importunar de vez em quando com problemas que eles próprios não sabem resolver.
Victoria não soube o que dizer.
- Vai-te embora - disse a impressão. - Vai-te embora daqui e. evita que os deuses se enfrentem... ou não. Se voltarem a chocar, será o fim para todos os seres vivos... e o início de um novo mundo e uma nova história. Quem sabe se o seu terceiro mundo não será um mundo perfeito.
- Seria um mundo perfeito, mas sem nós - replicou Victoria. - E eu vou ter um filho. Quero que o meu filho nasça, quero que veja a luz dos sóis.
- Ah, uma estranha criatura, o teu filho - comentou a impressão. - Consigo ver daqui a sua alma. Queres saber como é?
- Não - respondeu Victoria, com decisão. - Prefiro vê-la por mim mesma da primeira vez que o olhar.
Estivera a examinar as dobradiças da porta à suave luz emitida pelo seu corno, perguntando-se o que aconteceria se lhes transmitisse energia. Não seria a primeira vez que fazia aquilo com um objecto inanimado; mas a perna artificial de Shail era feita de um material preparado para absorver e assimilar aquele poder.
Não tinha tempo para pensar nisso. Baixou a cabeça e colocou a ponta do seu corno sobre um dos gonzos.
E esforçou-se por lhe transmitir a magia.
No início, foi como se deparasse com uma sólida parede intransponível. Parecia evidente que, salvo algumas excepções, os objectos inanimados não estavam preparados para captar a magia. Mas Victoria insistiu.
Encontravam-se numa cela subterrânea, muito longe da superfície. Não havia por ali muita energia para canalizar. No entanto, mesmo por cima deles, um deus vociferava com a força de todos os ventos. Uma pequena parte daquela energia conseguia filtrar-se até ela e percorrer o seu corpo. Não lhe escapou o facto de que também estava a transmitir à porta uma parte da impressão de Talmannon, que não era mais do que um rasto de energia. Mas não se deteve.
Em breve, o metal começou a fundir-se, até que acabou por escorrer para o chão. Victoria ergueu-se sobre as suas patas traseiras para alcançar a dobradiça superior e repetiu o processo. Quando concluiu, empurrou a porta até conseguir que cedesse.
Saiu para o corredor. Estava escuro, mas o seu corno iluminava-a e o seu instinto guiá-la-ia até à saída. Antes de se embrenhar pelo túnel voltou-se para o interior da cela e descobriu ali, num canto, a impressão de Talmannon.
- Estás bem aí? - perguntou-lhe.
- Estarei bem em qualquer parte - replicou o ser, lugubremente. - E tu vai-te embora já e faz o que tiveres de fazer. E procura recuperar esse anel.
Não tenho afeição pelos unicórnios, mas, se é verdade que foi um shek quem to entregou, então prefiro que o tenhas tu.
Victoria inclinou a cabeça. Rápida como um raio de luar, desatou a correr pelo túnel em direcção à liberdade.
- Shail! Shail! - chamou-o Covan.
O feiticeiro mantinha os olhos fechados e uma expressão de intensa concentração vincava o seu rosto. Apesar disso, o mestre-de-armas sacudia-o com força, gritando para se fazer ouvir por cima do uivo do vento.
Tinham-se fechado na despensa, uma pequena divisão anexa às cozinhas, que não tinha nenhuma janela aberta para o exterior. Embora o furacão ainda fosse ensurdecedor, o seu rugido ouvia-se um pouco mais amortecido do que nas salas exteriores.
Por fim, Shail abriu os olhos e fitou-o, um tanto aturdido.
- O que se passa? O que é esse barulho?
- O barulho não é o mais preocupante agora! - exclamou Covan. Olha!
Ainda confuso, Shail voltou a cabeça na direcção que o cavaleiro indicava. A porta da despensa estava fechada, mas uma luz intensa filtrava-se por debaixo. Demasiada luz, compreendeu Shail de imediato.
- O conjuro de escuridão! - exclamou. - O que está a acontecer? Porque é que já não funciona?
- Esperava que tu mo pudesses dizer. Shail procurou pensar.
- Talvez a fonte de luz se esteja a aproximar ainda mais. Ou talvez a magia do conjuro esteja a falhar. Talvez... - hesitou antes de acrescentar talvez se deva ao facto de Qaydar se ter ido embora.
- Qaydar foi-se embora? - quase gritou Covan. Shail ergueu as mãos para o acalmar.
- É provável que o meu feitiço de localização tenha falhado, não sei. Procurei Alsan, Gaedalu, Qaydar, Jack e Victoria - inspirou fundo. - Só encontrei Jack. Está muito abaixo de nós. Por debaixo das caves.
Sim - acrescentou -, só pode ser um erro. Seguramente a energia gerada pelo furacão interferiu com...
- Não - cortou Covan -, faz sentido. Ouvi contar histórias acerca do emaranhado de túneis que se estende por debaixo da cidade. Diz-se que os primeiros reis de Vanissar os fizeram construir em tempos remotos.
- Talvez Jack tenha encontrado uma entrada e se tenha refugiado lá reflectiu Shail -, mas, onde estão os outros?
- A luz é o mais urgente agora! - indicou Covan.
- Todos os feiticeiros da cidade estavam a fornecer uma parte da sua energia para manter activo o conjuro. Até eu. Poderia dedicar toda a minha magia a isso, mas não bastaria. Necessitaríamos que todos os feiticeiros voltassem a levantar o conjuro. Eu sozinho não posso fazer nada.
Covan franziu o sobrolho.
- E pretendes ficar aqui, escondido?
- Não. - Shail pôs-se de pé. - vou utilizar uma variante do conjuro de localização para tentar chegar até Jack. Talvez ele saiba onde está Qaydar. Tu deves voltar à cave, para junto dos outros, e assegurar-te de que tapam bem os olhos, sem esquecer todas as frestas por onde possa entrar a luz. Quanto mais escura estiver a cave, melhor. E que os outros feiticeiros tratem de voltar a levantar o conjuro.
- Farei o que puder; mas o rei...
- O rei agora não está - cortou Shail. - Tu sabes, melhor do que ninguém, quem era o outro candidato ao trono. Alsan confia em ti, de modo que, na sua ausência, és tu quem tem de tomar as decisões.
O mestre-de-armas olhou-o, pensativo; depois, assentiu.
- Espera - chamou-o Shail, quando já se ia embora. Colocou as mãos sobre o seu rosto e pronunciou em voz baixa a fórmula de um feitiço. Quando as retirou, uma espiral de trevas cobria os olhos de Covan.
- O que me fizeste? - perguntou, sobressaltado. - Não vejo nada!
- É para te proteger a vista - replicou Shail. - Nem sequer a minha magia pode bloquear a luz de Irial, por isso, além do véu de escuridão que te apliquei, é melhor cobrires os olhos com mais alguma coisa. Todo o cuidado é pouco.
Covan respirou fundo e assentiu, procurando acalmar-se. Rasgou com um puxão a sua manga esquerda e vendou os olhos com ela. Depois, avançou a tactear até à porta.
- vou abrir - avisou, quando as suas mãos pousaram na maçaneta. Shail cobriu os olhos com os braços e pronunciou para si mesmo o conjuro de escuridão. Mal acabou, uma intensa luz banhou toda a sala, ofuscando-o, apesar de todas as suas precauções. Ouviu a exclamação de assombro de Covan e de novo o barulho da porta ao fechar-se. Depois percebeu que uma reconfortante penumbra voltava a rodeá-lo. Atreveu-se a retirar os braços dos olhos, lentamente. Os seus olhos ainda demoraram um pouco a voltar a acostumar-se à escuridão.
Mais adiante, o túnel acabava.
Victoria chegara até ali seguindo uma luz intensa. Surpreendeu-a ver que procedia de uma porta situada ao fundo. Uma porta que estava fechada a sete chaves.
Aquela luz passava pelas finas frinchas das suas bordas. Victoria recuperou a sua forma humana e puxou a maçaneta para a abrir. Quando o fez, reparou que a saída estava obstruída por algum móvel pesado que alguém colocara à sua frente para a tapar. Victoria empurrou, tentando afastá-lo.
Era muito, muito pesado. Victoria arquejou e voltou a empurrar, uma e outra vez. Lenta, muito lentamente, foi-o separando da parede.
Muito tempo depois, com os braços e os ombros doridos e coberta de suor, conseguiu deslizar para fora do túnel e saiu para o exterior. Encontrou-se numa cave fria e húmida, mas nada escura. Havia escadas ao fundo e, no fim delas, uma porta fechada. No entanto, a luz que se filtrava pelas frinchas da madeira era tão intensa que iluminava a cave como se estivesse ao ar livre. Victoria subiu pelas escadas; ao chegar lá acima, deteve-se para arrancar, não sem algum pesar, um dos véus do seu vestido, e vendou os olhos com ele. Depois, abriu a porta.
A luz feriu os seus olhos através da venda, através das suas pálpebras fechadas, e fê-la lançar uma exclamação de surpresa. Apesar disso, avançou às cegas, tropegamente, até que deparou com uma parede e depois com um móvel desconjuntado e coberto de pó. Entendeu que estava no interior de uma casa e surpreendeu-se por, apesar de tudo, haver tanta luz. Deduziu que teriam deixado alguma janela aberta.
De repente sentiu uma presença perto dela, na mesma divisão.
- Quem és? - soou uma voz junto dela. Era uma voz masculina e falava lentamente. - Não consigo ver-te; vendei os olhos para os proteger da luz.
- Eu também não consigo ver nada - respondeu Victoria. - Lamento ter invadido a tua casa. Entrei aqui através da cave, à procura de um refúgio.
- Isto não é a minha casa. Não é mais do que uma velha pousada abandonada. Mas conheço a cave - acrescentou; parecia que lhe custava muito falar. - Não há nela nenhuma saída para o exterior.
- Estava escondida atrás de um armário. É a entrada para uma rede de túneis subterrâneos.
- A sério? E onde conduzem? - Ao castelo, acho.
- Mostra-me, por favor.
- Bem, segue-me; além disso, estaremos mais seguros na cave, está mais escuro.
Procuraram-se às apalpadelas, guiados pelo som das suas respectivas vozes, até que as mãos de Victoria agarraram as do seu companheiro. Sentiu então algo estranho. Pensou, inquieta, que não gostava daquele contacto, que lhe transmitia algo desagradável. Procurou tirar aquela ideia da sua cabeça.
- Passa-se alguma coisa com as tuas mãos - disse ele. - Noto um formigueiro.
"Estou a canalizar a energia dos deuses", pensou Victoria.
- Não me dês a mão, então - murmurou. - Não precisas; pelos vistos, conheces esta casa melhor do que eu.
O outro não respondeu. Victoria pôs-se de pé e depois, lentamente, os dois avançaram às cegas em direcção à cave.
Demoraram algum tempo a chegar à porta, porque Victoria avançava muito devagar. Não queria pôr o seu bebé em perigo, correndo o risco de tropeçar e cair. Contudo, o seu acompanhante não a apressou. Quando, por fim, abriram a porta da cave, Victoria agarrou-se ao corrimão e tacteou os primeiros degraus com o pé.
- Chegámos - murmurou.
Sentiu como o outro descia os primeiros degraus, junto dela. Ouviu o ranger da porta ao fechar-se. Subitamente, a luz que captava do outro lado da venda pareceu menos intensa. Respirou fundo, destapou os olhos e pestanejou para voltar a acostumar-se ao ambiente. À sua frente, a pessoa que a acompanhara também retirava a venda da cara.
Demoraram uns segundos a olharem-se e reconhecerem-se.
- Tu! - exclamou Yaren, semicerrando os olhos.
Jack voltou-se para todos os lados, irritado.
- Voltámos a chegar tarde!
Estavam no interior de uma cela vazia. Christian inclinara-se junto aos restos de um hexágono, que parecia ter sido traçado no chão com cinzas, e estudava-os com o sobrolho franzido. Jack, em contrapartida, ficara de pé diante das grilhetas da parede e tremia de raiva.
- Se a tiver acorrentado... - murmurava. - Se lhe tiver posto essas grilhetas, juro-te que vai pagar muito caro.
Christian voltou-se para ele.
- Quem, exactamente?
Jack ergueu uma capa que recolhera do chão.
- É de Alsan.
Christian poderia ter dito "eu disse-te", mas não fez qualquer comentário. Ergueu-se e indicou o resto dos vestígios do chão.
- É recente - disse. - Usaram isto para fazer algum tipo de conjuro na presença de Victoria. Não tenho a certeza, mas poderia ser uma invocação.
- De que tipo?
Christian ia responder, mas ouviram passos no corredor e precipitaram-se para fora.
Uma luz oscilava pelo corredor adiante.
- Jack! - Ouviu-se a inconfundível voz de Shail. - Jack, és tu?
- Shail! Estamos aqui!
- "Estamos"? Quem está contigo?
Não foi preciso que Jack respondesse. O feiticeiro já tinha chegado junto deles e visto Christian.
- Alsan levou Victoria - foi a primeira coisa que Jack disse. - Sequestrou-a.
Shail fitou-o com estupefacção.
- Mas como...?
Jack não perdeu tempo com explicações. Conduziu-o ao interior da cela e deixou que visse com os seus próprios olhos.
- Se estava aqui - conseguiu dizer Shail, quando assimilou a informação -, para onde a levou agora?
- Ela própria deve ter escapado - respondeu Christian, indicando a porta. - Não pode estar muito longe, então. Não demoraremos a encontrá-la se nos apressarmos.
- Sim - assentiu Jack -, vamos. Além disso, este lugar deixa-me os cabelos em pé. Não sentem como se houvesse alguma coisa esquisita aqui?
- Sim - disse Christian, mas não acrescentou mais nada.
Os três saíram de novo para o corredor e embrenharam-se no labirinto de túneis. O shek, antes de abandonar a cela, deu uma última vista de olhos em redor, inquieto.
- Tu... - disse Yaren. - Devia ter sabido.
Victoria ia dizer algo, mas não teve tempo. O feiticeiro empurrou-a com violência e ela perdeu o equilíbrio. Por pouco não caiu pelas escadas abaixo. Felizmente, conseguiu agarrar-se ao corrimão.
- Enlouqueceste? - gritou-lhe, a tremer. - Estou grávida!
- Eu sei - respondeu Yaren, com um sorriso sinistro. - Achas que o teu filho sofreu danos? Então, vamos curá-lo.
Colocou as duas mãos sobre o ventre de Victoria e iniciou o feitiço de cura. Uma onda de energia negra, cheia de más vibrações, inundou o corpo de Victoria, que gritou, alarmada, enquanto sentia que o bebé se debatia dentro de si. Recuperou o equilíbrio e afastou Yaren com um empurrão. Estava lívida de fúria, mas o seu coração estremecia de medo perante a simples ideia de ter podido perder a criança que esperava.
- Podes castigar-me a mim, se quiseres. Mas não permitirei que faças mal ao meu filho.
Yaren sorriu de novo.
- Não poderás impedi-lo.
"Claro que sim", pensou Victoria, transformando-se em unicórnio. Não lhe agradava fazê-lo diante das pessoas, mesmo que fossem pessoas que, como Yaren, já a tivessem visto antes com aquele aspecto. Mas não tinha alternativa. Tinha consciência de que, grávida como estava, no alto da escadaria era frágil e vulnerável a Yaren.
O feiticeiro ficou a olhar para ela, assombrado. Victoria aproveitou para o empurrar pelas escadas abaixo.
com um grito sufocado, Yaren rolou até ao chão da cave. Victoria desceu atrás dele, com a graça natural que caracterizava os unicórnios; os seus olhos, no entanto, estavam repletos de uma luz intensa e indomável. Quando o feiticeiro procurou levantar-se, dorido, o corno dela apontava para o seu peito.
- Este é o instrumento que entrega a magia - disse ela -, mas neste momento, muito perto daqui, há um deus, ou dois, que são pura energia, e toda a minha essência capta essa energia como se fosse uma esponja. De modo que, se te tocasse agora, provavelmente não te iria entregar a magia, mas sim uma torrente de energia tão intensa que o teu corpo poderia explodir em pedaços. Por isso, não me provoques.
Yaren baixou o olhar para o cravar no corno. Brilhava de forma extraordinária, tanto que teve de afastar os olhos.
- Está bem. O que queres? Victoria respirou fundo.
- O que é que tu queres? Tens um aspecto lastimável. Há quanto tempo vives aqui?
Yaren hesitou.
- Uns quantos dias... não sei. Depois do que aconteceu no dia da coroação de Alsan, não fui capaz de regressar para junto de Qaydar. Nem de Gerde - acrescentou. - Não sabia o que fazer, de modo que procurei suicidar-me. Não tive coragem.
As suas últimas palavras foram apenas um sussurro. Victoria semícerrou os olhos, comovida.
- Não sei o que posso fazer por ti - murmurou. - Sei que não devia ter atendido o teu pedido naquela tarde, junto à Torre de Kazlunn.
Yaren, abatido e derrotado, fechou os olhos.
- Eu insisti - disse, com esforço. - Sempre achei que devemos perseguir os sonhos até... até ao fim. Devia ter deixado passar a oportunidade?
Victoria calou-se durante uns segundos, pensando.
- Não sei - disse, com sinceridade - Provavelmente, eu teria agido como tu. Suponho que às vezes... há que arriscar. Embora possa correr-te mal. É nisso que consiste o risco.
O feiticeiro enterrou o rosto entre as mãos.
- Já não aguento mais - sussurrou. - Não aguento mais. Nunca devia ter perseguido o sonho errado. Devia ter imaginado que, se o primeiro unicórnio que vi, quando era criança, não me entregou a sua magia... teria tido as suas razões...
- Não as tinha - replicou Victoria. - Entregar a magia é algo que sai do coração. Talvez aquele unicórnio não encontrasse motivos para te tornar um feiticeiro. Mas outro, talvez sim... - Fez uma pausa. - Eu tê-lo-ia feito. Recusei-me tantas vezes porque sabia o que podia acontecer, sabia que não estava preparada. Mas, em qualquer outro momento, tê-lo-ia feito.
Yaren ergueu a cabeça para a olhar.
- És bela - disse ao unicórnio. - Devia ter-me contentado em ver-te. Teimei em arrancar uma flor e ela murchou nas minhas mãos.
Victoria inclinou a cabeça, mas não disse nada. Yaren ergueu a mão para acariciar as suas crinas, lentamente. Victoria sentiu a energia que emanava da sua alma, uma energia cheia de dor e raiva, que a magoou, mas não se moveu. Também Yaren sentiu que uma torrente de magia percorria os seus dedos ao tocá-la e isso provocou-lhe mais dor, mas suportou-a.
Finalmente, ele retirou a mão.
- Podes fazer algo por mim - disse, com esforço.
Victoria fitou-o e leu na expressão do seu rosto o que lhe ia pedir. Horrorizada, voltou a metamorfosear-se em humana para que ele visse a angústia e a consternação estampadas nas suas feições.
- Não podes pedir-me isso - sussurrou. Yaren esboçou um sorriso amargo.
- É a última coisa que te vou pedir. E sabes que não mo podes negar. Deves-mo.
Victoria pestanejou. Tinha os olhos húmidos e o coração apertado.
- Deves-mo - insistiu Yaren. - Demonstra-me que valeu a pena perseguir um unicórnio. Demonstra-me que o teu coração é mais forte do que o meu.
Depois de avançar às cegas pelo andar de baixo do castelo, colado aos muros para se orientar, Covan chegou à entrada da cave. Encontrou a porta fechada e bateu nela com os punhos.
- Abram! - chamou. - Sou eu, Covan!
Ouviu vozes do outro lado. Gritos, soluços e lamentos, e um aviso: "Cubram os olhos, há alguém lá fora!"
- Vamos abrir uma frincha! - gritaram-lhe de dentro. - Entra e fecha imediatamente!
Covan apalpou a porta e aguardou, muito colado a ela. Ouviu o estalido do ferrolho e o ranger das dobradiças ao moverem-se. Introduziu-se de cabeça pelo buraco e fechou a porta rapidamente atrás de si.
Recebeu-o um ambiente um pouco mais escuro e respirou, aliviado. No entanto, havia gente que gemia e gritava, o que o fez recuar, inquieto.
- Podes tirar a venda - disse uma voz perto dele. - Aqui a luz é tolerável.
Após um breve instante de dúvida, o mestre-de-armas retirou a venda. Fechou os olhos imediatamente, porque a luz ainda feria as suas pupilas, mas, pouco a pouco, foi-se acostumando e arriscou-se a abri-los de novo. Os soluços ouviam-se novamente.
- Quem chora? - perguntou, com o coração apertado.
- A perda do globo de escuridão apanhou-nos de surpresa - disse a pessoa que estava com ele. Covan observou-o, e descobriu que era um dos feiticeiros. - Houve gente que não teve tempo de se afastar da porta ou de cobrir os olhos. Bem, tu tens além disso uma protecção mágica acrescentou, olhando-o nos olhos. - Não te será necessária aqui, mas irei mante-la no lugar, por via das dúvidas.
- Mas, o que aconteceu? Porque perdemos o feitiço? O feiticeiro abanou a cabeça.
- Enfraqueceu de repente - disse. - Além disso, a luz tornou-se muito mais intensa, como se a... origem, ou o que quer que seja... se tivesse aproximado demasiado,
a ponto de a termos quase em cima. Estamos a restaurar o feitiço, mas ainda demoraremos algum tempo. A boa notícia é que o furacão parece estar a amainar. E agora, se me desculpares, tenho de voltar ao trabalho - acrescentou, descendo apressadamente pelas escadas.
Covan desceu atrás dele, inquieto. As pessoas mantinham o olhar baixo e procuravam os cantos na sombra; compreendeu que a luz que se filtrava por debaixo da porta era ainda suficientemente intensa para ser incómoda. Ele, no entanto, via sem problemas, e deu graças por Shail o ter ajudado com a sua magia.
Numa esquina escura, debaixo da protecção de um arco, uma voz feminina murmurava com desespero:
- O que se passa? O que está a acontecer? Não consigo ver nada! Aproximou-se com o coração apertado e inclinou-se junto da mulher cega e do seu acompanhante, que a sustinha nos braços e procurava acalmá-la.
- O que se passa? - murmurou.
- Covan...? És tu?
O mestre-de-armas ficou petrificado ao ver que a jovem que jazia ali era Zaisei.
- Onde está Shail? - implorou a celeste, que acabava de perceber a surpresa e a piedade que brotavam do coração de Covan. - O que se passa comigo?
O mestre-de-armas não conseguiu dizer nada, no início. Tomou a mão dela para procurar consolá-la.
- Está bem - disse. - Foi à procura de Jack.
- Zaisei tinha subido ao andar de baixo para esperar pelo feiticeiro explicou a outra sacerdotisa em voz baixa. - A luz surpreendeu-a demasiado longe da porta da cave.
Covan estremeceu de horror e de pena; os belos olhos da celeste abriam-se sem ver, as suas íris azuis tinham perdido a cor e adquirido um estranho tom translúcido.
Quando Jack, Christian e Shail se precipitaram para o interior da cave, encontraram uma cena estranha.
Victoria estava lá, ajoelhada no chão, com as faces molhadas de lágrimas. Embalava nos braços um corpo pálido e inerte.
Jack precipitou-se para ela, mas Christian reteve-o com brusquidão.
- O que...? - sussurrou Shail; não foi capaz de continuar. Victoria ergueu o olhar para eles.
- Matei-o - sussurrou com a voz quebrada de emoção, e os três puderam ver que o jovem que jazia nos seus braços tinha uma marca sangrenta no peito, mesmo por cima do coração.
- Porquê? - conseguiu perguntar Jack, impressionado pela dor que a expressão dela reflectia.
Victoria abanou a cabeça.
- Porque mo pediu - murmurou. - Porque era a única coisa que podia fazer cor ele.
- É Yaren - informou Christian a Jack. O dragão compreendeu. Apressou-se a ajoelhar-se junto dela e abraçou-a para a consolar.
Victoria secou as lágrimas e tentou recuperar a sua força.
- Mas não há tempo a perder - disse. - Temos de deter Alsan. Christian franziu o sobrolho.
- Porque é que te sequestrou? Para te roubar o anel?
com delicadeza, Victoria apoiou o corpo de Yaren contra a parede e levantou-se para olhar Christian.
- Tirou-me o anel para o utilizar numa invocação, e Gaedalu lê vou-o consigo. Sinto muito. Tentei impedi-lo, mas...
- Não te preocupes - tranquilizou-a Christian. - Vamos recuperá-lo. Jack foi testemunha de como se abraçavam, profundamente aflitos.
Sabia que aquele anel mantinha um forte vínculo entre os dois, um vínculo que lhes tornava suportáveis os longos períodos que permaneciam separados. Perdê-lo significara
uma pequena tragédia para ambos.
- Que tipo-de invocação? - quis saber Shail.
Victoria respirou fundo e relatou em poucas palavras o que tinha acontecido. Shail ficou surpreendido ao saber que o anel de Victoria era o lendário Shiskatchegg, a arma que Talmannon utilizara, em tempos remotos, para controlar todos os feiticeiros.
- Porque é que não mo disseste antes? - perguntou, impressionado.
- Ter-te-ias sentido mais tranquilo, se o soubesses?
Shail olhou de soslaio para Christian, que os observava muito sério.
- A verdade é que não - reconheceu. - Mas, se nem sequer eu sabia, como é que Alsan soube?
- Acho que eu lhe disse sem querer - murmurou Jack, profundamente envergonhado. - Devo ter mencionado o nome do anel diante dele. O certo é que não me ocorreu pensar que era o anel de Talmannon. É verdade que sabia, mas... não sei, não costumo pensar nisso. Para mim sempre foi o anel de Christian e Victoria.
- Não faz mal - disse ela, com um breve sorriso. - Para mim é indiferente.
- Já está feito - rematou Christian. - Agora temos de nos concentrar no presente. Onde estão agora Alsan e os outros?
- Foram ao Oráculo de Gantadd. Vão invocar os deuses através da Sala dos Ouvintes.
Jack franziu o sobrolho.
- Temos de o impedir. Embora o Oráculo fique muito longe e ainda demorem a chegar...
- É Qaydar - recordou Victoria.
- Não é o seu estilo - disse Shail -, mas, se o considerar absolutamente necessário, fará o esforço de teletransportar os três até lá.
- Maldição - murmurou Jack.
Naquele momento, um véu de escuridão cobriu a cave, que até àquele momento estivera tão iluminada como se houvesse amplas janelas abertas nas suas paredes.
- O globo de escuridão voltou a funcionar - disse Shail. - Por fim uma boa notícia.
Ninguém disse nada. Aquela boa notícia era apenas uma gota de azeite num oceano de más notícias.
A VOZ DOS DEUSES
Quando lhe anunciaram a súbita chegada dos visitantes, a irmã Karale foi recebê-los ao pórtico, surpreendida.
- Mãe Venerável! - exclamou ao ver Gaedalu. - Não esperávamos o teu regresso antes de... - interrompeu-se ao ver Qaydar e Alsan.
- Irmã - disse a varu, com gravidade -, creio que já conheces Ahan, rei de Vanissar.
A feérica abriu muito os olhos, impressionada. Certo; conhecera Alsan no dia em que a cólera de Neliam se abatera sobre o Oráculo. "Mas naquela altura tinha um aspecto diferente", disse para consigo. "E respondia a outro nome. E em nenhum momento comentara nada acerca de ser rei."
- Conhecemo-nos, sim - disse Alsan, com um sorriso sereno.
- E talvez não conheças Qaydar, o Arquifeiticeiro - prosseguiu Gaedalu -, mas não duvido de que ouviste falar dele.
Karale demorou um pouco a reagir.
- Sim... claro... como não. - Recordava muito bem os sermões da Mãe acerca de confiar nos feiticeiros, especialmente nos feiticeiros poderosos, mas recuperou da sua estupefacção e conseguiu balbuciar: - É uma honra.
- Viemos para fazer uma consulta na Sala dos Ouvintes - disse Gaedalu. Karale empalideceu.
- Mas, Mãe, não podes estar a falar a sério! Sabes que essa sala foi fechada. Estamos em vias de demolir a cúpula, porque, por mais que tenhamos tentado insonorizá-la, o barulho é cada vez mais intenso e não nos permite...
- Mesmo assim, entraremos, irmã - cortou Gaedalu, inflexível. O Arquifeiticeiro encarregar-se-á de proteger os nossos ouvidos convenientemente.
Karale conseguiu murmurar um assentimento e escoltou-os através dos corredores. O Oráculo recuperara bastante bem do embate das águas. As sacerdotisas tinham-se esmerado muito em reconstruir as partes mais danificadas e, embora ainda se vissem alguns estragos aqui e ali, aquele lugar voltava a ser um lar.
Noutros tempos, Gaedalu ter-se-ia sentido orgulhosa da sua comunidade de sacerdotisas e do muito que tinham trabalhado. Mas naquele momento mal se apercebeu de tudo aquilo. Tinha apenas uma coisa em mente.
- Irmã - disse, quando já viravam para o corredor que os conduziria à Sala dos Ouvintes -, vai buscar a pequena Ankira. Hoje, mais do que nunca vamos precisar do dom sagrado que os deuses lhe concederam.
Zaisei continuava sem ver.
Como o castelo voltava a ser habitável, tinham-na transferido para um dos quartos superiores, juntamente com outras pessoas afectadas pela luz de Irial. A maioria ia recuperando lentamente, mas ela não; os seus olhos tinham ficado demasiado feridos.
O tornado afastara-se para sul e o globo de escuridão voltava a proteger a cidade. Os refugiados da cave atreveram-se, um a seguir ao outro, a abandonar o seu esconderijo
e a regressar às suas casas ou aos seus aposentos, no caso daqueles que estavam alojados no castelo. O Pai Venerável, contudo, ficara com Zaisei e os outros.
Tinham tentado explicar-lhes o que tinha acontecido, mas não conseguiam entendê-lo e, portanto, não podiam aceitá-lo. Zaisei era a única que permanecia em silêncio, com os olhos fechados, aguardando.
Ha-Din sabia que estava à espera de Shail.
Não era o único que havia desaparecido durante aqueles caóticos momentos. Covan procurara Alsan por todo o castelo, mas não havia nem rasto dele. Também não havia sinal de Jack, Victoria, Qaydar e Gaedalu.
- O feiticeiro disse que Jack tinha descido aos túneis subterrâneos disse a Ha-Din quando regressou para o informar -, mas os outros não estavam com ele. Espero de coração que o tornado não os tenha levado.
O celeste semicerrou os olhos.
- Eu estou mais inclinado a pensar que se foram embora por vontade própria.
- Embora? - repetiu Covan. - Mas, para onde?
Ha-Din não teve ocasião de responder. Naquele momento, alguém entrou para avisar que um recém-chegado perguntava pelo rei Alsan. O mestre-de-armas despediu-se de Ha-Din com uma inclinação de cabeça e saiu apressadamente do quarto.
O visitante aguardava-o no pátio. Era um jovem alto e decidido que esperava junto de um dragão artificial.
- Enviam-me Denyal e Tanawe para falar com o rei - proclamou.
- O rei não pode receber-te. Não se encontra no castelo neste momento e não sabemos quando voltará.
Ao ouvir estas palavras, toda a segurança do piloto pareceu cair por terra.
- Mas como? - desesperou-se. - Hoje era o dia! Não podemos esperar mais. Eu devia ter chegado há horas, mas o tornado obrigou-me a refugiar-me nas montanhas. A mensagem...
- O tornado? - cortou Covan. - E então a luz?
- Tanawe aplicou ao dragão um feitiço de escuridão antes de partir. Mas desculpa-me, cavaleiro, isso não é o mais importante agora. Ontem chegaram a Thalis os feiticeiros prometidos por Qaydar. Há três dias regressou também um dos pilotos enviados a Kash-Tar com o último ingrediente que Tanawe precisava para completar os dragões. Agora, a frota está pronta para partir. Os exércitos de Nanetten, Dingra e Raheld também nos aguardam. Necessitamos de uma resposta do rei Alsan com urgência.
Covan reflectiu. Sabia que o ataque aos Picos de Fogo estava iminente e que Alsan deixara tudo cuidadosamente planeado. Perguntou-se se estaria autorizado a tomar aquele tipo de decisões em seu nome.
"Sei o que ele diria", pensou de repente. "Há muito que anda a planear isto. Se regressar em breve, ficará satisfeito por tudo correr como previsto e, se demorar a voltar... bem, o reino não pode estar sem uma mão que o guie nestes momentos tão difíceis." Shail tinha razão. Ele era o outro candidato ao trono, aquele que devia substituir Alsan na sua ausência.
- Diz a Denyal que ordene a partida da frota - disse por fim. - Os exércitos de Vanissar partirão de imediato. Vemo-nos nos Picos de Fogo.
O jovem piloto inclinou a cabeça e subiu de novo para o seu dragão. Pouco depois, sobrevoava os telhados de Vanis, rumo a Thalis.
- Não quero voltar a entrar! - gritava Ankira, procurando agarrar-se às portas, enquanto Alsan a arrastava para a Sala dos Ouvintes. - Não quero!
A última palavra que pronunciou acabou num uivo de terror quando Alsan conseguiu que se soltasse e a colocou aos ombros, apesar dos seus choros e pontapés. A irmã Karale observava a cena, angustiada.
- É necessário tudo isto, Mãe?
- Absolutamente - respondeu Gaedalu. - Também eu preferia não ter de recorrer a uma criança, mas as outras duas ouvintes não estão em condições de nos ajudar. E necessitamos de Ankira, irmã. O mundo inteiro necessita dela neste momento.
Ankira chorava enquanto Alsan a levava para a aterrorizante Sala dos Ouvintes. Suplicou entre lágrimas que a deixassem ir embora; pediu ajuda à irmã Karale, mas esta não pôde fazer outra coisa a não ser ficar colada à parede a olhar, impotente, amaldiçoandose pela sua cobardia.
Viu que o Arquifeiticeiro aplicava sobre os quatro um conjuro para proteger os seus ouvidos, mas isso não a fez sentir-se melhor. Ficou a ver como retiravam os colchões, as mantas e os almofadões que protegiam a porta da sala, até que o barulho foi tão ensurdecedor, tão insuportável que não teve outro remédio senão fugir a correr.
Os que ficaram ouviam aquele barulho, mas muito amortecido. Pareciam vozes, era certo; mas não chegavam a entender o que diziam. Eram algaraviadas sem sentido, como o barulho de muitos sussurros a entrelaçar-se, sussurros que retumbavam com a potência de um furacão.
- Vão matar-nos, vão matar-nos - gemia Ankira.
- Soo os nossos deuses, pequena - disse Gaedalu, amavelmente. - Não farão mal àqueles que confiam neles.
- Mas eles não sabem que estamos aqui! - gritou ela, desesperada. Ninguém fez caso. Abriram a porta da sala e entraram. Foi Qaydar o encarregado de a fechar atrás deles e bloqueá-la de novo com a sua magia, para que não os incomodassem.
- Precisarei de algum tempo para preparar o conjuro - disse.
- Não nos resta muito - replicou Gaedalu -, mas esperaremos. Ankira, ainda nos braços de Alsan, gemeu e enterrou a cara no seu peito largo. Por um instante o jovem evocou o rosto de outra menina aterrada a quem ele e Shail tinham salvado da morte anos antes. Abanou a cabeça, enquanto uma pontada de dor atravessava as suas memórias. "Falhei com Victoria", pensou. "Disse-lhe que a protegeria de Kirtash e não o fiz. Ele acabou por seduzi-la, levou-a consigo, apesar de eu ter jurado que a defenderia. Não o enfrentei e ele arrebatou-ma. Não voltará a acontecer."
- Não tenhas medo, pequena - disse a Ankira. - És uma escolhida dos deuses; eles não permitirão que te aconteça nada de mal... e eu também não.
Ela não respondeu. Continuava a tremer, muda de terror.
Shail precipitou-se para dentro do quarto.
- Zaisei! - exclamou.
Ela voltou para ele os seus olhos sem vida.
- Shail? - murmurou, mas não pôde acrescentar mais, porque o feiticeiro sufocou-a num apertado abraço.
- O que... que te aconteceu?
- A luz ofuscou-a - disse Ha-Din em voz baixa. - Não consegue ver nada. Talvez recupere a visão nas próximas horas, mas...
Shail afastou-se um pouco da sacerdotisa, tomou o rosto dela nas mãos e contemplou os seus olhos.
- Deuses - sussurrou, e imediatamente se arrependeu de ter utilizado aquela expressão. Cerrou os dentes, com raiva.
Zaisei captou aqueles sentimentos.
- Não... - murmurou, mas Shail cortou:
- Sim, sinto pena e sinto raiva, Zaisei. Sei que estas emoções
perturbam a paz do meu espírito, mas sou humano e não consigo evitá-lo.
A voz quebrou-se-lhe. Estreitou-a outra vez nos braços.
- Talvez Victoria possa fazer alguma coisa por ela - disse a voz de Jack nas suas costas.
O feiticeiro ergueu a cabeça para ele. Victoria não estava ali e recordou porquê: mal chegara, correra para o seu quarto em busca do báculo. Essa ideia devolveu-o à realidade.
- Não - decidiu. - Vão deter Alsan. Depois, quando tudo tiver terminado... se continuarmos todos aqui... irei pedir-lhe ajuda para Zaisei. Mas agora têm de partir o quanto antes.
- Partir? Não vens connosco?
Shail negou com a cabeça, sem afastar o olhar de Zaisei.
- Não sou um herói, Jack. O meu lugar é aqui, junto dela. Lamento.
- Não lamentes - murmurou Jack. - Tu não tens obrigação de salvar o mundo. Sei que soa a conselho egoísta, mas... aproveita-te disso.
Shail assentiu.
- Vai buscar Victoria - disse - e vão-se já embora. Não deixes que entre aqui ou vai querer ficar para curar toda esta gente.
Jack mordeu o lábio inferior.
- Não penses que não me tenta a ideia de a deixar aqui - reconheceu.
- No seu estado...
- Mas sem ela não chegarás a tempo ao Oráculo, Jack. Ele fitou-o sem entender.
- Vai-te embora! - apressou-o Shail, impaciente.
Jack abriu a boca, mas não disse nada. Inspirou fundo, assentiu e, depois de se despedir com um gesto de Ha-Din, deu meia-volta e saiu do quarto.
Instantes depois, voava sobre o castelo, com Victoria montada sobre o seu dorso, rumo a Gantadd.
Qaydar pronunciava as palavras lenta e conscienciosamente. No centro do hexágono, Aakira soluçava de puro terror. Um pouco mais afastados, Alsan e Gaedalu aguardavam em silêncio. Quando o hexágono traçado com finas linhas de pó dourado se iluminou por um breve instan te, ambos se entreolharam. Tanto Alsan, um cavaleiro de Nurgon, como Gaedalu, uma sacerdotisa, desconfiavam da magia, mas nenhum dos dois deteve Qaydar, tal como não o tinham detido na hora de invocar Talmannon. Gaedalu esboçou um sorriso amargo e, embora não tenha dito nada, Alsan compreendeu o seu significado, porque ele estava a pensar o mesmo: a necessidade obriga a fazer estranhas alianças.
O hexágono brilhou com mais intensidade e Qaydar elevou o tom da sua voz. As palavras mágicas ressoaram com força no interior da bolha que o próprio Arquifeiticeiro tinha criado para os isolar a todos do barulho atroador da sala. Ankira gritou de medo e deixou-se cair de joelhos sobre o chão, segurando a cabeça com as mãos.
Qaydar pronunciou as últimas palavras, deu um passo atrás e esperou.
Ankira gritou outra vez e abanou a cabeça. Tremia violentamente, mas não foi capaz de se pôr de pé e fugir do hexágono.
- O que se está a passar com ela? - perguntou Alsan, subitamente inquieto.
- Estou a abrir os seus sentidos - disse Qaydar -, a abrir o canal da sua mente que a faz comunicar com os deuses, para que essa comunicação seja em ambas as direcções.
- Dói-lhe? - perguntou Gaedalu.
- Possivelmente; mas passará depressa. Qaydar tinha razão. Depois de um último grito, que morreu lentamente nos seus lábios, a menina ergueu a cabeça e arregalou os olhos.
Alsan engoliu em seco. Os olhos de Ankira tinham-se tornado completamente brancos e o seu rosto moreno tornara-se tão frio e inexpressivo como o de uma estátua de ébano.
- Ankira? - perguntou Alsan, inquieto, mas ela não respondeu, nem sequer deu mostras de o ter ouvido. Estava em transe.
- Há alguém... do outro lado? - perguntou Qaydar.
Ankira entreabriu os lábios. Um estranho murmúrio saiu da sua boca, como se várias vozes falassem ao mesmo tempo. Mas todas aquelas identidades falavam com a voz de Ankira.
O sussurro tornou-se um pouco mais audível, mas não muito mais inteligível.
- Há alguém? - repetiu Qaydar.
Por fim, Ankira falou em idhunaico. E foi com uma voz estranha, porque parecia formada por seis vozes diferentes que se entrelaçavam num só murmúrio, mas todas falavam com a voz da menina:
- Mortais - disse Ankira, com um tom desprovido de qualquer emoção. - O que querem?
- Não vamos chegar a tempo! - gritou Jack, batendo as asas com todas as suas forças.
Victoria não respondeu imediatamente. Estava inquieta por Christian, que partira para os Picos de Fogo para avisar Gerde e os sheks das intenções de Alsan. Também ele demoraria a chegar. Provavelmente deparar-se-ia com algum deus pelo caminho e teria de fazer um desvio. Mas o que mais a preocupava era que, sem o anel, tinha perdido aquele contacto tão tranquilizador que lhe permitia saber que, por muito longe que estivesse, por muitos perigos que corresse, continuava a estar a salvo.
- Victoria! - insistiu Jack. - Shail disse que podes fazer com que cheguemos antes!
- Sim - respondeu ela, voltando à realidade. - Consigo mover-me com a luz. Mas não é muito seguro.
- Porquê? É algo como o teletransporte?
- Não; o teletransporte consiste em desaparecer num sítio e aparecer noutro, e eu não consigo fazer isso. O único risco do teletransporte é apareceres num lugar inesperado, como no interior de uma parede ou algo assim; mas resolve-se visualizando claramente o lugar para onde queres transportar-te. Isto é diferente, O que eu consigo fazer consiste em mover-me com a luz e não posso prever todos os obstáculos que encontrarei no meu caminho. Como achas que seria espetarmo-nos contra um pico montanhoso à velocidade da luz?
Jack imaginou-o e ficou com as escamas em pé.
- Mas, alguma vez o fizeste?
Victoria recordou como viajara para resgatar Jack e Christian, quando Ashran os capturara na Torre de Drackwen.
- Sim, mas era uma emergência.
- Isto também é!
- Antes não estava grávida; agora, estou. Jack não disse nada.
Victoria pensou em tudo o que Christian lhes contara acerca de Gerde, do que compreendera sobre os deuses, do plano de exílio dos sheks. Era um conceito tão diferente de tudo o que lhes tinham ensinado que havia sido difícil para eles aceitarem-no, e sabiam que os outros também não o aceitariam. Mas não podiam correr o risco.
- Não existem deuses criadores e deuses destruidores - contara-lhes Christian, na solidão da cabana semidesmoronada de Alis Lithban -, porque todos os deuses procedem do mesmo caos criador, de uma vontade criadora e destruidora ao mesmo tempo. Porque a ordem e o caos, a luz e a escuridão, o dia e a noite, são uma só coisa e não se podem separar. Estão na essência de todas as coisas e de todas as criaturas.
- Mas os Seis fizeram-no - objectara Jack. - Extraíram deles essa parte destruidora e encerraram-na numa espécie de cápsula indestrutível.
- E por isso o Sétimo foi negro, caótico e destruidor no início - assentira Christian -, e as primeiras gerações de homens-serpentes foram monstros cruéis e destrutivos. Mas não se pode separar para sempre ambas as essências. Se os deuses se tivessem libertado do caos, não destruiriam as coisas à sua passagem. Não teriam podido criar dragões capazes de odiar.
E se o Sétimo fosse somente caos e destruição - acrescentara -, nunca teria sido capaz de dar vida a uma nova espécie.
- Queres dizer que, com o tempo, a parte criadora e a parte destruidora voltaram a equilibrar-se na essência de cada deus? - perguntara Victoria.
Tinham reflectido muito sobre aquilo. Jack comparara-o com o que acontece quando se tenta separar os pólos positivo e negativo de um íman: não se obtém um pólo positivo e um pólo negativo, mas sim dois imanes diferentes, cada um com ambas as polaridades.
- E a ironia - dissera Christian - é que os Seis não têm consciência de que essa parte destrutiva voltou a aflorar neles com o tempo, não reparam na destruição que provocam à sua passagem. Da mesma forma que o Sétimo não tinha consciência de ser um deus criador.
- Tinha? - repetira Victoria, olhando para ele com uma súbita suspeita. Christian limitara-se a sorrir.
- Jamais poderão destruir o Sétimo - dissera o shek -, porque, embora o considerem a parte excedente de si mesmos, os detritos que atiraram ao mundo, no fundo é um deus tão completo como os outros Seis. Sabem que é indestrutível e por isso encerraram-no. E tentarão encerrá-lo novamente quando o encontrarem. Depois, privadas da energia do seu deus, as serpentes perderão força e serão exterminadas. Todas elas - acrescentara.
- Incluindo tu, suponho - dissera Jack. - Nesse caso, agora entendo porque defendes Gerde com tanto interesse.
- Incluindo eu ou uma parte de mim, pelo menos. Mas não faço isto somente por mim. O Sétimo anda há milénios a fugir dos deuses, escondendo-se noutras dimensões ou em corpos mortais; inclusivamente deu vida a uma raça destinada a enfrentar os dragões criados para o encontrar e destruir cada uma das suas encarnações. Se for descoberto, se Gerde morrer e a essência do Sétimo sair para a luz... não se renderá sem oferecer resistência. Os deuses não conseguirão destruí-lo. Lutarão contra ele até conseguirem prendê-lo novamente. Não restará grande coisa de nós quando isso acontecer, mas os Seis não se irão importar. São deuses criadores. Podem sempre criar outro mundo, um mundo onde o Sétimo não exista. E continuarão a tentá-lo uma vez e outra, porque essa é a sua essência, a essência do Universo, criar coisas e depois destruí-las para criar outras novas. Nós não o notamos porque as nossas vidas são tão breves para um deus que não somos capazes de abarcar a ideia de que cada mundo não é mais do que um novo projecto de um ou vários deuses. Tentam cuidar deles, mas nada pode permanecer imóvel e estável durante muito tempo. Por isso, mais cedo ou mais tarde, todos os mundos morrem. Ou são violentamente destruídos pelo caos, ou perecem depois de declinar durante muito tempo numa não-mudança que não lhes proporciona energia para evoluir.
- Os deuses quiseram que o mundo permanecesse sem alterações murmurara Victoria -, mas um mundo que não muda é um mundo morto. Por isso criaram os unicórnios, para que mantivessem essa energia em movimento, sem necessidade de que eles tivessem de continuar a destruir e a criar coisas.
- Não foi suficiente e livraram-se do caos encerrando-o numa prisão que sepultaram no mar. Mas não conseguiram acabar com ele, por isso, mais tarde, criaram os dragões, e o Sétimo deu vida aos sheks. Os sheks eram o caos, a destruição e a mudança; os dragões eram os guardiães da ordem e da criação dos Seis. Mas agora, as coisas mudaram. Os dragões foram destruídos e o Sétimo e os sheks tomaram o poder, e não destruíram tudo, como se esperava deles, mas, em certo sentido, mantiveram estável a criação dos Seis, limitando-se a governá-la. Entendem o que eu quero dizer?
- E achas que também se limitarão a governar a Terra, assim sem mais? Por isso estás a ajudá-los a escapar?
Christian sorriu. Foi um sorriso com uma nota maliciosa que não costumava ser própria dele.
- Esse era o plano principal - admitiu. - Gerde sabia, graças aos relatórios de Shizuko, o difícil que seria conquistar a Terra, e estava a fazer planos a longo prazo. Esse plano incluía o treino de uma futura encarnação humana que lhe permitisse mover-se por esse novo mundo sem despertar a atenção, até que se assegurasse de que a humanidade terrestre sucumbia às serpentes e não havia nenhuma divindade colérica que lhe negasse a entrada no panteão da Terra. Mas esse plano passou a ser o nosso plano secundário quando Gerde reconheceu que também podia ser uma deusa criadora.
Jack e Victoria entenderam de repente e olharam para Christian, desconcertados.
- Sim - confirmara ele. - É o projecto mais importante, o mais grandioso que o Sétimo e as suas criaturas jamais empreenderam. Mas se os Seis encontrarem Gerde, se descobrirem que ela é a identidade actual do Sétimo, estará tudo acabado. Por isso temos de lhe dar tempo. Por isso há que proteger Gerde. Se partirmos, não haverá confronto e talvez Idhún sobreviva como mundo mais várias dezenas de milénios. Se ficarmos e nos descobrirem, tudo terá terminado... para todos.
As palavras de Christian flutuaram ainda durante uns segundos na memória de Victoria. Cerrou os dentes e gritou:
- Jack, voa e sobe o mais alto que conseguires! Vamos viajar com a luz!
Jack voltou o seu longo pescoço para olhar para ela, mas assentiu com um grande sorriso e bateu as asas, elevando-se ainda mais no seio do firmamento idhunita.
- Mortais - disse de novo Ankira. - O que querem?
O tom daquela voz, formada por seis vozes entrelaçadas, era frio e desumano, mas ao mesmo tempo tão profundo e aterrador que os fez cair de joelhos diante da menina, mortos de medo. Havia algo terrífico naquelas vozes, nos olhos dela, no próprio ambiente, algo tão grande, tão imensurável, que teriam enlouquecido de terror se não estivessem demasiado perturbados para pensar nisso.
Ao fim de uns instantes de silêncio amedrontado, Gaedalu atreveu-se por fim a lançar umas palavras telepáticas à mente de Ankira, tão vasta e imensa de repente, como um ribeiro que se tivesse transformado num oceano num só segundo.
- Divinos senhores... - começou, perguntando-se se era esse o tratamento adequado para os deuses - concedem-nos uma grande honra ao escutarem as nossas singelas palavras. O meu nome...
- Mortais - repetiu Ankira. - O que procuram?
De novo, a voz fê-los encolher-se de terror. Gaedalu decidiu saltar as formalidades para não os impacientar, embora as vozes divinas não tivessem soado de todo impacientes, mas antes indiferentes.
- Divinos senhores - sussurrou -, tivemos o atrevimento de vos invocar para revelar a identidade da última encarnação do sétimo deus.
- Podem ficar tranquilos, mortais - disse Ankira. - Ele e as suas criaturas em breve serão erradicadas deste mundo.
Aquilo era uma boa notícia, pensou Alsan, aliviado. Era reconfortante saber que por fim havia alguém mais sábio e poderoso do que ele, que assumiria a responsabilidade de livrar o mundo do Sétimo e das suas serpentes.
Contudo, não pôde evitar perguntar-se como era possível que os deuses não soubessem que estavam a destruir o mundo que pretendiam salvar. Aclarou a voz, porque tinha a garganta seca e, depois de várias tentativas, conseguiu dizer, com voz trémula:
- Divinos senhores... não queria faltar-vos ao respeito, mas desejava fazer notar que a vossa passagem pelo nosso mundo está a causar... bastantes estragos. Se achassem bem...
- Estamos a renovar a energia do mundo - disseram as vozes, que soaram, por um instante, com o tom de um pai paciente que explica algo muito complicado a uma criança muito pequena ou a alguém muito falho de entendimento.
Alsan tinha o coração descontrolado de puro terror e reprimiu o impulso de dar meia-volta e fugir a correr, e o impulso, mais preocupante, que o instava a suicidar-se ali mesmo por ter ousado questionar os deuses. Fechou os olhos e procurou acalmar-se antes de se atrever a dizer com um fio de voz:
- Mas... estão a morrer pessoas...
- Isso não tem importância. Morre e nasce gente nova. Fazem-no constantemente. Andam a fazê-lo desde que o mundo foi criado. Já ninguém se lembra da gente que nasceu e morreu durante a primeira geração de mortais. Esta geração não é mais importante do que as anteriores.
Alsan não soube o que dizer. Tinha a mente completamente em branco.
- O Sétimo - interveio Gaedalu, falando muito depressa - habita entre nós e perturba a nossa existência, dedicada à gloria e exaltação das seis divindades. O seu nome agora é Gerde. É uma feérica.
Repetira aquelas palavras muitas vezes para consigo, reunindo coragem para se atrever a transmiti-las à mente de Ankira; e, quando o fez, enviou aqueles pensamentos de repente, aterrorizada pela sua própria ousadia e, ao mesmo tempo, aliviada por tirá-los de cima de si.
Os deuses permaneceram mudos. Alsan pensou que não deviam gostar de serem admoestados a acabar com o Sétimo e procurou aliviar um pouco aquela impressão.
- Podemos... podemos fazê-lo nós, os mortais - tartamudeou. - Podíamos continuar a lutar sem necessidade de incomodar as divindades. Se os dragões regressassem - acrescentou, em voz mais baixa -, podíamos encarregar-nos de derrotar Gerde e os sheks, de exterminá-los a todos.
- E se os unicórnios voltassem - conseguiu acrescentar Qaydar, a tremer e sem se atrever a olhar Ankira nos olhos -, a Ordem Mágica recuperaria o seu antigo esplendor... e os feiticeiros dedicariam a sua vida e magia a lutar contra as serpentes.
- Para maior glória dos Seis - apressou-se a esclarecer Gaedalu, escandalizada perante tantos pedidos.
- Quando capturarmos o ser a que vocês chamam o Sétimo - disse Ankira, com o seu sussurro de seis vozes entrelaçadas -, todas as serpentes sucumbirão com ele e os dragões já não serão necessários. Também os unicórnios não serão necessários - acrescentou -, porque, com a nossa passagem, estamos a recarregar o mundo de energia; e esse mundo conhecerá ainda muitas gerações antes de voltar a entrar em declínio.
Qaydar empalideceu.
- Mas a Ordem Mágica... - sussurrou, calando-se imediatamente sem ousar continuar, temeroso da ira dos Seis.
Os deuses não se zangaram. Era como se nada do que eles pudessem fazer ou dizer, compreendeu Alsan subitamente, pudesse incomodá-los ou agradar-lhes, ou sequer interessar-lhes.
- Tudo isso não tem importância - responderam as vozes. - Os mortais nascem, vivem e morrem; as estruturas, as cidades, as organizações, também. Há muito que perdemos o interesse pelas vidas das pessoas e por todas as coisas que fazem. Apenas duram o cintilar de uma estrela.
Os três ficaram atónitos, sem saber o que dizer. Também os deuses permaneceram calados, até que Gaedalu sussurrou na mente de Ankira:
- Rogo-ws, não castiguem a nossa estupidez com o vosso silêncio... se vos incomodámos...
- Estamos à procura da mortal chamada Gerde - disseram as seis vozes através da boca da menina, com um timbre monótono e absolutamente impessoal.
Alsan pressentiu que os deuses não estavam a castigar Gaedalu com a sua indiferença; a indiferença já estava lá e os deuses nunca se dariam ao trabalho de castigar os mortais, porque nada do que estes pudessem fazer poderia chegar a incomodá-los ou a afectá-los minimamente.
- Se não for... muita ousadia da minha parte - hesitou Qaydar -, tenho curiosidade em saber... como pensam encontrá-la.
- Todos os mortais têm o seu nome escrito na sua consciência. São um confuso caos de nomes e de vozes e de rostos, tão parecidos uns com os outros, tão pequenos e insignificantes que são difíceis de distinguir. Mas, sabendo o seu nome, podemos encontrar a sua consciência entre milhões de consciências semelhantes e, desta maneira, encontrá-la.
Não disseram mais nada, e os três mortais não se atreveram a continuar as perguntas. De repente, os olhos completamente brancos de Ankira brilharam de um modo estranho.
- É isso - sussurraram as seis vozes. Qaydar remexeu-se, inquieto.
- Já... já a encontrastes? - tartamudeou.
O rosto da menina continuava sem expressar a menor emoção, no entanto, as vozes soaram sinistras e aterradoras quando ela disse:
- Sim.
Gerde estremeceu da cabeça aos pés e olhou em redor, aterrorizada, como se vários pares de olhos hostis ocultos nas sombras se tivessem cravado nela.
- Não - murmurou. - Não, ainda não... Ainda é demasiado cedo.
Virou-se bruscamente. Atrás dela, no desfiladeiro, aguardavam dezenas de szish, perfeitamente organizados em fileiras. Aguardavam estoicamente, sem uma queixa. Gerde sentiu-se orgulhosa deles.
Sabia que a formação chegava muito mais além e que a cada momento se lhe juntavam mais e mais szish. Todos preparados para o grande salto. Todos dispostos a emigrar para um novo mundo.
Gerde passeou o olhar por aquela multidão. Havia também mulheres e crianças. Tinham-nas deixado passar primeiro e, ainda assim, reinava no desfiladeiro um silêncio quase sepulcral. Quando choravam, os bebés szish faziam-no muito baixinho. Não lhes era necessário levantar a voz para que o apurado ouvido das suas mães detectasse o seu pranto.
Gerde suspirou para com os seus botões. A Porta interdimensional estava ali, reluzente, à espera de ser atravessada. Os problemas ainda não estavam todos resolvidos. Ainda havia arestas a limar. Mas não podiam esperar mais.
Ergueu a cabeça para Eissesh, que aguardava, muito quieto, ao seu lado.
- Encontraram-me - disse.
A serpente semicerrou os olhos, mas não disse nada.
- Vão demorar um pouco a chegar aqui, porque se deslocam muito devagar por este mundo - prosseguiu Gerde. - Talvez tenhamos tempo de fazer passar todos os szish, mas vocês...
Não acabou de falar, porque não era necessário. Eissesh sabia que a Porta interdimensional era ainda demasiado pequena para permitir a passagem de muitos sheks ao mesmo tempo. Requereria um pouco mais de tempo abrir um orifício maior e, além disso, também não se deviam apressar. A Porta devia alargar-se no último momento. O tecido entre ambas as realidades não podia suportar um orifício tão grande durante tanto tempo, porque isso poderia desestabilizar os dois mundos.
- Então, não há tempo a perder - disse Eissesh.
Voltou-se para os szish e transmitiu, a todos eles, uma breve ordem telepática. Pareceu que os primeiros hesitavam apenas por uma fracção de segundo. Então, lentamente, começaram a andar.
Assher, de pé junto a Gerde, contemplou-os em silêncio. Descobriu um rosto familiar: o de uma jovem fêmea szish a quem um dia deixara cair numa armadilha de barro. Recordou o seu nome: Sassia.
Ela também olhou para ele, mas não disse palavra. Simplesmente, girou de novo a cabeça para a frente e continuou a caminhar. Assher não a deteve nem procurou falar-lhe. Acima de tudo, não tinham nada a dizer um ao outro.
Quando os primeiros homens-serpentes atravessaram a Porta interdimensional a caminho de um novo mundo, Gerde teve a impressão de que já não havia volta atrás.
Sentiu-se inquieta, mas ao mesmo tempo exultante e estranhamente triste.
Gaedalu chorava.
Grandes lágrimas caíam dos seus enormes olhos aquosos enquanto sustinha nos braços o corpo da pequena Ankira. A sua pele estava a secar, mas pouco lhe importava.
Os deuses tinham-se retirado da mente da menina mal localizaram Gerde e ela deslizara para o chão, inerte, como uma folha de Outono. Os seus olhos continuavam vazios. O seu coração ainda batia, mas fazia-o com esforço, como se não achasse que valia a pena continuar a fazê-lo. Tinham tentado reanimá-la, mas era inútil.
Também eles estavam mortos de cansaço. Foi como se, a partir do momento em que os deuses deixaram de lhes prestar atenção, tivessem levado consigo toda a energia que os mantinha de pé. Qaydar estava sentado no chão, com os ombros descaídos e o olhar baixo, como um idoso que se tivesse cansado de viver. Alsan enterrara o rosto entre as mãos e soluçava sem saber porquê.
Sobre as suas cabeças, ainda protegidas pelo feitiço do Arquifeiticeiro, as vozes dos deuses continuavam a retumbar naquele sussurro incompreensível, sinal de que continuavam naquele mundo, algures... mas já não falavam com eles nem tinham a menor intenção de continuar a ouvi-los.
Foi assim que Jack e Victoria os encontraram quando entraram precipitadamente na Sala dos Ouvintes, momentos mais tarde. Victoria estacou e tapou os ouvidos, com um gemido, mas Jack puxou-a e levou-a para o interior da campânula protectora.
Alsan nem sequer levantou a cabeça. Jack agarrou-o pela roupa e fê-Io voltar-se para ele, com violência. Depois, fechou o punho e desferiu um golpe contra o seu queixo, com todas as suas forças.
- Isto é por teres posto as mãos em cima de Victoria e do meu filho atirou-lhe à cara, irritado.
Ia bater-lhe novamente, mas Victoria deteve-o.
- Não temos tempo para isso, Jack! O jovem conteve-se a custo.
- Falaremos sobre isto - prometeu-lhe. - Não penses que vou deixar as coisas assim.
Alsan não respondeu. Levara a mão à cara, ao lugar onde Jack o atingira. Sem dúvida que lhe doera, mas não parecia importar-se. Ergueu a cabeça para eles, com o olhar perdido. Jack abanou-o sem contemplações.
- Ouve-me! Fizeram-no? Disseram aos deuses onde está o sétimo deus? Alsan assentiu com algum esforço. Jack deixou escapar uma imprecação.
- És um inconsciente! - recriminou-o. - Tens ideia do que fizeste? Se destruírem Gerde, libertarão o Sétimo e a batalha entre eles será tão feroz que acabará com
todos nós!
Alsan olhou para ele, mas não respondeu. Jack sacudiu-o de novo:
- Estragaste tudo! - gritou-lhe. - Os planos de Gerde, o exílio dos sheks, tudo! Tinham encontrado um novo mundo, um mundo vazio, para irem embora e deixar-nos em paz de uma vez por todas! Gerde passou meses a tentar torná-lo habitável. Porque é que não foste capaz de compreender que a única forma de ganhar esta guerra consistia em deixar escapar o inimigo? Se os deuses se enfrentarem, seremos nós, os mortais, a perder, num lado e no outro! Porque é que não entendes?
- Entendo - disse então Alsan em voz baixa. - Entendo. Jack soltou-o e olhou para ele, um pouco confuso.
- Entendo - murmurou Alsan. - Os deuses têm os seus próprios planos para o mundo. Nós fazemos parte desse mundo, mas não somos tudo. Para eles não somos assim tão importantes. É-lhes indiferente o que fazemos ou dizemos. Os seus planos são demasiado grandes e andam a desenvolvê-los desde o início dos tempos. Em comparação com a grandeza e a imensidão dos seus projectos, as vidas dos mortais não significam grande coisa. Entendi isso.
Jack não soube o que dizer. Compreendeu que ter enfrentado os deuses, cara a cara, lhe tinha aberto os olhos... quiçá demasiado tarde.
- Que... o que posso fazer? - murmurou Alsan. Pela primeira vez na vida, Jack viu-o perdido e confuso. Não encontrou palavras para lhe responder.
Victoria, por sua vez, tomara Ankira nos seus braços e tentava curá-la com a sua magia. De imediato, o rosto da menina descontraiu-se e os olhos fecharam-se. Pouco depois, soltou um grito de terror e voltou a abri-los, sobressaltada. Gaedalu respirou, aliviada, ao ver que voltavam a ter a mesma aparência de sempre.
Ankira desatou a chorar e Victoria abraçou-a para a consolar. Nenhuma das duas falou. Não foi necessário.
Então, Victoria ergueu a cabeça e olhou para Gaedalu nos olhos, muito séria. E, lentamente, estendeu a mão para ela. A varu contemplou-a com o olhar perdido, como se não estivesse realmente a vê-la. Depois, baixou a cabeça. Procurou entre as pregas da sua túnica e tirou uma pequena caixinha com uma gema negra incrustada na tampa. Após uma breve hesitação, depositou-a na mão aberta de Victoria. Ela pegou na caixa, abriu-a e tirou do seu interior o Olho da Serpente. Quando o enfiou de novo no seu dedo e percebeu que a presença de Christian voltava a tactear suavemente a sua consciência, não pôde evitar fechar os olhos, com um suspiro de alívio.
Jack pôs-se de pé.
- Vou-me embora - anunciou. Alsan reagiu.
- Para onde?
- Ter com Kirtash. Sim - assentiu, ao ver a sua expressão interrogativa -, nunca pensei que diria isto, porque odeio Gerde profundamente, mas tenho de lhe cobrir
a retirada. A ela e ao que resta da raça shek - acrescentou, sombrio.
Victoria afastou com suavidade a trémula Ankira e ergueu-se com algum esforço, apoiando-se no báculo.
- Eu também. E não me vais convencer a ficar para trás - acrescentou, antes que Jack abrisse a boca. - vou contigo e com Christian.
- Mas como vais chegar aos Picos de Fogo a tempo? - murmurou Alsan, confuso.
- Os deuses movem-se devagar - disse Jack -, porque para eles o tempo não significa o mesmo que para nós. Afinal de contas, são eternos e não têm pressa - acrescentou, com um breve sorriso. - com um pouco de sorte, conseguiremos adiantar-nos e chegar junto de Gerde antes deles.
Alsan assentiu. Levantou-se e, com um gesto enérgico, arrancou o bracelete que usava e atirou-o ao chão. Gaedalu viu-o cair diante dela, mas não reagiu.
- Eu acompanho-vos - disse, com decisão. - Não creio que sirva para alguma coisa, mas, se houver algo que possa fazer para emendar o meu erro, faço-o. Devo-vos isso...
especialmente a ti - acrescentou, olhando para Victoria.
Ela inclinou a cabeça sem dizer nada.
Jack olhou para Qaydar e Gaedalu, mas nenhum dos dois falou nem fez o menor gesto. Ainda estavam demasiado chocados, e o jovem compreendeu que demorariam muito tempo a assimilar a experiência que tinham vivido. Voltou-se para Alsan. Também ele estava pálido e ainda tremia, mas esforçava-se por manter uma expressão resoluta.
- Está bem - disse Jack, assentindo. - Então, não há tempo a perder.
Ankira não quis ficar ali. Quando Jack, Victoria e Alsan saíram da Sala dos Ouvintes a toda velocidade, a menina ia agarrada à mão de Victoria.
Os deuses estavam a deslocar-se.
Os Seis ao mesmo tempo começaram a mover-se, sem pressa, em direcção ao lugar onde tinham detectado a presença de Gerde.
Antes, para eles Gerde não tinha sido Gerde. Era apenas mais uma partícula daquela amálgama de criaturas vivas que habitavam o mundo. Viviam e morriam demasiado depressa para que os Seis chegassem a conhecê-las a todas. Até mesmo as raças com maior longevidade, como os feéricos ou os gigantes, não eram para eles mais do que breves existências que se apagavam com a facilidade de uma vela ao vento.
Cada vez que olhavam para o mundo havia novas criaturas, todas elas pequenas e insípidas, todas elas parecidas. Os únicos seres que chegaram a despertar a sua atenção, pela sua complexidade e capacidade para alterar o mundo que eles tinham criado, eram os unicórnios, os dragões e os sheks. Alguns dos feiticeiros mais poderosos tinham uma vez ou outra conseguido atrair o seu interesse e deste modo tinham descoberto Ashran tempos atrás; e ao individualizá-lo, ao estudá-lo destacadamente do resto, tinham encontrado o Sétimo oculto na sua alma. Obviamente, tinham ordenado aos dragões e aos unicórnios que se ocupassem dele, mas o Sétimo exterminara-os a quase todos. E os Seis tinham concentrado a sua atenção nos únicos sobreviventes.
Uma vez destruído Ashran, a encarnação mortal do Sétimo, este mostrara-se claramente perante eles. Os deuses sabiam que nem todos os dragões e unicórnios juntos conseguiriam vencer o sétimo deus. E tinham decidido intervir. Mas então ele escondera-se outra vez, novamente num mortal anónimo no meio de toda aquela amálgama de mortais que nasciam, viviam e morriam.
Agora, por fim, a nova encarnação do Sétimo tinha deixado de ser um mortal anónimo. Chamava-se Gerde. Os deuses souberam desta vez procurá-la e encontraram-na.
E iam ter com ela.
Dos oceanos do Sul, Neliam avançava alterando as águas à sua passagem, provocando uma nova maré, tão brutal como nunca se vira em Idhún, uma maré que chegou a submergir completamente as ilhas Riv-Arneth, que só regressaram à superfície várias horas depois. As ondas que a deusa produzia à sua passagem rebentavam contra as costas de Awinor, batendo nas montanhas e infiltrando-se pelos desfiladeiros, arrastando à sua passagem os mudos esqueletos dos dragões. As terras pantanosas de Raden ficaram completamente sepultadas debaixo das águas. A cidade de Sarei desapareceu debaixo do mar.
Lenta, muito lentamente, Neliam deslizou rio acima, em direcção ao mar de Raden, provocando cheias e inundações. Mas os habitantes de Kosh, a cidade que se erguia junto àquele pequeno mar interior, estavam demasiado ocupados a lutar a sua guerra para repararem no que se aproximava deles.
Karevan tinha estado a fazer rugir as rochas da Cordilheira de Nandelt, mas agora avançava para sul, em linha recta. Abandonou as montanhas e enveredou pela planície de Nangal, fazendo tremer a rocha à sua passagem, abrindo precipícios e desfiladeiros e provocando erupções de pedra que se transformavam, lentamente, numa nova cordilheira. Os sheks mais atrasados viram-no chegar e os sobreviventes da Batalha dos Sete nunca esqueceriam o dia em que as montanhas brotaram do chão e cresceram, tal como as árvores na terra plana de Nangal.
Wina tinha continuado a deslocar-se para sul; sentira vontade de passear por Derbhad, mas os Picos de Fogo cortavam-lhe o caminho. De modo que havia optado por viajar em direcção a Raden, expandindo o bosque de Alis Lithban para terras mais meridionais, procurando contornar as montanhas e atravessar o Sul de Kash-Tar, ou talvez Awinor, se encontrasse uma faixa de terra por onde deslizar, uma franja onde o chão não fosse formado de rocha dura, para estender por ela o seu verde manto de vida. Mas, agora que tinha um objectivo mais concreto, deu a volta e voltou a percorrer, uma vez mais, o bosque de Alis Lithban, em direcção a norte. Era a deusa mais próxima do Abismo e, portanto, a que chegaria primeiro, embora provavelmente não conseguisse chegar a aproximar-se do sétimo deus, que se tinha instalado num desfiladeiro rodeado de rocha.
Yohavir tinha-se manifestado em Vanissar, mas começara a deslizar novamente para sul, porque Celestia atraía-o como um íman. Destruiu aldeias e culturas à sua passagem por Nandelt e quase não teve de se desviar do seu rumo quando teve notícia da nova identidade do Sétimo. Arrancou telhados e levou carros, animais e algumas pessoas nas cidades de Lês e Kes, onde também produziu uma forte ondulação no rio, que se abateu contra as muralhas de ambas as povoações e por pouco não derrubou a ponte; depois, com a sua habitual despreocupação e ligeireza, continuou a avançar para sul, sem se aperceber de que um exército inteiro o seguia a uma distância prudente e de que os seus líderes se perguntavam como era possível que aquele estranho tornado fosse exactamente na mesma direcção que eles.
Aldun não era um deus que se caracterizasse propriamente pela sua grande mobilidade. Provavelmente era o mais destrutivo de todos e por isso a sua manifestação era a mais pequena. Aldun costumava compactar-se tanto quanto podia quando descia ao mundo físico. Expandido ao máximo, podia alcançar o tamanho de um dos sóis gémeos. Mas isso derreteria instantaneamente todo o Idhún, de modo que Aldun tendia a mostrar-se muito mais pequeno do que realmente era. Limitara-se a ir de um lado para o outro no deserto de Kash-Tar, porque muito tempo antes tinha acordado com Wina sobre quais seriam os limites do seu espaço de influência. Aldun podia destruir toda a vida de Idhún se não tivesse cuidado, e um mundo morto é um fracasso para qualquer deus. Mas o Sétimo estava demasiado perto para ficar ali, simplesmente, à espera, pelo que Aldun dirigiu-se para norte, partindo das montanhas próximas dos montes de Awinor, para onde se retirara à espera de notícias. Tinha a vaga impressão de que ali por perto havia um grande número de mortais e, de facto, há pouco percebera algo que atraíra o seu interesse, uma manifestação do poder do Sétimo. De modo que prestou um pouco mais de atenção e descobriu criaturas frias entre eles: serpentes.
Devido à sua natureza ígnea, Aldun era, dos Seis, aquele que menos suportava a mera existência dos sheks e por isso participara tão activamente na criação dos dragões. Mas aquele sentimento, um leve desagrado de um deus (os sheks eram seres formidáveis, mas demasiado insignificantes, em comparação com os deuses, para que estes pudessem levá-los realmente a sério), transformou-se, nos pequenos corpos dos dragões, num ódio intenso e visceral.
Na realidade, Aldun era demasiado grande e incomensurável para ter verdadeiros desejos de queimar todos aqueles pequenos sheks. Mas encontrou-os pelo caminho e, mesmo sabendo que estavam ali, não se desviou.
Irial também se manifestara em Vanissar. Dali, mal chegara, chamara Yohavir, o último que faltava, e este aparecera não muito longe, mesmo por cima da capital.
Irial, na realidade, estivera a vaguear pelos confins de Vanissar, perto das montanhas. Mas a sua luz era tão intensa que cobrira todo o reino. Quando começou a deslocar-se, contraiu-se um pouco, reduzindo a sua zona de influência. Seguiu a mesma trajectória que Yohavir, em linha recta, mas mais a oeste, de modo que atravessou Shur-Ikail de parte a parte.
Ninguém tinha advertido os bárbaros e, embora procurassem fugir, nas vastas pradarias de Shur-Ikail não havia realmente muitos sítios para se esconderem. Deu-se o caso de que na altura dois dos clãs acampavam em diferentes pontos das montanhas próximas da cordilheira e conseguiram correr para se refugiarem nas profundas cavernas e fendas que as montanhas lhes ofereciam. A grande maioria dos outros perdeu a visão devido à luz ofuscante de Irial.
Os Seis deslocavam-se e faziam-no lentamente, sem pressa, mas sem pausa, provocando o caos à sua passagem. Quando encontrassem o Sétimo e o obrigassem a desfazer-se do seu invólucro carnal, o choque seria muito mais brutal. Os deuses não sairiam prejudicados, porque os deuses eram imortais e invulneráveis. Os deuses eram eternos.
Mas os mortais, não.
Ao cair do terceiro dos sóis, Christian chegou a voar ao desfiladeiro onde se abria a Porta interdimensional. Os sheks mostraram-lhe as presas, com cicios ameaçadores, quando o viram planar sobre eles em busca de um espaço para pousar, mas Gerde mal lhe prestou atenção. Quando, recuperada já a sua forma humana, Christian se aproximou dela, a fada não desviou o olhar da Porta interdimensional, pela qual ainda atravessavam, um a um, dezenas de szish.
- Em breve os deuses saberão que estás aqui - disse Christian; estava extenuado depois de um voo acelerado e sem descanso, e não perdeu tempo nem energias com preâmbulos desnecessários.
- Chegas tarde - respondeu ela, sem se alterar. - Há horas que o sabem. E há horas que eu sei que eles sabem.
- Então, porque é que ainda estão aqui? Vim desde Vanissar, e Yohavir pisava-me os calcanhares! Não tardará a chegar aqui!
Por fim, Gerde afastou o olhar dos szish e voltou-se para ele. Os olhos dela, de um cinzento prateado, como haviam sido os de Ashran, cravaram-se nos seus e fizeram-no estremecer de terror.
- Vejo que também tiveste um encontro com Irial - comentou, aludindo ao véu de escuridão que protegia os olhos do shek e que tinha sido obra de Shail.
Christian tirou-lhe importância com um gesto.
- Não cheguei a deparar com ela. Estava relativamente longe de mim, mas o alcance da sua luz é muito grande.
- Imagino que não deve ter sido fácil voar às cegas.
- Não, mas não tinha alternativa. Vim para... - Calou-se, confuso. Na realidade, não sabia porque estava ali. Em princípio viera para a informar de que corria perigo, mas ela já o sabia. E Christian não poderia protegê-la do que lhe cairia em cima. "Cobrir-lhe a retirada?", perguntou-se, de repente. "E como pretendo fazer isso?"
Gerde percebeu a sua confusão e sorriu.
- Vieste atravessar a Porta connosco - disse com suavidade. - És um shek, não és? - acrescentou ao ver o desconcerto dele. - Por acaso achavas que podias fazer orelhas moucas à chamada da tua deusa? Pensaste sequer por um instante que podias desobedecer-me?
- Mas... - balbuciou Christian, enquanto uma onda de pânico frio se apoderava do seu corpo. Não estava acostumado a experimentar esse tipo de sensações e não lhe agradou. - Mas não posso ir embora convosco. Eu... quero ficar aqui... com Victoria... e com o meu filho...
O sorriso de Gerde rasgou-se e também se tornou mais velhaco.
- Sim - limitou-se a responder. - Eu sei.
Nas areias do deserto de Kash-Tar, Sussh também tinha ouvido a chamada da sua deusa.
No entanto, havia outra coisa que o chamava, uma voz tão poderosa como a do Sétimo: a voz do instinto.
Para proteger Kosh, Sussh decidira que não esperariam pelo ataque dos rebeldes yan, mas que iriam ao seu encontro. Sabia onde se tinham reunido todos, sabia que ainda não estavam preparados e muito menos organizados. De modo que reuniu a sua gente, os szish e os sheks que ainda lhe eram leais e que tinham optado por ficar com ele em vez de seguir Gerde, e lançara-se ao ataque.
Percebeu o medo e o desconcerto de todos aqueles yan e humanos que se tinham lançado contra ele e aos quais acabava de surpreender antes que estivessem realmente prontos para atacar. Soube que, se nada o impedisse, naquele dia esmagaria por fim os rebeldes de Kash-Tar.
Ambos os exércitos estavam prestes a chocar quando Sussh recebeu a chamada de Gerde.
Em qualquer outra circunstância, ter-lhe-ia obedecido sem resmungar e sem ponderar porque é que lhe devia obedecer. Mas naquele preciso momento, um dos dragões artificiais arremetia contra ele; no dia anterior, o seu piloto esfregara-o vigorosamente com uma pasta feita de restos de dragão, semelhante à que Tanawe costumava utilizar, e o artefacto tresandava tão profundamente a dragão que Sussh julgou morrer de nostalgia, evocando aqueles tempos passados em que os sheks tinham podido saciat o seu ódio com dragões de verdade.
Em qualquer outra circunstância, Sussh teria fugido dali e teria seguido a ordem da sua deusa, mas naquele momento o instinto foi mais forte e ignorou-a.
De modo que os dois exércitos lutavam com ferocidade, gente do deserto contra soldados szish, dragões artificiais contra sheks de verdade, quando chegou Aldun.
No início sentiram apenas um aumento da temperatura, mas no calor da batalha, entre espadas, lanças, fundas, machados e punhais, e debaixo do fogo dos dragões, ninguém lhe deu importância.
Kimara, sim.
Foi um pressentimento, talvez, um sexto sentido. Estava a lutar costas com costas junto a Goser. Tinha conseguido uma espada pequena e um punhal e manejava-os com rapidez mortífera. Entre ferozes gritos de guerra, enterrava o seu fio na carne escamosa dos szish, mutilava membros, trespassava entranhas. Há muito tempo que aquelas carnificinas tinham deixado de a impressionar. Quando lutava, esquecia-se de tudo, deixava escapar todo o seu ódio, a sua fúria, o seu medo. Em cada golpe que desferia, sentia que se libertava de uma parte da sua raiva, mas, ao mesmo tempo, perdia também uma parte da sua alma.
Não dava demasiada importância a isto. Admirava Goser, a sua coragem temerária, a sua força, a sua segurança e, sobretudo, o seu poder para fazer as coisas acontecerem. Kimara não era uma pessoa capaz de esperar durante muito tempo que as coisas acontecessem por si, tinha de as provocar. E Goser era o tipo de pessoa capaz de aceitar e entender isto, porque ele sentia o mesmo. Eram almas gémeas.
Agora lutavam juntos, como o tinham feito desde que se conheceram, vários meses antes. Kimara deixava-se levar, correndo riscos, arriscando a vida irreflectidamente em cada batalha, um imparável furacão de fogo e aço que não pararia enquanto não caísse sob as armas dos seus inimigos ou até que o último inimigo tombasse morto.
Mas naquele momento, nunca soube muito bem porquê, depois de enterrar a sua espada no coração de um homem-serpente, deteve-se.
Foi apenas por um instante. No meio da loucura, do estrépito da batalha, dos gritos, dos clamores e do cheiro a sangue, Kimara deteve-se, olhou à volta e teve um pensamento estranho: "O que estou aqui a fazer?" O seguinte foi: "Está muito calor." E este era um pensamento ainda mais estranho, dado que Kimara era uma filha do deserto e nunca estava muito calor para ela.
Um dos machados de Goser desceu junto dela, sobressaltando-a, e foi enterrar-se no peito de um szish que estava prestes a atacá-la. Contemplou, um pouco aturdida, como o poderoso yan arrancava o machado do corpo do szish, com relativa brutalidade, e ouviu a sua voz irritada:
-Oquesepassacontigo?Prestamaisatenção!Porpoucomatam-teenemsemprepodereicobrir-teascostas!
Envergonhada, Kimara ergueu novamente as suas armas e tentou concentrar-se. Mas uma parte de si dizia-lhe que ela na realidade não queria estar ali.
- Está... demasiado calor... - murmurou.
Voltou a desconcentrar-se e provavelmente tê-la-iam matado, se não fosse porque alguém deu o alarme, um grito de terror tão arrepiante que se elevou por cima dos gritos de guerra. Alguns ouviram-no e detiveram-se, confusos, o que acarretou a morte a mais de um. Mas em breve o medo, como uma doença contagiosa, espalhou-se por aquela massa caótica de guerreiros a rebentar de ódio, que, um a seguir ao outro, voltaram o seu olhar na direcção do horizonte que tinham estado a ignorar e por onde assomava um único sol que se aproximava deles com aterradora resolução.
Subitamente, todos o viram e já não conseguiram continuar a lutar. Pararam, assombrados. O medo paralisou muitos deles, que não foram capazes de reagir. Outros conseguiram dar meia-volta e fugir, espavoridos.
Kimara não se mexeu. Não podia. Apesar de estar cada vez mais calor e de grossas gotas de suor deslizarem por todo o seu corpo, apesar de a pele lhe queimar e os olhos lhe arderem, foi incapaz de desviar o olhar daquela bola de fogo, contemplando-a com fascinado terror.
Goser também não fugiu. Mas não ficou quieto, como Kimara, porque Goser era completamente incapaz de parar. De modo que continuou a lutar e os seus machados continuaram a procurar inimigos, apesar de estes terem começado a fugir, tomados de um terror irracional.
O líder yan não era o único que continuava a lutar. No céu, os dragões artificiais procuravam bater em retirada, mas os sheks não o permitiam. Ignorando, inconsciente ou deliberadamente, a mortífera esfera de fogo que se aproximava deles, os sheks continuavam a lutar e a perseguir os dragões. Eles, tal como Goser, não conseguiam deixar de lutar.
No entanto, queriam fugir, desejavam fugir, desesperadamente, porque nada no mundo podia causar-lhes tanto medo como o fogo. O único shek que não queria fugir dali, apesar de todo o medo que sentia, era Sussh. E assim, um depois do outro, sheks e dragões foram-se libertando da inércia do combate e batendo em retirada. Sussh, não. Sussh continuou a lutar, perseguindo o dragão contra o qual lutava uma e outra vez, impedindo-o de fugir, obrigando-o a enfrentá-lo. Sussh sabia que aquela seria a sua última grande batalha e queria morrer a lutar.
Nesse momento, Kimara soube com total segurança que não queria estar ali. Encontrou forças para se mover e gritou a Goser que deviam ir embora. O yan não a ouviu.
Kimara procurou para-lo, agarrando-lhe no braço, mas Goser soltou-se, ergueu os machados por cima da sua cabeça e lançou um feroz grito de guerra. Depois, baixou as armas e olhou para Kimara.
O combate tinha desprendido o lenço que cobria a sua cabeça e o seu rosto, de modo que, quando presenteou a semi-yan com um sorriso rasgado, ela pôde ver perfeitamente que aquele expressão não era mais do que uma careta sinistra e que nos seus olhos avermelhados havia um brilho de loucura.
Nenhum dos dois disse nada. A temperatura continuava a aumentar, ou viam-se gritos de terror e guinchos distantes de agonia: os que tiveram a infelicidade de ficar para trás foram alcançados pelo calor mortífero daquela coisa. As suas peles ardiam como folhas de papel colocadas ao sol debaixo de um vidro.
Kimara e Goser estavam demasiado longe para contemplar aquele terrível espectáculo, mas os gritos chegaram até eles com uma clareza horrível. Kimara pediu a Goser com o olhar que a acompanhasse. O sorriso do yan rasgou-se. Depois virou-lhe as costas e, com um novo grito de guerra, brandiu os machados com violência e cortou a cabeça de um szish que passava a correr ao seu lado, fugindo do calor.
Kimara, subitamente horrorizada, deu meia-volta e desatou a correr, sem olhar para trás.
Nas suas costas, dois seres tão diferentes como a noite e o dia, duas criaturas com alma de guerreiro, continuaram a lutar, sem conseguirem parar, até que o fogo os alcançou.
O último szish atravessou por fim a Porta interdimensional. Gerde respirou fundo.
- Já estão todos - disse. Eissesh olhou para ela.
- Tbcíos...? - repetiu. - E a gente de Sussh?
- Não virão. Sussh morreu em Kash-Tar.
Apenas uns segundos depois de ela pronunciar estas palavras, Eissesh percebeu, efectivamente, que a estrela da consciência de Sussh se apagava na constelação da
rede telepática shek. Sentiu-se aturdido, mas não o demonstrou. Limitou-se a semicerrar os olhos.
Gerde voltou-se. Viu Assher a olhar para ela. Tinha Saissh nos braços.
- Deixa a menina e passa - ordenou Gerde. Assher mostrou-se inquieto.
- O que lhe vai acontecer?
Gerde contemplou Saissh com indiferença.
- O lugar para onde vamos não é adequado para ela. O szish olhou-a, confuso.
- Mas, minha senhora... trouxeste-a para cá para a levares contigo!
- Para a levar para a Terra - salientou Gerde. - Mas afinal de contas não vamos para a Terra. Por isso deixa-a e atravessa a Porta com os outros, Assher.
Assher tremeu.
- Não, minha senhora, rogo-te. Permite-me aguardar aqui contigo. Deixa-me esperar até ao último momento. Eu...
As palavras morreram nos seus lábios. Baixou o olhar, perturbado. Não pôde ver que Gerde lhe sorria encorajadoramente.
- Como queiras - disse. Voltou-se então para Christian, que aguardava, sombrio, um pouco afastado. - Vem - ordenou-lhe.
O shek procurou resistir, mas quando deu por isso estava junto dela. Sentiu-se furioso, compreendendo, uma vez mais, até que ponto não era mais do que um brinquedo nas mãos da sua deusa.
Gerde colocou-se diante da Porta, com os braços estendidos. Os seus olhos brilharam e, após um breve estremecimento, a abertura começou a alargar lentamente.
Christian sentiu de repente um ligeiro tremor de terra debaixo dos seus pés.
"Estão a chegar", pensou. Aquele pensamento flutuou por um momento e deparou-se com um semelhante. Trocou um olhar com Eissesh. Nunca se tinham dado particularmente bem; o ex-governador de Vanissar sempre mostrara uma fria indiferença em relação ao híbrido, como se dessa maneira conseguisse esquecer que existia realmente. Mas, naquele momento, as mentes de ambos entrelaçaram um mesmo pensamento.
"Não quero partir", disse Christian para consigo. Aquela ideia chegou também até Eissesh.
- Sussh também não queria - comentou apenas.
Christian não disse mais nada. O certo era que não estava muito seguro do que desejava fazer.
Os sheks partiam. Todos eles ou pelo menos quase todos. Naquele momento, Umadhun estava completamente vazio. Centenas de sheks sobrevoavam as imediações ou aguardavam nas cavernas e vertentes dos picos próximos, esperando a altura de partir para o mundo que os esperava para lá da Porta, o mundo que Gerde criara para eles. Quando partissem, Christian ficaria vazio e irremediavelmente só. E uma parte dele ansiava segui-los, apesar de saber que muitos deles o matariam se tivessem oportunidade, apesar de a possibilidade de perder Gerde de vista ser o que mais lhe agradava em todo aquele plano. Uma parte dele estremecia de terror perante a simples ideia de estar tão inexplicavelmente sozinho. De ser o último da sua espécie.
Em contrapartida, se partisse, provavelmente nunca voltaria a ver Victoria nem veria o seu filho nascer.
- Não te esforces a tomar uma decisão - disse Gerde. - Não tens opção.
Tinha acabado de alterar a Porta, que agora flutuava diante deles, muito mais larga e alta do que antes, o bastante para que um shek pudesse atravessá-la confortavelmente.
Mais adiante não se via nada a não ser um leve brilho avermelhado; por alguma razão, Gerde velava-lhes a visão do seu futuro lar.
Christian fechou os olhos, compreendendo subitamente que na realidade desejava ficar em Idhún, mesmo que fosse a última serpente do mundo dos três sóis. Sorriu com alguma amargura. Devia-o a Gerde: ela faria o possível por torná-lo infeliz, pelo que, se realmente ele desejasse partir, ela tê-lo-ia obrigado a ficar.
- Não fiques aí parado - disse ela, - Preciso que a mantenhas estável. Christian viu que as bordas da abertura tendiam a contrair-se de novo.
Entendeu o que tinha de fazer. Aproximou-se da porta, ergueu as mãos e utilizou o seu poder para a manter completamente aberta. Gerde voltou-lhe as costas para se dirigir a Eissesh.
- Está na hora - disse.
O shek assentiu. Transmitiu a informação a todos os sheks de Idhún que em breve começaram a planar sobre o desfiladeiro e a descer, um a um, em direcção à Porta interdimensional. Quando o primeiro dos sheks a atravessou para se embrenhar naquele novo mundo desconhecido, Christian sentiu que uma parte da sua alma se ia embora com ele.
Kimara sentiu-se asfixiada pela onda de gente que fugia, desesperada, em direcção ao coração do deserto. Nas suas costas, os mais atrasados tinham irrompido em chamas. A semi-yan não queria olhar para trás, mas tinha já as costas cobertas de bolhas produzidas pelo intenso calor.
Deixou-se arrastar por aquela maré de gente, humanos, yan, szish, todos juntos, correndo numa mesma direcção... Kimara não pôde deixar de pensar que, depois de tudo o que tinha acontecido, depois do ódio, daquelas batalhas sangrentas... era irónico que estivessem todos de acordo com tanta rapidez.
Subitamente, não quis ser mais uma. Procurou mudar de direcção para se afastar de toda a gente e avançou aos tropeções, abrindo caminho entre a aterrorizada multidão, deslocando-se na direcção de um dos flancos. Custou-lhe bastante tempo, muitos empurrões e ficar um pouco mais para trás, sentindo, de novo, uma bofetada do ardente calor de Aldun, mas conseguiu escapar e correr, sozinha, sobre a abrasadora areia do deserto.
Então tropeçou e caiu. Gritou de dor ao sentir os grãos de areia que se cravavam cruelmente na sua maltratada pele, tentou levantar-se, mas não conseguiu. Quis chorar e também não foi capaz. O calor tinha secado todas as suas lágrimas.
Estava já prestes a sucumbir ao fogo, quando algo tapou a luz daquele coração de chamas, proporcionando-lhe sombra durante um breve e glorioso instante. Pestanejando,
Kimara ergueu a cabeça e sentiu que a esperança renascia no seu coração.
Era um dragão.
Voava em círculos sobre ela e era evidente que a tinha visto e que estava ali para a ajudar. Por um momento, acreditou ver reflexos dourados nas suas escamas; mas foi apenas uma ilusão óptica fabricada pela memória.
Porque o dragão era negro como o ébano, e Kimara apenas conseguiu pensar, antes que descesse a pique sobre ela e a agarrasse entre as suas garras, que devia ser um sonho, porque naquela altura ele já devia estar longe, muito longe dali...
Mal teve consciência de que o dragão a levava, afastando-a da aterradora bola de fogo. Como perdeu os sentidos, não se apercebeu de que o dragão voava para oeste.
Não viu do ar a desoladora imagem de Kosh, que tinha sido inundada pelas águas, após a súbita e espectacular subida do mar de Raden. Continuou inconsciente até o dragão pousar, com suavidade, nos arredores da cidade e deixá-la cair num charco de pouca profundidade.
Isso acordou-a imediatamente. A água estava turva, mas refrescou a sua pele e aliviou o calor que sentia. Ainda aturdida, deslizou até ao fundo do charco para se molhar até ao pescoço.
O dragão negro descansava perto dela. A escotilha superior abriu-se de rompante e dela surgiu Rando, que desceu e foi ao seu encontro.
Kimara ergueu a cabeça, ainda sem saber muito bem o que estava a acontecer. Deparou-se com os olhos bicolores do semibárbaro e reparou que estavam repletos de emoção.
- Menos mal que te encontrei a tempo - disse Rando.
Kimara não aguentou. Uma torrente de emoções inundou o seu peito e, sem conseguir evitá-lo, desatou a chorar. Rando abraçou-a desajeitadamente.
A semi-yan deixou cair a cabeça sobre o seu peito largo e continuou a chorar, libertando-se de todas as tensões, acalmando o seu medo e a sua dor. O contacto do semibárbaro magoava-a porque tinha a pele queimada pelo fogo de Aldun, mas não se importou. A mera presença de Rando era já um bálsamo que aliviou todas as feridas da sua alma.
De novo, o tremor de terra, desta vez mais intenso.
Karevan aproximava-se. Christian contemplou os sheks que voavam em círculos sobre a Porta interdimensional. Um a seguir ao outro iam-na atravessando, a caminho de um novo mundo, mas, embora o tráfego se estivesse a realizar de forma rápida e eficaz, continuavam a ser muitos, e ele estava a cansar-se.
Gerde pareceu ler os seus pensamentos.
- Afasta-te daí, eu continuo - disse, e colocou-se ao seu lado para reforçar a Porta.
Christian assentiu, sem uma palavra. Aos seus pés, o chão tremeu de novo.
- Quantos restam ainda? - perguntou a Eissesh.
- Trezentos e cinquenta e oito - respondeu ele. Então, de repente, semicerrou os olhos e ergueu a cabeça, com um cicio ameaçador. O instinto de Christian disparou apenas uns instantes depois.
Dragões.
Tinham feito um desvio para evitar o tornado que, naquele momento, abandonava os confins de Shia e deslizava pela Cordilheira de Nandelt. Tinham sobrevoado o acampamento-base dos szish e encontraram-no vazio. Mas não lhes tinha escapado a nuvem de sheks que, ao longe, voavam sobre as montanhas.
Denyal e Tanawe iam montados no mesmo dragão. Era um especial mente grande, no qual cabiam três pessoas, incluindo o piloto. Os dois irmãos contemplaram o acampamento vazio através das escotilhas, e Tanawe comentou:
- Devíamos esperar por Alsan e pelos exércitos de terra.
Denyal negou com a cabeça. Estava ao corrente de que o exército tinha partido sem Alsan. Embora soubesse que lhes seria de muita utilidade contar com a sua força e habilidade, ele, pessoalmente, não sentia a sua falta. Além disso, havia o facto de as tropas de terra terem ficado demasiado para trás, por causa do tornado. Teriam de aguardar que este se dissipasse ou então fazer um enorme desvio.
- Creio que os sheks já sabem que chegámos - disse. - Não podemos esperar mais. Além disso, esse estranho remoinho dirige-se para cá; quanto antes terminarmos com tudo isto, melhor.
Tanawe assentiu, sombria. Denyal deu instruções ao piloto, e o dragão deu duas voltas, para atrair a atenção dos outros, e dirigiu-se para o lugar onde se tinham reunido todos os sheks. Os pilotos, encantados por finalmente experimentarem um pouco de acção, seguiram-no.
Os sheks procuraram lutar contra o instinto. Alguns conseguiram-no e continuaram pendentes da Porta interdimensional. Outros, os mais jovens, observaram os dragões que se aproximavam, mostrando-lhes as presas e ciciando baixinho.
Gerde ordenou-lhes a todos, em silêncio, que não respondessem aos dragões, e as serpentes tentaram-no. Mas o ódio era demasiado poderoso.
Quando o primeiro shek cedeu ao instinto e saiu ao encontro dos dragões artificiais, houve vários que o seguiram.
A fada voltou-se para Christian, que contemplava o céu, sombrio. Também ele desejava com todas as suas forças transformar-se em shek e juntar-se à luta.
- Disse-te que não queria ver os sangues-quentes por aqui - murmurou Gerde, irritada.
Christian encolheu os ombros.
- Já te expliquei que eu sozinho não conseguiria detê-los - respondeu-lhe. Mas o certo é que, desde a sua experiência com aquela gema sinistra que por pouco o matara, não voltara a preocupar-se com o assunto.
Gerde soltou um suspirou de impaciência.
- Encarrega-te tu disto - ordenou, afastando-se da Porta. Christian voltou a empregar o seu poder para a manter totalmente aberta, enquanto os sheks, um a um, continuavam
a atravessá-la.
A fada ergueu os olhos e contemplou os dragões artificiais, que atraíam os sheks como imanes. Aqueles humanos eram espertos, pensou a fada. Aqueles artefactos despertavam o instinto dos sheks e arrastavam-nos para uma luta irracional, mas os pilotos não estavam acorrentados a esse ódio que também dominara os dragões verdadeiros. Em época de guerra, o ódio tinha sido útil a ambos os lados. Agora era um tremendo contratempo. Por uma vez na história da espécie, a sétima deusa não desejava que os sheks lutassem. Não podiam perder tempo com lutas.
Contudo, o número de criaturas que abandonavam o grupo dos que esperavam a sua vez para atravessar a Porta era cada vez maior. Iam ao encontro dos dragões artificiais e em breve enfrentá-los-iam. Havia que fazê-los voltar.
- Liberta-os do ódio! - exclamou então Christian. - É a única maneira de atenderem à razão!
Gerde riu-se.
- Teria de os modificar um a um ou destruí-los a todos e voltar a criar a espécie de novo. Não, há um método mais rápido.
Ergueu a mão e dirigiu-a ao dragão mais avançado, um dragão pequeno e veloz que, levado pelo entusiasmo, se adiantara ao grande dragão que parecia ser o líder. Foi apenas um instante: o ar ondulou e o dragão artificial e o seu piloto explodiram em milhões de partículas.
Gerde voltou a levantar a mão. Desta vez dirigiu-a para toda a frota. Poderia destruí-los todos se desejasse.
Mas, então, um brilho dourado atravessou o seu campo de visão, algo que voou velozmente ao encontro dos dragões, interpondo-se entre eles e os sheks.
Christian também o tinha visto.
- Não! - gritou. Abandonou a Porta para correr para junto de Gerde.
- Não o faças!
Gerde já tinha reconhecido o dragão dourado, o último de Idhún. Baixou a mão e dirigiu um sorriso maldoso a Christian.
- O teu amigo dragão não quer perder a acção - comentou. - Nem a pequena unicórnio, pois não?
Christian ficou petrificado ao reparar que, efectivamente, Victoria ia também no dorso de Jack. Empalideceu.
- Deixa-os - pediu. - Vieram para tentar deter os dragões, não para lutar contra nós.
- Será mais rápido destruir todos de uma vez - comentou Gerde com indiferença. - Volta para a Porta, temos de a manter aberta.
Christian olhou-a nos olhos. A força do olhar de Gerde não admitia réplica e sabia que, se ela queria que ele ficasse ali, mantendo estável a brecha interdimensional, teria de o fazer. Não tinha opção.
"Ou tinha?", perguntou-se, lembrando-se de Sussh. Semicerrou os olhos.
Tinha opção. Uma única opção, mas serviria. Havia outra ordem da sua deusa, uma ordem gravada a fogo na sua alma. Ambas as ordens, naquele preciso instante, contradiziam-se.
Christian podia escolher entre obedecer a uma ou à outra.
Transformou-se em shek.
- Kirtash! - ordenou Gerde. - A Porta!
Christian não a ouvia. com um sibilar de raiva, levantou voo em direcção aos dragões que se aproximavam. Naquele momento acatava a outra ordem da sua deusa, a que dizia que, se houvesse um dragão por perto, os sheks tinham de lutar.
Gerde procurou detê-lo, mas era tarde: Christian já se afastava em direcção a Jack, que voava na direcção dos dragões artificiais, na esperança de os interceptar.
Sobre o seu dorso montavam Alsan e Victoria. Gerde poderia tê-los matado a todos num só instante, mas a Porta estava a fechar-se. com um suspiro exasperado, dirigiu a sua atenção para ela e voltou a abri-la ao máximo, para que os sheks pudessem continuar a atravessá-la.
Podia ocupar-se de ambas as coisas ao mesmo tempo. Podia manter aberta a Porta e, ao mesmo tempo, libertar o seu poder contra os dragões. Mas, nesse caso, correria o risco de pelo meio acabar também com todos os seus sheks. Não, tinha de controlar aquele poder se queria que só afectasse os dragões e para isso necessitava de concentração: não podia dividir a sua atenção entre a Porta e os seus inimigos.
Não havia tempo para se ocupar dos dragões. A Porta era muito mais importante.
Naquele momento, o chão voltou a tremer debaixo dos seus pés. Ao longe, uma montanha retumbou.
Gerde apercebeu-se então de que havia demasiada luz, uma luz que não era natural: há muito tempo que o último sol se pusera e as luas deviam brilhar palidamente num céu nocturno. Mas a luz eclipsava-as.
Uma rajada de ar abanou a sua roupa. Um novo aviso.
A fada fechou os olhos e transmitiu aos sheks a ordem para que se apressassem. "Está bem", pensou. "A nova geração de serpentes não vai necessitar do ódio num mundo sem dragões. Sobreviverão aqueles que forem capazes de atravessar a Porta. Os que ficarem para trás porque não foram capazes de dominar o seu instinto, morrerão."
Bem vistas as coisas, não era assim tão má ideia. Os sheks distrairiam os dragões e dar-lhe-iam um pouco mais de margem. Como os Seis não tardariam a chegar, de qualquer forma não teria tempo de levar todos consigo.
Alsan ainda não acreditava no que via.
Todo o exército dos Novos Dragões estava ali, disposto a iniciar uma batalha contra os sheks.
- Como diabo chegaram aqui? - perguntou-se em voz alta.
- Tu estavas a preparar um grande ataque contra Gerde e os seus recordou-lhe Victoria.
- Mas nunca dei a ordem de...! - Interrompeu-se, entendendo. - Covan
- murmurou. - Tínhamos de atacar hoje e ele sabia disso.
- Maldição! - explodiu Jack. - Vão distrair os sheks e interferir na sua partida! Para não falar da chegada dos Seis! Vão matá-los a todos!
- Isso se Gerde não os matar primeiro - murmurou Victoria, sombria.
Alsan começou a agitar os braços como um louco e a gritar aos dragões que dessem a volta. Victoria duvidava que conseguissem ouvi-lo. Pressentiu, subitamente, uma presença familiar atrás dela e virou-se em cima do dorso de Jack para olhar para uma serpente que levantara voo e ia ter com eles. Alsan também a viu.
- Jack, alerta! - exclamou, mas Victoria interrompeu:
- Calma, é Christian.
Imediatamente, a voz do shek inundou as suas mentes.
- Porque é que vieram? Endoideceram?
- Queríamos... - começou Jack, mas deteve-se, confuso. Na verdade não sabia muito bem por que razão tinham ido ali. Para ajudar Gerde? E como pensavam defendê-la dos deuses?
- Tínhamos de te tirar daqui - pensou Victoria.
Christian sentiu-se comovido ao detectar que a preocupação dela era genuína. No entanto, respondeu-lhe:
- Não voltes a pôr em perigo a vida do teu filho por mim. Tinhas razão ao dizer que és livre de tomar as tuas próprias decisões e escolher se queres arriscar-te ou não, mas agora também tens de pensar nele.
Victoria calou-se, surpreendida. Era certo que não pensara no seu bebé ao ir ali. E, o que também era surpreendente, Jack também não. E foi ele quem entendeu.
- Não tomámos a decisão - compreendeu. - Os deuses convocaram-nos para a última batalha. Viemos aqui para lutar contra os sheks, quer nos agrade quer não... tal como, em tempos, não tivemos outra opção senão lutar contra Ashran.
- Bem - disse Christian, após um momento de silêncio. - isso eu consigo entender. Mas o que fazem estes dragões aqui? Também foram convocados pelos deuses?
- Não - respondeu Victoria. - Pelos vistos foi um erro.
Os olhos irisados do shek cravaram-se em Alsan, acusadoramente.
- E o que é que tu fazes aqui?
- Não há tempo para explicações - pensou Jack. - Temos de deter os dragões e fazer com que se vão embora daqui...
Não teve ocasião de continuar a falar. De repente, os sheks que tinham partido ao encontro dos dragões artificiais alcançaram-nos e lançaram-se contra eles, loucos de ódio. Obviamente, nada cheirava mais a dragão do que um dragão de carne e osso.
- Maldição! - exclamou Jack, sentindo que o instinto despertava novamente nele, faminto e feroz, e o instava a responder à provocação.
- É o dragão! - exclamou Denyal, perplexo. - O verdadeiro!
- E Alsan e o unicórnio estão com ele - acrescentou Tanawe. - O que é que pretendem?
- Juntaram-se a nós - disse o piloto, jubiloso. - Yandrak vai liderarmos na última batalha!
Sentiram-se muito aliviados subitamente. Por muito orgulhosa que Tanawe estivesse dos seus dragões artificiais, a presença de Yandrak tinha um significado simbólico que aqueles artefactos jamais alcançariam. Por outro lado, tinham visto um dos seus companheiros desintegrar-se diante dos seus olhos sem nenhuma razão ou causa aparente, e estavam nervosos e assustados.
No entanto, Tanawe não estava convencida.
- Pensava que ela estava grávida - murmurou -, ou pelo menos, ouvi dizer que sim.
- E...? - perguntou o seu irmão.
- Uma mulher grávida não luta numa guerra. Dá a impressão... Olha, Alsan está a fazer-nos sinais. E outra coisa que pretendem.
Denyal abriu a boca para responder, mas não houve tempo. Todos viram como, naquele momento, os sheks os alcançavam e se abatiam todos sobre Jack, ignorando os outros.
- Temos de o ajudar! - exclamou o piloto, que, lançando um grito de guerra, manobrou para levar o seu dragão ao encontro de Yandrak.
Todos os Novos Dragões o seguiram.
Christian deteve-se no ar, confuso.
Não sabia o que fazer. Os sheks e os dragões em breve colidiriam no ar, e Jack estava no meio... com Victoria. Se fosse suficientemente inteligente, fugiria do confronto e afastar-se-ia dos sheks. Mas, infelizmente, não se tratava de uma questão de inteligência: o instinto podia obrigar Jack a perder toda e qualquer sensatez e, com isso, pôr em perigo a vida de Victoria.
Também ele desejava lutar, desejava-o com toda a sua alma. E isso era um problema. Podia tentar reprimir o instinto, mas, se o fizesse, a outra ordem de Gerde, a que o obrigava a ajudá-la a manter a Porta aberta, ganharia força e não teria outro remédio senão regressar. E se ajudava Gerde com a Porta, deixando-lhe as mãos livres, nada a impediria de destruir todos os elementos incómodos: dragões artificiais, dragões de verdade, unicórnios, humanos e algum shek que estivesse demasiado próximo dos seus inimigos.
Lutou consigo próprio durante uns instantes, sem saber o que fazer, e então optou por se agarrar à parte da sua alma que ainda lhe pertencia.
Chegou à mente de Victoria através do anel e chamou-a, com tranquilidade. Quando a rapariga respondeu, Christian agarrou-se a ela, deslizando um par de tentáculos da sua consciência até à mente dela, livre do ódio ancestral. Victoria entendeu muito bem o dilema de Christian e, embora estivesse ocupada a manejar o báculo para manter as serpentes afastadas, acolheu a mente do shek na sua, como a um ladrão perseguido que batesse às portas de um santuário.
Christian esforçou-se, de novo, por controlar o ódio. A ordem de Gerde continuava a ressoar em cada recanto do seu ser, mas agora soava mais distante e pôde dar-se ao luxo de a ignorar.
- Temos de tirar Jack dali - disse a Victoria.
O jovem dragão debatia-se também entre o ódio que lhe inspiravam os sheks, que o atacavam sem piedade, e o desejo de escapar daquela loucura e procurar um lugar seguro para Victoria. A chegada dos Novos Dragões, que arremeteram contra os sheks, aliviou-o um pouco, mas não demasiado. Continuava a ter inimigos contra os quais lutar e tinha-os demasiado perto.
Então captou a chamada de Christian na sua mente.
-Jack, sai daí.
- Estou a tentar - pensou ele, com desespero, enquanto lançava uma nova labareda contra um shek que se aproximara demasiado. Até ali, limitara-se a mante-los afastados, porque sabia que se chegasse a envolver-se numa luta corpo a corpo, Alsan e Victoria não sobreviveriam. Eram demasiado frágeis, comparados com aquelas soberbas criaturas.
- Não tentes, sai - ordenou Christian.
Transmitiu-lhe, subitamente, uma torrente de imagens de Victoria, fragmentos de lembranças nas quais se via o rosto da rapariga, o seu sorriso, o brilho dos seus olhos. Encheu a mente de Jack de Victoria, Victoria, Victoria. O dragão hesitou no início, confuso, mas em breve não foi capaz de pensar em mais nada. Viu a ponte que Christian lhe estendia e aproveitou aquele instante para se lançar na direcção dela e atravessá-la. com uma extraordinária força de vontade, bateu as asas e elevou-se um pouco mais, para se livrar dos seus perseguidores. Uma violenta rajada de vento tirou-lhe os sheks de cima, e Jack, depois de alguns solavancos no ar, desceu como pôde.
Juntaram-se os quatro em terra firme. Christian recuperou a sua forma humana e viu-se quase sufocado pelo entusiástico abraço de Victoria. Jack também se transformou e ergueu a cabeça para o céu, um céu anormalmente claro, tanto que magoava os olhos. Mesmo por cima deles, dragões artificiais e serpentes aladas encarniçavam-se numa luta sem quartel. Alguns dos sheks lançavam-lhes olhares venenosos. Sabiam que Jack era o dragão autêntico, o seu instinto dizia-lho, mas naquele corpo humano não era assim tão interessante.
- Chegámos tarde - murmurou, desanimado. - Não creio que possamos fazer alguma coisa.
O vento soprava cada vez com mais força. Além disso, agora que estavam em terra firme, percebiam claramente o tremor do chão. De novo retumbou outra montanha, arrepiantemente perto.
Os quatro olharam em todas as direcções, inquietos, procurando sinais dos outros deuses. Percebiam vagamente a presença distante de Wina, porque os poucos pedaços de terra que havia entre as rochas estavam a cobrir-se de vegetação e porque a árvore de Gerde parecia estar a crescer. Mas iria custar-lhes muito tempo abrir caminho pela rocha estéril das montanhas.
Também notaram que estava mais calor. E Victoria indicou uma torrente que caía por um desfiladeiro próximo; antes não era mais do que um fiozinho de água, mas agora parecia ter aumentado inexplicavelmente o seu caudal. Olharam uns para os outros: até mesmo a deusa Neliam seria capaz de chegar até ali, subindo o curso dos rios de Celestia.
Christian voltou-se para onde Gerde mantinha aberta a Porta interdimensional. Os sheks continuavam a atravessá-la, um a um, mas havia algo estranho na fada. Parecia iluminada, como se tivessem projectado um foco de luz sobre ela.
- Não - entendeu de repente. - Encontraram-na.
Desatou a correr em direcção a ela. Os outros três ficaram quietos, sem saber o que fazer.
Então, a luz tornou-se mais intensa e todos tiveram de cobrir os olhos. Victoria lançou uma exclamação consternada, mas reagiu depressa. Ergueu o báculo e começou a absorver a luz, criando um círculo de escuridão em torno dela.
- Venham! - disse, e Alsan e Jack refugiaram-se ao seu lado. Victoria lançou um olhar angustiado a Christian, que ainda corria, aos tropeções, na direcção de Gerde. Sentiu que o poder dos deuses voltava a percorrer o seu corpo, enchendo-o de energia, mas o báculo absorvia boa parte dela, e decidiu que não se iria embora, que esperaria por Christian até ao fim.
No ar, a batalha era caótica. Sheks e pilotos de dragões tinham ficado ofuscados pela luz de Irial e voavam às cegas. Mas, enquanto os dragões não tinham nenhum ponto de referência, os sheks deixavam-se levar pelo instinto e localizavam facilmente os seus inimigos. Confusos, os dragões procuravam uma forma de escapar; os sheks, em contrapartida, continuavam a arremeter contra eles, apesar do vento tempestuoso que os sacudia, apesar da luz que os cegava. Os sheks não conseguiam deixar de lutar.
Gerde continuava a manter a Porta aberta. Tinha consciência de que os deuses já a tinham encontrado. "Tenho de atravessar", disse para consigo. Bastava um instante para atravessar para o outro lado, escapando dali, e já ninguém poderia alcançá-la. Deixaria para trás todos os sheks que ainda não tinham atravessado a Porta, mas...
Pressentiu Christian a correr na direcção dela, mas não foi isso que a distraiu e, sim, um lancinante choro infantil e a voz angustiada de Assher, que estava junto dela, com Saissh nos braços, procurando protegê-la do vento e da luz.
- Minha senhora! - disse o rapaz, gritando para se fazer ouvir por cima do vendaval. - O que está a acontecer?
Gerde olhou para ele. Hesitou entre atravessar a Porta, deixando-os todos abandonados à sua sorte, e esperar, mesmo sabendo o que podia acontecer se o fizesse.
Aquele instante de dúvida decidiu por ela.
Christian previu-o. Gritou o nome de Gerde, correu com todas as suas forças, mas um violento tremor de terra fê-lo perder o equilíbrio e cair desamparado no chão. O feixe de luz que focava Gerde tornou-se mais intenso, e Christian, tão ofuscado que quase não conseguia ver nada, protegeu o rosto com as mãos...
Chegou a distinguir o corpo esbelto de Gerde naquela coluna luminosa, uma sombra subtil erguendo-se no meio daquele glorioso resplendor divino, um frágil corpo mortal abandonado à fúria dos deuses. Chegou a ver Gerde durante um último momento, apenas um instante antes de a luz dos deuses a desintegrar para sempre.
O seu último olhar tinha sido para Assher.
O jovem szish não teria sido capaz de definir o que havia na expressão do rosto da fada um instante antes de desaparecer na luz de Mal. Terror, pena, dor, ternura... talvez tudo isso, ou talvez mais, ou talvez menos. Nunca o saberia.
Demorou a perceber que Gerde já não existia, que não voltaria a vê-la, que a tinha perdido para sempre. Deixou-se cair de joelhos no chão, ignorando o facto de este tremer e retumbar, ignorando o vento que destruía os seus ouvidos, a luz que feria os seus olhos, o calor que abrasava os seus sentidos. Estreitou a chorosa e aterrada Saissh nos braços e chorou por Gerde com o coração despedaçado.
- Senhora... - soluçou. - Eu era o teu escolhido... e falhei-te...
O choro sufocou as suas palavras.
De repente, parecia que havia menos luz. Christian arriscou-se a erguer-se um pouco e a olhar. Não viu Gerde e compreendeu imediatamente o que se tinha passado.
- A Porta está a fechar-se - disse então uma voz na sua cabeça. Christian reconheceu Eissesh.
Ergueu a cabeça e viu os sheks à espera junto da Porta, inquietos. Entendeu o que devia fazer.
Levantou-se, não sem esforço, e avançou a coxear até à brecha interdimensional. Ultrapassou Assher, que continuava a soluçar, protegendo Saissh nos braços, colocou-se diante da Porta e manteve-a aberta para os sheks.
- Vai-te embora - disse-lhe Eissesh. - Vai antes que seja tarde. Sentiu o olhar do shek sobre ele.
- Se teares aqui, morrerás - insistiu Eissesh.
- Eu sei. Mas este é o meu mundo e aqui está a minha vida. Não posso partir para lado nenhum.
- Se sobreviveres ao dia de hoje - vaticinou o shek, - mudarás de opinião. Christian não respondeu e Eissesh não acrescentou mais nada. Foi o próximo a atravessar a Porta.
Victoria desfez o globo de escuridão e avançou como pôde sobre aquele chão tremente para tentar chegar até CHristian. Jack segurou-a pelo braço para evitar que caísse.
- Onde vais?
- Ter com Chrístian. Ali... corre perigo.
- E tu também. Não vou permitir...
- O quê? Vais procurar impedir-me de ir em sua ajuda? Os dois trocaram um longo olhar.
- Não - disse Jack. - vou contigo.
- Olhem para aquilo - disse então Alsan, apontando para o céu.
Algo ensombrara a luz de Irial, algo parecido com uma nuvem de tempestade cheia de electricidade, algo informe que se deslocava sobre eles, fustigado pelas energias das seis divindades. Todos os que o olharam estremeceram de terror e os que estavam mais perto sentiram que algo indefinível deslizava até à sua alma, algo poderoso e negro, que os fez tremer e sentir-se pequenos e insignificantes, mas, ao mesmo tempo, inquietantemente vivos. Todos os sheks o contemplaram com veneração. Até mesmo Christian ergueu o olhar para o ver e sentiu que algo explodia no seu peito, uma sensação de jubiloso reconhecimento.
Era o sétimo deus.
Não estava no seu melhor momento. Os Seis cercavam-no e pareciam estar a criar em volta da sua essência uma espécie de manto luminoso, que o ia envolvendo e prendendo. Todas as serpentes ciciaram, horrorizadas.
- Vão voltar a encerrá-lo - murmurou Victoria.
Mas ninguém a ouviu, porque a rocha retumbava, os ventos uivavam e a torrente de água que caía pelo desfiladeiro tornara-se numa cascata atroadora que continuava a rachar a parede rochosa. Não tardaria a fazê-la rebentar e então toda a garganta seria inundada de água.
Jack olhou então longamente para Christian. Estava a acontecer-lhe algo estranho. Subitamente, desejava matá-lo, desejava-o com todas as suas forças. Lutou contra aquele impulso e, num instante de lucidez, compreendeu que os seus deuses lhe estavam a ordenar que acabasse com a vida do shek que mantinha aberta a Porta pela qual as serpentes escapavam. Quis rebelar-se contra aquela ordem, quis lutar, mas a voz dos deuses foi superior à sua vontade: com um grito, desembainhou Domivat e lançou-se contra ele.
Christian deu um salto atrás para se esquivar da arremetida de Jack. Primeiro ficou confuso, mas um instante depois já tirava Haiass da sua bainha e respondia à provocação, abandonando a Porta à sua sorte.
- Jack! - gritou Victoria. - O que pensas que estás a fazer?
Jack não a ouviu. Encadeou uma série de movimentos para chegar até Christian, mas ele esquivou-se e afastou-se do seu caminho, interpondo Haiass entre ambos. Uma vez mais, as duas espadas chocaram e os seus fios estremeceram de ódio e de prazer. Victoria tentou correr para eles, mas Alsan deteve-a.
- Não te aproximes! Poderiam magoar-te!
- Sei cuidar de mim mesma! - protestou ela.
- Então tem um pouco de bom senso. Estás grávida!
Victoria mal o escutava. Estava a observar as caras de ambos, de Jack, de Christian. Sempre houvera rivalidade entre eles, uma inimizade manifesta, mas nunca se tinham olhado daquela maneira. Os seus rostos eram agora uma máscara de ódio; os seus olhos não reconheciam o opositor. Apesar de manterem o seu aspecto humano, naquele momento eram somente um dragão e um shek.
E não pareciam importar-se que o chão retumbasse debaixo dos seus pés ou que o vento prendesse os seus movimentos. Nada daquilo era importante. Nada, salvo a vontade de se matarem um ao outro.
- O que se passa com eles? - perguntou Victoria, angustiada.
Um poderoso trovão sufocou as suas palavras. Por cima das suas cabeças, aquela estranha névoa escura, sinistra e irisada, que deslizava de um lado para o outro, continuava a procurar fugir da luz envolvente que tentava aprisioná-la. Todo o firmamento parecia estar a contemplar a última batalhados Sete.
- Os deuses lutam entre eles! - gritou Alsan, para se fazer ouvir por cima daquele estrondo. - As suas criaturas, também!
Victoria procurou sinais dos dragões artificiais no céu, mas não viu nenhum. Os que não tinham morrido na batalha contra os sheks, tinham sido arrastados pelo tornado ou conseguido escapar. Os sheks sobreviventes regressavam às imediações da Porta, que estava a fechar-se. No entanto, ninguém parecia importar-se; por alguma razão, todos contemplavam, assombrados, a luta dupla que se desenvolvia ali mesmo, entre os Seis e o Sétimo, entre um dragão e um shek.
Jack conseguiu alcançar Christian, mas o shek moveu-se para o lado, e o golpe acertou-lhe na anca. Foi doloroso. Sufocou um grito e recuou um pouco, a coxear. Deteve uma nova estocada de Jack. Apesar da dor, golpeou de novo. Esteve prestes a enterrar Haiass no estômago de Jack, mas este deu um salto para trás, tropeçou e um novo movimento sísmico fê-lo cair de costas. Rolou para um lado para escapar à investida de Christian, que chegou a fazer-lhe uma fria brecha no antebraço esquerdo. Jack gritou, mas instantes mais tarde estava de novo em pé e a atacar.
- É preciso detê-los! - insistiu Victoria. - A qualquer momento mudarão de forma e, assim que Jack voltar a ser um dragão, todos os sheks lhe cairão em cima!
Alsan franziu o sobrolho. Olhou em volta, procurando os sheks, e descobriu várias dezenas deles aninhados contra as paredes de rocha, contemplando, impotentes, como o seu deus lutava pela sua liberdade contra os outros seis. Reparou então que a Porta continuava a fechar-se; soltou Victoria de repente e desatou a correr naquela direcção, desafiando os elementos, procurando manter o equilíbrio sobre aquele chão instável. Passou junto de Jack e de Christian, que continuavam a lutar entre eles, mas não lhes prestou atenção, nem eles a ele. Passou junto de Assher, que continuava de joelhos, embalando uma Saissh aos gritos, e estacou em frente da Porta. Observou, semicerrando os olhos para se proteger da luz, a abertura avermelhada que se ia estreitando, e percebeu que não fazia a menor ideia de como mante-la aberta. Fez a primeira coisa que lhe ocorreu: extraiu Sumlaris da bainha e enterrou-a naquela tela fluida. Foi como se cravasse a espada num charco de água. Contudo, aquele material pareceu sugar a arma e Alsan, com um grito, puxou-a para não ser arrastado também. Sentiu, subitamente, que uma grande onda de energia passava através da espada e chegava até ao próprio punho, queimando as palmas das suas mãos e obrigando-o a gritar, mas não cedeu.
As bordas da abertura continuaram a estreitar-se durante uns segundos mais e depois estabilizaram-se. Alsan cravou bem os pés no chão, procurando manter o equilíbrio, e agarrou-se com mais força ainda ao punho da espada. Cerrou os dentes e fechou os olhos, num esforço para aguentar a dor...
A abertura continuava a ser suficientemente larga. Um dos sheks recolheu as asas e atreveu-se a deslizar até ela e atravessar para o outro lado.
Lentamente, os outros seguiram-no, passando junto de Alsan, que continuava a manter a Porta aberta, dando às serpentes uma ponte em direcção à sua liberdade.
com um novo grito selvagem, Jack e Christian voltaram a arremeter um contra o outro. As espadas quase chocaram por cima das suas cabeças, mas algo se interpôs, uma vez mais: o báculo de Ayshel, brilhante, cristalino e mais cheio de energia do que nunca.
O choque entre as três armas foi brutal. A energia libertada pelo báculo lançou-os para trás, separando-os e rompendo a espiral de ódio em que o shek e o dragão estavam presos. Os dois caíram no chão com violência.
Jack abanou a cabeça e procurou voltar à realidade. E a realidade não lhe agradou.
Os ventos bramiam sobre eles. Ao longe, os vulcões retumbavam. A cordilheira inteira tremia e a crista do desfiladeiro começava a desprender-se.
Uma violenta torrente de água fendia a parede rochosa de lado a lado. Estava tanto calor que mal se conseguia respirar. E as trepadeiras começavam a estender-se, como tentáculos, por todos os lados. Além disso, havia tanta luz como se fosse dia, apesar de algo cobrir as suas cabeças, uma névoa que se movia de um lado para o outro, uma espécie de garra negra que lançava os seus dedos aduncos em todas as direcções, procurando uma maneira de fugir da brilhante rede de relâmpagos na qual os deuses a tinham prendido. E aquela armadilha tornava-se cada vez mais compacta e mais resistente, assemelhando-se cada vez mais a uma espécie de crisálida.
Mais uma vez, os Seis estavam prestes a encerrar o Sétimo na nova Rocha Maldita que estavam a criar.
Os sheks contemplavam tudo aquilo sem serem capazes de reagir. Jack conseguia cheirar o seu medo, a sua incerteza. O que seria deles se o seu deus fosse capturado?
Voltou o olhar para a Porta pela qual iam escapando um a um, enquanto Alsan a mantinha aberta muito a custo. Procurou então Christian, e viu que ele procurava erguer-se, com dificuldade, e sacudia a cabeça para se recompor. Viu também Victoria perto dali, ajoelhada no chão, com o báculo entre as mãos. O seu corpo estava envolto num cintilante manto de faíscas, e ela, a tremer e com a cabeça baixa, tentava expulsar de si mesma toda aquela energia. A pedra do báculo parecia explodir. Inquieto, Jack pensou que o seu ventre parecia ainda mais volumoso do que antes.
Correu para ela e ajoelhou-se ao seu lado. Colocou uma mão sobre o seu abdómen e, efectivamente, pareceu-lhe que o bebé continuava a crescer, lentamente.
- Tenho de te tirar daqui - disse-lhe, mas ela não o ouviu. Christian, por sua vez, levantou-se para se juntar a eles, mas alguém o deteve. Voltou-se e deparou-se com o olhar de Assher, extraordinariamente sério.
Assher disse algo, mas Christian não conseguiu ouvi-lo porque o estrondo provocado pela presença dos deuses fazia retumbar todo o desfiladeiro. No entanto, tomou Saissh nos braços quando Assher lha estendeu.
- O que significa isto? - perguntou-lhe o shek.
- Terás de cuidar dela - disse Assher. - Eu sou o eleito de Gerde. Tenho de fazer o que ela esperava de mim.
O resto aconteceu muito depressa. Haiass tinha caído no chão, perto de Christian. Antes que este tivesse consciência do que estava a acontecer, Assher caiu de joelhos junto à espada e pegou-lhe com ambas as mãos. Gritou de dor quando lhe congelou as palmas, mas conteve-se, ergueu a arma... e, com um movimento certeiro e decidido, cravou a espada no seu coração.
Christian reprimiu o impulso de procurar detê-lo. Tinha subestimado Assher, pensou. Sabia muito bem qual era a sua função dentro do círculo de Gerde. Intuíra, talvez há muito tempo, para que fim estava a ser treinado.
Contemplou, impassível, a auto-imolação de Assher, ignorando as exclamações de alarme de Jack e Victoria, o grito de dor que o szish emitiu quando a espada de gelo começou a congelar os seus órgãos internos. Limitou-se a esperar, até que o coração de Assher deixou de bater, convertido numa fria flor de geada.
Então, Christian carregou a chorosa Saissh com o braço esquerdo e, com a mão direita, puxou a sua espada para a recuperar. Aos seus pés ficou o corpo de Assher, rígido, frio, morto.
- Christian! - ouviu a voz de Jack, entre o bramido do vento. Ele e Victoria tinham-se juntado ao shek e contemplavam a cena, aturdidos.
- Uma morte - replicou Christian, telepaticamente, para que ambos o captassem com clareza. - Um novo começo.
Entregou-lhe Saissh, que continuava a berrar a plenos pulmões, e Jack pegou nela, perguntando-se que diabo estava a acontecer, interrogando-se se sairiam vivos daquela loucura. Sentiu-se, mais do que nunca, um pequeno insecto num mundo de titãs.
E então, de repente, algo aconteceu.
Victoria inclinara-se junto a Assher e contemplava-o tristemente. Foi ela quem deu o alarme quando o corpo do szish estremeceu e começou a regenerar-se de forma espontânea. Jack retrocedeu, aterrorizado, ao ver que uma fina névoa escura, densa e maleável como o mercúrio, se estava a introduzir no corpo do szish através das suas fossas nasais. Os deuses rugiram com mais força. Um pico montanhoso explodiu em milhares de fragmentos e todos cobriram a cabeça para se protegerem dos pedaços de rocha que pudessem atingi-los. Quando voltaram a levantar o olhar, Assher estava vivo de novo. Levantara-se e contemplava-os com um olhar prateado e insondável. A massa negra que minutos antes se retorcia entre relâmpagos, sobre as suas cabeças, tinha desaparecido.
A luz voltou a atingir o desfiladeiro com força, mas eles estavam protegidos pelo báculo de Victoria, que absorvia a luz e criava um agradável espaço de penumbra em seu redor.
Assher observou-os de novo e sorriu. Foi um sorriso frio e distante que, por alguma razão, os fez estremecer de terror.
- Chegou a hora - anunciou e, apesar do estrondo dos elementos, ouviram-no perfeitamente. - Dessspeçam-ssse de nósss, sssanguesss-quentesss. Não voltaram a ver-nosss e assseguro-vosss que no futuro não sssentirão a nosssa falta.
Dirigiu um longo olhar a Victoria e ela sentiu-se desconfortável, como se estivesse a pôr a nu a sua alma. O szish sorriu, simplesmente, mas não fez qualquer comentário.
"Ele sabe", pensou Victoria, horrorizada. "Já sabe quem é o pai do bebé." Retrocedeu uns passos, receosa. Recordava o que Christian lhe contara acerca das intenções de Gerde a respeito do seu filho. Se fosse filho de Jack, iria matá-los aos três. Se o shek fosse o pai, levaria o bebé consigo... e a mãe também, se ainda não tivesse dado à luz.
Mas Assher não fez nada contra ela. Não procurou sequestrá-la nem fazer-lhe mal. Limitou-se a dar meia-volta e afastou-se em direcção à Porta, que Alsan ainda mantinha aberta, muito a custo.
Victoria tremia. Talvez, pensou, o deus das serpentes já não tivesse interesse em nada do que Idhún pudesse oferecer-lhe, dado que tinha, por fim, um mundo para ele e para as suas criaturas. Um mundo pelo qual não teria de lutar.
- Quem... o que é? - murmurou Jack, estremecendo.
- O sétimo deus - disse Christian.
Alsan continuava a manter a Porta aberta, segurando Sumlaris com força, que lhe transmitia fortes pulsações de energia, como descargas eléctricas cada vez mais dolorosas. Contudo, em nenhum momento lhe ocorreu soltá-la. Uma parte dele achava estranha a ideia de estar a cobrir a retirada dos sheks, os filhos do Sétimo, o deus a quem tinham ensinado a odiar. E continuava sem sentir apreço por aquelas criaturas, continuava a ser leal aos Seis. Mas também sentia que tinha cometido um erro, um terrível erro, que podia custar a vida a todos. Todo aquele caos, toda aquela destruição... a queda de mais de uma centena de dragões artificiais, arrastados pelo poder dos elementos como se fossem frágeis folhas ao vento... tinha sido culpa sua. Se ajudando os sheks a escapar conseguisse impedir tudo aquilo... tinha de o tentar.
Enquanto as sombras sinuosas dos sheks deslizavam, uma a seguir à outra, através da Porta, percebeu uma presença sombria ao seu lado e estremeceu sem saber porquê. Contudo, não conseguiu ver nada: a luz de Irial era tão intensa que o obrigava a manter os olhos fechados.
- Boa essspada - comentou uma voz sibilante ao seu lado; havia algo nela que fez com o que seu estômago se contorcesse de puro terror; cerrou os dentes e fez um último esforço para continuar a suster Sumlaris. Uma arma mítica que abssorve a energia da Porta e ssse torna uma ponte entre ambosss osss mundosss. Asssim que a sssoltaresss, a Porta fechar-ssse-á.
Alsan não foi capaz de responder. Estava paralisado de medo. Assher também não disse mais nada. Naquele momento, o último shek passou através da Porta. O szish sorriu.
- Adeusss, ssangue-quente - disse simplesmente.
E atravessou a Porta ele também, apenas uns instantes antes de os Seis descarregarem todo o seu poder contra o lugar pelo qual o Sétimo e as suas criaturas tinham escapado. Alsan só teve tempo de retirar a sua espada e ver como a Porta se fechava atrás dos sheks, e então toda a ira dos deuses caiu sobre ele.
Naquele preciso instante, as montanhas estremeceram e desmoronaram-se e todos os vulcões da cordilheira entraram em erupção; uma impetuosa torrente de água inundou o desfiladeiro, com incrível violência, e rebentos de espinhos cobriram todas as paredes, como tentáculos sinistros. Ouviu-se, de novo, o uivo de um furioso furacão. Depois houve um intensíssimo raio de luz...
E a Porta explodiu com incrível violência.
Depois, o silêncio.
Lentamente, as águas baixaram e as montanhas deixaram de tremer. A luz apagou-se. Por fim ficou de noite, a temperatura voltou a ser agradavelmente fresca e o ar acalmou-se. Pouco a pouco, as plantas deixaram de crescer.
Depois de bastante tempo, que lhe pareceu uma eternidade, Jack abriu os olhos. Ainda chegou a ver como se desvanecia a bolha de energia que os tinha protegido da fúria dos elementos. Uma parte da sua mente perguntou-se se tudo aquilo não seria mais do que um sonho mau. Então algo se remexeu nos seus braços e exigiu-lhe atenção com um choro sonoro. O jovem voltou à realidade e sentou Saissh nos seus joelhos, procurando acalmá-la.
Olhou à sua volta e viu Victoria de bruços sobre Christian. O báculo jazia no chão, perto dela.
- Victoria? - murmurou. - Estás bem?
Ela abriu os olhos e olhou para ele, um pouco aturdida. Christian acordou estremunhado e, num movimento reflexo, estendeu a mão em busca da sua espada. Descontraiu-se um pouco ao vê-los.
- O que aconteceu? - murmurou o shek. - Parece-me que nos passaram seis deuses por cima e continuamos vivos. Como é possível...?
Victoria abanou a cabeça e soergueu-se um pouco.
- Eu... foi tudo muito rápido. Os deuses lançaram-se sobre nós e utilizei o báculo para criar um escudo de protecção... nunca pensei que funcionaria.
Christian franziu o sobrolho, pensativo.
- Qualquer coisa que fizeres com o báculo funcionará melhor quanto mais energia conseguires utilizar. Ele canalizou toda a energia dos deuses. Tinha de ser um escudo à prova de tudo.
Victoria levantou-se, com cuidado. Apalpou o seu abdómen com delicadeza. Sentiu o seu filho a mexer-se dentro dela.
- Ainda está vivo - murmurou, com lágrimas de alívio. - Não posso acreditar. Depois de tudo o que aconteceu... ainda está vivo.
Jack sorriu, também enormemente aliviado. Estreitou-a nos braços. Subitamente, ela ergueu a cabeça, com a cara congelada num esgar de horror.
- Alsan... não.
- O que há com Alsan? - perguntou Jack com o coração apertado.
- Tentei estender o escudo até ele, mas estava demasiado longe. Não sei... não sei se cheguei a tempo.
Jack deixou Saissh no chão, pôs-se de pé de rompante e vociferou:
- Alsan! Estás a ouvir?
Apenas o eco lhe devolveu as suas palavras. Uma leve brisa agitou o cabelo e o rosto de Jack, mas ele mal o notou. Correu de um lado para o outro, saltando charcos e trepando por cima das rochas, chamando Alsan uma e outra vez, enquanto Victoria enterrava o rosto entre as mãos e desatava a chorar suavemente. Christian abraçava-a, procurando consolá-la, enquanto Saissh, exausta, se aninhava num canto e caía profundamente adormecida.
Jack continuou à procura de Alsan, incansavelmente, até que as luzes do primeiro amanhecer tocaram a crista do desfiladeiro. Recusava-se a acreditar que tivessem perdido Alsan, no entanto, a lógica acabou por se impor: ninguém teria conseguido sobreviver àquilo.
com um nó no estômago, regressou para junto de Christian e Victoria. Continuavam abraçados. Ambos tinham um aspecto lastimável; estavam exaustos, mas, sobretudo, pareciam perdidos e assustados. Jack olhou para eles, desolado. Também ele se sentia assim.
Victoria ergueu a cabeça para ele. Trocaram um longo olhar de entendimento.
Jack deixou-se cair. Ajoelhou-se junto de Victoria e abraçou-a ele também. Enterrou a cara no seu ombro e chorou, como na noite em que se conheceram, em Limbhad; chorou pelo amigo perdido, por Alsan, rei de Vanissar, que morrera para ajudar a salvar o mundo, que se sacrificara para emendar o seu terrível erro. Por Alsan, rei de Vanissar, em cujo peito batera o coração de um herói.
Ficaram ali, os três, bastante tempo, sem se moverem, abraçados. O mundo parecia-lhes surpreendentemente calmo e vazio. Ainda não eram capazes de se habituar ao silêncio, à sensação de que tudo tinha terminado, de que, por fim, podiam descansar.
O Sétimo e os sheks tinham fugido para outro mundo. Os Seis já não tinham nada a fazer em Idhún, pelo que tinham regressado à sua dimensão.
O mundo voltava a pertencer aos mortais.
NASCIMENTO
Era muito tarde quando um dos noviços tirou Ha-Din da cama para lhe comunicar que dois desconhecidos queriam vê-lo. O celeste captou o desconcerto do jovem, a sua inquietação, e apressou-se a vestir-se e a ir ao encontro dos recém-chegados.
Atravessou com rapidez os corredores do Oráculo de Awa, formados por troncos de árvores vivas, que se entrelaçavam entre si para formar um edifício surpreendentemente vivo. Tinha uma suspeita acerca de quem podiam ser os visitantes, apesar de há quase um mês ninguém ter notícias deles. Desde o dia em que a fúria dos deuses se abatera sobre Idhún, e as serpentes haviam desaparecido misteriosamente.
Custara muito voltar à normalidade. Centenas de mortos, cidades inteiras destruídas, uma imensidão de feridos. Não havia muita gente em Idhún que acreditasse realmente que todas aquelas catástrofes tinham sido directamente provocadas pelos deuses, mas os que o sabiam, e o aceitavam, ignoravam-nos. Ha-Din sabia que se aproximavam tempos difíceis para ambas as Igrejas, no entanto, ele ainda tinha fé. Era certo que os deuses não revelaram ser os pais sábios e compreensivos que acreditara que fossem, mas, ainda assim, não conseguia evitar admirá-los e adorá-los pela sua grandeza. Os deuses eram a vida e a morte, os deuses eram o mundo, os deuses eram tudo. E a existência era por vezes caótica e cruel, e a vida podia parecer às vezes injusta e sem sentido. Mas, apesar disso, a maior parte dos mortais agradecia estar viva e lutava por continuar no mundo, por cada segundo de existência. E por isso Ha-Din continuava a agradecer aos deuses, embora eles não escutassem a sua voz. Eles não tinham apenas criado o mundo; eles eram o mundo. Um mundo imperfeito, um mundo que seguia as suas próprias regras, um mundo no qual os mortais eram apenas uma peça mais, mas um mundo, ao fim e ao cabo. Ha-Din sentia-se parte desse mundo e não o perturbava que este não girasse ao seu redor. Dava graças, simplesmente, por existir nele.
Chegou por fim ao pórtico formado por duas gigantescas árvores cujos ramos se entrançavam, formando um delicado tecto em forma de arco em ogiva. Ao pé de um dos troncos aguardava-o o casal.
Tinham-se retirado para um canto nas sombras e ocultavam os seus rostos debaixo dos capuzes das suas capas de viagem, mas Ha-Din reconheceu-os.
Voltou-se para o noviço.
- Obrigado, podes retirar-te. Eu mesmo os acompanharei aos quartos de hóspedes.
O Pai Venerável tinha fama de ser um anfitrião amável e atento, pelo que o rapaz não pareceu surpreendido. Inclinou a cabeça e deixou-os sozinhos.
O jovem iniciou a conversa:
- Lamentamos aparecer a estas horas e vir incomodar, mas é que...
- E que não sabíamos para onde ir - completou ela.
Ha-Din olhou para ela. Percebeu a sua inquietação, o seu medo, a sua angústia... e o seu cansaço.
- Sigam-me - disse -, vou dar-vos um quarto afastado. Falaremos lá. Pareceram aliviados. Ha-Din guiou-os através do Oráculo e não lhe escapou que a rapariga caminhava com dificuldade, apoiando-se no seu companheiro, e que parava frequentemente para descansar. Quando entraram no quarto, os dois levaram-na com cuidado até ao leito, um enorme fungo de aspecto viscoso. Ela suspirou e, quando se assegurou de que a cortina de folhas estava corrida, tirou o capuz. Estava pálida e transpirada.
- Já começou? - perguntou Ha-Din.
- Há algum tempo - disse Jack, tirando a capa. - Há muito que tínhamos decidido vir para aqui quando chegasse o momento, mas não fomos suficientemente rápidos. Calculámos mal o tempo, suponho.
- Não me surpreende. Não é propriamente habitual que uma mulher dê à luz com apenas quatro meses de gestação.
- Aconteceram muitas coisas estranhas ultimamente - disse Jack, ajudando Victoria a recostar-se sobre a cama. Falava com calma, mas Ha-Din detectou claramente o seu nervosismo e a sua preocupação.
- Não tenhas medo. Avisaremos as fadas, irão adorar ajudar. Normalmente não lhes permitimos a entrada, porque gostam de distrair e perturbar os noviços, acham-no divertido, mas encaram muito a sério tudo o que gira em torno da concepção e do nascimento. Enviarão uma parteira de confiança. O único problema é que, tratando-se delas, não tardará a correr a notícia de que estão aqui. Os sacerdotes do Oráculo costumam ser discretos, as fadas não.
Jack encolheu os ombros.
- Nessa altura, já estaremos muito longe.
Ha-Din olhou-o demoradamente. Pareceu ir perguntar-lhe alguma coisa, mas naquele momento Victoria lançou uma exclamação de dor, e o celeste abanou a cabeça e disse: - vou mandar alguém buscar a parteira.
Pouco depois, a fada já tinha chegado. Trouxera consigo duas fadas mais jovens que procuravam parecer sérias e formais, embora não conseguissem dissimular a sua emoção e a sua alegria. Para os feéricos, todo o novo nascimento era uma grande festa.
Expulsaram Jack do quarto, sem contemplações. O jovem protestou e disse que queria ficar, e Victoria também suplicou que lhe permitissem permanecer junto dela, mas as fadas eram inflexíveis: havia coisas, disseram, que uma mulher tinha de fazer sem homens a incomodar à volta, e dar à luz era uma delas.
- Na minha terra permite-se aos pais estarem presentes no parto! protestou Jack, mas a parteira expulsou-o mesmo assim.
- No dia em que fores tu a ter um bebé na barriga, poderás ficar disse. - E agora, vai-te embora.
Frustrado e angustiado, Jack não teve outro remédio senão ficar lá fora. Aliviou-o ver que Ha-Din estava ali e lhe sorria amistosamente.
- Anda - disse-lhe -, vamos para o jardim.
Jack resistia a afastar-se dali. Quando ouviu um novo grito de Victoria, esteve quase para voltar a entrar. O Pai deteve-o.
- Deixa-as. Sabem o que fazem. Além disso, tenho de falar contigo.
Jack respirou fundo e obrigou-se a acalmar-se. Seguiu obedientemente Ha-Din até ao jardim, embora o seu coração permanecesse naquele quarto, com Victoria.
Ha-Din foi direito ao assunto.
- Porque é que não estão em Vanissar, Jack? Porque é que vieram ter comigo?
Jack desviou o olhar.
- Alsan já não está em Vanissar.
- Mas ainda têm lá amigos.
Jack respirou fundo. Era certo, ainda lá estavam Shail e Zaisei. Depois de terem sobrevivido ao que alguns chamavam já a Batalha dos Sete, os três tinham passado algum tempo a recuperar das emoções passadas e do horror que tinham vivido naquele dia. Por fim, quando se sentira com forças, o jovem deixara Victoria a cargo de Christian e voara até Vanissar para relatar tudo o que tinha acontecido. Os exércitos que Covan enviara para a batalha regressaram sem ter combatido sequer, porque, por sorte, não haviam chegado a tempo. Os Novos Dragões não tinham sido tão felizes: cento e trinta e quatro dragões, com os seus respectivos pilotos, tinham tombado, quer entre os anéis dos sheks quer arrastados pelo furacão.
Covan enviara uma patrulha para recuperar os corpos. A última coisa que Jack sabia era que tinham encontrado o de Alsan sepultado debaixo de um alude de rochas, num estado lastimável, ainda agarrado à sua espada.
Iam transladá-lo para Vanissar. O funeral seria realizado em seguida e, obviamente, Jack não pensava faltar.
Então, porque é que levara Victoria para o Oráculo em vez de a levar para Vanissar? Era certo que aquele lugar lhe trazia muitas recordações e que ainda não tinha aceitado, e muito menos superado, a perda de Alsan, seu amigo e mestre. Mas não era só isso.
- Trata-se de Covan - disse. - Em breve será o novo rei de Vanissar. E não me interpretes mal; é um grande homem, mas para certas coisas é tão intransigente como foi Alsan. Nunca quis aceitar que tudo o que enfrentámos se deveu aos deuses. E o certo é que houve uma batalha nos Picos de Fogo contra as serpentes. Não acreditou em mim quando lhe disse que se tinham ido todas embora. Julga que estão escondidas algures, preparando-se para voltar a atacar-nos. Culpa-as pelo massacre dos Novos Dragões... em concreto, culpa Christian. O filho... o herdeiro de Ashran - corrigiu-se. - Além disso, aceitou muito mal a morte de Alsan. Nenhum de nós aceitou, mas para ele... não sei, acho que era quase como um filho e penso que se arrepende de lhe ter virado as costas depois da morte de Amrin. Lembras-te de que, no dia da sua coroação, Alsan jurou que não descansaria até matar a última serpente de Idhún?
- Receias que o novo rei de Vanissar pretenda acabar a tarefa que Alsan começou.
- Tentei dizer-lhe que o próprio Alsan tinha ajudado os sheks a fugir, e não reagiu muito bem. Tomou-o como uma grave ofensa à memória de Alsan. Chegou a dizer que eu estava com inveja da sua morte heróica e que tentava sujar a sua memória insinuando que tinha ligações com as serpentes.
- Entendo - murmurou Ha-Din.
- Enquanto Alsan era vivo, Vanissar chegou a tornar-se hostil para nós, sobretudo para Christian e Victoria. Infelizmente, as coisas parecem continuar na mesma. Não quero nem pensar no que pode acontecer se o nosso filho tiver sangue shek.
Ha-Din sorriu ligeiramente ao aperceber-se e que Jack falava do "nosso filho" mesmo no caso de Christian ser o seu pai biológico. Era uma estranha família, sem dúvida, mas havia alguma beleza e ternura em tudo aquilo: "nosso" filho, dissera Jack. O filho dos três.
- Covan perseguira todas as serpentes de Idhún - prosseguiu Jack -, apenas para seguir o exemplo de Alsan. Mas só resta uma serpente em Idhún. Talvez duas, neste momento - acrescentou, preocupado. Voltou-se bruscamente ao ouvir um novo grito de Victoria, desta vez mais apagado devido à distância; procurou controlar o seu nervosismo, - E agora, ele e os seus partidários, quer dizer, todos aqueles que culpam os sheks do que aconteceu nos Picos de Fogo, têm uma arma contra eles. Gaedalu possuía fragmentos da Rocha Maldita...
- Não tens de te preocupar mais com ela - tranquilizou-o Ha-Din. Gaedalu renunciou ao seu cargo como Mãe Venerável em favor da irmã Karale.
"Não teve outro remédio senão fazê-lo", pensou Ha-Din, com tristeza. Depois da sua experiência com os deuses, Gaedalu não voltara a ser a mesma. Quase não falava com ninguém e passava o tempo todo com o olhar perdido, derramando, de vez em quando, lágrimas amargas. Tinham acabado por levá-la de novo a Dagledu, na esperança de que, deixando a terra firme e regressando às suas origens, conseguisse superar tudo aquilo... com o tempo.
- Mas deixou fragmentos da Rocha Maldita em Vanissar - fez notar Jack - e Covan está a utilizá-los para criar armas contra Christian. Estão à procura dele e, se o encontrarem, talvez acabem por o matar.
- Por isso não veio hoje convosco?
Jack sorriu misteriosamente, mas não disse palavra. Ha-Din entendeu sem necessidade de palavras: o shek estava ali sim, escondido algures, talvez na mata que rodeava o Oráculo, talvez escondido entre as suas paredes.
- Na realidade, não se esconde por medo - explicou-lhe Jack. - Simplesmente não queríamos que a sua presença alterasse os habitantes do Oráculo. Precisávamos que nos acolhessem hoje - acrescentou em voz baixa.
- São bem-vindos, Jack, sabes disso. Também o shek. Jack sorriu, agradecido.
- E Zaisei? - quis saber Ha-Din, mudando de assunto.
- A melhorar. Shail está a cuidar dela e diz que parece estar a começar a ver formas difusas. Os médicos que a tratam confiam em que acabará por recuperar a visão.
"O que não se pode dizer de muitas outras pessoas", disse para consigo, abatido. A luz de Irial surpreendera Zaisei no interior do castelo e mesmo assim cegara-a. Mas outros não tinham tido tanta sorte. Desde o dia da Batalha dos Sete tinham-se multiplicado os casos de pessoas que haviam perdido não só a visão, como também os olhos. Especialmente os shur-ikaili.
Jack pudera verificar pessoalmente o estado lastimável em que se encontravam sete dos Nove Clãs. Todos cegos, todos obrigados a aprender a viver de outra maneira. Os clãs bárbaros tinham sempre guerreado entre eles, mas agora não tinham tido outro remédio senão unir-se. Os membros dos clãs que se tinham salvado cuidariam dos outros. Os bárbaros acabariam por voltar a ser o que tinham sido, mas seria necessário que uma nova geração de ciianças saudáveis nascesse, crescesse e substituísse os adultos.
Por isso, tinham acolhido Saissh de braços abertos. A menina tinha ficado ofuscada pela luz de Irial, mas o báculo de Victoria protegera-a e, dois dias depois, já podia ver de novo na perfeição. Recuperou o seu nome shur-ikaili, Uk-Sun, e localizaram os seus familiares mais próximos. Agradeceram a Jack por lhes devolver a pequena.
Nunca saberiam que aquela menina tinha sido escolhida por Gerde para ser a futura encarnação do sétimo deus, caso houvesse decidido conquistar a Terra. Aquele plano tinha sido descartado em troca de um mais arriscado, mas muito melhor, a longo prazo: a criação de um mundo completamente novo para os sheks. Uk-Sun nunca saberia quão próxima estivera de viajar para a Terra e ser, quando crescesse, a líder de todos os sheks, ao menos até que eles conquistassem aquele estranho mundo dominado por humanos e não precisassem que a sua deusa continuasse a ocultar-se atrás de um disfarce mortal. O arriscado plano de Christian, que fizera com que, finalmente, fosse Assher o escolhido, um homem-serpente para um mundo de serpentes, tinha libertado a pequena daquele destino. Poderia crescer como uma criança normal.
Normal...?
Jack sorriu. Os bárbaros chamaram logo a atenção para o facto de Uk-Sun já caminhar, quando em teoria poucos meses de vida tinha, mas em breve reparariam que fora concedido o dom da magia àquela menina.
Que faria, então? Jack procurou imaginá-la mais velha, a estudar feitiçaria na Torre de Kazlunn, junto de Qaydar. Também a imaginou a cavalgar pelas pradarias de Shur-Ikail, livre, selvagem e feliz. Qualquer das duas hipóteses era boa e compreendeu que aquilo devia ser decisão de Uk-Sun, ou Saissh, e não de Qaydar. Por isso não dissera uma palavra sobre os dons da pequena.
- Fico contente por saber que Shail está com ela - disse Ha-Din, e Jack recordou, de repente, que estavam a falar de Zaisei.
- Sim - assentiu. - Victoria quer ir vê-los, mas de momento não nos parece prudente. Talvez depois de nascer o bebé.
Voltou a virar-se, angustiado. Continuava a ouvir Victoria gritar.
- Está tudo bem - tranquilizou-o Ha-Din, embora compreendesse perfeitamente o seu nervosismo. - Sei que não é o momento mais adequado, mas gostaria que me contasses o que aconteceu exactamente nos Picos de Fogo.
Jack olhou-o, cansado.
- Queres saber tudo? - perguntou. - Tudo o que eu sei?
Ha-Din suspirou.
- Creio que, se vou continuar a ser o Pai da Igreja dos Seis, seria conveniente conhecer todos os pormenores acerca da manifestação divina mais importante da história, depois da criação. Não seria sério nem profissional que me mantivesse numa ignorância deliberada, não te parece?
Jack sorriu, apesar de tudo.
E começou a contar-lhe tudo, desde o início.
Esteve muito tempo a falar. Contou-lhe tudo o que tinham averiguado nos últimos tempos, Um, Ema, Umadhun, os unicórnios, a génese do Sétimo, a Rocha Maldita, a Sombra Sem Nome e a criação das serpentes, o aparecimento dos dragões, a sua eterna luta contra os sheks, Talmannon, Shiskatchegg, a derrota e exílio dos sheks, a verdadeira função dos Oráculos, Ashran, as encarnações do Sétimo, a dualidade dos sete deuses, os planos de Gerde, a Terra, a criação de um novo mundo para os sheks, a busca dos Seis, e como, finalmente, as serpentes haviam conseguido escapar deIdhún.
- Não sei como lhes estará a correr - murmurou Jack - e não sei se este mundo estará melhor sem eles. Eu diria que muita gente deseja voltar a encontrá-los, mesmo que seja apenas para atribuir-lhes as culpas de tudo o que se passa de mau no mundo. Covan necessita de vingar a morte de Alsan de alguma maneira e os dragões artificiais não têm razão de ser se eles não existirem...
- Os dragões de verdade também não, pois não? - perguntou Ha-Din amavelmente. Ouvira com atenção o relato de Jack, em que cada peça do quebra-cabeças parecia encaixar no seu sítio, e sabia que demoraria muito tempo a assimilar tudo e a aceitá-lo. Mas a nostalgia de Jack podia palpar-se, era real.
- Fomos criados para lutar - respondeu ele, com simplicidade. - Toda a nossa existência, geração após geração, girou em torno dos sheks. E agora eles já não existem. Uma parte de mim sente-se inútil e vazia.
- Mas és em parte humano. Isso irá ajudar-te a conformares-te melhor.
- Eles são totalmente sheks. Não sei o que farão num mundo sem dragões. Suponho que o Sétimo deveria fazer algo quanto a isso, mas não sei se lhe importa realmente.
- Não terá muito tempo para se preocupar com isso. Não entendo de mundos novos, nem de processos de criação, mas ocorrem-me muitas coisas que poderiam sair mal quando se tenta dar forma a um mundo novo, um mundo vivo, em tão pouco tempo. Essas coisas demoram milhões de anos a fazer-se.
Jack sorriu.
- Vai correr-lhes bem. Sempre foram mais espertos do que nós e creio que isso, no fundo, era o que mais odiávamos neles - admitiu.
- E os unicórnios - disse Ha-Din -, também não irão regressar?
- Pelos vistos, Qayáar perguntou aos deuses a esse respeito. Não mostraram muito entusiasmo. Parece que Idhún ficou tão carregado de energia que tão depressa a magia não será necessária.
O rosto de Ha-Din ensombrou-se.
- Não me parece boa coisa - comentou. - Os feiticeiros e os sacerdotes sempre disputaram o domínio sobre as crenças das pessoas. Havia quem tivesse fé nos deuses, havia quem confiasse mais na magia, e, embora lutássemos para decidir em que é que as pessoas deviam acreditar, o certo é que o mais importante é que tenham algo em que acreditar. E depois de tudo o que aconteceu, parece-me que a religião não será propriamente uma fonte de consolo nos tempos difíceis. Os poucos feiticeiros que restam utilizarão o seu poder para ajudar a reconstruir o mundo; talvez as pessoas consigam depositar neles a sua fé, mas são poucos e, com o tempo, irão extinguir-se. Nem sequer Victoria conseguirá manter viva a magia para sempre.
- Eu provenho de um mundo onde a magia se extinguiu há muito murmurou Jack.
- A sério? E como se saem? Jack sorriu.
- Não muito bem, certamente - admitiu. - E também não saberia dizer-te em que é que as pessoas acreditam. Alguns acreditam em deuses, outros não acreditam em nada.
- Não se pode não acreditar em nada - replicou Ha-Din, um tanto desconcertado.
- Pode não se acreditar em alguém superior - disse Jack -, mas penso que se pode ter fé noutro tipo de coisas. Nas pessoas que nos rodeiam e em quem confiamos. Na nossa própria capacidade para levar a nossa vida em frente e pôr um pouco de nós para que o mundo melhore... não sei. Houve um tempo em que eu pensava que não acreditava em nada. Odiava os deuses por me obrigarem a tomar parte numa profecia, sentia-me incapaz de ter fé neles. Mas tinha fé noutras coisas. Se não acreditasse em nada, estaria morto por dentro.
Ha-Din assentiu, pensativo. Não acrescentaram mais nada. Mantiveram-se um momento em silêncio e, então, ouviram um choro que rasgou a noite e se elevou em direcção às luzes do primeiro amanhecer.
Ha-Din não teve tempo de reagir. Quando deu por isso, Jack já corria para o quarto de Victoria. Nada nem ninguém teria podido detê-lo naquele momento.
Quando se precipitou no interior do quarto, as fadas ainda lá estavam. Sustinham um bebé rosado e choroso que não parava de espernear. Estavam a acabar de o limpar com orvalho, e Jack sentiu-se, de súbito, tremendamente tímido. Olhou para Victoria, da porta, e ela sorriu-lhe debilmente, exausta.
- Está tudo bem - disse a parteira. - É um menino. E é saudável. Um enorme alívio inundou o coração de Jack. Contemplou como a
fada envolvia o bebé numa manta suave e sedosa e o depositava nos braços da sua mãe. Esperou que saísse do quarto, seguida das suas ajudantes. Só quando estavam a sós é que Jack ousou aproximar-se de Victoria e do seu bebé.
- Olha - murmurou ela, emocionada. - Olha... é Erik.
- Olá, Erik - sussurrou Jack, acariciando a mãozinha do bebé; não se atreveu a mais. - Olá, pequeno - acrescentou, mas a voz quebrou-se-lhe.
Abraçou Victoria e pestanejou, mas não foi capaz de conter as lágrimas. Beijou-a, com imenso carinho e voltou a contemplar o bebé.
- Que grande - comentou com um sorriso rasgado. - Para uma gravidez de apenas quatro meses, não está nada mal.
- Sim, não imaginas o que custou tirá-lo - suspirou ela. Jack abraçou-a com mais força. - Deve-se ao efeito de Wina - prosseguiu Victoria. Espero que isto seja tudo e que se desenvolva como uma criança normal.
- Normal? Achas que... bom, que é completamente humano? Victoria sorriu.
- Não, não é, embora o pareça. Tem algo da essência não humana dos seus pais. Não sei se isso lhe dará poderes especiais nem se poderá transformar-se. Eu... eu gostaria que fosse uma criança normal - acrescentou.
- Assim ninguém tentará convertê-lo num herói.
- Isso não sabes - replicou Jack, sombrio. - Simplesmente por ser filho de quem é, tenha ou não poderes especiais, já significará muito para muita gente... para o bem ou para o mal.
Victoria ergueu o olhar para ele. Era um olhar triste e cansado.
- Depois de tudo o que fizemos - disse -, depois de tudo o que sacrificámos, achas que é muito pedir em troca que dêem ao nosso filho a possibilidade de ter uma vida tranquila e feliz?
Jack não soube o que responder. Como não queria estragar aquele momento com maus presságios, mudou de assunto:
- E tu? Como estás?
Ela fechou os olhos. O bebé deixara de chorar e aninhava-se sossegadamente nos seus braços.
- Estou exausta. Acho que dormiria uma semana inteira. Jack sorriu e beijou-a outra vez.
Naquele momento, alguém entrou no quarto. Ambos levantaram a cabeça.
Tratava-se de Christian.
Tinha ficado parado à porta, hesitante, quase tímido, tal como Jack fizera momentos antes. Contemplava o casal e o bebé sem saber ainda se devia esperar que fosse convidado a aproximar-se.
- Alguém te viu? - perguntou Jack. Christian abanou a cabeça.
- Estava tudo muito desimpedido. Demasiado desimpedido, na realidade.
Jack sorriu.
- Parece que Ha-Din já sabia que virias - comentou.
- Foi muito atencioso da sua parte - disse Christian, aproximando-se deles. Contornou a cama para se aproximar de Victoria pelo outro lado e contemplou o bebé com expressão indecifrável.
- Apresento-te Erik - sorriu Victoria, muito orgulhosa. Christian não disse nada, não se moveu, nem o seu rosto reflectiu qualquer expressão. Continuava a contemplar o bebé.
Mas Victoria detectou uma centelha de profunda emoção nos seus olhos de gelo.
Permaneceram algum tempo em silêncio, até que, por fim, Christian falou.
- Erik - repetiu. - Kareth. É bonito - comentou com um meio sorriso.
- É perfeito.
Sentou-se na cama, junto de Victoria.
- Estás bem? - perguntou-lhe em voz baixa, com uma suavidade que raiava a doçura. Como resposta, Victoria sorriu e deixou cair a cabeça sobre o seu ombro. Christian rodeou-a com o braço e beijou-a na testa.
Jack não conseguia deixar de olhar para o bebé, ainda maravilhado. Acariciou a face de Erik com a ponta do dedo e sorriu ao ver como ele movia as mãozinhas, à procura dele. Morria de vontade de o segurar nos seus braços, mas não se atreveu a dizê-lo. Contudo, Victoria leu no seu rosto como num livro aberto.
- Toma, pega nele - disse, entregando-lhe o bebé. Jack sobressaltou-se.
- Quem... eu? E se cair? - perguntou com um breve acesso de pânico. Victoria pôs-lho entre os braços.
- Sei que não o vais deixar cair.
Jack pegou no bebé com infinitas precauções. Erik não pareceu alterar-se. Abriu a boca e deixou escapar um pequeno bocejo. Jack sorriu.
- Parece que se aborrece quando está com o papá - comentou. - Não sei se isso é um bom sinal.
Embalou o bebé um pouco, falou-lhe, mas tudo o que obteve dele foi uma amodorrada indiferença. Finalmente, ergueu o olhar para Christian e sorriu, brincalhão.
- Vamos, vai ao teu outro papá - disse a Erik. - Já está na hora de o conheceres.
O shek abriu os olhos subitamente, um tanto alarmado, mas pegou no bebé que Jack lhe estendia. Fê-lo com serenidade e segurança desde o início, embora o segurasse com tanta delicadeza como se fosse de cristal.
- Não é um milagre? - sussurrou Victoria. Christian sorriu.
- Sim, é - disse em voz baixa.
Então, subitamente, Erik desatou a chorar nos braços de Christian, com tanta energia e desespero que o shek se apressou a devolvê-lo aos braços da sua mãe.
- Deve ter fome - aventurou Jack, algo confuso.
- Não é a primeira vez que me acontece algo assim - sorriu Christian, recordando Saissh. - Não te preocupes. Os bebés não costumam gostar dos sheks.
Subitamente, os dois tiveram consciência do que implicavam aquelas palavras. Entreolharam-se e depois voltaram-se para Victoria, que continuava a embalar Erik.
- Sabias? -perguntou Jack em voz baixa. Victoria ergueu a cabeça para olhar para eles.
- Há apenas uns segundos. Enquanto estávamos os três a olhar para o bebé... tive uma intuição. E parece que era correcta.
Christian estendeu o dedo para roçar a ponta do nariz do bebé. Este fez uma careta, fazendo sorrir os três.
- Será muito melhor para ele - comentou. - Terá muito menos problemas.
Jack encolheu os ombros.
- Para mim, Erik continua a ter dois pais e uma mãe - disse. - O facto de ter os genes de um ou de outro não é mais do que uma coincidência totalmente casual. Além disso - acrescentou -, todos nós tivemos dois pais e duas mães, não foi?
- Sim - sussurrou Victoria. - E é estranho pensar que agora já não nos resta nenhum. Os três somos órfãos a dobrar.
Sobreveio um pesado silêncio.
- Visto dessa maneira - murmurou Jack -, o certo é que fico contente por saber que este bebé vai ter quem se preocupe com ele. Quantos mais, melhor. Por isso suponho... que somos uma família, não?
- Não tenho a certeza de que vá ser bom para ele - disse então Christian, um pouco preocupado. Victoria sorriu, enternecida ao ver que, apesar de tudo, o bebé não lhe era indiferente.
- Vai acostumar-se a ti - tranquilizou-o Jack. - Eu acostumei-me, não foi?
De novo ficaram em silêncio, contemplando Erik.
- O que vamos fazer a partir de agora? - murmurou então Victoria. Jack sorriu de orelha a orelha.
- Viver, mais nada. Parece-te pouco?
A maior parte dos habitantes de Vanissar não sabia grande coisa do seu falecido rei. Tinham sido governados por Amrin durante muitos anos, e depois subira ao trono o seu irmão mais velho; mas fizera-o depois de o derrotar numa batalha, após a qual desaparecera durante meses. A seguir à coroação, a primeira coisa que fizera tinha sido organizar um exército para lutar contra as serpentes e morrera naquela guerra.
Não, os vanissardos não sabiam muito bem o que pensar do rei Alsan. Trouxera-lhes o caos e a guerra, depois de mais de uma década do governo organizado das serpentes. Mas no final tinha-lhes devolvido a liberdade.
A muitos, contudo, não lhes parecia que tivessem saído a ganhar com a troca. Alsan tinha-os abandonado com o reino arrasado pelo tornado e cheio de pessoas que haviam
perdido a visão. As coisas demorariam muito tempo a voltar a ser como antes.
Covan tinha muito trabalho pela frente.
Jack não pôde evitar pensar nisso enquanto contemplava, com tristeza, como as chamas devoravam o corpo amortalhado de Alsan. Ainda lhe custava acreditar que Alsan os tivesse deixado. Ele tinha-lhe ensinado muitas coisas, salvara-lhe a vida, ajudara-o a crescer. Nem sempre tinham estado de acordo em tudo; além disso, Jack evoluíra de uma forma diferente da que Alsan esperara. Mas, por muito que se tivessem distanciado nos últimos tempos, Jack sentia que no fundo nunca tinham deixado de ser amigos.
Desviou o olhar da pira e dirigiu-o para o pequeno Erik, que dormia nos braços de Victoria. Acariciou-lhe a mãozinha com ternura. Alsan não chegara a conhecer aquele bebé. "Quando for mais velho, vou falar-Ihe de ti", prometeu ao seu amigo em silêncio.
Tomou Erik nos braços para que Victoria pudesse descansar. O pequeno acordou, mas não fez nenhum ruído. Parecia que compreendia realmente o quão importante era aquele momento para os seus pais.
Agora que tinha os braços livres, Victoria enxugou uma lágrima indiscreta. Decidira não recordar naquele momento o Alsan dos últimos tempos, o rei rígido e intolerante que a sequestrara e acorrentara, ameaçando o seu bebé. O cavaleiro que considerava que ter um coração de serpente era um delito imperdoável. O mesmo que tentara matar Christian.
Não, naquele momento, Victoria evocava o jovem sereno e seguro de si que a acolhera em Limbhad em tempos incertos e junto de quem se sentira protegida quando não era mais do que uma criança. Também a ela lhe tinha ensinado muitas coisas.
Voltou o olhar para Shail, que estava ali, triste e sombrio. Ao seu lado estava Zaisei. O seu olhar perdido denotava os estragos que a luz de Irial operara nela; Victoria tentara curá-la e, embora não lhe tivesse devolvido a visão na totalidade, fizera-a melhorar.
Teve de se retirar ao fim de algum tempo, porque Erik estava faminto. Jack fez tenção de a acompanhar, mas Victoria negou com a cabeça. Sabia o quão importante era para ele ficar até ao fim. Tomou o bebé nos braços e, depois de dirigir um longo e último olhar aos restos mortais de Alsan, despediu-se dele e foi-se embora.
Pouco a pouco, enquanto a pira se consumia, as pessoas foram-se retirando. Qaydar acompanhou Zaisei e a rainha Erive ao interior do castelo. Um a seguir ao outro, foram partindo.
No final, só ficaram Jack, Shail e Covan. Ficaram até que a fogueira se consumiu por completo.
- Sempre soube que seria um bom rei - suspirou Covan a meia-voz. E sabia que era um guerreiro corajoso. Os que não temem a morte, como ele, morrem jovens. Mas sempre desejei que ele fosse diferente, ou, pelo menos, que sobrevivesse a muitas batalhas mais.
- Morreu como um herói - murmurou Jack.
- Combatendo as serpentes - assentiu Covan.
Jack não o contradisse. Já não havia serpentes contra as quais combater, pelo que também não fazia sentido, naquela altura, tentar explicar às pessoas o que tinha acontecido na realidade.
Shail sabia-o. Os dois trocaram um olhar sombrio.
- E tudo por causa desse maldito Kirtash - continuou Covan a dizer. Provocador de catástrofes e senhor das serpentes, tal como o seu pai. Maldito seja.
Jack ficou petrificado. Voltou-se para ele.
- Covan, nada do que aconteceu foi culpa de Kirtash - disse com voz estranha.
- Os sobreviventes afirmam que estava lá, com as outras serpentes replicou Covan. - com Ashran morto, quem senão ele teria podido causar semelhante destruição no nosso mundo? Mas acabaremos por caçá-lo, podes ter a certeza. Não poderá esconder-se para sempre.
- Então não contem comigo - murmurou Jack, aborrecido. - Estou cansado de repetir sempre a mesma história quando ninguém me quer ouvir. Kirtash não...
- Seduziu Victoria - cortou Covan, friamente. - Se for verdade o que dizem por aí, o vosso filho poderia muito bem ter sido o descendente dessa serpente maligna. Victoria... Lunnaris... poderia ter dado à luz o neto de Ashran. Não percebes? Enquanto os herdeiros de Ashran existirem neste mundo, os sheks poderão voltar...
Jack quis replicar, mas naquele momento uma sombra negra cobriu o céu e fê-los levantar a cabeça. Um enorme dragão negro voava em círculos sobre a cidade.
- Tanawe envia alguém - grunhiu Covan. - Vejo que por fim mudou de ideias.
Jack protegeu os olhos com a mão para contemplar o dragão, e soube imediatamente que não fora enviado por Tanawe. Mas não disse nada.
Os Novos Dragões tinham sido massacrados na Batalha dos Sete Deuses. Denyal e Tanawe tinham sobrevivido por milagre. A maior parte dos dragões que tinha conseguido escapar levava feiticeiros. Graças ao seu poder, tinham conseguido proteger-se do tornado e tinham escapado dali. Nem todos, obviamente, mas uns quantos. O dragão onde voava Tanawe era um deles.
Culpavam Alsan por os ter enviado numa missão suicida. Tinham cortado todas as relações com Vanissar. Continuariam a lutar, dissera Tanawe, mas sem eles.
Quando soube, Jack não pôde deixar de se perguntar contra quem pensavam continuar a lutar e o que fariam quando procurassem serpentes por todo o Idhún e não as encontrassem.
Fosse como fosse, os Novos Dragões e os cavaleiros de Nurgon voltavam a ser entidades separadas. Como Covan seria coroado novo rei de Vanissar, teriam de escolher um novo líder para que tomasse as rédeas de Nurgon e devolvesse à academia o esplendor de dias passados. Todos esperavam que Jack se juntasse aos cavaleiros, em memória de Alsan, mas ele recusara-se. Também não iria liderar os Novos Dragões.
Covan, destroçado pela morte de Alsan, quase não se importara. Denyal ficara aborrecido, mas Jack suspeitava que no fundo ficara contente por ele não ir interferir.
Sabia bem que aquele dragão negro não fora enviado de Thalis. E, quando pousou no pátio do castelo e abriu a sua escotilha superior, percebeu que ele não enganara.
Um rosto com uma barba castanha cerrada assomou pela abertura.
- Chegámos tarde? - O vozeirão do semibárbaro ouviu-se em todo o castelo. Covan dirigiu-lhe um olhar irritado.
Rando desceu de um salto do interior de Ogadrak e depois, para surpresa de Jack, voltou-se para estender a mão a outra pessoa que estava com ele no dragão.
- Kimara! - exclamou, encantado por voltar a vê-la.
O casal juntou-se a eles. Jack e Kimara fundiram-se num abraço caloroso. O jovem cumprimentou Rando afectuosamente, que lhe retribuiu com uma palmada nas costas tão forte que o deixou sem fôlego.
- Fico contente por voltar a ver-te, rapaz!
- Vocês conheciam-se? - perguntou Kimara, um tanto perplexa. Os dois sorriram, mas não disseram nada.
Houve um instante de silêncio enquanto os recém-chegados apresentavam os seus respeitos diante dos restos mortais de Alsan.
- Vamos sentir a falta dele - murmurou Kimara.
Falaram de Alsan em voz baixa, até que Victoria saiu para o pátio a fim de os receber. Abraçou Kimara carinhosamente, contente por voltar a vê-la.
- Ouvimos notícias do que aconteceu em Kash-Tar - disse ela. - Fico feliz por ver que estás bem.
- Onde está Erik? - perguntou-lhe Jack em voz baixa, inquieto.
- Estava exausto e deixei-o a dormir - respondeu Victoria no mesmo tom. - Mas não quero que fique sozinho muito tempo.
- Dizem por aí - interveio Kimara, com alguma timidez - que vocês tiveram um bebé. É... bom... é verdade?
Os dois sorriram, orgulhosos. Momentos mais tarde, Victoria arrastava Kimara atrás de si para lhe apresentar Erik. Não demoraram nem dois minutos a chegar lá.
- Que lindo - disse Kimara em voz baixa para não o acordar. - com quem se parece?
- Tem os olhos castanhos, como eu. Mas é loiro. Embora talvez lhe escureça o cabelo quando crescer. Achas que se parece com Jack?
- Sim, dá uns ares dele - sorriu a semi-yan.
Saíram do quarto em silêncio e ficaram no corredor, para poderem falar com mais calma.
- E o que lhe vai acontecer quando crescer? - quis saber Kimara. Achas que... vai herdar os vossos poderes?
Victoria encolheu os ombros.
- É cedo para saber. E tu? - perguntou, mudando de assunto. - O que foi feito da tua fêmea de dragão?
O rosto de Kimara ensombrou-se.
- Foi destruída pelo fogo, tal como muitas outras coisas em Kash-Tar disse a meia-voz.
Victoria apertou-lhe o braço com suavidade, para a consolar.
- E o que vais fazer agora? Vais regressar à tua terra ou vais ficar por aqui?
Kimara ergueu a cabeça.
- vou voltar para a lorre de Kazlunn - declarou. - vou estudar feitiçaria com Qaydar e aprender a utilizar o meu poder. E depois vou regressar à minha terra e utilizar o meu dom para ajudar a minha gente. Há muitas feridas para curar, e não são só feridas físicas. De modo que... agradeço-te muito por me teres convertido em feiticeira; isso dar-me-á a oportunidade de fazer muito mais coisas.
- Não tens de me agradecer - murmurou Victoria, um tanto sem graça. - Fi-lo porque desejava fazê-lo. Fico feliz por saber que, afinal de contas, não foi uma carga para ti. E Rando? Vai esperar por ti?
- É o que diz - sorriu Kimara. - Parece que afinal gostou de Kash-Tar, e iremos juntos para lá quando eu terminar os meus estudos... se é que Qaydar mo permite - acrescentou, sombria.
- Vai permitir - tranquilizou-a Victoria. - Qaydar mudou muito.
E, efectivamente, mudara. Do mesmo modo que a fé de Gaedalu nos deuses tinha sofrido tal revés que se sentira incapaz de continuar a ocupar o cargo de Mãe Venerável, Qaydar também não aceitara bem o facto de os Seis não terem a menor intenção de fazer com que os unicórnios regressassem ao mundo, pelo menos durante várias dezenas de milhares de anos.
- vou regressar à minha torre - disse a Victoria - e não creio que voltes a ver-me muitas vezes fora dela. Acolherei ali todos aqueles que desejem ser iniciados nos caminhos da magia e possuam o dom, mas aguardarei que eles apareçam em Kazlunn. Vive livre e cuida do teu filho. Afinal de contas, tu sozinha não serias capaz de manter viva a magia no mundo.
Falara com profunda tristeza, e Victoria lamentou realmente não poder fazer o que ele sugeria.
- Qaydar vai ficar feliz por voltar a ver-te - disse a Kimara com um sorriso.
Quando anoiteceu, retiraram os restos mortais de Alsan e levaram-nos para a cripta, onde repousariam para sempre junto dos seus antepassados. Jack perguntou-se se alguma vez iria visitar aquela cripta e compreendeu que era pouco provável. Ainda era estranho pensar que o que restava do seu amigo estava ali dentro. Preferia aceitar, simplesmente, que tinha partido e que nunca mais regressaria.
Procurou um momento para falar a sós com Shail depois da ceia. Victoria ficara com Zaisei, a falar com ela e a utilizar a sua magia curativa para tentar acelerar o processo de cura dos seus olhos. Jack recordou o sorriso de Zaisei quando lhe tinham posto Erik nos braços, e desejou que ficasse bem.
- O que se passa, Jack? - perguntou-lhe Shail, um tanto preocupado, quando ele o chamou à parte.
- Nada de grave - tranquilizou-o ele. - Embora presuma que demoraremos um pouco a acostumar-nos novamente à tranquilidade, não é? Nem todas as notícias têm de ser más notícias.
Shail sorriu.
- Certo. A última notícia que me deste era magnifica - comentou, referindo-se ao nascimento de Erik.
Também ele estava encantado com o bebé, e Victoria já lhe chamava, a brincar, "tio Shail".
- Esta nova notícia é boa, pelo menos para nós. Temos algo parecido
com uma casa.
- Uma casa? - repetiu Shail. - Onde?
- Esta é a parte delicada. Ha-Din comprometeu-se a procurar um sítio onde pudéssemos viver mais ou menos no anonimato e penso que o encontrou. Será uma casa afastada, num lugar onde ninguém se importe com quem somos realmente, onde não nos conheçam... onde possamos criar o nosso filho com tranquilidade. Por isso ninguém vai saber onde nos encontrar, salvo Ha-Din... e tu.
Shail respirou fundo, entendendo as implicações do que Jack lhe estava a contar. Sentiu-se comovido com aquela prova de confiança.
- Jack, não é necessário...
- Sim, é. Vamos sentir-nos mais tranquilos se souberes onde estamos. Mas, pelo que mais amas, não o digas a ninguém.
- Então e Kirtash?
Jack pareceu ligeiramente surpreendido com a pergunta.
- Quando disse que temos uma casa referia-me, naturalmente, aos três. Aos quatro - acrescentou. - De facto, ele é outro dos motivos por que procurámos um local afastado. Quero que possa ir ver Victoria e Erik quando quiser, que possa ficar connosco, ou com eles, o tempo que quiser, sem sentir que corremos perigo ou que podem atacá-lo a qualquer momento. Ainda tem muitos inimigos. Há quem diga que, enquanto for vivo, as serpentes terão a possibilidade de regressar a Idhún. É o filho de Ashran, Shail. Imagino que muita gente não o esquecerá. E agora... enfim, agora já não é tão invencível.
- Mas, se vocês desaparecerem, as pessoas vão começar a procurar-vos...
- Não nos vamos esconder para sempre. Obviamente que continuaremos a deixar-nos ver; sobretudo agora, que é preciso reconstruir meio Idhún e que talvez sejamos necessários. Mas não se trata só disso. Hoje viemos ao funeral de Alsan. Dentro de um mês poderemos estar a visitar Qaydar na Torre de Kazlunn. Não vamos ficar invisíveis. Só quero manter um espaço privado para mim e para a minha família.
- Entendo - assentiu Shail. - Podem contar comigo.
Jack sorriu.
Quando viram a casa, nenhum dos dois conseguiu falar durante bastante tempo. Ficaram simplesmente a olhar para ela, emocionados, sem conseguirem acreditar no que estavam a ver.
"Naturalmente, só podíamos esperar algo assim", pensou Victoria mais tarde. Estavam em Celestia, nos arredores de uma pequena povoação perto de Kelesban, no meio do bosque. Era lógico que uma casa construída ali, no estilo celeste, fosse semelhante à casa de Limbhad.
Não tinham escolhido Celestia por evocar a casa acolhedora que tinham conhecido, mas sim porque ali, naquele recanto perdido, ninguém os conhecia nem sabia quem eram. E, mesmo que soubessem, provavelmente não diriam nada a ninguém, porque eram gente simples que só desejava viver em paz e, portanto, podia compreender perfeitamente que os recém-chegados tivessem as mesmas modestas pretensões.
E ali estava a casa, com as suas cúpulas, com a sua planta arredondada, com as suas divisões exteriores como pequenas bolhas. Era, obviamente, de tamanho muito mais reduzido do que a casa de Limbhad, mas isso só fazia com que parecesse ainda mais acolhedora.
Victoria deslizou a mão até à de Jack e estreitou-a com força.
- Adoro - sussurrou.
- Eu também - respondeu Jack, sorrindo.
Durante os meses seguintes, viveram aprazivelmente na casa de Kelesban, que depressa se transformou no seu lar. Jack tinha sido um jovem inquieto, errante, habituado a ir de um lado para o outro, mas, depois de tudo o que acontecera, acolheu a sua nova vida familiar como uma bênção. Junto da casa havia uma horta, de que ambos cuidavam com esmero. Os celestes eram vegetarianos e cultivavam uma grande variedade de frutas e verduras, pelo que não lhes faltavam sementes e rebentos para plantar. Mas Jack, que não podia evitar sentir-se mais carnívoro, costumava ir caçar ao bosque de vez em quando. Tinha aprendido duas coisas a esse respeito: uma, que nunca devia matar um animal na presença de um celeste, e outra, que nunca devia matar um pássaro, em nenhuma circunstância, porque essa ideia horrorizavaos ainda mais do que pressentir os sentimentos do pobre animal moribundo. Depois de compreender isto, a convivência com os seus vizinhos celestes não implicou nenhum problema.
E Erik continuava a crescer. Estavam a criá-lo os três. Christian passava muito tempo na casa; tinha um quarto para ele, que podia usar quando lhe apetecesse, e costumava ficar durante longos períodos de tempo, vários meses por vezes. Jack sabia que Victoria e ele passavam a noite juntos de vez em quando, mas Christian era suficientemente discreto para nunca o mencionar nem se aproximar de Victoria se Jack estivesse por perto; Jack tinha suficiente consideração por eles para fazer viagens curtas de vez em quando, dando-lhes privacidade. Além disso, dessa maneira podia continuar a viajar e a visitar os seus amigos e conhecidos: Kimara e Dablu na Torre de Kazlunn; Shail e Zaisei em Haai-Sil, onde se tinham estabelecido, agora que Zaisei estava quase completamente recuperada; Ha-Din no Oráculo de Awa; Covan, em Vanissar, e Rando em Lês, onde vivia agora para- poder estar perto de Kimara enquanto ela terminava a sua aprendizagem. Também tinha muita vontade de ir a Nanhai visitar Ymur, que voltara ao seu lar no Grande Oráculo, mas nunca se decidia.
Sabia, por outro lado, que as pessoas gostavam de o ver voar sobre as suas cabeças, sob os três sóis. Via-os a apontá-lo com o dedo, a levantar os seus filhos para que o vissem bem, e quase podia ouvi-los a dizer: "Olhem, é Yandrak, o último dragão de Idhún!" Enchia-o de orgulho, mas também o entristecia. Noutra ocasião regressara a Awinor e parecera-lhe ouvir os sussurros dos espíritos de todos os dragões que morreram na conjunção astral.
"Mas eu não sou o último", quis dizer-lhes. "Erik é meu filho. Talvez o fogo de Awinor corra pelas suas veias, mesmo que seja só um pouco."
Ele não era o único que viajava frequentemente. De vez em quando, normalmente coincidindo com o plenilúnio de Érea, Victoria começava a mostrar-se nervosa. Durante o primeiro plenilúnio permaneceu em casa com Jack e com Erik, mas Jack notou que se passava algo estranho com ela.
- É o teu instinto de unicórnio, não é? - perguntou Christian, quando Jack falou nisso. - Precisas de vaguear pelo mundo para entregar a magia.
- Procurar estrelas cadentes - disse Jack com um sorriso.
A partir daí, Victoria desaparecia durante vários dias de cada vez que Érea estava cheia. Teria podido fazê-lo em qualquer outro momento, mas decidiram assim, para que os rapazes soubessem quando não podiam contar com ela. Depois de tomar aquela decisão, lembraram-se imediatamente de Alsan e das suas noites de lua cheia.
com o tempo, também Christian começou a sentir-se inquieto. A primeira a reparar foi Victoria.
- Tens de partir outra vez? - perguntou-lhe uma noite em que contemplavam juntos as estrelas no alpendre.
- Parto sempre. vou e venho, já sabes.
- Sim, mas desta vez é diferente. Queres partir por muito mais tempo, não é?
Christian inclinou a cabeça.
- Quero ir a Nanhai - disse.
- Ver Ydeon?
- Em parte. Também gostaria de visitar o Grande Oráculo.
- O lugar onde nasceste - disse Victoria a meia-voz. Christian não respondeu.
Quase não tinha falado do assunto, mas era óbvio que Christian pensara muito nisso. Agora sabia que Ashran utilizara Manua na Sala dos Ouvintes para contactar com o Sétimo, da mesma maneira que Qaydar, Alsan e Gaedalu tinham utilizado a pequena Ankira. Em relação à menina, Victoria insistira muito para que regressasse para junto da sua gente, os limyati, e Karale não pudera recusar; logo teria tempo de decidir se queria servir no Oráculo quando fosse mais velha.
Não pudera evitar perguntar-se se Manua sabia realmente o que fazia; se Ashran a enganara, se a forçara ou se o fizera por vontade própria. Expôs as suas dúvidas a Christian, e ele dissera:
- Duvido muito que ele a tivesse enfeitiçado; sempre lhe interessou mais a magia do que as mulheres. Se tivesse querido utilizá-la simplesmente para a invocação, não teria passado com ela tanto tempo para que concebesse um filho. Acho que ela era verdadeiramente importante para ele. E depois... simplesmente houve outras coisas que se sobrepuseram a ela.
- Pensas, então, que estavam apaixonados?
- Isso importa assim tanto?
Victoria levantara a mão para lhe afastar uma madeixa da testa, com ternura.
- Importa mais do que pensas - sorriu.
Christian sorriu por sua vez, mas não lhe deu razão, nem a contradisse.
- Creio que mantiveram uma relação mais ou menos sincera durante o tempo em que ele esteve a estudar os textos de Ymur, no Oráculo, até que decidiu fazer a invocação. Talvez a convencesse ou talvez a enganasse, não sei. Apenas tenho a sensação, pelo que sabemos, de que a minha mãe nunca teve realmente consciência do que Ashran pretendia de verdade.
E, sim, acho que na altura a amava. Se assim não fosse, tê-la-ia matado ao abandonar o Oráculo. Teria matado a única pessoa que sabia o que realmente se passara.
A única que poderia denunciá-lo antes que estivesse preparado para trazer de volta os sheks.
Não tinham voltado a mencionar o assunto, mas, por alguma razão, Christian continuava a pensar nele. Talvez lhe tivesse chamado à atenção o pormenor do cesto que Ymur utilizava para os seus livros e que tinha sido o berço do próprio Christian quando era um bebé da idade de Erik. Talvez desejasse compreender porque é que Ashran decidira mudar o curso da história, trazendo de volta os sheks de Umadhun. Ou talvez fosse, simplesmente, agora que os sheks tinham partido, por se sentir terrivelmente sozinho.
Victoria conhecia aquele sentimento, mas a consciência de ser o último de uma raça extinta sempre afectara mais Jack. No entanto, embora os dois rapazes se dessem bastante bem, Victoria sabia que não podia pretender que ambos partilhassem dúvidas e temores como se fossem amigos de toda a vida.
- Se tiveres de partir, vai - disse-lhe naquele momento. - Nós estaremos aqui quando voltares.
Christian sorriu.
- Embora não pareça, isso reconforta-me muito - disse apenas. Quando Victoria acordou na manhã seguinte, ele já tinha partido. E demorou muito tempo a regressar.
Jack e Victoria continuaram a sua vida, vendo como Erik crescia e adaptando-se à vida aprazível de Celestia. Foram à bênção da união de Shail e Zaisei, que se celebrou em Haai-Sil pouco depois de Erik fazer um ano, quando Zaisei já estava totalmente recuperada da sua cegueira... Também assistiram à bênção quase todos os membros da família de Shail; Victoria ficou contente por conhecê-los, e Jack, por revê-los. Uma vez mais, recordaram Alsan, que já não estava entre eles.
E quando Victoria sentia já mais saudades de Christian do que aquelas que julgava ser capaz de suportar, ele regressou.
Chegou ao terceiro entardecer. Jack estava em casa sozinho com Erik e foi recebê-lo.
Os dois fitaram-se.
- Bem-vindo a casa - sorriu Jack.
Christian sorriu por sua vez. Foi um sorriso um tanto forçado, como se estivesse há muito tempo sem o mostrar.
Parecia mais velho e mais cansado. O tempo que passara em Nanhai curtira-o ainda mais. Talvez por isso voltara um pouco mais inexpressivo, como se o gelo tivesse congelado as suas feições.
- Fico contente por estar de volta - disse, e era sincero.
- Victoria teve saudades tuas - comentou Jack. - Foi à aldeia, não vai demorar.
Christian assentiu.
Não entraram em casa. Estava-se muito bem ali, de modo que se sentaram no alpendre a contemplar o ocaso. Christian cumprimentou Erik, que se aborreceu quase de imediato e voltou a entrar em casa a correr.
- No fundo simpatiza contigo - disse Jack. - Perguntou por ti, sentiu a tua falta. Creio que a repulsa que sente por ti na tua presença é algo...
- Instintivo - ajudou-o Christian.
- Suponho que sim - suspirou Jack. Fez-se um breve silêncio.
- Jack, tu sabes que as coisas não serão sempre assim - disse então Christian.
Jack bocejou preguiçosamente.
- A que te referes? Eu acho que está tudo bem.
- Está tudo bem porque passámos muito tempo em tensão, lutando numa guerra, e estamos cansados de lutar. Mas quando nos tivermos acostumado à calma, o instinto voltará a pregar-nos partidas.
- Em relação a ti não sei, mas eu tenho Domivat bem guardada e há muito tempo que não a uso. Benditos celestes - sorriu.
Christian meneou a cabeça com desaprovação. Jack compreendeu.
- Vais-te embora, não é? Vieste dizer que vais partir e desta vez por muito mais tempo.
Christian passeou o olhar pelo horizonte.
- vou voltar para a Terra - disse somente. Jack ficou petrificado.
- Vais para a Terra?
- Foi o que eu disse.
- Mas... porquê?
- Tu és o último dragão. Se soubesses que podes chegar a um mundo onde resta um punhado de dragões, o que farias?
- É verdade - compreendeu Jack. - Há sheks na Terra. Mas, segundo Victoria, não gostam de ti. Irão tentar matar-te.
- Não seria muito inteligente da sua parte. Sou o único que lhes pode dizer para onde foram os outros sheks.
- Gerde não os avisou? - Jack não podia acreditar. - Abandonou-os na Terra?
- Não vão ficar muito contentes quando souberem, mas alguém tem de lhes dizer. Não creio que desejem continuar a ser leais ao Sétimo quando souberem. Poderei compactuar com eles; ajudo-os a procurar os outros sheks se me garantirem que me deixam em paz.
- Mas a ideia de criar um novo mundo em vez de conquistar a Terra foi tua. Se não fosse por ti, agora todas as serpentes estariam lá, na Terra. Ou seja, indirectamente, é culpa tua que eles tenham ficado lá perdidos.
- Não pretendo revelar esse pequeno pormenor.
- Mas - disse Jack -, podes realmente juntar-te a eles no seu novo mundo?
- Não. Os Seis destruíram a Porta por completo, a única ligação que havia entre este mundo e o outro. A ligação com a Terra continua a existir, por isso posso continuar a viajar de um lado para o outro. Mas não posso reunir-me com os meus no lugar onde vivem agora.
- Continuarias a estar deslocado - disse Jack -, porque tens um corpo humano e no seu novo mundo não há humanos.
- Eu sei. Por isso a Terra é o lugar perfeito para mim. Podemos demorar anos, talvez séculos, a descobrir onde fica exactamente esse mundo e a procurar chegar a ele. Mas eu sou aquele que tem a pouca informação de que dispomos. Precisam de mim... outra vez.
Pensou em Shizuko e sorriu.
- E se decidirem regressar a Idhún?
- Eles sozinhos? São só trinta e dois. Regressar a Idhún seria para eles um suicídio nessas circunstâncias.
Fez-se um breve silêncio.
- Não é só por isso - disse Jack então. Christian olhou para ele. Poderias ir para a Terra e regressar em pouco tempo, e não terias necessidade de dar tantas explicações. Vais para ficar. No fundo, os outros sheks não têm assim tanta importância, pois não?
- Vou-me embora para não vos pôr em perigo - admitiu o shek. - Os Novos Dragões estão a mover céus e terra para me encontrarem. Não têm sheks contra os quais lutar, de modo que a sua própria existência já não faz sentido; por isso viraram-se contra mim. Ouviste as histórias?
- Sim - assentiu Jack. - Dizem que pretendes devolver a vida a Ashran e que tudo o que aconteceu quando vieram os deuses foi porque estavas a usar magia proibida para trazê-lo de volta. Dizem que a culpa é toda tua. É curioso, ninguém fala de Gerde.
- Muito pouca gente sabe que ela esteve envolvida em tudo o que se passou. E sei que não se sentirão tranquilos até que tenham acabado comigo. Se seguirem o meu rasto, mais cedo ou mais tarde também vos irão encontrar. Não quero que tu e Victoria percam tudo o que finalmente conquistaram.
- Estamos dispostos a arriscar-nos, Christian, sabes disso. Se vais embora apenas para não nos pôr em perigo, vais partir o coração de Victoria.
Christian respirou fundo.
- São muitas coisas - disse. - Suponho que a mais importante delas é que, apesar de ter nascido aqui, há muito que já não sinto este mundo como meu. - Voltou-se para Jack e disse: - Existe outra possibilidade: virem os três comigo para a Terra.
A proposta era tão tentadora que a Jack doeu-lhe o coração de nostalgia.
- Seria muito o que deixaríamos aqui - disse, contudo. - E ninguém nos espera do outro lado, ao fim e ao cabo. Mas fala sobre isso com Victoria. Acho que no fundo ela é a principal interessada.
Pôs-se em pé de rompante.
- Vou-me embora - anunciou. - Victoria está a chegar e, se vais embora amanhã, como suponho que farás, esta noite estou aqui a mais acrescentou com um sorriso.
Christian sorriu por sua vez.
- Obrigado - disse.
- Queres que leve o menino para que não vos incomode?
- Não, deixa-o. Tem um sono muito pesado; vai dormir como uma pedra até ao amanhecer.
- Nisso parece-se comigo - comentou Jack. - Bem, então vou-me embora. Diz a Victoria que volto ao terceiro amanhecer. E quanto a ti... boa sorte e boa viagem. E volta de vez em quando, mesmo que seja só para cumprimentar. Não podes abandoná-la agora - acrescentou, muito sério.
- Não vou abandoná-la. Nunca.
Jack sorriu outra vez, mas não disse mais nada. Despediram-se e, momentos mais tarde, Jack elevava-se em direcção às três luas, em direcção às montanhas.
Victoria estava a chegar quando o viu afastar-se. Chamou-o, mas ele não a ouviu. A jovem correu para casa, preocupada por Erik poder ter ficado sozinho.
Christian estava à espera dela no alpendre.
Victoria estacou. Há quase um ano que não o via e ficou a olhar para ele, sem poder acreditar que fosse de verdade. O anel não lhe tinha transmitido nada daquela vez; Christian quisera manter a sua chegada em segredo, talvez para que fosse uma surpresa.
Quando ele avançou uns passos e a luz das luas iluminou o seu rosto, Victoria correu a refugiar-se nos seus braços, ébria de felicidade.
- Christian! - sussurrou. - Voltaste! Senti tantas saudades tuas.
O shek sorriu, acariciou-lhe o cabelo, mas não disse palavra. Juntos, abraçados pela cintura, regressaram ao interior da casa.
Deram de comer a Erik, deram-lhe banho e deitaram-no. Só quando o menino já dormia profundamente é que se sentaram junto à janela, com as luzes apagadas, e falaram em voz baixa.
Victoria contou-lhe tudo o que se tinha passado quando ele estava fora. Falava feliz e entusiasmada, e Christian sabia que lhe partiria o coração se lhe dissesse que tinha de se ir embora outra vez. Por um momento, desejou ser como Jack, ser capaz de ficar com Victoria constantemente, de fazer parte de uma família. Mas sabia que necessitava de estar sozinho e sabia que acabaria por partir para a Terra mais cedo ou mais tarde. Poderia ficar vários dias, vários meses em Kelesban, com eles, antes de ir, mas no fundo não lhe parecia boa ideia. Tinha de o fazer agora, o quanto antes, porque a cada minuto que passasse ali iria custar-lhe mais partir.
Mas necessitava de voltar a estar com Victoria ao menos mais um pouco. Pelo menos mais uma noite.
- E a ti - disse ela então -, como te correu?
Christian começou a contar-lhe, em poucas palavras, o que tinha sido a sua vida em Nanhai durante todo aquele tempo, mas não chegou a terminar o seu relato. Calou-se e olhou-a intensamente, em silêncio.
- O que é? - sussurrou Victoria, estremecendo sem saber porquê. O shek respirou fundo.
- Victoria, tenho de voltar a partir.
Ela fitou-o. Permaneceu calada enquanto ele lhe explicava tudo o que tinha dito a Jack.
- Por isso tenho de ir - concluiu. - Mas gostaria que viessem comigo. Victoria suspirou.
- Quem dera que pudéssemos. Mas tenho de pensar em Erik. Não sei o que posso oferecer-lhe na Terra. E, além disso... também não podemos partir, assim sem mais. Virar as costas a Shail, a Zaisei, a Kimara... a toda a gente.
- Ainda te sentes responsável por tudo o que acontecer aqui? - sorriu Christian.
Victoria abanou a cabeça.
- É uma sensação difícil de esquecer.
Tomou a sua mão, timidamente, como se não quisesse que ele acreditasse que procurava retê-lo.
- vou... vou ter saudades tuas - sussurrou.
- Eu voltarei, Victoria. Prometo-te que virei com frequência. Mas não será como antes, porque estaremos em mundos diferentes.
Victoria não disse nada. Christian agarrou-lhe o queixo, com delicadeza, e fê-la levantar a cabeça para a olhar nos olhos.
- Eu também vou ter saudades tuas - disse. - Muitas.
E beijou-a como nunca antes a tinha beijado. Victoria deixou-se envolver pelos seus braços, enterrou os dedos no seu cabelo e chorou como uma criança.
- Quero ir contigo - sussurrou-lhe ao ouvido.
- Vem quando quiseres - respondeu ele, também ao ouvido. - Se algum dia não fores feliz, ou te sentires em perigo, ou achares que já não pertences a este mundo... não tenhas medo e atravessa a Porta. Estarei à tua espera do outro lado. De ti, e de Jack e Erik, se quiseres.
Victoria abraçou-o com todas as suas forças.
- Dizesme sempre para ir contigo - murmurou - e eu nunca vou.
- Pedes-me sempre para ficar contigo - respondeu ele - e eu nunca posso. E, apesar disso... sinto-me mais unido a ti do que a qualquer outra pessoa que alguma vez conheci.
Victoria fechou os olhos e abandonou-se aos seus beijos e às suas carícias.
- Não vás - pensou.
- Nunca irei de vez - respondeu ele.
Christian ficou até ao primeiro amanhecer. Normalmente, ia embora quando ainda era noite, mas daquela vez queria estar junto de Victoria quando ela acordasse.
No entanto, ao vê-la tão profundamente adormecida, Christian soube que não teria coragem para a acordar ou para esperar que abrisse os olhos, para ter de se despedir... outra vez.
Por isso, levantou-se e vestiu-se em silêncio. Beijou Victoria suavemente na testa e saiu do quarto.
Não lhes tinha contado, nem a Jack nem a Victoria, que o que o fizera decidir-se exilar-se na Terra fora algo que lhe acontecera dias antes, quando sobrevoava Nanetten.
Tinha sempre muito cuidado em não se mostrar sob a sua forma de shek. Quando voava, fazia-o de noite. Mas naquela vez alguém o vira: um dos dragões artificiais de Tanawe.
Ia sozinho; inicialmente, Christian não teve nenhum problema em enfrentá-lo. Pensou que lhe faria bem e, além disso, não achava que corresse verdadeiro perigo. Quase todos os bons pilotos dos Novos Dragões tinham morrido na Batalha dos Sete. Aquele só podia ser um novato.
De modo que lançara um feroz cicio para o provocar e preparara-se para a luta.
Mas então detectara algo que lhe pusera as escamas em pé, algo que inspirara no seu coração um terror negro que não estava disposto a enfrentar.
Eram as garras do dragão. Eram fabricadas com material da Rocha Maldita.
Christian não temia o combate, mas não estava disposto a voltar a passar por aquilo outra vez. Dera meia-volta e fugira.
Agora, os Novos Dragões sabiam que ainda havia sheks em Idhún. Na realidade, só havia um e talvez alguém inteligente relacionasse as coisas, mas, em qualquer caso, não se iludia: se Tanawe continuava a fabricar dragões, e além disso com "melhoramentos", não havia dúvida de que ainda esperavam encontrar sheks algures. De modo que não descansariam enquanto não dessem com eles.
Até darem com ele.
Christian não queria alarmar Victoria, mas não estava disposto a continuar a fugir. Havia muitas coisas no mundo que podiam matá-lo, mas só uma era capaz de o fazer experimentar um estado que para ele era pior do que a morte.
Os sangues-quentes tinham descoberto a Rocha Maldita; enquanto aquele objecto não desaparecesse da face de Idhún, Christian não se sentiria à vontade ali.
Passou pelo quarto de Erik e aproximou-se da sua cama. O miúdo dormia, mas acordou quando Christian lhe acariciou a face. Olhou-o com uns profundos olhos castanhos.
O shek teria jurado que havia neles uma centelha de luz.
- Olá, pequeno - sussurrou. - Vou-me embora.
Respirou fundo. Sabia que também sentiria muitas saudades daquele menino. Apesar do ligeiríssimo odor a dragão que emanava dele, Christian queria-o como a um filho.
- Cuidarás da tua mãe? - perguntou-lhe suavemente. O menino não disse nada. Limitou-se a olhá-lo.
- E de Jack também - continuou Christian a dizer-lhe. - Costuma meter-se em problemas com mais facilidade do que quer admitir.
Erik continuava sem falar. Christian sentiu que já era hora de se despedir.
- Não te esqueças de mim, está bem? - disse em voz baixa.
- Kislan - disse Erik.
Christian sorriu. Há muito que não passava por aquela casa, no entanto, Erik tinha aprendido a pronunciar o seu nome. Fez-lhe uma nova careta e saiu do quarto. Momentos depois, abandonava a casa, talvez para não voltar.
Jack regressou com o terceiro amanhecer e encontrou Victoria num estado profundamente melancólico. Abraçou-a e consolou-a o melhor que pôde.
- Iremos para a Terra com ele, se isso te faz sentir melhor -
prometeu-lhe.
Victoria disse que não era necessário, mas Jack sabia que, se Christian não regressasse num período de tempo razoável, teriam de ir ter com ele. Era tão sumamente cruel mante-los tanto tempo separados que Jack perguntou-se porque é que o shek insistia em partir uma e outra vez.
- Calma - murmurou-lhe ao ouvido. - Voltarás a vê-lo quando menos esperares. Sabes que nunca nos livraremos dele - acrescentou, brincalhão.
Victoria sorriu.
Aos seus pés, Erik brincava com um cãozinho de madeira que Jack esculpira para ele. Tudo estava bem, tudo parecia tranquilo e aprazível, contudo, tanto Jack como Victoria sabiam que faltava alguma coisa naquele quadro para que estivesse completo.
Muito longe dali, noutro universo, talvez, Shizuko Ishikawa acabava de sair de uma reunião de negócios. Movia-se com elegância, quase deslizando, quase ondulando, como fizera quando era uma shek. Era hora de ponta e havia muita gente na rua, demasiada para que ela se sentisse à vontade. Os seus olhos rasgados procuraram um táxi para regressar ao seu próprio escritório.
E então viu-o.
Frio, sereno, vestido de negro, como de costume. Tinha passado bastante tempo, talvez um ano, talvez dois, o suficiente para que uma mulher esqueça um homem que a decepcionou.
Mas os sheks nunca esquecem.
Ficou imóvel, com o semblante impenetrável, e simplesmente esperou que ele se aproximasse. Quando estavam frente a frente, não houve nenhum cumprimento verbal, nenhum aperto de mãos. Só se olharam nos olhos.
- O que fazes aqui? - quis ela saber. Christian explicou-lhe.
Em apenas alguns segundos pos à sua disposição toda a informação que achava que ela devia conhecer. À medida que foi conhecendo os pormenores, o semblante de porcelana de Shizuko empalideceu cada vez mais.
- Estás a mentir - disse. - Não podem ter-nos deixado para trás. Ela prometeu...
- Tinha um plano melhor - respondeu Christian. Shizuko fitou-o, em silêncio.
- E agora, que vamos fazer? - perguntou depois. - Como vamos sobreviver neste mundo?
- Como sempre fizemos - disse Christian. - Talvez demore anos ou décadas, mas vocês arranjarão maneira de ser os senhores deste mundo. E provavelmente os humanos jamais o saberão.
-É um pobre consolo.
- Não tinha intenção de te consolar.
Voltaram a trocar um longo, longo olhar. Depois, Christian deu meia-volta e afastou-se dela, sem olhar para trás.
Shizuko ficou parada no meio da gente, do trânsito, do barulho e do fumo, do caos de Tóquio, que se amontoava em torno dela, sem demonstrar, nem por um só instante,
a imensa desolação que se escondia no interior daquela mulher de gelo, daquela serpente condenada a viver entre humanos.
EXÍLIO
bhail chegou de madrugada, quando as três luas estavam já muito altas e a noite idhunita o envolvia na sua suave frescura. Deteve-se em frente da porta da casa e ergueu os olhos para contemplar os três astros. Perguntou-se se os deuses os observavam realmente desde Érea e se lhes importava, mesmo que fosse só um pouco, o destino da família que vivia ali. Tentou não pensar nisso.
Bateu insistentemente à porta, até que Jack veio abrir, sonolento.
- Encontraram-vos - disse somente. - Vêm buscar-vos.
Jack acordou imediatamente. Fez Shail entrar na casa e foi acordar Victoria.
Descobriu que estava já acordada, embalando o bebé, que soluçava em silêncio. Ambos trocaram um olhar, de incerteza o dela, sombrio o dele.
- Temos de partir, Victoria - disse ele.
Victoria estremeceu e estreitou o bebé nos braços. Voltou a deitá-lo no berço e apressou-se a ir buscar as suas coisas.
Jack voltou à entrada, onde Shail aguardava, muito nervoso.
- Não vão demorar a chegar - disse o feiticeiro. Jack semicerrou os olhos.
- É a minha família - disse com ferocidade. - E não permitirei que se aproximem deles. Lutarei se for necessário - acrescentou, e Shail viu que tinha pendurado Domivat às costas.
- Voltarão a encontrar-vos, uma e outra vez. Não podes lutar contra todos eles. Querem o bebé e não se deterão até o conseguirem.
Jack fechou os olhos. Por um momento, pareceu extenuado.
- Lutámos para salvar este mundo - disse. - Demos tudo por este mundo, enfrentámos os sheks, Ashran, os deuses... e é assim que nos pagam? - disse com amargura.
Tinha levantado a voz e Shail pediu-lhe que baixasse o tom, embora, reconheceu, estivesse totalmente de acordo com ele.
Victoria regressou. Tinha posto uma bolsa às costas e outra repousava junto aos seus pés. Jack pegou nela e meteu-a ao ombro. Victoria continuava a embalar o seu choroso bebé.
- Vai buscar Erik - disse a Jack. - Deixei-o dormir um pouco mais. Jack assentiu. Quando desapareceu à procura do menino, Shail e Victoria fitaram-se.
- Lamento, Vic - disse ele. - Lamento imenso. Nunca... nunca pensei que as coisas tomassem este rumo.
Victoria abanou a cabeça com os olhos cheios de lágrimas.
Naquele momento chegou Jack, arrastando atrás de si Erik, que esfregava os olhos, cheio de sono.
Saíram para o alpendre, à pressa. Victoria ficou ainda um pouco mais na porta, contemplando o lugar que tinha sido o seu lar nos últimos tempos. Tinha sido feliz naquela casa. A sua família tinha sido feliz naquela casa. Respirou fundo, desejando que fosse tudo um sonho mau, que não a obrigassem a partir dali depois de tudo.
Mas era uma esperança vã.
Jack apertou suavemente o seu braço.
- Temos de ir - disse-lhe ao ouvido. Victoria engoliu as lágrimas e assentiu.
Pouco depois corriam pelo bosque. Viram as sombras dos dragões a sobrevoar as copas das árvores. Não demorariam a encontrar um lugar onde pousar e então iriam buscá-los à casa... Victoria imaginou-os a entrar nela violentamente, revolvendo as suas coisas, revolvendo a sua vida, expulsando-os daquele pequeno oásis de felicidade. "Porquê?", perguntava-se uma e outra vez.
Chegaram por fim à clareira onde, há várias semanas, estavam a preparar uma possível fuga. Havia um enorme hexágono traçado no chão, rodeado dos símbolos arcanos correspondentes.
Jack hesitou.
- Tens a certeza de que sabes como abri-la? Pensava que só os feiticeiros mais poderosos podiam fazê-lo.
Shail bufou.
- Passei anos em Limbhad a estudar as Portas interdimensionais, procurando uma maneira de regressar a casa. Sei a teoria de cor. Só preciso de um pouco mais de poder.
Victoria captou a mensagem e assentiu. Estendeu o bebé a Jack e retirou o báculo da sua bolsa. Levantou-o ao alto para permitir que absorvesse energia do ambiente. A resposta foi rápida e eficaz; desde que os deuses tinham andado pela superfície do mundo, este estava muito mais carregado de energia do que antes, mais vibrante, mais vivo.
A jovem estendeu a outra mão e colocou-a no ombro de Shail. Imediatamente, começou a transmitir-lhe energia.
- De acordo - murmurou Shail. - Vamos lá.
Não possuía o poder que Christian tinha para abrir Portas interdimensionais de forma instantânea, mas conhecia a fórmula, sabia quais eram os passos e agora tinha a energia necessária.
Lenta, muito lentamente, a Porta para a Terra foi-se abrindo. Quando as vozes dos seus perseguidores já ecoavam no bosque, Shail acabou de abrir uma brecha suficientemente larga para que conseguissem passar.
- Já está - arquejou. - Vão!
Victoria assentiu. Aproximou-se dele e estendeu-lhe algo alongado, que estava cuidadosamente envolto num pano.
- Cuida disto - disse. - Não conheço ninguém que mereça tê-lo mais do que tu. Faz bom uso dele e, sobretudo, que ninguém saiba que o tens. Poderias ter problemas.
Shail desembrulhou-o parcialmente, com curiosidade. Algo branco e brilhante como um raio de luar emergiu de entre as dobras do tecido. O feiticeiro ficou paralisado de surpresa.
- Isto é... - conseguiu dizer por fim. - É um corno de unicórnio!
- É o meu corno - assentiu Victoria. - O que Ashran me arrancou. Encontrámo-lo na árvore de Gerde depois da Batalha dos Sete.
- E porque é que... - começou ele, ainda aturdido - ... porque é que não o disseram a ninguém?
Victoria e Jack trocaram um olhar casual. As palavras eram desnecessárias. Shail entendeu e estreitou o embrulho contra o peito.
- Serei digno dele - prometeu. Hesitou antes de perguntar: - Consigo... consigo consagrar novos feiticeiros com isto? Posso tocar-lhe sem que me faça mal?
- Podes - assentiu Victoria -, porque é o meu corno e eu ofereço-to. Shail engoliu em seco, emocionado. Foi incapaz de continuar a falar, pelo que Victoria acrescentou:
- Obrigada por tudo, Shail.
Abraçou-o com força e o feiticeiro correspondeu ao seu abraço, emocionado.
- Minha pequena Victoria - sussurrou. - Espero que encontres a paz e a felicidade que mereces.
Victoria inspirou fundo.
- Obrigada - conseguiu dizer -, desejo-te o mesmo a ti. Por favor, despede-te de Zaisei por mim, e de toda a gente. Vamos sentir saudades vossas.
- O mesmo digo eu - interveio Jack. - Mas espero que isto não seja uma despedida para sempre. Espero que voltemos a ver-nos em Limbhad.
Shail sorriu.
- Eu também.
Despenteou o cabelo de Erik e deu-lhe um forte abraço. Depois abraçou Jack. Contemplou a pequenina que ele tinha nos braços e que permanecia serena e calada, como se intuísse o perigo que os ameaçava.
- Tudo por uma coisa tão pequena...
- É apenas um bebé - disse Victoria, à beira das lágrimas. - Não fez mal a ninguém.
Shail não soube o que responder. Voltou a contemplar o bebé.
- Adeus, Eva - sussurrou. - Adeus, pequena Lune.
A menina olhou para ele muito séria. Os seus olhos eram azuis como o gelo.
- Daria a minha vida para a proteger, Shail - disse Jack, com voz rouca.
- Eu sei - sorriu Shail. - Oxalá tudo vos corra bem.
- Vai correr, porque estaremos todos juntos. Christian vai adorar conhecer Eva. Temos de ver a cara que ele vai fazer - acrescentou com um sorriso rasgado. - Não perderia isso por nada do mundo.
Victoria sorriu também. O seu rosto iluminou-se, e Jack ficou contente por ter mencionado Christian. A amargura por abandonar o seu lar, por virar as costas a Idhún, poderia mitigar-se um pouco com a alegria de se reencontrar com o shek. A jovem tomou a menina dos braços de Jack.
- Christian - sussurrou Victoria ao ouvido da bebé. - Vamos voltar a ver Christian, Eva.
Jack sorriu e rodeou a sua cintura com o braço que tinha livre. com o outro sustinha Erik.
Depois de se despedir de Shail pela última vez, os quatro deram o passo que os levaria para longe de Idhún, de volta a casa. Não sabiam o que os esperava lá. Não sabiam se seriam bem recebidos no mundo que uma vez os vira nascer, nem se os seus filhos, nascidos idhunitas, poderiam ser crianças normais na Terra ou, pelo contrário, manifestariam poderes herdados dos seus extraordinários pais. Não podiam sabê-lo, mas, naquele momento, não lhes importava.
Regressavam a casa.
Laura Gallego García
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